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MORTO OU VIVO / Parte II
Series & Trilogias Literarias
Eles conseguiram sobreviver à tempestade, mas a situação se aproximou de um desastre, com o barco sofrendo até quase o ponto de quebrar. Quatro horas depois de terem entrado na tempestade, saíram pela sua borda ocidental, vendo-se novamente em águas calmas e céu azul. Vitaliy e Vania passaram o restante do dia e parte da noite checando o barco, que levaram até uma praia, à procura de danos, mas não acharam nada que exigisse voltar ao porto. E mesmo que houvesse, Vitaliy imaginou se Fred permitiria. O sacrifício de um de seus homens havia sido um choque para Vitaliy — não tanto pela decisão por si só, mas pela falta de emoção que Fred demonstrara. Era realmente um grupo de homens sérios, muito sérios.
O farol era o objetivo deles, apesar de Vitaliy ainda não ter a menor ideia da razão pela qual alguém desejaria ir até lá. Situado no alto do cabo Morrasale no golfo de Baidaratzkaya, não era uma ajuda importante para a navegação — pelo menos não agora. Antes havia um povoamento, provavelmente uma estação de monitoramento dos testes nucleares em Novaya Zemlya, e alguns pescadores comerciais tentaram se estabelecer por ali, mas se passaram apenas quatro estações antes que homens e barcos mudassem para um terreno melhor. Os mapas mostravam profundidade de 10 a 12 braças, de modo que havia pouco perigo de encalhar, e, além disso, a maioria dos barcos atualmente tinham GPS fabricados no Ocidente para que navegassem em águas seguras.
Seus passageiros agora verificavam o caminhão, testando o motor e o guindaste. O que eles planejavam fazer deveria tê-lo deixado ofendido, mas Vitaliy não pescava ali, assim como ninguém que conhecesse.
Ele mal podia vez a luz, piscando a cada oito segundos, tal como informava o mapa. Quando chegasse à terra, o farol estaria a menos de 1 quilômetro de distância, por uma estrada cheia de curvas em espiral que levava até o alto do despenhadeiro. Essa seria a parte mais difícil, sabia Vitaliy. As estradas não tinham mais do que 3 metros de largura, o que mal permitia a passagem do GAZ.
Qual a razão de vir até aqui?, perguntou-se mais uma vez. O mar já era suficientemente ameaçador, mas a jornada de caminhão por todo aquele deserto não era tarefa para covardes ou irresolutos. Fred e seus homens não deviam levar mais que dez minutos para chegar ao farol, mas ele informou a Vitaliy que passariam o dia todo fora, talvez até precisassem pernoitar. O que poderiam fazer para que demorassem tanto? Vitaliy não deu bola para a questão, pois não era trabalho seu pensar nisso. Seu trabalho era apenas pilotar o barco.
O mar parecia liso como vidro, e era difícil escutar o marulho das ondas nas bordas de aço do seu barco de desembarque. No convés, os homens que o fretaram preparavam café em um pequeno fogão a gasolina que trouxeram consigo.
O ronco dos motores a diesel aumentou quando Vitaliy os colocou em reverso para sair da praia de cascalhos. Depois de 100 metros, girou o timão para endireitar o barco e consultou a bússola giroscópica para corrigir o rumo, desta vez aprumando para zero-três-cinco.
Vitaliy levantou o binóculo e vasculhou o horizonte. Não havia nada à vista que não tivesse sido colocada ali por Deus, salvo uma ou duas balizas. No inverno, o gelo muitas vezes as varria para a costa ou as esmagava, afundando-as, e a Marinha não se dava ao trabalho de substituí-las como deveria, afinal ninguém aparecia por ali navegando em barcos de grande calado. Outro indicador do quanto estavam enfiados nos cafundós.
Quatro horas depois ele abriu a janela lateral e avisou:
— Atenção! Atracação em cinco minutos. — Apontou para seu relógio e levantou cinco dedos. Fred acenou de volta. Dois membros do grupo foram até o caminhão para ligar o motor, enquanto outros dois começaram a jogar as mochilas na carroceria.
Observando pela janela, seu olhar escolheu um lugar para aportar, e para lá se dirigiu a cerca de 5 nós, o suficiente para chegar à praia, mas sem muita força para que a proa não se prendesse nas pedras.
A uns 50 metros de distância ele inconscientemente se preparou para o choque e desligou a hélice. Mas dificilmente tinha com o que se preocupar. O T-4 bateu no fundo, não muito duro, e rapidamente parou com o ruído de aço sobre cascalhos.
— Lanço a âncora? — perguntou Vanya. Havia uma de tamanho razoável na popa para puxar o barco para longe de algum litoral pegajoso.
— Não, a maré está baixa, não é? — respondeu Vitaliy.
Ele colocou os motores em ponto morto e foi até a alavanca de controle da rampa, soltando o mecanismo hidráulico. A rampa caiu com seu próprio peso na praia. A faixa de areia tinha uma pendente bem acentuada, ao que parecia. A água mal espirrou quando a rampa desceu. Um dos homens subiu na boleia do GAZ e avançou, as luzes de freio piscando enquanto ele navegava sobre a rampa, e depois saiu pelo cascalho, a corrente do guindaste balançando na ponta como a tromba de um elefante de circo. O caminhão finalmente parou. Fred e os demais caminharam pela rampa até a praia — menos um, percebeu Vitaliy, que ficou de pé na ponta da rampa.
Vitaliy saiu da cabine e foi até a frente.
— Você não vai levar esse aqui? — perguntou a Fred.
— Ele fica aí para lhe dar uma ajuda caso seja necessário.
— Não é preciso. Nós nos viramos.
Como resposta, Fred simplesmente sorriu e levantou a mão em um aceno.
— Voltaremos.
45
Clark considerava um sinal do avanço da idade o fato de estar cada vez mais intolerante a viagens aéreas. As poltronas apertadas, a comida ruim, o barulho... A única coisa que tornava aquilo razoavelmente tolerável eram os fones Bose de cancelamento de ruído, um travesseiro-ferradura que ganhara em um Natal, e alguns comprimidos de Lorax que Sandy lhe dera para a viagem. Por sua vez, Chavez estava na poltrona da janela, olhos fechados enquanto escutava música em seu iPod Nano. Pelo menos a poltrona entre os dois estava vazia, o que lhes dava um pouco mais de espaço para os cotovelos.
Depois de sua conversa com Hendley e Granger, ele procurara Ding e o colocara a par, depois ligou para o celular de Mary Pat, combinando de encontrá-la em sua casa no final da tarde. A pedido da própria, chegou mais cedo e ficou papeando com Ed por uma hora antes de ela chegar. Enquanto Ed preparava o jantar, Clark e Mary Pat foram para o pátio dos fundos com um par de cervejas.
Ignorando o aviso de Hendley de “lidar com cuidado”, Clark colocou suas cartas na mesa. Os dois se conheciam havia muito tempo para que pudesse ser diferente. Mary Pat nem piscou.
— Então Jack arranjou a coisa, não é? Sempre me perguntei se ele faria mesmo isso. Coisa boa o que ele fez. Bem, eles não perderam tempo para agarrar vocês dois, hein? Quem lhe deu a dica?
— Jimmy Hardesty, uns dez minutos depois que Alden nos botou para fora. Acontece, Mary Pat, que acho que tentamos decifrar a mesma charada. Se você não estiver de acordo em compartilhar as informações que conseguirmos...
— E por que não estaria?
— Para início de conversa, estaríamos infringindo pelo menos três leis federais. E você arriscaria a ira dos Alden lá de Langley.
— Se nós conseguirmos pegar esse babaca, ou pelo menos chegarmos um pouco mais perto disso, por mim está tudo bem. — Mary Pat bebeu um gole de cerveja e olhou de soslaio para Clark. — Isso significa que Hendley está pagando a conta?
Clark deu um risinho.
— Digamos que é um gesto de boa vontade. Então, como vai ser? Apenas um negócio ou o começo de uma maravilhosa amizade?
— Compartilhar tudo — respondeu Mary Pat. — Dane-se a burocracia. Se tivermos que encostar nossas cabecinhas para pegar o sujeito, que assim seja. É claro — acrescentou sorrindo —, vamos ter que ficar com o crédito, considerando que vocês não existem.
Meio comprimido de Lorax e uma cerveja ajudaram Clark a passar as últimas cinco horas do voo em um sono profundo e sem perturbações. Quando o avião bateu os pneus no aeroporto de Peshawar, ele abriu os olhos e observou ao redor. A seu lado, Chavez enfiava o iPod e um livro na bolsa.
— Hora de trabalhar, chefe.
— Vamos lá.
Sem surpreender nenhum dos dois, as filas de passagem pela imigração e pela alfândega do aeroporto prosseguiram lentamente, mas sem incidentes. Uma hora depois de chegarem ao terminal, os dois estavam lá fora no meio-fio da área de transporte terrestre. Quando Clark levantou a mão para chamar um táxi, uma voz com sotaque falou atrás deles:
— Aconselharia não fazer isso, cavalheiros.
Clark e Chavez se viraram para observar um homem magricela de cabelos brancos vestindo um termo azul-escuro e um chapéu branco de abas largas atrás deles.
— Aqui os táxis são armadilhas mortais.
— Você deve ser o Sr. Embling — disse Clark.
— De fato.
Clark se apresentou e fez o mesmo por Chavez, usando apenas os nomes de batismo.
— Como você...
— Um amigo mandou um e-mail com as informações de seu voo. Depois foi só procurar dois sujeitos com o ar adequado. Nada óbvio, veja bem, mas já desenvolvi uma espécie de... radar; acho que chamaria assim. Vamos?
Embling os levou até um Range Rover verde com vidros escurecidos, estacionado mais adiante. Clark ficou no assento do passageiro, e Chavez foi para o banco de atrás. Logo estavam em meio ao trânsito.
Clark disse:
— Desculpe, mas seu sotaque...
— Holandês. Uma regressão do meu tempo de serviço. Existe uma população significativa de muçulmanos na Holanda, sabe, e são realmente bem-tratados. É mais fácil fazer amigos, e permanecer vivo, passando por holandês. É um caso de autopreservação, percebem. E a cobertura de vocês?
— Escritor freelance canadense e fotógrafo. Material especial para a National Geographic.
— Funciona em curto prazo, acho. O truque para se misturar é parecer que faz tempo que andam por aqui.
— E como você faz isso? — perguntou Chavez.
— Parecendo assustado e desestimulado, meu rapaz. Recentemente, isso se tornou o passatempo favorito dos paquistaneses.
— Que tal uma volta rápida pelos pontos quentes? — perguntou Embling alguns minutos depois. Iam na direção leste pela Jamrud Fort Road, em direção ao coração da cidade. — Um pouco do quem é quem em Peshawar?
— Claro — respondeu Clark.
Passados dez minutos, saíram da Jamrud e foram para o sul na Bacha Kan.
— Aqui é Hayatabad, a versão de Peshawar do South Central da Los Angeles de vocês. Densamente habitada, empobrecida, pouca presença da polícia, drogas, crimes de rua...
— E pouca obediência às regras de trânsito — disse Chavez, acenando pela janela para a corrente de carros, caminhões, carretas puxadas por homens e bicicletas motorizadas que ziguezagueavam entre si.
— Nenhuma regra, receio. Atropelamentos com fuga por aqui são quase um esporte nacional. Alguns anos atrás, a cidade fez algum esforço para melhorar esse bairro, sabe, mas não conseguiram muita coisa.
— Mau sinal quando a polícia deixa de aparecer — observou Clark.
— Oh, mas eles aparecem. Dois ou três carros passam duas vezes por dia, mas a menos que vejam um assassinato acontecendo, raramente param. Só na semana passada perderam dois carros e dois policiais. E quando eu digo “perderam”, quero dizer que desapareceram.
— Meu Deus do céu! — disse Chavez.
— Não dá as caras por aqui — murmurou Embling.
Nos dez minutos seguintes eles entraram ainda mais em Hayatabad. As ruas foram se tornando cada vez mais estreitas e as casas, mais decrépitas, até passarem por choças de metal corrugado e cartolina impermeável. Olhares vazios observavam o Range Rover de Embling de portais sombrios. Em cada esquina, grupos de homens se amontoavam, fumando o que Clark supunha não ser tabaco. O lixo se amontoava nas calçadas e escorria pelo pavimento, empurrado por redemoinhos.
— Eu me sentiria muito mais confortável se estivesse armado — murmurou Chavez.
— Não se preocupe, meu rapaz. Por sorte, o Grupo de Serviços Especiais do Exército gosta muito de Range Rovers com vidros escurecidos. De fato, se olhar para trás agora vai ver um homem correndo pela rua.
Chavez se virou:
— Estou vendo.
— Quando chegarmos à próxima rua, vamos encontrar portas sendo batidas.
John Clark sorriu.
— Sr. Embling, percebo que estamos com a pessoa certa.
— Gentileza sua. E o nome é Nigel, aliás.
Deram mais uma volta e entraram em uma rua com uma mistura de lojas de blocos de concreto e residências de vários andares construídas com tijolos crus e madeira, e onde muitas fachadas estavam enegrecidas pelo fogo, com marcas de balas, ou ambas as coisas.
— Bem-vindos ao paraíso dos extremistas — anunciou Embling.
Apontava para edifícios quando passavam, recitando o nome de grupos terroristas — Lashkar-e-Omar, Tehreek-e-Jafaria Paquistão, Sipah-e-Muhammad Paquistão, Nadeem Commando, Frente Popular de Resistência Armada, Harkat-ul-Mujahideen al-Alami — até darem outra volta, onde a lista continuava.
— Nenhum desses é a sede oficial, claro — disse. — Mas, sim, algo semelhante a clubes, ou fraternidades. De vez em quando a polícia ou o Exército dá uma batida. Às vezes, o grupo visado desaparece completamente. Às vezes, estão de volta no dia seguinte.
— Quantos ao todo? — perguntou Clark.
— Oficialmente... quase quarenta, e o número só cresce. O problema é que quem faz a contagem é a ISI — respondeu, referindo-se à Diretório para os Interserviços de Inteligência, o equivalente paquistanês da CIA. — A inteligência militar também realiza algum controle. É a proverbial raposa guardando o galinheiro. A maior parte desses grupos recebe fundos, recursos ou inteligência da ISI. O negócio é tão enrolado que duvido que ela ainda esteja controlando a catraca.
— Aqueles danos por aí — disse Chavez. — São das batidas policiais?
— Não, não. Isso é trabalho do Conselho Revolucionário Omíada. Sem dúvida eles são os mandachuvas do pedaço. Cada vez que um desses peixinhos nada no poço errado, o CRO vem e engole, e, ao contrário das autoridades locais, quando isso acontece, o grupo some de vez.
— Isso é sintomático — respondeu Clark.
— Realmente.
Eles viram pelo para-brisas uma coluna de fumaça subindo a alguns quilômetros de distância. Logo depois sentiram estouros da explosão no estômago.
— Carro-bomba — disse Embling despreocupado. — A média por aqui é de três por dia, mais um par de ataques de morteiro para arrematar. Ao anoitecer é que as coisas ficam realmente interessantes. Acredito que vocês consigam dormir ouvindo tiroteio, certo?
— Já passamos por isso — respondeu Clark. — Tenho que lhe dizer, Sr. Embling, que você pinta um quadro negro de Peshawar.
— Então lhes dei um quadro preciso. Volta e meia ando por aqui por quase quatro décadas, e na minha avaliação o Paquistão está em um momento crucial. Mais um ou dois anos e saberemos, mas o país está mais perto de se tornar um Estado falido do que jamais esteve em vinte anos.
— Um Estado falido com armas nucleares — acrescentou Clark.
— Certo.
— E por que você fica aqui? — perguntou Chavez.
— Porque é o meu lar.
Alguns minutos depois, Chavez disse:
— Voltando para Hayatabad... O que me pergunto é: quem não vive lá?
— E essa é uma boa pergunta — disse Embling. — Ainda que seja uma medida subjetiva, os três maiores atores aqui, que são o CRO, o Lashkar-e-Taiba e o Sipah-e-Sahaba, anteriormente conhecido como Anjuman, geralmente estão agrupados em volta do acantonamento militar de Peshawar, a Cidade Velha, e na área de Saddar. Quanto mais perto do acantonamento estejam, mais dominantes são. Quem atualmente tem esse título é o CRO.
— Por sorte, estamos interessados primariamente nessas áreas — disse Clark.
— Imaginei. — Um sorriso de Embling. — Minha casa é logo fora do acantonamento, perto do forte Balahisar. Vamos ter um almocinho e falar de negócios.
Mahmood, o doméstico de Embling — um termo que Clark tinha dificuldade para fazer sua cabeça entender completamente, apesar de saber que era comum por ali —, serviu a eles um almoço de raita, uma salada de iogurte e vegetais; lentilhas cozidas; e kheer, um pudim de arroz, que Chavez imediatamente adorou devorar.
— Qual é a história do rapaz? — perguntou Clark.
— A família dele foi assassinada naqueles dias ruins que se seguiram ao assassinato de Bhutto. Ano que vem irá para Harrow, em Middlesex.
— Está fazendo uma boa coisa, Nigel — disse Chavez. — Você não tem nenhum...
— Não. — Seco.
— Desculpe. Não pretendia enfiar o nariz nos seus assuntos.
— Não precisa se desculpar. Perdi minha esposa em 1979, quando os soviéticos invadiram. Lugar errado, hora errada. Quem quer chá? — Depois de servir uma xícara para cada um, disse: — O que teremos, cavalheiros? Pessoa, lugar, ou coisa? De que vocês estão atrás, quero dizer.
— Para começar, um lugar. Na verdade, lugares — respondeu Clark. Tirou da pasta uma ampliação digital do mapa Baedeker, empurrou para o lado xícaras e pratos, e o abriu sobre a mesa. — Se você olhar de perto...
— Locais de troca — interrompeu Embling. Observou as expressões atônitas de Clark e Chavez e sorriu. — Nos antigos dias da espionagem, cavalheiros, locais de troca eram o nosso pão com manteiga. Três pontos para ponto de entrega; quatro para recolhimento?
— Reverta isso.
— O quão recente é o mapa?
— Não tenho ideia.
— Então não temos como saber se os pontos ainda estão ativos. Onde vocês...
— Nas montanhas — respondeu Chavez.
— Em um lugar escuro e úmido, suponho. Os proprietários anteriores... estavam presentes?
Clark assentiu.
— E fizeram todo o possível para destruí-lo.
— É um ponto a nosso favor. A menos que eu esteja desatualizado, os três pontinhos representam tanto um lugar de recolhimento quanto um sinal para o próximo recolhimento.
— Também achamos isso — respondeu Clark.
— Vocês estão interessados no que está sendo deixado e recolhido, ou em quem faz cada uma ou as duas coisas?
— Em quem.
— E vocês conhecem o sinal?
— Não.
— Bem, provavelmente essa é a menor de nossas preocupações.
— Como assim? — perguntou Chavez.
— Não estamos muito interessados na correção do sinal e sim em identificar quem se interessa por ele. Nesse caso, temos que escolher cuidadosamente nossa localização. — Embling ficou em silêncio, estalando a língua e olhando o mapa. — Aqui vai minha sugestão. Aproveitamos a tarde para fazer uma campana...
— Uma o quê? — perguntou Chavez.
— Reconhecimento.
— Devo ter perdido a palavra quando andei por lá.
— Passamos algum tempo em Hereford — explicou Clark a Embling.
— Uma turma bem sombria — respondeu Embling. — É bom ver que vocês não perderam o sorriso. Muito bem, deixaremos os senhores confortáveis com o território, e amanhã começamos a jogar iscas. Se não, temo que hoje possamos perder a luz do dia.
Apesar de a maior parte dos pontos estar bem fora do acantonamento, decidiram se concentrar nos quatro dentro da Cidade Velha, primeiro passando de carro pelo perímetro, seguindo mais ou menos a muralha que encerrava o local até meados dos anos 1950.
— Havia 16 portões na muralha, completos com torreões e bastiões para arqueiros — disse Embling, apontando para fora da janela de passageiros. — De fato, em persa, Peshawar quer dizer “O Forte Alto”.
Clark gostou de Embling, em parte porque durante seu período com a Rainbow ele chegara a conhecer um pouco melhor a mentalidade britânica, e em parte por ele ser um personagem autêntico — com ênfase nesse último aspecto. Dada a maneira como se entusiasmava ao falar de Peshawar, Clark meio que imaginava se o sujeito não havia nascido cem anos atrasado. Nigel Embling estaria bem à vontade ali durante a época do domínio britânico.
Embling achou um lugar para estacionar perto do Lady Reading Hospital, onde desceram e caminharam para dentro da Cidade Velha. As ruas do acantonamento fervilhavam de atividade: corpos, movendo-se ombro a ombro, saíam e entravam de becos e debaixo de toldos de lona; crianças olhavam os passantes através de barras de ferro nos balcões no alto das casas. O cheiro de carne assada e tabaco forte enchia o ar, juntamente com a Babel de vozes misturadas falando em urdu, punjabi e pashtun.
Depois de caminhar alguns minutos, entraram numa grande praça.
— Chowk Yadgaar — anunciou Embling. — Todos os pontos de entrega estão a menos de 1 quilômetro desta praça.
— Escolhida provavelmente por causa da multidão — disse Chavez. — Difícil de ser visto, fácil de desaparecer.
— Outra observação astuta, jovem Domingo — disse Embling.
— Tenho meus momentos.
Clark disse:
— Vamos nos separar e checar os pontos. Nos encontramos aqui de novo em uma hora. — Decidiram quem iria para cada ponto e se separaram.
Encontraram-se novamente e compararam suas anotações. Dois dos pontos — um dentro de um pequeno pátio entre o bazar dos joalheiros e a mesquita Mahabbat Khan, e outro em um beco perto do local do Portão Kohati — mostravam leves traços de uma marca de giz, o padrão-ouro para sinalizar pontos de recolhimento desde a Guerra Fria. O giz desbotava facilmente e era facilmente tomado por brincadeira de crianças. Clark tirou o mapa, e Embling verificou as duas localizações.
— Portão Kohati — disse. — Mais fácil de vigiar, e o lugar mais próximo da saída do acantonamento.
— Feito — disse Clark.
— Ainda é cedo — declarou Embling. — Vocês se interessam por críquete?
46
Sem querer arriscar serem vistos colocando a marca do recolhimento, Clark e Chavez despertaram na manhã seguinte bem antes de o sol nascer e viram que Embling já estava de pé, fazendo café e preparando uma frasqueira com rações para o dia. Assim munidos, dirigiram-se para o acantonamento, dessa vez no outro carro de Embling, um Honda City 2002 azul, malconservado, e chegaram em Chowk Yadgaar 15 minutos depois, separando-se na escuridão de antes do amanhecer: Chavez e Clark fazendo uma caminhada para se familiarizar novamente com a área e testar os rádios portáteis com o fone de ouvido, o microfone e o sistema “aperte para falar” com que Gavin Biery os equipara; Embling vigiando o local do Portão Kohati e colocando a marca. Quarenta minutos depois, todos se encontraram em Chowk Yadgaar.
— Tenham em mente — disse Embling — que há um posto policial a poucas centenas de metros abaixo da praça. Se forem detidos... — Parou e riu. — Olhem só para mim, tagarelando. Imagino que vocês dois já fizeram esse tipo de coisas antes.
— Uma ou duas vezes — disse Clark. Ou cem. Operar pontos de entrega não era uma tarefa assim tão comum, mas os métodos universais de vigilância e contravigilância ainda se aplicavam. Como esperavam pelo adversário em vez de segui-lo, a distração seria o inimigo mais poderoso. Distraia-se, perca o foco, deixe passar alguma coisa. No fundo da mente de Clark um relógio contava o tempo: quanto tempo permaneceriam em Peshawar esperando alguém que verificasse o ponto antes de decidir que a rede estava morta?
— Então, tudo certo — disse Nigel. — Vou estacionar o carro mais perto do Portão Kohati. Estou com o celular ligado.
Quando os primeiros camelôs chegaram para levantar seus toldos e montar quiosques e mesinhas, Chavez assumiu o primeiro turno.
— Posicionado — emitiu ele pelo rádio.
— Entendido — respondeu Clark pelo microfone no colarinho. — Me avise quando Nigel passar.
Dez minutos transcorreram.
— Já o vi. Acabou de passar pelo Portão Kohati. Está estacionando.
Agora a gente espera, pensou Clark.
Enquanto a Cidade Velha se enchia de movimento e os turistas e locais começavam a afluir, Clark, Chavez e Embling se revezavam pela área do Portão Kohati, fluidamente e sem nem mesmo trocar um olhar, transferindo a vigilância para o seguinte, que fazia o melhor possível para passar o tempo sem parecer óbvio: parando pelos quiosques para regatear com os proprietários o preço de um colar ou de um camelo esculpido em madeira, fotografando a arquitetura, e falando eventualmente com algum local que se interessasse por saber de onde era e o que o levara até Peshawar — e durante todo o tempo mantendo metade de sua atenção focada na marca de giz feita no tijolo de argila na parede do beco no lado oposto ao portão.
Às onze e quinze, Clark, que estava de turno, sentiu um tapinha no ombro e deu de cara com um policial.
— Americano? — perguntou a Clark em um inglês arrevesado.
Clark respondeu com um sorriso de simpatia:
— Não, canadense.
— Passaporte. — Clark entregou. O policial o examinou por trinta segundos, fechou e o devolveu. Apontou para a câmera digital de Clark. — Que fotos?
— Desculpe?
— Você fotografa. O quê?
Clark acenou para os edifícios próximos.
— Arquitetura. Trabalho para a National Geographic. Estamos fazendo uma matéria sobre Peshawar.
— Você tem permissão?
— Não sabia que precisava de uma.
— Permissão.
Clark compreendeu. Baksheesh. No mundo muçulmano, o termo significava tanto esmola para mendigos, gorjetas, ou suborno, o que era o caso ali.
— Quando custa a permissão?
O policial olhou Clark de cima a baixo, avaliando o quanto valia.
— Mil e quinhentas rupias.
Cerca de 20 dólares. Clark tirou um maço de notas amarrotadas do bolso “leve” e entregou três notas de 500 rupias.
— Só este dia ficar aqui?
— Talvez volte amanhã — respondeu Clark com um sorriso amistoso. — Posso pagar adiantado pela permissão?
A oferta provocou um sorriso no rosto do policial, que até então permanecia sério.
— Claro que sim.
— Há desconto para pagamento adiantado? — A maioria dos comerciantes paquistaneses ficavam ligeiramente ofendidos se as vítimas não regateassem um pouco.
— Mil e quatrocentas rupias.
— Mil e duzentas.
Depois, previsivelmente:
— Mil e trezentas.
Clark entregou as notas, o policial assentiu e deu no pé.
— O que ele queria, chefe? — Chavez perguntou pelo rádio de algum lugar não visível.
— Me extorquir. Tudo bem.
A voz de Embling:
— Temos um peixe beliscando, John.
Clark levantou a câmera e, olhando pelo visor, virou vagarosamente, como um turista procurando uma boa foto, até que o beco e o Portão Kohati estivessem enquadrados. Um garoto de 7 ou 8 anos, usando roupas imundas de lona branca e uma camiseta azul da Pepsi, estava inclinado ao lado do tijolo com a marca. Depois de um instante, cuspiu nas mãos e esfregou vigorosamente até limpá-lo.
— E mordeu — informou Clark. — Está saindo pelo portão. Calça branca, camiseta azul da Pepsi.
— Estou a caminho — acrescentou Chavez.
— Indo para o carro — relatou Embling. — Encontro vocês lá fora.
Chavez alcançou Clark, que tinha acabado de chegar ao lado de fora do portão, em menos de um minuto.
— Ele desceu a rua. Do nosso lado, acabou de passar pelo Opel azul.
— Estou vendo.
Embling ligou o Honda e os dois entraram. O inglês saiu, virou para evitar um caminhão de entrega que se aproximava do portão, acelerou forte por cinco segundos e depois voltou para o limite de velocidade quando se aproximaram e ultrapassaram o garoto. Embling entrou na primeira à direita, adentrou uns 30 metros pela rua lateral e fez um retorno rápido e retornou para o cruzamento, parando a uns 10 metros. Pela janela, puderam ver o garoto virar à esquerda ainda na sua rua, cruzando-a diagonalmente num trote e entrando em uma tabacaria.
— Vou lá — disse Chavez no banco traseiro, estendendo a mão para a maçaneta.
— Espere — murmurou Embling, olhar fixado na loja.
— Por quê?
— Seja lá para quem ele trabalhe, provavelmente tem outros à disposição. É um hábito local; pequenos mensageiros para tarefas sem importância.
Sessenta segundos depois, o garoto reapareceu na calçada. Olhou para os dois lados, depois chamou um homem sentado em um banco duas portas abaixo. O homem respondeu alguma coisa e apontou diretamente para o Honda de Embling.
— Virada desalentadora — disse Embling.
Clark respondeu com calma:
— Não se ele vier em nossa direção. Se estivermos queimados, ele vai para o lado oposto.
Não foi. Dando uma arrancada, correndo e se esquivando de uma corrente de carros buzinando e desviando, o garoto cruzou as ruas e passou bem ao lado deles. Do assento traseiro, Chavez disse:
— Um quarteirão mais para cima, virou para leste.
Nigel engatou o carro e foi até o semáforo, esperando por uma brecha no trânsito. Quando apareceu, dobrou à esquerda.
— Aqui vamos paralelos a ele por dois quarteirões. — Na parada seguinte, ele dobrou à direita e depois à esquerda, e parou diante do playground de uma escola.
— Já o vi — disse Clark, com o olhar fixado no retrovisor lateral.
O garoto se enfiou por uma porta coberta por um toldo vermelho e voltou alguns segundos depois com outro rapaz, esse já adolescente, de cabelos negros crespos e um casaco de couro. Enquanto o primeiro garoto falava e gesticulava, o adolescente foi até um posto próximo e começou a abrir uma corrente com cadeado que protegia uma mobilete amarela.
— Boa jogada, Nigel — disse Clark.
— Veremos. Esses garotos com mobiletes por aqui acham que manejam motocicletas de corrida.
Aquele, logo perceberam, não era exceção. Apesar de sua velocidade máxima não ultrapassar os 40 quilômetros por hora, o adolescente costurava pelo meio do trânsito com uma irregularidade aparente que fez Clark se lembrar de uma pipa em dia de vento. Por sua vez, Nigel não seguia o motociclista em todas as suas mudanças de faixa. Em vez disso, continuava em frente, sempre mantendo a mobilete amarela à vista e mudando de pista só quando se fazia necessário.
O adolescente seguiu rumo sudoeste para fora do acantonamento, primeiro pela estrada de Bara, depois para noroeste, passando pelo viaduto do anel viário. As placas de rua, escritas em urdu, eram indecifráveis para Clark e Chavez, mas Embling comentava o trajeto.
— Cruzando o canal Cabul — anunciou.
— Estamos nos aproximando de Hayatabad, não é? — perguntou Chavez.
— Boa observação. Sim, estamos. Mais uns 5 quilômetros. Chegando a Gul Mohar.
No último momento, a mobilete dobrou à direita cruzando duas pistas e pegou a saída. Embling, que já estava na pista direita, simplesmente ligou o pisca-pisca e entrou.
Nos vinte minutos seguintes, o adolescente fez o que só podia ser um trajeto de precauções — e fez um trabalho bem decente nesse sentido, Clark teve que admitir. Passaram pela Universidade de Peshawar, pelos escritórios do Departamento de Turismo, e pelo Cemitério Inglês, até que finalmente o garoto seguiu para norte pela estrada de Pajjagi, passou pelo Clube de Golfe de Peshawar, e mais uma vez cruzou o canal Cabul. Logo estavam nos arredores da cidade. Campos irrigados apareciam à direita e à esquerda deles. Embling diminuiu a velocidade até a mobilete se tornar apenas uma mancha de amarelo brilhante.
Depois de 10 quilômetros, a mobilete dobrou para oeste e seguiu por uma estrada sinuosa e arborizada antes de se enfiar numa estreita entrada para carros. Embling parou a algumas centenas de metros antes, fez a volta e desligou o motor. Esperaram. Assim tão longe da cidade não havia buzinas tocando nem motores acelerando. Os minutos tiquetaqueavam até passar meia hora.
O barulho de um motor desceu pela estrada. Embling ligou o carro e acelerou até outra entrada, a uns 500 metros dali, e entrou, descendo por uma estrada de terra até que a via principal mal fosse visível pela janela traseira. Adiante havia um celeiro velho, o telhado parcialmente destruído. Chavez se virou no banco. Um instante mais tarde, a cabeça do rapaz passou pela janela.
— Você é quem manda, John.
— Deixa ele ir. Acho que encontramos o que procurávamos. Se o garoto for verificar o ponto de recolhimento, logo mais vai estar de volta.
E voltou, quarenta minutos depois, passando disparado pela entrada onde estavam. Um pouco depois, o motor da mobilete se silenciou.
— Diria que você encontrou sua presa — disse Embling.
Clark assentiu.
— Vamos passar por lá de carro e ver o que for possível.
Uma hora mais tarde, de volta à casa de Embling, Clark e Chavez tomavam chá enquanto seu anfitrião fazia três chamadas telefônicas falando rápido em urdu. Desligou e disse:
— É uma empresa de segurança particular.
— Eu me pergunto do quem ele tem medo.
O que eles viram quando passaram foi uma van branca com um cartaz branco e vermelho, parada na estrada de terra e, próxima a ela, uma casa de fazenda de dois andares.
— Isso eu não sei, nem consegui descobrir o nome do cliente. A empresa foi contratada há pouco tempo, entretanto. De fato, na semana passada. Dois homens por turno, cobertura 24 horas.
Clark verificou o relógio. O pôr do sol seria dali a cinco horas. Olhou para Chavez, que já havia lido a mente de seu parceiro.
— Vamos lá pegá-lo.
— Nigel, suponho que você não tenha ferramentas...
— Tenho sim. De fato, um belo conjunto.
47
Duas horas depois do pôr do sol, Clark enfiou o Honda de Embling na entrada do celeiro abandonado. Deixou em ponto morto, desligou o motor, e permitiu que o impulso fizesse o carro descer pela pendente até a sombra ao lado da parede da construção. Quando o carro parou, Clark engrenou na primeira, Chavez desligou a luz interna e os dois desceram.
Nigel não havia exagerado o tamanho de seu esconderijo de armas, que guardava num velho baú de navio no seu vestiário. Eles escolheram um par de pistolas SIG Sauer P226 9 milímetros, com silenciador. Armamento de mão padrão para o SAS britânico. Os dois tinham passado muitas horas no estande de tiros com a P226. Por insistência de Embling, cada um pegou também um cassetete de couro e chumbo.
— Nunca se sabe quando é preciso ter um momento de misericórdia — disse ele, com um sorriso.
Chavez sussurrou:
— Qual é o plano?
— Provavelmente um guarda do lado de fora, parado ou patrulhando, e outro lá dentro. Abatemos o primeiro e depois lidamos com o outro quando o momento chegar. Ding, primeiro experimente o cassetete. Quanto menos cadáveres deixarmos, melhor.
— Por mim, tudo bem.
Os dois se separaram, Clark indo para oeste através das árvores atrás do celeiro e Chavez seguindo a vala de drenagem que margeava a estrada principal.
— Posicionado. — Clark escutou pelo fone de ouvido.
Essa foi rápida, pensou ele. Ah, ser jovem mais uma vez.
— Aguarde aí.
Ele se demorou na movimentação entre os arbustos, verificando cuidadosamente galhos baixos ou no chão que pudessem denunciar sua posição no escuro. Depois de uns 400 metros, as árvores começaram a diminuir, e logo ele se viu na ponta norte do retorno, a 25 metros do outro lado da entrada.
— Posicionado — sussurrou. — Onde está você?
— No fim da vala de drenagem, perto do acostamento da entrada.
— Vejo uma sentinela. Sentada numa cadeira de jardim diante do para-choque da van.
— Pode repetir?
— Sentado numa cadeira de jardim, fumando, olhando na minha direção. — Quem os contratara não estava recebendo pelo que pagou. — Tem uma Type 56 encostada no para-choque à direita dele. — O Type 56 era uma cópia chinesa do AK-47. Não tinha a mesma qualidade, mas certamente era de se preocupar.
Chavez disse:
— Vejo uma luz acesa, andar de baixo, do meu lado.
— Aqui tudo escuro. Sem movimentos. Avance quando estiver pronto.
— Entendido.
Mesmo sabendo que Ding estava se movimentando, Clark não o localizou até estar a 3 metros do para-choque traseiro da van. Os ninjas são os donos da noite era o lema da antiga unidade de Chavez. E ele ainda fazia justiça a isso, sabia Clark.
Chavez alcançou o para-choque, deu uma olhada pelo lado e caiu de cócoras para esperar.
— Ainda nada — sussurrou Clark depois de um minuto.
Recebeu um clique duplo de entendido como resposta.
Chavez recuou, movimentando-se pelo outro lado da van, fora de vista. Dez segundos depois, uma sombra apareceu ao lado do guarda sentado. Um dos braços se levantou para trás e desceu. O guarda caiu para a frente, deslizando de lado pela grade do radiador da van. Chavez o puxou de volta e apagou o cigarro caído no chão.
— Apagado.
— Entendido. Movendo.
Os dois se encontraram nas sombras da parede sul da casa. A varanda e a porta da frente estavam à sua esquerda. Com Clark adiante, os dois deslizaram até avistar a entrada. A porta interna estava aberta, mas a entrada com tela estava fechada. Subiram na varanda e se posicionaram a cada lado da porta. Podiam agora ouvir o ruído longínquo de uma televisão dentro da casa. Clark, ao lado da maçaneta, estendeu a mão e a experimentou. Trancada. Pegou seu canivete no bolso de trás da calça e, gentil e cuidadosamente, enfiou a ponta no arame até fazer uma abertura de uns 15 centímetros. Fechou o canivete e o colocou de volta no bolso, depois passou a mão e foi tateando até achar o que procurava. Um suave clique. Retirou a mão e ficou imóvel por um minuto.
Clark acenou para Chavez, que retribuiu, e depois veio andando de cócoras, passando pela porta e se posicionando atrás dele, que estendeu o braço e girou a maçaneta. Abriu a porta cerca de 2 centímetros, parou, depois abriu mais uns 5. Independentemente da idade ou das condições, portas de tela sempre tendem a estalar. Talvez seja a exposição aos elementos.
Aquela porta não desapontou. No meio do caminho as dobradiças rangeram. Clark se imobilizou. Chavez avançou para poder observar por baixo do braço estendido de Clark para dentro da casa. Recuou e assinalou limpo. Centímetro a centímetro, vagarosamente, Clark abriu a porta até o fim. Entrou com a arma à frente. Chavez segurou a porta e o seguiu, fechando-a cuidadosamente atrás de si sem provocar mais que outro barulho metálico.
Estavam na cozinha. Balcões de madeira, armários e uma pia à esquerda, mesa de jantar redonda no centro. Uma passagem arqueada à direita levava a outra sala. Chavez verificou e apontou o polegar para cima. Entraram no que evidentemente era uma sala de estar. À direita, escadas levavam ao segundo andar. Adiante, um saguão pequeno. Era dali que vinha o ruído de televisão. Cada um em uma parede, os dois se movimentaram pelo corredor, avançando e pausando, avançando e pausando, até chegarem a 3 metros da porta aberta. Clark percebeu lá dentro a luz azul-acinzentada da televisão refletindo nas paredes.
Clark percorreu o restante da distância e tomou posição ao lado da maçaneta. Acenou para Ding, que veio pela parede da direita até ter um ângulo por onde podia ver além da porta. Recuou dois pés e gesticulou: Dois homens sentados. O que estava mais perto da porta estava armado. Clark sinalizou de volta: Eu pego esse; você varre a sala.
Chavez assentiu.
Clark passou a arma para a mão esquerda e tirou o cassetete do cinto. Com um leve sinal com a cabeça, inclinou-se pela esquina, localizou seu alvo e golpeou com o cassetete na testa do homem. Enquanto o sujeito deslizava para o chão, Chavez já estava dentro da sala, arma em punho. Parou. Sua testa franziu. Balançou o dedo para Clark, que avançou pela porta.
O homem estava dormindo.
Chavez o despertou com uma pancadinha do cano da pistola no seu nariz. Os olhos piscaram e abriram, e Chavez disse:
— Inglês?
O homem se espremeu ao máximo contra o fundo da cadeira.
— Inglês? — repetiu Chavez.
— Sim, falo inglês.
Clark disse:
— Se assegure de que este aqui e o Sr. Cadeira de Jardim estão mesmo incapacitados para ação. Eu cuido dele. — Chavez empurrou o guarda para o chão, depois agarrou seus punhos e o arrastou pelo corredor até a sala de estar, e saiu.
— Como você se chama? — perguntou Clark ao anfitrião deles.
Nenhuma resposta.
— Se você não quer me dizer nem seu nome, vamos passar uma noite longa e feia aqui. Vamos começar com seu primeiro nome. Não há problema nisso.
— Abbas.
Clark puxou a cadeira vazia onde o guarda estivera, girou e sentou de modo que estivessem de joelho contra joelho.
A porta de tela abriu e fechou. Chavez voltou com o primeiro guarda no ombro do jeito que bombeiros carregam. Sem cerimônias, jogou-o ao lado do seu colega.
— Achei um rolo de fita crepe na van — disse a Clark, e começou a trabalhar nos dois. Quando terminou, juntou-se a Clark.
— Vamos nos assegurar de que começamos com o pé direito — disse Clark a Abbas. — Você sabe o que isso quer dizer?
— Sim.
— Não acredito que seu nome seja Abbas. Vou pedir a meu amigo que reviste a casa procurando por qualquer coisa que tenha um nome escrito. Se não for Abbas, vamos começar a machucar você.
— Meu nome é Obaid. Obaid Masood.
— Ótimo. — Clark acenou para Ding, que começou a vasculhar por ali. — Quer mudar sua resposta enquanto ainda há tempo?
— Meu nome é Obaid Masood. Quem são vocês?
— Depende de como responda minhas perguntas. Coopere e somos amigos. Não coopere... Conte para mim sobre esses guardas. Você acha que precisa deles?
Masood deu de ombros.
— Escute, se você estivesse preocupado com a polícia ou com o Exército, provavelmente eles já teriam passado por aqui, o que me sugere que você andou com más companhias. Talvez alguém para quem você trabalhou?
Chavez reapareceu. Assentiu: Está dizendo a verdade.
— Alguém para quem você trabalhou? — repetiu Clark.
— Talvez.
— O Conselho Revolucionário Omíada?
— Não.
— Você assiste a beisebol?
A testa de Masood franziu.
— Já assisti, sim.
— Vamos dizer que esse seu “não” foi a segunda falta — disse Clark. — Mais uma e vou atirar no seu pé. Você já se perguntou como o achamos?
— As marcas de mensagens?
— Certo. E de quem você supõe que conseguimos isso?
— Percebo.
— Acho que não. Nós descobrimos você. Eles podem te achar.
— Você é americano.
— É verdade. O que você vai ter que decidir é se nos odeia mais do que tem medo deles. Porque, se não começarmos a ouvir algumas respostas, vamos levar você até Hayatabad e jogá-lo para fora do carro.
Isso despertou a atenção de Masood.
— Não faça isso.
— Me convença.
— Eu trabalhei para o ISI. Eu... transportava pessoas. As realocava.
— Como um agente de viagem clandestino? — observou Chavez.
— Sim, acho que sim. Há oito meses me procuraram.
— Quem?
— Não o conhecia, e nunca mais o vi novamente.
— Mas era do CRO, correto?
— Descobri isso mais tarde. Ele me ofereceu um monte de dinheiro para mover alguém.
— Quanto?
— Duzentos mil dólares americanos.
— E você conheceu essa pessoa?
— Não.
— O que exatamente você fez por eles?
— Passaportes, documentação, aviões particulares. Assegurar que as pessoas certas na alfândega e na imigração fossem pagas. Levei cinco meses para preparar tudo. Eram muito meticulosos nas suas exigências e me faziam conferir duas ou três vezes cada um dos arranjos.
— E quando você entregou tudo?
— Há dois meses.
— Você entregou tudo para eles? — perguntou Chavez.
— O que você quer dizer?
— Guardou cópias?
— Cópias em papel?
— Qualquer tipo de cópias, Obaid. — Clark endureceu um pouco mais a voz.
— Tenho um disco rígido.
— Aqui?
Masood assentiu.
— Preso com fita adesiva embaixo da pia da cozinha, dentro de um saco plástico.
Chavez saiu e voltou um minuto depois, com um saco Ziploc. Dentro havia um disco rígido do tamanho de um maço de baralhos.
— Oito giga — disse Chavez.
— Em inglês, Ding.
— Muito espaço de armazenamento. — Mostrou o saco para Masood. — Tudo o que você fez para eles está aqui?
— Sim. Escâneres digitais, e-mails... Tudo. Vocês podem me tirar daqui? Para fora do país?
— Pode levar algum tempo — disse Clark —, mas faremos isso. Até lá, não vamos perder você de vista. Levante.
Masood assim o fez. Clark lhe deu uma palmadinha nas costas.
— Bem-vindo ao lado dos mocinhos. — Empurrou Masood para a porta.
Ding pegou no cotovelo de Clark e falou:
— Um instante?
— Vá na frente, Obaid. Espere por nós aí.
Chavez disse:
— Você pensa em escondê-lo com Nigel?
— Sim.
— Existe uma grande chance de que alguém o descubra. E, se acharem, a coisa acaba para Nigel e para o garoto.
— Alguma ideia melhor?
Chavez fez uma pausa.
— Estamos com o disco. Talvez possamos cortar as pontas soltas e... — Chavez inclinou a cabeça para o lado, olhando por cima do ombro de Clark. — Merda.
Passos soaram na outra sala.
— Ele me ouviu! Droga!
Chavez disparou pela porta, atravessou a sala de estar e entrou na cozinha bem na hora em que a porta de tela fechou.
— Ah, maldição! — Estava na metade do caminho para a tela quando um crack o deteve. De cócoras, recuou até a sala de estar. Clark já estava lá, espichando a cabeça para olhar pelo parapeito. Viu dois fachos de luz vindos de um carro estacionado na entrada. Deitado no foco de um dos fachos estava Masood. Uma pessoa carregando uma pistola foi até ele, ajoelhou-se e disparou duas vezes na sua cabeça, depois se levantou e caminhou de volta para os faróis. Uma porta bateu, seguida pelo barulho de pneus no cascalho.
Silêncio.
— O que diabos acabou de acontecer? — sussurrou Chavez.
— Eram os visitantes que o preocupavam.
— E nós?
— Devem ter suposto que Masood fugia deles. Vamos dar o fora daqui antes que pensem duas vezes.
48
Jack escutou no computador a melodia que anunciava a chegada de um e-mail. Olhou de imediato, e conferiu novamente.
— Olá... — Pegou o telefone, ligou para Rick Bell e lhe contou o que tinha, e alguns instantes depois estavam na sala de conferências com Sam Granger.
— Conte a ele, Jack — indicou Bell.
— Sabe o sujeito que achamos que pode ser um mensageiro do CRO?
— Hadi?
— Certo. Achei algo sobre as finanças dele; um cartão de crédito. Está se movimentando, agora mesmo. Um avião 747 da Alitalia que saiu do Aeroporto Da Vinci em Roma para Pearson, em Toronto.
— E de lá?
— Chicago, mas nada além disso em seu cartão de crédito, ainda.
— Ou é o destino ou uma parada de despiste — disse Bell, usando o velho jargão da CIA para vigilância de viagens. — Chicago é um aeroporto de conexões; de lá ele pode ir para qualquer lugar, dentro do país ou sair para o exterior novamente.
— Quanto tempo temos? — perguntou Granger.
— Quatro horas — respondeu Jack.
Granger perguntou:
— Rick, quanto de certeza temos sobre esse sujeito?
— Setenta e cinco por cento. Está numa lista conhecida de distribuição do CRO, se movimenta muito por aqui, pela Europa e pela América do Sul. Melhor possibilidade: ou é um mensageiro tempo integral ou freelancer fazendo logística para eles. Nos dois casos, vale a pena o esforço. Estamos com ele dentro de um avião, com destino e hora de chegada conhecidos. Nada muito além disso.
Granger ficou em silêncio por um instante, e depois:
— Muito bem, chamem o Kingfisher para a sala de conferências. Estou descendo.
— Então, o que está acontecendo? — perguntou Dominic Caruso ao entrar na sala de conferências. Exceto por Clark e Chavez, todos os demais já estavam reunidos. Brian, Rick Bell, Jerry Rounds.
Jack explicou brevemente.
— Puta merda — falou Dominic.
— Exatamente as minhas palavras.
— Quando o avião aterrissa?
— O horário é às três e vinte — respondeu Jack.
Sam Granger entrou e sentou à cabeceira da mesa de conferências.
— Muito bem, são oito e quarenta aqui, calcule uns setenta, 75 minutos até Toronto. Não temos tempo para fazer muita coisa. Pelo menos não sem apoio oficial. A que horas Clark e Chavez chegam?
Rick Bell conferiu no relógio.
— Em uns quarenta minutos.
— Vamos ver se conseguimos enfiar os dois também nisso. Jack, você tem o pedigree de Hadi?
— Sim.
Distribuiu os documentos e se seguiram sessenta segundos de silêncio até que todos folheassem as páginas.
— Temos alguma foto do cara? — perguntou Brian.
— Nada — respondeu Jack. — Nenhuma descrição.
— De Roma para Toronto, e de lá para Chicago e depois... Nenhuma informação, certo?
— Correto — confirmou Jack com um aceno.
— Se essa fosse uma operação do Bureau — disse Dominic —, entraríamos em contato com a Polícia Montada do Canadá e inundaríamos o aeroporto com policiais à paisana para tentar identificar o sujeito e segui-lo para onde fosse. Mas não podemos fazer isso, não é?
— Voamos até Toronto — disse Jack. — Usamos o padrão de reconhecimento visual e rezamos para ter sorte. Vamos supor que conseguimos identificar o nosso alvo. Então, o que podemos fazer?
— Vigilância encoberta — disse Dominic. — Tentar segui-lo até qualquer buraco aonde vá. E não vai ser fácil. Mesmo que consigamos, não podemos prendê-lo, não podemos interrogá-lo, não podemos fazer muita coisa, a menos que alguém autorize que ele seja liquidado.
— De modo algum — declarou Granger. — É a única pista que conseguimos de um perdigueiro do CRO. Nós o seguimos, o marcamos ou o capturamos, nessa ordem.
— Vamos conseguir informação — disse-lhes Bell. — Qualquer coisa que conseguirmos é mais do que temos agora. Pequenos passos, rapazes.
— Vamos ver o chefe — disse Granger.
*
— Temos um pássaro no ar — informou Jack a Hendley poucos minutos depois. — O nome do alvo é Hadi, a caminho de Toronto. Seu avião chega depois das três da tarde, hora local.
— Querem tentar localizar o sujeito? — perguntou Hendley.
— É uma possível bola com efeito que caiu no nosso colo — disse Rounds. — Mas a informação sobre ele é um tanto escassa — precisou admitir.
— Então, o que temos exatamente? — perguntou Hendley. Jack lhe entregou o impresso e Hendley sentou para ler. — Boa pescaria — disse, após examinar brevemente o papel. — Muito bem, vamos mandar todo mundo...
— Clark e Chavez estão quase aterrissando. Vamos ver se conseguimos interceptá-los.
— Ótimo. Jack, Dom, Brian, peguem cartões de crédito e celulares do segundo andar.
Todos foram juntos para o Aeroporto Internacional de Baltimore-Washington no Mercedes Classe C de Brian. Havia um 747 com horário marcado para sair rumo ao Canadá dentro de 75 minutos, informou Rounds pelo telefone. Havia passagens esperando para todos eles. Uma vez no terminal, recolheram as passagens, localizaram o voo de Chavez e Clark no painel e foram para lá.
— Como são os policiais canadenses? — perguntou Brian a Dominic.
— Tradição britânica, mas com aspectos locais. A RCMP, os Montados, existem há muito tempo, e são muito bons na investigação, mas nunca interagi com eles.
— Usam casacos vermelho vivos — disse Brian. — Mas isso pode os tornar um alvo fácil, especialmente quando estão em cima de um cavalo.
— Também são bons sujeitos — lembrou Dominic ao irmão.
Brian soltou uma risadinha.
— Só uma observação casual.
Clark e Chavez saíram do avião, viram Jack e os demais e foram na direção deles.
— Serviço porta a porta? — perguntou Clark.
— Temos algo no forno. Vocês estão prontos para seguir?
— Desde que primeiro você me arranje uma Starbucks — disse Chavez.
Jack explicou a situação quando saíram do posto de segurança e foram até o balcão buscar os cartões de embarque para Clark e Chavez.
— Então, como fazemos isso? — perguntou Jack a Clark, depois de passarem pela segurança.
— Procurem por um sujeito que pareça não fazer parte do ambiente. Ele deve ter algum treinamento de espionagem, e presumivelmente sabe como se fazer invisível. Procurem isso. Não vai ficar olhando por aí como a maioria dos turistas, não fará nada que possa chamar atenção para ele, mas provavelmente não demonstrará ampla familiaridade com a localização. Então, um tipo de negociante que parece não conhecer o local. Quando ele olhar ao redor, vai fazer isso cuidadosamente. Provavelmente vai ser cuidadoso, procurando ver se está sendo vigiado. Vocês já aprenderam como fazer isso. Procurem por alguém que esteja fazendo o mesmo que ensinaram a vocês. É mais uma arte do que uma ciência.
— Então o que diabos vamos fazer? — exigiu Brian.
— Pareçam turistas americanos. Desliguem tudo, todo o treinamento. Sejam simplesmente idiotas normais. Ninguém presta atenção neles. A menos que você esteja na Terra Vermelha, na velha União Soviética, por exemplo. Lá você, sobretudo, nunca sorri. Os russos quase nunca sorriem, é uma coisa estranha da cultura deles. Não é fácil, eu sei. Mas faço isso há quase trinta anos. É um pouco mais fácil lembrar quando é seu rabo que está na reta — concluiu com um sorriso.
— Quantas vezes?
— Rússia? Mais de uma vez, e em todas fiquei apavorado. Você entra lá nu, sem arma, sem lugar para onde fugir, apenas com um “rótulo”, e alguma cobertura na retaguarda se você tiver sorte.
— Cobertura na retaguarda?
— Referências que podem aguentar uma investigação leve. O hotel onde você ficou na última cidade, o telefone do empregador... Coisas assim.
— Faz tempo que quero perguntar — disse Dominic. — Que tal são esses sujeitos, nossos inimigos atuais?
Clark pensou no assunto. Então, respondeu:
— Parte de mim diz que são a mesma coisa: motivação diferente, perspectiva diferente, tudo isso, mas fazendo a mesma merda. Mas outra parte não tem tanta certeza. Esse bando pelo menos acredita em Deus, mas depois violam as leis de sua própria religião. Personalidades sociopatas? Droga, não sei. Eles têm as versões deles do mundo, e nós a nossa, e as duas não batem.
O voo foi chamado e todos entraram juntos. Fileira de cinco assentos, separadas pelo corredor, classe econômica. Chavez, que tinha pernas curtas, não se importava, mas Clark sim. Quanto mais velho, mais enrijecido ficava. A rotina comum de segurança. Clark já estava com o cinto amarrado e apertado. No decorrer dos anos, aprendeu a não desprezar as regras de segurança em nenhuma de suas manifestações. O 737-400 taxiou e decolou tão rotineiramente como se o piloto estivesse dirigindo um carro. Clark pegou a revista de bordo e começou a folhear a seção de catálogo. Parou, olhando um anúncio de caixa de ferramentas.
— Então, como exatamente vamos fazer isso? — perguntou Jack a Clark.
— Indo pelo ouvido — respondeu Clark, e voltou ao catálogo.
O pouso foi quase tão suave quanto a decolagem, seguido pela frenagem, taxiamento até o terminal e desembarque no finger. O terminal possuía a mesma aparência difícil de descrever de todos os demais ao redor do mundo. Dobraram à esquerda e entraram no saguão amplo e anônimo. A sinalização os dirigiu até a área de chegadas internacionais, e foi uma caminhada suficiente para fazer o sangue circular novamente em suas pernas. A informação nos monitores lhes informou que o voo da Alitalia ainda levaria noventa minutos para chegar. Uma verificação rápida da área mostrou que era facilmente vigiável. Melhor ainda, havia uma lanchonete bem na linha de visão, com as cadeiras de plástico usuais ao redor das mesas de plástico.
— Muito bem, rapazes, temos aí umas duas horas, contando o tempo de nosso personagem passar pela imigração — pensou Clark em voz alta.
— Só isso? — perguntou Jack.
— Talvez eles tenham um cão passeando pelas maletas, cheirando atrás de drogas, mas nada muito mais que isso. Os canadenses não estão sendo muito cuidadosos. Os bandidos transitam pelo Canadá. Não ficam aqui para seus malfeitos. Boa sorte para eles, acho. Permite que economizem dinheiro nos gastos de segurança.
— Se os bandidos dão sopa por aqui, podiam bem empacotar alguns deles e colocar em um barco para Buffalo.
— E aí — continuou o raciocínio Dominic —, fariam inimigos que não precisam. São negócios.
— Boa observação — disse Chavez. — Negócios são negócios, e você deixa o cachorro dormindo sozinho até levar uma mordida. Eu me pergunto quando isso vai acontecer com eles.
— Depende dos bandidos, mas fazer inimigos gratuitos não é bom para os negócios. Lembre que o terrorista é um negociante cujo ramo é matar pessoas. Talvez sejam motivados ideologicamente, mas negócios ainda são negócios.
— Quantos você já liquidou? — perguntou Dominic a Clark.
— Alguns. Todos na Europa. Não são bem-treinados. Alertas, e podem ser matreiros como uma raposa, mas isso não é a mesma coisa que treinamento. Assim, só é preciso ter cuidado e abatê-los. Melhor se atirar pelas costas. É difícil eles responderem a fogo dessa maneira.
Dominic franziu a testa.
— Hã?
— Não se supõe que você seja leal. Isso não é uma olimpíada.
— Acho que tem razão.
— Mas isso vai contra sua sensibilidade, não é?
Dominic pensou um pouco, depois encolheu os ombros.
— Não sei nada de sensibilidade. É só outra maneira de pensar.
Clark sorriu sombrio.
— Bem-vindo ao outro lado do espelho. — Verificou o relógio. O voo devia estar pousando.
Hadi teve consciência de que o solo sob o avião sempre parecia o mesmo, mas diferente. Distante, mas chamativo quando você pousava. Como nos Estados Unidos, todas as estradas e carros entrando na visão. Ele avaliava a altitude pela possibilidade de distinguir ou não carros e caminhões individualmente. O “Air Show” que aparecia na miniTV informava que a altitude era de 1.500 metros e baixando, e a velocidade sobre o solo era de 400 quilômetros por hora, muito abaixo da altitude e da velocidade de cruzeiro sobre o oceano. Logo pousariam. Dez minutos, segundo o computador. Hora para despertar completamente. A comissária retirou sua xícara de café. O café italiano era bem parecido com o de sua distante juventude quanto à acidez e, verdade seja dita, ele gostava muito da comida italiana, apesar de eles servirem carne de porco demais, e, apesar de beber vinho, traçava um limite quanto à carne suína. Ele desembarcaria, passaria sem dificuldades pela alfândega e pela imigração, localizaria seu recepcionista, receberia dele a passagem para Chicago, que também o levaria até sua conexão no voo da United Airlines 1108, e fumaria um cigarro, mas nada de conversa.
Tinha que ficar alerta ao passar pela alfândega e pela imigração. Não tinha nada a declarar, é claro, nem mesmo uma garrafa de vinho italiano. Viajante de negócios, para quem esse tipo de voo era rotina. Negociante de joias, essa era sua cobertura. Conhecia o tema o bastante para conversar brevemente sobre o assunto. Não o suficiente para impressionar ou iludir um verdadeiro mercador de joias judeu, claro, mas ele sabia como evitar conversas, até mesmo fingir sotaques. Bem, era mesmo uma espécie de viajante a negócios, e esse tipo de viagem era rotina, apesar de ser sua primeira visita ao Canadá. Mais um país infiel, com regras simples e gentis para pessoas em trânsito, e ficariam felizes ao vê-lo seguir caminho, sem prestar atenção nele, desde que não portasse armas ou cometesse algum crime.
O pouso foi um pouco duro. Talvez a tripulação também estivesse cansada. Que vida horrível levavam, pensou Hadi. Sentados o dia inteiro, sem caminhar, constantemente trocando os relógios corporais em função dos lugares e das horas diferentes. Mas todos os homens tinham seus lugares no mundo, e o deles era bem-pago, apenas desagradável, mesmo para infiéis. Seu trabalho e sua cobertura o obrigavam a ser gentil com todos que encontrava. Isso incluía infiéis que rotineiramente comiam carne de porco. Era difícil, mas exigido por seu lugar na vida. O avião parou, e juntamente com os demais 153 passageiros a bordo, ele levantou, pegou sua bagagem de mão e saiu tropeçando para a porta.
Logo distinguiu os funcionários canadenses com seus quepes azul-marinho, rostos inexpressivos, e olhares observadores. Recepcionistas que não se importavam nada com quem recebiam em seu país infiel. Provavelmente havia mesquitas em um raio de poucos quilômetros dali, mas ele jamais chegaria perto de uma delas. O governo local podia permitir que os muçulmanos venerassem Alá em um local próprio, mas certamente eram todos vigiados, e os que entravam eram fotografados. O trabalho de Hadi era ser invisível.
— Pousou — disse Clark, olhando o monitor de TV pendurado a 7 metros de distância.
— E tudo o que sabemos é que ele mija de pé — lembrou Dominic.
Onde é o banheiro mais próximo?, pensou Clark. Muitas pessoas iam direto ao banheiro logo após o desembarque, nervosas demais para usar um no avião. Não seria má ideia acampar alguém por lá por conta dessa possibilidade. Espiões não eram robôs. Cada um tinha suas próprias peculiaridades, e essas, uma vez identificadas, os deixavam vulneráveis. Ele se deu conta de que nunca havia sido contraespião. Identificar espiões era algo em que ele sempre tinha trabalhado para prevenir... mas talvez isso lhe desse os recursos necessários para o trabalho. Logo veria. Estavam atrás de um árabe, provavelmente entre o final dos 30 e meados dos 40 anos, homem. Altura, peso, cor dos cabelos e cor dos olhos eram desconhecidos. Era um operador treinado. E provavelmente agiria como um operador treinado.
Bem, ele seria recebido. Isso eles sabiam. Alguém devia lhe entregar um bilhete para o voo de conexão. Provavelmente não tão bem-treinado. Provavelmente um freelancer. Talvez alguém que esperasse conseguir uma promoção seja lá a que organização pertencesse. Talvez tão esperto, mas não tão experiente ou treinado. Alguém que conhecesse de vista o personagem que chegava? Talvez sim, talvez não. Provavelmente um motorista. Estaria procurando para fazer a entrega. Esquadrinhando os rostos em busca de reconhecimento. Segurando um cartaz? É. Talvez O EMIR ME MANDOU, pensou Clark com um resmungo. Ele já vira alguns idiotas ao longo do tempo, mas não tão idiotas assim. Talvez fosse mais proveitoso enfiar uma arma na boca e disparar diante das câmaras de TV. Esses sujeitos podiam não ser profissionais tal como ele definia o termo, mas também não eram estúpidos. Alguém os tinha treinado ou instruído sua organização sobre como agir no campo. Não era tão difícil assim. As nuances vinham com a experiência, mas o básico era algo que até um semi-idiota poderia sacar por conta própria. Eles quatro estavam parados em uma fila. Isso não era esperto. Ele se moveu até Dominic.
— Fiquem em duplas, em lados opostos do corredor. Dominic, você e Brian. Jack, você fica comigo e com Ding.
Dominic e Brian pegaram a escada rolante e desceram, logo dando a volta até um lugar do lado oposto a Clark e Chavez. John deu uma batidinha no nariz e os gêmeos repetiram o sinal.
— O que você está achando, Domingo?
— Quem, eles? Bons instintos, um pouco irregulares nas bordas, mas isso é normal. Se houver problemas, acho que lidarão bem com isso.
— Para um ninja, é um bom elogio — respondeu Clark.
— Nós somos donos da noite, cara. — Isso fora há algum tempo, mas era parte central da identidade de Domingo. Ele dificilmente era localizado. Baixo como era, as pessoas muitas vezes não prestavam atenção nele. Seus olhos podiam denunciá-lo, mas só se alguém tomasse um tempo para examinar seu rosto, e ele realmente não era grande demais para que um cara durão se preocupasse, até que esse alguém se visse no chão, se perguntando como diabos chegara ali. As coisas haviam mudado desde sua época nos SEAL. O terceiro grupo do SOG já tivera alguns tipos John Wayne, mas os novos pareciam mais corredores de maratona, baixos e magros. Tendiam a viver mais, pois eram mais dificilmente atingidos. Porém seus olhos eram diferentes, e ali é que morava o perigo. Se você fosse esperto o suficiente para perceber.
— Um pouco nervoso — admitiu Jack.
— Simples e relaxado — respondeu Clark. — Nem tente muito. E jamais fixe diretamente o olhar no suspeito, salvo talvez para verificar a direção para onde ele olha, mas apenas breve e cuidadosamente.
Quem é você, Hadi?, pensou Clark. Qual a razão de estar aqui? Para onde vai? Quem você quer encontrar? Altamente improvável que fizesse essas perguntas ou tivesse respostas. Mas a mente agia por conta própria o tempo todo, mais ainda se fosse uma mente realmente ativa e inteligente.
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Hadi poderia ter sido o primeiro da fila, mas fabricou um falso contratempo para evitar isso. Não precisava fingir cansaço. Contando o voo doméstico de Marselha e a conexão em Milão, estava no ar havia 15 horas, e a pressão parcialmente reduzida de oxigênio tinha deixado marcas em seu organismo. Mais uma razão para pensar na tripulação e em seu trabalho miserável.
— Olá, Sr. Klein — disse o funcionário da imigração com o que parecia ser um sorriso.
— Bom dia — respondeu Hadi, lembrando-se novamente de sua identidade falsa. Felizmente ninguém tentou conversar com ele durante o voo, salvo a comissária, que manteve sua taça de vinho abastecida. E a comida tinha sido tolerável, uma agradável surpresa.
— Qual o propósito de sua visita? — perguntou o funcionário, estudando o rosto de Hadi.
— Negócios. — O que era até verdade.
— Duração?
— Ainda não tenho certeza, mas provavelmente quatro ou cinco dias. É importante?
— Só para o senhor. — O funcionário escaneou o passaporte, passou a capa pelo leitor de código de barras, perguntando-se se a luz vermelha acenderia, mas quase nunca acendia, como não acendeu desta vez. — Algo a declarar?
— Nada — respondeu Hadi.
— Bem-vindo ao Canadá. A saída é por ali — disse o funcionário, apontando.
— Obrigado. — Hadi recebeu de volta o passaporte e caminhou para as portas múltiplas. Os países ocidentais eram tão autodestrutivamente acolhedores para seus inimigos, notou mais uma vez. Imaginava que eles queriam apenas o dinheiro proporcionado pelos turistas. Realmente não podiam abrigar tanta hospitalidade em seus corações infiéis, não é?
— Prestem atenção — disse John. As duas primeiras pessoas que passaram pelas portas eram mulheres, e Hadi não era uma delas... A menos que a informação fosse realmente muito ruim, pensou Clark. Já havia acontecido com ele mais de uma vez.
Muito bem, quem procuramos? Homem, de 35 a 45 anos, altura média, talvez um pouco menos pelos padrões americanos. Olhos escuros, sem olhar muito ao redor, fingindo estar relaxado, mas ainda assim olhando ao redor. Curiosidade, mas curiosidade controlada. Deve estar um pouco cansado pela viagem. Voar geralmente cansa as pessoas. Um tanto abatido pelas bebidas que provavelmente tomou... mas também deveria ter dormido um pouco.
Então viram um casaco castanho, a meia altura de comprimento. Parecia italiano. Supostamente Hadi estava baseado na Itália, em Roma, certo? Aproximadamente 1,70m, compleição média, um tanto para magro. Olhos escuros. Escuros como o inferno, quase negros, pensou John. Olhando cuidadosamente para a frente, não para o lado, empurrando um carrinho com uma maleta grande e uma pequena. Não pareciam muito pesadas, e a grande tinha rodinhas... preguiçoso ou cansado? Os cabelos eram tão negros quanto os olhos, um corte normal. Barba raspada. Sem barba, talvez — provavelmente? — por deliberação. Duas outras pessoas saíram depois dele, obviamente canadenses, pele clara e ruivos. Um deles acenou para alguém ao lado de Clark. Esse estava fora. De volta para o casaco castanho. Seus olhos se moviam para a direita e para a esquerda, mas a cabeça permanecia parada. Bom treinamento de campo, pensou John imediatamente ao notar aquilo. Depois se fixaram em algo: a cabeça de Clark girou e viu alguém de terno escuro, como um motorista, mas sem boné, segurando uma cartolina branca com KLEIN escrito com pincel atômico.
— É esse — sussurrou consigo mesmo. Para Chavez: — Faça a ligação com os irmãos e observe os flancos. Vou dar uma volta. Jack, venha comigo.
Os dois percorreram o saguão.
— Viu algo que eu não vi? — perguntou Jack.
— O nome dele não é Klein, isso posso apostar.
Nenhuma parada no banheiro, percebeu Clark. Descartar essa ideia. O alvo, perceberam, parecia não falar com quem viera recebê-lo. Bem-disciplinado, ou já se conheciam?
— Está com uma câmera? — perguntou John.
— Sim, digital. Pronta para usar. É capaz de já ter uma foto do nosso amigo, mas ainda não verifiquei.
— Se ele entrar em um carro, vamos nos assegurar...
— Claro. Marca, modelo e placa. Como estamos?
— Não acredito que tenha nos visto. Certeza absoluta de que não olhou para onde estávamos, dos dois lados. Ou é um cara bem frio ou está puro como a neve. Pode escolher.
— Parece meio judeu — disse Jack.
— Existe uma piada antiga em Israel. Se ele parece ser judeu e estiver vendendo bagels, é árabe. Nem sempre verdadeiro, mas uma boa piada.
— Salvo pelo cabelo, posso até imaginá-lo usando um chapéu de caubói e casaco preto comprido, na rua 47, em Nova York, lidando com diamantes. Não é um mau disfarce. Mas ele é tão judeu quanto eu.
Passaram pelas bancas de jornal, pelos bares de cerveja, pela porta de saída com detector de metais e entraram no saguão principal. Não para descer pelas escadas rolantes para a área de bagagens, mas era evidente que ele já havia feito isso. Em direção ao portão principal na parede envidraçada, saindo para o ar frio do outono canadense. Passaram pelo ponto de desembarque dos táxis e cruzaram a rua para o estacionamento. Seja quem fosse o recepcionista, tinha estacionado na área de cobrança por hora, e não na área de permanência de um dia ou mais. Muito bem, aquela era uma recepção programada. E nenhum telefonema feito do telefone do avião. Entraram no estacionamento, e então Clark teve que desacelerar sua rotina de segui-lo... e seguir direto para um carro estacionado.
— Câmera — disse Clark abruptamente, esperando que Jack soubesse como tirar fotos escondido.
Na verdade, ele fez isso muito bem, com as lentes se abrindo em telescópio para usar um zoom de duas ou três ampliações. Era um modelo novo preto do Ford Crown Victoria, do tipo comum usado por serviços de carros. Até ali tudo correspondia a um perfil, pensou Clark, quando começaram a encurtar a distância.
— Aqui está seu bilhete para Chicago — disse o motorista, entregando o envelope por cima do espaldar do assento.
Hadi abriu o envelope e estudou o bilhete. Ficou surpreso com seu destino. Verificou as horas. A cronometragem era quase perfeita. E o fato de os passageiros da primeira classe passarem primeiro pela imigração ajudava.
— Quanto tempo para chegar ao outro terminal?
— Só alguns minutos — respondeu o motorista.
— Ótimo. — E Hadi acendeu um cigarro.
O carro arrancou. Clark notou, mas continuou caminhando. Até o carro estar a uns 100 metros, então deu a volta para o trânsito da chegada e pegou um táxi.
— Para onde? — perguntou o motorista.
— Já digo em um minuto. Jack: olho vivo?
— Já peguei — assegurou Jack. O Crown Vic tinha entrado na fila para pagar o estacionamento. Ele tirou mais duas fotos para pegar o número da placa, apesar de já ter memorizado. Só para ter certeza, escreveu o número na caderneta que mantinha no bolso do paletó.
— Muito bem — disse Clark ao motorista. — Está vendo aquele Ford preto ali?
— Sim, senhor.
— Siga-o.
— Isso é um filme? — perguntou animado o motorista.
— Sim, e eu sou a estrela.
— Já fiz isso, sabe? Filmes de verdade. Eles pagam muito bem para dirigir carros.
Clark percebeu a deixa, pescou a carteira e entregou um par de notas de 20 ao motorista.
— Está bem assim?
— Sim, senhor. Aposto que vão para o Terminal Três.
— Vamos ver — respondeu Clark. Estava com os olhos grudados no Crown Vic, que fazia o trajeto tortuoso comum nos aeroportos, cujas vias de acesso sem dúvida eram projetadas pelo mesmo idiota desalmado responsável pela arquitetura dos terminais. Clark já havia passado suficientemente por aeroportos para saber que todos os arquitetos tinham frequentado a mesma escola.
O taxista estava certo. O Crown Vic parou diante de uma placa da UNITED AIRLINES em diagonal sobre o meio-fio. A porta do motorista abriu, ele desceu e foi até a porta do passageiro.
— Bom palpite... como é mesmo seu nome? — perguntou Clark.
— Tony.
— Obrigado, Tony. Tenha um bom dia. — Clark e Jack saltaram. A câmera estava na mão de Jack, bem-escondida, mas pronta para ação.
— Ele fuma — observou Clark.
Melhor ainda, posava muito bem. Às vezes a sorte trabalha a seu favor.
— Ok, bata uma minha — disse Clark, fazendo pose. O que Jack fez devidamente, e em seguida Clark se aproximou para dizer algo inócuo, seguido de: — Conseguiu pegá-lo?
— Perfeitamente. E agora?
— Agora vou tentar conseguir uma passagem para Chicago. Você o segue até o portão e me liga quando identificar o voo.
— Você acha que pode conseguir um bilhete assim rapidamente?
— Bem, se falhar, não vamos estar piores do que estamos agora.
— Saquei — concordou Jack. — Estou com seu número. — E seguiu em frente, assumindo posição a uns 40 metros de seu amigo Hadi, que desfrutou todas as tragadas possíveis do cigarro antes de caminhar para o terminal. Ele tinha uma boa foto do cara, percebeu Jack, verificando a tela anterior.
Clark foi até o balcão da United, satisfeito por não haver muita fila para suportar.
Hadi terminou o cigarro e jogou a guimba no meio-fio, respirou fundo a atmosfera de fora do avião, e entrou. Dominic seguia a uma distância discreta, com o celular de segurança na mão esquerda. Hadi foi direto para o saguão correto e verificou o monitor para se certificar do portão de embarque. Foi andando como uma pessoa comum que tentasse pegar o voo. Em menos de dez minutos estava sentado no portão D-28. Brian fez a ligação.
— Clark — respondeu a voz na outra ponta.
— Aqui é o Jack. Portão D-28, voo um-um-zero-oito.
— Anotado. Parece estar cheio?
— Não, mas o alvo já está no portão, e a hora prevista para decolagem é daqui a vinte minutos. Melhor se mover.
— A caminho. — John foi até o balcão, teve que esperar que um cara de negócios pegasse seu bilhete, depois sorriu para a balconista. — Voo um-um-zero-oito para Chicago, por favor. Primeira classe, se possível, mas econômica, caso contrário. — E entregou a ela seu MasterCard Gold.
— Sim, senhor — respondeu educadamente a atendente. Comprovou ser maravilhosamente eficiente, e o computador cuspiu o bilhete em apenas três minutos.
— Obrigado, senhora.
— À direita. — E apontou, como se ele pudesse não saber qual era a direita. John caminhou calmamente. Vinte minutos para alcançar o voo. Sem problema. Esse apareceu quando ele passou pelo detector de metais, que disparou, para surpresa de John. Então um segurança passou o detector manual, que disparou novamente sobre o bolso de seu paletó. John descobriu que seu escudo de U.S. Marshal havia provocado aquilo. O detector de metais estava mesmo bem-afinado.
— Oh, tudo bem, senhor.
— Eu nem estou aqui de forma oficial — disse Clark, com um sorriso tímido. — Está tudo certo mesmo?
— Sim, senhor. Obrigado.
— Certo. — Da próxima vez, ele passaria aquilo pela esteira e deixaria todo mundo pensar que era um policial. E não tinha disparado com a caneta em seu bolso. Isso era interessante, ou poderia ser, se ele estivesse com a Caneta Mágica. Mas não estava. Azar.
Era um Boeing 737. Seattle deve ter vendido um monte deles, pensou Clark, olhando o saguão desconfortável. O mesmo arquiteto, as mesmas cadeiras vagabundas. Mesma empresa que faz as poltronas de avião? Será que isso não era conflito de interesses?
Lá estava Hadi, sentado na área para não fumantes. Sem tentar chamar atenção para si mesmo? Se fosse o caso, tinha boa postura em campo. Simplesmente sentado ali, lendo uma revista, a Newsweek, pouco atento. Mais dez minutos e chamaram o voo. Clark teve sorte e conseguiu uma poltrona na primeira classe, 4C. No corredor, o que era útil. Lembrou-se de outro voo comercial recente, mas na ocasião ele estava com uma pistola, sem que a tripulação da cabine da British Airways soubesse; isso os teria assustado tanto quanto se estivesse carregando uma bolsa cheia de bananas de dinamite. Bem, a maior parte das comissárias era composta por moças bonitinhas, e não seria bom fazê-las se preocupar com isso. Trabalhavam duro por salários baixos. Hadi entrou a bordo com três pessoas na sua frente, percebeu John, e sentou-se no 1A, a poltrona com janela mais à frente do lado esquerdo, talvez uns 5 metros distante de Clark, à sua esquerda. Três passadas e podia quebrar o pescoço do cara como se fosse um graveto. Ele não tinha feito isso, dessa maneira, desde o Vietnã, onde os homens muitas vezes tinham pescoços magrinhos. Mas isso fora havia muito tempo, e mesmo então, ele quase conseguia esquecer tudo. Lembranças de tempos antigos. Mais exatamente, a 5 metros do banheiro da frente. Quanto mais velho ficava, mas precisava localizar esse tipo de coisa.
Os avisos de segurança de sempre. O cinto de segurança é igual ao do seu carro, bobinho e, se você precisar, a mamãezinha vem fechá-lo para você; mas nada de bebida para você! Os banheiros estão na dianteira e na traseira, e estão assinalados com desenhos, caso você seja idiota e não consiga ler. A idiotização da sociedade também acontecia no Canadá. Uma pena, pensou John. A menos que a United voasse apenas com cidadãos americanos.
O voo foi totalmente comum, praticamente sem turbulência e levou menos de uma hora para pousar em O’Hare, assim nomeado em homenagem a um aviador naval da Segunda Guerra Mundial que ganhou a Medalha de Honra antes de ser derrubado, provavelmente por fogo amigo, que te mata do mesmo jeito que o de outro tipo. Clark se perguntou quão difícil seria para o piloto achar o portão de desembarque, mas provavelmente já devia ter feito esse voo antes, talvez centenas de vezes. Agora vinha a parte difícil, percebeu John. Para onde iria Hadi, e será que ele conseguiria um assento no mesmo voo? Uma pena que não pudesse simplesmente perguntar para o filho da mãe. Ele precisaria passar pela imigração, porque os Estados Unidos tinham ficado sérios com controle de quem entrava no país. Isso, na verdade, significava que estava suficientemente complicado para obrigar os bandidos a pensarem durante um minuto inteiro antes de descobrir uma forma de se esgueirar para dentro. Talvez fosse algo que detivesse os realmente idiotas. Mas os idiotas não eram muita ameaça, eram?
Isso estava muito acima de sua alçada, entretanto, e os que tomavam tais decisões raramente consultavam as abelhas operárias que viviam onde o rabo delas corria perigo. Isso assustara Clark já no Vietnã, quando seu nome ainda era Kelly. Portanto, talvez esse tipo de coisa nunca mudasse. Era um pensamento assustador, mas pensamentos assustadores vinham com o trabalho, e ele tinha aceitado isso havia mais de trinta anos. Os procedimentos de entrada não chegavam nem a ser superficiais. Seu passaporte sequer foi carimbado, uma surpresa considerável. Outra mudança de procedimento? Talvez para evitar que a tinta sujasse os dedos do funcionário?
— Muito bem, o que está acontecendo? — perguntou Granger pela linha segura.
— Clark pegou o mesmo voo que nosso amigo — respondeu Jack. — Temos algumas fotos dele. Com sorte, continuará seguindo o cara até onde estiver indo.
Improvável, o chefe de operações pensou na outra ponta. Não temos gente suficiente, nem recursos suficientes. Bem, nem tudo podia ser feito por uma corporação privada, e isso mantinha os custos baixos.
— Ok, me mantenha a par. Quando vocês voltam?
— Temos reserva em um voo para o aeroporto D.C. National; sai daqui a trinta minutos. Estaremos de volta no edifício por volta de cinco e meia ou seis horas da tarde, provavelmente. — O que significava um dia completamente desperdiçado, a menos que se considerasse algumas fotos como sucesso, pensou Jack. Diabos, era mais do que tinham antes.
50
Clark estava no corredor subterrâneo entre um complexo do terminal e outro. Na maior parte do tempo, andando em esteiras móveis, como as esteiras de bagagem. E pareciam mesmo longas. Observou Hadi sair ao ar livre para fumar mais um cigarro antes de voltar, apressando-se pelos detectores de metal — milagrosamente seu escudo de marshal não fez a coisa disparar ali —, descendo o túnel comprido e depois subindo as escadas rolantes até o terminal de embarque, onde já era hora de trabalhar. Hadi dobrou à esquerda no alto. Viu seu portão em um monitor — sem examinar o bilhete para ver o número do voo. Será que isso fazia dele um profissional treinado ou simplesmente um cara com boa memória ou confiança excessiva?, perguntou-se Clark. Bem, você paga para ver e faz suas escolhas. No alto, Hadi tomou a esquerda na direção do Saguão F. Caminhava rapidamente. Será que está apressado?, pensou. Se for isso, má notícia para ele. E logo o alvo se voltou para verificar um monitor, orientou-se e se dirigiu à esquerda para o Portão F-5, onde sentou, como se tivesse necessidade de relaxar. O F-5 era um voo para... Las Vegas? O McCarran International era um aeroporto de bom tamanho com um número enorme de conexões sabe-se lá para quantos outros destinos. Apenas um atalho para Hadi? Isso era prudente? Hmm. Quem, se é que houvera alguém, treinara esse alvo? Alguém da KGB, ou uma pessoa de dentro da organização? Seja lá qual fosse a resposta, o voo saía em 15 minutos, e não havia tempo suficiente para John voltar ao Terminal 1 e conseguir um bilhete para segui-lo. O exercício de rastreamento terminaria ali. Droga. Nem podia se esforçar para examinar o sujeito de modo óbvio demais, ou observá-lo mais de perto. Hadi podia ter olhado ao redor, e seria capaz, assim, de reconhecer seu rosto. Devia ter sido treinado por um profissional, e podia ter a mesma habilidade de Clark para se lembrar de rostos que apareciam e desapareciam no transcorrer da vida. Para um espião de campo essa era uma habilidade de sobrevivência de importância considerável. Clark foi até a loja de presentes e comprou uma barra de chocolates, além de uma Coca Light, permitindo que seu olhar varresse o saguão. Hadi estava sentando, sem nem mesmo procurar o local fechado para fumar onde as pessoas podiam exercitar seu mau hábito atrás de vidros. Talvez ele conseguisse controlar suas paixões, pensou John. Esse tipo de gente pode ser perigoso. Mas então o voo foi chamado, os bilhetes da primeira classe antes, e Hadi se levantou, caminhou até o portão de embarque e mostrou o seu. Até mesmo sorriu para o funcionário que o inspecionou e acenou para que entrasse no antigo DC-9 para desfrutar da poltrona larga e das bebidas grátis em sua viagem para Las Vegas, onde as pessoas podiam exercitar todo tipo de maus hábitos à vontade. John terminou de comer e voltou para a entrada do túnel. Como antes, a escada rolante parecia descer até o inferno, e ele agradeceu a seja lá qual arquiteto que tivesse especificado os corredores rolantes. Clark já tinha idade suficiente para apreciá-los. Lembrou-se de não franzir a testa quando pensou no que considerava uma missão estourada. Parcialmente estourada, de qualquer modo. Agora sabiam de coisas sobre o alvo que não conheciam antes, inclusive uma foto. Ele gostava de viajar usando uma cobertura de judeu; quase esperto, mas bastante óbvio. Judeus e árabes eram primos genéticos, afinal de contas, e suas crenças religiosas não eram tão separadas — apesar da fúria que ambos demonstravam diante desse mero pensamento, é claro. Cristãos, também. São todos Povos do Livro, como uma vez lhe explicaram seus amigos sauditas. Mas pessoas religiosas geralmente não assassinam. Deus pode não concordar. De qualquer maneira, seu trabalho atual era voar de volta ao Campus. Esperou para ver o portão de embarque fechar e observou o avião de turbinas duplas se afastar do terminal, e taxiar até a pista. Três horas até Las Vegas? Talvez um pouco menos, passando por Iowa, Nebraska e Wyoming, a caminho da cidade que celebrava o pecado. E de lá, para onde? Seja para onde fosse, ele não iria descobrir tão cedo. Bem, essa missão toda era duvidosa, e não podia ficar tão desapontado assim se ela resultara em um fracasso. Droga, pelo menos tinham algumas fotos do sujeito. Achou um balcão onde lhe ofereceram um voo de volta para o Baltimore-Washington em noventa minutos. Ligou para se certificar de que haveria alguém o esperando com um carro.
Hadi, na poltrona 1D de seu voo, examinou o menu enquanto bebericava o vinho branco que o recepcionou — o da Itália era melhor, mas isso não era surpresa —, e se repreendeu pela distinção de seu olfato para vinhos. O solo abaixo era quase sempre plano, com uns estranhos bolsões verdes, que, ele sabia, marcavam o sistema de irrigação que os fazendeiros americanos usavam nas pradarias. Essa área já havia sido chamada por exploradores de o Grande Deserto Americano. Hoje era o celeiro do mundo, apesar de outros desertos, verdadeiros, estarem mais adiante, além das montanhas. Que país grande e estranho era esse, cheio de pessoas estranhas, a maioria infiéis. Mas eram pessoas diante das quais ele tinha que se cuidar, e tinha que estar atento a si mesmo e à sua conduta a cada minuto, muito mais do que na Itália. Era difícil para um homem nunca relaxar, jamais baixar a guarda. Com sorte, poderia relaxar quando encontrasse seu amigo, dependendo da próxima escala de seu voo. Que estranho que ele jamais soubesse onde o Emir vivia. Eram amigos havia muitos e muitos anos. Tinham aprendido juntos a cavalgar, na mesma época e no mesmo lugar, quando eram muito jovens, estudaram na mesma escola, brincaram e correram juntos. Mas o vinho cobrou seu preço, e ele tinha passado por um longo dia. Seus olhos ficaram pesados e Hadi deslizou para o sono enquanto a noite alcançava a aeronave.
Clark embarcou em outro avião, sentou na sua poltrona de primeira classe e fechou os olhos, não para dormir e sim para repassar os acontecimentos do dia. O que ele tinha feito? O que havia feito de errado? Que coisas deram errado? O que tinha feito certo e por que isso não fora suficiente?
Para encurtar a história, era uma questão de mão de obra. Os rapazes Caruso pareciam ser bem competentes, e Jack agiu bem, mas isso não era grande surpresa. O garoto tinha bons instintos. Talvez questão de hereditariedade. Considerando tudo, não foi uma operação ruim, dado como foi montada apressadamente. Sabiam que ele se dirigia para Chicago. Teria sido melhor se dividissem em equipes de dois e depois enviar eletronicamente a foto para facilitar o acompanhamento? Poderiam ter feito isso? Tecnicamente possível, talvez, mas só porque poderia ter sido possível não significa que teria funcionado. Em coisas desse tipo era preciso ter múltiplas reservas de apoio, porque não podiam contar com os acontecimentos casuais exceto para estragar as coisas. Droga, não se podia contar com operações cuidadosamente planejadas, mesmo com muitos profissionais treinados. O inimigo não tinha que ser profissional para que eventos ocasionais estragassem os melhores planos. Talvez fosse boa ideia, pensou, dar uma volta pelas missões europeias com os gêmeos, só para observar a capacidade de ação deles em campo. Pareciam bons, mas parecer bom é algo que modelos de moda podem fazer. Tudo dependia de treinamento e experiência. Muita experiência. O treinamento se desenvolve em campo, e experiência era algo que ele tentara incutir muito nos novos agentes da CIA na Fazenda, no litoral da Virgínia. Mas jamais soube o quanto daquilo funcionara. Alguns voltavam e compartilhavam cervejas com ele e Chavez. Mas o que dizer dos garotos que não voltavam? Que lições se podia tirar deles? Raramente se escutavam essas histórias, porque não voltar significava jamais voltar: uma estrela dourada na parede do lado direito do átrio da CIA, e geralmente uma página em branco no livro.
Melhorar a comunicação interna entre as equipes, para começar, pensou. Considerando que não tinham experiência em leitura de mentes, era imperativo que tivessem sólidos protocolos de comunicação. Recrutar mais tropas seria uma boa ideia, mas isso não aconteceria. Supunha-se que o Campus devia operar pequeno e esperto. Talvez tivessem habilidade para fazer isso, mas com certeza havia momentos em que muitas pessoas resolviam um bocado de problemas. Só que isso não aconteceria.
O avião de Clark pousou suavemente no Aeroporto Internacional de Baltimore-Washington. Levou cinco minutos taxiando até o portão D-3, permitindo que Clark desembarcasse rapidamente. Passou pelo banheiro e caminhou até o saguão, esperando que alguém estivesse esperando por ele. Resultou ser Jack, que acenou.
— Sei quem é você — disse Clark. — Não precisa avisar às outras pessoas que me conhece.
— Nossa, eu só queria...
— Eu sei o que você queria. Mas nunca se quebram as regras de campo até chegar em casa e abrir a primeira cerveja, rapaz. Não se esqueça disso.
— Saquei. O que você conseguiu saber?
— Ele voou para Las Vegas, e provavelmente está lá agora. Mas, sobretudo, aprendi que não temos pessoal suficiente para fazer nada importante no Campus — concluiu mal-humorado.
— Sim, bem, mas não podemos fazer o que fazemos se tivermos supervisão governamental. Você sabe disso.
— Suponho que sim, mas existem vantagens em fazer parte de uma organização maior, sabia?
— Sim. Acho que somos um tipo de parasitas no corpo político.
— Imagino que sim. Alguma tentativa de rastrear o alvo para onde ele foi?
Jack fez que não com a cabeça enquanto saíam do saguão.
— Nada.
— Aposto que ele continuou prosseguindo, talvez mais umas duas escalas, porém não há como saber.
— Por quê?
— Complexidade. Sempre que for possível dificulte as coisas para o adversário. Na nossa vida, é um princípio básico.
Do lado de fora do Aeroporto Internacional McCarran, Hadi dizia exatamente a mesma coisa para Tariq, que respondeu:
— Já discutimos isso longamente. Não sabemos de nenhum perigo. Nossas comunicações são as mais seguras que o dinheiro pode comprar, e ninguém penetrou na organização, caso contrário não estaríamos aqui, não é?
— E o que aconteceu com Uda bin Sali e os outros? — perguntou Hadi.
— Morreu de ataque cardíaco. Revisamos o relatório oficial da necropsia.
— E os demais?
— Todos os dias pessoas morrem com problemas no coração, mesmo os eleitos de Alá — assinalou Tariq.
— Talvez os judeus o tenham matado, mas os médicos em Roma disseram que morreu de ataque cardíaco.
— Talvez haja um meio, uma droga, quem sabe, que possa fazer parecer assim.
— Talvez. — Tariq dobrou à esquerda para entrar na cidade. — Mas nesse caso não precisamos temer os israelenses aqui.
— Talvez — concedeu Hadi. Estava cansado demais pela longa viagem para discordar seriamente. Muito tempo no ar, muito vinho e pouco sono decente para que reunisse sua energia intelectual. — Seu carro está limpo?
— Lavamos o carro a cada três dias. E quando fazemos isso revistamos em busca de todo tipo de aparelho de escuta.
— Então, como ele está?
— Você mesmo verá dentro de alguns minutos. Perceberá que está saudável e muito bem, do ponto de vista físico. Mas também vai achar difícil reconhecê-lo. Os cirurgiões suíços fizeram milagre com sua aparência. Poderia, se quisesse, caminhar aqui pelas ruas sem temer ser reconhecido.
Hadi aproveitou a oportunidade para olhar para fora do carro.
— E por que aqui? — perguntou, cansado.
— Ninguém admite viver aqui, salvo os ladrões proprietários de hotéis e cassinos. A cidade é notavelmente corrupta, tal como Beirute já foi, como meu pai me dizia. Muito jogo, mas Sua Alteza não faz apostas com dinheiro.
— Sei disso, apenas com sua vida. Mais perigoso de certa forma, mas, afinal, todos os homens morrem, não é?
— Os infiéis locais agem como se não tivessem medo disso. É estranho ver a quantidade de igrejas cristãs que existem aqui. As pessoas gostam de casar nesta cidade, e não compreendo a razão disso, mas é assim. O Emir escolheu a cidade por causa do anonimato que aqui impera. Acho que foi sábio. Muitas pessoas vêm para cá jogar e pecar contra Alá. Existe bastante crime do tipo que mantém a polícia ocupada.
Tariq dobrou à direita para a aproximação final da casa de campo do Emir, e pensou no que dissera. Era muito mais confortável que as cavernas do Paquistão ocidental, o que era muito prazeroso para Tariq e para o restante da equipe, Alá seja louvado. Diminuiu a velocidade e acionou a seta para dobrar à esquerda. Ele e seus colegas obedeciam a todas as leis americanas que conheciam.
— É aqui?
— Sim — confirmou Tariq.
Tinha escolhido bem, mas Hadi não disse isso. O Emir poderia ter selecionado uma habitação com melhores defesas, mas isso poderia atrair a atenção de seus vizinhos, e seria contraproducente na era de helicópteros e aviões carregados de bombas. Na aproximação de Las Vegas, o piloto chamou atenção para uma grande base da Força Aérea dos Estados Unidos logo ao norte da cidade. Outra jogada esperta de seu amigo, se abrigar perto de uma grande instalação militar americana — aparentemente não era uma boa ideia, mas era essa a razão que a tornava brilhante. Sua decisão de morar no coração do Ocidente infiel, pensou Hadi com admiração. Por quanto tempo planejara isso? Como havia conseguido organizar tudo? Bem, por isso ele era o líder da organização: por sua capacidade de ver o que os outros não viam. Conquistara seu lugar no mundo, e naquele lugar tinha a possibilidade — o direito — de obter o que queria com os homens... e com as mulheres, segundo o indivíduo atrás do volante. Todos os homens têm suas necessidades, e suas fraquezas, pensou Hadi consigo mesmo. E essa não era particularmente debilitante. Por sua vez, Hadi havia aproveitado algumas das alegrias de Roma. E quase nunca sentia culpa por isso. Então seu amigo fazia o mesmo. Nenhuma surpresa.
O carro estacionou na garagem. Notou que uma vaga estava vazia. Então ele tinha outro serviçal? Saiu do carro, pegou a maleta no porta-malas e caminhou para a porta.
— Hadi? — soou a voz da porta da casa. A porta da garagem já estava descendo.
— Effendi — respondeu Hadi. Os homens se abraçaram e se beijaram como era costume em sua cultura.
— Como foi seu voo?
— Todos os quatro foram ótimos, mas cansativos. — Hadi passou algum tempo examinando seu rosto. A voz o tornava mais reconhecível. O rosto não. Saif Rahman Yasin estava transformado. O nariz, o cabelo, e até os olhos, de alguma maneira. Ou não estariam?, perguntou-se. Apenas a expressão neles. Evidentemente estava satisfeito em ver seu amigo de infância, e a jovialidade que apresentava era tão diferente de seu rosto formal visto na TV e nos jornais.
— Você está bem, meu amigo — disse Hadi.
— Levo aqui uma vida tranquila e confortável — explicou o Emir, com um raro sorriso. — Louvado seja Alá, não temos montanhas para subir. Há muita felicidade em viver debaixo dos narizes deles, como dizem.
— Quando soube disso, achei que você tinha enlouquecido, mas agora percebo sua sabedoria.
— Obrigado. — O Emir o levou para dento da casa. — Você escolheu viajar como judeu, não foi? Isso é bom. Por aqui existem muitos deles.
— E a cidade é tão corrupta quanto dizem?
— Ainda mais. A população é muito móvel. As pessoas aqui não reconhecem ninguém, salvo talvez seus amigos mais íntimos. É como o Líbano costumava ser.
— Ou Bahrein ainda é.
— Mas isso é perto demais de casa. — Ele não precisava explicar. Muitos sauditas iam para lá em carros com motoristas, para desfrutar dos prazeres da carne, e vários poderiam reconhecer sua voz, ou seu novo rosto. A família real saudita queria vê-lo morto tanto quanto os americanos. De fato, eles até instalariam palanques para o público na praça da Justiça em Riad para que os infiéis vissem seus últimos minutos com suas minicâmeras e outros artefatos de gravação. Havia muitos prêmios por sua cabeça... E o dos americanos não era sequer o mais alto.
— Entre. Vamos colocar você numa cama de verdade.
Hadi o seguiu pela cozinha para dentro da casa, e foram para a esquerda rumo à ala dos dormitórios.
— Você está seguro aqui? — perguntou Hadi.
— Sim, mas posso sumir em alguns minutos. Não é perfeito, mas é o melhor que se pode conseguir.
— E testa sempre sua rota de fuga?
— Semanalmente.
— Faço a mesma coisa na Itália.
— Descanse! — disse o Emir abrindo a porta do quarto. — Precisa de alguma coisa?
Hadi meneou a cabeça.
— Poderia comer, mas preciso dormir. Vejo você de manhã.
— Boa noite, meu amigo. — Um empurrão com o ombro, e o Emir fechou a porta. O sujeito tinha voado quase 10 mil quilômetros. Conquistara o direito de estar exausto.
51
Bell e Granger esperavam no escritório de Hendley quando Jack e Clark chegaram.
— Fracassei em Chicago — contou-lhes Clark, caindo numa cadeira giratória. — Ele voou para Las Vegas. Dali para a frente, quem sabe? McCarran tem voos para todos os lugares. Talvez Los Angeles, São Francisco, droga, ou talvez de volta para a costa leste.
— O nome de viagem dele? — perguntou Bell.
— Joel Klein. Judeu, imagine só? Mas faz sentido, acho. Podemos navegar pelos computadores para ver se reservou algum voo a partir dali, mas quem pode dizer se ele não tem várias outras identidades?
— Já estamos verificando — assegurou Granger. — Até agora sem resultados. E não tenho mais ideias.
— Se tivesse que apostar, diria que ele dormiu em algum lugar por lá, talvez programado para continuar sua viagem amanhã. Não temos homens suficientes, Rick. Precisamos de mais gente, de mais olhos para fazer isso.
— Temos o que temos — disse Bell.
— Pois é.
— Há outra possibilidade — declarou Jack. — E se o destino dele fosse Las Vegas? E aí o quê?
— Possibilidade bem assustadora — respondeu Granger. — Significa que temos uma célula operacional do CRO aqui mesmo.
— Conte-nos sobre Peshawar — disse Hendley alguns minutos depois.
Clark pescou o drive de Masood de sua pasta e o colocou na mesa. Deu a versão resumida da viagem.
— Não sei por que eles não revistaram a casa — disse. — Segundo Masood, ele copiou aqui tudo o que fez para o CRO. Tenho que supor que o sujeito que eles ajudaram a se mudar foi o Emir.
— Por enquanto vamos supor assim. — Hendley acenou a Bell. — Rick, pode levar isso para Gavin? Peça que ele descarregue o conteúdo logo que possível. — Para Clark: — Quer chamar Mary Pat?
— Já fiz isso. Ela está a caminho.
Hendley pegou o aparelho de telefone e ligou para o saguão.
— Ernie, aqui é o Gerry. Temos uma visitante a caminho. Mary Pat Foley. Isso mesmo, obrigado.
Mary Pat apareceu na porta de Hendley quarenta minutos depois.
— Belas instalações — disse. — Parece que eu é que estou no negócio errado. — Avançou pelo carpete e apertou a mão de Hendley. — Que bom ver você de novo, Gerry.
— Você também, Mary Pat. Estes são Rick Bell e Sam Granger. E acho que já conhece Jack Ryan. — Mais apertos de mão e um olhar surpreso de Mary Pat.
— Mantendo o legado da família? — perguntou ela a Jack.
— Nos seus começos, sim, senhora.
— Mary Pat.
Hendley disse:
— Sente. — Ela escolheu a cadeira que estava ao lado de Clark. — Você parece cansado, John.
— Sempre pareço assim. É a iluminação.
— Vamos deixar todos na mesma página.
Clark recapitulou tudo para Mary Pat. Quando terminou, ela assobiou.
— Um sujeito que faz mudanças. Isso nos diz algo. Você não precisa usar alguém como Masood a menos que esteja deixando a região.
— Logo mais teremos o conteúdo do disco rígido — disse Granger.
— Mas não vai nos dizer onde ele está — predisse Mary Pat. — O Emir é escorregadio demais para isso. Provavelmente usou mais de um movimentador. Os usa para pular aonde possa sair do radar. O melhor que conseguiremos é uma aproximação.
— O que é muito melhor do que o que temos agora — observou Rick Bell.
Enquanto Biery e seus geeks mergulhavam no disco rígido de Masood, e Clark e Chavez se recuperavam um pouco tirando uma soneca nos sofás da sala de estar, Jack voltou sua atenção para o pen drive que Ding tirara de um dos bandidos em Trípoli. Depois de constatar que continha imagens estegocriptografadas, ele e Biery decidiram tentar craquear os arquivos com um algoritmo de força bruta, com um jantar pago pelo perdedor. Ocupado como Biery estava com o disco rígido de Masood, Jack sentiu confiança por começar na frente.
Após duas horas remoendo, um dos algoritmos deu certo e uma imagem começou a despixelizar em sua tela. Era um arquivo grande, quase 6 megabytes, de modo que a decodificação levaria alguns minutos. Ele pegou o telefone e avisou Granger. Dois minutos depois, Jack estava com um auditório de oito pessoas de pé atrás de seu ombro, observando o monitor enquanto a foto se revelava.
— Que diabo é isso? — perguntou Brian, inclinando-se.
A foto estava borrada e sem saturação de cor. Jack a importou para o Photoshop e passou alguns filtros na imagem, trabalhando contraste e brilho até que ela ficasse clara.
Dez segundos de silêncio.
A imagem com 20x25 centímetros tinha um estilo das pin-ups dos anos 1940: uma mulher de cabelos escuros com uma saia simples de algodão branco, sentada num fardo de feno, as pernas timidamente cruzadas. Mas estava despida da cintura para cima, com os peitos impossivelmente grandes caindo até suas coxas.
— Peitos — disse Sam Granger. — Deus do céu, Jack, você descobriu peitos.
— Oh, merda — murmurou Jack.
Todos caíram na risada.
Dominic disse:
— Jack, seu taradinho... Nunca imaginei.
Depois Brian:
— Então, Jack, quanta “despixelização” você pratica nas horas vagas?
Mais risadas.
— Muito engraçado — resmungou Jack.
Quando a risada parou, Hendley disse.
— Muito bem, vamos parar por aqui e deixar o Sr. Hefner prosseguir. Belo trabalho, Jack.
Às quatro horas da tarde, Jack despertou Clark e Chavez.
— Hora do espetáculo, pessoal. Na sala de conferências em cinco minutos.
Em quatro minutos os dois estavam lá, ambos armados com um copo extragrande de café. Todos já estavam em seus lugares: Hendley, Granger, Bell, Rounds, Dominic e Mary Pat. Clark e Chavez sentaram. Rounds começou. Olhou um sumário que Biery lhe enviara minutos antes.
— Uma boa parte disso é constituída por porcas e parafusos que podem nos ajudar mais tarde. Os itens referentes ao grande quadro são três. — Pegou o controle remoto e apontou para a tela de 42 polegadas da TV. A página da frente de um passaporte surgiu na tela. — É assim que nosso homem parecia em algum momento entre os últimos seis a nove meses.
Houve dez segundos de silêncio ao redor da mesa.
— Tem uma semelhança com as poucas fotos que temos dele — disse Bell.
Rounds falou:
— Passaporte francês forjado. Trabalho de alta qualidade. Os carimbos, a encadernação, a costura... tudo perfeito. Segundo o disco rígido de Masood, o Emir usou esses três meses atrás. De Peshawar para Dushanbe, Tajiquistão, depois para Ashgabat, Volgogrado e depois para São Petersburgo. Depois, nada.
— Foi até aí que Masood o levou — acrescentou Dominic.
— Não pode ser seu destino final — respondeu Jack. — Outro movimentador tomou conta a partir daí, talvez?
Clark falou:
— Se fizermos a média dos pulos, ele se dirigia na direção geral do nordeste. Expanda isso um pouco e você está na Finlândia ou na Suécia.
— Suécia — disse Mary Pat. — A coisa da cirurgia plástica?
— Talvez — disse Granger.
— O assunto com a Hlasek Air? — perguntou-se Chavez em voz alta.
— Isso também, talvez. Se São Petersburgo foi até onde Masood o levou, isso quer dizer que ele abandonou o passaporte francês e pegou outro. Se foi para a Suécia ou para a Finlândia com o novo, não podia ir mais a lugar nenhum além desse ponto, pelo menos não legitimamente.
— Explique — pediu Hendley.
— Ele não podia usar seu rosto antigo para o novo passaporte, e não há como conseguir outro cheio de ataduras, portanto tem que ficar quieto até os inchaços e os machucados desaparecerem. Então ele consegue outro passaporte.
— Vamos retroceder um pouco — disse Jack. — Quem assumiu como transportador em São Petersburgo? Essa é a pergunta que temos que fazer.
— Agulha num palheiro — comentou Bell.
— Talvez não — voltou Mary Pat. — Masood era ex-ISI. O CRO o escolheu porque era profissional. Iriam querer a mesma coisa na Rússia. Talvez tenhamos que procurar um ex-SVR, ou ex-KGB.
— Ou GRU — acrescentou Rounds. — Inteligência militar.
— Certo.
— Alguma maneira de estreitar essa lista, Mary Pat? — perguntou Clark.
— Talvez. É uma habilidade bem especializada. Provavelmente exigiria alguém que lide com ilegais. E ainda há muitos deles por aí.
— Mas quantos deles morreram? — disse Jack. — Em São Petersburgo. E nos últimos quatro meses. Eles provavelmente teriam matado Masood antes se ele não tivesse se escondido. Era uma ponta solta. O transportador russo também seria.
— Bom raciocínio, Jack — disse Hendley. — Acha que pode trabalhar nisso? — perguntou a Mary Pat.
— Me dê algumas horas.
Ela já estava de volta do NCTC em duas.
— Realmente não foi muito difícil. Jack, você acertou na mosca. Mês passado em São Petersburgo, Yuriy Beketov, ex-oficial da KGB, Diretoria S, ilegais, da Primeira Diretoria Central. Morto a tiros em um restaurante checheno. Os policiais de São Petersburgo colocaram no quadro da Interpol. Botei umas pessoas para tentar descolar mais detalhes, mas Beketov parece caber no caso.
— Até lá, vamos jogar com essa possibilidade — disse Hendley. — Digamos que ele foi para a Suíça, ou Suécia ou Finlândia, para a cirurgia.
— A Suécia tem meu voto — disse Rounds. — Ele gostaria de alguém de alto nível, muito particular, com clientela selecionada. Há muito mais disso na Suécia que na Finlândia. É o lugar para começar a procurar.
— Google — disse Jack.
Já eram quase nove da noite quando acharam o que precisavam. Jack empurrou a cadeira para longe do laptop e passou as mãos pelo cabelo.
— Bem, tenho que reconhecer. Eles são consistentes. Implacáveis e consistentes.
— Pode nos iluminar — disse Clark.
— Há três semanas, Clínica Orrhogen, em Sundsvall. Completamente queimada com o diretor-gerente lá dentro. E mais: Sundsvall está apenas a 100 quilômetros ao norte de Söderhamn. Se Brian e Dominic não tivessem aparecido, uma aposta bem segura seria que o mecânico Rolf já estaria morto.
— Muito bem. Então o Emir faz a cirurgia, passa alguns dias em recuperação e depois vai embora — disse Granger. — Acredito que haja cinquenta por cento de chances de que ele não tenha outro passaporte. Precisaria alugar um avião, e um aeroporto particular, e um piloto que não se importasse em se sujar um pouco. — Hendley considerou o assunto. — E como exatamente ele faria isso?
— Rolf nos deu a resposta — respondeu Dominic. — Duplicação do código do transponder.
— Certo — respondeu Jack. — Hlasek desliga o primeiro código do transponder, sai do radar, liga o segundo código e estão em outro avião.
— Esse tipo de coisa certamente deve estar registrado em algum lugar — observou Rounds. — Temos entrada com a FAA ou a Transport Canada?
— Não — respondeu Granger. — O que não quer dizer que não podemos. — Pegou o telefone e, dois minutos depois, Gavin estava na sala de conferências.
Jack explicou o que buscavam, então perguntou:
— Factível?
Gavin bufou.
— Os firewalls da FAA são uma piada — respondeu ele. — E os da Transport Canada também. Me deem meia hora.
Cumprindo a palavra, trinta minutos depois Biery ligou para a sala de conferências. Hendley o colocou no viva-voz.
— No período de tempo que você me deu, 18 voos saíram do radar seja no espaço aéreo dos EUA ou do Canadá. Dezesseis não eram nada, algum erro do operador, um era um Cessna que caiu perto de Albany, e o outro, um Dassault Falcon 9000, que também sumiu. O piloto relatou um problema com seu trem de aterrissagem a caminho de Moose Jaw. Minutos depois o perderam no radar.
— Onde é Moose Jaw? — perguntou Dominic.
— Canadá. Ao norte, mais ou menos na posição onde Dakota do Norte e Dakota do Sul se encontram — disse Jack.
— E tem mais — disse Biery. — Fiz uma pesquisa hackeando palavras-chave entre a Transport Canada, a FAA e o NTSB. Três dias depois que Moose Jaw perdeu o Falcon, um pescador na costa da Califórnia descobriu um FDR, a caixa-preta. Segundo o NTSB, a caixa pertencia a um Gulfstream, o tal que supostamente ainda está no hangar perto de Söderhamn. O caso é que os aviões Dassault são equipados com um protótipo de novo FDR. Está projetado para se soltar da fuselagem quando alcança certo limite cinético. E tem um flutuador e um farol; as caixas do Gulfstream só têm o farol. A caixa que descobriram pertence ao Falcon da Hlasek.
Hendley soltou um suspiro e olhou ao redor da mesa.
— Ele está aqui. O filho da puta se esconde bem embaixo do nosso nariz.
Clark assentiu.
— A questão é: o quê? Deve haver algo grande para fazê-lo sair.
52
— Nosso amigo chegou em segurança? — perguntou Ibrahim. Os cliques digitais interrompiam de vez em quando a voz de seu subordinado.
— Sim — respondeu o Emir. — Saiu daqui ontem. Li os detalhes do seu plano. Informe em que pé estão as coisas.
— Estamos prontos. Basta seu aviso e podemos estar no país em 72 horas.
Falar diretamente com o comandante de sua equipe no terreno foi uma decisão súbita de sua parte, e certamente perigosa, especialmente diante de suas próprias circunstâncias precárias, mas o risco valia a pena. O método de comunicações era tão seguro quanto qualquer outro; um pacote caseiro de criptografia que haviam conectado à conta VoIP — Voice over Internet Protocol — do Skype para comunicação entre computadores.
Ao decidir prosseguir com a operação de Ibrahim, o Emir queria ter uma discussão final, como uma medida tranquilizante não apenas para ele, como também para Ibrahim. Se por acaso ele perdesse a vida na missão, sua verdadeira recompensa estaria no paraíso, mas aqui na terra ele ainda era um soldado indo para a batalha, e soldados muitas vezes precisam de elogios e encorajamento.
— Quantas vezes você esteve lá? — perguntou o Emir.
— Quatro. Duas para recrutamento e duas para reconhecimento.
— Fale mais sobre seu contato.
— O nome dele é Cassiano Silva. Brasileiro de nascimento, educado na religião católica. Converteu-se ao islã há seis anos. É um dos fiéis, disso tenho certeza, e jamais deixou de providenciar tudo que pedi.
— Tariq me disse que você o recrutou de modo bem eficiente.
— Os serviços de inteligência ocidentais chamam o método de “falsa bandeira”. Ele acredita que sou da inteligência do Kuwait, com ligações com a Divisão de Análise de Mercado da OPEP. Achei que ele iria considerar a ideia de espionagem industrial mais... palatável.
— Estou impressionado, Ibrahim — disse o Emir, com convicção. — Você demonstrou bons instintos.
— Obrigado, senhor.
— E seu plano... você está confiante de que é factível?
— Estou, mas gostaria de continuar cuidadoso até chegar ao terreno. Na aparência, todas as partes se encaixam perfeitamente.
Portanto, ele deixaria Ibrahim prosseguir com o plano. Sabia que aquele seria o primeiro dominó de uma série, no final da qual aconteceria algo que realmente mudaria o mundo. Mas isso estava no futuro — não em um futuro distante, mas longe o suficiente para saber que, se focasse nisso excluindo as demais pequenas peças, poderia prejudicar o todo.
— Quantas baixas você calcula?
— Por enquanto é impossível calcular. Centenas, talvez. Mas, como você disse, esses números no fundo são irrelevantes.
— Certo, mas cadáveres aparecendo na televisão têm um efeito espantoso, algo que deve funcionar a nosso favor mais tarde. Quanto tempo deve levar seu reconhecimento final?
— De cinco a seis dias.
— E depois disso?
— De 48 a 72 horas para o próprio evento.
O Emir examinou mentalmente seu calendário. Manipulando mais de uma operação como era o caso, tinha que segurar a aprovação final até que pelo menos tivesse notícias da equipe na Rússia. As outras peças em Dubai e Dakar já estavam no lugar e esperando. A pedra fundamental, é claro, a adorável garota tártara, que não podia apressar tanto assim. Tariq tinha confiança de que ela se movimentava em ritmo adequado, e por enquanto ele precisaria se satisfazer com isso, mas no fundo da mente deveria considerar alternativas para o caso de ela fracassar. Eles seriam capazes de disfarçar suas ações ou colocar em prática algumas táticas de retardo, mas violência — especialmente o tipo de violência que provavelmente seria requerida — sem dúvida atrairia a atenção das autoridades.
Se tal ação se tornasse necessária, será que eles poderiam permanecer tão à frente das autoridades para poder completar o Lótus?
— Você tem minha aprovação final — disse o Emir.
O palpite de que o Emir muito provavelmente já estava nos Estados Unidos, escondido em algum lugar entre as Dakotas e a Califórnia, foi rapidamente seguido pela compreensão de que pouco havia a fazer para confirmar essa hipótese. É certo que sabiam que Shasif Hadi, viajando com o codinome de Joel Klein, tinha se dirigido para Las Vegas quando perderam seu rastro, mas isso não queria dizer nada. O passaporte Klein não havia mais aparecido no sistema, o que poderia significar que ele não seguira para além de Las Vegas ou que simplesmente tinha cumprido as regras do trabalho e trocara Klein por outra identidade. A recuperação que Jack fez das atividades anteriores de Hadi mostrava muitas viagens pelo Golfo Pérsico, pela Europa Ocidental e pela América do Sul — que necessitavam muitas escalas. Salvo distribuir a foto de Hadi para as agências de segurança em Las Vegas, pouco poderiam fazer além de continuar trabalhando no problema de o que dispunham.
— Nossa! — disse Jack Ryan do fundo do seu cubículo.
— O quê? — perguntou Dominic da sala de conferências, onde a reunião estratégica diária mal tinha começado.
— Esperem aí, estou indo. — Digitou algumas teclas, enviando o arquivo para a ligação audiovisual da sala de conferências e pegou o controle remoto da mesa.
— Você está com cara de adolescente que acabou de ver o primeiro peitinho — falou Brian. — O que aconteceu?
— Estava rondando um dos sites do CRO quando topei com isso. — Dirigiu o controle remoto para o monitor de 42 polegadas na parede. Após alguns segundos, três imagens apareceram lado a lado na tela plana: a primeira mostrando um homem enforcado pelo pescoço em uma sala sem características marcantes; a segunda mostrando o mesmo homem deitado no chão, a cabeça decepada a seu lado; na terceira, a cabeça estava ladeada pelos pés cortados.
— Jesus Cristo, isso é mesmo muito sério — disse Brian.
— Qual site, Jack? — perguntou Rounds.
Ele recitou a URL e depois falou:
— É um portal do CRO, mas até agora tinha sido apenas propaganda. Tipo “rá, rá, enfiem isso no infiel, pusemos eles para correr”.
— Bem, com certeza isso aqui não é conversa mole — falou Ding Chavez.
— É uma punição — declarou Clark, olhando a tela.
— Enforcamento é um modo bastante padrão de execução para eles, e a decapitação é uma humilhação adicional, algo tirado do Corão, se me lembro, mas os pés... Será que essa é a mensagem real?
— O quê? Será que ele tentou fugir? — perguntou Dominic. — Deixar o CRO?
— Não, ele fez alguma movimentação que não deixou os escalões superiores felizes. Vimos isso no Líbano em 1982. Algum grupo derivado do Hamas, não me lembro do nome, explodiu um ônibus em Haifa. Uma semana depois os líderes foram encontrados dessa mesma maneira: enforcados, decapitados e com os pés cortados.
— Que jeito de mostrar seu ponto — disse Chavez.
Rounds perguntou:
— Jack, de onde esse site é gerado?
— Esse é o lance — respondeu. — Vem de Benghazi.
— Bingo — disse Dominic. — Isso chegando tão perto e tão próximo do caso da embaixada em Trípoli... Quanto querem apostar que estamos vendo o final de uma missão feita sem sanção?
Ninguém da mesa aceitou a aposta.
— E se for mais que uma punição? — disse Jack.
— Explique — rebateu Rounds.
Clark respondeu:
— É um aviso. Aquela coisa no Líbano... Duas semanas depois, o Hamas tentou enfiar um carro-bomba dentro da embaixada britânica, um quarteirão distante do local da explosão. Falhou porque o pessoal da inteligência ainda estava trabalhando na explosão do ônibus.
— O mesmo princípio pode estar valendo aqui — disse Jack. — Estão avisando às outras células que tenham modos.
— Sim, mas a favor do quê? — perguntou Chavez.
53
Aestrada de cascalhos que saía da praia parecia quase imaculada, provavelmente porque havia pouco trânsito, se é que havia, passando por ali, e nem mesmo muitos animais que a pisoteassem, além do tempo inclemente que matara ou impedira o crescimento de qualquer vegetação.
Musa deu um adeus final a seu capitão, Vitaliy, depois assentiu solenemente para Idris, a quem ordenou que ficasse ali. Apesar de improvável, se o capitão tentasse sair antes que retornassem, Idris mataria os dois russos. Pilotar o barco de volta ao porto sem eles seria um desafio, mas Alá lhes mostraria o caminho.
Musa subiu no assento de passageiros do veículo. Fawwaz, já atrás do volante, deu a partida no motor, enquanto Numair e Thabit subiam na carroceria.
— Vamos — ordenou Musa. — Quanto mais cedo terminarmos o que viemos fazer, mais rápido saímos desse lugar amaldiçoado.
Fawwaz engatou a primeira e começou a subir a colina.
O farol e o abrigo vizinho estavam a apenas 1 quilômetro dali, talvez uns 500 metros colina acima. Vitaliy e Vanya sentaram nas cadeiras giratórias da casa do leme e observaram o progresso dos homens através de binóculos, bebendo chá e fumando cigarros, e desejando mais comida, enquanto a música no rádio ficava pior. O cão de guarda de Fred ficou na amurada, observando os dois. A leste estava a tundra verde-bandeira, e a vista era tão sem acidentes geográficos quanto a que um rato teria ao contemplar um carpete verde.
Vitaliy observou quando dois deles saíram do caminhão, e depois usaram sinais de mão para o motorista estacionar de costas no abrigo de aço.
Vitaliy jamais vira um dos geradores que faziam o farol funcionar. Tinha ouvido falar que tinham material radioativo, ainda que seu modo de funcionamento fosse além do seu conhecimento. Também havia ouvido dizer que alguns desapareceram, mas, se isso aconteceu, não foi com algum dos faróis importantes de seu pedaço da costa. Tanto quanto sabia, podiam muito bem ser pequenos geradores a diesel. A lâmpada do farol geralmente era pequena, dificilmente com mais de 100 watts, um fato que surpreendia — na verdade, maravilhava — os que não sabiam disso. As lentes Fresnel focavam a luz em um raio pequeno, da espessura de um lápis, cujo alcance efetivo era determinado pela altura do farol, e qualquer luz aparecia brilhante na noite escura. Os faróis, falou a si mesmo, eram um resto obsoleto dos tempos antigos, dificilmente ainda necessários na era das ajudas eletrônicas. Então, que dano realmente ele podia estar provocando? Esse fretamento financiaria a aquisição por ele de um moderno sistema GPS, provavelmente um dos novos modelos japoneses que custavam 500 ou 600 euros, mais baratos que o carro novo que ele queria. E que droga importava isso?
Naquele instante, jamais lhe ocorreu que aquilo podia provocar a morte de milhares de pessoas.
Levou quatro horas, muito menos do que Fred havia sugerido. Poderia ter sido ainda mais rápido se simplesmente tivessem demolido o abrigo de placas corrugadas, mas evidentemente não queriam fazer aquilo. O farol pareceria inteiramente normal durante o dia (com o sol completamente descoberto era difícil ver se a luz estava ou não acesa), e, à noite, poucos iam até aquele golfo para notar. E mesmo se fossem, tanta coisa na Rússia não funcionava como previsto que uma a mais dificilmente seria notícia. Duas xícaras de chá e cinco cigarros mais tarde, o caminhão ribombou voltando à vida e começou a descer a estrada de cascalhos até o barco. Só quando fizeram a volta para regressar é que Vitaliy viu algo pendurado no guindaste, com cerca de 1 metro, grosseiramente retangular com bordas curvas que sugeriam haver um cilindro ali dentro, talvez do tamanho de um barril de petróleo. Então aquilo era a bateria do farol? Ele havia se perguntado como era a aparência delas, e também como funcionavam. Parecia grande demais para proporcionar uma energia para uma lâmpada tão pequena. Isso a fazia tipicamente soviética, é claro: grande, desajeitada, mas geralmente funcional.
Um dos membros da equipe caminhava de costas atrás do caminhão guindaste, guiando-o de volta para o barco e, depois de três horas, quando a maré ficou novamente favorável, chegou a hora de levantar a rampa e partir. O homem na cabine do caminhão manobrou o guindaste para abaixar o gerador até o convés. Seus colegas não o amarraram no lugar. Não eram marinheiros, mas estavam cheios de euros.
Vitaliy ligou os motores em reverso e avançou para águas profundas, depois girou o leme para se dirigir de volta a noroeste, na direção do estreito de Kara. Então, ele ganhara seus 2 mil e tantos euros. No processo, talvez tivesse queimado 1.000 em óleo diesel — na verdade menos, mas as pessoas que o fretaram não sabiam disso —, e o restante era o desgaste de seu T-4, e de seu próprio e valioso tempo, é claro. Assim, a tarefa já estava concluída pela metade. Ao voltar para o porto, ele os descarregaria e deixaria que fossem para onde quisessem. Nem queria imaginar onde seria isso. Não se interessava em saber. Verificou seu cronômetro. Exatamente 14 horas. Portanto, ele não aportaria antes do fim do dia; mais um dia para cobrar, e para ele isso era ótimo.
Sem ter conhecimento de que havia uma missão complementar a caminho a 300 milhas dali, Adnan e seus homens se preparavam para deixar o conforto relativo do barco. O capitão, Salychev, manobrava o Halmatic para dentro de uma enseada na costa ocidental da ilha. Adnan estava de pé na proa, observando os braços incrustados de neve da enseada se fecharem ao redor deles até a passagem não ter mais que 1 quilômetro de largura. O nevoeiro continuou subindo da superfície da água até que Adnan só conseguia vislumbrar os penhascos, escarpas marrons erodidas salpicadas de cascalhos e matacões.
O motor a diesel do Halmatic pipocava suavemente enquanto Salychev assoviava para si mesmo dentro da cabine. Adnan avançou e entrou.
— O quanto estamos distantes do povoado...
— Belushya Guba — completou Salychev por ele. — Não muito. Subindo pela costa está a cerca de 100, 150 quilômetros. Não se preocupe. As patrulhas não entram nas enseadas, ficam pela costa. Posso até escutá-las se o vento estiver certo, mas assim tão perto da terra os radares de navegação deles se embaralham. Não poderiam nos ver a menos que tropeçassem em nós.
— Houve detonações nesta área?
— Algumas, mas isso foi lá pelos anos 1960, 1961. E das pequenas. Nada mais que uns 15 quilotons. Só bebezinhas, nada com que se preocupar. Agora, costa acima, talvez uns 300 quilômetros ao norte de Belushya Guba, está Mityushev. Lá, sim, fizeram muitas. Dúzias e dúzias, todas com centenas de quilotons, um par de megatons, também. Se você quiser ver como é a lua, esse é o lugar para ir.
— Você já esteve lá?
— Ao largo. Não há dinheiro no mundo que me faça me enfiar por aquelas baías e canais. Não, o lugar para onde estamos indo é um paraíso comparado com Mityushev.
— É de admirar que qualquer coisa viva ali.
— Tudo é relativo. Você já ouviu falar do Pak Mozg?
— Não.
— A tradução é “caranguejo de cérebro”. Supostamente tem meio metro de altura, com uma casca partida ao fundo e com o sistema nervoso exposto, tipo pendurado pela abertura da carapaça.
— Você está brincando comigo.
Salychev deu de ombros.
— Não, nunca vi um, mas tenho um amigo que jura que já viu.
Adnan sacudiu a mão desdenhosamente.
— Bobagem. Quanto tempo até chegarmos ao estaleiro?
— Mais ou menos duas horas. Vai escurecer logo depois, de modo que vai ter que esperar amanhecer. Não vai querer zanzar por lá na escuridão.
— Não.
— Você nunca disse exatamente o que está procurando. Amostras, certo?
— Desculpe?
— Amostra de solo e rochas. É isso que a maioria dos tipos como você vem pegar aqui: lixo. Para testar seja lá o quê.
— Certo — respondeu Adnan. — Lixo.
54
O único problema seria se as pessoas observassem a entrada e a saída de carros.
Arnie chegou primeiro. O ex-presidente Ryan o recebeu e os dois foram até a sala de estar.
— Pronto? — perguntou o ex-chefe de Estado-Maior.
— Não tenho certeza — admitiu Jack.
— Bem, Jack, se você tem dúvidas, é melhor exorcizá-las hoje. Ou você quer mais quatro anos com Ed Kealty na Casa Branca?
— Droga, não — respondeu Jack quase imediatamente. Depois pensou de novo no assunto. Será que era tão arrogante que pensava ser ele o projetado salvador dos Estados Unidos da América? Tais momentos de introspecção lhe vinham rapidamente. Ele não era dos que mediam seu ego na escala Richter ou em notação na décima potência. A campanha que se aproximava não seria divertida sob nenhum aspecto. — O problema é: meu ponto forte são os assuntos de segurança nacional. Não sou especialista em assuntos domésticos.
— Kealty é, ou pelo menos é a imagem que projeta. Mas tem fendas na armadura, Jack, e vamos descobrir quais são. E tudo que você tem que fazer é persuadir 200 milhões de eleitores americanos de que é um homem melhor que ele.
— Você não está pedindo muito — resmungou Ryan. — Há muitas coisas para consertar. — Um monte de coisas para consertar, repetiu para si mesmo. — Muito bem, quem é o primeiro?
— George Winston e alguns de seus amigos de Wall Street. George vai ser o seu tesoureiro.
— E quanto isso vai custar?
— Acima de 100 milhões de dólares. Mais do que você pode suportar, Jack.
— E essas pessoas sabem o que estão comprando?
— Certamente George explicou para eles. E você tem que sustentar isso, é claro. Ei, olhe o lado bom. Sua administração não teve muitos casos de corrupção. Os repórteres farejaram à beça, mas ninguém descobriu muita coisa.
— Jack, esse sujeito é um perdedor — anunciou George Winston, com a concordância geral dos que estavam ao redor da mesa de jantar. — O país precisa de alguém diferente. Você, por exemplo.
— A pergunta é: você volta também? — perguntou Ryan.
— Já tive minha cota — respondeu o ex-secretário do Tesouro.
— Tentei dizer isso também, mas Arnie não está aceitando.
— Droga, estávamos com o sistema fiscal arrumado até que esse babaca veio e fodeu com tudo novamente, e ainda conseguiu diminuir a receita — enfatizou Winston, mostrando desgosto. Aumentar impostos invariavelmente diminui a receita assim que os contadores começam a trabalhar com o novo código. O novo e “justo” código fora uma dádiva divina para a comunidade dos sonegadores.
— E sobre o Iraque? — perguntou Tony Bretano, mudando o rumo da conversa. O antigo CEO da TRW tinha sido o secretário de Defesa escolhido por Ryan.
— Bem, gostemos ou não, estamos colados com eles — admitiu Ryan. — A questão é: podemos sair de lá espertamente? Mais espertamente do que Kealty está fazendo?
— Quando Mary Diggs fez o discurso há dois anos, quase foi fuzilado. — O general Marion Diggs tinha dado uma surra no Exército da República Islâmica Unida quando era chefe do Estado-Maior do Exército, mas suas observações sobre os conflitos mais recentes foram completamente ignoradas pela nova administração. O sucessor de Diggs no Pentágono havia se inclinado diante das ordens da Casa Branca e feito o que lhe disseram para fazer. Era uma falha comum dos militares de alto escalão e nem era novidade. Para muitos, o preço da quarta estrela era arrancar os colhões. A maioria deles não era antigo o suficiente para ter servido no Vietnã. Não viram amigos e colegas de classe morrer por conta de erros políticos, e as lições infligidas na classe anterior de oficiais se perderam no processo de algo que chamaram “progresso”. O fato de Ed Kealty ter dissolvido duas divisões de infantaria ligeira e depois ter se metido em um conflito que gritava por formações de infantaria ligeira era algo que as agências de notícias ignoravam totalmente. Além disso, os tanques eram muito mais fotogênicos.
— Isso posso dizer de você, Tony. Sempre escutou os conselhos — disse-lhe Ryan.
— Saber o que você não sabe ajuda. Sou bom engenheiro, mas não sei de tudo ainda. Esse sujeito que assumiu meu lugar de vez em quando está errado, mas jamais tem dúvidas. — O ex-secretário Bretano havia acabado de descrever a pessoa mais perigosa do planeta. — Jack. Tenho que dizer agora que não voltarei. Minha esposa está doente. Câncer de mama. Esperamos que tenha sido detectado suficientemente cedo, mas ainda não temos o resultado.
— Quem é o seu médico? — perguntou Ryan.
— Charlie Dean, da Universidade da Califórnia. Já me disseram que é muito bom — respondeu Bretano.
— Desejo boa sorte a vocês, amigo. Se Cathy puder ajudar, é só nos avisar, certo? — Ryan tinha usado sua esposa para várias indicações médicas no decorrer dos anos e, ao contrário da maioria dos políticos, não achava que qualquer um que tivesse um “Dr.” antes do nome era a mesma coisa, pelo menos não no tratamento de outras pessoas.
— Certo, obrigado. — A notícia teve um efeito sóbrio na reunião. Valerie Bretano, uma vivaz mãe de três, era muito estimada por praticamente todos ali.
— E sobre o anúncio?
— É, é preciso fazer isso, não é?
— A menos que você queira uma campanha clandestina. Assim é meio difícil vencer — observou Arnie. — Posso chamar Callie Weston para rabiscar um discurso para você?
— Ela é boa com as palavras — reconheceu Ryan. — Quando terei que fazer isso?
— Quanto mais cedo, melhor. Para começar a enquadrar os problemas.
— Concordo — disse Winston. — Ele não sabe bater acima do cinturão. Alguma bagagem ruim, Jack?
— Nada que eu saiba, e isso não quer dizer nada que eu me lembre. Se alguma vez infringi a lei, vão ter que provar isso para mim e para um júri.
— É bom ouvir isso — observou Winston. — Acredito em você, Jack, mas se lembre dos advogados do diabo. Há muitos deles em Washington.
— E sobre Kealty? Que roupa suja ele tem por aí?
— Muita — respondeu Arnie. — Mas você só pode usar essa arma com cuidado. Não se esqueça de que ele tem a simpatia da imprensa. A menos que você tenha um videoteipe, eles farão um esforço extraordinário de verificação, e tentarão fazer com que ricocheteie em você. Posso ajudar um pouco nisso. Deixe os vazamentos comigo, Jack, e quanto menos você souber disso, melhor.
Não pela primeira vez, Ryan se viu perguntando qual a razão de Van Damm ser tão fiel a ele. Estava tão metido no sistema político que fazia e dizia coisas que Jack jamais compreendia exatamente. Se ele era um bebezinho, então Arnie van Damm era sua babá. Coisa útil, as babás.
55
Odiesel pipocava monotonamente enquanto o barco de desembarque navegava rumo oeste. Vitaliy permanecia no leme, sempre dando uma olhada na bússola giroscópica, observando a água deslizar por baixo da proa rombuda e pelos lados. Sem um navio ou barco de pesca à vista. Já era o meio da tarde. O caminhão estava de volta ao seu lugar. O aparelho cor bege que tinham trazido — roubado? Bem, provavelmente sim — estava no convés de aço enferrujado. Ele teria que raspar e pintar o convés antes que ficasse frio demais para isso. Pintar na atmosfera congelante era perda de tempo. Mesmo se secasse, simplesmente descascava. Tenho que pintar logo, disse a si mesmo. Vanya reclamaria disso. Como ex-marinheiro da Marinha soviética, considerava esse tipo de manutenção um insulto à sua hombridade. Mas Vanya não era o dono do barco, e Vitaliy se importava, e ponto final. Os passageiros relaxavam, fumando cigarros e bebericando chá. Era estranho que não bebessem vodca. Ele se dera ao trabalho de conseguir uma da boa, não aquela porcaria feita a partir de batatas. Vitaliy cedia ao desejo de beber. Apenas vodca pura, feita com grãos. Às vezes, ele se excedia e bebia Starka, a vodca marrom que antes era consumida apenas pelo Politburo e pelos chefes locais do partido. Mas essa época já tinha passado — para sempre? Só o tempo diria, e por enquanto ele não iria perturbar suas entranhas com vodca falsificada. Vodca permanecia sendo uma das coisas que seu país fazia bem — melhor que qualquer outro país do mundo. Nasha lusche, disse a si mesmo — A nossa é a melhor —, um antigo lugar-comum russo, apesar de ser fato. Ele logo daria conta do que esses bárbaros não bebiam.
O mapa mostrava sua posição. Vitaliy realmente tinha que comprar aquele sistema de navegação com GPS. Mesmo por aqui, não havia substituto para saber sua posição exata o tempo todo, porque as águas lisas e escuras não revelavam nada além de 1 metro abaixo... Muito devaneio, recriminou-se. Um marinheiro supostamente devia estar alerta o tempo todo. Mesmo quando estava a bordo do único barco à vista em um mar liso e calmo.
Vanya apareceu a seu lado.
— Motores? — perguntou o proprietário ao imediato.
— Ronronando como gatinhos. — Gatinhos bem ruidosos, é claro, contudo macios e regulares. — Os alemães projetaram muito bem.
— E você faz a manutenção adequada — assentiu aprovadoramente Vitaliy.
— Não gostaria de perder força onde estamos. Eu também estou aqui, camarada capitão — acrescentou. Além disso, o trabalho era bem-pago. — Quer que o substitua no leme?
— Está ótimo — disse Vitaliy, recuando um passo.
— Para que eles querem aquela coisa?
— Talvez tenham lanternas grandes lá de onde vieram.
— Não existe ninguém assim tão forte — objetou Vanya, estourando de rir.
— Talvez queiram construir um farol próprio lá onde vivem, e essa bateria é cara demais para comprar.
— Quanto você acha que custa?
— Nada, se você tiver o caminhão certo — observou Vitaliy. — Não tem nem adesivos de aviso. Pelo menos, nada sobre tirá-la do lugar.
— Eu que não iria querer isso embaixo do meu travesseiro. É um gerador atômico.
— É mesmo? — Vitaliy nunca havia se informado sobre como operava o gerador.
— Sim, tem um triângulo triplo sinalizando no lado. Eu não chego perto dessa maldição — anunciou Vanya.
— Humpf — resmungou Vitaliy na mesa de mapas. Seja lá o que fosse, os passageiros deviam saber, e eles estavam bem perto da coisa. Então, como isso poderia ser perigoso? Mas decidiu não se aproximar muito. Coisa radioativa. Não se podia ver nem sentir o que fazia. Isso era o que a tornava assustadora. Bem, se eles queriam brincar com isso, problema deles. Lembrou-se da velha piada da Marinha soviética: Como você reconhece um marinheiro da Frota do Norte? Ele brilha no escuro. É claro que já havia escutado todo tipo de história sobre os homens designados para servir a bordo dos submarinos nucleares. Trabalho infeliz e, como a tripulação do Kursk descobrira para o azar deles, perigoso. Não, que tipo de maluco vai ao mar em um navio que supostamente deve afundar?, perguntou-se. Ainda por cima, uma usina elétrica que solta veneno invisível. Era preciso muito para fazer com que Vitaliy tremesse, mas tal pensamento conseguia o resultado. Um motor a diesel podia não ser tão poderoso, mas não tentava matá-lo só por estar por perto. Bem, 15 metros distante daquela bateria. Devia ser seguro. Seus passageiros estavam a apenas 5 metros, e pareciam bem contentes e confortáveis.
— O que você acha, Vanya? — perguntou o proprietário.
— Aquela bateria ali? Não vou me preocupar. Pelo menos não muito. — Ele dormia na popa e abaixo da cabine de comando. Apesar da pouca educação formal, Vanya era suficientemente esperto para lidar com as máquinas e suas personalidades.
Vitaliy olhou o volume de aço à frente da casa do leme. Era aço, afinal, e com 7 ou 8 milímetros de espessura. O suficiente para deter uma bala. Certamente era o suficiente para deter a radiação, não é? Bem, não é possível se preocupar com tudo.
Aportaram logo depois do pôr do sol, onde as coisas já estavam fechando. No cais dos navios de grande porte, um navio ro-ro estava meio carregado com caixas de carga para os campos petrolíferos a leste, e os estivadores voltavam para suas casas, esperando completar o carregamento no dia seguinte. Os bares próximos ao cais já limpavam as mesas à espera dos negócios da noite. No geral, uma modorrenta noite em um porto que, na maior parte do tempo, era modorrento. Vitaliy direcionou seu barco para um cais, o que tinha uma rampa para carregar caminhões e trailers em barcos como o dele. O cais parecia abandonado, como era normal, o chefe do cais já a caminho de um dos bares para beber e jantar.
— Os dias estão ficando curtos, capitão — observou Vanya, parado à esquerda do timão. Dentro de mais algumas semanas, eles dificilmente veriam o sol, e seria a época de manutenção invernal, sem ninguém fretando o barco. Até os ursos polares estariam procurando os covis onde dormiriam durante o duro inverno, enquanto os humanos faziam quase a mesma coisa, ajudados pela vodca. E um dos faróis permaneceria sem luz durante toda a estação. Não que isso fosse de muita importância.
— Assim podemos dormir mais, não é, Vanya?
Sempre uma boa maneira de passar o tempo, pensou o marinheiro.
Os passageiros ainda estavam no convés de desembarque, parados perto de seu caminhão. Não pareciam muito animados por estar de volta ao porto, percebeu Vitaliy. Bem, eram sistemáticos, e para ele tudo bem. Já estava com metade do preço do fretamento no bolso, e o restante do dinheiro logo chegaria, e talvez ele comprasse o sistema GPS para facilitar sua navegação, se conseguisse fazer um bom negócio. Yuriy Ivanov devia ter um bom estoque dos brinquedinhos no depósito e, por uma garrafa de Starka, talvez pudesse conseguir uma boa barganha no que ainda em muito parecia uma economia de trocas.
— Desça para controlar os motores, Vanya.
— Seguindo suas ordens, camarada capitão — respondeu o marinheiro, dirigindo-se para o porão da popa.
Ele simplesmente rebocaria o barco, decidiu Vitaliy. A rampa era de concreto coberto de cascalho e seu barco era feito para esse tipo de coisa. Alinhou cuidadosamente e moveu a apenas 2 ou 3 nós, o mínimo necessário. A luz diminuía, mas não tão rapidamente.
— A postos — disse pelo intercomunicador.
— A postos — respondeu Vanya do mesmo modo.
A mão esquerda de Vitaliy pegou no acelerador de mão, mas não o moveu ainda. Trinta metros, aproximação suave, disse a si mesmo. Vinte metros. Sua visão periférica mostrou apenas um barco de pesca, ancorado ao lado, ninguém à vista. Estamos chegando... agora.
Foi um barulho horrível, do tipo que faz os dentes das pessoas trincarem, e o fundo de aço se arrastou na rampa, mas o ruído logo parou, e Vitaliy colocou o acelerador em ponto morto. E a viagem e o fretamento estavam completos.
— Desligue os motores, Vanya.
— Sim, camarada capitão. Desligando. — E o ribombo parou.
Vitaliy puxou a alavanca de soltar a rampa da cabine, e a rampa da proa desceu vagarosamente até a doca. Feito isso, desceu até a rampa de desembarque. Os passageiros foram até ele.
— Obrigado, capitão — disse o líder deles com um sorriso. Falou em inglês, com sotaque, mas Vitaliy nem notou.
— Tudo satisfatório?
— Sim — respondeu o estrangeiro. Depois falou em outro idioma com um de seus amigos, mas Vitaliy não compreendeu. Não era inglês e não era russo. É difícil reconhecer um idioma que não se fala e, como dizia a velha piada, tudo era grego para o capitão. Um dos passageiros entrou no caminhão e ligou o motor, levando-o para o cais, a carga pendurada pelo guindaste da carroceria. Sob a luz que diminuía, o selo de três triângulos de aviso de radiação brilhava muito, o que provavelmente era intencional. Um momento depois, outro caminhão apareceu no cais, e o antigo veículo do Exército encostou nele de ré. Outro dos passageiros ativou o controle do guincho, levantando, e depois descendo a bateria na área de carga do segundo caminhão. Seja lá quem fossem essas pessoas, eram razoavelmente eficientes. Alguém devia ter usado um celular para pedir auxílio, especulou Vitaliy.
— Então, aqui está seu dinheiro — disse o líder, entregando um envelope.
Vitaliy pegou, abriu e contou as notas. Dois mil euros, compensação nada insatisfatória pelo que tinha sido um trabalho bem simples. E o suficiente para comprar o sistema GPS, mais algumas Starka, e 100 para Vanya, é claro.
— Obrigado — disse Vitaliy educadamente e apertou sua mão. — Se precisar novamente de mim, sabe onde me encontrar.
— Posso vir amanhã, digamos, por volta das dez da manhã?
— Estaremos aqui — prometeu Vitaliy. Tinham que começar a pintar o convés, e o dia seguinte seria tão bom quanto qualquer outro.
— Então virei ver vocês — prometeu o líder. Depois apertaram as mãos e ele foi para o cais.
Em terra, falou com um companheiro, usando agora seu idioma nativo:
— Amanhã às dez — disse ao seu principal subordinado.
— E se o porto estiver movimentado?
— Faremos tudo lá dentro — explicou.
— A que hora pegamos o avião?
— Amanhã ao meio-dia.
— Excelente.
Eles apareceram pouco antes das dez, percebeu Vitaliy. Com o restante do dinheiro, esperava. Dirigiam um carro diferente dessa vez. Um japonês. Eles estavam dominando a Rússia. Muitos de seus conterrâneos ainda não gostavam dos produtos alemães, uma atitude permanente que provavelmente tinha menos a ver com a história que com os filmes de guerra que a indústria cinematográfica russa produzia como se fossem maços de cigarro.
O homem usava uma parca, frouxa o suficiente para vestir um suéter por baixo, e foi sorrindo até o barco. Então, sim, talvez tivesse um bônus para ele. As pessoas geralmente sorriam antes de entregar dinheiro.
— Bom dia, capitão — chamou, entrando na cabine. Olhou ao redor. Não havia muita atividade à vista, salvo no cais dos navios de grande porte, onde estavam carregando as caixas de mercadorias, a meio quilômetro de distância. — Onde está seu imediato?
— Abaixo, mexendo nos motores.
— Ninguém mais por aqui? — perguntou, aparentando surpresa.
— Não, nós fazemos a manutenção do barco — disse Vitaliy, indo pegar seu caneco de chá. Não conseguiu. A bala 9 milímetros entrou nas suas costas sem aviso e atravessou seu coração, de trás para a frente, antes de sair pelo peito e através do casaco. Ele caiu no convés de aço, mal percebendo o que aconteceu, antes de perder a consciência pela última vez.
Então o líder dos passageiros do frete desceu a escada até a sala de máquinas, onde Vanya, tal como comunicado, trabalhava no cano de descarga do motor de estibordo. Ele mal levantou os olhos de suas ferramentas e nem viu a arma subir e disparar. Dessa vez foram dois tiros, bem no peito, de uma distância de 3 metros. Quando se certificou de que seu alvo estava morto, Musa colocou a pistola no bolso e subiu. Vitaliy estava caído de bruços no convés. Musa verificou o pulso da carótida, não sentiu nada, e, com a missão cumprida, saiu da cabine e desceu a escada, parando para se virar e acenar para o corpo na cabine, para o caso de alguém vê-lo descer. Depois, desceu a rampa até onde o carro alugado o esperava. Tirou o mapa para guiá-lo até o aeroporto local, e logo terminaria sua estada naquele país infiel.
56
No dia seguinte, estavam de pé pouco depois das seis horas, reunindo o equipamento no convés enquanto o velho e grisalho Salychev bebericava seu café e observava. O vento do dia anterior tinha esmaecido, deixando a baía lisa e calma, salvo o leve ondular contra as rochas a meio quilômetro de distância. No entanto, o céu não havia mudado desde o dia anterior, permanecendo na mesma cor de chumbo que tinha desde que chegaram à Rússia.
Quando todo o equipamento estava arrumado, Adnan fez uma relação dos itens novamente na sua lista mental, e depois mandou que tudo fosse arrumado em quatro mochilas grandes com armação externa. Em seguida, vieram os dois botes infláveis. Eram negros e pareciam antigos, mas os motores de popa montados no gio estavam em bom estado e não havia vazamentos nem remendos, afinal Adnan tinha se assegurado disso quando os comprara. Quando os botes estavam inflados na pressão máxima, os homens começaram a colocar as tábuas de convés nos respectivos chanfros.
— Esperem, esperem — disse Salychev. — Esse jeito está errado. — Foi até lá e removeu uma das tábuas e a virou, ajustando a ponta curva com o rebordo do convés do bote. — Assim, percebem?
— Obrigado — disse Adnan. — Isso faz diferença?
— Acho que depende se você quer viver ou morrer — respondeu o capitão. — Do jeito como vocês fizeram, o fundo iria se fechar como uma ostra. Vocês iam se ver na água antes de perceber.
— Oh.
Cinco minutos depois, os botes estavam completamente montados. Os homens os desceram pelo lado e amarram os cabos de atracação da proa nas braçadeiras na popa do Halmatic. Depois desceram os motores, em seguida as bolsas com equipamentos e finalmente os homens. Adnan passou por último pela amurada.
— Voltaremos antes que escureça — disse a Salychev.
— E se não voltarem?
— Voltaremos.
Salychev deu de ombros.
— Não queiram ser surpreendidos lá fora à noite, a menos que tenham equipamento ártico escondido nessas bolsas.
— Voltaremos — repetiu Adnan. — Certifique-se de estar aqui.
— Para isso é que você me paga.
Se não fossem os blocos de gelo flutuantes e as plataformas de gelo malsubmersas, a viagem até a praia teria durado dez minutos, mas passaram quase quarenta minutos antes de o nariz do bote da frente raspar a praia de seixos. Os botes foram puxados até um terreno mais alto e as mochilas descarregadas; Adnan ajudou cada um dos homens a preparar seu carregamento e depois levantou o seu.
— Inóspito — disse um dos homens, olhando em volta.
Afora uma linha de despenhadeiros marrons e regulares a 4 quilômetros a leste, o terreno era plano, coberto de pedras, tufos de relva marrom, e uma fina camada de gelo que esmagavam sob as botas.
— E o que vai ser dos botes? — perguntou outro dos homens.
— Vamos rebocá-los — disse Adnan. — As pedras são suficientemente lisas para permitir isso.
— Qual a distância? — perguntou outro.
— Seis quilômetros — respondeu Adnan. — Vamos.
Partiram seguindo a praia na direção norte e leste, mantendo a baía à sua esquerda até que se estreitasse a apenas 100 metros e se curvasse ao sul para o interior, onde o canal seguia paralelo aos despenhadeiros que tinham visto no desembarque. Mais perto, Adnan pôde ver que os despenhadeiros na verdade eram colinas com pendentes bem agudas, a superfície que sofreu erosão por séculos ou milênios de escoamentos de neve e vento. Depois de mais 2 quilômetros de caminhada, o canal subitamente se alargava em uma segunda baía, uma forma grosseiramente oval com 2 quilômetros quadrados de superfície.
Os navios haviam sido ancorados sem cuidado nem ordem, como Adnan podia ver, alguns adernados no vizinho, outros com proas e popas encostadas umas nas outras em ângulos diversos, enquanto ainda havia aqueles encalhados por rebocadores para abrir espaços para novas chegadas. Originalmente todos eram civis, a maioria cargueiros de carga seca e navios-oficinas e de reparos, mas o tamanho de todos oscilava entre 30 e 200 metros, alguns tão velhos que os cascos estavam completamente enferrujados e esburacados.
— Quantos estão ali? — perguntou um dos homens, olhando admirado.
— Dezoito, mais ou menos — respondeu Adnan.
Era uma estimativa grosseira, com certeza, baseada em suas próprias informações, mas provavelmente bem perto do que o próprio governo russo poderia estimar. Aquela baía havia se transformado num cemitério não oficial nos meados dos anos 1980, quando a corrida armamentista com o Ocidente começou a pesar na infraestrutura financeira soviética e cada vez mais gastos eram aparados a favor dos gastos militares. Era mais barato descarregar e abandonar navios descomissionados do que transformá-los adequadamente em ferro-velho. Aquele era apenas um de dúzias de cemitérios marítimos nos mares de Barent e de Kara, a maioria cheios de navios que simplesmente constavam em alguma tabela como “ancorados, aguardando desmanche”. Ninguém informara a Adnan como esses cemitérios tinham atraído a atenção de seus superiores, nem ele conhecia os detalhes do que logo seria conhecido como o mais caro erro administrativo da história moderna.
Provavelmente o navio tinha um nome e uma designação, mas esses detalhes haviam sido excluídos do relatório de instruções entregue a Adnan. O que ele tinha era um mapa com as coordenadas de ancoragem e um esboço grosseiro da planta do porão de carga e das entradas no convés. Evidentemente, o mapa não viera nem da Atomflot nem do estaleiro, mas sim de uma fonte de primeira mão, provavelmente alguém da tripulação. Adnan também conhecia a história da embarcação e como ela chegara até ali.
Comissionado em 1970 como navio-oficina da Atomflot, fora designado para descarregar combustível usado e componentes danificados de embarcações atômicas civis no mar e levá-los de volta à terra para descarte. Em julho de 1986, sobrecarregado com varetas de alto nível de reatores nucleares de um quebra-gelo danificado, o navio perdeu velocidade de manobra quando estava em águas agitadas e se danificou, derramando água do mar nos porões e soltando as varetas de reatores. A contaminação foi tão severa e imediata que a tripulação, de 42 no total, morreu antes que barcos de salvamento chegassem ao local. Ansiosa por não revelar ao mundo outro desastre do nível de Chernobyl, que acontecera havia apenas três meses, Moscou ordenou que o navio fosse rebocado até uma angra isolada na costa leste da Novaya Zemlya e abandonado no local.
O erro que permitira que outras embarcações fossem depositadas ali foi monumental, mas tal é a natureza da burocracia, raciocinou Adnan. Certamente em algum momento o governo havia percebido o erro, mas então pouca coisa podia ser feita. A baía fora declarada como área restrita, e o segredo foi mantido. De vez em quando, equipes eram enviadas até lá para verificar se havia vazamentos no casco do navio ou sinais de invasão, mas, enquanto o tempo passava e as prioridades mudaram, o incidente deve ter se dissolvido nas páginas secretas da história da Guerra Fria soviética.
O que os olhos não veem, o coração não sente, acreditava Adnan.
O navio estava ancorado do lado norte da angra, a 50 metros da praia e escondido da vista por um par de cargueiros. Precisaram apenas de mais quarenta minutos para circunavegar a angra.
Começaram a descarregar o equipamento. Primeiro tiraram as vestes de proteção impregnadas de borracha com proteção química L1, e depois as botas de borracha e as luvas. Como a maior parte dos equipamentos, as vestes eram originárias do Exército: verde-oliva e duras, e fedendo a tintura. Depois de verificar se os zíperes e os encaixes estavam fechados, cada homem colocou uma máscara respiradora GP-6 da era soviética.
— Para que mesmo isso vai adiantar? — perguntou um dos homens, com a voz abafada.
— Estão destinadas à exposição a curto prazo — respondeu Adnan. Parte dele lamentava a mentira, mas não havia o que pudesse ser feito. Mesmo que as roupas não tivessem já vinte anos, seriam de pouca utilidade contra outra coisa que não agentes químicos e biológicos.
Se contasse a verdadeira extensão do perigo que estava diante deles, os homens provavelmente iriam embora, mas essa era uma possibilidade com a qual não podia contar.
— Se estivermos fora daqui dentro de uma hora, não haverá danos a longo prazo. — Isso também era mentira.
Empurraram os botes para dentro d’água e se amontoaram neles, navegando para a escada de acesso à meia-nau, que estava abaixada, chegando a uns 30 ou 50 centímetros acima da água. A razão disso era desconhecida para Adnan, pois ninguém da tripulação escapara. Talvez o governo tivesse feito algum tipo de inspeção no passado.
Amarraram os botes na escada e subiram. A escada sacudiu e retiniu sob seus pés. No alto, viram que a grade da amurada estava fechada, mas bastaram algumas pancadas com a mão para Adnan soltar a fechadura e abri-la.
— Fiquem juntos e prestem atenção para não pisar em pontos frágeis do convés — disse ele. Verificou seu esboço, e depois se colocou de frente para a proa para se orientar. Segunda escotilha descendo, pensou, descer uma escada e ir para a direita...
Seguiram em frente, caminhando rígidos e com as pernas um tanto abertas, o tecido das vestimentas arranhando sovacos e coxas. Adnan manteve a cabeça se movendo, verificando tanto o convés a seus pés quanto a superestrutura acima. Tentou nem pensar nas partículas invisíveis bombardeando sua veste e penetrando em sua pele. Tal como a fechadura da grade, a alavanca para soltar a escotilha estava enferrujada e resistiu ao primeiro puxão. Outro membro da equipe se juntou a ele, e unidos conseguiram puxar a alavanca até a escotilha abrir.
Todos ligaram as lanternas e, um a um, passaram pela escotilha, onde começaram a descer. No convés seguinte viraram à direita em um corredor. Passaram por três corredores laterais, cada um cheio de portas de cabines ou escotilhas. Canos e conduítes de eletricidade cruzavam o teto como veias. Na quarta interseção, Adnan entrou à esquerda e parou na porta. Havia uma janelinha na altura dos olhos. Olhou por ali, mas não conseguiu ver nada.
Voltou-se para os homens.
— Provavelmente haverá água no convés. É o nosso maior risco. Não confiem muito em corrimões e passarelas. Se alguma coisa começar a ceder, devem ficar imóveis onde estão e não entrar em pânico. Compreenderam?
As cabeças assentiram ao redor.
— Com o que parece esse container?
— Um barril de petróleo, mas só com a metade do tamanho. Se Alá quiser, deve estar preso na parede da sala de contenção. — Melhor seria se fosse vontade de Alá que essa porta de contenção ainda estivesse fechada e trancada, pensou Adnan. De outra maneira, não havia como encontrar o que tinham vindo buscar antes da radiação matá-los. — Alguma outra pergunta?
Não havia nenhuma.
Adnan se virou para a porta e experimentou a maçaneta. Bem protegida da maresia, ela girou livremente. Devagar, ele a empurrou apenas o suficiente para que pudessem passar, mas manteve a maçaneta segura para que a porta não balançasse e fechasse quando entrassem. Deu uma passada experimental adiante, colocando com cuidado o pé na passarela e vagarosamente aplicando seu peso para a frente, até ter certeza de que aguentaria. Deu mais um passo, depois se virou à esquerda, então mais dois passos. Olhou por cima do ombro e acenou. O homem seguinte entrou.
Em relação ao tamanho do espaço de carga, o deste navio era pequeno, medindo cerca de 10 metros quadrados de área e 6 metros de profundidade. A passarela onde estavam se estendia pela extensão do compartimento e terminava em uma escada. Depois que todos os homens passaram pela porta, Adnan começou a andar pela passarela. Na metade, ele parou e se aproximou do gradil, cuidando para não bater nele. Apontou a lanterna para cima e pôde ver o perfil da escotilha de carga, 8 metros por 8; por uma borda, percebeu uma faixa prateada de luz. Sabia que tinha sido por ali que entrara a água do mar. A escotilha de carga havia torcido em uma rolagem a estibordo e o selo quebrara. Apontou a luz da lanterna para baixo. Como temia, o convés estava inundado, uma lama de água do mar, poeira radioativa e pedaços de varetas de combustível, várias das quais ele podia ver flutuando na superfície. Em algum lugar ali embaixo estava o contêiner revestido de chumbo, o “sarcófago”. Quantas das fechaduras se romperam durante o acidente? Quantas varetas de combustível permaneciam trancadas nos recipientes?
Avançaram para a escada.
— É aquilo ali? — perguntou um dos homens, apontando a lanterna para baixo dos degraus.
No fundo, a 3 metros de área inundada, havia uma porta estilo cofre de banco presa por oito alavancas, três de cada lado e uma no alto e outra no fundo. Na altura da cintura, a partir do batente da esquerda, havia um mecanismo de tranca preso por um cadeado.
— Alá seja louvado — murmurou Adnan.
57
Oaeroporto internacional fora de Arcangel recebia principalmente voos domésticos, e poucos desses, salvo no verão. A maioria tomava o trem para o sul, que era mais barato e acessível para os cidadãos locais. A Aeroflot ainda não tinha se livrado de sua antiga reputação de segurança de voo abaixo do padrão. Porém havia um terminal de carga bem mais ativo, usado principalmente para pescados que precisavam de transporte rápido para vários restaurantes internacionais. De modo que o pacote foi carregado no compartimento dianteiro de carga de um DC-8 com 40 anos, pertencente à Asin Air Freight. Voaria até Estocolmo, e dali, com nova tripulação, se dirigiria mais ao sul, parando em Atenas antes da perna final até o Aeroporto Internacional de Dubai nos Emirados Árabes Unidos.
— O que é isso? — perguntou o agente da alfândega, olhando o recém-pintado compartimento da “bateria”.
— Equipamento científico, de raio X, algo assim — respondeu seu colega.
O agente verificou que os papéis estavam corretamente preenchidos, e isso, realmente, era o que lhe importava. Não era uma bomba. Elas exigiam formulários diferentes. De modo que assinou na linha verde e carimbou o papel, tornando-o oficial. Ninguém nem mesmo precisou suborná-lo para isso. Se fosse munição, precisariam, mas obviamente aquilo não era nenhum tipo de arma. Ele não perguntou, eles não esclareceram. Para alívio deles, e indiferença dele. Uma empilhadeira movida a gás levantou a embalagem — que pesava uns 700 quilos —, e a levou até a plataforma colocada ao lado do compartimento de carga. Dali foi levantada nos braços a bordo e firmemente amarrada no convés de alumínio.
O piloto e o copiloto faziam a inspeção pré-voo da aeronave, andando ao redor, verificando vazamentos de fluidos, inspecionando visualmente a fuselagem em busca de qualquer coisa errada. O negócio de carga aérea não era conhecido pela qualidade de seus procedimentos de manutenção, e os tripulantes, cujas vidas viajam na cabine de comando, faziam o melhor possível para compensar esse fato perturbador. O pneu da popa do trem de pouso principal do lado esquerdo precisava de substituição em mais ou menos dez ciclos. Fora isso, parecia que o avião conseguiria voar pelas próximas oito horas. Voltaram para a sala da tripulação para beber um pouco do (horrível) café local com pão (bem razoável). As marmitas com almoço já estavam a bordo, guardadas pelo engenheiro de voo, ocupado na verificação dos motores.
Trinta minutos mais tarde estavam de volta e subiram a antiquada escada para se colocar a caminho. Isso levou mais 15 minutos, e depois taxiaram até o final da pista um-oito para começar a corrida para levantar voo. A velha aeronave tinha 37 mil horas na fuselagem — começara a vida como avião de passageiros da United Airlines, na maioria das vezes cruzando da costa leste para a oeste e voltando, com algumas passagens por Saigon como Freedom Bird, que a aeronave, se tivesse memória, lembraria com um sorriso. Ascenderam até a velocidade de cruzeiro determinada, de 32 mil pés, e se dirigiram para oeste antes de pegar o rumo sul sobre a Finlândia, diminuindo a velocidade enquanto cruzavam o mar Báltico, e aterrissaram em Estocolmo. Tudo era rotina, terminando na pista dois-seis e dobrando à esquerda para o terminal de carga. Um caminhão-tanque imediatamente se aproximou para reabastecer e logo depois chegou a tripulação substituta, perguntando como fora a viagem e como estava a aeronave. Todas as respostas estavam dentro dos limites aceitáveis, e a tripulação que chegou desembarcou para tomar o carro que os levaria até o hotel usado pelas equipes de bordo. O hotel tinha um pub, que eles ficaram felizes em ver, com chope gelado. A tripulação substituta já estava com o DC-8 voando novamente antes que eles terminassem o primeiro pint.
De volta à Rússia, Musa estava no Aeroporto Domodedovo, em Moscou, no terminal principal, o que parecia uma espaçonave alienígena (mas que era um avanço em relação à adorada escola de design de bolo de noiva stalinista), fazendo uma ligação internacional para um amigo em Berlim. Quando a ligação se completou, disse ao amigo que o carro tinha sido adequadamente consertado, e que ele receberia o pagamento da próxima vez que se encontrassem. Seu amigo concordou, e a chamada terminou. Musa e seus homens foram então para o bar do aeroporto, onde desfrutaram largamente de doses de vodca russa com preço estupidamente alto, mas que, pelo menos, era de uma marca de qualidade, enquanto passavam duas horas esperando pelo voo da KLM que os levaria até a Holanda. O bar também lhes serviu fatias de pepino e pão para acomodar a vodca nos estômagos. Pagaram a conta em euro, deixando uma gorjeta miserável para o garçom antes de embarcar no 747 da KLM, na cabine da primeira classe, onde a bebida era grátis, e da qual também desfrutaram. Por sua vez, os pensamentos de Musa não se fixaram nos dois assassinatos que cometera. Fora necessário. Ele aceitara essa parte da missão antes de viajar para a Rússia e fretar o barco do infiel. Olhando em retrospectiva, surpreendeu-se por ele e seus amigos não terem aceitado bebidas enquanto estavam a bordo, mas havia o velho ditado sobre não misturar negócios com prazer, e não misturar álcool com os negócios certamente era um ditado ainda mais sábio. Será que aquele tal de Vitaliy tinha comentado sobre o fretamento com alguns amigos locais? Impossível saber. Mas como ele não sabia seus nomes ou endereços, e ninguém havia tirado nenhuma fotografia, que evidências ele teria deixado para trás? O norte da Rússia lhe parecia como aqueles velhos filmes americanos de caubói, nos quais as coisas eram muito casuais para serem adequadamente investigadas pela polícia. As pistolas usadas tinham sido descartadas, e isso era tudo, imaginou. Com aquilo decidido, abaixou o assento e deixou que o álcool o levasse ao sono.
O 747 aterrissou no Aeroporto Templehof em Berlim à uma da manhã, hora local. Musa e os demais desembarcaram em separado, passaram pela complicação da imigração usando seus passaportes holandeses, atravessaram para recolher a bagagem e dali para o ponto de táxi, onde um alemão dirigindo um Mercedes foi direcionado, em inglês, até certo endereço. Estava no que localmente era conhecido como Cidade das Parabólicas, por conta da quantidade de antenas de televisão via satélite. Elas permitiam aos muitos residentes árabes assistir à TV em seu próprio idioma.
O anfitrião já estava esperando, avisado por um amigo em Amsterdã, de modo que ele só precisou bater uma vez. Apertos de mãos e beijos trocados, e Musa entrou na sala de estar do pequeno apartamento. Mustafa, o dono da casa, levantou um dedo aos lábios e depois à orelha esquerda. O apartamento podia estar grampeado, pensou. Bem, em um país infiel é preciso se precaver. Mustafa ligou a TV na reprise de um programa de jogos.
— Sua missão foi bem-sucedida? — perguntou Mustafa.
— Completamente.
— Ótimo. Posso servir alguma coisa?
— Vinho? — perguntou Musa. Mustafa foi até a cozinha e trouxe uma taça cheia de vinho branco do Reno. Musa tomou um longo gole, depois acendeu um cigarro. Tivera um dia longo, mais os dois assassinatos, que, constatou, tendiam a perturbá-lo por nenhuma razão que ele conseguisse perceber. De qualquer maneira, o sono veio rapidamente, tão logo Mustafa estendeu o saco de dormir, e ele terminou seu vinho do Reno. No dia seguinte seguiria para Paris, esperando a notícia de que o pacote havia chegado sem problemas, e depois prosseguiria. Em Dubai poderia desfrutar de algum tempo livre; o engenheiro designado para o pacote era confiável e competente, e necessitaria de pouca supervisão. Mas, pensou Musa, que tipo de supervisão ele poderia dar? O que deveria ser feito com o pacote estava além de suas habilidades.
Era um nome estranho para uma cidade, pensou Kersen Kaseke. O local da derrota final de Napoleão diante de Wellington. Talvez uma metáfora conveniente: uma mudança de sorte divinamente ordenada para um tirano que mantivera boa parte do mundo sob seu punho. Ainda assim, achar um lugar como aquele, no meio do “cinturão do milho”, fora uma surpresa, como muita coisa nos Estados Unidos. As pessoas ali pareciam bem decentes e o tratavam bem, a despeito de seu nome engraçado e do inglês com sotaque pesado. Ajudava, ele tinha certeza, conseguir se fazer passar por cristão, filho adotivo de um missionário luterano que morrera dois anos antes em um ataque de morteiro nos arredores de Kuching. Apesar de achar repugnante negar diariamente o islã e o Verdadeiro Profeta, a história havia, efetivamente, amolecido os corações dos mais desconfiados dos moradores da cidade, a maioria dos quais eram operários ou fazendeiros. Não, na verdade ele não desprezava as pessoas, e sim o governo, e, por mais triste que pudesse ser, há milênios os cidadãos pagavam o preço de políticas brutais e fracassadas. Para as pessoas dali, tratava-se simplesmente de uma questão do destino finalmente alcançá-los. Destino e a vontade de Alá. Além disso, lembrou a si mesmo, o que viria para essas pessoas era apenas uma fração do que seu próprio país sofrera. Apesar de a história trágica de seus pais missionários ser tecnicamente falsa, era, no espírito, muito verdadeira. As ruas de Zagreb, Rijeka, Osijek e dúzias de outras tinham sido inundadas pelo sangue e pela miséria dos muçulmanos por décadas, sem que o Ocidente fizesse nada para salvá-los. O que teria acontecido, imaginou Kaseke, se tivessem sido crianças cristãs louras e de olhos azuis massacradas nas ruas de Londres ou Los Angeles? E então?
Como o e-mail instruiu, Kaseke dirigiu seu Ford Ranger 1995 até a estação de ônibus de Trailway em Sycamore, entre a 3 e a Park Avenue. Parou o Ranger no estacionamento do Doyle’s Pub, caminhou de volta um quarteirão até a estação, e entrou. A chave que recebeu pelo correio uma semana antes coube no armário número 104. Lá dentro, achou uma caixa de papelão resistente embrulhada em papel marrom. Era pesada, quase 15 quilos, mas reforçada com fita adesiva. Não havia nada escrito no papel. Ele retirou a caixa, colocou-a no chão entre seus pés, olhou ao redor para ter certeza de que ninguém o observava antes de usar a manga de seu suéter para limpar a chave do armário. Teria tocado em alguma outra coisa? Deixou impressões digitais em algum lugar ali perto? Não, apenas na chave.
Kaseke pegou a caixa e saiu, caminhando de volta pelo quarteirão até sua caminhonete. A caixa foi para o banco de passageiros. Ele entrou pelo outro lado e ligou a ignição, depois fez uma pausa, perguntando-se rapidamente se deveria colocar a caixa no chão. Se ele sofresse um acidente... Não, pensou. Não era necessário. Ele sabia o que havia na caixa, ou pelo menos tinha uma boa ideia, dado o currículo de treinamento pelo qual passara no acampamento. Eles o haviam treinado bem para fazer uma coisa, e apenas uma coisa.
A carga era perfeitamente inofensiva. Por enquanto.
58
Eles tinham três pistas sobre o que — se é que havia mesmo algo — o Emir e o CRO planejavam: antigas interceptações de e-mails, que resultaram em pouca utilidade, salvo o anúncio de nascimento que parecia ter colocado o rádio de todas as células do CRO em silêncio, assim como movimentado algumas peças do grupo pelo tabuleiro: Hadi, um mensageiro e um rosto novo no cenário; e o pen drive que Chavez inadvertidamente retirara de um dos bandidos no assalto à embaixada em Trípoli. Até o momento, o fato de o CRO usar esteganografia não lhes tinha dado mais que centenas de gigabytes de fotos de sites afiliados ao Comitê datando de até oito anos antes. Descobrir uma mensagem de 5 quilobytes embutida em um arquivo JPEG duzentas vezes maior era tarefa que não apenas consumia tempo, como também era assustadora.
A quinta e mais promissora pista fora obtida acidentalmente por um dedo que continuou apertando um botão disparador por alguns segundos a mais que o pretendido.
Entre as duas dúzias ou mais de fotografias que Jack havia tirado de Hadi em Chicago, três eram importantes, mostrando o rosto do mensageiro de perfil ou de modo oblíquo, e com luz suficientemente boa. Resultou, entretanto, que não foi o rosto de Hadi que despertou o interesse do Campus, e sim suas mãos. Quando se trata de analisar inteligência, Jack sabia, nem sempre se tratava de descobrir o que se estava buscando, mas sim ver o que estava diante de si.
— Esta aqui — disse Jack, apertando o botão de avançar no controle remoto. A foto seguinte, que apareceu na tela de LCD da TV da sala de conferências, mostrava Hadi subindo no meio-fio e passando ao lado de outro pedestre a caminho da porta. Perto do fundo da foto, pouco visível na sombra, a mão de Hadi e a do estranho se pressionavam, e, entre as duas, um objeto indistinguível.
— Passada por fricção — disse Clark, inclinando-se. — E bem limpa.
— Boa pescaria, Jack — disse Hendley.
— Obrigado, chefe, mas foi pura sorte.
— Não existe isso, mano — declarou Chavez. — Sorte é sorte. Aproveite quando ela vem.
— Então temos um segundo rosto — disse Sam Granger. — O que isso serve para nós?
— Nada. Nada por si só — disse Jack. — Mas pode nos levar a algum lugar. — Apertou novamente o botão de avançar. — A maleta do sujeito, ampliada e retocada. Pedi que Gavin produzisse um pouco da mágica do Photoshop. Verifiquem o canto superior direito, aquele quadradinho branco meio enrolado. — Jack apertou novamente o avançar, e o objeto se expandiu e ficou nítido. — É um tíquete de bagagem.
— Puta merda — murmurou Brian Caruso. — É preciso mesmo adorar essa merda de computador.
Hendley se dirigiu a Dominic:
— Agente especial Caruso, essa pode ser uma tarefa adequada para você.
— É para já, chefe.
Munido do número do tíquete, um horário aproximado, e o número de seu escudo no FBI, Dominic levou menos de uma hora para voltar com um nome: Agong Nayoan, vice-cônsul para Assuntos Econômicos do Consulado Geral da República Islâmica da Indonésia em São Francisco.
— Nada de excepcional nele — disse Dominic. — Voou de Vancouver para Chicago e São Francisco na mesma manhã que Hadi. A agência de Frisco conferiu seus dados há alguns anos. Não apareceu nada. Nada de ligações com grupos extremistas, politicamente moderado, sem registros criminais...
— Pelo menos até onde Jacarta admite — disse Granger. — É isso ou ele cobriu bem seus rastros. Temos esse sujeito fazendo uma transferência para um mensageiro conhecido do CRO. Alguém em algum lugar pisou na bola na verificação de antecedentes.
Com uma população de quase 200 milhões de muçulmanos, a Indonésia estava, segundo muitas comunidades de inteligência, ocidentais ou não, rapidamente se tornando um ponto central de recrutamento de grupos terroristas extremistas, os mais poderosos dentre os quais — Jemaah Islamiah, Frente dos Defensores Islâmicos (FDI), Darul Islam e Laskar Jihad — não apenas tinham ligações operacionais e financeiras com o CRO do Emir, como também eram simpatizantes em todos os níveis do governo indonésio. Saber que Agong Nayoan, funcionário do consulado indonésio, tinha tais inclinações não surpreendeu Jack, mas o fato de Nayoan ter optado por ser um atalho para um mensageiro do CRO significava que estavam lidando ali com uma enrascada muito maior do que pensavam.
— Seja lá quem trouxe Nayoan para esse jogo deve ser grande — disse Jack. — Se for pego, o que ele provavelmente vai receber de nós é um PNG. — O que significava persona non grata, um termo burocrático para “não queremos mais você aqui”. Expulsão. — Jacarta trata as coisas de modo diferente, entretanto. E é bom se lembrar disso.
A Agência Indonésia para a Coordenação da Assistência para a Consolidação da Segurança Nacional, ou BAKORSTANAS, tinha atribuições amplas e vagas para descobrir e eliminar ameaças à república, e que era, por sua vez, combinada com poucas restrições legais e supervisão. Se fosse expulso dos Estados Unidos acusado de ajudar o CRO, o melhor que Nayoan podia esperar era um buraco escuro na prisão de Cipinang, e anos ali para refletir sobre seus crimes. O governo de Jacarta nos últimos anos estava tentando se livrar da sombra econômica da China e se vender para o Ocidente como um contrapeso comercial. Seria difícil fazer isso com a fama de placa de Petri de terroristas.
— Ideias? — perguntou Hendley, olhando para Clark.
— Vamos rastrear o gato — respondeu Clark. — Sabemos que Hadi se dirigiu para Las Vegas e talvez mais além. Sabemos onde Nayoan está e de onde veio. Vamos grudar os olhos nele e ver aonde nos leva.
Hendley considerou o assunto; olhou para Granger, que assentiu.
— Você e Chavez — disse Granger. — Comecem em São Francisco, depois Vancouver. Dissequem o sujeito.
— E que tal Jack? — sugeriu Clark. — Boa oportunidade para ele dar os primeiros passos.
Hendley e Granger mais uma vez cruzaram olhares. O chefe olhou para Chavez e para os irmãos Caruso.
— Cavalheiros, podemos dispor da sala por alguns minutos? — Depois que eles saíram, Hendley disse a Jack: — Tem certeza de que quer isso?
— Sim, chefe.
— Então nos diga a razão. — Isso veio de Granger.
— Eu já...
— Diga novamente.
— Posso fazer coisas boas, acho...
— Está fazendo muito bem aqui onde está. E mais: não corremos o risco de queimar você... ou ver o filho de um ex-presidente assassinado. Você é um rosto, Jack.
— Um rosto comum. Conto nos dedos de uma só mão quantas vezes fui reconhecido nos últimos dois anos. O que os olhos não veem, o coração não sente. John e eu já tivemos essa conversa, certo? Não tenho visões românticas sobre a ação em campo.
Hendley olhou para Clark, que abriu os braços.
— Ou ele é bom ator ou está dizendo a verdade.
Jack sorriu.
— Olhem, no pior dos casos, vou ver como a outra metade vive e isso fará de mim um analista melhor, certo? É uma situação em que todos ganham.
— Muito bem, você está na equipe. Mas cuidado com seus modos. Nada de andar enfiando agulhas em pessoas desta vez, entendido?
Jack assentiu.
— Entendido.
— John, como você está com Driscoll?
— Conversei com ele hoje de manhã, dei algumas dicas. Acho que podemos ter como dado que o CID quer a cabeça dele. Está lidando calmamente com isso... melhor do que a maioria. Gosta do trabalho que faz. Acho que, se tiver uma oportunidade de sair de baixo e ainda manter a mão na massa, ele estaria interessado. Algum avanço do seu lado?
— Acho que teremos força suficiente para fazer a Procuradoria-Geral recuar, mas não para manter Driscoll com o uniforme. Quando voltar de Chicago, pode vender o caso para ele.
Clark assentiu.
— Chame-os de volta, Sam.
Depois que Chavez e os Caruso entraram, Brian disse:
— Ei, como finalmente estamos proativos sobre essa merda... O CRO matou esse tal de Dirar por alguma boa razão. Alguma ideia a mais sobre irmos a Trípoli dar uma sacudida na árvore?
— E o que você espera que caia? — perguntou Granger.
Dessa vez foi Dominic que respondeu:
— Ou Dirar foi liquidado diretamente pelo CRO, ou mandaram algum afiliado fazer o serviço. De qualquer modo, se descobrirmos quem fez isso teremos mais uma peça do quebra-cabeça... Talvez alguma indicação sobre protocolos de comunicação, rotas de financiamento... Quem sabe?
Hendley assentiu.
— Preparem os documentos e peçam para Viagens preparar o itinerário. Vamos ver se vocês conseguem levantar algum contato em Trípoli, alguém na embaixada que não se importe em ter uma conversinha por fora. Vamos providenciar também um briefing para Dominic e Brian... Jack, talvez esse novo negócio no qual você e Gavin tem trabalhado?
— Deixa comigo, chefe.
Hendley levantou e olhou ao redor da mesa.
— Muito bem, cavalheiros, ao trabalho. Precisamos de uma ponta, algo a partir do qual possamos descascar e usar como alavanca.
*
Cada homem iria precisar de um quarto para si, sabia Hadi, todos dentro de uma hora de carro de distância da instalação, e nenhum luxuoso demais para despertar curiosidade em uma estada de dez a 14 dias. Estrangeiros que chegavam a um novo país procurando trabalho não tinham dinheiro para acomodações de luxo, e, apesar de fazer sentido que amigos ficassem juntos nesse tipo de viagem, quatro sujeitos de aparência árabe se acomodando em um único lugar poderia despertar o interesse da polícia local.
Havia uma grande quantidade de motéis duas estrelas em São Paulo; Hadi não estava preocupado em achá-los, mas essa era sua primeira incursão em trabalho de campo e ele não queria deixar nada ao acaso, tal como não havia deixado nada ao acaso em suas histórias de cobertura.
Cada um deles havia estudado ou sabia o suficiente sobre a indústria, de modo que sua chegada e a busca de trabalho subsequente despertaria a mínima atenção, pelo menos durante o pouco tempo que pretendiam passar no país. A recente prosperidade do Brasil provocara um fluxo de trabalhadores, muitos provenientes do Oriente Médio, cansados de receber salários miseráveis por trabalhos exaustivos e perigosos. Não, pensou Hadi, enquanto não fizessem nada que os destacasse, mais quatro árabes procurando trabalho passariam despercebidos.
A parte difícil seria o reconhecimento. Havia muitos quilômetros de trilhos e centenas de vagões para inspecionar; havia horários e rotas para conferir duas e três vezes; topografia e infraestrutura para estudar. A própria instalação, apesar de estar longe de ser inexpugnável, tinha sua própria força de segurança, e a pesquisa preparatória de Ibrahim sugeria que a instalação rotineiramente fazia exercícios envolvendo tanto a polícia quanto os militares, e os dois mantinham forças de reação imediata. Claro que tais forças só seriam úteis em certa medida. Se ele e os demais planejassem bem e se mantivessem sempre sob a orientação de Alá, nada poderia detê-los.
59
Steve havia passado com brilhantismo no último teste, decidiu Allison. Ela cancelou no último instante o encontro dos dois em Reno, alegando que seu chefe lhe pedira para substituí-lo numa conferência de representantes de laboratórios em Sacramento. A conferência era verdadeira, tal como os cartões de visita, as amostras grátis de remédios e os folhetos que ela carregava na pasta de couro sempre que se encontravam para fazer sexo, mas só até aí. Allison até gostava dele, mas no seu negócio essas coisas eram medidas por uma régua de cálculo. Steve não era repulsivo nem abusivo, e isso o colocava na parte superior da escala. Não que isso importasse para o desempenho dela, mas certamente tornava seus encontros toleráveis.
Tal como previsto, Steve ficou preocupado e desapontado com o cancelamento de última hora, e de modo igualmente previsível, imediatamente propôs uma solução. Ele pediria licença do trabalho e voaria para Sacramento durante o fim de semana para que pudessem passar algum tempo juntos. Ela poderia assistir à conferência durante o dia, e teriam as noites para eles. Allison demonstrou o nível adequado de surpresa e gratidão pela sugestão, e prometeu que o próximo fim de semana que passariam juntos seria memorável. Em algum momento desse fim de semana, ela enfiaria o anzol mais fundo, timidamente sugerindo que ele a apresentasse à família. Talvez ela até arranjasse um jeito para que ele a visse chorando, para então confessar que de algum modo estava abalada pela “conexão especial” que sentia para com ele.
Como ela sabia desde o começo, a parte complicada seria vender o peixe. Seu “controlador” — um termo russo do qual jamais gostara —, o homem com as mãos marcadas por queimaduras, propusera um ângulo que ela achou que valia a pena explorar, mas isso envolveria expô-la com uma história não corroborada que Steve poderia ficar tentado a verificar. Mas, de qualquer modo, se na hora de vender o peixe Steve não estivesse completamente sob seu controle, ela recuaria e tentaria outro caminho. Steve não era estúpido, mas, quando se tratava de assuntos do coração, os homens eram tão irracionais quanto as mulheres, ou talvez mais. Sexo, com todo seu poder, não era mais que um ponto de passagem, e, se ela estivesse julgando corretamente seu alvo, não estava mais que a alguns passos do prêmio.
A pergunta que Allison não se permitia pensar muito era a natureza da informação que seu empregador procurava. Por que diabos, perguntou-se ela, eles se importavam com um lençol freático no meio do deserto?
Para um navio porta-contêiner padrão Panamax, o Losan era pequeno, uma “fileira de 12” com 2.700 TEU — unidades equivalentes a 6 metros —, o que equivalia a 165 metros, cuja capacidade fora há muito superada pelos Post-Panamax descendentes. Contudo, a Tarquay Industries de Smithfield, Virgínia, estava menos interessada em modernidade do que em cortar prejuízos.
Dos 120 tanques de quinhentos galões para propano que tinha vendido ao governo do Senegal, 46 foram declarados defeituosos, havendo passado pelo controle de qualidade com alças de manejo impropriamente soldadas. Por si só esse não era um problema insuperável, e a Tarquay se oferecera para consertar sem custos adicionais no local, mas, ao serem examinados tanto pelos inspetores do governo senegalês quanto pelo engenheiro-chefe da Tarquay, verificou-se que as soldas tinham comprometido a integridade do casco e que nenhum dos tanques aguentaria a pressão estabelecida de 250 psi ou cerca de 1,72 milhão de pascals.
Como esse era o contrato inicial da Tarquay com o Senegal, e de fato seu primeiro negócio com o exterior, logo foi providenciada uma substituição, juntamente com um pedido oficial de desculpas da diretoria, e os tanques substitutos foram imediatamente despachados. Em Dacar, os tanques defeituosos foram listados no conhecimento de entrada com o código R3001c — “Reexportação de produtos não petrolíferos por rejeição de qualidade após armazenamento” —, depois transportados para um armazém da alfândega em Port Sud e enfim descarregados num terreno vazio e cheio de ervas daninhas, limitado por uma cerca de tela de 1 metro de altura.
Oito meses mais tarde foram feitos arranjos para que os tanques defeituosos fossem devolvidos a Smithfield. O Losan, fazendo sua última escala antes de cruzar o Atlântico de volta aos Estados Unidos, tinha o espaço necessário para levar a carga.
Dois dias antes da partida, os tanques foram carregados por empilhadeiras na plataforma de vagões ferroviários, lacrados no local e transportados por 3 quilômetros até a doca em que se encontrava o Losan, onde os tanques foram descarregados com guindastes e colocados em armações-contêineres abertas — quatro tanques em cada uma —, e depois içados para o Losan e arrumados em fileiras de 12.
Tendo sido inspecionados na entrada, os tanques, que estavam sob o controle da alfândega desde a chegada, não foram nem pesados nem examinados antes de serem carregados a bordo do Losan.
A dor de cabeça e a náusea tinham piorado progressivamente nas últimas dez horas, o que de algum modo surpreendeu Adnan; ele não esperava que os sintomas chegassem tão cedo. Suas mãos tremiam e a pele estava pegajosa. Evidentemente as histórias sobre a toxicidade do navio não eram exageradas. Não importa, pensou, já era quase a hora. Segundo o mapa de Salychev, estavam a apenas 20 quilômetros do ponto de entrega.
Pela graça de Alá descobriram o barril de contenção precisamente onde deveria estar, ainda repousando na antepara da prateleira. Era mais leve do que Adnan esperava, o que era ao mesmo tempo uma bênção e uma maldição. Ele sabia o peso aproximado do núcleo, de modo que era relativamente fácil estimar o peso do barril de contenção; obviamente era selado com chumbo, mas não tão espessamente quanto sua inteligência havia previsto. Isso significava que o próprio cofre tinha sido planejado como escudo primário, o que não os ajudaria. No entanto, o barril ainda estava selado e parecia não ter sofrido danos durante o incidente ocorrido havia tantos anos.
Soltaram a fechadura da prateleira, levantaram e puxaram o barril pelas quatro alças em forma de D, e o retiraram do depósito e pelo convés inundado até a escada. Ali se movimentaram vagarosamente e com cuidado, um passo de cada vez, até o passadiço, e então até o corredor principal. Os dois últimos grandes obstáculos — a escada até o convés superior e a escada para descer até os botes — foram ultrapassados sem incidentes, e logo estavam de volta à praia. Alegremente tiraram os macacões de proteção e as máscaras de gás, enfiaram tudo em uma das mochilas, onde colocaram também uma pedra para dar peso e a jogaram na enseada.
A caminhada de volta ao promontório levou uma hora. Adnan ordenou aos homens que colocassem o tambor no solo e descansassem, depois foi até a praia e perscrutou pela neblina na direção da baía. Mal podia ver a silhueta do barco de Salychev. Tirou um sinalizador da mochila, arrancou a capa de ignição e balançou o tubo brilhante sobre a cabeça. Passaram trinta segundos e então veio do bote a piscadela dupla de uma lanterna. Adnan se voltou para os demais e acenou para que descessem.
Trinta minutos mais tarde estavam novamente no barco e voltando pelo mesmo caminho da vinda. Quando chegaram à baía principal, o tambor de contenção já estava selado dentro do segundo, com o escudo mais pesado, que tinham trazido consigo. Salychev olhou desconfiado para o contêiner mas não disse nada enquanto navegava o barco para alto-mar.
Agora Adnan estava de pé ao lado de Salychev, na cabine de pilotagem. Já era quase meia-noite. E nada além do negrume aparecia pelas janelas.
— Certamente fez por merecer seu pagamento, capitão — disse Adnan. — Ficamos agradecidos.
Salychev sacudiu os ombros e não disse nada.
Perto de seu quadril, Adnan sentiu a silhueta quadrada do rádio se projetando do console de madeira do timão. Movimentando-se vagarosamente, retirou o canivete do bolso do casaco e abriu a lâmina com o polegar. Apertando-a contra o cabo de força do rádio. O clique quando este se partiu mal foi audível.
— Vou verificar como estão os homens — disse Adnan. — Posso lhe trazer um copo de café? Alguma coisa mais forte?
— Café.
Adnan desceu a escada até o salão principal, e depois mais uma escada pequena até o compartimento de dormir. Estava escuro, salvo pela pouca luz que se filtrava do salão. Todos dormiam, cada um em um beliche, todos deitados de costas. Mais cedo ele dera a cada um o que disse ser mais uma dose de iodeto de potássio; de fato, era uma dose de 3 gramas de lorazepam enfiada em uma cápsula genérica de celulose. Com uma dose três vezes maior que a padrão, o medicamento antiansiolítico era o suficiente para pôr os homens em sono profundo. Uma bênção, pensou Adnan.
Nas últimas quatro horas, ele pelejara com o que tinha que fazer em seguida — não sobre a necessidade, mas sobre o método. Esses homens já estavam morrendo, e nada podia mudar isso; ele estava morrendo, e nada tampouco podia mudar isso. Era o custo da guerra e o fardo dos fiéis. Ele se consolou um pouco sabendo que eles jamais despertariam, nem sentiriam dor alguma. A única outra consideração, então, era o barulho. Salychev era velho, mas duro e sazonado por uma vida no mar. Melhor pegá-lo de surpresa mais tarde.
Adnan foi até a mesa de trabalho montada na antepara da popa e abriu a gaveta do alto à esquerda. Lá estava a faca que havia descoberto em sua busca mais cedo. Tinha um formato em J, com uma ponta aguçada como uma agulha e uma borda finamente amolada, usada, ele supôs, para destripar peixes.
Agarrou o cabo de madeira, a lâmina para cima, e parou ao lado do primeiro beliche. Respirou fundo, depois colocou a mão esquerda sob o queixo do homem, girou a cabeça na direção do colchão e colocou a ponta da faca na depressão abaixo da orelha e a enfiou, puxando a lâmina na direção do queixo. O sangue jorrou da carótida cortada; na escuridão, parecia negro. O homem soltou um gemido suave sob a palma da mão de Adnan, depois teve um, dois espasmos, e ficou imóvel. Adnan se movimentou até o segundo, repetiu o processo, e depois fez o mesmo no terceiro. No total, não levou mais que noventa segundos. Deixou a faca no convés, subiu até o salão e lavou o sangue das mãos. Ajoelhou-se ao lado da pia, abriu a gaveta de baixo e tirou dali a pistola Yargin 9 milímetros que tinha escondido. Puxou um pouco a mola para ter certeza de que havia uma bala na câmara, girou a trava e enfiou a pistola no bolso do casaco. Finalmente, pegou um copo de café de plástico da prateleira.
Subiu a escada e foi para a cabine de pilotagem.
— Café — disse, entregando o copo a Salychev com a mão esquerda. O capitão se voltou para pegá-lo. Adnan sacou a Yargin do bolso e atirou em sua testa. Sangue e miolos se espalharam pela janela. Salychev se inclinou para trás e caiu na antepara. Adnan ligou o piloto automático no painel do timão, depois agarrou Salychev pelos tornozelos, arrastou-o até a escada e deixou que rolasse até o salão.
De volta ao leme, Adnan levou um minuto para verificar novamente a posição na antiga unidade Loran-C, desligou o piloto automático e ajustou a rota.
A silhueta escura da ilha apareceu no horizonte uma hora depois. Mais uma hora se passou e Adnan diminuiu os motores e acompanhou a costa na direção leste até que o visor do Loran-C exibisse as coordenadas corretas.
A ilha era conhecida como Kolguyev e fazia parte, segundo o mapa de Adnan, do Okrug Autônomo de Nenets, um círculo quase perfeito de charcos, pântanos e colinas baixas com 80 quilômetros de largura e abrigo de apenas um assentamento chamado Bugrino, na costa sudoeste, habitado por algumas centenas de nenets, pescadores, agricultores e pastores de renas.
Adnan deixou o motor em ponto morto e desligou a ignição. Verificou seu relógio: dez minutos atrasado. Tirou o farol portátil do suporte na antepara e foi até o convés. A piscada em código do farol foi quase imediatamente seguida pela correta resposta da costa.
Cinco minutos depois, escutou o ruído suave de um motor de popa. Uma lancha saiu da escuridão e encostou na amurada de bombordo. Havia quatro homens a bordo, todos armados com AK-47. Adnan não reconheceu nenhum deles. Não que isso importasse, afinal o código de luz estava correto, e, se fosse uma armadilha, não havia nada que ele pudesse fazer.
— Você é Abdul-Baqi, Servo do Criador? — perguntou um dos homens, o líder, supôs Adnan.
— Não. Servo do Eterno — respondeu Adnan. — É bom vê-los aqui.
— E você também, irmão.
— Joguem a corda e subam a bordo. Pelo menos dois são necessários para levantar.
Enquanto Adnan amarrava a linha na braçadeira de bombordo, dois dos homens subiram a bordo, soltaram o vaso de contenção de sua posição no convés e o levaram até a amurada, onde os dois homens a bordo da lancha o agarraram e colocaram no convés. Em seguida os dois se juntaram a seus colegas.
— Algum problema? — perguntou o líder.
— Nenhum. Tudo correu como planejado.
— Podemos ajudar em mais alguma coisa?
Adnan sacudiu a cabeça.
— Não, obrigado. Já terminarei tudo. Aqui é profundo, quase 300 metros. O mar fará o resto.
60
Esta, sabia o almirante Stephen Netters, seria uma reunião desagradável, e tinha tanto a ver com quem estava presente quanto com quem não estava. Se tudo estivesse certo, o homem sentado do outro lado da escrivaninha diante dele deveria ser Robby Jackson, mas não era. Algum caipira com o coração cheio de ódio tinha evitado isso. Então, ali estava Edward Kealty. O homem errado para todas as horas. Netters e Jackson subiram juntos, começando na Academia Naval, e suas carreiras se cruzando aqui e ali enquanto subiam a ladeira até que finalmente, no ocaso da administração Ryan, Netters havia sido nomeado chefe do Estado-Maior Conjunto. Aceitara a tarefa por várias razões, e a ambição era a menor delas; o respeito por Ryan, a mais importante.
Foi difícil não sair depois daquilo tudo, especialmente depois que ficou claro que Kealty ganharia o Salão Oval não por seus méritos e sim por conta de uma idiotice do destino e uma tragédia. Mas, mesmo enquanto os votos eram contados e o mapa eleitoral se inclinava inexoravelmente em favor de Kealty, Netters sabia que tinha que permanecer, temendo que o novo presidente nomeasse um dos “príncipes perfumados” do Pentágono. Alguém só precisava observar a profundidade (ou a falta de) do ministério de Kealty para saber o que o sujeito esperava da sua equipe. E nisso residia o problema. Contradiga o rei com frequência ou com muito zelo e algum príncipe mais submisso seria achado. Deixe de contradizer o rei e o reino cai nas mãos dos bárbaros.
— Me diga o que estou vendo, almirante — disse o presidente Kealty com um resmungo, e empurrou a fotografia de satélite de volta para o lado de Netters.
— Senhor presidente, o que vemos são movimentos de tanques em larga escala, que juntamente com a infantaria mecanizada se dirigem a oeste na direção da fronteira.
— Isso eu posso perceber, almirante. De que números estamos falando, e que diabos eles pretendem fazer?
— Quanto à primeira pergunta, identificamos uma divisão blindada com três brigadas de tanques, com uma mistura de velhos tanques soviéticos, modelos T-54, T-62 e Zulficar como armamento principal; quatro batalhões de artilharia; e duas divisões de infantaria mecanizada. Quanto ao que pretendem, senhor presidente, ainda não podemos pensar nesses termos. Precisamos nos concentrar no que eles são capazes de fazer, e daí avançar para suas intenções.
— Explique — disse a assessora de Segurança Nacional, Ann Reynolds.
Tradução: não sei de que droga você está falando. Tal como Scott Kilborn, a congressista democrata do Michigan era extremamente não qualificada, mas tanto a demografia de gênero quanto seu assento no Comitê de Inteligência da Câmara tinham feito dela uma favorita para o ministério de Kealty. Como CEO de uma companhia de Detroit que lidava com redes sociais em sites, Reynolds havia sido perspicaz e capaz, características que supôs serem facilmente transferidas para o papel de política e legisladora. Netters suspeitava que Reynolds ainda não tinha percebido que para ela não dava pé, um fato que o apavorava completamente. A assessora de Segurança Nacional metia os pés pelas mãos, esperando que os ternos poderosos de Donna Karan, os óculos severos e o estilo de falar disparado manteria os lobos à distância.
— Digamos que eu pretenda ultrapassar o recorde olímpico da maratona. Essa é minha intenção. O problema é que minhas pernas estão quebradas e tenho problemas cardíacos. Essa é minha capacidade. Essa última dita a primeira.
Reynolds assentiu sabiamente.
Scott Kilborn, o DCI, disse:
— Senhor presidente, Teerã vai dizer que se trata de um “exercício”, mas não podemos ignorar o óbvio. Em primeiro lugar, a força se movimenta na direção da depressão de Ilam; em voo direto, é o ponto mais próximo de Bagdá do que qualquer outro no Irã. Mais ou menos 12 quilômetros. Segundo, nós acabamos de colocar em execução nosso plano de retirada do Iraque. Na melhor das hipóteses, eles estão avisando aos sunitas para terem um bom comportamento. Na pior, a coisa é para valer e estão planejando uma incursão.
— Com que objetivo?
Kealty tinha feito a pergunta, o que era bom, pensou Netters, mas não havia nenhuma curiosidade por trás. Quando se tratava do Iraque, o presidente era completamente focado em uma solução. Desde o primeiro dia, havia deixado claro que pretendia retirar as forças dos EUA o mais rapidamente possível, com uma atenção apenas simbólica às questões de segurança. A Kealty faltavam dois ingredientes críticos para uma boa liderança: flexibilidade e curiosidade. Ele possuía os dois em abundância na arena política, mas isso se relacionava ao poder, e não a uma autêntica liderança.
— Esperando para ver como reagimos — respondeu Kilborn. — Quanto mais tempo demorarmos na retirada, mais tempo Teerã disporá para trabalhar por trás dos panos com as milícias xiitas. Se uma incursão não reverter nossa retirada, eles podem ter uma previsão.
— Discordo — disse o almirante Netters. — Eles não têm nada a ganhar e tudo a perder se cruzarem a fronteira. Mais ainda: pegando leve.
— Explique.
— Mandaram a campo apenas elementos simbólicos de defesa antiaérea. E isso não é uma distração. Eles sabem que, se formos para cima deles, o primeiro ataque virá dos porta-aviões do golfo.
Ann Reynolds, a assessora de Segurança Nacional de Kealty, disse:
— Uma mensagem?
— Mais uma vez, Sra. Reynolds, isso cai na categoria das “intenções”, mas posso dizer o seguinte: apesar de todos os defeitos, os iranianos não são cegos, e acreditam fielmente no modelo de ordem de batalha dos soviéticos, que é grande em sistemas antiaéreos móveis. Eles viram o que nós fizemos nas duas guerras do golfo, e não esqueceram. Você não dispensa seus elementos antiaéreos assim por nada.
— E sobre cobertura aérea? — perguntou Reynolds. — Caças?
— Nenhuma mudança — respondeu Netters. — Nenhum movimento além dos voos rotineiros de patrulhamento.
O presidente Kealty franziu a testa. Uma mosca em sua sopa, pensou Netters. Ele prometeu ao país que iria retirar os Estados Unidos do Iraque, e o relógio estava tiquetaqueando não para as tropas ou para o bem-estar estratégico dos Estados Unidos, mas para as chances de Kealty conseguir um segundo mandato. É claro, Netters tivera, desde o começo, suas reservas quanto à guerra contra o Iraque, e ainda tinha, mas essas se tornaram minúsculas pela possibilidade muito real da coisa dar errado ali. Queira ou não, os Estados Unidos estavam metidos até o pescoço no Oriente Médio, mais do que jamais estiveram em toda a história. Uma retirada indolor era um sonho impossível que Kealty vendeu a uma nação compreensivelmente cansada de guerras. O plano de retirada atual jamais teria sucesso, mas era comedido o suficiente para que o Iraque deslizasse vagarosamente para o caos em vez de mergulhar de cabeça nele, e, nesse caso, ele esperava que Kealty tivesse um pouco da porra do bom senso de escutar os comandantes do teatro.
Mas Kilborn estava correto em um aspecto. Esse assunto na fronteira podia bem ser uma previsão para o final do jogo de Kealty no Iraque sem as tropas americanas, ainda que a possibilidade de o Irã mandar tropas para o terreno, uma vez que as forças dos EUA tivessem ido embora, era um mero jogo de adivinhação. Se fizessem isso, entretanto, usariam o aumento da violência dos sunitas contra os xiitas como justificativa.
Os iranianos estavam em um jogo irresoluto. Um atraso na retirada das tropas dos Estados Unidos parecia contrário aos interesses de Teerã. Ou pelo menos aqueles visíveis de Washington.
Kealty se inclinou na poltrona e juntou os dedos em ponta.
— Então, almirante, como não quer falar de intenções, eu farei isso por você — disse Kealty. — Os iranianos gostam de exibir força. Testar nossa decisão. Nós vamos ignorá-los, manter o plano de retirada e mandar nossa própria mensagem a eles.
— Tal como? — perguntou o almirante Netters.
— Outro porta-aviões e seu grupo de apoio.
Uma mensagem. Outra missão sem objetivo. Ao mesmo tempo que era verdade que os porta-aviões diziam tudo a respeito de projeção de poder, o conceito era análogo à segurança básica de armas: não aponte uma arma se não tiver intenção de atirar. Nesse caso, Kealty só queria exibir o objeto.
— Que ativos temos disponíveis? — demandou Kealty.
Antes que Netters pudesse responder, Kilborn disse:
— O Stennis...
Netters interrompeu.
— Senhor, nesse caso estamos perto do limite. O grupo do Stennis foi dispensado na base há dez dias. Está há muito tempo precisando de...
— Droga, almirante, estou ficando cansado de escutar sobre o que não podemos fazer, compreendeu?
— Sim, senhor presidente, mas precisa entender que...
— Não, não preciso. Para isso você é pago, almirante. Faça o serviço e me traga um plano, ou vou achar alguém que o faça.
Tariq foi até a sala de estar, onde o Emir lia, e pegou o controle remoto da televisão.
— Algo que você deve ver. — Ligou a TV e mudou para um canal a cabo de notícias. A âncora lourinha, bonitinha e de olhos azuis estava no meio de uma frase.
— ... novamente, um porta-voz do Pentágono acabou de confirmar uma reportagem anterior da BBC sobre exercícios do Exército iraniano que estão sendo realizados em sua fronteira com o Iraque. Enquanto o Pentágono admite que o governo de Teerã deixou de anunciar o exercício, prosseguiu afirmando que tais eventos não eram incomuns, citando um movimento de tropas e equipamentos semelhante, ocorrido no começo de 2008...
Tariq desligou o som da TV.
— Estranhos companheiros de cama — murmurou o Emir.
— Desculpe?
Apesar de Teerã no geral não apoiar a causa do CRO, também não tinha sido um obstáculo, sabendo muito bem que nunca se podia prever quando os interesses poderiam coincidir. Nesse caso, o Ministério de Inteligência e Segurança Nacional do Irã, o VEVAK, havia recentemente voltado sua atenção sobre como poderia ser a configuração do Iraque pós-ocupação. Apesar de bem-representados por várias milícias e apoiados pela ajuda do Hezbollah e do Pasdaran, os xiitas iraquianos eram ainda uma minoria, e consequentemente vulneráveis à perseguição sunita, um desequilíbrio de poder que Teerã desprezava, e o CRO ficava feliz em explorar. Logo que os Estados Unidos começaram a bater o bumbo para a guerra, em 2002, o Emir desenvolvera sua própria análise de custo-benefício, assim como uma estratégia para expandir os objetivos do CRO. O fato de essa estratégia estar obliquamente baseada no modelo econômico americano era algo que provavelmente jamais ocorreria a Washington.
Os Estados Unidos em algum momento sairiam, ou pelo menos diminuiriam sua presença a um nível nominal, ocasião na qual o Irã começaria seu jogo para a dominação do Iraque, uma façanha que não podia esperar obter sucesso sem alguma vantagem sobre a maioria sunita. Nesse sentido, o Irã tinha necessidades. Era um freguês em construção.
O envolvimento do CRO no Iraque havia começado em agosto de 2003, com o influxo de homens, suprimentos e experiência, todo o conjunto amplamente oferecido aos grupos extremistas sunitas. Baseados no ódio comum aos ocupantes dos EUA, recursos foram compartilhados e objetivos entrecruzados e, por volta de 2006, o CRO controlava ou tinha influência em grandes porções de Bagdá e na maior parte do triângulo sunita. Esses eram os bens ou serviços para os quais Teerã queria pagar.
Como Mary Pat Foley e o NCTC bem sabiam e Jack Ryan Jr. recentemente compreendera, a disponibilidade da informação na era digital podia ser tanto um obstáculo quanto uma bênção para o trabalho de inteligência. Os computadores podem categorizar, cotejar e disseminar quantidades maciças de informação, mas a mente humana só consegue absorver e usar parte disso. A aplicação de informação é o pivô em torno do qual decisões — boas, más ou neutras — são feitas, um fato que engenheiros, supervisores de jogos, cassinos e centenas de outras disciplinas aparentemente não relacionadas já reconheceram há muito tempo. Quem faz o que, onde e quando? Para um planejador urbano, uma lista dos cruzamentos onde acontecem mais engarrafamentos é virtualmente inútil; um mapa dinâmico no qual ele ou ela possam perceber os pontos quentes e as tendências, valiosíssimo. Tristemente, como era frequente no caso, o governo dos Estados Unidos ainda não estava pronto para alcançar o terreno da Visualização de Dados e da arquitetura da informação, tendo que terceirizar tais serviços para empresas experientes na cibernética enquanto a burocracia federal desperdiçava milhões de dólares e perdia tempo com o assunto.
Para Jack e Gavin Biery, o projeto que eventualmente terminaram apelidando de RELHA começara como um desafio técnico: como pegar a inundação de informação de fontes abertas na internet e transformá-la em algo útil — uma espada que pudessem usar para desbastar a sobrecarga. Apesar da metáfora ligeiramente floreada, rapidamente fizeram progresso, começando com um programa de software projetado para recolher obituários da costa leste e mapeá-los segundo vários agrupamentos: idade, local, causa do óbito, profissão etc. Muitos dos padrões que emergiram eram previsíveis — como a concentração da morte de pessoas mais velhas nas proximidades de asilos de idosos —, mas alguns não eram, tal como o recente aumento da idade de permissão para beber em um estado precedendo o aumento na morte nas rodovias de jovens adultos que se dirigiam aos estados com idade menor de licença para beber. Isso também era mais ou menos previsível, admitiram, mas observar as marcações em um mapa era a proverbial imagem que substituía mil palavras.
A outra surpresa foi a profundidade e a abrangência da informação aberta. Os dados realmente úteis, apesar de não serem inacessíveis, estavam enfiados bem no fundo de sites dos governos locais, estaduais e federal, disponíveis para qualquer um que tivesse paciência e conhecimentos tecnológicos para achá-los. Os países do Segundo e do Terceiro Mundo, nos quais aconteciam a maior parte dos incidentes terroristas, eram a presa mais fácil, muitas vezes fracassando em fechar a abertura entre os registros mantidos on-line e a segurança dos bancos de dados. Em outros casos, informações confidenciais como relatórios de prisões e arquivos de investigações correntes eram armazenadas em servidores sem segurança, às vezes sem nem mesmo um firewall ou senha de acesso entre eles e os portais governamentais.
E esse era o caso da Líbia. Quatro horas depois de receber o sinal verde de Hendley, Jack e Gavin tinham a RELHA arando gigabytes de dados, tanto de fontes abertas quanto de bancos de dados governamentais. Duas horas depois, a RELHA regurgitava informação na cópia do Google Earth Pro de Gavin. Jack chamou Hendley, Granger, Rounds e os irmãos Caruso para a sala de conferências na penumbra. A visão aprimorada de Trípoli via satélite proporcionada pela RELHA estava sobreposta com linhas multicoloridas que se entrecruzavam, pontos de agrupamento e quadrados. Jack ficou ao lado da tela LCD com o controle remoto na mão; Biery estava sentado no fundo contra a parede, o laptop aberto sobre suas pernas.
— Parece um quadro de Jackson Pollock — observou Brian. — Você está tentando nos dar um piripaque, Jack?
— Prestem atenção — respondeu Jack, e depois apertou um botão no controle remoto. O “tracejamento de dados”, como ele e Gavin chamavam aquilo, desapareceu. Jack passou cinco minutos explicando ao grupo sobre a RELHA, e depois apertou novamente o controle remoto. A imagem se aproximou do aeroporto de Trípoli, que agora tinha uma espécie de corola de flor em cima, o estigma dividido em pedaços de tortas coloridos, as pétalas quadriculadas e em vários ângulos.
— O estigma representa a média diária de chegadas. As manhãs são mais movimentadas; as tardes, mais calmas. As pétalas representam o número de buscas especiais efetivadas nos postos de controle do aeroporto. Como podem ver, há um salto nas manhãs, das sete às dez, e uma queda quanto mais se aproxima o meio-dia. Tradução: quintas-feiras entre dez e meia e meio-dia são o melhor momento para tentar deslizar algo pelos controles.
— Por quê? — perguntou Granger.
— Os postos de controle são manejados em capacidade total de manhã, mas o pessoal faz uma rotação nos intervalos para o almoço no final da manhã; menos pessoal e mais passagens é igual a menos segurança. Mais ainda: quase dois terços do pessoal das máquinas e dos guardas de segurança trabalha de domingo até quinta-feira.
— Então as quintas-feiras são as sextas-feiras deles — disse Dominic. — Já estão pensando no fim de semana.
Jack assentiu.
— Foi o que pensamos. Também temos um gráfico igual para as decolagens. Pode ser bem útil para vocês.
Jack passou uma série de gabaritos coloridos descrevendo padrões de tráfego, atos de violência, sequestros, batidas feitas tanto por unidades militares quanto pela polícia, demonstrações antiocidente... Tudo categorizado por datas e horas, demografia, vizinhanças, etnicidade, envolvimento estrangeiro, afiliações religiosas e políticas, até finalmente sintetizar os dados em uma série de “fazer” e “não fazer” para Brian e Dominic: área a evitar, e a que horas do dia, bairros onde provavelmente encontrariam forte apoio ao CRO, ruas nas quais eram mais comuns as barreiras da polícia e dos militares.
— Jack, isso é fantástico — comentou Brian. — É como se fosse nosso próprio e bizarro guia de viagem.
— O quanto esses dados variam? — perguntou Dominic.
— Não muito. Há alguma flutuação durante e próxima aos dias santos islâmicos mais importantes, mas, a menos que vocês fiquem por mais de dez dias, não vão achar muita variação.
Granger perguntou:
— Eles podem acessar isso quando estiverem em campo?
— Gavin hackeou dois Sony Vaio VGN: tela de 8 polegadas com sistema operacional Ubuntu e uma...
— Em inglês, Jack — disse Rounds.
— Pequenos laptops. Terá todos os dados em formato Flash. Vocês poderão mudar e revisar os gabaritos da RELHA quando quiserem. Vamos mostrar para vocês quando acabarmos aqui.
— Ótimo trabalho, Jack... Gavin. Alguma pergunta, rapazes? — disse Hendley.
Brian e Dominic sacudiram as cabeças.
— Então, boa viagem.
61
Jack Ryan Senior deu o laço na gravata e olhou no espelho. Decidiu que estava suficientemente bom. Usava seu terno da sorte, uma camisa branca de mangas compridas e gravata vermelha. Tinha aparado os cabelos no dia anterior, e eles mostravam fios grisalhos o suficiente para assegurar que ele já não era um garoto, mas parecia suficientemente juvenil para um homem no começo dos 50 anos. Um sorriso de teste mostrou que havia escovado adequadamente os dentes. Hora do jogo.
Começaria em uma hora, diante de vinte ou mais câmaras e as centenas de repórteres e comentadores por trás delas, poucos dos quais tinham realmente afeição por ele. Mas não era necessário que tivessem. O trabalho deles era relatar os fatos tal como os viam, clara e honestamente. A maioria, ou pelo menos alguns, fariam isso, se Deus quisesse. Mas Ryan devia falar corretamente, não vomitar nem cair diante das câmaras, por mais que isso fosse interessante para Jay Leno no final do dia.
Bateram na porta e Ryan foi abrir. Não era necessário que fosse muito cuidadoso. A equipe do Serviço Secreto que cuidava dele tinha guardado o andar inteiro como se fosse um silo nuclear da Força Aérea.
— Olá, Arnie e Callie — disse, cumprimentando os dois.
Arnie van Damm deu uma olhada geral.
— Bem, senhor presidente, é bom constatar que ainda sabe como se vestir bem.
— Tem outra gravata? — perguntou Callie Weston.
— O que há de errado com esta vermelha? — perguntou Ryan.
— Agressiva demais.
— O que você preferiria?
— Azul-celeste seria melhor.
— Callie, adoro seu trabalho, mas, por favor, deixe que eu mesmo me visto, está bem?
Callie Weston resmungou, mas deixou passar.
— Tudo pronto? — perguntou Arnie.
— Tarde demais para fugir — respondeu Ryan. E era mesmo. Dali para a frente seria um candidato para valer, pronto para disparar. Sangue nos olhos e espinha de aço.
Van Damm disse:
— Não posso mesmo convencê-lo a...
— Não. — Ele, Arnie e Callie haviam discutido sobre Georgetown: se incluiriam ou não a tentativa de assassinato no discurso de anúncio. Previsivelmente, os dois argumentaram pela inclusão, mas Ryan não quis saber disso. O incidente seria levantado durante a campanha, mas não por ele. No entanto também não o evitaria.
— Como está a audiência?
— Todos pregados — respondeu Arnie. — Por outro lado, temos um dia fraco de notícias, portanto ficarão felizes em vê-lo. Vai proporcionar a eles pelo menos uns cinco minutos de tempo no ar. Você vai vender muita pasta de dente para os caras, Jack. Droga, alguns na verdade gostam de você.
— É mesmo? Desde quando? — perguntou Ryan.
— Eles não são o inimigo. São a imprensa. São observadores neutros. Temos que nos colar a eles, com off-the-record. Tomar uma cerveja com eles. Deixar que gostem de você. Você é um sujeito simpático. Deixe isso funcionar a seu favor.
— Vou pensar no assunto. Café?
— O daqui é bom?
— Não tenho queixas — disse-lhes Jack. Foi até a bandeja do serviço de quarto e se sentou para servir outra xícara. Sua terceira. E essa marcava seu limite, caso contrário a cafeína o deixaria inquieto. Na Casa Branca, o café presidencial era Jamaican Blue Mountain, da antiga colônia britânica, amplamente considerado o melhor do mundo. Aquilo era uma xícara de café. Talvez fosse a bauxita nos grãos, pensou Jack.
Mais uma vez a mente de Ryan voltou à questão central: se ganhasse, como colocar o país de volta em seu rumo? Governar um país tão complexo quanto os Estados Unidos era uma impossibilidade efetiva. Interesses demais, cada um deles um caso de vida ou morte para alguém, e esse alguém ia para a TV ou para os jornais desejando assegurar que suas visões tivessem a atenção adequada, de preferência barulhenta. O presidente podia ou não prestar atenção. Ele, ou ela, tinha uma equipe para assegurar que apenas os assuntos importantes chegassem à sua escrivaninha. Mas isso fazia do presidente refém da equipe, e até mesmo um bom sujeito podia ser direcionado de modo equivocado pelas pessoas que escolhera para o trabalho — e, na prática, a escolha da equipe era delegada aos funcionários mais graduados, todos os quais tinham um sentimento de autoimportância bem acentuado, como se uma mesa na Ala Oeste da Casa Branca ou no Antigo Edifício de Escritórios do Executivo fosse um dom pessoal outorgado pela própria mão de Deus. Tais pessoas podiam e efetivamente moldavam as ideias do presidente simplesmente selecionando o que ele veria. E você está lutando para ter mais quatro anos disso? perguntou-se Ryan. Seu idiota babaca.
— Conheço essa expressão — disse Arnie. — Sei o que você está pensando. O que posso dizer, Jack, salvo que acho que você realmente é o melhor homem para o cargo, e que é necessário? Acredito nisso até os ossos. E você?
— Estou chegando lá — disse Ryan.
— Você viu esse negócio sobre o Irã? — perguntou Arnie.
— Que parte? O programa nuclear ou o exercício na fronteira?
— Ambas.
— Mesma coisa, só muda a fachada — disse Jack. — Teerã simplesmente sabe que basta sacudir um pouco os sabres para Kealty reagir, ou reagir excessivamente. Vai ver ele mandou Netters deslocar para lá um grupo de combate inteiro?
— Sim. Stennis. Cancelou o descanso em casa.
— Idiota. Estão fazendo o presidente dos Estados Unidos de marionete. — Verificou o relógio. — Quanto tempo me resta?
— Dez minutos — respondeu Callie. — Posso pedir que você coloque um pouco de maquiagem de TV?
— Nem no inferno! — trovejou Ryan em resposta. — Não sou nenhuma puta de 10 dólares da rua 16.
— Agora já estão mais caras, Jack. Inflação, lembra?
Ryan se levantou e foi até o banheiro. Perder o controle da bexiga era outra coisa a ser evitada, e algo que ele não podia fazer diante das câmeras. À medida que envelhecia, Ryan percebia que gostava cada vez menos de esperar na fila para dar uma mijadinha. Parte do processo de envelhecimento, percebeu. Bem, ele fez o serviço, puxou o zíper e voltou para vestir o paletó.
— Vamos lá, pessoal?
— Para a toca dos leões, senhor presidente. — Arnie o chamava de Jack apenas em particular. Callie Weston tinha o mesmo privilégio, o que a deixava desconfortável. Ao saírem do quarto viram que Andrea Price-O’Day já estava ali, juntamente com outros membros da segurança de Jack, as armas em segurança nos coldres.
— SWORDSMAN em movimento — comunicou Andrea ao restante da equipe pelo microfone da lapela.
Jack se dirigiu para o elevador, que estava, como sempre, seguro para ele, com outro agente armado dentro.
— Ok, Eddie — disse Andrea, e Eddie soltou a chave que segurava, e o elevador desceu até o segundo andar, onde ficava a sala de reuniões reservada para o anúncio daquele dia.
Quarenta segundos depois, as portas deslizaram se abrindo, e a equipe do Serviço Secreto saiu à frente do desfile. Havia um funil de espectadores, alguns deles cidadãos comuns, algo bastante notável, mas a maioria era formada por repórteres de várias tendências e suas câmeras de TV. Jack sorriu para eles — candidatos têm que sorrir o tempo todo —, acenando para alguns que conhecia de nome de quatro anos antes. O sorriso ameaçava fazer seu rosto rachar, pensou Jack.
— Senhor presidente, por favor, me acompanhe — disse o gerente do hotel, pastoreando o grupo para o fundo da sala. Havia um atril. Jack foi imediatamente até lá. Agarrou firmemente o painel de madeira, o suficiente para que sua mão doesse um pouco. Era seu comportamento normal, e o ajudava a sincronizá-lo com a tarefa que tinha adiante.
— Senhoras e senhores — começou Jack. — Obrigado pela sua presença. Estou aqui para anunciar minha candidatura para disputar a presidência dos Estados Unidos no próximo ano. Desde que deixei a presidência, há três anos, observei desapontado o atual presidente exercer seu mandato. O presidente Kealty não respondeu bem aos desafios colocados diante do nosso país. No Afeganistão e no Iraque, soldados morreram sem necessidade, vítimas de uma política desgovernada de retirada. Mesmo quando uma guerra é malconcebida, quando se tem uma guerra, há que se lidar com ela, e fazer isso corretamente. Fugir de um conflito não é uma política. O presidente Kealty, quando senador dos Estados Unidos, não era amigo de nossas Forças Armadas, e aumentou seus erros anteriores usando essas forças de modo não eficiente, tentando fazer o microgerenciamento das atividades de campo a partir do Salão Oval, de maneira que levou nossos soldados à morte, em vez de escutar nossos comandantes no terreno.
“Além disso, o presidente Kealty também errou na condução da economia nacional. Quando deixei o cargo, a América tinha uma economia crescente e saudável. Em seus dois primeiros anos, a política fiscal equivocada do presidente Kealty encerrou abruptamente nosso crescimento. Neste último ano, a economia chegou ao fundo do poço e agora começa a crescer novamente, mas isso a despeito da política governamental, e não devido a ela. Sob minha administração, simplificamos a política fiscal. Isso desempregou uma boa quantidade de advogados e contadores; aliás, ainda é bom lembrar que sou contador registrado, e os novos códigos fiscais chegaram ao ponto em que eu não consigo mais compreendê-los. Talvez o presidente Kealty esteja feliz porque, em suas palavras, todo mundo paga sua parte dos impostos, mas a receita do governo federal diminuiu, e o déficit disso resultante está minando diariamente os Estados Unidos.
“Só posso considerar os primeiros três anos de Kealty na Casa Branca um erro para o nosso país, e, por essa razão, aqui estou para tentar voltar e corrigi-lo.
“Na questão da segurança nacional, nosso país precisa de um novo e eficiente olhar sobre onde nos colocamos no mundo. Quem são nossos inimigos, e como precisamos lidar com eles. Para início de conversa, precisamos de melhores serviços de inteligência. Consertar esse ponto será tarefa para anos, mas precisamos começar logo. Não é possível lidar com os inimigos a menos que se saiba quem são, e onde estão. Luta-se contra o inimigo apoiando e usando de modo eficiente nossos recursos militares. Evidentemente o presidente Kealty não fez isso bem. A segurança nacional é a primeira tarefa do governo federal. A vida, como disse Thomas Jefferson, vem antes da liberdade e da busca pela felicidade. Proteger a vida da nação é o dever do Exército, da Marinha, da Força Aérea e dos Fuzileiros Navais. Com esse objetivo, eles precisam ser adequadamente apoiados, treinados à perfeição, para que depois possam fazer seu trabalho de acordo com os desejos e a experiência dos oficiais profissionais, sob a direção estratégica do presidente em exercício. O presidente Kealty não parece reconhecer esse simples fato.
“Senhoras e senhores, aqui estou porque alguém precisa substituir o presidente, e essa pessoa, acredito, é John Patrick Ryan. Peço seu apoio e o apoio dos cidadãos. Os Estados Unidos merecem mais do que ele fez, e ofereço a mim e à minha visão para consertar os problemas que foram criados nos últimos três anos. Minha missão é trazer os Estados Unidos de volta às velhas verdades que nos mantiveram saudáveis por duzentos anos. Nosso povo merece mais. E estou aqui para dar ao povo as coisas das quais necessita. E quais são elas? — perguntou retoricamente.
“Liberdade do medo. As pessoas precisam saber que estão seguras em seus lares e locais de trabalho. Precisam saber que seu governo está alerta, buscando aqueles que desejam fazer mal ao nosso país, e pronto para fazer justiça àqueles que atacam americanos na América ou em qualquer outro lugar do mundo.
“Liberdade para viver suas vidas sem interferência das pessoas que moram em Washington e que procuram impor sua vontade aos demais, vivam estes em Richmond, na Virgínia, ou em Cody, no Wyoming. A liberdade é um direito de nascença de todos os americanos, e esse direito de nascença é algo que protegerei com o melhor das minhas capacidades.
“Senhoras e senhores, a tarefa do governo não é a de ser a babá nacional. O cidadão médio pode cuidar de si e de suas necessidades sem a ajuda de alguém que trabalhe aqui em Washington. A América foi fundada porque seus cidadãos, há mais de duzentos anos, não queriam viver sob o governo distante de pessoas que não sabiam, e especialmente não se importavam, com seu bem-estar. A América é uma questão de liberdade. Liberdade para tomar suas próprias decisões, liberdade para viver em paz com seus vizinhos. Liberdade para levarmos nossos filhos para o Disney World na Flórida, ou para um riacho de pescar trutas no Colorado. Liberdade significa decidir o que você quer fazer com a sua vida. Liberdade é o estado natural da natureza. Assim Deus queria que vivêssemos. A tarefa do presidente dos Estados Unidos é preservar, proteger e defender nosso país. Quando o presidente cumpre essa tarefa, os cidadãos podem viver como querem. Esse é o objetivo do presidente: proteger as pessoas e deixá-las em paz.
“É isso o que me proponho a fazer. Reconstruirei as Forças Armadas, permitindo que treinem seus membros uniformizados, dando-lhes o apoio adequado e deixando que lidem com nossos inimigos. Reconstruirei nossa comunidade de inteligência para que possamos identificar e conter aqueles que queiram ferir nosso país e nossos cidadãos, antes que possam agir destrutivamente contra nós. Irei restabelecer um sistema racional de impostos que tire das pessoas apenas o dinheiro que o país precisa para cumprir suas funções, e que não sugue a vida de nossos cidadãos ao mesmo tempo que lhes diz como devem viver.
“Outra coisa recentemente atraiu minha atenção. O presidente Kealty atirou toda a força do Departamento de Justiça dos Estados Unidos sobre um conceituado soldado do Exército dos Estados Unidos. Esse soldado estava no Afeganistão buscando o Emir, Saif Rahman Yasin. A missão de prendê-lo fracassou, provavelmente devido a falhas de informação, mas, no desempenho dessa missão, esse soldado matou vários combatentes inimigos. E agora o Departamento de Justiça o está investigando por assassinato. Pesquisei esse incidente em particular. O soldado fez exatamente o que soldados fazem desde o começo dos tempos: matou inimigos de nosso país. Evidentemente, o presidente Kealty e eu temos ideias diferentes sobre o que devem fazer as Forças Armadas de nosso país. Esse processo é uma enorme injustiça. O governo supostamente deve servir a seus cidadãos, e um soldado do Exército dos Estados Unidos é, de fato, um cidadão uniformizado. Apelo ao presidente Kealty para que imediatamente cesse esse ultraje.
“Então, obrigado por sua presença. Minha campanha começa aqui e agora. Será longa e provavelmente dura, certamente mais dura que minha primeira. Mas estou na corrida, e veremos o que o povo dos Estados Unidos decidirá em novembro. Mais uma vez, obrigado pela presença.”
Ryan desceu do atril e respirou fundo. Precisava de um gole de água. Isso ele conseguiu de um copo no atril. Olhou na direção de Arnie e Callie, e viu seus polegares apontados para o alto. Bem, estava feito. A corrida começara. E que Deus o ajudasse.
— Filho da puta! — rosnou Edward Kealty diante da TV. — A porra do mocinho cavalgando para salvar a nação sitiada! E o pior de tudo é que há milhões de cordeiros aí fora acreditando nessa merda.
McMullen e sua equipe sabiam do anúncio de Ryan e tentaram preparar Kealty para ele; evidentemente, tinham fracassado. A reação de Kealty se devia principalmente à raiva, isso McMullen sabia, mas também havia um medo real. Uma boa parte do público ainda estava incomodada com Kealty, em grande medida por conta de como a eleição se desenvolvera. A frase “Confisco da vitória” havia sido muito usada nos programas políticos depois da eleição de Kealty, e mesmo que os números das pesquisas não conseguissem capturar totalmente o sentimento do país, McMullen suspeitava que a maioria das pessoas achava que tinha faltado um ingrediente essencial na eleição: uma disputa longa e dura entre dois candidatos que desnudavam suas almas diante dos eleitores. Kealty tinha feito isso, ou quase conseguira, mas seu adversário não tivera a oportunidade.
— Como ele foi descobrir essa coisa sobre o Ranger? — demandou Kealty. — Quero saber.
— É impossível saber, senhor.
— Não me venha com essa merda, Wes! Descubra!
— Sim, senhor. Vamos ter que desistir do processo.
— Do soldadinho? Sim, percebi, droga. Enterre isso no ciclo do noticiário da sexta-feira. Se livre disso. E como estamos na pesquisa sobre a oposição?
— Ainda trabalhando. Nada que possamos morder com força; o problema é Langley. Muitas coisas que Ryan fez lá ainda estão compartimentalizadas.
— Chame Kilborn...
— Haverá vazamentos. E, se a imprensa descobrir que estamos fuxicando o passado de Ryan na CIA, a coisa explode de volta sobre nós. Temos que achar outra maneira.
— Faça o que for necessário. Esse babaca quer voltar, muito bem, mas vamos fazê-lo sofrer.
— Puta merda — disse Sam Driscoll da cama de hospital. — Aí está uma cara vinda do passado. Que diabos você faz por aqui?
John Clark sorriu.
— Ouvi um boato de que você fodeu com seu ombro jogando peteca.
— Bem que gostaria. Sente-se, cara.
— Trago presentes — disse Clark, que colocou a pasta na cama e abriu. Lá dentro havia duas garrafas de cerveja Sam Adams. Entregou uma a Driscoll e abriu a outra.
Driscoll tomou um gole e suspirou.
— Como você sabia? Quero dizer, sobre a cerveja.
— Me lembrei de você falar sobre isso depois da Somália.
— Que memória você tem. Tem também um pouco de cabelo grisalho, percebo.
— Olha só quem fala.
Driscoll tomou outro gole longo.
— Então, qual é o motivo verdadeiro?
— Queria principalmente verificar como você está, mas escutei falar dessa merda que o CID quer empurrar em cima de você. Como anda isso?
— Não tenho ideia. Já me entrevistaram três vezes. O palpite do meu advogado é que algum idiota sentado atrás de uma mesa está tentando imaginar como pode me acusar. É uma babaquice completa, John.
— Sacou certo. Ferrado se fizer o trabalho, ferrado se fracassar. O que os médicos dizem sobre seu ombro?
— Preciso fazer mais uma cirurgia. A pedra não alcançou veias importantes, mas fodeu com tendões e ligamentos. Calculam mais uns três meses de recuperação, depois mais três de reabilitação. Eles estão muito confiantes, mas não acho que vou conseguir pular de galho em galho novamente.
— E uma mochila grandalhona?
— Provavelmente isso também não. O médico que me cortou acha que não vou ser capaz de levantar meu ombro acima da orelha.
— Sinto muito, Sam.
— É, eu também. Vou sentir falta. Vou sentir falta da rapaziada.
— Você já tem tempo acumulado para passar para a reserva remunerada, não é?
— Até mais que o necessário, mas com essa merda do CID... Quem sabe?
Clark assentiu pensativo.
— Bem, você saiu estourando. Pegou informações importantes naquela caverna. Droga, você podia ter deslizado montanha abaixo com aquele caixão de areia.
Driscoll riu, e depois falou:
— Espere aí. Como você soube disso? Ah, sim, esquece. Você ainda está dentro, não é?
— Depende do que você quer dizer por “dentro”.
Uma enfermeira entrou no quarto carregando uma prancheta. Driscoll deslizou sua cerveja para baixo do lençol; Clark abaixou a sua para tirá-la de vista.
— Boa tarde, sargento Driscoll. Meu nome é Veronica. Ficarei com vocês até meia-noite. Como estamos?
— Estou bem, senhora, e você?
Veronica cuidadosamente verificou os itens de sua prancheta e fez algumas anotações.
— Posso trazer alguma coisa? Como está seu nível de dor, em uma escala de um a...
— Por volta de seis e se mantendo — disparou Driscoll de volta com um sorriso. — Talvez um pouco de sorvete com o jantar?
— Vou ver o que posso fazer.
Veronica soltou um sorriso, voltou-se e caminhou para a porta. Por cima do ombro, disse:
— Apenas se certifiquem de fazer essas garrafas desaparecerem quando terminarem, cavalheiros.
Depois que Clark e Driscoll pararam de rir, Driscoll falou:
— O que quero dizer com “dentro” é “no governo”.
— Então não. Vim oferecer um trabalho, Sam. — Clark sabia que estava passando um pouco dos limites, mas duvidava que tivesse problemas para vender as qualificações de Driscoll.
— Fazendo o quê?
— O tipo de coisas que você anda fazendo, mas sem mochila e com salário melhor.
— Você está querendo me enfiar em algo ilegal, John?
— Nada com que você fique desconfortável. Nada que você não tenha feito antes. E mais: a coisa vem com um cartão para sair da cadeia grátis. Mas você teria que se mudar. Os invernos são mais frios que na Geórgia.
— Washington?
— Ali por perto.
Driscoll assentiu, vagarosamente, matutando sobre a oferta de Clark. De repente disse:
— O que é isso? — Agarrou o controle remoto da mesa de cabeceira e ligou o som da televisão na parede.
— ... Kealty atirou toda a força do Departamento de Justiça dos Estados Unidos sobre um conceituado soldado do Exército dos Estados Unidos — dizia o ex-presidente Jack Ryan. — Esse soldado estava no Afeganistão buscando o Emir, Saif Rahman Yasin. A missão para prendê-lo fracassou, provavelmente devido a falhas de informação, mas, no desempenho dessa missão, esse soldado matou vários combatentes inimigos. E agora o Departamento de Justiça o está investigando por assassinato. Pesquisei esse incidente em particular. O soldado fez exatamente o que soldados fazem desde o começo dos tempos: matou inimigos de nosso país...
Driscoll desligou o som da TV.
— Que merda é essa... Como diabos? — Clark sorria. — O quê? — disse Driscoll. — Você fez isso?
— Merda, não. Isso tudo é coisa do general Marion Diggs com Jack Ryan.
— Sua sincronia foi uma porra de perfeição, John.
— Pura coincidência. Eu suspeitava que ele faria alguma coisa assim, mas além disso... — Clark deu de ombros. — Diria que isso liquida esse seu problema com o CID, não acha?
— Por que você acha?
— Ryan está concorrendo à presidência, Sam, e ele simplesmente esculhambou com Kealty em rede nacional. Então, ele pode deixar que essa merda de processar você ainda circule por mais algumas semanas no noticiário, ou jogar isso fora e esperar que as pessoas esqueçam. No momento, o monte de merda com que Kealty tem que se preocupar cresceu mais um pouco, e você virou café pequeno.
— Caramba. Obrigado, John.
— Não fiz nada.
— Minhas chances de falar com Jack Ryan ou com o general Diggs por telefone são bem baixas, de modo que você tem que agradecer por mim.
— Vou passar isso adiante. Pense na minha oferta. Vamos mantê-la aberta até você ficar de pé, depois o levaremos para uma reunião de reconhecimento. O que me diz?
— Parece bom.
Quarenta e três horas depois que Adnan abriu a válvula da traineira Halmadic de Salychev e afundou juntamente com seus três camaradas sob a superfície do Mar de Barents, a 2.100 metros de profundidade, o segundo pacote chegou ao armazém de Dubai.
Desde a chegada de Musa, o engenheiro trabalhara duro, montando a tenda de contenção forrada de chumbo no chão do armazém e verificando sua lista de inventário de componentes. Como a própria tenda, que havia sido fabricada na Malásia, baseada em especificações roubadas do currículo on-line do curso de Segurança Operacional de Radiação do Fort Leonard Wood (OPRAD), as partes componentes tinham sido fresadas e torneadas a laser em moldes de marroquim fabricados na Ucrânia.
A beleza da simplicidade, pensou Musa.
Cada um dos componentes do aparelho nasceu seja da tecnologia benigna de uso duplo ou a partir de plantas há muito abandonadas, consideradas obsoletas segundo os padrões modernos.
Os componentes que ele e sua equipe recuperaram existiam unicamente devido ao que grupos ambientalistas consideravam a atitude frouxa da Rússia em relação ao material nuclear, mas Musa sabia que isso era apenas parte da equação, as outras sendo o namoro do governo russo com programas nucleares inovadores e sua tendência à circunspecção para contar ao mundo sobre esses programas.
Distribuídos pelo curso das rotas de navegação do norte da Rússia havia uns 380 faróis RTG — geradores termoelétricos de radioisótopos —, a vasta maioria dos quais alimentados por núcleos de estrôncio-90, um radioisótopo de baixo nível, produtor de calor cuja meia-vida chegava aos 29 anos e com capacidade de produzir uma energia de até 80 watts. Distribuídos entre os quatro modelos de RTG — Beta-M, Efir-MA, Gorn e Gong —, havia um punhado deles planejados para usar um núcleo completamente diferente: plutônio-238, um material que, ao contrário do estrôncio, que no pior dos casos poderia ser usado na construção de uma bomba suja, era de qualidade fissionável. Entretanto, a quantidade de material de núcleo recuperável não seria suficiente para seus propósitos. Uma segunda fonte era exigida. Essa tinha sido a tarefa de Adnan, pela qual ele e seus homens deram as próprias vidas. O prêmio que recuperaram do quebra-gelo abandonado naquela ilha perdida foi a peça final do quebra-cabeça: um reator à água pressurizada OK-900A contendo 150 quilos de urânio-235 enriquecido.
Ambos grátis para quem fosse buscá-los, pensou Musa. Segurança apenas nominal e registros virtualmente inexistentes. Será que os idiotas chegariam a notar a perda, e, se o fizessem, quanto tempo levariam para isso?, pensou. De qualquer modo, seria tarde demais.
Por mais complexos que fossem os processos e as teorias por trás do funcionamento do aparato, sua elaboração não era mais complicada que a construção de um motor de automóvel de quatro cilindros a partir do zero, como haviam lhe dito o engenheiro. Os ajustes, é claro, tinham que ser de padrão exato, até a escala do micrômetro, o que o tornava meticuloso, mas a escolha de Musa do armazém em Dubai lhes assegurou privacidade e anonimato. O cronograma do Emir lhes garantia tempo bastante para uma montagem adequada.
O engenheiro emergiu da porta fechada com zíper da área de trabalho da tenda, desvestiu o equipamento protetor na sala de trocas, e depois entrou no armazém.
— Os dois conjuntos foram adequadamente embalados — anunciou, aceitando uma garrafa de água de Musa. — À parte a radiação residual no exterior dos contêineres, não há vazamentos. Depois do almoço vou extrair os conteúdos. Minha maior preocupação é o segundo pacote.
— Por quê?
— As conexões onde os acionadores das varas de controle entram no recipiente podem ser problemáticas. Provavelmente foram seladas durante a operação original de salvamento, mas por qual método e quão bem é a questão. Até examiná-los não há como dizer se mantiveram sua integridade.
Musa pensou no assunto, depois assentiu.
— E o rendimento?
— Também só depois de desmontar tudo.
— Mas você compreende qual a quantidade mínima que necessitamos, não é?
— Sim, e suspeito que não teremos problemas para alcançar isso, no entanto não posso prometer nada. Isso é importante: você tem certeza de que nenhum dos dois veio de plataformas militares, correto?
— Por que isso é importante?
— É muito importante. É tudo, meu amigo. O que estamos fazendo, essencialmente, é engenharia reversa do dispositivo. Para complicar as coisas, lidamos com fontes diferentes, usadas para objetivos bem diferentes. O modo como procedemos as desmontagens é quase tão importante quanto o que usaremos na montagem. Compreende?
— Compreendo. Foram obtidos tal como lhe disse. Os esquemas que você possui são para esses dois dispositivos.
— Bom, isso é ótimo. Então não prevejo problemas insuperáveis.
— E quanto tempo vai demorar?
— O desmonte, mais um dia. A montagem... dois ou três dias. Digamos, quatro dias até ficar pronto para o envio.
62
OConsulado Geral da República da Indonésia ficava na Columbus Avenue, alguns quarteirões ao sul do Embarcadero, ladeada pelo Telegraph Hill e pela Lombard Street e à vista da ilha de Alcatraz. Clark achou um lugar para estacionar na Jones Street, um quarteirão ao sul do consulado, e ali parou seu Ford Taurus alugado.
— Já esteve em Frisco, Jack? — perguntou Chavez do banco traseiro.
— Quando era garotinho. Só me lembro do Fisherman’s Wharf, aquele submarino museu...
— USS Pampanito — disse Clark.
— Isso. E a Ilha do Tesouro. Segundo conta meu pai, chorei quando ele me disse que não era a mesma Ilha do Tesouro do livro.
Clark riu.
— Isso foi antes de ele lhe dar a notícia sobre o Coelhinho da Páscoa e o Papai Noel?
Jack riu de volta.
— Acho que foi no mesmo dia.
Clark tirou o celular, um dos três desinfetados pré-pagos que pegaram no aeroporto. Discou um número e depois de um momento disse:
— Sim, bom dia, o Sr. Nayoan está aí hoje de manhã? Sim, obrigado. — Clark desligou. — Ele está lá. Vamos dar um passeio e reconhecer o terreno.
— O que estamos procurando?
— Nada e tudo — respondeu Clark. — O mapa não é o território, Jack. Você está se aclimatando. Descubra onde estão os cafés, os caixas eletrônicos, os becos e as ruas laterais, as bancas de jornais, os telefones públicos. Qual o melhor lugar para pegar táxis ou subir num bonde? Aprender a sentir como se vivesse aqui.
— Ah, só isso?
Dessa vez foi Chavez quem respondeu:
— Não. Como as pessoas se movimentam, como interagem? Esperam o sinal verde para atravessar ou avançam? Encaram as pessoas nas calçadas ou trocam amabilidades? Quantos carros de polícia você vê? Verifique o estacionamento. Tem parquímetro ou é livre? Localize as entradas do BART.
— Bay Area Rapid Transit — acrescentou Clark antes que Jack pudesse perguntar. — O metrô local.
— É muita merda para absorver.
— Esse é o trabalho — respondeu Clark. — Quer voltar para casa?
— De jeito nenhum.
— É uma questão de atitude, Jack. Mudar o modo como você observa a paisagem. Soldados buscam cobertura e pontos de emboscada; espiões procuram locais de entrega e vigilância. Duas perguntas que você tem que se fazer o tempo todo: como posso seguir alguém aqui, e como posso me livrar de alguém aqui?
— Está bem.
Clark conferiu o relógio.
— Vamos tomar uma hora e nos encontramos de volta no carro para ver se Nayoan está pronto para o almoço. Jack, você vai rumo ao sul; Ding e eu iremos pelo nordeste e noroeste.
— Por que essa cobertura? — perguntou Jack.
— A área fica mais residencial ao sul. Pelo menos durante o dia, Nayoan vai seguir o horário: reuniões, almoço, esse tipo de coisa. Use a caminhada para se aclimatizar.
Tal como instruído, Jack seguiu rumo sul pela Jones Street, depois para o oeste subindo a Lombard, exercitando-se ao subir pela calçada tortuosa e abrupta, até chegar nas quadras de tênis no alto da Telegraph Hill, de onde voltou novamente para o sul. As casas ali eram bem juntas e com pintura colorida, muitas com balcões e pórticos transbordando de flores. Jack tinha visto muitas fotografias do terremoto de 1906, e era difícil sobrepô-las mentalmente com o que via agora. A crosta da terra deslizando algumas dezenas de centímetros, ou talvez menos, e uma cidade é arruinada. Realmente, não se pode brincar com a Mãe Natureza. Mais recentemente, o Katrina lembrara os Estados Unidos disso, apesar de, dessa vez, o furacão ter sido apenas coadjuvante. O restante se deveu à péssima logística e aos suprimentos inadequados. É de se pensar como seriam as coisas se algo pior caísse sobre o país, natural ou artificial. Estaríamos realmente prontos para algo assim?, ponderou Jack. Melhor pergunta: existia mesmo isso de estar efetivamente preparado? China, Índia e Indonésia haviam enfrentado tsunamis e terremotos desde épocas imemoriais, e mesmo assim, quando acontecia agora, a resposta e a recuperação pareciam ser um caos malcontrolado. Talvez o problema fosse com a própria definição. Todos os sistemas, sejam governos ou corpos de bombeiros ou a polícia, apresentavam pontos de ruptura quando as circunstâncias ultrapassavam a mão de obra e os recursos. Pensando nisso, os humanos provavelmente eram diferentes, e, se assim fosse, o conceito de estar preparado se torna uma questão de vida ou morte, de sobrevivência ou extinção? Se você se achar vivo após uma catástrofe, será que isso aconteceu porque estava preparado para ela?
Pense no jogo de agora, ordenou Jack a si mesmo.
Na marca dos quarenta minutos, ele voltou rumo norte na Feusier Octagon House e seguiu para o carro. Clark e Chavez ainda não tinham voltado, então ele arranjou um banco do outro lado da rua, sob uma árvore, e leu o jornal que havia comprado durante a caminhada.
— Foi esperto não ter entrado no carro. — Jack escutou atrás de si. Clark e Chavez estavam parados ali. — Por quê?
— Em um belo dia como este? Quem faria isso senão policiais, detetives ou perseguidores?
— É isso aí, rapaz. Se levante e venha até aqui. O mesmo princípio: três sujeitos não ficam simplesmente sentados em um banco juntos a menos que estejam esperando o ônibus ou sejam vagabundos. — Jack se reuniu a eles debaixo da árvore e ficaram em um semicírculo. — Muito bem, agora somos uns otários ocupados — disse Clark — conversando sobre o jogo da noite passada ou sobre o babaca do patrão. Então, o que você viu?
— A vibração é mais contida que em Nova York ou Baltimore — respondeu Jack. — As pessoas não parecem ter muita pressa. Mais contato visual e sorrisos.
— Bom. E o que mais?
— Bom sistema de transporte público, muitas paradas. Vi cinco carros de polícia, mas sem luzes nem sirenes. Quase todo mundo veste casaco ou suéter. Não há muitas buzinadas. Muitos carros compactos, híbridos e bicicletas. Um bocado de lojinhas e cafés com entrada pelos fundos.
— Não está mal, Jack — disse Chavez. — Talvez tenha algo de espião no DNA do garoto, hein, John?
— Pode ser.
Depois de mais dez minutos dessa rotina de homens de negócio, Clark disse:
— Muito bem, já é quase hora do almoço. Ding, você dirige. Jack e eu perambulamos um pouco. A entrada principal do consulado é na esquina da Columbus com a Jones, mas há uma entrada lateral, mais ao sul pela Jones.
— Vi um caminhão de entrega de produtos estacionar ali durante a caminhada — disse Chavez. — E um par de funcionários lá fora, fumando.
— Bom. Vamos embora.
Vinte e cinco minutos depois, Jack estava ao telefone.
— Já pesquei o cara. Saindo pela entrada principal. A pé, na direção sul para a Columbus.
— Ding, fique onde está. Jack, não descole dele, pelo menos uns 15 metros atrás. Estou a um quarteirão de você, subindo pela Taylor.
— Entendido. — Um minuto depois: — Passando pelo Motor Coach Inn. A uns trinta segundos da esquina da Taylor.
— Estou lá, rumo sul — respondeu Clark. — Seja lá o que ele fizer na esquina, cruze a rua e vá para o oeste descendo a Chestnut. Eu pego.
— Saquei. Está na esquina. Dobrou ao norte pela Taylor.
— Já o vi. Pode se separar e siga em frente.
Jack caminhou pela calçada até a Chestnut e continuou em frente. Pelo canto do olho viu Nayoan.
— Soltando... agora — avisou Jack.
E Clark:
— Ele vem na minha direção. Aguentem aí. — Um momento depois, a voz de Clark mudou. — Não, não, estou dizendo, esse ataque deles é uma merda. Não tem profundidade. Cara, você está errado. Dez paus como eles se afundam no primeiro jogo... — Alguns segundos depois. — Acabou de passar por mim. Entrou em um restaurante. Pat’s Café, lado leste da rua. Jack, vamos almoçar. Vou pegar uma mesa para nós.
Ding se meteu:
— Para mim, sanduíche de pastrami no pão integral.
Jack voltou pelo norte na esquina da Chestnut com a Mason, e depois ao norte novamente até a Taylor. Achou Clark em uma mesa perto da porta, diante da janela. O lugar já começava a ficar movimentado, com a multidão que almoçava mais cedo. Jack se sentou.
— No balcão — disse Clark. — O terceiro partindo do fundo.
— Sim, já o vi.
— Quem está sentado nos dois lados dele?
— O quê?
— Ficar no rastro do seu alvo principal é só metade da batalha, Jack. Ele falou com alguém enquanto você o seguia, fez alguma parada?
— Não, nem passou perto de ninguém.
Clark deu de ombros.
— Até os imbecis têm que comer.
Jack pediu atum no pão de centeio; Clark, um sanduíche de bacon, com alface e tomate e uma sacola para levar o de Ding.
— Ele está terminando — disse Clark. — Eu pago a conta. Apertamos as mãos na saída e dizemos “Vejo você mês que vem”, e você vai direto para o carro. Eu levo nosso rapaz até em casa e depois encontro vocês na Starbucks na baía.
Trinta minutos mais tarde, estavam tomando suas três xícaras de café Gold Coast de torrefação escura, sentados em um reservado perto da janela. Lá fora, pedestres e carros deslizavam pela brilhante luz solar. Na TV montada em uma esquina, Jack Ryan Senior discursava de pé atrás de um atril. O som estava desligado, mas os três sabiam o que estava acontecendo. Assim como o restante dos fregueses e os baristas, a maioria dos quais olhava a imagem ou pescava as notícias que saíam, enquanto cuidavam de suas vidas.
— Cara, ele está mesmo fazendo isso — disse Chavez. — Seu pai tem colhões de bronze, Jack.
Jack assentiu.
Clark perguntou:
— Ele falou com você a respeito, suponho.
Outro assentimento.
— Não acredito que esteja muito feliz com essa coisa toda, mas é o chamado do dever, sabe? Para aqueles a quem muito é dado, muito é pedido.
— Bem, ele já deu muito. Muito bem, vamos ao nosso negócio. O que aprendemos?
Jack bebeu um gole de café, e depois disse:
— Nayoan gosta de sopa de ervilhas e dá gorjetas ruins.
— Hã? — disse Chavez.
— Ele tomou uma sopa de ervilhas e comeu um sanduíche de peru com bacon. Doze paus, mais ou menos, segundo o menu. Deixou uns trocados. Além disso, não sei o que aprendemos.
— Não muito — concordou Clark. — Não esperava muito. Se ele estiver no bolso do CRO, deve ser algo que faz de vez em quando. As chances de o pegarmos na sujeira em um dia era praticamente zero.
— E daqui em diante?
— Segundo o site do consulado, eles têm uma recepção no Holiday Inn Express hoje à noite. Uma espécie de festa beneficente conjunta com o consulado polonês.
— Deixei meu smoking em casa — disse Chavez.
— Não vai precisar dele. O caso é: sabemos onde Nayoan estará hoje à noite, e não vai ser em casa.
A 13 mil quilômetros dali, o engenheiro emergiu do vestiário da tenda e usou um trapo para limpar o suor da testa e do pescoço. Com as pernas tremendo, foi até um tamborete próximo e se sentou.
— Então? — perguntou Musa.
— Terminei.
— E a potência?
— De 7 a 8 quilotons. Diminuta para os padrões de hoje. Por exemplo, a bomba de Hiroshima tinha 15 quilotons. Mas será mais que o suficiente para o que planejam. Deve produzir um impacto de 15 psi, ou mais de 103 mil pascals, atingindo uma distância de 500 metros.
— Não parece muito.
O engenheiro sorriu cansado.
— Esses 15 psi são o suficiente para demolir concreto reforçado. Você disse que o chão é principalmente de terra?
— Correto. Com algumas estruturas subterrâneas reforçadas.
— Então não tem com que se preocupar, meu amigo. Esse espaço fechado que você mencionou... Tem certeza do volume?
— Sim.
— E a superestrutura? Qual é a composição?
— Me informaram que é algo chamado de ignimbrito. É...
— Sim, sei do que se trata. Também é chamada de rocha vulcânica piroclástica, ou tufo consolidado; essencialmente, trata-se de camadas compactas de rocha vulcânica. Isso é bom. Desde que a superestrutura seja suficientemente espessa, a onda de choque deve se dirigir para baixo com atenuação mínima. As exigências de penetração que você me forneceu serão alcançadas.
— Aceito sua palavra quanto a isso. Está pronta para o transporte?
— Claro. Tem uma assinatura de saída baixa, de modo que medidas de detecção passivas não devem preocupar. Mas medidas ativas são diferentes. Suponho que tenha se preparado para...
— Sim, tudo foi considerado.
— Então a deixo em suas boas mãos — disse o engenheiro, que se levantou e foi até o escritório no fundo do armazém. — Agora vou dormir. Acredito que o restante dos meus honorários estará depositado pela manhã.
63
O contato deles os encontrou perto da estrada Al Kurnish, do lado leste do parque Sendebad, a pouca distância do consulado australiano. Hendley evitou explicar a Brian e Dominic a natureza de seu relacionamento com o australiano, e o chefe tampouco considerou necessário compartilhar o nome do sujeito, mas nenhum dos irmãos achou que era coincidência o fato de seus passaportes falsos e vistos terem os carimbos australianos.
— Tarde, cavalheiros. Suponho que sejam os rapazes de Gerry, sim?
— Suponho que somos — disse Dominic.
— Archie. — Apertos de mão foram trocados. — Vamos dar um passeio, que tal? — Esperaram uma pausa no trânsito e atravessaram correndo a Al Kurnish até um parque malcuidado, ao lado do edifício em forma de roda de vagão da Al Fatah, e descendo até a beira da água.
— Então, compreendo que estão numa espécie de caçada como franco-atiradores? — disse Archie, por sobre a agitação da água.
— Acho que se pode chamar assim — disse Brian. — Um sujeito foi assassinado aqui na semana passada. Primeiro enforcado, depois decapitado e teve os pés cortados.
Archie assentia.
— Ouvi falar. Trabalhinho sujo, esse. Por aqui chamam de “danadinho sem pés”. Vocês acham que esse sujeito saiu da linha, andou fazendo algum trabalho por fora?
Dominic assentiu.
— A embaixada da Suécia, é isso?
Outro assentimento.
— E vocês estão atrás dos quem e dos porquês, suponho.
— Pegaremos o que for possível — disse Brian.
— Bem, a primeira coisa que vocês precisam saber sobre Trípoli é que é uma cidade danada de segura, de maneira geral. A média de crimes nas ruas é muito baixa, e os vizinhos vigiam uns aos outros. A polícia não fica muito preocupada com o fato de um grupo matar um de seus próprios membros, a menos que a coisa se espalhe pelas ruas ou que algum deles faça algo para chamar atenção. A última coisa que o Coronel Cacheado quer é má notícia na imprensa internacional, não depois de todo o trabalho de relações públicas que ele andou fazendo. A verdade é que o CRO tem andando bem quieto já há uns oito ou nove meses. De fato, a fofoca nas ruas diz que esse negócio na embaixada da Suécia não foi coisa do CRO.
— Pelo menos, não sancionada.
— Ah, percebo. Uma cabeça cortada e pés decepados tendem a mandar um recado bem forte, não é? Ainda assim, poderia ser pior. Geralmente as joias da família entram na jogada. Bem, o apartamento onde esse sujeito foi liquidado fica perto da estrada Al Khums. Vizinhança bem fechada. Tal como fiquei sabendo, esse apartamento em particular estava vazio na época.
— Onde ouviu falar disso?
— Conheço alguns franceses que trabalham por aqui e são bastante amigos dos policiais.
— Então você acha que usaram o apartamento apenas por conveniência? — perguntou Dominic. — Um estúdio?
— Sim. O pobre coitado provavelmente foi liquidado em outro lugar. Vocês souberam através de algum site? CRO ou GILC? — disse Archie, referindo-se ao Grupo Islâmico Líbio de Combate.
— CRO — respondeu Brian. — Há mais gente que possa ter feito o serviço terceirizado para o CRO?
— Um monte. Nem é preciso que seja um grupo. Há criminosos em Medina, a Cidade Velha, que cortariam sua garganta por 20 dólares americanos. Veja bem, não para roubar, mas como crime encomendado. Mas esse vídeo... Parece um pouco elaborado demais para os macacos medianos.
— Então por que simplesmente não fizeram o serviço em outro lugar em Medina? — perguntou Brian. — Matar o sujeito, filmar tudo e depois jogar o corpo na rua.
— Então os policiais teriam que ir até Medina, percebe? Desse jeito todo mundo pode fingir que aconteceu em algum outro lugar e o balanço natural permanece. Em quantos sites esse vídeo apareceu?
— Seis, que nós saibamos — disse Dominic.
— Bem, por aqui há um monte de serviços de internet, mas os grupos que manejam esses sites geralmente fazem eles mesmos a hospedagem, com um servidor dedicado que podem pegar e movimentar, física e eletronicamente. Se o CRO encomendou o assassinato, então é provável que vocês estejam com azar; se eles mesmos fizeram isso, quer dizer que a mensagem veio bem do alto. O tipo de trabalho que não se deixa aberto ao acaso. Se esse for o caso, é possível que haja algum tipo de sobreposição, algum capitão local do CRO em contato com algum dos serviços de hospedagem móveis.
— Suponho que não seja possível entrar em contato com eles pelas páginas amarelas — disse Brian.
— Está supondo corretamente. Pode ser que eu conheça um sujeito. Me deixe fazer algumas ligações. Onde vocês estão hospedados?
— No Al Mehari.
Archie verificou seu relógio.
— Encontro vocês lá às cinco da tarde, e tomamos um drinque.
Ele chegou uma hora mais cedo com seu próprio carro, um Opel verde-floresta de meados dos anos 1980; como quase tudo em Trípoli, o carro estava coberto com uma fina camada de poeira vermelho-amarronzada.
— Vocês alugaram um carro? — perguntou Archie enquanto saíam na direção oeste pela rua Al Fat’h, em meio a uma cacofonia de buzinas e freadas.
— Epa! — gritou Brian do assento traseiro.
— Aqui não existem leis de trânsito. Podem chamar de darwinismo básico. É a sobrevivência do motorista mais capaz. Então: carro de aluguel?
— Não alugamos nenhum.
— Depois que terminarmos, vocês podem me deixar na embaixada e usar este. Cuidado com a segunda marcha. Está meio frouxa.
— Desde que você não espere recebê-lo de volta inteiro.
— É hora do rush. Dentro de algumas horas melhora.
A labiríntica e amuralhada Medina da Trípoli moderna nasceu durante a ocupação otomana e por séculos serviu tanto para dissuasão dos invasores quanto como centro de comércio. Situada ao lado do porto e bordejada aos quatro lados pela estrada Al Kurnish, pela rua Al Fat’h, pela rua Sidi Omran e pela rua Al Ma’arri, a Medina era um labirinto de ruas estreitas, becos sem saída, calçadas cobertas de arcos e pequenos pátios.
Archie achou um lugar para estacionar próximo ao portão Bab Hawara, perto do muro sudoeste, e eles saíram e caminharam dois quarteirões ao sul até um café. Um homem com calça larga preta e camisa de mangas curtas marrom se levantou de uma mesa quando Archie se aproximou. Trocaram apertos de mão, se abraçaram e Archie apresentou Brian e Dominic como “velhos amigos”.
— Este é Ghazi — disse Archie. — Podem confiar nele.
— Sentem, por favor — disse Ghazi, e todos se acomodaram na mesa sob o guarda-sol. Apareceu um garçom, e Ghazi disparou alguma coisa em árabe. O garçom saiu e reapareceu um minuto depois com uma jarra, quatro copos pequenos e uma tigela com balas de menta. Quando o chá foi servido, Ghazi disse:
— Archie me contou que vocês estão interessados em sites.
— Dentre outras coisas — disse Dominic.
— Há muitas pessoas que proporcionam os serviços que Archie mencionou, mas uma em particular pode valer o tempo que dedicarem a ele. Seu nome é Rafiq Bari. No dia seguinte ao que esse vídeo apareceu na web e um dia antes de o corpo do homem ser descoberto, ele mudou seu negócio, bem de repente e durante a noite...
— Isso é tudo? — disse Brian.
— Não. Existem boatos de que ele fez um trabalho para certas pessoas. Sites que aparecem e desaparecem: servidores proxy, redirecionamentos, nomes de domínio alternados, tudo isso. Essa é a especialidade de Bari.
— E sobre ISPs? — perguntou Dominic, referindo-se aos provedores de serviço de internet. — É possível que essas pessoas estejam criando os seus próprios em vez de usar companhias comerciais?
Archie respondeu:
— Trabalheira demais, acho. Por aqui não existe muita supervisão com esse tipo de coisas. Um nome e um cartão de crédito são o suficiente. Nomes de domínios podem ser registrados no atacado e modificados num piscar de olhos. Não, o modo como esse tal de Bari faz é o usual, pelo menos por aqui.
Dominic perguntou a Ghazi:
— Com quem ele mora? Família?
— Aqui não. Tem uma esposa e uma filha em Benghazi.
— Quais são as chances de ele estar armado?
— O próprio Bari? Muito improvável, acho. Quando ele se movimenta por aí, às vezes tem proteção.
— Do CRO?
— Não, não diretamente, não acredito. Talvez contratados por eles, mas são simplesmente pessoas de Medina. Bandidos.
— Quantos? — perguntou Brian.
— Nas vezes que o vi... Dois ou três.
— Onde o encontramos? — disse Brian.
Quando deixaram Archie de volta no consulado, a borda de baixo do sol já quase tocava a superfície do mar a oeste. Por toda a cidade, lâmpadas de rua, faróis de automóveis e sinais de neon piscavam, se acendendo. Tinham decidido que Dominic, que fizera o curso de direção defensiva do FBI, ficaria no volante do Opel. Confirmando a previsão de Archie, o tráfego havia melhorado um pouco, mas as ruas ainda se pareciam mais com pistas de corrida do que com vias urbanas.
Archie desceu do carro e encostou os braços na porta de passageiro.
— O mapa de Medina que vocês têm é bastante preciso, mas não perfeito, então prestem atenção por onde andam. Têm certeza de que isso não pode esperar até amanhã?
— Provavelmente não — disse Brian.
— Bem, então fiquem relaxados e sorriam. Ajam como turistas. Olhem as vitrines, pechinchem um pouco, andem tranquilos. Não marchem pelo lugar como se fossem sapadores...
— Sapadores?
— Soldados. Podem estacionar em alguma das ruas laterais perto do Corinthia, aquela monstruosidade de hotel que passamos a caminho daqui.
— Saquei.
— É visível de praticamente toda Medina. Caso se percam, rumem para lá.
— Droga, cara, você soa como se nós estivéssemos entrando na cova dos leões — disse Brian.
— Não é uma analogia ruim. Considerando tudo, Medina é segura à noite, mas a palavra corre se vocês se destacarem. Mais duas coisas: abandonem o carro se precisarem. Comunico que foi roubado. Segundo: há um saco de papel marrom debaixo do pneu no porta-malas com alguns presentinhos dentro.
— Suponho que você não esteja falando de guloseimas — disse Dominic.
— Disso eu não falo, colega.
64
Nayoan saiu do consulado às cinco horas da tarde, tomou o ônibus do estacionamento perto da Columbus e entrou num Toyota Camry azul. Com Clark ao volante, foi seguido até um apartamento no primeiro andar no sudoeste do famoso distrito de Tenderloin, em São Francisco, entre a prefeitura e a Market Street. Provavelmente era a pior vizinhança da cidade, com um índice acima do normal de pobreza, crime, moradores de rua, restaurantes étnicos, hotéis de carregação, clubes suspeitos e galerias de arte. Só podia haver uma razão para Nayoan escolher essa área para viver, consideraram Clark e os demais: o Tenderloin tinha uma população de asiáticos-americanos bem alta, o que lhe permitiria se movimentar relativamente anônimo.
Depois de um algumas horas em casa, Nayoan emergiu do apartamento vestindo um terno escuro e entrou no Camry. Dessa vez com Jack ao volante, eles o seguiram de volta ao centro até o Holiday Inn. Observaram-no entrar no saguão, esperaram dez minutos e voltaram para o Tenderloin.
— Por que chamam isso de Tenderloin? — perguntou Chavez enquanto Clark entrava na Hayes Street e começava a procurar um lugar para estacionar. Os faróis do carro passavam por cima de latas de lixo derrubadas e figuras na sombra dos pórticos.
— Ninguém tem certeza — disse Jack. — É uma espécie de lenda urbana. As histórias vão desde aqui ser a zona mais vulnerável da cidade até ter sido uma vizinhança perigosa para policiais, que podiam conseguir um extra e, com isso, os melhores cortes de carne.
— Andou lendo um guia de viagens, Jack?
— Isso e um pouco de Sun Tzu. Conheça seu inimigo, certo?
— O lugar tem estilo, com certeza.
Clark achou um lugar para estacionar embaixo de uma árvore entre dois postes de iluminação e entrou. Apagou os faróis e desligou o motor. O apartamento de Nayoan ficava a um quarteirão abaixo e do outro lado da rua.
Clark verificou o relógio.
— Oito horas. Nayoan deve estar na recepção. Trocar de roupa — disse Clark.
Eles trocaram as roupas de andar no centro — calças de gabardina, suéteres, casacos — pelos trajes estilo Tenderloin que compraram antes em uma loja de artigos usados: blusões de moletom, camisas de flanela, bonés e toucas de lã.
— Vinte minutos, então aqui de volta — disse Clark. — Círculo de três quarteirões. Mesmas instruções de antes. É um bairro de merda, então ajam de acordo.
— Como assim? — perguntou Jack.
Chavez respondeu:
— Você não se mete comigo que eu não me meto com você.
Encontraram-se de volta no carro, depois caminharam meio quarteirão para o sul e se juntaram debaixo de um pórtico vazio. Chavez começou:
— Só vi um carro de polícia. Parecia patrulha normal. Não estavam prestando muita atenção.
— Jack?
— Não vi luzes no apartamento. Há um beco ao lado e uma cerquinha de madeira meio arruinada com um portão sem tranca que dá para um pátio de concreto. Cães nos dois jardins adjacentes. Latiram quando passei, mas não vi rostos aparecendo nas janelas.
— Luzes na porta dos fundos? — perguntou Clark.
Jack assentiu.
— Lâmpada nua. E nenhuma porta com tela.
— E por que isso é importante?
Jack sacudiu o ombro.
— Portas de tela rangem e chacoalham.
— O garoto merece uma estrelinha dourada.
Com trinta segundos de diferença eles deram a volta no quarteirão, e depois se encontraram no beco. Chavez entrou primeiro pelo portão, subiu as escadas, afrouxou a lâmpada e desceu. Clark e Jack avançaram. Clark subiu os degraus e passou noventa segundos agachado à porta, trabalhando na fechadura e na trava. Sinalizou para que esperassem e depois deslizou pela porta. Uns sessenta segundos depois, estava de volta e acenou para que entrassem.
O interior do apartamento era uma imagem espelhada da arquitetura: comprido e estreito, corredores atravancados, assoalho de tábuas estreitas coberto com carpete gasto, rodapés e frisos escuros. Nayoan não ligava muito para decoração interior, percebeu Jack: cozinha utilitária e banheiro com ladrilhos axadrezados de porcelana, uma sala da frente com um sofá modulado, mesa de centro e uma televisão de 13 polegadas. Provavelmente não esperava ficar muito tempo ali, pensou Jack. Para que então se importar com algo além das necessidades básicas? Isso poderia significar alguma coisa? Talvez valesse a pena verificar quanto tempo Nayoan ainda tinha de serviço na embaixada.
— Muito bem, vamos vasculhar tudo — ordenou Clark. — E tudo de volta ao mesmo lugar quando terminarmos.
Acenderam as lanternas e começaram a trabalhar.
Quase imediatamente Chavez achou um laptop Dell sobre uma mesinha de jogos no quarto de Nayoan. Jack o ligou e começou a revisar as pastas e os arquivos, o histórico do navegador e os arquivos de e-mail. Chavez e Clark deixaram que trabalhasse, e passaram trinta minutos dissecando cada cômodo do apartamento, verificando primeiro os lugares de esconderijo mais óbvios.
— Muito bem — disse Jack. — Não tem proteção de senha, nenhum software com chave de acesso... À parte um firewall padrão e um programa antivírus, essa coisa está bem aberta. Muita coisa aqui, mas nada que se destaque. A maior parte é de assuntos não secretos da embaixada e e-mails, alguns pessoais. Família e amigos de casa.
— Quanto mais você pode escavar? — perguntou Clark.
— Aqui? Não muito. Posso copiar todos arquivos, pastas e caixas de entrada, mas duplicar o disco rígido levaria muito tempo.
— Muito bem, pegue o que puder.
Jack conectou um HD portátil da Western Digital Passport na porta FireWire do Dell e começou a copiar os arquivos enquanto Clark e Chavez continuaram caçando. Depois de mais quarenta minutos, Chavez sussurrou da cozinha:
— Achei.
Voltou para o quarto carregando um saco plástico de sanduíche, desses que fecham por cima.
— Fundo falso na gaveta de ferramentas.
Jack pegou o saco e o examinou.
— DVD de leitura e gravação. — Abriu o drive do leitor do Dell e enfiou o DVD lá dentro. Clicou na letra da unidade apropriada, e a janela se abriu na tela. — Muitos dados aqui, John. Uns 60 gigabytes. E muitos são arquivos de imagem.
— Abra alguns.
Jack clicou duas vezes numa pasta e miniaturas de fotos apareceram.
— Parecem familiares.
— Realmente — disse Clark.
Jack bateu com a unha do indicador em três das fotografias.
— Com certeza essas vieram dos sites do CRO.
— Onde há fumaça... — declarou Chavez.
Clark olhou o relógio.
— Copie tudo. Ding, vamos arrumar as coisas. É hora de dar no pé.
Uma hora mais tarde estavam de volta ao hotel, o La Quinta Inn, perto do aeroporto. Jack usou um FTP — protocolo de transferência de arquivos — seguro para subir algumas das imagens ao servidor do Campus, e depois ligou para Gavin Biery, o geniozinho de informática, e o colocou no viva-voz.
— Já vimos essas antes — disse Biery. — No pen drive de Trípoli.
— Certo — disse Jack. — Precisamos saber se estão esteganocriptografadas.
— Estou dando os toques finais no algoritmo para decriptografar. Parte do problema é não sabermos que tipo de programa eles usaram para criptografar, comercial ou caseiro. Segundo o Centro de Análise e Pesquisa da Esteganografia...
— E esse lugar existe? — perguntou Chavez.
— ... até agora temos 725 aplicativos de esteganografia, e isso é só a parte comercial. E qualquer programador vagabundo pode fazer um e colocá-lo em um pen drive. Simplesmente sai por aí, pluga no computador e você já está no modo esteganografia.
— Então, como você vai quebrar isso? — perguntou Clark.
— Desenvolvi um processo em duas partes. Primeiro, verifico discrepâncias no arquivo, seja vídeo, imagem ou áudio. Se descobrir uma anomalia, então começo a rodar a segunda parte do programa, percorrendo o arquivo através dos modos de criptografia mais comuns. É um processo de força bruta, mas a chance é que o CRO tenha seu método favorito. Descobrindo-o, podemos apressar a dissecação.
— Quanto tempo? — perguntou Jack.
— Não tenho a menor ideia. Vou começar a alimentar o monstro e retorno a vocês.
O telefone tocou às três da manhã. Os três despertaram instantaneamente.
— Biery — disse Jack, esfregando e apertando os olhos para ver a identificação na tela do celular. Atendeu e colocou a chamada no viva-voz.
— Posso estar estourando o champanhe um pouco cedo — começou Biery —, mas acredito que achamos o veio principal. Essa é a boa notícia. A má é que parece que eles usam três métodos diferentes de criptografia, de modo que vai demorar algum tempo.
— Você tem nossa atenção — respondeu Clark.
— Primeiro ponto: a imagem do banner que vimos no site do CRO mostrando a morte de Dirar... acho que é uma senha para usar uma única vez. Essencialmente é uma tabela para decodificar mensagens em linguagem comum. Se é ultrapassada ou vigente, ainda não sei.
Isso não foi surpresa para Jack. O que era velho voltava a ser novidade, ele sabia. O sistema de uso único de senha era antigo — o quão antigo era tema de debate entre os acadêmicos da criptografia, mas nascera nos tempos modernos, em 1917, com um engenheiro da AT&T chamado Gilbert Vernam —, e, apesar de existir uma variedade de sabores no método, no fundo se trata de uma cifra de substituição, na maior parte das vezes arrumada na forma de uma grade alfanumérica aleatória: combina-se um dígito da margem esquerda com outro da margem de cima e onde os dois se entrecruzam no corpo da grade é o dígito único de substituição. Codificar e decodificar consumia tempo, mas, desde que a senha fosse de conhecimento restrito do remetente e do destinatário, era virtualmente inquebrável. Nesse caso, certos membros do CRO saberiam como verificar certos sites em dias específicos e baixar determinadas imagens, que seriam então esteganodecriptografadas, revelando a senha única através da qual telefonemas comuns, cartas e e-mails podiam ser transmitidos com segurança.
A questão era, pensou Jack, com que frequência o CRO alterava essa senha única on-line? A única maneira de saber isso era tentar combinar mensagens conhecidas do CRO com imagens criptografadas no mesmo período.
— Isso poderia explicar por que o e-mail com o anúncio do nascimento do bebê terminou com tudo — disse Jack. — Eles mudaram as grades e ficamos um passo atrás.
Clark assentiu e falou:
— Continue, Gavin.
— Segundo: uma das imagens mais pesadas do DVD de Nayoan não tinha correspondência com nenhuma que capturamos dos sites do CRO. O algoritmo ainda está mastigando a coisa, porém, baseado no que possuímos até agora, temos um monte de números de cartões de crédito e de roteadores de bancos.
— Nayoan é um tesoureiro do CRO. Puta merda — disse Chavez.
— Você está verificando os números? — perguntou Clark a Gavin.
— Ainda não. O que vocês preferem primeiro?
— Cartões de crédito. Mais fáceis de conseguir e de descartar que uma conta bancária. Comece com o material das contas de São Francisco e da Costa Oeste. É melhor aproveitar isso enquanto estamos por aqui.
65
Se a entrada deles em Medina provocou alguma curiosidade, foi bem disfarçada, consideraram os irmãos Caruso. Ainda não tinha escurecido, é claro, de modo que havia muitos turistas brancos e ocidentais se movimentando em volta das bancas dos vendedores e vagando pelos becos estreitos e ziguezagueantes; a presença deles não era notada. O sol, entretanto, baixava na linha do horizonte e, com a luz decrescente, Medina ia se esvaziando de forasteiros, deixando apenas os locais e os poucos e esparsos turistas que ou eram bem familiarizados com Trípoli ou ignoravam os riscos. Havia poucos assassinatos de turistas em Medina, segundo Archie lhes assegurara, mas assaltos noturnos ou bolsas arrancadas eram quase considerados esportes locais. Os ladrões sabiam distinguir bem os descuidados e fracos. Brian e Dominic não pareciam ser nenhuma das duas coisas, observou Archie, de modo que tinham pouco com que se preocupar. O presente do australiano no porta-malas — um par de semiautomáticas Browning 9 milímetros Hi-Power Mark III, sem números de série, e quatro pentes com cartuchos de baixa velocidade e pontas côncavas — garantiam isso duplamente. Os silenciadores que Andy havia providenciado eram canos de PVC, cada um mais ou menos do tamanho de duas latas de refrigerante emendadas e pintadas de preto com spray. Nada que durasse mais de cem disparos sem perder a eficácia, no entanto, como tinham apenas quarenta balas entre eles, esse ponto era irrelevante.
Os dois vagaram por vinte minutos entre os becos com muros de estuque e tijolo, parando diante de cada banca e loja para examinar as mercadorias, ao mesmo tempo seguindo o mapa de Archie, que Brian mantinha dobrado na mão. Archie lhes indicara vários roteiros até o apartamento de Rafiq Bari, e várias rotas de fuga, inclusive dois roteiros de E&E — evasão e escape —, um acréscimo que solidificou sua convicção de que seu contato era ex-militar, provavelmente do SASR — Regimento Especial da Força Aérea — australiano. Era um palpite bem reconfortante. A mentalidade dos australianos se alinhava com a deles.
— Tem alguma coisa cheirando bem — disse Dom, farejando.
A atmosfera era cheia de odores: carvão queimando, carne grelhada, especiarias, assim como o fedor de milhares de corpos suados amontoados em espaços fechados. O barulho também era desorientador no começo, uma cacofonia em árabe, francês, magrebino e inglês com sotaque pesado. A multidão parecia se movimentar como se fosse dirigida por algum guarda de trânsito invisível, passando pelos lados uns dos outros e saindo e entrando nos becos com apenas um ocasional contato visual ou hesitação.
— Carne de cachorro, talvez?
— Isso é na Ásia, cara, e menos comum do que você imagina. Talvez haja alguma coisa de cavalo por aqui, mas aposto que a maior parte é carneiro.
— Andou lendo de novo os guias.
— Quando em Roma...
— Algo me diz que a higiene não está no topo da lista de prioridades deles — disse Brian, acenando na direção de um vendedor que cortava pedaços de frango em uma tábua, o avental de lona respingado de sangue.
Dominic riu disso.
— Droga, não fizeram você comer insetos na SERE? — referindo-se à escola de Sobrevivência, Evasão, Resistência e Escape.
Como todos os demais marines, Brian havia passado pelo recrutamento nível A da SERE. Ele, porém, também decidira se alistar nos níveis B e C, reservados para treinamento de unidades de combate avançado e tripulações aéreas.
— Claro. Insetos em Bridgeport e cobras em Warner.
As escolas SERE nível B e C, da Marinha e dos Fuzileiros Navais, estavam sediadas em vários locais, inclusive no Centro de Treinamento de Guerra em Montanha em Bridgeport, na Califórnia, e na Base Aérea Naval em Warner Springs, também na Califórnia.
— Então que tal um pouco de carne de cavalo.
— Talvez na saída, ok? Estamos chegando perto ou não?
— Sim, mas temos que matar tempo. Vamos passar pela casa de Bari no crepúsculo, reconhecer o terreno. Mas esperamos escurecer para entrar.
— Tudo bem. Que horas são...
Como se fosse uma deixa, um alto-falante na entrada do beco estalou e começou a emitir o chamado do muezim para as preces. Em volta deles, os becos foram vagarosamente silenciados enquanto os locais paravam o que faziam, abriam os tapetes de rezar e se ajoelhavam para o ritual. Juntamente com outros não muçulmanos, Brian e Dominic abriram espaço e ficaram quietos até terminar o ritual e a normalidade retornar. Os Caruso voltaram a caminhar. O pôr do sol se aproximava rapidamente, e luzes começavam a brilhar nas janelas e nos cafés ao ar livre.
— Não posso dizer que sou muito fã do islamismo — disse Dominic —, mas tenho que reconhecer que são dedicados.
— O que é um problema quando viram radicais. Esse tipo de dedicação é o primeiro passo em direção ao bombardeio suicida e a jogar aviões sobre edifícios.
— Sim, mas às vezes não posso deixar de pensar se não estamos falando da teoria da maçã podre.
— Como assim?
— Uma maçã podre no barril. Nesse caso, realmente há um bocado de maçãs bem podres, mas ainda assim provavelmente uma minoria muito pequena.
— Talvez sim, talvez não. Mas é o tipo de problema fora da sua alçada.
— Quero dizer, pense só: quantos muçulmanos existem no mundo?
— Um bilhão e meio, acho. Talvez dois.
— E quantos deles saem por aí explodindo a si mesmos? Melhor perguntando: quantos são terroristas radicais?
— Uns 20 ou 30 mil, provavelmente. Entendi seu ponto, cara, mas não me preocupo com as maçãs boas. Quem e como eles veneram é problema deles, até começarem a receber mensagens divinas mandando explodir um monte de inocentes.
— Bem, não há como discutir isso.
Já haviam tido essa conversa antes. Descartar todo um povo ou uma religião seria simplesmente um erro moral ou também um erro tático? Quando você coloca toda uma porção da demografia como inimigo, será que isso evita que reconheça quem são realmente os maus elementos, e também deixa de reconhecer um aliado? Como quase todos os países do mundo, os Estados Unidos tiveram inimigos que viraram amigos, e amigos que se tornaram inimigos. Os mujahidin afegãos eram um caso muitas vezes citado por Dominic. Os mesmos rebeldes que a CIA havia ajudado a expulsar os soviéticos do Afeganistão se transformaram no Talibã. Os livros de história continuariam debatendo para sempre como e por que isso acontecera, mas pouco adiantava discutir com a verdade no fundo. Um ponto sobre o qual os dois Caruso concordavam era o das semelhanças entre as perspectivas do soldado e do policial: conheça o melhor possível o seu inimigo, e seja flexível em suas táticas. Mais ainda, os dois tinham visto merda o suficiente em suas vidas para saber que não existia isso de preto ou branco no mundo real — o que era especialmente verdade no papel deles no Campus, onde o cinza era a norma. Havia uma boa razão pela qual espiões e o pessoal de operações especiais eram muitas vezes referidos como os “Guerreiros das Sombras”.
— Não me leve a mal — acrescentou Dominic. — Fico feliz da vida quando aperto o gatilho para o cara que ameaça meu país. Só estou falando que o sujeito que luta com mais esperteza é geralmente o que vence.
— Digo amém para isso. Há alguns milhões de soldados soviéticos que argumentariam contra, entretanto, e Stálin os enfiou dentro do moedor de carne na Frente Oriental como se fossem gado.
— Toda regra tem sua exceção.
Brian parou para checar o mapa.
— Estamos quase lá. À esquerda na próxima, depois direto no beco. O apartamento de Bari é a terceira porta à esquerda. Pintada de vermelho-sangue, segundo Ghazi.
— Esperemos que não seja um mau sinal.
Encontraram o beco certo dez minutos depois e se enfiaram pelo portal. Como soldado, a visão noturna de Brian estava mais bem-calibrada que a de seu irmão, de modo que foi o primeiro a perceber que o homem que caminhava em sua direção era nada menos que o próprio Rafiq Bari. Não estava sozinho, e sim ladeado por um par de sujeitos, ambos vestidos com calças negras e camisas brancas de manga comprida abertas no pescoço e arregaçadas nos punhos.
— Barras-pesadas locais — murmurou Dominic.
— Sim. Vamos deixar que passem.
Bari caminhava rápido, tal como seus guarda-costas, mas tanto a sua linguagem corporal quanto a dos dois guarda-costas informaram aos Caruso que Bari não estava coagido. O relacionamento era claramente da natureza de empregador-empregados.
Brian e Dom alcançaram primeiro a porta vermelha e continuaram em frente, deixando Bari e seus companheiros passarem pela esquerda. Brian olhou rapidamente por sobre o ombro e viu Bari enfiando uma chave na porta. Brian continuou em frente. A porta abriu, e depois bateu, se fechando. Os Caruso dobraram à esquerda na esquina seguinte e pararam.
— Nem olhou para nós — disse Dominic. Os guarda-costas de Bari provavelmente eram bandidos comuns que supunham que familiaridade com a violência era treinamento suficiente para o trabalho, e provavelmente estavam certos na maioria das circunstâncias.
— Azar o deles, sorte nossa — respondeu Brian. — Mas ele estava apressado. Ou está com pressa para pegar seu programa favorito na TV ou está se mudando.
— Melhor supor que seja o seu último palpite. Hora de improvisar.
— Do jeito dos marines.
Acharam um portal aberto à sua esquerda, a uns 6 metros de onde estavam, no beco, e por ele entraram em um pequeno pátio com um chafariz circular seco no centro. Já estava quase completamente escuro, e os cantos estavam inteiramente nas sombras. Esperaram um instante para ajustar a visão. Encostada na parede dos fundos havia uma treliça coberta por heras secas. Foram até lá e testaram a madeira. Era frágil.
— Impulso — disse Brian, aproximando-se da parede e juntando as mãos para servir de apoio. Dominic subiu, levantou os braços e conseguiu agarrar o alto da parede. Arrastou-se para cima e depois fez a Brian o sinal de mão de espere e se arrastou dali. Estava de volta em três minutos. Fez o sinal de tudo bem e se inclinou para ajudar Brian a subir.
— A porta de Bari dá para um pátio interno. Corredor aberto na parede leste. Um guarda-costas ali. Bari e o outro estão lá dentro. Os ouvi tropeçando por lá. Parece que estão com pressa.
— Então vamos.
Carregaram as Browning, afixaram o silenciador e começaram a atravessar o teto. À esquerda deles, no beco, veio o latido de um cachorro, e depois um golpe seco. O cachorro ganiu e ficou em silêncio. Brian levantou o punho fechado, comandando uma parada. Os dois se ajoelharam. Brian rastejou pelo telhado, olhou pela borda, e voltou.
— Quatro homens vindo pelo beco — sussurrou. — Se movendo como operadores. Ou como policiais.
— Talvez seja a causa da pressa de Bari — declarou Dominic. — Vamos observar?
— Se for a polícia, não temos escolha. Se não...
Dominic sacudiu os ombros e assentiu. Eles tinham vindo de longe atrás de Bari, e não desistiriam a menos que não houvesse opção. A questão era: se esses novos personagens tivessem vindo matar Bari, será que fariam isso ali ou o levariam para outro lugar?
Brian e Dominic se moveram para o beiral acima do pátio de Bari, deitaram de barriga para baixo e se aproximaram até poder ver. O guarda-costas solitário ainda estava diante da porta, uma mera sombra desenhada na escuridão. A ponta dourada de um cigarro brilhava e esmaecia.
Os passos soaram mais alto à esquerda deles, arrastando-se pelo beco coberto de areia e pedras antes de parar — presumivelmente na porta de Bari. Os Caruso sabiam que os momentos seguintes lhes diriam tudo que precisavam saber sobre seus concorrentes. A polícia entraria gritando; outros entrariam disparando.
Nada disso aconteceu.
Uma batida de leve na porta do pátio. O guarda-costas jogou fora o cigarro e se inclinou para o corredor aberto, disse alguma coisa e depois se dirigiu até a porta. Seu corpo não mostrava sinais de tensão; não fez nenhum movimento para sacar a arma que Brian e Dominic supunham estar enfiada em um coldre no cinto. Os dois se olharam: Bari espera companhia?
O guarda-costas deslizou a tranca e abriu a porta.
Pop, pop.
Os tiros foram suaves, o barulho não mais alto que uma batida com a palma da mão numa mesa. O guarda-costas tropeçou para trás e se esparramou no chão. Três figuras dispararam em direção à porta interna. Um quarto os seguiu, parou rapidamente ao lado do corpo do guarda-costas para disparar mais uma vez na sua testa, e continuou caminhando.
Mais dois disparos abafados de dentro da casa, depois um grito e silêncio. Dez segundos depois Bari saiu com as mãos por trás da cabeça, empurrado pelos três invasores. Foi impelido a ficar de joelhos diante do quarto homem — o líder, ao que parecia —, que inclinou a cintura e disse algo a Bari. Ele sacudiu a cabeça. O homem o esbofeteou.
— Procurando alguma coisa — sussurrou Dominic.
— Sim. Você acha que é o CRO?
— Diria que sim. A menos que ele esteja trabalhando para alguém mais.
O interrogatório prosseguiu por mais dois ou três minutos, depois o líder fez um gesto para os demais homens, que o imobilizaram no chão. As mãos dele foram amarradas com fita crepe, e um trapo foi enfiado em sua boca. Depois o arrastaram de volta para a casa.
— O Sr. Bari vai perder algumas unhas.
— Se tiver sorte. Melhor nós o pegarmos antes que fodam demais com ele.
— Vamos dar mais alguns minutos. Ele vai ficar mais feliz quando a cavalaria chegar — disse Brian abrindo um sorriso que Dominic considerou meio malévolo.
— Porra, Brian, isso é cruel.
— Isso é um incentivo.
Os gritos abafados começaram quase imediatamente dentro da casa. Na marca dos cinco minutos, Dominic levantou os olhos do relógio e assentiu. Brian foi o primeiro a chegar à beirada, pendurando-se nela e caindo suavemente sobre os pés. Agachado e apontando a Browning para a porta, recuou até a parede e acenou para o irmão. Dez segundos depois, Dominic já estava embaixo e acocorado ao lado da parede mais próxima.
Os dois avançaram ao mesmo tempo, deslizando como sombras pela parede até Dominic fazer o gesto de parar. Avançou mais um pouco até o ângulo lhe permitir ver pela porta. Gesticulou para Brian: Três homens visíveis; sala à esquerda através da porta. Pequeno corredor a partir da porta. Duas baixas.
Brian assentiu, depois sinalizou de volta o plano de entrada e recebeu uma confirmação. Dominic cruzou os últimos 3 metros até a parede ao lado da porta, depois foi avançando de lado até estar imprensado contra a maçaneta. Brian arremeteu até ficar do outro lado. Dominic deu uma última olhada, inclinando-se apenas o suficiente para enxergar através da porta. Assentiu.
Brian sinalizou... um... dois... três, e se levantou, passando pela porta e virando à esquerda, a Browning levantada diante dele. Dominic um passo atrás.
Dois dos homens tinham imprensado a cara de Bari sobre uma mesa de cavalete; a superfície escorregadiça de sangue, que brilhava escurecido sob a luz de uma luminária no canto. O líder estava sentado diante de Bari, uma faca de açougueiro na mão direita; a lâmina e sua mão estavam molhadas.
Um dos homens segurando Bari olhou para cima e viu Brian deslizar para dentro da sala. O primeiro disparo de Brian atingiu o homem na garganta, o segundo no meio da testa. Brian ajustou a mira e derrubou o segundo homem. O líder se virou, com uma arma na mão. Dominic já estava lá. Martelou o cabo da Browning na testa do sujeito, que caiu de lado no chão.
— Limpo.
— Limpo — sussurrou Brian. — Ele?
— Deixe tirar um cochilo.
Brian golpeou Bari com o cabo da Browning por trás da orelha, e depois verificou como ele estava.
— Ótimo.
Ambos se viraram, avançaram furtivamente pelo corredor e não viram nada, de modo que giraram para a esquerda, chegando ao pequeno saguão. Uma silhueta apareceu no portal do fundo. Dominic atirou duas vezes. O homem caiu. Escutaram de dentro da sala o rangido de madeira contra madeira.
— Janela — disse Dominic.
— Saquei.
Com três passadas, Brian estava na soleira. Olhou pelo canto e viu um homem subindo pela janela do outro lado da sala. Disparou. A bala 9 milímetros de ponta côncava entrou no quadril do sujeito. A perna cedeu sob ele, que caiu de costas na sala. Em sua mão esquerda havia uma pistola. Dominic avançou o passo e deu dois tiros no peito do homem.
— Limpo.
— Limpo.
O restante do apartamento consistia em um banheiro e um segundo quarto, ambos no final do pequeno corredor. Os dois quartos estavam vazios, tal como os armários. Descobriram o segundo guarda-costas de Bari na banheira, completamente vestido e com um belo buraco na cabeça. Voltaram para a sala da frente e perceberam que de fato era uma sala de estar, estilo quitinete. Bari estava jogado onde o tinham deixado, de cara na mesa e com os braços abertos.
— Jesus — disse Brian. — Que porra...
Nos curtos cinco minutos em que os visitantes de Bari haviam trabalhado nele, conseguiram cortar dois dedos de sua mão esquerda.
— Alguém deu o sinal verde para cima desse sujeito — disse Dominic.
— É. A questão é: por quê?
66
Seja lá qual fosse sua eficácia como burocrata, uma coisa logo ficou evidente para Clark, Jack e Chavez acerca de Agong Nayoan como operativo de inteligência: ou o sujeito não tinha treinamento sobre como se comportar em campo ou escolhera ignorar as regras, e em nenhum lugar isso era mais óbvio do que na sua escolha de senhas on-line, que Gavin Biery decifrou em poucas horas após Clark e companhia deixarem a casa do sujeito. O navegador no seu laptop tinha o conjunto normal de favoritos — de sites de compra aos de referência e tudo mais entre os dois —, mas também mantinha várias contas de e-mail on-line: uma no Google, uma no Yahoo! e uma no Hotmail. Cada caixa de e-mail continha dúzias de mensagens, a maior parte de amigos ou da família, mas também propaganda e spam, esses bem carregados com imagens em faixas que Biery escanearia à procura de traços de esteganografia.
Nayoan também era um usuário ávido do Google Maps, que Jack descobriu estar cheio de alfinetes digitais de marcação. A maioria desses assinalava restaurantes, cafés ou outras atrações de São Francisco a distância de caminhada da embaixada ou da sua casa. Um alfinete, entretanto, chamou a atenção de Jack; uma residência particular em San Rafael, a uns 20 quilômetros ao norte da cidade, do outro lado da ponte Golden Gate.
— Qual é o nome marcado nesse alfinete? — perguntou Clark.
— Sinaga — respondeu Jack.
— Parece um sobrenome.
— Já estou verificando — disse Jack antes que Clark pudesse fazer a sugestão. Um minuto depois estava com Biery na linha. — Preciso que você verifique as contas de Nayoan atrás de um nome: Sinaga.
Dez minutos depois Biery estava de volta.
— Kersan Sinaga. Nayoan emitiu sete cheques para ele nos últimos dois anos, desde 500 até uns 2 mil paus. Um dos resumos de cheque que saquei do site do banco tem uma anotação: “consultoria em computação”. Mas a parte interessante é esta: passei o nome pela Imigração, e ele está anotado. Supostamente deveria ter comparecido a uma audiência há oito meses e nunca apareceu. Também está marcado na lista dos que devem ser observados.
— Mau-olhado duplo — disse Chavez. — Faltar a uma audiência com o Serviço de Imigração não o colocaria automaticamente na lista.
— Não mesmo — concordou Clark. — O que mais?
— É procurado pela POLRI indonésia — respondeu Biery, referindo-se à Polisi Negara Republik Indonesia, a polícia nacional. — Parece que esse seu Kersan Sinaga é um falsificador de alto nível. Há quatro anos procuram por ele.
A viagem até o norte da cidade levou trinta minutos. Segundo o próprio mapa do Google que Jack usava, Sinaga morava na periferia leste de San Rafael, em um estacionamento de trailers pouco habitado. Passaram por lá, deram a volta e estacionaram a uns 100 metros do trailer de Sinaga, de largura dupla e cercado por uma tela de arame enferrujada e sebes.
— Ding, tenho um bloco de anotações dentro da pasta aí atrás — disse Clark por cima do ombro. — Pegue para mim, por favor.
Chavez lhe entregou.
— O que você pensa em fazer?
— Uma pesquisinha pela vizinhança. Volto em dez minutos.
Clark saiu, e Jack e Chavez o observaram ir pela calçada até o trailer mais próximo, onde subiu na escada e bateu à porta. Poucos segundos depois apareceu uma mulher, e Clark conversou com ela por meio minuto antes de passar pela casa seguinte, onde repetiu o processo, até chegar ao trailer de Sinaga. Quando reapareceu, foi até mais três trailers antes de voltar para o carro e entrar. Entregou o bloco para Jack. Estava coberto com nomes, endereços e assinaturas.
— Se importa em nos informar do que se trata? — disse Jack.
— Disse a eles que pensava em abrir um restaurante mais abaixo na estrada, e que precisava da assinatura de quinhentos residentes para solicitar uma licença de venda de bebidas. Sinaga não está em casa. Segundo seu vizinho, ele trabalha meio expediente na Best Buy perto da estrada. Deixa o serviço às duas da tarde.
Chavez verificou o relógio.
— Uma hora. Não é tempo suficiente.
— Vamos esperar escurecer — disse Clark.
— E então? — perguntou Jack.
— Então vamos sequestrar o filho da puta.
O raciocínio de Clark estava certo. Nayoan raramente entrava em contato com Sinaga, e mesmo assim apenas por e-mail, de modo que o desaparecimento do sujeito provavelmente não acionaria nenhum alarme. Melhor ainda: se fizessem o trabalho direito, poderiam ser capazes de explorar a associação eletrônica dele com Nayoan e transformá-lo numa fonte de informações. No pior dos casos, estariam com um corpo quente que, mais que provavelmente, falsificara documentos para o CRO, talvez tanto ali quanto no exterior. Se Gerry Hendley gostaria da ideia de o Campus manter em custódia um tarefeiro do CRO era algo que eles não sabiam.
— É mais fácil pedir perdão do que permissão — observou Clark.
Dirigiram até a Best Buy e esperaram Sinaga aparecer, e o seguiram até o armazém próximo, e depois até sua casa. Esperaram trinta minutos, e então Clark reassumiu seu papel de proprietário de bar, dessa vez pegando o outro lado da rua antes de atravessar até o trailer de Sinaga. Cinco minutos depois estava de volta.
— Está sozinho. Jogando no Xbox e bebendo cerveja. Não vi toques femininos, de modo que provavelmente é solteiro — relatou Clark. — Mas tem um cachorro, um velho cocker spaniel. Não latiu até eu bater à porta.
Mataram tempo até escurecer, dirigiram de volta ao trailer e deram uma volta pelo quarteirão. O carro de Sinaga, um Honda Civic de cinco anos, estava estacionado sob o toldo da garagem, e havia luzes nas janelas. Uma única lâmpada iluminava a porta. Clark apagou as luzes do Taurus e desligou o motor, depois deu uma olhada no bloco de anotações.
— O vizinho, o tal que me disse que ele estava no trabalho, é um sujeito chamado Hector. Parece um pouco com você, Ding.
— Deixa que eu adivinho: vou pedir uma xícara de açúcar emprestada.
— Claro. Não há tela na porta, de modo que ela abre direto. Quando ele fizer isso, atropele-o, agarre o cachorro e o tranque no banheiro. Jack, você vai pelo portão lateral e cubra a janela dos fundos. Não há muita chance de ele chegar até lá, mas é melhor prevenir do que remediar.
— Muito bem.
— Não fique na espreita. Caminhe como se tivesse um propósito. Os vizinhos foram bem amistosos, de modo que, se alguém vir você, simplesmente acene ou diga alô como se fosse aqui da área. Vamos lá.
Desceram e caminharam pela rua, conversando em voz baixa, rindo de vez em quando, um trio de residentes voltando de algum lugar. Quando chegaram diante do trailer, Clark e Chavez se viraram na direção dele, Jack mergulhou nas sombras ao lado do portão e observou Clark se encostar na parede ao lado da porta e Chavez subir as escadas. Clark se virou e acenou de leve para Jack, que cuidadosamente empurrou o portão e entrou no quintal. Não havia muita grama por ali, mas um monte de raízes, pedaços de terra sem nada e pilhas de cocô de cachorro. Foi até o fundo do trailer e se ajoelhou, de maneira a conseguir enxergar todo o local. Havia duas janelas, porém uma era estreita demais para um adulto: a mais próxima dele era a única saída.
Lá da frente, Jack escutou Chavez bater à porta; alguns segundos depois seguiu-se um;
— Sim, quem está aí?
— Hector, seu vizinho do lado. Olha, cara, meu telefone foi desligado. Posso usar o seu um instante?
Passadas soaram no assoalho do trailer. Dobradiças rangeram.
— Ei!
Uma porta bateu, seguida por pisadas. Jack olhou para cima, alerta. Merda... o que...
— Indo para o seu lado! — avisou Clark. — Janela dos fundos!
Enquanto Clark falava, a janela deslizou e apareceu uma figura, mergulhando de cabeça. Aterrissou com um gemido, rolou e se levantou.
Jack parou momentaneamente e depois disse:
— Pare bem aí!
Sinaga girou para localizá-lo, a cabeça rodando primeiro para a esquerda, depois para a direita. Atacou Jack, e com a luz filtrada pela janela, Jack viu o brilho de aço nas mãos de Sinaga. Faca, avisou algum lugar distante em seu cérebro. E logo Sinaga avançava sobre ele, a faca cortando pelos lados. Jack recuou. O homem continuou avançando. Jack sentiu o arame da cerca bater em suas costas, e então viu Sinaga levantar o braço. Desviou a cabeça para o lado, sentiu um impacto no ombro direito. Ligeiramente desbalanceado pelo ataque selvagem, Sinaga tropeçou de lado. Jack agarrou seu braço, fechando a mão esquerda em seu punho, e o torceu; depois passou o braço direito pelo pescoço de Sinaga, pressionando a laringe do sujeito contra seu antebraço. Sinaga inclinou a cabeça para a frente, depois a jogou para trás. Jack percebeu o movimento, mas só foi capaz de girar o rosto de lado. A cabeça de Sinaga bateu no rosto de Jack. A dor inundou seus olhos de lágrimas. Sinaga se debateu, tentando se livrar, e jogou as costas de Jack outra vez contra a cerca, mas perdeu o apoio dos pés. Com as pernas sacudindo diante de si, Sinaga desabou e caiu sentado. Jack o manteve preso, e percebeu que se inclinava por cima da cabeça de Sinaga. Não solte, não solte... Com o braço ainda ao redor da garganta de Sinaga, Jack deu uma cambalhota. Ouviu um estalo abafado. Caiu e rolou para o lado, certo de que Sinaga ia para cima dele.
— Jack! — Era a voz de Chavez. Ding apareceu correndo pelo portão. Sem se deter, chutou a faca para longe da mão de Sinaga. Este não se movia. Sua cabeça estava numa posição estranha, de lado. Os olhos piscaram várias vezes, mas estavam fixos, olhando o vazio. Seu braço direito se movia espasmodicamente, batendo suavemente no chão.
— Jesus... — sussurrou Jack. — Jesus todo-poderoso.
Clark correu pelo portão, parou abruptamente e ajoelhou ao lado de Sinaga.
— O pescoço dele está quebrado. Ele já era. Jack, você está bem?
Jack não conseguia desviar o olhar de Sinaga. Enquanto observava, o braço do homem parou de bater.
— Jack, acorde. Você está bem? — disse Clark.
Jack assentiu.
— Ding, leve-o para dentro. Rápido.
Dentro do trailer, Ding fez Jack sentar na poltrona, depois foi para o quarto e ajudou Clark a passar o corpo de Sinaga pela janela. Voltaram para a sala da frente. Lá no banheiro, o cocker latia.
— Nada se movimentando lá fora — relatou Clark, fechando a porta. — Ding, verifique a geladeira, veja se um pouco de comida deixa o Lulu mais calmo.
— Saquei.
Clark ficou de frente para Jack.
— Você está sangrando.
— Hein?
Clark apontou para o ombro direito de Jack. O tecido da camisa estava escuro de sangue.
— Tire a camisa.
Jack obedeceu, revelando um corte de quase 5 centímetros na clavícula. O sangue escorria para seu peito.
— Hã — murmurou Jack. — Não sabia. Senti que alguma coisa tinha atingido meu ombro, mas não percebi.
— Uns 2 centímetros mais para cima e você estaria liquidado, Jack. Aperte com o polegar. Ei, Ding, veja se Sinaga tem superbonder por aí.
O ruído de gavetas abrindo e fechando veio da cozinha e em seguida Chavez entrou e jogou um tubo para Clark, que o entregou a Jack.
— Coloque uma linha nesse corte.
— Está brincando.
— Não. É melhor do que pontos. Faça isso logo.
Jack tentou, mas suas mãos tremiam. Olhou para eles.
— Desculpe.
— É só a adrenalina, mano — disse Chavez, pegando o tubo. — Não esquente com isso.
— Ele está mesmo morto? — perguntou Jack a Clark.
Clark assentiu.
— Merda. Nós precisávamos dele vivo.
— A escolha foi dele, Jack, e não sua. Você pode se sentir mal por conta disso. É natural. Mas não se esqueça: ele tentou rasgar sua garganta.
— Sim, acho. Não sei.
— Não fique pensando muito nisso. Você está vivo, ele morreu. Preferia que fosse o contrário? — disse Chavez.
— Porra, não.
— Então marque isso como uma vitória e vamos em frente. — Chavez tampou o tubo de superbonder e levantou.
— Só isso? Vamos em frente?
— Pode levar algum tempo para você processar isso tudo — respondeu Clark. — Mas, se não conseguir, é melhor continuar na sua mesa.
— Jesus, John.
— Se você carregar essa merda na cabeça, vai acabar provocando a sua morte ou a de alguém mais. Isso eu garanto. Esse trabalho não é para qualquer um, Jack. Não há vergonha nisso. É melhor você sacar isso agora do que mais tarde.
Jack respirou fundo, esfregou a testa.
— Muito bem.
— “Muito bem” o quê?
— Muito bem, vou pensar nisso. — Clark sorriu com a resposta. — O quê?
— Foi a resposta certa. Você acabou de matar um homem. Eu ficaria preocupado se você dispensasse a reflexão sobre isso.
Ding chamou da cozinha:
— Achei algo, John.
Três dias depois de deixar Dubai em um voo fretado, o aparelho desembarcou no Aeroporto Internacional de Vancouver, na British Columbia. Por ter chegado um dia antes, Musa já esperava o voo. Seu cartão de visitas e a carta lhe deram acesso ao armazém da alfândega, onde encontrou o inspetor.
— Silvio Manfredi — apresentou-se Musa, entregando sua documentação.
— Obrigado. Phil Nolan. Seu pacote está ali.
Foram até um estrado sobre o qual estava a caixa de plástico.
Nem o cartão nem o papel timbrado haviam sido difíceis de criar usando Photoshop e um programa de editoração de alto nível. É claro que o inspetor pouco iria se importar com uma carta do departamento de medicina veterinária da Universidade de Calgary, mas o efeito psicológico não podia ser ignorado. O inspetor estava tratando com um concidadão e com uma renomada universidade canadense.
O que os 14 meses de estudo de Musa tinham lhe ensinado era que os inspetores da alfândega do mundo eram sempre sobrecarregados de trabalho, mal remunerados, e viviam de conferir listas e formulários. Para esse tipo particular de carga — materiais radioativos —, o inspetor estaria preocupado com três formulários de documentação: a fatura e o recibo de carga para o aparelho; os carimbos e os selos do agente da Associação de Transporte Aéreo Internacional (IATA), em Dubai, declarando a origem da carga; e a miríade de papéis exigidos pela Comissão de Segurança Nuclear do Canadá e pelo Ministério do Transporte do Canadá, e a licença para Substâncias e Aparelhos Nucleares, o formulário de Substâncias Nucleares Canadenses, e o formulário de Transporte de Materiais Perigosos. Apesar de nenhum desses documentos terem sido difíceis de reproduzir, só o levantamento de inteligência feito por Musa e seus homens levara oito meses.
— Então, o que é isso? — perguntou o inspetor alfandegário.
— É chamado de visor portátil de imagens equinas PXP-40HF.
— Como é?
Musa deu uma risadinha.
— Sei disso. É um palavrão. É uma máquina de raios X portátil para cavalos. Um amigo do presidente da universidade mora em Dubai. Seu garanhão árabe premiado vale mais do que você e eu ganharemos em toda nossa vida. O cavalo adoece, o amigo se queixa ao presidente, a universidade empresta a máquina.
O inspetor balançou a cabeça.
— Deve ser fantástica. O cavalo se recuperou?
— Sim. Saca esta: era apenas uma cólica. Passei uma semana lá bancando a babá de uma máquina de raios X porque o veterinário do sujeito não diagnosticou um caso simples de indigestão.
— Bem, pelo menos você pegou um pouco de sol. Ok... — disse o inspetor, folheando a papelada. — Preciso do código do radioisótopo, do nível de atividade, do nível de dosagem, dos limites de contaminação...
— Página quatro. E página nove. Na verdade, os limites são bem baixos.
— Sim, tudo bem, já vi. Então, esse troço é perigoso?
— Muito inofensivo, a menos que você consiga fazer uns duzentos exames nos seus colhões. Aí vai ter problemas.
O inspetor riu com isso.
— Não é mesmo uma arma de destruição em massa, certo?
Musa deu de ombros.
— Regras são regras. Melhor um pouco mais de precaução do que o contrário, acho.
— Sim. Diga, por que não mandaram você direto para Calgary?
— Não consegui um voo para cá até quarta-feira. Achei que seria melhor vir até aqui e alugar um carro. Com sorte, vou chegar em casa antes de escurecer.
O inspetor assinou onde precisava e colou selos adesivos na caixa. Fez Musa assinar os recibos nos lugares corretos, deu uma última olhada na papelada e a entregou de volta.
— Está liberado para ir.
— Meu carro alugado está no estacionamento...
— Vá até o portão. Vou dizer para deixarem você passar.
Musa apertou sua mão.
— Obrigado.
— Por nada. Boa viagem.
67
Após estancar o sangue que pulsava dos dedos cortados de Bari, colocaram-no em uma cadeira na sala de estar e prenderam seus pés com fita adesiva nas pernas da cadeira. Amarraram o líder do grupo com fita adesiva na mesa de cavalete. Os dois homens ainda estavam inconscientes. Finalmente, pegaram os cadáveres e os empilharam na banheira, sobre o corpo do segundo guarda-costas de Bari.
— Vou dar uma volta pelo quarteirão — disse Dominic. — Verificar se os nativos estão inquietos. Acho que não atraímos atenção, mas...
— Boa ideia.
— Volto em cinco minutos.
Brian se sentou na sala de estar, estudando os cativos e fazendo uma necropsia mental da operação. Porra de trabalho bem-feito, pensou. Dominic sempre fora bom com armas e fera no Hogan’s Alley, mas essa era a primeira vez que realmente enfrentavam a merda juntos. Claro, houvera aquela situação no shopping center, mas não era a mesma coisa, não é? Aqui eles haviam liquidado autênticos bandidos do CRO na sua própria terra. Mas realmente não estavam acostumados a fazer prisioneiros. Tinha que mudar o funcionamento mental quanto a isso. O cabo da Browning havia feito os dois desmaiar, é certo, mas não de maneira muito eficiente. Talvez um bastão de chumbo recoberto de couro pudesse ser melhor. Precisava dar uma pensada nessas coisas.
Ouviu o portão do pátio abrindo. Levantou-se, caminhou até a porta e olhou pelo canto.
— Sou eu mesmo, cara — disse Dominic, entrando.
— Como está a situação?
— Calma. O lugar realmente entra em coma depois que escurece. Mais umas duas horas e provavelmente isso aqui vai parecer uma cidade fantasma.
— O que levanta uma boa questão.
— Esses dois? — respondeu Dominic, apontando para Bari e para o outro.
— Claro. Se eles têm informações, precisamos decidir se tentamos espremê-los aqui ou tirá-los daqui.
— Bem, de uma coisa tenho certeza: não vamos conseguir tirá-los da Líbia por conta própria. Talvez uma corrida para a Tunísia.
— Que distância?
— Uns 160 quilômetros a oeste, mais ou menos. Mas não vamos botar o carro na frente dos bois. Vamos ter uma conversinha com Bari e ver aonde isso nos leva.
Com um copo de água fria jogado em sua cabeça e uns tapinhas no rosto, conseguiram acordar Bari. Ele piscou várias vezes, olhou a sala, depois Brian e Dominic.
Disparou algumas palavras em árabe, e então falou em um inglês de sotaque carregado:
— Quem são vocês?
— A cavalaria — disse Brian.
Bari apertou os olhos e gemeu.
— Minha mão.
— Só dois dedos — disse Dominic. — Nós já estancamos o sangramento. Tome. — Entregou a Bari meia dúzia de tabletes de aspirina de um frasco que encontraram no banheiro. Bari enfiou os tabletes na boca, e depois aceitou um copo de água de Brian.
— Obrigado. Quem são vocês?
— Ao que parece, somos seus últimos amigos em Medina — disse Dominic. — Quem são eles?
— Estão todos mortos?
— Menos o cara com a faca de filetar — respondeu Brian. — Quem são eles?
— Não posso...
— Nosso palpite é que são do CRO. Alguém apertou seu botão, Sr. Bari.
— O que você quer dizer?
— Alguém ordenou que o matassem. Sobre o que eles interrogavam você?
Bari não respondeu.
— Olha, sem ajuda, eles vão te pegar. Pode ser que consiga se esconder por algum tempo, mas eles vão descobrir. E provavelmente também a sua família em Benghazi.
Bari ergueu a cabeça.
— Vocês sabem sobre eles?
Dominic assentiu.
— E se nós sabemos...
— Vocês são americanos, não é?
— Isso importa?
— Não, acho que não.
— Você nos ajuda e nós te ajudamos. Tentamos tirá-lo do país — disse Brian.
— Como?
— Deixa que a gente se preocupa com isso. Quem são eles?
— CRO.
— Os mesmos que liquidaram Dirar al-Kariim?
— Quem?
— De um vídeo da web. O cara que ficou sem pé, nem cabeça...
— Ah, sim. Foram eles.
— Qual é o nome dele, do sujeito com a faca? — perguntou Dominic.
— Eu o conheço como Fakhoury.
— E o que ele faz?
— O que você viu aqui. Assassinato. Punição. Um sujeito bem baixo nível. Ele se gabou sobre al-Kariim. Falou disso.
— E por que estava atrás de você?
— Não sei.
— Porra nenhuma. Você e seus guarda-costas estavam com pressa. Sabia que Fakhoury estava atrás de você. Como?
— Começou a circular pelas ruas que eu tinha falado para a polícia. Não é verdade. Não sei quem disse, mas para essas pessoas... a segurança é tudo. Me matar era uma precaução.
— E o que eles queriam de você? Você é o especialista deles na web, certo?
— Sim. Fakhoury queria saber se eu havia guardado dados.
— Tais como?
— Nomes de domínio. Senhas. Gráficos...
— Como imagens de um banner?
— Sim. Sim, ele perguntou por isso.
Dominic olhou Brian e murmurou:
— Esteganografia.
— Isso.
— Do que vocês estão falando? — perguntou Bari.
— Então, qual é a resposta? — perguntou Dominic. — Você guardou alguns dados? Algo para garantir um pouco da sua segurança, talvez?
Bari abriu a boca para falar, mas Brian o interrompeu:
— Se mentir para nós, libertamos Fakhoury e vamos embora.
— Sim, guardei dados. Está em um cartão SD, segurança digital, o mesmo que vai em câmeras. Está sob um ladrilho atrás da privada.
Brian já estava se movimentando.
— Saquei. — Dois minutos depois estava de volta com um cartão do tamanho de uma unha.
Dominic perguntou a Bari:
— Quem dá as ordens a Fakhoury?
— Só escutei boatos.
— Muito bem.
— Um sujeito chamado Almasi.
— Daqui mesmo?
— Não, tem uma casa perto de Zuwarah.
Dominic olhou para Brian.
— Uns 100 quilômetros a oeste daqui.
— E esse sujeito manda muito? Pode ter ordenado a execução de al-Kariim?
— É possível.
Deixaram Bari a sós e foram até o pátio.
— O que você acha? — perguntou Brian.
— Bari é uma boa presa, mas seria ótimo pegar um peixe mais acima na cadeia alimentar. Se esse Almasi pode mesmo dar sinal verde para liquidar um deles, pode ser que valha a pena a tentativa.
Brian verificou o relógio.
— Já são quase dez da noite. Calcule uma meia hora para voltar até o carro, depois duas horas até Zuwarah. Emboscamos o cara aí pelas duas da manhã, e depois pegamos o caminho de volta.
— Então levamos Bari, e agarramos Almasi se pudermos.
— E Fakhoury está sobrando.
— Peso morto, cara.
Dominic pensou no caso e suspirou.
Brian disse:
— É um assassino de sangue-frio, Dom.
— Não me diga. Mas tenho problemas em ligar minha cabeça nisso, sabe?
— Você já ligou antes. Naquele caso do sequestrador da garota.
— Era um pouco diferente.
— Não muito diferente. O bandido não ia parar por conta própria. A mesma coisa aqui.
Dominic considerou o assunto, depois assentiu.
— Pode deixar que eu faço.
— Não, cara. Esse é meu. Prepare Bari para sairmos. Vou fazer a limpeza.
Cinco minutos depois, Dominic e Bari estavam no pátio. Brian saiu e deixou uma bolsa de lona nos pés de Dominic.
— Meia dúzia de semiautomáticas e dez pentes. Volto já. — Brian entrou novamente.
— O que ele foi fazer? — perguntou Bari.
Um ruído como o de um tapa abafado veio de dentro, depois um segundo.
— Fakhoury? — disse Bari a Dominic. — Vocês o mataram.
— Preferia que ele ficasse vivo para vir atrás de você?
— Não, mas quem garante que vocês não farão o mesmo comigo quando terminarem?
— Eu garanto. Na pior das hipóteses, soltamos você.
— E na melhor?
— Isso depende do quão útil você for.
Brian saiu dez minutos depois. Ele e Dominic foram até a parede dos fundos, e Brian deu o impulso para Dominic subir até o telhado. Dez segundos depois estava de volta com as mochilas. Então os três foram até a porta do pátio.
Brian se virou para Bari.
— Só para deixar claro. Se você correr, ou chamar atenção sobre nós, metemos uma bala na sua cabeça.
— E por que eu faria tal coisa?
— Não sei e nem me importa. Se nos colocar em perigo, vai ser o primeiro a morrer.
— Compreendo.
Quarenta minutos mais tarde saíram de Medina pela Sidi Omran e caminharam dois quarteirões para leste, na direção do Corinthia, onde haviam estacionado o Opel. Cinco minutos depois, já estavam na Umar al Mukhtar, dirigindo para oeste e passando pelos subúrbios da cidade. O céu estava claro, com uma lua crescente e um campo de diamante de estrelas.
Dirigiram em silêncio, com Bari deitado no assento de trás, até passarem por Sabratah, a 60 quilômetros de Trípoli, na costa.
— Pode sentar — disse-lhe Dominic do banco de passageiros. — Como está a mão?
— Bem dolorida. O que fizeram com meus dedos?
— Dei descarga no banheiro — respondeu Brian.
Essa fora a parte mais fácil das tarefas dentro da casa de Bari. Além disso, inspecionou Fakhoury e seus homens à procura de tatuagens e identificações. Não encontrou nenhuma das primeiras, mas bastante das segundas, que colocou na bolsa de lona. Depois fez três disparos na parte de trás da cabeça de cada homem. As balas de ponta côncava fizeram seu serviço, transformando os rostos em hambúrgueres irreconhecíveis. A polícia provavelmente terminaria os identificando, mas, quando o CRO compreendesse que tinha perdido um dos seus, ele, Dominic e Bari já estariam fora do país.
— Você deu descarga nos meus dedos pela privada? — repetiu Bari. — Por quê?
Dessa vez, Dominic respondeu:
— Para não deixar rastros seus. Quanto mais coisas desconhecidas eles tiverem, melhor. Onde fica a casa de Almasi?
— A leste da cidade. Eu reconheço o desvio. Está diante de uma velha refinaria. — Cerca de vinte minutos depois, Bari disse: — Mais devagar. Essa próxima estrada à esquerda.
Brian diminuiu a velocidade e entrou na estrada de terra. Quase imediatamente a inclinação aumentou; adiante, a estrada desfilava por uma série de colinas baixas e cobertas de mato. Após cinco minutos, dobrou subitamente à direita. Bari, olhando pela janela do lado do motorista, bateu no vidro.
— Ali. Aquela casa com as luzes acesas. É a de Almasi.
A uns 300 metros adiante, no final de uma descida erodida, Brian e Dominic puderam ver uma estrutura de dois andares em tijolo cru, cercada por um muro de barro e tijolos à altura dos ombros. A uns 50 metros dela, a oeste, um conjunto de quatro chalés de adobe. Bem atrás da casa havia um celeiro.
— Antiga fazenda? — perguntou Dominic.
— Sim. De cabras. Almasi a comprou como casa de campo há três anos.
Dominic disse:
— Percebeu as antenas no telhado, Bri?
— Sim. O sujeito está preparado para comunicações pesadas.
Continuaram por mais uns 800 metros, perdendo a casa de fazenda de vista, e diminuíram em um cruzamento. Num impulso, Brian dobrou à esquerda. A estrada de terra se estreitou por uns 50 metros antes de se abrir no que parecia ser uma pedreira de cascalhos.
— Aqui deve dar — disse Dominic.
Brian apagou as luzes, encostou o carro mais para o lado e desligou o motor. Os dois se viraram nas poltronas e olharam para Bari.
— O que mais você sabe sobre esse lugar? — perguntou Brian.
— Só onde está e mais nada.
— Já esteve aqui?
— Uma vez. Mas só passei por ali.
— E como isso aconteceu? Só curiosidade?
Bari hesitou.
— No meu negócio, é vantagem saber com quem se está lidando. Eu sabia que Fakhoury respondia a Almasi. Achei que seria prudente algum dia lidar diretamente com ele, de modo que fiz algumas perguntas.
— Que diligente — notou Dominic. — Então você nunca esteve lá, nunca entrou na casa?
— Não.
— E quanto a guarda-costas? — perguntou Brian.
— Com certeza deve haver, mas não sei quantos. — Brian e Dominic olharam fixamente para ele. — É a verdade, juro por meus filhos.
— Cães?
— Não sei.
— Me dê suas mãos — disse Brian. — Coloque-as sobre os apoios de cabeça.
Bari fez o que mandaram, hesitando. Brian e Dominic prenderam as mãos dele com fita adesiva nos apoios de cabeça.
— Isso é mesmo necessário?
— Ainda não chegamos à etapa da confiança mútua — explicou Dominic. — Não tome isso como pessoal. Nós voltaremos.
— E se não voltarem?
— Então você está na merda — disse Brian.
Os dois saltaram, tiraram a bolsa do porta-malas, e sentaram no chão para separar o arsenal. Além de suas Browning, tinham quatro semiautomáticas MAB P15 9 milímetros de fabricação francesa, e dois revólveres .32 de cano curto.
— Temos sessenta balas para as P15 — disse Brian. — Parabellum 9 milímetros. Cabem nas nossas Browning. Se precisarmos de mais de sessenta, quer dizer que estamos mesmo fodidos.
Recarregaram os pentes das Browning e dividiram entre si as balas restantes, enfiando-as no bolso das calças cargo. Finalmente, colocaram mais alguns itens nas mochilas. Brian foi até a janela traseira do Opel. Bari disse:
— Preciso de mais aspirinas.
Brian pescou o frasco da mochila e o jogou para Dominic, que derramou meia dúzia na boca de Bari, e depois lhe deu um gole d’água do cantil.
— Não vá a lugar nenhum nem faça ruídos — disse Dominic. Voltou-se para Brian. — Pronto?
— Como nunca. Vamos empacotar o peixe grande.
68
— Como você se sente? — perguntou Gerry Hendley, quando Jack se sentou diante de sua mesa. Sam Granger estava de pé ao lado, encostado em uma janela, com os braços cruzados.
— Fora o fato de me perguntarem isso uma porrada de vezes, estou bem — respondeu Jack. — Foi só um arranhão, Gerry. Nada que um pouco de superbonder não pudesse controlar.
— Não é disso que estou falando.
— Sei do que você está falando.
— Jack, há menos de 12 horas você matou um homem. Se me disser que isso não o está incomodando, vou te acorrentar na sua mesa.
— Chefe...
— Ele está falando sério — disse Granger. — Goste ou não disso, você é filho do presidente Jack Ryan. Se acha que isso não nos faz dar uma pausa, pense novamente. E se por um segundo nós acharmos que sua cabeça não está bem-aparafusada, você volta para o banco.
— O que vocês querem de mim? A verdade é que minhas mãos ainda tremem e que meu estômago está revirado. Eu enfiei a agulha no MoHa porque ele merecia. Esse tal de Sinaga... não sei. Talvez merecesse, talvez não. Ele veio para cima de mim, tentou me matar... — Jack hesitou, pigarreou. — Se eu queria matá-lo? Não. Estou contente por ter sido ele e não eu? Podem apostar.
Gerry considerou o assunto por alguns instantes, depois assentiu.
— Pense um pouco no assunto e volte a falar comigo amanhã. Seja lá o que quiser fazer, tem seu lugar aqui.
— Obrigado.
— Sam, peça para eles entrarem, por favor.
— Espere um instante — disse Jack. — Já discuti o assunto com John e Ding... Se lembram do e-mail sobre o nascimento que conseguimos? — Hendley assentiu. — Não passou dali. Nenhuma resposta, nenhum encaminhamento. Nada de nada. Estou achando que aquele e-mail foi uma ordem de “mudar de canal”.
— Explique — pediu Granger.
— Sabemos que o CRO usa esteganografia para se comunicar. Provavelmente através das imagens nos banners em seus sites, e provavelmente fazem isso há algum tempo. E se o e-mail fosse um sinal para as células mudarem para um protocolo que use apenas esteganografia; digamos que seja a versão de silêncio de rádio deles.
— Com que objetivo?
— Operações especiais entram em silêncio de rádio quando estão prestes a entrar em ação. Talvez o Emir tenha dado o sinal verde para alguma operação.
— Observamos uma queda nas comunicações antes do 11 de Setembro — observou Granger. — E também em Bali e Madri.
Hendley assentiu.
— Jack, quero que fique grudado em Biery. Destrinchem o que conseguiram com Nayoan.
— Muito bem.
— Faça-os entrar, Sam.
Granger abriu a porta, e Clark e Chavez entraram e sentaram ao lado de Jack. Hendley disse a Clark:
— Já sabe?
— O quê?
— As acusações contra Driscoll já eram.
— Quem diria — falou Clark, sorrindo.
— O secretário de imprensa de Kealty anunciou isso ontem, bem no final do expediente. Bem a tempo de deslizar para o fim de semana. Sam conversou com um velho amigo em Benning. Driscoll está limpo. Retiro honroso, pensão completa mais adicional de deficiência. O ombro dele vai ser um problema?
— Só se você quiser que ele monte divisórias aqui no escritório, Gerry.
— Ótimo. Muito bem, vamos ver o que vocês têm.
— Não achei nada no trailer de Sinaga, a não ser uma câmera digital SLR — disse Clark. — Nikon, preço médio. Tinha um cartão SD lá dentro com algumas centenas de imagens. Principalmente fotos de paisagem, mas cerca de uma dúzia eram de rostos.
— Fotos para passaporte — acrescentou Chavez. — Todos homens, a maioria do Oriente Médio ou indonésios, ao que parece. E um deles já vimos antes. Se lembram do estafeta que seguimos, Shasif Hadi?
— Não brinca — disse Granger.
— Mas olha só — respondeu Jack. — Na foto de rosto que Sinaga tinha, Hadi está completamente barbeado. Quando o estávamos seguindo, usava barba e bigode. Barbeie, use um novo passaporte, e está pronto para outra.
— Isso pode responder à pergunta de para onde ele foi depois de Las Vegas, pelo menos parcialmente. Saiu do país — disse Clark.
Hendley assentiu.
— Mas para onde e por quê? Sam, o que mais sabemos sobre Sinaga?
— Ele está no topo da parada de sucessos em Jacarta. Conversei com um amigo de um amigo que é o chefe da estação em Surabaya. O sujeito era bom. Tinha uma queda especial por passaportes.
— E como estamos com o reconhecimento facial?
Essa foi respondida por Jack:
— Biery está com seu sistema em testes beta, mas não sabemos muito sobre o sistema que a Imigração e a Segurança Nacional estão usando. Os parâmetros deles podem ser diferentes dos nossos.
— FBI? — perguntou Granger.
— Provavelmente o mesmo sistema. Se não for, de qualquer maneira fazem polinização cruzada.
— Quando Dom voltar, vamos ver se ele solta um balão de ensaio. Considerando que Hadi é a nossa única variável conhecida, vamos focar primeiro nela. Descobrir aonde ele foi depois de Las Vegas. Sr. Clark, como deixou as coisas em São Francisco?
— Estamos limpos com Nayoan. Deixamos tudo no lugar, mas fizemos o download de muitos dados. Gavin está amaciando tudo agora. Uma coisa é certa: Nayoan era um grande operador de logística para o CRO. Dinheiro, documentação... Sabe mais lá o quê. Quanto a Sinaga, montamos um cenário de arrombamento. Ele perdeu a luta contra o assaltante e foi morto. Trouxe seu DVD, algum dinheiro, para dar consistência no caso.
— Vamos ficar de olho no noticiário de lá, para ver se está funcionando. Deveria. Fomos bem cuidadosos.
— Muito bem, então vamos esperar até nosso supernerd achar alguma coisa. Obrigado, cavalheiros. Sr. Clark, pode ficar mais um momento? — Depois que Jack e Chavez saíram e a porta fechou, Hendley disse: — Então?
Clark sacudiu o ombro.
— Ele está ok. Se vai ter gosto pelo trabalho de campo, só o tempo dirá, mas ele está lidando bem com isso. É um garoto esperto.
— E o que a esperteza tem a ver com isso? — perguntou Granger.
— Está bem, então. É equilibrado. Tal como o pai.
— Você o levaria novamente para o campo?
— Em um segundo, chefe. Ele tem bons instintos, boa capacidade de observação, e aprende muito rápido. E mais: tem um pouco de cinza nele, o que não prejudica.
— Cinza? — perguntou Hendley.
— O homem cinza — respondeu Clark. — Os melhores espiões sabem como se dissolver na paisagem: como caminham, como se vestem, como falam. Você passa por eles na rua e nem os nota. Jack tem isso, e é natural.
— Mais da genética dos Ryan?
— Talvez. Não se esqueça de que ele cresceu sob o microscópio. Sem nem perceber, provavelmente pescou muitas coisas no ambiente. Os garotos são astutos. Jack percebeu cedo o que todos aqueles sujeitos de terno escuro faziam por lá o tempo todo. Colocou suas antenas para funcionar.
— Você acha que ele vai contar ao pai?
— Sobre o Campus? Acho. Não é culpa de ninguém, mas Jack vive sob a sombra do pai, e é uma puta de uma sombra. Quando ele souber o que realmente quer, vai achar um modo de dizer.
Com a ajuda de um funcionário da alfândega, Musa carregou o contêiner na traseira de seu Subaru Outback alugado, acenou para o inspetor e dirigiu saindo pelo portão. Musa, é claro, não começou sua longa viagem para Calgary como dissera ao inspetor da alfândega, mas sim dirigiu uns 20 quilômetros para leste, até o subúrbio de Surrey, e entrou no estacionamento do Holiday Inn Express. Achou uma vaga de estacionamento bem em frente a seu quarto no térreo, entrou e passou o restante do dia cochilando e passando de um programa idiota de TV para outro até finalmente se fixar na CNN. Seu quarto tinha conexão wireless de internet, de modo que teve que resistir ao impulso de ligar o laptop, logar e procurar atualizações. Tinha um pen drive com a última tabela de uso único e o software de descodificação — e não entendia realmente nada das duas coisas —, mas logar em um site satélite nessa altura da operação não era prudente. No dia seguinte ao meio-dia seria a próxima verificação agendada, e mesmo essa seria breve. A menos que lhe dissessem o contrário, ele assumiria que as outras peças do plano estavam encaixando no lugar.
Musa ficou olhando o teto, deixando o blá-blá-blá da televisão ao fundo, e fez sua lista de verificação mental. Ele conhecia de cor as distâncias e as rotas, e sua documentação passaria por tudo, salvo um escrutínio intenso. É claro que o inspetor de alfândega do aeroporto havia sido uma barreira, mas aquilo não era nada comparado com as medidas de segurança dentro dos Estados Unidos. Ali a polícia era curiosa, atenta e hipervigilante. Mas, Musa lembrou a si mesmo, dentro de alguns dias tanto as forças de segurança estaduais quanto as federais estariam realmente com os pratos cheios, e ele já estaria em seu destino.
*
Cochilou até o relógio o despertar às sete horas da noite. Sentou e esfregou os olhos. Podia perceber, mesmo com as cortinas puxadas, que os restos de luz do dia já diminuíam. Acendeu a luminária de cabeceira. Na televisão, um dos âncoras estava entrevistando algum sujeito de Wall Street, picando e repicando a economia dos Estados Unidos.
— Atingiu o fundo do poço? — perguntava o âncora. — O país está entrando em etapa de recuperação?
Idiotas. Os Estados Unidos ainda veriam o fundo do poço. Em breve.
Musa foi até o banheiro, jogou água no rosto, e em seguida vestiu o paletó. Ficou no meio do quarto, pensando, depois voltou ao banheiro e puxou uma toalha do aparador. Movimentando-se de trás para a frente, limpou todas as superfícies que tocara: balcão, assento da privada, maçaneta da descarga, interruptor de luz... Terminou com a mesa de cabeceira, o controle remoto e a lâmpada. Já havia pago pelo quarto, de modo que não precisava passar pela recepção. O recepcionista disse que ele podia deixar o cartão de entrada no quarto, o que ele fez, primeiro limpando-o bem, depois colocando-o sobre a televisão. Enfiou a toalha no bolso da calça. O que mais? Teria esquecido alguma coisa? Não, concluiu. Saiu, fechou a porta e caminhou até a traseira do Subaru. O contêiner estava no lugar. Destravou as portas, entrou e ligou o motor.
Depois de sair do estacionamento, entrou na rodovia 1 e dirigiu para sudoeste por 35 quilômetros até o acesso para a rodovia Fraser, pela qual foi em direção a leste por mais 11 quilômetros até a rua 264. Ali, dobrou para o sul e dirigiu por mais uns quatro minutos. Logo viu adiante as luzes do estádio. Era o cruzamento da 13 com a 539, um conjunto em forma de trevo ao lado da fronteira entre os EUA e o Canadá. Musa sentiu seus batimentos cardíacos aumentarem. Continuou em frente.
A uns 500 metros ao norte do conjunto a estrada se dividia; a pista da esquerda indo para o conjunto, e a pista da direita realizando uma curva até se inserir no que seu mapa chamava de Avenida Zero, e se dirigia a oeste. Ele apertou o botão de zerar o odômetro e olhou pelo retrovisor. Ninguém atrás dele. Levou o Subaru até o limite de velocidade, depois diminuiu um tantinho e ajustou o controle de velocidade máxima.
Estranho, pensou, que esse pedaço desinteressante de estrada com duas pistas, enquadrado dos dois lados por capões de árvores e campos de agricultores fosse a fronteira entre dois países. A única evidência que Musa viu disso foi uma cerca de arame na altura da cintura do lado sul da estrada. Os americanos gostavam de suas cercas, não é mesmo?
Ele dirigiu por 12 quilômetros, observando o sol se pôr e as estrelas aparecerem. Seus faróis refletiam no asfalto cinza, as faixas divisórias amarelas sumindo embaixo do carro, até depois do que pareceram ser horas, os faróis apontaram para uma interseção. Quando se aproximou, olhou a placa: rua 216. Ótimo. Agora ele estava perto. Em seguida, veio a 212, depois a 210. Musa desligou o controle de velocidade de cruzeiro e encostou o carro. Adiante e à sua esquerda viu algumas casas atrás de uma fileira de árvores. Observou pela janela do motorista, deixando que o carro continuasse diminuindo a velocidade... Pronto.
Ao lado de um grupo de pinheiros, uma abertura na cerca de arame. Uma placa dizia: PROPRIEDADE PARTICULAR. MANTENHA DISTÂNCIA. Musa olhou adiante, não viu faróis, depois verificou no retrovisor. Limpo. Apagou os faróis, pisou no freio, girou à esquerda e, cruzando a outra pista, ele atravessou o portão.
Estava nos Estados Unidos.
A estrada quase imediatamente começou a descer, a terra aplainada ficando mais esburacada. À sua direita, 1 acre de tocos de pinheiros se destacava na paisagem. Alguma madeireira comprara esse pedaço da floresta e decidira derrubar as árvores.
A estrada ficou mais esburacada, mas o Subaru com sua tração nas quatro rodas lidou bem com isso. A estrada de madeireiros fazia meandros ao sul e ao leste, descendo por um terreno descoberto por mais uns 800 metros, antes de chegar a um cruzamento triplo de estradas de terra. Musa dobrou à esquerda. A estrada ficou mais suave minutos antes de emergir em outra interseção. Virou ali à esquerda, dirigindo-se mais uma vez a leste por algumas centenas de metros antes de girar para o sul mais uma vez. Cinco minutos depois apareceu o asfalto. Essa devia ser a estrada da rua H. Ele soltou a respiração. Se era para ser surpreendido atravessando a fronteira, isso já teria acontecido. Estava livre. Por enquanto.
Acendeu novamente os faróis e dobrou à direita na estrada. Mais 8 quilômetros o levariam à rodovia 5, logo ao norte de Blaine, Washington. De lá, ele dirigiria para o sul. Três dias de viagem fácil por grandes rodovias.
69
A casa de Almasi ficava em uma colina coberta de mato baixo, cuja pendente levava diretamente à pedreira. Dominic e Brian não tiveram pressa, mantendo-se nos canais cobertos de pedregulhos que subiam em meandros pela colina. Trinta minutos depois alcançaram o topo. Deitaram de bruços e rastejaram para a frente.
Pendente abaixo, talvez a uns 20 metros, estava a parede de trás do celeiro; à direita da construção, o conjunto de chalés de adobe. Não viram luzes nas janelas. À sua direita e em frente estava a varanda dos fundos da casa de fazenda. Uma única luz aparecia em uma janela do andar de cima.
— Já são quase três — sussurrou Brian. — Vamos nos agachar. Se Almasi tiver patrulhas, nós as veremos.
Dez minutos se passaram, depois vinte. Não viram nenhuma movimentação.
— Balançamos a árvore? — sugeriu Dominic. — Primeiro o celeiro.
— Por que não?
Brian recuou do cume, agarrou um punhado de pedras e voltou. Jogou a primeira pedra em um arco alto. Esta bateu no teto do celeiro, quicou pelo telhado e caiu no chão.
Nada se moveu. Nenhum ruído.
Brian jogou mais uma pedra, dessa vez com uma trajetória direta. A pedra se chocou contra a parede do celeiro. Passaram-se cinco minutos.
— Já temos meia hora.
— Então vamos. Primeiro o celeiro, depois as choças? — perguntou Dominic.
— Sim. Se houver reforços, é lá que devem estar.
Os dois saíram do topo e rastejaram pela direita até se posicionarem bem atrás do celeiro, voltaram para o cume e escolheram o caminho da ladeira até a parede dos fundos. As tábuas eram velhas, quebradiças e com bastante abertura entre elas. Brian e Dominic olharam lá dentro, mas não viram nada se mover. Brian gesticulou: Para os chalés. Vou na dianteira.
Agachados, saíram de trás do celeiro e foram rodeando a base da colina, mantendo a cabeça abaixo do mato. Depois de uns 15 metros, alcançaram uma trilha estreita de terra. Bem em frente estavam os chalés de adobe. Por cerca de 20 metros sem cobertura. A uns 30 metros à esquerda deles estava a casa de fazenda. Em cima da porta traseira, a lâmpada ainda estava acesa.
Brian gesticulou: Você vai; eu cubro.
Dominic assentiu, deu mais uma olhada ao redor, e correu na ponta dos pés cruzando o caminho até a parede do chalé mais próximo. Verificou os dois cantos, e depois assinalou a Brian para que cruzasse. Dez segundos mais tarde estava ali. Dominic bateu na orelha, e depois na parede. Cerca de meio metro acima de suas cabeças havia a abertura de uma janela horizontal. Através dela escutaram ruído de roncos.
Vou olhar as duas mais ao norte, gesticulou Dominic.
Eles se encontraram dois minutos depois. Brian encostou a mão no ouvido de Dominic e sussurrou:
— Dois homens, um em cada chalé. Cada um com um AK-47.
Dominic assentiu, levantou dois dedos, depois quatro. Quatro no total. Passou o polegar pelo pescoço, sacudiu os ombros. Liquidamos com eles?
Brian sacudiu a cabeça e apontou para a casa. Dominic assentiu. Com Brian na ponta, seguiram o contorno das paredes do chalé até o lado leste, o ponto de aproximação mais próximo da porta dos fundos da casa. Mais terreno descoberto, porém dessa vez apenas 7 metros.
Com a Browning pronta e apontando à direita e à esquerda, para cima e para baixo, Brian cruzou a distância e caiu de cócoras diante da porta. Após dois minutos, fez um gesto para Dominic atravessar. Brian apontou os degraus de madeira e passou o polegar pela garganta. Velhos e barulhentos demais. Dominic assentiu. Ele foi de cócoras até a extremidade da varanda e experimentou o corrimão. Voltou-se para Brian com o polegar para cima. Três minutos depois, passaram por cima do corrimão, sobre a varanda. Moveram-se até a porta, cada um de um lado do batente. Brian experimentou a maçaneta. Estava destrancada. Ele abriu 5 centímetros, e parou. Esperou. Empurrou o restante, olhou pelo canto, e recuou. Sacudiu a cabeça.
Passaram pela soleira com as Browning prontas e procurando sinal de movimento. Estavam em um saguão azulejado. Adiante e à esquerda, escadas que levavam a um balcão com várias portas. À esquerda e à direita, salas de estar. As paredes com reboco de estuque estavam pintadas de branco e pareciam brilhar na escuridão. Dominic apontou para si mesmo. Comigo. Brian assentiu e saiu para o lado, e juntos os dois entraram na sala de estar e na sala de jantar à frente, ao lado da qual havia uma cozinha. Abriram a porta oposta e se viram novamente na sala de estar à esquerda do saguão.
Brian assinalou as escadas e recebeu um assentimento de volta. Dominic se posicionou em um canto do saguão para vigiar enquanto Brian subia as escadas; uma vez no alto, ficou vigiando enquanto Dominic subia para se juntar a ele.
Havia quatro portas no corredor e uma na parede mais distante. Começaram pela primeira porta. Quarto. Vazio, cama feita. O ar cheirava a bolor, como se o cômodo não fosse ocupado havia muito tempo. Foram para a segunda e a terceira portas e acharam mais dois quartos vazios. Atrás da quarta porta havia o que parecia ser o escritório da casa, completo com escrivaninha de carvalho, telefone multilinha, um equipamento de fax, scanner e copiadora, e um monitor de tela plana. Brian entrou e olhou em volta. Embutido em um aparador do lado oposto à escrivaninha havia um cofre de parede.
Foram até a última porta. Dominic apertou o ouvido na madeira, recuou e formulou sem som: Roncando. Gesticulou: Vou pegar Almasi e você controla o quarto.
Brian assentiu.
Dominic girou a maçaneta, empurrou a porta 2 centímetros e olhou pela fresta. Voltou-se, fez um sinal para Brian, e abriu a porta de uma vez. Em três passadas estava diante da cama com dossel de Almasi. Almasi estava deitado de costas, as mãos do lado. Brian inspecionou o quarto, verificando os cantos e todo o quarto principal. Assentiu para Dominic, que agarrou o braço do outro lado de Almasi, puxou virando-o sobre o estômago, e apertou sua cara no travesseiro. Almasi despertou instantaneamente, agitando os braços. Dominic enfiou o silenciador da Browning na base do pescoço do sujeito.
— Um ruído e você está morto. Balance a cabeça uma vez se compreendeu.
Almasi obedeceu.
— Estamos saindo, e você vem conosco. Dificulte nossa vida e pode ter certeza de que faço você morrer de um modo bem desagradável. Você tem um computador e um cofre no escritório. Vai nos dar a senha e a combinação, certo?
Almasi assentiu novamente.
Brian entregou um rolo de fita adesiva a Dominic; ele amarrou as mãos de Almasi e jogou o rolo de volta. Recuou da cama e gesticulou para Almasi levantar. Ele obedeceu. Com Brian na frente, voltaram para o corredor e entraram no escritório.
Dominic ligou o computador de Almasi, um Dell de última geração. O logotipo do Windows Vista logo apareceu, seguido por uma tela de login. Ele pegou um bloco e uma caneta na escrivaninha e empurrou até Almasi.
— Nome de usuário e senha.
Almasi não se moveu.
Brian puxou uma cadeira até perto da escrivaninha e empurrou Almasi sobre ela. Apertou a Browning sobre o joelho direito do homem.
— Começo por aqui. Joelhos, depois tornozelos e então cotovelos. — Pegou o bloco e a caneta da mesa e os colocou no colo de Almasi. — Nome de usuário e senha.
Dessa vez não houve hesitação. Quando terminou, Brian entregou o bloco a Dominic, que fez o login e começou a examinar os diretórios do computador.
— Ponha ele logo para resolver a combinação do cofre — disse Dominic. — Vou começar a fazer download, e depois revisto o quarto.
Inseriu o pen drive na entrada USB do gabinete e começou a transferir os arquivos.
Brian pôs Almasi de pé e o empurrou até o cofre.
— Abra.
— Minhas mãos.
— Você consegue.
Almasi ajoelhou e começou a girar o dial.
— Volto já — disse Dominic, e saiu da sala.
Almasi olhou para Brian.
— Pronto.
— Abra e recue.
Almasi obedeceu, deslizando para trás de joelhos. Brian se ajoelhou diante do cofre. Estava vazio, salvo por um único CD-ROM em um envelope. Ele estendeu a mão para pegar. Pelo canto dos olhos, percebeu as mãos amarradas de Almasi se movendo para a prateleira a seu lado. Virou-se, viu a pistola nas mãos dele, rolou e pegou a Browning enquanto tentava desviar. Ouviu um ruído seco. A sala ficou alaranjada. Da cintura, Brian disparou um tiro, atingindo Almasi no centro do esterno. O homem caiu de lado.
— Brian! — Dominic entrou pela porta, em duas passadas chutou a arma da mão de Almasi. Ajoelhou-se e verificou o pulso dele. — Esse já era.
— Ele apareceu com a pistola — arquejou Brian. — Tirei o olho de cima dele por um segundo. Porra.
— Epa, senta, Brian, senta.
— O quê?
— Você está sangrando.
— Hein?
Dominic o segurou até uma cadeira, agarrou sua mão direita e apertou acima da barriga. Brian sentiu o molhado, tirou a mão e olhou seus dedos.
— Porra, merda.
— Mantenha a pressão.
— Vamos ter companhia. Melhor verificar.
Dominic foi até a janela e afastou a cortina. Abaixo, luzes se acendiam nos chalés de adobe.
— Estão vindo. — Voltou-se para Brian, que tinha aberto a camisa. Havia um buraco da espessura de um dedo mindinho uns 15 centímetros abaixo do seu mamilo direito. Ele apertou a ponta dos dedos ao redor do ferimento e fez uma careta. O sangue espirrava dali.
— Costela quebrada? — perguntou Dominic da janela.
— Sim, acho que sim. Diminuiu o impacto. Ah, Jesus, dói para caramba. Merda, merda, merda! Pegue o CD que deixei cair, está bem? Estava no cofre.
Dominic pegou a mochila do chão, procurou lá dentro e tirou meia dúzia de absorventes. Entregou-os a Brian e voltou para a janela.
— Devíamos ter trazido curativos de verdade.
— Essas coisas são melhores, cara, realmente absorvem o sangue! — Abriu uma embalagem e a apertou contra o peito de Brian.
— Está vendo alguma coisa?
— As luzes estão acesas. Vão vir. Você consegue se mover?
— Sim.
— Vamos ver se faço eles se atrasarem um pouco.
Dominic pegou a pistola de Almasi — uma Beretta .32 Tomcat semiautomática — do chão.
— Que tipo de munição?
Dominic ejetou o pente e verificou.
— Ponta côncava.
— Hã. Ok. Mexa-se.
Dominic disparou pela porta, desceu as escadas e saiu. Acocorou-se ao lado das escadas, mirou no chalé mais perto e disparou três vezes pela janela. Gritos saíram lá de dentro. As luzes apagaram. Dominic correu de volta para a casa, trancou a porta. Virou à direita e foi até a janela do canto. Abriu e disparou quatro tiros no outro chalé, depois meteu mais cinco balas pela porta da frente. O pente da pistola soltou e abriu. Ele o jogou fora e correu de volta para cima. Brian estava de pé se apoiando na escrivaninha.
— Estou bem. O sangramento diminuiu. Você tem um plano?
— Sim. — Dominic pegou o CD-ROM do chão, enfiou na mochila, depois se inclinou sobre a mesa e arrancou o pen drive da entrada USB do computador. — O alpendre está bem abaixo de nós. Quando eles se movimentarem, você sai pela janela. Deita no telhado. Ao escutar a movimentação aqui dentro, desça para o chão e vá até o celeiro. Se achar que dá, siga até o carro. Eu encontro você no caminho. Passa sua arma.
— Dom...
— Cala a boca e passa sua arma. Consegue carregar a mochila? — Brian assentiu e Dominic a entregou a ele. — Você parece verde, cara. Tem certeza de que pode se movimentar?
— Temos escolha?
— Não.
— Observe a janela e vá narrando tudo para mim.
— Saquei.
Dominic colocou as duas Browning sobre a mesa e olhou em volta da sala. Agarrou a cadeira da mesa de Almasi e a empurrou para a porta, depois fez o mesmo com uma mesinha ao lado. Empurrou tudo pela porta, pelo corredor e até as escadas. Aquilo tudo rolou pelos degraus e se amontoou no fundo.
— Como está a situação?
— Nada ainda... Espera. Tem um saindo, dando a volta pelo oeste. Está com um AK.
Dominic foi até o primeiro quarto de hóspedes e agarrou uma mesa de cabeceira, um abajur e uma cadeira, e jogou tudo pelas escadas.
— O que você está fazendo, Dom?
— Improvisando uma barricada.
Repetiu o processo no quarto de hóspedes seguinte, e depois voltou para o escritório. Agarrou sua mochila e a colocou nas costas, depois pegou as Browning e tirou os silenciadores, que enfiou no cinto.
Na janela, Brian disse:
— Vá em frente, caubói. Os outros três acabaram de sair... Dois na direção do alpendre, outro pela porta da frente. O primeiro vem pelo lado leste agora. Ei, achei uma surpresa no armário. — Apontou para um canto, onde estava encostada uma carabina. — Mossberg 835, calibre 12. Seis cartuchos carregados.
Dominic foi até Brian e abriu suavemente a janela. Ajudou-o a sair e o segurou até ele ficar deitado sobre o telhado.
Dominic disse:
— Vou esperar até todos estarem na casa. Vou gritar pedindo mais munição. Quando ouvir isso, vá embora. De quanto tempo vai precisar?
— Dois minutos.
— Vou ficar logo atrás de você. Não podemos deixar que nos sigam.
Dominic fechou a janela. Deu a volta, agarrou a carabina e foi para o corredor. Da sala de estar do lado oeste veio o barulho de vidro quebrado. No saguão, alguém batia na porta. De novo e pela terceira vez. A lingueta estalou e abriu para dentro. Dominic armou a carabina, deitou de bruços e enfiou o cano 2 centímetros pelo balaústre. Escutou o som da perna de uma cadeira se arrastar na madeira vindo da sala de estar. Uma cabeça apareceu no canto, recuou, e depois voltou. Dominic ficou imóvel. Segurou a respiração. Não tem nada para ver aqui, babaca. As batidas na porta se tornaram mais insistentes e mais altas. O sujeito na sala de estar olhou pela última vez pelo canto, depois foi entrando, seu AK apontado e revistando o balcão. Deu a volta por uma das mesinhas de cabeceira e foi até a porta. Tirou a mão esquerda do rifle, procurando a maçaneta.
Dominic ajustou a carabina, apontou a mira para o peito do sujeito e disparou. O homem tropeçou para trás, bateu na porta e escorregou para o chão. Passos soaram pelo alpendre e sumiram. Momentos depois veio o ruído de vidro quebrado. Um abatido, sobram três. Um pensamento lhe veio à mente. Levantou, correu até o escritório e abriu a janela. Entregou uma das Browning a Brian.
— Caso eles decidam escalar. — Fechou a janela e voltou para o corredor.
No térreo, nada se movia. Um minuto completo transcorreu, e depois Dominic ouviu um sussurro à sua direita. A mão de alguém apareceu à esquerda e jogou alguma coisa para cima das escadas. Granada, pensou Dominic enquanto ela quicava no balcão. A forma lhe disse que não era de fragmentação, e sim de luz e barulho. Não queriam arriscar matar Almasi. Tarde demais, rapazes. Dominic tomou impulso e rolou para dentro do escritório, colocando as mãos sobre as orelhas e comprimindo os olhos. O estrondo ressoou. A luz branca disparou por suas pálpebras. Sentiu o assoalho tremer embaixo de si. Rolou para ficar de bruços e rastejou até a porta. À sua esquerda, uma pessoa subia as escadas rapidamente, disparando. Balas se alojavam na parede. O homem chegou ao alto da escada e parou, acocorando-se atrás da coluna do canto. Dominic sacou a Browning do cinto, mirou e disparou. A bala atravessou o joelho exposto do sujeito. Ele gritou e caiu pela escada. Dominic pegou novamente a carabina, levantou e se movimentou rapidamente pelo corredor. Disparou na direção de uma cabeça que apareceu na porta da sala de estar. Errei. Armou outro cartucho na câmara, girou à direita e atirou da cintura, atingindo bem no meio do corpo do sujeito que tropeçara. Ele aterrissou no saguão e permaneceu imóvel. Dominic girou à esquerda, se enfiou no primeiro quarto de hóspedes e caiu de barriga no chão.
— Estou quase sem munição! — gritou. — Me passe alguma!
Dominic verificou o relógio. Dois minutos. Fez um inventário. Quase dois pentes cheios para a Browning e três cartuchos ainda na carabina. Rolou para a esquerda, ficou de pé e olhou pelo canto. No saguão, nada se mexia. Deu um passo para fora, mantendo-se atrás da coluna do canto. Verificou mais uma vez, depois girou e disparou pelo corredor. Balas atingiram a parede atrás dele. Ele se agachou, cobriu os últimos 3 metros e se enfiou no quarto principal de Almasi.
— Cara, onde está a porra da munição! — gritou Dominic.
Contou até dez, saiu, disparou duas vezes para o saguão, depois fechou a porta do escritório antes de entrar de volta no quarto. Bateu a porta com força para que ouvissem. Quando eles subissem pelas escadas, teriam que investigar primeiro os quartos de hóspedes, depois o escritório, deixando o quarto de Almasi para o final. A questão era quanto tempo levariam para isso. Quanto tempo um deles voltaria para o fundo para bloquear a saída pelas janelas?
Ele fechou a porta e apertou o ouvido contra a madeira. Passou um minuto, depois dois. Ouviu móveis se arrastando nos ladrilhos do saguão. Então o ranger de degraus da escada; Dominic se arrastou até a janela, abriu-a e saiu para o telhado. Deixou-a aberta. Olhou em volta e não viu ninguém. Caminhou agachado pela borda. Era uma queda de 3 metros. Enfiou a carabina entre a mochila e o ombro, rolou de barriga e deixou as pernas e o torso ficarem pendurados. Soltou-se. Logo que os pés atingiram o chão, dobrou os joelhos e rolou. Levantou e correu para dar a volta na casa pelo lado leste, em seguida subiu no alpendre e achou a janela quebrada. Deslizou para dentro e se arrastou pela sala de estar até o saguão. No balcão, apenas uma figura era visível. Estava de pé, de costas para Dominic, no batente do segundo quarto de hóspedes. Dominic levantou, abriu caminho pelo amontoado de móveis até o centro do saguão. Sacou a Browning, apontou e acertou o homem atrás da cabeça. Enquanto ele caía, Dominic já abria espaço e se abrigava embaixo da escada. Guardou a Browning e preparou a carabina.
Passadas soaram no balcão, e depois pararam. Elas voltaram, dessa vez se movendo com cuidado. Um barulho de madeira quebrando indicou uma porta se abrindo. Escritório, pensou Dominic. Trinta segundos transcorreram. Os passos saíram do escritório, então pausaram. A porta do quarto principal foi aberta com um chute.
Veja a janela, babacão...
Mais trinta segundos se passaram.
— Yebnen kelp! — gritou uma voz.
O árabe de Dominic era medíocre, mas o tom lhe informou que a frase era um palavrão, algo parecido com merda ou filho da puta.
As passadas soaram pelo corredor, depois descendo as escadas, até o saguão ladrilhado. Ele ouviu o barulho de uma fechadura sendo aberta. Dominic deu dois passos agachado, levantou a carabina e disparou no sujeito, alcançando as pernas por trás. O impacto o jogou contra a porta. Seu AK quicou nos ladrilhos enquanto ele caía de lado. Dominic se levantou e se livrou da carabina. Sacou a Browning e caminhou até o sujeito, que se contorcia e gemia no chão. O homem viu Dominic e levantou as mãos, clamando:
— Por favor...
— Tarde demais para isso.
E disparou na testa dele.
Encontrou Brian sentado no chão atrás do celeiro, as costas apoiadas na ladeira. Ele viu Dominic e ergueu a mão em um cumprimento.
— Acabou com eles?
— Até o último. Como você está?
Brian sacudiu hesitante a cabeça. Seu rosto estava cinzento e brilhando de suor.
— Tenho que fazer uma confissão.
— O quê?
— A bala não pegou as costelas, passou direto por elas. Está no meu fígado, Dom.
— Jesus, tem certeza? — Aproximou-se para abrir a camisa de Brian, mas o irmão o afastou.
— O sangue está bem escuro, quase preto. A bala de ponta côncava provavelmente destroçou meu fígado. Mal consigo sentir minhas pernas, também.
— Vou levar você para o hospital.
— Não. Perguntas demais.
— Foda-se. Zuwarah está a 15 quilômetros daqui.
Dominic ajoelhou, agarrou o braço de Brian do outro lado e o colocou sobre o ombro. Firmou o pé e levantou.
— Tudo bem?
— Sim — resmungou Brian.
A difícil caminhada subindo a colina levou dez minutos, depois mais dez para Dominic descobrir o caminho na pendente oposta. Quando alcançou a pedreira, começou a correr em direção ao Opel.
— Você ainda está comigo? — perguntou Dominic.
— Ã-hã.
Alcançou o Opel, ajoelhou e abaixou Brian até o chão.
— O que aconteceu? — perguntou Bari do assento de trás.
— Levou um tiro. Existe um hospital em Zuwarah?
— Sim.
Dominic abriu a porta traseira e usou o canivete para cortar a fita e libertar Bari. Juntos, os dois colocaram Brian no banco de trás.
— Você sabe onde é? — perguntou Dominic a Bari, que assentiu. — Então vá dirigindo. Entre pelo caminho errado e disparo em você, compreendeu?
— Sim.
Bari foi para o assento do motorista e ligou o motor. Dominic deu a volta no carro e entrou no banco de trás com Brian.
— Vamos, vamos!
70
O alvo deles não estava exatamente em São Paulo, mas 120 quilômetros ao norte da cidade, no centro da explosiva economia petrolífera do Brasil. A maior das refinarias brasileiras, a Replan, em Paulínia, processava 400 mil barris de petróleo por dia, algo como 75 milhões de litros. O suficiente, Shasif Hadi lera em algum lugar, para encher mais de trinta piscinas olímpicas. É claro que, como Ibrahim lhe dissera nas instruções iniciais, sabotar tal refinaria não seria uma tarefa fácil. Havia uma infinidade de redundâncias de segurança a ser considerada, sem contar com as medidas de segurança física. Entrar na área da refinaria não seria realmente uma barreira (o muro mais alto do perímetro tinha apenas 3 metros), mas, uma vez lá dentro, havia pouco que pudessem fazer. Explosivos podiam destruir tanques de armazenamento, mas esses estavam colocados bem separados para que houvesse um efeito dominó. Do mesmo modo, as centenas de válvulas de controle (conhecidas como ESD — dispositivos de fechamento de emergência), que regulavam o fluxo de produtos químicos para o labirinto de colunas de destilação, torres de fracionamento, unidades de craqueamento e tanques de mistura e armazenamento, eram virtualmente invulneráveis, e recentemente haviam sido atualizados com algo chamado sistema Neles ValvGuard, que por sua vez era regulado pelo centro de controle da refinaria, o qual, desde suas primeiras viagens de reconhecimento, sabiam estar no subsolo e ser pesadamente fortificado. Shasif não compreendia nada desses detalhes, mas a essência do que Ibrahim dissera era clara. As chances de provocar um vazamento catastrófico dentro da Replan de Paulínia eram astronomicamente pequenas. Mas essa palavra — dentro —, lembrou Shasif a si mesmo, era o pivô da questão, não? Havia outras maneiras de começar a derrubar os dominós.
Como planejado, cada qual estava em um hotel separado, assim como tinha seu próprio carro alugado. Saindo em momentos predeterminados pela manhã, cada homem pegou a rodovia SP-348, a Rodovia dos Bandeirantes, para sair de São Paulo em direção a Campinas, 30 quilômetros ao sul de Paulínia. Ao meio-dia se encontraram em um restaurante chamado Fazendão Grill. Shasif foi o último a chegar. Localizou Ibrahim, Fa’ad e Ahmed sentados a uma mesa no canto e foi até eles.
— Como foi a viagem? — perguntou Ibrahim.
— Sem problemas. E a sua?
— Também.
— É bom ver todos aqui — disse Shasif. Olhou ao redor da mesa e recebeu cumprimentos de volta.
Todos estavam há cinco dias no país, cada qual com suas próprias tarefas em São Paulo. Os explosivos — Semtex-H tcheco — haviam sido despachados para o país por correio comercial, 60 gramas de cada vez, para diminuir as chances de interceptação. Apesar de ser muito confiável, o Semtex carregava consigo uma falha perigosa: uma marcação química acrescentada durante a fabricação para fazer sua presença mais detectável a “farejadores”. Os marcadores não eram acrescentados antes de 1991, mas como esses lotes sem cheiro tinham validade máxima de dez anos quando armazenados, o ano 2000 foi, além de um marco social, também um divisor de águas para os terroristas, que ou fabricavam seus próprios explosivos sem marcadores ou desenvolviam técnicas especiais de manuseio para os novos lotes, borrifados com dinitrato de glicol ou com um composto conhecido como 2,3-dimetil-2,3-dinitrobutano, ou DMDNB, ambos conhecidos como “vaporizadores de baixa difusão”, que eram perfume para as narinas dos farejadores.
Para sorte de Shashif e dos demais, eles precisavam de apenas algo próximo de 500 gramas de explosivo para seus objetivos, de modo que as encomendas fracionadas levaram apenas algumas semanas. A partir desse quase meio quilo de Semtex eles fabricaram seis cargas: cinco com 60 gramas e a sexta com 190 gramas.
— Fiz uma última inspeção na refinaria ontem. Como esperávamos, o canal de desvio e o acostamento ainda não estão prontos. Se fizermos direito nosso trabalho não há como impedi-lo.
— Quantos galões, você acha? — perguntou Ahmed.
— É difícil dizer. A linha está completamente funcional, e a capacidade é de quase 3,2 bilhões de galões por ano, quase 9 milhões por dia. Daí em diante os cálculos se tornam complexos. Mas basta dizer que é o suficiente para nossos objetivos.
— Nenhuma mudança no plano de retirada? — perguntou Fa’ad.
Ibrahim olhou fixo para ele. Abaixou a voz:
— Nenhuma mudança. Mas não se esqueça: vivendo ou morrendo, precisamos ter sucesso. Os olhos de Alá estão sobre nós. Se Ele quiser, alguns de nós ou todos sobreviveremos. Ou não. Essas preocupações são secundárias, está entendido?
Um a um, cada homem assentiu.
Ibrahim verificou o relógio.
— São sete horas. Vejo vocês lá.
Depois que a empolgação inicial do primeiro fim de semana em que escapavam juntos e o rubor de fazer amor esvaneceu, ela começou a se distanciar dele, olhando pela janela, recusando a sugestão de saírem, permitindo apenas um beijinho em seus lábios... Depois de trinta minutos assim, Steve perguntou:
— O que há de errado?
— Nada — respondeu Allison.
— Tem alguma coisa. Posso ver no seu rosto. Você faz essa coisa com seus lábios. — E sentou a seu lado na cama. — Me diga?
— É estúpido. Não é nada.
— Allison, por favor. Fiz algo de errado?
Essa era a pergunta que ela esperava. Steve de Coração Mole. Steve Tímido, tão preocupado em perdê-la.
— Tem certeza de que não vai rir?
— Prometo.
— Ontem eu estava conversando com minha irmã Jan. Ela disse que viu esse documentário, alguma coisa no Discovery Channel ou no National Geographic, acho. Era todo sobre a geologia do...
— De onde eu trabalho? Allison, eu disse...
— Você prometeu que não ia rir.
— Não estou rindo. Está bem, vá em frente.
— Ela disse que muitos cientistas são contra essa coisa toda. Existem protestos o tempo todo. Coisas legais tentando fechar aquilo. Dizem que há falhas de terremotos ao redor de toda a área. E estavam falando da água subterrânea, se houver vazamento.
— Não vai haver nenhum vazamento.
— Mas e se houver? — insistiu Allison.
— O menor vazamento seria detectado. Eles têm sensores por todos os lugares. Além disso, o lençol freático está a 300 metros abaixo.
— Mas o solo... não é suave, ou coisa parecida? Permeável?
— Sim, mas existem sistemas redundantes, níveis e mais níveis, e a coisa vai estar selada em barris. Você devia ver aquelas coisas, são como...
— Fico preocupada com você. E se alguma coisa acontecer?
— Não vai acontecer nada.
— Você não pode conseguir outro emprego? Se você e eu... Quero dizer, se nós continuarmos... Eu ficaria o tempo todo preocupada.
— Escute, por enquanto não está nem operacional. Droga, só estamos nos preparando para fazer um ensaio de entrega.
— O que é isso?
— Apenas uma simulação. Um ensaio. Um caminhão vem, nós descarregamos o barril. Sabe, verificamos todos os procedimentos para ter certeza de que tudo está funcionando como deveria.
Allison suspirou, cruzou os braços.
— Ei, não vou mentir. Acho legal que você esteja preocupada comigo, mas realmente não há por que se preocupar — disse Steve.
— Verdade? Toma, olha aqui. — Allison foi até a mesa de cabeceira, agarrou a bolsa e voltou. Procurou lá dentro e depois tirou uma folha de papel dobrada. — Jan me mandou isso por e-mail. — E entregou a ele.
Apesar de ser apenas o desenho em corte, era suficientemente detalhado para mostrar o andar principal da instalação, dois andares inferiores e, bem abaixo, atrás de camadas de “rocha” marrom e cinza, uma fita horizontal azul intitulada “lençol freático”.
— Onde ela conseguiu isso? — perguntou Steve.
— Pelo Google.
— Ally, há muito mais coisas no lugar do que mostra essa... caricatura.
— Sei disso. Não sou estúpida. — Ela levantou, foi até a janela do balcão e ficou olhando para fora.
— Não quis dizer isso — declarou Steve. — Não acho você estúpida.
— Então Jan está errada? Está me dizendo que ninguém naquele lugar se preocupa com essas coisas?
— Claro que nos preocupamos. É um assunto sério. Sabemos disso tudo. O DOE já...
— O quem?
— Departamento de Energia. Já realizou anos de pesquisas sobre isso. Gastou milhões só em estudos de adequabilidade.
— Mas esse documentário... ficou falando dessas falhas no chão. Pontos fracos.
Steve hesitou.
— Ally, realmente não posso falar sobre...
— Muito bem, esqueça. Eu paro de me preocupar. Que tal?
Allison podia senti-lo ali de pé, olhando fixo para suas costas. Devia estar com aquela cara de cachorrinho que levou uma bronca e com as mãos enfiadas nos bolsos dos jeans. Depois de trinta segundos, ele falou:
— Muito bem, se isso é importante para você.
— Não é isso que é importante para mim. É você.
Com os braços ainda cruzados, Allison se virou para ele. Forçou algumas lágrimas a saltarem de seus olhos. Ele estendeu a mão.
— Venha aqui.
— Para quê?
— Só venha aqui.
Ela avançou e pegou na mão dele. Steve disse:
— Só não fale para ninguém que contei sobre essas coisas, está bem? Eles me colocariam na cadeia.
Ela sorriu e limpou uma lágrima do queixo.
— Prometo.
O cargueiro Panamax Losan estava há três dias do destino, depois de fazer a maior parte da travessia do Atlântico com mar calmo e céu claro. O capitão do Losan, um alemão de 47 anos chamado Hans Groder, há oito anos era o mestre do navio, e passara dez meses de cada um desses anos no mar. Uma agenda mais pesada que a do seu trabalho anterior — capitão de um navio de abastecimento Type 702, Classe Berlim, da Marinha alemã —, mas o pagamento era melhor, e o estresse, muito menor. Melhor ainda, o Losan era um barco de mar aberto, uma bela mudança para Groder, após 22 anos navegando pelas águas labirínticas ao redor das bases navais de Eckendorf e Kiel. Que prazer era simplesmente apontar a proa no Atlântico e navegar à toda força com centenas de milhares de metros de água embaixo do casco e nem uma mancha de terra no radar. Claro, nos seus dias de maior introspecção caía no espírito melancólico que todos os marinheiros e soldados sentem ao deixarem para trás a vida militar, mas, no balanço geral das coisas, ele gostava de sua vida e da autonomia que desfrutava. Respondia a apenas um homem, o proprietário, e não a uma cadeia de oficiais de peito estufado que não sabia a diferença entre um calço e uma escota.
Groder passeou pela ponte e deu uma olhada no radar. Não havia outra embarcação em um raio de 20 milhas. O radar de navegação deles não era o mais poderoso do mundo, mas o suficiente para seus propósitos. Para um capitão cuidadoso e com uma boa tripulação, 20 milhas dava tempo o bastante para ajustar o curso e deixar muito espaço para os companheiros viajantes. Groder foi até a janela e inspecionou o convés de avante, passando pelo exame instintivo dos tanques armazenados. Eles haviam sofrido um pouco de balanço, na maioria das vezes devido àquelas drogas dos tanques de propano. Com quatro embalados por contêiner, estavam bem seguros, mas sua forma não tinha a geometria amigável de caixas e paletas. Podia ser pior, Groder sabia. Pelo menos aquelas porcarias estavam vazias.
71
Mais tarde, Gerry Hendley refletiria que a parte mais difícil daquele maldito negócio — exceto pelo evento que provocara tudo, é claro — era simplesmente achar um lugar privado para onde trazê-los. Finalmente, o ex-presidente Ryan interferiu, fazendo uma ligação telefônica para o chefe do Estado-Maior da Força Aérea, que por sua vez ligou para o comandante da 316ª Ala, a unidade primária da Base Aérea de Andrews.
Eles chegaram em dois Chevy Tahoe pretos. Hendley, Jerry Rounds, Tom Davis, Rick Bell, Pete Alexander e Sam Granger no primeiro; Clark, Chavez e Jack Ryan Jr. no segundo. Os dois veículos dobraram à esquerda na rua C e encostaram ao lado de um hangar na margem da pista. O expresidente Ryan chegou cinco minutos depois em um Town Car, flanqueado pela equipe do Serviço Secreto em dois Suburbans.
O Gulfstream V pousou 11 minutos mais tarde, três minutos antes do horário, e taxiou até parar a 50 metros dali. Os motores arrefeceram, as escadas rolaram e se encaixaram na porta principal do avião.
Jack Ryan Jr. desceu do Tahoe, seguido pelos demais, que ficaram alguns passos atrás dele.
A porta do Gulfstream abriu, e trinta segundos depois Dominic Caruso apareceu na soleira. Piscou com a luz do sol, depois começou a descer as escadas. O rosto estava abatido e mostrava cinco dias de barba. Jack avançou e o encontrou no meio do caminho. Os dois se abraçaram.
— Sinto muito, cara — sussurrou Jack.
Dominic não respondeu, mas se soltou do abraço e assentiu.
— É — foi tudo que disse.
— Onde ele está?
— No porão de carga. Não me deixaram trazê-lo na cabine.
Depois de deixarem a pedreira, Bari dirigiu o mais rapidamente possível com os faróis do Opel desligados, conseguindo voltar para a estrada principal em menos de dez minutos. Brian oscilava entre a consciência e a inconsciência enquanto corriam para leste pela costa, e Dominic segurava sua mão, apoiando a cabeça do irmão em seu colo. Mantinha a outra mão fazendo pressão sobre o ferimento, que continuava escorrendo sangue escuro, cobrindo a mão e o antebraço de Dominic, ensopando o assento embaixo de suas pernas. Dez quilômetros antes de Zuwarah, Brian começou a tossir, primeiro ligeiramente, depois em espasmos, o corpo saltando para fora da poltrona enquanto Dominic se inclinava sobre seu torso e sussurrava para que ele aguentasse. Passados alguns minutos, Brian pareceu relaxar e sua respiração se regularizou. E então parou. Dominic não perceberia isso até bem mais tarde, mas tinha sentido aquele momento, aquele ligeiro salto que separava Brian da vida para a morte. Dominic se ajustou na poltrona e a cabeça de Brian pendeu para o lado, seus olhos vazios encarando as costas do assento.
Ele mandou Bari encostar e parar o carro, o que ele fez, e Dominic pegou as chaves da ignição, saiu do carro e caminhou a 10 metros de distância. A leste, os primeiros débeis raios de sol começavam a aparecer no horizonte. Dominic sentou silencioso, observando o alvorecer e não querendo olhar para Brian, meio esperando que quando fizesse isso seu irmão estaria respirando novamente, olhando para ele com um sorriso estúpido, idiota. Claro que isso não aconteceu. Depois de dez minutos, voltou para o carro e mandou o líbio sair da rodovia principal e achar um lugar onde pudessem se abrigar. Depois de dirigir por trinta minutos, Bari achou um bosque de palmeiras, com sombra, e estacionou ali.
Dominic ligou para o celular de Archie; a ajuda do Campus demoraria demais. Em duas sentenças curtas, contou o que aconteceu ao australiano, depois entregou o telefone para Bari, que indicou a localização de onde estavam para Archie. Levou duas horas. Archie chegou em um Range Rover e, sem falar nada, tirou Dominic do Opel, colocou-o no banco de trás do Rover, depois puxou um saco para cadáveres do porta-malas e voltou ao Opel, onde ele e Bari deslizaram cuidadosamente o corpo de Brian para fora do assento e o selaram no saco. Após colocar o saco na área de carga do Rover, Archie voltou ao Opel e limpou tudo, jogando todas as armas e o equipamento no porta-malas. Quando teve certeza de que o carro estava limpo, Archie regou o interior do Opel com o conteúdo de uma lata de cinco galões de gasolina e tocou fogo.
Ao meio-dia estavam de volta a Trípoli. Archie nem passou pelo consulado e foi direto para o que Dominic supôs ser uma casa segura saindo de Bassel el Asad, perto do estádio. Bari, pés e mãos amarrados, foi trancado no banheiro, e, depois que Archie se assegurou de que o embaralhador da linha telefônica estava ligado, deixou Dominic sozinho para ligar para casa.
— Quem mais sabe? — perguntou Dominic ao primo.
— Ninguém — respondeu Jack. — Só quem está aqui. Achei que você queria fazer isso. Ou, se preferir, eu...
— Não.
— Quer ir para casa? — perguntou Jack.
— Não, pegamos algumas coisas. Vocês vão querer ver. Vamos voltar para o escritório. Hendley ou alguém tem que entrar em contato com Archie em Trípoli. Se quisermos Bari aqui, temos que...
— Dom, você não tem que se preocupar. Nós cuidamos disso.
O ex-presidente Ryan se aproximou, e ele e Dominic se abraçaram.
— Dizer que sinto muito não é o suficiente, filho, mas sinto muito.
Dominic assentiu. Para Jack:
— Vamos indo, ok?
— Claro.
Jack se voltou e fez um sinal para Clark e Chavez, que se aproximaram e escoltaram Dominic para o segundo Tahoe.
— Posso pegar uma carona com você? — perguntou Jack ao pai.
— Claro.
Jack fez um sinal para Hendley, depois seguiu o pai até o Town Car.
Viajaram em silêncio até os carros passarem pelo portão principal, então Ryan Senior disse:
— O diabo é que provavelmente nunca saberemos o que aconteceu. Por mais que queira, não vou perguntar a Gerry.
— Pergunte para mim — disse Jack.
— O quê?
— Eles estavam em Trípoli, pai, caçando algo.
— Do que você está falando? Como sabe disso?
— O que você acha?
Ryan Senior não respondeu imediatamente, mas ficou encarando o filho.
— Você está falando sério.
— Sim.
— Jesus, Jack.
— Você sempre me disse que eu tinha que traçar meu próprio caminho. É isso que estou fazendo.
— Há quanto tempo?
— Um ano e meio. Andei juntando coisa com coisa e percebi que havia mais no negócio de Gerry do que o que estava à vista. Fui lá e conversei com ele. Levei uma conversa e consegui um emprego, acho.
— Fazendo o quê?
— Principalmente análise.
— “Principalmente.” O que isso quer dizer? — A voz de Ryan Senior ficou mais dura.
— Andei fazendo algumas coisas em campo. Não muito, só para dar os primeiros passos.
— De jeito nenhum, Jack. Isso acabou. Não vou deixar você...
— A decisão não é sua.
— Droga nenhuma que não é. O Campus foi ideia minha. Eu procurei Gerry e...
— E agora o espetáculo é dele, certo? Eu até que sou meio esperto, pai. Não preciso de você me vigiando. Já fizemos alguns bons trabalhos lá. Do mesmo tipo que você costumava fazer. Se estava ok para você, então por que não para mim?
— Porque você é meu filho, caramba.
Jack sorriu arrevesado para o pai.
— Então talvez esteja no sangue.
— Porcaria nenhuma.
— Olha, eu enfrentei o mundo financeiro e fui bem, mas não levei muito tempo para compreender que não queria trabalhar com aquilo pelo resto da minha vida. Quero fazer algo. Fazer diferença, servir meu país.
— Vá ensinar na escola dominical.
— Vem logo depois na minha lista.
Ryan Senior suspirou.
— Você não é mais um garotinho, acho.
— Não mesmo.
— Bem, não quer dizer que eu vá gostar disso, e provavelmente nunca chegarei a gostar, mas acho que esse é um problema meu. Com sua mãe, no entanto, vai ser uma história diferente.
— Eu falo com ela.
— Não vai não. Eu falo, quando for o momento certo.
— Não gosto de mentir para ela. — Ryan Senior abriu a boca para falar, mas Jack acrescentou rapidamente: — E também não gostava de mentir para você. Droga, se não fosse pelo John, talvez nunca contasse.
— John Clark?
Jack assentiu.
— Ele é tipo meu supervisor de treinamento de fato. Ele e Ding.
— Não há ninguém melhor nesse negócio do que esses dois.
— Então você concorda com isso?
— Digamos que sim. Vou contar um segredo, Jack. Quanto mais velho você fica, menos gosta de mudanças. Semana passada, a Starbucks parou de vender minha torrefação preferida. Me tirou do sério por vários dias.
Jack riu.
— Ainda bem que sou mais a Dunkin’ Donuts.
— Essa também é boa. Você toma cuidado, certo?
— Com o café. Sim...
— Não banque o espertinho.
— Sim, sou cuidadoso.
— Então, em que vocês estão trabalhando?
Outro sorriso de Jack.
— Desculpe, pai, sua necessidade de saber expirou há algum tempo. Se ganhar a eleição, conversamos novamente.
Ryan Senior sacudiu a cabeça.
— Malditos espiões.
Frank Weaver passou quatro anos no Exército, de modo que possuía bastante familiaridade com o modo enlouquecedor como o governo às vezes fazia as coisas, mas achou que havia deixado isso tudo para trás quando foi para a reserva e entrou na escola de direção de caminhões. Passara dez anos fazendo isso, percorrendo grandes trechos de costa a costa, às vezes levando junto a esposa, mas principalmente devorando os quilômetros enquanto ouvia rock clássico. Deus ama as rádios via satélite, pensou, e, graças a Deus, o governo o deixava continuar com o novo emprego. Ele não tinha se entusiasmado em voltar a trabalhar para o governo, mas o salário era bom demais para dispensar, com os adicionais de periculosidade e tudo mais. Eles não chamavam a coisa exatamente assim, mas era disso que se tratava. Tivera que frequentar um programa especial de treinamento e passar pelas verificações do FBI, mas não tinha nada a esconder e era ótimo motorista. Na verdade, não havia nada de extraordinário no que o mandavam fazer — isto é, salvo a carga, mas ele jamais havia precisado tocar naquela coisa. Bastava ir ao local, deixar alguém fazer o carregamento, depois dirigir com segurança até o destino e deixar alguém descarregar. O treinamento era principalmente sobre procedimentos de emergência: o que fazer se alguém tentasse roubar a carga; o que fazer caso se envolvesse em um acidente; o que fazer se um óvni descesse e usasse um raio para jogá-lo fora da cabine... Os instrutores do Departamento de Energia e da Comissão de Regulação Nuclear tinham procedimentos para todos “e se” que você pudesse imaginar, e mais uma centena que você nem pensaria. Além do mais, ele nunca dirigiria sozinho pela estrada. Ainda não tinham lhe dito se a escolta estaria em carros identificados ou não, mas podia apostar que estavam armados até os dentes.
Porém dessa vez não haveria guardas, o que surpreendeu um pouco Weaver. Sim, era apenas um treinamento e sua carga estaria vazia, mas, considerando o jeito como o DOE fazia tudo parecer real, ele esperava ter escolta. Mas talvez estivessem mentindo; talvez houvesse uma escolta que ele supostamente não deveria ver. Isso não mudava seu trabalho.
Weaver diminuiu a marcha e freou, manobrando o caminhão trucado para a entrada da Usina Nuclear de Callaway. Cerca de 100 metros adiante, viu a cabine da guarda. Freou até parar e entregou a identidade para o guarda. A entrada estava bloqueada por cinco pilares de concreto com o interior repleto de aço.
— Desligue o motor, por favor.
Weaver obedeceu.
O guarda examinou sua identidade, depois a guardou no bolso da frente e mandou que ele assinasse a prancheta. O caminhão de Weaver estava vazio, mas o guarda fez seu trabalho, primeiro dando uma volta completa em torno do caminhão, depois verificando o chassi por baixo com um daqueles carrinhos com espelho.
O guarda reapareceu ao lado da janela.
— Por favor, desça do caminhão. — Weaver desceu. O guarda mais uma vez examinou a identidade, levando uns bons dez segundos para verificar se os rostos combinavam. — Por favor, fique ao lado da cabine da guarda.
Weaver assim o fez, e o guarda subiu na cabine do caminhão e passou dois minutos revistando o interior antes de sair. Entregou de volta a identidade de Weaver.
— Doca número quatro. Vão encaminhar você pelo caminho. O limite de velocidade é de 15 quilômetros por hora.
— Saquei.
Weaver entrou de volta no caminhão e ligou o motor. O guarda levou o rádio portátil aos lábios e disse alguma coisa. Um momento depois, os pilares de concreto reentraram no solo. O guarda acenou para Weaver passar.
A doca número quatro estava a apenas 100 metros dali, nos fundos da instalação. No meio do caminho, um homem com um capacete de segurança e macacão acenou para que ele manobrasse. Weaver fez um retorno, encostou de ré na doca e desligou o motor.
O capataz da doca foi até a porta de Weaver.
— Pode esperar no saguão, se quiser. Vai levar mais ou menos uma hora.
Levou quase noventa minutos. Apesar de Weaver já ter visto fotos da coisa durante o treinamento, nunca vira uma pessoalmente. Ele e os demais motoristas a apelidaram de “Halteres do King Kong”, mas o pessoal do DOE tivera muito trabalho para enfiar os detalhes da coisa em seus cérebros. Oficialmente conhecido como Tonel para Transporte de Restos Nucleares em Caminhão de Peso Legal GA-4, o contêiner era uma impressionante peça de engenharia. Como eles chegaram a essa forma de halteres era algo que Weaver não sabia, mas supunha que tinha a ver com a durabilidade. Segundo os instrutores, os desenhistas do GA-4 haviam realizado verdadeiros testes de tortura na coisa, submetendo-a a queda livre, incineração, riscos de perfuração e submersão. Para cada tonelada de lixo nuclear — conjuntos de combustível tanto para reatores que funcionavam à base de pressão hidráulica quanto por vaporização de água —, o tonel do GA-4 recebia 4 toneladas de proteção.
Caramba, pensou Weaver, é tão impossível entrar naquela coisa quanto roubá-la com algo menos que um caminhão, um guindaste e talvez um helicóptero de serviço pesado. Seria algo parecido com o que aqueles idiotas que às vezes se vê na televisão fazem. Prendem um caixa automático com uma corrente, arrastam e depois precisam jogar fora em algum lugar porque não conseguem abrir.
— Nunca vi um desses de perto — disse Weaver ao capataz da doca.
— Parece algo saído de um filme de ficção científica, não é?
— De certo modo, sim.
Pelo protocolo, os dois deram a volta pela plataforma, verificando os itens “pré-voo” enquanto passavam. Cada corrente de amarração era nova, e fora testada para estresse ainda na fábrica, tal como as linguetas, cada uma delas presa por cadeados duplos. Seguros de que o contêiner não iria deslizar antes de chegar a seu destino, Weaver e o capataz assinaram e contra-assinaram os formulários, cada um ficando com uma cópia.
Weaver acenou se despedindo e subiu na cabine. Quando o motor já estava funcionando, ligou o sistema de navegação via GPS fixo no painel, depois passou pelo menu e selecionou sua rota. A unidade havia sido programada pelo DOE com dúzias de possibilidades. Outra precaução, disseram-lhe. Nenhum motorista saberia sua rota até deixar a instalação de carga.
O percurso apareceu na tela como uma linha púrpura por sobre um mapa dos Estados Unidos. Nada mal, pensou Weaver. Rodovias principais na maior parte do caminho, 2.626 quilômetros. Quatro dias.
72
— Mensagem de texto da nossa garota russa — disse Tariq, entrando na sala de estar. O Emir estava de pé na janela, olhando o deserto. Voltou-se.
— Boas notícias, acredito.
— Saberei em sessenta segundos.
Tariq ligou o laptop, abriu o navegador, e foi até um site chamado storespot.com, um dentre as dúzias de sites de armazenamento de arquivos na internet. Para abrir uma conta eram necessários apenas um nome de usuário, uma senha e um endereço de e-mail, e para isso existiam sites que ofereciam endereços de e-mail descartáveis e “autodestrutivos”.
Tariq fez o login na conta, clicou em três links, e se viu na área de upload e download do site. Havia um documento esperando, um simples arquivo de texto. Segundo a anotação, o arquivo tinha subido 12 minutos atrás. Tariq o abriu, copiou o conteúdo em sua área de transferência e logo apagou o arquivo da conta. Então abriu o arquivo de texto original do laptop e colou o conteúdo em novo arquivo. Levou dois minutos examinando o que continha.
— Está tudo aqui. Tudo que precisamos.
— Qual entrada?
— A do sul.
O Emir sorriu. Alá estava com eles. Das duas, a entrada sul da instalação tinha menos atividade que a do norte, a entrada principal. Isso significava menos pessoal de segurança.
— Exatamente por onde?
— O terceiro nível de deslocamento, 500 metros adentro e 300 metros abaixo da superfície. Segundo Jenkins, essa é a área que mais preocupa o departamento de engenharia. Na próxima semana terão uma reunião com o Departamento de Energia e com a Comissão de Regulamentação Nuclear para discutir sobre aterrar e selar todo esse nível antes de começar a receber carregamentos.
Havia, entretanto, um empecilho para usar a entrada sul, sabia o Emir. Minutos depois de o caminhão ingressar na estrada de serviço vindo da rodovia 95, sensores e câmeras provavelmente registrariam a passagem e alertariam o centro de monitoramento na entrada principal. Como a equipe reagiria quando percebesse que o caminhão se dirigia para a entrada sul? Era improvável que um alarme fosse imediatamente disparado; afinal, era apenas um carregamento de ensaio, e o primeiro do tipo. O mais provável era que a equipe assumisse que o motorista tivesse errado o caminho. Telefonemas seriam dados, talvez enviassem um veículo para a entrada sul para redirecionar o caminhão desviado. Musa e seus homens cuidariam disso.
Entre todos os estudos de viabilidade que o CRO fizera nos estágios iniciais do Lótus, a questão mais perturbadora e nebulosa envolvia a segurança local da instalação, um ponto sobre o qual nem o DOE nem a Comissão de Regulamentação Nuclear tinham abordado publicamente, seja devido a preocupações de segurança, seja por decisões internas. Enquanto o planejamento para o Lótus progredia, ficava cada vez mais claro para o Emir que teriam de presumir a pior das possibilidades, o que, no caso de instalações nucleares, envolvia a presença de forças de proteção da NNSA — Administração Nacional de Segurança Nuclear —, uma força paramilitar bem-treinada e bem-equipada sob controle do DOE.
Tal como acontecera com muitas facetas do governo e da sociedade americana, o 11 de Setembro colocou em foco a necessidade de controles de materiais mais robustos e, para seu crédito, o DOE não poupou gastos para alcançar esse objetivo. As forças de proteção da NNSA eram treinadas com táticas de pequenas unidades antiterroristas e equipadas com veículos blindados e armas de grosso calibre, incluindo lança-granadas, munição de perfuração de blindagem e, em lugares selecionados, sistemas de fuzis e canhões automáticos Gatling M134D.
Nada nas informações de inteligência do CRO sugeria que a NNSA trabalharia na instalação com tanta antecedência, mas o Emir fora bem claro com Musa: Presuma que vai encontrar resistência pesada. Presuma que possui apenas alguns minutos para cumprir sua missão.
— E como estamos com os demais elementos? — perguntou o Emir a Tariq. — O caminhão?
— Deixou a usina esta tarde. O tempo de trânsito é de quatro dias. Ibrahim e sua equipe estão no terreno. A menos que mandemos o sinal de abortar, já devem estar se movimentando em — Tariq verificou seu relógio — três horas. O navio ainda está a dois dias de distância. Na situação atual, a embarcação provavelmente deverá ancorar uma noite ao largo antes de poder atracar.
— Bom. E os homens do Sr. Nayoan?
— No local e prontos. Não se movimentarão até o senhor dar a ordem. Precisam de 24 horas de antecedência. — O Emir assentiu, e Tariq perguntou: — O que quer fazer com a garota?
— Deixe-a ir. Ela não sabe nada sobre nós, e Beketov está morto. A ligação entre nós e o pessoal dela não existe mais. Mesmo se for pega, as únicas pistas que poderá dar não levarão a nada ou levarão aonde queremos. Ela mereceu o dinheiro.
— Ela sabe sobre a instalação.
— E daí? Foi contratada por um grupo ambientalista marginal para levantar informações que prejudicassem a instalação. Isso é tudo. É uma mercenária, Tariq. Vai pegar o dinheiro e se mandar.
Tariq considerou o assunto e assentiu.
— Muito bem.
— Um último detalhe: eu me unirei a Musa em sua missão.
— Desculpe?
— Vou gravar uma mensagem antes de ir. Quando tivermos sucesso, você fará com que chegue às mãos certas. — Tariq abriu a boca para falar, mas o Emir o impediu. — Velho amigo, você sabe que isso é necessário. Minha morte, e o que faremos lá, alimentará nossa guerra pelas próximas gerações.
— Quando decidiu isso?
— Planejei desde o começo. Por que outra razão viríamos para cá, para este lugar perdido no mundo?
— Deixe que eu me una a vocês.
O Emir balançou a cabeça.
— Ainda não é o seu momento. Precisa confiar em mim sobre isso. Prometa que fará o que peço.
Tariq assentiu.
73
Entrando na cidade de Paulínia logo depois do pôr do sol, Shasif Hadi podia ver as luzes da refinaria, distante ainda uns 6 quilômetros, muito antes de poder avistar o complexo. Sete quilômetros quadrados de colunas de destilação, torres de fracionamento, e linhas de alta-voltagem, tudo enfeitado com luzes vermelhas piscantes projetadas para avisar as aeronaves que voavam baixo, tudo desnecessário, no que dizia respeito a Hadi. Se algum piloto conseguisse a proeza de deixar de notar as dezenas de refletores de estádio que iluminavam as áreas de trabalho do complexo, então o sujeito merecia cair.
A rodovia principal de Campinas, a SP-332, se desdobrava pelos subúrbios ao norte de Paulínia antes de virar primeiro para oeste e depois para o norte, onde finalmente passava pelo complexo da refinaria, à esquerda. Hadi dirigiu passando por ali e continuou ao norte por mais 1,5 quilômetro até chegar a uma saída que dava em uma estrada de asfalto de duas pistas que ia na direção leste. Seguiu por ali exatamente 2,4 quilômetros, onde a estrada mais uma vez fazia uma curva e o asfalto dava lugar a cascalho. Uns 100 metros adiante, seus faróis captaram o que parecia ser uma ponte sobre a estrada. Hadi sentiu seu pulso aumentar. Aquilo não era uma ponte, e sim um oleoduto de etanol. Quando passou por baixo, olhou pela sua janela de passageiro e pôde ver um pasto fechado por uma porteira de gado. Parada diante da porteira, capô para a frente, havia uma picape branca. Hadi continuou, fazendo mais uma curva, desta vez para o sul, e entrando em uma estrada de terra. Diminuiu a velocidade depois de 50 metros, examinando as árvores à esquerda. Localizou a abertura entre elas, entrou e desligou os faróis enquanto estacionava. Verificou seu relógio: no horário.
Desceu, trancou a porta e saiu das árvores, indo até a margem da estrada. Tudo parecia certo. Uns 800 metros de estrada abaixo um par de faróis apareceu depois da curva. O Volkswagen azul de Ibrahim diminuiu a marcha ao chegar perto dele, os freios gemendo ligeiramente.
— Sem problemas? — perguntou Ibrahim.
— Nenhum.
Hadi sentou no banco traseiro. Fa’ad estava ao seu lado, e Ahmed, no banco do carona. Como parte de seu plano de retirada, Fa’ad e Ahmed haviam estacionado seus carros em estradas secundárias a sudoeste e a nordeste da refinaria, onde foram recolhidos por Ibrahim. Se, por alguma razão, o grupo fosse separado, eles se encontrariam em um desses carros e seguiriam a caminho da costa.
Ahmed entregou uma pistola a Hadi, uma Glock 17 9 milímetros equipada com silenciador.
— O caminhão está ali — disse Hadi. — Não pude me certificar, mas acho que vi duas pessoas sentadas dentro.
— Ótimo. Ahmed, você faz a coisa.
Faróis apagados, Ibrahim engatou o carro e seguiu, voltando pelo caminho que Hadi fizera ao chegar. Parou o carro a 50 metros do oleoduto. Ahmed desceu, passou por trás do carro e entrou no bosque. Os demais esperaram em silêncio, Ibrahim controlando o tempo no relógio. Após dois minutos, ligou os faróis e avançaram novamente.
— Abaixem-se aí atrás — disse a eles. Hadi e Fa’ad se agacharam sob as janelas. Quando o carro emparelhou com a picape, Ibrahim parou e saiu. Tinha um mapa na mão direita.
— Desculpem — falou em português, enquanto caminhava na direção do caminhão. — Estou perdido. Podem me indicar a direção para voltar a Paulínia?
Ninguém respondeu.
— Desculpem, preciso de ajuda. Podem...
A mão de alguém apareceu na janela do motorista e acenou para que ele se aproximasse. Ibrahim caminhou até lá. O decalque na porta dizia SEGURANÇA DA PETROBRAS.
— Acho que passei da entrada. Paulínia está longe?
— Não muito — disse o guarda. — Siga por essa estrada até chegar à rodovia, e vire à esquerda.
Através da janela aberta do assento de passageiros, Ibrahim percebeu a silhueta de Ahmed emergir das árvores e caminhar em direção ao caminhão.
— Qual a distância? — perguntou Ibrahim.
Antes de o motorista responder, Ibrahim deu um passo atrás. O primeiro disparo abafado foi na testa do guarda passageiro; o segundo foi no pescoço do motorista, que caiu de lado. O silenciador, feito com latas de aço de sopa e um isolamento de fibra de vidro, funcionara bem. Os tiros não soaram mais altos que uma batida de mãos.
— Mais um em cada um — ordenou Ibrahim.
Ahmed disparou novamente no primeiro guarda. Depois enfiou a arma na cabine, apontou e atirou novamente no ouvido do outro. Ibrahim virou e fez sinal para o Volkswagen. Hadi assumiu o volante e levou o carro até a clareira. Ibrahim e Ahmed já haviam tirado os cadáveres do caminhão.
— Chaveiro — disse Ahmed, e o jogou para Ibrahim.
Começaram a arrastar os cadáveres para o bosque. Hadi pegou um par de toalhas brancas que trouxera do hotel, jogou uma para Fa’ad e os dois limparam o carro. As balas Glock de ponta côncava e macia desintegraram o interior dos crânios dos guardas, sem deixar ponto de saída, de modo que havia mais sangue que matéria cerebral. Uma vez feito isso, Hadi jogou a toalha para Fa’ad, que deu uma corridinha até as árvores para jogá-las ali.
Ibrahim voltou para a clareira, destrancou a porteira, depois jogou o chaveiro de volta a Hadi. Ele e Fa’ad entraram e passaram o caminhão pelo portão, seguidos por Ibrahim e Ahmed no Volkswagen. Hadi fechou e trancou o portão enquanto Ibrahim colocava o Volkswagen sob as árvores e fora da vista.
A estrada de serviço corria ao redor do oleoduto, montada sobre pilões de 1,5 metro de altura, espaçados a cada 30 metros, mais ou menos. Cercada em ambos os lados por árvores e cheia de sulcos, a estrada fora construída para acomodar equipamentos durante a construção do oleoduto e servia de acesso para as equipes de manutenção e segurança da refinaria.
Depois de 1,5 quilômetro, a estrada se desviava, seguindo pela direita enquanto o oleoduto seguia para a esquerda. No meio havia um pequeno bosque de árvores, acima das quais se podiam ver as luzes da refinaria. Ibrahim parou o caminhão, e todos desceram.
— Troca de roupas — ordenou.
Os macacões azul-celeste foram escolhidos não pela camuflagem, mas pelo anonimato. A maioria dos trabalhadores da refinaria usava macacões semelhantes. Se vistos à distância, Ibrahim e sua equipe seriam, ele esperava, confundidos com o pessoal da manutenção. Estavam agora a uns 500 metros da estrada e da cerca do perímetro da refinaria.
Vestidos com os macacões, caminharam pelo bosque até uma clareira. Nela o oleoduto ziguezagueava antes de se endireitar novamente, cruzando pela estrada, e depois de mais uns 500 metros, passava por baixo da cerca de segurança para dentro da refinaria propriamente dita.
O oleoduto de etanol acima de suas cabeças tinha menos de um ano e corria desde Goiás, cerca de 800 quilômetros ao norte, através de Paulínia, antes de continuar até o terminal de Japeri, no Rio de Janeiro, 320 quilômetros a nordeste dali. Por esse oleoduto que se estendia por um quarto da largura do Brasil, 3,2 bilhões de galões de etanol passavam por ano.
O CRO não fora capaz de descobrir o índice preciso de fluxo do oleoduto, mas as médias foram suficientes para convencer o Emir de que o plano era viável. Com um período de “funcionamento” estimado em 85 por cento, o oleoduto bombeava seus 3,2 bilhões de galões em um período de 310 dias, o que por sua vez significava que, a cada dia de operação, 10,3 milhões de galões fluíam de Goiás para o Rio. A qualquer hora do dia, em qualquer trecho de 16 quilômetros do oleoduto, havia etanol para encher vinte caminhões-tanque.
— Quatro dispositivos de fechamento de emergência entre aqui e o perímetro — sussurrou Ibrahim. — Uma carga para desabilitar cada dispositivo, uma para o ponto central entre os últimos pilões, e uma para a detonação. Dessas duas cuido eu mesmo. Ahmed, você fica com a primeira válvula; Fa’ad, a segunda; Shasif, você cuida da terceira e da quarta. Quando eu instalar minha carga, recuo e coço a cabeça. Disparem os cronômetros. Quatro minutos exatos. Lembrem: caminhem para o caminhão. Não corram. Qualquer um que não esteja de volta quando a primeira carga disparar será deixado para trás. Alguma pergunta? — Não havia nenhuma. — Alá esteja conosco.
Saíram todos juntos, caminhando casualmente e batendo papo, tal como qualquer grupo de manutenção faria para suportar melhor um turno noturno. A 200 metros do bosque, alcançaram a primeira ESD. Ahmed se separou e se ajoelhou atrás da válvula do tamanho de um barril, depois foi a vez de Fa’ad e, finalmente, a de Shasif.
— Vejo vocês de volta no caminhão — disse Ibrahim, e continuou andando.
A estrada do perímetro estava 50 metros adiante. Uma picape branca apareceu à direita, andando vagarosamente enquanto o guarda passageiro lançava o facho de uma lanterna na cerca. Ibrahim verificou o relógio. Cedo. Quinze minutos mais cedo! O agente deles, Cassiano, tinha lhes dado certeza sobre os horários e as rotas da segurança da refinaria. Ou ele estava errado ou a rotina havia mudado. Se fosse o último, qual a razão? Rotina ou algo mais? Essa picape da segurança, Ibrahim sabia, percorreria a estrada do perímetro, depois sairia pelo portão oeste da instalação antes de contornar ao norte novamente até passar pela porteira de gado por onde Ibrahim e os demais haviam entrado. Quando os guardas não vissem nenhuma picape ali, como reagiriam? Ibrahim decidiu que o melhor era não descobrir.
Tinham 12 minutos. Digamos mais quatro minutos para colocar as cargas e oito para percorrer de volta o quilômetro e meio até o portão de gado. Seria muito apertado. Ou, pensou, havia outra opção.
Com o coração disparado, diminuiu os passos. O mesmo fez a picape, quase parando. Ibrahim levantou o braço em saudação e disse em português:
— Boa noite! — Inclinou levemente as costas, só para sentir se a Glock estava no lugar.
Depois de longos cinco segundos, o motorista acenou de volta.
— Como estão as coisas?
Ibrahim deu de ombros.
— Bem. — E começou a andar despreocupado na direção da picape. Quanto me aproximo?, perguntou-se. Para matar os dois homens antes que tivessem a chance de alcançar o rádio, deveria estar dentro de 10 ou 12 metros. Será que suspeitariam de seu rosto ou do uniforme? Atacar logo e começar a disparar? Não, decidiu. A picape iria disparar. Ibrahim parou de andar.
— O que você está fazendo? — perguntou o motorista.
— Verificação de soldas — respondeu Ibrahim. — Nosso chefe decidiu achar algo para a gente fazer.
O motorista deu uma risadinha.
— Sei como é. Até logo.
A transmissão engatou, e a picape avançou. E então parou. As luzes de ré acenderam, e o carro voltou até emparelhar novamente com Ibrahim.
— Você veio pelo portão de gado? — perguntou o motorista.
Com o coração na boca, Ibrahim assentiu.
— Havia uma picape por lá?
— Não vi nenhuma. Qual o problema?
— Paiva e Cabral não respondem o rádio.
Ibrahim apontou o polegar para os outros espalhados pelo oleoduto atrás dele.
— Os nossos também andaram estranhos esta noite.
— Manchas solares ou coisa assim — disse o motorista. — Sotaque interessante, esse seu. De onde é?
— Angola. Vivi lá até um ano atrás.
O motorista encolheu o ombro.
— Ok. Vá com calma.
A picape saiu e desapareceu na estrada. Ibrahim esperou até não ouvir mais o motor, e soltou a respiração. Quase lá. Que Alá me guie. Atravessou a estrada, escolheu o caminho pela calha de drenagem e subiu pelo outro lado. O muro agora estava à vista, 100 metros adiante. Passou pelo pilão final e começou a contar os passos. No meio do caminho, parou e se ajoelhou. O duto estava bem acima de sua cabeça. Podia escutar o gorgolejar do combustível através do aço.
A primeira carga, a maior das duas, pesava em torno de 250 gramas, mas cabia perfeitamente no bolso da calça cargo. A segunda carga, com 60 gramas, cabia na palma da mão. Ele ajustou o cronômetro digital da primeira carga para quatro minutos e dez segundos; a segunda, para cinco minutos. Comprimiu os olhos, fez rapidamente uma prece, levantou, fixou a carga principal na parte de baixo do duto, e ligou o cronômetro. Esperou dois segundos, saiu para o campo aberto, voltou-se e coçou a cabeça. Esperou o suficiente para que todos os três vissem seu sinal, depois acionou o cronômetro da segunda carga e a enfiou no estojo feito com plástico-bolha e fita adesiva.
Jogou o pacote por cima do muro e começou a andar.
74
Hendley, Granger e Rick Bell passaram parte da tarde e o começo da noite interrogando Dominic na sala de conferências. Jack Jr. e John Clark sentaram em cadeiras perto da parede e escutaram. Jack era da família e um bom amigo, e, apesar de Dominic parecer estar lidando bem com a situação, Hendley pensou que a presença de Jack poderia ser útil. Quanto a Clark, Hendley queria seu olhar profissional.
Jack observou cuidadosamente o primo enquanto ele levava Hendley e os demais pela missão em Trípoli: o encontro inicial com Archie, a entrada dos dois em Medina para pegar Bari, a viagem até a casa de Almasi, e finalmente a morte de Brian. A cada passo Dominic respondia as perguntas de modo sintético, mas completo, jamais perdendo a paciência e nunca hesitando. E sem mostrar nenhum traço de emoção, percebeu Jack. Seu primo não mostrava afeição nem no rosto nem na linguagem corporal. Estava completamente sem emoção.
— Fale novamente sobre Fakhoury — disse Sam Granger.
— Segundo Bari, era de nível inferior, simplesmente um executor. Decidimos que Almasi era um alvo melhor. Não queríamos nenhuma testemunha do desaparecimento de Bari, então conversamos sobre o que fazer com ele.
— E a decisão foi matá-lo?
— Ambos decidimos. Eu não tinha tanta certeza, mas Brian... Os argumentos dele faziam sentido.
— Foi você quem executou?
Dominic meneou a cabeça.
— Brian.
— Contando com Fakhoury, quantos mortos? — perguntou Bell.
— Seis. Quatro por nós.
— Vamos avançar até a casa de Almasi — disse Hendley.
Dominic repassou tudo novamente: estacionando na pedreira... infiltrando na casa de Almasi... o computador e o cofre... Brian atingido... O tiroteio e a retirada deles. Aí Dominic vacilou.
— O resto vocês sabem.
— Contagem de corpos — solicitou Granger.
— Cinco.
— Algum ferido?
Dominic sacudiu os ombros.
— Não quando deixamos a casa.
— O que isso quer dizer? — perguntou Rick Bell.
— Quer dizer que nos asseguramos de não deixar testemunhas. Não há como o CRO saber quem ou como aconteceu. Isso é uma das coisas importantes no que fazemos, certo?
Hendley assentiu.
— Certo. — Olhou para Bell e Granger. — Algo mais? Os dois homens fizeram que não com a cabeça. — Muito bem, Dom, obrigado.
Dominic se levantou para sair.
— Dom, sentimos muito por Brian — disse Hendley.
Dominic simplesmente assentiu.
— Vou mandar um carro levar você em casa.
— Não, vou achar um sofá e desabar.
— Se quiser, fazemos os arranjos para Brian... — falou Granger.
— Eu farei isso.
Dominic saiu, fechando a porta atrás de si. Hendley disse:
— Jack?
— É difícil dizer. Nunca o vi assim, mas a verdade é que não é exatamente uma situação comum. Para ninguém. Acho que ele está simplesmente atordoado. Exausto. Viu o irmão morrer no seu colo; e, certo ou errado, deve se sentir terrivelmente culpado por isso. Quando a ficha cair, ele vai desabar, e depois se recompor.
— Você concorda, John?
Clark levou um tempo para responder.
— Com a maior parte, sim, mas é um homem diferente, com certeza. Algum interruptor mudou de posição.
— Explique — pediu Bell.
— Ele estava em cima do muro quanto a liquidar Fakhoury. Brian teve que convencê-lo disso, e provavelmente fez ele mesmo o serviço porque sabia que Dom não estava preparado. Três horas depois, na casa de Almasi, Brian leva um tiro e Dom liquida homens feridos antes de sair da casa. Isso é passar do dia para a noite muito rapidamente.
— Então vamos supor que você esteja certo sobre esse interruptor — disse Hendley. — É algo ruim?
— Não sei. Depende de como, ou se, ele se restabelecerá. Nesse instante está com aquele olhar no nada. É aí que os operadores tomam um de dois caminhos: aprendem a lidar com o trabalho e colocam a coisa em perspectiva ou deixam que ela os devore.
— Ele vai estar bem para o trabalho de campo?
— Isso não é uma ciência exata, Gerry. Todo mundo é diferente.
— Na sua opinião. Ele estará bem para o campo?
Clark pensou no assunto.
— Não por conta própria.
— O que sabemos sobre o que Dom trouxe para casa? — perguntou Hendley a Rick Bell.
— Um pen drive cheio com os arquivos do computador de Almasi e um CD-ROM. Vamos levar algum tempo para filtrar os arquivos. O CD-ROM é uma mina de ouro: 365 imagens em JPEG de tabelas de uso único, grades 9x9 com os caracteres alfanuméricos de substituição. Não sei exatamente a matemática disso, mas estamos falando de cerca de milhões de combinações diferentes.
— Cerca de um ano de permutações — disse Hendley. — Uma para cada maldito dia. Por favor, me diga que estão datadas.
Bell sorriu.
— Pode apostar seu rabo. Vão até uns dez meses atrás, o que quer dizer que, a menos que puxem a tomada, temos ainda dois meses de futuras tabelas em nossas mãos.
— Então é assim que eles estão fazendo — murmurou Jack.
— O quê? — perguntou Clark.
— Estão duplicando tudo. Usam a esteganografia para embutir as tabelas em imagens do site. Os receptores baixam a imagem do site, usam um programa para descascar a camada esteganografada, e conseguem a tabela diária. Depois disso, são só números: vá até um fórum em um site do CRO, ache a postagem com uma fila de um par de centenas de combinações letras-números, passe pela tabela e você sai com as ordens do comando em mãos.
— Acompanhei a maior parte do seu raciocínio — disse Granger —, mas não a ideia do fórum. Não acho que o CRO iria disparar uma mensagem como essa. Querem que a mensagem alcance apenas os receptores que desejam. Sabemos que não é por e-mail, certo?
— Duvidoso. O tráfego do CRO está praticamente morto.
— E que tal e-mail on-line? — sugeriu Bell. — Google, Yahoo!... Agong Nayoan tinha uma conta do Google, não é, John?
— Sim, mas os nerds da tecnologia da informação peneiraram isso. Nada por ali. Meu palpite é: se o CRO entrou em silêncio de rádio em suas contas normais de e-mail, provavelmente baniram também as contas on-line.
— Então, o que eles precisariam ter — disse Hendley — é um hub. Algum lugar que alguém pode verificar todos os dias e ver se há mensagens só para ele.
— Puta merda — disse Jack. — É isso. — E começou a digitar em seu laptop. — Armazenamento de arquivos on-line.
— O que é isso mesmo? — perguntou Clark.
— São sites que oferecem backup para armazenamento de arquivos. Digamos que você tem um monte de músicas em MP3 e se preocupa em perdê-las caso seu computador dê pau. Você faz uma assinatura em um desses sites, sobe os arquivos, e eles ficam lá nos servidores.
— E quantos sites desse tipo existem por aí?
— Centenas. Em alguns é preciso pagar, mas a maioria é grátis se você lida com arquivos pequenos, qualquer coisa com menos de 1 gigabyte de dados.
— Que significa quanto?
Jack pensou por um instante.
— Digamos um arquivo padrão do Microsoft Word... Um gigabyte pode conter meio milhão de páginas.
— Droga.
— Mas aí está a beleza da coisa. Algum cara do CRO em Tanger faz o login em um desses sites, sobe um documento de texto com uma cadeia de algumas centenas de números, e então outro sujeito no Japão faz o login, baixa o arquivo, apaga do site, depois enfia os números numa tabela de uso único esteganográfica que recebeu do site do CRO e pronto, recebeu sua mensagem.
— E o que é preciso para assinar um desses sites? — indagou Hendley.
— Os que são grátis... um endereço de e-mail, e isso é a coisa mais fácil. Droga, existem lugares na internet que fornecem um endereço de e-mail que se autodestrói depois de 15 minutos.
— Isso é que é anonimato — disse Rick Bell. — Escutem, aceito isso tudo. Faz sentido, mas o que podemos fazer a respeito?
A porta da sala de conferências abriu e Chavez entrou.
— Tem algo que vocês vão querer ver. — Pegou o controle remoto da televisão, ligou a tela plana de LCD e colocou na CNN. O âncora estava no meio da frase.
— ... novamente, este é um sinal de televisão vindo do Brasil, através do helicóptero da Record News. A conflagração começou logo depois das oito da noite, hora local...
Jack se inclinou na cadeira.
— Deus do céu.
O helicóptero parecia estar filmando a uma distância de mais de 8 quilômetros, mas dois terços da tela estavam ocupados por chamas flamejando e grossos rolos de fumaça preta. Através da fumaça era possível ver algumas estruturas verticais e alguns dutos entrecruzados, além de tanques de armazenamento redondos.
— É uma refinaria — disse John Clark.
O âncora falava novamente:
— Segundo a Record News, o local do incêndio é uma refinaria da Petrobras conhecida como Replan de Paulínia. Paulínia é uma cidade de 60 mil habitantes, localizada cerca de 128 quilômetros ao norte de São Paulo.
Hendley se virou para Jack:
— Você pode...
Jack já estava com o laptop aberto.
— Já estou procurando.
— ... A Replan é a maior refinaria do Brasil, cobrindo cerca de 7 quilômetros quadrados e com uma produção de quase 400 mil barris por dia...
— Acidente? — sugeriu Rick Bell.
— Acho que não — respondeu Clark. — Sete quilômetros quadrados equivalem a cerca de três milhas e meia quadradas. O complexo está quase totalmente envolvido pelas chamas. Olhem, quando eu ainda estava aprendendo as coisas, fazíamos jogos de guerra desse tipo o tempo todo. As refinarias são alvos saborosos, mas são necessárias praticamente uma meia dúzia de bombas guiadas a laser para incendiar todo o complexo. Droga, nossas refinarias têm quase 35 anos e você pode contar em uma só mão o número de acidentes ocorridos. São muitos sistemas de emergência e backup.
Digitando no laptop, Jack disse:
— Paulínia é bem nova. Menos de 10 anos.
— Quantos trabalhadores?
— Pode chegar a mil. Talvez 1.200. É o turno noturno, de modo que há menos pessoal na administração, mas provavelmente estamos falando de pelo menos quatrocentas pessoas presentes.
— Ali — disse Clark. — Bem ali... — Ele levantou e foi até a televisão, apontando para uma área dentro do complexo da refinaria. — Essas chamas estão se movendo: isso é líquido, e a quantidade é grande.
Enquanto observavam, o helicóptero da Record News se aproximou das chamas, girando ao redor da refinaria até o lado norte aparecer.
— Muito bem, já saquei. Paulínia também é o terminal para um oleoduto de etanol. Vem do norte — falou Jack.
— Sim, estou vendo — disse Rick Bell. Foi até a televisão e apontou para um ponto no perímetro norte do complexo. Logo antes da cerca, o oleoduto estava aberto, emitindo um gêiser de etanol incendiado.
— Sim — concordou Clark. — E tiveram que liquidar alguns dispositivos de segurança... — Traçou com o dedo para o norte ao longo do oleoduto até chegar a um ponto de chamas isolado. — Aqui está um.
— E mais três linha abaixo — acrescentou Granger. — Quanto de oleoduto temos aí?
— Mais ou menos 800 metros — respondeu Clark.
— Algo em torno de 10 mil galões — disse Jack, levantando o olhar do laptop.
— O quê? — disse Chavez.
— Esse oleoduto transporta uns 3 bilhões de galões por ano. Faça as contas e essa seção provavelmente continha cerca de 10 mil galões, digamos o suficiente para encher um caminhão-tanque. Um tanto disso encharca o chão, mas é preciso calcular que uns 7, talvez 8 mil galões foram jogados no complexo.
— A coisa toda vai pelos ares — disse Clark. — Os tanques de mistura e armazenamento... as torres. Vão começar a cozinhar.
Enquanto Clark dizia essas palavras, a câmera do helicóptero captou um trio de explosões, cada uma mandando uma nuvem em forma de cogumelo de chamas e fumaça negra a 1.600 metros pelo ar.
— Terão que evacuar toda essa maldita região — disse Sam Granger. — Então concordamos: isso não foi um acidente.
— Não há como. Foi preciso muito planejamento para isso. Um bocado de serviço na área e muita informação — replicou Clark.
— CRO? — especulou Chavez.
— E por que no Brasil? — perguntou Hendley.
— Acho que não tem nada a ver com o Brasil — disse Jack. — Isso está dirigido a nós. Kealty acabou de assinar um acordo com a Petrobras. Petróleo brasileiro com preços abaixo dos da OPEP. Eles estão com petróleo saindo pelo ladrão: os campos Lara e Tupi sozinhos podem colocar as reservas do Brasil por volta de 25 bilhões de barris. Isso é parte da equação. A outra parte é o quanto a Petrobras está atrasada na construção de refinarias. Paulínia era o carro-chefe. O novo complexo no Maranhão vai processar 60 mil barris, mas não entra em operação em menos de um ano.
— Então o Brasil tem petróleo mas não tem como processá-lo — declarou Hendley. — O que significa que o nosso negócio entra pelo cano.
— Pelo menos por um ano. Talvez dois.
O e-mail de Jack tocou o aviso de mensagem recebida. Ele olhou-a.
— Biery conseguiu marcas de reconhecimento de rosto em algumas fotos de passaporte de Sinaga. Dois são indonésios que entraram por Norfolk há duas semanas: Citra e Purnoma Salim.
— Citra é um nome feminino — disse Rick Bell. — Marido e mulher?
— Irmão e irmã. Ele com 19 anos e ela com 20. Segundo os formulários da imigração, estão de férias. O terceiro é nada menos que nosso misterioso mensageiro. Shasif Hadi. Está viajando como Yaseen Qudus. Dois dias depois de o perdermos de vista a caminho de Las Vegas, Hadi pegou um voo da United de São Francisco para São Paulo.
— Puta coincidência — disse Sam Granger.
— Não acredito nisso — respondeu Hendley. — Sr. Chavez, o que acha de uma viagem até lá?
— Por mim, tudo bem.
— Você concorda em levar Dom?
Chavez pensou no assunto. Já vira muitos homens na mesma condição de Dominic: perturbados, culpados, jogando o “O que eu poderia ter feito de diferente?” na cabeça... Sentindo-se culpado pelo outro ter morrido, e culpado por estar contente de estar vivo... Era uma situação de merda, mas Chavez tinha visto o olhar do ex-agente do FBI: Dominic estava ferido e à procura de vingança, mas ainda sob controle.
— Claro — disse Chavez. — Se ele topar, eu topo. Mas há uma questão: o que faremos quando chegarmos lá? O país é grande, e Hadi e seja lá mais quem estiver com ele provavelmente submergiram.
— Ou fugiram do país — acrescentou Clark.
— Vamos supor que ainda estejam lá — respondeu Hendley. — Jack, voltemos à pergunta de Rick: considerando que você esteja certo com essa história de armazenamento on-line, o que faremos com isso?
— Faremos um atalho — respondeu Jack. — Por enquanto, Hadi é o membro mais importante do CRO que temos na nossa mira, correto?
— Sim — respondeu Chavez.
— E sabemos que ele foi de Las Vegas para São Francisco antes de se dirigir para São Paulo, provavelmente para pegar seu passaporte como Qudus de Agong Nayoan, o que significa que os dois provavelmente têm um contato direto; pelo menos de modo que Nayoan pôde lhe dizer onde recolher o passaporte.
— Prossiga — disse Hendley.
— Nayoan é preguiçoso. Quando revistamos seu apartamento, descobrimos que ele nunca limpa o registro de seu navegador. — Jack girou o laptop para que todos pudessem ver. A tela mostrava um arquivo de texto com centenas de linhas de endereços de sites. — Enquanto conversávamos, estive peneirando isso aqui. Desde que o CRO entrou em silêncio de rádio, Nayoan visitou um site de armazenamento todos os dias, três vezes ao dia, e rumou para um site diferente a cada dois dias.
— Puta merda — disse Sam Granger. — Bom trabalho, Jack.
— Obrigado. Até aqui, Nayoan rodou por 13 sites de armazenamento. Dez a um que descobriremos isso no computador de Hadi.
— O que só nos leva até metade do caminho — disse Bell. — Temos que usar seu nome de usuário e senha.
— Estatística — respondeu Jack. — Oitenta e cinco por cento do pessoal que navega na internet usa seu e-mail como nome de usuário ou alguma variação do seu prefixo de e-mail, as coisas que vêm antes do sinal de arroba. Pedimos a Biery que monte um script, verificaremos cada site e tentaremos diferentes permutações do e-mail de Hadi. Quando descobrirmos o certo, arrombamos a senha com força bruta. E, quando estivermos dentro, usaremos as tabelas que Dom descobriu no cofre de Almasi e começaremos a puxar as cordinhas de Hadi.
— Um problema — disse Hendley. — A coisa toda se baseia em que Hadi verifica seu site de armazenamento on-line.
— Então vamos dar um motivo a ele — disse John Clark.
— Em que você está pensando?
— Assustá-lo. Passamos uma dica anônima para a Record News. Uma descrição vaga de Hadi e alguns esboços de detalhes. Ele vê isso, entra em pânico e verifica se há novas ordens. Nós asseguramos que haja algo esperando por ele.
— Tem um problema — disse Rick Bell. — Se os policiais brasileiros puserem as mãos nele antes de nós, ficamos na merda.
Clark sorriu.
— Sem colhões não se ganha o grande prêmio.
Hendley ficou em silêncio por um tempo.
— É um tiro no escuro, mas vale a pena. Jack, ponha Biery para trabalhar nisso.
Jack assentiu.
— E que tal os indonésios de Norfolk?
— Você e John.
— Detesto azarar as coisas, mas estou com uma sensação ruim sobre tudo isso — disse Chavez.
— Como assim? — indagou Granger.
— Essa história da refinaria é só a primeira peça.
75
Logo depois das nove da manhã, Musa passou por Yakima, em Washington, e dirigiu mais alguns quilômetros até Toppenish, onde saiu da rodovia e entrou na cidade. Achou um restaurante, algo chamado Pioneer Kitchen, e parou. O estacionamento estava apenas com um quarto da lotação. Os americanos, havia muito Musa aprendera, preferiam tudo com rapidez e facilidade, especialmente comida. Apesar de não ter visto nenhum, supôs que Toppenish tinha sua boa porção de McDonald’s, Burger King e Arby’s. Sempre em movimento, cuidando de seus importantes negócios, os americanos não sentavam para comer a menos que estivessem no sofá diante da televisão. Uma pílula para cada doença, e uma enfermidade para cada falha de caráter.
Achou uma vaga para estacionar próxima à porta da frente e entrou. O cartaz no balcão do caixa informava que ele podia sentar onde quisesse. Achou um reservado perto da janela, de onde podia ficar de olho no Subaru, e sentou. Uma garçonete com avental cor de mostarda e blusa branca se aproximou.
— Bom dia. Posso trazer café?
— Sim, por favor.
— Precisa de um minuto para olhar o menu?
— Não. Torrada, sem manteiga, e frutas.
— Claro, sem problemas. Volto já. — Retornou com uma xícara e uma jarra de café e saiu.
Atrás dele ouviu uma voz perguntar:
— Ei, aquele é o seu carro?
Musa se virou. Um policial uniformizado estava ali parado. Tinha seus 50 e tantos anos, cabelo escovinha e pança. Os olhos eram perspicazes, entretanto. Olhar de policial. Musa respirou fundo para se acalmar e disse:
— Desculpe?
— Aquele carro. É seu?
— Qual deles?
— Aquele econômico ali.
— O Subaru?
— Sim.
— A luz de leitura está acesa. Notei quando entrava.
— Oh, obrigado, não reparei. Não vou demorar. Acho que não vai arriar a bateria.
— Provavelmente não. Só por curiosidade: o que é aquela coisa na traseira? Parece uma caixa grande de iscas.
— Não vai acreditar em mim se lhe contar.
— Experimente.
— É uma máquina de raios X portátil para cavalos.
O policial resmungou.
— Nem sabia que existia uma coisa dessas. Para onde você vai?
— Faculdade de veterinária na UNLV, Las Vegas.
— Longa viagem.
— Confundiram a papelada, a companhia aérea não queria colocar no porão de carga. Decidi que uma viagenzinha de carro não ia me fazer mal. Além disso, ganho 50 centavos por quilômetro rodado.
— Bem, boa sorte.
— Obrigado.
O policial se afastou e sentou numa banqueta ao balcão. Alguns minutos depois a garçonete voltou com a torrada e as frutas de Musa.
— Willie andou se metendo nos seus assuntos?
— Desculpe?
Ela apontou o policial com o polegar.
— Willie é o chefe de polícia. Faz um bom trabalho, mas é enxerido demais. Ano passado terminei com meu namorado e Willie sabia disso antes da minha mãe.
Vá embora, mulher. Musa deu de ombros.
— Cidades pequenas.
— É isso. Desfrute seu café. Volto daqui a pouco para ver se você quer algo mais. — E saiu.
Alá, dê-me paciência, pensou Musa. Verdade seja dita, ele geralmente achava os americanos toleráveis, ainda que um tanto faladores. Se sua pele fosse mais escura ou se tivesse sotaque, provavelmente esse não seria o caso. O destino era algo estranho. Aquelas pessoas eram, por um lado, decentes e viviam despreocupadas, mas adoravam um falso deus, tentando dar sentido a uma existência que não tinha significado fora do islã. Os americanos adoravam suas “zonas de conforto”. A vasta maioria deles jamais havia saído e jamais sairia dos confins dos Estados Unidos, tão certos estavam de que o restante do mundo não tinha nada a oferecer, salvo talvez algum estranho lugar para passar as férias. Mesmo os acontecimentos do 11 de Setembro pouco fizeram para que os americanos abrissem os olhos para fora de sua bolha. Muito pelo contrário. Encorajados por seu próprio governo, muitos haviam se retirado mais para o interior de suas conchas, consolando-se com seus rótulos e platitudes: islamofascista. Extremista. Malfeitores que odeiam nossa liberdade. Aqueles que tentavam destruir os Estados Unidos.
Os Estados Unidos não podiam ser destruídos de fora, disso Musa tinha certeza. E o Emir fora presciente nesse sentido. Cada um dos impérios caídos ao longo da história apodrecera por dentro, e o mesmo seria verdade ali. Lutando em duas guerras intratáveis, uma economia bagunçada, fábricas e bancos gigantescos falindo... Essas condições podiam mudar com o tempo, talvez até melhorar, mas os historiadores do futuro marcariam esses acontecimentos como o início da decadência. A triste verdade era que os Estados Unidos não podiam ser destruídos, por si sós, de dentro ou de fora, e certamente não pelo esforço de mortais. Se isso acontecesse, viria pela própria mão de Alá, e no tempo de Sua escolha. E, ao contrário de todos os líderes que vieram antes dele, o Emir sabia a verdade contida nisso e havia ajustado sua estratégia de acordo.
Mais quatro dias, pensou Musa, o mundo aterrorizador que os Estados Unidos teimavam tanto em manter distante desabaria sobre eles.
Clark e Jack tinham reservas em um voo às seis da manhã pela US Airways saindo de Dulles para Norfolk; Chavez e Dominic sairiam no voo noturno da Northwest para o Rio de Janeiro. Deviam pousar nos respectivos destinos mais ou menos na mesma hora.
Noventa minutos depois do começo do incêndio em Paulínia, quando os céus da costa leste começaram a escurecer com a fumaça, São Paulo fechou o espaço aéreo para todo tráfego. Hendley e Granger acharam isso de bom augúrio: com sorte, os agressores da refinaria não teriam chegado ao aeroporto antes destes fecharem. Era quase certo terem algum plano alternativo de evacuação, mas qual a rapidez que este poderia retirá-los do país era desconhecida.
Enquanto os demais estavam sentados na sala de conferências observando a cobertura de notícias de Paulínia, Jack encontrou Dominic sentado na sala de descanso, as mãos fechadas sobre a mesa diante dele. Olhava para o nada. Só quando Jack ficou parado diante dele, Dominic levantou o olhar.
— Olá, Jack.
— Ding já informou você? São Paulo?
— Sim.
— Se você não estiver preparado para o trabalho, tenho certeza de que...
— Por que eu não estaria?
A pergunta surpreendeu Jack.
— Acho que eu não estaria, se estivesse em seu lugar. Dom, ele era meu primo e eu o adorava, mas era seu irmão.
— E qual é a sua questão?
— Minha questão é: vinte e poucas horas depois da morte de Brian, você está de novo no ar e, quando te pergunto sobre isso, você me dá uma resposta inesperada. É só um pouco estranho.
— Desculpe.
— Não estou procurando pedidos de desculpa. Quero que você converse comigo.
— Brian está morto, Jack. Sei disso, está bem? Vi a faísca de vida deixá-lo. — Dominic estalou os dedos. — Desse jeito. Sabe a primeira coisa que pensei depois disso?
— O quê?
— Que se não fosse por causa daquele idiota do Bari, Brian provavelmente ainda estaria vivo.
— Você acredita nisso?
— Na verdade, não, mas tive que me controlar ao máximo para não sair do carro e meter uma bala na cabeça do sujeito. Eu cheguei a colocar minha mão na maçaneta. Queria matá-lo, depois voltar à casa de Almasi e ver se algum daqueles filhos da puta ainda estava vivo para poder matá-lo também.
— Você estava em choque. Ainda se sente assim?
— Não sinto muita coisa, Jack. Isso é o que me assusta.
— Isso se chama choque. Você pode se sentir assim por algum tempo. Todo mundo reage de forma diferente. Você lida com isso do jeito que lida com isso.
— Sim, e o que faz você especialista nessa merda?
— Você ouviu falar de Sinaga?
— O falsificador? O que tem ele?
— Eu estava vigiando os fundos quando John e Ding arrombaram a porta dele. Ele pulou pela janela, e de repente veio para cima de mim com uma faca. Nós lutamos, eu segurei o pescoço dele e tropecei em alguma coisa. Quando vi, ele estava ali deitado, estrebuchando. Olhando para mim. Nem sei exatamente como, mas quebrei o pescoço dele.
Dominic ouviu tudo, mas seu rosto permaneceu impassível.
— Acho que é minha vez de perguntar como você se sente.
— Bem, acho — respondeu Jack. — Acho que jamais vou apagar o rosto dele da minha cabeça, mas era ele ou eu. Me sinto mal por isso, mas com certeza não me sinto mal por estar vivo.
— Então você está um ponto na minha frente, primo. Se pudesse trocar de lugar com Brian, eu trocaria.
— Está tentando me dizer alguma coisa?
— Tipo o quê?
— Tipo se eu vou precisar esconder todas as facas de churrasco da próxima vez que você for assistir futebol lá em casa.
— Não, Jack. Mas vou dizer uma coisa: antes de isso tudo terminar, vou me vingar por Brian, e vou começar em São Paulo.
Jack abriu a boca para responder, mas Dominic levantou a mão, impedindo-o.
— Primeiro a missão, Jack. Só estou dizendo que, se aparecer um babaca na minha mira, liquido o idiota e faço um traço por conta do Bri.
Fora os olhares estranhos de seus companheiros viajantes enquanto olhavam o tonel do GA-4 ao passarem por ele na rodovia, o primeiro dia de viagem de Frank Weaver transcorreu sem incidentes. Como aquele era um carregamento experimental, o tonel em particular era simplesmente uma concha sem nada dos escudos de nêutrons e raios gama que a coisa de verdade exigiria. Também não tinha decalques ou estênceis. Nada que indicasse seu propósito. Era simplesmente um halter gigante de aço inoxidável sobre um caminhão-plataforma. As criancinhas em particular estavam se divertindo muito, apertando as caras com olhar arregalado pelas janelas quando passavam.
Mais de 670 quilômetros e sete horas após sair da fábrica de Calloway, Weaver pegou a saída 159 da rodovia 70 e dobrou ao sul na Vine Street. O Motel Super 8 estava a uns 400 metros dali. Ele seguiu a placa CAMINHÕES ENTRAM POR AQUI para o estacionamento, então freou e parou entre as linhas amarelas de uma vaga para caminhões. Três outros ocupavam vagas vizinhas.
Weaver desceu da cabine e espreguiçou.
Um dia já se foi, pensou Weaver. Faltam três.
Trancou o caminhão, e depois deu uma volta, verificando cada uma das linguetas com cadeados e a tensão de todas as correntes. Tudo certo. Atravessou o estacionamento em direção ao saguão.
A 50 metros dali, um Chrysler 300 azul-escuro entrou em outra vaga. No assento dianteiro, um homem levantou um binóculo e observou Weaver passar pelas portas do saguão.
Como fazia quatro vezes por dia durante as últimas duas semanas, Kersen Kaseke ligou o laptop, abriu o navegador e foi até o site de armazenamento on-line de arquivos. Ficou surpreso ao ver um arquivo esperando em sua caixa de entrada. Era uma imagem JPEG de algum tipo de pássaro — um gaio-azul, talvez. Baixou o arquivo para a pasta de documentos de seu disco, apagou a foto do site e fechou o navegador.
Achou o arquivo, clicou nele com o botão direito do mouse, e selecionou “Abrir com... Image Magnifier”. Cinco segundos depois, uma janela abriu mostrando a imagem do gaio-azul, que passou de colorido a preto e branco antes de começar a granular. Primeiro vagarosamente e depois mais rapidamente, pedaços de pixels começaram a desvanecer. Passados trinta segundos, só sobraram duas linhas de pares alfanuméricos — 168 deles. Finalmente, Kaseke clicou duas vezes na tabela de uso diário e a abriu. A decodificação era tediosa, levando quase dez minutos, mas, quando terminou, tinha duas linhas de texto:
Domingo. 8:50 da manhã
Igreja Congregacional do Coração Aberto
Uma Igreja Cristã, pensou Kaseke. Muito melhor que uma biblioteca ou mesmo uma escola. Sabia onde se localizava e suspeitava que, como quase todas as igrejas em Waterloo, essa tinha vários serviços matinais. O horário de oito e cinquenta seria o momento aproximado em que as pessoas estariam saindo do primeiro serviço e chegando para o segundo. Dando alguns minutos para os membros recolherem suas coisas e se dirigirem para a porta... Nos reconhecimentos anteriores, ele estudara as idas e vindas dos membros da igreja. Eles gostavam de se reunir na porta entre os serviços, apertar as mãos, rir e conversar sobre seja lá o que fosse. Tanta frivolidade. O que passava por devoção ali era uma desgraça.
Oito e cinquenta. Sim, era perfeito. Haveria mais de cem pessoas paradas nos degraus e na calçada. Entretanto, provavelmente com a presença de crianças, e Kaseke não gostava especialmente dessa parte. Mas Alá o perdoaria. Sacrificar alguns pelo bem maior era aceitável.
Era noite de sexta-feira. Ele usaria a maior parte do sábado para determinar a localização, e durante a noite se asseguraria de que o disposto estava em ordem. Isso não levaria muito tempo, sabia. Seu trabalho seria simples: plantar o dispositivo, ajustar o timer e achar um bom ponto de observação para acompanhar os resultados.
76
O incêndio fora magnífico, pensou Shasif Hadi. Mesmo a 5 quilômetros de distância, o céu acima da copa das árvores brilhava quase como o sol. E então vieram as explosões, grandes cogumelos de chamas e de fumaça negra ascendendo silenciosamente para o céu, seguidas alguns segundos depois por um rugido tão forte que Hadi conseguiu senti-lo subindo pela estrada, através dos pneus do carro, e sacudindo o assento. Através de nós quatro, pensou Hadi, a mão de Alá atacou e destruiu aquela refinaria.
Após instalar as cargas, fizeram como Ibrahim instruiu e caminharam um a um de volta pelo oleoduto até o bosque onde trocaram os macacões. Sem maiores explicações, Ibrahim ordenou:
— Corram! — E saiu disparado. Estavam a 200 metros do portão de gado quando a primeira carga disparou.
Olhando pela janela traseira do carro, Hadi observou a explosão sincopada das válvulas, seguida pela explosão da carga maior e depois nada por mais 110 segundos, salvo pela sirene Klaxon de alarme da refinaria. Equipes de resposta de emergência provavelmente teriam alcançado o oleoduto destroçado quando a carga final inflamou o etanol que se espalhava como uma onda da maré pelo complexo. Esses homens provavelmente morreram instantaneamente. Uma morte quase indolor, era o que Hadi esperava. O Brasil era um país principalmente cristão, o que o tornava inimigo do islã, mas isso não significava que não merecessem compaixão. Se sofressem, era a vontade de Alá; se perecessem rapidamente, também seria a vontade de Alá. De qualquer modo, ele e os demais tiveram sucesso na missão.
Uma vez no portão, dirigiram a picape para o meio das árvores, depois voltaram para o Volkswagen e saíram, fechando o portão atrás deles. Cerca de noventa segundos depois estavam de volta ao carro de Hadi. Prosseguindo com o plano, Hadi seguiu Ibrahim e os demais até onde Fa’ad deixara seu carro, numa estrada de terra a alguns quilômetros dali. Quando chegaram lá, Ibrahim saiu e acenou para que Hadi fosse até ele.
— Esquecemos de levar em conta um detalhe significativo — disse-lhes Ibrahim. — O vento.
— Não compreendo — disse Ahmed.
Ibrahim apontou para o oeste, na direção da refinaria. As chamas alcançavam agora centenas de metros, e estavam encimadas por um teto de fumaça negra e espessa. Enquanto observavam, podiam ver a fumaça se deslocando ao vento na direção sudeste.
— Está indo na direção de São Paulo. Logo fecharão o aeroporto, se já não fecharam.
— Ele está certo — replicou Hadi. — Ainda assim, de todos os erros que poderíamos ter cometido, esse é o que menos me preocupa. Se conseguirmos escapar, muito bem. Se não, morremos sabendo que cumprimos nosso dever.
Fa’ad soltou um risinho e falou:
— Você tem razão, é claro, mas prefiro estar vivo para ver o resultado de nossos esforços. Que Alá perdoe minha vaidade.
— O que tiver que ser, será — declarou Ibrahim. — Ainda temos uma oportunidade. Vocês conhecem a rota alternativa. — Verificou o relógio. — Nos encontraremos amanhã ao meio-dia, no Jardim Botânico do Rio. Se, por alguma razão, alguém se atrasar, nos encontraremos na localização secundária, quatro horas mais tarde. Boa sorte.
Apesar de nenhum dos dois ter dormido mais que duas horas antes de deixar o aeroporto, o horário de embarque do voo, aquele ponto entre a madrugada e o amanhecer, deixava ambos agitados. A boa notícia era que não acharam assentos na classe econômica, de modo que viajavam na primeira classe por conta do Campus. E o café também não era tão ruim.
— Sabe, ainda não saquei a coisa, John — disse Jack.
— Como assim? — replicou Clark.
— Esses dois que estamos procurando... o irmão e a irmã. Mal saíram da adolescência. O que os leva a virem para outro país e matar pessoas que jamais conheceram?
— Antes de qualquer coisa, não sabemos de nada além do fato de terem entrado com passaportes falsos.
— Talvez sim, mas as chances indicam que não vieram para jogar vôlei.
— Concordo. Mas eu sempre disse que, nessa nossa linha de trabalho, é melhor esperar para ver como são as coisas. Palpites podem ser muito convenientes, mas também podem matar.
— Sei.
— Mas, para responder sua pergunta, não acho que exista uma resposta. Pelo menos não uma resposta simples. O que você está perguntando é: como são feitos os terroristas? Pobreza, desesperança, fervor religioso equivocado, a necessidade de sentir que faz parte de algo maior que você mesmo... Pode escolher.
— Droga, John, assim você quase soa condescendente.
— E sou. Até o ponto em que essas motivações levam alguém a pegar uma arma ou preparar uma bomba. Daí em diante, as apostas se anulam.
— E então o quê? Você simplesmente desliga a empatia?
— Isso é com você, Jack, mas parte desse tipo de trabalho é a disposição para usar antolhos. Lidar com o que está diante de você. Todo terrorista tem mãe e pai. Talvez filhos, talvez pessoas que o amam. Droga, em seis de cada sete dias ele pode ser um cidadão decente, mas naquele dia que decide pegar uma arma ou plantar uma bomba passa a ser uma ameaça. E, se você for o sujeito que está entre ele e vidas inocentes, é só com essa ameaça que deve se preocupar. Percebe o que estou dizendo?
Jack assentiu.
— Sim, acho que sim. — Mesmo que no mundo real existam graduações de cinza, quando chega a hora da verdade, só há espaço para o preto ou branco. Jack sorriu e brindou Clark com sua xícara de café. — Você é um sábio, John.
— Obrigado. Quando se envelhece, fica-se mais esperto. Pelo menos é assim que se supõe que funciona. Mas sempre existem exceções. Seu pai, por exemplo. Ele é sábio para além da idade. Soube disso logo que o conheci.
— É, quando foi isso?
— Boa tentativa, Jack. Você já conversou com ele?
— Sobre o Campus? Sim, quando voltávamos de Andrews. No começo ele ficou puto da vida, mas depois a coisa ficou melhor do que eu esperava.
— Me deixe adivinhar: ele quer ser quem vai contar para sua mãe?
Jack assentiu.
— E cá entre nós, fiquei bem contente. Meu pai é um filho da mãe durão, mas minha mãe... Ela tem aquele olhar... Aquele olhar que só uma mãe tem, sabe?
— Ã-hã.
Ficaram em silêncio por algum tempo, bebericando o café.
— Ando pensando sobre o Dom — disse Jack.
— Ele vai sair dessa. Mas você tem que lembrar que, salvo talvez por você, a transição dele foi a mais difícil. Era um agente do FBI e se transformou em espião. De uma agência que trabalha com regras e regulamentos para uma corretora falsa que caça bandidos à margem da lei. E agora isso com Brian... — Clark deu de ombros. — Não importa o jeito como você olha, é uma merda.
— Só estou pensando se não é cedo demais para ele voltar à ativa.
— Ding não acha, e para mim isso é o suficiente. Para Gerry também. Além do mais, somos apenas quatro e há muita coisa a cobrir. — Clark sorriu. — Droga, lembre com quem ele está. Eu confiei minha filha a esse sujeito, Jack, e nunca lamentei isso. Ele vai garantir que Dom atravesse bem essa etapa.
Apesar de separados por menos de 600 quilômetros, tanto Raharjo Pranata quanto Kersen Kaseke havia semanas seguiam virtualmente a mesma rotina: ir para a escola, não despertar atenção e aguardar ordens. As de Pranata chegaram apenas horas depois das de Kaseke, durante a verificação final diária. Ele ficou tão surpreso ao ver o arquivo de texto na caixa de entrada do site de armazenamento que errou a primeira tentativa de decodificar a mensagem.
O local que escolheram para ele estava a menos de 1 quilômetro de seu apartamento. Ele passava por ali quase todos os dias. Ao se tratar de um alvo, era quase ideal: grande o suficiente para acomodar centenas de pessoas, e cercado de edifícios por todos os lados. O horário do ataque também fazia sentido. Pranata vira cartazes anunciando o evento por toda a cidade, apesar de não ter prestado muita atenção nos detalhes. Uma inauguração de alguma coisa. Uma estátua ou fonte. Não que isso importasse.
Dos três alvos que lhe disseram para preparar, esse era o que oferecia maior potencial para enormes baixas. Como era mesmo o ditado? Pescar em balde?
O mapa que usou na preparação foi fácil de obter, e vários deles foram adquiridos no centro de visitantes da cidade. O mapa topográfico ele baixara de um site popular de caminhadas, e, apesar de ele não ter o menor interesse nas trilhas locais, as elevações e as distâncias estavam claramente marcadas, e um passeio pela cidade com seu GPS portátil confirmou a precisão.
Uma vez que assegurou ter todos os dados necessários, simplesmente inseriu os números na equação adequada e copiou os parâmetros.
Agora vinha a parte difícil: esperar. Passaria o tempo treinando montar e desmontar seu equipamento.
O segundo dia de viagem de Musa foi relativamente curto, levando-o de Toppenish, em Washington, até Nampa, em Idaho, cujo único atributo digno de nota, segundo uma placa na entrada, era que aquela não apenas era a maior cidade do Canyon County, Idaho, com uma população de 72.249, como era a que crescia mais rapidamente. Outra placa na estrada, menos de 100 metros distante da primeira, proclamava também que Nampa era “um ótimo lugar para viver!”.
Quando planejara sua rota desde Blaine, Musa decidira que suas paradas para dormir deveriam ser em cidades de médio porte — nem tão grandes que a força policial fosse agressiva ou particularmente bem-treinada, nem tão pequenas, para que a chegada de um estranho de pele escura provocasse curiosidade indevida. Toppenish, com uma população de apenas 8 mil, poderia se classificar na última categoria, se não fosse por sua proximidade com Yakima. É claro, seu encontro com Willie, o enxerido chefe de polícia de Toppenish, havia plantado uma semente de dúvida na mente de Musa. A situação não tinha evoluído, é claro, e isso não aconteceria, mesmo que o policial o questionasse mais. Tal como a documentação falsa que ele havia mostrado ao inspetor da alfândega em Vancouver, Musa estava agora munido de cartões de visita, papel timbrado e formulários com o carimbo da Universidade de Nevada, Las Vegas. Sua cobertura era essencialmente a mesma: um proprietário de cavalos rico e neurótico de Bellingham, que não confiava no equipamento de raios X do veterinário local.
A tarde já avançava quando ele saiu da rodovia 84/30 e entrou no estacionamento do Fairfield Inn & Suites. Desligou a ignição, depois abriu o mapa de viagem que estava no banco de passageiros. Ele não tinha escrito nada nem feito marcações. Não havia necessidade; ele sabia a rota e as distâncias de cor.
São 965 quilômetros pela frente, pensou Musa. Se desejasse, poderia começar cedo no dia seguinte e provavelmente cobrir a distância que faltava para Beatty, em Nevada, em um dia. Era tentador, mas decidiu não fazer isso. O Emir fora bem específico em suas ordens. Ele seguiria o cronograma.
77
Descendo 20 mil pés de altitude para pousar no Rio de Janeiro, Chavez e Dominic podiam ver a cortina de fumaça flutuando sobre São Paulo, 400 quilômetros ao sul do Rio. Ao norte de São Paulo, o incêndio continuava enfurecido em Paulínia. A caminho do aeroporto, na noite anterior, ouviram no noticiário que os bombeiros e o pessoal de resgate da área tinham mudado de estratégia, focando não na extinção do inferno na refinaria e sim em evacuação e contenção. O etanol havia parado de se espalhar no oleoduto uma hora depois da explosão inicial, mas nesse meio-tempo algo como 10 mil galões de combustível se derramaram na refinaria e, apesar de um tanto disso ainda estar queimando, o problema agora dizia respeito às dezenas e dezenas de tanques de mistura e armazenamento. A conflagração certamente se extinguiria em algum momento, porém os especialistas tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos não concordavam em quanto tempo isso levaria para acontecer. Alguns previam quatro dias, outros duas semanas ou mais. O ponto no qual não havia desacordo, entretanto, era no custo ambiental que o desastre provocava. A fuligem de petróleo já cobria campos e casas tão ao sul quanto Colombo. Emergências de hospitais estavam inundadas de pacientes se queixando de problemas respiratórios.
— Se isso não for o inferno na terra, não sei o que pode ser — disse Dominic, com olhos grudados na janela.
— Não vou discutir isso, cara. Como você se sente? — Ding cochilara em sono leve durante boa parte do voo, mas Dominic parecia ter entrado em coma até uma hora atrás.
— Melhor, acho. Eu estava destruído.
— Em mais de um jeito, mano. Sei que já disse isso, mas sinto muito sobre Brian. Era um bom soldado.
— Obrigado. Então, quando pousarmos, qual o plano?
— Ligar para casa e verificar no noticiário se a informação sobre Hadi já atingiu as ondas. Se já tiver, saímos à caça. Se não, nos agachamos e esperamos.
Após desembarcar e passar pela alfândega e pela imigração, foram direto para o balcão da Avis e se identificaram. Dez minutos depois estavam parados no meio-fio, esperando o Hyundai Sonata ser levado até eles.
— Ar-condicionado? — perguntou Dominic.
— Sim, mas câmbio manual. Não se pode ter tudo.
O Sonata verde-escuro dobrou a esquina. O atendente desceu, entregou os formulários para Chavez assinar, depois acenou e foi embora. Os dois entraram e partiram. Dominic tirou o telefone via satélite da bolsa e ligou para o Campus.
— Já descemos — disse a Hendley, e ligou o viva voz do telefone.
— Ótimo. Vocês estão no viva voz. Sam e Rick estão aqui também. Biery está chegando. — Dominic escutou a porta abrir, e depois a cadeira se arrastando. Biery disse: — Dom, você está aí?
— Sim. Nós dois.
— Estamos no negócio. Passamos por dez sites de armazenamento antes de conseguir um contato. Ele usa um site chamado filecuda.com. Tal como Jack sacou, Hadi usava uma variação de seu e-mail como login. Quebramos a senha em dez minutos. Até agora não há nada na conta.
— Montamos uma mensagem que acreditamos que porá Hadi em nossa direção. Sam vai dar os detalhes — disse Rick Bell.
Granger entrou na conversa:
— Estamos um tanto preocupados que o vazamento de notícias realmente assuste Hadi, portanto iremos dar passinhos, movendo-o de um lugar a outro. Ele vai estar de guarda, de modo que imaginamos que, se ele for ao primeiro ponto e não sofrer nenhuma emboscada, vai começar a ficar mais confortável com a ideia. Quando acharmos que ele está fisgado, diremos a ele para encontrar um contato na Rocinha...
— Onde?
Ding respondeu:
— É português. Significa “pequena fazenda”. Por aqui, os bairros pobres são chamados de favelas, e a Rocinha é a maior do Rio.
— Estamos pensando em movimentá-lo duas, talvez até três vezes antes de enviá-lo para a Rocinha. Depende do tom de suas respostas. Vou mandar uma lista e horários para vocês via e-mail.
— Por que lá?
— A polícia do Rio não sobe lá a menos que seja absolutamente necessário. Fica mais fácil para vocês operarem.
— Quando vocês vão mandar a dica sobre Hadi? — perguntou Dominic.
— Dentro de uns quarenta minutos, por fax para a Record News. Enviaremos nosso próprio esboço e descrição. Esperamos que seja suficientemente claro para que Hadi se reconheça, mas vago o suficiente para evitar que ele seja capturado imediatamente.
— E que certeza temos de que irão usar o material? — perguntou Chavez.
— Sobrevivência do mais forte. Eles são um canal de notícias e estão brigando por audiência durante o maior desastre da história brasileira. Vão receber a dica como um presente divino — disse Hendley.
— Não tem como não gostar desse jornalismo selvagem — respondeu Ding.
— Aqui estamos ligados em todos os canais. Logo que a coisa entrar no ar, ligamos para vocês.
Dominic desligou. Para Chavez:
— Vamos à caça?
— Sem porra de dúvida. Mas preciso primeiro fazer uma parada. Conheço um cara que conhece um cara.
— Que sabe onde colocar as mãos em algumas armas.
— Isso aí.
Frank Weaver despertou às cinco da manhã, bebeu duas xícaras de café feito na cafeteira do quarto, depois leu o jornal por vinte minutos antes de tomar uma chuveirada e ir para o saguão para seu café da manhã continental grátis. Às sete e quinze estava arrumado e saindo pela porta.
Sua carreta estava no mesmo lugar onde a deixara, assim como o tonel, mas ele sabia que estariam. O DOE equipara o caminhão com um equipamento imobilizador. Se o motor fosse ligado sem uma chave, os sistemas de combustível se fechariam. Um belo detalhe. Quanto ao tonel, ninguém poderia sair correndo com aquela coisa. Talvez o King Kong, se sentisse falta de um de seus halteres, porém ninguém mais.
Fez sua volta de inspeção habitual, verificando as presilhas, os cadeados e as correntes. Não achando nada fora do lugar, destrancou a porta do motorista e subiu na cabine. Estava colocando a chave na ignição quando se deteve.
Alguma coisa...
No começo não conseguiu perceber o que era, mas lentamente foi compreendendo: alguém havia entrado no caminhão. Mas isso não era possível. Como tudo mais nessa carreta, a tranca da porta era especial. Era preciso mais que um ladrãozinho com gazua para abri-la. Weaver olhou ao redor. Nada parecia fora do lugar. Verificou o porta-luvas e o console central para ver se faltava alguma coisa. O mesmo com o compartimento de dormir. Tudo estava como ele deixara.
Arma.
Ele procurou embaixo do assento. O revólver calibre .38 estava lá, bem enfiado no coldre de couro fixado na armação do assento.
Weaver ficou sentado ali por meio minuto antes de dar de ombros e se livrar daquela sensação estranha. Talvez o café do hotel fosse mais forte do que ele pensava e o deixara ressabiado.
Ligou a unidade de GPS no painel e esperou que fizesse o ciclo de autodiagnóstico, e depois abriu sua rota. O terceiro de quatro dias. Mais 500 quilômetros fáceis até Saint George, em Utah.
Tariq achou o Emir no banheiro, arrumando as poucas coisas que trouxera dentro de uma caixa.
— Depois que eu gravar meu testamento e sair para encontrar Musa, queime estas coisas.
— Farei isso. Tenho duas peças de informação. Cada um dos quatro homens de Nayoan confirmou o sinal de avançar. O primeiro será em Waterloo, domingo de manhã.
— Ótimo.
— Segundo: nosso homem interceptou o caminhão sem problemas. Já temos a rota do motorista, incluindo paradas de descanso e abastecimento. Está com a chegada prevista entre duas e meia e três horas da tarde, depois de amanhã.
O Emir assentiu e fechou os olhos, mentalmente se lembrando do cronograma.
— Está perfeito, meu amigo. Musa estará no lugar pelo menos com quatro horas de antecedência. Vá preparar a câmera. Já é hora.
78
Quando Clark e Jack saíram do avião e receberam o carro alugado, já eram sete da manhã: hora do desjejum e de uma chamada para casa. Armados apenas com o nome dos irmãos — Citra e Purnoma Salim —, e com a data da chegada deles em Norfolk, Clark e Jack não tinham escolha senão depender do Campus para lhes dar um ponto de partida.
Pararam em um restaurante a 1,5 quilômetro ao sul do aeroporto na Military Highway, sentaram num reservado e pediram café, ovos e panquecas. Enquanto esperavam, Clark ligou para Rick Bell.
— Só temos o hotel que os Salim relacionaram no formulário de entrada — disse ele a Clark. — Se não se registraram lá, temos que apelar para a criatividade. A embaixada indonésia em Washington mantém uma lista de seus cidadãos viajando ou em férias nos EUA, mas, como eles vieram com um passaporte falso, é cara ou coroa se entraram no sistema.
— Vamos começar com o hotel — disse Clark. — Eles tiveram que dormir em algum lugar.
Bell lhes informou o nome do hotel e desligou.
— Econo Lodge em Little Creek — contou Clark a Jack. — Encha a barriga. Provavelmente vamos andar muito hoje.
Acharam o Econo Lodge a 3 quilômetros da Base de Veículos Anfíbios, e a uns 400 metros do canal de Little Creek.
— O SEAL está na base de anfíbios, certo? — perguntou Jack.
— Sim. Grupo Dois de Guerra Especial: Equipes Dois, Quatro e Oito, mais uma equipe de SDV, de veículos lançadores de nadadores.
— Sente falta?
— Às vezes, mas geralmente não. Sinto falta principalmente das pessoas, e do trabalho, mas também houve momentos bem feios.
— Se importa de elaborar mais?
Clark deu uma olhadinha de lado e sorriu.
— Não. É da natureza do que os SEAL fazem, Jack. Vão para lugares onde ninguém mais quer ir e fazem o que ninguém mais pode fazer. Atualmente chamam esses lugares de “áreas negadas”. Na nossa época, chamávamos de “território indígena”. O SEAL anda recebendo agora muito mais atenção do que na época em que eu fazia parte, e quanto mais, pior, no que me diz respeito. Quanto menos as pessoas falarem sobre isso, melhor para o trabalho.
— Então, o que mudou?
— Na verdade não sei. Mantenho contato com alguns caras que ainda estão lá, e eles também não sabem definir bem. Recebem um bocado de garotos que chegam pensando que vão correr na praia, fazer flexões e sair com o Budweiser. — Aqui Clark estava se referindo à insígnia tridente do SEAL. — Geralmente esses não duram nem uma semana.
— O joio do trigo — observou Jack.
— A uma média de 75 por cento. Bem, chegamos... — Clark saiu pelo Shore Drive e estacionou ao lado do saguão. — Pode ser que tenhamos que forçar um pouco para conseguir a informação que precisamos.
— Você guia, eu sigo.
Entraram e foram para o balcão de recepção. Uma garota loura, no começo dos seus 20 anos, com bronzeado artificial disse:
— Bom dia.
— Bom dia. — Clark tirou seu distintivo de delegado federal e o exibiu rapidamente. — U.S. marshal. Procurando por um casal de jovens que se hospedaram aqui há algumas semanas.
— Opa. O que eles fizeram?
— Depende da rapidez com que os encontrarmos. Depois da meia-noite vamos ter que emitir um mandado de testemunha material contra eles. Por enquanto só queremos detalhes sobre um caso antigo. Os nomes são Salim: Citra e Purnoma Salim.
— Isso soa árabe. — Ela torceu o lábio.
— O que você quer dizer?
Clark colocou um pouco de dureza na voz. A garota se encolheu e disse:
— Nada, desculpa. Hã... Então vocês só querem saber se eles estiveram aqui?
— Para início de conversa.
A garota se sentou no computador e começou a digitar no teclado.
— Tem uma data?
— Um dia a mais ou a menos — disse Clark a ela.
— Muito bem, sim, aqui estão eles. Ficaram por uma noite e saíram.
— Dinheiro ou crédito?
— Pagaram com dinheiro, mas anotamos um cartão de crédito para o caso de danos.
— Está aí no seu arquivo?
— Não sei se posso informar isso. Posso me meter em confusão, não é?
Clark deu de ombro.
— Sem problemas, compreendo. — Voltou-se para Jack. — Ligue para o vice-procurador geral.
Jack não perdeu a deixa. Tirou o celular, apertou a discagem rápida e foi para o outro lado da sala.
— O que é isso? — perguntou a garota.
— O vice-procurador geral. Vou precisar do seu nome para o mandado.
— Hã?
— Temos que emitir o mandado para um indivíduo específico. É assim que funciona. Vou precisar também do nome do seu chefe. Então, qual é o seu nome?
— Lisa.
Para Jack, Clark informou:
— Lisa... — Jack assentiu e disse o nome dela no telefone. Clark, de volta para a garota: — Me diga seu sobrenome e número do registro no Seguro Social.
— Hã, espera. Espera um segundo... Então vocês só precisam da informação do cartão de crédito?
— Sim, mas não se preocupe com isso. Vamos ter uma equipe aqui em vinte minutos. A que horas você sai?
— Às nove.
Clark deu um risinho.
— Desculpe, mas hoje não vai ser assim.
Lisa digitava novamente o teclado.
— Eles usaram um Visa, número...
— Bem bolado — disse Jack, quando voltaram para o carro.
— Ninguém quer ser aporrinhado. Eu chamo isso da teoria do pequeno-grande. Faça com que o favor que você pediu pareça bem pequeno e as consequências bem complicadas. Então, o que você achou? Seu tipo?
— Ela? Bonitinha, mas algo me diz que não é exatamente o tipo que consegue fazer palavras cruzadas.
Clark riu.
— Então você se guarda para uma garota com beleza e cérebro.
— Algo errado com isso?
— Nada. Pegue o cartão. Ponha Bell para trabalhar nele.
Levou vinte minutos.
— Não houve mais despesas com motel, mas no dia em que fizeram o check-out peguei meia dúzia: lojas de suvenires, McDonald’s, Starbucks... Só coisas ocasionais, e apenas nesse dia. Estou mandando os detalhes e um mapa do Google.
— Para que o mapa? — perguntou Jack.
— Todas as despesas estavam dentro de 1 quilômetro quadrado uma da outra.
Jack desligou e deu as notícias a Clark.
— Trocaram de cartão de crédito, trocaram de nomes — disse Clark. — Bom sinal.
— Como assim?
— Cidadãos corretos não fazem isso, Jack.
O sinal de e-mail no celular de Jack tocou, e ele verificou.
— Para onde vamos? — perguntou Clark.
— Virginia Beach.
— Muito bem, pessoal, temos que tomar uma decisão — disse Sam Granger. — Texto simples ou codificado?
Granger, Hendley e Bell estavam discutindo o assunto havia mais de uma hora. Com Hadi e sua equipe tendo submergido depois do ataque a Paulínia, e com o CRO trocando diariamente suas tabelas de uso único, será que Hadi tinha condições de decodificar mensagens? Mais ainda: será que tinham condições de “desesteganizar” as imagens dentro das quais as ordens eram embutidas? Granger e Bell achavam que não, mas Hendley estava preocupado.
No passado, o CRO manejara suas grandes operações pela regra do “dispositivo do homem morto”: uma vez dada a ordem de executar, não há como dar para trás ou desligar o fio. Essa mudança veio após o fracasso do CRO em colocar uma bomba no U-Bahn de Berlim quando, logo depois de o sinal de avançar ser dado, o líder da célula do CRO em Munique foi capturado pelo Bundesamt für Verfassungsschutz — o Escritório Federal para a Proteção da Constituição — e persuadido a recuar os atacantes. É claro que, no contexto maior, nada disso importava: com a regra valendo ou não, Hadi receberia ou não a mensagem. Se tivesse condições de decodificar, uma mensagem de texto simples o assustaria e as chances deles se esvaneceriam.
— Olhem, temos que arriscar — disse Bell. — Vamos usar nossa mensagem para assustá-lo, mas a nosso favor. Fazê-lo ficar tão preocupado que nem questione o texto aberto.
Hendley considerou o assunto, depois olhou Granger.
— Sam?
— Muito bem. Vamos fazer isso. Vamos movimentar Hadi apenas uma vez, dizendo que é para limpeza final, e movê-lo para a Rocinha, onde Chavez e Dominic podem pegá-lo.
Bell levantou e caminhou para a porta.
— Vou fazer o upload. — E saiu.
Um minuto mais tarde, toca o telefone de Hendley. Era Gavin Biery.
— Vocês já mandaram a mensagem?
— Rick saiu para fazer isso.
— Merda. Parem ele, mandem ele voltar. Estou subindo.
79
Dois minutos depois Biery já estava no andar de cima, entrando no escritório de Hendley.
— Descobri um padrão — anunciou. — Se vocês mandarem isso em texto simples Hadi vai saber que é falsa.
A interceptação de Rick Bell no último instante era o resultado de uma maratona de madrugadas observando seu algoritmo recém-escrito mastigar as tabelas de uso único do CRO. Apesar de, por sua própria natureza, as letras de uma tabela dessas serem randômicas e, portanto, impenetráveis por qualquer um que trabalhasse fora da tabela corrente, era da natureza de Biery observar padrões onde ninguém pensava que existissem. Era, como uma vez explicou para Jack, uma espécie de projeto SETI (Busca de Inteligência Extraterrestre): “Provavelmente não existe nada lá, mas não seria ótimo se houvesse?” Nesse caso, o que Biery descobriu foi um padrão para as tabelas de uso único do CRO.
— As tabelas de uso único são ótimas, provavelmente a forma mais simples de criptografia “inquebrável” do mundo, apesar de nada ser realmente inquebrável — explicou quando Rick Bell regressou. — Na verdade, tudo é uma questão de probabilidade, realmente...
— Outra hora, Gavin — interrompeu-o Granger.
— Certo.
— Bem, como você imaginou, o Emir, ou seja lá quem montou isso, provavelmente estava preocupado com seu pessoal no campo. É meio estúpido levar uma tabela de uso único com você, ou ter no laptop que leva de um lado para o outro, então bolaram um sistema para recriar a tabela do dia enquanto se está fora. Consome algum tempo, mas é factível.
— Estamos ouvindo — disse Bell.
— Eles usam uma fórmula chamada método do quadrado do meio. Foi criada por um matemático húngaro chamado Von Neumann em 1946. Essencialmente, o que se faz é tomar um número semente, e o tamanho não importa, desde que seja um número par de dígitos, calcular o quadrado disso, depois tomar a parte do meio do resultado, mais uma vez, quantos dígitos você queira, e usar como seu novo número semente. Como esses sujeitos provavelmente estarão fazendo as contas no papel, possivelmente usarão pequenos números, e constroem a partir daí. Por exemplo...
Biery pegou o bloco na mesa de Hendley e começou a escrever:
49 × 49 = 2-4-0-1. Novo número semente = 40
— Considerando que não se pode usar zeros, faz-se o arredondamento. Então seu novo número semente é 41. Depois você calcula o quadrado disso e continua, até encher a grade da tabela.
— E os números são aleatórios? — perguntou Granger.
— Pseudoaleatórios, mas você não é capaz de saber disso a menos que tenha um monte de tabelas para mastigar os números. Quanto mais complicada a fórmula, mais aleatórios serão os números, mas em algum momento não se pode prosseguir nos cálculos com papel e lápis.
— Então, que fórmula estão usando?
— Dia, mês e ano, todos somados. Pegue hoje, por exemplo, 21 de maio de 2010... — E escreveu:
21 + 5 + 2010 = 2036
— Você usa apenas os dois dígitos do meio. Arredondando o zero, é claro.
— E 13 é seu novo número semente — disse Hendley.
— Você sacou.
— E todas as tabelas de uso único usam o mesmo método?
— Todas as que pegamos no cofre de Almasi.
— Que belo trabalho, Gavin.
— Obrigado. — E saiu.
— Esse rapaz acabou de salvar nossa pele — comentou Granger.
Sabendo que Alá tomaria isso como falta de fé, Hadi sempre resistiu a acreditar em presságios, mas a proximidade do Jardim Botânico no Rio com a estátua do Cristo Redentor era enervante. Mas, então, lembrou a si mesmo que tudo no Rio parecia estar perto do Cristo Redentor. Colocada a 710 metros de altura, no alto do morro do Corcovado, olhando centenas de quilômetros quadrados de floresta e da mancha urbana, o monólito de 38 metros de altura e 1.145 toneladas de pedra-sabão era o marco mais famoso da cidade, lembrando a Hadi que ele se encontrava em um país essencialmente pagão.
Hadi tinha feito um bom tempo na viagem depois de se separar de Ibrahim e dos demais, mas passara as primeiras duas horas com as mãos apertadas no volante e olhando o retrovisor a cada vinte segundos.
Uma hora depois do amanhecer parou no município de Seropédica, nos subúrbios mais distantes a leste do Rio. A 50 quilômetros de distância podia ver o Rio de Janeiro propriamente dito: uma cidade que se espalhava por 1.300 quilômetros quadrados de área e com uns 12 milhões de almas — quase a metade da população da Arábia Saudita em apenas uma cidade. São Paulo era ainda maior, mas ele havia aterrissado lá à noite e margeara a parte norte da cidade até seu hotel em Caieiras.
Na entrada do Jardim Botânico, comprou um ingresso e uma brochura com mapa no caixa. A brochura descrevia as atrações do jardim: 141 hectares, 7 mil espécies de plantas tropicais, laboratórios de pesquisa... Folheou as páginas até encontrar a localização de espaços específicos. O aviário estava no começo da lista. Orientou-se pelo mapa e começou a caminhar. Era um dia claro e ensolarado, e a umidade quase insuportável. Distante ao sul, podia enxergar a capa de fumaça negra ocasionada pelo ataque em São Paulo, tão densa que parecia que a noite havia caído naquela seção da costa.
A meio caminho de seu destino, passou por uma sorveteria e olhou pela janela. Uma pequena televisão instalada no canto da loja estava ligada na Record News. Imagens do incêndio na refinaria, algumas obtidas do solo e outras de um helicóptero, eram transmitidas ao lado do rosto da âncora. Ela se virou para outra câmera, uma mudança de assunto, e subitamente apareceu um retrato falado na tela. A semelhança não era perfeita, mas era precisa o suficiente para Hadi sentir o coração pular no peito.
Não pode ser, pensou. Quem me viu? Eles não haviam deixado testemunhas, disso tinha certeza. A picape de segurança da refinaria que passou enquanto estavam colocando as cargas estava longe demais para vê-lo. Uma câmera de vigilância, talvez? Não, isso não estava certo. Se tivessem uma imagem verdadeira dele, teriam-na transmitido, e não um esboço.
Continuou a observar a reportagem, esperando ver seu retrato falado seguido por um de Ibrahim. Depois Fa’ad, depois Ahmed. Mas só ele permanecia na tela.
Pense, pense...
Percebeu uma loja de lembranças do outro lado da praça de alimentação. Foi até a loja e entrou. Verificou se havia aparelhos de televisão ou rádios. Não havia nenhum, de modo que ficou por ali, para não parecer ter pressa, antes de escolher um boné com o brasão do Jardim Botânico bordado. Pagou em dinheiro, dispensou a sacola, saiu e colocou o boné, puxando-o até bem perto das sobrancelhas. Verificou o relógio. Estava adiantado pelo menos uns setenta minutos para o encontro. Foi até uma marquise de concreto e se sentou em um banco ao lado de um canteiro de samambaias.
Será que Ibrahim e os demais teriam visto o esboço? Se o viram, poderiam não aparecer. Eles tinham discutido contingências para perseguição, para captura e para a morte de membros da equipe, mas não para isso.
Passou uns cinco minutos sentado ali, olhando para o espaço e pensando, então tomou uma decisão. Folheou a brochura até achar o que precisava.
O cyber café ficava do lado leste do jardim. Pagou à atendente por meia hora, e esta lhe designou um dos terminais. Levou um tempo para se lembrar do URL do site. Aquele era o quinto dia, de modo que logou no... bitroup.com.
Quando o site apareceu na tela, ele fez o login e clicou na área de mensagens. Ficou surpreso ao ver um arquivo de texto esperando na seção de uploads. Clicou duas vezes no arquivo e viu que continha duas linhas de pares alfanuméricos. Anotou-os no verso da brochura. Dava 334. Ele se desconectou da conta e saiu.
Levou trinta minutos para criar a tabela, e outros vinte para decodificar e verificar a mensagem duas vezes:
Retrato falado na TV visto. Suspeito comprometido,
um de sua equipe. Quebre contato.
Proceda até o Tá Ligado Cyber Café na rua Bráulio Cordeiro para instruções. 1400 horas.
Acuse o recebimento da mensagem pela codificação:
9M, 6V, 4U, 4D, 7Z.
Hadi leu a mensagem duas vezes. Comprometido? Sua mente girava. Não era possível. Ibrahim ou um dos outros o traíram? Por quê? Nada disso fazia sentido, mas a mensagem era autêntica. Quebre contato. Verificou o relógio: 11:45. Agora apressado, codificou os pares de recebimento da mensagem, voltou ao café, digitou a resposta em um arquivo de texto e fez o upload dele.
Ibrahim passou pelos carros de Fa’ad e Ahmed enquanto entrava no estacionamento. Achou uma vaga, estacionou e desligou o motor. Fa’ad e Ahmed estacionaram uma fila atrás dele, separados por uma dúzia de carros. Pela janela do passageiro, viu Hadi saindo pelo portão principal do Jardim Botânico. Seus passos eram apressados, a postura tensa. Polícia?, pensou Ibrahim. Continuou observando, meio que esperando ver homens correndo atrás de Hadi, mas nada aconteceu.
O que é isso?
Hadi alcançou seu carro e entrou.
Ibrahim tomou uma decisão de momento. Esperou até o carro de Hadi se dirigir para a entrada, deu a ré e o seguiu. Diminuiu a marcha ao lado do carro de Ahmed e fez um gesto para que o seguisse.
O que deu em você, meu amigo?
80
— Fisgamos ele — disse Chavez, desligando o telefone via satélite. — Estará às duas da tarde em um cyber café na rua Bráulio Cordeiro.
— Ótimo, onde diabos é isso? — replicou Dominic, desviando o carro quando um táxi passou por eles, o motorista buzinando e gritando. — Não que isso importe. Não vamos chegar lá inteiros mesmo.
Chavez passava o dedo seguindo um mapa da cidade.
— Continue no rumo leste. Eu copiloto você.
— Suponho que não vamos agarrá-lo lá?
— Não. Primeiro temos que ter certeza de que está sozinho. Dissemos a ele para quebrar o contato, mas quem sabe? Além disso, vamos precisar de alguma privacidade para fazer o que temos que fazer.
— Que é?
— O que for preciso.
Dominic soltou um sorriso sombrio.
Acharam o café e deram duas voltas pelo quarteirão para fazer o levantamento ambiente, depois acharam uma vaga de estacionamento 50 metros ao norte, do outro lado de um cruzamento. Saíram e caminharam para o sul. Entre uma farmácia e um borracheiro encontraram um beco que levava a um ferro-velho cheio de máquinas de lavar enferrujadas, eixos de carros e pilhas de velhos canos de esgoto. Chavez foi na frente até o final do quintal e por trás de um monte de lixo. Através de um muro feito com tábuas bem espaçadas, podiam ver a entrada do café do outro lado da rua.
— Merda — disse Chavez.
— O quê?
— Acabei de notar aquela calçada do lado ao café.
— Entrada dos fundos, talvez — disse Dominic. Olhou o relógio. Ainda faltavam vinte minutos. — Vou dar uma volta e ver se consigo dar uma olhada.
Dez minutos mais tarde, o telefone de Chavez tocou. Ele apertou o botão de resposta.
— Pode falar.
— Existe uma porta dos fundos, mas há uma lixeira fechando a entrada — disse Dom.
— Ruim em caso de incêndio, bom para nós. Volte para cá.
Chavez mal tirou o dedo do botão quando um Chevrolet Marajó verde diminuiu a marcha diante do café. Apesar do ângulo oblíquo, Chavez percebeu um único sujeito sentado atrás do volante. O Marajó avançou, depois freou e começou a dar a ré para estacionar.
— Dom, onde você está?
— Quase no cruzamento.
— Diminua a marcha. Pode ser nosso homem.
— Entendido.
Mais adiante, o motorista do Marajó saiu e foi na direção do café.
Chavez apertou o botão.
— É o nosso homem. — Descreveu o carro de Hadi para Dominic, e depois falou: — Volte para o Hyundai. Ele não deve demorar muito.
A resposta veio na forma de um clique duplo. Entendido. Ligou para o Campus. Sam Granger atendeu.
— Ele entrou — disse Chavez.
— A mensagem subiu. Estamos mandando Hadi para um salão de bilhar na esquina entre as travessas Roma e Alegria, na entrada sul da Rocinha.
— Hora?
— Às sete.
Chavez desligou. Passaram dez minutos, e depois Hadi saiu do café. Olhou para os dois lados da rua, foi até seu carro e entrou.
— Movimentando — disse Chavez. Ele correu pelo quintal, desceu o beco e saiu na rua. À sua esquerda, o Marajó de Hadi foi até o cruzamento e parou.
— Estou vendo ele — disse Dominic.
Hadi dobrou à esquerda.
— Estou chegando em você — disse Dominic pelo rádio.
— Negativo. Fique aí. — Chavez correu pela rua e alcançou o Hyundai em trinta segundos. — Muito bem, adiante. À esquerda no cruzamento, depois dobre à esquerda e pare no sinal.
Dominic fez como instruído. Quando chegaram no sinal, Hadi passou na frente deles, na direção norte. Dominic deixou dois carros passarem, e depois seguiu.
Quinze minutos depois.
— Tem alguém atrás de nós — disse Dominic. — Ou de Hadi.
Chavez olhou pelo espelho lateral.
— Lancia azul?
— E mais dois atrás. Um compacto Fiat verde, e um Ford Corcel vermelho.
— Que porra é essa? Tem certeza?
— Vi o Fiat e o Ford darem duas voltas no quarteirão quando rodeei para ir por trás do café. Não podem ser policiais.
— É? Por quê?
— Policias agiriam melhor que isso. Eles estão fazendo a porra de um comboio.
Chavez verificou o mapa.
— Vamos olhar as caras.
Dominic diminuiu perto de uma vaga de estacionamento e ligou o alerta. Atrás dele, o Lancia buzinou. Chavez colocou a mão pela janela e acenou para que passasse. Quando o veículo desviou e ultrapassou, Chavez deu uma olhada.
— Parecem ser do mesmo grupo étnico de Hadi. Você acha que são seus parceiros de crime?
— Pode ser. Talvez Hadi não tenha conseguido cortar a ligação.
Dominic deixou passar o terceiro carro, o Corcel, depois esperou cinco segundos e saiu atrás dele.
O terceiro dia de viagem de Musa transcorreu suavemente como os dois primeiros, e no final da tarde ele chegou à sua última parada de pernoite: Winnemucca, em Nevada. População: 7.030 habitantes; 563 quilômetros a noroeste de Las Vegas.
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Para seu crédito, Hadi fez o melhor possível para limpar seu rastro a caminho da Rocinha, contornando a favela por duas horas enquanto dirigia em círculos e fazia retornos, procurando sinais de perseguição que deveriam estar bem claros para ele. O Lancia, o Fiat e o Corcel permaneceram em formação de comboio, jamais trocando de posição e nunca a mais de 100 metros do para-choques traseiro de Hadi.
— Temos que tomar uma decisão — disse Dominic. — Melhor fazer isso agora, antes que tenhamos de enfrentá-la sem alternativa. — Se ele e Chavez tivessem uma oportunidade de agarrar Hadi e seus três associados, iriam fazer isso ou se concentrariam apenas em Hadi?
— Quanto mais, melhor — disse Chavez —, mas temos que lembrar que somos só nós dois e que a polícia do Rio não vai saber a diferença entre nós e o grupo de Hadi, se as coisas derem errado.
Às seis e quinze da noite interromperam a perseguição e tomaram o caminho de volta para a entrada sul da Rocinha. Deixar Hadi por conta própria tinha um risco, mas nenhum dos dois sabia nada sobre o local do encontro. Deviam esperar que os perseguidores não decidissem interceptá-lo nos próximos 45 minutos.
O sol descia por trás das montanhas a oeste, lançando uma luz dourada na favela.
Chavez e Dominic sabiam que o significado em português de Rocinha era algo como “Pequena Fazenda”, mas não sabiam mais nada sobre ela. Cobrindo aproximadamente uns 2 quilômetros de norte a sul e cerca de 400 metros de leste a oeste, a favela se situava em um vale não muito fundo, rodeada dos dois lados por florestas e despenhadeiros. Sombreadas por varais de secar roupa e toldos improvisados, as ruas estreitas serpenteavam por ladeiras densamente habitadas com apartamentos que pareciam caixinhas, alguns tão perto uns dos outros que as sacadas se tocavam e os tetos se misturavam. Escadas de concreto e tijolos quebrados, cobertas de musgo, saíam das ruas e desapareciam atrás das construções. Postes de telefone e luz enfeitados com centenas de metros de fios e cabos se estendiam em todas as direções. Ao lado de cada beco, havia dezenas e dezenas de barracos feitos com placas de madeira e chapas de metal corrugado. O esgoto corria por calhas estreitas, rasas e cheias de lixo.
— Inacreditável — disse Dominic.
— Quantas pessoas moram aqui?
— Pelo menos 100 mil. Talvez 150.
Encontraram uma vaga para estacionar no começo do quarteirão do salão de sinuca e desceram.
— Você vai pelo fundo, eu vou pela frente. Me dê 15 minutos e depois entre.
— Entendido.
Dominic desceu pela rua e virou na esquina. Chavez andou pela rua, comprou uma garrafa de Coca-Cola de um ambulante, depois se encostou na parede sob um toldo. Abaixo, um único poste de iluminação piscava. Dez minutos transcorreram. Não havia sinal de Hadi, do Lancia, do Fiat ou do Corcel. Terminou a Coca-Cola, devolveu a garrafa para o ambulante, cruzou a rua e entrou no salão de sinuca.
Não era bem um salão, e sim um ambiente do tamanho de uma garagem dupla com duas mesas de sinuca no centro, um bar à direita e cadeiras de madeira alinhadas na parede da frente. No fundo do bar havia um lugar com quatro mesas redondas e cadeiras. No canto, três degraus que levavam até uma porta com uma placa de “Saída”. Debaixo de luminárias de plástico manchado e penduradas por correntes, ele viu homens reunidos ao redor das mesas de sinuca. O ar estava pesado de fumaça.
Ding sentou no bar e pediu uma cerveja. Cinco minutos depois, a porta se abriu e Dominic entrou. Foi até o bar, pediu uma cerveja e a levou até o fundo, escolhendo uma mesa.
Às sete e cinco, a porta abriu e Hadi entrou. Ficou perto da porta, olhando tudo nervosamente. Dominic levantou a garrafa de cerveja e acenou para Hadi, que hesitou e depois se dirigiu para a mesa de Dominic.
A porta se abriu novamente. O motorista do Lancia entrou. Como Hadi, ficou parado por trinta segundos, examinando o interior. A camisa estava para fora das calças, e no quadril direito Chavez percebeu uma saliência com um formato familiar. O exame do homem parou de súbito quando viu Hadi, que se aproximava da mesa de Dominic. O homem o seguiu. Chavez o deixou passar e depois se levantou da banqueta.
— Cadê o meu dinheiro, babaca? — disse Chavez em português.
O homem girou, com os punhos subindo. Chavez levantou as mãos à altura dos ouvidos.
— Calma, calma...
Enfiou a palma direita no rosto do homem, quebrando seu nariz. Ele tropeçou para trás e Chavez avançou, dando um golpe com o polegar abaixo da laringe. O homem desabou. Os outros clientes observaram com curiosidade, mas ninguém se meteu. Dívidas eram dívidas.
No fundo da sala, Dominic já havia levantado e levava Hadi pela saída dos fundos.
Chavez foi até o sujeito do Lancia, pisou na mão armada e depois arrancou a arma do cinto dele.
— Você fala inglês?
O homem gaguejou e cuspiu.
— Acene se falar inglês.
O homem assentiu.
— Levanta ou atiro em você aqui mesmo.
Dominic esperava no beco. Já estava completamente escuro. À esquerda, a ruela terminava em um muro, no qual havia uma escada que levava à escuridão. À direita deles, a 20 metros de distância, a saída do beco.
Hadi estava contra o muro ao lado de um monte de latas de lixo. Dominic tinha sacado a arma e a mantinha entre as pernas. Chavez empurrou o homem do Lancia por trás, e ele bateu na parede ao lado de Hadi.
— Quem são vocês? — perguntou Hadi.
— Cala a boca — rosnou Dominic.
Chavez observou os dedos de Dom abrindo e fechando no punho da arma.
— Calma, Dom. — Pegou um pedaço de jornal do chão e jogou para o sujeito do Lancia. — Limpe o nariz.
— Vai se foder.
A porta se abriu de repente ao lado deles. Uma silhueta projetada pela luz fraca do salão de sinuca apareceu e Chavez viu uma pessoa a alguns passos adiante da soleira. Sua mão subiu e se estendeu na direção dela. Um golpe duplo no peito e o sujeito caiu. Chavez fechou a porta com um chute.
— Adiante, Dom. — Apontou a arma para o homem do Lancia e Hadi. — Mexam-se.
Na boca do beco apareceu um sujeito correndo na direção dele. O cano de uma pistola relampejou alaranjado, e depois mais duas vezes. Chavez foi para o lado, ficando atrás das latas de lixo, e disparou duas vezes. O sujeito se esquivou.
— Escadas — ordenou Chavez.
Cutucando o homem do Lancia e Hadi na frente, Dom foi seguindo para a escada. Chavez recuou com eles até sentir os ombros baterem na parede, depois se voltou e os seguiu.
Subindo pelos degraus nos calcanhares de Dominic, Chavez chegou no alto e deu uma olhada. Um beco se estendia da direita para a esquerda; sobre eles, janelas com sacadas. Atrás e à direita, outro retângulo abrindo em outra parede de tijolos. Chavez fez um gesto nessa direção. Dominic assentiu e empurrou o homem do Lancia e Hadi pelos degraus. Atrás, Chavez escutou um sapato se arrastando e olhou para baixo da escada. O sujeito que os perseguia estava ali, dando uma olhada pela esquina. Chavez recuou, ficou parado. Depois de dez segundos de silêncio, o arrastar do sapato ecoou pelas escadas.
Chavez enfiou a arma no cinto, deu dois passos à direita, depois subiu os braços e agarrou o parapeito da sacada. Subiu até ficar com o queixo ali, estendeu de novo a mão, agarrou o corrimão e se alçou. Deitou de bruços na sacada.
As passadas continuaram avançando: passo... pausa. Passo... pausa... À distância, escutou sirenes zumbindo. Será que alguns disparos seriam suficientes para fazer a polícia entrar na Rocinha?, perguntou-se. Fechou os olhos e escutou, esperando uma mudança no eco.
Passo... pausa. O sapato arranhou de novo. Agora não havia mais eco. O homem passou por baixo da sacada onde Chavez estava, obviamente tentando decidir. Beco ou escadas? Escolheu as escadas. Chavez ajoelhou silenciosamente, apoiou a arma no corrimão e disparou, enfiando uma única bala atrás da cabeça do sujeito.
Pulou, correu até o corpo, fez uma revista rápida e disparou pelas escadas. Dominic esperava no alto, acocorado atrás de uma lixeira, com o homem do Lancia e Hadi. Cem metros adiante, a ruela desembocava em um estacionamento fracamente iluminado por postes de rua. De algum lugar ali perto, chegou o ruído de um jogo de basquete e garotos gritando de um lado para o outro.
— Ficamos só com dois — disse Chavez.
— Dois são o suficiente.
Chavez derramou no chão os pertences que tirara do morto: passaporte, um maço de dinheiro, um chaveiro de carro. Pegou as chaves e balançou diante do homem do Lancia e de Hadi.
— De que carro é: do Fiat ou do Corcel?
Nenhum dos dois respondeu.
Dominic agarrou Hadi pelos cabelos, empurrou sua cabeça para trás e enfiou a pistola entre seus lábios. Hadi resistiu, cerrando os dentes. Dominic golpeou Hadi com a outra mão na garganta. Ele engasgou. Dominic enfiou a arma na boca de Hadi.
— Cinco segundos e vou espirrar seus miolos neste beco. — Hadi não respondeu. Dominic enfiou a arma mais fundo. Hadi começou a ter ânsias de vômito. — Quatro segundos. Três segundos.
Chavez observou seu companheiro, observou seu olhar. Expressões faciais podem ser manipuladas quando necessário, mas o olhar é mais difícil de fingir. A expressão no olhar de Dominic informou a Ding que ele falava a sério.
— Dom...
— Dois segundos...
— Dom! — rangeu Chavez.
Hadi estava assentindo, levantando as mãos em súplica. Dominic tirou a arma, e Hadi disse:
— Ford Corcel.
O do Lancia resmungou:
— Você é um traidor.
Dominic apontou a arma para o olho direito do homem do Lancia.
— Agora é você. Onde está estacionado?
Lancia não respondeu.
— Dessa vez você só tem três segundos — disse Dominic, depois trocou a arma de mão e a empurrou contra o joelho do homem. — Depois vai ter que usar bengala pelo resto da vida.
— Um quarteirão acima do salão de sinuca, no meio do quarteirão ao sul.
— Vá pegar. Eu banco a babá para os seus amigos — disse Chavez a Dom.
Cerca de 15 minutos depois, Chavez escutou uma buzina e olhou para o fim do beco. O Corcel estava parado ali, com a porta lateral aberta. Fez o homem e Hadi levantarem e andarem. No carro, cutucou os dois para que entrassem no assento traseiro.
— Achei isso aqui no porta-malas — disse Dominic, segurando um rolinho de arame para enfardar.
Chavez se inclinou sobre o assento.
— Passem as mãos.
Dominic começou a dirigir.
— Vamos precisar de um pouco de privacidade — disse Chavez. Estava sentado de lado no banco do passageiro, a arma apoiada no encosto.
— Acho que temos um lugar. Vi quando vínhamos para cá.
O edifício era quase idêntico a todos os demais — um retângulo de quatro andares com uma porta e janela com terraço —, salvo que as janelas e a porta estavam lacradas com tábuas. Ao lado do edifício, uma escadaria coberta de moitas subia para a escuridão. Um cartaz com aparência oficial estava colado na porta da frente e dizia: “Condenado.”
— Aqui — disse Dominic. — Volto já.
Saiu, abriu caminho pelas escadas cheias de mato e desapareceu. Em dois minutos estava de volta. Assentiu para Chavez, que saiu e ficou atrás do sujeito do Lancia e de Hadi, enquanto todos seguiam Dominic pelas escadas. Depois de uns 10 metros, o mato diminuía e os degraus terminavam em uma porta. Tal como a de baixo, essa também tinha o cartaz de “Condenado”, mas estava presa apenas pela dobradiça de baixo. Dominic levantou a porta e a deixou de lado. Chavez mandou Lancia e Hadi entrarem.
Sob o brilho da lanterna de bolso de LED de Dominic, rapidamente se tornou evidente a razão pela qual o edifício fora condenado. As paredes, o chão e o teto estavam cobertos de fuligem e em alguns lugares queimados até as colunas. O assoalho era um xadrez de pedaços de linóleo, compensado chamuscado e buracos, através dos quais se podia ver os andares de baixo.
— Sentem — ordenou Chavez aos dois.
— Onde? — retrucou Lancia.
— Em qualquer lugar que não seja um buraco. Sentem.
Os dois obedeceram.
— Vou dar uma olhada — disse Dominic.
Chavez se sentou diante dos prisioneiros, ouvindo Dominic revistar as outras dependências. Voltou com um lampião de querosene manchado. Sacudiu e sentiu o combustível balançar lá dentro. Levou até um canto e acendeu. Uma luz amarelada encheu a sala.
Chavez olhou para Dom e sacudiu o ombro.
— Você é o chefe. O espetáculo é seu — falou Dominic.
Chavez levantou, caminhou até perto do sujeito e de Hadi, depois se ajoelhou novamente.
— Vou falar um pouco. Quero que escutem. Com atenção. Não vou falar merda para vocês e não quero que falem merda para mim. Se cooperarem, podem ter uma chance muito maior de ver o amanhecer. Como se chamam?
Nenhum dos dois respondeu.
— Vamos, só os primeiros nomes, para podermos conversar.
— Hadi.
O outro hesitou, com os lábios apertados. Finalmente disse:
— Ibrahim.
— Ótimo. Obrigado. Escutem, sabemos que vocês dois e seus dois amigos mortos incendiaram a refinaria de Paulínia. Sabemos disso, de modo que não vamos falar mais do assunto. Não somos policiais e não estamos aqui para prender vocês pela refinaria.
— Então quem são vocês? — perguntou Hadi.
— Alguém mais.
— E o que faz vocês pensarem que estamos envolvidos com aquele lugar? — perguntou Ibrahim.
— O que você acha? — disse Chavez dando uma olhadinha com meio sorriso na direção de Hadi.
— Por que você olhou para mim?
Para Ibrahim, Chavez perguntou:
— Por que vocês perseguiam Hadi? — Ibrahim não respondeu, e Chavez continuou: — Vou dar um palpite sobre uma coisa. Vocês fizeram o serviço na refinaria, mas não contaram que a fumaça fecharia o aeroporto de São Paulo e passaram para o plano B: vir para o Rio. Chegaram aqui e as coisas desandaram. Hadi sai fugindo; Ibrahim sai atrás dele. Por quê?
— Por que vocês não se importam com a refinaria? — insistiu Ibrahim.
— Não é no nosso país, não é problema nosso. Por que você perseguia ele?
— É um traidor.
— Você é um mentiroso. Você é o traidor. Você, ou Ahmed, ou Fa’ad. Vocês vazaram o retrato falado — retrucou Hadi.
— Que retrato falado?
— O que apareceu na televisão. Eu vi. Parecia comigo. Quem mais poderia ter dado isso para eles?
— Quem disse isso tudo?
— O Em... quando vi o retrato falado, fiz contato. Havia uma mensagem esperando. Dizia que vocês tinham me traído e que eu devia fugir.
— Você foi enganado.
— Eu autentiquei. Era autêntica.
Ibrahim sacudia a cabeça.
— Não, você está enganado. Não traímos você.
— Então você e seus amigos só queriam se encontrar e bater um papo, é isso? — disse Chavez.
— Sim.
Chavez se inclinou para perto de Hadi.
— Isso é merda, e você sabe disso. Quer a mensagem fosse real ou não, eles só sabiam que você estava fugindo. Provavelmente para ir até a polícia. Eles não permitiriam isso. Você sabe que é verdade.
Hadi não disse nada.
— Muito bem, aqui está a proposta — disse Chavez. — No que nos diz respeito...
— Ainda não sabemos quem são vocês.
— Nosso sotaque não diz nada?
— Americanos.
— Certo. No que nos diz respeito, a refinaria está fora da jogada. O que queremos saber é quem opera nos EUA. Quantas células, onde se localizam... Tudo isso.
— Vai se foder — disse Ibrahim.
Chavez escutou Dominic levantar atrás dele. Virou e o viu se dirigindo até a cozinha. Ele se virou para Hadi.
— E quanto a você? Basta nos dizer...
Escutou os passos de Dominic regressando, mas em ritmo mais rápido e decidido. Voltou-se. Com a arma envolvida em um pano de prato cheio de mofo, Dominic caminhou até Ibrahim, colocou a arma sobre o joelho esquerdo dele e puxou o gatilho. A toalha abafou o tiro, que fez um pop suave. Ibrahim gritou. Dominic enfiou uma segunda toalha em sua boca.
— Dom, Jesus... — disse Chavez.
Dominic mudou a posição da arma e fez um disparo no joelho direito de Ibrahim. Ibrahim se debatia, gritando com a toalha na boca, a cabeça batendo contra a parede atrás dele. Dominic se agachou a seu lado e o esbofeteou com força, uma, duas, três vezes. Ibrahim se aquietou. Lágrimas escorriam por seu rosto. Hadi havia se encolhido para longe do companheiro, tentando se esconder na parede.
Chavez apontou para ele.
— Nem mais um centímetro. — Agarrou o braço de Dominic e tentou levantá-lo. Dominic nem se mexeu, ficou ali acocorado diante de Ibrahim, ombros caídos, olhando o rosto dele.
— Dom! Levante.
Dominic tirou os olhos de cima de Ibrahim e se levantou. Chavez o puxou até a cozinha.
— Que porra foi essa?
— A terapia não estava funcionando, Ding.
— Essa não é uma decisão que cabe a você. Cristo! Se contenha. Agora ele é inútil para nós. Uma bala em cada joelho... Teremos sorte se ele conseguir emendar duas palavras.
Dominic sacudiu os ombros. Falou:
— De qualquer modo, Hadi é o nosso cara. Era mensageiro. Ibrahim é líder da célula. Sabe sobre Paulínia e só isso.
— Não sabemos disso. Vai me deixar fazer do meu modo?
— Tudo bem, certo.
— Está me ouvindo?
— Sim, caramba, eu disse que sim.
Chavez voltou para a sala e se ajoelhou novamente. Disse para Ibrahim:
— Vou tirar a toalha. Se gritar, ela volta.
Ibrahim assentiu. Seu rosto estava molhado de suor. Por baixo dos joelhos se acumulavam poças de sangue sobre o compensado.
Dominic removeu a toalha. Ibrahim ofegou, mas apertou o queixo e ficou quieto. Seu lábio inferior tremia.
— Meu amigo está um pouco nervoso hoje. Desculpe. Vamos falar dos Estados Unidos. Se você nos der alguma coisa, o levamos até um hospital.
Ibrahim sacudiu a cabeça.
Para Hadi:
— E você? Nos dê o que queremos e não levamos você de volta conosco.
Ibrahim gemeu:
— Não, Shasif...
Dominic se aproximou e se ajoelhou ao lado de Chavez, fazendo o gesto de estou bem com a palma.
— Hadi — disse. — Vamos pôr as coisas sob perspectiva para você. Alguém o viu fazendo o trabalho na refinaria?
— Não, acho que não.
— Então quem sabia como você parecia? Quem poderia ter vazado o retrato falado? Ou Ibrahim ou alguém mais acima. Ninguém mais.
— Mas por quê?
— Pontas soltas. Talvez alguém ache que você não é confiável. Pense nisso. Ibrahim recebe uma ordem de cima para matar você; o retrato e a mensagem põe você em fuga. Ibrahim usa isso para convencer os outros dois a se unirem na caçada. De outro modo, Ibrahim teria que convencê-los a matar o amigo sem nenhuma razão. O que é mais fácil?
Hadi considerou isso por um momento, depois olhou de lado para Ibrahim, que sacudia a cabeça. Saliva escorria pelos cantos de sua boca e se espalhava pelo queixo.
— Não é verdade — falou.
— Hadi, ele traiu você, e agora está aí sentado ao seu lado, mentindo sobre isso. Isso não te emputece? — disse Dominic.
Hadi assentiu.
— Eu sei que realmente me emputece — continuou Dominic.
Dominic levantou a arma, estendeu na direção de Ibrahim, e atirou no seu olho. Sangue e miolos regaram a parede. Ibrahim caiu de lado e ficou imóvel, menos o braço esquerdo, que retorceu e bateu por dez segundos antes de parar.
Chavez bateu no braço de Dominic, afastando-o.
— Deus do céu! Que porra é essa!
Dominic levantou e recuou alguns passos. Hadi se encolheu em posição fetal e começou a choramingar. Dominic deu duas passadas até ele e apertou a arma na testa de Hadi.
— Não! Nem mais um movimento, Dom — gritou Chavez.
Dominic olhou de relance. Chavez estava com sua própria arma levantada na direção de Dominic, que simplesmente sacudiu a cabeça e voltou a atenção para o prisioneiro.
— Dom, não faça isso...
Dominic se inclinou e disse a Hadi:
— A menos que você tenha alguma coisa para nos dizer, seu merda, eu liquido você. Vou enfiar uma bala em sua orelha. Quando eu disser “fale”, ou você assente ou morre.
82
Jack e Clark chegaram a Virginia Beach em vinte minutos e acharam um estacionamento público a um quarteirão da praia. Todas as compras dos jovens Salim haviam sido feitas no raio de três quarteirões.
— Então o que pensa em fazer? — perguntou Jack quando desceram.
— Eles se hospedaram em algum dos hotéis por aqui usando um novo cartão e fizeram algumas compras com o antigo. Vamos bancar os delegados novamente e mostrar as fotos deles por aqui.
Na hora seguinte os dois foram de hotel em hotel, verificando todos os que estavam na lista de Jack. Entravam no estacionamento do Holiday Inn na Atlantic com a 28 quando Jack disse:
— Eles estão aqui.
— Sim, onde?
— Na piscina. Nas duas cadeiras perto do trampolim.
— Já vi. Continue caminhando.
Os dois pararam no saguão. Clark passou, franziu os lábios.
— Se lembra da floricultura que passamos na rua 27? Volte lá, compre algumas margaridas ou coisa assim. E um daqueles envelopes para cartão também.
— Hã?
— Explico depois. Não volte pelo mesmo caminho. Me encontre atrás do estacionamento.
Em 15 minutos Jack estava de volta. Encontrou Clark no fundo do estacionamento, parado ao lado de uma lixeira.
— Os dois se registraram com os mesmos primeiros nomes, sobrenome Pasaribu — informou Clark. — O quarto deles está no lado norte, no sentido oposto à piscina.
— Então passamos a gazua na porta e entramos.
— As camareiras estão por lá. Flores funcionam melhor.
Jack subiu antes, levando as margaridas. Clark foi pelo lado oposto, pela escada, e parou no alto, fora da vista de quem estava no corredor. Quando Jack chegou à porta do quarto dos Salim, parou e bateu, esperou dez segundos e bateu novamente. Quatro portas abaixo, uma camareira saiu de outro quarto e pegou algumas toalhas do carrinho.
— Por favor, senhorita — disse Jack.
— Sim, senhor?
— Trouxe essas flores para minha namorada. Tenho que voltar para a base, mas queria deixá-las aqui para ela. O problema é que já entreguei meu cartão de entrada. Será que você pode abrir a porta? Coloco as flores na cama e saio em cinco segundos.
— Eu não posso fazer...
— Entro e saio em cinco segundos.
Uma pausa.
— Bem, ok.
Ela abriu a porta e ficou do lado.
Clark aproveitou a deixa e saiu de onde estava.
— Senhorita, ei, senhorita...
— Sim, senhor?
— Preciso de toalhas. — Clark foi até o carrinho e começou a remexer os suprimentos, derrubando barras de sabonete e frascos de xampu no chão. A camareira foi até lá.
— Deixe que eu pego, senhor.
Dentro do quarto dos Salim, Jack jogou as flores na cama e olhou em volta. Cartão de entrada, cartão de entrada... Percebeu um no cinzeiro, pegou-o e foi para a porta. Lá fora, chamou:
— Obrigado. — E foi rumo às escadas. Clark pegou suas toalhas e saiu na direção contrária, dando a volta até as escadas que Jack pegou. Esperaram até a camareira entrar no quarto que limpava, caminharam para a porta dos Salim, passaram o cartão e deslizaram para dentro.
— Como você sabia sobre o cartão? — perguntou Jack.
— Eles sempre oferecem dois cartões aos casais, e a maioria das pessoas leva os dois consigo... Mas não para a piscina.
— O que vamos procurar?
— Cartões de crédito e identificações. Além disso, qualquer coisa que atraia nossa atenção.
Saíram em três minutos. Clark ligou para o Campus enquanto caminhavam de volta para o carro.
— Eles têm mais quatro cartões de crédito e três passaportes para cada um — disse a Rick Bell. — Mando os detalhes para você via e-mail.
Além do novo hotel em Virginia Beach e ainda mais refeições no McDonald’s e frappuccinos da Starbucks, os Salim tinham apenas mais um débito: um carro alugado na Budget. Jack e Clark dirigiram de volta para o Holiday Inn e acharam o Intrepid platina no estacionamento dos fundos.
— Agora esperamos — disse Clark.
Um pouco antes das duas horas da tarde, Citra e Purnoma desceram pelas escadas dos fundos do hotel e entraram no Intrepid.
Da Virginia Beach seguiram para a 264 na direção leste, através de Norfolk, e depois para Portsmouth pela 460, antes de dobrar para o norte e pegar o túnel para cruzar a Hampton Roads Bay. Do outro lado, saíram pela Terminal Avenue e depois pela Jefferson até o King Lincoln Park no extremo sul da Newport News Point. Clark os seguiu até o estacionamento e observou os Salim descerem e entrarem no parque. Deixaram os irmãos assumir uma distância de 100 metros, saíram do carro, se separaram e seguiram os dois.
O parque tinha apenas uns 400 metros. No meio do caminho, Clark e Jack se encontraram nas quadras de basquete, onde um joguinho acontecia.
— Que diabos estão fazendo? — perguntou Jack. O parque era cercado de água pelos dois lados. — Eles simplesmente trocaram a capital do sol e do surf da Virginia por isto aqui.
— Isso não está certo — concordou Clark.
Os Salim alcançaram o final do parque, onde ele formava uma flecha entre a praia e a Jefferson Avenue. Enquanto os dois observavam, a garota tirou uma câmera e começou a fotografar; não o oceano, e sim o outro lado da rodovia.
— O terminal de cargas — murmurou Clark.
— Estão fazendo reconhecimento — informou Clark a Hendley e os demais pelo telefone, uma hora mais tarde. Eles simplesmente seguiram o Intrepid dos Salim de volta ao hotel e estavam sentados na Atlantic Avenue, a um quarteirão de distância, de onde podiam ver todos os carros que iam e vinham. — O Newport News Marine Terminal. Não sabemos exatamente em que estão interessados, mas tiraram dezenas de fotos.
— Algum navio militar atracado ali? Químicos, depósito de combustível?
— Nada — respondeu Clark. — Já verifiquei. A maioria é de navios contêineres com carga seca. Seguimos os dois desde a manhã. Fora a piscina e o terminal, não foram a nenhum outro lugar, e ninguém foi até o quarto deles.
— Se estiverem pesquisando alvos, isso pode continuar por semanas — disse Granger. — E nós realmente não estamos preparados para grandes vigilâncias. Acho melhor darmos a dica para o FBI e deixar o caso com eles.
— Nos dê mais um dia — pediu Clark. — Se nada acontecer, puxamos o carro e voltamos para casa.
No Claridge Inn em Saint George, em Utah, Frank Weaver tomava uma chuveirada para tirar a sujeira de um dia de trabalho, esperando assistir a uma maratona de Law & Order na TNT, quando escutou uma batida em sua porta. Ele se enrolou na toalha e atravessou o quarto.
— Quem é?
— Recepção, Sr. Weaver. Temos um problema com seu cartão de crédito.
Weaver destrancou a porta e abriu uma fresta. A porta se abriu com um estouro e bateu na parede. Dois homens entraram, um fechando a porta, o outro dando duas passadas na direção de Weaver, que recuou pelo quarto, mas não rápido o suficiente. Sentiu algo duro fazendo pressão em seu plexo solar, depois uma martelada, então outra. Sentiu que estava caindo de costas. Quicou na cama e depois rolou pelo chão até ficar deitado de costas. Levantou a cabeça, olhou seu peito. Logo abaixo do esterno, dois buracos da grossura de um lápis estavam borbulhando sangue. O homem que atirara nele avançou e ficou por cima, uma perna de cada lado de seu peito. Frank Weaver viu o cano da pistola descendo na direção do seu rosto e fechou os olhos.
83
Os irmãos Salim deixaram o hotel às nove da manhã, e quase imediatamente Jack e Clark perceberam que retraçavam a mesma rota até Newport News Marine Terminal. Em Portsmouth, os dois saíram da rodovia e foram até um depósito da U-Haul na Butler Street. Clark seguiu adiante da entrada, dobrou na Conrad, desligou os faróis, fez um retorno e parou a 10 metros do cruzamento.
Abaixo no quarteirão, o Inteprid entrara em um estacionamento e parara diante da primeira fileira de unidades de armazenamento. Citra Salim desceu e trotou até uma unidade, que abriu com uma chave.
— Não gosto disso — disse Jack. — Para que dois jovens de férias precisam de uma unidade de armazenamento?
— Não é por um bom motivo — replicou Clark.
Citra saiu. Fechou e trancou a unidade, e voltou ao Intrepid. Carregava duas bolsas pequenas de lona.
Dentro de minutos estavam de volta na rodovia, na direção do túnel da baía. Quando chegaram do outro lado, o Intrepid continuou a refazer a rota da tarde anterior, terminando mais uma vez no King Lincoln Park. Entretanto não entraram no estacionamento, mas passaram e depois dobraram à direita na Jefferson e voltaram pela mesma direção.
— Você acha que eles nos notaram? — perguntou Jack.
— Não. Simplesmente estão sendo cuidadosos. Estamos seguros.
Estavam em uma área industrial: companhias de transporte, fornecedores de cascalho, ferros-velhos e lojas de manutenção de barcos. O Intrepid dobrou mais uma vez à direita.
— Rua 12 — falou Jack. — Novamente indo para o leste.
Clark deixou que se afastassem um pouco mais, depois desligou os faróis, deu a volta e parou no meio-fio. A 300 metros dali, o Intrepid entrou à direita, em um condomínio de apartamentos.
— Visitando novos amigos? — perguntou-se Jack.
— Vamos descobrir.
Clark acendeu os faróis e saiu novamente. Quando ficaram paralelos ao apartamento, duas pessoas saíram do estacionamento e desceram pela calçada. Eram os Salim. Com as mochilas. Clark passou por eles e olhou pelo retrovisor. Os dois caminharam de volta à Jefferson. Clark dobrou na esquina seguinte, parou de novo, luzes apagadas.
— Está vendo os dois?
— Sim, já pesquei.
Na Jefferson, os Salim cruzaram a rua e desapareceram por um canteiro central com grama alta atrás do muro de uma companhia de transporte.
— Hora de ir — disse Clark.
Com os faróis ainda apagados, ele fez a curva em U e passou da 12 para a Jefferson. Enquanto alcançavam a interseção, enxergaram os Salim virando à esquerda e sumindo atrás da cerca da transportadora.
— Estão ficando sem espaço — declarou Jack. A transportadora dava fundos para a 664, uma rodovia elevada com quatro pistas.
— Vamos a pé — disse Clark.
Estacionaram, saíram e trotaram para cruzar a rua até o canteiro central. No fundo da companhia de transporte, acharam um riacho pantanoso rodeado por arbustos cerrados e uma trilha estreita. Estavam no meio do caminho quando Clark percebeu onde estavam.
— É o canal da 664. Lembra à direita quando saímos do túnel? — Tinham visto dezenas de iates a motor e lanchas atracadas no canal.
Abaixo da trilha, um motor gorgolejou e ligou. Clark e Jack correram. Cerca de 50 metros adiante, no final de um cais, os Salim estavam sentados em uma lancha. O rapaz estava na cadeira do piloto e avançou o acelerador. O barco saiu do cais e se dirigiu ao canal.
Jack e Clark estavam de volta ao carro em um minuto. Entraram na Jefferson e foram para o sul. Depois de alguns quarteirões, o canal apareceu pela janela do passageiro. Puderam ver o barco dos Salim navegando na direção da boca do canal.
— Estão indo para o terminal — disse Clark.
— E a patrulha do porto?
— Jack, depois que passarem por volta do quebra-mar, estarão a 400 metros do primeiro atracadouro. Só temos cinco minutos, se tanto.
Clark fez o retorno e foi na outra direção.
Passaram por baixo da 664, dobraram ao sul para o Terminal. No final da rampa, a estrada se bifurcava em um conjunto de reservatórios. Clark se enfiou pela direita e seguiu por uma sinuosa estrada de terra. No meio do conjunto de reservatórios, Clark freou e parou. Cerca de 100 metros adiante havia uma guarita iluminada. Um portão oscilante bloqueava a estrada.
— Merda.
— O distintivo de delegado não abre caminho?
— Uma vez lá dentro, sim, mas os portões principais passam a exigir uma TWIC, a Credencial de Identificação de Trabalhador em Transporte, e quem não tiver uma não entra.
— Como você sabe disso?
— A Rainbow tinha uma equipe cuidando de se manter atualizada com protocolos de identificação — respondeu Clark. — Os bandidos sempre tentam estar onde não devem. Prever o que vão tentar falsificar é meio caminho andado para saber qual é o alvo projetado.
Clark deu a ré pela estrada, um braço em cima do encosto enquanto manobrava pela janela traseira, até chegarem à bifurcação. Entrou pela esquerda e parou em um desvio perto da cerca do conjunto de reservatórios.
— A pé de novo — disse Clark.
À esquerda deles, do outro lado do conjunto de reservatórios, podiam ouvir o trânsito correndo pela 664. À direita, acompanhando a estrada de terra, havia uma berma coberta por arbustos. Os dois correram pelo aterro, depois abriram caminho pela folhagem, e desceram por uma ladeira oposta. Aí se viram em um terreno com mato baixo do tamanho de um campo de futebol. No final, podiam ver a guarita que tinham localizado antes. Correram pelo campo, subiram por outra encosta, atravessaram alguns arbustos, e terminaram em uma estrada de terra. À esquerda, havia um estacionamento de terra com fileiras e fileiras de contêineres de carregamento e dois barracões provisórios. Clark e Jack passaram pela estrada e entre os contêineres em trinta segundos. Pararam para recuperar o fôlego, depois continuaram.
Acharam caminho pelo meio dos contêineres até a borda do estacionamento. As docas estavam a 200 metros dali, três delas se projetando pelo porto, com um navio atracado de cada lado, seis no total.
— Muito campo aberto entre aqui e lá. E muita iluminação. Parece um estádio. Que navio?
— Só um palpite, mas diria que é aquele que ainda não descarregou. — Apontou para um navio contêiner atracado na extrema direita. O carregamento lotava o convés de proa. — Consegue ler o nome?
Jack apertou o olho.
— Losan.
A 300 metros de distância, Citra e Purnoma Salim ancoravam o barco no píer abaixo da popa do Losan.
— Tem certeza de que é este? — sussurrou Citra.
— Tenho sim. Tome. — Ela pegou a mochila e a enfiou sob o braço.
Purnoma levantou, agarrou a escada de aço de manutenção e amarrou o cabo da proa nela. Estabilizou o barco enquanto a irmã subia pela escada. Ao chegar no último degrau, levantou os braços, apanhou o cabo de proa e passou os pés por cima da borda. Quando ela estava no meio do caminho, Purnoma a seguiu. Um minuto depois estavam no cais.
— Não deve haver mais que dois tripulantes a bordo. Você liquida com eles, eu vou para os tanques. Quando você terminar, me avise que começo.
— Lembre: aja como se fizesse parte e você passa a fazer parte — disse Clark, depois levantou e caminhou pelo estacionamento. Jack o seguiu. Um trio de sujeitos fumava do lado de fora de um dos barracões. Clark levantou o braço, acenando. — E aí, pessoal. Como estão as coisas?
— Tudo bem. E com você?
Clark sacudiu exageradamente os ombros.
— Outro dia, outra merreca.
Os homens riram.
Clark e Jack continuaram andando, deixando o estacionamento e caminhando por uma alameda de carretas. Saíram no molhe e viraram à direita, passando pelos navios. Chegaram ao cais do Losan.
— Não pode ser assim tão fácil.
— Não atraia o azar, rapaz.
Começaram a descer pelo cais. Cerca de 50 metros adiante, podiam ver que a escada de desembarque do Losan estava abaixada, a base um pouco acima do cais.
— Eles devem ter um guarda — ponderou Jack.
— Vigia, Jack. No mundo marítimo são chamados de “vigias”. Logo saberemos.
Começaram a subir, os pés pisando suavemente os degraus de aço. No alto, a gaveta da balaustrada estava aberta, mas um pedaço de cabo bloqueava a entrada. Clark soltou uma ponta e os dois entraram. À direita, adiante, um arco levava ao convés de proa, à esquerda o convés descoberto se estendia até a popa. A antepara estava quebrada em três escotilhas. Clark sacou a pistola. Jack fez o mesmo. Foram até a primeira escotilha, silenciosamente desengataram a abertura e a abriram. Do porão vinha o ruído do que parecia ser duas raquetes de pingue-pongue batendo uma na outra. Clark fez uma mímica com a mão indicando uma arma, e Jack assentiu.
Um segundo tiro.
Então, do convés de proa, veio um suave ruído radiofônico ou de um celular a rádio.
Clark apontou para si mesmo, e então para baixo da escada, depois apontou para Jack e em seguida para o convés de proa. Jack assentiu, e Clark desapareceu lá dentro.
Jack deu dois passos na direção do convés e parou. Seu coração estava disparado. Respirou fundo para se acalmar. Mudou a arma para a mão esquerda e enxugou a palma da mão na calça. Calma, Jack. Respire. É como se estivesse jogando Hogan’s Alley. É claro que não era exatamente assim, e ele sabia disso, mas fez o que conseguiu para expulsar o pensamento para o fundo de sua mente. John vai se virar bem; não se preocupe com John. Foque no que está à sua frente... Continuou caminhando, um passo cuidadoso de cada vez, a arma levantada e empunhada com as mãos, apontando para o final do convés, examinando a superestrutura acima de sua cabeça. Chegou ao arco do convés de proa. Parou. As esquinas eram o diabo, como lhe disseram Dominic e Brian. Nenhum policial gosta de esquinas. Nunca avance por uma esquina, Jack fez questão de se lembrar. Dê uma olhadinha, veja o que há, e recue.
Foi o que ele fez então: deu uma olhadinha e recuou. À sua esquerda, havia uma parede de aço de 12 a 15 metros de altura. Eram os bulktainers, os tanques armados para carga de líquidos embarcados, percebeu Jack. Quatro em cada armação e 12 pelo través. A parte frontal deles se encontrava com a plataforma levantada do porão de carga. Jack deu outra olhada, dessa vez examinando o convés aberto adiante do porão. Estava para recuar quando viu uma figura correr de trás do outro lado do bulktainer e se ajoelhar ao lado da escotilha do porão. A figura começou a soltar as alavancas da escotilha. Quando terminou, abriu a escotilha uns 30 centímetros, depois correu novamente para fora de seu campo de visão.
Do estibordo veio o rangido de outra escotilha abrindo, depois fechando. Passadas soaram no convés. Agora vozes murmuradas. Jack saiu de lado e deslizou pelo tabique até o último bulktainer. Deslizou até a frente deste, deu uma olhada pela esquina. Nada.
Então ouviu um sibilo, depois outro, e mais outro. Jack levou um momento para localizar o som: pés em uma escada de ferro. Olhou para cima. Pouco mais de 1 metro acima de sua cabeça havia uma escada pendurada. Qual é a sua, cara? Só havia um modo de descobrir. Colocou a arma de volta no coldre, agarrou o degrau de baixo e começou a subir. No alto, a escada do bulktainer acima estava deslocada uns 30 centímetros para o lado, de modo que Jack teve que agarrar o degrau seguinte e deixar os pés balançando.
Escutou alguma coisa embaixo dele e olhou. Apesar de o convés estar escuro demais para ver o rosto, Jack reconheceu os cabelos longos e negros de Citra Salim. Ela levantou a arma. Sem ponto de apoio, ele balançou ainda mais. O cano da arma de Citra brilhou alaranjado. Jack sentiu alguma coisa bem quente passar pelo lado de seu queixo e bater no aço atrás de sua cabeça.
Do outro lado do bulktainer, uma voz de homem:
— Citra?
Jack tentou pegar a arma, mas antes mesmo que seus dedos tocassem o cabo, ele sabia que era tarde demais.
Que modo idiota de acabar, pensou.
Atrás de Citra, uma figura apareceu atravessando o arco. John Clark deu uma passada rápida, levantou a arma e disparou na nuca da mulher. Ela desabou no convés.
— Citra! Você está aí?
Jack apontou para bombordo. Clark assentiu e começou a se mover para aquele lado. Jack apertou a mão no rosto; seus dedos ficaram ensanguentados. Não está jorrando, pensou, o que era bom. Começou a subir novamente, passando do segundo para o terceiro nível. No meio da subida até o contêiner mais acima, parou, sacou a arma, e continuou. Deteve-se no alto. À sua esquerda, a cabine do piloto e os suportes estavam a 1 metro de sua cabeça. Ele espreitou por cima da borda do contêiner.
Quatro tanques cilíndricos de propano, totalmente brancos sobressaindo na escuridão, estavam colocados lado a lado, dois na frente e dois atrás. A cinco contêineres de distância Jack viu um objeto prateado disparar pelo ar e cair sobre o que estava. Ele esticou o pescoço, tentando localizar o objeto, quando viu um brilho amarelado crepitando embaixo, na frente de um dos tanques.
— John!
— Aqui!
— Ele tem alguma coisa. Uma bomba, uma granada... alguma coisa.
Outro objeto fez uma curva no ar. Dessa vez, Jack viu melhor. Uma bomba caseira em formato de tubo. Jack se jogou por cima da borda do contêiner, saiu andando de lado para a frente e começou a bordejar pelos outros cofres de carga, em marcha atlética. Viu a cabeça de Clark aparecer a estibordo acima do contêiner.
Equilibrando-se na parte frontal do contêiner, Jack espreitou cada um deles, a arma acompanhando o movimento. Outra bomba fez um arco no ar e quicou em um tanque. Então mais uma.
Ele saltou para o tanque seguinte, oscilou, conseguiu se equilibrar e pulou novamente. O pé escorregou e Jack bateu com o peito na borda do quarto contêiner. A estibordo, Clark havia subido na borda e ia na direção dele.
— Os fusíveis estão queimando, John — gritou Jack.
Ele se impulsionou para cima, enganchou a perna na borda, conseguiu se ajoelhar.
— Você o viu? — perguntou Clark, dando mais um passo.
Um torso apareceu atrás de um dos contêineres, disparou um tiro na direção de Clark e mergulhou novamente para fora de vista.
— Porra — murmurou Jack, e começou a correr, braços estendidos como se caminhasse na corda bamba. Estava atravessando o sexto contêiner quando Purnoma Salim apareceu por cima da borda do oitavo tanque e caiu em cima do outro. Depois se levantou, girando na direção de Clark, que estava no meio de um pulo entre duas bordas. Purnoma levantou a arma. Ainda correndo, Jack girou a sua, braço esquerdo esticado para se equilibrar, e começou a disparar, tentando manter a mira no centro de massa. Purnoma caiu. Jack parou de disparar. Dois contêineres atrás dele, ouviu um estouro. O suporte tremeu. Estouro.
— John, saia daí! — gritou Jack, e continuou correndo.
Estouro.
A borda balançou sob os pés de Jack, que tropeçou de lado, batendo no contêiner. Viu a curva branca de um tanque de propano disparando para cima dele. Girou o corpo de lado e jogou o impacto para os braços e os ombros, depois deslizou pela borda e se viu imprensado na parede do cofre de carga.
Em algum lugar do terminal, começou a soar uma sirene de alarme.
— Jack? — gritou Clark.
— Estou bem!
Ouviu um ruído sibilante. Olhou ao redor. Diretamente abaixo dele, vindo da parte inferior do fundo do tanque, viu um brilho amarelo. Puta merda.
— John, se mexa, saia!
Um tanque mais acima, outro estouro.
Jack rolou de costas e sentou, e ficou escarrapachado no tanque. Levantou e olhou ao redor. Não tinha para onde ir. Uma queda de 15 metros de cada lado, a escada mais próxima a mais de 7 metros de distância. Cabine do piloto. Jack correu por cima do tanque e pulou. Agarrou na sacada, balançou a perna e prendeu o tornozelo. Conseguiu subir e rolou por cima da cabine de pilotagem.
Estouro.
Jack rolou. Olhou para baixo. Ouviu barulho de líquido se movimentando dentro do tanque. O cheiro o atingiu. Os olhos começaram a lacrimejar.
— John! — gritou.
— Sim, a bombordo.
— Está sentindo o cheiro?
— Sim. Mexa seu rabo.
Jack levantou, correu por cima do teto, achou a escada da superestrutura e começou a descer. Clark estava esperando embaixo.
— Que porra é essa? — perguntou Jack.
— Gás de cloro, Jack.
Quarenta minutos depois, molhados e exaustos, alcançaram o carro e dirigiram de volta para a Terminal Avenue. Pelo retrovisor, podiam observar as luzes azuis e vermelhas piscando, do começo ao fim do terminal. Sabendo que sua presença criaria mais problemas que soluções, passaram para o outro lado do Losan, percorreram pela praia algumas centenas de metros, depois caminharam de volta pelo terminal, esquivando-se dos caminhões de bombeiros e carros de polícia até chegarem ao conjunto de reservatórios.
Clark voltou pela 664 e foi na direção nordeste para Newport News, onde acharam um restaurante 24 horas. Jack ligou para o Campus. Hendley atendeu.
— Essa merda em Newport News... São vocês?
— Já está no noticiário?
— Em todos os canais. O que aconteceu?
Jack relatou os acontecimentos, depois perguntou:
— A coisa foi feia?
— Podia ser pior. Até agora, só uns trinta trabalhadores do terminal foram parar no hospital. Nenhuma morte. O que era aquilo. Que tipo de tanques?
— Propano, acho, uns cinquenta. Só jogaram meia dúzia de bombas, mas aposto que tinham muito mais nas mochilas.
— Os dois estão mortos?
— Sim.
— Preciso de vocês dois de volta no aeroporto. Já fizemos reservas no voo das três e meia de volta para cá.
— O que está acontecendo?
— Tivemos notícias de Chavez e de Caruso. Pegaram Hadi, e ele está falando.
84
Hendley e Granger esperavam os dois com um Suburban quando desceram em Dulles.
— Para onde vamos? — perguntou Clark.
— Andrews. Há um Gulfstream esperando — respondeu Hendley. — Já temos equipamento e roupas a bordo. Mas comecemos pelo começo: o navio, Losan. Você estava certo, Jack. Os Salim tinham duas dúzias de bombas. No manifesto de carga estavam listados 46 tanques de propano, todos com defeito e vazios, voltando do Senegal para o fabricante, a Tarquay Industries, em Smithfield.
— Bem, sabemos que não estavam vazios — disse Clark.
— Correto. Ainda demora uns dois dias para terem certeza, mas as equipes do Departamento de Materiais Perigosos suspeitam que havia em cada tanque algumas centenas de galões de amoníaco ou hipoclorito de sódio.
— Alvejantes — apontou Jack.
— Sim, parece. Alvejante comum de uso diário. Misture as duas e você tem gás cloro. Faça as contas e estamos falando de pelo menos 35 toneladas de precursores de gás cloro. Da maneira como ficou, sabemos que apenas umas duas centenas de galões foram misturados. Conseguiram conter a coisa.
— Puta merda! — exclamou Jack. — São 35 toneladas. Que tipo de danos isso poderia provocar?
— Depende muito do vento, da umidade e da temperatura, mas podíamos estar considerando milhares de mortos. Milhares a mais com queimaduras na pele e na mucosa, edema pulmonar, cegueira... É uma merda feia — respondeu Granger.
— Ponto seguinte da pauta. Chavez e Caruso agarraram Hadi — continuou Hendley.
— E os outros do grupo? — perguntou Chavez.
— Mortos na Rocinha. Isso pode ter algo a ver com o resultado, mas, quando Hadi começou a falar, não parou mais.
— Estamos com ele?
— Não, ele foi empacotado que nem um peru do Dia de Ação de Graças e deixado numa delegacia com um bilhete anexado. Jamais vai sair de uma prisão brasileira.
— Estávamos basicamente corretos sobre Hadi. Há muito tempo era mensageiro do CRO, e foi recrutado para a operação em Paulínia no momento final. No seu último trabalho como mensageiro, de Chicago a Vegas e de lá para São Francisco, ele deu uma parada no caminho para visitar um velho amigo.
A expressão de Hendley respondeu à pergunta seguinte antes que Jack ou Clark pudesse formulá-la.
— Você está de sacanagem com a gente.
— Não. O Emir veio em um Dassault Falcon desde a Suécia há cerca de um mês. Vive nos arredores de Vegas desde então.
— E Hadi sabia onde...
— Sim.
— Isso é bobagem — declarou Jack. — Ele veio para cá por alguma razão. Essa coisa de Paulínia, o Losan... Ding está correto. O dominó começa a cair.
— Concordo — disse Granger. — Por essa razão é que vocês vão agarrá-lo; Chavez e Caruso já estão voando. Vão pousar mais ou menos uma hora depois de vocês.
— Então agarramos o cara e o colocamos na soleira do FBI? — disse Clark.
— Não tão cedo, e não até termos a oportunidade de espremê-lo um pouco.
— Isso pode levar algum tempo.
— Veremos.
Hendley disse isso com um sorriso que Jack só pôde descrever como ligeiramente maligno.
Em Andrews, o Gulfstream estava abastecido e pronto, a porta aberta e as escadas estendidas para eles. Jack e Clark pegaram seus equipamentos no porta-malas do Suburban, apertaram as mãos de Hendley e Granger, e entraram a bordo do avião. O copiloto os recebeu na porta.
— Sentem onde desejarem. — Recolheu as escadas, trancou a porta. — Estaremos taxiando em cinco minutos e com as rodas recolhidas em dez. Sirvam-se do que quiserem no refrigerador e no minibar.
Jack e Clark foram para a cabine. Na última fileira estava sentado um rosto familiar: Dr. Rich Pasternak.
— Gerry não me contou muita coisa — disse Pasternak. — Por favor, me digam se estou atravessando o país no meio da noite por conta de uma maldita boa razão.
Clark sorriu.
— Nada está escrito em pedra, doutor, mas acho que seu tempo vai valer a pena.
Com quatro horas de diferença de fuso horário e um voo de quatro horas e vinte minutos, tecnicamente pousaram no aeroporto de North Las Vegas apenas vinte minutos depois de deixar Andrews. Era um fenômeno que Jack compreendia, é claro, mas pensar muito sobre a flexibilidade surrealista do mundo contemporâneo podia deixar uma pessoa com dor de cabeça.
Entre sonecas, ele e Clark dissecaram a missão no Losan, conversaram sobre beisebol e vasculharam a geladeira e o minibar. Por sua vez, Pasternak ficou sentado na poltrona, cochilando de vez em quando, mas principalmente olhando o espaço. Jack sabia que havia muita coisa na mente do médico. O homem tinha perdido um irmão naquela feia manhã de setembro, e agora estava ali, oito anos depois, talvez para conhecer o sujeito que planejara tudo aquilo. Embora “conhecer” não fosse exatamente a palavra certa, não é? O que Pasternak havia guardado para o Emir era algo que Jack não desejava para ninguém. Quase ninguém.
O avião parou, os motores pararam de girar. Jack, Clark e Pasternak recolheram seus pertences pessoais e foram para a porta. O copiloto saiu da cabine, abriu a porta e estendeu a escada.
— Doutor, quer que mandemos seu equipamento para o terminal?
— Não, aguardaremos por ele.
Na pista, Clark perguntou a Pasternak:
— Que equipamento?
— Ferramentas do ofício, Sr. Clark.
Pasternak disse isso sem qualquer traço de um sorriso.
Um ônibus do aeroporto os levou até o terminal, e dez minutos depois estavam numa minivan Ford rumo sul para Rancho Drive. Entraram no estacionamento rotativo do McCarran e acharam uma vaga. Jack ligou para o celular de Dominic, que respondeu no segundo toque.
— Já pousaram? — perguntou Jack.
— Há cinco minutos. Onde vocês estão?
— Pegamos vocês na saída.
Chavez e Dominic jogaram suas coisas na área de carga e entraram. Todos se cumprimentaram. Chavez disse:
— Droga, John, jamais pensei que veria você dirigindo um carrinho de mamãe levar filhos para o futebol.
— Engraçadinho.
Clark saiu e se dirigiu para a rodovia.
Em apenas 15 minutos, eles já entravam no condomínio de luxo. Seguindo as indicações de Chavez, Clark passou pela casa sem diminuir a marcha, depois dobrou na esquina e voltou para a entrada da seção. No sinal de parada, colocou a van em ponto morto e desligou os faróis.
— Temos cerca de duas horas antes do amanhecer e nenhuma inteligência sobre o que há lá dentro, correto, Ding?
— Hadi viu a garagem, a cozinha e a sala de estar. Só isso.
— Sistemas de alarme?
— Não se lembra de ter visto nenhum teclado. Sabe com certeza que o Emir tem um guarda-costas, um sujeito chamado Tariq. Aparência regular, altura média, cabelos castanhos, mas suas mãos são todas queimadas. Hadi não sabia nada a respeito.
— Então com certeza temos dois lá dentro — disse Clark. — Provavelmente faz algum tempo que o Emir não atua como soldado, mas assumimos que ambos são durões. Perguntas?
Não havia nenhuma.
— Vamos em silêncio até a porta da garagem do lado, depois para a cozinha. Duas equipes. Alguém acha necessário misturarmos as duas?
— Não — respondeu Chavez.
Jack notou Dominic baixar ligeiramente a cabeça e olhar pela janela.
— Dom? — perguntou Clark.
— Nós funcionamos bem juntos. Eu meio que fodi um pouco as coisas, mas depois ajeitamos tudo, certo?
Ding assentiu.
— Podemos prosseguir.
— Ok — concordou Clark. — Duas equipes, revista padrão na casa. Precisamos de todos os vivos que consigamos, mas o Emir é nosso alvo primário. É melhor se não dispararmos nenhum tiro. Numa vizinhança destas vamos ter policiais aqui em cinco minutos. Doutor, vou pedir que fique aqui e cuide do forte. Chamamos depois de terminar. Se houver espaço na garagem, entre direto. Se não, vá pelo acesso.
Estacionaram a van no final do quarteirão e caminharam o restante do caminho. O céu estava claro, com lua cheia; o ar frio, o tipo de frio que só acontece numa noite no deserto.
Clark foi à frente, caminhando pela calçada, pelo portão do lado e a porta lateral. A tranca era uma maçaneta de girar, e ele a abriu com a gazua em quarenta segundos. Todos entraram na garagem. Dominic, na retaguarda, fechou a porta. A garagem estava vazia. Nenhum carro. Ficaram ali um minuto completo, escutando e deixando os olhos se acostumarem com a escuridão.
Clark foi até a porta da cozinha e experimentou a maçaneta. Olhou para os demais, e todos assentiram. Cada um sacou sua arma. Clark girou a maçaneta, parou, escutou e abriu a porta. Ficou parado na soleira por vinte segundos e examinou o umbral, procurando o bipe de um alarme. A casa estava em silêncio. A cozinha e a copa estavam à direita; à esquerda, através de um arco, a sala de estar.
Clark entrou e foi para a direita, seguido por Jack, depois por Dominic e Chavez, e então foram na direção do arco. Quando Clark acenou, começaram a se movimentar pela casa. Do outro lado da cozinha havia uma porta aberta e, adiante, um corredor. Clark espiou pelo canto. A 3 metros, à sua esquerda, a cabeça de Ding apareceu no outro lado. O corredor se estendia pela direita de Clark. Três portas, uma de cada lado e uma no final do corredor. Clark fez gestos para Ding e Dominic pegarem a porta da esquerda. Quando chegaram na frente, Clark e Jack deslizaram do lado da porta da direita. As duas equipes entraram no mesmo momento e saíram dez segundos depois. Ambos eram quartos de hóspedes, e os dois estavam vazios.
Pararam diante da porta no final: Clark, Jack, Chavez e Caruso. Clark gesticulou: dois a dois, direita e esquerda. Todos assentiram. Clark experimentou a maçaneta, virou-se e assentiu. Todos avançaram pela porta, ocupando a direita e a esquerda, as armas acompanhando. Clark levantou o punho — esperem —, e indicou um amontoado sob as cobertas. Depois apontou para Chavez e em seguida para o closet. Ding verificou, e sacudiu a cabeça.
Clark deslizou até a cama. Jack e Dominic ficaram no pé, e Ding do outro lado. Todos os quatro apontaram as armas para a figura sob as cobertas. Clark colocou a pistola no coldre e ligou a lanterna-lápis de LED. Agarrou a ponta do lençol e puxou.
— Merda.
85
Kersen Kaseke saiu de casa às quatro da madrugada e dirigiu dois quarteirões até um posto de gasolina aberto 24 horas, e comprou uma xícara grande de café. Se o café era de fato haraam — proibido para muçulmanos —, Kaseke até então ainda não descobrira a verdade definitiva, de modo que se permitia aquela indulgência. Era apenas isso, afinal. Ele nem fumava nem bebia nem deixava os olhos se fixarem muito tempo na nudez relativa das mulheres dali.
Voltou para o carro e dirigiu para a Igreja Congregacional do Coração Aberto. As ruas da cidade, aliás raramente muito movimentadas, estavam especialmente tranquilas. Tinha chovido desde o meio da tarde, e agora as únicas pessoas que se deslocavam eram as que não tinham escolha: trabalhadores que entravam cedo, motoristas de entregas, a polícia... Destes últimos ele não viu nenhum carro; um sinal, acreditava, de que Alá estava com ele.
Deu duas voltas pela igreja, em seguida estacionou a um par de quarteirões ao norte, no estacionamento de uma loja de vídeos, colocou a mochila nas costas e saiu. Por força do hábito, não tomou o caminho mais direto até a igreja, e sim uma rota cheia de desvios. Ao finalmente se convencer de que não estava sendo seguido, Kaseke atravessou o gramado diante da igreja até as sebes que margeavam os degraus de entrada, onde se ajoelhou.
Retirou da mochila a primeira mina. Oficialmente conhecida como M18A1, e coloquialmente como “Claymore”, era projetada para uso como arma antipessoal e de vedação de área. Moldada como um retângulo convexo, as entranhas da Claymore não eram complicadas: uma camada de explosivo plástico C4 apoiando uma camada de setecentas bolas de aço de rolamento, cada uma do tamanho de chumbo de caça #4, embutidas em uma camada de resina. Quando detonada, o C4 espalha os setecentos fragmentos na velocidade de 1.220 metros por segundo. Como foi instruído e treinado, Kaseke tinha, na noite anterior, removido a embalagem externa da Claymore e espalhado cuidadosamente 225 gramas de bolinhas de veneno de rato entre as bolas de aço. O ingrediente ativo do veneno, difetialona, era um anticoagulante e, com sorte, impediria que mesmo os menores ferimentos coagulassem. Era uma tática usada com sucesso por seus irmãos palestinos na Faixa de Gaza e na Margem Ocidental. Não demorou muito para que o pessoal de socorro israelense percebesse do que se tratava, mas durante um curto período muitas pessoas morreram, sangrando até a morte a partir do que pareciam ser apenas pequenas lacerações. Por jamais terem visto esse tipo de ataque antes, os paramédicos locais enfrentariam o mesmo horror e confusão.
Quando se certificou de que as bolinhas estavam bem distribuídas, Kaseke selou o veneno no local com uma fina camada de cera de vela, deixou endurecer e remontou a caixa da Claymore. O manual recomendava lenço de papel revestido integralmente com uma camada de adesivo para pano em spray, mas a cera funcionaria da mesma maneira, ele sabia. Em seguida, verificou cada parafuso, o ajuste, para ter certeza de que as camadas se encaixavam perfeitamente. O manual também era direto sobre isso: se as embalagens externas estivessem desalinhadas, a força do explosivo poderia se dispersar. Essa instrução ele seguiu à risca.
Em seguida, Kaseke esticou os suportes em forma de tesoura da mina. Depois se assegurou de que a etiqueta — frente na direção do inimigo — estivesse apontada para a entrada daquela igreja que, dentro de algumas horas, estaria cheia de movimentação. Então enfiou as pernas no terreno suave dentro das sebes. Ficou de barriga, rastejou entre as cercas de plantas, em seguida deu a volta e olhou pelo visor colocado no topo da mina.
Ótimo. Havia escolhido a localização perfeita. A explosão abrangeria não apenas a entrada e as escadas como também parte da calçada.
Verificou o cronômetro da mina com seu próprio relógio. Estavam sincronizados. Ajustou o tempo e apertou o botão de início, e passou alguns segundos observando os tique-taques antes de levantar e ir embora.
Como costumava fazer nos fins de semana, Hank Alvey despertou cedo na manhã de domingo e silenciosamente tirou os três filhos da cama, alimentou-os com aveia e waffles de mirtilo, e depois os deixou sentados diante da TV — o volume bem baixo — para assistir a desenhos animados. As nuvens de chuva da noite anterior tinham sumido, deixando o céu azul brilhante. Raios de sol atravessavam as janelas da sala de estar e se refletiam no assoalho de madeira onde agora as crianças sentavam, mesmerizadas pela TV.
Um pouco antes das sete horas, preparou para Katie uma torrada com massa de pão fermentada, e a despertou com o café da manhã na cama. A loja de pneus da qual era o gerente fechava aos domingos, de modo que este era o único dia em que podia livrar a esposa do que ao contrário seria um trabalho de sete dias por semana. Cuidar das crianças para que ela pudesse dormir mais uma hora, dizia a esposa, era tão romântico e tão sexy. E, na maioria das noites de domingo, depois de as crianças dormirem, ela mostrava a ele exatamente o quanto apreciava aquele gesto.
Mas isso era para mais tarde, lembrou-se Hank, servindo o café, que estava ao lado do pão recém-amanteigado. Na maioria das manhãs ele quase conseguia chegar na cama antes que Katie virasse e o recebesse com um sorriso sonolento. O que ela fez então.
— O que tem para o café da manhã?
— Adivinhe.
— Ah, meu favorito. — Ela se sentou e enfiou os travesseiros atrás das costas. — O que você fez com as crianças, trancou no closet?
— Estão vendo Yo Gabba Gabba! Acho que Jeremy tem uma paixonite pela Foofa.
Katie deu uma mordida na torrada.
— Qual é essa?
— Aquela com a florzinha rosa.
— Certo. Vamos à igreja?
— É bom irmos. Perdemos os dois últimos domingos. Podemos pegar o culto das nove e depois levar as crianças ao parque.
— Muito bem. Vou ficar bonita para sair.
— Feito — disse Hank, indo para a porta. — Vou soltar as crianças agora do closet.
Katie já descia as escadas, vestida, penteada e maquiada, antes mesmo de Hank estar pronto para a operação sapatos. O mais velho deles, Josh, já sabia atar os seus, mas Amanda e Jeremy não, de modo que Hank cuidou de um enquanto Katie ajudava o outro, e então estavam de saída, procurando os casacos e as chaves do carro, e verificando se a porta dos fundos estava trancada.
— Vamos chegar atrasados — disse Katie.
Hank verificou o relógio.
— Ainda faltam mais de 15 minutos. Chegamos lá em cinco minutos. Muito bem, garotos, a caminho...
E saíram.
Meio quarteirão ao norte e do lado oeste da igreja, Kaseke estava no seu terceiro café do dia, sentado em um banco da parada de ônibus. Daquele ângulo tinha uma visão perfeita das escadas da frente. Pronto. As portas se abriram e as pessoas começaram a sair. Kaseke verificou o relógio: 8:48. Pelo caminho que dava a volta na igreja até o estacionamento dos fundos chegava a fila dos fiéis das nove horas. Na frente do grupo vinha um jovem casal com três crianças — dois garotos e uma menina —, os três de mãos dadas e avançando adiante dos pais. Kaseke fechou os olhos e pediu forças a Alá. Isso era necessário. E as crianças, pequenas como eram, morreriam instantaneamente, tão rápido que a dor nem seria percebida por suas mentes.
O grupo que chegava parou no final do caminho, onde se reuniu na área comum diante das escadas.
Keseke verificou o relógio. Faltava menos de um minuto.
A 100 metros de onde tinha plantado a mina, não podia ver que seu plano estava sendo arruinado e, só mais tarde, depois de ele ser capturado, a polícia explicaria como fracassara.
Nas últimas cinco horas em que a Claymore ficou primeiro debaixo da chuva e depois sob o sol matinal, a cera de vela que Kaseke usara para cimentar as bolinhas de veneno de rato nas bolas de rolamento e sua base de resina começou a rachar. Isso por si só não interferiria nas funções da mina, mas o que Kaseke não sabia era que essa Claymore em particular, e outras oito, tinham mais de duas décadas de vida e haviam passado os últimos oito anos armazenadas de modo inadequado dentro de uma caixa de madeira em uma caverna úmida, ou enterradas no solo cozido pelo sol da província de Nargahar, no Afeganistão.
Enquanto a vela de cera rachava dentro do estojo, a resina, com seu prazo de validade há muito vencido e tão quebradiça quanto um biscoitinho, também rachou, mas apenas alguns milímetros. Era o suficiente, entretanto, para afrouxar os soquetes sobre os quais estavam 14 bolas de rolamento. Com tinques metálicos sobrepostos que ninguém poderia ouvir nas escadas da igreja, as 14 bolas de rolamento se soltaram e caíram contra o fundo do estojo. Se não fosse pelas dez horas de chuva, isso, também, não teria prejudicado a detonação da mina, mas os suportes que a sustentavam na posição no solo, agora amaciado e com consistência de lama, sucumbiram ao peso das bolas de rolamento, que mudaram de posição. Às 8:49:36, 24 segundos antes da detonação, a Claymore cuidadosamente apontada por Kaseke se inclinou para a frente e parou em um ângulo de 45 graus, metade da dianteira apontando para a terra, e a outra metade apontando para o concreto.
Quando acordou horas depois no hospital, os primeiros pensamentos de Katie Alvey foram: Meu marido morreu e acho que meus filhos estão vivos, seguido pela compreensão de que a sorte pura e simples teve grande participação no resultado, seja ele qual fosse.
Enquanto a mina de Kaseke se inclinava para baixo, a família Alvey subia as escadas junto com dúzias de outros atrasados que também começavam a subir. Hank caminhava mais perto das sebes que margeavam a escada, com Josh e Amanda à sua esquerda, depois Katie e Jeremy, que segurava a mão da mãe.
As testemunhas mais tarde descreveriam a explosão como um sopro intenso seguido de uma tempestade de granizo infernal. Katie não viu nem ouviu essas coisas, mas por alguma razão havia virado o rosto para Hank quando a Claymore disparou. Das setecentas bolas de rolamento que estavam dentro da mina, umas quatrocentas foram na direção do chão, formando uma cratera no canteiro e arrancando um pedaço de 1 metro de largura do concreto. O restante das bolas ou deslizou pelo concreto, ferindo pés e panturrilhas, destroçando ossos e arrancando pedaços de carne, ou rebateu no concreto em vários ângulos e trajetórias. Os que tiveram o azar de serem atingidos por esses ou morreram instantaneamente ou sofreram horríveis ferimentos nos membros. Hank Alvey, com seu corpo protegendo o filho mais velho e a filha, foi atingido por uma bola por baixo do lado esquerdo do queixo, efetivamente destroçando sua cabeça em três partes. Katie viu isso, mas não teve tempo de reagir nem de agarrar qualquer uma das crianças ou proteger Jeremy com seu corpo. Felizmente, nada disso fora necessário.
Katie ficou parada piscando, os ouvidos zumbindo e o cérebro sem conseguir registrar a carnificina ao redor. Dos dois lados dela, Josh, Jeremy e Amanda estavam igualmente estonteados, mas isso passou rapidamente, e as lágrimas começaram a escorrer. Os degraus estavam banhados de sangue e forrados com braços, pernas e pedaços não identificáveis de... quem? Ela não reconheceu ninguém. Dúzias de pessoas estavam estendidas no concreto. Algumas não se mexiam, outras se contorciam de dor ou tentavam se arrastar para longe ou na direção dos seus bem amados, as bocas se mexendo, mas sem nenhum som saindo.
Então os ouvidos de Katie se abriram e ela escutou os gritos. E as sirenes.
86
Depois de se certificar de que todas as cortinas estavam fechadas, eles acenderam as luzes da casa, e então Jack chamou Pasternak e mandou que ele estacionasse a van na garagem. O médico entrou pela porta da cozinha e parou de súbito.
— É ele?
— Não, esse é Tariq, o guarda-costas do Emir — disse Jack.
De fato, precisaram de dez minutos para que Tariq apenas admitisse o próprio nome. Afora isso, não disse nada. Chavez e Domingo revistaram o restante da casa, mas até então ela mostrava toda a individualidade de um modelo do construtor. Não havia toques pessoais.
— Parece que acabamos de perder o próprio sujeito — disse Jack. — Vá se sentar na sala de estar, doutor. Logo o chamaremos. — Ele se reuniu com Clark na mesa diante de Tariq. Tinham amarrado suas mãos e seus tornozelos com fita crepe, e depois amarraram os pés na mesa da cozinha, também com fita adesiva.
— O que aconteceu com suas mãos? — perguntou Clark.
Tariq as tirou de cima da mesa e as colocou no colo.
— Um incêndio.
— Isso eu já supunha. Como, especificamente?
— Vocês invadem minha casa, me arrancam da cama. Não são da polícia. Quem são vocês, e o que querem?
— Você sabe por que estamos aqui — disse Jack. — Quando ele saiu?
— Quem? Moro aqui sozinho.
— Shasif Hadi nos contou uma história diferente.
Ao ser mencionado o nome de Hadi, os olhos de Tariq se estreitaram ligeiramente, mas logo voltaram ao normal.
— Não está interessado em saber como achamos Hadi? — indagou Jack. — Nós o pegamos no Rio de Janeiro. Depois do ataque à refinaria de Paulínia, o Emir ordenou que ele quebrasse contato com Ibrahim, Fa’ad e Ahmed. O Emir disse que os outros o haviam traído.
— Isso não é... — Tariq parou no meio da frase.
Clark interrompeu:
— Não é verdade? Está certo. A verdade é que quebramos sua criptografia. Todas essas tabelas de uso único embutidas nos banners dos sites... Quebramos isso, e mandamos uma mensagem para o site de armazenamento de Hadi para aquele dia, e o pusemos para correr, bem para o nosso colo. — Clark olhou Jack. — Levou o quê, uns dez minutos para ele ser quebrado?
— Nem isso. Olha só mais uma novidade, Tariq: o cargueiro Losan... paramos ele também. Os irmãos Salim estão mortos, e o corpo de bombeiros de Newport News está agora mesmo descarregando aqueles tanques de propano.
Dessa vez, Tariq não conseguiu se conter:
— Vocês estão mentindo!
— Sobre que parte? — provocou Clark. — Hadi ou o Losan?
— Ambos.
— Então está admitindo quem você é e que conhece o Emir.
Tariq fechou as mãos na mesa diante dele e olhou direto para a frente.
A voz de Ding veio do corredor:
— John, você vai querer ver isso.
Clark e Jack foram até Ding e Dominic, que estavam no quarto principal. Sobre uma cômoda com gavetas estava um laptop. Ding falou:
— Achamos isso na mesa de cabeceira. — Apertou o botão de retorno.
Depois de instantes o rosto do Emir apareceu na tela. O fundo era o sofá e a parede da sala de estar.
— Meu nome é Saif Rahman Yasin. Também sou conhecido como o Emir, e sou o comandante do Conselho Revolucionário Omíada. Falo a vocês hoje como um muçulmano devoto e humilde servo e soldado de Alá. A essa hora, o mundo já testemunhou a vingança que Alá impôs a essa nação infiel dos Estados Unidos da América...
Clark apertou o botão de parar, detendo o vídeo.
— É o testamento do filho da puta.
— Quando isso foi feito? — quis saber Jack.
— Ontem — respondeu Dominic.
— Cristo.
Todos seguiram Clark pelo corredor e de volta à copa. Clark sentou na mesa e todos ficaram olhando.
— Tariq.
— O quê?
— Quero que você me diga onde Saif está e o que vai fazer. Antes de responder, você precisa compreender a regra básica: você só tem uma oportunidade de responder, senão...
Tariq olhou para a frente.
— Vão me matar? Podem ir adiante; não temo a morte. Serei recepcionado no paraíso como um...
— Não vamos matar você, Tariq. Mas antes de passar uma hora, você vai desejar que tivéssemos feito isso.
Tariq se voltou e olhou Clark.
— Não tenho medo — desafiou.
Clark o olhou solenemente por alguns instantes, e depois, sem desviar o olhar de Tariq, disse para Ding por cima do ombro.
— Vá encher a banheira.
Clark realmente nunca compreendera a discussão sobre se afogamento era ou não tortura. Qualquer um que tivesse passado por isso ou visto a coisa sabia que era. Mas conseguia resultados cuja validade só podia ser avaliada por um interrogador particularmente astuto ou pela subsequente coleta de informações. Clark era abençoado com o primeiro atributo, mas infelizmente não tinha nem tempo nem recursos para o último.
Oito minutos, uma toalha encharcada e exatamente 1 litro de água foi todo o necessário. Satisfeito, Clark levantou da posição acocorada sobre Tariq, quase inconsciente e cuspindo água, e voltou-se para Ding, que estava de pé, braços cruzados, e apoiado na parede do banheiro.
— Pode esvaziar a banheira — ordenou Clark. — Limpe o cara e o tranque.
— Você acreditou, John.
— Sim. — Clark verificou o relógio. — De qualquer maneira, já estamos sem tempo.
87
Clark voltou à cozinha.
— Jack, pegue a lista telefônica. Precisamos do aeroporto mais próximo. Passeios comerciais de helicópteros são nossa melhor aposta.
— Já vendo.
— Dom, você dirige. Doutor, ficará confortável aqui com ele? — Ding vinha pelo corredor arrastando Tariq atrás de si. — Voltaremos para pegá-lo.
— Com certeza.
Jack anunciou:
— Paragon Air Helicopter Tour na rodovia 215. A 5 quilômetros daqui.
Em trinta segundos estavam no carro e em dois minutos na rodovia. Clark usou o telefone via satélite para ligar para o Campus. Rick Bell atendeu, e Clark falou:
— Preciso de você, Gerry e Sam para uma conversa em conferência imediatamente.
— Espera aí.
Transcorreram trinta segundos. Hendley entrou na linha.
— O que há, John?
— Estou com Jack na linha também. Nosso sujeito fugiu, saiu ontem. Um guarda-costas ainda estava na casa. Eles têm uma bomba, Gerry, provavelmente abaixo de 10 quilotons, mas grande o suficiente para o que planejaram.
— Espera, como é? Isso é confiável?
— Acredito que sim. E temos que assumir que é.
— Onde eles conseguiram isso?
— Não tenho ideia. Nosso sujeito não tinha essa informação.
— Muito bem, o que mais?
— O Emir irá se encontrar com seis homens a mais ou menos 160 quilômetros daqui. O guarda-costas não tinha os detalhes completos, mas o alvo deles é a montanha Yucca.
— A do depósito de lixo nuclear?
— Essa aí.
— Mas ainda nem está aberta. Não há nada ali.
— Há o lençol freático — rebateu Jack.
— Como é?
— Pense em um teste nuclear subterrâneo. Detone uma bomba nuclear sob 3 mil metros de rocha e a onda de choque desce direto. Os engenheiros de lá já têm túneis de armazenamento que descem a mais de 300 metros. O lençol freático está 150 metros mais abaixo. É uma peneira geológica — explicou Jack. — Toda a radiação da bomba desce direto para os aquíferos, e dali para o restante do sudoeste. Talvez chegue até a Costa Oeste. Estamos falando de milhares de quilômetros quadrados envenenados pelos próximos 10 mil anos.
O silêncio se fez na ponta do Campus. Depois Granger disse:
— Onde eles conseguiram essa porra?
— É de fabricação caseira, provavelmente algo estilo canhão primitivo: dispare um pedaço de urânio chamado “infiltrante” dentro de um pedaço maior chamado de “mina” e se consegue massa crítica — respondeu Clark.
— E o material? Onde obtiveram?
— Não tenho certeza. O guarda-costas disse que um dos capitães do Emir estava na Rússia até duas semanas atrás.
— Você é quem está no terreno, John. O que quer fazer? — indagou Hendley.
— Estamos com opções limitadas, Gerry. Seja lá quem chamemos, não vai simplesmente mandar a cavalaria. Há uma centena de questões antes que alguém se mexa: quem somos nós, onde conseguimos a informação, que provas temos... Você sabe como é isso.
— Sim.
— Estamos a uns dois minutos de uma pista de aviação. Vamos ver se conseguimos um helicóptero. Dependendo do que conseguirmos, podemos estar sobre Yucca em trinta minutos. Se chegarmos lá primeiro, protegeremos a base até você achar alguém que escute.
— E se chegarem lá em segundo lugar?
— Não quero nem pensar nisso. Ligo quando estivermos voando.
A 150 quilômetros do norte de Las Vegas, na rodovia 95 do Vale da Morte, o Emir diminuiu a marcha de seu carro e cruzou o canteiro central até o acostamento. A via de terra mal era perceptível através da berma de cactos anões, mas ele pegou o caminho para dentro de uma depressão e logo achou as marcas de pneu. Pelo para-brisa, a uns 500 metros adiante, as Skeleton Hills se levantavam do terreno desértico como montanhas lunares.
A trilha continuava descendo, depois virava ao norte e começava a correr paralela a um cânion raso. Ele viu um carro estacionado uns 400 metros adiante. Quando se aproximou, percebeu se tratar de um Subaru. Musa estava de pé ao lado da porta do motorista. O Emir diminuiu a marcha e parou ao lado dele, que entrou no carro. Os dois se abraçaram.
— Que bom ver você, irmão — disse Musa.
— E você também, velho amigo. Estão todos lá?
— Sim, logo adiante.
— E o dispositivo?
— Já está carregado e a bordo.
O Emir seguiu as indicações de Musa por mais uns 800 metros pela trilha, até onde esta fazia uma curva junto a uma colina baixa. A carreta de Frank Weaver estava estacionada, a frente virada para a estrada. O tonel GA-4 brilhava ao sol. Três homens estavam de pé ao lado da porta do motorista.
O Emir e Musa desceram e foram até lá.
— Minha equipe da Rússia — disse Musa. — Numair, Fawwaz e Idris.
O Emir acenou para cada um.
— Todos agiram muito bem. Alá sorrirá sobre vocês. — O Emir verificou o relógio. — Partiremos em 15 minutos.
O espaço era apertado, mas todos conseguiram se espremer na cabine do caminhão. Fawwaz, que era o mais parecido com Frank Weaver, dirigia. Cinco minutos mais tarde, estavam na rodovia em direção ao norte.
Uma placa no acostamento informava: RODOVIA 373 — 10 quilômetros.
Chavez parou no estacionamento da Paragon Air. Através da cerca podiam ver dois helicópteros — ambos Eurocopter EC-130 — parados na pista. Chavez foi até o escritório, e Clark desceu com Jack.
— Ding, dê a volta até o portão da manutenção. Abriremos para você.
Clark e Jack foram até o escritório. Uma mulher com cerca de 60 anos, usando um penteado que parecia uma colmeia vermelha, estava sentada atrás do balcão. À direita, através de uma meia porta de vidro, estava a área de manutenção.
— Bom dia — saudou Clark.
— Bom dia para você. Em que posso ajudar?
— Será que tem um piloto por aí com quem eu possa falar?
— Talvez seja algo que eu possa ajudar. Está interessado em um tour?
— Não, na verdade tenho uma pergunta técnica sobre o conjunto de sustentação do rotor do EC-130. Meu filho aqui estuda aviônica, e seria de enorme ajuda se pudesse ver um de perto.
— Só um instante, vou ver se Marty tem um tempinho.
Ela pegou o telefone, falou por um minuto, e depois disse:
— Ele já vem.
Clark e Jack foram rumo à porta. Um sujeito com macacão cinza se aproximou e a abriu. Clark estendeu a mão.
— Olá, Marty! Steve Barnes. Este é meu filho Jimmy... — Enquanto falava, avançou pela porta, levando Marty consigo. — Tenho uma pergunta sobre o EC-130.
Apenas mais duas pessoas eram visíveis no hangar, ambas no extremo oposto, perto de um Cessna.
— Claro — respondeu Marty. — Mas provavelmente deveríamos voltar lá para dentro.
Clark levantou a fralda da camisa e mostrou o cabo da Glock a Marty.
— ...Ah, merda, ei...
— Relaxa — disse Clark. — Só queremos pegar um helicóptero emprestado.
— Hã?
— E queremos que você pilote.
— Isso é uma piada?
— Nada disso. Você vai nos ajudar ou dou um tiro na sua perna e levo o helicóptero de qualquer jeito. Coopere, nos leve até onde queremos ir e estará de volta dentro de uma hora. Diga sim.
— Sim.
— Qual pássaro está pronto?
— Bem, nenhum...
— Não minta para mim, Marty. Estamos no fim de semana. Horário nobre para tours e lições.
— Ok. Aquele ali. — Marty apontou.
— Vá dizer à recepcionista que você vai dar uma saidinha rápida. Banque o espertinho e leva um tiro na bunda.
Marty abriu a porta, enfiou a cabeça, e fez o que mandaram.
Jack sussurrou a Clark:
— O que é conjunto de sustentação do rotor?
— Não faço ideia.
Marty virou as costas para a porta e Jack perguntou:
— Onde estão os controles para o portão lateral?
— Na parede de fora, do outro lado do hangar.
Jack seguiu naquela direção. Clark sorriu para Marty.
— Vamos indo.
— O que está acontecendo? — perguntou Marty enquanto se dirigiam para o EC-130. — O que vamos fazer?
— Você está salvando o dia, Marty.
Quando se aproximaram do helicóptero, Jack, Chavez e Dominic vieram pelo outro lado do hangar. Foram para o fundo, enquanto Clark sentou no banco de passageiro da frente. Marty entrou, apertou o cinto e começou a checagem anterior ao voo.
— Para onde vamos? — perguntou.
Jack respondeu:
— Noroeste. Quando você chegar nas rodovias 95 e 373, siga para o noroeste. — E deu a latitude e a longitude para o piloto.
— Esse espaço aéreo é restrito, cara — falou Marty. — É a área do Nellis Range e da área de testes nucleares de Nevada. Não podemos...
— Claro que podemos.
Oito minutos depois estavam no espaço aéreo. Clark ligou para Hendley e o informou:
— Estamos no ar.
— Rick Bell também está na linha. Mais fichas estão caindo. A CNN, a MSNBC, a Fox, todo mundo está cobrindo. Algum tipo de explosão em uma igreja em Waterloo, Iowa; estão falando de algo entre cinquenta e sessenta mortos, e talvez duas vezes esse número de feridos. Teve alguma coisa em Springfield, no Missouri, também. Uma estação de rádio local estava cobrindo a inauguração de uma estátua, e diz que parecia a porra da Omaha Beach. Também em uma cidade em Nevada... Brady... Alguém entrou na piscina de um colégio e rolou granadas por baixo da arquibancada. Deus do céu.
— Estão fazendo o que sempre fizeram — disse Clark. — Terror. O Losan, o incêndio de Paulínia, esses ataques. O CRO está mandando uma mensagem: ninguém está a salvo em nenhum lugar.
— Bem, vai haver muito mais fiéis depois disso tudo.
— É pior que isso — disse Bell. — Se lembra do mergulho que a economia deu depois do 11 de Setembro? Multiplique isso por mil, e é o que pode acontecer. O Emir e o CRO tentam terminar o serviço: fazer com que a economia destrua o país de dentro para fora. Atacaram nossa fonte de petróleo, tentaram atingir um grande porto, mataram sabe Deus quantos no coração do país, e agora estão tentando uma ação nuclear. As pessoas são a economia. Paralise uma, paralisa-se o restante. Acrescente Kealty a isso, considerando que ele está girando o totó, e temos uma porra de um problemão.
— Faz sentido — respondeu Clark. — Nada do que esse sujeito faz é unidimensional.
— Qual sua previsão de horário de chegada? — quis saber Hendley.
Clark perguntou a Marty:
— Quanto tempo?
— Vinte e dois minutos.
88
A24 quilômetros do entroncamento com a 373, a rodovia 95 aparecia abaixo do C-130, uma linha cinzenta e reta cortando o deserto marrom.
— Estamos perto do Nellis Range? — perguntou Clark a Marty.
— Olhe pela janela e quase pode tocá-lo. Isso é o que estou dizendo: logo que cruzarmos para o noroeste, vamos iluminar as telas de radar. E esses caras não brincam em serviço.
— Temos que chegar na Yucca.
— Merda. Me diga que vocês não são terroristas.
— Somos a turma do bem.
— Que tipo de turma do bem?
— Difícil de explicar. Pode nos levar até lá antes que nos obriguem a descer?
— Qual entrada: norte ou sul?
— Sul.
— Se eu abrir todo o acelerador posso forçar o pássaro a chegar a 300 por hora, e se conseguir pousar... Calcule uns quatro minutos depois de desviarmos da rodovia. Pode me fazer um favor?
— O quê?
— Me ameace de novo. Quando me algemarem, quero ter algum tipo de defesa.
Cinco minutos depois, eles viram pela janela outra linha cinzenta se intersectar com a 95 vindo do sul.
— Seguindo pela 373 — anunciou Marty. Quando passaram pelo entroncamento, ele rumou para o noroeste e começou a descer até chegar a uns 10 metros acima do deserto.
Um cume diante deles.
— Busted Butte — anunciou Marty, subindo e estabilizando. — Cinco quilômetros. Sessenta segundos. — Girou novamente, primeiro para a esquerda, depois para a direita, e desceu em um vale raso.
Um lote de pouco menos de 1 hectare revestido de cascalho apareceu pela janela. Do lado direito do lote, a colina tinha uma abertura recortada na forma de um buraco de fechadura, com uma enorme entrada de túnel no centro.
— Companhia — avisou Jack.
Da direção norte do lote, uma estrada se estendia pelo deserto. Uma carreta carregada com o que parecia ser um enorme haltere de aço entrava no lote.
— Que diabo é aquilo? — gritou Dominic.
— Um tonel GA-4 — respondeu Jack. — Para transportar varetas de combustível usadas.
— Pensei que este lugar ainda não estivesse funcionando.
— Não está. — Jack apontou os binóculos ao norte, pela estrada, até uma cabine de guarda do tamanho de uma cabine telefônica. Pôde observar dois corpos caídos no pavimento. — Homens abatidos na guarita.
Clark perguntou a Marty:
— Pode descer na...
— Não com aquele caminhão ali. Destroçaria o rotor. Posso pousar a uns 50 metros abaixo da estrada.
— Faça isso.
— Estou indo.
Marty girou abruptamente, espiralando de volta por onde haviam chegado antes de pairar sobre a estrada. No lote, o caminhão parou e homens desceram apressados da cabine.
— Contei cinco — avisou Dominic.
Enquanto observavam, dois deles correram ao longo da carreta na direção do EC-130. Ainda correndo, os homens levantaram AK-47 e começaram a disparar.
— Merda! — exclamou Marty. — Que porra é essa?
— Esses são os bandidos — informou Clark.
Marty deslizou o helicóptero para a direita, mais adiante da estrada e atrás da colina.
— Aí está bom — disse Clark.
Marty desceu o EC-130 e pousou direto. Clark e os demais desceram. Clark se inclinou pela porta e gritou:
— Ache um abrigo e se esconda. Fique longe do rádio e esteja aqui quando voltarmos.
— Ah, deixa disso...
Clark apontou sua arma na direção de Marty.
— Isso ajuda?
— Sim!
Clark bateu a porta e correu para onde os outros tinham se agrupado 10 metros adiante. Areia bateu neles quando Marty subiu, girou à esquerda e seguiu estrada abaixo, onde girou novamente atrás de uma colina baixa. Após vinte segundos, o ruído do rotor sumiu.
— Escutem — pediu Jack.
Do outro lado da colina, a carreta estava em movimento.
Com Chavez na ponta, todos avançaram ladeira acima. Estavam a 3 metros da crista quando escutaram o pipocar de armas automáticas. Rajadas controladas de três tiros. Vozes gritaram, ecoando pelas paredes do cânion. Chavez caiu de barriga e rastejou para a frente. Pouco depois assinalou para os demais avançarem. Abaixo, a carreta estava entrando na reentrância na colina. Enquanto observavam, um homem com capacete amarelo correu pelo lote, na direção da estrada. Três pops sobrepostos, e o homem caiu para a frente e ficou parado.
— Contei mais quatro — disse Dominic. — Não vejo nenhum deles se movendo. E vocês?
Ninguém respondeu.
Desceram correndo a encosta até o trecho acimentado na beira do lote, e continuaram para a pendente seguinte em direção à entrada. Rastejaram até a borda, deram uma espiada e foram recebidos com o ruído de aço arranhando. A cabine do caminhão desaparecia na boca do túnel. O tonel deslizou pela entrada, arranhando pela borda superior. O caminhão encalhou e parou, tentou avançar mais um pouco e parou novamente. O motor morreu.
Um homem apareceu na traseira da carreta, com um AK no ombro. Balas se enfiaram na terra aos pés deles. Todos recuaram e caíram no chão. Chavez ziguezagueou para a frente, deu uma olhada, levantou-se e apoiou um joelho, e disparou três tiros, caindo novamente no chão.
— Um a menos.
— Sabemos qual é o tamanho dessa coisa? — perguntou Jack.
— Não é maior que um armário de vestiário, imagino — respondeu Clark. — Dois homens podem carregá-la. Vamos, vamos avançar. — Foram descendo pela borda de concreto, depois rolaram por ela um por um e caíram no solo. Ao longo da parede de concreto se amontoavam pilhas de caixas, rolos de arame, caixas de ferramentas com rodinhas, conjunto de acetileno e de arcos de soldagem. Atrás disso, a quina que levava à entrada.
Aos pares, eles foram avançando em turnos até Clark poder espiar pelo canto. Voltou-se, apontou para Jack e gesticulou para que ele avançasse, em seguida Dominic, e então Chavez. Nada se mexia na entrada. A carreta estava bem entalada, os dois lados pressionando as paredes e o tonel contra o teto.
O ruído de um motor veio do túnel. Depois foi diminuindo.
— Parece um carrinho de golfe — disse Dominic.
— Veículo utilitário Cushman. Meio parecido, só que mais rápido.
— O que você sabe sobre a planta? — indagou Clark.
— Vi alguns esboços na internet, mas como a obra não foi nem concluída, não sei...
— Seu palpite.
— Esse túnel principal provavelmente vai até a entrada norte. Em intervalos, deve haver rampas que levam para baixo.
— Linha reta ou em curvas?
— Retas.
— Qual a profundidade?
— Uns 300 metros. No fundo, a rampa se nivela em um patamar, mas não sei o tamanho. Saindo desse patamar estão os túneis usados para depositar os tonéis. A boa notícia é que vão tentar plantar essa coisa na maior profundidade possível, o que significa que precisarão de uma rampa. Do túnel principal até o fundo provavelmente deve levar uns dez minutos.
Quando Clark fez o sinal, Jack e Chavez correram até a ré da carreta, subiram e começaram a avançar para além do tonel. Quando estavam quase na cabine, ele e Dominic passaram pela esquina, foram pelos dois lados do caminhão e correram ao longo das paredes dos dois lados da entrada. Clark deslizou, ajoelhou-se e olhou por baixo do chassi do caminhão. Levantou-se e assinalou a Jack: dois homens lá dentro. Jack assentiu e retransmitiu para Ding, que passou para Dominic, do outro lado.
Vagarosa e cuidadosamente, Jack abriu a janela traseira da cabine, recebeu um empurrão de Chavez e se espremeu pela abertura até o compartimento de dormir. Deslizou para o assoalho, rastejou até o painel. As paredes da rocha no exterior estavam a menos de 30 centímetros das janelas.
Subiu a cabeça para dar uma olhada por cima do painel, até poder ver através da janela dianteira. O túnel era mais imponente do que ele imaginara. Como o esqueleto de um submarino, as paredes e o teto eram reforçados por enormes vigas cintadas. Lâmpadas de halogêneo fixadas no teto se estendiam à distância.
Por cima do capuz, Jack percebeu o topo da cabeça de um homem se movimentar da direita para a esquerda e desaparecer da vista. Vinte metros túnel adentro, viu outro homem acocorado ao lado de um Cushman amarelo. Com cuidado para manter a cabeça fora da vista, ele se contorceu para se sentar no lugar do motorista. Do compartimento de dormir, atrás, escutou uma única batidinha. Uma... Outra batida. Duas...
Na terceira, Jack apertou a mão na buzina.
Os tiros saíram dos dois lados da cabine. O homem ao lado do Cushman levantou e disparou uma rajada de balas do AK. A resposta foi um único pop, e depois outro. O homem tropeçou para a frente, caiu para fora do Cushman e deslizou para o chão.
— Pode sair, Jack — avisou Clark.
Aos pares, eles rastejaram por baixo do caminhão e entraram no túnel. O primeiro sujeito que Jack tinha visto estava deitado imóvel a alguns metros de distância. Dominic deu uma corrida até o Cushman e verificou o outro. Virou-se e passou o polegar pela garganta.
Eles recolheram os dois AK e depois, com Chavez na direção, subiram no Cushman e começaram a descer o túnel.
— Qual a estabilidade desse negócio que eles fizeram? — perguntou Jack a Clark.
— Bem estável. O disparador tem que ser enfiado no cano com bastante força. Precisa de uma boa carga, e precisa ser armado. Por quê?
— Trabalhando numa ideia.
Uns 50 metros mais adiante, a fileira de lâmpadas de halogêneo do teto se convergiu em um círculo.
— Primeira rampa — disse Jack.
— Calma, Dom — ordenou Clark.
Pararam a uns 20 metros de distância, saíram e caminharam até a entrada da rampa. Iluminada de cima por mais lâmpadas de halogêneo, a rampa fazia um ângulo de 25 graus para baixo.
— Já deveríamos ser capazes de escutar o Cushman deles — sussurrou Jack.
Ficaram em silêncio e escutaram. Nada.
Voltaram e prosseguiram. O túnel fazia uma curva para a direita. Dominic parou antes, e Jack saltou para olhar na curva. Voltou.
— Limpo.
Continuaram avançando. Chegaram à segunda rampa e pararam para escutar, mas não ouviram nada. A mesma coisa na terceira e na quarta. Quando se aproximaram da quinta, ouviram uma voz ecoando na rampa. Desceram, avançaram e olharam pelo túnel.
Puderam ver, à distância, a mancha amarela do Cushman aparecer sob uma lâmpada de halogêneo, depois sumir na sombra e voltar a aparecer novamente sob a luz.
— Três quartos da distância até o fundo — declarou Jack.
— Se você tem alguma ideia, chegou a hora — disse Clark.
— Depende da sua certeza sobre a estabilidade dessa coisa.
— Noventa por cento.
Jack assentiu.
— Ding, preciso da sua ajuda.
Subiram novamente no Cushman, fizeram um retorno e voltaram pelo túnel. Cerca de trinta segundos depois estavam de volta. Jack e Ding tiraram da traseira do Cushman, cada um, um cilindro de acetileno.
— Torpedo — falou Jack.
— Estão cheios?
— Quase vazios.
— Marcar o tempo é que vai ser difícil.
— Deixo isso com você. Você é o chefe.
— Vão em frente.
Jack e Chavez levaram os cilindros até a entrada da rampa, deitaram os dois transversalmente ao sentido da rampa, e depois deram um empurrão. Imediatamente começaram a rolar, ribombando contra as paredes enquanto desciam. Jack e Chavez correram de volta para o Cushman e entraram. Dominic se colocou na rampa e esperou.
Clark fez uma contagem de dez para zero, e depois disse:
— Vamos.
Quase imediatamente ficou evidente que o Cushman tinha freios inadequados. Depois de 50 metros, o marcador de velocidade batia acima da marca dos 80 quilômetros por hora. Eles passavam disparando pelas luzes do teto. Dominic freou, diminuindo ligeiramente a velocidade, mas fumaça começou a sair dos tambores. Cerca de 200 metros abaixo deles, os cilindros giravam e batiam como um par de bolas. O Cushman do Emir estava quase no fundo.
— Vai ser por pouco — disse Chavez.
— Diminua nossa velocidade, Dom — pediu Clark.
Dominic apertou os freios, sem resultados. Bateu no pedal. Nada aconteceu.
— Mantenham suas mãos para dentro — gritou, e desviou para a direita. O painel fronteiro do Cushman arranhou a parede do túnel, criando uma tempestade de faíscas. Diminuíram um pouco. Ele se afastou da parede, e depois voltou.
Cem metros abaixo na rampa, os cilindros atingiram o Cushman do Emir. Um cilindro quicou e passou por cima, mas o segundo se chocou contra o para-choque traseiro. O Cushman derrapou, inclinou para o lado, então capotou de vez e derrapou na plataforma.
— Faça a gente parar — ordenou Clark.
Dominic girou abruptamente a roda, colocando todo o lado esquerdo se arrastando pela parede. O Cushman vagarosamente foi parando. Todos saíram e correram rampa abaixo. Na plataforma, o Cushman do Emir havia capotado. A alguns metros de distância havia um corpo esparramado no concreto. Eles pararam na entrada da plataforma. À esquerda, o túnel continuava por mais uns 20 metros antes de virar acentuadamente à esquerda. Não havia ninguém no túnel. Chavez foi até o corpo e se ajoelhou.
— Não é ele — disse.
Todos saíram correndo pelo túnel. Depois de uma esquina, viram-se em um beco de 10 metros de largura. Por cima, as vigas curvas cobriam o teto. Podiam perceber as entradas circulares para os deslocamentos de armazenamento, espaçados em intervalos de 6 metros de cada lado do beco.
— Contei 12 em cada lado — anunciou Dominic.
— Vamos nos dividir — ordenou Clark. — Eu e Jack vamos pela direita, e vocês dois pela esquerda.
Clark e Jack atravessaram correndo até a parede oposta. Jack falou sem emitir som: pego os seis últimos. Clark assentiu. Jack saiu correndo, examinando cada deslocamento enquanto passava. Do outro lado, Dominic fazia o mesmo.
Jack atravessou o quinto deslocamento, não viu nada e continuou passando pelo sétimo e oitavo. Viu uma luz piscando uns 200 metros abaixo. Mal pôde perceber duas figuras acocoradas ao lado do que parecia uma caixa de iscas industrial. Jack olhou ao redor. Clark avançava, mas estava longe demais. O mesmo valia para Dominic e Chavez.
— Que se dane.
E saiu correndo naquela direção.
Tinha coberto metade da distância até as figuras quando uma das cabeças levantou. A boca de uma arma brilhou com um relâmpago laranja. Jack continuou correndo. Levantou a arma e disparou duas vezes. Ouviu Clark gritar em cima:
— Por aqui!
O homem avançou, atirando da altura cintura. Jack se agachou e se encostou na parede, tentando diminuir o próprio volume. Ajustou a mira, colocou as guias no centro da massa do homem, e apertou duas vezes. O homem girou e caiu. O outro ignorou a queda de seu camarada e continuou trabalhando, suas mãos se movimentando dentro da caixa. Levantou o olhar, viu Jack e continuou trabalhando. Dez metros adiante. Jack levantou a arma e continuou disparando até o carregador abrir e mostrar o pente vazio. Seis metros. Uma cabeça olhou pelo lado da caixa e desapareceu novamente. Jack cobriu os últimos 3 metros em duas passadas, abaixou os ombros e se jogou contra a caixa. Sentiu uma coisa explodir em seu ombro, a dor subindo por sua nuca. A caixa escorregou. Os pés de Jack foram para trás, e ele se chocou de cara com o concreto. Com sangue espirrando do nariz quebrado, conseguiu se colocar de joelhos. Sua visão piscava. Olhou ao redor. O corpo do primeiro homem estava esparramado contra a curva da parede, seu AK a pouca distância. Jack rastejou até ele, agarrou a alça com a mão direita e arrastou a arma. Levantou e saiu tropeçando em volta da caixa.
Já de pé, o Emir caminhava em direção à caixa. Viu Jack e parou. Seu olhar piscou na direção da caixa, depois de volta para o rosto de Jack.
— Não! — gritou Jack. — Você está liquidado. Isso acabou.
Jack ouviu as pisadas correndo no túnel atrás dele.
— Não, não acabou — disse o Emir, e se ajoelhou diante da caixa.
Jack disparou.
89
Mais tarde, quando interrogado por Hendley e Granger, Jack Ryan Jr. respondera cautelosamente à pergunta se pretendia simplesmente ferir o Emir ou se, no calor da batalha, havia perdido o centro de seu alvo. A verdade era que Jack não tinha nenhuma certeza sobre isso. No momento crítico, o fluxo de adrenalina nas veias e o coração disparado se combinaram para aparentemente comprimir e alongar o tempo em seu cérebro. Pensamentos contraditórios disputavam o controle de suas habilidades motoras mais afinadas: disparar para matar, deter o Emir; disparar para ferir, ganhar uma mina de ouro de informações, mas arriscar que o sujeito apertasse o botão.
Ao ver Jack diante de si naquele túnel escuro, o Emir hesitou apenas um segundo antes de voltar sua atenção para a bomba, os olhos arregalados e febris, os dedos trabalhando no painel aberto do dispositivo. E levou apenas mais uma fração de segundo para Jack compreender que lidava com um homem que não se importava se viveria ou morreria, por tiro ou por detonação nuclear. O Emir viera terminar sua tarefa sagrada.
A arma de Jack deu um solavanco em suas mãos, e o túnel brilhou alaranjado, e, quando o ruído se dissipou, ele viu o Emir deitado de costas, os braços abertos, a lanterna iluminando seu rosto. Jack conseguiu ver que a bala 7.62 milímetros do AK-47 tinha entrado em ângulo reto pela coxa direita do Emir, subindo e perfurando sua nádega. Deu dois passos adiante, a arma levantada, pronto para disparar novamente, quando escutou os passos atrás dele. Depois Clark, Chavez e Dominic estavam ali, afastando-o.
Apesar de só descobrir a razão um dia depois, através de uma interceptação da Segurança Nacional, Clark e companhia emergiram na entrada do túnel principal com o seu inimigo agora amarrado e amordaçado, não para enfrentar o ruído de helicópteros e sirenes, mas sim para um silêncio mortal. Como Clark suspeitara, o curso do helicóptero deles para o norte ao longo da rodovia 95 e a subsequente intrusão no espaço aéreo sobre a montanha Yucca não havia passado despercebido na rede de radares que cobria a Nellis Air Force Range e a área de testes nucleares de Nevada. No entanto, o alerta, que normalmente levaria helicópteros e forças de segurança do Terceiro Esquadrão de Operações Especiais da Base Aérea de Creech tinha sido abortado pelo carregamento de teste do DOE vindo da usina nuclear de Callaway. Em algum ponto no inevitável e muitas vezes incompreensível processo burocrático, o DOE esquecera de avisar à Força Aérea que havia dispensado a escolta de helicóptero para o carregamento. Assim, no que dizia respeito a Creech, o EC-130 roubado pela equipe de Clark era apenas a escolta do carregamento.
Seja por medo ou por suspeitar que seus passageiros fossem realmente os mocinhos, Marty levara a sério a ordem de Clark de “ficar por ali” e aguardou com o EC-130 em terra até Clark e os demais aparecerem correndo pela estrada de serviço. Vinte e cinco minutos mais tarde estavam na Paragon Air, onde descobriram que Marty havia ficado também fora do rádio.
— Espero não ter que lamentar isso — disse ele, quando todos desceram.
— Provavelmente você nunca vai saber, mas fez uma coisa ótima, meu amigo — disse-lhe Clark, que limpou sua Glock e deixou no chão do assento de passageiros. — Daqui à uma hora, chame a polícia. Mostre a arma para eles e dê minha descrição.
— O quê?
— Simplesmente faça isso. Vai te deixar longe da cadeia.
Além do mais, não sou exatamente alguém “achável”, pensou Clark, sem dizer.
Vinte minutos depois de deixarem a Paragon Air, estavam de volta na casa do Emir, onde entraram pela garagem e fecharam a porta. Chavez e Jack foram recolher Tariq, enquanto Pasternak e Dominic tiravam o Emir da traseira do veículo e o deitaram no chão da garagem, onde Pasternak se ajoelhou para um exame rápido.
— Vai viver? — perguntou Clark.
Pasternak abriu o apressado curativo de campo que aplicaram antes de sair de Yucca, apalpou a carne enrugada ao redor do ferimento de entrada, depois deslizou a mão pela nádega do Emir.
— Entrou e saiu limpo — proclamou Pasternak. — Nada de artérias, nada de ossos, acho. O sangue está coagulando. Que tipo de projétil?
— Uma 7.62 milímetros revestida.
— Ótimo. Sem fragmentos. A menos que infeccione, ele sobreviverá.
Clark assentiu.
— Dom, venha comigo — disse.
Os dois voltaram para a casa para fazer uma revista completa. Apesar de terem usado luvas o tempo todo em que estiveram ali, cedo ou tarde o FBI iria baixar no local, e ele era extremamente bom para descobrir evidências de traços onde não deveria existir nenhum.
Satisfeito, Clark fez sinal para que Dom voltasse para o carro, e discou para o Campus. Em segundos estava com Hendley, Rounds e Granger em conferência telefônica. Clark os informou de toda a ação, e depois disse:
— Temos duas opções: ou o deixamos anonimamente embrulhado nas escadas do edifício Hoover ou cuidamos nós mesmos do assunto. De qualquer maneira, quanto menos tempo ficarmos aqui, melhor.
A linha ficou em silêncio. A decisão era de Hendley.
— Espere um instante — disse o diretor do Campus. Dois minutos depois estava de volta. — Voltem para o Gulfstream. O piloto sabe para onde vocês irão.
Chegaram ao aeroporto de North Las Vegas 40 minutos depois e pararam na pista ao lado do avião, onde foram recebidos pelo copiloto, que os fez entrar. Quando levantaram voo, Clark ligou novamente para Hendley, que começara o complicado processo de informar o governo dos EUA que o Depósito de Lixo Nuclear da Montanha Yucca fora penetrado por terroristas, agora mortos, e que, apesar de a bomba atômica portátil que tinham deixado para trás estar segura, era melhor tirar o artefato de lá o mais rápido possível.
— Como você pode ter certeza de que essa história não vai explodir de volta na nossa cara? — perguntou Clark.
— Não posso, mas não temos muita escolha no caso.
— É verdade.
— Como está nosso paciente?
— O doutor limpou os buracos, costurou tudo e lhe deu antibióticos. Está estável, mas como uma dor dos infernos. Jack provavelmente o aleijou para sempre.
— Essa é a última das suas preocupações — observou Hendley. — Está falando?
— Nem uma palavra. Aonde vamos?
— Aeroporto de Charlottesville-Albermale. Serão recepcionados lá.
— E de lá para onde? — pressionou Clark. Eles estavam na posse do terrorista mais procurado do mundo; quanto mais cedo achassem um esconderijo onde pudessem reagrupar e planejar os próximos movimentos, melhor.
— Algum lugar tranquilo. Um lugar onde o Dr. Pasternak possa trabalhar.
Diante da resposta, Clark sorriu.
Quatro curtas horas depois que saíram de Las Vegas, pousaram na pista única do CHO e taxiaram para o terminal executivo. Cumprindo a palavra, Hendley providenciara um par de Suburbans para esperá-los. Os dois se aproximaram do avião em formação, manobraram simultaneamente e pararam de ré junto à escada. Hendley saiu pela porta de passageiros do primeiro Suburban e assinalou para que Clark e Jack viessem com ele, enquanto Caruso e Chavez, seguidos por Pasternak, escoltavam seus dois prisioneiros até o outro Suburban. Em poucos minutos, já tinham saído do aeroporto e seguiam ao norte na direção da rodovia 29.
Hendley atualizou os dois com as informações. Do pouco que Gavin Biery conseguira garimpar da inundação de informações codificadas no tráfego eletrônico, o Terceiro Esquadrão de Operações Especiais da Base Aérea de Creech chegara em Yucca quarenta minutos depois da ligação de Hendley. Duas horas mais tarde, como evidência certeira de que o Departamento de Energia, a Segurança Nacional e o FBI haviam descido em massa na montanha Yucca, o trânsito eletrônico secou.
— Já descobriram a casa do Emir?
— Ainda não.
— Não vão demorar muito para rastrear a Paragon Air — disse Clark. — Então, Gerry, cuspa logo o resto. Para onde vamos?
— Tenho alguns hectares de terreno de criação de cavalos e uma casa de campo perto de Middleburg.
— Quantos são alguns?
— Doze. Dá espaço para respirarmos um pouco. — Hendley verificou o relógio. — O equipamento do Dr. Pasternak já deve ter chegado lá.
90
Depois do fluxo quase constante de adrenalina que Clark e sua equipe receberam desde que desceram em Las Vegas 24 horas antes, o que aconteceu depois de chegarem à casa de Hendley foi um anticlímax. Para o óbvio desapontamento de todos, Pasternak anunciou que seria necessário mais um dia, talvez dois, antes que seu paciente estivesse estável o suficiente para ser interrogado. Isso deixou todos com tempo de sobra para desperdiçar e não fazer nada além de jogar cartas e ver os noticiários. Sem que surpreendesse ninguém, não houve nem rumor sobre o que acontecera em Yucca, mas sim a cobertura completa do que as redes de TV estavam universalmente chamando de “Ataques ao coração do país”. A explosão da Claymore na igreja em Waterloo, em Iowa, deixara 32 mortos e cinquenta feridos; o ataque de morteiros na inauguração da estátua em Springfield, no Missouri, deixara 22 mortos e 14 feridos; o caso das granadas na piscina em Brady, Nebraska, deixara apenas seis mortos e quatro feridos, graças à reação rápida de um policial de folga que atirou no atacante depois de ele ter rolado somente três granadas sob as arquibancadas. Os atacantes de Waterloo e Brady, que foram rastreados até suas residências horas depois dos acontecimentos, haviam liquidado as próprias vidas. Acrescentadas aos demais ataques, as baixas já alcançavam os três dígitos.
Graças à mão orientadora do FBI e da Segurança Nacional, o ataque quase frustrado de gás de cloro a bordo do Losan em Newport News fora atribuído a um incêndio na cozinha.
Por volta das quatro horas da tarde de seu primeiro dia na casa de campo de Hendley, quando a plastificada apresentadora e o âncora de queixo duro que dominavam o noticiário vespertino anunciaram coletivamente que o presidente Edward Kealty se dirigiria ao público às oito horas da noite, horário da Costa Leste, Clark se levantou e procurou Pasternak. Achou o médico na marcenaria de Hendley, um celeiro adaptado atrás da casa. A bancada com topo de bordo fora convertida em mesa de operações improvisada, incluindo lâmpadas de halogêneo de trabalho, respirador Drager, máquina de eletrocardiograma e ressuscitador de Marquette, que continha até um desfibrilador manual externo para normalizar batimentos cardíacos irregulares. As duas máquinas eram novas, recém-retiradas dos caixotes dos fabricantes, amontoados a alguns metros de distância. Tudo estava preparado para uso, faltando apenas o hóspede de honra, abrigado em um dos quartos sob os turnos de vigilância de Chavez, Jack e Dominic.
— Tudo pronto? — perguntou Clark.
Pasternak apertou vários botões na máquina de eletrocardiograma e recebeu uma série de bipes aparentemente satisfatórios como resposta. Desligou a unidade e olhou Clark.
— Sim.
— Alguma dúvida?
— Por que pergunta isso?
— Você não é exatamente um jogador de pôquer, doutor.
Pasternak sorriu com a resposta.
— Nunca fui bom nisso. Acho que é essa coisa do juramento de Hipócrates; coisa difícil de se livrar. Mas já passei dez anos pensando nisso, acho. Depois do 11 de Setembro, não conseguia distinguir se tudo se tratava apenas de vingança ou se de algo maior, tipo o bem comum e coisa assim.
— E o que concluiu?
— São as duas coisas, porém mais do último. Se conseguirmos tirar desse sujeito alguma coisa que ajude a salvar vidas, então acharei um jeito de lidar com o que fiz... com o que vou fazer. Ou, se Deus quiser, com o passar do tempo.
Clark considerou o que ele disse, e assentiu.
— Doutor, em maior ou menor grau, estamos todos no mesmo barco. O que podemos decidir é o que consideramos certo, fazer isso, e o resto vem como vier.
A expectativa fez todos se levantarem ao amanhecer no dia seguinte. Dominic, o melhor cozinheiro do grupo, preparou uma tigela de aveia e torradas de pão branco para o hóspede, o qual, completamente desperto e evidentemente com dores, teimosamente recusou.
Dr. Pasternak o examinou às sete horas. Demorou apenas alguns minutos. Pasternak olhou Hendley, parado na porta, o restante do grupo atrás dele.
— Sem febre nem sinais de infecção. Está pronto.
Hendley assentiu.
— Vamos levá-lo.
O Emir nem resistiu nem ajudou quando Chavez e Dominic o levaram pela porta dos fundos e pela entrada lateral do galpão. Só quando viu o balcão iluminado com lâmpadas de halogêneo e presilhas de couro improvisadas é que seu rosto mudou. Jack notou a expressão fugaz, mas realmente não conseguiu distinguir sua natureza: medo ou alívio? Medo pelo que viria ou alívio porque suspeitava que o martírio estivesse próximo?
Como tinham treinado na noite anterior, Chavez e Dominic deitaram o Emir na bancada. Seu braço direito foi preso no suporte de couro, enquanto o esquerdo, que estava do mesmo lado dos equipamentos, foi esticado sobre uma toalha dobrada e preso do mesmo modo. Finalmente, as duas pernas foram atadas. Chavez e Dominic se afastaram da bancada.
Pasternak começou a ligar os equipamentos: primeiro a máquina de eletrocardiograma, depois o respirador, seguido por um autodiagnóstico do desfibrilador manual externo. Pasternak então voltou sua atenção para o carrinho com rodas ao lado da mesa, onde havia um conjunto de seringas e garrafas. Tudo observado de perto pelo Emir.
Ele devia estar curioso, pensou Jack, e internamente aterrorizado. Ninguém podia ficar indiferente ao que acontecia ao seu redor, muito menos o homem que estava acostumado a ser o controlador final de tudo que acontecia em seu entorno, acostumado a ter todas as suas ordens rapidamente obedecidas. O mundo que o cercava não estava mais sob seu controle. Não havia como ele pudesse estar confortável com isso, mas mantinha um sentido de dignidade que era, por sua vez, bem impressionante. Muito bem, ele era corajoso, mas a coragem não era uma qualidade infinita. Tinha seus limites, e os que estavam na sala com ele explorariam esses limites.
Dr. Pasternak enrolou a manga e desabotoou a camisa do Emir, depois se afastou da mesa, indo até o carrinho, de onde retirou uma seringa de plástico e um frasco de vidro. Verificou seu relógio e olhou os demais.
— Vou começar com 7 miligramas de sucinilcolina — declarou Pasternak, medindo cuidadosamente a quantidade na seringa de plástico enquanto puxava o êmbolo. — Alguém anote isso, por favor.
Na prancheta em que Pasternak pediu que tudo fosse anotado, Ding escreveu a informação: 7mg @ 8:58.
— Muito bem — disse o médico. Enfiou a seringa na veia braquial na parte interna do cotovelo e empurrou o êmbolo.
Não houve nenhuma dor real para Saif Rahman Yasin, apenas a picada de alguma coisa perfurando a pele do lado de dentro do cotovelo, e a agulha logo foi retirada. Estariam o envenenando?, perguntou-se. Nada óbvio parecia estar acontecendo. Olhou para o homem que acabara de aplicar a injeção e viu um rosto que esperava por alguma coisa. Isso era vagamente assustador, mas era tarde demais para ter medo. Disse a si mesmo para ser forte e fiel a Alá, ter confiança em sua fé, porque Alá podia lidar com qualquer coisa que os homens fizessem, e ele, o Emir, se fortalecia em sua fé. Recitou para si mesmo sua profissão de fé, aprendida quando criança há mais de quarenta anos, de seu próprio pai, na casa da família em Riad. Só há um Deus, que é Alá, e Maomé é seu profeta. Allahu akbar. Deus é grande, disse a si mesmo, pensando na sua declaração de fé o mais alto que podia no silêncio de sua mente.
Pasternak observava e esperava. Seu cérebro disparou. Estaria fazendo a coisa certa? Era tarde para se preocupar com isso, claro, mas, mesmo assim, a mente se fazia a pergunta. Os olhos do homem se fixavam nos deles agora, e o médico disse a si mesmo para não vacilar. Ele é que estava no controle. Completamente no controle do destino do homem que assassinara seu parente mais próximo, seu amado irmão, Mike. O homem que ordenara o piloto do avião a jogá-lo no World Trade Center, provocando o incêndio que enfraqueceria o aço estrutural e jogaria abaixo todo o escritório da Cantor Fitzgerald por 300 metros, até as ruas da Lower Manhattan, esmagando até a morte mais de 3 mil pessoas, mais do que os que morreram em Pearl Harbor. Ali estava o rosto do maldito assassino. Não, ele não iria mostrar nenhuma fraqueza agora, não diante desse bárbaro filho da puta...
O homem esperava algo, pensou o Emir, mas o quê? Não havia dor, nenhum desconforto. Ele simplesmente injetara alguma coisa em sua corrente sanguínea. O que seria? Se fosse veneno, bem, então o Emir logo veria o rosto de Alá, e poderia relatar a Ele que cumprira a vontade de Deus, como todos os homens faziam, soubessem ou não, porque tudo que acontecia no mundo era a comando de Alá, porque tudo que jamais acontecia na terra ou nos céus era escrito pela própria mão de Deus. Mas ele livremente escolhera cumprir a vontade de Alá.
Mas nada estava acontecendo. Ele não sabia, não podia perceber, que sua mente disparava na velocidade da luz, ultrapassando tudo, até mesmo o sangue em suas artérias, espalhando seja lá o que fosse que o médico injetara nele. Desejava que fosse veneno, pois aí logo veria o rosto de Alá, e então poderia dar-Lhe as contas de sua vida, sobre como havia obedecido Sua vontade da melhor forma como a compreendera... mas teria mesmo feito isso? Era o momento da verdade final. Ele tinha feito a vontade do Senhor Deus, não tinha? Não tinha estudado o Sagrado Corão durante toda sua vida? Não havia praticamente memorizado o Livro Sagrado? Não tinha discutido seu significado profundo com os mais proeminentes acadêmicos do reino da Arábia Saudita? Sim, ele discordara de vários deles, mas a natureza de sua discordância fora honrada e direta, fundamentada em sua visão pessoal da escritura, em sua interpretação da palavra divina tal como escrita e distribuída pelo profeta Maomé, que Bênçãos e Paz caiam sobre sua cabeça. O Profeta fora um homem grande e bondoso, como deveria para ser o escolhido pelo próprio Deus como Mensageiro Sagrado, o portador da vontade de Deus para os povos da terra.
Pasternak observava o movimento do ponteiro de segundos de seu relógio. Um minuto transcorrido... mais uns trinta segundos, calculou. Sete miligramas deviam ser o suficiente para essa aplicação, injetada como foi, diretamente na corrente sanguínea, fundindo-se nos tecidos corporais do homem... no começo seriam...
... os gânglios motores. Sim, eles seriam os primeiros. Esses nervos amplamente distribuídos, os que controlavam os sistemas periféricos, como os das pálpebras, bem assim... agora.
Pasternak moveu sua mão na direção do rosto do homem, batendo em suas pálpebras, e elas não piscaram.
Sim, estava começando.
O Emir viu a mão esbofeteando seu rosto, mas parando bem a tempo. Involuntariamente piscou os olhos... mas eles não piscaram... Hã? Tentou mover a cabeça, mas ela mal se mexeu um centímetro e caiu de volta... O quê? Ordenou que seu punho direito se fechasse e puxasse contra as algemas, e a mão começou e parou, caindo de volta para a posição de descanso sobre a superfície de madeira da mesa, os dedos se abrindo por conta própria.
Seu corpo não era seu...? O que era isso? O que era isso? Ele moveu as pernas, e elas se moveram ao comando de seu cérebro, só um pouco, mas se moveram como deveriam, tal como faziam desde o começo de suas lembranças de infância, seguindo os comandos de seu cérebro, como o corpo sempre fizera. Ordene seu braço, dissera um filósofo infiel, e ele se move; ordene sua mente, e ela resiste. Mas sua mente funcionava, e seu corpo não. O que era isso? Girou a cabeça para olhar pela sala. Sua cabeça não se moveu, a despeito de seus comandos; nem os olhos. Ele podia ver os painéis brancos do teto. Tentou focar seus olhos melhor neles, mas os olhos não funcionavam como deviam. Seu corpo era como se fosse o de outro homem; podia senti-lo, mas não mais comandá-lo. Mandou as pernas se moverem, e elas mal tremeram, depois se congelaram, completamente moles. Moles como um cadáver.
O que era isso? Estou morrendo? É isso, a morte? Mas não era a morte. De algum modo ele sabia disso, e...
Pela primeira vez, o Emir começou a sentir um começo do medo. Não compreendia o que acontecia. Só sabia que seria muito ruim.
Para Clark, parecia que o sujeito ia dormir. Seu corpo parou de se mexer. Houve alguns reflexos e pequenos espasmos, como o de alguém se arrumando na cama, mas tudo isso parou com rapidez surpreendente. O rosto ficou vazio, sem foco, sem exibição de força ou poder e ausência de medo. Agora tinha o rosto de um manequim. O rosto de um cadáver. Ele já havia visto isso frequentemente em sua vida. Nunca pensara como era para a mente por trás do rosto. Quando a morte acontecia, o problema com aquele corpo terminava para sempre, permitindo-lhe passar para o problema seguinte, deixando aquele atrás para sempre. Nunca fora necessário para Clark destruir um cadáver. Quando morria, o corpo estava liquidado, certo? Uma parte de Clark queria se aproximar do médico e perguntar o que estava acontecendo, mas não o fez, não querendo perturbar o homem responsável pela atual operação ainda...
Ele podia sentir todo o corpo. Isso era de uma clareza cristalina para Saif. Não podia mover nenhuma parte, mas podia sentir tudo. Podia sentir o sangue bombeando por suas artérias. Mas não podia movimentar os dedos. O que era isso? Tinham roubado dele seu próprio corpo. Já não era mais seu. Podia senti-lo, mas não comandá-lo. Era prisioneiro em uma cela, e a cela era... ele mesmo...? O que era isso? Estavam o envenenando? Isso seria a aproximação da morte? Se assim fosse, não era para estar lhe dando boas-vindas? Será que o rosto de Deus estava a alguns momentos adiante? Se assim fosse, ordenou sua mente que sorrisse. Se o corpo não podia se movimentar, a alma podia, e Alá conseguia ver sua alma tão claramente quanto uma enorme pedra no meio do mar. Se isso fosse a morte, então ele lhe daria as boas-vindas como a culminação de sua vida, um dom que proporcionara a tantos homens e mulheres, a oportunidade de ver o rosto de Alá, como ele logo veria... sim... Sentiu o ar entrando em seus pulmões, dando a ele seus últimos segundos de vida enquanto esses infiéis a roubavam dele. Mas o Senhor Alá os faria pagar por isso. Disso ele tinha certeza. Certeza total.
Pasternak verificou novamente o relógio. Chegando à marca dos dois minutos, chegando à última parte. Ele se virou e olhou o ressuscitador. A luz piloto verde estava acesa. O mesmo com a do respirador. Ele os teria disponíveis caso necessitasse. Podia restaurar a vida desse filho da mãe. Imaginou o que Mike pensaria disso, mas o pensamento estava muito longe para que se grudasse nele agora. O que acontecia depois da morte era desconhecido para os vivos. No final, todos descobriam, mas ninguém podia voltar e relatar aos vivos. O grande mistério da vida, o assunto da filosofia e da religião, crenças, talvez, mas desconhecidos. Bem, esse tal de Emir iria dar uma espiadinha, mais ou menos. O que ele veria? O que ele aprenderia?
— Só mais um momento — informou Pasternak aos que estavam ao seu redor.
O Emir escutou e entendeu as palavras. Apenas um momento até ele ver o rosto de Deus. Apenas um instante antes do Paraíso. Bem, ele não chegara até onde pretendia ir. Não se tornara o líder mundial dos Fiéis. Mas tentara. Tentara o melhor possível, e seu melhor possível era muito, muito bom. Mas não o suficiente. Era uma pena, uma grande pena. Ele poderia ter feito tanto. Alguém agora teria que fazer isso. Ahmed, talvez? Um bom homem, Ahmed, fiel e instruído, de bom coração e fé forte. Talvez fosse suficientemente bom... O Emir sentiu o ar entrando e saindo de seus pulmões. Sentia-o tão claramente. Era uma bela sensação, a própria sensação da vida. Como é possível que nunca tivesse apreciado isso, a beleza disso, a maravilha disso?
Então algo mais aconteceu.
Seus pulmões estavam parando. Seu diafragma não estava... não se mexendo. O ar não ia mais para os pulmões. Ele respirava desde o momento em que nasceu. Esse era o primeiro sinal de vida, quando o recém-nascido berrava abrindo seu caminho para o mundo, mas seus pulmões agora não se enchiam de ar. Não havia mais ar em seus pulmões... Isso era a morte chegando. Bem, ele havia enfrentado a morte nos últimos trinta anos. Nas mãos dos russos, nas mãos dos americanos, nas mãos dos afegãos que não aceitavam sua visão do Islã e do mundo. Tinha enfrentado a morte muitas, muitas vezes, o suficiente para que ela não o aterrorizasse. O Paraíso o aguardava. Tentou fechar os olhos e aceitar seu destino, mas seus olhos não fechavam. Ainda via os painéis do teto sobre sua cabeça, retângulos branco-gelo que o observavam de volta sem olhos. Era isso a morte? Era isso que os homens temiam? Que coisa estranha, sua mente observava, esperando, não com paciência, mas com confusão, pela escuridão total que o alcançaria. Seu coração continuava batendo. Ele podia senti-lo, latejando, bombeando sangue por seu corpo, e assim levando a vida, levando consciência, logo a terminar, mas ainda presente. Quando ele chegaria ao Paraíso?, perguntou-se o Emir. Quando veria o rosto de Alá?
— A respiração cessou aos três minutos e 16 segundos — relatou Pasternak. Chavez anotou também isso. O doutor pegou a máscara do respirador, verificando novamente se o sistema estava ligado. Apertou o botão na máscara de borracha e foi recompensado com o ruído mecânico do ar entrando por ela. Depois pegou as almofadas do ressuscitador e as pressionou contra o peito do homem, girando o olhar para o visor do ECG na pequena tela de computador. Observou que o ritmo cardíaco estava normal.
Isso não iria durar muito tempo.
O Emir ouviu sons estranhos ao redor, e sentiu coisas estranhas, mas era incapaz de desviar os olhos para buscar a fonte dos ruídos, pois estes estavam fixados nos painéis do teto. Então, pensou rapidamente, assim que é a morte. Foi assim para Tariq, com um tiro no peito? Ele fracassara diante de seu mestre, não por ser desleixado, mas porque o inimigo, neste caso, havia sido terrivelmente habilidoso e esperto. Isso podia acontecer com qualquer homem, e sem dúvida Tariq morrera envergonhado por fracassar na sua missão de vida. Mas Tariq agora estava no Paraíso, disso o Emir tinha certeza, talvez desfrutando de suas virgens, se isso realmente acontecia lá. Provavelmente não, sabia o Emir. O Corão não dizia isso, não realmente. Desfrutando dos favores de Alá. Isso sim era certo, como ele, o Emir, logo descobriria. E seria o suficiente.
Começou a doer um pouco, bem ali no meio do peito. Ele não sabia que, quando a respiração parou, também havia cessado a infusão de oxigênio em seu sistema. O coração, um músculo poderoso, precisava de oxigênio para funcionar, e, quando o oxigênio foi interrompido, os tecidos do coração começaram a sofrer... e logo começariam a morrer; o coração era cheio de nervos, e estes relatavam a falta de oxigênio como dor para seu cérebro ainda funcionando. Grande dor, a maior dor que um homem poderia conhecer.
Ainda não, mas a caminho.
Seu rosto não mostrava nada, é claro. Os nervos motores periféricos estavam todos mortos, ou não funcionavam, como Pasternak sabia. Mas as sensações estariam ali. Talvez pudessem medir no eletroencefalograma, mas isso somente exibiria traços de tinta negra sobre o papel branco do formulário contínuo, não a incandescente agonia que os traços representavam.
— Muito bem — disse Pasternak em voz baixa. — Já está começando. Vamos dar a ele um minuto, talvez um pouco mais.
Aprisionado em seu corpo sem funcionamento, Saif sentiu a onda de dor. Começou distante, mas aumentou contínua... e rapidamente. Seu coração estava sendo arrancado do peito, como se alguém tivesse avançado com as mãos dentro dele e o puxasse, rasgando os vasos sanguíneos no processo, rasgando tudo como se fosse papel de um livro destruído. Mas não era papel. Era seu coração, o próprio centro de seu corpo, o órgão que proporcionava vida para o restante dele mesmo. Agora parecia estar incendiando, queimando como lenha seca em um campo aberto cercada de pedras, queimando, queimando, queimando... dentro do peito, queimando. O coração estava queimando vivo, queimando enquanto ele o sentia. Não batendo, não enviando sangue pelo corpo, mas queimando como madeira seca, como gasolina, como papel, queimando, queimando, queimando... queimando enquanto ele vivia. Se isso fosse a morte, então a morte era uma coisa horrível, pensou... a pior das coisas. E ele a infligira a outros. Tinha atirado em soldados russos, todos infiéis, mas ainda assim liquidara com suas vidas, os fez sofrer isso... e achara divertido? Uma diversão. Parte da vontade de Alá? Será que Alá achava também divertido? A dor continuava aumentando, tornando-se insuportável. Mas ele tinha que sofrê-la. Ela não desapareceria. Nem ele. Não podia fugir daquilo, não podia rezar em voz alta a Alá para que a parasse, não podia negá-la. Estava ali. Transformada em toda sua realidade. Massacrando toda sua consciência. Transformando-se em tudo. Era um incêndio no meio do seu corpo, e o queimava de dentro para fora, e era mais terrível do que ele jamais imaginara que pudesse ser. A morte não vinha rapidamente? Não era Alá misericordioso em todas as coisas? Por que, então, Alá permitia que isso acontecesse com ele? Ele queria ranger os dentes para lutar contra a dor, queria, precisava, gritar alto para se proteger da agonia que vivia dentro de seu corpo.
Mas não conseguia comandar seu corpo a fazer nada. A realidade era somente a dor. Tudo que podia ver, sentir e ouvir era dor. Até mesmo o Senhor Alá era dor...
Alá fazia isso com ele. Tudo no mundo era vontade de Deus, então Deus desejara isso para ele? Como era possível? Não era Deus um deus de infinita misericórdia? Onde diabos estava essa Sua misericórdia agora? Será que Alá o abandonara? Por quê?
Por quê?
POR QUÊ?
Então sua mente se dissolveu na inconsciência, com um epílogo final de dor incandescente para colocá-lo no caminho.
No visor do ECG, as primeiras irregularidades começaram a aparecer. Isso atraiu a atenção de Pasternak. Normalmente, na sala de operações, como anestesista, sua tarefa era vigiar os sinais vitais do paciente. Isso incluía a máquina de ECG, e ele era, de fato, um cardiologista de primeira. Eles não queriam matar esse merda inútil, o que era uma pena. Podia simplesmente lhe dar uma morte como poucos homens sofreram, uma punição adequada para seus crimes, mas ele era médico, não carrasco, disse Pasternak a si mesmo, afastando-se da borda de um precipício alto e mortal. Não, tinham que trazer o sujeito de volta. Então ele pegou a máscara de ventilação. O “paciente”, como pensava, já estava inconsciente. Ele pressionou a máscara em seu rosto e apertou o botão, e a máquina infundiu ar nos pulmões flácidos e vazios. Pasternak levantou os olhos.
— Muito bem, anote o tempo. Estamos fazendo com que respire agora. O paciente está sem dúvida inconsciente, e estamos infundindo ar em seus pulmões. Isso deve demorar uns três ou quatro minutos, acho. Um de vocês pode vir até aqui?
Chavez era quem estava mais perto, e se aproximou imediatamente.
— Coloque essas almofadas no peito dele e segure bem.
Ding assim o fez, virando para olhar o visor do ECG. Os traços eletrônicos tinham se harmonizado e se repetiam regularmente, mas não no ritmo sinusal, algo que sua esposa poderia reconhecer, mas que para ele eram apenas coisas na TV. À sua esquerda, Dr. Pasternak apertava o botão de ventilação em intervalos regulares de oito ou nove segundos.
— O que está acontecendo, doutor?
— O coração dele se acalmou e agora está recebendo oxigênio. A sucinilcolina vai perder o efeito em mais uns dois minutos. Quando você observar o corpo dele se mexer, já estará quase toda eliminada. Vou fazer com que respire por mais uns quatro minutos — relatou o médico.
— Por que tipo de coisa ele passou?
— Você não vai querer descobrir. Fizemos com que ele sofresse o equivalente a um forte ataque cardíaco. A dor deve ter sido intensa, quero dizer, realmente infernal. Para esse sujeito, talvez tenha sido apenas horrivelmente ruim, mas decididamente foi horroroso para cacete. Dentro de alguns minutos veremos como ele responderá a isso, rapazes, mas passou por algo que ninguém jamais desejaria repetir. Provavelmente ele pensa que chegou ao fundo do inferno. Veremos o que isso faz... fez com ele dentro de alguns minutos.
Demorou quatro minutos e trinta segundos até as pernas se moverem. Dr. Pasternak olhou o visor do ECG no ressuscitador e relaxou. O Emir já estava fora da influência da sucinilcolina, e seus músculos agora estavam sob controle de seus nervos, tal como supostamente deveriam estar.
— Ele ainda ficará inconsciente por alguns minutos, até que seu cérebro receba suficiente sangue oxigenado — explicou o anestesista. — Vamos deixar que desperte normalmente, e depois poderemos falar com ele.
— Como estará seu estado mental? — perguntava Clark. Ele jamais vira algo remotamente parecido com aquilo antes.
— Depende. Suponho que seja possível que permaneça forte e resistente, mas não esperaria isso. Ele passou por uma experiência singular e muito, muito adversa. Não vai querer repeti-la. Passou por uma dor que faz um parto parecer um piquenique no Central Park. Só posso especular sobre o quanto foi terrível. Não conheço ninguém que tivesse passado por isso... bem, talvez alguém que tenha sofrido um forte ataque cardíaco, mas eles geralmente não se lembram da intensidade da dor. O cérebro não funciona assim. Apaga as dores violentas como mecanismo de defesa. Mas não desta vez. Ele vai se lembrar da experiência, se não da própria dor. Se essa experiência não o assustar além de qualquer coisa pela qual tenha passado, bem, então estamos falando de John Wayne com anfetaminas. Pessoas assim não existem no mundo real. Existe a complicação de suas crenças religiosas. Essas podem ser bem fortes. O quão fortes, bem, vamos ver, mas, se ele continuar resistindo daqui em diante, ficarei surpreso.
— Se ele resistir, podemos repetir a experiência? — indagou Clark.
Pasternak se voltou.
— Sim, podemos, quase indefinidamente. Ouvi falar lá em Columbia que a Stasi na Alemanha Oriental usava essa técnica para interrogar prisioneiros políticos e espiões, e que foi uniformemente bem-sucedida. Mas pararam de usar, não sei qual a razão. Talvez fosse maligna demais mesmo para eles. Como falei ontem, isso aqui saiu do programa da Escola de Medicina de Josef Mengele. O sujeito que dirigia a Stasi era judeu, se me lembro, Marcus Wolf, acho que era o nome dele. E talvez por isso tenha ficado afetado.
— Como está se sentindo, Rich? — perguntou Hendley.
— Estou bem. Mas ele não. — O médico fez uma pausa. — Ainda irão executar esse cara?
— Depende de quem ficar com ele no final — respondeu Hendley. — Se o FBI o pegar, ele vai passar pelo sistema judiciário federal, e assim, finalmente acabar no nada em Terre Haute, na Indiana, depois do devido processo legal. Mas isso realmente não nos diz mais respeito.
Porque isso pelo que ele passou é bem pior, pensou Pasternak, mas não disse. Sua consciência estava sob controle, mas fazia ruídos. Aquilo realmente tinha saído do manual de brincadeiras de Josef Mengele, e não era algo calculado para deixar feliz um judeu nova-iorquino. Mas o corpo de seu irmão jamais fora recuperado, esmigalhado até o átomo pela queda da torre do WTC. Não havia nem um túmulo que pudesse visitar com os filhos de Mike. E esse filho da puta tinha feito aquilo acontecer, de modo que Rich Pasternak mandou sua consciência se calar. O que ele fazia, se não era por conta de Deus, era por conta de sua família, e para Pasternak era o suficiente. Sua consciência tinha que ficar muda sobre o assunto.
— Qual é exatamente o nome desse sujeito? — perguntou Pasternak.
Foi Clark quem respondeu:
— Saif Rahman Yasin. É o filho número cinquenta e tantos de seu pai, um sujeito de vigor notável, e também muito próximo da família real saudita.
— Ah, é? Não sabia disso.
— Porém ele odeia a família real saudita mais que Israel — explicou Clark. — Eles tentaram liquidar com ele há uns seis anos, mas a missão fracassou. Ele os odeia pela corrupção, segundo diz. Acho que eles têm algum... quero dizer, uma enorme quantidade de dinheiro controlada por um número relativamente pequeno de pessoas, e isso faz com que alguns queiram pegá-lo, mas, comparado a Washington, a coisa não é tão ruim assim. Já estive lá. Aprendi o idioma nos anos 1980. Os sauditas que conheci são boa gente. A religião deles é diferente da minha, mas, droga, a dos batistas também. Os sauditas querem essa figura morta mais que nós, pode acreditar. Adorariam levá-lo para a praça principal de Riad e cortar sua cabeça com uma espada. Para o povo, ele cuspiu no país, no rei e na religião. Três vezes três, e isso é ruim para caramba por lá. Doutor, os sauditas não são iguais a nós, mas os ingleses também não, certo? Também já vivi por lá.
— O que você acha que devemos fazer com ele?
— Não é da minha alçada, senhor. Sempre podemos matá-lo, mas é melhor fazer isso em público. Porra, bem que podia ser no intervalo do Super Bowl, com replay instantâneo e comentários da televisão. Eu gostaria disso. Mas a questão realmente é maior que essa. Ele é uma figura política, e sua remoção também será um ato político. Isso sempre ferra com as coisas — concluiu Clark.
Realmente ele não tinha, na prática, instintos políticos, nem queria ter. Seu mundo era mais simples: se você assassinou, então devia morrer por isso. Não era elegante ou muito “sensível”, mas já havia funcionado uma vez, na verdade. O sistema legal funcionava bem melhor antes do país ser dominado pelos advogados. Porém não havia retorno, e ele não podia fazer nada a respeito. Clark não tinha ilusões sobre o comando do mundo. Seu cérebro simplesmente não chegava tão longe.
— Doutor, o que você o fez passar foi realmente assim tão ruim?
— Muito pior do que qualquer coisa que jamais cheguei perto de experimentar, pior do que qualquer coisa que vi em 26 anos de medicina, pior do que qualquer coisa que você possa fazer com uma pessoa sem matá-la de vez. Meu conhecimento disso, na verdade, é teórico, mas é algo que por nenhum motivo eu gostaria de passar.
Clark pensou em um sujeito chamado Billy, e seus momentos na câmara de recompressão de Clark. Lembrou-se de como friamente torturou aquele estupradorzinho de merda, e como isso não afetara nem um pouco sua consciência. Mas aquilo tinha sido pessoal, não profissional, e sua consciência não se importava muito. O homem fora deixado vivo em uma fazenda na Virgínia, e depois levado a um hospital e tratado por uma semana ou mais antes que o barotrauma liquidasse com sua vida imprestável de estuprador. Uma parte de Clark de vez em quando se perguntava se Billy gostava do inferno. Mas não com frequência.
Então isso era ainda pior? Droga.
Pasternak olhou para baixo e viu as pálpebras piscarem. Muito bem, ele estava voltando mesmo. Ótimo. Ou quase.
Clark foi até Hendley.
— Quem vai interrogá-lo? — perguntou John.
— Jerry Rounds, para começar.
— Quer que eu dê suporte?
— Provavelmente é uma boa ideia se todos nós ficarmos aqui. Quero dizer, seria melhor se tivéssemos um psiquiatra à mão, melhor ainda, um teólogo islâmico, mas não temos. Estamos sempre a pé, não é?
— Alegre-se. Langley jamais teria os colhões de fazer o que fizemos, não sem pelo menos uma faculdade de direito inteira ao lado para se intrometer, mais um repórter do Post para anotar tudo e alimentar sua indignação moral. Essa é uma coisa que realmente gosto neste lugar: não há vazamentos.
— Parte de mim gostaria de discutir isso com Jack Ryan. Ele não é psicocoisa, mas gosto de seus instintos. Mas não posso fazer isso. E você sabe a razão.
Clark assentiu; ele sabia. Jack Ryan também era conhecido por sofrer problemas de consciência. Ninguém é perfeito.
Hendley foi até um telefone e digitou uns dígitos. Alguns minutos depois, Jerry Rounds entrou.
— Bem? — perguntou Rounds.
— Nosso hóspede teve uma manhã desagradável — explicou Hendley. — Agora precisamos conversar com ele. É tarefa sua, Jerry.
— Parece que ainda está inconsciente — observou Rounds.
— Ainda continuará assim por alguns minutos — esclareceu Pasternak. — Mas vai ficar bem.
— Jesus, temos pessoas suficientes aqui? — apontou Rounds em seguida. Mais gente que nas reuniões ordinárias do conselho.
Então chegou uma câmera de TV, instalada em um tripé por Dominic, e as cortinas de lona alcatroada que tinham emendado com fita adesiva na noite anterior foram colocadas ao redor da bancada. A um sinal de Rounds, Dominic apertou o botão de gravar da câmera, e Hendley assumiu, anunciando, fora da câmera, a hora e a data. Gavin Biery, claro, iria alterar digitalmente a voz de Hendley posteriormente. Dominic reproduziu a sequência e declarou que a gravação estava perfeita.
— Joguinhos de manipulação? — perguntou Rounds, quase como para si mesmo, mas Clark estava bem do seu lado.
— Por que não? — respondeu Clark. — Não temos regras aqui, Jerry.
— Certo. — Clark levava jeito para chegar ao cerne da questão, notou o chefe de informações.
Clark imaginou se todos deveriam usar roupas de caubóis, jeans, cinturões de coldre e chapelões, para distorcer logo a percepção dele, entrar direto no jogo de manipulação com Saif. Mas provavelmente seria melhor manter tudo simples. Pensar demais sobre algo geralmente obscurecia tudo e terminava levando a nada. O simples geralmente era o melhor. Quase sempre.
Clark foi até a mesa e viu que Saif já estava se mexendo, mexendo e se contorcendo no sono. Quase pronto para despertar. Ficaria surpreso por ainda estar vivo?, perguntou-se Clark. Pensaria estar no inferno? Porque com toda certeza não estava no paraíso. Olhou o rosto atentamente. Pequenos músculos agora estavam se movendo. Ele estava perto de voltar ao mundo. Clark decidiu ficar onde estava.
— John? — Era Chavez.
— Fale, Ding?
— Foi mesmo assim tão ruim, hein?
— É o que o doutor diz. Ele é o especialista.
— Jesus.
— Deus errado, cara — observou Clark. — Ele provavelmente esperava ver Alá, ou talvez o demônio. — Talvez eu possa representar isso para ele, pensou John, refletindo. Olhou ao redor. Jerry Rounds parecia incomodado. Hendley mandara que ele fosse o batedor na última entrada, as bases estavam cheias e o jogo dependia do ponto final. Bem, ele não seria humano se não estivesse um tanto tenso, pensou John.
Sentiu que o arrastavam para aquilo. A coisa começou a lhe acontecer e, de repente, percebeu.
Ah, merda, pensou Clark. O que ele poderia dizer para esse filho da puta? Isso era trabalho para um psiquiatra. Talvez um clérigo muçulmano sério, ou um teólogo... Como é mesmo que eles chamam? Mufti? Algo assim. Alguém que conhecesse o Islã muito melhor que ele.
Mas será que esse sujeito era realmente muçulmano? Não seria mais um candidato a político? Será que ele mesmo sabia o que era? Em que momento esse sujeito se tornara o que proclamava ser? Para Clark essas eram questões profundas. Profundas demais. Mas os olhos do sujeito piscavam. Depois se abriram, e Clark estava olhando para eles.
— É bom respirar, não é? — perguntou Clark. Não houve resposta, mas havia confusão no rosto do homem. — Olá, Saif. Bem-vindo de volta.
— Quem é você? — indagou o homem, parecendo meio bêbado.
— Trabalho para o governo dos Estados Unidos.
— O que vocês fizeram comigo? O que aconteceu?
— Induzimos um ataque cardíaco, e trouxemos você de volta. Me disseram que é um procedimento aterrador.
Clark não obteve nenhuma resposta, mas percebeu o raio de terror nos olhos do Emir.
— Você precisa saber o seguinte: o que acabou de passar pode ser replicado, indefinidamente e sem danos em longo prazo. Deixe de cooperar e seus dias consistirão em nada mais que um ataque cardíaco depois do outro.
— Você não pode fazer isso. Vocês têm...
— Leis? Não, aqui não temos. Aqui estamos eu, você e uma seringa, pelo tempo que for necessário. Se não acreditar em mim, o médico estará de volta em dois minutos. Pode escolher.
A decisão do Emir durou menos que três segundos.
— Faça suas perguntas.
Clark e Rounds logo descobriram que a interação com o homem conhecido como Emir não seria um interrogatório, e sim um relato cordial. Yasin evidentemente levara a sério o aviso de Clark.
A primeira sessão durou duas horas e cobriu desde o mundano até o significativo, perguntas para as quais eles já tinham respostas, e mistérios que precisavam desvelar: há quanto tempo ele estava nos EUA? Onde e quando fizera a cirurgia plástica? Sua rota depois de deixar o Paquistão. Como foi adquirida a casa em Las Vegas? Qual o tamanho do orçamento operacional do CRO? A localização das contas bancárias; a estrutura organizacional do CRO, localização das células, agentes adormecidos, objetivos estratégicos...
E por aí foi, entrando pelo começo da noite, até que Hendley determinou uma pausa. Na manhã seguinte, o grupo se reuniu na cozinha da casa principal para uma avaliação e planejamento do interrogatório do dia. O tempo deles era limitado, explicou Hendley. Apesar de suas inclinações pessoais, o Emir não pertencia ao Campus, e não era missão deles dispensar justiça. O homem pertencia ao povo dos Estados Unidos; a justiça deveria ser feita de acordo com suas leis. Além do mais, uma vez que Yasin estivesse nas mãos do FBI, eles poderiam passar meses e anos espremendo até sua última gota de informação. Enquanto isso, o Campus trabalharia com o que o Emir já revelara. Tinham muitas pistas para seguir, e informação suficiente para mantê-los ocupados de oito meses a um ano.
— Diria que há apenas uma última coisa que precisamos tirar dele — disse Jack Ryan Jr.
— O quê? — perguntou Rounds.
— A razão de tudo isso. O pensamento desse sujeito tem muitas camadas. Todas as peças e partes do Lótus: a montanha Yucca, o Losan, os ataques no Meio-Oeste... A questão central era terror ou algo maior? Tem que ser mais que o 11 de Setembro ampliado, certo?
Clark coçou a cabeça pensativamente e olhou para Hendley, que pegou a dica, e depois disse:
— Essa é a grande questão.
Lá pelo meio da manhã, já tinham a resposta que queriam; voltaram sua atenção para a questão complicada de entregar Yasin para o FBI. Apesar de ser simbólica e visualmente atraente, a ideia de empacotar o Emir como se fosse um ganso natalino e jogá-lo de um carro em movimento nas escadas do edifício Hoover não era factível. Há semanas o Campus ladeava a linha cinzenta entre permanecer nas sombras como tinha sido planejado ou atrair a atenção do governo dos EUA.
O problema então se transformou em como “reentregar” o terrorista mais procurado do mundo sem que a coisa explodisse de volta neles. Finalmente, Dominic Caruso, que aprendera a lição com Brian, achou uma solução.
— KISS — disse ele. — “Keep it simple, stupid.”
— Explique — pediu Hendley.
— Estamos complicando tudo. Já temos o perfeito comutador: Gus Werner. Ele me indicou para o Campus, e é bem próximo do diretor do FBI, Dan Murray.
— Esse é um bom presente de grego, Dom — disse Chavez. — Acha que ele topa? Perguntando melhor: acha que ele pode fazer a coisa funcionar?
— E como você acha que funcionaria? — acrescentou Jack.
— Ele seria imediatamente preso e trancado em local bem seguro. Vocês sabem, ler os direitos dele, oferecer um advogado, fazê-lo falar um pouco. Envolver um procurador federal. Aí avisam ao procurador-geral, que informará o presidente. Depois disso, a bola de neve começa a crescer. A imprensa vai ser envolvida, e nós ficamos sentados só vendo o espetáculo. Olhem, Gus sabe como trabalhamos e sabe como o FBI trabalha. Se há alguém que pode vender esse pacote, é ele.
Hendley refletiu por alguns instantes, depois assentiu.
— Ligue para ele.
No Edifício Hoover, o telefone de Gus Werner tocou. Era sua linha particular, e poucas pessoas tinham acesso a ela.
— Werner.
— Dominic Caruso falando, Sr. Werner. Pode me dar alguns minutos esta tarde? Digamos, vinte minutos.
— Hã, claro, quando?
— Agora.
— Muito bem, pode vir.
Dominic estacionou a um quarteirão do Edifício Hoover e entrou no saguão principal, mostrando sua identificação do FBI para os guardas da portaria. Isso permitiu que ele passasse pelo lado dos detectores de metal. A suposição era de que os agentes do FBI sempre estavam armados. Na verdade, Dominic não estava armado naquele momento. Tinha se esquecido e deixara sua arma na escrivaninha, para a própria surpresa.
O escritório de Augustus Werner ficava no último andar, completo com uma secretária, à qual ele tinha direito como principal diretor-assistente do FBI, a apenas algumas portas de distância do escritório bem maior de Dan Murray, o Diretor. Dominic se anunciou para a secretária, e ela o fez entrar imediatamente. Ele se sentou diante da mesa do DA. Pelo seu relógio, eram exatamente 15:30.
— Muito bem, Dominic, o que você quer? — perguntou Werner.
— Tenho uma oferta.
— Que oferta é essa?
— Você quer o Emir? — indagou Dominic Caruso.
— Hã?
Dominic repetiu a pergunta.
— Claro que sim. — A expressão de Werner dizia: Qual a pegadinha?
— Esta noite, no Tysons Corner. Estacionamento do último andar, digamos, às nove e quinze. Venha sozinho. Sei que vai ter gente por perto, mas não perto o suficiente para ver a transferência. Eu pessoalmente o entregarei a você.
— Está falando sério. Vocês estão com ele?
— Claro.
— E como isso aconteceu?
— Não pergunte, não passe adiante. Estamos com ele e ele pode ser seu. Só nos deixe fora de tudo.
— Isso seria difícil.
— Mas não impossível. — Dominic sorriu.
— Não, não impossível.
— Informação anônima, golpe inesperado... qualquer coisa.
— Certo, certo... Tenho que falar com o diretor sobre isso.
— Compreendo.
— Fique perto do telefone. Entrarei em contato.
Como todos sabiam que aconteceria, o telefonema veio rapidamente. De fato, dentro de noventa minutos. A hora e o lugar do encontro foram confirmados. As oito e meia chegaram rapidamente, e o momento de se preparar. Dominic e Clark foram até a oficina ver Pasternak fazer o exame final no Emir, sob o olhar cuidadoso e a mira da Glock de Domingo Chavez.
— Ele está pronto para ir, doutor?
— Sim, só é preciso ter cuidado com a perna.
— Como quiser.
Clark e Dominic levantaram Yasin, e Dominic tirou as algemas flexíveis do bolso de trás e prendeu os punhos dele. Em seguida, Dominic pegou uma bandagem, que passou meia dúzia de vezes ao redor da cabeça de Saif. Era uma boa venda. Com isso feito, Clark agarrou o braço dele e o levou pela porta, cruzando o quintal e pela porta dos fundos da garagem. Hendley, Rounds, Granger e Jack estavam ao lado do Suburban. Ficaram em silêncio enquanto Dominic abria a porta do banco traseiro e ajudava Yasin a entrar. Clark deu a volta e se sentou ao lado dele. Dominic assumiu o volante e ligou o motor. A viagem os levaria pela US-29 até o Beltway de Washington, e depois a oeste pelo norte da Virgínia. Dominic ficou próximo ao limite de velocidade, o que era incomum da parte dele. A presença de uma identificação do FBI em sua carteira o absolvia de manter os limites de velocidade nos Estados Unidos, mas naquela noite ele queria fazer tudo seguindo as regras. Cruzou para entrar na Virgínia pela ponte da American Legion, e depois fez uma curva subindo à esquerda. Mais vinte minutos e Dominic pegou à direita o acesso ao Tysons Corner. O trânsito aumentou, mas a maioria dos carros saía do shopping center. Já eram nove e vinte e cinco. Ele pegou a rampa para o piso superior do estacionamento do lado sul do shopping.
Pronto, pensou Dominic. Lá estava um carro obviamente do Bureau, um Ford Crown Victoria novo com uma antena de rádio extra. Dominic estacionou a 10 metros dele e ficou sentado. A porta do motorista do Ford abriu. Era Gus Werner, em seu terno comum de trabalho. Dominic saiu para se juntar a ele.
— Está com ele?
— Sim, senhor — respondeu Dominic. — Ele parece um pouco diferente agora. Clareou um pouco a pele. Usando isso — Dom entregou um tubo meio usado de Benoquin que tinha retirado da casa de Las Vegas —, e fez uma plástica no rosto, na Suíça, segundo nos disse. Vou buscá-lo.
Dominic voltou ao Suburban, abriu a porta traseira, ajudou Yasin a descer, bateu a porta e caminhou com ele na direção de Werner.
— Vai precisar de atendimento médico. Ferimento à bala na perna. Já foi medicado, mas talvez precise de mais atenção. Fora isso, está cem por cento saudável. Não comeu muito. Pode estar faminto. Vai levá-lo para a Divisão de Campo de Washington?
— Sim.
— Bem, senhor, é todo seu.
— Dominic, algum dia vou querer escutar toda essa história.
— Talvez algum dia, senhor, mas não esta noite.
— Compreendido.
— Uma coisa: pergunte primeiro sobre os Ataques ao Coração do País. Pergunte sobre os agentes adormecidos.
— Por quê?
— Está tentando esconder alguma carta na manga. É melhor ninguém cair nisso.
— Muito bem. — Então a voz de Werner assumiu um tom mais formal: — Saif Yasin, você está preso. Tem o direito de permanecer em silêncio. Qualquer coisa que disser poderá ser usada contra você no tribunal. Você tem direito a um advogado. Compreende o que acabei de dizer? — acrescentou Werner, pegando no braço do homem.
O Emir não disse uma palavra.
Werner olhou Dominic e perguntou:
— Ele sabe inglês?
Dominic abriu um sorriso.
— Ah, sim. Pode acreditar, ele sabe exatamente o que está acontecendo.
EPÍLOGO
Cemitério Nacional de Arlington
Apesar de o destacamento do Serviço Secreto de Jack Ryan Senior evitar preocupações sobre fotografias não autorizadas, a maioria dos membros do Campus — Gerry Hendley, Tom Davis, Jerry Rounds, Rick Bell, Pete Alexander, Sam Granger e Gavin Biery — chegou vários minutos antes em três carros separados. Chavez e Clark vieram em um quarto veículo com o recém-reformado e novo contratado do Campus, Sam Driscoll, que passava metade de seu tempo no Campus se atualizando e a outra procurando apartamentos e uma reabilitação no John Hopkins. Apesar de não ter conhecido o irmão Caruso falecido, Driscoll era um soldado até a medula, e parente de sangue ou não, um camarada de armas era um irmão.
— Lá vêm eles — murmurou Chavez para o grupo e apontou para o caminho ladeado de árvores.
Seguindo o procedimento padrão dos Marines, a família imediata de Brian, escoltada por Dominic, chegou na limusine da frente e parou atrás do carro funerário, onde um pelotão de escolta de oito marines, encarregados de levar o caixão, estava em posição de sentido, com olhares para a frente e rostos sem expressão. Momentos depois, uma segunda limusine chegou trazendo o clã Ryan, que parou atrás. A um sinal da agente especial Andrea Price-O’Day, as portas traseiras de ambas as limusines foram abertas, e os passageiros desceram.
Ao lado do túmulo, Gerry Hendley e John Clark estavam ao lado um do outro e observaram os membros do pelotão de escolta estoicamente e com cuidado deslizarem o caixão coberto com a bandeira e se colocarem em posição atrás do capelão para a marcha pelo gramado luxuriante.
— A ficha começa a cair — murmurou o cabeça do Campus.
— Sim — concordou Clark. Seis dias tinham passado desde Yucca, quatro desde a chegada do corpo de Brian voltar para a casa de Trípoli. Só agora eles tinham arrumado tempo de absorver tudo que acontecera. Para o país, o Campus havia conquistado uma grande vitória, mas essa teve que ser paga com um preço alto.
A chuva que caíra por quase toda a manhã tinha se dissipado uma hora antes; as filas de lápides brancas pareciam quase luminescentes sob o sol do meio-dia. Em paralelo aos carregadores, um contingente da banda dos Marines marchava em passo cerrado enquanto tocava uma sombria cadência nos tambores.
O caixão chegou na beira do túmulo, e os membros da família se posicionaram. O comandante da escolta ordenou suavemente:
— Pelotão... apresentar armas. — Depois: — Pelotão... descansar.
A pedido de Dominic, o capelão fez uma cerimônia curta.
— Escolta... atenção. Escolta... apresentar armas.
Em seguida tocou o hino dos Marines e a salva de tiros, a esquadra de tiro fazendo seus movimentos quase robóticos até o último disparo soar pelo terreno. Quando terminou, um corneteiro solitário executou o toque de silêncio enquanto a bandeira de Brian era cuidadosamente dobrada e depois apresentada aos Caruso. A banda dos Marines tocou o Hino da Marinha, “Eternal Father, Strong to Save”.
E a cerimônia terminou.
Na manhã seguinte, segunda-feira, o Campus voltou ao trabalho, mas previsivelmente o ambiente estava mais quieto. Nos dias que antecederam o funeral de Brian, cada um deles tinha, claro, escrito e apresentado seu próprio relatório pós-ação, mas esta seria a primeira vez que os membros do, agora dissolvido, grupo Kingfisher se reuniria para uma necropsia. Todos os rostos estavam sombrios enquanto entravam na sala de conferências. Um acordo não verbalizado deixou uma cadeira vazia na mesa para Brian.
A resposta à grande pergunta do “Por quê?” de Jack pegara todos de surpresa. O Emir realmente tinha aspirações maiores para a Lótus. Os Ataques ao Coração do País e o incidente abortado no Losan foram planejados como socos, e a detonação na montanha Yucca como o direto no queixo que despertaria o gigante adormecido. Com um presidente incapaz e reacionário como Edward Kealty no leme do país, o FBI e a CIA, no seu devido tempo, descobririam as identidades dos responsáveis pelos ataques, apenas para se deparar com lendas cuidadosamente construídas e devidamente amparadas que, finalmente, conduziriam às portas do Diretório para os Interserviços de Inteligência paquistanês e a elementos radicalizados do Estado-Maior do Exército paquistanês, ambos há muito suspeitos de apoiarem de modo não muito convincente a guerra contra o terror.
Como os Estados Unidos haviam justificadamente invadido o Afeganistão após o 11 de Setembro, mais uma vez agiriam rápida a abertamente, expandindo as operações militares para o leste, cruzando as montanhas do Safed Koh e o Hindu Kush. A inevitável desestabilização do Paquistão, já um Estado semifalido, iria, segundo o Emir, criar um vácuo de poder no qual o Conselho Revolucionário Omíada avançaria e tomaria o poder, controlando o substancial arsenal nuclear do Paquistão.
— É plausível — disse Jerry Rounds. — Na pior das hipóteses, o plano tem sucesso; na melhor, teríamos que entrar na área com força, talvez quadruplicar nossa atual presença.
— E ficar por lá algumas décadas — acrescentou Clark.
— Se pensamos que o Iraque era um cartaz de recrutamento de militantes... — observou Chavez.
— Uma situação em que todos ganham para o Emir e o CRO — acrescentou Jack.
— Falei para Werner começar escavando primeiro as lendas. Ele vai sacar isso aí — disse Dominic Caruso. — A questão é: será que essa era a única carta que esse filho da puta tinha nas mangas?
Como se obedecendo a uma deixa, o telefone ao lado de Hendley tocou. Ele pegou, escutou e disse:
— Mande para cá. — Desligou e falou para o grupo: — Talvez uma questão a menos a ser respondida.
Mary Pat Foley apareceu na porta um minuto depois. Depois da troca de cumprimentos, ela colocou uma pasta de manilha diante de Hendley, que a abriu e começou a ler.
Mary Pat disse a Sam Driscoll:
— O Colagem finalmente cuspiu uma resposta para nosso caixão de areia.
— Sério?
— Me deixe adivinhar — disse Chavez. — Notícia velha. Montanha Yucca.
— Não — respondeu Hendley. Deslizou a pasta sobre a mesa até Clark e Jack, que a examinaram juntos. Jack olhou para Mary Pat.
— Tem certeza sobre essa merda?
— Foi mastigada uma dúzia de vezes. Temos 82 pontos de correspondência geográficos que batem.
Dominic disse:
— Desembucha logo.
— Quirguistão — anunciou Clark, sem tirar os olhos do arquivo.
— Que diabos o Emir iria querer no Quirguistão? — disse Chavez.
Gerry Hendley respondeu:
— Essa é a pergunta de 1 milhão de dólares. Vamos começar a buscar a resposta.
A reunião continuou por mais uma hora antes de terminar. Às onze horas, Jack fez um lanche rápido e dirigiu até Peregrine Cliff. Quando pisou na varanda, Andrea Price-O’Day abriu a porta.
— Isso é o que chamo de serviço — disse Jack. — Como vão as coisas?
— Como sempre. Sinto muito por seu primo.
Jack assentiu.
— Obrigado. Meu pai?
— No escritório. Escrevendo — acrescentou ela, enfaticamente.
— Bato à porta com cuidado.
O que ele fez, e se surpreendeu ao ouvir o pai dizer, alegremente:
— Pode entrar.
Jack sentou e esperou alguns segundos para seu pai terminar uma frase no teclado. Ryan Senior girou na cadeira e sorriu.
— Como está?
— Vou bem. Já está acabando? — perguntou Jack, acenando para a autobiografia no monitor do computador.
— Já posso ver a luz no fim do túnel. Depois disso, vou deixar esfriar um pouco, e então começar a reescrever. Você foi trabalhar hoje de manhã?
— Sim. Fizemos a necropsia.
— Quais as últimas novidades?
— O FBI está com ele. É só o que sabemos. Talvez seja a única coisa que jamais saibamos.
— Ele vai quebrar — previu Ryan Senior. — Pode demorar algumas semanas, mas vai.
— Como pode ter tanta certeza?
— No fundo, é um covarde, filho. A maioria deles é. Apresenta um bom espetáculo, mas não se segura. Temos que falar sobre algo. Kealty já colocou as manguinhas de fora.
— Procurando sujeira?
O ex-presidente assentiu.
— Arnie anda xeretando por aí, mas parece que o pessoal de Kealty está falando em espionagem ilegal. Pode ser uma matéria aparecendo no Post semana que vem.
— Espionagem ilegal — repetiu Jack. — Soa muito parecido com o Campus. Será que eles poderiam...
— Cedo demais para dizer. Talvez. Se for assim, usarão isso como uma salva de artilharia de abertura, tentando nos afundar antes mesmo de a corrida começar.
— O que podemos fazer?
— Não se trata de “nós”, filho — disse Ryan, gentilmente, e depois sorriu. — Eu cuido disso.
— Você não parece preocupado. E é isso que me preocupa.
— Isso é política. Nada mais. Vai ficar ainda mais feio, mas Kealty está com os dias contados. A única questão é quanto tempo ele vai tardar para compreender isso. Droga, vou dizer o que realmente me preocupa.
— O quê?
— Contar para sua mãe que você entrou no negócio da família.
— Ah, merda.
— Se o Campus aparecer e ela ler sobre isso no jornal ou for encurralada por um repórter, você e eu estamos na merda.
— Então como fazemos isso?
— Vamos manter a coisa vaga. Eu lido com a parte sobre o Campus. Você diz a ela o que faz por lá.
— Não tudo, certo? Não o trabalho de campo.
— Não.
— Melhor que você também não saiba, hein?
Ryan assentiu.
— E se ela perguntar? — questionou Jack.
— Não vai. É esperta demais para isso.
— Tenho que dizer a você, pai, que não estou animado para contar. Ela não vai ficar contente.
— Isso não passa nem perto. Melhor agora que mais tarde. Pode acreditar.
Jack Ryan Jr. pensou no assunto, depois deu de ombros.
— Muito bem.
Ryan levantou, então deu uma palmada no ombro do filho.
— Vamos, vamos enfrentar juntos o tiroteio.
Tom Clancy
O melhor da literatura para todos os gostos e idades