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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MULHER DE FOGO / Jude Deveraux
MULHER DE FOGO / Jude Deveraux

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Fisicamente, ninguém conseguia diferenciar as gêmeas idênticas da família que fundou Chandler, no Colorado. Por isso, todos as tratavam como um ser único, conhecido como Blair-Houston para evitar enganos. No entanto, as semelhanças se limitavam à aparência. Uma é a dama perfeita. A outra quer quebrar barreiras e ser médica. E a troca de personalidade por uma noite mudou as vidas das duas representantes da "realeza" local para sempre e nunca mais Chandler, a cidade mineradora, foi a mesma...
BLAIR ERA INDEPENDENTE, CORAJOSA E, SOBRETUDO, UMA MULHER APAIXONADA!
No final do século passado, era considerado provocação uma mulher trabalhar como médica no interior do Estado do Colorado. Blair Chandler teve de vencer os preconceitos para exercer sua profissão! E nesse desafio ao machismo da época, sua sensualidade adormecida despertou e irrompeu feito lava de um vulcão...

 


 


Filadélfia, Pensilvânia, Abril, 1892
— SURPRESA! — onze pessoas gritaram à entrada de Blair Chandler na sala de jantar de seu tio Henry.
Ela era uma bonita jovem, com cabelos castanho-escuros realçados por reflexos ruivos, grandes olhos azul-esverdeados, nariz reto e aristocrático, e uma boca pequena bem desenhada.
Blair parou por um momento, tentando disfarçar as lágrimas de felicidade, enquanto olhava para as pessoas à sua frente. Lá estavam tio Henry e sua esposa e, ao lado deles, Alan e seus colegas estudantes de medicina — uma mulher e sete homens. Enquanto todos a contemplavam com prazer, ela, de pé, atrás da mesa repleta de presentes, não parecia lembrar-se dos últimos anos de luta para formar-se e receber seu diploma de médica.
Tia Fio, com a graça de uma jovenzinha, adiantou-se:
— Não fique aí parada, querida. Estão todos morrendo de vontade de ver seus presentes.
— Primeiro este aqui — disse tio Henry, entregando-lhe um pacote grande. Blair pensou saber o conteúdo da caixa, mas temia uma frustração. Quando rasgou o invólucro e viu a maleta de couro com os instrumentos médicos novos e brilhantes, sentou-se pesadamente na cadeira atrás de si, incapaz de falar. Tudo o que conseguiu fazer foi correr um dedo pela placa de bronze na maleta, onde estava escrito: Dra. B. Chandler.
— É esta a mulher que colocou ovos podres no armário do professor de cirurgia? — manifestou-se Alan, quebrando o silêncio embaraçoso. — É esta a mulher que enfrentou toda a diretoria dos hospitais de Filadélfia? — Curvando-se, pôs os lábios bem junto de sua orelha. — É esta a que tirou o primeiro lugar nos exames do St. Joseph, tornando-se a primeira médica interna de seus quadros?
Passou-se um momento antes que Blair pudesse reagir:
— Eu? — murmurou, levantando os olhos para ele, a boca aberta, expressando descrença.
— Você ganhou seu estágio — disse tia Fio, com o rosto cheio de brilho. — Deverá começar em julho, depois de voltar do casamento de sua irmã.
Blair olhava de um para outro. Fizera o melhor possível em St. Joseph. Até contratara um tutor para ajudá-la a preparar-se para os testes, mas já lhe haviam dito que o hospital da cidade, assim como se opunha à clínica feminina, não aceitava mulheres.
— Você deu uma mão nisso, não foi? — perguntou Blair, virando-se para o tio Henry.
Henry estufou o peito com orgulho:
— Eu simplesmente fiz um desafio — respondeu-lhe o tio, estufando o peito com orgulho. — Se minha sobrinha não fosse a melhor nos testes, eles não precisariam dar-lhe um lugar. Na verdade, eu até contei-lhes que você pensara em abandonar a medicina e ficar em casa, tomando conta de Alan. Acho que eles não resistiram à tentação de ver uma mulher médica ser trazida de volta à razão.
Por um momento, Blair sentiu-se um pouco abalada. Ela jamais imaginara que tudo isso pudesse estar acontecendo naqueles três traiçoeiros dias de testes.
— Você conseguiu — exultou Alan, rindo. — Mas não tenho certeza se gosto de ser o prémio de consolação. — Colocou a mão no ombro dela. — Parabéns, querida. Sei o quanto você desejava isso.
Tia Fio entregou-lhe a carta que confirmava de fato que ela havia sido aceita como interna no hospital St. Joseph. Blair apertou o papel em seu peito e olhou para as pessoas à sua volta. Naquele momento, pensou, sua vida inteira estava se estendendo à sua frente — e ela era perfeita. Tinha família, amigos; iriam permitir-lhe fazer seu treinamento num dos melhores hospitais dos Estados Unidos. E tinha Alan, o homem a quem amava.
Esfregou o rosto contra a mão, enquanto olhava para os instrumentos médicos reluzentes. Iria realizar o sonho de toda a sua vida, tornando-se médica e casando-se com aquele homem bom e amável.
Só lhe faltava, então, voltar a Chandler, Colorado, para assistir ao casamento de sua irmã gémea. Ansiava por vê-la outra vez, depois de todos aqueles anos, compartilhando com ela a felicidade pelos homens e pelas vidas que tinham escolhido.
E, enquanto estivesse em sua cidade, Alan iria visitar e conhecer sua mãe e irmã. Eles então formalizariam o noivado, e o casamento seria realizado depois que ela e Alan terminassem seus períodos como internos.
Blair sorriu para seus amigos, querendo repartir sua alegria com todos. Só mais um mês, e tudo aquilo por que lutara começaria.

 

Capítulo I

 

Chandler, Colorado Maio de 1892
BLAIR CHANDLER permanecia de pé, em silêncio, na enfeitada sala de visitas da casa Chandler, entre móveis pesados, escuros, cobertos com pequenas toalhas de renda. Não se importava com o fato de a mãe ter voltado a se casar há muitos anos, e de seu padastro, Duncan Gates, ter assumido o pagamento da casa. A comunidade local ainda pensava nela como tendo pertencido a William Houston Chandler — o homem que a desenhara e construíra, morrendo antes de fazer o primeiro pagamento.
Mantinha os olhos abaixados, encobrindo sua cor azul-esverdeada, que agora brilhavam com raiva. Uma semana na casa do padrasto, e tudo o que aquele homenzinho grosseiro fizera fora gritar com ela.
Para o mundo todo, ela pareceria uma jovem respeitável, parada ali, com sua blusa branca e saia de gorgorão escuro e grande parte de suas formas sensuais escondidas sob as dobras do tecido. E seu rosto aparentava uma beleza tão tranqüila e gentil que ninguém adivinharia o espírito que se instalara sob sua aparência. Mas quem quer que ficasse perto por um tempo saberia que ela era capaz de enfrentar uma discussão.
E era por isso que Duncan Gates não se acanhava em dizer-lhe como tornar-se uma moça recatada. E em sua noção de recato não cabia uma mulher jovem que fora preparada para ser uma médica, especialmente hábil em ferimentos a bala. Ele não podia apreciar o fato de que o talento de Blair na costura funcionasse tão bem num intestino perfurado como num pano de bordado.
Fora rude com ela durante toda a semana, e Blair agüentara o quanto lhe fora possível, até que começara a devolver no mesmo tom. Infelizmente, era este o momento em que geralmente sua mãe ou irmã entravam na conversa para impedir seu curso. Não foi preciso muito tempo para ela perceber que o sr. Gates dirigia a casa, e as mulheres que nela moravam, com rigor. Ele podia dizer o que lhe conviesse; nenhuma mulher tinha o direito de contradizê-lo.
— Estou esperando que volte à razão e desista dessa sua loucura de medicina — gritou-lhe Gates. — Uma mulher pertence ao lar, e, como provou o dr. Clark, quando uma usa o cérebro, suas funções femininas sofrem.
Blair deu um grande suspiro, lançando um olhar de relance para o gasto folheto que o sr. Gates sustentava no alto. Centenas de milhares de cópias dele haviam sido distribuídas, para barrar o prosseguimento dos estudos pelas mulheres.
— O dr. Clark não provou coisa alguma — disse ela com ar cansado. — Ele disse que examinou uma estudante de quatorze anos sem busto, e disso concluiu essa tolice. Não acho que esta seja uma prova conclusiva de coisa alguma.
O rosto do padrasto começou a ficar vermelho.
— Não permitirei esse modo de falar em minha casa. Você pode pensar que, por ser uma doutora, tem o direito de portar-se indecentemente. Mas não aqui em minha casa.
O homem estava começando a ultrapassar o que Blair podia tolerar.
— Desde quando esta é sua casa? Meu pai...
Naquele momento, a irmã de Blair, Houston, entrou na sala e colocou-se entre eles, lançando a Blair um olhar suplicante.
— Não está na hora do jantar? Vamos entrar? — disse ela, com aquela voz fria, reservada, que Blair estava começando a odiar.
Blair tomou seu lugar junto à grande mesa de mogno, e durante todo o jantar respondeu às mal-humoradas perguntas do sr. Gates, com os pensamentos presos à irmã.
Esperara tanto por aquele regresso a Chandler, para encontrar sua mãe e irmã, e para rever os companheiros de infância! Cinco anos haviam se passado desde a última vez, quando ela estava com dezessete anos, preparando-se para entrar na escola de medicina, e empolgada com seus novos estudos. Talvez tivesse estado envolvida demais com seus próprios pensamentos, cega à atmosfera em que sua mãe e irmã viviam.
Mas, daquela vez, sentira a opressão assim que desembarcara do trem. Houston fora esperá-la, e Blair teve a certeza de nunca ter visto um modelo mais perfeito de mulher rígida, gélida e inflexível. Sua irmã era uma mulher, em carne e ossos; só que parecia feita de gelo.
Não houvera abraços efusivos na estação nem traços de mexericos enquanto seguiam para a mansão. Tentara conversar com Houston, mas recebera apenas um olhar frio, distante. Nem mesmo o nome de Leander, seu noivo, coloriu de algum matiz mais caloroso o comportamento de Houston.
Metade do curto trajeto fora feito em silêncio, com Blair agarrada à sua nova maleta cirúrgica, temendo que escapasse de suas mãos, enquanto atravessaram Chandler.
A cidade mudara muito nos cinco anos em que estivera fora. Tudo parecia renovado no lugar; parecia que as coisas estavam sendo construídas e crescendo. O lado ocidental era muito diferente das cidades e vilas do leste, onde as tradições já estavam estabelecidas.
As construções, com suas frentes falsas, um estilo que alguém chamara de vitoriano ocidental, eram ou novas ou estavam em andamento. Chandler era simplesmente um bonito pedaço de terra com uma magnífica quantidade de carvão quando William Chandler chegara. Não havia estrada de ferro nem centro comercial.
Os raros estabelecimentos que serviam os rancheiros espalhados na região não ostentavam seus nomes. Bill Chandler logo remediara aquilo.
Quando atingiram a estrada para a mansão Chandler, como os habitantes locais gostavam de chamá-la, Blair sorrira com prazer para a enfeitada construção de três andares. O jardim de sua mãe era verde e viçoso, e ela podia sentir o perfume das rosas. Haviam sido colocados degraus da rua para a casa, porque a ladeira fora nivelada para os novos bondes puxados a cavalo; mas, fora aquilo, poucas mudanças. Atravessara a larga varanda que cercava a casa e entrara por uma das portas da frente...
Blair não precisara estar dez minutos lá dentro para ver o que tinha acabado com o espírito de Houston.
Parado do lado de dentro da porta estava um homem com uma segurança que qualquer orgulhoso brutamontes invejaria — e seu olhar combinava com seu aspecto geral.
Tinha doze anos quando partira para a Pensilvânia, indo morar com os tios a fim de poder estudar medicina. E, durante aqueles anos, esquecera-se de como era exatamente seu padrasto. Já quando lhe oferecera a mão, sorrindo, ele começara a dizer-lhe que era uma mulher má e não lhe dava permissão para praticar sua medicina de feitiçaria naquela casa.
Espantada, Blair olhara para sua mãe sem acreditar. Opal Gates estava mais magra e com os movimentos mais lentos, e antes que pudesse responder às observações do padrasto a mãe adiantara-se, abraçando-a rapidamente e levando-a para cima.
Durante três dias, Blair falara muito pouco. Tornara-se uma espectadora. E o que vira fora assustador.
A irmã da qual se lembrava, aquela que ria e brincava, aquela que costumava se divertir com a brincadeira de trocar de lugar com ela, causando confusões, tinha acabado — ou estava tão enterrada que agora ninguém poderia encontrá-la. A Houston que costumava organizar brincadeiras, que era sempre tão criativa — Houston, a atriz — tinha agora sido suplantada por uma mulher revestida de aço, dona do maior número de vestidos da cidade toda.
Parecia que toda a criatividade de sua irmã fora canalizada para a escolha de um deslumbrante vestido após o outro.
Em seu segundo dia em Chandler, Blair descobrira, por meio de uma amiga, alguma coisa que lhe dera esperanças de que a vida de sua irmã não fosse completamente sem propósito. Todas as quartas-feiras, Houston vestia-se como uma velha gorda e dirigia uma carroça de quatro cavalos repleta de alimentos até os campos de carvão que rodeavam Chandler. Aquilo era bastante perigoso, uma vez que os campos eram fechados e guardados para evitar infiltração de sindicalistas. Se ela fosse apanhada entregando mercadorias ilegais para as mulheres dos mineiros — mercadorias que não eram compradas no armazém da companhia —, poderia ser processada, isto é, se os guardas não atirassem nela antes.
Mas, no terceiro dia, Blair perdera a pequena esperança que tivera, porque então reencontrara Leander Westfield.
Quando os Westfield mudaram-se para Chandler, as gémeas tinham seis anos, e Blair estava confinada em seu quarto com um braço quebrado. Assim perdera o encontro com Leander, então com doze anos, e sua irmã de cinco anos. Mas soubera de tudo sobre ele por Houston. Desobedecendo à sua mãe, Houston escapulira até o quarto de sua gémea, para contar-lhe que encontrara o homem com quem iria se casar.
Blair ficara lá, ouvindo-a com atenção, os olhos arregalados. Houston sempre sabia o que queria; sempre parecia uma adulta.
— Ele é exatamente o tipo de homem que eu gosto. Calmo, inteligente, muito elegante, e pretende ser um médico. Precisarei descobrir o que a esposa de um médico precisa saber.
Como se fosse possível, os olhos de Blair arregalaram-se mais ainda.
— Ele lhe pediu para casar com ele? — perguntara a Houston, num murmúrio.
— Não — respondera Houston, tirando suas luvas brancas, sempre limpas. Se estivessem com Blair mesmo que por meia hora elas teriam ficado pretas de sujeira. — Homens jovens como Leander não pensam em casamento, mas nós mulheres temos de pensar. Eu decidi. Vou me casar com ele assim que terminar a escola de medicina. Claro que isto depende de sua aprovação. Não poderia casar com alguém que lhe desagradasse.
Blair sentira-se honrada com essa responsabilidade que a irmã lhe dera, e a tomara a sério. Ficara um pouco desapontada ao conhecer Leander e descobrir que ele ainda não era um homem, mas um menino alto, magro, bonito e que raramente dizia alguma coisa. Ela sempre gostara de meninos que corriam, atiravam pedras e lhe ensinavam a assobiar com dois dedos na boca. Depois de uns poucos encontros iniciais desagradáveis, começara a ver o que as pessoas gostavam em Lee, quando Jimmy Summers caíra de uma árvore e quebrara a perna. Nenhuma das outras crianças soubera o que fazer e só haviam ficado parados, olhando Jimmy chorar de dor, mas Lee tomara a frente e mandara alguém chamar o médico e outra buscar a sra. Summers. Blair ficara bastante impressionada com ele e, ao virar-se para Houston, vira-a acenar com a cabeça uma vez, como a dizer que aquele episódio tinha reafirmado sua decisão de tornar-se a sra. Leander Westfieid.
Blair ansiara por admitir que Leander tinha algumas boas qualidades, mas nunca realmente gostara dele. Ele era muito seguro de si, muito convencido... muito perfeito. Claro, ela nunca o dissera a Houston, e achava que talvez ele mudasse, se tornasse mais humano à medida que fosse ficando adulto. Mas ele não mudara.
Poucos dias antes do episódio do jantar, Lee viera buscar Houston para levá-la a um chá e, uma vez que Opal saíra e o sr. Gates estava no serviço, Blair tivera oportunidade de conversar com Lee enquanto Houston acabava de se vestir — em geral ela levava uma eternidade para ficar entalada dentro de uma daquelas armadilhas de rendas e seda que sempre usava.
Blair achara que teriam muitas coisas para conversar, uma vez que ambos eram médicos, e que ele já não mais a provocava como antes.
— Farei estágio no hospital St. Joseph na Filadélfia, no próximo mês — começara ela, quando se sentaram na sala de visitas. — Tem fama de ser um hospital excelente.
Leander lançara-lhe um daqueles seus olhares penetrantes que tinha desde criança. Era impossível dizer o que ele estaria pensando.
— Eu estava imaginando... — continuou ela — ...acha que seria possível eu fazer as rondas com você na enfermaria Chandler? Talvez pudesse me dar algumas dicas para quando eu começasse o estágio no próximo mês.
Lee levara um longo tempo para responder.
— Não acho aconselhável — fora tudo o que dissera por fim.
— Pensei que entre médicos...
— Não sei se a diretoria consideraria uma mulher como um médico qualificado. Eu poderia ser capaz de levá-la ao hospital de mulheres.
Na escola, fora mesmo avisada de que as vezes seria tratada assim.
— Não o surpreende saber que pretendo especializar-me em cirurgia abdominal? Nem todas as médicas querem tornar-se parteiras abnegadas.
Leander levantara uma sobrancelha e a olhara de cima a baixo com surpresa, o que a fizera imaginar se todos os homens em Chandler acreditavam que as mulheres eram idiotas e não deveriam sair de casa.
Mesmo assim, estava determinada a não julgá-lo. Afinal, eles agora eram adultos e as animosidades da infância deviam ser postas de lado. Se era ele o homem que Houston queria, então ela devia tê-lo — Blair não tinha de viver com ele.
Alguns dias depois, todavia, tendo passado um tempo com a irmã, começara a questionar a ideia de um casamento entre ela e Leander, porque, incrivelmente, Houston se tornava ainda mais rígida quando Lee estava presente. Os dois raramente conversavam um com o outro, não ficavam com as cabeças juntas, cochichando e dando risadinhas como a maioria dos noivos. Eles certamente não eram como ela e Alan, foi o que Blair pensou.
Naquela noite, no jantar, as coisas pareciam ter chegado a um extremo. Blair estava cansada da constante implicância do padrasto, e enjoada de ver sua irmã naquela horrível atmosfera de opressão. Quando Gates a provocou, ela explodiu, dizendo-lhe que arruinara a vida de Houston, mas não iria arruinar também a dela.
Nem bem acabou de dizer isso, arrependeu-se. Mas, então, sua alteza real, Leander Westfield, entrou, e todos olharam-no como se estivessem diante de um semideus. Blair encarava Houston como a uma virgem dada em sacrifício àquele homem frio e sem sentimentos. E, quando Leander ousou chamá-la de sua noiva, como se já a possuísse, Blair não pôde mais agüentar e saiu da mesa em lágrimas.
Não sabia quanto tempo estivera chorando antes que sua mãe viesse para tomá-la nos braços e embalá-la como uma criança.
— O que há? — murmurou Opal, acariciando os cabelos da filha. — Está com tanta saudade de casa? Sei que o sr. Gates não tornou sua visita agradável, mas ele tem boas intenções. Quer que você tenha um lar e filhos, e teme que, se for uma médica, homem nenhum vá querê-la. Você não ficará conosco muito tempo, e então pode voltar para Henry e Fio, e começar a trabalhar no hospital.
As palavras da mãe fizeram Blair chorar mais forte.
— Não é por mim — soluçou. — Eu posso partir. Posso sair daqui. É Houston. Ela é tão infeliz, e é tudo por minha culpa. Eu parti e deixei-a para aquele homem horrível, e agora ela é tão infeliz.
— Blair — disse Opal firmemente —, o sr. Gates é meu marido e, seja lá o que ele for, eu o respeito e não posso permitir que fale assim dele.
Blair levantou os olhos molhados para a mãe.
— Não me refiro a ele. Ele agora está aqui, mas Houston pode afastar-se dele. Refiro-me a esse Leander.
— Lee? — perguntou Opal, incrédula. — Mas Leander é um amor de rapaz. Ora, todas as jovens de Chandler morrem para ao menos dançar com ele. Você não pode estar querendo dizer que está preocupada por Houston casar-se com Lee.
— Eu sempre fui a única a ver como ele é! — disse Blair, afastando-se da mãe. — Já reparou mesmo em Houston quando ele está-por perto? Ela gela! Senta-se ali, como se tivesse medo do mundo e dele em particular. Ela costumava rir e divertir-se, mas agora nem ao menos sorri. Oh, mãe, como desejo nunca ter partido! Se tivesse ficado aqui, poderia ter evitado que minha irmã concordasse em casar com aquele homem. — Correu de volta para a mãe e enterrou o rosto em seu colo. E Opal sorriu para a filha, satisfeita pela preocupação carinhosa.
— Não, você não devia ter ficado aqui — disse mansamente. Acabaria ficando como Houston e acreditando que a única coisa que uma mulher pode fazer é cuidar de seu marido, e o mundo perderia uma ótima médica. Olhe para mim. — Levantou o rosto de Blair. — Nós, na verdade, não podemos saber como Houston e Lee são quando estão sozinhos. Ninguém pode saber o que há na vida pessoal dos outros. Imagino que você também tenha alguns segredos.
Imediatamente, Blair pensou em Alan, e suas faces coraram. Mas aquela não era hora para falar sobre ele. Dentro de poucos dias ele chegaria, e então talvez alguém concordasse com ela.
— Mas eu posso ver como eles são — insistiu Blair. — Eles nunca conversam, nunca se tocam, nunca vi nenhum deles olhar o outro com amor. — Ela levantou-se. — E a verdade é que eu nunca suportei esse pomposo, correto, brilhante cidadão Leander Westfield. Ele é um desses garotos ricos estragados a quem entregaram tudo em uma bandeja de prata. Ele nunca conheceu desapontamento, dureza, dificuldade ou ao menos ouviu a palavra “não”. Quando eu estava estudando, a vizinha escola masculina de medicina permitiu que as cinco melhores mulheres da minha escola feminina assistissem a algumas aulas lá. Os homens foram bastante gentis, até que nós começamos a conseguir melhores resultados nos testes que eles, e então nos pediram para sair antes do fim do semestre. Leander me lembra todos aqueles jovens rapazes convencidos, que não podiam suportar a competição.
— Mas, querida, você acha que realmente isso é justo? Só porque Lee a faz lembrar de outros, não significa que na verdade seja igual.
— Tentei diversas vezes conversar com ele sobre medicina, e tudo o que faz é ficar me olhando. E se Houston decidir que quer fazer alguma coisa de sua vida, além de consertar as meias dele? Ele cairá em cima dela com mais força do que Gates em mim, e não será temporário. Houston não será capaz de cair fora.
Opal estava começando a demonstrar preocupação.
— Já conversou com Houston? Tenho certeza de que ela pode explicar-lhe por que ama Leander. Talvez na privacidade eles sejam diferentes. Eu acredito que ela o ama. E, não importa o que você diga, Leander é um bom homem.
— Também Duncan Gates — disse Blair resmungando. Mas ela estava aprendendo que os “bons” homens podem matar a alma de uma mulher.


Capítulo II

 

BLAIR ESFORÇOU-SE ao máximo para conversar com a irmã, para raciocinar com ela, mas Houston assumiu um olhar severo no rosto e disse que amava Leander. Ela quis chorar de frustração, mas, enquanto seguia a irmã escada abaixo, começou a arquitetar um plano. Naquele dia iriam à cidade; ela, para pegar uma revista médica que Alan estava mandando aos cuidados do escritório do Chandler Chronicle, e Houston, para fazer algumas compras. E iriam com Lee.
Até então ela fora polida com Leander, mas, e se ela o obrigasse a mostrar suas verdadeiras cores? E se ela fizesse mostrar o tirano irredutível e cabeça-dura que realmente era? Se pudesse provar que Lee era tão opressivo e de mentalidade estreita como Duncan Gates, então talvez Houston reconsiderasse o fato de passar toda a sua vida com ele.
Sem dúvida, podia estar errada com respeito a Lee. E, se estivesse, se ele fosse um homem compreensivo, de mente aberta — como Alan —, então cantaria louvores no casamento de Houston.
Assim que chegaram no primeiro andar, lá estava Leander esperando.
Ela ficou muda enquanto seguia os dois pela porta afora. Eles nunca se olharam e certamente nunca se tocaram. Houston andava devagar, provavelmente porque seu espartilho estava tão apertado que ela não podia respirar, pensou Blair, e permitiu que Lee a ajudasse a subir em sua carruagem velha e negra.
— Você acha que uma mulher pode ser alguma coisa além de esposa e mãe? — perguntou Blair a Lee, quando ele começou a ajudá-la a subir na carruagem. Ela mantinha Houston em sua mira, para ter certeza de que a irmã ouviria a resposta de Lee.
— Você não gosta de criança? — perguntou ele, surpreso.
— Gosto muito de criança — respondeu rapidamente.
— Então suponho que é de homens que não gosta.
— É claro que gosto de homens, pelo menos de alguns. Você não está respondendo à minha pergunta. E, então, acha que uma mulher pode ser alguma coisa além de esposa e mãe?
— Suponho que isto dependa da mulher. Minha irmã sabe fazer uma compota de ameixas que fará sua boca gritar de alegria — disse ele, com os olhos brilhando, e, antes que pudesse responder, deu-lhe um sorriso maroto, agarrou-a pela cintura e quase jogou-a na carruagem.
Percorreram as ruas de Chandler, e Blair tentou manter sua atenção nas paisagens. As velhas portas de pedra do teatro lírico tinham sido pintadas, e parecia haver no mínimo três novos hotéis na cidade.
As ruas estavam apinhadas de pessoas e carroças: vaqueiros chegados de ranchos afastados, ocidentais querendo aplicar na prosperidade de Chandler, uns raros homens dos campos de carvão e moradores da cidade, que acenavam e cumprimentavam as gémeas e Leander. Gritos de “bem-vindas, Blair-Houston” seguiam-nas pelas ruas.
Blair lançou um olhar para sua irmã e viu que ela olhava na direção oeste, para a casa mais monstruosamente grande que já vira. Era branca, encarapitada numa colina alta, cujo topo foi aplainado por um tal sr. Kane Taggert, a fim de construir na imensa área que dominava a cidade inteira.
Ela sabia que não podia ser imparcial sobre a casa, porque durante anos sua mãe e Houston só lhe haviam escrito sobre aquela casa.
E quando ficara pronta, e o proprietário não convidara ninguém para ver o interior dela, o desespero nas cartas que Blair recebera era quase cómico.
— A cidade toda ainda está tentando entrar na casa? — perguntou ela, enquanto procurava reorganizar seus pensamentos. Se Leander nunca levava suas perguntas a sério, nunca lhe dava uma resposta direta, como iria ela provar alguma coisa a Houston?
Houston estava falando sobre aquela casa numa voz estranha, sonhadora, assim como se significasse para ela um castelo encantado, um lugar onde os sonhos tornavam-se realidade.
— Não estou tão certo de que as coisas que dizem sobre ele sejam boatos — dizia Leander, referindo-se ao comentário que Houston fizera sobre Taggert. — Jacob Fenton disse...
— Fenton! — explodiu Blair. — Fenton é um explorador, um aproveitador, que usa as pessoas para conseguir o que quer. — O tal Fenton possuía a maioria das minas de carvão em volta de Chandler e mantinha os mineiros trancados dentro dos campos como se fossem prisioneiros.
— Não penso que deva culpar só Fenton — disse Lee. — Ele tem acionistas, contratos para cumprir. Há outras pessoas envolvidas.
Blair não podia acreditar no que ouvia e, quando pararam para deixar um bonde puxado a cavalo passar, olhou para Houston e ficou satisfeita ao constatar que ela ouvira. Leander estava defendendo os barões do carvão, como se ignorasse as preocupações de sua irmã com os mineiros.
—- Você nunca teve de trabalhar numa mina de carvão — disse Blair. — Não tem ideia do que significa lutar diariamente só para sobreviver.
— E suponho que você tenha.
— Mais do que você — replicou Blair. — Você deve ter estudado medicina em Harvard. Harvard não aceita mulheres.
— Portanto, estamos de volta- a este ponto — disse ele, com ar de enfado. — Diga-me, cada médico homem tem de ser culpado por uns poucos ou você me escolheu em particular?
— Você é o único que vai casar com minha irmã.
Ele virou-se para fitá-la, as sobrancelhas levantadas de surpresa:
— Não tinha ideia de que fosse ciumenta. Anime-se, Blair. No devido tempo encontrará seu homem.
Ela cerrou os punhos, com as mãos abaixadas, olhou direto para frente e tentou lembrar-se dos principais motivos que a levaram a conversar com aquele homem tão convencido de seu próprio valor. Esperava que Houston apreciasse o que estava fazendo por ela.
— O que acha das mulheres como médicos? — perguntou Blair, respirando fundo.
— Eu gosto de mulheres.
— Ah-há! Você gosta de mulheres desde que permaneçam em seus lugares e não em seu hospital.
— Acho que foi você quem disse isso; não eu.
— Você disse que eu não era uma médica “verdadeira” e que eu não poderia acompanhar seu plantão.
— Eu disse que achava que a diretoria do hospital não aceitaria. Consiga a permissão dela e eu lhe mostrarei todos os curativos sangrentos que queira ver.
— Seu pai não faz parte da diretoria?
— Não o controlo agora mais do que quando tinha cinco anos; talvez até menos.
— Estou certa de que ele é igual a você, e não acredita que mulheres possam ser médicas.
— Pelo que posso lembrar, até agora não declarei meu ponto de vista a respeito de mulheres na medicina.
Blair sentiu que estava a ponto de gritar.
— Você está fazendo rodeios. O que você pensa sobre mulheres na medicina?
— Depende do paciente. Se um paciente preferisse morrer a ser tratado por uma mulher, eu não deixaria uma médica aproximarse dele. Mas, se ele me pedisse para encontrar uma senhora doutora, acho que varreria a terra para encontrá-la.
Blair não podia pensar em mais nada para dizer. Até aquele momento, Leander conseguira torcer cada palavra sua.
— É a casa dos sonhos de Houston — disse Leander, depois que o bonde passou, fazendo uma óbvia tentativa de matar o assunto. — Se Houston não me tivesse, creio que teria entrado na fila das mulheres que lutam por Taggert e pela casa dele.
— Eu gostaria de vê-la por dentro — disse Houston com uma voz sonhadora, e então pediu a Lee que a deixasse na Wilson Mercantile.
Quando Houston se foi, Blair não achou que fosse preciso ao menos conversar com Leander, e ele parecia pensar o mesmo. Estavam na ponta de sua língua mais algumas perguntas sobre o hospital, mas ela não queria mais ouvir as espertezas dele.
Lee deixou-a no escritório do Chandler Chronide, e ela parou para conversar com algumas pessoas que conhecera a vida toda e que a chamavam de Blair-Houston por não conseguirem distinguir as gémeas. Fazia muito tempo que não a chamavam daquele modo, e imaginou como Houston se sentia sendo sempre uma parte de um todo, nunca mesmo uma pessoa só.
Blair apanhou a nova revista médica no escritório do jornal e começou a descer a rua Três pelo largo passeio de tábuas, em direção à loja de ferragens Farrel, onde deveria encontrar-se com Houston e Leander.
Lee estava lá sozinho, encostado na balaustrada, a carruagem puxada por aquele enorme cavalo preto e branco a seu lado. Não havia sinal de Houston, e ela pensou em esperar na sapataria do outro lado da rua até que sua irmã chegasse. Mas, ao vê-la, ele gritou bastante alto para que toda a cidade ouvisse.
— Pretendendo virar e fugir?
Blair endireitou as costas, atravessou a rua empoeirada e foi ao seu encontro.
Ele lhe sorria de um modo tão provocante que desejou ser homem para poder desafiá-lo para um duelo.
— Não acho que o que está pensando seja muito próprio de uma dama. O que diria o sr. Gates?
— Nada além do que já me disse. Tenho certeza.
A expressão de Lee mudou instantaneamente.
— Houston contou-me que ele está sendo muito duro com você. Se há alguma coisa que eu possa fazer para ajudar, pode me dizer.
Por um momento Blair ficou espantada com Lee, tanto pela mudança em sua atitude como pela oferta de ajuda. Ela pensava que ele a desprezava. Antes que pudesse falar, Houston apareceu, o rosto corado e um olhar distraído.
— Estou contente por ter aparecido bem agora — disse Lee —, pois acabou de salvar sua irmã de um destino pior do que a morte. Ela estava a ponto de ter de dizer alguma coisa agradável para mim.
— Sinto muito, o que foi que disse? — perguntou Houston.
Lee tomou-lhe o braço e escoltou-a até a carruagem.
— Disse que é melhor que vá agora para casa para começar a se aprontar para a recepção do governador à noite — respondeu ele.
Ajudou Houston a subir na carruagem, e então procurou por Blair. Olhando para a irmã, Blair sabia que teria de tentar outra vez mostrar-lhe quem Leander era realmente.
— Sem dúvida você também é um dos que acreditam na teoria do dr. Clark com respeito às mulheres que usam muito o cérebro — disse bem alto.
Leander, com as mãos na cintura dela, lançou-lhe um olhar vazio por um momento, e então começou a sorrir. Depois de um ardente olhar de cima a baixo, disse:
— Blair, não acredito que tenha de se preocupar com alguma coisa. A mim parece que todo o seu cérebro está indo para os lugares certos.
Ela sentou-se na carruagem, ouvindo a risadinha caçoísta de Leander, e pensou que certamente ninguém passaria pela irmã o que ela estava passando.
Quando estavam deixando a cidade, dois homens enormes, robustos, dirigindo uma carroça tão avariada que nenhum fazendeiro respeitável a quereria, gritaram para que Leander parasse. O homem moreno, um brutamontes assustador, barbado e sujo, dirigiu-se a Houston de um modo insistente que Blair nunca a vira permitir a qualquer homem antes. Se havia uma coisa que sua irmã sabia fazer era parar homens muito atrevidos.
Houston acenou polidamente para o sujeito, que atiçou os cavalos e partiu sob uma nuvem de poeira.
— Afinal, o que é isso? — perguntou Leander. — Não sabia que conhecia Taggert.
Antes que Houston pudesse responder, Blair disse:
— Aquele é o dono daquela casa? Não é de se admirar que não tenha convidado ninguém para ir lá. Ele sabe que recusariam. A propósito, como ele pôde nos distinguir?
— Nossas roupas — respondeu Houston rapidamente —, eu o vi na loja.
— Quanto a ninguém aceitar convite dele — disse Lee —, acredito que Houston arriscaria pegar peste ou qualquer outra coisa parecida para ver aquela casa.
Blair curvou-se diante de sua irmã.
— Você também recebeu cartas sobre aquela casa?
— Se eu pudesse vender as palavras a quilo seria um milionário — respondeu ele.
— Como ele — respondeu Blair, olhando para a casa que dominava o lado oeste da cidade. — Ele pode guardar seus milhões e sua casa monstruosa.
— Acho que concordamos outra vez — disse Lee, fazendo-se de surpreso. — Será que isto vai se tornar rotina?
— Duvido — retrucou Blair, mas seu coração não estava na resposta. Talvez ela estivesse errada a respeito dele.
Mas vinte minutos mais tarde, ela estava tão preocupada com o futuro da irmã como sempre. Deixara Lee e Houston sozinhos no -jardim de sua mãe, e então lembrara-se de que sua revista ainda estava na carruagem de Lee. Correndo escada abaixo para alcançar Lee antes que partisse, fora testemunha de um pequeno drama entre o casal.
Leander, para espantar uma abelha, passara a mão por trás da cabeça dela, fazendo-a retesar-se. Mesmo de onde Blair estava, pôde ver o modo como sua irmã se afastara para não ser tocada por ele.
— Não precisa se preocupar — disse com voz apagada. — Não tocarei em você.
— É só até que estejamos casados — murmurou ela, mas Lee não respondeu antes de passar apressado por Blair e afastar-se com rapidez na carruagem.
Leander entrou enfurecido na casa do pai e bateu a porta atrás de si, fazendo estremecer o vitral. Subiu a escada de dois em dois e no patamar virou à esquerda e dirigiu-se para seu quarto, o quarto que deixaria assim que se casasse com Houston e se mudasse para a casa que comprara para ela.
Esbarrou levemente em seu pai, mas não se desculpou ou moderou o passo.
Olhando para o filho quando ele passou, Reed Westfield viu o olhar raivoso em seu rosto e seguiu-o até o quarto. Leander já estava jogando roupas numa valise quando ele entrou.
Reed parou por um momento na porta e observou o filho. Apesar de não se parecerem, o pai sendo baixo, troncudo, tendo no rosto toda a delicadeza de um buldogue, eles tinham temperamento semelhante. Era preciso muita coisa para levantar a ira de Westfield.
— É um atendimento de emergência? — perguntou Reed, enquanto olhava seu filho jogar roupas na mala sobre a cama e, na raiva, errando metade das vezes.
— Não, são as mulheres — tentou Lee dizer através dos dentes cerrados.
Reed tentou esconder um sorriso, tossindo. Em sua prática legal, aprendera a esconder sua própria reação a qualquer coisa que seus clientes dissessem.
— Teve uma rusga com Houston?
Leander virou-se para o pai com o rosto cheio de fúria.
— Nunca tive uma rusga ou briga ou discussão ou algum desentendimento qualquer com Houston. Ela é total e completamente perfeita, sem falhas.
— Ah! então é aquela irmã dela. Alguém mencionou que ela estava te aborrecendo hoje. Você não terá de morar com sua cunhada, sabe disso.
Lee parou suas arrumações.
— Blair? O que tem ela a ver com tudo isso? Nunca me diverti tanto com uma mulher desde que fiquei noivo. É Houston que está me tirando do sério. Ou, mais corretamente, é ela quem está me obrigando a deixar Chandler.
— Espere só um minuto — disse Reed, pegando o pulso do filho. — Antes de apanhar um trem e deixar todos os seus pacientes morrerem, por que não se senta e conversa comigo? Conte-me o que o está deixando tão bravo?
Lee sentou-se em uma cadeira como se pesasse uma tonelada, e passaram-se vários minutos antes que pudesse falar.
— Em primeiro lugar, você se lembra por que pedi a Houston que casasse comigo? No momento, não posso me lembrar de nenhuma razão que me tenha levado a fazer isso.
— Deixe-me ver — disse Reed, acomodando-se de frente para o filho —, se me lembro corretamente, foi puro, simples e antigo desejo. Quando você voltou de Viena e do último de seus estudos médicos, juntou-se à legião de jovens e velhos que seguiam a viçosa senhorita Houston Chandler pela cidade, convidando-a para alguma coisa que se pudesse pensar, qualquer coisa, para estar perto dela. Acredito lembrar-me de seu entusiasmo exagerado por sua beleza e de me contar como todos os homens de Chandler desejavam casar com ela. E também me lembro da noite em que você mesmo a pediu e ela o aceitou. Penso que andou por aí num deslumbramento durante uma semana — parou por um momento. — Isso responde à sua pergunta? Decidiu agora que não está mais desejando a adorável senhorita Houston?
Leander lançou um olhar sério para seu pai.
— Cheguei à conclusão agora de que aquela forma dela, a maneira de andar que fez homens crescidos desmaiarem em seu rastro, é tudo aparência. A mulher é um bloco de gelo. É completamente frígida, sem qualquer emoção. Não posso passar o resto de minha vida tentando viver com uma mulher sem sentimentos.
— É isso tudo que está errado? — perguntou Reed, obviamente aliviado. — Supõe-se que as mulheres direitas sejam assim. Espere, Lee, depois de casados, ela se aquecerá. Sua mãe era muito fria comigo antes de nos casarmos. Ela quebrou a sombrinha na minha cabeça, uma noite, quando me tornei mais ousado. Porém, mais tarde, depois de termos casado... bem, as coisas melhoraram, foi muito melhor. Pode acreditar na palavra de alguém que é mais experiente nesse assunto. Houston é uma boa moça e teve de morar com aquele encrenqueiro do Gates durante todos esses anos. Claro que está nervosa e amedrontada.
Leander ouviu as palavras de seu pai cuidadosamente. Ele nunca planejara passar sua vida em Chandler. Em vez disso, pensara em ser interno numa cidade grande, trabalhar na equipe de um grande hospital e finalmente ter sua própria clientela e fazer muito dinheiro. Não levara mais de seis meses para decidir voltar para sua cidade, onde precisavam dele. Onde ele teria coisas mais importantes do que a histeria de uma mulher rica.
Durante todo o tempo que estivera fora de Chandler, Houston escrevera-lhe cartas, cartas de mexericos sobre o término da escola. Ele sempre aguardara as cartas e ansiava por ver mais uma vez a menininha que as escrevera.
Na noite em que voltara para casa, seu pai oferecera uma festa de boas-vindas e a “menininha” entrara na sala. Houston se transformara em uma mulher com uma figura que fez as palmas de sua mão suarem, e enquanto ele a olhava embasbacado, um velho amigo beliscara-lhe o braço.
— Não adianta tentar. Não há um só homem solteiro na cidade que já não tenha pedido a mão dela em casamento, ou tentado alguma outra coisa, mas ela não aceitou nenhum de nós. Acho que está esperando por um príncipe ou um presidente.
— Talvez vocês, rapazes, não saibam como pedir — dissera ele, sorrindo de convencimento. — Aprendi uns poucos truques quando estive em Paris.
E assim se tornara um concorrente na corrida local para ver quem conseguiria casar com a senhorita Chandler. Ele ainda não entendeu o que acontecera. Levara-a a algumas festas e, na terceira vêz pedira-a em casamento, dizendo alguma coisa parecida com “Eu não imagino que queira casar-se comigo, não é?” Ele esperara uma recusa, para rir com os homens de seu clube, dizendo que tentara também, mas infelizmente também falhara.
Ficara chocado quando Houston aceitara seu pedido imediatamente e perguntara se a data de 20 de maio seria conveniente para ele, tudo no mesmo fôlego. Na manhã seguinte, vira seu-retrato no jornal como noivo de Houston, e o artigo seguia declarando que o feliz casal estava escolhendo o anel dela naquela manhã. Depois disso, nunca tivera um momento para pensar sobre o que fizera quando a pedira. Se não no hospital, estava numa alfaiataria ou concordando com Houston sobre a cor das cortinas que deveriam ser colocadas na casa que repentinamente encontrara-se comprando.
E, naquele momento, poucas semanas antes do casamento, tinha outros pensamentos. Cada vez que tocava Houston, ela afastava-se como se ele fosse repulsivo. Claro que conhecia Duncan Gates; sabia que o homem nunca perdia uma oportunidade para colocar uma mulher em “seu lugar”. Seu pai lhe escrevera poucos anos antes contando que Gates tentara barrar as mulheres da nova sorveteria que abrira na cidade. Alegava que a freqüência encorajaria as mulheres a serem preguiçosas, a fofocarem e a flertarem. Tudo isso, escrevera Reed, acontecera mesmo — os homens haviam adorado.
Leander tirou um charuto longo e fino de seu bolso e acendeu-o.
— Não tenho tido muita experiência com “boas” meninas. Antes de casar com mamãe, você se preocupava com a possibilidade de ela não mudar?
— Me preocupava com isso noite e dia. Até falei ao meu pai que me recusava a casar com ela, que não passaria toda a minha vida com uma mulher feita de pedra.
— Mas você mudou de ideia por quê?
— Bem, eu... quero dizer, eu... — Reed deu um pequeno sorriso de desculpa. Virou a cabeça como se estivesse embaraçado. — Se ela estivesse hoje aqui, acho que quereria que eu lhe contasse. A verdade, filho, é que a seduzi. Dei-lhe bastante champanhe, agradei-a durante horas e seduzi-a. — Virou-se abruptamente, para concluir: — Não estou lhe aconselhando que faça isso, mas que aprenda com o que fiz. Você pode arranjar muita encrenca dessa forma. Acho que você percebeu as coisas duas semanas mais cedo do que seria apropriado.
Leander estudava a ponta do charuto.
— Gosto de seu conselho e acho que vou segui-lo.
— Não estou certo de que deveria ter-lhe contado isso. Houston é uma moça encantadora e... — Reed parou e durante um momento estudou seu filho. — Confio em seu julgamento. Faça o que achar melhor. Estará aqui para o jantar?
— Não — disse Lee suavemente, como que mergulhado em pensamentos. — Vou levar Houston à recepção do governador hoje à noite.
Reed começou a dizer alguma coisa, mas fechou a boca e saiu da sala. Ele poderia ter reconsiderado, dizendo o que pensava, se soubesse que mais tarde seu filho tinha ligado para um bar para encomendar quatro garrafas de champanhe francês para serem mandadas para sua nova casa, e pedira à empregada para preparar um jantar começando com ostras e terminando com chocolate.

 

Capítulo III

 

BLAIR ESTAVA SENTADA em seu quarto, no sótão da casa, e tentava se concentrar em um artigo sobre peritonite, mas, em vez disso, seus olhos moviam-se para a janela de onde podia ver a irmã cortando rosas no jardim baixo. Ela podia ver que Houston estava cantarolando, cheirando as rosas e, em geral, divertindo-se.
Por todos os demónios, Blair não podia entender a irmã. Acabara de ter uma briga com o noivo: ele fora embora com raiva, e no entanto não estava nem um pouco preocupada.
E também havia o episódio na cidade com aquele homem Taggert. Nunca vira Houston tão receptiva com um homem a quem não tivesse sido formalmente apresentada. Era muito apegada às regras de conduta; no entanto cumprimentara aquele homem malvestido, cabeludo, como se fossem velhos amigos.
Blair largou a revista e foi ao jardim.
— Muito bem — disse, assim que alcançou a irmã. — Quero saber o que está acontecendo.
— Não tenho ideia do que está falando. — Houston parecia tão inocente como um bebê.
— Kane Taggert — respondeu Blair, tentando ler o rosto de sua irmã.
— Eu o vi na Wilson Mercantile e, mais tarde, ele nos disse bom-dia.
Observou a irmã, e viu que havia um rubor fora do normal em suas faces, como se ela estivesse excitada com alguma coisa.
— Você não está me contando tudo.
— Talvez eu não devesse ter me envolvido, mas me pareceu que o senhor Taggert estava ficando bravo e quis evitar uma discussão. Infelizmente, foi por causa de Mary Alice.
Houston então contou uma história sobre Mary Alice Pendergast provocando Taggert, referindo-se a ele como um mineiro de carvão e virando-lhe o nariz. E ela tomara o partido de Taggert.
Blair estava espantada com o fato de a irmã ter se envolvido em algo que não era de sua conta, e pior, não gostara do jeito de Taggert. Ele parecia capaz de fazer qualquer coisa com qualquer um. E também ouvira muitas referências ao Homem e seus amigos, homens como Vanderbilt, Joy Gould, Rockefeller.
— Não gosto de te ver envolvida com ele.
— Você parece o Leander.
— Desta vez ele está certo! — retrucou Blair.
— Talvez devêssemos marcar este dia na bíblia da família. Blair, depois desta noite juro que nunca mais mencionarei o nome do senhor Taggert.
— Desta noite?
Blair teve um pressentimento de que o que deveria fazer naquele momento era correr, não andar, para o lugar seguro mais próximo. Quando elas eram crianças, Houston tinha a capacidade de envolvê-la em vários projetos de finais infelizes, dos quais ela era culpada todas as vezes. Ninguém poderia acreditar que sua doce e recatada irmã fosse capaz de desobedecer.
— Olhe isto. Um mensageiro trouxe. Ele me convidou para jantar em sua casa. — Houston puxou um pedaço de papel de dentro da manga e entregou-o a Blair.
— E daí? Espera-se que hoje à noite você vá a outro lugar com Leander, não é?
— Blair, você parece não ter ideia da agitação que aquela casa causou na cidade. Todos tentaram conseguir um convite para ver o seu interior. Vieram pessoas do Estado todo para vê-la, mas ninguém foi convidado. Certa vez, chegaram a ir pedir ao senhor Taggert que permitisse a um duque inglês que estava passando pela cidade se hospedar lá, mas ele nem ouviu o comitê. E agora eu fui convidada.
— Mas você tem de ir a outro lugar — insistiu Blair. — O governador estará lá. Certamente ele é mais importante do que o interior de qualquer casa.
Houston estava com um olhar estranho, o mesmo da manhã, quando olhava com encantamento para aquela casa maciça.
— Você pode entender o que é isso? Ano após ano, vimos o trem desembarcar suas mercadorias. O senhor Gates disse que o dono não tinha construído um ramal para a casa porque queria que todos vissem as encomendas pelo caminho todo, através da cidade. Eram engradados de mercadorias do mundo inteiro. Oh, Blair, eu sei que deviam estar repletos de móveis. E tapeçarias! Tapeçarias de Bruxelas.
— Houston, você não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. Você prometeu ir à recepção e deve ir — disse Blair terminantemente, esperando encerrar o assunto. Dos dois homens, Leander definitivamente era o menos maléfico.
— Quando éramos crianças, podíamos estar em dois lugares ao mesmo tempo — disse Houston, como se aquela fosse a declaração mais simples do mundo.
Blair teve certeza de que perdera o fôlego.
— Você quer que troquemos de lugar? Quer que eu passe a noite com Leander, fingindo que gosto dele, enquanto você vai ver a casa de algum homem lascivo?
— O que você sabe sobre Kane para chamá-lo de lascivo?
— Kane, não é? Pensei que não o conhecesse.
— Não mude de assunto, Blair. Por favor, troque de lugar comigo. Só por uma noite. Poderia ir uma outra vez, mas tenho medo de que o sr. Gates me proíba, e não tenho certeza de que Leander me deixaria, e nunca mais terei uma oportunidade como esta. Só uma última escapada antes de me casar.
— Você faz o casamento soar como morte. Além do mais, Leander saberia em um minuto que eu não sou você.
— Não se você se comportar. Você sabe que ambas somos boas atrizes. Veja como eu finjo ser uma velha todas as quartas-feiras. Tudo o que você tem a fazer é ficar tranqüila e não começar a discutir com Lee, evitar falar de medicina e andar como uma dama, em vez de parecer que está indo ver um incêndio.
A mente de Blair estava fraquejando. Desde que voltara para Chandler tinha estado realmente preocupada com a irmã, com medo de que seu espírito tivesse desaparecido. Aquele era o primeiro sinal de vida que ela demonstrara em uma semana. Era como quando eram crianças, metendo-se em enrascadas, uma fingindo ser a outra, e mais tarde rindo hilariantemente juntas.
Mas, e Leander? Tudo o que ele teria de fazer era começar a provocar Blair sobre ser uma dama médica e...
Levantou a cabeça. Leander nunca provocava Houston, e, por uma noite, ela seria Houston. E, também, aquela seria a sua oportunidade de assegurar que Leander era realmente o homem maravilhoso que tanto Opal quanto Houston diziam que era. Ela seria capaz de se certificar de que, quando estavam sozinhos, Lee e Houston davam-se bem, que estavam apaixonados.
— Por favor, por favor, Blair. Raramente peço a você alguma coisa.
— Exceto passar semanas na casa de nosso padrasto, que você sabe que eu detesto. E na companhia desse homem convencido com quem acho que pretende casar. Para... — disse Blair, mas estava sorrindo. Ela poderia voltar em paz para a Pensilvânia se estivesse certa de que sua irmã ia ser feliz.
— Oh, Blair, por favor. Eu realmente quero ver a casa dele.
— É só na casa que está interessada, não em Taggert?
— Pelo amor de Deus! Já estive em centenas de jantares e nunca fiquei apaixonada pelo anfitrião. Além disso, haverá mais gente lá.
— Depois do casamento, você se importa se eu contar a Leander que passou uma noite comigo? Só para ver a cara dele? Vale a pena ver a cara dele, vale a pena fazer qualquer coisa.
— É claro que pode. Lee tem um ótimo senso de humor, tenho certeza de que apreciará a brincadeira.
— Duvido um pouco, mas pelo menos eu me divertirei.
— Vamos nos aprontar. Quero usar alguma coisa que combine com aquela casa e você usará aquele vestido de cetim azul.
— Eu deveria usar minhas calças, mas isso nos denunciaria, não?
Blair seguiu Houston para dentro da casa, satisfeita com a trama toda. Não seria fácil imitar Houston e aquele seu andar lento e preguiçoso, mas Blair considerou tudo aquilo um desafio e aguardou-o....
Começou a ter outro pensamento sobre a brincadeira, quando sentiu Houston apertar os cordões do espartilho. Sua irmã não tinha nenhum receio de suportar um pouco de dor por conta da beleza, mas Blair ficou pensando em como seus órgãos internos estavam sendo acomodados pelo instrumento de tortura de ossos de baleia. Mas, quando colocou o vestido e viu-se com uma exagerada silhueta de ampulheta como a de Houston, não ficou nada aborrecida.
Houston viu sua irmã no espelho.
— Agora você se parece com uma mulher. — Olhou a saia e a blusa, sentindo o espartilho embaixo levemente amarrado. — E eu me sinto leve como uma pena.
Pararam por um momento e estudaram-se no espelho.
— Ninguém saberá distinguir-nos — disse Houston.
— Não até que falemos — respondeu Blair, afastando-se.
— Você não tem problema algum. Pelo menos sendo eu, você pode se virar sem falar.
— E isso quer dizer que falo demais? — retrucou de volta Blair.
— Quer dizer que, se Blair estiver quieta, nós nunca sairemos de casa, porque mamãe chamará um médico.
— Leander? — perguntou Blair, e as duas riram.
Mais tarde, quando ambas estavam vestidas e prontas para sair para a noite, Blair, supostamente para passar a noite com sua amiga Tia Mankin, teve de ver alguma coisa que poucas pessoas já viram: viu-se como os outros a viam.
A princípio, estava tão ocupada, concentrando-se em tentar ser Houston, imitando seu andar, a maneira como entrava na sala, o modo distante como olhava para as pessoas, que não viu como Houston a estava imitando.
O sr. Gates entrou na sala e disse com muita polidez que ambas as jovens estavam lindas. Houston, como Blair, jogou a cabeça para trás e usou sua maior altura para olhar para baixo, para o homem.
— Eu sou uma médica e ser uma médica é mais importante do que ser bonita. Quero mais da vida além de ser só uma esposa e mãe.
Blair abriu a boca para protestar, para dizer que nunca fora assim e que nunca atacara um homem que não tivesse atacado primeiro, mas quando viu os rostos à sua volta, percebeu que ninguém achou o que Houston dissera fora de propósito.
Ela quase sentiu pena do sr. Gates, quando o rosto do homenzinho inchou como um peixe e sua pele tornou-se vermelha. Antes que soubesse o que estava fazendo, colocou-se entre a irmã e o homem zangado.
— Está uma noite tão linda — disse bem alto. — Blair, por que eu e você não nos sentamos no jardim até Leander chegar?
Quando Houston virou-se, tinha um olhar de raiva e hostilidade no rosto como Blair nunca tinha visto antes. Será que realmente eu fico assim? pensou ela. Realmente sou eu quem começa a maioria das discussões com o sr. Gates?
Queria fazer essas perguntas a Houston, mas, antes que saíssem, Leander chegou para levá-las.
Blair levantou-se e observou Houston fingindo ser ela e, quase imediatamente, quis protegê-lo. Ele estava cortês, sorridente, educado e tão bonito! Nunca reparara antes que Leander era capaz de fazer parar um ou dois corações. Era um homem de aspecto sério, de olhos verdes, um nariz longo e fino, e lábios cheios. Cabelos negros, bastante longos, roçavam a gola de seu casaco. Mas o que estava interessando Blair não eram as bonitas aparências superficiais, mas a expressão em seus olhos.
Eram como se aqueles olhos escondessem segredos que ele não contava a ninguém.
— Houston? — perguntou ele, trazendo-a de volta para a realidade. — Voce está bem?
— Claro — disse vivamente, tentando imitar a frieza de sua irmã.
Quando Leander pôs as mãos em sua cintura e levantou-a para colocá-la na carruagem, ela sorriu-lhe e ele sorriu de volta, rapidamente, brevemente, mas aquilo a aqueceu e ficou contente por poder passar aquele tempo com ele.
Nem bem estavam na carruagem, Houston começou a provocar Leander.
— Como você evita que a peritonite se espalhe? — perguntou com uma voz hostil que fez Blair olhá-la com surpresa. Com que estava ela tão brava? E onde tinha aprendido sobre peritonite?
— Costuro ambos os lados do intestino e rezo — respondeu Lee com bastante sensibilidade e correção.
— Já ouviram falar de assepsia aqui em Chandler?
Com a respiração parada, Blair olhou para Lee para ver como recebera essa pergunta. Achou que era insultante não culparia Lee se dissesse a Houston o que pensava dela. Mas ele só deu uma olhada para Blair, piscou rapidamente e disse a Houston que os médicos em Chandler na verdade lavavam as mãos antes das cirurgias.
Blair não pôde deixar de sorrir para ele, e sentiu que os dois estavam juntos nisso. Houston continuou agredindo Lee, enquanto ela se recostou no banco e olhou as estrelas, não se preocupando em ouvir o matraquear de sua irmã.
Chegando, finalmente, à casa de Tia, estava muito alegre. Quando Houston se foi e ficou a sós com Lee, ela deu um profundo suspiro.
— É como a calmaria depois da tormenta — disse ela, olhando para Lee e meio temerosa dos comentários dele sobre seu “outro eu”.
— Ela não quer dizer nada disso. Todos os médicos são assim quando terminam a faculdade. Você fica muito consciente da responsabilidade de sua profissão.
— E isso muda mais tarde?
— Muda, mas não tenho certeza de como explicar. Suponho que acabam conhecendo suas limitações e não ficam tão certos de que podem salvar o mundo sozinhos.
Blair relaxou no encosto da carruagem e pensou como ele fora gentil, não dizendo nada desagradável sobre o ataque de Houston. E ele a chamara de médica.
Pareceu bastante natural passar o braço no dele e não se afastar para o outro lado da carruagem agora que sua irmã se fora. Não reparou na maneira estranha com que Leander a olhou, mas estava bastante satisfeita com a noite.

 

Capítulo IV

 

CHANDLER, COLORADO, ficava na base das Montanhas Rochosas, a uma altitude de dois mil metros, e como resultado, o ar era sempre fino, limpo e frio. Os verões eram agradáveis durante o dia, e, quando o sol se punha, o ar da montanha exigia que se usasse um agasalho.
Sentada perto de Lee, Blair respirava profundamente, inalando a fragrância fresca das montanhas. Não percebera o quanto sentira falta daquilo.
Não tinham andado um quilómetro, quando um homem surgiu numa nuvem de poeira, seu cavalo resfolegando, e gritou para Leander.
— Westfield! Alguém precisa de ajuda. Há uma mulher lá na rua River que acaba de tentar o suicídio.
Blair nunca vira o homem antes, e não pensava que quisesse vêlo outra vez. Parecia-se com a caricatura de um jogador, com os cabelos negros como carvão e seu pequeno bigode. Mas o pior era a maneira como sorria enquanto olhava para ela.
Tirou seu chapéu de aba dura e cumprimentou-a.
— Compreendo que talvez o senhor esteja muito ocupado para vir, doutor.
Blair olhou para Lee e viu que ele estava hesitando. E ela sabia que era por conta de sua presença.
— Irei com você, Lee. Talvez eu possa ser de alguma ajuda.
— A rua River não é lugar para uma senhora — disse o sujeito. — Talvez eu deva cuidar dela enquanto o senhor vai ver a suicida.
Aquilo foi o que fez Lee decidir-se. Estalou o chicote sobre a cabeça do cavalo e gritou “Vamos!”, para Blair, tudo num fôlego só.
Blair foi jogada contra o encosto do banco da carruagem e agarrou o suporte do teto enquanto Lee arrancava a toda. Fechou os olhos apavorada duas vezes, quando escaparam por pouco de outras três carruagens. As pessoas viam-no se aproximando e começavam a afastar-se do caminho muito antes de ele as alcançar. Ela ouviu diversos gritos de encorajamento e supôs que a visão de Lee, disparando pelas ruas, fosse bastante familiar.
Ele parou o cavalo no canto nordeste da cidade, do outro lado do rio Tijeras e entre os dois trilhos de estrada de ferro — um lugar que Blair nunca vira ou estivera curiosa por conhecer. Num só movimento, ele prendeu o cavalo, agarrou sua maleta, saltou para o chão e ordenou a Blair que ficasse na carruagem.
Depois de um rápido olhar para o rosto malicioso do jogador, ela seguiu Lee até a casa que tinha luzes vermelhas no lado de fora. Lee subiu as escadas, como se soubesse onde estava indo, mas Blair não pôde evitar de dar uma olhada em volta.
Tudo parecia ser vermelho — as paredes, os tapetes, os móveis e as franjas do estofamento. E o que não era vermelho era feito com madeira muito escura.
No alto das escadas, ela viu um ajuntamento de mulheres em vários estágios de nudez e, bem quando as alcançou, elas começaram a se afastar da porta.
— Já lhe disse, preciso de ajuda — Blair ouviu Lee gritando, enquanto forçava caminho no meio da multidão.
Lee lançou-lhe um olhar:
— Disse-lhe que ficasse na carruagem.
Na cama em frente dele estava uma jovem pálida, magra, na verdade pouco mais de uma menina, torcendo-se em dores, que Blair supôs que fosse por ter tomado um desinfetante à base de álcool.
— Fenol? —- perguntou Blair, e, quando viu Lee tirar uma bomba de estômago de sua maleta, sabia o que tinha de ser feito. Não perdeu um só momento para começar a agir. Com uma voz autoritária, ordenou às três mulheres, uma usando só espartilho e um roupão preto fino, que segurassem os braços e as pernas da moça e à outra que fosse buscar toalhas. Quando uma mulher alta e bem vestida, que parecia saber como dar ordens entrou no quarto, Blair mandou-a procurar duas capas de chuva, e quando os casacos vieram, ficou observando Lee até que ele estivesse com uma mão livre, e então enfiou-a na manga de um dos casacos oleados, à prova de água. Vestiu então a outra capa sobre o vestido da irmã.
Lee conversava com a garota, acalmando-a ao mesmo tempo enquanto lhe empurrava o tubo pela garganta, e quando o fenol subiu, veio com todo o conteúdo do estômago, espirrando em todos no quarto.
Nauseada, enjoada, fraca, coberta de sujeira, a a garota agarrou-se a Lee, e ele a manteve, enquanto Blair calmamente organizava a limpeza.
— Nada é assim tão ruim — dizia Lee, amparando a garota que começara a chorar. — Olhe, quero que tome isto — disse ele, dando-lhe água e dois comprimidos.
Ele não a largou até que começasse a relaxar e por fim adormecesse. Gentilmente, deixou-a na cama e olhou para a mulher alta a quem Blair mandara buscar as capas.
— Limpem-na e amanhã levem-na até a enfermaria. Quero conversar com ela.
A mulher concordou em silêncio, olhando para Lee com olhos grandes e admiradores. Virou-se para Blair.
— Espero que aprecie este homem, doçura. Não existem muitos como ele. Ele... — A mulher parou ao receber um olhar de Lee.
— Temos de ir. — Com surpresa, ele lançou um olhar para a capa que usava e então olhou para Blair, do outro lado da Cama da paciente.
— Aprendi com minha irmã-doutora — disse, em resposta à pergunta silenciosa dele, e de repente preocupou-se em saber como Lee reagiria por tê-lo ajudado com a garota.
Mas enquanto ele guardava os instrumentos, pegava seu braço e levava-a para fora, não fez menção à prática dela. As pessoas ao redor deles murmuravam agradecimentos e olhavam para ambos Lee e Blair, com olhos nublados, e ela pensou que estavam imaginando que qualquer uma delas poderia ter sido a garota que estava naquela cama.
— Você vem aqui com freqüência? — perguntou ela a Lee, dêscendo as escadas.
— Cerca de uma vez por semana um médico vem aqui por um ou outro motivo. Suponho que já vim tanto quanto qualquer um deles.
Na carruagem, Lee parou em frente a Blair, e ela ficou certa de que iria dizer que sabia quem era ela.
— Eu realmente gostei de você ter vindo comigo ver o caso e de que não tenha sido preciso deixá-la em algum lugar primeiro. Significou mais para mim do que possa imaginar.
Ela deu um sorriso de alívio.
— Você foi muito bom com a mulher, rápido e o mais cuidadoso possível.
Com um leve sorriso ele tocou o cabelo na testa dela.
— Você está outra vez parecendo a Blair, mas, por qualquer que seja o motivo, lhe agradeço o cumprimento.
Na escola de medicina, Blair tivera um professor que avisara que a sina das médicas jovens era de se apaixonarem pelo homem que fosse o melhor cirurgião. O instrutor dissera que tudo que uma nova interna tinha de fazer era ver um médico remover um cisto de ovário que fosse difícil, e logo estaria suspirando por ele.
Naquele momento, Blair achava que Lee era um dos homens mais atraentes que já vira. Ele controlara o lado técnico do caso muito bem, porém, mais do que isso, sua compaixão fora tal como ela nunca vira associada a um tratamento. Quando ele se aproximou para beijá-la, ela percebeu que queria que ele a beijasse como Blair, não como Houston.
Virou o rosto para o lado.
Leander tirou imediatamente a mão de seu rosto, e a raiva de seus olhos era assustadora. Ele afastou-se; cada movimento seu demonstrava sua raiva. Blair sentiu um momento de pânico. No momento,ela era Houston e não Blair, e naturalmente ela beijaria o homem que amava. Pegou o braço dele. Ele parou e olhou-a, com os olhos brilhando de fúria, e foi preciso uma grande dose de coragem para não recuar. Corajosamente, pôs os braços em volta do pescoço dele e tocou-lhe os lábios com os seus. Ele ficou parado ali, como se feito de pedra, sem se mover, sem corresponder aos avanços dela.
Por um momento ocorreu-lhe que o doutor Leander Westfield certamente seria um homem mimado, já que reagira com tanta severidade ao fato de sua noiva ter-lhe recusado um simples beijo. Como ele continuava a não mostrar reação, encarou aquilo como um desafio, como se estivesse atravessando o primeiro ano da escola de medicina. Ficou na ponta dos pés e começou a demonstrar um pouco de paixão por aquele homem inflexível.
Ela não estava preparada para sua reação, nada do que já acontecera durante sua vida a preparara para a maneira como reagiu.
Ele pegou sua cabeça, girou-a e colou os lábios aos dela com uma paixão que a fez perder o fôlego. E Blair reagiu à altura. Pressionou o corpo contra o dele e só o agarrou com mais força quando ele empurrou o joelho entre as pernas dela e pôs a língua dentro de sua boca.
— Desculpe-me — veio uma voz com riso, e passaram-se alguns momentos antes que Lee se afastasse.
Blair ficou ali com os olhos fechados, contente por ter o apoio da carruagem atrás dela ou provavelmente teria caído. Ela estava vagamente consciente de que era o desagradável jogador que estava ali, e que ele estava sorrindo de um modo afetado enquanto falava com Lee, mas não se importava. Talvez a reputação de Houston estivesse arruinada para sempre, mas a última coisa que lhe passava pela cabeça era a irmã.
— Pronta? — ouviu Lee dizer meigamente em seu ouvido quando o homem se foi. Ela podia sentir o calor do corpo dele bem perto do seu.
— Para quê? — murmurou, e então abriu os olhos.
— Houston, nós não temos de ir à recepção — disse Lee.
Blair endireitou-se e lembrou-se de quem era, onde estava e que estava com o noivo da irmã.
— Sim, claro que temos — disse, encabulada, fugindo dos olhos dele e ignorando o fato de que suas mãos se demoraram muito em sua cintura enquanto ajudava-a a subir na carruagem.
Uma vez sentada, manteve os olhos na estrada à frente. Então era por aquilo que Houston o amava, pensou. E pensar que se preocupara pensando que fossem frios na intimidade. Olhou-o uma vez, quando se virou para ela, e seus olhos estavam vivos, brilhantes e famintos. Deu-lhe um sorriso fraco e disse a si mesma para pensar em Alan. Alan! Alan!
Blair tentou de alguma forma manter-se sob controle, mas, mesmo assim, seus sentidos estavam girando, tanto que não percebeu que Lee tinha ido para o outro lado do rio, para os profundos recessos do Parque Fenton. A alameda Midnight se estendia à frente deles, quando Lee parou o cavalo próximo ao coreto do parque e moveu-se para ajudá-la a sair da carruagem.
— Por que paramos?
— Estou com o cheiro do fenol em meu nariz e pensei que o ar fresco me ajudaria a livrar-me dele. — Ele sorriu para ela enquanto ajudava-a sair da carruagem, e Blair teve de se afastar dele ou cairia em seus braços outra vez.
— Você hoje foi realmente muito bom com a garota.
— É o que você disse — respondeu ele, soltando-a, enquanto tirava um charuto de seu bolso e acendia-o. — Por que foi comigo hoje à noite? Nunca fez isso antes.
Blair perdeu o fôlego. Tinha de pensar em algo rápido.
— Suponho que estava preocupada com o que aconteceu esta tarde. Você parecia terrivelmente zangado — disse ela, esperando que parecesse plausível.
Ele virou a cabeça para o lado e olhou-a através de uma nuvem de fumaça e luar.
— Você também nunca pareceu se preocupar com isso.
Em que tinha ela se metido?, imaginava Blair. E por que Houston não a tinha prevenido sobre fosse lá o que fosse que Lee estava falando?
— Claro que me preocupo, Lee — disse ela, virando-se, a mão na balaustrada do coreto. — Eu sempre me preocupo quando você se aborrece comigo. Não deixarei que isso aconteça outra vez.
Lee ficou em silêncio durante tanto tempo que ela se virou para olhá-lo. Ele a mirava com os mesmos olhos famintos que vira antes.
— Lee, você está me fazendo corar. Não devíamos ir à recepção?
Amaldiçoada Houston!, pensou ela. Mais uma vez permitira que sua irmã a convencesse a fazer alguma coisa que poria a ela, Blair, em encrenca. Esperava que a visita àquela imensa casa compensasse aquilo tudo.
Lentamente, a mão de Lee procurou seu braço para tocá-lo. Ela recuou e ficou contra o coreto de madeira. Ele jogou seu charuto fora e deu um passo em direção a ela. Blair deu-lhe um pequeno sorriso, agarrou suas saias e subiu correndo para o centro do coreto.
— Costumávamos ter os mais adoráveis concertos aqui — disse ela, afastando-se, quando viu que ele se movia em sua direção. — Lembro-me de estar usando rosa, branco e...
Sua voz falhou quando ele parou à sua frente e ela não pôde mais se afastar. Ao levantar os olhos para ele, sentiu o calor do corpo dele próximo ao seu. Lee estendeu-lhe os braços e ela correu para ele.
Não havia música exceto os sons da noite, mas Blair estava certa de ouvir violinos quando Lee valsou com ela pelo coreto. Fechando os olhos, as saias sobre o braço, ela seguia-o como se estivesse em transe, não pensando em nada que não fosse aquele momento. E quando ele a puxou para mais perto e continuou valsando, as pernas dele pressionando as suas, ela entregou-se a sentimentos que nunca havia experimentado antes.
Enquanto ele a mantinha, ela não estava dando conta do tempo passando, nem se lembrava que devia ser sua irmã ou que aquele homem que a abraçava tão intimamente era um estranho. Ela só estava consciente do presente. Não havia passado nem futuro.
Quando ele começou a beijar seu pescoço, seu rosto, sua testa, ela se achegou a ele, passou-lhe os braços em volta do pescoço e continuou dançando lentamente, sedutoramente.
— Você disse que poderia ser diferente — murmurou ele,mas Blair não ouvia palavra nenhuma. — Venha, beije-me mais uma vez antes que tenhamos de partir.
Somente algumas das palavras atingiam seu cérebro. Ela não queria partir, queria que aquele momento nunca acabasse, e, quando ele a beijou outra vez, ficou mais fraca do que antes, e Lee teve de abraçá-la contra si ou seus joelhos não teriam agüentado.
Ele afastou-a, e por um momento ela não pôde se mover, os olhos fechados, a cabeça atirada para trás.
Quando ela o olhou, ele estava sorrindo; havia uma expressão de encantamento em seu rosto como nunca vira antes. Ela também sorriu.
— Vamos, querida. — Ele ria, rodando-a em seus braços. — Quero mostrá-la para o mundo.
Assim que Lee a colocou na carruagem, a cabeça de Blair recomeçou a trabalhar. Aquela noite não estava acontecendo como planejara. Quisera descobrir se sua irmã estava se casando com o homem certo e, em vez de fazer um estudo científico, cada vez que Leander a tocava, seus joelhos viravam geléia.
— Isto é tremendamente ridículo.
— O que é? — perguntou Lee, a seu lado na carruagem.
— Que... que eu tenha ficado com essa dor de cabeça aborrecida de repente. Acho que devo ir para casa.
— Aqui, deixe-me ver.
— Não — disse Blair, afastando-se dele.
Seus dedos longos e fortes pegaram o queixo dela enquanto trazia seu rosto mais perto do dela.
— Não vejo nenhum sinal de dor — murmurou —, exceto talvez esta pequena veia bem aqui — disse ele beijando-lhe a testa e a linha dos cabelos. — Isto ajuda um pouco?
— Por favor — murmurou ela, tentando virar-se. — Por favor, não.
Depois de uma carícia lenta e prolongada, ele pegou as rédias do cavalo e dirigiram-se para fora do parque.
Blair pôs a mão em seu peito e seu coração estava disparado, pelo menos estariam em lugar público, pensou, e depois ele a levaria para casa, e poderia mais uma vez tornar a ser ela mesma e manter aquele homem perigoso em seu lugar, que era nos braços de sua irmã, e não nos seus.
Mais tarde, alguém contou a Blair que na verdade houvera uma recepção para o governador, e que ela comparecera e o encontrara e que tinha conseguido falar de uma forma coerente, mas não conseguia lembrar-se de nada daquilo. Para ela parecia ter estado o tempo todo nos braços de Leander, durante aquelas poucas horas dançando sobre um chão de vidro e não vendo nada além dos olhos dele, mergulhando em suas profundezas verdes.
Ela lembrava-se de diversas pessoas dizerem que nunca a tinham visto tão bonita ou visto Lee tão feliz. Houvera mil perguntas sobre o casamento, e Blair não sabia nenhuma das respostas, mas não importava, porque Lee estava sempre ali para levá-la ao salão de danças outra vez.
Se eles conversaram, ela não se lembrava de nada do que tinha dito. Ela só se lembrava de seus braços, de seus olhos e de como ele a fazia sentir-se.
Foi quando um menino trouxe um recado, dizendo que precisavam de Lee em algum lugar, que ela voltou a si e percebeu que aquela noite mágica tinha acabado. Ela sentia-se como uma cinderela, e teria de pagar o preço pela noite maravilhosa.
— Você pode ficar e arranjarei alguém para levá-la para casa — disse Lee. — Ou pode vir comigo.
— Você — foi tudo o que disse e ele levou-a para a carruagem que esperava. Não conversaram no caminho através das ruas silenciosas de Chandler, mas Blair sabia que já se distanciara de qualquer pensamento coerente.
Ele curvou-se, tomou a mão dela na sua e, quando ela o olhou, riu. Por um momento. Blair lembrou-se da irmã e sabia que não devia estar ali naquele momento, que o que vira naquela noite fora uma coisa muito íntima para compartilhar, que aqueles sorrisos e beijos eram para Houston, e não tinha o direito de intrometer-se no amor deles. Até aquela noite, ela não tivera idéia de que a ligação de gémeos fosse tão forte como era, que ela podia passar uma noite com o homem que sua irmã amava e, através dessa ligação pudesse reagir tão fortemente a ele, podia até sentir que era ela quem estava apaixonada por ele.
— Bastante quente? — perguntou Lee, e ela concordou. Bastante quente, bastante fria, bastante bêbada, bastante sóbria, pensou ela. Leander parou a carruagem em frente de uma casa que Blair nunca vira antes.
— Seu paciente está aqui? Pensei que estávamos indo para a enfermaria.
Lee levantou os braços para ela.
— Gostaria de pensar que foi minha presença que fez com que esquecesse a casa que escolhemos.
Antes que Blair pudesse disfarçar o erro, ele continuou:
— Pensei que talvez pudéssemos falar sobre alguns dos planos para o casamento. Não temos sido capazes de conversar muito ultimamente.
— Mas, e o seu paciente? Não devíamos...
Ele tirou-a da carruagem.
— Não há nenhuma emergência, nem há um paciente. Eu queria uma desculpa para sair de lá e desconfio que usei minha profissão. Você não se importa, não é?
— Realmente devo ir para casa. Já é tarde e mamãe na certa estará esperando por mim.
— Pensei que sua mãe tivesse sono pesado e você tivesse dificuldade para acordá-la.
— Bem, sim, ela tem, mas, com Blair em casa, ela está mudando. — Blair sorriu com a ruga de surpresa dele e rapidamente disse que adoraria falar de casamento. Ela passou por ele e parou em frente da porta trancada, esperando que ele não lhe fizesse muitas perguntas
O interior era adorável, feminino, sem excluir o masculino. Blair tinha certeza de que Houston a tinha decorado. Na sala de visitas, um pequeno fogo estava queimando para combater o frio mon-tanhês do Colorado; na frente dele havia uma mesa baixa arrumada com velas, pato assado, caviar, ostras, trufas de chocolate e quatro baldes de prata cheios de gelo e champanha francesa. Al-mofadas estofadas estavam em volta da mesa.
Blair lançou um olhar para Lee, parado ali na lareira, para a comida, o champanha e pensou: Estou em apuros.


Capítulo V


LEANDER ESTAVA PARADO ali olhando-a de uma forma que fez Blair sentir-se como se o sangue estivesse fugindo de seu corpo. Ela passara a última semana perto daquele homem e nunca reparara que ele tinha poderes sobre as mulheres, especialmente sobre ela. Devia ser o fato de serem gêmeas que fazia com que reagisse daquela forma. Houston com certeza era uma esperta que conseguira esconder toda essa paixão sob sua personalidade fria. Ninguém, nem mesmo sua própria irmã, tinha alguma vez desconfiado do fogo que havia por baixo daquela aparência tão altiva. E como Houston deve ter rido consigo mesma do medo que Blair tinha de ela e Lee não combinarem.
É lógico, pensou, se eu estivesse noiva de um homem que me fizesse tremer cada vez que roçasse em mim, acho que não permitiria que outra mulher ficasse sozinha com ele — nem minha própria irmã, ou talvez, especialmente minha própria irmã.
Mas mesmo enquanto pensava essas palavras, dizia a si mesma que ela tinha um homem que a fazia tremer com cada toque seu. Bem, talvez não com cada toque, mas com toques suficientes para, fazer com que ela o amasse.
Quando olhou para Lee outra vez, para a maneira como seu lábio superior franzia e para a ardente intensidade de seus olhos, sabia que, se fosse honesta, teria de admitir que nenhum homem, em nenhum lugar, já a tinha feito sentir-se daquele modo antes, e que nunca tivera qualquer idéia de que aquele tipo de paixão fosse possível.
— Acho que devo ir para casa. Acho que esqueci de fazer alguma coisa — murmurou Blair.
— Tal como...? — Ele estava avançando para ela com passos lentos e firmes.
— Fique aí — respondeu ela, engolindo com dificuldade.
Lee pegou-lhe o braço:
— Você não está com medo de mim, está? Venha até aqui e sente-se. Nunca a vi desse jeito. Não que eu não goste, mas...
Blair tentou relaxar, tentou lembrar-se de que estava fazendo de conta que era sua irmã. Se contasse a Lee naquele momento a brincadeira que as gêmeas estavam fazendo com ele durante toda a noite, ele ficaria furioso — talvez o bastante para desmanchar o noivado. Ela pensou que, se pudesse mantê-lo conversando, se eles conversassem um pouco, bebessem um pouquinho, então talvez pudesse fazer com que ele a levasse para casa. Qualquer coisa, desde que não permitisse que a tocasse.
Sentou-se em uma das almofadas e serviu-se de uma ostra crua.
— Não o vejo com muita freqüência como o dr. Westfield — disse ela sem olhá-lo, mas ouviu o som de uma garrafa de champanha sendo aberta.
— Nunca, segundo me lembro. Coma um morango — disse ele, enquanto mergulhava a fruta no champanha, e ignorava a mão dela estendida e colocava-a em sua boca.
Ele estava trazendo a sua para junto da dela quando Blair engasgou com a fruta. Lee estendeu-lhe um copo que ela tomou agradecendo. Infelizmente, era champanha e, quase no mesmo instante, pôde senti-la subindo.
— Nunca? — perguntou, tentando superar a sensação de leveza, tontura, felicidade que começava a tomar conta dela. — Isso parece tempo demais.
— Demais para a maioria das coisas. — Lee pegou a ponta dos dedos dela e começou a mordiscá-los.
Ela afastou-se de seu toque.
— O que é isso? — perguntou apontando para uma tigela.
— Caviar. Dizem que é um afrodisíaco maravilhoso. Quer um pouco?
— Não, obrigada. — Foi atraída para o copo que Lee tornava a encher. Enquanto bebericava dele, disse — Como você evita peritonite?
Ele chegou-se para mais perto dela, fixando-a com seus olhos hipnóticos:
— Primeiro, você tem de examinar o paciente. — Pôs a mão no estômago dela e começou a movê-la em círculo de um modo lento, leve. — Sinto a pele, o calor, a pele sensível e então movo-a mais para baixo.
Blair, num movimento excitante, tentou afastar-se, e derrubou seu copo de champanha que correu pela mesa abaixo e até a mão de Lee.
Ele recuou com uma risada.
— Vou pôr mais lenha no fogo.
Ela percebeu que ele parecia excessivamente satisfeito com alguma coisa.
— Realmente acho que devo ir para casa. Já deve ser muito tarde.
— Você nem tocou a comida. — Sentou-se na almofada perto dela.
— Comerei se você conversar. Conte-me como tornou-se um médico. O que fez você querer ser um doutor.
Ele parou, colocando pedaços escolhidos de comida no prato dela e olhando-a interrogativamente.
— Disse alguma coisa errada? — perguntou Blair.
— Não, mas você nunca me perguntou isso antes.
Blair queria gritar que era porque nunca tinha realmente conversado com ele antes. Tomou um longo gole de vinho para disfarçar o embaraço, enquanto Lee punha galinha com molho de vinho em seu prato.
— Talvez foi por ter visto você com a garota hoje à noite.
Ele espichou seu corpo longo e magro ao lado dela, centímetros afastado, as calças justas em volta de suas coxas, vinho na mão, olhando para o fogo.
— Eu queria salvar pessoas. Você sabia que minha mãe morreu, não porque estava tendo um bebê com quarenta e cinco anos, mas porque a parteira que acabara de fazer outro parto não lavou as mãos?
Ela parou com o garfo a caminho da boca.
— Não — disse devagar —, não sabia. Deve ter ficado doido quando Blair perguntou sobre condições assépticas.
Ele virou-se para ela, sorrindo.
— Blair não me aborrece em nada. Aqui, coma outra ostra. Ela não sabia se ficava alegre ou ofendida por seu comentário de que ela não o aborrecia em nada.
— Você certamente a perturba. Sabia que ela acha que você é igual ao sr. Gates?
A boca de Lee ficou aberta por um momento.
— Que idéia absurda! Por que não relaxa aqui a meu lado?
Blair moveu-se na direção dele antes mesmo de considerar o que estava fazendo. Mas parou. Talvez fosse o champanha que a estivesse deixando tão atrevida. Claro, aquilo não explicava seu comportamento na rua River, no parque ou na recepção.
— Não, obrigada — disse numa vozinha-de-Houston afetada. — Estou muito bem onde estou. Você pretende trabalhar sempre na enfermaria?
Com um suspiro, ele olhou de novo para o fogo.
— Você não precisava tornar-se um médico para ajudar as pessoas, não é? — insistiu ela. — Você podia ter construído um hospital, não podia?
— Graças a meu avô rico que me deixou uma herança, sim, poderia. Mas queria fazer alguma coisa por mim mesmo. Se eu puder encontrar outro médico que esteja interessado, gostaria de abrir uma enfermaria de mulheres, alguma bem mais completa do que aquela clínica de dois cômodos que foi montada para elas agora. Gostaria de um lugar decente, onde mulheres como minha mãe pudessem ser tratadas. Mas todos os médicos dizem que os ginecologistas deviam tratar de mulheres cujas doenças estão em suas cabeças.
— E sobre Blair? — perguntou ela, repentinamente alerta.
— Blair? Mas é uma mu... — Ele parou de repente ao ver o olhar dela. — Talvez. Quando tiver terminado o estágio. Não vamos começar a falar sobre ela outra vez. Venha cá.
— Realmente acho que eu devia ir...
— Houston! — falou com aspereza — É assim que vai ser sempre? Você sempre me recusará? — Sua voz mostrava a raiva aumentando. — Se nós nos casarmos, você ainda vai me recusar?
— Se? — murmurou Blair. — Se nós nos casarmos? — O que tinha ela feito para causar aquilo? Poderia ele estar pensando em desmanchar o casamento depois de somente uma noite com Blair? Seria Houston tão mais ardente do que aquilo com Leander a ponto de ele estar considerando suas reações naquela noite imperdoavel-mente frias?
— Querida, não vamos discutir. — Abriu os braços para ela.
Blair hesitou só um momento antes de se lembrar da recomendação de Houston sobre não discutir com Lee. Talvez se ela o beijasse mais algumas vezes, ele ficaria satisfeito e a levaria para casa a salvo.
Ela foi até ele, deixou que a abraçasse, seu corpo todo contra o dele e, quando ele começou a beijá-la, esqueceu de todos, exceto deles dois.
Leander mantinha-a junto dele de uma forma quase desesperada, como se temesse seu desaparecimento, e Blair estava muito consciente de que aquela poderia ser a única vez em sua vida que teria perto de si aquele homem que a fazia sentir-se assim. Sua boca tomou a dela num domínio total, não deixando-a ir quando agarrou-se a ele.
Quando as mãos dele foram para suas costas e seus hábeis dedos de cirurgião começaram a soltar os botões e presilhas do vestido, ela nem pensou em pará-lo. O vestido começou a cair, e, quando seus ombros tornaram-se visíveis, Lee beijou-os, correu as mãos por sua pele até que arrepiasse.
Em instantes, o vestido era um amontoado atrás deles e o farfalhar da anágua de tafetá de seda rosa entre os dois era um maior estímulo para a crescente paixão. As longas pernas de Leander moviam-se sobre o tecido engomado, torcendo-o e puxando-o do corpo dela ao mesmo tempo.
Blair não podia afastar-se dos lábios dele, e suas mãos enterraram-se em seus cabelos longos e limpos, sentindo o forte odor másculo.
— Leander — murmurou, quando os lábios dele moviam-se em seus braços e as mãos livravam-na das duas outras anáguas. Cetim, tafetá e o mais macio dos algodões os rodeavam, aconchegando-os no clarão quente da lareira.
As mãos dele em seu corpo pareciam estar em todos os lugares, alisando-a, acariciando-a, removendo as roupas com infinito cuidado e lentidão, deslizando cada peça de tecido por sua pele, expondo mais dela para seu toque.
Com a mão na perna dela, subindo e descendo sobre a meia de seda, seus lábios no lóbulo de sua orelha, ela percebeu que ele ainda estava com as roupas e ela começou a puxá-las.
Ao remover suas próprias roupas, ele não usou o cuidado que teve com as dela, mas, pelo contrário, arrancou-as com uma força bem próxima da violência.
Na escola de medicina, Blair vira muitos homens nus, e uma vez Alan sem camisa, mas nunca um homem assim quente, vivo, de pele morena, queimada de sol, vindo para ela com fogo nos olhos, como Lee estava agora. Por um momento ela se afastou, quando ele se dirigiu para tomá-la de volta em seus braços.
Havia cautela nos olhos dele, quando ela se afastou, mas Blair não viu. Tudo que via era Lee — sua pele, sua pele adorável, cobrindo firmemente seus ombros musculosos, descendo até seu estômago plano. Com interesse ela olhou mais abaixo, curiosa por ver a diferença de um homem.
— Passei no exame?
Blair não respondeu, ao puxá-lo para si e pôr seus braços em volta daquela pele que brilhava tanto.
Leander não perdeu mais tempo para remover o resto da roupa dela, tirando as ligas das meias e até desabotoando os sapatos, tudo sem parar de acariciá-la, de tal forma que, quando ficou completamente nua, Blair começou a sentir que sua paixão aumentava a um nível que poderia até levá-la à loucura.
Nada do que já sentira antes preparara-a para a sensação de sua pele contra a de Lee. Com um grito sufocado de prazer, agarrou-se a ele, deslizou sua perna entre as dele e tentou ficar mais junto.
Lee puxou-a sobre ele, beijando-a, as mãos correndo por suas costas, suas coxas e voltando às nádegas, deslizando pelos lados até seus seios.
Sua boca não deixou a dela quando a rolou de costas e lentamente afastou-lhe as pernas com a sua.
Em teoria Blair sabia como as espécies humanas se reproduziam. Nas aulas especiais para mulheres solteiras na escola de medicina, nenhum dos professores mencionara a paixão envolvida no ato. Ela não imaginava que uma mulher se sentisse daquele modo, que não se tratasse de um ato com a simples finalidade de procriação, mas de amor e desejo.
Ela estava pronta para Lee, quando a penetrou, mas doeu; ela gemeu com a dor. Ele permaneceu parado por um momento, a respiração quente no pescoço dela, seus lábios parados, enquanto esperava por algum sinal por parte dela.
Blair recuperou-se do primeiro momento de dor e começou a mover os quadris lentamente, as mãos nas costas dele, levando-as para baixo até alcançar-lhe as nádegas. Somente a respiração en-trecortada de Lee em seu ouvido mostrava-lhe o esforço supremo de se controlar, de se conter a fim de não a machucar.
Somente quando ela começou a mover-se foi que ele lhe seguiu o ritmo, e muito devagar começou a fazer amor com ela.
Não havia dor quando Lee fazia lentas e gentis investidas, e Blair, a princípio embaraçada, movia-se com ele. Dentro em pouco, a lentidão deixou a ambos e a paixão revelou-se num frenesi. Eles não conseguiam o suficiente enquanto se arqueavam, um contra o outro, se agarrando, se prendendo, tentando o impossível para juntarem-se mais, até que por fim explodiram juntos.
Blair abraçava-se a Lee como se tivesse medo de que ele se fosse.
Seus corpos suados colados, tão juntos, que as peles pareciam de um só.
— Eu te amo — murmurou Leander em sua orelha. — Não tinha certeza de amá-la antes. Não tenho certeza de que a conhecia antes desta noite. Nem de que somos as mesmas pessoas de ontem. Mas sei que amo você e, Houston, nunca amei outra mulher.
Por um momento, Blair ficou sem entender por que o homem que estava em seus braços a chamava pelo nome da irmã.
A lembrança voltou-lhe rápida demais, com uma sensação de puro horror, e ela começou a afastar-se de Lee.
— Tenho de ir para casa — disse ela, e sua voz mostrava tudo o que sentia.
— Houston — disse Lee —, isto não é o fim do mundo. Estaremos casados dentro de duas semanas, e então passaremos todas as nossas noites juntos.
— Deixe-me levantar! Tenho de ir para casa.
Ele olhou-a por um longo momento, como se estivesse decidindo se ficava ou não zangado, mas por fim sorriu.
— Pode ficar tão envergonhada quanto queira, querida. Aqui... deixe-me ajudá-la com isso.
Blair nem podia olhar para ele. Fora a experiência mais maravilhosa de sua vida, mas na verdade não pertencia a ela. Enganara a irmã, enganara o homem com quem ia se casar, e mentira para aquele homem que... que...
Por sob os cílios, olhou para Lee que a ajudava com os cordões do espartilho. Se não fosse cuidadosa, voltaria para seus braços e, se lhe pedisse, provavelmente embarcaria no próximo trem com ele e esqueceria todas as suas obrigações com outras pessoas.
— Você parece saber muito bem como se haver com roupas de baixo de mulher.
Lee fez uma careta enquanto lhe estendia a anágua de tafetá.
— O suficiente, suponho. Devo colocar as ligas para você?
Tirando as meias da mão dele, Blair sentou-se em uma cadeira e começou a rolá-las nas pernas, fazendo o possível para tentar ignorá-lo. O que fora que fizera? Houston iria odiá-la. E o que diria Lee quando descobrisse que sua noiva era virgem — outra vez? E o que diria Alan se soubesse? Como poderia explicar-lhe? Alguém iria acreditar se dissesse que ele a tocara e depois disso não tivera mais controle sobre seu próprio corpo? Talvez todas aquelas coisas que Duncan Gates lhe dissera a seu próprio respeito fosse verdade.
— Houston — disse Lee, ajoelhando-se em sua frente —, parece que quer chorar. — Tomou-lhe as mãos nas suas. — Olhe para mim, querida. Sei como foi educada e que queria continuar virgem até que nos casássemos. Mas o que aconteceu esta noite foi entre nós e está tudo certo. Serei seu marido dentro de muito pouco tempo, e então poderemos nos amar quantas vezes quisermos. E se você está preocupada com a moralidade do que fizemos, sou um médico e posso lhe dizer que muitas, muitas mulheres antes do casamento passam algum tempo sozinhas com os homens que amam.
Lee estava tornando tudo pior. O homem a que ela amava não era aquele com o qual acabava de fazer amor, e o homem com quem devia se casar não lhe tirara a virgindade. Ela levantou-se:
— Por favor, me leve para casa — disse ela, e Leander obedeceu-lhe.

 

Capítulo VI

 

— BOM DIA — disse Leander, com uma alegria fora do comum, para seu pai e sua irmã, Nina, que se sentavam à mesa do café da manhã.
Nina, de vinte e um anos e muito bonita, parou com a xícara de café a caminho da boca.
— Então é verdade o que ouvi — disse ela.
Lee serviu-se de um enorme prato cheio de comida, em uma mesa ao lado.
— Bem de manhã Sarah Oakley ligou e contou-me que ontem à noite, na recepção, você e Houston não conseguiam tirar os olhos, ou mãos, um do outro. Disse nunca ter visto um casal tão apaixonado.
— Foi? — perguntou Lee. — E o que há de tão fora de comum nisso? Eu pedi à linda jovem para casar-se comigo.
— Mas teve época em que você parecia preferir fugir do que ficar com sua adorável noiva.
Lee sorriu para a irmã.
— Quando você crescer, irmãzinha, talvez aprenda um pouco mais sobre os pássaros e as abelhas. — Ao pôr seu prato na mesa, de frente para ela, curvou-se e beijou-a na testa.
Nina quase engasgou com a comida.
— É isso! — disse ela, olhando para o pai. — Ou enlouqueceu. Ou finalmente se apaixonou.
Reed estava recostado em sua cadeira e observando o filho com grande interesse. Quando Lee olhou para ele e piscou, seus piores receios foram confirmados.
— Você com certeza conhece muito sobre mulheres, pai — disse Lee sorrindo malicioso e Reed estourou numa risada.
— Acho que não quero saber sobre o que conversaram — resmungou Nina, muito afetada, ao levantar-se para sair. — Acho que ligarei para Houston para lhe dar minhas condolências.
— Diga-lhe que vou buscá-la às onze — disse Lee com a boca cheia. — E levarei uma cesta de piquenique.
Reed permaneceu em sua cadeira e acendeu o cachimbo, algo que raramente fazia pela manhã, observando o filho comer. Em geral, Leander comia devagar e cuidadosamente, mas naquele dia estava devorando a comida como se não fosse haver outro dia. Ele parecia mergulhado num mundo próprio, um mundo de felicidade e planos para o futuro.
— Tenho pensado ultimamente naquele hospital de mulheres — disse Lee, enquanto mordia um pãozinho de uns cinco centímetros de espessura. — Na verdade Houston me fez pensar nele. Talvez seja a hora de eu pensar em construir a coisa, ou talvez comprar aquela velha casa de pedra, o armazém, no fim da avenida Archer. Com algumas reformas e algum dinheiro, aquele lugar pode ser exatamente o que preciso.
— Houston teve essa idéia? — perguntou Reed.
— Na verdade não, mas ajudou. Tenho de ir ao hospital agora, e mais tarde devo encontrá-la. Vejo-o depois. — Pegou uma maçã e, na porta, parou para olhar outra vez para seu pai. — Obrigado, papai — disse, como quando era menino, fazendo com que Reed se lembrasse do menino que já fora, antes de assumir a responsabilidade de planejar um casamento.
Durante toda a manhã, Lee assobiou no hospital e seu entusiasmo foi contagiante. Em pouco tempo, o hospital todo estava sorrindo e reclamando menos do serviço a ser feito. A jovem prostituta que tentara suicídio na véspera foi quem mais lucrou com o bom humor de Lee. Ele conversou com ela sobre a alegria de estar vivo e conseguiu-lhe um lugar na equipe de mulheres, prometendo cuidar dela e ajudá-la no futuro.
Às dez para as onze, saltou sobre sua carruagem e dirigiu-se ao centro da cidade para apanhar a cesta que fizera a srta. Emily preparar em sua casa de chá.
— Então é verdade — concluiu a srta. Emily, sorrindo e fazendo com que seu rosto rosa e branco franzisse como papel crepom. — Durante toda a manhã Nina só falou sobre seu irmão apaixonado.
— Minha irmã fala um pouco demais — retrucou, mas sorrindo. — Não sei o que há de tão fora do comum em estar feliz, pois vou me casar com a mulher mais maravilhosa do mundo. Tenho de ir — disse ele, saindo apressado da casa de chá.
Deixou o cavalo e a carruagem aos cuidados de Willie, o cavalariço de Gates, subiu a escada de dois em dois e levantou a mão para bater na porta.
— Pode entrar — veio uma voz do lado ensombrado da larga varanda. — Estão lhe esperando.
Leander olhou para as sombras e viu Blair ali, com o rosto virado, mas pôde ver que seu cabelo estava despenteado e seu rosto marcado. Foi até ela.
— Aconteceu alguma coisa? Houston está bem?
— Ela está ótima! — retrucou Blair, começando a levantar-se.
Lee pegou-lhe no braço.
— Quero que venha até aqui e sente-se para que eu possa vê-la. Você não parece estar bem.
— Deixe-me sozinha! — Ela meio chorava, meio gritava. — E não me toque! — Afastou-se bruscamente dele, correu pelas escadas abaixo e sumiu de vista, contornando a casa.
Enquanto Lee ficou parado ali, com a boca aberta de espanto, Houston veio pela varanda, calçando as luvas de renda branca.
— Era Blair quem estava gritando? Vocês não estavam tendo outra daquelas discussões, não é? — perguntou.
Lee virou-se para ela com o olhar de pura alegria, os olhos subindo e descendo por ela, como se quisesse tomá-la toda.
— Era Blair — respondeu Lee.
— Bom — disse Houston —, estava querendo que a visse. Ela esteve assim a manhã toda. Por alguma razão, acho que esteve chorando. Pensei que você pudesse saber o que há de errado com ela, pois não respondeu a nenhuma de minhas perguntas.
— Teria de examiná-la — disse Lee, enquanto ajudava-a a subir na carruagem, mas assim que a tocou, parecia não poder deixá-la, e prendeu-a pela cintura.
— Lee! As pessoas estão olhando.
— Sim, claro — deu uma risadinha —, mas logo remediaremos isso.
Ele não confiava em si para conversar muito durante o caminho enquanto saíam da cidade, só olhando ocasionalmente para Houston, notando a maneira como se sentava tão afastada para o lado na carruagem, tão afastada dele como sempre estivera até a noite anterior. Não podia evitar de sorrir para si mesmo ao pensar que aquela jovem mulher fria era a mesma que não tinha podido resistir-lhe na noite anterior.
Ele não dormira muito, mas ficara deitado acordado, revivendo cada momento que passara com Houston. Não era tanto pelo sexo, já tivera isso com outras mulheres antes e não ficara caído por elas, mas por alguma coisa na atitude dela que o fazia sentir-se ótimo, poderoso, como se ele fosse capaz de qualquer coisa.
Ele dirigiu a carruagem até um lugar secreto que encontrara quando de um atendimento a um garimpeiro de perna quebrada, em que fora surpreendido por uma tempestade de verão. Ficava escondido, em meio a rochas enormes, com árvores altas balançando por cima das cabeças. Nunca levara ninguém ali antes.
Parou a carruagem, saltou, prendeu o cavalo e voltou para pegar Houston. Ao levantá-la nos braços, deixou-a escorregar e puxou-a para perto de si, abraçando-a de forma que ela não conseguia respirar.
— Não pensei em mais nada além de você ontem à noite — disse ele. — Podia sentir o perfume de seus cabelos em minhas roupas, podia sentir seus lábios nos meus, podia...
Houston afastou-se dele.
— Você o quê? — gaguejou.
Ele tocou-lhe o cabelo da testa com as costas de seus dedos.
— Você não vai ficar envergonhada comigo hoje, não é? Não vai ser como era antes de ontem à noite, vai? Houston, você me provou que pode ser diferente, portanto não há necessidade de voltar a ser a princesa de gelo. Eu, agora, sei como você é realmente, e posso lhe dizer que, se nunca mais tornar a ver aquela mulher fria, ficarei mais feliz ainda. Agora, venha cá e beije-me como ontem à noite.
— Você está dizendo — disse Houston, livrando-se dele — que ontem à noite eu não fui como normalmente sou? Que eu fui... melhor?
— Você sabe que sim. — Ele avançou para ela, sorrindo. — Você foi como eu nunca vi. Não sabia que podia ser assim. Pode rir, mas estava começando a acreditar que não era capaz de qualquer paixão verdadeira, que sob sua aparência fria houvesse um coração de gelo. Mas, se tem uma irmã como Blair, que pega fogo à menor provocação, certamente algum desse fogo passou para você. — Ele pegou-lhe o pulso e puxou-a para si, ignorando o modo como ela resistia. Também ignorou a tentativa dela de virar a cabeça quando quis beijá-la.
Não houve resposta dos lábios de Houston, que ficaram fechados rigidamente, duros. A princípio, achou divertido que ela estivesse tentando manter-se sob controle e conseguindo, mas quando o beijo continuou, e ela ainda não reagia, afastou-se dela com raiva.
— Está levando esta brincadeira muito longe. Você não pode ser selvagemente apaixonada em um minuto e frígida no seguinte. O que você é? Duas pessoas?
Alguma coisa nos olhos de Houston deu-lhe o primeiro sinal de dúvida. Mas claro que estava errado. Deu um passo para trás.
— Isso é impossível, não é, Houston? Diga-me se o que eu estou pensando está errado. Ninguém pode ser duas pessoas, pode?
Ela ficou ali, parada, e olhou-o com os olhos magoados. Lee afastou-se e sentou-se pesadamente em uma pedra.
— Você e sua irmã trocaram de lugar na noite passada? — perguntou mansamente. — Passei a noite com Blair e não com você?
Mal conseguiu ouvir o murmúrio:
— Sim.
— Eu devia ter percebido desde o começo. Como soube lidar com aquela suicida, e ela nem ao menos sabia que aquela era a casa que eu comprara para ela, quero dizer, para você. Acho que eu não quis ver. A partir do momento em que ela disse querer ir comigo para ver se podia ajudar de alguma forma, fiquei tão: estupidamente satisfeito que não perguntei mais nada. Devia ter sabido quando a beijei... Danem-se ambas! Espero que tenham se divertido me fazendo de bobo.
— Lee — disse Houston, pondo a mão no braço dele.
Ele virou-se para ela raivosamente.
— Se sabe o que é bom para você, não diga uma palavra. Não sei o que deu em vocês para fazerem um jogo sujo desses, mas posso lhe dizer que não gostei de ser alvo dele. Agora que você e sua irmã já riram bastante à minha custa, tenho de decidir o que fazer com relação a isso.
Ele quase jogou-a dentro da carruagem e estalou o chicote sobre o cavalo enquanto disparavam de volta para a cidade. Na casa de Chandler, ele não desceu, e deixou Houston e todos os seus metros de saias descerem sozinhos da carruagem sem ajudar. No; portal, esperando, estava Blair, com o rosto vermelho e inchado de chorar. Leander lançou-lhe um olhar que era uma mistura de mágoa e algum ódio, antes de gritar com o cavalo e partir.
Parou só por alguns momentos na casa de seu pai, antes de montar o enorme garanhão malhado e partir para as montanhas numa carreira desabalada. Não sabia aonde estava indo, mas tinha de seguir em frente e pensar.
Subiu com o cavalo até que o animal não pudesse mais continuar. Então desmontou e puxou-o para a frente, sobre as rochas cruzando arroios, em meio a cactos e uma rala vegetação rasteira..
Quando por fim chegou ao topo da elevação, quando não podia ir mais alto, tirou o rifle da sela do cavalo, firmou-o em sua perna e atirou para o ar até esvaziá-lo. Quando a fumaça se desfez e o alarido dos pássaros cessou, ele gritou com toda a força de seus pulmões, dando vazão à sua frustração e raiva:
— Maldita Blair! — gritou. — Vá para o inferno!
O sol estava se pondo quando Reed Westfield entrou na biblioteca. Ao procurar o interruptor de luz, viu o clarão de um dos charutos de seu filho.
— Lee? — perguntou, apertando o botão para acender as luzes. — O hospital estava lhe chamando.
— Eles encontraram alguém? — quis saber Leander, sem levantar os olhos.
Reed estudou o filho por um momento.
— Encontraram alguém. O que aconteceu com aquele homem que saiu daqui esta manhã? Não me diga que Houston se arrependeu do que aconteceu ontem à noite! As mulheres fazem isso. Sua mãe...
Lee olhou para seu pai com o olhar vago.
— Dispenso mais conselhos sobre mulheres. Não creio que possa agüentar mais algum.
— Diga-me o que aconteceu — pediu Reed, sentando-se.
Lee bateu a cinza de seu charuto:
— Acredito que, como eles dizem, isto vai virar um inferno dentro de poucos minutos. Ontem à noite... — Parou para tomar fôlego e acalmar-se. — Ontem à noite, as gêmeas Chandler decidiram fazer uma brincadeira. Acharam que seria muito divertido trocar de lugar e ver se podiam enganar o pobre e estúpido Leander. Elas conseguiram. Amassou o charuto no cinzeiro e levantou-se, andando até a janela. — Está certo que fui enganado, mas não por Blair ter feito um trabalho tão bem-feito ao tentar imitar sua irmã. Na verdade, ela fez um pouco mais do que se vestir como Houston. Ela me ajudou em um caso médico sem que eu tivesse de lhe dar instruções. Estava interessada em minha vida, algo com que Houston nunca se preocupou muito. Blair perguntou sobre os meus sonhos e esperanças para o futuro. Em outras palavras, é a mulher perfeita com que todos os homens sonham.
Virou-se de volta, para olhar o pai:
— E ela foi a amante perfeita. Acho que a vaidade de todo homem é querer uma mulher que não lhe possa resistir. Ele gosta de pensar que pode convencê-la de qualquer coisa. Até agora, todas as mulheres que conheci estavam interessadas no dinheiro que eu tinha no banco. Tive mulheres que não se interessavam por mim quando pensavam que eu era um humilde e mal pago doutor, mas, quando sabiam que minha mãe era uma Candish, seus olhos começavam a brilhar. Blair não foi assim. Ela foi... — A voz dele extinguiu-se aos poucos, ao voltar-se para olhar a janela.
— Houston não está interessada em seu dinheiro — disse Reed. — Ela nunca esteve.
— Quem sabe o que Houston quer da vida? Passei meses com ela e não sei nada sobre ela. Para mim, é uma mulher fria que não faz nada além de parecer bonita. Mas Blair é viva! — A última frase saiu com tamanho entusiasmo que Reed apertou os olhos:
— Acho que não gosto desse tom. Houston é a mulher com quem vai se casar. Sei que Blair é uma garota avançada, e é uma vergonha o que aconteceu ontem à noite, mas tentei avisá-lo de que este tipo de coisa poderia pô-lo em apuros. Tenho certeza de que Houston ficará zangada, mas se cortejá-la bastante e mandar-lhe muitas flores, com o tempo ela o perdoará.
Lee olhou para o pai:
— E sobre Blair? Irá ela me perdoar?
Reed dirigiu-se até a grande escrivaninha de nogueira que dominava a sala e pegou um cachimbo de uma caixa.
— Se ela é o tipo de garota que dorme com o prometido da irmã, então imagino que já saiba como resolver a situação.
— E supõe-se que isso signifique o quê?
— Exatamente o que parece. Ela esteve no leste durante todos estes anos, indo à escola com homens, estudando coisas que não tinha direito de saber e tentando ser um homem. Garotas como ela sabem, por experiência própria, como recuperar-se de casos de curta duração.
Leander levou minutos para controlar suas emoções.
— Vou me esquecer de que você disse isso. Mas quero que saiba que, se alguma vez disser alguma coisa assim, sairei por aquela porta e nunca mais voltarei. Não é de sua conta, mas Blair até ontem à noite era virgem. E dentro de duas semanas pretendo torná-la minha mulher.
Reed ficou tão pasmado que permaneceu ali, abrindo e fechando a boca como um peixe fora da água. Lee tornou a sentar-se e acendeu outro charuto.
— Acho melhor contar-lhe tudo o que sei sobre o que aconteceu. Como disse, ontem à noite, por alguma razão, as gêmeas decidiram trocar de lugar, e assim foi Blair quem eu levei à recepção. Já tinha planejado fazer o que pudesse para seduzi-la e, se a encontrasse de má vontade, iria desmanchar o noivado. Acho que esperava ter de fazer isso, pois estava tão certo de que ninguém, ou pelo menos eu, poderia quebrar a camada de gelo que cerca Houston.
Manteve o charuto fora, e um fraco sorriso curvou-lhe os lábios ao lembrar-se da noite anterior.
— Depois de estar sozinho com ela durante cinco minutos, eu estava tão satisfeito que nem ao menos me ocorreu questionar quem era ela ou por que estava se comportando de forma tão diferente. Houve uma emergência na rua River e ela foi comigo, diferente de Houston, que sempre insistia que a deixasse na casa de uma de suas amigas. Fomos à recepção, e mais tarde para nossa casa. De um modo geral, foi a noite mais agradável de minha vida.
— Portanto, agora, você acha que deve casar com ela — disse Reed com um tom de resolução final. — Não poderia dar um tempo? Você mal a conhece. Casamento é para sempre. Terá de passar sua vida com essa mulher, e o conhecimento de uma noite não deve ser tomado como base. Só porque ela é fogosa na cama não significa... — parou ao ver o olhar de Lee. — Tudo bem — continuou Reed. — Agora, então, você pede a mão da jovem Blair em casamento. O que acontecerá com Houston? Você simplesmente se afasta dela? As mulheres sofrem muito com essas coisas, você sabe.
— Já que tudo isso foi começado pelas gêmeas, não me sinto muito mal. Elas deviam ter pensado nas conseqüências.
— Elas dificilmente poderiam saber que você escolheria esta noite para decidir seu futuro. Antes de pedir a Blair que case com você, por que não espera um mês ou mais? Isso dará algum tempo a ambos para pensarem no que estão fazendo.
— É muito tarde para isso. Além do mais, não acredito que Blair casasse comigo.
— Não...? — começou Reed. — Se ela dorme com você, por que diabos não se casaria com você?
Apesar da raiva na voz de seu pai, Lee começou a sorrir.
— Não estou certo de que ela gosta de mim. Ela acha que sou um opressor como Gates, e honestamente acredito que, se pedir que case comigo, rirá na minha cara.
Reed levantou as mãos com desespero.
— Mas não compreendo nada disso.
Naquele momento, a porta da frente foi aberta com violência, e imediatamente ouviu-se uma gritaria pela casa. Lee levantou-se da cadeira.
— Sem dúvida deve ser o ultrajado senhor Duncan Gates. Fui à sua fábrica de cerveja há uma hora e contei-lhe que deflorei sua enteada e, para reparar o erro, disse que gostaria de casar com a garota volúvel. Ele está trazendo Blair, e nós quatro iremos discutir o caso. Não fique tão aborrecido, pai. Eu quero tê-la e usarei qualquer método para consegui-la.


Capítulo VII

 

— NÃO TENHO absolutamente nenhuma intenção de casar com ele, nenhuma — disse Blair pela vigésima vez.
— Você está maculada. É indecoroso — esbravejava Duncan —, ninguém mais a quererá.
Blair tentava o mais que podia manter-se calma e não mostrar o turbilhão que agitava seu interior. Gates estivera gritando com ela e tentando intimidá-la durante três horas seguidas. Ela pensava na calma de seu tio Henry, em como ele olharia para tudo o que aconteceu com algum humor, e como eles sentariam e conversariam sobre a situação como se fossem adultos sãos. Mas não Gates. Ele tinha a idéia medieval de que, se ela não era mais virgem, deveria ser jogada aos cães — ou para Leander, o que era mais ou menos a mesma coisa.
— Posso perguntar-lhe por que não quer casar com meu filho? — perguntou Reed Westfield.
Blair podia sentir a animosidade vinda do homem, como ondas de calor em um deserto.
— Já lhe disse que fui aceita como interna num grande hospital da Pensilvânia e que pretendo aceitar a oferta. Além disso, não amo seu filho. Ele é noivo de minha irmã, e, assim que for possível, depois do casamento deles, voltarei para a Pensilvânia, e ninguém nesta cidade me verá outra vez. Não sei como fazer-me mais clara do que isso.
— Você arruinou a vida de sua irmã! — gritou Gates. — Acha que ela poderá casar-se com ele depois disso?
— Está o senhor insinuando que Leander era... ah, imaculado, como deixou claro, antes de ontem à noite?
O rosto de Duncan ficou vermelho.
— Acalme-se, Duncan — disse Reed. — Blair, deve haver um modo de resolver isto de maneira satisfatória para todos. Com certeza você deve ter algum sentimento por meu filho.
Blair olhou para Lee, que estava de pé no fundo da sala e parecendo estar se divertindo com tudo. Nenhum sentimento que pudesse falar publicamente, pensou ela, e, como se Lee pudesse ler seus pensamentos, sorriu para ela de um modo que a fez corar e ter de desviar o olhar.
— Já lhe disse antes — disse ela. — Estava fingindo ser minha irmã, e agi do modo que pensei que ela agiria com o homem que amava. Não acho que deva ser punida por ser uma excelente atriz.
Reed levantou uma sobrancelha.
— Não acredito que qualquer atriz leve seu papel tão longe.
— E não terei o nome de Houston arrastado na lama por você ou qualquer outra pessoa — gritou Duncan. — Ela não faria o que você fez. Ela é uma boa moça.
— E eu não sou, é isso? — perguntou Blair dividida entre lágrimas e ofensas.
— Uma mulher decente não iria...
— Já ouvi tudo o que queria ouvir — disse Lee, dando uns passos à frente. — Podem nos deixar agora? Queria conversar com Blair sozinho.
Blair queria protestar que não queria vê-lo sozinha, mas talvez ele não fosse gritar com ela como os outros.
— Gostaria de tomar um pouco de sherry? — perguntou ele, quando ficaram sozinhos.
— Por favor — respondeu ela, pegando o copo com as mãos trêmulas.
Ele franziu as sobrancelhas quando viu as mãos dela.
— Não tinha idéia de que Gates fosse tão mau assim. Houston me contara, mas não imaginara metade daquilo.
Blair tomou o vinho com gratidão e esperou que seus nervos se acalmassem.
— Se você não pensava que ele fosse tão bravo, por que procurou a ajuda dele para seu esquema ridículo?
— Eu queria toda a ajuda que pudesse conseguir. Pensei, corretamente, que se fosse até você por minha conta, você riria na minha cara.
— Não estou rindo agora.
— Tudo bem, então vamos deixar isto acertado. Os convites estão na tipografia, e tudo o que tem de ser trocado é o nome de Houston pelo seu.
Blair saltou da cadeira.
— De todas as idéias malucas que já ouvi, esta é a pior. Não pode me entender? Eu não quero casar com você. Eu não quero passar mais outro minuto nesta cidade pavorosa. Quero ir para casa e que minha irmã tenha seu noivo de volta. Que mais tenho de dizer para que me entendam? Eu quero ir para casa!
Apesar de suas boas intenções, deixou-se cair na cadeira, pôs as mãos no rosto e rompeu a chorar.
— Gates está certo — disse chorando —, arruinei a vida de ouston.
Lee ajoèlhou-se na frente dela e muito gentilmente abaixou-lhe as mãos.
— Você não compreende que quero casar com você, não com ouston?
Ela olhou-o por um momento, sentiu suas mãos quentes em seus ossos e considerou o problema, mas, antes de deixar-se persuadir, levantou-se e dirigiu-se até a frente da janela.
— Você pertence à minha irmã. Desde que era uma criança, ela planejou casar com você. Ela tem um baú cheio de roupas de enxoval bordadas com um L e um H entrelaçados. Ela nunca quis ser outra coisa além de senhora Leander Westfield. Ela ama você, não sabe disso? E o que eu amo é a medicina. Medicina tem sido a minha vida desde que eu tinha doze anos, e, agora que consegui esse estágio, quero aceitá-lo, casar-me com Alan e viver feliz para sempre.
Leander perdeu o olhar preocupado que mantinha e levantou-se de repente.
— Alan? E quem, diabos, é ele?
— Desde que voltei para esta cidade, ninguém me perguntou sobre minha vida na Pensilvânia. Gates grita comigo dizendo que sou imoral, mamãe só fica sentada costurando, Houston passa a maior parte do tempo encomendando novos vestidos, e você... você só fica aí dando-me ordens.
Diversas emoções cruzaram o rosto de Lee.
— Quem é Alan?
— O homem de quem estou noiva. O homem que amo. Ele virá a Chandler dentro de dois dias para conhecer minha família e dizer-lhes que ficará honrado em casar comigo.
— Eu estou pedindo essa honra.
— Tenho certeza de que você se apaixonou por mim depois de uma noite. — Para sua surpresa, Leander não respondeu a isso.
Ele brincava com uma espátula na escrivaninha.
— E se eu fizer você querer casar comigo? E se daqui a duas semanas você quiser ir ao altar comigo?
— Não há nenhuma chance de que isso aconteça. Alan logo estará aqui e, além do mais, já lhe disse, você pertence a Houston.
— Pertenço? — disse ele e, com uma passada, atravessou a sala na direção dela, tomando-a nos braços.
Seu beijo foi tão avassalador para seus sentidos como fora na noite anterior quando fingia ser sua irmã. Sentia-se fraca quando ele a soltou.
— Agora, diga-me que não tenho uma chance. — Afastou-se dela. — Já lhe ocorreu que esse Alan pode não querer você depois de explicar por que seu nome está no convite de casamento?
— Ele não é assim. É um homem muito compreensivo.
— Veremos o quão compreensivo ele é. Você vai se casar comigo dentro de duas semanas, e é melhor que comece a se acostumar com a idéia.
Blair tentou de alguma forma manter-se calma até o sr. Gates levá-la de volta para casa. E então ela viu o rosto de Houston. Parecia que nada mais na vida importava para ela. Blair tinha se preocupado com o futuro dela, tinha estado tão ansiosa que quisera sair com Leander só para certificar-se de que sua irmã ficaria bem. E o que conseguira fazer fora destruir todo o futuro de Houston.
Blair implorou à irmã que respondesse, mas Houston recusou-se a falar com ela, e mesmo quando rompeu em lágrimas, ela não cedeu.
O sr. Gates empurrou Blair diretamente para seu quarto no terceiro andar e trancou a porta, deixando-a lá. Mesmo quando Opal veio até a porta e pediu para ver a filha, ele recusou-se a abri-la.
Blair sentou-se durante um longo tempo no quarto escuro, os olhos muitos secos para chorar, uma vez que chorara o dia todo e boa parte da noite. Tinha, então, de arquitetar um plano para safar-se daquela confusão. Não seria forçada a ficar na cidade e casar com um homem a quem não queria nem iria desistir de seu estágio no hospital St. Joseph.
Ficou sentada em silêncio até não ouvir ruído no interior da casa, e então foi até a janela. Quando era criança, conseguia chegar ao chão usando os galhos longos e roliços do velho olmo no lado leste da casa. Se ela pulasse, achava que poderia chegar no ramo mais grosso da árvore — e se falhasse... Ela não gostava de pensar nisso.
Apressadamente, preparou uma mala macia com umas poucas roupas e jogou-a no chão, aguardando um momento pelos barulhos de alarme. Até o momento, tudo certo. Parecia-lhe que ninguém ouvira nada. Vestiu uma saia-calça e subiu sobre o parapeito da janela, segurando-se com uma mão e tateando o mais longe que conseguia com a outra. Ela só podia alcançar as pontas dos galhos da árvore. Puxou um para trás, sabendo que não havia outro meio pelo qual pudesse alcançar a árvore a não ser saltando.
Agachou-se na janela e, com um grande salto, arremessou-se pelo ar, agarrando um galho da árvore.
Ficou pendurada ali, suspensa no ar, e podia ouvir o leve esta-lido da madeira. Tentou diversas vezes, e conseguiu pôr as pernas em volta do galho antes que seus braços não agüentassem mais. Usando toda a sua força, enquanto estava de cabeça para baixo segura pelas mãos e tornozelos, e sentindo os lugares ásperos e pontudos arranharem sua pele através da roupa e das meias, ela tentou impelir-se para o tronco da árvore. Uma vez lá, parou um momento para recuperar o fôlego antes de começar a descida.
Quando finalmente estava no chão, olhou para trás, para a casa, com uma sensação de triunfo. Eles não iriam fazê-la ficar onde não quisesse.
Um ruído à sua esquerda fez com que se virasse.
Um fósforo acendeu-se, e a chama mostrou o rosto de Leander enquanto mantinha o fósforo junto ao charuto.
— Precisa de ajuda com sua mala? — perguntou, olhando para ela.
— O que está fazendo aqui? — gaguejou ela.
— Protegendo o que acho que é meu — disse ele, sorrindo.
— Você estava parado aqui enquanto eu lutava por minha vida no alto daquela árvore?
— Não é tão alto, e não vi perigo de verdade. Quem a ensinou a subir assim?
— Certamente não foi você, que vivia muito ocupado salvando vidas e não podia aprender a subir em árvores quando era um menino.
— Que idéias estranhas você tem sobre mim! Não posso imaginar onde as arranjou. Agora, se já fez seu exercício noturno, sugiro que levemos você de volta para a casa. Primeiro você, minha senhora — disse ele, fazendo uma profunda reverência em direção à árvore.
— Não tenho intenção de voltar para aquela casa. Há um trem para Denver daqui a pouco, e estarei nele.
— Não se eu contar para Gates. Tenho certeza de que irá atrás de você com uma espingarda.
— Você não faria isso!
— Esqueceu-se que fui eu quem começou isso em primeiro lugar? Não pretendo deixá-la sair de Chandler nem agora nem nunca.
— Acho que estou começando a odiá-lo.
— Você não me odiou na noite passada — disse meigamente. — Agora, quer uma repetição da prova de como não me odeia ou posso ajudá-la a voltar para seu quarto?
Blair rangeu os dentes. Ele teria de dormir em algum momento e, quando o fizesse, ela estaria pronta para escapar.
— Pare de me olhar como se gostasse de me ver servido numa bandeja para o café da manhã e venha. — Alcançou o galho mais baixo da árvore e suspendeu-se, estendendo a mão para ela.
Tomou a mão dele com relutância e deixou que a puxasse. Ficou satisfeita com o fato de não lhe dar a mínima ajuda. Ele teve de agüentar um peso morto.
Quando chegaram no telhado, ajudou-a a entrar pela janela, curvou-se e murmurou:
— Que tal um beijo de boa-noite?
Com um leve sorriso, Blair inclinou-se na direção dele, como se pretendesse beijá-lo e, no último instante, bateu a janela de forma que Lee teve de soltar o batente para não ficar com os dedos presos. Por detrás do vidro da janela, ela juntou os lábios como num beijo antes de baixar a veneziana para tirá-lo da vista.
Enquanto sorria, ouviu um estalido de madeira no lado de fora, um grito abafado, e então um ruído pesado.
— Ele caiu — gaguejou, ao escancarar a janela e pôr a cabeça para fora.
— Lee! — chamou o mais alto que ousou.
Para sua surpresa, ele pôs a cabeça pelo umbral da janela e beijou-a rápida e firmemente.
— Sabia que você não poderia resistir.
Com isso, pulou para o galho mais afastado e num tempo recorde estava no chão.
— Você devia ter deixado que eu lhe ensinasse como subir em árvore. — Ele riu para ela e sentou-se sob a árvore como se planejasse passar toda a noite ali. Blair bateu a janela e foi para a cama.

 

Capítulo VIII

 

NA MANHÃ DE DOMINGO, Gates instou Blair a se vestir para ir à igreja e a fazer o possível para parecer uma dama.
O café da manhã foi uma refeição sombria, com Houston mais fria que de costume e tanto ela como Opal pareciam ter chorado a maior parte da noite. Duncan parecia estar permanentemente usando a máscara de um mártir que sofria por todos.
Logo depois da desagradável refeição, Opal alegou não se sentir bem para ir à igreja e retirou-se para seu quarto. Gates levou Blair para um canto e disse-lhe que estava matando a mãe com seus modos imorais.
Mas o pior foi na igreja. O ministro parecia achar que o que acontecera entre as gêmeas era uma grande piada, e fez a congregação rir quando disse que Lee mudara de idéia sobre com qual das gêmeas queria casar.
Depois do serviço religioso, as pessoas rodearam-nas, querendo saber o que estava acontecendo, mas Houston permaneceu calada e dura como uma estátua. E quando Leander tentou falar com ela, respondeu-lhe com indisfarçável ódio, e assim, claro, ele decidiu descarregar a fúria e a frustração em cima de Blair. Agarrou-lhe o braço e quase arrastou-a para sua carruagem, que os aguardava.
Blair foi jogada contra o assento da carruagem quando Lee disparou e dirigiu-se para o sul da cidade. Só quando já estava fora da cidade foi que diminuiu a marcha. Blair endireitou o chapéu.
— Pensou que Houston sorriria para você e diria alguma coisa agradável?
Ele parou a carruagem.
— Pensei que ela seria razoável. Foram vocês duas que começaram a brincadeira toda. Nunca quis humilhá-la publicamente.
— Tudo o que tem a fazer é ajudar-me a voltar para a Pensilvânia, e então pode voltar para Houston de joelhos, e tenho certeza de que ela o aceitará de volta.
Ele olhou-a durante um bom tempo.
— Não, não farei isso. Eu e você vamos casar. Trouxe uma cesta de piquenique e pensei que poderíamos lanchar. — Enrolou as rédeas no cabo do freio, desceu e foi ajudar Blair. Mas, ao passar pelo cavalo, parou. — Parece que estou com uma pedra no sapato — disse, e encostou-se numa árvore para removê-la.
Blair ficou ali por um momento, observando-o, lembrando-se do rosto de sua irmã durante o anúncio na igreja; pensando que não queria ficar em Chandler ou tornar-se esposa desse homem; pegou então as rédeas, agitou-as rapidamente, e gritou para o cavalo andar enquanto Leander ficou ali com um pé descalço. Ele ainda perseguiu-a por um tempo, mas logo parou quando tropeçou em alguma coisa e começou a mancar.
Quando estava bem a salvo dele, Blair diminuiu a marcha do cavalo e voltou a Chandler. Tinha de encontrar um meio de fugir da cidade. Depois do anúncio na igreja de manhã, não poderia embarcar facilmente em um trem sem provocar alguma curiosidade. Ser uma Chandler, numa cidade chamada Chandler, tinha seus inconvenientes. No dia seguinte, Alan chegaria e talvez a ajudasse. Apesar do que dissera a Lee, tinha dúvidas quanto a Alan ainda ser capaz de querê-la depois do que acontecera.
No momento em que Blair viu a casa de Chandler, percebeu que havia alguma coisa errada. Opal estava sentada na varanda e, quando viu Blair, deu um pulo.
— Sabe onde está sua irmã?
Blair subiu as escadas correndo:
— Ela fugiu? Vou me trocar e começaremos a procurá-la.
— É pior do que isso — disse Opal, sentando-se no balanço. — Aquele homem horrível, o senhor Taggert, veio até a igreja e disse a todos que ele e Houston vão se casar, que vai ser um casamento duplo, com você e Leander. O que está acontecendo com minha família? O senhor Gates diz que aquele homem, Taggert, matou gente para conseguir o que tem, e não posso evitar, mas sinto que Houston o está aceitando por ter perdido Leander e querer mostrar à cidade que pode arranjar outro marido. E ele deve ser muito rico. Odeio pensar que ela está se casando com aquele homem pelo dinheiro.
Blair sentou-se no balanço ao lado da mãe:
— Isso tudo é minha culpa.
Opal deu uma batidinha no joelho da filha.
— Você sempre foi fácil de ser convencida a fazer qualquer coisa. Não fique tão surpresa, querida. Conheço minhas filhas muito bem. Apesar de Houston parecer ser tão delicada, sei que era ela quem costumava convencer você a fazer a maioria das coisas ousadas. Você sempre teve o maior dos corações e sempre quis ajudar as pessoas, e é por isso que tenho certeza de que será uma médica muito boa.
— Se eu conseguir sair daqui e continuar meus estudos — disse Blair, desanimada.
Opal brincava com a trepadeira que subia pelo lado da varanda.
— Estive pensando em você e Lee. Pode não ter pensado assim no momento, mas ele realmente é um homem muito fino. Não acho que alguém o conheça muito bem. Ele sempre ficava tão quieto perto de Houston, mas, nos últimos dias, está animado como nunca o vi antes.
— Animado!? É assim que você chama aquilo? Ele fica me dando ordens, diz que vou casar com ele, diz que uma mulher não pode ser sua sócia na clínica que quer construir e, em geral, é um homem com a mentalidade estreita de um leitão.
— E você pensou assim na sexta à noite?
Blair virou o rosto para esconder o rubor.
— Talvez não na ocasião, mas tinha tomado uma grande quantidade de champanha, e havia luar, danças, e as coisas aconteceram.
— Hummm — murmurou Opal evasivamente. — Qualquer que tenha sido a maneira como viu aquela noite, não penso que para Lee foi o mesmo.
— Não sei se me importo com isso. O problema agora é Houston. Voltei para esta cidade e arruinei sua vida de fato, e agora ela diz que pretende casar com aquele Midas feio, Kane Taggert. Como vamos evitar que isto aconteça?
— O senhor Gates e eu vamos conversar com ela assim que voltar para casa, e ver se podemos convencê-la a acreditar que há outra solução além dessa, drástica, que parece estar decidida a tomar.
Blair passou os olhos pelas folhagens que cercavam a varanda e para o canto branco da mansão de Taggert.
— Odeio aquela casa, sincera e profundamente — disse com sentimento. — Se Houston não quisesse tanto vê-la, nós não teríamos trocado de lugar, e eu não teria passado a noite com Leander. E agora, se ela não quisesse tanto aquela casa, não estaria pensando em casar com aquele bárbaro.
— Blair, você deve descansar esta tarde. Leia alguns dos livros que trouxe, e deixe que nos preocupemos com Houston. A propósito, onde está Lee? Por que ele não a trouxe para casa?
Blair levantou-se.
— Acho que descansarei. Não dormi muito na noite passada. E Lee provavelmente logo aparecerá para pegar a carruagem. Em nenhuma circunstância quero vê-lo.
Opal hesitou um momento antes de concordar.
— Mandarei Susan com uma bandeja. E descanse, querida, porque, se eu conheço esta cidade, amanhã será um dia agitado. Assim que todos saibam sobre seu casamento com Lee e de Houston com aquele homem, tenho certeza... meu Deus, não quero nem pensar.
Blair também não queria pensar e, felizmente, foi para o retiro de seu quarto, onde ficou o resto do dia.

A segunda-feira foi muito pior do que Blair pudesse imaginar. No café da manhã, Gates continuou gritando, a boca cheia de comida, afirmando que Blair arruinara a vida da irmã. Uma vez que Blair tendia a concordar com ele, era difícil defender-se. Opal continuava chorando, enquanto Houston tentava manter os olhos afastados, como se não estivesse ouvindo nada daquilo.
Depois do café, começou a chegar gente em grupos — carroças cheias vinham trazendo comidas e desculpas frívolas para justificar a visita. Já fazia tanto tempo que Blair não vinha àquela cidadezinha que ficou estarrecida ao ver como aquelas pessoas eram intrometidas. Não havia nada que não considerassem ser de sua conta. Importante era saber por que Lee estava se casando com Blair. Estavam todos muito curiosos sobre Taggert, fazendo a Houston milhares de perguntas sobre ele e querendo saber como era a casa.
Às onze, Blair entrou na casa, para guardar uma das numerosas tortas que alguém trouxera, e tratou de escapar pela porta dos fundos sem que ninguém a visse. Praticamente correu os três quilômetros até a estação ferroviária, sentindo, a cada passo, que se aproximava mais da liberdade. Quando Alan chegasse, ele seria capaz de endireitar aquela confusão toda, e então Houston poderia casar-se com Leander e ela poderia voltar para casa.
Esperou, com impaciência, que o trem entrasse na estação e, quando por fim chegou, pensou que o vapor nunca se dissiparia. Mas através da névoa ela o viu e começou a correr com o trem, seguindo-o até que ele pudesse saltar e tomá-la nos braços.
Ela não se importava que o povo de Chandler os visse ou que pensassem que estava noiva de outro homem — tudo o que importava era que estava outra vez com Alan.
— Que recepção maravilhosa — disse ele, abraçando-a.
Ela afastou-se para olhá-lo. Ele ainda era tão bonito como se lembrava, com seus cabelos louros, olhos azuis, boa aparência, alguns centímetros mais alto do que ela.
Começou a dizer alguma coisa, quando viu que a atenção dele estava dirigida a qualquer coisa atrás de seu ombro. Virou-se rapidamente, mas não o suficiente.
Leander habilmente deslizou o braço por sua cintura, tratou de puxá-la para si e afastá-la de Alan, em um só movimento.
— Então, você deve ser Alan — disse mansamente, com um sorriso amável. — Ouvi muito a seu respeito. Claro, não há muitos segredos entre amantes, não é, querida?
— Solte-me — falou Blair num sussurro, enquanto tentava sorrir diante do olhar de espanto de Alan. Enquanto empurrava o cotovelo nas costelas de Lee, disse a Alan: — Posso apresentar o noivo de minha irmã? Este é Leander Westfield. E este é Alan Hunter, meu...
Lee cortou-lhe a palavra, apertando-lhe as costelas com a mão, e mesmo três fortes cotoveladas não o fizeram soltá-la. Estendeu a mão para Alan:
— Desculpe a Blair, viu? Ela está um pouco excitada hoje por encontrar um velho e querido amigo. Eu sou o pretendente dela. Vamos casar em duas semanas, na verdade até menos que isso agora, não é, querida? Só mais uns poucos dias e se tornará a senhora Leander Westfield. Sei que a antecipação a está deixando um pouco nervosa e esquecida, mas não deixemos seu amigo ter uma impressão errada. — Ele sorria angelicalmente para Alan.
— Não é nada disso que parece — começou Blair. — Este homem está louco, e tem algumas idéias muito estranhas. — Com um grande empurrão, tentou afastar-se de Lee. — Alan, vamos a algum lugar para conversarmos. Tenho muita coisa para lhe contar.
Alan olhou para Lee, que era muitos centímetros mais alto do que ele.
— Acho que precisamos conversar. — Estendeu o braço para ela. — Vamos? — Olhou por cima do ombro para Lee. — Você pode carregar minhas malas, meu jovem.
Lee conseguiu com sucesso colocar-se no meio do casal.
— Em geral eu adoraria carregar as malas de um amigo de minha futura mulher, mas hoje tenho um pequeno problema. Ontem precisei andar uns seis quilômetros com sapatos novos, e meu pé está com muitas bolhas para agüentarem um peso extra. Meu médico insistiu para que não os cansasse. Vamos, Blair, encontraremos seu amiguinho na carruagem.
— Seu animal! — lançou-lhe ela, enquanto ele a empurrava em direção à carruagem. — E que doutor iria prescrever um remédio asinino como esse?
— Dr. Westfield às suas ordens — disse Lee, ao ajudá-la a subir aa carruagem.
— Esse é um cavalo fora do comum — disse Alan ao jogar suas malas no fundo, referindo-se ao appaloosa que puxava a carruagem de Lee.
— O único nesta região — disse Lee com orgulho. — Aonde quer que eu vá, as pessoas podem ver este cavalo e reconhecem-no. Assim, se precisam de ajuda, podem me encontrar.
— Que tipo de ajuda? — perguntou Alan, ao subir na carruagem.
— Sou médico — respondeu Lee, enquanto estalava o chicote sobre o cavalo e disparava com a carruagem antes que Alan estivesse totalmente sentado ao lado de Blair.
Lee levou-os numa corrida arrepiante, e os moradores de Chandler, pensando que ele estava atendendo um caso de emergência, afastavam-se de seu caminho. Parou em frente da casa que comprara para Houston.
— Achei que este seria um bom lugar para conversarmos.
Os olhos de Blair se arregalaram. Ela não vira a casa desde a noite em que ela e Lee...
— Preciso conversar com Alan, e não com você. E, definitivamente, não aqui.
— A bem dizer, a cena do crime? Bem, acho que poderíamos ir à casa de chá da srta. Emily. Ela tem sala reservada.
— Muito melhor, mas gostaria de ficar sozinha com Alan. Houston e eu... — parou, uma vez que Lee partira em disparada outra vez, jogando-a e a Alan contra o fundo da carruagem.
— E aqui estão nossos pombinhos. Lee, você devia ter nos contado sobre você e Blair — disse a srta. Emily. — Quando Nina nos contou que você estava como o jovem cisne apaixonado, nós todos pensávamos que fosse por Houston.
— Suponho que seja verdade que o verdadeiro amor é cego — disse Lee, piscando para a mulher mais velha. — Podemos ir para a sala reservada? Um velho amigo de minha noiva veio nos visitar, e gostaríamos de conversar.
A srta. Emily lançou um olhar a Alan e sorriu:
— Você tem de conhecer Nina, a irmã de Leander, que é uma jovem muito bonita.
Na sala reservada, depois que o chá com bolos foi servido, Blair fazia caretas e Alan ainda parecia perplexo, mas Lee sorria orgulhosamente.
— Se você não se importa, eu contarei a verdade para Alan — disse Blair assim que a porta foi fechada. — Minha irmã, Houston, queria ir a um lugar...
— Aonde? — interrompeu Lee.
Ela lançou-lhe um olhar penetrante:
— Se você quer saber, ela recebera um convite para ver aquela casa monstruosa de Taggert, naquela noite, e queria ir, e a única maneira seria eu fingir que era ela e comparecer à recepção com você. De qualquer maneira — disse Blair, voltando-se outra vez para Alan, com a voz já sem raiva —, minha irmã queria trocar de lugar durante a noite, como costumávamos fazer quando éramos crianças, e assim fizemos. Só que eu não sabia no que estava me metendo porque ele — olhou para Lee — continuava zangado comigo, quero dizer, com Houston, e eu tentava afastar-me dele e ele não me deixava. E então, no dia seguinte, ele descobriu que trocáramos de lugar, e agora, estupidamente pensa que quero casar com ele.
Alan ficou quieto durante vários minutos.
— Parece que está faltando algum pedaço na história — falou finalmente.
— Eu diria que está faltando cerca de metade — disse Lee. — A verdade é que as gêmeas trocaram de lugar, e, por minha vida, não sei como não percebi logo. Eu estava noivo de Houston, que é uma coisinha gelada, portanto devia ter adivinhado que não era ela, porque, quando toquei Blair, ela praticamente acendeu.
— Como se atreve a dizer tal coisa?
— Só estou contando a verdade, querida — disse Lee, simulando total inocência. — Levei-a para minha casa mais tarde, para uma ceia, e, bem, digamos que tivemos nossa noite de núpcias um par de semanas mais cedo.
— Alan, não foi assim. Eu era Houston, e ela o ama. Só os céus sabem por que, pois não gosto nem um pouco dele. Ele é dominador, egoísta e pensa que uma mulher não poderia ser uma sócia na clínica que quer abrir. Eu só quero ir para casa, trabalhar no St. Joseph e casar com você, Alan. Tem de acreditar nisso.
Alan tinha o cenho franzido, enquanto corria a faca pela toalha da mesa.
— Você deve ter algum sentimento por ele ou não iria...
— Já lhe disse — interrompeu Blair, o rosto mostrando ansiedade. — Eu era Houston, Alan, por favor, acredite. Partirei com você agora mesmo.
— Sobre o meu cadáver — disse Lee.
— Ah! por fim um pensamento agradável — disse ela, sorrindo para ele e cerrando os olhos.
— Diga-me — interrompeu Alan, voltando-se para Lee —, pretende arrastá-la até o altar pelos cabelos?
— Tenho perto de duas semanas. Por ocasião do dia do casamento, ela estará pronta para se casar comigo.
— Tem certeza disso? — perguntou Alan.
— Absoluta — respondeu Lee.
— Vamos fazer uma aposta! — propôs Alan. — No dia vinte, ela casa com você ou parte comigo.
— Concordo.
— Concorda!? — Blair levantou-se da mesa. — Não creio desejar qualquer um de vocês. Não serei negociada como uma cabeça de gado.
— Sente-se. — Lee pôs a mão no ombro dela e empurrou-a de volta para a cadeira. — Você diz que está apaixonada por ele, no entanto não pôde resistir a mim. Portanto quem você quer escolher?
— Não quero saber de escolha. Quero me casar com Alan.
— Isto é o que diz hoje, mas você acaba de me conhecer — disse Lee convencido. — Claro, foi um primeiro encontro marcante, mas... aqui, sente-se. — Olhou outra vez para Alan. — Precisamos acertar algumas regras. Primeira: ela tem de concordar em permanecer em Chandler até o dia 20. Nada de deixar a cidade. E segunda: ela tem de aceitar meus convites. Ela não pode se esconder na casa de Gates ou só sair com você. Qualquer outra coisa é território aberto.
— Parece bastante justo para mim — respondeu Alan. — O que acha, Blair?
O primeiro pensamento de Blair foi sair da casa de chá e deixar os dois ali, mas primeiro queria saber as conseqüências:
— E se eu não concordar?
— Aí eu presumo que planeja fugir da cidade — disse Lee. — Mandarei Gates atrás de você, na Pensilvânia, e depois que ele terminar contando sua história, você não terá uma carreira médica. Por outro lado, se no dia vinte, erradamente, escolher Alan, eu comprarei sua passagem de trem e de alguma forma acalmarei Gates.
Ela examinou a proposta durante um momento, e então olhou para Lee:
— Está certo, mas vou lhe dar um aviso. Não quero me casar com você, e vou fazer com que se sinta aliviado no dia 20, quando partir desta cidadezinha intolerante com Alan, porque vou tornar sua vida a mais desgraçada possível a partir de agora.
Lee virou-se para Alan:
— Amo uma mulher que tem fogo nas veias. Que possa vencer o melhor homem. — Estendeu a mão e Alan apertou-a. Estava combinado.

 

Capítulo IX

 

NO DIA SEGUINTE à chegada de Alan, Blair estava deitada de costas numa colcha estendida sob uma árvore no Parque Fenton. Alan lia um artigo para ela sobre os últimos avanços no tratamento da difteria, enquanto ela observava as nuvens movendo-se acima, escutava o zunido das abelhas e ouvia as risadas das outras pessoas presentes ao parque naquela tarde bonita.
— Blair, você me ouviu? Estava lendo o relatório do doutor Anderson. Que é que você acha?
— Sobre o quê? — perguntou, sonhadora, virando-se sobre o estômago. — Oh — disse, atrapalhada. — Acho que não estava escutando. Estava pensando em minha irmã e no que aconteceu ontem.
Alan fechou o livro.
— Importa-se de compartilhar seus pensamentos?
— Aquele homem, Taggert, mandou-lhe uma carruagem com cavalo e tudo e, junto, o maior diamante do mundo. Houston nem se perturbou. Calmamente apertou aquele anel no coração, dirigiu-se para a carruagem e partiu, e não voltou para casa antes das nove. Minha mãe já estava prostrada de pesar por sua filha estar se vendendo. Assim, tive de passar horas tentando acalmá-la até que pudesse dormir. E, pela manhã, Houston saiu antes do amanhecer, o que fez com que mamãe começasse a chorar outra vez.
— E ela não está preocupada com você? — perguntou Alan, abaixando o texto médico e encostando-se na árvore.
— Penso que tanto ela como o senhor Gates acreditam que estou ganhando um homem melhor do que mereço, ou pelo menos o senhor Gates pensa assim. Não estou certa do que mamãe pensa. Ela está preocupada com o fato de a vida de Houston ter sido arruinada.
Alan correu os dedos pelos lados do livro.
— E você ainda acha que não devo ser apresentado à sua mãe e padrasto?
— Ainda não — disse, sentando-se. — Você nem pode imaginar como é o senhor Gates. Se ele souber que eu... — Ela parou, porque a última coisa que queria fazer era lembrar a Alan, em primeiro lugar, como ficara noiva de Lee. Mas sabia que se Gates soubesse que ela dormira com um homem estando noiva de outro, sua vida seria mais insuportável do que já era. Ele nunca perdia uma oportunidade de lhe dizer que arruinara a vida da irmã, que agora pensava em casar com um homem por seu dinheiro ou por qualquer coisa, para salvar-se da humilhação frente a toda a cidade. Era isso que ouvia de seu padrasto noite e dia.
Deu um fraco sorriso a Alan.
— Não falemos de nada desagradável num dia tão adorável. Por que não vamos dar um passeio ou, melhor ainda, por que não alugamos uma canoa e saímos pelo lago? Nunca mais pratiquei na água desde que deixei o time de remo no outono.
— Gostaria muito — disse ele, levantando-se e oferecendo a mão para ajudá-la a erguer-se.
Dobraram a colcha, apanharam o livro e dirigiram-se à pequena casa ao lado do lago Midnight, onde alugaram uma canoa. Havia vários casais no lago que gritaram, cumprimentando.
— Bom dia, Blair-Houston — diziam, olhando com interesse para Alan, e alguns deles sugeriam que gostariam de ser apresentados, mas ela se fazia de desentendida. Houston podia sentir-se na obrigação de satisfazer a curiosidade da população da cidade, mas Blair não se achava obrigada a nada.
Recostou-se na canoa, enquanto Alan remava, o rosto protegido do sol ardente da alta altitude de Chandler por um chapéu largo, deixando a mão correr na água, e quase adormeceu.
— Bom dia! — ouviu-se uma voz, o que fez com que se aprumasse. Olhou e viu o rosto de Leander, que remava ao lado deles.
— Que está fazendo aqui? — perguntou com o maxilar cerrado. — Vá embora.
— Segundo sua mãe, eu saí com você. Bem, Hunter, você não parece de todo confortável com esse remo. Talvez seja por viver muito em cidade.
— Quer dar o fora daqui com suas observações maldosas? — sugeriu Blair. — Estávamos na mais perfeita paz até que aparecesse.
— Cuidado com seu humor. As pessoas estão começando a olhar, e você não iria querer que eles pensassem que há alguma coisa errada no paraíso, não é?
— Paraíso? Com você? Você não passa de um...
— Hunter, pode dar-me uma mão? — disse Leander, ignorando-a. — Parece que prendi meu pé sob este banco e está começando a inchar.
— Alan, não faça isso — avisou Blair. — Não confio nele. Mas era muito tarde. Alan, recém-saído da escola de medicina e muito consciente de suas responsabilidades de socorrer, não pôde resistir a um pedido de ajuda. No mesmo instante pousou o remo e curvou-se para o lado, para ajudar Lee — e assim que ficou estendido sobre a água, Lee deu um balanço na canoa. Alan, depois de um momento de luta, caiu no lago. No mesmo instante, Blair curvou-se para ajudá-lo, mas Lee agarrou-a pela cintura ie puxou-a para sua canoa.
Ouviam-se as risadas ao redor deles, o ruído de Alan se debatendo na água, tentando voltar para a canoa, e o de Blair, chutando Lee para deixá-la ir. De alguma forma, Lee tentava remar os poucos metros até a praia, usando só um remo, enquanto segurava Blair com o outro braço, tentando sofrer o mínimo de injúria ossível de seus punhos voadores.
Uma vez na praia, postou-se em frente a ela e sorriu como um garotinho que acaba de realizar um feito magnífico.
— Meu chapéu — disse Blair através dos dentes cerrados.
Ainda sorrindo, Lee foi até o pequeno bote de madeira para pegá-lo. E quando ficou de costas e desprevenido, Blair agarrou um remo abandonado e empurrou-o pelas costas com tudo que podia. Para sua grande alegria, ele caiu de cara na lama da margem do lago.
Mas ela não teve tempo de gozar seu sucesso, porque viu que Alan ainda estava se debatendo na água. Agradeceu aos céus pelos anos em que estivera no time de remo feminino, enquanto chegava até Alan com o bote de Lee.
— Nunca aprendi a nadar — disse ele, quando ela o ajudou a subir pelo lado do barco. — Só mexo as pernas para não afundar.
Lutaram para colocá-lo dentro do barco. Alan tossia, pingando água e fraco, depois do que, para ele, fora uma experiência angustiante. Blair olhou para a praia e viu Lee coberto de lama, e isso deu-lhe alguma satisfação. Agilmente, virou o barco e remou até o outro lado do lago, para o local onde o tinham alugado.
Ela acertou o aluguel do barco, enquanto Alan ficava de lado e espirrava. Conseguiu uma carruagem alugada para levá-los de volta para o hotel Imperial, onde ele estava hospedado.
Blair estava tão furiosa que mal olhou para Alan durante todo o caminho para o hotel. Como se atrevia Leander a tratá-la daquela forma em público ou mesmo na privacidade, pensou. Deixara-lhe perfeitamente claro que não queria nada com ele. No entanto, ele insistia em impor-se.
Seguiu Alan pelas escadas até seu quarto.
— Se alguma vez eu puser minhas mãos naquele homem, eu o matarei. Ele é a mais insuportável das criaturas. Pensar que poderia haver possibilidade de querer casar com alguém como ele, exatamente um perfeito exemplo de convencimento. Dê-me sua chave.
— O quê? Ah, está aqui. Blair, você acha que deve entrar em meu quarto comigo? Quero dizer, acha que fica bem?
Blair tomou a chave dele e abriu a porta.
— Pode imaginar viver com aquele homem? Ele é como um garoto muito mimado que tem de ter tudo a seu modo. Agora decidiu que me quer, provavelmente porque sou a primeira mulher que já disse não para ele, e por isso decidiu tornar minha vida miserável. — Parou e olhou para Alan, que pingava água no chão do quarto do hotel. — Por que está parado aí com essas roupas molhadas? Deve se despir.
— Blair, acho que você não devia estar aqui, e com certeza não pretendo me despir em sua frente.
Blair começou a dar acordo de si e percebeu onde estava.
— Você tem razão, claro. Suponho que estava muito zangada para pensar. Vejo você amanhã?
— Se eu não morrer antes de pneumonia — disse ele com um sorriso.
Ela sorriu de volta para ele, começou a sair, e então, num impulso, voltou e lançou os braços em sua volta e pressionou a boca na dele.
Ele abraçou-a com cuidado a princípio, como se não quisesse que ela se molhasse, mas como Blair imprimiu mais o corpo e demonstrou mais paixão, abraçou-a mais apertado, virando a cabeça ao ver-se completamente envolvido no beijo.
Blair afastou-se:
— Tenho de ir — disse meigamente, enquanto dirigia-se para a porta. — Vejo você amanhã.
Alan permaneceu parado por um tempo depois de Blair ter partido, não se preocupando em tirar as roupas molhadas.
— Você não disse não para ele, Blair — murmurou, e quando eu a beijo, você tem de ir. Mas ele pôde fazer você ficar a noite toda.

Na manhã de quinta-feira, Blair entrou correndo em casa, lágrimas descendo pelo rosto, e subiu voando para seu quarto. Teve de abrir caminho entre os inúmeros buquês de flores antes de chegar à cama. Afastando para o lado uma meia dúzia de caixas de chocolates, atirou-se na cama onde passou meia hora soluçando. Leander Westfield estava tornando sua vida impossível. Na véspera, novamente arruinara uma tarde agradável com Alan.
Tinham ido fazer um piquenique no campo, e Lee aparecera, disparando uma arma de seis tiros no ar para assustar os animais e tentara puxar Blair para cima de seu cavalo. Mas conseguira impedi-lo, fazendo o cavalo empinar, e afastando-se.
Alan ficara lá, olhando-os, sem condições de participar, uma vez que conhecia muito pouco sobre o temperamento de cavalos que não estivessem atrelados a uma carruagem. Na verdade, Blair tivera dificuldade em convencê-lo a cavalgarem em vez de alugarem uma carruagem, como ele preferia fazer.
Quando Blair se livrara de Lee e de seu cavalo que empinava, montou um dos que haviam alugado — o outro fugira ao ouvir os tiros da pistola de Lee — e tivera de passar alguns minutos convencendo Alan a montar atrás dela.
Ela passara grande parte de sua infância em cima de um cavalo, e precisara, naquele momento, de toda sua habilidade para fugir de Lee. Ao virar-se uma vez para olhá-lo, agarrado a ela como ameaçado de morte, Alan gritara de medo. Estavam se aproximando com muita rapidez de uma árvore, e o cavalo iria chocar-se contra ela se Lee não abrisse espaço para passarem.
Leander vira o perigo ao mesmo tempo e, num movimento rápido, desviara seu cavalo com tanta firmeza que o animal inesperadamente empinara, atirando-o na poeira. Graças à sua reação, Blair e Alan tinham podido passar a salvo.
Infelizmente, ou felizmente, segundo o ponto de vista de Blair, o cavalo de Lee continuara, procurando a proteção de seu estábulo.
Alan agarrava tanto Blair quanto a sela, enquanto ela mantinha um passo vigoroso de volta para a cidade.
— Você não vai dar-lhe uma carona? São quilômetros até a cidade.
— São só uns nove quilômetros — respondera por cima do ombro. — E, além do mais, ele já deve estar acostumado a andar.
Aquilo fora no dia anterior, e comparado com aquela quinta-feira fora uma felicidade. Naquela manhã, bem cedo, Gates começara a agredir Blair, porque finalmente ouvira falar sobre o que acontecera no lago e sobre como humilhara Lee na frente de todos.
Blair não quisera discutir com ele, declarando conclusivamente que iria com Lee no hospital pela manhã. Mentira, dizendo-lhe que ele queria conversar sobre medicina, pois na verdade esperava não encontrá-lo no hospital.
Gates insistira para que fosse com ele quando saíra para o trabalho, e quando deixou-a, esperou para vê-la entrar pela porta. Como uma prisioneira, pensou.
O interior do hospital lhe era familiar, e o cheiro do fenol, madeira molhada e sabão lhe significavam voltar para casa. Não havia ninguém por perto, de modo que Blair começara a vagar pelos corredores, a espiar dentro dos quartos, a olhar para os pacientes, desejando estar de volta à Pensilvânia e ao trabalho.
Fora no terceiro andar que ouvira alguma coisa que identificara de pronto: o som de alguém tentando respirar.
No mesmo instante tornara-se a dra. Chandler. Entrara correndo no quarto e vira a mulher idosa sufocada, começando a ficar azul. Sem perder um segundo, começara a pressionar o peito da mulher e depois a usar seus próprios pulmões para forçar o ar.
Não tinha aplicado duas respirações quando sentiu alguém afastá-la com violência. Leander empurrara-a com tanta rapidez que por pouco ela não caíra, e começara a limpar a garganta da mulher. Em minutos a paciente estava respirando livremente outra vez e ele a deixara aos cuidados de uma enfermeira.
— Você venha a meu escritório — disse a Blair, mal olhando para ela.
O que se seguira para Blair haviam sido vinte minutos de repreensão como nunca recebera antes em sua vida. Lee parecera pensar que ela estava tentando interferir em seu trabalho e que ela podia ter matado sua paciente.
Nada do que Blair lhe dissera fizera qualquer diferença para sua raiva. Grunhira ao afirmar que devia ter pedido ajuda, em vez de tratar de uma paciente da qual não sabia nada, que o tratamento dado poderia estar errado e causar mais prejuízo do que bem.
Blair reconhecera que ele estava certo e, mesmo enquanto ele falava, começara a chorar.
Leander abrandara-se, parara com a repreensão e pusera o braço em volta dela.
Blair afastara-se, gritando que o odiava e que nunca mais queria vê-lo. Descera correndo as escadas e escondera-se num vão de porta, quando ele passara procurando por ela. Quando o caminho ficou livre, deixou o hospital e tomou um bonde para casa, onde estava naquele momento, chorando e nunca mais querendo ver aquele homem horrível e monstruoso.
Às onze, fez o possível para controlar-se o suficiente para sair de casa e encontrar-se com Alan. Disse à sua mãe que ia encontrar Lee para jogarem tênis e Opal simplesmente concordou, sem dúvida acreditando na filha.
Opal estava sentada na varanda dos fundos, tentando aproveitar a tarde primaveril, sem se preocupar com suas filhas, o bordado nas mãos, quando levantou os olhos e viu Leander parado na porta.
— Oh, Lee, que agradável surpresa! Pensei que você e Blair tivessem ido jogar tênis. Esqueceu-se de alguma coisa?
— Importa-se que eu me sente e aproveite sua companhia por um momento?
— Claro que não. — Olhou para ele. Era raro o bonito rosto de Lee estar marcado por rugas, mas naquele instante parecia que ele estava profundamente aborrecido com alguma coisa. — Lee, há alguma coisa sobre a qual gostaria de conversar?
Leander levou um tempo para responder, enquanto tirava um charuto do bolso interno de seu paletó e dirigia-se a Opal, pedindo permissão para fumar.
— Ela saiu com um homem chamado Alan Hunter, o homem com quem diz que vai casar.
As mãos de Opal pararam de costurar.
— Meu Deus, mais outra complicação! É melhor que me conte tudo a respeito.
— Parece que ela aceitou a proposta de casamento desse homem na Pensilvânia, e ele devia ter vindo na segunda-feira para conhecê-la e ao senhor Gates.
— Mas na segunda, Blair já... E o anúncio de seu casamento foi feito. Portanto... — interrompeu-o Opal.
— Foi a meu pedido que nosso noivado foi anunciado. Tanto Houston quanto Blair queriam manter silêncio e esquecer o que aconteceu. Tenho quase vergonha de admitir que chantagiei Blair para que ficasse em Chandler e participasse da competição.
— Competição?
— Encontrei Hunter na estação de trens na segunda-feira e convenci-o a competir comigo pela mão de Blair. Tenho até o dia vinte para ganhá-la, porque no dia vinte ela vai decidir se quer casar comigo ou deixar a cidade com Hunter. — Virou-se para Opal: — Mas acho que estou perdendo, e não sei como ganhar. Nunca tive de cortejar uma mulher antes. Assim, não estou muito certo do que deve ser feito. Tentei flores, doces e me fazer de bobo na frente da cidade inteira, todas as coisas que pensei que as mulheres gostassem, mas nada parece estar fazendo efeito. No dia vinte ela vai partir com Hunter — repetiu ele, como se aquele fosse o mais trágico dos pensamentos e, com um suspiro, contou a Opal o que acontecera nos últimos dias, o incidente no lago, o problema com os cavalos e aquela manhã no hospital, quando fora, ele admitia, um pouco rude com Blair.
Opal ficou pensativa por um momento.
— Você a ama muito, não é? — disse com surpresa na voz.
Lee endireitou-se na cadeira.
— Não sei se é exatamente amor... — Olhou para Opal, parecendo então ter compreendido que estava lutando uma batalha perdida. — Bem, tudo certo, talvez esteja apaixonado por ela, tão apaixonado que nem me importaria de parecer o idiota da cidade, se pelo menos a conquistasse. — Rapidamente começou a se defender: — Mas não estou a fim de ir até ela com olhar apático e contar-lhe que fiz uma coisa indigna como apaixonar-me na primeira noite que passei com ela. Uma coisa é ter suas rosas atiradas de volta em seu rosto, mas não estou seguro de que gostaria de ter a mesma coisa feita com minhas declarações de amor eterno.
— Penso que você pode estar certo. Sabe como esse outro homem a está cortejando?
— É algo que na verdade me esqueci de perguntar.
— Ele deve ser o "amigo" que sempre lhe manda livros médicos. Blair lê um, e uma hora depois sai de casa, dizendo que vai encontrá-lo.
— Tenho um quarto cheio de livros médicos, mas não posso imaginar enviar um para uma mulher. Suponho que tenho de concordar com o senhor Gates quando se trata de medicina. Desejaria que ela desistisse dessa idéia absurda e se acomodasse e...
— E o quê? Fosse mais como Houston? Você tinha a perfeita dona de casa, no entanto apaixonou-se por outra pessoa. Já pensou que se Blair desistir de sua medicina ela não será Blair?
Houve silêncio entre eles durante alguns momentos.
— Nesta altura, estou querendo tentar qualquer coisa. A senhora acha que devo lhe mandar alguns textos médicos?
— Lee — disse Opal mansamente. — Por que você tornou-se um médico? Quando soube pela primeira vez que queria dedicar sua vida à medicina?
Ele sorriu.
— Quando tinha nove anos e mamãe estava doente. O velho doutor Brenner ficou com ela durante dois dias e ela viveu. Soube então que era isso que queria fazer.
Opal olhou para seu jardim por um momento.
— Quando minhas filhas tinham onze anos, levei-as à Pensil-vânia para visitar meu irmão médico, Henry, e sua esposa, Fio. Nem bem chegamos, Fio, Houston.e eu ficamos com uma febre. Não era séria, mas nos manteve na cama, e Blair foi deixada aos cuidados das empregadas. Meu irmão achou que ela parecia triste,, e convidou-a para ir nas rondas com ele.
Opal parou para sorrir.
— Só soube do que acontecia dias mais tarde, quando Henry estava tão excitado que não podia mais se conter. Parece que Blair desobedecera Henry quando ele lhe dissera para manter-se afastada dos pacientes que estava tratando. No primeiro dia, Blair ajudou o tio num nascimento difícil, complicado, mantendo a cabeça fria e nunca entrando em pânico, nem mesmo quando a mulher começou com uma hemorragia. No terceiro dia, ela o estava assistindo numa apendicectomia de emergência realizada numa mesa de cozinha. Henry disse que nunca vira alguém com tanto jeito para a medicina como Blair. Levei um tempo para me refazer do choque do pensamento de minha filha ser uma médica, mas, quando conversei com ela sobre isso, surgiu uma luz em seus olhos que eu nunca vira antes, e eu soube que se fosse mesmo possível iria ajudá-la a tornar-se uma médica.
Opal parou para suspirar e continuou:
— Eu não levara em conta o senhor Gates. Quando voltamos para Chandler, tudo o que Blair conseguia falar era sobre tornar-se uma médica. O senhor Gates disse que nenhuma moça sob sua proteção iria fazer qualquer coisa tão imprópria para damas. Fiquei quieta durante um ano, observando o espírito de Blair gradualmente tornar-se sufocado. Penso que o golpe final foi quando o senhor Gates proibiu a biblioteca de emprestar a Blair mais livros sobre assuntos de medicina. — Opal deu um leve riso. — Penso que aquela foi a única vez que enfrentei o senhor Gates. Henry e Fio não tinham filhos e pediram-me para deixar Blair ir morar com eles, prometendo que Henry assumiria a responsabilidade de que Blair recebesse a melhor educação que o dinheiro pudesse comprar para uma mulher. Não queria ver minha filha ir, mas sabia que era o único jeito. Se ficasse aqui, seu espírito se quebraria.
Virou-se para Lee, pensativa, antes de concluir:
— Portanto, você vê o quanto a medicina significa para Blair. Tem sido toda a sua vida desde que era uma menina e agora... — Parou de repente ao puxar um envelope de seu bolso. — Isto chegou antes de ontem, de Henry. Ele mandou para mim, pedin-do que fosse contando as novidades a Blair o mais gentilmente possível. A carta diz que, apesar de ela ter sido qualificada para fazer estágio no St. Joseph, apesar de ter ficado em primeiro lugar no teste de três dias de duração, o Comissário da cidade de Filadélfia tinha vetado sua colocação, porque, diz ele, é impróprio ter uma senhora trabalhando junto com os homens.
— Mas isto é... — explodiu Lee.
— Injusto? Não mais injusto do que você lhe pedir que desista da medicina e fique em casa para ver se a empregada passa suas camisas da maneira que você as quer.
Lee olhou para fora, para o jardim, fumando seu charuto, pensando.
— Talvez ela goste de visitar alguns casos comigo no campo. Nada muito difícil; só algumas consultas de rotina.
— Sim, acho que gostaria disso. — Pôs a mão no braço dele. — E, Lee, acho que verá uma Blair diferente da que tem visto até agora. Por ela ter a tendência a ser um tanto franca demais as pessoas algumas vezes não vêem o tamanho de seu coração. Se você continuar a fazer o senhor Hunter parecer um tolo na frente dela, ela nunca o perdoará, e muito menos começará a amá-lo. Deixe-a ver o Lee que esta cidade conhece, aquele que muitas vezes sai da cama às três da manhã para ouvir as queixas da senhora Lech-ner sobre suas dores misteriosas, e o homem que salvou as gêmeas da senhora Saunderson no último verão. E o homem que...
— Está certo — riu Lee. — Mostrarei a ela que na verdade sou um santo disfarçado. A senhora acha realmente que ela sabe alguma coisa de medicina?
Foi a vez de Opal rir.
— Já ouviu falar do doutor Henry Thomas Blair?
— O patologista? Claro! Algumas de suas melhorias na detecção de moléstias foram... — Parou. — Ele é o tio Henry?
Os olhos de Opal brilharam de satisfação.
— O próprio, e Henry diz que Blair é boa, muito boa. Dê-lhe uma chance. Não se arrependerá.

 

Capítulo X

 

O DIA DE BLAIR não ficou melhor com a partida de tênis com Alan. Durante seu tempo de escola, o tio enfatizara a importância do exercício. Dizia que um vigoroso exercício físico ajudaria a melhorar a capacidade de pensar e estudar. Por isso, Blair participara do time de regata, aprendera a jogar tênis com alguns dos outros estudantes e, quando podia, participava da ginástica, ciclismo e praticava um pouco de marcha.
Venceu Alan no tênis.
Alan parecia distraído ao dirigir-se para o lado da quadra. Durante o jogo todo olhara por sobre o ombro, com a expressão de quem espera alguém aparecer a qualquer momento.
Blair estava muito aborrecida quando o jogo terminou, por suspeitar que a preocupação de Alan com Lee evitara que jogasse bem.
— Alan, quase chego a pensar que está com medo dele. Até agora nós o vencemos todas as vezes.
— Você o venceu. Sou inútil neste interior. Agora, se pudéssemos nos encontrar numa cidade, talvez eu tivesse uma chance.
— Leander estudou no mundo todo. Tenho certeza de que tanto num salão de baile como num cavalo ele se sente em casa — disse ela, guardando sua raquete.
— Um homem da Renascença? — disse Alan com a voz alterada.
— Alan, parece que você está zangado — disse Blair, ao notar sua preocupação. — Sabe como me sinto a respeito desse homem...
— Sei? O que sei são os fatos: que você saiu com ele uma vez e terminaram passando a noite juntos e que, no entanto, quando a toco, parece ter um controle infinito.
— Eu não tenho de ouvir nada disso — replicou Blair, afastando-se.
Ele pegou-lhe o braço.
— Você preferiria que Westfield lhe dissesse isso? Você preferiria que ele estivesse aqui agora com suas pistolas de seis tiros e sua habilidade para pregar peças num jovem e simplório estudante de medicina?
Ela lançou-lhe um olhar frio, digno de sua irmã:
— Largue meu braço.
Ele imediatamente largou-o, e a raiva deixou-o.
— Blair, desculpe, não quis dizer isso. É que estou tão cansado de bancar o tolo. Estou cansado de ficar em meu quarto de hotel e de não ter permissão de conhecer seus pais. Sinto-me como se fosse o indesejável, mais do que Westfield.
Ela sentiu que dava razão a ele. A raiva de Alan era perfeitamente razoável. Colocou a mão em seu rosto:
— Eu queria partir com você naquele primeiro dia, mas você quis uma competição. Você concordou, e agora minha vida futura como médica está em jogo. Não posso partir de Chandler até o dia vinte. Mas tenho fé de que partirei com você.
Ele acompanhou-a até um quarteirão antes de sua casa e, quando se despediram, Blair sentiu a tensão de Alan. Ele estava preocupado e nada do que Blair lhe dissera parecia ter feito alguma diferença.
Em casa, Blair foi para seu quarto, contente que pelo menos por uma vez sua mãe não lhe dera a relação pormenorizada das flores e bombons que Leander mandara enquanto estivera fora. Em vez disso, Opal simplesmente a cumprimentara com satisfação e voltara para sua costura, enquanto ela quase teve de se arrastar para subir as escadas.
Estava resolvida a não passar a tarde chorando, como passara a manhã. Esticou-se na cama e tentou ler um capítulo sobre vítimas de queimaduras, em um livro que Alan lhe emprestara. Às três, Susan, a camareira, entrou com uma bandeja de comida.
— A senhora Gates disse que trouxesse isto para você e perguntasse se quer mais alguma coisa.
— Não — disse Blair, indiferente, empurrando a comida para fora de alcance.
Susan parou na porta, passando o avental pelo batente:
— Naturalmente você ouviu sobre o que aconteceu ontem.
— Ontem? — perguntou Blair, sem muito interesse. Pensava em como podia Alan pensar que estava interessada em Leander. Já não tinha deixado bem claro para todos os envolvidos que não queria nada com ele?
— Pensei que, talvez, como já estivesse dormindo quando a senhorita Houston voltou ontem à noite, e tendo saído tão cedo hoje de manhã, você podia não ter ouvido sobre o senhor Taggert e a tremenda confusão que fez na festa ao ar livre ontem. Ele carregou a senhorita Houston para fora, e então veio aqui e acredito que sua mãe quase se apaixonou por ele. O senhor Taggert disse que vai comprar-lhe um trem cor-de-rosa e...
Susan conseguira a atenção de Blair.
— Pare um minuto e conte-me tudo. — Encolheu as pernas na cama e começou a comer a comida na sua frente.
— Bem — disse Susan devagar, obviamente gostando de estar sendo centro de atenção. — Ontem, sua irmã compareceu à festa no jardim da senhorita Tia Mankin, a festa para a qual você foi convidada mas não quis ir. Perto dela estava esse homem divino, e a princípio ninguém o reconheceu. É claro que tudo me foi contado, porque, obviamente eu não estava lá, mas tive de vê-lo mais tarde, e tudo o que disseram era mais do que verdade. Nunca pensei que aquele enorme homem sujo pudesse ficar tão bonito. De qualquer forma, ele chegou na festa e todas as mulheres o rodearam, e então ele foi levar comida para a senhorita Houston e derrubou-a no colo dela. Ninguém disse palavra durante um minuto, mas alguém começou a rir, e o que se viu a seguir foi o senhor Taggert carregando a senhorita Houston e levando-a para fora do jardim e colocando-a naquela bonita carruagem que ele lhe comprou. Blair estava com a boca cheia de sanduíche e tentou engoli-lo com leite.
— E Houston não disse nada? Não posso imaginá-la permitindo que um homem faça isso em público. — Blair, na verdade, não conseguia imaginar sua irmã permitindo aquilo nem na intimidade.
— Nunca vi nada parecido acontecer com o doutor Leander, mas a senhorita Houston não só permitiu, como trouxe-o aqui e pediu à sua mãe que o distraísse na sala de visitas.
— Minha mãe? Mas ela chora cada vez que ouve o nome de Taggert.
— Não depois de ontem. Não sei o que há nele que ela gosta, além de sua aparência, porque o homem me assusta de morte, mas ela quase se apaixonou por ele. Ajudei a senhorita Houston a mudar de roupa, e, quando descemos, sua mãe estava lhe pedindo que a chamasse de Opal, e ele estava lhe perguntando de que cor queria o trem que iria comprar-lhe.
Susan retirou a bandeja vazia da cama.
— Mas alguma coisa horrível deve ter acontecido depois que a senhorita Houston saiu com o homem, porque voltou tarde da noite em lágrimas. Ela tentou esconder de mim quando a ajudei a se despir, mas pude ver que estava chorando. E hoje ela não comeu e permaneceu no quarto o dia todo. — Susan deu a Blair um olhar sorrateiro ao parar na soleira da porta. — Assim como você, esta casa hoje não está nada feliz — disse antes de sair do quarto.
Imediatamente, Blair saiu de seu quarto e foi para o da irmã. Houston estava deitada na cama, os olhos vermelhos e inchados, parecendo o retrato da desgraça. O primeiro pensamento que teve foi que a infelicidade de sua irmã era sua culpa. Se não tivesse voltado para Chandler, Houston ainda estaria noiva de Leander e não teria de considerar o casamento com um homem que deixava cair comida sobre ela e a maltratava em público.
Blair tentou conversar com Houston, dizendo-lhe que, se deixasse claro que ainda queria Lee, ela com certeza poderia tê-lo, e não teria de sacrificar-se com Taggert. Mas quanto mais Blair falava, mais Houston se fechava. Não dizia nada, exceto que Lean-der não mais a amava, e que ele queria Blair de uma forma como nunca a quisera.
Blair queria dizer à irmã que, se ela esperasse até o dia vinte, poderia ter Lee. Queria contar sobre o esquema chantagista, e sobre Alan e o quanto ela o amava, mas tinha receio de que isso fizesse com que Houston se sentisse pior, percebendo que ela seria um prêmio de consolação. Tudo o que Houston parecia capaz de dizer era que Lee a tinha rejeitado, que ele queria Blair e que Taggert a estava fazendo infeliz, apesar de não contar a Blair exatamente por quê.
E quanto mais Houston falava, pior Blair se sentia. Em primeiro lugar saíra com Leander para saber se ele seria bom para sua irmã, preocupada pelo fato de ela não se importar com a zanga dele. Mas Houston estava com um tipo de homem totalmente diferente e passava o dia inteiro sofrendo. Se ao menos não tivesse interferido!
Houston estava ao lado de sua cama, tentando parar o mar de lágrimas que lhe descia pelas faces.
— Você pode pensar que falhou com Leander, mas não é verdade. E não tem de punir-se com esse imbecil arrogante. Ele nem ao menos consegue segurar um prato de comida, muito menos...
Blair parou, porque Houston deu-lhe um tapa no rosto.
— Ele é o homem com quem vou me casar — disse Houston com raiva na voz. — Não deixarei você ou qualquer outra pessoa denegri-lo.
Com a mão no rosto, os olhos de Blair começaram a encher-se de lágrimas.
— O que eu fiz está se interpondo entre nós — murmurou. — Nenhum homem, em nenhum lugar, significa mais do que irmãs — disse antes de deixar o quarto.
O resto do dia foi ainda pior para Blair. Se tinha algumas dúvidas quanto ao motivo de Houston se casar com Taggert, elas foram postas de lado antes do jantar, quando uma dúzia de anéis foram entregues da parte daquele homem. Houston lançou um olhar neles e seu rosto iluminou-se como um lampião. Alegremente deixou a sala, e Blair ficou imaginando se uma carruagem e treze anéis seriam suficientes para compensar o ter de viver com um homem como Taggert. Pela expressão no rosto de Houston parecia que ela pensava que sim.
Chegou a hora do jantar, e a animação de Houston fazia Blair sentir-se mal, mas sabia da inutilidade de tentar conversar com a irmã sobre qualquer coisa.
Quando o telefone tocou durante o jantar, Gates disse à empregada que dissesse a quem quer que fosse que ninguém iria falar naquela coisa moderna.
— Pensam que têm o direito de fazer com que conversemos com eles só porque podem fazer a coisa tocar — resmungou ele.
Susan voltou para a sala e seus olhos procuraram Blair.
— A pessoa disse que é muito importante. Devo dizer que é a senhorita Hunter.
— Hunter — disse Blair, com a sopa a meio caminho da boca. — É melhor que eu atenda. — Sem pedir permissão ao sr. Gates, foi quase correndo até o telefone.
— Não conheço nenhum Hunter — estava dizendo Gates, quando ela saiu.
— Claro que conhece — disse Opal mansamente. — Eles mudaram-se para cá, de Seattle, no. ano passado. Você conheceu-os na casa dos Lechness no último verão.
— Talvez, sim. Parece que me lembro. Olhe, Houston, sirva-se desta carne. Você precisa engordar.
— Alô — disse Blair com cautela.
Em vez da voz de Alan, como esperava, ouviu a de Leander.
— Blair, por favor não desligue. Tenho um convite para lhe fazer.
— E o que planeja fazer com Alan desta vez? Já usou armas, cavalos, quase o afogou. Sabia que jogamos tênis hoje? Você poderia ter atirado bolas nele ou atingi-lo com a raquete.
— Sei que minha conduta não tem sido a melhor, mas gostaria de me redimir com você. Durante todo o dia de amanhã estarei de plantão para atender qualquer emergência que surja, e tenho vários pacientes no campo, que preciso ir ver. Pensei que poderia gostar de ir comigo.
Blair ficou sem fala por um minuto. Passar o dia todo fazendo aquilo para o que fora treinada? Não ter de ficar por aí, indo de um passatempo para outro, mas aprender alguma coisa?
— Blair, você está aí?
— Sim, claro.
— Se não quiser, eu compreenderei. Será um longo dia e estou certo que estará exausta quando terminar. Portanto...
— Pegue-me quando precisar. Estarei pronta ao raiar do dia, e amanhã veremos quem desiste primeiro.
Desligou o telefone e voltou para a mesa. No dia seguinte ela seria uma médica. Pela primeira vez em dias não sentiu o peso da carga de responsabilidade por magoar a irmã.
Nina Westfield ouviu a batida na porta durante minutos, antes que alguém fosse atender.
Uma empregada, com o rosto branco e as mãos tremendo, entrou na sala de visitas:
— Senhorita, há um homem lá, diz que é o senhor Alan Hunter, e falou que veio para matar o doutor Leander.
— Meu Deus! Ele parece perigoso?
— Ele só está parado lá, e está calmo, mas seus olhos são selvagens e... ele é muito bonito. Pensei que talvez a senhorita pudesse conversar com ele. Não me parece que seja do tipo matador.
Nina pôs o livro de lado.
— Faça-o entrar, e chame o senhor Thompson, aí no vizinho, para que venha, e mande alguém buscar meu pai. Mande então alguém manter Lee no hospital. Que inventem uma doença se for preciso, só para mantê-lo afastado de casa.
Obedientemente a empregada saiu, e num instante acompanhou Alan Hunter até a sala.
Nina não achou que ele se parecesse com um assassino, e estendeu-lhe a mão com amizade, ignorando as palavras sufocadas da empregada quando fechou a porta da sala. Quando o sr. Thompson surgiu minutos mais tarde, Nina mandou-o de volta, dizendo que tudo tinha sido um engano, e quando o pai chegou apresentou Alan, e os três sentaram-se e conversaram até tarde.
Infelizmente, ninguém pensara em Leander, que ficara tentando ajudar o homem que fora mordomo de sua família durante dezesseis anos. O paciente retorcia-se com dores que ninguém conseguia localizar, apesar de Lee continuar tentando. Cada vez que Lee saía do quarto, o mordomo ligava para a casa dos Westfield, de onde lhe diziam que o homem perigoso ainda estava lá. Ele assim voltava para a cama e apresentava um novo sintoma.
Fora por isso que Leander só tivera quatro horas de sono antes da primeira chamada de emergência. Sendo quatro e trinta da manhã, hesitara em acordar toda a família Chandler e preferira subir a árvore para entrar no quarto de Blair.

 

Capítulo XI

 

HAVIA SOMENTE a luz tênue e cinza-azulada do amanhecer, quando Lee subiu a árvore e atravessou o telhado da varanda do quarto de Blair. Sentia-se como um escolar perto de ser apanhado numa brincadeira. Ali estava ele, vinte e sete anos de idade, um médico. Passara anos na Europa, visitara alguns dos maiores salões, mas naquele momento estava subindo uma árvore e entrando sorrateiramente num quarto de menina, como se fosse um garoto travesso.
Mas, quando entrou no quarto e viu Blair delineada pelo lençol fino, esqueceu todas as inibições. Os últimos dias tinham sido miseráveis. Ele a encontrara e sabia que a queria como à sua própria alma, mas podia vê-la escapando. Alguma coisa nela deixava-o desajeitado, estabanado e tudo o que fazia saía errado. Ele tentara impressioná-la, tentara fazer-se parecer bom comparado àquele pequeno ratinho louro, incompetente, fraco e assustado que ela pensava amar. Lee sabia que Hunter não era homem bastante para ela.
Por um momento ficou curvado sobre ela, gostando que ela fosse macia e doce, como fora naquela noite quando não estivera zangada com ele.
Aquela noite mudara sua vida, e estava determinado a tê-la daquele jeito outra vez.
Com um sorriso e a sensação de que não poderia se controlar, afastou o lençol e meteu-se na cama com ela, de sapatos e tudo. Não havia tempo para muitos carinhos e, antes que ela acordasse e enquanto ainda podia pensar, sabia que o terceiro andar da casa de Duncan Gates não era o lugar próprio.
Ao puxá-la para seus braços beijou-lhe a testa, e, sonolentamen-te, ela aconchegou-se para mais junto dele, quando Lee lhe beijou os olhos e faces. Ele tocou-lhe os lábios com os seus, e Blair despertou de leve, movendo o corpo para mais perto, a coxa deslizando entre as dele, enquanto uma mão descia para levantar-lhe a camisola e acariciar a carne nua.
O beijo aprofundou-se, sua língua tocando a dela, e ela respondeu com avidez, chegando-se a ele para tentar ficar mais perto.
Foi a corrente do relógio de Lee, apertando em seu estômago, através da fina camisola que a acordou, mas não de todo.
— Pensei que você fosse um sonho — murmurou, ao acariciar o rosto dele com a mão.
— Eu sou — disse Lee com voz rouca. Nunca em sua vida tinha precisado usar tanto controle. Queria tirar a camisola dela, acariciar toda aquela carne quente, adorável, sentir sua pele contra a dela. Queria passar seu rosto áspero de barba pela carne macia de seu estômago e ouvi-la gemer em protestos fingidos.
De repente ela sentou-se, endireitando-se:
— O que está você fazendo aqui? — falou espantada.
Ele pôs a mão sobre sua boca e puxou-a para deitar a seu lado. Blair começou a espernear e empurrá-lo.
— Se quiser vir comigo, tem de vir agora, e uma vez que o dia ainda não clareou, não quis bater na-porta de entrada e acordar a casa toda. Quer parar de fazer tanto barulho? Gates poderá vir aqui, e, se ele a encontrar desse jeito, com certeza a fará desfilar pela cidade vestida de sacos e cinzas. — Afastou a mão e ela acalmou-se.
— É preferível ao que você pretendia — disse num murmúrio rouco. — Saia de perto de mim.
Leander não se moveu um centímetro.
— Se eu tivesse tempo, teria entrado aqui na cama sem meus... sapatos, — disse ele, esfregando sua perna entre as dela, e ainda mantendo-a bastante junto de si.
— Você é um convencido, um lascivo... — Parou de repente porque ele prendera seus braços acima de sua cabeça e beijou-a, com gentileza a princípio, aprofundando até que ela não pudesse respirar, e então gentil outra vez. Quando ele afastou-se, havia lágrimas em seus olhos e ela virou a cabeça para o lado.
— Por favor, não — murmurou. — Por favor.
— Não sei por que deveria ter alguma compaixão — disse ele, soltando as mãos dela, mas mantendo-a presa sob grande parte de seu corpo. — Você não demonstrou nenhuma compaixão nos últimos dias. — Ao ver a expressão de seus olhos, soltou-a. — Se eu sair pelo caminho que entrei, pela árvore, você se vestirá e me encontrará lá na frente?
Os olhos dela perderam a expressão de animal acuado:
— E iremos atender uma chamada?
— Nunca vi uma mulher ansiar tanto por sangue e ferimentos antes.
— Não é isso. Gosto é de ajudar as pessoas. Se eu puder salvar uma vida, então minha vida...
Ele beijou-a rapidamente antes de pular fora da cama.
— Pode me fazer o discurso do doutor recém-formado no caminho. Dez minutos, está bem?
Blair só concordou com a cabeça e saltou da cama quase antes de Lee sair pela janela. Nem reparou como aquele comportamento era fora do comum, porque nada em sua vida parecia normal desde que voltara para Chandler.
Blair tirou de dentro do guarda-roupa, de junto de algumas das roupas de inverno de Houston, uma vestimenta da qual muito se orgulhava. Mandara-a fazer em Filadélfia, na velha e tradicional firma de alfaiataria de J. Cantrell e Filhos. Trabalhara semanas com eles desenhando e planejando uma roupa que suprisse todas as necessidades que pudera imaginar em futuras emergências como médica e que mesmo assim fosse discreta. Na loja do alfaiate, tentara usá-la montada num cavalo de madeira, para estar certa de ser curta o bastante para dar-lhe segurança, e longa o bastante para impor respeito.
A jaqueta era cortada com uma perfeita simplicidade militar; a saia parecia cheia e feminina, mas dividida em duas, dando assim a segurança e o conforto de calções. A roupa era feita de sarja azul-marinho, a mais fina e a mais bonita que o dinheiro pudesse comprar, com vários bolsos fundos, que sumiam nas pregas do tecido, uma aba abotoada sobre cada bolso a fim de que não perdesse nenhum dos instrumentos preciosos. Havia uma cruz vermelha simples na manga, para designar a finalidade da roupa.
Blair calçou um par de sapatos pretos de couro de bezerro todo amarrado — modelo de menino em vez dos sapatos estreitos da moda, que torturavam os pés das mulheres —, agarrou sua maleta de médica nova e desceu apressada as escadas para encontrar-se com Leander.
Ele estava encostado na carruagem, fumando um de seus pequenos e finos charutos, e por um momento Blair temeu ir a qualquer lugar com ele. Sem dúvida passaria o dia todo lutando para afastar as mãos dele de seu corpo, e nunca conseguiria fazer coisa alguma para ajudar um paciente.
Ele lançou um olhar rápido para sua vestimenta e pareceu aprovar com um aceno de cabeça, antes de saltar para a carruagem, deixando que Blair se virasse sozinha.
Assim que ela subiu, ele partiu daquele modo com o qual Blair já estava começando a se acostumar: teve de se agarrar para preservar sua vida.
— Onde é esse primeiro caso? — gritou ela acima dos sons da carruagem, que corria a toda velocidade pela estrada sul, fora de Chandler.
— Em geral já não atendo mais esses chamados, uma vez que trabalho no hospital a maior parte do tempo — gritou em resposta. — Portanto, alguns desses casos eu ainda não vi, mas acontece que conheço este. É Joe Gleason, a mulher dele está doente. Tenho certeza de que é outro bebê. De alguma forma, Effie consegue produzir um a cada oito meses. — Lançou-lhe um olhar de lado. — Já pegou um recém-nascido?
Blair confirmou com a cabeça e sorriu. Por morar com seu tio, tinha uma vantagem que os outros colegas do curso não tinham: oportunidade de trabalhar com pacientes em vez de só aprender teoria em livros.
Depois da corrida que deixou Blair machucada de tanto bater contra a lateral da carruagem, Leander parou em frente a uma pequena cabana de madeira ao pé das montanhas, o terreno liso na frente cheio de galinhas, cachorros e um incontável número de crianças magras e sujas — todas parecendo estar lutando entre si por espaço. Joe, pequeno, esquelético, quase sem dentes, enxotava crianças e animais de seu caminho com o mesmo desprezo.
— Ela está lá, doutor. Não é próprio de Effie ficar deitada durante o dia, e agora ela está lá há quatro dias, e hoje de manhã não consegui acordá-la. Tratei-a o melhor que pude, mas nada parece ajudar.
Blair seguiu os dois homens para dentro da casa, olhando para as crianças magras e de olhos arregalados enquanto ouvia o começo do relato de Joe sobre o que tinha acontecido.
— Eu estava cortando lenha e a cabeça do machado soltou e feriu Effie na perna. O corte não foi muito feio, mas sangrou muito, e ela sentiu-se tonta, portanto ficou na cama durante o dia todo. Como disse, tratei-a da melhor maneira que pude, mas agora estou preocupado com ela.
O pequeno quarto, onde a mulher estava deitada como uma pilha de roupas inerte, era escuro e cheirava mal.
— Abra aquela janela e arranje-me um lanpião.
— O homem da carroça disse que o ar não era bom para ela.
Leander lançou um olhar, ameaçador, e Joe correu para abrir a janela.
Depois de providenciado o lampião, Lee sentou-se ao lado da cama da mulher e afastou as cobertas. Sua perna estava enrolada com uma atadura suja, rançósa, grossa.
— Blair, se o que está embaixo disto é o que estou pensando, talvez você...
Blair não lhe deu chance de terminar. Estava examinando a cabeça da mulher, levantando as pálpebras, tomando o pulso, e por fim curvando-se para sentir a respiração.
— Acho que esta mulher está bêbada — disse ela com espanto, enquanto olhava em volta do quarto.
Na mesinha rústica próxima à cama estava uma garrafa vazia com o rótulo: ELIXIR DA VIDA DO DR. MONROE. GARANTIDO PARA A CURA DE QUALQUER DOENÇA.
Ela manteve o vidro no ar.
— Tem dado isto para sua esposa?
— Paguei bom dinheiro por isso — disse Joe indignado. — Dr. Monroe disse que lhe faria um mundo de bem.
— Esta coisa também é do dr. Monroe? — perguntou Lee, indicando a atadura grossa.
— É um emplastro para câncer. Achei que se isso podia curar câncer poderia também curar Effie de um pequeno corte. Ela vai ficar boa, doutor?
Lee não se preocupou em responder ao homem, enquanto começava a jogar pedaços de madeira no velho fogão que estava no canto do quarto e punha um bule de água para ferver. Enquanto aguardavam a fervura e, mais tarde, quando ele e Blair estavam escovando as mãos, fez a Joe algumas perguntas:
— Você lhe deu mais alguma coisa? — perguntou, temendo a resposta do homem.
— Só um pouco de pólvora pela manhã. Ela estava tendo dificuldade para acordar, e pensei que pólvora ajudaria a reanimá-la.
— Você podia muito bem tê-la matado — disse Lee, e seu rosto empalideceu um pouco, quando começou a erguer os lados da atadura imunda da perna da mulher inconsciente, bem acima do joelho. Assim que viu a carne sob a atadura, fez uma careta.
— Exatamente o que pensei. Joe, vá ferver mais alguma água. Terei de limpar isto tudo.
O homenzinho lançou um olhar para o que havia sob a atadura e saiu correndo do quarto. Lee, os olhos no de Blair, afastou o tecido imundo para que pudesse ver.
Vermes miúdos, se retorcendo, cobriam a perna em carne viva e inchada.
Blair controlou sua reação, enquanto pegava instrumentos na maleta de Lee e os entregava a ele. Segurou uma bacia esmaltada enquanto Lee começava a tirar cuidadosamente os vermes.
— Estas coisas são na verdade uma bênção disfarçada — dizia Lee. — Os vermes comem a parte putrefata do ferimento e mantêm-no limpo. Se esses — manteve um, suspenso na ponta de sua pinça — não estivessem aqui, provavelmente estaríamos agora amputando. Até já ouvi dizer que antigamente os médicos usavam vermes numa ferida para que eles a limpassem.
— Então talvez seja bom que este lugar seja tão imundo — disse Blair com desgosto, olhando em volta do quartinho desagradável.
Lee olhou para ela interrogativamente.
— Deveria ter pensado que este tipo de coisa seria muito para você.
— Tenho estômago mais forte do que você pensa. Está pronto para o fenol?
Enquanto Lee ia limpando mais a ferida, Blair sempre estava pronta com o que ele precisasse, sempre a meio passo na frente dele. Ele entregou-lhe as agulhas e linha, e ela costurou as bordas da ferida, enquanto Lee permanecia atrás, observando cada movimento dela. Resmungou quando ela terminou a costura e deixou-a aplicar ataduras limpas no ferimento.
Joe chegou para dizer-lhe que a água estava fervendo.
— Pode usá-la então para ferver estes trapos que chama de lençóis — disse Lee. — Não quero mais nenhuma mosca entrando debaixo do curativo. Blair, ajude-me a tirar estes lençóis de debaixo dela. E também quero algumas roupas limpas para ela. Blair, você pode trocá-la enquanto Joe e eu vamos ter uma conversa.
Blair não tentou banhar a mulher, mas estava certa de que o ferimento da perna era o lugar mais limpo de seu corpo. Conseguiu meter o corpo grande da mulher em um dos camisolões de noite do Joe, enquanto ela rolava e resmungava algumas vezes em seu estupor de bêbada. Pela janela aberta, podia ver os dois homens ao lado da cabana, Lee dominando o homenzinho, gritando com ele, batendo em seu peito com o dedo e em geral assustando-o para valer. Blair quase sentiu pena de Joe, que só fizera o melhor que sabia por sua esposa.
— Onde está o doutor? — perguntou uma voz de homem atrás dela.
Ela virou-se para ver um sujeito usando calças de couro e camisa de algodão de vaqueiro, parado na porta, o rosto ansioso.
— Eu sou uma médica. Você precisa de ajuda?
Os olhos fundos no rosto magro dele olharam-na de cima a baixo.
— Não é a charrete do doutor Westfield que está lá fora?
— Frank? — perguntou Lee por detrás deles. — Alguma coisa errada?
O vaqueiro virou-se:
— Uma carroça caiu pelo barranco abaixo. Havia três homens nela, e um deles está muito ferido.
— Pegue minha maleta — disse por cima do ombro para Blair e correu para a carruagem, que já estava em movimento quando ela chegou lá. Em silêncio, Blair jogou as duas maletas no chão da carruagem, agarrou o suporte do teto e pôs o pé no estribo, enquanto agradecia ao sr. Cantrell pelo modelo de sua roupa que lhe dava tal mobilidade.
Lee agarrara seu braço mais alto com uma mão, e mantinha as rédeas com a outra, e ajudou a içá-la para dentro quando o cavalo já disparava num galope total. Quando sentou-se, as maletas presas firmemente entre seus pés, olhou para Lee e ele piscou para ela — uma piscadela em que mostrava algum orgulho dela.
— Este é o Rancho Bar S — gritou Lee —, e Frank é o capataz.
Seguiram o vaqueiro, Lee fazendo o carro ir quase tão rápido quanto o cavaleiro sozinho, durante cerca de seis quilômetros antes que vissem qualquer construção. Havia quatro pequenos barracões e um curral precariamente localizado no lado do pico Ayers. Lee agarrou sua maleta, jogou as rédeas para um dos três vaqueiros que estavam por perto e entrou no primeiro barracão, e Blair, maleta na mão, em seus calcanhares.
Havia um homem deitado num catre, a manga esquerda encharcada de sangue. Lee cortou o pano habilmente e um jorro de sangue atingiu sua camisa. A placa de sangue seco na camisa do vaqueiro tinha tampado temporariamente a artéria cortada e evitara que o homem sangrasse até morrer. Lee prendeu a artéria com os dedos e manteve-a; não havia tempo para pensar em lavar as mãos.
Os vaqueiros ficaram parados perto deles, mal deixando espaço, enquanto Blair espalhava fenol em suas mãos e, com um gesto que era tão preciso como se já trabalhassem juntos há anos, Lee soltou a artéria enquanto os pequenos dedos de Blair a pegavam. Ele então desinfetou as mãos, preparou uma agulha e, enquanto ela mantinha a ferida aberta, ele costurava. Em poucos minutos, tinham suturado o ferimento.
Os vaqueiros recuaram e seus olhos estavam em Blair.
— Acredito que ele ficará bom — disse Lee, levantando-se, limpando o sangue de suas mãos com um pano limpo de sua maleta. — Ele perdeu muito sangue, mas, se superar o choque, acredito que conseguirá. Quem mais?
— Eu — disse um homem em outro catre. — Quebrei minha perna.
Leander rasgou a perna da calça do homem, apalpou o osso da canela.
— Alguém segure os ombros dele. Terei de puxá-lo para o lugar.
Blair olhou em volta da sala, e três homens passaram na frente dela para segurar os ombros do vaqueiro. Encostado numa parede estava um homem enorme, com braços do tamanho de pernis. Seu rosto grande, largo, que parecia ter estado em muitas brigas, estava branco, e Blair reconheceu que era de dor. Ele tinha um braço carregando o outro. Foi até ele:
— Você estava no acidente da carroça?
Ele lançou-lhe um olhar e então afastou-se:
— Esperarei pelo doutor.
— Também sou uma doutora, mas você está certo. Provavelmente eu o machucarei mais do que pode agüentar — disse ela começando a afastar-se.
— Você? — disse o homem; quando Blair o encarou, viu que seu rosto ficara ainda mais pálido.
— Sente-se — ordenou, e ele obedeceu, sentando-se num banco perto da parede. Ela removeu a camisa dele o mais cuidadosamente que pôde, e viu o que supunha que estivesse errado com ele: aquele enorme ombro dele tinha se deslocado na queda. — Vai doer um pouco.
Ele levantou a sobrancelha sob uma testa porejada de suor.
— Já está doendo agora.
Todos os vaqueiros estavam reunidos em volta de Lee enquanto ele tratava da perna quebrada, e um deles, bem atrás da turma, tinha uma garrafa de uísque nos lábios. Blair tirou-a dele e entregou para seu paciente.
— Isto ajudará. — disse ela.
Não estava segura de ser fisicamente bastante forte para fazer aquilo, mas também não podia ficar parada e esperar que Lee terminasse enquanto aquele outro homem sofria. Tratara uma vez de um deslocamento, e tinha sido numa criança.
Com uma respiração funda e uma oração, começou a dobrar o antebraço dele, e então forçou-o contra a parede de seu peito. Pegando uma caixa de alimentos enlatados, subiu nela e, com grande esforço, tentou levantar o enorme braço bem no alto e rodá-lo. Repetiu procedimento, tentando não provocar-lhe mais dor. Estava suando e ofegante com o esforço de tentar mover aquele braço enorme para dentro de uma junta que era tão grande quanto seus quadris.
De repente, o úmero encaixou no lugar com um estalido alto, e a proeza estava feita.
Blair desceu da caixa, e ela e seu paciente sorriram um para o outro.
— A senhora é uma ótima doutora — disse ele, radiante.
Blair virou-se e, para sua surpresa, viu que todos no quarto, inclusive os outros dois homens feridos, a estavam olhando. E ficavam observando, enquanto ela enfaixava o ombro do homem com seu melhor estilo de atadura-de-cesta, deixando-o tão bonito quanto confortável e útil. Quando terminou, Leander quebrou o silêncio:
— Se vocês dois estão prontos para acabar de se congratularem, eu tenho mais pacientes para ver. — Suas palavras não condiziam com o brilho de orgulho em seus olhos.
— A senhora não é uma das gêmeas Chandler? — perguntou um vaqueiro, acompanhando-a até a carruagem.
— Blair — respondeu ela.
— Ela também é uma doutora — disse Frank, e todos olhavam-na estranhamente.
— Obrigado, doutor Westfield e doutora Chandler. — disse o homem do ombro deslocado, enquanto eles se dirigiam à carruagem.
— É bom acostumarem-se a chamá-la de doutora Westfield — disse Leander estalando as rédeas. — Ela vai casar-se comigo na próxima semana.
Blair não pôde dizer nada, uma vez que caiu na carruagem, quando o cavalo de Leander disparou.


Capítulo XII

 

LEANDER DIMINUIU o passo do cavalo, quando se afastaram da fileira de barracões.
— A governanta de meu pai nos preparou um lanche. Pararei, enquanto você o pega, e comeremos a caminho do rancho.
Ele permaneceu na carruagem, como um gladiador numa biga, e Blair levantou o banco.
— Que espaço enorme — disse ela, surpresa, olhando para os cobertores, uma espingarda, caixas de munição, equipamento extra e ferramentas que estavam guardadas sob o banco de dobradiça. — Não acredito que já tenha visto um compartimento com tanto espaço antes.
Leander olhou-a com o cenho franzido, por sobre o ombro, mas ela não viu.
— É assim que abre — resmungou, ensinando-lhe.
Blair meteu a cabeça bem dentro do compartimento, olhando para os lados dele.
— Não acredito que antes fosse assim. Penso que foi alterado, alguma coisa removida para deixar mais espaço. Me pergunto por quê.
— Comprei este carro usado. Talvez algum fazendeiro quisesse carregar seus porcos aí atrás. Vai pegar a comida ou vamos morrer de fome?
Blair tirou uma grande cesta de piquenique do compartimento e sentou-se.
— É bastante grande para esconder um homem — disse ela, ao tirar uma caixa de frango assado, uma travessa de salada de batatas e uma garrafa de limonada gelada da cesta.
— Vai falar sobre isso o dia todo? Que tal se eu lhe contasse algumas histórias de quando estava como interno em Chicago? — Qualquer coisa, pensava Leander, para tirar aquele espaço ali de trás da cabeça dela. Se os guardas das minas de carvão fossem metade observadores como era Blair, ele então não estaria vivo.
Comendo frango com uma mão e segurando as rédeas com a outra, Lee contou a ela uma longa história de um jovem que fora trazido pela polícia uma noite e, por já estar azul por falta de respiração, foi declarado em definitivo como morto. Mas ele achara que havia esperança. Tentara manipulações rítmicas, mas como não houvera reação nenhuma, examinara o paciente, descobrindo que seus olhos estavam com pontinhos, e Leander desconfiou que o homem era uma vítima das "gotas que derrubam": ópio.
— Vai comer toda essa salada de batatas sozinha? — perguntou Lee e, quando Blair começou a entregar-lhe a travessa e o garfo, ele disse que possivelmente não poderia comer a salada, o frango, e dirigir a carruagem. Portanto, Blair teve de mover-se até ficar ao lado dele, para ir lhe dando a salada na boca.
— Continue com sua história.
— Percebi que o único meio de evitar que o homem entrasse em coma era continuar a respiração artificial até que revivesse. Nenhum dos outros médicos perderia tempo com um homem que já consideravam morto. Assim, foram para a cama, e as enfermeiras e eu fomos nos revezando, tentando salvar o homem.
— Tenho certeza de que as enfermeiras lhe ajudariam — disse ela.
Sorriu para ela:
— Não tive muito trabalho com elas, se é a isso que se refere.
Ela enfiou-lhe uma garfada cheia de salada na boca.
— Você vai contar vantagem ou contar a história?
Leander continuou a contar sobre a longa noite tentando salvar o homem, de como pegara um pano gelado e esfregara repetidamente no estômago descoberto do homem, das estimulações do coração e dos galões de café preto. Ele e as enfermeiras trabalharam em revezamento a noite toda, fazendo-o andar até de manhã, quando acharam que estava fora de perigo e podiam pô-lo na cama e deixá-lo dormir.
Lee tivera menos de duas horas de sono naquela noite, antes de estar de volta para seu plantão, e, na ronda matinal, fora ao quarto de seu paciente, pronto para ser modesto com os arroubos de agradecimento do homem, por ter trabalhado com tanto empenho para salvar sua vida.
— Mas o que o homem disse foi: "Veja doutor, eles não pegaram meu relógio. Estava a salvo dentro de minhas calças, escondido dos ladrões que me envenenaram".
— Ele nem ao menos reconheceu tudo o que você fez por ele? — perguntou Blair incrédula.
Leander sorriu para ela, e, num instante, ela começou a ver o humor da situação. Existem ocasiões em que ser um médico não é toda aquela glória que alguém esperou, mas somente muito trabalho duro.
Terminaram o lanche e, enquanto viajavam, Blair fez Lee contar-lhe mais histórias sobre suas experiências como médico, tanto na América como no exterior. Por sua vez, ela contou-lhe sobre o seu tio Henry e seus estudos, dos professores que foram tão rudes, dizendo que as mulheres estariam competindo com os médicos homens, que esperavam que elas fossem mal treinadas de modo que, claro, as mulheres tinham de ser as melhores. Contou-lhe sobre os exaustivos testes de três dias, que fizera para entrar no hospital St. Joseph.
— E passei — disse ela, e continuou a contar sobre o hospital.
Ela não percebeu o modo como Lee a olhava enquanto falava sobre seu futuro como médica.
No começo da tarde, alcançaram os limites do rancho Winter, e Lee levou-a para a velha e grande casa do rancho para visitar a filha de oito anos do rancheiro, convalescente de febre tifóide.
A menininha estava muito bem, e ambos ficaram para tomar um copo de leite de vaca ainda quente e um enorme pedaço de pão de milho.
— Provavelmente este é todo o pagamento que teremos — disse Lee ao voltarem para a carruagem. — Médicos não ficam ricos no campo. Bom que você me tenha para mantê-la.
Blair começou a dizer que não tinha planos de ficar em Chandler ou de casar com ele, mas alguma coisa a fez parar. Talvez fosse a maneira como sugerira que ela fosse realmente uma médica, e que, quando — se — eles se casassem, iria praticar a medicina. E, considerando o preconceito e intolerância daquela cidade, aquilo já era dizer muito.
Nem bem tinham deixado as terras do rancho, um vaqueiro cavalgou até eles, o cavalo parando nas pernas traseiras e levantando uma nuvem de poeira sobre eles.
— Precisamos de alguma ajuda, doutor — disse o vaqueiro. Para surpresa de Blair, Lee não partiu imediatamente com a costumeira velocidade.
— Você não é do Lazy?
O vaqueiro concordou com a cabeça.
— Quero levar a senhora de volta para o rancho Winter, antes de seguir com você.
— Mas, doutor — disse o vaqueiro —, o homem foi baleado na barriga e está sangrando. Ele precisa de alguém agora mesmo.
Na véspera, Blair ficaria furiosa por Lee querer excluí-la de um caso, mas naquele momento ela sabia que ele não era contra sua ajuda com os pacientes, portanto o problema devia ser outro. Pôs a mão no braço dele:
— Aconteça o que acontecer, eu também estou nisso. Você não pode evitar. — Havia uma sugestão de ameaça em sua voz que dizia que ela o seguiria se fosse deixada para trás.
— Agora não há tiroteio, doutor — disse o vaqueiro. — A senhora ficará a salvo enquanto o senhor remenda o Ben.
Leander olhou para Blair e depois para o céu:
— Espero não viver para me arrepender disso — disse e estalou o chicote sobre o cavalo, partindo.
Blair agarrou o lado da carruagem:
— Tiroteio? — Mas ninguém ouviu.
Deixaram o cavalo e a carruagem a uma certa distância, e o vaqueiro levou-os até as ruínas de uma casa de barro, fixada numa ladeira íngreme, e com parte do teto desabada.
— Onde estão os outros? — perguntou Lee e olhou para onde o vaqueiro apontou, através de árvores, na direção de outra ruína.
Blair queria fazer perguntas sobre o que estava acontecendo, mas Lee pôs a mão em sua cintura e empurrou-a para dentro da ruína. Quando seus olhos se acostumaram, viu um homem e uma mulher gorda e suja sentados no chão, embaixo do que restava de uma janela, rifles nos ombros, pistolas dos lados, balas usadas espalhadas em volta deles. Num canto estavam três cavalos. Com os olhos arregalados enquanto observava o local, tinha certeza que estava no meio de alguma coisa da qual não gostava.
— Vamos costurá-lo e dar o fora daqui — disse Lee, trazendo-a de volta à tarefa do momento.
Na parte mais escura do barracão, no chão, estava um homem segurando o estômago com as mãos, o rosto branco.
— Sabe aplicar clorofórmio? — perguntou Lee, já esterilizando as mãos.
Blair fez que sim com a cabeça e começou a tirar vidros e velas de sua maleta.
— Ele costuma beber? — perguntou às pessoas do quarto.
— Bem, certamente — disse o vaqueiro hesitando —, mas não temos nenhuma bebida. A senhora tem alguma?
Blair estava muito paciente:
— Estou tentando calcular quanto clorofórmio devo dar a ele, e um homem que toma muito uísque para ficar bêbado precisa de mais clorofórmio para que faça efeito.
— Ben pode beber mais que qualquer um. Toma duas garrafas de uísque só para se sentir bem. Nunca o vi bêbado.
Blair concordou, tentou calcular o peso do homem e começou a pôr o clorofórmio em um cone. Quando ele começou a sentir o efeito, reagiu contra o gás, e ela esticou seu corpo por sobre a metade superior do dele, enquanto Leander segurava a metade inferior do homem. Felizmente, o sujeito estava muito fraco e não pôde prejudicar muito o ferimento.
Quando Lee puxou as calças do homem, e eles viram o buraco que a bala fizera em seu estômago, ela suspeitou que não havia muita chance. Lee não parecia pensar assim, enquanto abria o abdômen.
Um amigo do tio Henry, um médico que se especializara em cirurgia abdominal, certa vez visitara-os vindo de Nova York, justamente quando trouxeram uma garotinha que caíra sobre a metade de uma garrafa quebrada. Blair assistira a cirurgia, quando o médico removera o vidro do estômago da criança e reparara três buracos nos intestinos. Aquela única operação a impressionara tanto que ela decidira especializar-se em cirurgia abdominal.
Mas naquele momento, ao ver Leander e preparar uma agulha após a outra para ele, estava amedrontada. A bala entrara no homem pelo osso ilíaco e o atravessara para sair na parte baixa das nádegas, perfurando os intestinos diversas vezes em sua trajetória.
Os longos dedos de Leander seguiam o caminho da bala, costurando as camadas de intestinos. Blair contou catorze buracos que ele suturou antes de atingir a pele do homem e o buraco de saída da bala.
— Ele não deve comer absolutamente nada durante quatro dias — dizia Leander, enquanto costurava as costas do homem. — No quinto poderá tomar líquidos. Se ele desobedecer e provar comida, morrerá em duas horas, porque a comida o envenenará. — Levantou os olhos para o vaqueiro. — Está claro?
Ninguém respondeu, porque bem naquele instante seis balas entraram zunindo nas ruínas do barracão. — Maldição! — disse Lee, cortando os últimos pontos com a tesoura que Blair lhe entregara. — Pensei que nos dariam tempo suficiente.
— O que está acontecendo? — perguntou Blair.
— Esses idiotas — disse ele, sem se preocupar em abaixar a voz — estão tendo uma briga de grupos. Em geral há sempre uma ou duas acontecendo aqui perto de Chandler. Esta aqui já tem seis meses. Talvez tenhamos de ficar aqui por um tempo até que decidam ter outra trégua.
— Trégua?
Lee enxugou as mãos:
— Quanto a isso são bastante civilizados. Quando uma pessoa é ferida, eles cessam fogo até que um médico possa ser encontrado e trazido para onde quer que estejam escondidos. Infelizmente eles não sentem obrigação de permanecer parados até que o médico saia outra vez. Poderemos ficar aqui até de manhã. Certa vez fiquei preso num lugar durante dois dias. E agora você vê por que eu queria que ficasse no rancho de Winter.
Blair começou a limpar e a colocar os instrumentos de volta nas duas maletas.
— Portanto agora nós só esperamos?
— Agora esperamos.
Lee levou-a para trás de uma parede baixa de tijolos que alguma vez fora uma divisória de quartos. Sentou-se no canto mais afastado e fez sinal a Blair para que se sentasse perto dele, mas ela não foi. Sentia que devia manter-se o mais afastada possível dele, de modo que se encostou na parede oposta. Quando uma bala atingiu a parede, a meio metro de sua cabeça, ela praticamente pulou para os braços de Leander e enterrou o rosto contra seu peito.
— Nunca imaginei que poderia gostar de uma briga de grupos — murmurou ele e começou a beijar seu pescoço.
— Não comece com isso outra vez — disse Blair, apesar de virar a cabeça, a fim de que pudesse alcançar seus lábios.
Não levou muito tempo para que Lee percebesse que não poderia continuar com sua perseguição, não ali e com tantas pessoas presentes e balas voando em volta deles.
— Está certo. Pararei — disse, sorrindo ao ver o olhar no rosto de Blair.
Ela não se afastou, mas continuou em seus braços, uma vez que sua proximidade a fazia sentir-se protegida e o som das balas parecia estar bem longe.
— Diga-me onde aprendeu a suturar intestinos desse jeito.
— Então você quer mais dessa bajulação. Bem, vejamos, a primeira vez...
Blair parecia insaciável. Durante horas ficaram sentados juntinhos, com ela fazendo inúmeras perguntas sobre como ele aprendera coisas, que casos tivera no passado, qual fora seu caso mais difícil, o mais engraçado, e em primeiro lugar por que se tornara um médico, e mais e mais, até que, para dar a si mesmo uma trégua, ele começou a indagar.
O sol se pôs. Houve uma pausa no tiroteio vez por outra, mas na maior parte da noite continuou. Lee tentou fazer Blair dormir, mas ela recusou.
— Vejo que você o está observando — disse ela, indicando com a cabeça o homem baleado. — Você não tem intenção de dormir e nem eu. Quais são as chances que acha que ele tem de viver?
— Tudo depende da infecção, e isso é controlado por Deus. Tudo que posso fazer é costurá-lo.
O céu começou a clarear, e Leander disse que precisava checar seu paciente, que estava começando a se mexer.
Ela levantou-se para esticar-se, e no minuto seguinte um som atingiu-a e fez com que se esquecesse de tudo, menos de sua profissão. Fora o som de uma bala chocando-se com carne.
Blair afastou-se de Lee e correu pelo canto da parede baixa ainda em tempo de ver o que acontecera. O homem que até então não falara fora atingido no queixo, e a mulher pegara uma mão cheia de estérco fresco de cavalo e ia aplicá-lo na ferida aberta.
Não pensou nas balas voando sobre sua cabeça ao ficar em pé e jogar-se contra a mulher. Surpresa, zangada, a mulher começou a lutar com Blair, que teve de se proteger dos punhos dela — mas de maneira alguma iria permitir que pusesse estérco de cavalo num ferimento aberto.
Blair estava tão determinada em seu propósito que nem ao menos percebeu quando ambas rolaram para o espaço largo onde costumava ser a porta. Num momento, ela tentava tirar a mão da mulher de seu cabelo, e, em seguida, ouviu-se o estrondo de um tiro de rifle diretamente acima delas.
Ambas pararam a luta e olharam, para ver Leander de pé entre elas e o barracão do outro lado, um rifle nos quadris, disparando tão logo conseguia carregá-lo.
— Diabos, tratem de entrar — gritou para ambas, e em seguida deixou escapar uma onda de imprecações dirigidas aos homens do outro barracão, dizendo-lhes que era o dr. Westfield, e que sabia quem eles eram, e se alguma vez viessem pedir sua ajuda, ele os deixaria sangrar até a morte.
O fogo cessou.
Quando Leander voltou para o barracão, Blair estava limpando o queixo do homem ferido.
— Se você tornar a fazer alguma coisa como essa, que Deus me ajude... — interrompeu-se, pois não parecia encontrar uma ameaça bastante convincente.
Ficou ao lado de Blair muito quieto, enquanto ela costurava o queixo do homem e punha as ataduras, e quando ela pôs o último pedaço de esparadrapo agarrou seu braço e puxou-a para cima.
— Vamos sair daqui neste minuto. Pelo que me importo eles podem todos ficar atirando um no outro. Não arriscarei você por nenhum deles.
Blair mal teve tempo de agarrar sua maleta antes que Lee a puxasse para fora da cabana.
— Seu homem do sindicato veio na noite passada — anunciou Reed ao filho, assim que Lee entrou em casa.
Leander esfregava um lugar dolorido em suas costas onde o encosto de madeira o tinha incomodado a noite toda, e olhou alarmado para seu pai:
— Você não deixou que ninguém o visse, não é?
Reed lançou ao filho um olhar reprovador.
— Tudo o que fez foi comer e dormir, o que parece ser algo que você não faz há dias. Espero que não tenha mantido Blair fora a noite toda. Gates está atrás de seu esconderijo.
Lee não queria nada além de comer e tirar uma soneca antes de ir para o hospital, mas não parecia que fosse ter tempo.
— Ele está pronto para ir?
Reed ficou quieto por um momento, olhando o filho, sentindo que aquela poderia ser a última vez que o via vivo. Sempre se sentia assim antes de Lee sair para levar um desses sindicalistas para dentro dos campos das minas.
— Ele está pronto — foi tudo o que Reed disse por fim.
Cansado, Lee foi ao estábulo e mandou o cavalariço sair numa incumbência enquanto atrelava um cavalo em sua carruagem. Seu appaloosa estava muito cansado, depois de estar fora a noite toda. Assim, pegou um dos cavalos de seu pai. Olhando para se certificar de que ninguém poderia vê-los, foi até a porta para apanhar o homem que esperava ao lado de seu pai. Lee só lançou um olhar ao jovem, mas ele ostentava a mesma luz nos olhos de todos os sindicalistas: uma luz de fogo, uma intensidade que queimava com tal calor que se sabia que não havia necessidade de falar sobre o perigo que enfrentavam, porque eles não se importariam. O que estavam fazendo, a causa pela qual lutavam, era mais importante que suas vidas.
Leander retirara a maioria dos apetrechos de sua profissão do compartimento na parte traseira da carruagem — o espaço grande que deixara Blair tão curiosa — e então o homem se acomodou nele. Não houve conversa, porque todos os três homens estavam muito conscientes do que poderia acontecer naquele dia. Os guardas dos campos de carvão atirariam para matar primeiro, e perguntar depois sobre o homem morto.
Reed entregou a Lee uma placa de papier-maché, que foi encaixada nas ranhuras laterais do compartimento, acima do nível do homem, uma placa que a uma rápida olhada representava uma pilha de cobertores, uma espingarda, corda e uma serra — coisas que qualquer homem deve ter em seu carro. Em cima, Lee pôs sua maleta de médico.
Por um momento, Reed tocou o ombro do filho, e então Lee foi para a carruagem e partiu.
Leander dirigiu o mais rápido que podia sem causar muita dor ao homem escondido. Duas semanas antes, ele e o pai tinham tido outra discussão sobre o que Lee estava fazendo, Reed dizendo-lhe que não devia arriscar a vida para pôr aqueles sindicalistas dentro dos campos,, e que mesmo sendo preso e de alguma forma conseguisse viver, nenhum tribunal no país iria apoiar o que estava fazendo.
Quando Lee aproximou-se mais da estrada que virava para os campos de carvão, foi mais lento, observando em sua volta o melhor que podia para ver se não havia ninguém por perto que não devesse estar por ali. Com um sorriso, ele se lembrou de quando defendera o homem que possuía as minas de carvão em volta de Chandler, Jacob Fenton, para Blair. Dera desculpas para Fenton e dissera que o homem tinha de dar satisfações para os acionistas, que não era totalmente responsável pela má situação dos mineiros. Com freqüência fazia aquilo para não levantar suspeitas nas pessoas. De nada adiantaria que outros soubessem de seus sentimentos em relação aos maus-tratos recebidos pelos mineiros.
Aos mineiros de carvão eram dadas duas escolhas: ou obedeciam aos regulamentos da companhia ou estavam fora do serviço. Tudo muito simples. Mas os regulamentos não eram para homens, eram para prisioneiros.
Tudo o que se relacionava com as minas pertencia a companhia. Os homens eram pagos com vales que somente podiam ser trocados nas lojas da companhia, e quem fosse descoberto comprando alguma coisa numa loja da cidade seria despedido. E não tinham permissão para sair dos campos para irem à cidade. Os donos das minas alegavam que os campos de carvão eram cidades, e os mineiros e suas famílias não precisavam de nada de outro lugar. E que os guardas dos portões, que não permitiam a ninguém entrar ou sair, estavam mantendo afastados ladrões inescrupulosos e exploradores, "protegendo" os mineiros.
Mas a verdade era que os guardas estavam lá para afastar os agitadores, para evitar que organizadores de sindicatos entrassem nos campos e falassem com os mineiros.
Os proprietários não podiam admitir a possibilidade de uma greve, e tinham o direito legal de colocar guardas armados nas entradas e revistar veículos que entrassem e saíssem.
Eram poucas as carruagens com permissão para entrar: algumas velhas da cidade, que traziam vegetais frescos, um par de conser-tadores eram permitidos vez por outra, os inspetores de minas e havia um médico da companhia que fazia rondas, um médico tão ruim que não conseguia manter-se com atendimento particular. A companhia pagava-lhe quase que só em uísque e, em agradecimento, ele ignorava a maior parte do que via, declarando-a isenta de culpa em todo caso de acidente, de maneira que nenhum benefício fosse devido à viúva e aos filhos órfãos.
Um ano antes, Lee fora até Fenton e pedira permissão para entrar nos campos — sem despesa para o dono da mina — para examinar a saúde dos mineiros. Fenton hesitara, mas acabara dando-lhe permissão.
O que Lee vira deixara-o horrorizado. A pobreza era tanta que ele mal podia acreditar. Os homens labutavam o dia todo embaixo da terra para poder viver, e no fim da semana mal tinham com que sustentar as famílias. Eles eram pagos pela quantidade de carvão que tiravam, mas um terço do tempo era gasto no que os mineiros chamavam de "trabalho morto", trabalho pelo qual não recebiam pagamento. Eles mesmos tinham de pagar pelas vigas que usavam para escorar as minas, porque o proprietário dizia que a segurança era responsabilidade dos mineiros, não sua.
Depois dos primeiros dias nos campos de carvão Lee voltara para casa e não conseguira conversar muito durante dias. Ele olhava para a pequena e rica cidade de Chandler, via sua irmã voltar para casa vindo do The Famous, com quinze metros de uma casimira muito cara, e pensava nas crianças que vira na neve sem sapatos. Lembrava-se dos homens esperando na fila pelo pagamento e ouvindo o pagador dizer-lhes do que tinham sido descontados naquela semana. E quanto mais pensava, mais se sentia no dever de fazer alguma coisa. Ele não tinha idéia de como agir, até que começou a ler artigos no jornal sobre a organização de sindicatos no leste. Interessado, quis saber com seu pai se os sindicalistas poderiam ser persuadidos a virem até o Colorado.
Reed, assim que percebeu o que o filho estava pensando, tentou dissuadi-lo, mas Lee continuou a ir aos campos, e quanto mais via, mais sabia o que tinha de fazer. Tomou o trem para Kentucky e lá encontrou pela primeira vez os organizadores de sindicatos e contou-lhes o que estava acontecendo no Colorado. Soube de tentativas anteriores sem sucesso de sindicalização no Colorado, e foi avisado de que seu envolvimento poderia acabar com sua morte.
Leander lembrou-se de ter carregado uma menininha magra de três anos em seus braços, enquanto ela morria de pneumonia, e concordou em ajudar no que pudesse.
Assim, conseguira trazer três sindicalistas para dentro do campo, e os proprietários estavam cientes de que eles tinham estado lá e que alguém estava ajudando os mineiros. Portanto, estavam cada vez mais e mais em guarda.
No ano anterior, um mineiro enorme, com o nome de Rafe Taggert, começara a sugerir que era o culpado, que era ele próprio quem estava trazendo os organizadores para os campos. Por alguma razão, o homem acreditava que nem os guardas ou o proprietário iriam prejudicá-lo, que nenhum "acidente" seria arranjado para tirá-lo do caminho. Havia rumores de que o irmão de Taggert fora casado com a irmã de Fenton, mas ninguém tinha certeza. Uma vez que os mineiros tinham de se mudar com muita freqüência, pois as minas fechavam uma após outra, poucas pessoas ficaram na área o bastante para lembrar-se de alguma coisa que podia ou não ter acontecido cerca de trinta anos atrás.
Mas, por qualquer que fosse a razão, o suspeito era Rafe Taggert, e ninguém tinha sequer suspeitado do elegante e jovem doutor que tão bondosamente oferecera seu tempo para ajudar os mineiros.
Quando Lee atravessou o portão da área da mina Empress, fez o possível para agir com naturalidade e fazer brincadeiras com os guardas. Ninguém o examinou e ele dirigiu-se para o canto mais afastado do campo para deixar o homem esconder-se nas árvores até que Lee pudesse ir de casa em casa para começar a preparar uma reunião. Somente três homens de cada vez iriam encontrar-se com o organizador. O jovem ficaria lá o dia todo até a noite, arriscando a vida a cada minuto. E Lee iria de casa em casa, olhando as crianças e dizendo aos homens onde encontrar o organizador e, em cada conversa, punha sua vida em perigo, porque já sabia que um deles era um informante.

 

Capítulo XIII

 

BLAIR ACORDOU na manhã de domingo sentindo-se ótima. Espreguiçou-se longamente, ouviu os passarinhos fora de sua janela e pensou que aquele deveria ser o melhor dos dias. Sua mente estava cheia de tudo que ela e Lee tinham feito na véspera. Lembrava-se da maneira como ele reparara o intestino do homem, seus dedos longos e hábeis, sabendo o que devia ser feito.
Desejou que Alan pudesse tê-lo visto operando.
De repente endireitou-se. Alan! Esquecera-se completamente de que deveria tê-lo encontrado às quatro horas da véspera. Estivera tão preocupada com Houston, com a maneira como sua irmã bancara a tola por causa daqueles anéis, e então viera o telefonema de Lee, e sentira que ele só estava pedindo a ela que fosse junto por um senso de dever. Nunca sonhara que fosse ficar a noite toda fora.
Susan veio dizer-lhe que a família sairia para a igreja logo após o café e que o senhor Gates pedira que fosse com eles. Blair saltou da cama e apressadamente vestiu-se. Talvez Alan estivesse na igreja, e ela poderia explicar que estivera fora trabalhando.
Alan estava lá, três bancos na frente deles, e, não importava o que Blair fizesse, ele não olhou ao redor depois de um olhar inicial. Para fazê-la sentir-se pior, ele estava sentado perto do senhor Westfield e de Nina. Depois da igreja, Blair procurou ficar perto dele durante alguns minutos no pequeno pátio fora da edificação.
— Então, você esteve fora com Westfield — começou Alan no momento que ficaram sozinhos. Seus olhos estavam zangados.
Blair empertigourse, apesar de suas boas intenções de ser submissa.
— Acredito que foi você quem concordou com uma competição e não eu, e parte do arranjo foi que eu não recusaria os convites de Leander.
— A noite toda? — Ele procurou olhá-la por baixo de seu nariz, embora fossem quase da mesma altura.
Blair na mesma hora pôs-se na defensiva:
— Nós estávamos trabalhando, e ficamos presos no meio de uma luta de grupos e Lee diz que...
— Dispense-me das palavras de sabedoria dele. Tenho de ir agora. Tenho outros planos.
— Outros planos? Mas pensei que talvez hoje à tarde...
— Ligarei amanhã. Isto é, se você pensa que vai estar em casa. — Com isso, virou-se nos calcanhares e deixou-a parada no lugar.
Nina Westfield aproximou-se para dizer-lhe que Lee tinha de trabalhar no hospital o resto do dia. Blair subiu na carruagem com sua mãe e o padrasto, percebendo vagamente que Houston não estava com eles.
Em casa, Opal estava numa agitação na sala de jantar, arrumando flores na mesa, colocando o melhor candelabro alto de prata.
— Está esperando visitas? — perguntou Blair com preguiça.
— Sim, querida, ele virá.
— Quem?
— O Kane de Houston. Oh, Blair, ele é um homem tão adorável. Sei que você irá gostar dele.
Minutos mais tarde, a porta abriu-se e Houston entrou trazendo seu grande milionário pelo braço, como se ele fosse o prêmio de um jogo que acabara de ganhar. Blair já o vira antes na igreja, e admitia que ele tinha boa aparência. Não tão bonito como Leander, ou mesmo Alan, porém mais do que apresentável, para quem gosta de um tipo bem musculoso.
— Sente-se aqui, senhor Taggert, perto de Houston e em frente de Blair — Opal estava dizendo.
Durante um momento, todos ficaram sentados olhando para os pratos ou a sala, ninguém falando nada.
— Espero que goste de rosbife — disse o senhor Gates começando a cortar o grande pedaço de carne.
— Tenho certeza de que gostarei mais do que em geral, isto é, até que Houston me contratasse uma cozinheira.
— E quem você contratou, Houston? — perguntou Opal, com uma ponta de gelo na voz, lembrando à sua filha que ultimamente andava saindo de casa, ficando fora durante horas sem que ninguém soubesse onde estava.
— A senhora Murchison, enquanto os Conrad estiverem na Europa. Senhor, o senhor Taggert pode ter algumas sugestões para investimentos — disse ela ao senhor Gates.
A partir daí, pensou Blair, nada parava o homem. Ele era como um elefante no meio de um bando de galinhas. Quando o senhor Gates perguntou-lhe sobre ações de estrada de ferro, Taggert levantou o punho e berrou que as estradas de ferro estavam morrendo, que o país todo estava coberto de estradas de ferro e não se ganharia mais dinheiro com elas, "só umas poucas centenas de milhares ou por aí". Seu punho desceu na mesa e tudo, inclusive-as pessoas, saltou.
Comparado com o temperamento e espalhafato de Taggert, Gates era um gatinho. No entanto Taggert não provocou nenhum desentendimento; ele estava certo sobre tudo, e falava em termos de milhões de dólares como se fossem grãos de areia.
E, como se sua voz alta e sua arrogância não fossem suficientes, as maneiras eram horrorosas. Cortou seu pedaço do assado com o lado do garfo, e quando a carne saiu do prato em direção a Blair nem ao menos parou sua conversa com Gates sobre como dirigir a cervejaria, enquanto puxava a carne de volta para o prato e continuava comendo. Ignorando os três vegetais que foram servidos, empilhou cerca de um quilo de purê de batata em seu prato e esvaziou a molheira no alto da montanha branca. Antes de terminar, comera metade do assado de cinco quilos. Derrubou a xícara de Houston, mas ela sorriu para ele e pediu à empregada que trouxesse um pano. Tomou seis copos de chá gelado antes que Blair visse que Susan, às escondidas, servia o copo dele de um jarro separado. Ela percebeu então que Houston tinha dado um jeito para que Taggert tomasse cerveja escura com gelo. Falava com a boca cheia e por duas vezes ficou com comida no queixo. Houston, como se ele fosse uma criança, tocava sua mão, e então seu guar-danapo, que ainda estava dobrado ao lado do prato dele.
Depois de um tempo, Blair parou de tentar comer. Não gostava de comida voando em sua direção ou talheres pulando, ou a maneira como aquele homem grosso e dominante monopolizava a conversa. Conversa, pois sim! Parecia que estava fazendo um discurso.
A pior parte era o modo como Houston, sua mãe e Gates estavam presos a cada palavra dele. Daria para pensar que suas palavras eram ouro. E talvez fossem, pensou Blair com desgosto. Ela nunca pensara muito sobre dinheiro, mas talvez dinheiro fosse o mais importante para outras pessoas. Certamente parecia ser muito importante para Houston, que estava disposta a submeter-se àquele homem horrível, medonho, pelo resto de sua vida.
Blair agarrou o candelabro antes que caísse, quando Taggert pegou mais molho. A cozinheira devia tê-lo feito num barril, pensou,
Foi quando Taggert fez uma pausa, suficientemente longa em sua proposta de sugerir que Gates participasse numa compra de terra, para olhar para Blair. De repente, parou de falar de todo e afastou sua cadeira.
— Doçura, é melhor irmos andando, se quiser chegar ao parque ainda enquanto estiver claro.
Que os Céus o ajudem, pensou Blair, mas devia ter modos suficientes para perguntar se todos já tinham terminado de comer. Ele estava pronto para sair, e despoticamente ordenava que Houston saísse com ele. E ela, obedientemente, seguiu-o.
— Oh, você, Lee — disse Opal com um sorriso, virando o pescoço para vê-lo, fazendo a pequena cadeira de balanço de carvalho estalar. — Não o ouvi entrar. — Olhou-o mais de perto. — Você me parece mais feliz do que uns dias atrás. Aconteceu alguma coisa? — Havia uma sugestão no rosto de Opal de "eu-te-disse".
Lee deu-lhe um beijo rápido na face, antes de sentar-se na cadeira perto dela, na varanda dos fundos. Ele estava jogando uma grande maçã verde de uma para a outra mão.
— Talvez eu não queira sua filha, e sim a queira para sogra.
Opal continuou costurando.
— Então, hoje, você acha que há uma possibilidade de conquistar minha filha. Se me lembro corretamente, na última vez que conversamos, você estava certo de que nunca a ganharia. Alguma coisa mudou?
— Mudou? Só o mundo todo. — Mordeu a maçã com prazer. — Vou ganhar. Não somente vou vencer, mas será por maioria. O pobre do rapaz Hunter não tem chance.
— Presumo que tenha encontrado a chave para o coração de Blair, e não é com flores nem bombons.
Leander sorriu, tanto para si mesmo como para ela.
— Vou cortejá-la com o que realmente ela gosta: ferimentos à bala, envenenamentos sangüíneos, infecções respiratórias, amputações, e tudo o mais que possa encontrar. Provavelmente adorará os rodeios de primavera por aqui.
Opal parecia horrorizada:
— Parece horrível. Tem de ser tão drástico?
— Pelo que posso dizer, quanto pior for o caso mais ela o aprecia. Desde que alguém esteja lá para ter certeza de que ela não o receba na cabeça estará ótima.
— E você será o alguém para tomar conta dela?
Leander levantou-se.
— Pelo resto da vida dela. Acredito que ouço minha amada agora. A senhora verá, em menos de uma semana, ela estará atravessando o altar para vir a mim.
— Lee?
Ele parou.
— E sobre St. Joseph?
Ele piscou para ela.
— Farei o possível para que nunca descubra. Eu quero que ela desista. Quem são eles para dizer que ela não pode trabalhar lá?
— Ela é uma boa doutora, não é? — Opal estava radiante de orgulho.
— Não é má — disse Lee, rindo, voltando para dentro da casa. — Não é má para uma mulher.
Blair encontrou Leander na sala de visitas. O dia anterior acabara sendo horrível. Alan não telefonara, não tivera notícias de Lee e, durante o dia todo, se preocupara com Houston e aquele homem horrível a quem estava se vendendo. Assim, era com alguma excitação que encontrava Lee naquele momento. Iria ele ser o dr. Lee ou aquele que a insultava a toda hora?
— Você queria me ver? — perguntou com cautela. Leander estava com uma expressão que ela nunca vira antes. Parecia ser de vergonha.
— Vim para falar com você, isto é, se não se importar de me ouvir.
— Claro que não — disse ela. — Por que me importaria de conversar com você? — Sentou-se numa cadeira de brocado vermelho.
Leander estava com o chapéu na mão, ameaçando torcê-lo até transformá-lo em tiras, e quando Blair acenou para que se sentasse, simplesmente fez que não com a cabeça.
— Não é fácil dizer o que vim falar. Não é fácil admitir o fracasso, especialmente em alguma coisa que se tornou tão importante para mim como a conquista de você.
Blair começou a dizer alguma coisa, mas ele levantou a mão.
— Não, deixe-me falar o que devo sem interrupções. É difícil para mim, mas tem de ser dito, porque é só nisso que posso pensar.
Caminhou até a janela, ainda torcendo o chapéu nas mãos. Ela nunca o vira nervoso antes.
— Sábado, o dia que passamos juntos como médicos, foi um dia monumental em minha vida. Até então, eu apostaria tudo que possuo, como uma mulher não poderia ser uma boa médica, mas você provou que eu estava errado. Naquele dia, você mostrou-me que uma mulher não só pode ser uma boa médica, mas pode até mesmo ser melhor que a maioria dos homens.
— Obrigada — disse Blair, e um pequeno arrepio de prazer percorreu-a com aquelas palavras.
— E é por isso que estou desistindo da corrida — disse Lee, de repente, virando-se para encará-la.
— Corrida?
— A competição ou seja lá como você a chame. Ontem percebi, enquanto trabalhava sozinho no hospital, que eu mudara depois do dia que passamos juntos. Veja, eu sempre trabalhei sozinho, mas naquele dia, quando trabalhamos juntos... Bem, foi como tudo que imaginara e mais. Nós nos entrosamos tão bem, tão ritmicamente, quase como amantes. — Parou e olhou para ela. — Digo isso alegoricamente, claro.
— Claro — murmurou ela. — Não estou certa de que entendo disso.
— Não vê? Posso ter perdido uma mulher, mas o que ganhei foi uma colega. Posso tratar uma mulher com pouco ou nenhum respeito, posso trapaceá-la para mostrar que seu amigo é um garoto mimado, que não sabe remar, nadar ou mesmo andar a cavalo, mas não posso nunca, nunca fazer isso com uma colega doutora a quem aprendi a respeitar e até admirar.
Blair ficou em silêncio durante um momento. Havia alguma coisa errada no que ele estava dizendo sobre Alan, mas suas palavras de elogio eram muito doces para fazer com que sofismasse sobre detalhes.
— Está dizendo que não quer mais casar comigo?
— Estou dizendo que respeito você, e que se vocêdiz que quer casar com Alan Hunter, sei que não posso ficar em seu caminho. Você e eu somos iguais na profissão médica, e não posso mais humilhar uma colega médica da maneira como vinha fazendo. Assim, você não é mais uma prisioneira aqui. Pode partir com o homem que ama a qualquer hora, e eu lhe asseguro que farei tudo para evitar que Gates deixe os outros saberem sobre a sua perda... da castidade.
Blair levantou-se.
— Não estou certa de ter entendido. Estou livre para partir? Você não está mais me chantageando, e não causará mais embaraços para Alan? E você está fazendo isso tudo porque acredita que sou uma boa médica?
— Está perfeitamente correto. Levei um tempo para entender, mas consegui. Que espécie de casamento poderíamos ter se era baseado em luxúria? Claro, há uma atração mútua entre nós, e talvez aquela única noite tenha sido extraordinária, mas isso não é base para casamento. O que você e Alan têm é real, vocês podem ficar juntos e conversar, têm interesses mútuos, e estou certo que você tem as mesmas... ah, reações ao toque dele como tem ao meu. Talvez vocês dois tenham feito amor diversas vezes nos últimos dias, por tudo que sei.
— Como disse?
Leander pendeu a cabeça novamente.
— Me desculpe. Não pretendi insultá-la outra vez. Parece que sempre meto os pés pelas mãos quando estou perto de você. Agora nunca ouvirá o que ainda tenho para lhe dizer.
— Ouvirei — disse ela. — Conte-me o resto. — Blair sentia-se estranhamente desanimada. Claro, o fato de ele respeitá-la como médica era maravilhoso, mas ao mesmo tempo ela queria alguma coisa mais, e não sabia o quê.
Quando olhou-a outra vez, os olhos de Lee estavam brilhando intensamente.
— Sei que quer voltar para a Pensilvânia, eu não a culpo, mas trabalhar com você foi uma alegria e um prazer, e, já que nunca mais terei a chance, porque tenho certeza de que não desejará voltar para Chandler depois do que aconteceu nos últimos dias, gostaria que me desse a honra de trabalhar comigo nos próximos dias. Meu pai concordou em persuadir a diretoria a permitir que você fique no hospital sob minha responsabilidade, e você e eu poderemos trabalhar juntos até depois do casamento de Houston. Oh, Blair, poderia mostrar-lhe meus planos para a clínica de mulheres. Nunca os mostrei a ninguém antes, e realmente gostaria-de compartilhá-los. Talvez possa até ajudar-me a planejá-lo, isto é, se tiver tempo.
Blair caminhou até o lado mais afastado da sala. Não pensava que já tivesse aproveitado tanto naquele dia com Leander, e se eles não estivessem mais noivos, talvez Houston desistisse de casar com Taggert e...
— E Alan pode trabalhar conosco. Puxa, se ele for tão bom quanto metade do que você é... Ele é?
Blair voltou ao presente e percebeu com um pouco de culpa que nem tinha pensado em Alan.
— Você quer dizer, se ele é tão bom quanto eu? Acho que sim. Claro que é! Embora ele não tenha tido a oportunidade de trabalhar com médicos como eu tive. Quero dizer, eu tive muita sorte. Meu tio Henry é bastante respeitado, e desde que eu era pouco mais de uma criança eu assistia as cirurgias e ajudava em casos de emergência e tive a oportunidade de assistir muitos homens eminentes, mas... — Parou. — Claro, Alan é um excelente médico — disse com firmeza.
— Tenho certeza de que é, e estou certo que será uma alegria trabalhar com ambos. A propósito, Alan prestou aquele exame para o hospital St. Joseph?
— Sim, mas ele não...
— Não o quê?
Sua boca fechou-se numa linha firme:
— Eles só aceitaram os seis primeiros colocados.
— Sei. Bem, talvez estivesse num mau dia. Posso vir buscá-la amanhã pela manhã, às seis? Até então, minha biblioteca está sempre aberta para uma amiga colega. — Beijou-lhe rapidamente a mão e partiu.

 

Capítulo XIV

 

BLAIR ESTAVA vestida e pronta para sair, às cinco e trinta da manhã seguinte. Sentou-se na cama e estava sem saber o que fazer. Deveria esperar lá embaixo ou ele chegaria outra vez pela janela como fizera antes?
Quando o relógio lá de baixo bateu seis horas, abriu a porta de seu quarto e pensou ter ouvido a porta da frente. Voou pelas escadas abaixo e chegou lá bem quando uma sonolenta Susan abria a porta para Leander.
— Bom dia — disse sorrindo. — Pronta para irmos?
Ela fez que sim com a cabeça, em resposta.
— Você não pode ir, senhorita Blair-Houston. Ainda não comeu nada e a cozinheira não está com o café pronto. Terão de esperar até que se vista.
— Já comeu? — perguntou a Lee.
— Parece que faz dias que não como — respondeu Lee, sorrindo-lhe, e mais uma vez ela ficou impressionada de ver como ele era bonito, com aqueles olhos verdes. E, por alguma razão, lembrou-se da noite que passaram juntos. Era estranho que fosse se lembrar daquilo, pois não se lembrara durante dias. Talvez fosse porque então ele não estava tentando aborrecê-la.
— Venha até a cozinha e prepararei alguma coisa para o café. Até eu sei como fritar ovos e bacon. A refeição do senhor Gates provavelmente se atrasará, e a família toda ouvirá um sermão, mas não estaremos aqui para ouvir o que ele tem a dizer.
Meia hora mais tarde, Lee afastou-se da grande mesa de carvalho da cozinha e limpou a boca.
— Blair, não imaginava que soubesse cozinhar. Parece muito esperar que uma mulher saiba cozinhar, ser amiga de um homem, uma colega — seus olhos e voz baixaram —, uma amante. — Com um suspiro olhou-a de novo. — Jurei a mim mesmo que não seria um perdedor choroso, que iria desistir com elegância. — Deu-lhe um sorriso doce, de menino. — Tem de me perdoar se algumas vezes me esqueço.
— Sim, claro — disse, nervosa, e percebeu que mais uma vez estava pensando naquela noite que passaram juntos. Naquela noite, quando estivera livre para beijá-lo, quando as mãos dele...
— Elas não estão limpas?
— O que disse? — falou, voltando ao presente.
— Você estava olhando fixo para minhas mãos e imaginei que talvez houvesse alguma coisa errada com elas.
— Eu... Está pronto para ir?
— Quando você quiser — falou Lee, levantando-se e puxando a cadeira dela.
Blair sorriu-lhe e pensou naquele homem sem modos com quem Houston planejava casar-se e achou que não havia comparação entre ele e Lee.
A caminho do hospital, perguntou-lhe por Alan, e ela respondeu que ele devia encontrá-los na enfermaria. Ele realmente estava lá, e parecia sonolento e um pouco aborrecido por ver Leander e Blair chegarem juntos.
O dia foi longo e árduo. Tinha-se a impressão de que todos os pacientes eram responsabilidade só de Lee, e os três tiveram que fazer o trabalho de uma dúzia de pessoas. A uma hora, quatro homens feridos num desabamento do fim de um túnel da mina Inexpressible foram trazidos, dois deles mortos, um com a perna quebrada, e o quarto homem entre a vida e a morte.
— É um doente terminal — disse Alan. — Melhor deixá-lo.
Mas Blair olhava para os olhos do homem, agora fechados, e viu que ele lutava para viver. Ela não podia dizer o que-estava ferido dentro dele, mas achou que talvez houvesse uma chance. Pelas circunstâncias, ele devia estar morto. No entanto, queria tanto viver que lutava.
Blair olhou para Lee, e por um momento ele lembrou-se dos olhos dos organizadores dos sindicatos.
— Acho que há uma chance. Podemos abri-lo e ver? Penso que ele quer viver — insistiu ela.
— Blair — disse Alan com uma voz exasperada —, qualquer um pode ver que ele não poderá viver mais do que minutos. Todos os seus órgãos internos devem estar esmagados. Deixe-o morrer com a família.
Blair nem olhou para Alan, mas mantinha os olhos em Lee.
— Por favor — murmurou. — Por favor.
— Vamos levá-lo para a sala de operações — gritou Leander.
— Não! Não mexa nele. Mantenha-o nessa mesa e nós a levaremos.
Blair estava certa, mas Alan também estava. Seus órgãos estavam esmagados, mas não tão seriamente como pensaram assim que o abriram. O baço se rompera e sangrava muito, mas conseguiram tratá-lo e limpar alguns dos outros ferimentos.
Devido à hemorragia interna, eles tinham de trabalhar rápido e, sem que ninguém estivesse consciente do que acontecia, Alan fora posto de lado. Leander e Blair, que trabalhavam tão bem juntos e tinham experiência, suturavam tão rápido quanto a sra. Krebbs podia enfiar as agulhas. Ela era a enfermeira preferida de Leander e estava com ele desde que voltara para Chandler. Percebendo que não podia trabalhar tão rápido como Leander e Blair, Alan afastou-se e deixou os três repararem os órgãos atingidos do homem.
Quando terminaram de fechá-lo, deixaram a sala de operações.
— O que é que você acha? — perguntou Blair a Lee.
— É agora que Deus entra no caso, mas penso que você e eu fizemos o melhor que pudemos. — Sorriu para ela. — Você foi muito boa ali dentro. Não foi, senhora Krebbs?
— Veremos se o paciente vai viver — resmungou a mulher gorda e grisalha ao sair da sala.
— Não é muito chegada a cumprimentos, pelo que percebi — disse Blair, enquanto esfregava o sangue de suas mãos.
— Só quando os merecer. Ainda estou esperando pelos meus. Claro, eu só estou aqui há dois anos.
Enquanto os dois riam juntos, Blair não reparou em Alan encostado na parede, observando-os.
Uma vez fora da cirurgia, voltaram para as alas e, mais tarde, durante o dia, atenderam uma criança que se queimara. E,confor-me o dia passava, Blair e Leander pareciam incansáveis, mas Alan seguia-os sentindo-se cada vez mais completamente desnecessário. Duas vezes tentou falar com Blair sobre voltar para casa, mas ela não ouvia. Estava o tempo todo perto de Leander. Por volta das dez da noite, Alan estava desfalecendo.
— Venham até meu escritório — disse Lee às onze. — Tenho algumas cervejas e sanduíches lá, e quero mostrar uma coisa a vocês.
Alan sentou-se numa cadeira e comeu seu sanduíche com avidez enquanto Lee desenrolava planos e abria-os sobre a escrivaninha.
— Estes são meus planos para a clínica de mulheres, um lugar onde elas podem vir com qualquer indisposição e receber tratamento adequado. Gostaria também de um centro de treinamento para o cuidado da saúde de seus filhos. — Parou e sorriu para Blair.
— Nada de estérco de cavalo ou emplastros para câncer.
Ela sorriu-lhe de volta e percebeu que o rosto dele estava a centímetros do seu, que ele estava se movimentando em sua direção com uma expressão conhecida no rosto, como naquela noite. Antes de saber o que estava fazendo, Blair curvou-se na direção dele de uma forma que pareceu muito natural para ele, e parecia perfeitamente normal que ele devesse beijá-la.
Mas somente a um sopro de distância dos lábios dela, ele afastou-se abruptamente e começou a enrolar os planos.
— Está tarde, e é melhor que a leve para casa. Parece que deixamos Alan exausto. Além disso é inútil para mim mostrar-lhe estes planos. Você nem ao menos estará aqui. Estará numa cidade grande, num hospital organizado, e não terá o aborrecimento de ter de construir um lugar do nada ou de planejar onde porá o equipamento, ou saber a quem contratará, de planejar exatamente o que irá ensinar e a quem tratará. — Parou e suspirou. — Não, em seu hospital da cidade, terá tudo já organizado. Não será simples como esta nova clínica vai ser.
— Mas isso não soa mal. Quero dizer, pode ser divertido decidir como se quer as coisas. Eu gostaria de ter uma clínica de queimaduras ou talvez uma ala especial para isolamento ou...
Ele cortou-lhe a palavra.
— É bondade sua dizer isso, mas num hospital de cidade grande, as pessoas pagam suas contas.
— Se um hospital grande é tão bom, então por que não ficou em um? Por que o deixou? — perguntou com indignação.
Com uma demonstração de grande reverência, ele pôs os planos de volta no cofre.
— Suponho que gosto de sentir que precisam de mim, mais do que gosto de segurança — disse ele, virando-se outra vez para ela. — Há mais doutores do que o suficiente no leste, mas aqui é um desafio ficar com todo o serviço. O povo daqui precisa de um médico mais do que precisam lá. Sinto como se estivesse fazendo algum bem aqui e não sinto isso lá.
— É por isso que pensa que quero voltar ao leste? Por segurança? Acha que eu não estou apta para todo o trabalho daqui?
— Blair, por favor, não quis ofendê-la. Você me perguntou por que eu não quis trabalhar num hospital grande, seguro, organizado e confortável do leste, e eu lhe disse, é tudo. Não tem nada relacionado com você. Somos colegas, lembra-se? Nunca sonharia em lhe dizer o que deve ou não fazer. Na verdade, se me lembro corretamente, sou eu quem está removendo obstáculos de seu caminho. Desisti de minha intenção de casar com você a fim de que pudesse voltar ao leste, ficar com Alan e trabalhar em seu hospital como disse que queria. Que mais posso fazer para apoiá-la?
Blair não teve resposta para ele, mas sentia-se instável por dentro.
Naquele momento, o pensamento de trabalhar no hospital St. Joseph parecia egoísta, como se estivesse procurando glória em vez de tentar ajudar as pessoas, como devia estar fazendo.
— Por falar em Alan — disse —, acho que é melhor que o levemos para casa.
Blair se esquecera completamente de Alan, e virou-se para vê-lo sentado, com os ombros caídos, cochilando.
— Sim, suponho que seja melhor — disse, distraída. Estava pensando com seriedade no que Leander dissera. Talvez um grande hospital fosse "seguro", mas as pessoas de lá ficavam tão doentes como as do oeste. Claro, lá havia mais médicos para tratá-las, e ali nem ao menos tinham um hospital decente para mulheres. Em Filadélfia, eles tinham pelo menos quatro clínicas para mulheres e crianças e, claro, lá havia mulheres médicas clinicando, e todos sabiam que as mulheres às vezes sofrem de uma doença durante anos antes de deixar que um homem as examine.
— Prontos? — perguntou Lee, depois de ter acordado Alan.
Durante todo o caminho de volta Blair pensou no que Lee dissera, e ficou deitada, acordada na cama durante um tempo ainda pensando. Chandler certamente precisava de uma doutora, e ela poderia praticar com Leander e ajudá-lo a dirigir aquela sua nova clínica, tudo ao mesmo tempo.
— Não, não, não! — disse alto, e batia os punhos em seu travesseiro. — Eu não vou ficar em Chandler! Vou me casar com Alan, fazer o estágio no hospital St. Joseph e vou clinicar em Filadélfia!
Preparou-se para dormir, mas, quando ia cochilar, pensava nas inúmeras mulheres de Chandler que não tinham uma médica para atendê-las. Passou uma noite agitada.
Na quarta pela manhã, Lee veio até sua casa para visitá-la, e Blair percebeu que estava muito satisfeita em vê-lo.
— Não tenho de ir ao hospital até o final da tarde, e pensei que você poderia querer ir cavalgar comigo. Parei no hotel e disse a Alan para vir conosco, mas ele disse que estava cansado ainda de ontem, e de qualquer forma não gosta de cavalgar. Não creio que gostaria de vir sozinha comigo, não é?
Antes que Blair pudesse dizer qualquer coisa, Leander continuou:
— Claro que não gostaria — disse rapidamente, olhando para o chapéu em suas mãos. — Você não pode sair comigo sozinha, uma vez que está noiva de outro homem. Acontece que a cidade toda pensa que vou casar com você dentro de cinco dias, e nenhuma moça sairá comigo. — Voltou-se para sair. — Não quis aborrecê-la com meus problemas. Minha solidão não é de seu interesse.
— Lee — disse ela, agarrando-lhe o braço para impedir que saísse da sala. — Eu... queria discutir aquele caso de envenenamento de sangue com você, talvez..,
Leander não lhe deu chance de terminar:
— Formidável, Blair, você é uma amiga de verdade — e seu rosto abriu-se num sorriso que fez os joelhos de Blair enfraquecerem.
No momento seguinte, estava com a mão nas costas dela e quase que a empurrava pela porta afora, para o pátio lateral, onde dois cavalos selados os aguardavam.
— Mas não posso usar isto — protestou, olhando para sua saia longa. — Preciso de uma saia-calça e...
— Você me parece ótima, e qual é o problema se aparecer um pouco do tornozelo? Só eu estarei lá, e já vi você toda, lembra-se?
Blair não teve como dizer outra palavra, pois ele levantou-a e colocou-a na sela do cavalo, e ela estava ocupada tentando arrumar suas saias, de modo a ficar o mais recatada possível. Rezava para que Houston não a visse assim. Ela poderia um dia perdoar a irmã por roubar o homem com quem ia casar, mas nunca, nunca a perdoaria por ter sido vista em público usando as roupas erradas.
Leander tornou a sorrir-lhe e ela esqueceu tudo sobre sua irmã e sobre estar com um homem com o qual não deveria.
Ele levou-a para o campo, bem afastado da cidade. Cavalgaram lado a lado por um tempo, e Blair fez com que falasse mais sobre a clínica de mulheres e alguns de seus planos. E ela contou-lhe algumas de suas idéias. Somente uma vez ele disse, e pensativamente, que desejava ter alguém para trabalhar com ele. Com muita cautela, Blair perguntou-lhe se consideraria uma médica. Ele respondeu afirmativamente, e na meia hora seguinte só falou em como trabalhariam juntos na nova clínica, se ela ficasse em Chandler. Em pouco tempo, Blair estava envolta em fantasia, e falava sobre como o fariam e todos os milagres que poderiam realizar. Juntos, eles livrariam o Estado do Colorado de todas as doenças.
— E então nós três poderíamos nos mudar para a Califórnia e sanar aquele Estado. — Leander ria.
— Três? — perguntou Blair sem entender.
Lee lançou-lhe um olhar de reprovação.
— Alan. O homem que ama, lembra-se? O homem com quem vai casar. Ele estará nisso também. Ele terá de ter uma parte na nova clínica também. E nos ajudará, como fez ontem.
Era estranho, mas Blair mal podia lembrar-se de Alan no hospital, na véspera. Lembrava-se de que ele não quisera ajudar o homem que fora esmagado, mas ele estivera na sala de operações?
— Aqui estamos — estava dizendo Lee, enquanto ela o seguia a um lugar cercado entre rochas gigantescas. Desmontou e tirou a sela de seu cavalo. — Nunca pensei que fosse capaz de voltar a este lugar outra vez depois do que aconteceu aqui.
Blair ficara mais atrás, enquanto ele tirava a sela de seu cavalo.
— O que aconteceu aqui?
Ele parou com a sela nas mãos.
— O pior dia de minha vida. Trouxe Houston aqui depois da noite em que fizemos amor, e descobri que a mulher com quem passara a mais maravilhosa noite de minha vida não era a mulher de quem estava noivo.
— Oh — disse Blair fracamente, desejando não ter perguntado. Afastou-se enquanto Leander puxava uma coberta dos alforjes e estendia-a no chão, dava água aos cavalos de uma pequena fonte ali perto e começava a dispor a comida sobre a coberta.
— Sente-se — disse ele.
Blair estava começando a pensar que não deveria ter vindo sozinha com ele. Era fácil resistir a ele quando estava sendo detestável e jogando Alan no lago, mas na última vez em que estiveram sozinhos e Lee fora gentil, tinham acabado sem as roupas e fazendo amor. Ela levantou os olhos e o viu, acima dela, o sol fazendo uma meia-lua em volta de sua cabeça e pensou que, sob circunstância nenhuma deveria deixar que ele a tocasse ou que a conversa desviasse para o que acontecera entre eles. Deviam falar somente sobre medicina.
Comeram e ficaram comentando sobre todos os piores casos que Blair já vira em sua vida. Ela precisava lembrar-se dos detalhes mais sangrentos, porque Lee tirara a jaqueta e estava deitado a centímetros dela. Os olhos dele estavam fechados, e tudo o que tinha que fazer era murmurar uma resposta vez por outra para as histórias de Blair, e ela suspeitava de que ele estava adormecendo. Não podia evitar de olhá-lo enquanto conversava, aquelas longas, longas pernas, e lembrava de como as sentira junto de sua própria pele. Olhou para seu peito largo, forte, seus peitorais forçando contra o fino algodão da camisa. Lembrava-se de como sentira os pêlos do peito dele contra seus seios.
E quanto mais lembrava, mais depressa falava, até que as palavras pareciam embolar em sua boca e recusavam-se a sair. Com um suspiro de frustração, parou de falar e olhou para suas mãos pousadas no colo.
Leander não disse nada durante um longo tempo, e ela pensou que ele adormecera.
— Nunca encontrei ninguém como você — disse mansamente, e Blair não pôde evitar de curvar-se um pouco em sua direção para poder ouvi-lo. — Nunca encontrei uma mulher que pudesse entender como me sinto sobre medicina. Todas as mulheres que conheci brigavam comigo se eu me atrasasse para levá-las a uma festa por estar costurando as costas de um homem. Nem encontrei uma mulher que se interessasse pelo que eu fazia. Você foi a mais generosa, a mais adorável pessoa que já conheci.
Blair estava muito espantada para falar. Algumas vezes, pensava que se apaixonara por Alan porque ele fora o primeiro homem jovem que não a condenara por ser do jeito que era. Houve ocasiões, quando Blair tentara ser como a irmã, ser calma e gentil, não dizer a um homem, quando ele dizia alguma coisa tola, que fora uma estupidez, mas parecia que não conseguia se controlar. E, como resultado de sua risada, ou de sua honestidade, nunca tivera muitos cortejadores. Na Pensilvânia, os homens viam como era bonita e se interessavam, mas, quando descobriam que ia ser médica, perdiam o interesse. E se tivessem ficado por perto, logo saberiam que Blair era muito inteligente, e aquilo era a morte para uma mulher. Tudo o que ela tinha de fazer era ganhar de um homem no xadrez ou resolver um problema de aritmética, de cabeça, mais rápido do que ele, e ele já não estaria mais interessado nela. Alan foi o primeiro homem que encontrara que não ficara revoltado com suas habilidades — e Blair decidira que estava apaixonada por ele três semanas depois do primeiro encontro. Agora, Leander estava dizendo que gostava dela. E quando pensou em todas as coisas que fizera para ele nos últimos dias, das vezes que o deixara no deserto para voltar a pé para casa, estava assombrada de que ele agüentasse olhar para ela. Ou ele era um homem notável ou gostava de castigo.
— Sei que logo mais estará deixando a cidade, e talvez nunca mais a veja. Por isso quero dizer-lhe o que aquela única noite em que estivemos juntos significou para mim — disse numa voz que era pouco mais de um murmúrio. — Foi como se você não pudesse se controlar naquela noite, como se meu simples toque a fizesse vir para mim. Foi tão lisonjeiro para a minha vaidade. Chamou-me de convencido, mas somente sou assim quando estou com você, porque você me faz sentir bem. E ter encontrado a mulher de minha vida, uma amiga, uma colega, uma amante sem igual, e agora ter de perdê-la!
Blair avançava lentamente na direção dele enquanto ele falava. Lee virou a cabeça, afastando-se.
— Quero ser justo sobre o que aconteceu. Quero dar-lhe o que você quer, aquilo que a faça feliz, mas queria que não esperasse que eu esteja na estação quando partir com Alan. Imagino que, no dia em que partir com ele, ficarei como um bêbado barulhento a contar meus problemas para alguma garçonete ruiva.
Blair endireitou-se:
— É disso que gosta? — disse friamente.
Ele olhou-a de volta com surpresa:
— É disso que eu gosto?
— De garçonetes ruivas?
— Ora, sua pequena estúpida... — Instantaneamente, seu rosto ficou vermelho de raiva, e levantou-se começando a empurrar a coberta, puxando-a de debaixo dela, e guardando a comida nos alforjes. — Não, não gosto de garçonetes ruivas. Mas queria gostar. Fui bastante tolo para me apaixonar pela mulher mais cabeça-dura, cega, idiota e teimosa do mundo. Nunca tive nenhum problema com uma mulher em minha vida até que encontrei você, e agora tudo o que tenho são problemas.
Jogou a sela no cavalo:
— Há ocasiões em que desejaria nunca tê-la conhecido. — Voltou-se para ela. — Pode selar seu próprio cavalo e encontrar o caminho de volta para a cidade. Isto é, se não for muito cega para ver a trilha, porque, com certeza, você é cega com relação às pessoas.
Pôs um pé no estribo e então, num impulso, voltou até ela, tomou-a nos braços e beijou-a.
Blair esquecera completamente como era beijar Lee, estava esquecida daquela sensação avassaladora. Ela não poderia dizer quem era, quando ele a estava tocando, porque todas as sensações a deixavam, exceto a provocada por aquele homem único.
— Ei — disse ele com raiva, afastando-se dela, e tendo de dar-lhe uma pequena sacudidela para fazê-la abrir os olhos. — Já tive pacientes cegos que viam mais do que você.
Deixou-a e começou a montar, mas então resmungou:
— Diabo — e selou o cavalo para ela, colocando-a em cima. Conduziu-a numa corrida de volta para Chandler, e, quando parou na frente da casa dela, falou:
— Espero vocês no hospital amanhã às oito.
Ela mal teve tempo de concordar antes que a deixasse sozinha.

 

Capítulo XV

 

A ÚNICA MANEIRA de descrever a disposição de Blair quando chegou em casa é que estava desolada. Não estava certa do que havia de errado com Leander, nem entendia o porquê de estar tão confusa.
Sua mãe estava na sala de visitas cercada de centenas de caixas.
— O que é isso? — perguntou Blair distraída.
— São presentes de casamento para você e Houston. Gostaria de abrir agora alguns dos seus?
Blair deu uma olhada nos presentes e sacudiu a cabeça. A última coisa que queria era ser lembrada do casamento que poderia ou não realizar-se — não que Leander ainda quisesse casar-se com ela.
Ligou para o hotel de Alan e deixou um recado de que deveria estar no hospital na manhã seguinte às oito, e subiu para encher a banheira.
Quando desceu, uma hora depois, Houston estava em casa, uma coisa rara, pois parecia que sempre estava fora com Taggert, e numa agitação de atividade enquanto abria presentes e conversava com Opal a mil por hora sobre os planos para o casamento. Sua irmã se admirava com os presentes que tinham vindo do leste, coisas dos Vanderbilt, dos Astor, nomes que Blair conhecia de ouvir falar, e agora Houston estava casando com um daquela sociedade exclusiva. Sem prestar atenção, sentou-se em um dos sofás.
— Já viu o vestido, Blair? — perguntou Houston ao virar-se, segurando um enorme vaso de cristal lapidado que devia ter custado a fortuna de alguém.
— Que vestido?
— Nosso vestido de noiva, claro — disse Houston com paciência. — Mandei fazer o seu igual ao meu.
Blair sentia que não agüentaria ficar na sala com todo aquele entusiasmo. Talvez sua irmã pudesse vibrar de entusiasmo com uns poucos presentes, mas ela não poderia.
— Mãe, não me sinto muito bem. Creio que me deitarei e vou ler um pouco.
— Está bem, querida — disse Opal, enquanto mexia em outra caixa. — Mandarei Susan subir com uma bandeja. A propósito, um jovem ligou e disse que não estará no hospital amanhã. Acredito que foi um senhor Hunter — disse ela.
Como se fosse possível, Blair começou a se sentir pior. Negligenciara Alan vergonhosamente nos últimos dias.
A manhã chegou muito rápida, e seu humor não melhorara nada. Pelo menos, os pacientes do hospital mantiveram sua cabeça afastada de seus próprios problemas, isto é, até que Leander chegou. O mau humor dele fazia o dela parecer um raio de sol. Em duas horas, ele conseguiu gritar com ela quatro vezes, dizendo-lhe que, se quisesse ser uma médica, tinha de aprender umas coisinhas. Blair quis gritar de volta com ele, mas depois de uma olhada em seu rosto, sabiamente não disse nada além de "Sim, senhor", e tentou fazer o que podia para obedecer às suas ordens.
Às onze, estava curvada sobre uma garotinha cujo braço quebrado acabara de consertar, quando Alan chegou por detrás dela.
— Pensei que a encontraria aqui... com ele.
Blair sorriu para a garotinha.
— Alan, estou trabalhando.
— Nós vamos ter uma conversa agora, em frente do hospital todo ou sozinhos?
— Está bem, então venha comigo.
Levou-o pelo corredor até o escritório de Leander. Ela não conhecia o hospital muito bem, e aquele era o único lugar onde sabia que podiam ficar a sós. Somente esperava que Lee não voltasse e os descobrisse ali.
— Devia ter adivinhado que viria para cá. O escritório dele! Você deve sentir-se confortável aqui. Sem dúvida tem estado com freqüência aqui. — Para consternação dele, Blair deixou-se cair numa cadeira, pôs as mãos no rosto e começou a chorar.
Alan num instante ajoelhou-se em sua frente:
— Não queria me irritar com você.
Blair tentou controlar as lágrimas, mas não conseguia.
— Todos estão contra mim. Nunca pareço agradar a ninguém. O senhor Gates nunca me deixa em paz. Houston me odeia. Leander mal consegue falar comigo, e agora você...
— Por que Westfield tem de ficar zangado? Ele está ganhando sem dificuldades.
— Ganhando? — Blair puxou um lenço do bolso e assoou o nariz. — Ele nem ao menos está na competição. Ele disse que pôde ver que amo você, e assim não iria mais competir.
Alan levantou-se e ficou encostado na escrivaninha:
— Então por que passa dia após dia com ele? Você não se afastou meio metro de seu lado durante toda a semana.
— Ele disse que gostaria de trabalhar comigo nesses poucos dias que restam de minha estadia. Disse que nunca trabalhou tão bem com outras pessoas antes. E ele estendeu o convite a nós ambos.
— De todas as deslealdades... — começou Alan, andando pela sala. — Ele é mais baixo do que eu pensei. Nunca ouvi falar de golpe mais covarde, mais sujo. — Olhou outra vez para Blair. — Ele sabe que você é entusiasmada com tudo o que diz respeito à medicina. Assim ele usa isso para se aproximar, e, claro, convidou-me. O homem tem anos de experiência e treinou mais do que eu; portanto, ele parece um gênio enquanto eu pareço um idiota.
— Isso não é verdade! Leander disse que queria trabalhar comigo, e nós trabalhamos muito bem juntos. É como se um lesse a cabeça do outro.
— Pelo que ouvi, tem sido assim desde a primeira noite em que saíram.
— Agora quem está sendo desleal?
— Não mais do que ele — retrucou Alan. — Blair, estou cansado de parecer tolo. Sou um médico estudante competindo numa sala de operações com um homem com anos de experiência. Cresci numa cidade, mas estou competindo em canoas e a cavalo. Não há maneira possível de poder me sair melhor do que ele.
— Mas você não entende. Leander não está competindo. Ele não quer mais casar comigo. Vou ficar em Chandler até o casamento de minha irmã e então eu e você partiremos juntos. Ainda tenho esperanças de que Houston case com ele.
Ele observou-a por um momento:
— Acredito que parte de você realmente acredita no que está dizendo. Deixe-me dizer-lhe uma coisa: Wesrfield não desistiu da corrida. O pobre homem está competindo com tanto empenho que é um milagre que ainda tenha algum fôlego. E, se você acredita que não vai casar na segunda-feira, por que não pôs um ponto final em todos os planos de casamento que sua irmã está fazendo? Você pretende sentar-se na primeira fila e assistir a sua irmã casar enquanto está cercada por todas as coisas? O que vai fazer com todos aqueles presentes?
Pôs as mãos nos braços da cadeira e aproximou seu rosto do dela.
— Quanto a Houston casar com seu amado doutor, não acredito que você conseguiria sentar-se lá e assistir a tudo.
— Já basta, Hunter. — A voz de Leander veio da porta.
— Ainda não é suficiente — disse Alan, avançando em Leander.
— Se é uma luta que quer...
Lee parou quando Blair colocou-se entre os dois homens.
— Blair — disse Alan —, está na hora de você tomar uma decisão. Partirei desta cidade hoje, no trem das quatro horas. Se você não estiver lá, partirei sozinho. — Com isso deixou a sala.
Blair ficou parada, sozinha com Lee por um momento, em silêncio até que ele pôs a mão em seu braço.
— Blair — começou ele, mas ela afastou-se.
— Acho que Alan está certo — disse Blair. — Está na hora de tomar minha decisão e parar com essas brincadeiras infantis. — Passou por ele apressada e andou os três quilômetros até a sua casa.
Quando chegou, muito calmamente pegou um papel, uma caneta e começou a fazer a lista dos prós e dos contras de partir com Alan. Havia cinco razões boas e fortes que ela podia considerar para justificar o porquê de partir com ele. Iam da possibilidade de deixar aquela cidade opressiva até permitir que Houston não mais se sentisse pressionada a casar com o seu milionário.
A única razão que podia pensar para não partir com Alan era que nunca mais veria Leander. Não ia poder trabalhar com ele naquela nova clínica. Claro, se o que Alan dissera fosse verdade, talvez Leander tivesse mostrado aqueles projetos só como ardil para ganhar a competição.
Levantou-se. Não precisava trabalhar numa clínica dali. Na Pen-silvânia, o hospital St. Joseph esperava por ela.
Lançou um olhar para seu uniforme — sabia que aquela roupa era a única coisa que levaria com ela. Não poderia sair pela porta carregando uma mala além de sua maleta médica, ou haveria perguntas. Tudo o que poderia levar era o que estava usando. Amassou a lista em sua mão e manteve-a lá. Poderia precisar dela para relembrar o porquê de estar fazendo aquilo.
No térreo, sua mãe estava arrumando os presentes, e Houston tinha saído. Blair tentou dizer umas poucas palavras para sua mãe, dizer adeus sem usar as palavras exatas, mas Opal estava muito ocupada contando peças de prata.
Com o queixo levantado, Blair passou pela porta e caminhou o longo caminho até a estação dos trens. Enquanto andava, olhava para a pequena cidade atarefada com olhos diferentes. Talvez não fosse tão ruim como pensara a princípio. Não era a Filadélfia, mas tinha suas compensações. Três carruagens passaram trepidando e levando pessoas que gritaram para ela "Alô, Blair-Houston", e pela primeira vez o nome duplo não lhe pareceu tão ruim.
Ao aproximar-se da estação, imaginava o que aconteceria depois que se fosse; se Houston se casaria com Lee, se sua mãe iria compreender seu desaparecimento, se Gates iria odiá-la mais do que já odiava.
Chegou à estação às três e quarenta e cinco e logo viu que Alan não estava lá. Ficou na plataforma, a maleta a seu lado, inquieta com a lista na mão, e pensou que aqueles poderiam ser os últimos minutos na cidade que tinha o nome de seu pai. Depois do escândalo que causara, roubando o noivo da irmã, e depois fugindo com outro homem quatro dias antes do casamento, ela duvidava que pudesse voltar antes que estivesse perto dos noventa anos.
Ouviu uma exclamação, numa voz que reconheceu, e virou-se de repente para ver Leander sentado num banco atrás dela.
— Pensei em vir dizer adeus — falou, e Blair parou na frente dele. A lista caiu de sua mão e, antes que pudesse apanhá-la, Leander pegou-a e leu-a.
— Vejo que perdi para tio Henry e sua culpa para com Houston.
Ela arrancou a lista de suas mãos.
— Fiz algo imperdoável à minha irmã e, se puder remediar, eu o farei.
— Ela não me pareceu tão infeliz na última vez que a vi.
Olhava para Taggert como se estivesse na lua.
— Houston gosta do dinheiro dele.
— Posso não saber muito sobre aquela mulher, mas sei que não está apaixonada pelo dinheiro. Penso que ela gosta de algo um pouco mais ah... pessoal.
— Você é grosseiro.
— Então suponho que seja bom que esteja se casando com alguém perfeito como Hunter, e não com alguém grosseiro como eu. Só porque provoco sensações em seu corpo que a fazem gritar de prazer, porque apreciamos a companhia um do outro, porque trabalhamos tão bem juntos, essas não são razões para casar comigo. Ouvi dizer que você venceu Hunter no tênis.
— Estou contente de não casar com você. Nunca quis, nunca. — Um som fez com que olhasse para a estrada e viu o trem.
Leander levantou-se.
— Com os diabos, não vou ficar aqui para ver você se fazer de boba. — Meteu as mãos nos bolsos. — Você vai ser infeliz, e merece isso. — Virou em seus calcanhares e saiu.
Por um momento, Blair quase correu atrás dele, mas se conteve. Tomara sua decisão e ficaria firme nela. Aquilo seria o melhor para todos os implicados.
O trem entrou na estação, mas Alan ainda não estava lá. Levantou-se e andou pela plataforma enquanto dois homens saltaram do trem e um homem e uma mulher entraram.
O condutor começou a acenar para o trem partir.
— Tem de esperar. Alguém devia estar aqui.
— Se ele não está aqui, então perdeu o trem. Todos a bordo!
Sem acreditar, Blair via o trem sair da estação. Sentou-se no banco e esperou. Talvez Alan estivesse atrasado e pretendesse tomar o próximo trem. Ficou sentada durante o total de duas horas e quarenta e cinco minutos, mas Alan não apareceu. Perguntou ao bilheteiro se um homem com a descrição de Alan comprara um bilhete. Ele comprara dois bilhetes de manhã bem cedo — para as quatro horas.
Blair andou pela plataforma outros trinta minutos, e então começou a voltar para casa.
Então era assim que se sentia ao levar um fora, pensou. Engraçado, mas não se sentia de todo mal. Na verdade, quanto mais se aproximava de casa, mais leve se sentia. Talvez pudesse trabalhar no hospital com Leander, no dia seguinte.
Quando entrou em casa, estava tudo quieto como um túmulo, e a única luz ligada era a da sala de visitas. Entrou e, para a sua surpresa, sua mãe e Leander estavam sentados lá, conversando tão silenciosamente como se estivessem num funeral.
Quando Opal viu sua filha, muito calmamente, muito lentamente, deixou cair o bordado e desmaiou. Leander olhava para Blair tão surpreso que sua boca ficou aberta, o charuto caiu e queimou a franja de um banquinho.
Blair ficou tão satisfeita com as reações deles que ficou ali sorrindo. Logo a seguir, Susan entrou na sala e começou a gritar.
A gritaria reviveu-os. Lee apagou o fogo, Blair bateu nas mãos de sua mãe até que se recuperasse e Susan saiu para fazer chá.
Assim que Opal sentou-se direito, Leander agarrou os ombros de Blair, fê-la ficar de pé e começou a sacudi-la.
— Espero que aquele seu maldito vestido sirva, porque você vai casar comigo na segunda-feira. Compreendeu bem?
— Leander, você a está machucando — gritou Opal.
— Mas ela está me matando! Entendeu, Blair?
— Sim, Leander — tentou dizer.
Ele empurrou-a para o sofá e saiu disparado da sala. Com as mãos trêmulas, Opal levantou a costura do chão.
— Acredito ter tido excitação suficiente nas últimas semanas para o resto da vida.
Blair recostou-se na poltrona e sorriu.

 

Capítulo XVI

 

DURANTE TRÊS DIAS, Leander manteve Blair tão ocupada no hospital que ela não teve tempo para pensar. Ele vinha buscá-la bem cedo pela manhã e levava-a de volta tarde da noite. Levou-a ao armazém na avenida Archer e contou-lhe seus planos para transformar o lugar numa clínica de mulheres. Logo Blair teve algumas idéias próprias, e Leander escutou em silêncio e discutiu-as com ela.
— Acho que poderemos tê-la pronta em duas semanas, uma vez que o equipamento já está a caminho, vindo de Denver — disse Lee. — Planejei-a como uma surpresa, um presente de casamento, mas ultimamente já tive mais do que minha quota de surpresas, e não posso agüentar mais nenhuma.
Antes que Blair pudesse dizer uma palavra, ele empurrou-a para fora do armazém e para dentro de sua carruagem e levou-a de volta para o hospital. Estava aliviada por ver que o que Alan dissera não era verdade. Lee não estivera mentindo sobre a clínica só para ganhar a competição.
Enquanto as horas corriam e o casamento se aproximava, Blair imaginava por que Lee queria casar com ela. Não fez nenhuma tentativa para tocá-la, e nunca conversavam exceto para discutir um paciente. Umas poucas vezes ela o pegava observando-a, especialmente quando estava trabalhando com outros médicos, mas sempre desviava quando ela o olhava.
E a cada dia Blair respeitava Lee mais e mais como médico. Logo compreendeu que ele poderia ter ganho muito dinheiro se tivesse ficado num hospital de uma grande cidade, mas em vez disso escolhera ficar em Chandler, onde raramente era pago por algum atendimento. As horas eram longas e laboriosas, a grande quantidade de trabalho desgastante e as recompensas na maioria das vezes inatingíveis.
Na tarde de domingo, véspera do casamento, Blair se sentia um pouco enjoada depois da festa de despedida de solteira de Houston na noite anterior. Lee chamou-a em seu escritório. Era um encontro embaraçoso para ambos. Ele a olhava de uma forma que fazia seus braços começarem a arrepiar, e tudo em que conseguia pensar era que no dia seguinte subiria ao altar com ele.
— Escrevi uma carta para o hospital St. Joseph, dizendo-lhe que você não aceita o lugar.
Blair respirou fundo e sentou-se pesadamente numa cadeira. Não pensara em ter de desistir do estágio. Lee inclinou-se para a frente na escrivaninha.
— Estava achando que talvez eu tivesse sido um pouco precipitado. — Começou a estudar as unhas. — Se quiser ligar amanhã para desmentir, compreenderei.
Por um momento, Blair ficou tão confusa que não conseguia dizer nada. Estava ele dizendo que não queria casar-se com ela? Levantou-se rapidamente.
— Se estiver tentando dar o fora depois de ter feito tanto para forçar-me a casar com você, eu...
Não pôde dizer mais nada, porque Leander saltara de trás da escrivaninha, agarrara seus ombros e beijara-a de uma forma forte e intensa que a deixou sem fala.
— Não quero cair fora — disse ao soltá-la enquanto Blair tentava manter os joelhos fracos sob controle. — Agora, de volta para o trabalho, doutora. Pensando melhor, vá para casa e descanse. Se eu conheço sua irmã, ela deve ter três vestidos para você experimentar, e sua mãe uma centena de coisas para que faça. Amanhã à tarde a verei. — Deu um largo sorriso. — E amanhã à noite. Agora saia daqui.
Blair não conseguiu evitar de sorrir-lhe, e continuou sorrindo todo o caminho até sua casa.
Mas seu sorriso desapareceu assim que entrou em casa. O sr. Gates estava furioso por ela ter ficado trabalhando no hospital num domingo, e não em casa, ajudando a irmã com os arranjos para o casamento, principalmente quando a pobre Houston não se sentia bem. Blair também estava cansada e nervosa com o casamento, e quase caíra em pranto antes do homem odioso começar a gritar com ela. Opal parecia entender o que a filha sentia e rapidamente fez com que o senhor Gates fosse para o estúdio, enquanto levava Blair para o jardim, para começarem a escrever os cartões de agradecimento.
Blair ainda estava sentida com o ataque do sr. Gates quando sentou-se com a mãe.
— Como pôde casar com um homem como ele, mamãe? Como pôde submeter Houston a ele? Eu pelo menos fui embora, mas Houston teve de ficar aqui todos esses anos.
Opal ficou em silêncio durante alguns minutos.
— Acho que não levei vocês, meninas, em consideração quando me apaixonei pelo senhor Gates.
— Apaixonou-se por ele! Mas eu sempre pensei que sua família a tivesse forçado a casar com ele.
— De onde foi que tirou essa idéia? — perguntou Opal chocada.
— Penso que Houston e eu decidimos isso por conta própria. Não podíamos ver outro motivo para você casar com ele. Talvez gostássemos de pensar que, depois da morte de nosso pai, você ficara muito perturbada para se interessar pela pessoa com quem estava casando.
Opal deu uma pequena risada:
— Vocês duas eram tão jovens quando William morreu, e tenho certeza de que, como eram crianças, lembram-se dele como o mais maravilhoso dos pais, sempre fazendo, criando coisas, provocando movimento aonde quer que fosse.
— Ele não era assim? — perguntou Blair com cautela, temendo ouvir coisas horríveis sobre seu adorado pai.
Opal pôs a mão no braço da filha.
— Ele era tudo isso e mais do que você se lembra. Tenho certeza de que não se lembra nem da metade de seu espírito, seu brilho ou sua coragem e ambição. Ambas vocês, meninas, herdaram muito dele. — Suspirou. — Mas a verdade é que achei William Chandler o homem mais cansativo da terra. Amei-o profundamente, mas havia dias em que me vinham lágrimas de alívio nos olhos quando por fim ele saía de casa. Veja, fui criada na crença de que o papel da mulher na vida era ficar sentada na sala de visitas e dirigir os empregados enquanto bordava. A coisa mais cansativa que planejara fazer era ponto-de-cruz. Todos aqueles quadrinhos para contar!
Recostou-se na cadeira e sorriu.
— Então conheci seu pai. Por alguma razão, decidiu que me queria, e realmente penso que não tive muito o que dizer no caso. Ele entrou em minha vida com sua extraordinária graça, e não creio que alguma vez tenha considerado dizer não a ele. Mas casamos, houve uma crise após outra para enfrentar, todas causadas pela ânsia de Bill pela vida. Mesmo quando William gerou crianças, fez gêmeas: uma criança não era suficiente para ele.
Olhou para as mãos, e havia lágrimas em seus olhos.
— Pensei que também morreria, quando Bill faleceu. Parecia que não havia uma razão para viver, mas então comecei a lembrar-me de coisas que antes me agradavam, tais como bordados, e, claro, tinha vocês, meninas. Então o senhor Gates apareceu. Ele era diferente de Bill como a noite do dia, e gostava do que Bill costumava chamar meu "trabalho inútil". O senhor Gates tinha idéias rígidas sobre o que uma mulher devia e não devia fazer. Não esperava que eu passasse as tardes de domingo escalando montanhas com ele, como Bill costumava. Não, o senhor Gates queria dar-me um lar adorável, e eu teria de ficar nesta casa e cuidar de minhas crianças e oferecer chás nas tardes. Conforme conheci mais o homem, descobri que era fácil fazê-lo feliz e que as coisas que vinham freqüentemente a mim eram aquelas que ele esperava de mim. Com seu pai, nunca tinha certeza do que se esperava que eu fizesse. — Olhou para Blair. — Assim descobri que estava apaixonada por ele. O que eu queria fazer e as idéias dele do que eu devia fazer combinavam perfeitamente. Receio não ter pensado muito em vocês, meninas, ou percebido o quanto vocês duas eram parecidas com Bill. Sabia que você era como seu pai. Assim, dei um jeito para que fosse morar com Henry, mas pensei que Houston fosse como eu, e de certa forma ela é. Mas Houston também é como o pai, e isso aparece de maneiras estranhas, tal como vestir-se de velha e entrar nos campos das minas. Bill faria alguma coisa como essa. Blair ficou em silêncio um longo tempo pensando no que a mãe contara, e imaginando se poderia vir a amar Leander. Tinha certeza de que estava apaixonada por Alan, mas não tinha ficado exatamente arrasada quando ele lhe dera o fora. Havia muito mais coisas envolvidas no que acontecera. Não podia olhar para Lee sem lembrar-se de que sua irmã o amara e durante tanto tempo, e agora Houston iria ter de vê-lo casar com outra.
Blair não dormiu muito na noite anterior ao casamento, e parecia que todos os demônios da noite estavam ali pela manhã. A brilhante luz do dia não a livrou de sua sensação de condenada.
Durante os últimos dias tentara esquecer por minutos inteiros que estava se casando com o prometido de sua irmã, mas sempre acreditara que aquilo na realidade não iria acontecer. Pensara que de alguma maneira não se casaria com Leander e Houston poderia tê-lo de volta.
Às dez horas, partiram para a casa de Taggert, onde se realizariam os casamentos. Opal e as gêmeas na bonita pequena carruagem de Houston, um dos muitos presentes de Taggert, com o cavalariço atrás, dirigindo uma grande carroça que Houston tomara emprestada, com os vestidos de noiva cobertos com musselina, no fundo. Foram em silêncio todo o caminho até a casa. Quando Blair perguntou a Houston no que estava pensando, ela respondeu que esperava que os lírios tivessem chegado sem danos.
Blair sabia que aquilo era mais uma prova de que o maior interesse de sua irmã no homem com quem ia casar era o dinheiro que tinha.
E quando Blair viu a casa de Taggert, teve certeza que Houston se vendera ao deus do dinheiro.
A casa parecia ter sido esculpida numa montanha de mármore: fria, branca e enorme. O térreo era dominado por uma grande escadaria, larga e dupla, que atingia em curva lados de um corredor que era maior do que o de qualquer casa que Blair já vira.
— Desceremos por ali — disse Houston, apontando para as escadas. — Cada uma de nós, por um lado. Cercada por um bando de amigas lindamente vestidas, ela seguiu adiante e começou a inspeção da casa, enquanto Blair permanecia onde estava.
— Leva um tempo para se acostumar — murmurou Opal para sua filha. Tinha-se a sensação de que o lugar não era real, que tinha saído de um conto de fadas e desapareceria tão rapidamente quanto aparecera.
— Houston pretende morar nisto? — mumurou Blair em resposta.
— Parece menor quando Kane está aqui — assegurou-lhe Opal. — Penso que devemos subir agora. Não dá para adivinhar o que Houston planejou para nós.
Blair seguiu a mãe pelas largas escadas, olhando por sobre o ombro o tempo todo, para o chão abaixo. Olhou para todos os lugares, viu arranjos exóticos de flores e folhagens, e no patamar parou para olhar pela janela os terrenos abaixo. Eram lindos, com uma grama viçosa e arbustos.
Opal parou a seu lado:
— Esta é a área de serviço. Você devia ver o jardim.
Blair não disse mais nada ao seguir sua mãe até o segundo andar e aos quartos reservados para a família.
— Houston a colocou aqui — disse Opal, abrindo a porta de uma sala de teto alto com uma lareira de mármore branco esculpida com grinaldas e flores. Os divãs, cadeiras e mesas da sala deveriam estar em museus.
— Esta é a sala de estar e por aqui é o quarto de dormir, e aquele é o banheiro. Cada quarto de hóspedes tem uma sala de estar e um banheiro próprio.
Blair correu a mão pela pia de mármore do banheiro e, apesar de nunca ter visto algum antes e não poder ter certeza, achou que os acessórios podiam ser de ouro.
— Bronze? — perguntou à mãe.
— Ele não teria isso em casa — disse Opal com algum orgulho. — Agora devo ir ver se Houston precisa de alguma ajuda. Você ainda tem horas antes de precisar se vestir. Portanto, por que não tira uma soneca?
Blair começou a protestar que possivelmente não conseguiria dormir, mas então olhou para a enorme banheira de mármore e achou que gostaria de usá-la.
Assim que ficou sozinha, encheu a banheira com água quente, fumacenta, e entrou nela, a água relaxando-a no mesmo instante. Ficou ali um longo tempo, até que sua pele começou a enrugar, então saiu e enxugou-se com uma toalha tão grossa que poderia ser uma almofada. Vestiu um robe de casimira rosa e foi para o quarto de dormir, onde prontamente adormeceu na cama grande e macia.
Quando acordou, sentia-se descansada e com a cabeça leve, e lembrou-se das palavras da mãe sobre haver um jardim nos fundos da casa. Rapidamente vestiu sua saia simples e uma blusa diária e saiu do quarto. Não querendo usar a escadaria principal, uma vez que podia ouvir vozes abafadas embaixo, foi por um corredor passando por portas fechadas e acabou encontrando um escadaria nos fundos que levava a um labirinto de cozinha e despensas no primeiro andar. Cada centímetro dessas salas estava repleto de pessoas afobadas, indo para lá e para cá, e criando deliciosos aromas de comida. Blair teve dificuldade para atravessar aquela multidão. Diversas pessoas viram-na, mas ninguém tinha tempo para comentar sobre a noiva estar na cozinha duas horas antes de o casamento começar. Blair só estava preocupada em não deixar Houston vê-la. Sem dúvida Houston tinha um horário e o mantinha, não importa o que acontecesse. Houston nunca acharia tempo para dar uma escapada até o jardim.
Atrás da casa havia um gramado coberto de enormes toldos, mesas com toalhas de linho rosa e centenas de vasos de flores. Homens e mulheres de uniforme entravam e saíam apressados da casa para pôr travessas de comida e temperos nas mesas.
Blair também passou apressada por essas pessoas e foi até o que parecia ser o jardim dos fundos. Assim que deu o primeiro passo, entrando pelo lado do jardim, não estava preparada para o que viu. À sua frente desenrolavam-se acres de alamedas sinuosas, que surgiam e desapareciam entre plantas que nunca vira antes. Começou a seguir ao acaso por uma das alamedas.
A confusão dos preparativos para o casamento desapareceu atrás dela e, pela primeira vez em dias, sentiu-se livre para pensar.
Aquele era o dia de seu casamento, mas no momento não podia se lembrar de como chegara até ali. Três semanas antes, ela estava na Pensilvânia e tinha o seu futuro planejado. Mas como as coisas tinham mudado! Alan fugira em vez de casar com ela. Sua irmã perdera o homem que amava e agora ia casar com um dos homens mais ricos do país — sem nenhum envolvimento amoroso. E tudo por sua culpa. Viera para casa ver a irmã casar e em vez disso conseguira transformá-la numa mercenária. Houston poderia muito bem ter-se posto num lote de leilão e aceitar o arrematador.
Quando Blair caminhava pelo jardim imersa em seus pensamentos, viu Taggert vindo pela alameda. Antes de pensar no que estava fazendo, virou-se de repente e foi por outro caminho antes que ele a visse. Não andara mais que poucos metros quando viu uma mulher extraordinariamente alta, que parecia vagamente familiar, andando apressada pelo mesmo caminho de Taggert. Blair não podia lembrar-se de onde a vira antes.
Deu de ombros, pondo de lado a mulher, e continuou caminhando.
Seus pensamentos estavam tomados por completo com o que iria acontecer naquele dia, e estava tentando decifrar como tudo tinha acontecido, quando de repente lembrou-se de quem era a mulher alta.
— É Pamela Fenton — disse alto.
Houston e Blair estiveram na casa dos Fenton diversas vezes quando eram crianças, para cavalgar nos pôneis de Marc ou ir a uma de suas numerosas festas, e sua irmã mais velha, Pam, já estava então bem crescida e elas tinham medo dela. Ela partira então, de repente, e durante anos ainda havia boatos sobre o que acontecera.
E depois de todos esses anos ela voltara e estaria no casamento, pensou Blair com algum prazer. Sem querer, imaginava o que Pamela teria feito há tanto tempo para provocar os boatos da cidade. Era alguma coisa sobre um cavalariço, não era?
Blair parou onde estava. O escândalo na verdade fora sobre um cavalariço dos estábulos de seu pai. Ela se apaixonara por ele, e o pai mandara-a para longe como conseqüência do namoro.
E Kane Taggert era aquele cavalariço.
Agarrando as saias, Blair correu pela alameda na direção em que Pam e Taggert tinham ido. Andou uns poucos metros e parou.
Viu sem acreditar como Kane Taggert pegava o rosto de Pamela Fenton em suas mãos e a beijava com grande paixão.
Com lágrimas quentes nos olhos, Blair voou pelas alamedas em direção à casa. O que fizera para sua irmã? Houston ia casar com aquele homem monstruoso que beijava uma mulher duas horas antes de casar com outra.
E tudo aquilo estava acontecendo por culpa de Blair.

 

Capítulo XVII

 

ANNE SEABURY ajudou Blair a vestir o elaborado vestido de noiva que Houston desenhara. Era um vestido de corte simples, de cetim marfim, muito elegante, decote alto, mangas grandes, e tão justo quanto o espartilho de barbatanas de aço podia deixar. Centenas, talvez até milhares de pequeninas pérolas estavam pregadas pela cintura e punhos. E o véu era de uma renda feita à mão, como nunca vira antes.
Ao olhar-se no espelho, desejou que estivesse usando esse vestido sob circunstâncias mais felizes e que fosse atravessar a igreja com um sorriso no rosto.
Mas sabia que era impossível, uma vez que já fizera o que sabia que deveria fazer. Tão logo vira aquele monstro, Taggert, beijando outra mulher, voltara para casa e mandara-lhe um bilhete. Disse-lhe que estaria usando rosas vermelhas no cabelo, e instruiu a empregada para dizer-lhe que estivesse certo de ficar à esquerda, e não à direita como fora originalmente planejado.
Blair não estava certa da legalidade do que estava fazendo, uma vez que nas licenças estavam os nomes de qual das gêmeas deveria se casar com qual homem, mas talvez pudesse ganhar um pouco de tempo para a irmã se o ministro pronunciasse Leander com Houston, marido e mulher, em vez de com aquele homem lascivo. Não gostava de pensar nas conseqüências se o casamento fosse legal e ela acabasse casada com Taggert. Mandou rosas cor-de-rosa para a irmã e pediu-lhe que as usasse. No alto da escada, Blair abraçou a irmã:
— Eu a amo mais do que pensa — mumurou antes de começarem a descer, e com um suspiro disse. — Vamos prosseguir com esse espetáculo.
A cada passo, Blair sentia que se aproximava mais de sua execução. E se o casamento fosse legal e ela acabasse encontrando-se casada com aquele homem assustador e tivesse de viver naquela casa que parecia um mausoléu?
Dentro da enorme sala que se supunha ser uma biblioteca, mas poderia ser um campo de beisebol interno, ela viu Taggert perto de Leander numa plataforma que estava decorada, forrada e coberta de rosas e folhagens.
Blair manteve a cabeça alta e os olhos para a frente. Sabia que, naquele momento, Houston devia ter visto o que estava acontecendo; que ela estava, afinal, indo casar com o homem que amava.
Olhou para frente, para Kane Taggert, e, enquanto caminhava pela igreja na direção dele, viu suas sobrancelhas juntarem-se numa linha reta. Ele sabe!, pensou. Ele sabe que não sou Houston!
Por um momento, ficou surpresa. Naquela hora duvidava que mesmo sua própria mãe pudesse dizer qual gêmea era essa ou aquela, mas de alguma forma aquele homem sabia. Olhou para Leander e viu que ele estava sorrindo de leve para Houston, um sorriso de boas-vindas. Claro, ele confiava, pensou, ele não tinha motivo para suspeitar que alguém fizesse alguma coisa, uma vez que era incapaz de agir mal. Mas Taggert, por outro lado, tinha fama de ter feito muitas coisas erradas para ganhar seu dinheiro, assim estaria procurando por trapaças e poderia diferenciar as gêmeas, raciocinou Blair.
Blair não olhou para a irmã quando tomaram seus lugares na plataforma. Leander tomou a mão de Houston na sua, enquanto Taggert afastava-se de ambas as gêmeas e do ministro.
— Queridos amigos, nós... — começou o ministro, mas Houston interrompeu-o.
— Desculpe-me, eu sou Houston.
Blair olhou para a irmã com assombro. Por que ela estava arruinando o que fora tão bem arquitetado?
Leander lançou-lhe um olhar duro.
— Vamos trocar de lugar? — disse a Taggert.
Taggert simplesmente encolheu seus grandes ombros:
— Para mim não faz muita diferença.
— Mas para mim faz — disse Leander, e moveu-se para trocar de lugar com Taggert.
Lee tomou a mão de Blair e quase arrancou-a, mas ela não se importou. Taggert tinha publicamente admitido que Houston não importava para ele, que não se importava de casar com ela ou qualquer outra. Blair nunca se perguntara o porquê de Taggert querer casar com Houston e agora pensava se não era por ser ela a única a querê-lo.
Lee beliscou-a e ela levantou os olhos em tempo de dizer "Sim, aceito".
Antes que percebesse o que estava acontecendo, a cerimônia terminou, e Leander estava tomando-a nos braços e se preparando para beijá-la. Para a platéia deve ter parecido um beijo entusiasmado, mas na verdade, ele murmurava em seu ouvido com muita veemência:
— Quero vê-la lá fora. Agora!
Tropeçando na cauda de três metros e meio do pesado vestido de cetim, Blair tentou acompanhá-lo enquanto ele quase que a arrastava pelo corredor. As pessoas foram se aproximando, assim que eles chegaram ao saguão, mas Leander não largou sua mão enquanto a empurrava para uma sala grande, toda de painéis, no fim do corredor.
— Afinal, o que foi aquilo? — começou Leander, mas não a deixou responder. — Você odeia tanto a idéia de viver comigo que chega a tais extremos para cair fora? Você preferia viver com um homem que nem ao menos conhece do que comigo? Qualquer um, menos eu, é isso?
— Não — começou ela —, eu nem pensei em você. Só pensei em Houston. Eu não queria que ela sentisse que tinha de casar com aquele homem horrível.
Leander olhou-a durante um longo tempo, e, quando falou, sua voz estava calma:
— Você quer dizer que pretendia casar com um homem de quem não gosta a fim de que sua irmã pudesse ter o homem que pensa que ela quer?
— Claro. — Blair estava um tanto espantada com a pergunta. — Que outra razão teria eu para fazer a troca?
— Só que pensou que o casamento com qualquer um seria preferível a casar comigo. — Agarrou seu braço. — Blair, você vai acertar isso agora. Você e Houston vão conversar, e quero que ouça sua resposta. Você me entendeu? Quero que realmente ouça a resposta dela.
Ignorando as centenas de pessoas que os cercavam, todos murmurando e rindo sobre a confusão no altar, Leander puxava Blair através da multidão enquanto perguntava onde estava Houston. Não foi difícil encontrá-la, pois estava sozinha numa saleta repleta de papéis.
— Acredito que vocês duas tenham umas coisinhas que precisam ser ditas — disse Leander através dos dentes para Blair, quase empurrando-a para dentro da sala e fechando a porta atrás dela.
Sozinhas, as gêmeas não se falaram. Houston estava sentada numa cadeira, a cabeça abaixada, enquanto Blair permanecia indecisa perto da porta.
— Acho que devíamos ir para lá e cortar o bolo — começou Blair hesitante. — Você e Taggert...
Houston levantou-se da cadeira como se de repente tivesse se transformado numa harpia.
— Você nem consegue chamá-lo pelo nome, não é? — disse ela com ódio em cada palavra. — Pensa que ele não tem sentimentos; você dispensou-o e agora pensa que tem o direito de fazer o que queira com ele.
— Houston, o que fiz foi por você. Queria vê-la feliz. — Surpresa, Blair recuara ao ver o ódio da irmã.
Os punhos estavam fechados ao lado do corpo e ela avançou para Blair, como se quisesse desafiá-la para uma luta.
— Feliz? Como posso ser feliz se nem ao menos sei onde está meu marido? Graças a você, é possível que eu nunca saiba o significado de felicidade.
— A mim? O que foi que fiz, exceto tentar tudo ao meu alcance para ajudá-la? Tentei ajudar você a voltar a seu juízo e ver que não tinha que casar com aquele homem pelo dinheiro. Kane Taggert...
— Você realmente não sabe, não é? — interrompeu-a. — Você humilhou um homem orgulhoso, sensível, em frente de centenas de pessoas, e nem se dá conta do que fez.
— Presumo que esteja falando do que aconteceu no altar? Fiz por você, Houston. Sei que ama Leander e eu iria ficar com Tag-gert só para fazer você feliz. Sinto tanto o que lhe fiz. Nunca quis torná-la infeliz. Sei que arruinei sua vida, mas tentei reparar o que havia feito.
— Eu, eu, eu. É tudo o que sabe dizer. Você arruinou minha vida e tudo que consegue falar é sobre si mesma. Você sabe que amo Leander. Você sabe como Kane é um homem horrível. Durante a última semana, mesmo um pouco mais, passou todos os momentos em que estava acordada com Leander, e o modo como fala dele é como se ele fosse um deus. De cada duas palavras que diz, uma é "Leander". Acho que você estava certa esta manhã: queria me dar o melhor homem.
Houston inclinou-se para a irmã.
— Leander pode deixar seu corpo em fogo, mas a mim nunca fez nada. Se você não estivesse tão envolvida consigo mesma ultimamente, e pudesse achar que tenho juízo em meu cérebro, teria reparado que me apaixonei por um homem bom, generoso, atencioso. Vamos admitir que tenha as arestas um pouco ásperas, mas você sempre não se queixou que minhas arestas eram arredondadas demais?
Blair sentou-se.
— Você o ama? Taggert? Você ama Kane Taggert? Mas eu não entendo. Você sempre amou Leander. Até onde posso me lembrar, você o amava.
Parte da raiva de Houston pareceu deixá-la, e ela virou-se para olhar pela janela.
— É verdade. Decidi que o queria quando tinha seis anos de idade. Penso que isso tornou-se uma meta para mim, como subir uma montanha. Deveria ter tido em mira o monte Rainier. Pelo menos, uma vez que subisse, já teria cumprido minha meta. Nunca soube o que faria com Leander depois de termos casado.
— Mas sabe o que fará com Taggert?
— Ah, sim. Sei muito bem o que vou fazer com ele, Vou fazer um lar para ele, um lugar onde estará a salvo, um lugar onde eu estarei a salvo, onde eu possa fazer o que quiser — disse Houston, olhando outra vez para a irmã e sorrindo.
Blair levantou-se e foi sua vez de cerrar os punhos.
— Suponho que não se preocupou em perder dois minutos para me contar isso, não é? Tenho vivido no inferno nestas últimas semanas. Tenho me preocupado com você, passo dias inteiros chorando pelo que fiz à minha irmã e agora me diz que está apaixonada por esse rei Midas.
— Não diga nada contra ele — gritou Houston, mas logo acalmou-se. — Ele é o mais bondoso, mais gentil dos homens e muito generoso. E acontece que o amo muito.
— E eu tenho vivido na agonia por estar preocupada com você. Devia ter me contado.
Houston correu a mão preguiçosamente pela beirada da escrivaninha que estava no meio da sala.
— Acho que estava tão ciumenta de seu casamento por amor que não queria pensar em você.
— Casamento por amor?! — gritou Blair. — Acho que sou o monte Rainier de Leander. Não posso negar que ele mexe comigo fisicamente, mas é tudo que quer de mim. Passamos dias juntos na sala de operações, mas sinto que há uma parte dele que não conheço. Ele realmente não deixa que eu me aproxime muito. Sei tão pouco sobre ele. Decidiu que me queria, portanto foi atrás de mim, usando todos os métodos a seu alcance.
— Mas eu vejo a maneira como você olha para ele. Nunca me senti inclinada a olhá-lo desse jeito.
— É porque nunca o viu na sala de operações. Se o visse lá, teria...
— Desmaiado, provavelmente — disse Houston. — Blair, sinto não ter contado a você. É possível que eu soubesse que você estava sofrendo, mas o que aconteceu doeu. Fui noiva de Leander durante, assim me parecia, quase que a minha vida toda, no entanto você chegou e tirou-o em uma única noite. E Lee sempre me chamava de "sua princesa de gelo", e eu estava tão preocupada por ser uma mulher fria!
— E não está mais preocupada com isso? — perguntou Blair.
O rosto de Houston ficou mais corado.
— Não com Kane — murmurou.
— Você realmente o ama? — perguntou Blair, ainda incapaz de compreender o fato. — Você não se importa com comida voando por todo lado? Você não se importa com seu espalhafato ou as outras mulheres? — Blair devia ter mordido a língua.
— Que outras mulheres? — perguntou Houston com os olhos apertados. — E, Blair, é melhor que me conte.
Blair respirou fundo. Teria sido certo contar a Houston o que vira antes que se casasse com o homem, mas agora era muito tarde. Houston avançou em sua irmã.
— Se você está, ao menos, considerando a idéia de manobrar minha vida outra vez como fez hoje no altar, nunca mais falarei com você. Sou adulta, você sabe alguma coisa sobre meu marido, e quero saber o quê.
— Eu o vi no jardim beijando Pamela Fenton pouco antes do casamento — disse num fôlego só.
Houston empalideceu um pouco, mas parecia estar sob controle.
— Mas ele veio para mim, de qualquer maneira — murmurou. — Ele a viu, beijou-a, mas casou comigo. — Um sorriso radiante iluminou seu rosto. — Blair, hoje você me fez a mulher mais feliz do mundo. Agora, tudo o que tenho a fazer é descobrir meu marido, dizer-lhe que o amo e esperar que me perdoe.
Parou de repente.
— Oh, Blair, você não o conhece mesmo. É um homem tão bom, generoso de uma maneira natural, forte de um modo que faz com que as pessoas dependam dele, mas ele é... — Enterrou o rosto nas mãos. — Mas ele não agüenta vergonha de nenhuma espécie, e nós o humilhamos em frente da cidade toda. Ele nunca me perdoará. Nunca!
Blair dirigiu-se para a porta:
— Irei a ele e explicarei que foi tudo minha culpa, que você não teve nada a ver com o acontecido. Houston, eu não tinha idéia de que quisesse realmente casar com ele. Eu só não podia imaginar alguém querendo viver com uma pessoa como ele.
— Não creio que ainda precise se preocupar com isso, porque ele acaba de deixar-me.
— Mas e os convidados?
Ele não pode ir saindo.
— Deveria ficar e ouvir as pessoas rirem de como Leander não pode decidir qual das gêmeas quer? Ninguém pensará que Kane poderia ter feito sua escolha. Kane pensa que ainda estou apaixonada por Leander, você pensa que amo Leander e o senhor Gates acha que casei com Kane pelo dinheiro. Acredito que mamãe seja a única pessoa que vê que estou apaixonada, pela primeira vez em minha vida.
— O que posso fazer para consertar tudo para você? — murmurou Blair.
— Não há nada que possa fazer. Ele se foi. Deixou-me dinheiro, a casa e foi-se embora. Mas para que quero esta casa enorme e vazia, se ele não estiver nela? — Sentou-se. — Blair, nem ao menos sei onde está. Por tudo que sei, ele pode estar em um trem voltando para Nova York.
— É bem mais provável que tenha ido para sua cabana. Ambas levantaram os olhos para ver o amigo de Kane, Edan, parado na porta.
— Não tive a intenção de ouvir, mas quando vi o que aconteceu, sabia que ele ficaria raivoso.
Houston rapidamente enrolou a cauda de seu vestido de noiva em volta do braço.
— Irei a ele e explicarei o que aconteceu. Vou lhe dizer que minha irmã está tão apaixonada por Leander que pensa que eu também estou. — Virou-se para sorrir para Blair. — Não posso deixar de ficar magoada por você ter pensado que eu fosse tão baixa a ponto de casar com um homem por seu dinheiro, mas agradeço pelo amor que fez com que quisesse sacrificar o que se tornou tão importante para você. — Rapidamente, beijou o rosto da irmã.
Blair segurou-a por um momento:
— Houston, eu não tinha idéia de que se sentisse dessa forma. Assim que a recepção terminar, ajudarei você com as malas e...
Houston afastou-se com uma risadinha:
— Não, minha cara irmã controladora, estou deixando esta casa agora. Meu marido é mais importante para mim do que umas poucas centenas de convidados. Você vai ter de ficar aqui e responder a todas as perguntas sobre onde Kane e eu fomos.
— Mas, Houston, não sei nada sobre recepções deste tamanho.
Houston parou na porta ao lado de Edan:— Eu aprendi como, na minha educação "inútil" — disse, e então sorriu. — Blair, não é tão trágico assim. Anime-se, talvez haja um surto de envenenamento por comida, e você saberá como lidar com -isso. Boa sorte — disse, e saiu da porta, deixando Blair sozinha com o horror de ter de orientar a enorme e sofisticada recepção.
— Por que tinha que abrir minha grande boca para criticar aquela escola que Houston escolheu? — murmurou Blair, enquanto endireitava o vestido, tentava respirar dentro do espartilho apertado e deixava a sala.

 

Capítulo XVIII

 

A RECEPÇÃO FOI PIOR do que Blair imaginava que pudesse ser. As pessoas estavam sempre correndo para lá e para cá e, no minuto em que Houston saiu de vista, ninguém parecia saber o que fazer. E também havia o que parecia ser centenas de parentes de Lee para conhecer, todos fazendo perguntas sobre a pouco comum troca das gêmeas. Opal começou a espalhar o rumor de que o marido de Houston a levara num cavalo branco — provavelmente com asas, pensou Blair —, e todas as jovens senhoras ficaram murmurando que Kane era o mais romântico dos homens. Tudo o que Blair podia pensar era que certamente estava alegre de seu golpe ter falhado e não ter de passar sua noite de núpcias com Taggert.
Um dos homens estava perguntando a Blair como devia servir o que parecia ser uma fôrma de queijo de quarenta quilos, quando ela olhou os convidados e viu Leander no meio deles obser-vando-a, e um pouco de calor começou a espalhar-se por seu corpo. Por mais que se preocupasse com certas coisas de Lee, passar a noite com ele não era uma delas.
Ele abriu caminho pela multidão, deu algumas instruções rápidas para o homem com o queijo e puxou Blair para sair com ele para o jardim, fora da vista das pessoas.
— Graças aos céus um homem só tem de passar por isso uma vez na vida. Sabia que o senhor Gates está chorando?
Sentia-se bem em estar ali na sombra com ele, afastada do barulho e da multidão, e desejou que ele a beijasse.
— Provavelmente está feliz por me ver já saindo de sua casa.
— Ele disse-me que agora poderia relaxar, porque sabia que você seria feliz, que vai fazer aquilo para o que o senhor fez as mulheres. Que teria um bom homem, eu, para cuidar de você, e que por fim se realizaria.
Ele a olhava de uma forma que a fazia sentir-se muito quente.
— Acha que se realizará comigo? — perguntou num murmúrio rouco e começou a mover-se na direção dela.
— Dr. Westfield! Telegrama! — era a voz de um rapaz, e no minuto seguinte ele estava ali, quebrando o isolamento deles.
Leander deu uma moeda para o menino e disse-lhe que se servisse de comida, enquanto começava a abrir o telegrama, os olhos em Blair. Mas, no minuto seguinte, toda a sua atenção estava no papel em sua frente.
— Torcerei o pescoço dela — disse ele, entre dentes, o rosto começando a ficar vermelho de raiva.
Blair tirou o telegrama da mão dele.
ACABO DE ME CASAR COM ALAN HUNTER PONTO CONTE PAPAI E BLAIR PONTO VOLTAREI EM TRÊS SEMANAS PONTO NÃO SE ZANGUE MUITO PONTO BEIJOS NINA
— De todas as deslealdades... — começou Lee. — Eu e meu pai iremos atrás dela e...
Blair interrompeu-o.
— E fazer o quê? Ela já está casada e, além disso, o que há de errado com Alan? Penso què ele dará um marido muito bom.
Rapidamente a raiva deixou Leander.
— Acredito que sim. Mas por que ela não podia ficar aqui e casar em público? Por que tinha de fugir como se tivesse vergonha dele?
— Nina e eu fomos amigas a vida toda, e imagino que estava com medo de mim. Afinal, não me casei com o homem com quem originariamente planejava, assim talvez pensasse que eu ficaria zangada por Alan ter me deixado na estação de trem. Sem dúvida ele deixou-me por Nina.
Leander recostou-se numa árvore e tirou um charuto do bolso.
— Você parece tremendamente fria sobre isso. Dei-lhe a chance de desistir. Poderia ter voltado para a Pensilvânia. Você teve a oportunidade.
Tempos depois, Blair pensava que fora naquele momento que se apaixonara por Leander. Ele fizera tudo para conquistá-la, no entanto estava ali como um menino zangado, dizendo que ela não tinha de casar com ele, que a deixaria partir.
— E o que teria feito se eu tivesse partido no trem? Parece que me lembro de você me sacudindo e dizendo que eu iria me casar com você e que não tinha de dar opinião no assunto — disse ela com meiguice, movendo-se para ficar na sua frente, a mão tocando a gola dele. Em volta dela estavam espalhados metros do maravilhoso cetim de seda, os bordados de contas lançando cores na luz suave do jardim.
Ele observou-a por um momento, jogou então o charuto no chão e puxou-a para si num beijo apaixonado, mantendo-a bem junto, tentando fazer de seus corpos um só. Pôs a cabeça dela em seu ombro, quase sufocando-a ao abraçá-la como uma mãe abraça uma criança que quase se perdeu.
— Você o escolheu, foi à estação para ir com ele.
Blair tentou desvencilhar-se da cascata de véu e de seu abraço. Queria olhá-lo.
— Isso agora está para trás — disse, olhando-o bem dentro dos olhos e pensando no homem que havia atrás daquele rosto atraente. Lembrava-se das muitas vezes que o vira trabalhando para salvar uma vida, especialmente no dia em que trouxeram um velho vaqueiro ferido por um touro; quando fora incapaz de salvá-lo, e o homem morrera na mesa de operação, Blair tivera a certeza de que havia lágrimas nos olhos de Lee. Ele dissera que conhecia o velho há anos, e doía saber que tinha morrido.
Naquele momento, envolvida em seu abraço, sabia que tinha se casado com o homem certo. Alan não a amara realmente, nem ela a ele. Não podia num minuto exigir que ela se decidisse e poucas horas depois deixá-la plantada na estação. E ela se lembrava de como se sentira aliviada quando ele não apareceu.
— Muita coisa aconteceu entre nós — disse ela, ao passar a mão pelo rosto dele. Era bom poder tocá-lo, como quisera desde aquela noite juntos. Ele era dela daquele momento em diante, total e completamente dela. — Mas hoje é o marco de um novo começo, e gostaria de começar com uma base nova. Você e eu trabalhamos bem juntos, e temos... outras coisas em comum — disse, movendo os quadris de leve contra ele. — Quero que este casamento dê certo. Que tenhamos filhos, quero que continuemos a trabalhar juntos e quero que nós... nos amemos. — Disse o final com hesitação, porque tudo o que ele já dissera era que a desejava, e amor nunca entrara no caso.
— Crianças — murmurou ele, puxando-a ainda mais para perto. — Especialmente, façamos crianças. — Começou a beijá-la como se estivesse faminto.
— Aqui estão eles — gritou alguém. — Agora parem com isso. Vocês têm a vida toda para se beijarem. Agora, vocês têm de vir e participar da festa. O bolo tem de ser cortado.
Blair afastou-se do marido com relutância. Mais alguns minutos de seus beijos e estaria rolando na grama com ele.
Com um suspiro, Lee tomou a mão dela na sua e levou-a de volta para o agrupamento de pessoas reunidas em um dos enormes e macios gramados de Taggert.
Logo após o bolo ter sido cortado, os convidados os separaram e diversas mulheres começaram a fazer a Blair centenas de perguntas sobre Houston e para onde tinha ido.
— Aquele homem deixou minha filha surpresa — disse Opal de uma maneira tão séria que ninguém pensava em não acreditar. — Ambas as minhas filhas casaram-se com homens decididos, que sabem exatamente o que querem e vão atrás.
Duas das mulheres da audiência de Opal pareciam que iam desmaiar com as histórias românticas.
— Mamãe — disse Blair, estendendo-lhe um prato. — Prove uma fatia de presunto. — Inclinou-se de modo que só Opal pudesse ouvi-la. — Agora sei de onde Houston e eu herdamos nossa habilidade para representar.
Opal sorriu para as mulheres, pegou o prato de Blair e deu-lhe uma piscadela. Com uma risada, Blair foi embora, deixando sua mãe para fazer alarde de seus novos genros.
A tardinha, houve dança na biblioteca e, claro, Leander e Blair tiveram que dar início a ela. Diversas pessoas perguntaram se tinha sido ela quem estivera naquela noite na recepção do governador e não Houston. Tanto Blair como Lee riram em segredo, e ele levava-a em seus braços outra vez, rodopiando pelo salão de dança brilhante.
— Já é hora de deixarmos essas pessoas e irmos para casa. Não penso que posso esperar ainda muito tempo para fazê-la minha — murmurou Leander em seu ouvido ao abraçá-la.
Blair nem ao menos concordou, mas prendeu a cauda em volta do braço e rapidamente deixou a sala para subir e vestir a roupa de sair. Sua mãe ajudou-a e ficou em silêncio até que Blair ficasse pronta.
— Leander é um bom homem, e eu sei que vocês tiveram alguns problemas, mas acho que será um bom marido para você — disse Opal.
— Também acho — disse Blair, radiante num conjunto azul elétrico que Houston escolhera para ela. — Penso que ele será o melhor dos maridos. — E eu sei que será o melhor dos amantes, pensou, e então beijou rapidamente sua mãe e desceu correndo as escadas para encontrar-se com Leander.
No meio de chuvas de arroz, tão pesadas que a saúde deles foi ameaçada, deixaram a mansão de Taggert e foram para a pequena e bonita casa que seria o lar deles.
Mas uma vez que estavam afastados da multidão, Blair começou a sentir-se tímida e envergonhada. A partir de então, sua vida estaria ligada àquele homem a quem conhecia só profissionalmente. O que sabia ela sobre ele pessoalmente? O que fizera em sua vida além de estudar medicina?
Em casa, Lee pegou-a e carregou-a através da porta, lançou um olhar em seu rosto pálido e disse:
— Esta não é a mulher que arriscou a vida para manter o queixo de um homem limpo, é? Você não está com medo de mim, está?
Como Blair não respondeu, falou:
— O que você precisa é de um pouco de champanha. E nós dois sabemos que dá certo, não sabemos?
Colocou-a no chão na sala de entrada e dirigiu-se para a direita, para a sala de jantar. Blair na realidade não vira a casa, e foi para a esquerda, para a sala de visitas. Atrás da sala havia um pequeno quarto de hóspedes. A mobília era pesada e escura, mas mesmo assim a sala era agradável, com papel de parede listrado de azul e branco e um barrado de rosas pálido ao longo do alto da parede. Sentou-se num sofá forrado de cetim.
Leander voltou com duas taças de champanha e uma garrafa gelando num balde de prata em uma bandeja.
— Espero que goste do lugar. Houston o preparou. Acho que não me importei muito com o que ela fazia. — Sentou-se na outra ponta do sofá, afastado dela, parecendo perceber sua vergonha.
— Eu gosto. Não sei muito sobre decoração de casas, e Houston é muito melhor nisso do que eu. Provavelmente pediria a ela para decorar a casa, de qualquer forma. Mas agora ela tem a de Taggert.
— Vocês duas esclareceram tudo?
O champanha fazia Blair relaxar e Lee tornou a encher o copo.
— Houston disse que se apaixonou por Taggert. — O rosto de Blair mostrava sua incredulidade. — Não posso imaginar minha irmã com aquele camponês grosseiro e arrogante. Por que preferiria ele a você, é... — Parou, parecendo embaraçada.
Leander sorria para ela.
— Obrigado pelo cumprimento. — Curvou-se no sofá e começou a brincar com os caracóis que escapavam do esmerado coque que Houston fizera naquela manhã, e lentamente começou a remover os grampos dos cabelos. — Os opostos sempre parecem se atrair. Olhe para mim e você. Aqui estou eu, um ótimo cirurgião, e você, ótima para esposa e mãe, vai guardar todas as minhas meias nos lugares devidos, e fará com que a casa seja um lugar confortável para quando eu voltar e...
Blair quase engasgou com o champanha.
— Está dizendo que espera que eu desista da medicina para cuidar de você? — explodiu ela. — De todas as idéias erradas, estúpidas, que já ouvi, esta é uma das piores. — Com muita raiva, bateu o copo numa mesinha lateral e levantou-se. — Sempre tentei dizer a Houston como você se parecia com Gates, mas ela não me ouvia. Digo-lhe uma coisa, Leander Westfield, se casou comigo pensando que eu desistiria da medicina, podemos terminar com este casamento agora.
Leander sentou-se no sofá enquanto ela estava de pé esbravejando, e então, na metade de seu discurso, lentamente levantou-se para se postar à sua frente. E, quando ela começou a se acalmar, sorriu-lhe.
— Você tem muito a aprender sobre mim. Não sei bem por que está sempre pronta para pensar no pior sobre mim, mas espero provar-lhe o contrário. E estou disposto a passar o resto de minha vida lhe ensinando. Mas as aulas só começam amanhã — disse ele, envolvendo-a em seus braços e puxando-a para si. Blair agarrou-se a ele, e, quando os lábios dele tocaram os seus, sentiu que nunca mais iria deixá-lo ir. Tinha consciência de não saber nada sobre ele. Ignorava por que ele quisera casar com ela, se meramente a tolerava trabalhando junto, a fim de poder ganhar a competição, como Alan dissera, ou gostara, como ela, do tempo que passaram juntos.
Mas, naquele momento, não se importava. Tudo em que podia pensar era nos braços dele envolvendo-a, o corpo dele junto do seu, o calor que estava provocando e que a estava fazendo sentir-se ótima.
— Esperei um longo tempo por este novo encontro — disse, enrolando o cabelo dela em seu pulso, a outra mão acariciando seu pescoço e rosto. — Suba e prepare-se. Hoje vou ser um cavalheiro, mas não o serei outra vez. Assim sendo, pode tirar vantagem desta única vez. Pare de olhar para mim desse jeito e suba. Tenho certeza de que sua irmã comprou-lhe alguma roupa de dormir espetacular, mas decente, para esta noite. Portanto, vista-a. Você tem cerca de dez minutos. Talvez.
Blair não o queria deixar, mas o fez e subiu, seguindo as escadas estreitas e curvas, e entrou no quarto. Havia três dormitórios em cima: o principal, um de hóspedes e o outro, de criança. Suas roupas estavam penduradas no guarda-roupa, todos os seus sapatos ao lado dos de Leander, e por um momento pensou que nunca vira algo tão íntimo.
Sobre a cama havia realmente um lindo robe de chiffon branco, com penugem de cisne na bainha e nas mangas, e uma camisola de cetim também branco para usar junto. Blair balançou a cabeça pela extravagância das coisas, mas teve grande vontade de vesti-las. Algumas vezes ficava frustrada pela vida aparentemente inútil de Houston, mas aquele casamento a fizera admirar a irmã como nunca antes. Requerera o planejamento de um general militar, e nenhum detalhe parecia muito insignificante para atrair a atenção de Houston. Ela até mesmo lembrara de fazer com que as roupas da irmã fossem levadas para a casa nova durante o casamento, a fim de que estivessem ali quando voltasse com Leander.
Blair estava vestindo o robe, quando Lee subiu e, pela expressão de seus olhos, não pareceu se importar com o fato de o robe estar caído no ombro de uma maneira desalinhada. Atravessou num pulo o quarto e em segundos tomou-a nos braços. Na verdade, o entusiasmo dele foi tão grande que ela deu um passo para trás, tropeçou na barra do robe e caiu na cama. Lee foi com ela e caíram na cama de penas, flocos de penugem de cisne voando em volta deles.
Começaram a rir, e ele rolou os braços ainda em volta dela, puxando-a, beijando-a, fazendo-lhe cócegas, provocando-lhe gritinhos de prazer. O adorável robe caiu, e ela ficou só com a fina camisola de cetim, enquanto Lee mordiscava seus ombros e rosnava como um urso, fazendo-a rir mais forte. Suas mãos subiam e desciam em seus quadris, contra os tímidos protestos dela sobre nada em particular.
O telefone no térreo começou a tocar antes que a brincadeira se tornasse séria.
— O que é isso? — perguntou Blair, levantando a cabeça.
— Não ouço nada — murmurou Leander, o rosto enterrado no pescoço dela e já descendo para o ombro.
— É o telefone, Lee, você tem de atender. Alguém pode estar doente e precisar de ajuda.
— Qualquer um que perturbe um homem em sua noite de núpcias merece o que tem.
Blair afastou-se dele.
— Lee, você não quis dizer isso. Quando se tornou um médico, foi porque queria ajudar as pessoas.
— Mas não esta noite, não agora. — Tentou puxá-la de volta para seus braços, mas ela resistiu, e o maldito telefone continuava tocando.
— Por que tive de casar com uma médica? — resmungou, enquanto se levantava, arrumava as roupas e lançava a Blair olhares que a faziam estremecer e desviar o olhar.
— Não vá embora. Já volto — falou, antes de descer as escadas. — Assim que matar quem estiver no telefone.
Nem bem pegou o aparelho, a telefonista começou a falar:
— Detesto ter de perturbá-lo logo hoje, entre todas as noites — começou ela. — Mas é seu pai, e ele diz que é urgente.
— É melhor que seja — disse Lee.
Ela então pôs Reed na linha.
— Lee, detesto perturbá-lo, mas é uma emergência. Elijah Smith pode morrer de um ataque de coração, se não for vê-lo já.
Leander respirou fundo. Elijah Smith era o nome de código para problemas na mina. Reed muitas vezes se comunicava com o filho por telefone enquanto estava no hospital, e tinham combinado uma série de mensagens. O pobre sr. Smith teve de tudo, desde envenenamento até varíola, mas um ataque de coração era o que tinham combinado para avisar o pior que podia acontecer: uma revolta.
Lee levantou os olhos para o teto, em direção ao quarto onde Blair esperava.
— Quanto tempo tenho?
— Eles precisaram de você uma hora atrás, mas não vá; alguém mais pode assumir o caso.
— Sim, mas quem? — retrucou Lee, jogando sua raiva contra o pai. Não havia ninguém fora das minas que soubesse o que estava acontecendo lá. E ele se sentia responsável por qualquer revolta, uma vez que era ele quem levava os sindicalistas para dentro.
— Estarei lá o mais rápido que puder — disse, antes de desligar o telefone.
Subindo as escadas, sentindo como se a pior coisa em sua vida acabasse de acontecer, de repente percebeu que teria de dar a Blair uma razão para sair. Não era mais como quando solteiro. Tinha uma mulher que merecia uma explicação e deveria saber para onde ia. No momento estava se sentindo tão infeliz que não conseguia pensar numa mentira — e que os céus evitassem que lhe dissesse a verdade! Com a total falta de instinto de autopreservação de Blair, sem dúvida ela insistiria em ir com ele. E, como se já não tivesse o bastante para se preocupar, não a poria também em perigo.
A melhor maneira seria dar uma desculpa qualquer e sair de casa rapidamente.
Nunca se preparara com tal prontidão em sua vida, e considerando que havia algo como lágrimas em seus olhos, quando olhou para Blair, ali deitada, naquela peça fina de tecido, cada curva e recanto de seu delicioso corpo à mostra, ele deveria merecer um prêmio. Afinal não falou muito, exceto que tinha de sair e voltaria o mais rápido possível. Correu pelas escadas abaixo e estava fora da porta antes que ela pudesse fazer um movimento.
Na casa de seu pai, ainda se sentia infeliz e achando que os mineiros podiam entrar em revolta a noite toda, pelo muito que se importava. Reed contou que um informante falara aos guardas sobre o sindicalista, e que o estúpido voltara ao campo sem Lee. Entrara sorrateiramente por trás da montanha e por sua grande imprudência fora delatado. Os guardas armados vasculhavam cada casa, fazendo ameaças a pessoas inocentes. Leander seria capaz de entrar no campo, e, se pudesse encontrar o sindicalista antes dos guardas, talvez conseguisse salvar a vida do homem e as dos mineiros falsamente acusados de trazerem o homem para dentro do campo. Lee sabia que era o único que podia fazer aquilo, e começou a preparar a carruagem.
— Se Blair vier procurá-lo, não dê pistas de onde fui. Se lhe disser que fui atender um caso, ela quererá saber onde é, para vir ajudar. Invente alguma coisa, mas, seja o que for, nunca a verdade, porque ela apareceria no meio da revolta e eu teria de salvar a ela e ao sindicalista.
Antes que Reed pudesse perguntar que tipo de história seu filho tinha em mente, Lee partiu deixando uma nuvem de poeira e pedregulhos atrás de si.

 

Capítulo XIX

 

A BOCA DE Blair não se fechou por muitos minutos depois que Leander deixou a casa. Não podia acreditar que pouco antes ele estava ali e se fora.
Sentiu raiva num primeiro momento, mas depois sorriu. Devia ser um caso muito sério para levar Lee em sua noite de núpcias, alguma coisa de vida e morte — e que era perigosa, pensou sentando-se. Se não fosse sério, sem dúvida com armas atirando ou marginais assustando pessoas, ele a teria levado junto.
Jogou as cobertas para o lado e apressadamente vestiu seu uniforme médico. O marido estava metido em alguma coisa perigosa e precisaria de sua ajuda.
Embaixo, pegou o telefone. Mary Catherine estava no painel de comando àquela hora da noite.
— Mary, para onde foi Lee?
— Não sei, Blair-Houston — respondeu a jovem. — O pai chamou-o, e logo Leander disse que estava a caminho. Não que eu fique escutando, claro. Nunca faço isso.
— Mas, se você tivesse escutado algumas palavras ao acaso, quais teriam sido? E não se esqueça daquela vez quando não contei à mãe de Jimmy Talbot quem quebrou seu melhor jarro de cristal.
Houve uma pausa antes de Mary Catherine responder.
— O sr. Westfield disse que alguém estava tendo um ataque de coração. O pobre homem! Parece que todas as vezes que o senhor Westfield e Leander falam ao telefone, é sobre esse senhor Smit que tem uma doença após outra. No mês passado soube que ele teve pelo menos três doenças, e Caroline, que fica no turno do dia, disse que o senhor Smith esteve doente duas vezes. Não acho que vá viver muito tempo, mas parece que se recupera rapidament entre as doenças. Ele deve ser importante demais para Leander deixá-la em sua noite de núpcias. Você deve — Mary Catherine parou para deixar escapar uma risadinha maliciosa. — sentir muita falta dele.
Blair queria dizer à mulher o que pensava de sua constante escuta de conversas, mas meramente murmurou "obrigada" e desligou o aparelho, fazendo votos de nunca mais dizer qualquer coisa particular ao telefone.
No estábulo atrás da casa já não via a carruagem de Lee, e o único cavalo era um enorme e imponente garanhão que Blair não tinha intenção de tentar montar. O único meio de chegar à casa do sogro era andar. O ar frio da montanha deu-lhe energia, e ela quase corria, subindo e descendo as íngremes ruas de Chandler, até a casa de Westfield.
Ela teve de bater na porta para acordar a criadagem e uma governanta sonolenta, emburrada, veio até a entrada, e Reed logo atrás dela.
— Venha até a biblioteca — disse Reed, e seu rosto tinha uma estranha cor acinzentada. Estava totalmente vestido, mas parecendo velho e cansado. Blair tinha certeza de que ficara acordado por estar preocupado com Leander. Em que teria seu marido seu metido?
— Onde está ele? — perguntou Blair assim que ficaram sozinhos na bem iluminada biblioteca cheia de fumaça de muitos cachimbos.
Reed ficou ali, seu rosto mais se assemelhando ao de um buldogue.
— Ele está em perigo, não está? Eu sabia. Se fosse um caso comum ele me levaria, mas há alguma coisa errada com este. — Parado, Reed não disse nada. — A telefonista contou que ele sempre vai ver um senhor Smith. Imaginei que poderia descobrir onde o homem mora, e ir de casa em casa, perguntar se alguém viu Leander hoje à noite. Se eu o conheço, deve ter partido em sua usual correria, e estou certa de que diversas pessoas o viram. — O rosto de Blair começou a ficar com a mesma expressão do rosto de Reed, de completa determinação. — Meu marido foi ver alguma coisa perigosa, como fez naquele dia quando, sabendo de tudo, se meteu numa briga de grupos, e está indo sozinho. Acredito que eu possa ajudar. Pode haver outros atingidos, e se Lee for ferido... — parou de repente, ao dizer essas palavras — ...ele precisará de cuidados. Se você não me ajudar, procurarei alguém que o faça.
Afastou-se dele para sair.
Reed ficou atrapalhado por um momento. Blair poderia mesmo encontrar Lee, mas certamente conseguiria provocar uma grande confusão, e as pessoas perceberiam que alguma coisa bastante importante o tirara de sua noite de núpcias. E, claro, ouviriam falar também na revolta da mina, e tudo o que tinha de acontecer era alguém pôr dois e dois juntos, para descobrir o envolvimento do filho. Ele tinha de contar alguma coisa a Blair que a fizesse parar ali e agora, alguma coisa tão horrível para mandá-la de volta para casa sem acordar a cidade inteira procurando por Leander. Maldição, por que Lee não se casara com Houston? Ela nunca questionaria as saídas do marido.
— Há outra mulher — deixou Reed escapar antes de pensar no que estava fazendo. Sua própria esposa não deixaria que nada a parasse exceto o pensamento de seu amor indo para outra pessoa. Por que as mulheres nunca se sentem seguras de que são amadas? Blair não tinha motivos, uma vez que Lee fizera tanto para provar-lhe o quanto a amava.
— Mulher? — perguntou Blair, virando-se para ele. — Por que iria ele para outra mulher? Ela está doente? Quem é o senhor Smith e por que ele sempre está doente? Onde está meu marido?
— A... a mulher tentou matar-se por causa do casamento de Lee — disse Reed e sabia que seu relacionamento com o filho acabara, pois Lee nunca o perdoaria enquanto um deles vivesse.
Blair sentou-se, ou melhor, caiu numa cadeira.
— Esse tipo de mulher — murmurou.
Pelo menos, ele tirara a atenção dela do senhor Smith, pensou Reed, e ao mesmo tempo xingava todas as telefonistas, de todos os lugares.
— Mas, e Houston? Ele era noivo dela. Como podia estar apaixonado por mais alguém?
— Lee... bem, pensava que essa mulher estava morta. — Sobre a mesa em frente de Reed estava um jornal, e na página da frente havia um artigo sobre uma quadrilha de ladrões que estivera na região de Denver, mas se dirigiu para o sul. O chefe da quadrilha era uma francesa. — Ele conheceu-a em Paris. Foi o grande amor de sua vida, mas ele pensava que ela fora morta. Suponho que não, pois veio até Chandler para encontrá-lo.
— Quando?
— Quando o quê?
— Quando essa mulher veio para Chandler?
— Oh, meses atrás — disse Reed de improviso. — Acho que talvez seja melhor que Lee termine com essa história. Penso que já falei demais.
— Mas, se ela chegou há meses, por que Leander continuou o noivado com minha irmã?
Reed virou os olhos para cima, e outra vez o jornal chamou sua atenção.
— Ela, essa mulher que ele amou, estava... envolvida em alguma coisa que Lee não aprovava. Ele tinha de fazer alguma coisa para se distrair.
— E minha irmã foi sua distração, e mais tarde eu. — Respirou fundo. — Então, ele estava apaixonado por essa mulher e pensou que ela fora morta. Portanto voltou para Chandler e pediu Houston em casamento. Daí eu cheguei, e uma gêmea era tão boa quanto a outra, e, claro, sua honra fez com que se sentisse comprometido comigo. Isso explica o porquê de ter considerado casar com uma mulher a quem realmente não ama. É isso?
Reed correu o dedo por dentro do colarinho, que de repente parecia estar sufocando-o.
— Acredito que essa explicação seja tão boa como qualquer outra — disse em voz alta e então murmurou: — Agora, vou ter de me explicar com meu filho.
Blair sentia-se muito pesada ao deixar a casa e começar a andar de volta. Reed chamara o cavalariço para levá-la, mas Blair o dispensara. Aquela era sua noite de núpcias e supostamente seria uma das mais felizes de sua vida, e se não pudesse passá-la com seu marido, com certeza não o faria com outro homem. Mas sua felicidade transformara-se num pesadelo.
Como Leander devia ter rido dela quando lhe dissera que esperava fazer o casamento dar certo. Ele não se importava com quem casasse. Houston era bonita e daria uma boa esposa de médico. Assim, ele a pedira em casamento. Mas ela era fria, e assim, quando pulara para a cama com ele na primeira noite em que saíram, resolvera casar com ela. Que importância tinha aquilo se seu coração já fora dado para outra mulher?
— Aí vem ela! — ouviu-se uma voz por detrás de Blair. Havia só uma ligeira iluminação, e ela viu um homem miúdo a cavalo, apontando em sua direção. Por um momento, ela se sentiu um pouco orgulhosa por ser reconhecida nas ruas como uma doutora. Parou e olhou para o homem e para os outros três atrás dele.
— Há alguém ferido? — perguntou. — Não estou com meu equipamento, mas, se me derem uma carona até minha casa, poderei pegá-lo e ir com vocês.
O vaqueiro pareceu chocado por um momento.
— Se preferem que seja meu marido, eu não sei onde ele está — disse com alguma amargura. — Acho que vocês vão ter de se arrumar comigo.
— Do que é que ela está falando, Cal? — perguntou um dos homens que estava para trás.
Cal levantou a mão:
— Não, não quero seu marido. Você também resolverá bem. Quer montar aqui comigo?
Blair tomou a mão que ele ofereceu e deixou que a puxasse para montar na frente dele.
— Minha casa é... — disse apontando, mas ele não a deixou terminar.
— Sei onde é sua casa senhorita Importante Chandler. Ou suponho que agora seja senhora Taggert.
— O que é isso? — disse Blair, espantada. — Eu não sou... — Mas o vaqueiro cobriu-lhe a boca com a mão, e ela não pôde dizer mais nada.
Leander pôs uma mão na base da espinha e tentou protegê-la dos solavancos do duro banco da carroça. Tinha de admitir ter um grande motivo para sentir pena de si mesmo. A noite anterior deveria ter sido passada nos braços de sua mulher, em uma cama macia, fazendo amor com ela, rindo juntos, começando a se conhecer. Mas, em vez disso, estivera descendo a rampa de uma montanha e depois subira-a outra vez com um homem semiconsciente jogado em seu ombro.
Quando chegara na mina, na noite passada, os portões estavam trancados e não havia sinal de guardas, mas ele podia ouvir os sons de tiros no campo e algumas mulheres gritando palavras de ódio. Escondera o cavalo e a carroça no meio das árvores e subira a montanha; descera a ladeira íngreme e atravessara a entrada dos fundos. Correra encoberto pelas casas e dirigira-se para a casa de um dos mineiros, sabidamente capaz de enfrentar o risco de esconder o sindicalista.
A mulher do mineiro estava lá, torcendo as mãos, porque os guardas revistavam todas as casas, e o sindicalista se escondera nas moitas atrás da privada, sangrando e gemendo. Ninguém se arriscava a ir até lá, porque seria a morte para quem fosse encontrado com ele. Se os guardas continuassem a busca e não descobrissem nada, nem sinal de alguém de fora, não prejudicariam os mineiros. Mas se ele fosse encontrado... A mulher cobriu o rosto com as mãos. Se o sindicalista fosse encontrado ali, ela e a família seriam postos fora do campo, sem emprego e sem dinheiro.
Lee falou-lhe umas poucas palavras de simpatia, mas não gastou muito tempo com conversas. Foi para as moitas dos fundos e içou o homem baixo e troncudo em seus ombros e começou a longa e árdua tarefa de tentar tirá-lo de lá. O único meio era direto para cima da montanha, e foi por ali que Lee foi.
Teve de parar diversas vezes, tanto para descansar como para ouvir. Os sons abaixo pareciam ter se acalmado. Sempre havia muitos bares nos campos das minas, e os homens com muita freqüência gastavam a maior parte dos salários em bebidas. Ele podia ouvir os bêbados cantando ao ir cambaleando para casa, provavelmente sem imaginar que suas casas tinham sido revistadas — como era de direito para os representantes dos proprietários da mina.
Lee parou no topo da montanha e tentou ver, à luz da lua, os ferimentos do homem. Ele começara a sangrar outra vez quando o retirara. Envolvera-lhe os ferimentos da melhor maneira que pôde para que parassem de sangrar, atravessou então o topo e desceu até onde a carroça estava escondida.
Era evidente que não poderia colocar o homem no pequeno e apertado compartimento no fundo. Assim, firmou-o a seu lado e dirigiu com o maior cuidado possível.
Tomou a estrada do norte em direção a Colorado Springs. Não podia voltar a Chandler com o homem ou haveria muitas perguntas inocentes sobre quem era ele ou ondefora ferido. Não queria correr o risco de ser descoberto. Nunca mais poderia ajudar alguém se houvesse suspeitas sobre ele.
Nos subúrbios da cidade morava um amigo dele, um médico não muito dado a fazer perguntas. Lee pôs o homem sobre a mesa de cirurgia e resmungou alguma coisa sobre ter encontrado o homem na estrada. O velho doutor olhou para ele e disse:
— Pensei que tivesse casado ontem. Esteve procurando por homens semimortos em sua noite de núpcias?
Antes que pudesse responder, o velho falou:
— Não me conte nada que eu não queira saber. Agora vamos dar uma olhada nele.
Voltando para Chandler, às duas horas da tarde, Lee estava muito mais do que cansado. Tudo o que queria fazer era comer, dormir e ver Blair. Passara a maioria das últimas horas inventando uma história para contar-lhe onde estivera. Pensou em contar-lhe que fora chamado por causa de um tiroteio entre membros de uma quadrilha de ladrões de banco e que não quisera que ela fosse e corresse o risco de ser ferida. Havia um pouco de verdade, e achou que poderia se arrumar com isso. Só rezava para que ela não perguntasse por que ele tivera de atender, quando havia outros médicos em Chandler que poderiam ter ido. Também não haveria relatos do tiroteio no jornal.
Se o ruim se tornasse pior, ele pretendia fingir-se de magoado por ela não confiar nele e argumentar que ela parecia querer começar o casamento com o pé errado.
Em casa, quase ficou aliviado por Blair não estar. Estava muito cansado para fazer o melhor ao contar-lhe uma mentira daquele tamanho. Pôs algumas fatias de presunto entre dois grossos pedaços de pão e foi para o quarto, que estava numa confusão, com as roupas de Blair jogadas sobre a cama desfeita. Olhou para o guarda-roupa e logo viu que o uniforme dela não estava e imaginou que ela fora ao hospital. Ele teria de ter uma conversa com os homens da diretoria para que continuassem a permitir que ela trabalhasse lá. Na última vez, tivera de prometer assumir quase todos os turnos antes que o deixassem trazê-la para a sala de operações. Trabalhara quase até a exaustão, mas valera a pena. No final conquistara Blair.
Comeu metade do sanduíche, subiu na cama, abraçou o robe de cetim abandonado e dormiu.
Quando acordou, eram oito horas, e sabia de pronto que a casa estava vazia, e instantaneamente começou a se preocupar. Onde se metera Blair? Já deveria estar em casa, de volta do hospital. Ao levantar-se começou a comer a outra metade do sanduíche, agora ressecado, a seu lado na cama, e viu a maleta dela no chão do guarda-roupa.
Por um momento, seu coração parou de bater. Ela nunca sairia de casa sem levar aquela maleta. Fora uma surpresa que ela não a tivesse levado ao altar quando casara com ele. Mas estava ali no chão, então... largou o sanduíche e foi correndo pela casa gritando seu nome. Talvez tivesse voltado enquanto ele dormia, e a casa só parecesse vazia. Levou só um minuto para descobrir que ela não estava em lugar algum, dentro ou fora.
Foi ao telefone e pediu à telefonista que lhe ligasse com o hospital. Ninguém lá vira Blair desde o casamento. Depois de agüentar algumas piadas grosseiras, dizendo que Blair já percebera seu erro e fugira dele, Lee desligou o telefone. Quase no mesmo instante ele tocou.
— Leander — era Caroline, a telefonista do dia. — Mary Catherine disse que Blair procurou seu pai assim que você saiu na noite passada para ir tratar do pobre senhor Smith. Talvez ele saiba onde ela está.
Lee mordeu a língua para evitar dizer para Caroline que parasse de ouvir conversas dos outros, mas talvez daquela vez ele tivesse motivos para ser grato a ela.
— Obrigado — murmurou e saiu para selar seu garanhão e ir para a casa de seu pai em tempo recorde.
— Você disse-lhe o quê? — gritava Leander com seu pai.
Reed parecia encolher com a raiva do filho.
— Tive de inventar uma história, rápido. E a única coisa em que pude pensar, que fosse uma garantia de evitar que ela o seguisse, foi a história de outra mulher. Pelo que ouvira de suas recentes escapadas juntos, pensei que fogo, guerra ou revolta de grevistas só a fariam entrar no meio da confusão.
— Você podia ter inventado outra história, qualquer outra história, mas essa de que meu único e verdadeiro amor estava aqui e de que me casei com Blair por ter perdido o amor de minha vida...
— Tudo bem, se você é tão esperto, diga o que eu deveria dizer para impedi-la de segui-lo.
Lee abriu a boca, mas fechou-a outra vez. Se Reed falasse a ela de um desastre, sem dúvida ela teria ido ajudar. Ele sabia que balas voando em sua direção não a parariam.
— Agora, o que é que faço? Digo-lhe que meu pai é um mentiroso, que não há outra mulher?
— Então onde é que estava em sua noite de núpcias? Outra coisa além de subir e descer montanhas e arrastar um sindicalista ferido para um lugar seguro? O que é que sua jovem mulher fará na próxima vez em que for chamado?
Lee resmungou:
— Provavelmente alguma coisa bastante estúpida como esconder-se no fundo de minha carruagem e ir junto para o tumulto. O que vou eu fazer?
— Talvez devêssemos encontrá-la primeiro — disse Reed. — Começaremos procurando o mais discretamente possível. Não queremos que a cidade saiba que ela se foi, ou farão perguntas.
— Ela não foi embora — lançou Lee. — Ela está... — Mas ele não sabia onde ela estava.

 

Capítulo XX

 

LEANDER E O PAI procuraram Blair a noite toda. Lee tinha o palpite de que ela sairia para andar quando estivesse aborrecida, e assim eles vasculharam as ruas. Mas ela não foi encontrada em lugar algum.
Pela manhã, eles decidiram espalhar o boato de que ela tinha ido atender uma emergência médica sem contar a ninguém aonde fora e que Lee estava preocupado com ela. Pelo menos, essa história permitia a eles fazer perguntas abertamente sobre ela.
Havia alguns boatos sobre Lee perder a mulher no primeiro dia do casamento, mas ele tratou de levar tudo na brincadeira. Sua única preocupação era com Blair, querendo saber onde estaria. Ela era tão teimosa, e eles tinham tão pouco em que basear o casamento deles, que temia que tivesse voltado para o tio na Pensilvânia e nunca a faria voltar. Vivera num inferno tentando convencê-la a casar com ele, e certamente não queria ter de passar outra vez por alguma coisa como aquela a fim de persuadi-la a viver com ele.
Pela tarde, estava exausto e praticamente desmaiou na cama desfeita e dormiu. Teria de telegrafar para o dr. Henry Blair, na manhã seguinte, e dizer ao homem que a mantivesse lá, até que pudesse ir buscá-la.
Acordou com uma mão pesada em seu ombro:
— Westfield! Acorde.
Vagarosamente, Lee virou-se para ver Kane Taggert parado ao seu lado, o rosto do homem demonstrando raiva. Em sua mãol estava um pedaço de papel.
— Onde está sua mulher?
Lee sentou-se, correu a mão pelos cabelos.
— Penso que ela deve ter me deixado — disse ele. Não adiantava esconder a verdade. Logo toda a cidade saberia.
— Foi o que pensei. Veja isto.
Jogou um pedaço de papel sujo e amassado nas mãos de Lee. Nele, em letras de fôrma bem primárias, estava a mensagem:
Temos sua esposa. Deixe 50 000 dólares no TippingRock amanhã, senão ela morre.
— Houston? — perguntou Lee. — Pegarei meu revólver e irei com você. Sabe quem a pegou? Já falou com o xerife?
— Espere um minuto — disse Kane, abaixando seu grande corpo para sentar-se na cama. — Houston está ótima. Eu e ela estivemos fora desde o casamento. Voltamos hoje pela manhã, e isto estava na minha escrivaninha com uma porção de outras correspondências.
Lee ficou como se um raio o tivesse atingido.
— Então eles estão com Blair. Vou chamar o xerife ou... Aquele homem nunca a encontrará. Irei eu mesmo e...
— Espere um minuto. Temos um minuto. Temos de pensar direito. Quando voltei, esta manhã, havia um homem para me ver, um homem que viera de Denver, e a caminho daqui foi roubado por uma nova quadrilha que parece querer fazer seu quartel-general aqui nos arredores de Chandler. O homenzinho estava realmente transtornado, dizendo que todos os ocidentais são marginais e que eles até capturam mulheres. Parece que ele ouviu um dos homens que chegou cavalgando, durante o assalto, dizer que eles a tinham. E Isso pode significar sua mulher.
Leander estava trocando de roupa, vestindo calças de brim, perneiras, uma camisa de algodão forte, e um revólver no cinturão.
Colocou as mãos nos quadris. Parte de sua fúria inicial o estava deixando, e ele começava a pensar.
— Onde o homem foi atacado? Começarei dali.
Kane levantou-se, e Lee só deu uma olhada nas pesadas roupas de trabalho do outro.
— Acho que essa briga também é minha. Eles querem meu dinheiro, e pensam que estão com minha mulher. — Olhou para Lee com o canto dos olhos. — Quando vi esta nota e entendi que era Blair que eles tinham, imaginei que a cidade devia estar sendo virada de cabeça para baixo para encontrá-la, mas, pelo que posso falar, ninguém sabe que ela desapareceu. Acho que há alguma razão pela qual quer manter silêncio sobre isso.
Lee pensou em dizer-lhe que não queria preocupar as muitas amigas dela, mas calou-se.
— Sim — disse, concordando com a cabeça —, há uma razão. — Esperou, mas Taggert não disse nada mais. — Sabe como usar um revólver? Cavalgar?
Kane deu um grunhido que parecia bastante com o de um urso:
— Houston ainda não me civilizou tanto. E não se esqueça de que cresci aqui. Conheço esta região, e tenho uma idéia de onde possa ser o esconderijo deles. Trinta quilômetros ao norte, há uma garganta abrigada, que é quase escondida, vista por. fora. Você poderia passar por ela e nem ao menos vê-la. Fiquei preso lá certa vez numa enchente repentina.
Por um momento, Lee hesitou. Não conhecia aquele homem, não sabia se podia ou não confiar nele. Durante anos, ouvira histórias sobre os meios ilegais que Kane usara para conseguir seu dinheiro, que nada mais importava para o homem além de dinheiro. Mas, naquele momento, ele estava ali dizendo que queria ajudar, e querendo respeitar o direito de Lee de manter segredo fosse lá o que fosse.
Ele prendeu o coldre do revólver na perna.
— Tem uma arma com você?
— Tenho o suficiente para um pequeno exército lá fora no meu cavalo, e também os cinqüenta mil que querem. Prefiro dar o dinheiro do que arriscar um tiroteio com uma dama por perto — disse sorrindo. — Afinal, há um par de dias ela quis casar comigo.
A princípio, Lee não se lembrou do que ele falava, mas então ficaram trocando sorrisos.
— Estou contente por ter acabado do jeito que acabou.
Kane passou a mão pelo queixo e parecia estar rindo de alguma piada particular.
— Eu também. Mais satisfeito do que imagina.
Quinze minutos mais tarde, estavam montados, as bolsas cheias de comida e já na estrada saindo da cidade. Lee deixara um recado com a telefonista, para dizer ao pai que fora ver a senhora Smith. Lee nem mesmo ouviu os murmúrios de simpatia da telefonista sobre a família do pobre Smith.
Uma vez fora dos limites da cidade, cavalgaram mais rápido, o enorme cavalo de Lee engolindo os quilômetros. O cavalo de Kane era um magnífico animal que carregava os cento e dez, ou mais, quilos do homem com relativa facilidade. Os únicos pensamentos de Lee eram para Blair, e esperava que ela estivesse sã e salva.
Blair forçou novamente as cordas que a prendiam na pesada cadeira de carvalho. Uma vez, tentara fugir, e então eles a amarraram numa cadeira, e na véspera tentara virá-la, mas antes que conseguisse desembaraçar-se dela, aquela mulher entrara no quarto e ordenara que pregassem a cadeira no chão. Blair ficou sentada lá, hora após hora, e observava a mulher dando ordens para seus homens.
Ela chamava-se Françoise, e era a líder dos marginais. Era alta e bonita, esbelta, com um cabelo preto longo do qual obviamente tinha muito orgulho, usava um revólver preso nos quadris, e era mais esperta que todos os homens que a rodeavam postos juntos.
E Blair imaginou logo que aquela era a mulher a quem Leander amava.
Tudo se encaixava com o que Reed dissera. Ela era francesa, falando com um acento tão carregado que às vezes seus homens tinham dificuldade em entendê-la, e estava envolvida em alguma coisa que Lee não podia aprovar. Blair não pôde evitar que sua opinião sobre Lee caísse um pouco por ele ter amado uma mulher capaz de tamanha desonestidade.
Estava sentada naquela cadeira dura e observava a mulher com hostilidade indisfarçável. Por causa dela, nunca teria seu marido para si, nunca seria capaz de apagar o passado de sua mente. Talvez os homens gostassem da fascinação de se apaixonar por uma criminosa. Talvez Leander quisesse acalentar o coração machucado durante toda a sua vida.
A mulher ficou em frente dela por um momento e observou os olhos de Blair brilhando acima da mordaça. Puxou então uma cadeira de debaixo de uma mesa velha e sentou-se à frente dela.
— Jimmy, remova o pano — disse ela para o grande guarda-costas que estava sempre junto. Falara algo como "Jemy, remuva o pane".
Uma vez retirado, fez sinal ao homem grande para que saísse, e ficaram sozinhas no quarto.
— Agora, eu quero saber por que é que me olha com tanto ódio. Você não olha para os homens desse jeito. É porque sou uma mulher, e não aprova que uma mulher seja tão esperta como eu?
— Esperta? É assim que você chama isso? — perguntou Blair, movendo o queixo dolorido. — Só porque os homens são tão bobos que não podem ver através de uma mulher como você, não significa que eu também seja. Sei o que você é.
— Estou contente que você saiba, mas na verdade não acredito que já tenha mentido a alguém.
— Pode parar de mentir para mim de uma vez. Sei tudo sobre você. — Levantou a cabeça como pôde e tentou reunir todo o orgulho possível: — Sou a mulher de Leander.
Blair teve de admitir que a mulher certamente era uma boa atriz. Uma após outra, emoções passaram por seu rosto. Foram do espanto à descrença, e terminou com humor.
A mulher levantou-se, de costas para Blair.
— Ah, Leander — disse por fim. — Caro Leander.
— Não há necessidade de bancar a convencida — lançou Blair. — Pode pensar que o tem e que ele sempre será seu, mas eu o farei esquecer tudo o que já aconteceu entre vocês dois.
Quando a mulher tornou a virar-se para encarar Blair, seu rosto estava sério.
— Como poderia ele esquecer o que passamos? Ninguém vivo poderia esquecer alguma coisa como aquela. Acontece só uma vez em toda a vida. Então, ele casou com você. Há quanto tempo?
— Dois dias. Você deveria saber, uma vez que ele passou a nossa noite de núpcias com você. Diga-me, como tentou matar-se? Parece que se recuperou bastante bem. Talvez fosse meramente uma farsa para chamar a atenção e não uma verdadeira tentativa de suicídio. Não posso imaginar você como uma boa perdedora quando se trata de alguém como Leander.
— Não — disse ela mansamente. — Não queria perder Leander, mas também não queria que ninguém mais o tivesse. Ele lhe contou por que não estamos mais juntos?
— Ele não me contou nada sobre você. Depois de descobrir o que você se tornou, tenho certeza de que mal poderá agüentar pensar em você. Reed contou-me. Mas talvez não conheça o pai de Lee, uma vez que você não é o tipo de mulher que um homem leve para a casa de sua família. Lee pensou que estivesse morta, e deixou Paris voltando para Chandler. — Blair pensou em todas as histórias que ele lhe contara sobre seus anos na Europa, e nunca ao menos mencionara alguma mulher. Mas talvez fosse um assunto muito doloroso para falar a respeito.
— Vou ganhá-lo — disse Blair. — Ele é meu marido e nem você nem ninguém irá tirá-lo de mim. Ele virá a mim, e você poderá vê-lo outra vez, mas não terá chance nenhuma.
— Foi em Paris? — disse a mulher, sorrindo. — Talvez esse Leander Taggert e eu...
— Taggert? Leander não é Taggert, Houston casou-se com Tag... — Parou. Alguma coisa estava errada ali, mas não sabia o quê.
Françoise pôs o rosto perto do de Blair.
— Como é seu nome?
— Dra. Blair Chandler Westfield — disse com olhar de censura.
Imediatamente a mulher virou nos calcanhares e deixou a cabana.
Blair caiu de volta na cadeira. Estava ali perto de dois dias, dormira muito pouco e comera menos ainda, e estava começando a ter dificuldades em compreender de fato o que estava acontecendo.
Depois de eles a terem raptado, taparam-lhe os olhos, amordaçaram-na e cavalgaram durante horas, pelo menos era o que parecia. Na maior parte do tempo, ela se concentrara em evitar que as mãos do vaqueiro, que montara atrás dela na sela, percorresse todo o seu corpo. Ele ficara o tempo todo murmurando que ela lhe "pertencia". Por sua própria vida, Blair não conseguia se lembrar de já ter encontrado o homem antes ou de ter feito qualquer coisa para ele.
Ela movera-se no cavalo, o mais que pudera, para se afastar dele, e quando o cavalo começara a ficar inquieto e a empinar, um dos outros homens lhe ordenara que a deixasse só, dizendo que ela pertencia a Frankie.
A idéia fizera Blair sentir um arrepio na espinha. Exatamente quem seria Frankie e o que ele quereria com ela? Ainda tivera esperanças de que eles precisassem de seus serviços médicos, mas, como não a deixaram buscar a maleta, duvidara.
Quando retiraram a venda dos olhos, vira-se parada em frente de uma pequena cabana em estado bastante precário, com uma varanda com uma das colunas caída. Em sua volta notara seis homens, todos baixos e com ar estúpido como o que a trouxera. Vira um pequeno curral à sua direita, e algumas outras construções externas aqui e ali. E tudo era cercado por paredes altas, íngremes. Rochas brancas mantinham-nos protegidos e escondidos como um forte. Naquele momento, Blair não pudera nem mesmo ver a passagem para o desfiladeiro, mas imaginara que devia ser bastante pequena, pois a cabana podia bloqueá-la da vista.
Mas logo perdera interesse nos arredores, porque na varanda aparecera Frankie, a francesa que fora o amor da vida de seu marido. Ódio, raiva e ciúme combinados a deixaram sem fala enquanto olhava com pasmo para aquela mulher que era a líder daquele bando insignificante de semi-retardados.
Alguém empurrara Blair para dentro da cabana: um lugar sujo, escuro e pequeno, com dois quartos, um com uma mesa e umas poucas cadeiras quebradas, o outro com uma cama. Suprimentos estavam no chão do quarto principal.
Nas primeiras vinte e quatro horas, eles foram bastante negligentes na guarda de Blair, mas, depois de quatro tentativas de fuga, — ela quase fora bem-sucedida numa delas —, eles a amarraram na cadeira, e depois acabaram pregando-a no chão.
Seus pulsos estavam esfolados devido à corda áspera e por ter ficado forçando-a por longas horas, e Frankie decidira que talvez um pouco menos de comida ajudaria a mantê-la no lugar e evitaria que tentasse outra vez escalar a parede de rocha que os protegia.
Blair não tinha certeza de que sua mente estava funcionando direitinho. Parecia já fazer tanto tempo que comera ou descansara, e havia aquela mulher horrorosa que fora amante de seu marido. Parte dela dizia que Leander tinha de fazer parte daquilo, e parte dizia que Frankie fizera tudo por conta própria, para ver Leander outra vez. Mas, se ele a visse, quereria continuar com Blair ou iria com a mulher a quem Reed chamara de seu único e verdadeiro amor? Claro, Leander a deixara na noite de núpcias para ir ver aquela mulher. Ela tinha aquele tipo de poder sobre ele. Portanto, quem poderia dizer que Leander não estava escondido em algum lugar atrás da cabana, que não arranjara tudo a fim de que ele e Frankie pudessem ficar juntos?
Havia lágrimas escorrendo pelo rosto de Blair, quando Frankie entrou no quarto, com o vaqueiro que a raptara pela orelha, como se fosse sua professora. Haviam sinais vermelhos de mãos no rosto do rapaz, que obviamente fora estapeado.
— Ela é a tal? — Frankie perguntou ao rapaz. — É você quem diz que ele sabe. Você sabe ou mente para mim para saldar uma velha dívida?
— É ela. Juro que é. O marido dela atirou-me no lixo, e ela vale milhões.
Frankie, com desprezo, afastou o rapaz.
— Como fui estúpida em mandar um garoto fazer o serviço de um homem. Vê isso? — Estendeu um pedaço de jornal. — Elas são gêmeas idênticas. Uma é casada com um homem rico, e a outra é... — Virou-se para fixar o olhar em Blair, que estava escutando com um grande interesse. — E a outra é a minha cara, adorada esposa de Leander.
Blair estava muito perturbada, faminta, cansada e muito disposta a acreditar no que julgava ser verdade, para perceber o sarcasmo na voz da mulher.
— Saia daqui — gritou a francesa para o rapaz. — Deixe-me pensar no que deve ser feito.
Ela deveria pensar mais rápido se soubesse que naquele momento um homem estava deitado de barriga na rocha acima, o rifle apontado e, já prontos, mais três rifles a seu lado. E que outro homem aguardava, na entrada do desfiladeiro escondido, receber um sinal do homem acima.

 

Capítulo XXI

 

BLAIR TINHA certeza de que nunca estivera tão desanimada em sua vida. Talvez fosse a combinação de fome, sede, medo, tudo junto, mas de repente parecia que muito poucas pessoas em sua vida já a tinham realmente amado. Seu padrasto sempre a odiara, e, na escola, o único homem que se interessara por ela terminara largando-a, e seu marido estava na verdade apaixonado por outra mulher; sempre estivera. No momento não acreditava que o pudesse ter de volta. De volta? Para começar, ela nunca o tivera.
— Preciso ir lá fora — murmurou para Françoise ao amanhecer, quando a mulher voltou à cabana. Blair esperara o mais possível, porque da última vez em que fora, Françoise mandara um dos marginais vigiá-la, e ela pegara o homem espiando por um buraco na parede de madeira.
— Desta vez vou com você — disse a francesa, enquanto desamarrava os nós nos pulsos de Blair.
Quando se levantou, ficou tonta e começou a cambalear. A falta de circulação em seu corpo estava deixando suas extremidades frias.
— Venha — disse a mulher, empurrando Blair. — Você não parecia muito cansada quando estava escalando aquela parede.
— Deve ter sido isso que me cansou — disse Blair, quando a mulher pegou-lhe o braço e quase arrastou-a da cabana.
A privada ficava próxima à passagem para o abrigo do desfiladeiro, como se alguém tivesse planejado manter guarda dentro daquele lugar malcheiroso. Blair entrou, enquanto Françoise ficou de fora, rifle atravessado no ombro, mantendo vigilância.
Mal tinha fechado a porta quando ouviu um grito abafado. Com alguma curiosidade, mas também com medo de que algo horrível tivesse acontecido, inclinou-se para frente, para espiar pelo conveniente buraco da parede. Logo em seguida, a porta foi sacudida e, quando viram que estava trancada, foi empurrada pela força de um punho enorme, dedos cerrados, que veio através das tábuas estragadas da porta. Antes que pudesse se endireitar e procurar alguma coisa para se proteger, o som de tiros veio de fora.
A mão que estava entrando pela porta, tateou e abriu a tranca. Blair posicionou-se para saltar no homem que estava tentando levá-la.
Quando a porta abriu, ela saltou e caiu contra o corpo grande e forte de Kane Taggert.
— Pare com isso! — ordenou ele, quando ela começou a bater-lhe com os punhos. — Vamos, deixe tirar vocês duas daqui. Outro minuto e eles verão que vocês estão faltando.
Blair aquietou-se e olhou para Françoise, dobrada sob o braço esquerdo de Taggert como se fosse um saco de farinha.
— Ela está ferida?
— Só um arranhão no queixo. Acordará em pouco tempo. Corra.
Ela correu pela passagem estreita, abaixando-se das balas que pareciam vir de todos os lados. Atrás dela estava o enorme corpo de Kane e ela ficou pensando quem estaria atirando do rochedo acima deles. Rezou para que não fosse Houston.
Kane jogou o corpo inconsciente de Françoise atravessado na sela de seu cavalo.
— Não imaginei que fosse ela. Suba ali — disse, enquanto levantava Blair e a colocava na sela, atrás da forma inerte da francesa. — Diga a Westfield que ficarei por aqui um tempo e manterei aqueles ali ocupados. Vocês três subam até a cabana e os encontrarei lá. — Com isso, deu um tapa na anca do cavalo e fez este começar a subir o morro.
Blair não tinha andado mais que uns poucos metros quando Lee pulou do meio das árvores e agarrou as rédeas do cavalo. O sorriso dele ameaçava rachar seu rosto.
— Vejo que está bem — disse ele, pondo a mão na perna dela e acariciando-a.
— E ela também — disse Blair com toda a altivez que conseguiu reunir, enquanto dava a mensagem de Kane. — Estou certa de que fez Taggert resgatá-la para você.
Leander deu um grunhido e olhou para a mulher como se só agora reparasse nela.
— Odeio perguntar isto, mas ela é a mulher francesa, a líder do bando que a raptou?
— Estou certa de que sabe quem é ela melhor que qualquer um. Diga-me, você preparou tudo para que eu fosse raptada?
Lee levantou-se em seu cavalo.
— Não, mas posso arranjar para que alguma coisa letal aconteça a meu pai. Não percamos tempo. Taggert diz que há uma cabana escondida lá em cima nas montanhas. Ficaremos lá enquanto ele vai buscar o xerife e um destacamento. Vamos, e pare de me lançar olhares mortíferos!
Blair tentou o melhor que pôde manobrar o enorme cavalo pela encosta acima para seguir Lee, mas não era fácil. Françoise começou a acordar e gemer, e, quando seus movimentos fizeram o cavalo assustar-se, Lee parou e olhou para as mulheres. Com um suspiro de exasperação, lançou um olhar ao rosto de Blair, viando-o em seguida. Puxou a francesa para sua frente no cavalo e disse-lhe que, se soubesse o que era bom para ela, ficasse quieta.
Blair virou o nariz para cima e afastou-se de ambos.
Kane alcançou-os, tomando um atalho de um trecho de morro bastante inclinado onde os cavalos não conseguiriam andar. Encontrou-os antes que tivessem se afastado muito. Lee desmontou, mas permaneceu junto de seu cavalo e de Françoise.
— O que está acontecendo?
— Estão atrás de nós — disse Kane, enquanto bebia de um cantil. — Meu palpite é que ficarão por perto até que a consigam de volta. — Acenou a cabeça em direção à Françoise. — Não creio que sejam grande coisa sem ela. — Kane olhou para a mulher que estava montada com as costas direitas. — Acho melhor observála. Ela é bastante esperta.
— Tomarei conta dela — disse Lee. — Penso que procurarão nós no sul, no caminho de volta para Chandler. Estaremos bem e a salvo, mas você os terá em sua pista. Afinal, por que raios você a trouxe? Só dará mais trabalho do que merece.
Kane arrolhou o cantil e encolheu seus grandes ombros.
— Eu estava por detrás dela e, a princípio, pensei que fosse alguma outra mulher que eles tivessem capturado. Então ela se virou, e vi que estava carregando um rifle, assim acertei-lhe um murro no queixo. Ocorreu-me que nos poderia ser útil.
— Faz sentido, mas não me agrada tentar tomar conta dela até que você volte. Não me importaria com uma dúzia de homens, mas duas mulheres?
Kane pôs a mão no ombro de Leander.
— Não o invejo nem um pouquinho. Vejo você dentro de poucas horas, Westfield. Boa sorte. — Ajudou Blair a descer do cavalo, montou e seguiu montanha abaixo, sumindo de vista em minutos.
— Por que não vamos com ele? — perguntou Blair.
— Nós não sabíamos como eles a tinham tratado. Portanto, decidimos que você e eu ficaríamos mais acima na montanha em uma cabana enquanto Taggert iria buscar o xerife. — Os olhos de Lee se iluminaram e deu um passo em sua direção. — Pensei que talvez tivéssemos algum tempo para nós, só nós dois.
Ambos pareciam ter esquecido a presença de Françoise, apesar de Lee ainda segurar firmemente as rédeas do cavalo em que ela estava montada. O terreno em volta deles era demasiado íngreme e selvagem para tentar escapar.
A francesa escorregou do cavalo e pôs-se entre Blair e Leander, que estavam indo, um em direção do outro, tão certos como ímãs.
— Oh, Leander, meu chéri, meu querido — disse ela, pondo os braços em volta dele e colando o corpo contra o dele. — deve contar-lhe a verdade. Não podemos mais esconder o que sentimos um pelo outro. Diga-lhe que só quer a mim, e que tudo isto foi planejado só por você. diga-lhe.
Blair girou nos calcanhares e começou a descer a encosta da montanha.
Leander estava com o duplo problema de tentar livrar-se do abraço da morena e de evitar que sua mulher ciumenta corresse em direção aos marginais que estavam procurando por eles. Ele não podia soltar a francesa. Assim, segurou-a pelo pulso e começou a perseguir Blair.
— Querido — dizia Françoise, enquanto Lee a puxava —, está me machucando. Deixe-a ir. Você sabe que ela nunca significou nada. Ela sabe a verdade.
A cada palavra, Blair corria mais cegamente pela encosta. Lee parou o bastante para virar-se para Françoise:
— Nunca bati numa mulher, mas você está me tentando. — chamou Blair. — Você não pode continuar fugindo. Há homens armados procurando por nós.
Françoise sentou-se nas pedras duras da encosta, cobriu o rosto com a mão e começou a chorar.
— Como pode dizer tais coisas para mim? Como pôde esquecer nossas noites juntos em Paris? E em Veneza? E Florença? Lembra-se do luar em Florença?
— Nunca estive em Florença — disse Lee, ao agarrá-la pelo braço e levantá-la. E, como ela não andava, jogou-a sobre o ombl foi escorregando pela montanha atrás de Blair, pegando-a pela saia. Graças à excelente costura dos Cantrell e Filhos, o tecido agüentou. Ele continuou puxando, e Blair também, e finalmente ele sentou-se na superfície rochosa e puxou-a para seu colo.
Ocorreu a ele que devia estar ridículo, com uma mulher pendurada no ombro, o traseiro para cima, e a outra presa em uma perna esticada. Quando Françoise começou a se mover, deu-lhe uma palmada na anca:
— Fique fora a disso.
— Sempre que me toca aí, eu lhe obedeço — disse Françoise com voz dengosa. Blair começou a levantar-se, mas Lee prendeu-a.
— Blair — começou, mas ela não olhava para ele. — Nunca vi essa mulher antes de hoje. Eu não a conheci em Paris. Nunca estive apaixonado por ninguém exceto por você, e casei com você porque me apaixonei.
— Amor? — disse Blair, virando-se para olhá-lo. — Nunca me disse isso antes.
— Disse, mas você nunca escutou. Estava muito ocupada dizenlo-me que eu estava apaixonado por Houston. Eu não amei Houston. E certamente nunca amei essa... essa... — Olhou para o amplo traseiro que estava começando a cansar seu ombro. Tirou-a, mas manteve seu pulso preso.
Blair estava começando a inclinar-se para Lee. Talvez ele estivesse falando a verdade. Queria tanto acreditar nele!
— Você mente muito bem, Leander — disse Françoise. — Não sabia disso a seu respeito. Claro, eu e você só nos conhecemos de uma maneira. — Inclinou-se para ele. — Mas que maneira, oh, tia!
Blair tentou sair do colo de Lee, mas ele a manteve com firmeza. E, olhando para o rosto de sua mulher, deu um profundo suspiro e pegando os pulsos de ambas as mulheres levou-as montanha acima.
Blair seguia-o, porém com relutância. Era uma longa e árdua subida. Tinham de atravessar uma área coberta de árvores caídas, muitas vezes tendo de ir a passo. O ar estava tornando-se rarefeito, conforme iam subindo, e era mais difícil conseguir o oxigênio necessário para contrabalançar o esforço da subida. O tempo todo Lee mantinha-se segurando Françoise, e cada vez que tentava ajudar Blair, ela afastava sua mão. A cabana ficava entre duas saliências de lados escarpados, tão escondida que eles passaram duas vezes por ela antes de vê-la e e, então, de repente encontraram-na, como se tivesse acabado de surgir do nada.
Não havia muito terreno na frente da cabana, pois a encosta caía abruptamente, mas a vista era de tirar o fôlego. A grama era da altura do tornozelo e entremeada de margaridas de três cores e moitas de rosas silvestres.
O chão da floresta era macio devido à vegetação decompôsta de centenas de anos e assim a passagem deles fora silênciosa.
Lee não disse uma palavra quando indicou a Blair que vigiasse Françoise enquanto checava a cabana para se certificar de que estava vazia. E, quando teve certeza de que estava segura, fez sinal às mulheres para entrarem.
Era uma pequena cabana comum, com duas salas e um quarto no sótão, suja por ser invadida durante anos por animais e homens negligentes, mas era obviamente um lugar seguro, justamente como queriam.
Blair observou sem muito interesse quando Lee amarrou Françoise numa coluna da cabana, dando-lhe liberdade para se movimentar um pouco, mas não a amordaçou.
Ele estava com uma faixa na mão, pronto para cobrir-lhe a boca mas não parecia disposto a usá-la.
— Não creio que seus homens nos encontrem aqui. Estarei fora, escutando, e se eu ouvir alguma coisa, porei isto em você.
— Chérie, você não vai continuar com essa charada, vai? Ela sabe sobre nós. Ela contou-me tudo.
— Aposto que contou — disse Lee, apertando as cordas. — contou-lhe o suficiente para que possa continuar com essa mentira. Qual é a vantagem disso para você?
Françoise só olhou para ele. Quando Blair olhou para os dois, estavam se mirando profundamente nos olhos um do outro. L voltou-se como se fosse dizer alguma coisa para Blair, mas pareceu mudar de idéia quando viu sua expressão. Apanhou o rifle.
— Estarei lá fora se precisar de mim. Há comida nos alforjes. — Com isso, deixou as mulheres sozinhas.
Lentamente, Blair começou a tirar toda a comida que havia nos alforjes que Lee jogara sobre a velha mesa perto da coluna onde Françoise estava amarrada. Havia uma lareira na cabana, mas só os céus sabiam quando a chaminé fora limpa pela última vez, e, além disso, eles não precisavam de fumaça para avisar onde estavam.
Enquanto Blair punha queijo e presunto no pão e comia, Françoise falava, nunca deixando de dizer em suas declarações o que ela e Leander tinham significado um para o outro.
— Ele voltará para mim, sabe disso — disse Françoise. — Ele sempre volta. Ele pode tentar me deixar, mas não consegue. Ele me perdoará por tudo o que fiz, e desta vez virá comigo. Cavalgaremos juntos, nos amaremos. Nós...
Blair agarrou um sanduíche e um cantil e saiu da cabana.

 

Capítulo XXII

 

LEE ESTAVA um pouco afastado da cabana e tão bem escondi do que Blair não o viu até que ele a chamasse.
— O que aconteceu? — perguntou ele, pegando o sanduíche dele e tentando acariciar-lhe o pulso ao mesmo tempo.
— Não me toque — disse ela, retirando o braço como se ele estivesse tentando feri-la.
A expressão de Lee passou para raiva.
— Já agüentei mas do que podia disso tudo. Por que não me acredita quando digo que nunca a encontrei antes? Por que acredita nela e não em mim, seu marido?
— Porque seupai contou-me sobre ela. Por que não deveria acreditar nele?
— Meu pai mentiu a você porque eu lhe disse que o fizesse — retrucou Lee.
Ela deu um passo para trás.
— Mentiu? Então você admite? O que faria você sair em nossa noite de núpcias? Não houve nenhuma emergência médica. De qualquer forma duvido que aquele misterioso senhor Smith exista realmente, portanto onde esteve?
Leander não respondeu durante um momento, mas virou-se para olhar outra vez para a floresta distante e comer seu sanduíche. Ele não iria complicar seus problemas com outra mentira.
— Não posso lhe contar — disse calmamente.
— Você não quer me contar. — Voltou-se, caminhando para a cabana.
Ele pegou-lhe o braço:
— Não, eu não posso lhe contar — seu rosto mostrava a raiva surgindo. — Raios, Blair! Não fiz nada para merecer sua desconfiança. Eu não estava com outra mulher. Deus, mal posso controlar uma mulher, quanto mais duas. Não percebe que tinha de ser alguma coisa importante, alguma coisa terrível, para que me ausentasse em minha noite de núpcias? Por que diabos não pode confiar em mim? Por que acredita em meu pai, que estava mentindo para me proteger, e naquela cadela lá dentro que ganha vida roubando?
Largou o braço dela.
— Vá em frente, então. Vá em frente e acredite nela. É exatamente o que ela quer. Tenho certeza que o que mais quer é nos ver na garganta um do outro. Seria muito mais fácil para ela escapar de um capturador do que de dois. Se ela continuar, e você seguir acreditando nela, mais um par de horas e você a ajudará a escapar só para nos manter afastados.
Sentindo-se bastante fraca, Blair sentou-se na grama.
— Não sei no que acreditar. Ela parece saber tanto sobre você, e afinal não tenho o direito de esperar que fosse fiel. Em primeiro lugar, não queria casar comigo. Era só uma competição.
Leander agarrou-a pela parte superior do braço e fez com que se levantasse.
— Volte para a cabana — disse com os dentes cerrados, e deu-lhe as costas.
Blair estava confusa com tudo. Com a cabeça baixa, os pés arrastando, começou a voltar para a cabana. Certa vez, tia Fio queixara-se com o marido de que Blair não sabia nada da vida.
Se um homem disser que ela lhe quebrou o coração, Blair irá procurar em algum livro médico o meio de costurá-lo outra vez. "Medicina não é tudo que existe na vida."
Ela parou e voltou-se em direção a Lee.
— Você na verdade nunca esteve em Florença? — perguntou com meiguice, mas o som percorreu a floresta silenciosa.
Ele levou um momento antes de virar para olhá-la. Seu rosto estava duro.
— Nunca.
Cautelosamente, ela deu um passo em sua direção.
— Na verdade ela não é seu tipo, não é? Quero dizer, ela é muita ossuda, e não tem bastante em cima ou embaixo, não é?
— Nem perto do suficiente. — Parado, seu rosto não mudou quando a viu aproximar-se.
— E ela não saberia distinguir uma hérnia de uma dor de cabeça, não é?
Ele a observava até que ficou em sua frente.
— Não faria papel de bobo na frente da cidade, se amasse outra pessoa.
— Não, suponho que não faria.
Com o rifle em uma mão, ele estendeu o outro braço para ela que veio aninhar-se, a cabeça encostada em seu peito. O coração dele batia selvagemente.
— Você me deve uma noite de núpcias — murmurou ela.
De repente ele agarrou-lhe os cabelos, puxou a cabeça para trás e e beijou-a profundamente, sua língua tocando a dela.
Quando Blair virou o corpo para o dele e pressionou o joelho entre suas pernas, ele deixou-a ir, empurrando-a com gentileza!
— Volte para dentro — resmungou. — Preciso vigiar e pensar em alguma coisa — e com certeza não posso pensar com você por perto.
Ela afastou-se com relutância.
— Blair — disse Lee, quando ela não mais o estava tocando — estou começando a imaginar um plano. Ainda não o desenvolvi mas não a deixe — acenou com a cabeça em direção à cabana — perceber que sabe que ela está mentindo. Finja que acredita em tudo o que ela diz. Penso que podemos usar sua raiva.
— Estou satisfeita de ser útil — resmungou antes de voltar à cabana.
Ciúme era uma emoção nova para Blair. Nunca antes a experimentara. Sentou-se naquela cabana pequena e suja e ouviu Françoise recontar sua grande paixão com Leander. Parte dela queria muito acreditar em Lee, mas a outra estava segura de que aquela mulher horrível estava falando a verdade. Blair teve de se sentar sobre as mãos ou teria saltado no pescoço da mulher. Fez o possível para pensar em outras coisas.
pepois de um tempo, ela conseguiu controlar-se o bastante para perceber que Françoise estava dizendo coisas bem gerais.
— E sua irmã... — estava dizendo Françoise — ah, o nome dela e...
— Charlotte Houston — disse Blair distraída, imaginando onde poderia Lee ter ido na noite do casamento deles, se não fora encontrar-se com outra mulher.
— Sim, Charlotte — dizia Françoise. — Tive de lutar com Charlotte durante muitos meses, mas então quando ela casou com Taggert... Imagino que Lee sentiu-se na obrigação...
— Ele deve ter falado muito a respeito dela — disse Blair, subitamente alerta.
— Quando pôde cair fora. A verdade é que já estou casada, e pensamos que meu marido nunca me deixaria ir, mas ele deixará. Veja, descobri que ia ficar livre na noite em que casou com você.
— Portanto, ele deixou-me para ir ter com você — disse Blair. — Claro, agora estou livre e você está amarrada nessa coluna, mas tenho certeza de que tudo se resolverá. Desculpe-me, acho que preciso respirar um pouco de ar.
Quando saiu da cabana, parecia-lhe ter perdido uns dez quilos. Sentia-se leve, feliz e livre. Não importava o que Lee dissera, mas houvera alguma dúvida sobre seu relacionamento com a francesa. Mas já tinha certeza de que ele falara a verdade.
Ao ficar de pé na varanda e respirar profundamente o ar limpo e fresco, um beija-flor colorido apareceu para inspecionar o emblema vermelho em seu ombro. Blair manteve-se muito quieta e observou o pequeno pássaro pairando a seu redor e sorriu, antes que ele percebesse que ela não era nada comestível e voasse embora.
Ainda sorrindo, caminhou até onde Leander se escondia nos matos. Sentou-se ao lado dele, sem dizer nada, ouvindo o vento nos álamos acima de suas cabeças.
— Ela não sabia o nome de Houston — disse por fim, e quando ele olhou-a com curiosidade, continuou. — Eu não fui sempre uma parte de sua vida, mas Houston foi. Não posso imaginar que alguém que você já tivesse conhecido não tenha ouvido falar no nome dela, a imaginar pela quantidade assombrosa de cartas que Houston lhe escreveu.
Lee colocou o braço em volta dela, rindo e balançando a cabeça.
— Você não acredita em mim, mas acredita nela. Suponho que terei de receber o que conseguir.
Ela encostou-se nele e ficaram ali sentados juntos, ouvindo o vento, sem dizer uma palavra. Blair pensou em como quase perdera aquele momento. Se tivesse seguido seu caminho, estaria agora na Pensilvânia com Alan. Alan que era tão pequeno; Alan que nem era ainda um médico, e provavelmente nunca seria tão bom como Leander; que não sabia de que lado se segurava um revólver; que provavelmente teria ido procurar o xerife e nunca iria resgatar sua mulher por conta própria.
— Obrigada por me salvar — disse ela, e queria dizer por salvai la de mais do que só de seus raptores.
Ele virou-se para olhá-la, e então empurrou-a como se ela tivesse se tornado venenosa.
— Quero que vá se sentar perto daquela árvore — disse e parecia haver um tremor em sua voz. — Quero falar com você, e não posso fazê-lo estando tão perto de mim.
Ela ficou muito lisonjeada e se arrastou um pouco até deixar o rosto bem à frente do dele.
— Talvez você lamente ter saído na segunda à noite — disse ela com os lábios quase tocando os dele.
— Vá — ordenou Lee, recuando. E havia uma ameaça em sua voz. — Não posso manter guarda e fazer o que quero com você ao mesmo tempo. Agora, vá para lá e fique quieta.
Blair obedeceu-lhe, mas as palavras dele fizeram com que arrepios de frio subissem e descessem pela sua espinha. Dentro de poucas horas, Taggert viria com o xerife até as montanhas, pegariam os bandidos e Lee poderia entregar Françoise, e então ficariam sozinhos, pensou naquela que fora a única noite que haviam passado juntos, e quando olhou para ele através dos cílios, ouviu-o prender a respiração. Estava muito satisfeita quando ele desviou o olhar.
— Tive tempo para pensar num plano que pode funcionar — disse ele, olhando pela floresta. — O que quero que faça é ajudar a mulher fugir. Hoje à noite, eu direi alguma coisa que poderia significar que pretendo fugir com Françoise. Talvez pudéssemos ter uma discussão. Tenho certeza de que pode arrumar isso — disse ele, virando-se para olhá-la outra vez. — Que diabo! — gaguejou ao olhá-la.
— Minha meia estava caindo — disse Blair, inocentemente, enquanto levantava a perna esbelta e ajustava a meia de algodão preto, e desejando de todo coração estar usando uma de seda. Talvez houvesse alguma no guarda-roupa de Houston. Sem dúvida ela não usaria nada que não fosse da mais fina seda em sua lua-de-mel.
— Blair — disse Leander. — Você está provocando minha paciência.
— Hum — disse ela, abaixando a perna. — O que estava falando sobre uma discussão?
Leander desviou o olhar, e Blair viu que sua mão estava tremendo.
— Eu disse que quero que comecemos uma discussão, e depois quero que deixe Françoise ver você colocar alguma coisa em meu café. Faça-a pensar que está me fazendo dormir a noite toda para que eu não vá com ela.
— Você não iria para ela, iria?
— Estou guardando minha energia para mais tarde — disse, olhando-a através de seus cílios cerrados, de tal modo que o coração de Blair começou a bater forte.
Ele olhou de volta para a floresta.
Quero que ela escape. Posso fazer os nós de forma que ela possa escapar, mas levará um par de horas para ficar livre. E enquanto ela estiver trabalhando neles, pretendo realizar uma pequena missão.
— Enquanto estiver supostamente dormindo?
— Pelo que pude ver, ela é uma mulher cautelosa; não arrisca muito sua vida. Portanto, quero que ela se sinta segura, que pense que estou dormindo drogado e que você quer que ela fuja. Ela nem ao menos tentou escapar quando estávamos vindo para ca — disse quase como uma reflexão.
— Era muito íngreme. Ela não conseguiria.
— Você tentou escapar daquele cubículo no desfiladeiro?
Blair sorriu para ele.
— Como soube, disso?
— Um palpite, baseado na sua temeridade e descrença de que alguma coisa possa atingi-la. Agora, está de acordo? Acha que pode fazer uma boa representação?
Blair tornou a sorrir.
— Estamos aqui juntos agora, devido à minha extraordinária habilidade de representar.
Ele devolveu-lhe o sorriso.
— Volte agora, e ouça a Françoise. Faça-a pensar que acredita em cada palavra que ela diz. Faça-á pensar que está pronta a me assassinar.
Blair levantou-se e olhou para ele.
— Não vou deixar que nada aconteça a você, até que tenha a minha noite de núpcias — disse ela, e quando Lee começou a se levantar, voltou correndo para a cabana, tendo certeza de ter levantado bastante suas saias para deixá-lo ver um bocado.
— Você pode tê-la, pelo muito que me importo — gritou Blair.
— Pode passar o resto de sua vida com ela, e espero que ambos sejam enforcados — berrava, enquanto saía correndo da cabana, deixando Leander e Françoise juntos.
Continuou subindo a montanha, sem parar para olhar para trás até que ficou fora de vista da cabana. Uma vez escondida pelas árvores, deixou-se cair no chão e ficou ali para recuperar o fôlego. Abaixo, ela mal conseguia ver Lee que começara a procurá-la.
Ela sorriu enquanto observava-o. Tinha certeza de que ele não sabia como era boa atriz e que devia estar preocupado, julgando que acreditava em tudo que gritara para ele. Fora uma boa discussão, longa e em voz alta, com muita raiva. Blair gritara sobre o pai de Lee, por ele tê-la deixado na noite do casamento, sobre tê-la tirado de Alan, sobre a irmã dele ter levado o homem que amava. Esta última tinha-o atingido. Ficara ali, olhando-a como se quase acreditasse nela.
Blair estava sem fôlego e queria ficar longe da cabana o tempo suficiente para parecer que estava verdadeiramente raivosa. E, também, pensar sobre onde Lee pretendia ir naquela noite. Teria sido outra de suas visitas secretas? A vida toda deles iria ser cheia daquelas desaparições misteriosas dele? Iria contar-lhe o que estava fazendo, que era tão secreto, que não podia contar a verdade nem mesmo à sua mulher?
Enquanto observava a cabana e via Leander procurando por ela, decidiu que devia haver um meio de fazer com que confiasse nela. Não queria ser tão mal-informada de sua vida para que qualquer mulher que nem ao menos o conhecesse a fizesse acreditar que sabia mais sobre ele do que ela.
Enquanto estava sentada ali, perdida em pensamentos, não percebeu ruídos que ecoavam atrás dela. Quando os ouviu, quase ficou paralisada, imaginando que provavelmente era o bando de Françoise que por fim os encontrara. Muito devagar, virou-se para olhar para o alto do morro.
O que viu deixou-a mais do que paralisada. Descendo o morro -vinham dois enormes ursos pretos... e em sua direção.
Nunca ninguém movimentou-se mais rápido. Blair levantou-se e começou a correr sem que seus pés estivessem firmes no solo. Ela chegara na cabana antes de olhar sobre o ombro e ver que os ursos não estavam atrás dela. Cautelosamente, parou e olhou em volta. Havia somente os sons da floresta e nenhum sinal dos animais. Curiosa, andou até uma árvore na beira da clareira e olhou outra vez para o morro. Normalmente ela correria para se proteger, mas parte dela lembrava que estava no meio de um jogo com Leander, e ela não poderia estragar tudo correndo agora para os braços dele.
Muito devagar, voltou, esgueirando-se morro acima, sempre checando se o caminho atrás dela estava livre. Se os ursos estavam à espreita em algum lugar ela queria saber para que pudesse contar a Lee.
Bem próximo de onde estivera sentada, e somente a uns poucos metros da cabana, havia uma pequena caverna, e, pelas pegadas ao redor, achou que devia ter sido usada por gerações de ursos.
— Então é por isso que a cabana está abandonada — murmurou e começou a descer o morro. O pôr-do-sol estava próximo e ela tinha de fingir que dava a Lee uma droga para fazê-lo dormir.
Mais tarde, pensou que fizera tudo muito bem, e duvidava de, que mesmo Lee a vira quando pusera o pó para dor de cabeça em seu café, mas o fizera de forma a ter certeza de que Françoise notasse. Por um momento estivera tentada a pôr um pouco de ipecacuanha em sua bebida, depois de ter visto Lee olhando para Françoise, quando pensou que ninguém o observava.
Poucos minutos depois de Lee ter tomado o café que fora esquentado no pequeno fogo que fizera atrás da cabana, estava bocejando e dizendo que tinha de dormir. Depois de minutos, dizendo a Blair como tomar conta da prisioneira, foi para o outro quarto, e elas puderam ouvi-lo cair no pequeno catre sujo.
Françoise olhou para Blair de um modo que ela quis soltar a mulher e desafiá-la para uma luta. Mas, em vez disso, revistou as amarras da mulher.
— Pelo menos ele não passará a noite com você — disse Blair. — Vou dormir. — Olhou a francesa de alto a baixo, amarrada na coluna. — Espero que esteja confortável.
— E se eu fugir? Como irá explicar para ele?
— Com satisfação — respondeu Blair. — Que me importa o qui faça desde que fique longe de meu marido? Além do mais, aprendi umas coisinhas sobre como fazer nós na escola de medicina. Você não se livrará destes muito rapidamente.
Blair foi para o outro quarto, e pensou em como Lee estivera certo. Françoise era extraordinariamente cuidadosa com sua vida. Quantos prisioneiros teriam pedido permissão antes de tentar escapar?
Uma rápida checagem no catre e viu que Lee já escapulira da cabana pela janela aberta. Fez uma pilha de cobertores, que esperava que se parecesse com um corpo, e saiu pela janela atrás dele.
Caminhou durante muitos minutos, mas não ouvia nada. Ele parecia ter desaparecido. Estava indo em direção a leste, a cabana para trás, e esperava estar na mesma direção. Claro, ele não parecia disposto a contar-lhe qualquer dos seus planos, mas supunha que aquela devia ser a direção que tomara, fosse lá o que tivesse planejado fazer. Escondeu-se quando ouviu um ruído atrás de si.
— Muito bem, saia daí.
Ela ouviu a voz, e parecia ser a de Lee, mas não a que usava com ela. Tinha um toque duro, metálico... e foi acompanhado pelo clique do gatilho de um revólver sendo puxado. Com um olhar humilde, Blair saiu de seu esconderijo.
Resmungando uma imprecação, Lee guardou a arma.
— Por que não está na cabana onde a deixei? Por que não está vigiando aquela mulher?
— Queria saber aonde você estava indo.
— Não vou encontrar outra mulher. Agora volte para a cabana. Tenho de ir terminar um serviço incompleto, não tenho muito tempo, e não posso fazer nada com você por perto.
— Se você não está indo encontrar alguém, então para onde está indo? Pensei que devíamos esperar pelo...
— O que é que tenho de fazer? Amarrá-la, também?
— Então eu estava certa. Você está de alguma forma envolvido com aqueles assaltantes e aquela mulher. De outra forma poderia me contar aonde está indo. Oh, Leander, como pôde?
— Como?
Ela tentou afastar-se, mas ele pegou-lhe o braço e prendeu-a.
— Está bem, vou lhe contar! A mina Inexpressible está a menos de dois quilômetros daqui, e pretendo esgueirar-me pelo lado de trás, entrar no depósito de explosivos, roubar alguma dinamite e estourar o fim daquele desfiladeiro ali. Posso não pegar todos eles, mas dá para encurralar a maior parte do bando dentro do desfiladeiro... principalmente se eu usar a mulher líder deles como isca.
Blair piscou diversas vezes, deu então um passo em direção a ele com os olhos brilhando.
— Levará menos tempo se me levar com você. — Antes que ele pudesse falar, ela continuou. — Eu posso ajudar. Posso escalar. Quase subi para fora do desfiladeiro onde os assaltantes me prenderam. Por favor, por favor, Leander. — Agarrou-o e começou a beijar-lhe o pescoço e o rosto. — Obedecerei e nunca ficarei em seu caminho, e, se alguém ficar ferido, prepararei as agulhas para você.
Leander sabia que era um homem vencido.
— Eu não sabia como estava bem servido com uma dama lânguida e obediente como Houston — disse ele por entre os dentes, começando a andar com passadas rápidas.
Blair mordeu a língua para evitar de contar-lhe que sua irmã secretamente dirigia uma carroça de mascate até os campos das minas. Em vez disso, só sorriu-lhe de volta e começou a segui-lo através da floresta escura em direção à mina.

 

Capítulo XXIII

 

LEANDER DESCEU A montanha com um passo tão acelerado que Blair quase desejou não ter vindo com ele. Podia agora estar a salvo, dormindo, em vez de estar tropeçando nas encostas escuras e íngremes. Duas vezes escorregou caindo de costas, mas tratou de segurar-se para não cair muito longe. A expressão do marido indicava que, uma vez que ela fora tola bastante para querer ir com ele, tinha de se cuidar sozinha.
Finalmente chegaram ao fundo da fenda abrupta e olharam para a pequena comunidade de mineiros.
— Suponho que seja inútil pedir-lhe que fique aqui, não é?
— Inteiramente — replicou ela.
— Muito bem, então fique junto de mim. Não se afaste mais do que meio metro. Quero saber onde está a todo minuto, entendeu? E se eu lhe disser para correr, é exatamente o que quero que faça. Sem perguntas, sem argumentos. E seja o mais silenciosa que puder.
Blair concordou com a cabeça, em resposta a suas recomendações, e começou a segui-lo pelo campo adentro.
Era tarde, e quase todas as luzes estavam apagadas. Somente uns poucos bares ainda estavam abertos e com movimento. Eles correram do abrigo de uma construção para outro, e Blair podia sentir o coração batendo com excitação.
— Teremos de entrar no armazém da companhia primeiro, precisarei de uma alavanca para tirar aquela fechadura e a corrente.
Correram para o fundo de uma construção grande, que ficava próxima do centro da vila dos mineiros. Três vezes tiveram de se abaixar quando pessoas passaram.
— Blair — murmurou Lee. — Tenho de quebrar este vidro. Quero que você ria para encobrir o barulho. Ria bem alto, como uma dama da noite. Ninguém prestará atenção a um som familiar como esse, mas virão correndo com o ruído de vidro quebrado.
— Leander — disse duramente —, não sou tão experiente como você. Não tenho idéia de como uma dama da noite ri.
— Sugestivamente. É como se estivesse tentando me levar para os bosques consigo a fim de poder fazer coisas agradáveis para meu corpo.
— Isso deve ser fácil — disse, querendo ser exata.
Lee enrolou a mão em seu lenço e preparou-se para esmurrar o vidro da porta.
— Muito bem. Agora!
Blair jogou a cabeça para trás e deu uma risada rouca que encheu o ar e, quando Lee olhou de novo para ela, havia admiração em seus olhos.
— Aceitarei sua oferta o mais breve possível — disse, ao atingi o lado de dentro e abrir a porta. — Fique aqui e esteja pronta para correr se alguém nos vir.
Blair ficou de um lado da porta e observou Lee enquanto ele entrava pela loja procurando por uma alavanca. Atrás dela havia pilhas de alimentos enlatados, sacos de farinha, uma lata grande de bolachas. Em uma prateleira viu seis pequenas barricas de mel. Olhando para elas, Blair sorriu, pois lembraram-na dos ursos.
De repente, sem ter um plano específico, pegou uma mochila de uma pilha no chão, meteu duas barriquinhas de mel na sacola e colocou-a nas costas. Perto do rolo de papel de embrulho no balcão estava um lápis. Então, rapidamente, rasgou um canto e escreveu um bilhete.
— O que está fazendo? — perguntou Lee.
—Deixando um aviso de dívida, claro. Amanhã tenho certeza que a cidade toda saberá que estouramos parte de uma montanha e que tivemos de roubar a dinamite. A menos que você tenha o costume de levar algum em sua maleta médica. Você não pretendia levar isso sem dizer quem foi, não é? Outra pessoa seria culpada.
Lee olhou-a durante um momento.
— Bem pensado — disse por fim. — Amanhã não haverá motivo para segredo. Mas hoje não quero que me peguem. Vamos indo. Espere um minuto. O que é que tem nas suas costas?
— Mel — respondeu ela, e não lhe deu tempo de fazer mais perguntas antes de deixar o armazém na frente dele. Lee fechou a porta com muito cuidado e, a menos que procurasse, ninguém poderia ver o vidro quebrado.
Levou-a através do campo, de volta para os limites, e, em dado momento, ocorreu a ela que ele conhecia o lugar bem demais. Mas ouvira dizer que às vezes tratava de mineiros feridos.
Caminharam sobre o chão que era barulhento devido ao cascalho. O vento leve soprava poeira de carvão em seus olhos. Depois dos trilhos do trem, atrás de uma montanha de quinze metros de altura de resíduos de carvão, atrás da longa carreira de fornos onde o enxofre do carvão era queimado, estava o barracão dos explosivos.
Esfregando os olhos, Blair permaneceu nas sombras, enquanto Lee forçava a porta. O mais rapidamente possível, enfiou bastões de dinamite sob sua camisa e fechou a porta amarrando-a. Não podia deixá-la aberta para que um passante se servisse do que havia dentro. O próximo que fosse abri-la com certeza iria ter dificuldade.
— Vamos — disse Lee, e Blair começou a difícil subida para o topo. Às vezes, o chão ficava diretamente diante de seu rosto e ela precisava erguer-se.
Lee esperava por ela no alto, mas não lhe deu tempo para recuperar o fôlego. Praticamente correram para a cabana.
— Vou selar meu cavalo e deixá-lo na frente. Pensei que você deria sair da cama para pegar alguma coisa para comer, e poderia esquecer e deixar uma faca ao alcance dela. Estarei esperando do lado de fora para segui-la quando voltar para o desfiladeiro.
— Nós — foi tudo que Blair disse, mas o jeito como olhou para ele fez com que Lee suspirasse.
— Muito bem, mas agora entre e espere por mim.
— Tenho de resolver um problema pessoal primeiro... — disse ela, e não sabia se estava corando pelas palavras ou pelo fato de estar mentindo.
Lee nem olhou para ela enquanto selava os cavalos. Blair subiu correndo a encosta do morro em direção ao abrigo dos ursos, cautelosamente, aproximou-se do buraco negro da gruta, sem escutar qualquer ruído. Mantendo a respiração com medo, pegou uma pedra e bateu-a no buraco arrolhado de uma das barricas de mel que tirara da mochila, depois ouviu outra vez se havia som e movimentos. Tudo quieto.
Virando a barrica de forma que o mel corresse no chão, ela começou a descer o morro indo para a cabana, deixando um rastro grosso nas folhas e grama.
O cavalo de Lee estava pronto e selado em frente da cabana e Blair tentava remover a rolha da segunda barrica antes de prendê-la na parte de trás da sela. Por um momento, hesitou sobre o que estava fazendo, porque se Françoise levasse muito tempo para soltar-se e os ursos sentissem o cheiro do mel primeiro, iriam farejar o cavalo antes que houvesse um cavaleiro. A contagem de tempo era tudo.
Subiu pela janela da cabana e viu, mesmo no escuro, Lee franzindo o cenho para ela, por ter demorado tanto tempo.
O mais rápido que pôde, tirou o uniforme de médica. Queria parecer como se tivesse acabado de acordar.
Françoise estava deitada no chão e Blair podia ver, que haviam lugares esfolados em seus pulsos, de tentar escapar das amarras.
O estômago de Blair encolheu. Ela fizera um voto para aliviar sofrimentos e odiava ser causadora de dor em alguém.
Françoise abriu os olhos quando Blair passou.
— Acho que ainda não me recuperei desde que você tentou me matar de fome — disse Blair, ao cortar uma fatia de queijo do pedaço grande que estava no canto da mesa. — Não vai demorar muito para que o xerife chegue aqui.
— Se ele viesse, já teria tido tempo. O homem que veio com Leander já deve ter sido morto.
— Muito mal — falou Blair com desinteresse. — Ele é Taggert, o homem do dinheiro. — Com um grande bocejo, ela deixou a faca na mesa e pegou a fatia que cortara.
— Vou voltar a dormir. Durma bem — disse, rindo, antes de sair do cômodo.
Assim que saiu da vista da mulher, começou a vestir-se, lenta e silenciosamente, enquanto se colocava de maneira a ver Françoise. O contorno no luar mostrou que a mulher não perdera tempo para pegar a faca da mesa e menos ainda para cortar as amarras. Em segundos saía pela porta.
— Vamos — disse Lee assim que ouviu seu cavalo começar a andar.
— Deixe-me adivinhar, mais caminhada — disse Blair desanimada, sentindo-se muito cansada.
— Quando acabarmos com isto, você pode ficar na cama uma semana toda — disse Lee. — Comigo.
— Isto parece tranqüilizador — retrucou Blair com sarcasmo.
Lee levuou-a por uma ladeira inclinada, de pedra. Sua idéia era que, se visse aquele lugar à luz do dia, recusaria tentar subi-lo. Mas, naquele momento, não parecia ter escolha. Tinham de chegar, antes de Françoise, ao abrigo do desfiladeiro.
De repente Lee parou e abaixo deles estava o desfiladeiro. Havia silêncio em volta da pequena cabana escura, e ele não estava certo de que houvesse alguém lá dentro.
— Eles estão esperando por ela. Não creio que façam alguma coisa sem que ela lhes diga.
— Lee, Taggert está demorando muito, não está? Acha que ele esá bem?
— Não sei. Havia muitos contra ele sozinho. — Virou-se para boca do desfiladeiro e começou a colocar a dinamite. — Assim que os tivermos fechados ali, irei a cavalo até Chandler para trazer ajuda.
— Cavalgar? No quê?
— Aqui, segure isto — disse, entregando-lhe o estopim. — Mais tarde mostrarei a você. Agora, está tudo preparado. Só temos de esperar por nossa dama bandida.
Sentaram-se em silêncio durante alguns minutos.
— Ela já devia estar aqui. Espero que não tenha se perdido!
— Ou ido para outro lugar — acrescentou Blair. — Lee, acho que devo lhe contar uma coisa. É sobre o mel. Eu...
— Silêncio! Creio que ouvi alguma coisa.
Estava quase clareando e no enevoado amanhecer eles só podia ver o contorno de um cavaleiro montado. O cavalo estava dando muito trabalho, e a mulher magra tinha dificuldades em controlá-lo.
— Para cima! Agora! — ordenou Lee, e ela começou a correr para o abrigo das rochas mais altas.
No minuto seguinte, todos os diabos estavam soltos. Françoise começou a gritar e, no desfiladeiro abaixo, os homens começaram a correr e a atirar com suas armas, antes mesmo de saber o que estava errado. Blair parou no meio da subida para olhar para trás, e viu a francesa no enorme garanhão, lutando para controlar o animal. Atrás dela vinham dois ursos, andando ligeiro, parando de vez em quando para lamber o chão rochoso.
Blair ouviu um som abafado de Lee, e a coisa seguinte que soube era que ele estava subindo a montanha apressado, pegando-a pela cintura. Ao mesmo tempo, assobiava de um modo estranho, dois sons curtos e agudos, e depois repetia.
— Abaixe-se — disse e empurrou Blair de forma que ela roçou os cotovelos na pedra.
Ela correu para a frente até poder ver o caos no desfiladeiro abaixo. Os cavalos no curral estavam ficando loucos com os ursos no desfiladeiro, e o pessoal corria por ali tentando atirar nos dois bichos, acalmar os cavalos e escapar da confusão. Françoise colocava as rédeas no cavalo de Lee, gritando e apontando para o caminho da entrada, enquanto tentava fazer os homens ouvirem-na.
Subitamente, o enorme cavalo de Lee empinou e derrubou-a no chão e em seguida virou-se e começou a correr em direção à entrada, esquecido dos ursos que estavam em seu caminho.
— Será atingido pela explosão — disse Lee, levantando-se para ver melhor o desfiladeiro. Havia uma grande tristeza em sua voz quando falou na perda inevitável de seu adorado cavalo.
O cavalo continuou correndo e os ursos saíram de seu caminho.
Menos de um minuto depois, a dinamite explodiu, fechando a entrada para o desfiladeiro e prendendo os marginais lá dentro. Lee foi atirado ao chão pela explosão, mas a poeira ainda não tinha assentado e ele já estava descendo em direção à abertura. Quando estava a meio caminho da descida, seu enorme cavalo veio correndo para ele com os olhos arregalados, aterrorizados. Lee afagou a cabeça do animal e conversou com ele para acalmá-lo.
— Para que diabos vieram aqueles ursos? — gritou Lee para Blair, que o seguira morro abaixo. Eles podiam ouvir os gritos e os tiros no desfiladeiro, e a poeira da explosão ainda não tinha assentado.
— Não mencionei nada a respeito porque sabia que você me protegeria, mas já se passara muito tempo — disse Blair, quase gritando, não deixando que ele a intimidasse. — Taggert já se fora há um tempo mais do que suficiente. Eu sabia que os bandidos logo nos encontrariam, e então ficaríamos presos naquela cabana com uma dúzia de homens atirando em nós. Eles podem subir para sair daquele desfiladeiro com bastante facilidade, mas pensei que, talvez, se tudo fosse bem cronometrado, os ursos poderiam retardar os acontecimentos. Espero que ninguém fira os animais. Tudo o que eles queriam era o mel.
Lee começou a dizer diversas coisas para ela, mas nenhuma parecia encaixar.
— Nunca vi uma mulher que não tivesse um senso de perigo. Você não percebe que poderia ter sido ferida?
— Você também — disse ela com o queixo levantado.
Lee agarrou-a pelo braço, ainda decidido a não perdoá-la.
— Agora, tenho medo de deixá-la aqui enquanto vou buscar o xerife.
Não teve chance de dizer mais alguma coisa naquele momento porque o xerife e seis homens vieram correndo pela encosta da montanha. Estavam completamente sem fôlego.
— O senhor está bem, doutor? — perguntou o xerife, ofegando, seu grande peito arfando. Apesar de seus cabelos grisalhos, ele era um homem de boas condições físicas, e subira até o desfiladeiro em pouco tempo.
Sabia exatamente onde era o desfiladeiro depois de Taggert descrevê-lo, e também sabia, melhor do que qualquer pessoa da cidade, da propensão de Leander de tomar as coisas em suas próprias mãos.
— Taggert disse que o senhor estava com problema. — No momento seguinte, sua boca se abriu de espanto ao olhar por cima da borda para o desfiladeiro abaixo. As pessoas pareciam brinquedos correndo em volta das paredes de pedra, procurando por saídas. — O senhor fez isso, doutor?
— Eu e a senhora — disse Lee, numa voz arrastada que fez Blair dar risadinhas.
O xerife afastou-se da beirada enquanto os homens do destacamento continuavam observando.
— Não deixem nenhum deles escapar — disse por cima do ombro, enquanto ficou ali, parado, olhando para Leander e Blair. — Parece que encontrou seu par, rapaz — disse para Lee e havia raiva em sua voz. — Por que não podia esperar até que eu chegasse aqui? Por que é que tem de tomar a lei em suas mãos? Alguém poderia ficar ferido por isso. Aquelas pessoas ali embaixo já mataram homens. E aquela chefe francesa é mais traiçoeira do que uma serpente. Já lhe avisei sobre esse tipo de coisa antes. Qualquer dia destes você não vai sair de uma de suas empreitadas reformadora vivo.
— Do que é que ele está falando? — murmurou Blair, nunca tendo visto o xerife zangado com alguém antes. Ela o conhecera a vida toda, mas, para ela, ele era um homem amável, tranqüilo.
— O que o fez demorar tanto? — perguntou Lee, ignorando a pergunta de Blair e a raiva do xerife. — Estávamos receosos de que alguma coisa acontecera com Taggert.
— Ele teve um arranhão de bala na cabeça e ficou fora durante uma hora. Por isso é que demorei para chegar aqui. Somente soubemos que você capturara aquela mulher há poucas horas. Mas parece que chegamos muito tarde. Ela fugiu?
— Está lá embaixo — disse Lee.
— Não por muito tempo — disse um dos homens do destacamento. — Há uma mulher subindo o lado do desfiladeiro.
Blair olhou na direção do homem e, ao fazê-lo, sua visão periférica percebeu um movimento. Viu um dos homens do xerife, quase escondido por uma árvore, pôr o rifle no ombro e fazer mira. Ele ia atirar nela, pensou Blair, e, independentemente de quem fosse o alvo, ela não poderia ficar parada, vendo-a ser morta. Blair deu um salto em direção ao homem e procurou cair bastante perto para bater em sua perna e fazê-lo perder a mira. O rifle disparou no ar bem acima da cabeça de Françoise.
Mas Blair não pensara nas conseqüências para si, e no momento seguinte estava tentando segurar-se na beirada do despenhadeiro, os pés balançando.
O xerife e Lee reagiram no mesmo instante, deitando-se de barriga, agarrando um braço e puxando-a para lugar seguro.
— Ela na verdade é a mulher para você — disse o xerife, a voz pesada de desgosto, enquanto ajudava a puxar Blair para a segurança da saliência rochosa. — Seja realmente cuidadoso com ela e não a deixe ferir-se.
— Estou fazendo tudo o que posso para protegê-la dela mesma e de mim — disse Lee solenemente.
Blair sentou-se no chão ao pé dos dois homens, tirando a poeira de si e olhando para o desfiladeiro onde quase caíra.
— Tudo bem, rapazes — disse o xerife. — Alguém se apresente como voluntário para ficar aqui e vigiá-los enquanto vamos buscar alguma ajuda. E é melhor que estejam vivos quando eu voltar.
— Xerife, se importa de não mencionar nossos nomes ou o de Taggert nisso? E poderia mandar alguém ao armazém da companhia Inexpressible e resgatar nosso aviso do débito pela alavanca e a dinamite? — Lee sorriu por um minuto. — E mande a conta para meu pai. Ele deve-me isso. — Voltou-se, com as rédeas do cavalo em uma mão, e tomou a mão de Blair na outra.
— Para onde vão agora? — gritou o xerife, quando foram montanha acima.
— Para minha lua-de-mel — respondeu Lee por cima do ombro.
— Seja cuidadoso. Aquela francesa escapou, e não acredito que tenha algum amor por vocês dois.
Ao abanar a mão para o xerife, Lee mumurou para Blair:
— Amor é exatamente o que tenho em mente.


Capítulo XXIV

 

BLAIR COMEÇOU A ANDAR, mas não agüentou muito. A combinação de pouca comida, menos sono e muita excitação, por fim venceram-na. Quando começou a tropeçar, Lee carregou-a e colocou-a em seu cavalo e seguiu o caminho. Ela cochilava e, nas vezes em que quase caiu do cavalo, Lee estava ali para pegá-la e pô-la de volta.
Parecia que viajavam há muitos dias e, a certa hora, ela estava segura de que nunca tinha visto uma cama em sua vida, e muito menos dormido em uma.
O sol já estava baixo no céu quando finalmente pararam, e Lee tirou-a do cavalo. Sem muita atenção, ela abriu os olhos para ver uma grande cabana de madeira com fundação de pedra.
— Onde estamos? — perguntou, mas na realidade não estava certa de que a interessasse. Tudo que queria era dormir.
— É a cabana de caça de meu pai. Ficaremos aqui durante alguns dias.
Blair concordou e fechou os olhos quando Lee carregou-a para dentro da cabana. Estava vagamente consciente de que ele a levara por uma escada, mas estava muito cansada para ter certeza. Quando ele a colocou na cama, já estava profundamente adormecida.
Ela acordou com um som estranho vindo do lado de fora da janela, e como o sono já acabara, ficou curiosa para saber de que era. Tirou a coberta, e então prendeu a respiração quando descobriu que estava nua. Havia uma camisa de homem no pé da cama de pinho, e ela a vestiu. Olhando pela janela, viu vacas pontilhando a paisagem, e, embaixo da janela, uma vaca e um bezerro estavam mascando grama, fazendo o ruído que a acordara.
A cabana ficava numa colina suave, numa clareira da floresta. Havia montanhas por todos os lados, árvores altas a poucos metros da cabana. A grama era enfeitada com moitas de rosas silvestres que estavam começando a florir.
Um ruído na escada atrás dela fez com que se virasse. Lee estava entrando com uma bandeja na mão, o cheiro da comida fazendo com que ficasse com água na boca.
— Pensei ter ouvido você — disse ele, sorrindo para ela e olhando com interesse para suas pernas nuas abaixo da camisa. Consciente de si, Blair meteu-se de novo na cama e Lee pôs a bandeja em seul colo.
Ele removeu o pano que cobria a comida.
— Temo que não haja comida fresca, mas temos de tudo que já foi enlatado ou conservado.
Havia presunto e bacon, queijo, pêssegos, bolinhos de milho e um pequeno prato de morangos silvestres.
— É um banquete e estou faminta — disse ela, começando comer com prazer.
Lee acomodou-se de lado, atravessado no pé da cama, e observou-a com uma tal intensidade que começou a fazê-la corar. Ela estava mais que consciente de que todos os obstáculos para a noite de núpcias estavam por fim afastados.
— Quanto tempo eu dormi? — perguntou com a boca cheia de comida.
Lee tirou seu relógio do bolso com jeito tão lento e fácil que ela fez uma pausa na refeição. Ele olhou-o, e então colocou-o na mesinha próxima à cama, como se não tivesse intenção de pô-lo de volta em seu bolso.
— Quatorze horas — disse ele.
Blair enfiou um bolinho de milho na boca com tanta pressa que quase engasgou.
— Você disse que esta era a cabana de seu pai. Você vem aqui com freqüência?
Leander começou a desabotoar a camisa, levando tempo em cada botão, e depois foi lentamente tirando-a das calças.
— Desde que era garoto.
Seus olhos nos dela eram intensos e sérios, e o modo como a olhava através dos cílios estava deixando-a nervosa. Começou a comer mais depressa.
— Você vem aqui para caçar alces?
Com os olhos nunca deixando os dela, Lee começou a desabotoar a abertura das calças.
Não foi preciso uma segunda olhada para notar que ele não estava usando roupa de baixo. A mão de Blair começou a tremer.
Lee levantou-se e deixou a calça escorregar para o chão.
Blair olhou para ele, os olhos nos dele, a mão a meio caminho da boca com um pedaço de bacon, enquanto ele curvava-se para ela e retirava a bandeja e o bacon, colocando-os no chão.
— Agora você não é Houston — disse ele.
Por um momento, Blair teve medo dele. Nas últimas semanas lutara a cada minuto, sentindo-se culpada pelo que fizera à sua irmã, que ainda não podia realmente acreditar que fosse correto entregar-se a ele.
Lee curvou-se em sua direção, e ela recuou até que a cabeça entrasse em contato com a cabeceira da cama. Parte dela queria afastar-se, mas a outra parte — a parte maior — preferia morrer antes que se afastar.
Muito gentilmente, os lábios de Lee tocaram os dela. Ele não a pressionou ou tocou de nenhuma outra forma. Só havia aquele homem adorável, com aquele magnífico corpo nu, inclinando-se sobre ela e beijando-a.
Blair começou a escorregar na cama, ou melhor, a escorrer, assim como manteiga derretendo. Lee ficou sobre ela, o mais afastado possível, até perder o equilíbrio e cair em cima dela.
A partir daí, não houve mais lentidão. Blair abriu a boca para seu beijo, e Leander tornou-se igual a um homem selvagem, beijando-a com paixão, as mãos desmanchando seus cabelos, correndo por todo seu corpo, arrancando a camisa dela. Blair foi envolvida por sua paixão. Durante semanas, ansiara por ele, e então podia tocá-lo e abraçá-lo, aliviar-se da dor de conter-se durante tanto tempo.
Abraçaram-se e rolaram na cama juntos, as bocas mordendo tudo o que era carne nua que pudessem encontrar, mãos parecendo se multiplicar, pois estavam em todos os lugares. Blair tinha imagens correndo por sua cabeça de todas as vezes que vira Leander e quisera tocá-lo. Lembrava-se das mãos dele dando nós delicados em cirurgias, e ela quisera aquelas mãos para tocá-la. Tantas vezes o observara andando, e pensara no corpo dele movendo-se em cima do seu. E naquele momento, ela corria as mãos pelas costas dele até suas nádegas, tão firmes e estreitas, que começavam a mover-se de uma forma que fez com que tivesse certeza que estava em fogo.
Ele pareceu pressentir quando ela estava pronta, e quando a penetrou, ela deu um pequeno grito e a boca de Lee veio sobre a dela, que o atraía vorazmente.
Seus movimentos tornaram-se rápidos e ela os acompanhava com seus próprios, agarrando-se a ele com as mãos, boca, pernas. E quando ele começou a mover-se mais firme e mais rápido ainda, ela retesou-se, elevando os quadris, permitindo-lhe assim mais acesso a seu corpo.
E, quando terminaram, Blair gritou outra vez e seu corpo estremeceu em um espasmo de paixão enquanto Lee relaxava em cima dela. Minutos mais tarde, Blair também relaxou, e por um momento seu corpo tremeu ao abraçar-se a ele, mantendo as pernas firmes em sua cintura, determinada a nunca deixá-lo ir.
Ficaram deitados juntos por muitos minutos antes que Blair começasse a relaxar e aliviasse o abraço mortal de Lee.
Acariciou os caracóis úmidos no pescoço dele, correndo o dedo pelos músculos de seus ombros, sentindo sua pele. Ele era tão novo para ela, no entanto, de certa forma, era como se sempre tivessem estado juntos. Havia tanto sobre ele que ela não sabia, tanta coisa que queria aprender.
Ele firmou-se em um cotovelo e olhou-a.
— Lá embaixo tenho uma bacia para banho e água esquentando na lareira. Gostaria de um banho?
Por um momento, ela olhou-o, na luz que vinha por detrás de sua cabeça, e entendeu como aquela cabeça tinha se tornado preciosa para ela. Era só impressão sua ou ele era realmente o homem mais atraente do mundo?
— Continue olhando para mim desse jeito e não conseguirá um banho antes da próxima terça-feira.
Lee levantou uma sobrancelha para o sorriso travesso de Blair, enrolou-a num cobertor e levou-a, escada abaixo, para o primeiro andar. Uma das pontas da cabana era dominada por uma enorme lareira de pedra, flanqueada por duas janelas largas. Na outra ponta estava a cozinha, repleta de pratos sujos, remanescentes das farras culinárias de Lee. As longas paredes eram de pedra até cerca de um metro, e acima eram de toras de madeira, com diversas janelas aqui e ali.
Em frente à lareira estava uma banheira de flandres, mais alta em uma ponta do que na outra, e cheia de água fria que Lee disse ser de um riacho próximo. Enquanto Blair estava ali sentindo-se de certa forma envergonhada, Lee pôs água quente e então levou-a até a banheira. Quando ela continuou parada, ele puxou o cobertor e colocou-a na água.
A água estava divina, e ela recostou-se na banheira e deixou-se relaxar. Estava consciente de Lee parado sobre ela e observando. Ele vestira as calças, mas estava sem camisa — e atordoante: toda aquela sua pele morena esticada sobre os músculos firmes que conseguira com uma vida quase sempre ao ar livre.
— Casei com o rapaz da casa vizinha — murmurou, rindo.
Ele ajoelhou-se ao pé da banheira.
— Por que você tentava fazer minha vida miserável quando éramos crianças?
— Nunca fiz tal coisa — disse ela, começando a lavar os braços.
— E de que você chama jogar lama no meu rosto, atirar bolas de neve em mim de lugares inesperados, e dizer a Mary Alice Pendergast que eu estava apaixonado por ela? A mãe dela mostrou para minha mãe bilhetes amorosos que se supunha fossem escritos por mim.
— Porque você estava levando Houston — disse Blair meigamente. — Ela era minha gêmea, mas subitamente você estava lá e ela parecia gostar mais de você do que de mim.
Quando Lee não disse nada, levantou os olhos para ver os dele esmiuçando os seus. Ele não parecia acreditar nela. Ela não pensava naquele tempo quando eram crianças, há anos. Odiara-o, odiara-o no primeiro momento que o vira. Mas por quê? Todos os outros pareciam gostar dele, e Houston adorava-o, mas ela não agüentava ficar perto dele. Costumava deixar a sala quando ele entrava
— Talvez... — murmurou.
— Talvez o quê?
— Talvez eu quisesse ser sua amiga.
— Mas você não podia, uma vez que Houston já pusera sua marca em mim? — Levantou a perna dela da banheira, apanhou o sabonete e começou a lavá-la, seus longos dedos deslizando acima mais acima em suas pernas.
— Você dava a impressão de que não estava envolvido, mas pediu a ela para casar-se com você. Deve ter amado Houston. — Blair observava suas mãos, sentia suas mãos.
Ele começou a ensaboar os dedos dos pés.
— Suponho que tenha pedido que casasse comigo. Algumas vezes, não consigo me lembrar de ter feito isso. Penso que foi uma passagem da idade viril. Todos os homens em Chandler pediram Houston em casamento.
— Pediram? — perguntou Blair com interesse. — Houston nunca disse uma palavra sobre qualquer coisa como essa. Só Alan pediu-me em casamento. Todos os outros homens foram...
— Tolos — disse ele rapidamente, lavando-lhe o pé com grande cuidado.
— Mas eu sou tão diferente — disse ela, e, apesar de tudo o que podia fazer, lágrimas começaram a se formar em seus olhos. — Sempre tentei ser como as outras mulheres, ser alguém como Houston, meiga e gentil, mas em vez disso tive de me tornar uma médica. E então, recebi notas mais altas do que os outros estudantes, homens ou mulheres, e pude ver os olhos dos homens mudarem quando olhavam para mim. E...
— Você pode trabalhar um pouco mais em suas suturas — disse ele, deixando cair a perna dela e pegando o pé direito em suas mãos.
— E cada vez que eu vencia um homem em qualquer coisa, ele... — Seus olhos arregalaram-se. — O quê?
— Seus pontos, quando está com pressa, são muito grandes. Precisa trabalhar neles.
Blair abriu a boca para falar, mas fechou-a. Queria dizer-lhe que seus pontos eram perfeitos, mas percebeu que o problema não era esse. Ele não iria permitir que ela sentisse pena de si mesma. Com um sorriso, olhou para ele.
— Me mostrará como?
— Mostrarei a você como fazer qualquer coisa — disse ele, com um olhar que a fez sentir-se muito quente, e continuou a lavá-la.
— Aqueles homens eram tolos. Nenhum homem seguro de si teria medo de qualquer mulher. Só levou um tempo para que você voltasse para casa, para mim.
— Voltar. Voltar para o noivo de minha irmã — suspirou.
Leander ficou quieto por um minuto, lavando a mão dela, ensaboando-a, entrelaçando os dedos dela nos seus.
— Suponho que se eu tivesse um irmão e todas as mulheres estivessem atrás dele, e nenhuma me quisesse, também ficaria ciumento.
— Ciumenta eu não sou... — nunca pensara naquilo antes, mas talvez tivesse ciúmes de Houston. — Ela é tudo o que eu queria ser. Eu não queria ser uma médica. Eu tinha de ser uma. Queria ser como Houston e manter minhas luvas limpas. Ela possuía tantos amigos. Tinha você.
Ele nem levantou os olhos quando começou a lavar o braço direito dela.
— Não, ela nunca me teve.
Blair continuou falando.
— Houston faz tudo tão bem. Faz amigos com facilidade, a quilômetros de distância, as pessoas amam Houston. Se ela tivesse comandando as tropas sulistas, eles teriam vencido a Guerra da Secessão. Ninguém pode organizar do jeito que ela consegue.
— Certamente ela preparou você para me tomar de suas mãos.
— Você! Não, aquilo simplesmente aconteceu. Foi inteiramente minha culpa. Houston estava inocente naquilo.
— Blair — disse naturalmente —, na noite da recepção do governador, eu ia dizer a Houston que o noivado terminara.
— Terminara? Sei que você disse alguma coisa como essa, mas certamente não seria exatamente isso.
Ele parou de lavá-la.
— Não conheço Houston, mesmo. Acho que nunca conheci, mas posso ver coisas em você que penso que estão em Houston também. Ela encobre qualquer coisa que esteja pensando com aquelas malditas luvas brancas dela. Por algum motivo, quando éramos crianças decidiu que iria casar comigo. Eu não era uma péssoa para ela, só uma meta. Talvez fosse como você e a medicina, mas você estava certa. Penso que Houston queria uma razão para romper nosso noivado, porque ela começara a ver que não ia dar certo.
— Mas você não a viu na noite que o senhor Gates disse-lhe que eu ia casar com você?
— E se você estudasse medicina durante anos, e então desccobrisse que a visão de sangue a fazia desmaiar? Que fenol lhe dava urticária?
— Eu teria... morrido — disse Blair, por fim.
— Acho que eu dava urticária em Houston. Estávamos num ponto que mal conseguíamos nos suportar. Nunca conversávamos, nunca ríamos, e ela franzia, a boca se eu tentasse tocá-la.
— Não posso imaginar isso! — disse Blair com horror verdadeiro.
Sorrindo, ele começou a lavar o tronco, suas mãos deslizando em volta do pescoço e subindo para as faces.
— Talvez parte dela tenha percebido que você e eu éramos certos um para o outro, e por isso mandou-a sair comigo.
— Mas ela só queria ver a casa de Taggert e...
— Agora, deixe-me rir! A adorável senhorita Princesa de Gelo Houston Chandler nunca se curvou para um homem em sua vida, mas, a partir da primeira vez que pôs os olhos em Taggert, começou a descongelar. Lembra-se da vez que o vimos na cidade, e ele parou e olhou para Houston? Na hora não percebi, mas eu devia ter ficado com ciúmes, isto é, se eu estivesse apaixonado por ela como supunha. Mas lembro-me de ficar mais curioso do que qualquer outra coisa.
— Taggert — disse Blair. — Não posso imaginar como qualquer mulher possa querer aquele homem horrível.
— Ele estava pronto para arriscar a vida para nos ajudar — disse Lee. Suas mãos lisas, ensaboadas, estavam deslizando mais para baixo em seu peito.
— O bando de Frankie pensou que você fosse Houston. Eles pediram cinqüenta mil de resgate. Taggert não só trouxe uma arma, mas também trouxe o dinheiro.
Blair não ouviu o que ele estava dizendo, porque suas mãos passavam por seus seios. Ela levantou os braços para enlaçar com os dele, recostando-se na banheira, gozando a sensação de tê-lo tocando-a.
Ele moveu-se para ficar defronte dela, e então levantou-a da água, a pele molhada dela colando na sua.
— Esperei um longo tempo por isso — disse ele.
Leander parecia ser particularmente adepto da remoção de suas roupas, pois no tempo que a carregou nos três degraus para o divã, já estava despido. Sua primeira paixão já passara, e daquela vez parecia querer fazer um pouco mais além de explorar o corpo dela. Blair sentia-se como se estivesse sendo torturada. Afastou as mãos dela quando tentou alcançá-lo e só permitiu a si o prazer de tocar todo o corpo dela, com as mãos, a boca, esfregando sua pele na dela até que ela ficasse inconsciente de desejo.
Quando colocou-se em cima dela, ela o estava apertando ele foi desesperadamente lento, recusando-se a se apressar, agindo com calma, com golpes longos e lentos. Quando começou a tornar-se mais rápido, Blair estava delirando, sentindo como se fosse explodir por querê-lo tanto.
Quando por fim atingiram o clímax, ela por um momento teve certeza de que morrera. Seu corpo doía e tremia, agitava-se agarrando-se em Lee. Ele afastou-se, sorrindo para ela.
— Sabia que faríamos um par ótimo.
Ela estava séria quando falou:
— Fazer amor foi a única razão que o levou a casar comigo!
O rosto dele também tornou-se sério:
— Isso e a sua sutura.
— Você — falou Blair, ofegante, batendo com os punhos nas costelas dele.
— Vamos, levante-se, vamos dar uma volta. Tenho uns lugares para lhe mostrar.
Ela não estava acostumada a vê-lo sem roupas. Os únicos homens nus que vira eram cadáveres estendidos em frias lajes de mármore. Lee parecia mais vivo que qualquer pessoa que já tivesse visto.
— Oh, não, não, não — riu ele, tomando-lhe a mão e puxando-a do divã. — Levante-se e vista-se. Há algumas roupas velhas! Estão num baú na cabeceira da escada. Vista-as. — Deu uma palmada nas nádegas firmes e despidas dela, quando subia as escadas.
Blair abriu o baú e começou a procurar roupas, mas havia um espelho na parede e ela parou para mirar-se nele. Sua pele estava luminosa, suas faces estavam rosadas e os olhos brilhando. E o seu cabelo, geralmente puxado para trás e bem preso para que não interferisse em seu trabalho, agora estava solto como uma juba de leão selvagem em volta de sua cabeça.
Poderia ser verdade que Leander a amava? Certamente parecia que se importava com sua companhia, e lutara com muito afinco para ganhá-la. Ou ele só queria uma sócia-cirurgiã praticante e impetuosa companheira de cama?
— Você tem três minutos — gritou Lee lá de baixo.
— Qual é meu castigo se não ficar pronta? — gritou de volta.
— Abstinência.
Com uma risada, Blair começou a se vestir apressadamente, pondo uma calça de brim e uma camisa de flanela. As calças eram muito curtas, mas ela tentou manter a metades superior e inferior de seu corpo cobertas. A cintura era tão grande que tinha que segurá-la com a mão.
Lá embaixo, Lee punha comida em uma mochila.
— Você tem cinto? — perguntou ela.
Quando olhou-a, ela soltou a cintura e, com um sorriso diabólico, deixou as calças caírem no chão. Sentiu-se recompensada com o gemido de Lee.
Ele virou-se em direção da pilha de madeira e pegou um pedaço de corda, foi até ela, ajoelhou-se e passou a corda pelas alças do cós. Ao levantar-lhe as calças, beijou-lhe as pernas em toda a altura, de modo que, quando as calças estavam no lugar, Blair estava com elas bambas.
Lee caminhou até a porta.
— Venha, vamos logo. — Desta vez era ele quem estava com um sorriso diabólico.
Com os joelhos fracos, Blair seguiu-o para fora.

 

Capítulo XXV

 

BLAIR SEGUIU LEE por uma estreita trilha de alce, através de moitas de carvalho. Atravessaram uma campina para escalar o lado de uma montanha. As cascas dos álamos tinham sido mascadas pelos alces, matando muitas das árvores, e eles tinham de caminhar pelo meio de troncos caídos. Em todo lugar havia o esterco dos grandes animais que tinham ido para o norte, para o verão.
Lee mostrou-lhe um falcão e disse-lhe o nome de algumas das flores.
Quando sentia que estava indo muito rápido, diminuía o passo para ela, afastando galhos quebrados de pequenos carvalhos para deixar o caminho livre.
No alto, havia uma saliência estreita, com imensos abetos descendo, de um lado, e uma vista que mostrava quilômetros de ene-voadas montanhas azuis, do outro. Lee sentou-se, encostou-se numa árvore caída e abriu os braços para ela. Ela aconchegou-se perto dele com satisfação, segurando a mão dele na sua e brincando com os dedos.
— O que o xerife quis dizer ao falar que nós dois somos da mesma espécie? — perguntou.
Lee estava com os olhos fechados, a quentura do sol em seu rosto.
— Me meti em apuros algumas vezes quando era garoto. Suponho que ele não me perdoou.
Blair sentou-se endireitando o corpo.
— Você? Você se meteu em apuros? Mas sempre foi o protótipo da virtude, o sonho de todas as mães.
Sem abrir os olhos, mas sorrindo, ele puxou-a de volta para ele.
— Você conhece o mínimo possível de mim. Não sou o que parece pensar.
— Então conte-me como meteu-se em apuros e por que não ouvi nada a respeito. Tenho certeza de que em Chandler isso teria sido notícia de primeira página: "Santo Leander faz alguma coisa menos do que perfeita".
O sorriso de Lee era maior ainda.
— Você não soube, porque meu pai de alguma forma conseguiu que se mantivesse silêncio e, também, porque aconteceu em Colorado Springs. O que fiz foi conseguir levar dois tiros.
— Tiros? — falou assustada. — Mas não vi nenhuma cicatriz.
Lee resmungou.
— Você ainda tem de olhar para mim. Eu chego perto e você me agarra.
— Não faço tal... — Blair parou, porque ele dissera a verdade. — Como recebeu um tiro? — perguntou francamente.
— Quando tinha cerca de catorze anos fui com papai a Colorado Springs. Ele tinha de conversar com a testemunha de um cliente seu, e devia encontrar o homem no hotel, ao norte, não muito afastado do banco. Acabáramos de jantar e estávamos saindo do hotel, quando subitamente tiros começaram a ser disparados e alguém gritou que o banco fora assaltado. Olhei para a rua e vi meia dúzia de homens com lenços grandes cobrindo o rosto e dirigindo-se em nossa direção. Acho que não pensei, só agi. Havia uma carruagem aberta na viela, atrelada com quatro cavalos e carregada com sacas. Saltei no banco, atiçei os cavalos e dirigi a carroça para dentro da rua e bloqueei a saída dos bandidos.
— E eles atiraram em você.
— Eu não poderia mesmo saltar da carroça. Os cavalos seguiriam em frente e deixariam a rua livre.
— Então você só ficou ali e segurou os cavalos — disse Blair com alguma admiração.
— Fiquei ali até que o xerife pegasse os ladrões do banco.
— E então o que aconteceu?
Ele sorriu:
— Então meu pai puxou-me da carroça e levou-me a um doutor que arrancou uma bala fora. A outra atravessou meu braço. Ele também me embebedou, e juro que a ressaca foi pior que os buracos em mim.
— Mas, graças a você, os ladrões foram apanhados.
— E passaram anos na prisão. Agora já estão fora. Você até emcontrou um deles.
— Quando? — perguntou ela.
— Na noite em que fomos à recepção. Lembra-se quando fomos à casa da rua River? O caso do suicídio? Lembra-se do homem que estava do lado de fora? Acredito que você não gostou muito dele.
— O jogador — disse, lembrando-se do modo como o homem olhara para ela.
— Entre outras coisas, LeGault passou dez anos na prisão depois daquele assalto em Colorado Springs.
— Por sua causa — disse ela. — Ele deve odiá-lo, uma vez que foi você que o prendeu.
— Provavelmente — disse Lee, sem muito interesse. Abriu os olhos e olhou para ela. — Mas, então, eu acredito que você tanbém me odiava.
— Não exatamente ódio... — começou, e então sorriu. — Aonde você foi em nossa noite de núpcias?
— Quer ver minhas cicatrizes de bala?
Ela começou a dizer alguma coisa sobre sua recusa em responder-lhe, mas comprimiu a boca numa pequena linha apertada e não disse mais nada.
Ele colocou a ponta de seu dedo sob o queixo dela.
— Lua-de-mel não é lugar para raivas e caras zangadas. Que tal se eu lhe contar a respeito da vez que fiz o parto de trigêmeos?!
Ela não disse uma palavra.
— Um deles estava de nádegas.
Ainda nada.
— E nasceram um mês antes, e cada um nasceu com diferença de uma hora, e para mantê-los vivos tivemos de...
— Tiveram o quê? — perguntou ela depois de alguns minutos de silêncio.
— Oh, nada. Não foi muito interessante. Só foi citado em três revistas, ou foram quatro? — Ele encolheu o ombro. — Isso não importa.
— Por que escreveram a respeito?
— Porque nosso método para salvá-las foi... mas provavelmente você não está interessada. — Com um bocejo, deitou-se encostado no tronco.
Blair saltou sobre ele, as mãos fechadas como punhos.
— Diga-me, diga-me, diga-me — gritou enquanto Lee, rindo, começou a rolar pela grama com ela. Parou quando ela estava no fundo.
— Vou lhe contar, mas tem de me contar um segredo sobre você.
— Eu não tenho nenhum segredo — disse ela, olhando fixo para ele, lembrando de sua recusa em contar-lhe onde tinha ido.
— Ah, sim, você tem. Quem pôs cobras na minha lancheira e gafanhotos na minha caixa de lápis?
Ela piscou um par de vezes.
— Não estou certa, mas acho que deve ter sido a mesma pessoa que pôs caramelo em seus sapatos, que costurou as mangas de sua jaqueta, fechando-as, que pôs pimenta em seus sanduíches, que...
— Na festa de minha mãe! — disse ele. — Sentei-me lá e comi aqueles sanduíches e pensei que todos estavam também apimentados, e que eu era um covarde, porque eles estavam quase me datando. Como conseguiu?
— Paguei a Jimmy Summers uma moeda, para soltar seu cachorro enlameado, quando derrubei minha colher. O cachorro correu para o jardim, e você, sempre o salvador, correu para tirar o cachorro. Todos olhavam você, assim tive tempo de sobra para tratar dos sanduíches em seu prato. Pensei que estouraria de prender meu riso. Você ficou ali suando, mas comeu até o fim.
Ele achegou-se a ela, sacudindo a cabeça.
— E o estérco seco de vaca no meu chapéu de pesca favorito? — Ela concordou.
— E o retrato da senhorita Ellison em minha lousa?
Ela concordou.
— Alguém, além de mim, alguma vez pegou você?
— Seu pai, uma vez. Houston dissera que você ia pescar, assim esgueirei-me em sua casa, joguei fora as minhocas que você acabara de desenterrar e pus uma cobrinha na lata. Infelizmente seu pai me pegou.
— Imagino que tivesse umas palavrinhas para lhe dizer. Ele odiava qualquer travessura de Nina.
— Ele disse que eu nunca seria uma dama.
— E ele estava certo — disse Lee solenemente, começando a esfregar-se nela. — Você não é mesmo uma dama. Você é uma mulher de carne e sangue — sorriu. — Muita carne em todos os lugares certos.
Os olhos dela se arregalaram.
— Está planejando tirar minha virtude, senhor? Oh, por favor, senhor, é a única coisa que me resta.
— Você não merece nem mesmo isso pelo que fez, jovem — disse ele, olhando de esguelha, abaixando a voz. — Você foi julgada e considerada culpada, e terá de ser punida.
— Oh! — disse ela levantando uma sobrancelha. — Caramelos em meus sapatos?
— Estava pensando mais na linha de você tornar-se minha escrava do amor, pelo resto de nossas vidas.
— Não é um pouco severo por um pouco de caramelo?
— E pelas pimentas e... — seus olhos se arregalaram. — Voce pôs rapé em minhas bolachas? E fuligem no binóculo de meu pai no dia que o levei à escola?
Ela concordou, começando a sentir-se um pouco culpada pelo grande volume de travessuras que aprontara com ele. Ele estava olhando para ela com alguma admiração.
— Sabia que você fizera algumas delas, mas sempre pensei que Tohn Lechner tinha feito a maioria. Sabe, vi-o há quatro anos em Nova York e lembrei-me de todas as coisas que pensava que ele fizera para mim, e receio ter sido simplesmente civil com ele.
— Você não pagou na mesma moeda?
— Umas cem vezes. Passei anos com machucados de lutas com John — sorriu. — E pensar que ele era inocente. Quanto às que sabia que foram você, o que podia fazer? Você era seis anos mais nova do que eu e, além disso, só de pensar na surra que meu pai me deu depois daquela vez que a esmurrei, era o suficiente para fazer-me pensar duas vezes antes de bater numa menina.
— Portanto, agora tenho que pagar por algumas bobagens da infância — disse ela com um suspiro exagerado. — A vida é dura.
— Não é tudo que é duro — disse ele com um meio sorriso malicioso.
— É uma boa coisa eu ser uma médica. É impossível ficar chocada.
— Não é o seu doutorado que me atrai.
— Sim? E o que atraiu você para mim?
— Sua persistência em tentar chamar minha atenção. Eu me opus durante muito tempo, mas não podia mais me agüentar.
— Se você insiste — disse ela com cansaço.
— Adoro mulheres obedientes — murmurou, correndo a mão por dentro da blusa dela e começando a acariciar as costelas, subindo as mãos para tocar os seios.
Blair estava espantada por querê-lo outra vez, depois daquelas poucas horas, mas quando seus dedos tocaram a pele quente de Lee, era como se fosse a primeira vez. Ela não pensara nas peças que pregara nele, em anos. Na ocasião, pensava que o fazia porque o odiava, que desforrava nele por lhe estar tirando Houston. Mas naquele momento imaginava se tudo o que quisera não era a atenção dele.
Quando ele levantou a cabeça e começou a desabotoar a camisa dela, tomou-lhe o rosto nas mãos.
— Eu não entendo o que você significa para mim — murmurou.
Lee deu-lhe um sorriso meigo e gentil.
— Ainda não? Bem, fique perto de mim e logo saberá. Uma coisa você tem, Blair, certamente sabe enfrentar uma batalha, uma luta. Você acha que poderá lutar por mim com a mesma força com que lutou contra mim?
— Não sei — disse ela confusa. Estava tão dividida sobre esse homem. Ele fora seu inimigo durante quase toda a sua vida. Lutara com ele de todas as maneiras que podia. E, apesar do que L dissera, ela efetivamente tentara sabotar o casamento da irmã. Por quê? Por que tinha ido para a cama com um homem que julgava que odiava?
Lee tomou as mãos dela nas suas e beijou as palmas.
— Enquanto você está tentando encontrar as respostas da vida estamos perdendo tempo. — Acabou de desabotoar a camisa dele.
Fizeram amor lentamente, quase com delicadeza, Lee observando-lhe o rosto para ver as reações. Beijou cada um dos seus dedos demorando-se neles, e a sensação de sentir o interior quente e úmido de sua boca percorreu-a toda. Ele beijou seus seios, correu as mãos por toda sua pele. E quando veio a ela, foi gentil, doce, prolongadamente.
Mais tarde, abraçou-a muito junto, prendendo as pernas dela entre as suas, enrolando-se em volta dela, tentando envolver-lhe o corpo com o seu.
Blair ficou deitada dentro do círculo de seus braços, ouvindo o cricrilar dos grilos, o assobio agudo de um beija-flor, e o vento. O cheiro, o gosto e a sensação de Lee pareciam completá-la. Como queria que aquele momento nunca acabasse!
— Quando voltarmos para casa, terá de contratar alguém para cuidar de minhas meias — disse ele meigamente.
— Suas o quê? — perguntou distraída, agarrando-se a ele como se sua vida dependesse disso.
— Minhas meias e minhas camisas. E eu gosto de meus sapatos sempre engraxados. E você precisará de alguém para fazer a limpeza, arrumar a cama e nos alimentar.
Blair ficou em silêncio por um momento antes que começasse a entender o que ele estava dizendo. Desde menina, tudo com que se preocupara, ou aprendera alguma coisa a respeito, fora a medicina. Não tinha absolutamente idéia de como dirigir uma casa. Deu um grande suspiro.
— Pensa que alguém gostaria de casar conosco? — podia sentir Lee prender o riso.
— Podemos perguntar. Conheci uma senhora marginal que... — parou quando Blair encostou os dentes na sua pele e ameaçou morder.
— Lee — disse ela, afastando-se para olhá-lo. — Eu, realmente, verdadeiramente não sei nada sobre direção de uma casa. Minha mãe tentou ensinar-me, mas...
— Você subia em árvores.
— Ou fugia para algum lugar. Tia Fio tentou, mas tio Henry sempre dizia que haveria tempo, e levava-me para a cirurgia, para ajudá-lo. Suponho que não houve tempo. Estava planejando fazer um curso de prendas domésticas no próximo ano, a fim de estar preparada para quando casasse com Alan.
— Um curso, hein? Um daqueles onde ensinam como manter o banheiro limpo e como esfregar o chão?
— Acha que seria tão ruim assim?
— Provavelmente pior.
Ela pôs a cabeça de volta no ombro dele.
— Eu lhe disse para não casar comigo. Agora você vê por que ninguém mais quis. Houston é tão melhor nisso do que eu. Você devia tê-la mantido.
— Provavelmente — disse muito solene. — Com certeza nunca teria de me preocupar por ela ter tomado emprestado o meu bisturi.
— Eu nunca pego o seu — disse indignada. — Tenho o meu Próprio.
— Sim, mas Houston sabe como dirigir uma casa. Imagino que as meias do marido dela sempre estarão limpas e em ordem.
Blair afastou-se dele.
— Se é isso que quer, pode ir para ela ou para qualquer outra Mulher, tanto faz. Se pensa que vou dedicar minha vida à sua roupa de baixo, está enganado. — Sentou-se e com raiva começou a subir as calças.
— Nem ao menos uma meia? — perguntou ele, implorando.
Blair olhou e viu que ele estava rindo dela.
— Você! — riu e caiu de volta nos braços dele, e ele abraçou-a impetuosamente. — Você não me contou sobre os trigêmeos.
— Que trigêmeos?
— Aqueles que você atendeu e sobre os quais escreveram em quatro revistas.
Ele olhou-a como se ela tivesse perdido o juízo.
— Nunca fiz parto de trigêmeos em minha vida.
— Mas você disse... Oh, você! — falou, ofegante, rindo.
Ele correu sua mão pelas pernas já vestidas de Blair e pelas costas nuas.
— Que tal andarmos até o rio? Podemos comer lá.
— E conversar sobre a clínica — disse ela enquanto levantava-se e vestia a camisa. — Quando acha que o equipamento chegará? E você nunca me disse exatamente o que encomendou. Lee, se você não quiser trabalhar lá o tempo todo, pensei que posso escrever a uma amiga minha, dra. Louise Bleeker. Ela é bastante boa, e Chandler está crescendo com rapidez; assim tenho certeza de que poderemos ter outro médico.
— No momento estava pensando em contratar a sra. Krebbs para ajudar na clínica.
Blair parou de abotoar a camisa.
— Sra. Krebbs! Sabe como ela é? Um dia, um garotinho chegou no hospital com um osso de galinha preso na garganta e a querida sra. Krebbs sugeriu que eu esperasse que um médico mesmo chegasse.
— E ainda hoje ela está viva? — perguntou ele, com os olhos arregalados.
Ela olhou-o de soslaio.
— Está me provocando outra vez?
— Nunca provoco mulheres que se pareçam com você. — Olhou para a camisa aberta que estava desabotoada até bem em cima do umbigo. — Vamos — disse antes que ela pudesse responder. — Se vamos falar de negócios, pelo menos podemos caminhar enquanto o fazemos.

 

Capítulo XXVI

 

LEANDER E BLAIR subiram o morro de mãos dadas até a cabana. Paravam de vez em quando para beijar-se, e Lee começou a puxar as roupas de Blair e ela as dele até que, quando alcançaram o alto bem defronte da cabana, ambos estavam desabotoados até a cintura.
Mas a alegria acabou quando olharam para cima em direção à cabana, pois lá em frente da varanda estava Reed Westfield.
O rosto de Lee no mesmo instante tornou-se sombrio, ao colocar-se entre Blair e a cabana e começar a abotoar a camisa dela.
— Escute-me — disse gentilmente. — Penso que terei de partir outra vez. Não posso imaginar meu pai vindo até aqui a não ser por uma emergência.
— Emergência? Eu posso... — Alguma coisa nos olhos dele a fizeram parar e seu maxilar endureceu. — É aquele tipo de emergência? Daquele em que tenho de ser excluída, em que não sou confiável? A emergência que é somente para homens?
Ele colocou as mãos em seus ombros.
— Blair, você tem de confiar em mim. Eu lhe contaria se pudesse. Mas, para seu próprio bem...
— Para meu próprio bem, devo continuar ignorando. Compreendo muito bem.
— Você não compreende nada! — disse Lee, os dedos apertando-a fortemente. — Você só vai ter de confiar em mim. Se eu pudesse lhe contar, contaria.
Ela afastou-se dele com rapidez.
— Compreendo perfeitamente. Você é bem igual ao senhor Gates. Tem idéias rígidas sobre o que uma mulher pode e não pode fazer e não confia o bastante em mim para contar o que faz quando desaparece tão misteriosamente. Diga-me, o que pretende deixar-me fazer agora que estamos casados? Isto é, além de dirigir sua casa e alegremente compartilhar sua cama? Posso continuar praticando medicina, ou sou muito incompetente para fazer isso também?
Lee virou os olhos para o céu, como se procurasse ajuda.
— Está bem, entenda como quiser. Você parece pensar que sou um monstro. Portanto, serei um. Meu pai está aqui por uma razão importante, e eu tenho de deixá-la agora. Não posso lhe contar aonde estou indo, ou contaria. O que gostaria que você fizesse agora é que voltasse para Chandler com meu pai, e estarei em casa o mais breve possível.
Blair não disse mais nenhuma palavra ao passar por ele. Subiu o morro e dirigiu-se à cabana. Era difícil para ela ao menos olhar para Reed. Ele jamais gostara dela, desde criança, quando a pegara preparando uma peça para seu precioso filho. Quando Lee dissera que queria casar com Blair, Reed participara daquele pavoroso interrogatório a que Gates a submetera. E, mais tarde, tinha mentido categórica e francamente para ela, inventando aquela historia sobre Lee e a francesa.
Portanto, ao passar por ele e entrar na cabana, não podia ser nem calorosa ou mesmo especialmente cordial. Cumprimentou-o com frieza e entrou.
Mesmo quando ficou sozinha, não se permitiu relaxar. O que tinha ela esperado exceto ser tratada daquele modo? Lee dizia que a amava. Mas que homem não amaria uma mulher que fosse uma Parceira de cama tão entusiasta como ela? E o senso de honra de Lee o fizera sentir-se obrigado a casar com ela, uma vez que era virgem naquela primeira noite.
Blair subiu as escadas para tirar as roupas de homem que estava usando e vestir seu uniforme de médica outra vez. A janela estava aberta, é através dela podia ouvir vozes. Quando olhou para fora pôde ver Lee e o pai a uma pequena distância da cabana e, pelo jeito de seus gestos, estavam zangados um com o outro.
Lee estava agachado na grama, mastigando um talo, enquanto Reed usava cada centímetro de seu corpo pesado para curvar-se sobre o filho de uma maneira intimidadora. Para Blair, parecia que o pai estava ameaçando Lee.
Sem cuidados, aproximou-se um pouco mais da janela. Algumas palavras chegaram até ela, palavras que Reed enfatizava com um dedo apontado para Lee: "...perigo...", "...arriscar sua vida...", "...Pinkerton..."
Ela recuou. "Pinkerton?", murmurou, fechando os últimos botões de seu uniforme. O que tinha Lee com a agência de detetives de Pinkerton?
Por um momento, sentou-se na cama. Não tivera muito tempo para pensar sobre onde Lee fora na noite de núpcias. Reed mentira para ela, e ela acreditara nele. Ela estava disposta a acreditar que Lee amava outra pessoa; ela estava propensa a acreditar que ele estava correndo para um covil de marginais para salvar o chefe de uma infecção sangüínea. Mas se Lee estivesse envolvido em alguma outra coisa, alguma coisa... Ela hesitou mesmo em pensar em que ele poderia estar envolvido. Talvez estivesse ajudando os Pinkerton. Mas pela maneira como Reed estava avisando o filho, não seria bem isso.
Leander estava envolvido em alguma coisa ilegal. Ela sabia, sentia isso. E era por isso que não podia contar-lhe o que estava fazendo. Ele queria que ela permanecesse inocente.
Lentamente, com os pés pesados, Blair foi para baixo e chegou na porta bem quando Lee estava entrando.
— Tenho de ir — disse ele, observando-a.
Blair olhou para ele. Em que ato de criminalidade estava Lee metido? E por quê? Precisava de dinheiro? Pensou nos novos eqipamentos médicos que ele encomendara em Denver. Deviam ter custado uma grande quantia, e todos sabiam que um médico ganhava pouco dinheiro. Claro, Lee herdara dinheiro de sua mãe, mas quem sabia a quanto montava? Estava ele fazendo aquilo para poder abrir a clínica? Para que pudesse ajudar o povo?
— Eu sei — disse ela, pondo a mão em seu braço.
Ao olhar para ela, pareceu respirar aliviado.
— Não está mais zangada?
— Não, acho que não.
Beijou-a de uma maneira dolorosamente doce:
— Voltarei assim que puder. Papai levará você para casa.
Antes que outra palavra fosse dita, estava montado em seu enorme cavalo e descendo a montanha, fora do alcance de sua vista.
Blair montou o cavalo que Reed trouxera para ela, e começaram a longa jornada para casa, em silêncio. A maior parte da trilha, entre pinheiros, atravessando pequenos regatos, tinha de ser feita, por necessidade, em fila única. Blair estava intrigada com o desaparecimento de Lee, dizendo a si mesma que sua conclusão estava errada, e rezando para que não estivesse em perigo.
A poucos quilômetros fora de Chandler, quando o terreno era plano e seco, Reed levou seu cavalo para andar ao lado dela.
— Acho que você e eu começamos com o pé errado — disse Reed.
— Sim — respondeu ela honestamente. — Desde quando eu tinha oito anos.
— Ah, sim, as brincadeiras. Sabe, eu não teria sabido delas, só que minha esposa descobriu algumas delas. Lee nunca disse uma Palavra. Helen dizia que eram feitas por uma menina. Ela dizia que os meninos são inteligentes, mas não espertos como uma menina, e aquelas travessuras eram bastante engenhosas. Ela ficara muito interessada desde que vira você trocando as minhocas de Pesca por uma cobra. "Blair Chandler", disse ela. "Devia ter adivinhado que era ela. Ela sempre teve um extraordinário interesse em Lee." Não sei o que ela quis dizer com isso, mas sei que ria um bocado cada vez que ouvia sobre outra travessura.
— Se Lee não contou a ela, como foi que descobriu?
— Algumas vezes foi Nina, outras, a professora de Lee. Uma vez, Lee voltou da escola com dor de estômago, e Helen, depois de pô-lo na cama, voltou à cozinha para ver a lancheira de lee movendo-se lentamente pela mesa. Ela disse que quase morreu de medo antes de conseguir abri-la o suficiente para ver o que havia dentro. Era um sapo cornudo, que com satisfação pôs em seu jardim.
— Não é de espantar que não ficasse feliz quando Lee disse que ia casar comigo.
Reed ficou quieto por um momento, movendo com facilidade seu cavalo.
— Vou lhe contar minha maior preocupação com você e Lee e não tem nada a ver com aquelas brincadeiras. A verdade é que meu filho trabalha demais. Mesmo quando menino, costumava assumir três tarefas ao mesmo tempo. Por alguma razão, Lee pensa que os problemas do mundo são de sua responsabilidade. Fiquei orgulhoso quando disse que queria ser um médico, mas também preocupado. Tive medo de que fizesse exatamente o que tem feito: assumir em demasia. Ele trabalha no hospital, e dirige o lugar apesar de o doutor Webster ter o título de administrador. Lee também atende os casos de todos na cidade. Quatro noites por semana sai correndo para atender chamados. E ainda visita o pessoal do campo.
— E você tem medo de que eu seja mais uma carga para ele? — murmurou Blair.
— Bem, você tem de admitir que sempre acontecem coisas a sua volta. Queria que Lee se casasse com alguém que ficasse em casa, costurasse e fizesse um lar para ele. Não é que eu tenha tido alguma coisa contra você, mas dê uma olhada no que tem acontecido nas últimas poucas semanas desde que você voltou para Chandler.
— Entendo o que quer dizer — disse Blair, enquanto as cenas de acontecimentos após acontecimentos passavam pela sua cabeça. — Acho que Lee não tem tido muito descanso, não é?
— Ele quase se mata para tentar impressionar você, para mostrar como era um bom médico. — Parou e sorriu para ela. — Mas em algum momento nessa trajetória, comecei a ver o quanto ele a queria.
— Sim, acredito que sim — murmurou, imaginando se o fato de querê-la levara-o a fazer fosse o que fosse, que fazia em segredo.
Ela e Reed entraram em Chandler em silêncio, os últimos quilômetros sob a luz das estrelas. Ele deixou-a na casa em que morava com Leander, e Blair entrou com o coração pesado. Estaria ele devendo também por aquele lugar?
Tomou um banho rápido e, cansada, subiu na cama vazia. Parecia destinada a passar todas as noites naquela casa sozinha.
Na manhã seguinte, às seis horas, foi acordada pelo toque do telefone. Ainda sonolenta, desceu as escadas.
A telefonista, Caroline, disse:
— Blair-Houston, quatro carroças de carga de Denver acabaram de chegar e os condutores estão esperando Leander no velho armazém na avenida Archer.
— Ele não pode ir, mas estarei lá em quinze minutos.
— Mas é o equipamento médico, e Leander precisa dizer-lhes onde colocá-los.
— De acordo com meu diploma, eu sou uma médica — disse Blair com uma voz gelada.
— Eu não quis dizer nada, tenho certeza. Estava só transmitindo o recado. — Hesitou. — Por que Leander não pode ir?
Mulher intrometida! pensou Blair. Não estava a fim de lhe dizer que Lee fora em outras de suas missões misteriosas.
— Porque eu o deixei exausto — disse, e desligou o telefone com um sorriso. Aquilo lhe daria algum motivo para fofocar.
Blair voou escada acima e minutos mais tarde estava correndo pela rua enquanto ainda prendia o cabelo. Quando chegou no alto da avenida Archer, viu os homens encostados nas carroças e parecendo impacientes.
— Alô, sou a dra. Westfield.
Um homem corpulento, a boca cheia de tabaco, olhou-a de cima a baixo por um momento, enquanto os outros espiavam em volta da armação das carroças, como se estivessem tentando não mostrar interesse numa aberração da natureza. O primeiro cuspiu uma grande quantidade de sumo de tabaco.
— Onde quer que isso seja descarregado?
— Lá dentro — disse, apontando para o armazém.
Logo surgiram problemas. Ela não tinha a chave, nem tinha qualquer idéia de onde Lee a guardara. Os homens ficaram ali parados, olhando para ela ceticamente, como se aquilo fosse o que pudessem esperar de uma mulher que se dizia doutora.
— É uma pena que não possamos entrar — disse ela com tristeza —, porque meu padrasto é dono da cervejaria Chandler, e ele prometeu um barril de cerveja, como agradecimento, para os homens que me ajudassem com o novo equipamento. Mas suponho...
O som de um vidro quebrado cortou suas palavras.
— Desculpe, senhora — disse um dos homens. — Acho que me encostei na janela com muita força. Mas parece que talvez alguém pequeno possa entrar por aqui.
Um momento mais tarde, Blair estava dentro e desaferrolhan-do a porta da frente para eles. Com a luz do sol entrando, podia ver o lugar: teias de aranha penduradas, o chão numa desordem, o teto com pelo menos três goteiras.
— Ponha ali — disse ela, distraída, apontando para um canto que pelo menos parecia seco, mesmo que não estivesse limpo. Enquanto os homens descarregavam, andava pela única sala grande e tentava imaginar como ficaria arrumada para a clínica.
Os homens trouxeram mesas de carvalho, armários com pequenas gavetas, armários altos com portas de vidro, grandes pias, caixas pequenas de instrumentos, estojos de ataduras e algodão, tudo para uma enfermaria bem equipada.
— Parece ser o suficiente?
Ela virou-se e viu Lee, parado, inspecionando caixotes e móveis. Ele a estava observando com os olhos apertados, um charuto aceso entre os lábios. Suas roupas estavam sujas e parecia cansado.
— Mais do que suficiente — disse ela, e imaginou quanto teria custado a ele. — Você parece exausto. Devia ir para casa e dormir. Vou conseguir algumas mulheres daqui para limparem este lugar.
Com um sorriso, ele atirou-lhe uma chave.
— Isto é para poupar o resto das janelas. Venha logo para casa — disse com uma piscada e foi-se embora.
Por um momento, Blair sentiu lágrimas subirem aos olhos. O que quer que estivesse fazendo, era para ajudar outras pessoas, com certeza. Por mais que aquele equipamento tivesse lhe custado, ele estava fazendo qualquer coisa para pagar o preço.
Quando os homens terminaram de descarregar, eles lhe deram uma carona de volta até sua casa, e ela ligoupara a mãe, explicando sobre a cerveja. Opal disse que o sr. Gates estava tão satisfeito por Blair ter afinal casado com um homem decente que sem dúvida ele daria um barril de cerveja aos homens.
Em seguida, Blair ligou para Houston, pois ela saberia a quem chamar para limpar o armazém. Na verdade, por volta das dez horas, o lugar estava cheio de mulheres com panos nas cabeças, vassouras voando, grandes baldes de água cheios de esfregões e escovas, trabalhando.
Por volta das onze, ela falou com o sr. Hitchman, que construíra a casa de Chandler, e arranjou que seus dois filhos começassem a reforma, de acordo com os planos de Leander.
Às duas, Lee voltou e, em meio a barulho e pó, ela lhe contou o que já providenciara.
Protestando que não lhe era possível sair, ela permitiu que ele a empurrasse para sua carruagem e a levasse para a cidade, para a casa de chá da srta. Emily.
A srta. Emily deu uma olhada em Blair e mandou-a para os fundos com uma ordem de lavar tudo que fosse possível do corpo, porque estava toda suja. Quando ela retornou, Lee estava atrás de uma mesa cheia de pequenos sanduíches de frango e bolos gelados com cobertura de morango.
Blair, faminta, começou a encher a boca e falar ao mesmo tempo:
— ...e nós podemos usar o armário alto, aquele com a prateleira, na cirurgia, e penso que aquela pia grande podia ir...
— Vá devagar por um minuto. Todo o serviço não tem de ser feito num dia.
— Não penso que possa ser. É que esta cidade precisa de um lugar para mulheres. Anos atrás, minha mãe levou-me para ver a enfermaria de mulheres daqui. Ainda é muito ruim?
— Pior do que possa imaginar — disse Lee seriamente, e então tomou-lhe a mão e beijou-a. — Então, por que está perdendo tempo? Vamos sair daqui e tratar de trabalhar. A propósito, liguei para sua irmã e ela está contratando uma empregada e uma governanta para nós.
— Duas? — perguntou Blair. — Podemos pagar duas?
Ele deu-lhe um olhar espantado.
— Se você não comer todo o estoque da senhorita Emily. — Ele parecia consternado quando ela imediatamente deixou o sanduíche que pegara. — Por que isso agora? Blair, não sou tão rico como Taggert, mas certamente posso pagar um par de empregadas.
Ela levantou-se.
— Vamos indo? Mais tarde estou esperando um encanador.
Ainda com o olhar intrigado, Lee seguiu-a para fora da casa de chá.

 


Capítulo XXVII

 

FRANÇOISE BATEU o copo na mesa e viu, com desgosto, que o vidro era muito pesado, muito grosseiro, para quebrar.
— Foi tudo culpa dela — resmungou.
Atrás dela um homem falou, fazendo-a pular. Ela voltou-se para olhar para LeGault, alto, magro, moreno e esguio. Ele tinha o hábito de entrar e sair dos quartos sem barulho. Brincava com seu pequeno bigode.
— Culpando-a outra vez?
Françoise não se preocupou em responder-lhe ao levantar-se e caminhar até a janela. As persianas estavam abaixadas e as pesadas cortinas de veludo fechadas. Ninguém devia vê-la. Já fazia uma semana que vivia dentro daquele quarto. Os homens de seu bando estavam ou na prisão ou no hospital. Os ursos que aquela mulher atraíra ao desfiladeiro tinham causado pânico nos homens ao ponto de um deles ter sido pisoteado pelos cavalos assustados. Dois haviam sido baleados e a perna de outro fora malhada por um urso zangado. Quando os homens do xerife conseguiram abrir a entrada do desfiladeiro, os bandidos estavam implorando para serem levados em custódia.
E tudo por causa de uma mulher.
— Eu ainda a estou culpando — disse Françoise com raiva. Principalmente o que odiava era ter feito o papel de tola. Aquele bando idiota de homens que a seguia não tivera capacidade bastante para encontrá-la, e no entanto ela ficara retida praticamente embaixo de seus narizes.
Na última semana, tivera tempo para repassar cada detalhe do que acontecera, e agora via como aquela mulher a usara. Viu como Blair fingira estar zangada com seu elegante marido, fingira drogá-lo e então "esquecera" a faca para que pudesse fugir.
— Não me parece que você tenha considerado o envolvimento do doutor nisso — disse LeGault com um sorriso malicioso. — Só a mulher é culpada, certo?
— Ela foi a instigadora. — Françoise encolheu os ombros. — É ela que eu gostaria de ver pagar.
— E eu gostaria de ver Westfield pagar — disse LeGault.
— E o que foi que ele lhe fez?
LeGault esfregou os pulsos. Ele tinha cuidado em manter as cicatrizes cobertas — cicatrizes feitas pela algema de ferro que usara na prisão onde Westfield o pusera.
— Digamos que tenho razões suficientes para vê-lo receber parte do que me deu. — Fez uma pausa. — Hoje à noite, o mensageiro chega com notícias. Espero que ele saiba o dia do embarque.
— Não mais do que eu — disse Françoise, demonstrando emoção. — Depois de feito esse serviço, estou indo para o leste, para o Texas.
— E deixar sua querida e devotada quadrilha para trás? — disse LeGault, provocando.
— Idiotas! Vai fazer bem para eles apodrecerem na prisão durante alguns anos. Sobre hoje à noite: acha que poderia ir com você? Farei qualquer coisa para sair daqui um pouco.
— Qualquer coisa?
— Qualquer coisa que não prejudique nossa sociedade — disse ela com um sorriso, pensando que preferia entrar num fosso de cascavéis do que dormir com LeGault. — Será noite e ninguém me verá. Preciso de ar, e esta espera está me deixando infeliz.
— Certo, por que não? Tenho de encontrar um homem no meio de lugar nenhum, atrás da mina Little Pamela. Mas, se alguém reconhecer você, não espere que eu fique do seu lado. Ninguém está atrás de mim, e pretendo continuar desse jeito.
— Não se preocupe comigo hoje à noite. Você tem de se preocupar como pegar as caixas que roubamos de Chandler, enquanto eu me escondo e você fica bem à vista.
— Não se preocupe com isso, pensarei em alguma coisa — disse ele da porta. — Voltarei para buscá-la à meia-noite.
Horas mais tarde, eles cavalgavam para fora da cidade, evitando as luzes das casas, mesmo as luzes das carruagens. Françoise mantinha o chapéu abaixado no rosto e, com seu casaco grosso e calças grandes, não parecia uma mulher.
Encontraram o mensageiro, e as notícias eram agradáveis para eles. Sorrindo, começaram a descer a encosta onde seus cavalos estavam escondidos.
— Silêncio! Ouço alguma coisa — disse LeGault, saltando para esconder-se atrás de uma pedra.
Françoise escondeu-se, também, bem quando viam dois homens surgirem das árvores, o luar iluminando-os nitidamente. Um era baixo, troncudo e parecia nervoso, e o outro, alto, esbelto, com a luz da lua fazendo reluzir o revólver no coldre; estava calmo e atento, e parou, quando o baixinho subiu numa carruagem bem escondida atrás de uma moita de pinheiros. Ainda observando, ele riscou um fósforo e acendeu um charuto.
— É Westfield! — falou Frankie ofegante, e LeGault fez-lhe sinal para ficar quieta. Eles viram como o homem alto, Leander, dirigiu para sair. — Mas não havia outro na carruagem com ele.
— Para onde ele foi? — perguntou Françoise, quando a carruagem se fora, enquanto virava-se para encostar-se na rocha.
— Está escondido — disse LeGault pensativamente. — Agora, por que o nosso doutor correto, reformador, iria esconder um homem em sua carruagem no meio da noite?
— Aquilo ali não é uma mina de carvão?
— Certo, mas que importância tem isso? Pensa que ele está planejando roubar algumas toneladas de carvão?
— Ele e aquela cachorra dele roubaram dinamite de algum lugar, provavelmente da mina de carvão.
LeGault brincou com a ponta do bigode.
— Ele está muito familiarizado com minas de carvão.
— Você pode ficar aqui a noite toda com seu quebra-cabeças, mas está muito frio para mim.
— Ainda temos muito que planejar, e pouco tempo para fazê-lo. — LeGault não disse uma palavra enquanto seguia Françoise de volta até os cavalos.
— Essa mulher com que Westfield casou-se — disse ele, com as mãos na sela —, ela é uma Chandler, não é?
— Como o nome da cidade, sim.
— É mesmo como o nome da cidade. O mais respeitável e insuspeito nome da cidade.
— No que está pensando?
— Você viu Westfield e a noiva juntos. O que você acha que ele seria capaz de fazer por ela?
— Fazer? — Françoise pensou na maneira como a mulher olhara para o doutor, como se ele pudesse desaparecer a qualquer momento, e se ele começasse a esquecer, ela o agarraria pela aba do casaco. — Acredito que ela faria qualquer coisa, tudo, por aquele homem.
LeGault deu um sorriso que mostrou dentes perfeitos, até brancos.
— Eu não sei o que vimos aqui hoje à noite, mas vou descobrir. E, quando o fizer, verei como poderei usá-lo. Precisamos de um jeito de remover aquele carregamento para fora de Chandler.
Françoise também começou a sorrir.
— E quem melhor para fazê-lo do que uma Chandler?
Leander e Blair trabalharam na clínica durante três dias, com diversas equipes de trabalhadores, antes de tê-la pronta. Na noite do terceiro dia, Lee subiu numa escada e pregou a tabuleta grande: Clínica Westfield para Mulheres.
Quando desceu da escada, viu Blair sorrindo para a tabuleta com a expressão de uma criança que provou sorvete pela primeira vez.
— Vamos entrar — disse ele. — Tenho uma celebração planejada para nós. — Como Blair não se movia, ele pegou-lhe a mão e puxou-a para dentro.
Sob uma tampa de carvalho, dentro de uma pia galvanizada, estavam duas garrafas de champanha no gelo.
Blair recuou.
— Lee, você sabe o que acontece comigo quando tomo champanha.
— Eu não sou de esquecer — disse ele, ao estourar a rolha, pegar um copo de cristal, enchê-lo e entregar-lhe.
Blair tomou um gole cauteloso, olhou para ele por sobre a borda do copo, esvaziou-o e entregou-o para ser enchido outra vez.
— Não está aborrecida com relação a St. Joseph? Não desejaria estar estagiando lá?
Ela manteve os olhos na bebida que Leander estava pondo em seu copo estendido.
— E deixar de trabalhar com o homem que amo? Ei! — disse ela, quando Lee continuou a encher e o copo transbordou. Olhou para ele e viu-o observando-a com os olhos quentes.
— Durante quanto tempo? — murmurou ele.
Blair tentou ser indiferente. As palavras saíram sem perceber:
— Talvez para sempre. Talvez eu o tenha amado desde a primeira vez que o vi. Talvez eu tenha tentado tudo para odiá-lo, provavelmente porque Houston reivindicou-o primeiro, mas nada parece ter funcionado. Não importa o que fizesse contra você, você sempre se saía melhor.
Lee estava a um passo dela, mas o calor de seus olhos traziam-na mais para perto.
— Não foi assim tão mau — disse Blair.
— Não? As pessoas ainda me perguntam se gostaria de ir remar. E houve aquela virada, no último minuto no altar, e todos querem saber se eu sei com qual gêmea casei.
— Mas não houve mais cobras na sua lancheira — disse Blair solenemente. Leander colocou seu copo de vinho, depois o dela, na beirada da pia e caminhou em sua direção.
— Você tem muito que me compensar.
— Sempre manterei seus bisturis afiados — disse ela, afastando-se.
Ele só ficou ali, sem dizer palavra, observando-a. Estava quase noite lá fora e bastante escuro na sala de cirurgia. Com os olhos presos nos dela, Lee começou a tirar as roupas, centímetro por centímetro expondo a pele quente e morena, os longos músculos vibrando, movendo-se.
Blair ficou paralisada onde estava, os olhos hipnotizados por ele, olhando seus dedos nos botões, olhando-o quando expôs-se deliciosamente aos poucos. Suas pernas eram longas, de coxas grossas, grandes músculos em volta dos joelhos, canelas fortes e pesadas. Sua respiração acelerou e sua garganta secou ao vê-lo ali na sua frente, nu, com seu desejo evidente.
Ainda olhando-a, ele sentou-se num banco longo e baixo, as pernas separadas, seu corpo pronto para ela.
— Venha para mim — murmurou com uma voz que vinha de algum lugar dentro dele.
Blair não se preocupou em tirar qualquer roupa de cima, mas soltou o cordão de suas calças e deixou-as cair enquanto andava. Sua saia longa de fustão encobriu-os quando montou-o deslizando facilmente em sua masculinidade. Por um momento, enroscou seus pés calçados de couro em suas canelas, forçando-se para baixo, mais e mais junto dele, sentindo-o contra sua pele.
Então, na ponta dos pés, começou a mover-se para cima e para baixo, lentamente a princípio, observando. O rosto dele estava inexpressivo, isento de traços, quase angelical, quando o prazer começou a espalhar-se nele. Um momento mais tarde, arqueou-se contra ele, trazendo os joelhos para cima do banco. As mãos de Lee deslizaram sob sua saia, começando a mover-se para cima e para baixo em suas coxas, agarrando-a, ajudando-a.
Os olhos de Lee fecharam-se por um segundo, abriram-se e ele pôs a cabeça para trás e escorregou. Blair passava as mãos dos ombros para o pescoço dele, começando a mover-se mais rápido e firme, suas coxas forçando, apertando, enquanto Lee pegava em suas nádegas, ajudando-a a mover-se.
Ela arqueou-se, firme, com grande esforço, abraçando-o enquanto seu corpo contraía-se e imobilizava-se por um momento num èxtase final. Lee abraçou-a, apesar dela quase lutar com ele, não deixando que caísse, ele mesmo estremecendo com a força de sua paixão. Por um momento, Blair não sabia onde estava, quando voltou de seu poderoso abraço e agarrou-se a Lee. Depois de um momento, ele recuou e sorriu para ela.
— É bom termos interesses mútuos.
— Alô. Há alguém aí?
— É seu pai — disse Blair, horrorizada.
Lee tirou-a dele.
— Vá para lá e distraia-o enquanto me visto.
— Mas eu não posso... — começou ela, pensando que ele saberia o que estivera fazendo só de olhar para ela.
— Vá! — mandou Lee, e deu-lhe um pequeno empurrão em direção à porta.
— Aí está você — cumprimentou-a Reed, e então lançou um olhar no rosto corado de Blair e começou a sorrir.
— Suponho que Lee também esteja aqui.
— Sim — disse ela, e sua voz hesitou. — Ele virá... em um minuto. Posso lhe oferecer algum refresco? — Parou ao lembrar-se que a única coisa que tinha era champanha.
Os olhos de Reed brilhavam:
— Venha aqui fora. Tenho uma coisa que queria mostrar-lhe.
Com uma olhada por cima do ombro, viu que Lee ainda não estava pronto, e seguiu Reed para fora. Parado em frente da clínica estava uma pequena carruagem, linda, preta por fora, pretos os bancos de couro, e uma caixa preta nos fundos para guardar suprimentos. Blair tocou o trilho de bronze que segurava a coberta.
— É linda. — Ela achou estranho que Reed comprasse tal carruagem para si, pois tinha decididamente um ar feminino a sua volta.
— Olhe a frente dela — disse Reed, sua pequena e feia cara de buldogue ainda sorrindo para ela.
Curvou-se para ver que havia uma placa de bronze bem abaixo do banco único. Estava escrito: Dra. Blair Chandler Westfield. Levou um momento para que compreendesse.
— Para mim? A carruagem é para mim?
— Não posso ter minha nova filha correndo pelas ruas de Chandler a pé, e sei que esse meu filho não perderá de vista essa velha carruagem. Portanto pensei que era melhor que tivesse a sua própria. Gosta dela?
Blair ficou parada por um momento e olhou para o carro. Parecia ser aquilo o que ela precisava para acabar de afirmar ser realmente uma doutora.
— Sim — exclamou. — Oh, sim!
E no momento seguinte, correu para abraçar Reed e beijar seu rosto, e antes que ele ficasse embaraçado, estava subindo na carruagem e olhando cada ranhura e cada canto. Abriu a caixa dos fundos.
— Não chega nem perto da sua, Lee. Talvez possamos mandar alargá-la. Tenho certeza que vou precisar carregar muita coisa.
— Tal como rifles, talvez? — disse Lee. — Olhe, se você pensa que vou permitir que ande aí pelo campo sozinha em sua nova carruagem, está profundamente enganada. Pai, gostaria que tivesse me consultado a esse respeito. Dar-lhe liberdade é como deixar um tornado autodestrutivo à solta. Ela irá correndo atender um caso após o outro e acabará sendo morta.
— E suponho que você seja muito melhor — replicou Blair, olhando para ele, de cima do banco. — Você anda no meio de guerras de bandos. Pelo menos, eu fui para lá sem saber do que se tratava.
— E isso é pior — disse Lee. — Tudo o que alguém tem de dizer é que precisa de ajuda, e você logo vai. Você não tem senso de cuidado consigo mesma. Veja o que aconteceu com a quadrilha que a raptou. Você pulou no cavalo com um homem sem ao menos perguntar para onde ele a estava levando.
— Espere um minuto — disse Reed, e havia riso em sua voz. — Creio que não pensei em nada disso. Talvez eu tenha aprendido com você, Lee, que não posso evitar que faça o que quer fazer. Talvez Blair seja igual a você.
— Ela não tem idéia do que é seguro para ela — disse Lee aborrecido.
— E você tem? — Os olhos de Reed estavam fixos nos do filho.
Blair observou-os, e ficou mais convencida de que Lee estava fazendo alguma coisa perigosa, mas não estava segura de ser alguma coisa que eventualmente ajudasse outras pessoas.
Reed olhou para o cavalo marrom que estava atrelado na carruagem.
— Mandei pedir um appaloosa igual à de Lee, mas o cavalo ainda não chegou. Pensei que gostaria de ser reconhecida, como Lee.
— Eles irão reconhecê-la porque eu estarei do lado dela — disse Lee com determinação.
Ela não respondeu a isso, mas simplesmente deu-lhe um pequeno sorriso com as sobrancelhas levantadas, que a fez pensar que ele iria pular para junto dela — e não gostava de pensar no que faria com ela.
Reed soltou uma risada alta e bateu fortemente no ombro do filho.
— Espero que ela lhe dê tanto trabalho como você deu à sua mãe e a mim. Talvez você assim entenda parte do que passamos. — Estendeu a mão para ajudar Blair a descer. — Já lhe contei quando Lee trocava o veneno de rato no sótão por farelo de pão? Nós tínhamos todos os ratos da cidade natal de minha esposa em nossa casa, antes de descobrirmos o que estava acontecendo.
— Não tinha contado — disse ela, olhando para as costas de Lee quando entravam na clínica. — E certamente gostaria de ouvir mais.


Capítulo XXVIII

 

FAZIA UM PAR de semanas que Blair e Leander estavam casados, quando a clínica Westfield foi oficialmente aberta. É claro que ela não terminara o estágio, mas tanto ela como Lee sabiam que aquilo era só uma formalidade. Blair tivera anos de prática em hospitais.
No dia em que a clínica abriu, ela estava tão nervosa que virou o café e deixou cair o bolinho de milho no chão da sala de jantar. Sentindo-se culpada, apanhou o bolinho e olhou em direção à porta da cozinha.
— Ela não morde, você sabe.
— Talvez ela não morda você, mas quanto a mim não estou tão certa.
Dias atrás, a governanta-cozinheira que Houston contratara chegara na casa deles e Blair achara-a uma mulher formidável: corpo magro, cabelos lisos cínza-aço, olhos escuros duros, e a boca num risco. A sra. Shainess mal chegava até seu ombro, mas, toda vez que entrava na sala, Blair se retesava. A mulherzinha a fazia sentir desajeitada e insegura. No mesmo dia em que chegou, foi revistar seu pequeno guarda-roupa, dizendo sucitamente que procurava peças de roupas que precisassem de conserto ou limpeza. Ela suspirava enquanto pegava umas poucas peças de Blair, e durante horas a casa ficou com cheiro de produtos químicos, enquanto ela limpava aquelas roupas.
Naquela noite, quando Blair e Lee voltaram do hospital, a sra. Lainess chamou-o de lado para uma conversa particular. Depois, em um sorriso, ele contou a Blair que a governanta não achava que ela tivesse um guarda-roupa apropriado para uma dama e que deveria ir na costureira de Houston no dia seguinte.
Blair tentou protestar, mas Lee não quis ouvir. Ela já estava bastante preocupada por Lee estar com dívidas sem que ela aumentasse suas despesas. Assim, no dia seguinte, quando foi à costureira, pretendia encomendar muito, mas muito pouca coisa, mas descobriu que Lee já telefonara e encomendara o dobro do que Blair achasse que ia precisar. Não pôde evitar de ficar satisfeita com as roupas lindas, e voltou rapidamente para casa, em sua nova carruagem, planejando agradecer-lhe da melhor maneira que sabia.
Mas, quando entrou na sala de estar, Lee estava absorto com uma carta que segurava — e, vendo Blair entrando na sala, ele amassou-a, acendeu um fósforo e queimou-a na lareira.
Ela não lhe perguntou sobre a carta, porque não queria ouvi-lo dizer outra vez que ela não compreenderia. Todo o entusiasmo com as roupas novas a deixou, e ela passou a tarde tentando forjar explicações racionais para as ações de Lee: ele estava ajudando alguém; precisava de dinheiro; era um criminoso; era um agente de Pinkerton.
A noite fizeram amor lentamente, e Blair agarrava-se a Lee. Estava chegando a um ponto em que não se importava com o que ele estivesse fazendo. Lee poderia secretamente possuir todas as casas de jogo da rua River, e não tinha certeza de que isso lhe importasse.
No primeiro dia em que a clínica Westfield ficou oficialmente aberta, ele foi chamado para ajudar na mina WindlasS, onde o fim de um túnel tinha desabado. Blair quis ir junto, mas Lee mandou-a para a clínica, para cuidar dos pacientes necessitados.
Quando abriu a porta às oito da manhã, a enfermeira de Lee, Srta. Krebbs, e três pacientes já estavam esperando. A sra. Krebbs, distante como sempre, acenou ligeiramente para ela e foi para a sala de cirurgia checar os remédios e instrumentos.
— Por aqui — disse Blair, guiando a primeira paciente para a sala de exames.
— Onde está o doutor? — perguntou a mulher, apertando a bolsa no peito, como se alguém quisesse roubá-la.
— Eu sou uma médica. Agora, se sentar-se e contar-me o que está errado, poderei...
— Quero um médico de verdade —- disse a mulher, recuando contra a porta.
— Garanto-lhe que sou uma médica diplomada. Se me disser.
— Não vou ficar aqui. Pensei que isto fosse ser um hospital de verdade, com médicos de verdade.
Antes que Blair pudesse dizer qualquer palavra, a mulher passou pela porta se apressando em direção à rua. Ela controlou a raiva e fez entrar o paciente seguinte.
A segunda mulher logo foi lhe dizendo que possivelmente não poderia saber o que havia de errado com ela, porque sua doença não era gravidez. Blair teve dificuldade de entender, até que percebeu que a mulher pensara que ela fosse parteira. E, antes que lhe explicasse, também se foi. A terceira saiu depois de descobrir que o atraente dr. Westfield, que encontrara no último verão em Denver, não iria examiná-la.
Quatro horas depois, ninguém mais veio até a clínica, e Blair imaginou o telefone pegando fogo com todos os mexericos maldosos que passavam pelos fios. Às quatro horas, um vendedor fazendo propaganda de um líquido rosado para "problemas femininos" apareceu por lá. Ela fez com que saísse polidamente, e voltou para esticar as toalhas que já estavam esticadas.
— Elas querem um homem — disse a sra. Krebbs. — Elas querem um médico habilitado como o doutor Leander..
— Eu sou uma médica habilitada — disse Blair por entre os dentes.
A sra. Krebbs fungou, levantou o nariz e foi para a outra sala.
Blair trancou a porta às seis horas e foi para casa.
Em casa contou a Lee sobre a falta de pacientes. Ele tivera tanto trabalho e despesa para começar a clínica que não o queria aborrecer. Além disso, ele já estava preocupado.
Ela encheu a banheira, e preparou-se para sair, enquanto ele se despia.
— Não vá. Fique comigo.
A princípio sentiu-se um pouco envergonhada, vendo-o despirse e entrar na banheira. De certa forma, aquilo era mais íntimo do que fazer amor.
Lee recostou-se na banheira, um olhar distante nos olhos, e começou a contar-lhe tudo por que passara naquele dia. Contou-lhe que tirara dois corpos dos escombros da mina, e tivera de amputar o pé de um homem enquanto ainda estava no poço. Ela não o interrompeu, e Lee continuou a descrever a sensação de ficar dentro da mina: o peso das paredes que cercam, a falta de ar fresco, a escuridão total, sem lugar para levantar-se, sem lugar para mover-se.
— Eu não sei como eles fazem isso, como podem andar naquilo dia após dia. A qualquer momento, um teto pode cair sobre eles. Cada dia eles encaram mil maneiras de morrer.
Blair lavava um dos pés do marido.
— Houston diz que o único meio deles conseguirem alguma coisa é os homens juntarem-se num sindicato.
— Como Houston saberia disso? — retrucou ele.
— Ela mora aqui — disse Blair, surpresa. — Ela escuta coisas. Ela disse que alguém está trazendo ativistas de sindicatos para os campos e que vai haver uma revolução em breve. E...
Lee puxou a toalha das mãos dela.
— Espero que não escute tais mexericos. Ninguém, nem os mineiros nem os proprietários, quer uma guerra. Tenho certeza de que tudo pode ser encaminhado pacificamente.
— Também espero. Não tinha idéia de que você se preocupasse tanto com os mineiros.
— Se você visse o que eu vi hoje, você também se preocuparia.
— Eu queria ir com você. Talvez na próxima vez.
Lee inclinou-se para frente e beijou-lhe a testa.
— Não quis me queixar. Eu não queria você lá e, além dissso tem todos os seus pacientes na clínica para cuidar. O que será que a nossa linda governantazinha preparou para o jantar de hoje?
Blair sorriu para ele.
— Não espere que eu tenha coragem bastante para perguntar. Descerei a mais funda das minas com você e enfrentarei tetos ruindo, mas mantenha-me longe da cozinha da senhora Shainess.
— Tetos ruindo... isso me lembra alguma coisa. Como estão você e a senhora Krebbs? Já se entenderam?
Blair deu um gemido e, enquanto Lee se vestia, começou um solilóquio sobre a sra. Krebbs.
— Ela pode ser um anjo na sala de operações, mas em qualquer outro lugar é uma bruxa.
Quando Lee estava pronto para descer e jantar, estava outra vez sorrindo e gentilmente perguntando se as boas qualidades da sra. Krebbs não superavam as más. Naquela noite ficaram aconchegados e adormeceram juntos. O segundo dia da clínica aberta foi pior: ninguém apareceu. E, quando Blair voltou para casa, Lee recebeu um daqueles chamados misteriosos e saiu, voltando antes da meia-noite. Ele enfiou-se na cama ao lado dela, sujo, exausto, e pela primeira vez ela teve a experiência de ouvir um ronco masculino. Gentilmente tocou seu ombro algumas vezes, mas não teve resultado. Assim, com um grande empurrão, puxou-o para que ficasse sobre o estômago e se aquietasse.
No terceiro dia, Blair estava sentada à sua escrivaninha extremamente limpa, e ouviu a campainha de fora tocar. Quando foi até a sala de espera, viu sua amiga de infância, Tia Mankin. Tia estava sofrendo de uma tosse seca persistente.
Blair ouviu suas queixas, receitou um xarope suave para tosse, e ostentava um enorme sorriso quando a paciente seguinte chegou, outra amiga de infância. Conforme o dia passava, e uma após outra amiga aparecia com alguma queixa vaga, ela não sabia se ria ou chorava. Estava contente por aquelas jovens ainda a considerarem sua amiga, mas parte dela se sentia frustrada pela ausência de pacientes reais.
Mais para o fim da tarde, Houston chegou em sua pequena carruagem e disse a Blair estar desconfiada de uma gravidez. Depois do exame em que constatou que a irmã não estava grávida, Blair mostrou-lhe toda a clínica. A sra. Krebbs já tinha ido para casa, e as gêmeas estavam sozinhas.
— Blair, eu sempre te admirei tanto! Você sempre foi tão valente.
— Eu? Valente? Não sou nem um pouco valente.
— Mas olhe para tudo isso. Aconteceu porque você sabia o que queria, e saiu e conseguiu. Queria ser uma médica, e não deixou nada ficar em seu caminho. Eu também tinha sonhos, mas fui muito covarde para persegui-los.
— Que sonhos? Quero dizer, além de Leander?
Houston fez um gesto com a mão.
— Penso que escolhi Lee porque era um sonho respeitável. Mamãe e o senhor Gates estão no fundo do coração, e de resto eu tinha aprovação deles. — Parou e sorriu. — Penso que havia uma parte de mim que se alegrava com todas aquelas peças que você pregava no Lee.
— Você sabia a respeito?
— Da maior parte delas. Depois de um tempo, comecei a esperar por elas. Fui eu quem sugeriu a Lee que John Lechner era o feitor.
— John sempre foi um fanfarrão, e tenho certeza de que mereceu tudo o que recebeu de Lee. Houston, não tinha idéia de que se achasse uma covarde. Eu sempre quis ser perfeita como você.
— Perfeita! Não, eu só era amedrontada, medo de desapontar mamãe ou de enraivecer o senhor Gates, de não levar a vida que a cidade esperava de uma Chandler.
— Enquanto parecia que eu deixava todos zangados mesmo sem fazer esforço. Você tem tantos amigos, tantas pessoas a amam.
— Claro que sim — disse Houston, com alguma raiva na voz. — Eles também a amarão" se fizer pelas pessoas o que eu faço. Alguém diz "vamos fazer uma festa", então outra pessoa diz "podemos chamar Blair-Houston para fazer todo o trabalho". Eu era muito covarde para dizer não. Organizei festas às quais nem mesmo fui. Como sonhava em dizer-lhes não! Costumava imaginar-me arrumando uma mala e descendo aquela árvore e simplesmente fugindo. Mas era covarde demais. Você disse que eu levava uma vida inútil e foi mesmo.
— Eu estava ciumenta — murmurou Blair.
— Ciumenta? Do quê? Com certeza não era de mim.
— Não percebi até que Lee me fez ver. Ganhava prêmios, tirava notas altas nos testes, recebia muitas honrarias, mas sei que sempre fui sozinha. Doía quando o senhor Gates dizia que não me queria, mas sim a você. Doía quando você me escrevia sobre todos os homens com quem dançava, noite após noite. Eu estava estudando um capítulo sobre a maneira correta de se amputar uma perna e parava para reler uma de suas cartas. Os homens jamais gostavam de mim como de você, e algumas vezes pensei em desistir da medicina se pudesse ser uma mulher normal, com cheiro de perfume e não de fenol.
— E quantas vezes desejei poder fazer alguma coisa além de escolher as cores de meu próximo vestido. — Houston suspirou. — Os homens só gostavam de mim porque me achavam, como Leander disse certa vez, maleável. Gostavam da idéia de ter uma mulher que pudessem amedrontar. Para a maioria dos homens, eu era um cãozinho para buscar os chinelos para eles. Queriam casar comigo porque não teriam nenhuma surpresa por parte de Houston Chandler.
— Você acha que foi por isso que Lee pediu que casasse com ele?
— Algumas vezes, não tenho certeza de que ele me pediu. Nós nos vimos umas poucas vezes depois dele ter voltado, e suponho que eu esperava tanto casar com ele que, quando a palavra casamento foi sugerida, eu disse sim. Na manhã seguinte o senhor Gates perguntou se já era hora de pôr o anúncio de noivado no jornal. Concordei, e a próxima coisa que vi foi a casa cheia de gente me desejando uma longa vida de felicidade.
— Conheço os cidadãos de Chandler e sua curiosidade. Mas você amou Lee durante todos esses anos.
— Suponho que sim, mas a verdade é que nunca parecemos ter muito o que dizer um ao outro. Você e Lee conversam mais.
Blair ficou quieta um longo tempo. Parecia irônico que durante todos aqueles anos tivesse invejado sua irmã e ela ao mesmo tempo também o fizesse.
— Houston, você disse que tinha sonhos dos quais sentia medo. Quais eram eles?
— Nada demais. Nada como você e a medicina. Mas pensava poder ser capaz de escrever. Não uma novela ou alguma coisa grandiosa, mas pensava em escrever artigos para revistas femininas. Talvez sobre como limpar cetim ou fazer uma máscara de lama realmente boa.
— Mas o senhor Gates odiaria isso, não é?
— Ele dizia que mulheres que escreviam provavelmente eram adúlteras expulsas por seus maridos que precisavam se sustentar.
Os olhos de Blair se arregalaram.
— Ele não mede palavras, não?
— Não. E eu deixei que me atazanasse durante anos.
Blair correu o dedo pelo alto de um armário.
— E seu marido não a atazana? Sei que disse que o amava, mas agora é... quero dizer, a cerimônia já acabou e você vive com ele.
Houston lhe dissera diversas vezes que amava seu marido, mas Blair não fora capaz de acreditar. Na véspera, vira Taggert em frente do Chandler National Bank. O presidente do banco, metade do tamanho dele, olhava para cima, para o homem enorme, e falava o mais rápido que podia. Ele parecia simplesmente aborrecido ao olhar por cima da cabeça do homem, para algum lugar da rua, e então tirara um grande relógio de ouro do bolso, dera uma olhada e se abaixara para o banqueiro. "Não", ouvira-o dizer antes de ir embora. Ele parecia inacessível aos pedidos para ficar e ouvir. E era como Blair pensava nele: inacessível. Como podia Houston amar um homem como ele?
Quando Blair levantou os olhos, Houston estava sorrindo.
— Amo-o cada dia mais. E você e Lee? No dia do casamento, você não acreditava que ele a amasse.
Blair pensou naquela manhã, quando o entusiasmo deles foi tanto que tinham caído da cama, e mais tarde quando a sra. L ness quase derrubara o café da manhã na mesa. Quando a governanta deu as costas, Lee virara os olhos de tal forma que Blair começara a querer rir.
— Lee está bem — disse por fim e fez Houston rir.
A irmã começou a vestir as luvas.
— Estou contente de que tudo tenha se resolvido. É melhor que eu vá embora. Kane e o resto de minha família estarão precisando de mim. — Parou um momento. — Que palavra adorável. Posso não ter um diploma médico, mas precisam de mim.
— Eu preciso de você — disse Blair. — Foi você ou mamãe quem organizou todas as minhas "pacientes"?
Houston arregalou os olhos.
— Não tenho idéia do que quer dizer. Eu simplesmente vim aqui porque esperava estar grávida. Pretendo voltar pelo menos uma vez por mês ou qualquer outra vez que não me sinta bem.
— Acho que devia visitar seu marido com mais freqüência, e não a mim, se quer um bebê.
— Assim como ouvi dizer que está esgotando Leander todas as noites e manhãs?
— Eu o quê? — começou Blair, e então lembrou-se de sua exibição no telefone. Claro que já se espalhara pela cidade.
— A propósito, como está se saindo a senhora Shainess?
— Terrível. Ela não me aprova.
— Isso é bobagem. Ela conta vantagem para todo mundo sobre sua senhora doutora. — Houston beijou o rosto da irmã. — Devo ir. Ligarei amanhã.

 

Capítulo XXIX

 

NA MANHÃ SEGUINTE, bem cedo, Blair levantou os olhos de sua escrivaninha e viu Nina Westfield, então Hunter, parada à sua frente.
— Alô — disse Nina mansamente, com os olhos meio implorantes. — Espere — disse ela, quando Blair começou a se levantar. — Antes que diga alguma coisa, deixe-me dar-lhe algumas explicações. Acabo de saltar do trem e vim direto para cá. Ainda não vi papai ou Lee, mas, se você disser que não agüenta olhar para mim, partirei no próximo trem e nunca mais terá de me ver.
— E perder a oportunidade de lhe agradecer todos os dias pelo resto da minha vida? — perguntou Blair, os olhos brilhando.
— Agradecer...? — disse Nina, e então entendeu o que Blair queria dizer e, no minuto seguinte, estava puxando a cunhada para fora da cadeira, abraçando-a e chorando em seu ombro. — Oh, Blair, tenho estado tão preocupada que não tenho realmente aproveitado o que fiz. Alan sempre diz que você amava Lee, só que não sabia. Disse que você combinava muito mais com Lee do que-com ele. Mas eu não tinha certeza. Para mim, Lee é um irmão. Não podia imaginar escolher viver com ele. Quero dizer... — Afastou-se, assoando o nariz e fungando.
Blair estava sorrindo.
— Eu lhe ofereceria chá, mas não temos. Que tal uma xícara de óleo de fígado de bacalhau?
Nina sorriu também, enquanto sentava-se pesadamente em uma cadeira de carvalho.
— Penso que talvez este seja o momento mais feliz de minha vida. Estava com tanto medo que estivesse zangada, que a cidade toda estivesse furiosa comigo.
— Mas ninguém na cidade sabia que Alan e eu estávamos noivos — argumentou Blair. — Pensavam que Lee e eu íamos casar.
— Mas você queria Alan — insistiu Nina. — Sei que queria. Sei que foi encontrar-se com ele na estação.
A curiosidade de Blair foi atiçada.
— Quero saber a história toda.
Nina olhou para suas mãos.
— Realmente detesto contar-lhe tudo. — Levantou os olhos, e outra vez parecia querer chorar. — Oh, Blair, eu estava absolutamente sem saber o que fazer, e, às escondidas, fiz tudo que pude para conseguir Alan. Você nunca teve uma chance.
— Se eu atirar em você, prometo que a costurarei eu mesma.
— Você pode brincar, mas não brincará mais depois de escutar sobre as coisas que fiz. — Assoou o nariz outra vez, e, enquanto olhava para as mãos, começou. — Conheci Alan na noite em que ele decidira matar Lee.
— O quê? Leander? Ele ia matar Leander?
Nina encolheu os ombros.
— Ele só estava zangado, e eu entendi muito bem como se sentia. Lee tinha uma maneira tão superior em relação a ele! Quando eu era pequena, ele costumava decidir o que era bom ou ruim para mim, e aquilo me deixava tão brava que queria estrangulá-lo.
— Conheço esse sentimento — disse Blair. — Ele não mudou muito.
— Quando vi Alan, sabia que não iria matar ninguém. Ele só estava curtindo a idéia. Convidei-o para ir à sala de visitas, e foi bastante fácil fazê-lo falar e contar-me o que estava acontecendo. Contou-me que estava apaixonado por você, mas eu sabia que Lee já decidira que você iria casar com ele, portanto achei que Alan não teria muita chance. Sabia que Lee venceria.
— Como era possível que soubesse?
Nina pareceu surpresa.
— Morei com Lee toda a minha vida. Ele vence, ele sempre vence. Se resolver jogar beisebol, seu time ganha. Se entrar em um torneio de esgrima, ganha. Papai diz que ele até força os pacientes moribundos a viver. Assim, é claro, eu sabia que ele ganharia aquela competição, quer o prêmio quisesse ou não. Mas, de qualquer maneira — ela ignorou o olhar de espanto de Blair —, eu sabia como Alan se sentia, e começamos a nos lamentar, comparando exemplos dos meios dominadores de Lee. Papai então Voltou para casa, eu apresentei Alan, e ficamos até tarde conversando sobre medicina e a vida em Chandler comparada com a vida no nordeste. Foi uma noite agradável.
Nina parou um momento.
— Depois disso, Alan começou a me procurar sempre que Lee fazia alguma coisa especialmente trapaceira, como empurrar Alan fora da sala de operações, fazendo-o parecer um incompetente.
— Ele vai ser um médico muito bom, mas ainda tem de fazer muito treinamento.
— Também acho que será — disse Blair mansamente. — Então você e Alan se apaixonaram.
— Eu me apaixonei. Acho que ele também, só que não percebia. Não há nada de desrespeito, mas penso que, depois de Alan tê-la visto aqui, ficou com um pouco de medo de você. Ele disse que na Pensilvânia vocês dois tiveram um namoro muito calmo, de mãos dadas no parque, estudando juntos, mas quando ele veio para cá... — os olhos de Nina brilharam. — Francamente, Blair, subindo e descendo de cavalo como uma artista de circo, alegremente puxando os intestinos de um homem para cima de uma mesa para que pudesse encontrar alguma coisa por baixo, vencendo-o no tênis, não é de se espantar que tenha se virado para outra pessoa.
— Lee não se afastou — disse Blair na defesa.
— É exatamente o que digo! Você e Lee são parecidos, sempre pulando de uma coisa para outra. Vocês nos cansam, a nós meros mortais. De qualquer forma, não penso que tenha ocorrido a Alan que você e ele devessem casar. Depois de ter dito para você para encontrá-lo no trem, ele veio a mim e contou-me o que fizera. Então eu já sabia que estava apaixonada por ele e não achava que você estivesse, mas você era muito teimosa para admitir que não estava, ou talvez vocês todos estivessem muito obcecados em ganhar a desagradável competiçãozínha sem olhar para as conseqüências. — Nina respirou fundo. — Decidi então tomar as coisas em minhas próprias mãos. Pensei que, se meu irmão podia fazer algumas trapaças para conseguir o que queria, eu também poderia. Às três e trinta, antes que fosse tomar o trem das quatro horas, pedi a Alan que viesse até a cozinha comigo. Amornei algum melado o suficiente para que ficasse viscoso. Então, enquanto ele estava sentado ali, brincando com aqueles malditos bilhetes de trem, eu "tropecei" e entornei cerca de um quarto do melado sobre ele. Devo admitir que fiz um bom trabalho. Tentei fazer com que caísse em seu cabelo e por todo o corpo, até os sapatos. Blair não conseguiu falar por um momento. — Mas fiquei na estação durante horas — conseguiu murmurar.
— Eu... Ah... — Nina levantou-se. — Blair, se minha mãe fosse viva, nunca seria capaz de encará-la outra vez. — Olhou de volta para Blair, seu bonito rosto pegando fogo, endireitou os ombros com desafio e falou num fôlego só. — Ele foi ao banheiro, entregou as roupas para mim, mas deixei cair seu relógio, que rolou para dentro do banheiro; corri atrás dele, a porta bateu atrás de mim e a chave do lado de fora caiu.
Blair pensou um momento sobre o caso e começou a sorrir.
— Você se trancou dentro do banheiro com um homem despido?
Nina cerrou o maxilar, levantando o queixo e fez um rápido aceno com a cabeça. Blair não disse nada, mas foi para um armário lateral e retirou uma garrafa de uísque e dois copos. Entregou um para Nina:
— A irmandade — disse ela e entornou o uísque goela adentro.
Nina, com um grande sorriso, tomou o dela também.
— Você realmente não está zangada? Quero dizer, não se importa de ter casado com Lee?
— Penso que serei capaz de agüentar essa tortura. Agora sente-se e conte-me quais são seus planos e como está Alan. Está feliz com ele?
Uma vez que começou, Nina não conseguia mais parar. Não gostava muito da Pensilvânia e disse que quase persuadira Alan para voltar para Chandler quando terminasse o estágio.
— Receio que os sentimentos dele para com você e Lee não sejam os mais amigáveis, mas tenho esperanças de convencê-lo. Voltei para ver se podia convencê-la a me perdoar e a me ajudar a dominar a ira de papai e Lee.
— Não acho que Lee... — começou Blair, mas Nina interrompeu-a.
— Oh, sim, perdoará. Espere até conhecê-lo bastante como eu. Ele é um cordeiro quando está satisfeito, mas quando uma das mulheres sob seu cuidado faz alguma coisa que ele não aprova, então cuidado! E, Blair — ela brincava com a sombrinha —, preciso de alguém para levar os panfletos para os mineiros.
Os sentidos de Blair ficaram imediatamente alerta.
— Você se refere ao jornal que pode incitar os mineiros à luta, a entrarem em greve?
— É simplesmente para informá-los de seus direitos, para esclarecer que se eles se unirem podem conseguir muito. Houston e as outras que dirigem as carroças de mercadoria estão levando-os para as minas onde entregam vegetais, mas são só quatro minas. Existem outras treze. Precisamos de alguém que tenha acesso a todas as minas.
— Você sabe que aqueles lugares são trancados. Mesmo o carro de Leander é revistado... Nina! Não pode pensar em tentar fazer Lee entregar os jornais?
— De maneira nenhuma! Se souber que estou ciente só de que existem minas de carvão, ele me trancará. Mas pensei que você sendo uma médica e tendo o nome Westfield talvez pudesse ver algumas das mulheres dos campos.
— Eu? — falou Blair ofegante, levantando-se. Aquilo tinha de ser pensado. Se a apanhassem com aqueles papéis em sua carruagem, atirariam nela na hora. Mas também pensava na pobreza dos campos de minas, na maneira como as pessoas desistiram de todos os seus direitos de americanos a fim de sobreviver.
— Nina, não sei — mumurou. — Essa é uma decisão séria.
— É um problema sério. E, Blair, você está em casa outra vez. Não é mais só outra pessoa numa cidade grande. Você é parte de Chandler Colorado. — Levantou-se. — Pense sobre isso. Estou indo agora para casa, para ver papai, e talvez Lee e você possam aparecer mais tarde para jantar. Tenho só duas semanas antes de voltar para Alan. Não lhe teria pedido, mas não conheço ninguém mais que possa ter acesso às minas. Avise-me logo sobre o que decidir.
— Está certo — disse Blair, distraída, com a cabeça completamente tomada pela idéia de entregar panfletos num campo guardado por homens armados.
Durante toda a tarde, andou pela clínica vazia e, quando tentou ler uma revista médica que Lee emprestara, ficou pensando na proposta de Nina. Ela tocara em alguma coisa em seu íntimo. Blair realmente não se considerava parte de Chandler. Quando deixara a cidade, fora para sempre. Nunca planejara voltar, mas tinha de encarar o fato: ou era parte da comunidade ou não era. Ela poderia ficar em sua clínica limpa, e ocasionalmente remendar corpos quebrados, ou poderia ajudar a evitar que os corpos fossem quebrados.
E se seu próprio corpo fosse quebrado? Seus pensamentos rodavam e rodavam, e não parecia capaz de chegar a uma conclusão.
Foi com Lee jantar com Reed e Nina. A irmã de Lee puxou-a de lado, oportunamente, para perguntar-lhe sobre a decisão. Mas Blair não a tomara. Nina sorriu e disse que entendia, o que fez com que se sentisse mal.
Na manhã seguinte, a cabeça lhe doía. Seus passos ecoavam na enfermaria, irritando-lhe os ouvidos. A sra. Krebbs disse ter algumas compras para fazer e saiu. Às nove horas, a campainha da porta tocou, e Blair correu para atender o que esperava ser um paciente.
Uma mulher e uma garota pequena, com cerca de oito anos, estavam paradas.
— Posso ajudá-la?
— A senhora é a senhora doutora?
— Sou uma médica. Gostaria de entrar em meu consultório?
— Certo. Claro. — Disse à menina que se sentasse e esperasse enquanto seguia Blair.
— O que parece ser seu problema?
A mulher sentou-se.
— Eu não estou tão forte como costumava ser, e vez por outra preciso de ajuda. Não muita ajuda, só um pouco.
— Todos nós precisamos de ajuda às vezes. De que tipo de ajuda precisa?
— É melhor que eu fale de uma vez. Algumas das minhas garotas, a senhora sabe, na rua River, compraram ópio sujo. Pensei que talvez, sendo a senhora uma doutora, pudesse nos conseguir algum material puro de São Francisco. Suponho que vocês médicos tenham maneira de testá-lo para ter certeza de que não é ruim, e talvez possam conseguir comprar em grande quantidade e vender. Posso arranjar todos os compradores que precisar e...
— Por favor, saia de meu consultório — disse Blair bastante calma.
A mulher levantou-se.
— Bem, você não é uma senhorita importante e poderosa? Boa demais para os outros como nós, não é? Sabia que a cidade toda está rindo de você? Chama a si mesma de uma médica e fica sentada aqui nesse lugar vazio e ninguém vem vê-la. E ninguém virá, pode esperar.
Blair caminhou até a porta, e manteve-a aberta para ela. Com o nariz para o alto, a mulher agarrou a mão da criança e saiu, batendo a porta de fora e fazendo a campainha cair com estrondo no chão.
Sem sinal de raiva, Blair sentou-se à sua escrivaninha e pegou um pedaço de papel. Era uma conta de despesas domésticas que a sra. Shainess lhe dera naquela manhã. Esperava-se que Blair somasse as vinte e duas parcelas e conferisse se o total da sra. Shainess estava correto.
Ela estava olhando para o papel, quando subitamente seus olhos escureceram e, em seguida, grudou a cabeça na escrivaninha e chorou. Chorou mansamente, lágrimas que lutavam desde seu estômago, antes de levantar a cabeça para procurar um lenço.
Assustou-se ao ver Kane Taggert sentado numa cadeira em sua frente.
— Você se distrai espionando as pessoas?
— Ainda não fiz o suficiente para saber — disse ele, olhando para ela com preocupação.
Ela remexeu nas gavetas da escrivaninha durante um momento, antes de pegar o enorme lenço que Kane oferecia.
— Está limpo. Houston não me deixa passar pela porta sem uma inspeção.
Ela não respondeu à tentativa dele de amenizar, mas afastou-se e assoou o nariz. Ele alcançou o outro lado da escrivaninha e pegou o papel das contas.
— É isso que a está fazendo chorar? — Ele mal olhou o papel.
— São sete centavos a mais — disse ele, abaixando o papel. — Sete centavos fazem você chorar?
— Se você quer saber, estou com meus sentimentos feridos, é isso. Simples, fora de moda, estou com meus sentimentos feridos.
— Importa-se de falar-me a respeito?
— Por quê? Para que possa rir de mim também? Conheço sua espécie. Você também nunca iria a uma médica mulher. Você seria como todos os homens e a maioria das mulheres! Nunca confiaria numa mulher para abri-lo.
O rosto dele estava sério.
— Nunca fui a um médico, portanto não sei quem eu gostaria que me cortasse. Suponho que, se estivesse bastante ferido, deixaria qualquer um cuidar de mim. É por isso que está chorando? Porque ninguém está aqui?
Blair abaixou as mãos sobre a escrivaninha com sua raiva e energia, deixando-a.
— Lee certa vez disse-me que todos os médicos são idealistas, no começo. Suponho que fui pior que a maioria. Pensei que a população ficaria entusiasmada de ter uma clínica para mulheres. Eles ficariam se Leander estivesse aqui dirigindo. Eles me vêem e começam a perguntar por um médico "mesmo". Minha mãe esteve aqui com três indisposições em dois dias e as poucas mulheres que conheci em minha vida vieram todas. E agora, para aumentar minha dor, a diretoria do hospital Chandler decidiu que na verdade não tem bastante serviço para outro médico.
Kane ficou ali, observando-a por um tempo. Não sabia muito sobre sua cunhada, mas sabia que no geral ela possuía a energia de duas pessoas. E agora estava ali com uma cara comprida e sem luz nenhuma nos olhos.
— Ontem — começou ele —, estava no estábulo sem uma camisa. Não diga a Houston. Raspei contra a parede do fundo e fiquei com uma quantidade de farpas em minhas costas. Não posso alcançá-las para desenterrá-las. — Observou-a quando ela levantou a cabeça. — Não é muito, mas é tudo que eu posso oferecer.
Aos poucos, Blair começou a sorrir.
— Está bem, venha até a cirurgia e darei uma olhada.
As farpas não eram muito grandes nem estavam muito profundas, mas Blair tratou delas com grande cuidado.
Enquanto Kane permanecia deitado de barriga na longa mesa, ele disse:
— Como foi que a campainha caiu? Alguém zangado com você?
Foi só o que precisava para que Blair lhe contasse sobre a mulher que queria ópio, e como dissera que todos estavam rindo dela.
— E Lee trabalhou tanto por esta clínica. Ela tem sido seu sonho há anos, e agora está sempre atendendo um caso após o outro lá nas minas. Estou encarregada deste lugar e não consigo me dar bem.
— A mim parece que as pessoas doentes é que estão falhando com você. A perda é delas.
Ela sorriu por detrás da cabeça dele.
— É bom ouvir você dizer isso, mas não teria vindo a menos que... Por que você veio?
— Houston está remodelando meu escritório. — Ele disse aquilo com tamanha fatalidade que Blair riu. — Não é engraçado? Ela põe as cadeiras mais tolas em todos os lugares, e gosta de renda. Se eu voltar e meu escritório estiver pintado de rosa, eu...
— O que fará?
Ele virou a cabeça para olhá-la:
— Chorarei.
— Ela pinta de rosa e eu irei até lá amanhã e nós o repintaremos. Que tal a proposta? — disse, sorrindo.
— A melhor que recebi durante todo o dia.
— Está feito — disse ela um minuto mais tarde, e começou a limpar os instrumentos, enquanto ele tornava a vestir a camisa e o casaco. Virou-se para olhá-lo. — Obrigada. Você me fez sentir muito melhor. Sei que não fui agradável com você no passado, e peço desculpas.
Kane encolheu seus grandes ombros.
— Você e Houston são irmãs gêmeas, portanto têm de ter alguma coisa em comum. E, se você for uma médica tão boa como ela é para dirigir coisas, deve ser a melhor. E tenho a impressão de que as coisas vão mudar para você. Muito em breve, as senhoras vão estar batendo em sua porta com todo tipo de doença. Você verá. Fique aqui e deixe o lugar bem limpo, e aposto que amanhã haverá algumas pacientes aqui.
Ela não pôde deixar de sorrir para ele.
— Obrigada. Você me fez um imenso bem. — Num impulso, ficou na ponta do pé e beijou seu rosto.
— Sabe, durante um minuto, você parecia igualzinha a Houston — disse sorrindo para ela.
Blair riu.
— Acho que esse deve ser o maior cumprimento que já recebi.
Suponho que tenha algum trabalho para fazer. Se esse ombro o incomodar, me avise.
— Trarei todos os ossos quebrados para você, doutora Westfield, e todas as minhas paredes cor-de-rosa — disse ele ao deixar a clínica.
Blair começou a assobiar e limpar sua escrivaninha dos papéis, e logo percebeu que não sabia se a lista das contas tinha sete centavos a mais ou a menos, e teria de somá-la. No resto do dia, sentiu-se melhor como não se sentia há dias.
Uma vez parou e pensou como Kane fora bondoso em tentar animá-la, depois de tudo o que pensara e fizera contra ele. Talvez houvesse motivos para Houston amá-lo.
Em casa, em seu escritório de painéis de madeira escura, Kane virou-se para o assistente, Edan Nylund.
— Na semana passada, depois de ter comprado o Chandler National Bank, eles não nos mandaram alguns papéis?
— Uma pilha de cerca de dez quilos — disse Edan, apontando, mas sem levantar os olhos, quando Kane apanhou os papéis e folheou-os.
— Aonde foi Houston?
De repente conseguiu o interesse de Edan.
— A sua costureira, creio eu.
— Ótimo — disse Kane. — Então teremos o resto do dia, talvez até o resto da semana. — Saiu da sala com os papéis na mão.
A curiosidade de Edan tomou conta dele e foi encontrar Kane na biblioteca usando o telefone. Uma vez que o sistema telefônico de Chandler só ligava de uma casa para outra, e que as negociações de Kane eram geralmente do Estado, Edan nunca o vira usar o instrumento antes.
— Você me ouviu — dizia Kane à pessoa do outro lado da linha. — A hipoteca de seu rancho vence na próxima semana, e eu tenho todo o direito de reclamá-lo. Está certo. Você tem um aumento de prazo de noventa dias sem juros se sua esposa for à clínica Westfield amanhã e for tratada pela doutora Blair. Ela vai ter um bebê? Ótimo! Ela que o tenha no consultório de minha cunhada e eu darei a você cento e oito dias... Correto, pode mandar suas filhas... Sim, tudo bem. Outros trinta dias por filha que for lá amanhã com algum problema. Mas, se Blair descobre isso, eu cancelo. Compreendeu?
— Maldição! — disse a Edan, ao desligar o telefone. — Isto vai me custar. Olhe ali e veja quem mais tem um empréstimo para vencer ou receber uma recusa para aumento de prazo. Depois quero que veja por quanto, seja quem for que possua o hospital Chandler, quer vendê-lo. Veremos se a diretoria se recusará a contratar a cunhada do proprietário.
Na manhã seguinte, o bom humor de Blair já se fora, e ela quase se arrastou para ir trabalhar. Outro dia longo com pouco para fazer, pensou, caminhando em vez de ir dirigindo sua nova carruagem. Mas, quando estava a meio quarteirão da clínica, a sra. Krebbs veio correndo.
— Onde estava? O lugar está repleto de pacientes.
Por um momento, Blair não conseguia mover-se, mas então correu até a porta. A sala de espera estava uma confusão: crianças gritando, mães tentando acalmá-las, e uma mulher gemendo com o que parecia ser trabalho de parto.
Quinze minutos mais tarde, estava cortando o cordão umbilical de uma menina recém-nascida.
— Cento e Oitenta — murmurou a mãe. — O nome dela é Mary Cento e Oitenta Stevenson.
Blair não teve tempo de fazer nenhuma pergunta antes que a paciente seguinte fosse trazida.
Na tarde seguinte, uma mulher trouxe um menino para a clínica, um pequeno de oito anos que parecia ter seis, que já passara dois anos dentro de uma mina de carvão. Ele morreu nos braços de Blair, seu pequeno e frágil corpo tendo sido esmagado pelo carvão que caíra de um vagão.
Blair ligou para Nina e disse:
—Eu o farei — e desligou.

 

Capítulo XXX

 

BLAIR DIRIGIA sua carruagem pela estrada, fora da mina Inexpressible, de volta para Chandler. Nina não perdera tempo de arranjar para que ela levasse os panfletos para a mina, talvez com medo de que a cunhada mudasse de idéia. Assim, pela manhã, Blair chamara o dr. Weaver, um jovem que conhecera na enfermaria Chandler, e pediu-lhe que olhasse a clínica, pois tinha sido chamada para uma emergência na mina. O homem ficara satisfeito de poder ajudar.
Na casa de Westfield, Nina fez o melhor que pôde para esconder os panfletos embaixo de uma tábua de madeira provisória que devia servir de fundo falso no compartimento atrás da nova carruagem de Blair. Enquanto Nina dava instruções, Blair estava tão amedrontada que mal conseguia falar.
Na entrada da mina, os guardas arreliaram-na, dizendo que o dr. Westfield certamente mudara desde a última visita, mas a deixaram entrar. Teve de perguntar a algumas crianças cobertas de pó de carvão como encontrar a casa da mulher que devia ajudá-la, e encontrou a mulher, deitada, fingindo estar doente, tão nervosa como ela. A mulher escondeu os panfletos sob uma tábua do assoalho, e Blair deixou o campo o mais rapidamente que conseguiu.
Os guardas, percebendo que ela estava nervosa e, com a vaidade normal dos homens, pensaram que era devido à presença deles, e arreliaram-na novamente quando saiu.
Ela estava a um quilômetro longe da mina quando começou a tremer, e em vinte minutos tremia tanto que suas mãos não podiam segurar as rédeas. Saiu da estrada para esconder-se entre algumas pedras. Desceu do carro e, quando seus joelhos fraquejaram, sentou-se no chão e começou a chorar, lágrimas de alívio por tudo ter terminado.
Seus ombros ainda estavam sacudindo quando subitamente duas mãos fortes pegaram-na e a puseram de pé.
Ela olhou os olhos brilhantes de fúria de Leander.
Blair não fez pergunta sobre como ele sabia o que fizera — estava muito grata por ele estar ali. Agarrou-se a ela, e apesar de ele já estar quase quebrando suas costelas, queria que a abraçasse mais apertado.
— Estava com medo — disse ela em seu ombro, ficando na ponta do pé para enterrar o rosto na pele macia do pescoço dele. — Estava tão amedrontada. — Lágrimas desciam pelas suas faces, entrando na boca.
Lee só a mantinha junto dele e acariciava seus cabelos, sem dizer uma palavra enquanto ela chorava.
Levou um tempo até que as lágrimas parassem e seu corpo deixasse de tremer. Quando teve coragem de soltar-se de seu abraço desesperado em Lee, afastou-se e começou a procurar um lenço nos bolsos. Ele entregou-lhe o dele e, depois de assoar o nariz e enxugar o rosto, ela levantou os olhos para ele. O que viu fez com que recuasse.
— Lee, eu... — começou, dando outro passo para trás, até que parou, encostada em uma enorme pedra.
Os olhos dele estavam em fogo. O Lee brincalhão, sorridente, tolerante, que sempre vira, não tinha nada a ver com aquele homem enraivecido.
— Eu não quero ouvir uma palavra — dizia ele, tentando controlar-se. — Nem uma palavra. Quero que jure que nunca mais fará isso outra vez.
— Mas eu...
— Jure! — disse Lee, avançando para ela e pegando-lhe o braço.
— Lee, por favor, está me machucando. — Ela queria acalmá-lo, fazê-lo ver a necessidade do que tinha feito. — Como você soube? Era segredo.
— Estou nos campos das minas todos os dias — disse, mirando-a. — Ouço o que acontece. Maldição, Blair, quando ouvi que você devia entregar aqueles papéis, a princípio não podia acreditar. — Acenou com a cabeça em direção do lenço molhado que estava amassado na mão dela. — Pelo menos está consciente do perigo que passou? Você sabe o que aqueles homens teriam feito com você? Você tem alguma idéia? Você pediria a eles que a matassem depois que terminassem. E eles têm a lei do lado deles.
— Eu sei, Lee — disse com paixão. — Eles têm todos os direitos legais de fazer qualquer coisa que querem. E é por isso que alguém tem de informar os mineiros de seus direitos.
— Mas não você! — gritou Lee em sua cara.
Ela piscou com a força do grito e inclinou suas costelas contra a pedra.
— Eu tenho acesso às minas e uma carruagem. Eu sou a pessoa lógica para fazer o serviço.
A face de Lee ficou tão vermelha que ela pensou que podia explodir, quando ele levantou a mão na direção de sua garganta. Mas Lee controlou-se e afastou-se. Ao dar-lhe as costas, ela viu a parte superior de seu corpo levantar e abaixar com profundas respirações. Quando se voltou para ela outra vez, parecia ter se controlado de alguma forma.
— Agora quero que ouça e ouça muito atentamente. Eu sei que o que fez foi por uma boa causa, e eu sei que os mineiros precisam ser informados. Eu até aprecio o fato de estar querendo arriscar sua vida para ajudar outros, mas não posso permitir que faça isso. Estou falando bem claro?
— Se eu não fizer, quem fará?
— Que diabos me interessa saber? — gritou Lee, respirando mais um par de vezes, profundamente. — Blair, você é a pessoa com quem mais me preocupo. Para mim, você é mais importante do que todos os mineiros do mundo. Quero que jure que nunca fará algo parecido outra vez.
Blair olhou para suas mãos. Ela tivera medo naquela manhã como nunca antes em sua vida. No entanto, alguma parte dela sentia que fizera a coisa mais importante de sua vida.
— Ontem, um garotinho morreu em meus braços — murmurou. — Ele fora amassado na...
Lee agarrou-lhe os ombros.
— Não tem de me contar nada. Sabe quantas crianças já morreram em meus braços? Quantos braços e pernas já cortei de homens presos embaixo de vigas e pedras? Você nunca esteve dentro de uma mina. Se tivesse de entrar em uma... É pior do que você pensa.
— Então alguma coisa tem de ser feita — disse, com teimosia. Ele deixou as mãos caírem, começou a falar, mas fechou a boca, e então tentou outra vez.
— Tudo bem, vou tentar outra tática. Você não foi feita para este tipo de coisa. Há poucos minutos, estava uma lástima. Você não tem a personalidade que é preciso para fazer uma coisa dessas. É muito corajosa quando se trata de salvar vidas, mas-quando está envolvida em alguma coisa que poderá levar a uma guerra e a perda de vidas, não agüenta.
— Mas é preciso que aquilo seja feito — insistiu.
— Sim, talvez seja, mas tem de ser feito por alguém que não seja você. Você mostra no rosto o que sente com muita facilidade.
— Mas como os mineiros vão saber? Quem mais tem acesso às minas além de nós?
— Nós não! — explodiu Lee outra vez. — Eu! Eu tenho acesso às minas, não você. Não sei como os guardas permitiram que passasse. Não quero você lá em cima. Não quero você descendo nas minas. No ano passado fiquei preso embaixo do solo durante seis horas, depois que uma viga arriou. Não posso permitir a possibilidade de que alguma coisa como essa aconteça a você.
— Permitir? — perguntou e descobriu que o medo estava acabando. — O que mais você não vai "permitir"?
Ele ergueu uma sobrancelha para ela:
— Pode entender o que eu disse do jeito que quiser, mas o resultado final é o mesmo: você não pode entrar nas minas outra vez.
— Suponho que seja certo para você escapar para sei lá onde, no meio da noite, mas eu tenho de ser a doce esposinha e ficar em casa.
— Isso é absurdo! Nunca contrariei você de alguma maneira antes. Queria uma clínica de mulheres, eu dei-a a você. E agora pode ficar lá.
— E deixar você ir para as minas, não é? Suponho que sou muito covarde para entrar nas minas. Você pensa que eu teria medo do escuro?
Lee não disse nada por um momento e, quando falou, sua voz era pouca coisa mais que um murmúrio.
— Você não é uma covarde, Blair, eu sou. Você não teve medo de fazer alguma coisa que a amedrontava, mas estou apavorado com medo de perdê-la para deixá-la fazer isso outra vez. Pode não gostar do modo como digo isso, mas no fundo é tudo o mesmo: você tem de ficar afastada dos campos das minas.
Blair parecia sentir todas as emoções que já experimentara atravessá-la ao mesmo tempo. Estava zangada com a arbitrariedade de Lee. Como Nina dissera, o fato de ele proibi-la de alguma coisa a enfurecia. Mas também pensara no que ele dissera, que ela simplesmente não era boa para aquele trabalho. Houston entrava nos campos, mas mesmo que sua carroça fosse revistada, os guardas só encontrariam chá e sapatos de crianças. Não era o mesmo. E Lee dissera que estava preocupado com o dano que os panfletos pudessem causar. Ela lera um deles e estava cheio de ódio malévolo, o tipo de palavras raivosas que fazem com que os homens ajam primeiro e considerem o que fizeram depois.
Ela olhou para Lee enquanto ele a observava.
— Eu... Eu não queria assustá-lo tanto assim — gaguejou. — Eu... — Não disse mais nada, pois Lee estendeu os braços para ela, que foi correndo para ele.
— Tenho sua promessa? — perguntou, enterrando a face no cabelo dela.
Blair começou a dizer que não a podia dar, mas então pensou que talvez houvesse maneira diferente de fazer a informação chegar às minas, uma maneira mais sutil, uma que não pusesse ninguém em risco de levar um tiro.
— Prometo que nunca mais levo jornais de sindicatos para dentro de um campo de mina.
Ele puxou a cabeça dela para trás e olhou-a.
— E se alguém me chamar para atender um desastre na mina, e você atender ao telefone?
— Ora, Lee, terei de...
A mão dele fechou-se na parte de trás de sua cabeça.
— Sabe de uma coisa, eu realmente gosto desta cidade, e odiaria ter de mudar, mas pode tornar-se imperativo partir e ir para, digamos, algum lugar no leste do Texas, onde não haja ninguém com quem conversar. Algum lugar onde minha esposa não possa meter-se em problemas. — Apertou os olhos. — E pedirei à senhora Shainess e à senhora Krebbs para irem morar conosco.
— Castigo cruel e desumano. Tudo bem, ficarei fora das minas, a menos que você esteja comigo. Mas se você alguma vez precisar de mim...
Ele beijou-a para silenciá-la.
— Se eu precisar de você, quero saber onde você está, sempre. Cada minuto de cada dia. Entendeu?
— Muitas vezes eu não sei onde você está. Penso que de toda imparcialidade...
Ele beijou-a outra vez.
— Quando deixei o hospital, estavam descarregando duas carroças de vaqueiros feridos, acredito que foi um estouro de boiada. Eu realmente preciso...
Ela afastou-se dele:
— O que estamos fazendo aqui? Vamos!
— Esta é minha garota — disse Lee, seguindo-a de volta até a carruagem dela e ao seu cavalo.
— Abram o portão!
Pamela Fenton Younger sentou-se em cima de seu cavalo, em frente ao portão da mina Little Pamela, olhando fixo para os dois guardas.
Ambos os guardas olhavam espantados para ela. Havia alguma coisa bastante intimidadora naquela mulher de um metro e oitenta num garanhão negro de dezessete palmos de altura que estava empinado tão alto que seus cascos ferrados apareciam. Apesar de separados do animal pelo pesado portão de madeira, os homens recuaram quando o cavalo sacudiu a cabeça e fez uma meia-volta.
— Ouviram-me? Abram o portão!
— Ei, espere um minuto... — começou um dos guardas.
O outro guarda cutucou-o nas costelas, dizendo:
— Está certo, senhorita Fenton — disse ele, mantendo o portão de lado para ela, e então saltou para trás quando ela passou em disparada.
— A filha do dono da mina — o guarda explicou.
Pamela dirigiu-se diretamente para a entrada do poço da mina, os cascos do cavalo levantando uma nuvem de pó de carvão.
— Quero ver Rafferty Taggert — disse, segurando com a rédea firme o cavalo, que rolava os olhos selvagemente. — Onde está ele?
— No turno — disse alguém. — Túnel número seis.
— Então tragam-no. Quero vê-lo.
— Agora, veja aqui... — disse um homem, dando um passo à frente.
Outro homem, mais velho, foi empurrado para o cavalo nervoso.
— Bom dia, senhorita Fenton. Taggert está lá embaixo, mas estou certo que, para a senhora, alguém pode trazê-lo para cima.
— Faça isso — disse ela, com um forte puxão nas rédeas para deixar claro seu domínio sobre o grande animal. Com o lábio franzido, olhou em volta do campo de carvão, para a sujeira, a pobreza. Quando era criança, seu pai insistira para que ela o acompanhasse àquele lugar, para mostrar-lhe de onde vinha sua riqueza. Pam olhara para tudo e dissera: "Acho que somos pobres".
O lugar a deixava desgostosa.
— Selem um cavalo para ele e tenham-no aguardando. Encontrá-lo-ei na curva do riacho Fisherman. — Teve de esperar enquanto o garanhão fez uma volta toda antes que ela pudesse olhar para o supervisor da mina. — E se ele for descontado em um centavo, ouvirão a respeito. — Com isso, deixou o cavalo seguir e correr de volta pelo campo, cinzas voando atrás dela.
Não teve de esperar muito por Rafe. O nome de Fenton podia ter conotações más para algumas pessoas, mas aqueles que trabalhavam para a Fenton Coal and Iron saltavam do chão quando um Fenton falava.
Rafe veio num cavalo sarnento muito pequeno para seu corpo grande. Seu rosto e roupas estavam pretos de pó de carvão, mas o branco dos olhos mostrava sua raiva.
— O que você quer está em primeiro lugar, não é? A princesa Fenton consegue o que quer que peça — disse ele ao desmontar, olhando-a diretamente nos olhos.
— Não gosto daquele lugar.
— Ninguém gosta, acontece que alguns de nós têm de ganhar a vida.
— Não vim para brigar com você. Tenho alguma coisa importante para dizer-lhe. Tome aqui. — Estendeu-lhe um pedaço de sabão e um pano de lavar. — Não fique tão surpreso. Já vi pó de carvão antes.
Com mais um olhar na direção dela, ele pegou o sabão e o pano, ajoelhou-se no riacho e começou a ensaboar seu rosto e mãos.
— Tudo bem, diga-me por que me quis.
Pam sentou-se em uma pedra achatada, esticando as longas pernas na direção dele. Seu chapéu alto, duro e preto, fazia-a parecer mais alta do que era, mas o pequeno véu negro dava a seu rosto um ar de mistério e feminilidade.
— Quando eu tinha sete anos de idade, meu pai perdeu a duplicata da chave de sua gaveta particular na escrivaninha. Encontrei-a e guardei-a em minha caixa de tesouros. Quando tinha doze anos, descobri o que a chave abria.
— E desde então você tem espionado.
— Mantenho-me informada.
Ele esperou, mas ela não disse mais nada. Quando virou-se, com o rosto limpo, ela estendeu-lhe uma toalha.
— Assim o que foi que descobriu?
— Meu pai contratou homens de Pinkerton, meses atrás, para descobrir quem está trazendo sindicalistas para dentro dos campos de carvão.
Rafe levou tempo secando os braços. Eles eram musculosos devido aos anos empunhando uma marreta.
— Então, o que seus Pinkerton descobriram?
— Não meus Pinkerton. De meu pai. — Apanhou uma flor no terreno ao lado e brincou com ela. — Em primeiro lugar, descobriram que quatro mulheres jovens de Chandler, todas de famílias proeminentes, estão se disfarçando de velhas e trazendo mercadorias ilegais para os campos, sendo que ilegal é qualquer coisa com que meu pai não lucre. — Olhou para ele. — Uma das mulheres é a mulher de seu sobrinho.
— Houston? Aquela pequena frágil... — desviou o assunto. — Kane sabe?
— Duvido, mas eu não teria meios de saber, teria? — Ela observava-o com muita atenção. Quando ela e Kane eram bastante jovens, tiveram um caso que pensaram ser seu amor secreto, mas na verdade fora o mexerico mais quente da cidade. Quando encontrara Rafe, semanas atrás, no casamento das gêmeas, parecera-lhe que ele tinha todas as características do Kane de que ela gostara, além de um lado gentil que nunca vira num homem mais jovem. Durante dias, depois do casamento, esperou que ele ligasse óu lhe enviasse um bilhete, mas ele não fizera nenhum esforço para entrar em contato com ela. O maldito orgulho dos Taggert!, blasfemara. E fazia-a imaginar por que um homem como Rafe trabalhava em uma mina de carvão. Tinha de haver uma razão. Ele não era casado, não tinha a carga de uma família para sustentar.
— Por que você fica aqui? — perguntou. — Por que continua com isso? — Apontava com a cabeça em direção à estrada que levava para a mina.
Rafe pegou uma pedra na mão e atirou-a, olhando para além do pequeno riacho.
— Meus irmãos estavam aqui e Sherwin estava morrendo. Ele tinha uma esposa e filha para alimentar, e não aceitaria ajuda de mim ou de qualquer outro.
— O orgulho dos Taggert — murmurou ela.
— Eu fui até seu pai e concordei em trabalhar se ele desse meu salário para Sherwin. Seu pai gosta de ter os Taggert arrastando-se pelo dinheiro dele.
Ela ignorou a última parte.
— Desse jeito, Sherwin mantém seu orgulho e você pode ajudar seu irmão. O que você ganha com isso além de uma cãibra permanente em suas costas, devido a estes tetos de um metro e vinte de altura? — Ela olhou para ele.
— É só por uns poucos anos, ou era. Meu irmão e a filha foram morar com Kane e Houston.
— Mas você ficou.
Rafe olhou outra vez para o riacho e não respondeu.
— O relatório Pinkerton disse que há três suspeitos que podem estar trazendo sindicalistas para dentro. Um era um homem chamado Jeffery Smith, o segundo era o doutor Leander Westfield e o terceiro era você.
Rafe não olhou para ela ou falou, mas sua mão apertava e soltava uma pedra.
— Você não tem nada a dizer?
—- Os Pinkerton estão trabalhando como mineiros?
— Duvido que usem uniformes de agentes — disse ironicamente.
Ele levantou-se.
— Se isso é tudo o que tem a dizer, eu preciso voltar ao trabalho. Suponho que não saiba quais homens são os Pinks?
— Nem mesmo meu pai sabe — disse ela, levantando-se ao lado dele. — Rafe, você não pode continuar fazendo isso. Você não tem de ficar aqui. Posso lhe arranjar um emprego melhor se quiser, qualquer tipo de emprego.
Ele deu-lhe um olhar com os olhos semicerrados.
— Pode chamar de orgulho dos Taggert — disse ele, encaminhando-se para o cavalo emprestado.
— Rafe! — Ela pegou seu braço. — Eu não quis dizer... — Parou e deixou o braço cair. — Queria avisá-lo. Talvez não goste de como o fiz, talvez não goste do nome de meu pai, mas quis lhe dar uma chance de decidir o que quer fazer. Meu pai pode ser um homem implacável quando quer alguma coisa.
Ele não se moveu ou falou, e quando ela olhou para ele, estava olhando-a de uma maneira que fez seu coração saltar em sua garganta. Sem pensamento consciente, deu um passo à frente para os braços dele.
Seu beijo foi lento e gentil, e ela sentiu como se tivesse estado procurando aquele homem toda a sua vida.
— Encontre-me aqui à noite — murmurou ele. — Meia-noite. Use alguma coisa fácil de tirar. — Com isso, montou seu cavalo e partiu.

 

Capítulo XXXI

 

DEPOIS DO HORROR da manhã, e de sete horas cuidando de jovens feridos no estouro da boiada, Blair estava exausta. Sentia-se tão cansada que nem ficou zangada quando Lee recebeu um daqueles chamados que o faziam sair sem contar a ninguém para onde estava indo.
Ao anoitecer, começou a voltar para casa, parando no telégrafo para mandar à sua amiga, a dra. Louise Bleeker, uma mensagem:
PRECISO VOCÊ PONTO TENHO MAIS TRABALHO QUE POSSO RESOLVER PONTO VENHA IMEDIATAMENTE PONTO POR FAVOR BLAIR
Em casa, ignorando os protestos da sra. Shainess, Blair recusou qualquer janta e caiu na cama, totalmente vestida, às oito horas.
Acordou com o barulho de alguém tentando abrir com esforço a porta do quarto.
— Lee? — chamou e não houve resposta. Levantou-se da cama, foi até a porta e abriu-a. Leander estava ali, com a camisa suja, rasgada, ensangüentada. — O que aconteceu? — perguntou, instantaneamente alerta. — Quem foi ferido?
— Eu — disse Lee com voz rouca e entrou cambaleando no quarto.
Blair sentiu o estômago subir até a garganta e, por um momento, ficou parada ali vendo-o cambalear em direção à cama.
— Você vai ter de ajudar-me — disse, começando a tirar a camisa. — Não penso que seja sério, mas está sangrando muito.
Blair recuperou-se num instante. Pegou sua maleta médica do chão do armário, pegou tesouras e começou a cortar a camisa de Lee. Apoiou o braço dele em seu ombro e olhou os ferimentos. Havia sulcos longos, sangrentos, bem juntos, em seu lado direito, fisgando a pele daquele lado, e em um lugar expondo as costelas. Já vira bastante ferimentos a bala para reconhecer aqueles como tais. Uma vez que sangrara muito, não pensava que pudesse haver uma infecção.
Sua boca estava seca quando falou.
— Precisa de limpeza — disse, já pegando os instrumentos e desinfetante. Suas mãos estavam tremendo fortemente.
— Blair — disse Lee, e o único sinal de dor estava no som de sua respiração desigual. — Você vai ter de me ajudar em mais do que isso. Penso que os homens que atiraram em mim suspeitam de quem eu sou. Acho que podem vir aqui para prender-me.
Blair estava tão entretida em seu ferimento que não entendeu muito bem o que ele dizia. Era a primeira vez que tratava de alguém que amava, e esperava não ter de fazê-lo nunca mais. Começava a suar e seu cabelo estava ficando colado na testa.
Lee pôs a mão no queixo dela para fazê-la olhar para ele.
— Está me escutando? Acho que em poucos minutos alguns homens estarão aqui, e quero que eles pensem que estive aqui a noite toda. Não quero que pensem que atiraram em mim.
— E acertaram. — Blair tentava acalmar a voz, enquanto terminava de limpar os ferimentos e começava a enfaixá-lo.
— Quem são esses homens?
— Eu... Eu prefiro não dizer.
Ela estava preocupada e assustada por ele estar ferido, mas parte dela estava ficando furiosa por ele ter pedido sua ajuda sem dizer-lhe no que ela estava ajudando.
— São homens de Pinkerton, não são?
Pelo menos ela teve a satisfação de ver o olhar de surpresa total no rosto de Lee.
— Pode pensar que não sei de nada, mas sei mais do que você pensa. — Colocou a última atadura em volta das costelas. — Se você se mexer muito, começará outra vez a sangrar. — Sem outra palavra, foi ao guarda-roupa e tirou a camisola e o robe que usara na noite de núpcias, e apressadamente despiu-se e vestiu-as. Lee sentou-se na cama e observava-a, sem dúvida incerto do que ela iria fazer a seguir.
— Veremos quanto tempo temos — disse jogando-lhe a camisa limpa. — Pode entrar nisso sozinho? Preciso ficar de cabeça para baixo.
Lee, com muita dor, e muito chocado com o que Blair já dissera para ele, não lhe fez perguntas; mas tentou fazer o melhor para enfiar o corpo ferido na camisa, enquanto Blair deitava de atravessado na cama, com a cabeça para fora, pendurada.
Ambos estremeceram quando começaram as batidas na porta de baixo.
Blair levantou-se.
— Fique calmo. Vou mantê-los ocupados pelo tempo que puder. — Rapidamente, olhou-se no espelho e afofou o cabelo deixando-o vistoso. — Como estou? — perguntou, virando-se outra vez para ele. Seu rosto estava corado de ter ficado de cabeça para baixo, e seus cabelos estavam soltos pelos ombros num bonito desarranjo. Para todos os efeitos ela parecia uma mulher que acabara de ser amada.
Blair estava surpreendentemente calma quando alcançou a porta da frente da casa. Quando abriu, havia três homens enormes, mal-encarados, parados ali. E eles passaram por ela entrando na casa.
— Onde está ele? — perguntou um dos homens.
— Posso ir com você — disse Blair. — Já vou buscar minha maleta.
— Não queremos você — disse o segundo homem. — Queremos o doutor.
Blair parou no segundo degrau, ficando assim acima do nível dos olhos dos homens.
— Vocês levarão o que há — disse com raiva. — Já tive tudo o que pude agüentar desta cidade. Quer acreditem ou não eu sou uma doutora tanto quanto meu marido, e se vocês precisam de ajuda, eu posso dá-la. Leander está muito cansado e precisa de repouso, e posso assegurar-lhes que posso costurar um ferimento tão bem quanto ele. Agora está tudo acertado, vou apanhar minha maleta. — Virou-se para subir a escada.
— Espere um minuto, senhora. Nós não viemos aqui atrás de um médico. Nós viemos para levar seu marido para a cadeia.
— E por quê? — perguntou, virando-se outra vez para eles.
— Por estar onde não devia estar, é isso.
Blair desceu um degrau na direção deles.
— E quando foi isso? — perguntou com calma.
— Cerca de uma hora atrás.
Lentamente, com bastante evidência, Blair começou a ajeitar o cabelo, tentando pô-lo em ordem. Em geral ela não dava muita atenção à sua aparência, mas naquele momento queria parecer o mais sedutora que pudesse. Deixou a camisola cair um pouco fora de um ombro, e começou a sorrir para os homens.
— Senhores, há uma hora meu marido estava comigo.
— Tem alguma prova disso? — perguntou um dos homens.
Os outros dois estavam olhando para ela com as bocas ligeiramente abertas.
— Absolutamente nenhuma — sorriu com benevolência. — Claro, estou dando a palavra de uma Chandler, numa cidade que tem o nome de meu pai. Talvez, se gostassem de desmentir o que disse... — pestanejou inocentemente quando os homens olharam para ela.
— Não creio que gostariam de fazer isso, querida — disse Lee por detrás dela. Seu rosto estava corado e parecia cansado, mas também era como qualquer homem que tivesse acabado de fazer amor com a esposa. — Acredito que ouvi vocês dizerem que eu estava em algum outro lugar uma hora atrás. — Moveu-se para ficar ao lado de Blair e, para os homens abaixo, devia parecer que ele se encostara nela, mas na verdade ela o estava apoiando.
Durante alguns momentos, houve silêncio na pequena casa escura, e Blair e Lee prenderam as respirações quando os homens pararam, mirando-os. Finalmente, o homem que era o chefe deu um suspiro.
— Você pode pensar que nos enganou, Westfield, mas não. Ainda o pegaremos. — Olhou para Blair. — Se quiser mantê-lo vivo, é melhor prendê-lo em casa.

Nem Blair nem Lee disseram uma palavra quando os homens deixaram a casa batendo a porta atrás deles. Blair desceu correndo as escadas para trancar a porta. Quando se virou, viu que Lee estava empalidecendo. Subiu apressada as escadas e ajudou-o a ir até a cama.
Blair não dormiu mais aquela noite. Depois de ter posto Lee na cama, sentou-se perto dele, observando cada respiração como se ele pudesse parar de respirar se não estivesse ali para protegê-lo. Cada vez que pensava em como aquelas balas tinham passado perto de seu coração, começava a tremer outra vez, e apertava a mão dele com mais força.
Ele dormiu agitado, algumas vezes abrindo os olhos e sorrindo para ela, e então dormindo outra vez. As emoções de Blair iam do terror por ele ter chegado tão perto da morte ao reconhecimento do quanto o amava e à fúria por ele estar fazendo alguma coisa que possivelmente iria acabar matando-o.
Quando a luz da madrugada entrou no quarto, Lee por fim acordou e tentou sentar-se. Blair abriu as cortinas.
— Como se sente? — perguntou.
— Enfaixado, dolorido, esfolado e faminto.
Ela tentou sorrir para ele, mas seus lábios não reagiam de acordo. Cada músculo em seu corpo doía por ter ficado rígida a noite toda.
— Vou lhe trazer o café.
Ajuntou os trapos ensangüentados e a camisa de Lee para levar para baixo com ela. Uma boa coisa na casa de um médico é que ninguém repara numa lata de lixo cheia de trapos ensangüentados.
Ainda era muito cedo para a sra. Shainess chegar, portanto Blair fritou meia dúzia de ovos para os dois, cortou fatias grossas de pão e encheu grandes canecas com leite frio. Levou a grande bandeja para cima, e quando encontrou Lee já fora da cama e meio vestido, não disse nada mais e começou a arrumar a mesinha perto da janela.
Lee sentou-se na cadeira com dificuldade e começou a comer enquanto Blair permaneceu em sua frente, mexendo a comida no prato.
— Está bem — disse Lee. — Diga-me o que está em sua cabeça.
Blair tomou um gole de leite.
— Não tenho idéia do que quer dizer.
Ele tomou-lhe a mão.
— Olhe-se. Está tremendo tanto hoje como ontem.
Ela afastou a mão rapidamente.
— Suponho que está pensando em ir ao hospital hoje — disse ela.
— Tenho de me mostrar. Tenho de fingir que nada aconteceu. Não posso deixar as pessoas saberem onde estive ontem à noite.
— Não qualquer uma! — atirou ela, enquanto seu punho caía na mesa, e no momento seguinte estava de pé. — Olhe-se, você mal consegue sentar-se, muito menos ficar na cirurgia o dia todo. E seus pacientes? Pode manejar um bisturi com precisão? Onde esteve na noite passada? É alguma coisa pela qual valha a pena arriscar a vida?
— Não posso lhe contar — disse, voltando para seus ovos. — Eu contaria, mas não posso. Lágrimas começaram a fechar a garganta dela.
— Ontem, ficou furioso comigo porque arrisquei minha vida. Ondenou-me que parasse de arriscá-la, mas agora as mesas estão viradas, e eu não tenho os mesmos direitos. Os mesmos! Eu nem ao menos posso saber por que corro o risco, de perder meu marido. Devo ser uma boa menina, ficar em casa, esperar, e, se ele voltar para casa ferido, remendá-lo. Tenho permissão de flertar com os homens de Pinkerton no meio da noite, mas não sei por quê. Tenho permissão de vê-lo sofrendo, sem saber qual a causa. Diga-me, Lee, você também atira nessas incursões? Você está numa situação de matar ou ser morto? Você mata tantas pessoas quantas salva?
Lee mantinha a cabeça abaixada, comendo com deliberação e lentidão.
— Blair, já lhe contei tudo que posso. Você vai ter de confiar em mim.
Por um momento, ela afastou-se, tentando controlar as lágrimas.
— É o que uma boa esposinha faria, não é? Ficar em casa, esperar e não fazer perguntas. Bem, não sou uma menininha boa! Sempre fui desafiadora. Sempre fui uma participante e não uma observadora. E agora quero saber do que está participando.
— Maldição, Blair — gritou Lee, e então fechou os olhos por causa da dor do lado. Olhou outra vez para ela. — Talvez por uma vez você devesse ser uma observadora. Já lhe disse que não posso. Não quero você envolvida mais do que já está.
— Assim, devo continuar inocente, está certo? Em seu julgamento, posso dizer com honestidade que não sei de nada, que mesmo quando meu marido volta para cá com dois ferimentos a bala, eu continuo inocente.
— Alguma coisa desse tipo — resmungou Lee, pousando o garfo e olhando para ela. — Você diz que me ama, que talvez tenha me amado durante anos; bem, agora é o teste. Se você me ama, terá de confiar em mim. Por uma vez em sua vida, terá de pôr de lado seus desafios e suas participações. Preciso de você agora, não como colega ou uma igual, mas como uma esposa.
Blair ficou olhando para ele um longo tempo.
— Acho que você está certo, Lee — disse com meiguice. — Acho que talvez até agora nunca imaginei como uma esposa deve ser. — Sua voz abaixou. — Mas vou tentar aprender. Confiarei em você, e não perguntarei outra vez onde esteve. Mas, se você quiser contar-me, estarei aqui para ouvi-lo.
Muito da dor começou a deixar o rosto de Lee enquanto apoiava a mão esquerda na mesa e levantava-se. Blair foi ajudá-lo.
— Lee, por que não vai hoje à clínica? Não terá nenhuma cirurgia para fazer. A senhora Krebbs estará lá para ajudá-lo, e será mais fácil. Além do mais, um homem de Pinkerton sempre parecerá suspeito de todas as mulheres.
— É uma boa idéia — disse ele beijando-lhe a testa. — É o tipo de conversa de que gosto.
— Só estou tentando ser uma boa esposa. Aqui, deixe-me ajudá-lo a vestir-se.
— E você? Não devia estar se vestindo?
— Para dizer-lhe a verdade, acho que estou um pouco cansada hoje. Depois da horrível experiência da manhã de ontem, e depois desta noite, sem mencionar hoje, acho que gostaria de ficar em casa me cuidando.
— Bem, sim, claro — disse Lee. Blair tinha razão, mas ele nunca a ouvira dizer uma coisa assim antes. — Fique em casa e descanse. Tomarei conta da clínica.
Ela sorriu-lhe através das pestanas.
— Você é o mais bondoso dos maridos.

Cinco minutos depois de Lee sair de casa, Blair estava telefonando para a irmã:
— Houston, onde posso comprar uma caixa de dez quilos de sais de banho? E onde posso arrumar uma manicure e um suprimento de chocolate de hora em hora, e onde posso comprar linhas de seda? Não ria de mim. Vou tornar-me o epítome da esposa perfeita, esta noite. Vou dar ao meu querido marido o que ele pensa que quer. Agora, vai ficar aí rindo o dia todo ou responder as minhas perguntas?

 

Capítulo XXXII

 

QUANDO LEANDER voltou para casa às seis, encontrou Blair esticada no divã da sala de visitas, uma caixa de chocolate no chão ao lado de uma confusão de revistas. Blair, aparentemente sem perceber sua entrada, estava chupando um pedaço de doce e lendo com entusiasmo uma novela. Ao aproximar-se dela, pôde ver a palavra "sedução" no título do livro.
— Isto é alguma coisa nova — disse Lee, sorrindo para ela. Blair lentamente girou a cabeça para olhar para ele, um sorriso leve nos lábios.
— Alô, querido. Teve um dia agradável?
— Não foi até agora — disse ele com os olhos iluminados ao curvar-se em sua direção.
Mas Blair virou-se exatamente quando a boca de Lee aproximou-se da sua, e o beijo aterrissou-lhe na face.
Ela pôs o pedaço todo de chocolate dentro da boca, e pela dificuldade que estava tendo para mastigar, devia ser um caramelo.
— Quer ser um amor e ir buscar mais limonada enquanto termino este capítulo? E depois, é melhor que vá se vestir para o jantar. A sra. Shainess e eu preparamos alguma coisa especial.
Ele levantou-se, pegando o copo vazio que ela lhe estendia.
— Desde quando você e a governanta fazem coisas juntas?
— Ela realmente é uma mulher muito boa, se soubermos como falar-lhe. Agora, Leander, por favor, vá. Estou morrendo de sede e você não quereria deixar uma dama esperando, não é?
Com um olhar intrigado, ele virou-se.
— Certo, já voltarei.
Quando ele se foi, ela acabou de mastigar o doce, sorrindo para si mesma enquanto continuava lendo seu livro. Esperava que a heroína quebrasse uma cadeira na cabeça do herói "sardônico" e lhe dissesse que fosse se afogar.
— Oh, Lee — disse, quando ele reapareceu com a limonada —, você ainda não se trocou para o jantar?
— Estive muito ocupado pegando limonada para você, se não percebeu — retrucou ele.
No mesmo instante, os olhos de Blair se encheram de lágrimas, e ela tocou os cantos dos olhos com um lenço de beirada de renda.
— Sinto muito ter me imposto a você, Leander. Eu só pensei que uma vez que você estava de pé e eu... Oh, Lee, trabalhei tanto hoje e...
Ele estremeceu ao ajoelhar-se a seu lado, tomando a mão dela nas suas, enquanto afastava três revistas para o lado para chegar mais perto.
— Sinto ter sido implicante. Mas não é nada para chorar.
Blair fungou com delicadeza.
— Não sei o que há de errado comigo ultimamente. Tudo parece me perturbar.
Lee beijou-lhe a mão, acariciou-a.
— Provavelmente não é nada. Todas as mulheres às vezes ficam assim.
Ele tinha abaixado a cabeça e não viu os olhos de Blair cuspirem fogo.
— Provavelmente você está certo. Estou certa de que é só um problema feminino. Calores ou coisa assim.
— Provavelmente — disse ele, sorrindo e acariciando sua testa.
— Descanse enquanto me troco. Um bom jantar fará você sentir-se melhor.
— Você é tão sábio — murmurou Blair. — Tenho o mais sábio dos maridos.
Ele levantou-se, sorrindo para ela, e, com uma piscadela, deixou a sala. Quando Blair ouviu-o subir as escadas, pulou fora do divã e ficou de costas para a lareira, as mãos nos quadris e olhou com os olhos penetrantes em direção ao quarto de dormir deles.
— De todos os convencidos, arrogantes... — disse alto. — "Todas as mulheres às vezes ficam assim." Ele é pior do que eu pensei. — A raiva fez com que começasse a andar de um lado para outro. — Vou lhe dar "problemas de mulheres", Leander. Espere e veja se não vou. Vou ser mais do que você já sonhou que uma mulher possa ser.
Quando Leander já se banhara e se trocara para o jantar, Blair já conseguira acalmar-se, tanto que pôde sorrir para ele outra vez. Ele mostrava-se muito atencioso, puxando a cadeira para ela, cortando a carne e servindo-a. Ela se manteve quieta e calma, sem falar muito, mas sorrindo com afetação enquanto cortava a carne em pedaços bem pequenos.
— Hoje apareceu um caso interessante na clínica — Lee estava dizendo. — A mulher pensa que está grávida, mas eu acho que é um cisto. Gostaria que a examinasse amanhã.
— Oh, Lee, não posso. Houston marcou outra hora para mim em sua costureira, depois Nina e eu temos um almoço de noivado, e durante a tarde preciso voltar para cá para supervisionar a casa. Realmente não tenho tempo algum.
— Está bem. Suponho que o caso possa esperar até o fim da semana. Assim, você não irá à clínica de mulheres outra vez amanhã?
— Não vejo como possa ir — olhou para ele através dos cílios. — Toma mais tempo do que pensei para ser uma esposa. Parece que há tantas coisas que precisam ser feitas. E agora que vou ser parte de Chandler outra vez, sinceramente acho que devo ajudar nas obras de caridade. Há a sociedade de ajuda das senhoras e a Missão Cristã e...
— A clínica Westfield — acrescentou ele. — Parece que o que está fazendo lá é mais do que suficiente para ajudar a cidade.
— Bem, claro — disse Blair duramente —, se você insiste, irei à clínica amanhã. Cancelarei a costureira, e tenho certeza de que as outras esposas podem se arranjar sem mim. Elas vão ter de entender que você quer que eu trabalhe fora de casa. Estou certa de que posso fazê-las compreender o fato de uma mulher ter de colaborar com as despesas da casa.
— Pagar pela... — Lee estava sufocado. — Desde quando fiz você pagar por qualquer coisa nesta casa? Quando já falhei com minhas obrigações de mantê-la? Você não tem de trabalhar amanhã ou nunca. Pensei que você quisesse trabalhar.
Blair parecia próxima das lágrimas outra vez.
— Eu queria, eu quero. Mas não sabia que ser uma esposa tomasse tanto tempo. Hoje precisei planejar as refeições. Aquela nova empregada é absolutamente impossível, e quando as fitas do meu novo vestido chegaram eram da cor errada! Eu só queria estar bonita para você, Lee. Eu quero fazer um bonito lar para você e ser a melhor, a mais linda esposa que qualquer homem já teve. Quero que tenha orgulho de mim, e é tão difícil quando fico na clínica o dia todo. Eu não sabia...
— Tudo bem — interrompeu Lee, jogando o guardanapo na mesa. — Não queria gritar com você. Só entendi mal o que você quis dizer. Não tem de ir à clínica amanhã ou qualquer outro dia. — Pegou-lhe a mão e começou a acariciar-lhe os dedos.
Ela afastou-se dele e começou a dobrar o guardanapo.
— John Silverman ligou pela manhã e pediu-me para dizer-lhe que há um encontro importante hoje à noite em seu clube. Ele não explicou, e eu não perguntei sobre o que era.
— Sei do que se trata, e podem se arrumar sem mim. Na verdade queria conversar com você sobre um par de pacientes. Há um homem no hospital com uma mão infeccionada. Pensei que você poderia dar uma olhada. Gostaria de avaliar outra opinião.
— A minha? — Blair bateu os cílios. — Você me lisonjeia, Lee. Eu ainda nem terminei meus estágios. O que poderia eu dizer-lhe que você, com toda sua experiência, já não sabe?
— Mas no passado...
— No passado, eu não era a esposa de alguém. Não sabia quais eram todas as minhas responsabilidades. Lee, eu realmente acho que você devia ir ao seu clube. Me sentiria horrível se soubessem que o mantive afastado de seus amigos. Além disso, realmente gostaria de terminar minha novela.
— Oh — disse Lee com frieza. — Suponho que devesse ir ao clube.
— Sim, querido, você deve — disse ela, levantando-se. — Jamais quereria que dissessem que interferi em sua vida. Uma esposa deve apoiar o marido em qualquer coisa que faça e não o atrapalhar.
Lee afastou a cadeira e começou a levantar-se. Seu lado doía, e ele queria ficar em casa e ler os jornais, mas também era verdade que não visitara seu clube desde que se casara. Talvez Blair estivesse certa e ele devesse ir. Poderia sentar-se lá tão bem como em casa e descobrir o que eles teriam ouvido sobre o tiroteio na mina, na noite anterior.
— Está certo. Irei, mas não demorarei muito. Talvez possamos conversar quando voltar.
— Um dos deveres de uma esposa é ouvir seu marido — disse Blair, sorrindo. — Agora, vá logo, querido, para seu clube. Tenho uma costurinha para fazer, e ainda é cedo. — Beijou-lhe a testa. — Vejo você pela manhã. — Saiu da sala antes que Lee pudesse dizer uma palavra.
De cima, ela observou-o da janela do quarto de hóspedes. Ele andava muito desajeitado, e ela sabia que sentia dor, mas não assumiria a culpa de tê-lo mandado embora sozinho. Certamente ele merecia aprender uma lição.
Quando perdeu de vista a carruagem, Blair desceu e ligou para Nina.
— Vamos cavalgar amanhã — disse Blair — ou poderei ficar maluca por falta de exercício. Você acha que seu pai poderia me fazer entrar no hospital amanhã, para ver um paciente? Em segredo? Sem ninguém saber que estive lá?
Nina ficou em silêncio por um momento.
— Tenho certeza de que ele pode, e, Blair, bem-vinda ao lar.
— É bom estar em casa — disse sorrindo. — Encontro você às nove na bifurcação do Tijeras. — Ouviu Nina desligar o telefone, e então disse severamente. — E, Mary Catherine, se uma palavra dessas sair daí, saberei quem foi.
— Estou ofendida, Blair-Hoüston — disse a telefonista —, eu não escu... — Percebeu o que estava dizendo e puxou a tomada da linha.
Blair foi para a cozinha, onde preparou um sanduíche de rosbife. No jantar, servira-se de uma tal porção de dama que agora estava morrendo de fome.
Quando Lee voltou para casa, já estava deitada e fingiu que dormia. E, quando ele começou a acariciar seu quadril e levantar sua camisola, pretextou cansaço, dizendo que estava com dor de cabeça aguda. Quando ele virou, afastando-se, Blair teve outros pensamentos sobre o que estava fazendo. Estava se machucando mais que a ele?
— É osteomielite — disse Blair para Reed, ao abaixar com cuidado a mão do homem. — Da próxima vez que bater na boca de alguém, descubra uma pessoa que escove os dentes — disse ao paciente.
— Acredito que foi o que Lee pensou — disse Reed. — Mas ele queria outra opinião.
Ela fechou a maleta e dirigiu-se à porta.
— Estou lisonjeada por ele ter-me escolhido para perguntar. Mas está combinado que não lhe dirá que estive aqui?
Reed mostrava desagrado, seu rosto feio formando rugas profundas.
— Concordei, mas não gosto disso.
— Como concorda em ajudar Lee com sei lá o que faz que o traz de volta para casa com ferimentos a bala?
— Lee está ferido? — Reed estava assustado.
— Uns poucos centímetros para a esquerda e a bala teria perfurado o coração.
— Eu não sabia. Não me contou...
— Parece que ele não conta muito de si para os outros. Onde é que ele vai que acaba voltando para casa sangrando?
Reed olhou para sua nora, viu o fogo brilhando em seus olhos, e sabia que não poderia contar-lhe sobre as idas de Lee às minas. Não só tinha respeito pelo desejo de seu filho, como não confiava na personalidade salvadora do mundo de Blair. Era bem dela fazer alguma coisa tola, talvez tão tola como a que Lee estava fazendo.
— Não posso lhe contar — disse por fim.
Blair simplesmente concordou com a cabeça e saiu da sala. Fora, um cavalo selado a aguardava, e ela partiu firme e rápido para alcançar a bifurcação sul do rio Tijeras onde devia encontrar-se com Nina.
Nina olhou para Blair, depois para o cavalo, ambos suados, ambos arfando.
— Meu irmão é a causa dessa corrida?
Blair desmontou.
— Ele é o homem vivo mais enfurecedor, fechado, discreto e impossível.
— Concordo, mas o que foi que ele fez especificamente?
Blair começou a tirar a sela do cavalo para deixar o pobre animal descansar.
— Você sabia que seu pai liga para ele, de dia ou de noite, onde ele estiver, e então Lee desaparece horas e se recusa a dizer a qualquer um aonde foi? Dois dias atrás, voltou para casa com dois ferimentos de bala no lado e os Pinkerton perseguindo-o durante o caminho todo até a porta da frente da casa. Foram eles que atiraram nele. O que está ele fazendo? — gritou, ao deixar a sela cair no chão.
Os olhos de Nina estavam arregalados.
— Mas não tenho idéia. Isso está acontecendo há muito tempo?
— Não sei. Sou considerada muito estúpida para saber. Só tenho permissão de suturar seus ferimentos, não perguntar onde os conseguiu. Oh, Nina, o que devo fazer? Eu simplesmente não posso ficar parada e vê-lo partir e não saber se ainda voltará.
— Os Pinkerton atiraram nele? Então o que ele estava fazendo devia ser...
— Ilegal? — perguntou Blair. — Pelo menos para o outro lado da lei. E sabe de uma coisa? Parte de mim nem ao menos se importa. Tudo que quero é a segurança dele. Não estou certa de que me importaria se ele estivesse assaltando bancos nas horas de folga.
— Assaltando...? — Nina sentou-se numa pedra. — Blair, realmente não tenho idéia do que ele está fazendo. Papai e Lee sempre me protegeram de qualquer coisa desagradável. E mamãe e eu sempre os protegíamos do mesmo modo. Talvez estivéssemos muito envolvidas no que fazíamos secretamente para pensar que nossos homens tivessem qualquer segredo.
Com um suspiro, Blair sentou-se perto da cunhada.
— Lee descobriu que eu estava levando panfletos para a mina.
— Estou contente de ver que sua cabeça ainda está em seus ombros. Primeira vez que viu seu temperamento.
— E a última, espero. Tentei dizer-lhe que estava tão preocupada com seu desaparecimento como ele estava com o meu, mas não quis me ouvir.
— Ele tem a cabeça feita de pedra — disse Nina resignada. — Agora, o que vamos fazer? Ninguém mais tem acesso às minas, e se Lee descobriu com tanta facilidade, tenho medo de mandar os panfletos com Houston ou as outras carroceiras.
— Ontem, tive tempo para pensar, e alguma coisa que Houston disse deu-me uma idéia. Ela disse que sempre quis escrever para uma revista feminina. E se começássemos uma revista e, devido a um senso de caridade, déssemos cópias para as senhoras das minas de carvão? Poderíamos submeter cópias prévias para a diretoria da mina para aprovação, e tenho certeza de que nos deixariam distribuí-las, desde que fossem cheias de artigos absolutamente inofensivos.
— Sobre os últimos estilos de penteados? — perguntou Nina, os olhos começando a iluminar-se.
— Nosso maior apelo combativo seria para acabarem com a matança sul-americana de beija-flores, para aproveitarem as penas em chapéus de senhoras.
— E nem uma palavra sobre organizarem um sindicato?
— Nem uma palavra que alguém possa ver.
Nina sorriu.
— Acho que vou gostar de sua explicação. Oh, Alan, por favor, termine a escola para que possamos vir para casa. Como incluiremos nossas informações?
— Código. Li sobre um código usado durante a Revolução Americana. Era uma série de números e letras que se referiam a uma página específica de um livro específico. Os números referiam-se a letras e, contando um pouco, você podia decifrar a mensagem. Eu imagino que todas as casas tenham uma bíblia.
Nina levantou-se, as mãos apertadas de excitação.
— Podíamos pôr um salmo de referência na primeira página da revista e então... Como disfarçamos os números? O comitê das minas não ficará com suspeitas vendo uma página de números numa revista de senhoras? Afinal, nós damas não entendemos de matemática.
Blair deu-lhe o seu sorriso de gato-que-engoliu-o-cretne:
— Receitas de crochê. Teremos páginas de receitas de crochê cheias de números. Poremos um "como fazer uma manga esquerda" de vez em quando, mas a coisa toda em código, contando aos mineiros o que está acontecendo pelo país com os sindicatos.
Nina fechou os olhos e pôs a cabeça para trás por um momento.
— É absolutamente brilhante, Blair, e, mais importante, penso que dará certo. Você está na clínica o tempo todo, portanto irei à biblioteca e estudarei esse código e...
— Não estarei na clínica durante alguns dias — disse Blair séria.
— Mas, pelo que ouvi, você tem tantos pacientes que eles ficam esperando na rua.
Blair olhou para longe, na direção do rio.
— Eu tinha — disse baixinho e de repente levantou-se. —- Às vezes eu poderia estrangular seu irmão — disse veementemente. — Estou tentando ensinar-lhe uma lição, mas ele pode ser muito cabeça-dura para aprender. Ele pensa que é meu pai! Ele me dá presentes, uma clínica de mulheres, ele me dá ordens, supervisiona tudo o que faço e, quando ouso perguntar sobre ele, reage escandalizado, como se eu fosse uma criança perguntando a seu pai quanto ganha em dinheiro. Sei tão pouco sobre Leander. Ele não compartilha uma única coisa sobre ele comigo, mas não posso nem mesmo dar um passo fora sem ele saber. Eu não quero outro pai, estou perfeitamente contente com o que tive. Mas como provar-lhe que não sou uma menina?
— Eu nunca fiz qualquer progresso — disse Nina. — É um milagre que meu pai ainda não me compre bonecas para meu aniversário. Você disse que está tentando dar uma lição a Lee. Como?
— Eu, bem... — Blair afastou o olhar. — Ele fica me dizendo que quer uma dama, portanto estou tentando ser uma.
Nina pensou por um momento:
— Você quer dizer, tomar banhos de espuma, ser inútil e chorar quando quebram pratos?
Blair virou-se com um riso:
— E gastando muito, comendo chocolates e tendo dor de cabeça à noite.
Nina começou a rir.
— Aviso que pode levar dez anos para Lee perceber que estão lhe ensinando uma lição. Você deve exagerar no que faz. É uma pena que não possa desmaiar com a visão de uma unha lascada.
Blair suspirou.
— Mas até agora, com exceção da dor de cabeça, ele gostou do que tenho feito. Ele não se importa se eu ficar em casa o dia todo e orientar a senhora Shainess.
—- Mas você está ficando maluca, certo?
— Agora não fico mais — Blair sorriu. — A tarde, começareia organizar um código para o material do sindicato. Pelo menos isso me dará alguma coisa para fazer. Se continuar a ficar em casa, minha mãe pode começar a me mandar cestos de cerejas para fazer conservas.
— Tenho uma receita de ameixa-roxa que...
— Fará sua boca gritar de alegria — terminou Blair. — Já ouvi falar — disse ela, pondo a sela de volta no cavalo. — Ainda não cheguei ao ponto de colecionar receitas, mas, se olhar para outra amostra de tecido, poderei desmaiar. Ligo amanhã para você e conto-lhe como vou indo com nossas receitas de crochê. Gostaria de tê-las prontas antes de começarmos com o resto da revista, e antes que deixemos mais alguém saber de nossos planos. Nós as imprimiremos e mostraremos às outras sobre o que estamos falando. Quando tem de voltar para a Filadélfia?
— Dentro de dez dias. Vai parecer uma eternidade antes que Alan termine a escola.
— Quero que conheça minha tia e meu tio na Pensilvânia. Vou lhe dar o endereço deles e escreverei falando sobre você. E tenho uns poucos amigos lá. Você não estará inteiramente sozinha.
— Obrigada. Talvez me ajudem a fazer o tempo passar mais depressa. Boa sorte com Lee — falou, quando Blair montou e partiu.

 

Capítulo XXXIII

 

DEPOIS DE quatro dias de ser a dama perfeita, Blair não sabia se ia ser capaz de agüentar o esforço. Com respeito a si mesma, com pouco mais que as obrigações mundanas de dirigir uma casa estava ficando cansada e irritada. E a pior parte era estar tentando dar uma lição a um homem quando ele nem ao menos sabia que estava na escola. Ele vira sua esposa durante quatro dias como uma semi-inválida, sem sexo, e tudo que Blair ouvira dele fora um murmurado "suponho que a lua-de-mel acabou".
Durante o dia, trabalhava no código até ficar quase cega, contando palavras, fazendo anotações e traduzindo o panfleto de Nina em uma bizarra combinação de palavras e números.
Na manhã do quinto dia, estava certa de que não iria agüentar muito mais tempo. Saiu de casa com a intenção de ir fazer compras e adquirir alguma coisa frívola que pudesse mostrar a Lee, mas, em vez disso, acabou na livraria do sr. Pendergast, procurando por qualquer coisa sobre medicina que pudesse encontrar.
Nem ao menos percebera alguém perto dela até que o homem falou.
— Ele deve entregar a mercadoria na quinta à noite.
Blair levantou os olhos para ver o homem que Lee chamara de LeGault parado perto dela. Teve de controlar o tremor que ameaçava abalá-la. Se o homem estivesse em uma maca, sangrando, ela não se importaria de tocá-lo, mas, vivo e bem, não agüentava ficar perto dele. Com um leve e frio aceno para ele, afastou-se.
Ela estava olhando uma cópia de She por H. River Haggard quando sua cabeça entendeu. O que dissera para ela?
Olhou em volta da loja até que o viu já para sair.
— Senhor — chamou, e reparou os olhares curiosos que recebeu do dono da loja e das duas mulheres freguesas no fundo. — Achei o livro que o senhor disse estar procurando.
LeGault sorriu-lhe.
— Muito agradecido — disse alto antes de encaminhar-se para ela. Blair sabia que precisava pensar rápido como nunca pensara na vida. Não queria que aquele homem pensasse que não sabia de nada sobre o que estava se referindo. E, ao mesmo tempo, queria descobrir tudo o que pudesse.
— Ele deve entregar no mesmo lugar da última vez? — perguntou ela.
— Exatamente. — Ele examinava o livro como se estivesse fascinado por ele. — Não haverá problema, haverá?
— Nenhum — hesitou. — Exceto que, desta vez, eu estarei fazendo a entrega.
LeGault pôs o livro de volta na prateleira.
— Afinal não é o livro que estou procurando — disse alto. — Bom dia para a senhora. — Tocou o chapéu e saiu da loja.
Blair esperou o mais que ousou, e então saiu atrás dele. Uma vez que qualquer coisa que uma das gêmeas fizesse seria notícia, ela quase podia sentir os olhos das pessoas da livraria observando-a quando saiu. Agindo com calma para calçar as luvas com segurança, ela podia ver com o canto dos olhos LeGault encaminhando-se para o leste pela rua Second, em direção ao Parker's Ladies Wear. Blair foi pelo norte, atrás do Danver Hotel, cruzou o Lead, atrás do Raskin Building e saiu outra vez na Second — fora dos olhos curiosos das freguesas da livraria do sr. Pendergast.
LeGault passeava pela rua, bengala no braço, parecendo para todo mundo um homem desocupadamente vendo vitrines. Blair atravessou a rua e foi ver a vitrine da loja Parker.
Não sentia que tivesse tempo para conversar com o homem:
— Sei de tudo.
— Pensei que soubesse, ou não teria mencionado para você, em primeiro lugar. — Estava olhando direto para frente, para a vitrine. — Mas não é lugar para uma mulher.
— Não imagino que também seja um lugar para um homem.
— Imagina? Pensei que soubesse. — Ele olhava para ela.
— Eu sei. E também sei que esta é a última vez que meu marido fará isso. Ele ainda não se recuperou dos ferimentos da última vez e por isso devo tomar seu lugar. Depois desta, você terá de fazer o que puder sozinho. Nenhum de nós estará outra vez envolvido.
Ele parecia estar pensando nas palavras dela.
— Então, está bem. Quinta à noite, às dez. Encontre-nos no lugar de sempre — decidiu e começou a ir embora.
— Onde devo deixar minha carruagem? Não quero que ela seja reconhecida.
Ele voltou.
— Estou começando a duvidar da sabedoria disso. Tem certeza de que pode resolver? Que sabe o que está envolvido?
Blair pensou que era melhor manter a boca fechada, portanto só concordou com a cabeça.
— Precisaremos de sua carruagem, portanto estacione atrás do Aztec Saloon na alameda Belk. Espere lá e alguém a encontrará e lhe dará a caixa. Não me falhe. Se não aparecer, será seu marido que o pegará.
— Compreendo — murmurou ela.
Durante os dois dias até quinta, Blair ficou totalmente tonta, parecendo não se lembrar de nada, de fazer o que devia ou sem pensar em qualquer coisa além do que tinha a fazer na noite de quinta, quando então descobriria o segredo de seu marido. Ela disse a Nina que não se importava que ele fosse um criminoso ou não, que o amava da mesma forma. O momento da verdade chegaria. Ela tinha certeza de que Lee estava envolvido em alguma coisa ilegal, e iria participar a fim de mantê-lo de fora. Esperava com isso que ele parasse com aquela atividade.
Na quinta a noite, vestiu-se com seu uniforme de médica. Lee fora chamado ao hospital para atender três pistoleiros que tinham sido feridos perto da fronteira do Novo México. Estava amedrontada e nervosa quando desceu as escadas para o estábulo onde sua carruagem a aguardava.
Somente uma vez antes estivera naquela parte da cidade onde devia esperar por LeGault, atendendo a uma paciente com Lee. Ignorando os assovios por verem uma mulher sozinha na área, foi para trás do Aztec Saloon e esperou.
Kane Taggert acordou lentamente, sentindo que alguma coisa estava errada. A cama vibrava e ele estava longe de saber o motivo. Espantado, virou-se para Houston. Ela tremia violentamente, e, apesar de estar encolhida sob as cobertas, sentiu-a muito fria ao tocá-la. Puxou-a para seus braços e, para sua consternação, ela ainda parecia estar dormindo.
— Houston, doçura — disse com gentileza, mas com alguma urgência. — Acorde.
Quando Houston acordou, passou a tremer mais ainda, enquanto Kane a abraçava.
— Minha irmã está em perigo. Minha irmã está em perigo. Minha irmã... — repetia.
— Está bem — disse Kane, saindo da cama. — Fique aí que vou telefonar para a casa dela e ver o que está acontecendo.
Kane desceu a escada de dois em dois degraus e correu para a biblioteca. Não houve resposta na casa de Westfield. A telefonista disse que pensava que Leander fora chamado no hospital, para atender alguns feridos. Kane fez uma ligação para o hospital. A enfermeira, que atendeu estava relutante em chamar Leander ao telefone.
— Não me importa o que ele esteja fazendo, não é tão importante como isto. Diga-lhe que a vida de sua mulher está em perigo.
Leander estava ao telefone em menos de um minuto.
— Onde está Blair?
— Não sei. Houston está lá em cima tremendo tanto que a cama quase se quebra e mais fria que um cadáver. Fica repetindo que Blair está em perigo. Não sei de nada mais, mas pensei que você devesse saber. Ela não ficou assim quando Blair foi levada por aquela francesa, portanto talvez desta vez esteja realmente em perigo.
— Descobrirei — disse Lee e baixou o telefone para interromper a ligação, depois levantou-o outra vez. — Mary Catherine — disse para a telefonista —, quero que encontre minha esposa. Ligue para quem quiser, mas encontre-a o mais rápido possível. E não deixe ninguém saber que está procurando por ela.
— Não estou certa de que deva depois do que ela me disse na semana passada. Ela acusou-me de ouvir as conversas.
— Encontre-a, Mary Catherine, e verei para que ela faça o parto de todos os seus filhos e de sua irmã de graça. E tirarei aquela verruga da sua mão direita.
— Me dê uma hora — disse a telefonista e puxou a tomada. Lee estava seguro de que aquela seria a hora mais longa de sua vida. Voltou para a cirurgia e ficou satisfeito ao ver que a sra. Krebbs tinha costurado as costas do pistoleiro ferido. Ela queria dizer-lhe algo por ter deixado a sala de operações, mas ele não ouviu. Tudo o que podia pensar era que iria matar Blair assim que pusesse as mãos em seu pescoço. Não o espantava que ela tivesse sido tão dócil ultimamente: com certeza planejava alguma coisa para pôr sua vida em perigo. Voltou para o vestíbulo da entrada do hospital onde estava o telefone e fumou um charuto após o outro, até que algumas enfermeiras começaram a queixar-se da fumaça. Ele rosnou tão ferozmente para o bando, que elas se retraíram com timidez. Andava por perto do telefone, e quando um orgulhoso novo papai tentou pegá-lo, Lee ameaçou sua vida e a de seus descendentes se ele tocasse no aparelho. A cada dois ou três minutos, levantava o telefone para perguntar a Mary Catherine o que ouvira. Depois do quinto desses interrogatórios, ela lhe disse que não poderia descobrir nada se ele continuasse a tomar seu tempo. Tentou ficar fora do telefone por cinco minutos antes de pegá-lo outra vez. Mas ele tocou assim que sua mão encostou nele.
— Onde está ela? — perguntou.
— Nós teríamos sido capazes de adivinhar. Alguém que não posso dizer quem é, para que sua reputação não seja para sempre prejudicada, disse que a viu além dos trilhos do trem, parada atrás do Aztec Saloon. Não que eu saiba onde é isto, porque certamente nunca estive lá, e Blair também não devia estar lá...
— Mary Catherine, adoro você — disse Lee, deixando cair o telefone na escrivaninha da enfermeira e correndo para a porta.
Seu appaloosa estava treinado para partir rapidamente, e a cidade estava acostumada a sair do caminho para a carruagem de Lee, mas naquela noite Lee ultrapassou-se ao disparar pelas ruas e atravessar a ponte do Tijeras, para ir ao trecho da cidade onde Blair não devia ter ido. Ele mantinha-se pensando que talvez alguém tivesse vindo à sua casa querendo ajuda, e Blair estupidamente fora atender. Mas, por alguma razão, ele tinha certeza de que ela estava metida em algo mais do que um caso médico.
No Aztec Saloon, deixou o cavalo parar, sem ficar preso, como fora treinado, e entrou. Uma das vantagens de ser um médico, numa pequena cidade, é ser bem conhecido, e quem não lhe deve um favor, hoje, poderá dever em pouco tempo.
— Quero falar com você — disse Lee ao homem enorme atrás do bar.
Ignorando o pedido de um freguês, de mais cerveja, o homem saiu de trás do bar e acenou para que Lee o seguisse até um quarto nos fundos.
— Espere um minuto! — gritou um vaqueiro que estava desafivelando as calças. Uma mulher, suja, com ar aborrecido, estava deitada num colchão imundo.
— Saia — ordenou o dono do bar. — E você também, Bess. Com ar cansado, a mulher levantou-se e caminhou para a porta.
— Pensei que tivesse sorte dessa vez, e que você estivesse vindo para mim — disse a mulher ao sorrir para ele e passar-lhe as pontas dos dedos pelo queixo antes de sair do quarto.
Quando estavam sozinhos, Lee virou-se para o dono do bar:
— Ouvi dizer que minha mulher esteve aguardando aqui atrás, hoje à noite. Imaginei que você devia saber alguma coisa sobre o motivo.
O homem passou a mão sobre uma barba de três dias, e brincou com o queixo.
— Não gosto de me meter em coisas como esta. LeGault e aquela mulher dele...
— O que aquele pedaço de lodo tem a ver com isso?
— Era por ele que ela estava esperando.
Lee afastou-se por um momento. Esperava estar errado e que Blair só estivesse cuidando de alguém, mas, se ela estava se encontrando com LeGault...
— Você não tem escolha nisso — disse para o homem gordo. — Não quero usar chantagem ou trazer o xerife para o assunto, mas pretendo usar qualquer método que posso para encontrar minha mulher.
— O xerife já está nisso, e ele está atrás de LeGault e daquela mulher. Claro que parecerão inocentes, porque aquela bobinha estará fazendo todo o trabalho sujo deles.
Lee inclinou-se em direção ao homem:
— É melhor que me conte tudo e rápido.
— Não é da minha conta o que fazem. Eu só lhes vendo um pouco de uísque e me preocupo com meus próprios negócios. Está bem, não fique tão irritado, vou lhe contar. LeGault alugou um quarto meu, para que pudesse esconder uma mulher. Não sei quem é ela, só a vi uma vez. Fala engraçado. Uma estrangeira.
— Francês? — perguntou Lee.
— Sim, talvez. De qualquer maneira, ela é observadora.
— Então, LeGault está tramando alguma coisa com Frankie — disse Lee pensativamente. — Que mais você sabe?
— Aconteceu de tê-los ouvido falar alguma coisa sobre tirar as mercadorias da cidade, e estavam procurando alguém de quem ninguém suspeitasse. Falaram muito sobre isso.
Lee virou-se e bateu o punho na parede de madeira. A dor fez-lhe bem.
— Então eles encontraram alguém bastante estúpido para ser tapeado. Para onde foram, e o que queriam tirar da cidade?
— Não sei. Suponho que possa perguntar para LeGault. Ele está sentado num bar ali adiante na rua. Disse-lhe que saísse daqui, uma vez que não quero senhoras aqui, porque elas não trazem nada além de confusão.
Lee não disse nada antes de sair do quarto, e logo estava na rua outra vez. Entrou apressado em três bares antes de encontrar LeGault. Sem delongas, foi direto para ele, agarrou-o pela frente da camisa e levantou-o da cadeira.
— Quer vir comigo em paz ou pingando sangue?
As cartas caíram das mãos do jogador e ele movia as pernas para recuperar o equilíbrio. Fez um rápido aceno, e Lee empurrou-o pela porta dos fundos. Ninguém os seguiu no beco, ou porque não se importavam, ou porque não queriam irritar um médico.
Leander estava tão raivoso que mal podia falar:
— Onde está ela?
— Agora é muito tarde para isso. Você devia ter estado aqui um par de horas atrás.
Agarrando o homem pelas abas da camisa, Lee encostou-o na parede dos fundos do bar.
— Nunca matei um homem em minha vida, e fiz um voto de salvar vidas. Por isso, ajude-me, LeGault. Se não me responder agora, quebrarei seu pescoço esquelético.
— No momento ela está nas mãos do xerife, sem dúvida presa por roubar seguros no valor de um milhão de dólares.
Lee ficou tão espantado que soltou o homem e recuou um passo.
— Onde? Como? — conseguiu murmurar.
— Eu disse que voltaria por todos aqueles anos que passei na cadeia. Ela foi fácil. Ela pensa que está salvando sua vida. Mas, na verdade, está levando mercadorias roubadas para fora da cidade. O xerife foi informado do que ela está fazendo, e agora deve estar sob custódia. Espero que goste de vê-la na cadeia.
Quando Lee levantou a mão para atingir LeGault, o homem começou a zombar.
— Eu não tentaria, se fosse você. Tenho uma pistola apontada para sua barriga. Agora, por que não age como um bom menino e vai visitar aquela sua bonita mulher na cela? Tenho certeza de que será a primeira de muitas visitas.
Lee não queria perder tempo com o homem, e não pensava que ele teria coragem de atirar. Assim, retirou-se do beco, sem dar a LeGault uma visão clara de suas costas.
Lee correu pela rua até onde sua carruagem esperava e, pensando melhor, confiscou um enorme cavalo negro castrado que estava preso no poste de amarração, saltou na sela e disparou para fora da cidade pelo sudeste. O único lugar que poderia ter um valor de um milhão de dólares de apólices era a estação de trem.
Seguiu até a elevação e, ao luar, pôde ver, à sua direita, uma carruagem e, à sua esquerda, o que poderia ser um destacamento de homens. Parecia que Blair se dirigia para os homens que a queriam prender, e ele estava a uns setecentos metros afastado.

 

Capítulo XXXIV

 

LEE ATIÇOU o cavalo e começou a gritar. Disparou a pistola, agarrou um rifle da bainha da sela e começou a atirar, tudo ao mesmo tempo. O pobre cavalo, apavorado com o cavaleiro desconhecido, com todo o barulho e a pólvora, disparou cortando o campo iluminado pelo luar a uma velocidade de quebrar pescoço. Lee queria chamar a atenção sobre si, para tirar Blair da atenção do destacamento. E deu certo.
Quando algumas balas "perdidas" caíram a meio metro do cavalo-chefe do destacamento, todos os homens pararam, tentando controlar os cavalos e dando a Lee os preciosos minutos que precisava para alcançar Blair antes deles.
Como esperava, todos encontraram-se ao mesmo tempo. Um olhar para o rosto solene do xerife, e Lee soube que o que Le-Gault dissera era verdade. Eles tinham vindo para ver se uma das Chandler estava na verdade envolvida num roubo.
— Maldita! — gritou Lee para Blair ao puxar as rédeas do cavalo e desmontar, batendo na anca do cavalo, para fazê-lo voltar em direção às luzes da cidade.
— Não posso confiar em você fora da minha vista nem por um minuto. — Subiu na carruagem, tirou as rédeas dela e olhou para o xerife. — Deixe uma mulher ter sua própria carruagem, e não tem nem como contar as confusões em que se mete. E esta é a pior. Sempre fazendo coisas para outras pessoas, nunca levando em conta sua própria segurança.
O xerife estudou Lee durante um longo momento, um momento tão longo que Lee começou a suar.
— Rapaz, você devia tomar conta da sua esposa — disse o xerife solenemente —, ou então outra pessoa deveria.
— Sim, senhor — disse Lee. — Pela manhã farei com que esteja sendo cuidada.
— Seis horas, Leander. Dou-lhe seis horas, e então eu poderei ser esse alguém.
— Sim, senhor — disse Lee e sentia vontade de chorar, de tão grato. — Não precisarei desse tempo todo, senhor. — Bateu as rédeas e tirou a carruagem da estrada, dirigindo-a de volta para o escritório de despacho.
Uma vez que estava na estrada, Blair falou pela primeira vez.
— Então você veio, afinal. Como descobriu que a entrega era hoje à noite?
— Se você sabe o que é bom para você, vai ficar com a boca fechada. Seu silêncio pode evitar que eu deixe o seu traseiro com bolhas e mantenha-a presa dentro de casa para o resto de sua vida.
— Eu!? Eu!? — Ela estava ofegante, agarrando-se a um lado da carruagem. — Eu só estava fazendo isso por você. Esperava que se fosse uma vez em seu lugar, você veria a desgraça que me fez passar.
— Fazer por mim? — Virou-se para ela, e seus olhos chispavam: de raiva. — Você acha que eu estava roubando apólices? Que eu estava trabalhando com LeGault?
— Que mais poderia estar fazendo? Não ganha nada como médico, mas pode manter todo o equipamento médico, a casa e as despesas comigo, e volta para casa com ferimentos a bala e... — Ficou quieta quando Lee parou a carruagem bem próximo ao escuro escritório de despacho.
— Desça e vamos ver o que LeGault preparou para você — falou saltando.
Quando Blair saiu, Lee abriu o compartimento no fundo da carruagem e retirou uma pequena caixa de madeira e abriu-a, tirando grandes pedaços de papel estampado com arabescos. Levou-o para perto de uma das duas lanternas da carruagem.
— Você não só está roubando, mas estes pertencem a Taggert e ao Chandler National Bank. Você poderia ter levado à falência metade da cidade.
Blair levou um momento para entender o que ele estava dizendo e, quando compreendeu, sentou-se no estribo da carruagem.
— Oh, Lee, não tinha idéia. Eu só pensei...
Ele agarrou seus ombros e levantou-a.
— Não temos tempo agora para remorsos. Temos de ver o que LeGault fez ali dentro. Pegue sua maleta. — Desenganchou a lanterna da carruagem e começou a correr, Blair em seus calcanhares, a pesada maleta em sua mão.
Havia só uma entrada para o escuro escritório de despachos, e, quando entraram, viram o cofre grande e vazio aberto, e um corpo na frente dele. Uma vez que nem os fios elétricos ou linhas telefônicas chegavam àquela distância da cidade, tiveram de manter a lanterna acesa.
Lee alcançou o homem primeiro.
— É Ted Hinkel. Está vivo, mas foi atingido com muita força na cabeça.
Blair procurou na maleta e tirou os sais de cheirar.
— Se você não estava trabalhando com LeGault, onde estava?
Lee deu um grande suspiro e pegou os sais.
— Pensei que pudesse salvá-la de si mesma, mas suponho que não posso. Não lhe contei o que estava fazendo por temer que fizesse alguma coisa tola como esta. A verdade é que, há algum tempo, venho fazendo sindicalistas entrarem nos campos de carvão.
— Sindicalistas? — disse ela desanimada. — Mas LeGault...
— Como pôde acreditar que eu tivesse alguma coisa com um criminoso como ele? Você mesma disse que ele me odiava. Suponho que tenha descoberto sobre os sindicalistas, imaginou que eu nunca lhe diria o que estava fazendo e usou o que sabia para fazer você trabalhar para ele. Se tirasse as apólices da cidade, ótimo; se não conseguisse, até melhor; teria se vingado de mim por tê-lo mandado para a prisão.
— Mas o dinheiro... — começou Blair. Ao trazer a lanterna para mais perto da cabeça de Ted, sentia-se incapaz de compreender o que Lee estava dizendo.
Lee olhava preocupado para o jovem inerte enquanto tentava reanimá-lo.
— Como pude cair por alguém como você? Fui criado para acreditar que o quanto um homem ganha é problema seu e só seu. Minha mãe era de uma família muito rica, e certamente não sou um dos homens mais ricos dos Estados Unidos, como Taggert, mas tenho mais do que o suficiente. Eu mesmo já lhe disse isso.
— Sim, mas a clínica custa tanto!
Lee cerrou os dentes e pôs Ted de pé.
— Se nós conseguirmos sair disto, mostrarei a você a relação de minhas rendas. Poderia manter vinte clínicas.
— Oh — disse Blair, e entregou-lhe fenol e uma gaze para limpar o ferimento na cabeça de Ted. — Quer dizer que eu só roubei... Quanto eu roubei?
— Um milhão de dólares.
O vidro de fenol caiu de sua mão, mas Lee apanhou-o.
— Como você soube? Por que o xerife estava lá? E que conversa é essa sobre seis horas?
— Houston sentiu que você estava em perigo e Mary Catherine descobriu onde você fora vista pela última vez. LeGault denunciou-a para o xerife, e o xerife deu-me seis horas para pôr de volta as apólices antes que alguém saiba que foram roubadas. Vamos, Ted, acorde!
Blair pôs o rosto nas mãos.
— Oh, Lee, fiz uma confusão de tudo.
Ele mal olhou-a, pois sua atenção agora era para com o jovem.
— Isso você fez, querida.
— Acha que irei para a cadeia?
— Não, se conseguirmos pôr as apólices de volta.
— E agora como pretende fazer isso? Dizendo "A propósito, Ted, encontrei isso lá fora?"
— Não, eu... — Seus olhos se iluminaram. — Ele está voltando. Dê-me suas calças.
— Lee! Agora não é hora...
— Eu tenho alguma corda, e usarei suas calças como uma alça e abaixarei a caixa pela chaminé. Você terá de convencer Ted de que ele a salvou e que os ladrões nunca saíram daqui com a caixa.
Sem outra palavra, Blair levantou-se, tirou as calças. Entregou-as a Lee, sentou-se então, tomando a cabeça de Ted em seu colo enquanto Lee saía.
— Ted, o que aconteceu? — perguntou Blair, segurando os sais sob seu nariz.
— A estação foi roubada — respondeu ele, sentando-se, a mão na cabeça. — Tenho que chamar o senhor...
— Você tem de sentar-se — disse ela, ajudando-o a ficar de pé, e então quase empurrando-o numa cadeira. — Tenho de olhar esse corte.
— Mas tenho de contar...
— Aqui! — Blair pôs um anti-séptico ardido no corte, e a nova dor acordou o jovem o suficiente para que se recostasse na cadeira. — Diga o que aconteceu.
— Dois homens entraram e puseram uma arma em minha cabeça. Um deles, o mais baixo, sabia a combinação do cofre.
Com o canto dos olhos, Blair podia ver alguma coisa branca aparecendo na lareira.
— Vire para cá em direção à luz. O que aconteceu então?
— Eu só fiquei ali enquanto o mais baixo abria o cofre e tirou uma caixa. Não sei o que havia nela. E então alguém me acertou na cabeça, e a coisa seguinte que soube é que estava acordando e você estava aqui. Blair-Houston, tenho de chamar...
— Essa não pode ser toda a história. Você deve ter oposto uma grande resistência.
— Mas eu não fiz, eu...
— Ted, quero que se deite no chão por um minuto ou dois. Estou preocupada com esse corte. Você perdeu muito sangue.
— Sim...
— Está bem, deite-se atrás daquele armário. Preciso limpar meus instrumentos.
Blair correu para a lareira, tirou as calças brancas e a corda da caixa e meteu-as em sua maleta.
— Penso que agora ficará bem, Ted. Por que não vem até aqui pega sua arma? Eu o levarei até o xerife!
Ted, com a mão na cabeça, caminhou incerto em volta do armário, e então parou, olhando sem acreditar.
— É ela.
— O que quer dizer?
— A caixa que roubaram. Ali está ela. Há quanto tempo está ali?
— Já estava quando entrei. Você quer dizer que afinal eles não levaram? Puxa, Ted, sei que falou que opôs resistência, mas você está sendo modesto. Quer dizer que você evitou que eles roubassem a caixa?
— Eu... eu não sei. Pensei que...
— Aí está a evidência. Você deve tê-la salvo. Ted, você é um lerói.
— Não estou tão certo. Parece que me lembro...
— Com uma pancada dessas na cabeça, você certamente está confuso, mas a evidência está bem aqui na nossa frente. Por que não a trancamos no cofre, e vamos até o telefone mais próximo para chamar o xerife? E chamaremos o jornal! Quererão ouvir sobre isso.
— Eu... suponho que sim. — Endireitou os ombros. — Certo, por que não?
Blair pôs a caixa no cofre, trancou a porta, ajudou Ted até uma cadeira, e correu para fora. Lee agarrou sua mão e correram para a carruagem juntos. Era só um quilômetro e pouco até o telefone mais próximo, e Lee suspeitava que o xerife estivera aguardando. Lee desligou o telefone, agradeceu ao garçom pelo uso e foi para onde Blair esperava por ele na carruagem.
— Está realmente terminado? — perguntou ela, recostando-se.
— O xerife disse que LeGault é um homem muito pequeno. Ele suspeita que tenha sido Françoise. Embarcaram no trem para Denver há uma hora. Não acredito que os vejamos por um tempo.
— E o tempo todo eram os sindicalistas — murmurou ela. — Sabe, Lee, tenho algumas idéias sobre sindicatos em minas de carvão, também. Talvez juntos pudéssemos...
— Por cima do meu cadáver! — disse ele, estalando as rédeas.
— E o que supõe que eu faça? Fique em casa e conserte suas meias?
— Você não é má para consertar meias, e eu gosto de saber onde está.
— Como me viu nas últimas semanas?
— Sim, eu até gosto de uma esposa que...
— Deixe-me dizer-lhe, doutor, se pensa que vou ler mais um livro sobre uma heroína sorridente ou planejar mais um jantar, está completamente louco. Sábado pela manhã vou voltar para minha clínica e ver os meus pacientes.
— Sábado? E hoje? Por que não posso deixá-la para ir direto para o trabalho?
— Porque vou passar o dia de hoje na cama com meu marido. Tenho de recuperar todo o tempo que perdi.
Lee lançou-lhe um olhar rápido e admirado, e então sorriu.
— Eia! — gritou para o cavalo. — A escola acabou e a professora agora quer brincar.
Foi a vez de Blair virar-se para olhá-lo espantada.
— Você sabia?
Mas Lee apenas sorriu e piscou para ela.

 

 

                                                                  Jude Deveraux

 

 

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