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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MULHER FATAL / Camilo Castelo Branco
MULHER FATAL / Camilo Castelo Branco

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

MULHER FATAL

 

     Não conto comigo para destramente me desempenhar de empresa literária, em que se faz mister mais mocidade de coração que letras bem ajuizadas.

     É matéria - se pode com tal nome envilecer-se o que aí há mais subtil e espiritual -, é matéria, isto de amores, para mui sérias considerações em homem dos meus anos.

     E, se os amores vêm de asas quebradas e envoltas nas escumilhas do luto; se, em vez de grinaldas de rosas, cingem cipreste; se lhes alvejam a tiracolo caveiras em vez de aljavas, e lá dentro estiletes ervados em vez de flechas de ouro - enfim, amores negros, amores abomináveis -, maior dever me corre de ser sisudo, elegíaco e espantador de paixões.

     Conheço-me. Dei o primeiro passo na senda da sabedoria, segundo Cícero: se ipsum nosce. Cavei com utilidade no preceito: nosce te ipsum. Sabia felizmente um pouco latim para me entender mais depressa.

     A minha raiva ao planeta em que estou é acerba; mas fica muito aquém da misantropia. Em rapaz fiz de Heráclito, quando não conhecia melhor do que hoje este grego que aforou as lágrimas com honras de escola de filosofia. De tal filósofo, coisa que sirva só temos o boato de que declamava e chorava em público. Hoje em dia, um homem com esta sensibilidade era levado ao comissariado de polícia.

     Por mim e pelos meus vizinhos também eu chorei.

     Eis que desde a geada de muitos Invernos a nevar-me, o frio a filtrar, a temperatura dos líquidos a descer, o sangue a coagular-se, e logo o cristalizar das lágrimas no coração como as concreções vítreas duma caverna.

     Principiei a rir, às vezes.

     Rir é contraírem-se o diafragma e os músculos faciais. Operação materialíssima, muscular, carnal, e que nenhum outro animal exercita.

     Claro é que o rir é atributo de ser racional.

     A par e passo que a razão se alumia e fecunda, as contracções musculares amiúdam-se. Racionar é rir.

     O acume da sabedoria humana é ver os reversos das tragédias sociais: lá está por força a comédia. A ignorância que esteriliza, e mirra e encalvece é a que só deixa ver uma face da medalha.

     Eu não cheguei ainda aos pináculos da sabedoria.

     Vou subindo.

     Subir é ir um homem desdando os nós que atam a dor estranha à sua; é ir tirando às coisas tristes a sua essência lacrimável, por feição que o sunt lacrimoe rerum de Virgílio não se perceba.

     O rir, porém, do animal filósofo não é a casquinada saloia do bípede implume de Platão que vaga à toa e à tuna, sem casta de filosofia nenhuma.

     Há aí um gargalhar que a ciência denomina «espasmo cínico» ou «de cão», um exibir das arcadas dentárias até aos côndilos. É o caretear bestial da canalha. É o que os Ingleses chamam «rir de cavalo», horse laugh. Há também o rir chamado «sardónico» - o rir duns que comeram o fabuloso rainúnculo da Sardenha. Ora entre nós os que desta arte destampam gargalhadas não comeram rainúnculos: é gente embuchada de feijão branco e orelha de cevado. Essa hedionda deformidade caracteriza estupidez quase sempre malévola; corresponde ao espojar-se, se o rir é meramente bruto, e ao escoucear, quando é bruto e mau.

     Não riram assim Demócrito, Aristófanes, Esopo, Marcial, Petrónio, Aretino, Gil Vicente, Erasmo, Sterne, Rabelais, Charron, Molière, Voltaire, Tolentino, Byron, Heyne.

     Destes, alguns, senão todos, riram dos homens e dos deuses.

     E o último nome, que cerra a falange, consubstancia todas as calamidades compreensíveis desde o jazer do paralítico cego até à teofobia - o horror de Deus.

     E, assim mesmo, como ele adivinhou o sorrir de Satã a despenhar-se das regiões da luz onde o Sumo-Bem permitiu que se gerassem anjos soberbos! Vejam a supérrima vingança daquele Prometeu que recurva os dedos nos fuzis da gargalheira que o amarra, oito anos, a um leito, e do estridor dos ferros sacudidos modula o sinistro arpejo das suas gargalhadas sarcásticas! Como Lúcifer invejaria o gentilíssimo demónio que, retransido das agonias da nevrose, todo trevas dentro e fora, criava a paradoxal harmonia do gemido com a risada!

     É preciso ter chorado para imortalizar o riso no livro, na estrofe, na sentença, na palavra:

     O riso que escava, mina e alui teogonias;

     O riso que desfaz religiões, cujo berço boiou embalado sobre ondas de sangue;

     O riso que abate a abóbada do templo sobre as ossadas dos mártires;

     O riso que revoluteia as tormentas dos impérios, e abisma tronos, e espuma espadanas de lama – lama com que as gerações erigem os seus marcos milenários, as suas cronologias gloriosas.

     Oh! Mas que susto não faria aos próceres que regem a república e aos sacerdotes que regem almas, o rir do demagogo e do ateu se, a cada chasco duns tais, ruíssem tronos e altares?

     Nada de medo em Portugal.

     Aqui o dardo do sarcasmo alcança apenas o escopo onde a calúnia mira. As gargalhadas, como aqui as bascolejam estas maxilas alvares dos goliardos professos, vingam marear a honra dum homem, desluzindo-lhe o passado, enoitando-lhe o futuro, infernando-lhe o santuário da família. Isto é o mais. Receá-las, todavia, como atentatórias das instituições civis ou religiosas, seria dar-lhes a honra de ridiculizarem quem as teme.

     Aqui não há esgrima de facécia que entre dois contendores decida um pleito útil. Dois homens que se medem e floreteiam a remoques são dois fundibulários que se apedrejam.

     Ninguém se lembrou de inscrever algum dos nossos satíricos na plêiade dos que, rindo, castigaram. O espírito português nunca espantou ninguém. A bruteza carniceira, sim. Assevera-o o douto e pio bispo Amador Arrais:

     Espanta-se o mundo e tem inveja à nossa ferocidade.

     Isto escreveu-se, de boa-fé, no século XVII entre a Inquisição e a pirataria portuguesa no Oriente.

     Quando Rabelais e Montaigne forjavam alavancas para Voltaire - o ridente que transfigurou a Europa -, nós queimávamos homens em cujas frontes lampejassem reflexos de João de Leide ou de Petrus Ramus. Quando, em França, rumorejavam os sorrisos prenúncios do terramoto social, aqui ouvia-se o mugir subtérreo das masmorras dum cruelíssimo verdugo que disputava à Inquisição trevas e suplícios para centralizar a ferócia do poder em si e estear o trono nos caibros da forca. Para o riso, que assombrava o dogma, acendia-se a fogueira; para o que assombrava a realeza, arvoravam-se os patíbulos de Belém.

     Daí procedeu que portugueses ainda têm na alma crepúsculos daquela grande noite. Não sabemos rir com «espírito»; apenas gargalhamos com os queixos.

     Sem embargo, implantou-se entre nós uma coisa criada pontualmente para nós. Chama-se a «chalaça», que já deu uma filha estúpida como sua mãe, chamada a «laracha».

     Mãe e filha vivem abarregadas com uns chanceadores letrados da índole dos «eternos tolos» de Tertuliano.

     Aos quais peço indulgência, se a merecem as tortuosidades por onde me transviei, degenerando daquela derreada prosa com que abri esta coisa alabirintada.

     Era meu propósito dizer espalmadamente que, há            vinte anos, comecei a ver as duas faces dos lances tristes: uma que entende com as glândulas lacrimais, outra com o diafragma. Primeiramente, se não choro, condoo-me; depois, esgaravatando na raiz das dores humanas, encontro aí ou sedimento de perversidade ou ridicularias miserabilíssimas. Então é o rir. E, a fim de que os padecentes me desculpem, rio primeiro de mim.

     Daí se causou que os meus livros, entre muitos defeitos, realçam em um que tem ferido a benevolência da crítica: e é que não conservo, sem intercadências desvanecidamente faceciosas, uma situação plangente, e amarguro com o acerbo da ironia a dulcidão das lágrimas.

     É justo o reparo.

     E neste livro me quer parecer que tal defeito subirá de ponto; porque vou intender em tragédias amorosas, nesta idade de quarenta e três anos feitos, velhice em que nenhum escritor sincero, obediente a Horácio, deu aos seus leitores o exemplo das lágrimas. Si vis me flere, etc.

     D. Francisco Manuel de Melo, em anos cediços, escreveu uma Epanáfora Amorosa. Sucede, por isso, ao estremado estilista que faz rir a gente quando os seus personagens choram. É o providencial castigo de quem anda, fora de razão, à cata de flores, ou intenta com mirradas perpétuas dar fragrância de tomilhos ao livro que ressumbra o acre enjoativo do bolor.

     E disto me pesa; que este livro abrangerá um tristíssimo caso que me fez envelhecer anos na hora em que o vi. Que profanação, se o riso me antepuser os fantasmas irritados das almas insepultas!

     Creio que, ao fechar dalgumas sepulturas, se abrem livros de proveitoso doutrinamento ao de cima delas.

     Mas quem procura aí fontes de vida?

     Quem se demora a ver a ladeira por onde resvalou à leiva húmida um mancebo com o coração ainda a queimar-lhe a mortalha?

     Por isso as histórias dos mortos se escrevem e este livro se faz.

     E, todavia, inútil.

     A mocidade não lê disto para aprender. Atira-se à voragem e morre - à voragem, onde o menos que se perde é o corpo.

     O coração não se afoga debaixo da pedra onde as cinzas doutros se desfazem. Cada qual quer sentir, em pessoa, o desfibrar-se-lhe o coração fio a fio, o esvaziar-se-lhe de piedade, lágrima a lágrima.

     Depois, ao fogo das volúpias infernais, dessa massa informe faz-se o pragal, a bruteza duma coisa que dá um som aspérrimo de lodo petrificado.

     Seja assim. Eu assim fui. Todos os que eu vi morrer assim foram.

   

    Orfandade

     Conheci Carlos Pereira (1) em 1849.

     Apresentara-mo José Barbosa e Silva, no hotel francês da Rua da Fábrica.

     Foi há vinte anos. Barbosa e Silva e ele eram alunos do Colégio da Formiga, nos arrabaldes do Porto. Barbosa estudava Alemão. O outro, nada.

     Lembram-me pormenores daquela noite da apresentação.

     Estava também Evaristo Basto, o príncipe dos folhetinistas daquele tempo.

     Estava José Maria Gonçalves, a sátira cáustica, mas gentil e perfumada dos salões.

     Estava Mademoiselle Pauline, filha do dono do hotel, dama de trinta anos, espírito francês e matéria não desatendível sem os realces do espírito.

     Estava, enfim, Mademoiselle Maria Elesmine, mulher de quarenta e dois anos, que vigiava os trinta de Pauline, sua irmã.

     O ar do meu quarto incomodava os hóspedes. Eu tinha dez jarras de flores sobre uma estantinha de livros, sobre a banca de escrita e à cabeceira do meu leito. Removi-as com amoroso respeito e escrúpulo.

     Era um lindo quarto o meu, lindo e rico de tantas porcelanas e flores que vinham cada manhã duns hortos de Armida, onde as cultivava uma alma que as entendia e com elas falava.

     Vinte anos depois os olhos da minha saudade vão à Rua da Fábrica e procuram o hotel francês.

     Era um palácio que ardeu há quinze anos. No sítio dele está uma casa de azulejo, onde mora um tabelião, uma filarmónica, uma taverna, um carpinteiro e um bazar.

     O dono do hotel morreu.

     Mademoiselle Marie afogou-se voluntariamente.

     Mademoiselle Pauline mendiga nas ruas do Porto.

     José Barbosa e Silva morreu há três anos.

     Evaristo Basto morreu há quatro.

     José Maria Gonçalves morreu doido, há dez.

     A doce alma que colhia as flores já não vê reflorir primaveras os bolbos que ela semeou. Há sete anos que, ao cair da folhagem das suas acácias, por uma tarde fria de Novembro, foi aquecer-se ao calor do Céu, e não voltou.

     Carlos Pereira morto é também.

     Que admira! Foi há vinte anos! Que longo espaço! Em vinte anos enfolha, enflora, fruteia e fenece uma geração.

     Mas é pena!, que todos contavam com tanta vida!

     E alguns tinham pavor da velhice dos quarenta anos!

     Carlos nascera no Brasil. Pai e mãe lhe tinham morrido no Porto, e no mesmo ano. Os administradores do seu património mandaram-no educar no Colégio da Formiga.

     Que tristeza!, aos nove anos, de súbito atirado para ali, órfão, e, ainda a chorar, metido naquelas estranhezas dum colégio, por ordem dum conselho de família que o não viu e dum tutor que nem sequer lhe conhecera os pais...

     O menino entrou com o espasmo da angústia nos olhos. Ninguém deu tento da palidez, nem do luto. Foi mandado sentar-se numericamente no banco escolar e no refeitório. À noite mandaram-no apagar a luz e dormir. Ao outro dia mandaram-no erguer e estudar.

     O órfão ainda não tinha adormecido. O travesseiro estava húmido, e os olhos cavados num círculo cor de chumbo, e as faces purpurejadas de febre.

     Quinze dias antes ainda tinha mãe, que expirara héctica estendendo-lhe os braços escarnados, e soluçando:

     «Ficas sem o amor de ninguém! Sozinho, o meu querido Carlos! Que será de ti!...»

     E tão sozinho! Que infernal seria o Céu à pobre mãe se ela visse de lá o filho! Com que ternura diria a Deus:

     «Eu quisera antes voltar às duras provações da vida! Dai, Senhor, que eu desça à Terra porque o meu filho está só, e os vossos anjos não são mais formosos que ele, nem me chamam mãe! E se esta separação, meu Deus, me é necessária à salvação, dai o meu lugar a quem não deixou na Terra o melhor de si, e deixai-me amparar a criancinha, embora me perca; porque vós, Senhor, só concedestes a cada inocente um coração de mãe, e não fazeis o milagre de aquecer os frios do órgão no regaço carinhoso doutra mulher!»

     Não pode ser assim, meu Deus! Lá em cima não podem entrar memórias desta vida. Os orfãozinhos cá em baixo empalidecem de fome e frio? Não importa: esquecem pai e mãe. Providencialmente. O esquecer da vida que fica não nos persuade da inconsciência da vida que se transformou? Dor suprema e eterna seria para os pais se a alma evolasse com a consciência do que foi.

     Não pode ser assim.

     O coração que palpitava, o nervo que estremecia, os braços que estreitavam ao seio, os lábios que aqueciam a beijos, os olhos que viam os seus encantos ao través de gozosas lágrimas, tudo isso é podridão que aí fica.

     Ai!, e que não fosse assim! A alma imortal, com as reminiscências desta vida, com a visão dos filhinhos alanceados por saudade, pobreza, e desvalimento, seria... não lhe sabemos o nome.

     Carlos esqueceu-se.

     Ao cabo de seis meses já não chorava. As horas de folga sorriam-lhe nas do estudo: as do estudo entristeciam-no nos brinquedos.

     Nas férias grandes ficou no colégio com mais três órfãos. Eram quatro que se entreolhavam melancólicos, quando os outros partiam doidos de alegria. Não diziam nada com os lábios; mas no coração de cada um espelhava-se a imagem de pai e mãe, rostos ainda retintos das cores da vida, um ano, dois anos antes: «Se eles vivessem, também eu iria!» A sua saudade não diria mais, e as lágrimas, pouco depois, lhas enxugaria a bondade de Deus, divertindo-lhe o espírito para qualquer puerilidade que nós não entenderíamos.

     Quantas vezes pensais dum menino que brinca, ainda vestindo lutos de orfandade: «Coitadinho!, não tem pai nem mãe!»

     E ele sorri sem perceber o vosso olhar compassivo.

     E vós perguntais à criança:

     - Lembra-se de seu pai?, e de sua mãe?

     Ele recolhe-se instantes, e diz com tristeza:

     - Lembro!

     Oh!, não lho pergunteis. Deixai-o brincar; deixai-o esquecer; que é compaixão inútil a vossa e crueldade grande chamar-lhe aos olhos lágrimas. A Providência quer que floresçam nessa alma algumas Primaveras; por isso lhe deu o esquecer-se. Se ele se sentisse já infeliz, então que álgidas negridões de Inverno, que desamor de Deus por essa criatura sem pecado! É preciso que ele, lá no dobrar dos trinta anos, se recorde destes dias tão escuros com saudade.

     E Carlos Pereira, quando eu o conheci com vinte anos, já se recordava deles como dos melhores da sua vida! Saudade aos vinte anos!, que rugas de alma tão precoces!

     1 - Pseudónimo

   

    Primeiro amor

     Tento escrever este capítulo em dia de frigidíssima inverneira. Pegões de nordeste vêm sacudir suas asas fuscas contra a janela do meu quarto, embaciada da chuva que crepita e escorre nos vidros. Os cabeços das serras, que cingem os matagais onde me abrenhei, negrejam através das nuvens cinzentas. Por entre as quebradas, e das carcavadas gargantas dos despenhadeiros, levantam-se rolos de nevoeiro alvacento que os bulcões de ventanias cruzadas rasgam e dispersam em espadanas de água gelada. Ameníssimo dia para escreve dum primeiro amor! Tarde fragrante e tépida como as de Florença, do Lido, de Sintra! Donosa e inspirativa natureza! Branquejou agora uma clareira de céu desanuviado! Que cor tão lívida!, que frio lá irá no alto, nas vizinhanças do sol pálido que entreluziu apenas, enquanto uma nuvem se abria redemoinhada pelo furacão! Relâmpago de sol em dia tempestuoso, quando não és tu que me dás a imagem dos prazeres desta vida, procuro-a na terra, e encontro-a nos pirilampos que avoejam na escuridão das sepulturas e súbito se apagam. Dos meus prazeres, digo; que eu sei que há aí harta embriaguez das tuas delícias, ó terra!, ó alma mater de tanto molusco lerdo para quem o sol e a claridade são inúteis numa destas tardes de fogão flamejante e flácida poltrona!

     E esses não escrevem capítulos de primeiros amores.

     Amam e são amados, nos primeiros como nos últimos, com a mesma despesa de sensibilidade, sempre em pleno Maio - o perpétuo mês deles -, espojando a imaginação nos ervaçais, onde lhes verdeja a leitura, o trevo e a ferra. Não se molestam à cata de boninas alpestres por alcantis e desfiladeiros para engrinaldarem seus primeiros amores. Antes querem adormecer, bem cevados, sobre o seio da realidade que despertar palpitantes do sonho em que o anjo da anunciação murmura o nome da primeira mulher. Conciliam higienicamente a quilificação do bolo alimentício com as serenas meditações dos prós e contras da ternura. Como os seus primeiros assomos cupidíneos são influências animais, a alma não tem que entender com esses impulsos muito mais galhardos no garboso animal que relincha farejando as brisas, e mais líricos no rouxinol que festeja a namorada com os trilos maviosos que já um poeta francês traduziu com nominativo verbo e caso.

     É o primeiro amor uma estranha comoção vagamente deliciosa, uma prelibação de delícias celestiais, um sentir muito à flor de alma a essência do amor divino.

     Nestas definições há, talvez, demasiada teologia.

     Quem ama pela primeira vez não sente semelhantes alianças de divino e humano. Faz-se mister amar vinte vezes, e ter envelhecido à décima oitava, para destrinçar da confusão caótica das multiplicadas imagens, que se refundiram umas noutras, a luz um tanto divina da primeira.

     Neste, por assim dizer, período mitológico do coração, encontrei Carlos Pereira em 1849.

     Era portuense a menina, de família distinta, bem aparentada, bem servida das graças e mal da fortuna que as sobredoura.

     Os vínculos eram do irmão; a ela bastava-lhe a honra de descender duma prosápia de varões que fundaram vínculos no século XV.

     E como do século XV até ao XIX aos filhos segundos de cada geração ficassem reduzidos aos alimentos, e estes não tivessem alimentos que legar aos seus filhos, era de presumir que tais fidalgos de 1849 tivessem muito parente artífice, obreiro e pior.

     Mas a família dos Carvalhais (1), a este respeito, não achava suficientes esclarecimentos nos seus tombos genealógicos. Em heráldica do quarto grau para além não há parentes; salvo se o proletário, em sexto grau de parentesco, mandou filhos chatinar na América, e estes voltaram com o sangue azulado, benefício devido à transfusão do sangue de negros.

     A nossa fidalguia de raça, aqui há oitenta anos, pejava-se e escondia-se de proceder, em grande parte, dos comerciantes Lafetas, inquinados de hebraísmo.

     Hoje em dia, o representante directo de Judas de Iscariotes casaria em Portugal com a representante de D. Pedro de Castilho, ou doutro inquisidor-geral mais rancoroso de judeus, contanto que os vinte dinheiros da traição, no dobar de dezanove séculos, cumulassem nos cofres do seu neto o juro a vencer desde a prisão do divino mestre.

     O pai de Laura de Carvalhais, casquilho de 1820 e elegante em 1849, era um amável velho, chasqueado dos seus coevos e querido da mocidade. Instruíra-se com o congregado Teodoro de Almeida, em Lisboa, na Casa do Espírito Santo; e saiu dali com mui diferente espírito daquele que patrocinava a cada dos seus estudos sagrados e profanos. Toda a física aprendida com o sábio oratoriano abastardou-a o discípulo em física experimental, da laia da de Pangloss.

     Casara com sua prima D. Epifania, herdeira rica e tanto ou quê endiabrada de condição. Paulo de Carvalhais seria infeliz se atentasse na sua vida seriamente, ou pretendesse dar exemplo de marido honesto. O seu demónio aconselhou-o como amigo. Encouraçando-o de fino aço de desprezo contra os dardos da esposa, convenceu-o de que Sócrates era ainda hoje reputado um parvoeirão por deixar-se agadanhar em corpo e alma por certa Xantipa.

     Dotado de filosofia menos socrática e mais ao lume do século, o discípulo do congregado abriu o coração a todos os ventos tempestuosos, guardando apenas os ouvidos para as borrascas domésticas. O trem de vida que ele viveu, por espaço de trinta anos, tresandou escândalos de que ainda se lembram vários maridos. Depois, como D. Epifania morresse abafada de ciúmes, ou dum fleimão, segundo a ciência, o viúvo deu-se mais aos cuidados caseiros e à educação um tanto serôdia do morgado e de duas filhas.

     Uma das quais, requestada por certo argentário de ínfimo nascimento, deixou-se levar da ambição e autorizou o negreiro a pedi-la ao pai. O afável fidalgo falou deste teor ao ricaço:

     - Não me oponho, mas aconselho. Minha filha há-de arrepender-se. Escuso dizer que Vossa Senhoria se arrependerá. A sua figura dá ares duns quarenta anos bons... se não me engano.

     - Tenho quarenta e dois.

     - E ela dezoito. Queira pensar nisto. Quando minha filha tiver vinte e oito, quantos tem Vossa Senhoria? Eu em contas sou pouco pronto...

     - Hei-de ter cinquenta e dois.

     - Cinquenta e dois!, ora veja lá! E quando ela tiver trinta e seis... tem Vossa Senhoria?...

     - Sessenta.

     - A velhice, cercada das fúrias que se chamam dispepsia, paralisia, gota, etc. Uma enfermeira de trinta e seis anos, nessa idade, convém-nos, contanto que não seja nossa mulher. Queira pensar nisto... Fui marido como quase todos, fui homem como poucos em estudar os costumes do meu tempo - que vão piorando; mas sou bom pai. Não casei por minha vontade; e valeu-me, para afrontar e vencer a desgraça, dispensar-me da auréola de mártir e pecar bastante. Diz lá um hino da Igreja: felix culpa. Fui vivendo sofrivelmente e tive o desgosto de enviuvar quando minha mulher e eu envelhecíamos e já tomávamos o chá sem esmurraçar a bandeja. Amestrado pela experiência, volto a dizer-lhe que sou bom pai. As minhas filhas hão-de casar à vontade delas; mas, ainda assim, hei-de aconselhá-las como amigo. Porém, umas coisas que não devo dizer a minhas filhas digo-as aos que as pretendem, se eles estão na idade em que a natural prudência os desampara e deixa de olhos empoeirados como aos vinte anos. Vossa Senhoria está no caso. Conjecturemos, entretanto, que não demovo Vossa Senhoria nem minha filha do indiscreto intento de se casarem. Desvio-me e deixo-os passar.

     Não querendo eu ter parte na responsabilidade da cruz em que Vossa Senhoria e ela vão crucificar-se, lavo as mãos como Pilatos.

     O ricaço saiu penhorado das atenções do dono da casa; e, quando pôs o pé no estribo da sua caleche, tirada por hanoverianas que escarvavam irrequietas, olhou para as janelas, e viu a loura Júlia com a face apoiada na mão e os olhos envidraçados de lágrimas.

     A dolorida tinha escutado o pai e agourara mal do silêncio do noivo, que se lhe figurou parvo. Ele, porém, arregaçara os beiços por modo que deixou entrever um coração resolvido.

     Depois, o velho, agradavelmente assombrado, conversou com a filha acerca do seu casamento, insistindo menos no delicado assunto das idades e bastante na falha de educação de um homem que saíra em rapaz para África e lá vivera em navios, e sertões, e portos de mar, veniagando as suas mercadorias de carne viva com alma e feitio à semelhança do Criador.

     Júlia respondeu:

     - Eu hei-de dominá-lo e poli-lo.

     O pai riu-se do grotesco da resposta e trejeitou como quem lava as mãos.

     Casaram.

     Corridos três anos, o negreiro, perdida a mão de verniz que lhe dera o milagroso amor, desnudou-se qual saíra das brutas entranhas da natureza. O polimento de Júlia não pegava na aridez daquela epiderme curtida ao sol de Moçâmedes. A esposa definhava-se no desalento, face a face do selvagem que se enfuriava quando via os formosos vinte e um anos da mulher contemplada com petulante admiração no teatro.

     Inventou reumatismo para não ir ao teatro.

     Fez-se ateu para não ir à missa.

     Vendeu as éguas para dificultar as saídas de casa.

     Deixou amontanhar os calos para não poder calçar botas dum ciclope e ficar ao fogão e beliscar na paciência da esposa.

     Cansada de resignação, Júlia queixou-se ao pai.

     Ora um pai não lava as mãos onde uma filha chorou, por mais Pilatos que se finja.

     Escutou-a, magoou-se e disse-lhe:

     - É preciso lutar. Nada de polimento, agora quer-se plaina na madeira, e ir desbastando nela até por fim topar camada lisa onde pegue o verniz. Ergue-te iracunda, bate-lhe o pé, e diz: «Quero.» Se ele te injuriar com palavras, injuria-o com a gargalhada: se te puser a mão, diz-lhe que nas cavalariças de teu pai há lacaios e tagantes.

     Fidalgos espíritos! A humilde Júlia destampou na mais altaneira vingadora de pretas que ainda viu negreiro! O homem, em menos dum mês de cabeções, curou-se do reumatismo, adelgaçou as protuberâncias pedestres, voltou ao cristianismo e recomprou as éguas para poder fugir de casa. E, em menos dum ano, Júlia, com o anteparo dos lacaios de seu pai e a cortês indiferença da sociedade, entendia e fazia entender ao marido que a velhice não goza impunemente a faculdade de ser néscia.

     E Paulo de Carvalhais, quando algumas velhas primas lhe diziam:

     - Primo, rosna-se da nossa Júlia...

     - Rosna-se?! - acudia ele.

     - Sim... O marido não desconfia; mas...

     - Mas as primas desconfiam?

     - Pelo que ouvimos...

     - Eu não sou mais esperto que o marido; e Vossas Excelências devem fingir que são mais tolas do que ele e eu.

     Amável velho!

     E a sociedade não gostava dele, porque formulara à filha a mesma receita que o tinha salvado da caquexia da alma!

     Mas a razão eficaz do ódio ao libertino antigo era porque ele conhecia as mães das libertinas modernas.

     Laura, a outra filha, escutava as tias com ares de mui pesarosa e envergonhada. E dizia, com gestos de Sofoniba, que o padecer e morrer louvada e admirada era heroísmo; enquanto a alegria criminosa de sua irmã, o pompear nos trens e sedas, o levantar-se da lama somente à altura do eixo da carruagem, causava-lhe grande amargura e vexame. Sentimentos dignos de suas quartas avós!

     E o pai, a fim de consolá-la, dizia-lhe:

     - As modas, ou feias ou ridículas, é mister aceitá-las. Não te queiras fazer pomba de expiação com a tua melancolia. A sociedade é que fez isto, pondo o negreiro à altura de tua irmã, ou abatendo-a à baixeza dele.

     Instituiu-se o feudalismo do dinheiro. Envileceram a jerarquia da raça para nobilitarem as indústrias. O dinheiro enfeirou corpos de mulheres, sem condicionar a existência de almas bem formadas nesses corpos, nem o exemplo de virtudes como herança. Obteve o que comprou. Lá o tem. Se a sociedade aluiu os deveres próprios da educação, exaltando e condecorando a ralé que não tinha rudimentos de moral, sofra-lhe, se é que sofre, os resultados. O milionário que se dói do ultraje compra diplomas de estima pública; isso é fácil: dê banquetes, embriague os convivas para a vertigem do baile; lá irá tudo, desde a honra que se vendeu até à honra que se almoeda.

     Pendo a crer que a donzela entendesse o imoral fundamento destas razões; mas a leitora, cujo coração se confrangeu ao áspero som daquelas ruins palavras como a incauta avezinha estremece ao longínquo rolar da trovoada, é que decerto não entende.

     Laura parecia ir ganhando ódio a homens, e nomeadamente a brasileiros, a africanos, à colónia de capitalistas que infestava então a cidade da Virgem, como empenhados em provar, honesta e desonestamente, que a cidade, sendo da Virgem, só hiperbolicamente poderia chamar-se das virgens.

     Neste entretanto, Carlos Pereira, em férias no Porto, foi apresentado por seu condiscípulo Luís dos Carvalhais ao pai e à mana Laura.

     Carlos era um gentil moço. Não me demoro a descrever-lhe as graças por miúdo. É uma usurpação, e, pior ainda, um mau gosto, quase a fazer tédio, isto de pintar homens com as mesmas tintas e contornos de que usam poetas e romancistas nos retratos das damas. Nem a Musset, nem a Hugo, nem a Garrett, nem a Sand, se há-de relevar tamanha sensaboria. Se é escritora a que pinta, desonesta-se; se é homem, ridiculiza-se.

     Aí apareceu uma vez um arquitolo (1), com grandes foros para maior graduação, descrevendo os contornos da perna e espádua de certos Córidons, à grega, com uns toques de tal asco lúbricos que seria isso um desbragado hino de bordel misto, se as linhas fossem versos e a gandaíce da ideia não envergonhasse depois o auditório.

     Quem então sentiu engulhos e pejo daqueles sujos quadros, aos quais aí uns chamaram «estro bizantino» (ó Chénier, perdoa-lhes!), não pôde mais sequer arriscar-se a descrever um nariz de homem.

     Pois era essa a feição mais característica e irregular de Carlos Pereira, bem que não armasse aos espantos que torturaram nasalmente a existência de Cirano de Bergerac. Era nariz plusquam grego, mais relevante pela magreza das faces e pequenez do buço, que principiava então a pungir. Contudo, a gentileza de homem era escultural no moço brasileiro, sem impedimento da estatura meã e do sobejo aprumo das suas posturas, não sei se naturais se por arte.

     No tocante ao espírito - que se há-de aqui estremar do coração -, minguavam-lhe notavelmente os favores do acaso. Em doze anos de colégio, seria pasmosa a sua indigência de conhecimentos se uma inflexível causa lhe não empecesse. É que não estudara, nem castigado, nem espicaçado pela emulação. Forcejava, e não podia.

     Fugia-lhe a razão se teimava. Desmaiava quando media o período imposto à sua rebelde memória.

     À custa de anos, vingara examinar-se em Francês, depois de ter conseguido um vulgar conhecimento da sua língua como ela se aprende em traduções de novelas.

     Doze anos, portanto, de cruel constrangimento a um moço cuja vocação foi por maneira abafada que nunca mais se dilucidou do caos em que a violência lhe escureceu o espírito.

     Coração era dos melhores que Deus bafejou – doce O Sr. Dr. Joaquim como a piedade, mavioso como a tristeza das almas virgens. Assim que via crianças maltrapidas e amarelas de fome, dava-lhes pão e lágrimas. O veterano amputado, o artífice sem trabalho, o pobre que havia dissipado a sua abundância, a mulher que só tinha o esteio da ignomínia, estas úlceras sociais, que apenas inquietam a polícia e raro comiseram a seca filantropia, esvaziavam-lhe as algibeiras, reduzindo-o a condições muito de louvar e nada de invejar quanto a recursos.

     O património de Carlos era uns vinte contos, do juro dos quais o tutor apenas lhe dava em férias seis moedas mensais, encarecendo a prodigalidade do tutelado. Regularmente, desde o dia 10, o estudante ou vivia de empréstimos, ou de fiança no hotel, no alfaiate, no botequim e no estanco. Mas estes apertos deram a súbitas em larguesas liberalíssimas. O mistério descortinou-se quando Carlos Pereira comprou uma letra de câmbio e entrou em casa dum usurário.

     Terminou o prazo das férias. O órfão declarou ao seu tutor que não voltava ao colégio. O tutor declarou-o sem mesada e o tutelado redarguiu:

     - E sem património daqui a pouco.

     Neste tempo, viu Laura, falou-lhe, ouviu-a e espantou-se de ter ousado falar-lhe.

     Ao outro dia, os alvores da aurora, chilreados de rouxinóis e calhandras, carminavam-lhe o horizonte.

     Por entre os festões das baunilhas soava o rumorejo das lufadas fragantes da viração. As trépidas fontinhas, espelhando na limpidez dos seus meandros a inquieta alvéola que as roçava com as asas, iam levar ao pedicel da bonina o beijo reanimador. Dos fundos casalejos da serra trepavam às encostas verdejantes os rebanhos, e depôs eles os pegureiros, modulando nas frautas as cantilenas com que seus pais já deram rebate amoroso às pastoras da vizinha aldeia. O Sol apontou formoso e purpurino como se coasse os resplendores da esfera em que os anjos salmeiam os hinos de cada alvorada.

     E o amador de Laura, em meio deste abrir-se a primeira manhã de sua felicidade, cuidava que toda a natureza, desde o gigante de fogo, erecto sobre o horizonte rubro, até à borboleta que sacudiu e secava as asas húmidas sobre uma flor de madressilva, lhe festejava os seus primeiros amores.

     Mas a manhã era de Outubro e carrancuda como esta de hoje.

     Não havia sol, nem baunilhas, nem alvéolas, nem rouxinóis, nem pastores, nem borboletas, nem madressilvas.

     As torrentes de chuva despejadas dos caleiros estrepitavam na rua. As rajadas assobiavam nas vigas do hotel francês. A escuridão às dez da manhã condensava-se nas nossas alcovas. Eu escrevia o folhetim duma gazeta à luz do candeeiro; e Carlos Pereira via todas aquelas e outras delícias duma manhã de Julho.

     Via, porque um primeiro amor é capaz de corrigir as imperfeições da criação, mescabadas por poetas; um primeiro amor, se entrasse no coração omnipotente de Deus, sairia com mais formosos mundos; um primeiro amor faz Julho em Outubro quando se sente e não nos dá um capítulo tolerável quando se recorda.

     1 –  Teófilo Braga na Visão dos Tempos, 1ª série.

   

    Primeiro golpe

     O amanhecer de Laura foi pontualmente o indicado no reportório: tempo borrascoso, chuva e frio.

     Almoçou a menina café com leite, penteou-se e foi sentar-se ao piano.

     O pai reclinou-se numa otomana, a cachimbar, com uma perna à cavaleira da outra e com uma das mãos a dedilhar e a compassar num joelho a música d'I  duo Foscari.

     Suspendeu-se Laura e disse maviosamente com uma entonação que continha as quatro notas mais melodiosas do rouxinol:

     - Ó papá!

     - Que é, menina?

     - Aquele condiscípulo do mano Luís quem é?

     - É... o condiscípulo do mano Luís.

     Laura sorriu-se e murmurou:

     - Ora!...

     - Que querias tu saber então? - perguntou o pai jocosamente. - Se é rico?... Desculpo-te a pergunta, que é obrigatória das meninas desta terra quando um forasteiro entra no bazar das salas...

     - A mim que me importa? - acudiu Laura por sua dignidade.

     - Não te importa; mas queres saber...

     - Eu não, papá...

     -      Então que perguntavas ? Já sabes que é condiscípulo do Luís. Que mais desejas saber? Se pelo apelido de Pereira entronca na casa real de Bragança? Não sei.

     Ainda lhe não vi as armas. O que consta é que é brasileiro, e bom mocinho, que não há-de corromper nem reformar os costumes com o talento.

     - Tão acanhado!... - volveu ela desdenhosamente.

     - Também notei. Pareceu-me contemplativo bastante.

     - E tristonho.

     - Isso.

     - Passou duas horas num canto da sala...

     - A meditar...

     - E roía as unhas... não reparou, papá? - notou a menina casquinando e ferindo algumas teclas maquinalmente.

     - Ah!, ele roía as unhas? É preciso que tenha boa cascaria para estar sempre abastecido de tal vitualha. Os sujeitos que se roem têm em si mesmos um armazém de víveres. São uns pelicanos do próprio sabugo.

     Laura sorriu-se e observou:

     - É um feio costume!... A cara não é desengraçada, apesar do nariz...

     - Dizes bem: apesar do nariz; e a pesar o nariz, acharíamos os rudimentos duma tromba elefantina na balança. Deve ter olfacto à proporção e faro grande. Um nariz humano, daquele feitio, corresponde aos dois do perdigueiro de teu irmão...

     - O papá hoje está... - interrompeu dengosamente Laura, tirando do céu da boca um estalinho com a língua.

     - Estou naturalista, não estou? - disse ele, carregando novamente o cachimbo de kantuki.

     - Tem aí zombado do pobre rapaz!...

     - E de ti.

     - De mim!? - acudiu ela com espanto.

     - De ti mais do que dele, porque o pobre rapaz receia talvez que eu o tenha adivinhado, e tu procuras em teu pai astuciosamente uma pessoa com quem fales do pobre rapaz. Falemos, pois.

     Laura corara até aos lóbulos das orelhas.

     As faces diziam que lá dentro lavrava lume de amor.

     Não lavrava nada. O corar é uma cláusula de temperamentos. Tem a mesma origem que a brotoeja, e a herpes, e a impigem. O sangue que acereja a epiderme das faces revela, quando muito, a compleição sanguínea da pessoa.

     E a filha de Paulo de Carvalhais, quanto a temperamento, estremava-se das nervosas e arganazes meninas de casta heráldica. As artérias pulsavam-lhe túmidas.

     Ali havia regeneração do pujante sangue dos avós godos, ao mesmo passo que seu pai e irmãos provavam com a pele aderente aos ossos o fino e remontado de sua linhagem.

     E não arguamos de ineptos aos que blasonam de nobilíssimos oferecendo em testemunho de verdade a pequenez do pé, como quem apresenta dez certidões de filhamento e o brasão da casa na sala de Sintra. Nós é que estamos sempre a passar alvarás de patriciato às mãos delgadas com unhas cor-de-rosa afiladas e longas, ao mesmo tempo que inferimos da grandeza duns joanetes o plebeísmo de seu dono.

     Na verdade, o pé que abusa do máximo da craveira é o trambolho denunciante duma descendência da gleba, do besteiro, do peão, da ralé que saltou a quatro pés ao meio das classes, e vingou desordená-las, embaralhá-las, bascolejá-las por feitio que a delicadeza nervosa do pé feminil deixou de ser dote, e veio a suceder apoiar-se complacente sobre as protuberâncias ossificadas dos alicerces em que se firma o representante duma «fortuna».

     Assim é: mas que frívolas razões justificam a nossa admiração pela magreza e palidez significativas de raça primorosa? As da plástica, certo que não.

     Pois que representa esse enfezamento?

     Serosidade de sangue; pulmões mal arejados; suco gástrico dessorado; digestões morosas, infiltrações, diáteses, enfim, que depuram a raça até vaporizá-la. Daí o anguloso da figura, a cor esfumada, o arcabouço das mãos, o escarnado das espáduas e o escadeado do peito, suspenso das cordoveias do pescoço. Quando topamos disto, exclamamos nos nossos folhetins: «Dona Fulana é sílfide. O mais puro sangue de fidalga raça apenas lhe retinge de leve as aéreas formas. A suave palidez que lhe veste o rosto de poético langor... etc.»

     De Laura é que não poderia escrever-se tal sem mentir à natureza, à arte e aos assinantes da gazeta.

     Era mulher às direitas, da raça, ao menos aparentemente, de umas portuguesas espadaúdas, que armavam os filhos para a guerra; que defendiam castelos e praças; que terçavam nos prélios, sem sofrerem as contingências desairosas da donzela de Orleães, se Voltaire não mente; enfim, da laia de umas matronas celebradas em divina prosa por António Pereira da Cunha e em corcovada retórica por Damião Fróis Perim.

     Não era Laura, todavia, um virago. Pelo contrário, os mais brandos toques e flexuras de feminilidade lhe animavam o falar, o olhar, o mover-se langorosamente dum sofá para outro. E, depois, não era sobeja prova de donosíssima e mulheril fraqueza o corar?

     - Mana Laura, tenho uma coisa importante que lhe dizer...

     - Sim, mano Luís?

     - Sim; mas não sei como hei-de principiar.

     - Pelo princípio.

     - Olhe que é assunto muito sério, mana Laura...

     - Então aqui me tem muito séria. Diga lá.

     - Sabe que eu sou muito amigo de Carlos?

     - Sei.

     - Então não se admirará que eu seja o confidente do meu amigo de dez anos...

     - Não... É natural...

     Sei todos os segredos de Carlos, desde que o vi chorar de saudades de sua mãe até que o vi chorar atormentado pelo seu primeiro amor. Perguntei-lhe porque sofria, e ele não podia mentir nem dissimular. Contou-me momento por momento todas as suas sensações desde que viu a mana Laura, há quinze dias. Pediu-me perdão para me dizer que amava minha irmã e que desejava morrer antes de sentir a necessidade de esquecê-la. A mana Laura desconfiou que era amada?

     - Desconfiei que o seu amigo me queria dizer o mesmo que disse ao mano; mas fugi à ocasião de o ouvir porque não sou das que amam ou fingem amar por passatempo.

     - Por passatempo? Escuso dizer-lhe que a mais santa e ardente esperança de Carlos é casar com a mana.

     - Eu não penso em casar-me, mano Luís. Já lho disse a respeito doutras propostas que eram de vantagem quanto à riqueza e me não faziam descer da plana do meu nascimento. A nossa Júlia é uma lição e um exemplo.

     - Mas que diferença de homens, de idade, de figura, e educação!... - contrariou Luís.

     - Bem sei, mano; há uma diferença muito sensível; mas eu... não vejo nos homens... senão os homens. Pensar em casamento é o amor que pensa, mano Luís. Eu não amo; e, sacrificando-me, não faria a felicidade de ninguém. Diga isto assim francamente ao seu amigo; que ele, ainda depois de esquecer-me - o que será fácil -, terá obrigação de estimar-me, pela sinceridade com que o avisei.

     Qualquer redarguição de Luís seria uma impertinência.

     O irmão de Laura protraiu com engenhosos subterfúgios o desengano a Carlos. Doía-lhe vê-lo e ouvi-lo, macilento e lagrimoso. Eu é que sabia como andava tresnoitado e abstinente de alimentos o meu pobre companheiro de hotel. Nunca me recolhi às seis da manhã que o encontrasse na cama. Passeava sempre no recinto do seu quarto, fumando, refrigerando com conhaque os beiços queimados e a garganta ressecada da nicotina.

     O pressentimento da terrível verdade que, afinal, Luís de Carvalhais lhe disse já lhe tinha antecipado parte da dor. Abraçou o amigo com o estremecer apaixonado do dorido que ao pé do leito dum morto adorado vê pessoa que muito amada havia sido daquela alma ido para sempre. Luís desafogou-se em consolações e esperanças que o reconcentrado moço parecia não atender.

     Eu, com mágoa minha, assisti a este espectáculo e nunca pude esquecer o aspeito de sufocante amargura com que Carlos voltado para mim balbuciou:

     - Agora, o suicídio!...

     E eu, no propósito vulgar de o defender de tamanha alucinação, discorri tanta coisa fútil, tanta frioleira clássica sobre o suicídio, que tenho bastante vaidade para não reproduzir aquela esponja de vinagre que espremi na chaga do meu paciente amigo. A minha única e boa acção neste transe foi passar com ele algumas noites, lendo-lhe poesias de Alfred de Musset, mais ou menos afinadas pela dor do amante infeliz.

     Passado um mês, Carlos pareceu-me entrar em convalescença, bem que triste e descarnado.

     Saía de noite e recolhia ao repontar da manhã, dizendo-me que vinha das «Virtudes» ou das «Fontainhas», paragens melancólicas, onde os suicidas preferem acabar, sendo certo que alguns, morando em quintos andares, donde a queda lhes seria suficiente ao propósito, vestem-se, e saem a precipitar-se dum paredão infamado de centenares de mortes. Sinal é que há aí influxo fatal, atracção de abismo.

     Apesar disso, medos de catástrofe desvaneceram-se desde que vi o meu amigo apontar-se no trajar e cuidar de certas louçanias incongruentes com um corpo que intenta destruir-se.

     Verdade é que eu, naquele mesmo ano, tinha conhecido um poeta de carácter sombrio, fino amador duma esbelta senhora, que lhe queria com a devoção dos vinte anos imaculados. Estorvos da má fortuna impediram que Jorge Artur (1) oferecesse diante de Deus o perfume de seu coração e inteligência àquela senhora. Ora, ele não era já mancebo que buscasse vida e felicidade fora da vereda da honra. Tinha trinta e oito anos. As paixões nesta idade, quando são contrariadas, pesam sobre a alma, imobilizam-na, açamam-lhe os ímpetos e privam-na de prevaricar na satisfação dos ruins desejos.

     Em anos mais floridos, um obstáculo remove-se; lágrimas, infâmia e a pública abominação escassamente assustam. O homem salta por sobre abismos, e às vezes acontece deixar cair lá as perdidas almas que lhes teriam sido anjos do lar se as colhessem abençoadas pelo padre e depois pela sociedade. Jorge Artur de Oliveira Pimentel só conhecia dois caminhos: o da igreja e o do suicídio. O da igreja atravancaram-lho porque era pobre.

     Encaminhou-se pelo outro. Mas, na véspera dessa ida em busca do abscôndito, ou do nada - cuidaria ele e o leitor por infortúnio de ambos -, encontrei-o numa assembleia onde se jogava. Vi-o apontar tranquilamente, sorrir ao revés da sorte, esvaziar as algibeiras e sair.

     Parece que nem o óbulo levava para o barqueiro do Letes!

     Ao outro dia, por noite, ouviu cantar a doce voz da sua pálida amiga, que era chamada a divertir as visitas de seu pai. Ouviu, desceu à margem do Douro, que rugia entre as escarpas que o estreitam, deu a última moeda de cobre ao recebedor da portagem e, em meio da ponte, sentou-se na guarda de ferro, cravou os olhos no golfão, onde não se espelhava estrela, e... morreu.

     E, portanto, meses depois deste suicídio, quando me disseram que Carlos Pereira ia, muitas noites, defrontar-se com a casa de Laura, no escuro duma travessa, e ouvi-la cantar até uma hora, receei contágio e imitação.

     Tentei diverti-lo desse inútil e perigoso êxtase que, ao parecer de bons praxistas em amor, era ridículo.

     Convenceu-me de que ouvir cantar Laura lhe lisonjeava os ouvidos, quando lhe não mitigasse saudades.

     Um dia me disse ele com certa alegria:

     - Contaram-me que Laura pediu licença ao pai para entrar num convento.

     - Vocação ascética?

     - Não sei... - murmurou ele com o desvanecimento de lhe ser Laura disputada por um rival divino. – Sabes que eu...? - prosseguiu ele.

     - Sei o que vais dizer-me... Se houvesse conventos de frades... vestias o hábito de Abélard, quero dizer, de Abélard honesto e escapo das unhas do sogro... Se isso acontecesse, davas-me um romance, e eu dava-te a imortalidade. Pois bom é que não haja conventos. Deixa-te estar cá fora no soalheiro do século; e a mimosa flor que vá recender e esmaiar-se nas jarras do altar, se tem medo que a feneça o hálito empestado desta geração combalida até à medula dos ossos.

     - Gracejas... - disse magoadamente Carlos -, mas há nisto uma sublime tristeza!...

     - Em quê? Na dedicação religiosa de Laura?...

     - Não será antes algum misterioso amor...

     - Pode ser; mas não entres a imaginar-te o causadordesse eclipse duma estrela de primeira ordem na sociedade portuense. Isso que vá lá a quem tocar. Laura, se quisesse ser tua esposa, era-o.

     Isso desagradou a Carlos. Não se falou mais em convento.

     Mas eu perguntei a um cavalheiro íntimo e parente dos Carvalhais se D. Laura ia enclausurar-se. O sujeito riu-se e perguntou:

     - Quem lhe encampou essa fábula?

     - Encamparam-na ao meu amigo Carlos Pereira.

     - Esse seu amigo... é uma criança... Diga-lhe que se divirta e que não ande por travessas a encher os ouvidos de notas e o nariz de miasmas. Uma coisa não compensa a outra.

     Este homem era da raça duns que, desde 1830 até 1850, jogaram a péla com a pudicícia do Porto. Consideravam-no acabado porque tinha quarenta anos e bebia absinto com a presença de espírito dum vigário indefluxado que bebe o seu capilé. A mocidade chamava-lhe o leão decrépito, e qualquer rapaz de vinte anos se considerava na posição de burro, consoante reza o apólogo. Eu, porém, que passei com ele algumas noites, bebendo cafeteiras de café frio, e lhe ouvi histórias pasmosas, contadas com admirável modéstia, entendi sempre que efectivamente os rapazes eram os onagros tirante o atributo do couce.

     Contei esta passagem, convenientemente modificada, ao meu amigo, a fim de o despersuadir do desejo de ser frade.

     Carlos irritou-se e disse desabridamente:

     - Quererá esse macróbio passar por namoro de Laura?

     - Não. Disse-me apenas que Laura não pensava em sair da sociedade.

     - E que te disse dela?

     - Só isto.

     - Não te deu a entender que amava alguém?

     - Não. Deu-me só a entender que não amava ninguém.

     - Mas que lhe importa ele que eu vá ouvi-la cantar?

     - Não lhe importa... Estranhou o romantismo do caso... Homens daquela idade não entendem que debaixo das janelas de D. Elvira esteja um D. João de Marana a não ser para subir por escada de corda.

     - É um corrupto, esse velho! - volveu indignado Carlos Pereira.

     - Estou por isso.

     - Leão sem garras...

     - Isso não sei. Eu, se tivesse mulher ou irmãs, quando ele me entrasse em casa sempre havia de pedir exame das garras, à cautela. Olha que ele vale mais do que nós, Carlos. João de Campos (2) pertence à falange demil oitocentos e trinta, raça satânica que a onda revolucionária atirou ao meio duma sociedade desordenada quando as cruzes dos templos caíam e as almas se atiravam ao Inferno à míngua de frades. Nós já pertencemos à reacção moral de Chateaubriand. Os pais de família não lêem o Génio de Cristianismo; mas têm lá um génio seu, e péssimo, que defende com tranca a entrada das casas e vão de noite, em cuecas e candeeiro, colar o ouvido às portas dos quartos em que as filhas digerem a pescada da ceia.

     - Queres tu dizer... - interrompeu o meu amigo.

     - Quero dizer que João de Campos não é leão que se entregue às vaias de Esopo.

     - Pensei que julgarias Laura tão ignóbil que o amasse...

     - Se ela o ama, não sei... mas...

     - Sei eu que não! - bradou quase irrisoriamente Carlos. - Mas... quê?

     - Mas, se o amasse, não era por isso ignóbil.

     - Pois uma formosa menina que se apaixona por um velho...

     - Prova que o velho é amável. Ai!, meu Carlos, quando tiveres quarenta anos e mais eu, com que sauade recordaremos a soberba juvenil com que estás aí remoqueando os quarenta anos de Campos!...

     - Não hei-se lá chegar. Espero que este infame mundo me mate muito antes...

     Carlos proferiu com amargura e desabrimento estas vozes proféticas.

     E continuou os seus romanescos arroubos na travessa.

     Por uma calmosa noite de Agosto, o arrebatamento de alma prolongou-se-lhe muito além da música. Laura calara-se, as visitas saíram, as janelas fecharam-se; mas Carlos ficou até sumir-se o derradeiro clarão que transluzia da vidraça duma trapeira, onde provavelmente dormia alguma criada.

     Ia sair da congosta, quando lhe pareceu ouvir o rodar vagaroso do ferro em que prende o fecho da janela. Recuou, sofreando o respiro. Contava ele que, ainda antes de abrir-se a janela, sentira um choque no coração que o deixara todo em tremuras. Aberta uma portada subtilmente, saiu à janela um vulto vestido de branco, olhando a um lado e outro da rua. Carlos reconheceu Laura.

     Se ela viria ali para ver a Lua? Se fugiria ao calor dos estofos e tapetes para aspirar a brisa consoladora? Se enlevos de coração a convidariam ao cismar doce no silêncio de tão inspirativa noite?

     Conjecturas que lhe banhavam de gozo o peito!

     Se ela estaria esperando um homem? Se ele iria ser testemunha de palavras de amor caídas daqueles lábios à rua? Se Laura teria um amante?

     Conjecturas excruciantíssimas!

     E ela estendia o colo de garça escutando o rumor de passos lá nos dois extremos da rua.

     Passos não se ouviam: mas quase inesperadamente viu Carlos perpassar às surdas um vulto em frente da travessa e parar debaixo da janela donde Laura se retirara. Quem quer que fosse pisava leve como andorinha.

     Julgá-lo-íeis sombra. Um tapete-veludo não abafaria mais inaudíveis os passos duma chinesa. Que calçaria aquele sujeito? A guta-percha entrou anos depois nestes escândalos, ou entrou, mais exactamente, para não escandalizar a vizinhança, nem acordar a família - benefício que os maridos e outros devem às artes.

     Como quer que fosse, a aragem duma consoladora hipótese refrigerou o esbraseado coração de Carlos, deixando-lhe presumir que Laura se retirara discretamente para deixar a alguma vizinha o prazer de palestrar com os seus amores.

     O meu amigo não podia entrever o que fazia o vulto um pouco dobrado para o chão, jogando com os cotovelos como quem estivesse descalçando umas botas.

     Depois viu levantar-se um braço e buscar qualquer coisa indistinta aos seus olhos perplexos. Em seguida enxergou que duas cordas pendentes como travessas a modo de escaleiras iam subindo como se ninguém tirasse por elas. Divisou que saía dentre as portadas um braço e, tomando a extrema da escada, erguida provavelmente por um cordel, a segurava no peitoril de ferro da janela com outros ferros que, ao roçar, deram um som áspero e metálico. Em seguimento, o vulto marinhou lesto escada acima, cavalgou o peitoril sem lhe tocar com os pés, repuxou a escada e escoou-se para o interior da casa. Tudo isto com tal presteza que não há aí aticismo de estilo capaz de lhe levar vantagem na descrição.

     Carlos Pereira sentiu oscilar a abater-se-lhe a calçada debaixo das pernas convulsas. Sem atentar no grotesco da sua postura, acocorou-se e apertou entre as mãos a cabeça, onde martelavam estrondos cavos e zoeiras sibilantes. Ele não sabia dizer depois que tempo de minutos ou anos durara esta alienação de si próprio. «Eu ouvia chorar o meu coração e não me sentia a mim» - explicava ele confundindo as minhas tais quais noções psicológicas.

     Às duas horas e meia da manhã, Carlos Pereira permanecia ainda na travessa; mas já então distinguia cronologicamente as fases do seu infortúnio. Sabia que por volta de uma hora e um quarto havia subido o vulto, e certamente não tinha ainda descido. Ouviu três horas nos Congregados, três e meia nos Clérigos e quatro na Lapa. As pancadas do bronze, como se lhe dessem no peito, iam marcando o período interminável da sua agonia de quarto em quarto de hora.

     Oh!, quanto é preciso ter padecido um homem para, num transe desta natureza, levantar olhos ao céu, e ir deitar-se na sua cama, e meditar sobre os efeitos do pecado original, ou dormir, que é ainda melhor! Isto conseguem-no aqueles cujo coração, trespassado muitas vezes, abriu fendas que são outros tantos respiradouros.

     Por via de regra, um desmentido à sua confiança pode, quando muito, volvê-los mais corrompidos e transgressores do pacto social. A lança, que feriu, apenas fez esvurmar postema que irá empestar almas.

     Mas, se o amor é o primeiro, o golpe sangra generosas lágrimas. O desenganado não se rebela contra Deus.

     Abraça-se à sua cruz sem blasfemar, e aí se estorce com dolorosa voluptuosidade.

     Assim se explica a pertinácia de Carlos em quedar-se ali na travessa, ouvindo as horas, sem desfitar olhos da janela da alcova que ele tantas noites contemplara, pedindo ao anjo dos sonhos inocentes que velasse o dormir de Laura com suas asas iriadas de luz celestial.

     Às quatro horas e dez minutos, um pouco antes de amanhecer, já quando o morrão dos candeeiros apagados fumegava o seu fétido de purgueira, abriu-se a janela, a escada desenrolou-se, o homem desceu, sobraçou o cordame em roscas, cingiu a orla do capote ao rosto, a janela fechou-se, e o vulto, cozido com as portas, sumiu-se.

     Sumir-se, não; que o meu amigo seguiu-o a distância de vinte passos, com tanta leveza de pé que o perseguido não deu tento da espionagem. E, andando um longo espaço, viu parar o vulto, abrir uma porta, entrar e fechá-la.

     Às cinco da manhã, quando eu entrava no hotel, encontrei Carlos a passear no pátio.

     - Que fazes aqui?!... Que palidez é essa? Estás doente? - perguntei, espantado da desfiguração do meu amigo.

     - Como te não encontrei no quarto, vim aqui esperar-te. Não te custa vir comigo?

     - Aonde? Vou onde quiseres.

     Deu-me o braço, sem proferir um monossílabo. Se eu lhe perguntava que tinha, respondia-me:

     - Logo saberás tudo.

     Andando um curto espaço de duas ruas, parou defronte da casa onde vira entrar o vulto e disse ofegante:

     - Sabes quem mora aqui?

     - Sei.

     - Quem é?

     - É o João de Campos.

     - Oh!, que vergonha - murmurou ele, tapando o rosto com as mãos.

     1 - Irmão do actual visconde de Vilar Maior

     2 – Pseudónimo

   

    Segundo amor

     Não comia nem dormia.

     A febre e suores nocturnos chegaram a inspirar ao médico receios de lesão pulmonar.

     Pedi-lhe que saísse do Porto, e consegui que um nosso amigo dos Arcos de Valdevez o convencesse a passar o Outono em uma sua quinta do Minho.

     Saiu Carlos Pereira, deixando-me a desconfiança de ser aquele um adeus dos que se trocam à beira da eternidade. Pai e mãe e três irmãos lhe tinham morrido tísicos, e ele levava duas manchas incendidas nas faces, como se o clarão doutro mundo lhe desse já no rosto.

     Iludi-me, ainda bem!

     Carlos escrevia-me semanalmente, primeiro com lacónica melancolia, e pressentimento de acabar cedo; depois, ampliando as cartas com a notícia das belezas campestres, e no descrevê-las um suave prazer de vida, uma certa poesia luminosa de crer e esperar, mudança que eu já tinha conhecido em mim depois de ter visto negro, tudo, desde a minha alma até ao fundo duma cova, e lá no fundo, mais negra que a morte, a infernal dúvida.

     O hospedeiro amigo, que o seguia sempre, confirmava as minhas alegres suposições, dizendo-me que a cura se completaria cedo, se um acaso feliz lhe deparasse outra Laura, melhor ou pior.

     Entrou o Dezembro, e Carlos não voltava ao Porto.

     «Pois passas aí na aldeia o Inverno?», escrevi-lhe eu.

     «Sim. Agora é que eu principio a ver e sentir outra vez a minha mocidade, mas sem flores. Espero que elas voltem com a Primavera destes sítios que me remoçaram: que a natureza me vista a mim também de folhas.

     Tenho vinte anos. Quero viver.» Resposta de Carlos.

     E, no mesmo correio, estas frases do seu amigo: «Temos Laura... pior. Deixá-la ser. O que nós queremos épêlo do mesmo cão ou da mesma...» Desculpem, minhas senhoras, o plebeísmo do anexim; que eu já lhe aspei o mais indelicado.

     Era verdade.

     E passou assim este grão caso, cuja narrativa hei-de levar seguida com a possível seriedade.

     Chamava-se Virgínia. Bom agouro de nome! Virgínia de Meneses Picaluga de Ias Cuencas. Os apelidos estão explicados no brasão do portal. Cuencas vem de fidalgos galegos que se entroncaram nos Picalugas de Melgaço de mil quinhentos e vinte e quatro.

     Virgínia, dama de vinte e seis anos e beleza sólida, vive na sua Quinta das Açudes. E só, solteira e rica.

     Veio para ali; mas não se sabe donde. Eu sei. Depois direi donde e como foi. O que lá consta é que seu pai, Cristóvão de Picaluga, a mandara pequenina para longes terras, e na velhice a chamara, e reconhecera para os efeitos de suceder na casa paterna.

     Esta rica herdeira tem consigo um padre que feitoriza os negócios da casa, alguns criados de lavoura, criadas de sala e cozinha, um liteireiro, e mais ninguém.

     Não visita, nem é visitada. Aforamentos, pagas de rendas, laudémios, coisas atinentes à governança dos seus casais, pertencem ao padre administrador, que veio para ali também se não diz donde, nem como. Eu direi tudo oportunamente. Neste ofício de romancista, ou se sabe tudo da vida alheia, ou não se escreve nada.

     O que todos sabiam do feitor de D. Virgínia era que nunca padre mais valente de ânimo e pulso pisara o Alto Minho. Representava trinta e tantos anos, apessoado herculeamente, olhos coruscantes, compostura de feições a primor, bem que um tanto rústicas. A fama de valente e destemido ganhou-a deslocando o pulso a um escrivão remisso no lavrar uns mandados de posse, e torcendo o pescoço a um pároco que usurpara à fidalga das Açudes o direito dum local exclusivo na igreja, onde ajoelhar-se, à imitação de seus avoengos, direito nunca disputado desde D. Urraca Picaluga, sua décima terceira avó. Afora isto, os algebristas, algum tempo, tiveram muito que fazer destorcendo ou soldando costelas dos caseiros de D. Virgínia, trazidos ao caminho da pontualidade no pagamento das rendas pelo sistema sumário do feitor.

     Carlos Pereira ouvira contar estas e outras passagens relativas ao mordomo de D. Virgínia, depois que ela passara na sua liteira na ponte dos Arcos, seguida do capelão cavalgado em possante macho. O meu amigo reparara na fidalga e admirou-a. Os conhecidos dele poetizaram-lha nublando a existência misteriosa de Virgínia, e o insulamento em que se apartara tão peregrina beleza, numa idade em que o hábito de amar centuplica as forças do coração, mormente num estado independente e rico para poder desprender-se de respeitos sociais.

     Carlos dormiu alvoroçado e levantou-se melancólico.

     Tinha entrado nele o amor por fulminação!

     O seu hóspede informou-o alegremente do caminho que levava à quinta meia légua distante. O bom amigo almejava distraí-lo. E, para o intento, um passeio quotidiano de légua era exercício higiénico e preparatório para bem dormir as noites.

     Arvorou-se Carlos em caçador, e foi caminho da ventura até encontrar o portão ameiado da Quinta das Açudes.

     Impressionou-o o aspecto vetusto e feudal da casa torreada nos quatro ângulos com suas seteiras, adarves e guaridas. Estas carrancas guerreiras, construídas no século XVII por um fidalgo que nunca terçara um faim, serviam apenas de pacíficos miradouros e ornato na forma quadrangular do edifício.

     Não obstante, o moço brasileiro, lido em Walter Scott, transportou-se aos tempos feudais e às tragédias que espadanaram sangue daquelas sombrias pedreiras.

     É as castelãs que lhe avultavam na embelezada imaginativa, certo, não eram mais adoráveis que Virgínia – a misteriosa.

     Oh!, a misteriosa! Não era já isto um traço cavaleiroso da Idade Média? E ele, se pudesse enevoar-se até passar por misterioso, não seria coisa para que estas duas almas olímpicas dessem de si uma épica extravagância, a destacar da chilra prosa em que nos deixamos ir animalmente pelo cabresto do instinto?

     Deixámo-lo parado em frente do portão olhando para as torres que sobranceiam o vasto terraço. Ali está, e sente-se bem; mas o seu intento não se satisfaz a contemplar o paço da castelã.

     Já nos não parece o homem da travessa! É que o primeiro amor, próspero ou funesto, dá atrevimentos novos para o segundo.

     Delibera abrir o portão e entrar ao pátio.

     Abre, com efeito. Avança meia dúzia de passos, e é atacado por um formidável casal de cães da Navarra, marcados a ferro no focinho como os molossos das selvas druídicas. Acode-lhe ânimo nas fauces do perigo.

     Encosta-se à parede, e oferece a coronha da espingarda à dentadura minacíssima. O meu amigo ia ser irremediavelmente devorado, quando de uma janela gritaram às feras, que obedeceram de cauda caída e rosnando.

     A redentora foi Virgínia.

     Carlos descobriu-se, deu alguns passos e balbuciou, gago de amor e de susto:

     - Entrei para pedir licença de acender um charuto, se Vossa Excelência permite.

     - Eu mando... - disse e retirou-se a fidalga.

     Momentos depois, uma criada entregava ao caçador uma caixa de fósforos. Quis ele aproveitar-se de um; mas a moça disse que a senhora mandara entregar a caixa.

     Olhou Carlos para cima, e viu Virgínia. Descobriu-se com refinada elegância de meneios, e disse:

     - Agradecido a Vossa Excelência.

     Virgínia abanou a cabeça três vezes e conservou-se.

     Ao transpor o portão, o belo desconhecido voltou-se para a frontaria da casa e cortejou novamente.

     - Que bonito rapaz! - disse a fidalga à sua criada. - Aquilo é papa-fina! - acrescentou ela em termos assaz destoantes da sua prosápia.

     - Bonito, bonito! - confirmou a criada.

     - Quem será? Eu nunca o vi...

     - Nem eu.

     - Dava nesta santa hora uma moeda por saber quem era! - tornou Virgínia, cada vez mais plebeia na linguagem.

     - Olhe lá o que diz, fidalga! - acudiu a criada.

     - O dito dito; mas vê lá como fazes isso, Perpétua! Que não vá ele cuidar que...

     - Que há-de ele cuidar? Deixe-me lá ir, que ainda o apanho na calçada.

     Apanhou, de feito, mais perto do que supunha.

     O caçador estivera espreitando por um resquício do portão, e somente se retirara quando viu a criada atravessar o pátio às carreiras.

     - Vossa Senhoria, ainda que eu seja confiada, é destes sítios? - perguntou ela titubeante.

     - Não, menina - respondeu Carlos, agitado pela esperançosa surpresa de tal pergunta.

     - Ai!, não é? Então donde é?

     - Do Porto; mas estou, há três meses, na Quinta de S. Brás, meia légua arredada daqui.

     - Sim?

     - Sim, menina.

     - Está bom... Queira perdoar... Estimarei que passe muito bem.

     - Adeus, menina.

     Minutos depois, Carlos pensava consigo: «Não há basbaque maior do que eu! Pois não deixei ir a criada sem lhe dizer qualquer coisa que pudesse lisonjear a ama! Eu ainda estou muito garraio! Conhece-se que saí há seis meses do colégio! Que juízo fará de mim esta mulher!... Mas quem sabe se a curiosidade é da criada e não da ama?!...»

     Outras reflexões conscienciosas lhe sobrevieram, ao mesmo tempo que D. Virgínia dizia à criada:

     - Nem te disse como se chamava?!

     - Eu não lho perguntei, fidalga.

     - Então não te disse mais nada, mais nada?!

     - Mais nada. Se eu soubesse que Vossa Excelência queria saber-lhe o nome...

     - Agora queria... que me faz cá isso?, mas cuidei que tu, indo lá, trarias mais alguma notícia...

     - Deixe que ele torna...

     - Quem te disse que tornava?

     - Digo-lho eu, minha senhora. Olhe que ele veio cá para ver Vossa Excelência.

     - Bem me fio eu nisso, mulher! Pois o homem nunca me viu...

     - Vossa Excelência sabe lá! Talvez que a visse, antes de ontem, quando a fidalga vinha da Quinta dos Arcos...

     - Não te vás sem resposta, que eu figura-se-me que vi aquele rapaz a passear com outros na ponte!...

     - Pois olhe que não foi outra coisa... Quer a fidalga que eu vá deitar as cartas?

     - Vai buscá-las...

     Quando a criada saiu para nos completar o conceito que vamos formando do espírito de sua ama, Virgínia chegou à janela, olhou distraída por cima do muro e viu o caçador subindo uma colina fronteira e parar no topo a olhar para ela.

     Entrou Perpétua, e a ama advertiu-a alegremente:

     - Queres vê-lo? Lá está no cimo da bouça parado a olhar para aqui.

     - Adivinhei ou não? Olhe que eu sou muito fina! - jubilou a criada. - A moeda de ouro que não esqueça, ouviu, fidalga?

     - Não tenhas medo... Ganhaste a moeda!

     - Faz a senhora muito bem em se divertir - aplaudia a moça cá do fundo da sala, sem que a ama, toda enlevada no caçador, desse grande atenção aos incentivos da matreira. - Uma senhora linda como Vossa Excelência, aqui metida sem ver ninguém que lhe fale ao coração! Credo! Não sei de que lhe serve a riqueza!...

     Todas as fidalgas que eu servi se divertiam o seu todo-nada. Só Vossa Excelência parece que disse adeus ao mundo! Ande-me, minha senhora, que ainda está uma flor, e na idade de se casar com quem lhe apetecer...

     Virgínia desprendeu um profundo suspiro e um ai tanto ou quê misterioso.

     - Qual ai nem meio ai! - tornou Perpétua. - Divirta-se enquanto é tempo, fidalga. Olhe que isto da vida são dois dias. Deixe-se de contos. Não queira tutores da sua porta pra dentro. O Sr. Padre que trate lá da sua obrigação e que não se lhe importe com Vossa Excelência.

     - Ah! - repetiu a fidalga, e tão do peito tirou o gemido que Carlos ouviu o dulcíssimo som, porque o portal da quinta quase embeiçava com o sopé do outeirinho.

     Ora isto era motivo para endoidecer um homem daqueles anos. Um ai, um suspirar assim de fidalga entre quatro torres acasteladas. Um ai da misteriosa Virgínia, expressão de angústia mal abafada, ou grito de alma que se levanta do seu túmulo e sacode a mortalha, e se aquece dos gelos da ingratidão ao sol da esperança!...

     Um ai

     Carlos dobrou os joelhos sob o peso da sua felicidade; e ajoelhou mentalmente com reconhecidas lágrimas, em acção de graças, à Providência, que o recompensou.

     Como o júbilo lhe pulava do coração aos olhos, quando se atirou aos braços do amigo, exclamando:

     - Sou feliz! Sofri pouco em comparação do que estou gozando!

     - Pois já?! - espantou-se o hóspede. – Tão cedo!... Ou tu és César, ou a mulher é Fúlvia; se antes, meu poeta, não és tão parco em amor, que te contentas de pouco! Chegar, ver e vencer, meu caçador!... Estranha caça é essa!... Nós, os Minhotos, conhecemos pouquíssimo dessa volataria! Não alcançamos perdiz sem caminhadas de muitas léguas por montes e vales.

     Contou em florido estilo o brasileiro o próspero encontro, acrescentando ao que sabemos que Virgínia lhe acenara com lenço branco ao despedir-se.

     O amigo felicitou-o; mas a consciência culpava-o de lisonjear uma paixão nascente e, a seu ver, mal empregada.

     - Com que intento namoras esta mulher? - perguntou ele.

     - Com o intento de amá-la...

     - Casarias com ela?

     - E crês que senhora tão fidalga, rica e bela aceitaria a mão do filho dum negociante, com pequena «fortuna» ?

     - Creio que sim. Pois não a ouviste dar um ai Não te acenou com o lenço! Não te namora ela?

     - Sim...

     - Então, uma das duas: ou te quer para esposo ou para amante. Qualquer dos bicos do dilema te serve.

     A segunda hipótese, porém, é ofensiva de tão nobre dama; todavia, dê-se de barato que ela não capricha em primores de dignidade...

     - Isso é triste... - interrompeu Carlos. - Não me rebaixes esta mulher que me salvou...

     - Dos cães da Navarra?

     - Adeus!... Isso é mau gosto! Que sabes tu da vida dela para aviltá-la?

     - Eu não a avilto. O que sei dela? Sei apenas o que me contas... e é bastante. Meu amigo, mulher que atira assim um ai da janela a um homem que viu pela primeira vez; mulher que agita um lenço à laia de cozinheira...

     - Ora... - atalhou indignado o moço. - Tens trinta e dois anos e eu vinte!... O meu prisma é o de uma alma cheia de santas ilusões que me não deixam escarnecer dum suspiro, nem do agitar-se um lenço que exprime um adeus. Seria ridículo eu parado no alto do outeiro a contemplá-la?

     - Não.

     - Se não, porque há-de ser ridícula Virgínia?

     - Ridículo serias tu se pegasses a dar ais no alto do outeiro. Creio que não gemeste, Carlos... Enfim, não te enfadem estas minhas esquisitices. Estamos conversando. O que eu sinceramente desejo é que esta Virgínia não esteja tão longe do seu nome como a Laura portuense estava da do poeta italiano. Entretanto, a amizade força-me a aconselhar-te que estejas de sobreaviso com um padre que mordomiza a casa da fidalga. Consta-me que o homem tem na alma três casais de cães navarreses.

     - Podes imaginar que ele seja amante de Virgínia?! - interrompeu com azedume o colegial da Formiga.

     - E, se pudesse...

     - Caluniarias sem graça nem piedade uma senhora, abatendo-a até à vilania de amante do seu capelão... Tu és terrível! O cepticismo é uma aljava cheia de dardos venenosos...

     - Um nosso amigo céptico - volveu o minhoto sorrindo - desembestou uma vez um desses dardos ao peito duma certa Laura... A tua crença esbravejou de inocente cólera; mas isso não impediu que o céptico te fosse depois ensinar a porta dum tal João de Campos.

     - Isso aconteceu no Porto...

     - Que faz ao caso a localidade?

     - O Porto é um foco de miasmas sociais.

     - Olha que as nossas aldeias, apesar da pureza dos ares, não tas recomendo como alfobres de candura. A corrupção, quando nos empesta, é por atacado. Os capelães das famílias nobres não são bastante entulho a empecer a entrada do vício aos paços acastelados.

     - Aí tornas tu com a insinuação hedionda... Pois bem! Seja embora o padre amante de D. Virgínia! Se o é, porque me deu ela provas de que me aceita a corte? Se desceu até ao feitor, é porque o ama.

     - A falta dum gentil caçador... Supõe que a tua presença desalojou o padre do peito de Virgínia!...

     - Obrigado pela lisonja...

     - Sem lisonja; que o rival não te honra, nem o suplantá-lo to deveria empavesar...

     - Afinal, queres dizer-me que não volte a ver Virgínia?

     - Seria inútil. Hás-de vê-la, hás-de amá-la como se os anjos do Senhor ta invejassem... Seria inútil tentar demover-te...

     - Vê lá! Se esta paixão me desdoura, retiro-me, vouamanhã para o Porto.

     - Um homem nunca se desdoura por mais abjectaque seja a mulher que ama. O pior que pode acontecer-te - continuou jocosamente o amigo - é tropeçar no padre.

     - Se cair, levanto-me.

     - Com o tardio remorso e pejo de ter malbaratado grande porção do puro sentir que é tão pouco em cada alma... Ele te faltará depois aos trinta anos...

     Seria inútil, disse avisadamente o nosso amigo do Minho.

     Programas de infortúnios amorosos por milagre vingam esfriar corações ferventes; antes parece que as ameaças lhes refinam o ardor. É escusado aconselhar com teorias e despersuadir com exemplos. Em amor há um só e único argumento que ensina: é a experiência.

     Bem-aventurados os poucos que, apalpados pelo segundo desengano, tiveram mão de si à terceira tentação!

     Ao outro dia, e à mesma hora, o caçador - inocentíssimo Nemrod que não seria capaz de acertar num urso adormecido - estanceava nos arredores da Quinta das Açudes.

     O céu emborrascava-se, rolando trovões, e abrindo relâmpagos por entre castelos de nuvens que se recruzaram, conglobaram, desfizeram e encorporaram até se fecharem de horizonte a horizonte em abóbada cinzenta.

     Quando as primeiras gotas caíram frigidíssimas, Carlos estava no topo do outeiro, e D. Virgínia na janela, continuando a reciprocidade contemplativa que já tinha, àquele tempo, uma boa hora de vida de paraíso.

     Notou o moço que lhe não bastava a estufa do coração para alimentar o calórico da periferia: tiritava e contraía-se quando o açoite da chuva lhe verberava as orelhas.

     Neste comenos, a fidalga retirou-se da janela, e daí a minutos abriu-se o portão, donde saiu a já conhecida Perpétua de xaile pela cabeça acenando ao caçador que fosse lá.

     Desceu Carlos com o alvoroço próprio do caso, no que era grande parte uma espécie de susto de se ver face a face de Virgínia - sensação vulgar que não merece análise.

     - A fidalga manda-lhe dizer que não esteja à chuva - disse a criada. - Faça favor de vir comigo; mas venha depressinha.

     Seguiu-a, estugando o passo, o nosso aventureiro.

     Entrou numa das portas térreas do edifício, foi ao longo de um comprido corredor, subiu poucos degraus, e achou-se num casarão rodeado de caixas de milho, com seus pingentes de presuntos no tecto.

     - Há-de perdoar trazê-lo para aqui - desculpou-se Perpétua. - O Sr. Padre está em casa e é preciso muito cuidado com ele. Se o tempo estiar, ele tem de ir à Barca, e depois Vossa Senhoria pode dar duas palavrinhas à fidalga; mas há-de ser com muito esguardo dos outros moços.

     - Sim?... - murmurou atónito Carlos, mal compenetrado ou indigno avaliador da sua feliz situação.

     - Sim, meu senhor... Olhe que a minha ama quer-lhe muito! Parece coisa de pecado! Viu-o só uma vez, e está mesmo apaixonada!... Vossa Senhoria como se chama, ainda que eu seja confiada?

     - Carlos Pereira.

     - Por muitos anos. Pois eu vou lá acima, e volto já, Sr. Carlos. Assente-se aí por onde puder.

     Temo-lo, portanto, em trances não invejáveis. Está mal de espírito. Quem o acreditará? Eu e, mais do que eu, uns que amaram fidalgas formosas residentes em solares torreados, guardadas por cães da Navarra, na quebrada de uma serra, pleno século XIV, tudo isto rodeado de silêncios medonhos ou do zoar aspérrimo das árvores ramalhadas pela ventania. Pois há-de ele vê-la e falar-lhe?! A castelã descerá a ver o menestrel nas suas tulhas?

     Que lances tão de D. Florizel de Niqueia ou Amadis passam obscuros nas aldeias do nosso Minho, onde muita gente cuida que o produto mais admirável é o tamanho das abóboras!

     Voltou a criada, meia hora depois, com uma bandeja de biscoito e uma garrafa de cristal, coando a cor vetusta do licor com que foi substituída a Castália antiga.

     - Trago-lhe dois biscoitos e uma pinga para matar o frio - disse a jovial Perpétua. - O diabo do padre ainda não saiu! Raios o partam!

     Carlos, com o propósito de animar-se, bebeu, sem que ao ideal implicasse o prosaísmo de se estar avinhando da garrafeira da castelã.

     Depois, um tanto espiritado, perguntou, recordando as insinuações do amigo:

     - Esse padre é parente de sua ama?

     - Não me é nada: é o feitor da casa, e diz a missa às vezes.

     - Mas a Srª D. Virgínia parece que... que se esconde dele!...

     - É porque ele quer-se meter a governá-la. A fidalga deu-lhe muito ousio quando ele veio para aqui, e agora... como ele é quem sabe dos títulos da casa, minha ama não quer pôr-se às más. Sabe Vossa Senhoria o que eu penso? É que ele não quer que a fidalga case.

     - Porquê? Não quer! Com que direito!?

     - Porque, se ela casar, o marido tira-lhe a ele o governo desta grande riqueza, e põe-no fora. O padre o que está é a encher-se, e por isso não lhe faz conta que a minha ama tome estado, entende Vossa Senhoria?

     Isto pareceu plausível a Carlos. «Vejam como às vezes se calunia uma inocente vítima dum ladrão!» - dizia o moço entre si.

     A chuva não cessava. As carvalheiras estrondeavam como um rugir de vagas embravecidas. E o padre feitor, desesperado de melhor dia, mandou desaparelhar o macho e descalçou as botas de água.

     Feita esta revelação pela raivosa criada, Carlos deliberou retirar-se; mas Perpétua, em nome de sua ama, pediu que não saísse com tal tempo, porque teria de dar uma volta de légua em razão de não poder passar as poldras dum regato engrossado pela chuva.

     - Vossa Senhoria fica até parar a chuva - ajuntou a criada - e, se não parar, cá dorme.

     - Dormir!... - disse o moço enleado.

     - Então que tem?! Assim que fechar a noite passa daqui para um quarto onde não vai ninguém, e durma descansado, que não tem perigo nenhum... Não tenha medo...

     - Medo... nenhum! - repeliu Carlos, chofrado de que na mente de Perpétua coubesse o receio de lhe fazer medo o padre.

     - E se o padre dormir a sesta - acrescentou ela -, a fidalga talvez lhe fale...

     - Mas - atalhou o moço frivolamente - a Srª D. Virgínia deseja falar-me?

     - Pois então? Se não desejasse falar-lhe, mandava-o chamar?! Assim Deus gostasse da minha alma, como ela gosta de Vossa Senhoria!

     Às três da tarde, Perpétua entrou na tulha com um açafate de tampa, donde tirou um pedaço de lombo de porco assado com louras batatas, um pudim das mesmas, um prato de linguiça com ovos, uma compoteira de doce de ginja e uma tigela vermelha de marmelada.

     Aberto o guardanapo sobre uma caixa, e posto o faqueiro antigo de prata com as armas dos Picalugas, a criada estendeu a apetitosa coberta e disse:

     - Coma à sua vontade e com todo o descanso, que eu vou ver se o diabo se deita.

     Carlos comeu quase nada e sem apetite. Faltavam-lhe dez anos para honrar dignamente aquelas iguarias recendentes e sentir ao mesmo tempo estar-se-lhe o coração a dilatar em competência com a víscera vizinha. Figurava-se-lhe profanação e chateza o cair da altura do seu ideal sobre aqueles nacos de cevado! Oh!, como se é criança poucos dias antes de envelhecer! Quão tarde chegam a colaborar as entrenhas harmonicamente na felicidade do homem! A poesia estéril é o coração sem estômago; a materialidade corrupta é o estômago sem coração. Alma feliz é a que participa do bom sangue de um órfão filtrado de suas impurezas animais pelo outro.

     Carlos fumava o último charuto, quando a criada, entrando e pondo os olhos nas vitualhas, exclamou:

     - Ai!, que não comeu!

     - Comi bastante, senhora...

     - Perpétua para o servir. Vejam que pelem este! Porisso Vossa Senhoria é tão magrinho! Está como a fidalga, que também não come nada!... Ora vejam! Não gostou do cozinhado, é o que foi.

     - Pelo contrário: gostei muito; mas não pude comer mais, Srª Perpétua.

     - Olhe que o padre deitou-se...

     - Sim?

     - Parece-me que a fidalga não tarda aí.

     - Sim?

     - Mas ela está com vergonha... e diz que não sabe o que há-de dizer a Vossa Senhoria.

     - Não?... - acudiu Carlos com um sorriso que lhe faria pena, leitor, se Vossa Excelência lhe ouvisse depois contar os fenómenos interiores que se escondiam naquele sorriso.

     E, passados instantes, Perpétua, fitando a orelha, disse de mansinho:

     - Ela aí vem.

     Ó musas!... propiciai-me o parágrafo!

     D. Virgínia Picaluga entrou com desembaraço e um sorriso, digamo-lo assim, de familiaridade e alegria nos olhos negros e brilhantes.

     Carlos deu dois passos, abaixou a cabeça e murmurou:

     - Minha senhora...

     - Olhe que ele não comeu nada! - acudiu Perpétua apontando para os pratos.

     - Não?! - disse Virgínia com um timbre de voz avesso do que se espera duns lábios de frescura infantil. - Não trouxeste outras comidas, Perpétua?

     - Minha senhora - tartamudeou Carlos -, eu não tenho vontade de comer... Agradeço muito a Vossa Excelência... o incómodo que...

     - Incómodo nenhum... Desculpe Vossa Senhoria a casa para onde o trouxe a minha criada...

     - Ó minha senhora...

     - Infelizmente estava em casa o meu capelão, que...

     - Eu já lhe expliquei tudo... - interveio Perpétua.

     - Nem cadeiras!... Vai buscar duas cadeiras...

     Saiu a criada. Carlos permanecia direito, hirto, de braços pendentes como um recruta, ou como um palaciano.

     - Como veio dar a estas montanhas, Sr. Carlos? - perguntou D. Virgínia, apoiando-se no braço que encostara a uma das caixas, quebrando um pouco de lado, em bela, mas menos senhoril, postura.

     - Como vim, minha senhora?

     - Sim...

     - Vi-a... vi Vossa Excelência. Ouvi o seu nome e a sua morada...

     - Eu também o vi. Já sei que o Sr. Carlos é do Porto.

     - Sou do Rio de Janeiro; mas tenho vivido em colégio dos arrabaldes do Porto.

     - E a sua família onde está?

     - No outro mundo. Não tenho pai nem mãe.

     - Não?... Tão novo!... Quantos anos tem?

     - Vinte, minha senhora.

     - E eu tão velha! Sabe quantos tenho? Diga lá.

     - Vinte e quatro?

     - Com mais dois.

     - Está no vigor da mocidade, minha senhora.

     Chegou Perpétua com duas cadeiras. Carlos apressou-se a tomar uma, que ofereceu a D. Virgínia, e ficou em pé, na atitude do pajem de tocha que espera as ordens da castelã.

     - Queira mandar-se sentar - disse a fidalga.

     Mandar-se sentar. O meu amigo reparou na frase, que lhe pareceu duplicadamente urbana. A senhora das Açudes não o mandava sentar-se; pedia-lhe que se mandasse ele a si. Quem inventaria este requinte de cortesia? Devia de ser frase trazida ao castelo por alguma senhora criada na corte policiadíssima de D. João III, onde Gil Vicente recitava aquelas suas policiadíssimas comédias.

     - Vai espreitar, que não venha alguém, Perpétua - continuou D. Virgínia, no estilo do nosso uso quotidiano. - Fecha a porta do corredor, que não venha aqui ter algum criado.

     - E agora?! - dizia de si consigo o confuso moço, sentindo aquecidas as faces pudibundas.

     A neta dos Cuencas deu ares de sangue espanhol no tom desempenado com que lhe disse:

     - Sr. Carlos, não faça de mim mau conceito...

     - Oh, minha senhora! Vossa Excelência magoa-me... Eu considero um anjo do Céu quem me dá a felicidade que estou gozando... - exclamou ele com sincera ternura.

     - Eu bem sei que as senhoras da minha qualidade são mais... são mais... sim, são mais demoradas em aceitar a corte dos cavalheiros que as adoram; mas eu tenho outro pensar. Se amo e vejo que sou amada, declaro logo os meus sentimentos.

     - Isso é próprio de um coração generoso, minha senhora... Mas tive eu a ventura de mover o coração de Vossa Excelência?

     - Se não movesse, decerto não estaria aqui, Sr. Carlos. Há quatro anos que me não deixam estes cavalheiros de seis léguas em roda. Dou-lhe a minha palavra de honra que não tenho dado cavaco a nenhum...

     Este cavaco bateu no coração do rapaz como se fosse uma sorveteira. Não obstante, o seu bom juízo reflexionou-lhe que se desse os emboras de topar uns ouvidos virgens da linguagem tersa e selecta dos salões do Porto, onde o português se fala a primor. E a fidalga continuou cavaqueando:

     - Tive muitas cartas, e para aí estão todas por abrir. Posso-lhas mostrar, se quiser...

     - Minha senhora, Vossa Excelência não tem que justificar-se; eu creio-a, e adoro a sinceridade das suas revelações.

     - Não sei mesmo o que dizem as cartas...

     Susteve-se D. Virgínia, e perguntou:

     - Diga-me cá: Ó Sr. Carlos, se me não falasse, que fazia?

     - Que fazia? Não entendo bem a pergunta, minha senhora...

     - Escrevia-me, não é assim?

     - Se Vossa Excelência me permitisse...

     - Pois, se me escrevesse, eu não lhe respondia, ainda que quisesse, porque não sei ler nem escrever. Admira-se?

     - Não me admiro, minha senhora... Eu sei que certos fidalgos desprezam a educação literária das filhas...

     - A mim não me ensinaram nada... Eu lhe contarei noutra ocasião como fui criada. O que eu quis agora foi dizer-lhe a razão por que o recebi em minha casa. Gostei do Sr. Carlos, quis mostrar-lhe que correspondia ao seu amor. Vi que não tinha outro modo mais... mais desenganado. Aqui tem.

     - Vossa Excelência é adorável, minha senhora!

     A minha alma inclina-se diante de tão amável franqueza. Que importam os dotes da inteligência? Vossa Excelência tem os tesouros do coração. Que mais hei-de eu pedir a Deus?

     - Que faz Vossa Senhoria nestas terras? Tem alguma quinta?

     - Saí do Porto há meses doente, e vim restaurar-me na quinta dum amigo; vim conduzido pela misteriosa Providência... Era Vossa Excelência quem eu procurava... era a realização dos meus sonhos...

     - E demora-se por aqui?

     - Enquanto Vossa Excelência me não repelir; enquanto... sentir que mereço a estima de Vossa Excelência.

     - Então havemos de falar mais vezes. Olhe... domingo sei eu que o meu capelão vai para Braga, e volta na segunda-feira. Venha no domingo ao meio-dia, e espere que a Perpétua o vá chamar, sim?

     - Sim, minha senhora.

     - Tenho muito que lhe dizer... muito, muito... Simpatizo muito consigo.

     Perpétua deu sinal de que o capelão não adormecera e já andava a pé. D. Virgínia ergue-se de golpe e apertou a mão de Carlos, que se inclinou a beijar a dela.

     Era o primeiro ósculo que depunha em mão de mulher.

     A fidalga sorriu-lhe com amorável complacência e retirou-se, apertando o passo.

     O meu amigo, querendo debuxar em sombra e muito à flor do coração as delícias que o endeusavam ao separar-se de Virgínia, disse:

     - Tive orgulho de mim, e, assim mesmo, eu achava-me um insignificante para aquela mulher que se me figurou o brilhante, como ele saiu das mãos do Criador, antes que os homens o polissem para o converter no ouro das paixões abjectas.

     Este parágrafo seria absurdo se o capítulo seguinte não alumiasse os incrédulos e justificasse o autor.

   

    Segundo golpe

     Volvido um mês, depois da mais honesta cena de amor dos meus romances, apareceu-me Carlos Pereira, alegre, nutrido e robusto.

     Eu sabia apenas que o moço amava e projectava um casamento rico. Sabia-o dele e do meu amigo dos Arcos, para quem o tal matrimónio, se não fosse uma fábula, seria uma calamidade. Pedi explicações confidenciais. Respondeu-me:

     Não sei que instinto me diz que a mulher amada por Carlos esconde mistérios indissimuláveis a um marido. Carlos tem cataratas. Não lhe faço a operação, porque receio cegá-lo irremediavelmente.

     Espero que uma eventualidade lhe relampagueie a luz da razão.

     Do primeiro fôlego, levou Carlos a calorosa narrativa ao ponto em que a deixámos. Daí por diante, a exposição é confusa, derramada e superabundante. Trato de esclarecê-la, abreviá-la e mondar-lhe as superfluidades.

     As visitas do caçador ao solar dos Picalugas foram espacejadas a prazos de três dias. Duas ou três vezes, o aventureiro recebeu ordem de retirar-se, e duma vez pareceu-lhe divisar a corporatura entroncada dum homem através da vidraça. O intemerato moço não temia o padre. Fiado nos dois tiros da sua espingarda, afrontava desassombradamente a fama do pimpão tonsurado.

     Na derradeira vez que falara à castelã, o pacto definiu-se nos mais positivos termos. Carlos obteria licença do prelado do Porto ou do bracarense para que um vigário qualquer celebrasse entre eles o sacramento. Virgínia sairia de sua casa em ocasião que o padre andasse fora, com tardança de três dias. O ensejo apropositava-se, porque o administrador dos vastos domínios ia a Trás-os-Montes instaurar processos contra uns foreiros.

     Quando saísse, a noiva levaria consigo os títulos da casa, ou os esconderia da rapacidade do capelão. Casados, permaneceriam algum tempo no estrangeiro, onde D. Virgínia muito desejava ir, revelando ao noivo, neste acto, que possuía algumas centenas de peças encontradas nos contadores de seu pai.

     Em consequência da qual combinação, Carlos Pereira passara a negociar no Porto a licença prelatícia, e me pedia a mim que lhe solicitasse as relações necessárias ao intento.

     Escutei pasmado e quase incrédulo esta urdidura de novela insensata. Pintou-se-me aquilo uma das minhas criações românticas naquele tempo, em que tudo me saía desta laia, desalinhavado. Recorri ao meu juízo, que eu raras vezes incomodava; o qual, lisonjeado do apelo, me acudiu neste exemplar interrogatório:

     - Essa mulher não te pareceu doida? Franqueza, Carlos!

     - Doida!... Não. Pareceu-me tão inocente como enérgica.

     - O chamar-te a sua casa sem precedente algum que desculpasse a estranheza do desembaraço pareceu-te um acto inocente?

     - Pareceu, pois então!

     - E o grande cómico dessa primeira cena quadrou com os teus altos espíritos de boa crítica e fino sentimento?

     - Onde está o grande cómico da primeira cena?, pergunto.

     - Em ti, que olhaste idealmente para essa mulher.

     Poupemo-la à irrisão, visto que tu dás suficiente assunto de comédia.

     Carlos fez-se escarlate de cólera. Eu abri placidamente a última carta do nosso amigo dos Arcos e disse:

     - Não conheço somente essa senhora das tuas informações. O que tu me contas corrobora o que vem muito superficialmente apontado nesta carta. O nosso amigo declara que não te opera as cataratas. Eu sou mais atrevido operador.

     Carlos leu, esforçou-se por fingir placidez, e disse:

     - O que vejo aqui são palavras. Vamos a factos. Tu ou ele acusem Virgínia: se eu a não defender, seja ela infamada, e vocês venceram.

     - Eu não acuso: inquiro por enquanto o teu testemunho; mas, meu caro rapaz, conversemos com sereno desafogo. Essa senhora, à primeira vez que falou contigo, alegando que não sabia ler, prometeu contar-te como foi criada.

     - E contou.

     - Que contou?

     - Que seu pai, por motivos muito sagrados, a mandara entregar a uma ama muitas léguas distante, com quem viveu até à idade dos vinte anos, ignorando de quem era filha, criada como as filhas de sua ama, sem educação de natureza alguma.

     - Isso é verosímil. Podia ser assim. Disse-te em que terra fora criada?

     - Não lho perguntei.

     - Convinha perguntar.

     - Com que fim?!

     - Com o fim de saber que vida teve até aos vinte anos; quem era quando o pai a mandou buscar.

     - Era uma aldeã com a inocência e ignorância próprias do seu viver.

     - As aldeãs vivem ignorantes, concordo, concordo; mas inocentes nem sempre. Que me dizes tu a esse administrador da fidalga? A fuga de D. Virgínia, senhora emancipada e livre, não te faz supor que esse padre não é temido como empalmador dos títulos, senão como outra casta de patife menos digna do nosso horror?

     - Não entendo.

     - Então, mais claro: o padre será amante da fidalga? Pensemos nisto, Carlos.

     - Já expliquei suficientemente os receios de Virgínia. Disse-te que o padre Joaquim das Neves...

     - O padre... quê? - interrompi com embasbacado assombro. - Torna a dizer... o padre?

     - Joaquim das Neves, conheces?

     - Que idade tem esse padre?

     - Não sei. Poderá ter trinta e tantos anos.

     - Há que tempo foi chamada D. Virgínia para casado pai?

     - Há quatro anos.

     - Já me disseste que essa mulher é alta, reforçada, um pouco morena, olhos negros...

     - Sim.

     - E o padre é um homem muito corpulento, cor amulatada e... muito valente, me disseste não é verdade?

     - Justamente.

     O meu interrogatório precipitava-se à medida que as reminiscências me acudiam; mas, afinal, fez-se tal negrura no meu espírito que senti vontade de chorar.

     - Porque me fizeste essas perguntas? – exclamou Carlos alvoroçado. - Conheceste Virgínia?

     - Conheci uma mulher que não se chamava Virgínia. Vai às Açudes e pergunta-lhe se, antes de ser Virgínia, não foi Narcisa. Se ela disser que não, pergunta-lhe em que terra viveu até aos vinte anos; se disser que sim, chama-lhe infame, e foge, e foge mesmo de ti, enquanto essa imagem te fizer lembrar que estiveste à borda dum abismo de opróbrio.

     - Eu não vou fazer semelhante pergunta – replicou o pálido moço. - Dize o que sabes...

     - De Narcisa?

     - Sim.

     - Digo, porque vou contar a história de Virgínia, visto que o padre Joaquim das Neves não se crismou. Olha que é história de fazer asco a indiferentes!... Mas, se há no mundo alguém interessado em sabê-la, és tu!

     Escuta:

     Eu, há quatro anos, estudava latim numa terra que prende Trás-os-Montes com o Minho. De lá é que eu trago estas recordações.

     Vi aí uma mulher chamada Narcisa, vivendo com um padre chamado Joaquim das Neves. Era linda, teria vinte e dois anos. Impressionava suavemente a quem lhe não sabia a vida.

     O nome que lhe davam era a Vaca Loura, porque diziam ser filha doutra Vaca Loura, recoveira de Cavez.

     Esta rapariga, quando tinha quinze anos, amou um estudante de clérigo, e perdeu-se. O estudante, que era filho dum pequeno lavrador, deixou-a e foi para Braga continuar sua ordenação. Narcisa, criança de mais para aceitar como lição o primeiro infortúnio, buscou seu remédio descendo duns a outros abismos até parar no extremo, que tem a porta franca aos que passam.

     Estava ela aqui no Porto, arrebanhada com as de sua condição, quando a visitou um padre. Este padre era Joaquim das Neves, àquele tempo abade na terra onde eu estudava. Ela reconheceu-o e chorou. Ele, que andava em busca da sua vítima, apertou-a ao seio e disse-lhe: «Eu vinha buscar-te, Narcisa. Tenho pão que repartir contigo. É tarde; mas faço o que posso. Há três anos que te procuro.»

     Quando me lá contaram isto os menos inimigos do sacerdote, eu louvei o homem e não vi a batina.

     Levou-a para a sua abadia; mas, passados meses, o abade foi expulso, e o padre foi suspenso das ordens como imoral e amancebado. Fora-lhe melhor tê-la deixado ir ao hospital. Seria cónego, daí a dias.

     Levantaram-lhe a suspensão, repunham-no na abadia sob condicional de largar a manceba. Rejeitou o partido.

     O seu património era quase fantástico. Faltava-lhe o mais urgente à vida.

     Quando o conheci, era grande a pobreza do padre.

     Passava os dias no monte ou no rio a caçar ou a pescar.

     Trocou a batina por uma saia para Narcisa e os breviários por umas botas para ele. Ensinava a ler os rapazinhos quando recolhiam os rebanhos e recebia de cada discípulo seis vinténs por mês.

     Não sei se a Vaca Loura teve saudades do mister infame e farto que trocara pela miséria infamada em que vivia. Contava-se que não; que estava mudada; que não se confessava por não ter a quem e não ia à missa porque os fiéis se arredavam dela com trejeitos de nojo.

     Na correnteza destas passagens, apareceu uma senhora e um sacerdote, ambos de avançada idade, na aldeia de Cavez, indagando duma recoveira de alcunha a Vaca Loura.

     Ainda vivia.

     Pediram-lhe novas de uma exposta que ele tirara da roda de Braga vinte e dois anos antes. A recoveira lembrou-se de ter ouvido dizer à enfermeira da roda que a enjeitada levara sinal e fora encontrada envolta numa coberta de seda muito rica. As novas pedidas deram-lhe rebate de que a rapariga era procurada por seus pais.

     Não contou o viver de Narcisa, por interesse seu. Esperava recompensa ou dos pais, ou da filha, agradecida ao silêncio da ama.

     E tomou a seu cargo ir demandá-la.

     Ouvi dizer que a senhora, quando viu a moça, exclamara: «Não posso duvidar, que é o rosto da minha irmã», e se abraçara nela com muitas lágrimas e lhe revelara que era filha de uma dama já falecida e de um fidalgo moribundo que a mandava procurar pelo seu vigário.

     Dizia-se mais que a já defunta mãe da exposta, sendo religiosa duma ordem nobre, dera à luz aquela menina e a entregara à piedade de sua irmã; a qual, não podendo ocultá-la, a enviara à roda com um papel em que declarava o nome da menina, a fim de ser entregue quando outro papel idêntico na forma e nas palavras fosse apresentado. E ajuntava o meu padre-mestre que o fidalgo, anavalhado de remorsos no fim da vida, e solitário no seu sombrio palácio, chamara a irmã da freira e lhe perguntara se sua filha poderia milagrosamente aparecer. E, informado da previdência da condoída senhora, enviara o seu abade a colher informações na roda de Braga.

     Narcisa acompanhou sua tia e padre Joaquim das Neves ficou. Pouco tempo depois, o padre desapareceu, e grassou logo a nova de que a Vaca Loura herdara uma das maiores casas do Alto Minho e chamara para si o padre que se morria de saudades dela. Concluindo:

     O que eu não sei dizer-te é como a Vaca Loura se poetizou em Virgínia; mas é fácil calcular. A Igreja tem o sacramento da confirmação que permite estas mudanças.

     Narcisa ou Virgínia, essa mulher tinha em sua vida uma face apenas maculada de nódoas vulgares. Caíra.

     Os atascadeiros por onde ela passou, até se amparar ao coração do homem que a engolfou no primeiro, eram nojosos; mas a caridade fechava olhos para não vê-los.

     O que eu vi e todos viram foi uma mulher resignada na miséria, aceitando as migalhas de quem a perdera aos quinze anos.

     Se tu me contasses a história que ouviste, e concluísses louvando a lealdade e estima que Virgínia consagrava ao padre Joaquim das Neves, e tivesses em grande conta o coração regenerado dessa rica senhora, que o amor perdera, e a pobreza cancerara, e na pobreza se restaurara, ó meu amigo, também eu iria jurar que a luz do bom anjo da infância de Narcisa se não tinha apagado. Também eu, ao passar pela meretriz de há sete anos, me descobriria respeitoso como diante das Pórcias que a visitariam no Porto, se ela cá viesse, e desse partida semanal.

     Desde, porém, que essa mulher, assaltada por um desejo honesto ou torpe, infama de ladrão o homem que se empobreceu por ampará-la; desde que ela, ou apaixonada ou a sangue-frio, te mentiu infamissimamente e quis cobrir-te de opróbrio, e pôr na tua cara a lama de sua vida... o nome que essa mulher tem... dá-lho tu.

     Derivavam lágrimas copiosas nas faces de Carlos Pereira. O chorar é, umas vezes, alívio de angústias, as quais são tributo de dores que honram o coração; outras vezes rebentam como o pus da postema, e são também alívio. Esta saudável supuração restaura os corações sobre os quais a Providência dos bons firmou o seu dedo purificador. Tais eram as lágrimas do moço que depusera o beijo virginal de seus lábios, em que toda a alma lhe estremecia, na fronte de Narcisa.

   

    Terceiro amor

     Uns corações têm melhor carnadura que outros. Há deles que cicatrizam depressa golpes profundos. Outros, escoriados à superfície, ulceram mortalmente; e, se escapam, a lesão para toda a vida é certa.

     Carlos Pereira não era dos últimos.

     Este segundo golpe fechou sem febre. O enfermo não chegou a acamar. Passou uns poucos dias esquivo a conversações e quase sempre no seu quarto; depois andou por botequins e teatros e outras diversões.

     Ajuizei, temerária e ofensivamente, do meu amigo: confesso-me escarmentado para nunca mais julgar uns pelo que sei doutros e de mim.

     Que havia de imaginar eu, homem nado de ventre de mulher, quando, por espaço de quinze dias, não vi Carlos Pereira, nem pessoa que o tivesse encontrado? Imaginei que ele estivesse alapado na tulha das Açudes, lendo alguns capítulos paradoxais de Manon Lescaut, ou quejando romance justificativo das paixões ignóbeis!

     Refujo desta involuntária aleivosia. Pejo-me do leitor, respeitando a delicadeza dos seus sentimentos, e de mim que pude aferir o coração deste rapaz pela rasa comum... comum, não digo bem. Apenas haverá aí trezentos leitores (dos trezentos e um que hão-de ler este livro) capazes de voltar ao palácio torreado de D. Virgínia de Picaluga. O leitor é o um que lá não ia, com toda a certeza. Pois receba os parabéns da moral pública e os meus.

     Inesperadamente recebi carta do meu amigo datada em Coimbra.

     Desculpava-se de não se ter despedido, atribuindo a culpa ao estado de torvamento em que saíra do Porto por uma noite de horrendíssimo choque. Explicando a retirada improvisa, disse que, chegado ao Teatro de S.João, vira Laura num camarote da 1.ª ordem com o pai e João de Campos.

     Não pude mais encarar aquela infame! [Acrescentava ele com desvairada injustiça.] Se eu pudesse medir-me com ela, mostraria aos meus conhecidos a devassa honesta para quem os homens olhavam com respeito. Pelos modos, o intento, em Coimbra, era subjugar a sua mocidade ao estudo e defender das ilusões da alma os mais funestos anos da vida. Exemplar alvitre!

     Contei isto aos meus amigos, e riram todos. De quê?

     Do mancebo que presumia ser melhor do que eles.

     Se era! Que anjo naquele homem restituiria a Deus a sociedade, se ela não fosse, em toda a parte, o inferno dos anjos e o paraíso dos demónios, como, da de Paris, dizia Henri Heyne!

     Ao fim de alguns meses, soube-se que o brasileiro se matriculara no 1º ano filosófico e estudava assiduamente, tencionando voltar para o Brasil concluída a formatura.

     Esta assiduidade, porém, desmentiu-ma o boato de que o meu amigo requestava certa menina muito recatada, no seio de sua família, uma das distintas de Coimbra.

     Desta feita, ri eu também. O coração do meu pobre amigo não podia com o vácuo de mais de três meses!

     E quem será a terceira inquilina?, perguntava eu a mim mesmo, conjecturando que espécie de terceiro logro lhe pregaria o cupido picaresco da sua juventude.

     Informaram-me com mais ou menos exactidão os seus contemporâneos.

     A menina teria dezasseis anos; não era formosa, mas revelava na meiguice do rosto boníssima alma; também não era rica, mas podia viver decentemente com o seu dote; não falava nas salas por ser muito escassa de inteligência, mas cativava com o seu modesto silêncio a simpatia das pessoas graves; era de estirpe fidalga, mas não se dedignava de intender no governo da casa e dar muito gosto à sua família naquela sua lida e perfeição de ministérios caseiros, ou «lances caseiríssimos», como diz o autor da Carta de Guia de Casados.

     Outros informadores menos sisudos disseram-me que a menina era idiota; que criava canários e passava o mais de sua vida a cozer ovos para eles; que, tirante as horas de cozinhar para as aves, dormia e comia à proporção.

     Sem embargo destas qualidades medianamente cobiçáveis, era voz unânime que os parentes de Esteia - nome tão malcasado com a índole culinária e passarinheira desta senhora - a estorvavam de namorar Carlos Pereira e viviam muito dissaboriados da primeira inclinação de criatura tão arisca e desdenhosa de homens.

     Salta logo ao espírito o silêncio de Carlos comigo; tinha pejo de me dizer: «Cá estou amando.» A gente como que se envergonha de amar terceira vez, diante das testemunhas que assistiram duas vezes aos nossos desastres, mormente se o tombo foi de feitio que fez rir as pessoas mais cordatas, como sucede no cair por escorregadela, em que a gente se magoa burlescamente.

     No fim do ano de 1850 fui a Lisboa e passei por Coimbra.

     Era no tempo das caleças... Ai!

     Não cuide o leitor impaciente que o faço retroceder às delícias do meu tempo, pintando ante os seus olhos invejosos a poesia do jornadear em caleça. Não. Releve porém a rogos de uma saudosa alma que eu repita a frase que me sai do íntimo em soluços: era no tempo das caleças; no tempo em que Coimbra, a namorada do Mondego, mal pensava ainda que um dia as suas grutas de sinceiros - tão cheias de amor antigo, tão rumorosas dos murmúrios que ali falou a mocidade de três séculos - seriam rotas e devoradas pelo dragão de ferro, que silva estridente como o demónio da matéria que triunfa.

     Era no tempo das caleças.

     Apeei em Coimbra, dei um jeito às costelas deslocadas e fui em cata de Carlos Pereira, que encontrei na Rua do Coruche. Quem se lembra já hoje da Rua do Coruche? Há doze anos que passou por ali o Progresso, este iconoclasta implacável que subverte as coisas santas da religião artística de antiquários e poetas.

     O Progresso é barrigudo: não cabe em ruas estreitas.

     Aquela, a do Coruche, levou-a ele diante de si; e, como às cavaleiras desse pujante demolidor andem os bons progressistas para darem o seu nome às empresas que ele comete, aquela rua das minhas saudades ficou-se chamando do Visconde da Luz.

     Com que prazer eu vi, há dois anos, o Sr. Dr. Dinis, que naquela rua me deu lições de Latim! A custo me contive que lhe não dissesse: «Ó meu querido professor, eu sou um dos que antigamente desceram das regiões transmontanas naqueles machos que o Progresso tirou da circulação para dar praça a outros maiores. Sou um dos anciãos que ainda viram a Rua do Coruche e imaginaram saltar da vossa janela para a da vizinha fronteira. Pertenço àquela quase extinta raça de homens fortes que patinharam nos atascadeiros da vossa rua e antecheiraram o fedor da desorganização geral no dia em que a Providência converter em lama as obras do Progresso.» Etc.

     Morava pois na Rua do Coruche o meu amigo Carlos Pereira.

     Queixei-me do imerecido silêncio. Deu largas à sua alma e contou-me tudo, como quem precisava dum confidente.

     Amava ternissimamente a sua Esteia, com um afecto purificante das fezes que as outras paixões lhe haviam sedimentado no coração. Disse-me dela encarecidas finezas, audácias inocentes de amor virginal, arrojos enfim de criança que se atreve contra a tirania dum avô, duma avó, e tios, e irmãos ferocíssimos.

     Este esboço desdizia algum tanto dos outros que me tinham feito. Menina assim reaccionária parecia-me não tanto idiota como se dizia e menos cativa dos canários.

     Quanto a estas aves, me tapou o meu amigo a boca, dizendo-me que Esteia amava os passarinhos, e os aquecia implumes no seio, e lhes afofava os ninhos.

     No tocante a inteligência, disse que Esteia apenas lia nas estrelas os livros dos anjos: que conhecia Deus nas suas maravilhas e o adorava com as palavras do Evangelho.

     Pelo que pertencia à alma, era a formosura ideal; e, no ponto de beleza plástica, sinceramente se gloriou de que ela tivesse uns olhos por onde se lhe via o mais secreto do coração. «Dizem que não é bonita» - ajuntou ele. - «Basta que eu te diga que é amada.»

     A traça deste afecto era qual devia ser de ânimo tão estreme de vícios: legitimar, santificar o seu amor. Já a tinha pedido. Foi mal aceite. Perguntaram-lhe quem era, cujo filho era e donde. Respondeu verdade pura como cumpria. Plebeu, com riqueza não bastante a aplacar as iras dos avós de Esteia.

     A menina bandeou-se com o plebeu e autorizou-o a depositá-la judicialmente.

     Neste lance andava irrequieto o espírito de Carlos, quando cheguei a Coimbra.

     Exauriu o assunto; e, como eu me demorasse em alvitrar sobre tão grave matéria, Carlos, desconfiando do meu silêncio, acudiu impacientemente:

     - Não tentes despersuadir-me!...

     - Pelo contrário: incito, se é preciso, a que te cases com essa senhora, de quem já tenho informações iguais às tuas nos pontos importantes. Careces de repouso e de família. Casa-te, Carlos; senão, dás cabo do teu coração e do teu património.

     Este agradável tema foi a nossa prática de uma noite.

     Deixei-o bem firme no propósito de requerer o depósito de Esteia em casa duma respeitável senhora cujos filhos eram condiscípulos de Carlos.

     Na minha volta de Lisboa pernoitei em Coimbra, em Abril de 1851. Carlos convidara-me para assistir ao seu casamento.

     Vi Esteia no adro da igreja, ao alvorejar da manhã.

     Vestia um modesto vestido de seda e agasalhava-se em uma capa de martas.

     Nem coroas, nem brilhantes. Pareceu-me bem esta simplicidade.

     Entraram com ela duas senhoras idosas, embrulhadas nas suas capas de pano. O padrinho era um velho professor de Direito; as testemunhas eram dois condiscípulos do noivo e eu.

     Carlos tremia de felicidade. A muita alegria prejudicava-lhe o tom sério que o acto reclamava.

     - Que te parece Esteia?, não é um anjo? - perguntou-me ele, um momento antes de ajoelhar no arco da igreja para comungar.

     - Se te sentes anjo, ela há-de sê-lo - respondi.

     - Já é - insistiu ele infantilmente

     - Eu respondi-te como quem faz um discurso exortatório ao moço que se casa - repliquei.

     Concluída a cerimónia, fui apresentado à esposa do meu amigo.

     Dei-lhe os emboras um tanto ambiciosos e estofados de palavras e ideias em demasia literárias.

     Esteia inclinou três vezes a cabeça, em sinal de reconhecimento, e não respondeu.

     Este silêncio provava favoravelmente.

     Acompanhei os noivos a casa do doutor, onde almocei.

     Durante o repasto, Esteia entrou escassamente em conversação monossilábica e só com as senhoras.

     O marido perguntou-lhe não sei que inocente frioleira acerca do frio da madrugada. A esposa sorriu-se e purpujou-se.

     Findo o almoço, acompanhámos os noivos a sua casa, nos arrabaldes da cidade.

     As aves festejavam a passagem da sua amiga. Ao atravessarmos o Jardim Botânico, ouvi-lhe dizer com maviosa saudade:

     - E os meus canários!... coitadinhos!...

     Fez-me isto muita pena.

     Quando chegámos à casa campestre, recebi uma impressão asperamente melancólica.

     O edifício tinha sido hospício de frades pobres. Era de um só andar, com um pátio central, ou claustra, àquele tempo ajardinada com pouco artifício e esmero.

     O muro da pequena cerca tecia-se de sebe de piteiras, arbustos áridos e tristes, em que li entalhadas algumas iniciais e datas. Eu nunca vejo estas memórias, talvez abertas alegremente, que não fique a cismar na mão que as abriu, já agora convulsa de velhice ou esbrugada dos vermes. Um nome de mulher escurenta-me ainda mais o coração, se dez ou vinte anos enrugaram o córtice entalhado. Se ela era então um anjo, quantas angústias lhe desplumariam as asas? Se formosa, conhecê-la-ia hoje ao pé da árvore, que lhe guarda a memória, o homem amantíssimo que estas letras cortou? Se ele aqui viesse, e nestas iniciais e data se reconhecesse e recordasse, que lágrimas a fio lhe não encheriam os vincos do rosto!

     Se isto foi, se alguma intuição misteriosa, não sei.

     Certa sei eu que era a tristeza que me fez aquela casa, sem eu poder a mim mesmo convencer-me de que era belo o local ao parecer de todos, e principalmente dos noivos.

     Os do pequeno rancho voltámos logo para Coimbra.

     Observei que ninguém na ida nem na vinda, sequer, aparentou alegria! O doutor retirava-se reconcentrado; as duas senhoras tocavam raras palavras; os dois moços, filhos de uma delas, impressionaram-me em dobro, atenta a sua idade, por via de regra, jovial e boa agoureira de casamentos em condições de mútuo amor, provado por sacrifícios de ambos.

     Abeirei-me do doutor e disse-lhe intencionalmente:

     - Figura-se-me que deixámos no seu paraíso dois esposos muito felizes...

     - Estou por isso - anuiu o velho -, mas pouco lhes há-de durar o contentamento.

     - Porquê, Sr. Doutor?! - repliquei, parando, dolorosamente admirado.

     - Pois não viu Esteia?

     - Vi.

     - E não reparou naquelas faces? Está tísica; morre como cinco irmãs que teve.

     - E Carlos sabe?

     - Quando se manifestou o primeiro sintoma, já ela estava em depósito. Nestas circunstâncias, o aviso seria atormentá-lo inutilmente. O pobre moço ignora que lhe há-de morrer a mulher antes que volte outra Primavera a desabrochar as flores da claustra.

     - Que infeliz rapaz! - murmurei, transido de compaixão, recordando os lances daquela vida no espaço de um ano. - E ela conhece o seu estado?

     - Onde viu senhor um tísico assustado da morte?...

     Quando lançou os primeiros golfos de sangue, lembrou-se de cinco irmãs que assim tinham começado os longos paroxismos. Chorou; mas ao outro dia sentiu-se tão aliviada que atribuiu à hemoptise a cura de pequenas queixas que a molestavam, e rogou a essas senhoras o maior segredo para evitar sustos a Carlos.

     E eu recomendo ao senhor toda a prudência. Antecipar dores, preparando um amigo para as que irremediavelmente hão-de vir, é amizade funesta... Deixemo-los com a sua efémera alegria, que é, pouco mais ou menos, a duração de todas as alegrias. E muitos que hoje se sentem cheios de vida e fiados nos sorrisos da fortuna morrerão primeiro do que Esteia, ou serão desgraçados mais cedo do que o pobre Carlos.

     Fui jantar com os noivos no dia seguinte.

     Entrevi-os emboscados nos olivedos vizinhos da casa. A face de Esteia reclinada para o peito do esposo, certo que lhe ouvia pulsar o alvoroçado coração. Caminhavam muito de passo e pareciam-me silenciosos.

     Tanto que me avistaram, ela alçou a cabeça da lânguida e mimosa postura; e ele, como encantado daquele tão gentil movimento de pudor, aconchegou-a mais de si retraindo o braço.

     Esteia, durante o jantar, disse menos palavras que as necessárias para se formar conceito do seu espírito. Eu, todavia, não a desairo, nem descuro a urbanidade da crítica, supondo que esta dama, sendo dotada de excelentíssimos predicados, dispensava-se de grande entendimento, o somenos de todos os dons feminis, e muitas vezes o empestador dos outros.

     No que respeita a formosura, com mais espaciado exame, assenti à opinião dos que a não admiravam. Em extremo alva, mas sem vida nas feições medianamente regulares; um quebrado de cores, e languidez de vista; mas denotando sangue pobre, anemia e desfalecimento.

     Se o carmim das faces era beleza, mais para o Céu que para nós a estava aformosentando a morte.

     E que dor me fazia o contentamento de Carlos!

     Como ele talhava, largo e longo, pelo futuro dentro, ridentes planos!

     - Levas por diante a formatura em Filosofia? - perguntei.

     - Não. Há quatro meses que não vou à aula, nem abri os compêndios. Não quero formaturas, nem ciências, nem livros; quero o que tenho: a felicidade suprema. O meu património está bastante desfalcado. Não se restauram patrimónios a estudar: extinguem-se. E, concluída uma formatura em Portugal, quem a comprou com o seu trabalho e todo o seu haver sente-se apenas habilitado para ir mendigar um ofício de quatro libras mensais às portas das secretarias.

     - Mas também se extinguem os patrimónios sem estudar... - objectei eu.

     - Excepto quando se trabalha.

     - Trabalhar! Tu? Em quê?

     - Onde meu pai trabalhou: no comércio.

     - Ah! No comércio! Que sabes tu disso, meu visionário?

     - O que meu pai sabia: as quatro operações aritméticas e outras que meu pai decerto ignorava.

     - Vais portanto abrir uma loja... de quê?

     - Uma taberna, supõe.

     - Apoiado! Vais aquartilhar o espírito que mais reluz na cara da Minerva moderna (1). Conheceste, como J. Jacques Rousseau, os costumes do teu tempo, e fazes-te taverneiro...

     - Verás que não gracejo - volveu Carlos. – Vou ser comerciante; mas não sei de que espécie...

     - De especiarias, que é a espécie mais vendável - prossegui metendo a riso a traça mercantil que também me parecia espécie de disparate novo. Ele, porém, prosseguiu gravemente:

     - Vou com a minha Esteia para o Rio de Janeiro, logo que ela tenha recebido o seu património, que regula pelo meu. Tenho lá tios maternos negociantes não sei de quê. Se me admitirem como sócio na proporção do meu capital, serei sócio; senão, serei guarda-livros, não podendo estabelecer-me com os fundos que levo.

     - Tens, portanto, cobiça de riquezas?

     - Não. Tenho vontade de trabalhar para os meus filhos. Quero imitar meu pai.

     - É louvável o propósito; mas duvido que persistas.

     Teu pai não morreu rico, segundo infiro do teu património.

     - Tinha vinte contos quando morreu, porque os governos de Portugal, aos quais ele confiara a maior parte de sua «fortuna», roubaram-lha, e deram-lhe um maço de papéis que se chamam títulos de diferentes cores. Eu devia ter cem contos, se Portugal não fosse uma cafraria.

     - O resultado da ambição desmedida. Esse desastre foi uma lição que teu pai te deixou. Se ele se contentasse com cem contos, e não negociasse com os cafres portugueses, esperançado em dobrar o teu património, eras tu rico hoje. E serias mais feliz?

     - Não.

     - Cem contos compram muitíssimos gozos com muitíssimas fezes de tristeza, de doença, de remorso próprio e de alheias lágrimas.

     O meu amigo riu-se da gravidade sentenciosa deste dizer e remoqueou-me deste feitio:

     - Ninguém devia ter saúde, alegria e sossego de alma como tu! Ninguém dirá que participas dos achaques e tristezas dos cem contos!

     - Esse argumento denuncia que a lógica no Colégio da Formiga é uma arte por meio da qual se aprende a não raciocinar. Tenho vinte e cinco anos e já desbaratei um pequeno património. Vês-me triste e doente? É isso verdade. Se houvesse herdado cem contos, meu amigo, ver-me-ias decerto mais doente e mais triste.

     - Pode ser; mas cem contos concedem às vezes que um homem se não ache muito mal de saúde e satisfação. A mim convinha-me possuí-los, para comprar um título de marquesa para Esteia - continuou Carlos, na ausência da esposa.

     - Agora vejo que é legítima a tua ambição, meu amigo. Queres ser marquês...

     - Somente para o fim de alegrar seis avós pintadas de minha mulher, as quais, no dizer de uma sétima que ainda está no original, amareleceram na lona quando o juiz foi buscar Esteia.

     Esta jovial palestra não desfez a nuvem de melancolia que os ditos facetos de Carlos condensavam mais.

     - O clima brasileiro será bom à débil compleição de tua senhora? - perguntei, impondo-me toda a prudência recomendada superfluamente pelo doutor.

     - Esteia é débil; mas tem perfeita saúde - respondeu Carlos; mas não sei que espasmo de susto lhe vi nos olhos, ou a minha prevenção mo figurava. - Ouviste dizer que ela padecia do peito?!

     - Não - acudi logo com o mais sincero desassombro da mentira.

     - A mim disse-me alguém que ela sofria dum pulmão. É falso. Esteia nunca teve o mínimo incómodo de peito. Asseverou-mo ela.

     - Muito bem; mas perguntava eu se lhe conviria o clima quente do Rio de Janeiro.

     - Convém às pessoas fracas os climas quentes. Mais uma razão para que eu vá. Talvez ouvisses dizer que cinco irmãs de Esteia morreram tísicas... Também meus irmãos morreram tísicos; e eu, como vês, tenho perfeita saúde e uma forte constituição, não é verdade?

     - Ê verdade. Há muitos exemplos dessas excepções.

     Alguns minutos permanecemos silenciosos. Carlos escutava como receoso de que a esposa o ouvisse. Em seguida, travou-me do braço com veemência e levou-me para o balcão de uma janela, onde me disse, abafando o som da voz:

     - E se ela estivesse já ferida da invencível doença!... Se me ela morresse agora!...

     - Não penses em tal, Carlos! - atalhei eu, forçando palavras de alento. - Que receias, se ela está bem e diz que nunca padeceu?!

     - Receio a minha funesta sorte! Receio que, depois de dois anos de infernais sofrimentos, este anjo descesse a enxugar-me as lágrimas e me fuja com a minha felicidade. Não me falta mais nada!... Resta-me vê-la morrer!...

     - Jesus! Que fantasia! - exclamei. - Onde vais buscar esses imaginários terrores, homem?

     - Onde vou? Pois imaginas que eu me iludi um instante desde que soube da morte das outras?... Não vês que forcejo por afastar de mim o pressentimento de que a vida da minha Esteia há-de ser curta, e que hei-de ficar neste mundo, sozinho, a chorá-la...? Quando me perguntaste se o clima do Brasil lhe seria bom, não me viste estremecer? Reparaste ontem naquelas duas senhoras, que estiveram sempre tristes, e no doutor, que se ficara a olhar para Esteia com ar de piedade... Não reparaste?

     - Não!...

     - E tu porque estavas triste?

     - Eu não estava triste, Carlos... O meu silêncio era respeito às pessoas que te acompanharam. Bem vês que eu não havia de gracejar em presença de três velhos que assistiam a um noivado com o aspecto funeral de quem encomenda um defunto em trintário cerrado. Hoje, porém, vinha eu com óptimas disposições para folgar, e contava com a tua alegria...

     - Alegre estou eu! - redarguiu Carlos, dissimulando e abrindo um falso riso. - Mas que queres? O hábito do infortúnio parece que atrofia. Imaginemos que alumiar-se o ar foi uma traição à minha creança para que eu me animasse a tentar a fortuna; e, quando cuido que a venci, vai estalar algum novo raio da fatalidade...

     Esteia apareceu muito alegre, participando ao esposo que sua avó lhe mandara os canários; e voltou logo de corrida a dizer palavras muito cariciáveis às avezinhas, que nós ouvíamos gralhear.

     1 - Nesta época, a vinolência, entre os académicos, era distinção invejável.

     Quem bebesse por alguidar e digerisse em pé o seu vinho, atingia o acume da celebridade.

   

    Terceiro golpe

     Isto passou em Abril.

     Daí até Agosto recebi assíduas notícias de Carlos.

     Os receios eram desvanecidos, conforme suas cartas insinuavam.

     No próximo Outubro gizava ele sair para a sua pátria - resolução que os tios aprovavam com vantajosas promessas. Pedia-me que o fosse abraçar antes da partida, se eu era amigo à prova de quinze léguas de distância.

     No meado de Setembro voltei a Coimbra, não tendo recebido carta nos últimos quinze dias.

     Achei Carlos desfigurado, quando me abriu os braços.

     - Que há?! Que tens?! - murmurei eu trespassado de glacial certeza do vaticínio feito pelo doutor.

     - Não tive coragem para te escrever - balbuciou o marido de Esteia.

     - Tua senhora está doente?

     - Há quinze dias... Está perdida!... Morre!...

     - Pois tão depressa!... Não desanimes, Carlos!... Ainda há quinze dias me dizias que estava óptima...

     - E estava... parecia estar... Constipou-se, tossiu uma noite, levantou-se curvada com dores de peito. Chamou-se o médico. Auscultou-a, e disse-me que a examinara antes de casar e já lhe sentira os tubérculos. Está morta! Esteia morre infalivelmente!

     E remessou-se-me aos braços afogado por soluços.

     - Olha que às vezes o pulmão hepatiza-se e os tubérculos estacionam... Não desesperes, Carlos!...

     - Ó meu amigo! - exclamou ele. - Não me deixes... não me deixes, que eu estou sozinho daqui a dias... Estão com ela duas senhoras suas tias que me fitam com rancor e dizem que sua sobrinha morre de saudades da família e dos inocentes prazeres da mocidade que eu lhe destruí! Vê tu que vida a minha entre o anjo que me olha com piedosa mágoa e estas duas mulheres que cospem afrontas nas minhas lágrimas! Já a quiseram levar para casa, tirar-ma, como quem arranca os restos de uma vítima ao ser verdugo. Eu olhei para Esteia, que me via chorar, e murmurava: «Não vou.»

     Do fundo silencioso da minha alma lhe peço perdão, se o tirá-la da sua quieta e alegre infância lhe apressou a morte; mas o médico me diz que ela, desde os doze anos, deu sinais de seguir as irmãs. Ela mesma me confessou que pedira às pessoas, que a viam padecer, o maior segredo para mim...

     Enquanto o afligidíssimo moço alternava soluços e palavras, a mim me pungia o egoísta pesar de me ver em lance tão consternador.

     Não me deixes!, clamara ele.

     Não o deixar seria assistir a duas agonias, uma consolada enfim pela morte, outra protaída pelo suplício da saudade.

     À doce criatura diria eu: «Vai, alma sem mancha; lá tens a pátria!», e ela fecharia os olhos quando, já embaciados, não espelhassem a imagem do esposo; mas se Esteia mas não ensinasse lá do Céu, que consolações poderia eu dar ao meu infeliz amigo!?

     Entrei ao quarto da enferma. Brilhavam-lhe extraordinariamente os olhos, efeito da lucidez das conjuntivas; as outras feições eram cadavéricas. Os círculos roxos que lhe cingiam as órbitas pareciam o apodrecer da carne em contacto com a tampa húmida do caixão.

     A tosse cavernosa e rouca engurgitava-lhe as cordoveias do pescoço. A mão que ela levava ao seio esquerdo, nos ímpetos da tosse, mostrava as falanges apenas cobertas de epiderme amarelecida.

     Respondeu-me custosamente às frívolas perguntas, e murmurou, sorrindo-me:

     - Não deixe estar sozinho o meu Carlos, não?

     Neste lance, Carlos ajoelhou à beira do leito, pôs as mãos e, voltado para ela, exclamou:

     - Tu não morres, não, minha filha?

     - Não morro... não hei-de morrer... – balbuciou Esteia agitando-se em grande aflição, postos os olhos numa imagem da Virgem Mãe de Jesus Cristo.

     - Pede-lhe -- prosseguiu ele ansiado -, pede à Virgem Maria que te deixe viver para o teu desgraçado Carlos!

     - Peço, peço... - e, forcejando por sentar-se, orava: - Senhora da Conceição, deixai-me viver!...

     Abafado pelas lágrimas, saí do quarto.

     Quando passava na antecâmara pouco alumiada, ouvi resmonear:

     - Dão cabo dela mais depressa...

     Reparei, e vi duas velhas mal-encaradas, que não corresponderam ao meu cumprimento.

     Eram as tias de Esteia.

     Durante a noite deste dia a respiração ressonante da enferma aplacou-se com grandes alívios. Provavelmente as escavações tuberculosas, inteiramente vazias, explicavam a desopressão de Esteia. Se outras irrupções secundárias não tivessem sobrevindo, a cura dos primeiros tubérculos seria possível, e pelo conseguinte realizável a restauração da doente, que os médicos consideravam perdida.

     Como quer que fosse, as melhoras progrediram notavelmente. As dores de peito eram quase insensíveis e a respiração, apesar de cavernosa, fazia-se completa, sem ânsias nem esforço.

     O médico, bem que incrédulo na duração das melhoras, citou casos análogos da sua clínica, a comprovar a possibilidade da cura de Esteia, e explicou-nos tecnicamente o amolecimento dos tubérculos e a cicatrização consequente, dando como provável a salvação da doente, se outros se não estivessem ulcerando.

     Esteia e Carlos agradeciam o milagre à Virgem suplicada em tamanha aflição. Eu, que sei o que é pedir a Deus a vida das pessoas por quem vivo, olhava com amoroso respeito para a imagem onde os olhos de Esteia exalçavam os rogos silenciosos do coração.

     Ao cabo de quinze dias, a doente, recobrada de forças, quis erguer-se.

     O sol de Outubro, aquecendo o ar como nos melhores dias de Agosto, entrava convidativo no quarto de Esteia. Animámo-nos a transportá-la para junto de uma vidraça de sacada que abria sobre o claustro, onde verdejavam as acácias e erveciam os canteiros descultivados.

     Pediu Esteia as gaiolas dos seus canários, que eram muitos, e ali se ficou a sorrir e a chamar cada avezinha por seu nome.

     Ali ficou, e nós saímos a colher verduras para os canários.

     - Creio que está salva! - exclamava Carlos com expansivo júbilo. - Como explicas isto?

     - Eu!... não ouviste a explicação do médico?

     - Ouvi. O médico!... Que importa o médico? Se Esteia está tísica, ou Deus ma salva, ou morre.

     - Pois certo é que tudo se passa sob influência providencial; mas cientificamente a cura de tua senhora está explicada. Inutilizou-se-lhe parte do pulmão, e salvou-se o bastante para viver. Seja como for, está melhor, tem outro aspecto, não sofre, está em convalescença.

     Voltei para o Porto, convencido, pelo menos, de que Esteia viveria alguns anos.

     Três semanas depois fui para Viana do Castelo contar os infortúnios de Carlos ao nosso comum amigo José Barbosa e Silva. Demorei-me quinze dias; e, no acto de sair para o Porto, li num jornal portuense uma notícia transcrita doutro de Coimbra. Era a morte de Esteia, súbita, inesperada, quando a ciência a julgava salva de uma tísica admiravelmente e quase por milagre atalhada num já muito adiantado progresso. Do marido aflitíssimo dizia a gazeta que não havia novas, desde que pudera furtar-se à vigilância dos amigos. Receava-se algum desatino, que Deus lhe perdoaria, se por desgraça as suspeitas de um suicídio se realizassem.

     Quando cheguei à minha pousada do Porto, saiu-me na escada a dona do hotel dizendo que no meu quarto estava um senhor há dois dias à minha espera. Que não tinha comido ainda, nem se deitara; que passeava sempre, e às vezes rompia num choro que cortava o coração.

     Era fácil adivinhar as delícias que me esperavam no meu quarto.

     Entrei convulso.

     Achei-o de joelhos no pavimento com os braços estendidos sobre a cama e o rosto entre eles.

     Curvei-me para o levantar. Ergueu-se, fixou-me espavorido e exclamou com uma rouquidão angustiosa de que me não parecia capaz a voz humana:

     - Morreu! Esteia morreu!...

     Devia ser-lhe consoladora a minha resposta: eram lágrimas.

     A mim me tem acontecido centenares de vezes remessar com enfado livros muito esmeradamente escritos, tão depressa me eles apertam o coração e fazem dores de que não careço para saber que as há terríveis em peito de homem. Romances modernos principalmente, acaso toparia um que me não fizesse chorar mais lágrimas das que eu poderia enxugar com os dois ou três francos que me ele custou. Falo dos franceses; que os de índole sinceramente portuguesa (peço que me não excluam) apenas fazem chorar os editores; e, se não fazem rir toda a gente, é porque toda a gente não compra novelas portuguesas. Hinc illoe lacrimoe; daqui o prantear do livreiro.

     Repulso romances que me percutem na alma e a molestam. Como creio tudo que é mau, todas as angústias humanas se me figuram, não só verosímeis, senão realizadas. Todas as noites do espírito entendo, porque há sido sempre negra a minha atmosfera.

     Quantos malsorteados assim? Quantos compraram este livro para algibeirarem duas horas entre as muitas que se lhes arrastam carregadas de inquietos cuidados, de aflitivos receios, de cruciantíssimas saudades? Ir muito de ânimo frio pungir a sensibilidade alheia com uns quadros de tristezas vulgares, nem moralmente úteis, nem artisticamente medíocres, é, sobre ingratidão, malfeitoria. Para pesar e arrependimento sobram-me espinhos na minha vida passada de escritor lúgubre.

     Acuso-me de ter feito chorar com a minha fantasia muitas pessoas incapazes de verter uma lágrima balsâmica sobre uma chaga de miséria verdadeira; e convenço-me, para mais dura penitência, que dos meus livros plangentes não promanou benfazer algum aos consortes de muitos desgraçados a favor de quem movi a pública piedade.

     E, além disso, não esconde a minha vaidade um facto digno de louvor: e é que muitos leitores sisudos fizeram aos meus romances o arremesso que eu tenho feito a outros mais dignos de consideração. O mau livro não é somente o que é sandeu, o que parvoeja na ideia ou na forma, o que se enevoa nas regiões solares do Apocalipse, ou se abaixa até incrustar-se no lodo que por aí se vende em oitavo. Mau livro é o que nos incomoda, o que nos entristece, o que nos tira de um sossegado descuido de desgraças para nos levar a hospitais de sangue, ou nos exacerba as nossas, rasgando-nos mais por largo o horizonte das calamidades que ainda nos falta experimentar.

     Descrevei o lance de uma esposa estremecida que se estorce, no arrancar da vida, em braços de seu marido, e vendei esse livro ao esposo que vê esmaiar-se, dia por dia, as faces de sua mulher.

     A um homem de alma que tem seu filhinho doente dai-lhe a pintura de uma criança que arrefeceu morta debaixo das lágrimas ardentes de seu pai. Dai semelhante quadro à mãe saudosa que ajoelhou ao pé desse berço e vos comprou o livro para, alguns instantes, alargar da garganta o nó que a prende à sepultura do anjo. Amaldiçoar-vos-ão.

     São esses uns infernos que a imaginação caprichosamente inflama, já combinando cores, já arredondando ou recortando períodos; agora recorda o grito escutado num lance verdadeiro, logo a interjeição aflita, ali o trejeitar atribulado... Ai!, e com que frieza de pulso, e desvanecimento de artista, se está narcizando o escritor nesse estanque de lágrimas!

     Embargou-me esta saudável reprovação quando ia bosquejar o traslado que me fez Carlos Pereira da morte de Esteia. Não o saberia fazer, se me tentasse a presunção de bem desenhar as feições convulsas e retraídas de uma mulher tísica, despedaçada a um tempo pela morte e pela saudade do esposo.

     Concluída a exposição do transe de Esteia, desejei que a morte se amerceasse de Carlos. Já me era consolativo ouvi-lo dizer em nove noites sucessivas de delírio:

     - Esteia, eu vou, eu vou também! Não vás sem mim, filha da minha alma!

   

    Quarto amor

     Não foi.

     «Morre quem Deus quer»; é um in-fólio de filosofia esta sentença aldeã.

     «Custa muito a morrer», dizia-me a honrada viúva dum naufragado. Tinha razão; agonizara três anos!

     Três anos a contemplar um retrato fronteiro do espaldar do seu leito nupcial. Contemplou-o até que os olhos se lhe fecharam.

     Sei de alguns que morreram de saudade com mais ligeiros paroxismos: foram menos infelizes. Há uns, porém, mais felizes de todos: são os que esquecem.

     E Carlos Pereira, decorrido um ano, esqueceu-se.

     Quando o encontrei no Marrare do Chiado em 1853, inclinado sobre uma poncheira que flamejava, ladeado de dois Saint-Preux do feitio que eles têm em Lisboa, observei-o de longe ao clarão azulado da chama alcoólica, contristei-me, e saí.

     Esteia, precisando duma alma que a lembrasse, espelhou-se na minha. Via-a toda aquela noite a sorrir para os canários que lhe volitavam aos mirrados dedos com as asas palpitantes. Vi-a segundo a fúnebre pintura que me fizera Carlos do seu trespasse. Lembrava-me ter-lhe ela dito nas derradeiras vascas: «Nunca esqueças a tua Esteia, que eu vou rogar por ti a Deus!»

     E, se rogou, obteve para ele a enorme fortuna do esquecimento.

     Passava eu, ao outro dia, na Rua Nova do Carmo, e ouvi o meu nome. Pus a vista num primeiro andar, e vi Carlos.

     Era um hotel francês a casa onde entrei.

     - Já vieste do Brasil ou nunca lá foste? - perguntei.

     - Fui e vim. Há oito meses que nos despedimos...

     - Estás óptimo...

     - Não. Saí do Rio por causa de incómodos do peito. Meus tios, excelentes velhos, viram-me partir com grande pesar. Melhoraram a minha «fortuna» e prometem auxiliar-me em qualquer empresa a que não baste o meu capital.

     - Muito bem. Ficas em Lisboa?

     - Alguns dias. Espero entrar nestas empresas de viação pública como empreiteiro. É negócio de cinquenta por cem. Eu te vou contar...

     - Não me contes negócios, que eu não percebo nada disso, meu caro amigo. Então para onde vais daqui?

     - Penso em fixar a minha residência no ponto mais convizinho dos trabalhos de viação logo que principiem.

     - Estás portanto em fura-vidas como se quer!...

     - E tu que fazes?

     - Estudo.

     - O quê?

     - O coração humano, quando não como coração de boi e doutras alimárias.

     - Desperdiças o tempo quanto à primeira parte do teu ofício. O coração humano é insondável – disse axiomaticamente o viúvo de Esteia.

     - Já sabia. Insondável e irrespirável como uma sentina. O teu? Está bom?

     - Negro, árido e frio como o mármore negro de um túmulo.

     - Isso é triste.

     - Não o digas a zombar, que é. Morri; crê, meu amigo, morri!

     - Resta-te, portanto, de vida a necessária para fiscalizar as empreitadas da viação pública!... Tens tu bom estômago? Suportas ainda bebidas de guerra? Bebes o teu ponche queimado como qualquer oficial de marinha russa?

     - Bebo, bebo tudo que me possa desfibrar as entranhas.

     - Mau é; melhor te seria seguir os preceitos de uma boa higiene. Quando mais tarde te ressuscitar o coração, morrer-te-á o estômago.

     - Tens ferido o melhor que podes a minha alma! - disse Carlos com aparência de dolorosa seriedade.

     - Essas ironias são penetrantes; mas não podem irritar-me contra ti, que já foste o meu amparador em grandes angústias. Se queres falar do passado, fala. Não me farás já chorar; mas desfecha as tuas mais ervadas injúrias contra mim.

     - Deus me livre!... Se me lembrasses o passado, ver-me-ia sair. Consinto, porém, que me fales em Laura e Virgínia. Nessas sim. Cenas da farsa humana quantas quiseres. Histórias que tresandam ao odor enjoativo de sepulturas, nem uma. E adeus, que tenho que fazer. Amanhã vou para o Porto. Lá me tens às tuas ordens.

     Saí desestimando este homem, quase aborrecendo-o, quase desprezando-o.

     Que soez ingenuidade a minha naquele tempo! Que tarde amanheceu em meu espírito luz de entendimento, de juízo e de crítica! Como eu fantasiava que devia encontrar o viúvo de Esteia trajando perpétuo luto, faces cavadas, olhos cegos de chorar, cabelos brancos, e a voz cortada de soluços!

     E, por espaço de quatro anos, não vi Carlos. Lembrei-me dele algumas vezes ainda assim.

     Uma quando João de Campos, o Fausto do Porto, roto à força de velhice o pacto que fizera com Satã, se viu aos quarenta e cinco anos encanecido, corcovado, valetudinário, surdo, trémulo, e espantado de si mesmo. Nesta situação, quando o seu anjo-da-guarda lhe aconselhava renúncia, conformidade e penitência, o amante de Laura, rebelde à graça tão fácil de coar a peitos maduros e já sorvados, remordido pela áspice do ciúme, deu pulos de energúmeno. Para a certeza de ser traído faltava-lhe apenas ir, no calado da noite, àquela travessa onde Carlos tremeu sesões infernais, e dali espreitar pela aresta do cunhal. Foi e viu. Se a graça o alumiou então, ditosa escada que guindava uma alma à glória dos pacientes, ao mesmo tempo que içava um corpo à janela de Laura. Recolhido ao seu quarto, o penitente, poucos dias depois, expirava nos braços do seu lacaio. Aquele homem não tinha esposa, nem filhos, nem amor algum dos que dulcificam o trago da morte.

     Assim morrem os «leões». À última hora acham-se sós, no seu deserto, na Hircânia que eles fizeram à volta de si, espedaçando ferozmente os corações que se lhes ofereceram para os serenos contentamentos da velhice.

     Quando, pois, o acompanhei ao cemitério, lembrei-me do ideal amador de Laura.

     Outra vez me lembrei de Carlos Pereira, quando li nos periódicos que uma fidalga do Minho, morgada das Açudes, se fora a Roma em peregrinação com um padre seu familiar, a impetrarem do sumo pontífice dispensa para se ajoujarem matrimonialmente. O caso de Narcisa, de alcunha a Vaca Loura, é sem dúvida mais moralmente consolativo que o outro de Laura dos Carvalhais.

     Ao fim de quatro anos, alguém me disse que vira Carlos Pereira no Teatro de S. João, com sua senhora e um filho; e, como quer que fosse ao camarote cumprimentar o seu contemporâneo de Coimbra, ele lhe perguntara por mim, e a senhora ajuntara que me desejava muito ver como seu amigo de infância.

     Uma cadeia de espantos insertados uns noutros! Carlos segunda vez casado!, já com um filho que frequentava teatros!, e com uma senhora minha amiga de infância!

     Espicaçado pelos três pontos de admiração, fiz-me encontradiço com ele.

     Nutrira, arredondaram-se-lhe as proeminências faciais. Abastecera-se-lhe o negro bigode encalamistrado nas guias. Estava, como nunca, um gentil rapaz, de vinte e oito anos, trajando ao bizarro, respirando força, radiando alegria, enfim, um homem que parecia redobrar de entranhas ao mesmo passo que bebia tudo que pudesse desfibrar-lhas, consoante me dissera, em Lisboa, quatro anos antes.

     - Sabes que estou casado?... - participou Carlos, depois que me abraçou com sincera efusão de amigo, quanto podia sê-lo a sua índole.

     - Assim me disseram ainda ontem que estavas casado, e pai de meninos.

     - Não te dei parte, porque... não dei parte a ninguém... Convenci-me de que os meus amigos se dispensavam das minhas notícias.

     - E não te enganarias se os mediste pela consideração que lhes davas... Não obstante, ser-me-ia agradável a nova das tuas felicidades... Casaste há muito?

     - Há três anos e meio.

     - Seis meses depois que nos encontrámos em Lisboa?

     - Justo.

     - Isso é que foi andar depressa, Carlos! Entendeste avisadamente que a vida é breve... Onde casaste?

     - Na Beira Alta.

     - Amor ou interesse?

     - Amor. Interesse?!... Eu! Casar por interesse! Ora essa!

     - Como me tinhas dito seis meses antes que o teu coração era negro, árido e frio como o mármore negro dum túmulo..., perguntei se o interesse te dispensara de ter coração claro, húmido e tépido...

     - Aí rompe o tiroteio das ironias!... – redarguiu Carlos acendendo um aromático charuto no lume de outro. - Venha de lá isso, rapaz! Começo também a sentir o gáudio de tomar tudo à conta de brincadeira.

     - Ainda agora?... Vamos saber... com quem casaste?

     - É segredo até que vás ao meu hotel. Minha mulher jogou contigo os pinhões em pequena.

     - Sim?!...

     - Quero ver se a reconheces.

     - Eu joguei pinhões há vinte e três anos. Onde isto vai para que duas crianças se reconheçam!

     Reuni as minhas vagas memórias de infância, especialmente em jogo de pinhões, e não discriminei dos meus companheiros daquela idade a menina que me lisonjeava grandemente recordando-se de mim ou do meu obscuro nome.

     Todavia, não instei nas averiguações para dar a Carlos a satisfação pueril de me ver surpreendido. Era verdade. Eu tinha jogado em 1835 os pinhões com umas três meninas filhas dum magistrado civil que nesse tempo governava o distrito de ***; uma das quais era Filomena, esposa de Carlos.

     Assim que ela proferiu o seu nome, vi a criança linda que ia comigo a um bosque de pinheiros mansos de sua casa aparar as abadas de pinhas que eu despegava dos ramos, e juntos as queimávamos para lhes abrirmos as escamas e extrair as sementes. Lembrei-me que entre duas árvores fazíamos redouças de ramagem onde alternadamente nos embalávamos, sendo graciosíssimo o pudor com que ela apanhava entre as botinhas brancas a orla do vestido, se o balouço a alteava mais.

     Depois, sobreviveram outras lembranças já mais recentes.

     - Eu pensava que Vossa Excelência tinha casado com um seu tio... - disse eu.

     - Casei; mas enviuvei há seis anos. Meu tio morreu em Lisboa, onde era juiz do Supremo Tribunal; eu fui para a Beira, onde tinha casado a mana Leonor, e lá vi o meu Carlos. Já temos dois filhos: um é um rapazinho de dois anos e meio, que trouxemos, e se chama Eduardo; o outro é uma menina, chamada Teodora, que ficou com a ama.

     - Onde residem? - perguntei a Carlos.

     - Num convento que comprei, cinco léguas distante de Coimbra, em ***. Como as minhas empresas de viação correm todas na Beira Baixa, comprei um vasto edifício, que vou recompondo e aformoseando, por maneira que hás-de ver a mais cómoda, majestosa e pitoresca vivenda que ainda não imaginaste nas tuas novelas.

     - Têm prosperado os teus cálculos de empreiteiro?

     - Às mil maravilhas. E, sobretudo, o exercício, o andar muito a cavalo por montanhas e arvoredos, desenvolveram-me esta robustez que me não admiraste ainda, mas que eu presumo ser digna da tua admiração.

     - Sim, admiro, estás um belo rapaz! Aqui há oito anos eras um madrigal; depois passaste a elegia, hoje és um ditirambo! Percorreste a escala das formas poéticas quase todas, e nunca mais acolchetaste duas consoantes.

     - Felizmente.

     - Deixe-o falar - interveio D. Filomena. – Ele fez-me versos.

     - Sim?! Creio que só Vossa Excelência pode gabar-se de ter inspirado Carlos!... Vejo que precederam o seu enlace de todas as fórmulas dum primeiro afecto...

     A poesia é, na verdade, a chave de ouro dos corações.

     Agouro bem de amores confidenciados às musas, se os poetas, depois de bem servidos, as não renegam ingratamente. Quero dizer, minha senhora, que, se o noivo-poeta se converte em marido-prosa, o fogo sagrado apaga-se e fica a fumarar náuseas a torcida da lâmpada.

     Vossa Excelência deve obrigar cariciosamente seu marido a consagrar-lhe uma poesia lírica todas as semanas.

     - Tem graça - interrompeu a dama. - Os poemas que ele agora faz são de cifras e cifrões. Olhe que não compra um livro! Nem os seus romances!

     - Tens mais juízo do que eu supunha, Carlos! Em que entreténs os dias de repouso?

     - Vou jardinar, vou à caça, durmo, brinco com o meu Eduardo... Ei-lo aí vem...

     Entrou uma bela criança de jaspe e cabelos louros que lhe ondeavam pelos ombros em espirais. Carlos tomou-a sofregamente como a disputá-la à mãe que lhe abria os braços.

     - Esta é que é a minha poesia! - exclamou o pai com transporte.

     - Pobres mães! - murmurou Filomena. – Que ciúmes elas teriam dos filhos se a Providência as não ensinasse a renunciar o desejo de serem poéticas aos olhos dos pais!...

     - As mães são a luz, os filhinhos são as radiações - disse eu por me não ocorrer coisa mais inteligível.

     - Dizes muito bem! - aplaudiu Carlos, entendendo melhor do que eu a substância da ideia.

     - Eu não percebo essas distinções que os senhores fazem - contrariou sinceramente a minha parceira dos pinhões. - Os senhores até habilidade têm de poetizar o mal que fazem! Engenham uma coisa com ares de sentença do «Tesouro de Meninas» e mandam às mulheres que se consolem de não poderem ser amadas depois que são mães. Porque não desprezam a árvore depois que lhe colhem o fruto? Os vegetais são mais estimados.

     - Ó menina! - atalhou o ridente Carlos -, o nosso amigo há-de pensar que eu te coloquei abaixo da macieira na ordem dos três reinos!

     - Não - dissuadi eu. - Compreendo perfeitamente que tua senhora defende por magnanimidade as damas desafortunadas. É fácil asseverar que Vossa Excelência é felicíssima. Carlos sofreu, mais ou menos. O sofrimento é um depurativo do sangue demasiado ardente da juventude. Vossa Excelência encontrou-o talvez desenganado, e, como tal, bom para a família. É ele pai extremoso?

     - Como nenhum - respondeu Filomena.

     - Então descanse Vossa Excelência, que o tem preso ao seu coração por uma fortíssima corrente de dois elos. Isto é aço do céu, que não verga nem se quebra - disse eu, tomando para o colo o galante menino.

     Como quem deseja não ajuizar de outiva sobre o que vai na alma de ninguém e muito menos na dos meus amigos, perguntei a Carlos, assim que me pude encerrar com ele no meu quarto:

     - Amas esta senhora?

     - Amei. Parece-me que amei. Deparou-ma um acaso... Aí vai a história. Estava eu em Viseu, onde me chamavam interesses comerciais. Encontrei um condiscípulo que me levou a um baile do António de Albuquerque. Uma elegante mulher vestia de meio luto, e não dançava. Perguntei quem era. Simpatizei com a viúva melancólica. Pedi que me apresentassem. Recebeu-me atenciosa mas friamente. Falou-me... Era a primeira mulher de espírito que eu ouvia. O tom da voz melodiosa quadrava com o luto do vestir e o triste dos pensamentos. Não sei como foi, meu amigo. Fiz-me também lúgubre. Começaram as lágrimas a envidraçar-me os olhos, e...

     - Mas que funéreas coisas te dizia a triste viúva?

     - Sei lá! Coisas vagas, devaneios, filosofias...

     - Filosofias!? Tu a chorar por causa das filosofias?... Eram saudades dos teus compêndios de química?

     - Tu bem me entendes... Filosofias quer dizer... quer dizer... desvarios.

     - Ah! - disse eu notando em discreto silêncio quanto a gravidade antiga do meu amigo havia degenerado num tom zombeteiro que parecia postiço.

     - O que eu ainda não conhecia era essa face nova do teu carácter?

     - Qual face nova?

     - A relação humorística... o sal e pimenta com que adubas a história do teu quarto amor. É quarto?

     - Não.

     - Então há na tua vida mais aventuras das que eu sei...

     - Não há. Sabes que desconfio duma coisa atroz?

     O amor fatal, o amor que mata, o amor que se encontra à porta do Inferno, e nos leva dentro, e nos arroja ao abismo... esse ainda o não experimentei... E vaticino que o hei-de encontrar; e esse será o primeiro!

     - Antes me parece que seja o último, porque do Inferno abaixo é duvidoso encontrar mulher que ames secundariamente... O grandíssimo celerado! Pois se não amavas Laura, com que crueldade me fizeste velar onze noites à beira do teu leito em que fingias febre? Se não amavas Virgínia, para que me espancaste os meus sonos da manhã obrigando-me a espreitar à fechadura do teu quarto que te não afogasses por emborcação no jarro da água? Se não amavas... Não citarei outro nome que seria vilíssima profanação!...

     - Agradeço a delicadeza - interrompeu Carlos com seriedade. - Desconhecer-te-ia, se não respeitasses a memória de Esteia. Sou eu que profiro este nome sagrado, sem remorsos de lhe haver dado o mínimo pesar. Chorei-a no leito da dor; chorei-a na sepultura.

     Pedi à Providência que me deixasse seguir o rasto luminoso daquela santa alma. Achei-me vivo depois duma alienação cujos dias tu contaste. O suicídio é coragem não vulgar. Matar-me-ia, ainda assim, se tu e os outros me não chamassem covarde. Vivi, portanto. Se houvesse convento onde me amortalhar, procurá-lo-ia. Achei-me neste mundo com vinte e dois anos, com uma alma sedenta e insaciável. Não esqueci Esteia, obedeci aos impulsos irresistíveis da vida como ela é, feita por Deus e piorada pelos exemplos. Vi que os viúvos, à imitação das viúvas, não se queimavam: pelo contrário, raro será aquele que chegar a arder na febre de saudade que me ia devorando.

     - Mas - cortei eu, entediado de tamanha veemência de palavras, ao parecer, contrafeitas - quem te pede contas dos teus actos? O meu reparo consiste meramente no paradoxo romântico de te considerares ainda um peito virgem e vaticinares o encontro de certa mulher que há-de engolfar-te no Inferno! Semelhante necessidade, aos vinte anos, perdoa-se; aos vinte e oito, quando se é duas vezes marido e duas vezes pai, condena-se. Se és amantíssimo de teu filho, se toda a tua poesia é aquele menino, como receias que haja aí demónio que te arranque aos bracinhos dos teus dois anjos e te perverta e desvaire até à extremidade de lhe sacrificares a tua desgraçada família!

     - Meu Deus! - acudiu bem assombrado o marido de Filomena -, onde te leva a fantasia!

     - Aquém do Inferno, quero dizer, do vergonhoso infortúnio, onde a tua te arremessa...

     - Mas isto são palavras, homem! E, quando eu me deixasse amarrar pelo fio de retrós dalguma Dalila...

     - Que Sansão!... Figura-se-me que qualquer costureira te tosquia! És um doido descompassado, meu pobre Carlos. Como eu me enganei contigo, quando uma vez te aconselhei o casamento! E hoje que pena começo a ter da mãe de teus filhos e deles!...

     Este parágrafo é um parêntese urgente, mas breve.

     Trata-se de mim. Peço ao leitor vénia para a imodéstia.

     Os anteriores diálogos e outros que depois vierem, acusando juízo e sã moral no autor, não parecem inverosímeis ou temporãos na sua idade. Eu tenho amigos vivos que me podem ser testemunhas da discreta velhice que, no aconselhar, me antecipou a desgraça precoce.

     Eu conhecia especulativamente todas as restingas deste pego borrascoso em que mareamos as nossas paixões.

     Em algumas naufraguei irracionalmente, estando a ver os espigões das rochas à flor de água. Depois, assim que via lenho aproado nelas e pilotado por alma sem norte, gritava-lhe, e quase de mãos erguidas lhe pedia que safasse o coração dos escolhos infamados. O mais triste é que não consegui salvar ninguém.

     Se alguma vez, porém, os meus rogos tiveram a unção da piedade, foi quando vi criancinhas à volta dos homens que as não viam, cegos de sua fatal perdição.

     Eu, antes de ser pai, já sentia o travor acerbo deste horror que chamam orfandade, desamparo, ninguém que se doa, ninguém que aconchegue do peito um menino que sente fome e sede de amor... O parênteses devia ser maior. Não posso. Há ideias que se dissolvem nas lágrimas.

     Uma tarde encontrei Filomena sozinha, quando eu procurava Carlos.

     - Carlos não jantou hoje comigo - disse ela magoada. - Deixar-me numa hospedaria, neste pequeno quarto um dia inteiro!

     - Onde foi jantar?

     - Com uns amigos, não sei quais... Conhece-os?

     - Devo conhecer, minha senhora; mas de pronto não me lembro quem sejam. Aqui, no Porto, há o saudável costume da anciã hospitalidade, dando muito de comer aos forasteiros. Presume-se sempre que os convidados se retiram com indeléveis marcas de amizade no estômago. Releve Vossa Excelência que seu esposo sacrifique as doçuras da família aos usos patriarcais desta boa terra onde as expansões da amizade não espumam em ditos espirituosos se as não precede a expansibilidade do champanhe.

     - Estou ansiosa por sair do Porto! - disse a dama.

     - Carlos, nas cidades, parece outro homem. Estivemos há seis meses em Lisboa. Não imagina como andava aquele espírito!... Um ar tão diverso!, uma abstracção... uma coisa!... não sei dizer... Saímos de Lisboa para a nossa aldeia. Transformou-se, apenas deixámos Lisboa. Voltou à serenidade, ao amor da família, àquele seu natural alegre e amorável. Viemos ao Porto contra minha vontade. Ele aí está no estado em que o vi, absorvido em cogitações que lhe espasmam os olhos, sempre distraído, inquieto, não come, dorme mal, até o filho parece importuná-lo com as suas carícias... Que explicação me dá?

     - Eu, minha senhora?!...

     - Sim; conhece-o há tantos anos...

     - Conheço um homem que se chama Carlos Pereira.

     - Só?! Sabe-lhe toda a sua vida...

     - E que tem isso com os descobrimentos que Vossa Excelência faz no carácter de Carlos?

     - Tem muito. Ele não amou aqui uma senhora chamada Laura de Carvalhais?

     - Dizia ele que amava.

     - Será possível que essa mulher ainda o preocupe?

     - Não preocupa, minha senhora.

     - Assevera-mo?

     - Quanto podem asseverar-se coisas de semelhante natureza.

     - E parece-lhe injustiça suspeitar-se que ele se impressiona facilmente destas belezas provocadoras das grandes cidades?

     - Minha senhora, eu não tenho a mais leve desconfiança de que seu marido lhe usurpe um instante de admiração afectuosa. Sem dúvida, o Porto é um alfobre de galantíssimas mulheres; mas, nem Vossa Excelência deve temer-se da competência, nem elas sairão a disputar-lhe Carlos. As mulheres dignas de ser amadas, por certo não. As outras, não creio que o nosso amigo ande abstracto por causa delas.

     - Seja como for, estou morta por sair daqui.

     - E demoram-se?

     - Não sei... Essa sua pergunta assusta-me... – disse ela com alvoroço. - Sabe alguma coisa?

     - A pergunta é natural, minha senhora. Eu não sei o mais leve desvio de Carlos aqui no Porto.

     - E em Lisboa?

     - Há quatro anos que vi Carlos em Lisboa; demorei-me quinze minutos com ele; nunca mais o vi até esta ocasião em que o encontro casado com Vossa Excelência.

     - Não lhe fiz uma pergunta frívola... Em Lisboa tive razões para desconfiar que meu marido olhava fascinado para uma mulher. Conhece a Cassilda Arcourt?

     - Que mora no Chiado?

     - Essa mesma.

     - Vi-a. Contaram-me dela histórias dignas de Paris...

     - Que lhe contaram?

     - Que reduzira à miséria não sei quantos amantes, quantas esposas e quantos filhos dos amantes.

     - É essa, sem dúvida alguma. A francesa, dona do hotel em que estivemos, disse-me o mesmo. Não é muito formosa?

     - É formosa e passa por inteligente. Joga todas as armas que prostram os leões.

     - É uma infame!

     - De acordo, minha senhora.

     - Surpreendi Carlos com os olhos fixos nela.

     - Quantos inocentes surpreenderia Vossa Excelência nesse olhar sem consequência! Eu, por exemplo. Quando a encontrava, parava na rua.

     - Mas como os senhores podem extasiar-se diante de tão vis criaturas!

     - A gente não se extasia, minha senhora. Olha.

     - Mas isso é repreensível em homens inteligentes!... em homens a quem Deus confiou a missão de dirigir as massas estúpidas!...

     - Há exemplos dos sábios da antiguidade que pervertem os sábios modernos. Alcibíades, como Vossa Excelência sabe, finava-se de amores de Lais. A mesma criatura abjecta ofereceu Demóstenes, o primeiro orador grego, cem talentos, oitenta mil cruzados da nossa moeda, pouco mais ou menos... Se Vossa Excelência não estivesse tão distraída, havia de convencê-la de que os sábios de hoje estão muito mais ajuizados que os antigos. Onde está aí um sábio português que oferecesse oitenta mil cruzados à Cassilda Arcourt? Eu, cá de mim, que também sou um sábio português, não; e faço justiça aos meus colegas, que, à vista de tão deslumbrante mulher, o mais que fazem é o que fez Carlos e o que eu fiz: olham para ela...

     - Não graceje, que eu estou mortificada... - interrompeu Filomena entre risonha e descontente. - Aquela devassa de Lisboa nunca se me varreu do espírito.

     Falei-lhe nela depois que estávamos em casa...

     - Indiscrição, minha senhora! Para que lhe falou nela?...

     - Essa é boa!...

     - Se ele não falava em Cassilda, que lucrou Vossa Excelência lembrando-lha? Ai, minhas senhoras, minhas senhoras! Vossas Excelências precisavam de ser homens antes de ser mulheres...

     - Então o lembrar-lha!... - tornou ela com espanto.

     - Sim, Srª D. Filomena. Eu digo a Vossa Excelência o que as mães aldeãs dizem aos filhos: «Se falas no Diabo, ele aparece-te.» As mulheres dessa magia satânica ordinariamente avultam ao espírito ausente com seduções superiores das que têm para fascinar os olhos. Têm por elas o prestígio das lendas, as paixões lacerantes que inspiraram as lágrimas de uma família convertidas nas pérolas que lhes manilham os pulsos...

     - Cale-se, não me diga isso, que me faz terror! - exclamou ela levantando-se de golpe. - Não me deixe imaginar possível que o pão de meus filhos venha a ser o preço dalguma torpe dessa ordem!...

     - Eu quero que Vossa Excelência imagine o que há verdadeiro na sua situação, e mais nada - aplaquei eu com a placidez nem sempre sincera. - Seu marido viu Cassilda Arcourt. Reparou nela. Fez o que todos fazem, sem excepção daqueles anciãos de bigode preto que em Lisboa convertem em irrisão o que em toda a parte é respeitável: a velhice. Se o vê-la bastasse a deslumbrar-lhe os deveres de esposo e pai, Carlos ou ficaria em Lisboa, ou, deixando Vossa Excelência na aldeia, voltaria para lá. Não fez assim. Há seis meses que de lá saiu, e ficou em sua casa, entregue às suas ocupações.

     - Tem razão! - exclamou ela com palpitante júbilo. - Tem razão... convenceu-me com bem poucas palavras; e, sendo essa a mais natural defesa do meu Carlos, ele nunca se defendeu. Ria-se quando eu lhe falava nela. Apenas uma vez carregou o sobrolho e disse com certo desabrimento: «Já me vais incomodando.» Isto magoou-me até ao íntimo do coração!... Mas agora... perdoo-lhe, e hei-de pedir-lhe que me perdoe...

     - Não peça, minha senhora - atalhei com grande assombro da dama.

     - Porquê?!

     - Porque tem de lhe lembrar essa mulher. Uma senhora só deve falar nessas criaturas depois que elas pertencem à história da corrupção das idades. Hoje em dia não há perigo em falar-se de Messalina, de Marion de Lorne, de Ninon de Lenclos... e sinto grande e patriótica satisfação em me não recordar nome português que enfileirar nesta falange... De Cassilda Arcourt está Vossa Excelência proibida de falar enquanto ela não despir o colo da rede de brilhantes e se lhe senhorearem dele os vermes do Alto de S. João ou dos Prazeres. Antes disso, não; que lho aconselha o seu avelhado companheiro dos pinhais e comedor dos pinhões.

   

    Quarto golpe

     Este golpe lanhou febras mais mimosas que as do coração.

     Ê dor que todos entendem. Trata-se da perdição de uma coisa mais preciosa do que a alma; mais indispensável do que a virtude; mais necessária aos bancos do que a honra; mais necessária ao amor do que o coração.

     A coisa perdida chama-se «Fortuna». Isto sim, que é golpe!

     O convento que o empreiteiro da estrada comprara na Beira Baixa (1), até ao ano de 1854 não tivera licitante.

     Alguns cavalheiros abastados das vizinhanças, conluiados para o fim de impedirem a venda, afastavam a concorrência. A razão do impedimento era jazerem no claustro do mosteiro as ossadas de seus antepassados.

     Piedosa veneração!

     Entretanto, naquele ano, Carlos Pereira, agradado do sítio, e de seu natural afecto a grandezas, desejou possuir o mosteiro, colocado no centro das suas operações empresárias. Houve quem tentasse dissuadi-lo do propósito, saindo-lhe com razões de zelo religioso, as quais o desavisado moço teve em nenhuma conta.

     Comprou o convento por alguns contos de réis, aluiu a porção carecida de reforma, deslajeou a claustra para jardinar o terreno; e, amontoando as ossadas que lescavam sob a eixada dos jornaleiros, mandou-as enterrar no adro da igreja paroquial.

     A indignação do povo era sufocada pelos cavalheiros influentes, cujo plano de vingança, de natureza mais sumária e menos arriscada, aprazavam para quando fosse tempo.

     Gastou Carlos largo cabedal em reparar aquelas quase ruínas, por espaço de dois anos, chamando alvenéis de longe, liberalmente estipendiados. Os seus haveres, acrescentados por donativos dos tios do Brasil, iam sumidos em alicerces, em cantarias, estuques, jardins, taças marmóreas, plantações de arvoredos peregrinos, decoração interior das vastas salas, e até no brasão soberbo que sobranceou ao vasto portão, em virtude de se fazer agraciar com o foro de fidalgo cavaleiro para que seus netos não continuassem somente a nobreza da avó.

     Os apregoados lucros das empresas não condiziam ao aparato de tamanho palácio, com fidalgos dentro.

     D. Filomena me disse que seu marido estava reduzindo em pedras o pão futuro dos filhos; mas que não ousava ir-lhe à mão, vendo o prazer com que ele se engolfava naqueles estéreis casarões.

     Por sua parte, Carlos, segundo inferi, esperava herdar de seus tios; e, neste pressuposto, ia construindo casa digna de receber algumas centenas de contos.

     Em 1858 deu o futuro herdeiro por concluídas as obras, que nunca vi, mas de bons apreciadores tive que eram magníficas, soberbas, e vendáveis sem perda, se não com vantagem.

     Naquele ano festejou Carlos o quarto aniversário de seu filho Eduardo com um baile, onde confluiu grande parte da nobreza de todas as datas que seis léguas em volta do mosteiro fazia sociável e mais valiosa a vivenda de Carlos.

     Logo depois que uns convidados se tinham retirado, e outros, de mais longe, se haviam recolhido aos seus quartos no palácio, às quatro horas de uma manhã de Outubro, subitamente grossos rolos de fumo anuviaram os longos corredores.

     Os hóspedes, ainda não adormecidos, agruparam-se nos dormitórios sem atinarem com as saídas encobertas pela fumarada. Reboavam os gritos aflitos das senhoras, quando apareceram Carlos com seu filho Eduardo no colo e Filomena com a menina. O terror e confusão dele sobrelevava o dos hóspedes. Tal e tanto era que a muito custo encontrou as portas do salão de baile, onde o fumo se condensara menos.

     Ouvia-se já o estalar das vidraças no andar térreo da casa.

     Abriram-se janelas do salão e ecoaram gritos de socorro por aquelas aldeias próximas. Reinava uma quietação desesperadora à volta do mosteiro. Nem um braço piedoso que tocasse a fogo em algumas das torres de três freguesias que já alvejavam aos primeiros alvores da manhã.

     - Sigam-me, sigam-me! - exclamou Carlos, sacudido do seu espasmo por uma horrendíssima lembrança.

     O burburinho das chamas já crepitava no mais central da casa, quando a turba saiu de baldão pela porta do jardim. Chegados fora, encararam espavoridos nas janelas que abriam sobre o jardim, por onde as flechas de fogo saíam azulejando as colunas de fumo. Neste momento um ribombo atroador se ouviu, e revoltas serpes de fogo irromperam o telhado, espadanando madeiras abrasadas como lavas vulcânicas. Era a explosão de algumas barricas de pólvora armazenadas para a quebra dos rochedos. Esta fora a previsão de Carlos quando gritou que o seguissem.

     Filomena perdera os sentidos, abraçada à criancinha.

     Carlos, com o filho a tremer de frio e medo, aconchegado do seio, via com os olhos afogados em lágrimas o ruir das traves e o baque das ricas alfaias precipitadas ao pavimento inferior, por uma garganta de fogo aberta pelo repelão das barricas.

     O Sol assomava tremente, quando o vasto palácio coroado de lavaredas estrondeava, a espaços, como se a terra mugisse, subvertendo-o nas suas entranhas.

     Filomena havia sido levada em braços a uma casa de oficinas apartada do edifício; enquanto Carlos se quedava como empedrado a ver o derruir dos vigamentos, o abater dos telhados e o esboroar das paredes.

     E, aquecendo as faces de Eduardo com o seu hálito febril, dizia-lhe no silêncio do coração:

     - Restas-me tu!... Não tenho mais nada...

     A religião dos túmulos estava vingada. Podiam já reatar o sono eterno as ossadas dos frades irritados. Sacerdotes da piedade com as cinzas, os incendiários, certo, cuidariam que o queimarem o convento era serviço feito aos arcabouços dos monges em particular e à divina religião de Cristo em geral.

     A conjuração, urdida por espaço de três anos, surtiu a ponto. A volta das ruínas apareceram apenas alguns jornaleiros de longe atraídos pela fumaça. Das aldeias circunvizinhas não acudiu alguém. Os pobres doer-se-iam de sua crueldade; mas os ricos, os parentes dos frades profanados em suas covas, atavam os braços aos operários que se alimentavam do bem-fazer deles.

     Ao pôr do Sol deste dia os haveres de Carlos Pereira eram aqueles acervos fumegantes de madeiras, pedras e caliça. As jóias de Filomena e os valores em moeda tudo estava soterrado, pulverizado ou derretido.

     Aquele dia e os três seguintes, Carlos e sua família agasalharam-se em Tentúgal. Um dos hóspedes do mosteiro na noite do baile abriu generosamente a sua gaveta ao infeliz pai e marido.

     Entre ele, a esposa e os filhos sucederam lances de muito chorar; mas, um dia, Carlos, arrancando-se dos braços de Filomena, exclamou:

     - É forçoso!

     E, estreitando vertiginosamente o filho ao peito, soluçou como em ânsias de morte.

     Seguidamente, saiu caminho de Lisboa, donde passou no paquete ao Rio de Janeiro.

     Filomena, decorrido algum tempo, escrevia-me de casa de sua irmã, contando-me os pormenores do desastre, a viagem de Carlos a solicitar a compaixão dos tios, a provável miséria de seus filhos, e talvez a morte do marido, ralado de saudades e da paixão de se ver tão pobre.

     No decurso de oito meses recebi frequentes novas da minha amiga de infância, e bastante satisfatórias as que diziam respeito às esperanças em que estribava todo o remédio desta família. Os tios de Carlos, amiserados da lástima do filho de sua irmã, abundantemente o abasteceram de dinheiro para vir em Portugal recomeçar sua vida. Pelo que, Filomena, lembrada do revés, me pedia que influísse no ânimo do marido despersuadindo-o de compras de mosteiros e empresas de estradas em que ele havia perdido, sem embargo de se desvanecer do contrário.

     Meado o ano de 1859, Carlos Pereira chegou a Lisboa, onde era esperado por esposa e filhos. A saudade de oito meses dessedentava-se em meiguices às duas crianças. Filomena contemplava os extremos do pai com olhos amarados de pranto, não de inveja, mas de justa mágoa. Carlos, um instante nos braços dela, desprendeu-se para abraçar Eduardo, e de joelhos o cobriu de beijos e lágrimas.

     - Pouco sou na vida deste homem! - dizia ela entre si. - Ainda bem, meu Deus, que ele ama os meus filhinhos! Por amor deles, irá dissimulando que me não aborrece.

     Sacada a importância das letras que trazia do Brasil, no valor de dez contos, Carlos explanou à consorte os seus projectos comerciais. A viação pública fora aspada do programa. Agora o alvitre era mais burguês e desçasado com a sua recente fidalguia. Ia negociar em cereais e azeite. Armazenar géneros em grande escala açambarcados na estação das colheitas, e vendidos quando a alta garantisse vantagens, segundo ele, era ganância infalibilíssima. Quis a prevista senhora combater aquele superlativo; mas o marido enredou-a por tal feitio numa teia de leis económicas, que Filomena, alheia da ciência de seu marido e do Sr. Dr. Adrião Forjaz, de Coimbra, não teve que redarguir. O centro da veniaga do azeite seria alguma vila da Beira Alta; para cereais, Minho e Trás-os-Montes; sujeitando-se assim o fidalgo cavaleiro à laboriosa tarefa de correr as feiras de três províncias alternadamente.

     Quando isto me constou, ofereci-me a Carlos para guarda-livros do armazém de azeite. Convenceu-me da minha penúria de habilitações para me sair airosamente de entre os odres donde em Portugal tem saído muita soma de visconde, e não sei se de lá preluzia ao meu amigo aquela coroa de marquês almejada anos antes.

     Como quer que fosse, Carlos saiu de Lisboa para Viseu, onde deixou a família, e entrou a discorrer pelas províncias sondando a natureza da sua gizada mercancia.

     Ajeitou-se o lance de ver no Porto o meu amigo.

     Notei-lhe alguns cabelos brancos. Disse-me que se lhe encaneceram na madrugada do incêndio.

     Quanto a azeite, vinha descoroçoado; e, respeito a cereais, quase dissuadido, sendo causa disto a sua natural impersistência e a notícia de que os açambarcadores tinham as tulhas cheias e ameaçadas de gorgulho.

     - Que hei-de eu fazer a nove contos? - perguntava-me ele. - Se os não fizer render quarenta por cento, como hei-de eu manter a decência da minha família? Realmente, meus tios deram-me pouco! Ninguém vive com menos de cem contos de réis.

     - Isso é verdade. A mim tem-me custado a viver com noventa e nove.

     - Mas sério!, que farias tu a nove contos?

     - Eu?

     - Sim.

     - Eu te digo... se tivesse nove contos...

     - Que fazias?

     - Gastava-os.

     - Também eu, se não tivesse filhos.

     - E esposa. Parece que não contas com a mãe!?

     - Está claro que conto... Mas que dizes tu?, que hei-de eu fazer?...

     - Economiza, até algum acaso te sugerir o melhor expediente.

     - Se eu pudesse obter um bom emprego...

     - Com que habilitações? Ah!, tu cuidas que as habilitações são somente necessárias aos caixeiros de armazéns de azeite?

     - Ora... habilitações! Um secretário-geral que precisa saber?

     - Não sei.

     - Não precisa saber nada; mas a mim o que me convinha era ser director duma alfândega de segunda ordem. Que te parece?

     - A não poder ser de primeira, aproveita a segunda.

     - Pois é o que vou fazer! - exclamou resolvido e satisfeitíssimo. - Ainda que eu gaste dois contos ou três na obtenção do despacho, é capital que me rende cento por cento.

     O desígnio pareceu-me plausível. Contudo, não lho aproveitei nem combati.

     - Então vais para Lisboa chatinar o emprego?

     - Vou.

     - Levas a família?

     - Por enquanto, não... Mas não sei se as saudades do meu Eduardo...

     1 - Por justos motivos, omite-se a localidade. Não faltará quem a saiba, independentemente da indicação.

   

    Último amor

     Há vinte anos que um gentil-homem francês, viajante científico, estanciou em Lisboa para ver o Convento dos Jerónimos e a Capela de S. Roque. Hospedou-se num hotel, cujo dono tinha uma filha de dezasseis anos, estremadamente bela, tipo circassiano ou grego, tipo peninsular ou romano, tipo de formosura para toda a terra civilizada. O francês não viu a capela em que D. João V perpetuou a sua piedade sandia, nem o monumento manuelino consagrado à épica façanha que abriu as portas à piratagem do Oriente, e começou a pesar na balança da Providência os méritos que puseram ouro e fio o fiel da haste, quando o sangue de Alcácer Quibir pesou na outra concha. Estas filosofias históricas não preocupavam o gentil-homem, nem a loura Cassilda, a quem o Luís XIV português daria a Capela de S. Roque por um daqueles ósculos com que o monarca fidelíssimo dulcificava o travor do pecado em Odivelas e noutras partes.

     O gentil-homem e a galante menina escamugiram-se.

     Melhor foi assim. Se o francês se demora e escreve de Portugal, era contar com injúria ou bestidade. Foi. Levou-nos uma jóia. Que importa? A França indemniza-nos, enviando-nos boas jóias.

     O francês era filho-família, bom coração; mas de quebra com o dinheiro. A portuguesa, bem que verde em anos, ia já combalida de alma. Queria bizarrear em Paris; gastava a froixo; parecia mesmo francesa em oitava mão! Ninguém diria que tamanho desplante frisava com a compleição modesta e pública das moças portuguesas que fogem aos pais!

     O gentil-homem endividou-se por maneira que (leis bárbaras!) dois ou três judeus o meteram em Clichy.

     E vai Cassilda, que não era toutinegra que se fosse chilrear saudades à beira da gaiola do cativo amante, assentou de si consigo, à maneira de César à ourela do Rubicão, que o dardo tinha sido arrojado.

     Sucedeu avassalar um agente comercial, que costumava hospedar-se em Lisboa no hotel de seu pai, ao mesmo tempo que os rapazes de primeira plana de Paris a assediavam com recovagens e ofertas de palácios e carruagens.

     Grato à preferência, o agente comercial recebeu-a como esposa e honrou-a com o seu apelido, Arcourt.

     Receando, porém, que a teimosia de certos príncipes russos lhe manchassem as cartas limpas de marido, abalou-se de Paris, e veio estabelecer-se em Portugal, cedendo ao suspirar nostálgico da esposa.

     Mad. Cassilda Arcourt fez terramoto no Chiado a primeira vez que ali passou a galhardear-se com o garbo duma parisiense que leva os amantes a Clichy.

     Os velhos de bigode árabe remoçaram por dentro, como se o fluido transmutativo lhes filtrasse do bigode ao coração. Um desses, que já tinha visto casar duas netas, afreguesou-se no estabelecimento do francês, cuja felicidade comercial não podia competir com as pompas da mulher. Não obstante, o velho conde de ***, varão maior que o seu nome, pôs ombro à cruz daquele mando em transes de falir e prosperou-lhe o comércio a olho. Cassilda tinha vitória e jóquei e camarote em S. Carlos; vestia o pescoço de pedras, e os braços de serpentes esmaltadas, e estrelava os cabelos de diamantes.

     O conde de ***, ao fim de dois anos, teve a felicidade de morrer dum aneurisma no dia em que vendera a casa onde nasceu.

     Presumia a gente honesta que a libertina (epíteto indicativo de que ainda há moral nas famílias) venderia a vitória e trespassaria o camarote. À moral das famílias dá grande cuidado saber se as libertinas vendem as vitórias. Pois não vendeu. Em vez de um jóquei tinha dois, e dois cavalos em vez de um.

     Ninguém sabia que olímpica divindade chovia ouro em casa do francês.

     Corre um ano. Emborca-se no Tejo um funcionário de alto porte que esponjara à Fazenda Nacional cinquenta contos. Procuram-se notas nas gavetas do suicida, e acham-se-lhe cartas de Mad. Cassilda Arcourt, quase todas em estilo comercial: Entregue ao portador a quantia de... etc.

     Este notório escândalo esperava a gente honesta que fizesse emigrar a libertina. É afrontada outra vez a execração pública e a moral das famílias. Cassilda estreou uma caleche inglesa, tirada por orças, apeou no portão do passeio do Rossio, apertou a mão a três ou quatro rapazes finos e, rojando a cauda de cetim adamascado, saltou ligeira ao estribo e emigrou... para os fofos coxins da caleche.

     O francês tinha brios. Pudera não ter! Fora da França, todo o francês casado tem fígados de mouro de Veneza. Lá na sua terra suportam a condição de Sganarellos. Mudem-nos de clima e verão o que é pundonor!

     O marido de Cassilda foi mal julgado dos seus vizinhos. Infamavam-no de complacências que nalguns pontos do globo, onde não chegou a civilização cristã, são castigadas a chibata. Mr. Prosper Arcourt não era marido de duelos nem tão-pouco de afogar a mulher com o travesseiro. Vingou-se quase originalmente, desaparecendo de Lisboa, uma noite, com todas as jóias da mulher, nas quais ia de envolta o preço de duas quintas do conde e o melhor dos cinquenta contos da Fazenda Nacional. Honra à justiça, intérprete da moral pública! Cassilda queixou-se no Governo Civil; mas ninguém fez caso. Mr. Prosper teve a seu favor uma boa porção de maridos; e ela não teve sequer a comiseração das mulheres de sua estofa.

     Depois deste insulto ao direito de propriedade, orças e caleche passaram às cocheiras dos credores da casa comercial, fechada a requerimento de muitos que tinham sido logrados na véspera por Mr. Prosper. Neste proceder demasiou o fugitivo a sua vingança. Nem que os negociantes defraudados fossem cúmplices de Cassilda! Pagou mal aos homens sérios que o tinham avisado.

     Vão lá avisar ninguém! O mundo é assim, e o francês sabia o mundo em que estava.

     A catástrofe deteriorou algum tanto os créditos de Cassilda. As orças e os lacaios colaboravam no seu prestígio. Esta espécie de mulheres, para se não confundirem com a lama, precisam de a não pisar.

     À custa da renunciação dolorosa de certas regalias domésticas, a esposa abandonada, protegida por um negociante aposentado, pôde, por espaço dalguns meses, mostrar que era ainda formosa, estadeando-se num gig com seu jóquei em libré.

     Mas o negociante, carregado de anos e contas de modistas, recobrou a sua razão, e dispunha-se a simular certa viagem para se aliviar da carga. Ainda assim, doía-lhe a ingratidão com a linda mulher tão lealmente sua!

     Enfim, refez-se de ânimo e foi, a hora desacostumada, expor as capciosas razões da sua viagem. Puxa a campainha, e ouve dizer dentro uma criada: «Não se assuste, senhora, que há-de ser o aguadeiro.» Abre-se-lhe a porta, investe com a sala, a tempo que a criada gaguejava qualquer razão impeditiva, entra e topa um rapaz louro de luneta no olho direito e os dedos polegares nos sovacos do colete branco.

     - Está bom! Estimo! - regougou o discreto negociante; rodou sobre os pés ajeitados para rodar um homem sem risco de descambar e saiu.

     O elegante disse depois a Cassilda:

     - Se ele te injuriasse, matava-o!

     E ela, enternecida a lágrimas, murmurou:

     - Pobre homem!... Era meu amigo... Tenho sincera pena dele!...

     Falsa explicação das lágrimas.

     A sua grande dor era ver que o moço da luneta e bigode à dom-joão apenas tinha de seu a coragem de lhe matar o velho, se ele a injuriasse. Cassilda não queria paladins chibantes. Diziam melhormente com a sua condição pacífica sujeitos abonados no joalheiro, na Lavaillant e no armazém de carruagens do Navarro.

     No trajecto de oito anos, ser-me-ia trabalhoso indagar os trens e amantes de Cassilda Arcourt. Contam-se, a propósito, histórias do recôndito das famílias, muito para lástimas, desamparos de esposas, retaliações de esposas desamparadas, tentativas de suicídios, sequestros, expatriações, enfim, opróbrios e misérias, descabidas neste livro. Seja como for, aí está a mulher... fatal.

    

     Carta de Filomena

     Lá está em Lisboa o meu Carlos. Meu...! Muito custa ao coração abdicar! Este meu é como o dos reis proscritos que dizem: «O meu trono» e como a «minha pátria» dos que morrem de fome nela. Resignação!

     Diz ele que vai comprar um bom emprego e que você lhe aplaudira a deliberação. Pedi-lhe que me levasse; empenhei o meu Eduardo nisto. Nada conseguimos. Contraveio com razões de economia que me amordaçaram. Mas o filhinho chorava, e ele... resistiu! Seria o bom anjo de Carlos que lhe pedia nos lábios do menino ? Deus permita que eu seja a visionária que você lastima.

     Olhe que se me não despinta da imaginação aquela mulher!... E mais quem sabe se ela é já morta?, se envelheceu?, se está feia?, se mudou de vida?

     Nada sei: todas as hipóteses são realizáveis; mas eu vejo-a sempre satanicamente formosa como ela era há seis anos.

     Há poucos dias que sofri um vexame. Chegou de Lisboa um coronel que ainda é nosso parente. Perguntei-lhe se conhecia Cassilda Arcourt. Fixou-me com espanto e disse: «Uma senhora nunca pede novas de tais mulheres.» Para me defender, ainda tentei confessar os meus receios; conteve-me, porém, o pejo de caluniar meu marido, arguindo-o de uma inclinação mal fundamentada.

     Mas que infelicidade! Não posso esquecer esta mulher! Odeio-a como se ela já houvesse tentado roubar aos meus filhinhos o coração de seu pai!

     Se o meu amigo pudesse indagar alguma coisa que viesse dar sossego á minha alma...

     Olhe que pedido tão desatinado! Se eu não fosse tão extremosa esposa e mãe, não tinha desculpa...

     Carlos já me escreveu. A sua carta é amorável, saudosa, triste, esperançada em voltar cedo para nós.

     Manda aos filhos muitos brinquedos. Anseia pela hora em que possa recomeçar vida nova toda íntima e dedicada à educação dos nossos anjos. Pois, apesar de tudo, vejo sempre aquela infernal visão do Chiado, aquele despejado aprumo com que ela ia ao encontro dos olhos que a remiravam com uma admiração quase respeitosa. Olhe que vi isto! No olhar dos homens não transluziu o desprezo, não. Se não era amor, era a fascinação que devora corações. E que mais podemos recear nós, desgraçadas, que apenas temos dos corações de nossos maridos a estima reflexa do amor aos filhos?

     Sabe o que eu queria, meu amigo? Era que as suas palavras pudessem outra vez desvanecer o pressentimento que há dois anos me afligia. Mas então o meu Carlos estava a cinquenta léguas do abismo; e hoje está debaixo dos olhos infernais da... minha rival!

     Vergonhosa confissão! Se eu sinto este aviltamento, porque não hei-de escrevê-lo?! Ó meu amigo, as mais temíveis rivais são as que nos podem roubar o coração do esposo, e com ele o futuro dos filhos...

     Não sei se Carlos Pereira indagou o processo de comprar directorias de alfândegas de segunda ordem.

     Os seus amigos de Lisboa disseram-me que nunca lhe viram modos de pretendente. O que viram e souberam pude eu coligir nas seguintes notícias.

     É ocioso descrevê-lo no hotel francês rodeado de cavalheiros de fino trato; verdadeiros homens de Terêncio, familiarizados com todos os escalões sociais desde a orgia na taverna até ao baile no paço, uns de preclara estirpe, trabalhando por desmentir a herança do sangue honrado, outros de vilíssimo nascimento provando a igualdade humana com a igualdade da vasa em que todos se atolam.

     Estes naturalmente seriam quem desse novas de Cassilda Arcourt, se não foi ele que as pediu no fim de um jantar bem estralejado de champanhe.

     Àquele tempo, quem quer que fosse, era desconhecido o amoroso de Cassilda. Sabia-se que, seis meses antes, um duque francês, filho doutro duque do império, saíra de Lisboa importunado por credores, que o enxovalhavam nas praças. O duque de *** desonrara-se para manter à esposa do seu compatriota as regalias que lhe deixara o seu antecessor decaído da graça. O sucessor do duque, se existia, era menos fátuo que os outros: em geral, os amantes de Cassilda alardeavam sua fortuna pendurando a fotografia dela de par com o retrato duma esposa prometida, com o duma amiga de infância, com o duma parenta respeitável e com o de sua mãe.

     Os retratos de Cassilda vendiam-se.

     Um dos convivas de Carlos tinha-o em sua carteira.

     Quando o marido de Filomena perguntou se a tal Circe ainda era bonita, o possuidor do retrato, lançando-o à mesa, disse:

     - Não está bonita, está divina.

     Carlos demorou-se a contemplá-la e confirmou:

     - É grande mulher! Há seis anos era menos formosa. Que esplendor tem esta fronte!... Querem vocês saber? - continuou ele dessecando a garganta com marrasquino. - Três vezes olhei para esta mulher como já ninguém olha para Deus. Três vezes senti esbrasearem-me o peito uns filtros... uns filtros...

     - Isso a mim já nem me acontece com o absinto puro - atalhou um roué de vinte e dois anos que pulverizava o conhaque de cinza de charuto. - Deixa-te lá de filtros, Carlos. O que tu sentias têm-no sentido uns alarves piramidais que filtram libras. Não me entres aí a fazer frases, nem madrigais em prosa de quinto acto. Na minha presença ninguém queima incensos a mulher honesta... não creio na honestidade de nenhuma; menos consinto que se pindarizem as devassas.

     - Mas confessa que é bela esta mulher! – replicou Pereira, oferecendo-lhe o retrato.

     O céptico pegou da fotografia, acendeu-a na luz próxima e disse, agitando a chama, com solenidade:

     - Sacrifiquemos à Vénus calipígia.

     Carlos ainda quis obstar ao incêndio; mas, como os outros rompessem um coro de gargalhada, temeu ser ridículo.

     - São horas de S. Carlos - disse o sacrificador. - Vamos!, se preferes ver a lama original, vem ao teatro, que ela tem camarote de assinatura.

     Estava em uma frisa. Não se vestia... despia-se com riquíssimo impudor. Bela como os demónios que apareciam aos anacoretas da Istria. Petulante de altivez como só costumam sê-lo as perdidas que não têm outra vingança senão o despejo.

     Carlos foi sentar-se na bancada que prendia à frisa.

     Os amigos, aquecidos e excitados pelos sarcasmos do sacerdote da Vénus obscena, disparavam-lhe indirectas chufas que faziam rir os circunstantes, confirmando-lhes os créditos de ébrios com espírito. Carlos afastou-se deles magoado, e reparou de longe.

     Cassilda Arcourt, vencida pelas insolências dos vinolentos moços, ergueu-se, tomou a capa das mãos dum lacaio e saiu.

     Marejaram-se de lágrimas os olhos de Carlos. Era a sensibilidade no vinho... o coração a sobrenadar em champanhe. Saiu ao pátio. E, sem ter tempo de ponderar o feito de sua alucinação, rompeu ao encontro de Cassilda, descobriu-se e balbuciou:

     - Minha senhora, eu estava na roda dos homens que a ofenderam; mas não a ofendi. Vossa Excelência decerto me viu entre eles.

     - Decerto, não vi o senhor nem eles – atalhou Cassilda, agitando o leque.

     - Não importa. Fico bem com a minha consciência repelindo a parte que poderia caber-me nos insultos que obrigaram Vossa Excelência a sair...

     - Está enganado. Eu costumo demorar-me pouco no teatro. Pode o senhor despersuadir os seus amigos do prazer de me terem insultado, que eu não os ouvi, nem vi. Boas noites.

     - Minha senhora... - dizia Carlos, e viu-a sair, pisando como as deusas de Virgílio.

     As pessoas que ouviram o diálogo perguntavam, indigitando Carlos:

     - Quem é este parvo?

     Como nenhum dos interrogados o conhecesse, concluíram que era do Porto.

     O marido de Filomena tinha escrito em sua vida pouquíssimas cartas amatórias. Laura não lhas recebia, Virgínia não sabia ler, Esteia não sabia responder e Filomena aceitara e retribuíra declarações vocalmente.

     A epistolografia era portanto um modo de amar quase virginal em Carlos; e bem é de entender que, chegada a hora, ainda que serodiamente, a sua índole amorável devia desentranhar-se em resmas de papel.

     E, naquela noite de teatro, recolhendo às onze horas, sentou-se à banca e escreveu até que as vacas leiteiras mugiram na rua as suas saudades dos seus bezerrinhos.

     Era carta para Cassilda.

     O estilo tinha as ingenuidades tímidas do primeiro amor. A frase inclinava-se respeitosa e idólatra. De nenhum pensamento transparecia intuito que pudesse purpurar de pejo faces de virgem. Uma menina resguardada, escrevendo no seu livro íntimo segredos de sua alma, escrava dum amador em versos alexandrinos, certo não diria coisas mais cândidas e fragrantes de inocência. Que seis folhas de papel sujas do primeiro pus dum coração que ia cancerar-se!

     No outro dia, Cassilda Arcourt recebeu da posta interna uma carta assinada por Carlos, a qual começava assim:

     Sou o homem que se dirigiu ontem a Vossa Excelência à saída do teatro. Sou um grande coração que ontem transvasava de fel e hoje de lágrimas. Sou a mais reverente paixão que ainda ajoelhou diante de

     Vossa Excelência, etc.

     Esta linguagem era mirra que nunca vaporara nos incensórios de Cassilda. A estranheza era-lhe todavia grata, bem que o peito encouraçado se não sentisse comovido às reminiscências de sua pura infância, muito delicadamente espertadas na carta com uns rebates de saudade.

     - Mas quem será este homem? - perguntava Cassilda à sua criada grave, moça ladina que às vezes dormitava confundindo os patrões com os aguadeiros.

     - Vai-se saber, se a senhora quer. Chama-se o compadre.

     - Por enquanto, não. Quero tornar a vê-lo. Ontem mal reparei nele; mas pareceu-me galante... Dá-me o tinteiro e papel - disse ela com intimativa, acolchetando as pulseiras.

     Sentou-se e escreveu:

     Ah! vous savez toujours, vous autres hypocrites,

     De beaux discours flatteurs bien souvent répétés.

     Je les aime, mon Dieu! quand c'est vous qui les

     dites; Mais ce n'est pas pour moi qu'ils étaient inventes.

     Alfred de Musset

     La coupe et les lèvres

    

     E mais nada.

     Lacrou o envoltório, selou-o com o seu sinete, adereçou a carta a Carlos Pereira e mandou lançar na caixa.

     Às quatro da tarde, quando recolhia de comprar um faeton tirado por garboso normando, encontrou Carlos a resposta, que abriu com mão convulsa. Leu, releu, retraduziu e... sentiu-se pequeno para mulher de tanto espírito! A perspicácia do meu pobre amigo era curta, quando mesmo a sua razão funcionava desassombrada; neste conflito, porém, que admirar, se ele tomou à conta de fino espírito a cópia de quatro versos? E como veria ele nesse fragmento do escandecido talento uma resposta significativa de coração onde estremecesse fibra não gafada?

     Mas sejamos tolerantes, se não justos. Carlos amava fulminantemente Cassilda. A resposta, quer copiada de Musset ou de Kock, soaria sempre na audição interior do homem como as meiguices de Virgínia... falo da Virgínia de Paulo; não me entendam a Virgínia do padre Joaquim.

     Ao cair da tarde, o jubiloso Carlos saltou para o seu carro e guiou para o Largo de S. Roque, onde morava a leitora do autor de Rolía.

     Estava na janela: reconheceu-o, correspondeu à cortesia de chapéu, rasgada, larga, solene, digna duma duquesa honrada.

     Depois voltou-se para dentro e disse à criada:

     - O Carlos tem um bonito carro. Vai dizer ao compadre que se informe.

     Este compadre é como todos os compadres destas comadres: um sargento de veteranos casado com uma que tinha sido cozinheira de Cassilda, sujeito que se alimenta e mais a mulher da casa a cujo serviço está a sua grande aptidão de indagador. O trajar do veterano inculcava certa gravidade, mormente quando montava uns óculos azuis com guarda-vento e enfronhava o queixo nas profundezas da gravata elástica de cetim preto. Era este o costume das indagações, e deste feitio entrou no hotel francês a pesquisar com mui cortês compostura e ar misterioso.

     A dona da casa disse que Mr. Pereira era um seu antigo freguês, muito boa pessoa, natural do Brasil, mas domiciliado em Portugal; que parecia ser rico porque gastava muito e pagava generosamente.

     - É alguma menina que o quer para casar? - acrescentou a francesa.

     - Não, Madame - disse o compadre de Cassilda -, as minhas indagações são sérias: trata-se de negócios de vulto.

     - Ah!, isso sim; que, se fossem inculcas para casamento, já eu lhe dizia que o meu hóspede é casado com uma senhora muito gentil.

     - Bem: isso não tem nada com os meus negócios. Quanto a casado, já Cassilda o inferira de uns dizeres que o viúvo de Esteia e o marido de Filomena, com pouca alma e grande quebra de sua dignidade, inserira na carta.

     As algemas do preconceito não prendem as asas ao coração [escrevera ele]. Se disserem a Vossa Excelência que a alma se obriga a frases banais dum padre, não creia.

     A quem ele o dizia! Se a esposa de Prosper Arcout ainda estaria à espera deste aviso para descarregar sua consciência e despontar espinhos de escrúpulos!

     Pouco depois das informações muito de servir, chegou o carteiro com a réplica aos versos de Musset. Lastimava-se ele, queixando-se da injustiça, e obtestando Deus sobre a sinceridade de sua paixão. Da aleivosia de hipócrita, constante do primeiro verso, defendia-se aquele abatido espírito com tamanho zelo e cópia de argumentos que nem um varão justo caluniado de salteador. Cassilda, na correnteza da leitura, quantas vezes diria de si consigo: «Este homem, se não é parvo, é velhaco de marca!» Infelizmente, não era velhaco nem parvo... Era homem.

     Quantas virgens caídas dos braços dos seus guardas celestes antes da sétima carta! Quantos leões nossos conhecidos recorreram só duas vezes ao dicionário de sinónimos, ou ao estilo dum amigo serviçal! Pois à duodécima carta é que o meu amigo, já no gume da desesperação, obteve uma entrevista em Sintra no Hotel do Vítor.

     E, no acto de sair para Sintra, recebeu a sua correspondência.

     Abriu a carta de Filomena, já fora de portas e leu as poucas linhas que diziam assim:

     Começo por te dar uma triste nova: o nosso Eduardo está doente desde ontem à tarde. Tem muita febre e os beicinhos roxos. O médico assustou-me. Estou aflitíssima. A criancinha chama por ti em delírios. Ontem de manhã me tinha ele dito que não tornava a ver o seu papá. Imagina as angústias desta pobre mãe. Ó Carlos, se o nosso filho morrer, vem chorá-lo ao pé da tua desgraçada Filomena!

     - Oh, meu querido filho!... - murmurou Carlos, e enfiou por maneira que o jóquei reparou na palidez de seu amo.

     E, quebrando subitamente as guias, desandou a largo trote para Lisboa.

    

     Carta de Filomena

     Carlos esteve aqui dezasseis dias. Dei-lhe parte da doença grave de Eduardo. Ao outro dia à meia-noite tinha andado quarenta e sete léguas!

     Quando ele chegou, o pequenino expectorava sangue e respirava a custo. O pai ajoelhou-se à beira dele, ergueu as mãos e orou. Eu nunca o tinha visto orar; ouvira-o blasfemar depois do incêndio da casa. Não imagina que sublime e ao mesmo tempo doloroso era para mim o espectáculo das lágrimas e das mãos postas diante da imagem da Senhora a quem eu confiara a salvação de meu filho!

     A pneumonia cedeu aos castiços, dizia o médico.

     Eu não sei como a Divina Providência operou a cura, se por eficácia das nossas lágrimas, se dos cáusticos. Sei que nos abraçámos a chorar de alegria quando o médico nos disse que estava salva a criança.

     E estava. Hoje faz quinze dias que a considerei morta, e daqui a estou vendo a brincar com a irmã.

     Agora falemos de Carlos. Tratou-me com desacostumado afecto, afabilidade, amor talvez; mas, nestas extraordinárias demonstrações de interesse, quis eu decifrar um enigma, que parecerá absurdo à sua crítica. Pintou-se-me que as meiguices eram remorsos; que o aparente ou sincero afecto era a consciência em importunas contas consigo mesma. E ao mesmo tempo, assim que o menino entrou em convalescença, e a exaltação arrefeceu, aí começou ele a recair numa taciturna abstracção, que se não era tristeza, também não era contentamento.

     Assim que passaram quinze dias, disse que as suas pretensões bem encaminhadas na capital reclamavam a presença dele; senão, corria o risco de perder tempo e dinheiro já adiantado. Poderia ou deveria eu contrariá-lo ? Não. Apenas lhe disse com mais lágrimas que palavras: «Pela vida do teu Eduardo, te peço que não esqueças a mãe destas criancinhas.» Abraçou-me com impetuosa paixão e chorou. Porque chorava ele, meu amigo? Pois não era aquilo uma compaixão aguilhoada pelo remorso!?... Bendito seja Deus!, ainda lhe resta a piedade!

     Olhe: estou quase resignada. E vou contar-lhe o segredo desta conformidade, que fica entre Deus e nós. Quando pensei que o meu Eduardo morria, pus os olhos em Jesus Crucificado e disse: «Meu pai, não me tireis este filho, que eu vos prometo abençoar todas as dores que me dilacerarem o coração; mas livrai-me desta, Senhor; eu vo-lo rogo pelas lágrimas de vossa Mãe Santíssima.»

     O meu filho está ali, outra vez rosado, alegre, cheio de vida. Se me eu afligisse, era ingrata. Sei que, se eu perder o amor de Carlos, ele há-de amar sempre os filhos e ampará-los. Ser-lhe-ei o que ele quiser. Transijo contanto que meu marido seja bom pai.

     E, depois, não pode ser que tudo isto sejam quimeras? Sejam ou não, repito, meu amigo, estou resignada. [...]

     Carlos Pereira encontrou no hotel duas cartas de Cassilda Arcourt. Uma acusava-o de pouco primoroso cavalheiro, faltando a um compromisso solicitado por ele mesmo. A outra, mais retrincada e pachorrenta, tresandava ao almíscar e patchouli de ironias e jogralidades, como as sabem desfechar ao peito dum homem as senhoras daquela polpa, quando lhes sobeja prática e convivência de bons farsantes e bons livros.

     Antes de lavar-se do pó da violenta jornada, respondeu Carlos, e teve ânimo de explicar sinceramente àquela mulher a causa inopinada da sua ida a casa! Desculpando-se da falta, pôde aquele coração afistulado, sem asco de si mesmo, escrever o nome do filhinho aureolado do santo amor paternal! E, depois de ter dito que ajoelhara à beira do filho, pedia à generosidade de Cassilda que o imaginasse em joelhos diante dela.

     Foi generosa. Carlos conseguira até... comovê-la!

     A mulher gostava de crianças - pendor não vulgar numas condenadas a não poderem extirpar do lamaçal do seio os profundos instintos da maternidade.

     Reabilitado pelo perdão, solicitou de novo o passeio bucólico às florestas de Sintra. Desta feita prescindiram de resguardos. Entraram na mesma caleche a S. Sebastião da Pedreira, e viram-se rosto a rosto, ombro com ombro.

     Carlos sentiu o vagado do deslumbramento. A imobilidade dos olhos, e o sofrear da respiração, e os beiços entreabertos por um sorriso de beatífico enlevo, todo este composto, se não fosse a forma obrigada do êxtasis, seria a expressão da mais boçal tolice.

     A mulher de Prosper, fitando risonha e agitada aquele arroubamento lisonjeiro, não se lembrava de caso semelhante em duas dezenas de primeiros rendez-vous!

     Fui a Lisboa em 1860.

     Na mesma hora em que desembarquei no Terreiro do Paço, acercou-se de mim um engenheiro que me reconheceu e se fez conhecido, lembrando-me que era uma das três testemunhas que assistiram ao casamentode Esteia.

     - Aquela pobre senhora - acrescentou ele - morreu a tempo! Senão, matá-la-ia este devasso viver de Carlos Pereira...

     - Então que há?! - atalhei eu, ingenuamente ignorante.

     - Pois não sabe que ele passeia aí por Lisboa a sua corrupção com a Cassilda Arcourt?

     - Não sabia... - disse eu com amargura, vendo passar ante mim a imagem de Filomena com os dois filhos nos braços.

     - E onde foi este homem buscar o fausto com que doura a sua desmoralização? - perguntou o engenheiro.

     - Trouxe do Brasil há seis meses dez contos de réis.

     Carlos vive com ela?

     - Num palacete às Laranjeiras; mas atravessam Lisboa no mesmo carro. E que será feito da outra mulher com quem ele casou?

     - Há três meses que me escreveu da Beira, onde vive com dois filhos.

     - Que infeliz família!... Não saberá ela isto?

     - Deus permita que não. Seria inútil o flagelá-la com a notícia. Basta que o saiba quando não puder doutro modo explicar a pobreza do marido, e a fome, e a nudez dos filhos.

     No dia seguinte, examinava eu, para alugar, na Travessa dos Carros, os cómodos duma casinha meio campestre. Ouvi o rodar duma sege. Saí à sacada, e vi Cassilda com um homem à sua esquerda. Carlos viu-me.

     Eu não o vi. Apenas dei tento de se agitar um braço, e ouvi proferir o meu nome. O ódio faz amauroses instantâneas. A luz dos meus olhos não espelhava imagens; cintilavam-me umas áscuas de lume no cérebro.

     Ao outro dia, parou um cavalo à minha porta.

     O meu criado estava prevenido. O cavaleiro deixou um bilhete brasonado que dizia Carlos Pereira. Voltou no dia seguinte, e o meu criado, entregando-lhe o bilhete, disse:

     - Meu amo não conhece o senhor.

     Ora, neste mesmo dia, me era devolvida do Porto uma carta da minha amiga de infância.

     Dizia assim:

     Há quinze dias que lhe quis escrever: mas da cadeira onde me assentara passei para a cama, donde lhe escrevo, tendo os meus dois filhos, um de cada lado. Se é verdade o que me dizem, estive moribunda. Deus compadeceu-se destes inocentes. Vivo, e está-se retemperando a parte do coração que se perdeu. Hoje mais que nunca, preciso de ser forte, porque... estou sozinha.

     Meu marido perdeu-se. Andei adivinhando esta desgraça. Os meus parentes sabiam tudo, e não sei que remédio esperavam antes que eu o soubesse.

     Uma prima de meu marido escreveu-me de Lisboa perguntando-me se eu era, como lhe tinham dito, mulher dum Carlos Pereira. Respondi que sim.

     Não tornou a escrever-me. Alvoroçou-me a pergunta e o silêncio. Havia oito dias que Carlos me não escrevia. Suspeitei que ele tinha morrido. Confirmava-mo a tristeza de toda a gente que olhava para mim. Preparo tudo para sair para Lisboa na mesma hora em que me resolvi. Minha irmã então conta-me que toda a gente em Viseu sabia que meu marido vivia em Lisboa ligado publicamente com uma mulher muito conhecida, e em breve me reduziria e aos filhos a esmolar o pão dos parentes.

     Nem perguntei o nome da mulher... Há quantos anos eu sabia aquele nome!...

     Chamei os meus filhos, levei-os comigo ao oratório onde minha mãe me levava em pequenina e disse-lhes que pedissem a Deus por seu pai. Eduardo começou a rezar em alta voz: Padre-nosso, que estais no Céu, santificado seja o Vosso nome... inclinei-me para ele, abracei-o, chorei muito, orei soluçando... e parecia-me que os olhos da Virgem também reviam lágrimas. Levantei-me animosa, fui sentar-me a escrever-lhe; mas senti-me desfalecer. Deitei-me, e não sei o que passou nos primeiros dias.

     Naturalmente, da perdição de Carlos não lhe conto novidade. Dizem-me que ele publicou a sua desgraça com orgulho. Não lhe escrevi, nem escreverei, com o parecer destas pessoas que me atormentam aconselhando-me desatinos. Querem que eu requeira o divórcio. Pra quê? O divórcio não pode ser mais completo do que é. Querem que lhe peça a segurança de alimentos para mim e meus filhos. Para mim nunca lhos pediria; para os filhos antes irei pedi-los aos meus parentes. Até hoje nada me tem faltado. Deixou-me um saquinho de dinheiro que não sei quanto é. Se Carlos o quiser, enviar-lho-ei, que é seu. Eu o dote que trouxe foi o bom coração que ele desprezou.

     No que eu penso com muita dor é no que há-de ser deste infeliz, consumindo o dinheiro que tem!

     Se os tios o não socorrerem, a herança destes meninos será o nome infamado de seu pai. Até onde o abaterá aquela mulher?

     Parte-se-me o coração se Eduardo me pergunta quando chega o pai. Digo-lhe sempre «amanhã»; mas o pequeno chora de saudades, e despedaça-me.

     Não deixe de me responder por sentir inútil a consolação. Creia que lhe escrevi com os olhos enxutos. Aqui há Providência. O golpe era mortal; mas resvalou no peito de meus filhos.

     A sua amiga Filomena.

     Frequentes vezes vi Carlos Pereira. Sobejava-lhe, ajuízo eu, pundonor para desviar-se de mim. Além de que o seu carro e cavalos eram altos, e bem é de crer que me não visse confundido entre a peonagem.

     Examinei-o de espaço, uma noite, no teatro normal.

     Cassilda ocupava um camarote de 1ª ordem, e ele, na superior, uma cadeira central. Do fundo de um camarote, com o binóculo, fixei Carlos por largo tempo. Causava espanto o emagrecimento, o cavado das olheiras e a cor amarelida. Dava parecenças com o Carlos que eu tinha visto, onze anos antes, enfermo e prostrado, depois daquele primeiro golpe de Laura. Suspeitou-se então que os pulmões do moço tivessem lesão; e eu, vendo-o depois, desconfiei que uma tísica muito adiantada o ia levando à precoce morte dos irmãos.

     Concluído o espectáculo, vi-o entrar em sege com Cassilda Arcourt. A coberto duma coluna, confirmei as minhas suspeitas da gravíssima doença. Quanto a ela, não a tinha visto mais alucinadora seis anos antes. Era um belo anjo caído no esterquilínio, e mesmo aí conservava sinais indeléveis da mão divina. Era assim uma criatura entre celestial e satânica, monstruosidade simbólica da luta primitiva entre Deus e os réprobos da glória. Deviam ser assim as mulheres de Madeão que postas à frente do exército, sem mais armas que a infernal metralha dos olhos, renderam os Hebreus. Se Jeová consentia que as madianitas quebrassem a golpes de lascívia os pulsos de seu povo, que podemos esperar nós, gente sem Deus nem fé, se mulheres daquele condão nos levam em recova pelo Inferno dentro! S. Crisóstomo deplorava os Hebreus vencidos: eu choro sobre a cristandade actual que não vive do mel do deserto nem se guia por colunas luminosas. Trevas e amargura. Cassildas e Carlos!... Ao remanescente do género humano peço perdão.

     Na lista dos viajantes embarcados para o Havre, uma semana depois, vi nomeados Carlos Pereira e Madame Cassilda Arcourt. E, na volta de poucos dias, anunciava-se o leilão da rica mobília dum palacete a Benfica, trens, cavalos, etc... tudo pertencente a uma senhora que se retirava para o estrangeiro. Disseram-me que a baixela leiloada pertencia ao marido de Filomena.

     Fui assistir. Chamava-me este fútil episódio. Aguçou-se-me a curiosidade de ver a luxuosa baixela dum homem cujos filhos daí a pouco esmolariam a manta do seu catre de bancos. Fiscalizavam o leilão dois sujeitos, um dos quais eu conhecia de o ter visto em Coimbra particularizar bastante com o marido de Esteia. Exercitava então em Lisboa o mister de jogador, em que procurava a desforra do património perdido. O outro fiscal era o sargento de veteranos, compadre de Cassilda.

     Avizinhei-me do superintendente mais graduado, esperando que ele me reconhecesse. Apertou-me cordialmente a mão e disse-me:

     - Que lhe parecem estas coisas?

     - Que coisas, Antunes?

     - O Carlos?

     - Ah, sim... disseram-me que esta mobília era dele...

     - Está arruinado de algibeira e de saúde! - prosseguiu o comensal quotidiano de Carlos. - Animal assim ainda não vi outro! Fartei-me de lhe pregar que tivesse juízo; mas perdi o tempo. Ele aí vai agora para Baden-Baden...

     - Jogar?

     - Não; ele não joga. Vai tomar as águas; mas é um disparate; que o mal dele é do peito. O pior é que se lhe acaba o dinheiro antes da vida...

     - Vejo que ele dissipou muito depressa alguns contos de réis...

     - Seis contos de réis em oito meses, e levou três.

     - Está feito! Não acho muito, em vista do luxo desta casa, de dois trens, de três cavalos, etc, etc.

     - Não, que a mobília de Cassilda também aqui está, e um dos carros e cavalo é dela.

     - Então Cassilda também se deixa arruinar?

     - Se se deixa arruinar? Então você não sabe que ela o ama perdidamente?

     - Sim?! Ora vejam!...

     - Não imagina! Desde que ele começou a padecer do peito, desfaz-se em lágrimas. Disse-me que o havia de acompanhar até à sepultura e matar-se depois.

     - É possível... Estão na moda tais regenerações começadas pelo amor e concluídas pela morte... - condescendi, sorrindo.

     - Não o diga a rir! Você, se a conhecesse há um ano e a visse hoje, espantava-se. Olhe que se apaixonou seriamente esta mulher que parecia de mármore! Eu que lho digo é porque o sei.

     - Não duvido.

     - Assisti a cenas patéticas! - prosseguiu o jogador pondo os olhos sentimentalmente no tecto. - Ele não sabe que está héctico; via chorar Cassilda; não entendia a razão do choro; queria saber o que a fazia triste... Era uma tragédia!

     - Pelo que vejo, o Sr. Antunes tem vivido muito na intimidade desta gente...

     - Sim, tenho. Carlos Pereira cortou as suas relações todas, desde que os amigos começaram a ridiculizá-lo por ele se apresentar publicamente com Cassilda.

     - E o Sr. Antunes conservou-se leal ao seu amigo desgraçado... - atalhei com gravidade, conhecendo o sandeu com quem lidava.

     - Conservei...

     - Apesar de conhecer que ele se arruinava...

     - Pois então! Cada homem tem sua estrela... A de Carlos era esta mulher. Mas pode-se gabar que foi o primeiro que ela amou.

     - Ao menos, resta-lhe essa grande consolação: está justificado. Ora diga-me: como viveu muito particularmente com o nosso amigo, talvez lhe ouvisse alguma vez falar dos filhos...

     - Se ouvi!... Partia-se-lhe o coração quando falava num que se chama Eduardo! A Cassilda chegou a dizer-me que dava cem libras a quem furtasse o menino à mãe e lho trouxesse. Cuidava ela que o Carlos melhorava se visse o filho. Eu ainda calculei a maneira de tentar o rapto do pequeno; mas não lhe vi furo. Fossem lá a Viseu tirá-lo de casa da mãe! Pois olhe que a doença maior do nosso amigo eram saudades do tal Eduardo...

     Eu ainda lhe disse duas ou três vezes: «Deixa esta mulher por algum tempo, e vai estar com a tua família até te sentires melhor.»

     - E ele que respondia?

     - Que respondia? Desatava a chorar e dizia: «Não posso, não posso deixá-la uma hora. Se tiver de morrer, quero acabar aqui onde a veja até ao meu último respiro.» Entenda lá isto, se pode!

     Principiou o leilão. O fiscal pediu-me desculpa e voltou a sua atenção para os licitantes.

     Detive-me alguns minutos a examinar uma étagère de pau-preto com livros magnificamente encadernados. Os ramos literários unicamente representados na biblioteca de Cassilda eram romance e poesia. Abri um livro que tinha na capa de marroquim uma coroa de conde: era

     O Meu Vizinho Raimundo, de Paulo de Kock; abri outro que tinha umas iniciais sobre uma coroa ducal: era Maaemoiselle de Maupin, de Théophile Gautier. A Dama das Camélias estava encadernada em veludo azul; e a Fanny, de Ernest Feydeau, em veludo escarlate.

     À margem dos livros viam-se mãozinhas de irrepreensível esboço apontando as passagens predilectas, que, de relance vistas, me pareceram as mais ofensivas do pudor, ou mais zombeteiras da moral. O único livro substancial que topei encravado nas futilidades foi Le bons sens du cure Jean Meslier. Este, na página de guarda, tinha o autógrafo de Carlos Pereira. De «filosofia» era o único tesouro que vi. Donde se infere que as boas letras de Cassilda corriam parelhas com as do seu sócio de livraria. Demorei-me no intuito de arrematar o livro de Carlos. Posta, porém, a verba em praça, eram tantos os pretendentes que eu desisti de disputar a um barão a posse daquela infâmia literária em que o comprador tencionava continuar a sua instrução. Voltei a minha escolha para uma bengalinha de unicórnio, e comprei-a no propósito de presentear Eduardo, algum dia, com um objecto de seu defunto pai, se ele proferisse com respeito e saudade o nome do desgraçado.

     Escrevi a D. Filomena fielmente o que vira e ouvira.

     O resguardo me quis parecer vão e indigno da sua confiança; antes tive para mim que o precatá-la e dispô-la para a viuvez, orfandade e pobreza seria útil aviso. Tenho presente a sua resposta:

     Minha família sabe tudo que aí se passa. Há pessoa que segue os movimentos todos de meu infeliz marido e os conta para Viseu. Já ontem se disse que saíra para França, e muito doente, Carlos. Eu ainda lhe não contei que o meu Eduardo recebeu uma carta de Lisboa, que lhe foi entregue pelo carteiro, e ele me trouxe com muita alegria, dizendo que era letra do pai. Era com efeito. A carta contém só duas linhas que dizem: «Meu filho, teu pai coberto de lágrimas te pede que perdoes à sua memória.»

     O meu Eduardo tem oito anos. Leu, mas não entendeu. Viu-me chorar, quis explicações, que eu não sabia nem podia dar. Guardei a carta para lha mostrar quando ele, oprimido pela desventura, sentir a necessidade de odiar a vida e quem lha deu.

     Calculei a profunda angústia de meu marido; mas custou-me a compreendê-la. Eu imaginava-o contente, esquecido, sem remorsos. Estas coisas só se entendem apontadas pelo dedo da Providência.

     A mim não me pede ele perdão. Pois não há-de ser necessário, se Deus lhe pedir contas das minhas lágrimas. Está perdoado.

     Por enquanto, mal posso dizer-lhe qual venha a ser o meu futuro. Penso nele há muitos dias. A minha viuvez já principiou. Meus filhos há muito que são órfãos. Os meus parentes são bons; mas pouco afortunados. As três filhas do homem que serviu até à decrepitude honrada a sua pátria, e lhes gastou na emigração o dote, estão pobres. Meu primeiro marido deixou-me apenas... a liberdade de ser mais infeliz com o segundo.

     Como educarei estas crianças? Não sei. Refugio-me na Providência, pedindo-lhe conselho. O meu Eduardo é rapaz: poderei mandá-lo servir um amo no Brasil; mas o porvir da menina aflige-me incomparavelmente.

     Lembra-me que poderei aproveitar em benefício dela alguma educação que tive num colégio do Porto. Sei alguma coisa piano e francês. Se encontrar casa onde possa entrar como mestra, irei preparando minha filha para ensinar as filhas das minhas discípulas. Até agora não vejo outro horizonte, e este vejo-o, meu amigo, através de lágrimas de sangue. Dar-me-á Deus coração que possa arrancar-se de meu Eduardo? Se eu for ser mestra, onde deixarei este menino?... A resposta desta aflitíssima interrogação é que eu espero da bondade divina. Adeus. Escreva sempre à sua amiga Filomena.

   

    Último golpe

     Procurei miúdas vezes Antunes, única pessoa bem informada em Lisboa das paragens dos viajantes.

     No decurso de um ano me mostrou algumas cartasde Cassilda, escritas a ocultas de Carlos, umas principalmente que desesperavam da cura do enfermo e da ciência dos médicos de Alemanha. Carpia-se a correspondente de Antunes, magoada pela misantropia de Carlos; mas, ao mesmo tempo, confessava consoladoramente que era amada em extremo, e tão necessária como o ar e a luz à vida do seu anjo. Referia que ele, no aniversário natalício do filho, passara o dia e noite abismado em saudades atormentadoras; por maneira que ela chegara a pedir-lhe de mãos postas que a deixasse e voltasse para a sua família. Ao que ele respondera que não iria levar à sua família um cadáver.

     Em outra carta, dizia Cassilda que estavam de viagem para Paris, onde a levavam esperanças de remédio nos milagres operados por um especialista de moléstias de peito.

     O último itinerário era voltarem a Lisboa e transportarem-se à Madeira por alvitre do especialista parisiense. Esta derradeira carta incluía um retrato de Carlos Pereira, já mui diferente do homem que eu vira no teatro. As sombras das saliências ósseas deformavam-lhe o rosto. As órbitas eram uns grandes anéis negros, como de cadáver ao qual regaçassem as pálpebras. Fez-me compaixão e terror. Naquele instante avultaram-me as feições dele em diversas épocas de sua vida. A criança de 1849 ainda imberbe, o gentil rapaz de 1853, o homem grave de 1857. E ali, aos trinta e dois anos, morto, morto primeiro nos espíritos de honra e humanidade, agonizar assim, longe de esposa e filhos que lhe recebessem no coração o último alento!

     Volvidos dias, Antunes participou-me a chegada dos seus amigos e acrescentou que o pobre Carlos, sabendo que eu me interessara na sua saúde, mostrara desejo de ver-me.

     Nessa mesma hora o procurei no Hotel Central.

     Cassilda passou a outro quarto quando entrei à saleta onde Carlos estava deitado sobre uma otomana. Sentou-se, quando me viu, e abraçou-me com alegre semblante. O sorrir dele parecia-me a irritabilidade nervosa operada pelo galvanismo sobre o músculo morto.

     - Não estás melhor?... - balbuciei eu, sufocado pela dor e assombro de tamanha desfiguração.

     - Muito doente... Sofro há vinte meses - respondeu com demoradas pausas. - Poucas esperanças me restam. Vou à Madeira. Se lá não tiver alívio... acabou-se tudo... E tu... vives bem?... Estás em Lisboa desde que te procurei na Travessa dos Carros?... Que mal te tinha eu feito para me repelires?... O mal que fiz... creio que não chegou até aos meus amigos...

     - Os amigos que afligiste com o teu mal decerto participaram dele - repliquei, impondo-me a delicadeza de o não contrariar.

     - Isso são palavras. Amizade que degenera em zelo de fariseus, e que nos impõe obrigações de virtude austera, tem parentesco tal qual com a benevolência dos inquisidores que queimavam os corpos para salvar as almas... tudo por amor às almas dos queimados... Ora, meu amigo - prosseguiu ele sorrindo ao meu silêncio indulgente -, o apostolado das virtudes sociais deixa-o aos verdadeiros justos ou aos hipócritas bem mascarados. Tens sido um franco pecador... Não te digo que faças confissão pública dos teus erros, no limiar da igreja; mas... parecia-me que a tolerância com os teus velhos amigos... ensinaria os teus inimigos a perdoar-te.

     Sobrestive no meu silêncio. E ele continuou:

     - Não te ofendas... Tinha precisão de dizer isto ao meu único amigo... No meio das minhas desgraças... fatais e invencíveis... não me era pequena dor lembrar-me que não tinha pessoa no mundo a quem perguntasse por...

     Reteve-se. Os soluços cortaram-lhe a palavra. Fitou-me com os olhos assaltados de pranto, e eu entendi a voz que o abafava.

     - Querias perguntar-me por teu filho?

     - Sim!... - murmurou ele apertando-me nas suas mãos trementes e febris a minha.

     - Vive. Há dias que a Srª D. Filomena me escreveu, dizendo-me que Eduardo já lia correntemente. A menina também vive.

     - E ela?

     - Tua senhora?

     - Sim...

     - Não sei o que me perguntas...

     - Está resignada?

     - Sim: resignada.

     Estas últimas perguntas eram feitas a medo de ser escutado. Compreendi de pronto a conveniência de ser parco nas respostas quase proferidas como em segredo.

     - Eu queria... - disse ele a meia voz -, queria sair contigo até ao campo... Se tu amanhã quisesses...

     - Com a melhor vontade.

     - Pois vem ao meio-dia. Vamos num cupé bem agasalhado... Este ar do Tejo constipou-me... Na viagem passei melhor, e quase sem tosse... Aqui, estou piorando. O vapor para o Funchal sai daqui a três dias... Estou ansioso por deixar Lisboa... Vamos amanhã, sim?

     - Vamos, Carlos.

     À hora aprazada do próximo dia, saltei de cupé no Hotel Central. Cassilda saiu à saleta no momento em que íamos a descer. Ele beijou-a na fronte e disse-lhe, indicando-me à criatura:

     - É o meu amigo de doze anos.

     - Há muito que o conheço de nome - disse ela inclinando a cabeça ligeiramente.

     Reparei. Aquela mulher, sem dúvida, tinha chorado.

     Estava notavelmente desmedrada, pálida, e quase embaciado aquele verniz de juventude, e extinta a brilhante claridade que são toda a alma da formosura.

     - Que lhe parece Carlos? - perguntou Cassilda. - Acha-o muito abatido?

     - Decerto; mas o bom clima da Madeira...

     - Tenho muitas esperanças de que ele se restabeleça... - volveu ela.

     Inclinei a cabeça, e dei o braço a Carlos, que oscilava de fraco na descida. Entrámos no cupé e mandámos guiar para o Campo Grande.

     - Tens contigo as cartas de Filomena? – perguntou ele com veemente desafogo, quando o cupé abalou.

     - Não tenho.

     - Queria ver o que ela diz de meu filho...

     - O que pode dizer a virtuosa mulher que é mãe amantíssima. Não deves querer ver as cartas de tua senhora. Se te restaurares, de volta da Madeira, tas mostrarei.

     - Minha mulher terá sofrido precisões? – volveu ele com os seus grandes olhos vidrados de lágrimas.

     - Não sei. Vive com a irmã. Se a fome estivesse no número das suas penas, maiores dores que as da fome a teriam crucificado, creio eu. Poderá ter-se lembrado do futuro dos filhos; mas, por enquanto, as primeiras necessidades não as sofreu, tenho disso a certeza.

     - O futuro dos meus filhos... - repetiu Carlos.:

     - Sim...

     - Os meus filhos... é verdade!... O futuro dos meus filhos... - repetiu ele muito recolhido.

     - Mas não te concentres agora nessas previsões, Carlos... Queres tu ver a tua família? Queres tu que eu chame a Lisboa tua senhora e os meninos?

     - É tarde, é tarde... - exclamou ele muito reconcentrado. - O que eu queria... era viver... Oh!... se eu me salvasse... Ela sabe que eu estou doente?

     - Sabe.

     - Amaldiçoa-me?

     - Não: lastima-te. Ensina os filhos a orar por ti.

     - Vês o que é a fatalidade!... - tornou ele, após longa pausa de muito íntima dor. - Vês?... Lembras-te?...

     - De quê?...

     - Não te lembras de eu te dizer no Porto que ainda não tinha experimentado o amor fatal, o amor que mata...

     - Recordo.

     - E então?, viste?, viste, meu amigo, como eu me perdi?

     - Vi. E por quem te perdeste!...

     - Cala-te, que me matas! Perdi-me... não sei por quem!... O Céu ou o Inferno que to diga! O raio fulminou-me quando eu já cuidava que o berço de meu filhinho me fecharia a boca dos abismos. Eu tinha caído... Espantava-me da minha queda... A honra e o amor paternal levantavam-me pelos cabelos; mas o coração pesava-me para o fundo da voragem, e atirava-se às garras duma infernal voluptuosidade que o espedaçava. Eu não posso dizer-te o que esta mulher fez da minha alma! Todos os meus instantes eram paixões que se abrasavam umas noutras. Eu tremia de respeito e amor debaixo dos olhos dela. Erguia-me desta abjecção por um instante, enquanto a minha razão ma mostrava... dez vezes perdida... dez vezes infamada... Oh!... que despedaçadores ciúmes me deixava este instante de luz!... Ciúmes do seu passado atroz, ciúmes da formosa mocidade que ela trocou por carruagens, por brilhantes, pelos esplendores do escândalo... Tu compreendes que horror isto seja? Sabes o que é estar um homem a ver as manchas duma face adorada e a querer lavar-lhas com suas lágrimas e com o seu sangue? Sabes o que é o homem aceitar para si o desprezo, a desonra, o remorso, tudo, a ver se pode remir diante de seus olhos e de seu coração uma mulher, que nunca poderá, depois de contrita, apresentar-se ao mundo, e pedir-lhe perdão para o homem que lhe deu sentimentos bons e o instinto do bem? Compreendes isto?

     - Carlos - atalhei eu, vendo-o abafar na explosão das desconcertadas ideias -, descansa; peço-te que não me expliques o inexplicável. Sei tudo que pode saber-se dum homem na tua deplorável situação. Amaste, quanto se pode, esta mulher. Diz-mo assim singelamente; que a tua história não é original, nem sequer rara. É uma catástrofe vulgar, mas ainda remediável. Vai para a Madeira; deves ir; mas leva tua esposa e teus filhos. Os cuidados de tua senhora não serão menos afectuosos que os de outra pessoa; a presença das crianças dar-te-á o doce contentamento por onde a tua cura deve começar. Tens a alma enferma de doenças remediáveis. Saudade, remorso e talvez a consciência do opróbrio são chagas que fecham quando nos sorriem os entes queridos que fizemos chorar, e a consciência se sente reabilitada, ao passo que as ofensas nos são perdoadas. Eu te assevero que tua infeliz senhora virá para ti como se nunca houvesse queixa da tua lealdade. Se a esperança de vê-la não te alvoroça nem a desejas, ao menos pensa, prefigura o teu espírito a exultação que hás-de sentir vendo o teu Eduardo, aquele lindo menino ao lado de quem há dois anos ajoelhavas e punhas as mãos suplicantes. Deixa que ele venha também ajoelhar e orar ao pé do teu leito.

     Escutou-me Carlos Pereira largo tempo, sem gesticular sinais de importunado. Senhoreou-me a desculpável presunção de ir amolentando e reduzindo o ânimo do meu amigo, movendo-lhe os afectos paternais, já que a sensibilidade de esposo apenas estremecia ferida pela compaixão.

     Neste discorrer, nunca interrompido, chegámos à porta do Jardim do Campo Grande. Apeámos; e, andados poucos passos, Carlos dobrava os joelhos de fatigado, bem que se esforçasse em alongar o passeio. Sentou-se e disse-me com voz débil e ainda extenuada do afogo com que tinha querido explicar a fatalidade:

     - Ninguém pode retroceder, depois que a sorte o impeliu... Para qualquer lado que se volte, encontra a morte. Se recuar, morro; se não recuar, morro também.

     Os meus filhos não me salvariam, se estou héctico como meus irmãos. O que eles me fariam, neste estado, era exasperar-me as agonias. É tarde, torno a dizer-te que é tarde. Se a tua intenção é tornar a minha morte mais cristã, devo dizer-te que a ignomínia da morte não me dá mais cuidado que a da vida. Os juizes, que me sentenciaram vivo, que me sentenceiem morto.

     - Mas... - atalhei eu.

     - Deixa-me falar - contraveio Carlos, espacejando detidamente as palavras. - Se eu tivesse que legar à minha família, e suspeitasse que o morrer longe dela a prejudicava, chamá-la-ia para se apossar dos meus bens arriscados a furto. Deves saber que estou pobre. Se eu morrer, diz francamente a minha mulher que nem Cassilda nem ninguém me roubou. Fui eu que consumi o pouco que tinha; bem pouco, ainda que te pareça absurda esta justificação de um pródigo. A busca da saúde gastei alguns contos de réis; e sabes tu? Escuta, crê, e não olhes para mim, procurando-me no rosto o rubor do pejo... Vou para a Madeira favorecido por Cassilda. É ela quem me dá o valor das suas últimas jóias vendidas em Paris; e vendeu-as na certeza de que estou tísico, de que vou morrer, e ela ficará pobre. Aqui tens uma acção boa da mulher a quem só falta a pobreza para que todos a insultem! Que lucrou ela? Em recompensa da sua caridade, apenas receberá a do hospital. Não é precisa muita abnegação? Diz-mo tu, que estudas as almas pervertidas... Não será heroísmo o da mulher que se sacrifica, sabendo que eu vou morrer, e que após mim lhe há-de ficar a responsabilidade de me ter empobrecido e matado? Quando ela passar indigentemente trajada, os que ainda a reconhecerem dirão: «Aí vai a devassa que devorou a fortuna' de Carlos Pereira!» Pois aqui tens a mulher que eu encontrei há três anos com mocidade, beleza, sem coração, mas feliz; sem amigos verdadeiros, mas adorada de todos os homens; odiada das mulheres, mas esplêndida na petulância com que as afrontava. Olha para ela, e verás que está envelhecendo; repara-lhe nos pulsos, não lhe verás uma pulseira; vai ao seu guarda-roupa e acharás vestidos que ela dantes não consentiria nas suas criadas. Esta mulher não é minha esposa, nem lhe será lícito vestir luto por minha morte.

     - Bem sei... - interrompi menos comovido que o usual nos teatros onde se faz o auto lagrimável da apoteose do vício redimido pelo amor. - O luto há-de vesti-lo uma viúva chamada Filomena; o luto hão-de vesti-lo dois órfãos. Filomena está a esta hora apressando o ensino de primeiras letras de seu filho para o oferecer ao balcão de algum merceeiro, que lho aceitará, com a condição de que ele há-de erguer-se às cinco horas para varrer a loja. Os que passaram por Cassilda e disseram: «Aí vai a devassa que devorou afortuna de Carlos Pereira» dirão também, vendo um menino de compleição mimosa carregando fardos: «Ali está um filho de Carlos Pereira ganhando o pão negro que seu pai dissipou com as devassas!»

     A piedade, meu amigo há-de beijar a face do inocente e voltar as costas à criminosa. É justo, é providencial, que assim seja. Tua senhora vai ser mestra de meninas para se amparar a si sua filha. Os que viram Cassilda e voltaram o rosto anojados hão-de olhar respeitosamente para a filha de conselheiro ***, para a viúva do desembargador ***, dirão: «Aquela mulher que recebe umas sopas e um tostão diários é a viúva de Carlos Pereira.»

     - Que concluis? - Atalhou o meu amigo rebatendo corajosamente os ímpetos das lágrimas, e não sei se os da ira.

     - Concluo que Cassilda expiará como culpada; e que tua mulher e teus filhos padecerão inocentes.

     - Vamos embora, que tenho frio e febre – disse Carlos.

     Dei-lhe o braço, entrámos no cupé, e voltámos para Lisboa.

     Eu ia profundamente triste e desesperado de o restituir vivo ou moribundo à sua família. E, por sobre a dor de tão irremediável calamidade, pungia-me não sei que invencível compaixão de Cassilda. Ê que eu tinha sido empestado pelos miasmas literários deste penúltimo quartel do século. As Adrianas, as Damas das Camélias e das Pérolas, laureadas, à míngua de virgens autênticas, em glorificações de livros e palcos, com aplauso até das mulheres honestas, das cândidas noivas, das matronas impolutas e das velhas lagrimosas... enfim, a podridão social destilada em óleos aromáticos nas retortas dos engenhos mais em voga contaminara-me tanto ou quanto. Válido testemunho dera eu de tabidez intelectual quando enflorava a vala de um desses corpos cem vezes vendidos, num romance que ficou lembrado e hoje escarnece outros de muito sã moral que... esqueceram.

     Voltei no dia seguinte ao Hotel Central. Disseram-me que Mr. e Mad. Pereira haviam saído em trem.

     Desconfiei que o meu amigo era mais delicado do que eu tinha sido na Travessa dos Carros.

     Na verdade, eu havia apostolado tão incompetente quanto inconvenientemente a contrição dos pecados.

     Demasiei-me, talvez, em desluzir-lhe as cristalizações do amor, formadas naquela alma, ramo desflorido e seco, submerso no lago congelado, conforme a teoria de Stendhal. A meu ver, cristalizações de lágrimas só o calor da mortalha as degela.

     Por outra parte, doía-me a severidade grosseira com que respondera ao ardente elogio de Cassilda. Pressentia remordentes pesares, se um dia a encontrasse em Lisboa abrindo à caridade esquiva a magra mão, por onde filtraram ondas de ouro. Isto, ainda assim, não impedia que todo o meu doloroso interesse me chamasse coração onde chorava uma viúva com dois meninos sentados no limiar da miséria.

     Tornei ainda ao hotel. Encontrei-os descendo as escadas seguidos da sua bagagem.

     - Vamos embarcar - disse ele secamente.

     Cassilda Arcourt castigou-me com um lance de olhos coruscante. O meu fraco amigo denunciara provavelmente à sua benfeitora o desafecto com que eu desfizera nas suas virtudes. Se o futuro me não despenar deste remorso, não ousarei mais olhar de fito a generosa criatura que desvalidei. Esperemos.

     - Se vais embarcar - disse eu encarando-o como quem se despede para sempre... -, adeus?

     - Adeus - voltou Carlos nem levemente comovido.

     - Vamos depressa, que faz vento aqui – interveio desabridamente Cassilda, tirando-lhe pelo braço.

     - Até à volta - murmurou ele.

     - Adeus, Carlos.

     Permaneci no Cais do Sodré a vê-lo ir num bote que atracou ao vapor da carreira açoriana, e retirei-me quando a multidão dos barcos mo encobriram. Chorei com pena e saudade.

     Chegando a casa, encontrei uma carta de Filomena, sem carimbo de terra. Abri-a com alvoroço, vi a data: era de Lisboa, escrita naquele mesmo dia. Continha isto:

     Estou em Lisboa desde a madrugada com meus filhos. Constou-me que meu marido tinha chegado moribundo. Venho despedir-me dele, se o puder conseguir. Desejo muito ver o meu Carlos, muito, meu amigo. Será crueldade? Serei repelida? Deixar-me-ão levar as criancinhas? Diga-me se isto é um desatino.

     E, se não é, esclareça-me onde ele está. Hospedei-me no Hotel da Estrela, Rua da Prata. Sua obrigadíssima, Filomena.

     Fui sem demora à hospedaria. Encontrei uma senhora que representava muito além dos quarenta anos, e esses bem golpeados de infortúnios. Filomena devia ter, quando muito, trinta e três. Metade dos cabelos encanecera. A estatura que tinha sido a sua máxima elegância pareceu-me diminuída e curvada. Trajava de preto, e menos de modestamente.

     Não pude dissimular o meu espanto. Ela conheceu-o, sorriu-me e disse:

     - Vê-me? Escuso de lhe contar quanto hei sofrido. Aqui tem uma velha que era há vinte e seis anos uma criança com quem o senhor jogava os pinhões. Estou assim. Mas, em compensação, aqui tem duas flores que têm as raízes no coração desta pobre mãe. Veja como estão lindos os meus filhos... Estou-os criando assim formosos para a desgraça os envelhecer. Passadas mais algumas Primaveras...

     Beijei os filhos de Carlos.

     - Minha amiga - disse eu vencida a comoção -, recebi neste momento o seu bilhete. Chegava, quando o recebi, de ver embarcar seu marido...

     - Para onde?!

     - Para a Madeira. Ontem escrevi a Vossa Excelência participando-lho. Se a minha amiga me consultasse, dir-lhe-ia que não viesse a Lisboa. Carlos não volta aqui, penso eu.

     - Foi só? - acudiu ela ansiadíssima.

     - E, se fosse só... - condicionei eu por lhe adivinhar o intento.

     - Se fosse só, segui-lo-íamos...

     - Não foi só, minha senhora.

     - Não?... Pois então... - balbuciou ela. - Deus vá com ele... Voltaremos, filhos... Não vereis mais o vosso pai...

     Os dois meninos aconchegaram-se do seio da mãe com os olhos húmidos.

     - Ele não levou saudades destes anjos? - perguntou Filomena, com as faces inundadas de pranto.

     - Falou-me deles antes de ontem com muita saudade. Morre com eles no coração. Também me perguntou muito comovido se Vossa Excelência teria sofrido privações...

     - Tenho... - exclamou ela -, mas eu trazia-lhe aqui estas oitenta libras... Deixou-me cento e vinte... Há dois anos que vivemos do que falta, e do meu trabalho, e da beneficência da minha irmã... Se vê que ele as precisa, aí as tem, mande-lhas.

     - E, depois, estes meninos vão pedir por portas?...

     - Irei eu com eles...

     - Minha senhora, quando este dinheiro chegar ao Funchal, seu marido estará morto. Pensemos no seu destino, Srª D. Filomena. Este dinheiro é uma base pequena para edificar futuros; mas vejamos o que há-de fazer-se. Vossa Excelência volta para a companhia de sua mana?

     - Se não tiver outro remédio. Minha irmã está pobre: o marido acabou de arruinar-se no jogo e vem a Lisboa pedir um baixo emprego nas estradas. Outra minha irmã enviuvou há três meses em Bragança.

     O marido era um general que nem montepio deixou.

     Ouvi dizer que alguns deputados vão pedir uma pensão para ela. Estamos assim todas.

     - Dá-me então Vossa Excelência a permissão de pensar no seu futuro até amanhã?

     - Pense nestas duas criancinhas... pense de modo que elas não sintam fome, se eu morrer.

     Um mês depois, Filomena era recebida num colégio de educação como professora de Piano e coadjutora da mestra de Francês. Sua filha foi com ela e Eduardo entrou como pensionista num colégio dirigido por um venerando sacerdote que dava às criancinhas pouco abastadas ensino quase gratuito.

     Não assisti ao lance da separação. Devia de ser consternador! Mas, todos os domingos Eduardo ia ver sua mãe e passear com ela e sua irmã.

     As proprietárias do colégio afeiçoaram-se por maneira a D. Filomena que a consideravam mais sua sócia que assoldadada para o ensinamento. Neste viver pacífico e distraído pelo trabalho, a esposa de Carlos recobrou-se algum tanto, pelo que diz respeito ao vigor de espírito; quanto ao corporal, a velhice parecia medir-lhe as horas pelos anos das pessoas felizes.

     Obtive, entretanto, que um amigo indagasse no Funchal notícias de Carlos Pereira. Li uma carta em que se respondia às informações pedidas. Os médicos da terra julgavam-no doente irremediável e queixavam-se da barbaridade com que os de Lisboa sujeitavam um moribundo às duplas agonias do enjoo do mar.

     Noutra carta anunciava-se a súbita partida de Carlos para Lisboa, no mesmo barco em que vinha a carta.

     Ocultei esta notícia de Filomena.

     Procurei Antunes inutilmente, durante três dias, nas casas de tavolagem onde este amigo de Carlos pernoitava. Disseram-me que ele, acamaradado com dois representantes de viso-reis da índia, tinham roubado em fraudulento jogo a um marquês espanhol, argentário celebrado em Portugal, vinte mil libras; e, depois da façanha, dividido o saque, se haviam emancipado das espeluncas ordinárias, passando a jogar em casas titulares.

     Pude topar Antunes em uma casa titular, onde entrei juntamente com um alquilador, mais relacionado na casa do que eu: donde inferi que o Sr. Antunes condescendia com o eclectismo do fidalgo que dava tavolagem na mesma sala onde tremiam de indignação, pendurados nas paredes, onze retratos de condes.

     Chamei de parte o lícito salteador do marquês espanhol, e perguntei-lhe se sabia onde morava Carlos Pereira em Lisboa.

     - Olhe, meu caro senhor, eu tenho aqui uma carta dele, que ontem recebi, mas ainda não tive ocasião de o procurar. O homem, segundo entendo desta carta, vem muito mal de fortuna. Leia lá.

     Recordo-me do essencial da carta. Dizia que piorara e se sentia nas últimas; que precisava ir para ares de campo; mas apenas tinha meia dúzia de libras. Não pedia empréstimo nem esmola; mas rogava ao seu amigo Antunes que lhe arranjasse vinte libras sobre o seu relógio de patente e uma abotoadura de diamantes. Terminava dizendo que se hospedara no Hotel das Duas Irmãs, Rua do Arsenal.

     - Vê-se que está bastante necessitado... - disse eu tomando nota do hotel.

     - Pois que quer? - observou o Sr. Antunes, inquieto, relançando a vista ávida ao grupo de jogadores.

     - Carlos é um doido varrido... Não tem cinco réis de juízo...

     - Nem de pão, daqui a pouco - acrescentei eu, medindo aquele infame que comera por espaço dum ano os lautos jantares de Carlos. - E o Sr. Antunes não está disposto a favorecê-lo?

     - Ah!, sim, eu não duvido dar-lhe alguma coisa...É Se o senhor vai para lá, leve-lhe esta nota de quatro libras...

     - Entregue-a ao galego que lhe trouxe a carta disse eu, repelindo a nota.

     - O senhor ofende-se?! - acudiu ele.

     Não repliquei.

     Entendi que esconder este acontecimento de Filomena era privá-la da consolação de socorrer seu marido.

     Quando, ao diante, ela soubesse que eu, sem poder justificar-me, ocultara da sua santa alma a miséria do pai de seus filhos, sobeja razão teria de arguir-me.

     Fui, pois, naquela mesma noite ao colégio e tudo lhe referi.

     A consternada senhora, sem me responder, abriu uma gaveta e deu-me uma saquinha, dizendo:

     - Pouco tirei daí. Paguei três meses no colégio a Eduardo, fiz algum fatinho aos dois pequenos; o resto aí está. Se me quer fazer a esmola de lho mandar...

     - Levarei parte deste dinheiro...

     - Todo, todo.

     - E o colégio de seu filho, minha senhora!

     - O que Deus quiser. Pedirei a estas senhoras que me adiantem alguma coisa do meu ordenado, quando for tempo. Vá, vá, por quem é, levar-lhe o dinheiro.

     Quando recebi o saquinho, senti o religioso fervor de beijar-lhe a mão.

     Anunciei-me na hospedaria.

     O criado voltou dizendo que o Sr. Carlos estava descansando.

     - Quem lho disse? - perguntei.

     - A senhora dele.

     - Diga a essa senhora que eu preciso falar-lhe.

     Voltou o criado:

     - A senhora manda dizer que não conhece o senhor.

     Maravilharam-me os brios de Cassilda, e quedei-me alguns instantes perplexo.

     - O dono da casa?

     - As donas da casa estão com a senhora do hóspede.

     - Chame-as, que preciso dar-lhes um recado.

     Voltou o criado e conduziu-me a uma sala.

     Entraram duas lépidas damas, que deviam dar-se intimamente com Cassilda, segundo inferi de seus ademanes e trejeitos.

     - Sinto incomodá-las, minhas senhoras. Sou portador de setenta libras para o Sr. Carlos Pereira. Preciso entregar-lhas hoje. Fazem-me obséquio de recebê-las e entregar-lhas?

     - Pois não.

     - E dizer ao Sr. Carlos que lhas envia a mãe de Eduardo Pereira?...

     - De Eduardo Pereira?

     - Sim, minhas senhoras...

     - Há-de querer recibo?

     - Se ele está descansando...

     - Não... - gaguejou uma.

     - Ele está acordado... - gaguejou a outra.

     - Esteja ou não, dispenso o recibo. Minhas senhoras, boa noite!

     Esperava eu receber pela posta interna carta de Carlos a chamar-me com as ânsias de uma alma muito agradecida à caridade da esposa; esperava que ele desejasse, pelo menos, saber se seu filho estava em Lisboa; e que posses tinha Filomena para generosidade tamanha e tanto a ponto.

     Ao quarto dia suspeitei que ele tivesse expirado.

     Mandei indagar no hotel, e soube que tinham saído para fora da terra. Fui informar-me com as duas irmãs e encontrei-as enfurecidas contra Cassilda, em razão de saberem, à última hora, quem ela era e tinha sido.

     - Uma libertina de tal raça encampar-se como esposa do tal seu amigo! - exclamava uma das irmãs.

     Cassilda Arcourt!, quem não conhece em Lisboa a Cassilda, que arruinou mais de uma dúzia de rapazes de tom!

     - Só rapazes? - agravou a outra. - E velhos?? Não te lembras do conde de ***, e daquele velho que se afogou, quando éramos pequenas?

     - E atreveu-se a procurar um hotel honesto! - volveu a outra encolerizada.

     Tive de enfrear os impulsos do riso, desafiados pela proverbial honestidade daquela estalagem, cujas donas tinham corações adequados ao ofício, estalajadeiros a mais não ser. Cassilda, condenada naquele tribunal, não tinha já onde levar recurso de revista.

     - Queiram dizer-me... - perguntei eu edificado da verecúndia e pudicícia de tais damas - que disse Carlos Pereira quando recebeu o dinheiro?

     - Perguntou quem o mandava muito espantado, e ficou a olhar para Cassilda, e ela para ele. Depois saímos. A mana esteve a escutar a ver se percebia o espanto do homem e...

     - Pareceu-me que o Carlos chorava, e ela não dizia palavra - concluiu a outra.

     - No dia seguinte - prosseguiu a mais palavrosa -, a Cassilda saiu para alugar casa no campo, e voltou à tardinha, dizendo que já tinham casa em Campolide. Começou logo a enfardelar a bagagem, e ontem à tarde partiram. O Carlos custou-lhe muito a descer as escadas. Um hóspede que nós cá temos ia a passar e ofereceu-lhe o braço; e foi esse hóspede quem depois nos contou a bela jóia que nós cá tínhamos tido. Ele conhecia Cassilda desde o tempo em que ela ainda se portava bem na casa do pai que teve hotel na Rua Augusta, e contou-me que estava lá hospedado quando elafugiu com um francês, e veio depois casada com outro.

     Se o senhor quiser saber a vida da tal peseta, o nosso hóspede conta-lha.

     - Obrigado, minhas senhoras. Sei de mais.

     Despedi-me destas recreativas mulheres, louvando a Deus conservar-se ainda, e onde a gente menos o espera, alguma relíquia do antigo pudor português.

     D. Filomena pedia-me instantemente que descobrisse em Campolide a pousada do marido. Não havia dissuadi-la de vê-lo e levar-lhe os filhos! Profundamente religiosa, esta senhora desejava que o enfermo não saísse deste mundo sem os socorros da Igreja e o seu perdão.

     Seria crueza, senão perversidade, impugnar-lhe tão santos sentimentos; eu, porém, de mim para mim, cuidei sempre que a presença dela e filhos apressaria o trespasse de Carlos, para quem o viático e o perdão eram actos nem sequer lembrados como benefícios para vida futura.

     Andei pessoalmente averiguando a residência de Carlos. Imaginava-o eu nalguma das graciosas e floridas vivendas que por ali alvejavam por entre verduras. Aí é que eu o procurava, tirando inculcas de vizinhos. Ia retirar-me desesperançado de encontrá-lo, quando, na revolta de um atalho, me saiu de rosto Carlos na janela única de um casebre de pobre aparência. Parei a olhar para ele, ainda mal seguro de que o fosse, quando Carlos me disse:

     - Sou eu, sou; entra por essa cancelinha da horta... Desejava não morrer sem te dizer adeus...

     Subi, e entrei numa salinha, contígua de uma alcova.

     As paredes do quase escuro recinto estavam ornadas de registos e veras efígies de santos, uns encaixilhados, outros grudados na cal. Vi um velho canapé de palhinha e duas cadeiras. Sobre o canapé se reclinou Carlos, amparando-se nos travesseiros.

     - Que triste casa escolheste! - disse eu.

     - Não é boa para se viver nela; mas é óptima para quem morre. Como antecâmara de sepultura, tem bastante luz e adornos de mais. Este palacete é de uma lavadeira que mora aqui por baixo... - disse ele sorrindo.

     - Mas... - interrompi pressurosamente - não tinhas recursos para melhor casa?

     - Não.

     - Não recebeste, há quatro dias...

     - Setenta libras? Recebi; mas... se eu viver seis meses, onde irei buscar recursos?...

     - Estranho esse espírito de economia que te visita pela primeira vez!... Vives sozinho?

     - Não. Cassilda foi a Lisboa procurar o Dr. Barrai... Tenho que te pedir perdão de me negar duas ou três vezes quando me procuraste. Cassilda suspeitou que eras inimigo dela... Depois do nosso passeio ao Campo Grande... odiava-te.

     - Que me faz isso? Eu não a odeio. As tuas infelicidades procedem de causas mais elevadas. Cassilda, na tua existência, representa apenas... uma mulher. Saibamos, visto que estamos sozinhos: queres ver tua senhora?

     - Onde está ela? - perguntou serenamente.

     - É professora de Piano e Francês num colégio.

     - Essa infeliz... - volveu Carlos mais abalado - deu-me a esmola das suas economias...

     - Não: era parte do dinheiro que lhe tinhas deixado.

     - Diz-lhe que, se há Deus, ela será recompensada.

     - Já é. Tua senhora principia a sua glorificação neste mundo. Deus também se manifesta aquém da morte.

     - E os meus filhos?, o meu Eduardo?

     - Está num colégio. Desejas vê-lo?

     - Ardentemente. Se fosse possível...

     - É.

     - Eu te direi um dia em que esteja só.

     - Isso é miserável! Que tem que Cassilda veja o teu filho?,

     - É verdade... tens razão... O meu filho pode vir...

     - E tua senhora?, e a tua menina?

     - Ora não vês que será isso matar-me? Que direi eu à desgraçada?, que me dirá ela a mim? Não observas o meu estado? Isto está por dias... Quando me viste à janela, tinha eu chegado momentos antes, porque receei morrer asfixiado neste canapé. Tenho ataques de abafação que me levam ao extremo de cuidar que é chegada a hora.

     - E sentes alento para receber o teu filho?

     - Receio morrer... mas, se morrer...

     E rompeu a chorar em pranto desfeito.

     Eu fiquei como transido de dor, olhando para ele, sem inspiração de palavra consolativa.

     - Não, não quero ver o meu filho! – exclamou Carlos de golpe. - Espere que eu me levante desta prostração; quando eu estiver melhor, então me farás o favor de mo trazer. Iremos dar um passeio a Belas; leva-lo contigo, e eu vou lá ter. Eu não queria magoar esta pobre mulher que me não há-de sobreviver muitos dias...

     - Quem? - perguntei, vencido pelo espírito de irónica incredulidade.

     - Cassilda.

     Sorri involuntariamente. Carlos franziu o sobrolho e murmurou com rancor:

     - Sê bárbaro para ela; mas sê também delicado para os moribundos.

     - Não te aflijas, Carlos... - volvi eu algum tanto corrido da penetrante admoestação. - O teu filho virá quando tu ordenares.

     - Pois sim - disse ele esquivamente.

     Relatei o diálogo a Filomena, instando-a a que não tentasse vê-lo. Pareceu-me que a convenci; pelo menos, obriguei-a a não argumentar com as suas cláusulas de sacramentos e perdões, ideias que, às vezes, me tornavam suspeita a lucidez intelectual desta senhora...

     Apresso-me a repelir a calúnia de algum mal-intencionado. Os sacramentos e os perdões considero-os sacratíssimos, quando se pedem. Ungir um moribundo incônscio ou perdoar a um culpado incontrito são documentos falsos para a salvação de uma alma. Filomena teologizava doutro feitio, e talvez estribada em boas autoridades.

     Um dia recebi um bilhete de Carlos Pereira nestes termos:

     Quero ver o meu Eduardo; mas encarrega algum criado do colégio de o conduzir. Desculpa-me. O meu fim é não aguar o júbilo de o ver. Entende-me, meu amigo...

     Entendi. Cassilda teimava em odiar-me, e eu apenas podia desprezá-la, reservando o meu arrependimento para quando ela justificasse os dramas e os romances da escola, onde ela aprendera a parecer sublime.

     Comuniquei o bilhete a D. Filomena, que se encarregou de mandar o menino com um criado do colégio.

     A virtuosa senhora... mentiu. O termo é duro; mas perdoe-mo a sua piedosa indulgência. Os santos também se desviaram do prumo da verdade, quando a inexactidão agravava o seu martírio.

     Saiu Filomena com os seus dois filhos, caminho de Campolide. Deu informações ao boleeiro e colheu outras duma lavadeira, que sucedeu ser a senhoria de Carlos.

     A sege ficou na estrada. Era estreito o quinchoso por onde a lavadeira ia guiando a senhora e contando-lhe os desvelos com que D. Cassilda tratava o marido.

     - O marido... dela? - perguntou Filomena.

     - Sim, eu acho que eles são casados - disse a mulher -, mas, se não são, por alma lhe preste... Ou não são?! - perguntou a lavadeira, cruzando os braços e parando em frente da senhora.

     - Vamos... - disse Filomena. - Andai, filhos.

     - Acho que não são casados... - tornou a mulher.

     - Por isso ontem os dois médicos que cá vieram, quando ele esteve a dar a alma ao seu criador, iam a dizer por aqui fora: «Em que mãos caiu este desgraçado!» Então pelos modos as mãos eram as da tal D. Cassilda!... Querem vocês ver?...

     Dados alguns passos, a lavadeira mostrou a sua porta a D. Filomena, dizendo:

     - A entrada é pela cancela da horta; mas a senhora pode ir pela loja onde eu moro e subir pela escada de dentro, que eu tenho a porta fechada por cá.

     Filomena entrou convulsa, sentou-se numa arca, por não poder suster-se, chamou para junto de si os meninos; e, pondo o dedo indicador sobre os beiços, parecia escutar.

     Enquanto ela recobra ânimo, vejamos o que passa em cima.

     Ao anoitecer do dia anterior, Carlos, agitado em extrema ansiedade, disse à consternada enfermeira que sentia a morte ou a necessidade de se matar. Os tubérculos estendendo-se até ao mesentério causavam-lhe grandes dores, ao mesmo tempo que a dispneia lhe angustiava a respiração. Cassilda, como, durante o dia, ouvisse Carlos repetidas vezes falar no filho, supôs que as pioras da doença prendiam com a saudade. Assim que foi dia, partiu ela para Lisboa a chamar o médico, e levou o bilhete de Carlos, que me foi entregue por um galego. O médico tinha saído meia hora antes de Filomena chegar, deixando o doente mais sossegado e meio adormecido com muito sensível alívio. Não obstante, Cassilda, pedindo ao doutor, e obtendo a mais sincera opinião sobre o estado de Carlos, preparou-se para o ver morrer na próxima noite ou por todo o dia seguinte. Na ocasião em que Filomena se sentou, escutando, estava Carlos vestido e deitado no colchão posto sobre o pavimento. Cassilda, sentada à cabeceira, amparava-lhe a cabeça num dos braços e com a mão do outro desempastava-lhe os cabelos húmidos de sobre as fontes.

     - Olha que me sinto muito bem... - dizia ele. Tenho sono... creio que vou adormecer... deita-me no travesseiro a cabeça...

     - Adormece no meu braço - dizia ela.

     - Não, que te incomodo, minha pobre filha.

     Este diálogo ouvia-se na loja da lavadeira, através De um tabique fendido que formava o mainel da escada interior.

     Filomena ergueu-se energicamente, proferida a última palavra do marido, e disse:

     - Abra-me a porta...

     Quis ela seguir a mulher; mas os joelhos dobravam-se-lhe sobre o último degrau da íngreme escada.

     A lavadeira abriu a porta, que nunca tinha aberto, e disse para baixo:

     - Quem hei-de dizer que procura o Sr. Carlos?

     - Que é?! - bradou ele, espantado de ver abrir-se aquela porta pela primeira vez.

     E, como Filomena não respondesse à pergunta, a senhoria, satisfazendo à ansiedade do doente, disse:

     - É uma senhora com um menino e uma menina.

     - Ah! - exclamou Cassilda levantando-se de salto, em atitude de fugir.

     - Onde vais, filha? - rouquejou Carlos erguendo-se a meio-corpo.

     - É tua mulher e teus filhos! - segredou ela inclinando-se-lhe ao ouvido.

     - É impossível!... é impossível! - bradou o moribundo esticando-se sobre os braços que vergavam debaixo do tronco.

     - Suba, minha senhora - dizia a lavadeira.

     Neste lance, Cassilda Arcourt correu turvadamente para o quintal.

     - Vem cá! Não me fujas, não me fujas, que eu morro. Cassilda!... - bradava Carlos, em pé, cambaleando, com as mãos recurvas na cabeça.

     Filomena subiu mais alguns degraus, levando os meninos adiante de si, e disse soluçando a Eduardo:

     - Entra, meu filho, entra... vai ver teu pai...

     O menino entrou medroso e quase impelido pela lavadeira; mas, à vista daquele pavoroso homem de compridas barbas, em pé, com os olhos espasmódicos, sem algum vestígio de seu pai que não lhe esquecera, fez pé atrás para fugir de aterrado.

     Carlos, ao vê-lo, exclamou:

     - És tu, meu filho?... és tu? Vem cá, Eduardo!...

     E deu dois passos vacilantes no tabuado com os braços estendidos para a criança.

     Neste instante, Filomena assomou ao topo da escada com a menina e correu para ele levando cada filho por sua mão e bradando:

     - Ó Carlos! Ó filho da minha alma!...

     O moribundo recuou, teve-se em pé um instante em convulsões, caiu em joelhos, estendeu um braço proferindo «Eduardo», mas já o não via, porque a sua mão pousara no rosto da menina. Filomena achegou-lhe do peito o filho; ele inclinou a face como se quisesse beijá-lo; mas nos lábios de Carlos o que estremecia então era o último alento. A face desceu, desceu, até encontrar o amparo do braço de Filomena.

     Estava morto.

     Vai, mártir e algoz! Vai, alma funesta que compendiaste no derradeiro instante as agonias de treze anos!

     Esse teu acabar, se não fosse instantâneo, seria o maior suplício que viram homens! Eu não sei se em tuas pupilas mortas ficou espelhada a imagem da mulher que deixaras bela, e aí viste envelhecida e rugosa, como fantasma vingativo! Ai!, não era! Lágrimas de amor misericordioso eram essas que ela verteu na tua face fria!

     Vai, suicida, que primeiro arrancaste da tua alma todos os limites que podiam honrar e santificar tuas dores. Ao teu último lampejo de luz, viste a vítima entre dois anjos; olhaste em ti, e viste o opróbrio, a repulsão, o morrer entre o remorso e a blasfémia talvez!

     Vai, criança, que choraste, órfã aos oito anos!

     Vai, coração aberto em flor, que, à primeira paixão, te encheram de torpe fel.

     Vai, esposo dum anjo resgatado, antes que a peçonha de teu coração lhe inoculasse a morte.

     Vai, ó pai extremosíssimo que choravas e oravas ao pé do leito do teu filho, e aí mesmo pressentias o crepitar distante da asa negra da paixão fatal que te havia de entranhar no peito farto lodo amassado em sangue.

     Desfás-te aí nessa vala obscura, aos trinta e três anos, homem que apenas tiveste uma lágrima de estranhos e o reparo glacial do coveiro, que, no recalcar da enxada, parecia querer esmagar os embriões dalguma ervinha que pudesse reverdecer da tua leiva.

     Dai-lhe, ó Senhor, o repousar infinito, se para estes desgraçados não há em tantos milhares das vossas estrelas um reviver nos resplendores da luz perpétua!

   

     Filomena saiu após o cadáver do marido.

     A gente do campo viu passar um esquife em uma sege; e depois, em outra, duas crianças que amparavam a cabeça de sua mãe.

     Aquele espectáculo silencioso tinha a singela solenidade que faz chorar.

     E o povo chora, quando entende as angústias assim despidas de visualidades.

     A viúva, ao separar-se da sege que se apartava para o cemitério dos Prazeres, disse aos filhos:

     - Dizei-lhe adeus!

     E o mais velho, descobrindo-se, murmurou:

     - Adeus, meu pai!...

     Eram passados seis meses, quando os jornais de Lisboa e Porto imprimiram o seguinte anúncio:

     Em Lisboa, na Rua dos Capelistas, 110, precisa falar-se ao Il.mo Sr. Carlos Pereira, sobre objecto do seu interesse.

     Fui autorizado pela Srª D. Filomena a procurar o anunciante.

     - É o Sr. Carlos Pereira? - perguntou-me um respeitável capitalista.

     - Carlos Pereira morreu há seis meses.

     - Sim? E quem deixou?

     - Viúva e dois filhos.

     - Estão em Lisboa?

     - Sim, senhor.

     - Pois que se habilitem para sucederem na herança de um tio de Carlos Pereira, que deixa toda a sua «fortuna» ao sobrinho, ou filhos de seu sobrinho, se ele não viver; e, além disso, deixa um legado especial de trinta contos a seu afilhado Eduardo, que penso ser um dos pequenos.

     - É. Qual «fortuna» calcula Vossa Senhoria que seja a dos dois filhos de Carlos?

     - Não sei; mas o que posso dizer-lhe é que o primeiro dos tios que morreu deixou ao segundo que morreu agora trezentos contos fracos. Poder-se-á dobrar a herança, sem lhe errar uma dúzia de contos.

     Levei esta notícia a D. Filomena.

     Cuidava eu, homem de instintos pecuniosos, que a viúva, no auge do seu júbilo, sofreria alguma síncope.

     Contei o caso com as mais engenhosas precauções, a fim de evitar o embate súbito da fausta nova.

     Ouviu-me com serenidade e disse afinal a viúva:

     - Ainda bem que Deus se apiedou dos meus filhos! Veja o meu amigo que descansada vida reservava a Providência para o meu pobre Carlos!

     - Vossa Excelência provavelmente sai do colégio... - disse eu maravilhado, do frio desprendimento desta senhora.

     - Não, meu amigo. Porque hei-de eu sair?... Se não tivesse encargos e obrigações, teria estalado de paixão. O trabalho é preceito e remédio divino. Estas senhoras têm sido para mim duas santas amigas. Aqui ficarei com minha filha, onde a sua educação há-de continuar como se houvesse de ser pobre. Quando eu era colegial no Porto, meu amigo, supunha-me das meninas mais ricas e esperançosas de afortunada vida. Afinal, vim aqui converter em pão o que lá aprendi como prendas necessárias a uma senhora de boa sociedade. Desejo, portanto, que minha filha nunca se persuada que um grande dote em dinheiro é mais seguro que o direito do trabalho ao estipêndio. Quanto a meu filho... pedirei a Deus que o brilho do ouro lhe não deslumbre o espectáculo da morte de seu pai. Estou preparando para ele um livro...

     - Um livro?! Escrito por Vossa Excelência?

     - Sim. É a vida de meu marido. Quando Eduardo tiver dezasseis anos, dir-lhe-ei: «Este manuscrito ajunta-o à tua herança. É o dote que recebes de tua mãe.»

     Eduardo Pereira tem hoje quinze anos.

     É natural que este livro alumie a obscuridade e explique os discretos silêncios do manuscrito de sua mãe.

   

     Cassilda Arcourt

     A morte é uma pavorosa quimera.

     Não há morte. A alma é faísca da luz eterna. O corpo é molécula da matéria universal. Esta palavra da filosofia é novíssima com dois mil anos de idade.

     Não há morte nem vida: há formas. Isto também é novo. Disse-o Heraclito, depois Aristóteles, depois eu.

     Daqui a três séculos este axioma torna a ser novíssimo.

     Mas a morte, no entender de teólogos, de fabulistas, de poetas e autores de necrologias, existe.

     Figuram-na muito mana e acamaradada com os conquistadores que juncam de cadáveres a terra. Dão-lhes como armas a fome e a peste, os dilúvios e as secas, as paixões homicidas e os livros estafadores.

     Semelhante alegoria tem que ver com Cassilda Arcourt. Esta mulher foi instrumento da morte; embora apatologia assevere que as suas vítimas faleceram de aneurisma, de asfixia, de tubérculos, de anasarcas.

     Cassilda, a exterminadora, tinha direito à benquerença da Fatalidade que lhe ervara o punhal com que ela coava aos corações as nevralgias dilacerantes.

     Chegou a hora do prémio.

     Sentia-se Cassilda a envelhecer aos trinta e cinco anos, e os seus últimos vestidos a esfacelarem-se.

     Vivia num quinto andar, onde a fome ia trepando.

     E completamente esquecida.

     Nem ódio nem caridade se lembravam dela.

     Mas, às vezes, sentia rebates do seu passado e murmurava: «Se eu quisesse...»

     Retrocedamos.

     A lavadeira tinha perguntado à viúva de Carlos se era dela, se de Cassilda, o espólio do morto.

     - Nada tenho aqui - respondeu Filomena.

     Levado o cadáver, entrou Cassilda com uma mulher que a tinha agasalhado quando fugia.

     Abriu a gaveta de uma cómoda e encontrou o restante do dinheiro que Filomena enviara ao marido. Embolsou-o.

     Fechou as suas malas e saiu para Lisboa.

     A senhoria do casebre me contou depois que Cassilda expedia uns gritos aflitíssimos, e fazia declamações espantosas, enquanto enfardelava a sua bagagem.

     - E Filomena que fez? - perguntei eu.

     - Só se viam as bagadas no rosto como punhos; mas palavras, nem uma nem duas.

     Cassilda tinha uma irmã, que não vira no decurso de dezoito anos. Era a proprietária do hotel de seu pai e casara honradamente.

     Procurou-a e pediu-lhe o seu amparo.

     A irmã queria recebê-la, condicionando-lhe que nem diria o seu nome nem se deixaria ver dos seus hóspedes.

     Cassilda aceitava; mas o cunhado expulsou-a, dizendo que tinha filhas e que as não queria empestadas, nem a sua casa infamada.

     A expulsa não se entendeu a si, nem entendeu o mundo, como era de esperar da sua congenial esperteza e leitura. Estavam ainda actuando nela as novelas das reabilitações, a alquimia dos que prometem converter lodo em diamantes e tirar de esgotos fragrâncias. Não obstante, quando saiu afrontada da casa de seu cunhado, disse entre si: «Que desgraçada me fez Carlos! Onde ele me deixou!»

     Alugou quarto num quinto andar, confiada no aniquilamento, antes que se lhe esvaísse a bolsa que trouxera de Campolide. Uma noite, acariciou-a a ideia do suicídio. Ergueu-se febril. Mirou-se num espelho de viagem e achou-se bela. Olhou à volta de si e viu os seus vestidos de cetim antiquados e desmerecidos e as suas caixas das jóias vazias. «Que importa ser bela?», disse Cassilda à sua imagem, «o homem que olhar para os teus vestidos avaliará por eles a tua formosura. Mata-te, miserável, antes que a fome te envelheça!»

     A morte, para dissuadir a sua cúmplice, fez-lhe uma temerosa carranca e sacudiu-lhe os nervos horrorizados. «Não tenho coragem!», murmurou Cassilda olhando para duzentas cabeças de fósforos diluídos num cálice de água.

     Remirou-se no espelho e disse:

     «Se eu quisesse...»

     Três meses depois deste colóquio com o espelho em um quinto andar de uma travessa esquálida do Bairro Alto, entrou no Passeio do Rossio, às dez da noite, uma senhora arrastando a cauda de uma capa escarlate com borlas pretas. Os grupos de homens atravessavam-se no passeio central para a verem repassar com o entono, com a majestade, com o ar de realeza antiga que dá uma capa roçagante a uma mulher que mesura os passos como as rainhas trágicas.

     Eu estava a um lado, conversando com um companheiro de colégio de Carlos Pereira sobre as encadeadas desventuras do nosso amigo.

     Como sou muito míope, disse ao meu interlocutor provinciano:

     - Que mulher é esta para quem olham todas e todos?

     - Não sei; mas já reparei que é petulantemente gentil.

     Avizinhou-se um dos elegantes mais entendido em formosura e disse-nos:

     - Ela aí está mais linda do que era!

     - Ela quem? - perguntei.

     - Cassilda Arcourt.

     - Cassilda! - objectei eu. - Olhe que não se engane! Há três meses me disseram que essa mulher estava desgraçada e velha!...

     - Conheceu-a? - replicou o cavalheiro.

     - Via-a muitas vezes.

     - Pois vá reconhecê-la, que ela aí vem.

     - Basta-me a sua afirmativa - desisti eu. – Sabe dizer-me quem substituiu o defunto Carlos Pereira?

     - Então o senhor onde tem estado? Nos antípodas?

     - No Minho.

     - Pois eu o ilustro em duas palavras. Esta mulher foi casada com um francês...

     - Mr. Prosper Arcourt, sei...

     - Sabe também que o marido a roubou?

     - Sei, e que fugiu.

     - De Paris passou à índia Francesa, onde esteve doze anos, e voltou rico. Chegou a França, comprou uma casa acastelada nas margens do Rhône; onde vivia principescamente, quando morreu. A sua herdeira era Cassilda. Foi procurada em Lisboa e encontrada num quinto andar; saiu daí para França; e, quando voltou àpátria, foi residir num palacete a Buenos Aires. Aqui tem a actual amante de ***.

     As três estrelas significam um dos personagens de primeira plana em Portugal. E os novos livros de cadeau que recebe Cassilda têm estampada em relevo uma coroa de duque.

     Bravo, Cassilda!

     Este livro acabaria mais ao gosto moderno se tu morresses de saudade ou de fome. Como obra de arte seria o meu romance um primoroso desmentido à natureza; mas a tua catástrofe daria que pensar! E as tuas consócias entrariam em catequese de reabilitação, assim nociva para elas quanto ridícula para os assopradores do ephta restaurativo da pureza virginal. Tolheste-me a novela até certo ponto; mas aliviaste-me do remorso de ter profetizado que serias sempre abjecta!

     Bravo, Cassilda!

     Tens um duque a teus pés...

     Onde irás tu? Onde te verei eu?

     A tua cabeça está alta; mas acima de ti a escada dos prodígios conta ainda muitos degraus.

     Olha sempre para a tua estrela, Cassilda! Que as estrelas, depois da última revolução do globo, perderam o pudor.

     Sobe, sobe, Cassilda!

     E, na altura onde estás, se te mover, como desfastio, o desejo de ler este livro... compra-o.

 

                                                                                    Camilo Castelo Branco

 

 

                      

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