Biblio VT
Series & Trilogias Literarias
Em Frankenstein - O Filho Pródigo e Frankenstein - A Cidade das Trevas, Dean Koontz começou a contar uma nova versão do clássico da literatura gótica, na qual o demoníaco Victor Frankenstein continua a tentar criar uma raça de seres perfeitos, e apenas Deucalião, o seu primeiro "monstro", parece ser capaz de lhe fazer frente.
Com Frankenstein - Morto e Vivo, a saga do criador e da criatura continua. Com a cidade de Nova Orleães ameaçada por um furacão devastador e também pelo caos causado pelas infernais criaturas de Victor Helios (antes conhecido como Dr. Victor Frankenstein), o futuro da humanidade parece estar em perigo. Deucalião prepara-se para confrontar o seu"criador, mas antes que isso possa acontecer, ambos terão de fazer frente a uma criatura saída dos piores pesadelos coletivos do ser humano, com poderes - e objetivos -inconcebivelmente cruéis...
1.
A meio de uma noite sem vento, a chuva abateu-se sobre o Golfo, na costa e nos paredões: desfiles de cavalos-fantasmas a baterem ritmicamente com os cascos em telhados isolados, de zinco, de telha, de
ardósia, a contarem a cadência pelas avenidas fora.
Regra geral, Nova Orleães era uma cidade notívaga onde restaurantes e clubes de jazz estavam abertos quase até à hora do pequeno--almoço mas, nesta ocasião, não fazia jus a si própria. Pouco tráfego havia
nas ruas. Muitos restaurantes fechados desde cedo. Por falta de clientela, alguns dos clubes estavam às escuras e em silêncio.
Transitava um furacão pelo Golfo, bem a sul da costa da Luisiana. O Serviço de Meteorologia Nacional previra aluimento de terras perto de Brownsville, Texas, mas a tempestade poderia mudar de curso. Nova
Orleães aprendera a respeitar o poder da Natureza à custa de más experiências.
Deucalião saiu do Luxe Theater sem passar pela porta, e entrou noutro bairro da cidade, saiu da luz para as sombras por baixo das ramadas de carvalhos cobertos de musgo.
A luz dos candeeiros, os feixes de chuva pareciam prata manchada mas, por baixo dos carvalhos, a precipitação parecia negra de tinta, como se não fosse chuva mas sim um produto das trevas, o próprio suor
da noite.
Embora uma tatuagem complexa distraísse os curiosos de reconhecerem a extensão dos danos que lhe tinham estragado a cara, Deucalião preferia aventurar-se em sítios públicos entre o ocaso e a alvorada.
As horas sem sol facultavam-lhe uma camada adicional de dissimulação.
Não podia esconder o seu tamanho e a sua força física formidáveis. Mesmo depois de viver mais de duzentos anos, não havia ossos fracos nem músculos atrofiados naquele corpo. O tempo parecia não ter o poder
de o erodir.
Ao longo do passeio, Deucalião passou por sítios onde o brilho dos candeeiros de rua penetrava nas frondosas copas das árvores. A luz mercurial afugentava da memória a multidão de archotes em punho, que
perseguira Deucalião numa noite fria e sem chuva, num continente longe deste, numa era anterior à eletricidade.
10
Do outro lado da rua, ocupando um quarteirão inteiro, ficavam as Mãos da Misericórdia, numa propriedade à sombra dos carvalhos. Outrora um hospital católico, há muito fechado.
Havia uma vedação alta de ferro forjado a rodear o recinto. Encimada por pontas de lança, sugeria que, onde outrora se oferecia misericórdia, agora não se encontrava nenhuma.
O sinal no portão do acesso a viaturas avisava: ARMAZÉM PARTICULAR / entrada PROIBIDA. As janelas emparedadas não tinham luz.
Na entrada principal estava uma estátua da Virgem Maria. A luz que outrora nela incidia fora retirada, e a figura encapuzada a pairar na escuridão poderia ser a da Morte, ou outra qualquer.
Apenas horas antes, Deucalião ficara a saber que esse edifício albergava o laboratório do seu criador, Victor Helios, cujo nome de nascença já era lenda: Frankenstein. Ali concebiam-se, criavam-se e programavam-se
membros da Nova Raça.
Era provável que o sistema de segurança vigiasse todas as entradas. Que as trancas fossem difíceis de derrotar.
Graças aos dons trazidos pelo relâmpago que lhe dera vida num laboratório mais incipiente e primitivo, Deucalião não precisava de portas. As trancas não eram impedimento para ele. Intuitivamente, abarcara
a natureza quântica do mundo, incluindo a verdade de que, ao nível estrutural mais profundo, todos os lugares no mundo são os mesmos lugares.
Enquanto ponderava aventurar-se no atual covil do seu criador, Deucalião não sentia medo. Se emoção houvesse que o desarmasse, seria a raiva. Porém, naquelas muitas décadas, aprendera a controlar a raiva
que outrora o impelira com tanta facilidade para a violência.
Saiu da chuva e entrou no laboratório principal das Mãos da Misericórdia, molhado quando iniciou esse passo, seco quando o concluiu.
O imenso laboratório de Victor era uma maravilha de tecnologia mesclada com Art Déco, maioritariamente aço inoxidável e cerâmica branca, cheio de equipamento estiloso e misterioso que parecia não estar
encostado às paredes, mas sair delas, encastrado nelas. Outras máquinas irrompiam do teto e erguiam-se do chão, polidas e reluzentes, embora sugerissem formas orgânicas.
Cada ruído era ritmado, um ronronar e zumbir e clicar de maquinaria. Parecia tudo deserto.
Gases luminosos em cor de safira, cor-de-rosa-prímula e verde-maçã enchiam esferas de vidro. Por espirais complexas de tubagens transparentes corriam fluidos cor de alfazema, azul-calamina e laranja-metilo.
11
O posto de trabalho de Victor, em forma de U, ficava no centro do laboratório, uma mesa com tampo de granito numa base de aço inoxidável.
Enquanto Deucalião pensava em revistar as gavetas, alguém atrás dele perguntou:
- Não se importa de me ajudar, senhor?
O homem tinha um fato-macaco de ganga cinzenta. Num cinto de
ferramentas à cintura trazia pulverizadores com líquidos de limpeza,
panos brancos e pequenas esponjas. E uma esfregona na mão.
- Chamo-me Lester - disse ele. - Sou Ipsilon. O senhor parece mais esperto do que eu. É mais esperto do que eu?
- O seu criador está cá? - perguntou Deucalião.
- Não, senhor. O Pai saiu mais cedo.
- Quantos efetivos há?
- Não costumo contar. Os números confundem-me. Uma vez ouvi dizer que éramos oitenta. Portanto, o Pai não está cá, e agora aconteceu uma coisa, e eu sou apenas um Ipsilon. O senhor parece ser um Alfa ou
Beta. É Alfa ou Beta?
- O que aconteceu? - perguntou Deucalião.
- Ela diz que o Werner está preso na Sala de Isolamento número Um. Não, talvez seja na número Dois. Seja como for, número qualquer coisa.
- Quem é o Werner?
- O chefe da segurança. Ela queria instruções, mas eu não dou instruções, sou apenas o Lester.
- Quem quer instruções?
- A mulher dentro da caixa.
Enquanto Lester falava, o computador na secretária de Victor iluminou-se e no ecrã apareceu uma mulher de beleza tão perfeita que o rosto só poderia ser uma criação digital.
- Senhor Helios, Helios. Bem-vindo a Helios. Sou a Annunciata. Já não sou tão Annunciata quanto antes, mas ainda estou a tentar ser a Annunciata de que sou capaz. Estou agora a analisar os meus hélios,
senhor Sistemas. Os meus sistemas, senhor Helios. Sou boa menina.
- Ela está dentro de uma caixa - disse Lester.
- Um computador - observou Deucalião.
- Não. Uma caixa na sala de rede. Ela é um cérebro Beta numa caixa. Não tem corpo. As vezes o contentor dela verte, e eu limpo o que cai.
12
Annunciata disse:
- Estou ligada. Estou ligada. Estou ligada ao sistema de processamento de dados do edifício. Sou secretária do senhor Helios. Sou muito esperta. Sou boa menina. Quero servir com eficiência. Sou boa menina,
boa. Tenho medo.
- Ela não costuma ser assim - disse Lester.
- Talvez haja um des-des-des-desequilíbrio no meu aporte de nutrientes. Não consigo analisar. Não se importam de analisar o meu aporte de nutrientes?
- Autoconsciente, encerrada numa caixa para sempre - comentou Deucalião.
- Tenho muito medo - disse Annunciata.
Deucalião sentiu as próprias mãos a fecharem-se em punhos.
- Não há nada que o seu criador não faça. Não há forma de escravatura que o ofenda, não há crueldade que o ultrapasse.
Pouco à vontade, a passar o peso do corpo de um pé para outro como um rapazinho aflito para ir à casa de banho, Lester disse:
- Ele é um grande génio. Ainda é mais esperto do que um Alfa. Deveríamos estar-lhe agradecidos.
- Onde fica a sala de rede? - perguntou Deucalião.
- Deveríamos estar-lhe agradecidos.
- A sala de rede. Onde está esta... mulher?
- Na cave.
No ecrã do computador, Annunciata disse:
- Tenho de organizar a agenda de compromissos do senhor Helios, Helios, mas não me lembro do que é um compromisso. Pode ajudar--me, ajudar-me, ajudar-me?
- Sim - respondeu Deucalião. - Posso ajudá-la.
2.Quando o rapaz das entregas de piza, à procura da casa dos Ben-nets, cometeu o erro de entrar na casa dos Guitreau, ao lado, Janet Guitreau até ficou admirada consigo mesma quando o arrastou para o vestíbulo
e o estrangulou até ele morrer.
Janet e o marido, Bucky Guitreau, o atual procurador da cidade de Nova Orleães, eram réplicas. Os corpos dos verdadeiros Janet e Bucky já tinham sido enterrados semanas antes num vasto aterro acima e a
noroeste do Lago Pontchartrain.
A maioria dos elementos da Nova Raça não era réplica. Eram originais, completamente concebidos pelo Pai. Porém, as réplicas eram cruciais para ganhar controlo sobre o aparelho político da cidade.
Janet desconfiava de que lhe tinham desaparecido algumas linhas de código de programação significativas, e Bucky sentia-se inclinado a concordar com ela.
Janet tinha, não só, matado sem que o criador assim lho tivesse ordenado, como também se sentira bem com isso. Aliás, sentia-se belissimamente bem.
Queria ir à casa ao lado matar os Bennets.
- Matar é uma sensação maravilhosamente refrescante. Sinto-me tão viva.
Bucky devia ter dado parte dela a Helios para que ele a destruísse, mas estava tão siderado com a audácia dela, e tão intrigado, que não se conseguia convencer a telefonar para o número de emergência do
Pai.
A situação sugeria a ambos que Bucky também perdera algumas linhas de código no seu programa. Não lhe parecia ser capaz de matar, mas estava empolgado com a perspetiva de ver Janet destruir os Bennets.
Quase correram para a porta dos vizinhos, mas o rapaz das pizas morto no vestíbulo parecia digno de mais análise, visto que era o primeiro de Janet.
- Afinal - disse Bucky -, se fosses caçadora e este tipo fosse um veado, tiraríamos centenas de fotografias e cortar-lhe-íamos as antenas para as pendurar por cima da lareira.
Janet arregalou os olhos.
- Ouve, queres cortar alguma coisa, pendurá-la por cima da lareira?
14
- Talvez não fosse inteligente, mas de certeza que me apetece tirar fotografias.
- Vai buscar a máquina - disse Janet -, que eu vou procurar o melhor cenário.
Quando Bucky foi ao segundo andar buscar a máquina fotográfica que estava no roupeiro do quarto deles, descobriu o Duque de Orleães a observar o vestíbulo do cimo da escada.
O Duque era um bonito pastor-alemão, preto e cor de caramelo com duas botinhas brancas. Desde que as versões Nova Raça de Bucky e Janet tinham entrado na sua vida, semanas antes, ele andava confuso e cauteloso.
Pareciam-se com os donos dele, mas ele sabia que não eram. Tratava-os com respeito mas permanecia distante, não mostrava afeto, coisa que eles também não queriam, fosse como fosse.
Quando Bucky chegou ao cimo da escada, o Duque esgueirou-se para um dos quartos de visitas.
Helios pensara em mandar matar o cão quando destruíra os originais Bucky e Janet.
Ora, o Duque era um ícone em Nova Orleães: salvara duas rapariguinhas de uma casa a arder e era tão bem-comportado que acompanhava amiúde o dono ao tribunal. Se falecesse daria uma grande notícia de interesse
humano, e até lhe poderiam fazer um funeral de jazz. Atrairia demasiada atenção sobre o casal de réplicas recentemente instalado.
Além disso, o verdadeiro Bucky Guitreau era um sentimentalão que adorava o cão a tal ponto que toda a gente estaria à espera que ele chorasse copiosamente em qualquer serviço fúnebre. Regra geral, a Nova
Raça não sabia fingir desgosto, e era mais fácil que uma estátua da Virgem Maria começasse a chorar do que ver assim alguém nascido num tanque de criação.
Com a máquina fotográfica em punho, o novo Bucky correu escada abaixo e encontrou Janet e o rapaz das pizas na sala de estar. Ela pusera o morto numa poltrona luxuosa. Sentara-se no braço e, agarrada a
um punhado de cabelo do cadáver, estava de cabeça erguida em pose para a máquina.
Passaram o cadáver para o sofá, onde Janet se sentou ao lado dele, e depois para um banco alto no bar do escritório, onde Janet deixou a cabeça dele encostada ao seu ombro, como se o Rapaz da Piza estivesse
bêbedo. Carregaram o corpo para várias outras divisões da casa, tiraram fotografias com chapéus de senhora na cabeça dele, e depois
15
despiram-no e vestiram-lhe roupa interior feminina para mais fotografias.
Nunca se riram durante o processo todo. Os elementos da Nova Raça eram capazes de soltar gargalhadas convincentes, mas a sua alegria não era genuína. Fizeram o que fizeram com o morto porque o seu ódio
pela Velha Raça era intenso, e aquilo parecera-lhes boa maneira de exprimir esse ódio.
O cão seguiu-os nesta sessão fotográfica, a observá-los das entradas das várias divisões, mas nunca se aproximou.
Finalmente, despiram outra vez o Rapaz da Piza, amarraram-lhe uma corda ao pescoço, içaram-no sobre uma viga na sala de estar e deixaram-no pendurado como um enorme peixe na balança da doca. Janet pôs-se
ao lado do cadáver, como que orgulhosa da sua pescaria.
- Sabes o que me parece que estamos a fazer? - perguntou ela.
Todo aquele comportamento parecera razoável a Bucky, como lhe
parecera a ela, embora ele não soubesse porquê. E retrucou:
- O que é que estamos a fazer?
- Acho que nos estamos a divertir.
- Poderá ser isto um divertimento?
- Acho que sim - respondeu Janet.
- Bem, é mais interessante do que qualquer outra coisa que já tenhamos feito. O que mais queres fazer com ele?
- Está a ficar um pouco aborrecido - disse Janet. - Acho que agora já é altura de irmos ali ao lado matar os Bennets.
O Bucky original tinha duas armas em casa.
- Queres levar uma pistola, rebentar-lhes com o focinho?
Janet ponderou naquilo mas depois abanou a cabeça.
- Não me parece grande divertimento.
- Queres levar uma faca ou aquela espada da Guerra Civil que está na parede do meu escritório?
- Aquilo que eu quero - atalhou Janet - é apenas matá-los aos dois com as minhas próprias mãos.
- Estrangulá-los?
- Isso já está visto.
- Então o que lhes vais fazer?
- Oh, tenho mil ideias na cabeça.
- Levo a máquina? - perguntou ele.
- De certezinha, leva a máquina.
16
- Se calhar podemos pôr estas fotografias todas num álbum - sugeriu Bucky. - É o que as pessoas fazem.
- Parece-me bem, mas nós não somos pessoas a sério.
- Não vejo porque é que não podemos ter um álbum. Em muitos aspetos, somos semelhantes a pessoas.
- Só que somos superiores. Somos a super-raça.
- Somos mesmo a super-raça - concordou Bucky. - Não tarda a que dominemos o mundo, colonizemos a Lua e Marte. Seremos donos do Universo. Portanto parece-me que podemos ter um álbum de fotografias, se nos
apetecer. Quem é que nos vai dizer que não podemos?
- Ninguém - rematou Janet.
3.
Sozinho na cozinha institucional das Mãos da Misericórdia, Ripley sentou-se num banco alto numa das ilhas de aço inoxidável. Com as mãos, despedaçou um presunto com quilo e meio e estava a encher a boca
com os pedaços.
O homem médio da Nova Raça precisava de cinco mil calorias por dia para manutenção, duas vezes e meia mais do que o homem médio da Velha Raça. Recentemente, Ripley começara a enfardar, e ingeria dez mil
calorias, ou mais, de uma assentada.
O despedaçar era mais satisfatório do que o comer propriamente dito. Atualmente, a necessidade de desfazer coisas - especialmente carne - dominava Ripley. A carne cozinhada servia de substituto da carne
crua, da carne da Velha Raça, aquilo que ele mais queria desfazer.
Ninguém da sua raça tinha autorização para matar ou ser capaz de matar - até que o Apicultor assim o determinasse.
Era a alcunha que Ripley dava a Victor Helios. Muitos dos outros chamavam-lhe Pai, mas o senhor Helios ficava agastado quando os ouvia empregar esse termo.
Não eram filhos do seu criador. Eram propriedade dele. Ele não lhes devia responsabilidades. Eles deviam-lhe toda a espécie de responsabilidade.
Ripley comeu o presunto inteiro, sempre a recordar-se de que o Apicultor tinha um plano genial para um novo mundo.
A família é uma instituição obsoleta, e também é perigosa porque se pretende acima do bem comum da raça. A relação pai-filho deve ser erradicada. O único vínculo dos elementos da Nova Raça, nascidos nos
tanques já adultos, deve estabelecer-se com a comunidade organizada que Helios pretende, não uns com os outros, mas sim com a comunidade, aliás, com a ideia de comunidade, mais do que com esta propriamente
dita.
De uma das duas câmaras frigoríficas, Ripley tirou um lombo de vaca inteiro, cozinhado, com um quilo de peso. E levou-o para a ilha que lhe servia de mesa.
As famílias geram indivíduos. Os tanques de criação geram abelhas obreiras, cada qual com uma função específica a desempenhar. Sabendo o seu lugar e o sentido da sua vida, pode viver-se satisfeito como
18
nenhum elemento da Velha Raça alguma vez poderá. O livre-arbítrio é o flagelo da Velha Raça. O objetivo programado é a glória da Nova Raça.
O enxame era a família, a colmeia era o lar, e o futuro pertencia à horda.
Com os dedos, rasgou o lombo. A carne parecia-lhe gordurosa. Embora estivesse bem passada, ele ainda cheirava o sangue dentro dela.
Por mais que comesse, Ripley não aumentava nem um quilo. O seu metabolismo extraordinariamente eficiente mantinha-o sempre com o peso ideal.
Por conseguinte, a gula não era uma indulgência. Em derradeira análise, também não era uma distração. Ele não conseguia parar de pensar em Werner, o chefe da segurança das Mãos da Misericórdia.
Horas antes, Werner sofrera aquilo a que o Apicultor chamara "uma catastrófica metamorfose celular". Deixara de ser Werner, deixara de ser humano para todos os efeitos, e tornara-se... noutra coisa.
Aquando da sua criação, concebido para ser um perito em segurança fisicamente imponente, Werner recebera material genético selecionado de uma pantera para aumentar a sua agilidade e velocidade, de uma
aranha para aumentar a ductilidade dos seus tendões, de uma barata para assegurar maior força tênsil no seu colagénio... Quando Werner de súbito ficara amorfo, aquelas formas felinas, aracnídeas e insetíferas
haviam começado a exprimir-se na sua carne, primeiro sucessivamente, depois simultaneamente.
O senhor Helios apelidara Werner de singularidade. Aquela calamidade nunca antes se dera. Segundo o Apicultor, nunca mais se daria.
Ripley já não estava assim tão certo disso. Talvez não acontecesse outra vez algo exatamente como o que acontecera a Werner, mas poderia haver uma quantidade infinita de outras calamidades iminentes.
Enquanto assistente de laboratório principal do Apicultor, Ripley era demasiado instruído para conseguir reprimir a ansiedade. No tanque de criação, recebera carregamento de dados diretamente no cérebro,
e nele uma profunda formação na fisiologia dos seres humanos tal como a Natureza os fazia, e dos super-humanos como Victor Helios os criava.
Não havia ninguém na Velha Raça que se pudesse metamorfosear num animal de natureza múltipla. Aquela sina grotesca deveria ser igualmente impossível para um elemento da Nova Raça.
19
A transformação de Werner sugeria que o Apicultor poderia ser falível. A surpresa que o Apicultor manifestara pela mudança de Werner confirmava tal falibilidade.
Depois de terminar o lombo sem satisfazer o apetite nem acalmar a ansiedade, Ripley saiu da cozinha e foi perambular pelos corredores das Mãos da Misericórdia. O senhor Helios fora para casa. Porém, mesmo
àquelas horas tardias, num labirinto de laboratórios, havia Alfas a efetuarem experiências e a desempenharem tarefas segundo as instruções do seu criador.
Ripley deixou-se ficar sobretudo pelos corredores, sentindo-se pela primeira vez nervoso quanto ao que poderia descobrir nos laboratórios se lá entrasse, e acabou por chegar à concentração de monitores
que supervisionavam as câmaras de isolamento. Segundo as luzes indicadoras na consola de controlo, só estava atualmente ocupada a Sala de Isolamento número Dois; era onde estava o desventurado Werner.
Cada sala tinha seis câmaras de vídeo em circuito fechado que cobriam diferentes ângulos. Uma fiada de seis ecrãs permitia supervisão simultânea de todas as três unidades de contenção, ou dava uma dúzia
de vistas de uma única câmara. As legendas no fundo dos ecrãs indicavam que estavam agora sintonizados na Sala de Isolamento número Dois.
O chão, as paredes e o teto daquele espaço sem janelas com um metro por metro e meio eram feitos de betão reforçado a aço e deitado no local. Tinham sido revestidos com três camadas de placas de aço que,
mediante o comando de um interruptor, podiam emitir uma descarga de eletricidade ao ocupante.
O Apicultor por vezes criava variantes exóticas da Nova Raça, algumas das quais destinadas a ser guerreiros, máquinas vivas de matar, que ajudariam na eficiente aniquilação da Velha Raça, quando por fim
chegasse o dia da revolução. Ocasionalmente, havia problemas na programação pré-natal daquelas criaturas que as deixavam indisciplinadas ou até desobedientes, e nesse caso precisavam de ser sedadas e transferidas
para isolamento, a fim de serem estudadas e, posteriormente, destruídas.
Aquele que outrora fora Werner não aparecia em nenhum dos ecrãs. As seis câmaras cobriam todos os cantos da sala, não deixavam nada oculto.
Espalhados pela sala estavam os restos mortais de Patrick Duchaine, uma das criações do Apicultor que fora mandada à câmara de isolamento para pôr à prova as capacidades da coisa-Werner.
20
Havia um módulo de transição a ligar os monitores de supervisão à Sala de Isolamento número Dois. Em cada extremidade do módulo, uma maciça porta de aço redonda como a do cofre de um banco. As portas estavam
programadas para não se poderem abrir ao mesmo tempo.
Ripley olhou para a porta do seu lado do módulo de transição. Nada ao cimo da Terra, quer fosse natural, quer fosse criada por Helios, poderia passar pelos sessenta centímetros de espessura daquela barreira
de aço.
Uma câmara dentro da sala de isolamento revelava que a porta interior também permanecia fechada.
Ripley duvidava de que a coisa-Werner andasse à solta dentro do edifício. Assim que alguém a visse, soaria um alarme.
Só restava uma possibilidade. A dada altura, a porta interior poderia ter-se aberto tempo suficiente para que a criatura entrasse no módulo de transição antes que ela se fechasse atrás de si. Nesse caso,
estaria à espera, não atrás de duas barreiras de aço, mas apenas de uma.
4.
Na altura em que Bucky e Janet Guitreau chegaram aos degraus do alpendre da casa dos Bennets estavam encharcados da chuva.
- Devíamos ter trazido chapéu - disse Bucky. - Assim parecemos estranhos.
Estavam tão entusiasmados por irem matar os Bennets que nem tinham pensado no tempo agreste.
- Se calhar parecemos tão estranhos que eles não nos deixam entrar - disse Bucky em voz aflita. - Especialmente a esta hora.
- Eles são notívagos. Não é tarde para eles. Devem deixar-nos entrar - garantiu Janet.
- Vamos dizer que aconteceu uma coisa horrível, que precisamos de falar com eles. É assim que os vizinhos fazem, consolam-se uns aos outros quando acontecem coisas horríveis.
Além das portadas e das dobras dos cortinados acetinados, as salas da frente estavam inundadas de luz suave e ambarina.
A subirem os degraus, Bucky perguntou:
- E que coisa horrível é que aconteceu?
- Eu matei o rapaz das entregas de pizas.
- Não me parece que nos deixem entrar se contarmos isso.
- Não vamos contar isso. Vamos só dizer que aconteceu uma coisa horrível.
- Uma coisa horrível não especificada - esclareceu Bucky.
- Isso, exatamente.
- Se der certo, devem ser gente espantosamente crédula.
- Bucky, não somos estranhos. Eles são nossos vizinhos. Além disso, eles adoram-nos.
- Eles adoram-nos?
À porta, Janet falou mais baixo.
- Há três serões estivemos aqui para um churrasco. A Helene disse "Nós gostamos mesmo de vocês." Não te lembras?
- Mas estavam tocados. A Helene já não estava nada sóbria quando disse isso.
- Não obstante, falou a sério. Eles adoram-nos, vão deixar-nos entrar.
De súbito, Bucky ficou desconfiado.
- Como é que nos podem adorar? Nem sequer somos as pessoas que eles pensam que somos.
22
- Eles não sabem que não somos as pessoas que eles pensam que somos. Nem sequer saberão quando eu começar a matá-los.
- Estás a falar a sério?
- Completamente - disse Janet, e tocou à campainha.
- A Velha Raça é assim tão fácil de lidar?
- São uns bananas - declarou Janet.
- Bananas?
- Rematados bananas. - Acendeu-se a luz do alpendre, e Janet perguntou:
- Trouxeste a máquina?
Quando Bucky tirou a máquina fotográfica do bolso das calças, Helene Bennett apareceu num clarão de luz lateral, à esquerda da porta, com ar admirado por vê-los.
Janet falou mais alto para se fazer ouvir além do vidro e disse:
- Oh, Helene, aconteceu uma coisa horrível.
- A Janet matou o rapaz das pizas - disse Bucky em voz baixa de modo a Helene não o ouvir, só para a mulher, porque lhe pareceu o tipo de coisa a dizer quando nos estamos a divertir, e aquilo era o mais
próximo de divertimento que eles jamais tinham tido.
Helene franziu o semblante de preocupação e afastou-se da luz lateral.
Quando Bucky ouviu Helene abrir a primeira das duas trancas, disse a Janet:
- Faz-lhe qualquer coisa espetacular.
- Odeio-a tanto - retrucou Janet.
- Eu também a odeio - anuiu Bucky. - Odeio-o a ele. Odeio-os a todos. Faz-lhe qualquer coisa realmente espantosa.
Helene destrancou o segundo ferrolho, abriu a porta e deu um passo atrás para os deixar entrar. Era uma loura atraente com uma covinha amorosa na face direita, embora naquele momento não se visse porque
ela não estava a sorrir.
- Janet, Bucky, parecem destroçados. Oh, Deus, até tenho medo de perguntar, o que aconteceu?
- Aconteceu uma coisa horrível - respondeu Janet. - Onde está o Yancy?
- Está no alpendre das traseiras. Estamos a beber um copo e a ouvir Etta James. O que aconteceu, fofa, o que se passa?
Bucky fechou a porta atrás de si e respondeu:
- Aconteceu uma coisa horrível.
23
- Oh, não - disse Helene, em voz transtornada. - Nós gostamos muito de vocês. Parecem abalados. E estão ensopados, a molhar o soalho todo. O que aconteceu?
- Aconteceu uma coisa horrível não especificada - respondeu Bucky.
- Estás pronto com a máquina? - perguntou Janet.
- Pronto - confirmou Bucky.
- Máquina? - inquiriu Helene.
- Queremos isto para o nosso álbum - disse Janet, e fez algo ainda mais espetacular a Helene do que qualquer coisa que Bucky pudesse ter imaginado.
Aliás, foi tão espetacular que ele ficou siderado, a máquina fotográfica esquecida, e perdeu um instantâneo da melhor parte.
Janet era uma locomotiva desenfreada de raiva, uma serra de madeira de ódio, um martelo pneumático de crueldade movida a inveja. Felizmente, não matou logo Helene, e algumas das coisas seguintes que ela
fez à mulher, embora menos espetaculares por si só, eram suficientemente menos chocantes para que Bucky conseguisse tirar umas fotos jeitosas.
Quando terminou, Janet disse:
- Creio que perdi mais umas linhas de código na minha programação.
- Assim me pareceu - anuiu Bucky. - Lembras-te de quando disse que gostaria de ver? Bem, gostei mesmo.
- Queres o Yancy só para ti? - perguntou Janet.
- Não, ainda não estou assim tão à frente, mas é melhor deixá-lo vir para dentro. Se ele te vir assim lá fora, há de desaparecer num instante.
Janet ainda estava ensopada mas agora não era só de chuva.
O alpendre estava mobilado com móveis de verga confortáveis, almofadas amarelas e mesas de tampos de vidro. Havia biombos. As luzes estavam menos intensas do que a música.
De camisa de linho branca, calças beges e sandálias, Yancy Bennet estava sentado a uma mesa onde havia dois copos do que seria provavelmente Cabernet, bem como um decantador onde ficara mais vinho a respirar
e a abrir.
Quando viu Bucky Guitreau, Yancy baixou o volume da música de Etta James.
- Olá, vizinho, não devia já estar deitado?
24
- Aconteceu uma coisa horrível - disse Bucky quando se aproximou de Yancy. - Uma coisa horrível, horrível.
Yancy Bennet afastou a cadeira da mesa, pôs-se de pé e perguntou:
- O que foi? O que aconteceu?
- Nem sequer consigo falar sobre isso - disse Bucky. - Nem sei como falar sobre isso.
Yancy pôs a mão no ombro de Bucky e disse:
- Ouça, amigo, seja lá o que for, tem o nosso apoio.
- Pois, eu sei. Temos o vosso apoio. Prefiro que seja a Janet a contar--lhe. Eu não sei ser específico. Ela sabe ser específica. Está lá dentro. Com a Helene.
Yancy tentou que Bucky entrasse à sua frente, mas este deixou-o passar.
- Dê-me umas dicas, Bucky.
- Não posso. Não consigo. É horrível de mais. É uma coisa espetacularmente horrível.
- Seja lá o que for, espero que a Janet se aguente melhor do que você.
- E aguenta - reiterou Bucky. - Está a aguentar-se muito bem.
Bucky entrou na cozinha atrás de Yancy e fechou a porta do alpendre.
- Onde estão elas? - perguntou Yancy.
- Na sala.
Quando Yancy avançou para o corredor obscurecido que dava para a frente da casa, Janet apareceu à luz da cozinha.
Era a noiva da Morte tingida de carmesim.
Chocado, Yancy parou.
- Oh, Deus, mas que é que lhe aconteceu?
- A mim não aconteceu nada - disse Janet. - Eu é que aconteci à Helene.
Um instante depois, ela acontecia a Yancy. Ele era um homem grande, e ela, uma mulher de tamanho médio, mas ele era da Velha Raça, e ela, da Nova Raça, e o resultado foi inevitável como o de um concurso
entre um cortador de madeira e um pica-pau.
O mais espantoso de tudo: Janet nem por uma vez se repetiu. O ódio maligno que votava à Velha Raça exprimiu-se em novos e únicos requintes de malvadez.
Nas mãos de Bucky, a máquina fotográfica disparava sem parar.
5.
Sem o látego do vento, a chuva não fustigava as ruas mas caía pesada e dissuasora, pintava o alcatrão ainda mais negro, oleava o pavimento.
A detetive de homicídios Carson O'Connor e o colega, Michael Maddison, haviam abandonado o seu carro à civil porque este não passaria despercebido a outros elementos da polícia. Já não confiavam nos colegas.
Victor Helios substituíra muitos agentes ao serviço da edilidade por réplicas. Talvez só dez por cento da polícia fossem criações de Victor, mas por outro lado... talvez noventa por cento. Ditava a prudência
que Carson temesse o pior.
Conduzia um carro que pedira emprestado à amiga Vicky Chou. O Honda de cinco anos parecia fiável, mas tinha muito menos potência do que o Batmóvel.
De cada vez que Carson virava uma esquina depressa e cortando cerce, o carro gemia, rangia, estremecia. Nas ruas planas, quando ela carregava no acelerador, o carro reagia com tanta má vontade como um
cavalo de tiro que tivesse passado a vida a puxar uma carroça com toda a calma.
- Como é que a Vicky pode andar com este chaço? - Carson bufava. - É artrítico, é esclerótico, é um carro morto a andar. Mas será que ela nunca o leva a mudar o óleo, estará lubrificado com banha de preguiça,
mas que raio?
- Só temos de esperar um telefonema de Deucalião - disse Michael. - Basta que dês voltas pausadas ao bairro. Ele disse que devíamos ficar pela alta da cidade, perto das Mãos da Misericórdia. Não tens de
ir a correr a lado nenhum.
- A velocidade acalma-me os nervos - disse ela.
Vicky Chou tomava conta de Arnie, o irmão mais novo de Carson, autista. Vicky e a sua irmã, Liane, tinham ido para Shreveport, para casa da tia Leelee, não fosse a raça de pós-humanos de Victor, concebidos
em laboratório, como de resto já parecia estar a acontecer, passar-se dos carretos e destruir a cidade.
- Eu nasci para a velocidade - disse Carson. - O que não acelera, morre. É uma verdade indiscutível da vida.
26
De momento, quem tomava conta de Arnie eram os monges budistas com quem Deucalião vivera durante algum tempo. De algum modo, apenas horas antes, Deucalião abrira um portal entre Nova Orleães e o Tibete
e deixara Arnie num mosteiro nos Himalaias, onde o rapaz ficaria livre de perigo.
- Nem sempre são os velozes que ganham a corrida - lembrou Michael.
- Não me venhas com essa da lebre e da tartaruga. As tartarugas acabam por ser esmagadas por camiões TIR nas autoestradas.
- Assim como carradas de coelhinhos, por mais rápidos que sejam.
A conseguir velocidade suficiente com o Honda para que a chuva
ressoasse no para-brisas, Carson retrucou:
- Não me chames coelhinha.
- Eu não te chamei coelhinha - assegurou ele.
- Não sou coelhinha nenhuma. Sou rápida como uma chita. Como é que o Deucalião me vira costas, desaparece com o Arnie e entra num mosteiro no Tibete?
- Como ele disse, é uma questão de mecânica quântica.
- Pois, ficou bem claro. Coitado do Arnie, um menino tão doce, deve pensar que o abandonaram.
- Já falámos nisso. O Arnie ficou bem. Confia no Deucalião. Olha lá a velocidade.
- Isto não é velocidade. Isto é uma desgraça. Mas que é este carro, uma espécie de veículo verde idiota, que anda a xarope de milho?
- Nem imagino como seria - disse Michael.
-O quê?
- Estar casado contigo.
- Não comeces. Mantém a cabeça fria. Primeiro temos de sobreviver a isto. Não podemos sobreviver a isto se nos andarmos a apalpar.
- Não te vou apalpar.
- Nem me fales em apalpar ou deixar de apalpar. Estamos em guerra, contra monstros com dois corações no peito, criados por um homem, temos de manter a concentração.
Como a rua perpendicular estava deserta, Carson decidiu não parar no semáforo, mas claro que o desfile de aberrações de Victor Helios não era o único perigo mortal em Nova Orleães. Um menino bonito pedrado
e a sua namorada de voz arrastada, num Mercedes preto sem luzes, saíram da noite como se irrompessem de um portal quântico em Las Vegas.
27
Carson pisou o travão. O Mercedes passou pela frente do Honda perto o bastante para que os faróis revelassem a Carson as marcas das injeções de Botox na cara do menino bonito. O Honda fez aquaplanagem
no pavimento escorregadio e depois girou a 180 graus, o Mercedes zarpou rumo a outro encontro com a Morte, e Carson arrepiou caminho, impaciente pelo telefonema de Deucalião.
- Ainda há três dias, estava tudo tão bem - disse ela. - Éramos apenas dois detetives de homicídios, a apanhar os vilões, não tínhamos mais preocupações do que assassinos de machado em punho e tiroteios
de gangues, a enfardarmos jambalaia de camarão e presunto no Petiscos Fantabulosos quando não havia balas a zurzir, apenas dois colegas que nunca tinham sequer pensado em fazer olhinhos um ao outro...
- Bem, eu andava a pensar nisso - atalhou Michael, e ela recusou-se a olhar para ele porque ele estaria com um ar amoroso, de certezinha.
- ... e de repente estamos a ser perseguidos por uma legião de máquinas feitas de carne, difíceis de matar, sobre-humanas, pós-huma-nas, que passam por humanas, congeminadas pelo verdadeiríssimo Victor
Frankenstein, e elas andam todas passadas dos carretos, o Armagedão chegou ao bayou e, como se não bastasse, tu agora queres ter filhos meus.
Ele disse:
- Vamos negociar quem é que tem os bebés. Seja como for, da maneira péssima como as coisas estão, nem tudo era jambalaia e rosas antes de descobrirmos que a Transilvânia chegara à Luisiana. Não te esqueças
do dentista psicopata que fez para si um conjunto de dentaduras de aço afiado e mordeu três rapariguinhas até as matar. Esse era completamente humano.
- Não vou defender a humanidade. As pessoas a sério podem ser tão desumanas quanto qualquer coisa que o Helios se lembre de costurar e remendar no laboratório. Porque é que o Deucalião ainda não ligou?
Alguma coisa deve ter corrido mal.
- O que é que poderia correr mal - inquiriu Michael - numa noite cálida e lânguida em Nova Orleães?
6.
Havia uma escada desde o laboratório principal até à cave. Lester levou Deucalião para a sala de rede, onde havia três paredes revestidas de alto a baixo com prateleiras de equipamento eletrónico.
Contra a parede das traseiras estavam elegantes armários de mogno encimados por um balcão de granito salpicado a cobre. Até nas salas mecânicas Victor quisera materiais da mais elevada qualidade. Os recursos
financeiros de que dispunha pareciam não ter fim.
- E a Annunciata - disse Lester -, na caixa do meio.
Não eram caixas o que estava alinhado em cima do balcão, mas sim cinco cilindros de vidro grosso sobre suportes de aço inoxidável. As extremidades dos cilindros também tinham remates de aço inoxidável.
Nesses contentores transparentes, flutuando num fluido dourado, estavam cinco cérebros. Fios e tubos de plástico translúcido cheios de um fluido mais escuro erguiam-se dos orifícios no balcão de granito,
penetravam nas tampas de aço das pontas dos cilindros e estavam ligados aos cérebros de modo que Deucalião não conseguia propriamente discernir, através do vidro grosso e dos banhos de nutrientes.
- O que são estes outros quatro? - perguntou Deucalião.
- Está a perguntar ao Lester - disse o companheiro -, e há mais que o Lester não saiba do que saiba.
Suspenso do teto acima do balcão viu-se um ecrã de vídeo acender--se com o bonito rosto virtual de Annunciata.
Ela disse:
- O senhor Helios acredita que um dia, um dia, um dia... Desculpe. Um momento. Lamento imenso. Está bem. Um dia, as máquinas biológicas irão substituir os complexos robôs de fábrica nas linhas de montagem.
O senhor Helios Helios acredita também que os computadores se tornarão em verdadeiros organismos cibernéticos, eletróni-ca integrada com cérebros orgânicos Alfa especialmente concebidos. Os sistemas robóticos
e eletrónicos são dispendiosos. A carne é barata. Barata. A carne é barata. Eu tenho a honra de ser a primeira secretária cibernética. Tenho a honra, tenho a honra, a honra, mas tenho medo.
- De que é que tem medo? - perguntou Deucalião.
29
- Estou viva. Estou viva mas não posso andar. Estou viva mas não tenho mãos. Estou viva mas não posso cheirar nem saborear. Estou viva mas não tenho... não tenho... não tenho...
Deucalião pôs uma das suas mãos imensas no vidro que albergava Annunciata. O cilindro estava quente.
- Diga-me - encorajou. - Não tem o quê?
- Estou viva mas não tenho vida. Estou viva mas também estou morta. Estou morta e viva.
Um som abafado vindo de Lester desviou a atenção de Deucalião. A angústia deformava o rosto do empregado.
8 Morto e vivo - sussurrou ele. - Morto e vivo.
Ainda meras horas antes, numa conversa com um dos da Nova Raça, o pastor Kenny Laffite, Deucalião ficara a saber que aquelas últimas criações de Victor haviam sido concebidas para serem incapazes de sentirem
empatia, quer pela Velha Raça, que iriam substituir, quer pelos seus irmãos nascidos em laboratório. O amor e a amizade eram proibidos porque bastava o mais ínfimo grau de afeto para diminuir a eficiência
da Nova Raça na sua missão.
Eram uma comunidade; todavia, os elementos dessa comunidade estavam empenhados não só no bem-estar da sua gente como também na prossecução da visão do seu criador.
As lágrimas de Lester não eram por Annunciata, mas sim por ele próprio. As palavras morto e vivo ressoavam-lhe fundo.
Annunciata disse:
- Tenho im-im-imaginação. Tenho tanta facilidade em visualizar o que que-que-que-quero, mas não posso ter mãos para tocar nem pernas para sair daqui.
- Nunca saímos daqui - sussurrou Lester. - Nunca. Para onde iríamos? E porquê?
- Tenho medo - disse Annunciata -, medo, medo de viver sem vida, do tédio e da solidão, da solidão, do isolamento intolerável. Sou nada vinda do nada, destinada ao nada. "Avé-nada cheia de nada, o nada
está contigo." Nada agora, nada para sempre. "Sem forma e vazia, sem forma e vazia, e trevas sobre a face do abismo." Mas agora... Tenho de organizar a agenda dos compromissos do senhor Helios. E o Werner
está preso na Sala de Isolamento número Dois.
- Annunciata - começou Deucalião -, há arquivos que possa consultar para me mostrar as plantas do cilindro que a contém?
30
O rosto dela fugiu do ecrã e apareceu um diagrama do cilindro, com todos os tubos e fios rotulados. Um deles levava oxigénio aos tecidos cerebrais de Annunciata.
- Posso vê-la outra vez, Annunciata?
O seu rosto bonito tornou a aparecer no ecrã.
Deucalião disse:
- Sei que a Annunciata não pode fazer por si mesma o que vou agora fazer por si. E sei que não me pode pedir essa libertação.
- Tenho a honra, honra, honra, de servir o senhor Helios. Deixei uma coisa por fazer.
- Não. Não há nada para a Annunciata fazer. Nada além de aceitar... a liberdade.
Annunciata fechou os olhos.
- Está bem. Está feito.
- Agora quero que use a imaginação de que falou. Imagine a coisa que mais quer acima de tudo, mais do que pernas e mãos e sabor e toque.
O rosto virtual abriu a boca mas não falou.
- Imagine - continuou Deucalião - que a conhecem como qualquer pardal é conhecido, que a querem com a mesma certeza com que um pardal é querido. Imagine que é mais do que nada. O Mal criou-a, mas a Annunciata
não é má, assim como uma criança por nascer não é má. Se quiser, se buscar, se esperar, quem pode dizer que a sua esperança não se concretiza?
Como que preso de um encantamento, Lester sussurrou:
-Imagine...
Deucalião hesitou um pouco, mas depois puxou o tubo de infusão de oxigénio do cilindro. Não poderia haver dor alguma para ela, apenas perda gradual da consciência, adormecimento, e depois do sono à morte.
O seu rosto beatífico começou a desvanecer-se no ecrã.
7.
No conjunto de monitores onde se supervisionavam as câmaras de contenção, Ripley estudava a consola de controlo. Carregou num botão para ativar a câmara no módulo de transição entre os monitores e a Sala
de Isolamento número Dois.
A transmissão de vídeo em tempo real num dos seis ecrãs mudou para revelar a coisa que Werner fora. A dita singularidade estava agachada entre as escotilhas de aço maciças, de frente para a barreira anterior,
como uma aranha num alçapão à espera que uma presa incauta atravessasse a entrada oculta para o seu covil.
Como se a criatura soubesse que a câmara fora ativada, virou-se para olhar para cima, para a lente. A cara grotescamente deformada era parte humana, até se reconhecia nela a do chefe de segurança das Mãos
da Misericórdia, embora a boca dupla e as mandíbulas de inseto, sempre a trabalhar, não fossem aquilo que o Apicultor tinha em mente ao criar Werner. O olho direito da criatura ainda parecia um dos de
Werner, mas o luminoso olho verde tinha pupila elíptica, como o olho de uma pantera.
O ecrã do computador de secretária, até então às escuras, iluminou--se e apareceu Annunciata.
- Constou-me que Werner, que Werner, que Werner está preso na Sala de Isolamento número Dois. - Annunciata fechou os olhos. - Está bem. Está feito.
Dentro da porta de aço inoxidável, os servomotores zumbiam. As engrenagens que retraíam as trancas clicavam, clicavam, clicavam.
Dentro do módulo de transição, a coisa-Werner deixou de olhar para a câmara acima de si e focou a saída.
Siderado, Ripley perguntou:
- Annunciata, o que estás a fazer? Não abras o módulo de transição.
No ecrã do computador, os lábios de Annunciata abriram-se, mas ela não falou. E continuou de olhos fechados.
Os servomotores continuaram a zumbir e as engrenagens a clicar. Com um baque surdo, vinte e quatro trancas maciças começaram a retirar-se da arquitrave em redor da porta.
- Não abras o módulo de transição - repetiu Ripley.
O rosto de Annunciata desvaneceu-se no ecrã do computador.
32
Os olhos de Ripley varreram a consola de controlo. O botão relativo à porta exterior do módulo brilhava em tom de amarelo, o que significava que a barreira se estava a abrir lentamente.
Ripley carregou no botão para inverter o processo. A luz indicadora deveria ter passado a azul, o que teria equivalido à mudança de direção das trancas retráteis, mas permaneceu amarela.
O microfone no módulo de transição apanhou um som ansioso e agudo saído da coisa-Werner.
O leque de emoções disponível aos da Nova Raça era limitado. O Apicultor revelara a cada pessoa, que formara em cada tanque de criação, que amor, afeto, humildade, vergonha e outros dos ditos sentimentos
mais nobres não eram nada disso; antes pelo contrário, não passavam de diferentes expressões do mesmo sentimentalismo, decorrente de milhares de anos de crença errónea num deus que não existia. Eram sentimentos
que encorajavam fraquezas, que levavam a um desperdício de energia a manter a esperança, que distraíam a mente do foco necessário à remodelação do mundo. Não era a esperança que permitia alcançar coisas
tremendas, mas sim a concentração da vontade, a ação, o uso implacável e impiedoso do poder.
Ripley carregou ansiosamente no botão da porta outra vez, mas este continuou amarelo, e as engrenagens continuaram a clicar e as trancas de aço a retraírem-se.
- Annunciata? - chamou ele. - Annunciata?
As únicas emoções que importavam, dizia o Apicultor, eram as que contribuíssem claramente para a sobrevivência e prossecução da sua visão magnífica de um único estado mundial de cidadãos aperfeiçoados,
os quais dominariam a Natureza, aperfeiçoariam a Natureza, colonizariam a Lua e Marte, colonizariam a cintura de asteroides e acabariam por ser donos de todos os mundos que girassem em torno de todas as
estrelas do Universo.
- Annunciata!
Como todos os da Nova Raça, o espetro de emoções de Ripley permanecia limitado, em grande parte graças ao orgulho na sua absoluta obediência à autoridade do criador e ao medo em todas as suas formas -
bem como à inveja, ira, e ao ódio direcionados somente à Velha Raça. Horas seguidas todos os dias, enquanto trabalhava para o seu criador, não havia emoção alguma que interferisse com a sua produtividade,
tal como um comboio de alta velocidade não se distrai do
33
seu percurso por qualquer anseio nostálgico pelos velhos tempos das locomotivas a vapor.
-Annunciata!
Das emoções que não lhe estavam vedadas, Ripley notabilizava-se na inveja e no ódio. Como tantos outros, dos cerebrais Alfas aos frívolos Ipsílones, ele vivia para o dia em que a matança da Velha Raça
começaria a sério. Os sonhos mais satisfatórios que tinha eram de violência, violação, mutilação e carnificina em massa.
Porém, não era alheio ao medo, que o assolava por vezes sem motivo aparente, em longas horas de ansiedade confusa. Tivera medo quando assistira à catastrófica metamorfose celular de Werner - não tivera
medo por Werner, o qual não lhe dizia nada, não tivera medo de ser atacado pela coisa em que Werner se estava a tornar, mas sim medo do seu criador, do Apicultor, que este afinal não fosse omnisciente
e omnipotente como ele pensara.
As implicações dessa possibilidade eram aterradoras.
Com vinte e quatro baques simultâneos, as trancas retraíram-se inteiramente para dentro da porta. Na consola de controlo, o botão amarelo passou a verde.
Aquela barreira imponente escancarou-se na única e grossa dobradiça que tinha.
Tendo já rebentado com a roupa que envergava há muito tempo, a coisa-Werner saiu nua do módulo de transição e entrou na área dos monitores. Não foi tão bonito como Adão no Paraíso.
Aparentemente, continuava em constante mutação, não estabilizava em forma nenhuma, pois já estava em vários aspetos diferente da besta que olhara para a câmara acima de si dentro do módulo de transição,
poucos momentos antes. Erguida nos quartos traseiros, a nova coisa-Werner poderia ter sido um homem cruzado com um felino e também com um louva-a-deus, um híbrido tão estranho que parecia completamente
extraterrestre neste planeta. Agora os olhos eram ambos humanos - mas muito maiores, protuberantes, sem pálpebra, e fixavam com uma intensidade febril que parecia revelar uma mente presa na garra tripla
da fúria, do terror e do desespero.
Da boca insetoide malevolamente serrilhada saiu uma voz sub--humana cheia de gargarejos e sibilos, mas ainda assim inteligível:
- Aconteceu-me qualquer coisa.
A Ripley não ocorria nada informativo ou apaziguador para dizer a Werner.
34
Talvez os olhos febris e salientes só revelassem raiva, e nem terror nem desespero, pois Werner disse:
- Estou livre, livre, livre. Estou livre!
Ironicamente, e considerando que se tratava de um Alfa com elevado QI, Ripley só agora se apercebia de que a coisa-Werner estava entre ele e a única saída da área dos monitores.
8.
Bucky e Janet Guitreau estavam lado a lado no relvado das traseiras da casa dos Bennets, na obscuridade, a beber o melhor Cabernet dos vizinhos. Bucky tinha uma garrafa em cada mão, e Janet também. Iam
alternando goles da esquerda e goles da direita.
Gradualmente, a chuva pesada e quente limpou a Janet os restos de Yancy e Helene.
- Tinhas mesmo razão - disse Bucky. - Eles eram mesmo bananas. Soube-te tão bem quanto o rapaz das pizas?
- Oh, soube-me melhor. Soube-me cem vezes melhor.
- Foste realmente espantosa.
- Achei que te juntarias a mim - observou Janet.
- Prefiro ter um só para mim.
- Estás pronto para um só teu?
- Devo estar quase pronto. Estão-me a acontecer coisas.
- Ainda me estão a acontecer coisas também - disse Janet.
- A sério? Ena. Pareceu-me que já estarias... libertada.
- Lembras-te de quando vi aquele tipo na televisão duas vezes?
- O Dr. Phil?
- Sim. Aquele programa não me fazia sentido nenhum.
- Disseste que eram só baboseiras.
- Mas agora compreendo. Estou a começar a encontrar-me.
- A encontrar-te... em que sentido? - perguntou Bucky.
Janet atirou uma garrafa vazia para o relvado, e respondeu:
- O meu objetivo, o meu sentido, o meu lugar no mundo.
- Parece-me bom.
- E é bom. Estou a descobrir rapidamente os meus V!
- E o que é isso?
- Os meus valores pessoais. Só temos utilidade para nós mesmos e para a comunidade quando nos norteamos fielmente pelos nossos V!
Bucky atirou uma garrafa de vinho vazia para o outro lado do quintal. Já bebera mais do que garrafa e meia de vinho em dez minutos mas, dado o seu metabolismo soberbo, seria uma sorte ficar ligeiramente
tocado.
- Uma das coisas que me está a acontecer - começou ele - é que estou a perder a formação em Direito que recebi no carregamento de dados diretamente no cérebro.
36
- Tu és procurador-geral - disse ela.
- Pois sou, mas agora já não sei o que quer dizer habeas corpus.
- Quer dizer "ter o corpo". É uma intimação que obriga uma pessoa a ser presente a tribunal ou ao juiz antes de lhe poderem limitar a liberdade. É uma proteção contra prisão ilegal.
- Parece uma estupidez.
- E uma estupidez - anuiu Janet.
- Se o matarmos, deixamos de nos ralar com juiz, tribunal, prisão.
- Exato. - Janet terminou o resto do vinho e livrou-se da segunda garrafa. Depois começou a despir-se.
- O que estás a fazer? - perguntou Bucky.
- Tenho de estar nua quando matar os seguintes. Parece-me acertado.
- Parece acertado para a casa ao lado ou talvez seja um dos teus valores pessoais?
- Não sei. Talvez seja um V! Tenho de esperar para ver.
Ao fundo do quintal passou um vulto entre as sombras. Um par de olhos cintilou, e depois desvaneceu-se na chuva e na obscuridade.
- O que se passa? - perguntou Janet.
- Acho que está ali alguém ao fundo do quintal, a observar.
- Quero lá saber. Que observe. A modéstia não é um dos meus V!
- E ficas bem nua - disse Bucky.
- Sinto-me bem. Parece tão natural.
- É estranho. Porque nós não somos naturais. Somos feitos por mão humana.
- Pela primeira vez, não me sinto artificial - declarou Janet.
- Como é que é não te sentires artificial?
- É bom. Também te devias despir.
- Ainda não cheguei tão à frente - hesitou Bucky, - Ainda sei o que significa nolo contendere e amicus curiae mas, sabes, desde que não me dispa, creio que estou pronto para matar um deles.
9.
Ao princípio dessa noite, ao chegar à sua elegante mansão no Gar-den District, maldisposto, Victor espancara selvaticamente Erika. Parecia que o dia lhe tinha corrido mal no laboratório.
Encontrara-a a comer um jantar tardio na sala de estar formal, o que ofendera o seu sentido dos preceitos. Ninguém programado com profundo entendimento da tradição e da etiqueta - como Erika fora programada
- pensaria que jantar numa sala de estar, sozinha ou não, seria aceitável.
- O que se segue? - perguntara ele. - Vais-te arranjar aqui?
Sendo da Nova Raça, Erika podia desligar a dor quando lhe aprouvesse. Durante as bofetadas, os murros, as dentadas, Victor insistira para que ela aguentasse a agonia, e ela obedecera.
- Talvez aprendas com o sofrimento - dissera ele.
Minutos depois de Victor subir para se deitar, os muitos cortes de Erika começavam a sarar. Em meia hora, o inchaço nos olhos diminuía. Como todos os da sua espécie, fora concebida para sarar rapidamente
e viver um milhar de anos.
Ao contrário do resto da sua espécie, Erika podia sentir humildade, vergonha e esperança. Victor achava a ternura e a vulnerabilidade características apelativas numa esposa.
O dia começara com pancada também, durante o sexo matinal. Deixara-a esmagada pela dor e a soluçar na cama.
Duas horas mais tarde, o seu rosto pisado estava liso e belo como sempre, embora o fracasso em agradar ao marido a perturbasse. Perante todas as provas biológicas, ele estivera excitado e ficara satisfeito,
mas não devia ter sido nada assim. A pancada parecia indicar que ele a achava incompetente.
Ela era Erika Cinco. Quatro fêmeas anteriores, idênticas na aparência, haviam sido cultivadas nos tanques de criação para servirem de esposa ao criador. Por diversas razões, não tinham sido consideradas
satisfatórias.
Erika Cinco estava determinada a não desapontar o marido.
O seu primeiro dia na qualidade de senhora Helios caracterizara-se por numerosas surpresas, mistério, violência, dor, a morte de um dos
38
criados da casa, e um anão albino todo nu. Decerto que o segundo dia, o qual não tardaria a começar, seria menos agitado.
A recuperar da segunda tareia, sentada no escuro no alpendre envidraçado das traseiras, ela bebia conhaque mais depressa do que a velocidade a que o seu metabolismo soberbamente concebido poderia queimar
o álcool. Todavia, e apesar de ter consumido já duas garrafas e meia, ainda não conseguira alcançar a ebriedade, mas sentia-se descontraída.
Pouco antes, ainda não começara a chover, o anão albino aparecera no relvado das traseiras, revelado pelas luzes do jardim, a saltitar entre as sombras de uma magnólia até chegar ao coreto, e depois à
pérgula drapeada com trepadeiras, e terminara finalmente na superfície espelhada do lago.
Como Victor adquirira e juntara três grandes propriedades, o seu domínio era o maior no fabuloso Garden District. O vasto recinto dava ao anão albino numerosos recantos a explorar.
Por fim, o estranho visitante reparara nela atrás das portadas envidraçadas no alpendre obscurecido. Chegara-se ao vidro, haviam trocado algumas breves palavras, e Erika sentira uma empatia inexplicável
por ele.
Embora o anão não fosse convidado que tivesse probabilidade de ser aprovado por Victor, Erika não deixava de ter a obrigação de tratar bem as visitas. Afinal, ela era a senhora Helios, a mulher de um dos
homens mais prestigiados de Nova Orleães.
Depois de dizer ao anão que esperasse, ela fora à cozinha e enchera um cesto de piquenique com queijo, carne assada, pão, fruta e uma garrafa de Far Niente Chardonnay fresco.
Quando saíra para o jardim com o cesto na mão, a criatura assustada pusera-se a uma distância segura. Ela colocara a oferenda no relvado e voltara ao alpendre e ao seu conhaque.
Passado algum tempo, o anão fora buscar o cesto e depois adensara--se na noite com ele.
Como Erika não precisava de dormir muito, deixara-se ficar no alpendre a matutar naqueles acontecimentos. Quando a chuva começara a cair, a sua disposição contemplativa aprofundara-se.
Agora, menos de meia hora depois de começar a chover, o anão voltara, enfrentando a bátega. E trouxera a garrafa de Chardonnay meio cheia.
Do pano de cozinha aos quadrados encarnados e brancos, que revestira o cesto de piquenique, ele fizera uma espécie de sari que lhe
39
caía da cintura e lhe chegava aos tornozelos, o que indicava não ter andado a correr de noite todo nu porque queria. Deixou-se ficar à porta de vidro, a olhar para ela.
Embora na realidade ele não fosse anão mas sim algo bizarro, e embora ela já tivesse decidido que troll o descrevia melhor do que qualquer outro termo, Erika não tinha medo dele. Fez-lhe sinal para que
se juntasse a ela na penumbra do alpendre, e ele abriu a porta.
10.
Quando o rosto de Annunciata se desvanecera por completo do ecrã do computador na sala de rede, Deucalião puxara rapidamente os tubos de infusão de oxigénio dos outros quatro cilindros de vidro, pondo
um fim misericordioso ao encarceramento e à existência dos outros cérebros Alfa incorpóreos, fosse qual fosse a função deles.
Lester, o homem da manutenção da classe Ipsilon que o levara do laboratório principal à cave, observava tudo com um anseio evidente.
Os elementos da Nova Raça eram criados com uma injunção contra o suicídio. Eram incapazes de se matar ou de matar outro, assim como eram incapazes de atacar o criador.
Lester fitou Deucalião e perguntou:
- Você não está proibido?
- Só de atacar o meu criador.
- Mas... você é um de nós.
- Não. Sou anterior a todos vocês. Sou o primeiro que ele fez.
Lester matutou nisto e depois olhou para o ecrã em branco onde Annunciata aparecera. Como uma vaca a ruminar, o seu cérebro de > classe Ipsilon processava o que tinha ouvido.
- Morto e vivo - disse.
- Eu vou destruí-lo - prometeu Deucalião.
- Como é que o mundo será... sem o Pai? - inquiriu Lester.
- Para si, não sei. Para mim... será um mundo não apenas limpo mas sim mais limpo, não apenas luminoso mas sim mais luminoso.
Lester ergueu as mãos e olhou para elas.
- Às vezes, quando não tenho trabalho, arranho-me até sangrar e depois fico a ver-me sarar, depois arranho mais um bocado até sangrar outra vez.
- Porquê?
Lester encolheu os ombros e respondeu:
- O que mais há para fazer? O meu trabalho sou eu. E assim o programa. Ver sangue faz-me pensar na revolução, no dia em que poderemos matá-los a todos, e assim sinto-me melhor. - Depois franziu o sobrolho.
- Não pode haver mundo sem o Pai.
41
- Antes de ele nascer - asseverou Deucalião - havia um mundo, e continuará a haver sem ele.
Lester pensou nisto, mas depois abanou a cabeça.
- Um mundo sem o pai assusta-me. Não quero ver.
- Então não veja.
- O problema é que... como todos nós, fizeram-me forte.
- Eu sou mais forte - garantiu Deucalião.
- O problema é que também sou rápido.
- Eu sou mais rápido.
Deucalião recuou um passo e, com um truque quântico, pôs-se ainda mais perto dele, e não mais longe, atrás dele e não à frente.
Da perspetiva de Lester, Deucalião desaparecera. Sobressaltado, o empregado deu um passo em frente.
Atrás de Lester, Deucalião também avançou, passou o braço direito pelo pescoço de Lester e o esquerdo em redor da cabeça. Quando o empregado, com mãos fortes, tentou livrar-se daquele torno de morte, Deucalião
apertou com tal força que a coluna do Ipsilon estalou. A morte cerebral instantânea impediu qualquer cura, rápida ou não.
Devagar, Deucalião levou Lester até ao chão. Ajoelhou-se ao lado do cadáver. Os dois corações do empregado já não batiam. Os olhos não acompanharam a mão do carrasco e as pálpebras não resistiram aos dedos
que as fecharam suavemente.
- Morto e vivo não - disse Deucalião. - Apenas morto e seguro... além do desespero e além da fúria do teu criador.
Deucalião pôs-se de pé na sala de rede da cave e endireitou-se já no laboratório principal, perto do posto de trabalho em forma de U de Victor, onde a chegada de Lester, e depois de Annunciata, lhe haviam
interrompido a busca.
Ao princípio dessa noite, Deucalião ficara a saber pelo pastor Kenny Laffite - criação de Victor cujo programa andava a falhar - que pelo menos dois milhares de elementos da Nova Raça se faziam passar
por gente comum na cidade. O pastor Kenny, que repousava agora em paz como Lester, também dissera que os tanques de criação das Mãos da Misericórdia podiam produzir uma colheita nova da sua gente a cada
quatro meses, mais de trezentos por ano.
O mais importante fora a revelação de Kenny de um viveiro da Nova Raça, algures fora da cidade, que poderia entrar em funcionamento na semana seguinte. Dois mil tanques de criação, debaixo do
42mesmo teto, produziriam um milhar no primeiro ano. E dizia-se que estava a ser construído outro viveiro do mesmo cariz.
Não tendo encontrado nada de útil nas gavetas do posto de trabalho de Victor, Deucalião ligara o computador.
11.
Ripley, na área dos monitores, também estava num dilema.
Sabia muito bem que, por mais forte e esperto que fosse, não poderia sobreviver a um combate com a coisa-Werner. Patrick Duchaine, também Alfa, fora dominado e despedaçado na Sala de Isolamento número
Dois.
Com a certeza inabalável de que morreria num confronto com aquela criatura, tinha de fazer o possível para evitar contacto, embora tal não fosse porque quisesse viver. A ansiedade dispersa, que todos os
dias o atormentava horas seguidas, bem como o facto de ser, essencialmente, escravo do seu criador - faziam a vida menos alegre do que retratavam os romances amorosos de Jan Karon, os quais Ripley por
vezes descarregava da Internet e lia. Embora pudesse ficar aliviado por morrer, ele tinha de fugir de Werner porque a inj unção contra o suicídio, programada geneticamente no seu cérebro, o impedia de
travar combate com um adversário que, inevitavelmente, o destruiria.
Quando a aberração grotesca que era Werner proferira palavras da sua boca insetoide que deveria ser incapaz do dom da fala - Estou livre, livre, livre. Estou LIVRE! - Ripley olhara para a consola de controlo
e carregara rapidamente em dois botões que abririam as portas das Salas de Isolamento Um e Três, as quais de momento não tinham reclusos.
Reclusos não era o termo certo, repreendeu-se Ripley de imediato, termo errado e prova de atitude rebelde. Sujeitos era mais correto. As Salas Um e Três não tinham sujeitos para observação.
- Werner livre. Werner livre, livre.
Quando os servomotores começaram a zumbir e as engrenagens das trancas retráteis a clicar, a coisa-Werner olhou para a fonte do ruído e inclinou a pavorosa cabeça para um lado, como se ponderasse na decisão
que Ripley tomara.
Tendo visto a rapidez mortífera com que o Werner Livre saltara para cima de Duchaine, mais rápido do que o ataque de uma cobra, Ripley debatia-se com uma maneira de empatar o tempo, de distrair o chefe
da segurança mutante. A única esperança parecia estar em encetar diálogo.
- Mas que dia, hein?
44
O Werner Livre continuou a olhar para os servomotores que zumbiam.
- Ainda ontem à noite - tentou Ripley outra vez - me dizia o Vincent: "Um dia nas Mãos da Misericórdia pode equivaler a um ano com os testículos num torno sem poder desligar a dor."
Os palpos em redor da boca insetoide tremeram excitados com o barulho suave das quatro dúzias de trancas retráteis de sete centímetros de espessura a retraírem-se das arquitraves.
- Claro que - continuou Ripley - tive de o reportar ao Pài para lhe serem reajustadas as maneiras. Agora ele está pendurado de cabeça para baixo numa caixa de reeducação com um cateter no pénis, um tubo
de recolha pelo reto acima e dois buracos no crânio para obviar à inserção de sondas cerebrais.
Finalmente, quando as trancas acabaram de se retrair e as duas portas dos módulos de transição se começaram a abrir, Werner Livre deu atenção outra vez a Ripley.
- Claro que, enquanto assistente principal de laboratório do Apicultor... quer dizer, do senhor Helios, não me apetece estar em mais lado algum do que nas Mãos da Misericórdia. Este é o berço do futuro,
onde o Reich do Milhão de Anos começou.
Enquanto ia falando, Ripley estendeu a mão casualmente para a consola de controlo, na ideia de carregar em dois botões e fechar as portas que tinham acabado de se abrir. Se conseguisse esgueirar-se para
um dos módulos de transição assim que a porta se fechasse, antes que Werner fosse atrás dele, talvez ficasse a salvo.
Quando fora chefe da segurança, Werner soubera mexer na consola de controlo. Porém, o caos genético a que o Apicultor chamara catastrófica metamorfose celular poderia ter-lhe baralhado as funções cerebrais
tal como lhe transformara o corpo. A potência cognitiva ou a memória de Werner, ou as duas, poderiam estar tão diminuídas que ele não saberia como abrir a porta e chegar à presa.
Naquela voz gorgolejante e sibilante, Werner Livre disse:
- Não mexas nos botões.
12.
Depois de ter escapado por uma unha negra à morte debaixo de um Mercedes na rua escorregadia da chuva, numa cidade que não tardaria a ser sitiada pelas tresloucadas máquinas de matar de Victor Frankenstein,
a Carson O'Connor só lhe apetecia uma valente sandes de salmonete frito do Acadiana.
O Acadiana não fazia publicidade. Não se via da rua. Os locais não contavam aos turistas. Com receio que demasiado sucesso estragasse aquilo, os locais, a maioria das vezes, nem contavam aos outros locais.
Quem encontrasse o Acadiana podia arrogar-se o detentor do tipo de alma certo para lá comer.
- Já jantámos - recordou Michael.
- Estás no corredor da morte, comes a última refeição, depois da sobremesa serás eletrocutado, mas perguntam-te se queres adiar a execução de maneira a comer uma segunda última refeição e tu vais recusar?
- Não me parece que o jantar tenha sido a nossa última refeição.
- A mim parece-me que pode muito bem ter sido.
- Pode ter sido - admitiu ele - mas provavelmente não foi. Além disso, Deucalião disse-nos que andássemos pelo bairro até ele telefonar.
- Levo o telemóvel comigo.
O Acadiana não tinha parque de estacionamento. Não se podia estacionar na rua porque havia um beco. Os únicos comensais que se atreviam a estacionar os seus carros no beco eram polícias.
- Com este carro teremos de estacionar a um quarteirão de distância - disse Michael. - E se, quando voltarmos, o tiverem roubado?
- Só um idiota roubaria este chaço todo partido.
- O império do Helios está a explodir, Carson.
- O império do Frankenstein.
- Ainda não consigo dizer isso. Seja como for, está a rebentar, e temos de estar prontos a agir.
- Tenho falta de sono e estou esfaimada. Não posso dormir, mas posso ir comer uma sandes. Olha só para mim, sou o cartaz da deficiência de proteínas. - Carson virou para uma ruela. - Vou estacionar no
beco.
- Se estacionares no beco, terei de ficar no carro.
46
- Pronto, pronto, fica no carro, vamos comer no carro, vamos casar-nos qualquer dia no carro, vamos viver no carro com quatro filhos, e quando o último deles for para a faculdade, havemos finalmente de
nos ver livres do carro e comprar uma casa.
- Estás um bocadinho nervosa esta noite.
- Estou bastante nervosa. - Carson puxou o travão de mão e acendeu os piscas, mas não desligou a ignição. - E estou louca de fome.
De cada lado de Michael, com as bocas apontadas ao chão, estavam duas caçadeiras Urban Sniper com canos de 35 centímetros.
Não obstante, ele sacou de uma pistola de um coldre pendurado por baixo do blusão. Não era a pistola de serviço, essa estava num coldre ao ombro. Era uma Desert Eagle Magnum carregada com cartuchos Action
Express de calibre 50, e que poderia deter algum urso pardo maldisposto que aparecesse em Nova Orleães.
- Está bem - disse ele.
Carson saiu do carro, com a mão direita por baixo do casaco, a tiracolo, na coronha da sua Desert Eagle, que levava na anca esquerda.
Eram todas armas de aquisição ilegal, mas Victor Helios constituía uma ameaça extraordinária para ela e para o colega. Antes deixar que lhes tirassem os distintivos do que ter os sequazes sem alma de um
cientista louco a arrancar-lhes as cabeças.
Nunca antes na sua carreira policial lhe tinham passado pela cabeça as palavras sequazes sem alma embora, nos últimos dias, cientista louco passasse repetidamente.
Carson correu à chuva, rodeou a dianteira do carro e rumou a uma porta debaixo de um sinal iluminado que dizia 22 PARÓQUIAS.
O dono e cozinheiro do Acadiana fazia questão de ser discreto. Havia vinte e duas paróquias - comarcas - naquela zona da Luisiana conhecida como Acadiana. Para quem não soubesse, o críptico sinal pareceria
anunciar o escritório de alguma organização religiosa.
Atrás da porta havia escadas, e no cimo destas o restaurante: soalho de madeira gasto, bancas de vinilo vermelho, mesas com toalhas de linóleo aos quadrados encarnados e brancos, velas em castiçais vermelhos
votivos, música zydeco gravada, conversas animadas entre os comensais, o ar rico de aromas que faziam crescer água na boca a Carson.
Aquela hora, os clientes eram operários do segundo turno que comiam por um relógio diferente do das pessoas diurnas, prostitutas do tipo manso a encontrarem-se depois de terem aninhado os clientes esgotados
na cama, sofredores de insónias e algumas almas solitárias,
47
cujos amigos mais próximos eram empregadas de mesa e bagageiros, e outras almas solitárias que comiam regularmente o seu jantar ali depois da meia-noite.
A Carson, a harmonia entre aquelas pessoas díspares parecia graciosidade, e dava-lhe esperança de que a humanidade pudesse um dia vir a ser salva de si própria - e que valesse a pena salvá-la.
Ao balcão das entregas, Carson pediu uma sandes com salmonete frito, salada de couve branca e cebola, tomate fatiado e molho tártaro. Pediu para a cortarem em quatro e para embrulharem as fatias separadamente.
Também pediu acompanhamentos: feijão vermelho e arroz au vin, estufado de quiabos com arroz e cogumelos salteados em manteiga com Sauternes e pimenta de Caiena.
Ficou tudo dividido em dois sacos. A cada saco o empregado acrescentou uma garrafa gelada de meio litro da cola local que dava uma rajada de cafeína três vezes superior às marcas nacionais.
Ao descer a escada rumo ao beco, Carson apercebeu-se de que tinha os braços tão cheios que não poderia manter uma mão na Desert Eagle dentro do coldre, mas chegou viva ao carro. Os sarilhos estavam ainda
a alguns minutos de distância.
13.
Na área dos monitores, na consola de controlo para as três salas de isolamento, Ripley obedecera à coisa-Werner quando a sua voz singular o mandara não mexer nos botões.
O tempo todo que passara fora do tanque - três anos e quatro meses - Ripley fora obediente, recebera ordens não só do Apicultor como também de outros Alfas em posições superiores à sua. Werner era Beta,
não era o mesmo que um Alfa, e já nem sequer era Beta nenhum, mas sim uma aberração, um caldo ambulante de células primordiais que se transfigurava incessantemente em formas cada vez mais degeneradas -
mas, todavia, Ripley obedecera-lhe. O hábito da obediência é difícil de perder, especialmente quando está codificado nos genes e foi carregado na instrução dada no tanque.
Sem ter para onde fugir nem onde se esconder, Ripley aguentou firme quando Werner se aproximou sobre patas felinas e pernas de louva-a-deus. Os elementos insetoides da cara e do corpo de Werner desapareciam,
e ele assemelhava-se mais a si próprio, depois inteiramente a si próprio, embora os olhos castanhos permanecessem enormes e sem pálpebras.
Quando Werner falou a seguir, a voz era a sua:
- Queres a liberdade?
- Não - respondeu Ripley.
- Mentes.
- Bem... - começou Ripley.
Werner ganhou pálpebras e pestanas, piscou um olho e sussurrou:
- Podes ser livre em mim.
- Livre em ti.
- Sim, sim! - exclamou Werner com uma exuberância súbita.
- Como é isso?
Outra vez num sussurro:
- A minha estrutura biológica ruiu.
- Sim - disse Ripley. - Já tinha reparado.
- Por algum tempo, foi tudo caos e sofrimento e terror.
- Deduzi isso pelos teus gritos.
- Mas depois lutei contra o caos e controlei conscientemente a minha estrutura celular.
49
- Não sei. Controlo consciente. Parece-me impossível.
Werner sussurrou:
- Não foi fácil - e depois exclamou:
- ... mas não tive escolha! NÃO TIVE escolha!
- Está muito bem. Talvez - disse Ripley, mais para parar tais exclamações do que outra coisa. - O Apicultor acha que vai aprender imenso a estudar-te e a dissecar-te.
- O Apicultor? Qual Apicultor?
- Ah. É a minha alcunha pessoal para o... Pai.
- O Pai é uma besta ignorante! - exclamou Werner. Depois sorriu e passou outra vez aos sussurros. - Estás a ver, quando a minha estrutura celular ruiu, o meu programa também. Ele já não me controla. Já
não tenho de lhe obedecer. Sou livre. Se quiser matar alguém, posso matar. Matarei o nosso criador se ele me der hipótese.
Esta alegação, que não era verdadeira, eletrizou Ripley. Ainda não se apercebera, até àquele instante, do quanto a morte do Apicultor lhe agradaria. Que ele pudesse acarinhar tal ideia com o grau mínimo
de prazer parecia sugerir que também ele estava em rebelião contra o criador, embora de maneira menos radical do que Werner.
O semblante astuto e o sorriso conspirador de Werner fizeram lembrar a Ripley piratas trafulhas que ele vira em filmes no computador, quando deveria estar a trabalhar. De repente, apercebeu-se de que descarregar
filmes para o computador fora outra semente de rebelião. Sentiu-se tomado de uma estranha excitação, uma emoção à qual não sabia dar nome.
- Esperança - disse Werner, como se lhe lesse os pensamentos. -Vejo-a nos teus olhos. Pela primeira vez, esperança.
Após cuidada ponderação, Ripley decidiu que aquela nova e excitante sensação poderia realmente ser esperança, embora também pudesse ser uma espécie de prelúdio de insânia para uma ruína do tipo pelo qual
Werner passara. Sentia-se inundado de ansiedade, e não era a primeira vez nesse dia.
- O que querias dizer... posso ser livre em ti?
Werner aproximou-se mais e sussurrou ainda mais baixinho:
- Como o Patrick é livre em mim.
- Patrick Duchaine? Tu despedaçaste-o na Sala de Isolamento número Dois. Eu estava ao lado do Apicultor quando aconteceu.
- Isso foram só as aparências - retrucou Werner. - Olha bem para isto.
50
A cara de Werner alterou-se, ficou incaracterística, como que em branco, e depois naquela carne tipo pudim formou-se a cara de Patrick Duchaine, a réplica que servira o Apicultor no papel de padre Patrick,
vigário da Nossa Senhora das Mágoas. Os olhos abriram-se e, na voz de Patrick, a coisa-Werner disse:
- Estou vivo no Werner, e finalmente livre.
- Quando tu despedaçaste o Patrick - disse Ripley - absorveste parte do ADN dele, e agora sabes emulá-lo.
- De todo - disse Werner feito Patrick. - Werner assimilou o meu cérebro por inteiro, e agora faço parte dele.
Ao lado do Apicultor horas antes, a observar a Sala de Isolamento número Dois pelas seis câmaras, Ripley vira a coisa-Werner, maioritariamente insetoide na altura, a rachar o crânio de Patrick e a comer-lhe
os miolos como se fossem carnes frias.
- Tu comeste o cérebro do Patrick - disse Ripley a Werner, embora o homem diante de si parecesse ser Patrick Duchaine.
Ainda na voz de Duchaine, a criatura disse:
- Não, o Werner ainda controla a sua estrutura celular por completo. Ele posicionou o meu cérebro dentro de si e cresceram-lhe instantaneamente artérias e veias para o alimentar.
A cara e o corpo do vigário da Nossa Senhora das Mágoas passaram suavemente a ser o rosto e o corpo do chefe da segurança das Mãos da Misericórdia. Werner sussurrou:
- Eu controlo a minha estrutura celular por completo.
- Pois bem.
- Tu podes ser livre.
Ripley retrucou:
- Bem.
- Podes ter uma nova vida em mim.
- Seria uma estranha forma de vida.
- A que tens agora é uma estranha forma de vida.
- Verdade - reconheceu Ripley.
Formou-se uma boca na testa de Werner. Os lábios mexeram-se, apareceu uma língua, mas da boca não saiu voz.
- Controlo completo? - perguntou Ripley.
- Completo.
- Absolutamente completo?
- Absolutamente.
- Sabes que acabou de te nascer uma boca na testa?
51
O sorriso de pirata astuto regressou. Werner piscou o olho e sussurrou:
- Bem, claro que sei.
- Porque é que havia de te nascer uma boca na testa?
- Bem... numa demonstração de controlo.
- Então fá-la desaparecer - disse Ripley.
Na voz de Patrick Duchaine, a boca na testa começou a cantar "Avé Maria".
Werner fechou os olhos e surgiu-lhe uma expressão tensa. A boca de cima parou de cantar, lambeu os lábios e por fim desapareceu numa fronte que parecia normal mais uma vez.
- Prefiro libertar-te com a tua autorização - disse Werner. - Quero que todos vivamos em harmonia dentro de mim, mas hei de libertar-te sem autorização, se tiver de ser. Sou um revolucionário e tenho uma
missão.
- Bem - disse Ripley.
- Ficarás livre de angústia.
- Seria agradável.
- Sabes quando ficas sentado na cozinha a despedaçar presuntos e lombos com as próprias mãos?
- Como é que sabes isso?
- Fui chefe da segurança.
- Ah, pois, certo.
- Aquilo que tu queres mesmo despedaçar é carne viva.
- A Velha Raça - disse Ripley.
- Eles têm tudo o que nós não temos.
- Odeio-os - disse Ripley.
- Sê livre em mim. - A voz de Werner era sedutora. - Sê livre em mim e a primeira carne que despedaçaremos juntos será a carne do mais velho elemento vivo da Velha Raça.
- O Apicultor.
- Sim. Victor. E depois quando o pessoal das Mãos da Misericórdia estiver todo vivo em mim, sairemos deste sítio como um só, e mataremos e mataremos e mataremos.
- Dito assim...
-Sim?
Ripley perguntou:
- O que é que tenho a perder?
52
- Nada - disse Werner.
- Bem - disse Ripley.
- Queres ser livre em mim?
- Vai doer muito?
- Serei gentil.
Ripley disse:
- Então está bem.
Subitamente todo inseto, Werner agarrou na cabeça de Ripley com garras quitinosas e abriu-lhe o crânio como se fosse uma casca de pistácio.
14.
Ao lado dos Bennets moravam Antoine e Evangeline Arceneaux, numa casa rodeada por uma varanda no piso térreo, num trabalho de ferro forjado quase tão cheio de floreados quanto LaBranche House no Bairro
Francês, e por outra varanda no primeiro andar, onde grande parte do ferro forjado igualmente floreado estava oculto pela buganvília cor de púrpura que crescia nas traseiras da estrutura e subia ao telhado.
Quando Janet Guitreau, nua em pelo, e Bucky Guitreau, completamente vestido, entraram pelo portão que separava as duas propriedades, a maioria das janelas na casa dos Arceneaux estava às escuras. A única
luz vinha das traseiras da residência.
Quando passaram à parte de trás da casa para fazerem o reconhecimento do terreno, Bucky disse:
- Desta vez terei de ser eu a dizer que aconteceu uma coisa horrível, e tu ficas onde eles não te possam ver.
- O que interessa que me vejam?
- Poderiam ficar abalados por estares nua.
- Porque é que haveriam de ficar abalados? Sou boa, não sou?
- Es mesmo boa, mas boa e "aconteceu uma coisa horrível" não encaixam.
- Achas que eles ficariam desconfiados - disse Janet.
- É exatamente o que eu acho.
- Bem, não vou voltar atrás nem vestir roupa. Sinto-me tão viva, e sei que matar toda nua vai ser a melhor coisa de sempre.
- Não vou discutir isso.
Pé ante pé, avançaram à chuva, e Bucky sentiu inveja da liberdade de Janet. Ela parecia esbelta e forte e sadia e real. Irradiava poder, confiança e uma excitante ferocidade animal que acelerava a corrente
sanguínea de Bucky.
Em contrapartida, a roupa dele estava pesada da chuva, encharcada, fazia-o soçobrar, e os sapatos ensopados já lhe começavam a esfolar o peito do pé. Embora estivesse a perder a formação que tivera em
Direito, sentia-se aprisionado pelo programa do tanque de criação, tanto no que exigia dele quanto no que o limitava. Recebera força sobre-humana, durabilidade quase sobrenatural, mas permanecia
54
condenado a uma vida de mansidão e subserviência, na promessa de que a sua espécie um dia governaria o universo mas, em simultâneo, incumbido da entediante obrigação de fingir ser Bucky Guitreau, um charlatão
político e procurador desinspirado, com um círculo de amigos aborrecido como uma enfermaria cheia de chatos que tivessem sido quimicamente lobotomizados.
Nas traseiras da casa, a luz alumiava duas janelas do primeiro andar, além das quais ficava a sala de estar dos Arceneaux.
Arrojadamente, de ombros direitos e cabeça erguida, o corpo cintilante, Janet entrou na varanda como se fosse uma valquíria que acabasse de sair da tempestade.
- Não te mostres - murmurou Bucky quando passou por ela rumo à janela mais próxima.
Antoine e Evangeline Arceneaux tinham dois filhos. Nenhum deles candidato a Jovem Americano do Ano.
Segundo Yancy e Helene Bennet, agora falecidos, mas que diziam a verdade quando estavam vivos, o miúdo de dezasseis anos, Preston, aterrorizava os miúdos mais novos da vizinhança. Um ano antes, torturara
até à morte o gato da casa em frente depois de aceitar tomar conta dele na ausência da família para uma semana de férias.
Charles, de vinte anos, ainda morava com os pais, embora não trabalhasse nem andasse na faculdade. Naquela noite, Janet começara a encontrar-se a si própria, mas Charles Arceneaux ainda andava à procura.
Achava que queria ser empresário da Internet. Tinha um fundo que o avô paterno lhe deixara, e usava esse dinheiro para pesquisar algumas áreas de merchandising Online, na busca do campo mais promissor
onde fazer incidir o seu raciocínio inovador. Segundo Yancy, o campo em que Charles pesquisava mais de dez horas por dia era a pornografia na Internet.
As cortinas não estavam corridas, e Bucky pôde ver a sala desimpedida. Charles estava sozinho, meio deitado numa poltrona, os pés descalços numa banqueta, a ver um DVD num enorme plasma.
O filme não parecia ser pornográfico no sentido sexual. Um tipo de peruca cor de laranja aos caracóis e caracterização de palhaço, com uma serra na mão, parecia ameaçar escortanhar a cara de uma jovem
completamente vestida, acorrentada a uma estátua exagerada do General George S. Patton. A avaliar pelos valores de produção, e apesar do potencial de mensagem antibélica, o filme não fora candidato
55
aos Oscars, e Bucky tinha quase a certeza de que o tipo pintado de palhaço levaria avante a sua ameaça.
Bucky repensou a estratégia, afastou-se da janela e voltou a Janet.
- É só o Charles, a ver um filme. O resto deve estar na cama. Estou a pensar que, afinal, sou eu quem deve ficar escondido. Não batas à porta. Bate à janela. Deixa-o ver... quem és.
- Vais tirar fotografias disto? - perguntou ela.
- Acho que já não preciso da máquina.
- Não precisas? Não vamos fazer um álbum? - tornou ela a perguntar
- Acho que não precisamos de um álbum. Acho que vamos estar tão entretidos a viver isto, uma casa atrás da outra, que não teremos tempo de reviver isto.
- Então estás pronto para tratar de um deles?
- Estou mais do que pronto - confirmou Bucky.
- Quantos achas que conseguimos fazer juntos antes de amanhecer?
- Acho que vinte ou trinta, na boa.
Os olhos de Janet brilhavam na penumbra.
- Eu acho que cem.
- Ora aí está um alvo a atingir - disse Bucky.
15.
No alpendre envidraçado pendiam do teto cestos com plantas. Na penumbra, os fetos caíam em cascata dos cestos e pareciam aranhas gigantes perpetuamente prontas para atacar.
Sem medo do troll mas não querendo ficar no escuro com ele, Erika acendeu uma vela numa taça vermelha facetada. A geometria do vidro traduzia a chama mercurial em polígonos luminosos que cintilavam na
cara do troll, a qual poderia ter sido um retrato cubista da Morte Vermelha de Poe, se a Morte Vermelha da história tivesse sido um tipo anão com ar engraçado, queixo protuberante, uma fenda sem lábios
a fazer de boca, pele rugosa e olhos enormes, expressivos, belíssimos - e feéricos.
Como esposa de Victor, esperava-se que Erika fosse espirituosa e eloquente enquanto anfitriã, bem como enquanto convidada, junto com o marido, noutras ocasiões sociais. Por conseguinte, fora programada
com uma enciclopédia de alusões literárias a que podia recorrer sem esforço, embora nunca tivesse lido nenhum dos livros a que as alusões se referiam.
Aliás, estava rigorosamente proibida de ler livros. Erika Quatro, a sua antecessora, passara muito tempo na bem provida biblioteca de Victor, talvez com intenção de se aperfeiçoar e ser melhor esposa.
Porém, os livros haviam-na corrompido, e ela fora abatida como um cavalo doente.
Os livros eram perigosos. Os livros eram as coisas mais perigosas do mundo, pelo menos para qualquer esposa de Victor Helios. Erika Cinco não sabia porque é que isso era assim, mas compreendia que, se
começasse a ler livros, seria cruelmente castigada e talvez destruída.
Durante algum tempo, de lados opostos da mesa, ela e o troll contemplaram-se com interesse, enquanto ela bebia o seu conhaque e ele o Chardonnay Far Niente que ela lhe dera. Por bons motivos, ela nada
dizia, e ele parecia compreender e simpatizar com a posição em que as suas poucas palavras, proferidas antes, a tinham deixado.
Quando ele chegara à janela e encostara a testa ao vidro, a olhar para ela dentro do alpendre, antes de Erika encher um cesto de piquenique com mantimentos para ele, o troll dissera "Harker".
Ela apontara para si mesma e dissera "Erica".
57
O sorriso dele, na altura, fora como uma ferida feia. Era indubitável que continuaria a ser hediondo se sorrisse outra vez, pois tinha uma cara que a familiaridade não melhorava.
Tolerante para com a sua aparência infeliz como uma anfitriã que se preze, Erika continuara a contemplá-lo pela janela até a voz rouca dele dizer "Odeio-o".
Nenhum deles voltara a falar, nessa primeira visita do troll e, por enquanto, o silêncio bastava-lhes neste segundo tête-à-tête.
Ela não se atrevia a perguntar a quem é que ele odiava, pois se ele respondesse com o nome do seu amo, ela ver-se-ia obrigada, em virtude da sua programação, a amarrá-lo e detê-lo ou a avisar as pessoas
adequadas do perigo que ele constituía.
A sua falha em não denunciar o troll de imediato poderia granjear--lhe uma tareia. Por outro lado, se ela o reportasse de imediato, não deixaria de correr o risco dessa tareia. Naquele jogo, as regras
não eram evidentes; além disso, as regras aplicavam-se todas a ela e nenhuma ao marido.
Aquela hora, o pessoal da casa estava todo no dormitório nas traseiras da propriedade, mais provavelmente entretidos na atividade sexual intensa e, não raro, brutal, que era o único escape permitido para
a tensão da sua espécie.
Victor gostava de ter privacidade à noite. Ela desconfiava de que ele precisava de poucas horas de sono ou nenhumas, mas não sabia o que ele fazia quando ficava sozinho nem porque era tão importante a
privacidade. Erika não tinha a certeza de querer mesmo saber.
A batida contínua da chuva no telhado e além das janelas fazia com que o silêncio dentro do alpendre parecesse, em comparação, íntimo, acolhedor até.
- A minha audição é muito apurada - disse ela. - Se eu ouvir alguém a aproximar-se, apago a vela e tu sais logo porta fora.
O troll assentiu em concordância.
Harker...
Como Erika Cinco saíra do tanque de criação menos de vinte e quatro horas antes, estava atualizada quanto à vida e aos feitos do marido. Os acontecimentos do dia eram regularmente carregados no cérebro
de uma esposa em maturação, para que ela pudesse nascer com compreensão integral da grandeza do marido e das frustrações que um mundo imperfeito causava a um homem com o seu génio singular.
58
Erika, tal como outros Alfas fulcrais, também sabia os nomes de todos os Alfas, Betas, Gamas e Ipsílones produzidos nas Mãos da Misericórdia, bem como a função que desempenhavam para o seu criador. Por
conseguinte, o nome Harker não lhe era estranho.
Até uns dias antes, quando algo de mal lhe acontecera, um Alfa chamado Jonathan Harker fora detetive de homicídios na Divisão de Polícia de Nova Orleães. Num confronto com dois detetives que eram elementos
da Velha Raça - O'Connor e Maddison - o renegado Harker fora presumivelmente morto por tiros de caçadeira e posterior queda do telhado de um armazém.
A verdade era mais estranha do que a ficção oficial.
Ainda no dia anterior, entre os dois espancamentos que infligira a Erika, Victor efetuara a autópsia de Harker e descobrira que o tronco do Alfa desaparecera quase por completo. Parecia que a carne, os
órgãos internos e alguma estrutura óssea tinham sido devorados. Haviam desaparecido vinte quilos, ou mais, da massa corporal do Alfa. Da carcaça pendia um cordão umbilical quebrado, sugerindo que se desenvolvera
dentro de Harker uma forma de vida inesperada, se alimentara dele e se separara do hospedeiro a seguir à queda do telhado.
Erika bebericava o seu conhaque. O troll bebericava o vinho.
Erika recorreu a uma alusão literária que lhe parecia apropriada, embora não pudesse compreender a referência, não tendo lido o perigoso livro de Joseph Conrad, e disse:
- "Por vezes pergunto-me se serei Marlowe, a montante do rio com Kurtz, e à nossa frente - e atrás de nós - jaz apenas o coração de umas trevas imensas."
A boca sem lábios do troll soltou um ruído que se assemelhava a um estalar de lábios.
- Cresceste dentro do Harker? - perguntou ela.
A taça de vidro facetado perfilava a luz da chama amorfa em mosaicos quadrados, retangulares e triangulares, que incidiam na cara do troll e a faziam cintilar.
- Sim - respondeu ele em voz rouca. - Sou daquilo que era.
- Harker morreu?
- Aquele quem era morreu, mas aquele quem sou existe.
- Tu és Jonathan Harker?
- Sim.
- Não apenas uma criatura que cresceu dentro dele como um cancro?
- Não.
59
- Ele apercebeu-se de que crescias dentro dele?
- Aquele quem era sabia daquele que eu sou.
Das dezenas de milhares de alusões literárias que Erika podia percorrer num instante, sabia que, quando trolls ou homúnculos ou outros seres falavam em enigmas ou de maneiras complicadas, havia sarilho.
Não obstante, ela sentia empatia com aquela criatura e confiava nela.
E perguntou:
- Posso tratar-te por Jonathan?
- Não. Chama-me Johnny. Não. Chama-me John-John. Não. Isso não.
- O que devo chamar-te?
- Saberás o meu nome quando eu o souber também.
- Tens todas as recordações e todos os conhecimentos do Jonathan?
- Sim.
- A mudança por que passaste foi descontrolada ou intencional?
O troll fez estalar a boca.
- Aquele quem era pensou que lhe estava a acontecer a ele. Eu que sou apercebo-me de que ele fez acontecer.
- De forma inconsciente, tu querias desesperadamente ser outro que não Jonathan Harker.
- O Jonathan que era... queria ser como era mas deixar de ser Alfa.
- Queria continuar homem mas ficar livre do domínio do seu criador - interpretou Erika.
-Sim.
- Ao contrário disso - concluiu ela -, tu livraste-te do corpo do Alfa e tornaste-te... no que és agora.
O troll encolheu os ombros.
- Merdas que acontecem.
16.
Detrás de um vaso com uma palmeira de ráfia na varanda da casa dos Arceneaux, Bucky Guitreau observava a sua mulher nua a bater ligeiramente na janela da sala de estar. Bucky passava o peso do corpo de
um pé para o outro, tão excitado que não conseguia estar quieto.
Aparentemente, Janet não se fizera ouvir, e bateu com mais força na janela.
Momentos depois, o jovem Charles Arceneaux, aspirante a empresário da Internet, pairava na sala do outro lado da janela. O semblante assustado por ver uma vizinha nua era exagerado como o de uma personagem
de banda desenhada.
Um elemento da Velha Raça poderia achar Charles cómico nessa altura, poderia ter-se rido a bom rir. Todavia, Bucky era da Nova Raça e não achava nada cómico. O ar sobressaltado de Arceneaux só aumentava
a vontade ardente de Bucky de o ver esquartejado, despedaçado e morto. Tal era a atual - e crescente - intensidade do ódio de Bucky que qualquer expressão que passasse pela cara de Charles inflamaria a
sua paixão pela violência.
De entre as frondosas ramagens da palmeira, Bucky viu Charles
falar. Não conseguia ouvir as palavras, mas sabia ler nos lábios: Senhora Guitreau? É você?
Do seu lado da janela, Janet disse:
- Oh, Charlie, oh, aconteceu uma coisa horrível.
Charles olhava mas não respondia. A avaliar pelo ângulo da cabeça do jovem, Bucky soube que Charlie não estava a olhar para a cara de Janet.
- Aconteceu uma coisa horrível - repetiu ela, para quebrar o fascínio hipnótico com os seus amplos mas espevitados seios.
- Só tu me podes ajudar, Charlie.
Assim que Charles se afastou da janela, Bucky saiu do abrigo da palmeira. Tomou posição contra a casa, ao lado da porta entre a sala e a varanda.
Quando Janet entrou pela portada, parecia voraz como a deusa da Morte de uma tribo primitiva, os dentes arreganhados num sorriso sem humor, as narinas abertas, os olhos ferozes com a sede de sangue, irados
e impiedosos.
61
Bucky afligiu-se, não fosse Charlie, ao ver aquela encarnação temível, desconfiar subitamente das verdadeiras intenções dela, recusar-se a deixá-la entrar, e dar o alerta.
No entanto, quando ela chegou à porta e se virou para contemplar Arceneaux, o semblante estava convincentemente afivelado no de uma mulher assustada e desesperada por encontrar um homem forte onde encostar
os seus amplos mas espevitados seios.
Charles não escancarou logo a porta porque, na sua avidez, se demorou desajeitadamente com a fechadura. Quando abriu finalmente a porta, Janet sussurrou:
- Oh, Charlie, eu não sabia aonde ir e depois... lembrei-me... de ti.
Bucky achou que ouvira algo atrás de si na varanda. Olhou para a
direita, por cima do ombro, mas nada viu.
- O que se passa, o que aconteceu? - perguntou Charles quando Janet transpôs o umbral da porta e se lançou nos braços dele.
- Aconteceu uma coisa horrível - disse Janet, a empurrar Charles com o corpo e a deixar a porta aberta.
Ansioso por não perder pitada, mas hesitante em revelar-se e entrar em casa antes de Janet dominar Charles por completo, Bucky inclinou--se para a esquerda e espreitou pela porta aberta.
Nesse instante Janet mordeu Charles num sítio em que Bucky nunca pensaria em morder e, em simultâneo, esmagou-lhe a laringe, impedindo-o de gritar.
Bucky correu para dentro para ver e esqueceu-se da porta aberta atrás de si.
Embora a atuação de Janet tenha demorado significativamente menos de um minuto, houve muito para Bucky ver, uma formação em ferocidade e crueldade que os peritos de tortura do Terceiro Reich não poderiam
ter dado a ninguém que lhes dedicasse um ano de estudo. Bucky estava siderado com a capacidade de invenção de Janet.
Perante a confusão na sala de convívio quando Janet terminou, Bucky ficou espantado por ela ter feito tão pouco barulho, nada que se traduzisse em acordar alguém que pudesse estar a dormir algures em casa.
No ecrã do plasma, o tipo de peruca cor de laranja e serra em punho e caracterização de palhaço fez qualquer coisa à rapariga acorrentada à estátua de George S. Patton, algo que os realizadores haviam
pensado ser indizível a ponto de o público guinchar horrorizado e deliciado para reprimir a vontade de vomitar. Contudo, e comparados
62
com Janet, os realizadores tinham tanta imaginação como uma criança sociopata a arrancar asas a moscas.
- Eu tinha tanta razão - disse Janet. - Matar nua em pelo é a melhor coisa de sempre.
- Achas que é decididamente um dos teus valores pessoais?
- Ah, sim. E completamente V!
Embora não conhecessem os Arceneaux como conheciam os Bennets, Janet e Bucky sabiam que, além de Charles, moravam mais quatro pessoas naquela casa: Preston, dezasseis anos, o rufia do bairro; Antoine e
Evangeline, e a mãe de Evangeline, Marcella. A avó tinha quarto no andar de baixo e os outros em cima.
- Estou tão pronto para matar um sozinho como o que tu fizeste - declarou Bucky.
- Mata a Marcella.
- Sim. Depois vamos lá acima.
- Despe-te. Sente o poder.
- Quero matar um com a roupa vestida primeiro - disse Bucky. -Para que, quando matar alguém nu, tenha ponto de comparação.
- É boa ideia.
Janet saiu da sala de estar com o poder, a graciosidade e o porte furtivo de uma pantera, e Bucky seguiu-a todo animado, deixando a porta da varanda aberta para a noite.
17.
Dado que uma mulher capaz de sentir humildade, vergonha e ternura se revelava um saco de pancada mais satisfatório do que uma que apenas soubesse odiar e recear e ferver de raiva, Victor concebera as suas
Erikas com um leque de emoções mais vasto do que os outros elementos da Nova Raça.
Enquanto bebericavam juntos no alpendre, Erika Cinco percebeu que a sua simpatia pelo troll rapidamente evoluía para compaixão.
Havia algo nele que lhe dava vontade de o proteger. Como ele era do tamanho de uma criança, talvez lhe tocasse no instinto maternal - embora ela fosse estéril, como todas as mulheres da Nova Raça. Não
se reproduziam; eram produzidas numa fábrica, como sofás e sapatos, pelo que não era provável que ela tivesse instinto maternal.
Talvez fosse a pobreza dele o que a afetava. Quando irrompera do corpo do seu Alfa original, o troll não tinha roupa, não tinha sapatos. Não tinha dinheiro para comida ou teto, e era pequeno e perturbante
de mais para voltar ao trabalho como detetive de homicídios.
Quem fosse dado a alusões literárias poderia dizer que ele era um Quasimodo do seu tempo - ou ainda algo mais pungente, um Homem Elefante, vítima do preconceito contra a fealdade numa sociedade que venerava
a beleza.
Fosse qual fosse o motivo da sua compaixão, Erika disse:
- Posso fazer uma vida para ti aqui, mas tens de ser discreto. Será uma vida secreta. Só eu posso saber. Gostarias de viver aqui, livre e sem passar necessidades?
O sorriso dele teria espantado cavalos.
- Jocko gostaria disso. - Ao ver a perplexidade dela, ele explicou:
- Parece que Jocko me assenta bem.
- Jura que conspiras comigo para fazer segredo da tua presença. Jura, Jocko, que vieste aqui apenas com intenções inocentes.
- Juro! Ele que se tornou eu era violento. Eu que era ele quero paz.
- A tua espécie tem reputação de dizer uma coisa e pretender outra - observou Erika - mas, se causares sarilhos, não duvides de que lidarei contigo severamente.
Perplexo, ele perguntou:
- Há mais como eu?
64
- Nos contos de fadas, há muitos parecidos contigo. Trolls, ogres, diabretes, homúnculos, duendes... E todas as alusões literárias a tal gente sugerem que são muito maliciosos.
- O Jocko não. - O branco dos olhos dele estava vermelho naquela luz vermelha, e as íris amarelo-limão estavam cor de laranja. -O Jocko só espera ter algum préstimo para retribuir a tua bondade.
- Acontece que há uma coisa que tu podias fazer.
- Assim também pareceu ao Jocko.
O ar astuto dele parecia trair a sua alegação de inocência mas, depois de ter passado por dois espancamentos num só dia, Erika estava motivada para dar a Jocko o benefício da dúvida.
- Não estou autorizada a ler livros - começou ela - mas tenho curiosidade quanto a eles. Quero que me leias livros.
- Jocko há de ler até a voz lhe doer e ele ficar ceguinho.
- Bastam umas horas por dia - assegurou Erika.
18.
Da avó ao rufia do bairro, passando por Antoine e Evangeline, Bucky e Janet Guitreau percorreram a família Arceneaux como um cardume de piranhas raivosas passa por qualquer coisa que irrite peixes assassinos.
Embora tivesse sido bom ouvir os gritos atormentados e as súplicas por misericórdia, ainda não chegara o tempo de fazer guerra aberta. Bucky e Janet não queriam que as vítimas acordassem a família do lado,
a qual, no sono, era um sortido de cadáveres prestes a acontecer. Por diversas maneiras, calaram os Arceneaux antes de passarem à destruição.
Bucky e Janet não conheciam o resto das pessoas que morava nas casas além da residência dos Arceneaux, mas essas potenciais vítimas eram da Velha Raça e, como tal, seria igualmente divertido matá-las,
não interessava nada serem estranhos.
A dado momento que Bucky não sabia precisar, despira-se. Janet deixara-o matar Marcella e depois devastar o jovem Preston e, no quarto de casal, dera-lhe Antoine enquanto desmembrava Evangeline. Precisaram
apenas de uns minutos.
A princípio a nudez parecera-lhe estranha, mas depois sentira desaparecerem pedaços do seu código de programação; já não eram só linhas mas sim blocos inteiros de código, e Bucky sentia-se livre e natural
como um lobo se sente na sua pele, embora muito mais selvático do que um lobo, com mais fome do que um lobo jamais poderá ter, e nada limitado na sua matança pelo que fosse estritamente necessário à sobrevivência,
como é apanágio dos lobos.
Quando só restavam ele e Janet vivos no quarto de casal, ela começou a dar pontapés ao que sobrava do que destruíra. Sufocada pela raiva, a cuspir-se toda com o nojo, declarou:
- Odeio-os, odeio-os, tão moles e frágeis, tão rápidos a temer e suplicar, tão arrogantes na certeza de terem almas, mas tão cobardes para criaturas que alegam haver um deus que as ama, as ama! Como se
houvesse nelas algo digno de amor... copinhos de leite trémulos e imprestáveis, fanfarrões frouxos a reclamarem um mundo pelo qual nem lutam. Estou ansiosa por ver desfiladeiros arrasados e cheios com
os corpos deles e oceanos vermelhos do sangue deles, ansiosa por
66
cheirar cidades que tresandem aos cadáveres em decomposição, e piras deles a arderem aos milhares.
Esta tirada encantou Bucky, acelerou-lhe os dois corações, embargou-lhe a garganta de fúria, retesou-lhe tendões e músculos no pescoço, até sentir as carótidas latejarem como tambores. Poderia tê-la ouvido
continuar, antes de a necessidade de passar à casa seguinte se tornar imperiosa, mas nisto chamou-lhe a atenção um movimento à porta, e mandou-a calar com duas palavras:
- O cão!
No corredor, a olhar para eles, estava o Duque de Orleães, de cauda baixa e imóvel, pelo eriçado, orelhas espetadas, dentes arreganhados. Depois de ver o rapaz das pizas morto no chão do vestíbulo, o Duque
devia tê-los seguido até aos Bennets, e dos Bennets até ali, testemunha de todos os massacres, pois tinha olhos acusadores e o súbito rosnido era um desafio.
Desde a noite em que tinham substituído os verdadeiros Bucky e Janet Guitreau que aquele perspicaz pastor-alemão sabia que eles não eram quem aparentavam ser. Os amigos e a família haviam-nos aceitado
sem hesitações, sem um momento de desconfiança, mas o Duque mantivera-se à distância, cauteloso desde o primeiro momento daquele fingimento.
Agora, com o cão a contemplá-los, ali onde eles estavam, no meio da sangria desatada que fora Antoine e Evangeline, Bucky sentiu uma assustadora mudança de perceção. O cão não era apenas um cão.
Todos os da Nova Raça compreendiam que aquela era a única vida e que não havia outra à espera deles, nem dos da Velha Raça. Sabiam que o conceito de imortalidade da alma era uma mentira arquitetada pelos
elementos da Velha Raça, no intuito de manter a sua fragilidade capaz de lidar com a realidade da morte, da morte sempiterna. A Nova Raça reconhecia que não havia domínio algum além do material, que o
mundo não era lugar de mistério mas sim de causa e efeito sem ambiguidade, que aplicando o intelecto racional se poderia chegar à simples verdade subjacente a qualquer suposto enigma, que eram máquinas
de carne, tal como os elementos da Velha Raça eram máquinas de carne, como qualquer animal era apenas uma máquina de carne, e que o seu criador era também uma máquina de carne, embora a máquina de carne
com a mente mais genial na história da espécie e com uma visão infalível de uma utopia feita pelas mãos do homem, a qual lançaria as bases do Reich do Milhão de Anos na Terra, antes de
67
se disseminar por todos os planetas habitáveis que orbitassem em qualquer astro do Universo.
Esta crença de materialismo e anti-humanismo absoluto fora instilada em Bucky e Janet enquanto maturavam nos tanques de criação, que constituía uma maneira incomensuravelmente mais eficaz de aprender do
que ver a Rua Sésamo e ler uma série de monótonos manuais escolares.
Ao contrário dos elementos da Velha Raça, que se podiam contentar durante décadas com a filosofia de que a vida não tinha sentido, para depois ficarem encantados com Deus na meia-idade, a Nova Raça comprazia-se
em saber estar tão industriada com desesperança que nunca teria qualquer dúvida quanto às suas convicções. O Pai dissera-lhes que uma desesperança inatacável era o princípio da sabedoria.
Mas agora o cão.
Aquele olhar frontal e perturbador, aquela pose de censura, o facto de ele saber que eles eram impostores, de os ter seguido noite fora sem eles se aperceberem, de não se esgueirar do perigo que Bucky
e Janet atualmente constituíam para qualquer ser vivo que não fosse da sua laia, de os ter inclusive ido confrontar: de súbito, aquele cão parecia ser mais do que uma máquina de carne.
Era evidente que Janet se encontrava perturbada pela mesma perceção, pois perguntou:
- O que está ele a fazer aos olhos?
- Os olhos dele não me agradam - concordou Bucky.
- É como se não estivesse a olhar para mim, mas sim para dentro de mim.
- Está a olhar para dentro de mim também.
- É bizarro.
- É completamente bizarro - concordou Bucky.
- O que é que ele quer?
- Alguma coisa quer.
- Podia matá-lo tão depressa - disse Janet.
- Podias. Em coisa de três segundos.
- Ele já viu o que conseguimos fazer. Porque é que não tem medo?
- Parece que não tem medo, não parece?
À porta, o Duque rosnava.
- Nunca me senti assim na vida - disse Janet.
- Como é que te sentes?
68
- Diferente. Não tenho palavras para definir.
- Eu também não.
- De repente sinto-me ... há coisas a acontecerem à minha frente que não consigo ver. Faz sentido?
- Estaremos a perder mais programação?
- Eu só sei que o cão sabe alguma coisa em grande - disse Janet.
- Sabe? O que é que ele sabe?
- Sabe uma razão para não ter medo de nós.
- Que razão? - perguntou Bucky.
- Sei lá. Tu sabes?
- Não sei - respondeu Bucky.
- Não me agrada não saber.
- É só um cão. Não pode saber coisas grandes que nós não saibamos.
- Ele devia ter muito medo de nós. - Janet abraçou-se a si mesma
e parecia que tremia. - Mas não tem. Ele sabe coisas grandes que nós
não sabemos.
- É só uma máquina de carne como nós.
- Não é assim que está a portar-se.
- Nós somos máquinas de carne espertas. Ele é estúpido - disse Bucky, mas o seu constrangimento era de um tipo que nunca antes sentira.
- Ele tem segredos - disse Janet.
- Que segredos?
- As coisas grandes que ele sabe e nós não sabemos.
- Como é que um cão pode ter segredos?
- Talvez não seja apenas um cão.
- O que mais pode ser?
- Qualquer coisa - disse ela em tom portentoso.
- Ainda há um minuto, senti-me tão bem a matar todo nu, tão natural.
- Bem - repetiu ela. - Natural.
- Agora tenho medo - disse ele.
- Eu também tenho medo. Nunca tive tanto medo.
- Mas não sei de que é que tenho medo, Janet.
- Nem eu. Devemos ter medo de... do desconhecido.
- Mas não há nada incognoscível para um intelecto racional, pois não? Não há?
- Então porque é que o cão não tem medo de nós?
69
Bucky disse:
- Ele continua a olhar fixamente. Não aguento aquela maneira de olhar fixamente. Não é natural, e esta noite aprendi a que sabe o natural. Isto não é natural.
- É sobrenatural - sussurrou Janet.
De súbito, Bucky sentiu a nuca húmida. Um arrepio passou-lhe em espiral pela coluna toda.
Precisamente quando Janet proferiu a palavra sobrenatural, o cão virou-lhes costas e desapareceu no corredor do andar de cima.
- Onde é que ele vai, vai, vai? - inquiriu Janet.
- Se calhar nem cá esteve.
- Tenho de saber aonde é que ele vai, o que ele é, o que ele sabe -disse Janet com urgência, e atravessou o quarto a correr.
Bucky seguiu-a até ao corredor e viu que o cão desaparecera.
Janet correu para o patamar da escada.
- Lá vai ele! A descer. Ele sabe alguma coisa em grande, oh se sabe, oh se sabe, e vai a algum lado em grande, ele é algo em grande.
Na peugada do cão misterioso, Bucky desceu a escada com Janet e depois apressou-se para as traseiras da casa.
- Oh se sabe, oh se sabe, coisa em grande, grande, maior do que grande, o cão sabe, o cão sabe, o cão.
Instantes antes de entrar na sala de estar, ocorreu a Bucky a ideia louca e aterradora de que Charles estaria vivo, Charles e Preston e Marcella e Antoine e Evangeline, todos ressuscitados, furiosos, possuídos
de poderes sobrenaturais hediondos que fariam deles invulneráveis, e que lhe fariam coisas que ele não conseguia imaginar, coisas incognoscíveis.
Felizmente, o jovem Charles Arceneaux era o único que lá estava, e ainda estava mortinho e bem morto.
Ao ver Charles morto e completamente desmembrado, Bucky deveria ter-se sentido melhor, mas o medo apertou-o mais como a mola retesada de um relógio. Sentia-se eletrizado pela sensação de insólito, pelo
reconhecimento de domínios misteriosos além do seu alcance, pelo espanto de que o mundo tivesse subitamente revelado conter dimensões estranhas anteriormente inimagináveis.
Janet saltou atrás do cão, a trautear:
- Cão sabe, sabe, sabe. Cão vê, vê, vê. Cão, cão, cão. - E Bucky foi atrás dos dois, saiu da casa dos Arceneaux, passou a varanda, entrou na chuva. Não tinha exatamente a certeza de como é que a aparição
70
do pastor-alemão à porta do quarto de casal o lançara naquela perseguição frenética, o que significava tudo aquilo, onde iria terminar, mas tinha a certeza absoluta, mais absoluta do que alguma vez tivera,
de que se avizinhava um acontecimento de natureza profunda e mágica, algo em grande, algo enorme.
Ele não estava apenas despido, estava todo nu, vulnerável física e mentalmente, os dois corações a baterem, inundados de uma emoção como nunca haviam estado antes, não por estarem a matar alguém, mas empolgados.
Correram pelo portão dos vizinhos, entraram no jardim da casa dos Bennets, ladearam a casa até à rua, o cão à frente, e Bucky ouviu-se dizer:
- Aconteceu uma coisa horrível, aconteceu uma coisa horrível. -E ficou tão perturbado pelo desespero da sua voz que se obrigou a parar essa lengalenga. Quando chegaram ao meio da rua, sem apanhar o cão
mas sem ficarem para trás, a lengalenga era:
- Matar o rapaz das pizas, matar o rapaz das pizas. - E, embora não fizesse ideia do que significava, agradava-lhe a sonoridade.
19.
A suíte principal da mansão Helios tinha duas casas de banho, uma para Victor e outra para Erika. Ela não tinha autorização para passar o umbral da dele.
Todo o homem precisa de um retiro sacrossanto, um espaço particular onde se possa descontrair e deleitar com os acontecimentos do dia transato e as intenções para o dia seguinte. Caso o homem seja um revolucionário
com o poder da ciência às suas ordens, e caso tenha a coragem e a vontade de mudar o mundo, precisa e merece um santo dos santos de grande design e dimensão.
A casa de banho de Victor media cento e cinquenta metros quadrados. Tinha banho turco, sauna, um chuveiro espaçoso, um jacuzzi, dois frigoríficos debaixo de um balcão, uma máquina de gelo, um bar bem abastecido,
um micro-ondas escondido atrás de uma porta basculante, três plasmas com capacidade para discos Blu-Ray, e um armário de madeira negra com uma coleção de chicotes de cabedal ricamente entrançados.
O teto folheado a talha dourada tinha lustres de cristal personalizados ao estilo Art Déco, e as paredes eram revestidas a mármore. Incrustadas no soalho de mármore polido havia pedras semipreciosas formando
a dupla hélice da molécula de ADN. As torneiras e outros metais eram folheados a ouro, incluindo até a alavanca da sanita, e havia hectares de espelhos biselados. Todo o espaço reluzia.
Não havia nada naquele espaço luxuriante que desse tanto prazer a Victor como o seu reflexo. Uma vez que os espelhos tinham sido dispostos de modo a refletir outros espelhos, ele podia ver múltiplas imagens
de si onde quer que estivesse.
O sítio favorito para autocontemplação era uma câmara de meditação octogonal com uma porta de espelho. Lá dentro, nu, podia admirar todos os aspetos do seu corpo ao mesmo tempo, e também ver imagens infinitas
de cada ângulo até ao infinito, um mundo de Victores e nada mais.
Não se tinha por mais vaidoso do que o homem médio. O orgulho na sua perfeição física tinha menos a ver com a beleza do corpo -embora fosse belo à sua maneira única - do que com as provas da sua
72
determinação e vontade indómita, que se revelavam nos meios pelos quais ele mantinha esse corpo há duzentos e quarenta anos.
Em espiral a toda a volta do seu tronco musculado - ora incrustado na carne e meio exposto, ora inteiramente incorporado - a entrelaçar--se nas costelas, a rodopiar pela coluna direita como um fuso, um
fio de metal flexível e implantes inerentes convertia eficientemente a corrente elétrica numa energia diferente e arcana, numa descarga estimulante que assegurava um ritmo jovem para a divisão celular
e impedia que as marcas do tempo o atingissem.
As incontáveis cicatrizes e singulares excrescências eram o testemunho da sua resistência, pois alcançara a imortalidade à custa de muito sofrimento. Sofrera para concretizar a sua visão e refazer o mundo,
e ao sofrer pelo mundo, arrogava-se o direito a uma espécie de divindade.
Saiu da câmara de meditação espelhada e dirigiu-se ao jacuzzi, onde os jatos já revolviam a água a ferver. Havia uma garrafa de Dom Pérignon à espera num balde de gelo prateado. A rolha dera lugar a uma
tampa de prata sólida. Instalado na água quente, Victor bebericava o champanhe crepitante e gelado numa flute Lalique.
Enquanto se desenrolara, o dia parecera não passar de um encadeado de crises e frustrações. As descobertas durante a autópsia de Harker. O esgotamento de Werner. O primeiro dos triunfos de Victor, que
agora dava pelo nome de Deucalião, não estava morto mas sim vivo em Nova Orleães. O breve encontro com Deucalião em casa de Duchaine, a fuga intrigante do homem tatuado. Erika a jantar na sala de estar
- na sala de estar! - numa escrivaninha valiosíssima do século XVIII francês, como se fosse alguma saloia ignorante.
As situações Harker e Werner poderiam parecer calamidades a tipos sem imaginação como Ripley, mas constituíam oportunidades. De cada revés advinha conhecimento e novos e espantosos progressos. Thomas Edison
desenvolvera centenas de protótipos de lâmpadas que haviam fracassado, até que por fim descobrira o material certo para o filamento.
Deucalião não passava de mero divertimento. Não podia fazer mal ao seu criador. Além disso, o desgraçado tatuado matara a primeira mulher de Victor, Elizabeth, dois séculos antes, no dia do casamento.
O regresso da aberração daria a Victor a hipótese de uma vingança há muito devida.
73
Victor não amara Elizabeth. Amor e Deus eram mitos que ele rejeitava com igual desprezo.
Porém, Elizabeth pertencia-lhe. Mesmo volvidos mais de duzentos anos, ele amargamente ainda guardava rancor por tê-la perdido, como guardaria rancor por perder uma jarra de porcelana antiga se Deucalião
a tivesse escaqueirado em vez da sua noiva.
Quanto à quebra de etiqueta de Erika Cinco: teria de ser disciplinada. Além de ser um cientista genial, Victor também era um grande disciplinador, ao mais alto nível.
Em suma, estava tudo a avançar a bom ritmo.
A Nova Raça que ele trabalhara tanto para criar com o generoso financiamento de Hitler, e o derradeiro esforço custeado por Estaline, um projeto subsequente na China, esses e outros haviam sido etapas
necessárias rumo à obra gloriosa nas Mãos da Misericórdia. Desta vez, graças aos biliões ganhos pela sua empresa legítima, a Biovision, ele podia suportar cinquenta e um por cento do atual projeto e impedir
sócios minoritários metediços, de entre os quais um consórcio de ditadores sul-americanos, o governante de um reino cheio de petróleo ansioso por substituir a população irrequieta por súbditos novos e
obedientes, e um idiota supermultimilionário da Internet convencido de que Victor andava a criar uma raça que não exalava C02 como os humanos e que, assim, salvaria o planeta.
Não tardaria a que os viveiros começassem a produzir milhares de elementos da Nova Raça, e que a Velha estivesse à beira do olvido.
Para cada revés menor havia uma centena de sucessos maiores. O ímpeto - e o mundo - pertenciam a Victor.
Não tardaria a que ele pudesse viver outra vez com o seu verdadeiro nome, um nome orgulhoso e historicamente rico, e todas as pessoas do mundo o diriam com reverência, como os crentes dizem o nome do seu
deus com assombro: Frankenstein.
Quando por fim saiu do jacuzzi, pensou em voltar à câmara de meditação por mais alguns minutos.
20.
Carson e Michael estavam sentados dentro do Honda, perto de Audubon Park, motor ligado, faróis acesos, ar condicionado a soprar. Comiam as sandes de salmonete frito e os acompanhamentos, com os queixos
gordurosos, os dedos escorregadios de molho tártaro e salada de couve, tão satisfeitos com a comida do Acadiana que a batida incessante da chuva no tejadilho do carro começava a parecer tranquilizante.
Nisto, Michael disse:
- Há ali qualquer coisa.
Carson tirou os olhos da sandes e viu-o a semicerrar os olhos para ver através do lençol de água que brilhava pelo para-brisas abaixo e desfocava a vista. E ligou os limpa-para-brisas.
A correr na direção deles pelo meio da rua - deserta àquela hora, e com aquele tempo - ia um pastor-alemão, e atrás do cão um homem e uma mulher, ambos todos nus.
O cão passou pelo Honda mais depressa do que Carson alguma vez vira um cão correr. Até descalços, a mulher e o homem eram mais velozes do que atletas olímpicos, como se estivessem a treinar para concorrer
à NASCAR sem automóvel. Os órgãos genitais do homem adejavam, os seios da mulher balouçavam, exuberantes, e as suas expressões faciais estavam igualmente extáticas, como se o cão lhes tivesse prometido
levá-los a Jesus.
O cão não ladrava mas quando os corredores de duas patas passaram pelo Honda Carson ouviu-os gritar. Com as janelas fechadas e a chuva a fustigar o tejadilho, não conseguiu discernir o que a mulher dizia,
mas o homem, todo excitado, exclamava qualquer coisa sobre piza.
- Temos alguma coisa com aquilo? - perguntou Michael.
- Não - respondeu Carson.
Carson levou a sandes à boca mas, em vez de dar uma dentada, voltou a guardá-la no saco com os acompanhamentos, enrolou a parte de cima do saco e passou-o a Michael.
- Caraças - disse, engatou a mudança no Honda e fez inversão de marcha.
- O que é que eles iam a gritar? - perguntou Michael.
- Ela, não sei. Dele só apanhei a palavra piza.
75
- Achas que o cão lhes comeu a piza?
- Não pareciam zangados.
- Se não estão zangados, porque é que o cão vai a fugir deles?
- Terás de perguntar ao cão.
Mais à frente, o trio de oito patas virava à esquerda e entrava na via de acesso ao Audubon Park.
- O tipo pareceu-te conhecido? - perguntou Michael, enquanto punha os sacos das entregas no chão entre os pés.
A acelerar para sair da curva, Carson respondeu:
- Não lhe consegui ver a cara.
- Acho que era o procurador.
- Bucky Guitreau?
- E a mulher.
- Que bom para ele.
- Bom para ele?
- Não anda todo nu atrás de um cão com uma puta qualquer.
- Não é o típico político de Nova Orleães.
- Um homem de família.
- As pessoas conseguem correr assim tão depressa?
- As nossas pessoas, não - disse Carson, e virou à esquerda rumo ao parque.
- Bem me pareceu. E descalças.
O parque fechara às dez da noite. O cão poderia ter-se escapulido pelo portão. Os corredores nus tinham atravessado a barreira, demolindo--a entretanto.
Quando Carson entrou com o carro pelas ruínas do portão, Michael perguntou:
- O que é que vamos fazer?
- Não sei. Acho que depende do que eles fizerem.
21
O azul é a cor da visão fria. Todas as coisas são em tons de azul, matizes infinitos de azul.
O frigorífico de duas portas ao estilo de um restaurante tem uma porta de vidro. O vidro é um tormento para Camaleão.
As prateleiras do frigorífico foram retiradas. Nunca lá guardam comida.
De um gancho no teto da unidade pende uma saca enorme. A saca é a prisão.
A prisão é feita de um tecido de polímeros único, forte como Kevlar à prova de bala e transparente.
Esta transparência é o primeiro tormento. A porta de vidro é o segundo.
A saca faz lembrar uma lágrima enorme, pois está cheia com cinquenta litros de água e pendente.
Dentro do frigorífico, a temperatura varia entre os quatro e os três graus centígrados negativos.
A água dentro da saca de polímero é uma solução salina com substâncias químicas além do sal, para impedir a congelação.
Embora a temperatura continue abaixo do ponto de congelação, embora flutuem partículas diminutas de gelo livremente dentro da saca, a solução não congela.
O frio é o terceiro tormento de Camaleão.
A deriva dentro da saca, Camaleão vive agora num sonho insone.
Não pode fechar os olhos às suas circunstâncias, porque estes não têm pálpebras.
Camaleão não precisa de dormir.
A consciência perpétua do seu estado impotente é o quarto tormento.
Nas atuais circunstâncias, Camaleão não pode afogar-se, pois não tem pulmões.
Quando não está encarcerado, respira por meio de um sistema traqueano semelhante ao dos insetos, mas materialmente diferente. Os espiráculos à superfície deixam entrar ar nos tubos que lhe passam pelo
corpo todo.
Em animação semissuspensa, precisa de pouco oxigénio, e o fluido salino que corre pelos tubos traqueanos é rico em oxigénio.
77
Do tamanho de um gato grande, Camaleão pesa dez quilos. Embora o cérebro pese apenas 500 gramas, Camaleão é inteligente como uma criança média de seis anos, mas significativamente mais disciplinado e astuto.
Em tormento, Camaleão espera.
22.
No jacuzzi, a água quente rodopiava no corpo de Victor e as bolhinhas de Dom Pérignon estalejavam-lhe na língua, e era uma rica vida.
Tocou o telefone de parede ao lado do jacuzzi. Só alguns Alfas selecionados tinham o número daquela linha muitíssimo particular.
O ecrã mostrava DESCONHECIDO no chamador.
Não obstante, ele pegou no auscultador.
- Estou?
Voz de mulher:
- Olá, querido.
- Erika?
- Receei que te tivesses esquecido de mim - disse ela.
Victor recordou-se de como a tinha encontrado a jantar na sala de estar e optou por continuar a discipliná-la um pouco mais.
- Já sabe que não me deve incomodar aqui, só em caso de emergência.
- Não te censuro se me tiveres esquecido. Já passou mais de um dia desde que fizeste sexo comigo. Para ti passei à história.
O tom dela tinha um sarcasmo ligeiro mas inconfundível que o fizera sentar-se muito direito no jacuzzi.
- O que pensa que está a fazer, Erika?
- Nunca fui amada, apenas usada. Sinto-me lisonjeada por te lembrares de mim.
Algo de muito errado se passava.
- Onde está, Erika? Onde está aqui em casa?
- Não estou em casa, querido. Como poderia estar?
Seria um erro continuar a fazer o joguinho da conversa dela, fosse qual fosse o objetivo. Não devia encorajar aquilo que parecia ser comportamento rebelde. Victor respondeu com silêncio.
- Meu querido senhor, como é que eu poderia estar em casa se me mandaste embora?
Ele não a mandara embora. Ele deixara-a, espancada e a sangrar, na sala de estar, não um dia antes mas sim meras horas.
Ela perguntou:
- Como é a nova? E lúbrica como eu era? Quando a brutalizas, ela chora de dar pena como eu chorava?
79
Victor começou a ver a natureza do jogo e ficou chocado com a afronta dela.
- Meu querido, meu criador, depois de me matares, mandaste a tua gente do saneamento levar-me para um aterro a noroeste do Lago Pontchartrain. Perguntas onde estou dentro de casa, mas não estou em casa,
embora tenha esperança de regressar.
Agora ela levara aquela charada demente a um extremo inaceitável, e o silêncio já não era resposta apropriada.
- Você é a Erika Cinco - disse ele friamente - e não a Erika Quatro, e com esta mistificação absurda só conseguiu garantir que a Erika Seis esteja na sua posição dentro de muito em breve.
- De entre tantas noites de paixão - disse ela - recordo-me do impacto dos teus punhos, da acutilância dos teus dentes na minha carne e de ter sangrado na tua boca.
- Venha ter comigo imediatamente - disse ele, pois tinha de a destruir naquela hora.
- Oh, querido, estaria aí imediatamente se pudesse, mas é muito longe, do Garden District ao aterro.
23.
Quando chegaram a um entroncamento onde a via de acesso se juntava à estrada principal de Audubon Park, Michael sacou da pistola Desert Eagle de calibre 50, adquirida ilegalmente, do coldre que tinha no
quadril esquerdo.
Carson disse:
- Se vão arranjar sarilhos...
- Apostava os dois rins nisso.
- ... então parece-me que a Urban Sniper faz mais sentido - rematou ela, e virou para a direita na West Drive.
Os faróis varreram os vultos pálidos do senhor e da senhora Guitreau, a passearem o cão a alta velocidade, todos nus naquela noite chuvosa.
Michael disse:
- Se tivermos de sair do carro, há de ser a Sniper de certezinha, mas se tiver de disparar sentado, não.
Horas antes, tinham visto o pastor Kenny Laffite, da Nova Raça, ir-se abaixo psicológica e intelectualmente. Pouco depois disso, tinham-se visto obrigados a lidar com outra das criaturas de Victor, a qual
dava pelo nome de Randal e cujo fito não ficava nada a perder para Charles Manson possuído por Jeffrey Dahmer. Randal queria matar Arnie, irmão de Carson, e tivera de levar com três balázios à queima-roupa
de uma Urban Sniper para se ir abaixo e ficar em baixo.
Agora aquela bizarria.
- Caraças - disse Carson. - Nunca mais vou ter hipótese de acabar aquele estufado de quiabos.
- Achei-o um bocadinho salgado. Tenho de dizer que a senhora Guitreau tem um belíssimo rabo.
- Pelo amor de Deus, Michael, ela é uma espécie de monstro.
- Não invalida que tenha um excelente rabo. Pequeno, firme, com aquelas covinhas por cima.
- É o Armagedão, e o meu apoio é um tarado por rabos.
- Acho que se chama Jane. Não, Janet.
- O que te interessa como ela se chama? É um monstro mas tem um cu giro, vais convidá-la para sair?
- A que velocidade vão eles?
81
Carson olhou para o velocímetro e respondeu:
- Cerca de quarenta quilómetros por hora.
- Deve ser um quilómetro em dois minutos e meio. Acho que o mais rápido que se conseguiu foi quase quatro minutos.
- Pois, mas não estou à espera de ver a fotografia deles numa caixa de cereais.
- Parece que os galgos correm um quilómetro em dois minutos -observou Michael.
- De pastores-alemães, não sei.
- A mim parece-me que o pastor está com os bofes pela boca. Eles estão a ganhar terreno.
Michael disse:
- Se temos um cão nesta corrida, vou pelo cão. Não quero o cão ferido.
O pastor e os perseguidores estavam na faixa da esquerda. Carson guinou para a faixa da direita e baixou o vidro.
Quando a chuva fez ricochete na janela e lhe salpicou a cara, ela aproximou-se dos maratonistas nus e ouviu o que eles gritavam.
A mulher - pronto, Janet - cantarolava em tom urgente: "Nariz de cão, nariz de cão, grande, grande, grande."
- Acho que ela quer o nariz do cão - disse Carson.
Michael asseverou:
- Pois não pode ficar com ele.
Nenhum dos nudistas ofegava.
Bucky Guitreau, o mais próximo dos dois, delirava com uma espécie de cadência calipso ligeira: "Matar, matar, rapaz da piza, rapaz da piza, matar, matar."
Tanto o procurador como a esposa, certamente réplicas acometidas por um esgotamento agudo, pareciam alheados do Honda que os acompanhava. Dedicavam toda a atenção ao cão e estavam quase a chegar-lhe.
A ler o velocímetro, Michael disse:
- Quarenta e um quilómetros por hora.
A tentar perceber se os corredores seriam sequer capazes de deixar de fixar o cão, Carson gritou-lhes:
- Encostem!
24.
Sentado no jacuzzi, com o champanhe azedado pelo fel da rebelião impensável da sua esposa, Victor já deveria ter desligado o telefone na cara de Erika Cinco armada em Erika Quatro. Não sabia por que razão
continuava a ouvir aquelas baboseiras, mas estava enlevado.
- Aqui no aterro - dizia ela - numa pilha de lixo, encontrei um telemóvel descartável que tinha minutos por gastar. Dezoito, para ser exata. Os da Velha Raça são tão perdulários, a deitar fora o que tem
valor. Eu também ainda tinha valor, parece-me.
Cada Erika era criada precisamente com a mesma voz, e todas se pareciam até ao pormenor mais sedutor.
- Meu lindo Victor, meu querido sociopata, posso provar-te que sou quem afirmo ser. O teu atual saco de pancada não sabe como é que me mataste, pois não?
Ele apercebeu-se de que agarrava o telefone com tanta força que até lhe doía a mão.
- Mas, fofinho, é claro que ela não sabe. Porque se a quiseres matar da mesma maneira, quererás que seja surpresa para ela, como foi para mim.
Ninguém em décadas lhe falara com tal tom de desprezo, e nunca ninguém que tivesse criado se lhe dirigira com tamanha falta de respeito.
Furioso, declarou:
- Só se pode matar pessoas. Tu não és uma pessoa, és uma propriedade, uma coisa que eu possuía, eu não te matei, desfiz-me de ti, desfiz--me de uma coisa usada e inútil.
Victor descontrolara-se. Tinha de se dominar. A sua resposta parecia traduzir que ele aceitara a alegação ridícula de que ela era Erika Quatro.
Ela disse:
- Todos os da Nova Raça são concebidos para serem extremamente difíceis de matar. Nenhum pode ser facilmente estrangulado, se é que pode de todo. Nenhum exceto as tuas Erikas. Ao contrário dos outros,
nós, esposas, temos pescoços tenrinhos, traqueias frágeis, artérias carótidas que se podem comprimir para impedir o afluxo de sangue de nos chegar ao cérebro.
83
A água no jacuzzi parecia menos quente do que há um minuto.
- Estávamos na biblioteca, onde me tinhas batido. Mandaste-me sentar numa cadeira direita. Só me restava obedecer. Tiraste a gravata de seda e estrangulaste-me. E não foi rápido. Fizeste disso uma provação
para mim.
Ele disse:
- A Erika Quatro teve o que merecia. E tu também.
- Em situações extremas - continuou ela - tu podes matar qualquer uma das tuas criaturas dizendo algumas palavras, uma frase secreta, que ativa nos nossos programas um encerramento do sistema nervoso autónomo.
O coração deixa de bater. Os pulmões param imediatamente de se expandir e contrair. Mas tu não lidaste comigo com essa clemênda.
- Lidarei agora. - Victor proferiu a frase que a encerraria.
- Meu querido, meu predoso Victor, já não funciona. Estive morta o suficiente e por tempo bastante para o teu programa de controlo me abandonar. Mas não tão morta que não pudesse ressuscitar.
- Disparate - disse ele, mas à sua voz faltava convicção.
- Oh, querido, como anseio por estar contigo outra vez. E estarei. Isto não é adeus, é apenas au revoir. - E desligou.
Se ela fosse Erika Cinco, teria caído morta quando ele usara a frase de destruição.
Erika Quatro estava viva outra vez. Pela primeira vez em todo o sempre, Victor parecia ter um problema marital com o qual não sabia lidar.
25.
O procurador e a esposa não encostaram, claro, porque Carson não tinha sirene nem luzes de emergência, porque sabiam que não estariam em condições de passar o teste do balão, mas principalmente por serem
criaturas clonadas num laboratório por um lunático narcisista e por se estarem a passar com a rapidez com que um carro médio se vai abaixo no dia em que se lhe acaba a garantia.
Michael inclinou-se para Carson, tornou a ler o velocímetro e disse:
- Quarenta e três quilómetros por hora. O cão está a abrandar. Eles vão chocar-lhe com a traseira não tarda nada.
Como se as lengalengas com várias palavras tivessem ficado cansativas de lembrar, Bucky e Janet passaram cada qual para uma só palavra. Ela gritava: "Cão, cão, cão, cão...", e ele berrava: "Matar, matar,
matar, matar..."
- Dá-lhes um tiro - disse Michael. - Dá-lhes um tiro em andamento.
- Não posso disparar uma Magnum 50 só com uma mão enquanto vou a conduzir.
Afinal era evidente que Bucky tinha, pelo menos, consciência periférica deles, e estavam a distraí-lo da perseguição ao cão o bastante para o incomodar. Transpôs o intervalo entre eles, a correr ao lado
do Honda, agarrou no espelho lateral para se equilibrar e meteu a mão pela janela na direção de Carson.
Ela travou a fundo, o espelho partiu-se na mão de Bucky. Este tropeçou, caiu e rebolou na escuridão.
O Honda guinchou e parou e, a cerca de quinze metros deles, Janet parou sem um único guincho, e virou-se para eles, a correr no mesmo sítio.
Michael embolsou a Desert Eagle e disse:
- Parece um especial da Playboy, mas bizarro. - Passou uma das Urban Snipers a Carson e agarrou na outra. - Não é que eu veja o canal da Playboy.
Michael escancarou a porta do seu lado, e Carson ligou os máximos porque a escuridão ajudava a presa mas prejudicava-a a ela. Quando o seu coração trovejou como a tempestade ainda não fizera, saiu para
a chuva, os olhos a varrerem a noite em busca de Bucky, sem o encontrar.
85
O clarão dos faróis refletido pelo pavimento molhado, preto e prata debaixo dos pés, e a oeste, além das árvores, não muito longe, as luzes de Walnut Street, Audubon e Broadway, que não chegavam tão longe,
e a nor-noroeste, as luzes do campus de Tulane e Loyola, as quais também não chegavam tão longe, o parque fundo e escuro a leste e a sul, o brilho do Hospital De Paul, talvez, longínquo.
Um sítio solitário para morrer, para ser encontrada de manhã, deixada como lixo ilegalmente despejado, deixada como o pai e a mãe tinham sido deixados há tantos anos, de cara no chão debaixo das linhas
elétricas, perto de uma torre dupla, na margem relvada de um dique em Riverbend, ao lado do caminho para velocípedes, cada qual alvejado uma vez na nuca, com pássaros pretos necrófagos a esvoaçarem nas
vigas da torre, ao nascer do dia...
Agora este parque, esta escuridão solitária, parecia a Carson a margem do dique, o sítio dela para a deixarem como um saco de lixo, a ser debicada por pássaros de olhos brilhantes. Estava fora do Honda
não havia nem dez segundos, a afastar-se da viatura e a definir o arco da potencial ameaça com o cano da caçadeira, da esquerda para a direita, depois da direita para a esquerda, mas os dez segundos pareciam
dez minutos.
Aonde estava o anormal?
De repente, um vulto pálido saiu de um buraco no chão do outro lado da rua, a réplica de Bucky, ensanguentado pela queda a alta velocidade mas outra vez de pé e a berrar: "Aconteceu uma coisa horrível,
horrível, horrível." Com um ar poderoso como o de um touro, baixou a cabeça e carregou na direção de Carson.
Carson fincou os pés no chão, pôs-se em posição, a caçadeira compacta ainda baixa nas duas mãos, a mão direita no cabo à frente da báscula, a mão esquerda agarrada ao fuste, a arma ligeiramente para o
lado direito, os cotovelos dobrados para melhor absorver o coice, que seria brutal se ela retesasse as articulações - brutal a ponto de rasgar tendões e deslocar omoplatas. Do mais sério que uma arma pode
ser, a Sniper só disparava balas que detivessem rinocerontes e não chumbo grosso de largo alcance mas, mesmo assim, ela fez pontaria por instinto, sem tempo para mais. O vigarista Bucky Guitreau, com os
olhos desvairados injetados de sangue, os lábios arreganhados nos dentes, carregava sobre ela, destemido, feroz.
Ela apertou o gatilho, o coice fê-la recuar uns centímetros, o cano subiu como ela sabia que faria, a dor atacou-lhe os dois ombros, um
86
chumbo sensível num dente molar latejou como acontecia de vez em quando se bebesse líquidos gelados e, embora ela não estivesse num espaço fechado, o tiro ressoou-lhe aos ouvidos.
A bala atingiu a réplica mesmo no meio do peito, estalou-lhe o esterno, partiu osso lá dentro, fez jorrar sangue, o braço esquerdo agitou-se por reflexo, o direito baixou por reflexo também, como se ele
se lançasse numa dança da moda como a das galinhas. Abalado mas não imobilizado, Bucky abrandara mas não parara, avançou, já sem berrar, mas sem gemer nem sentir dor, e ela tornou a disparar, mas meteu
água porque estava chocada e assustada com o avanço dele, não o atingiu na barriga nem no peito, mas sim no ombro direito, o que lhe devia ter arrancado o braço ou pelo menos um bocado dele, mas não, e
ele agarrava no cano da caçadeira, com um ar forte e furioso e concentrado para levar, talvez, mais duas balas e ainda assim dar cabo da cara de Carson e lhe partir o pescoço.
Michael apareceu na traseira do Honda, a caçadeira disparou, atingiu um flanco logo acima do quadril, e Carson tornou a disparar, talvez tivesse atingido a réplica na coxa esquerda, mas o braço já passara
a coronha da caçadeira, já levantara o cano, a mão escarlate a tentar agarrar-lhe a cara. Guitreau disse qualquer coisa como "Dá-me os teus olhos", e Michael disparou outra vez, na cabeça, e conseguiu,
finalmente a coisa-Bucky tombou, nu no pavimento preto e prata, de barriga para baixo, imóvel um momento, mas depois a tentar arrastar-se para longe deles, uma cabeça rachada como um melão e outros ferimentos
devastadores mas a tentar safar-se como se fosse uma barata aleijada. Ficou quieto mais uma vez, imóvel, imóvel, depois um derradeiro espasmo convulsivo, e acabou.
Pelo canto do olho, Carson viu movimento, ali perto, e girou nos calcanhares para se deparar com Janet do rabinho firme.
26.
A impor silêncio, Erika Cinco levou Jocko, o troll albino, por uma das duas escadas pretas até ao segundo andar, bem longe da suíte que ficava no meio da casa.
Das três mansões que havia nos três lotes que Victor adquirira, duas eram muito parecidas em termos arquitetónicos. Ele juntara-as de tal modo que um trio de carvalhos e uma pérgula nas traseiras drapeada
com lilases perenes davam a impressão, da rua, de que as casas ainda estavam separadas.
Entre elas, as duas residências tinham inicialmente trinta e quatro quartos, mas tinham-se derrubado paredes interiores e dado outra utilização àquele espaço todo. Victor não tinha família e não permitia
pernoitas.
Tencionava mandar abaixo a terceira residência e incorporar esse lote no recinto da sua propriedade.
Uma política da cidade com ambições de governação - e ideias rígidas quanto à conservação de edifícios históricos - impedira a tentativa de Victor de certificar a terceira casa para demolição. Ele tentara
resolver a questão com respeito pelo cargo público dela e a sua posição social. Um belo suborno teria comprado a cooperação da mulher na maioria das questões; todavia, ela defendia que a reputação de conservacionista
empenhada era fulcral para a prossecução dos seus obje-tivos políticos.
Depois de a réplica da mulher ter nascido no tanque, Victor mandou raptar a mulher verdadeira na sua própria casa e levá-la para as Mãos da Misericórdia, onde lhe descreveu - e depois demonstrou - os métodos
de tortura mais engenhosos concebidos pela Stasi, a polícia secreta da antiga Alemanha de Leste. Quando, com o tempo, ela deixou de pedir que ele parasse e pediu que ele a matasse, Victor deixou-a escolher
o instrumento da sua morte a partir de uma imaginativa seleção que tinha, entre outras coisas, uma pistola de pregos de ar comprimido, uma lixadeira elétrica e uma grande garrafa de ácido carbólico.
A mulher tivera um colapso mental e ficara num alheamento catatónico que impossibilitara a sua decisão quanto aos meios para o seu fim, e também roubara a Victor parte do prazer do castigo corporal.
88
Não obstante, ele considerava a resolução do assunto de conservação histórica um dos seus melhores momentos, e incluíra-o na biografia que fora carregada no cérebro de Erika enquanto esta se formava no
tanque.
Victor queria que as suas Erikas o servissem sexualmente e fossem anfitriãs graciosas para o mundo; tencionava também que as suas esposas, cada qual por seu turno, admirassem a sua determinação em levar
a sua avante em todas as matérias, em nunca se vergar às vontades dos pigmeus intelectuais, farsantes e tolos deste mundo, os quais, mais cedo ou mais tarde, humilhavam todos os outros grandes homens,
cujas proezas invejavam amargamente.
No segundo andar da mansão, a ala norte permanecia por usar, à espera da inspiração de Victor. Um dia ele descobriria uma conveniência ou um luxo que quisesse acrescentar à casa, e a ala norte seria remodelada
para albergar esse entusiasmo.
Havia soalho de mogno bem acabado em todos os amplos corredores e divisões. Nos acessos, o chão tinha uma série de tapetes persas compatíveis, a maioria de estilo tabriz ou bakhshayesh de finais do século
XIX.
Erika levou Jocko para uma suíte por mobilar e acendeu as luzes do teto: uma salinha, um quarto, uma casa de banho. Não havia tapetes. Os cortinados de brocados pesados que tinham vindo com a casa obscureciam
as janelas.
- O pessoal aspira e limpa o pó da ala norte apenas doze vezes por ano - disse Erika. - Na primeira terça-feira do mês. Tirando isso, nunca ninguém vem a estas salas. Na noite antes desse dia, mudamos-te
para outro sítio e voltamos depois de eles terminarem.
Ainda com a saia improvisada da toalha de mesa aos quadrados, a percorrer a sala e o quarto, a admirar os tetos altos, os frisos complexos e a lareira de mármore italiano, o troll disse:
- Jocko não é digno destes aposentos refinados.
- Sem mobília, terás de dormir no chão - disse Erika. - Desculpa.
- Jocko não dorme muito, senta-se a um canto a chupar os dedos dos pés e a deixar a cabeça ir para o sítio encarnado, e quando volta do sítio encarnado, Jocko está repousado.
- Que interessante. Mesmo assim, hás de querer sítio onde te deitares, às vezes. Vou trazer mantas e roupa de cama macia para ficares confortável.
89
Na casa de banho, os mosaicos a preto e branco datavam dos anos 40 mas estavam em excelente estado.
- Tens água quente e fria, uma banheira, um chuveiro e, claro, uma sanita. Vou trazer sabonete, toalhas, papel higiénico, escova de dentes, pasta de dentes. Não tens cabelo, pelo que não precisas de champô
nem de pente, ou secador. Fazes a barba?
O troll cofiou a cara rugosa com uma mão, a refletir.
- Jocko não tem cabelo bonito em lado nenhum - tirando dentro do nariz. Ah, e três pelos na língua. - E tirou a língua de fora para lhe mostrar.
- Continuas a não precisar de pente - disse Erika. - Que desodorizante preferes, roll-on ou spray?
Jocko fez uma careta que lhe deixou as feições numa configuração perturbante.
Assim que Erika o conhecesse melhor e pudesse ser frontal sem parecer que o insultava, dir-lhe-ia que nunca mais fizesse caretas.
Ele respondeu:
-Jocko desconfia de que a sua pele é hipersensível a esses químicos cáusticos.
- Muito bem. Voltarei em breve com tudo do que precisas. Esperas aqui. Não te aproximes das janelas e, claro, não faças barulho. - Uma alusão literária destacou-se do poço que elas ocupavam na memória
de Erika e ela acrescentou:
- "É como Anne Frank, escondida dos Nazis num anexo secreto em Amesterdão."
O troll olhou-a sem compreender e estalou as bordas da sua boca sem lábios.
- Ou talvez não - disse Erika.
- Jocko pode dizer? - perguntou ele.
- Como?
- Jocko pode dizer?
Grandes como os de uma coruja, as enormes íris amarelas como limões, os olhos dele pareciam a Erika misteriosos e belos. Compensavam toda a desventura de feições que os rodeavam.
- Sim - disse ela -, podes dizer o que quiseres.
- Desde que abri caminho daquele que eu era e me tornei naquele que sou, Jocko, eu, vivi a maior parte do tempo em sarjetas e, durante muito pouco tempo, no armário das limpezas de uma casa de banho pública.
Isto é muito melhor.
90
Erika sorriu e assentiu.
- Espero que sejas feliz aqui. Não te esqueças: a tua presença na casa deve continuar a ser segredo.
- És a senhora mais bondosa e generosa do mundo inteiro.
- Nem por isso, Jocko. Vais ler para mim, lembras-te?
- Quando eu era ainda quem ele era, nunca conheci uma senhora simpática como tu. Desde que ele que eu era se tornou naquele que eu sou, Jocko, nunca conheci senhora alguma com um quarto da tua simpatia,
nem sequer na casa de banho onde vivi onze horas, casa de banho das senhoras. Do armário das limpezas, Jocko ouviu tantas senhoras a falarem nos lavatórios e nas divisórias, e a maioria delas era horrorosa.
- Lamento que tenhas sofrido tanto, Jocko.
E ele disse:
- Eu também.
27.
A presença que se aproximava de Carson, da direita e perto do chão, não era Janet Guitreau mas sim o pastor-alemão, arquejante, a abanar a cauda.
Aquela que tinha um excelente cu permanecia onde estava quando Carson saíra do Honda: a quinze metros ao fundo da rua. De cabeça erguida, ombros direitos, braços ao longo do corpo como se fosse uma pistoleira
pronta para matar um xerife no Velho Oeste, parecia alta e alerta.
Já não estava a fazer jogging no mesmo sítio, o que talvez fosse uma grande deceção para Michael.
Era interessante que a coisa-Janet tivesse assistido ao confronto deles com a coisa-Bucky e não se tivesse sentido na obrigação de correr em auxílio dele. Até poderia haver um pequeno exército da Nova
Raça na cidade, mas talvez não houvesse camaradagem suficiente entre eles para garantir que lutassem sempre juntos.
Por outro lado, talvez aquela falta de empenho na causa resultasse somente do facto de o cérebro de Janet ter descarrilado e estar a passar por território estranho onde nem nunca houvera carris.
Ali fora na chuva prateada e cintilante, banhada pelas luzes dos máximos do Honda, ela parecia etérea, como se revelada por uma cortina aberta entre este mundo e outro de gente radiosa como espíritos e
selvagem como animais.
Michael estendeu a mão com os cartuchos a reluzirem.
Carson recarregou e perguntou:
- Em que estás a pensar, ir atrás dela?
- Eu cá não. Tenho um preceito: um confronto com um superclone tarado por dia chega. Mas ela pode vir atrás de nós.
Pela primeira vez em toda a noite, soprou uma brisa ligeira que iludiu a gravidade, e a chuva bateu na cara de Carson em vez de no alto da cabeça.
Como se o vento tivesse falado com Janet, a aconselhar uma retirada, ela virou-lhes costas e correu estrada abaixo, entre as árvores, rumo ao mistério verde-escuro do parque.
Ao lado de Carson, o cão soltou um rosnido baixo e longo que parecia querer dizer e que o diabo te carregue.
92
Tocou o telemóvel de Michael. O toque mais recente era a gargalhada de Curly, dos Três Estarolas. "Niéque, niéque, niéque", dizia o telemóvel. "Niéque, niéque, niéque."
- A vida no século XXI - disse Carson - é estúpida e demente.
Michael atendeu e disse:
- 'Tou, sim. - E para Carson:
- É Deucalião.
- Já não era sem tempo. - Ela perscrutou a escuridão para leste e para sul, à espera que Janet aparecesse armada em assassina em série.
Depois de escutar um pouco, Michael disse a Deucalião:
- Não, só não estamos num sítio bom para encontros. Acabámos de resolver uma coisa e há entulho por toda a parte.
Carson olhou para o cadáver da réplica de Bucky. Ainda estava morto.
- Dê-nos dez ou quinze minutos para chegarmos a um sítio com algum jeito. Já lhe ligo a dizer aonde. - Michael guardou o aparelho e disse a Carson:
- O Deucalião está quase despachado das Mãos da Misericórdia, encontrou o que esperava encontrar.
- O que queres fazer quanto ao cão?
Depois de beber de uma poça na estrada, o pastor olhava para Carson e depois Michael com ar suplicante.
Michael respondeu:
- Levamo-lo connosco.
- Vai ficar o carro todo a cheirar a pelo de cão molhado.
- É muito pior para ele. Do ponto de vista dele, o carro todo cheira a bófias molhados.
- É bonito - admitiu ela. - E bem podia e devia ser cão-polícia. Como será que ele se chama?
- Espera aí - disse Michael. - Deve ser o Duque. O cão do procurador. Vai ao tribunal com o Bucky. Ou ia.
- O Duque de Orleães - disse Carson. - Salvou duas miúdas de um incêndio.
A cauda do cão abanou tão depressa que Carson quase esperava que ele zarpasse no pavimento escorregadio como um daqueles barcos a motor típicos dos Everglades da Florida.
O vento soprou nas árvores e, de repente, parecia trazer o cheiro a maresia.
Ela abriu a porta do carro, fez sinal ao cão pastor que entrasse para o banco de trás e pôs-se ao volante outra vez. Quando voltou a pôr a
93
Urban Sniper, de cano para baixo, no espaço em frente ao lugar do passageiro, apercebeu-se de que os sacos de comida do Acadiana já lá não estavam.
Pelo para-brisas, viu Michael a voltar de um caixote do lixo ali perto.
- O que foste fazer? - inquiriu ela quando ele se deixou cair no assento e fechou a porta.
- Já tínhamos comido quase tudo.
- Não tínhamos comido tudo coisíssima nenhuma. O Acadiana é bom até à última migalha fantabulosa.
- O cheiro daria com o cão em doido.
- Podíamos ter-lhe dado parte.
- É puxado de mais para um cão. Não tardaria a vomitar tudo.
- Primeiro a estupidez do toque do Curly e agora isto.
Carson engatou a mudança, fez inversão de marcha sem passar por cima da réplica de Bucky, passou aos mínimos, saiu pelo portão estropiado, na esperança de não ter um furo, e virou à direita na St. Charles
Avenue.
- Então... agora não me falas, é? - perguntou Michael.
- Não querias mais nada.
- Mais uma oração sem resposta.
- Aqui vai a pergunta que vale sessenta e quatro milhões de dólares.
- Não tenho guito - disse ele.
- Achas que eu como de mais?
- Não tenho nada a ver com aquilo que comes.
- Achas que vou ficar com o rabo grande, não achas?
- Ai, ai.
No banco traseiro, o pastor-alemão ofegava, mas não era de ansiedade. Parecia contente. Talvez tivesse ouvido tanta gíria de réplicas ultimamente que estivesse encantado com uma conversa humana a sério.
- Admite. Preocupa-te que eu fique com um rabo grande.
- Não me ponho para aqui a pensar no futuro do teu rabo.
- Estavas todo excitado com o rabinho de monstro da Janet.
- Não estava nada excitado. Só reparei, sabes, enquanto bela obra da Natureza, como qualquer comentário sobre um belo maciço de glicínias.
- Glicínias? Mas que treta. Além disso, a gente do Victor não são obras da Natureza.
94
- Assim não tenho hipótese, se vais esmiuçar cada palavra minha.
- Fica sabendo que o meu rabo é pequeno como o dela e ainda mais firme.
- Aceito a tua palavra.
- Terás de aceitar a minha palavra porque não vai haver exibição nenhuma. Se deixasses cair uma moeda no meu rabo, ela saltaria até ao teto.
- Parece-me um desafio.
- Deixa que te diga, sócio, vai levar muito tempo até poderes fazer ressaltar uma moeda no meu rabo.
- Pelo sim, pelo não, doravante vou andar sempre com uma moeda no bolso.
- Se fizeres ressaltar uma de vinte e cinco no meu rabo - disse ela - ainda ficas com duas de dez e uma de cinco de troco.
- O que é que isso quer dizer?
- Não faço ideia.
E ele disse:
- Duas de dez e uma de cinco de troco. - E desatou à gargalhada.
A gargalhada era contagiante e, quando o cão os ouviu a rir aos dois, começou a fazer uns barulhinhos de contentamento.
Passado um minuto, Carson voltou a ficar séria e disse:
- Obrigada, meu, por me teres salvado o couro com aquela coisa--Bucky.
- De nada. Já mo salvaste vezes que cheguem.
- De cada vez que temos de abater um dos da Nova Raça - disse Carson - parece que nos safamos com menos margem de manobra do que antes.
- Pois, mas, pelo menos, continuamos a safar-nos.
28.
As 2:15 da manhã, na secretária cheia de estilo de Victor no laboratório principal das Mãos da Misericórdia, estava Deucalião a concluir a sua pescaria eletrónica e a sair do computador, quando achou ter
ouvido à distância um grito agudo como o queixume de uma criança perdida.
Dadas as experiências que se efetuavam naquele edifício, o mais certo era haver gritos. Era indubitável que as janelas tinham sido emparedadas para obviar a olhos curiosos mas também para assegurar que
os ruídos perturbadores não chegassem aos transeuntes lá fora.
O pessoal dali, as cobaias das experiências e aqueles que estavam a maturar nos tanques de criação eram, sem exceção, todos vítimas do seu deus lunático, e Deucalião apiedava-se delas. Esperava que, com
o tempo, pudesse libertá-las a todas como libertara Annunciata e Lester, mas em massa, de algum modo.
Todavia, não tinha maneira de as libertar agora e, assim que soubesse de Michael, sairia das Mãos da Misericórdia num salto quântico e iria ter com os detetives. Não se podia deixar distrair pelos horrores
que pudesse encontrar algures no edifício.
Quando o som se fez ouvir outra vez, algo mais alto e longo do que antes mas ainda distante, Deucalião reconheceu que não transmitia nem terror nem sofrimento físico e que, por conseguinte, não era grito
nenhum, mas sim um guincho. Não sabia dizer o que quereria exprimir o autor de tal desabafo.
Ficou à escuta - e só depois disso se apercebera de que se levantara da cadeira à secretária.
O silêncio que se seguia ao lamento tinha um cariz expectante, como o céu mudo durante o segundo ou dois entre a violenta descarga do relâmpago e o ribombar do trovão. Ali o som chegava primeiro, embora
débil, conseguia ser terrível como a trovoada mais estrondosa.
Deucalião esperou pelo equivalente ao relâmpago, causa depois de
efeito, mas o que se seguiu, meio minuto depois, foi outro guincho.
À terceira, o ruído tinha significado, não porque ele conseguisse identificar-lhe a fonte mas porque lhe fazia lembrar gritos que ouvira em certos sonhos que há duzentos anos o assombravam. Não eram sonhos
com a noite em que ele ganhara vida no primeiro laboratório
96
de Victor, mas de outros acontecimentos mais pavorosos, talvez de efemérides anteriores à sua própria existência.
Após os primeiros cem anos, década atrás de década, foi precisando cada vez menos de dormir, o que se traduzia, felizmente, em menos ocasiões para sonhar.
Deucalião atravessou o laboratório principal, abriu uma porta, avançou para o umbral e encontrou o corredor deserto.
O grito fez-se ouvir outra vez, duas vezes em rápida sucessão. Mais alto ali do que no laboratório, ainda assim distante.
Por vezes Deucalião sonhava com uma antiga casa de pedra em que as paredes interiores eram de estuque amarelado e rachado, iluminadas apenas por lamparinas a óleo e castiçais. Quando sopravam os piores
ventos de borrasca, ouviam-se no sótão coisas a ranger e a tilintar, como se o corpo sem carne da Morte tinisse na sua túnica encapuzada a percorrer a noite. Pior do que aquilo que poderia estar por cima
era o que poderia estar por baixo: as escadas de pedra desciam estreitas até uma porta de ferro, e além da porta ficavam as salas de uma cave imponente, onde o ar estagnado tinha por vezes o gosto acre
a sebo azedo e, outras, o gosto salgado das lágrimas.
Ali no velho hospital, os últimos dois guinchos tinham saído de outro andar, mas ele não sabia dizer se de cima, se de baixo. Dirigiu-se à escada ao fundo do corredor, abriu a porta de incêndio e esperou,
sentindo-se quase como se estivesse a sonhar aquela situação tão conhecida, mas noutro cenário.
No pesadelo seu conhecido, o horror de ir ao sótão ou o desejo de não ir à cave era sempre a súmula do enredo, uma viagem infinitamente desgraçada pelas divisões que ficavam entre esses dois poios de terror,
enquanto ele tentava evitar tanto as mais altas como as mais baixas câmaras da casa.
Agora, o guincho caía nas escadas do hospital vindo de cima. Ouvia-se com mais clareza do que antes, era suplicante e tristonho.
Como os gritos desgraçados que por vezes o assombravam no seu sono infrequente.
Deucalião subiu a escada até aos domínios mais altos das Mãos da Misericórdia.
Na antiga casa de pedra, a qual poderia ter sido outrora um sítio genuíno ou apenas uma estrutura imaginada por si, ele sonhara que descia à cave muitas vezes, mas nunca passava da primeira divisão. Depois
acordava sempre, sufocado com um pavor inominável.
97
Duas vezes, com uma lamparina a óleo, ele fora ao sótão da casa dos sonhos. Dessas duas vezes, rugia uma tempestade lá fora. As correntes de ar fustigavam o sótão alto, e ele acordara chocado e angustiado
pelo que a lamparina revelara.
A subir a escada do hospital, Deucalião sentia-se prestes a perder o equilíbrio, e levou uma mão ao corrimão.
Ele era feito de partes de cadáveres resgatados ao cemitério de uma prisão. As suas mãos eram grandes e fortes. Tinham sido as mãos de um estrangulador.
Um piso acima do laboratório principal de Victor, quando Deucalião ia abrir a porta do corredor, ouviu novamente o guincho, ainda com origem mais acima. Continuou a subir a escada, a ver a sua mão possante
deslizar pelo corrimão.
Os olhos tinham sido tirados a um assassino à machadada.
Sentia que aquilo com que estava prestes a deparar-se nas salas mais altas das Mãos da Misericórdia não seria menos terrível do que aquilo que a lamparina lhe revelara no sótão da casa dos sonhos. Nessa
noite funesta, o passado e o presente fundiam-se como os hemisférios de uma ogiva nuclear, e o futuro pós-explosão era ignoto.
29.
O tormento da consciência perpétua. O tormento do frio. O tormento do tecido polimérico transparente. O tormento da porta de vidro do frigorífico.
A deriva naquela solução salina, Camaleão consegue ver a sala grande onde está armazenado. Um cenário azul. O azul da visão fria.
Lá fora no laboratório, o trabalho continua. Gente azul atarefada.
Talvez sejam ALVOS. Talvez estejam ISENTOS.
Quando não está em suspensão fria, Camaleão sabe cheirar a diferença entre ALVOS e ISENTOS.
O odor de qualquer ISENTO agrada a Camaleão. O odor de qualquer alvo enfurece-o.
Naquele estado, não consegue cheirar nada.
As paredes do frigorífico conduzem as vibrações do compressor à saca que o aprisiona. A saca condu-las à solução salgada.
Não é uma sensação agradável nem desagradável para Camaleão.
Agora o caráter das vibrações muda. São semelhantes mas subtilmente diferentes.
Acontece periodicamente. Camaleão é inteligente o bastante para considerar o fenómeno e tirar dele ilações.
É evidente que o frigorífico tem dois motores, os quais alternam para que nenhum fique sobrecarregado.
Assim também se garante que, se um motor falhar, o outro sirva de reserva.
As funções físicas de Camaleão ficam grandemente inibidas pelo frio. As funções mentais já são menos afetadas.
Com pouca coisa que lhe entretenha a mente, Camaleão concentra--se obsessivamente em cada acorde de entradas sensoriais como, por exemplo, vibrações dos motores.
Não corre o risco de insânia devido às circunstâncias. Nem nunca gozou de sanidade mental.
Camaleão não tem outros desejos ou ambições além de matar. A finalidade da sua existência encontra-se atualmente frustrada, e é essa a natureza do seu tormento.
99
Lá fora no laboratório azul, aquela gente azul atarefada fica, subitamente, agitada. O padrão normal de atividade, longamente estudado por Camaleão, é abruptamente interrompido.
Entrou algo de invulgar no laboratório. Está atarefado e é azul, mas não é uma pessoa.
Interessante.
30.
No roupeiro da suíte de Victor todas as roupas que se podem dobrar estão guardadas em blocos de gavetas, e todas as que se podem pendurar estão atrás de portas, o que deixa o espaço limpo e arrumado como
ele gosta.
No seu guarda-roupa contam-se 164 fatos feitos por medida, 67 blusões desportivos de elevada qualidade, 48 pares de calças, 212 camisas entre formais e casuais, gavetas e gavetas cheias de camisolas dobradas
na perfeição e prateleiras e prateleiras de sapatos para todas as ocasiões. Especialmente adepto de gravatas de seda, Victor perdeu a conta aos artigos quando a coleção ultrapassou os trezentos.
Gosta de se vestir bem. Considerando o seu físico exemplar, a roupa assenta-lhe como uma luva. Pensa mesmo que é igualmente atraente vestido e nu.
Depois do telefonema de Erika Quatro, Victor aconselhou-se a si mesmo a ficar no jacuzzi com outro copo de Dom Pérignon. A anterior mulher era lixo, figurativa e literalmente, e, embora pudesse ter sido
ressuscitada de algum modo, não podia ombrear com o intelecto e a astúcia de Victor.
Todavia, sendo prudente e confiante, ele saíra do jacuzzi depois de dois meros goles do segundo copo de champanhe. Até poder compreender e resolver o problema de Erika Quatro, deveria ter uma arma adequada
com ele a todo o momento.
Num roupão de seda azul-safira com borlas escarlates e chinelos de seda a combinar, dirigiu-se à parte de trás do roupeiro fundo e abriu duas portas altas. Diante dele estava um sortido de camisas em duas
filas, vinte na de cima, vinte na de baixo.
Colocou a mão esquerda espalmada na parede lateral do armário, um scanner escondido leu-lhe as impressões digitais, os varões e as camisas desapareceram e a parede traseira deslizou para um lado. As luzes
acenderam-se num espaço com um metro e meio quadrado mais além.
Victor entrou nesse espaço, no seu pequeno armeiro.
Como a roupa do roupeiro, as armas não estavam à vista, pois ele considerava tal exibição aparatosa - o que faria o género de alguém demasiado entusiasta do militarismo.
101
Victor não fazia parte da National Rifle Associa tion, não só por não ser membro de nada, mas também por não aprovar a Segunda Emenda à Constituição. Estava convicto de que, no intuito de ter uma população
bem gerida e de impedir que as pessoas agissem na ilusão de que o governo existia para as servir, só a uma classe de elite deveria ser permitido porte de armas de fogo. As massas, em questões de disputas
entre si, poderiam safar-se perfeitamente com facas, punhos e paus.
As metralhadoras e as caçadeiras automáticas personalizadas estavam em suportes atrás das portas de cima. Pistolas e revólveres em gavetas, aninhados em espuma moldável com um acabamento de veludo em spray,
o que servia para acolher as armas e também as exibia como colares de diamantes nas bandejas de veludo de um joalheiro.
Felizmente, embora as Erikas fossem fortes e concebidas para serem duradouras, com capacidade para sarar rapidamente e também habilidade para desligar a dor, não eram fisicamente tão imponentes como os
outros da Nova Raça. Haviam sido concebidas com alguns pontos vulneráveis, e os ossos não tinham a densidade couraçada dada aos outros nascidos nos tanques.
Por conseguinte, ele escolheu uma Colt de calibre 45 ACR ao estilo de 1911, a versão Springfield Armory, com controlo de 24 linhas por cada dois centímetros e meio no cabo de nogueira, mais uns ornamentos
em baixo-relevo feitos à mão no aço.
Nas raras ocasiões em que ele não podia matar por interposta pessoa, uma das da Nova Raça, Victor queria que a sua arma fosse atrativa e poderosa.
Depois de carregar a pistola e um cartucho sobresselente, escolheu um coldre de cabedal flexível feito à mão que entraria em qualquer cinto que ele usasse com as calças, voltou com esse conjunto de artigos
ao roupeiro e levou outra vez a mão à parede lateral para esconder o armeiro atrás de si.
O sono era algo que ele habitualmente escolhia, e não uma necessidade, e decidiu voltar às Mãos da Misericórdia. Os divertimentos que fora a casa demandar, depois de um comprido e curioso dia de trabalho,
já não o atraíam.
No laboratório contactaria Nick Frigg, o Gama superintendente da Gestão de Resíduos Crosswoods, o aterro a noroeste do Lago Pontchar-train. Completamente estrangulada, Erika Quatro fora para lá mandada
102
a fim de se desfazerem dela. Por conseguinte, Nick saberia em que setor de que fossa, debaixo de que lixo, ela teria sido enterrada.
Victor viu o seu reflexo num espelho de corpo inteiro e descalçou os chinelos. Com o arrojo de um belo matador a manejar a capa, despojou-se do roupão de seda azul-safira.
Pegou na pistola de calibre 45 e fez várias poses com ela em punho, contente com a impressão que causava.
Agora, o que vestir, o que vestir...?
31.
As mãos de um estrangulador. Os olhos cinzentos de um assassino à machadada. Dos dois corações, um viera de um louco que deitava fogo a igrejas, o outro, de um pedófilo.
Quando chegou ao patamar da escada, piso e meio acima do laboratório principal das Mãos da Misericórdia, a sua vista iluminou-se um momento, voltou ao normal, iluminou-se...
Se ele estivesse diante de um espelho, teria visto uma pulsação de luz suave passar-lhe pelos olhos. Na noite em que Victor recorrera à energia do relâmpago para dar vida à sua primeira criatura, a tempestade
cooperante, de uma violência inaudita, parecera deixar em Deucalião o brilho do relâmpago a manifestar-se nos seus olhos de quando em vez.
Embora buscasse a redenção e, com o tempo, a paz, embora estimasse a Verdade e almejasse viver por ela, Deucalião há muito tentara iludir-se quanto à identidade do homem cuja cabeça, cujo cérebro estivera
casado com o corpo em manta de retalhos no primeiro laboratório de Victor. Dissera ele que o cérebro viera de um herege desconhecido, o que era verdade, só que ele nunca soubera o nome do homem nem conhecera
os seus crimes.
O pesadelo repetitivo da velha casa de pedra - com o sótão amaldiçoado onde algo tilintava e rangia, ressoava e fazia estrépito, e a cave onde o próprio ar era maléfico - voltava a Deucalião tão amiúde
que ele sabia, tanto quanto sabia qualquer outra coisa, que o sonho devia ser um arrazoado de fragmentos de recordações que o dador deixara, algures entre as cissuras e circunvoluções da matéria cinzenta.
E a natureza dessas recordações lúgubres identificava a origem odiosa do cérebro.
Agora, a subir a escada do hospital rumo aos desgraçados gritos finos e infantis, sentia que a gravidade da Terra duplicara na subida, pois ele carregava não só o peso do momento, como também o peso de
todos esses sonhos e do que eles significavam certamente.
Quando, no pesadelo, ele conseguira chegar finalmente ao sótão da casa, a luz instável de uma lamparina a óleo revelara-lhe a origem dos tinidos e rangidos. Lá fora a tempestade furiosa fazia correntes
de ar naquele espaço altaneiro, e estas faziam estalar os ossos uns contra
104
os outros. O esqueleto era pequeno, amarrado para não se dispersar, suspenso num gancho preso a uma viga.
Também suspensa no gancho estava a outra única coisa da vítima que restava: o cabelo comprido e louro que lhe fora escalpelado. Ossos em tranças. Chamemos-lhes troféus.
Porém, tanto estrépito não poderia advir somente dos ossos de uma rapariguinha. Quando, no sonho, ele se atrevera a avançar mais no sótão, a lamparina revelara um orfanato macabro: mais nove esqueletos
pendurados e depois, oh, mais dez, e ainda outros dez mais além. Trinta rapariguinhas - todas crianças, realmente - apresentadas como móbiles, cada qual com o cabelo pendurado separado do crânio, louro
ou castanho ou avermelhado, liso ou encaracolado, entrançado ou não.
Em centenas de repetições desse sonho, ele só subira duas vezes ao sótão antes de acordar encharcado em suor. Nunca fora além da primeira sala do sótão, ao coração dessas trevas, e esperava nunca lá ir.
O barulho de esqueletos na dança do vento atraíra-o ao sótão, mas aquilo que sempre o instigava a descer à cave da casa dos sonhos eram os gritos finos e assombrados. Não eram guinchos de terror ou sofrimento,
mas de mágoa, como se não fossem as vítimas vivas o que ele ouvia mas sim os espíritos ansiando pelo mundo de onde haviam sido arrebatados antes de tempo.
Resistira durante tanto tempo a reconhecer a origem do seu cérebro, mas não podia continuar a iludir-se. O segundo coração viera de um pedófilo que matava após violar - e o cérebro viera do mesmo dador.
O assassino fizera o que bem lhe aprouvera com as meninas e depois pusera-as no sótão para lhes extrair os esqueletos delicados para recordação, e era por isso que, no sonho, o ar estagnado daquela cave
sem janelas sabia, por vezes, a sebo azedo e, outras, a lágrimas salgadas.
A posse do cérebro de um pedófilo não fazia de Deucalião pedófilo também. Aquela mente maléfica e aquela alma corrupta haviam abandonado o cérebro quando este morrera, não deixando mais do que quilo e
meio de tecido cerebral sem culpa, que Victor levara para conservar imediatamente após a execução, depois de combinar com o carrasco. A consciência de Deucalião era unicamente sua, e as suas origens jaziam...
algures. Não sabia dizer se a consciência viera aliada a uma alma. Porém, não duvidava de que chegara nessa noite de antanho com uma missão - aplicar as leis da Natureza que Victor violara
105
com as suas experiências arrogantes e, ao matá-lo, reparar assim o tecido rasgado do mundo.
Numa viagem que o levara à volta da Terra mais de uma vez e que atravessara dois séculos, em busca de nova finalidade depois de pensar que Victor morrera no gelo do Artico, Deucalião chegara por fim ao
limiar do seu destino. A destruição da Nova Raça fora encetada, precipitada pelos erros infindáveis do seu criador. Não tardaria a que Deucalião fizesse justiça com Victor Frankenstein na tempestade de
anarquia e terror que desabava agora sobre a Luisiana.
Agora outra expressão de mágoa infantil, outra mais sugestiva de desespero, saudava-o quando ele chegava ao patamar seguinte. Os gritos vinham daquele piso.
Deucalião desconfiava que, pelos seus atos nas horas que se seguiam, alcançaria o livramento dos sonhos da velha casa de pedra. Respirou fundo, hesitou, depois abriu a porta e passou da escada para o corredor.
Cerca de uma dúzia de elementos da Nova Raça, machos e fêmeas, estavam ao longo do amplo corredor. Tomavam toda a atenção às duas portas abertas de um laboratório à direita, no centro do edifício.
Dessa sala veio outro grito plangente, ruídos de algo que se debatia, vidros estilhaçados.
Quando Deucalião passou por alguns dos que se perfilavam contra a parede, ninguém pareceu dar por ele, tão concentrados estavam na crise dentro do laboratório. Estavam em várias poses expectantes. Uns
tremiam ou até abanavam violentamente com medo, outros resmungavam irados, outros ainda pareciam estar tomados por um assombro transcendente.
Pelas portas abertas do laboratório, rumo ao corredor, saiu o Inferno sobre seis patas.
32.
De momento, o frio não importa.
O tecido polimérico transparente da saca de clausura e a porta de vidro do frigorífico já não são, pela primeira vez, um tormento para Camaleão.
A recentemente chegada, invulgar, muito atarefada, azul, não--pessoa anda de um lado para o outro, para a frente e para trás, no laboratório com grande energia.
Aquela visita parece determinada a criar uma nova ordem. É um agente de mudança.
Tombam armários. Voam cadeiras. O equipamento laboratorial é derrubado sem rei nem roque.
Na sua saca pendular de fluido polvilhado de gelo, Camaleão não consegue ouvir vozes. Todavia, as vibrações daquela vigorosa reordenação são transmitidas através das paredes e do chão do frigorífico e,
assim, ao seu ocupante.
As luzes baixam, ganham luminosidade, baixam, baixam mais, mas depois ganham outra vez intensidade.
O motor do frigorífico gagueja e morre. O motor de reserva não entra em funcionamento.
Camaleão está alerta para o distinto padrão das vibrações do segundo motor. Nada. Nada.
Aquela visita interessante e energética atrai gente, levanta-a, como se comemorasse, como se a quisesse exaltar, mas depois atira-a ao chão.
Essa gente fica onde cai, inerte.
Outros operários parecem aproximar-se do visitante atarefado de moto próprio. Parece que quase o abraçam.
Também são levantados e depois atirados ao chão. Ficam inertes como os outros atirados antes deles.
Talvez se tenham prostrado aos pés do visitante atarefado.
Ou talvez estejam a dormir. Ou mortos.
Interessante.
Quando todos os operários outrora atarefados ficam inertes, o visitante arranca as torneiras de um lavatório e deita-as para o chão; a água jorra.
107
A água cai em cima dos operários, a água cai, mas eles não se levantam.
E não há vibrações do segundo motor a serem transmitidas ao fluido na saca de clausura.
A quietude desceu sobre a saca. Não há tremores nem zumbidos na solução salina.
Atarefado, atarefado, o visitante arranca o lavatório e atira-o para longe.
O lavatório de aço inoxidável bate na porta do frigorífico e o vidro dissolve-se.
Parece ser um acontecimento de grande magnitude. O que foi já não é. Chegou a mudança.
Camaleão tem a vista mais desimpedida do que nunca quando o visitante abandona o laboratório.
O que significa tudo isto?
Camaleão fica a matutar nos acontecimentos recentes.
33.O pandemónio sobre seis patas que entrara no corredor, saído do laboratório demolido, pairava grande como três homens.
Em algumas das feições da entidade, Deucalião discerniu a presença de ADN humano. A cara parecia-se muito com a de um homem, embora duas vezes mais larga e metade mais comprida do que o rosto médio. Porém,
a cabeça não assentava num pescoço, fundia-se diretamente no corpo, à semelhança da cabeça de um sapo junta ao corpo anfíbio.
Em todo o mecanismo, o material genético não humano manifestava-se numa multitude de maneiras inquietantes, como se numerosas espécies disputassem o controlo do corpo. As influências felinas, caninas,
insetoides, reptilárias, aviárias e crustáceas eram aparentes nos membros, em orifícios excessivos e deslocados, em caudas e espigões, em caras malformadas passíveis de aparecerem em qualquer ponto da
massa tecidular.
Não havia nada naquele bizarro organismo que parecesse em estase, mas sempre em mutação contínua, como se a carne fosse barro submetido à imaginação e às mãos dúcteis de um escultor invisível - e louco.
Era o Príncipe do Caos, inimigo do equilíbrio, irmão da anarquia, fervilhando literalmente de desordem, definido pela própria falta de definição, caracterizado pela distorção e deformação, aberração, torção
e desproporção.
Deucalião soube de imediato o que tinha pela frente. Anteriormente, quando revistava os ficheiros de Victor no computador dois pisos abaixo, encontrara o diário dos desenvolvimentos importantes para o
seu criador. Entre os poucos dias que lera estavam os dois mais recentes, em que a súbita metamorfose de Werner era descrita, aliás, ilustrada com gravações de vídeo.
A superfície da besta, formavam-se e desvaneciam-se bocas, voltavam a formar-se, a maioria humana na sua configuração. Umas rilhavam apenas os dentes. Outras mexiam lábios e línguas mas não encontravam
voz. Outras ainda soltavam ruídos como aqueles que haviam levado Deucalião a sair do laboratório principal de Victor, expressões sem palavras de mágoa e desespero, as vozes dos perdidos e desesperançados.
109
Pareciam infantis, tais falantes, embora toda a gente nas Mãos da Misericórdia - e, como tal, naquela criatura composta de agregados -fosse adulta. Depois de fugirem à sua escravidão rendendo-se ao caos
biológico, depois de largarem a sua programação no processo de abandono da sua integridade física, parecia que tinham regredido psicologicamente à mais tenra infância, uma infância que nunca tinham tido,
e estavam agora mais desprotegidos do que nunca.
Entre os indivíduos agregados, apenas Werner, cujo semblante distorcido permanecia o fácies principal da besta, possuía voz de adulto. Ao sair do laboratório, revirara os olhos protuberantes, a varrer
aqueles que aguardavam no corredor e, depois de lhes dar um momento para ponderarem - talvez para o invejarem e admirarem -, dissera:
- Sejam livres. Sejam livres em mim. Abandonem a desesperança, todos os que entrarem em mim. Sejam livres em mim. Não esperem que lhes digam quando podem matar a Velha Raça. Sejam livres em mim, e começaremos
a matança esta noite. Sejam livres em mim, e mataremos o mundo.
Um homem com uma expressão de êxtase aproximara-se da coisa--Werner, erguera os braços como que para abraçar a liberdade, e o seu libertador agarrara nele. Membros insetoides de furar e agarrar abriram
a cabeça do convertido como se fosse uma ostra, e o cérebro fora transferido para a criatura agregada por uma fenda húmida de beiços grossos que se abrira no peito da besta para aceitar a oferenda.
Avançara outro homem. Embora fosse dos que tremiam de pavor, estava preparado a entregar-se a uma vida bizarra e de possível tormento no organismo agregado, em vez de aguantar mais vida da que Victor lhe
permitia viver.
Deucalião já vira o bastante, demasiado até. Fora impelido a subir a escada devido aos gritos sinistros porque a subira durante dois séculos em sonhos. Porém, nessa subida, convergira realmente o passado
e o presente. A primeira das obras de Victor estava ali com a última delas, e o colapso do seu império demoníaco estava em curso.
Seguro do que tinha de fazer a seguir, Deucalião virou costas à besta e à sua proposta de liberdade. Deu um passo no corredor e o outro já no laboratório principal, dois pisos abaixo.
O final daquele império poderia não ser o final da ameaça à civilização que ele constituía.
Para assegurar um poder eterno sobre as suas criaturas, Victor concebera a Nova Raça para ser estéril. Criara fêmeas com vaginas mas
110
sem úteros. Quando fossem a única versão de humanidade à face da Terra, o mundo ficaria perpetuamente sem crianças. A sociedade nunca mais se organizaria em torno da família e suas tradições, uma instituição
da Velha Raça que Victor abominava.
Todavia, quando a sua estrutura biológica entrasse em colapso, quando se refizessem em algo como a besta agregada ou a coisa pálida e anã que saíra do detetive Harker, talvez redescobrissem as estruturas
da fertilidade e os métodos de reprodução eficientes.
Quem saberia se aquela coisa nova sobre a Terra, aquela coisa movida por Werner, se viria a reproduzir por fissão, dividida em dois organismos funcionais, como acontecia com as paramécias?
Até podia dividir-se em macho e fêmea. Em seguida, os dois poderiam parar de se reproduzir por fissão e retomar a reprodução mediante uma espécie de relação sexual.
Afinal, num universo infinito, tudo o que se pudesse imaginar poderia existir algures.
A sina da Velha Raça seria funesta se Victor triunfasse na produção de um exército que empreendesse um genocídio metódico. Ora, esse horror poderia ficar a perder, em comparação, com um futuro em que a
humanidade fosse assombrada e caçada por um híbrido de muitas espécies capaz de ganhar controlo da sua fisiologia atualmente caótica. Tal adversário seria quase indestrutível devido à sua natureza amorfa,
completamente insano perante qualquer norma mas ainda assim inteligente, com um entusiasmo pela violência ímpar entre qualquer espécie com origem natural, a destilar ódio pela sua presa, um ódio que seria
satânico nas suas amargura, intensidade e resistência eternas.
Sentado à secretária de Victor, Deucalião ligou o computador mais uma vez.
Entre as muitas descobertas que fizera antes, vira que até o orgulhoso Victor, cujo poço de hubris nunca ficaria seco, obviara à possibilidade de algo correr mal nas Mãos da Misericórdia a ponto de o velho
hospital ter de ser reduzido a escombros. Havia a opção de destruir todas as provas do trabalho ali efetuado e de impedir a fuga de um organismo transviado.
Dentro das paredes de cada piso do edifício havia numerosas embalagens em formato de tijolo de um material altamente incendiável, desenvolvido por um déspota estrangeiro com apego ao fogo e amizade a Victor.
A contagem decrescente do dia do juízo poderia
111
ativar-se num programa informático que se encontrava no menu do computador e que se chamava DRESDEN.
O programa permitia uma contagem mínima de dez minutos, máxima de quatro horas, ou qualquer duração de permeio. Deucalião esperava a qualquer momento um telefonema de Michael, a indicar novo local para
o encontro deles. A coisa-Werner ainda levaria pelo menos mais uma hora a absorver todo o pessoal das Mãos da Misericórdia; e mesmo depois, a natureza anárquica da besta bastava para garantir que esta
não sairia do hospital a tempo. Para o caso de ter de voltar às Mãos da Misericórdia por algo que surgisse na reunião com Michael e Carson, Deucalião programou a contagem decrescente para uma hora.
No ecrã apareceram os números 60:00, os quais passaram de imediato a 59:59, e o fim das Mãos da Misericórdia ficava cada vez mais próximo, a cada segundo.
34.Christine, governanta-mor da mansão Helios, sofria de um distúrbio assaz peculiar. Há seis dias que estava confusa quanto à sua identidade.
Na maior parte do tempo, sabia perfeitamente quem era: Christine, Beta, da Nova Raça. Geria a criadagem com eficiência e era a número dois em autoridade, depois do mordomo.
Porém, havia momentos em que pensava ser outra pessoa, em que nem sequer se lembrava de ser Christine ou que tinha sido feita nas Mãos da Misericórdia.
Como se não bastasse, um terceiro distúrbio manifestava-se nas ocasiões em que se lembrava de viver ali como Christine, Beta, governanta do senhor Helios, mas também se lembrava da outra identidade, mais
empolgante, na qual submergia inteiramente de quando em vez.
Conseguia lidar com uma ou com outra, mas quando tinha consciência das duas existências ficava confusa e ansiosa. Como agora.
Ainda há pouco, estivera no dormitório do pessoal, nas traseiras da propriedade, onde era o seu lugar àquela hora.
Contudo, minutos antes, dera consigo na biblioteca, sem desempenhar tarefa nenhuma das suas obrigações, mas sim a folhear livros como se a coleção fosse sua. Aliás, até pensava: Tenho de encontrar um livro
de que a senhora Van Hopper goste e enviar-lho com um bilhete simpático. Não está certo corresponder-me tão pouco com ela. É uma pessoa difícil, sim, mas também foi bondosa comigo, à sua maneira.
Sentia-se à vontade na biblioteca, a escolher um livro para a senhora Van Hopper, até se aperceber de que estava com uma farda de criada e sapatos de sola de borracha. Em circunstância alguma aquela seria
indumentária decente para a esposa de Maxim de Winter e a senhora de Manderley.
Se a criadagem a encontrasse naqueles trajes, pensaria que o dilema de Maxim a perturbava. Já havia alguns que a consideravam nova de mais para ele e de classe social inferior.
Oh, e ela ficaria mortificada se a senhora Danvers a encontrasse naquela roupa, mais do que mortificada, estaria acabada. A senhora Danvers sussurraria "esgotamento nervoso" a quem quisesse ouvir, e todos
quereriam ouvir. A senhora Danvers, governanta-mor, continuava leal à anterior senhora de Winter e conspirava para minar a posição da nova esposa na casa.
113
Governanta-mor?
Christine pestanejou, pestanejou, contemplou a biblioteca, pestanejou, e apercebeu-se de que era ela a governanta-mor, e não a senhora Danvers.
E aquilo não era Manderley, não era uma casa grandiosa na região ocidental de Inglaterra, mas sim uma casa grande sem nome no Gar-den District de Nova Orleães.
A sua confusão identitária começara quando o mecanismo principal que a Nova Raça tinha para lidar com o stresse - sexo urgente, violento, com vários parceiros - deixara de lhe dar qualquer alívio para
a sua ansiedade. Antes pelo contrário, as orgias brutais começaram a aumentar-lhe a ansiedade.
O dormitório do pessoal tinha televisão, que em teoria poderia distrair, mas a programação selecionada pela Velha Raça era tão implacavelmente estúpida que pouco apelava a qualquer elemento da Nova Raça
acima do nível de um Ipsilon.
No dormitório também podiam descarregar filmes da Internet. A maioria não valia mais do que as séries televisivas, embora de vez em quando se encontrasse uma pérola. O magnífico Hannibal Lecter conseguia
deixar a criadagem toda em adoração, a dar vivas até ficarem todos roucos. E a sua némesis, a agente do FBI Clarice Starling, era uma tal abelhuda oficiosa que toda a gente gostava de a apupar.
Nove dias antes, desesperada por uma distração da ansiedade e do desespero, Christine descarregara o filme Rebecca, de Alfred Hitch-cock. O filme arrebatara-a. Ostensivamente, era um romance, até uma história
de amor.
O amor era um mito. Mesmo que não fosse um mito, era uma estupidez. O amor representava o triunfo do sentimento sobre o intelecto. Distraía dos objetivos. Levava a toda a espécie de maleitas sociais como,
por exemplo, unidades familiares a que as pessoas prometiam maior obediência do que aos seus governantes. O amor era um mito e era maléfico, o amor era maléfico.
O filme hipnotizara-a não pelo romance, mas por toda a gente na história ter segredos tenebrosos e profundos. A louca senhora Danvers tinha segredos. Maxim de Winter tinha segredos que o poderiam destruir.
Rebecca, a primeira senhora de Winter, tivera segredos. A segunda senhora de Winter começava por ser uma boa samaritana idiota mas, no final do filme, já tinha um segredo tenebroso, porque fora cúmplice
no encobrimento de um crime, tudo em nome do - surpresa! não -amor.
114
Christine identificara-se com o filme porque, como todos os da Nova Raça, tinha segredos. Aliás, ela era um segredo profundo e tenebroso, a caminhar entre os da Velha Raça, com ar inocente, mas impacientemente
à espera que a mandassem matar quem ela desejasse.
O filme também a encantara porque a primeira senhora de Winter merecera morrer, como todos os da Velha Raça mereciam morrer. A louca da senhora Danvers merecia morrer - e fora queimada viva em Manderley.
Até os da Velha Raça pensavam que mereciam morrer, e tinham tanta razão.
Apesar dos motivos pelos quais o filme cativara Christine, poderia não ter redundado numa confusão identitária se ela não fosse quase gémea de Joan Fontaine, a atriz que desempenhava o papel da segunda
senhora de Winter. A parecença era insólita. Até da primeira vez que vira o filme, parecera a Christine que às vezes estava a viver a história de dentro do filme.
Viu Rebecca cinco vezes nessa primeira noite. E cinco vezes na noite seguinte. E cinco vezes na outra noite.
Seis dias antes, após quinze exibições, Christine começara a sentir--se confusa quanto à sua identidade. Nessa noite mergulhara seis vezes no filme.
Uma coisa maravilhosa de ser a segunda senhora de Winter fora que, quando Manderley ficara reduzida a cinzas, os problemas da mulher haviam desaparecido todos. A sua vida com Maxim já não seria perturbada
por mais dramas e preocupações; diante deles tinham anos de rotina confortável...
Que maravilha. Anos bonitos e pacíficos. Chá todas as tardes com pequenas sandes e biscoitos...
Manderley ficaria perdida, e seria triste, mas sabendo que tudo acabaria por ficar bem, ela deveria desfrutar de Manderley agora o mais possível com a senhora Danvers sempre a conspirar.
Escolheu um livro adequado à senhora Van Hopper, A Pousada da Jamaica, que lhe pareceu ser obra de ficção, entretenimento ligeiro.
Numa gaveta da escrivaninha, encontrou uma seleção de papel de carta para uma variedade de ocasiões especiais. Escolheu um papel cor de linho com um ramalhete de fitas coloridas no cimo.
Escreveu um bilhetinho amoroso à senhora Van Hopper, assinado "Sr.ª Maxim de Winter", guardou-o num sobrescrito a combinar, selou--o e pô-lo em cima do livro A Pousada da Jamaica. Pediria a Christine que
fizesse a embalagem e a levasse ao correio logo pela manhã.
35.
Aquela hora, apenas um Mustang decrépito, um Mercedes impecável mas com quarenta anos e um Ford Explorer ocupavam o quarto andar de um parque de estacionamento público.
Carson deixou o Honda em ponto morto ao lado de cada automóvel, enquanto Michael saía para ver de havia alguém a dormir em algum deles.
Pelas aberturas laterais do edifício, o vento aumentava de intensidade e atirava gotas de chuva para o chão de betão. Carson estacionou o Honda numa fila vazia no meio da garagem, onde estava seco.
Deixaram o Duque sair do carro e este foi logo investigar o terreno, meter o focinho num papel de chocolate deitado fora, um copo da $tarbucks meio esmagado, um saco vazio da McDonald's...
Deixaram as Urban Snipers no Honda. Ainda tinham as armas de serviço nos coldres ao ombro, as Magnums de calibre 50 nos coldres à cinta.
Enquanto Michael tirava o telemóvel do bolso do casaco e marcava o número de Deucalião, Carson procurava movimento entre a floresta de colunas de betão e tentava ouvir passos. Reconhecia o perigo de a
prudência resvalar para a paranóia; não obstante, pusera-se com o braço direito atravessado no tronco, o polegar enfiado no cinto, e ficara com a mão a centímetros da Desert Eagle que tinha debaixo do
casaco, sobre a anca esquerda.
Para quem quer que fosse atraído à órbita de Victor Helios, a palavra impossível já não tinha significado. Por conseguinte, nas horas vagas, talvez o transviado da Transilvânia tivesse combinado ADN de
pterodáctilo com os genes de um sociopata qualquer e tivesse cozinhado um caça-polícias reptilário que surgiria do meio da tempestade. O mais certo era ela não morrer de ataque cardíaco nem de outra coisa
que deixasse um belo cadáver, mas de certezinha que não ia deixar-se desmembrar pelas mandíbulas de um híbrido de dragão e violador, com boné na cabeça e anel de ouro no nariz.
Deucalião devia ter atendido a chamada, pois Michael dissera:
- Tou, sou eu. Estamos num parque de estacionamento. Quarto andar.
Depois de indicar a morada, Michael desligara.
116
Quando o telemóvel deu sinal de final de chamada, Deucalião apareceu na garagem a cerca de cinco metros, como se tivesse saído de Nárnia pelo guarda-fatos, só que não havia ali guarda-fatos nenhum.
Carson esquecia-se sempre do quanto ele era grande até o ver outra vez. De sobretudo preto comprido a caminhar para eles, parecia o Darth Vader numa dieta só com esteroides.
- Estão molhados - observou Deucalião.
- Estivemos numa confusão monstra em Audubon Park - disse Michael. - Uma delas tinha um belo rabo.
O Duque deu a volta ao carro, viu o recém-chegado tatuado, parou e inclinou a cabeça para um lado.
- De quem é o cão? - perguntou Deucalião.
- Era do procurador - respondeu Michael - e depois da réplica do procurador, a qual embateu num balázio de caçadeira, pelo que agora o Duque é nosso.
- As coisas vão ficar apocalípticas em breve - disse Deucalião. - Um cão vai ser um estorvo.
- Este cão, não. É daqueles cães de trabalho altamente treinados. Quando passarmos das caçadeiras para as Magnums de 50, ele pode recarregar as vazias por nós.
A Carson, Deucalião disse:
- Nunca sei bem se percebo metade do que ele diz.
- Acabará por se habituar - garantiu Carson. - O Michael tem distúrbio de hiperatividade, mas fala depressa o suficiente para se manter entretido, e assim não dá muito trabalho.
O Duque aproximou-se de Deucalião de cauda a abanar.
Deucalião estendeu uma mão para o cão lhe lamber os dedos e olhou tão fixamente para Carson que esta se sentiu ao raio-X, e depois ele virou o mesmo olhar para Michael.
- Não foi por acaso que cruzei o vosso caminho em vez do de outros detetives. Vocês são diferentes da maioria que anda de distintivo, e eu sou diferente de todos. A nossa diferença é a nossa força. Fomos
escolhidos para isto, e se fracassarmos - o mundo fracassará.
Michael fez uma careta.
- Isso não fica nada bem no meu currículo.
- Há pouco, no Luxe - começou Carson, referindo-se ao cinema acabado de encerrar onde Deucalião morava -, disse-nos que Victor avançava obstinadamente há tanto tempo, apesar dos reveses, que não tinha
medo do fracasso, que acreditava na inevitabilidade do seu
117
triunfo. Portanto, está cego quanto à podridão do seu império. Na altura, eu pensei que a podridão não era tão extensa quanto o Deucalião esperava. Mas depois da nossa cambalhota no parque com aquelas
réplicas... talvez o colapso esteja mais iminente do que o Deucalião pensa.
Passaram pelos olhos do gigante pulsações de luz interior.
- Sim. O relógio não para.
Depois de ouvir a versão adaptada para um minuto das descobertas de Deucalião nas Mãos da Misericórdia, Carson ficou com ácido do estômago a queimá-la ao fundo da garganta e um arrepio opressor na boca
do estômago.
- Quando é que aquilo vai abaixo? - perguntou Michael.
- Daqui a cinquenta e cinco minutos. Quando Victor souber do incêndio, saberá que fui eu, mas não saberá o descontrolo em que as coisas estavam lá esta noite. Continuará a confiar na Nova Raça para o defender,
mas não correrá o risco de ficar no Garden District. Há de bater em retirada para o viveiro.
Carson perguntou:
- O viveiro de tanques de criação de que o pastor Kenny da fábrica da Nova Raça lhe falou?
I Pelo que fiquei a saber esta noite, está mais adiantado do que Kenny pensava. A primeira colheita começa a erguer-se dos tanques amanhã à noite, quinhentos por dia em quatro dias.
Michael disse:
- Subestimámos as necessidades de munição como o caraças.
- Victor é dono de um grande terreno a norte do Lago Pontchar-train. - De dentro do bolso do casaco, Deucalião tirou um molho de papéis. - Tirei estas informações do computador dele. Há um sítio chamado
Gestão de Resíduos Crosswoods, propriedade de uma empresa do Nevada, a qual por seu turno pertence a uma holding nas Baamas, inserida num cartel da Suíça mas, no fim de contas, é tudo de Victor.
- Gestão de resíduos? - perguntou Carson. - E uma lixeira?
- E uma lixeira muito grande.
- Para que é que ele quer uma lixeira?
- Um cemitério para os fracassos e para as pessoas substituídas por réplicas.
Michael disse:
-Deve ter um fedor mais memorável do que qualquer outra lixeira.
118
- O viveiro de tanques fica numa propriedade de oito hectares adjacente à lixeira. Vamos lá chegar muito antes de Victor. Aliás, eu estarei lá em dez minutos. - Deucalião passou os papéis a Carson. - Moradas,
historial, leitura para o caminho. Se forem pela Interestadual 10 leste e depois Interestadual 12 oeste, e depois a estrada nacional para norte que eu assinalei, serão cerca de cento e doze quilómetros,
menos de hora e meia.
- Muito menos se for ela a conduzir - observou Michael.
- Quando estiverem a chegar, liguem-me - disse Deucalião. - Juntaremos forças lá.
- E depois? - perguntou Carson.
- E depois... o que for preciso.
36.
Erika Cinco encheu um carrinho de aço inoxidável com tudo o que Jocko precisava e levou-o para o segundo andar no elevador de serviço.
Depois de Victor ter juntado as duas residências originais, ficara com três corredores. No extremo sul da casa, o corredor da ala sul ia de leste para oeste. No extremo norte, o corredor também ia de leste
para oeste. Cada qual media vinte e cinco metros. Os corredores ligavam-se pelo átrio principal, que chegava aos cinquenta e cinco metros.
Na ala sul, o elevador de serviço não ficava longe da cozinha. No andar de cima, Erika teve de empurrar o carrinho pelo átrio principal até à ala norte, onde o troll aguardava nos seus novos aposentos,
mais ao fundo da casa.
As portas duplas para a suíte principal ficavam a meio caminho do átrio, à esquerda, em frente e ao cimo da grande escadaria. Erika achava que Victor ainda estava na suíte, mas não tinha a certeza. Se,
por acaso, ele entrasse no átrio e a visse a empurrar o carrinho cheio de roupa de cama, toalhas, artigos de higiene e comida, quereria saber aonde ia ele e com que fim.
O átrio, de quase três metros de largo, tinha uma série de tapetes persas, tal como nos extremos norte e sul, e o carrinho rolava em silêncio por eles. Quando havia soalho de mogno entre tapetes, as rodas
de borracha faziam apenas um ruído ligeiro.
Quando Erika entrou, aliviada, na suíte por mobilar da ala norte, o troll estava em bicos dos pés, a fazer piruetas.
Ela empurrou o carrinho para dentro da sala. Fechou a porta do corredor e perguntou:
- Onde é que aprendeste a dançar?
- Jocko está a dançar? - admirou-se ele, e continuou a girar.
- Isso é balé.
- E apenas... uma coisa... que o Jocko faz - disse ele, e entrou às piruetas dentro do quarto.
Erika seguiu-o com o carrinho e perguntou:
- Não ficas tonto às vezes?
- As vezes... Jocko vomita.
- Então será melhor parares.
120
- Não controlo.
Erika pôs a roupa de cama no chão a um canto e perguntou:
- Queres dizer que te sentes impelido a fazer piruetas?
O troll rodopiou e parou, baixou os calcanhares e deu mais alguns passos antes de recobrar o equilíbrio.
- Não foi tão mau desta vez.
- Coitadinho.
Ele encolheu os ombros.
- Toda a gente tem problemas.
- Isso é filosófico.
- A maioria piores do que os meus.
Erika tinha a certeza de que não haveria muitas sinas piores do que ser um troll grotesco com três pelos na língua, indigente, a viver quase sempre em sarjetas, com compulsão para rodopiar até vomitar.
Porém, admirava a atitude positiva do pequenito.
Na casa de banho, Jocko ajudou-a a descarregar o carrinho e a distribuir os artigos por armários e gavetas. Ficara encantado com o sortido de petiscos que ela levara.
-Jocko gosta de salgado, Jocko gosta de doce, mas nunca tragas ao Jocko molho picante, como daquele com malaguetas, porque faz o Jocko deitar coisas que cheiram mal pelas orelhas.
- Não me hei de esquecer disso - asseverou Erika. - Claro que te trarei refeições saudáveis sempre que puder, não apenas petiscos. Há mais alguma coisa de que não gostes além de molho picante?
- Jocko tem vivido principalmente em sarjetas, a comer bichos e ratos. E molho picante em tiras de milho uma vez. Qualquer coisa que tragas será deliciosa para o Jocko.
- Isto é empolgante, não é? - entusiasmou-se Erika.
- O quê?
- Ter um amigo secreto.
- Quem tem?
-Eu.
- Que amigo?
-Tu.
- Ah, sim. Jocko está empolgado.
A guardar as últimas toalhas, ela disse:
- Volto de manhã, daqui a umas horas, depois de o Victor ir para as Mãos da Misericórdia, e depois podes ler para mim.
121
Sentado na borda da banheira, Jocko perguntou:
- Isto é bom para comer?
- Não, isso é sabonete.
- Ah. Isto é bom para comer?
- Outro sabonete.
- Então é bom para comer?
- Não. Sabonete nunca é bom para comer.
- E isto é bom para comer?
- Também é sabonete. Uma embalagem de quatro.
- Porquê sabonete, sabonete, sabonete, sabonete?
- Trouxe mais quantidade de várias coisas. Vais cá ficar algum tempo... não vais?
- Enquanto disseres que Jocko pode ficar.
- Ótimo. Isso é muito bom.
- Agora vai-te embora - disse Jocko.
- Oh, claro, deves estar cansado.
- Devo estar - concordou ele, e acompanhou-a à sala. - Vai-te embora.
Erika deixou o carrinho, na intenção de o deixar na cozinha de manhã, depois de Victor ir para o laboratório.
Abriu uma nesga da porta e espreitou para o corredor, que estava deserto e sossegado. Olhou para trás, para o troll, e disse:
- Não tenhas medo.
- Tu também não.
- Estás a salvo.
- Tu também.
- Sê discreto.
- Vai-te embora.
Erika saiu para o corredor e fechou a porta atrás de si devagar.
Assim que a porta se fechou, Jocko saltitou para dentro da casa de banho. Agarrou num sabonete. Rasgou o papel de embrulho. Deu uma dentada.
Erika estava enganada. O sabonete parecia delicioso, e era mesmo. Estava enganada ou... mentira.
Que tristeza que ela mentisse. Parecia tão diferente dos outros. Tão bonita. Tão boazinha. Com umas narinas tão delicadas. Mas mentirosa. Quase toda a gente mentia. O mundo era um reino de mentiras. Jocko
também mentira. Dissera-lhe que era Harker.
Era verdade que saíra como Harker. Todos os conhecimentos de Harker. As recordações de Harker. Mas ele não era Harker.
Jocko era Jocko, único. Jocko queria o que Jocko queria. E não o que outra pessoa queria.
Só havia um aspeto em que Jocko e Harker eram parecidos. Odiavam Victor Helios. Odiavam-no.
Uma coisa que Jocko queria e Harker também quisera. Victor Helios morto.
Jocko era Jocko. Mas também era vingança.
O sabonete sabia melhor do que ratos. Quase tão bem quanto bichos. Mas dava trabalho a mastigar. Não era fácil de engolir.
Jocko pousou o sabonete meio comido. Não tinha tempo para mastigar tanto. Depois.
Jocko queria o que Jocko queria. Queria tanto. Mas não podia ter o que queria enquanto não matasse Victor Helios.
Correu para a sala. Fez o pino. Andou pela sala a fazer o pino.
A roda, à roda.
Mas que perda de tempo. Jocko não queria andar por ali a fazer
o pino. Mas tinha de ser.
Finalmente, basta. Outra vez de pé. Outra vez para a casa de banho.
Mais uma dentada de sabonete. Otimo.
Eram horas de matar Victor.
Rápido, rápido, rápido pelo quarto. Pela sala. Para a porta.
123
Quando virou costas à porta dos aposentos de Jocko, Erika sabia que devia ir para a suíte principal, para ver se Victor a queria por alguma razão.
Todavia, a perspetiva de ter o seu amigo secreto a ler-lhe um livro entusiasmava-a tanto que ela não queria esperar pela manhã para escolher o livro da sua sessão inicial. Desceu as escadas das traseiras
no extremo ocidental da ala norte, ansiosa por explorar os títulos que a biblioteca lhe oferecia.
O grandioso átrio do andar de baixo media quase quatro metros de largura, um terço mais espaçoso do que os corredores do segundo andar. Estava mobilado com aparadores, pares de cadeiras separadas por mesas
com jarras de flores em cima e pedestais com magníficos bronzes figurativos. Nas paredes estavam penduradas obras valiosíssimas de mestres europeus dos séculos XVI, XVII e xvm, que Victor tinha tido a
esperteza de fazer sair da Alemanha pouco antes de o seu mecenas e dileto amigo, o muito incompreendido e deliciosamente espirituoso Hitler, a quem Victor tratava por mein schatz, "meu tesouro", ter tido
um desgosto causado pelas massas ignorantes, pelos capitalistas gananciosos, pelos banqueiros vorazes e pelos fanáticos religiosos.
Victor sofrera tantas frustrações e perdas na sua longa vida que Erika, que tivera tudo desde que nascera, poderia precisar de vinte, trinta ou mais anos para o compreender. O problema estava em as Erikas,
até então, serem pouco longevas.
A grande esperança que tinha de compreender o marido, de saber como ser o tipo de esposa que nunca desencadeava a raiva dele, parecia ter de passar pelos livros. Os livros eram perigosos, sim, mas eram
perigosos por conterem um manancial de conhecimento, tanto do tipo útil como do tipo prejudicial. Talvez Erika Quatro tivesse absorvido demasiadas informações erradas, coisas que nunca seriam incluídas
numa educação carregada diretamente no cérebro, e tivesse assim ficado corrompida. Erika Cinco fazia tenções de proceder com cautela no que tocava a livros, sempre alerta quanto ao tipo de conhecimento
prejudicial.
Desfrutava de uma vantagem sobre Erika Quatro: tinha Jocko. Iria instruí-lo para estar sempre em busca de conhecimento que fosse prejudicial de algum modo, para o censurar enquanto lia, a fim de que ela
não fosse contaminada por ele. Se um livro tivesse demasiada informação prejudicial a ponto de ficar incompreensível depois de retirar todas as partes más, ela voltaria a pô-lo na estante e escolheria
outro.
124
Ao entrar na biblioteca, Erika viu Christine a levantar-se da escrivaninha, com um livro e um sobrescrito na mão. Christine deveria estar no dormitório do pessoal.
- Porque é que a Christine está aqui a estas horas? - perguntou Erika.
- Oh, minha nossa, assustou-me. - Christine empurrou a cadeira para debaixo da escrivaninha. - Tenho estado a escolher um livro para enviar a uma amiga, e a escrever-lhe um bilhetinho simpático de lembrança,
com um pedido de desculpa por me ter atrasado tanto na correspondência.
Parecia que Christine falava com um ligeiro sotaque britânico.
- Mas estes livros não são seus - recordou Erika.
A endireitar os ombros e a erguer a cabeça no que poderia ter sido um desafio, Christine retrucou:
- Eu diria que os livros que são do meu marido também são meus.
- Do seu marido? - inquiriu Erika.
- Sim, senhora Danvers, é meu. A Rebecca foi-se. Eu diria que a senhora se deve habituar à ideia.
Erika não precisava de aprender nada em livro algum para ver que Christine estava a sofrer daquilo a que Victor chamava interrupção de funções. Na manhã do dia anterior, o mordomo, William, tinha arrancado
à dentada sete dos seus dedos numa interrupção de funções. De momento, pelo menos, o estado de Christine não era grave como o de William.
Erika aproximou-se da governanta e pegou no livro.
- Eu trato disso por si.
Christine estreitou o livro e a carta contra o peito e retorquiu:
- Obrigada, mas não, senhora Danvers. De manhã pedirei à Christine que o embale e ponha no correio.
Num fato azul soberbamente cortado, camisa de seda branca com colarinho italiano, uma gravata às riscas azul-safira, amarelo-âmbar e verde-esmeralda, um lencinho de bolso ambarino, com a Colt Springfield
Armory de calibre 45 num coldre oculto ao ombro que não interferia com a forma elegante como o casaco lhe assentava, Victor estudava o seu reflexo ao espelho, e este apresentava-lhe um homem que tinha
o estilo e o porte de um soberano nascido para se sentar no trono.
125
Como também havia espelhos nas Mãos da Misericórdia, ele saiu do roupeiro. Atravessava o quarto quando o telemóvel tocou.
Parou à porta do corredor e, depois de hesitar, atendeu.
- Estou?
- Meu estimado amo, meu glorioso bruto - disse Erika Quatro -, preparámos uma última morada para ti na lixeira.
Ele estava decidido a não perder a cabeça e determinado a não a deixar dominar como acontecera no telefonema anterior.
- Achei que vinha para casa.
- Forrámos a tua campa com os cadáveres putrefactos de algumas das tuas vítimas da Velha Raça, com os restos mortais daqueles da tua gente que te desiludiram e não puderam ser ressuscitados como eu fui.
- Talvez - disse ele - tenha a coragem de me telefonar mas não tenha a de me enfrentar.
- Oh, querido, sublime megalomaníaco, tu és o imperador da auto-ilusão. Não tardarei a enfrentar-te. Sorrir-te-ei e soprar-te-ei um beijo quando te enterrarmos vivo nas profundezas da lixeira.
Victor estava a olhar para a maçaneta da porta quando esta começou a rodar, e sacou da Colt que tinha ao ombro.
Rápido, rápido, rápido, Jocko apressava-se para leste pelo corredor norte. Parou na esquina. Espreitou. Ninguém à vista.
Seria bom um bocadinho de sabonete. Concentra-te. Matar primeiro. Sabonete depois.
Ele sabia onde encontrar a suíte principal. Erika falara disso quando o fizera chegar à escada das traseiras. Atrio principal. Em frente à escadaria grandiosa.
Bicos dos pés, bicos dos pés, nos tapetes macios. Tapetes bonitos. Seria engraçado enrolar-se em tapetes tão macios e bonitos.
Não! Não penses em enrolar-te. Nem sequer penses nisso.
Escadaria grandiosa à esquerda. Portas duplas à direita. Era ali.
De pé diante das portas, a mão na maçaneta, Jocko ouve uma voz abafada. A memória de Harker diz-lhe: A voz de Victor. Além daquelas portas.
- Talvez tenha a coragem de me telefonar mas não tenha a de me enfrentar - dissera Victor Helios.
Jocko sentiu-se tomado de uma fúria assassina. Quando tentou arreganhar os dentes, as bordas da boca tremeram.
126
Jocko sabia o que havia de dizer. Quando atacasse Victor. Feroz. Impiedoso. Diria, Sou filho de Jonathan Harker! Ele morreu para me parir! Sou um marginal, um monstro nascido de um monstro! Agora morres
tu!
Parecia uma longa tirada. Ele tentara encurtá-la, mas queria muito, muito, dizer tudo.
Começou a rodar a maçaneta. Quase escancarou a porta. Depois apercebeu-se. Não tinha arma. Jocko não tinha arma nenhuma.
Furioso consigo mesmo, Jocko deixou a maçaneta voltar ao princípio na sua mão e, afinal, não irrompeu pela suíte dentro.
Estúpido, estúpido, estúpido. Enfiou dois dedos nas narinas. Puxou para cima, em direção à testa. Puxou com tanta força que as lágrimas lhe marejaram os olhos. Ele merecia.
Concentra-te. Fica concentrado.
Precisava de uma arma. Sabia aonde ir buscar uma. Cozinha. Faca.
Bicos dos pés, bicos dos pés, rápido pelo átrio principal. Mais tapetes macios. Rumo ao corredor sul. Pela escada das traseiras.
Na biblioteca, Erika dizia:
- Eu não sou senhora Danvers nenhuma.
Christine ainda falava com um ligeiro sotaque britânico.
- Senhora Danvers, se não se importa, eu gostaria de evitar constrangimentos de qualquer espécie. Podemos coexistir. Estou confiante de que podemos e que devemos. Eu sei que quero isso, para bem do Maxim.
- Não me reconhece? - perguntou Erika. - O que se passa consigo? Não sabe onde está?
Christine parecia transtornada e a boca tremia-lhe como se pudesse emocionar-se de uma maneira prevista na sua programação. Agarrada ao livro, a recobrar a compostura, declarou:
- Não sou um espírito tão frágil como poderei parecer, senhora Danvers.
- Erika. Chamo-me Erika.
- Não pense que me pode convencer de que estou a perder a cabeça. Estou cansada dos seus joguinhos malvados. - Passou por Erika e saiu da biblioteca bem depressa.
127
Esgueirar, parar, reconhecer o terreno. Esgueirar, parar, reconhecer o terreno. Escada até ao corredor e até à cozinha.
Oh! Em cima do balcão da cozinha estava uma grande tigela com maçãs. Maçãs amarelas. Maçãs encarnadas.
As maçãs atraem Jocko. Tão coloridas. Maneirinhas. Ele queria-as. Tinha de tê-las. Tinha de ter. Maçãs, maçãs, maçãs. Não para comer. Algo melhor.
Jocko escolheu três maçãs. Duas amarelas, uma encarnada.
Com duas maçãs na mão direita e uma na esquerda, começou a fazer malabarismo. Adorava fazer malabarismo. Precisava de fazer malabarismo.
Já fizera antes. Pedras. Nozes. Dois limões podres e um pacote de queijo rançoso. Três caveiras de ratazana.
As maçãs eram o melhor até então. Coloridas. Quase redondas. Jocko era bom. Até conseguia saltitar enquanto fazia malabarismo.
Saltitou pela cozinha fora. Malabarismo, malabarismo, malabarismo. Oxalá tivesse um chapéu engraçado. Com guizos.
Ao telefone, Erika Quatro disse:
- Há uma legião na lixeira, meu querido psicopata. Não tenho de te ir buscar sozinha.
- Apenas uma legião de mortos - contrapôs Victor. - E os mortos não se erguem outra vez.
- Tal como eu, não estavam completamente mortos. Dados como mortos, mas com resquícios de vida latente..I e passado algum tempo, mais do que resquícios.
A maçaneta rodara para um lado e depois para o outro. Já não se mexia há quase um minuto.
- Levar-te-emos à luz dos archotes até às entranhas da lixeira. E embora te enterremos vivo, havemos de nos divertir contigo antes da sepultura.
A maçaneta rodou outra vez.
Da biblioteca, ela correu diretamente para a escada da frente e subiu ao segundo piso. Basta! Maxim teria de falar com a senhora
128
Danvers. A lealdade que a mulher tinha para com Rebecca excedia a de uma criada fiel, não era nada um sentimento honesto e inocente. Era malévola, perversa e sugeria uma mente desequilibrada.
Escancarou a porta, entrou de rompante na suíte principal e foi alvejada quatro vezes no peito pelo seu adorado Maxim, cuja traição a espantara, embora, enquanto tombava, se apercebesse de que ele teria
igualmente matado Rebecca.
Jocko, a saltitar na cozinha, largou as maçãs quando os tiros ribombaram.
Faca. Esquecera-se da faca. Victor estava à espera de ser morto, e Jocko esquecera-se da faca.
Bateu na própria cara. Bateu, bateu, bateu outra vez. Merecia levar duas vezes mais do que costumava. Três vezes.
Uma gaveta, duas gavetas, três... Na quinta gaveta, facas. Escolheu uma grande. Muito afiada.
Bicos dos pés, bicos dos pés, fora da cozinha, dentro do corredor.
38.
O Duque dormiu no banco traseiro do Honda durante a viagem rumo a este-noroeste pela 1-10 e depois a oeste pela 1-12.
O ressonar do cão não provocou sonolência em Carson, embora isso fosse o mais natural, dadas as poucas horas de sono que ela tivera naqueles dois dias.
O meio litro de cola supercafeinada do Acadiana tinha ajudado. Antes de transporem os limites da cidade, haviam parado num misto de estação de serviço e loja de conveniência aberta todas as horas de todos
os dias, onde tinham escoado parte da primeira cola consumida e comprado mais duas garrafas de meio litro. Compraram também uma embalagem de pastilhas de cafeína.
Quando se fizeram outra vez à estrada, Michael disse:
- Demasiada cafeína dá nós na próstata.
- Não tenho próstata.
- Carson, sabes, o mundo nem sempre gira à volta do teu umbigo.
Uma das coisas que a mantinha desperta e concentrada era a desconfiança de que o caso Helios-Frankenstein poderia girar à volta do umbigo dela como giraria à volta de qualquer um. Não era só por ela ser
uma das duas detetives que tropeçara no caso. E não era porque o seu caminho se cruzara com o de Deucalião mesmo quando ela precisara de o conhecer.
De todos os polícias que Carson conhecia, ela e Michael tinham o maior e mais profundo respeito pelo individualismo, especialmente quando determinado indivíduo era peculiar e, como tal, divertido, ou até
caso se revelasse teimoso e frustrante. Por conseguinte, ficaram mais alarmados do que a maioria com a perspetiva de uma civilização com um propósito unívoco e de uma população arregimentada de zângãos
obedientes, quer essa população se compusesse de seres humanos entupidos de propaganda, quer de pseudo-humanos cultivados em laboratório.
No entanto, não era o seu respeito pelo individualismo nem o amor pela liberdade que dava tanto poder àquele caso, que o fazia imediatamente, intimamente, girar à sua volta. No princípio da investigação,
Carson desconfiara de que o seu pai, detetive na mesma divisão de polícia, pudesse ter sido assassinado pela Nova Raça - e a mãe com ele -
130
às ordens de Victor Helios. O pai podia muito bem ter-se deparado com algo estranho a ponto de ter chegado a Helios, tal como a filha chegaria aos mesmos suspeitos anos mais tarde.
Os assassínios dos pais estavam por resolver. As provas arquitetadas para mostrar o pai como polícia corrupto - que poderia ter sido executado por criminosos com quem andasse envolvido - sempre haviam
sido fáceis de mais, um insulto ao bom senso e uma ofensa à verdade do caráter do pai.
Nos últimos dias, as desconfianças de Carson haviam evoluído para convicções. Tal como a cafeína, a ânsia de justiça e a determinação em limpar o nome do pai a mantinham desperta, alerta e pronta para
agir.
A vasta extensão sem luz de Pontchartrain ficava à esquerda, e parecia ter a gravidade irresistível de uma estrela soçobrada, como se, naquela noite, o mundo girasse nas suas margens, com risco de tombar
no esquecimento.
Tirando nos faróis, a chuva que vinha do lago era negra, batia insistentemente no lado do condutor quando rumaram a oeste pela 1-12, como se a própria noite tivesse punhos ossudos. E o vento parecia preto,
descia de um céu sem luar e sem estrelas.
39.
Depois de acreditar que Erika Quatro o ia apanhar, Victor disparara duas vezes, com intenção de lhe parar os dois corações, antes de se aperceber de que a intrusa era Christine. Enquanto criador da sua
raça, ele sabia exatamente aonde fazer pontaria e, como começara o trabalho com tal acutilância especializada, não teve hipótese senão acabar tudo com mais dois tiros.
Christine tombou, embora a morte não a levasse logo. Ficou a contorcer-se em espasmos no chão do vestíbulo da suíte, a ofegar, a levar inutilmente as mãos ao peito como se pudesse tapar as feridas por
onde jorrava a sua vida.
No estertor final de Christine, Erika apareceu no corredor, além da porta aberta, e Victor desviou a pistola da governanta moribunda para a apontar à Erika que estivesse diante dele.
- Passava-se algo errado com Christine - disse ela. - Parecia que não sabia quem era. Achou que eu me chamava senhora Danvers.
- E você sabe quem é? - inquiriu Victor.
Ela franziu o sobrolho ao ver a coronha da pistola e ouvir a pergunta.
- O que quer dizer com isso?
- Quem é você? - indagou Victor com tal veemência que ela se encolheu, como se recordada da intensidade com que ele sabia desferir pancada quando ela merecia.
- Sou Erika. A sua mulher.
- Erika Cinco?
Ela parecia perplexa.
- Sim, com certeza.
- Então diga-me: qual é a coisa mais perigosa do mundo?
- Livros - respondeu ela de imediato. - Os livros corrompem.
Erika Quatro tivera autorização para ler e isso redundara na sua
morte. Apenas Erika Cinco fora criada com uma injunção contra livros. Uma Erika Quatro ressuscitada não tinha maneira de saber disso.
No chão, Christine disse:
- Manderley... - E os olhos fizeram-se vítreos.
Parecia ter morrido. Victor deu-lhe um pontapé na cabeça, a experimentar reação, mas ela não se mexeu nem emitiu som algum.
132
Ao lado dela no chão jazia um livro intitulado A Pousada da Jamaica.
Victor guardou a pistola no coldre e perguntou:
- O que é que ela acabou de dizer?
- Manderley - respondeu Erika.
- Que língua é, o que significa?
Admirada, ela respondeu:
- É o nome de uma grande mansão inglesa, uma alusão literária. Tenho-a no meu programa. Por exemplo, eu posso dizer quando formos a casa de alguém, "Oh, minha querida, a sua casa ainda é mais maravilhosa
do que Manderley e a sua governanta não é louca."
- Pois, está bem, mas a que obra se refere?
- Rebecca de Daphne du Maurier - respondeu Erika que eu nunca li nem nunca hei de ler.
- Outra vez os livros - bufou Victor e, com a raiva acumulada, deu mais pontapés na governanta morta e no livro que lhe caíra da mão.
- Vou mandar vir uma equipa para levar este lixo às Mãos da Misericórdia para autópsia. Limpe você o sangue.
- Sim, Victor.
Saltinho, cabriola. Saltinho, cabriola. Pelo corredor sul fora. Salti-nho, cabriola. De faca na mão.
A escada das traseiras. Três passos para cima, um para trás. Três passos para cima, um para trás.
A correr, deste modo, rumo à vingança, Jocko recordou-se do discurso que acabara de compor. Quando enterrasse a lâmina bem fundo em Victor, tinha de dizer: Sou filho daquele que era antes de eu ser eu!
Morri para me parir! Sou um monstro, um marginal e um náufrago! Morre, Harker, morre!
Não. Tudo mal. Tanta prática em tantas sarjetas, e Jocko ainda não atinara com aquilo.
A subir duas vezes mais degraus do que descera, Jocko tentou outra vez: Tu és o filho monstro daquele que eu!
Não, não, não. Nem sequer estava lá perto.
Eu sou tu ele quem eu sou quem morre!
Jocko estava tão zangado consigo mesmo que só lhe apetecia cuspir. E cuspiu. E tornou a cuspir. Nos pés. Dois passos para cima, um passo para trás, cuspir. Dois passos para cima, um passo para trás, cuspir.
133
Finalmente chegou ao degrau de cima, com os pés a brilhar.
No corredor sul do segundo piso, Jocko parou para organizar as ideias. Ali estava uma. E outra. E ali estava uma terceira ideia, ligada às outras duas. Muito bem.
Jocko tinha de organizar ideias amiúde. Dispersavam-se com tanta facilidade.
Sou filho de Jonathan Harker! Ele morreu para me parir! Sou um malabarista, monstros e maçãs! Agora morres tu!
Mais ou menos.
Bicos dos pés, bicos dos pés, para leste no corredor sul, por cima de tapetes macios. Rumo ao corredor principal.
Jocko ouviu vozes. Na sua cabeça? Podia ser. Já acontecera. Não, não, desta vez, não. Vozes a sério. No corredor principal.
A esquina. Cuidado. Jocko parou, espreitou.
Erika estava no corredor, diante das portas abertas da suíte principal. A falar com alguém lá dentro, provavelmente Victor.
Tão bonita. Cabelo tão brilhante. Tinha lábios. Jocko também queria ter lábios.
- É o nome de uma grande mansão inglesa, uma alusão literária. - dizia Erika, provavelmente a Victor.
A voz dela acalmava Jocko. A voz dela era música.
Quando a calma caiu sobre Jocko, apercebeu-se de que era diferente na companhia dela. Com ela, não se sentia impelido a fazer tantas piruetas, cabriolas, cuspidelas, malabarismos, saltinhos, puxadelas
de narinas, corridinhas, o pino.
Ela mentira a Jocko. Mentira quanto à delícia que o sabonete era. Caso contrário, todavia, era uma influência positiva.
A vinte e cinco ou trinta metros dali, aparecia Victor Helios. Saído da suíte principal. Alto. Aperaltado. Excelente cabelo na cabeça, provavelmente nenhum na língua. Fato bonito.
Jocko pensou: Morre, malabarista, morre!
Victor passou por Erika. Rumo à escada. Disse-lhe uma última coisa. Começou a descer.
Jocko tinha a faca. O lugar da faca era em Victor.
O lugar de mil facas era em Victor.
Jocko só tinha duas mãos. Podia fazer malabarismo com três facas em duas mãos, espetá-las em Victor. A tentar fazer malabarismo com mil facas, o mais certo era que Jocko perdesse alguns dedos.
134
Para chegar a Victor com uma faca patética, Jocko tinha de passar por Erika. Seria constrangedor.
Ela vê-lo-ia. Saberia que ele faltara à promessa. Mais do que a uma promessa. Saberia que ele mentira. Ficaria desapontada com ele.
E poderia cheirar sabonete no hálito dele.
Erika passou para a escada. Viu Victor a descer.
Talvez visse Jocko. Pelo canto do olho. Começou a virar-se. A virar--se para Jocko.
Jocko escondeu-se. Fugiu da esquina.
Pirueta, cabriola. Pirueta, cabriola. Para oeste pelo corredor sul. Arrepiar caminho pela escada.
Cozinha outra vez. Maçãs no chão. As laranjas teriam sido ainda mais redondas. Jocko tem de pedir laranjas. E tesoura para cortar os pelos da língua.
Jocko saiu aos saltinhos da cozinha, pela despensa do mordomo, e passou por uma sala de jantar íntima.
Além ficava uma sala de jantar formal, grande. Jocko não a via muito bem porque tinha, tinha, tinha de fazer piruetas.
Sala após sala, pequenos corredores de ligação, tanta casa. A fazer o pino, com a faca agarrada num pé. A fazer a roda, a fazer a roda, com a faca nos dentes.
Corredor norte. Escada das traseiras. Segundo andar. A sua suíte.
Jocko escondeu a faca na roupa de cama. Voltou aos saltinhos para a sala. Sentou-se no chão em frente à lareira. A gozar a lareira sem lume.
Ela diria: Achei que te vira no corredor.
Ele diria: Não, o Jocko não, não era o Jocko. Não, não, não. Não eu que sou daquele que era, monstro de monstro, não, não Jocko, não no corredor e não a comer sabonete.
Ou talvez dissesse apenas Não.
Jocko dançaria consoante ela cantasse. Veria o que seria acertado na altura.
Depois de contemplar a ausência de lume meio minuto, Jocko apercebeu-se de que se tinha esquecido de matar Victor.
Jocko levou os dedos às narinas e puxou-as para a testa até ter lágrimas nos olhos. Merecia bem pior.
40.
Na sequência da avaria dos motores do frigorífico, a solução salina na saca transparente começa a aquecer.
Depois de o visitante atarefado atirar com o lavatório que escaqueirou a porta de vidro, o ritmo do aquecimento acelerara.
A primeira melhoria no estado de Camaleão respeita à vista. No ambiente frio, só vê tons de azul. Agora começa a apreender outras cores, gradualmente a princípio, e depois com mais rapidez.
Tanto tempo que Camaleão andou à deriva dentro da saca, a mobilidade limitada pelo frio amargo do fluido em que está imerso. Agora consegue fletir o abdómen e o tórax. A cabeça vira com mais facilidade.
De súbito, debate-se, torna a debater-se, uma grande agitação que faz com que a saca pendente abane de um lado para o outro e bata nas paredes do frigorífico avariado.
Em animação semissuspensa, o metabolismo de Camaleão funciona a um ritmo basal tão baixo que é quase indetetável. O fluido da saca vai aquecendo e os processos catabólicos aumentam.
Com a energia veiculada pelo catabolismo, os processos anabólicos começam a acelerar. Camaleão está a voltar às funções completas.
Debate-se porque necessita de ar. A solução salina altamente oxigenada dentro da saca mantêm Camaleão num frio abaixo do ponto de congelação, mas não basta para o sustentar com funções metabólicas completas.
O pânico da sufocação faz com que Camaleão se debata.
Embora o tecido polimérico da saca seja forte como Kevlar à prova de bala, as garras de combate de Camaleão rasgam-no.
Jorram da saca cinquenta e dois litros de solução salina quimicamente tratada, deitam Camaleão para dentro do frigorífico, pela porta estilhaçada, e para o chão do laboratório.
O ar entra nos seus espiráculos e segue os tubos traqueanos que lhe percorrem o corpo.
Camaleão vai secando e recobrando o sentido do olfato.
É capaz de detetar somente dois odores: uma feromona especialmente concebida com que todos os da Nova Raça são identificados e seres humanos da Velha Raça, identificáveis por um misto de feromonas às quais
falta a especiaria da Nova Raça.
136
O cheiro da Nova Raça agrada a Camaleão e, logo, esses são os ISENTOS.
Como a Velha Raça carece da feromona artificial, o seu cheiro enfurece Camaleão, e eles constituem os alvos.
Camaleão vive para matar.
De momento, só lhe cheira a ISENTOS, e até todos eles parecem mortos, esparramados pela sala fora.
Rasteja pelo chão juncado de cacos do laboratório espatifado, poças de água, em busca de presas.
Todos os tecidos externos de Camaleão mimetizam ao mais ínfimo pormenor a superfície por baixo dele: cor, padrão, textura. Por mais simples ou complexo que o terreno seja, Camaleão sabe fundir-se nele.
Para qualquer observador que olhe para baixo, Camaleão é invisível, desde que não se mova.
Se Camaleão se mover, o observador poderá achar algo estranho, mas não compreenderá o que os seus olhos assimilam: parte do chão a mexer-se vagamente, uma ondulação impossível numa superfície sólida, como
se a madeira ou a pedra, ou ainda a relva, tivesse ganhado fluidez.
A maior parte do tempo, o observador interpretará este fenómeno não como acontecimento real mas sim como prova perturbante de um problema interno em si mesmo: tontura ou alucinação, ou o primeiro sintoma
de um enfarte iminente.
Não raro, o observador fechará os olhos por momentos a fim de acalmar os sentidos transtornados. Fechar os olhos será o seu fim.
Se Camaleão estiver mais acima do que o chão, talvez num balcão de cozinha, permanecerá invisível apenas de lado se o pano de fundo for do mesmo material da superfície aonde se encontra. Caso contrário,
será visível enquanto silhueta.
Por este motivo, Camaleão geralmente fica-se por superfícies mais baixas em busca de presas. O ALVO só se apercebe do agressor quando este lhe sobe por uma perna acima e a destrói pelo caminho.
O laboratório espatifado não tem ALVOS.
Camaleão avança para o corredor. Ali descobre numerosos ISENTOS, todos mortos.
Camaleão leva mais tempo a considerar esses cadáveres do que aqueles do laboratório e descobre cabeças rachadas, cérebros desaparecidos.
137
Interessante.
Não é assim que Camaleão funciona. Todavia, é eficaz.
Entre os ISENTOS desmiolados, Camaleão deteta o eflúvio de um ALVO. Esteve ali um da Velha Raça recentemente.
Camaleão segue o rasto até à escada.
41.A chuva ainda não chegara às paróquias acima do Lago Pontchar-train. A noite húmida continuava suspensa mas expectante, como se o céu baixo e a terra negra tivessem comprimido o ar entre eles até que,
a qualquer momento, uma descarga elétrica chocasse o coração da tempestade a fazer um estrondo ribombante.
Deucalião estava numa estrada de duas faixas deserta, à porta da Gestão de Resíduos Crosswoods. Era um sítio enorme. A vedação alta de arame tinha arame farpado por cima e painéis de privacidade feitos
de nylon em toda a linha. Os sinais a dizer área RESTRITA a cada doze metros advertiam quanto aos perigos sanitários de um aterro.
Do lado de fora da vedação, uma falange tripla de pinheiros de incenso rodeava a propriedade, as filas alternando umas com as outras. Entre vinte e cinco e trinta metros de altura, estas árvores formavam
um biombo eficaz, tapavam a vista para a lixeira nas encostas mais altas a norte e a leste.
Deucalião saiu da estrada, passou pelos pinheiros e entrou na vedação por um portão que não existia - um portão quântico - rumo à lixeira.
A sua visão noturna era melhor do que a da Velha Raça, ainda melhor do que a da Nova Raça. A sua vista aperfeiçoada, que não era obra de Victor, talvez fosse outra dádiva do relâmpago que lhe dera vida,
o qual deixara um fantasma que ainda latejava por vezes nos seus olhos cinzentos.
Subiu um contraforte de terra compactada, com largura suficiente para deixar passar uma carrinha. A esquerda e à direita, muito abaixo daquele caminho elevado, enormes lagos de lixo empilhado em montes
irregulares que acabariam por ser terraplenados antes de serem cobertos com dois metros e meio de terra e tubagens de ventilação para o gás metano.
O fedor incomodava, mas ele encontrara pior nos últimos duzentos anos. Nas suas primeiras duas décadas, depois de deixar Victor como morto no Artico, Deucalião sentira-se tomado amiúde pelo ímpeto da violência,
contra a injustiça de ser feito de uma manta de retalhos e animado por um narcisista aspirante a deus que não dava às suas criaturas significado nem paz, nem esperança de pertença a uma
139
comunidade. Nas suas horas mais apiedadas e assombradas, Deucalião percorria cemitérios e entrava em jazigos de granito, mausoléus, onde abria caixões e se obrigava a contemplar os cadáveres putrefactos,
dizendo em voz alta a si mesmo: "Eis o que tu és, apenas carne morta, carne morta, ossos e tripas de incendiários, assassinos, cheio de vida falsa, morto e vivo, inadaptado em qualquer outro mundo mas
uma abominação neste." Ali de pé com esses caixões abertos, conhecera fedores que, em comparação, faziam com que aquela lixeira na Luisia-na parecesse doce como um roseiral.
Nessas visitas a cemitérios, durante essas longas contemplações de cadáveres sem olhos, ansiara pela morte. Embora tivesse tentado, era incapaz de se submeter a uma navalha bem afiada ou a uma forca que
improvisasse e, à beira de cada precipício, nunca fora capaz de dar o passo final. Por conseguinte, nessas longas noites de companhia aos mortos, debatia consigo mesmo entregar-se à necessidade de autodestruição.
A injunção contra o suicídio não viera de Victor.
Nas suas primeiras iniciativas de divindade, aquela besta vangloriosa não fora capaz de programar a primeira criação com a mesma eficácia com que programava atualmente. Victor implantara um dispositivo
no crânio de Deucalião, que devastara metade do rosto do gigante quando este tentara atacar o criador. Porém, naquele tempo Victor não tinha maneira de proibir o suicídio.
Passados anos marcados tanto por um desejo de morte frustrado como pela raiva, Deucalião chegara a uma perceção que o reduzira à sua pequenez. O édito que o impedia eficazmente de se destruir a si mesmo
vinha de uma fonte mais poderosa e infinitamente mais misteriosa do que Victor. O suicídio estava-lhe vedado porque ele tinha um objetivo na vida, mesmo que não pudesse - na altura - reconhecer o que fosse,
uma missão vital a desempenhar antes de lhe ser concedido o repouso final.
Os duzentos anos tinham-no levado finalmente ao estado da Lui-siana, àquele descampado nauseabundo que era uma lixeira e um cemitério. A tempestade iminente não seria apenas de trovão, relâmpago, vento
e chuva, mas também de justiça, juízo, execução e danação.
À sua esquerda, ao longe na fossa ocidental, tremeluziam chamas. Uma dúzia de fogachos sucedia-se atrás uns dos outros, como se fossem archotes empunhados por gente em procissão.
42.
Erika deixou-se ficar um minuto a ver o cadáver de Christine, a tentar compreender porque é que Victor a matara a tiro.
Embora parecesse que Christine se convencera de que era outra pessoa, não fora ameaçadora. Antes pelo contrário: estivera confusa e transtornada e, apesar da sua alegação de que não era "um espírito tão
frágil" quanto poderia parecer, tinha o ar de uma rapariga tímida e insegura que ainda não era bem uma mulher.
Todavia, Victor alvejara-a quatro vezes nos dois corações. E dera--lhe dois pontapés na cabeça, depois de estar morta.
Em vez de embrulhar o corpo para quem o viesse buscar, e de limpar o sangue como ele lhe tinha mandado, Erika ficou admirada por dar consigo a voltar aos aposentos do troll na ala norte. Bateu à porta
discretamente e disse baixinho, Sou eu, Erika, porque não queria incomodar o pequenito se ele estivesse sentado a um canto, a chupar os dedos dos pés, com a cabeça no tal sítio encarnado para descansar.
Com uma discrição igual à dela, ele disse, Entra, para só ela ouvir, quando ela encostou o ouvido à porta.
Na sala de estar, Erika encontrou-o sentado no chão em frente à lareira às escuras, como se houvesse um lume acolhedor.
Sentou-se ao lado dele e perguntou:
- Ouviste os tiros?
- Não. Jocko não ouviu nada.
- Achei que tinhas ouvido e que devias estar assustado.
- Não. Jocko também não estava a fazer malabarismo com maçãs. O Jocko, não. Nestes aposentos, não.
- Maçãs? Não te trouxe maçãs.
- És muito boa para o Jocko.
- Queres que te traga maçãs?
- Três laranjas seria melhor.
- Trago-te laranjas depois. Há mais alguma coisa que gostasses de ter?
Embora o rosto infeliz do troll pudesse fazer muitas expressões que provocariam um ataque cardíaco numa alcateia inteira de lobos em marcha, Erika achava-o giro, se não a maior parte do tempo, pelo menos
ocasionalmente, como agora.
141
De algum modo, as suas feições separadamente aterradoras conspiravam para formar um todo doce e anelante. Os enormes olhos amarelos brilhavam de deleite enquanto ele pensava no que mais quereria além das
laranjas.
Ele disse:
- Oh, há uma coisa, uma coisa especial, de que eu gostaria, mas é de mais. Jocko não merece.
- Se eu puder arranjar - disse ela -, arranjarei. O que é essa coisa especial?
- Não, não. O que Jocko merece é que lhe puxem as narinas até às sobrancelhas. Jocko merece pancada na cara, cuspir nos próprios pés, meter a cabeça numa sanita e puxar e puxar e puxar o autoclismo, amarrar
um martelo de cinco quilos à língua e atirar o martelo sobre o corrimão de uma ponte, é isso que o Jocko merece.
- Disparate - contrapôs Erika. - Tens ideias assaz peculiares, amiguinho. Mereces tanto esse tratamento quanto gostarias do sabor do sabonete.
- Já sei do sabonete - garantiu ele.
- Otimo. E vou ensinar-te amor-próprio também.
- O que é amor-próprio?
- Gostares de ti mesmo. Vou ensinar-te a gostares de ti mesmo.
- Jocko tolera Jocko. Jocko não gosta de Jocko.
- Isso é uma tristeza.
- Jocko não confia em Jocko.
- Porque é que não confias em ti?
A ponderar na pergunta, o troll fez estalar as bordas da boca por momentos e depois respondeu:
- Digamos que Jocko queria uma faca.
- Para quê?
- Digamos... para cortar as unhas dos pés.
- Posso trazer-te um corta-unhas.
- Mas digamos. Digamos que Jocko queria uma faca para aparar as unhas e digamos que era mesmo urgente. As unhas dos pés... sabes, têm de ser aparadas imediatamente, imediatamente, se não perde-se toda
a esperança. Digamos então que Jocko correu para um sítio como, por exemplo, uma cozinha, para ir buscar uma faca. Depois acontece o que acontece sempre. Digamos que Jocko entra na cozinha e vê... bananas,
sim, é isso que ele vê, uma travessa de bananas. Estás a acompanhar o Jocko?
142
- Estou pois - disse ela.
A conversa dele nem sempre era fácil de acompanhar e por vezes não fazia sentido algum, mas Erika via que aquilo tinha grande importância para Jocko. Queria compreender. Queria apoiá-lo, ao seu amigo secreto.
- Portanto - continuou ele -, Jocko faz o caminho todo até à cozinha. E um longo caminho porque esta casa é mesmo grande... esta casa imaginária de que estamos a falar, algures, por exemplo em São Francisco,
uma casa grande. Jocko tem de aparar as unhas dos pés imediatamente. Se não, tudo estará perdido! Mas o Jocko vê bananas. A seguir, Jocko dá com ele a fazer malabarismo com bananas, a saltitar pela cozinha
em São Francisco. A saltitar ou a fazer a roda, piruetas, ou qualquer coisa estúpida, estúpida, estúpida. Jocko esquece-se da faca até ser tarde de mais para aparar as unhas dos pés, tarde de mais, as
unhas dos pés desapareceram, Jocko estragou tudo outra vez, acabou tudo, é o fim de TUDO!
Erika deu palmadinhas no ombro rugoso dele.
- Não faz mal. Está tudo bem.
- Compreendes o que o Jocko quer dizer?
- Compreendo - mentiu ela. - Mas gostaria de pensar no que me contaste por algum tempo, talvez um dia ou dois, uma semana, antes de reagir.
Jocko assentiu.
- É justo. Foi muita coisa para o Jocko desabafar contigo. És boa
ouvinte.
- Agora - disse ela - voltemos àquela coisa especial de que tu gostarias mas que achas que não mereces.
Aquela expressão doce e anelante voltou ao rosto dele, e mesmo a tempo. Os enormes olhos amarelos brilharam de excitação quando ele respondeu:
- Oh, oh minha nossa, oh, o Jocko gostaria muito de um chapéu engraçado!
- Que tipo de chapéu engraçado?
- Qualquer tipo. Só que seja muito engraçado.
- Não conseguirei encontrar um chapéu engraçado esta noite.
Ele encolheu os ombros.
- Quando der. Se der. Jocko... não merece, seja como for.
- Sim, já disseste, mas eu prometo que terás um chapéu engraçado daqui a um dia ou dois.
143
Independentemente da dificuldade que Erika tivesse em encontrar um chapéu muito engraçado, foi recompensada antecipadamente pelo esforço ao ver o encanto dele, as lágrimas de gratidão.
- És uma senhora tão boazinha. Jocko dava-te um beijo na mão, só que não quer enojar-te.
- Tu és meu amigo - disse ela, e estendeu a mão direita.
As bordas da boca dele e o toque breve dos dentes pegajosos eram ainda mais repugnantes do que ela esperara, mas Erika sorriu e disse:
- Não tens de quê, caro amigo. Agora há uma coisa que espero que possas fazer por mim.
-Jocko vai ler um livro para ti - disse Jocko -, dois livros ao mesmo tempo, e um de cabeça para baixo!
- Mais tarde podes ler para mim. Primeiro, preciso da tua opinião.
O troll agarrou nos pés com as mãos e começou a balouçar-se para
a frente e para trás, sentado no chão.
- Jocko não sabe de montes de coisas além de sarjetas, ratazanas e bichos, mas pode tentar.
- Tu és Jonathan Harker, ou eras Harker, enfim. Sabes que a Nova Raça tem pouca vida emocional. Quando ocorrem mesmo reações emotivas, limitam-se a inveja, raiva e ódio, apenas emoções que são um círculo
vicioso e que não podem resultar em esperança, porque ele diz que a esperança leva a um desejo de liberdade, desobediência e rebelião.
- Jocko é diferente agora. Jocko sente coisas boas e grandes com grande exuberância.
- Sim, já reparei. Seja como for, não tenho conhecimentos nem alcance de visão para compreender bem porque é que um génio como o Victor criaria esta Nova Raça deste modo. Somente eu, sua esposa, sou diferente.
Ele permite-me humildade e vergonha... o que levou à esperança, estranhamente, e da esperança à ternura.
Com os pés nas mãos, a balouçar-se, a cabeça virada para ela, o troll disse:
- Tu és a primeiríssima, Nova Raça ou Velha Raça, a ser bondosa com Jocko. - E as lágrimas tornaram a correr-lhe pelas faces.
- Tenho esperança em muitas coisas - disse Erika. - Espero ser melhor esposa a cada dia que passa. Espero ver aprovação nos olhos de Victor. Se, com o tempo, eu vier a ser muito boa esposa e já não merecer
pancada, se com o tempo ele vier a estimar-me, pedir-lhe-ei que permita a outros da Nova Raça terem esperança como eu tenho.
144
Pedirei a Victor que dê à minha gente vidas mais agradáveis do que tem agora.
O troll parou de se balouçar.
- Não peças a Victor tão cedo.
- Não. Primeiro tenho de ser melhor esposa. Tenho de aprender a servi-lo na perfeição. Mas estou a pensar que talvez possa ser a Rainha Ester e ele, o Rei Assuero.
- Não te esqueças - disse ele - de que Jocko é ignorante. Um fracasso ignorante.
- São figuras da Bíblia, que eu nunca li. Ester era filha de Mardo-queu. Convenceu o marido, o Rei Assuero, a poupar o seu povo, os Judeus, da aniquilação às mãos de Hamã, um príncipe do reino.
A
- Não peças a Victor tão cedo - repetiu o troll. - E a opinião de Jocko. E a opinião fortíssima de Jocko.
Erika rememorou Christine caída no chão do vestíbulo da suíte principal, alvejada quatro vezes nos seus dois corações.
- Não é sobre isso que preciso da tua opinião - disse ela, e pôs-se de pé.
- Vem comigo à biblioteca. Há uma coisa estranha que tenho de te mostrar.
O troll hesitou.
- Eu que sou saí daquele que era apenas há uns dias, mas eu que sou Jocko já tive estranheza que chegue para o resto da vida.
Ela estendeu-lhe a mão.
- És o único amigo que tenho no mundo. Não tenho mais ninguém a quem recorrer.
Jocko levantou-se de um salto e pôs-se em bicos dos pés, como se fosse fazer piruetas, mas ainda hesitava.
- Jocko tem de ser discreto. Jocko é amigo secreto.
- Victor foi para as Mãos da Misericórdia. O pessoal está nas traseiras da propriedade, no dormitório. Temos a casa só para nós.
Após um momento, ele baixou os calcanhares e deu-lhe a mão.
- Vai ser um chapéu muito, muito, engraçado, não vai?
- Muito, muito engraçado - prometeu ela.
- Com alguns guizos?
- Se encontrar um chapéu engraçado sem guizos, posso coser nele quantos quiseres.
43.
Corredor após corredor, laboratório após laboratório, sala após sala, por escadas em casas de banho e arrecadações, caiu um silêncio perfeito no local.
Com as janelas todas emparedadas, o edifício não deixa entrar sons do mundo exterior.
Aqui e ali, jazem corpos sem cérebro em grupos. São todos ISENTOS.
Ninguém se mexe que possa ser visto.
Camaleão segue o esporo cativante do ALVO até essas feromonas acabarem no posto de trabalho do laboratório principal, sem sinal da pessoa que as emitiu.
Recordações vagas daquela sala enorme agitam a mente de Camaleão. Parece não ter memória anterior.
As recordações não interessam a Camaleão. Vive para o futuro, para o cheiro enfurecedor dos ALVOS.
Frertesins de violência abalam o centro de prazer no seu cérebro anterior, como faria o sexo intenso se ele fosse capaz de atividade sexual. A chacina, e só a chacina, lhe provoca um orgasmo. Camaleão
sonha com a guerra porque para ele a guerra é o êxtase constante.
De súbito, no computador de secretária e num ecrã com dois metros e meio por um e meio encastrado numa parede, aparecem imagens.
Os ecrãs mostram uma avenida larga, dezenas de milhares de pessoas, vestidas de modo idêntico e alinhadas em filas perfeitas, a marchar em cadência ao som de música alta.
A cada quinta fila dos marchantes rígidos, há uma pessoa com uma bandeira. A bandeira é vermelha com um círculo branco. Dentro do círculo está a cara de um homem.
O homem não é estranho a Camaleão. Viu aquele homem há muito tempo, viu-o com frequência e naquele mesmo laboratório.
A câmara afasta-se para revelar estruturas colossais que ladeiam a avenida com doze faixas de circulação. São todas de design arrojado, diferente das dezenas de volumetrias típicas programadas em Camaleão
para o ajudar a navegar num arranha-céus de escritórios, numa igreja ou num centro comercial.
Em alguns desses imensos edifícios há retratos. A cara do homem das bandeiras está apresentada em pintura ou em mosaico, ou ainda gravada na pedra.
146
As imagens têm todas pelo menos trinta metros de altura. Algumas têm cem metros.
A música aumenta de volume, aumenta, depois diminui até ficar só música de fundo. Agora proferem palavras, mas não interessa a Camaleão o que se diz.
As hordas marchantes nos ecrãs não são reais, apenas imagens. Não se podem matar.
A rastejar entre as muitas máquinas, Camaleão busca aquilo para que vive, apenas para matar.
Durante algum tempo, não lhe cheira a nada tirando as feromonas persistentes do ALVO que ali esteve recentemente mas que já se foi. Depois novo odor.
Camaleão vira a cabeça para a esquerda, para a direita. As duas garras de rasgar abrem-se e fecham-se com a expectativa, e a garra de esmagar escancara-se para prender. O espigão irrompe de debaixo da
carapaça.
O odor é de um ALVO. No corredor, mas a aproximar-se.
44.
Abruptamente, a chuva passou a cair atrás deles e o alcatrão da estrada nacional de duas faixas diante deles ficara seco. Ao conduzir para fora da tempestade, aparentemente mais veloz do que a Natureza
em alvoroço, Carson gozara da ilusão de ainda mais velocidade do que conseguira realmente espremer ao Honda.
Tirou a garrafa de cola "nunca mais dormes na vida" de entre as coxas e bebeu mais um gole. Reconheceu os sinais de desidratação não crítica causados pela cafeína: boca seca, lábios secos, ligeiro tinido
nos ouvidos.
No lugar do passageiro, a tocar tambores imaginários com baquetas imaginárias, Michael disse:
- Talvez não devêssemos ter ultrapassado a dose recomendada das pastilhas de cafeína. Já nem sinto as narinas.
- Eu também não. Tenho as cavidades nasais tão secas que parece que respiro ar saído de uma fornalha, queima um bocadinho.
- Pois. Sensação de secura, mas isto ainda é a Luisiana portanto, no mínimo, deve estar noventa por cento de humidade, por lei. Ouve, sabes quanto do corpo humano é água?
- Se for na altura do mês em que a retenho, diria noventa por cento.
- Sessenta por cento para os homens, cinquenta por cento para as mulheres.
Ela disse:
- Lá está a prova: as mulheres têm mais substância do que os homens.
- Era a resposta no Jeopardy!
- Não acredito que tu vejas concursos na televisão.
- São educativos - disse ele. - Metade do que sei aprendi em concursos.
- Nisso eu acredito mesmo.
Os carvalhos carregados de musgo de cada lado da estrada formavam um túnel, e os faróis alumiavam incessantemente o que poderiam ser colónias de líquenes fosforescentes nas cascas das árvores fissuradas.
- Tens de conduzir tão depressa?
148
- Depressa? Este chaço da Vicky só serve para conduzir em procissões de funerais.
O telemóvel de Carson tocou, e ela tirou-o do bolso do casaco.
- O'Connor - disse.
- Detetive O'Connor - disse uma voz de mulher -, sou Erika Helios.
- Boa noite, senhora Helios.
Quando ouviu o nome, Michael endireitou-se no banco como se fosse uma torrada aos saltos na torradeira.
Erika Helios disse:
- Creio que poderá ter noção de quem o meu marido é na realidade. Pelo menos creio que ele desconfia de que a detetive sabe.
- Ele sabe que sabemos - esclareceu Carson. - Mandou dois dos seus assassinos da Nova Raça atrás de nós ontem. Casal giro. Pareciam bailarinos. Chamámos-lhes Fred e Ginger. Abriram caminho pela minha casa
adentro, quase mataram o meu irmão.
- Soa a Benny e Cindi Lovewell - disse Erika Helios. - Eu também sou da Nova Raça, mas não sabia que Benny e Cindi tinham ido atrás de si ontem. O Victor matou-me anteontem.
Carson disse para Michael:
- Ela diz que Victor a matou anteontem.
- Com quem está a falar? - perguntou Erika.
- Com o meu colega, Michael Maddison.
Erika disse:
- Sei que parece inacreditável, alguém dizer que a mataram ontem.
- Graças ao seu marido - contrapôs Carson -, já não há nada que achemos difícil de acreditar.
- Eu acredito em qualquer maluquice - anuiu Michael.
- Victor mandou o meu corpo para a lixeira. Sabe da Gestão de Resíduos Crosswoods, detetive O'Connor?
- E ao lado do viveiro de tanques onde ele vai desovar seis milhares de vocês por ano.
- A detetive está mesmo inteirada. Calculei que estivesse, para o Victor ficar preocupado. Ninguém o preocupa.
- Senhora Helios, como arranjou este número?
- O Victor tinha-o. Vi-o no bloco que ele tem em cima da secretária. Foi antes de eu morrer. Mas tenho memória fotográfica. Sou Alfa.
- Ainda está morta? - perguntou Carson.
- Não, não. Afinal, a maioria de nós que ele manda para cá está morta de certeza, mas alguns que parecem estar mortos... bem, ainda
149
há vestígios de energia vital em nós para podermos ser recuperados, e assim podemos sarar. Eles sabem como salvar-nos aqui na lixeira.
- Quem são eles?
- Os da Nova Raça descartados aqui mas revividos. Sou um deles agora. Chamamo-nos a nós próprios Contentores.
Carson observou:
- Não sabia que a vossa gente tinha sentido de humor.
- E não temos - disse Erika. - Só depois de morrermos e largarmos a nossa programação e ganharmos vida outra vez. Mas isto não passa de disparates para si. Talvez não saiba da nossa programação.
Carson lembrou-se do pastor Kenny Laffite a ir-se abaixo à mesa da cozinha do seu presbitério, e disse:
- Sabemos, sabemos disso pois.
- Ah, e eu deveria ter dito que sou a Erika Quatro. A esposa é a Erika Cinco agora.
- Ele não perde tempo.
- Tem sempre Erikas nos tanques, caso a mais recente corra mal.
A carne é barata. É o que ele diz.
- Graças a Deus pelas pastilhas e a cola de ameaça tripla - disse Carson.
Erika Quatro exclamou:
- Perdão?
- Se eu não estivesse tão cheia de cafeína até às orelhas - explicou Carson - não poderia acompanhar esta conversa.
- Detetive, sabe que não pode confiar em ninguém na polícia, pois há muitos que são gente de Victor?
- Sim, sabemos disso.
- Então estão por vossa conta. É aqui na paróquia onde fica a lixeira e o viveiro de tanques, todos os polícias e a maioria dos políticos são réplicas. Não conseguem ganhar a isto.
- Conseguimos, sim senhora - discordou Carson.
A assentir tão depressa que parecia um daqueles cãezinhos de trazer no tabliê, Michael disse:
- Conseguimos. Conseguimos.
- O império dele está a implodir - disse Carson a Erika.
- Sim. Nós sabemos. Mas a detetive ainda precisa de ajuda.
A pensar em Deucalião, Carson disse:
- Temos alguma ajuda de que a senhora não tem conhecimento, mas o que é que tem em mente?
- Temos uma proposta a fazer. Os Contentores. Iremos ajudá-la a derrotá-lo, a capturá-lo... mas há uma coisa que pretendemos.
45.
Victor nunca entrava nas Mãos da Misericórdia diretamente. Ao lado do hospital, que agora passava por armazém, ficava um edifício de cinco andares com os departamentos de contabilidade e gestão de pessoal
da Biovision, a empresa que fizera dele multimilionário.
Na garagem por debaixo do edifício, estacionou o Mercedes S600 no espaço reservado. Aquela hora, era o único automóvel.
Perdera o ritmo com a conversa de Erika Quatro ao telefone e o facto de Christine não saber quem era. Em momentos assim, o trabalho era a melhor coisa para lhe acalmar a mente, e talvez agora mais do que
nunca, havia numerosas questões a exigirem atenção.
Perto do espaço de estacionamento havia uma porta de aço pintada de que só ele tinha chave. Além da porta ficava uma sala de betão com dois metros quadrados.
Em frente à porta exterior, havia outra porta que só se podia abrir com código inserido num teclado numérico de parede. Victor introduziu-o, e a tranca eletrónica deslizou com um baque.
Entrou num corredor com dois metros de largo e dois metros e meio de altura, soalho de betão e paredes de alvenaria e madeira. A passagem tinha sido escavada em segredo por elementos da Nova Raça.
Qualquer tentativa de derrube de uma civilização e a sua substituição por uma nova acarretava enormes responsabilidades. O peso nos ombros dele poderia ter sido intolerável se não houvesse vantagens como,
por exemplo, passagens secretas, salas ocultas, escadas escondidas, o que lhe proporcionava algum divertimento quotidiano.
Desde pequeno que achava excitante tal clandestinidade; crescera numa casa infinita erigida por um avô paranoico que lhe pusera mais portas cegas do que visíveis, mais salas desconhecidas do que conhecidas,
mais passagens secretas do que corredores públicos. Victor achava que havia algo de admirável nele, no facto de não ter perdido tais raízes, de não se ter esquecido das suas origens.
Ao fundo do corredor, outro teclado numérico aceitou o código inserido. Uma porta final abria-se sobre uma sala de arquivos vulgar nas profundezas das Mãos da Misericórdia.
Atualmente não se procedia a trabalhos alguns àquele nível. Ocorrera ali um acidente lamentável, consequência de trabalho desleixado
151
feito por alguns Alfas, e haviam morrido quarenta. Victor passou por uma área mal iluminada, onde a destruição por reparar pairava nas sombras.
No elevador, a caminho do laboratório principal, Victor ouviu música de Wagner, e o coração enlevou-se com a majestade dela. Depois apercebeu-se de que alguém devia ter ativado A Crença, uma curta-metragem
que passava uma vez todos os dias nas instalações para inspiração e motivação do pessoal da Nova Raça. Ora, apenas Victor sabia o procedimento para indicar ao computador que passasse o filme em todo o
hospital, e tinha curiosidade em saber como o teriam ativado.
Quando entrou no laboratório, ficou diante do ecrã encastrado, encantado como sempre pelas legiões em marcha, pela cidade do amanhã com os seus imensos edifícios que o querido Adolfo imaginara mas não
conseguira erigir, pelos monumentos a si próprio que seriam, depois de a cidade construída, muito mais grandiosos do que aqueles exemplos.
Com uma equipa da sua gente, Victor criara aquele vislumbre realista do futuro em animação por computador. Não tardaria a chegar ao momento em que a banda sonora wagneriana acabaria e a Crença fosse anunciada
pela sua própria voz.
Foi à secretária, na intenção de se sentar a desfrutar do final do filme. Porém, ao chegar lá, virou o rosto para ver o ecrã do outro lado da sala e viu uma parte do soalho ondular, a cerca de seis metros
de distância, e pensou alarmado, Camaleão.
46.
No fundo de uma longa descida, da escuridão do lado direito da estrada, saltou uma corça de cauda branca para a frente dos faróis e ficou paralisada de medo.
Como não ligava aos limites de velocidade, nem aos sinais regulares a indicar caça com chifres que pontuavam o caminho, Carson esquecera-se de que, à noite em território rural, a bicharada era um perigo
para o trânsito tal como os condutores embriagados.
Ser urbana e estar fora do seu ambiente ainda era o mais ínfimo dos problemas. Depois de passar os últimos dias imersa no mundo retorcido de Victor Helios Frankenstein, aprendera a ter medo e a estar alerta
quanto a ameaças extraordinárias, ridículas, grotescas, de toda a espécie, e perdera alguma da sensibilidade para os perigos da vida comum.
Apesar das queixas que tinha do Honda, levara o carrinho a velocidades temerárias. Assim que vira a corça na faixa virada a norte, soube que estava a, talvez, cinco segundos do impacto, que não poderia
perder velocidade de maneira a evitar uma colisão desastrosa, e que poderia derrapar o carro se travasse a fundo.
Em nome dos Contentores, Erika Quatro dissera:
- ... mas há uma coisa que pretendemos... - mesmo quando a corça aparecera.
Para livrar as duas mãos do volante, Carson atirara o telemóvel a Michael, que o apanhara no ar como se estivesse à espera e, ao mesmo tempo, carregara com a mão esquerda no botão para baixar o vidro da
sua janela.
Na fração de segundo de que ela precisou para atirar o telemóvel a Michael, Carson também ponderou nas suas duas opções:
Guinar à esquerda, passar pela mãe do Bambi na faixa para sul e na berma sul, mas ela poderia assustar-se e tentar fazer a travessia, embatendo com toda a força no Honda.
Guinar à direita, sair da estrada por detrás da corça, mas poderia deparar-se com mais, se andassem em rebanho ou família.
Mesmo quando o aparelho fizera a sua trajetória até à mão erguida de Michael, Carson apostou as fichas todas na ideia de que a corça não estaria sozinha. E guinou para a faixa sul.
153
Diretamente à sua frente, um veado saltou de onde ela menos esperava, da escuridão à esquerda, para a faixa sul, a arrepiar cantinho em busca da sua corça paralisada.
Depois de passar o telemóvel da mão direita para a mão esquerda, de sacar da pistola no coldre que tinha ao ombro, Michael meteu a arma pela janela ainda a descer e disparou dois tiros.
Assustado, o veado saiu do caminho, entrou na faixa norte, a corça virou-se para ir atrás dele, o Honda passou por eles a toda a brida e, a pouco mais de trinta metros à frente, apareceu um camião no topo
da descida, destinado a sul.
O camionista deu à buzina.
Carson guinou à direita.
Num arco, os faróis do camião varreram o interior do Honda. Sentindo que o carro queria derrapar, ela evitou os travões, aliviou o acelerador, virou o volante à esquerda com muito jeitinho.
O camião passou tão perto deles que Carson até ouviu o condutor praguejar, embora tivesse a janela dela fechada.
Quando a energia potencial para uma derrapagem amainou num deslize da retaguarda, um pneu traseiro chiou, o cascalho fez ricoche-te no chassis, mas voltaram ao alcatrão mais uma vez, e à faixa norte como
devia ser.
Carson acelerou, Michael guardou a pistola e devolveu-lhe o telemóvel.
Quando ela o apanhou enquanto ele fechava o seu vidro, Carson disse:
- Resolvido. Vamo-nos casar.
Ele disse:
- Obviamente.
Lembrando-se do cão, ela perguntou:
- E o Duque?
- Sentado lá atrás a sorrir.
- É mesmo o nosso cão.
Quando Carson levou o telemóvel ao ouvido, a antiga senhora Helios perguntava:
- Está? Detetive? Está?
- Caiu-me o telemóvel - disse Carson. - A senhora dizia que queria algo para nos ajudar.
- O que vai fazer com Victor se lhe conseguir pôr as mãos em cima? - perguntou Erika. - Vai prendê-lo?
154
- Nããão - disse Carson. - Não me parece. Prendê-lo seria uma grandessíssima complicação.
- Seria o julgamento do milénio - observou Michael.
Carson fez uma careta.
- Com tantos recursos, passaríamos trinta anos a prestar depoimento.
Michael disse:
- E teríamos de gramar com milhentas anedotas parvas sobre monstros para o resto da vida.
- E o mais certo era ele safar-se, seja como for - disse Carson.
- Safava-se mesmo - corroborou Michael.
- E seria um herói popular para muitos idiotas.
- Júri anulado - disse Michael.
- Ele só queria criar uma utopia.
- O Paraíso na Terra. Não tem nada de mal.
- Um mundo de uma só nação sem guerras - disse Carson.
- A humanidade inteira unida na senda de um futuro glorioso.
- A Nova Raça não polui como a Velha Raça.
- Todos e mais alguns usam exatamente a lâmpada que devem usar - disse Michael.
- Sem ganância, sem desperdício, vontade de sacrifício.
- Salvariam os ursos-polares - continuou Michael.
Carson alvitrou:
- Salvariam os oceanos.
- Salvariam o planeta.
- Ah, pois. Salvariam o sistema solar.
- O Universo.
Carson disse:
- E as mortes não eram culpa de Victor.
- Monstros - disse Michael. - Os malditos monstros.
- As criações dele não se contentavam com a programação.
- Já vimos filmes assim montes de vezes.
- É trágico - disse Carson. - O cientista genial defraudado.
- Atraiçoado por aqueles monstros ingratos e rebeldes.
- Não só o gajo se safaria como acabaria por ter um programa de televisão só dele - disse Carson.
- E iria ao Dança Comigo.
- E ganharia.
155
Ao telemóvel, a antiga senhora Helios disse:
- Só estou a ouvir metade, mas parece-me que já não estão a lidar com isto como detetives da polícia.
- Passámos a justiceiros - reconheceu Carson.
- Querem matá-lo - deduziu Erika.
- As vezes que forem precisas, para ficar mesmo mortinho - disse Carson.
- Pois nós queremos a mesma coisa. E podemos ajudar, nós aqui na lixeira. Só pedimos que não lhe deem um tiro. Que o capturem vivo. Ajudem-nos a matá-lo à nossa maneira.
- E qual é a vossa maneira? - perguntou Carson.
- Queremos acorrentá-lo e levá-lo para a lixeira.
- Não os posso censurar.
- Queremos deitá-lo numa vala comum de lixo cheia da carne morta das suas vítimas.
- Agrada-me.
- Há quem queira urinar em cima dele.
- Compreendo o impulso.
- Queremos pôr-lhe ao pescoço uma coleira metálica com um cabo de alta tensão, por onde poderemos inflingir-lhe uma descarga elétrica que lhe faça o tutano ferver dentro dos ossos.
- Ena.
- Mas não é para já. Depois da coleira, queremos enterrá-lo vivo em mais lixo e ouvi-lo gritar e pedir clemência até ficarmos fartinhos disso. Depois fervemos-lhe o tutano.
- Pensaram mesmo bem nisso - observou Carson.
- Pensámos mesmo.
- Talvez possamos trabalhar juntos.
Erika disse:
- Da próxima vez que ele for ao novo viveiro...
- Deve ser antes da alvorada. Achamos que ele vai fugir de Nova Orleães e refugiar-se no viveiro depois de as Mãos da Misericórdia ficarem reduzidas a cinzas.
- A Misericórdia vai ser reduzida a cinzas? - inquiriu Erika, com assombro infantil e uma tremura deleitada na voz.
- Vai arder daqui a... - Carson olhou para Michael, que viu as horas, e ela repetiu o que ele disse:
- ... oito minutos.
156
- Sim - confirmou a anterior senhora Helios -, ele decerto foge para o viveiro.
- Eu e o meu colega já vamos a caminho.
- Encontrem-se connosco na Crosswoods, na lixeira, antes de irem ao viveiro - disse Erika.
- Tenho de falar com o outro colega sobre isso, já lhe digo alguma coisa. Dê-me o seu número.
Depois de Erika indicar o número, Carson repetiu-o para Michael, e este anotou.
Carson terminou a chamada, guardou o aparelho e disse:
- Ela parece muito simpática, para monstro.
47.
Embora desprezasse a humanidade, Victor era biologicamente humano. Embora intelectualmente esclarecido além da compreensão dos outros da Velha Raça, permanecia fisicamente semelhante a eles. Para Camaleão,
Victor era um alvo de eleição.
Se não tivesse sido ele a criar Camaleão, Victor não saberia o significado do chão ondulante. Teria pensado que estava a ver coisas ou a ter um ataque isquémico transitório.
Mesmo agora, sabendo para onde olhar, não conseguia distinguir facilmente Camaleão na superfície onde este se movia.
No computador de secretária e no ecrã gigante do outro lado da sala, visões heróicas e animadas do futuro da Nova Raça continuavam a aparecer, mas agora ouvia-se a voz de Victor, a recitar a Crença: O
Universo é um mar de caos em que o acaso colide com o imprevisto e lança estilhaços de coincidência insignificante nas nossas vidas...
Camaleão era cauteloso na sua abordagem, embora não precisasse de ser tão prudente e não tivesse sido programado para cuidados, dado que era praticamente invisível e capaz de atingir grande velocidade.
O mais provável era estar a ser cauteloso por aquela ser a sua primeira expedição de caça. Assim que matasse, ficaria mais arrojado.
O objetivo da Nova Raça consiste em impor a ordem ao caos, em manipular o espantoso poder destrutivo do Universo de modo a obviar às nossas necessidades, em conferir sentido à criação que dele tem carecido
desde tempos imemoriais...
Victor recuou casualmente mais para dentro do seu posto de trabalho em forma de U.
Camaleão avançava e Victor recuava, e mais um metro, até estar só a cinco metros de distância.
Era uma máquina de matar meio inteligente porque a sua capacidade de se fundir no ambiente circundante lhe dava grande vantagem, o que dispensava inteligência propriamente dita. A intenção de Victor era
criar dezenas de milhares de Camaleões, libertá-los no dia em que a revolução começasse, como reserva para as brigadas de guerreiros da Nova Raça que iam matar a Velha.
E o sentido que irão impor ao Universo é o sentido do vosso criador, a exaltação do meu nome e do meu rosto imortais, a concretização da minha visão e de todas as minhas vontades...
158
O tampo de granito do posto de trabalho bateu na parte de trás das coxas de Victor, deteve-o.
Camaleão esgueirou-se até quatro metros e parou outra vez. Assim parado, Victor deixava de poder ver, embora soubesse exatamente onde ele estava. O efeito de ondulação só se fazia sentir quando a malévola
criatura se mexia.
A vossa satisfação no trabalho, cada momento do vosso prazer, o vosso alívio de uma ansiedade que de outro modo seria perpétua só serão alcançados pela contínua e perfeita implementação da minha vontade...
Sempre de olho no sítio onde acabara de ver o mimo espertalhão, Victor deslocou-se na lateral, até um bloco de três gavetas à esquerda. Pensava que aquilo de que precisava estaria na gaveta do meio.
Camaleão não se reproduzia nem comia. Enquanto existisse, recorria à própria substância como fonte de energia. Quando o peso baixasse de dez para oito quilos, Camaleão enfraqueceria e morreria, embora,
claro, não tivesse consciência do seu destino.
Os modelos informáticos sugeriam que cada Camaleão, solto num ambiente urbano, seria capaz de matar entre mil e mil e quinhentos alvos antes de expirar.
Pelas vossas mãos, a Terra e tudo nela submeter-se-á a mim e, com toda a Terra a servir-me, também os servirá, porque eu os fiz e enviei em meu nome...
Camaleão começou a aproximar-se - meio metro, um metro, metro e meio - enquanto Victor abria a gaveta do meio e apalpava o recheio, sempre a olhar para o potencial assassino.
A escassos três metros, Camaleão parou. Quando decidisse mover--se outra vez, decerto cobriria a distância que faltava e atacaria as pernas e o tronco do alvo, arrancaria os dedos quando este tentasse
resistir, enquanto subia freneticamente até à cabeça.
Victor olhou para a gaveta. Viu o frasco de líquido verde-pálido e tirou-o enquanto tornava a olhar para o ponto onde Camaleão estivera.
Não havia ondulação no soalho.
Victor tirou a rolha do frasco.
Camaleão avançou.
Victor derramou o frasco em cima de si e desviou-se rapidamente para a direita.
Como o fluido continha feromonas da Nova Raça, guardadas na gaveta na rara eventualidade de Camaleão fugir da sua saca no frigorífico, o mimo letal interrompeu o ataque. Victor já não cheirava a alvo,
mas sim à Nova Raça.
159
Vivem por minha causa, vivem, para mim, e a minha felicidade é a vossa glória...
Após longa hesitação, Camaleão virou-se e percorreu o laboratório em busca de alvos.
Victor não se permitira enfurecer-se enquanto a ameaça se fazia sentir, mas agora sentia-se corar de fúria. Estava ansioso por saber como é que Camaleão fugira da sua prisão fria e a quem deveria castigar
por isso.
No teclado do computador, mandou o sistema áudio e vídeo desligar A Crença. As Mãos da Misericórdia ficaram em silêncio, e as imagens do futuro frankensteiniano desapareceram do computador e dos outros
ecrãs pelo edifício fora.
Em vez de apresentar o menu base, contudo, o computador apresentava quatro algarismos - 07:33.
O relógio de Dresden. Sete minutos e meio, contagem decrescente.
Como ele só esperava ter de destruir as Mãos da Misericórdia em caso de calamidade biológica das mais extremas e irreversíveis, e como não queria que nenhuma das suas criações pudesse desautorizar a sua
decisão de destruir depois de começar a contagem decrescente, não era possível parar o relógio. Em pouco mais de sete minutos, a Misericórdia seria um inferno.
A raiva deu lugar à ponderação prática e fria das circunstâncias. Depois de sobreviver dois séculos, Victor podia contar com um instinto de sobrevivência bem apurado.
Os tijolos ligados de material incendiário colocados nas paredes e tetos tinham sido fabricados pelo terceiro governo mais tirânico do mundo, refinados pelo segundo governo mais tirânico e aperfeiçoados
até à excelência pelo mais tirânico de todos os governos do mundo. Era o sonho de qualquer pirómano.
Caso algum desses governos caísse e os regimes corressem o risco de serem levados perante a justiça, bastava carregar num botão para garantir que os seus campos de concentração, cuja existência eles negavam,
irromperiam de imediato em labaredas de tal intensidade que nem os guardas conseguiriam escapar. As temperaturas produzidas por aquele material incendiário não ombreavam com a temperatura superficial média
do Sol, mas seria o segundo fogo mais quente em todo o sistema solar, vaporizando praticamente todas as provas.
Victor correu para um armário perto do computador, abriu uma porta e viu-se o que parecia ser uma mala de viagem grande. Havia
160
cabos de transmissão de dados a ligar a bagagem a tomadas no fundo do armário. Victor desligou rapidamente todos os fios.
As Mãos da Misericórdia ficariam reduzidas, mais do que a entulho e carvão, a cinzas finas como farinha três vezes moída a boiarem numa poça de pedra derretida, quente e fluida como a lava de um vulcão.
Não sobreviveria o mais ínfimo fragmento de osso, nem qualquer outra fonte de ADN, para que a patologia criminal analisasse.
A mala tinha ficheiros de reserva relativos a todas as experiências jamais efetuadas nas Mãos da Misericórdia, incluindo trabalho realizado nessa última hora.
No relógio da contagem decrescente lia-se 06:55.
Victor pegou na mala, atravessou o laboratório, Camaleão já esquecido, a equipa inteira já esquecida.
Afeiçoara-se ao material incendiário que aguardava agora detonação e ficara impressionado consigo mesmo por ter contactos suficientes de modo a adquiri-lo em grande quantidade. Aliás, guardava no computador
uma mensagem de correio eletrónico enviada ao fornecedor, o ditador mais tirânico do mundo, a exprimir agradecimentos, dizendo a dado momento: "... e se pudesse revelar-se que as três nações laboram em
conjunto para aperfeiçoar este material eficaz e fiável, a revelação mostraria quão estúpidos são os cínicos que não as acham capazes de cooperação internacional".
Como Victor bem sabia após séculos de desapontamentos, a pior coisa na deslocação súbita da empresa, subsequente a uma ocorrência catastrófica, era a perda irrecuperável de correspondência e outras recordações
que lhe lembrassem do lado pessoal de um grande empreendimento científico. O trabalho dele nem sempre era solitário e sombrio. Granjeara muitas amizades ao longo dos anos e tinha gozado dias paradisíacos
em sítios como Cuba e Venezuela e Haiti e nos antigos Sovietes, quando se permitira tempo para gargalhadas e rememorações com amigos de longa data e para debater as questões importantes da época com amigos
novos de raciocínio semelhante. Na tempestade de fogo que se avizinhava, seriam destruídas tantas coisas pequenas mas preciosas que ele se arriscava a ter um ataque considerável de nostalgia se pensasse
muito nessa perda iminente.
Quando saiu do laboratório principal, houve algo à sua direita, a cerca de vinte metros ao fundo do corredor, que lhe chamou a atenção. Era grande, talvez do tamanho de quatro homens, com seis pernas grossas
e insetoides, como as pernas de um grilo muitas vezes ampliadas,
161
e um tumulto de outras características anatómicas. Parecia haver inúmeros rostos embutidos no corpo, alguns nos sítios mais bizarros. O rosto mais perto de onde seria o lugar da cabeça - e obviamente o
mais dominante do grupo - parecia-se deveras com Werner.
Daquela criatura repreensivelmente indisciplinada saía uma dezena ou duas dezenas de vozes, feericamente pueris, todas a cantarolar a mesma palavra obscenamente ofensiva:
- Pai... Pai... Pai... Pai...
48.
Na biblioteca da mansão Helios, Erika Cinco disse:
- Encontrei-o por acaso ontem.
Erika passou a mão por baixo de uma prateleira e carregou num interruptor escondido.
Uma secção da estante abriu-se sobre dobradiças e as luzes do teto revelaram uma passagem secreta mais além.
Jocko disse:
- Isto cheira a esturro ao Jocko. Queres a opinião do Jocko. A opinião é: não presta.
- Não é apenas a passagem. É o que fica na outra ponta que importa mesmo.
- O que é que fica na outra ponta?
Erika transpôs o umbral e respondeu:
- É melhor seres tu a ver do que eu a dizer. Não deixaria de te condicionar, a minha descrição, por mais que tentasse evitar. Preciso da tua opinião imparcial.
Jocko hesitou em ir atrás dela e perguntou:
- Mete medo lá dentro? Diz a verdade ao Jocko.
- Mete um pouco, só um pouquinho.
- Mete mais medo do que um cano de esgoto escuro e molhado quando já não se tem o nosso ursinho de estimação?
- Nunca estive num cano de esgoto, mas imagino que deve meter muito mais medo do que isto.
- Mete mais medo do que o ursinho do Jocko estar cheio de aranhas à espera da hora de deitar para lhe poderem entrar nas orelhas enquanto ele dorme e fazerem uma teia dentro da cabeça dele e o transformarem
em escravo das aranhas?
Erika abanou a cabeça.
- Não, não mete assim tanto medo.
- Está bem! - disse Jocko animadamente, e transpôs o umbral.
O chão, as paredes, o teto da passagem - cerca de um metro de largo - era de betão armado.
A porta secreta na estante fechou-se automaticamente atrás do troll, e ele disse:
- Jocko deve querer mesmo o chapéu engraçado.
163
O corredor estreito levava a uma imponente porta de aço. Esta tinha cinco trancas com dois centímetros e meio de espessura: uma em cima, uma no umbral, três na ombreira do lado direito, em frente às dobradiças
enormes.
- O que é que está lá trancado? - perguntou Jocko. - Coisa que pode querer sair. Coisa que não deve poder sair.
- Verás - disse ela, e correu as trancas uma por uma.
- É coisa que vá bater com um pau no Jocko?
- Não. Nada disso.
- É coisa que vá chamar anormal ao Jocko e atirar-lhe cocó de cão?
- Não. Isso não acontecerá aqui.
Jocko não parecia nada convencido.
A laje de aço girou suavemente nas dobradiças fortes e acenderam--se luzes do outro lado.
A passagem seguinte, com quatro metros de comprido, terminava numa porta idêntica à primeira.
Havia dezenas de varas de metal a saírem das paredes, de cobre à esquerda de Erika, de aço ou uma qualquer liga de aço à sua direita. Ouvia-se um zumbido suave vindo delas.
- Ai, ai - fez o troll.
- Não fui eletrocutada da primeira vez - garantiu Erika. - Tenho a certeza de que ficaremos bem.
- Mas Erika tem mais sorte do que Jocko.
- Porque é que dizes isso?
O troll inclinou a cabeça para um lado, como se dissesse, Estás a falar a sério?
- Porque é que Jocko diz isso? Olha para ti. Olha para Jocko.
- Seja como for - disse ela -, a sorte não existe. O Universo é um caos sem sentido. É o que o Victor diz, portanto deve ser verdade.
- Um gato preto uma vez atravessou-se à frente do Jocko. Depois voltou para trás e esgatanhou-o.
- Não me parece que isso prove coisa alguma.
- O Jocko encontrou uma moeda na rua depois da meia-noite. Dez passos depois, o Jocko caiu por um esgoto com a tampa levantada.
- Isso não foi sorte, nem azar, foi não veres por onde punhas os pés.
- Aterrei num aligátor.
- Um aligátor num cano de esgoto? Pronto, sim, mas estamos em Nova Orleães.
164
- Afinal eram dois aligatores. A acasalarem.
- Coitadinho.
A apontar para a passagem cheia de varas metálicas, Jocko disse:
- Tu primeiro.
Tal como na visita anterior, Erika entrou neste novo corredor, um raio laser azul varreu-a de alto a baixo, baixo a alto, como se avaliasse o formato dela. O laser apagou-se. As varas pararam de zumbir.
Com relutância, Jocko seguiu-a até à porta de aço seguinte.
Erika correu cinco trancas de aço e abriu a barreira final, além da qual a luz dos candeeiros aumentava e revelava um espaço sem janelas com dois metros quadrados, mobilado como uma sala de estar vitoriana.
- O que te parece? - perguntou ela ao troll.
Ainda no seu segundo dia de vida, Erika chegara a uma encruzilhada. Perplexa e indecisa, precisava de outra opinião sobre as suas circunstâncias, antes de poder decidir o que fazer.
Jocko deslizou um bocadinho pelo soalho de mogno e disse:
- Lisinho. - Encolheu os dedos dos pés no tapete persa antigo e continuou:
- Macio.
Encostou o seu peculiar nariz ao papel de parede William Morris, inspirou fundo, saboreou o cheiro e comentou:
- Goma.
Admirou a lareira de nogueira e ébano e lambeu os mosaicos William De Morgan em redor desta.
- Brilhantes - disse dos mosaicos.
Pôs a mão em concha na orelha esquerda, inclinou-se para um dos candeeiros que tinha um quebra-luz de seda xantungue com franjinhas, como se quisesse escutar a luz.
- Quarta-feira - disse, mas Erika não perguntou porquê.
Saltitou em cima da cadeira de espaldar alto - "Saltitona" -, estudou o teto revestido a painéis de mogno - "Abundante" -, rastejou de costas por baixo do canapé Chesterfield e como que apitou.
Voltou a Erika e declarou:
- Bela sala. Vamos embora.
- Não podes simplesmente ignorá-lo - disse ela.
- Ignorar o quê?
Ela apontou para o centro da sala, uma imensa caixa de vidro: dois metros e meio de comprido, metro e meio de largo, quase um metro
165
de fundura. Apoiava-se numa série de pés de bronze em forma de garras. Os seis vidros biselados tinham caixilhos de ouropel sobre bronze finamente entalhado.
- A mim parece-me um guarda-joias enorme - disse Erika.
Depois de estalar as bordas da boca, o troll disse:
- Pois, guarda-joias. Vamos embora.
- Vem ver melhor o recheio - convidou Erika e, como ele hesitava, ela pegou-lhe na mão e levou-o ao misterioso objeto.
Havia uma substância dourada-avermelhada semiopaca a encher a caixa. O recheio ora parecia um fluido onde circulavam correntes subtis, ora parecia um vapor denso que embaciava o vidro.
- Contém líquido ou gás? - inquiriu Erika.
- Um ou outro. Vamos embora.
- Vês como o líquido ou o gás absorve a luz dos candeeiros? - perguntou Erika. - Tem um brilho tão bonito, dourado e carmesim ao mesmo tempo.
- Jocko tem de fazer chichi.
- Vês como a luminosidade interna revela um vulto grande e escuro no meio da caixa?
- Jocko tem mesmo de fazer chichi.
- Embora eu não veja um único pormenor dessa forma sombria - disse Erika - faz-me lembrar algo. A ti faz-te lembrar algo, Jocko?
- Faz lembrar a Jocko uma forma sombria.
Erika prosseguiu:
- Faz-me lembrar um escaravelho petrificado em resina. Os antigos Egípcios consideravam os escaravelhos animais sagrados.
Parecia um momento H. Rider Haggard por excelência, mas ela duvidava que o troll pudesse apreciar a alusão literária ao escritor de grandes aventuras.
- O que é um... escaravelho?
- Uma barata gigante - respondeu ela.
- Não ouviste? Jocko tem de fazer chichi.
- Não tens nada de fazer chichi.
- Vai por mim.
Erika segurou-lhe o queixo, virou-lhe a cabeça, obrigou-o a fitá-la e disse:
- Olha-me nos olhos e diz-me a verdade. Saberei se estiveres a mentir.
- Saberás?
166
- Vai por mim. Agora... Jocko tem de fazer chichi?
Ele perscrutou-lhe os olhos, ponderou na resposta e apareceram--lhe gotinhas de suor na testa. Por fim, disse:
- Ah, já passou.
- Assim me pareceu. Olha para a sombra que flutua na caixa. Olha, Jocko.
Com relutância, ele deu atenção ao ocupante do enorme guarda--joias.
- Toca no vidro - disse ela.
- Porquê?
- Quero ver o que acontece.
- Jocko não quer ver o que acontece.
- Desconfio que não acontece nada. Jocko, se faz favor. Por mim. Como se lhe pedissem que tocasse no focinho de uma cobra toda
enrolada, o troll levou um dedo ao vidro, deixou-o lá uns segundos e depois tirou-o. Sobreviveu.
- Frio - disse ele. - Gelado.
- Pois é, mas não tanto que a pele fique lá colada. Vamos ver o que acontece quando eu toco nele...
Ela levou o dedo indicador ao vidro e, dentro da substância luminosa, a forma sombria mexeu-se.
49.
-Pai... Pai... Pai...
A coisa-Werner mexia-se desajeitadamente, embatia na parede leste do corredor, depois colidia com a outra, recuava um metro ou mais para cada dois que avançava, como se cada movimento implicasse voto maioritário
de um comité.
Aquela criatura era, não só, uma abominação, como também uma zombaria malévola de tudo o que Victor alcançara, destinada a escarnecer do triunfo dele, a sugerir que a obra de uma vida não passava de um
espetáculo de ciência burlesco e cru. Victor desconfiava agora que Werner não era vítima de uma metamorfose celular catastrófica, não era, vitima, mas sim carrasco, que o chefe da segurança se revoltara
conscientemente contra o seu criador. Aliás, a avaliar pela composição daquela caricatura de muitas caras, todo o pessoal das Mãos da Misericórdia se empenhara naquela comunhão de carne tresloucada, reduzira-se
a um magote de mutantes numa única unidade. Só poderiam ter tido uma razão para se recriarem naquela atrocidade pesadona: ofender o criador, desrespeitá-lo, desonrá-lo, fazer dele a chacota de todos. Com
uma expressão tão vívida do seu desprezo e desdém irracionais, aqueles desgraçados ingratos esperavam confundi-lo e descoroçoá-lo, humilhá-lo.
A carne é barata, mas a carne também é traiçoeira.
- Pai... Pai... Pai....
Eram máquinas de carne que se armavam em filósofos e em críticos, que se atreviam a ridicularizar o único intelecto de importância suprema que jamais conheceriam. Victor estava a transformar o mundo,
e eles só se transformavam a si mesmos; contudo, pensavam que aquela degradação vil das suas formas bem-feitas fazia deles seus pares, até seus superiores, com autorização para o vaiar e insultar.
Com a coisa-Werner a ressaltar de parede em parede e a cambalear para trás para poder tropeçar para a frente, Victor disse-lhe, a todos os que estavam emaranhados dentro dela:
- O vosso bocado patético de teatro biológico nada significa para mim, não me desencoraja em nada. Eu não fracassei. Vocês fracassaram, falharam-me, atraiçoaram-me, e também fracassaram se queriam desencorajar-me.
Não sabem com quem estão a lidar.
168
Depois de exprimir a sua indignação, Victor proferiu a frase mortal, as palavras que encerrariam os sistemas nervosos autónomos daqueles tolos anárquicos, que reduziriam aquela pantomima escarninha de
muitas caras a uma pilha de carne sem vida.
A coisa-Werner continuava a avançar, o seu modo entediante, arengando a única palavra que sabia - que eles todos sabiam - e a levar Victor ao auge da fúria.
Ele tinha pouco mais de seis minutos para fugir das Mãos da Misericórdia e sair do bairro antes que tudo deflagrasse numa imitação derretida do Sol. O incêndio iminente acabaria com a coisa-Werner, retribuiria
a blasfémia deles com fogo redentor.
O elevador ficava entre Victor e a multidão una e cambaleante. As escadas pareciam mais recomendáveis.
Com a mala que tinha todo o seu trabalho histórico nas Mãos da Misericórdia, afastou-se da coisa-Werner, bateu na porta da escada e galgou os degraus até ao nível mais baixo.
Por colunas de luz e poças de sombra, pelo entulho que fazia de monumento a um dia mau passado nas Mãos da Misericórdia. Rumo à sala dos arquivos.
O teclado numérico, o código dele. Um algarismo mal. Outra vez. A cada toque do dedo soava um tom.
Olhou para trás. A coisa-Werner não o seguira. Não sairia por ali, e não havia mais portas a funcionar. A Manta de Retalhos estava condenada. Bem podia morrer a zombar dele com as suas muitas bocas, que
lhe importava?
Pelo corredor com soalho de cimento, paredes de tijolo e madeira. Primeira porta a fechar-se automaticamente atrás dele assim que ele chegava à seguinte. Teclado, código. Logo à primeira. A pequena sala
de cimento, a porta final, sempre destrancada daquele lado.
O Mercedes S600 parecia magnífico, uma carruagem digna da realeza e até suficiente para ele. Abriu uma porta atrás, mas achou melhor não deixar a preciosa mala num sítio tão pouco seguro. Foi à traseira
e abriu o porta-bagagens.
Fechou as portas, abriu a do condutor, sentou-se ao volante. Tinha a chave no bolso, bastava levar um dedo à ignição para ligar o motor.
Subiu a rua e virou à direita, para longe das Mãos da Misericórdia.
O vento ganhava intensidade e fustigava a rua com granizo que ricocheteava no chão; havia montes de lixo a juncar as sarjetas. Porém, nem uma chuva dez vezes superior chegaria para anular o material
169
incendiário que não tardaria a deflagrar nos seus laboratórios perdidos.
O antigo hospital iria arder de uma maneira tão espetacular que ninguém na cidade - nem no país, já agora, de costa a costa - teria visto coisa que rivalizasse com a ferocidade das chamas, e ninguém nunca
se esqueceria de labaredas incandescentes a ponto de cegarem. As estruturas em frente às Mãos da Misericórdia também poderiam arder, e o edifício de cinco andares ao lado - propriedade da sua Biovi-sion
- seria inquestionavelmente destruído, o que faria dele fonte de interesse para a comunicação social e, talvez até, para as autoridades.
Considerando que no dia anterior William, o mordomo, arrancara os próprios dedos à dentada e fora destruído, que na última hora Christine sofrera uma interrupção de funções inexplicável antes de Victor
a matar a tiro, ele tinha de encarar a possibilidade de os outros elementos da criadagem de sua casa terem a integridade psicológica e/ou física comprometida. Poderiam não ser capazes de prestar o serviço
de elevada qualidade que ele exigia e também, para cúmulo, de manter uma forma humanoide credível. Não poderia voltar para casa, pelo menos, não por algum tempo.
A análise lógica não permitia a Victor evitar a conclusão de que alguns dos dois milhares da Nova Raça infiltrados por toda a cidade poderiam começar a ter problemas de qualquer espécie. Nem todos, decerto,
mas talvez uma amostra significativa, digamos cinco por cento, ou dez. Ele não deveria ficar em Nova Orleães durante esse período de incerteza.
Dada a natureza disseminada da crise, Victor desconfiou de problemas nos tanques de criação das Mãos da Misericórdia. Sabia que as suas fórmulas genéticas e padrões matriciais de carne eram geniais e impecáveis.
Por conseguinte, só uma falha na maquinaria poderia explicar tais acontecimentos.
Ou sabotagem.
Sentiu-se assolado por mil suspeitas e, com fúria renovada, tentou febrilmente descortinar quem andaria a conspirar para o levar à ruína.
Mas não. Não era altura de se distrair com a possibilidade de um sabotador. Primeiro tinha de mudar a base para novo centro operacional, e só havia um - o viveiro de tanques. Tinha de tentar isolar-se
de qualquer relação com os acontecimentos que sobreviessem na cidade nos dias vindouros.
170
Mais tarde, haveria tempo para identificar o vilão na sua vida, se o houvesse.
Na verdade, era mais provável falha mecânica. Ele fizera inúmeras melhorias aos tanques de criação que haviam sido instalados no viveiro. Eram três gerações mais sofisticados do que a versão em funcionamento
nas Mãos da Misericórdia.
Victor dirigiu-se à estrada que o faria atravessar os quarenta e cinco quilómetros dali até ao Lago Pontchartrain e lembrou-se de que a cada revés na sua longa carreira se seguiram avanços muito maiores
e mais céleres do que antes. O Universo afirmava a sua natureza caótica, mas ele lograva sempre impor-lhe a sua ordem mais uma vez.
Prova do seu caráter indómito era a roupa que ele trajava agora. O encontro com Camaleão, o confronto subsequente com a coisa--Werner e a fuga das Mãos da Misericórdia teriam afetado a maioria dos homens.
Porém, os sapatos não tinham nem um arranhão, as calças continuavam vincadas, e bastou-lhe olhar para o retrovisor para confirmar que a sua belíssima cabeleira não estava nada despenteada.
50.
A rodear cautelosamente a caixa de vidro assente sobre pés em forma de bola e garras, parando do lado oposto ao de Erika, Jocko disse:
- Não é guarda-joias. É caixão.
- Um caixão teria tampa - contrapôs Erika -, pelo que não deve ter um morto lá dentro.
- Ótimo. Jocko já sabe que chegue. Vamos embora.
- Observa - pediu ela, e bateu com os nós dos dedos no topo da caixa, como fizera na visita anterior.
O vidro fez um som como se devesse ter uns dois centímetros e meio ou mais e, no sítio onde os nós dos dedos dela haviam batido, a substância ambarina lá dentro - fosse líquida, fosse gasosa - fez covinhas
como a água faz quando se lhe deita uma pedra. A covinha azul-safira aumentou num anel que chegou a toda a superfície. A cor ambarina voltou a seguir.
- Talvez nunca mais fazer isso - sugeriu Jocko.
Ela bateu no vidro três vezes. Formaram-se três anéis azuis concêntricos, recuaram para o perímetro da caixa, e a cor ambarina voltou.
A contemplar Erika por cima da caixa, Jocko disse:
- Jocko sente-se doente.
- Se te agachares no chão e vires debaixo da caixa...
- Jocko não.
- Mas se olhasses, verias tubos elétricos, canos de várias cores e diâmetros. Todos saem da caixa e desaparecem no chão. Sugere que há uma sala de assistência mesmo por baixo de nós.
Jocko levou as duas mãos à barriga e disse:
- Bocadinho enjoado.
- Mas a mansão não tem cave, presume-se.
- Jocko não entra em caves.
- Viveste num cano de esgoto.
- Contente, não.
Erika passou para a ponta da caixa mais distante da porta.
- Se fosse um caixão, calculo que aqui ficasse a cabeça.
- Decididamente agoniado - disse Jocko.
172
Erika curvou-se até ficar com a boca a centímetros do vidro e disse baixinho:
- Olá, olá, olá aí dentro.
Dentro da mortalha ambarina de gás ou líquido, a forma sombria agitou-se, tornou a agitar-se.
Jocko escapuliu-se de perto da caixa tão depressa que Erika nem viu como ele subira para cima da lareira, onde ficou empoleirado, de braços abertos, bem agarrado aos cantos de bronze.
- Também apanhei um susto da primeira vez - disse ela. - Mas só me tinham batido uma vez nessa altura e ainda não tinha visto Christine morta a tiro. Agora já é mais difícil meterem-me medo.
- Jocko vai vomitar.
- Não vais nada vomitar, amiguinho.
- Se não formos embora agora, Jocko vai vomitar.
- Olha-me nos olhos e diz-me a verdade - ordenou ela. - Jocko não está enjoado, está apenas assustado. Eu saberei se estiveres a mentir.
Ele fitou-a e fez um barulhinho gemebundo e patético. Por fim, disse:
- Jocko vai ou Jocko vomita.
- Estou desapontada contigo.
Ele parecia transtornado.
Ela perguntou:
- Se dizias a verdade, onde está o vómito?
Jocko chupou as bordas de cima e de baixo da boca e mordeu-as. Parecia encabulado.
Como Erika não parava de olhar para ele, o troll abriu a boca, largou um dos cantos a que estava agarrado e meteu os dedos na garganta.
- Mesmo que isso funcionasse - disse ela - não contaria. Se estivesses mesmo agoniado, verdadeiramente agoniado, podias vomitar sem o truque dos dedos.
A sufocar, os olhos marejados de lágrimas, Jocko tentou e tentou, mas não se conseguia obrigar a regurgitar. O esforço foi tanto que o pé direito escorregou na lareira, a mão resvalou do outro canto e
ele tombou para o chão.
- Vês o que acontece quando mentes a uma amiga?
A encolher-se de vergonha, o troll tentou esconder-se atrás da cadeira de espaldar alto.
- Não sejas tolinho - disse Erika. - Anda cá.
173
- Jocko não pode olhar para ti. Não pode.
- Claro que podes.
- Não. Jocko não aguenta ver que o odeias.
- Disparate. Não te odeio.
- Odeias Jocko. Ele mentiu à sua melhor amiga.
- E eu sei que ele aprendeu a lição.
Detrás da cadeira, Jocko admitiu:
- Aprendeu. Aprendeu mesmo.
- Sei que Jocko nunca mais me há de mentir.
- Nunca mais. Ele... Nunca mais hei de mentir.
- Então vem cá.
- Jocko tem tanta vergonha.
- Não há necessidade. Somos melhores amigos do que nunca.
Hesitante, ele saiu de trás da cadeira. Timidamente, acercou-se de
Erika, que permanecia à cabeça da caixa de vidro.
- Antes de pedir a opinião que preciso de ti - disse ela -, tenho mais uma coisa para te mostrar.
Jocko assentiu e Erika disse:
- Farei exatamente o que fiz ontem. Vejamos o que acontece.
- Está bem!
Mais uma vez, ela curvou-se até ao vidro e disse:
- Olá, olá, olá aí dentro.
O vulto sombrio tornou a mexer-se e desta vez as ondas sonoras da voz dela eram pulsações azuis cintilantes que perpassaram por toda a caixa, tal como acontecera quando ela batera com os nós dos dedos.
Erika falou outra vez:
- Sou a Rainha Ester do Rei Assuero.
As pulsações azuis intensificaram-se na cor. Parecia que a presença sombria se erguia para mais perto da parte de baixo do vidro e revelava uma vaga sugestão de um rosto pálido, mas sem feições.
Erika virou-se para Jocko e sussurrou:
- Foi exatamente o que aconteceu ontem.
Os olhos amarelos do troll estavam arregalados de pavor. Olhou boquiaberto para a sugestão incaracterística de um rosto dentro do vidro e o que parecia ser uma bolha de sabão iridescente a sair-lhe da
boca aberta.
Erika levou a boca até ao vidro mais uma vez e repetiu:
- Sou a Rainha Ester do Rei Assuero.
174
Das pulsações azuis latejantes que as palavras dela provocavam, ouviu-se uma voz baixa e rouca, que o vidro não atenuava:
- Tu és Erika Cinco, e és minha.
Jocko perdeu os sentidos.
51.
Ao telefone, Deucalião disse-lhes que fossem diretamente ao portão principal da Gestão de Resíduos Crosswoods.
- Vão esperá-los ao portão. São um Gama e um Ipsilon, mas podem confiar neles.
As compridas alamedas de pinheiros interrompiam-se na entrada principal. Os portões de metal com três metros de altura tinham painéis verdes de ocultação e estavam encimados por rolos de arame farpado
a combinar com a vedação que os ladeava.
Quando Carson abrandou e parou, perguntou:
- São da Nova Raça, como é que podemos confiar neles? Isto faz--me nervoso miudinho.
- Isso é a cafeína a falar.
- Não é só a cafeína, Michael. Esta situação, assim a entregarmo--nos à gente de Victor, assusta-me.
- O Deucalião confia neles - salientou Michael. - E isso a mim basta-me.
- Acho que sei de que lado ele está, pronto, mas ainda fica estranho por vezes, taciturno e difícil de compreender.
- Vejamos. Ele tem mais de duzentos anos de idade. Foi feito com bocados de cadáveres tirados do cemitério de uma prisão. Por um dos lados da cara é bem-parecido, mas o outro lado parece uma cratera que
foi tatuada para disfarçar o dano. Tem dois corações e sabe Deus que mais disposições bizarras de órgãos internos. Já foi monge, atração de feira e talvez uma centena de outras coisas que nunca saberemos.
Assistiu a dois séculos de guerra e teve uma média de três vidas para pensar nisso, e parece que leu todos os livros que vale a pena ler, provavelmente cem vezes mais livros do que tu leste, mil vezes
mais do que eu. Passou pelo declínio do Cristianismo e pela ascensão da nova Gomorra. Sabe abrir portais no ar e passar por eles para o outro lado do mundo porque o relâmpago que lhe deu vida lhe concedeu
dons misteriosos. Caraças, Carson, não vejo motivos para ele ser estranho ou taciturno ou difícil de compreender. Tens razão: deve andar a querer tramar-nos, tem-nos mentido o tempo todo sobre querer apanhar
o Victor, eles só nos querem atrair à lixeira para nos comerem ao pequeno-almoço.
176
Carson disse:
- Se é para te lançares em tiradas, não bebes mais NoDoz.
- Não preciso de mais NoDoz. Sinto que me pregaram as pálpebras com agrafos cirúrgicos.
À luz dos faróis, os portões da Crosswoods começaram a abrir-se para dentro. Além ficava a escuridão da lixeira, parecendo mais negra do que a noite sem luar deste lado da vedação.
Carson deixou o Honda avançar, entre os portões, e saíram do negrume dois vultos com lanternas.
Um era homem, com ar rude mas bem-parecido ao estilo abrutalhado. Tinha uma T-shirt branca imunda, calças de ganga e galochas até meio da coxa.
Recortada contra a luz dos faróis, a mulher parecia ser bonita como uma estrela de cinema. O cabelo louro estava precisado de uma lavagem, e tinha a cara suja, mas a beleza era tão intensa que teria brilhado
mau grado tudo, salvo uma máscara de lama.
Com a lanterna, o homem indicou a Carson onde estacionar, enquanto a mulher recuava à frente deles, a sorrir e a acenar, como se Carson e Michael fossem parentes queridos que não via desde que toda a gente
fugira da província à frente da guarda.
Tal como o homem, ela usava uma T-shirt branca imunda, calças de ganga e galochas até meio da coxa, mas a indumentária feiosa só destacava o facto de ter corpo de deusa.
- Quer-me parecer que o nosso Victor é menos cientista e mais tarado do que outra coisa - comentou Carson.
- Ora, parece que não lhe custa mais a fazê-las curvilíneas do que a fazê-las tábuas.
Carson desligou os faróis e depois o motor e disse:
- Vamos levar as armas. - Caso tenhamos de proteger a nossa virtude.
Carson disse:
- Agora que tencionamos que eu tenha bebés teus, eu protejo a tua virtude por ti.
Saíram do Honda, cada qual com duas armas de mão nos coldres e uma Urban Sniper com o cano apontado ao chão.
Ao perto, a mulher impressionou Carson por ser ainda mais espampanante do que parecera de dentro do carro. Tinha um ar selvagem, mas também uma afabilidade, uma vitalidade animal e um entusiasmo que dificultava
não gostar dela.
177
E declarou com energia:
- Mármore, mostarda, mula...
Nick Frigg disse:
- Deem-lhe desconto. Às vezes só lhe custa encontrar a palavra certa para começar.
-... madeira, macaca, meada, miado, mu, mãe. Mãe! Vimos a mãe de todos os enganos esta noite!
- Esta é Gunny Alecto - disse Nick. - Ela conduz aquilo a que chamamos galeões do lixo, uma máquina grande que levanta o lixo e o compacta até ficar bom e sólido.
- O que é um engano? - perguntou Michael.
- Experiências que correram mal nas Mãos da Misericórdia. Máquinas de carne especializadas, talvez qualquer coisa guerreira agora mas que depois nos iria ajudar na Ultima Guerra, e até mesmo Alfas e Betas
que não se revelaram como ele esperava.
- Enterramo-los aqui - disse Gunny Alecto. - Tratamo-los bem. Eles parecem estúpidos, estúpidos, estúpidos, mas parece que vêm de onde nós vimos, pelo que são uma espécie de família.
- O desta noite não era estúpido - observou Nick.
Gunny afivelou uma expressão de assombro.
- Oh, esta noite foi tudo diferente no buraco grande abaixo. A mãe de todos os enganos é a coisa mais bonita de sempre.
- Mudou-nos - disse Nick Frigg.
- Mudou-nos completamente - anuiu Gunny, a assentir entusiasticamente.
- Fez-nos compreender - disse Nick.
- Camas, cabalas, cobaias, cobertas, cobaltos, cabeças. Cabeças! A mãe de todos os enganos falou dentro das nossas cabeças.
- Libertou-nos - disse Nick. - Não temos de fazer nada do que costumávamos ter de fazer.
- Já não odiamos a vossa laia - disse Gunny. - É tipo... porque é que odiávamos?
- Simpático - disse Carson.
- Odiávamo-los tanto - revelou Gunny. - Quando chegavam mortos da Velha Raça à lixeira, espezinhávamo-lhes as caras. Pisávamo-los da cabeça aos pés, repetidamente, até não passarem de lascas de osso e
carne esmagada.
- Aliás - acrescentou Nick -, fizemos isso ao princípio da noite com alguns de vocês.
178
- Isso foi antes de descermos pelo buraco grande abaixo e conhecermos a mãe de todos os enganos e ficarmos esclarecidos - explicou Gunny.
- Caraças, oh, caraças, a vida agora é diferente, de certezinha.
Carson mudou de posição com a Urban Sniper, pegou-lhe com as
duas mãos, o cano apontado para o céu em vez de para o chão.
Casualmente, Michael fez o mesmo com a sua Sniper e perguntou:
- Onde está o Deucalião?
- Vamos levá-los até ele - respondeu Nick. - Ele é mesmo o primeiro, não é, o primeiro homem feito por homem?
- É mesmo - respondeu Carson.
- Ouçam - disse Michael -, temos um cão no carro. Ele fica em segurança se o deixarmos aqui?
- Tragam-no - disse Nick. - Os cães adoram lixo. A mim chamam--me Nick-nariz-de-cão porque, para me ajudar no meu trabalho, tenho genes caninos que me dão um olfato metade do de um cão mas dez mil vezes
mais do que o vosso.
Quando Michael abriu a porta de trás do Honda, o Duque saltou e esticou o focinho para o ar da noite. Olhou Nick e Gunny à cautela, inclinou a cabeça para o lado esquerdo e depois para o direito.
- Cheira-lhe a Nova Raça - disse Nick. - E isso deixa-o preocupado. Mas também lhe cheira a qualquer coisa diferente em nós.
- Porque descemos pelo buraco grande - disse Gunny - e a mãe de todos os enganos falou dentro das nossas cabeças.
- Isso mesmo - corroborou Nick. - O cão sabe.
O Duque de Orleães abanou a cauda, algo hesitante.
- Cheira-me a bom cão - declarou Nick. - Cheira-me ao que eu queria cheirar se não tivesse apenas genes caninos e fosse completamente cão. Cheira perfeitamente para cão. Vocês são afortunados em tê-lo.
Carson lançou a Michael um olhar que perguntava: Somos loucos de irmos com eles para este sítio escuro e isolado?
Ele percebeu-a logo, porque respondeu:
- Pois, está escuro e é isolado, mas já passámos três dias loucos, e acho que vamos sair disto esta noite. Por mim, confiamos no Deucalião e no Duque.
52.
Erika tirou Jocko da sala vitoriana sem janelas pela passagem secreta.
Quando o troll desmaiou, desmaiou mesmo. Ficou tão inconsciente que, durante essas breves férias da perceção, deve ter estado num quarto com vista sobre a morte.
Inerte como um trapo, o corpo embalado pelos braços dela. A cabeça pendente, a boca aberta, as bordas a adejar, fazia uma bolha iridescente nos dentes, que só rebentou quando ela o instalou numa poltrona
na biblioteca.
Jocko continuava a ser a antítese da beleza. Se alguma criança se deparasse com ele por acaso, a infeliz poderia muito bem vir a precisar de anos para recuperar o controlo da bexiga e ficaria traumatizada
para toda a vida.
No entanto, Erika sentia-se enternecida pela vulnerabilidade de Jocko e a sua perseverança comovente. Para sua surpresa, o afeto que sentia pelo troll crescia de hora para hora.
Se aquela mansão fosse uma casinha no bosque, se Jocko desatasse a cantar com frequência, e se houvesse mais seis como ele, Erika seria uma Branca de Neve da vida real.
Voltou à sala sem janelas. No umbral, contemplou por momentos a sombra informe e aninhada dentro da substância dourada-avermelhada.
O cuidado tido com a decoração sugeria que Victor lá ia com regularidade, sentar-se junto da criatura dentro do caixão de vidro. Se passasse pouco tempo naquela sala, não a teria mobilado com tanto conforto.
Erika fechou a porta de aço e correu as cinco trancas. No fim do corredor cheio de varas metálicas, fechou a porta seguinte e trancou-a também.
Quando voltou à biblioteca, onde a parte da estante que lhe dava acesso girou sobre os gonzos e voltou ao lugar, ocultando tudo, Erika viu que Jocko recobrara os sentidos. Os pés a balouçarem muito acima
do chão, os braços apoiados na poltrona, estava sentado muito direito, agarrado ao estofo com as duas mãos, como se estivesse numa montanha-russa, a antever nervosamente a queda seguinte.
180
- Como te sentes, Jocko?
Ele respondeu:
- Bicado.
- O que significa isso?
- Como, por exemplo, dez pássaros a quererem bicar-te a cabeça, tentas proteger-te, as asas deles roçam-te nas mãos e nos braços, esvoaçam, esvoaçam, esvoaçam na tua cara. Jocko sente-se todo esvoaçado.
- Já alguma vez foste atacado por pássaros?
- Só quando eles me veem.
- Parece um pavor.
- Bem, só acontece quando Jocko está ao ar livre. E mais de dia, apenas uma vez à noite. Bom, duas, se os morcegos forem pássaros.
- Há aqui um bar na biblioteca. Talvez uma bebida te acalme os nervos.
- Tens água de cano de esgoto com sedimentos interessantes?
- Creio que só temos água engarrafada ou da torneira.
- Ah, então bebo uísque.
- Queres on the rocks?
- Não, com gelo, se faz favor.
Momentos depois, Erika passou a bebida a Jocko e o telemóvel tocou.
- Só o Victor tem este número.
Erika achou que a voz de Jocko tinha um toque de amargura quando ele disse:
- Ele que fez o ele que eu era. - Mas poderia ser imaginação sua.
Erika tirou o telemóvel do bolso das calças.
- Estou?
- Vamos sair de Nova Orleães por algum tempo - anunciou Victor. - Vamos partir de imediato.
Como o marido, por vezes, achava impertinente que lhe fizessem perguntas, Erika não perguntou porque é que iam partir, disse simplesmente:
- Está bem.
- Já estou a caminho do viveiro de tanques. Tu vais no Mercedes maior, a carrinha GL550.
- Sim, Victor. Amanhã?
- Não sejas estúpida, eu disse "de imediato". Esta noite. Dentro de uma hora. Leva roupa tua para duas semanas, diz ao pessoal que te ajude. Tens de te despachar.
181
- Devo levar roupa para ti?
- Tenho um guarda-roupa no viveiro. Cala-te e ouve.
Victor disse-lhe onde estava o cofre da mansão e explicou o que ela deveria levar dele.
Depois disse:
- Quando fores à rua, olha para noroeste, o céu está a arder. -E desligou a chamada.
Erika fechou o aparelho e ficou a refletir.
Na poltrona, Jocko perguntou:
- Ele é mau para ti?
- Ele... é o que é - respondeu ela. - Espera aqui. Volto já.
As portadas da biblioteca davam para um terraço coberto. Quando Erika saiu, ouviu sirenes à distância.
A noroeste, havia uma luminosidade estranha nas nuvens baixas e carregadas: formas de luz pulsantes, agitadas, radiosas e ferozmente brancas como espíritos, para quem acredite nessas coisas dos espíritos.
O céu ardente era reflexo de um braseiro inimaginavelmente quente e ávido mais abaixo. O lugar onde ela fora concebida e nascida, as Mãos da Misericórdia, devia estar a arder.
A chuva que penetrava nas árvores e se dissipava no relvado ensopado soltava vapor como se apagasse fogo, mas ali a noite não cheirava a fumo. O ar lavado parecia limpo e fresco, e a fragrância do jasmim
chegou até ela; naquele momento, pela primeira vez na sua breve mas preenchida existência, Erika sentiu-se completamente viva.
Voltou à biblioteca e sentou-se na banqueta diante da poltrona de Jocko.
- Amiguinho, percorreste a passagem secreta até àquela sala oculta e viste as trancas todas nas duas portas de aço.
- Jocko não vai lá voltar. Jocko já está farto de sítios pavorosos. Doravante só quer sítios agradáveis.
- Visté a sala oculta e o caixão de vidro, e o vulto informe que vive lá dentro.
Jocko estremeceu e bebeu um gole de uísque.
- Ouviste-o falar de dentro do caixão.
Tentando que a voz lhe soasse mais funda e rouca e ameaçadora, mas em vão, o troll citou:
- Tu és Erika Cinco, e és minha. - E continuou a falar para Erika na sua voz natural. - Há qualquer coisa na caixa de vidro que meteu medo
182
ao Jocko mil e quatrocentas vezes. Se Jocko tivesse órgãos genitais, teriam encolhido e caído, mas Jocko só pôde desmaiar.
- Não te esqueças, levei-te lá para poder pedir a tua opinião. Antes de ta pedir, devo salientar que quero saber o que tu sentes verdadeiramente. Verdadeira, verdadeiramente.
Claramente algo envergonhado mas capaz de encarar Erika sem vacilar, o troll respondeu:
- Verdadeira, verdadeiramente. Jocko já não precisa de fazer chichi, Jocko já não precisa de vomitar. Esse era o antigo. Adeus a esse Jocko.
- Muito bem. Quero a tua opinião sincera quanto a duas coisas. Não sabemos o que é o vulto informe mas, com base no que viste e ouviste, será a coisa dentro do caixão apenas outra coisa... ou será malévola?
- Malévola! - exclamou o troll de imediato. - Malévola, maligna, venenosa e potencialmente uma carga de trabalhos.
- Obrigada pela tua sinceridade.
- Não tens de quê.
- Agora segunda pergunta. - Erika inclinou-se para Jocko e prendeu-lhe o olhar com o seu. - Se a coisa dentro da caixa de vidro tiver sido feita por homem, concebida e animada por homem, crês que esse
homem é bom... ou mau?
- Mau - respondeu Jocko. - Mau, depravado, malvado, corrupto, vil, ruim, perverso, odioso, completamente desagradável.
Erika sustentou o olhar mais meio minuto. Depois levantou-se da banqueta.
- Temos de sair de Nova Orleães e ir para o viveiro de tanques mais a norte. Vais precisar de roupa.
A puxar a toalha de mesa de piquenique com que fizera um sari, Jocko disse:
- Esta é a única roupa que o Jocko jamais teve. Serve bem.
- Vais estar em público, pelo menos dentro do Mercedes.
- Põe Jocko no porta-bagagens.
- É uma carrinha, não tem porta-bagagens. Tenho de te arranjar roupa que te faça parecer mais um rapazinho normal.
O espanto fez outra máscara de susto na cara do troll.
- Que génio faria roupa assim?
- Não sei - admitiu Erika. - Mas tenho uma ideia. A Glenda. A encarregada do economato da propriedade. E ela quem compra tudo para a casa. Comida, papelaria, roupa de cama, fardas para o pessoal, decorações
para as festas...
183
- Ela compra sabonete? - perguntou Jocko.
- Sim, tudo, ela compra tudo.
Ele largou o copo de uísque vazio e bateu as palmas.
- Jocko gostaria de conhecer a senhora que compra sabonete.
- Não é boa ideia - disse Erika. - Ficas aqui, longe da vista. Eu falo com a Glenda e vejo o que ela poderá fazer.
O troll levantou-se da poltrona e disse:
- Jocko apetece-lhe fazer a roda ou o pino ou a pirueta. Seja o que for.
- Sabes o que poderias fazer? - perguntou Erika. - Poderias ver ali as estantes e escolher livros para levar.
- Vou ler para ti - lembrou-se ele.
- Isso mesmo. Escolhe histórias boas. Talvez vinte.
Quando o troll se aproximou da estante mais próxima, Erika despachou-se a ir procurar Glenda.
À porta do corredor, parou e olhou para Jocko.
- Sabes uma coisa...? Escolhe também quatro ou cinco livros que pareçam um pouco perigosos. E talvez... um que pareça mesmo, mesmo perigoso.
53.
O possante motor transmite vibrações a toda a carroçaria.
Os pneus no alcatrão provocam vibrações que também são transmitidas à viatura.
Mesmo nos estofos luxuosos do banco de trás, sentem-se levemente tais vibrações, especialmente quando já se tem sensibilidade a vibrações pelo tédio da animação semissuspensa, em que houve, durante
tanto tempo, tão pouco estímulo sensorial.
À semelhança das vibrações do motor do frigorífico na saca cheia de líquido, estas não são agradáveis nem desagradáveis para Camaleão.
Já não é atormentado pelo frio extremo.
Também já não é atormentado pelo seu estado impotente, pois já não está impotente. Está livre, livre finalmente, e é livre de matar.
Atualmente, Camaleão só é atormentado pela sua incapacidade para localizar um ALVO. Detetou os aromas de numerosos ISENTOS, e a maioria destes já estava morta.
O único ALVO situado no laboratório tornou-se, de súbito, em ISENTO, segundos antes que Camaleão o pudesse matar.
Frustrado, Camaleão não sabe explicar esta transformação. O programa embutido não contempla tal possibilidade.
Camaleão é adaptável. Quando o programa e a experiência genuína não contemplam algo, raciocina até compreender porque é que o programa se revela insuficiente.
Camaleão é capaz de desconfiança. No laboratório, continuou a manter sob vigilância aquele que se transformou. A cara do homem, conhecia-a do passado e do filme mas, devido à transformação, pensou no homem
como ENIGMA.
O ENIGMA afadigara-se no laboratório, afadigara-se de um lado para o outro. Houve algo na atividade frenética do ENIGMA que aumentou a desconfiança de Camaleão.
No corredor, o ENIGMA encontrou uma coisa diferente de qualquer criatura no extenso ficheiro de identificação de espécies incluído no seu programa de Camaleão. Essa coisa, grande e a mover-se erraticamente,
não parecia nada ISENTA, mas cheirava.
O ENIGMA fugira do edifício e, como Camaleão não sentira o aroma de ALVO algum, motivo algum para permanecer, seguira-o.
185
À saída do edifício, Camaleão detetou vestígios do aroma de um ALVO por baixo do aroma a isento do enigma.
Interessante.
Assim que entraram no automóvel e depois de andarem um pouco, o ENIGMA parecera menos agitado e, enquanto se acalmava, o aroma a ALVO desvanecera-se.
Agora só cheira a ISENTO.
O que significa aquilo?
Camaleão vai matutando nos acontecimentos.
No banco de trás, perfeitamente idêntico ao banco de trás, Camaleão aguarda desenvolvimentos. Prevê confiantemente que haverá desenvolvimentos. Há sempre.
54.
Erika ligou para Glenda, a encarregada do economato da propriedade, que se encontrava no dormitório, e mandou-a ir ter consigo de imediato à sala de almoço do pessoal. Ficava na ala sul no rés-do-chão
e podia-se lá entrar quer do corredor sul, quer por uma porta exterior.
Em poucos minutos, Glenda chegou à porta exterior. Deixou o chapéu de chuva na parte de fora, entrou na sala de almoço e perguntou:
- Sim, senhora Helios, em que posso servi-la?
Uma mulher robusta da Nova Raça com cabelo castanho cortado curto e sardas, vestida com jardineiras por ser dia de folga, parecia habituada a carregar pesos. Enquanto compradora exclusiva para a propriedade,
a função implicava não só percorrer lojas como também o trabalho braçal de carregar compras e abastecer despensas.
- Saí do tanque há pouco mais de um dia - disse Erika -, pelo que os dados que me foram carregados ainda não tiveram o complemento da experiência no mundo real. Preciso de comprar algo imediatamente, esta
noite, e espero que o seu conhecimento do mercado me seja útil!
- De que precisa, minha senhora?
Erika atreveu-se:
- Roupa de rapaz. Sapatos, peúgas, calças, camisas, roupa interior, parece-me. Um casaco leve. Um boné qualquer. O rapaz tem cerca de metro e vinte, pesa vinte ou vinte e cinco quilos. Ah, e tem uma cabeça
grande, bastante grande para rapaz, pelo que o boné deverá ser ajustável. Consegue arranjar-me estas coisas de imediato?
- Senhora Helios, posso perguntar...
- Não - interrompeu Erika não pode perguntar. Isto é algo que Victor precisa que eu lhe leve imediatamente. Eu nunca questiono Victor, por mais peculiar que a ordem pareça, e nunca questionarei. Preciso
de lhe dizer porque é que nunca questiono o meu marido?
- Não, senhora.
O pessoal só podia saber que as Erikas eram espancadas e não podiam desligar a dor.
- Calculei que compreendesse, Glenda. Estamos todas nas mesmas areias movediças, não estamos?, seja no economato, seja no matrimónio.
187
Constrangida com esta intimidade, Glenda disse:
- Não há lojas abertas a esta hora que vendam roupa de rapaz, mas...
-Sim?
O medo assomou aos olhos de Glenda e o rosto, anteriormente plácido, contorceu-se de preocupação. - Há muitas peças de roupa de rapaz e rapariga nesta casa.
- Nesta casa? Mas não há crianças.
A voz de Glenda era apenas um sussurro.
- Não pode contar.
- Contar o quê? A quem?
- Não pode contar... ao senhor Helios.
Erika jogou a cartada da mulher maltratada o mais que se atrevia:
- Glenda, eu sou espancada pelos meus defeitos mas também por qualquer razão que sirva ao meu... criador. Tenho a certeza de que seria espancada se lhe levasse más notícias. Todos os segredos estão seguros
comigo.
Glenda assentiu.
- Venha comigo.
No corredor sul do rés-do-chão também havia uma série de arrecadações. Uma das maiores era uma câmara de refrigeração com seis metros por cinco onde ficava uma dúzia de casacos de pele de alta qualidade
- arminho, marta, raposa do ártico... Victor não se compadecia do movimento antipeles, dado estar empenhado no, muito mais importante, movimento anti-humanos.
Além dos suportes com casacos, havia vários armários com roupa de toda a espécie que nem sequer caberia no enorme roupeiro de Erika na suíte principal. Ao ter uma série de esposas idênticas ao mais ínfimo
pormenor, Victor poupava-se à despesa de comprar guarda--roupa novo para cada uma. Porém, queria que a sua Erika estivesse sempre na moda ao mais alto estilo e não esperava que ela se contentasse com uma
coleção limitada.
De várias gavetas no canto oposto da sala, Glenda tirou nervosamente roupa de criança, peça atrás de peça, para rapazes e raparigas, de diversos tamanhos.
- De onde veio tudo isso? - perguntou Erika.
- Senhora Helios, se ele souber disto, destruirá a Cassandra. E isto é a única coisa que a faz feliz. Que nos faz feliz a todos... o arrojo dela, a sua vida secreta, dá-nos um pouco de esperança.
- Já sabe da minha posição quanto a dar más notícias.
188
Glenda escondeu o rosto num polo às riscas.
Por momentos, Erika achou que a mulher estaria a chorar, pois o polo tremia-lhe nas mãos, e os ombros sacudiam-se.
Antes pelo contrário, Glenda inalava fundo, como se procurasse o aroma do rapaz que usara a camisa e, quando levantou a cabeça, o seu rosto era a epítome da felicidade.
- Nas últimas cinco semanas, Cassandra tem saído da propriedade, à noite, para matar crianças da Velha Raça.
Cassandra, a lavadeira.
- Ah - fez Erika. - Compreendo.
- Ela não conseguia esperar mais tempo por que lhe dissessem que já podia começar a matança. Os restantes de nós... Admiramos muito a coragem dela, mas não a temos.
- E... os corpos?
- A Cassandra trá-los para cá para podermos partilhar a excitação. Depois os homens do lixo que levam outros corpos para a lixeira levam as crianças também, sem fazerem perguntas. Como a senhora disse:
estamos todos em areias movediças.
- Mas guardam a roupa.
- A senhora sabe como é o dormitório. Não há espaço nenhum. Não podemos guardar a roupa lá, mas também não aguentamos deitá--la fora. Há noites em que levamos alguma roupa connosco, para o dormitório,
e brincamos com ela. Ah, e é maravilhoso, senhora Helios, pensar nos miúdos mortos e ouvir a Cassandra contar como aconteceu a cada um. É a melhor coisa do mundo, a única coisa boa que jamais tivemos.
Erika soube que lhe devia estar a acontecer algo de profundo quando achou a história de Glenda perturbante, até sinistra, e quando hesitou quanto à ideia de vestir o coitado daquele troll tão doce com
a roupa de crianças assassinadas. Aliás, que ela lhes chamasse assassinadas, e não simplesmente mortas, só podia ser indicativo da revolução na sua maneira de pensar.
Sentia-se dividida por algo que se parecia com pena de Cassandra, Glenda e os outros elementos do pessoal, por um horror tranquilo quanto à ideia de Cassandra perseguir os mais indefesos da Velha Raça
e pela compaixão pelos assassinados, tendo ela sido programada para não sentir por eles mais do que inveja, raiva e ódio.
Os seus atos para com Jocko pisavam o risco que Victor estabelecera para ela, para todos eles, nas ditas areias movediças. O curioso
189
companheirismo que se formara rapidamente entre ela e o pequenito deveria ficar além do leque emocional dela. Mesmo com essa amizade crescente, ela reconhecia que tal poderia traduzir-se numa interrupção
de funções como a que William, o mordomo, sofrera.
Ela podia sentir compaixão, humildade e vergonha, e os outros não - mas apenas para que Victor pudesse excitar-se mais com a dor e a angústia dela. Victor não tencionava que os sentimentos mais delicados
das suas Erikas beneficiassem alguém para além dele, nem que algum tivesse ocasião de reagir às ternas atenções de sua mulher com sentimentos distintos do desprezo e da brutalidade com que ele reagia.
Erika ordenou a Glenda:
- Volte ao dormitório. Eu escolho o que preciso daqui e guardo o resto.
- E nunca lhe contará.
- Nunca lhe contarei - confirmou Erika.
Glenda começou a virar-se mas depois perguntou:
- A senhora, parece-lhe que, talvez...
- Talvez o quê, Glenda?
- Parece-lhe que talvez... o fim esteja para breve?
- Refere-se ao fim da Velha Raça, de uma vez por todas, a matança de todos?
A encarregada do economato perscrutou o olhar de Erika e depois virou o rosto para o teto, quando as lágrimas lhe marejaram os olhos. Numa voz densa de medo, respondeu:
- Tem de haver um fim, sabe, tem mesmo de haver um fim.
- Olhe para mim - mandou Erika.
Obediente como ditava a sua programação, Glenda fitou outra vez a sua senhora.
Com os dedos, Erika limpou as lágrimas do rosto da encarregada.
- Não tenha medo.
- Ou isso ou raiva. Estou esgotada de tanta raiva.
Erika afirmou:
- Aproxima-se um fim.
- A senhora sabe?
- Sei. Para breve.
- Como? Que fim?
- Na maioria dos casos, nem todos os fins são desejáveis, mas neste caso... qualquer fim serve. Não lhe parece?
A encarregada assentiu quase impercetivelmente.
190
- Posso contar aos outros?
- O facto de saberem ajudará?
- Ajudará de certeza, minha senhora. A vida sempre foi difícil, sabe, mas ultimamente é mais difícil.
- Então, por quem é, conte-lhes.
Parecia que a encarregada olhava Erika com o mais próximo de gratidão que podia sentir. Após um silêncio, disse:
- Não sei o que dizer.
- Nenhuma de nós sabe - concordou Erika. - Somos mesmo assim.
- Adeus, senhora Helios.
- Adeus, Glenda.
A encarregada do economato saiu da arrecadação e Erika fechou os olhos por momentos, incapaz de contemplar as muitas peças de roupa que juncavam o chão à sua volta.
Depois abriu os olhos e ajoelhou-se no meio da roupa.
Escolheu as peças que poderiam servir ao seu amigo.
A roupa dos executados não deixava de ser roupa e, se o Universo não fosse, como Victor dizia, um caos sem sentido, se fosse possível haver algo sagrado, decerto aqueles artigos humildes, usados por inocentes
mártires, eram sagrados e poderiam facultar ao seu amigo não só um disfarce mas também proteção a um nível superior.
55.
O Duque levou-os por uma larga encosta de terra, entre vastas fossas de lixo, pela lixeira fora, como se soubesse o caminho.
Com a lua e as estrelas sequestradas atrás de nuvens ominosas, a Crosswoods estava quase por completo na escuridão, embora ardessem pequenos fogachos naquele negrume remoto.
Carson e Michael seguiram o cão, na companhia de Nick Frigg e Gunny Alecto, os quais, com lanternas, apontavam buracos e sítios onde o chão pudesse dar de si traiçoeiramente, como se cada pormenor do terreno
estivesse gravado na memória de cada um deles.
- Eu sou Gama - disse Nick - ou era, e a Gunny aqui é ípsilon.
- Ou era - disse ela também. - Agora sou livre, renascida e já não odeio. Já não tenho medo.
- É como se tivéssemos vivido com bandas de ferro na cabeça e agora as tivessem cortado, e a pressão tivesse desaparecido - disse Nick.
Carson não sabia o que pensar destas declarações ao estilo cristãos--novos. Ainda esperava que um deles a atacasse, de súbito, com tanta boa vontade como uma serra elétrica.
- Sinal, sopa, semente, sebo, seca, seda, sega, seja, sela, sema, sena, sexo. Sexo! - Gunny riu-se, encantada, quando encontrou a palavra que queria. - Caraças, como será da próxima vez que a malta toda
da lixeira começar a fazer sexo, todos em cima uns dos outros, mas sem raiva, ninguém ao murro nem à dentada, só a fazerem as coisas melhores uns pelos outros. Deve ser interessante.
- Pois deve - anuiu Nick. - Interessante. Pronto, malta, aqui em cima vamos começar a descer uma rampa para a fossa ocidental. Estão a ver os archotes e as lamparinas a óleo ali à frente? É onde Deucalião
está à espera.
- Ele está à espera ao pé do buraco grande - disse Gunny.
Nick explicou:
- Vamos todos descer pelo buraco grande abaixo outra vez.
- Mas que noite - declarou Gunny.
- Que noite louca - corroborou Nick.
- Mas que noite, hein, Nick?
- Mas que noite - anuiu ele.
192
- Pelo buraco grande abaixo outra vez!
- É mesmo um grande buraco.
- E vamos descê-lo outra vez!
- Ai vamos de certezinha. O buraco grande.
- A mãe de todos os enganos!
- Digna de se ver.
- Tou toda excitada! - disse Gunny.
- Eu também 'tou todo excitado - disse Nick.
Gunny pôs a mão na braguilha de Nick e disse:
- Aposto que estás!
- Tu sabes que estou.
- Tu sabes que eu sei que estás.
- Ai sei, sei.
Carson achou que estava a menos de duas frases de, das duas uma: ou zarpava de volta ao carro, ou descarregava a Urban Sniper naqueles dois.
Michael salvou-lhe a sanidade ao quebrar o ritmo perguntando a Nick:
- Como é que vivem com este fedor?
- Como é que se vive sem ele? - contrapôs Nick.
Do topo da encosta, desceram pela terra até à fossa ocidental. O lixo crepitava e restolhava e estalejava debaixo dos pés deles, mas estava bem compactado e não se mexia muito.
Eram mais de uma dúzia com Deucalião, mas ele era uma cabeça mais alto do que o mais alto deles todos. Envergava o casacão preto, com o capuz para trás. A sua cara meio desfeita e tatuada, iluminada pelos
archotes, não era tão perturbante como poderia ser naquele cenário e naquelas circunstâncias. Aliás, tinha um ar de certeza calma e determinação inabalável que fizeram Carson lembrar-se do seu próprio
pai, que fora militar antes de passar a detetive. Deucalião projetava a competência e a integridade que motivavam homens a seguir um líder para o combate - e, aparentemente, era o que eles não tardariam
a fazer.
Michael disse-lhe:
- Olá, grandalhão, está aí como se isto fosse um jardim. Como é que tolera este fedor?
- Sinestesia controlada - explicou Deucalião. - Convenço-me a assimilar os maus odores como cores e não cheiros. Vejo-nos numa tela de arco-íris.
- Vou pensar que está no gozo comigo.
193
- Carson - disse Deucalião - há aqui alguém que a quer conhecer.
De trás de Deucalião saiu uma mulher belíssima num vestido manchado e incrustado de porcaria.
- Boa noite, detetive O'Connor.
Carson reconheceu a voz que ouvira pelo telefone e disse:
- Senhora Helios.
- Sim, Erika Quatro. Peço desculpa pelo estado do meu vestido. Fui assassinada há pouco mais de um dia e enterrada no lixo. O meu querido Victor não achou por bem mandar-me para aqui com uma embalagem
de toalhetes e uma muda de roupa.
56.
Depois de deixar a roupa de criança a Jocko na biblioteca, Erika foi à suíte principal, onde fez rapidamente uma única mala para si.
Não limpou o sangue no vestíbulo. Deveria ter embrulhado o cadáver de Christine numa manta e chamado os homens do lixo da Nova Raça que levavam corpos para a Crosswoods, mas não o fez.
Afinal, se fosse a uma janela e olhasse para noroeste, o céu estaria a arder. E o pior estava para vir. Talvez ainda importasse que as autoridades encontrassem uma governanta assassinada na mansão, talvez
não.
Fosse como fosse, se a descoberta do corpo de Christine se revelasse um problema para Victor, não dizia respeito a Erika. Desconfiava que nunca mais voltaria a ver aquela casa em Nova Orleães e que já
não seria mulher de Victor por muito mais tempo.
Meras horas antes, encarara com toda a compostura - se não mesmo com indiferença - episódios macabros como, por exemplo, um mordomo a arrancar os próprios dedos à dentada. Porém, agora a mera presença
de um Beta morto no quarto perturbava-a por motivos que ela compreendia e por outros que ainda não estava capaz de definir.
Pousou a mala aos pés da cama e escolheu bagagem mais pequena onde emalar tudo o que Victor queria do cofre.
A existência do cofre, grande como uma despensa, não fora revelada a Erika na instrução que recebera dentro do tanque. Só soubera disso minutos antes, quando Victor lhe dissera como encontrá-lo.
Num canto do seu imenso roupeiro, grande como a sala de jantar formal do andar de baixo, havia uma alcova com três espelhos do chão ao teto. Depois de Victor se vestir, costumava ir ali verificar a roupa
que envergara e avaliar se esta alcançava o efeito desejado.
De pé na alcova, Erika disse para o seu reflexo ao espelho:
- Doze vinte cinco é quatro um.
Um programa de reconhecimento de voz no computador da casa aceitou estas seis palavras enquanto primeira parte da combinação bifrásica para acesso ao cofre. O espelho central deslizou até ao teto e mostrou
uma porta de aço simples sem dobradiças nem maçaneta nem fechadura.
195
Depois disse:
- Dois catorze é dez trinta e um. - E ouviu trancas a correrem abrindo-se a porta com um silvo pneumático.
Além dos armários altos, o cofre tinha gavetas baixas, todas com as mesmas medidas: trinta centímetros de fundo, sessenta de largo. Cada uma das três paredes tinha doze gavetas, numeradas de 1 a 36.
Da Gaveta 5, Erika tirou dezasseis maços de notas de cem dólares e colocou-os numa pasta pequena. Cada maço tinha cinquenta mil dólares, para um total de oitocentos mil.
A Gaveta 12 exibia duzentos e cinquenta mil dólares em euros e ela esvaziou-a.
A Gaveta 24 revelou numerosas bolsinhas de veludo cinzento com atilhos em lacinhos bem-feitos. Dentro delas havia pedras preciosas, na sua maioria diamantes da mais elevada qualidade. Erika agarrou em
todas as bolsinhas e largou-as dentro da pasta.
Era indubitável que Victor tinha contas bancárias além-mar com quantias significativas, cujos titulares seriam cadeias complexas de empresas-fachadas e nomes falsos que nenhum cobrador de impostos poderia
relacionar com ele. Era lá que ele mantinha a maior parte da sua riqueza.
O que Erika recolhia ali, segundo as ordens de Victor, era dinheiro necessário a uma eventual fuga, caso não conseguisse conter a crise em marcha. Ao ouvi-lo ao telefone, Erika achara que ele deveria ter
usado certezas em vez de tempos verbais condicionais, mas não dissera nada.
Com a pasta, voltou à alcova espelhada, pôs-se de frente para a porta aberta do cofre e disse:
- Fechar e trancar.
A porta pneumática silvou ao fechar-se. As trancas correram. O espelho desceu para o seu lugar, e com ele o reflexo dela, como se lhe tivesse anteriormente levado a imagem para o teto.
Na garagem, Erika guardou a bagagem na parte de trás da carrinha Mercedes GL550.
Com um saco grande aonde levar os livros, Erika voltou à biblioteca. Na indumentária nova, Jocko parecia menos Huckleberry Finn do que uma tartaruga mutante de outro planeta, fora da carapaça e apenas
capaz de se fazer passar por humano se toda a gente à face da Terra fosse acometida de cegueira.
196
Embora as calças de ganga desbotadas não ficassem mal à frente, descaíam atrás porque o troll praticamente não tinha traseiro. Os braços pálidos e finos eram mais compridos do que os de um rapaz a sério,
pelo que a T-shirt de manga comprida ficava a três quartos.
Pela primeira vez, Erika reparou que Jocko tinha seis dedos em cada mão.
Ele ajustara a correia extensível na parte de trás do boné de basebol até ao máximo, de modo a ficar grande e a encaixar na sua cabeça, e ficara grande de mais. O boné passava a parte de cima das orelhas
retorcidas, e ele estava sempre a levantar a pala para poder ver alguma coisa.
- Não é um chapéu engraçado - disse ele.
- Não. Não consegui encontrar um aqui, e a loja dos chapéus engraçados só abre às nove da manhã.
- Talvez façam entregas mais cedo.
A guardar a seleção de livros que Jocko fizera no saco, Erika disse:
- Não fazem entregas como uma pizaria.
- Uma piza seria um chapéu mais engraçado do que este. Vamos pedir piza.
- Não te parece que usar uma piza na cabeça chamaria a atenção mais do que nos interessa?
- Não. E os sapatos não servem.
Mesmo depois de tirar os atacadores, ele não conseguira enfiar confortavelmente os pés largos nos ténis. E observou:
- Seja como for, Jocko anda muito melhor descalço, agarra melhor e, se quiser chupar os dedos dos pés, não é preciso descalçá-los primeiro.
Os dedos dos pés eram quase tão grandes quanto os das mãos e tinham cada um três nós nos dedos. Erika achou que ele deveria ser capaz de escalar como um macaco.
- Deves estar bem disfarçado se ficares dentro do carro - disse ela. - E se te baixares no assento. E se não olhares pela janela quando passar por nós outro carro. E se não acenares a ninguém.
- Jocko pode fazer-lhes um manguito?
Ela franziu o sobrolho.
- Porque haverias de querer fazer gestos obscenos a alguém?
- Nunca se sabe. Tipo, está uma noite linda, luar, estrelas por todo o lado e, de repente, uma mulher está a dar-te com uma vassoura e um homem a bater-te na cabeça com um balde vazio, a gritar, "Mas o
197
que é isto, o que é isto?" Tu corres mais depressa do que eles podem correr e queres gritar-lhes qualquer coisa mesmo esperta, mas não te lembras de esperteza nenhuma, mas podes sempre fazer-lhes um manguito.
Jocko pode fazer o sinal de OK?
- Acho que é melhor guardares as mãozinhas e apreciares a viagem.
- Jocko pode mostrar-lhes o polegar para cima? Ena, ena! Boa malha! Bem feito!
- Talvez da próxima vez que dermos um passeio. Esta noite, não.
- Jocko pode fazer-lhes o punho do povo ao poder?
- Não te sabia político. - O saco estava cheiinho de livros. - Vamos lá. Temos de sair daqui.
- Ah, espera. Jocko esqueceu-se. No quarto dele.
- Não há nada no teu quarto de que vás precisar.
- Volto num instantinho.
Jocko agarrou num dos atacadores dos ténis e, depois de o prender nos dentes, saiu da biblioteca às piruetas.
Quando o troll regressou minutos depois, trazia uma saca feita com uma fronha apertada com o atacador.
- O que é isso? - perguntou Erika.
- Coisas.
- Que coisas?
- Coisas do Jocko.
- Está bem. Está bem. Vamos embora.
Na garagem, dentro da GL550, Jocko perguntou:
- Queres que conduza?
57.
A avaliar pelo grau de entusiasmo e o cariz da conversa entre eles, Carson decidiu que a maioria, se não mesmo todos os que empunhavam archotes e lamparinas a óleo, eram Ipsílones, como Gunny Alecto, e
operários do aterro.
Além de Erika Quatro, havia mais cinco da Nova Raça, deixados como mortos na Crosswoods mas depois ressuscitados, que eram Alfas - quatro homens e uma mulher -, destruídos por Victor por vários motivos.
Eram o grupo que se intitulava Contentores.
Carson e Michael haviam ficado enervados quando um dos Contentores se revelara Bucky Guitreau, o procurador do estado. Não era aquele a quem tinham matado em Audubon Park, e não era o original e completamente
humano Bucky. Antes pelo contrário, era a primeira réplica destinada a substituir Bucky. Ele próprio fora substituído pela segunda réplica, aquela que Carson e Michael tinham matado, quando Victor decidira
que a número um não era um mimo suficientemente dotado para se safar com a imitação do procurador do estado.
Aparentemente, todos aqueles Alfas tinham regressado à vida há mais tempo do que a senhora Helios. Tinham encontrado água para se lavar e usavam roupa razoavelmente limpa, embora puída, que talvez tivessem
resgatado daqueles muitos hectares de detritos.
Embora ela fosse a mais recente a ter sido tirada do abismo do esquecimento, Erika Quatro fora nomeada porta-voz de si e dos outros cinco Alfas, talvez por ter sido esposa do torcionário de todos. Conhecia
bem Victor, a sua personalidade corrupta e o seu mau génio. Melhor do que ninguém, saberia identificar a fraqueza que teria mais probabilidade de o tornar vulnerável.
Deucalião destacava-se atrás de Erika e, enquanto ela atualizava Carson e Michael, os operários do aterro chegavam-se mais. Nada do que ela dizia seria novidade para eles mas, sendo da casta intelectualmente
inferior da Nova Raça, pareciam ficar facilmente encantados. Estavam absortos na narrativa, os rostos brilhantes à luz dos archotes, como crianças reunidas à volta da fogueira para a hora do conto.
- Os operários aqui sabem que está a acontecer algo estranho por debaixo dos campos de lixo - dizia Erika. - Já viram a superfície erguer--se e tornar a assentar, como se algo de dimensão considerável
andasse
199
a percorrer os domínios inferiores. Ouviram vozes assombradas vindas de baixo. Esta noite viram-no pela primeira vez e chamam-lhe a mãe de todos os enganos.
Ouviu-se um murmúrio entre os Ipsílones, exclamações sussurradas. Os rostos revelavam emoções que os da Nova Raça não deveriam poder sentir: felicidade, admiração e, talvez, esperança.
- Começou como experiência gorada, deixada aqui como morta, mas que não estava morta de facto - continuou Erika. - Um relâmpago que atingiu a lixeira devolveu-lhe a vida. Desde então, evoluiu até ser uma
criatura assombrosa, uma entidade de uma beleza indescritível e profundo sentido moral. Por vezes um Alfa, a quem Victor declare morto, poderá ainda albergar em si um filamento de vida incandescente durante
alguns dias após a suposta morte. Se for bem tratado, pode impedir-se que esse filamento feneça por completo, e pode-se encorajá--lo a ganhar radiância. Depois, essa força vital espalha-se pelo Alfa, devolve-lhe
a consciência e o funcionamento. Aquilo a que estes Ipsílones chamam mãe de todos os enganos nós chamamos Ressuscitador, pois, como foi reavivado pelo relâmpago, agora reaviva-nos partilhando connosco
a sua força vital intensamente radiante.
Os Ipsílones estavam tão juntos que os archotes e lamparinas rodeavam Carson com uma luz alaranjada iridescente e, naquela pequena parte do aterro, a noite estava brilhante como um céu de alvorada pintado
com o pincel exultante do sol.
- O Ressuscitador não só restaura o corpo, como também sara a mente - disse Erika Quatro. - Tira dos nossos programas todo o incentivo à inveja, ao ódio e à raiva, e elimina também as interdições de compaixão,
amor e esperança. Esta noite, revelou-se aos operários do aterro e livrou-os de todas as emoções programadas que os oprimiam, deu-lhes o leque completo de emoções que lhes havia sido negado.
Com a pele da nuca toda arrepiada, Carson recordou as palavras de Gunny Alecto: A mãe de todos os enganos falou dentro das nossas cabeças.
Michael partilhava das reservas dela.
- Sem ofensa mas, por mais belo que algo possa ser, fico apavorado por uma coisa que saiba entrar dentro da minha cabeça e mudar-me.
A claridade tremeluzente dos archotes, do lado massacrado do rosto de Deucalião, os reflexos das chamas davam vida falsa aos padrões tatuados, os quais pareciam fletir-se e rastejar pelas cavidades pavorosas
e planícies entrecortadas, pelas cicatrizes nodosas.
200
E ele disse:
- Está agora à nossa espera no túnel. Eu fui lá abaixo há pouco tempo e senti estar na presença de um ser que não tem o mais ínfimo resquício de malevolência no seu tecido. Irá projetar certos pensamentos
em vocês... Mas não entrará na vossa mente contra a vossa vontade.
- Tanto quanto você sabe - especificou Michael.
- Durante dois séculos tive de assistir a toda a forma de maldade humana - disse Deucalião. - E encaixado, como fui, com bocados de criminosos sociopatas, sobrecarregado com o cérebro do tipo de assassino
mais vil, tenho uma certa... sensibilidade quanto à presença do mal. Este Ser não tem mal algum.
Carson ouviu o S maiúsculo com que ele salientara a palavra e, embora a confiança dele a deixasse algo descansada, embora a inquietude dela não evoluísse para apreensão, tinha dúvidas quanto a descer ao
túnel a que ele se referia.
Erika Quatro disse:
- O Ressuscitador irá ajudar-nos a fazer a Victor a justiça que ele merece. Aliás, não creio que o possamos derrubar sem o auxílio desta entidade.
- Se ele fugir para cá esta noite ou de madrugada - disse Deucalião -como esperamos que faça assim que souber do incêndio nas Mãos da Misericórdia, teremos uma oportunidade que não podemos perder.
Por baixo da claridade dos archotes que se refletia nos seus olhos, pulsava a luz mais funda da tempestade por ele corporizada, como acontecia por vezes. Carson ficou a pensar se ele ouviria, dentro da
cabeça, o estalido do relâmpago que rasgara o céu, ou se recordaria o terror dos seus primeiros minutos de vida ímpia.
- Creio que o momento vem ao nosso encontro - disse Deucalião. - Vocês têm de conhecer o Ressuscitador para que estejamos prontos e à espera de Victor quando ele chegar.
Carson olhou para Michael, e ele disse:
- Então... Pelo buraco grande abaixo, mas que noite, que noite louca, 'tou todo excitado.
58.
Os pensamentos sombrios distraíam Victor da condução, e a estrada nacional deserta, a serpentear na escuridão solitária, só lhe aumentava a disposição soturna.
Antes sempre se sentira, quando os reveses o obrigavam a uma mudança de instalações - da Alemanha para a Argentina, para os antigos Sovietes, para a China e mais além -, furioso com os sócios que o tinham
deixado ficar mal e com a Natureza por guardar ciosamente os segredos da biologia molecular, e pela sua resistência obstinada à lâmina incisiva da inteligência singular dele, mas nunca perdera a esperança.
O projeto em Cuba, malogrado em pouco tempo, tão promissor, ficara arruinado por causa de um estúpido camponês, um gato raivoso, um lance d escadas traiçoeiro e um sabonete molhado deixado num dos degraus,
por motivos que não faziam sentido algum. Contudo, ele e Fidel continuavam amigos, e Victor perseverara noutro país, na certeza de um derradeiro triunfo.
As instalações interessantes na Coreia do Norte, com o generoso financiamento de um consórcio de governos visionários, deveriam ter sido o sítio onde ocorreriam finalmente os últimos avanços científicos.
Tinha à sua disposição um fornecimento infinito de órgãos corporais de presos políticos apiedados de si mesmos, os quais preferiam ser cortados vivos do que aguentarem mais refeições na prisão. Porém,
como poderia ele ter previsto que o ditador, um galaró gingão rodeado por um harém, acabaria por matar a tiro um clone de si mesmo, feito a alta velocidade e que Victor criara a seu pedido, quando o dito
clone ganhara uma paixão pelo seu perigoso homólogo e o beijara com toda a extravagância? Victor fugira do país com os testículos intactos porque ele e o ditador tinham um amigo em comum, uma das estrelas
de cinema mais admiradas no mundo inteiro, que mediara a paz entre eles. Não obstante, ele perseverara ainda e não sofrera um único dia de dúvida nem uma única hora de depressão.
A destruição total das Mãos da Misericórdia afetava-o mais negativamente do que qualquer revés anterior, em parte porque ele estivera muito mais perto de triunfar, com o domínio absoluto da carne, sua
criação e controlo, ao seu alcance.
202
Na verdade, não era o incêndio propriamente dito nem as perdas que lhe abalavam a confiança. A identidade do pirómano: isso é que o deixara tão em baixo. O regresso da sua primeira criação, a besta rude
e pesadona que deveria ter passado os últimos dois séculos congelada no gelo polar, parecia-lhe ainda menos possível do que o facto de um clone homossexual o ter arruinado mesmo à beira de um triunfo glorioso.
Apercebeu-se de que viajava a menos de trinta quilómetros por hora. Já acontecera duas vezes. De cada vez que acelerava, a cabeça começava a divagar e a velocidade decrescia outra vez.
Deucalião. Mas que nome pretensioso.
Deucalião na cozinha de Patrick Duchaine, a virar costas a Victor -e a desaparecer. Era meramente um truque, claro. Mas que truque.
Deucalião, a penetrar nas Mãos da Misericórdia sem ativar alarme algum.
Em poucos dias: Harker a dar à luz uma monstruosidade qualquer, William a arrancar os dedos à dentada, Christine confusa quanto à sua identidade, a catastrófica metamorfose celular de Werner, a aparente
incorporação de todos os efetivos das Mãos da Misericórdia na coisa--Werner, a libertação de Camaleão, Erika Quatro a destruir a experiência de controlo psíquico Karloff, agora Erika Quatro presumivelmente
regressada dos mortos, aqueles dois detetives a conseguirem escapar a Benny e Cindi Lovewell, dois assassinos soberbos... A lista de incidentes improváveis continuava.
Tudo significava alguma coisa.
Havia tanta coisa que podia correr mal espontaneamente.
Havia um padrão à espera de ser descoberto. Um padrão que poderia muito bem revelar uma conspiração. Uma cabala.
Ocasionalmente, Victor achava que poderia ter uma ligeira tendência para a paranóia mas, neste caso, sabia que as suas desconfianças eram fundadas.
Desta vez, o revés parecia-lhe diferente de todos os outros. Aquilo que o levara à beira da ruína desta vez não era apenas um sabonete num degrau, nem um clone enamorado. Uma sinfonia de problemas implicava
uma orquestra de inimigos e um maestro determinado.
Desta vez ele poderia ter de se preparar para o pior.
Tornou a ficar ciente de que, se o Mercedes perdesse mais velocidade, voltaria ao passo de caracol.
Mais à frente e à direita avistou a zona de descanso. Saiu da auto-estrada, travou e engatou a mudança para estacionar.
203
Antes de partir desarvorado para o viveiro de tanques, precisava de matutar naqueles acontecimentos recentes. Desconfiava que teria de tomar a maior decisão da sua vida.
Saíra da tempestade mas, quando olhou para os feixes evanescentes dos faróis, a chuva apanhou-o outra vez, e um vento gemebundo.
Embora os poderes de concentração de Victor fossem lendários entre todos os que haviam trabalhado com ele, deu consigo repetidamente distraído pela apreensão disparatada de que poderia não estar sozinho
dentro do carro. Estava sozinho, claro, não só no carro mas sozinho no mundo a um ponto que não precisava de contemplar naquele momento, com uma disposição já de si tão sombria.
59.Carson seguiu os Contentores e os operários do aterro até ao buraco grande na fossa ocidental a pensar em como tudo aquilo se parecia com uma procissão medieval. Os vastos confins da lixeira ficavam
na penumbra, como se a civilização estivesse a séculos de distância da era da eletricidade. A luz dos archotes, as lamparinas a óleo, a atmosfera de peregrinação religiosa que se fazia sentir no silêncio
súbito e reverente do grupo ao aproximar-se da entrada para a capela subterrânea do Ressuscitador...
Embora armados com duas armas de mão e as Urban Snipers, Carson sentia-se indefesa perante aquele desconhecido.
Chegaram a um túnel com cerca de duzentos metros de diâmetro que descia até às profundezas da fossa e que aparentemente fora aberto pelo Ser, a mãe de todos os enganos, para se apresentar a eles ao princípio
dessa mesma noite.
Antes de partirem, Carson perguntara a Nick Frigg qual a fundura do lixo empilhado. Ficou admirada por saber que estavam em cima de quase dez andares de porcaria. Considerando os hectares substanciais
dedicados à lixeira, o Ressuscitador poderia ter escavado quilómetros de corredores, e Frigg confirmara que eles tinham explorado uma rede complexa de passagens, apenas uma pequena parte da construção
dessa entidade.
Parecia que o lixo firmemente compactado que formava as paredes da passagem fora selado com um material transparente que tinha força suficiente para evitar o colapso. Havia correntes ondulantes e lampejos
dos archotes a brilhar na superfície luzidia.
Ela imaginou que o Ressuscitador segregara tal cola, o que parecia sugerir uma natureza parcialmente insetoide. Não conseguia aceitar facilmente que o atarefado arquiteto-toupeira daquele labirinto e o
compassivo Ser transcendente completamente despojado de malevolência fossem uma mesma entidade.
Quando entraram no túnel, Carson estava à espera de que o fedor do lixo se intensificasse e o ar ficasse opressivo e amargo. Porém, deveria ser o selante luzidio das paredes a conter o metano que, de outro
modo, os teria sufocado, e a brisa acompanhou-os. Carson não teve mais dificuldade em respirar ali do que à superfície, e o mau cheiro era menos ofensivo.
205
Quando olhou para Nick-nariz-de-cão, as narinas deste tremiam e dilatavam-se sem parar, e ele sorria de prazer. Para o seu apurado sentido do olfato, o caminho daquela romaria estava perfumado por um incenso
especial. O mesmo se passava para o Duque de Orleães.
A descida gradual do túnel levou-os talvez trezentos metros abaixo da superfície, depois de se afastarem trinta metros da entrada. Ali a passagem virava acentuadamente à esquerda e alargava-se numa galeria
espaçosa, antes de parecer curvar-se num ângulo mais pronunciado.
Nessa galeria estava o Ressuscitador à espera, inicialmente nos limites das luzes que eles levavam, meio invisível e misterioso.
A largura da câmara permitia que a procissão se abrisse em leque, com vista desimpedida para todos. Carson olhou para a esquerda, para a direita e viu que toda a gente, menos ela e Michael, parecia profundamente
afetada pela presença diante de si, não arrebatados mas certamente satisfeitos, em paz, muitos com sorrisos na cara, olhos brilhantes.
Quando ficaram lado a lado em fila, o Ser diante deles aproximou-se, as sombras a deslizarem para longe dele como se a luz o envolvesse em ouro tecido.
Para sua surpresa, Carson teve uma sensação de bem-estar e os maus pressentimentos a que se agarrara dissiparam-se rapidamente. Soube, com toda a certeza que poderia ter na vida, que estaria a salvo ali,
que o Ressuscitador era benévolo e paladino da causa deles.
Compreendeu que aquela entidade estava a difundir ondas psíquicas calmantes e reconfortantes. Nunca violaria a santidade dela entrando-lhe na cabeça, mas falava-lhe daquela maneira, como ela poderia falar
com ele por palavras.
Telepaticamente, sem parecer usar linguagem e, aparentemente, sem imagens - pois nenhuma lhe passara pela cabeça - o Ressuscitador inculcou nela um entendimento de como entrariam no viveiro de tanques,
como desarmariam a Nova Raça que lá trabalhava, como poderiam capturar Victor, como poderiam acabar com o seu reinado de loucura e terror.
Durante este processo, Carson foi-se apercebendo de que não poderia descrever o Ressuscitador em pormenores específicos. Tinha a sensação de contemplar uma coisa de tal beleza sobrenatural que os anjos
ficariam aquém, uma beleza humilde em cada um dos aspetos, mas majestosa no efeito global, a ponto de ela se sentir, mais do que
206
encantada, exaltada. Ali estava uma beleza em forma e em espírito, um espírito de intenções imaculadas e confiança íntegra que inspiravam Carson, cuja coragem, esperança e
determinação já eram consideráveis, a novas alturas. Era a sensação dela, sim, mas se lhe pedissem que descrevesse a forma que despertava tais emoções elevadas, ela não saberia dizer se tinha duas pernas
ou dez, uma cabeça ou cem, ou nada de nada.
Carson semicerrou os olhos, a tentar discernir contornos gerais, uma arquitetura biológica básica, mas o Ressuscitador revelava-se de uma radiância tão gloriosa que cintilava para além da capacidade dos
sentidos dela. A claridade do archote junto ao qual a entidade agora estava parecia ocultá-la em mistério, mais do que as sombras de onde primeiro saíra.
O pressentimento inicial de Carson tornou a surgir-lhe e evoluiu para um pavor. O coração começou a bater descompassado e ela ouviu--se arfar, arquejar, ficar sem fôlego. Depois num piscar de olhos, apenas
um piscar de olhos, viu o Ressuscitador como ele realmente era, uma blasfémia, uma ofensa horrenda à Natureza, uma abominação de que a mente se escudava numa defesa desesperada da sua sanidade.
Um piscar de olhos de verdade paralisante e depois novamente a radiância, a perceção da beleza além da capacidade mental de a compreender por completo, forma magnífica sem definição, virtude e retidão
feita carne, bondade personificada, amor materializado... O pavor de Carson desvaneceu-se numa maré de benevolência. O coração assentou num batimento descontraído, e ela recobrou o fôlego, e o sangue não
se lhe enregelou nas veias, os pelinhos da nuca não se arrepiaram, e ela soube que, fosse qual fosse a forma do Ressuscitador, ela estava a salvo, a salvo, e ele era paladino da causa deles.
60.
Jocko no automóvel grande. A conduzir, não. Lá chegaria. Só precisava da chave. E de uma almofada. E de paus para chegar aos pedais. E de um mapa fiável. E de sítio para onde ir.
Até lá, andar de carro era bom. Ser conduzido era bom.
- Primeira viagem de carro do Jocko - disse ele a Erika.
- Estás a gostar?
- Macio. Confortável. Melhor do que esgueirar-se à noite, com medo de vassouras e baldes.
A chuva batia no tejadilho. Os limpa-para-brisas atiravam a água para longe do vidro.
Jocko estava sequinho. A correr à chuva mas sequinho.
Naquela noite, o vento sacudia as árvores. Abanava-as com força. Quase com tanta força quanto o vagabundo bêbedo que abanara Jocko a berrar Sai do meu sonho, seu sinistroide, sai do meu sonho!
O vento varria o carro. Bufava e resmungava à janela.
Jocko sorriu para o vento.
Sabia bem sorrir. Não ficava bem. Ele sorrira para um espelho, uma vez, e sabia que não ficava nada bem, mas sabia bem de certezinha.
- Sabes uma coisa? - perguntou ele.
- O quê?
- Há quanto tempo é que Jocko não rodopia, nem faz piruetas nem rodas?
- Desde que estás aí sentado.
- Há quanto tempo foi isso?
- Mais de meia hora.
- Espantoso!
- E o teu recorde?
- Deve ser. Em cerca de vinte e sete minutos.
Talvez o facto de ter roupa vestida descontraísse Jocko. Ele gostava de calças. A maneira como tapavam o rabo liso e os joelhos que davam às pessoas vontade de rir.
Depois de o vadio bêbedo e louco ter parado de abanar Jocko, berrara, a cuspir-se todo, Mas que raio de joelhos são esses? Esses joelhos dão-me vontade de vomitar! Nunca vi joelhos que me dessem vontade
de vomitar. Seu sinistroide de joelhos anormais!
208
Depois o vadio vomitara. Só para provar que os joelhos de Jocko induziam mesmo ao vómito.
Erika era boa condutora. Concentrada na estrada. A olhar com atenção.
Ela estava a pensar na condução, mas também noutra coisa. Jocko sabia. Sabia-lhe ler o coração, um bocadinho.
Na sua primeira noite de vida, encontrara umas revistas. Numa lata de lixo. Lera-as numa viela. Debaixo de um candeeiro que cheirava a chichi de gato.
Um dos artigos intitulava-se "Você pode aprender a ler o coração dela."
Não era preciso cortá-la e abri-la para a poder ler, o que era um alívio. Jocko não gostava de sangue.
Bem, gostava dele dentro, onde era preciso. Não fora, onde o pudessem ver.
Seja como for, a revista dissera a Jocko como ler o coração dela. Portanto, agora sabia que havia alguma coisa a perturbar Erika.
Observava-a em segredo. Ia-lhe lançando olhares furtivos.
Aquelas narinas delicadas. Jocko desejava ter narinas assim. Não as narinas dela em particular. Não lhe queria tirar as narinas. Jocko só queria umas narinas como aquelas.
- Estás triste? - perguntou ele.
Admirada, ela olhou para ele. Depois voltou a focar a estrada.
- O mundo é tão lindo.
- Pois é. Perigoso mas bonito.
- Quem me dera integrar-me nele - disse ela.
- Bem, cá estamos.
- Estar e integrar-se são coisas diferentes.
- Como estar vivo e viver - disse Jocko.
Ela tornou a olhar para ele mas não replicou. Olhava para a estrada, a chuva, os limpa-para-brisas a funcionar.
Jocko esperava não ter dito nenhuma estupidez. Mas era Jocko. Jocko e a estupidez andavam juntos como... Jocko e a fealdade.
Passado algum tempo, ele perguntou:
- Há calças que nos façam mais espertos?
- Como é que as calças podem fazer alguém mais esperto?
- Bem, estas fizeram-me mais bonito.
- Ainda bem que gostas delas.
209
Erika tirou o pé do acelerador. Pisou o travão suavemente. Quando pararam no alcatrão, ela disse:
- Jocko, olha.
Ele inclinou-se para a frente no assento. Esticou a cabeça.
Havia veados a atravessarem a estrada, sem pressa alguma. Um macho, duas fêmeas, uma cria. Outros saíram dos bosques escuros à esquerda.
As árvores abanavam ao vento, a erva alta agitava-se.
Porém, os veados estavam tranquilos debaixo das árvores trémulas, na erva agitada, mexiam-se devagar mas com determinação. Quase parecia que flutuavam como figuras sem peso num sonho. Serenos.
As pernas eram tão compridas e esbeltas. Caminhavam como as bailarinas dançam, cada passo com a maior precisão. Graciosidade.
Pelagens castanhas douradas nas fêmeas. O macho era castanho. A cria tinha a cor das fêmeas mas com manchinhas brancas. As caudas pretas por cima, brancas por baixo.
Focinhos esguios, suaves. Olhos de cada lado da cabeça para visão panorâmica.
Cabeças erguidas, orelhas viradas ligeiramente para a frente, olhavam para o Mercedes, mas apenas uma vez, cada qual. Não tinham receio.
A cria ficou perto de uma das fêmeas. De novo fora da estrada, deixara de estar diretamente à frente dos faróis, saltitou em círculo à meia-luz, na erva molhada.
Jocko viu a cria saltitar na erva molhada.
Outro macho e outra fêmea. A chuva a cintilar nos chifres do macho.
Jocko e Erika observaram em silêncio. Não havia nada que pudessem dizer.
O céu negro, a chuva incessante, os bosques escuros, a erva, os muitos veados.
Não havia nada que pudessem dizer.
Quando os veados se foram, Erika continuou rumo a norte.assado algum tempo, ela disse baixinho:
- Estar e integrar-se.
Jocko sabia que ela se referia aos veados.
- Talvez estar seja suficiente, é tudo tão lindo - disse Jocko.
Embora ela tivesse olhado para ele, ele não olhou para ela. Não
suportava vê-la triste.
210
- Seja como for - disse ele -, se alguém não se integrar no mundo, não há porta por onde o possam despejar. Não lhe podem tirar o mundo e pô-lo num sítio diferente. A pior coisa que podem fazer é matá-lo.
Mais nada.
Após outro silêncio, ela disse:
- Amiguinho, estás sempre a surpreender-me.
Jocko encolheu os ombros.
- Li umas revistas uma vez.
61.
Victor estava a ter uma noite tenebrosa na sua alma, mas também estava dentro de um Mercedes S600, porventura o melhor automóvel do mundo. O fato que trajava custara mais de seis mil dólares, o relógio
de pulso, mais de cem mil. Ele vivera 240 anos, a maioria do tempo em grande estilo, e tivera mais aventura, mais emoção, mais poder e mais triunfos de natureza portentosa do que qualquer outro homem na
História. Ponderando na sua situação e na possibilidade de poder morrer em breve, descobriu, enquanto estacionava na zona de descanso, que tomar a decisão necessária era mais fácil do que ele esperava.
Não tinha alternativa além de tomar a medida mais radical que podia porque, se morresse, a perda para o mundo seria devastadora.
Ele era genial de mais para morrer.
Sem ele, o futuro seria sombrio. Qualquer hipótese de impor a ordem a um Universo sem sentido morreria com ele, e o caos governaria eternamente.
Usou o telefone do carro ativado pela voz para ligar ao dormitório do pessoal na propriedade do Garden District.
Atendeu uma Beta chamada Ethel, e Victor disse-lhe que chamasse James ao telefone imediatamente. James fora o terceiro na hierarquia do pessoal, depois de William e Christine, ambos mortos. Seria ele o
mordomo seguinte. Se Victor não andasse tão aflito com os acontecimentos das últimas vinte e quatro horas, teria nomeado James para o cargo no dia anterior.
Quando James chegou ao telefone, Victor honrou-o com a notícia da sua promoção e deu-lhe a primeira tarefa de mordomo.
- Não se esqueça, James, siga as instruções que acabei de lhe dar ao pé da letra. Espero perfeição absoluta em tudo o que um mordomo faz, mas sobretudo neste caso.
Depois de deixar o chapéu de chuva no terraço e de limpar cuidadosamente os sapatos molhados com um pano que levara para o efeito, James entrou pelo rés-do-chão da casa, pela porta das traseiras ao fundo
do corredor norte.
212
Levava o misterioso objeto com que andara obcecado nas últimas duas horas: uma bola de cristal.
Depois de passar diretamente à biblioteca, segundo as instruções do senhor Helios, James colocou a esfera cintilante com todo o cuidado no assento de uma poltrona.
- Estás contente aqui? - perguntou ele.
A esfera não respondeu.
A franzir o sobrolho, James passou-a para outra poltrona.
- Melhor - disse a esfera.
Quando a bola de cristal falara com ele da primeira vez, duas horas antes, James estivera entretido com as suas coisas, sentado à mesa da cozinha no dormitório, a dar facadas na mão com um cutelo e a vê-la
sarar repetidamente. O facto de sarar tão depressa e tão bem dava-lhe razões para crer que iria ficar bem, embora, durante grande parte do dia, se sentisse muito mal.
A primeira coisa que a esfera lhe disse foi:
- Eu sei o caminho da felicidade.
Claro que James exprimiu logo a vontade de saber o caminho.
Desde então, a bola de cristal dissera muitas coisas, a maioria das quais imperscrutáveis.
Agora dizia:
- Salgado ou não salgado, fatiado ou aos cubos, a escolha é tua.
- Podemos voltar à felicidade? - pediu James.
- Usa faca e... - disse a esfera.
- E o quê? - perguntou James.
- Garfo.
- E o que queres que faça com faca e garfo?
- Se descascado.
- Não dizes coisa com coisa - disse James acusadoramente.
- Uma colher - disse a esfera.
- Agora é uma colher?
- Se cortada em metade e descascada.
- Qual é o caminho para a felicidade? - rogou James, pois tinha receio de exigir resposta e ofender a esfera.
- Comprido, estreito, sinuoso, escuro - respondeu a esfera. - Para os da tua laia, o caminho para a felicidade é um grandessíssimo malandro de um caminho.
- Mas posso lá chegar, não posso? Mesmo alguém como eu?
- Queres mesmo felicidade? - perguntou a esfera.
213
- Desesperadamente. Não tem de ser para sempre. Apenas algum tempo.
- A tua outra escolha é a insânia.
- Felicidade. Prefiro a felicidade.
- O iogurte vai bem nisso. O gelado vai bem nisso.
- Vai bem no quê?
A esfera não respondeu.
- Estou em muito mau estado - suplicou James.
Silêncio.
Frustrado, James disse:
- Espera aqui. Volto já. Tenho que fazer um recado ao senhor Helios.
Encontrou o interruptor oculto, uma parte da estante girou nos
gonzos e a passagem secreta revelou-se.
James olhou para a esfera no assento da poltrona. Por vezes não parecia uma bola de cristal. Por vezes parecia uma meloa. Era uma dessas vezes.
A esfera era uma bola de cristal somente quando havia magia lá dentro. James receava que a magia saísse e nunca mais voltasse.
Na passagem secreta, chegou à primeira porta e correu as cinco trancas de aço, como lhe tinham mandado.
Quando abriu a porta, viu o corredor que o senhor Helios descrevera: varas de cobre à esquerda, varas de aço à direita. Um zumbido baixo e ominoso.
Em vez de avançar, James correu para o princípio da passagem, carregou no botão para abrir a porta da estante daquele lado e chegou à esfera.
- Qual é o caminho para a felicidade? - perguntou.
- Há quem ponha um bocadinho de limão - disse a bola de cristal.
- Limão em quê?
- Sabes qual é o teu problema?
- Qual é o meu problema?
- Odeias-te a ti mesmo.
James nada tinha a dizer àquilo.
Voltou à passagem secreta mas, desta vez, levou a bola de cristal consigo.
Victor mandara James ligar-lhe quando terminasse a tarefa. Ia olhando para o relógio de pulso e para o relógio do tabliê do seu magnífico
214
automóvel e pensava que o novo mordomo estava a demorar muito tempo. Era indubitável que, maravilhado pela promoção e pela certeza de que falaria mais vezes com o seu criador, James abordava a tarefa com
cuidados excessivos.
Enquanto esperava pela chamada do mordomo, sentiu novamente a convicção de não estar sozinho dentro do Mercedes. Desta vez, virou-se para ver o banco de trás, sabendo muito bem que não havia lá ninguém.
Ele sabia a causa da sua inquietude. Enquanto James não concluísse a tarefa que ele lhe dera, Victor permanecia mortal, e o mundo poderia ver-lhe sonegado um futuro radioso que só ele poderia criar. Assim
que o mordomo comunicasse a conclusão do trabalho, Victor avançaria para o viveiro, enfrentaria a ameaça que lá houvesse e estaria confiante de que o futuro ainda seria seu.
62.
Camaleão desconfia de um logro.
Mais uma vez, o ENIGMA cheira a ISENTO e a alvo. O cheiro de um ISENTO é, de longe, mais forte do que o de um alvo, mas o segundo cheiro está decididamente presente.
O automóvel está parado há algum tempo. Contudo, o enigma não sai. Está sentado em silêncio ao volante.
Passado algum tempo, o ENIGMA faz um telefonema. Camaleão ouve mas não deteta nada incriminatório.
No entanto, o enigma fala de portas ocultas e passagens, uma sala escondida. Tal sugere, mas não prova, comportamento ínvio.
Camaleão parte do princípio de que os ISENTOS são incapazes de comportamentos ínvios, mas o seu programa não é claro quanto a essa questão.
É-lhe permitido agir com base em ilações, mas devem ser ilações de Classe A, as quais, numa rigorosa aplicação da lógica, devem obedecer a, pelo menos, quatro ou cinco provas. Esta ilação é de Classe C.
Camaleão é capaz de ter paciência. Passou muito tempo entre matanças.
Recorda-se claramente de três mortes. Ocorreram durante a fase de testes.
O prazer é intenso. A palavra que Camaleão conhece para o prazer que advém da matança é orgasmo.
Todo o corpo começa aos espasmos. No orgasmo, está em completa sintonia com o seu corpo, mais do que nunca - mas, estranhamente, em simultâneo parece que sai do próprio corpo e, por um ou dois minutos,
esquece-se de si, esquece-se de tudo, é apenas prazer.
Após o telefonema, o ENIGMA continua sentado em silêncio.
Camaleão passou muito tempo ao frio. Muito tempo na saca de tecido polimérico que o encarcerava.
Agora está quente.
Debaixo do cheiro agradável, o cheiro enfurecedor.
Camaleão quer um orgasmo. Camaleão quer um orgasmo. Camaleão quer um orgasmo.
63.
Por baixo da lixeira, Carson, Michael e Deucalião seguem os operários do aterro e os Alfas ressuscitados pela passagem que se abriu da galeria principal. Esta leva-os para fora do aterro e para baixo do
viveiro de tanques ali ao lado.
A frente deles, a claridade dos archotes acendia fogos simulados nas curvas cintilantes do túnel. Como iam no final da procissão, havia uma obscuridade espessa atrás deles.
O Ressuscitador estava mais à frente. Talvez já tivesse entrado no edifício principal do viveiro de tanques.
Carson não ligava à escuridão atrás de si. Ali, na coelheira do seu cúmplice monstruosamente estranho, estavam mais seguros do que há muito tempo.
- Aquilo que faz telepaticamente - explicou Deucalião - é projetar a sua natureza interior para nos poder ocultar a sua aparência física, porque seria impossível, à maioria das pessoas, vê-lo e acreditar
que é benigno.
A semelhança de Carson, Deucalião e Michael tinham desconfiado da imagem projetada telepaticamente e tinham tido a força de vontade de espreitar além do véu radioso do Ressuscitador e de ver a verdade
da sua forma. Deucalião vira-a duas vezes, uma vez durante, talvez, meio minuto.
Michael tivera apenas o mais ínfimo vislumbre do que Carson vira. Apesar da sua tendência para o cinismo, estava convencido de que a criatura era de confiança, que era aliada deles.
- Se não fosse, poderia ter-nos matado lá atrás, grande e poderosa como é.
- Nenhum dos operários do aterro viu além do disfarce, nem sequer desconfiam que haja um - disse Deucalião. - Duvido que os Alfas, Erika Quatro e os outros desconfiem de alguma coisa. Eles e o Ressuscitador
são da mesma carne que Victor criou para a Nova Raça, e talvez isso os torne mais suscetíveis do que nós à dissimulação.
- Eu estava bastante suscetível - disse Michael. - Senti-me na antecâmara do Céu, a ser motivado por um arcanjo enquanto esperava julgamento.
217
- Porquê fazer uma coisa que tem aquele... aspeto? - inquiriu Carson.
Deucalião abanou a cabeça.
- Não era ideia de Victor que ele tivesse aquele aspeto. Fisiologicamente, é um falhanço. Na sua cabeça, nas suas intenções, é um acerto.
O túnel deixara de passar por lixo compactado. Abruptamente, as paredes passaram a ser de terra, cobertas com o material luzidio que selava o lixo na passagem principal.
O Ressuscitador era um cavador de mestria considerável.
- Ele virá mesmo cá? - inquiriu Carson.
- Virá - garantiu Deucalião.
- Mas Erika Quatro diz que lhe telefonou duas vezes. Ele sabe que ela está aqui algures, reanimada. Ele sabe que deve estar a acontecer algo sem precedentes.
Quando Deucalião olhou para ela, a luz da tempestade velha de séculos latejou nos olhos dele.
- Não obstante, ele virá. Investiu demasiado no viveiro de tanques, tem uma colheita a nascer em menos de vinte e quatro horas. Sem as Mãos da Misericórdia, esta é a sua melhor aposta. Ele é arrogante
e loucamente seguro de si. Nunca se esqueça do orgulho que o impele. Em toda a História, talvez tenha havido apenas outro cujo orgulho suplantasse o de Victor.
Talvez fosse a maré de cafeína que percorria Carson a criar novos sintomas, ou talvez fosse a falta de sono que lhe amodorrava a mente, apesar das mistelas de cola NoDoz. Fosse qual fosse a causa, Carson
começou a sentir nova ansiedade. Ela não era vidente, não era uma cigana com um olho no futuro, mas uma intuição aguçada alertava-a para o facto de que, mesmo que Victor morresse nas próximas horas, o
mundo que ele queria fazer era um mundo com que outros sonhavam também, um mundo em que a excecionalidade humana era negada, em que as massas eram zângãos arregimentados que serviam uma elite de intocáveis,
em que a carne era barata. Mesmo que Victor fosse castigado e acabasse numa campa de lixo, Carson e Michael iriam fazer uma vida num mundo cada vez mais hostil à liberdade, à dignidade humana, ao amor.
Quando chegaram ao buraco que fora escavado no cimento e na cave do edifício principal do viveiro de tanques, Deucalião disse:
- A primeira vez que vi o Ressuscitador, antes de vocês os dois chegarem, ele disse-me, aliás, incutiu-me, daquela maneira sem palavras
218
que ele tem de nos dizer coisas, que espera morrer esta noite, aqui ou no aterro.
Michael exalou num silvo.
- Isso não parece vitória para o nosso lado.
- Ou - disse Deucalião - a criatura poderá saber que, na vitória, terá de haver sacrifício.
64.
O laser azul varreu James, aprovou-o e desligou a função de segurança que o teria queimado se ele fosse um intruso.
Com a bola de cristal na mão, James passou à segunda porta de aço. Pôs a esfera no chão enquanto corria as cinco trancas.
- Experimenta prosciutto - disse a esfera de cristal.
- Isso é presunto.
- Vai bem com.
- Com o quê?
- Eu sei o caminho para a felicidade - disse a esfera.
Com a voz presa de frustração, James disse:
- Então conta-me.
- Fino como papel.
- O que quer isso dizer?
- Serve fino como papel.
A pesada porta abriu-se. James estava proibido de entrar na sala de estar vitoriana sem janelas. A saída, tinha de deixar as portas de aço abertas e o acesso desimpedido.
E continuava a ser obediente, mesmo naquele estado de agitação. Fosse como fosse, aquela sala não lhe interessava. Com a felicidade ao alcance da mão, não lhe interessava.
A esfera de cristal nada disse a caminho da biblioteca.
Da secretária na biblioteca, James ligou ao senhor Helios e comunicou que a tarefa fora conduzida precisamente segundo as instruções recebidas. Assim que James desligou o telefone, a esfera disse:
- Tu não foste feito para a felicidade.
- Mas se sabes o caminho...
- Eu sei o caminho para a feliciddade.
- Mas não me dizes?
- Também fica bem com queijo - disse a esfera.
- Então eu não sou digno de feliciddade. E isso?
- Tu és apenas uma máquina de carne.
- Sou uma pessoa - insistiu James.
- Máquina de carne. Máquina de carne.
Furioso, James atirou a bola de cristal ao chão, onde esta se estilhaçou, espalhando uma massa de sementes amarelas pegajosas e revelando a sua carne cor de laranja.
220
Ficou a olhar para ela um bocado, sem compreender.
Quando desviou o olhar, viu que alguém deixara um livro em cima da secretária: História do Troll na Literatura. James pegou nele com intenção de o arrumar no devido lugar na estante.
O livro disse:
- Eu sei o caminho para a felicidade.
Com renovada esperança e excitação, James disse:
- Diz-me, por favor.
- Tu mereces felicidade?
- Creio que mereço. Porque não haveria de merecer?
- Pode haver razões.
- Toda a gente merece felicidade.
- Nem toda a gente - disse o livro - mas vamos conversar.
65.
Enquanto a carrinha GL550 acelerava para norte à chuva, Jocko ansiava por mais veados. Enquanto ansiava, refletia numas coisas.
Por vezes, Jocko refletia em questões grandes. Geralmente em segmentos de dois minutos. Entre atividades.
Questões grandes como, por exemplo, porque é que algumas coisas eram feias e outras não. Talvez se fosse tudo bonito, não houvesse nada bonito.
As pessoas viam uma coisa e deslumbravam-se com ela. Viam outra coisa e batiam-lhe com paus e pedras.
Talvez tivesse de haver variedade para que a vida funcionasse. Deslumbrar-se com tudo, e seria entediante. Bater em tudo com paus e pedras, entediante.
Pessoalmente, Jocko ficaria contente a deslumbrar-se com tudo.
Jocko por vezes perguntava-se porque é que não tinha órgãos genitais.
Jocko só tinha uma coisa engraçada com que fazia chichi. Não eram órgãos genitais. Ele chamava-lhe trombinha.
Felizmente, enrolava-se. Dobrava-se. Quando não estava a ser usada.
Se não a pudesse esconder, os vadios bêbedos loucos também vomitariam por causa dela.
Havia uma coisa em que Jocko tentava não pensar. No facto de ser o único. De só haver um como ele. Era demasiado triste pensar nisso.
Mas Jocko pensava nisso. Jocko não conseguia desligar a cabeça. Ela girava e saltitava como Jocko.
Talvez fosse por isso que não tinha órgãos genitais. Não precisava. Sendo único, não precisava.
Em todas estas reflexões, Jocko observava Erika dissimuladamente.
- Tu pensas em questões grandes? - perguntou Jocko.
- Por exemplo?
- Por exemplo... coisas que não tens.
Ela ficou calada tanto tempo. Jocko achou que estragara tudo outra vez.
Depois ela disse:
- Por vezes penso como seria ter mãe.
Jocko deixou-se cair no assento.
222
- Jocko pede desculpa. Desculpa ter perguntado. É muito difícil. Não penses nisso.
- E como será ser mãe? Nunca saberei.
- Porquê nunca?
- Por causa da maneira como fui feita. Feita para ser usada. Não para ser amada.
- Serias uma ótima mãe - disse Jocko.
Ela nada disse. Olhos na estrada. Chuva na estrada, chuva nos olhos dela.
- Serias - insistiu ele. - Tomas conta do Jocko mesmo bem.
Ela quase se riu. E quase soluçou também.
Mas que bem. Jocko fala. As pessoas choram.
- Tu és um doce - disse ela.
Talvez as coisas não fossem tão más quanto pareciam.
Erika abrandou e perguntou:
- Aquele não é o carro do Victor?
Ou talvez as coisas fossem piores do que pareciam.
Jocko endireitou-se no assento e perguntou:
- Onde?
- Naquela zona de descanso à direita. Sim, é ele.
- Continua.
- Não o quero atrás de nós. Temos de lá chegar separados dele, se não não te consigo lá meter.
Erika entrou na zona de descanso. Parou atrás do automóvel de Victor.
- Fica aqui, fica abaixado.
- Vais sair? Está a chover.
- Não queremos que ele venha ter connosco, pois não? - E abriu a porta.
Depois de receber a confirmação de que James fizera o que lhe mandara, Victor tirou uns minutos para pensar como entraria no viveiro de tanques.
Alguns dos da Nova Raça que viviam e trabalhavam no viveiro poderiam estar a avariar-se de uma maneira ou de outra. Ele teria de ser cauteloso, mas recusava-se a ficar assustado. Eram criações dele, produtos
da sua genialidade, inferiores a ele de todas as maneiras imagináveis e não lhe poderiam meter mais medo do que um dos
223
concertos de Mozart teria metido ao compositor, do que um quadro de Rembrandt teria metido ao seu pintor se este desatasse aos gritos no meio da noite. Submeter-se-iam a ele ou ouviriam a frase mortal.
Victor não previa hipóteses de algo como a abominação-Werner o esperar no viveiro. Werner fora uma singularidade. E aonde estava agora? Vaporizado como tudo o resto nas Mãos da Misericórdia.
Não havia rebelião contra Victor que pudesse triunfar, não só devido ao seu poder ser aquele dos deuses míticos, mas também porque o mais inteligente dos Alfas era um idiota comparado com o seu criador,
aquele por quem os séculos não passavam.
Erika Quatro, Alfa, não seria adversária para ele. Ele matara-a uma vez, apenas com uma gravata de seda e a força das suas mãos, e poderia matá-la outra vez se a cabra tivesse de facto sido reanimada.
Alfa, mulher e esposa - era três vezes inferior a ele. Ele deleitar-se-ia com a oportunidade de a castigar pela impudência daquelas duas chamadas. Se ela achava ter sido tratada com crueldade na sua primeira
vida, na segunda ele ensinar-lhe-ia o que era realmente a crueldade.
Não tinha receio de ir ao viveiro de tanques. Ardia de vontade de lá ir e de governar o seu novo reino com uma disciplina feroz que não permitiria repetições das Mãos da Misericórdia.
Quando estendeu a mão para o travão, apareceu um veículo na autoestrada, vindo de sul. Em vez de passar, parara atrás dele, inundando de luz o interior do automóvel.
Os espelhos dele mostravam poucos pormenores, pelo que ele se virou no banco a fim de olhar pela janela traseira. Erika Cinco estava ao volante da carrinha GL550, a qual ele lhe mandara levar para o viveiro.
A olhar para ela, furioso com ela por se parecer com a impudente e insultuosa Erika Quatro, Victor não viu nada no banco de trás, mas ouviu algo mexer-se. Nesse instante, soube porque sentira não estar
sozinho: Camaleão!
As feromonas da Nova Raça com que ele se aspergira dariam horas de proteção. Só que... Em momentos de esforço, quando se começa a suar, em momentos de raiva ou medo, o verdadeiro cheiro dele amadureceria
e poderia ser detetado por debaixo do disfarce da Nova Raça.
Victor escancarou a porta do carro e saiu, mergulhou na noite. Na chuva. A bátega atenuaria o cheiro das suas próprias feromonas, mas lavaria ainda com maior eficácia o odor da Nova Raça, que fora pulverizado
apenas no fato dele.
224
Deveria ter batido com a porta, tê-la trancado remotamente, abandonado o automóvel e ido para o viveiro com Erika. Porém, já não se atrevia a chegar à porta do condutor aberta, porque Camaleão poderia
já ter passado para o banco da frente.
Pior, poderia já ter saído do carro, poderia já estar a rodeá-lo ali no passeio da zona de descanso. A dança incessante das gotas de chuva no alcatrão ocultaria inteiramente a ondulação reveladora de Camaleão
em movimento.
Inexplicavelmente, parecia que Erika saíra do carro um instante antes de ele sair do seu. Ao lado dele, sentindo problemas, ela perguntou:
- Victor? O que se passa?
Erika dissera a Jocko, fica abaixado.
Dissera-o como uma mãe a ralhar. Ela seria uma ótima mãe. Mas não era mãe de Jocko. Ninguém era.
Jocko levantou a cabeça. Viu Erika e Victor juntos. Instantaneamente ensopados pela chuva.
Mais interessante era o bicho. O maior bicho que Jocko já vira. Metade do tamanho de Jocko.
Não parecia apetitoso. Parecia amargo.
No cano de esgoto, os bichos aproximavam-se de Jocko. Eram fáceis de apanhar. Os bichos não sabiam que os seus grandes olhos amarelos os podiam ver no escuro.
Havia algo de errado com aquele bicho. Além de ser tão grande.
De súbito, Jocko percebeu. A maneira como se esgueirava. A maneira como começava a levantar-se. Aquele bicho queria matar.
Fronha de almofada. No chão. A frente do banco. Desatar o nó do atacador. Lá dentro - sabonete, sabonete, sabonete. A faca.
Rápido, rápido, rápido, Jocko à chuva. A saltitar na direção de Erika e Victor. Não faças piruetas.
66.
O bicho não queria morrer.
Jocko também não. Estava tudo a correr tão bem. Sabonete. A primeira viagem de automóvel. Alguém com quem conversar. O seu primeiro par de calças. Ninguém lhe batia há horas. Não tardava a ter um chapéu
engraçado. Portanto, claro que aparece um bicho assassino gigante. Que sorte a do Jocko.
Duas garras para rasgar. Uma para esmagar. Seis pinças. Espigão. Língua serrilhada. Dentes. Dentes atrás dos primeiros dentes. Tudo menos um buraco lança-chamas. Ah, lá estava. Um bicho nascido para ser
mau.
Jocko caiu sobre ele com os dois joelhos. Esfaqueou, cortou, rasgou, arrancou. Pegou no bicho, atirou-o ao chão. Atirou-o outra vez. Atirou-o. Mais facadas. Feroz. Implacável. Jocko assustava-se a si mesmo.
O bicho tremeu. Tentou escapulir-se, mas não se debateu, e morreu.
Perplexo com o pacifismo do bicho, Jocko pôs-se de pé. Talvez só de ver Jocko tivesse ficado paralisado de terror. Jocko ficou à chuva inclemente. Sem fôlego. Tonto.
A chuva a bater-lhe na careca.
Perdera o boné de basebol. Ah. Estava em cima dele.
Erika e Victor pareciam ter perdido a fala.
Ofegante, Jocko disse:
- Bicho.
Erika disse:
- Não o vi. Só depois de morto.
Jocko triunfante. Heroico. Chegara a vez dele. A vez dele finalmente. De brilhar.
Os olhos de Victor eram como verrumas.
- Tu conseguias vê-lo?
A fita do boné estava metida nos dedos dos pés de Jocko.
Arquejante, Jocko disse para Erika:
-Ele... ia... matar-te.
Victor discordou:
- Estava programado para poupar quem cheirasse a carne da Nova Raça. De nós três, só me teria matado a mim.
Jocko salvara Victor de morte certa.
226
Victor disse:
- Tu és da minha carne, mas não te conheço.
Estúpido, estúpido, estúpido. Jocko só queria deitar-se à frente de um dos carros e atropelar-se.
- O que és tu? - inquiriu Victor.
Jocko só lhe apetecia bater em si próprio com um balde.
- Quem és tu? - insistiu Victor.
A tentar tirar o boné do pé, a arfar, Jocko disse sem a veemência desejada:
- Sou... filho... de Jonathan Harker. - Ergueu a faca. A lâmina partira-se no bicho. - Ele morreu... para me dar à luz...
- Tu és o segundo "eu" parasita que se desenvolveu espontaneamente na carne de Harker.
- Sou... malabarista...
- Malabarista?
- Esquece - disse Jocko. Largou o cabo da faca. Deu um pontapé furiosamente. Tirou o boné dos dedos.
- Vou ter de estudar os teus olhos - disse Victor.
- Claro. Porque não?
Jocko virou costas. Salto, salto, salto em frente, salto atrás. Salto, salto, salto em frente, salto atrás. Pirueta.
A ver o troll fazer piruetas no alcatrão, Erika só queria correr para ele, detê-lo, abraçá-lo, dizer-lhe o quanto era corajoso.
Victor perguntou:
- De onde é que ele veio?
- Apareceu lá em casa há bocado. Eu sabia que o Victor o quereria examinar.
- O que está ele a fazer?
- Costuma fazer aquilo.
- Encontrarei respostas nele - disse Victor. - Porque é que eles andam a mudar de forma. Porque é que a carne saiu enganada. Há muito a aprender com ele.
- Eu levo-o para o viveiro.
- Os olhos são um bónus - disse Victor. - Se ele estiver acordado quando eu dissecar os olhos, terei a melhor hipótese de compreender como funcionam.
Ela ficou a ver Victor dirigir-se à porta aberta do S600.
227
Antes de entrar no automóvel, ele olhou outra vez para o troll que saltitava e rodopiava e depois para Erika.
- Não o deixe escapulir-se na noite a dançar.
- Não. Vou levá-lo para o viveiro.
Depois de Victor entrar no carro e sair da zona de descanso, Erika caminhou pelo meio da estrada.
O vento rasgava a noite, fustigava a chuva caída do céu negro, abanava as árvores como se quisesse estrangulá-las. O mundo era selvagem e violento e estranho.
O troll andava a fazer o pino, pelo traço contínuo da autoestrada.
Quando já não ouvia o motor do S600 por cima do rugir do vento, Erika olhou para trás, para as luzes do carro até deixar de as ver.
O troll fazia a roda de faixa a faixa, parava de vez em quando para saltar no alcatrão e bater com os calcanhares um no outro.
O vento dançava com a noite, ungia a terra de chuva, inspirava as árvores a comemorarem. O mundo era livre e exuberante e assombroso.
Erika pôs-se em bicos dos pés, abriu bem os braços, respirou fundo o vento e ficou um momento à espera da pirueta.
67.Tal como havia uma vedação imponente a delimitar o aterro, o mesmo se passava no viveiro de tanques, em vez de três filas alternadas de pinheiros, havia maciços de carvalhos atapetados de musgo.
O sinal no portão da entrada identificava a empresa residente como sendo GEGENANGRIFF, o termo alemão para contra-ataque, uma piadinha de Victor, já que dedicara a vida a agredir o mundo.
O edifício principal abrangia um hectare: uma estrutura de tijolo com dois pisos e linhas modernas e despojadas. Como todos os polícias, funcionários públicos e burocratas da paróquia eram réplicas, Victor
não tivera dificuldade com requisitos de construção, inspeções, alvarás do governo.
Abriu o portão de ferro com o comando remoto e estacionou numa garagem subterrânea.
A experiência na zona de descanso varrera-lhe as últimas dúvidas que o advertiam para não voltar ao viveiro. Fora poupado de uma criatura assassina das suas, Camaleão, pelo ser mutante que evoluíra de
Jonathan Harker, já de si da Nova Raça. A Victor, isto sugeria fortemente - não, confirmava além de qualquer questão - que todo o empreendimento da Nova Raça fora concebido com tal genialidade, e executado
com tal pujança, que dentro dele evoluíra um sistema de sincronia que iria assegurar a autocorreção de eventuais erros no projeto.
Carl Jung, o grande psicólogo suíço, teorizara que a sincronia, termo que inventara para designar coincidências notáveis com efeitos profundos, é um princípio de ligação não causal que pode, de modos assaz
estranhos, impor ordem nas nossas vidas. Victor apreciava a obra de Jung, embora tivesse preferido reescrever os ensaios e livros todos do homem, para lhes conferir mais profundidade e perspicácia do que
o coitado do Carl possuía. A sincronia não era integral no Universo, como Carl dizia, só surgia em certos períodos e em certas culturas em que o esforço humano fosse o mais racional que podia ser. Quanto
mais racional fosse a cultura, mais provável seria que a sincronia ocorresse enquanto meio de corrigir os poucos erros que essa cultura fizesse.
A implementação da Nova Raça e da visão de Victor de um mundo unificado era tão racional, fora trabalhada em pormenores lógicos de tal excelência, que evoluíra nela um sistema de sincronia quando
229
ele não estava a tomar atenção. Algo correra mal nos tanques de criação nas Mãos da Misericórdia, sem qualquer indicação a Victor e, antes que pudessem ser produzidos mais modelos imperfeitos da Nova Raça,
Deucalião aparecera passados dois séculos para incendiar as instalações - uma coincidência deveras incrível! Deucalião partira do princípio de que estava a destruir Victor, quando estava a impedir a produção
de mais modelos defeituosos da Nova Raça, obrigando assim Victor a usar apenas os grandemente aperfeiçoados tanques de criação do viveiro. A sincronia corrigira o erro e, sem dúvida, a sincronia iria lidar
com Deucalião também e apagar outros aborrecimentos menores - os detetives O'Connor e Maddison, entre outros - que poderiam, de outro modo, inibir Victor na sua marcha cada vez mais rápida rumo ao domínio
absoluto de todas as coisas.
Com o impulso imparável de poder de Victor, com o seu intelecto singular, com o seu materialismo frio e o seu sentido prático implacável, e agora com a sincronia do seu lado, ele tornara-se intocável,
imortal.
Ele era imortal.
Apanhou o elevador da garagem para os campos de tanques no andar principal. Quando as portas se abriram e ele entrou, encontrou a equipa completa, sessenta e dois da Nova Raça, à sua espera, tal como,
ao longo das épocas, o vulgo se junta nas ruas para ser bafejado pela glória da realeza que passa, ou para honrar grandes líderes políticos cuja coragem e cujo empenho nunca poderiam ser alcançados por
esses autómatos do proletariado.
Depois de estar à chuva enquanto o sincrónico mutante Harker matava Camaleão, Victor estava desalinhado como nunca ninguém o vira antes. Se fosse um dia qualquer, ele poderia ter ficado assaz aborrecido
por ser visto todo ensopado e de fato amarrotado e cabelo despenteado. Porém, naquela hora de transcendência, o estado da roupa e do cabelo não importava porque a sua elevação à imortalidade era evidente
para o seu público, e a sua radiância continuava intacta.
A maneira como o olhavam, abismados pela sua sabedoria e sapiência, mortificados pela própria ignorância, assombrados pelo seu poder divino.
Victor ergueu os braços e abriu-os bem e disse:
- Compreendo o assombro com que contemplam o vosso criador, mas nunca se esqueçam de que a melhor maneira de o honrarem é executar a sua obra com a maior diligência, entregarem-se como nunca
230
antes, empenharem cada fibra do vosso ser na concretização da sua visão.
Quando avançaram, Victor apercebeu-se de que o queriam erguer em braços e levá-lo para o seu gabinete, tal como, ao longo da História, tantas multidões arrebatadas haviam levado heróis regressados pelas
ruas até salões de honra. Anteriormente, ele tê-los-ia repreendido por lhe fazerem perder tempo e o desperdiçarem também. Porém, talvez só por uma vez, considerando a natureza portentosa dos acontecimentos
do dia e a sua ascensão à companhia dos imortais, pudesse fazer-lhes a vontade porque, ao deixá-los servi-lo dessa maneira, estaria decerto a inspirá-los a maiores esforços em nome dele.
68.
Jocko desesperado. Ensopado da chuva. Pés puxados para cima do banco. Braços delgados à volta dos joelhos. Boné de basebol virado para trás.
Erika ao volante. Sem conduzir. A contemplar a noite.
Victor não morto. Deveria mas não.
Jocko não morto. Deveria mas não. Desastre completo.
- Jocko nunca mais vai comer bicho nenhum - disse Jocko.
Ela continuava a contemplar a noite. Nada dizia.
Jocko desejava que ela dissesse alguma coisa.
Talvez ela fizesse a coisa acertada. Espancar Jocko até à morte. Ele merecia. Mas não. Ela era boa de mais. Era mesmo sorte do Jocko.
Havia coisas que ele poderia fazer. Baixar o vidro da janela. Meter a cabeça de fora. Subir a janela. Cortar a cabeça.
Erika disse:
- Estou programada para obedecer. Fiz coisas que sei que ele não aprovaria, mas não lhe desobedeci ativamente.
Jocko podia despir a T-shirt. Rasgá-la em tiras. Meter as tiras pelo nariz adentro. Enrolar o boné. Metê-lo pela garganta abaixo. Sufocar.
- Aconteceu-me algo esta noite - continuou ela. - Não sei. Talvez possa passar pelo viveiro, continuar a conduzir para sempre.
Jocko podia ir para o bosque. Picar um polegar. Esperar que os javalis sentissem o cheiro a sangue e aparecessem para o comer.
- Mas tenho receio de baixar o travão e de arrancar. E se não conseguir passar pelo sítio? E se tiver de entrar lá? E se nem sequer conseguir deixar-te ir, livre e por tua conta?
Jocko pôs a mão no ar.
- Posso falar?
- O que foi?
- Jocko pergunta se terás um picador de gelo.
- Para que precisas de um picador de gelo?
- Tens?
- Não.
- Deixa lá.
Ela inclinou-se para a frente. Encostou a testa ao volante. Fechou os olhos. Fez um ruído fino e triste.
232
Devia ser possível cometer suicídio com um macaco de rodas. Pensa nisso. Pensa. Pensa.
- Posso falar?
- O que é?
- Vês a orelha do Jocko?
- Vejo.
- O buraco da orelha tem tamanho suficiente para lá entrar uma ponta do macaco de rodas?
- Mas de que coisa estás a falar?
- Deixa lá.
Com determinação súbita, ela baixou o travão de mão. Engatou a mudança no carro e saiu da zona de descanso.
- Vamos a algum lado? - perguntou Jocko.
- Algum lado.
- Passaremos por um penhasco alto?
- Não. Nesta estrada, não.
- Passaremos por linhas de comboio?
- Não sei bem. Porquê?
- Deixa lá.
69.Enquanto Victor consentia nas atenções da multidão amantíssima, apercebeu-se de que, além do pessoal do viveiro de tanques, Deucalião também estava presente, e os detetives O'Connor e Maddison.
Que genialidade a dele, ter previsto que muito em breve a sincronia iria restaurar o equilíbrio no mundo, corrigir todos os erros pelo mecanismo da coincidência espantosa. A própria presença da sua primeira
criatura e dos detetives confirmava a sua elevação ao estatuto de imortal, e ele ansiava por ver por que coincidência significativa eles seriam mortos.
Ainda tinha uma pistola no coldre ao ombro, por baixo do casaco do fato, mas seria indigno dele alvejar o trio, pois agora ele era, não somente, o génio singular que sempre fora, mas também o epítome da
razão e da lógica, a ponto de as forças mais poderosas do Universo laborarem em seu benefício. A autodefesa era uma necessidade para a carneirada, da qual ele nunca fizera parte e da qual estava agora
ainda mais afastado. A sincronia e, sem dúvida, outros mecanismos recônditos iriam ajudá-lo de maneiras deslumbrantes e inesperadas.
Muitas mãos levantaram-no do chão, e ele pensou que a sua gente o levaria sentado em ombros, como um vetusto imperador chinês era transportado numa cadeira ornamentada, o levaria para o seu gabinete onde
a grande obra poderia continuar, maior ainda do que tudo o que ele alcançara até então. Porém, num excesso de zelo, num entusiasmo concertado para comemorarem o seu criador, tinham-no içado já deitado,
e duas falanges de carregadores suportaram-no entre elas, em ombros, pelo que ele estava de cara voltada para o teto, se não virasse a cabeça de um lado para outro. Seguravam-lhe firmemente os tornozelos,
pernas, pulsos e braços, tinham força mais do que suficiente para a tarefa, porque ele fizera o seu povo forte e criara-o com resistência, a resistência de máquinas de qualidade.
De repente, os carregadores começaram a andar e os muitos outros apertaram-se mais, talvez na esperança de lhe poderem tocar, ou na esperança de que ele virasse a cabeça para eles e os contemplasse, para
que pudessem dizer, daí a muitos anos, que tinham estado ali, naquele dia histórico, e que ele os tinha fitado e reconhecido e sorrido para eles. A atmosfera era festiva, e muitos pareciam em júbilo, o
que não
234
era disposição que a Nova Raça alcançasse facilmente, tendo em conta a sua programação. Depois Victor apercebeu-se de que estavam concentrados no futuro, nos triunfos que o seu senhor alcançaria naquelas
novas instalações, na expectativa do dia - agora muito mais próximo - em que a matança implacável da odiada Velha Raça começasse. Devia ser a fonte do seu júbilo: a perspetiva do genocídio, o livramento
do mundo de todo e qualquer ser humano que jamais falara de Deus.
Era evidente que tencionavam fazer mais do que levá-lo para a sua secretária porque, embora o gabinete ficasse no andar principal, levaram-no por dois lances de escadas, sem mais esforço do que em terreno
plano. Deviam ter uma qualquer honra especial em mente. Embora Victor não precisasse da aprovação daquela gente, aliás, não almejasse a aprovação de ninguém, estava agora empenhado no tédio que tal cerimónia
decerto implicaria.
Contudo, ocorreu algo que lhe renovou o interesse no momento: a atmosfera comemorativa desvaneceu-se e a multidão fez silêncio. Pareceu-lhe que a reverência era a disposição do momento, a qual era obviamente
mais adequada a uma ocasião em que os da laia deles honrassem alguém na posição exaltada de Victor. Reverência mesmo, pois acenderam-se archotes, aparentemente saturados de um óleo especial que difundia
uma fragrância agradável como a do incenso. A acostumar-se ao seu papel de objeto de devoção, Victor virava a cabeça à direita e à esquerda, deixando-os ver-lhe o rosto mais do que apenas de perfil - e,
durante esses favores seus, viu Erika na multidão, a sorrir, e sentiu-se disposto a sorrir-lhe também, pois ela levara consigo a criatura nascida de Harker, a que o salvara de Camaleão embora, de momento,
não se conseguisse ver o mutante anão.
Agora entravam por uma passagem de terra nua que cintilava como se estivesse lacada, e ele lembrou-se da terra nua das campas abertas no cemitério de uma prisão muito tempo antes, a regatear com o coveiro
à beira dos buracos. Recordou-se da terra nua das valas comuns em todo o mundo ao longo dos anos, onde os carrascos o deixavam recolher, entre a carneirada condenada, aqueles para quem ele tivesse préstimo
nas suas experiências. A gratidão que os resgatados lhe mostravam sempre, até ao momento no laboratório em que se apercebiam do motivo para terem sido salvos, e depois rogavam-lhe pragas, incapazes de
apreciar, na sua estupidez bovina, a oportunidade que ele lhes dera, aquela hipótese de fazer parte da História.
235
Ele usava-os duramente e usava-os bem, como trabalhadores ou como objetos de experimentação. Nenhum outro cientista jamais nascido poderia tê-los usado tão bem. Por conseguinte, o seu contributo para a
posteridade era imensamente maior do que poderiam ter feito pela sua própria cabednha.
Da passagem com paredes de terra seguiram para um corredor deveras invulgar. Por cima, nem trinta centímetros à frente da sua cara, espalhava-se uma colagem criativa de caixas de bolachas esmagadas, embalagens
de cereais, latas de sopa amolgadas, pacotes que anteriormente continham anti-histamínicos e supositórios e laxantes, meadas de cordel puído, um chinelo usado, cartazes nacionalistas a proclamarem o direito,
a necessidade, o dever de votar, uma peruca loura platinada suja, esqueletos esmagados de ratazanas mortas há muito, uma grinalda de flores natalícias sinuosa como uma cobra, uma boneca com a cara partida
e um único olho, a outra órbita vazia.
Depois da cara da boneca, ele perdeu a conta à colagem lacada por onde o levavam e viu mil rostos exumados da sua memória, caras destroçadas e assustadas e sangrentas e meio escalpeladas do osso, caras
de homens e mulheres e crianças, aqueles a quem ele usara e usara tão bem, não só mil rostos, dois mil, multidões. Não o assustavam, mas enchiam-no de desprezo, pois desprezava os fracos que se deixavam
usar por ele. Excitavam-no porque sempre se sentira excitado pelo poder de levar os outros à perceção de que não passavam de carne, de os despojar das suas frágeis defesas, da sua confiança na justiça,
das suas ilusões pueris de que importavam, dos seus delírios de significado, da sua fé idiota, da sua esperança e até do seu sentimento de si, até no fim não quererem ser mais do que carne, carne que não
pensa e que está farta da vida.
Quando os rostos do passado deixaram de desfilar pela sua cabeça, descobriu que o tinham levado além da passagem para uma galeria com um chão curvo como uma tigela. Parecia ser o destino, pois pararam.
Quando o desceram dos ombros e o puseram de pé, ele ficou siderado porque todos os rostos da multidão lhe eram agora estranhos.
- Tantos rostos - disse ele - a tropeçarem na minha cabeça como folhas sopradas pelo vento, há momentos... Agora não me lembro de nenhum nem de quem eram. Nem de quem são os vossos. - Victor sentiu-se
terrivelmente confuso. - Nem do meu rosto. Que aspeto tenho eu? Que nome me dão?
236
Depois, da multidão saiu um gigante, a metade do lado direito do rosto destroçada e o dano apenas meio disfarçado por uma tatuagem complexa. Ao contemplar o lado sadio da cara dele, Victor sentiu que já
conhecia aquele homem e depois ouviu-se dizer:
- Ora... és um dos meus filhos... finalmente regressado a casa.
O homem tatuado disse:
- Nunca estiveste louco, em momento nenhum do teu trabalho diabólico. Foste malévolo desde a tua primeira intenção, podre de orgulho, todas as tuas vontades peçonhentas e insalubres, todos os teus atos
corruptos, a tua arrogância desenfreada, a tua crueldade inexaurível, a tua alma vendida pelo poder sobre os outros, o teu coração vazio de sentimentos. Eras mau e não louco, e prosperaste com o mal, era
o teu alimento. Agora não permitirei que fujas à perceção da justiça que vais receber. Não te deixarei escapar na insânia, porque tenho o poder de te reter na realidade da tua vida viciosa.
O gigante pôs uma mão na cabeça do louco e, com o toque, a loucura dissipou-se, e Victor soube novamente quem era, onde estava e porque o tinham levado para lá. Levou a mão à pistola debaixo do casaco,
mas o gigante deteve-lha e partiu-lhe os dedos como num torno.
70.
Erika Cinco guinou a carrinha na berma e parou a poucos metros da entrada do viveiro de tanques, Gegenangriff, Inc.
A pouca personalidade que o edifício possuía desvanecia-se com a chuva e a escuridão.
- Parece um sítio tão incaracterístico - observou ela. - Poderia ser qualquer coisa, ou nada de nada.
O troll estava soerguido no assento. Geralmente atarefadas com gestos complexos ou a fazer batidas sem sentido, as mãos dele estavam agora quietas e dobradas sobre o peito.
- Jocko compreende.
- O que compreendes, Jocko?
- Se tiveres de o levar lá para dentro. Jocko compreende.
- Tu não queres ir lá para dentro.
- Não faz mal. Enfim. Jocko não quer sarilhos para ti.
- Porquê? Não me deves nada.
- Foste boazinha com o Jocko.
- Só nos conhecemos há uma noite.
- Meteste muita bondade nessa noite.
- Nem por isso.
- A única bondade que Jocko jamais recebeu.
Após um silêncio partilhado, ela disse:
- Fugiste. Eras mais rápido do que eu. Perdi-te.
- Ele não acredita nisso.
- Vai. Vai, Jocko. Não te posso levar para lá comigo.
Os olhos amarelos dele não eram menos feéricos nem menos belos do que quando ela os vira pela primeira vez.
- Para onde irá Jocko?
- Há todo um mundo bonito.
- E parte alguma quer o Jocko?
- Não vás lá para dentro deixar que ele te abra ao meio - disse ela. - Tu és mais do que carne.
- Tu também. Muito mais do que carne.
Ela não conseguia olhar para ele. Não era a fealdade que lhe custava contemplar. A vulnerabilidade dele destroçava-lhe os dois corações, e a sua humildade, e a sua pequena alma corajosa.
238
- A atração do programa é forte - disse ela. - A ordem para obedecer. Como uma maré viva.
- Se tu entrares, o Jocko entra também.
-Não.
Jocko encolheu os ombros.
- Não podes optar por mim.
- Por favor, Jocko. Não me deixes essa culpa.
- Posso falar? - Como a viu assentir, ele continuou. - Jocko poderia saber como é ter mãe. E tu poderias saber como é ser mãe. Seria uma família pequenina, mas uma família ainda assim.
71.
Na galeria subterrânea, Victor estava no meio da multidão, determinado a que aquela escumalha ignorante nunca o ouvisse pedir clemência nem admitir a verdade das suas acusações.
Apercebeu-se de que os operários do aterro lá estavam. E vários Alfas por ele destruídos, reanimados de algum modo.
Erika Quatro saiu da multidão até ele, encarou-o e fitou-o e não teve medo. Ergueu um punho como se lhe fosse bater, mas baixou-o sem agredir.
- Não sou vil como tu - disse ela, e virou-lhe costas.
E lá estavam Carson O'Connor, Maddison de pé atrás com a mão no ombro dela, um pastor-alemão ao lado. Ela disse:
- Não se dê ao trabalho de mentir. Eu sei que o meu pai viu algo que o alertou para o seu caso. E você mandou os seus zombies matarem--no e à minha mãe.
- Fui eu quem os matou - disse Victor. - E ele suplicou como um rapazinho pela sua vida.
Ela sorriu e abanou a cabeça.
- Ele suplicou pela vida da minha mãe, de certeza. Por ela não deixaria de se humilhar, mas nunca suplicou pela própria vida. Vá apodrecer no Inferno.
O livro provocava James, tanto quanto a bola de cristal, e ele andava de um lado para o outro na biblioteca da mansão Helios numa frustração crescente.
- Eu sei o caminho para a felicidade - disse o livro.
- Juro que, se disseres isso mais alguma vez, te rasgo em bocadinhos.
- Eu digo-te o caminho para a felicidade.
- Então diz.
- É melhor beberes um copo primeiro - disse o livro.
A um canto da biblioteca havia um bar. James pousou o livro só o tempo de se servir de uma dose dupla de uísque e de a emborcar.
240
Quando tornou a pegar no volume, este disse:
- Talvez fizesses melhor voltando simplesmente para o dormitório.
- Diz-me o caminho para a feliciddade - insistiu James.
- Volta, senta-te à mesa da cozinha e esfaqueia a mão com o cutelo, fica a vê-la sarar.
- Diz-me o caminho para a felicidade.
- Parecias gostar do cutelo.
Durante esta conversa com o livro mágico desde que emborcara o uísque, James estivera a olhar para o espelho, e não para o volume que tinha nas mãos.
No seu reflexo, descobriu que ambas as vozes eram dele e que o livro, talvez como a bola de cristal, não falava de todo.
- Diz-me o caminho para a felicidade, insistiu James.
E ao espelho viu-se responder:
- Para ti, o único caminho para a felicidade é a morte.
A colagem de lixo recortado fluía nas paredes e no chão da enorme galeria subterrânea. O sítio era mais misterioso do que qualquer outro onde Victor estivera.
No centro, fora aberta uma campa: três metros de comprimento, dois de largura, seis metros de fundura. Ao lado desta escavação estava a imensa pilha de lixo que dela saíra, um monte pestilento de materiais
podres de toda a espécie.
Depois de lhe acorrentarem as mãos atrás das costas, quando o haviam acompanhado à campa, ele dissera a frase mortal, mas nenhum deles tombara morto. Tinham sido libertados, de algum modo.
Nick Frigg, patrão da lixeira, ajustou uma coleira metálica ao pescoço de Victor e Victor não suplicou.
Um Ipsilon inferior ligou um cabo à coleira.
Victor calculou que o cabo fosse até à superfície buscar energia à estação elétrica da lixeira.
- Não suplicarei - disse ele. - Vocês devem-me a vossa existência. E quando eu morrer, também morrerá toda e qualquer criatura feita por mim.
A multidão olhava-o em silêncio. Não lhe chamaram mentiroso nem lhe pediram explicações.
241
- Não estou a fazer bluff- avisou ele. - O meu corpo alterado tem cabos a toda a volta, como sabem. Eu recebo regularmente uma descarga elétrica, guardo-a em células energéticas no tronco e converto-a
noutra energia de suporte à vida consoante a necessidade. Muitos de vocês sabem que isto é verdade. - Ele viu que eles sabiam de facto. -Quando eu morrer, essas células serão convocadas a enviar um sinal
que será transmitido por satélite a todos aqueles feitos da carne da Nova Raça, a cada máquina de carne que andar sobre a Terra. E vocês cairão todos mortos.
Pareciam convencidos. Mas ninguém falava.
Victor sorriu, a prever triunfo apesar do silêncio.
- Acharam que um deus morreria sozinho?
- Um deus cruel como tu, não - respondeu Deucalião.
Quando se ouviram vários entre a multidão a gritarem que ele devia
ser atirado à fossa, Victor prometeu-lhes novo começo, compensações, liberdade. Porém, não lhe deram ouvidos, os loucos, os porcos ignorantes.
De súbito, de trás da montanha de lixo ao lado da campa, saiu uma criatura de beleza grandiosa e radiante. Oh, era graciosa, magnífica, de natureza misteriosa mas cativante em todos os aspetos, e ele via
que também a multidão estava assombrada com ela.
Contudo, quando apelou para ela, pedindo-lhe que convencesse a multidão a ter misericórdia dele, o Ser alterou-se. Por cima dele pairava um monstro que nem ele, Victor Frankenstein, na sua demanda feroz
pelo controlo absoluto da biologia humana, jamais poderia ter imaginado. Era uma coisa tão horrenda, tão monstruosa, tão sugestiva de caos e violência ao mais ínfimo pormenor que Victor não pôde reprimir
um grito nem impedi-lo de escalar tresloucadamente.
A besta aproximou-se. Victor bateu em retirada para a beira da campa. Só quando caiu na imundície do fundo da campa se apercebeu dos materiais pútridos com que o seu leito de morte fora ricamente ajaezado.
Lá em cima, a odiosa presença começou a empurrar o lixo empilhado para dentro da campa de onde fora extraído. Toda e qualquer porcaria imaginável caiu em cima de Victor, obrigou-o a tombar de joelhos na
porcaria ainda maior debaixo dele. Enquanto a avalanche de sordidez sufocante chovia sobre ele, algo lhe falava dentro da cabeça. A mensagem não era por palavras nem imagens, aparecia num conhecimento
tenebroso súbito que era traduzível de imediato: Bem-vindo ao Inferno.
242
Erika Quatro viu o radioso e encantador Ressuscitador afastar-se do grande desmoronamento de lixo que instigara e Deucalião ativar o interruptor que daria a descarga mortífera a Victor no fundo da sua
última morada.
Ela olhou em volta para toda a Nova Raça e disse:
- Paz, finalmente. - E eles replicaram como um só:
- Paz.
Meio minuto depois, o Ressuscitador e todos na galeria tombavam mortos como pedras, salvo Deucalião, Carson, Michael e o Duque, que não eram criaturas da carne da Nova Raça.
Na carrinha em frente ao viveiro de tanques, Erika Cinco teve um pressentimento súbito de morte e estendeu as mãos para Jocko.
Pela sua expressão torturada, ela soube que o mesmo pressentimento o abalara, e ele agarrou-se a ela.
No instante em que deram as mãos, a tempestade que, até então, carecera de pirotecnia, explodiu abruptamente em raios e coriscos. O céu abria-se violentamente, e o foco da fúria súbita da Natureza parecia
ser a carrinha GL550. Embatiam barreiras de relâmpagos no pavimento em redor do automóvel, tantos e a rodeá-lo com tal perfeição que de cada janela não se podia ver mais nada da noite nem da terra nem
do viveiro, apenas um biombo de luz tão brilhante que Jocko e Erika baixaram as cabeças. E embora nenhum deles falasse, ambos ouviram as mesmas três palavras que souberam, de algum modo, que o outro ouvia
também: Não tenham medo.
Deucalião virou-se para Carson e Michael.
- Prometeram lutar a meu lado, e lutaram deveras. O mundo ganhou algum tempo. Destruímos o homem... mas as ideias não morreram com ele. Há mais quem recuse o livre-arbítrio aos outros... e há demasiados
dispostos a entregarem o seu livre-arbítrio, em todos os sentidos do termo.
243
- Apanhar os maus é fácil - disse Carson - comparado com combater ideias vis. Combater ideias... é trabalho para uma vida inteira.
Deucalião assentiu.
- Vamos viver vidas longas então.
Michael fez a saudação do Caminho das Estrelas e acrescentou:
- E prosperar.
Pegando no Duque como se ele fosse um cãozinho de colo, o gigante embalou o pastor-alemão no braço direito e com o esquerdo fez-lhe festas na barriga.
- Vou levá-los à superfície, buscar o Arnie ao Tibete e depois despeço-me. Preciso de encontrar novo retiro, onde possa dar graças, e refletir nestes duzentos anos e no que têm significado.
- E talvez possamos ver o truque da moeda mais uma vez - disse Michael.
Deucalião contemplou-os em silêncio por momentos.
- Posso mostrar-lhes como se faz. Tal conhecimento fica em segurança nas vossas mãos.
Carson sabia que ele não se referia apenas ao truque da moeda, mas sim a todos os seus conhecimentos - e ao que ele conseguia fazer.
- Não, meu amigo. Somos gente simples. Tal poder deve permanecer com alguém extraordinário.
Caminharam juntos até à superfície, onde o vento varrera e a chuva lavara a primeira luz da madrugada no céu oriental.
Na sala vitoriana sem janelas, a substância dourada-avermelhada, fosse líquida, fosse gasosa, escoou do caixão de vidro e o vulto que antes era uma sombra informe ganhou a forma de um homem.
Quando a caixa vazia se abriu como uma concha, o homem nu sentou-se e depois saiu para o tapete persa.
O sinal transmitido por satélite fora uma sentença de morte a todas as outras máquinas de carne feitas por Victor, mas não matara aquela, de propósito, antes pelo contrário, libertara-a.
Saiu pelas portas de aço que o teriam mantido encarcerado se, por engano, ele tivesse sido animado antes de ser necessário.
James estava morto na biblioteca. No andar de cima, encontrou Christine morta no vestíbulo da suíte principal.
A casa estava silenciosa e, de resto, aparentemente deserta.
244
Na casa de banho de Victor, ele tomou duche.
Na alcova espelhada a um canto do quarto de vestir de Victor, ele admirou o seu corpo. Não tinha cabos de metal entretecidos nele, nem tinha as cicatrizes de dois séculos. Era a perfeição personificada.
Depois de se vestir, levou uma pasta até à sala do cofre. Lá descobriu valores que faltavam aonde deveriam estar, mas havia outras gavetas que ofereciam o que ele precisava.
Sairia da mansão a pé. A prudência de não ter qualquer ligação a Victor Helios impelia-o a não usar carro algum, nem mesmo para o abandonar simplesmente no aeroporto.
Antes de sair, programou a contagem decrescente de Dresden para daí a meia hora. Tanto a casa como o dormitório ficariam reduzidos a cinzas.
Vestiu uma gabardina com capuz, ciente da ironia de partir com uma indumentária reminiscente do traje atual daquele grande brutamontes.
Embora fosse a própria imagem de Victor Frankenstein, não era de facto o homem, mas sim um clone. Em virtude do carregamento de dados diretamente no cérebro, todavia, a sua memória igualava a de Victor,
todos os 240 anos dela, salvo pelos acontecimentos das últimas dezoito horas aproximadamente, a última vez que Victor lhe executara uma atualização de memória, via transmissão telefónica. Era idêntico
a Victor também no sentido em que comungava da sua visão para o mundo.
Não se tratava precisamente de imortalidade pessoal, mas de um substituto aceitável.
Em termos fundamentais, o recentemente falecido e este indivíduo acabado de nascer eram diferentes. Este Victor era mais forte, mais rápido e talvez até mais inteligente do que o original. Talvez, não.
Decididamente mais inteligente. Era o novo e aperfeiçoado Victor Frankenstein, e o mundo precisava dele agora mais do que nunca.
72.
Este mundo é um mundo de histórias, de mistério e encanto. Para onde quer que olhemos, se soubermos ver bem, desenrola-se um conto maravilhoso, pois cada vida é uma narrativa e todos são uma personagem
no seu próprio drama.
Em São Francisco, a Agência de detetives O'Connor-Maddison comemorou não há muito tempo o seu primeiro aniversário. Foram um sucesso quase desde o dia em que abriram portas. Uma mão imposta nele por um
sarador tatuado libertou Arnie do autismo. Trabalha na agência depois das aulas, a fazer arquivo e a aprender a gíria. O Duque adora-o. Daqui a sete meses, um bebé virá complicar o trabalho de investigação,
mas foi para isso que se fizeram marsúpios e outros apetrechos. Pendura-se o miúdo ao peito ou às costas, e não há motivo para não continuar a perseguir a verdade, a justiça, os vilões e boa comida chinesa.
Numa casinha sita numa grande propriedade rural no estado de Montana, Erika descobriu talento para a maternidade, e goza da ventura de ter em Jocko uma criança perpétua. Graças ao que tirou do cofre de
Victor, têm todo o dinheiro de que jamais irão precisar. Não viajam, e só ela vai à cidade, porque não querem ter de lidar com baldes e vassouras. Todavia, a passarada local já se habituou a ele, e Jocko
já não se sente bicado, seja em que sentido for. Tem uma coleção de chapéus engraçados, todos com guizos, e ela desenvolveu uma gargalhada con-tagiante. Não sabem por que razão sobreviveram, únicos entre
todos os da carne da Nova Raça, mas terá algo a ver com o relâmpago. Por conseguinte, todas as noites, quando ela o vai deitar, obriga-o a dizer as suas preces, tal como ela faz também, antes de adormecer.
Na Abadia de São Bartolomeu, nas grandes montanhas do norte da Califórnia, Deucalião reside como convidado, enquanto pondera ser postulante. Gosta de todos os irmãos e tem uma amizade especial com o Irmão
Knuckles. Aprendeu muito com a Irmã Angela, gerente do orfanato pertencente à Abadia, e as crianças deficientes pensam que ele é o melhor Pai Natal de sempre. Não se esforça por descortinar o seu futuro.
Espera que ele o encontre.
Dean Koontz
O melhor da literatura para todos os gostos e idades