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Para a Princesa Gabrielle de St. Biel, a Escócia é uma terra com paisagens maravilhosas, rústicos chefes de tribos e profundos mistérios - astúcia e traições e agora, assassinatos. Enaltecida por sua extrema beleza e filha de um dos barões mais influentes da Inglaterra, Gabrielle é também a perfeita carta na manga para um rei que busca a paz na região montanhosa: o Rei John concedeu a mão de Gabrielle a um chefe de tribo bom e gentil. Mas tal casamento nunca se realizará.
Durante sua última tentativa de preservar a liberdade, um súbito acontecimento altera radicalmente o futuro de Gabrielle - quando ela e seus guardas presenciam uma cena de extrema crueldade. Com uma flecha certeira, Gabrielle tira a vida de um homem, salva a vida de outro e, sem querer, inicia um enorme conflito.
Em poucos dias, quando uma batalha real se instala entre antigos e novos inimigos, a região se torna um paiol de pólvora. Apesar de ter ido à Escócia para se casar, Gabrielle se vê envolvida nas intrigas locais quando dois nobres, subestimando a coragem e perícia de Gabrielle, mostram-se perigosamente fatais. Mas graças a um segredo de Gabrielle, Colm MacHugh, um dos mais temidos homens da Escócia, encontra um novo motivo para mostrar sua coragem. Sob aquele olhar penetrante, nem o corpo nem o coração de Gabrielle se encontram seguros.
Era uma vez, há muito tempo, no ano em que tempestades violentas vinham do mar, a primeira horda de guerreiros que veio de terras distantes, chegando às praias depois de terem cruzado as montanhas. Levando ao peito armas de aço e usando armaduras tão luzidias quanto fragmentos de vidro expostos ao sol do meio-dia, eles marchavam aos pares, formando uma fila que se estendia até onde os olhos podiam alcançar. Não pediram permissão nem pareciam se importar com o fato de serem invasores. Não, pois realizavam uma busca que nada poderia impedir. Percorrendo nosso belo país, eles se apossaram de nossos cavalos e alimentos, pisotearam nossas plantações, usaram nossas mulheres e mataram muitos de nossos melhores homens. Em nome de Deus, deixaram um rastro de destruição.
Chamavam a si mesmos de cruzados. Fervorosos, viam sua missão como válida e sagrada, crença alimentada pelo papa, que, após ter lhes dado sua bênção, ordenou que fossem até o outro lado do mundo. Seu objetivo era conquistar os infiéis e forçá-los a abraçar o seu Deus e a sua religião. Caso se recusassem a ceder, os soldados deveriam simplesmente eliminá-los com suas espadas abençoadas e sagradas.
Como o caminho das montanhas era a única rota que levaria os cruzados
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ao seu destino, eles o percorreram em legiões e, depois de chegarem à baía do outro lado das montanhas, roubaram nossos navios e seguiram por mar.
Naquele tempo, nosso pequeno país se chamava Monchanceux. Éramos governados por nosso tio, o bondoso Rei Grenier. Ele era um homem que amava e queria proteger sua pátria. Apesar de não sermos ricos, éramos felizes. Tínhamos o suficiente. Mesmo tendo ficado enfurecido quando nossos bens foram roubados, nosso governante não se deixou guiar pelo ódio. Sendo uma pessoa inteligente, o Rei Grenier acabou por encontrar uma solução.
Ele faria com que o novo grupo de invasores pagasse um tributo para cruzar as montanhas. A passagem era estreita e poderia ser vigiada com facilidade. Nossos soldados estavam acostumados ao frio, à neve e aos cortantes ventos noturnos. Poderiam proteger a estrada durante meses a fio. Além disso, o inverno rapidamente se aproximava.
O líder dos virtuosos invasores ficou ultrajado ao saber que deveriam pagar um tributo. Afinal, ele e seus homens estavam em missão sagrada. Ameaçou assassinar todos os habitantes de Monchanceux, inclusive mulheres e crianças, caso lhe negassem a passagem. Será que o Rei Grenier e seus súditos eram cristãos, ou não passavam de pagãos selvagens tentando atrapalhar o trabalho de Deus? O destino deles seria traçado em função da resposta.
Foi naquele exato momento que nosso bom e sábio rei abraçou a religião. Disse ao líder do exército que, sem sombra de dúvidas, ele e todos os seus súditos poderiam provar que também eram veneráveis.
Reuniu o povo de Monchanceux e, do alto da sacada do palácio, fez um discurso. Logo atrás dele estava o líder do exército dos cruzados.
- De hoje em diante, nosso país se chamará St. Biel, em honra do santo padroeiro de minha família. Ele é o protetor dos inocentes - anunciou o Rei Grenier. - Construiremos estátuas de St. Biel e pintaremos sua imagem nas portas de nossas catedrais. Assim, qualquer um que chegar à nossa costa saberá de sua bondade. Para demonstrar nossa sinceridade e humildade, pagaremos impostos ao papa. O tributo que recebermos será enviado a ele.
O líder dos cruzados ficou numa situação embaraçosa. Caso se recusasse a pagar o tributo exigido pela passagem - em ouro, claro, pois o rei não aceitaria nada menos - não estaria se recusando a pagar imposto ao papa? E se o papa ficasse sabendo que os cruzados haviam se recusado, que atitude tomaria? Será que o excomungaria? Ou o condenaria à morte?
Depois de uma longa noite de contemplação e de muita conversa, o líder militar decidiu pagar o tributo. A situação abriu um precedente e, daquele
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momento em diante, todos os cruzados que quisessem passar por nossas terras pagariam o tributo sem reclamar.
Nosso rei se manteve fiel à sua palavra. Derreteu o ouro e o transformou em moedas. Sobre cada uma delas, cunhou a imagem de St. Biel com um halo sobre a cabeça.
O depósito do tesouro real teve de ser ampliado para acolher todas as moedas de ouro, e um navio foi preparado para fazer a viagem que as levaria ao santo papa. Um belo dia, o navio foi carregado com enormes e pesados baús e uma multidão de súditos se reuniu na praia para vê-lo partir em direção a Roma. Pouco tempo depois daquele dia histórico, rumores começaram a circular. Ninguém era capaz de verificar se o papa realmente recebera o tesouro, ou estimar o total enviado. Vários embaixadores afirmavam que apenas uma quantia insignificante chegara às mãos dele. Os comentários sobre a enorme fortuna de nosso rei se avolumavam e encolhiam, como a maré em nossas praias.
Finalmente, uma rota mais rápida até a Terra Santa foi descoberta e os cruzados não precisaram mais atravessar o nosso país. Nós nos sentimos agradecidos por ter nosso sossego de volta.
Entretanto, não nos deixaram em paz. De vez em quando, chegava alguém à procura do ouro, agora lendário. Tendo ouvido sobre o tesouro por intermédio do rei da Inglaterra, chegou às nossas terras um barão, mas, depois que o nosso rei lhe deu permissão para fazer uma busca em seu palácio e nas redondezas, ele retornou ao seu país com a notícia: ali não havia tesouro algum. Como o Rei Grenier havia sido muito hospitaleiro, o barão o alertou sobre o fato de que o Príncipe John da Inglaterra considerava a hipótese de invadir St. Biel. Explicou que John queria governar o mundo e, impaciente, esperava tomar a coroa da Inglaterra. O barão não tinha dúvidas de que dentro de pouco tempo St. Biel se tornaria uma outra colônia da Inglaterra.
A invasão aconteceu um ano depois. Assim que St. Biel se tornou, oficialmente, uma possessão da Inglaterra, a busca ao tesouro foi retomada. Testemunhas afirmam que nenhuma pedra foi deixada no lugar. Reviraram tudo.
Chegaram à conclusão de que, se algum dia existira um tesouro, ele desaparecera.
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Capítulo 1
Wellingshire, Inglaterra
A Princesa Gabrielle mal acabara de completar seis anos quando foi chamada ao leito de morte de sua mãe. Enquanto seguiam solenemente pelo longo corredor, sua guarda de segurança, composta por quatro soldados que a acompanhavam, caminhava a passos lentos, mantendo-se alinhados a ela, dois de cada lado. O único som que se ouvia era o de suas botas pisando no frio chão de pedra.
Gabrielle perdera a conta das vezes em que fora chamada ao leito de morte da mãe.
Ao caminhar, mantinha a cabeça baixa, olhando atentamente para a pedra brilhante que encontrara. Sua mãe ficaria encantada. Ela era preta com uma fina linha branca que fazia um ziguezague em toda a sua volta. Um dos lados era tão liso como as mãos da mãe quando acariciava o rosto dela. O outro, áspero como os bigodes do pai.
Todos os dias, ao pôr-do-sol, Gabrielle levava um tesouro diferente para a mãe. Dois dias atrás, ela caçara uma borboleta. Suas lindas asas eram douradas com manchas púrpuras. A mãe de Gabrielle afirmara ser a mais bela borboleta que vira. Ao caminhar até a janela para lhe devolver a liberdade, elogiara a filha por ser tão gentil com as criaturas de Deus.
No dia anterior, Gabrielle colhera flores de uma colina do lado de fora
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das muralhas do palácio. Ao ser circundada por uma mistura de odor de urzes e mel, ela pensara que aquele cheiro era ainda mais agradável que os óleos e perfumes especiais de sua mãe. Amarrara uma bela fita ao redor das hastes, tentando fazer um lindo laço, coisa que não conseguira. O laço se desfizera antes que entregasse o buquê à mãe.
Mas as pedras eram os tesouros favoritos de sua mãe. Ela as guardava em uma cesta que Gabrielle colocara sobre sua mesa-de-cabeceira, e a menina tinha certeza de que esta pedra seria a sua favorita.
Gabrielle não estava preocupada com a visita de hoje. Sua mãe havia lhe prometido que não iria logo para o céu, e nunca quebrara uma promessa.
O sol lançava sombras nas paredes e no chão de pedra. Se Gabrielle não estivesse envolvida na missão de levar a pedra até a mãe, teria gostado de correr atrás das sombras, tentando capturá-las. O longo corredor era um dos seus lugares de brincadeira favorito. Adorava pular de pedra em pedra sobre um dos pés para ver a distância que podia percorrer antes de cair. Ainda não havia chegado ao arco da segunda janela e havia mais cinco pela frente.
Algumas vezes, ela fechava os olhos, abria os braços e girava até perder o equilíbrio e cair no chão, tão zonza que as paredes pareciam voar.
Acima de tudo, ela gostava de correr pelo corredor, especialmente quando seu pai se encontrava em casa. Ele era um homem enorme, mais alto que os pilares da igreja. Seu pai costumava chamá-la e esperar até que ela o alcançasse. Depois, tomava-a nos braços e a levantava acima da cabeça. Se estavam no pátio, ela levantava as mãos para o céu, sentindo que seria capaz de alcançar alguma nuvem. O pai sempre fingia não agüentar mais segurá-la, e ela achava que ele logo a derrubaria. Mesmo sabendo que ele nunca faria isso, gritava de alegria ao pensar na possibilidade. Colocava os braços ao redor do pescoço do pai e o apertava com força enquanto ele corria até os aposentos da mãe. Quando ele estava particularmente feliz, costumava cantar. Era muito desafinado e, várias vezes, Gabrielle tapava os ouvidos, mas nunca ria do pai. Não queria nem pensar em magoá-lo.
Hoje, seu pai não estava em casa. Havia deixado Welhngshire para visitar seu tio Morgan no sudeste da Inglaterra, onde passaria vários dias. Gabrielle não estava preocupada. Sua mãe não morreria sem que seu pai estivesse ao lado dela.
Stephen, o líder dos guardas, abriu a porta do quarto da mãe dela e incentivou-a a entrar dando uma palmadinha carinhosa entre suas omoplatas.
- Entre, princesa - ele disse.
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Ela se virou para ele com uma careta.
- Papai disse que você deve chamar minha mãe de Princesa Genevieve e a mim de Lady Gabrielle.
- Aqui na Inglaterra, você é Lady Gabrielle. - Ele tocou o penacho que adornava sua túnica. - Mas em St. Biel, você é nossa princesa. Agora ande, sua mãe a espera.
Ao ver Gabrielle, a mãe a chamou. Sua voz era fraca e ela estava terrivelmente pálida. Em sua lembrança mais remota, sua mãe já estava acamada. Explicara à filha que, apesar de suas pernas não saberem mais caminhar, rezava muito e tinha esperanças de que algum dia elas se lembrassem de como fazê-lo. Prometera a Gabrielle que, se tal milagre acontecesse, ela iria até o córrego de águas cristalinas para apanhar pedras para a filha.
E dançaria com o marido.
As pessoas que enchiam o quarto abriram uma estreita passagem para Gabrielle. Próximo ao leito, o padre Gartner sussurrava uma prece, e o médico real, que sempre franzia a testa e gostava de fazer sangria em sua mãe com seus bichos pretos e viscosos, também estava presente. Gabrielle sentiu-se aliviada com o fato de que, naquele dia, ele não tivesse colocado nenhuma sanguessuga nos braços dela.
Criadas, atendentes e domésticas rodeavam a cama. A mãe apoiou o bordado e a agulha sobre o colo, pediu que as criadas se retirassem e fez um sinal para Gabrielle.
- Venha se sentar ao meu lado - ordenou ela.
Gabrielle correu pelo quarto, subiu na plataforma e mostrou a pedra à mãe.
- Oh, ela é linda! - murmurou ela, enquanto cuidadosamente examinava a pedra. - É a mais linda de todas - acrescentou ela, com um gesto de cabeça.
- Mãe, você me diz isso toda vez que lhe trago uma pedra.
Sua mãe deu uns tapinhas sobre a cama. Gabrielle aproximou-se e disse:
- Você não pode morrer hoje, lembra? Você prometeu.
- Eu me lembro.
- O papai ficaria furioso. Acho melhor você não morrer.
- Chegue mais perto, Gabrielle - pediu a mãe. - Eu não consigo falar muito alto.
Pelo brilho nos olhos dela, Gabrielle percebeu que a mãe estava novamente jogando seu jogo.
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- Um segredo? Você vai me contar um segredo?
A multidão se aproximou. Todos estavam ansiosos para ouvir o que ela tinha a dizer.
Gabrielle olhou ao redor do quarto.
- Mamãe, por que essas pessoas estão sempre aqui? Por quê? A mãe beijou-lhe a bochecha.
- Elas acham que eu sei onde o grande tesouro está escondido e esperam que eu lhes conte.
Gabrielle riu. Ela gostava desse jogo.
- E você vai me contar?
- Hoje não - respondeu ela.
- Hoje não - repetiu Gabrielle para que os curiosos a ouvissem.
Sua mãe se esforçou para sentar-se. Uma das criadas adiantou-se para colocar um travesseiro em suas costas. Um momento depois, o médico anunciou que a cor dela estava melhorando.
- Sinto-me muito melhor - ela disse. - Podem se retirar - ordenou ela, com voz mais forte a cada palavra. - Eu gostaria de alguns momentos a sós com minha filha.
O médico olhou como se quisesse protestar, mas se manteve em silêncio enquanto pedia que as pessoas saíssem do quarto. Fez sinal para que duas criadas ficassem. Respeitando a ordem da senhora, as mulheres esperaram ao pé da porta.
- Será que você pode me contar uma história? - perguntou Gabrielle.
- Sim, posso - respondeu ela. - Que história você quer que eu conte?
- Uma história de princesa - respondeu ela, ansiosa.
A mãe de Gabrielle não se surpreendeu. Ela sempre pedia histórias de princesas.
- Era uma vez uma princesa que vivia num lugar muito distante, chamado St. Biel - começou a mãe. - Morava num maravilhoso palácio branco no topo de uma montanha. O tio dela era o rei. Ele gostava muito da princesa e ela era muito feliz.
Quando a mãe fez uma pausa, Gabrielle disse, impaciente:
- A princesa é você.
- Gabrielle, você sabe que sim e que esta é a história de sua mãe e seu pai.
- Eu sei, mas gosto de ouvir você contar. A mãe continuou:
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- Quando a princesa cresceu, um acordo foi feito com o Barão Geoffrey de Wellingshire. A princesa deveria se casar com o barão e morar com ele na Inglaterra.
Como sabia que a filha adorava ouvir as histórias do casamento, do vestido de noiva e da música, ela não poupou detalhes. Satisfeita, a garota bateu palmas ao ouvir sobre o banquete, especialmente a descrição das tortas de frutas e dos bolos de mel. No final da história, a narrativa da mãe se tornou lenta e difícil. A exaustão estava tomando conta dela. Gabrielle percebeu e, como sempre, novamente fez a mãe prometer que não morreria naquele dia.
- Prometo. Agora, é sua vez de me contar uma história.
- Com todas as palavras que você me ensinou, mãe? Do jeito que a sua mãe lhe ensinou?
Ela sorriu.
- Com todas as palavras. E, um dia, você vai ter de se lembrar delas para contar uma história para as suas filhas, para que elas fiquem sabendo de sua família e de St. Biel.
Gabrielle ficou séria e fechou os olhos para se concentrar. Ela sabia que não deveria se esquecer de uma palavra sequer. Esta era a sua herança, e sua mãe lhe assegurara de que, um dia, ela entenderia o significado de tudo. Gabrielle cruzou as mãos sobre o colo e abriu os olhos. Olhando para o sorriso encorajador da mãe, começou.
- Era uma vez, há muito tempo, no ano em que tempestades violentas vinham do mar...
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Capítulo 2
Qualquer pessoa que tenha parentes na Inglaterra conhece a história da disputa. O Barão Coswold de Axholm, um dos conselheiros mais próximos do Rei John, e o Barão Percy de Werke, também amigo e confidente do rei, passaram os últimos anos tentando se destruir. A inimizade entre os dois homens era acirrada. Cada um queria ser mais rico, mais poderoso e ter mais prestígio que o outro e, evidente, ser mais favorecido pelo rei. Brigavam ferozmente por tudo e, entre o que mais cobiçavam, estava um prêmio: a Princesa Gabrielle. A simples menção do nome dela, tornavam-se raivosos como cachorros loucos. Ambos estavam decididos a se casar com ela.
O rei se divertia com tais crises de ciúme. Sempre que surgia uma oportunidade, jogava um contra o outro. Via-os como dois animaizinhos de estimação que fariam qualquer coisa para alegrá-lo. Apesar de saber da obsessão de ambos por Gabrielle, filha do Barão Geoffrey não tinha intenção de dar a mão dela a eles. Ela era muito valiosa. Em vez disso, sempre que lhe convinha, preferia brincar com a possibilidade de que cada um deles teria a chance de ter a mão da princesa.
Qualquer pessoa que tivesse parentes na Inglaterra conheceria Gabrielle. Sua beleza era lendária. Ela crescera em Wellmgshire, não muito distante do palácio do rei. Até que tivesse idade suficiente para ser apresentada à corte, a
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princesa levara uma vida tranqüila e relativamente reclusa. Ao lado do pai protetor, Barão Geoffrey de Wellmgshire, ela tivera com o Rei John uma audiência que, apesar de curta, o deixara completamente encantado.
O rei tinha o hábito de ter tudo o que quisesse, quando quisesse. E tinha fama de lascivo. Era comum que seduzisse mulheres - que se insinuassem, ou não -, esposas e filhas de seus barões, para, depois, na manhã seguinte, contar vantagem de sua conquista. No entanto, ele não ousou tocar em Gabrielle, pois o pai dela era um dos barões mais poderosos e influentes da Inglaterra.
Não precisava de mais problemas além dos que já tinha. Apesar de estar sendo atacado por todos os lados, não se via como causa dos conflitos nos quais estava envolvido. Nos últimos tempos, seus problemas com o Papa Innocent III haviam aumentado consideravelmente. Ao recusar a decisão papal de nomear Stephen Langton arcebispo de Canterbury, causou a interdição da Inglaterra pelo papa. Com exceção das confissões e batizados, todos os serviços religiosos haviam sido suspensos. A grande quantidade de padres e bispos que abandonavam suas igrejas para fugirem à ira do Rei John tornara praticamente impossível encontrar um sacerdote para realizar esses dois sacramentos.
A interdição deixou o rei enfurecido e, como retaliação, ele confiscou todos os bens da igreja.
O papa reagiu com severidade. Excomungou o rei, minando sua habilidade de governar o país. Além de condenar ao fogo do inferno a alma já cheia de máculas, a determinação rompeu com o pacto de fidelidade dos súditos para com o rei. Daquele momento em diante, os barões não deviam mais lealdade a ele.
Por meio de fontes confiáveis, o Rei John sabia que o rei da França estava de olho no trono inglês e que, nesse sentido, tinha o apoio de alguns barões traiçoeiros para preparar uma invasão. Mesmo acreditando ter os recursos e os homens necessários para enfrentar a ameaça, o Rei John sabia se tratar de um empreendimento dispendioso, que merecia toda a sua atenção.
Era também atormentado por problemas menores. As reivindicações no País de Gales e na Escócia se tornavam cada vez mais estruturadas. O Rei William da Escócia não era um problema, pois já tinha jurado fidelidade ao Rei John. Não, eram os moradores das highlands1 que queriam ver sangue. Apesar de o Rei William acreditar que os tinha sob controle, os chefes dos rebeldes não se reportavam a ninguém além dos membros de seus clãs.
Nota de rodapé:
Região montanhosa da Escócia (N T)
Fim da nota de rodapé.
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Quanto mais ao norte, mais violentos e cruéis se tornavam os clãs. Era impossível manter controle sobre tantos conflitos concomitantes
Havia apenas um laird2 a nordeste das highlands, que não era uma ameaça para os outros e que, na verdade, conseguira um pouco de respeito: o Lord Alan Monroe. Ele era um homem de idade, bastante afável e de voz macia, características inusitadas para um chefe montanhês. Estava satisfeito com suas posses e não tinha ambição de aumentar seus bens. Talvez por isso, de certa forma, gostassem dele.
Numa surpreendente tentativa de apaziguar alguns de seus mais influentes barões e levando a cabo a sugestão do Rei Wilham da Escócia, o Rei John ordenou o casamento entre Lady Gabrielle e o Lord Monroe. Apesar de não ser necessário, o acordo agregou uma enorme gleba de terra nas highlands, conhecida como Finney's Fiat. A residência do Lord Monroe ficava na extremidade sudeste dessa tão cobiçada propriedade.
As preocupações do rei a respeito de um exército montanhês que se organizava com os muitos lairds da periferia, que pretendiam se unir para atacar a Inglaterra, seriam postas de lado por algum tempo, e o Rei Wilham não precisaria mais se preocupar com a possibilidade de uma insurreição. Entretanto, havia no ar a apreensão de que os habitantes das highlands, simpatizantes da causa de seus vizinhos do norte, aderissem à rebelião.
A proposta de casamento com Gabrielle foi prontamente aceita pelo Lord Monroe. Ele também acreditava que, com o edital real, a luta entre os lairds pela posse de Finneys Fiat chegaria ao fim e que a região voltaria a viver em paz.
Apenas Percy e Coswold se mostraram contra o casamento, mas o rei ignorou os pedidos e protestos patéticos dos dois barões.
O Barão Geoffrey, pai de Gabrielle, também se mostrou favorável ao casamento. Mesmo tendo gostado de que a filha se casasse com um barão inglês e fosse viver na Inglaterra, onde ele poderia vê-la e aos futuros netos com freqüência, ele sabia que Gabrielle não estaria segura enquanto o Rei John estivesse no poder. O barão vira o brilho de desejo por Gabrielle nos olhos do rei, que costumava agir pacientemente como uma aranha à espera da oportunidade de devorar a presa. E, pelo que Geoffrey ficara sabendo por intermédio de seus distantes parentes escoceses, os Buchanan, o futuro marido de Gabrielle era um homem bom, que a trataria com carinho.
Nota de rodapé:
2 Na Escócia, titulo dado aos proprietários de terras (NT)
Fim da nota de rodapé.
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Considerando que os Buchanan não gostavam muito das pessoas que não pertenciam a seu clã, esse era, sem dúvida, um grande elogio ao Lord Monroe. Apesar de o Barão Geoffrey e o Lord Buchanan serem parentes por afinidade, o Lord mal tolerava o pai de Gabrielle, mesmo que, ironicamente, o Lord Buchanan, que detestava tudo o que era inglês, tivesse se casado com uma senhora inglesa.
Com a bênção do Rei John e a aprovação do Barão Geoffrey, o casamento foi marcado. A Princesa Gabrielle foi a única pessoa que não pôde opinar e foi a última a saber da cerimônia.
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Capítulo 3
Um dia antes de ser obrigado a deixar St. Biel, o Barão Coswold se tornou cristão.
O Rei John o havia mandado numa missão idiota, e Coswold estava decidido a concluir a tarefa o mais rápido possível, pois o rei havia finalmente lhe prometido que, quando voltasse à Inglaterra, Gabrielle seria sua. Mesmo que o pai de Gabrielle desprezasse Coswold, o rei lhe assegurara que não teria problemas para forçar o Barão Geoffrey a aceitar o casamento.
Coswold também sabia que o rei enviara seu rival, o Barão Percy, em uma missão nas florestas do nordeste para encontrar William, Rei da Escócia. O trabalho dele levaria algum tempo, e Coswold esperava retornar rapidamente à Inglaterra para se casar com Gabrielle, antes que Percy ficasse sabendo.
Ele recebera ordens específicas. Deveria se certificar de que o emissário nomeado pelo Rei John para o posto de St. Biel, um homem lamuriento chamado Emerly, não estava desviando verbas.
Alguns anos atrás, o rei invadira o país e, na batalha feroz pela posse, quase fora destruído. Assim que sentiu que St. Biel estava sob controle, o rei começou a pilhagem do palácio e das igrejas. O rei queria saber se alguma coisa de valor fora deixada para trás. Ele não confiava em ninguém, nem mesmo no
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homem que pessoalmente escolhera para supervisionar o país que agora fazia parte de sua coroa.
Apesar de, quando pressionado, admitir que os rumores não passavam de bobagem, o Rei John continuava intrigado com a história do ouro escondido. Por via das dúvidas, queria que Coswold investigasse. O rei não confiava no relatório de Emerly.
Logo que Emerly chegara a St. Biel, convocara todos os homens e mulheres com mais de vinte anos que pudessem saber alguma coisa sobre o tesouro escondido. Todos admitiram ter ouvido rumores e acreditavam que o tesouro realmente teria existido. Alguns achavam que o ouro fora entregue ao papa; outros, que o Rei Gremer o havia roubado. Não havia nenhuma prova conclusiva e, depois de realizadas as entrevistas, Coswold chegou à mesma conclusão.
Naquela tarde, enquanto Coswold caminhava pelos jardins do palácio de St. Biel para esticar as pernas, o ar estava decididamente frio. O caminho o conduziu a uma suave colina que dava na baía, onde ele pôde ver seus homens levando os pertences ao navio que deveria levá-lo de volta à Inglaterra. Antes do cair da noite, ele estaria em sua cabine, esperando pela subida da maré.
Coswold enrolou a pesada capa sobre os ombros e puxou o capuz sobre a cabeça. Mal podia esperar para sair daquele lugar esquecido por Deus.
Ao passar por uma das cabanas de palha, viu um velho carregando galhos nos braços, sem dúvida para acender o fogo noturno.
O estranho reparou que Coswold tremia e disse:
- Somente os homens sem sangue nas veias achariam este clima frio.
- O senhor é muito insolente - tornou Coswold com mordacidade.
- Será que não sabe quem sou? - Evidentemente, o homem não sabia que Coswold, com o poder que lhe fora outorgado pelo Rei John, poderia lhe tirar a vida com apenas um gesto.
- Até mesmo o emissário Emerly faria bem em me temer - gabou-se Coswold.
O velho não se deixou impressionar.
- É verdade, não o conheço - admitiu ele -, mas estive no alto das montanhas cuidando dos doentes. É de lá que acabo de chegar.
- O senhor é médico?
- Não, sou padre. Cuido das almas da região e sou um dos poucos padres que sobraram em St. Biel. Meu nome é Padre Alphonse.
O barão assentiu com a cabeça e analisou o rosto do padre. Sua pele fora
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corroída pela idade e pelo clima, mas seus olhos brilhavam como se ele fosse jovem.
Coswold adiantou-se para encarar o homem, bloqueando seu caminho.
- Como padre, o senhor não pode mentir, certo?
Se o clérigo achou a pergunta estranha, não deixou transparecer.
- É claro que não. Mentir é pecado.
Satisfeito com a resposta, Coswold assentiu com a cabeça de novo.
- Coloque esses galhos no chão e caminhe comigo. Quero lhe fazer algumas perguntas.
O padre não retrucou. Colocando os galhos em frente à porta da cabana mais próxima, cruzou as mãos nas costas e caminhou ao lado do barão.
- Há quanto tempo o senhor foi nomeado para St. Biel? - perguntou Coswold.
- Já faz tanto tempo que não consigo me lembrar o número exato de anos. Mas sou feliz aqui. St. Biel se tornou o meu lar e não penso em partir.
- Quer dizer que o senhor esteve aqui durante o conflito?
- É assim que o senhor chama o fato de os soldados ingleses terem destruído o nosso país, assassinado nosso amado Rei Gernier II e derrubado a monarquia? Conflito... - zombou ele.
- Cuidado com seu comportamento e com suas palavras, padre. Apenas responda às perguntas.
- Sim, eu estava aqui.
- Chegou a conhecer o Rei Grenier antes de sua morte? O padre Alphonse deixou transparecer sua ira.
- O senhor quer dizer antes de ele ter sido assassinado? - E, antes que Coswold pudesse responder, ele acrescentou: - Sim, eu o conheci.
- Teve a chance de conversar com ele?
- É claro que sim.
- Conheceu a Princesa Genevieve? A expressão do padre suavizou-se.
- Sim, eu a conheci. Ela era sobrinha do rei... filha de sua irmã mais nova. Era uma pessoa muito amada em St. Biel. Todos ficaram tristes quando ela foi levada pelo barão inglês.
- O Barão Geoffrey de Wellingshire.
- Isso mesmo.
- O casamento foi feito aqui, não é?
- Exatamente. E todos em St. Biel foram convidados.
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- O senhor sabia que a Princesa Genevieve tem uma filha?
- Todos por aqui sabem disso. Não somos tão isolados assim. As notícias caminham com a mesma rapidez que em outros lugares. O nome dela é Gabrielle, e ela é a Nossa Majestade.
- Sua Majestade é o Rei John - Coswold lembrou-o.
- Afinal, por que o senhor me faz tantas perguntas?
- Não importa. Tendo vivido aqui por tanto tempo, o senhor deve ter ouvido rumores sobre o ouro escondido.
- Ah, então é isso - resmungou o padre.
- Responda à pergunta.
- Sim, ouvi os rumores.
- Há alguma verdade neles?
O homem santo pensou cuidadosamente em sua resposta.
- Posso lhe dizer que já houve uma enorme quantidade de ouro no tesouro do rei.
- Disso eu já sei. Seus conterrâneos me contaram sobre o pesado tributo que seu rei cobrava dos viajantes que cruzavam as montanhas, assim como me contaram sobre a homenagem que fez a St. Biel e sua oferta ao papa.
- Ah, St. Biel - assentiu o velho. - Nosso patrono e protetor. Sentimos grande devoção por ele.
- Isso é evidente - respondeu Coswold, zombeteiro. Num gesto amplo, balançou uma das mãos. - Olhe para este lugar - disse ele, com escárnio. - Seu santo está em toda parte. Não se pode dar um passo sobre esta terra desgraçada sem que se seja seguido por aqueles olhos abelhudos e aquela expressão presunçosa. Se o papa ficasse sabendo que este país adora um santo, excomungaria todos vocês.
Lentamente, o padre Alphonse balançou a cabeça.
- Nós não adoramos nenhum santo. Oramos a Deus; honramos o papa, mas acreditamos ter um grande débito com St. Biel. Ele é nosso patrono. Olhou por nós em muitas adversidades.
- Tudo bem - resmungou Coswold. - Em nome do seu santo patrono, responda: todo o ouro foi enviado ao papa?
O padre não respondeu.
- Responda - ordenou ele. - O senhor chegou a ver o ouro?
- Durante esses anos, vi muitas das moedas de ouro. A Princesa Genevieve tinha uma.
O padre fazia questão de ser vago, mas Coswold pressionou-o:
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- O senhor viu o ouro do tesouro?
- Apenas uma vez - disse o Padre Alphonse.
- Antes ou depois da doação feita ao papa?
O padre ficou em silêncio por alguns segundos.
- Isso faz muito tempo. Não me lembro bem.
A resposta evasiva aguçou a curiosidade de Coswold.
- O senhor se lembra muito bem, meu velho. Em nome de John, seu rei, exijo que me conte. Quando viu o ouro?
Padre Alphonse não respondeu depressa o bastante. Coswold agarrou a gola de seu hábito, puxando-o para frente.
- Se não me contar - rosnou ele -, juro que o senhor não verá nascer outro dia em seu amado país e que mandarei destruir todas as imagens do seu santo adorado para depois jogá-las ao mar.
Padre Alphonse tentou respirar. O olhar de Coswold lhe dizia que sua ameaça seria cumprida.
- Vi as moedas de ouro do tesouro depois que a doação foi mandada para o papa.
- Quero ouvir os detalhes - ele disse. O padre suspirou.
- Eu estava aqui havia pouco tempo quando fui chamado para uma audiência com o Rei Grenier. Ele era um homem bom e sábio. Mostrou-me o palácio e os jardins.
- Mostrou-lhe o tesouro?
- Sim - ele disse -, mas acho que foi por acidente. Não creio que o rei quisesse que eu o visse. Enquanto caminhávamos pelo corredor, conversando animadamente, passamos pela sala do tesouro. As portas estavam abertas e havia dois homens empilhando sacos de ouro. As moedas enchiam as prateleiras e, no chão, havia apenas uma pequena passagem até a porta. O rei e eu não fizemos menção ao fato.
- E depois? Continue. Conte-me mais.
- O tempo passou e fui chamado para ministrar os sacramentos em seu leito de morte. O filho, que estava ao seu lado, passara as últimas horas com ele, recebendo instruções de como governar o país. Novamente, as portas da sala do tesouro estavam abertas quando passei por elas a caminho da capela. Só que, dessa vez, a sala estava completamente vazia. Não havia ouro algum, nem mesmo uma moeda.
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- Quanto ouro foi escondido?
- Não sei.
- Tente adivinhar - ordenou ele.
- Existem rumores de que haveria o suficiente para ganhar a guerra. Ouro é poder. Pode-se comprar qualquer coisa... até mesmo um reino.
- Então, onde está o ouro agora?
- Não sei. Ele... simplesmente desapareceu. Talvez tenha sido todo mandado para o papa. - Afastando-se de Coswold, ele abaixou a cabeça. - Se o senhor não tiver mais perguntas, eu gostaria de ir para casa repousar meus ossos cansados.
- Vá - disse Coswold. - Mas não diga nada sobre nossa conversa a ninguém.
O padre concordou com a cabeça e começou a subir a colina.
Coswold soltou um risinho de escárnio. Como era possível que um tesouro tão grande simplesmente desaparecesse? Virando-se para o velho que se afastava, gritou:
- Isso só pode querer dizer que esse seu rei idiota escondeu o ouro e não contou o local a ninguém. Levou o segredo para o túmulo. Muito inteligente, não acha?
Mal controlando sua ira, Padre Alphonse girou sobre os calcanhares.
- E por que o senhor acha que ele não contou a ninguém?
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Capítulo 4
O Barão Coswold sentiu-se ultrajado. Tinha acabado de chegar de St. Biel quando foi informado por um dos mensageiros do rei de que, dentro de três meses, Lady Gabrielle se casaria com o Loird Monroe na Abadia Arbane. Como era possível? A novidade deixou-o atônito. O mensageiro real trazia também a Coswold ordens do rei, mas o barão achou praticamente impossível se concentrar. Várias vezes, pediu ao mensageiro que repetisse a mensagem.
Ao voltar para casa, ele mal conseguiu controlar sua raiva. Ao chegar lá, extravasou. Estava furioso com o rei por ter, mais uma vez, quebrado sua promessa. Entrou no grande salão, pegou uma jarra e uma tigela, e atirou-as contra a lareira.
Islã, filha de sua irmã, estava lá para recebê-lo. Ela era uma criatura tímida que adorava Coswold e, desde o dia em que ele a recebera em sua casa, prestava atenção em cada palavra que o barão dizia. Tendo, no passado, presenciado várias crises de ódio do tio, Islã aprendera que, até que ele se acalmasse, a melhor coisa a fazer era se encolher num canto da sala.
Em sua fúria, ele nem percebeu que ela estava ali. Andava de um lado para outro, chutando e atirando qualquer coisa que encontrasse pela frente, agindo como se fosse uma criança mimada que não estava conseguindo o que queria. Agarrou um cálice e uma jarra de cima de uma cômoda e fez uma careta de
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satisfação perversa quando eles se arrebentaram contra a parede
- Só posso culpar a mim mesmo - arengou ele. - Fui um grande tolo ao acreditar naquele filho-da-puta mentiroso. Por que é que eu pensei que desta vez seria diferente? Quando foi que o cretino metido a rei falou a verdade? Quando? - gritou ele
Nervosa, Islã ajeitou seu bliaut1 e afastou-se um pouco da parede. Será que ousaria responder ao tio? Será que ele queria que ela fizesse isso? Enquanto pensava, Islã mordeu o lábio inferior. Se tomasse a decisão errada, seu tio poderia voltar sua fúria contra ela. Isso já acontecera antes e, por quase um mês, ela carregara as marcas que lhe ficaram quando ele a agarrou e chacoalhou pelos braços. Aquela lembrança fez com que se decidisse. Islã se manteve quieta até que Coswold se acalmasse.
Dez minutos depois, ele desabou sobre uma das cadeiras ao redor da mesa e ordenou que lhe trouxessem vinho. A criada apressou-se pelo corredor com um cálice e uma jarra para substituir os que haviam sido quebrados. O cálice foi cheio até a boca com o líquido vermelho. Ao colocá-lo sobre a mesa, ela derramou um pouco de vinho, que rapidamente enxugou com um pano. Em seguida, fez uma reverência e se afastou.
Depois de dar um grande gole, o barão apoiou as costas na cadeira e deu um suspiro.
- Atualmente, não existem mais homens honestos na Inglaterra. Nenhum homem honesto.
Cansado, ele virou-se e, ao ver Islã, chamou-a.
- Venha sentar-se ao meu lado. Conte-me as novidades. E Percy? O que é que tem feito aquele cretino?
Sendo uma mulher sem muitos encantos, Islã se sentiu feliz com a atenção. Correu até a mesa e sentou-se em frente do tio, do lado oposto da mesa.
- Assim que o senhor partiu para St. Biel, o Barão Percy foi mandado às Iglands.
- Disso eu já sabia - ele disse, impaciente. - Ele já voltou?
Nota de rodapé:
O bliaut ou bhaui é uma espécie de vestido usado no século XII, no leste europeu, que consistia de saias volumosas e pregas e franzidos horizontais saindo de um justo corpete que cobria o abdômen e ia até a base do busto As mangas - justas desde os ombros até os cotovelos, se abriam a partir deles até quase tocar o chão - eram o que mais diferenciavam este tipo de vestimenta das outras roupas usadas durante a Idade Média (N T)
Fim da nota de rodapé.
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- Sim - respondeu ela. - Mas o escudeiro dele me disse que, dentro de algumas semanas, ele estará se preparando para viajar para a Abadia Arbane. Parece que ele ficou muito desgostoso com o casamento de Lady Gabrielle e teve um chilique terrível. O escudeiro me disse que ele chegou a chorar.
Essa era a primeira boa notícia que ouvia desde que saíra daquele navio miserável. Ao pensar em Percy chorando como uma velha senhora, deu um risinho de satisfação.
- Ele chorou? De verdade? Alguém viu? Conte-me mais.
Islã estava prestes a dizer ao tio que ouvira dizer que, quando ficara sabendo que Lady Gabrielle deveria se casar com o Lana Monroe, Percy fizera um escândalo e jogara muitas coisas para o ar, mas percebeu que Coswold havia feito exatamente a mesma coisa. Era provável que ele não gostasse da comparação.
Ela abaixou a cabeça.
- Seria melhor que ele adequasse suas expectativas quanto a uma esposa.
O barão não deu importância ao comentário dela. Bebeu o resto do vinho, limpou os pingos do queixo com a manga da camisa e serviu-se de mais.
- E Percy chegou a dizer a alguém como conseguiria realizar tal façanha?
- O senhor se refere aos planos dele para se casar com Lady Gabrielle, mesmo sem ter permissão?
- Exatamente.
Antes que ele pudesse repreendê-la por divagar e não prestar atenção, ela respondeu:
- Não, ele não explicou nada a ninguém. O mesmo escudeiro me disse que, se o rei não puder comparecer à cerimônia, será representado por ele.
- Quer dizer que o Rei John planeja ir à Abadia Arbane? Ela assentiu com a cabeça.
- Mas o barão não acredita que o rei chegue a tempo, pois Sua Majestade lhe disse que tem muitos compromissos a cumprir.
- E Percy tem esperança de que o rei não possa comparecer, certo? - Ao fazer a pergunta, ele fez uma careta de escárnio.
Mais uma vez, Islã assentiu com a cabeça.
- Percy vem se gabando de que o rei lhe deu plenos poderes para falar em seu nome, assim como tomar decisões com a bênção dele.
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O estado de espírito de Coswold voltou a piorar com a notícia.
- O Barão Percy pode tomar qualquer decisão que queira? - resmungou ele. - É verdade?
- Foi o que me disseram - Islã colocou as mãos cruzadas sobre a mesa e gritou: - Tio, o senhor precisa se casar com Gabrielle. Porque, mesmo que não seja certo, eu me sinto atraída pelo Barão Percy. O senhor sabe disto. Não vê como eu sofro?
Coswold passou a mão pelo queixo.
- Ele a lisonjeia, Islã, porque sabe que qualquer palavra gentil será suficiente para virar sua cabeça e ganhar sua lealdade.
Ela levou as mãos ao coração.
- Sempre serei leal ao senhor. Quando meu pai morreu, o senhor me acolheu e cuidou de mim. Eu o amo e nunca lhe seria desleal. - Apressadamente, ela acrescentou: - Mas sei o quanto o senhor deseja Lady Gabrielle e, se o senhor se casar com ela, talvez o Barão Percy passe a me querer como esposa. Sei que não sou muito bonita, mas, se o senhor se casar, eu também serei parente dela, certo? Será que isso não teria algum valor para Percy?
Ele mal sabia como responder. Chegou a sentir pena dela e de seus sonhos impossíveis. Percy nunca se casaria com uma mulher como ela. Na verdade, Islã tinha tão poucos atrativos que Coswold duvidava de que qualquer homem se interessasse por ela. Sua pele era pálida e marcada, e seus lábios não passavam de duas linhas finas que pareciam desaparecer quando ela falava. Agora que estava crescida, ela era para Coswold companhia e uma boa criada, e ele não tinha nada contra mantê-la assim até que um dos dois morresse. Mas, se Islã queria se casar, quem ele poderia encontrar para seu marido? Ela nem sequer tinha um bom dote, a não ser que ele aumentasse o que seu pai havia lhe deixado. Coswold sabia que com um bomlote ela teria muitos pretendentes, mas não estava disposto a abrir mão do que lhe pertencia. Agora que os pais dela estavam mortos, Coswold era a única família de Islã. É claro que ela ficara desapontada quando percebera que o tio não aumentaria seu dote, mas aquilo passaria e Islã acabaria aceitando seu destino. Afinal, não tinha para onde ir.
- Nunca se deve perder a esperança - resmungou ele, por não ter nada mais a dizer. - Lembre-se de que eu e Percy somos inimigos. Não acho que ele será capaz de esquecer nossa animosidade, especialmente se eu me casar com Gabrielle. Parece, no entanto, que o ganhador do grande prêmio será o Lord Monroe.
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- O senhor poderia mudar essa história - disse Islã. - Meu tio é inteligente e esperto. Poderia encontrar uma maneira de se casar com ela. Ouvi dizer que ela ainda nem sabe que deve se casar com o laird.
- Talvez você esteja alimentando falsas ilusões, mas não vou desencorajá-la.
- Se eu conseguisse conquistar Percy, o senhor me daria permissão para casar com ele? - perguntou ela, ansiosa.
- Sim, daria.
- Obrigada, meu tio - murmurou ela, feliz por ter conseguido dele tal promessa. Ela voltou a se fazer comportada. - O senhor fez boa viagem? Tudo correu bem?
Coswold afrouxou o cinto e, esticando os pés à sua frente, espreguiçou-se na cadeira.
- St. Biel é um lugar miserável. Faz frio quando devia fazer calor e um calor insuportável quando devia fazer frio.
- O senhor encontrou o tesouro do rei?
- Não, não encontrei.
- Ele realmente existe?
A resposta dele foi imediata.
- Não.
Não havia razão para lhe dizer o que realmente pensava. Apaixonada como estava por Percy, facilmente deixaria qualquer coisa escapar em algum momento. O amor transformava as mulheres em tolas.
Coswold não diria a ninguém que acreditava na existência do tesouro. Planejava encontrá-lo e ficar com ele. Com certeza não dividiria uma única moeda com o Rei John que, pela última vez, tivera a chance de mentir para ele. Com tamanha fortuna nas mãos, Coswold montaria um exército para tomar o que quisesse e quando quisesse. Ah, pensar em tamanha liberdade fazia sua cabeça girar.
Para alcançar seus sonhos, ele precisava ser prático. Gabrielle tinha a chave que levava ao ouro. Coswold tinha certeza de que o segredo do tesouro escondido fora passado de geração em geração. Se não pudesse tê-la para tirar dela a informação, precisava ter certeza de que a mão de Gabrielle fosse dada a alguém a quem pudesse manipular. E ele tinha o homem perfeito em mente.
- Dentro de poucos dias, devo partir em outra longa viagem - comentou Coswold.
- Vai muito longe?
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Ele assentiu.
- Até as Ighlands. Ela se espantou.
- O senhor vai à Abadia Arbane
- Primeiro, preciso me encontrar com o Rei John para responder às suas perguntas sobre St. Biel. Felizmente, ele agora está no norte e, assim que terminarmos nossa reunião, seguirei para as Iglands.
- Para a abadia - enquanto falava, ela assentia com a cabeça.
- Antes, tenho outro destino em mente. Mas, quando terminar o que tiver que fazer lá, vou para a abadia. Devo chegar com tempo suficiente para ir ao casamento.
Islã suspirou fundo para reunir coragem.
- Sei que não deveria perguntar mais nada, mas posso ir com o senhor? Eu adoraria assistir ao casamento da princesa. Tenho certeza de que será uma cerimônia esplêndida.
Agora, quem mentia era ela. Islã não tinha nenhum interesse em assistir ao casamento da Princesa Gabrielle. Percy estaria lá, e ela queria vê-lo. Coswold estava pronto a recusar seu pedido, mas mudou de idéia. Sua sobrinha poderia lhe prestar ajuda.
Desanimada, ela abaixara a cabeça, aceitando a recusa do tio antes mesmo que ele a verbalizasse.
- Sim, você pode ir.
Rapidamente ela levantou a cabeça. Feliz, ficou com os olhos marejados de lágrimas. Dentro de pouco tempo, veria o amor de sua vida e talvez encontrasse uma maneira de fazer com que ele a amasse. Tudo era possível. E Islã faria qualquer coisa para se casar com o Barão Percy.
Qualquer coisa.
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Capítulo 5
Eles pretendiam enterrar o irmão de MacHugh no centro do campo de batalha e, para se divertirem um pouco, decidiram enterrá-lo vivo. O campo escolhido para a execução era chamado Finney's Fiat1, terra considerada sagrada pelos MacKenna. Agora, o clã chamava o vale de Glen2 MacKenna, pois muitos de seus melhores soldados haviam sido lá executados. Ao final da última batalha, o solo ficara tingido de negro pelo sangue dos MacKenna.
O responsável pela carnificina fora o Lord Colm MacHugh. O poderoso chefe e seus ferozes guerreiros haviam descido a encosta da montanha como um transbordante caldeirão de óleo fervente, destruindo tudo o que encontravam pela frente com sua fúria escaldante. Com suas espadas levantadas, seu grito de batalha ecoou pelas reentrâncias das rochas. Para os soldados MacKenna que estavam abaixo, esperando para lutar, aquela fora uma visão aterradora.
A imagem de MacHugh era a que mais causava arrepios. Até aquele dia, alguns dos soldados MacKenna se recusavam a acreditar na existência do laird, pois as lendas sobre sua crueldade em batalha e sua força hercúlea não poderiam ser verdadeiras... a não ser que, como diziam alguns boatos, MacHugh fosse realmente sobre-humano.
Notas de rodapé:
1. Em português, a palavrato significa "superfície plana", podendo também ser usada para se referir a "vale". (N.T.)
2. Em português, a palavra glen significa "vale estreito"; "ravina".
Fim das notas de rodapé.
Alguns que tiveram a chance de vê-lo juraram que era metade leão, metade homem; seu rosto talhado a cinzel, seus cabelos tinham o mesmo tom dourado da juba dos leões e sua ferocidade nos campos de batalha era animalesca. Num segundo invisível, no próximo atacando, ele metodicamente esquartejava suas presas, membro por memmbro.
Era o que diziam.
Os guerreiros mais instruídos costumavam rir de tal bobagem. MacHugh não passava de uma sombra com enormes poderes, argumentavam. Desaparecia quando bem entendia, mas, quando sua sombra se aproximava, a única maneira que a pobre alma tinha para tentar evitar a morte certa era se atirar de joelhos e pedir misericórdia. MacHugh era invencível, impossível de ser capturado. O único aviso que dava era a música que o precedia. Música das sombras. Seu grito de batalha se misturava, em perfeita harmonia, com o silvo da lâmina de sua espada cortando o ar. Ao ouvir aquele som, o soldado já estava morto.
O Lord Owen MacKenna sabia muito bem que Colm MacHugh era de carne e osso. No ano anterior, por duas vezes, Mackenna estivera na mesma sala que ele, reunido com vinte outros lairds. Eles haviam se encontrado para fazer pedidos ao rei da Escócia. Nas duas ocasiões, o poderoso MacHugh não lhe dirigira a palavra, mas, mesmo assim, MacKenna sentiu a aguilhoada de suas palavras. Quando assuntos relativos aos limites de suas terras foram trazidos à baila, o rei e os outros lairds pediram informações a MacHugh, como se as terras dele e o poder que tinha fossem mais importantes que os interesses de MacKenna. E sempre com relação a Finney's Fiat. O vale ficava exatamente entre as terras de MacHugh e MacKenna. O solo era fértil e produtivo, perfeito para a pastagem de carneiros e talvez um pouco de plantio de cevada, mas nenhum dos dois clãs podia tomar posse dele. O vale pertencia a John, rei da Inglaterra, e lhe fora dado de presente anos antes, num gesto conciliatório, pelo rei da Escócia. Toda vez que MacKenna tentava se apoderar de uma fatia da gleba, MacHugh, sempre atento, o fazia recuar.
Oh, MacKenna desprezava aquele homem. A cada vez que respirava, seu ódio crescia, a ponto de ameaçar consumi-lo. Não passava um dia sequer sem que tivesse pelo menos um pensamento sombrio sobre o laird, mas o mais irritante para Owen era saber que MacHugh não perdia um minuto sequer pensando nos MacKenna. Eles não eram importantes o suficiente para serem odiados.
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Owen reconhecia o pecado que cometia ao sentir inveja. Aquele sentimento o estava corroendo em vida e ele se sentia impotente para fazer qualquer coisa a respeito. Sonhava em destruir MacHugh e, apesar de não ousar admitir a falta ao seu confessor, de boa vontade venderia sua alma ao diabo para conseguir o que desejava.
A lista de suas vontades era longa. Queria ter o poder de MacHugh. Queria os aliados dele: os Buchanan, os Maitlands e os Sinclair. Queria possuir a mesma força e disciplina. Queria ser capaz de instilar o medo que o Lord instilava em seus inimigos; queria a lealdade que o outro tinha dos amigos. Queria suas terras e tudo o que MacHugh controlava. E, acima de tudo, Owen queria vingança.
Hoje era o dia em que ele, finalmente, ficaria livre de sua inveja. Hoje era o dia em que conseguiria fazer justiça.
E o dia estava glorioso, perfeito para uma execução... ou muitas delas, se tudo corresse bem e um grande número de MacHugh fosse eliminado. Pena que ele não pudesse assistir, mas tinha de se manter afastado dos executores para poder alegar inocência quando fosse acusado do crime, e ter uma pessoa sagrada na Abadia Arbane para testemunhar a seu favor.
Owen havia planejado tudo cuidadosamente e escolhera a dedo os soldados encarregados do sepultamento.
- O mais importante - explicou ele - é reconhecer o momento oportuno. Vocês devem esperar até verem o Lord MacHugh no cume acima do vale, antes de enterrar o irmão dele. Assim, ele ficará sabendo, mas não terá tempo para impedir. Não se preocupem. As flechas que ele atirar não os alcançarão, e ele não é capaz de voar. Quando finalmente chegar ao lado do irmão enterrado, será tarde demais e vocês e seus bons homens já estarão escondidos.
- Um contingente de soldados estará à espera no oeste, atrás das árvores. Assim que MacHugh se aproximar o suficiente, eles o atacarão.
Com um brilho malicioso no olhar, MacKenna esfregou as mãos e acrescentou:
- Se tudo correr bem, o Lord Colm MacHugh e seu irmão Liam estarão mortos antes do cair da noite.
O soldado que Owen encarregara do sepultamento era um homem de ombros fortes e cabeça grande, chamado Gordon. Owen fez com que repetisse as ordens para ter certeza de que ele entendera bem a importância de reconhecer o momento exato de agir.
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Os guerreiros tiveram um pouco de problema para capturar Liam MacHugh. Pegaram-no numa emboscada enquanto ele atravessava um bosque denso. Depois de baterem muito nele, tiraram suas botas, amarraram uma grossa corda em seus tornozelos e o arrastaram preso a seu cavalo até o buraco estreito e profundo que haviam cavado com antecedência.
Enquanto, nervosos, esperavam que MacHugh chegasse ao cume e que Liam recuperasse a consciência para saber o que aconteceria com ele, alguns soldados começaram a discutir sobre o sepultamento.
A discussão virou briga. Três soldados queriam enterrar o irmão de MacHugh de cabeça para baixo, deixando apenas os pés acima do solo. Quando ele parasse de mover os dedos, saberiam que estava morto. Três outros eram a favor de enterrá-lo em pé. Queriam ouvir seus gritos e seus pedidos de misericórdia até que o último punhado de terra lhe cobrisse a cabeça.
- Pode ser que ele não retome a consciência - argumentou um dos soldados. - Sou a favor de colocar a cabeça primeiro.
- Ele não soltou nem um gemido enquanto batíamos nele. Por que você acha que ele começaria a gritar agora? - um outro perguntou.
- Vejam a névoa se espalhando. Já está começando a cobrir o solo e a subir pelas minhas botas. Se a névoa ficar mais densa, você não vai nem conseguir ver a cabeça dele.
- Tirem o capuz da cabeça dele e joguem um pouco de água no rosto. Vamos ver se ele acorda - sugeriu outro soldado.
- Vamos enterrar a cabeça primeiro.
- Primeiro os pés - gritou um soldado, empurrando um dos homens que discordara dele.
Gordon sabia que aquilo acabaria em agressão física. Mantendo os olhos no cume da montanha, anunciou que o voto de desempate seria dele. Liam MacHugh seria colocado em pé na cova.
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Capítulo 6
Não era incomum que a noiva encontrasse o noivo pela primeira vez na cerimônia de casamento, mas Gabrielle tinha esperanças de poder dar uma olhada no homem antes disso. A única informação que tinha sobre o Lord Monroe era que ele já tinha uma certa idade. Entretanto, ninguém revelara a idade dele e ela estava cheia de inquietações. E se ele fosse horrível? Ou tão velho que mal pudesse se agüentar em pé? E se fosse banguela e só pudesse comer papinhas? Ela sabia que não devia dar importância à aparência, mas... e se ele fosse extremamente grosseiro? Ou, pior, se fosse cruel com todos ao seu redor? Seria ela capaz de viver com alguém que destratasse os homens e as mulheres que dependiam dele?
Sua mãe costumava dizer que ela se preocupava demais, mas não seria o desconhecido sempre preocupante? Gabrielle achava que sim. Ah, como ela gostaria que sua mãe estivesse ao seu lado para aconselhá-la. Ela seria capaz de acalmar os medos de Gabrielle. Mas sua mãe morrera no inverno, dois anos atrás. Ao mesmo tempo que Gabrielle sabia que fora uma bênção ter tido a mãe por tantos anos, às vezes sentia o corpo dolorido de tanta vontade de conversar com ela. Hoje era um desses dias, pois Gabrielle estava a caminho de seu casamento.
Vinte soldados, funcionários e criados acompanhavam Gabrielle e seu pai
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até as highlands. Seu destino era a Abadia Arbane, onde, dentro de uma semana, seria realizada a cerimônia. Na abadia, teriam quartos reservados para o grupo fatigado pela viagem.
A subida da montanha pelo cortejo foi árdua e lenta. Quanto mais se aproximavam de seu destino, mais distante Gabrielle se tornava.
A estrada era estreita e esburacada, mas, depois de fazerem uma curva fechada, seu pai conseguiu se colocar ao lado dela. O Barão Geoffrey tentou pensar numa maneira de acalmar as preocupações de Gabrielle sobre o futuro.
Fez um gesto em direção ao exuberante vale, abaixo.
- Você notou como tudo é verde por aqui, Gabrielle?
- Sim, papai, eu notei - respondeu ela, sem entusiasmo.
- Reparou como o ar frio das montanhas é revigorante?
- Reparei, sim - ela disse.
O bom barão estava decidido a levantar o ânimo da filha.
- Alguns ighlanders1 se sentem num nível tão elevado que acreditam serem capazes de tocar o céu com as mãos. O que você acha?
Normalmente, o pai de Gabrielle não era tão imaginativo. A imaginativa era sua mãe, cheia de sonhos que passara para a filha. Ele, por outro lado, era líder, protetor e um homem extremamente prático.
- Acho que eles estão errados - respondeu ela. - Aqui, não estamos numa altura que nos permita tocar o céu. Isso só seria possível em St. Biel.
- E como você sabe disso?
- Mamãe - respondeu ela.
- Ah - disse o Barão Geoffrey, com um sorriso melancólico. - E o que foi que ela lhe disse?
- Ela sempre me dizia a mesma coisa: que aquele lugar, ao lado da estátua de St. Biel, com vista para a baía, era o lugar na terra onde ela ficava mais próxima do céu.
Gabrielle passou os dedos sobre o medalhão de ouro que usava pendurado a uma corrente no pescoço. Ele fora feito com uma moeda onde fora cunhada a imagem de St. Biel. Desde que se conhecia por gente, tivera aquela jóia. Sua mãe fora sepultada com uma exatamente igual.
O barão notou o gesto.
- Eu também sinto falta dela - disse. - Mas ela sempre estará viva em nosso coração.
Nota de rodapé:
1 Habitantes da região montanhosa da Escócia NT)
Fim da nota de rodapé.
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- Depois, com um suspiro, continuou: - Você reparou como o céu está azul? Tão azul quanto os olhos de sua mãe.
- Sim, reparei - respondeu ela. - Reparei também que você enalteceu muitas vezes a beleza deste lugar. Terá sido por alguma razão especial? - brincou ela.
- Quero que você goste da sua vizinhança, assim como quero que seja feliz no seu casamento, Gabrielle.
Ela quis argumentar. Será que a felicidade era o bem maior que se podia almejar? Será que a paixão, o amor e o prazer não passavam de sonhos? Seria possível ter tudo? Ela gostaria de fazer estas perguntas ao pai, mas não foi capaz. Segurou a língua. Enquanto seguiam viagem, ela decidiu que se tornaria uma pessoa mais prática, como seu pai. Agora, era uma mulher e logo se tornaria esposa. Estava na hora de colocar de lado seus sonhos infantis.
- Vou tentar ser feliz - prometeu ela.
A marcha deles foi novamente diminuída por causa de um declive rochoso. O barão viu a expressão no rosto da filha, a tristeza em seu olhar.
- Filha - ele disse, exasperado -, você não está a caminho de um funeral. É o seu casamento. Tente se alegrar.
- Vou tentar - prometeu ela.
Uma hora depois, quando a caravana parou para que os cavalos pudessem descansar e eles pudessem esticar as pernas, o pai de Gabrielle pediu que ela caminhasse um pouco com ele.
Andaram em silêncio até pararem para descansar debaixo de umas bétulas próximas a um riacho.
- Já tive a oportunidade de me encontrar com o Lord Monroe e alguns de seus familiares. Ele vai ser um marido gentil.
Ela não queria falar sobre seu futuro marido, mas seu pai parecia estar decidido a fazê-lo.
- Então, eu também serei gentil com ele - disse Gabrielle. O barão balançou a cabeça.
- Você é uma filha teimosa. Ela se virou para olhá-lo.
- Pai, o que o senhor está sentindo tanta dificuldade em me dizer? Ele suspirou.
- Quando você se tornar esposa, sua vida vai mudar. Seu marido terá a palavra final. Você não será considerada como igual, e terá de aceitar isso.
- O senhor considerava mamãe uma igual, não é?
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Ele sorriu.
- Sim, é verdade - admitiu ele -- mas ela era uma exceção.
- Talvez eu também seja uma exceção.
- Com o tempo, talvez sim - concordou ele. - Não quero que você se preocupe com o seu futuro marido. É certo que ele nunca levantará a mão contra você. Como você sabe, existem muitos maridos capazes de ser cruéis com a esposa. - Ao acrescentar esse fato, havia desprezo em sua voz.
- Pai, acho que o senhor está mais preocupado com este casamento do que eu. O senhor tem curiosidade em saber o que eu faria se meu marido, ou qualquer outro homem, levantasse a mão contra mim?
De certa forma envergonhado, ele respondeu:
- Não, não tenho curiosidade. Sei exatamente o que você faria porque sei como você foi criada.
Antes que ela pudesse interrompê-lo, ele continuou:
- Entretanto, depois do casamento haverá mudanças. Você não será mais livre para fazer o que desejar. Terá de levar os sentimentos e as necessidades de seu marido em consideração. Você tem sido autoconfiante de muitas maneiras, mas, agora, terá de aprender a se conter.
- O senhor está me dizendo que devo abdicar de minha liberdade? Ele suspirou. Sua filha parecia estarrecida com a possibilidade.
- Mais ou menos - esquivou-se ele.
- Mais ou menos?
- E, quando estiver casada - continuou o Barão Geoffrey -, você dividirá o leito com o seu marido e... - tarde demais, ele percebeu para onde conduzia a conversa. Parou de falar e tossiu para disfarçar seu constrangimento. Onde estava com a cabeça para trazer tal assunto à baila? Falar sobre o leito conjugal com sua filha era algo impossível para ele. Após um momento de ponderação, decidiu pedir a uma das mulheres de mais idade para explicar a Gabrielle o que aconteceria em sua noite de núpcias. Ele simplesmente não se sentia preparado para a tarefa.
- O que o senhor estava dizendo? - insistiu ela.
- Estamos quase chegando à abadia - gaguejou ele. - Eu diria que estamos a pouco mais de uma hora distantes de lá. Se estivéssemos vindo da direção oposta, estaríamos também bastante próximos de Finney's Fiat.
- Ainda é cedo. Teremos tempo para ver o vale antes de escurecer.
- Você se esqueceu de que tenho que apresentar meus respeitos ao Laird
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Buchanan? - Com a cabeça, ele indicou o oeste. - Assim que chegarmos à próxima subida, vou deixar vocês. Quando chegar à casa dele, a noite já deverá ter caído. Você continuará com os outros até a abadia.
- Será que meus guardas e eu poderíamos ir até o vale enquanto os outros continuam viagem? Tenho certeza de que logo os alcançaremos. Estou extremamente curiosa para ver o dote que me foi dado pelo Rei John.
Antes de concordar, ele ponderou sobre o pedido dela por algum tempo.
- Desde que você leve os quatro guardas com você, desde que você leve seu arco e suas flechas e desde que você seja extremamente cautelosa. E você deve me prometer que não se atrasará e que será um passeio sem aventuras. Se for assim, eu concordo.
Ela conteve um sorriso.
- Sem aventuras, pai?
Ao ver o brilho nos olhos dela, o Barão Geoffrey foi tomado de súbita admiração pela filha. Com seus cabelos pretos e seus olhos azuis-violeta, tão parecidos com os de sua mãe, Gabrielle havia se tornado uma moça adorável e bela. Pensando nas conquistas de Gabrielle, ele sentiu seu peito se estufar de orgulho. Ela sabia ler e escrever, e falava quatro línguas com perfeição. A mãe dela cuidara para que se tornasse exímia nas atividades femininas e ele cuidara para que ela fosse treinada em assuntos mais práticos. Ela montava seu cavalo tão bem quanto qualquer homem e não se intimidava com seu arco-e-flecha. Para dizer a verdade, ela era melhor que ele quando se tratava de atingir o alvo.
- Sem aventuras, pai? - repetiu Gabrielle, perguntando-se por que o pai estaria tão distraído.
Ele tentou afastar seus devaneios.
- Você sabe o que quero dizer. Não banque a inocente comigo. Você tem uma forte tendência a fazer travessuras.
Ela protestou.
- Não posso imaginar por que o senhor pensaria tal coisa. Ele a interrompeu.
- Prometa que será um passeio sem aventuras e que não haverá travessuras. Quero que me dê a sua palavra, filha.
Ela assentiu com a cabeça.
- Prometo. Será uma tarde sem aventuras e sem travessuras.
Como não se sentia confortável para demonstrar afeto, o Barão Geoffrey
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deu uns tapinhas desajeitados no ombro dela e começou a caminhar em direção aos cavalos.
Gabrielle apertou o passo para alcançá-lo.
- Pai, o senhor se preocupa muito comigo. Vou tomar cuidado como prometi, portanto pode desfazer essa expressão tensa. Não vai acontecer nada de errado.
Duas horas depois, ela teve de matar um homem.
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Capítulo 7
Gabrielle interrompeu um assassinato. Ela bem que teria gostado de um pouco de excitação para afastar seu pensamento das preocupações, mas com certeza não gostaria de testemunhar um fato tão horripilante.
O passeio começou de forma bastante agradável e até mesmo revigorante. Depois de respeitosamente ter beijado a bochecha barbuda do pai e de lhe desejar boa viagem para prestar respeito aos Buchanan, ela se forçou a andar em vez de correr até Rogue, seu cavalo. Chegou a permitir que Stephen a ajudasse a montar. Rogue empertigou-se, sentindo que, em pouco tempo, teria permissão para planar com o vento.
Sabendo que o Barão Geoffrey estaria olhando, Gabrielle deu uma de donzela dócil e não permitiu que o vigoroso Rogue disparasse no galope, como estava acostumado a fazer. Forçou-o a começar com uma marcha bem mais lenta. Gabrielle tinha a clara sensação de que seu pai sabia exatamente o que ela estava fazendo e, por isso, manteve o sorriso quando se virou para lhe acenar pela última vez, antes de sair do campo de visão dele.
Quando se sentiu livre para fazer o que quisesse, Gabrielle soltou as rédeas e, delicadamente, cutucou Rogue. O cavalo disparou num galope e, quando chegaram ao topo da colina mais próxima, Gabrielle se sentiu voando. Caiu
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na risada por causa da pura alegria sentida naquele momento. O fardo que a pressionava começou a se dissipar.
Como sempre, Stephen assumiu a liderança. Christien e Lucien flanquearam suas laterais e Faust, o mais novo, vinha por último, protegendo suas costas. Os quatro soldados, com seus cabelos loiríssimos, olhos azuis e pele bronzeada tinham a aparência tão semelhante que poderiam ser irmãos. Eles também se vestiam iguais, com uniforme de soldado, todo preto, mas com um emblema pequeno, quase imperceptível, da Casa Real de St. Biel, um pouco acima da altura do coração.
No entanto, eram bem diferentes em personalidade. Talvez por ser o mais velho e o comandante, Stephen era o mais sério e raramente sorria. Christien falava o que lhe vinha à cabeça e era o mais facilmente irritável Lucien tinha um ótimo senso de humor e Faust era o mais introspectivo dentre eles.
Todos falavam sua língua nativa. Apesar de, como Gabrielle, entenderem e falarem o gaélico, preferiam não usá-lo.
Gabrielle sabia ser uma pessoa de sorte por ter a lealdade desses quatro homens. Eles tinham sido seus protetores a maior parte da vida. E a tinham protegido quando seu espírito aventureiro a pusera em situações precárias e guardaram seus segredos - até de seu pai, quando ela não queria que ele ficasse sabendo de algumas de suas escapadas. Sua segurança sempre fora a prioridade deles, mas Gabrielle também valorizava a confiança que depositavam nela. Em várias ocasiões, eles a salvaram do perigo, mesmo arriscando sua própria vida.
No mês anterior, Faust foi socorrê-la no mercado da aldeia. Ela estava abrindo caminho para as barracas quando dois homens bêbados começaram a segui-la, seus sorrisos afetados denotando intenções lascivas. Assim que começaram a andar atrás dela, Faust apareceu e, antes que soubessem o que se passava, derrubou-os no chão.
Gabrielle também se lembrava de um incidente que acontecera no ano anterior. Caminhava para os estábulos de seu pai para ver o novo potro que havia nascido. Quando circundava o canto da estrebaria, o engate da carroça que estava no alto da colina soltou, fazendo com que a carroça deslizasse colina abaixo em velocidade fantástica. Ela mal acabara de se virar para ver o que tinha acontecido quando Christien agarrou-a pelos ombros e tirou-a do caminho, recebendo o impacto da roda em sua perna. Ele sofreu uma contusão no tornozelo, que ficou bastante inchado, e ficou várias semanas sem poder andar.
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Ela se encolheu ao pensar nos problemas que já causara a esses homens firmes, mas sorriu quando pensou em algumas outras ocasiões em que eles estiveram presentes para cuidar dela. Quando era pequena, houve noites em que Stephen lhe dava cobertura para escapar de seu quarto para ouvir os músicos que tocavam na praça. Lembrava-se também de uma tarde quando, apesar dos avisos do pai, ela e sua amiga Elizabeth subiram em um salgueiro à margem do rio e caíram na água lamacenta. Lucien levara as garotas para a cozinha para serem lavadas e vestirem roupas limpas antes que o Barão Geoffrey ficasse sabendo. E ela nunca se esqueceria de quando, aos nove anos, um bando de mendigos acamparam na campina próxima ao castelo do pai. Gabrielle fora avisada para não se aproximar deles, mas, indignada, achou que todos os visitantes eram hóspedes e deviam ser tratados como tal. O cozinheiro estivera assando tortas de amora para o jantar. Gabrielle esperou até que fossem colocadas no parapeito da janela para esfriar e escondeu-as debaixo da saia. Ficara feliz ao ver os hóspedes devorarem as tortas com grande apetite e teria prolongado a visita e até aceito o convite para cavalgar um pouco com eles caso, ao se virar, não tivesse visto Christien e Lucien em pé, a uns dez metros atrás dela, com os braços cruzados e uma careta de reprovação no rosto. Quando, naquela noite, a criada quis saber sobre as manchas esquisitas na saia de Gabrielle, os guardas não mencionaram sua desobediência. Mais tarde, quando ficaram a sós com a garotinha, alertaram-na para os perigos do mundo.
Christien e Faust eram os mais novos membros de sua guarda, mas Stephen e Lucien estavam com ela havia mais tempo do que podia se lembrar. Em todos os eventos de sua vida, importantes ou triviais, um ou mais deles havia estado ao lado dela. Estiveram lá mesmo nos momentos mais difíceis. Quando sua mãe piorou e, mais uma vez, Gabrielle foi chamada ao seu leito, ela sabia que aquela seria sua última visita. Por dois longos dias, ela e o pai ficaram ao lado da mulher moribunda, segurando sua mão e acariciando sua testa. Durante esse tempo, muitos criados e médicos entraram e saíram, mas, do lado de fora da porta do quarto, em todos os minutos daqueles dias, os guardas de Gabrielle montaram guarda. Nenhum deles abandonou seu posto.
Agora, enquanto cavalgava com eles em direção a Finney's Fiat, pensando em tudo o que haviam feito por ela, Gabrielle fez uma prece para agradecer ao fato de ter esses amigos queridos.
Ao fazer uma guinada para o leste, Stephen tirou-a de seus pensamentos. Gabrielle o seguiu. Depois que os cavalos correram bastante, ela diminuiu a marcha. A paisagem ao redor dela era escarpada e coberta por uma manta
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de um verde deslumbrante. Havia toques de urzes-roxas, alsináceas-brancas e ervas-leiteiras despencando das encostas. Seu pai lhe dissera que toda a Escócia era linda, mas, olhando para a vasta paisagem, Gabrielle chegou à conclusão de que as highlands eram maravilhosas.
Quanto mais subiam, mais frio se tornava o ar. O cheiro de pinho era intenso, e o vento forte lhe causava uma agradável sensação no rosto.
Fazia quase duas horas que subiam quando, subitamente, chegaram ao topo do platô. Stephen, que já havia feito o reconhecimento da área, explicou a Gabrielle que existia apenas um caminho para chegarem ao seu destino.
- Como viemos do sul, a rota mais curta seria seguir em frente, mas, como a princesa pode ver, o caminho está densamente coberto de árvores, o que dificultaria a caminhada dos cavalos. Mas talvez possamos dar um jeito.
- E como poderemos dar um jeito? - perguntou Christien.
- Podemos ir por outro caminho - Lucien respondeu.
- Finney's Fiat fica do outro lado daquele bosque? - ela perguntou.
- Sim, princesa.
Com a mão, ela protegeu os olhos do sol e olhou para a esquerda e para a direita. A linha de árvores parecia se estender até onde a vista alcançava. O platô era enorme.
- Qual é a extensão da floresta? - perguntou ela.
- Não fui muito adiante - explicou Stephen. Ele olhou para o céu para ver a posição do sol e continuou: - Ainda temos bastante tempo de sol para descobrir.
- Se a proximidade das árvores é uma preocupação, será que não poderíamos chegar a Finney's Fiat pelo leste ou pelo oeste? Não seria mais rápido? - perguntou Lucien.
Christien respondeu:
- O pai da Princesa Gabrielle me disse que havia florestas do lado leste do vale e que, depois delas, ficava Loch Kaenich. Existem também florestas densas contornando o lado oeste de Finneys Fiat e, além dessas florestas, vivem os selvagens Buchanan.
- Buchanan selvagens - Lucien ficou curioso a respeito da descrição que Christien fizera do clã.
- É assim que o Barão Geoffrey se refere a eles e, por algumas histórias que ele me contou, não acho que o adjetivo seja exagerado.
- Pelo que entendo, nenhum dos clãs permite a passagem de estranhos - acrescentou Faust.
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Enquanto se virava para olhar o guarda de voz macia, Gabrielle franziu o cenho.
- Faust, no momento estamos em terras dos MacKenna e, até agora, ninguém tentou nos impedir de passar.
- Não, princesa - respondeu ele. - Não estamos em terras dos MacKenna. É verdade que a gleba deles faz fronteira com Finey's Fiat ao sul, mas estamos na extremidade sudeste, e aquele pequeno pedaço de terra é controlado pelo Lord Monroe, seu futuro marido. Por isso nos deixaram passar.
Lentamente, Gabrielle examinou o horizonte. Para ela, a região pareceu completamente deserta. Não vira ninguém desde que haviam começado sua longa jornada pelas montanhas. Será que as pessoas que moravam nesta vastidão se escondiam para não interagir com os estranhos, ou seriam muito poucos e distantes entre si?
- Stephen, e se tentássemos ir pelo leste e chegar a Finney's Fiat pelo lado norte? - ela perguntou.
- Princesa, vê aquela montanha ao norte? - perguntou ele. - O Lord Buchanan disse ao seu pai que existe um penhasco escorregadio com uma pedra chata suspensa, acima de Finney's Fiat.
- Seu pai, o barão, nos disse que o caminho que sai dessa pedra suspensa é a única maneira de se chegar lá embaixo. Esse caminho é constantemente vigiado. Se fechar um pouco os olhos contra o sol, poderá ver - explicou Lucien.
- A montanha do início do caminho até as terras que pode ver acima são controladas pelo clã MacHugh, e eles não admitem intrusos - comentou Faust.
- Não admitem? - ela sorriu ao repetir as palavras dele.
- Eles são... facilmente irritáveis - disse Christien. - E reagem com rapidez.
- Não poderíamos permitir que fosse até lá - disse Stephen.
- O Lord MacHugh é um homem perigoso - disse Faust.
- Sim, ouvimos dizer que o clã MacHugh é bem feroz e que seu líder é um selvagem - Christien lhe disse.
Ela balançou a cabeça.
- Eu não faria um julgamento apressado sobre um homem apenas porque alguém falou mal dele.
- O que deseja fazer, princesa? - perguntou Stephen. - Como devemos proceder?
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- Vamos atravessar a floresta à nossa frente - ela disse. - É o caminho mais rápido, certo? E vai ser bom darmos uma esticada nas pernas.
Stephen abaixou a cabeça.
- Como quiser, princesa. Sugiro que cavalguemos o mais rápido possível até chegarmos à floresta para que possamos esconder os cavalos das pessoas que possam eventualmente passar. Faust, você tomará conta dos animais quando formos obrigados a continuar a pé.
Apesar de algumas passagens estreitas por entre arbustos espinhosos, eles acabaram conseguindo adentrar consideravelmente a floresta. Tiveram de retornar duas vezes para encontrar um caminho melhor, mas, uma vez que cruzaram um riacho estreito, conseguiram aumentar a marcha. Ao chegarem ao último aglomerado de floresta fechada, desmontaram. Entregando as rédeas de seu cavalo a Faust, Gabrielle seguiu Stephen, que ia à frente, abrindo picada.
A clareira estava a poucos metros quando Stephen subitamente parou e esticou o braço para impedir que Gabrielle continuasse. Ela ficou em pé ao lado dele, concentrando-se para ouvir os ruídos da floresta. Enquanto esperava, ela silenciosamente ajeitou a correia que prendia a aljava sobre os ombros e se preparou, segurando o arco com a mão esquerda. Alguns segundos depois, ouviu um grosseiro bramido de riso seguido de uma pesada blasfêmia.
Gabrielle se manteve completamente imóvel. Ouviu homens conversando, mas as vozes estavam abafadas e era impossível entender o que diziam.
Levantando a mão para os guardas de modo a indicar que não aceitaria ser impedida, avançou lentamente. Ao se virar para a esquerda, apesar de estar bem protegida pelas árvores, ela pôde ver o vale adiante. Avistou sete homens, todos vestindo hábitos de monges com o capuz marrom cobrindo a cabeça.
Por um momento, pensou que estivessem ao redor do corpo de um deles, rezando por sua alma, antes de enterrado. Estavam bastante próximos um do outro em volta do que parecia ser um buraco. Perto dele, havia um monte de terra recentemente revolvida. Quando as intenções deles se tornaram claras, ela quase desmaiou de susto. Havia um oitavo homem deitado ao chão. Ele não estava vestido como monge, mas usava uma capa de cores pálidas. Tinha pés e mãos amarrados e estava coberto de sangue.
Gabrielle se aproximou. Ao sentir a mão de Stephen sobre seu ombro, balançou a cabeça e continuou. Ainda protegida pelas árvores, ela observava e ouvia a discussão em curso.
Os homens discutiam a maneira como jogariam o homem amarrado dentro
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do buraco. Três deles queriam que os pés do prisioneiro fossem colocados primeiro. O que se mantivera em silêncio e parecia ser o líder decidiu o impasse.
Todos concordavam com uma coisa: queriam que seu prisioneiro acordasse antes de decidir o que fariam com ele.
Gabrielle se sentia estarrecida e nauseada pelos fragmentos de conversa que o vento trazia até ela. Qual teria sido a falta cometida pelo prisioneiro? Qual fora sua transgressão? Ela decidiu que, mesmo que ele tivesse cometido um ato horrendo, não merecia aquela punição sádica. Era desumano.
Ao ouvir a discussão entre eles, ela descobriu a verdade. O único pecado do prisioneiro era o parentesco. Ele era irmão do Lord Colm MacHugh.
Finalmente, o líder falou:
- Hamish, fique de olho naquela encosta. Não podemos enterrar Liam MacHugh até que avistemos o irmão dele.
- Gordon, eu não sou surdo. Você já me disse o que fazer. Meus olhos estão grudados naquela encosta. Mas preciso saber o que fazer se o Lord MacHugh não aparecer para salvar o irmão
- Ele virá - disse um deles. - Quando ele chegar lá em cima, verá o que está acontecendo, mas, não importa o quanto seja rápido, não conseguirá chegar a tempo. Seu irmão estará morto e nós teremos cruzado a fronteira há muito tempo.
- E como ele saberá que é o irmão dele que está aqui, enterrado? - perguntou um outro.
Gordon respondeu:
- Ele já deve ter ouvido que o irmão está em apuros. De onde estará, não será capaz de ver o rosto do irmão, mas reconhecerá o xadrez das cores do clã.
- E se ele não for capaz de reconhecer o xadrez? - perguntou Hamish.
- Ele nos verá enterrando Liam no buraco. Ele saberá.
- Se não puder ver o rosto dele, também não poderá ver o nosso. Então, por que precisamos usar estes hábitos? Ele irrita minha pele. Parece que tem vários insetos andando em cima de mim. Além disso, esta roupa fede mais do que um chiqueiro.
- Pare de reclamar, Kenneth - ordenou Gordon. - Estamos usando os hábitos que roubamos porque não queremos correr o risco de que ele veja nosso rosto.
- Se ele descobrir que fomos nós que fizemos isto... - Hamish estava realmente amedrontado -, fará pior do que nos enterrar vivos.
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Ouviu-se um rumor de concordância.
- Talvez seja melhor deixá-lo aqui e dar o fora - disse Kenneth. Nervoso, ele se afastava do buraco.
- Não seja idiota - disse Gordon. - O Lord MacHugh nunca descobrirá que fomos nós. Por que você acha que nós o trouxemos da planície? - perguntou ele, apressado, antes que houvesse outra reclamação. - Fomos muito bem pagos pelo serviço. Você quer desistir da grana?
- Não, mas... - gaguejou Hamish.
- Chega dessa conversa de dar o fora - ordenou ele. Virando-se para o homem que estava em pé próximo ao homem inconsciente, disse: - Dê-lhe um chute, Roger. Veja se ele se mexe. Quero que esteja acordado quando for jogado no buraco.
Roger obedeceu, chutando a lateral do corpo dele. Liam não se moveu.
- Não acho que ele vá acordar - disse Kenneth. - Aposto que já está morrendo.
- Você não devia ter batido tanto nele, Gordon - resmungou Hamish.
- Todos nós batemos nele - Roger refrescou a memória de Hamish.
- Fizemos apenas o que nos mandaram fazer - acrescentou um outro.
Gordon assentiu com a cabeça.
- Isso mesmo. Estamos apenas seguindo ordens, como bons soldados que somos.
Kenneth tirou o capuz e coçou a orelha.
- Diga-me novamente. O que foi que Liam MacHugh fez?
- Já lhe disse pelo menos dez vezes - gritou Gordon, dando-lhe um empurrão tão forte que quase o derrubou no buraco.
O soldado bracejou para recuperar o equilíbrio.
- Quero que você me diga - disse ele.
- Pegamos Liam e vamos matá-lo para forçar o irmão dele a descer a montanha para que os soldados escondidos na floresta do leste possam emboscá-lo.
Kenneth voltou a coçar a orelha, como se quisesse remover dali um inseto inconveniente.
- O que os soldados vão fazer com ele quando o pegarem? Gordon balançou a cabeça.
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- Matá-lo, seu idiota, e enterrá-lo perto do irmão. Kenneth não ficou ofendido por ser chamado de idiota
- A que clã pertencem os soldados que estão escondidos lá? - Com a mão, Kenneth fez um gesto indicando o leste, espremendo os olhos para ver se conseguia vê-los.
- Não interessa a que clã eles pertencem - Gordon respondeu. - Quanto menos souber, melhor para você.
- Olhem! Parece que Liam está acordando - anunciou um dos soldados, cutucando-o com o pé.
Roger riu de alegria.
- Muito bem. Agora, ele ficará sabendo o que está acontecendo quando o jogarmos no buraco. Você tem um pouco mais de água para jogarmos no rosto dele, Manus? Deixe-o bem acordado.
Sem esperar pela resposta, Kenneth disse:
- Ele não acordou coisa nenhuma. Estou observando os olhos dele, e eles não tremeram nem uma vez. Ele está morto, isso sim.
- Como Gordon disse, pode ser que ele acorde se jogarmos um pouco de água na cara dele... - sugeriu outro soldado.
- A água acabou - disse Manus -, mas a gente pode cuspir na cara dele.
Considerando sua sugestão uma ótima idéia, o homem começou a rir. Gabrielle ouviu os dois últimos nomes enquanto eles se empurravam, brincando como crianças. Fergus e Cuthbert. Era importante que lembrasse o nome dos sete porque, um dia, haveria retaliação.
Os roncos que Hamish emitia ao rir foram interrompidos quando ele olhou para cima e viu o Lord MacHugh.
- Lá está ele! Lá está ele! - gritou, enquanto voltava a cobrir a cabeça com o capuz. - Lá está o MacHugh!
Todos, inclusive Gabrielle, olharam para a encosta. Contra o sol, a silhueta de um guerreiro montado se movia como uma mancha dourada.
- Temos tempo suficiente - disse Kenneth. - Ele não pode voar.
- Vejam todos os homens que estão com ele. Já contei mais de vinte - gritou Manus, com a voz tremendo de medo.
Gordon estava ficando nervoso. Pensou ter ouvido um ruído atrás dele. Virou-se com a mão apoiada no cabo da espada. Ao não detectar nenhuma ameaça, virou-se novamente e olhou para os lados. Nada.
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- Já perdemos muito tempo - ele disse. - Vamos jogá-lo no buraco, cobri-lo de terra e dar o fora daqui.
Roger e Cuthbert foram até Liam e o puseram de pé. A cabeça do prisioneiro pendeu para a frente. Fergus agarrou-a pelos cabelos e puxou-a para trás.
- Os olhos dele se fecharam de novo - ele disse, obviamente desapontado.
- Os olhos dele nunca se abriram - respondeu Kenneth
Estavam arrastando Liam para o buraco quando um estrondo distante chamou a atenção deles. Ao mesmo tempo, os sete se viraram no momento em que guerreiros montados avançaram por entre as árvores. Seus cavalos pisoteavam o solo enquanto, rapidamente, se aproximavam. Ainda distantes, não passavam de pontos escuros no horizonte.
- Pode ser que sejam os Buchanan - gritou Manus - Ainda não posso vê-los, mas acho que são eles.
- Eles vão acabar com a gente! - gritou Hamish, girando em círculos como um camundongo encurralado, tentando decidir para que lado correr. - Onde vamos nos esconder? Onde?
Cuthbert e Manus soltaram o corpo inerte de Liam Com voz carregada de pressa, Gordon emitiu sua ordem:
- Segurem ele, seus idiotas. Segurem ele. Quando puxei o cretino do cavalo, ele abriu os olhos, então fui o único a ser visto. Preciso matá-lo antes de jogá-lo no buraco. Não temos mais tempo para deixar que sufoque.
Cuthbert e Manus não obedeceram à ordem. Nem Roger, Kenneth, Hamish ou Fergus, pois todos já haviam corrido para se esconder.
Gordon sacou a espada. Ao mesmo tempo, Gabrielle pegou uma flecha e preparou o arco.
Os guerreiros de Buchanan ainda estavam muito distantes para poderem, com suas flechas, acertar os sete homens e, de onde estavam, os guerreiros de MacHugh também não tinham condições de salvar seu parente.
De repente, houve outra agitação. Os soldados que queriam emboscar MacHugh apareceram entre as árvores e dispararam na direção dos Buchanan. Tudo indicava que uma batalha de vulto estava prestes a acontecer. Se não agissem rápido, Gabrielle e seus guardas logo estariam bem no meio dela.
Ela mantinha os olhos pregados em Gordon, o líder da súcia. O prisioneiro não se movia. Liam estava deitado no chão, virado de lado, enquanto Gordon nervosamente olhava para o norte. Ele deu alguns passos para trás,
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hesitou e, em seguida, voltou a avançar. Gabrielle sabia que Gordon não fugiria deixando Liam para trás. Liam vira o rosto dele.
- Stephen - sussurrou ela. - Se eu errar...
- A princesa não vai errar.
- Mas se eu errar... esteja preparado.
Gordon parecia ter se decidido. Virando na direção de Gabrielle, ele levantou a espada com a intenção de cortar Liam ao meio.
Foi impedido pela flecha de Gabrielle. Ela acertou o alvo, a ponta da flecha penetrando suas costelas e perfurando seu coração de pedra.
Segundos depois, o chão estremeceu sob as patas dos cavalos dos Buchanan e seus inimigos se chocaram no campo de batalha. O som de metal contra metal era ensurdecedor. A matança havia começado.
O pandemônio avançou na direção dela. Gabrielle rezou para que Liam MacHugh não fosse pisoteado antes que ela pudesse salvá-lo.
Afortunadamente, Christien e Faust foram rápidos e logo estavam ao lado dela com os cavalos. Gabrielle montou Rogue e avançou em direção ao campo aberto, cobrindo a cabeça com a capa e rezando para que ninguém a visse.
Foi impedida por Stephen. Ele sabia o que ela pretendia.
- Christien e eu cuidaremos disso. Lucien e Faust vão levá-la de volta até o riacho que cruzamos. Ande logo, princesa. Precisamos sair daqui.
Ela não perdeu tempo argumentando. Cutucou Rogue com os pés e adentrou a floresta. Momentos depois de terem chegado ao riacho, Stephen e Christien os alcançaram. Gabrielle agradeceu a Deus por eles não terem ficado presos na batalha.
- Ele está vivo? - ela desmontou e correu até Stephen. Liam MacHugh estava de bruços sobre a sela de seu cavalo.
- Ele ainda está respirando.
- Andem logo. Sei onde podemos conseguir ajuda.
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Capítulo 8
Outro medonho grito de batalha, seguido de bramidos sofridos, cortou o ar.
Os MacHugh haviam se juntado ao combate. Formando uma linha impenetrável, eles avançaram. Os Buchanan os seguiram e, em poucos minutos, os dois clãs haviam emboscado o inimigo entre eles. Não tiveram misericórdia. Foi olho por olho, dente por dente, e, quando tudo terminou, o solo estava literalmente coberto de corpos.
Em seguida, teve início a busca frenética pelo corpo de Liam MacHugh. Colm MacHugh saltou do cavalo e correu até o buraco que os inimigos haviam cavado para seu irmão. Sentiu grande alívio ao ver que estava vazio. Perto do monte de terra havia apenas um corpo. Colm não o reconheceu. Estava examinando as marcas desconhecidas da flecha enterrada no peito do homem quando o Lord Buchanan se juntou a ele.
- Quem diabos é ele? - perguntou Colm.
Brodick balançou a cabeça.
- Nunca o vi antes.
Colm movimentou a flecha no peito do homem morto.
- Esta flecha é dos Buchanan?
- Não. Pensei que fosse sua.
- Aposto que MacKenna está por trás disso - ele disse. Brodick balançou a cabeça.
- Aqueles soldados mortos não são dele e esta não é uma de suas flechas. As marcas... Nunca vi uma desta antes. Esta não é a marca dos MacKenna. -Ele pegou um pedaço de corda suja de sangue. - Usaram isto para amarrar seu irmão.
- Continuo pensando que isso é coisa do MacKenna.
- Você não pode acusá-lo sem provas - ponderou Brodick.
- Liam não poderia ter chegado tão longe - Colm olhou para as árvores ao redor. - Vamos continuar procurando até encontrá-lo.
- Os Buchanan estão com você - garantiu Brodick. - Pelo tempo que for preciso para vingar este ato desumano.
Os dois lairds dividiram seus homens em unidades menores para rastrear a área, mas, depois de várias horas de procura, os grupos concluíram que a busca nos vales e florestas havia sido vã.
Liam MacHugh simplesmente desaparecera.
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Capítulo 9
O estado de Liam MacHugh era deplorável. Chicotadas transformaram suas costas em tiras de sangue. Apanhara bastante também nas pernas e solas dos pés, e de um corte profundo do lado direito de sua cabeça escorria sangue.
Gabrielle sabia que na Abadia Arbane conseguiria ajuda para o guerreiro e, apesar de estar com pressa para chegar lá, as necessidades imediatas do homem ferido eram mais importantes.
Seguiram pelas margens do riacho até se distanciarem bastante do campo de batalha. Stephen tirou o corpo inerte de Liam MacHugh de seu cavalo e colocou-o no chão, próximo a Gabrielle. Ela gentilmente apoiou a cabeça dele em seu colo e pressionou um pano no corte em sua têmpora, tentando estancar o sangue. Em seguida, limpou os outros cortes rapidamente e da melhor maneira que pôde, usando um pedaço de linho que rasgara de sua roupa de baixo e molhara nas águas frias do riacho. O homem precisava de medicamentos para afastar a infecção e de um bálsamo suavizante para acalmar os ferimentos das costas. Precisava também de alguém que lhe enfiasse uma agulha e uma linha para costurar o corte. Ela não queria fazer o serviço, pois não desejava lhe causar ainda mais dor.
Já bem distante de Finney's Fiat, o riacho fazia uma curva e sumia entre os pinheiros. Ficaram completamente isolados e ela imaginou estarem a salvo dos intrusos. Enquanto Lucien e Faust montavam guarda, Stephen e Christien ficaram ao lado dela. Quando estava pronta para chamar os guardas para carregá-lo, a têmpora de Liam voltou a sangrar.
- Princesa, sua roupa está toda suja de sangue - comentou Stephen.
- Isso não me incomoda - respondeu ela. - Mas estou preocupada com este pobre homem. Ele perdeu muito sangue.
- Não acredito que ele consiga sobreviver - disse Christien. - E precisamos nos preparar para esta possibilidade. O que a princesa quer que façamos com o corpo?
Gabrielle não se ofendeu com a rudeza dele. Ele não estava sendo grosseiro. Apesar de ser um homem compassivo, era também o mais pragmático entre os quatro guardas.
- Se ele morrer, será por vontade de Deus, mas farei tudo o que puder para ajudá-lo a sobreviver.
- Assim como todos nós - Stephen assegurou-lhe - No entanto, Christien tem razão. Esse tal guerreiro MacHugh não a viu.
Ela sorriu com delicadeza.
- E como poderia? Ele ainda não abriu os olhos.
- Parece que não entendeu o que queremos dizer, princesa - disse Christien. - Pode ser que esteja correndo perigo.
Stephen concordou.
- Não sabemos quem são essas pessoas, ou se algum deles nos viu. Sua flecha matou o líder dos homens que estavam ao redor da cova, mas os outros fugiram. Se descobrirem que foi responsável pela morte daquele homem, podem querer se vingar. Jamais alguém deve Saber que esteve lá.
- O que você sugere que eu faça? - ela perguntou.
- Quando chegarmos perto da Abadia Arbane, Lucien e Faust a acompanharão até o interior e aos seus aposentos - sugeriu Stephen.
- E aconselho que cubra o vestido com a capa, para disfarçar o sangue - disse Christien.
- E o que faremos com este homem ferido? - perguntou ela.
- Nós encontraremos uma outra maneira de chegar à abadia. Certamente os monges terão os remédios de que ele precisa.
Christien assentiu com a cabeça.
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- Se ele morrer, existe uma possibilidade de que Loird MacHugh a culpe por isso. Todos nós ouvimos o que aqueles covardes disseram a respeito dele.
- Eles o chamaram de cruel - ela disse. - Entretanto, estavam prontos para enterrar um homem vivo. Por que eu deveria acreditar numa só palavra do que disseram? E, antes que pudessem argumentar, ela continuou:
- Agora, nós somos responsáveis por ele. Não o entregarei a ninguém. Vamos encontrar uma maneira de entrar na abadia sem chamar a atenção. Eu só sairei do lado dele quando tiver certeza de que ele está bem cuidado.
- Mas princesa... - Christien começou a falar. Ela continuou:
- Os monges são homens de Deus, certo? Simplesmente lhes pedirei que guardem segredo a respeito de como Liam chegou à abadia. Se conseguir fazer com que prometam, tenho certeza de que não quebrarão sua palavra.
- Existem outras implicações - afirmou Stephen. - Uma princesa não deve se meter no meio de uma guerra.
Ela sabia que eles não desistiriam.
- Temos de fazer um acordo. Uma vez que Liam esteja seguro e bem cuidado, sairei do seu lado.
- E não contará a ninguém o que aconteceu?
- Prometo que não.
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Capítulo 10
Entrar na abadia sem serem vistos foi surpreendentemente fácil. A porta do final do corredor sul da parede de cortinas que circundava os prédios monásticos não só estava destrancada, como totalmente escancarada. O padre havia colocado uma pedra contra a porta para mantê-la aberta e facilitar o transporte de sacos de grão de uma carroça do outro lado do caminho.
Escondidos entre as árvores do bosque atrás da abadia, Gabrielle e seus guardas o observavam. Ponderou que os sacos pareciam ser mais pesados do que o padre. Ele ainda não era muito velho - imaginou que devesse ter uns quarenta anos -, mas não era muito forte. Ao tentar colocar o saco sobre um dos ombros, quase caiu e acabou agarrando-o com as duas mãos na altura do meio, segurando a ponta entre as pernas.
Levando seu cavalo para o campo aberto, ela o chamou.
- Padre, o senhor me permite ajudá-lo?
Primeiro, ele ficou pasmo. Em seguida, acenou vigorosamente.
- Eu ficaria muito agradecido.
Lucien e Faust já haviam desmontado e se dirigiam à carroça. Sabendo que o padre lutava para segurar o saco, Lucien tirou-o dele.
- Onde o senhor quer que eu o coloque? - perguntou.
- Assim que você cruzar aquela porta, verá que do lado esquerdo existe um depósito. Eu agradeceria muito se você colocasse o saco lá. - Tirou um lenço do cinto da batina e enxugou o suor da nuca. Sorrindo, começou a andar em direção a Gabrielle.
- Bem-vinda, meu nome é Padre Gelroy
Ele havia acabado de cruzar o pátio quando notou o homem ferido sobre o cavalo.
- O que temos aqui? - perguntou ele. Apressou-se até onde estava Stephen para que pudesse ver melhor e mostrou-se tão chocado com a condição do ferido que fez um rápido sinal-da-cruz. - O que aconteceu a este pobre homem? Ele está vivo?
- Sim, está - respondeu Christien. Stephen desmontou e pegou Liam nos braços.
- Como o senhor pode ver, este homem precisa de assistência. Existe um médico na abadia?
- Sim, temos mais de um - respondeu ele, apressado. - Por favor, sigam-me.
Rapidamente, Lucien e Faust descarregaram a carroça de grãos. Com pressa, o padre caminhou até a porta à frente. - Este homem tem nome?
Gabrielle respondeu.
- O nome dele é Liam MacHugh.
A reação do Padre Gelroy foi imediata. Interrompeu a caminhada tão abruptamente que quase perdeu o equilíbrio. A cor desapareceu de seu rosto e sua expressão era de descrença.
- Será que ouvi vocês dizerem MacHugh? - Confuso, ele perdera o controle da voz e estava aos gritos. - Digam-me que ouvi errado.
- Padre, por favor, fale mais baixo - pediu Stephen.
O padre colocou a mão sobre a testa. Gabrielle percebeu que ela tremia.
- Meu Deus. Vocês têm Liam MacHugh em seu poder, e ele está quase morto. Se ele morrer...
Gabrielle deu um passo à frente.
- Temos esperança de que, com a ajuda dos médicos, ele seja capaz de sobreviver - ela disse, em voz baixa.
O Padre Gelroy fez força para se acalmar.
- Sim, sim, é importante que não percamos a esperança - gaguejou ele. - Vou lhes dizer uma coisa. Se ele morrer, vai ser um inferno. Vamos logo, levem-no para dentro. A cela próxima à minha está desocupada. Vamos colocá-lo lá. Uma vez que vocês estejam instalados, irei à procura do Padre Franklin. Ele é mais preparado que os outros, eu acho.
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Lucien e Faust ficaram com os cavalos enquanto Stephen e Christien, levando Liam, seguiram Gabrielle e o padre até a abadia. O corredor era escuro e estreito, e todas as portas eram de treliça de madeira, formando arcos. Com um gesto de cabeça, o padre indicou uma delas e disse:
- Este é o meu quarto.
Ele parou em frente à outra porta, gentilmente passou os dedos sobre a treliça para ter certeza de que a cela ainda estava desocupada e soltou a tranca. Abriu a porta, entrou no aposento e manteve-a aberta para eles.
O quarto era minúsculo, com uma pequena janela colocada bem acima de um catre que servia de cama. O colchão de palha estava coberto por um cobertor de lã cinza. Um banquinho e uma pequena cômoda eram as únicas outras peças de mobília que existiam na cela. Em cima da cômoda, havia uma tigela e uma jarra de água, com uma vela de cada lado.
- Coloque-o na cama. Com cuidado - disse o padre. - Deixem-no de lado para que suas costas... Deus do céu, suas pobres costas... - ele respirou fundo e, lentamente, soltou o ar. - Acho que o Padre Franklin está atendendo na igreja. Direi a ele que traga os medicamentos. Quando eu voltar, trarei minha estola e óleos para ministrar os últimos sacramentos a Liam MacHugh.
Gabrielle protestou.
- Mas esses sacramentos são para as pessoas que estão morrendo.
- Você pode garantir que ele não esteja morrendo? Ela abaixou a cabeça.
- Não, não posso.
- Então, precisamos ministrar a extrema-unção para que ele possa ir direto para o céu.
Ele se virou para sair, mas Christien colocou-se no batente da porta, bloqueando sua passagem.
- Padre, seria muito melhor se ninguém soubesse como este homem veio parar aqui.
- Então, antes de mais nada, precisamos saber se algum de vocês teve alguma coisa a ver com esses ferimentos. Sei que é uma pergunta difícil, mas preciso de uma resposta.
- Ele já estava assim quando o encontramos - Christien lhe disse.
- Eu também achei que sim. Do contrário, por que se incomodariam em carregar tal fardo? - disse o padre. - Prometo não dizer uma palavra a ninguém sobre o irmão do Lord MacHugh, mas gostaria de saber o que aconteceu.
- O senhor também guardará segredo do que lhe contarmos? - perguntou Christien. - Seria muito melhor se o senhor não ficasse sabendo quem somos.
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O padre balançou a cabeça.
- Acho que é tarde demais para isso. Assim que vi a bela jovem, eu soube quem era. Já faz algumas semanas que circulam rumores sobre sua chegada. - Ele se virou para Gabrielle e fez uma mesura.
- É um prazer conhecê-la, Lady Gabrielle. Não se preocupe porque, se eu lhe for apresentado no futuro, farei com que pensem que a vejo pela primeira vez. Comigo, seus segredos estão em segurança.
- Obrigada, padre - disse ela, sabendo que ele não a ouvira, pois se retirara rapidamente da cela.
- É melhor que se retire, princesa - disse Stephen. Christien assentiu, concordando.
- Sim, está na hora.
Os dois guardas pareciam preocupados e ela sentia muito ter de desapontá-los.
- Ainda não posso deixá-lo. Ele está muito vulnerável. Alguém precisa cuidar dele enquanto está nesse estado. Antes de ir, preciso ter certeza de que esteja em boas mãos e tenha sido medicado.
Ela não se deixaria convencer. O argumento de que o Padre Franklin seria mais uma pessoa em quem teriam de confiar para ser capaz de guardar segredo não foi considerado válido por ela. O Padre Franklin também era um homem de Deus e não quebraria uma promessa feita a eles.
- Quanto mais pessoas souberem, maior será a chance de encontrarem o homem que matou... - Stephen começou a falar.
- A vida deste homem é mais importante.
- Não podemos concordar, princesa - disse Christien -, mas faremos como quiser.
Liam ainda não abrira os olhos nem fizera qualquer ruído; sequer gemera quando o Padre Franklin -, que Gabrielle teve de admitir ser um homem bastante capaz -, suturou o corte dele. Ele queria deixar os pontos de lado e cauterizar o ferimento com um espeto quente, mas ela não permitiu. Não lhe pareceu necessário, pois, finalmente, o sangramento estancara. E havia um outro motivo. Apesar de duvidar que o guerreiro se importasse com sua aparência, ele era bastante atraente e a cicatriz deixada pelos pontos não seria tão terrível quanto a cicatriz por queimadura.
Quando lhe asseguraram que nada mais poderia ser feito pelo homem ferido, Gabrielle finalmente concordou em deixá-lo aos cuidados dos dois padres.
E, quando ela saiu do lado de Liam, o sol já se punha no horizonte.
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Capítulo 11
A chegada de Gabrielle aos portões de entrada da abadia causou grande júbilo.
O abade ordenara que fosse informado assim que ela chegasse e, agora, caminhava apressadamente, amarrando sua faixa ao redor do estômago rotundo e, quase sem fôlego, pedindo comidas e bebidas. Com uma grande mesura, ele gaguejou:
- É uma honra. É uma grande honra lhe oferecer nossa humilde hospitalidade, Lady Gabrielle. Sim, estamos verdadeiramente honrados.
Ele segurou e apertou a mão dela. E não a soltou até que ela a puxasse de volta.
Gabrielle apresentou sua guarda ao abade e disse:
- Nós lhe agradecemos por abrir sua casa para nos receber, e eu particularmente lhe agradeço por permitir que o meu casamento seja realizado aqui.
- Estamos emocionados com a honra. Já faz algum tempo que todos fazem preparativos para o matrimônio sagrado. Pensar que estamos a apenas uma semana do grande dia... Com certeza, essa união criará um laço duradouro de paz entre nossos dois nobres países - Estalando os dedos, ele indicou a um criado que devia se apressar com os preparativos. - Milady deve estar com fome e com sede. Entre. Preparamos uma refeição ligeira para a princesa e seus soldados. Sei que eles não saem um minuto do seu lado quando estão fora de casa, não é verdade?
- Sim, é verdade, mas gosto da companhia deles.
Uma senhora jovem e bela aproximou-se e ofereceu um buquê de flores a Gabrielle. Ela o apanhou e agradeceu, sorrindo quando a mulher fez uma mesura rápida e desajeitada.
- São lindas - ela falou em voz alta, enquanto a mulher desaparecia.
- A viagem foi agradável? - perguntou o abade.
Gabrielle teve de se segurar para não rir, perguntando-se o que ele pensaria caso ela lhe contasse a verdade sobre sua viagem. Agora, já fazia algumas horas que eles estavam na abadia, mas o abade não poderia saber disso. Gabrielle e seus guardas haviam montado seus cavalos e dado a volta pela floresta de modo a entrar na abadia pelos portões da frente. A viagem não durara mais do que alguns minutos, mas, como estavam guardando segredo sobre Liam MacHugh, ela pôde dizer apenas:
- Muito agradável, mas eu gostaria de trocar de roupa antes da refeição.- A capa escondia as manchas do sangue de Liam. Como a temperatura ainda estava agradável, o abade certamente pensara que ela estaria doente por vestir uma indumentária tão pesada.
- Sim, claro, o Irmão Anselm está à espera para lhe mostrar seus aposentos. Estimo que estejam do seu agrado.
- Tenho certeza de que ficarei extremamente confortável.
- Estávamos começando a ficar preocupados. Esperávamos que chegassem bem antes.
- Sinto muito ter causado preocupação. Os arredores da abadia são lindos e acho que acabei perdendo a noção da hora.
O abade pareceu ficar satisfeito com a resposta. Segurou-a pelo braço e começou a andar.
- Já faz alguns dias que os hóspedes estão chegando e montando seus acampamentos do lado de fora do mosteiro. Como era de esperar, a maior parte deles vem da Inglaterra, mas alguns vieram de lugares distantes como França e Espanha, todos trazendo presentes para celebrar a auspiciosa ocasião. O grupo chegado das terras de sua família, St. Biel, trouxe o presente mais lindo de todos.
Nota de rodapé:
1. Na Grã-Bretanha, antigo pronome de tratamento dispensado às mulheres nobres, ou damas da corte. (N.T.)
Fim da nota de rodapé.
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Trata-se de uma linda estátua do santo patrono. Eles nos pediram que a guardássemos na sacristia de nossa capela até o dia do casamento. Tenho certeza de que o Lord Monroe vai querer colocá-la em um lugar de honra em sua própria capela. Durante o banquete, mtlady poderá ver os outros presentes...
Gabrielle sorriu e assentiu com a cabeça enquanto o abade continuou a falar sobre os presentes, os visitantes e a festa. Era evidente que a abadia nunca vira uma cerimônia como aquela e ela sentiu-se feliz por contribuir para o entusiasmo dele.
Haviam acabado de entrar na praça quando o abade parou e fez um gesto para um homem que cruzava a frente deles.
- Precisa ser apresentada ao Lord MacKenna, princesa. Apesar de ser um dos nossos hóspedes, ele deve ir embora logo. Lord - chamou ele -, venha conhecer Lady Gabrielle, que finalmente chegou.
O homem se virou e caminhou na direção deles com um sorriso que parecia ser verdadeiro e afetuoso. Ele dava passos largos e tinha postura ereta. Seus pesados cabelos negros estavam penteados para trás e não havia uma cicatriz sequer em sua figura impecável. "Ele deve ter uma vida boa", pensou ela.
Ele fez uma mesura.
- Ouvi dizer que a princesa era linda. Agora posso comprovar que não se tratava de exagero.
- Obrigada pelo elogio.
- O senhor deve saber que Lady Gabrielle vai se casar com o Lord Monroe - disse o abade.
- É claro que sei - respondeu o Lord MacKenna. - Ele é meu amigo - disse a Gabrielle -, e me convidou. Vai ser um grande dia para os dois países. Devolver o vale... quer dizer, Finey's Fiat... a um htgklander trará paz entre os clãs, pois o Lord Monroe vai fazer com que seja usado de modo inteligente. Estou ansioso para a chegada do grande dia. - Ele voltou a fazer uma mesura. - Até lá... - ele disse, antes de se retirar.
O abade esperou até que ele desaparecesse e disse: - O Lord MacKenna nos surpreendeu com uma gentileza. Trouxe-nos uma carroça carregada de grãos de suas plantações. Ele não costuma ser tão generoso, o que nos deixou surpresos e felizes. O Lord está se tornando um homem atencioso. Ah, aqui está o Irmão Anselm. Ele lhe mostrará o caminho.
Os dois cômodos designados para Gabrielle ficavam na ala mais espaçosa da abadia. Eram surpreendentemente amplos e tinham portas de comunicação
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dos dois lados. Atarefadas, as criadas tiravam suas roupas dos baús, em preparação para a festividade que se aproximava. Até que ficasse sozinha, Gabrielle se manteve enrolada na capa. Não tinha certeza do que fazer sobre as manchas de sangue em seu vestido cor de creme, e parecia não conseguir inventar uma desculpa plausível para o aparecimento delas. Decidiu então enrolar o vestido e escondê-lo no fundo de um dos baús.
Mais tarde naquela noite, depois que as criadas haviam se retirado, Faust e Lucien levaram Gabrielle para ver Liam. O Padre Franklin e o Padre Gelroy estavam lá, em meio a uma discussão acalorada.
- Ele já acordou? - perguntou ela, num sussurro, como se não quisesse perturbar o paciente.
Padre Franklin lhe sorriu.
- Não, ainda não, mas gemeu um pouco, e estou confiante que ele logo acordará.
- Ou não - disse o Padre Gelroy, carrancudo. - Ele ainda não está fora de perigo, não é, Frank?
- É preciso ter fé, Gelroy.
- Prédio sagrado ou não, se ele morrer, Colm MacHugh vai destruir a abadia. Para ele, isto não terá a menor importância. É preciso que ele saiba que o irmão dele está aqui. Se tivermos sorte, ele poderá vir pegar o irmão antes que ele morra.
- Se ele morrer - asseverou o Padre Franklin. - Mas não acho que isso vá acontecer. Concordo que o Lord MacHugh deva ser avisado de que Liam está aqui. Acho que você deve ir procurá-lo enquanto o dia ainda está claro.
- Eu ficarei feliz em substituí-lo para que você possa fazer a viagem até a propriedade dos MacHugh - respondeu Padre Gelroy.
- Estou muito velho e fraco para fazer uma viagem como essa - ele murmurou.
Padre Gelroy rosnou.
- Você não está muito velho, ou muito fraco. Está é com medo, isso sim.
- E você, não está?
- É claro que estou com medo. Na verdade, sinto mais medo que você - ele disse em voz baixa. - Por ser dois anos mais velho do que eu, você é quem deve ir, enquanto eu fico. Eu não seria capaz de suportar o desapontamento de MacHugh.
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Antes que o Padre Franklin conseguisse inventar uma desculpa, Padre Gelroy se dirigiu a Gabrielle.
- Estamos discutindo este assunto há mais de uma hora. Franzindo a testa, ela disse:
- Não entendo a hesitação de vocês. Imagino que o Lord MacHugh ficará feliz ao saber que o irmão está vivo
- Talvez - concordou Padre Franklin. - Mas o que acontecerá se Liam morrer antes que Colm MacHugh consiga chegar aqui, depois que o Padre Gelroy lhe ter dito que Liam estava vivo? O que acontecerá?
- Quer dizer, depois que você lhe disser que Liam está vivo - tornou o Padre Gelroy.
- Acho que vocês estão procurando problemas - ela disse. - Esse tal Colm MacHugh precisa ser informado. A esta altura, ele deve estar preocupadíssimo. Se uma pessoa que eu amo desaparecesse, não sei o que eu faria.
Apesar de estarem discutindo o assunto em voz baixa, Gabrielle achou que seria melhor irem para o corredor, pois assim não incomodariam Liam.
- Ele não pode nos ouvir - disse Padre Franklin. - Ainda dorme profundamente.
Padre Gelroy seguiu Gabrielle até o corredor e fechou a porta atrás de si. - Eu lhe prometo, princesa, que o Padre Franklin e eu vamos dar um jeito nisso. Não se preocupe. Um de nós cuidará para que Colm MacHugh seja informado do paradeiro do irmão.
- Meus guardas me pediram que perguntasse se os senhores gostariam que eles ajudassem a cuidar de Liam durante a noite. Ele não pode ser deixado sozinho.
O padre se mostrou feliz e aliviado com a oferta.
- Eu apreciaria muito a ajuda deles. O Padre Franklin e eu prometemos não contar a ninguém como esta pobre alma chegou até aqui, mas também chegamos à conclusão de que seria melhor não mencionarmos o nome de Liam. Haveria muitas perguntas e surgiriam rumores. Vamos tentar manter a presença dele em segredo pelo maior tempo possível. Veja bem, não podemos pedir a nenhum dos outros para se sentar à cabeceira dele porque o segredo seria descoberto.
Padre Franklin deu um passo à frente.
- O Padre Gelroy me disse que ele não sabe o que aconteceu com Liam, ou quem lhe deu tamanha surra, mas nós lhe prometemos que, quem quer que tenha sido, não terá outra oportunidade de lhe fazer mal enquanto ele estiver aqui. Com a ajuda de seus guardas, teremos certeza de que ele ficará seguro.
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- Gostaria de poder ajudar mais e também contribuir com um turno de vigília, mas imagino que...
Gabrielle foi interrompida por Lucien
- Não seria apropriado, princesa.
- Não seria conveniente que a princesa passasse a noite no quarto de um homem, independente de ele estar ou não desacordado - o Padre Franklin lhe disse.
Ela não discutiu, pois sabia que eles tinham razão. Virando-se para o padre, ela disse:
- E um de vocês irá à fazenda de MacHugh? Os ombros deles se encolheram.
- Sim, um de nós irá.
- Só que... aquele que for não voltará - disse Padre Franklin, indo direto ao ponto. Padre Gelroy assentia, concordando, quando o Padre Franklin lhe deu uns tapinhas no ombro. - Vou sentir sua falta, Gelroy.
- A viagem é perigosa? - ela perguntou.
- Não exatamente - respondeu Padre Franklin.
- Quer dizer então que é muito longe?
- Não extremamente longe - respondeu o Padre Gelroy.
- Não é a viagem que nos preocupa, Lady Gabrielle E sim conseguir sair de lá.
Gabrielle tinha certeza de que o medo que diziam sentir dos MacHugh era exagerado. Era impossível que fossem tão cruéis como os padres insinuavam.
- Pretendem ir logo? - pressionou ela.
- Logo, logo - prometeu o Padre Gelroy.
A definição do padre de logo era diferente da de Gabrielle. Ele levou três dias e três noites para reunir coragem para partir. Aquela altura, Liam melhorara o suficiente para que o padre se sentisse seguro de que ele sobreviveria, mas o padre continuava apreensivo. Mesmo sabendo que deveria levar a notícia ao Lord MacHugh, ele ainda tinha dúvidas de poder retornar à Abadia Arbane.
Finalmente, o Padre Gelroy partiu em uma montaria emprestada, mas seu destino não era a fazenda de MacHugh. Depois de pensar muito no assunto, ele decidiu procurar um aliado fiel de MacHugh, o Lord Buchanan. Ingênuo, o padre acreditava que seria mais fácil falar com Brodick Buchanan e menos provável que ele reagisse fisicamente ao receber a notícia de que o irmão de Colm havia sido duramente espancado.
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Quanto mais se aproximava das terras dos Buchanan, mais violenta ficava sua tremedeira, até chegar a ponto de achar que, de tanto tremer, pudesse cair do cavalo. Mas Deus teve misericórdia dele. Enquanto descansava à sombra de uma enorme nogueira nos limites das terras dos Buchanan, ele viu cavalo e cavaleiro vindo estrada abaixo.
Agora, tinha nas mãos um dilema. Não sabia se o cavaleiro era amigo ou inimigo. Seria melhor se esconder? Não, o cavaleiro já o vira. O padre fez uma prece e decidiu que a única coisa que poderia fazer era esperar o melhor.
Vejam só, quem se aproximava era o Barão Geoffrey. Agradecido, fez o sinal-da-cruz e, assim que o barão se aproximou o suficiente, acenou. Lembrouo que, uns dois anos atrás, já haviam se encontrado na abadia. Sem mencionar a filha do barão, ele lhe perguntou se havia estado com os Buchanan.
- Pareceu-me que vinha de lá.
- Sim, estive lá - Geoffrey respondeu.
- O senhor conhece bem os Buchanan?
- Somos parentes distantes e, apesar de ter ido até lá para prestar meus respeitos com a intenção de não permanecer mais que uma noite, aconteceu uma tragédia. Um dos guerreiros estava faltando. Os homens saíram em busca dele e deveriam ter voltado à fazenda ontem, mas se atrasaram por causa de uma tempestade que caiu na noite anterior. Precisei esperar pelo retorno do Lord Buchanan.
- Por acaso o nome do soldado desaparecido é Liam MacHugh? - perguntou, suavemente.
- Sim. Quer dizer que o senhor ficou sabendo do ocorrido.
- Eu o vi - disse o padre. - Ele foi levado à abadia, a pobre alma. O barão ficou boquiaberto. O padre aproveitou a vantagem que o momento lhe oferecia.
- Mesmo sendo inglês, o senhor alcançará um bom lugar no céu se voltar para levar a notícia ao Lord Buchanan, que poderá transmiti-la ao Lord MacHugh.
Enquanto o Barão Geoffrey se recuperava da notícia transmitida de forma não despreocupada, o Padre Gelroy fez meia-volta e induziu seu cavalo a um trote colina abaixo.
- Espere - gritou o barão -, você não pode partir sem... Liam ainda está vivo?
O padre deu uma chicotada no lombo do cavalo para fazer com que apertasse o passo. Sem olhar para trás, ele gritou por sobre os ombros:
- Oh, Deus, espero que sim.
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Capítulo 12
Os lords que viviam nas montanhas ao nordeste eram um grupo complicado. Eles eram conhecidos por serem imprevisíveis, irracionais e grosseiros. As vezes, eram também selvagens. Mesmo que o Barão Geoffrey os acusasse de um desses defeitos, eles achariam um elogio.
Sim, eram um grupo peculiar e não havia ninguém entre eles mais peculiar do que o Lord Brodick Buchanan. Brodick não se sentiu nem um pouco constrangido ao informar a Geoffrey que, apesar de serem parentes, sentia por ele uma profunda antipatia pelo fato de Geoffrey ser inglês. Como a esposa de Brodick também viera da Inglaterra e era prima de Geoffrey, Brodick explicara bruscamente que não podia sair por aí dizendo que detestava todos os ingleses, mas apenas alguns.
O grosseiro lavra disse também a Geoffrey que ele não o queria em suas terras. Entretanto, o barão sabia que se ele respeitasse os desejos do Lord e não lhe fosse prestar seus respeitos quando estivesse por perto - e todos os lords da região saberiam que ele tstivera - Brodick veria aquilo como um grave insulto e não teria outra escolha além de retaliar.
O barão o visitara apenas uma vez, logo depois que Brodick se casara com Lady Gilhan. Seu tio Morgan lhe pedira para averiguar se a prima estava bem. Morgan, irmão mais novo do pai de Geoffrey, era um velho recluso e rabugento que não acreditava que Lady Gillian seria feliz vivendo nas montanhas, entre os selvagens Buchanan. Para surpresa de Geoffrey, no entanto, ele a encontrou não só satisfeita, mas razoavelmente feliz. Ela não poderia ter se mostrado mais graciosa, e a gentileza dispensada ao primo compensou a hostilidade do marido.
Apesar de nunca admitir isso a Brodick, Geoffrey ficou impressionado com ele e a esposa. Não moravam num enorme castelo mas sim numa pequena cabana, não muito maior do que a casa do administrador de Geoffrey. Era evidente que Brodick e Lady Gillian não se importavam em impressionar os de fora. Em vez disso, preferiam se concentrar em assuntos mais importantes. O principal dever de Brodick era proteger sua esposa e seu clã. O dever de Lady Gillian, pelo menos naquele momento, era proteger o bebê que esperava. Ela gostaria muito de ir ao casamento de Gabrielle, mas, a partir do momento em que informara Brodick de seu estado, sair da fazenda do marido era assunto fora de questão.
O padre que interpelara Geoffrey para lhe dar a notícia sobre Liam MacHugh agira como se estivesse sendo perseguido por uma matilha de cães selvagens. Assim que despejou a novidade, saíra a todo galope e desaparecera entre as árvores.
Geoffrey voltou à propriedade dos Buchanan, mas Brodick não ficou feliz ao vê-lo de volta. Com certeza, não estava disposto a recebê-lo novamente.
Ao avançar na direção de Geoffrey, o Lord era uma visão intimidadora. Alto e musculoso, ele tinha cabelos claros, cicatrizes de batalhas e expressão de chumbo. Seu homem de confiança, um feroz guerreiro chamado Dylan, seguia o Lord de perto. Em seguida, mais dois guerreiros se juntaram a eles.
Montado em seu cavalo, Geoffrey esperou que Brodick se aproximasse. Os cumprimentos do Lord não foram muito agradáveis, mas Geoffrey não esperava outra coisa.
- Pensei que havia me livrado de você, barão. Geoffrey ignorou o insulto.
- Liam MacHugh está na Abadia Arbane
Seu comunicado desmanchou a expressão de escárnio que havia no rosto de Brodick.
- Ele está vivo?
Rapidamente, o barão contou o que o padre lhe dissera e, quando terminou, Brodick perguntou:
- E o que diabos significa espero que sim? Liam está vivo ou não?
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- Acho que ele queria dizer que, da última vez que o viu, Liam estava vivo - sugeriu Geoffrey. - Você informará o Lord MacHugh?
- Sim.
Brodick deu as costas a Geoffrey e afastou-se, dispensando-o. Ladrava ordens aos seus homens. Ele iria com MacHugh até a abadia. Em sua mente, não havia dúvidas de que nada impediria Colm MacHugh de descobrir quem fizera aquilo ao irmão dele. Se Deus fosse piedoso, Liam MacHugh estaria vivo quando lá chegassem.
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Capítulo 13
Enquanto Padre Gelroy tentava reunir coragem para fazer a viagem e informar a família de Liam sobre seu paradeiro, Gabrielle preenchia seus dias com obrigações sociais e preparativos para o casamento. Tarde da noite, ela deixava seus aposentos para vigiar o sono de Liam. Seus guardas montavam guarda à porta. Quando seu paciente finalmente abriu os olhos, Padre Franklin lhe explicou que, mesmo sendo a abadia um santuário e portanto considerada terreno sagrado por todos os homens e mulheres tementes a Deus, ele não poderia se arriscar e deixar que algum gentio se aproximasse para infligir mais ferimentos a Liam. Disse a Liam que Lady Gabrielle chegara com um contingente de guardas para o seu casamento e que ele lhe pedira ajuda. Em sua condição delicada, Liam não protestou. Sabia que estavam cuidando dele, mas não falava com ninguém e, quando eles falavam entre si, usavam uma língua que Liam nunca ouvira e não podia entender.
Assim que Liam recuperou a consciência, o Padre Gelroy anunciou que partiria na madrugada seguinte para levar a mensagem. Ao cair da tarde, estava de volta. Ao responder às batidas à porta de seu quarto, Gabrielle ficou surpresa ao ver que ele retornara tão cedo de sua missão. Fez com que o padre se acomodasse em uma poltrona na varanda, ofereceu-lhe algo para beber e sentou-se à sua frente.
- O senhor está bem, padre? - ela perguntou.
- Sim, estou - respondeu ele. - E a princesa?
- Estou ótima - respondeu ela -, mas bastante curiosa. Posso perguntar como o senhor conseguiu voltar tão rápido?
- Cavalguei con extrema rapidez - ele se gabou.
Um criado, segurando uma bandeja, se colocou à porta. Gabrielle lhe fez um sinal e ela entregou uma taça de água fria ao padre. Padre Gelroy agradeceu com um sorriso e um gesto de cabeça. Em seguida, sorveu um grande gole.
- O Lord MacHugh ficou satisfeito com as notícias sobre o irmão? Ficou aliviado?
- Imagino que sim - respondeu ele. - Sabe, eu não fui até a fazenda de MacHugh. Achei mais prudente... sim, prudente - repetiu ele -, ir até a propriedade dos Buchanan e lhes dar a notícia para que tivessem a honra de transmiti-la ao Lord MacHugh. Os Buchanan são aliados dos MacHugh, e a fazenda deles é bem mais próxima da abadia.
- Sei - cruzando as mãos sobre o colo, Gabrielle perguntou: - E o Lord Buchanan ficou satisfeito e aliviado com a notícia?
- Imagino que sim - ele disse, um pouco acovardado.
- O senhor não sabe? - ela perguntou, claramente confusa. Ele limpou a garganta.
- As coisas aconteceram de modo que não precisei ir até a fazenda dos Buchanan. Seu pai estava saindo de lá pelo único caminho seguro quando o interceptei e lhe dei a boa notícia. Tenho certeza de que ele se sentiu feliz em poder transmitir a notícia ao Lord Buchanan.
Gabrielle teve a impressão de que o padre fizera uma complicação de uma tarefa bastante simples. O medo que ele sentia do Lord MacHugh chegava a ser irracional. Afinal de contas, o padre estava levando boas notícias. Por que será que achava que o homem lhe faria mal?
- Tenho certeza de que sim - ela disse.
- Seu pai deve chegar a qualquer momento - comentou ele.
- Ficarei feliz em vê-lo. Talvez possamos cavalgar pelos arredores. Não quero reclamar, mas gostaria muito de sair um pouco da abadia.
- Ultimamente, a vizinhança anda bastante movimentada - ele disse. - Há emissários de muitos países chegando para o casamento. Vários barões ingleses já montaram acampamento. Como a princesa sabe, levam consigo os
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confortos do lar quando viajam. Ouvi dizer que uma das tendas é tão espaçosa quanto uma igreja. Seu casamento com o Lord Monroe promete ser uma ocasião inesquecível.
- Fico surpresa que tenham vindo de tão longe para a cerimônia - ela disse.
- Trata-se de um evento muito importante - explicou ele.
Foram interrompidos pelo Padre Franklin, que bateu à porta. Assim que o criado o fez entrar, o padre se apressou na direção deles. Ao ver Padre Gelroy, parou abruptamente e fez um sinal para que se juntasse a ele.
- Parece que Padre Franklin quer ter uma conversa particular comigo. Acho que sei do que se trata. Não compareci às orações do meio-dia - ele explicou. - Acho que vou receber um sermão.
Um momento depois, sussurrando entre si, os dois padres estavam envolvidos numa intensa discussão. Gabrielle voltou sua atenção para o pátio abaixo. Debruçou-se sobre a amurada e viu um padre correndo e gritando a dois outros que saíam da capela, mas não conseguiu ouvir o que diziam. O pátio rapidamente se encheu de homens, todos visivelmente agitados, agitando os braços e balançando a cabeça. Alguns padres fizeram o sinal-da-cruz e, caindo de joelhos, começaram a rezar.
Alguma coisa terrível havia acontecido.
- Lady Gabrielle?
O Padre Gelroy pediu a atenção de Gabrielle. A expressão em seu rosto não deixava dúvidas. As notícias eram péssimas.
Pensando nas piores possibilidades, seu pensamento galopou. Seria seu pai? Será que alguma coisa lhe acontecera? Deus amado, por favor, não.
Enquanto esperava pela explicação do padre, ela se esforçou para manter a expressão serena.
O Padre Gelroy cutucou o Padre Franklin.
- É você quem conta.
- É o Lord Monroe. Ele não pode mais se casar com milady.
- É claro que não - gaguejou Padre Franklin.
- Como assim? - perguntou ela, tentando entender.
- Ele não pode se casar com Lady - despejou Padre Gelroy - porque está morto.
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Capítulo 14
Foi uma pena que ele não tivesse tido tempo para fazer com que o assassinato parecesse um acidente. Sua vida teria se tornado muito mais fácil. Considerara a possibilidade de sufocar Monroe mas ao lutar pela vida um homem era capaz de reunir a força de dez. Não, morte por sufocamento seria muito arriscado.
Assim como por afogamento. E se ele fosse exímio nadador? Ou gritasse muito? Um grito apenas poderia bastar para lhe trazer ajuda. Afogamento, decidira, estava fora de questão.
Pensou em vários outros métodos que poderiam passar por acidente, mas não conseguiu aprovar nenhum. Alguns eram muito complicados, outros muito dependentes de força e momento oportuno.
No final, acabara se decidindo pelo uso da faca. Uma lâmina afiada traria uma morte rápida e fácil. Infelizmente, ninguém jamais acreditaria que tivesse sido acidental. Como era possível que alguém acidentalmente caísse cinco ou seis vezes sobre a mesma faca? Foram necessárias várias estocadas para matar o Lord Monroe.
Ele já matara antes, mas nunca como desta vez. Por causa da posição de poder que ocupava, normalmente delegava as tarefas desagradáveis a outras pessoas. Mas desta vez era diferente. Não se atrevera a confiar sua difícil tarefa a ninguém mais. Precisava cuidar de tudo sozinho. Era a única maneira de ter certeza de não deixar pistas.
Nos últimos anos, Monroe felizmente se tornara descuidado. Não se cuidava como deveria e, quando se tratava de segurança, seus homens haviam se tornado tão descuidados quanto ele. Não contavam ter problemas porque seu Lord não tinha inimigos. Como poderia tê-los? Nunca tomara partido de qualquer clã e nunca desejara ter mais do que possuía. O Lord não tinha qualquer tipo de ambição e era completamente neutro.
A rotina dele nunca variava. Todas as tardes, um pouco antes do pôr-do-sol, independente do tempo e de onde estivesse, ele fazia uma longa caminhada. E sempre caminhava sozinho.
Ficar agachado na escuridão à espera de Monroe fora tarefa tediosa e desconfortável, mas, quando o ruído de folhas pisadas o avisou de que Monroe se aproximava, ele agarrou o cabo da faca e, pacientemente, esperou o momento perfeito para dar o bote.
Fora uma pena, mas inevitável. O Lord Monroe tivera uma morte bastante desagradável.
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Capítulo 15
A missa do funeral foi rezada na capela ao norte da abadia. Muitas pessoas do clã Monroe estavam a caminho do casamento quando receberam a notícia de seu falecimento e sua alegre viagem de celebração se transformou em sombria e lamuriosa procissão. Vários lords das highlands compareceram ao funeral para apresentar suas condolências, mas muitos mais teriam comparecido caso tivessem sabido da morte de Monroe. O ritual, que aconteceu um dia depois de sua morte, teve de ser adiantado por causa da temperatura inesperadamente quente e do estado avançado de deterioração do corpo.
Os ingleses não eram bem-vindos, apesar de ser duvidoso que os barões tivessem a intenção de se sentar diante do padre para ouvi-lo exortar as qualidades do falecido. Afinal de contas, ele era um ighlander que, do ponto de vista deles, era um ser inferior e indigno de suas preces.
As únicas exceções foram o Barão Geoffrey de Wellingshire e sua filha, Lady Gabrielle. A família Monroe permitiu a presença deles porque a princesa havia sido prometida em casamento ao lord. Apesar da permissão recebida para assistir à missa com eles, ela e o pai se sentaram no banco de trás. Mesmo com todos os lugares vagos, ninguém se sentou ao lado deles.
Gabrielle não esperava receber atenção especial. Sentia-se agradecida por ter a chance de rezar pela alma do Lord Monroe. Seu pai, entre muitos outros, tinha grande consideração por ele por causa de sua reputação de homem bom e gentil. Que motivos teriam para matá-lo? Seu assassinato não fazia o menor sentido. Não fora por roubo, porque nada fora tirado de seu corpo. Seu anel de ouro e punhal com cabo de pedras preciosas ainda estavam com ele quando foi encontrado. Teria perdido a vida apenas para que alguém se divertisse?
Seu pensamento divagou e ela pensou em Liam MacHugh e nos homens maldosos que tanto o haviam maltratado. Como era possível que um homem pudesse tratar um semelhante daquela maneira?
Ao término da missa, o corpo de Monroe, enrolado em linho branco, foi levado para fora da capela. Gabrielle manteve a cabeça baixa enquanto a procissão de parentes e amigos do falecido se retirava. Uma vez, ao olhar para cima, percebeu que, enquanto passavam, todos olhavam para ela.
O último casal, um jovem com uma senhora mais velha, parou ao se aproximar dela. Ao sentir o olhar penetrante da mulher, Gabrielle levantou a cabeça.
- Vá embora. Você não pertence a este lugar - sibilou a mulher, suas palavras cheias de veneno.
Rapidamente, o jovem segurou o ombro da senhora e gentilmente a conduziu para junto da procissão.
- Venha, mãe, meu tio não ficaria feliz ao saber que sente raiva. Gabrielle sentiu seu rosto pegar fogo. Nunca havia sido tratada com tamanho desprezo.
Ao se retirar lentamente, um homem se virou para sorrir para Gabrielle. O barão segurou-a pelo braço indicando que não deveria se levantar para sair.
- Vamos esperar até que os Monroe tenham partido - aconselhou ele. - Aquela senhora é irmã do Lord Monroe. Acho melhor não sairmos logo atrás. Assim, evitaremos outros insultos.
- Que motivos têm eles para me insultar? - perguntou ela, incrédula.
- O clã dos Monroe acredita que seu Lord tenha perdido a vida por sua causa.
Gabrielle olhou para o pai como se ele estivesse delirando.
- Eles a consideram responsável pela morte dele - seu pai repetiu. Ela estava atônita.
- Eles acham que eu o matei? Como poderiam pensar tal coisa?
- Você não está entendendo, Gabrielle. Obviamente eles não acham que você o tenha esfaqueado, mas acreditam que o Lord ainda estaria vivo caso tivesse
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ficado em casa, sem ter concordado em se casar com você. Monroe e seus homens estavam acampados próximos ao vale na noite em que foi assassinado e, como estava a caminho da abadia para se casar, acreditam que você tenha sido a causa da morte dele.
- Mas isso é ridículo.
Ele deu uns tapinhas na mão dela.
- Sim, é ridículo, mas não deixe que isso a incomode. Ela aprumou o corpo.
- Posso agüentar seus insultos. Não sou tão fraca a ponto de me deixar abalar por uma ou duas palavras cruéis.
- Mesmo que não queira admitir, sei que você ficou magoada, minha filha.
Atrás dele, a porta se abriu e Stephen entrou.
- O caminho está seguro. A família e os homens de Monroe já se foram e o barão que esperava à porta retornou ao seu acampamento.
O pai de Gabrielle assentiu com a cabeça.
- Então, podemos ir. Vamos, Gabrielle. Seus guardas a levarão de volta aos seus aposentos.
- Stephen, quem era o barão que esperava à porta? Foi seu pai quem respondeu:
- Percy. - Ao sair do banco, ele deu um passo atrás para que Gabrielle pudesse caminhar à sua frente.
- E por que ele viria ao casamento? Eu não entendo... ele não é seu amigo ou aliado, e duvido que conhecesse o Lord Monroe - ela disse.
O barão suspirou.
- Eu devia ter lhe contado isso há muito tempo. Percy diz ter sido mandado pelo rei para testemunhar a cerimônia, mas tenho certeza de que tem motivos ocultos. Pensei em proteger você. O Barão Percy e o Barão Coswold são homens extremamente manipuladores e não permitirão que nada se interponha no caminho deles. Eu tinha esperanças de que, uma vez que você estivesse casada, eles acabariam desistindo de sua obsessão.
Com um gesto, ele pediu que Stephen abrisse as portas.
- Acertei, Stephen? - ele perguntou enquanto desciam a escadaria. - Era Percy quem esperava por uma chance de falar com Gabrielle?
- Sim, barão. Ele estava meio escondido ao lado da capela e tinha alguns amigos com ele. Ainda não vi o Barão Coswold.
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- Coswold viajou para a Escócia. Tenho certeza disso. Mas só Deus sabe quais são os planos dele.
- Por que eles querem uma chance de falar comigo? - perguntou Gabrielle.
- Posso explicar isso mais tarde - disse seu pai. - Agora vá e peça às criadas para fazerem suas malas. Amanhã de manhã você deve voltar à Inglaterra. Se já não fosse tão tar de, preferia que fosse hoje mesmo.
- Mas o senhor não vai comigo, papai? - perguntou Gabrielle.
- Não, primeiro preciso falar com o rei. Agora, ele já deve saber da morte de Monroe e necessito da aprovação dele para podermos retornar à Inglaterra. Dentro de poucos dias, me juntarei a vocês.
- É por causa de Percy e Coswold que o senhor está tão ansioso para voltar para casa? - ela perguntou.
- Sim, é por causa deles - ele respondeu, sombrio.
Andando lado a lado e seguidos de perto por Stephen e Faust eles entraram no pátio.
- Eu não lhe contei o que fiquei sabendo a respeito dos dois e de sua péssima reputação, mas parece que tudo o que um quer, o outro também fica querendo. Para eles, tudo se torna um jogo para ver quem sairá vencedor.- Enojado, ele balançou a cabeça. - Pensei que, casando-se com o Lord Monroe, você se livraria deles. Fiquei perplexo ao saber que Percy viajara até aqui, montando seu acampamento do lado de fora da abadia para participar da cerimônia do seu casamento. Acredito que Coswold deva chegar a qualquer momento.
- Homens mortos não podem se casar - comentou Faust. - Para eles, foi uma sorte que o Lord Monroe tenha sido assassinado.
Stephen assentiu com a cabeça.
- Bastante conveniente, não acham? O Barão Geoffrey se virou para eles.
- Pois eu estava pensando a mesma coisa.
- Vocês estão querendo dizer... - Gabrielle começou a falar.
- Você cresceu protegida das maldades do mundo e, por isso, não pode imaginar do que os homens são capazes. Vou lhe contar o que encontrei ao chegar à casa dos Buchanan. O Lord Buchanan e muitos de seus soldados haviam estado com seus aliados, os MacHugh, à procura do irmão do Lord MacHugh.
Ao explicar o que os monstros que capturaram Liam pretendiam fazer, o barão foi pródigo nos detalhes.
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- Disseram-me que a corda que usaram para amarrá-lo estava encharcada de sangue e que haviam cavado um buraco para enterrá-lo.
- Eles sabem quem eram esses homens, senhor? - perguntou Stephen.
- Não, não sabem. Brodick e o Lord MacHugh encontraram um deles caído no chão perto do buraco, mas não o reconheceram. Ele não usava as cores de nenhum clã. Brodick retornou à sua casa por um curto período. Eu estava à sua espera.
- O senhor o ajudou na busca, papai?
- Deus me livre, claro que não. Ele nunca teria permitido, mas as coisas se desenrolaram de modo que o irmão de MacHugh foi encontrado. Ao deixar a propriedade de Brodick, encontrei um padre que saía da floresta com a boa notícia. Ele me pediu que contasse ao Lord Buchanan que Liam MacHugh estava aqui na abadia. - O pai de Gabrielle sorriu.
- O pobre padre estava louco para dar o fora e não respondeu às minhas perguntas. Imagino que o clã dos MacHugh tenha ficado feliz ao saber que Liam está vivo e em segurança. O abade mencionou alguma coisa sobre este pobre homem ferido estar aqui?
Antes de responder ao pai, Gabrielle lançou a Stephen um olhar furtivo por sobre os ombros.
- Não, o abade não nos disse nada.
- Tudo bem - disse o barão. - Quanto menos você ficar sabendo sobre toda essa brutalidade, melhor.
- Prefiro acreditar que no mundo existem mais coisas boas que ruins - ela disse.
- Você herdou a bondade de sua mãe, Gabrielle. - Antes de deixá-la, o Barão Geoffrey beijou delicadamente o rosto da filha. - Preciso me apressar para falar com os soldados. Há muita coisa a ser feita antes de partirmos e preciso encontrar um momento para me despedir do abade.
Assim que seu pai sumiu de vista, ela olhou para Stephen.
- Sinto-me culpada por não ter contado ao meu pai como encontramos Liam.
- Ao não lhe dizer nada, você o protegeu. Nenhum de nós seria capaz de prever as implicações de matar um homem para salvar outro. Ambos são estranhos para nós. Seu pai não deve ser colocado no meio disso, o que facilmente poderia acontecer. O melhor que temos a fazer é voltar para casa.
Ela concordou.
- Esta foi uma jornada bastante triste.
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Capítulo 16
Gabrielle voltava aos seus aposentos quando foi chamada pelo Padre Gelroy.
- Princesa, posso lhe falar?
Ele correu para encontrá-la, a barra de sua batina batendo nos tornozelos. Tinha o rosto afogueado e o cenho profundamente cerrado.
Ela não sabia se seria capaz de suportar mais notícias ruins. Com os braços ao redor de si mesma, caminhou até ele.
- Sim, padre?
- Eles estão aqui. - Ele ofegava tanto que mal conseguia articular as palavras.
- Quem está aqui? - ela perguntou.
- O Lord MacHugh e o Lord Buchanan. Acompanhados de seus guerreiros. Estão no alto da colina, de onde observam a abadia.
- Isso é uma boa notícia, não é?
- Oh, não, não. Quer dizer, sim - gaguejou ele. - Eles vieram buscar Liam, e isso é muito bom.
- Então, o senhor precisa ir recebê-los, não é? E levar o Lord MacHugh até o seu irmão.
- Isso não será necessário - respondeu Padre Gelroy.
- Eu não entendo. É claro que é necessário. O Lord MacHugh viajou até aqui e deveria ser levado para ver o irmão - insistiu ela.
- Oh, ele vai vê-lo. Tenho certeza - garantiu o padre. - Mas o Lord não será levado até ele.
Gabrielle estava mais confusa do que nunca.
- Então, como ele poderá ver o irmão?
- Liam o está esperando do lado de fora dos portões - despejou o padre.
Chocada, Gabrielle disse:
- Desde que chegou aqui, aquele pobre homem não conseguiu sair da cama. Como conseguiu chegar até o lado de fora da abadia?
Ao responder, o padre não teve coragem de olhar nos olhos dela.
- O Padre Franklin e eu o carregamos.
- E vocês simplesmente o deixaram lá? - Ela não podia acreditar no que ouvia.
- Lady não entende. O Lord MacHugh é um guerreiro poderoso. Todos já ouviram falar de sua força descomunal... e de seu temperamento intempestivo.
Subitamente, Gabrielle compreendeu.
- O senhor está com medo dele.
- Apenas um tolo não teria medo do Lord MacHugh.
- Mas abandonar o pobre homem... - ela começou a falar.
- Venha comigo - disse Padre Gelroy. - Ao ver com seus próprios olhos, sei que a princesa entenderá. Não se preocupe. Eles não poderão vê-la. Subiremos e daremos uma espiada pelo muro. Eu mostro o caminho.
O padre levou Gabrielle para fora. Subiram uns degraus estreitos até uma abertura feita na grossa parede de pedra. Padre Gelroy apontou para a colina.
- Pode vê-los?
A maneira como ela respirou profundamente serviu de resposta. Perdera a voz ante a visão dos guerreiros e tudo o que pôde fazer foi um rápido movimento de cabeça.
Ela não teve problema algum para localizar os lords. Os dois estavam à frente de seus homens, cada um montando um cavalo esplendoroso um preto, outro cinza. Ambos pareciam ter sido modelados pelas mãos de deuses antigos. Ela sabia que Zeus nunca existira de verdade, mas, quando olhava para aqueles gigantes, não conseguia deixar de pensar que talvez...
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- O Lord MacHugh é o da direita - disse Padre Gelroy.
Seria ele realmente humano? Ela fechou os olhos e voltou a abri-los. Ele continuava lá.
- Ele é bem... grande, não é? Os dois, na verdade - ela disse, correndo o olhar para um e outro.
O padre riu.
- São homens das montanhas - ele disse, como se isso explicasse tudo. - Não são tão civilizados quanto o resto de nós.
- Eles vieram buscar um dos seus, o que indica que sentem amor fraterno. Eles são humanos, padre - ela concluiu, com um traço de desaprovação a respeito de seu julgamento negativo.
- Lá está Liam - sussurrou ele, mesmo sabendo que seria impossível ser ouvido por eles.
- Vamos presenciar um encontro feliz - ela disse. - O que é que existe de errado em interrompermos?
- Pois eu não acredito. Além disso, nunca se sabe.
Por um ou dois minutos, ficaram ali, espiando. Em seguida, ela sussurrou:
- Liam está com problemas para caminhar. Vê como ele está se esforçando para não mancar? Está apoiando o peso sobre o pé direito, não é? E também está diminuindo a marcha. Como será capaz de subir a colina?
- O orgulho o levará ao topo.
- Mas orgulho é pecado.
- Não para um highlander
Gabrielle fixou o olhar no Lord MacHugh. Sua expressão era rígida. Enquanto observava o irmão lutar para avançar, não se via nenhum vestígio de sentimento em seus olhos.
"Bárbaro", decidiu ela. MacHugh era um bárbaro. Será que não sentia nada pelo irmão? Viera de tão longe para buscá-lo! Por que não o ajudava? Por que nenhum deles ajudava o pobre Liam?
"Eram todos bárbaros", decidiu ela. "Todos eles.
Liam tentava manter o corpo ereto, mas, ao adiantar o pé para dar o passo, cambaleou e caiu para trás. O Lord MacHugh imediatamente desmontou seu cavalo, entregando as rédeas ao Lord Buchanan.
- Minha fé foi recuperada - ela disse. - Cometi um erro ao pensar mal do lord. Finalmente, ele vai ajudar Liam. - E Gabrielle sorriu ao acrescentar: - Isso é amor fraterno.
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Ansiosa, observou o Lord descer a colina em direção ao homem debilitado. Não parou para falar com ele, não sorriu para ele e, com certeza, não o abraçou.
O que fez foi descarregar no irmão toda a força de seu punho poderoso.
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Capítulo 17
Brodick mal podia acreditar que falara a voz da razão. Normalmente, era ele quem tinha o temperamento esquentado. Mas não hoje. Hoje, sua missão era clara: evitar que Colm fizesse algo temerário, o que não seria tarefa fácil. Brodick tivera de gastar muito verbo para convencê-lo a não invadir a abadia, derrubando cela por cela até descobrir o que acontecera com o irmão.
Colm resistira, mas acabara conseguindo controlar sua ira a caminho da abadia. Ao chegar lá, no entanto, voltara a fumegar de raiva ao ver Liam encostado ao portão da abadia.
- Senhor Deus - murmurou Brodick ao ver Liam. Respirou fundo, lembrou-se de que precisava se manter racional e acrescentou: - Ele está vivo.
Colm não respondera. A única coisa que ele viu, por um ou dois minutos agonizantes, foi a tentativa vacilante que o irmão fazia para andar. Depois, rapidamente desmontou e foi buscá-lo. Com apenas um golpe do irmão, Liam oscilou e despencou sobre o ombro dele.
Assim que colocou o irmão no lombo de um cavalo, fez sinal para que dois cavaleiros o flanqueassem e o conduzissem de volta.
- Alguém sabe o que aconteceu com meu irmão, Brodick. Seja quem for que o trouxe até a abadia deve ter testemunhado alguma coisa. Liam simplesmente não tinha condições de caminhar desde o campo de batalha. Alguém o
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carregou. Olhe para ele, Brodick. - Com um movimento de cabeça, MacHugh indicou a abadia e acrescentou:
- Liam não chegou até lá sozinho. Alguém o ajudou.
- Pode ser que o tenham deixado no portão.
- Como pode ser que tenha sido levado para dentro. Se alguém na abadia souber o que aconteceu, eu vou descobrir. E vou obrigá-lo a me dizer o que sabe, mesmo que tenha de usar a força. - Brodick apontou as tendas montadas do lado de fora da abadia. - Com todas essas pessoas por perto, você precisa usar a cabeça. Não pode simplesmente invadir a abadia. O lugar é sagrado, pelo amor de Deus. Ao cruzar aquele portão, não poderá sequer levar sua espada, ou qualquer tipo de arma.
Colm não gostava que lhe dissessem o que devia ou não fazer. Olhou para Brodick.
- E desde quando você respeita as regras? O casamento está enfraquecendo você.
- Minha esposa não ficaria casada com um homem fraco.
Colm montou seu cavalo, segurou as rédeas e voltou a subir a colina.
- Talvez ela o tenha transformado num fracote porque ela é fraca. A maioria delas é fraca.
Os insultos surpreenderam Brodick.
- Você já encontrou minha esposa, não é? Colm encolheu os ombros.
- Sim, já nos encontramos. - Havia uma pitada de riso na voz dele ao continuar: - Ela é uma mulher forte. Uma raridade.
- Isso mesmo, ela é forte. E tentar me provocar não vai adiantar. Eu não vou ajudá-lo a guerrear com um bando de velhos.
- Não tenho a menor intenção de declarar guerra aos padres. Simplesmente vou descobrir o que aconteceu.
- Antes de qualquer coisa, você deveria falar com seu irmão.
- É exatamente isso o que vou fazer.
- Talvez você não devesse ter lhe dado um soco tão forte. Quanto tempo você acha que ele vai demorar para acordar?
- Um pouco de água na cara fará com que acorde rápido. Enquanto a coluna de cavaleiros descia o outro lado da colina, Colm disse:
- Você viu o que fizeram com ele?
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- Sim, vi - respondeu Brodick, compenetrado.
Seria preciso um longo tempo para que Colm apagasse da memória a imagem do irmão tentando chegar até ele. Parecia que cada centímetro de pele das costas e das pernas do irmão havia se partido, ou sido arrancada.
Sim, seria preciso um longo tempo para esquecer aquela imagem terrível.
- Seus homens deveriam levar Liam para a cabana de Kevm Drummond. A mulher dele sabe curar.
- Não, eles vão levá-lo para casa. Lá, ele terá os cuidados de que necessita. Quero que você saiba que, depois de falar com ele, vou até a abadia.
- Eu sei - disse Brodick. - Eu vou com você.
- Não, você não vai. Já estou em dívida com você. Aqueles cretinos teriam enterrado Liam se você e seus homens não tivessem aparecido. Eu nunca teria chegado a tempo.
- O homem morto caído perto do buraco com uma flecha no peito... aquela flecha não foi atirada por um de nós - Brodick refrescou a memória do amigo.
- Mesmo assim, tenho uma grande dívida com você. Brodick sorriu.
- É verdade.
Eles alcançaram os outros. Dylan, primeiro-comandante de Brodick, vinha atrás dos soldados de MacHugh. Ao ouvir o assobio agudo de Brodick, interrompeu a caminhada dos homens.
Havia doze homens do clã de MacHugh e a mesma quantidade de Buchanan ao redor de Liam.
Como estavam bastante próximos de Duncan's Bluff, decidiram deixar Liam descansar por alguns minutos antes de continuarem. O irmão de Colm ainda estava zonzo por causa do soco que recebera na mandíbula. Recusou ajuda ao desmontar e quase caiu de joelhos. Todos viram que as solas de seus pés estavam cobertas de sangue coagulado, mas ninguém se adiantou para ajudá-lo. Esperaram até que se aprumasse e seguisse Colm até as pedras chatas com vista para o vale.
A cada passo lento e doloroso que dava, Liam tentava evitar uma careta. Quando finalmente chegou à beira do penhasco, atirou-se ao chão e apoiou as costas contra uma pedra.
A saudação de Colm ao irmão foi seca.
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- Quem fez isso com você? - Enquanto esperava a resposta, ele se posicionou de braços cruzados em frente ao irmão.
- Se eu soubesse quem fez isto, eu já o teria matado - respondeu Liam.
Aquilo não passava de uma vangloria tola e ambos sabiam disso. O irmão de Colm não estava em condições de matar ninguém. Estava tão pálido que Colm chegou a pensar que fosse desmaiar novamente. Mas o orgulho de Liam estava em jogo e por isso Colm continuou com sua pressão arrogante.
- É claro que sim - concordou ele. - Conte-me o que aconteceu.
- Eu não me lembro muito bem - disse ele. - Estava saindo da fazenda de Monroe, indo para casa pelo caminho do vale, em direção ao leste, margeando o rio. Sei que ainda estava nas terras de Monroe. Sim, tenho certeza disso. Fui atingido uma vez na lateral da cabeça e acho que uma segunda vez na nuca. As pancadas me pegaram de surpresa e, quando consegui me recuperar, minhas mãos e pés estavam amarrados. Minha cabeça estava coberta de sangue.
Por um momento ele fechou os olhos, tentando se lembrar.
- Eles eram pelo menos quatro. Fiquei algum tempo desmaiado, mas precisava deixar que pensassem que eu estava inconsciente. Antes de desmaiar novamente, ouvi um pouco da conversa. Tenho certeza de ter ouvido quatro vozes distintas... não, espere. - Ele suspirou, sua frustração aumentando. - Pode ser que fossem mais.
Liam esfregou a nuca e voltou a fechar os olhos.
- Algum deles lhe dirigiu a palavra? - perguntou Braeden, primeiro-comandante de Colm, enquanto ele e alguns homens se aproximavam.
- Não, acho que não. - A cada resposta que dava, a voz de Liam ficava mais rouca e difícil de entender. - Por que não consigo me lembrar? Isso é terrivelmente irritante.
Para Colm, o fato de Liam não conseguir se lembrar era óbvio. Ele fora atingido várias vezes na cabeça.
- Você disse que ouviu a conversa deles. O que diziam? - perguntou Brodick.
- Que eles esperavam matar todos os MacHugh que pegassem.
- Se eram apenas quatro, como poderiam matar os competentes guerreiros de MacHugh? - perguntou Brodick.
Braeden ofereceu a Liam seu saco de couro com água. Ele bebeu um gole, agradeceu ao comandante com um gesto de cabeça e respondeu:
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- Eles tinham homens emboscados na floresta, esperando para atacar. Receberam ordens para acabar com todos os MacHugh que pudessem. Quanto mais eliminassem, maior seria o prêmio recebido. Antes de continuar, ele bebeu outro gole. - Um deles estava preocupado que as tropas não estivessem posicionadas na floresta, prontas para ajudá-los. Nesse caso, teriam de enfrentar sozinhos a fúria de Colm. Ele queria me matar e acabar com aquilo rapidamente, mas o chefe do grupo insistia que deviam esperar.
- Esperar o quê?
- Não sei.
- Você não ouviu nenhum nome? - perguntou Brodick.
- Se ouvi, não me lembro.
Com esperança de encontrar alguma pista, Colm continuou a interrogar o irmão, mas Liam não foi de muita ajuda.
- Você se lembra de ser levado para a abadia?
- Não, mas me lembro de ter acordado. Era um quarto pequeno. Havia dois padres comigo. Um era médico e o outro vestia seus paramentos e rezava por mim. Acho que ele pensou que eu estivesse morrendo.
- Quem eram os padres? - perguntou Braeden.
- O Padre Franklin era o médico. Perguntei a ele como havia chegado lá, e ele me disse que não sabia.
- E você acreditou nele? - perguntou Colm.
- Sim, depois que ele me explicou, eu acreditei. Ele me disse que o Padre Gelroy viera até ele para pedir ajuda. Gelroy é o padre que rezou por mim - continuou ele.
- E o Padre Franklin não ficou curioso para saber quem o levou até lá? - perguntou Brodick.
- Sim, ele estava curioso. Perguntou-me como eu me ferira e eu lhe disse que não me lembrava. Ouvi-o fazer a mesma pergunta ao Padre Gelroy, que lhe respondeu que seria melhor que ele não ficasse sabendo dos detalhes.
- E esse tal Padre Gelroy, o que ele lhe disse?
- Que estava descarregando uma carroça de sacos de grãos e que, quando percebeu, eu já estava lá.
- Você estava lá? Só isso? Não havia ninguém com você? - perguntou Colm.
- Fiz essa mesma pergunta a Gelroy, mas ele não me respondeu. Quando pedi que me explicasse o que queria dizer, ele me disse que não podia dizer que sim nem que não.
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- Ele fala por enigmas - disse Colm irritado.
Liam tentou se levantar. Apoiando-se na rocha, conseguiu ficar de joelhos, antes de cair novamente. Amaldiçoando sua fraqueza, descansou por um momento antes de tentar novamente.
- Eu garanto que esse Padre Gelroy não vai usar enigmas comigo - disse Colm. - Ele vai me dizer exatamente o que quero saber.
- Colm, você precisa entender. O Padre Gelroy estava tentando me proteger. Tinha medo de que a pessoa que me feriu pudesse entrar na abadia...
- Para matar você - disse Brodick, assentindo com a cabeça enquanto finalizava a frase para Liam.
- Sim - ele disse. - Gelroy acreditava que os demônios, como ele chamava os homens que me atacaram, não respeitariam um santuário. Por medida de segurança, ele e o Padre Franklin concordaram em manter minha presença em segredo até que você chegasse, mas houve um problema. Os dois não seriam capazes de montar guarda dia e noite para me proteger sem levantar suspeitas, e nenhum deles seria muito eficiente contra um intruso.
- E como esse problema foi resolvido? - perguntou Colm.
- Gelroy pediu ajuda a alguns bons homens. Ele sabia que eles protegeriam meu sono. Ele me explicou que precisava de homens que sabiam lutar.
- Os padres não recebem esse tipo de treinamento - interrompeu Braeden.
- Não, não recebem - concordou Colm.
Parou de andar de um lado para outro em frente ao irmão.
- E quem foi que o padre encontrou para montar guarda?
- Ele pediu aos soldados que estavam na abadia para o casamento do Lord Monroe.
- A que clã eles pertencem? - perguntou Brodick. Antes que Liam pudesse responder, Colm perguntou:
- Esses homens eram ighlanders?
- Não, não eram, mas Padre Gelroy confiava muito neles.
- Então só podiam ser highlanders - ponderou Brodick.
Os soldados que ouviam a conversa concordaram em uníssono. Apenas os highlanders eram confiáveis e, assim mesmo, com ressalvas.
- Estou lhes dizendo que não eram highlanders. Não sei de onde eram, mas acho que Padre Gelroy os conhecia bem e confiava neles.
Colm sabia que precisava se apressar com o interrogatório, pois queria
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colher todas as informações que pudesse do irmão antes que ele se deixasse abater pela exaustão. Liam já estava bastante zonzo. Mal conseguia manter os olhos abertos e estava com problemas para se concentrar.
- Quantos eram? - ele perguntou.
- Quantos o quê? - perguntou Liam, exaurido. Colm manteve a calma.
- Soldados, Liam. Quantos soldados montaram guarda para você?
- Quatro. Havia sempre dois deles por perto, no quarto ou do lado de fora da porta.
Enquanto fazia sua pergunta, Brodick olhava para Colm.
- Eles estavam armados?
Liam sorriu.
- Não, não estavam.
- Você achou a pergunta engraçada? - perguntou Brodick, tentando entender a reação de Liam.
- Sim, achei. Quando vocês virem aqueles homens vão entender por quê. Mas posso lhes assegurar uma coisa, Lord Buchanan Eles não precisam usar armas.
- Quer dizer que eles são invencíveis? É isso o que está dizendo? - perguntou Braeden, como se a possibilidade de tal elogio para a força de um estrangeiro pudesse ser considerada uma afronta.
- Não existe homem invencível - afirmou Colm. - O que esses soldados lhe disseram, Liam? Eles lhe explicaram como chegou à abadia?
- Não. Eles conversavam entre eles, mas não me dirigiram a palavra. Colm e Brodick esperavam que Liam explicasse melhor. Como não ouviram nenhuma resposta, Brodick perguntou:
- Por que eles não falaram com você?
- Acho que eles não me entendiam - ele finalmente disse. - E eu também não conseguia entender o que eles diziam. Falavam uma língua que nunca ouvi.
Colm ficava cada vez mais frustrado.
- Padre Gelroy deve ter entendido o que diziam.
- Não tenho certeza, nunca o ouvi falando com eles.
- Então como ele... - Colm parou de falar. Não adiantava continuar interrogando o irmão. Liam precisava descansar e Colm esperava que, quando se recuperasse, ele fosse capaz de se lembrar de mais detalhes sobre os homens que o haviam feito prisioneiro. Além disso, ponderou ele, Padre Gelroy lhe diria o que queria saber. Entregou sua espada embainhada a Braeden.
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- Leve Liam para casa - ordenou. Caminhou até o seu cavalo e pegou seu arco-e-flecha, que também entregou a Braeden. - E mande os Buchanan para casa. - Lançando um olhar a Brodick, acrescentou: - Todos os Buchanan.
Antes que Colm pudesse protestar, Brodick montou seu cavalo e disse:
- Eu vou com você.
Braeden assentiu com a cabeça.
- Quer que entremos na abadia com você?
- Não. - O tom de Colm era inflexível. Braeden estava acostumado à rabugice de seu lord.
- Então, sugiro que a metade de nossos homens leve Liam para casa e que a outra metade espere do lado de fora dos portões com suas armas, lord.
O comandante de Brodick deu um passo à frente e se posicionou ao lado de Braeden
- E como o Lord Buchanan também vai, sugiro que eu espere com as armas de nosso Lord do lado de fora dos portões. Os outros soldados Buchanan levarão Liam com segurança para casa.
Brodick concordou.
- E seria bom que tivéssemos nossas espadas para o caso de termos a sorte de encontrar os homens que torturaram seu irmão.
- Eu prefiro usar as mãos - disse Colm.
- Mesmo tendo as espadas? Colm lhe lançou um olhar duro.
- O que você acha? Brodick balançou a cabeça.
- Acho que você está morrendo de vontade de acabar com alguém, não é?
- Vou matar quem se atreveu a fazer aquilo com o meu irmão - respondeu Colm.
Não se tratava de uma esperança, ou promessa. Aquilo era um juramento solene.
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Capítulo 18
A competição entre o Barão Coswold e o Barão Percy se tornara mortal. Ou assim parecia.
Ambos não mediam esforços para tentar descobrir os planos um do outro. Havia espiões por toda parte. Obviamente, nem todos os companheiros do Barão Percy lhe eram fiéis. Um deles, William - que na verdade era seu mensageiro -, secretamente servia ao Barão Coswold. O arauto era um informante regiamente pago, capaz de gravar na memória cada palavra dita e cada ação tomada por Percy e seus conspiradores, as quais informava a Coswold.
Quando a notícia do assassinato do Lord Monroe chegou ao acampamento de Percy, o mensageiro traiçoeiro deixou a abadia fingindo ter uma tarefa a cumprir e apressou-se para contar a novidade a Coswold. O barão cuidava para que William se mantivesse constantemente informado sobre o seu paradeiro, de modo que o informante conseguiu alcançá-lo no exato momento em que se sentava para cear com o Lord MacKenna no salão do palácio do lord
A terrível notícia não causou a reação esperada por William. Nem Coswold nem MacKenna se mostraram surpresos. Em sua indiferença, Coswold mal encolheu os ombros e MacKenna, tão desinteressado quanto ele, mostrou-se entediado enquanto se servia de uma fatia de pão preto e colocava um pedaço na boca.
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O Barão Percy também se mostrara bastante desinteressado ao receber a notícia. Será que os dois barões esperavam que isso acontecesse? Talvez já soubessem da morte de Monroe? Teriam desejado tal morte? E por que tanta indiferença por parte do Lord MacKenna? Afinal, um de seus vizinhos fora assassinado; o mensageiro imaginava que ele devesse sentir pelo menos um pouco de tristeza.
Coswold afastou a cadeira da mesa e fez um sinal para que o mensageiro o seguisse para fora. Quando ficaram sozinhos, ordenou-lhe que voltasse ao acampamento de Percy e mantivesse olhos e ouvidos bem abertos.
- Agora vá, enquanto o dia está claro. Você poderá cobrir parte da distância antes do cair da noite. Amanhã, estarei na abadia.
O mensageiro esperou que Coswold entrasse e ficou ali por longo tempo, coçando a cabeça, bastante confuso. Mesmo que quisesse, não teria ousado fazer ao barão a pergunta que o incomodava. Pelo que ouvira, Monroe fora um Lord poderoso e amado, que fora cruelmente assassinado durante a noite.
Por que ninguém se mostrava surpreso?
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Capítulo 19
Brodick concordava inteiramente com Colm. Se tivesse uma oportunidade, ele também ficaria feliz em acabar com os cretinos que haviam atacado Liam. Os MacHugh eram aliados dos Buchanan e, portanto, os inimigos daqueles eram também inimigos destes. Pouco mais de um ano atrás, em missão para ajudar a esposa, Brodick se aventurara pelo perigoso território inglês. Na época, os MacHugh haviam prestado ajuda aos Buchanan; agora, chegara a vez de receberem a retribuição.
No entanto, o Lord MacHugh era um homem solitário que se recusava a reconhecer o benefício de ter qualquer homem fora de seu clã lutando ao seu lado. Brodick sentia o mesmo e foi quase preciso acontecer uma guerra com a Inglaterra para fazê-lo mudar de atitude. Agora, ele reconhecia o valor de tais alianças e considerava não apenas os MacHugh, mas os Maitlands e os Sinclairs, dois dos mais poderosos clãs das highlands, como seus mais próximos aliados. Esses lords também haviam se tornado bons amigos de Brodick.
Os dois homens fizeram a maior parte do trajeto de volta à abadia sem trocar uma palavra. Então, alinhando seu cavalo ao lado do de Colm, Brodick perguntou:
- Você sabe como conheci minha esposa? Uma pergunta estranha, pensou Colm.
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- Ela trazia o irmão do Lord Ramsey Sinclair de volta para casa - respondeu ele.
- Exatamente. Na época, o garoto tinha uns cinco ou seis anos. Um dos homens do clã de Sinclair achava que deveria ter sido nomeado Lord no lugar de Ramsey. Ele conspirou para tomar a chefia do clã e usou o garoto para atrair Ramsey para uma planície, com a intenção de matá-lo.
- Por que você trouxe esse assunto à baila?
- Talvez Liam tenha sido feito prisioneiro pela mesma razão. Para atraílo de alguma forma.
- Talvez. No mês passado, os soldados que vigiam minhas fronteiras foram emboscados duas vezes.
- Você perdeu algum homem? MacHugh se sentiu ofendido com a pergunta.
- É claro que não. Meus guerreiros são treinados para esperar o inesperado.
- E os homens que atacaram?
- Infelizmente, nenhum deles viveu o suficiente para delatar o mandante, mas eles não eram ighlanders
- Seriam proscritos, tentando roubar o que pudessem? Colm balançou a cabeça.
- Você ouviu o que Liam nos disse. As ordens eram para matar o maior número possível de MacHugh. Proscritos não seriam tão organizados. Eles proliferam no caos e, como ratos, roubam e fogem.
- Isso é verdade - disse Brodick. - O irmão de Ramsey não passava de uma criança, mas Liam é um homem criado. Ele tem quase a sua idade, não é?
- Cinco anos mais novo, mas com certeza um homem criado.
- Então, por que ele não estava à espera do inesperado? Ele foi treinado tão bem quanto os outros.
- Essa é uma pergunta que vou fazer ao meu irmão assim que ele recuperar seu juízo.
- Quer dizer que, quem quer que esteja por trás desses ataques, quer se livrar de todos os MacHugh?
- É o que parece.
- Finney's Fiat. Os ataques são por causa disso.
- Sim - respondeu Colm. - Quem está por trás disso é o MacKenna. Tenho certeza.
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- Mas você não pode provar.
- MacKenna é um homem ganancioso. Está de olho nas terras, mas não vou deixar que ponha as mãos nelas. Não vou permitir que os MacKenna se aproximem nem mais um milímetro das minhas fronteiras. O vale sempre foi a terra de nossas plantações e é uma cerca de proteção entre os MacKenna e nós.
- O Rei John recebeu as terras de presente do nosso rei, muitos anos atrás. Elas lhe pertencem até que a mulher escolhida por ele se case com o Lord Monroe. Finney's Fiat é parte do dote dela.
- Estou a par do acordo.
- Sim, mas você sabe que a tal mulher é parente da minha mulher? Ela é filha do Barão Geoffrey de Welhngshire.
- Você admite ter parentes ingleses?
- Com relutância. Tenho me tornado mais flexível nas minhas opiniões porque, como você sabe, antigamente minha mulher era inglesa.
- Para mim, não interessa o que ela é.
- Você se sujeitaria a ter o clã de Monroe apreciando a vista de cima da sua montanha?
- E você? - perguntou Colm. - Suportaria tê-los tão próximos? Suas terras fazem fronteira com Finney's Fiat, ao oeste.
- Sim, mas temos uma floresta entre nós.
- Não tenho nada contra os Monroe, desde que seu Lord não interfira quando plantarmos nos campos do canto norte do vale, mas me importo com a presença deles.
Ao chegarem ao topo da colina acima da abadia, eles avistaram o aglomerado de tendas ao sul.
- Aquelas tendas pertencem aos ingleses - disse Brodick
- Não é possível que todos tenham vindo para o casamento de Monroe, a não ser que seus parentes ingleses os tenham convidado.
- Não tantos - respondeu Brodick. - Monroe também não os quereria aqui. Não, deve haver outra celebração acontecendo na abadia.
Assim que desceram a colina, entregaram seus cavalos a Braeden e Dylan.
- Fiquem atentos - disse Colm, enquanto ele e o amigo caminhavam em direção aos portões da abadia.
- Estou sempre atento - Brodick garantiu. Puxou a corda para tocar o sino. Um momento depois, um padre abriu o pesado portão de madeira.
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O abade era um homem lustroso e baixinho que, pelo tamanho de sua barriga, jamais perdia uma refeição. Fez sinal para que entrassem. Ele já chegara às suas próprias conclusões sobre a presença dos dois homens.
- Os senhores vieram para apresentar seus pêsames, certo? Antes que um deles pudesse responder, o abade continuou:
- Os senhores devem estar terrivelmente desapontados por terem perdido a missa do funt ai, mas, com a temperatura inesperadamente quente, a família resolveu levar o corpo para casa e enterrá-lo o mais rápido possível. Os senhores tinham a intenção de falar com a família? É uma pena que tenham chegado tarde. Querem que os leve até a capela para rezarem pela alma dele?
Colm e Brodick trocaram olhares. Em seguida, Colm se dirigiu ao abade. Ele não cuidou das palavras ao se dirigir ao homem de Deus.
- Em nome de Deus, padre, do que é que o senhor está falando?
O abade deu um rápido passo atrás e umas batidinhas no peito, tentando se acalmar. Há muitos anos vivia uma vida tranqüila e contemplativa no mosteiro, e a agitação dos últimos dias vinha mexendo com seus nervos.
- Os senhores não ficaram sabendo? Pensei que... trata-se do Lord Monroe - ele disse, apressado, ao perceber o olhar ameaçador do Lord MacHugh. - Ele está morto. Não foi por isso que vieram até aqui? Para expressar seus pêsames?
- Monroe está morto? - Brodick ficou chocado com a declaração do abade.
- Como foi que ele morreu? - Colm quis saber. Ao responder, o abade abaixou o tom da voz.
- Foi assassinado. - Fez uma pausa para fazer o sinal-da-cruz antes de acrescentar: - Sim, senhores, ele foi assassinado. Na escuridão da noite.
- E quando isso aconteceu? perguntou Brodick.
- Como ele foi morto? - perguntou Colm, ao mesmo tempo.
O olhar dos lavras amedrontou o abade. O Lord MacHugh parecia o mais ameaçador e furioso. O homem santo mal podia acompanhar a rapidez com que fora bombardeado de perguntas e, ao responder, sua voz tremeu.
Colm percebeu que, sempre que se mexia, o abade se encolhia. Cruzou as mãos nas costas para sinalizar ao abade que não pretendia lhe fazer mal.
O abade se apressou em explicar:
- Aqui estou eu, pensando que tivessem viajado até aqui para dar os pêsames e, ao que tudo indica, os senhores nem sabiam da morte trágica do Lord
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Monroe. Agora entendo. Eu me confundi, certo? Sinto muito tê-los recebido com uma notícia tão triste quando é evidente que tenham vindo por uma razão muito mais festiva, o casamento.
- Como é possível que o casamento se realize se o noivo está morto? - perguntou Brodick. Ele começava a desconfiar de que o abade estivesse ficando louco.
- O Lord Monroe não é mais o noivo... já que foi assassinado - ele concluiu, rapidamente.
- Não estamos aqui por causa de nenhum casamento ou funeral, que seja - disse Colm. - Estamos aqui por causa do meu irmão.
O abade respondeu com um olhar interrogativo.
- Seu irmão?
Colm pensou em agarrar o pescoço do homem e lhe dar um belo chacoalhão, mas achou que não seria prudente atacar um homem de Deus. Pelo olhar vazio do abade, era evidente que ele não sabia nada sobre Liam.
O abade suava abundantemente. Limpou as mãos molhadas nas laterais da batina. Os olhos do Lord haviam se tornado cinza-escuros, da cor de uma tempestade em formação.
- As coisas têm acontecido muito depressa. Em nosso mosteiro, não estamos acostumados a tantas atividades. No exato momento, um outro noivo está sendo escolhido para Lady Gabrielle. Um verdadeiro caos. - A voz dele se transformou num sussurro conspiratório. - Dois barões ingleses estão reunidos no grande salão. Ambos afirmam ser emissários do Rei John. Uma multidão de ingleses começa a se reunir no pátio. Caso não queiram se envolver, sugiro que os senhores esperem lá em cima.
- E por que os barões estão discutindo? - perguntou Brodick.
- O bate-boca deles não nos diz respeito - disse Colm. - Lembre-se da razão por que viemos até aqui. - Ele voltou a se dirigir ao abade. - Existe um padre chamado Gelroy na abadia. Quero falar com ele o mais rápido possível.
- Posso perguntar o motivo?
- Não, não pode.
A resposta abrupta deixou o abade confuso. Em seguida, ele assentiu com a cabeça, pensando ter entendido o motivo de o Lord lhe ter recusado uma explicação.
- Oh, eu entendo. O senhor deseja se confessar. Sinto muito. Eu não
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devia ter perguntado. Por que os senhores não sobem? Pedirei ao Padre Gelroy que os encontre. Acho que sei onde achá-lo. Ele lhes mostrará o caminho da capela onde poderão se livrar de seus pecados.
Mais uma vez, o abade chegara a uma conclusão errada, mas nenhum dos lords o corrigiu.
- Não vai demorar nada - comentou ele, virando-se para lhes indicar a escada.
Brodick fez um movimento de cabeça em direção a Colm.
- Considerando a quantidade de pecados que ele carrega, eu não contaria com isso.
Colm não achou engraçado. Empurrou Brodick para fora de seu caminho.
- Eu não estou aqui para me confessar mas sim para fazer algumas perguntas sobre o meu irmão. Tudo o que quero é acabar com isto logo e dar o fora daqui. Talvez eu possa convencer o Padre Gelroy a vir conosco. Com esse monte de ingleses em volta de mim, não consigo respirar nem pensar.
- Duvido que o padre queira vir conosco, mas você pode perguntar - disse Brodick.
- Perguntar? E por que eu deveria perguntar?
Brodick encolheu os ombros. Independente de sua opinião, Brodick sabia que Colm faria o que bem entendesse. Além disso, se o irmão fosse dele, talvez ele fizesse o mesmo. Ainda assim, arrastar um padre para fora de seu santuário com a intenção de intimidá-lo a contar o que sabia sobre os raptores e salvadores de Liam... era algo que provavelmente mancharia um pouco mais a alma deles, já bastante enodoadas.
O abade se esforçava tanto para ouvir a conversa deles que não percebeu que chegara ao topo do muro que circundava o pátio. Sem fôlego, ele apontou:
- Aqui estamos.
O abade se virou para descer e ir à procura do Padre Gelroy. A pergunta de Brodick o deteve.
- Estou curioso, abade. O Barão Geoffrey e sua filha ainda estão aqui, ou já voltaram para a Inglaterra?
- O Barão Geoffrey? O senhor conhece esses ingleses? Brodick suspirou.
- É constrangedor ter que admitir que eles são parentes... pelo lado da minha esposa - acrescentou ele, rispidamente.
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- Mesmo assim, é constrangedor - comentou Colm. Brodick lembrou a si mesmo que Colm era seu aliado.
- Eu não conheço a filha - ele disse ao abade. O abade respondeu:
- O barão partiu em viagem para se encontrar com o rei e sua filha está se preparando para voltar à Inglaterra, mas imagino que ficará detida.
- E por que ela ficaria detida? - perguntou Brodick.
- O senhor não entende - disse o abade. - Todo esse caos é por causa de Lady Gabrielle e seu novo pretendente.
- O pai dela está ciente disso? - perguntou Brodick.
- Não. Ele partiu antes que os dois barões se encontrassem.
- E quando o Barão Geoffrey pretende retornar? - Apesar de não ter nada a ver com o futuro de Lady Gabrielle, Brodick se sentia corroer pela responsabilidade
- Duvido que alguém tenha tido tempo de enviar um mensageiro ao pai dela. É como se os barões tivessem deliberadamente esperado que ele partisse da abadia antes de lançarem a idéia de se casarem com a filha dele. Ambos agem como se esse fosse um assunto de extrema urgência. Pelo que ouvi da discussão, eles querem que ela se case antes que o pai fique sabendo e cause qualquer tipo de impedimento. - Olhando para os lados, ele disse: - Velhacaria. Sim, se os senhores me perguntarem, eu direi que se trata de pura velhacaria. Mas a princesa está protegida por seus guardas e se encontra segura no mosteiro. Enquanto ela estiver aqui, estará salva.
O pensamento ingênuo irritou Colm. A abadia estava repleta de estranhos, a maioria ingleses. Como era possível ele acreditar que tal tipo de gente respeitasse um santuário? Até o Padre Gelroy tivera dúvidas quanto a isso, pois pedira aos soldados que montassem guarda para Liam enquanto estava desacordado. Colm se perguntou o que esse abade sobressaltado pensaria se descobrisse que Liam já fora hóspede na abadia.
- E Lady Gabrielle concorda com o novo par? - Brodick perguntou.
- Ela ainda não sabe, mas será chamada dentro de pouco tempo. - O abade suspirou, balançando a cabeça. - E ficará sabendo da trapaça quando responder ao chamado deles.
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Capítulo 20
Naquela tarde, o Barão Coswold assaltara a abadia com seu cortejo de asseclas. Como sempre, ele estava circundado por um séquito de aduladores, vinte e três deles. O grande número era proposital, pois Coswold tinha a intenção de intimidar e pressionar Percy.
Coswold se sentia terrivelmente poderoso. Tinha em seu poder um documento declarando que apenas ele era o representante do rei.
Mas Percy não se sentia intimidado, ou pressionado. Tanto quanto Coswold, ele tinha seus espiões e, apesar de ainda não ter conhecimento do novo documento, Percy sabia que seu inimigo tentaria se apoderar de Finney's Fiat e do futuro de Lady Gabrielle. Ele acreditava que Coswold planejaria usar a força para conseguir o que queria.
Percy estava pronto para enfrentá-lo. Ao se dirigir ao grande salão para confrontar Coswold, também era seguido por seu próprio séquito de vilões infames. Percy não estava disposto a se curvar, concordar ou ser posto de lado, e estava confiante de conseguir o que queria. Tinha em seu poder um documento assinado pelo rei atestando que ele, apenas ele poderia falar em seu nome. O rei o enviara à abadia para testemunhar o casamento de Monroe e Gabrielle, mas, agora que o noivo estava fora do caminho, Percy tinha certeza de ter o futuro de Gabrielle nas mãos.
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Os dois homens sedentos de poder tinham uma, ou duas cartas na manga.
Os dois barões se encontraram no centro do grande salão. As portas que davam para o pátio estavam escancaradas. Aquela não seria uma disputa privada. Ambos queriam ser ouvidos por testemunhas.
Percy foi o primeiro a atacar. Usando seu indicador longo e ossudo para cortar o espaço entre eles, disse:
- Não se atreva a interferir em minhas decisões, ou terei de expulsá-lo daqui. Falo em nome do Rei John, e sou eu quem vai decidir o futuro de Lady Gabrielle.
- Você? Decidir o futuro dela? - zombou Coswold. - E Finney's Fiat também passa a lhe pertencer? É isso o que você acha que vai acontecer, seu imbecil? Pode estar certo de que não vai ficar com ela. Eu cuidarei disso.
- Você não tem poder para isso, Coswold. Sou eu quem vai levar Lady Gabrielle de volta à Inglaterra. Sim, ela irá comigo. - Percy não se deu ao trabalho de mencionar o importante fato de que, primeiro, pretendia forçá-la a casar-se com ele.
Coswold deu um passo à frente.
- Você não é mais porta-voz do rei, pois eu tenho um documento assinado pelo Rei John que me outorga plenos poderes. Portanto, sou eu que falarei e agirei em seu nome.
Percy sentiu-se ultrajado. Ao responder, as veias de suas têmporas estavam inchadas.
- Nada disso, quem tem o documento assinado pelo Rei John sou eu. Você não pode me fazer de bobo. Sei que você a quer, mas não a terá.
A discussão ficou cada vez mais inflamada até que os dois barões, enlouquecidos, passaram a gritar um com o outro. A briga se estendeu para além das portas à medida que mais e mais curiosos se aglomeravam ao redor deles.
A linha divisória entre os dois agrupamentos estava determinada por uma cruz de pedras no meio do gramado. Percy e seus seguidores de um lado, e Coswold e seus aduladores do outro.
- Você quer ver o documento? - perguntou Coswold. - Tanto o sinete quanto a data do documento estão bem à vista, Percy. Se você não sair do meu caminho, serei obrigado a tirá-lo à força.
Percy rosnou.
- Quando é que esse documento foi assinado? - exigiu saber, e, antes que Coswold pudesse responder, acrescentou: - Eu sei onde você tem andado e sei tudo sobre o negócio sujo que você fez com o lord
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Coswold ignorou o comentário dele. Estalou os dedos em direção a um de seus homens e o documento rapidamente apareceu. Arrancando-o das mãos do homem, ele o esfregou no rosto de Percy.
- Aqui está. O Rei John me outorgou poderes.
Colm e Brodick apoiaram os braços no parapeito, assistindo e ouvindo ao debate que acontecia abaixo deles. Colm estava simplesmente matando tempo até a chegada do Padre Gelroy. O abade havia insinuado que não levaria muito tempo para encontrá-lo, mas era óbvio que se equivocara.
Impaciente para agarrar o padre e sair de perto daqueles imundos barões ingleses, Colm resmungou:
- Onde estará aquele maldito Padre Gelroy?
- Deve estar a caminho - respondeu Brodick.
Colm olhou para a multidão abaixo. Observou o número de padres em suas batinas e disse:
- Existem muitos deles. Se o conhecesse, eu o arrancaria dali agora mesmo.
Brodick sorriu.
- Lembra-se de que eu lhe disse que não pode começar uma guerra contra um padre? É bom que você fique sabendo que também não pode arrastar um deles daqui, a não ser que ele queira, o que duvido ser o caso do Padre Gelroy. Você e eu...
- Você e eu o quê?
- De acordo com a minha mulher, nós temos uma tendência a intimidar
as pessoas.
Um outro grito chamou a atenção deles.
- Os ingleses são bem barulhentos, não acha? - comentou Brodick. - Pena que não tenhamos trazido nossos arco-e-flechas. Poderíamos livrar o mundo de alguns deles.
Colm sorriu.
- Seria uma boa idéia.
Nesse exato momento, Coswold bateu palmas para chamar a atenção e gritou:
- Tragam Lady Gabrielle à minha presença. Vamos resolver esta questão agora mesmo. - Virando-se para o grupo atrás de si, rapidamente assentiu com a cabeça e voltou a se virar para encarar Percy. - Minha decisão está tomada. Antes do final do dia, ela estará casada.
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Capítulo 21
O abade encontrou Gabrielle passeando no jardim com o Padre Gelroy. Ela já agradecera ao Padre Franklin e fazia o mesmo com o Padre Gelroy por ter mantido seu segredo quando, correndo, o abade entrou chamando por ela.
- Lady Gabrielle, temos um problema. - Ofegando pelo cansaço da corrida, ele mal conseguia respirar efalar ao mesmo tempo.
Gabrielle o conduziu até um banco de pedra e sugeriu que se sentasse por um momento.
Assentindo com a cabeça, ele desabou sobre o banco e, resfolegando, disse:
- Ah, assim está melhor. Padre Gelroy cruzou as mãos nas costas.
- O senhor mencionou um problema?
- Ah, sim. Milady está sendo chamada no pátio. Padre Gelroy, talvez você devesse acompanhá-la. Uma briga terrível. Horrível, simplesmente horrível a maneira como estão discutindo. E dentro de um mosteiro sagrado. É uma vergonha.
- Quem está brigando? - perguntou Gabrielle.
- Dois barões ingleses. Acho que um deles se chama Coswold e o outro...
- Percy.
- Sim, isso mesmo, princesa. Barão Percy.
- E esses dois barões estão chamando Gabrielle? - perguntou o padre.
- Foi o Barão Coswold quem fez a exigência. Gabrielle ficou indignada.
- Não tenho que responder a nenhum deles e não sinto o menor desejo de lhes falar. Estou pronta para voltar para casa e não vejo motivo para atrasar minha partida.
Com um rápido movimento de cabeça, Padre Gelroy concordou.
- Os guardas já estão trazendo os cavalos para o portão principal, pois Gabrielle pretende deixar a abadia imediatamente. Seus pertences já foram empacotados.
O abade balançou a cabeça.
- Não acredito que os barões a deixem partir.
- Existem mais coisas acontecendo, certo? - perguntou Padre Gelroy. Ele suspirou.
- Isso mesmo. Cada barão possui um documento que lhe confere autoridade para falar em nome do rei. Se pudermos acreditar na data dos documentos, o de Coswold é mais recente. Ouvi dizer que o sinete do rei aparece nos dois documentos. - Abruptamente, o abade se colocou de pé. - Por Deus, eu me esqueci. Com toda a confusão e gritaria, acabei me esquecendo do motivo que me trouxe até aqui. Como pude fazer isto? Ainda mais com a preocupação sobre aqueles dois. Padre Gelroy, eu estava pronto para sair à sua procura quando fui chamado pelo Barão Coswold.
- E por que Vossa Reverendíssima estava me procurando? - ele perguntou.
- Prometi mandá-lo para o alto da muralha. Tem dois... - ele fez uma pausa.
- Dois? Dois o quê? - perguntou o padre.
- Lords - ele respondeu, relutante. - Buchanan e MacHugh. Eles não adiantaram o assunto, mas o Lord MacHugh mencionou alguma coisa sobre seu irmão. Você sabe alguma coisa sobre isso?
O rosto do padre foi tomado pelo pavor e pelo pânico.
- Tenho uma vaga idéia.
- Depois você me conta tudo, pois os lords já estão esperando há algum tempo. E eles não me pareceram ser do tipo paciente. - Sorriu ao acrescentar:
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- Também ouvi um deles dizer - acho que foi MacHugh, mas não tenho certeza - dizer alguma coisa a respeito de levá-lo com ele.
Padre Gelroy engoliu em seco, fazendo um barulho estrondoso.
- Verdade?
- Talvez ele esteja querendo lhe oferecer a oportunidade de se juntar ao seu clã como líder espiritual. Sei que, algum dia, você pretende ter sua própria igreja, não é? E que também quer salvar todas as almas que puder. Estou certo?
Frenético, o padre balançou a cabeça, concordando. Sim, ele gostaria de ter sua igreja e sua congregação - que padre não gostaria? -, mas não queria passar o resto da vida em estado de constante pavor.
- Sinto-me feliz por poder rezar pelas almas perdidas aqui mesmo, abade - ele disse, num murmúrio. - Quer que eu acompanhe Lady Gabrielle até os barões, ou prefere que eu vá me encontrar com os lords?
- Pode deixar que eu acompanho Lady Gabrielle. Você deve se apressar e ir ter com os lords. Seus homens não param de chegar e já entraram na abadia. Quanto mais cedo falar com eles, melhor.
Padre Gelroy sabia que não havia como escapar.
- É melhor eu ir logo - ele disse.
Mais uma vez, ele se despediu de Gabrielle e saiu para sua missão pavorosa.
Gabrielle pretendia continuar com sua recusa de se encontrar com os barões, mas mudou de idéia bruscamente. Ela não queria colocar o abade na difícil situação de ter que explicar os motivos de sua recusa.
- Vou ver o que querem os barões para, em seguida, deixar a abadia o mais rápido possível. Abade, uma vez mais, quero lhe agradecer a hospitalidade e sua gentileza tanto para comigo quanto para o meu pai. Somos muito agradecidos.
Ela começou a caminhar em direção ao pátio, mas foi impedida pelo abade.
- Vou acompanhá-la, Lady Gabrielle, mas não seria melhor esperarmos pelos guardas? Tenho certeza de que eles gostariam de estar ao seu lado quando se dirigir aos barões.
Ela balançou a cabeça.
- Meus guardas estão muito ocupados para serem atrapalhados por essa bobagem. Tenho certeza de que o encontro não levará muito tempo.
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Ele não conseguiu dissuadi-la. Gabrielle tinha um outro motivo para querer seus guardas longe dos barões. Seu pai não confiava nesses homens e ela também não confiaria. Estava desconfiada de que Coswold e Percy pudessem instigar seus subordinados a começarem uma briga e, mesmo sendo bem treinados, seus guardas poderiam se sobrecarregar tendo de lutar contra tanta gente.
Gabrielle gostaria que seu pai estivesse ao seu lado. Sabendo do que aqueles homens eram capazes, ele estaria preparado. Para também ficar pronta, ela tentou pensar no pior, mas, nem mesmo em seus mais loucos pensamentos, poderia ter imaginado o que a esperava.
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Capítulo 22
Arrastando os pés, Padre Gelroy rezou até chegar ao topo da escada. Quando subiu o último degrau, deu uma boa olhada ao redor, os joelhos tremendo. Precisou se apoiar contra a parede para evitar rolar escada abaixo.
Deus meu, eles eram tantos! E todos olhavam para ele.
Ao perguntar "Alguém queria falar comigo?", sua voz soou como um ranger de dobradiça enferrujada.
Dois ighlanders se aproximavam. Suas grandes passadas rapidamente consumiam a distância entre eles. Recebeu um empurrão por trás. Surpreso, o padre se virou. Atrás dele, na escada, havia um outro ighlander. Como é que ele tinha chegado ali tão depressa?
- O senhor é o Padre Gelroy? - perguntou uma voz ribombante, vinda do topo da escada.
Novamente, ele olhou para cima. Os dois gigantes estavam lado a lado. Tinham a mesma altura e ambos exibiam cicatrizes de embates passados. Padre Gelroy tentou dar um passo na direção deles.
- Sim, eu sou o Padre Gelroy.
Brodick percebeu que o padre tinha a expressão crispada e que empalidecia rapidamente.
- Não vamos lhe fazer mal, padre - ele disse, tentando fazer com que Padre Gelroy controlasse seu medo.
- Sou o Lord MacHugh - disse Colm. O padre assentiu com a cabeça.
- Sim, o senhor se parece com seu irmão.
- E eu sou o Lord Buchanan.
Ao olhar para Brodick, o padre conseguiu esboçar um meio sorriso.
- Sim, eu sei. O senhor é o feroz Buchanan.
- Como foi que o senhor me chamou? - ele perguntou, demasiado surpreso para ficar bravo.
- Ela o chama de Buchanan feroz. Brodick levantou uma das sobrancelhas.
- Quem me chama assim?
- Lady Gabrielle - ele respondeu. - O senhor não a conhece? - ele continuou, apressado. - Ela é filha do Barão Geoffrey de Wellingshire, e eles são seus parentes por parte de sua esposa.
A boa disposição de Brodick ficou totalmente arruinada. Tinha a impressão de estar sendo constantemente lembrado do fato de ter parentes ingleses. Aquilo era definitivamente humilhante.
- Quero lhe fazer algumas perguntas - disse Colm, impaciente.
- Sim?
- Parece-me que o senhor cuidou de meu irmão quando ele foi trazido para cá.
- Não, não fui eu quem cuidou dele, pois nunca aprendi a arte de curar. Foi o Padre Franklin quem cuidou de Liam, mas fiz todo o possível para ajudálo. Seus ferimentos eram sérios e, tenho vergonha de admitir, durante algum tempo achei que ele não fosse resistir.
Colm assentiu com a cabeça.
- Quem o trouxe até aqui?
- Não posso dizer. -
Colm inclinou a cabeça para o lado e encarou o padre por vários segundos.
- O senhor não pode, ou não vai dizer? - perguntou ele, ameaçador.
- Não posso. - Por estar dizendo a verdade, Padre Gelroy foi capaz de olhar direto nos olhos do lord. Ele não podia falar. Havia prometido a Lady Gabrielle que guardaria seu segredo, e não quebraria a palavra dada. Ele não entendia o motivo que ela tinha para não querer que ninguém soubesse que ela e seus guardas haviam ajudado Liam, mas o desejo dela seria respeitado.
As perguntas continuaram, mas o padre sabia que o Lord MacHugh não
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acreditava que ele estivesse lhe contando tudo, porque insistia em voltar sempre para a mesma pergunta sobre como Liam havia chegado à abadia.
- Alguém mais viu Liam sendo levado para dentro? - Brodick perguntou.
- Não, acho que não. E fiz o possível para manter a presença dele em segredo.
- Foi o senhor quem o recebeu e o carregou para dentro, padre? - Colm cruzou os braços na frente do peito e esperou pela resposta.
Padre Gelroy se sentia nauseado. O que deveria fazer? Para manter a promessa que fizera, teria de mentir ao lord. Que confusão! Ele gostaria de ter tido tempo de falar com seu confessor, pois não tinha a menor idéia do tipo de pecado que estava prestes a cometer. Seria uma pequena infração, que poderia ser considerada pecado venal, ou seria uma maldição muito maior, caso um padre mentisse? Seria então um pecado mortal? Não, com certeza não seria. Não, ele pensou. Para manchar sua alma com um pecado mortal, ele teria que fazer algo muito mais sério, como matar um homem.
O padre não via nenhuma saída para o atoleiro no qual se sentia afundar.
- O que o senhor diria se eu lhe dissesse que fui eu quem o carregou para dentro?
Colm olhou para Brodick:
- Ele está brincando? Brodick balançou a cabeça.
- Acho que não. Padre Gelroy perguntou:
- E se eu lhe dissesse que não me lembro? Colm deixou transparecer sua irritação.
- O senhor não se lembra de ter carregado um homem que pesa pelo menos duas vezes mais que o senhor? Não consegue se lembrar de um feito tão extraordinário?
O padre abaixou a cabeça. Era melhor desistir de tentar ser esperto.
- Sinto muito, Lord, mas não posso lhe dizer mais nada. Jurei manter segredo e devo manter meu juramento. Colm ficou furioso.
- O senhor empenhou sua palavra aos homens que tentaram matar meu irmão?
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- Não, senhor. Não tenho a menor idéia de quem são esses homens desalmados. E não guardaria segredo por eles a não ser que tivessem se confessado comigo. - Rapidamente, ele elevou as mãos ao céu. - E nenhum deles se confessou comigo. Juro que não sei nada sobre eles. Não sei o que aconteceu com seu irmão. Tudo o que pude ver foram os resultados do sofrimento que lhe infligiram.
A atenção de Brodick foi desviada pelo barulho vindo do pátio. Um guerreiro Buchanan chamava por ele.
- Estamos com problemas aqui embaixo.
Um dos homens de MacHugh olhou para a multidão que se aglomerava abaixo.
- Você deveria ver isso - ele disse a Colm.
- E por que eu me importaria com os ingleses e seus problemas? - perguntou Brodick, enquanto se dirigia ao parapeito.
- A causa do problema é a filha do Barão Geoffrey.
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Capítulo 23
Gabrielle seguiu à frente até chegar ao salão. Estava decidida a pôr um fim na reunião e partir o mais rápido possível. Foi seguida pelo abade enquanto se apressava pelo outeiro ao lado dos quartos dos monges e dava a volta pela capela adjacente à padaria. Estava prestes a entrar no salão por uma arcada quando percebeu que estava sendo observada por uma mulher que estava em pé, nas sombras. Instintivamente, Gabrielle sorriu e cumprimentou-a com um gesto de cabeça, mas a mulher não retribuiu seu cumprimento. Havia desprezo na expressão dela e seus olhos de doninha destilavam ódio.
Chocada, Gabrielle parou abruptamente. Tinha uma vaga idéia de quem seria aquela mulher, mesmo nunca a tendo visto. Uma reação tão vil só poderia vir de uma Monroe. Seu pai lhe dissera que a maioria do clã de Monroe a culpava pela morte do lord. Por ser tão ridícula, a idéia não fazia o menor sentido, e ela pensou em dizer algumas coisas à mulher, explicando-lhe que sua atitude não era razoável, mas, antes que pudesse lhe dizer alguma coisa, a estranha segurou as saias e saiu correndo.
O abade alcançou Gabrielle a tempo de ver o que se passara.
- Conhece aquela mulher, princesa?
- Não, não a conheço - ela respondeu. - Ela parecia estar bastante aborrecida, não é?
- Sem dúvida. E, pela expressão que havia em seu rosto, parecia estar aborrecida com milady.
Gabrielle assentiu com a cabeça.
- Deve ser uma Monroe, pois sei que os Monroe não gostam de mim.
- Oh, não, Lady Gabrielle, isso não é verdade.
- Não mesmo? - perguntou ela, um pouco aliviada. A idéia de ser detestada por todo un clã era desalentadora. - Os Monroe não me odeiam? - perguntou ela, ansiosa.
- Oh, sim, eles a odeiam. Com certeza a odeiam - ele respondeu, objetivo e quase alegre. - Mas veja, princesa, aquela não era uma Monroe. Não consigo me lembrar do nome dela, mas me lembro de termos sido apresentados e acho que ela é parente de um dos barões. Minha cabeça está confusa, pois tenho encontrado muitas pessoas estranhas nos últimos dias. Esses ingleses são todos parecidos.
Esplêndido, pensou ela. Os Monroe espalharam seu veneno até a Inglaterra.
- Não vou me preocupar com a opinião deles.
O abade fez um gesto em direção à passagem para o pátio.
- Vamos continuar?
- Sim - concordou Gabrielle. - Mas não precisa vir comigo. O abade deve ter coisas muito mais importantes a fazer, e não quero que perca mais nem um minuto se preocupando comigo. Prefiro enfrentar os barões sozinha.
Ela avançou pelo pequeno corredor e caiu no meio de uma briga de cães. Foi difícil localizar os barões, porque o salão estava repleto de gente, todos aglomerados e tentando gritar mais alto que os outros. Aquilo era um pandemônio. "Alguma coisa muito grave deve estar acontecendo para provocar uma discussão tão acirrada", pensou ela. Afastando-se, ela esperou que o barulho diminuísse.
No meio da multidão, procurava pelos dois barões e, quando olhou pra cima, levou um susto que quase a fez perder o equilíbrio. De cima da muralha, o irmão de Liam olhava para baixo. Agora, ele parecia ser ainda maior e mais ameaçador do que ela o imaginara, ao vê-lo sobre a colina E não era apenas o tamanho que tornava Colm MacHugh tão intimidador, mas sua postura rígida e sua expressão de pedra. Ele era o homem mais amedrontador que ela jamais vira
O Lord ao lado dele era igualmente uma figura assustadora. Ela também o reconheceu. Era o feroz Buchanan.
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Preocupada em talvez perder a coragem caso continuasse a olhar para os dois ighlanders ela voltou sua atenção para a agitação à sua frente.
De repente, foi notada por um homem, por outro e mais outro e, em poucos segundos, a multidão silenciou.
O Barão Coswold a viu antes de Percy. Ele inclinou a cabeça e estendeu os braços para esperar que ela se aproximasse.
- Lady Gabrielle, fico feliz que tenha se juntado a nós. Já tivemos o prazer de nos encontrar na corte do Rei John. Tenho certeza de que se lembra de mim, não é verdade?
Gabrielle ignorou a pergunta de Coswold. Simplesmente olhou para ele e esperou que lhe explicasse o motivo da reunião.
- Eu falo em nome do rei - tartamudeou ele, abalado com o silêncio dela.
Calada, ela continuou a se aproximar enquanto, com seus botões, ele se amaldiçoava pelo pacto diabólico que fizera com MacKenna. O que tinha na cabeça? Como poderia entregá-la a outro homem? Desde a última vez que a vira, ela se tornara ainda mais bela.
Todos fizeram silêncio enquanto a princesa se dirigia ao centro do salão.
Surpreso e enojado, Colm MacHugh estivera observando a agitação que se desenrolava abaixo dele. Os ingleses eram mesmo uns asnos, batendo boca sobre quem tinha o direito à palavra. Quando a gritaria finalmente cessou, ele se perguntou o que teria acalmado a discussão absurda. Foi quando a viu. De cabeça erguida e com as mãos ao lado do corpo, ela se movia por entre as pessoas.
O silêncio foi quebrado pelo Barão Percy.
- Lady Gabrielle, como pude ver, não se lembra de Coswold - disse ele, com um toque de escárnio na voz. - Nós também já nos encontramos antes, quando foi apresentada ao Rei John.
Percy não se atreveu a lhe perguntar se ela se lembrava dele, pois entendera que receberia a mesma resposta fria e silenciosa que Gabrielle destinara a Coswold.
- E Coswold está enganado - continuou Percy. - Sou eu e não ele quem fala em nome do rei.
Aquele comentário foi a faísca que serviu para reacender a discussão acirrada.
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Coswold agitava o documento no ar.
- Eu tenho um documento assinado pelo Rei John que me outorga poder para decidir o seu futuro. O documento de Percy não tem mais validade. A data marcada pelo rei, mais recente do que a que consta no documento de Percy, prova que sou eu o encarregado.
Percy não estava disposto a deixar que a mulher lhe escapasse por entre os dedos.
- Como sempre, o Barão Coswold não sabe o que diz. Eu já decidi que, como o Lord Monroe está morto, a princesa deve retornar à Inglaterra comigo. Vamos deixar que o Rei John decida o seu futuro.
Coswold virou-se para Percy.
- Todos aqui presentes sabem o que você está planejando. Pretende se casar com a princesa antes de sair da abadia, mas ela não vai a lugar algum com você.
- Ela fica comigo! - gritou Percy.
Gabrielle mal podia acreditar em seus ouvidos. Estariam loucos? Eles a enojavam. Como se atreviam a brigar por ela como se fosse um pedaço de carne atirada a cachorros famintos? Ela sabia que não era importante para nenhum deles. Não, eles queriam Finney's Fiat. Tudo o que os dois barões queriam era a terra valiosa.
Vários homens MacHugh e Buchanan se juntaram aos seus lords para observar a agitação do pátio, mas o olhar de Colm estava fixo na mulher que era o centro da discussão. Ele se perguntava no que ela estaria pensando. Gabrielle sabia ocultar suas emoções muito bem. A educação e compostura da princesa o deixaram muito impressionado.
Batendo palmas, Coswold chamou a atenção de todos. Em seguida, virou-se para o grupo de homens atrás de si, ffez um rápido gesto de cabeça e disse:
- Esta questão será resolvida agora mesmo.
A multidão se dividiu e o Lord Owen MacKenna deu um passo à frente. Fez sinal a vários homens por quem passou. Empertigou o corpo ao olhar para o topo da muralha e avistar MacHugh e Buchanan olhando para ele.
- Vejam quem se arrastou para fora de sua caverna - disse Brodick. - É o nosso velho amigo.
- O porco arrogante - escarneceu Colm.
O Barão Percy não conhecia o Lord MacKenna.
- Quem é o homem que se atreve a interromper os procedimentos?
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- Sou o Lord MacKenna, e concordei em me casar com Lady Gabrielle, aceitando seu dote. De hoje em diante, Finney's Fiat se chamará Glen MacKenna.
Coswold ficou com cara de bobo.
- Sim, e Finney's Fiat será sua. De cima, Colm reagiu com susto.
- De jeito nenhum. Brodick aprumou o corpo.
- Não, não podemos deixar que isso aconteça. - Ele olhou para Gabrielle e se perguntou por que ela não teria protestado contra os métodos tirânicos dos barões. Estaria lisonjeada, ou insultada? Se ela se parecesse um pouco com o pai, estaria queimando de raiva, pensou Brodick.
Com um sorriso afetuoso, MacKenna se aproximou de Gabrielle. Ela não retribuiu o sorriso. Parecia olhar através dele e MacKenna pensou que ela estivesse emocionada com toda a atenção que recebia. Afinal de contas, estava prestes a se casar com um poderoso lord. Sim, muito mais poderoso que o falecido Monroe jamais teria sido. E MacKenna era muito mais atraente. As mulheres gostavam de homens atraentes. Talvez ela ainda não tivesse percebido a sorte que tinha.
- Lord MacKenna e Lady Gabrielle devem se casar antes que o dia termine - anunciou Coswold.
Outro grito, vindo do meio da multidão, interrompeu o proclama.
- MacKenna, você não tem direito de ficar com ela. Meu nome é Harold Monroe, e, dentro de pouco tempo, serei nomeado Lord do clã Monroe. Cabe a mim, por dever e direito, me casar com essa mulher. Direito de progenitura.
A multidão abriu espaço para que ele pudesse passar. Gabrielle reconheceu o homem. Era ele quem estivera ao lado da detestável mulher durante o funeral.
Enquanto Monroe se aproximava, MacKenna o provocou.
- Você não é o filho primogênito do Lord Monroe. Ele não tinha filhos. O que significa que você não pode reivindicar progenitura.
- Sou o filho primogênito do irmão dele - ele gritou. - E como meu tio agora está morto, reclamo Lady Gabrielle e a posse de Finney's Fiat. De hoje em diante, Finney's Fiat será chamada Glen Monroe.
Coswold estava decidido a retomar o controle.
- Você pode exigir tudo o que quiser, mas não vai ficar com ela nem com Finney's Fiat.
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- Glen MacKenna - corrigiu MacKenna. - A partir de hoje, a propriedade se chamará Glen MacKenna.
- Que tramóia é essa? - sibilou Percy para Coswold. - Que tipo de pacto você fez com esse homem? Por acaso ele sabe que você a quer para si?
- Você não passa de um idiota, Percy. Um maldito idiota. Entretanto, Coswold percebera que nenhum dos dois a teria. Ele abdicara da possibilidade de se casar com Gabrielle. O rei pusera vários obstáculos em seu caminho e, mesmo que a desejasse muito, considerava o ouro mais valioso. Sim, ele era sedento de tesouros. Por isso selara o acordo com MacKenna. O lord ficaria com a princesa e as terras e, em troca, ele teria acesso a ela. Coswold tinha certeza de que ela sabia do tesouro de St. Biel e, por meio de charme ou tortura, ele arrancaria dela o segredo.
Felizmente para ele, Percy, assim como MacKenna e o Rei John, não sabiam da existência do tesouro. MacKenna era um porco tão ganancioso que nem mostrara curiosidade quando Coswold insistiu em ver Gabrielle sempre que quisesse. O único interesse do Lord era se tornar dono de Finney's Fiat.
Coswold não se preocupava com o fato de MacKenna não cumprir sua parte no trato. Se fosse necessário, ele reuniria soldados suficientes para destruir todo o clã MacKenna.
Harold Monroe não estava disposto a calar. E precisou gritar para se fazer ouvir no caos circundante.
- Eu reivindico o direito de me casar com a princesa e de receber Glen Monroe!
A partir daquele momento, todos se acharam no direito de expressar suas opiniões.
Coswold ergueu a mão, pedindo silêncio. Sua ordem foi ignorada.
- Fiquem quietos! O Barão Coswold pede silêncio para que possa ser ouvido. - Tentando ser útil, Henry Wilhs, um dos capangas de Coswold, gritou sua ordem bem atrás da nuca de Coswold. Acompanhada de várias imprecações obscenas ao não ser imediatamente obedecido.
Ao ouvir a voz de Henry, Coswold se virou para olhar para o ofensor.
- Não grite nos meus ouvidos,- ordenou ele.
Henry apertou os dentes. Ele não gostava de ser repreendido na frente de uma audiência e, acima de tudo, não gostava de desapontar o barão. Coswold era seu libertador, o homem que o tirara do cadafalso. Henry o idolatrava por isso, pois o barão lhe dera uma identidade e fizera dele um homem importante.
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Henry sabia muito bem quem era. Reconhecia não ter uma aparência muito boa. Era um homem bruto, de pescoço grosso que tinha a cara chata, orelhas pequenas e lábios grossos. Seus olhos não eram maiores do que duas gotas de suor. No entanto, tinha mãos enormes. Enormes e fortes. Talvez por saber que não era atraente, mantinha um eterno esgar no rosto.
Sua aparência desagradável era compensada por seus talentos especiais. Ele era capaz de quebrar o pescoço de um homem, coisa que fazia com mais rapidez do que se colocava de joelhos, sem que fosse provocado ou sentisse um pingo de remorso. Poucos homens no mundo eram temidos por ele, e Coswold era um deles. Henry sabia que Coswold o usava e aos seus colegas, Cynl e Malcolm, para fazer o trabalho sujo, mas eram bem pagos e respeitados pelos asseclas do barão.
Henry ouviu Malcolm dar um risinho e cutucou-o com o cotovelo. Como Coswold ainda olhava para ele, Henry disse:
- Não vou gritar novamente, mas, barão - continuou ele, com pressa para se redimir -, talvez, se o senhor usasse a força, pudesse conseguir deles o que quer.
Coswold estava exasperado.
- Será que você não se lembra de que tivemos de deixar nossas armas do lado de fora do portão? Ah, se eu tivesse uma espada agora... Eu a enfiaria no peito de Percy apenas para fazer com que calasse aquelamaldita boca.
- Eu ficaria honrado em fazer isso pelo senhor - disse Malcolm, abrupto. Como o mercenário chegava apenas ao ombro de Henry, teve de abrir caminho entre a multidão para ser visto pelo barão.
- E se o senhor trouxesse mais homens para dentro da abadia? Mesmo desarmados, eles poderiam mostrar um pouco do seu poder a Percy. Além disso, veja bem os ighlanders, andando por aí como se fossem donos do lugar. São tantos que perdi a conta - disse Henry.
- Eles não são importantes e eu não tenho o menor interesse na sua sugestão. Realmente, eles não me interessam nem um pouco. Agora, por favor, fiquem quietos enquanto eu termino isto.
Tanto Malcolm quanto Henry abaixaram a cabeça.
- Sim, barão.
Percy esticou os ouvidos para tentar ouvir a conversa entre Coswold e seus homens, mas foi impedido pelo clamor de vozes ao seu redor. Quando Coswold voltou a olhar para ele, gritou:
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- Você não vai decidir coisa alguma! "Percy berrou como um pássaro na armadilha", pensou Coswold.
- Eu já decidi qual será o futuro dela. O rosto de Percy se inflamou.
- Eu a quero, e vou tê-la para mim.
Gabrielle estava farta daquilo. Não poderia suportar mais nenhuma palavra vinda daqueles homens repulsivos.
- Posso ter a atenção dos senhores?
Como Gabrielle não levantara a voz, apenas os homens que estavam próximos a ela ouviram o que tinha dito. Um deles gritou:
- Lady Gabrielle está pedindo um pouco de sua atenção, barão. Coswold e Percy se viraram para ela. MacKenna estava em pé, entre os dois. Como pretendentes cheios de sonhos, os três sorriram.
- Com qual dos barões Lady Gabrielle quer falar? - arrulhou Percy.
- Com ambos.
Ansiosos, todos esperaram que ela falasse. Com certeza, ela escolheria um ou outro e Coswold, confiante, achava que ela respeitaria o documento do rei, aceitando sua decisão. Percy tinha a mesma opinião, confiante que ela colocaria seu destino nas mãos dele.
- Sim, Lady Gabrielle?
- Parece que existe uma certa confusão aqui - começou ela.
- É claro, com toda a gritaria de Percy - interrompeu Coswold.
- Deixe que ela fale! - gritou alguém da multidão.
- Tudo bem. Tudo bem - assentiu Coswold. - O que dizia, princesa?
- Acho que posso facilmente resolver essa disputa. Quero que os senhores saibam que, hoje, não vou me casar com ninguém.
- Mas eu já concordei em casar com milady - disse MacKenna, apunhalado pela recusa da princesa.
- Sim, mas eu não concordei em me casar com o senhor.
Ele ficou boquiaberto. Atônito, virou-se para Coswold, pedindo ajuda.
- Ela pode recusar?
- Não, não pode - asseverou ele. - Não torne as coisas difíceis, Gabrielle, pois falo em nome do Rei John.
Gabrielle estava saturada daquelas declarações pomposas.
- Sim, o senhor mencionou o fato várias vezes.
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Será que ela estava brincando com ele? Coswold estreitou os olhos. Não tinha certeza. Ela tinha um ar extremamente angelical e não havia agressão em sua voz.
- O Barão Coswold está errado. Sou eu quem fala em nome do rei - insistiu Percy.
Ela dirigiu a atenção para ele.
- O senhor também já mencionou o fato várias vezes. Posso fazer uma pergunta aos dois? Onde estava o meu pai quando essas decisões foram tomadas?
Nenhuma resposta.
- Os senhores esperaram a partida de meu pai para levar tais obscenidades adiante?
- Obscenidades? - rosnou Coswold. - Como se atreve a falar assim comigo?
Percy também ficou ofendido com a atitude dela e MacKenna parecia sentir vontade de lhe dar uma surra, mas Gabrielle manteve-se firme.
MacKenna pensou em agarrá-la pelo braço e empurrá-la para fora, mas ao olhar para cima viu MacHugh e Buchanan, assistindo a tudo. Seria melhor não encostar as mãos nela, decidiu, pois não tinha a menor intenção de fazer uma cena. Por enquanto, ele seria forçado a tratá-la com gentileza. Depois, prometeu a si mesmo, quando estivesse sozinho com ela, ele lhe ensinaria a ter respeito.
- Lady Gabrielle, acho que não lhe cabe decidir - Percy disse a ela.
- Eu concordo.
Confusos, Coswold e Percy olharam um para o outro.
- Concorda, princesa? - perguntou Coswold. - Então, por que a confusão?
- Não sou eu quem deve decidir. É o meu pai. Apenas ele tem o direito de decidir o meu futuro.
- A princesa está recusando... - começou MacKenna.
Deus, ele era tão cabeça-dura quanto os barões pareciam ser. Ela empertigou ainda mais o corpo.
- Quero deixar minha posição muito clara para que não haja mais confusão. Quem vai decidir o meu futuro é o meu pai.
Quantas vezes ela teria que repetir isso para que acreditassem nela? Hoje, ela não se casaria com ninguém.
- Como se atreve a desobedecer aos desejos do rei? - exigiu Percy. Ela o olhou nos olhos.
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- Eu não conheço os desejos do meu rei. Ele ainda não me contou.
- Eu acabei de lhe dizer que falo em nome dele - gritou Percy.
- Sim, é verdade, mas o Barão Coswold afirmou a mesma coisa. Como posso acreditar nos senhores? Devo esperar que meu pai decida
Ela fez uma mesura e tinha a forte intenção de se retirar, mas foi interrompida pelo grito repentino de uma mulher.
- Isso é ridículo! Ridículo! Ela está fazendo a todos nós de palhaços. Isso não pode continuar!
Ao se virar na direção da voz, Gabrielle viu a mulher que a encarara com ódio avançar na direção deles. Islã correu até Coswold. Ele estava chocado com a intrusão.
- O que você está fazendo? - sibilou ele, por entre dentes.
Ela não teve coragem de olhar para ele. Abaixando a cabeça, Islã gritou:
- Peço perdão por não ter falado antes, mas eu não podia... é... é terrível demais.
- Quem é essa mulher? - perguntou um dos homens do grupo de Percy.
- Ela é sobrinha do Barão Coswold - respondeu Percy.
- Islã, o que deu em você? - consternado com o comportamento dela, Coswold agarrou seu braço, apertando-o o mais que podia. O que tinha na cabeça para fazer tal cena?
- Tio, peço desculpas por lhe causar aborrecimentos, mas a verdade deve ser dita antes que o senhor ou o barão Percy decidam o futuro dela. Não vou deixar que ela o humilhe. - Mesmo que não estivesse chorando, Islã soltou um soluço dramático. - Seria uma blasfêmia que um homem honrado a tomasse como esposa.
- Por quê? O que você está dizendo? - exigiu Percy. Ele parecia estar mais confuso do que irritado. - A que blasfêmia a senhora se refere?
Apontando para Gabrielle, Islã gritou:
- Ela é impura. Ela... é uma prostituta!
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Capítulo 24
A terrível acusação de Islã foi seguida de um silêncio que durou apenas o tempo necessário para que as pessoas ali reunidas pudessem expressar seu espanto. Em seguida, a multidão foi tomada por comentários de raiva e ultraje. Em poucos minutos, todos se posicionaram a favor ou contra Gabrielle.
A princesa não moveu um músculo. Como poderia reagir a tamanho absurdo? Aquilo não tinha cabimento!
- Vamos ouvir o que ela tem a dizer - Percy agitou as mãos, pedindo silêncio.
A voz de Coswold tremia de raiva.
- Sim, façam silêncio. Vou ouvir o que Islã tem a dizer. - Sua sobrinha estava arruinando seus planos cuidadosamente elaborados, mas ele tinha os olhos pregados nela e não podia ignorá-la. - Islã, por que você qualificou Lady Gabrielle de forma tão hedionda?
Timidamente, Islã olhou para cima e viu que todos se aproximavam dela.
- Porque é verdade, - respondeu ela, com voz fraca.
- Fale de uma vez - ordenou Percy. - Explique o motivo da acusação ultrajante.
Levantando um pouco o volume da voz, Islã repetiu:
- É verdade.
Murmúrios se espalharam entre a multidão.
- E como sabe disso? - Percy perguntou.
- Eu a vi - disse Islã.
Os murmúrios aumentaram.
- Continue - ordenou Coswold. - Conte-nos o que viu.
Para Islã, foi fácil chorar de verdade. Ela sentia muita dor no braço que seu tio continuava a apertar com força.
- Alguns dias atrás, fui acordada no meio da noite por um ruído no corredor. Abri a porta do meu quarto para ver o que estava acontecendo. - E, apontando para Gabrielle: - Ela virou no final do corredor. Eu sabia que não devia segui-la, mas estava curiosa. Fiquei bem atrás porque não queria que ela me visse.
- E como conseguiu ver aonde ia, no escuro? A princesa carregava uma tocha?
Antes de continuar, ela hesitou por alguns segundos. Em seguida, continuou:
- Havia o clarão do luar. Não era preciso uma vela.
Ela tentou se desvencilhar do tio, mas ele não lhe deu chance. Na verdade, apertou seu braço ainda mais.
- E aonde Lady Gabrielle a levou? - perguntou MacKenna.
- Ela parou em frente a uma porta e bateu levemente. Eu me escondi atrás de um pilar. A porta se abriu e, depois de olhar para os lados, ela entrou.
- E a senhora viu quem abriu a porta? - perguntou Percy. Islã voltou a olhar para baixo.
- Era um homem.
- E a senhora conhece esse homem? - seu tio perguntou.
- Não - disse Islã -, mas, naquela noite, eu o vira no banquete. Acho que era um enviado da França.
Percy ordenou aos seus homens:
- Encontrem-no. Tragam-no até nós. Um deles imediatamente respondeu:
- Ele não está mais aqui. Partiu ontem, com seus companheiros. MacKenna ficava cada vez mais impaciente.
- Se estava escuro, como foi capaz de reconhecer o homem? - perguntou a Islã. - Talvez fosse o pai dela. Talvez nem fosse um homem, mas uma criada. - Ele estava tentando encontrar uma explicação plausível. Se as
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acusações de Islã fossem levadas a sério, todo o seu esquema estaria destruído. Ele podia sentir Glen MacKenna lhe escapando entre os dedos. A coragem de Islã ganhava forças.
- Era um homem - ela disse, enfática. Novamente apontando para Gabrielle, acrescentou: - E o que ela fez a torna suja e impura.
MacKenna olhou para a multidão que reagia à notícia chocante. Quando olhou para cima, viu que MacHugh e Buchanan os observavam com expressão de desprezo. Seu pensamento galopou. Quanto da conversa teriam ouvido? Mais uma vez, sua reputação e autoridade corriam perigo. Precisava pensar rápido se quisesse sair daquela situação com seu plano e reputação intactos.
Ao olhar para Islã, havia em seu rosto uma expressão de compaixão zombeteira.
- Tenho certeza de que suas intenções são as melhores possíveis, mas talvez esteja enganada, minha querida. Não seria possível que tenha confundido o que viu com algo inocente?
- Não teria como me enganar - disse Islã, desafiadora. - Eu a vi quando saiu do quarto. Ela tinha os cabelos soltos e seu vestido estava desamarrado. O homem que veio até a porta não vestia túnica, ou camisa.
Gabrielle estava tão chocada com as declarações absurdas da mulher que perdeu a voz. Entretanto, ao ouvir a última e terrível acusação, não pôde mais se manter em silêncio.
- Isso é mentira! - ela gritou. - Não sei por que essa mulher está dizendo tais coisas, mas nada do que disse é verdade.
- É verdade! - ela respondeu, aos gritos. - Eu a vi muito bem, e você estava se entregando a um homem.
A multidão foi tomada pelo alvoroço. MacKenna demorou vários minutos para acalmá-los e se fazer ouvir.
- Ao que tudo indica - ele disse a Islã -, é a sua palavra contra a de Lady Gabrielle.
Quase todos assentiram, concordando. Apenas algumas pessoas conheciam a sobrinha do Barão Coswold, o que fez com que poucos lhe dessem crédito. Subitamente, um homem que estava atrás do Lord MacKenna falou.
- A mulher está falando a verdade.
Todos se voltaram para a direção da voz. Um jovem monge com a cabeça coberta pelo capuz e braços cruzados dentro das mangas da batina se aproximou lentamente.
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- O que o senhor está dizendo? - perguntou MacKenna. - Quem está dizendo a verdade? O que o senhor sabe sobre isso tudo?
Desabituado a ter todas as atenções voltadas para si, o monge hesitou por alguns momentos antes de responder.
- Lady Islã está dizendo a verdade. Digo isso porque também vi Lady Gabrielle.
O círculo se expandiu de modo que todos pudessem ver e ouvir o monge. Pensou em dar um passo à frente, mas parou ao pensar na magnitude de suas ações.
- Eu vi a princesa... - começou ele.
- Continue - exigiu Percy, impaciente.
- Era meia-noite e eu tinha acabado de sair da capela depois de ter cumprido minha hora de adoração e vi alguém andando apressado em direção aos dormitórios onde alguns dos hóspedes estavam hospedados. Primeiro vi apenas uma figura indistinta, mas, ao passar pela janela iluminada pelas velas da capela, reconheci Lady Gabrielle. - E, voltando seu olhar para uma Islã atônita, ele afirmou: - Lady Islã não está mentindo
- Ela é uma prostituta! - gritou alguém atrás de Percy.
- Não serve para se casar com ninguém! - gritou um dos membros do clã de Monroe.
Dentro de pouco tempo, dezenas de vozes iradas se reuniram para condená-la.
Gabrielle estava lívida. Sentia-se como se tivesse sido jogada do alto de um precipício onde era esperada por lobos. Acabava de ser julgada e condenada.
Ela tentou entender aquela loucura. Como era possível que isso estivesse acontecendo? Como as pessoas eram capazes de dizer coisas tão vis sobre ela? Para fazer essas acusações absurdas, Islã devia ser uma pessoa desequilibrada. Mas, e o monge? Por que concordara com Islã? Que motivo tinha ele para confirmar que Gabrielle havia procedido tão mal? Liam. Deus meu, era Liam. Talvez o monge a tivesse visto a caminho do quarto do homem doente. Mas nunca deixara seus aposentos desacompanhada. Sempre estivera acompanhada por pelo menos um de seus guardas, mas, se ele tivesse se adiantado um pouco e o monge tivesse olhado no momento em que ela passava, poderia não tê-lo visto e suporia que ela estivesse sozinha. Essa era a única explicação possível.
Se tentasse se defender, dizer a verdade, ninguém acreditaria que ela
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estava simplesmente visitando um homem doente e que nada de impróprio tinha acontecido.
Fora acusada por duas pessoas. Isso era o suficiente para que fosse considerada culpada.
- A princesa não tem nada a dizer? - Coswold gritou para Gabrielle.
Ela se recusou a responder. A multidão agitada já fizera seu julgamento.
Empenhara sua palavra que não contaria a ninguém sobre sua atuação no salvamento de Liam e, mesmo que não tivesse prometido, qual seria a reação da multidão ao saber que ela fora responsável pelo assassinato daquele homem em Finney's Fiat? Quem se viraria contra ela e seus guardas? Não havia nada que pudesse dizer ou fazer para colocar um ponto final neste pesadelo. Apesar de ter os olhos cheios de lágrimas, ela não deixou que lhes escorressem pelo rosto. Não responderia aos insultos que aquelas pessoas atiravam contra ela.
A fúria do Barão Coswold contra a sobrinha cedeu e, finalmente, ele soltou o seu braço. Agora, os motivos de Islã para fazer tal acusação haviam se tornado claros para ele. Ela estava apenas tentando livrá-lo da humilhação que teria que passar quando a verdade sobre Lady Gabrielle fosse inevitavelmente revelada. Mesmo que o monge tivesse se mantido em silêncio, sem nunca dizer uma só palavra sobre o pecado dela. O Lord MacKenna com certeza se sentiria ultrajado e ficaria furioso quando descobrisse que sua noiva não era mais virgem. De fato, pode ser que Islã não tivesse escolhido o melhor momento para falar, mas tinha tomado aquela atitude unicamente para protegê-lo.
A discussão sobre o futuro de Gabrielle mudou subitamente de rumo. Poucos momentos atrás, havia quatro homens brigando pela mão dela, mas tudo mudara com a revelação de Islã. Agora, qual deles a aceitaria? Quem tomaria uma prostituta por esposa?
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Capítulo 25
Coswold estava furioso. Era tudo verdade. Tudo verdade. Gabrielle era uma meretriz. Ela o havia enganado. Enganara a todos fazendo-se passar por pura. A aparência dela tornava ainda mais fácil enganar os homens. Seu rosto angelical e aqueles olhos, aqueles encantadores olhos cor de violeta... ela era linda. Que homem jamais pensaria que não fosse inocente?
Ele fora um grande tolo por tê-la desejado tanto. A quantos homens se entregara? Sentia-se enojado ao pensar nisso.
Tentando descobrir como Percy estava recebendo a notícia, Coswold olhou para ele. Sua expressão parecia ter se congelado num esgar de terror. Tinha a boca aberta como se estivesse prestes a falar, mas não pronunciou palavra.
Mesmo que tivesse dito alguma coisa, não teria conseguido se fazer ouvir acima do rugido de MacKenna. O Lord alardeava seu bom nome e a vergonha que Gabrielle traria a ele. A cada afirmação que fazia, olhava para cima da muralha. Estaria esperando que os ihglanders que a tudo assistiam, o aplaudissem por se recusar a se casar com Gabrielle?
- Agora, ela não vale mais nada - disse Percy quando MacKenna finalmente fez uma pausa para respirar. - O Rei John não lhe dará mais o dote. E você não pode mais reivindicar Finney's Fiat, MacKenna. O mesmo é válido para você, Monroe.
- E você acha que eu ainda a quero? - Monroe cuspiu no chão à frente de Gabrielle. - O diabo que a carregue. - Ele se virou e foi embora. Ao passar por MacKenna, disse: - Ela é toda sua, MacKenna, contanto que não dê importância para as chacotas que fatalmente farão às suas costas. Você ouviu o barão. Pode ficar com a prostituta, mas não vai botar as mãos em Finney's Fiat.
Nunca antes MacKenna havia se sentido tão humilhado. Sua fúria se voltou contra Coswold.
- Você sabia que ela era uma prostituta quando fez o acordo comigo? Você sabia de tudo, não é?
Indignado, Coswold respondeu:
- Eu não sabia de nada. Assim como todo mundo eu acreditava que ela fosse pura. Eu sabia que você estava de olho em Finneys Fiat. Já chamava a propriedade de Glen MacKenna antes mesmo que eu sugerisse o acordo, e eu queria...
Ele interrompeu a fala no meio da sentença antes que, por acidente, deixasse escapar a promessa que forçara MacKenna a fazer para selar o pacto.
MacKenna não queria que ninguém ficasse sabendo dos detalhes da negociação. Dando as costas para os outros, puxou Coswold para um canto.
- Você exigiu que eu lhe permitisse encontrar-se com ela sempre que quisesse, mas se recusou a me dar o motivo. Agora, exijo que me diga: você é um dos homens a quem ela se entregou? Estava planejando continuar a freqüentar a cama dela? Ela era sua amante?
A cada pergunta que fazia, o rosto de MacKenna ficava mais vermelho.
Coswold praticamente se esquecera do ouro. A conduta repulsiva de Gabrielle havia impregnado seu pensamento. Apesar de não mais querer Lady Gabrielle para si, ainda estava determinado a botar as mãos no tesouro. Sua mente galopava em busca de uma solução. Se quisesse descobrir onde o tesouro fora escondido, precisaria ter acesso a Gabrielle, mas, se a levasse de volta ao Rei John, ele a perderia. Era provável que o rei ficasse tão furioso que decretasse sua execução e, se estivesse em um de seus raros períodos de espírito compassivo aflorado, era bem possível que a usasse até se fartar para depois passá-la aos seus servidores favoritos. De qualquer maneira, Coswold não teria permissão para vê-la.
Percy não parecia preocupado. Ao mesmo tempo que teria preferido se casar com Gabrielle, estava preparado para assumi-la como amante. Sua obsessão
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não exigia uma cerimônia pública. Se Gabrielle fosse banida, estaria livre para qualquer homem e ele poderia vir a tê-la quando e como quisesse. Tudo o que tinha a fazer era esperar até que Coswold desistisse dela.
Coswold também tinha um plano e sabia exatamente o que faria. Precisava agir rápido para aproveitar o estado de choque no qual Gabrielle se encontrava. Temia que ela pudesse revidar com vingança ou talvez até tentasse escapar em busca da proteção do pai. Ele não podia deixar que isso acontecesse.
- Considero uma perda de tempo levar a mulher de volta à Inglaterra e esperar pelo retorno do Rei John. Vou decidir o destino dela agora mesmo.
- Você não pode matá-la - gritou Percy. Islã levou a mão ao peito.
- Por que você se importa com o que possa acontecer a ela? - gritou. - Não é possível que você ainda a queira.
- Será que você não pode fazer com que ela cale a boca, Coswold? Ninguém mais quer ouvir o que ela tem a dizer.
- Fique quieta - ordenou Coswold, enquanto empurrava Islã para longe dele. - Percy tem razão. Você já falou demais.
- Estou falando sério, Coswold - avisou Percy. - Você não pode matar Gabrielle.
Coswold sorriu com escárnio para o adversário.
- Não, eu não vou matá-la. Mas quero que sofra pelo resto da vida, mesmo que seja curta.
Voltando toda a atenção para Gabrielle, ele deu um passo na direção dela. A multidão abriu espaço.
- Com o poder que me foi outorgado pelo Rei John, a partir de hoje, você será banida.
A aglomeração vibrou com o castigo imposto. Alguns bateram palmas, outros gritaram em aprovação.
- Bem feito. Ela recebeu o que merecia
Antes de continuar, Coswold esperou que todos se acalmassem.
- Você entende o que isto significa, Gabrielle? Deste momento em diante, você é uma proscrita. Não tem casa, país, rei ou título. O Rei John e seus fiéis súditos não mais reconhecem a sua existência. Você não é nada.
- Ela deve explicações ao rei? - alguém gritou.
- Não, pois ela não tem mais rei - respondeu Coswold.
- E o Barão Geoffrey? - perguntou Percy. - Você não sente curiosidade de saber o que ele fará quando descobrir que sua filha foi banida?
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- Quando ele ficar sabendo, será tarde demais.
Percy fazia um esforço desesperado para não demonstrar sua alegria. Gabrielle seria expulsa dali e ele estava disposto a segui-la. Uma vez que se afastasse o bastante da abadia e não pudesse mais ser vista, Percy a atacaria. Tinha homens suficientes para emboscar e subjugar os guardas de Gabrielle. Ninguém saberia ou se importaria com o que aconteceria a ela e, se Percy quisesse, poderia trancafiá-la no interior de seu castelo e fazer com que ficasse à sua disposição pelo tempo que bem entendesse.
Coswold tinha a mesma intenção.
- Islã, vá dizer aos criados que se preparem para partir - ordenou ele, com um sussurro.
Assentindo com a cabeça, ela se apressou para realizar as ordens do tio. Ao passar pela mulher injustamente acusada, ela diminuiu o passo e virou a cabeça para que apenas Gabrielle pudesse testemunhar seu sorriso.
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Capítulo 26
Que motivo perverso teria aquela mulher para mentir? Qual era o seu objetivo? E o monge? Por que teria validado as mentiras dela? O que ele tinha a ganhar?
Brodick não tinha respostas. A única coisa que sabia ser verdade era que, em menos de dez minutos, os dois haviam destruído a vida de Gabrielle. Eles a haviam desonrado e desgraçado, roubado seu futuro e coberto seu pai de vergonha e humilhação. Tanto o Barão Geoffrey quanto sua filha cairiam em desgraça com o Rei John, pois, com certeza, ela já não tinha nenhum valor para ele. Brodick sabia que havia uma grande chance de que as terras do barão fossem confiscadas - o rei tinha a reputação de tirar o que pertencia aos outros, inclusive suas esposas e filhas - e, com sua mente desvirtuada e seu temperamento imprevisível, havia também a possibilidade de que ele decretasse a execução do Barão Geoffrey, para usá-lo como exemplo. E Gabrielle, o que seria feito dela?
- Estamos assistindo a toda a depravação dos ingleses - disse Colm, enojado.
- Gabrielle é inocente. - O Padre Gelroy tinha os olhos rasos de lágrimas, tamanha era a sua angústia. - Ela é gentil e atenciosa - insistiu ele. - Se os senhores conhecessem...
O padre se calou na mesma hora. Estava prestes a deixar escapar que, se Colm e Brodick soubessem que Gabrielle não medira esforços para proteger Liam e salvar a vida dele, certamente saberiam que ela jamais faria qualquer coisa para denegrir o nome de sua família.
- Se nós conhecêssemos o quê? - perguntou Colm.
- Se vocês a conhecessem - remendou ele. - Ela não é culpada das terríveis acusações das quais foi vítima.
Colm se virou para o padre.
- Nós já sabemos que ela é inocente.
- Sim, é verdade - concordou Brodick.
- Vocês sabem? Brodick suspirou.
- Sim, sabemos - ele repetiu. - Mas, no momento, isto não tem a mínima importância, o senhor concorda? Olhe para eles. Acabaram de condená-la.
- Foi o que fizeram. - O padre esfregava as mãos. Olhando para Gabrielle, ele murmurou: - Ela vai passar por coisas terríveis caso a levem de volta à Inglaterra e a entreguem ao Rei John. Aquele homem lascivo é capaz de cometer muitos atos vis e posso lhes garantir uma coisa: quando ele se cansar dela... - Ele não foi capaz de continuar. O destino de Gabrielle era terrível demais para ser comentado.
- A mulher que a acusou... - Brodick começou a falar.
- Islã - disse o padre. - Ouvi quando disseram o nome dela.
- Ela está mentindo - disse Colm.
Com um movimento de cabeça, Padre Gelroy concordou.
- Ela vai ter que se entender com Deus pelo que fez.
- E o monge? - perguntou Brodick. - Por que ele confirmou as mentiras dela?
- Não sei.
- O senhor conhece aquele monge? - Brodick perguntou.
- Sim, conheço. Ele é jovem e muito ansioso para agradar, mas acredito que seja um homem honesto. Não posso imaginar por que motivo afirmou ter visto Gabrielle. Isso só pode ser um engano. Vou procurá-lo para pedir que me conte exatamente o que pensou ter visto.
- O estrago já foi feito - disse Brodick. Padre Gelroy encolheu os ombros.
- É verdade. Eles arrumaram a reputação e a vida de Lady Gabrielle. Isso é vergonhoso.
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- Padre?
- Sim, Lord MacHugh?
- Quando eu deixar a abadia, o senhor virá comigo.
O padre sentiu ímpetos de se atirar do parapeito. Deu um passo atrás, calculou a distância até os degraus e, finalmente, encontrou um pouco de coragem. Ele não sairia correndo, simplesmente declinaria o convite da forma mais educada possível.
- O senhor está me convidando para servir seu clã...
- Se o senhor preferir pensar que se trata de um convite...
- E se eu recusar? - O padre engoliu em seco.
- O senhor não vai fazer isso.
A bola que sentia na garganta impedia Padre Gelroy de falar e ele teve de reunir todo o seu autocontrole para olhar MacHugh nos olhos. Rezando para que o Lord tivesse realmente vindo à abadia à procura de um padre e não, como temia, para conseguir vingar o irmão, o padre falou com voz rouca:
- Ficarei feliz em acompanhá-lo. Brodick caiu na risada.
- Agora, quem será que está mentindo? O senhor se deixou delatar por sua expressão.
Constrangido, Padre Gelroy admitiu:
- Estou realmente amedrontado, mas farei o possível para servir espiritualmente ao clã de MacHugh.
- Vá pegar o que deseja levar com o senhor - ordenou MacHugh. Antes de falar, Brodick esperou que o padre sumisse de vista.
- Já ouvi dizer que quando um padre se sente em casa com qualquer clã, é impossível se livrar dele. Minha intuição me diz que você terá que agüentar esse padre até o final de sua vida.
Se o padre tivesse ouvido, com certeza não teria concordado com a previsão de Brodick. Quanto mais cedo ele terminasse sua tarefa e pudesse voltar a ficar o mais longe possível dos MacHugh, melhor.
Ele não queria irritar o Lord com um atraso. Por isso, correu até a sua cela para embalar sua água benta, seus óleos, seus paramentos e o resto de seus pertences. O Lord MacHugh ordenara que um de seus soldados mais jovens o acompanhasse e o padre pensou que o Lord agira assim para ter certeza de que ele não tentaria escapulir.
Só Deus sabe o quanto Padre Gelroy gostaria de dar o fora, mas, com
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Lady Gabrielle tão necessitada de ajuda, era preciso colocar seus temores de lado. Seu pensamento se concentrava na busca de uma solução para ajudá-la.
Ele imaginou que ela devia estar preocupada por deixar seus guardas à espera. Não adiantaria nada que eles aderissem a essa perseguição monstruosa. Quatro guardas e uma mulher contra uma centena de homens inflamados... não, não. Seria melhor que os guardas ficassem esperando fora dos portões até que pudessem encontrar para Gabrielle um abrigo bem longe dessas pessoas terríveis.
O padre começou a se dirigir aos portões de entrada, mas foi impedido pelo soldado.
- O senhor precisa voltar ao Lord MacHugh - ele disse, enquanto segurava dois sacos com os pertences do Padre Gelroy. - Vou tomar providências para que sua bagagem seja acomodada em um dos cavalos.
- Por favor, tenha paciência comigo - pediu o padre. - Preciso ordenar aos guardas de Gabrielle que continuem a esperá-la. Ela não gostaria que eles voltassem à abadia, pois estariam correndo perigo. Não demoro mais do que um minuto.
Com um rápido movimento de cabeça, o soldado concordou. Ao norte do portão, Stephen estava em pé ao lado do cavalo de Gabrielle. Aproximou-se ao ver o Padre Gelroy acompanhado do ighlander.
- Em pouco tempo, Gabrielle se juntará a vocês. Os pertences dela já foram trazidos? - perguntou o Padre Gelroy.
Stephen assentiu com a cabeça.
- Temos algumas de suas coisas. Os baús foram organizados pelas criadas. Planejamos pegá-los um pouco mais tarde. Por que o senhor pergunta?
Padre Gelroy detestava ter que mentir, mas perdoou seu próprio pecado dizendo a Deus que estava apenas protegendo Gabrielle e os guardas de uma corja sanguinária.
- Ela pediu que eu viesse para ter certeza, pois houve uma mudança nos planos. Dentro de poucos minutos, quando vier ter com vocês, ela lhes contará tudo. A princesa pede que a esperem aqui.
Stephen não tinha motivos para duvidar do padre, pois sabia que ele havia se tornado amigo de Gabrielle.
Enquanto se apressavam de volta à muralha, o homem do clã de MacHugh que o acompanhava perguntou:
- O senhor mentiu para aquele homem. Por quê?
- Para protegê-lo dos outros. É o que a princesa gostaria que fosse feito - acrescentou ele. - Ela não gostaria que eles tentassem interferir nesse conflito, pois estariam em evidente minoria.
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O acompanhante continuou a seguir o padre e não saiu do lado dele até estarem na metade da escadaria. Padre Gelroy sabia que o homem também suspeitava que ele tentasse fugir ou se esconder. Quando chegaram ao último degrau, ele parou e esperou que os lords pedissem que se aproximasse. Ao perceber a chegada dele, Brodick lhe fez um sinal.
Limpando a garganta para atrair a atenção de MacHugh, o padre disse:
- Lord, eu não posso partir enquanto não tiver certeza de que Lady Gabrielle estará protegida desses monstros. Com sua permissão, eu gostaria de ficar ao lado dela.
Antes que MacHugh pudesse responder, Padre Gelroy empertigou os ombros e se virou para Brodick:
- Lord Buchanan, o pai de Gabrielle não está aqui para defender a honra da filha. Como único parente presente, o senhor deve ajudá-la.
- Não me diga como proceder, padre. - Havia rispidez na voz de Brodick. - Sei muito bem o que devo fazer.
- Sim, claro que sim - disse o padre, assentindo vigorosamente com a cabeça.
Desviando o olhar do padre, Brodick concentrou a atenção nas pessoas abaixo. Todas levadas ao frenesi por Coswold e Percy.
- Colm, vou levá-la para casa comigo. Lá, tenho como protegê-la.
- Mantê-la protegida não vai recuperar a honra dela - disse Colm, com tristeza.
Brodick concordou.
- Ela merece mais do que isso.
- O pai dela... ele é como esses barões?
- Se fosse, eu não teria permitido que pusesse os pés em minhas terras - respondeu. - Ele é um homem honesto.
- Mande um mensageiro avisá-lo de que a filha está com você, e ele virá buscá-la.
- Não é tão simples assim. O Barão Geoffrey terá de reunir seus vassalos e se preparar para uma guerra. Se o rei confiscar suas terras...
- Ele não terá como agir.
- Isso mesmo - concordou Brodick. - Gabrielle precisa de um protetor forte. Ela é prima da minha esposa. Espera-se que eu a proteja, mas isso não provaria a inocência dela.
- E desde quando você se importa com o que os outros pensam?
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- É verdade que não dou a mínima para isso - respondeu ele -, mas, se Gabrielle fosse minha esposa, eu mataria qualquer homem que tentasse denegrir sua honra.
- Eu faria o mesmo - disse Colm.
- Mas ela não tem marido para defender sua honra.
- Não, não tem.
- Talvez fosse melhor você levá-la para a sua casa. Franzindo o cenho, Colm disse:
- E o que adiantaria isso? Que diferença faria se eu lhe oferecesse proteção, em vez de você? Você é tão forte quanto eu.
- Eu não posso me casar com ela.
Por um longo momento, antes que Colm respondesse, aquela afirmação pairou entre eles. Ele sabia o que Brodick tinha em mente.
- Você está pedindo demais.
- Você tem um débito comigo. O que peço não é absurdo.
- Casamento? Não. Esse assunto está fora de questão. Brodick encolheu os ombros.
- Não vejo por quê. Se você se casar com ela, todos saberão que acredita na inocência dela. Não estaria se casando com uma prostituta. Você é respeitado e temido pela maioria dos outros clãs. Ao dar a ela o seu nome, estaria recuperando a honra de Lady Gabrielle.
- Não. Você terá que encontrar outra solução - respondeu Colm, enfático.
Brodick não se deixou abater. Sabia que Colm MacHugh acabaria se convencendo a agir honradamente.
- Você está querendo dizer que existe um outro lord, mais poderoso que você, ainda solteiro?
- Não estou dizendo nada, Buchanan. Esse problema é seu, não meu.
- Uma esposa em troca de um irmão. Você salva a vida dela, como eu ajudei a salvar a do seu irmão.
Colm apertou as mandíbulas com força. Um dos Buchanan avisou:
- Lord, Lady Gabrielle está indo embora. Os portões foram abertos. Brodick olhou para o pátio no momento exato em que um dos homens se aproximava para cuspir o chão aos pés de Gabrielle.
Colm viu um outro homem abrir caminho entre a multidão enquanto
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Gabrielle se dirigia aos portões. Ele a chamou pelo nome, mas foi ignorado por ela, que continuou a caminhar. Em seguida, ele agarrou o braço dela, fez com que se virasse para ele e atingiu o rosto dela com um soco. Se ele não estivesse segurando seu braço, ela teria caído ao chão.
Seguido de Brodick, Colm já se dirigia para a escada enquanto dizia a um de seus homens:
- Descubra quem é o cretino.
Todos os guerreiros, tanto Buchanan quanto MacHugh, entenderam a ordem. Padre Gelroy não, pois não tinha visto o que acabara de acontecer.
- De quem eles estão falando? O que ele quer? - perguntou o padre a um dos homens que tentava chegar à escada.
O homem não diminuiu sua marcha.
- Ele quer saber quem deu um soco em Lady Gabrielle.
- Quer dizer que alguém lhe deu um soco? Oh, Deus - resmungou o padre. Virando-se sobre os calcanhares, ele se apressou em seguir os outros. - Mas por que ele quer...
O último guerreiro a passar respondeu:
- O Lord MacHugh quer saber o nome do homem que pretende matar.
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Capítulo 27
Ela estava vivendo um pesadelo. Uma hora atrás, era Lady Gabrielle, filha do Barão Geoffrey de Wellingshire e da Princesa Genevieve de St. Biel. Era amada, feliz e cheia de esperanças. Agora, era odiada, tratada como uma leprosa e não podia esperar nada da vida.
Era muita coisa para absorver. No momento, a sobrevivência era a única coisa que importava. Precisava encontrar um lugar seguro para si e seus guardas. E, apesar de não ter um destino em mente, ela queria se afastar o mais rápido possível dos abomináveis barões e seus asseclas. Então, talvez fosse capaz de entender o que acontecera.
Primeiro, precisava de tempo para se acalmar e aquietar seu coração desgovernado. Ela mal conseguia respirar. Pessoas estranhas diziam palavrões quando ela passava por eles, no que parecia ser um caminho interminável em frente aos portões.
A humilhação e a vergonha que sentia eram insuportáveis. Precisou reunir todas as forças para não mostrar suas emoções. Não apressou o passo - apesar da vontade que sentia de correr - e não permitiu que nenhuma lágrima lhe escorresse dos olhos, pois sabia que tanto um como outro encheriam a multidão raivosa de satisfação. O orgulho era a única coisa que lhe restara. E ela não permitiria que o tirassem dela.
Seu rosto latejava por causa do soco que recebera. Ela vira o pulso fechado se aproximando e tentara dar um passo atrás para se afastar do agressor, um homem bruto com ódio espalhado pelo rosto horrível. Felizmente, havia sido capaz de desviar o corpo para minimizar o impacto. Ele devia ser duas vezes mais alto e pesado do que ela. Se não tivesse desviado um pouco, com certeza aquele soco teria lhe quebrado a mandíbula.
- Não a machuque - Coswold gritara, uma fração de segundo antes que o punho do agressor atingisse seu rosto.
O soco a deixara zonza e ela cambaleara para trás no momento em que suas costas eram atingidas por uma pedra. Rapidamente, ela endireitou o corpo e continuou a andar. Foi atingida por outra pedra, e mais outra. Mesmo atordoada, pôde ouvir o grito do barão. Não machucá-la? Uma ordem totalmente ridícula. Coswold, Islã e Percy haviam destruído sua reputação e denegrido seu caráter. Tiraram dela tudo o que tinha. Por causa daqueles cidadãos, ela deixara de existir e de ter uma pátria. Que diferença fazia se eles também a desfigurassem?
O abade esperava por ela no portão. Ele o abriu, abaixou a cabeça em sinal de respeito e murmurou:
- Que Deus a proteja, Lady Gabrielle.
Será que ele acreditara nas mentiras? Seus olhos estavam marejados de lágrimas, mas ela não sabia dizer se eram de compaixão ou de vergonha.
Imediatamente após cruzar o portão, ouviu-o sendo fechado e o ferrolho ser passado.
Ao vê-la, Stephen deu um grito. Desmontou seu cavalo e correu até ela enquanto Faust, Lucien e Christien empunhavam suas espadas, preparados para lutar.
Ela sabia que sua aparência devia estar horrível. Uma pedra cortara sua pele abaixo do olho direito e ela sentia o sangue a escorrer por sua bochecha. Sua mandíbula estava dolorida e provavelmente já começara a inchar e formar hematomas.
- Princesa, o que aconteceu? - perguntou Stephen, estarrecido.
- Eu estou bem - respondeu ela, com voz surpreendentemente forte.- Mas precisamos ir embora daqui. Agora.
- A princesa está sangrando! - Ao indicar os portões fechados com a mão, o rosto de Christien estava vermelho de raiva. - Quem fez isso com a princesa? Vamos matá-lo.
- Não, vocês não devem voltar à abadia - ordenou ela.
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Faust tirou a túnica e umedeceu-a com água de seu saco de couro. Inclinando-se sobre a sela, entregou o pano úmido a Gabrielle.
- Está doendo muito? - perguntou ele.
- Não - ela garantiu, rapidamente limpando o sangue do rosto. - Vou lhes contar tudo mas, por favor, precisamos sair daqui o mais depressa possível.
Compreendendo a urgência na voz da princesa, eles não questionaram sua ordem. Stephen a colocou sobre o lombo de Rogue, entregou-lhe as rédeas e montou seu cavalo. Imaginando que ela quisesse se reunir aos funcionários de seu pai, ele tomou a direção sul.
- Não - gritou ela. - Devemos ir para o norte.
- Mas seu pai... - começou Lucien.
- Vocês não estão entendendo. Se os barões mudarem de idéia e decidirem me levar ao rei deles, o Rei John, eles procurarão por nós no sul. Se nos escondermos na floresta do norte, nunca nos acharão.
- Mas por quê... - quis saber Stephen.
- Nenhuma pergunta agora - ela disse. - Explicarei tudo quando estivermos longe daqui.
Stephen assentiu com a cabeça.
- Vamos para o norte.
Sendo o último da fila, Christien foi o primeiro a sentir o chão tremer. Os ighlanders surgiram do pé da colina. Ele chamou os outros que estavam à sua frente.
Ao se virar e ver os guerreiros se aproximando, Gabrielle entrou em pânico, pensando estar sendo perseguida por seus inimigos. Quando chegaram mais perto, ela reconheceu os dois homens que lideravam a horda: Buchanan e MacHugh. Eles tinham aparência selvagem, feroz e orgulhosa... e perigosa. Uma visão magnífica: como um relâmpago, belo à distância mas aterrorizante de perto.
O som dos cascos dos cavalos era ensurdecedor.
- Deixem que passem - ela gritou aos seus guardas. Comandou seu cavalo para a esquerda de modo a dar espaço aos ighlanders que avançavam, mas eles não passaram. Em vez disso, se movimentaram para os lados. Mesmo tendo fugido a todo galope, eles a alcançaram, circundando Gabrielle e seus guardas, obscurecendo-os entre a poeira que formavam Subindo uma e outra colina, eles a prenderam em seu denso círculo.
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Qualquer um que estivesse olhando da abadia, veria apenas um bando de membros de clã voltando para casa. Gabrielle e seus guardas estavam completamente encobertos.
Qual seria a intenção deles? Ela se sentia tão aliviada e agradecida por estar se afastando cada vez mais dos barões que não se preocuparia com os motivos dos highlanders. Além disso, ela já vira o Padre Gelroy chacoalhando em sua sela. Com um esgar no rosto e pela maneira como se agarrava, o pobre padre parecia estar tentando salvar a própria vida. Seria possível que, caso pretendessem lhe fazer mal, teriam trazido um padre para testemunhar sua maldade?
Eles seguiram para noroeste. Ao chegarem ao final de Finney's Fiat, a umas duas horas de cavalgada da abadia, ela ouviu um dos homens gritar que haviam chegado às terras de Buchanan. Rogue estava extenuado e Gabrielle não o forçaria a continuar antes que tivesse a chance de lhe dar um descanso.
Ficou surpresa com o fato de não ter sido atropelada pelos highlanders quando eles, abruptamente, interromperam a marcha. Pararam todos ao mesmo tempo, mas, antes que ela tivesse tempo de desmontar, eles já estavam em pé ao lado dela.
Os guardas de Gabrielle estavam alertas, prontos para o que desse e viesse. Tinham as mãos ao lado do corpo, mas sua postura não era relaxada. Eles sabiam que, se dessem a entender que pretendiam sacar suas espadas, este seria o último gesto que fariam em vida. Os guerreiros não hesitariam em matar para proteger seus lords, assim como os guardas lutariam até a morte por sua princesa. Desde que os highlanders não os pressionassem, eles se manteriam onde estavam.
Sabendo que, independente do número de homens contra os quais tivessem de lutar, seus guardas não se afastariam, Gabrielle preocupava-se com a vida deles. Ouviu um dos highlanders dará ordem de recuar. Ela tinha esperança de que a ordem tivesse vindo do feroz Buchanan, mas, quando os soldados se afastaram, ela viu que não fora seu primo quem falara. Fora o outro lord, o homem cruel que recebera seu irmão perdido havia tanto tempo com um soco.
Seu tamanho e aparência feroz eram exatamente como ela se lembrava, mas havia alguma coisa mais sobre ele que a surpreendeu. Na verdade, para alguém que gostasse do tipo vigoroso e de certa maneira marcado por cicatrizes, ele até que era atraente. Não era o caso dela. Mas, se havia alguma coisa que ela tivesse gostado na aparência dele, era a cor de seus cabelos. Eles eram loiros, com um toque ruivo. Emolduravam um rosto austero e rígido que a
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fazia lembrar um viking de histórias do passado. Devia ser tão bárbaro e cruel quanto eles.
Colm MacHugh estacou quando estava a apenas uns trinta centímetros de Stephen. Os dois homens se mediram e, em seguida, Colm ordenou:
- Saia da frente.
Stephen não se moveu um centímetro sequer. Colm era mais alto que ele e muito mais musculoso, mas o guarda permaneceu imóvel. Ele não aceitava ordens de ninguém a não ser de Gabrielle. O mesmo era verdadeiro para os outros guardas. Faust e Christien se aproximaram de Stephen enquanto Lucien se mantinha de costas para ela.
Brodick se aproximou de Colm enquanto Gabrielle dizia:
- Eles não querem nos fazer mal.
Uma parte dela realmente acreditava que os highlanders os haviam seguido para ajudá-los, não para lhes fazer mal. Mesmo assim, depois do horror que vivera naquele dia, tudo lhe parecia possível.
- Abram espaço e deixem que eu fale com ele - ordenou ela. Cautelosos e mantendo os olhos pregados nos highlanders, os guardas se afastaram.
- Que língua estão falando? - perguntou Brodick, em gaélico. Gabrielle respondeu também em gaélico.
- É a língua da pátria de minha mãe, St. Biel.
Seu domínio sobre a língua deles era excelente. Brodick imaginou que seu pai lhe tivesse ensinado. Sua esposa, Lady Gilhan, se beneficiaria de algumas aulas com Gabrielle. Apesar disso, seus homens ainda estremeciam ocasionalmente quando ela lhes dirigia a palavra.
Virando-se para Colm, Brodick comentou:
- Ela não é totalmente inglesa, apenas metade.
Estava além da compreensão de Colm o motivo por que Brodick achava aquilo importante. Ser metade inglesa significava o mesmo que ser totalmente inglesa. Colm respondeu com um encolher de ombros.
Brodick deu um passo em direção a Gabrielle. Quando os guardas dela reagiram, ele olhou para eles. Os seguidores do Lord se ofenderam e avançaram.
- Já chega! - gritou Gabrielle. Levantando a mão, ela repetiu a ordem: - Já chega!
Como falara em gaélico, ficou óbvio para Brodick e Colm que ela não dera as ordens para seus guardas, e sim para seus soldados. O tom assertivo de Gabrielle deixou Brodick surpreso, mas irritou Colm.
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Apenas depois de um sinal de seus lords os homens se afastaram, todos com os olhos fixos nos guardas dela. Gabrielle imaginou que eles talvez estivessem esperando por uma oportunidade de atacar.
- Sabe quem somos, Lady Gabrielle? - perguntou Brodick. Ela assentiu de cabeça.
- Vocês são os cruéis -, quer dizer, o senhor é meu primo, o Lord Buchanan. Já ouvi muita histórias sobre o senhor. - O comentário não apagou a carranca dele. - Histórias muito impressionantes sobre sua sagacidade e força.
Ele cruzou as mãos nas costas.
- E quem lhe contou tais histórias?
- Meu pai, o Barão Geoffrey.
- Então, são histórias verdadeiras. Ele não mentiria.
Ela sabia que teria de reconhecer o outro lord, e um pavor percorreu sua espinha quando ela finalmente se virou para encontrar os olhos perfurantes de MacHugh.
- Também sei quem é o senhor.
A resposta de MacHugh foi um leve movimento de sobrancelha. Mas ela não se deixou intimidar
- O senhor é o Lord MacHugh, que tem uma maneira muito peculiar de cumprimentar seu irmão.
Colm não entendeu o comentário.
- E como foi que o cumprimentei?
- Com um soco.
Ah. Quer dizer que ela estivera espiando quando Liam deixara a abadia.
Por uma fração de segundo, Gabrielle viu um brilho de afetividade nos olhos dele. Foi o suficiente para que ela percebesse que ele não era um ogro completo.
O Padre Gelroy abriu caminho entre os homens dos clãs. Abaixou a cabeça em respeito a Gabrielle e se dirigiu a Colm.
- Lord MacHugh, esses são os bons homens que protegeram seu irmão enquanto ele se recuperava dos ferimentos, na abadia. Eu os mencionei ao senhor antes, mas queria ter certeza de que o senhor não se esqueceu.
Afinal de contas, parecia que, bem lá no fundo, o padre tinha um pouco de coragem, pensou Colm. Pois se atrevera a lembrá-lo de que devia gratidão a esses homens. Colm detestava ficar devendo alguma coisa a alguém. Até que fosse paga, uma dívida sempre pesava muito.
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Ele não agradeceu aos guardas, mas assentiu com a cabeça, reconhecendo o que haviam feito. Os outros Buchanan e MacHugh, ouvindo o que o padre dissera, também relaxaram um pouco.
- Alguém tentou chegar ao meu irmão enquanto montavam guarda? - ele perguntou aos quatro.
Gabrielle começou a responder, mas decidiu que seria melhor deixar que eles falassem.
- Stephen, por acaso alguém tentou machucar Liam enquanto você e os outros o protegiam?
Ele hesitou um pouco antes de responder. Em seguida, assentiu rapidamente:
- Na primeira noite, vieram dois homens.
- E o que eles disseram? - Brodick perguntou a Gabrielle.
Ela ficou tão surpresa com a resposta do guarda que ignorou Brodick.
- Por que você não me disse nada?
- Não achamos que fosse necessário - disse Lucien.
- A princesa nos pediu que o protegêssemos, e foi isso que fizemos - disse Stephen.
- Nós cuidamos do caso - acrescentou Faust.
Brodick e Colm já haviam esperado demais por uma resposta.
- Diga-nos o que eles disseram - ordenou Colm.
Ela rapidamente se desculpou e pediu a Stephen e aos outros que se dirigissem diretamente aos lords.
Stephen se virou para Colm e, em gaélico, disse:
- Lord MacHugh, na primeira noite em que montamos guarda, dois homens vieram para pegar seu irmão.
Caso tenham ficado surpresos que os guardas de Gabrielle também falassem o gaélico, não deixaram transparecer. Colm cruzou os braços e esperou por explicações.
- Eles estavam vestidos como monges, mas traziam facas escondidas nas mangas - disse Lucien.
- Lucien e eu estávamos de guarda - explicou Christien.
- Antes de agir, esperamos para ter certeza de que pretendiam matar seu irmão - disse Lucien.
- E o que fizeram quando perceberam que sim? - perguntou Brodick.
- Nós os matamos - respondeu Christien, com franqueza.
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Colm assentiu com a cabeça, aprovando.
- Eles disseram alguma coisa? Vocês ouviram algum nome? - ele perguntou.
- Mencionaram de onde eram ou quem os mandou? - perguntou Brodick.
- Não - respondeu Lucien. - Falavam a mesma língua dos senhores, mas com sotaque diferente.
- Descreva os homens - ordenou Brodick.
Lucien falou de dois homens com cabelos compridos e barbas, troncudos, mas não excepcionalmente altos.
Quando Lucien acabou de falar, Christien acrescentou:
- Tinham aparência bastante normal.
- Nenhuma marca em sua pele ou armas - explicou Lucien.
- Meu irmão estava desacordado durante a luta? - perguntou Colm. Christien se ofendeu com a pergunta.
- Não houve luta. Nós não lhes demos tempo para lutar.
- Quer dizer que foi um ataque surpresa - disse Brodick, aprovando com um gesto de cabeça.
- Não - disse Lucien. - Eles nos viram chegar. Colm admirava a presunção deles.
- E o que fizeram com os corpos?
- Como não podíamos deixar Liam desacompanhado, mantivemos os corpos num canto do quarto até que Stephen e Faust chegassem para nos substituir - disse Christien. - Depois, Lucien e eu carregamos os corpos para fora da abadia e os atiramos na ravina. Ainda estava escuro; tenho certeza de que não fomos vistos.
- Jogamos terra sobre eles, masíos animais já devem tê-los encontrado. As perguntas continuaram, mas Gabrielle não prestava atenção. Ela ainda
estava se recuperando do fato de seus guardas terem admitido o assassinato dos dois intrusos. Definitivamente, ela achava que não poderia agüentar mais nenhum choque. Estava simplesmente exausta. Tudo o que queria era encontrar um lugar tranqüilo onde pudesse se sentar por alguns minutos. O mundo desabava ao seu redor e, antes de tentar fazer planos, ela precisava de tempo para entender os terríveis eventos do dia.
Entretanto ela sabia que, para entender os terríveis eventos do dia, precisaria de muito mais tempo.
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Quando as perguntas dos lords pareciam finalmente ter chegado ao fim, ela chamou Stephen.
- Posso falar com você? - perguntou.
Gabrielle afastou-se um pouco com Stephen de modo que não pudessem ser ouvidos, mas, para ter certeza absoluta, usou a língua de St. Biel.
- Por que você não me disse nada sobre os intrusos?
- Sinto muito, princesa, mas, achei que, se os corpos deles fossem encontrados, estaria muito mais segura não sabendo do caso.
- Você os reconheceu? Seriam os mesmos que estavam em Finney's Fiat?
- Demos uma boa olhada neles, mas não achamos que fossem. A princesa deve se lembrar de que foi a única a ver os rostos deles.
- Pela descrição que Lucien deu aos lords, não acho que sejam os mesmos homens que vi. Mesmo assim, pensei que pudessem ter nos seguido até a abadia.
Stephen balançou a cabeça.
- Isso é impossível. Christien cuidou o tempo todo para que não fôssemos seguidos. Ele os teria visto.
- Então, como esses homens sabiam que Liam estava lá?
- Alguém deve ter visto Liam, ou nos visto levando-o para dentro. É muito difícil guardar segredo em um lugar tão grande e com tantos estranhos entrando e saindo o tempo todo.
- Isso é verdade, mas agora ele está seguro, não é mesmo? E isto é tudo o que importa.
- E a princesa? Pelos cortes e hematomas que vejo, devo pensar que não está segura. Vai nos contar o que aconteceu?
Temendo sua tarefa, ela confessou a Stephen o que acontecera na abadia. Ao relatar os xingamentos de que fora vítima, ela não teve coragem de olhar para os olhos dele, e sua voz tremeu ao mencionar o monge que confirmara a história de Islã.
Stephen chegou à mesma conclusão que ela.
- Ele deve tê-la visto quando estava a caminho de visitar Liam.
Ele era o mais pragmático entre os quatro guardas e, nos momentos de crise, o que menos se deixava desestruturar, mas não foi capaz de conter sua ira.
- É nosso dever cuidar de sua segurança, princesa, e fomos deliberadamente mantidos no escuro. Se tivéssemos sido avisados do que aconteceu na abadia...
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Gabrielle o interrompeu.
- Você e os outros teriam sido mortos ao tentarem me defender. E eu não poderia deixar que isso acontecesse.
Frustrado, ele respondeu, direto:
- É nossa responsabilidade defendê-la.
Christien, Lucien e Faust se aproximaram, correndo. Fausto parecia horrorizado ao dizer:
- Stephen, você levantou a voz para a Princesa Gabrielle.
- Quando vocês ouvirem o que ela acabou de me contar, também ficarão furiosos. Os homens se atreveram a lhe atirar pedras! - reclamou ele.
Gabrielle foi salva de ter que novamente contar seu pesadelo quando, bastante descontente, o Lord MacHugh se aproximou.
- Ainda preciso descobrir como meu irmão chegou à abadia. Vocês ouviram alguma coisa durante o tempo em que estiveram lá?
Gabrielle respondeu:
- Por favor, lord, peço que o senhor não se esqueça de que pouquíssimas pessoas sabiam que ele ocupava um dos dormitórios. Talvez Liam se lembre de alguma coisa. Sugiro que o senhor pergunte a ele.
Colm voltou sua atenção para os quatro guardas.
- Meu irmão me disse que tentou falar com vocês. Por que ninguém lhe respondeu? Liam pensou que não entendessem a língua dele, mas, considerando que vocês entendem e falam claramente o gaélico, quero saber por que não falaram com ele.
Faust olhou para Stephen. Após receber permissão, com um rápido assentir de cabeça, ele disse:
- Porque não quisemos.
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Capítulo 28
Os guardas de Gabrielle haviam sido arrogantes, grosseiros e brutalmente honestos. Colm não pôde evitar gostar deles. Se não soubesse, teria pensado que haviam nascido e sido criados como highlanders. E, como ele não considerava defeitos quaisquer dessas características, não havia necessidade de meter um soco no meio da garganta de Faust por causa de sua atitude insolente.
Havia muita coisa a saber sobre o envolvimento deles com Liam, mas ele decidiu que os colocaria de lado para se concentrar em Gabrielle. Quanto mais cedo lhe explicasse o que iria acontecer com ela, melhor. Ele tinha uma conta a pagar e, por tudo o que fosse sagrado, ele pagaria sua dívida.
Enquanto os outros se preparavam para retomar viagem, esperou que os guardas retornassem aos seus cavalos para se dirigir a ela.
- Princesa.
- Sim, Lord MacHugh?
- Caminhe um pouco comigo.
Aquilo não fora um pedido, mas uma ordem dada com voz ríspida.
- Verdade?
Ele assentiu com a cabeça.
- Verdade.
O lord estava acostumado a ter as coisas ao seu modo. E por que não haveria de estar, pensou Gabrielle. Ele parecia ser forte o suficiente para levantar um cavalo sem suar nem uma gota. Ela era capaz de sentir a força na maneira como ele se movia em seu balanço arrogante, mas não se deixaria intimidar por isso. De certa forma, a força dele lhe dava segurança. Que sentido fazia aquilo tudo?
Por outro lado, hoje ela vivera um dos piores dias de sua vida e nada parecia fazer sentido para ela.
- Quando estiver comigo, você vai falar apenas em gaélico - ordenou Colm.
Ela tentou não se ofender com o ríspido comando. O Lord estava acostumado que seu clã seguisse suas ordens sem questionar, mas teria ele se esquecido de que ela não era um membro do clã? Se ele continuasse a ser tão grosseiro, ela teria que lembrá-lo sobre isto.
Sem dizer palavra, ela caminhou pela pequena clareira até uma sombra ao pé de algumas árvores. Sentia os olhos dos soldados pregados nela.
Estacou e se virou para olhar o lord
A poucos passos dela, Colm dedicou-lhe atenção exclusiva. Ele tentou não transparecer nenhuma reação física, o que foi praticamente impossível. Ela era linda. Cabelos longos e levemente ondulados, cor da noite profunda. Pele suave como um creme. Olhos tão violeta e expressivos que pareciam soltar faíscas, e aquela boca, Deus meu, aquela boca poderia encher a cabeça de qualquer homem de fantasias. Mesmo com a mandíbula inchada e o corte na bochecha, ela era irresistível.
Mas ele não podia se deixar levar por devaneios. A última coisa de que precisava era uma mulher confundindo seus pensamentos. Com o tempo, ele se acostumaria com a aparência dela, mas não tinha tanta certeza quanto aos seus homens. Eles já estavam de queixo completamente caído. Colm se virou para externar sua desaprovação, mas eles estavam muito concentrados para lhe dispensar atenção, totalmente mesmerizados por ela.
Paciente, Gabrielle esperou que o Lord MacHugh falasse. A maneira intensa com que ele a olhava fazia com que se sentisse desconfortável.
Tentando sorrir, ela disse:
- O que o senhor deseja me dizer?
Ele não viu razão para amenizar a conversa.
- Você vai pra casa comigo.
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Gabrielle tinha certeza de não ter ouvido corretamente.
- Sinto muito. O senhor poderia repetir o que acabou de dizer?
- Você vai pra casa comigo. Totalmente aturdida, ela perguntou:
- Por quê?
Franzindo o cenho, ele disse:
- Porque eu decidi assim.
- Mas por que o senhor quereria me levar para a sua casa? - ela voltou a perguntar.
Ele soltou um suspiro longo e desanimado. Já devia saber que não seria fácil. Os negócios com Buchanan sempre acabavam ficando complicados e este não haveria de ser diferente.
- Seu primo sugeriu...
- O feroz Buchanan?
- Sim...
- O que, exatamente, ele sugeriu?
- Pare de me interromper. Imediatamente, ela se fez contrita.
- Sinto muito, lord. A notícia me pegou de surpresa e eu... - ela parou de falar. - Mas não me desculpo por isso.
O rosto dela ficou vermelho de constrangimento e Colm sabia que, se não parasse de notar as reações dela, nunca terminaria esta conversa. Cruzando as mãos nas costas, ele ficou carrancudo e tentou mais uma vez.
- Brodick sugeriu que seria mais seguro se vivesse com meu clã, sob minha proteção.
Ela cruzou os braços e esperou alguns segundos antes de responder.
- E por que o Lord Buchanan faria tal sugestão a respeito da minha segurança?
- Seu pai não estava na abadia, e, como Brodick é seu parente, tem sobre os ombros a responsabilidade de protegê-la.
- Brodick não é meu guardião. Meu guardião é meu pai. Colm assentiu com a cabeça.
- Sim, isso é verdade - ele disse, impaciente -, mas ele não estava aqui, estava? - E, antes que ela pudesse responder, acrescentou: - Éramos nós quem estávamos aqui.
- Sim, eu sei que estavam. Quando entrei no pátio, olhei para cima e
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vi vocês, mas pensei... quer dizer, presumi que estivessem de partida. - De repente, completamente exausta, ela deu um passo atrás e balançou a cabeça.
- Por que pensei tal coisa? Por que presumi que estivessem de partida? Não olhei mais para cima depois que a gritaria começou. Frenética, ela sussurrou:
- Em que momento partiram?
- Depois de você. Ela sentiu-se nauseada.
- Quer dizer que testemunharam... - Gabrielle não conseguiu terminar a sentença.
- Sim.
Ela deu outro passo atrás. Será que todos os homens do lavra também haviam visto sua humilhação? É óbvio que sim. Por isso todos olhavam para ela neste exato momento. Será que pensavam que ela fosse uma prostituta? Uma Jezebel? E por que não a xingavam como os outros?
Ela parou de se afastar e empertigou os ombros. Decidiu que não se defenderia, ou se diria inocente. Tampouco se acovardaria. Se eles quisessem pensar o pior sobre ela, como fizera a turba ao cobri-la de insultos e pedras, que pensassem. Reuniu o pouco de coragem que lhe restava, que não era muita. Mais uma vez, ela se sentia coberta de vergonha por uma coisa que não fizera.
Colm viu os olhos dela serem invadidos pela tristeza e a cor sumir de seu rosto. Sentiu um desejo irresistível de tentar fazer com que ela se sentisse melhor.
- Você me confunde - murmurou ele.
Gabrielle não podia deixar de concordar com ele, pois sentia seus pensamentos dispararem em todas as direções. Por que esse homem lhe oferecia sua casa? O que poderia ganhar com isso? Nada fazia sentido.
É verdade que ela e seus guardas precisavam de um abrigo seguro enquanto decidia o que fazer. Viver com os MacHugh seria uma solução segura, mas temporária, desde que ela entendesse os motivos do Lord para fazer a oferta. No estado em que estava, não se atrevia a confiar em ninguém. Seria MacHugh honesto, ou teria motivos ocultos?
- Imagino que o senhor seja um bom homem e líder honroso... - ela começou a falar.
- Como é possível que você saiba como sou? Era a brecha pela qual Gabrielle esperava.
- Eu não poderia saber...
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- Você acabou de dizer...
- E, como eu não poderia saber, o senhor não pode ficar ofendido com a minha insistência em entender seus motivos. Vou repetir a pergunta, lord- por que o senhor quer... eu...
- Eu não quero você. Querer não tem nada a ver com isso. Estou pagando uma dívida a Brodick Buchanan, só isso.
- Ah. - Ela não sabia se devia se sentir aliviada, ou ofendida. As coisas aconteciam tão depressa que ela não tinha tempo para pensar. - O senhor não quer... quer dizer, está pagando uma dívida?
Não foi isto o que acabara de dizer? A mulher era a criatura mais confusa que Colm encontrara na vida. As emoções dela oscilaram entre a humilhação, o medo e o desespero e, agora, ele podia jurar que se mostrava desapontada. Presumira que, ao ser informada de que deveria viver com ele, ela não se mostraria favorável, mas não estava preparado para lidar com aquela reação bizarra. Isso estava sendo bem mais complicado do que ele imaginara.
- Obrigada, lrd, por me oferecer sua casa. Mas não se preocupe, o senhor não terá problemas por muito tempo.
- Eu não estou lhe oferecendo um abrigo temporário, e você não vai partir dentro de pouco tempo. Virá para minha casa para ficar.
Um dos soldados o chamou. Colm respondeu levantando a mão para pedir silêncio.
- Vocês terão de esperar até que eu termine com isto.
Terminar com isto? Aparentemente, pensou Gabrielle, o "isto" ao qual ele se referia, era ela.
- Fico muito agradecida por sua hospitalidade - ela disse -, mas não posso ir com o senhor.
Sua recusa ao convite lhe pareceu a coisa certa a fazer porque acabara de pensar em outra solução. Ela e seus guardas iriam para a casa do Lord Buchanan. Os Buchanan poderiam mantê-la tão segura quanto os MacHugh.
Mas por que Buchanan não se oferecera?
Colm não tinha certeza de como proceder. Na verdade, estava admirado com o fato de ela ter recusado sua proteção. Será que a tola não sabia do perigo que corria? Será que compreendia o sentido da palavra "proscrita"?
Ele decidiu trazer-lhe um pouco de clareza, mas, antes que pudesse explicar a situação precária em que se encontrava, ela perguntou:
- Por que o Lord Buchanan não me ofereceu sua casa e proteção? Afinal, sou parente dele.
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Colm olhou sobre os ombros, localizou Brodick na multidão de homens que esticava os ouvidos tentando ouvir a conversa e inclinou a cabeça na direção de Gabrielle.
Pela expressão de Colm, Brodick sabia que a conversa não estava indo bem. Ele atravessou a clareira e, com o olhar fixo em Gabrielle, perguntou:
- Por que isso está demorando tanto?
- Ela está sendo difícil - Colm lhe disse. Imediatamente, ela protestou:
- Devo discordar, lord. Não acho que esteja sendo nem um pouco difícil
- Então, qual é o problema? - perguntou Brodick a Colm. - Você lhe disse o que vai acontecer?
Ah, justamente aí, não fizera a coisa certa. Ele havia informado a princesa sobre a sugestão de Brodick em vez de exigir a obediência dela.
- O Lord MacHugh gentilmente ofereceu...
- Eu, o quê? - rosnou ele.
- O senhor gentilmente ofereceu... - recomeçou ela.
Quando os olhos dele se estreitaram e as marcas em sua testa ficaram mais profundas, ela entendeu. Era óbvio que palavra "gentilmente" soara como um insulto. De fato, esses highlanders eram um grupo peculiar. Ela se sentiria aliviada quando pudesse se ver livre deles.
Gabrielle não ousou sorrir
- O Lord MacHugh me ofereceu proteção e eu recusei. Recusei educadamente - enfatizou ela.
- Brodick, ela quer saber por que você não lhe ofereceu sua casa e proteção - disse Colm.
- Você não explicou a ela o plano todo?
- Não consegui chegar tão longe. Esta mulher tem tendência a interromper.
- Gabrielle - Brodick começou a falar, usando o que acreditava ser seu tom de voz mais moderado -, eu poderia ter lhe oferecido minha casa e minha proteção - admito que minha esposa ficaria feliz com sua companhia. Você estaria segura...
- Seria um prazer aceitar sua oferta, desde que o senhor entenda que será apenas por alguns dias. Concorda?
Ela não lhe dera tempo para que ele lhe dissesse que MacHugh faria mais
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do que protegê-la; ele poderia lhe dar seu nome. Em vez disso, ela aceitara o convite que ele lhe fizera.
- Ela está decidida a recusar ajuda - disse Colm. Brodick assentiu, concordando.
Colm se dirigiu a Gabrielle.
- E o que vai acontecer depois de alguns dias? O que planeja fazer?
- Primeiro, preciso encontrar meu pai e avisá-lo do perigo.
- Encontrar seu pai? Você não sabe onde ele está? - perguntou Brodick.
Gabrielle balançou a cabeça.
- Ele ia se encontrar com o Rei John para lhe contar o que aconteceu a Monroe e devíamos nos encontrar a caminho da Inglaterra.
- E você pretende perambular por aí até encontrá-lo? - perguntou Colm.
- Mesmo que o encontre, não conseguiria chegar à Inglaterra. Você foi exilada - Brodick lembrou-a. - Se for pega, será executada e, se for capturada com seu pai, ele também pagará um alto preço.
Eles a estavam forçando a enxergar a realidade, mas ela não conseguia achar correto o fato de que alguém a salvasse por algo que não fizera.
- Meu pai precisa ser informado sobre os acontecimentos.
- É provável que já esteja sabendo de tudo - comentou Brodick. - Se ainda não sabe, logo saberá. Notícias ruins se espalham rápido. Ele também ficará sabendo que estávamos lá - acrescentou ele, fazendo um gesto com a cabeça para Colm -, e posso apostar que virá até mim à sua procura.
Aquilo fazia sentido.
- Sim, é isso o que ele faria, e esta é uma outra razão para que eu vá para a sua casa.
Frustrado, Brodick suspirou. Ele não sabia como fazê-la entender.
- Sabe, Gabrielle, numa situação horrível e calamitosa... quando não existe outra solução possível e que implique risco de morte - enfatizou ele -, você pode ficar na minha casa, pois é prima de minha esposa. Entretanto...
Brodick foi interrompido por Colm.
- Já gastamos muito tempo com esta conversa, Brodick. Se você não vai dizer a ela, digo eu.
Franzindo a testa, ela perguntou a Colm.
- Dizer o quê, lord? Brodick respondeu.
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- Se você se aproximar de seu pai, vai colocá-lo em perigo. É isso o que quer, Gabrielle?
- Não, é claro que não, mas...
Foi quando ela entendeu. Finalmente, tomava consciência da enormidade do problema. Deus amado. O que faria ela? Ao seu lado, ninguém estaria a salvo. Até mesmo os Buchanan e os MacHugh corriam perigo.
MacHugh foi chamado por seu primeiro-comandante, Braeden. Ao se virar, Colm viu outro soldado conversando com Braeden e ambos olhavam para Gabrielle. Então, Dylan, o comandante de Brodick se juntou a eles.
- O que foi? - gritou Colm.
Enquanto caminhava ao encontro dele, Braeden explicou.
- Os ingleses. - Antes de continuar, ele olhou para Gabrielle. - Os barões estão à procura dela, e ambos reuniram um pequeno exército.
Brodick perguntou:
- Estão vindo nesta direção?
- Não, Lord - ele respondeu. - Um dos barões está levando seus homens para o sul, e o outro está indo em direção aos Monroe.
- Mas, quando não encontrarem Gabrielle, acabarão vindo para cá - disse Brodick.
Com um gesto de cabeça, Colm concordou. Ao se aproximar de Braeden para lhe dar ordens, ele deu as costas a Gabrielle.
- Agora você entende? - perguntou Brodick, irritado. Ao que tudo indicava, não, ela não entendia.
- E por que eles estariam à minha procura? Vocês estavam lá. Ouviram tudo o que disseram e, com certeza, ouviram que, em nome do Rei John, fui condenada. Eles não disseram que, aos olhos deles, eu não existo mais?
- Agora, você está vulnerável - explicou Brodick. Colm decidiu ser mais direto.
- Qualquer homem que seja forte o suficiente para lutar contra eles tem o direito de ficar com você. Preciso ser mais explícito?
Aterrorizada, ela histericamente balançou a cabeça.
- Já que você agora não responde a nenhum rei, ou pertence a nenhum país, não tem ninguém para protegê-la contra os predadores - continuou Brodick, com uma voz muito mais gentil do que a que Colm usara.
Lutando contra o terror que sentia, ela abaixou a cabeça.
- Como poderei proteger meu pai e meus guardas? Eles vão matá-los. - Num sussurro, ela expressou seus medos.
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- Com todos os problemas que tem, você ainda se preocupa com os outros? - perguntou Brodick.
Ela não respondeu. Em vez disso, respirou e olhou para os lords.
- Os senhores precisam partir imediatamente. Sim, é isto o que devem fazer. - Agora, a voz dela se tornara forte e determinada. - Todos que ficarem ao meu lado correrão perigo. Vão. Deixem-me sozinha.
- Quer dizer que ela está nos dispensando? - perguntou Colm, incrédulo.
- Sim, foi o que ela acabou de fazer - disse Brodick. - Acho que ela não entendeu nada.
Depois de pensar um pouco, Colm decidiu que Gabrielle não percebera que os insultava ao sugerir que fugissem diante do primeiro problema. Tanto ele quanto Brodick viam com bons olhos a oportunidade de lutar contra os ingleses, mas nenhum deles cairia na tentação enquanto Gabrielle estivesse com eles.
Exasperado, Colm disse:
- Gabrielle, no futuro, você não deve questionar minha autoridade. Ela demorou um pouco para entender.
- No futuro? Que futuro?
- No seu futuro como minha esposa.
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Capítulo 29
Assunto encerrado. MacHugh simplesmente lhe disse o que iria acontecer e se afastou.
Considerada a situação, Gabrielle pensava ter se saído bastante bem. Não gritara ou desmaiara quando, com muita calma, o Lord lhe informou que ela passaria o resto de sua vida ao lado dele. Talvez tivesse empalidecido, mas não desmaiara.
Ela se consolava com uma coisa: de jeito nenhum se casaria com o Lord MacHugh. Ela não gostava do homem e sabia que ele não gostava dela. A dívida que tinha com Brodick devia ser imensa, senão por que ele arruinaria sua vida casando-se com uma mulher que mal conhecia e sobre a qual ouvira mentiras tão terríveis? Pelo que ela sabia, MacHugh a considerava uma meretriz.
Não, um casamento estava fora de questão.
Que mal poderia fazer se ela, por algum tempo, deixasse MacHugh pensar que concordava com tudo? Esta pequena trapaça lhe daria tempo para planejar. Passados dois ou três dias, ela lhe diria a verdade... quando estivesse de partida, é claro.
Ela analisou os prós e os contras. por um lado, ela e seus guardas estariam a salvo dos barões. Teriam abrigo e proteção. Se os barões descobrissem onde estava hospedada não se atreveriam a entrar nas terras de MacHugh, pois, com certeza, sabiam que não sairiam vivos dali.
Por outro lado, ela estaria vivendo com... ele.
O Lord Buchanan parecia muito satisfeito com a decisão do amigo. Com um sorriso nos lábios e gestos animados, ele indicou a seus soldados que era chegada a hora de partir. Gabrielle deu um tapinha no ombro dele. Ela estava prestes a estragar o sei bom humor.
- Primo Brodick? O sorriso dele desapareceu.
- Não é preciso me chamar de primo.
- Posso fazer uma pergunta?
- Sobre o quê? - perguntou ele, desconfiado.
- Sendo meu primo, eu entendo que se sinta responsável por mim.
Gabrielle se perguntou por que motivo ele teria produzido um esgar quando ela mencionara o parentesco. Será que ele havia se esquecido de que era casado com uma inglesa? Será que fazia careta sempre que ela se dirigia a ele?
Ela decidiu ir direto ao assunto.
- Que dívida o Lord MacHugh está saldando ao se tornar responsável por mim? Ele sequer me conhece.
- Pergunte a ele - sugeriu Brodick. - Se ele quiser, poderá lhe explicar.
- E, Lord - continuou ela -, se tiver a chance, o senhor poderia informar ao meu pai que não venha atrás de mim?
Brodick já começara a se virar, mas mudou de idéia.
- Gabrielle, MacHugh não deixará que nada de mal lhe aconteça. Ele sabe proteger o que é seu.
Dito isso, se afastou, deixando Gabrielle pasmada. O que é seu? Quer dizer que, agora, ela se tornara um objeto?
Apesar do peso que sentia na boca do estômago, ela disse a si mesma que precisava ser forte. Manteria a mente aberta a respeito de MacHugh. Se não chamasse muito a atenção para si, talvez ele não prestasse atenção a ela e aos guardas e, se ela se mantivesse fora do caminho dele, talvez se mantivesse afastado.
- Gabrielle, está na hora de partirmos - disse MacHugh, bem atrás dela. Ao se virar, ela quase caiu nos braços dele.
- Não ouvi o senhor se aproximar - tartamudeou ela. - O senhor se move como um leão.
Surpreso, ele perguntou.
- Você já viu um leão?
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- Na verdade, já. Certa vez, em St. Biel meu pai me mostrou dois leões. Eles são muito bonitos. E ferozes, completou ela. Parecidos com o senhor. - Gabrielle o seguiu até os cavalos. - Lord, quero que o senhor saiba que não vou me defender. Não me importo com o que os barões disseram.
- Sim, você se importa. E muito - respondeu ele, sem parar de andar. - Sabemos que a mulher mentiu.
Rapidamente, ela levou a mão ao coração.
- O senhor sabe?
- É claro que sim. Soube desde o começo.
Ao que tudo indicava, ele havia encerrado o assunto. Antes que Gabrielle pudesse perceber o que estava acontecendo, ele a suspendeu pela cintura e a colocou sobre Rogue. Braeden entregou-lhe as rédeas.
- Seus guardas terão permissão para acompanhá-la - disse Colm. Será possível que ele realmente pensara que ela iria a qualquer lugar caso seus guardas não tivessem permissão de acompanhá-la? Mas não teve tempo de perguntar, pois ele já montara seu cavalo e se afastara.
Os outros entraram em formação atrás dele. Depois de cavalgarem pesado pelos vales, o ritmo da jornada diminuiu ao chegarem às montanhas. Para vencer a estrada estreita e traiçoeira que tinham à frente, os cavaleiros se puseram em fila indiana. Depois de uma curva extremamente fechada, ela descobriu que estavam sobre um penhasco com vista para Finney Fiat Aquele era o ponto vigiado pelos malfeitores à espera de MacHugh enquanto tinham Liam em suas mãos. Ela espremeu os olhos para se proteger do sol e para ver se, daquela distância, seria capaz de reconhecer alguém. Impossível, pensou ela. Somente uma águia poderia ter visto o rosto de Liam.
Ao perceber que atrasava o cortejo, ela continuou a marcha. Rogue escorregou perto da primeira frincha na rocha, derrubando pedras pelo precipício, à direita. Gabrielle olhou para o lado e se encolheu. A queda para o fundo do abismo era abrupta. Seu cavalo continuou a ter problemas para encontrar pontos de apoio. Ela deixou que ele seguisse ritmo próprio, mas, mesmo assim, seu passo falseou mais umas duas vezes antes que, finalmente, a estrada se alargasse e ficasse mais nivelada. A essa altura, o coração de Gabrielle estava aos pulos.
Quando chegaram a uma encosta gramada, ela se inclinou para a frente e elogiou Rogue, dando-lhe tapinhas afetuosos. Ao endireitar o corpo, percebeu que MacHugh a observava com perplexidade.
Eles tocaram adiante. O tempo tornara-se frio e úmido, o que Gabrielle
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pôde rapidamente sentir em seus ossos. Sem sua capa pesada, em poucos minutos ela estava tremendo de frio. Ela achou que ninguém tivesse percebido sua condição deplorável até que MacHugh ordenou a Lucien que saísse de sua frente para que ele pudesse cavalgar ao lado de Gabrielle. O guarda não teve escolha. O garanhão de MacHugh o teria atropelado caso não tivesse se afastado.
- Você está con frio - afirmou ele.
Aquilo seria uma acusação? Ela não soube dizer.
- Sim, estou - ela disse, adicionando: - E me olhar desse jeito não vai fazer cessar os tremores, lord. Talvez...
Pode ser que ela tenha gritado, não tinha certeza. Tudo acontecera tão rápido. Em um segundo, ele estava ouvindo o que ela dizia e, no próximo, a estava desmontando, colocando-a sobre seu colo e cobrindo-a com sua manta.
O peito dele era como uma rocha, uma rocha quente. Assim como suas coxas. O calor que exalava do corpo dele a aquecia. Exausta, ela se deixou relaxar contra o corpo dele. O Lord tinha um cheiro agradável, uma mistura de urze com odor de floresta. Os barões que vieram à abadia para o casamento costumavam se banhar em perfumes e óleos. Eles achavam que fragrâncias fortes seriam capazes de disfarçar o mau cheiro causado pela falta de banho. Quando estava na mesma sala que eles, Gabrielle sempre se sentia nauseada. MacHugh não era nem um pouco parecido com os barões.
Subitamente, ela foi tomada pela culpa. Independente das razões que pudesse ter, não era correto que mentisse para ele.
- Eu não disse a verdade - gaguejou ela. - Vou ficar com o senhor por apenas dois ou três dias, lord, e não tenho nenhuma intenção de me casar com o senhor. Eu não o condenaria se, neste momento, o senhor me atirasse para longe deste cavalo. Espero que não o faça, mas juro que não o condenaria.
A resposta dele não foi a esperada. Puxando a manta sobre o rosto dela, ele simplesmente a ignorou.
Aproximando-se da lateral do cavalo do lord, Lucien disse a Colm, com olhar ameaçador:
- Precisa de ajuda, Princesa Gabrielle? Ela afastou a capa do rosto.
- Agora estou aquecida, Lucien. Não há motivo para preocupação. - Lançou para Colm um olhar de reprovação, mas, ao voltar a olhar para Lucien, tinha um leve sorriso nos lábios.
MacHugh segurou-a com mais força. Mesmo tendo tido um dia infernal,
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a mulher ainda conseguia sorrir. Se ela tinha medo do amanhã, não deixava transparecer.
Por alguns momentos, Colm perdera o fio de seus pensamentos, mas rapidamente recompôs a postura austera e disse:
- Não preciso da permissão dos seus guardas para tocá-la.
- Tem razão. Mas precisa da minha.
É óbvio que tal comentário não merecia resposta, ela decidiu. A não ser que um rosnado significasse alguma coisa.
Eles contornaram uma outra colina e, de repente, tinham à frente de si a fortaleza de MacHugh. A torre de vigia era tão alta que parecia desaparecer numa nuvem. A propriedade era contornada por um muro de pedras e havia uma ponte levadiça sobre um largo fosso cheio de água escura por causa da coloração das pedras pretas do rio que havia em seu leito.
Colm fez um sinal para que os guardas de Gabrielle seguissem seus soldados para dentro. Ele seguia o ritual de ser sempre o último a cruzar a ponte. Assim que a cruzou, ele levantou o punho e ela foi fechada. O ruído agudo de metal contra metal fez com que Gabrielle se sentisse confinada num calabouço. Fechou os olhos e tentou expulsar a imagem sombria do pensamento. Este deveria ser seu santuário, não sua prisão.
Quando cruzaram a muralha mais baixa e começaram a subir a colina do castelo, o sol já se punha no horizonte. As cabanas pelas quais passavam estavam tingidas pela luz dourada do sol, e a grama da encosta à frente adquirira um brilho flamejante.
Os homens do clã abandonaram seu trabalho e se aproximaram para saudar seu Lord e olhar para ela. Crianças corriam atrás deles. Algumas mulheres sorriam. Coisa que logo mudaria, pensou ela, assim que soubessem do que havia sido condenada. Felizmente, quando isto acontecesse, ela já estaria bem longe do lord.
Pelos padrões de St. Biel, ou os do pai dela, a casa de Colm não era muito impressionante. A estrutura quadrada não era muito grande, mas havia um anexo em construção. Havia três muralhas feitas de pedras e, a última, feita de madeira, estava sendo reforçada com pedras enormes. Com o objetivo de içar as pedras ao piso de cima, um andaime com um guincho fora construído ali.
- Suas fortalezas são diferentes das que temos na Inglaterra.
- Como assim?
- Normalmente, os castelos da Inglaterra têm duas muralhas. A de fora circunda o fosso, mas existe uma outra muralha defensiva entre o fosso de
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baixo e o de cima. Ás vezes, existe até uma ponte levadiça para separar a casa do senhor das dos outros.
- Não preciso de duas muralhas.
- E o senhor tem apenas uma torre de vigia - comentou ela.
- Preciso de apenas uma.
- Espero que não pense que estou criticando sua casa. Estava apenas evidenciando as diferenças. Tenho certeza de que o senhor gosta muito daqui.
Como ele não concordasse, ela presumiu que ele estivesse pensando em coisas mais importantes. Ao passar por eles, o Padre Gelroy acenou para ela e, se seus braços não estivessem presos na capa de MacHugh, ela teria acenado de volta.
Os estábulos ficavam na metade do caminho entre o primeiro e o segundo fossos e eles passaram por uma guarnição de defesa a caminho do pátio do lord.
Na casa dele, não havia ninguém à porta para saudá-lo. Será que ele tinha outros parentes além de Liam? Ela não pensara em fazer a pergunta antes, mas imaginava que logo descobriria.
Segurando-a nos braços, MacHugh desmontou. Assim que foi posta no chão, ela deu um passo atrás para manter uma certa distância entre eles.
- Onde meus guardas ficarão alojados? Em sua residência? Ou prefere que tomemos duas cabanas desocupadas? Há algumas desocupadas? - Deus meu, ela estava nervosa. Não conseguia parar de falar. - Quer dizer, eu gostaria de descansar um pouco. Só preciso saber onde vou ficar.
O Padre Gelroy veio salvá-la de sua especulação.
- Princesa Gabrielle, está tão cansada e faminta quanto eu? Ela segurou o braço dele como se disso dependesse sua vida.
- Sim, estou - ela disse, com mais entusiasmo do que seria necessário. - Estava justamente perguntando ao lord onde devemos passar a noite.
- Vocês vão dormir dentro da casa - disse Colm, assim que conseguiu dizer alguma coisa.
Braeden apressou-se para abrir a enorme porta feita com tábuas de nogueira. Gabrielle agradeceu enquanto passava, mas parou abruptamente à soleira. Lá dentro estava tão escuro que ela não sabia por onde ir. Segurando a mão dela, Colm liderou o caminho.
O assoalho de madeira cedia ao peso de Colm e as botas dos soldados enchiam o lugar cavernoso de ruídos. A luz do sol se infiltrava pela porta
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aberta. Assim que os olhos de Gabrielle se adaptaram à escuridão, ela viu uma sala de teto baixo. A direita, havia um enorme depósito. As prateleiras estavam repletas de sacos de trigo e cevada; havia muitos barris de vinho empilhados. Pela quantidade de sacos, parecia que o clã de MacHugh poderia sobreviver a um cerco de seis meses, talvez mais. Apesar de Gabrielle duvidar de que os inimigos dele conseguissem chegar ao castelo por causa da trilha traiçoeira que tiveram de vencer.
A esquerda, uma abertura na parede levava a uma escada com degraus surpreendentemente largos. No segundo piso, havia um grande salão. Era espaçoso e a parede do fundo era quase toda ocupada por uma enorme lareira. Um fogo acolhedor aquecia o aposento.
A governanta - uma mulher robusta e já com certa idade, chamada Maurna - os recebeu e sugeriu que descansassem um pouco ao pé do fogo. Depois de lhe dar instruções, Colm saiu do salão. Stephen e Lucien o seguiram para cuidar dos cavalos.
Uma outra escada levava ao terceiro piso onde, como Maurna explicou, ficavam as armas. O Lord MacHugh dera ordens para que os guardas e o Padre Gelroy dormissem ali até que melhores acomodações pudessem ser providenciadas. Gabrielle dormiria no quarto ao lado.
Se tivesse que dormir numa baia no estábulo, ela não teria se importado. Tivera um dia difícil e estava exausta. Cansada, faminta e empoeirada como estava por causa da viagem, dormir em um quarto adjacente à sala de armas soava aos seus ouvidos como uma bênção. Quando Maurna informou que havia preparado uma refeição e que lhes mostraria onde lavar as mãos e o rosto, Gabrielle sentiu-se profundamente agradecida.
Durante a ceia, ao sentar-se ao lado dela, o Padre Gelroy parecia agitado.
- Aqui não existe uma capela - sussurrou ele. - Como não vi nenhuma a caminho do pátio, perguntei à governanta, e ela me disse que não existe nenhuma. Temo que sejam todos pagãos. Se isso for verdade, não poderei fazer o meu trabalho.
- Vai ser um desafio, mas creio que o senhor se sairá bem - ela lhe assegurou.
Ele se aproximou um pouco mais e sussurrou:
- Não acredito que o Lord tenha me trazido até aqui para cuidar das almas de seus seguidores. Desconfio que ele apenas queira que eu explique
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como Liam chegou à abadia. Ele sabe que não lhe contei toda a verdade sobre o irmão.
- Com certeza ele não irá coagi-lo. Maurna interrompeu a conversa.
- Alguma coisa errada com a comida? Milady mal tocou o seu prato.
- A comida está excelente - ela disse. - Apenas não estou tão faminta quanto pensei estar.
- Se me permite uma opinião, a princesa precisa dormir um pouco. Quer que eu a acompanhe até seu quarto?
Gabrielle assentiu com a cabeça. Dizendo boa-noite ao Padre Gelroy, a Christien e Faust, ela seguiu Maurna ao andar de cima. Lucien a alcançou. Trazia sua maleta com duas mudas de roupa e outras essencialidades necessárias durante a viagem à Inglaterra.
- O irmão do Lord está em casa? - Lucien perguntou a Maurna.
- Sim, senhor, ele está. E, desde que retornou, tem dormido muito. Nosso médico está cuidando dele.
Maurna indicou que a primeira porta pela qual passaram era o quarto do lord.
O quarto destinado a Gabrielle já fora usado como depósito; era úmido e cheirava a mofo. Maurna apressou-se a acender mais velas, que colocou sobre a mesa aos pés da cama.
- Tentei arejar o quarto para a sua chegada, mas parece que tudo o que consegui fazer foi torná-lo mais frio. Quer que eu cubra a janela com a tapeçaria?
- Pode deixar que eu mesma faço isso.
- Arrumei a cama e coloquei alguns cobertores extras em cima. Na cômoda atrás da porta, milady encontrará água para se lavar e, se me der alguns minutos, acenderei a lareira. Meu marido, Danai, já trouxe uma caixa de lenha para cima.
- Acenderei o fogo mais tarde.
- Mas, princesa... será apropriado que faça trabalhos comuns? Gabrielle sorriu.
- Claro que sim. Maurna franziu o cenho.
- Talvez eu não devesse mencionar, mas notei que as costas de seu vestido estão manchadas de sangue. Milady se cortou?
Gabrielle se perguntou qual seria a reação da mulher caso lhe dissesse a
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verdade, que o sangramento fora causado pelas pedras que a multidão atirara nela.
- Devo ter me cortado - respondeu ela.
Maurna limpou as mãos em um pano que trazia preso à cintura e aproximou-se de Gabrielle.
- Já que não tem uma criada para assisti-la, eu a ajudarei. Deixe-me ajudá-la a tirar o vestido para ver o ferimento.
Não houve como demovê-la da idéia.
- Não quero dar trabalho - protestou Gabrielle. - Posso cuidar de mim mesma.
- E como pretende fazer isso? - perguntou Maurna enquanto puxava o bhaut de Gabrielle pela cabeça. - Como vai conseguir alcançar as costas para limpar o corte?
Ela desistiu de argumentar.
- Obrigada, Maurna.
Ao ver as costas de Gabrielle, a governanta cacarejou como uma galinha choca.
- Pobre princesa. Suas costas estão todas machucadas. - Foi até a pia e molhou um pano na água. Rapidamente, voltou até Gabrielle. - Como foi que isso aconteceu, Lady Gabrielle? Caiu do cavalo? - Decidindo que fora exatamente aquilo que acontecera, ela continuou: - É claro que sim. Fique aqui sentada enquanto eu pego uma pomada para passar nos ferimentos. Enrole-se num cobertor para não ficar doente. Volto rapidamente.
Era bom deixar que outra pessoa cuidasse dela, admitiu Gabrielle. Fazia com que se lembrasse de casa.
De repente, foi invadida pela saudade e a preocupação que sentia com o pai. Fez uma prece a Deus, pedindo que cuidasse dele e exausta, sentou-se na cama, fechou os olhos e esperou pelo retorno da governanta. Finalmente, quando tudo ficou silencioso, Gabrielle pôde relembrar os eventos do dia. Talvez pudesse compartimentá-los e compreendê-los.
Impossível. Era simplesmente impossível entender - como se uma peça do quebra-cabeça estivesse faltando. Os barões haviam sido muito rápidos em condená-la. Não era possível que tudo estivesse relacionado a Finney's Fiat, era? Então, o que queriam aqueles porcos gananciosos?
Maurna retornou com a pomada e, depois de cuidar das costas de Gabrielle, insistiu em lavar seu rosto como se ela fosse uma criança. Passando um pouco de pomada no corte abaixo do olho, Maurna disse:
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- A princesa conseguiu proteger o rosto ao cair, não foi? Com um gesto de cabeça, Gabrielle concordou.
- Dói muito? - A voz dela estava carregada de compaixão.
- Nem um pouco - garantiu Gabrielle. Doía bastante, mas Gabrielle não queria que a governanta se preocupasse com ela. Ou continuasse a dar uma de galinha choca.
- Mais alguma coisa que eu possa fazer?
- Não, obrigada, Maurna. Você foi muito gentil.
Ao enrubescer, o rosto da mulher ficou tão vermelho quanto a cor dos cabelos dela.
- Estou apenas fazendo o meu trabalho, Lady Gabrielle. Nosso Lord quer que fique confortável aqui. Posso fazer uma pergunta que vem me corroendo?
- Sim?
- Como devo chamá-la? Ouvi os guardas e o padre que a acompanhavam chamarem-na de "princesa". Milady é mesmo uma princesa?
- Já fui princesa. Agora, não sou mais.
A resposta não fez o menor sentido para a governanta, que foi levada a pensar que talvez ela tivesse batido a cabeça ao cair do cavalo.
- Por acaso está vendo duas de mim?
Apesar de ter achado a pergunta estranha, Gabrielle não riu, pois a governanta tinha uma expressão preocupada.
- Não - garantiu ela. - Vejo apenas uma Maurna. Maurna pareceu ficar aliviada.
- Milady deve estar exausta. Durma bem.
Assim que a porta se fechou, Gabrielle foi até a janela para puxar a tapeçaria. Normalmente, ela adorava o frio, mas esta noite queria se enfiar debaixo das cobertas e dormir quentinha. Lá fora estava tudo escuro, não havia estrelas no céu. Ela podia ver pequenas luzes brilhando nas cabanas alojadas na encosta da colina. Sem dúvida, famílias cansadas, mas felizes, estavam se preparando para ir para a cama. Ela tentou visualizar uma família ideal. Haveria crianças, uma mãe e um pai saudáveis, e muito riso. Ah, sim, eles viveriam felizes e seguros.
De novo, seus pensamentos voltaram-se ao seu pai. Estaria ele seguro? Teria ouvido sobre os atos dos barões?
Somente quando o frio se tornou insuportável, ela abaixou a tapeçaria e voltou para a cama. Muito cansada para acender o fogo, ela se aconchegou
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sob a capa xadrez de MacHugh e caiu no sono enquanto fazia suas orações noturnas.
Durante a noite, ela acordou uma vez. O quarto estava aquecido. O fogo ardia na lareira. Como aquilo acontecera? Gabrielle se virou e voltou a dormir pesadamente.
Na manhã seguinte, Stephen esperava por ela no grande salão. Cumprimentou-o e perguntou se algum dos guardas havia entrado em seu quarto durante a noite.
- O Lord MacHugh pediu à governanta que, antes de se recolher, desse uma olhada na princesa.
- E por que ele faria tal coisa?
- Aparentemente, Maurna lhe descreveu seus ferimentos em detalhes. Talvez o Lord tenha se preocupado.
- E por isso Maurna acendeu a lareira? Stephen balançou a cabeça afirmativamente.
- Quando ela informou ao Lord que seu quarto estava gelado, ele foi até lá.
- Ele entrou no meu quarto? - Ela não foi capaz de esconder seu choque.
- Sim, entrou - ele respondeu. - E acendeu a lareira. Como Faust não conseguisse detê-lo, seguiu-o e se manteve de costas para a cama de Lady Gabrielle, bloqueando a visão do lord. Mas ele me disse que a princesa estava tão escondida sob as cobertas que ninguém poderia ter visto nada.
Stephen parecia não estar preocupado com o assunto.
- E o que fez Faust para tentar impedi-lo? - perguntou ela, enquanto cruzava o salão para se sentar à mesa.
- Ele me disse que se colocou no caminho do lord. Hesitante, ela perguntou:
- E o que fez o lord?
- De acordo com Faust, o Lord o tirou do caminho, mas ele não quis me explicar como. - Os lábios de Stephen levemente se curvaram num sorriso pouco característico.
- Aquecer o quarto foi um ato de consideração - admitiu ela.
- Mas bastante impróprio - ele disse, desaprovando. - Se não precisa de mim, vou ver onde estão os outros guardas. Assim que terminar seu caféda-manhã, o Lord deseja vê-la.
- Onde está ele?
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- Não sei, princesa. Ele pediu que o esperasse aqui.
Ela esperou por mais de uma hora pelo lord. Gabrielle se encontrava de pé, ao lado de Maurna e da cozinheira, uma mulher de temperamento agradável chamada Willa, enquanto as duas discutiam as vantagens de cozinhar um faisão em vez de assá-lo - um assunto do qual Gabrielle não tinha o mínimo conhecimento -, quando ouviu a batida de uma porta. Alguns segundos depois, ouviu vozes de homens e passos sobre o chão de pedra.
- Deve ser o lord- disse Maurna. - Willa e eu vamos cuidar do nosso trabalho para que possam ter privacidade.
O Lord chegou acompanhado de Braeden e de um outro soldado. Ao cruzarem o salão, eles se curvaram em sinal de respeito e continuaram até a despensa.
Do alto da escada, MacHugh a observava. Ela era bonita de se ver. Os cabelos levemente encaracolados emoldurando seu rosto angelical caíam em ondas sedosas sobre os ombros. Ela abaixou um pouco os olhos. Era impossível não notar as curvas suaves do corpo dela.
Ele a desejava, e ter de reconhecer isto não o deixou muito feliz. Gabrielle era uma complicação e um incômodo que ele achava não precisar em sua vida.
Quando Colm entrou no salão, ela deu um passo em direção a ele. Mesmo que ele tivesse o cenho franzido - sua expressão normal, ela concluiu -, Gabrielle sorriu ao lhe dar bom-dia.
Ele não era muito dado a amabilidades.
- Sente-se, Gabrielle. Vamos falar do seu futuro.
Por que ele quereria falar com ela sobre seu futuro? Ela já lhe explicara que seria sua hóspede apenas por mais duas noites. Será que ele havia se esquecido?
Ela puxou uma cadeira, sentou-se e recatadamente, cruzou as mãos sobre o colo. Colm parecia sério e ela começou a se preocupar que ele tivesse mudado de opinião, não permitindo que ela e seus guardas passassem mais uma noite ali.
Colm não se deixou enganar pela expressão de serenidade que ela mostrava. Podia sentir o nervosismo dela. As mãos de Gabrielle estavam ficando brancas de tanto serem apertadas. Ela estava rigidamente sentada e evitava olhá-lo nos olhos.
De braços cruzados, ele ficou em frente à lareira enquanto a observava.
- O senhor deseja me dizer alguma coisa, Lord - ela perguntou, depois de um longo silêncio.
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- Sim, quero. Gabrielle, não importa o quanto eu tente impedir, o clã ficará sabendo sobre sua situação.
Ele achava que isso seria impossível, mas ela se empertigou ainda mais. Colm imaginou que, a qualquer minuto, ela fosse elevar a voz.
- O senhor quer dizer que logo saberão que sou uma prostituta? Ele estreitou os olhos.
- Você não deve repetir essa palavra. - Antes de continuar, esperou que ela concordasse. - Existe uma maneira de acabar com os rumores.
- Por que o senhor se preocupa com o que as pessoas falam de mim? Estarei aqui apenas por um breve tempo. A não ser que o senhor prefira que eu parta hoje mesmo. É isso? É isso o que o senhor quer?
- E você irá para a casa do Buchanan - ele disse, exasperado.
- Sim, mas apenas por uma, ou duas noites. Agora, estou descansada e já fiz um plano para o meu futuro.
- Verdade? E qual é esse plano?
- Vou para St. Biel.
Ele soltou um suspiro longo e profundo.
- St. Biel está sob controle dos ingleses, certo?
- Sim, mas nas montanhas eu poderia... Ele não a deixou terminar.
- E como planeja chegar lá? A nado?
- Não, é claro que não. Eu pensei...
- Você, pelo menos, sabe nadar?
- Já disse que não vou a nado. - Em sua frustração, ela acabou elevando o volume da voz. - Vou de navio
- E você pode me dizer que comandante de navio permitirá que você embarque? - ele perguntou. - Se for pega, será punida com a morte... sua e de seus guardas -, ele pensou em acrescentar. - E, mesmo que conseguisse convencer alguém a levá-la, como poderia confiar nessa pessoa? Já pensou na possibilidade de a pessoa matar seus soldados e, com seus homens, passar o resto da viagem se alternando para possuí-la?
Ao perceber que ela empalidecera, ele disse:
- Será que a choquei? Pois saiba que os homens são capazes de tal comportamento. Será que você se esqueceu do olhar que os barões lhe dirigiam? O que pensa que teriam feito, caso pusessem as mãos em você?
Decidido a fazer com que ela entendesse que estava sendo ingênua ao
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pensar que pudesse viver em paz em St. Biel, ele continuou a metralhá-la com perguntas.
- Existem pessoas boas que poderiam me ajudar - protestou ela.
- E você colocaria essas pessoas em perigo? Deixaria que arriscassem a vida por você?
- Não, eu não poderia fazer isso.
Um por um, Colm destruiu todos os argumentos dela e, em poucos minutos, qualquer esperança de partir havia sido destruída.
- Você vai se casar comigo, Gabrielle.
Os ombros dela desabaram e ela se deixou amontoar na cadeira.
- Existe alguma coisa no ar da região que faz com que todos os homens que encontro queiram se casar comigo? Nos dois últimos dias, já me disseram que deveria me casar com aqueles dois barões abjetos, um Monroe e um desprezível Lord chamado MacHenley.
O rosto dele se iluminou num sorriso.
- O Lord desprezível se chama MacKenna. Fingindo indiferença, ela encolheu os ombros.
- Como nunca mais vou falar com aquele vilão novamente, não me importo qual seja o nome dele.
- Está decidido - ele anunciou. - Você vai se casar comigo e ninguém se atreverá a chamá-la de outra coisa além de Lady Gabrielle.
- O senhor não pediu a minha opinião. Ele se mostrou ofendido.
- É claro que não, estou lhe dizendo.
A audácia dele era ultrajante. Gabrielle sentiu o sangue lhe voltar à face e foi muito difícil controlar o desejo de gritar com ele.
Colm podia adivinhar que ela estava furiosa. Agora, fechara as mãos sobre o colo e ele sabia que, em pouco tempo, ela perderia o controle. Perguntou-se se ela tinha consciência de ser tão transparente. Talvez não, concluiu ele, pois se soubesse, não se daria ao trabalho de esconder suas emoções.
Foram interrompidos por Braeden.
- Lord, eles estão esperando o senhor. Colm assentiu com a cabeça.
- Estarei lá num minuto. -Voltando a dar atenção a Gabrielle, ele perguntou, impaciente: - Mais alguma pergunta?
- Eu não tenho um dote - ela disse.
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- Eu não quero nem preciso de um dote.
- Isso o torna diferente dos outros. Tudo o que queriam era Finneys Fiat.
- Não me compare com aqueles cretinos. - O rosto dele ficou vermelho de raiva.
Ela não se deixou intimidar.
- Para pagar a dívida que tem com o Lord Buchanan, o senhor pretende abrir mão do seu futuro. Não entendo por que faria isso.
Ele não sabia que engano corrigir primeiro.
- Você realmente acha que Finneys Fiat era a única razão para ser desejada por aqueles homens?
- Que outra razão haveria?
Apesar de inocente, a pergunta era verdadeira. Ela realmente não tinha consciência de ser uma mulher bonita. Era, portanto, evidente que nunca usava sua beleza para conseguir o que queria.
- Não vou perder tempo discutindo os motivos doentios deles - ele disse.
- E o senhor? Arruinaria sua vida...
- Gabrielle, eu jamais permitiria que mulher alguma tivesse esse tipo de poder sobre mim - ele disse, inequívoco.
- Não acredito que permitisse.
- Não sei como os barões ingleses tratam suas mulheres, mas imagino que a maioria não as respeite muito.
- Nem todos - ela argumentou.
- Aqui, não desrespeitamos nossas mulheres. Eu nunca a magoarei e você estará bem protegida.
Ela acreditava no que ele lhe dizia. E, de repente, um casamento não lhe parecia tão terrível. Talvez porque ela não tivesse para onde ir.
- O senhor tem alguma data em mente para o casamento?
- Você pode escolher - ele disse, enquanto voltava a lançar um olhar para a entrada. Ele ficava cada vez mais impaciente para acabar com aquela conversa.
- Por favor, me explique essa escolha.
- Podemos nos casar agora ou dentro de seis meses. Entretanto, se nos casarmos agora, não viveremos como marido e mulher até que seis meses tenham se passado.
Completamente confusa, ela perguntou:
- Por que seis meses?
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- Para que o clã saiba que a criança que vier a carregar é minha.
Ele a deixara sem palavras. Quando recuperou o controle, Gabrielle disse:
- O senhor me disse que não acreditou nas mentiras... Ele a interrompeu.
- A sugestão veio de Brodick. Caso você fique grávida logo depois do casamento, ele não quer que ninguém questione quem é o pai.
Atordoada e constrangida com a honestidade dele, tudo o que pôde fazer foi balançar a cabeça quando ele lhe perguntou se tinha mais perguntas a fazer.
Quando estava a meio caminho das escadas, ele se lembrou de outra coisa que precisava dizer a ela.
- Gabrielle, deixei que seus guardas a acompanhassem para que se sentisse segura, mas eles não podem ficar.
Ela se manteve resoluta:
- Eles devem ficar.
Ele ficou pasmo com a reação dela. Ela cooperara quando ele lhe explicara sobre o futuro, mas agora se mostrava beligerante.
- Não, eles não podem ficar - ele disse, com calma. - Agora que você vive aqui, o dever de protegê-la é responsabilidade minha e dos meus soldados, e seria um insulto que alguém de fora interferisse.
- Eu não compreendo. O senhor precisa...
- Este assunto está encerrado - afirmou ele. - Seus guardas serão generosamente recompensados por terem protegido meu irmão.
- Recompense-os deixando que permaneçam ao meu lado. Ele balançou a cabeça.
- Gritar comigo não me fará mudar de idéia. Preciso resolver um assunto urgente, mas, assim que voltar, falarei com seus guardas. Apesar de não ter o hábito de justificar minhas decisões, desta vez o farei. Uma vez que minha posição esteja clara, meus homens os escoltarão até a encosta da montanha. Até lá, você terá tempo para se despedir - Ele desceu a escada, fez meia-volta e disse: - Com sua permissão.
Por vários segundos, ela olhou para ele. Em seguida, fez uma reverência perfeita.
- Como queira.
Aliviado por não ter presenciado uma cena de lágrimas, Colm deixou a casa bem-humorado. Ao retornar, três horas depois, ele foi informado de que Lady Gabrielle havia partido.
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Capítulo 30
MacHugh alcançou-a ao chegar ao sopé de sua montanha. Apesar de ainda estar em suas terras, tinha quase atingido a fronteira. Se tivesse retornado uma hora depois, Gabrielle teria tido tempo de chegar a Finneys Fiat, onde seria um alvo fácil para os predadores que esperavam a caída da noite para sair de suas tocas.
O que aquela mulher tinha na cabeça para sair por aí com apenas quatro homens para protegê-la? Será que não percebia ser uma tentação?
Mas ela estava salva, ele disse a si mesmo enquanto avançava na direção dela. Salva de qualquer outro, pensou, pois, no estado de espírito em que se encontrava, ele estava pensando seriamente em atirá-la sobre os ombros e levá-la de volta. Arrastá-la também não lhe parecia má idéia.
Gabrielle ouviu o tropel do cavalo dele atrás de si. Parara para dar água ao cavalo e se afastara o suficiente de Rogue para saber que não teria tempo de voltar até ele antes de ser alcançada por Colm.
Ela nem precisava imaginar como estaria o humor dele. As faíscas que soltava pelos olhos e as mandíbulas tensionadas eram indicadores óbvios. Antes que o cavalo parasse totalmente, ele desmontou. Mesmo com a forte vontade que sentia de sair correndo, ela se manteve no lugar, de queixo erguido, enquanto ele avançava na direção dela.
Numa reação natural, seus guardas se colocaram em posição defensiva para bloquear a passagem dele, mas Gabrielle sabia que MacHugh não retrocederia. Ela já estivera em sua companhia tempo suficiente para conhecê-lo um pouco. Entretanto, seus guardas também não retrocederiam. Cabia a ela impedir o confronto antes que ele começasse.
- Por favor, saiam do caminho. Preciso falar com o lord. Faust estava preocupado.
- Princesa - sussurrou ele -, é nosso dever termos certeza de que ele não vai machucá-la.
Sendo tão bom quanto Gabrielle no julgamento de caráter, Stephen já tinha uma opinião formada sobre o lord. Havia reparado na maneira como o clã saudara MacHugh quando ele voltara para casa. Estavam verdadeiramente felizes ao revê-lo, e não havia medo em suas expressões. Suas cabanas eram bem construídas, havia lenha do lado de fora de cada porta e as crianças não correram para se esconder quando MacHugh e seus soldados subiram a colina. O Lord protegia o seu clã e o alívio que Stephen viu nos olhos dele ao ver Gabrielle lhe dizia que ele realmente se preocupava com ela.
Batendo nos ombros dos colegas, Stephen ordenou.
- Saiam do caminho do lord. Nossa princesa estará segura com ele. Colm não prestou atenção nos guardas. Mantinha o olhar preso em Gabrielle e parou a poucos centímetros dela.
- Quero falar com você, Gabrielle. - A voz dele continha um claro tom de irritação.
O Lord pareceu se avolumar sobre ela, que deu alguns passos atrás de modo que não precisasse levantar a cabeça para olhar para ele.
- O que o senhor deseja me dizer?
- Que parte da nossa conversa hoje de manhã ficou obscura? Eu gostaria de saber para poder esclarecer.
- Conversa? Não acho que tenha sido uma conversa. O senhor me deu ordens.
- E espero que sejam obedecidas.
- Por quê?
A pergunta dela tinha um tom de imprudência, mas ele não acreditou que essa fosse sua intenção. Ela realmente não entendia e, mesmo que já fizesse muito tempo que alguém não lhe pedia explicações, ele concordou em responder.
- Porque eu disse que seria assim.
- Essa resposta não é suficiente. Por que motivo eu deveria obedecer às suas ordens? Não sou membro de seu clã.
Ele estava decidido a não perder a paciência com ela.
- Você deve obedecer às minhas ordens porque em breve será minha esposa e, consequentemente, se tornará uma MacHugh.
Ele não poderia ter sido mais claro e sucinto, e era impossível que ela tivesse mais argumentos, ou perguntas.
- Mas, lord, eu nunca disse que concordava em ser sua esposa.
- Você é uma mulher irritante - asseverou ele -, e muito mais teimosa que todas as mulheres do clã juntas
Seus insultos tinham a intenção de fazer com que ela percebesse que quem mandava ali era ele. A resposta dela o pegara completamente desprevenido.
- O senhor também não é nada fácil, lord. Mas, ao contrário do senhor, eu não acho necessário fazer uma lista dos seus defeitos.
Ela teve a ousadia de sorrir para ele. Ele também quase chegou a rir, tão surpreso ficou com a insolência dela. A mulher não era de brincadeiras. Colm imaginou que teria que arrastá-la de volta à casa. Ao dar um passo ameaçador na direção dela, Gabrielle não se moveu. Olhou-o nos olhos e esperou para ver o que ele faria.
O fato de ela não ter se acovardado deixou-o consideravelmente satisfeito. Decidiu que, mais uma vez, tentaria fazer com que cooperasse antes de arrastála de volta e exigir que agisse conforme sua vontade.
- Ao mesmo tempo que posso entender que tenha fugido por não querer se casar comigo, quero que você entenda...
Ela o interrompeu:
- Não foi por isso que fugi.
- Então, será que pode me dizer o motivo?
- O senhor ordenou que meus guardas partissem e não posso permitir tal coisa. Tentei explicar por que eles devem ficar ao meu lado, mas o senhor não me deu ouvidos.
- Então, resolveu fugir.
- Isso mesmo. Que outra opção me restava? - respondeu e, antes que ele pudesse dizer alguma coisa, ela continuou: - E, sim, estava indo até os Buchanan com a intenção de implorar ao meu primo que perdoe sua dívida. Minha esperança é que ele encontre alguma outra coisa com que o senhor possa recompensá-lo.
Pedir por ele a Buchanan? Impensável... e espantoso.
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- Você não vai pedir nada a ninguém. Entendeu?
Sem ter tido a intenção, ela percebeu que o ofendera. Recebeu a raiva dele com um breve assentir de cabeça.
- Sim, prometo não dizer nada. Na verdade, nem mencionarei o senhor. Simplesmente explicarei que, como meus guardas não receberam permissão para ficar, eu os acompanhei. - E, virando-se, ela se afastou dele.
Colm a seguiu
- Eu ficaria mais satisfeito se você não falasse com ele.
Então, ele não teria a chance de ficar satisfeito, ela decidiu, enquanto apertava o passo.
- Você disse que eu me recusei a ouvir sua explicação sobre o motivo por que seus guardas devem ficar ao seu lado.
- Sim, eu disse.
- Pois bem, agora posso ouvir - anunciou ele. - Mas vou lhe dizer uma coisa, Gabrielle: soldados ingleses vivendo entre os meus homens é uma coisa que não dará certo.
- Eles não são soldados ingleses, e ficariam tremendamente insultados caso ficassem sabendo que o senhor acha que são. Eles são de St. Biel e o emblema que carregam no peito significa que fazem parte da Guarda Real.
Gabrielle estava tão determinada a fazer com que o Lord entendesse, que não percebeu que ia floresta adentro. Colm se mantinha imediatamente atrás dela e, por duas vezes, teve que esticar as mãos sobre a cabeça de Gabrielle para afastar uns galhos de seu caminho.
- Minha mãe era Lady Genevieve, princesa da Casa Real de St. Biel. Ao se casar com meu pai, seus guardas a acompanharam ao seu novo lar, na Inglaterra, para só retornarem ao seu país quando tivessem certeza de que ela estaria bem protegida. Minha mãe me contou que, no começo, meu pai não ficou muito satisfeito por tê-los por perto mas, com o tempo, acabou não só aceitando-os como também confiando neles.
- Quanto tempo demorou até que os guardas se convencessem de que sua mãe estava devidamente protegida?
Ela se virou para responder.
- Três anos. Eles ficaram por três anos. - Colm se colocou na defensiva. Irritada com sua reação física, ela estava pronta para lhe cutucar o peito com o indicador, mas conseguiu se controlar a tempo - apesar de tê-lo deixado intrigado sobre aquele indicador, já apontado para ele. Ela colocou a mão nas costas. - Meu pai ficou triste quando partiram.
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- Acho que você está exagerando.
- Meu pai confiava neles - insistiu ela.
- Você disse que, depois de três anos, os guardas voltaram a St. Biel e, no entanto, agora existem quatro deles com você.
- Um mês depois que eu nasci, quatro guardas chegaram a Wellmgshire. Foram mandados por meu tio, que ainda era rei. A missão deles era muito clara. Deveriam me proteger. Desde então, alguns guardas já mudaram. Quem está comigo há mais tempo é Stephen. Depois veio Lucien. Christien e Faust chegaram alguns anos mais tarde.
- Quem os mandou? Já faz muitos anos que o país deles é governado pela Inglaterra.
- Os habitantes de St. Biel. Pode ser que os ingleses tenham ocupado suas terras, mas os moradores de St. Biel ainda são muito leais à família de minha mãe.
- Stephen se referiu à sua mãe como Lady Genevieve, mas você é chamada de Princesa Gabrielle. Ela também não era princesa?
- Em St. Biel, uma princesa não é chamada pelo título. Eu deveria ser chamada de Lady Gabrielle. Quando era criança, os guardas me chamavam de Pequena Princesa. O apelido se manteve. Mas isso agora não importa, não é?
- Não, não importa - ele concordou, antes de avançar para a próxima pergunta. - E por que eram precisos quatro guardas para cuidar de uma garotinha?
- Um guarda teria sido suficiente - ela disse. - Mas meu pai não pensava assim. Ele achava que eu vivia aprontando travessuras e por isso precisava dos quatro. Não porque eu fosse teimosa - enfatizou ela. - Eu era apenas curiosa. - Gabrielle esperou que Colm fizesse algum comentário, mas, ao ver que ele se mantinha silencioso, continuou: - Desde que estivesse acompanhada dos guardas, meu pai nunca se preocupava comigo. Perdi as contas das vezes que salvaram minha vida.
Somente naquele momento Gabrielle percebeu que não tinha a menor idéia de onde se encontrava. Ao redor dela, a floresta ficava cada vez mais densa.
- O que aconteceria se eu me recusasse a deixá-los ficar? O que eles fariam? - perguntou Colm.
- De qualquer maneira, eles ficariam. Eles devem honrar o juramento que fizeram.
- Mesmo que isso signifique a morte?
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- Mesmo que sim - ela murmurou. - Mas eles morreriam com honra e quem os matasse não teria honra alguma.
Diabos, ele iria ficar enroscado com os guardas.
- Eles podem ficar, mas é melhor que, em menos de três anos, percebam que posso proteger você.
Gabrielle ficou contentíssima. Colm MacHugh era um homem bom e razoável.
- Então, dentro de seis meses, devo me casar com o senhor, lord. O senhor tem a minha palavra.
E, ficando na ponta dos pés, ela selou a promessa com um beijo. Seus lábios mal tocaram os dele, mas a surpresa sentida por Colm ficou evidente em sua expressão.
- Não é apropriado beijar assim? - ela perguntou, sentindo o rosto arder. Agira de forma impulsiva e, obviamente, ultrapassara os limites. Deveria ter selado o acordo com uma simples reverência.
- Sim, é apropriado - ele disse, pensativo. - Mas eu prefiro beijar assim. Ele não a agarrou ou fechou-a nos braços. Não, ele simplesmente abaixou a cabeça e beijou-a até deixá-la sem fôlego. A boca dele cobriu completamente a dela. Seus lábios quentes se abriram e, quando ela o imitou abrindo os seus, ele beijou-a ainda mais fundo. Ao acariciar a língua dela com a sua, Colm encheu-a de arrepios. Aquilo era chocante e emocionante ao mesmo tempo. E pecaminosamente excitante.
Tudo não passou de um beijo, mas, quando ele levantou a cabeça, o coração dela estava a galope e suas pernas tremiam tanto que ela teve medo de cair no chão. Nunca antes fora beijada assim.
Gabrielle tentou ler os olhos de Colm. Evidentemente, o beijo não causara o mesmo efeito sobre ele.
Ela abaixou a cabeça.
- É bom que estejamos sozinhos. Não me parece correto beijar como beijamos, antes do casamento. Talvez seja pecado.
Ele percebeu que ela não parecia estar muito preocupada com isso.
- Logo estaremos casados, por isso não estamos cometendo pecado algum. Além disso, não estamos sozinhos. - Sem se virar, ele chamou: - Stephen?
- Sim, lord?
- Quantos soldados estão nos observando?
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- Posso contar sete.
Colm ficou desapontado. Esperava que o guarda experiente fosse mais observador.
- Não, são oito.
Stephen deu um passo à frente.
- Havia oito observando, mas agora são apenas sete.
- O que aconteceu com o oitavo?
Ao responder, havia satisfação na voz de Stephen.
- Christien cuidou dele. Seu soldado quis seguir nossa princesa muito de perto. Christien não achou boa idéia e impediu-o. Ele não o matou - continuou ele. - Apenas o colocou para dormir.
Colm murmurou alguma coisa e caminhou de volta aos cavalos. Gabrielle teve de correr para tentar alcançá-lo. Quando percebeu que ela não estava atrás dele, esperou-a e segurou-a pela mão, forçando-a a caminhar rápido.
- Lord, se o senhor sabia que seus homens estariam olhando, por que me beijou tão...
- Tão o quê?
- Profundamente!
- É meu direito - ele respondeu. - E, Gabrielle, já que vamos nos casar, você pode me chamar de Colm. - Sem olhar pra trás, ele continuou: - Outra coisa, depois que voltarmos, você não discutirá mais comigo. Chegamos a um acordo sobre seus guardas, mas isso é tudo o que vou conceder. Não posso passar os meus dias correndo atrás de uma mulher teimosa. Tenho coisas mais importantes a fazer.
- Nunca poderei discutir ou discordar do senhor?
Para Colm, aquilo pareceu razoável. Ele assentiu com a cabeça.
- Quero o seu consentimento, agora. Ela abaixou a cabeça.
- Como queira.
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Capítulo 31
Para Sarah Tobias, uma boa fofoca era coisa capaz de viciar tanto quando biscoitinhos amanteigados. Sentia-se com água na boca, corroída pelo desejo. Mesmo sem saber se eram verdadeiros ou falsos, ela simplesmente adorava ser a primeira a espalhar os primeiros rumores. Tudo o que interessava era poder circular os boatos. Sentia tamanha excitação ao chegar ao fim de suas histórias que seu rosto corava, as palmas de suas mãos suavam e sua respiração ficava ofegante. Ela sabia que uma boa fofoca era tão bom quanto sexo. E algumas vezes até melhor.
Sarah raramente espalhava histórias sobre a boa sorte ou o bom trabalho de alguém. Que sentido faria? Não havia nada de emocionante naquilo. Segredos e pecadilhos eram muito mais interessantes e, quando se tratava de pecados de luxúria, tornavam-se além de tudo estimulantes.
Uma noite, durante um jantar, seu irmão Niall mencionara o que ouvira sobre o incidente da Abadia Arbane.
Enquanto ouvia a história, Sarah roera dois biscoitos e depois mais três, enquanto arrancava do irmão cada detalhe possível. Quando Niall terminara de relatar o que ouvira e ela colocara o último biscoito na boca, Sarah se sentia zonza de excitação.
Antes do meio-dia do dia seguinte, todas as pessoas do clã Dunbar sabiam sobre Gabrielle. E Sarah, atordoada com tanto poder, chegou mais longe. Depois de assar duas formas de seus biscoitos doces, ela os levou para Hilda, sua prima em segundo grau, casada com Boswell. Ficou na propriedade dele até ter certeza de que todos do clã soubessem do infame incidente.
Além de espalhar fofocas maldosas, a outra fraqueza de Sarah era gostar de aprimorar os fatos. Depois de contar a história umas trinta ou quarenta vezes, ela não sentia mais a mesma excitação. Seu coração não disparava e as palmas de sua mão deixavam de suar. Quando a fofoca deixava de ser novidade, Sarah passava a adicionar algumas mentirinhas que ela mesma inventava. Nada ultrajante, é claro. Apenas o suficiente para apimentar um pouco a história. Afinal de contas, que mal poderia fazer?
Duas semanas depois, as mentiras haviam se espalhado pelo clã dos MacHugh.
Gabrielle sentiu a diferença na atmosfera. Mulheres que habitualmente lhe sorriam, agora evitavam olhar para ela. Quando a viam, viravam a cabeça e mudavam de direção. Antes mesmo que alguém lhe contasse, ela já sabia que as terríveis mentiras haviam chegado aos seus ouvidos. E, pela maneira que se comportavam, sabia também que haviam acreditado nelas.
Ao retornar de um longo dia de caça, Colm encontrou Braeden esperando por ele em frente aos estábulos. A expressão no rosto do comandante sinalizou a Colm que as notícias não eram boas. Gabrielle foi a primeira coisa que veio ao seu pensamento. Será que alguma coisa lhe acontecera?
Antes mesmo de desmontar, ele perguntou:
- Gabrielle está bem?
Braeden sabia que seu Lord não imaginava como sua pergunta era reveladora - Ela está bem. Nada de mal lhe aconteceu.
A segunda pergunta de Colm foi ainda mais reveladora.
- O que ela aprontou agora?
- Nada que eu saiba - ele garantiu.
Colm desmontou e entregou as rédeas ao tratador enquanto se dirigia a Braeden.
- Ela não tentou escapar de novo? Braeden sorriu.
- Não, pelo menos hoje, não. - Antes de continuar, ele olhou para o céu. - Mas o sol ainda não se pôs. Ela ainda tem algum tempo.
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Gabrielle estava tendo problemas para se adaptar à sua nova casa. Todos os dias acontecia alguma coisa diferente. Na semana anterior, por duas vezes ela tentara sair da fazenda. Por duas vezes, Colm a trouxera de volta. Ela insistira que não estava fugindo. Sua primeira desculpa foi querer cavalgar por Finney's Fiat. A segunda, foi que queria dar uma "caçadinha", ou seja lá o que for.
- Lady Gabrielle precisa de tempo para entender as regras do clã - disse Braeden, tentando defendê-la.
Colm zombou do comentário.
- Gabrielle conhece as regras. O problema é que ela não dá a mínima, razão por que, por duas vezes, tive de interromper o que estava fazendo para correr atrás dela.
- Posso acrescentar que eu, assim como vários outros soldados, já me ofereci para ir atrás dela?
- Ela é minha responsabilidade e, portanto, problema meu. Não quero aborrecer os outros com isso.
Braeden sabia que aquela não era a razão. Mesmo que Gabrielle estivesse com eles havia apenas catorze dias, Colm já se tornara bastante possessivo com relação a ela. Não gostava que ninguém se aproximasse; mal tolerava os guardas dela. Na sua opinião, eles eram totalmente inúteis. Tudo o que faziam era atender Gabrielle e obedecer às suas ordens. Mesmo tendo de admitir que cuidavam bem dela, Colm achava que já os havia suportado tempo suficiente.
- Nenhum de nós considera Lady Gabrielle um problema. Os homens, assim como as mulheres, gostam muito dela, pois ela sempre tem uma palavra gentil e um sorriso para todos que encontra.
- Por acaso ela atrai demais a atenção dos homens?
- Sim, atrai - ele admitiu. - Mas sem intenção. Você já percebeu, Colm, como ela é bonita?
Exasperado, ele respondeu:
- É claro que sim.
- Pois os homens também perceberam. Eles gostam de olhar para ela. Ele se empertigou.
- Pois então vou aumentar a carga de trabalho deles. Se trabalharem duro desde o nascer ao pôr-do-sol, não terão tempo de olhar para ela.
- Você fala como um homem ciumento.
Pelo olhar que recebeu de Colm, Braeden percebeu que não devia ter feito o comentário.
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- Sou seu amigo há muitos anos - Braeden o lembrou. - Não tenho nenhuma intenção de irritá-lo, mas gosto de ser verdadeiro. Os rumores sobre o casamento já se espalharam, mas, se eu fosse você, não demoraria muito para anunciar o fato ao clã.
- Sou um homem ocupado - ele grunhiu.
Colm sabia que aquilo não passava de uma desculpa esfarrapada. Ele já devia ter informado seus seguidores sobre sua intenção de tomar Gabrielle como esposa desde o dia em que a trouxera para casa com ele. Em vez disso, passara as duas últimas semanas tentando ficar longe dela e dizendo a si mesmo que tinha coisas mais importantes a fazer.
Poderia ter reservado algum tempo para ela. Ele não era do tipo que evita coisas desagradáveis. A dívida que lhe pesava sobre a cabeça seria saldada assim que se casasse com ela. E, como detestava ficar devendo alguma coisa a alguém, era normal que estivesse ansioso para se casar com ela. Então, por que motivo não estaria?
Naquela manhã, ele finalmente admitira a verdade: Gabrielle era uma mulher perigosa. Ele não gostava do que ela fazia com ele, confundindo suas idéias. E tudo começara com aquele beijo. O maldito beijo que reacendera emoções que, há muito tempo, ele imaginara mortas. E a maneira como ela sorria para ele apenas piorava as coisas. Se ele não tomasse cuidado, ela o acabaria transformando num idiota, e ele havia jurado que nenhuma outra mulher o faria de tolo.
- Espero que o senhor faça o comunicado logo, lord. Abrupto, Colm tornou:
- E o que devo anunciar?
Ao fazer a pergunta, ele notou dois cavalos amarrados a um galho de árvore e, pelas marcas nos lombos, ele sabia de quem eram.
- Que diabos os Boswell estão fazendo aqui?
- Espalhando mentiras.
- Como assim?
- As mentiras sobre Lady Gabrielle chegaram ao nosso clã, trazidas por dois homens do clã de Boswell. Kinnon Boswell disse que precisava falar com sua prima Rebecca que, como você sabe, é casada com um dos nossos soldados. Ele disse aos vigias da torre que se tratava de assunto urgente, mas, quando conseguiu entrar, não foi até a cabana dela. Parece que tanto ele quanto seu amigo estavam decididos a ver Lady Gabrielle.
Furioso, Colm exigiu:
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- Eles estiveram com ela?
- Não - Braeden garantiu. Colm relaxou.
- Então, pode ser que saiam daqui com vida. Braeden continuou com seu relato.
- Eu estava no campo ocidental, treinando os soldados jovens, quando um dos guardas de Lady Gabrielle veio me informar sobre o problema.
- Qual deles?
- Lucien.
- Parece que pelo menos um deles está aprendendo a respeitar a hierarquia - ele disse, ríspido. - O que foi que ele lhe disse?
- Perguntou se éramos aliados dos Boswell, e, quando lhe perguntei por que, ele me explicou que estava prestes a matar dois deles.
- E você permitiu?
- Não, mas juro, Lord quando fiquei sabendo o que estão falando sobre Lady Gabrielle, tive vontade de permitir. Quando você chegou, eu estava prestes a botá-los daqui para fora.
- E onde está Lady Gabrielle agora?
- No grande salão.
- Encontre os Boswell - ordenou ele - e traga-os até mim. Quero que me contem o que andaram falando sobre Lady Gabrielle.
Uma vez dada a ordem, Colm se apressou. Queria encontrar Gabrielle antes que ela ficasse sabendo sobre os Boswell. Ela já tivera muitos problemas e não precisava de mais um.
Maldição, era tudo culpa dele. Ele já deveria ter se casado com ela. Essa teria sido a única maneira de deter aquela difamação. Ninguém ousaria dizer nada contra a sua esposa... a não ser, é claro, que quisesse morrer.
Ao se aproximar do pátio, Colm avistou Gabrielle. De costas para ele, ela falava com alguém. Ao se aproximar um pouco mais, Colm viu os Boswell de frente para ela. Ele soltou uma praga e apertou o passo. Os dois jovens pareciam tão envolvidos com o que diziam a ela que não perceberam a chegada de Colm. Assim como não notaram que Lucien e Faust se aproximavam por trás. Os guardas corriam em direção aos dois homens, mas pararam quando Gabrielle fez um gesto suave com as mãos.
Kinnon percebeu o que se passava. Deu um passo na direção dela e perguntou:
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- O que a princesa está fazendo?
Ela sorriu e respondeu:
- Salvando suas vidas.
Edward foi um pouco lento para entender. Kinnon foi mais esperto. Ao girar sobre os calcanhares, deparou com Lucien. Imediatamente, voltou a olhar para Gabrielle e, com voz trêmula, disse:
- Estava apenas contando o que todos estão dizendo a seu respeito, princesa. Pensei que ela quisesse saber. Eles não podem me matar por isto, podem?
- Eles não, mas eu posso - disse Colm. Se não estivesse tão furioso, ele teria achado engraçada a reação que os homens tiveram. Ao se afastarem, trombaram um no outro em busca de uma maneira de escapar.
Gabrielle temeu que Colm pudesse levar adiante sua ameaça de matar os Boswell, coisa que ela não queria que acontecesse. Kinnon e Edward não passavam de dois jovens tolos com nada mais importante para fazer na vida do que percorrer toda aquela distância para ver qual seria a reação dela frente às histórias que tinham para contar, o que não justificava que perdessem a vida por causa de sua ignorância.
Mas não faria mal que sofressem um pouco.
- Lord, fico feliz que esteja em casa - ela disse, com voz doce. - Venha ouvir as histórias que os Boswell estão me contando. O senhor certamente se divertirá.
Parecia que o rosto de Kinnon havia sido inesperadamente crestado pelo sol, enquanto Edward perdera toda a cor e mais parecia um cadáver. E o cheiro condizia com a imagem.
- Duvido que vá me divertir - afirmou Colm.
Ele enlaçou a cintura dela e, puxando-a para si, beijou-a enquanto os Boswell, boquiabertos, assistiam à cena com olhos arregalados. Em seguida, virou-se para eles.
- Podem me contar o que andaram falando de Gabrielle, que logo será minha esposa.
- Ela logo será... - Kinnon engoliu em seco.
- Sua esposa? - perguntou Edward. - Nós não sabíamos. Do contrário, não teríamos...
- Não teriam difamado Lady Gabrielle? É isso o que quer dizer? - perguntou Colm.
Ele estava tão furioso que mal podia conter a vontade de esganar os dois
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idiotas. Em vez disso, sem notar, apertava a cintura de Gabrielle cada vez mais. Somente quando ela lhe deu um beliscão, ele percebeu e afrouxou o aperto.
- Queríamos ver como ela é. Ouvimos dizer que ela enfeitiça os homens, e queríamos ver com os nossos próprios olhos - explicou Kinnon.
- Estávamos apenas repetindo as histórias que ouvimos - disse Edward, com voz tão aguda que mais parecia um grito.
Lucien e Faust se aproximaram tanto que os dois podiam sentir a respiração deles em suas nucas. Ambos os guardas olhavam para Colm, esperando por uma ordem para se livrarem das pestes.
Gabrielle sentiu que os Boswell haviam recebido o que mereciam.
- Kinnon e Edward acabaram de me convencer de que sou uma mulher surpreendente. Parece que no espaço de um ano e, naturalmente, fora do matrimônio, eu já dei a luz a quatro crianças - explicou ela. - E de quatro pais diferentes. - Antes de continuar, ela riu. - Devo ser uma pessoa terrivelmente afetuosa.
- As histórias são mentiras - gaguejou Kinnon. - Agora sabemos disso. Não é, Edward?
Vigorosamente, seu amigo assentiu com a cabeça.
- Sim, sabemos. Sabemos sim.
- Se nos deixarem partir, prometemos nunca mais falar de Lady Gabrielle A não ser, é claro, para elogiá-la - ele acrescentou, apressado. - Daqui para a frente, ela só receberá elogios de nossa parte.
- Lucien, Faust, vocês podem ir. Gabrielle, vá para dentro - ordenou Colm.
Gabrielle queria perguntar o que pretendia fazer, mas sabia que não seria apropriado interrogá-lo na frente de estranhos. Certamente ele não iria matálos...
Devagar, ela se afastou. Os Boswell haviam dito coisas terríveis e até mesmo repetido palavras que, por causa de suas expressões maliciosas e risinhos escusos, ela sabia serem palavrões. Mesmo sabendo que não devia, ela sentiu pena deles.
Ao perceber que, deliberadamente, ela caminhava a passos lentos, Colm decidiu que falaria com ela sobre obediência. Quando dava uma ordem, ele esperava ser imediata e rapidamente atendido. Era óbvio que ela não sabia disso. Talvez o fato de ser meio inglesa a tornasse tão voluntariosa.
Transferiu a atenção para os Boswell, que tremiam sobre as botas.
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- Quando vocês acordarem, devem ir ao seu Lord e contar a ele o que aconteceu hoje. Se não repetirem cada palavra do que disseram a Lady Gabrielle, eu ficarei sabendo. Vão também dizer a ele que a única razão por que os deixei vivos é porque minha futura esposa achou graça do ocorrido.
Nervoso, Edward assentiu com a cabeça.
- Vamos reproduzir cada palavra - ele jurou. Kinnon coçou o queixo.
- Lord, o senhor disse "quando vocês acordarem"? Vamos passar a noite...
Ele não terminou sua pergunta. Colm se moveu com tanta rapidez que nenhum deles teve tempo para reagir. Num segundo estavam de pé e, no seguinte, amontoados no chão.
Lucien fez um gesto de aprovação com a cabeça e Faust sorriu.
Olhando para baixo e para os Boswell, Colm ordenou:
- Amarrem os malditos aos cavalos e levem-nos para fora das minhas terras.
A caminho da forja, alguns momentos depois, Colm continuava furioso. Como se atreviam os Boswell, ou qualquer um que fosse, a dizer infâmias sobre Gabrielle? Qualquer pessoa que a visse saberia que era uma mulher doce, inocente e gentil. Deveria tê-los matado, ele pensou. Podia ser que Gabrielle ficasse perturbada, mas isso com certeza teria melhorado o humor dele.
De repente, ele estacou. Quando foi que acontecera? Quando os sentimentos dela haviam se tornado importantes para ele?
Colm tentou tirar Gabrielle da cabeça. Tinha muito trabalho a fazer. Foi até a forja e passou uma hora discutindo com o ferreiro as modificações que queria feitas nas lâminas de sua espada e depois caminhou até o cume da montanha com vista para o campo, onde os homens lutavam. Os guerreiros mais jovens estavam treinando. Nenhum deles segurava o escudo de modo apropriado. Alguns os usavam como armas enquanto mantinham suas espadas imóveis ao lado do corpo.
Era cedo para treinarem com armas, concluiu Colm. Ainda eram muito inexperientes. Braeden, aos gritos, não estava alcançando o resultado desejado. Quando um dos jovens cometeu o erro de rir, foi imediatamente nocauteado por Braeden. Por que será que os mais inexperientes eram sempre os mais arrogantes? Num campo de batalha eles seriam um estorvo, fazendo com que os soldados maduros tivessem, ao mesmo tempo, que lutar contra o inimigo e protegê-los. O que poderia ser fatal.
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Stephen e Christien se colocaram ao lado de Colm.
- Lucien nos contou o que aconteceu aos homens do clã Boswell - disse Stephen.
Colm ignorou o comentário. Em seguida, Christien perguntou:
- Por que o senhor não os matou? É o que eu teria feito
- Nossa princesa teria ficado desapontada se os tivéssemos matado - explicou Stephen. - Acho que é por isso que ainda estão vivos.
Em silêncio, os três ficaram observando os exercícios no campo. Um dos soldados deixou cair a espada.
- Pelo amor de Deus - resmungou Colm. - Eu deveria deixar que se matassem. Pelo menos eu ficaria livre deles.
- Primeiro, eles precisam aprender a lutar com as mãos. Ainda não estão prontos para usarem armas - Christien disse, em voz alta.
Concordando, Colm assentiu com a cabeça. As armas poderiam se transformar em muletas e, quando desarmados, os guerreiros se tornariam impotentes contra os inimigos caso não tivessem outras habilidades. O que é que Braeden tinha na cabeça para deixar que usassem espadas? Ao final do dia, teriam feridos por toda parte.
Agora, havia no campo mais de cem membros do clã, número que não incluía os principiantes. Braeden não podia estar em cinco lugares ao mesmo tempo e Colm percebeu que precisava delegar mais responsabilidade aos guerreiros maduros e experientes. Duvidava que alguém quisesse assumir o treinamento dos iniciantes. Ao descer a colina, Colm teve uma idéia para solucionar o problema.
- Stephen, acho que chegou a hora de você e os outros guardas começarem a trabalhar um pouco.
- O que o senhor tem em mente?
- Ainda não tive a chance de vê-los lutar. Amanhã, quero que lutem com alguns de meus guerreiros. Se eu gostar do trabalho, vocês irão ajudar a treinar os mais jovens.
Colm não precisou olhar para Christien para saber que ele estava sorrindo. Amanhã pela manhã, Colm teria a chance de apagar um pouco daquela arrogância da expressão dele.
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Capítulo 32
Gabrielle estivera de bom humor até que saísse para respirar um pouco de ar puro e encontrasse os Boswell. Kinnon e Edward se deliciavam, contando aos outros as histórias que tinham ouvido sobre ela. As mentiras eram tão absurdas que Gabrielle não pôde evitar o riso.
Agora, a graça se dissipara. Como era possível que alguém pudesse se divertir dizendo coisas tão terríveis sobre outra pessoa? Não havia justificativa para tamanha crueldade. Ao subir a escadaria que dava para o grande salão e ao pensar no assunto com tristeza, seu estado de espírito se tornara bastante sombrio.
Mesmo que não fizesse sentido, ela decidiu jogar a culpa de sua infelicidade em Colm. Já fazia duas semanas que estava entre os MacHugh e, se o Lord deles tivesse se preocupado em anunciar ao clã que pretendia desposála, a esta altura o rumor já teria se espalhado aos outros clãs e os Boswell não teriam ousado desrespeitá-la.
Mas ele não dissera nida a ninguém, certo? Sobre o silêncio dele, ela só poderia chegar a uma conclusão. Ele não queria se casar com ela, e sentia tanto medo que não conseguia dizer nada. Ele sequer gostava de estar na mesma sala que ela. Além dos sermões que costumava lhe fazer sobre alguma coisa que não considerara apropriada, ele ainda não tivera uma conversa decente com ela.
Em uma de suas várias caminhadas com o Padre Gelroy, ela mencionara suas preocupações a respeito de Colm. O padre sugerira que ela tentasse ser mais compreensiva. As responsabilidades de Colm como Lord daquele clã eram enormes.
- Concordo que as preocupações dele com o clã devam vir em primeiro lugar - ela lhe disse. - Além do mais, eu sou uma estrangeira.
- Todos aprenderão a amá-la - ele lhe assegurou.
Ela não tinha tanta certeza. Paciência não era uma de suas virtudes. Decidiu dar a Colm mais uma semana para que fizesse o anúncio formal.
- Uma semana. Depois disso, vou embora daqui para onde ele nunca me encontrará.
Verbalizar seus pensamentos fez com que se sentisse melhor e com melhor controle da situação. Ela endireitou os ombros e cruzou a sala até o banco onde havia deixado seu bordado.
- Você disse alguma coisa? - Liam MacHugh perguntou. Gabrielle ficou tão agradavelmente surpresa ao vê-lo que não se importou que ele a tivesse ouvido resmungar.
- Que bom vê-lo, Liam - ela disse.
O irmão de Colm estava esparramado sobre uma das duas cadeiras altas ao lado da lareira. Ao vê-la se aproximar, ele se levantou.
- Lady Gabrielle, por favor, venha se sentar ao meu lado.
Ao se sentar na cadeira do outro lado da lareira, ela notou que, sem sorrir, ele voltara a se sentar. Era óbvio que os ferimentos na parte de trás de suas pernas já haviam cicatrizado. Abaixo dos joelhos, ainda havia alguns cortes aparentes, mas ela não acreditava que ele ficasse marcado para o resto da vida. Entretanto, os cortes profundos das costas com certeza deixariam cicatrizes. Mesmo assim, ele tivera sorte, pois seu rosto ficara intocado. Na verdade, ele parecia estar em muito boa forma.
- O Padre Gelroy me contou tudo sobre você - ele disse, sorrindo.
- Como pode ser possível que eu já esteja aqui há duas semanas e só agora o tenha visto?
- Não quis que ninguém me visse até que me sentisse mais forte. Estive escondido por aí.
- Está se sentindo melhor? - A preocupação dela lhe pareceu verdadeira.
- Sim - garantiu ele. Depois de estudar o rosto dela por vários segundos, Liam perguntou: - Como é possível que você me pareça tão familiar?
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Tenho certeza de que nunca nos encontramos, pois eu nunca me esqueceria de uma mulher tão bonita. Talvez eu tenha sonhado com você. Os guardas que vieram com você montaram guarda enquanto eu dormia. Devo lhe agradecer por ter permitido tal coisa.
- Eles não precisaram da minha permissão; e é a eles que você deve mostrar sua gratidão.
- Sim, você está certa - concordou ele. Em seguida, repetiu o que o padre havia lhe contado sobre a Guarda Real e estava curioso para saber mais. Também se mostrou interessado em saber sobre St. Biel, e Gabrielle ficou feliz em responder às perguntas dele.
Ela gostava de Liam. Ao contrário do irmão, ele era bastante afável, além de charmoso. Por causa daquele lindo sorriso e da boa aparência, as mulheres deviam viver correndo atrás dele, ela pensou. Ele era brincalhão e a fez rir com as histórias que contou sobre as travessuras que ele e o irmão faziam quando crianças. Desde que chegara à propriedade dos MacHugh, aquela tarde passada com Liam fora a mais agradável que tivera. E o melhor de tudo foi que Liam jamais mencionou a razão de ela estar ali, pelo que Gabrielle se sentiu imensamente grata...
Gabrielle estava acostumada a fazer suas refeições sozinha. Naquela noite, Colm e Liam se juntaram a ela. Colm, sentado à cabeceira da mesa, e Liam do lado oposto, se levantaram quando ela entrou, seguida do Padre Gelroy. Liam a recebeu com um pequeno gesto de cabeça enquanto Colm, sempre de cara fechada, simplesmente esperou que ela se sentasse. Sem ter pensado muito, ela escolheu seu lugar. Sorriu para Liam enquanto caminhava na direção de Colm, sentando-se na cadeira ao lado dele.
Padre Gelroy olhou para os lados antes de tomar a cadeira ao lado de Liam.
A sala ficou em silêncio até que Maurna trouxesse as travessas cheias de pão amanhecido acompanhado de arenque, bacalhau, carne de carneiro e carne-seca. Por último, ela colocou enormes filões de pão preto fresco sobre a mesa. Recém-tirados do forno, o aroma dos pães recendia pelo salão.
Decidida a envolver Colm na conversa, ela perguntou:
- Lord como foi sua caçada hoje?
- Como previsto.
Esperou que ele continuasse, mas ele não se mostrou interessado. Pegou um pedaço do pão que o Padre Gelroy lhe ofereceu enquanto pensava em alguma outra coisa para dizer.
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Os homens comiam em silêncio. Perdida em seus pensamentos, ela picava seu pedaço de pão.
Finalmente, Gabrielle falou.
- E quais são os seus planos para amanhã?
- Por que pergunta?
- Não sei, apenas curiosidade.
Padre Gelroy começou a contar uma história interessante e Gabrielle abaixou os olhos para o seu prato. Ela havia picado o pão em mil pedacinhos, fazendo com que se espalhassem por todo lado. Pensando que ninguém tivesse percebido, ela recolheu os punhados de farelos, despejando-os na travessa.
Assim que o padre terminou sua história, ela se virou para Colm e perguntou:
- A temperatura está muito fria para esta época do ano?
- Não.
Gabrielle se sentiu frustrada. Nada parecia funcionar. Com certeza, haveria um tema de conversa que pudesse atrair a atenção dele. Resolveu fazer uma pergunta sobre o anexo que estava em construção.
Em voz baixa, Liam conversava com o padre, mas, ao ouvir a pergunta dela, inclinou-se para frente para responder.
Gabrielle suspirou e estendeu a mão para pegar outro pedaço de pão, no que foi impedida por Colm, que colocou a mão sobre a dela. A voz dele não passava de um sussurro.
- Por que você está tão nervosa comigo esta noite?
Esta noite? Ela sempre ficava nervosa ao lado dele. Mas, por quê? Não havia razão para se sentir daquela maneira a não ser, é claro, que se tratasse de uma reação puramente física, o que não fazia o menor sentido. Liam era o mais bonito dos irmãos. Tanto na aparência como no temperamento, Colm era exatamente o oposto de Liam e era por ele que ela se sentia atraída. Chegou a pensar que havia alguma coisa errada com ela, para preferir um homem tão rude e cheio de defeitos.
- Responda, Gabrielle.
- Devo responder com monossílabos, como você vem fazendo? Já faz algum tempo que venho tentando ter uma conversa normal com você.
Liam os interrompeu.
- Colm, você ficou sabendo alguma coisa sobre Monroe?
- Apenas rumores, mas nada substancial.
Enquanto explicava, Liam desviou o olhar do padre para Gabrielle.
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- O Lord Monroe foi assassinado.
- Nós sabemos - disse o Padre Gelroy - Lady Gabrielle deveria terse casado com ele.
- Isso mesmo. Ouvi falar sobre o casamento antes de sair da fazenda dos Monroe, um pouco antes de ele ter caído na emboscada.
- Posso perguntar o que o senhor estava fazendo lá? Liam sorriu.
- Fui me encontrar com alguém.
- Quem - cutucou o padre.
- Alguém.
O padre estava pronto para fazer outra pergunta, mas Liam fez com que desistisse ao dizer:
- Uma mulher, padre. Fui me encontrar com uma mulher. E não vou dizer o nome dela.
Padre Gelroy ficou vermelho.
- Se pelo menos tivéssemos uma capela, o senhor poderia se confessar. Liam encolheu os ombros.
- O senhor ouviu dizer que os Monroe estão em luta para decidir quem será seu próximo Lord Braeden. acredita que entrarão em guerra.
Pelos próximos dez minutos, os irmãos discutiram quem deveria assumir a liderança do clã.
- Você acha que eles vão acabar descobrindo quem matou o Lord - perguntou Gabrielle.
- Não vamos descansar enquanto não descobrirmos - afirmou Liam.
- Nós? - perguntou o Padre Gelroy.
- Os Lords Buchanan, Sinclair, Maitland e MacHugh - respondeu ele. - Eles já se reuniram para trocar informações.
Gabrielle tinha esperança de que se fizesse justiça para o Lord Monroe.
- Homem nenhum deveria morrer com uma faca nas costas - ela disse.
- Foi um ato de covardia - concordou Colm.
Ela olhou para a mão dele, que continuava sobre a dela. Ela era pelo menos duas vezes maior do que a dela e muito quente, maravilhosamente quente. Como era possível que sentisse tanto prazer com aquilo? Estaria tão faminta de carinho que a simples proximidade dele provocasse tal reação? Era provável que ele nem tivesse percebido o que estava fazendo. Desapontada consigo mesma, ela desviou a atenção dele para ouvir o que o Padre Gelroy contava sobre a vida na abadia.
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A cada oportunidade, o padre fazia um ou dois comentários sobre os benefícios de se ter uma capela para o clã. Pensando estar sendo sutil, deu vários exemplos.
- Uma capela seria um lugar sagrado e apropriado para ouvir a confissão de Liam e absolvê-lo de qualquer pecado que possa ter cometido com a mulher Monroe - ele garantiu a Colm. - E o senhor, lord..., continuou ele -, eu poderia ouvir sua confissão sempre que quisesse... se necessário, até duas vezes ao dia.
Gabrielle caiu na risada.
- Padre, talvez fosse mais fácil se o senhor simplesmente pedisse ao nosso Lord para construir a sua capela.
- Nosso lord? - perguntou Liam.
Ela virou os ombros e olhou para Colm.
- Parece-me que, agora, o senhor é o Lord do Padre Gelroy... assim como o meu. Não é verdade?
Ao responder, a expressão dele era inescrutável.
- Sim, é verdade. Liam franziu o cenho.
- Estou perdendo alguma parte da conversa? O que é verdade? - ele perguntou. - Quer dizer que você está pensando em construir uma igreja para o padre?
- Talvez - consentiu ele.
- Por aqui, existem almas precisando ser salvas - disse o padre, dirigindo um olhar duro a Liam.
- E construir uma igreja vai salvar a nossa alma? - perguntou Colm, sorrindo.
- Seria um passo na direção certa. Seu clã teria de ser encorajado a entrar, a se ajoelhar e rezar pedindo o perdão de Deus para os seus pecados. - E, agitando o indicador para Liam, acrescentou: - Do fundo do coração... Depois de tudo o que lhe aconteceu, imagino que queira ter as graças de Deus para si.
Num piscar de olhos, a conversa ficou séria.
- Colm, o padre não soube me dizer como fui levado de Finneys Fiat para a abadia.
- Pode ser que você tenha caminhado - sugeriu o padre.
- Não, impossível.
O Padre Gelroy suspirou.
- Eu já expliquei que não posso dizer nada.
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- Mas o senhor sabe, não é? - perguntou Colm.
- Você encontrou os homens que machucaram Liam? - perguntou Gabrielle, ansiosa.
- Se os tivesse encontrado, você saberia.
- Mas não vai desistir de procurar, vai? - ela perguntou.
- Não, não vou.
- O senhor ainda não respondeu à minha pergunta, padre - disse Liam. - Sabe como cheguei à abadia, não é? Haveria uma chance de que o senhor estivesse pelos arredores de Finey's Fiat quando eu ainda estava lá?
- Você não pode estar pensando que este querido padre tenha tido alguma coisa a ver com...
Colm apertou a mão dela.
- Não, não achamos que ele esteja envolvido. Mas temos esperanças de que ele possa ter visto o homem que tentou matar Liam.
- Quando Liam chegou a nós, eu estava na abadia - disse o padre.
- Sei que o senhor está escondendo alguma coisa e quero saber o que é - exigiu Colm.
O pensamento de Gabrielle disparou. Ela esperara por um momento a sós com Colm para lhe dizer que fora ela quem atacara o agressor de Liam e que seus guardas o haviam levado à Abadia Arbane mas, agora, ele estava pressionando.
- Devo dizer... - ela começou.
O olhar desammador que ele lhe lançou fez com que ela desistisse de continuar.
- Gabrielle, eu estou falando com o padre. Acho que chegou a hora da verdade.
Encolhendo-se para se proteger da fúria do lord, o padre Gelroy parecia ter diminuído em sua cadeira.
- Então, padre, o que foi que aconteceu? O senhor vai nos contar, ou teremos que recorrer a medidas um pouco mais duras? - perguntou Liam.
Num pulo, Gabrielle colocou-se de pé, derrubando sua cadeira.
- Não posso acreditar que vocês pressionem Padre Gelroy a lhes dizer uma coisa que não pode.
- Não pode? Ou não quer? - perguntou Liam.
- Não pode - ela disse com firmeza, olhando para ele.
- Não vou permitir que pressionem o Padre Gelroy. Ele é um homem de
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Deus. E mais de uma vez explicou que não pode lhes dizer nada. Deixem-no em paz, ou terão que se haver comigo.
Antes que qualquer um pudesse responder àquela explosão, Braeden apareceu ao topo da escada e anunciou:
- Eles estão prontos, lord.
Colm apanhou a cadeira de Gabrielle e colocou-a de lado.
- Venha comigo, Gabrielle - ele ordenou, enquanto a pegava pela mão e a puxava atrás de si.
Apesar de ele não ter explicado para onde a levava, ela ficou feliz ao segui-lo. Alguns momentos a sós com ele lhe dariam a oportunidade de explicar o que acontecera em Finney's Fiat.
Estavam quase chegando à porta quando Colm gritou por sobre os ombros:
- Liam, eu vou me casar com Gabrielle. Liam ficou estupefato.
- Você vai se casar?
A reação de Gabrielle foi mais intensa.
- Você não tinha contado ao seu irmão? Estou aqui há duas semanas e você não encontrou tempo...
Agora, ele quase a arrastava pelos degraus.
- Nas últimas semanas, eu vi meu irmão tanto quanto você.
- Isso não é desculpa - resmungou ela. Exasperado, ele continuou a puxá-la para baixo.
- Eu nunca me desculpo.
Havia um soldado parado à porta. Quando ele os viu, fez um movimento com a cabeça para Gabrielle e abriu a porta. Ela achou aquele gesto muito esquisito. Ele deveria ter mostrado respeito ao seu Lord e não a ela.
Ela sentiu uma rajada de ar frio no rrosto. Colm soltou o braço de Gabrielle e saiu. Esperou um pouco, fazendo um sinal para que ela o seguisse.
A luz dourada do pôr-do-sol se espalhava sobre o mar de rostos que olhavam para ela. O pátio estava repleto de pessoas do clã e havia mais delas nas encostas das colinas ao redor.
Gabrielle ficou tão chocada que mal conseguiu manter o controle. Parecia haver mais de mil homens e mulheres olhando para ela. Tentou recobrar o fôlego. Ninguém sorria, ela imediatamente reparou. Ah, não, será que os Boswell a haviam difamado para todas aquelas pessoas? Ela tentou afastar o horrível pensamento. Mas por que eles tinham uma expressão tão sombria?
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Como estavam todos muito próximos, ela não era capaz de ver se traziam alguma coisa nas mãos.
Gabrielle aproximou-se de Colm. Seu braço tocou o dele. Olhando para cima, ela sussurrou:
- Será que vou ser novamente apedrejada?
- Pelo amor de... - ele fez uma pausa. Não conseguia ficar bravo com ela. É claro que ela devia estar esperando o pior. Ele não lhe dissera o que iria acontecer e, Deus sabe que, depois do que ela passara nas últimas semanas, tinha toda razão para estar amedrontada.
- Você realmente acha que eu deixaria que fizessem mal a você? Agora você me pertence, Gabrielle.
Colm se virou para os seus seguidores, levantou a mão e disse:
- Depois de pensar muito, Lady Gabrielle finalmente concordou em se tornar minha esposa. Considero-me um homem de sorte por me casar com uma princesa cheia de vida, bonita e inocente. Vocês devem recebê-la e honrá-la como honram a mim.
A multidão eclodiu em saudações e gritos. Agora, todos sorriam. Colm apertou-a nos braços, levantou seu queixo e a beijou.
Ela ficou totalmente indefesa. Ele beijou-a apenas o suficiente para deixá-la querendo mais e, quando se afastou, ela tremeu. Ao redor dela os ruídos aumentavam e, em sua cabeça, havia apenas um pensamento: não havia nenhuma pedra.
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Capítulo 33
Colm não lhe dissera nada. Se Gabrielle soubesse que ele tinha intenção de reunir o clã para dar a notícia, teria trocado o vestido e penteado os cabelos. Ela não teve nem tempo de beliscar as bochechas para ficarem coradas. Quando a porta se abriu, estavam todos lá, olhando para ela.
Totalmente surpreso, Liam seguiu-os para fora de casa e colocou-se à direita de Colm enquanto ele se dirigia ao clã. Liam mostrou-se satisfeito ao saber do que chamou de "notícia extraordinária". Uma vez amainado o entusiasmo e dispersa a multidão, ele deu um tapa no ombro do irmão e abraçou Gabrielle.
- Pensei que Gabrielle fosse nossa hóspede por causa da ajuda que os guardas dela me deram na abadia, mas parece que o motivo era outro. - Ele riu e deu um empurrão em Colm enquanto voltavam para dentro de casa. - Você andou escondendo coisas de mim, irmão. Afinal, quanto tempo eu dormi? É evidente que perdi um monte de coisas. Quero saber de todos os detalhes.
- Explico tudo em outra hora - disse Colm.
Liam pegou a mão de Gabrielle e, com uma piscada, disse:
- Você tem certeza de ter escolhido o MacHugh certo, Gabrielle? É bom que você saiba que Colm parece um urso. Talvez você devesse pensar em mudar de idéia.
Colm respondeu:
- Não haverá mudanças de idéia, Liam. Gabrielle está feliz. - Virou-se para ela. - Não é verdade, Gabrielle?
- Ora... eu... - Como ela poderia lhe responder? Feliz? Com tudo o que acontecera nas duas últimas semanas, não tivera tempo de pensar em felicidade.
Liam a salvou de ter que dar uma resposta.
- Será que vou precisar incomodar Gabrielle para saber dos detalhes?
- Não, não será preciso - respondeu Colm, com firmeza. Gabrielle se sentiu aliviada quando Liam lhes deu boa-noite e subiu. Ela não estava disposta a responder a perguntas. Um assunto mais urgente tomava conta de seu pensamento. Havia chegado a hora de confrontar Colm com a verdade. E ela precisava ficar sozinha com ele. Seu coração começou a pular.
- Colm...
- Você parece exausta, Gabrielle. Vá descansar um pouco. - Depois de dispensá-la, ele caminhou em direção à porta.
Ela o seguiu.
- Posso falar um pouco com você? Tem uma coisa que preciso lhe contar.
- Daria para esperar? - Ele pegou a tocha do suporte da parede para levá-la para fora.
A porta se abriu e Braeden e Stephen entraram. Ela torceu para que eles passassem direto, o que não aconteceu. Esperaram para falar com Colm. Ela lembrou a si mesma que ele era um homem ocupado, com muitos fardos e responsabilidades.
- Eu queria... quer dizer... acho que posso esperar até amanhã. Talvez logo pela manhã? - ela perguntou.
Colm assentiu com a cabeça e Gabrielle, sentindo-se fraca por causa da sensação de alívio por não ter de lhe contar nada naquela noite, subiu os degraus, apressada.
Padre Gelroy a esperava para lhe dar os parabéns, mas ela não lhe deu chance. Com um gesto, pediu que se aproximasse e sussurrou:
- Sinto muito ainda não ter dito nada a Colm. Por duas vezes tentei lhe contar que fomos eu e meus guardas que levamos Liam à abadia, mas nas duas vezes fui interrompida. Acho melhor lhe dizer tudo quando estivermos sozinhos. Tanto o senhor quanto Liam tiveram de agüentar a ira dele por causa da promessa que eu forcei o senhor a fazer.
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- Quanto mais tempo você esperar, mais difícil será.
- Sim, eu sei, mas estou com medo.
- O Lord MacHugh ficará satisfeito ao saber que milady encontrou seu irmão e buscou ajuda para ele.
- Tenho mais coisas a contar, mas não se preocupe. Até amanhã à noite, Colm saberá de tudo.
- E eu também?
- Sim.
Ela pensara em lhe contar durante uma confissão, mas, se fizesse isto, teria de dizer que se arrependia de ter tirado a vida de um homem e Deus saberia que não estava sendo sincera.
Aquele homem realmente merecera morrer.
Maurna estava entusiasmada com o fato de que Gabrielle se tornaria esposa de seu lord, coisa que repetiu várias vezes enquanto servia o café-damanhã.
- Ninguém acreditou nas bobagens que os tolos dos irmãos Boswell estavam espalhando, e nós estávamos certas em não lhes dar atenção, já que o Lord a tomará como esposa. Ele a declarou inocente, princesa, mas nós já sabíamos disso. Não é, Willa? - perguntou, por sobre o ombro.
A cozinheira colocou a cabeça para fora da despensa.
- Sabíamos sim, com certeza.
- Agradeço a confiança que depositam em mim. - Gabrielle olhou para baixo, para uma tigela que continha o que parecia ser uma pasta cinza e espessa.
- Ninguém tão santa quanto milady teria cometido pecados tão terríveis. Além disso, nosso Lord não se casaria com uma pecadora... coisa que naturalmente não é verdade - acrescentou ela, apressadamente.
Willa trouxe pão, que colocou ao lado da pasta cinzenta.
- Agora, coma um pouco. A princesa pode se dar ao luxo de colocar um pouco de gordura sobre esses ossos.
Mesmo sem querer magoar a cozinheira, Gabrielle teve de perguntar o que era aquela pasta antes de colocá-la na boca. Seria pior se começasse a sentir náuseas.
- Qual é o nome disto, Willa? - ela perguntou.
- Café-da-manhã.
Maurna limpou alguns farelos da mesa, aparando-os na palma da mão.
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- A princesa deve pegar um pedaço de pão e colocar na papa.
- Papa?
- Fique tranqüila que lhe fará bem, milady - insistiu Wílla. - Foi feita com aveia e alguns dos meus temperos especiais.
- Vamos deixá-la sozinha para que coma enquanto está quente - disse Maurna.
Relutante, Gabrielle pegou sua colher e enfiou na papa pastosa.
- Maurna, será que você poderia me explicar o que quis dizer com "ninguém tão santa quanto milady"...
- Quanto a princesa.
- E por que você pensa que eu sou santa?
- Não sou apenas eu, princesa. Todos pensam a mesma coisa.
- Eu também - disse Willa.
- Talvez seja porque a princesa passe muito tempo caminhando ao lado do Padre Gelroy. Vocês rezam enquanto caminham, não é?
Ela riu.
- Não, pelo amor de Deus! O padre tem se sentido sozinho e por isso tenho caminhado com ele, mas nós dois estamos nos familiarizando com os arredores e, agora, nos sentimos mais confortáveis. Todos têm sido muito gentis comigo.
Ao ouvirem o elogio às pessoas do clã, as duas mulheres enrubesceram.
- A comida vai esfriar - alertou Willa.
- Pensei em esperar pelo lord.
- Já faz bastante tempo que ele se levantou e saiu.
Ao ser deixada sozinha para saborear a papa, Gabrielle se forçou a experimentar e ficou surpresa ao descobrir que não era tão ruim assim. Na verdade, quase não tinha gosto.
Terminou rapidamente e foi à procura de Colm. "O homem deve sair da cama de madrugada", ela pensou.
Quando estava a caminho dos estábulos, foi alcançada por Faust.
- Aonde vai, princesa?
- Estou à procura de Colm.
- Ele está nos campos com os soldados. Milady gostaria de se sentar na colina para assistir às lutas? - ele perguntou, animado.
Era óbvio que Faust estava disposto a assistir e, como ela não poderia falar com Colm até mais tarde, decidiu fazer a vontade de seu guarda.
- Mostre-me o caminho, Faust.
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- Tenho certeza de que vai gostar de assistir, princesa.
- Não estou entendendo o seu entusiasmo. Em Wellingshire, você via os homens de meu pai lutando quase todos os dias.
- Eles treinavam quase todos os dias e tinham uma boa razão para isso. Como todos os bons vassalos, precisavam manter-se bem treinados.
- Eu sei disso Na Inglaterra, o principal dever de um vassalo é proteger seu senhor feudal. Aqui também deve ser assim
- Não, aqui é diferente. Acho que, contanto que vençam, a maioria dos barões não se importa muito com o número de homens que morrem lutando por eles, mas MacHugh considera uma afronta pessoal perder tanto um, quanto vinte homens.
Ela levantou as saias e apressou o passo para acompanhá-lo.
- Você acha que pode aprender novas técnicas, apenas assistindo?
- Talvez, mas não é esta a razão da minha ansiedade. Logo, logo, a princesa vai entender. Vamos nos sentar na colina entre os dois campos, onde teremos uma ótima visão.
Faust a conduziu por um caminho bastante íngreme que serpenteava por entre as árvores. Quando chegaram ao topo, uma vista panorâmica dos campos descortinou-se abaixo dela.
Havia dois campos de dimensões quase idênticas, separados por pilhas de blocos de feno. De um lado, os arqueiros praticavam tiro ao alvo. Seus alvos estavam tão distantes que era difícil ver o centro. Próximo deles, havia homens atirando machados nos alvos. Mesmo estando bem distante dos campos, Gabrielle podia ouvir o assobio das pesadas armas cortando o ar. No outro campo, homens lutavam com espadas e escudos. Ao redor deles havia fileiras de homens do clã, jovens e velhos, esperando por uma chance de demonstrar suas habilidades.
Apesar de haver uns cem homens nos campos, ela facilmente localizou Colm. Sem sombra de dúvida, ele era o guerreiro de porte mais impressionante. De pé na parte externa do círculo, ele tinha os braços cruzados no peito e os pés afastados. Mesmo à distância, Gabrielle viu sua expressão preocupada, indicando que ele não gostava do que via.
Fascinada, ela o observava. Sua pele bronzeada brilhava com o suor e os músculos intumescidos dos braços, e as pernas exalavam uma força bruta. Mesmo sabendo ser indecente notar tais detalhes, ela não conseguia desviar o olhar.
- A princesa quer que eu pegue um cobertor para se sentar? Ou prefere não ficar muito tempo? - perguntou Faust.
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- Não preciso de um cobertor - ela respondeu, sentando-se. Cruzou as pernas e ajeitou a saia. Seus olhos estavam o tempo todo fixados em Colm.
- Pode ver Stephen? Ele está ao lado do lord - Faust apontou.
- Sim, posso vê-lo. O que ele está fazendo?
- Está assistindo Lucien lutar. Olhando para o campo, ela localizou seu guarda.
- E por que Lucien está lutando?
- O Lord o convidou - respondeu Faust. - Se ele nos considerar capazes, vai nos deixar treinar os iniciantes. Seus guerreiros mais experientes acham o trabalho indigno, mas é claro que fariam qualquer coisa que o lord mandasse. Stephen me disse que o lord quer que ganhemos o nosso sustento, e ficaremos felizes em poder fazer isso.
Gabrielle olhou para Lucien. Os movimentos dele eram leves e graciosos. Sem fazer muito esforço, ele se confrontava com o soldado de MacHugh. Os dois pareciam empatados.
- Stephen saiu-se melhor que todos os outros com o arco-e-flecha. Como o Lord não lhe desse tempo para pegar o seu arco, ele teve de usar o de Braeden. Acho que venceria todos eles, princesa
Ela riu.
- Sua confiança em mim é exagerada. Diga-me uma coisa, Faust, o que o lord e seu comandante pensam sobre o fato de Stephen ter vencido os soldados deles?
- Ficaram impressionados com as habilidades dele. Braeden e Stephen não são adversários. Respeitam as habilidades um do outro e, na verdade, se tornaram amigos. O lord nomeou Stephen responsável pelo treinamento de arco-e-flecha dos mais jovens, sob a supervisão de Braeden.
- E você? - perguntou Gabrielle.
- Vou lutar amanhã.
- Você não precisa ficar aqui comigo. De qualquer campo, poderá me ver e saber que estou segura.
- A distância é muito grande.
- Se eu posso ver a carranca de Colm, com certeza você poderá me ver.
- Prefiro esperar até amanhã. Além disso, Christien deverá lutar em seguida, e eu não quero perder. Lucien está quase terminando - ele acrescentou, com um gesto de cabeça em direção ao guarda. - Acho que, desta vez, ele vai deixar o soldado de MacHugh ganhar.
- Por quê?
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- A essa altura, Lucien já poderia ter acabado com ele. Está se contendo porque seu oponente é pelo menos uns quinze anos mais velho, e nosso colega não quer humilhá-lo na frente do lord. Eu faria a mesma coisa.
Próximo aos combatentes, Stephen fizera o mesmo comentário. Deu um passo atrás para falar com Braeden. Alguns minutos depois, Colm interrompeu a luta. Novos oponentes avançaram para assumir seus lugares no campo.
- Lucien, venha cá - ordenou Colm. O guarda correu até ele.
- Sim, lord.
- Stephen deu a entender que você não usou toda a sua força na luta. Isso é verdade?
- Sim.
Colm esperava ouvir uma desculpa e ficou surpreso com a honestidade dele.
- Quero saber o motivo.
- Ele é bem mais velho, e eu não queria constrangê-lo.
- Este é o motivo mais ridículo que eu já ouvi. Devo pensar que, se um homem mais velho atacar Gabrielle você levará a idade dele em consideração enquanto tenta protegê-la?
- Não, se ele tentasse ferir a princesa, eu o mataria, independente da idade dele.
- Ao não dar o melhor de si, você insulta meus homens. Amanhã, quero ter certeza de que vai lutar com todas as forças.
Colm ordenou que todas as armas e escudos fossem colocados de lado. Agora, teriam um combate corpo a corpo. Grupos de guerreiros experientes tomaram o campo. O objetivo de cada homem era derrubar o outro ao chão. Astúcia e força bruta eram essenciais e, várias vezes, Colm interferiu nos desafios para mostrar aos combatentes seus erros.
Christien aproximou-se de Stephen para assistir.
- Eles não lutam como nós.
Colm chamou-o assim que ouviu o comentário.
- Mostre-me a diferença.
- Sinto muito lord, mas devo declinar. - Ele parecia desanimado ao acrescentar: - Não posso lutar com o senhor.
Espantado com a recusa do guarda, Colm perguntou:
- E por que você acha que tem escolha?
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Stephen deu um passo à frente para explicar.
- Agora que o senhor é noivo da Princesa Gabrielle, nenhum dos guardas dela pode lutar com o senhor.
Christien assentiu com a cabeça.
- Agora, devemos proteger o senhor assim como protegemos nossa princesa.
Braeden ficou o ofendido.
- O Lord é protegido por seus guerreiros. Com um gesto de cabeça, Stephen concordou.
- Sim, e nós protegemos o homem que se casará com a Princesa Gabrielle.
Christien olhou para o topo da colina onde Gabrielle estava sentada.
- Além disso, ela não gostaria de nos ver lutando com o senhor. A Princesa Gabrielle está começando a gostar do senhor.
Colm olhou para cima e viu Gabrielle assistindo. Ela estava começando a se importar com ele? Não parecia. O guarda estava errado. Uma mulher que se importava com um homem não fazia com que corresse em círculos, nem ignorava suas ordens. Ele afastou tais pensamentos.
- Se você não pode lutar comigo, Christien, lute com outro soldado. Ele apontou um de seus homens. Um guerreiro de pescoço grosso imediatamente deu um passo à frente.
- Ewen, diga sua idade a Christien.
- Lord?
Colm repetiu a ordem. Mesmo confuso com a estranha ordem, Ewen rapidamente obedeceu. Ele e Christien tinham apenas meses de diferença.
- Acredito que Ewen não seja muito velho para lutar com você - disse Colm, sardônico.
Os dois homens tomaram lados"opostos do campo. Ao sinal de Braeden, Ewen, de cabeça baixa, investiu. Christien encontrou-o no centro e, antes que o soldado MacHugh pudesse articular os punhos, Christien girou sobre um dos pés e, usando a planta do outro pé, derrubou-o no chão.
Christien esperou vários segundos para ver se Ewen se levantaria. Como não se levantasse, o guarda caminhou até ele, oferecendo-lhe a mão. Ele investiu novamente. E de novo. Era doloroso assistir, e irritantemente infernal para Colm. Depois de Ewen ter sido derrubado ao chão pela quarta vez, Colm entrou no campo e, com uma mão, levantou o homem surrado do chão, aplicando-lhe um belo safanão.
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- Por quatro vezes, Christien derrubou você do mesmo jeito. Será que não entendeu que precisa apresentar um outro tipo de ataque?
Ewen franziu o cenho.
- Eu sabia que ele de novo me chutaria com o pé, mas pensei que pudesse ser mais rápido.
Colm lhe deu outro chacoalhão.
- É óbvio que você não foi mais rápido, certo?
- Não, não fui.
- Por que você não tentou bloquear o ataque?
Colm lhe mostrou como poderia ser feito, mas Ewen era lento no aprendizado e, por mais duas vezes, Christien o derrubou usando o mesmo método.
Três outros soldados tiveram o mesmo destino de Ewen. Então, os homens mais experientes do clã desafiaram Christien. O segundo homem não apenas bloqueou seu ataque, mas lhe deu um belo soco, bem na linha da cintura. Christien caiu no chão. Na próxima vez, Christien mudou sua manobra e derrubou seu oponente mais forte.
Colm ordenou a Christien que, com ele, tentasse ambas as técnicas para que pudesse mostrar aos seus soldados como bloquear um ataque e ganhar vantagem ao mesmo tempo. O Lord foi bem mais rápido que Christien. Na terceira vez, Colm mandou o guarda voando para trás. Christien aterrissou de barriga, virou para o lado e sentou-se. Escorria-lhe sangue pelo canto da boca. Ele limpou o fluido, olhou para Colm e começou a rir.
- De novo, lord? - perguntou, enquanto, com apenas um movimento, ele se recolocava sobre os pés.
- Isto não é um jogo, Christien - asseverou ele. - A partir de amanhã, você vai ajudar a treinar os soldados mais jovens. - E, apontando o indicador para ele, acrescentou: - Antes disso, sugiro que você se livre dessa arrogância. Num campo de batalha, esses homens não têm uma segunda chance e é seu dever ensinar-lhes como sobreviver. Quando estiverem prontos, Braeden e eu vamos lhes ensinar a serem vencedores.
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Capítulo 34
Depois da sessão de treinamento, Colm foi até o lago para lavar o suor do corpo. Em seguida, rumou para o grande salão. Passava pelos estábulos quando Gabrielle tirava seu cavalo da baia. O corcel já estava arreado.
Ele parou do lado de fora da cerca para observá-la. Ao fechar a porteira atrás de Rogue, ela afastou uma mecha de cabelos do rosto.
- Aonde você pensa que vai? - perguntou Colm. Sobressaltada, Gabrielle olhou na direção dele.
- Bom dia, Colm.
Se ela esperava que ele perdesse tempo com brincadeiras, ia se decepcionar.
- Eu lhe fiz uma pergunta.
- Vou cavalgar um pouco. Rogue precisa de exercício.
- E exatamente onde você pretende cavalgar?
- Por aqui e por ali.
- Por acaso cruzando Finney's Fiat?
Ele parecia poder ler os pensamentos dela.
- Sim, pensei em fazer uma visita ao Lord Buchanan. Gostaria de conhecer a esposa dele. Sou parente dela, como você deve se lembrar.
- Não.
- Não, você não se lembra?
- Não, você não vai sair da fazenda. Pode cavalgar pelas colinas aqui, mas não vai deixar a montanha. - Cruzando as mãos nas costas, ele disse: - Quero que você me prometa.
Ela abaixou a cabeça.
- Como queira.
Colm deu as costas aos estábulos e começou a caminhar em direção ao pátio, mas logo estacou. Ele se virou e olhou para sua noiva. Ela estava ao lado do cavalo, segurando as rédeas de Rogue e esperando que Colm se afastasse. Ele sabia exatamente o que ela estava fazendo. Uma vez que ele desaparecesse, ela iria direto para Finney's Fiat.
- Ah, não, Gabrielle. Você não vai me pregar uma peça de novo.
- Como assim? Ele foi até ela.
- Não banque a inocente comigo. Eu sei que "como queira" quer dizer que você vai fazer exatamente o que quer fazer. Agora, você vai me prometer. Você vai dizer: "Eu dou a minha palavra", e vai honrá-la.
Gabrielle não estava disposta a se deixar intimidar. Ele não era o único a estar bravo com alguma coisa. Deu um passo atrevido na direção dele.
- Você devia ter separado alguns momentos do seu tempo esta manhã, pois eu tenho uma coisa importante para lhe dizer, mas, quando desci, você já havia partido. Será que esperou, pelo menos um pouco?
Ele caminhou na direção dela.
- Eu não podia passar metade da manhã esperando que você acordasse. Levante mais cedo, e eu terei o maior prazer em ouvir o que tem a dizer.
Teimosa, ela avançou.
- Você é um homem muito desagradável.
- E você ainda não me deu sua palavra.
- Eu prometo - ela disse, com uma pitada de desafio.
Agora, eles estavam tão próximos que ela pôde sentir o morno hálito dele.
- Quero que me prometa separar algum tempo hoje à noite - ela disse. - Preciso falar com você em particular.
- Fale agora.
- Não estamos em local privado.
Ele colocou as mãos nos ombros de Gabrielle, puxando-a para perto de si.
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- Não sei como vou conviver com uma mulher tão teimosa. Quando os lábios dele tocaram os dela, ela sussurrou:
- Eu também não.
Ele pensara em lhe dar apenas um beijo breve, mas, quando sua boca cobriu a dela, sua intenção mudou. Os lábios de Gabrielle eram extremamente macios e quentes. Por insistência dele, ela abriu a boca para Colm e, enquanto ele passava os braços ao redor dela, pressionando-a fortemente com seu corpo, o beijo se aprofundou.
Naquele momento, o mundo deixou de existir para Gabrielle. Tudo o que podia sentir era o toque mágico de Colm. Retribuiu o beijo dele com uma paixão que não sabia possuir.
Ele recobrou a razão antes dela e, abruptamente, interrompeu o beijo. Respirou profundamente. Gabrielle estava tão atordoada que, até que ele gentilmente a afastasse de si, não percebera estar pendurada nele.
Antes que caísse na tentação de beijá-la de novo, ele colocou alguma distância entre os dois. Sabia exatamente aonde aquilo levaria e não estava disposto a desonrar Gabrielle levando-a para a cama antes do casamento, mas ela tornava quase impossível que se afastasse dela. Nenhuma outra mulher o afetara tão profundamente.
Ele pegou as rédeas do cavalo, puxando Rogue para mais perto e colocando-a sobre a sela. Com um tapa no lombo do cavalo, Colm a mandou para seu passeio.
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Capítulo 35
Coswold começou a busca de Gabrielle no momento em que ela foi banida. Passou vários dias examinando a área ao redor da abadia, mas não conseguiu encontrá-la. Seus espiões lhe informaram que Percy também estivera à procura, mas logo desistira. Aquilo não era surpresa, pensou Coswold. Percy era e sempre fora uma pessoa que desistia no meio do caminho. Sem dúvida, ele tinha voltado para choramingar ao Rei John sobre a injustiça de que fora vítima.
Coswold, por outro lado, não era de se deixar desencorajar facilmente. Pensando que Gabrielle não teria alternativa além de voltar para casa, ele foi para o sul, seguindo a direção que os criados dela haviam tomado. Perto da fronteira com a Inglaterra, onde haviam acampado para passar a noite, ele interceptou a caravana deles. Depois de várias horas de pressão e ameaças, Coswold finalmente se convenceu de que eles não sabiam de nada. Permitiu que o grupo de viajantes amedrontado continuasse sua jornada, mas não sem antes ter confiscado os baús de Gabrielle, alegando que deveriam ficar na Abadia Arbane até que Gabrielle voltasse para pegá-los.
Frustrado, mas sem se deixar deter, ele voltou às montanhas. Com certeza, Gabrielle estaria escondida em algum lugar desta terra incivilizada e esquecida, e o Barão Coswold a encontraria.
Na semana seguinte, passou a maior parte do tempo observando e ouvindo.
Havia muitos rumores e, a cada nova informação que recebia, Coswold se tornava mais convencido de que Gabrielle havia permanecido nas montanhas.
Mas um dos rumores persistia. Coswold ouvira, de terceira mão, que Gabrielle fora levada pelo clã dos MacHugh, mas não tinha certeza sobre a veracidade da informação. Os highlanders eram muito unidos e Coswold sabia que, se mandasse espiões para as redondezas, o Lord MacHugh ficaria rapidamente sabendo e esconderia Gabrielle onde ninguém pudesse encontrá-la. O risco era grande demais. O barão passara boa parte do tempo tentando elaborar um plano que trouxesse Gabrielle para campo aberto.
Estava pronto para dar o próximo passo: comprovar se Gabrielle realmente estava com os MacHugh. Para isso, contou com a ajuda do Lord MacKenna. O Lord conhecia homens que fariam qualquer coisa por dinheiro e não seriam reconhecidos nesta parte das montanhas. Quando os homens de MacKenna finalmente foram reunidos à sua frente, Coswold explicou o que queria fazer.
- O plano é simples - ele disse aos homens. - Vocês levarão as coisas de Gabrielle até a propriedade de MacHugh. Antes de entregarem os baús, vocês devem insistir para vê-la. Expliquem que precisam ter certeza de que ela receberá os baús.
- Mas e se não nos deixarem vê-la? - perguntou um dos homens.
- Diga-lhes que são ordens da abadia. Que os baús foram devolvidos à abadia, onde ficaram guardados até que soubessem onde ela se encontrava.
- E o que devemos fazer quando a virmos?
- Não façam nada - enfatizou Coswold. - Deixem as coisas com ela, voltem até mim e recebam o pagamento.
- Pagamento em ouro e mulheres?
- Sim.
- E se ela não estiver lá? - um outro perguntou.
- Nesse caso, tragam as coisas de volta.
- Mesmo assim, receberemos nosso pagamento?
Coswold garantiu que sim e mandou que seguissem caminho. Não via nenhum tipo de problema. Seu plano era impecável. Nada sairia errado.
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Capítulo 36
Dois dias mais se passaram sem que o prometido encontro se realizasse e sem que Gabrielle tivesse a chance de falar com Colm em particular. Por mais que ela levantasse cedo, ele sempre já havia partido. E quando voltava, tarde da noite, jantava sozinho e desaparecia.
Ela estava começando a pensar que, apesar de não ter a aparência cansada, ele nunca dormia - a não ser que seu humor pudesse ser considerado um indicador. Nos breves encontros que tinham de passagem, ele a ignorava ou resmungava algo sobre alguma coisa que ela tivesse feito para deixá-lo desgostoso.
Ela havia se convencido de que deliberadamente ele a estava evitando, mas Maurna fez com que mudasse de opinião. Naquela terceira manhã, a governanta estava disposta a conversar enquanto varria o salão.
- Desde que pegaram Liam, o Lord não tem tido um momento de paz - ela disse, balançando a cabeça. - Ele diz que não descansará enquanto não encontrar os responsáveis. Todos os dias, sai com seus homens à procura de alguém que possa saber de alguma coisa. - Maurna afastou um banco e continuou: - E, há três dias, chegou a notícia de que alguns ladrões roubaram gado do vale de Seamus MacAlister e o Lord e seus homens também saíram à procura dos culpados. Até ontem, ele não os havia encontrado... e, se essas preocupações não fossem suficientes, ontem, quando chegou em casa, ficou sabendo de uma briga entre Heckert, o ferreiro, e Edwm, o açougueiro. Aqueles dois vivem brigando...
Enquanto Gabrielle ouvia pacientemente, ela continuou a falar sobre os vários incidentes envolvendo o lord. Ela se sentiu tremendamente aliviada ao descobrir não ser a razão da ausência do lord, mas continuava ansiosa para conseguir conversar a ós com ele. Estava ficando desesperada para aliviar sua consciência.
Sentia-se muito solitária. Não tinha ninguém em quem pudesse confiar, ou com quem dividir seus problemas. Na maior parte das noites, jantava com Liam e depois jogava algum jogo de tabuleiro. Ele adorava Fox and Geese e, assim que o jantar era retirado da mesa, apressava-se para pegar o tabuleiro e as peças. Gabrielle gostava da companhia dele, mas nunca conversavam sobre assuntos sérios. Ela não podia lhe contar sobre sua participação no salvamento dele. Colm era o lord, o homem que a acolhera e se casaria com ela. Era a ele que devia contar seu segredo extraordinário.
Gabrielle não queria sobrecarregar Padre Gelroy com suas preocupações. Não havia nada que ele pudesse fazer além de se preocupar como ela, o que não levaria a nada. Nos últimos dias, não passara muito tempo com o padre. Agora que o clã já confiava nele, recebia muitos convites para visitar a casa das pessoas, fazer refeições com as famílias e abençoar suas crianças. Ele andava muito ocupado e parecia exultante com seus novos compromissos.
Também não podia falar com seus guardas. Seria pouco apropriado abrir seu coração com eles. Além disso, ela jamais os sobrecarregaria com seus problemas.
Em silêncio, agüentava sua aflição.
Sua principal inquietação era seu pai. Estaria seguro? Ou o rei já o teria aprisionado? Oh, Deus, orou ela, por favor, não deixe que nenhum mal lhe aconteça. Teria o Barão Geoffrey tido tempo para reunir seus vassalos e, em caso positivo, lutariam contra os barões favorecidos pelo rei e seus exércitos? Brodick dera a entender que, uma vez que o pai de Gabrielle soubesse que ela ainda estava nas montanhas, ele se apressaria até os Buchanan. Mas ela não ouvira nada do primo. Se seu pai estava seguro, por que não se comunicava com ela?
Gabrielle não podia esperar mais. No dia seguinte, iria aos Buchanan. Brodick conhecia o pai dela e poderia dar algumas sugestões que a ajudassem a encontrá-lo.
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Para ela, tanto fazia que Colm lhe negasse permissão para sair da propriedade porque ela não ia lhe pedir.
Enquanto elaborava seu plano, Gabrielle perambulava pelos campos.
Gritos e saudações vindos da colina chamaram a atenção dela. Ela olhou para o topo. Várias pessoas - algumas velhas; outras jovens - estavam reunidas sob a árvore onde ela recentemente estivera com Faust, assistindo aos exercícios de Colm e seus soldados.
Uma garota que corria para se juntar aos amigos estacou apenas o tempo suficiente para fazer uma cortesia para Gabrielle, disparando em seguida ao chamado de uma amiga.
- Liam voltou a treinar hoje - anunciou ela. - Ele está se sentindo muito melhor.
E as garotas nunca o viram com melhor aparência, Gabrielle pensou. No devido tempo, Liam se casaria, e que Deus ajudasse a mulher que ele escolhesse para esposa. Com certeza, ela ficaria bastante ocupada cuidando das travessuras dele.
Gabrielle apressou o passo colina abaixo. Seu estômago roncou, lembrando-a de que era meio-dia. Novamente, Maurna lhe servira aquela pasta durante o café-da-manhã e Gabrielle não conseguira comer mais do que duas colheradas. Willa tentara convencer Gabrielle a comer tudo, garantindo que ajudaria a esconder suas costelas. O motivo por que Maurna achava que ela deveria se alegrar com isso lhe era incompreensível. Na verdade, achava a idéia repugnante.
Quase chegara ao pátio quando uma mulher aproximou-se por trás e bateu em seu ombro.
- Lady Gabrielle? Gabrielle se virou.
- Sim? - Antigamente, ela costumava sorrir facilmente, mas não mais. Fazia já algum tempo que aprendera a ser cautelosa e, agora, ficava apreensiva ao encontrar qualquer pessoa desconhecida.
- Ainda não tive a oportunidade de conhecê-la - disse a bela mulher. - Meu nome é Fiona, e pertenço ao clã Dunbar. Meu pai é o Lord Dunbar. Casei-me há pouco tempo. Devin, meu marido, é um dos homens do clã em quem o Lord MacHugh mais confia.
- Muito prazer em conhecê-la. - Apesar de ter sido educada, Gabrielle estava bastante desconfiada.
Fiona não sorriu. Ela era uma mulher robusta e sadia, tinha sardas e os
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olhos verdes da cor de grama nova. Seus cabelos longos, encaracolados e ruivos eram, sem dúvida, seu mais belo traço. Nos cantos, seus olhos viraram um pouco para baixo, o que lhe dava um olhar de extrema tristeza.
- A esta altura, tenho certeza de que já ouviu falar de minha irmã.
- Não, acho que não. Ela também é casada com um MacHugh? Fiona mostrou-se surpresa, mas Gabrielle enxergou além do fingimento.
- O que pretende me dizer? - perguntou Gabrielle.
- Minha irmã Joan está noiva do Lord MacHugh.
Se a intenção da mulher fora chocar Gabrielle, com certeza ela alcançara seu objetivo.
Gabrielle se recuperou rapidamente.
- Não se esqueça de dar os meus parabéns à sua irmã. Fiona arregalou os olhos.
- Sim... pode deixar. Quando Gabrielle se afastou, Fiona gritou:
- Logo você terá a chance de encontrá-la. Joan chegará dentro de alguns dias.
Gabrielle fingiu não ouvir. Ao ver que Lucien esperava por ela no pátio, apressou o passo para encontrá-lo.
- Princesa, seu rosto está muito vermelho, mas hoje o sol não está tão forte a ponto de queimar a pele.
- Foi o vento - explicou ela, surpresa com a calma em sua voz. Por dentro, seu sangue fervia. - Por acaso você sabe onde está o Lord MacHugh? - Sinto vontade de matá-lo, acrescentou para si, em silêncio.
- Não, não sei. Quer que eu descubra? Ela balançou a cabeça.
- Não, vou deixar que ele viva um pouco mais.
Gabrielle não percebeu ter expressado seu pensamento em voz alta até que Lucien lhe pedisse para repetir.
- Mais tarde vou procurá-lo - ela disse. Então, vou matá-lo.
- Quer cavalgar um pouco hoje à tarde?
- Não, acho que vou terminar o meu bordado. É relaxante e me dá alguma coisa útil para fazer.
- Se a princesa não for precisar de mim, vou ajudar Faust. Ele está fabricando flechas à maneira dos MacHugh. As deles são bem mais longas e finas, o que permite maior distância e velocidade. Precisa experimentar uma, princesa. Tenho certeza de que ficará impressionada.
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- A diferença é tanta assim?
- Vou pegar uma minha e uma deles para que possa comparar.
Pouco tempo depois, Lucien voltou ao salão, trazendo duas flechas. Colocou-as sobre a mesa. Gabrielle havia terminado de comer uma fatia de pão preto com mel. Empurrou seu prato para o lado e pegou a flecha MacHugh nas mãos, para sentir seu peso.
- A haste é fina, mas parece ser forte. Não reconheço a cor das penas. Maurna ouviu o comentário da princesa. Aproximou-se da mesa para retirar os pratos e, inclinando-se sobre o ombro de Gabrielle, disse:
- Parecem ser penas de ganso.
A atenção delas se voltou para a escada, quando Colm e Liam entraram no salão. Gabrielle colocou a flecha sobre a mesa e se virou para os irmãos.
- Temos boas notícias - disse Liam. - Suas roupas e muitas outras coisas devem chegar em breve. Há uma enorme fila de homens carregando tudo. Com certeza não devem ser apenas roupas, certo?
Surpresa, Gabrielle dirigiu suas perguntas a Colm.
- Como isso é possível? Os homens de meu pai levaram minhas coisas para Wellingshire. Como elas podem estar sendo trazidas para cá?
- Elas vieram da abadia - ele explicou.
- Foi meu pai quem as mandou? Ouviram alguma notícia dele? - A expressão dela se animou com a possibilidade.
Colm detestou ter de desapontá-la.
- Não, ainda não sabemos nada de seu pai. Rapidamente, os olhos dela se encheram de lágrimas.
- Eu tinha esperança...
Segurando o cotovelo de Colm, Liam fez um gesto com a cabeça na direção de Gabrielle.
- Venha aqui, Gabrielle - ordenou Colm.
Ela enxugou as lágrimas, endireitou os ombros e atravessou a sala para chegar até ele.
Sim?
- Talvez amanhã você tenha alguma notícia de seu pai - sugeriu Liam, enquanto Colm se mantinha em silêncio.
- Talvez - ele disse, suavemente. E talvez amanhã o sol fique escuro, pensou ela.
Colm levantou o queixo de Gabrielle.
- Brodick e eu estamos tentando descobrir onde ele está. Sei que é difícil, mas você precisa ter paciência.
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- Pode ser que ele ainda esteja em Wellingshire. Ele assentiu com a cabeça.
- Já mandei um mensageiro para a Inglaterra.
- Mandou?
Surpresa com a delicadeza dele, Gabrielle ficou sem saber o que dizer, ou pensar. Estivera errada ao julgá-lo tão duramente? Afinal de contas, talvez ele não fosse o ogro que ela pensava ser.
Em seguida, ela se lembrou de Joan.
Colm ficou perplexo ao ver os olhos cheios de lágrimas de Gabrielle se estreitarem numa carranca. O que estaria errado, agora? Ele nunca seria capaz de entendê-la. Pensou que ela ficaria feliz ao saber que ele estava tentando encontrar seu pai. Isso mesmo, ela deveria ficar muito feliz. Com certeza, não deveria mostrar vontade de estrangulá-lo.
Gabrielle decidiu que aquele não era o momento adequado para falar com ele sobre Joan. Aquele assunto também requeria privacidade.
- Colm, você se lembra de que eu havia pedido um momento a sós com você?
- Sim, eu me lembro.
- Vou precisar de um tempo maior.
Liam fez um gesto com a cabeça para Lucien. Em seguida, foi até a mesa e se serviu de um copo de água. Ele reparou nas flechas.
- O que estas flechas estão fazendo aqui? Lucien respondeu:
- Eu queria mostrar as diferenças entre as duas. Se a princesa não se importa, vou ajudar Faust. - Com um gesto de cabeça, o guarda se despediu e deixou o salão.
Colm pegou as duas flechas.
- A quem elas pertencem? - ele perguntou.
- Qual a cor das penas de suas flechas? - perguntou ela. Ele examinou uma das flechas.
Pensando que Colm não tivesse entendido o que ela queria dizer, Gabrielle se aproximou dele e apontou para a cor no centro de cada pena.
- Açafrão. Viu? Açafrão é a cor de Lucien.
- E por que ele a marcou? - perguntou Liam.
- Para saber que pertence a ele. Quando praticamos, algumas vezes nossas flechas ficam tão juntas no alvo que a única maneira de sabermos quem atingiu o centro real é pela cor.
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- Você sabe manejar um arco? - Colm perguntou.
- Sim, sei. Mas não é sempre que pratico com meus guardas. Se me derem licença, gostaria de subir para pegar o meu bordado. Não me lembro de onde o deixei.
Ela estava no centro do salão quando Colm lhe ordenou que parasse.
- Qual a cor usada por Faust para marcar suas flechas?
- Vermelho.
- Christien?
- Verde.
- Stephen?
- Roxo.
- E as suas? - ele perguntou.
- Azul. As minhas são marcadas com azul.
Depois que ela saiu, Colm passou um longo tempo olhando para a escadaria. Em seguida, foi até o consolo da lareira de pedra e pegou a flecha quebrada que havia tirado do corpo do homem morto em Finney's Fiat.
Suas penas eram azuis.
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Capítulo 37
Mesmo com a prova em suas mãos, Colm não conseguia acreditar. Seria possível? Teria Gabrielle estado em Finney's Fiat e testemunhado a atrocidade? Sua doce e gentil Gabrielle pegara uma de suas flechas e tensionara o seu arco, acertando o cretino bem no peito? Não, ela não poderia ter feito isso. Gabrielle não tinha estômago para matar.
Apesar disso, a prova estava em suas mãos.
- Colm, o que há de errado com você? - perguntou Liam. - Já faz um bom tempo que está olhando para essa flecha quebrada.
Com os pensamentos a galope, ele não respondeu ao irmão. Lembrou-se de como Gabrielle havia se levantado com um pulo para defender o padre quando fora pressionado para contar como Liam chegara à abadia.
Ela estivera lá... assim como seus guardas. Será que Stephen ou um dos outros tinha usado uma das flechas de Gabrielle para matar? Sim, devia ter sido isso. Gabrielle não teria coragem para tirar a vida de alguém.
Colm chamou Maurna, pedindo-lhe que dissesse a Gabrielle que queria falar com ela. Ao ver o brilho nos olhos de seu lord, ela se apressou no cumprimento da tarefa. Alguma coisa o havia irritado e ela pedia aos céus que Gabrielle não fosse a causa. A gentil princesa ficaria bastante aborrecida se o Lord levantasse a voz com ela.
Maurna bateu à porta de Gabrielle.
- O Lord deseja falar com a princesa.
A governanta abriu um pouco a porta e deu uma espiada. Gabrielle estava sentada sobre a cama com seu bordado no colo.
- Princesa, parece que estamos com problemas. O Lord ficou descontente com alguma coisa. Eu não o faria esperar. - Enquanto sua princesa descia a escada, Maurna continuou a lhe sussurrar conselhos.
- Se ele gritar, não lhe dê ouvidos. Ele não vai machucá-la.
Ele já gritou com você, Maurna?
- Não, nunca, mas nunca se sabe. De qualquer modo, acho que desmaiaria.
Gabrielle achou simpática a preocupação que a governanta mostrava por ela.
- Não se preocupe, prometo que não vou desmaiar.
- Mesmo assim, pode ser que queira se sentar enquanto ele lhe contar o que o está aborrecendo, só para o caso de sentir tonturas. Não quero que bata a cabeça ao cair. É verdade que nosso Lord é bem rápido e é provável que a segure no colo.
Maurna não acompanhou Gabrielle até o salão.
- Talvez não seja nada relacionado a milady. Talvez ele tenha ficado irritado com alguma outra coisa.
Ao entrar, Colm conversava com o irmão. Quando Liam se levantou e sorriu para ela, Gabrielle notou que ele estava bastante cansado. Recobrar as forças era um exercício árduo. Em seguida, concentrou sua atenção em Colm. Ele não estava sorrindo.
- Você quer falar comigo? - ela perguntou.
- Aproxime-se. Quero lhe mostrar uma coisa. - Ele levantou a flecha quebrada. Esperara uma reação imediata; mas ela se mostrou apenas levemente surpresa. - Você reconhece isto, Gabrielle?
Ela se aproximou, examinou as marcas e disse:
- É uma das minhas flechas.
- Está quebrada.
- Isso eu posso ver - ela concordou. - Onde você a encontrou? Desde que cheguei aqui, não tenho usado meu arco-e-flecha para caçar.
- Eu a encontrei em Finney's Fiat.
- Em Finneys... - ela arregalou os olhos e deu um passo atrás. - Você disse em Finney's Fiat? Pois eu me pergunto como ela foi parar lá.
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- Pensei que talvez você pudesse me contar. Quer que eu lhe diga exatamente onde e quando a encontrei?
Ela já sabia.
- Está quebrada, Colm. Você pode jogá-la fora.
Liam apoiou-se na mesa, desesperadamente tentando acompanhar a tensa conversa.
- Será que alguém pode me explicar o que está acontecendo? - exigiu.
- Esta é a flecha que tirei do homem morto em Finneys Fiat, Liam. Ele estava caído no chão, ao lado do buraco que os idiotas haviam cavado para você.
- Quer dizer...
Lançando um olhar para Liam, Gabrielle disse:
- A flecha é minha. É isso o que Colm está dizendo.
- Agora, você deve responder às minhas perguntas sem titubear - ordenou Colm. - Você esteve em Finneys Fiat?
- Sim.
- Quando eu estava lá? - Parecia que Liam estava engasgado. A impaciência tornou a voz dela aguda.
- Pelo amor de Deus, Liam, tente entender. Sim, eu estava lá quando você também estava.
- Qual dos seus guardas matou o canalha com a sua flecha?
- Nenhum deles. Fui eu quem o matou.
Ao ouvir um grito sufocado, Gabrielle viu Maurna e Willa espiando da despensa.
Ela inclinou-se para Colm e disse:
- Aquele homem realmente merecia ser morto.
Willa balançava a cabeça para cima e para baixo e Maurna estava boquiaberta.
Agitado, Colm passou os dedos pelos cabelos.
- Tudo isso enquanto eu tentava descobrir... por que, em nome de Deus, você não me contou... - Numa inútil tentativa de clarear as idéias, ele balançou a cabeça. - Quando você ia me contar?
- Eu tenho tentado. Muitas vezes pedi por um momento do seu tempo.
- Existe uma diferença entre gentilmente me pedir tempo para uma conversa e me dizer que o assunto é de extrema importância.
Gabrielle cutucou-o no peito.
- Como eu poderia ter adivinhado as palavras mágicas necessárias para conseguir a sua atenção?
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Ela sabia estar parecendo uma megera. Maurna havia se preocupado com a reação de Gabrielle caso o Lord gritasse com ela e, agora, era ela quem levantava a voz para ele.
Stephen escolheu o pior momento para entrar no salão.
- Algum problema, princesa? Ela não respondeu. Colm sim.
- Pode apostar que sim.
Gabrielle se virou para Stephen.
- Ele sabe - disse ela, com um suspiro.
- Ah. - O guarda de Gabrielle olhou para Colm no momento em que ele perguntava a ela: - Você contou a ele?
- Ele descobriu. Foi a minha flecha, Stephen. Nós nos esquecemos de retirá-la.
- A flecha. Claro. Nem cheguei a pensar nas marcas. Não posso acreditar que tenha sido tão descuidado.
- Você estava ocupado tirando Liam de lá. Não se culpe. De um jeito ou de outro, Colm acabaria descobrindo e eu já havia decidido que chegara a hora de lhe contar a verdade.
Cético, Colm olhou para os dois.
- E posso saber por que vocês guardaram segredo? Stephen respondeu.
- Não sabíamos quem eram os homens, ou de onde tinham vindo e, portanto, não sabíamos quais seriam as conseqüências quando o corpo fosse encontrado.
- Vocês estavam preocupados com as conseqüências porque mataram o homem? - Colm perguntou a Stephen.
- Não, porque eu matei o homem - respondeu Gabrielle.
- Isso é verdade? - ele perguntou a Stephen.
- Sim - ele disse. O orgulho que sentia era evidente quando acrescentou: - No manejo do arco, a Princesa Gabrielle é mais certeira que nós. Não havia tempo para pensarmos ou medirmos as conseqüências. O covarde levantou a espada com a intenção clara de cortar Liam ao meio. Ela o impediu. - Assentindo com a cabeça, Stephen acrescentou: - Foi uma morte extremamente limpa e rápida.
Com atenção concentrada, Gabrielle observava o rosto de Colm enquanto ele digeria o que lhe diziam. O que ele pensaria dela, agora? Desde que ele a encontrara, ela já passara de prostituta a assassina com sangue-frio. Que belas
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palavras para descrever a mulher com quem iria se casar. Ela quase chegou a sentir pena dele.
Colocando as mãos sobre os ombros de Gabrielle, Colm fez com que ela ficasse em pé à sua frente.
- Você vai me explicar tudo o que aconteceu. E, quando tiver terminado, Stephen me dará a versão dele.
Gabrielle sentiu-se aliviada por, finalmente, tirar aquele peso das costas. Rapidamente, ela contou tudo o que pôde se lembrar, começando por seu objetivo de conhecer Finney's Fiat.
- Ao nos aproximarmos da clareira, ouvimos vozes. Então, nos escondemos e não nos deixamos ver.
- Você viu algum rosto?
- Não no começo. Eles vestiam batinas com capuzes. Mas alguns deles haviam tirado os capuzes e pude vê-los.
- Ouviu algum nome?
- Sim, eles estavam discutindo e usaram seus nomes, mas não ouvimos nenhum nome de clãs ou famílias. O nome do líder era Gordon. Foi ele quem eu matei.
- Sobre o que discutiam?
Antes de responder, Gabrielle olhou com simpatia para o irmão de Colm.
- Eles queriam que Liam acordasse para poder ver que estava sendo enterrado vivo, e discutiam a maneira de como colocá-lo no buraco.
- Mas eles não iriam enterrá-lo até que o vissem no topo, Lord - contribuiu Stephen.
Colm cruzou as mãos nas costas e caminhou até a lareira. Perdido em pensamentos, olhava fixamente para o fogo.
- Eles disseram por que precisavam me ver lá?
- Sim, Lord - respondeu Stephen. - Liam era a isca que eles estavam usando para pegar o senhor.
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Capítulo 38
Colm jurou encontrar os cretinos. Não se importava com o tempo que demorasse - um ano, dez, a vida inteira - continuaria procurando até acabar com todos eles. E, antes de morrerem, eles lhe diriam o nome do homem que lhes dera ordens, pois, com certeza, um ataque tão deliberado realizado por estranhos fora planejado por alguém que tinha alguma coisa a ganhar. Por tudo o que era sagrado, justiça seria feita.
Da maneira como as coisas aconteceram, não foi preciso esperar a vida toda, nem mesmo um ano. E Colm não precisou caçá-los. Eles vieram até ele.
Depois que Stephen e Gabrielle narraram o que haviam ouvido em Finneys Fiat, Liam andava de um lado para outro, fumegando de raiva.
- Você ouviu o que Stephen disse. Eles falavam a nossa língua, mas com sotaque diferente, mais gutural. Devem ter vindo das planícies da fronteira. Sugiro reunirmos todos os nossos homens e aliados para arrasarmos cada centímetro de terra, daqui até a fronteira, até os encontrarmos. Enterrar-me vivo? Cortar-me ao meio? Filhos-da-mãe! - a cada palavra, a fúria e a ânsia por vingança de Liam transbordavam.
De braços cruzados, em pé na frente da lareira, Colm se mantinha silencioso. Permitiu que o irmão externasse sua ira até que começasse a descrever as maneiras como seus atacantes deveriam morrer.
- Gabrielle não precisa ouvir isso, Liam.
- Eles vão sofrer muito. Juro por Deus que eles vão implorar por clemência - garantiu ele. Exaurido com seu discurso, Liam desabou sobre uma cadeira.
- Você sabe que vamos encontrá-los - disse Colm.
- Sim - respondeu Liam. - Eu sei.
Com o temperamento novamente sob controle, os dois irmãos começaram a fazer planos.
Como Colm estivesse ocupado com Stephen e Liam, Gabrielle achou que teria a chance de escapulir sem ser notada. Por duas vezes, ela tentara sair do salão, mas Colm a puxara de volta. No final, colocando o braço na cintura dela, ele a segurara ao seu lado. Ela não iria a lugar algum, a não ser que ele permitisse.
Ao entrar no salão à procura do almoço, o pobre Padre Gelroy foi imediatamente sufocado com perguntas. O padre pareceu se sentir aliviado por finalmente a verdade ter vindo à tona para, em seguida, ficar atônito ao descobrir que Gabrielle tirara a vida de um homem.
Apesar de completamente exausta, Gabrielle também se sentia aliviada com a revelação da verdade. Contar a verdade a Colm havia sido uma tarefa extenuante. Ela se apoiou nele e relaxou. Um fardo terrível acabara de ser tirado de suas costas e transferido para ele. Ela não tinha a menor dúvida de que Colm encontraria os homens que haviam espancado Liam, e sentia-se agradecida pelo fato de ele ter impedido Liam de descrever as maneiras grotescas como eles deveriam morrer.
Quando Colm deu permissão para que Stephen retornasse aos campos e Padre Gelroy fosse até a cozinha em busca de alimento, Gabrielle pôde, finalmente, ficar sozinha com ele, mas não por muito tempo. Ele tirou o braço da cintura dela.
- Gabrielle - ele começou. Mas Maurna interrompeu:
- Peço desculpas, lord, mas eles estão aqui. Se o senhor não tiver tempo agora, posso deixá-los de castigo num canto até que o senhor esteja pronto para puni-los. Maurna era seguida de perto por um outro criado. - O guincho quebrou e os homens não têm como içar as pedras maiores até o topo. Eles querem que o senhor dê uma olhada.
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Colm assentiu com a cabeça.
- Estarei lá em um minuto, Emmett.
Naquele momento, Gabrielle poderia ter escapulido, mas ficou exatamente onde estava e observou Maurna meio que arrastar e puxar dois garotos para dentro do salão. Ambos tinham a cabeça baixa. Colm dispensou Maurna e ordenou aos garotos que lhe contassem o que haviam feito.
Colm era muito maior que eles e Gabrielle imaginou o que estariam pensando ao olharem para aquele gigante. Entretanto, ao falarem ao mesmo tempo, nenhum dos dois parecia amedrontado.
Colm levantou a mão.
- Um de cada vez. Ethan, você começa. Tom, pare de olhar para Lady Gabrielle e preste atenção.
- Sim, lord, mas ela é sua senhora? - perguntou Tom.
- Sim, é. Agora, fique quieto e ouça o que Ethan tem a dizer.
Colm se mostrou extremamente paciente. Apesar de sua expressão sisuda, era evidente que os jovens se sentiam confortáveis com ele, do contrário, não teriam feito tantas perguntas.
Gabrielle achou-os adoráveis. Não deviam ter mais do que cinco anos e, apesar de não serem idênticos, estava claro que eram gêmeos. Ambos tinham sardas e imensos olhos castanhos com uma pitada de travessura.
Por três vezes, Colm precisou lembrá-los do motivo de estarem ali e, finalmente, Ethan contou sua história.
- Sabe, Lord, o que fizemos foi... - ele começou.
Aquelas foram as únicas palavras que Gabrielle entendeu. Tom continuava interrompendo e corrigindo, e a narração se tornou tão enrolada que, ao terminarem, ela não tinha a menor idéia sobre a transgressão perpetrada por eles.
Então Tom, um pouco mais precoce que Ethan, sentiu que chegara a sua vez. A explicação dele também não fazia o menor sentido.
Os garotos constantemente se movimentavam, andando de um lado para outro, cutucando-se com os cotovelos e olhando para ela.
Tudo indicava que Colm havia entendido o que eles disseram.
- Vocês não devem ir à cozinha, a não ser que sejam convidados.
- Sim, lord, mas podemos ir lá para brincar com o gato?
- Não, não podem.
- Sim, Lord - disse Ethan. - Mas podemos ir lá, só algumas vezes?
- Vocês só podem ir à cozinha quando Willa convidá-los. Entenderam?
- Sim, Lord - disse Tom. - Mas será que podemos...
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- Não, não podem. Agora, quero que vocês peçam desculpas a Willa. Os garotos assentiram com a cabeça.
- Sim, lord, eles disseram - em uníssono.
- Depois, quero que procurem sua tia e também se desculpem com ela.
- Sim, lord, mas nós não derrubamos a farinha dela.
- Mas devem se desculpar por terem feito uma travessura.
- Sim, lord, mas, será que podemos...
- Já chega, Tom. - Agora, usando um tom de voz deliberadamente ríspido, Colm conseguiu a reação desejada. Os garotos arregalaram os olhos e assentiram com a cabeça. Liam tossiu para disfarçar uma risada. Colm continuou: - Não quero mais saber de bate-boca. Vou decidir qual será o castigo. Voltem a falar comigo amanhã e eu lhes direi o que devem fazer.
Eles correram em direção à despensa e, em seguida, fizeram um desvio até a mesa, onde Liam estava sentado.
- Liam, você já está melhor? - Ethan perguntou.
- Sim, estou melhor.
- Podemos ver as suas costas? - perguntou Tom. - Onde você se machucou?
- Não, não podem.
- Sim, Liam, mas podemos ver...
Liam sorriu para os garotos e fez festa nos cabelos deles.
- Hoje, vocês fizeram uma coisa muito boa.
Os garotos enrubesceram com o elogio inesperado.
- Fizemos? - perguntou Ethan, surpreso.
- Sim, fizeram - disse Liam.
- O que foi que fizemos? - especulou Tom.
- Vocês me mostraram que ainda existe inocência no mundo - explicou Liam. - Agora, saiam antes que o Lord decida lhes dar o castigo agora mesmo. - Assim que eles saíram, Liam disse: - Eles alegram a minha alma.
- Eles não me pareceram muito arrependidos - comentou Gabrielle.
- É porque não estão - respondeu Colm.
- Qual o castigo que você vai lhes dar? - perguntou Liam
- Estou aberto a sugestões. Até agora, eles já foram banidos dos estábulos, dos campos, das colinas, da fábrica de armas e das cozinhas.
- Onde está o pai deles? - perguntou Gabrielle.
- Partiu.
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Ela supôs que aquilo queria dizer que o pai tivesse morrido e não fez mais perguntas.
- Sinto muito insistir, lord, mas voltando ao guincho... - disse Emmett, que estivera pacientemente esperando num canto.
- Já vou indo - disse Colm.
Liam levantou-se da cadeira e foi até Gabrielle. Colm estava chegando à escada, mas estacou de repente ao ver Liam puxar Gabrielle nos braços e abraçá-la.
Assustada, Gabrielle enrijeceu o corpo por alguns segundos.
- O que você pensa que está fazendo? - perguntou Colm.
- Mostrando meu agradecimento a Lady Gabrielle.
Colm sentiu uma onda de ciúme. Homem nenhum, nem mesmo seu irmão, tinha o direito de tocar o que lhe pertencia.
- Solte-a.
Liam ignorou a ordem. Beijou a testa de Gabrielle, aproximou a boca de sua orelha e sussurrou:
- Obrigado.
No momento em que Colm estava pronto para empurrá-lo para longe de Gabrielle, seu irmão afastou-se dela e saiu do salão.
De início, Gabrielle foi pega de surpresa pelo gesto súbito de Liam, mas, quando ele se afastou, ela percebeu que mostrar sua gratidão fora um ato gentil e atencioso. Ele a puxara para perto de si com bastante delicadeza.
Colm não foi nem um pouco gentil quando a agarrou e a apertou em seus braços. Ele começou a dizer alguma coisa, mas mudou de idéia e, colando sua boca na dela, apoderou-se completamente dela num beijo capaz de desarmar qualquer resistência que Gabrielle pudesse ter.
Cada beijo era melhor que o anterior, mas o que aconteceu a seguir foi idêntico às outras vezes. Deixando-a completamente estonteada, Colm afastou-se sem olhar para trás. Gabrielle ficou olhando enquanto ele desaparecia. Pensou que nunca seria capaz de compreendê-lo.
Com enorme peso retirado de seus ombros e quase toda a tarde pela frente, ela decidiu tomar um pouco de ar fresco e caminhou até os estábulos para dar uns torrões de açúcar a Rogue. Em seguida, saiu à procura de Faust e Lucien. Encontrou-os sentados num outeiro atrás da torre de vigia, trabalhando em suas flechas. Lucien usava um trapo para besuntar a haste de uma flecha enquanto Faust colocava penas em outra. Ela se sentou ao lado de Faust e ajudou-o com
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as penas. Os dois homens conversavam em sua língua nativa e ela ficou ouvindo enquanto Faust contava a Lucien que Colm agora sabia que eles haviam estado em Finney's Fiat. Depois de passada uma hora bastante agradável, Gabrielle perguntou aos dois guardas se cavalgariam com ela fora da propriedade. Como Lucien queria continuar o trabalho, Faust selou dois cavalos para eles.
Era evidente que Rogue estava ansioso para correr. Assim que cruzaram a muralha, ela seguiu para o norte, deu-lhe rédea e deixou que galopasse até o topo da primeira colina para, em seguida, diminuir a marcha enquanto trotava ao lado de Faust pela zona rural.
- Devemos voltar? - perguntou Faust, depois de alguns minutos. - A caravana com seus pertences deve chegar logo. Gostaria de saber se o abade se lembrou de mandar a imagem de St. Biel. O Padre Gelroy vai querer colocá-la na entrada da capela.
- A capela ainda não existe - ela disse. - A imagem pode ficar no depósito até que se construa uma.
- Talvez algum dia seu pai possa mandar a imagem maior do nosso santo, aquela que ficava no pátio, do lado de fora do quarto de sua mãe. Um presente de seu avô, antes de ela deixar St. Biel. Uma pequena nuvem de tristeza passou pelos olhos dele ao acrescentar: - A esta altura, as montanhas de St. Biel já devem estar cobertas de neve.
Gabrielle percebeu que o guarda estava nostálgico e sentiu uma aguilhoada de culpa por afastá-lo de sua terra natal.
- Acho que você poderá voltar logo - ela disse. Ele sorriu.
- É o que Stephen diz, mas primeiro a princesa precisa se casar...
- E vocês precisam ter certeza de que estarei segura.
- Nós já sabemos que o seu lord não deixará que nada de mal lhe aconteça.
- Quer dizer que, em breve, vocês estarão reclamando do frio implacável e da neve.
Ele assentiu com a cabeça.
- Parece que sim.
Eles desceram a colina e continuaram até a beira com vista para Finneys Fiat. Gabrielle sabia que as sentinelas não a deixariam ir mais longe. Diminuiu a marcha para fazer a curva da estrada. Circundaram a colina até onde o caminho estreitava e, subitamente, Gabrielle puxou as rédeas com força. Havia
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um cortejo vindo na direção deles. À curta distância, três carroças estreitas lideradas por meia dúzia de homens a cavalo levavam baús e pacotes.
- Deus do céu - ela murmurou.
Antes que Faust pudesse atinar com o que estava errado, ela fez com que Rogue desse meia-volta e saísse a galope.
Faust acelerou a marcha para alcançá-la. Quando estavam quase chegando à propriedade, ele gritou para Gabrielle:
- Princesa, o que aconteceu?
- Aqueles homens... eles estão aqui. Não consigo acreditar no que vi. Chame os outros. Rápido, Faust.
Quando chegaram aos estábulos, Gabrielle saltou do cavalo, entregando as rédeas a um tratador. Em seu estado normal, ela teria ido até o pátio a cavalo mas, desta vez, resolveu correr. Sua cabeça estava repleta de perguntas. Ela precisava ter certeza. Seriam os mesmos homens? E, se fossem, o que estariam fazendo nas terras de MacHugh? Aquilo não fazia sentido.
Gabrielle precisava estar certa antes de condená-los. Faust não os havia reconhecido porque ficara tomando conta dos cavalos na floresta, mas os outros tinham ido com ela até a clareira de Finney's Fiat. Apesar de terem visto alguns dos homens, não tiveram uma visão tão clara quanto ela. Se pelo menos pudesse ouvir a voz deles, talvez tivesse certeza.
Com um assobio agudo, Faust chamou os outros guardas. Quando ouviu o chamado, Stephen estava treinando os jovens guerreiros MacHugh, tendo acabado de tensionar seu arco com uma flecha. Sem uma palavra de explicação, ele largou o arco e a flecha, e correu.
Christien estava prestes a mostrar a um soldado como usar a força de uma alavanca contra o oponente em combates de corpo a corpo. Ao ouvir o assobio, ele atirou o jovem ao chão e, pulando sobre ele, correu na direção do som.
Quando Stephen e Christien chegaram, Lucien e Faust já estavam ao lado de Gabrielle. Circundada por seus guardas, ela lhes contou o que vira.
Stephen concordou que seria necessário que ela tivesse certeza antes de informar o lord.
- Seria tolice eles virem aqui - disse Lucien.
- É exatamente o que estou pensando - ela concordou.
- Mas, princesa, por que eles teriam medo de vir aqui? Eles não sabem que os vimos - explicou Christien.
- Alguém conseguiu vê-los com clareza? - ela perguntou.
- Eu não tive chance, pois fiquei com os cavalos - disse Faust.
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- Eu não vi todos eles - respondeu Stephen. - Lembro-me de ter deixado que Lady Gabrielle ficasse na minha frente para poder mirar melhor a sua flecha. E eles ainda não haviam tirado o capuz.
- Eu não sei se seria capaz de reconhecê-los - admitiu Lucien.
- A princesa viu todos eles e deve se lembrar - disse Christien. - Não duvide de si mesma - ele encorajou Gabrielle.
- Se puder ouvir a voz deles, terei certeza.
O som das patas dos cavalos sobre a ponte levadiça chamou a atenção deles. A caravana havia chegado. As sentinelas a fizeram parar no portão. Apenas os cavalos que puxavam as carroças tiveram permissão para passar. Os homens tiveram de deixar seus cavalos do lado de fora do muro, fazendo o resto do trajeto a pé. Seguindo o declive que levava na direção de Gabrielle e seus guardas, os homens caminhavam à frente das carroças. Quanto mais se aproximavam, mais forte batia o coração de Gabrielle. Quando chegaram perto o suficiente a ponto de poder ver seus rostos, ela foi tomada pelo medo.
Sem saber que caminhavam para sua desgraça, os homens conversavam e riam. Ao ouvir as vozes deles, Gabrielle já sabia. Eram realmente os mesmos homens.
Com os olhos colados neles, Stephen perguntou:
- Princesa?
- Sim, são eles. Tenho certeza - sussurrou ela. Os guardas se movimentaram de modo a protegê-la.
- Faust, vá procurar o lord.
- É aquela? - perguntou um dos homens.
- Eles disseram que ela tem cabelos negros e é bonita - disse um outro. - Se aqueles homens saíssem de perto dela, eu poderia dar uma olhada.
- Não podemos entregar os baús até termos certeza de ser ela.
Um dos homens abaixou consideravelmente o volume da voz e, num sussurro, disse:
- Vamos acabar logo com isso. Eu não quero estar aqui para encontrar o lord.
Colm estivera trabalhando com os pedreiros no guincho ao lado da torre de vigia. Quando Faust o chamou, ele estava contornando a curva com uma corda puída nas mãos
Os visitantes se enfileiraram em frente à primeira carroça. O mais alto deu um passo à frente e, com ar de importância, anunciou:
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- Trouxemos os baús de Lady Gabrielle. Nós os deixaremos aqui se nos disserem que essa mulher é ela - ele apontou para Gabrielle.
Ninguém lhe respondeu.
Colm se aproximou de Gabrielle.
- O que está acontecendo? - indagou.
Apesar de se sentir mais forte com a presença de Colm, as mãos dela tremeram ao tocar o braço dele.
- Esses homens trouxeram minhas coisas. - Ela deu um passo à frente, mas Stephen a impediu de dar outro. - Sim, eu sou Lady Gabrielle.
Nervoso ao falar com Gabrielle, o homem tinha os olhos grudados em MacHugh.
- Então, esses baús lhe pertencem.
- Sim, são meus.
- Nós os trouxemos da abadia. Gabrielle se virou para Colm.
- Esses homens lhe interessam. Colm deu uma boa olhada neles.
- Como assim? - ele perguntou.
De costas para os descrentes, ela sussurrou.
- Eles gostam de cavar buracos.
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Capítulo 39
- Vocè tem certeza, Gabrielle? - perguntou Colm.
- Sim. Gabrielle não era capaz de imaginar no que Colm estaria pensando. Ela sussurrou:
- Quer que eu lhe diga seus nomes? Eu me lembro de todos. Ao responder, ele não olhou para ela.
- Isso não será necessário. Vá para dentro, Gabrielle, e fique lá.
Ela ficou espantada com o controle mostrado por ele. Sabia que, apesar de não transparecer, a raiva deveria estar fervendo em suas veias.
Ao sentir que o comandante do Lord deveria saber o que acontecia, Christien tomou a decisão de ir à procura de Braeden.
Enquanto Lucien e Faust a acompanhavam para dentro de casa, Gabrielle olhou por sobre o ombro. Colm caminhava na direção dos homens condenados. Com um olhar cheio de terror, eles se encolheram e, cambaleando, se esgueiraram por entre as carroças para em seguida, depararem com dezenas de guerreiros MacHugh armados, que apareciam das colinas atrás deles.
Assim que a porta se fechou atrás dela, Gabrielle subiu a escada que levava ao grande salão. Não ouviu nenhum som vindo de fora - tudo estava absolutamente silencioso - e nenhum guarda lhe daria permissão para olhar pela janela. Uma hora se passou, depois outra e mais outra. E o silêncio continuava. Apesar dos esforços de Faust e Lucien para distrair sua atenção, a apreensão de Gabrielle aumentava cada vez mais.
Ao cair do sol, Stephen entrou no salão. Estava sozinho.
- Princesa, seus baús já foram colocados no depósito.
- Obrigada. Amanhã darei uma olhada neles. Por acaso você sabe se Colm volta logo?
- O Lord se ausentou da fazenda. Duvido que volte ainda hoje.
- Princesa, seu jantar está servido - anunciou Maurna.
- Pensei em esperar pelo Lord e seu irmão...
- Eles não se encontram na propriedade - disse Stephen.
- Apenas os dois se ausentaram?
- Não.
Ele não disse nem mais uma palavra.
Gabrielle ficou sabendo mais por intermédio de Maurna do que por qualquer um de seus guardas.
- O Lord saiu acompanhado de muitos homens. Os estranhos que trouxeram suas coisas também foram com eles. Pelo que vi, não pareciam estar dispostos a ir, mas não se pode dizer não ao lord, não é?
Era evidente que Maurna não sabia quem eram os estranhos ou o que haviam feito, e Gabrielle não tinha nenhuma intenção de lhe contar.
Naquela noite, ela se recolheu cedo, mas não conseguiu dormir até as primeiras horas da manhã.
Colm ficou fora por cinco longos dias e noites. E finalmente chegou sem fazer grande alarde. Um belo dia, Gabrielle desceu a escada e lá estava ele, em pé, defronte à lareira. Ao vê-lo, ficou tão surpresa que quase tropeçou no último degrau. Nervosa, passou a mão pelo vestido e ajeitou o cinto trançado que trazia sobre as ancas. Se soubesse que ele estava de volta, teria cuidado melhor da aparência. Teria usado seu vestido verde-esmeralda em vez do azul, já meio desbotado. E teria enfeitado os cabelos com uma fita; não os teria deixado soltos sobre os ombros.
Tinha perfeita noção de sua aparência desleixada, o que, no final das contas, era culpa dele, pois chegara sem avisar.
- Você voltou - ela disse.
Colm se virou e devorou-a com olhos famintos. Maldição, ele sentira saudade dela. Sentira falta de seus sorrisos, suas caretas, seu riso e, acima de tudo, sentira falta de beijá-la. Mas ele não era muito dado a palavras melosas.
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- Você acorda muito tarde, Gabrielle.
- Será que não seria melhor você me dar bom-dia antes de me criticar?
- Você está doente?
- Ela não tem dormido bem à noite, lord - Maurna fez a comunicação enquanto levava uma jarra para a mesa. Colocou-a próxima a quatro cálices, fez uma mesura para o Lord e continuou: - Algumas noites, ela não vai para a cama antes de amanhecer.
- E como você sabe quando subo? - perguntou Gabrielle.
- Garret contou ao David, ele contou a Airtken, que contou ao meu homem, e ele me contou.
- Mas como Garret poderia saber?
- Porque Nevin lhe contou. Milady quer saber como Nevin soube?
Não, obrigada, ela não fazia questão. Tinha a sensação de que a ladainha poderia se estender pela manhã toda.
- Gabrielle, venha aqui - ordenou Colm.
Ela cruzou o salão e colocou-se na frente dele. Na ponta dos pés, deu-lhe um beijo na boca. Um beijo rápido, mas um beijo. Dando um passo atrás, ela o fitou e disse:
- Bem-vindo, lord.
Aquele cumprimento era apropriado, pensou ela. Cruzando as mãos, ela esperou que ele fizesse o mesmo.
- Por que você não tem dormido bem à noite? - ele perguntou. Ignorando a pergunta, ela indagou:
- Está feliz por estar de volta? Se estiver, deve me dizer. Simples questão de cortesia.
- Sim, estou feliz por estar de volta, mulher insensata. Agora, responda à minha pergunta.
Como ele estava sorrindo ao chamá-la de insensata, ela não se ofendeu.
- Não sei.
- Está preocupada com alguma coisa?
- Eu deveria estar preocupada? Com o quê? Será que devo me preocupar por não ter a menor idéia sobre o paradeiro de meu pai? Ou com o fato de meu futuro marido sair e não retornar por vários dias? Deveria me preocupar com o que possa acontecer com ele?
- Você se preocuparia comigo?
Ela lhe deu um pequeno soco no peito.
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- E você chama a mim de insensata) - Antes de continuar, ela respirou fundo. - Apesar de você não ter sido prioridade máxima em minha lista de preocupações, fiquei, sim, preocupada com você.
- Mentira, Gabrielle. E devo avisá-la de que você não mente muito bem.
- Eu sei que você não quer se casar comigo - ela começou a dizer -, mas...
- Eu me casarei com você - disse uma voz vinda do hall de entrada. Liam entrou no salão.
- Não, você não vai se casar comigo, Liam - ela disse, exasperada. - Estou tentando ter uma conversa particular com Colm. Por favor, saia. Colm puxou Gabrielle para si.
- Lady Gabrielle consentiu em se casar comigo.
- Sim, eu sei disso, mas você não a quer, e eu sim - disse Liam. - Ela salvou a minha vida, não a sua, e, por isso, terei com ela uma dívida eterna.
Colm estava ficando irritado.
- Você acha que eu abriria mão dela para qualquer outro homem?
- Quer dizer que você a quer? - retrucou Liam.
- Pode estar certo que sim!
Liam assentiu com a cabeça e, com um sorriso extremamente satisfeito, acrescentou:
- É melhor você dizer isso a ela.
Gabrielle e Colm o ouviram rir enquanto descia a escada. Colm olhou-a nos olhos.
- Eu nunca deixarei que se vá, Gabrielle.
Ela não soube o que dizer, o que provavelmente não fez a menor diferença, porque ele não lhe deu tempo para mais nada além de ficar boquiaberta.
Colm cobriu a boca de Gabrielle e com a língua, exigiu resposta. Jogando os braços no pescoço dele, ela pressionou o corpo excitado contra o dele enquanto ele se inclinava cada vez mais sobre o dela. O beijo se tornou intenso. Ela o deixava excitado como nenhuma outra mulher e Colm sabia que deveria parar imediatamente, ou perderia o controle.
Quando ele se afastou, o coração de Gabrielle estava aos pulos. Ela mal podia respirar. A voz de um homem a tirou de seu atordoamento.
- Lord, peço desculpas, mas temos mais problemas com o guincho.
O pedreiro estava em pé atrás dela. Colm fez um gesto para que se retirasse.
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- Gabrielle, você não me perguntou o que aconteceu depois que eu me ausentei.
- Se eu perguntasse, você me contaria?
- Não.
- Então, foi bom não ter perguntado. Não sei se quero saber o que aconteceu com aqueles homens. Acho que teria pesadelos.
- Durma tranqüila - ele disse. - Eu não os enterrei vivos.
- Era exatamente isso que me preocupava. Você me conhece tão bem quanto eu mesma. Liam estava tão furioso que ameaçou fazer coisas horríveis. - Ela suspirou. - Mas você não os enterrou vivos. - Inclinando um pouco a cabeça para o lado, ela examinou o rosto dele por alguns segundos antes de ter coragem para perguntar: - O que aconteceu com eles? Você deixou que voltassem para casa?
- Não.
Temendo que ele lhe contasse a punição aplicada, ela achou melhor não provocá-lo. Colm, assim como Liam, não era do tipo clemente.
- Você conseguiu descobrir quem os mandou atrás de Liam?
Antes que ela pudesse responder, dois outros homens do clã entraram no salão, implorando a atenção dele. Colm os ignorou, mas Gabrielle não foi capaz.
- Seus homens precisam de você.
- Sim, é verdade.
- É melhor você ir.
Ele assentiu com a cabeça.
- Sim, é melhor eu ir - Ao passar por ela, ele agarrou sua mão e puxoua com ele. - Sele o meu cavalo - ele ordenou a um dos homens que esperava. Ao outro, ele disse: - Até hoje à tarde, não quero ser informado de nenhum problema. Deixe isto bem claro para os que estão esperando.
Gabrielle saiu do caminho para deixar passar um dos homens do clã que carregava nas costas um saco de grãos até o depósito. Ele a cumprimentou e se virou para Colm.
- Quer que o ajude a levar as coisas de Lady Gabrielle para cima? Colm olhou para os baús empilhados num canto da sala.
- Você tem coisas demais - ele criticou. Gabrielle riu.
- Será que vocês pensam que estes baús estão cheios de livros? O jovem que levava os grãos assentiu com a cabeça.
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- Os ingleses precisam de mais coisas do que nós.
- E os MacHugh não deviam fazer julgamentos antes de conhecerem os fatos - retorquiu ela. - Se me derem um momento, eu gostaria de abrir um dos baús.
- Qual o motivo? - perguntou Colm.
- Abra um deles e descubra você mesmo. Ela despertara a curiosidade dele.
- Qual deles devo abrir?
- Você escolhe.
Ao retirar um dos baús de cima dos outros, Colm se surpreendeu com o peso.
- Danen, segure do outro lado - mandou ele.
- As roupas inglesas pesam mais que pedras - resmungou Danen.
- Roupas não pesam tanto, nem mesmo as inglesas.
Havia quatro trincos. Colm abriu cada um e levantou a tampa. O interior estava repleto de sacos estufados.
Gabrielle sugeriu que ele usasse sua adaga pare perfurar o pano e, quando ele o fez, grãos de sal se espalharam pelo chão.
Ele ficou atônito.
- Você trouxe sal.
- Sim, o sal era um dos meus presentes para o Lord Monroe, e agora é seu.
- Sal é mais valioso que muitas jóias - tartamudeou Danen, seus olhos verdes brilhando de entusiasmo. - É muito necessário. Não é verdade, lord?
Com um gesto de cabeça, Colm concordou. - Todos os baús estão cheios de sal?
- Todos, com exceção de um. Vocês gostaram?
- Sim, muito. Se soubessem o qque havia dentro dos baús, eles nunca teriam chegado até aqui.
Colm fechou o baú e foi para fora. Um ajudante de estábulo trazia o cavalo de Colm para o pátio. Antes que Colm conseguisse acalmá-lo, o animal tentara empinar duas vezes. O Negro, como era chamado, era um animal magnífico. Apesar de ser duas vezes maior do que Rogue, Gabrielle duvidava de que fosse tão afável. Colm colocou-a sobre o Negro, montou na garupa e pegou as rédeas.
- Aonde vamos? - ela perguntou
Trazendo uma cesta, uma mulher apressada vinha na direção deles.
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- Lord, se o senhor tiver um minuto. Preciso de alguns minutos...
- Mais tarde.
Colocando o braço ao redor da cintura de Gabrielle, ele a apertou contra si enquanto cutucava o cavalo. Gabrielle não era capaz de imaginar o que havia dado em Colm. De repente, ele não estava fugindo dela para cuidar das necessidades do clã. Ao contrário, agora ele parecia estar fugindo deles para ficar com ela.
Assim que cruzaram o fosso, Colm chutou o Negro com o calcanhar e disparou contra o vento. Cavalgaram sem parar até chegarem ao topo com vista para o lindo vale por onde serpenteava um riacho. Antes de se mover, ele manteve as mãos na cintura dela por algum tempo.
- Venha se sentar um pouco comigo. Precisamos conversar - disse Colm.
O tom da voz dele a preocupou.
- Alguma notícia ruim? É por isso que você quis que ficássemos sozinhos? Para que eu não o envergonhasse na frente de seu clã?
- Você nunca me envergonharia.
Ela se sentou sob uma árvore e ajeitou a saia para cobrir o tornozelo.
- Acontece que eu aprendi a sempre esperar o pior.
Na frente dela, ele se colocou sobre um dos joelhos e segurou seu queixo com uma das mãos.
- Trouxe você aqui para não sermos interrompidos. O que, como você já pôde perceber, acontece com freqüência.
- Acontece porque você não delega, coisa que deveria aprender a fazer. Se desse mais responsabilidades a Braeden e aos outros, incluindo seu irmão, tiraria um pouco do peso que leva sobre os ombros e mostraria que confia neles. Você não é o único capaz de tomar decisões acertadas.
- Não viemos até aqui para você me fazer sermões.
- Mas vai pensar no que eu disse?
Colm se sentou ao lado dela e apoiou as costas contra o tronco.
- Sim, vou - ele disse, esticando as longas pernas e depois colocando um pé sobre o outro.
"Ele parece estar relaxado", ela pensou, o que não significava nada porque os leões também se mostravam relaxados antes de atacar.
- Se as notícias fossem boas, você já teria me contado.
- Não são boas nem ruins. O que eu descobri é o seguinte: os homens que trouxeram seus baús nunca teriam vindo à minha casa se soubessem que
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haviam sido vistos por alguém em Finneys Fiat. Tive a oportunidade de interrogá-los longamente.
Ela não lhe pediu que explicasse o que quisera dizer com "oportunidade".
- Eles responderam às perguntas?
Será que ela realmente acreditava que ele lhes dera outra escolha? E claro que haviam respondido a suas perguntas. Colm fizera com que fosse impossível recusarem.
- Todos insistiram em dizer que não sabiam o nome do homem que os contratou. Apenas o líder sabia.
- Gordon. Era ele o líder, e eu o matei. - Ela deu uns tapinhas de consolo no joelho dele. - Sinto muito.
- Sente muito sobre o quê?
- Sobre você nunca mais poder saber quem os mandou para matar Liam.
- Foi MacKenna quem os contratou.
- Mas como...
- Vou explicar, mas você não fará perguntas até eu terminar. - Ele esperou que ela concordasse e continuou: - O Barão Coswold mandou que seus baús fossem levados até a abadia. Quase imediatamente depois que você partiu da abadia, ele e seus soldados começaram a procurar você. O outro barão fez a mesma coisa.
- Percy? - Até o som daquele nome a enojava, e ela estremeceu com desprezo. - Os dois são uns demônios.
- Pelo que entendi, eles andaram à caça de rumores para tentar encontrála. Coswold ouviu dizer que você talvez pudesse estar vivendo em meu clã e, antes de agir, precisava ter certeza. E haveria melhor maneira de descobrir que mandar seus baús com homens que voltariam a ele com informações?
- Quer dizer que os baús não foram mandados pelo abade?
- Por insistência de Coswold, o abade concordou em mandá-los. Mas tenho certeza de que o abade pensou estar lhe fazendo uma gentileza. Coswold não poderia mandar ingleses. Eles nunca teriam chegado tão longe e, se tivessem, nunca teriam voltado para lhe informar.
- Mas como ele... - ao perceber que novamente interrompia, ela parou de falar.
- Os homens que Gordon contratou não sabiam que estavam sendo pagos por MacKenna, mas MacKenna sabia quem eram. Gordon lhe deu os nomes.
- E como você ficou sabendo?
- É impressionante as coisas de que um homem se lembra quando devidamente pressionado. O sujeito chamado Hamish me disse que ouviu Coswold
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e MacKenna fazerem algum tipo de acordo, que ele chamou de pacto. Como Coswold sabia que o Rei John não daria você a ele, prometeu-a a MacKenna. Ele ficaria com Finney's Fiat e, em troca, Coswold teria o direito de vê-la sempre que quisesse. Acho que eles pretendiam dividir você.
Ela tentou se levantar, mas Colm a puxou gentilmente para o seu lado.
- Outro dos proscritos admitiu ter ouvido Coswold cochichar com um de seus confidentes. Sim, Coswold queria você na cama dele, Gabrielle mas também queria informações que acredita que você mantenha em segredo.
Colm achou estranho que Gabrielle não tivesse lhe perguntado se ele tinha idéia do tipo de informação que ele achava que ela poderia ter.
- Você sabe que informação ele quer, não é? - ele perguntou.
- Sim.
- Gabrielle?
Ela apoiou o corpo contra o dele.
- Ele quer o tesouro de St. Biel.
Ela lhe narrou a lenda que lhe fora contada centenas de vezes.
- Dizem que o Rei Grenier de St. Biel não mandou todas as moedas de ouro ao papa e que escondeu algumas. Dizem também que o tesouro é tão grande que quem o encontrar terá poder para governar o mundo. Ninguém ainda o encontrou, mas a história é interessante.
- E por que Coswold acredita que o tesouro realmente exista?
- Não sei.
- E por que ele pensa que você sabe onde ele está escondido?
- Algumas pessoas acreditam que o segredo tenha sido passado do rei para sua filha, e que ela o tenha passado para a sua filha...
- Alguma vez sua mãe mencionou o tesouro?
- Ela me contou todas as histórias. Achava que era a ganância que fazia com que as pessoas acreditassem na existência do tesouro.
- E os cidadãos de St. Biel? - ele perguntou. - Eles acreditam na lenda?
- Alguns sim, outros não. Eles não precisam de muita coisa. A caça e a pesca lhes dão o alimento necessário e têm madeira suficiente para aquecer suas casas. Vivem uma vida simples, mas confortável.
- Em outras palavras, eles não precisam do ouro.
Ele passara o braço ao redor da cintura dela e, apesar de seu toque ser mais leve que uma pluma, causava nela uma sensação muito forte.
- Agora é minha vez de fazer perguntas, Colm. Você disse que, antes
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de agir, Coswold precisava ter certeza de que eu estava vivendo em seu clã. O que significa isso? Quais seriam as pretensões dele? Colm balançou a cabeça.
- Ainda não sei o que se passa naquela cabeça pervertida, Gabrielle, mas prometo que vou descobrir.
- Em nome do Rei John ele me baniu, lembra? E Percy o apoiou ao me condenar. Mesmo assim você disse que, assim que deixei a abadia, eles começaram a procurar por mim. - Com as pontas dos dedos, ela localizou uma cicatriz na mão dele. - Como você sabia que eu era inocente? Você disse que, desde o começo, soube que Islã mentia.
- A lua. Ela disse que a noite era de lua cheia e que, por isso, ela foi capaz de ver você. Acontece que naquela noite choveu, Gabrielle. Não havia lua alguma. Sei disso porque estava procurando Liam e ficou muito escuro. Precisei esperar até o outro dia para continuar a busca.
- Não acho que o monge tenha mentido. Acho que ele me viu em alguma das vezes que fui ao quarto de Liam.
- Eu também acho.
- Você está noivo de outra mulher? - Ela despejou a pergunta antes que perdesse a coragem. - Lady Joan? Você prometeu se casar com ela?
- Eu ia me casar com ela.
- Quando?
- Três anos atrás.
- O que aconteceu?
- O pai dela decidiu que uma outra aliança o faria mais forte e ela se casou com o Lord Dunbar. Assim como Monroe, ele era um homem de mais idade.
- Ela está para vir aqui, não é?
- Não fiquei sabendo de nada a respeito, mas, se ela vier, será bem-vinda. A irmã dela é casada com um dos meus homens.
A pergunta que Gabrielle mais queria fazer a ele não podia ser feita. Teria ele amado Joan? Se ela perguntasse, será que ele lhe diria a verdade?
- O que você pretende fazer a respeito de MacKenna?
- Matá-lo.
- E você terá de entrar em guerra contra o clã MacKenna? - ela perguntou. Mas, antes que ele pudesse responder, continuou: - E se Coswold juntar seu exército ao dele?
- Você não vai se preocupar com Coswold ou Percy - respondeu ele. - Eles não têm nenhum poder sobre você.
Se isso fosse verdade, qual seria o motivo de ela sentir tanto medo?
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Capítulo 40
O Rei John exigia uma prestação de contas, e o Barão Coswold estava furioso. Ele havia recebido ordens para se encontrar com o Rei John no Castelo de Newell, onde o rei tirava férias depois de ter fracassado em sua campanha contra os galeses.
Um grande número dos barões do Rei John havia ficado tão enfurecido com os ataques de seu rei que ameaçava fazer um levante contra ele. Coswold sabia que encontraria o rei de péssimo humor.
Percy também havia sido chamado a comparecer ao Castelo de Newell para apresentar sua versão sobre o ocorrido na Abadia Arbane, e Coswold já podia imaginar as mentiras que seu inimigo contaria.
Permitiu que Islã o acompanhasse. Confiante de que ela seria discreta, Coswold se acostumara a dividir suas preocupações com ela. Como a estada de Islã no mundo dependia inteiramente da generosidade de Coswold, ele tinha certeza de que ela não faria nada que o prejudicasse.
Islã cuidava dele direitinho Tomava as providências necessárias para que ele tivesse todo o conforto e para que os criados cuidassem da casa de acordo com sua vontade. Coswold nunca entrara em uma sala sem aquecimento, ou pegara um cálice vazio. Ela sabia das comidas de que ele gostava ou não. Coswold também sabia que algum dia teria de se casar e ter herdeiros; mesmo assim, pretendia manter Islã ao seu lado para fazer suas vontades.
Desde que ele permitira que ela o acompanhasse à Abadia Arbane, Islã se tornara ainda mais solícita, mal podendo disfarçar seu entusiasmo. E ele sabia o motivo. Ela ouvira dizer que Percy também estaria lá para ver o rei Oh, ela era uma tola por pensar que teria alguma chance com o inimigo de Coswold. Na Abadia Arbane, quando Islã acusara Gabrielle de comportamento impuro, Coswold se sentira inicialmente irritado com o espetáculo, mas logo percebeu que a cena poderia ser n manipulada a seu favor.
- Você está ansiosa para voltar a ver o Barão Percy? - ele perguntou, quando estavam a caminho do Castelo de Newell.
- Com certeza.
- Islã, ele nem sequer fala com você.
- Fala sim - insistiu ela. - Nas ocasiões apropriadas.
- Gostar dele é perda de tempo. Ela disfarçou um sorriso.
- Existem rumores de que logo estaremos casados. Mostrando indiferença, Coswold encolheu os ombros.
- Sendo assim, ele terá de abrir mão de Lady Gabrielle. Já era tempo. Ele nunca vai tê-la para si.
- Acho que ele não tem mais interesse nela - disse Islã. Ele levantou uma das sobrancelhas.
- E como você soube disso?
- Fofocas - ela disse, abrupta. - O senhor teve notícias dos homens que me disse ter mandado realizar um trabalho? O senhor me pareceu preocupado por não terem retornado imediatamente.
Coswold havia dito a Islã que contratara alguns homens para cuidar de uns assuntos para ele, mas não lhe dera mais detalhes.
- Não, ainda não sei de nada. Eles já teriam tido tempo de me dar alguma resposta. É como se tivessem desaparecido, da mesma maneira que meu lacaio Malcolm.
Islã sabia que Malcolm tinha medo de Coswold. Ela já vira o homem enorme e feio ao lado de Coswold e sabia que, caso seu tio lhe pedisse, ele seria até capaz de matar. Islã ouvira dizer que Malcolm havia dado um soco no rosto de Lady Gabrielle, mas ficara desapontada porque o rosto dela não ficara desfigurado. Ela não sentia o mínimo remorso por ter lhe causado tanto sofrimento com suas mentiras.
- Quando o senhor viu Malcolm pela última vez? - ela perguntou, tentando se mostrar preocupada.
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- Quando fazíamos busca nas colinas do lado oeste da abadia. Num minuto ele estava cavalgando ao meu lado e, da próxima vez que olhei, ele não estava mais lá.
- O que estavam procurando?
- Isso não importa. Ah, parece que finalmente chegamos. Não se esqueça de que na presença do Rei John você deve ficar quieta como um camundongo. O sol está começando a baixar. Duvido que minha audiência com ele aconteça ainda hoje.
Coswold estava completamente errado. Assim que o barão chegou, o rei quis falar com ele. Coswold não teve tempo nem para lavar as mãos.
Islã seguiu o tio até o salão principal, mas manteve-se próxima à porta de entrada. Colocou-se tão próxima das cortinas que, se quisesse, poderia ter se escondido atrás delas sem nem ao menos ser notada.
O salão era três vezes maior do que o de Coswold e ostentava duas lareiras. O rei estava sentado numa longa mesa coberta por uma toalha branca. Ao derrubar um cálice, ele se levantou.
O rei não era um homem bonito. Apesar da altura mediana e da barriga protuberante, para Islã ele parecia um gigante. Ela acreditava que ele fosse tão poderoso quanto Deus, pois, sob o seu comando, um país inteiro poderia ser destruído. O Rei John já provara ao mundo que não tinha medo de Sua Santidade, o papa. Na verdade, ele se beneficiava de sua própria excomunhão confiscando as rendas da igreja. Diziam que o Rei John era capaz de roubar a pureza de um santo.
O tablado sobre o qual o rei estava fazia com que parecesse ser mais alto que Coswold, que abaixou a cabeça para, em seguida, se ajoelhar na frente dele. O rei acabara de dar a Coswold permissão para se levantar quando as portas se abriram e o Barão Percy entrou. Vinha seguido de uma mulher que devia ter a mesma idade de Islã. Ricamente vestida, ela usava jóias resplandecentes ao redor do pescoço e na cabeça. Não parecia ser parente de Percy, mas Islã também não se parecia com o tio. Talvez a mulher fosse prima ou, quem sabe, sobrinha como Islã.
Entretanto, a mulher era extremamente arrogante. Em vez de se esconder nas sombras, ela se ajoelhou ao lado de Percy e esperou que o Rei John fizesse sinal para que ambos se levantassem.
O Rei John se dirigiu primeiro a Percy.
- Vejo que você recuperou a sanidade e obedeceu à minha ordem - ele disse, assentindo com a cabeça para a mulher que estava ao lado do barão.
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- Lady Beatrice, vá para os seus aposentos e se instale. - Percy bateu palmas e dois criados imediatamente apareceram para acompanhar a mulher.
Assim que a elegante dama se retirou, o rei ignorou os bons modos.
- Você tem idéia dos problemas que causou?
- Fiz apenas o que Vossa Majestade gostaria que eu fizesse - disse Percy.
- Apresente o seu relato imediatamente - ordenou o rei -, e sou eu quem deve decidir se você estava certo ou errado.
Rapidamente, Percy narrou os acontecimentos ocorridos na abadia.
- Ninguém ficou mais surpreso do que eu ao saber que Lady Gabrielle havia agido como uma prostituta comum. Sabendo que o senhor gostaria de tê-la punido, quis trazê-la até o senhor para que decidisse o destino dela.
- Coswold, agora é sua vez.
O barão explicou o que havia acontecido depois da descoberta do assassinato de Monroe e, quando terminou a sua história, disse:
- Imaginei que o senhor não quisesse gastar seu tempo com uma meretriz. Eu sabia o que precisava ser feito.
- E você pode, por favor, me dizer o que precisava ser feito?
- Eu a bani. Em seu nome, tirei tudo o que lhe pertencia. Agora, ela não tem mais rei, um país, ou família. Foi expulsa e condenada a viver foragida. Acredito que a punição aplicada tenha sido pior que a execução. O senhor concorda?
O Rei John esfregou o queixo.
- Concordo - ele disse, finalmente. - Acho difícil acreditar que a bela filha do Barão Geoffrey tenha se arrumado dessa maneira. Vou montar um cerco em Wellmgshire e matar o pai dela por não ter cumprido seu dever de proteger a inocência da filha. Agora, ela não tem nenhum valor para mim. - E tomou um grande gole de seu cálice, usando o braço para limpar as gotas que lhe caíram na barba e no queixo.
- Talvez agora você também tenha superado a sua paixão por Gabrielle. Percy já partiu para outra e eu sugiro que você faça o mesmo.
Coswold se virou para Percy.
- Por que esse sorriso afetado?
- Dentro de dois meses, vou me casar com Lady Beatrice. Ela me trará um ótimo dote. Ótimo dote.
Islã cobriu a boca para evitar um grito. Não, aquilo não podia ser verdade. Percy ia se casar com aquela mulher. Mas ele havia lhe prometido.
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Quando Coswold deixou o salão com o Rei John, Islã não os seguiu. Petrificada nas trevas, ela olhava para Percy, que ficara atrás.
Percy notara que Islã se encolhia ao lado da janela e decidiu conversar um pouco com ela e acabar com aquela história. Ele precisava ter certeza de que ela não lhe causaria problemas E, se precisasse ameaçá-la, ele o faria. Caminhou até o tablado e se serviu de um cálice de vinho do rei. Ao começar a falar, ele não se deu ao trabalho de se virar:
- Islã, saia das sombras para que possamos conversar. Ao cruzar o salão, suas pernas estavam enrijecidas.
- Quem é Lady Beatrice? - ela exigiu saber.
- Minha futura esposa. Você ouviu a conversa. Dentro de dois meses, estaremos casados.
- Mas o senhor não a ama. O senhor ama a mim. Disse que me amava e que iria se casar comigo.
- Fale mais baixo - asseverou ele. Era evidente que ela estava perdendo o controle. - Você quer que o Rei John a ouça? Não se esqueça de que, pelo que fez, poderia ser trancafiada na prisão pelo resto da vida.
- E o que foi que eu fiz? - gritou ela. Ele lhe deu um tapa no rosto.
- Já disse para falar baixo! E você sabe muito bem o que fez. Destruiu a vida de Lady Gabrielle com suas mentiras. Foi você quem a acusou.
Entorpecida de dor, Islã cobriu a bochecha com a mão.
- Foi você quem me instruiu a dizer tudo aquilo. E me prometeu que, se eu fizesse tudo direitinho, se casaria comigo.
- Eu nunca me casaria com você. Você me causa repulsa, Islã. Você é sobrinha de Coswold.
Islã começou a soluçar.
- Mas o senhor prometeu...
Ela agarrou a manga dele, mas ele retirou o braço.
- Fique longe de mim.
- Eu menti por sua causa.
- É verdade - admitiu ele. - Mas ninguém ficará sabendo disso
- Por quê? Por que você fez isso comigo? Por que queria destruir Lady Gabrielle?
- Como sabia que não poderia tê-la para mim, quis ter certeza de que Coswold também não ficaria com ela. E sabe o que mais eu planejava fazer?
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Planejava encontrá-la e levá-la para casa comigo. Eu a usaria todas as noites. Imagine só, Islã. Eu a tocaria, acariciaria e adoraria... Ela tentou agredi-lo, mas ele rechaçou o golpe.
- Você não passa de uma criatura patética... e é tão simplória... Eu sabia que Coswold viria com uma surpresa e ele não me desapontou. Chegou com um documento novinho em folha assinado pelo rei. E eu tinha você. Sim, caso todo o resto falhasse, você era a minha pequena surpresa. E seguiu as minhas ordens direitinho. Caso não pudesse me casar com lady Gabrielle, eu a teria em minha cama de outra forma.
- Pois fique sabendo que vou contar a todo mundo o que você me obrigou a fazer - ameaçou Islã. A desgraça dela se transformara em ódio.
- Você quer dizer o que você fez, não é? Se contar a qualquer um como destruiu a vida de Lady Gabrielle com suas mentiras, será condenada. Eu lhe disse que talvez precisasse que você mentisse para que eu pudesse ficar com Finney's Fiat, que depois eu venderia as terras para podermos viver uma vida feliz e tranqüila juntos. Como você pôde ser tão idiota? Será que não pensou que o Rei John tomaria as terras de volta? Ah, seu olhar me diz que você não tinha pensado nisso. Mas, para ser sincero, não esperava que pensasse. Você foi tola a ponto de pensar que eu pudesse amá-la. Por que não acreditaria em tudo o que lhe disse?
- Se o senhor quer tanto Gabrielle, por que vai se casar com essa tal Beatrice? - soluçou Islã.
- Ela tem muito dinheiro - admitiu Percy. - E me será de bastante utilidade. Algum dia, vou retomar as buscas de Gabrielle. Não sou homem de desistir facilmente. Seu tio deveria saber disso.
- Vou contar ao Rei John que você me obrigou a mentir. Ele bufou.
- Ele não vai acreditar em você.
- Por que você tem tanta certeza disso, Percy?
Ao ver o rei parado à porta, o barão levou tamanho susto que derrubou seu cálice.
- Vossa Majestade está interpretando mal a nossa conversa - gaguejou Percy. - Eu posso explicar...
- Silêncio! - ordenou o rei.
Ele fez um gesto para dois guardas.
- Cuidem para que o Barão Percy fique quieto enquanto eu converso com esta dama.
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Apesar de aterrorizada, o ódio que Islã sentia contra Percy era maior que o desejo de salvar a pele. Mantinha a cabeça abaixada, mas pelos cantos dos olhos observou o rei subir os três degraus e se sentar ao trono.
- Ajoelhe-se na minha frente e me conte sobre essa mentira - ordenou ele.
Atirando-se ao chão, ela confessou tudo, pedindo clemência ao final. O rei estava furioso. Chamou Coswold de volta ao salão e fez com que Islã repetisse a história. Ela sentia tanto medo e vergonha que não teve coragem de olhar para o tio.
- Saia da minha frente - ordenou o rei, e, enquanto seus soldados avançavam em sua direção, Islã implorou:
- Por favor, tenha piedade. O que será de mim? Para onde irei?
Com um gesto, o Rei John pediu que os guardas esperassem. Olhou para Islã com olhos de gelo.
- Você alguma vez se preocupou com o que aconteceria a Lady Gabrielle? Por acaso quis saber para onde ela iria?
Islã apontou Percy.
- Foi ele quem me obrigou a mentir.
Chorando e aos berros, ela foi arrastada para fora do salão. Quando a porta se fechou atrás dela, o rei olhou para os dois barões.
Coswold e Percy ficaram de boca fechada. Esperaram para saber a decisão de seu rei. Coswold tinha medo de que o rei o culpasse pela conduta de Islã, e Percy tinha medo de que suas terras fossem confiscadas.
- Tenho certeza de que vocês dois sabem dos problemas que tenho tido. Por causa da minha excomunhão, os nobres foram liberados de seu pacto de lealdade para comigo. Existe um clima de inquietude e fala-se de conspiração. Devo me manter em guarda dia e noite. Agora, um dos meus mais poderosos barões, Geoffrey de Wellingshire, ficará contra mim porque você, Coswold, em meu nome, baniu a filha dele. Neste exato momento, Geoffrey deve estar reunindo seu exército.
- Mate-o e resolva o problema - sugeriu Percy.
- Seu tolo. Geoffrey tem muitos amigos influentes que devem estar se sentindo tão ultrajados quanto ele. Todos se juntarão a ele para lutar contra mim. Esperam que eu mate todos eles? E será que você e Coswold vão pagar as taxas que eles me pagam?
- Vossa Alteza sabe que não podemos - disse Percy.
- Meus inimigos apoiam o Rei Felipe da França. Eles ficariam felizes em
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ter minha coroa. Eu não preciso de mais problemas. Onde está Lady Gabrielle agora? Ela ainda está viva?
- Acredito que esteja vivendo com um clã ao norte. Trata-se de um grupo primitivo.
- Sabem se algum homem a requisitou para si?
- Não, mas o que importa isso? Vossa Majestade pode forçá-la a voltar para a Inglaterra - disse Coswold.
O Rei John balançou a cabeça.
- Seus tolos, vocês anularam o meu poder contra ela. Ao anunciarem que não teria país, vocês também determinaram que ela não responderia mais a mim.
- Mesmo assim, o senhor poderia forçá-la...
- Quieto.
Antes de chegar a uma decisão, o rei pensou no problema por vários minutos.
- Primeiro, preciso fazer as pazes com o Barão Geoffrey, antes que ele reúna aliados contra mim. Vou lhe mandar uma mensagem dizendo que descobri a verdade sobre a inocência de sua filha. Gabrielle receberá Finney's Fiat. E, se ainda não estiver casada, encontrarei um marido apropriado para ela.
- E se ela estiver casada? - perguntou Coswold.
- Então Finey's Fiat será meu presente de casamento para ela.
- Agora que a inocência dela ficou provada, o Lord MacKenna se casaria com ela - disse Coswold.
O rei assentiu com a cabeça.
- Como não acredito que você, Coswold, tenha tomado parte dessa mentira traiçoeira, continuará a ser meu humilde servo. Quanto a Percy, acho que precisa de algum tempo para pensar em suas transgressões. - Com um gesto, ele chamou seus guardas. - Levem-no daqui.
Enquanto Percy era levado para fora do salão, Coswold se colocou na frente dele. Percy olhou seu inimigo com ódio.
- Esta história ainda não acabou - sibilou ele. Coswold deu um sorriso afetado.
- Acabou sim. - E com um sussurro, acrescentou: - E eu venci.
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Capítulo 41
Enquanto Colm saía para dar ordens aos seus homens, Gabrielle descia as escadas.
- Bom dia - ela disse. - Vai ser um belo dia, não acha?
Ele estacou e esperou que Gabrielle se aproximasse. Sem dúvida, ela era uma visão encantadora. Seu vestido era azul-royal e, mesmo preferindo que Gabrielle usasse as cores do clã, ela estava absolutamente linda. Se já fossem casados, ele saberia exatamente o que fazer naquele momento. Colm a pegaria no colo, a levaria de volta à sua cama e depois, com muita calma, tiraria as roupas dela.
Não havia jeito nem maneira de fazer isto sem fazer amor com ela. Por isso, havia decidido que, assim que retornasse, ordenaria que o padre abençoasse a união deles. Nos primeiros dias em que Colm a levara para casa, Brodick sugerira que ele adiasse o casamento, alertando-o para o fato de que, se Gabrielle ficasse grávida logo depois do casamento, as pessoas poderiam pensar que o bebê fosse de outro homem. Pois Colm tinha uma outra solução para o problema. Ele saberia que o bebê era seu e eliminaria qualquer homem que se atrevesse a dizer o contrário.
Pensara em lhe dizer imediatamente que se casaria com ela assim que retornasse, mas mudara de idéia. Anunciaria sua decisão enquanto o padre preparava a cerimônia.
- Enquanto eu estiver fora, Liam tomará conta de tudo. Caso tenha algum problema, fale com ele e ele saberá o que fazer - Colm disse a Gabrielle.
- Posso perguntar aonde você vai? - ela disse.
A pergunta o deixou confuso. De acordo com o seu entendimento, ele pensou que já tivesse deixado tudo claro para ela. Será que se esquecera?
- Para a guerra, Gabrielle. Ela quase desmaiou.
- Agora! Você está indo para a guerra, agora
- Por que ficou tão surpresa? Eu lhe disse que iria.
Ela agarrou a mão dele e a segurou com força para que ele não pudesse ir embora sem lhe explicar tudo.
- Tudo o que me disse foi que iria matar MacKenna.
- Ah, quer dizer que você se lembra. Agora, solte a minha mão para que eu...
- Você não pode ir para a guerra assim, Colm. - Gabrielle não acreditava no que acabara de ouvir. Será que, naquela manhã, ele se levantara, tomara café, reunira seus homens e agora pretendia sair para a batalha? - Você não está preparado.
- Como assim, não estou preparado?
Será que ele nunca fora para uma guerra antes? Seria essa a razão de ele não saber o que deveria ser feito?
- Primeiro, você tem de declarar guerra - instruiu ela. - Depois precisa passar semanas e até meses se preparando. Ê necessário fazer armas e colocá-las numa carroça, embalar muito bem as provisões para que seus homens possam se alimentar de maneira adequada durante as batalhas e todos os demais equipamentos devem ser cuidadosamente colocados nas carroças para que você tenha todos os confortos essenciais.
Segurando o riso, ele perguntou:
- Será que você pode me explicar o que seriam esses confortos essenciais? Ela pensou em tudo o que os nobres poderiam levar quando partiam para a guerra.
- Você vai precisar de uma tenda reforçada que o abrigue da chuva e de um tapete para forrar o chão de modo que, ao levantar da cama, não tenha de pisar descalço no chão de terra.
- Quer dizer que devo levar minha cama comigo?
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- Alguns nobres levam.
- E vinho, quantos barris devo levar?
- Quantos achar necessários - ela disse. - Colm, existem regras que até você deve seguir. Numa guerra civilizada...
- Uma guerra nunca é civilizada, e você acabou de me descrever a maneira como os ingleses se preparam para a guerra. E, a esta altura, você já devia ter percebido que não sou inglês.
- Mesmo assim, precisa se preparar.
- Tenho minha espada, meu arco e um bom cavalo. Não preciso de mais nada.
- Então, vou rezar para que a guerra termine antes que você venha a passar fome, ou sede.
Ao tentar se afastar, Gabrielle foi agarrada e intensamente beijada por ele.
- Você vai voltar para mim? - perguntou ela.
- Sim.
Em seguida, ele se retirou.
Ja fazia quatro dias e quatro noites que Colm e seus soldados haviam deixado a propriedade quando Lady Joan Dunbar chegou para visitar a irmã.
Gabrielle sentia-se extremamente curiosa para conhecer a mulher com quem Colm quase se casara. Não importa o quanto fosse bela e simpática, Gabrielle tomara a decisão de não sentir ciúme dela. Era evidente que Colm a respeitava, ou não teria concordado em se casar com ela no passado. Podia ser até que a tivesse amado, mas Gabrielle não sentiria ciúme.
Colm não amava Gabrielle. Simplesmente ficara prisioneiro de uma antiga dívida. De outra maneira, nunca a teria notado.
Será que Joan amava Colm? E como poderia não amá-lo? Ele era um homem atraente, forte e viril - o tipo protetor. E se Joan o amasse, tanto fazia. Mesmo assim, Gabrielle não sentiria ciúme.
Talvez ela e Joan pudessem até se tornar amigas. Seria bom ter uma mulher com quem pudesse conversar assuntos que não interessam aos homens. Além disso, ela e Joan tinham alguma coisa em comum: Colm. Sim, elas deviam se tornar amigas.
Mas não foi isso o que aconteceu. Depois de passar cinco minutos com a mulher, Gabrielle percebeu que jamais seriam amigas. E a razão era simples:
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Lady Joan era prepotente e, além de tudo, perversa.
Fiona apresentou Gabrielle à irmã. Joan era bem mais alta e magra que Gabrielle. Não parecia ter muitas curvas e tinha aparência de estátua. Seus cabelos longos chegavam à cintura e ela tinha a pele muito clara. Seus olhos azuis eram contornados por longos cílios. Ela era bonita, e tinha consciência disso.
Num gesto exagerado que tinha o objetivo de chamar a atenção para seus cachos, ela repetidamente jogava os cabelos para trás dos ombros com a parte de trás da mão.
- Esta é Lady Gabrielle, Joan - disse Fiona. - Eu já havia lhe contado que você e o Lord Colm estavam para se casar quando o nosso pai fez uma aliança com o Lord Dunbar, forçando-a a se casar com ele.
Olhando fixamente para Gabrielle, Joan perguntou à irmã:
- Você também lhe contou que o meu marido está morto e que, agora, estou livre para me casar com Colm? Explicou também que tenho a intenção de fazê-lo?
Lady Joan não recebeu a reação esperada. Gabrielle ficou tão surpresa com o que ouviu que caiu na risada.
- Pare de rir - exigiu Joan. - Eu não disse nada engraçado.
- Eu poderia lhe oferecer os pêsames pela morte de seu marido, mas parece que sua perda já foi superada.
Joan agitou o indicador para Gabrielle.
- Sei muito bem o que dizem a seu respeito.
- É estranho que eu não tenha ouvido nada sobre você.
- Talvez porque eu não seja uma prostituta.
Com desdém, Gabrielle encolheu os ombros, o que instigou ainda mais a fúria de Joan.
- Colm não se casaria com uma prostituta, e é isso exatamente o que você é.
Gabrielle sabia que Joan queria que ela se defendesse, mas ela não lhe daria o gostinho.
- Aproveite sua visita - ela disse ao se retirar.
Naquela noite, enquanto tirava a colcha da cama, Gabrielle pensou no que Joan havia lhe dito.
Um dia, depois que estivesse casada com Colm, ela lhe diria que o salvara de um destino pior do que a morte. Sim, ela o salvara de Joan.
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Capítulo 42
A guerra não fora nem um pouco civilizada, mas, ao contrário, cruel e sangrenta.
MacHugh optou por não atacar de surpresa. Ao espalhar a notícia para os clãs ao redor de que estava pronto para vingar o irmão, queria que MacKenna viesse ao seu encontro.
Quando a notícia chegou a MacKenna, o Lord reuniu seus soldados para a batalha, mas não teve tempo de chamar seus aliados. Jurara que os MacHugh nunca poriam os pés em terras MacKenna. Por isso, encontraria seu inimigo de frente e daria o primeiro golpe.
Acreditando que o que funcionara antes funcionaria novamente, MacKenna nunca mudava a sua estratégia. Repetidas vezes, ele atacava e batia em retirada, com ondas e ondas de assalto. Apesar de não serem muito bem treinados, seus homens eram bem mais numerosos e, depois de cada assalto, eram substituídos por homens descansados. E tinha outra vantagem: seus arqueiros. Assim que os MacHugh descessem a montanha e começassem a cruzar o vale, não teriam como se esconder. Caso conseguissem chegar às fronteiras do vale, seus arqueiros estariam prontos para acabar com eles.
Colm contava com a estupidez de MacKenna.
Nunca ocorrera ao Lord MacKenna que os MacHugh pudessem cruzar o vale durante a noite. Nem mesmo os tolos tentariam atravessar o que não podiam ver. Sem luz, seus cavalos correriam o risco de tropeçar e cair. Acontece que, desmontados, os MacHugh silenciosamente puxaram seus cavalos. Quando amanheceu, eles haviam se posicionado num extenso círculo atrás do inimigo. Ao avançarem, forçaram os MacKenna a lutar enquanto fugiam. E a maioria deles fugiu.
Assim que conseguiram encurralar os MacKenna no vale, lutaram com espadas e punhos. Tendo os MacKenna lutado como os verdadeiros covardes que eram, a batalha foi rapidamente vencida. Um deles chegou até mesmo a usar um companheiro de clã de escudo contra a espada de MacHugh. Com uma estocada precisa, Colm matou os dois, sua lâmina perfurando os dois corpos bem abaixo do coração.
Colm era sempre o primeiro a entrar em batalha. Ele liderava seus homens. MacKenna era sempre o último, lutando apenas quando não corria muito perigo.
Como folhas de taboa cobrindo um pântano, os cadáveres se espalhavam pelo campo. Em busca do lord, cada MacKenna morto era virado de frente. Mas ele não foi encontrado. De pé, em meio à carnificina, sua espada pingando com sangue MacKenna, Colm se sentia enfurecido com a possibilidade de MacKenna ter conseguido escapar.
- Encontrem-no! - rugiu ele.
A fazenda dos MacKenna havia sido bloqueada. A busca continuou.
Três longos dias depois, Colm encontrou seu covarde inimigo escondido em uma gruta próxima à ribanceira que dava para Loch Gornoch. Empunhando suas espadas, dois dos soldados de MacKenna defendiam seu lord.
Num pulo, Braeden desmontou seu cavalo e correu para o lado de Colm.
- Fique onde está - ordenou Colm. Mantinha os olhos pregados em MacKenna enquanto os dois soldados fugiam, apavorados.
Segurando o cabo da espada com as duas mãos, Colm levantou os braços acima da cabeça.
A última imagem vista por Owen MacKenna foi uma sombra indistinta. O último som que ele ouviu foi a música da espada.
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Capítulo 43
Em pé, diante da janela de seu quarto, Gabrielle observava um grupo de garotos lutando com espadas de madeira. Ouviu um deles gritar que era a sua vez de ser o Lord MacHugh e ela não precisou de muito tempo para adivinhar que ele seria o vencedor. No campo de batalha imaginário, havia sempre dois vencedores: Colm e Liam. Ela se perguntava se o Lord e seu irmão saberiam o quanto eram admirados pelo clã.
De fora do jogo, Ethan e Tom, os garotos travessos, imploravam para que os deixassem participar, mas os garotos mais velhos continuavam a expulsá-los, ou ignorá-los. Ela se surpreendeu com a facilidade com que os pequenos desistiram. Com os braços um no ombro do outro, riram e começaram a correr em volta do castelo. Rapidamente, eles se envolveram em uma nova aventura.
Ouvir o riso das crianças melhorou o estado de espírito de Gabrielle. Desde a partida de Com, ela estivera melancólica. E já fazia um bom tempo que ele havia partido. Estaria seguro? Por favor, Deus, cuide bem dele, pensava ela.
Ela sabia do que o diabólico MacKenna era capaz, pois havia provas de que fora ele quem planejara a tortura e morte de Liam. Nos últimos dias, ela ouvira muitas histórias sobre ele, e todas descreviam um tirano com hábito de usar os outros para conseguir realizar seus planos sádicos. Sua lealdade ao clã durava apenas enquanto ele tivesse algum benefício pessoal. Caso seus seguidores o desapontassem, eram expulsos ou, pior, assassinados. Ele chegava até mesmo a usar mulheres e crianças como escudos contra a hostilidade dos clãs vizinhos. Colocando-as próximas às paredes do forte, ele fazia questão que o Lord que se atrevesse a atacar a propriedade dos MacKenna soubesse que os primeiros a morrer seriam justamente as mulheres e as crianças.
Ao ouvir cada história aterradora, Gabrielle pensava no homem que encontrara na Abadia Arbane. Não havia dúvida de que a generosidade do Lord MacKenna para com os monges fora parte do plano. Assim como ela, o abade fora enganado. Ao vê-lo pela primeira vez, Gabrielle o achara atraente e simpático, mas, agora que sabia da verdade, se repreendia por ter baseado seu julgamento nas aparências. Estivera completamente enganada, tanto sobre ele quanto sobre Colm. Se tivesse olhado apenas para a aparência rude de Colm, nunca teria visto seu lado bom.
Gabrielle tentou não pensar em MacKenna, ou no que estaria acontecendo. Mas, durante a noite, encolhida sob as cobertas e sem sono, sua imaginação disparava. Imagens horríveis vinham à sua mente. Imaginava Colm, sozinho e sem ninguém para ajudá-lo, ferido no campo de batalha. A possibilidade de que ele pudesse morrer era insuportável. O clã precisava dele.
Assim que conseguia afastar uma preocupação, seu pensamento era invadido por outra. Por que não recebia notícias do seu pai? Ele já tivera tempo suficiente para mandar notícias a ela ou a Buchanan. Quanto mais esperava, mais se convencia de que Welhngshire estaria sitiada e que seu pai caíra prisioneiro dos soldados do Rei John. Gabrielle sabia que seu pai jamais se renderia.
Havia muitas pessoas sofrendo... e tudo por causa de uma mentira. Gabrielle tinha esperança de um dia vir a saber o motivo de aquela mulher ter dito coisas tão horríveis a seu respeito. Como fora capaz de, alegremente, destruir alguém que nem conhecia? Não tinha consciência? Será que se arrependera? Ou seria possível que, como muitos faziam, encontrara uma justificativa para seus atos diabólicos?
Gabrielle não tinha respostas. Sabia apenas que, se permitisse, seria paralisada pelo medo. Precisava se ocupar. Se trabalhasse duro e se movimentasse bastante, não haveria tempo para preocupações.
Enquanto arrumava seu quarto, novamente rezou para que Deus cuidasse bem de seu pai e de Colm.
Sentindo um arzinho frio, ela foi até a janela para abaixar a tapeçaria. Antes que o tecido pesado caísse, olhou mais uma vez para os garotos que
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brincavam abaixo. Alguma coisa chamou sua atenção e, rapidamente, ela voltou a levantar a cortina.
- Deus do céu.
Segurando as saias, ela abriu a porta e correu o mais rápido que pôde. Quase quebrou o pescoço ao descer a escada.
Quando a ouviu gritar, Liam estava no salão. Chutando uma cadeira que estava no caminho, ele veio correndo.
- Gabrielle, o que está acontecendo? - perguntou, quando ela passava por ele.
- Ethan... Tom... estão segurando espadas - ofegou ela.
- Sim, eu vi os garotos brincando lá fora, mas o que...
- Espadas de verdade - gaguejou ela. - Eles estão brincando com espadas de verdade...
Gabrielle não teve tempo para continuar. Liam entendeu o que ela queria dizer. Mais rápido do que ela, em menos de um segundo ele já havia descido o segundo lance de escada. Depois de tirar uma mecha de cabelos dos olhos, Gabrielle respirou fundo, segurou as saias e correu atrás dele.
O fato de não terem ouvido gritos de dor era uma boa indicação de que os garotos não haviam se machucado. Mesmo assim, ela queria ter certeza de que tudo estava bem. Quando chegou ao piso térreo, alcançara bastante velocidade. A porta estava prestes a fechar quando ela correu para fora. Ao bater em seu quadril, fez com que ela perdesse o equilíbrio e fosse atirada pelos degraus que levavam ao pátio. Se não tivesse enroscado o pé no vestido, talvez tivesse sido capaz de evitar o tombo. Ela tropeçou sobre o próprio pé e, mais uma vez, voou pelos ares. Desta vez, Gabrielle pensou que cairia de cabeça.
Colm evitou que quebrasse o pescoço. Quando a viu, ele tinha Tom firmemente preso num dos braços. Jogando o garoto para Christien, ele agarrou Gabrielle que, com um ruído surdo, bateu contra seu peito.
Murmurando uma imprecação nada feminina que esperou que ninguém tivesse ouvido, ela olhou para cima e só então percebeu que estava nos braços de Colm. Ficou tão feliz ao vê-lo que o beijou. A barba cerrada e por fazer arranhou sua bochecha. Ele a apertou contra si apenas o suficiente para deixar que ela soubesse que também estava feliz ao vê-la. Pelo menos, foi no que ela preferiu acreditar.
Gabrielle deu um passo atrás.
- Você está bem?
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- Sim, estou.
- E a batalha?
- Terminada.
- E o resultado?
- O esperado.
Ela sabia que ele não lhe contaria mais nada e, apesar de achar que ele poderia ter sido um pouco menos lacônico, estava feliz ao vê-lo e não deixaria que isto a irritasse.
Segurando Ethan em um dos braços, Liam passou por eles. Aos gritos, o garoto implorava que Liam o pusesse no chão para que pudesse pegar sua espada. Levando Tom a reboque, Christien os seguiu para dentro. Sem parar de falar, o garoto não parecia se importar com o fato de que o guarda não lhe dava a mínima atenção.
Por um momento, Gabrielle e Colm foram deixados sozinhos.
- Senti a sua falta - ela disse.
Ela esperava que Colm lhe dissesse o mesmo, mas tudo o que ele fez foi assentir com a cabeça. Em seguida, ele partiu o coração dela.
- Gabrielle, sei que lhe disse que me casaria com você dentro de seis meses... - começou ele.
- Sim, e um mês já passou.
- Não importa quanto tempo passou. Não posso mais manter minha promessa.
Willa o interrompeu.
- Lord, preciso de um momento do seu tempo... - ela disse ao se aproximar, enxugando as mãos no avental. - Esses dois diabinhos andaram aprontando de novo. Entraram no galinheiro e aterrorizaram minhas pobres galinhas que, agora, não querem mais botar. Juro que vi uma delas se esconder quando Tom correu por ali. Acho que o senhor vai ter que proibir que entrem no quintal.
- Tudo bem, Willa. Pode deixar que eu cuido disso - respondeu ele.
Com o canto do olho, ele viu outras pessoas se aproximando - o pedreiro trazendo nas mãos outra corda puída, o ferreiro com uma nova lâmina de espada pronta para ser inspecionada e um jovem soldado -, todos com problemas urgentes a serem solucionados.
Depois de responder a várias perguntas, ele fez sinal para que todos os outros esperassem para que pudesse dizer a Gabrielle o que planejava fazer.
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Mas ela havia desaparecido.
- Com todos os diabos... Gabrielle - ele gritou.
- Com todo o respeito, Lord acho que a princesa se dirigiu aos estábulos - disse o soldado.
- Ela foi seguida por seus guardas - acrescentou outro.
- Ah, diabos. - Ela ia aprontar de novo. A mulher estava sempre querendo fugir dele.
Pedindo a Braeden que cuidasse das dúvidas restantes, Colm foi até os estábulos.
Gabrielle desaparecera antes que ele acabasse de falar e, portanto, não havia entendido o que ele estivera tentando dizer: que o casamento não aconteceria depois de cinco meses porque ele não podia esperar todo esse tempo para levá-la para cama e que o último mês fora uma tortura que ele decidira não prolongar. Não era capaz de ficar no mesmo cômodo que Gabrielle sem pensar no que gostaria de fazer com ela. Aquilo estava ficando ridículo. Quando ela descia as escadas, ele tinha de fingir que subia. Quando ela entrava, ele saía. Gabrielle não fazia a menor idéia do poder que exercia sobre Colm e, no último mês, ele fizera tudo para se manter afastado dela.
Como ainda era donzela, Gabrielle não podia imaginar como o deixava abalado. Mas, depois de casados, ele teria tempo de lhe mostrar como ela o enlouquecia.
Ele a alcançou no momento em que abria a baia de Rogue. Passando o braço pela cintura dela, fechou o portão com um chute. Em seguida, pediu aos guardas que se retirassem. Sem fazerem perguntas, eles se afastaram e foram esperar do lado de fora dos estábulos.
Colm não foi nada gentil ao forçá-la a se virar e olhar para ele. Os olhos dela estavam cheios de lágrimas.
- Você não vai partir - ele disse a ela.
- Como queira.
- O que quero dizer é que você não vai me deixar.
- Mas Colm...
- Já disse que você não vai me deixar - A voz dele tremia de emoção. Os socos que Gabrielle dava em seu peito não conseguiram demovê-lo.
- Não posso ficar aqui - disse ela. - Não posso. Não vou conseguir parar de ficar atrás de você, de beijá-lo e de implorar por sua atenção. Sei que você acha que pode continuar me evitando, mas não pode, Colm. Quando
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quero alguma coisa, posso me tornar implacável. - Respirando fundo, ela sussurrou: - E eu quero você.
E ali estava a verdade, para que ele a aceitasse ou rejeitasse. Gabrielle olhou para ele. Colm ficara totalmente imóvel. Ela sequer tinha certeza de que ele continuava respirando. Sabia tê-lo chocado ao expressar seus sentimentos. Simplesmente não era apropriado que uma donzela admitisse estar apaixonada, mas agora era tarde demais para retirar o que dissera, coisa que Gabrielle não tinha a menor intenção de fazer.
- Você disse que não pode se casar comigo, e estou disposta a aceitar sua decisão - ela disse. - Mas, se eu ficasse, não importa se estivéssemos casados ou não, eu continuaria correndo atrás de você até deixá-lo cansado. De qualquer maneira, você não conseguiria fugir de mim.
Enquanto procurava as palavras certas, ele acariciou o rosto dela.
- Algumas vezes, não sei o que pensar de você. Você consegue me deixar perplexo. Salva a vida do meu irmão e não pede nada em troca. Eu me ofereço para ser seu esposo e você acha que vai arruinar a minha vida. Apesar de ter vivido um inferno, nunca deixou de ser gentil. E, agora, ao achar que a rejeito, me abre seu coração. Não tenho a mínima idéia de como isso aconteceu, mas não sou capaz de imaginar minha vida sem você. Eu também quero você, e não vou esperar cinco meses para tê-la como esposa. Vamos nos casar imediatamente.
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Capítulo 44
A cerimônia de casamento aconteceria dentro de duas semanas. Esse era o máximo de tempo que Colm estava disposto a esperar. Acreditava que catorze dias seria tempo mais que suficiente para preparar a celebração.
Maurna e Willa estavam histéricas. Tudo precisava sair perfeito para o lord e sua esposa. Maurna assumiu o comando das mulheres responsáveis pela limpeza, enquanto Willa e suas ajudantes começaram a preparar suas receitas especiais. Serviriam faisão recheado e fatiado; porcos recheados; e galinhas, claro - quatro dúzias seriam suficientes. Também tortas de carne e de amoras. Quase todas as receitas doces levavam mel. E o melhor vinho seria servido.
- A princesa será uma bela visão, deslizando pela escada com suas jóias - disse Maurna. - O Padre Gelroy vai ouvir seus votos lá fora, no pátio. Seus cabelos estarão ornamentados com belas flores, e mais flores serão colocadas num círculo ao redor dos noivos, assim como ao redor do padre. O padre comentou que seria mais apropriado que a cerimônia fosse realizada na Abadia Arbane. Explicou que, como princesa de St. Biel, milady deveria ter um casamento real, mas nosso lord nem quis ouvir falar no assunto. Apesar de não ter dado explicações, Willa e eu achamos que é porque ele quer que seu clã participe da celebração.
- Será um grande dia - previu Willa -, e chegará mais rápido do que a princesa imagina.
Mas mesmo os melhores planos podem não dar certo.
Gabrielle recebeu boas noticias do pai. O Lavra Buchanan foi à propriedade MacHugh para lhe contar que recebera uma mensagem do Barão Geoffrey.
- Seu pai está bem. Ele não foi punido pelo rei e não teve suas propriedades confiscadas. Sabe que você está vivendo entre os MacHugh e quer que saiba que logo estará aqui para vê-la e lhe explicar o que aconteceu com o rei.
- E tem mais - continuou ele, olhando para Colm. - Seu pai acredita que você irá voltar para casa com ele.
- Ele sabe que fui banida. Por que pensaria em me levar de volta à Inglaterra? - perguntou ela.
Brodick não soube responder.
Pouco mais de uma hora depois, enquanto Colm e Brodick conversavam sobre os problemas que o novo Monroe estava criando, um dos soldados MacHugh a serviço na ponte levadiça veio até o portão do pátio para anunciar que um emissário do Rei John pedia permissão para falar com Lady Gabrielle.
- O emissário do rei viajou com um bispo, três outros homens santos e alguns criados - ele disse. - Insistem que o senhor vai querer saber o que têm a dizer. Trouxeram um rolo de pergaminho e um presente para Lady Gabrielle.
- E soldados? - perguntou Colm. - O emissário também trouxe soldados do rei?
- Sim, lord. Doze ao todo. Para mostrar que estão bem-intencionados, eles já depuseram suas armas no chão.
Colm zombou.
- Os ingleses nunca têm boas intenções.
Colm estava pronto para negar a permissão para cruzarem a ponte levadiça, mas Brodick pediu que reconsiderasse.
- Você não está curioso para saber o que o rei tem a dizer? E, caso não goste do que ouvir, você sempre pode... - ao perceber que Gabrielle ouvia, ele interrompeu a frase.
Colm deu sua ordem: os soldados deveriam permanecer do lado de fora, mas os outros poderiam entrar.
O grito para descer a ponte ecoou até os guardas abaixo.
- Gabrielle, vá para dentro - disse Colm.
- Como queira.
Na verdade, ela queria ficar. Estava tão curiosa quanto Brodick para ouvir
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o que diria o emissário, mas não se atreveu a contestar Colm na frente de seu amigo e aliado. Além disso, ela sabia que protestar não adiantaria nada. Uma vez que Colm tomasse uma decisão, nada o faria mudar de idéia.
Mesmo sem receber nenhum tipo de comando, os MacHugh começaram a se alinhar à beira do caminho que levava da ponte levadiça ao pátio. A maior parte deles estava armada e pronta para o combate. Gabrielle achou que estivessem sendo exageradamente precavidos. Que perigo podia representar um emissário, alguns homens santos e um punhado de criados? Nenhum dos padres ou criados estaria armado, e o emissário não se atreveria a carregar uma arma. Tal ato seria considerado um insulto ao lord.
Enquanto voltava ao castelo, Stephen apareceu ao lado de Gabrielle para lhe explicar o que estava acontecendo.
- Parece que a comitiva foi mandada em sua honra, Princesa, com a intenção de levá-la embora. O clã tem consciência de que existem soldados ingleses esperando do lado de fora da muralha, e existem rumores de que o emissário traz boas notícias para milady. Pode ser que tenha trazido uma ordem para que retorne à Inglaterra. - Com um gesto de cabeça, ele indicou os homens que esperavam ao redor do pátio. - Os MacHugh estão deixando claro que não permitirão que seja levada sem luta.
- Esses homens estão desarmados, e são muito poucos - ela disse.
- Mas podem muito bem avisar os soldados que ficaram do lado de fora, e esses soldados se apressarão a contar ao Rei John o que se passou aqui hoje.
- Ultimamente, temos presenciado muitos enganos. Como poderemos saber se o emissário foi mesmo enviado pelo Rei John?
- Devemos presumir que foi ele e ficar preparados - respondeu Stephen, com seriedade.
Enquanto Stephen se dirigia à porta, Liam a abriu e saiu. Cumprimentou Gabrielle com um gesto de cabeça, deu um passo para o lado para que ela pudesse passar e depois cruzou o pátio para se colocar ao lado do irmão.
Eles formavam uma visão aterradora. Colm estava de pé no meio dos guerreiros. Liam e Braeden estavam à sua esquerda, Brodick à direita. Christien e Lucien se alinharam ao lado de Braeden. Faust foi para o lado oposto, posicionando-se ao lado de Brodick.
- Vá tomar seu lugar junto a eles - ela disse a Stephen. - Vou para dentro e prometo me comportar.
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Stephen abaixou a cabeça e se virou para cumprir a ordem dela.
A porta mal se fechara atrás dela quando foi aberta com força pelo Padre Gelroy, que entrou correndo como se tivesse uma matilha de cães selvagens atrás dele.
- O bispo está aqui - ele disse a Gabrielle -, e eu não estou pronto para recebê-lo!
Apressando-se, ele pôs à frente dela e a caminho da escada. Depois, lembrando-se das regras de cortesia, estacou abruptamente e deixou que ela o ultrapassasse. Mas, assim que chegaram ao segundo andar, ele novamente seguiu à frente e correu até o próximo lance de escada. Não tivera tempo de trocar seu hábito, mas queria, pelo menos, limpar a poeira do rosto e das mãos.
A espera de que alguém viesse lhe dar notícias, Gabrielle andava de um lado para outro do salão.
Um pouco depois, ofegante por causa da pressa, o Padre Gelroy se juntou a ela.
- Vou ficar com milady até ser chamado lá fora. Enquanto o emissário não explicar o motivo da visita, nosso Lord não permitirá felicitações.
- Se eu pudesse, ficaria perto da janela para ver o que está acontecendo - disse Gabrielle -, mas as pessoas que estão lá fora me veriam, e não seria apropriado.
- Sim, é verdade - concordou ele.
- E seria errado tentar ouvir o que dizem, mas, se o senhor ficar um pouco afastado da janela, não poderá evitar de ouvir alguma parte da conversa. Eu não vejo nenhum mal, caso o senhor estivesse, por acaso, passando na frente da janela...
O padre assentiu com a cabeça.
- Não, claro que não, mal nenhum. Além disso, estou bastante necessitado de um pouco de ar fresco.
Com a esperança de não ser visto, o padre discretamente se colocou ao lado da janela.
- Cheguei bem a tempo de ver a comitiva - reportou ele. - Há muita pompa e esplendor. O bispo usa ricas jóias e vem montado num cavalo gentil. Ele não é jovem, mas também não é muito velho.
- E o emissário?
- Vem a pé e traz um rolo de pergaminho debaixo do braço. Suas roupas são indescritíveis e devo dizer que ele me parece um pouco nervoso, pois não para de lançar olhares rápidos para os lados. Acho que o pobre sujeito acredita
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na possibilidade de ser agredido a qualquer minuto. - O padre ria baixinho ao acrescentar: - E poderia mesmo. Eu me lembro de já ter me sentido assim.
- E os outros? - ela perguntou.
- É uma comitiva e tanto. Primeiro, vem o bispo; depois, o emissário. Em seguida, enfileirados, os monges e, por último, os criados. Reconheço alguns deles. São realmente da abadia.
Na esperança de dar uma espiada, Gabrielle continuava a se aproximar do Padre Gelroy. Ele gesticulou para que ela se afastasse.
- O bispo tem visão para a janela, Lady Gabrielle. Não deixe que ele a veja.
- Então me conte o que está acontecendo agora.
- O bispo continua montado em seu cavalo, mas parado. Um criado se aproxima para pegar as rédeas e ajudá-lo.
O padre fez um sinal-da-cruz e cruzou as mãos, como se orasse em pensamento. Depois, explicou:
- O bispo decidiu dar sua bênção. Estava redondamente enganado se esperava que os lords se curvassem a ele. Eles nem se moveram. Vossa Reverendíssima não parece ter ficado ofendido pelo fato de Colm e os outros não terem se ajoelhado. O criado continuou ao lado dele segurando as rédeas, mas ele não desmontou.
O emissário se aproximou. Presumindo que o guerreiro ao centro dos homens com rosto de pedra seja o Lord MacHugh dirigiu-se a ele.
- Vossa Majestade, o Rei John da Inglaterra, envia uma mensagem para Lady Gabrielle. Ela se encontra aqui?
- Sim - respondeu Colm -, mas, depois que você me transmitir a mensagem do rei, eu decidirei se deve ou não falar com ela.
Rapidamente, o comissário concordou. Limpou a garganta, empertigou os ombros e deu um passo à frente. Depois, como convinha a um arauto, começou a recitar seu discurso decorado com voz alta e forte.
- Uma grande injustiça foi cometida contra Lady Gabrielle. Ela foi injustamente difamada e perseguida. Agora, Vossa Majestade tem provas irrefutáveis da inocência de milady. O rei quer que todos saibam que o Barão Geoffrey de Wellmgshire será honrado e respeitado pela vigilância que manteve sobre a filha. De hoje em diante, Lady Gabrielle, um tesouro da Inglaterra, receberá o título de Princesa de St. Biel e protegida do rei da Inglaterra.
Fazendo uma pausa, o emissário esperou pela resposta, que não demorou muito a vir.
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- Todos os homens aqui presentes sabem que Lady Gabrielle é inocente. Não precisamos que o seu rei nos diga isso - disse Colm.
- O Rei John ficará satisfeito ao saber que o senhor e os outros foram capazes de enxergar além das mentiras traiçoeiras que foram ditas e nas quais muitos acreditaram. Ele quer provar a sua sinceridade.
- E como pretende fazer isso? - perguntou Colm.
O emissário exibiu o rolo de pergaminho para que todos pudessem ver que o selo não fora rompido.
- Para provar sua sinceridade - ele repetiu -, e na esperança de ser perdoado pela terrível injustiça cometida, Vossa Alteza real confere à Princesa Gabrielle a posse das terras conhecidas como Finney's Fiat. A assinatura ao lado do sinete real oficializa sua promessa solene de que a terra jamais voltará a pertencer à Inglaterra. Ele também escreveu um documento atestando que Deus tem permissão para fulminá-lo, caso não cumpra sua promessa.
O emissário deu um outro passo à frente e, com as duas mãos, ofereceu o rolo de pergaminho. Colm o recebeu e entregou a Liam.
- Por que esses padres vieram com você? - ele perguntou.
- Medidas de proteção, Lord MacHugh - ele respondeu. - Tínhamos esperança... sincera esperança... de que o senhor ouviria a mensagem do meu bom rei sem ferir seus mensageiros.
Antes de voltar a falar com o mensageiro, Colm lançou um rápido olhar para Brodick.
- Caso eu ficasse descontente com a sua mensagem, não haveria no mundo homem santo capaz de salvá-lo do meu punho.
O emissário engoliu fazendo ruído e o bispo, ao ouvir o que o lord acabara de dizer, abençoou a todos mais uma vez.
- O senhor ficou descontente, milord. - perguntou o enviado do rei.
- Não, não fiquei e não tenho o hábito de eliminar mensageiros, mesmo que as notícias me desagradem. Vocês serão bem-vindos o tempo necessário para descansarem. Os outros também.
O emissário chegou a sentir fraqueza por causa do alívio sentido.
- Eu agradeço, lord, mas ainda tenho desculpas a pedir e alguns detalhes sobre o presente. Vossa Alteza quer saber se foi perdoado por Lady Gabrielle. Ela deve me dizer as palavras de perdão para que eu possa transmiti-las ao nosso rei.
- Meu clã também deve ouvir as palavras de desculpas do seu rei. - Ele fez um sinal a Braeden, que gritou o comando.
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Em poucos minutos, homens, mulheres e crianças circundaram o pátio e ficaram em silêncio, observando.
- Tragam sua princesa - Colm ordenou aos guardas de Gabrielle.
As portas foram bruscamente abertas e mantidas assim pelos dois oficiais que montavam guarda. Um momento e depois outro se passou enquanto todos os olhos se voltavam para a entrada.
Então, Gabrielle deu um passo na luz do sol. Um dos encarregados tocou a trombeta enquanto o emissário disse:
- Saudações à Princesa Gabrielle. - Em seguida, caiu de joelhos e abaixou a cabeça. Em sinal de respeito, os visitantes da abadia também se ajoelharam.
Espantada e sem saber como agir, Gabrielle olhou para Colm. Não era apropriado que aqueles homens se ajoelhassem. Colm parecia não querer ajudála. Ele simplesmente esperou que ela se juntasse a ele.
Ela não o desapontou. Liam se afastou um pouco para que ela pudesse ficar ao lado de Colm.
- A princesa precisa lhes dar permissão para se levantarem - instruiu Stephen, com um sussurro.
Gabrielle corou de constrangimento.
- Podem se levantar.
Em seguida, surpreendeu a todos ao dar instruções ao emissário.
- Você deve se curvar para o Lord MacHugh, pois, por generosidade dele, estão em terras que lhe pertencem, mas não se ajoelhem para mim. Se o Lord quiser que se ajoelhem, deixará que saibam.
Um murmúrio de aprovação se espalhou entre os membros do clã.
Assim que Colm deu ao emissário permissão para falar, ele começou seu discurso decorado. Ao terminar, os gritos de regozijo eram ensurdecedores. Ele esperou até que novamente se fizesse silêncio para perguntar:
- Posso dizer a Vossa Alteza real que milady o perdoa?
Gabrielle estava prestes a dizer ao enviado que sim, que perdoaria o rei, mas alguma coisa a impediu. Será que, de novo, tentavam lhe pregar uma peça?
- Vou pensar. Terá sua resposta antes de partir.
Apesar de chocado pelo fato de que ela não tivesse concordado prontamente, o emissário abaixou a cabeça, cedendo ao desejo de Gabrielle.
- Esperarei pela resposta. Liam pegou a mão de Gabrielle.
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- Você já era aceita e respeitada por este clã. Agora, é verdadeiramente amada.
Colm empurrou a mão do irmão.
- Você pode dar o seu amor a outra pessoa e deixar Gabrielle em paz. Liam riu. Dando uma piscadela para Gabrielle, ele disse a Colm: -
Como queira, lord.
- Lord, devemos celebrar - disse Braeden -, pois agora temos a princesa e Finney's Fiat.
Colm concordou, mas não queria que os estranhos, nem mesmo o bispo, entrassem em sua casa. Com a temperatura agradável e sem perspectiva de chuva, ele mandou que mesas e bancos fossem trazidos para fora e que um barril de cerveja fosse trazido da despensa.
Finalmente, Vossa Reverendíssima foi removido do cavalo e seus monges receberam lugares à mesa. Ainda desconfiados dos visitantes ingleses, os MacHugh se mostravam reticentes em dar boas-vindas ao comissário e seus homens.
Gabrielle estava bem mais preocupada que os MacHugh. Não desgrudou os olhos do enviado real enquanto ele abria caminho entre a multidão. Distraída, ela mal prestou atenção na conversa ao seu lado até que Colm fizesse um elogio ao Padre Gelroy. A cada palavra que ele dizia, o padre parecia crescer um centímetro.
- Talvez em breve, lord, o senhor queira construir uma capela para o Padre Gelroy - sugeriu Gabrielle.
- Talvez - respondeu ele.
- A estátua de St. Biel que o abade vem guardando para a princesa deve chegar logo - disse o bispo. - Talvez milady resolva dar o nome do santo à capela. Nunca ouvi falar nele - admitiu -, mas muitos foram canonizados antes de eu ter nascido. Milady sabe quantos milagres realizou?
Gabrielle não fazia a menor idéia. Ao perceber a hesitação dele, o Padre Gelroy interveio:
- St. Biel era um homem bom e santo. Tenho certeza de que os guardas reais poderiam nos dizer quantos milagres realizou.
Quando Vossa Reverendíssima saiu para se lavar, ela sussurrou ao padre:
- Sinto-me envergonhada por não me lembrar de muita coisa sobre St. Biel. Vou tentar conseguir alguma informação com meus guardas.
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O Padre Gelroy notou que Maurna trazia uma bandeja de comida para fora.
- Sim, sim, ele disse, dispensando a conversa sobre santos. - A refeição está servida.
Ao olhar ao redor, Gabrielle ficou atônita ao ver mulheres MacHugh carregando enormes bandejas repletas de tortas de carne, pão e carne de caça. Uma delas cruzou o pátio trazendo outra bandeja. Todos contribuíam com comida.
Com o olhar, ela procurou Colm, mas não o encontrou. Ao se preparar para procurá-lo na multidão, foi muitas vezes interrompida por pessoas que queriam cumprimentá-la e expressar votos de boa sorte. Recebeu tapinhas nas costas, nos braços e, uma vez, de uma mulher robusta, até na cabeça.
Quando Gabrielle finalmente conseguiu se afastar um pouco, procurou um lugar silencioso na lateral do castelo. Precisava de tempo para pensar. Alguma coisa a corroía por dentro. Apesar de as notícias trazidas pelo emissário serem boas, havia alguma coisa mal explicada. O problema é que ela não conseguia saber o que era.
Colm a encontrou sentada sobre uma pedra.
- Gabrielle, o que está fazendo?
- Pensando.
Ele estreitou-a em seus braços e beijou-a. Em seguida, tentou arrastá-la de volta à celebração.
- Acho que o Rei John pode estar com alguma má intenção, mas não sei o que poderia ser - ela lhe disse.
- Prometo que vou ler o documento com bastante atenção e, se você quiser, posso pedir a Liam e Braeden que também o leiam - disse ele. - Você tem razões para desconfiar.
Assim que Colm se afastou para procurar Liam e Braeden no interior da residência, Gabrielle voltou à festa. Maurna fez questão que se sentasse e provasse alguns dos pratos. Como ela contribuíra com uma torta de carne, insistiu para que milady aceitasse uma enorme fatia.
Todas as conversas giravam ao redor dela. Havia muita excitação pelo fato de que os MacHugh seriam donos de Finney's Fiat. Mesmo que deixassem parte das terras sem cultivo, poderiam triplicar sua produção. A alegria deles fez com que ela sorrisse. Mesmo assim, mantinha um olhar cético colado no emissário.
Por que o rei a presentearia com Finneys Fiat? E como seus cãezinhos
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de estimação, os barões, estariam envolvidos? Pois com certeza estariam. Sim, se houvesse qualquer má intenção, eles por certo estariam envolvidos. O rei se referira às terras como sendo um presente seu. A primeira vez em que ela ouvira falar de Finneys Fiat, as terras deveriam ser seu dote. Mas, e agora? Qual seria a razão? Certamente não por generosidade do rei. Ele simplesmente não conhecia o significado daquela palavra.
Queria que ela o perdoasse. Aí estava. De repente, ela soube exatamente o que o rei tinha na cabeça. Causando espanto, ela bateu as palmas das mãos sobre a mesa e, num pulo, avançou na direção do emissário.
O comportamento de Gabrielle pôde ter passado despercebido pela multidão que celebrava, mas todos viram sua guarda pessoal correndo atrás dela. Quando Gabrielle conseguiu chegar ao emissário, Christien estava bem ao lado da princesa.
- Levante-se - ela ordenou ao emissário
Os risos pararam e todos silenciaram.
- Tenho algumas perguntas a lhe fazer - ela disse, autoritária. - O senhor vai voltar diretamente ao Rei John?
- Não, primeiro devo passar pela abadia - respondeu ele, olhando para os lados e para todos os olhos fixados nele. - Devo passar a noite lá e continuar viagem no dia seguinte.
- Existem também alguns barões esperando pelas notícias que levar de volta?
- Sim, princesa. Tenho certeza de que eles estarão lá.
- Por acaso eles são chamados Coswold e Percy?
- Não sei o nome de todos os que, ansiosamente, esperam que milady perdoe o Rei John. - Franzindo o cenho, ele acrescentou: - Isso é o que eu também espero.
A multidão se aproximava, fechando o círculo. Gabrielle percebeu estar sendo observada por Joan, e viu que Vossa Reverendíssima estava ao lado dela.
- Sei muito bem o que o rei e os barões querem - ela disse, com voz alterada pela raiva. - Se eu aceitar as desculpas do rei, também estarei aceitando suas regras. Não é verdade? E não estarei mais livre de seu jugo.
Ao responder, o emissário olhava para os próprios pés.
- Não posso mentir, e por isso devo lhe dizer que Finney's Fiat será o dote que a princesa levará para o homem que o rei lhe escolher como esposo.
- E se eu não aceitar as desculpas do rei, Finey's Fiat voltará para ele?
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- Não tenho certeza, mas existe uma possibilidade.
Se um farelo de pão tivesse caído ao chão, teria feito mais barulho que o clã ali reunido.
- Será que passou pela cabeça do rei que eu já poderia estar casada?
- Sim, ele considerou tal possibilidade. Nesse caso, Fineys Fiat pertenceria ao seu marido, e o rei não interferiria.
Gabrielle olhou para os lados e anunciou:
- Estou me casando hoje.
Acreditando no que ela dizia, o emissário perguntou:
- Com o Lord MacHugh?
- Sim - respondeu ela. - Finney's Fiat pertence a ele.
- Você não se casou hoje! - gritou Joan. - Não pode nos enganar. Tem o desplante de mentir na frente do bispo. Por tal ofensa, você merece queimar no fogo do inferno.
Inflamada, Gabrielle passou pelo emissário.
- Já disse que estou me casando hoje.
Ao ver Gabrielle se aproximar, Joan se afastou. A fúria que viu nos olhos dela a assustou e sentiu que corria o risco de ser surrada.
- Estou me casando hoje, e Finney's Fiat pertence ao Lord MacHugh - repetiu ela.
Um murmúrio de concordância ecoou entre a multidão, tornando-se cada vez mais alto, até ficar ensurdecedor.
Quando o barulho diminuiu, Gabrielle voltou a falar.
- Quer uma prova? Pois espere aqui que eu vou buscar.
- Nós sabemos que você se casa hoje e que Finey s Fiat pertence ao nosso Lord - gritou um dos homens do clã.
- Isso mesmo - disse outro, e mais outro. Gabrielle parou na frente do enviado.
- Mas parece que o emissário precisa de uma prova. O homem assentiu com a cabeça.
- Devo reportar ao rei, com segurança, que a princesa está casada. - Ao sentir a emoção da multidão se avolumando, ele gritou: - E Finey s Fiat pertencerá ao Lord MacHugh.
Christien correu à frente de Gabrielle, mantendo a porta aberta para ela.
- A prova está lá dentro? - ele perguntou, sorrindo.
- Sim - respondeu ela.
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Seguida por seus guardas, Gabrielle subiu correndo as escadas, fez uma pausa para se fazer mais apresentável, ajeitando seu bliaut e uma mecha de cabelo atrás da orelha.
- Milady está preparada para se casar hoje? - perguntou Stephen. Ela assentiu com a cabeça, concordando.
No salão, Colm terminara de ler o documento. Entregava-o a Brodick enquanto Liam e o Padre Geiroy de cálices nas mãos, esperavam sua vez. Gabrielle respirou fundo e entrou no salão.
- Colm, posso ter um minuto do seu tempo?
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Capítulo 45
Gabrielle estava decidida a se casar naquele mesmo dia. A cerimônia foi realizada em frente à lareira do grande salão. Não houve qualquer tipo de pompa ou esplendor que pudesse fazer jus à princesa de St. Biel e ao poderoso Lord das highlands. O casamento foi feito rápido e silenciosamente. Mesmo que do lado de fora fosse praticamente impossível que alguém pudesse ver o interior do salão, Gabrielle insistiu para que as tapeçarias fossem abaixadas para cobrir as janelas que davam para o pátio e as com vista para o jardim dos fundos e o lago. Ela não correria nenhum risco de que o bispo, o emissário e Joan, aquela mulher horrível, pudessem ver o que se passava lá dentro.
Como Brodick era seu único parente presente, ficou responsável por entregá-la a Colm e dar permissão para que o casamento se realizasse. Liam e os guardas de Gabrielle foram testemunhas.
Mesmo imaginando que não ficaria nervosa, Gabrielle, quando lhe pediram que colocasse sua mão sobre a de Colm, tremia como se tivesse acabado de sair de uma briga terrível. O padre começou sua prece e, de repente, ela tomou consciência de seu ato. Seus joelhos enfraqueceram e ela mal conseguia respirar. Havia um peso enorme oprimindo seu peito Naquele momento e para sempre, ela estava se tornando esposa de Colm.
Atordoada, ela olhava para Colm enquanto ele colocava uma parte de sua capa sobre as mãos cruzadas de ambos. Ao pronunciar seus votos, ele virou o rosto dela para cima e olhou-a nos olhos. Por incrível que pudesse ser, ela não entendeu uma só palavra do que ele disse. Havia se esquecido de todo o gaélico que pensava saber. Depois, foi a vez dela. Gabrielle murmurou seus votos na língua da mãe. Foi interrompida pelo Padre Gelroy que pediu que ela recomeçasse.
- Não entendo o que está dizendo, Princesa Gabrielle - explicou ele. Nem ela entendia. Sabia ter prometido alguma coisa a Colm, mas não sabia o que era. Teria acabado de dizer que o amaria e respeitaria? Ou pensara em dizer? Dissera que seria fiel e verdadeira? Esperava que sim. Mas não tinha certeza. Pelo que se lembrava, podia ser que tivesse prometido limpar seus estábulos pelo resto de seus dias.
Num estado de encantamento, ela olhou para o padre. Tomou o fato de não ter visto nenhuma expressão de espanto em seu rosto como um bom sinal.
Agora e para sempre, até que a morte os separe.
As preces chegaram ao fim e a bênção foi dada. Quando Colm a abraçou Gabrielle estava rígida como uma tábua, mas, quando ele abaixou a cabeça para beijá-la, voltou à vida. A proximidade dele a fez estremecer e o carinho de seu beijo derreteu todos os medos que sentia.
- Agora, vocês são marido e mulher. - Radiante, o Padre Gelroy declarou-os casados.
As congratulações não foram gritadas, mas ditas em voz baixa. Os guardas fizeram uma profunda reverência para sua princesa e seu novo marido e, em seguida, a pedido de Gabrielle, desceram ao pátio para celebrar. Colm permitiu que Liam beijasse a mão de Gabrielle, nada além disso, e Brodick conseguiu afastá-la de Colm apenas o suficiente para lhe dar um abraço.
- Agora precisamos fazer um brinde ao casamento - disse Liam.
- Que sugestão agradável - ela disse, sem pensar. - Talvez numa outra hora?
Pegando o braço do padre, ela o conduziu à escada, enquanto lhe dava instruções sobre o que deveria dizer ao emissário.
- O senhor pode, por favor, dizer ao emissário que, sim, o senhor nos casou, mas não...
Colm a interrompeu. Passando o braço pela cintura dela e mantendo-a ao seu lado, ele disse:
- Pode deixar que eu cuido disso. Não há motivo para pressa.
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Ela não concordava. Prometera ao emissário apresentar uma prova de seu casamento. Com certeza, ficaria desconfiado se ela o fizesse esperar muito. Abaixando a cabeça, ela disse:
- Como queira.
Liam caiu na risada e, quando Brodick lhe perguntou o que havia de tão engraçado, ele ficou feliz em explicar.
- Para Gabrielle, "Como queira" significa que ela não concorda e que fará justamente o oposto. Ela pensa acalmar Colm com essas palavras, mas todos nós já sabemos o que ela quer dizer.
Brodick assentiu de cabeça.
- "Sim" significa "não" e "não" significa "sim"? - Ele deu um tapa no ombro de Colm. - Pelo menos, ela tenta acalmar você. Minha mulher simplesmente não dá ouvidos ao que eu digo.
Brodick não parecia aborrecido com a teimosia da esposa. Na verdade, ele parecia feliz com isso.
- Lord MacHugh, o senhor quer que eu vá lá fora para conversar um pouco com o emissário? - perguntou o padre.
- O senhor vai ficar exatamente onde está - ordenou Colm.
- Mas, quando eu tiver de falar com ele, o senhor me dirá o que dizer?
- O senhor dirá a verdade - disse Colm. - Apenas não mencione quando a cerimônia foi realizada.
O cenho franzido do Lord ainda tinha o poder de fazer com que o Padre Gelroy tremesse sobre as botas. Tentando não deixar transparecer, ele esperou pelas próximas instruções.
Liam insistia em fazer um brinde. Correu até a despensa e voltou com uma jarra de vinho. Servindo um cálice para cada um, desejou ao casal uma vida longa e feliz.
- E, como você diz, Gabrielle, a um casamento perfeito - brincou ele. Gabrielle estava confusa. Um casamento perfeito. Será que ela havia dito alguma coisa sobre o casamento deles ser perfeito?
- Colm, eu prometi isso quando disse os meus votos? - perguntou ela. - Se prometi, peço desculpas. Nosso casamento não será perfeito, e não posso prometer que não tenhamos problemas. Basta olhar para a decepção que causei no dia do nosso casamento. Não menti para o emissário, mas com certeza o enganei. E também corrompi o seu clã, pois os tornei cúmplices da minha trapaça. Será que você não fica preocupado com os problemas que poderei causar amanhã?
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Se ela esperava que Colm simpatizasse com a preocupação dela, estava enganada. Ele achou surpreendente o fato de ela se sentir culpada.
- Trapaça? Problemas? Você acabou de se tornar uma MacHugh - ele riu. Ele a beijou novamente e ficou sério. - Agora, você precisa me dizer que presente de casamento quer receber de mim. No dia do seu casamento, não recusarei nada.
Ela não precisou pensar muito.
- Gostaria que você construísse uma capela para o Padre Gelroy, com a promessa de que ela ficará pronta dentro de um ano. É preciso que esteja terminada para que um belo altar e bancos resistentes sejam feitos e levados para lá.
O padre ficou completamente desarmado com a consideração e generosidade dela. Colm não se mostrou surpreso.
- Será feito. O que mais gostaria de ter? De novo, ela não hesitou.
- Tradição é muito importante para mim - ela disse. - Por isso, gostaria que você me desse o mesmo presente que meu pai deu à minha mãe.
Ele esperou que ela lhe dissesse o que era, mas ela não disse mais nada.
- Quando vou ficar sabendo que presente é esse? - perguntou ele.
- No devido tempo.
Ao lado do bispo, o emissário esperava pelo retorno de Gabrielle. Empalideceu ao ver que Colm vinha na direção dele.
- Lady MacHugh me disse que o senhor quer uma prova de que ela é minha esposa. Ela lhe disse que estamos casados, não é?
- Sim, lord... quer dizer, lord, uma outra pessoa aventou a possibilidade de que, talvez...
- O senhor sabe a sorte que tem por ainda estar vivo? Merecia morrer por insinuar que minha esposa mentiu. Não acha?
- Mas eu não pensei nada. Talvez aquela outra pessoa pense que...
- Minha esposa jamais mente. - A voz dele havia se tornado mortal.
- Sim, lord. Ela só diz a verdade.
Gabrielle se aproximou de Colm. Olhou única e exclusivamente para o emissário. Não sabia se Joan ainda estava na multidão assistindo, mas torceu para que tivesse ido embora e não criasse mais problemas.
Padre Gelroy deu um passo à frente.
- Posso garantir que o Lord MacHugh e Lady MacHugh estão casados.
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Fui eu quem ministrou o sacramento sagrado. Ouvi-os dizer seus votos e abençoei a união. - E, com um gesto dramático em direção ao céu, ele continuou: - Se estiver mentindo, quero que um raio me parta ao meio neste exato momento.
Levou os olhos ao céu e esperou. Depois, assentindo com a cabeça, disse:
- Assim como vocês, Deus sabe que digo a verdade.
Vossa Reverendíssima quis retornar à abadia antes da caída da noite. Assim, poderia dormir na cama, e não no chão.
- Posso atestar que o Padre Gelroy diz a verdade. A partir de agora e para a felicidade de todos, considero este assunto encerrado.
O emissário ficou convencido.
- Estou satisfeito. Por causa desse casamento, o senhor agora é proprietário de Finneys Fiat, Lord MacHugh.
- Nosso Lord também é dono do tesouro de St. Biel - disse o padre, sorrindo aliviado para Gabrielle. O padre não achou necessário explicar o que queria dizer. Todos os que olhavam para Gabrielle podiam ver que ela era realmente um tesouro.
O elogio do padre fez com que Gabrielle corasse.
- Não concordo, padre. Meu marido terá de se satisfazer com as terras, pois não terá tesouro algum.
- Assim que possível - disse o emissário -, enviarei um arauto a cada clã para anunciar que a Princesa Gabrielle foi considerada inocente das acusações feitas contra ela, que esse casamento é válido e que, de hoje em diante, Finneys Fiat lhes pertence.
- O senhor tem autoridade para fazer tal proclama? - perguntou Padre Gelroy.
- Sim, tenho.
Alguns minutos depois, o emissário e o bispo partiram. Gabrielle nunca se sentira tão feliz ao ver alguém partir. Agora, podia relaxar. Pelo menos, pensou que pudesse.
Quando uma preocupação era resolvida, aparecia outra. E esta era sua noite de núpcias.
O clã MacHugh demorou um pouco a se dispersar. Tinham muita coisa para celebrar. Seu Lord havia retornado vitorioso da luta contra seus inimigos MacKenna; agora, sua propriedade incluía Finney's Fiat e seu adorado chefe havia se casado. Como o Padre Gelroy mencionara, eram realmente abençoados.
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Com o cair de tarde se aproximando, as festividades começaram a morrer. As mesas e os bancos foram devolvidos ao castelo e, cansadas mas felizes, as pessoas começaram a voltar para casa.
Liam e Colm acompanharam Brodick aos estábulos, pois ele também queria voltar para casa.
- Não se esqueça de que a história com os MacKenna ainda não terminou - avisou Brodick. - Para cada homem que eliminou, terá um outro para enfrentar. Eles se multiplicam como ratos. Logo terão um novo lord que, aposto, será tão cretino quanto foi Owen. Tomara que ele não tenha tido uma morte fácil.
- Não, não teve - disse Colm, em voz baixa.
- Você é nosso aliado, Brodick - Liam o lembrou. - Por isso, irão atrás de você também.
- Estarei à espera - ele disse.
O cavalo de Brodick foi trazido por um tratador.
- Sua dívida está paga - ele disse a Colm -, mas acho que você contraiu outra.
- E qual seria ela?
- Eu lhe dei Gabrielle.
- Acho que você quer dizer que a empurrou pra cima de mim - disse Colm, com frieza. - E eu agradeço.
- Existe uma maneira fácil de pagar a dívida.
- Sim, e qual é?
- Dê uma de suas filhas em casamento a um dos meus filhos.
- A igreja não permitirá - disse Liam. - Você é parente de Gabrielle.
- Apenas por casamento. O tio de minha esposa não é parente por consangüinidade. A união seria válida e sua filhaTraria um belo dote ao meu filho.
Colm riu.
- Deixe-me adivinhar... Finney's Fiat.
- Isso mesmo. Finney's Fiat.
- Seu plano depende da aprovação de minha mulher a respeito das filhas e da sua, sobre seus filhos.
- Elas vão acabar aceitando - disse Brodick. - Apesar de estar mais adiantado do que você, pois meu filho já é uma criança crescida e você ainda precisa esperar quanto para se deitar com Gabrielle? Cinco meses?
- Eu havia pensado em esperar mais, mas...
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- Havia pensado? E a reputação dela?
- Todos ficarão sabendo da inocência dela e, se o inglês dizia a verdade, isso será anunciado.
- E você acha que isso acontecerá rapidamente? - perguntou Brodick. - Colm, você havia lhe dado seis meses.
Resignado, Colm respondeu:
- Se Gabrielle preferir assim, eu concordo. Brodick e Liam caíram na risada.
- E você acha que vai agüentar tanto tempo? Ela é quase tão linda quanto a minha esposa - disse Brodick.
- É claro que posso esperar. Tenho mais disciplina do que vocês dois juntos.
Colm caminhou em direção ao castelo. Liam e Brodick ficaram olhando enquanto ele se afastava.
- O que você acha? - perguntou Brodick.
- Meu irmão é teimoso e disciplinado. Vou lhe dar pelo menos uma noite antes que ele mude de idéia.
- Pois eu não lhe dou mais do que uma hora.
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Capítulo 46
A espera era desgastante. Gabrielle tinha a impressão que mais da metade da noite se passara desde que tomara banho e lavara os cabelos. A banheira fora levada de seu quarto, a colcha retirada da cama e duas toras mais colocadas no fogo.
Os minutos pareciam horas, mas, como seus cabelos ainda pingavam, Gabrielle sabia que não fazia muito tempo que os lavara. Mesmo assim, parecia uma eternidade.
Ela vestia sua camisola branca - um tecido diáfano bordado com fios dourados e prateados, com decote rente ao pescoço. Teria preferido usar sua camisola azul, mas estava muito amassada por ter ficado tanto tempo guardada. Passando as mãos nas pregas da camisola, ela sentou-se junto ao fogo para escovar os cabelos. O quarto estava aquecido e aconchegante e, depois de um dia cheio como aquele, ela deveria estar exausta. Mas não estava. Sentia-se totalmente acordada e à beira do pânico.
Onde estaria ele?
Dissera que não podia esperar mais para fazê-la sua esposa. E o casamento realmente acabara acontecendo antes do tempo, mas, agora que estavam finalmente casados, será que ele mudara de idéia?
A cada ruído, seu estômago se comprimia por causa da ansiedade e do medo. Ao escovar os cabelos, ela tentava pensar em coisas menos amedrontadoras. Hoje, o tempo ficara agradável e a torta de carne, que comera ao jantar, estivera muito saborosa.
Por que demorava tanto? Será que as necessidades do clã eram mais importantes que ela, mesmo em sua noite de núpcias?
Ah, como gostaria de acabar logo com isso. Já ouvira muitas histórias sobre o ato físico entre um homem e uma mulher, que tanto podia ser interessante como assustador.
Ela decidiu compará-lo ao seu dedinho deslocado. Aos nove anos, Gabrielle caiu de uma pedra ao tentar escalá-la. Seu dedo fez um barulho estranho e ficou totalmente torto. Doía como se tivesse sido picado por um enxame de vespas, mas seu pai soube exatamente o que fazer. Enquanto Stephen a segurava com força, seu pai recolocou seu dedinho no lugar e a dor imediatamente desapareceu. O tempo todo ela soubera o que iria acontecer e sentira medo, mas, uma vez terminado, ela não teve mais com que se preocupar.
Pelo que sabia, o ato conjugal era muito parecido: medo, dor e esquecimento.
Quando seu braço começou a doer, ela parou de escovar os cabelos. O ondulado havia voltado e, agora, as longas mechas estavam apenas levemente úmidas. Olhando para o chão, ela tentou pensar em alguma coisa agradável. Derramara um pouco da água da banheira. Apesar de ter ajudado a enxugar, o chão ainda estava cheio de manchas de umidade. Ficou olhando até secarem e desaparecerem.
Teria Colm se esquecido dela?
"Concentre seu pensamento em coisas agradáveis", repreendeu a si mesma. Não havia motivo algum para ficar ansiosa.
Além de satisfeito, Colm ficara agradavelmente surpreso com o sal que recebera de presente. De repente, Gabrielle percebeu que se esquecera de lhe dizer que havia mais sal a caminho e que, no próximo ano, ele teria mais do que suficiente para abastecer o clã por um longo tempo. Além disso, teria um excedente que poderia trocar por sementes, ou o que quer que o clã necessitasse.
Será que ela não era importante para ele?
Gabrielle começou a ficar emotiva. Talvez Colm estivesse apenas sendo gentil quando lhe dissera que a desejava. E ela simplesmente se atirara nos braços dele. Não, ele não teria feito uma coisa dessas, decidiu ela. Colm era uma pessoa
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direta e brutalmente honesta. Não mentiria apenas para ser agradável. O problema era que ele não pensava muito no ponto de vista da mulher. Na verdade, ela achava que ele nunca pensara em tal coisa.
Seus olhos ficaram cheios de lágrimas e ela sabia que, se não agisse rápido, desmoronaria. Gabrielle raramente chorava, mas quando começava, demorava muito para parar. Ela se lembraria de todos os seus sofrimentos recentes e choraria cada um deles. Desde que deixara Welhngshire, sua lista de sofrimentos aumentara consideravelmente e ela imaginava que seria necessário pelo menos uma semana para chorar todas as suas mágoas.
Tentar se concentrar em assuntos agradáveis não estava ajudando. Precisava ficar brava.
Como é que Colm se atrevia a tratá-la daquela maneira? Gabrielle suspirou porque aquilo também não estava funcionando. Ele lhe dera seu nome e sua proteção sem pedir nada em troca. Não, ela não conseguiria reunir sua raiva contra ele. É verdade que ele estava sendo indelicado ao fazê-la esperar, mas não cruel.
Gabrielle desviou o pensamento para o emissário do rei. Com seu rolo de pergaminho e suas suspeitas, ele a fizera passar um mau bocado. Mesmo assim, estava apenas cumprindo ordens do Rei John e, pensando bem, até que era um sujeito afável. Ela não tinha o direito de condená-lo, ou desprezá-lo por expressar a vontade de seu rei.
Joan. Aquela mulher era uma megera! Ao desafiar Gabrielle, seu olhar era de puro desprezo. Será que ela realmente pensara que, para conseguir o que queria, tudo o que precisaria fazer era anunciar que se casaria com Colm? Pensara que Gabrielle concordaria? Ou se acovardaria? Quanta audácia! Sim, além de megera, ela era uma encrenqueira detestável.
Agora, as lágrimas de Gabrielle haviam secado. É provável que, se naquele momento Joan entrasse em seu quarto, ela atirasse sua escova nela. Ao pensar nisso, Gabrielle deu um sorriso.
Muito bem. Agora, ela se sentia bem melhor.
Ouviu passos se aproximando no corredor.
Colm. Oh, Deus. Ele finalmente vinha até ela.
Levantou-se num pulo. Depois, voltou a sentar-se e a levantar-se novamente. Seria melhor ficar em pé ao lado do fogo, ou sentar-se na beirada da cama? Será que ele preferia que estivesse debaixo das cobertas?
Gabrielle decidiu esperar ao pé da lareira. Decidiu também que era muito
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importante lembrar-se de respirar. Ela já estava ficando zonza de tanto prender a respiração.
Medo... Dor... Esquecimento.
Colm bateu à porta, esperou um segundo antes de abri-la e entrou. Ao vê-la, ficou totalmente paralisado.
Ela era uma visão maravilhosa. A luz macia criada pelas brasas atrás dela tornavam a camisola translúcida. De onde estava, podia ver as formas perfeitas de seu corpo. Cada curva era um matiz de dourado: o seio macio, a cintura fina, as ancas bem formadas e as pernas longas. Ela era a imagem da perfeição e despertava nele um desejo mais intenso do que se estivesse nua.
Ele não sairia do lado dela, esta noite ou em todas as outras.
Com as mãos ao lado do corpo, Gabrielle o olhava fixamente.
Ela conhecia aquele homem muito bem.
Então, por que sentia tanto medo? Ele nunca seria capaz de machucá-la. O medo começou a desaparecer. Sim, ela o conhecia bem.
Uma ponta da capa de Colm cobria parte de seu peito nu. Com aquela luz, naquele pequeno quarto, ele parecia mais alto e musculoso. Ela reparou em cada detalhe do corpo dele. Seus cabelos ainda estavam molhados e ainda havia gotículas de água em seu peito, indicando que ele havia se banhado no lago, como faziam muitos outros homens do clã. A cor dos olhos dele... a linha bem definida das mandíbulas... seus ombros largos...
Ela queria esse homem. Deu um passo na direção dele.
- Você sabe o quanto é atraente? - murmurou ela, suavemente. Ele respondeu com voz rouca:
- Eu nunca penso nessas coisas. Quando você me conhecer melhor... Com olhos pregados em Colm, ela avançou mais um passo em direção a ele. Ele não foi mais capaz de se lembrar do que dizia. A medida que se aproximava, Gabrielle trazia com ela um perfume de flores e ele não conseguia pensar em mais nada além do desejo intenso que sentia de tocá-la. Ela o excitava como nenhuma mulher jamais o fizera.
- Eu conheço você, Colm.
Com as pontas dos dedos, ela acariciou a cicatriz que começava no ombro e descia pelo braço.
- Seu corpo conta a sua história.
Ele continuou imóvel enquanto, tocando e acariciando, ela passeava ao redor dele.
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- Você é um guerreiro - sussurrou ela, enquanto passava os dedos pelos ombros de Colm. Seus músculos relaxaram e ele sentiu sua pele se aquecer sob o toque dela. - Você é um protetor. Suavemente, ela acariciou as laterais do pescoço dele e, quando voltou a ficar de frente e bem próxima dele, novamente sussurrou: - Eu conheço você.
Colm também não despregou os olhos dela enquanto ela tirava a camisola. Apesar de enrubescida, Gabrielle não sentiu vergonha ou tentou esconder o corpo. Ele prendeu-a nos braços e beijou-a com ferocidade. O corpo dela era tão maravilhosamente macio, e a pele... tão maravilhosamente morna e sedosa... ao tocar os lábios dela com delicadeza, ele ficou querendo mais. Ele a encheu de beijos até se sentir completamente engolfado pela paixão.
Levou-a para a cama. Ela não teve tempo de puxar as cobertas. Rapidamente, ele tirou o kiut1 e cobriu-a com seu corpo. Ao sentir o contato íntimo da pele nua de Colm pressionando a sua, Gabrielle ofegou.
Colm queria conhecer cada centímetro do corpo dela. Depois de se prolongar na boca, ele cheirou o pescoço, deliciando-se com o perfume suave. Sentia o coração dela batendo sob o seu e, quando beijou a base do pescoço, ela estremeceu. Abaixou um pouco a cabeça para acariciar os seios e beijar o vale entre eles. Escorregou suas mãos pelas costas, percorrendo a curva da coluna vertebral.
Gabrielle simplesmente adorou a sensação de tê-lo sobre seu corpo. Envolveu o pescoço dele nos braços e os beijos se tornaram mais apaixonados.
A cada toque, o desejo de Colm se intensificava. Passou os dedos por entre as coxas de Gabrielle. Sentiu que ela enrijecia o corpo, mas ele precisava continuar. Gabrielle começou a se esfregar nele sem parar. O modo como ele a acariciava simplesmente a enlouquecia. Fazia com que ela o quisesse ainda mais. Ele não permitiria que ela o afastasse enquanto descia cada vez mais, beijando todas as partes dela. Em pouco tempo, a suave tortura se tornou insuportável. Exigindo ser aliviada, Gabrielle arranhou as costas de Colm com as unhas.
O desejo que sentia por ela fez Colm queimar de vontade de possuí-la e ele perdeu o controle. Grosseiramente, abriu as pernas dela e, ajoelhado entre elas, penetrou-a.
Ela deu um grito de dor e curvou o corpo contra o dele, mas ele a acalmou com carícias e palavras doces.
Nota de rodapé:
1. Saia de lã escocesa com xadrez característico do clã (NT.)
Fim da nota de rodapé.
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Em pouco tempo, a dor foi esquecida e, à medida que ele no começo se movia devagar dentro dela, Gabrielle começou a mover e pressionar suas ancas contra ele, gemendo de prazer. Colm passou a estocá-la com mais força e menos controle. E, subitamente, ela sentiu uma onda de êxtase. Ao chegar ao clímax, gritou o nome dele, apertando-o contra si enquanto ele encontrava o próprio alívio ao despejar sua semente nela.
Por longos momentos, nenhum deles se moveu. O único som que se ouvia era o respirar ofegante de ambos. Gabrielle sentia seu coração explodir. Amar Colm fora a experiência mais aterrorizante e maravilhosa que vivera.
Ela sabia tê-lo satisfeito. Apesar de ele não lhe ter dito em palavras, seu tato fora suficiente. Quando finalmente encontrou forças, Gabrielle rolou para junto de Colm e o abraçou. Ele beijou o topo da cabeça dela e voltou a apoiar a cabeça no colchão. Gabrielle apoiou a cabeça no ombro dele e colocou a mão em seu coração.
Amava aquele homem.
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Capítulo 47
Gabrielle jamais imaginara que prazer tão intenso fosse possível. Feliz nos braços dele, ela ainda tinha a mão apoiada sobre o peito de Colm enquanto passeava os olhos pelo quarto e pelas brasas que morriam. Pensou que ele tivesse dormido e tentou puxar as cobertas, mas Colm a prendeu junto de si. Ela se aconchegou, soltou um suspiro e fechou os olhos.
- Colm? Ele bocejou
Sim?
- Por que você deu um soco em Liam? Você se lembra de ter dado um soco nele?
- Sim, eu me lembro. Ele não tinha condições de dar nem mais um passo, e poderia cair em desgraça se precisasse ser carregado.
- Quer dizer que ter nocauteado seu irmão foi uma gentileza.
- Eu diria que sim.
A mente de Gabrielle flutuava de um pensamento a outro. Depois de ficar em silêncio por vários minutos, ela perguntou:
- Você amava Joan quando ficou noivo dela?
- Não.
Era óbvio que ele achava que mais explicações não seriam necessárias. Um outro minuto se passou antes que ela sussurrasse:
- Tem mais sal a caminho. Tinha me esquecido de lhe dizer, mas, depois que o último lote chegar, você ficará com o depósito cheio.
- É um ótimo presente - ele disse. - Por aqui, o sal é mais valioso que ouro.
Em seguida, ela fez outra pergunta.
- Aqueles dois homens que foram encontrados na abadia, tentando matar Liam... eles também tinham sido mandados por MacKenna?
- Sim, mas ficou evidente que eram recrutas recentes. Ao que tudo indica, MacKenna parece ter contratado todos os desclassificados que encontrou pela frente.
- Achei bom que meus guardas tivessem acabado com eles. Ele sorriu na escuridão. Ela parecia feroz.
- Durma, Gabrielle. Você precisa descansar.
- Você vai me contar o que aconteceu com os homens que bateram em Liam?
- Não.
- Só mais uma pergunta, por favor. A estátua de St. Biel que pertencia à minha mãe será trazida do pátio de Wellingshire para cá. Trata-se de uma tradição. Você não se importa? Ela é bem grande.
- A não ser que você queira colocar a estátua em nossa cama, eu não me importo.
- Devo lhe dar um beijo de boa-noite - ela brincou.
- Você tem noção da tentação que provoca? Agora, aproveite para dormir enquanto está relaxada.
Enquanto lhe dizia o que fazer, Colm se aconchegava a ela para beijar sua nuca. Da segunda vez, ele não perdeu tempo com gentilezas. Como já sabia do que ela gostava, fez amor de forma menos contida. Ao penetrá-la com força, ela enlaçou as pernas ao redor do corpo dele. Ele gemeu e, quando começou a mover as ancas, ela soltou um grito de prazer. Gabrielle se satisfez primeiro; ele, em seguida. E, da terceira vez, foi ainda melhor.
Saciada e exausta, Gabrielle fechou os olhos. Apoiado nos cotovelos, Colm olhou para ela.
- Agora, você precisa dormir - ordenou ele. Virando-se de lado, ele a puxou para perto de si, com as costas pressionadas sobre seu peito.
Ela teve o bom senso de obedecer.
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Capítulo 48
Desde que a verdade fora revelada no Castelo de Newell, a vida de Coswold se transformara num inferno.
Apesar de cansado de fingir humildade ao rei, o barão sabia estar numa situação difícil. O Rei John estava furioso por terem acreditado em Islã, aquela maldita mentirosa. Quando Coswold se atrevera a dizer que fora Percy quem convencera Islã a difamar Gabrielle, o rei lhe refrescara a memória dizendo que Islã era sobrinha dele e que, portanto, Coswold era responsável por suas ações. Além disso, o rei já havia deixado bem claro seu desapontamento quanto a Percy. O patife perdera seu título, a pequena propriedade que possuía e fora mandado para a prisão, onde teria o tempo necessário para pensar em suas transgressões. E, para ter certeza de que Islã aprendera bem sua lição, o rei decidiu que ela deveria acompanhá-lo. Caso fossem forçados a passar o tempo todo juntos, talvez os dois resolvessem pensar melhor antes de conspirar contra o rei.
Coswold sabia ser necessário conseguir o perdão do rei. Vossa Alteza real tinha um temperamento terrível e, com certeza, culparia Coswold por qualquer problema que viesse a acontecer. De sua parte, ele faria todo o possível para agradar ao rei. Aonde quer que o rei fosse, era seguido por Coswold, que se colocava aos pés dele dia e noite Se preciso fosse, rolaria no chão e abanaria o rabo como um cachorro. Como resultado desses esforços, o rei vinha abrandando sua atitude. Ele gostava de ter um confidente que pudesse regalar com as histórias de todas as esposas de barões com as quais já se deitara.
Mesmo sendo humilhante rastejar daquela maneira, a nova intimidade que dividia com o rei certamente lhe trazia benefícios. Coswold estava presente quando o mensageiro chegou com as boas-novas. O rumor fora confirmado: Lady Gabrielle fora encontrada. Ela fora acolhida pelos MacHugh e vivia com o clã de ighlanders em sua fortaleza na montanha. O Rei John ficou exultante. Agora, ele poderia começar a se redimir com a princesa e talvez amainar um pouco a animosidade do Barão Geoffrey e dos outros.
Antes de despachar seu emissário para a propriedade de MacHugh para levar sua mensagem a Lady Gabrielle, o rei lhe dera instruções muito detalhadas. Coswold ouvira toda a conversa. Vossa Alteza real dissera a Coswold que havia escolhido aquele mensageiro em especial porque, sendo dono de uma memória infalível, seria capaz de repetir cada palavra da mensagem. Depois de expressar sua admiração pelo bom senso do rei, Coswold o lembrou de que ele mesmo acabara de regressar de uma parte das highlands, e talvez pudesse contribuir com alguns conselhos.
- O caminho que leva à propriedade dos MacHugh é perigoso. Algumas vezes, os ighlanders são hostis com estranhos - disse Coswold. - Posso sugerir que seu emissário faça uma parada na Abadia Arbane e peça para ser acompanhado o resto do caminho? Se o senhor oferecer uma recompensa, os monges ficarão felizes em ajudar. - Ao ver que o rei não tinha ficado feliz com a sugestão, ele rapidamente acrescentou: - E, para mostrar a minha cooperação, ficarei feliz em pagar as despesas.
- Você vai me pagar taxas em dobro, Coswold. Aí sim eu ficarei satisfeito - disse o rei. - Dê aos monges o que bem entender. Não me importo nem um pouco com eles. Só quero que o meu mensageiro viaje em segurança.
Coswold encheu uma carroça com uma dúzia de caixas do mais fino vinho que pôde comprar e enviou para a abadia antes da chegada do emissário. Depois, pediu permissão ao rei para voltar à sua residência e fazer um levantamento da colheita que acabara de ser feita. O rei deu sua permissão.
O mais rápido possível, Coswold reuniu seus homens e se dirigiu à Abadia Arbane. Tendo reunido seus melhores soldados para acompanhá-lo, estava circundado por um exército pequeno, mas competente. Não estava disposto a correr riscos. Era freqüente que homens desaparecessem nas selvagens highlands,
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para nunca mais serem vistos. Coswold ainda esperava por notícias dos homens que enviara para verificar o paradeiro de Gabrielle. Suspeitava que eles houvessem roubado os baús e nunca tivessem chegado à propriedade de MacHugh.
Os monges DA Abadia Arbane haviam acabado de se reunir para as preces noturnas quando foram interrompidos por fortes batidas no portão da frente. Irritado com a interrupção, o abade fez uma rápida genuflexão, deixou a capela e apressou-se em direção ao pátio e ao portão.
Ainda era muito cedo para os monges retornarem da fazenda dos MacHugh. Por causa do bispo, seu regresso demoraria mais do que o normal. Quando o emissário da Inglaterra chegara, o bispo estava visitando a abadia e, ao ficar sabendo da mensagem que seria levada a Lady Gabrielle, insistira em acompanhar o grupo, explicando que raramente tinha a oportunidade de estar presente quando boas notícias eram enviadas pelo rei da Inglaterra. Os monges deviam pegar uma rota alternativa para deixar o bispo em sua residência, o que aumentava a viagem em duas horas. Era impossível que tivessem viajado tão rápido.
O abade puxou o ferrolho e abriu uma fresta. Ao ver quem era, escancarou o portão.
- O que o traz de volta à Abadia Arbane? - ele perguntou, surpreso. Passando pelo abade, o Barão Coswold caminhou até o pátio, seguido de um de seus homens, Cvril. Deu-lhe ordens para que seus homens acampassem do lado de fora da abadia. Somente então Coswold se dirigiu ao perplexo abade.
- Venho em nome do Rei John - anunciou ele.
- Com que objetivo? - perguntou o abade. Coswold tinha a resposta na ponta da língua.
- O rei mandou um de seus emissários para enviar uma mensagem à propriedade dos MacHugh. Ouvi dizer que os viajantes tiveram de enfrentar grandes problemas nas ighlands - mentiu ele. - Ciente da importância da missão para o rei, fiquei preocupado com a segurança do emissário e senti ser minha responsabilidade reunir um pequeno exército para lhe assegurar salvo-conduto.
Coswold não percebeu a verdade de sua afirmação sobre os problemas, pois ainda não ficara sabendo da morte de MacKenna. O abade indicou o caminho do salão ao barão.
- Tenho certeza de que o emissário retornará em segurança, barão, mas o senhor é bem-vindo para esperar e ver com seus próprios olhos. Vou pedir ao
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cozinheiro que lhe traga alguma coisa para comer e beber. Se houver algo mais que eu possa fazer para que se sinta confortável, estarei às suas ordens.
O abade se apressou para tomar as providências para o hóspede inesperado.
Quando, ao cair da noite, o grupo retornou à abadia bastante cansado, Coswold os esperava.
O emissário mostrou-se urpreso ao ver o barão.
- O rei o mandou com alguma instrução específica para mim? - ele perguntou.
- Não - respondeu Coswold, afastando uma das cadeiras da mesa e oferecendo-a ao emissário. - O rei confia em você e reconhece a importância de seu trabalho. Está preocupado com a sua segurança... e, como para mim não existe nada mais importante que o contentamento do rei, senti-me na obrigação de cuidar de seu bem-estar. - Com um sorriso simpático, ele apontou a cadeira - Sente-se comigo para me contar sua aventura enquanto bebemos um pouco de vinho e comemos um pouco de queijo. Os MacHugh são tão selvagens e mal-humorados quanto ouvi dizer? E Lady Gabrielle? Continua bela como sempre?
Lisonjeado com a atenção do barão, o emissário estava ansioso para contar sua experiência. Depois do segundo cálice de vinho, mostrou-se completamente relaxado e suas palavras fluíram livremente.
- O senhor quer que eu lhe conte palavra por palavra do que foi dito?
- Não, de maneira nenhuma - disse Coswold. - Guarde seu relatório para o rei. Estou apenas interessado em saber o que achou das pessoas.
- Não vou contar ao rei palavra por palavra do que ouvi. Tudo o que ele quer saber é se Lady Gabrielle aceitou suas desculpas e Finney's Fiat como presente.
Enquanto Coswold esperava ansiosamente, tomou outro gole de vinho.
- Agora, respondendo à sua pergunta, é verdade. Lady MacHugh é uma beleza - ele disse. - Ela também me pareceu bastante feliz. Seu novo clã ficou contente ao saber que Finneys Fiat agora pertence ao seu lord. Eles estão...
Coswold interrompeu.
- Lady MacHugh? O senhor quis dizer Lady Gabrielle?
- Agora ela é Lady MacHugh, pois se casou com o Lord MacHugh. Devo dizer que tremi sobre as botas quando ele me encarou. MacHugh é um guerreiro feroz.
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O emissário aceitou mais vinho e, sem perceber o descontentamento de Coswold, continuou a contar suas impressões sobre o Lord MacHugh.
Enquanto ele amigavelmente falava sobre o casal, Coswold olhava para o vazio, segurando seu cálice com tanta força que começou a deformá-lo. Sua garganta queimava com a bílis que lhe subia do fígado. Precisou reunir todas as forças para não gritar de raiva. Tarde demais. Agora, era tarde demais. De novo, Gabrielle escapara de suas garras. Teria perdido também o tesouro?
Sempre que o emissário fazia uma pausa, Coswold assentia com a cabeça, encorajando-o e enchendo seu copo. Depois de muito vinho, as palavras do enviado do rei começaram a ficar confusas e seus olhos pesados.
- Estou com sono - ele disse, começando a se levantar. Rapidamente, Coswold lhe ofereceu mais pão e queijo.
- Com o estômago cheio você dormirá melhor - disse ele, abrindo um largo sorriso quando o emissário aceitou a comida.
- Que outras novidades você ouviu? - perguntou Coswold. - Os MacHugh são um grupo muito interessante. Eu os acho fascinantes - acrescentou ele para disfarçar seus motivos ocultos. Ele duvidava de que, no dia seguinte, o emissário se lembrasse de sequer uma palavra do que dissera.
- Enquanto eu esperava que Lady MacHugh se apresentasse, comi uma variedade de comidas interessantes. Gostei muito de um pão doce...
Esperando ouvir alguma coisa de seu interesse, Coswold deixou que ele tagarelasse à vontade.
- Eles estavam celebrando - disse o emissário, bocejando. Ao perceber que havia um pedaço de queijo preso entre os dentes dele, Coswold desviou o olhar. O comportamento do bêbado se tornava cada vez mais nojento.
- Celebrando o quê? - ele perguntou, incapaz de afastar a irritação de sua voz.
- Finney's... - ele parecia ter perdido o fio do pensamento.
- Celebravam o fato de Finney's Fiat agora lhes pertencer? - cutucou Coswold.
- Sim, sim. Agora, as terras lhes pertencem.
- Houve alguma menção de que o Lord recebesse mais alguma coisa? Tentando acertar o foco, o emissário piscou várias vezes.
- O quê?
- Ouro - resmungou Coswold. - Alguma menção sobre ouro? O emissário coçou o queixo.
- Não, nenhum ouro.
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Tomado pelo desespero, Coswold desabou na cadeira e afundou o rosto nas mãos.
- Perdido - murmurou ele.
Ele pensou que o emissário tivesse caído no sono, mas estava errado.
- Tesouro?
- O que disse? - perguntou Coswold, ríspido.
- St. Biel. Existe um tesouro.
- Eles sabem sobre o tesouro? - exigiu ele. Coswold chacoalhou o emissário para fazê-lo acordar e continuar.
- O padre... disse que eles vão receber o tesouro... - resmungou ele. Inclinando o corpo, Coswold se aproximou para poder ouvir cada palavra.
- Alguém disse que tesouro é esse?
- Não... Lady MacHugh... Lady MacHugh disse... Coswold agarrou os ombros do homem.
- O que foi que Lady MacHugh disse sobre o tesouro? A cabeça do emissário despencou para o lado.
- Ela disse que o lord ficará com as terras... mas não terá o tesouro. Coswold largou os ombros do homem e se levantou. Pensando bem, talvez não fosse tarde demais.
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Capítulo 49
Colm era um homem possessivo. Ao ficar de olho em Gabrielle, descobriu que não gostava que os homens se aproximassem muito, ou ficassem muito tempo olhando para ela.
Nos dias que se seguiram ao casamento, ele não relaxou a guarda um minuto sequer. Uma noite, depois do jantar, Liam e Colm estavam sozinhos no grande salão. Enquanto Willa e Maurna tiravam a mesa, Liam decidiu mencionar a intensa vigilância do irmão.
- Venha ficar um pouco perto do fogo, Colm, para que possamos conversar com privacidade.
Apoiando-se em um dos joelhos, Liam jogou uma grossa tora no fogo, puxou uma cadeira e sentou-se.
Colm apoiou-se na lareira e esperou para ouvir o que o irmão tinha a dizer.
- Você tem alguma razão para desconfiar de Gabrielle? - perguntou Liam.
Apesar de saber que Liam não tinha a intenção de insultar a ele ou a Gabrielle, Colm se ofendeu com a pergunta.
- É claro que não - resmungou ele. Liam assentiu com a cabeça.
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- Você está certo em confiar nela. Ela nunca lhe seria desleal. Sei muito bem por quem bate seu coração.
- E por quem seria? Liam riu.
- Você não pode ser tão cego. Sabe que ela o ama.
Colm ignorou as palavras de Liam. Amor era conversa para mulheres, não para guerreiros.
- Por que você me perguntou se eu desconfiava dela quando já tinha uma opinião formada?
- Por causa da maneira como tem agido. Você tem se comportado como um homem ciumento.
- Não sou ciumento, apenas cuido do que é meu. Gabrielle merece a mesma proteção que os outros membros do meu clã.
- Ela é sua esposa, Colm.
- E eu vou cuidar bem dela.
Gabrielle chamou a atenção deles ao aparecer na escada. Ela deu um passo para o lado e esperou que dois homens de Colm subissem com seu baú.
- Gabrielle, por que você está levando sal para o seu quarto? Quando os homens passaram por ela, ela lhes disse:
- Por favor, coloquem na frente da lareira do meu quarto.
- Eu lhes mostro onde colocar - gritou Maurna, apressando-se para ajudar. - Mas, princesa, por que quer o sal em seu quarto?
- Isso não é sal - ela explicou a Maurna. E para Colm e Liam disse: - Você deve se lembrar de eu ter dito que todos os baús, com exceção de um, continham sal. Demorei num tempão para encontrar este baú que, por incrível que pareça, estava por baixo de todos.
- Você vai usar as cores dos MacHugh. Não precisa mais de suas roupas inglesas - ele disse.
- Pode ser que não precise delas, mas vou guardá-las mesmo assim. Tenho também outras coisas, lembranças e memórias de Wellingshire e St. Biel.
- Deus do céu, Gabrielle, você já tem muitas lembranças de St. Biel - disse Liam. - Colm, você viu o tamanho da estátua mandada pelo abade? Ela deve ficar no depósito até que a capela seja construída. Depois, ficará dentro da capela.
- Não, Liam - Gabrielle disse -, vai ficar do lado de fora da porta para que todos a vejam ao entrar. É a tradição.
- Nenhuma das estátuas de St. Biel fica dentro das igrejas?
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- É claro que não. Nós rezamos para Deus e não para as imagens. Quando ela entrara no salão, Liam havia se levantado, mas, agora que ela se sentara, Liam também voltara a se sentar.
- É verdade que seu pai vai mandar outra estátua?
- Sim. Ela pertencia à minha mãe e, agora que estou casada, virá para mim. É a tradição.
- Tem mais alguma para chegar? - perguntou Colm, com voz arrastada.
- Só mais umas dez - brincou ela.
Ainda ria da reação deles quando seus guardas pediram para falar com ela. Ao olhar para o rosto sério de seus guardas fiéis, ela imediatamente soube o que iriam lhe dizer: que estavam voltando para casa.
Gabrielle respirou fundo e, desesperada, tentou segurar as lágrimas. Não seria correto chorar. Olhou para Colm e, pela expressão dele, percebeu que os guardas já haviam conversado com o lord. Devagar, caminhou até eles e cruzou as mãos como que em prece.
- Vocês estão voltando para casa.
Ao fazer o comentário, ela olhou para Stephen.
- Já é hora, princesa. Estamos convencidos de que o seu Lord a manterá em segurança.
Ela segurou a mão dele nas dela, e disse:
- Você tem sido meu melhor amigo, Stephen. Não sei como vou fazer sem você. - Ele abaixou a cabeça em sinal de respeito e deu um passo atrás. Em seguida, Gabrielle pegou a mão de Lucien. - Juntos, vivemos muitas vicissitudes, não é? Acho que você vai ficar feliz por se ver livre de mim.
- De jeito nenhum, princesa. Vou sentir saudades, mas milady sempre estará em meu coração.
Fausto era o próximo da fila. Gabrielle pegou a mão dele e disse:
- Pode acreditar no que digo, Faust. Logo, logo, você verá as montanhas de St. Biel.
- Vou sentir sua falta, princesa.
Christien foi o último. Ao tocar a mão dele, ela lhe disse:
- Eu lhe devo a minha vida, Christien, e vou sentir saudade.
- Não terá de sentir saudade por muito tempo, princesa. Eu pretendo voltar. Saberei quando chegar a hora.
Depois de fazerem uma profunda mesura, eles se retiraram. Uma lágrima
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solitária escorreu por sua bochecha. Sem dizer palavra, Gabrielle saiu do salão e foi para o seu quarto.
Colm sabia que ela precisava ficar sozinha. Depois de esperar o mais que pôde, ele subiu até o quarto dela. Enrolada sobre a cama, ela soluçava. Ele tomou-a nos braços e confortou-a da única maneira que sabia. Deixou que chorasse à vontade.
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Capítulo 50
Padre Gelroy ajudou-a a lidar com a perda fazendo com que se sentisse culpada.
- É claro que a princesa sentirá falta de seus guardas. Durante todos esses anos, eles foram como irmãos mais velhos para milady, mas é preciso pensar que eles têm o direito de escolher seus caminhos. St. Biel é a casa deles e milady deveria sentir alegria no coração ao saber que retornam às suas famílias.
Gabrielle sabia que o homem santo tinha razão. Mesmo assim, achava difícil ficar alegre quando sentia tanta falta deles. Felizmente, ela tinha muito o que fazer e pouco tempo para ficar deprimida.
O clã tornara fácil a adaptação à sua nova vida. Gabrielle ganhara a admiração deles ao tirar a vida de um homem para garantir a segurança de Liam. Ao se casar com seu Lord e ao lhe dar Fineys Fiat, ganhou o amor e o respeito de todos. Ter confrontado Lady Joan, colocando-a no devido lugar, havia lhes mostrado que era mulher de temperamento, coisa que consideravam uma característica positiva.
Todos se ofereciam para ajudá-la. Maurna e Willa a ensinaram como se tornar uma dona de casa. Era Gabrielle quem decidia o cardápio de cada refeição, quando a forração de palha precisava ser trocada e as camas, arejadas, além de milhares de pequenas coisas que faziam com que o castelo fosse bem administrado.
Nunca recebera um "não" da governanta ou da cozinheira, ou ouvira não estar certa sobre o que quer que fosse. Elas tinham um modo mais sutil de deixar que ela soubesse quando cometia um erro.
- Hoje à noite vamos ter torta de carne - Gabrielle disse a Willa. A cozinheira balançou levemente a cabeça. Gabrielle tentou de novo.
- Torta de galinha? - A ordem foi seguida por outro leve balançar de cabeça. - Carneiro, então.
Um gesto de aprovação.
- Sim, Lady MacHugh. Hoje comeremos carneiro.
O canteiro e o fabricante de velas a instruíam sobre os acontecimentos dos vários clãs. Eles achavam importante que sua patroa entendesse todos os conflitos.
Gabrielle sequer sabia ao certo onde viviam os clãs.
- Por que é importante que eu saiba sobre os conflitos? - perguntou ela. Surpreso, o fabricante de velas respondeu com outra pergunta.
- Se milady não sabe quem está brigando, como saberá quem xingar e com quem falar?
Gabrielle não soube o que responder.
Naquela noite, enquanto preparava a cama, ela perguntou a Colm sobre o clã.
- A grande quantidade de clãs que existe nas montanhas me deixa confusa.
- Amanhã, vou desenhar um mapa e lhe mostrar onde cada um vive.
- Você vai fazer isso antes, ou depois de me levar aos Buchanan?
Ela foi para um canto escuro para tirar a roupa e vestir a camisola. Colm se divertia com a timidez dela. Já deitado e apoiado sobre o cotovelo, ele preguiçosamente a observava.
Gabrielle voltou a ficar em frente ao fogo para se aquecer enquanto escovava os cabelos.
- Por que você vestiu a camisola? - perguntou Colm. - Vou tirá-la assim que você se deitar.
Ela parou de escovar os cabelos e olhou para ele.
- Preciso fazer uma visita aos Buchanan. Você vai me levar amanhã?
- Não.
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- Lady Gillian é minha prima querida.
- Você nunca viu a mulher.
- Mesmo assim, ela é minha prima querida.
- Amanhã não posso. Tenho muitas coisas a fazer.
- Alguém pode me levar?
- Não.
- Depois de amanhã?
- Não. Venha para a cama.
Por um longo minuto, ela ficou parada olhando para ele.
- Não.
Ele não pareceu ficar irritado com a recusa. Gabrielle ficou desapontada, pois esperava deixá-lo bravo. Poderia ter saído correndo do quarto, mas não tinha para onde ir. Além disso, a não ser que se vestisse, não poderia sair correndo para lugar nenhum. Decidiu que seria muito esforço tentar irritá-lo.
Foram necessários apenas alguns minutos para que ela admitisse que, caso não quisesse ficar congelada, teria que ir para debaixo das cobertas. Caminhou até a cama.
- É bom que você entenda. Não estou indo até você. Estou indo para cama.
Ela começou a passar sobre ele para chegar ao seu lado da cama, mas num gesto brusco puxou a camisola por sobre a cabeça e caiu de barriga sobre o peito dele. Com suas pernas, Colm prendeu as dela e rolou para prendê-la embaixo de si.
- É bom que você entenda. Vou fazer amor com você. A última palavra foi dele.
Gabrielle fazia uma caminhada ao lago em companhia de Lily, esposa de Braeden, que estava grávida do primeiro filho. Ela era mais acanhada que medrosa e falava com voz pouco mais alta que um sussurro. Era uma mulher de temperamento doce e Gabrielle gostava da companhia dela.
- Este é o lago onde os homens gostam de nadar? - perguntou Gabrielle.
- Eles nadam do outro lado, onde não podemos vê-los. Eles não se importariam - disse Lily -, mas sabem que poderíamos tentar.
- O dia não está lindo? Um arzinho tão fresco! - Gabrielle abriu os braços e deixou que o sol aquecesse seu rosto.
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- Espere até ver o lago. A água é transparente - disse Lily, - mas muito gelada. Mesmo nos meses de verão, a água nunca esquenta. Fico batendo os dentes só de colocar a ponta dos pés na água. Não sei como os homens agüentam.
- Obrigada por me avisar. Sei que nunca vou querer experimentar.
Sentada à sombra de uma árvore, Gabrielle desfrutava aquela parte tranqüila do dia. A refeição do meio-dia havia terminado e ainda faltavam algumas horas até que o jantar fosse servido.
Lily falava sobre as coisas que estava preparando para o bebê, e Gabrielle estava prestes a lhe fazer uma pergunta quando Ethan e Tom saíram em disparada de entre as árvores. Tom perseguia Ethan.
- Eles não deveriam estar aqui desacompanhados - disse Lily.
Gabrielle concordou. Chamou os garotos. Ethan estava tentando despistar Tom, mas não conseguiu mudar de direção a tempo. Ela o viu tropeçar no próprio pé e fazer um voo rasante com pouso na água gelada.
Lily gritou por socorro. Gabrielle tirou os sapatos e correu atrás da criança. A água estava tão gelada que ela achou que seu coração fosse parar de bater. Enquanto Tom ficava choramingando na margem, ela agarrou Ethan e o levou para terra firme entre tosses e espirros.
- É muito fria - ele disse a Tom, quando conseguiu respirar direito.
- Lady Gabrielle, posso experimentar... - começou Tom. Ela sabia aonde ele queria chegar.
- Não, você não pode experimentar a água. Agora, vocês dois, venham comigo.
Lily enrolou Ethan em seu xale.
- Você vai ficar resfriado - ela anunciou. Gabrielle tiritava.
- Esta água é mais gelada que a neve - ela disse. Lily assentiu com a cabeça, concordando.
- A tia dos garotos é minha vizinha. Pode deixar que eu os levo para casa. É melhor você trocar de roupa e se aquecer um pouco, antes que também comece a espirrar.
Felizmente, como Liam e Colm não estavam no castelo, ela conseguiu chegar ao seu quarto sem ser notada. Infelizmente, os pequenos Tom e Ethan diriam a todos que viram Lady MacHugh pulando no lago. Quando acabasse de mudar de roupa e de se aquecer um pouco junto ao fogo, o clã inteiro saberia que ela estivera nadando no lago.
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Willa e Maurna bateram à porta.
- Precisa de mais cobertores, milady
- Estou bem, não se preocupem - garantiu ela. - Mas quero que me ensinem o caminho até a casa dos garotos. Gostaria de falar com a tia deles.
Willa lhe mostrou o caminho. Quando a porta foi aberta, Gabrielle entendeu por que os garotos tinham permissão para correr como selvagens. A tia era bastante idosa e parecia precisar de um descanso de pelo menos um ano.
Gabrielle foi convidada a entrar. Completamente recuperado, Ethan parecia pronto para outra. Ele e Tom estavam sentados à mesa, comendo o que parecia ser a mesma pasta que Willa sempre tentava fazer com que Gabrielle comesse. A diferença é que os garotos pareciam gostar.
- Amanhã, eles estão proibidos de sair de casa - garantiu a tia. - Ethan, seja educado. Agradeça a Lady MacHugh por ter salvo a sua vida. E peça desculpas pelos problemas que causou.
As desculpas foram pedidas e aceitas. A tia guiou Gabrielle para fora. fechando a porta atrás de si para que os garotos não pudessem ouvir.
- Sinto muito, princesa. Ethan e Tom são bons meninos. Cuido deles desde a morte dos pais. Não tem sido fácil. Tenho feito o possível e todos no clã têm ajudado, mas eles precisam mais do que uma anciã.
- Vou falar com o lord - prometeu Gabrielle. - Tenho certeza de que ele pensará em alguma solução.
Ao retornar ao castelo, Gabrielle sentiu-se tomada pela sensação de culpa. Depois de ter reclamado de Colm por assumir muita responsabilidade sem jamais delegar, ela lhe trazia mais um problema para solucionar.
Sentada à mesa, esperava o jantar quando Colm e Liam entraram no grande salão. Pelo cenho franzido de Colm e o sorriso de Liam, ela percebeu que eles já haviam sido informados sobre o incidente no lago.
- A água estava boa? - perguntou Liam.
Gabrielle não estava para brincadeiras. Olhando para Colm, ela disse:
- Você se esqueceu de proibir que fossem ao lago?
- Pensei que tivesse feito isso - ele disse. - Você está bem? A preocupação dele acalmou-a.
- Aquele garoto quase morreu afogado. É preciso fazer alguma coisa. - Aproximando-se dele, ela beijou-lhe a bochecha. - Você ficará responsável por eles? Caso contrário, duvido que cheguem aos seis anos.
Willa começou a servir o jantar. Apesar de já ter jantado, Gabrielle fez companhia a Colm e Liam.
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- Vocês sabem que, depois que consegui "pescar" Ethan, Tom queria dar um mergulho?
Liam engasgou ao beber um gole de água. Gabrielle esperou até que parasse de tossir para lhe perguntar a idade da tia deles.
- Não quero ser indelicada, mas ela me pareceu ter pelo menos oitenta anos - ela disse.
- Na verdade, ela deve ter a sua idade - disse Liam. - Para você ver o que três anos cuidando daqueles garotos pode fazer.
Gabrielle fez uma careta para ele.
- Não achei engraçado. - E, virando-se para Colm: - Ela adora os garotos, mas eles são demais para ela. Tem muita gente dizendo a eles o que devem fazer. O resultado é que eles não dão ouvidos a ninguém.
Colm assentiu com a cabeça.
- Vou falar com ela.
Gabrielle tinha certeza de que ele faria o que fosse necessário.
Dois dias depois, ao entrar no grande salão levando uma cesta de ervas, Gabrielle viu Ethan e Tom subirem as escadas correndo. Apreensiva, Maurna assistia ao pé da escada.
- Onde eles estão indo? - perguntou Gabrielle.
- Ao seu quarto - respondeu Maurna.
Um pouco alarmada, Gabrielle foi cautelosa ao perguntar:
- Posso saber por quê?
- Suas coisas foram transferidas para o quarto do lord. Os garotos vão passar a viver aqui.
Maurna olhou para Gabrielle com um sorriso que era uma mistura de resignação e exasperação.
- E a tia deles? - perguntou Gabrielle
- Vai continuar em sua cabana. Ela ficou contente com o arranjo e acha que será melhor para os garotos. Eles poderão vê-la sempre que quiserem.
Gabrielle estava prestes a perguntar como os garotos se sentiam a respeito de sua nova vida, mas ouviu os risos vindos do andar de cima. Era a resposta de que precisava.
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Capítulo 51
O dia estava glorioso. Colm surpreendera Gabrielle com um passeio a cavalo. Cavalgaram até o ponto de onde se podia ver o belo vale e diminuíram a marcha dos cavalos.
Nunca antes Colm havia deixado seus afazeres para passar algumas horas com ela, e Gabrielle tinha profundas suspeitas quanto aos motivos dele.
- Não existe motivo nenhum, Gabrielle - ele lhe disse. - Eu sabia que você gostaria de passear um pouco com Rogue e decidi fazer a sua vontade.
- Era Faust quem normalmente cavalgava comigo... - Surpresa, ela arregalou os olhos. - Você está sendo atencioso comigo!
- Você quer desperdiçar tempo falando dos motivos por que estamos cavalgando juntos, ou prefere cavalgar?
Era maravilhoso ter seu marido só para si, mas o tempo passou rapidamente.
Ele lhe falou sobre Ethan e Tom.
- Eles vão receber tarefas que são capazes de realizar e, quando terminarem, poderão ir brincar.
- Quem ficará responsável por passar e supervisionar as tarefas?
Ele aproximou seu cavalo de modo a ficar ao lado dela. Estendendo o braço, ele a puxou para perto.
- A dona da minha casa. Antes que ela pudesse argumentar, ele lhe deu um beijo. Ao levantar a cabeça, ele disse: - Foi você quem sugeriu que eu delegasse.
- Sim, mas...
- Está na hora de voltarmos - ele disse.
Colm parecia relutante, ela pensou, e ficou satisfeita. Talvez ele gostasse de ficar com ela tanto quanto ela gostava de ficar ao lado dele.
Estavam se aproximando da ponte levadiça quando foram interceptados por um soldado.
- Lord, tem um mensageiro que diz ter sido enviado pelo pai de sua esposa.
- Meu pai! - gritou Gabrielle.
Colm estendeu a mão e agarrou as rédeas do cavalo de Gabrielle para que ela não saísse em disparada. - Onde está ele?
- No sopé da montanha. Os guardas sabem que não devem deixá-lo chegar mais perto sem a sua permissão.
- Mantenha-o onde está. Irei até ele para ouvir a mensagem.
- Sim, Lord - respondeu ele.
- Gabrielle, me espere lá dentro.
- Prefiro ir com o meu marido.
- Vá para dentro.
Ela estava cansada de ser diplomática.
- Talvez eu deva explicar de outra maneira. Eu vou com você. E antes que receba outra negativa devo dizer que, conhecendo os criados de meu pai, serei capaz de lhe dizer se o mensageiro foi ou não enviado de Wellingshire. Além disso - ela se apressou, antes que pudesse ser interrompida -, eu ainda estaria nos limites de sua propriedade e você já permitiu que eu fosse até lá com os meus guardas.
Como o argumento era bom, ele decidiu mudar de idéia. Ela se manteve atrás dele, diminuindo a marcha quando chegou à curva fechada da estrada bem acima da linha que dividia Finney's Fiat e a montanha.
- Colm, e se ele trouxer notícias ruins?
- Nós as ouviremos juntos.
Ela não teve tempo para sentir medo ante a possibilidade, pois avistou o mensageiro assim que fez a curva.
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- É Nigel - exclamou ela. - Um dos criados mais leais de meu pai. Eu o conheço há muitos anos.
Gabrielle cutucou Rogue com o calcanhar para que fosse o mais rápido possível, enquanto saudava o criado do pai. Antes que ela desmontasse, Nigel lhe entregou um rolo de pergaminho. Ao ver o sinete do pai, soube que o documento era verdadeiro. Ela estava tão emocionada que mal conseguia se concentrar para ler.
- Meu pai virá me ver... nos ver - corrigiu ela -, e deve chegar no fim de semana. Esta é uma notícia maravilhosa e eu lhe agradeço, Nigel, por tê-la trazido a mim.
Gabrielle olhou para Colm.
- Ele vai precisar descansar um pouco. Posso lhe oferecer nossa hospitalidade?
- É claro que sim. - Com um gesto, ele instruiu um dos guardas - Leve-o até a cozinha.
Assim que Nigel desapareceu, ela abriu a mensagem e a leu para Colm.
Filha, no final da semana, devo chegar à sua nova casa para ver com meus próprios olhos que você está segura e bem cuidada. Disseram-me que você se casou e está feliz. Vou fazer meu julgamento assim que me encontrar com seu marido e puder olhá-lo nos olhos.
Fiquei furioso ao saber o que você teve que passar na abadia. Procurei por você feito louco. Então, o Lord Buchanan mandou me avisar que você estava protegida e segura. Senti um grande alívio, filha, mas continuei a sentir raiva. Reuni meus vassalos para se prepararem para a guerra. Outros barões me apoiaram. O rei tentou fazer com que os atos de Coswold e Percy fossem vistos como corretos, mas não vou descansar enquanto os dois não pagarem por seus pecados.
Quando olhou para Colm, Gabrielle tinha os olhos marejados de lágrimas de felicidade.
- Meu pai vem me ver. Esta é uma notícia maravilhosa.
Colm colocou-a sobre Rogue.
- Se isso a deixa assim tão feliz, eu concordo, é uma notícia maravilhosa.
Depois de lhe entregar as rédeas, ele montou seu cavalo.
- Ah, espere - disse Gabrielle, abrindo novamente o rolo. - Tem mais. - Ela analisou o papel.
- O que foi? - ele perguntou.
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- "Logo vou vê-la" ela leu. -"Por favor, leve minha filha para visitar sua querida prima casada com o Lord Buchanan o mais rápido possível."
Ao se afastar, ela não se virou para ver a reação dele. Colm a seguiu, seu riso ecoando pelo vale.
Na segunda-feira, Braeden cavalgou com Gabrielle até o pé da montanha para ver se o pai dela já começara a cruzar Finey's Fiat.
- Não foi ontem que o mensageiro deu a notícia? - ele perguntou.
- Foi sim, Braeden.
- E o seu pai não disse que chegaria no fim da semana?
- Sim, disse, mas meu pai costuma estimar mal o tempo das viagens. Ele pode cavalgar a grande velocidade - explicou ela.
Como o entusiasmo dela era evidente e Braeden não queria desapontála com sua praticidade, não falou mais sobre o assunto enquanto desciam a montanha.
Terça-feira pela manhã, Colm deixou a propriedade para ir a uma reunião. O Lord Ramsey Sinclair havia chamado todos os lords para se reunirem em suas terras a fim de discutirem os acontecimentos recentes das ighlands. Desde o assassinato do Lord Monroe e da hostilidade provocada pelo Lord MacKenna, reinava muita inquietação entre os clãs. Dois sobrinhos do Lord Monroe enfrentavam uma luta pelo poder e os MacKenna haviam ficado sem líder. Deviam se reunir para chegar a uma decisão sobre o novo rumo das coisas, antes que perdessem o controle de tudo.
Apesar de não fazer idéia do tempo que ficaria fora, Colm garantiu a Gabrielle que estaria de volta para receber o pai dela.
- Por que eu sempre preciso de um acompanhante quando vou olhar o vale? - ela perguntou. - Se ainda me encontro em suas terras, devo estar perfeitamente segura.
- Você estará perfeitamente segura com um acompanhante. Terça-feira à tarde, Gabrielle arrastou Michael para um passeio. Voltou duas horas depois.
Na quarta, ela coagiu James. Retornou em uma hora.
Quinta, foi escoltada por Philip. Chovia e ela demorou mais de três horas.
Sexta-feira, Michael acompanhou-a novamente.
E ela simplesmente não voltou.
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Gabrielle havia desaparecido. Tudo aconteceu na curva fechada próxima à base da montanha. Michael cavalgava na frente dela e Gabrielle ficara sozinha por não mais que quinze ou vinte segundos. Mas foi o tempo necessário.
Michael pensou que ela estivesse bem atrás dele. Podia ouvir o resfolegar de Rogue sobre as rochas. Ele sabia que, como de hábito, a princesa diminuíra a marcha antes de chegar à curva. De um lado, havia um declive com pedras soltas. Rogue poderia escorregar se chegasse muito perto. Do outro, havia o penhasco. Lançando seus tentáculos emaranhados sobre a estrada, um espmheiro fechado crescia em ângulo perpendicular. A vegetação era tão densa que abafava qualquer tipo de som.
Gabrielle e o guarda estiveram conversando amigavelmente.
- Acho que o Lord vai mandar aumentar esta estrada - ele lhe dissera. - O que quer dizer que não precisará mais se preocupar com que seu cavalo escorregue.
Esperando resposta, ele displicentemente olhara por sobre os ombros. Rogue ainda vinha atrás dele, mas Gabrielle havia desaparecido. Gritando o nome dela, Michael rapidamente desmontou.
- Lady MacHugh? - Nenhuma resposta. Pensando que ela tivesse caído, voltou a gritar enquanto corria até a curva. - Milady está machucada? Lady MacHugh, onde está?
Ainda nenhuma resposta. A todo pulmão, Michael gritou para a sentinela do cume distante.
- Você pode vê-la? Nossa princesa...
O soldado não pôde ouvi-lo, mas as duas sentinelas que patrulhavam a montanha atrás dele ouviram e soaram o alarme. A gritaria assustou Rogue, que começou a galopar montanha acima.
Histérico, Michael deslizou pelo declive para ver se sua milady havia caído, mas ela não estava lá. Voltando a subir e na esperança de que ela tivesse, de alguma maneira, ficado presa no espinheiro e logo começasse a pedir ajuda, ele começou a abrir caminho com sua espada.
- Ela não está aqui. Ela não está aqui - gritou ele, sua voz entrecortada pelo pânico.
Em poucos minutos, a área fervilhava de soldados MacHugh, todos à procura de Gabrielle. Liam e Braeden, especialistas em seguir pistas, assumiram cada um um pedaço da estrada em busca de pegadas.
Michael havia rastreado a maior parte da estrada e abrira boa parte do
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espinheiro, o que quer dizer que pouco sabiam sobre onde e como alguém raptara Gabrielle. Liam afastou-se na direção da encosta, onde o caminho se nivelava. Fez uma curva brusca, indo em direção à esquerda, onde o caminho tinha uma extensão maior de terra batida que de pedras. Caminhou um bom pedaço. Quando olhou para trás, não pôde mais ver a trilha.
- Braeden - gritou ele.
Braeden, que estivera pocurando do outro lado do declive, veio correndo.
- Eu diria que foram pelo menos quinze homens - estimou Liam. Ele olhou para a terra macia que ficara marcada por pegadas humanas e de cavalos.
- Provavelmente mais - disse Braeden.
Liam andou na direção contrária. As pegadas faziam uma curva na direção da mata que ia até o penhasco.
- Parece que alguns deles se separaram aqui.
Braeden seguiu Liam enquanto ele analisava galhos cortados e quebrados. Quando chegaram ao despenhadeiro com vista para a curva do caminho, Liam estacou.
- Foi aqui que eles se esconderam - ele disse. - Ficaram esperando que ela passasse abaixo deles.
- Olhe - disse Braeden, olhando para baixo e puxando alguma coisa de um graveto cheio de espinhos. Com as pontas dos dedos, ele mostrou um pedaço de tecido verde. - Hoje, Lady MacHugh estava usando um vestido verde. - Desolado, ele olhou para Liam. - Vou organizar os homens para sairmos à procura desses cretinos. Liam, você deve pegar dois soldados e ir a todo galope até a propriedade do Lord Sinclair para dar a triste notícia a Colm.
Liam assentiu com a cabeça. Aquela era uma tarefa que ele temia mais do que a morte.
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Capítulo 52
Gabrielle acordou com uma forte dor de cabeça. Abriu os olhos e tentou entender o que estava acontecendo com ela. Olhou ao redor do quarto, que lhe era desconhecido, assim como a cama em que estava deitada. O teto era baixo e, se estivesse sentada, facilmente poderia tocá-lo com as mãos. Estava em algum tipo de sótão. O ar cheirava a mofo e ranço. O que quer que fosse este prédio, não era usado havia muito tempo. Pedaços de palha cutucavam suas costas e a coberta que alguém jogara sobre ela era áspera e arranhava seu rosto. Levou a mão à bochecha ao sentir uma picada. Ao abaixar a mão, seus dedos estavam manchados de sangue. Em seguida, viu os arranhões em seu braço.
Lentamente, a névoa se dissipou em sua mente. Rogue. Ela estava montando Rogue. E havia outro animal. Não, não. Ela pensou ter ouvido um ruído de animal à procura de alimento. Ouviu um farfalhar Depois, uma dor excruciante.
Abaixo, uma porta rangeu ao abrir e ela ouviu ruído de pessoas entrando. De repente, ela estava completamente acordada. Gostaria de ter podido correr até a beira do sótão para espiar o que se passava, mas ficou com medo de ser vista, ou ouvida.
Até que começassem a falar, ela não conseguira adivinhar quantos eram.
- É melhor você rezar para que ela acorde, Leod, porque, se ela não acordar, ele vai matar você e enterrar em cima dela. Nunca vi alguém agir dessa maneira. Vocês viram o brilho de loucura no olhar dele? Era como se o próprio demo estivesse olhando para mim.
- Eu só fiz o que me disseram para fazer - protestou Leod. - Você ouviu o que ele disse. Que eu tinha que fazer ela dormir antes que pudesse gritar, e depois entregar ela para você carregar, e foi isso que eu fiz, Kenny. Coloquei ela para dormir. O trabalho sobrou para nós e não me importo nem um pouco que ele fique furioso comigo. Enquanto os outros estão "de tocaia" no leste, nós tivemos que rastejar para cima e para baixo dos penhascos, no maior silêncio possível enquanto avançávamos por aquele espinheiro maldito. Deitados de barriga, tivemos de esperar horas e horas sem nos mexer. Aqueles espinhos arrancaram a pele dos meus braços e mãos. Minhas pernas estão cheias de cãibras. Ele não tem o direito de ficar furioso com a gente porque a gente fez o trabalho.
- Eu sei que fizemos, mas você não devia ter usado estilingue nela.
- É o que uso para pegar passarinhos.
- Uma mulher não é um passarinho, Leod. Além disso, você sempre quebra o pescoço deles.
- É a única maneira que conheço de matá-los e manter a gordura intacta para o cozimento.
- Você podia ter quebrado o pescoço dela.
- Não usando a pedra pequena que usei.
- Tomara que ela acorde. Meu rosto está sujo de sangue?
- Está. Deveríamos ter tido mais ajuda - resmungou ele.
- O Andrew estava bem atrás da gente.
- E o que adiantou? Ele é tão pequeno efranzino que parece ter dez anos e não tem força nem para levantar um balde de água. Ele devia ter mandado um homem e não um garoto com a gente.
- A aparência dele engana, deve ter a nossa idade. Ele pode ser miúdo, mas dizem que já matou muitos. E olhe que estou falando de pessoas, e não de pássaros. Ele gosta de usar a faca. Entra nos lugares com cara de inocente e baml, enfia a faca no bucho dos caras.
- Você já viu ele fazer isso?
- Não, mas ouvi dizer. Se Andrew vier sorrindo pro meu lado, dou no pé. É melhor você subir lá e ver se ela está respirando.
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Gabrielle ouviu o som de uma escada sendo arrastada pelo assoalho. A ponta bateu contra o sótão.
- Acho que esta escada não vai me agüentar - disse Leod, evasivo. - Chame o garoto. Manda ele subir.
- Eu já disse que Andrew não é nenhum garoto e, se ele subir, vai ficar brincando com ela antes de descer.
Tentando acalmar seu coração que estava aos pulos, Gabrielle fechou os olhos. Ouviu botas pisando nas travessas da escada e manteve-se absolutamente imóvel enquanto o homem se aproximava. Ele tinha um cheiro horrível.
Bateu a cabeça no teto inclinado. Quando ele se apoiou e inclinou o corpo para olhar para ela, o colchão de palha cedeu sob seu peso. Colocou a mão sobre seu peito e, enquanto fingia estar inconsciente, ele moveu os dedos sobre o seio. Tinha ganas de matá-lo.
Ele rapidamente retirou a mão quando Kenny gritou, lá de baixo:
- Ela está respirando, ou não?
- Está, mas continua dormindo. - Ele lhe deu um chacoalhão. - Ela não quer abrir os olhos.
- Então desça logo. Acho que ele vem vindo. Leod soltou um palavrão e desceu.
- Deixe a escada onde está. Ele vai querer vê-la.
A porta novamente se abriu e a pessoa que eles esperavam entrou. Gabrielle não precisou ver o rosto para saber quem era. Ela soube assim que ele abriu a boca: Barão Coswold.
Em menos de um segundo, Gabrielle passou da incredulidade atônita para a fúria. O que Coswold fazia ali? O que queria dela, agora? Mas não havia tempo para tentar entender os motivos dele. Em vez disso, ela precisava encontrar uma maneira de fugir.
- Tem certeza de que ela está dormindo? - perguntou Coswold com voz autoritária, e, antes que Leod ou Kenny pudessem responder, ele continuou: - Há quanto tempo vocês estão aqui? Sobre o que conversaram? Disseram alguma coisa que ela possa ter ouvido?
- Nós acabamos de entrar, não é, Kenny? - disse Leod. - Nem tivemos tempo para conversar. Eu entrei, peguei a escada e subi para ver se ela estava respirando, e se tinha aberto os olhos.
- Ela está viva - Kenny disse.
- Mas ainda não acordou.
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- Tragam-na para baixo - ordenou Coswold.
- Mas ela ainda não acordou - lembrou Kenny. Gabrielle ouvira um ruído e, depois:
- Vou pegar ela para o senhor.
O homem novamente subiu a escada e pegou Gabrielle nos braços. Chegou à beirada do sótão e derrubou seu corpo inerte em braços que a esperavam.
- Puxe uma cadeira e coloque ela lá. Leod pegue uma corda e amarre ela.
Enquanto era arrastada e cutucada, Gabrielle continuou a fingir que dormia. Sua cabeça pendia e os cabelos lhe cobriam o rosto. Sabia que Coswold estava na frente dela. Podia sentir seus olhos de fuinha sobre ela, ouvir sua respiração, respirar seus nauseantes óleos perfumados.
Leod passou uma corda pela cintura de Gabrielle, apertando bem ao prendê-la na parte de trás da cadeira. Depois, enrolou um outro pedaço de corda por seus punhos, terminando com um nó duplo.
- Está bem amarrada - ele disse. Parecia orgulhoso de seu trabalho. - Não tem jeito de ela conseguir se soltar.
Ela sentiu os nós entre os dedos e pensou que aquilo pudesse ser uma armadilha. É evidente que seria capaz de desatar aquilo. Será que ele estava tentando provar que ela estava acordada? Ou seria um idiota completo? Assim que ele se retirou, Gabrielle teve a resposta para suas perguntas.
- Arrume um copo de água para mim - ordenou Coswold. - Com o copo em suas mãos, ele disse, - Saiam. Os dois.
Kenny casquinou:
- Ele está querendo ficar sozinho com ela.
- O que ele vai conseguir fazer com ela amarrada daquele jeito?
- Saiam e fiquem lá fora até que eu chame! - gritou Coswold. Assim que a porta se fechou atrás dos homens, Coswold agarrou os cabelos de Gabrielle, jogou sua cabeça para trás e jogou água no rosto dela.
Ela gemeu e lentamente abriu os olhos. Aquele rosto horrível estava na frente dela.
- Acorde, Gabrielle. Acorde.
Deliberadamente, ele a machucou, pressionando sua testa com o osso da mão para novamente empurrar a cabeça dela para trás. Depois, num gesto totalmente contraditório, ele se ajoelhou na frente dela e, delicadamente, afastou as mechas de cabelo que lhe cobriam o rosto, acariciando suas bochechas com a parte de trás dos dedos.
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O tato de Coswold lhe causava repulsa.
Ele puxou uma cadeira e se sentou na frente dela. Abraçando os joelhos com as mãos, examinou-a com curiosidade.
- Não pretendo machucar você, Gabrielle.
Ela não respondeu. Viu o brilho enlouquecido no olhar dele.
- Quero apenas lhe fazer uma pergunta. Só isso - ele disse, com voz agradável. - Assim que me der uma resposta satisfatória, poderá ir para casa. Apenas uma pergunta e uma resposta. Você vai cooperar, não é?
Ela não respondeu. Ele inclinou um pouco a cabeça e estudou-a, à espera. Em seguida, subitamente lhe deu um tapa no rosto.
- Você está pronta para a pergunta?
Ela se recusou a responder. Recebeu outro tapa.
- Onde está o ouro? - Antes que ela tivesse tempo de reagir, ele disse: - Quero o tesouro de St. Biel. Onde está ele?
Preparando-se para ganhar um novo tapa, ela disse:
- Não existe tesouro algum. Ele não a agrediu.
- Existe, sim. Fui a St. Biel e tornei-me crente. O rei não mandou todo o ouro ao papa. Ele o escondeu.
- Se isso for verdade, ele levou o segredo para a sepultura. Coswold agitou o indicador.
- Não, não, minha princesa. O segredo foi passado de geração a geração. Sua mãe sabia, não é? E ela lhe contou.
- Não, ela não poderia ter-me contado, porque não existe tesouro algum.
- O padre confirmou a existência dele. Isso mesmo. O emissário me disse que, quando o padre tocou no assunto, você disse que não o daria aos MacHugh. O que quer dizer que sabe onde ele está.
- Não, ele não estava falando sobre ouro.
Ele lhe deu outro tapa, cortando o canto de seus lábios.
- Acho que você não entendeu bem a situação em que me encontro, Gabrielle. O tesouro me libertará do rei. Esta foi a última vez que ele me fez de pião. Mesmo que pudesse me livrar dele, eu não teria aliados. Atualmente, sou visto pelos barões como um servo real. Se os barões se rebelarem, vão me derrubar com o rei. Como pode ver, não tenho nada a perder.
Gabrielle imaginou que ele quisesse que ela sentisse pena dele. Coswold não passava de um demente.
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- Pensei que as coisas pudessem ser bem mais fáceis. Eu a pediria em casamento e seria seu esposo. Muitas vezes ouvi contar histórias sobre o tesouro escondido, mas não acreditei nelas até que o rei me mandasse a St. Biel para verificar se seu comissário não o estava roubando. No palácio real vi, com meus próprios olhos, várias moedas de ouro. Fui informado de que aquelas moedas foram guardadas como lembranças e que o resto havia sido mandado ao papa.
Num esgar, ele batia os dedos na cabeça.
- Mas ninguém foi capaz de me dizer a quantidade de moedas. Perguntei a muitas pessoas e quanto mais perguntava, mais me convencia de que o rei guardara a maior parte do tesouro para si. Depois, encontrei um velho que chegou a ver... o ouro... pilhas e pilhas dele. De repente, tudo desapareceu. Para onde foi o ouro, Gabrielle?
- A ganância fez com que o senhor perdesse o bom senso. Estou dizendo a verdade. Não existe ouro algum - ela disse.
Dramático, ele suspirou:
- Existe sim. Depois de tudo o que fiz... sim, o ouro existe sim.
- Não posso lhe dizer nada, pois não sei onde está o tesouro.
- Então você admite que ele exista. - Ele agia como se tivesse acabado de convencê-la a fazer uma confissão.
Ela balançou a cabeça.
- Não.
Voltando a sentar-se, ele cruzou as pernas e começou a balançar o pé preguiçosamente.
Um longo minuto de silêncio se passou. Depois, o medo que Gabrielle sentia se transformou em terror.
- Você ama o seu pai? - ele perguntou. Ela soltou um grito agudo.
- Onde está ele? O que foi que o senhor fez?
- O que foi que eu fiz? Ainda não fiz nada. Quando viaja, seu pai não leva uma escolta muito grande para protegê-lo de emboscadas. Hoje, eu o observei quando estava a caminho das terras dos MacHugh. Sabia exatamente quando e onde atacar, mas não se preocupe. Ele ainda está vivo, apesar de que sua saúde vem se deteriorando. Diga-me onde está o tesouro e eu permitirei que ele continue vivo.
Como ela não lhe respondeu imediatamente, Coswold disse:
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- Você acha que estou mentindo? Como eu saberia que o Barão Geoffrey estava vindo para cá? Será muito fácil provar que digo a verdade. Vou mandar alguns dos meus homens até ele. Se eu mandar que cortem a mão dele e a tragam até aqui, você poderá ver seu anel com o sinete com seus próprios olhos.
- Não! - gritou ela. - Você não se atreveria a matar um barão.
- Tem certeza? E por que não? Eu já matei um lord.
- Monroe? Foi você quem matou o Lord Monroe? Ele deu de ombros.
- Eu não poderia deixar que ele ficasse com você. Precisava ter a chance de conversar com você sobre o tesouro. Contanto que pusesse as mãos em Finney's Fiat, MacKenna não tinha o menor interesse em você. É claro que ele não sabia nada sobre o tesouro. Se soubesse, duvido que tivesse sido tão compreensivo. Vivo, ele foi completamente inútil, mas agora que está morto tem sido de bastante valia, pois estamos instalados em uma cabana que fica em suas terras. Estando em conflito por causa da sucessão, as pessoas do clã de MacKenna não têm a menor idéia de que estamos aqui.
- Meu marido virá me buscar.
- Primeiro, ele terá de encontrá-la, e eu instruí meus homens para cobrirem marcas de pegadas em todas as direções. Será que você está querendo perder seu pai e seu marido?
- Não.
- Então, me conte onde está o ouro, e seja rápida. Não podemos ficar aqui por dias e mais dias. Se ficarmos, pode ser que seu marido acabe nos encontrando e, nesse caso, eu seria forçado a acabar com ele.
- Pois bem, eu lhe digo.
A respiração dele soou como um ronco.
- Sim, sim, diga-me.
- Está em Wellmgshire - ela mentiu. - E muito bem escondido. Ele riu.
- O ouro em Wellmgshire e seu pai...
- Minha mãe nunca lhe contou. Sou a única pessoa que sabe. O tesouro pertence à família real de St. Biel.
- É melhor você me dizer exatamente onde ele está, pois Wellmgshire é tão grande quanto um pequeno país. Por acaso está escondido no castelo?
- Não, está enterrado.
- Onde? - exigiu ele. Sua obsessão era tão grande que seu rosto se contorceu.
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- Preciso lhe mostrar. É o único jeito. Como o senhor mesmo disse, a propriedade é muito vasta.
- Então, iremos a Wellmgshire.
- Se o meu marido ficar sabendo, nos seguirá e eu não deixarei que o mate. O senhor deve mandá-lo na direção oposta.
- E como vou avisá-lo?
- Meu marido sabe ler e escrever.
- Mas agora...
- Eu poderia lhe mandar um recado dizendo que escapei e que estou segura com meu pai. E pediria que ele viesse se encontrar comigo.
- Os MacKenna - ele disse, assentindo de cabeça. - Você vai dizer ao seu marido que foram eles que a raptaram.
Quando Coswold acabou de dizer a Gabrielle o que fazer, já acreditava que a idéia de mandar um recado fosse dele. Chamou Leod e mandou que encontrasse alguma coisa onde pudesse escrever. O homem demorou uma hora para voltar com um pedaço de pergaminho.
Gabrielle escreveu exatamente o que fora combinado, mas antes de assinar seu nome olhou para Coswold.
- Não quero que o mensageiro seja morto antes de ter a chance de entregar a mensagem ao meu marido. Você tem algum rapaz que possa mandar? Ele não deve ser tão jovem a ponto de não saber cavalgar, nem tão adulto a ponto de ser julgado um homem. Meu marido não mataria um jovem rapaz.
- Sim - disse Coswold. - Vou providenciar um garoto para levar o recado. Agora, acabe logo com isso. Já está escurecendo e partiremos assim que amanhecer.
Enquanto Coswold andava de um lado para o outro na cabana, Gabrielle escreveu as palavras finais de sua mensagem: "Por favor, venha depressa e juro que farei tudo como queira".
Quando Liam finalmente chegou à propriedade dos Sinclair, Colm já havia partido para casa, tomando outra rota. Liam deu meia-volta e tomou a estrada do norte. Alcançou Colm quando ele estava prestes a cruzar Finney's Fiat. Ao vê-lo se aproximar, Colm sentiu uma fisgada de medo.
- Gabrielle - gritou Liam -, ela desapareceu! Alguém a raptou.
- Quem? Quem a levou?
- Não sei - ele disse. - Quando encontrar Braeden, ele talvez já saiba de alguma coisa.
Sem poder ser contida, a ira de Colm confundia seus pensamentos.
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- Se a machucarem...
- Não pense nisso - ordenou Liam.
Mas isso era tudo em que Colm podia pensar enquanto galopava feito louco de volta a casa. Rezava para que ela tivesse sido encontrada e estivesse à sua espera. Então ele lhe diria, gritaria aos quatro cantos do mundo, que a amava. Ele devia ter-lhe dito antes. Agora, poderia ser tarde demais.
Do alto, algumas de suas sentinelas gritaram:
- Lá... vindo pelo vale. Um cavaleiro.
Colm e Liam se viraram para ver uma sombra se aproximando. Sob o brilho da lua cheia, podiam ver a silhueta de um homem a cavalo. Foram ao encontro dele e o alcançaram antes que tivesse tempo para desmontar.
- Trago uma mensagem para o Lord - disse o homem, com voz trêmula, tirando o pergaminho enrolado da camisa.
- Quem é você? - perguntou Liam.
- Meu nome é Andrew.
- Quem lhe pediu para trazer isso ao lavra
- Foi um MacKenna. Sou do clã dos Dunbar. Depois de caçar, estava a caminho de casa quando um homem me abordou e pediu que eu trouxesse isto ao senhor. Disse que era extremamente urgente. Não sei o que diz, pois não sei ler.
Colm agarrou a mensagem e leu. Entregando-a a Liam, ele apontou as últimas palavras. "Como queira" estava sublinhado.
Ele arrancou o homem de seu cavalo e segurou-o pelo pescoço. O tom de sua voz era ameaçador ao dizer:
- O que minha esposa está me dizendo é que tudo o que acabei de ler não passa de uma mentira. O que significa que você também está mentindo.
- Sou apenas o mensa...
Apertando o pescoço dele, Colm impediu que respirasse. Não largou até que os olhos de Andrew estivessem saltando das órbitas. Em poucos minutos, Andrew havia lhe contado tudo o que sabia.
Colm deu a ordem a Liam.
- Amarre-o no cavalo e traga-o conosco. Se ele mentir novamente, juro que vai pedir para morrer.
Andrew levou-os até a cabana.
Colm sabia que Gabrielle estaria lá dentro. Precisava ser cauteloso. Pela janela, viu a claridade de uma única vela e sentiu cheiro de fumaça saindo pela
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chaminé. Os soldados de Coswold estavam acampados ao redor do fogo do lado sul da cabana, onde a grama era macia. A chama do fogo estava baixa.
Braeden investigou o terreno para contar o número de soldados e retornou a Colm. Lentamente, os soldados de MacHugh foram apertando o cerco, até que os soldados e os homens da cabana estivessem circundados. Então, eles se posicionaram e avançaram. Colm se esgueirou até o homem que vigiava a porta e o matou sem fazer ruído. D íxou o homem caído no chão e testou o trinco da porta. Estava trancada do lado de dentro. Levantou a mão para dar o sinal e, em seguida, derrubou a porta com um chute e entrou.
Ao ouvir o barulho da porta sendo arrombada, Coswold, que estivera dormindo em uma cadeira, levantou-se num pulo. Tateou o cinto em busca de sua adaga, mas era tarde demais. Ele sabia que seu fim chegara.
Leod estivera balançando as pernas, sentado à beira do sótão. Atrás dele, Gabrielle estava sentada sobre o colchão de palha.
- Mate-a! - gritou Coswold.
As palavras ainda não tinham acabado de sair da boca dele quando Gabrielle, usando cada centímetro de força que possuía, jogou seu corpo contra as costas de Leod, fazendo com que ele voasse até o chão abaixo. Ele caiu sobre o rosto, quebrando o pescoço.
Colm rapidamente acabou com Coswold. Depois de lhe cortar a garganta, atirou a lâmina sangrenta ao chão.
Gritou pela esposa e subiu a escada para encontrá-la. Soluçando, ela o abraçou.
- Eu sabia que você viria.
Ele estreitou o abraço e tentou fazer com que seu coração voltasse a bater normalmente.
- Eu não a perderia, Gabrielle. Ela se afastou um pouco.
- Colm, meu pai - ela gritou. - O exército de Coswold vai matá-lo. Eles têm...
Colm a interrompeu.
- Seu pai vai passar esta noite com os Buchanan.
- Tem certeza? - perguntou ela, incrédula.
- Sim, do cume, Brodick foi informado de que seu pai havia chegado. Ele estava muito cansado para continuar viagem. Amanhã, você poderá vê-lo.
Ele pegou-a no colo. Ela apoiou a cabeça no ombro dele.
- Leve-me para casa.
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Capítulo 53
O pai de Gabrielle não simpatizou imediatamente com Colm. E Colm também não gostou muito do barão. Apesar de educados, mantiveram-se cautelosos um com o outro.
O Barão Geoffrey abrandou um pouco ao ver a maneira como Colm tratava sua filha. Era evidente que o Lord a amava e a tratava com carinho.
Willa preparou um jantar especial, com faisão assado e uma quantidade tão grande de outros pratos, que Gabrielle não foi capaz de contar. A cada vez que trazia um prato para a mesa, Willa sorria para Gabrielle. Liam entrou e foi apresentado ao barão. Ele disse:
- Gabrielle já lhe contou como salvou a minha vida?
- Preciso ouvir essa história - disse o barão.
- Princesa, posso lhe falar um momento? - Maurna interrompeu. Gabrielle pediu licença e seguiu Maurna escada acima.
- Hoje, deixei Mary ir para casa mais cedo - disse Maurna. - Ela tem ajudado muito com os dois garotos e eu agradeço por tê-la contratado. Pensei que os gêmeos estivessem exaustos. Quando subi para dar uma olhada neles, peguei-os saindo dos aposentos do lord.
Em pé no topo da escada, Ethan e Tom esperavam de cabeça baixa.
- Desculpe, milady - disse Ethan.
- Eu também peço desculpas - disse Tom.
- Contem à princesa o que vocês fizeram - disse Maurna. Apesar do esforço para se manter séria, Gabrielle percebeu o tom carinhoso da voz dela. E tinha certeza de que os garotos também haviam percebido.
- Nós só queríamos olhar dentro do baú - disse Tom, sem desviar os olhos.
- Do meu baú? - perguntou Gabrielle - E por que vocês queriam olhar?
Ethan levantou os ombros.
- Não sei, mas queríamos. Tom assentiu com a cabeça.
- Encontrei uma estátua lá dentro.
- Eu também encontrei uma - admitiu Ethan.
- Mas eu não quebrei a minha. E você quebrou a sua.
- Meninos, as estátuas não pertencem a vocês - Maurna disse. Tom segurou a mão de Gabrielle
- O Ethan está arrependido.
- Vou até o quarto para ver o estrago. Enquanto isso, vou deixá-los com milady
- Pode deixar, Maurna. Depois, pode descer.
Gabrielle levou os garotos para o quarto e colocou-os na cama. Conversou com eles sobre respeito à privacidade e fez com que prometessem não entrar novamente no quarto do Lord sem permissão. Depois, lhes deu um beijo de boa-noite e saiu do quarto, fechando a porta.
A caminho do corredor, ela pensou em pedir a Colm que removesse a tranca de seu baú. Se os garotos resolvessem escalá-lo e a pesada tranca caísse, poderiam se machucar bastante.
O quarto estava aquecido pelo fogo. A tranca estava apoiada contra a parede e uma das estátuas de St. Biel estava perigosamente equilibrada na borda, metade para dentro e metade para fora. A outra, sem cabeça, estava caída no chão.
Ela pegou os dois pedaços e se aproximou do fogo para ver se a pedra poderia ser restaurada. Segurando o corpo em determinado ângulo, notou que alguma coisa refletia luz. Virou a estátua e a examinou com mais atenção. Ficou imobilizada. A pedra do miolo da estátua havia sido retirada e a parte oca estava cheia de ouro. Ela não podia acreditar no que via. Olhou novamente. Sim, o ouro estava lá.
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Gabrielle precisou se sentar. Caminhou até a cama e colocou os pedaços sobre o colo.
Quer dizer que o mito não era um mito? O Rei Gremer havia realmente escondido o ouro? Ela estava abobada. Então, pensou que, se o ouro fora escondido em uma estátua, poderia ter sido também escondido na outra. Ela precisava descobrir. Com cuidado, colocou os pedaços quebrados sobre a cama e correu até o baú para pegar a outra estátua. Piscou ao bater a estátua contra as pedras da lareira. Para conseguir quebrá-la, precisou repetir três vezes o gesto.
- Desculpe, St. Biel - ela murmurou.
E lá estava. Ouro. A segunda estátua também estava recheada de ouro.
De novo, ela precisou se sentar. Era muita informação para ser digerida. A estátua que estava no depósito também devia estar cheia de moedas de ouro. Não havia necessidade de quebrá-la.
Havia outra estátua vindo de Wellingshire. A que sua mãe trouxera com ela ao se casar. Será que ela sabia do segredo de St. Biel?
Um pensamento levou a outro e, em pouco tempo, sua mente girava. Será que a imensa estátua que olhava para a baía de St. Biel também estaria cheia de ouro? Ela começou a rir. É claro que sim. Oh, como o Rei Gremer tinha sido inteligente!
Por longo tempo, enquanto pensava na história que sua mãe a ajudara a memorizar, ela ficou sentada na cama. Era uma vez, no ano de... As pistas estavam todas lá, mas será que sua mãe percebera? Em caso positivo, teria contado ao marido?
Gabrielle não saberia dizer quanto tempo passou ali, meio que em transe. Colocou os pedaços quebrados no baú e trancou-o.
Quando retornou ao salão, seu pai parecia mais relaxado. Colm ficou claramente aliviado ao vê-la. Beijou-a rapidamente e disse:
- Vou deixar que você converse um pouco com seu pai. - Em voz mais baixa, acrescentou: - Venha logo para a cama.
Liam também se retirou para que ela e o pai pudessem conversar com privacidade. Em frente ao fogo, Gabrielle se sentou ao lado dele. Antes que pudesse perguntar, ela disse, abrupta:
- Eu o amo, pai.
Ele assentiu com a cabeça.
- Eu sei.
Ela passou os dez minutos seguintes discorrendo sobre as virtudes de Colm.
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- O senhor acha que algum dia se casará de novo, pai? Eu ficaria feliz se encontrasse uma boa esposa. Não gosto de pensar que esteja solitário.
- Talvez.
- Se o senhor não estiver muito cansado, tenho algumas perguntas a fazer... sobre St. Biel.
Deitada ao lado do marido, Gabrielle sussurrava palavras de amor ao ouvido dele. Tinham acabado de fazer amor e ela ainda estava ofegante. Haviam falado rapidamente sobre Coswold mas agora, no escuro, ela lhe contava que sentira muito medo.
- Tive medo de nunca mais voltar a vê-lo.
- Eu não agüentaria perder você - ele sussurrou, com voz trêmula. - Agora vou lhe dizer. Eu amo você, Gabrielle.
Os olhos dela ficaram cheios de lágrimas.
- Você me ama - murmurou ela. Ela se inclinou e beijou o rosto dele. - Você acaba de me dar o presente que meu pai deu à minha mãe.
- O presente dele foi amor?
- Sim, foi. E demorou muito a chegar, eu acho. Pelo menos para minha mãe. Quando se casaram, ela não gostava muito dele. Ele a tirou de sua casa em St. Biel. Pensei que você levaria mais tempo para me dizer essas palavras. Estava sempre fugindo de mim.
Ele riu.
- Vou admitir isto apenas uma vez. Você me preocupava. Tinha esse estranho poder sobre mim. Quando estava com você, não conseguia pensar direito. Mas não vou mais sair de perto de você. Liam e Braeden receberão mais responsabilidades e eu terei mais tempo livre.
Por alguns minutos, eles ficaram em silêncio. Em seguida, ela perguntou:
- Você gostou do meu pai?
- Ainda não o conheço o suficiente para gostar dele. Mas sei que é um homem ríspido. Não gostou de ver os arranhões em seus braços e rosto, porém, quando ficou sabendo que o responsável havia sido Coswold, parou de me ver como culpado
- Hoje, os garotos mexeram no meu baú. Colm riu.
- Eles entraram aqui...
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- Estavam curiosos. Você precisa retirar a tranca. Tenho medo de que um deles fique preso lá dentro.
- Dentro de alguns dias, iremos aos Buchanan para que você possa visitar sua querida prima - ele brincou. - Que tal se levássemos Ethan e Tom conosco e os esquecêssemos lá?
- Você não teria coragem de fazer isso. Eles estão felizes aqui. Ethan quebrou uma das estátuas.
Ele bocejou.
- Verdade?
- Ela estava cheia de ouro.
- Cheia de quê?
- De ouro - ela sussurrou. - A estátua estava cheia de ouro. Quebrei a outra para ver. E ela também estava recheada de moedas de ouro.
A reação dele foi parecida com a dela. Ele ficou atônito.
- Quer dizer que o tesouro realmente existe?
Gabrielle repetiu a história que sua mãe costumava lhe contar. Quando terminou, ela disse:
- Agora que sei que dentro de cada estátua existe ouro, percebo que o Rei Grenier foi muito esperto. Os Cruzados queriam matar seus súditos fiéis porque o rei exigiu que pagassem um tributo para passar por suas montanhas. Eles achavam que o país estava cheio de pagãos. Então, o que foi que o rei fez? Mudou o nome do país e dedicou-o a um santo. Em seguida, mandou uma quantia simbólica de ouro à Vossa Santidade. Os Cruzados não se atreveram a fazer mal ao seu povo. Atacar seus súditos seria o mesmo que atacar o papa.
- E por que o rei teria escondido o ouro por todo esse tempo?
- Minha mãe disse ao meu pai que o rei era um homem sábio. Ele sabia que uma grande fortuna pode provocar muita ganância. E seus súditos estavam satisfeitos.
- A ganância poderia corrompê-los.
- Isso mesmo.
Colm sorriu.
- Sim, ele foi bem inteligente ao usar seu santo favorito para salvar seu país.
- Tem mais. Perguntei ao meu pai e ele confirmou minhas suspeitas. - Ela se esticou para cochichar no ouvido dele. - Não existe um santo chamado St. Biel.
Depois de um longo silêncio, Colm disse:
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- Ele inventou um santo...
- Ele salvou seu povo da única maneira que podia - ela o defendeu. - No entanto, eu me pergunto o que pensariam os líderes da igreja se soubessem. Só sei que não posso lhes contar.
- Não, não pode.
- Agora, é o Rei John quem governa St. Biel. E ele nunca porá as mãos no tesouro. Vou mantê-lo seguro e, um dia, quando meus filhos e filhas ficarem sabendo da história, será a vez deles de protegê-lo.
Colm riu novamente.
- Não é de admirar que as estátuas nunca tenham sido colocadas dentro das igrejas.
- É a tradição.
- Iniciada por um rei que sabia que seria uma blasfêmia.
- Prefiro deixar a preocupação com a igreja para nossos filhos.
- Mas você deve passar o segredo - ele disse enquanto, delicadamente, fazia com que Gabrielle se deitasse de costas. - E eu farei minha parte, amor, para garantir que você tenha filhos e filhas.
Julie Garwood
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