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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MULHERES APAIXONADAS
MULHERES APAIXONADAS

 

 

 

Capítulo XXIV

Morte e amor
Thomas Crich morria lentamente, com terrível sofrimento. A todos parecia impossível que o fio daquela existência pudesse ser tão estirado e a tal ponto adelgaçado, sem se quebrar. O doente jazia fraco e extenuado, apenas sustentado pela morfina que lhe administravam juntamente com outros remédios, ingeridos com dificuldade. Estava semiconsciente; um tênue cordão de compreensão ainda ligava a escuridão da morte à claridade da vida. Contudo, a vontade mantinha-se intacta, integral, completa. Queria em volta de si um silêncio absoluto.
Qualquer presença o fatigava, exceto a das enfermeiras. Todas as manhãs Gerald vinha vê-lo pensando encontrá-lo morto; mas descobria, invariavelmente, a mesma face transparente, o mesmo terrível cabelo escuro emoldurando um rosto cor de cera, e os mesmos olhos espantados e sombrios que pareciam desfazer-se em trevas, conservando lá dentro um débil vislumbre de vida.
E sempre que esse olhar desvairado caía sobre ele, Gerald sentia ferver-lhe nas entranhas uma espécie de revolta, que se transmitia através de todo o corpo, perturbando-lhe o espírito, enlouquecendo-o, quase.
Lá ficava ele, imóvel, cheio de vida, cintilando em seus cabelos louros. E o ar louro e cintilante daquele ser estranho e inevitável irritava o moribundo e chegava a aumentar-lhe a febre. Não podia suportar a expressão sobrenatural dos olhos azuis de Gerald, descendo sobre o leito de morte. Isto, porém, durava só uns instantes. Logo chegava o momento de se separarem, e pai e filho fitavam-se mais uma vez e despediam-se.
Durante muito tempo, Gerald conservou perfeito sangue-frio permanecendo ali com a maior serenidade. Mas o pavor acabou por desnorteá-lo. Tinha medo de sucumbir também. Era preciso, entretanto, submeter-se àquela tortura. Um vago desejo perverso o levava a observar o pai no transe derradeiro. E, diariamente o choque horrível daquele espetáculo o fazia estremecer de pavor. Gerald sentia vontade de se atirar ao chão, como se a espada de Democles lhe pendesse diretamente sobre a cabeça.
Não era possível esquivar-se; estava amarrado ao pai, devia assistir-lhe a agonia. Mas a vontade de Thomas Crich não se dobrava e recusava-se a acreditar na morte. Quando esta, afinal, se apoderasse dele, que remédio haveria senão aceitá-la? Contudo, a mesma vontade poderia persistir além da terra. Assim era, também, o filho: vontade intacta, independente da destruição física e daquele ser que sucumbia no leito.
Era um sacrifício contemplar o pai a dissolver-se e a ingressar no outro mundo, sem enfraquecimento da energia moral, sem condescender com a onipotência da morte! Como um pele-vermelha sujeito à tortura, Gerald submeter-se-ia à prova de assistir àquela lenta evolução para o nada sem dar mostras de dor ou de fraqueza. Triunfaria da experiência, tanto mais que desejava aquele passamento, quase até o impunha. Era como se ele mesmo esperasse a morte, embora o coração se lhe confrangesse de horror. Mas era o que julgava inevitável, afinal de contas.
No esforço de tão cruel missão, Gerald foi perdendo o domínio da sua vida quotidiana e profissional. Tudo quanto, anteriormente, valia para ele alguma coisa, passou a não ter o menor valor. O trabalho, o prazer, tudo foi posto de lado. Mas se ocupava dos seus negócios, trabalhando maquinalmente. A verdadeira tarefa consistia nesse lúgubre combate contra o destino dentro da sua própria alma. A vontade havia de vencer, fossem quais fossem os acontecimentos; jamais se curvaria, jamais reconheceria qualquer amo: a morte jamais o dominaria.
No decorrer da luta, aniquilava-se tudo quanto havia sido, e a vida em volta de Gerald assemelhava-se a um búzio vazio onde rugia a voz do mar, sussurro de que ele participava exteriormente; dentro da concha deserta existiam trevas, espaço destinado à morte apavorante. Gerald compreendia que era preciso adquirir coragem, ou cairia no abismo negro e profundo que se lhe cavava no meio da própria alma. A vontade preservava-lhe a vida externa, e a inteligência das coisas exteriores íntegras, mas a pressão tornava-se excessiva. Era preciso achar qualquer coisa que lhe garantisse o equilíbrio. Devia encontrar aquilo que pudesse acompanhá-lo no vácuo aberto em sua alma, de forma a preenchê-lo, e contrabalançasse assim a força exercida de dentro para fora com outra que viesse de fora para dentro - pois, dia a dia, sentia-se mais parecido com uma bolha de ar cheia de sombras, em volta da qual girasse a sua consciência.
O espírito impelia-o para Gudrun. Desprezava tudo e só desejava entrar em contato com ela. Gostava de acompanhá-la ao estúdio, de ficar em sua companhia, de conversar com ela. Agradava-lhe estar naquele quarto, mexendo ao acaso nas ferramentas, nos pedaços de barro, nas estatuetas já modeladas - tão caprichosas e grotescas! - e observá-las sem mesmo as compreender. Gudrun sentia-o sempre por perto, perseguindo-a como uma sombra.
- Ouça - disse-lhe Gerald certo dia, de forma singular indecisa. - Por que não fica para jantar? Eu gostaria muito!
Gudrun sobressaltou-se levemente. Gerald falara como um homem que se dirigisse a outro homem.
- Esperam por mim em casa - desculpou-se a moça.
- Ah!... Mas não ficarão preocupados... Gostaria muito que aceitasse.
O longo silêncio que se seguiu foi o sinal da sua aquiescência
- Vou prevenir Thomas, sim? - disse ele.
- Mas terei de partir logo depois do jantar - declarou Gudrun.
A noite estava escura e fria. No salão não havia fogo. Instalaram-se na biblioteca. Gerald estava calado, distraído, e Winifred falava pouco. Mas, apesar de calado, o rapaz mostrava-se amável e natural com a convidada.
Gudrun sentia-se bastante atraída para ele. Não sabia como interpretar aqueles silêncios profundos e estranhos. Ficava comovida, pensativa, enquanto sua admiração por ele crescia.
Ele fora um ótimo anfitrião. Oferecera-lhe o que havia de melhor na mesa, mandara servir uma garrafa de um vinho magnífico, levemente adocicado, cor de ouro, imaginando que ela o preteriria ao tinto. E Gudrun via o quanto era estimada, considerada quase uma pessoa da família.
Enquanto tomavam o café na biblioteca, ouviram bater de leve a porta. Gerald sobressaltou-se e disse: "Entre" o som daquela voz, vibrando em agudo diapasão, enervou a moça. Apareceu então o vulto branco de uma enfermeira; era como uma sombra clara projetando-se no limiar. Tratava-se de uma mulher muito bonita, mas - coisa estranha - parecia tímida e constrangida.
- O doutor deseja falar-lhe, Sr. Crich - explicou ela em voz baixa e discreta.
- O doutor! - repetiu ele, levantando-se. - Onde está?
- Na sala de jantar.
- Diga-lhe que já vou.
Tomou o resto do café e seguiu a enfermeira.
- Como é o nome dela? - perguntou Gudrun.
- Miss Inglis. É a mais simpática de todas - respondeu Winifred.
Pouco depois Gerald voltava, perdido em reflexões, ar preocupado e abstrato. Não se referiu a conversa com o médico; ficou de pé diante da lareira, mãos atrás das costas e expressão distante. Na verdade, ele não pensava. Mantinha-se em expectativa e as ideias se baralhavam em seu cérebro, desordenadamente.
- Agora preciso ir ver a mamãe - declarou Winifred - e despedir-me do papai antes que ele adormeça.
Disse isto e despediu-se dos presentes.
Gudrun ergueu-se também para ir-se embora.
- Não precisa ir agora - disse Gerald, olhando para o relógio. - Ainda é cedo. Sente-se, não há pressa, eu a levarei a casa.
Gudrun tornou a sentar-se como se estivesse sob o poder daquele homem, quase em transe. Sentia-se também quase magnetizada. Gerald era tão estranho, tão diferente! Em que pensaria, o que estaria sentindo, assim tão extático, sem nada dizer? Retinha-o sob a sua influência, era só o que Gudrun sabia. Não o deixava partir. Gudrun contemplava-o humilde e submissa.
- O médico tinha alguma coisa importante a comunicar? - indagou por fim, docemente, com ternura tímida e compassiva que tocava as fibras do coração dele. Gerald ergueu as sobrancelhas num gesto de indiferença.
- Não, nada de novo - respondeu, como se a pergunta fosse trivial. - Disse que o pulso estava muito fraco e irregular, mas isso não quer dizer muita coisa...
Depois, fitou-a. Os olhos de Gudrun permaneciam muito abertos, sombrios, suaves, com uma expressão assustada que o fez recair em si.
- Não - murmurou ela, finalmente. - Não entendo muito dessas coisas.
- Tanto melhor. Escute, vamos fumar um cigarro? - Foi buscar a caixa onde os guardava, e a seguir acendeu um fósforo. Em frente a ela, sempre junto ao fogão, tornou a cair em imobilidade.
- Aqui em casa - explicou - nunca tivemos doenças graves antes dessa de meu pai. - Deteve-se, como se ponderasse qualquer ideia; o seu olhar azul, estranhamente comunicativo, pousou sobre Gudrun, que ficou cheia de medo. - É uma coisa em que não se pensa ate que um dia se declara. Só então percebemos que já existia, que já existia desde muito tempo, desde sempre; compreende o que quero dizer? A possibilidade destas doenças incuráveis, destas mortes lentas...
Remexia os pés, inquieto, calcando o mármore da lareira. Levou o cigarro à boca e pôs-se a contemplar o teto. Gudrun, por sua vez, atalhou:
- Bem sei. É horrível.
Gerald fumava distraído. Tirou o cigarro dos lábios, descobriu os dentes e, colocando a ponta da língua entre eles, cuspiu um resíduo de fumo, voltando-se levemente de lado, como se estivesse só, ou perdido numa revoada de pensamentos.
- Ignoro ao certo qual é o efeito de tudo isto sobre a nossa pessoa - volveu ele, olhando de novo para a moça, cuja vista se turvou ao compreender a intenção daquelas palavras. Gerald viu-a perturbada e voltou o rosto para o outro lado. - Mas a verdade é que não sou mais o mesmo. Nada resta de mim... Sabe a que me quero referir? Julgamos agarrar-nos ao vácuo e o vácuo está dentro de nós. E já não sabemos o que fazer...
- Sim, - murmurou ela - que fazer? - Percorria-lhe os nervos um intenso calafrio, misto de prazer e de dor.
Gerald voltou-se, sacudiu a cinza do cigarro nas lajes de mármore do fogão, que, sem o resguardo usual, nem mesmo grades, se impunha ali na sala a descoberto.
- Não sei, é só o que posso afirmar - retorquiu ele. Mas suponho que estamos a ponto de resolver o problema, não porque se deseje, mas pela absoluta necessidade, sob pena de nos perdermos. Todas as coisas, incluídas as pessoas, estão a ponto de soçobrar. Com as mãos tentamos impedir que tal suceda. Mas é evidente que a situação não se pode prolongar; não é possível segurar o teto, indefinidamente dessa forma. Cedo ou tarde temos que retirar as mãos. Compreende o que quero dizer? É, pois, urgente tomar uma decisão, antes da subversão total, pelo menos no que nos atinge diretamente.
Esticou o pé para a lareira, esmagou uma brasa e ficou olhando para o carvão apagado. Gudrun observava as belas lajes de mármore antigo, com desenhos em relevo, onde Gerald estava agora enquadrado. Ela mesma teve a impressão de estar também prisioneira, mas do destino, fechada numa armadilha horrível e fatal.
- Que fazer? - perguntou, muito submissa. - Eu poderia ajudar de alguma forma?
Gerald fitou-a com superioridade.
- Não preciso do seu auxílio - retorquiu, um tanto enervado - porque não há nada a fazer. Só desejo um pouco de compaixão, percebe? Preciso de alguém a quem possa falar com o coração nas mãos. Isso facilita o trabalho. Mas não há ninguém nessas condições! É curioso, não há ninguém! Tenho Rupert Birkin, mas este não se comove, o que quer é ditar frases, que não me servem de nada.
Gudrun sentia-se apanhada no laço. Perplexa, olhava para as mãos.
Ouviu-se a porta abrindo de mansinho. Gerald estremeceu. Estava mortificado. E o sobressalto dele amedrontou também a Gudrun. Mas logo ele se dirigiu para a porta, cortês, atencioso, afável.
- Por aqui, mamãe? Que agradável surpresa. Como vai?
A recém-vinda, embrulhada negligentemente em um roupão cor de púrpura, muito largo, aproximou-se silenciosamente, desajeitada como sempre. O filho já estava ao lado dela. Puxou-lhe uma poltrona e perguntou: - Conhece a Senhorita Brangwen?
A outra lançou-lhe um olhar cheio de indiferença.
- Conheço - respondeu. Depois voltou-se para Gerald com aqueles seus olhos espantados, de um tom de miosótis, e sentou-se na poltrona que ele lhe havia trazido.
- Vim perguntar o que você sabe a respeito do seu pai - disse ela em voz rápida e quase inaudível. - Não sabia que estava acompanhado.
- Não? Winifred não lhe disse? A Senhorita Brangwen ficou para jantar conosco e alegrar-nos um pouco com a sua presença.
A Senhora Crich virou-se lentamente para Gudrun e mirou-a com expressão abstrata e vazia.
- Receio não ter sido grande divertimento para você... - Olhou novamente para o filho e continuou: - Winifred informou-me que o médico falou com você. Que foi que ele disse?
- Comunicou apenas que o pulso estava fraco, falhando de vez em quando..., de maneira que pode acontecer não passar desta noite.
A Senhora Crich manteve-se absolutamente impassível como se não tivesse ouvido, com aquela grande massa de carne abatida na cadeira e os cabelos louros desgrenhados sobre as têmporas. A pele, porém, era fina e alva, e as mãos, esquecidas e semicerradas no regaço, pareciam belas e repletas da máxima energia. E, na verdade, dir-se-ia amortecerem-se ondas de vontade naquela figura arruinada e gasta.
Contemplava o filho, que se conservava de pé, junto dela, atento, marcial. Os olhos da mulher tornaram-se extraordinariamente azulados, mais azuis do que as flores de miosótis. Parecia depositar muita confiança em Gerald, mas, ao mesmo tempo, desconfiança maternal.
- Como se sente? - inquiriu ela numa voz estranha e calma, como se falasse apenas com ele. - Não se ressentirá de tudo isto? Procure não ficar muito nervoso.
Gudrun estremeceu ao perceber o singular desafio que aquelas palavras encerravam.
- Assim o espero, mamãe - respondeu ele com risonha frieza. - Mas alguém deve assistir ao fim, penso eu.
- Acha que sim? Acha? - perguntou a Senhora Crich, precipitadamente. - Por que pensa assim? Por que ficar ate o fim? Tudo se resolve por si. Não é necessária a sua presença.
- Bem sei, mamãe. Mas a verdade é que nos afeta diretamente.
- Você gosta de se sentir afetado, não é isso? Está interessado nisso. Isso lhe dará importância. Pois não precisa ficar em casa. É melhor sair.
Tais observações, evidentemente feitas em momento de nervosismo, surpreenderam Gerald.
- Não acho conveniente sair agora, mamãe, neste momento crítico... - respondeu ele, muito calmo.
- Tome cuidado - prosseguiu a Senhora Crich. - Cuide de você, é isso que importa. Não se preocupe demais. Você é nervoso, sempre foi...
- Estou perfeitamente bem. Não vale a pena se preocupar comigo.
- Deixe os mortos tomarem conta dos mortos. Não se deixe enterrar com eles. Eu conheço bastante você...
Gerald silenciou, não sabendo o que responder. A mãe também permaneceu calada, e, com as belas mãos brancas, nuas de anéis, acariciou os braços da poltrona.
- Você não pode suportar aquilo - prosseguiu ela, quase com cerimônia. - Falta-lhe coragem. Você é frouxo como um gato, sempre foi. Esta menina vai ficar conosco?
- Não, senhora- elucidou Gerald. - Vai voltar para casa.
- Ela pode servir-se da carruagem. Mora longe?
- Não muito. Em Beldover.
- Ah! - Ela não olhava para a moça, embora lhe sentisse constantemente a presença. - Gerald, você tem a tendência de levar as coisas muito a sério. - Ao dizer isso, começou a erguer-se com certo constrangimento.
- Já vai? - perguntou ele, muito atencioso.
- Sim, vou lá para cima. - Voltando-se para Gudrun, murmurou "boa noite". Depois dirigiu-se devagar para a porta, com dificuldade, como se não estivesse habituada a andar. No limiar, estendeu a face e recebeu um beijo do filho. - Não precisa me acompanhar.
Gerald esperou que ela se aproximasse da escada, que subiu lentamente. Fechou então a porta, e voltou para junto de Gudrun, que se ergueu, disposta a partir.
- Minha mãe é muito complicada...
- Nota-se - concordou a moça.
Calaram-se por uns momentos.
- Quer ir-se embora? Apenas meio minuto: vou mandar atrelar o cavalo.
- Não - declarou Gudrun. - Vou a pé.
Gerald prometera acompanhá-la ate em casa e ela não se esquecera disso.
- Poderíamos ir muito bem na carruagem - insistiu ele.
- Prefiro ir a pé - declarou a jovem em tom enfático.
- Prefere? Nesse caso vou com você. Lembra-se de onde deixou seu agasalho? Deixe-me trocar de sapatos.
Munido de um boné e, sobretudo - por cima do temo com que jantara - preparou-se para partir e ambos penetraram na escuridão.
- Vou acender um cigarro - disse ele, abrigando-se no ângulo do portão fechado. - Tire um também.
E assim, entre o odor do fumo que aromatizava o ar, embrenharam-se ambos pela vereda sombria que atravessava, no meio de sebes, os prados em declive.
O desejo dele era passar o braço em volta da cintura da moça. Se tal pudesse fazer e a conseguisse atrair a si, Gerald estava certo de que recuperaria o equilíbrio, pois, naquele momento, sentia-se igual a uma balança, da qual um dos pratos descesse mais, cada vez mais no imenso vácuo sem fim. Era preciso contrabalançá-los. Residia ali a sua esperança de uma cura completa.
Sem mesmo olhar para Gudrun, pensando unicamente em si, Gerald lançou-lhe o braço em torno do corpo e puxou-a para o seu lado. O coração dela quase desfaleceu ao sentir-se arrastada assim. O braço do homem era tão vigoroso que a jovem não teve ânimo para se libertar; experimentava uma espécie de morte, muito unida a ele, enquanto avançavam na escuridão da noite tempestuosa. Aqueles dois corpos equilibravam-se perfeitamente no movimento rítmico do andar. E, então, sem demora, Gerald começou a sentir que se libertava das apreensões, e se tornava forte e heroico.
Levou a mão à boca e atirou fora o cigarro, que, na sebe invisível, formou um pontinho cintilante. Estava agora inteiramente apto para a manter mais segura.
- Assim é melhor - disse ele, exultando de prazer.
O entusiasmo que sua voz demonstrava era para ela como uma droga doce e venenosa. Significava, pois, tanto, para o coração daquele homem? E principiou a sorver o veneno...
- Está mais contente? - perguntou.
- Estou - disse ele, sempre no mesmo tom de satisfação. - Eu estava tão deprimido...
Gudrun aninhava-se no peito dele. Gerald aspirava o aroma quente e suave que emanava dela: tornava-se a substância própria do seu ser, nutriente e adorável. O calor e o movimento da moça penetravam-no e encantavam-no.
- Fico feliz em ajudá-lo...
- É verdade. Ninguém mais o conseguiria. Só você, Gudrun. "Acredito", pensou ela, com um sentimento de estranha e inevitável vaidade.
Durante a caminhada, parecia-lhe que a erguia do chão e a apertava tanto contra si que parecia conduzi-la toda suspensa. Era tão robusto que, à moça, não importava opor qualquer resistência: deixava-se ir naquela maravilhosa fusão dos corpos em movimento, ao descer a vertente sombria da colina batida pelo vento. Ao longe brilhavam as luzinhas amarelas de Beldover, a maior parte delas semeadas do outro lado da encosta. Mas aqueles dois seres seguiam alheios ao mundo, numa isolada e perfeita solidão.
- Gosta, então, muito de mim? - perguntou ela, em voz quase plangente. - Não sei, não consigo compreender...
- Muito, sim, muito! - respondeu ele em tom de satisfação dolorosa. - Não sei bem como, também eu... Mas amo-a acima de tudo! - Surpreendeu-se com a própria declaração, que era, aliás, verdadeira. Fazendo-a, despojava-se de futuro recuo, mas o certo era que Gudrun importava-lhe sobre todas as coisas. Ela era tudo para ele.
- Custa-me acreditar - volveu ela, trêmula e admirada. A dúvida e o prazer misturados punham-na assim nervosa. Sempre desejava ouvir isso. Contudo, agora que ouvia tais palavras, ditas com tão profundo tom de sinceridade, Gudrun recusava-se a crer. Não podia, não podia ser realidade. No íntimo ela admitia o fato e regozijava-se como de um triunfo finalmente obtido. No entanto...
- Por que não? - disse ele. - Por que não acreditar? É a mais pura verdade. Tão certo como estarmos aqui, nesta ocasião. - Ficaram bem juntos um do outro, parados, açoitados pelo vento. - Não há para mim - prosseguiu - nem no céu, nem na terra, outro lugar como este. A minha presença não importa; apenas a sua é que me interessa. Venderia antes a minha alma, cem vezes, a ficar privado da sua companhia. Não suporto mais estar só. Acredite. - Atraiu-a mais para si, num movimento definitivo.
- Não - murmurou a jovem, assustada. No entanto, não desejava outra coisa. Por que havia de perder a coragem?
Recomeçaram aquele estranho passeio. Tinham estado tão longe um do outro e agora vinham tão perto, temerosamente, inconcebivelmente perto! Chegava a ser loucura. Era, todavia, o que ela desejava. Haviam descido O outeiro e atingiam nesse momento o largo viaduto por onde passava a linha férrea das minas de carvão. A ponte - Gudrun conhecia-a bem - fora construída de pedras talhadas; era seca de um lado e musgosa do outro, em virtude da água que escorria. Gudrun pusera-se muitas vezes debaixo da abóbada para ouvir o estrondo da locomotiva deslizando lá em cima. E, quando chovia, costumava ver os mineiros refugiarem-se ali, no isolamento e no escuro, com as suas namoradas. Também ela ambicionava ter um noivo e ir com ele para baixo da ponte, a fim de se beijarem nas trevas impenetráveis. À medida que se aproximavam, diminuiu propositadamente o passo.
Pararam, pois, sob o viaduto e fizeram uma pausa; Gerald apertou-a contra o peito. O corpo dele vibrava, rijo e dominador, ao estreitá-la de encontro ao seu; e ela, ofegante, perturbada, vencida, aninhava-se nos braços dele. Ah, era terrível, sim, mas admirável! Assim faziam os mineiros às suas namoradas, debaixo daquela ponte. E, agora, o patrão de todos eles fazia o mesmo, naquele mesmo lugar! Como devia ser mais forte, mais poderoso o abraço de Gerald do que o dos seus operários! Como o amor dele devia ser mais concentrado e superior ao de todos os outros! Gudrun pensou que fosse desmaiar e morrer sob a pressão trêmula e sobre-humana daqueles braços e daquele peito; não poderia resistir. Depois a vibração extraordinária foi-se moderando ate se tornar pouco a pouco mais suave. Gerald encostou-se à parede e arrastou a moça com ele.
Gudrun estava quase inconsciente. Supunha ser assim que procediam os mineiros apaixonados, de costas voltadas para o muro, abraçando as suas amadas e beijando-as da mesma forma com que ele a beijava. Ah! Seria possível que os beijos deles fossem tão requintados e vigorosos como os que dava o patrão em seus lábios tão firmes? Nem sequer teriam, os operários, um bigodinho áspero e bem cortado!
E as namoradas, também deviam descair a cabeça para o lado e contemplar, sob a abóbada sombria, as luzes amareladas, distantes, na colina invisível, ou a forma incerta das árvores, ou ainda, em outra direção, as construções ao redor das minas.
Os braços do rapaz continuavam a cercá-la; parecia querê-la toda para ele, o seu calor, a sua suavidade, a sua beleza adorável, aspirando avidamente o aroma do seu corpo. Erguia-a e dir-se-ia entorná-la dentro de si mesmo, como quem despejasse vinho numa taça.
- Isto vale mais do que tudo! - disse com voz penetrante e singular.
Gudrun cedia, sentia-se misturar com ele e fornecer-lhe um líquido infinitamente precioso e morno que entrasse nas veias de Gerald e se comportasse como um tóxico. Tinha também passado os braços em torno do pescoço dele e recebia-lhe os beijos que ele lhe dava enquanto a tinha como que suspensa. A jovem desfalecia e sentia enterrar-lhe na carne aquele corpo duro e firme, ávida de receber aquele vinho que era a própria vida. Assim jazia abandonada nos braços do rapaz, suspensa de encontro a seu peito, dissolvendo-se, dissolvendo-se sob o calor dos beijos, fundindo os membros e os ossos como se ele fosse um ferro em brasa destinado a derretê-la.
A certa altura, julgou que ia desmaiar; foi, gradualmente perdendo a consciência de si própria. Sentiu-se gasta, nela tudo se misturava e era fluido; ficou tranquila, como se não existisse senão dentro de Gerald dormindo nele como a faísca dorme numa pedra lisa e pura. Assim se fundira no corpo do homem e esse homem agora era perfeito.
Quando tornou a abrir os olhos e voltou a descortinar o tapete de luzes a distância, pareceu-lhe extraordinário que o mundo ainda existisse e que ela estivesse ali de pé, debaixo da ponte, com a cabeça apoiada no peito de Gerald. Gerald... que significava ele? A aventura deliciosa, o desejo do imprevisto...
Ergueu a face e viu, no escuro, um rosto inclinado para o seu, rosto másculo e belo, que emitia uma luz branca e suave, espécie de aura, como se fosse enviado por algum poder oculto. Levantou-se até ele, no gesto de Eva ao colher a maçã da árvore da ciência, e beijou-o, embora a sua paixão vergasse ao medo transcendente desse ser misterioso; com dedos maravilhados, infinitamente delicados e indiscretos, Gudrun tateou-lhe as feições, seguindo-lhe o modelado da fisionomia, em todos os pormenores. Como era perfeito e desconhecido para ela, e tão perigoso! A alma arrepiou-se com tal revelação. Eis o fruto proibido, aquela face do homem fascinante. Tornou a beijá-lo, passando-lhe a mão pelo rosto, pelos olhos, narinas, testas, ouvidos e pescoço, a fim de o conhecer melhor a fim de o possuir pelo tato. Sentia-o tão bonito, tão rijo, cheio de satisfação, inconcebivelmente belo, único, de uma luz indescritível, inimigo que não se podia descrever e que brilhava, contudo, num fogo puro e sobrenatural. O seu desejo era tocá-lo mais, tocá-lo sempre, ate que o desvendasse todo por suas mãos, esforçando-se por conhecê-lo totalmente. Ah, se ela obtivesse esse precioso conhecimento, sentir-se-ia compensada; nada conseguiria privá-la dele, apesar da sua insegurança e dos riscos que corria no mundo vulgar e quotidiano.
- Como você é bonito! - murmurou-lhe em voz velada.
Gerald ficou surpreso, suspenso daquela frase. Ela, porém, sentiu-o estremecer e chegou-se mais, involuntariamente, para aquele homem que se lhe afigurava precisar de ajuda. Dominava-o pelo contato dos dedos. O insondável desejo que estes despertavam no rapaz era mais profundo do que a morte inevitável.
Entretanto, agora, conhecia-o ela bem, e isso bastava. Nessa ocasião tinha o espírito abalado por aquele invisível fluido luminoso, que lhe trouxera a revelação. Isso era uma espécie de morte da qual urgia ressuscitar. Haveria nele ainda muita coisa por descobrir? Ah, decerto! E quantos dias poderia gastar na sua investigação, com as mãos sutis e inteligentes no terreno daquele corpo vivo? Ah, tinha mãos ansiosas, gulosas de saber! Por enquanto não precisava mais, aquilo era bastante, o ânimo não lhe suportaria maior experiência. Um pouco mais, e ficaria repleta, encheria demasiadamente a delicada redoma da sua alma, suscetível de se quebrar. Era suficiente, suficiente por enquanto. Tinha ainda muitos dias à sua frente, durante os quais seus dedos, como pássaros, se alimentariam daquela plástica misteriosa. Até aí, esperaria sossegada.
Gerald, por seu turno, estava contente por haver encontrado resistência, repreensões, recusas. O desejo vale mais do que a posse, e a satisfação final receava-a ele tão intensamente quanto a ambicionava.
Recomeçaram a andar na direção da vila, na direção das lâmpadas acesas e distanciadas por longos intervalos, dispersas no escuro caminho do vale. Chegaram, enfim, à rua.
- É melhor nos despedirmos aqui - disse ela.
- Prefere assim? - perguntou ele, sentindo-se aliviado. Não gostaria de mostrar-se por aquelas ruas em companhia da moça, tão visível seria para os outros a satisfação que o tomava todo.
- Prefiro. Até amanhã. - Estendeu-lhe a mão, que Gerald agarrou, depondo os lábios sobre aqueles dedos tão dominadores, tão perigosos.
- Boa noite - volveu ele. - Até amanhã. Separaram-se. Gerald regressou à casa fortalecido pelo poder de um desejo sem limites.
No dia seguinte, porém, ela não veio. Mandou recado explicando que estava resfriada. Que tortura para o rapaz! Armou-se, entretanto, de paciência e escreveu-lhe um bilhetinho dizendo o quanto sentia a sua ausência.
Passou o dia e o outro sem ir ao escritório: achava isso perfeitamente inútil. O pai não duraria até o fim da semana e Gerald queria estar presente para qualquer eventualidade.
Sentou-se numa cadeira perto da janela, no quarto do industrial. A paisagem que dali desfrutava era sombria, invernosa. O velho Crich jazia na cama, lívido, cor de cinza; em silêncio, toda de branco, limpa, elegante e mesmo bonita, a enfermeira movia-se de um lado para outro. O ambiente cheirava a água-de-colônia. A moça saiu e Gerald ficou a sós com o moribundo ante o cenário hibernal.
- Há mais água em Denley? - interrogou uma voz fraca, vinda do leito, queixosa, mas decidida. O doente queria saber o que havia a respeito de uma infiltração numa das minas, originada em Willey Water.
- Alguma. Temos de esvaziar o lago - respondeu Gerald.
- Acha que sim? - A voz fraca parecia extinguir-se. Houve um silêncio tumular. O rosto pálido e acinzentado do enfermo mostrava-se de olhos fechados, mais morto do que se na verdade o estivesse. O filho observou-o. Sentia o coração apertado: se aquilo durasse mais tempo, talvez não pudesse resistir.
De repente, ouviu um ruído estranho. Voltou-se e notou que o pai abrira os olhos, rolando-os espantados num esforço sobre-humano. Gerald pôs-se de pé e ficou enregelado de horror.
"Ah... ah... ah..." Da garganta de Thomas Crich exalava um som cavernoso e horrível; o olhar, cada vez mais aflito, procurava em vão qualquer socorro, passando sobre Gerald sem o ver. Subiu-lhe ao rosto um rubor terroso, que o fez inchar; o corpo distendeu-se e a cabeça tombou para o lado, no travesseiro.
Gerald continuava apavorado. Queria mexer-se, mas não podia. Era impossível mover os braços ou as pernas. E o cérebro latejava, como o eco do pulso.
A enfermeira reapareceu, entrando silenciosamente. Olhou primeiro para o rapaz e depois para o leito.
- Oh! - exclamou, quase em um soluço, correndo em direção ao morto. - Oh! - repetiu em voz baixa, na sua perturbação, inclinando-se para a cama. Depois recuperou a calma e foi buscar uma toalha e uma esponja. Começou a lavar cuidadosamente a face do cadáver, murmurando num queixume, suavemente:
- Pobre Sr. Crich! Coitado do Sr. Crich!
- Morreu? - perguntou Gerald em tom áspero.
- Sim, morreu - confirmou a voz branda da enfermeira pousando o olhar no rosto do rapaz. Era nova, bela e estava emocionada. A expressão de Gerald tornou-se estranha, como uma espécie de careta; horrorizado, abandonou o quarto.
Correu a prevenir a mãe. No corredor encontrou-se com Basil, seu irmão.
- Morreu, Basil - disse ele, dominando a custo o tremor da voz; notava-se nele uma alegria inconsciente apesar da emoção com que falava.
- O quê?! - fez Basil, empalidecendo.
Gerald confirmou com a cabeça e seguiu para o quarto da mãe.
Ela estava envolta no roupão cor de púrpura, a coser, vagarosamente. Mirou o filho com os seus olhos azuis, aqueles olhos insubmissos.
- Papai morreu.
- Quem disse?
- Oh, mamãe, basta olhar para ele!
A Senhora Crich largou a costura e levantou-se a custo.
- A senhora vai lá?
- Vou.
Os mais novos já choravam em volta do leito.
- Oh, mamãe! - gritavam as moças, quase histéricas.
A mãe aproximou-se. O morto lá estava no seu repouso derradeiro, como se houvesse adormecido docemente, tão doce e pacificamente como uma criança no sono da inocência. Ainda não esfriara de todo. Christiana ficou a contemplá-lo durante uns momentos, num silêncio pesado e lúgubre.
- Sim - disse ela, como se falasse a testemunhas invisíveis e etéreas. - Sim, já não és deste mundo. - Permaneceu mais um tempo calada, de olhos baixos. Depois continuou: - Pareces belo, como se a vida não te houvesse cansado. Que Deus me dê sorte diferente! Espero então parecer com a minha idade, seja qual for... Belo, belo - repetiu ainda no mesmo tom. - Exatamente como na tua mocidade, com a barba de adolescente. Bondosa alma, a tua! - E, com um soluço na voz, acrescentou: - Nenhum de vocês deve ser como ele, quando morrerem. Não o imitem. - Parecia uma ordem singular, uma ordem insensata emanada do além. Os filhos agruparam-se mais, inconscientemente, ao ouvir aquelas imposições. As faces de Christiana haviam-se ruborizado, e brilhavam, e todo o vulto dela maravilhava e inspirava terror. - Censurem-me, se quiserem, pelo fato de ele aí estar, de estar aí como um rapaz que ainda não tem vinte anos, com a sua barba virginal. Censurem-me, se quiserem. Mas nenhum de vocês compreende. - Emudeceu, mergulhando num silêncio cheio de intensidade. E recomeçou, numa entonação profunda e ardente: - Se eu adivinhasse que algum dos filhos que dei à luz teria, depois de morto, esta aparência, tê-lo-ia estrangulado no berço.
- Não, mamãe - respondeu Gerald, e a sua voz vinha estranha e pura lá do fundo do quarto. - Nós somos diferentes, não a acusamos de nada.
A Senhora Crich voltou-se e fitou-o; em seguida ergueu as mãos num gesto soberbo de louco desespero.
- Rezem! - ordenou com voz portentosa. - Rezem a Deus por si mesmos, pois não têm nenhuma proteção a esperar do pai e da mãe.
Transtornadas, as moças gritaram: - Oh, mamãe! - Ela, entretanto, tinha-se retirado e os irmãos despediram-se uns dos outros, apressadamente.
Quando Gudrun soube da morte de Thomas Crich, sentiu-se tomada de remorso. Tinha evitado Gerald com medo que este a julgasse conquista demasiadamente fácil; e agora, que ele sofria aquele desgosto, não era justo continuar assim tão fria.
No dia seguinte veio, como de costume, ter com Winifred que estimou bastante vê-la e se alegrou por acompanhá-la ao estúdio. A menina havia chorado, e, depois, assustada, refugiara-se para escapar a qualquer acontecimento mais trágico ainda. Ela e Gudrun retomaram o trabalho como usualmente, naquele isolamento do costume, e isso pareceu-lhes imensa felicidade, verdadeiro mundo à parte, depois da confusão e da tristeza que reinavam em casa. Gudrun ficou até tarde. Serviram-lhe o jantar ali mesmo, e ali comeram à vontade, afastadas de todas as outras pessoas.
Gerald apareceu depois do jantar. O vasto anexo estava cheio de sombras e impregnado do aroma do café. Gudrun e Winifred haviam arrastado a mesinha para junto do fogão, lá no fim do quarto; o candeeiro com que iluminava a sala não espalhava muito longe a claridade. Constituíam assim, elas duas, o seu mundo à parte, rodeadas pelas sombras amenas, que atingiam as vigas e barrotes do teto, os bancos e as ferramentas do trabalho.
- Como é confortável aqui - observou Gerald, ao entrar. O lume ardia num fogão baixo, de tijolos; havia um velho tapete turco, de tom azul, sobre o qual pousava a mesa com o candeeiro, revestida de uma toalha azul e branca. Ali estava ainda o resto do jantar; Gudrun fazia o café numa curiosa cafeteira de cobre, enquanto Winifred aquecia um pouco de leite numa caçarola pequena.
- Já tomou café? - perguntou Gudrun ao recém-chegado.
- Já, mas posso repetir.
- Então, tem de beber no copo - interveio Winifred. - Só temos duas xícaras.
- Não tem importância - disse ele, pegando numa cadeira e aproximando-se daquela dupla encantadora. Como lhe pareciam tão felizes, como era bom estar naquela intimidade, envolto pelas sombras familiares! O mundo lá fora, no qual todo o dia Gerald se ocupara dos assuntos do funeral, apagava-se por completo da sua memória. Começava a aspirar o perfume daquela deliciosa magia.
Possuíam meia dúzia de coisas delicadas, duas xícaras encantadoras, vermelho e ouro, um jarrinho preto com pintinhas encamadas e uma interessante máquina de fazer café, sob a qual a chama de álcool ardia muito direita, quase invisível. Notava-se o reflexo de toda aquela riqueza sinistra, da qual Gerald gostaria de evadir-se.
Sentaram-se e Gudrun, amavelmente, começou a servir.
- Quer leite? - indagou muito calma, embora agitasse, num movimento nervoso, o jarro negro salpicado de escarlate. Dominava-se sempre o melhor que podia, mas não deixava de parecer enervada.
- Não, obrigado - respondeu ele.
Ela própria, por deferência, guardou para si o copo de vidro tosco e ofereceu-lhe uma das xícaras. Via-se que queria ser agradável.
- Dê-me o copo, que é tão grosseiro para as suas mãos - Gerald teria preferido ficar com ele e deixá-la, a ela, delicadamente servida. Mas Gudrun não disse mais nada sobre o assunto, contente com aquela disparidade, feliz por se poder humilhar.
- Estão perfeitamente en ménage - tornou ele.
- É verdade. E não estamos em casa para as visitas - acudiu Winifred.
- Nesse caso, sou intruso.
Ao dizer isso, verificou que o seu traje cerimonioso o fazia deslocado. Considerava-se, realmente, um estranho.
Gudrun mostrava-se tranquilo. Não sentia desejos de falar com ele. Ao ponto a que haviam chegado, o melhor ainda era o silêncio ou simples palavras convencionais. Era melhor pôr de lado as conversas sérias. Assim tagarelaram alegre e descuidadamente ate ouvirem o cocheiro, em baixo, conduzir o cavalo gritando "para trás, para trás", no momento de o atrelar à carruagem que devia levar Gudrun. A moça vestiu o agasalho, apertou a mão de Gerald e saiu, sem terem trocado, ao menos um olhar.
O enterro foi uma coisa enfadonha. Mais tarde, ao tomarem chá, as filhas do defunto diziam jumas para as outras: "Tão bom pai para nós!... O melhor pai do mundo..." Ou então: "Não se encontrará facilmente outro homem tão bom como o pai".
Gerald concordou com tudo isto. Era a atitude que mais se lhe ajustava, apesar de convencional. No estado atual das coisas, não lhe repugnava aceitar as convenções da sociedade, achando-as ate naturais. Mas Winifred é que as detestava e por isso se escondia no estúdio, onde dava largas à sua dor, ansiando pela chegada de Gudrun.
Felizmente todos os parentes se ausentaram. Os Crichs nunca passavam muito tempo em casa. Ao jantar, Gerald viu-se completamente só; a própria Winifred seguira para Londres, onde ficaria por alguns dias com uma das irmãs, Laura.
Quando, todavia, se sentiu sem mais ninguém, Gerald achou intolerável a solidão. Os dias passaram. Tinha a sensação de estar suspenso a correntes, à beira de um abismo. E, por mais esforços que fizesse, não conseguia pisar a terra firme nem desembaraçar-se das cadeias que o tolhiam. Estava debruçado no limiar do despenhadeiro, debatendo-se era vão. Pensasse o que pensasse, o abismo continuava ali, por maior convívio que tivesse com amigos ou estranhos, por mais que trabalhasse ou se divertisse. Sempre a visão do precipício insondável, sobre o qual o coração se lhe apertava, prestes a desfalecer! Não via salvação possível, não havia nada a que estender as mãos. Devia permanecer na iminência do sorvedouro, suspenso pelas correntes invisíveis, que eram a sua própria vida física.
A princípio mantivera-se calmo, paciente, aguardando o final das suas apreensões e esperando achar alívio entre os mortais depois de tão intenso sofrimento. Mas aquilo não passou, e pelo contrário, atingiu um estado crítico.
À noite do terceiro dia agravaram-se os seus receios. Não podia tolerar a ideia de continuar tanto tempo assim. Era mais uma noite, mais uma em que ele experimentaria a sensação de estar sobre o abismo, esse poço sem fundo a que o levava a sua existência física. Não podia suportar mais. Tinha frio e medo na alma, um medo tão profundo! Não acreditava já na sua força. Se tombasse no despenhadeiro incomensurável, jamais poderia de lá voltar. Se tal lhe sucedesse, desapareceria para sempre. Forçoso era resistir, e procurar qualquer auxílio. Não tinha confiança nele próprio, entregue dessa maneira a si mesmo! Depois do jantar, face a face com a derradeira impressão de vácuo, Gerald procurou fugir. Calçou botas, enfiou o sobretudo e foi passear na noite escura.
O tempo estava horrível enevoado. Atravessou o bosque, tropeçando aqui e ali, e encaminhou-se para a azenha. Birkin não estava em casa. Bem. Deixá-lo! Gerald sentia-se quase satisfeito. Contornou o moinho, subiu os barrancos ásperos, às cegas, perdido no meio daquela escuridão. Aonde iria agora? Não importava. Arrastar-se-ia de qualquer forma ate encontrar a estrada. À sua frente apareceu outro bosque. O espírito estava perturbado, deixando-o vaguear, a ele, como um autômato. Sem pensamentos, sem sensações, foi andando ao acaso: chegou a uma clareira, procurou, tateando, a paliçada da vedação, tornou a perder-se, e seguiu pelas sebes dos campos até descobrir uma saída.
Por fim alcançou a estrada principal. Tinha-se distraído durante aquela luta cega com o labirinto da noite. Agora, porém, devia tomar qualquer direção. Não sabia sequer onde se encontrava, mas era necessário dirigir-se para alguma parte. Continuar a andar, sempre a andar, não resolvia o problema. Convinha decidir-se.
Estava parado na estrada, que lhe parecia imensa nas densas trevas noturnas, e sem saber orientar-se. Dava-lhe aquilo uma impressão esquisita; o coração palpitava-lhe e envolvia-o; tornou a perder-se, e seguiu pelas sebes dos campos ate descobrir uma saída.
De repente, ouviu passos c avistou uma lanterna, que oscilava. Era um mineiro.
- Sabe me dizer onde vai dar este caminho?
- Sim, senhor. Vai dar em Whatmore.
- Whatmore? Está bem, muito obrigado. Julguei que me tivesse perdido. Boa noite.
- Boa noite - retribuiu o outro, com a sua voz grossa. Gerald já calculava que lugar era aquele. Ao chegar a Whatmore tiraria todas as dúvidas. Ainda bem que se encontrava na estrada principal. E avançou embalado na sua resolução.
Tratava-se então da aldeia de Whatmore? Sim, com a sua "King's Head" e, mais além, os portões do Palácio. Desceu a colina quase a correr. Passou defronte da escola e chegou à igreja de Willey Green. Lá estava o cemitério. Deteve-se.
Pouco depois escalava o muro e seguia pelo meio das sepulturas. Mesmo no escuro podia distinguir a seus pés muitos ramos de flores, já murchas. Abaixou-se. As flores pareceram-lhe frias e viscosas. Rescendia fortemente a crisântemos e a tuberosas fanadas; sentiu a terra, por baixo delas, e arrepiou-se àquele horrível contato úmido e pegajoso. Recuou, cheio de repugnância.
Estava, pois, num lugar conhecido, embora em completa escuridão, ao lado de uma sepultura invisível e recente. Mas o que lhe interessava isso? Nada tinha a fazer ali. Era como se aqueles pedaços de barro, frios, sujos, pegajosos, se lhe aderissem à alma. Não, aquilo era demais!
Voltaria para casa? Nunca! Seria pior. Precisava ir para outro lugar. Mas onde?
Como uma ideia fixa, um projeto germinava em sua mente. Gudrun. Precisava ir ter com ela; era imperioso. Não regressaria a Shortlands sem haver tentado aproximar-se dela, ainda que isso representasse para ele qualquer perigo de vida. Colocou todo o seu ardor nesse projeto.
Partiu, então, em linha reta na direção de Beldover. A noite era tão negra que ninguém o poderia reconhecer. Tinha os pés frios e molhados, e as botas pesadas de lama. Mas continuou sempre, persistente como vento, direto ao seu destino. Julgou, em certa ocasião, ter atingido o lugarejo de Winthorpe, sem saber afinal como tinha ido parar lá; depois como num sonho, viu-se na comprida rua de Beldover, iluminada por lampiões.
Havia um rumor de vozes, vindo de uma porta que se aferrolhava pesadamente. Eram homens que conversavam na sombra da noite. O "Lord Nelson" acabava de fechar e os frequentadores dirigiam-se para suas casas. O melhor seria Gerald perguntar a qualquer deles onde morava Guarun, pois não conhecia as outras ruas.
- Sabe dizer onde é Somerset Drive? - perguntou a um dos homens.
- Como? - perguntou o interpelado.
- Somerset Drive.
- Somerset Drive! Já ouvi falar, mas não sei onde fica. Quem procura?
- O Sr. Brangwen... William Brangwen.
- William Brangwen?
- Professor da escola de Willey Green. Tem uma filha que e também professora.
- Ah! Brangwen! Agora me lembro. Sim, tem duas filhas, ambas as professoras. Ah, sim, é esse mesmo. Mas não sei onde mora. Como é mesmo o nome que disse?
- Somerset Drive - repetiu Gerald, armado de paciência. Conhecia bem o jeito dos seus mineiros.
- Exatamente, Somerset Drive! - disse o outro. - Somerset Drive, sim, senhor. Como é que eu não me lembrei antes. Sim, eu sei, fique descansado.
Voltou-se, meio cambaleante, e apontou para a estrada deserta e escura.
- O senhor vai por ali... vire a primeira esquina... sim, vire primeira à esquerda... daquele lado... passa pela loja de Withamses, o que vende caramelos. .
- Sim - interrompeu Gerald.
- Pois é, senhor. Desça um pouco, passa pela casa do vigia das águas, e já está em Somerset Drive, ou sei lá que raio de nome tem; fica mesmo à direita. Não há senão três casas, só três, parece-me... e tenho quase certeza de que a dele é a última das três... Entendeu?
- Agradeço-lhe muito. Boa noite.
Afastou-se imediatamente, deixando o bêbado parado no meio do caminho.
Seguiu ao longo das lojas e das casas, na maior parte das quais os seus ocupantes já dormiam, e enveredou por uma travessa que ia dar num campo mergulhado em trevas. Afrouxou o passo ao aproximar-se do ponto indicado, indeciso quanto à maneira de agir. Que faria, se a casa estivesse toda às escuras?
Tal não acontecia, porém. Havia uma janela iluminada. Distinguiu vozes e ao mesmo tempo o ranger de uma porta. O seu ouvido apurado reconheceu a entonação de Birkin; os olhos perscrutadores preveniram-no de que ali estava Úrsula, vestida de branco, parada num degrau da escada do jardim. Ela começara a andar e, chegando junto de Birkin, tomou-lhe o braço.
Gerald escondeu-se na sombra, por trás deles. Os dois conversavam animadamente, Birkin em voz baixa, Úrsula naquele tom inconfundível. Gerald, sem perder tempo, meteu-se dentro do jardim.
Defronte da larga janela da sala de jantar, as cortinas estavam corridas. Olhando de onde se encontrava, notou que a porta ficara entreaberta, deixando passar a luz suave e colorida do vestíbulo. Seguiu rápido, sem fazer ruído, pelo passeio adiante e lançou um olhar investigador lá para dentro. Havia quadros e cabeças de veado nas paredes; reparou também numa escada lateral e, muito perto dela, viu aberta a porta da sala de jantar.
Com o coração aos pulos, entrou Gerald nessa antecâmara, cujo chão era coberto de ladrilhos de cores; e examinou às pressas a sala que ficava anexa. Junto do fogão, sentado numa poltrona, Brangwen dormia; tinha apoiado a cabeça no grosso revestimento de carvalho da chaminé. A face rubicunda parecia encolhida, as narinas abertas e os cantos da boca tombados. Podia despertar ao mais leve rumor.
Gerald hesitou um instante. Relanceou a vista pelo corredor que corria na direção contrária e que estava às escuras. Sempre indeciso, subiu os degraus; os sentidos denunciavam-lhe tal sutileza, uma apreensão quase sobrenatural, que parecia ser ele o condutor de todas as coisas.
Chegou ao primeiro andar. Deteve-se ali, com a respiração opressa. Correspondente ao quarto do rés do chão, havia aí também um, com a respectiva porta. Devia ser o da mãe das moças. Sentiu-a andar, deslocando a vela consigo. Naturalmente aguardava que o marido subisse. Gerald observou o corredor, que não estava iluminado.
Depois, silenciosamente, com infinitas precauções, foi andando sempre, tateando a parede com a ponta dos dedos. Encontrou uma porta e ficou um momento de ouvido à escuta. Percebeu que se tratava de duas pessoas, pelo ritmo da respiração. Não era ali, então. Prosseguiu, na ponta dos pés. Mais outra porta entreaberta. O quarto não tinha luz. Estava vazio. Mais adiante viu o banheiro, de onde vinha o cheiro de sabonete e um bafo morno. Por fim, na extremidade, descobriu outro quarto e ouviu alguém ressonando tranquilamente. Devia ser ela.
Com mil cuidados, quase num ritual, Gerald deu volta à maçaneta e abriu uma nesga da porta, que rangeu levemente. Empurrou mais um pouco, e mais ainda. O coração nem mais pulsava; era como se ele criasse à sua volta o silêncio e o esquecimento.
Conseguira entrar. Quem lá estava continuou a dormir placidamente. A escuridão era completa. Gerald foi seguindo, muito devagar, apalpando a parede, ate que chegou à cama e sentiu a respiração de quem dormia. Aproximou-se mais e inclinou-se como se os olhos pudessem descobrir a forma que ali jazia. E então muito perto do seu rosto, percebeu os cabelos escuros e o rosto redondo de um menino. Ficou atordoado.
Endireitou-se, deu meia volta e dirigiu-se à porta, de onde vinha um pouco de claridade. No patamar, hesitou; ainda havia tempo para fugir.
Mas não era esse o seu desejo. Queria levar a cabo o projeto. Tornou a passar, como uma sombra, em frente ao quarto do casal e subiu ao segundo andar. Os degraus estalaram sob o peso. Que aborrecimento! E que fracasso, se por acaso a mãe o apanhasse naquela situação! Se tal acontecesse... Mas não desanimou.
Não acabara ainda de subir, quando sentiu passos apressados no andar de baixo e alguém fechando à chave a porta da rua. Ouviu a voz de Úrsula e depois uma exclamação do pai, que despertara. Gerald correu ate o último andar.
Encontrou uma porta aberta: era outro quarto vazio; seguiu sempre para frente, andando às apalpadelas como um cego nas pontas dos pés. Movia-se, entretanto, com rapidez, com medo que Úrsula viesse. Encontrou mais uma porta. Escutou; os sentidos estavam alertas com uma acuidade sobrenatural. Pareceu-lhe que alguém se remexia na cama. Devia ser Gudrun. Docemente, como se naquele momento só tivesse a sensação tátil, Gerald deu volta à fechadura, que fez leve ruído Então estacou. Sentiu-se um roçar de lençóis. O coração oprimido, tornou a girar o fecho e empurrou a porta com a maior suavidade o que não a impediu de ranger.
- É você, Úrsula? - perguntou a jovem com voz atemorizada. Gerald abriu de vez a porta, muito depressa, e fechou-a atrás de si.
- Úrsula? - repetiu a moça, sempre com voz assustada. Ele percebeu que ela se sentava na cama. Não tardaria a gritar.
- Sou eu - disse o intruso dirigindo-se para ela. - É Gerald.
Ela ficou imóvel no leito. Seu espanto foi tão grande que sobrepujou o medo.
- Gerald! - exclamou ela, profundamente admirada. Mas ele já estava ao lado da cama e, com a mão estendida, tocava-lhe no seio quente, sem o ver. Gudrun recuou.
- Deixe-me acender a luz - pediu a jovem, saltando para o chão.
O homem estava calmo, mas não se movia. Sentiu-a pegar uma caixa de fósforos e riscar um. Surgiu o clarão e Gerald pode vê-la chegar o fogo ao pavio de uma vela.
A luz alastrou-se, depois diminuiu. O quarto recaía no escuro enquanto a vela não ardia bem; depois tornou a clarear.
Gudrun olhou para ele, que se mantinha de pé, do outro lado da cama. Tinha o boné enterrado ate aos olhos e o sobretudo preto abotoado ate ao queixo. O rosto parecia estranho e luminoso, como um ser sobrenatural. Logo que ela o viu, compreendeu o que se passava. Percebeu que havia, naquela situação, uma espécie de fatalidade, que lhe era forçoso aceitar. Todavia, convinha discutir.
- Como entrou? - inquiriu.
- A porta estava aberta... Subi as escadas.
Gudrun observava-o.
- Não fechei a porta - explicou ele. A moça atravessou rapidamente o quarto e deu volta à chave.
Estava extraordinariamente bem, com os olhos admirados, as faces coradas, os cabelos curtos e espessos na nuca e a camisola de dormir branca, tombando-lhe ate aos pés.
Ela notou que as botas de Gerald estavam enlameadas e que a terra úmida lhe chegava a atingir as calças. Imaginou se ele teria deixado vestígios de sua passagem no assoalho da casa. Que estranho vê-lo imóvel ao lado da cama, perto dos lençóis em desordem!
- Qual o motivo desta visita? - perguntou Gudrun fingindo-se zangada.
- Não pude resistir.
A verdade da resposta estampava-se no rosto dele.
- Está todo cheio de lama - comentou ela, repreendendo-o, embora carinhosamente. Gerald olhou para as botas.
- Estava tão escuro que não se via o caminho. - Disse isto bruscamente, com certa arrogância. Seguiu-se um silêncio. Gerald continuava no mesmo lugar, e ela do outro lado da cama revolvida. Ele nem sequer tirara o boné.
- E que pretende de mim? - perguntou Gudrun com ar de desafio.
Gerald desviou a vista e não respondeu. A extrema beleza, a misteriosa atração daquele rosto estranho e distinto, foi a única razão por que Gudrun não o mandou embora. Era, na verdade, um rosto maravilhoso, indecifrável para ela. Fascinava-a com o prestígio da beleza genuína, enfeitiçava-a, avivava-lhe as saudades, fazia-a sofrer.
- Que pretende de mim? - repetiu, afetando indiferença.
Gerald tirou o boné, como quem se desembaraçasse de um pesadelo, e dirigiu-se para ela. Mas não a tocou, vendo-a descalça e de camisola de dormir e reparando como ele próprio estava molhado e coberto de lama. Os olhos de Gudrun, grandes, muito abertos, fitavam-no, como que a insistir na pergunta formulada.
- Eu... vim para cá porque era preciso que viesse. Que tem a censurar-me?
Ela o contemplou admirada, como se não acreditasse no que ouvia.
- Estou no meu direito.
Gerald abanou a cabeça.
- Não é resposta - declarou, com expressão singularmente abstrata.
Tinha um ar ingênuo, quase divino, de simplicidade e franqueza inocentes. Lembrava-lhe, a ela, uma aparição de Hermes na sua mocidade.
- Mas por que veio? - insistiu.
- Porque estava escrito... Se você não vivesse neste mundo eu não viveria também.
Gudrun continuava a contemplá-lo com espanto, impressionada e ele fitava-a também, fixamente, numa estranha imobilidade que se julgaria inumana. A jovem suspirou. Sentia-se perdida sem remissão.
- Quer descalçar as botas? - sugeriu-lhe. Devem estar molhadas.
Gerald colocou então o boné sobre uma cadeira, desabotoou o sobretudo e levantou o queixo para desapertar a camisa. Os cabelos Imos e curtos estavam despenteados; mas parecia tão belo louro como o trigo! Acabou por despir o sobretudo.
Logo a seguir despiu o terno, desfez a gravata e desprendeu os botões dos punhos, em cada um dos quais havia uma pérola. Gudrun olhava-o inquieta, receosa de que alguém ouvisse o estalar da roupa engomada. Soavam para ela como tiros de canhão.
Gerald não precisava de justificação. Gudrun deixou-o tomá-la nos braços, apertá-la contra si. E ele, naquele amplexo, encontrava infinito alívio; espalhava por toda ela o poder tenebroso, corrosivo e mortal que trazia consigo, e readquiria assim a sua verdadeira personalidade. Era extraordinário, semelhante a um milagre, o milagre constantemente renovado da sua vida, em cuja realização se perdia num êxtase de prodígio e de consolo. E ela submissa, recolhia-o como um vaso repleto de amarga bebida fatídica. Nessa crise, não tinha forças para resistir. Havia-a penetrado a terrível e cruciante violência da morte, e comprazia-se arrebatada e submetida, nas agonias de uma sensação aguda e profunda.
Gerald apertou-a com mais força, embebendo-se profundamente naquele calor suave, admiravelmente criador, que lhe entrava nas veias e lhe dava novo alento. Julgava dissolver-se e afundava-se no banho repousante daquela energia reanimadora. Parecia-lhe que o coração da jovem vibrava lá dentro do peito como um segundo sol intangível em cujo brilho e vigor, proporcionando vida, Gerald procurava precipitar-se mais ainda. Todas as suas veias, rasgadas, laceradas, se iam brandamente cicatrizando ao mesmo tempo porque o ardor aí chegava e nelas corria, invisível, qual poderosa emanação solar. O sangue, que se teria suposto esgotado mortalmente, de novo lhe afluía, seguro, opulento, vivificador.
Notava que seus membros se enchiam de seiva nova, que seu corpo se robustecia com ímpeto desconhecido. Tornava a ser forte, vigoroso, amplo. Era como uma criança convalescente, que suavemente se restabelecesse; envolvia-o uma onda de gratidão.
E ela? Gudrun era a água purificadora da sua existência. Adorava-a como mãe e substância de todas as coisas. Ele, filho e homem, recebia esse alimento e se tornava um ser completo, integral. Viera com o corpo quase morto; mas fora envolvido pela doce emanação miraculosa daquele peito de mulher, entornando-se pelo cérebro ressequido e enfermo como linfa saneadora, tal o fluxo calmante da própria vida, fazendo-o perfeito como se houvesse nascido outra vez do ventre materno.
Estivera realmente ferido, esgotado; dir-se-ia que os tecidos do seu cérebro se haviam destruído. Nem tinha reparado até que ponto o fora, qual a profundidade a que haviam penetrado as matérias corrosivas da morte. Agora, porém, que essa linfa apaziguadora se derramava e lhe percorria o corpo, Gerald compreendia o quanto estivera doente, planta queimada interiormente pelo sopro da geada!
Descansou a cabeça entre os seios dela, apertando-os com as mãos e Gudrun, com as suas, chegou-o mais para si, deixando-o repousar tranquilamente. Um calor delicioso circulou por ele como um sono fecundo no seio materno. Ah, se a moça quisesse simplesmente deixar que aquela viva emanação o percorresse, Gerald ficaria curado de todo, restabelecido de vez! Tinha medo, contudo, de que ela retirasse o seu apoio antes que a cura se verificasse. Como uma criança de colo, o homem unia-se fortemente a Gudrun e ela não o podia afastar. Sentia-se gravíssimo para com Deus, como um menino é grato para sua mãe; grato e feliz ate o delírio, à medida que sua integridade se restabelecia, conforme o sono perfeito e inexprimível que o tomava, completo sono de cura e renovação.
Mas Gudrun permanecia desperta, na sua plena consciência. Estava imóvel, com os olhos fixos na obscuridade, enquanto ele adormecia, abraçado a ela.
Julgava ouvir o ruído das vagas rebentando numa praia invisível, longas ondas indolentes e sombrias que rolavam ao ritmo do destino, numa monotonia evoca Dora da eternidade. Este sussurrar constante do mar lento e triste apoderava-se-lhe da vida, e ela ali continuava de olhos abertos e enevoados, contemplando as sombras ao redor. Talvez visse de muito longe, talvez a eternidade, e, no entanto não distinguia nada. Mantinha-se absorta, mas consciente; consciente, porém, de quê?
Aquele estado, depois de haver atingido o máximo limite - quando ela mergulhou na eternidade, suspensa, inteirada de tudo - dissipou-se por fim e deixou-a desassossegada. Estivera tanto tempo imóvel! Mexia-se agora, recuperava a noção da realidade. E queria olhar para ele, observá-lo.
Não se atrevia, porém, a reacender a vela, certa de que Gerald acordaria, e desagradava-lhe perturbá-lo naquele sono tão perfeito que ela, bem sabia, lhe havia provocado.
Desprendeu-se dele cuidadosamente, soerguendo-se para contempla-lo na cama. No quarto, parecia descobrir uma claridade tênue. Podia ver as feições desse homem quieto e adormecido Julgava mesmo vê-lo distintamente, sem embargo da deficiência de luz. Ele, contudo, estava longe, num mundo diverso. Se ela gritasse, ele não a ouviria, tão ausente estava, num mundo distante. Gudrun tinha a impressão de que o via como um seixo afastado, meio submerso pela água límpida, no escuro. E ali ficava ela, entregue à angústia da sua consciência, enquanto ele mergulhava profundamente em outro elemento, descuidado, remoto, vivendo num mundo de claridade e de sombra! Belo, perfeito, longínquo. Jamais se poderiam reunir. Ah, atroz e inumana distância que se interpunha para sempre entre ela e aquele ser!
Nada restava a fazer senão ficar tranquila e sofrer o seu destino. Experimentava, por ele, a maior das ternuras e, ao mesmo tempo certo ciúme, certo ódio obscuro e confuso pelo fato de o ver tão calmo e imune em seu outro universo, enquanto ela estava atormentada, imersa em escuridão, vítima de cruel insônia.
Gudrun, em seu íntimo, sentia-se agitada. Extenuava-a aquela superatividade. O relógio da igreja batia horas que, à sua imaginação, se afiguravam suceder rapidamente. Ouvia-as distintas no meio da sua extrema tensão nervosa. Ele, porém, dormia, como se o momento fosse sempre o mesmo, imutável e estático.
A moça estava fatigadíssima. Contudo, era forçoso continuar naquele estado de excitação violenta; tudo lhe perpassava pela memória: a sua infância, a adolescência, episódios já esquecidos, coisas que não compreendera bem, cujo alcance lhe escapara, acontecidas a ela, à família, às amigas, aos namorados, aos conhecidos, fosse lá quem fosse. Era como se estivesse recolhendo, do fundo mar de sombras, o cabo cintilante das recordações, a puxar uma corda que não tinha fim, que nunca mais acabava, e ela precisava arrastar, retirá-la, fosforescente, das profundidades ilimitadas da lembrança, ate que, sem haver concluído a tarefa, a vencessem a lassidão, a dor e o esgotamento.
Ah, se ao menos pudesse acordar Gerald! A inquietação apoderara-se dela. Quando conseguiria despertá-lo e mandá-lo embora? Quando se atreveria a sacudi-lo? Ei-la de novo entregue à atividade automática da memória, sem esperança de a fazer cessar jamais!
Mas aproximava-se a hora de despertar Gerald. Sena um grande alívio o relógio, lá fora nas trevas, badalara quatro horas. Graças a Deus a noite ia findar. Às cinco tornava-se necessário que ele partisse, para que ela pudesse descansar. Repousaria, então estender-se-ia na cama, retomando a posição costumeira. Agora, naquele momento, opondo-se ao ritmo regular de um sono perfeito, era como uma faca muito aquecida de encontro a uma pedra de afiar. Havia nele qualquer coisa de monstruoso, na sua maneira de estar ali, assim unido, justaposto.
A última hora foi a mais comprida. Contudo, passou. O coração de Gudrun pulou de contentamento. Sim, lá estava batendo, pesada forte, a torre da igreja... Finalmente, depois de uma noite que parecia eternizar-se! Contava as badaladas, uma por uma: "três, quatro, cinco!" Pronto, estava acabado. Parecia retirar um peso enorme de cima.
Levantou-se, curvou-se ternamente sobre ele e beijou-o. Tinha pena de o despertar. Tornou a beijá-lo. Mas Gerald não se mexeu. Coitado, estava tão profundamente adormecido! Que maldade ter de acordá-lo! Deixou-o mais alguns minutos. Entretanto, fazia-se tarde; era preciso fazê-lo partir.
Cheia de ternura, tomou-lhe rosto entre as mãos e beijou-o nos olhos, que se abriram. Gerald ficou a observá-la, sem fazer qualquer movimento. O coração de Gudrun oprimiu-se. Para esconder o rosto daquele olhar espantado, que investigava a penumbra, inclinou-se e beijou-o mais uma vez, murmurando:
- Tem de ir, meu amor. Mas ao dizer isso, sentia-se triste.
Gerald lançou-lhe os braços ao pescoço. A jovem sentiu-se ainda mais angustiada.
- Você precisa ir - repetiu. - Está na hora.
- Que horas são?
Como soava singularmente aquela voz de homem! Gudrun estremeceu. A opressão tornava-se-lhe intolerável.
- Já passa das cinco.
Ele, porém, nada fez senão abraçá-la mais. O coração de Gudrun gemia-lhe no peito, torturado. Desprendeu-se dele à viva força.
- É preciso ir-se embora.
- Só mais um minuto.
Gudrun uniu-se a ele, muito sossegadamente, mas pouco disposta a lhe fazer a vontade.
- Mais um minuto - repetiu Gerald, apertando-a fortemente.
- Não - declarou ela. - Tenho medo, vá!
Havia na entonação da moça um pouco de frieza que o fez obedecer. Ela afastou-se, levantou-se e riscou um fósforo. Estava tudo terminado.
Gerald saltou da cama. Sentia-se quente, cheio de vida e de vigor. Contudo, experimentava um pouco de vergonha e humilhação em se vestir diante de Gudrun, à luz da vela. Era revelar-se expor-se excessivamente, principalmente agora que ela revelava hostilidade. Enfim, coisas difíceis de aceitar. Vestiu-se depressa, sem colocar nem o colarinho nem a gravata. Considerava-se agora uma pessoa completa, perfeita. Gudrun achava esquisito ver um homem vestir-se: camisa ridícula, ridículas calças e suspensórios... Teve uma ideia justificadora:
"Parece um operário que se levanta para ir para o trabalho - pensou. - Suponhamos que sou a mulher dele". Todavia, sentia um mal-estar, espécie de náusea do homem.
Gerald guardou no bolso do sobretudo o colarinho e a gravata. Depois sentou-se e calçou as botas, que estavam molhadas. Mas tinha pressa, e ele, ao menos, sentia-se quente.
- É melhor só calçar as botas lá embaixo - aconselhou ela.
Gerald, imediatamente, tirou as botas e ergueu-se com elas nas mãos. Gudrun calçara chinelas e envergava um roupão que não chegara a abotoar. Estava pronta e olhou para ele: Gerald esperava, com o sobretudo fechado ate o queixo e com o boné na cabeça. As botas pendiam-lhe das mãos. Por instantes, Gudrun sentiu-se tomada pela odiosa fascinação de sempre, que jamais se esgotava nela. Ele tinha o rosto tão ardente, os olhos imensos tão repletos de expressão! Achou-se velha, então, bastante velha... Aproximou-se com ar cansado e beijou-o. Gerald retribuiu-lhe o beijo, rapidamente. Ah, se aquela beleza fatal e sensual, beleza sem significação, não a enfeitiçasse mais, não a subjugasse tanto! Constituía para ela uma espécie de fardo, que a dominava e de que não se podia desvencilhar. Quando o contemplava, quando lhe via as sobrancelhas finas o nariz bem feito e os olhos azuis e indiferentes, Gudrun compreendia que a sua paixão não fora ainda satisfeita e que talvez nunca o viesse a ser. O pior é que, no momento, sentia-se fatigada, com uma sensação dolorosa. Gostaria que ele partisse.
Desceram. Tinham a impressão de que faziam muito ruído. Gerald seguia atrás, e Gudrun, embrulhada no seu roupão verde, levava na mão uma vela acesa. Assustava-a a ideia de despertar a família. Gerald não pensava nisso. Não se importava com o que os outros julgassem, e essa indiferença exasperava-a. Deviam rodear-se de precauções. Convinha não dar escândalo.
Tomaram o caminho da cozinha, que ficara limpa e arrumada como a criada a deixara. Gerald consultou o relógio: cinco horas e vinte minutos! Sentou-se e calçou as botas. Gudrun espiava-o, observando-lhe cada movimento. Desejaria pôr fim àquilo tudo que lhe causava aflição.
Ele se levantou outra vez, e ela destrancou a porta de serviço, investigando a escuridão. A madrugada estava áspera e fria, a aurora não despontava ainda e, num céu indeciso, pairava uma nesga de lua. Gudrun consolou-se com o pensamento de que voltaria para a cama.
- Bem, então adeus - murmurou ele.
- Vou até o portão - disse ela.
Passou à frente para indicar a escada. Chegando lá, parou nos degraus, enquanto Gerald descia.
- Adeus - cochichou a moça.
O homem beijou-a com delicadeza e partiu.
Era um sofrimento ouvir distintamente aquele passo vigoroso trilhando a estrada! E como aquele andar firme lhe revelava um mundo de insensibilidade!
Fechou o portão e voltou para a cama, rápida e silenciosa. Ao ver-se de novo no quarto, com a porta trancada, sã e salva, respirou de alívio, como se descarregasse um grande peso em cima. Aninhou-se entre os lençóis, na cavidade que o corpo de Gerald havia formado e que estava ainda quente como ele deixara. Enervada, cansada, mas apesar de tudo satisfeita, mergulhou muito depressa num sono profundo.
Gerald foi andando veloz na escuridão hostil daquela noite que findava. Não encontrou ninguém. Tinha o espírito perfeitamente calmo e despreocupado, semelhante a uma lagoa tranquila; sentia o corpo ágil, quente, apaziguado. Logo chegou a Shortlands, satisfeito consigo mesmo.

Capítulo XXV
Ser ou não ser casado
A família Brangwen ia deixar Beldover. Tornava-se conveniente que o pai morasse agora na cidade.
Birkin já havia requerido autorização para casar, mas Úrsula não se decidia. Não queria fixar a data definitiva; continuava a hesitar. Havia já três semanas que ela tinha pedido a sua demissão do colégio. O Natal se aproximava.
Gerald aguardava o casamento de Birkin com Úrsula. O caso tinha importância para ele.
- Quem sabe se, em vez de um casamento, serão dois? disse um dia ao amigo.
- Qual é o segundo? - inquiriu este.
- O meu e o de Gudrun - respondeu Gerald com uma piscadela de olhos.
Birkin encarou-o surpreso.
- Está falando sério?
- Sim, que tem isso de estranho? Podíamos casar no mesmo dia que vocês.
- Sem dúvida. Case! Não sabia que estavam tão adiantados.
- Adiantados? - repetiu Gerald, observando o outro e desatando a rir. - Sim, é verdade, estamos nesse ponto.
- Só resta colocá-los numa larga base social e realizar um fim moral elevado - declarou Birkin.
- Tudo isso: largura, altura... e comprimento - replicou Gerald, sempre rindo.
- Muito bem; é uma decisão digna de aplausos, julgo eu. Gerald fitou-o atentamente.
- Por que não se entusiasma mais um pouco? - indagou. - Julgava-o defensor acérrimo do matrimônio.
Birkin encolheu os ombros.
- Defenda-se, o que quiser, até narizes, que os há de várias espécies, achatados, torcidos...
Gerald achou a comparação divertida.
- E todas as espécies de casamentos, torcidos e achatados - observou.
- Isso mesmo.
- E pensa que o meu será dos torcidos? perguntou Gerald pondo a cabeça de lado, com ar zombeteiro.
Chegou a vez de Birkin sorrir.
- Como posso saber? Não se aproveite do meu estilo figurado para me submeter a interrogatórios.
Gerald refletiu uns instantes.
- Em todo caso, gostaria de saber ao certo a sua opinião.
- Acerca do seu casamento, ou do casamento em geral? Para que deseja conhecê-la? Opinião é coisa que não tenho. O casamento legal não me interessa, de modo nenhum. É pura questão de conveniência.
Gerald fitou-o mais uma vez com atenção.
- Acho que é mais do que isso - atalhou muito sério. Por muito enfadonha que seja a respectiva filosofia, em todo o caso... realmente... do ponto de vista de cada um, parece-me que é assunto grave, definitivo...
- Quer dizer que o fato de ir, com uma mulher, perante o registro civil, dá ao casamento aspecto definitivo?
- Se o ato se realiza ate ao fim, acho que é, de certa maneira, coisa irrevogável.
- Concordo - disse Birkin.
- A opinião que se tenha sobre a legitimidade não importa; contudo o fato, em relação aos contraentes, é coisa certa. - Creio que sim, em certas terras.
- O problema se resume em saber se nos devemos casar... Birkin observava-o, curioso, com os olhinhos risonhos.
- Você, Gerald, - disse ele - é tal qual Lord Bacon. Argumenta como um advogado, ou como o Hamlet no ser ou não ser. No seu caso, eu não me comprometeria. Mas vá perguntar isso a Gudrun e não a mim. Não é comigo que você quer casar...
Gerald não prestou atenção ao final do discurso.
- Sim - insinuou - devemos considerar tudo isso com serenidade. É um momento crítico da nossa vida. Chega-se a certa altura em que é preciso enveredar por um caminho ou por outro. O casamento é um desses caminhos.
- E qual é o outro? - acudiu logo Birkin.
Gerald ergueu para ele os seus olhos ardentes, estranhamente persuasivos, que o amigo, todavia, não pôde compreender.
- Não sei explicar - respondeu. - Se o soubesse... - Mexeu com os pés, inquieto, e não acabou a frase.
- Quer dizer que, se conhecesse a alternativa... ? - sugeriu Birkin. - Mas como não a conhece, o matrimônio é um pis aller - Uma situação que se aceita por não haver algo melhor - nota da tradutora).
Gerald dardejou-lhe um olhar fogoso, constrangido.
- A impressão, realmente, é que se trata de um pis aller.
- Então não se case - sentenciou Birkin. - Dir-lhe-ei - prosseguiu - o mesmo que já lhe disse uma vez: o casamento, no seu significado usual, repugna-me. Comparado com ele, o egoisme à deux não é nada. É uma espécie de caçada feita por grupos de dois; o mundo todo aos pares, cada qual na sua casa, tratando da sua vida, cozinhando na intimidade... Nunca vi coisa mais repelente sobre a face da terra.
- Sou da sua opinião - voltou Gerald. - Há nisso muita inferioridade. Mas, como eu dizia, qual será a alternativa?
- É preciso desembaraçarmo-nos deste instinto doméstico, que não é bem um instinto, mas um hábito de covardia. Não devíamos nunca ter um lar.
- Completamente de acordo. Mas não há outra solução.
- É preciso encontrar uma. Creio na união permanente do homem com a mulher. Mudar sempre seria trabalho puramente exaustivo; ora, união apenas sexual entre mulher e homem não é o ponto supremo... Com certeza não é.
- Também acho.
- E é pelo fato de fazerem dessas relações materiais o fim supremo e exclusivo que vemos surgir tanta incompreensão, tanta mesquinhez e tanta insuficiência.
- Perfeitamente - disse Gerald.
- Devia-se apear do pedestal a que a ergueram essa fórmula considerada ideal: o amor no casamento. Pretendo algo mais elevado. Acredito numa união perfeita entre homem e mulher como complemento do matrimônio.
- Não percebo como possa equivaler-se.
- Não é o mesmo: é coisa mais importante, igualmente criadora, igualmente sagrada, se prefere.
Gerald remexia-se, inquieto.
- Bem vê, não posso sentir assim - declarou. - Acho que nada existe de mais forte entre mulher e homem do que o amor sexual. A natureza não estipula bases.
- Pelo contrário, creio que estipula. Nem julgo que possamos ser felizes sem estabelecermos, por nosso lado, as regras que nos competem. Faça por se desembaraçar do exclusivismo do casamento de amor e admita a estima do homem pelo homem, que tanta aversão lhe causa. Assim haveria maior liberdade para toda gente, grande força individual não só para o homem como para a mulher.
- Bem sei - retorquiu Gerald. - Você crê em qualquer coisa nesse gênero. Eu é que não posso conceber nada disso. - Colocou a mão no ombro de Birkin, com uma espécie de simpatia suplicante, enquanto sorria como se houvesse triunfado na discussão. Estava pronto a se deixar condenar: era assim, como uma condenação, que lhe aparecia o casamento. Ele próprio desejava sofrer a pena do matrimônio, como um condenado a trabalhos nas minas que diz adeus à luz do sol e mergulha na terrível atividade subterrânea. Estava disposto a aceitar isso mesmo. O casamento era a penalidade imposta. Queria ser proscrito dessa forma para o subsolo, como uma alma penada que devesse viver para sempre em cativeiro. Não desejava, porém manter afinidades com mais nenhuma outra alma. Não o conseguiria. O casamento não era só unir-se a Gudrun: implicava também a aceitação do mundo tal qual existia. Devia admitir a ordem estabelecida, na qual não tinha confiança, e então retirar-se-ia para debaixo da terra, para sempre. Era esse o seu intento.
Por outro lado, havia a possibilidade de aceitar a aliança com Rupert, ligando-se por laços de pura estima com o homem, e, pela mesma doutrina, com a mulher. Se se comprometesse solenemente com o primeiro, mais tarde estaria apto a fazer o mesmo com uma mulher, não só por meio de casamento legal, mas numa união mística e absoluta.
Contudo, repudiava semelhante entendimento. Havia nele certo torpor, quer derivado de ausência de vontade, que jamais teria possuído, quer por se lhe haver ela atrofiado. Talvez a primeira hipótese. De fato, a proposta de Rupert Birkin entusiasmara-o singularmente. Mas sentia muito prazer em declarar que não aceitava.


Capítulo XXVI
A propósito de uma cadeira
Todas as segundas-feiras, à tarde, realizava-se uma feira de objetos usados no antigo mercado da terra. Úrsula e Birkin foram lá uma vez. Tinham conversado a respeito de móveis e quiseram ver se encontrariam qualquer coisa capaz de ser comprada no meio daquelas pilhas de trastes acumulados na praça.
O velho mercado não era muito vasto: simples quadrado com o chão coberto de pedras de granito, onde habitualmente, junto às paredes, se erguiam os tabuleiros dos vendedores de frutas. Ficava num bairro pobre e rodeavam-no, por um lado, casas em ruínas, de outro, uma fábrica de fiação, extensa fileira de inúmeras janelas oblongas; ao fundo, corria uma rua pavimentada de lajes, onde havia alguns estabelecimentos, e, na última face do quadrado, ficava um edifício do Estado, os banhos públicos, de tijolos novos, rubros e uma torre de relógio. As pessoas que por ali circulavam eram apenas figuras infelizes e sórdidas. O ar parecia impregnado de cheiros fétidos, dando a mesma sensação que se tem nas travessas pobres muito enredadas, cheias de casebres mesquinhos. De vez em quando, diante da fábrica, rodava a custo, rangendo, um grande carro americano, amarelo e cor de chocolate.
Úrsula sentiu arrepios na pele ao ver-se entre a gente do povo, no lugar onde se amontoavam camas velhas, objetos de ferro enferrujados, louça de barro em lotes tristes e conjuntos incríveis de roupa usada. Birkin seguia por aqueles espaços estreitos em que se sobrepunham todas aquelas mercadorias, que ele ia examinando com atenção. Úrsula observava as pessoas.
Contemplava agora uma mulher nova em vésperas de ser mãe; dispunha-se a comprar um colchão e incitava o rapaz que a acompanhava, desatento e abatido, a experimentá-lo também. Parecia tão ativa, preocupada e ansiosa quanto o rapaz se afigurava indiferente e com ar de quem pretende esquivar-se. Iam naturalmente casar por causa daquela criança prestes a vir ao mundo.
Depois de haverem apalpado o colchão, perguntou a freguesa ao homem, que estava sentado num banco em meio das suas mercadorias, qual era o preço que ele pedia. Uma vez informada do custo, comunicou a notícia ao rapaz. Este mostrou-se acanhado; desviou o rosto; sem no entanto mover o resto do corpo e pronunciou qualquer coisa em voz baixa. De novo a mulher, ansiosa e diligente, provou o colchão, fazendo cálculos consigo mesma e regateando com o vendedor desleixado. E, durante todo esse tempo, o rapaz ficou ao lado dela, envergonhado, sem energia, submisso.
- Veja - disse Birkin. - Aqui está uma cadeira bem bonita.
- Linda! - exclamou Úrsula. - Um encanto!
Era uma cadeira de braços, de qualquer madeira vulgar - vidoeiro, provavelmente - mas bastante delicada e graciosa quanto ao estilo; dava pena vê-la ali sobre aquelas pedras miseráveis. Era de forma quadrada, com linhas esbeltas e puras; o espaldar era constituído por quatro tiras de madeira, delgadas, cuja disposição lembrou a Úrsula a das cordas de uma harpa.
- Noutro tempo - observou Birkin - devia ter sido dourada e com assento de palhinha. Pregaram-lhe por cima esse tampo de madeira. Está vendo, aqui está um vestígio de tinta vermelha por baixo do dourado. A base é toda preta, exceto onde o uso pôs à mostra a própria madeira. O que a torna assim atraente é a perfeição de suas linhas. Repare como seguem, como se encontram e se desviam. O pior é o assento de pau, que não lhe pertence, destrói a elegância e a priva da unidade que lhe dava o entrançado da palhinha. Ainda assim, agrada-me...
- E a mim também - disse Úrsula.
- Quanto custa? - perguntou ao vendedor.
- Dez xelins.
- Pode mandar entregar?
Fizeram a compra.
- É tão bonita, tão graciosa! - disse Birkin. - Enternece o coração. - Continuaram o seu caminho entre os montões de coisas velhas. - Minha pátria amada, tinha qualquer coisa para exprimir, quando fizeste esta cadeira!
- E hoje não tem? - perguntou Úrsula. Irritava-se quando ele falava naquele tom.
- Não, não tem. Quando vejo esta cadeira, tão bela e elegante e penso na Inglaterra, ainda que seja a do tempo de Jane Austen!... Havia então pensamentos vivos a desenvolver, e havia prazer em desenvolvê-los... E agora só nos resta pescar, entre o lixo, o que ficou da velha expressão nacional. Não temos, presentemente, originalidade, somos apenas mecanismos sórdidos e grosseiros.
- Não é verdade! - atalhou Úrsula. - Por que você há de exaltar constantemente o passado em desprimor do futuro? Eu, na verdade, não sou muito pela Inglaterra de Jane Austen. Era bastante materialista, se me permite dizer...
- Podia dar-se ao luxo de o ser - contraveio Birkin - porque tinha possibilidades de fazer mais alguma coisa, o que não sucede conosco. Nós somos materialistas pela razão de não termos facilidade de ser de outra maneira. Bem podemos experimentar, mas não conseguimos senão materialismo; ou a mecânica, que é a alma daquele.
Úrsula guardava um silêncio hostil. Não fazia caso mais do que ele estava dizendo. Revoltava-se contra outro pensamento que lhe girava no cérebro.
- Odeio esse passado que você ama. Sinto náuseas. Parece ate que detesto essa cadeira antiga que compramos, apesar de achar bonita; mas não é desta beleza que eu gosto. Preferia que a tivessem destruído, uma vez que passou de época; que não tivesse sobrevivido, dando assim origem a estes seus panegíricos do passado... Estou farta desse passado que você adora.
- Não tanto quanto eu estou farto deste maldito presente - replicou ele.
- Pois é a mesma coisa. Detesto também o presente, mas não me agradaria que o passado o viesse substituir. Não quero a cadeira antiga.
Naquele momento Birkin estava furioso. Olhou para o céu que brilhava sobre a torre do estabelecimento de banhos e sua cólera passou. Começou a rir.
- Muito bem - disse ele. - Desfaçamo-nos desse objeto. Enfastia-me também. De qualquer maneira, não nos podemos continuar a alimentar de velharias, por mais belas que sejam.
- Não podemos - assentiu ela. - Não preciso de antiguidades.
- A verdade é que não necessitamos de móveis de nenhuma espécie - declarou Birkin. - A ideia de uma casa minha, com a respectiva mobília, enfurece-me.
Tal declaração sobressaltou-a por instantes. Mas depois retorquiu:
- A mim também. O caso, porém, é que precisamos viver em qualquer parte.
- Em qualquer parte, não, mas em parte nenhuma. Em nenhum lugar, sim! Não ter pouso definido! Não me falem em residência permanente. Logo que temos um quarto, e que o vemos completo, nosso desejo é fugir dele. Os meus aposentos no moinho estão agora quase prontos, e meu desejo seria lançá-los no fundo do mar; é uma tirania medonha essa do lugar fixo, onde cada peça de mobiliário tem a sua ordem estabelecida.
Úrsula apoiou-se ao braço dele enquanto se afastavam da feira.
- Mas que havemos de fazer? - murmurou ela. - Temos de viver seja lá onde for, e agradam-me coisas belas à minha volta. Aprecio uma espécie de esplendor natural, de magnificência.
- Você não achará nada disso, nem nas casas, nem na mobília, nem sequer nos vestidos. Casas, móveis, roupas, são termos de um mundo velho e mesquinho, da antipática sociedade humana. E pior ainda se você tiver uma residência de estilo Tudor com lindos móveis antigos, que faria perpetuar passado à sua volta. Mas se a casa é moderna e for decorada por Poiret expressamente para nós, é outra a ideia que perpetuamos à nossa volta: igualmente horrível. É tudo patrimônio, tudo são bens que nos atormentam, obrigando-nos à generalização... Devíamos fazer como Rodin e Miguel Ângelo, que deixavam em torno dos vultos esculpidos apenas pedaços de pedra rudes e imperfeitos. Em redor de nós, seguindo o exemplo, devíamos ter somente coisas incompletas, esboçadas, de maneira a não sermos nunca limitados, nem confinados pelo que nos rodeia.
Úrsula parou no meio da rua, meditando.
- Nunca teremos, então, uma casa nossa, uma instalação de verdade?
- Se Deus quiser, neste mundo, não.
- Mas só há este mundo - objetou ela.
Rupert estendeu os braços num gesto de indiferença.
- Entretanto, evitemos possuir seja que objetos forem.
- Você acaba de comprar uma cadeira.
- Direi ao homenzinho que não a quero mais.
Úrsula tornou a refletir. Sua face contraiu-se em um ritus estranho.
- Tem razão - disse ela. - Não precisamos de velharias. Estou farta disso.
- Quanto a mim, não aprecio mais que é moderno - replicou Birkin.
Resolveram voltar.
Em frente a uma pilha de móveis estava casal jovem: a moça que ia ter seu bebê e rapaz acanhado e inexperiente. Ela era loura, atarracada e forte. Ele, de altura mediana, bem constituído; tinha cabelos pretos, caindo sobre a testa. Com a boina enfiada na cabeça, parecia totalmente alheio ao que se passava.
- Vamos oferecê-la a eles? - cochichou Úrsula. - Repare, têm o aspecto de quem anda mobiliando o ninho...
- Nesse caso, não os ajudarei nem incitarei - afirmou Birkin com petulância, tomando logo o partido do rapaz indiferente e bisonho contra a fêmea ativa e procriadora.
- Sim, sim! - exclamou Úrsula. - Ela será ótima para eles. Não há nada melhor!
- Está bem, vá oferecer a cadeira: eu fico observando. Úrsula dirigiu-se, um tanto nervosamente, em direção ao casal, que discutia a compra de um lavatório de ferro; ou melhor, era a mulher quem regateava ao passo que o rapaz, como um prisioneiro, lançava olhares furtivos e desconfiados sobre o objeto abominável.
- Compramos uma cadeira - começou Úrsula - mas não a queremos. Querem-na para vocês? Teríamos muito gosto em que aceitasse.
Os dois olharam admirados, custando a acreditar que a conversa fosse com eles.
- Importa-se de ficar com ela? - prosseguiu Úrsula. - É realmente muito bonita, mas... mas... - E exibiu o seu melhor sorriso.
Os noivos limitaram-se a observar, trocando olhares significativos, para saberem que resposta deviam dar. O rapaz procurava apagar-se o mais possível; o seu desejo seria escapulir como um rato.
- Temos muito gosto em oferecê-la - continuou Úrsula, sempre confusa e receosa. O rapaz, no entanto, inspirava-lhe simpatia. Era silencioso, descuidado, pouco masculino, singularmente delicado, de pura raça, em certo sentido. Era, enfim, tímido, esperto, sutil. As pestanas, longas e finas, sombreavam-lhe os olhos, nos quais não existiam pensamentos apenas uma espécie de instinto terrível, lá no interior, vítreos e melancólicos. Tanto as sobrancelhas escuras como os estantes traços da fisionomia obedeciam a um desenho corresimo. Assim tão bem dotado, devia ser, para a mulher, um amante funesto, mas admirável. Sob as calças disformes adiavam-se-lhe as pernas finas e ágeis; dir-se-ia haver, em volta alguma coisa da esperteza, da cautela, do aveludado de ratinho de olhos pretos, silencioso.
Úrsula dirigia-se a ele, com um leve calafrio de sedução. A mulher encarava-o hostilmente. A professora repetiu, mais uma vez:
- Não querem a cadeira?
O rapaz olhou para ela de soslaio, admirando-a, mas com ar distante, quase insolente. A mulher empertigou-se. Tinha o aspecto de uma vendedora de hortaliças. Não percebia quais eram as intenções da doadora e mantinha-se de prevenção. Birkin aproximou-se sorrindo perversamente ao ver Úrsula confusa e asseada.
- Então, o que há? - perguntou ele, jovial. Tinha os olhos semicerrados opressão denunciava algo de misterioso, igual à que se nota o parzinho de noivos. O rapazola inclinou a cabeça para Úrsula, e disse com certo calor, amável:
- Que é que ela quer, hein? - Seus lábios arquearam-se em um sorriso muito especial.
Birkin olhou para ele, mirando-o por baixo das pálpebras descidas, ironicamente.
- Dar-lhe uma cadeira... aquela, que tem um letreiro amarrado - disse para o outro, apontando-lhe o móvel.
O rapaz olhou para a cadeira. Notava-se entre os dois homens certa camaradagem e compreensão.
- Por que é que ela nos quer oferecer? - perguntou o primeiro em tom de familiaridade que melindrou Úrsula.
- Pensei que talvez gostassem... É uma cadeira tão bonita! Comprei-a, mas não a quero mais. Não é obrigado a aceitá-la, quanto a isso, fique sossegado... - explicou Birkin, sempre sorridente.
O rapaz lançou-lhe um olhar meio formalizado, meio agradecido.
- Se a compraram, por que razão não a querem? - interveio a mulher, friamente. - Será que a observaram melhor e viram que não serve? Aposto que desconfiam de que tenha alguma coisa lá por dentro.
Ao dizer isto, contemplava Úrsula com admiração mesclada de ressentimento.
- Não pensei nisso - declarou Birkin. - Mas vejam, a madeira está em bom estado...
- Aí está - atalhou Úrsula, com a face risonha, fazendo-se amável. - Vamo-nos casar e pensamos comprar alguns móveis. Mas agora decidimos, neste momento mesmo, desistir da mobília e irmos para o estrangeiro.
A outra, moça saudável, de boas cores, examinou o rosto delicado de Úrsula. Apreciavam-se reciprocamente. O noivo daquela mantinha-se de parte, alheio ao tempo, inexpressivo, com a sombra negra do bigodinho desenhando-lhe a boca impassível, sempre abstrato, mera presença inofensiva, como a de qualquer objeto.
- Essas pessoas da alta roda são engraçadas - comentou a mulher, voltando-se para o rapaz; este nem olhou para ela, limitando-se a sorrir com a parte inferior da fisionomia e deitando a cabeça de lado, num gesto irônico de concordância. Os olhos conservavam-se na mesma, vítreos e melancólicos.
- Sai caro mudar de ideias - observou ele, numa voz estranhamente velada.
- Perco apenas dez xelins - esclareceu Birkin.
O rapaz encarou-o, sorrindo contrafeito, acanhado, pouco à vontade.
- É mais barato então do que o divórcio...
- Ainda não estamos casados - elucidou o outro.
- Nós também ainda não - acudiu a robusta jovem. - Casamo-nos qualquer sábado desses...
Lançou ao noivo uma olhadela decidida e protetora, ao mesmo tempo autoritária e carinhosa. Ele riu-se, com um risinho abafado e deu-lhe as costas. Estava nas mãos dela, evidentemente, mas fazia por se defender. Vinham-lhe pruridos de orgulho e esquivava-se para demonstrá-lo.
- Que sejam felizes! - disse Birkin.
- O mesmo desejo aos senhores - volveu a mulher. Depois, numa tentativa audaciosa, perguntou:
- Quando é o casamento? Birkin voltou-se para Úrsula.
- Ela é quem decide - respondeu. - Iremos ao cartório assim que ela estiver pronta.
Úrsula achou graça e sentiu-se confusa e embaraçada.
- Não tenha pressa - acudiu o rapazinho, deixando ver os dentes, muito risonho.
- Não se preocupem com isso - interveio outra vez a moça.
- Também para morrer há tempo. E ficarão casados por muitos anos!
O noivo desviou-se, como que magoado com aquelas palavras.
- Quanto mais durar, melhor. Tenhamos esperança - disse Birkin.
- É isso mesmo, senhor - afirmou o rapaz, com acentuada admiração. - Aproveitar enquanto há saúde. Depois do burro morto, nada se pode fazer.
- A não ser que ele se finja de morto - acudiu a mulher, olhando para o noivo, com ternura, e, simultaneamente, autoridade.
- Faz diferença, é claro - replicou ele.
- E a respeito da cadeira? - perguntou Birkin
- Aceitamos! - declarou a mulher.
Aproximaram-se do vendedor. O rapazinho manhoso, com seus belos ares, deixou-se ficar, entretanto, mais atrás.
- Cá está - explicou Birkin. - Levam-na consigo, ou muda-se o endereço?
- Fred pode com ela. Que faça ao menos isso em benefício da nossa casa.
- Vai ser muito útil - disse Fred em tom sarcástico, ao pegar a cadeira. Tinha movimentos elegantes, mas era servil, cheio de manha. - Mamãe vai gostar - observou ele. - Só lhe falta uma almofada. - Colocou-a no chão de pedras e esperou.
- Não a acha bonita? - perguntou Úrsula.
- Sim, senhora - respondeu a noiva.
- Sente-se aqui, para ver se se arrepende da oferta que fez - lembrou o rapaz.
Úrsula obedeceu e sentou-se, mesmo ali no meio da feira.
- Confortabilíssima - declarou. - Mas um tanto dura. Experimente. - Convidou o homem a sentar-se. Este, porém, relanceou-lhe um olhar envergonhado, pondo-se de lado, sem jeito, e tentando esquivar-se como um ratinho.
- Não o estrague com mimos - disse a moça. - Não está habituado a poltronas.
Sempre desviando o olhar, respondeu-lhe aquele, em tom de brincadeira:
- Às minhas só faltam os pés.
Separaram-se. A noiva manifestou o seu agradecimento pelo presente.
- Muito obrigada pela cadeira. Há de durar muito.
- Vamos guardá-la como enfeite - completou o rapaz.
- Boa tarde! Boa tarde! - disseram Úrsula e Birkin.
- Felicidades para ambos! - respondeu o rapaz, evitando o olhar de Birkin na ocasião em que este voltara a cabeça para ele.
Os dois casais seguiram cada qual o seu caminho. Úrsula tomou o braço de Rupert. Quando já iam a certa distancia, Úrsula olhou para trás e descobriu os noivos, ela grávida e vagarosa andando ao lado dele. As calças do rapaz desciam-lhe aos calcanhares; seguia como quem tem vontade de se esconder, sofrendo no seu orgulho por ser obrigado a carregar com a cadeira, que segurava pelo espaldar, enquanto os quatro pezinhos delgados se balançavam a pouca distância do chão, com perigo de se estragarem. E, contudo, lá ia ele insubmisso e independente como um rato ligeiro e esperto. Belo à sua maneira, um tanto singular, mas, ao mesmo tempo, repulsivo.
- Que casal estranho! - murmurou Úrsula.
- Filhos dos homens - elucidou Rupert. - Lembram-me Jesus quando disse: "Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra.
- Mas estes não são mansos - objetou Úrsula. - Não sei bem por que, mas são.
Esperaram o ônibus. A moça preferiu ir na parte de cima para contemplar a cidade. O crepúsculo principiava a descer sobre as casas apinhadas.
- E herdarão a terra?
- Sim, eles só.
- E nós, então, o que havemos de fazer? - perguntou ela. - Não somos iguais a eles, não é verdade?
- Decerto. Teremos de viver nos buracos que nos deixarem.
- É horrível! declarou Úrsula. - Não quero viver assim.
- Não se aflija. São filhos dos homens, preferem os mercados e as esquinas das ruas. Restam devolutos imensos buracos para nós.
- O mundo inteiro...
- Isso não, mas sempre sobra algum espaço.
O ônibus subia lentamente a colina, onde o medonho conjunto de habitações, de um tom acinzentado, se assemelhava a uma visão infernal, irritante e angulosa. Começaram a observar. O sol morria no horizonte, vermelho de furor. Tudo parecia triste, encolhido, sufocante, sugerindo o fim do mundo.
- Nada disso me interessa - proferiu Úrsula, olhando para o cenário repelente. - Não me diz respeito.
- Sem dúvida - replicou Rupert, tomando-lhe a mão. - Não é necessário ver. Cada qual segue o seu caminho. No meu há sol e há espaço...
- Está dizendo a verdade, meu amor? - Uniu-se mais a ele, enquanto os outros passageiros do carro os fitavam com estupefação.
- Erraremos sobre a face da terra - volveu Birkin. - Veremos outras coisas no mundo, diferentes desta paisagem.
Ficaram calados por muito tempo. Úrsula meditava e seu rosto se tornara radiante como o ouro.
- Não preciso herdar os bens da terra - disse ela. - Nem quero nada.
Rupert apertou-lhe mais a mão.
- Nem eu. Quero ser deserdado.
Úrsula premia-lhe fortemente os dedos.
- Não nos incomodaremos com coisa alguma - sentenciou a moça.
Rupert, muito calmo, principiou a rir.
- Casaremos e não daremos importância aos demais - prosseguiu ela.
Ele continuava a rir.
- E uma das maneiras de nos livrarmos de tudo é casar - acrescentou Úrsula.
- E aceitar um mundo inteirinho - atalhou Rupert.
- Sim, porém um mundo diferente - replicou a moça, satisfeita.
- Mas... Gerald e Gudrun?
- Que fiquem, se quiserem. Não nos incomodaremos com isso. É impossível modificá-los.
- Sim, nem temos o direito de intervir, mesmo com a melhor das intenções...
- Você seria capaz de tentar? - perguntou a moça.
- Talvez. Mas por que é que o desejo, a ele, livre, se a natureza não o talhou para tal?
Úrsula refletiu alguns instantes.
- De qualquer maneira, não podemos fazê-los felizes. Que o sejam, mas à sua custa.
- Bem sei. Todavia, precisamos de outras pessoas, junto de nós...
- Por quê?
- Não sei. - Rupert parecia embaraçado. - Desejamos sempre ter amigos...
- Mas por quê? - insistiu ela. - Que necessidade temos de outras pessoas? Não nos bastamos a nós mesmos?
Aquela teima espicaçava-o. Birkin tornou-se carrancudo.
- Só existimos nós dois na terra? - inquiriu nervoso.
- Sim, Rupert. Para que mais gente? Se alguém quiser aproximar-se, deixá-lo vir. Mas não é preciso correr atrás dos outros.
Birkin permanecia ansioso e descontente.
- Veja - disse então. Eu não concebo que sejamos realmente felizes senão em companhia de meia dúzia de pessoas... Um pouco de liberdade, no meio de um grupo...
Úrsula voltou a refletir.
- De fato, isso é necessário. Mas que aconteça por si mesmo, e não pela nossa vontade. Você tem sempre o ar de quem está querendo obrigar as plantas a crescer. Se os outros simpatizarem conosco, está bem; mas não os obriguemos.
- Bem sei - concordou ele - Contudo, pode-se dar uns passos nesse sentido. Ou devemos proceder como se estivéssemos sós no mundo, como se fôssemos os únicos habitantes do planeta?
- Você tem a mim - redarguiu ela. - Para que mais? Por que obrigar os outros a concordar com você? Não pode ficar isolado, como tanto preconiza? Quer forçar Gerald com ameaças, como já fez a Hermione? Aprenda a viver só. É horrível da sua parte. Você me tem, e, no entanto, pretende obrigar os outros a sentirem estima por você! Quando, afinal, não tem necessidade da afeição dessa gente...
Birkin ficara deveras perplexo com este discurso.
- Pensa assim? - replicou. - É um problema que eu não sei resolver. Compreendo que desejo ter com você uma união perfeita e completa e estamos prestes a consegui-la. Mas, fora isso? Quero manter com Gerald uma amizade definitiva, quase extra-humana, uma amizade suprema. Ou não quero?
Úrsula contemplou-o longamente, com os olhos brilhantes e admirados. Mas não deu resposta.


Capítulo XXVII
Batendo as asas
Naquela noite, Úrsula regressara a casa com os olhos brilhantes, diferente do que costumava ser, irritando com isso os demais membros da família. O pai viera cear, depois das aulas noturnas, cansado do trabalho e do trajeto. Gudrun lia e a mãe conservava-se silenciosa.
De repente, em voz bem timbrada, a mais velha das irmãs declarou:
- Rupert e eu vamos casar amanhã.
O pai olhou, colérico.
- O quê? - exclamou.
- Amanhã? - perguntou Gudrun.
- Que ideia é essa? - quis saber a mãe.
Úrsula, porém, limitou-se a sorrir, encantada consigo mesma, e não deu resposta.
- Casar-se amanhã! - tornou o pai, indignado. - Que é que está dizendo?
- Sim, senhor. Por que não? - Estas simples palavras tiveram o poder de enfurecê-lo. - Temos tudo pronto. Iremos ao Registro Civil.
Houve um silêncio de segundos na sala, depois daquela declaração feita com tanta naturalidade.
- Isso é verdade, Úrsula? - indagou a irmã.
- Pode-se saber por que guardou segredo? - interrogou a mãe, cheia de dignidade.
- Não houve segredo nenhum. Todos sabiam.
- Quem é que sabia? - gritou o pai. - Quem sabia? Que quer dizer com todos sabiam?
Assumira uma das suas atitudes de ira brutal, e a moça colocou-se logo em guarda.
- Claro que o senhor estava a par. Não ignorava que nos iríamos casar.
Houve uma pausa perigosa.
- Diz que eu sabia que vocês iam casar? Como iria saber? Quem pode saber jamais o que você pensa fazer, minha sonsa?
- O pai! - interveio Gudrun, em tom de censura, corando intensamente. Depois, em voz mais calma e afável, como para lembrar à irmã que devia condescender, perguntou-lhe: - Não será uma resolução um tanto impensada?
- Pelo contrário - objetou a outra, com a mesma jovialidade agressiva. - Há muitas semanas que ele espera o meu consentimento, e já tratou ate dos papéis. Eu é que não me tinha ainda resolvido. Acabo de o fazer. Que tem isso de censurável?
- Nada, decerto - respondeu Gudrun, porém de uma forma ainda meio repreensiva. - Você é senhora das suas ações.
- Não tinha ainda resolvido! É isso que importa, não é? Tomar uma resolução! - Brangwen dizia isto imitando a voz da filha, de maneira agressiva. - Você e só você!
Úrsula empertigou-se, ergueu o peito e nos olhos fuzilaram-lhe clarões dourados, assustadores.
- Sirvo de alguma coisa! - declarou, ofendida e penalizada. - Sei, no entanto, que para os outros não represento nada. O pai só trata de me repreender, nunca se preocupa com a minha felicidade.
Brangwen curvara-se para ela, estendendo-lhe o rosto congestionado.
- Úrsula! - acudiu a mãe. - O que é que está dizendo? Cale-se, por favor!
A moça voltou-se logo, de olhar coruscante.
- Não, não me calo. Não me calo nem me deixo espezinhar assim. Que importa que eu me case amanhã ou depois? Que lhes interessa isso? O assunto não diz respeito a mais ninguém, só a mim.
O pai continuava em guarda, como um gato pronto a investir.
- Não me diz respeito? - repetiu ele, chegando-se mais para o lado da filha, que recuou.
- É claro que não! - replicou ela, trêmula, mas inflexível.
- Com que então, o que você faz não me interessa? - a voz de Brangwen alcançara seu mais alto diapasão.
Gudrun e a mãe olharam-no como que hipnotizadas.
- Não! - balbuciou Úrsula. O pai estava muito junto dela. - O que o senhor quer é apenas...
Interrompeu-se, reconhecendo que era arriscado o que ia dizer. Brangwen estava pronto, com os músculos retesados.
- O quê? - perguntou, desafiando-a.
- Intimidar-me!
Mal tinha proferido isto e já a mão do pai, estampando-se-lhe no rosto, a mandava de encontro à porta.
- Papai! - exclamou Gudrun em altos brados. - É incrível!
Brangwen ficou petrificado. Úrsula endireitou-se, apoiando-se, com a mão, ao fecho da porta. Recompunha-se lentamente. O pai estava imóvel.
- Sim, senhor - disse ela, com os olhos brilhantes de lágrimas, erguendo a cabeça com ar atrevido.
- O que tem sido o seu amor paternal? Como se tem manifestado? Brutalidades, recusas, eis tudo!
O homem cresceu de novo para a moça com um ar assustador, de punho cerrado e expressão sanguinária. Ela, porém, célere como o relâmpago, abriu a porta e ouviram-na depois subir os degraus da escada.
Brangwen deteve-se uns momentos olhando para a entrada. Então como um animal vencido, deu meia volta e veio sentar-se junto ao fogo.
Gudrun estava lívida. Foi a mãe quem rompeu o silêncio intenso que se fizera, declarando furiosa e friamente:
- É melhor não fazer caso do que ela diz!
Recaíram no mutismo, cada qual seguindo o curso dos seus pensamentos e preocupações.
Abriu-se de repente a porta. Era Úrsula que reaparecia, de chapéu, casaco e maleta nas mãos.
- Adeus! - exclamou em tom decidido, exasperante, mas ao mesmo tempo irônico. - Vou-me embora.
No mesmo instante tornou a fechar a porta; ouviram depois ranger a de fora e os passos da moça, ligeiros, na calçada do quintal. Na casa reinou um silêncio de morte.
Úrsula foi direto à estação, andando como se tivesse asas nos pés. Não havia trem e teve de ir tomá-lo no entroncamento. Caminhando no escuro, sentiu vontade de chorar e derramou lágrimas amargas, com o coração ferido, experimentando temores infantis, e assim todo o percurso, mesmo já dentro da carruagem. O tempo decorria sem que ela lhe prestasse atenção, alheia por completo, sem saber onde se encontrava nem o que lhe sucedera. O pranto subia-lhe das profundezas insondáveis do desespero, desgosto imenso, terrível ansiedade como a das crianças a quem o choro não extenua.
A voz, contudo, recuperou a frescura quando perguntou à senhoria de Birkin, à porta do moinho:
- Boa noite! O Sr. Birkin está? Posso falar com ele?
- Sim, senhora, ele está no escritório.
Úrsula caminhou atrás da mulher. A porta do escritório estava aberta e Birkin ouvira-lhe a voz.
- Olá! - exclamou ele, surpreendido de a ver ali com a mala na mão e, no rosto, vestígios de lágrimas. Todavia, seu rosto estava tranquilo como o de uma criança.
- Devo estar horrível! - disse ela, recuando.
- Não. Por quê? Entre. - Pegou a maleta e os dois entraram na sala.
Lá chegados, os lábios da jovem começaram a tremer, como uma criança que se recorda do que lhe aconteceu. As lágrimas irromperam outra vez.
- Que foi? - repetiu ele logo que a noiva se tranquilizou um pouco. Úrsula, porém, apoiava-se com força ao ombro de Birkin, que esperava silencioso.
- Que foi? - repetiu ele logo que a moça se tranquilizou um pouco. Úrsula, porém, apertava-se ao ombro dele, como se não quisesse responder.
- Preciso saber o que aconteceu...
Ela se desviou dele, enxugou os olhos e foi sentar-se numa cadeira.
- Meu pai bateu-me - anunciou então, aconchegando-se como um passarinho enovelado. Os olhos cintilavam-lhe.
- Por quê?
Úrsula desviou os olhos, sem responder.
- Por quê? - insistiu Birkin com voz estranha, penetrante, persuasiva.
Ela o enfrentou desta vez, numa atitude de desafio.
- Porque eu lhe disse que nos casávamos amanhã.
- Então bateu em você?
Ela tornou a fazer beicinho, lembrando-se da cena em casa e as lágrimas assomaram-lhe de novo aos olhos.
- Declarei-lhe que o assunto não lhe dizia respeito, e, de fato, ele pouco se importa com estas coisas. O que o melindra é eu não fazer caso dos seus ares imperiosos. - Com os soluços, a boca torcia-se enquanto falava e aquilo era tão infantil que dava vontade de rir. Contudo, tratava-se de um conflito mortal para ela, algo a ferira profundamente.
- Não é tanto assim - atalhou ele.
- É sim, é sim! - soluçava ela. - Não quero ver-lhe expansões de amor paternal, que ele não tem, não tem!
Rupert ficou calado. Úrsula comovia-o profundamente.
- Você não o devia ter irritado - disse, por fim, muito tranquilo.
- E eu que fui tão sua amiga! Gostei sempre de papai, e ele me paga desta maneira...
- Isso é o que se chama amor contrariado... Não se importe, tudo acabará bem. Não há nada irremediável.
- Sim - choramingava ela. - É... - Por quê?
- Nunca mais o verei.
- Por enquanto, não. Mas cale-se. Você tinha mesmo que romper com ele, pronto. Agora não chore mais.
Aproximou-se dela e beijou-a nos cabelos finos e leves e acariciou-lhe meigamente as faces molhadas.
- Não chore - repetiu. - Não chore.
Com a cabeça da jovem apertada contra o peito, muito apertada e quieta, esperou.
Ela se acalmou, pouco a pouco. Olhou para ele, com seus olhos grandes e assustados.
- Não está zangado comigo? - inquiriu.
- Zangado? - O olhar sombrio e fixo de Rupert impressionava-a e não a deixava à vontade.
- Está contrariado por que eu vim para cá? - perguntou ela, perturbada agora pela ideia de ter fugido de casa.
- Não - respondeu ele. - Preferia que não tivesse havido essa cena violenta e desagradável; mas era, decerto, inevitável...
Úrsula contemplava-o em silêncio. Rupert parecia tão mortificado!
- Onde é que vou ficar? - perguntou ela, sentindo-se envergonhada.
Birkin refletiu alguns instantes.
- Aqui, comigo. Estamos tão casados hoje como estaremos amanhã.
- Mas...
- Vou avisar a Senhora Varley. Não se preocupe.
Birkin continuava a fitá-la. Úrsula sentia aqueles olhos sombrios constantemente dirigidos para ela. Aquilo impressionava-a. Com a mão nervosa, afastou os cabelos que lhe pendiam para a testa.
- Pareço muito feia? - perguntou, enquanto se assoava. O rosto de Birkin clareou-se num sorriso.
- Não, felizmente... - respondeu.
Levantou-se e tomou-a nos braços, como a uma coisa que lhe pertencia. Úrsula mostrava-se tão terna e bela que Rupert não se contentava com vê-la; era forçoso escondê-la dentro de si.
Agora, com as faces banhadas pelas lágrimas, parecia tenra e frágil como uma flor desabrochada, flor fresca, tornada perfeita pela luz interior, e Birkin não a podia sequer contemplar; queria ocultá-la imediatamente de encontro ao peito, cobrir os olhos unindo-os ao corpo dela. Aquela mulher possuía a mais completa inocência da criação, algo de translúcido e simples, espécie de flor radiante, deslumbradora, aberta nesse momento para exibir o seu recente esplendor. Era tão nova, de uma luminosidade que maravilhava, sem uma sombra sequer! Ele se julgava tão velho, tão cansado de recordações tenebrosas! A alma dela, juvenil, indefinida, mirando-se no invisível; e a de Birkin, escura, nublada, com uma esperança tão pequenina como um grão de mostarda! Mas esta sementinha que vivia ainda nele casava-se com a pureza dela.
- Amo-a! - disse Birkin, num murmúrio, beijando-a, tremendo de ansiedade, como alguém que houvesse renascido para uma confiança maior do que todos os limites da morte.
Úrsula não sabia o que isso representava para ele, o que significava ao certo aquela frase tão curta. Como uma criança, desejava outras provas, exigia afirmações concretas; tudo a deixava indecisa, queria revelações mais concludentes.
Mas aquela gratidão apaixonada com que ele a recebia na sua alma, a alegria suprema e indiscutível de se sentir vivo e apto a se unir com ela (apesar de tão próximo da morte, tão perto de se extinguir com o resto da sua raça, resvalando para o abismo) eram coisas que a moça não podia compreender. Rupert adorava-a como a velhice adora a juventude; glorificava-se pela razão de que, mercê do seu derradeiro clarão de fé, se convertia também em jovem como ela, e se tornava seu digno companheiro. O casamento trazia-lhe a ressurreição e a vida.
Úrsula não podia adivinhar tudo isso. Exigia que ele fizesse muito caso dela, pretendia ser adorada. Entre os dois havia infinitas distâncias de silêncio. Como lhe falaria, a ela, da imanência da sua beleza, que não residia na forma nem no peso nem na cor, mas em qualquer coisa mais, para sua estranha luz dourada?! E como saberia ele próprio em que consistia aos seus olhos, a graça daquela mulher? Dizia: "O teu nariz e belo, o teu queixo é adorável", mas estas frases soavam falso e ela ficava decepcionada, ressentida. Mesmo quando Birkin, balbuciando palavras sinceras, lhe dizia "meu amor, meu amor, ainda isso não era inteira realidade. Existia algo para além do amor, a satisfação de se ultrapassar a si mesmo, de transcender os limites da vida humana. Como podia Rupert proferir o pronome "eu", quando, nele, se revelava um ser novo e desconhecido, que já não tinha nada da sua pessoa? Esse eu , velha expressão decrépita, era uma fórmula sem sentido.
Nessa felicidade superior e tão diversa, paz que se sobrepunha a todas as coisas, não havia já nem "eu" nem "você", mas sim uma terceira e incompreensível maravilha, maravilha que insistia em existir, não como indivíduo, mas com a reunião, dele e dela, num só e único ente, unidade paradisíaca nascida daquela dualidade. Quem poderá dizer "amo-te" depois de haver cessado de existir e haver cessado a pessoa a quem a frase e dirigida? Ambos se sentiam elevados e transpostos a uma nova individualidade onde tudo era silêncio, pois nada tinham que responder, tudo era único e perfeito. As palavras são trocadas entre dois seres destacados um do outro; mas, numa unidade absoluta, reina apenas o silêncio da bem-aventurança.
Casaram-se no dia seguinte, perante a lei; Úrsula, seguindo o conselho do marido, escreveu à mãe e ao pai. A primeira respondeu-lhe, o segundo, não.
Não voltou mais à escola. Ficou vivendo no moinho, nos aposentos de Birkin e acompanhou-o por toda a parte. Não mantinha contato com mais ninguém, além de Gudrun e Gerald. Tudo para ela era estranho e maravilhoso, como se a aurora acabasse de raiar.
Certa vez, Gerald conversava com ela no escritório confortável da casa. Rupert ainda não tinha regressado.
- Sente-se feliz? - perguntou-lhe Gerald, sorridente.
- Muito! - respondeu Úrsula, procurando, contudo, não demonstrar toda a sua alegria.
- Nota-se.
- Verdade? - perguntou ela, surpresa.
Gerald mirou-a com risonha expressão comunicativa.
- Sem a menor dúvida...
Ela estava satisfeita. Refletiu uns instantes.
- Dá para perceber se Rupert é tão feliz como eu?
Gerald baixou os olhos.
- Decerto - replicou.
- Com certeza?
- Com certeza.
Gerald calou-se, como se houvesse falado de uma coisa sobre a qual devia ter feito silêncio. Parecia entristecido.
Úrsula era muito sensível. Formulou-lhe a pergunta que ele desejava:
- Por que motivo não se sente feliz como nós? Podia estar também...
Gerald não respondeu logo. Depois, perguntou:
- Com a Gudrun?
- Sim - exclamou ela, de olhos brilhantes. Havia naquele "sim" algo de forçado, exagerado.
- Acha que sua irmã me aceitará e que seríamos felizes os dois?
- Estou convencida disso.
Encarava-o satisfeita, embora, no fundo da sua alma, percebesse que tudo aquilo não era natural.
- Fico contente só de pensar nessa ideia!
Gerald sorriu.
- Por que fica tão contente?
- Por causa dela. Estou certa de que você seria... de que você é o marido que lhe convém.
- E será ela da mesma opinião?
- É - respondeu prontamente.
Depois, tendo meditado um momento, perguntou-lhe um tanto contrafeita:
- Gudrun não é assim tão simples, não acha? Ninguém a conhecerá em cinco minutos; não é como eu. - Disse isto e riu, com o seu rosto franco, aberto, cheio de vida.
- Parece que ela não é muito parecida com você - disse Gerald.
Úrsula franziu a testa.
- Assemelha-se em muitas coisas. Mas nunca sei como reagirá em qualquer assunto fora da rotina.
- Ah! - fez Gerald. Calou-se por uns segundos. Depois, tímida e cautelosamente, declarou: - Tencionava convidá-la a ir passear comigo, pelo Natal...
- Ir com você? Por quanto tempo?
- Tanto quanto ela quisesse - respondeu ele de forma um tanto suplicante.
Houve um silêncio.
- É natural - recomeçou Úrsula - que ela deseje casar-se primeiro. Procure saber.
- Sim, vou ver... Mas, caso ela não aceite o casamento, acha que iria comigo ao estrangeiro por uns dias... por quinze dias?
- Acho, sim. Por que não pergunta a ela?
- Poderíamos ir juntos?
- Todos? - A face de Úrsula resplandeceu de novo. - Seria ótimo!
- Acho que seria bem divertido.
- E durante a viagem você ficaria sabendo...
- O quê?
- Das coisas... Creio que é preferível passar a lua de mel antes do casamento. Hein?
Riu-se ela mesma daquela ideia espirituosa.
Gerald também riu.
- Em certos casos - volveu ele. - E talvez seja o meu.
- Realmente? - E, a seguir, como se duvidasse: - Sim, é possível que tenha razão. Devemos fazer o que nos for mais agradável.
Birkin chegou mais tarde, e Úrsula descreveu-lhe a conversa que tivera com Gerald.
- Gudrun! - exclamou Birkin. - Nasceu para ter um amante, como Gerald para ter uma. Amant en titre. Se as mulheres, como se diz, devem ser ou amantes ou esposas, Gudrun pertence à primeira categoria.
- E todos os homens amantes ou maridos - acrescentou Úrsula. - E por que não as duas hipóteses?
- Uma exclui a outra - disse ele, divertido.
- Então quero um amante.
- Não, você não quer.
- Quero - gemeu ela.
Rupert beijou-a e começou a rir.
Dois dias depois, Úrsula foi a Beldover buscar o que lhe pertencia. A família já se mudara. Gudrun ficara morando em Willey Green.
Depois de sair de casa, Úrsula não tornara a encontrar-se com os pais. A ideia de uma ruptura afligia-a, embora de nada servisse a reconciliação. Para o bem ou para o mal não deveria procurá-los. Como seus objetos tivessem ficado guardados, naquela tarde ela e Gudrun combinaram ir buscá-los.
Era uma tarde de inverno; quando chegaram, o céu mostrava-se vermelho. As janelas da casa estavam escuras e sem cortinas aquilo parecia desolador. Ao entrarem no vestíbulo vazio e pouco convidativo, sentiram um arrepio que as enregelou.
- Não me atreveria a vir aqui sozinha - disse a mais velha. - É impressionante.
- Úrsula! - exclamou Gudrun. - É curioso! Como se concebe que vivêssemos nesse lugar sem perceber a sua desolação? Como pude estar nessa casa sem ter morrido de terror? Isso deve acontecer a muitas pessoas, não?
Entraram na vasta sala de jantar. Era um compartimento espaçoso, mas, agora, uma simples cela lhes pareceria mais agradável. As largas janelas, rasgadas, estavam nuas, o chão fora despojado dos tapetes, e uma orla de encerado escuro contornava aquele vazio, fazendo sobressair a parte clara no meio do assoalho. O papel das paredes, desbotado, indicava, em manchas mais escuras, o lugar de onde haviam retirado os móveis e desprendido os quadros. Esses tabiques áridos e delgados, de aspecto tão frágil, aquela madeira barata do pavimento, descorada e com o rebordo escurecido artificialmente, exerciam no espírito delas uma ação depressiva. Havia em tudo a ideia de nulidade, de falta de substância, principalmente aquele papel na fragilidade das paredes. Onde se encontravam, afinal: na terra, ou suspensas em uma caixa de papelão? Na lareira viam-se ainda cinzas de coisas consumidas pelo fogo.
- Imaginar que passamos aqui a nossa vida! - murmurou Úrsula.
- É verdade - concordou Gudrun. - Que tristeza! Com que nos devemos parecer, se nos assemelhamos a este invólucro?
- Tudo isto é detestável! - confirmou Úrsula.
No fogão, reconheceu as capas meio queimadas do Vogue - figurinos semidestruídos, de senhoras em traje de baile.
Foram até a sala de visitas, outro lugar onde se notava a sensação de vazio: nem peso nem substância, apenas a intolerável impressão do nada encerrado entre quatro paredes forradas de papel. A cozinha parecia mais concreta devido aos tijolos vermelhos do chão e à existência do forno; contudo, sentia-se frio e experimentava-se horror.
Subiram depois a escada sem passadeira. Cada degrau que pisavam ecoava-lhes no coração. Seguiram pelo corredor desguarnecido. A bagagem de Úrsula estava encostada à parede do quarto dela; era uma mala, um cesto de costura, livros, agasalhos, uma caixa de chapéus; tudo isso, na tristeza geral do crepúsculo, tinha aspecto desolador.
- Espetáculo muito alegre... - observou Úrsula, contemplando suas coisas ali abandonadas.
- Muito... - concordou Gudrun.
Puseram mãos ao trabalho e transportaram tudo para a porta da rua. Fizeram várias viagens, e sempre o eco dos passos lhes ressoou no meio daquele vazio. Toda a casa parecia repetir os mínimos sons, e a sua vibração, repercutindo pelos quartos despidos, chegava a ser enervante. Da última vez em que chegaram à porta, vinham tão apressadas como se se tratasse de uma fuga.
Além disso, o tempo arrefecera. Esperavam Birkin que devia chegar com o automóvel. Tornaram a entrar, pois, e foram até o quarto dos pais, cujas janelas davam para a estrada e de onde se via, através dos campos, o poente sombrio, rubro e negro, já sem luz.
Sentaram-se, à espera, nos parapeitos das janelas, e ornaram para o aposento. Sem mobília, afigurava-se-lhes de uma exiguidade desconcertante.
- Realmente - disse a mais velha - este quarto não podia ser venerável...
Gudrun percorreu-o lentamente com o olhar.
- Impossível! - retorquiu.
Quando penso nessas duas vidas, do pai e da mãe, no seu amor e casamento, e em nós, os filhos, na nossa educação. Você gostaria, Prune, de ter uma vida assim?
- Não, Úrsula.
- Tudo isso me aparece como um vácuo; a vida dos pais foi destituída de significação. De fato, se não se houvessem encontrado nem casado, nem vivido juntos, que falta poderiam ter feito? Nenhuma.
- Decerto. Mas não podemos afirmar isso - disse Gudrun.
- Pois se eu pressentisse que a minha vida iria ser assim, fugiria - declarou Úrsula, agarrando o braço da irmã.
Gudrun ficou silenciosa por momentos.
- Na realidade - disse ela por fim - não se pode considerar friamente a vida quotidiana. Com você, Úrsula, o caso é diferente. Você estará sempre à margem desses inconvenientes casada com Birkin. É um caso especial. Mas, com outro homem qualquer, que tenha a sua existência agarrada à terra, o casamento é impossível. Há milhares de mulheres, com certeza, que não desejam outra coisa, que não concebem a vida de outra maneira. Só de pensar nisso eu sinto arrepios. Devemos ser livres, sobretudo livres! Arrisquemo-nos a perder tudo, mas que se salve a independência, senão seremos apenas a senhora que mora em Pinchbeck Street n° 7, ou em Somerset Drive, ou em Shortlands. Não há homem, por melhor que seja, que torne tal coisa aceitável. Para o casamento é necessário possuir liberdade de movimentos, ou então nada feito. Seja ele um camarada, um Glüksritter. Homens com posição social, isso é que não! Isso nunca!
- Que linda palavra é Glüksritter! Cavalheiro de indústria, homem que vive de expedientes - nota da tradutora) - exclamou Úrsula. - Melhor do que aventureiro.
- Não é? Seria capaz de arrostar o mundo ao lado de um deles. Mas ter lar, família... Pense, Úrsula, no que isso significa!
- Bem sei, já tivemos e ficamos saturadas.
- Bastante.
- Essa casinha parda, nas bandas do ocidente... Verso de um poema de D. E. Wilmont - nota da tradutora) - citou Úrsula, com ironia.
- Não soa também pardamente? - perguntou Gudrun horrorizada.
Veio interrompê-las o barulho do automóvel de Birkin. Úrsula admirou-sé de se ver tão longe, de súbito, daquela ideia de casinhas pardas no ocidente.
Ouviram os passos do homem no vestíbulo.
- Olá! - chamou ele; a voz ecoou por toda a casa. Úrsula sorriu; Rupert também devia estar com medo daquela casa deserta...
- Estamos aqui! - respondeu ela, do andar de cima. Ouviram então seus passos apressados na escada.
- Esta casa é assombrada? - perguntou Rupert.
- Não, ela não tem fantasmas, porque também não tem personalidade - explicou Gudrun. - Só um lugar com personalidade é que pode possuir espíritos.
- Também sou dessa opinião. Choraram ambas sobre o passado?
- Sim - respondeu Gudrun. Úrsula riu e declarou:
- Não chorávamos pelo fato de ele haver desaparecido, mas sim porque existiu.
- Ah! - fez Birkin, mais tranquilo.
Sentou-se também com elas. Havia na pessoa daquele homem, pensou Úrsula, algo de repousante e de muito vivo. Até fazia desaparecer a sensação triste daquele lugar tão mesquinho.
- Gudrun estava dizendo que não concebe a ideia de se casar e se instalar em um lar... - insinuou Úrsula, intencionalmente. Perceberam logo que Gerald estava em jogo, e, por momentos, guardaram silêncio.
- Está bem - começou ele - se você, de antemão, está assim tão bem informada, é sinal de que se pode salvar...
- Não tenha dúvida - volveu ela.
- Por que será que todas as mulheres consideram que a finalidade da vida é ter um maridinho e uma casa para os lados do ocidente? Será isto o bem supremo?
- Il faut avoir le respect de ses bêtises - observou Birkin.
- Mas não precisamos repetir a Bêtise antes de a ter cometido - acudiu Úrsula, sorridente.
- E as bêtises du papa?
- Et de la maman - acrescentou Gudrun com ar de mofa.
- Et des voisins - É preciso respeitar essas besteiras. / E as besteiras do papai? E da mamãe / E dos vizinhos - nota da tradutora)
- disse ainda Úrsula.
Desataram todos a rir, e levantaram-se. Começava a escurecer. Transportaram a bagagem para o carro. Gudrun trancou o portão da casa vazia. Birkin acendera os faróis do carro. Tudo aquilo dava uma impressão de felicidade, como se estivessem partindo para uma viagem.
- Não se importa de parar em frente aos Cousons? - perguntou Gudrun. - Tenho de deixar a chave lá.
Fizeram uma parada na rua principal. As lojas acabavam de ser iluminadas, e os últimos mineiros regressavam do trabalho, ao longo das calçadas, sombras mal visíveis no enfarruscado que as envolvia, deslizando no ar azulado...
Gudrun sentiu-se contente ao voltar para o carro, depois de sair da loja, e de seguir velozmente pelo declive da colina, naquela treva quase palpável, em companhia de Úrsula e de Birkin. A vida, naquele instante, pareceu-lhe uma aventura. De repente, teve inveja da irmã. A existência lhe decorria fácil, como através de uma porta aberta, tão descuidada como se não somente este mundo, mas ainda o passado e o futuro não fossem nada para ela. Se pudesse ser assim, julgar-se-ia perfeita.
Porque afinal - exceto em ocasiões de excitação - Gudrun sentia que lhe faltava qualquer coisa. Não se considerada segura. Mas compreendia que, por fim, ao embate do amor forte e violento de Gerald, a sua vida começava a definir-se. Comparando-se com a irmã, vinha-lhe, contudo à alma certa insatisfação, certo ciúme. Não estava satisfeita, e nunca o estaria.
Que lhe faltava? O casamento, a maravilhosa estabilidade do casamento. Precisava dele, por mais que o desdenhasse. Tinha mentido. A velha concepção do matrimônio possuía ainda valor: a família, o lar... Entretanto, a estas palavras, não pôde deixar de franzir o cenho. Lembrou-se de Gerald, de Shortlands, do casamento, da vida doméstica... Ah, pois bem; ficaria assim mesmo. O rapaz representava muito para Gudrun, mas... Talvez o feitio dela não se coadunasse com o matrimônio. Vivia à margem da vida, era uma daquelas criaturas sem raízes em parte alguma. Não, não, não devia ser assim. Evocou, de súbito, um quarto cor-de-rosa, ela trajada com um lindo vestido de baile, ele muito elegante, de casaca, segurando-a nos braços, beijando-a à luz da lareira... Eis um belo quadro, que a artista intitulava de "Interior". Muito próprio para enviar à Academia Real...
- Venha tomar chá conosco - disse-lhe Úrsula, ao aproximar-se de Willey Green.
- Obrigada, mas não posso - respondeu Gudrun. Gostaria, no íntimo, de ir com eles. Eles, sim, tinham uma vida verdadeira. Mas uma espécie de perversidade a retinha.
- Vamos, eu gostaria tanto! - insistiu a irmã.
- Lastimo. Ser-me-ia muito agradável. Mas é impossível, acreditem...
Saltou do carro depressa, muito trêmula.
- Que pena! - lamentou Úrsula.
- Não, não posso mesmo. - As suas palavras, que denotavam emoção, vinham já do escuro.
- Quer que a acompanhe? - perguntou Birkin.
- Não é preciso, obrigada. Boa noite!
- Boa noite - disseram os outros dois.
- Venha quando quiser, alegra-nos bastante... - ainda gritou Birkin.
- Muito obrigada - respondeu Gudrun em tom estranho, agudo e doloroso, que impressionou o cunhado.
Gudrun abriu o portão da residência e o carro continuou a marcha. Todavia, deteve-se ela ate que desaparecesse, vendo o automóvel sumir na distância E só então prosseguiu pela alameda que conduzia à casa, sentindo o coração mergulhado numa incompreensível amargura.
Havia na sala um relógio de caixa em cujo mostrador uma face redonda, pintada de cores vivas, lançava ridículas piscadelas de olho a cada oscilação do pêndulo. Continuamente aquele rosto rubicundo e absurdo mirava de soslaio, de uma forma indiscreta. Gudrun ficou uns minutos a olhar para ele ate que uma inexplicável aversão se apoderou dela e a fez soltar uma gargalhada intempestiva. A cara do relógio continuou a oscilar, olhando de esguelha para um e outro lado, alternadamente Ah, como se sentia infeliz! Sim, infeliz no meio da sua felicidade aparente. Relanceou a vista pela mesa. Ali havia doce de groselhas e o eterno licor feito em casa. O doce era bom e nem sempre Gudrun o tinha a seu dispor...
Durante toda a noite ela desejou ir ate o moinho, mas resistiu, friamente, indo ate lá apenas na tarde do dia seguinte. Alegrou-se por encontrar a irmã sozinha. O ambiente era agradável, de grande intimidade. As duas tagarelaram incessantemente, deliciadas ambas. "Não se sente felicíssima em sua casa?, perguntava Gudrun a Úrsula, lançando ao mesmo tempo olhadelas furtivas ao espelho. Invejava quase com ressentimento a atmosfera de felicidade pura e definitiva que rodeava Úrsula e Rupert Birkin.
- Este quarto é tão simpático, tão bem arrumado! - disse ela em voz alta. - E o tapete, tão habilmente tecido, tem uma cor bonita... cor de luz suave...
Tudo lhe parecia admirável.
- Úrsula, - continuou pouco depois numa voz que tentava mostrar indiferença sabe que Gerald Crich me propôs uma viagem pelo Natal?
- Sei. Ele falou com Rupert a esse respeito.
As faces de Gudrun cobriram-se de forte rubor. Ficou uns momentos calada, como surpreendida, sem saber o que dizer.
- Não lhe parece um atrevimento da parte dele?
Úrsula riu-se.
- Não, acho que foi uma ideia simpática.
Gudrun não respondeu. Era evidente que, embora envergonhada com o fato de Gerald ter falado nisso a Birkin, a ideia, contudo, não lhe era tão desagradável.
- Gerald tem uma simplicidade atraente - insinuou Úrsula - embora perigosa, às vezes. Mas, enfim ele é tão simpático!
Gudrun ainda se conservou mais uns segundos em silencio. Precisava refazer-se da indignação que lhe provocavam aquelas indiscrições de Gerald.
- E qual foi a opinião de Rupert? - perguntou, por fim.
- Disse que seria uma coisa esplêndida - respondeu a irmã.
Gudrun olhou mais uma vez para o chão, muito calada.
- Não pensa assim? - prosseguiu Úrsula. Nunca sabia ao certo quais eram os preconceitos de que a outra se rodeava.
Gudrun levantou o rosto e respondeu, sem fitar a irmã:
- Acho que seria esplêndido, como vocês dizem, mas isso não impede que eu ache indiscreto da parte de Gerald... falar de semelhantes coisas a Rupert, que, afinal de contas... compreende o que quero dizer... é um homem, e é como dois homens estivessem combinando um passeio com qualquer... - Empregara uma expressão francesa para designar o que ela queria dizer. - Oh, Úrsula, é imperdoável!
Os olhos faiscavam-lhe, o rosto estava brilhante de indignação. Úrsula mirou-a assustada, principalmente porque ao usar a expressão grosseira, a irmã parecia ter um ar ordinário, confirmando a frase que atribuíra à opinião dos dois homens. Mas não fez nenhum comentário.
- Não e não! - gritou-lhe Úrsula, aborrecida. - Parece-me que Rupert e Gerald, como são muito amigos, conversam naturalmente, com a maior franqueza, como irmãos...
Gudrun ruborizou-se ainda mais. Não tolerava a ideia de que Gerald falasse sobre ela, nem mesmo com Birkin.
- Você acha que, mesmo que fossem irmãos, tinham o direito de fazer tais confidências? - perguntou, furiosa.
- Penso - replicou Úrsula. Não dizem nada que seja comprometedor. Aliás, o que mais admiro em Gerald é a sua correção, a sua honestidade. Você bem sabe como isso é importante. A maior parte dos homens é desleal e covarde!
Gudrun, porém, continuava calada e ressentida. Preferia que se fizesse absoluto segredo em tudo que lhe dizia respeito.
- Vamos, sim? - insistiu Úrsula. - Será uma viagem deliciosa. Gerald é mais simpático do que eu imaginava. Impõe-se à nossa estima. E é sincero Gudrun, verdadeiramente sincero.
Esta mantinha-se, apesar de tudo, reservada. Estava quase feia. Falou, afinal:
- Sabe aonde é que ele quer ir?
- Sei. Ao Tirol, por onde costumava viajar quando estava na Alemanha. É uma região adorável, onde os estudantes praticam esportes de inverno.
No espírito de Gudrun bailava uma ideia tremendamente irritante: "Vocês estão a par de tudo?".
- Sim, - disse em voz alta - a cerca de quarenta quilômetros de Innsbruck...
- Não sei ao certo, mas o projeto é magnífico, não concorda? Lá no alto, sobre a neve...
- Esplêndido! - exclamou a outra com sarcasmo.
Úrsula ficou aborrecida.
- É claro que Gerald não falou a Rupert em termos que dessem a ideia de que iria acompanhado por uma mulherzinha qualquer...
- Ora, ora - volveu Gudrun. - Ele costuma fazer viagens desse tipo...
- Como sabe?
- Uma pessoa de Chelsea me contou...
Úrsula guardou silêncio.
- Bem, - disse pouco depois, com um sorriso equívoco - espero que ele se tenha divertido, pelo menos.
Ao ouvir tais palavras, Gudrun ficou ainda mais aborrecida.


Capítulo XXVIII
No "Pompadour"
Aproximava-se o Natal, e os quatro já estavam prontos para partir. Birkin e Úrsula andavam ocupados arrumando suas coisas, de maneira a poderem despachar as malas. Gudrun mostrava-se bastante excitada. Por seu gosto levantaria voo.
Ela e Gerald foram os primeiros a concluir os preparativos da viagem, de maneira que seguiram para Innsbruck (via Londres e Paris) onde se encontrariam com Úrsula e Birkin. Ficaram uma noite em Londres; foram ao music-hall e em seguida ao Café Pompadour.
Ela detestava esse lugar, embora aí tivesse ido muitas vezes; os artistas que o frequentavam também não eram da sua simpatia. Abominava em especial aquela atmosfera viciosa, de mesquinhos ciúmes e de arte corriqueira. Mas, sempre que passava pela capital, nunca deixava de entrar ali. Era como se tivesse obrigação de voltar ao remoinho central da pequenez e da corrupção, nem que fosse para uma vista de olhos.
Sentou-se, com Gerald, e tomou um refresco, lançando olhares sóbrios e indignados aos vários grupos que se distribuíam pelas mesas. Não queria reconhecer ninguém, mas, de vez em quando, um rapaz a cumprimentava, com uma inclinação de cabeça, com certa familiaridade. Gudrun não correspondia, mas sentiu prazer em estar ali, de faces afogueadas e olhar hostil, observando-os objetivamente, a distância, como se fossem animais em uma jaula, animais simiescos e degradados. Deus do Céu, que gente ignóbil! O sangue corria-lhe nas veias, sombrio, tanta era a raiva e desprezo que sentia. Contudo, era necessário ficar a contemplá-los, a olhar para eles... Um ou dois vieram falar com ela. Sentia os olhares que a buscavam: os homens por cima dos ombros, as mulheres por baixo do chapéu.
Todos estavam ali, Carlyon no seu cantinho com os discípulos e uma moça; Halliday, Libidnikov e a Bichana também haviam comparecido. Gudrun observou Gerald: notou que o olhar dele se fixara um instante em Halliday e depois nos que o acompanhavam. Estes estavam atentos e saudaram-no. Gerald retribuiu. Todos riram disfarçadamente e ele tornou a mirá-los com mais atenção. O grupo incitava Bichana a fazer qualquer coisa.
Esta acabou por se levantar. Tinha um vestido estranho, de seda escura, salpicada, gotejada de diferentes cores, formando uma curiosa mistura. Parecia muito delgada com olhos talvez mais ardentes. Mas não estava mudada. Gerald viu-a aproximar-se e continuou a olhar para ela com a mesma fixidez. A jovem estendeu-lhe a mão fina e morena.
- Como está? - perguntou-lhe.
Gerald apertou-lhe a mão, sem se erguer da cadeira, e deixou-a assim de pé junto dele, encostada à mesa. Quanto a Gudrun, a Bichana, que a conhecia apenas de vista, limitou-se a fazer um cumprimento com a cabeça.
- Estou muito bem - respondeu Gerald. - E você?
- Eu vou bem. E a respeito de Rupert? - Continuava a não pronunciar alguns rr.
- Rupert? Vai muito bem, igualmente.
- Não é isso que quero saber. Falo do casamento dele.
- Ah, sim, casou.
Os olhos de Bichana cintilaram com ardor. É verdade, então? Há quanto tempo?
- Uma semana ou duas.
_ É extraordinário! Não escreveu a ninguém.
- Não?
- Não é um tanto esquisito?
Estas últimas palavras foram pronunciadas em tom de desafio, e, dava para notar, endereçadas a Gudrun.
- Acho que ele não tinha obrigação de comunicar - tornou Gerald.
- Por quê?
Fez-se um silêncio. No rosto belo e pequenino daquela depravada criatura havia um sorriso irônico e persistente, que conseguia enfeá-la. Continuou ao lado de Gerald.
_ Demora-se em Londres? - perguntou ela.
- Só esta noite.
- Ah, sim? Venha falar com o Julius.
- Agora não posso.
- Está bem. Vou dizer isso a ele. - Acrescentou depois, com acento diabólico: - Você está ótimo.
- É verdade. - Gerald mostrava-se perfeitamente calmo e à vontade. Via-se no olhar dele uma certa cintilação zombeteira.
- Não se tem aborrecido? - perguntou ainda a mulher. Era uma seta desferida diretamente a Gudrun. A frase fora dita em tom de indiferença tranquila, sem cerimônia.
_ Não - respondeu ele, também com naturalidade.
- É pena não querer vir conosco. Você é pouco fiel a seus amigos...
- Realmente... - confirmou o rapaz.
Deu boa noite a ambos e voltou lentamente para o seu lugar. Gudrun ficou vendo o estranho andar da moça, rígido, mas sacudido. Ouviram-na dizer distintamente:
- Não pode vir. Já está comprometido. - Seguiu-se uma gargalhada geral, e muitas observações picantes em voz baixa.
- É sua amiga? - perguntou Gudrun, observando atentamente o companheiro.
- Fiquei uma vez na casa de Halliday, com Birkin - respondeu, trocando um olhar com o dela, que era calmo e repousado. Gudrun sabia que Bichana fora amante dele e Gerald não ignorava essa circunstância.
Gudrun chamou então o garçom, depois de relancear a sala com os olhos. Queria tomar um chocolate gelado, de uma receita complicadíssima. A ideia divertiu o companheiro, que ficou a imaginar o que iria acontecer.
O grupo de Halliday já estava ébrio e perdera a compostura. Falavam em Birkin em voz alta, ridicularizando-o sob vários aspectos, principalmente o do casamento.
- Não me obriguem a pensar nesse homem! - dizia Halliday, em tom agudo. - Tenho náuseas ao relembrar como implorava: "Senhor, que devo fazer para me salvar?"
E teve uma risada de bêbado.
- Lembra-se - interveio o russo - das cartas que enviava? "O desejo é coisa sagrada..."
- Se me lembro! Isso é extraordinário! Espere, tenho uma no bolso.
Tirou do bolso vários papéis.
- Tenho certeza de que a guardei - repetiu. - Ah! Aqui está!
Gerald e Gudrun estavam atraídos por aquela cena.
- Sim, senhores... Isso mesmo... Magnífico! Não me façam rir que fico com soluços. - E todos desataram a rir.
- Que é que ele diz nessa carta? - perguntou Bichana, debruçando-se com os cabelos escuros e leves tombados sobre os olhos. Havia qualquer coisa de esquisitamente indecoroso, obsceno mesmo, naquela cabeça pequenina, sombria e alongada.
- Esperem, esperem aí! Não, não a mostro. Vou ler em voz alta. Vou ler trechos seletos... Vocês acham que se eu beber água me passam os soluços? Ora, parece-me que é inútil..
- É a carta que se refere à luz e à sombra, ao fluxo da corrupção? - indagou Maxim na sua maneira de ler rápida e concisa.
- Acho que sim - respondeu a moça.
- Ah, é essa? Tinha-me esquecido. Hic! É, sim, é! - declarou Halliday, desdobrando-a. - Hic! Sim, senhores, esplêndida! Uma das melhores. - Começou a ler, com voz cantante, lenta, destacada, como um padre a soletrar a Bíblia: "Há uma fase particular em todas as espécies, em que o desejo de destruição se sobrepõe a todos os outros. No homem essa vontade transforma-se por fim na ânsia de dar cabo de si próprio..." Hic! - Aqui fez uma pausa e olhou para o auditório.
- Oxalá que ele não desista de se destruir a si mesmo - atalhou o russo, com a sua pronúncia cortante. Halliday fungou de gozo e refestelou-se na cadeira.
- Não é grande coisa destruir a sua pessoa... - comentou a Bichana. - Ele é tão magro... Já deve estar nas últimas.
- Não gostaram? É lindo. Faz-me bem ler isto, até me cura dos soluços. Deixem-me continuar. - E Halliday prosseguiu: "Trata-se do desejo de nos reduzirmos em nós próprios, de regressar às origens, voltar ao fluxo de corrupção, às condições rudimentares da existência". Isto é admirável - exclamou, interrompendo a leitura. - Deixa a perder de vista o Velho Testamento.
- Fluxo de corrupção, sim, senhores - disse o russo. - Lembro-me da frase.
- Fala sempre de corrupções - acudiu Bichana. - Devia estar muito corrompido, para que isso lhe subisse à cabeça...
- Exatamente! - asseverou o russo.
- Deixem-me continuar. Este pedaço agora é de se tirar o chapéu. Ouçam: "E nesta imensa regressão, neste reconduzir-se do corpo vivo ao meio onde foi criado, descobrimos a verdade, e, para além desse conhecimento, o êxtase fosforescente da mais pura sensação". Oh! - exclamou Halliday - estas expressões parecem-me de um absurdo genial! Não acham que é do melhor que há? "E - retomando a carta - se você, Julius, pretender aquele êxtase juntamente com a Bichana, devem ambos insistir até que o obtenham. Todavia ele existirá em qualquer parte de vocês, esse desejo vivo da criação positiva, relacionado com a derradeira fé, quando todos os processos de desagregação ativa, com todas as suas flores de lama, forem ultrapassados e mais ou menos abolidos." Gostaria de saber - disse Halliday em outro tom - o que são essas flores de lama. Você será uma delas, Bichana?
- Obrigada. E o que é você?
- Eu também, com certeza, em vista desta carta. Somos todos flores de lama. Fleurs du mal! Birkin advertindo-nos do mal... do inferno... pregando contra o Pompadour... Lindo! Hic!
- Vá, continue - pediu Maxim. - Que é que vem mais? É, na verdade, interessantíssimo.
- Acho que é preciso muito descaramento para escrever coisas assim - comentou Bichana.
- Também acho - tornou o russo. - Megalomania, na certa; uma forma de loucura religiosa. Julga-se salvador da humanidade. Continue.
- "Sem dúvida - leu Halliday - sem dúvida a bondade e a graça têm-me acompanhado toda a minha vida." - Interrompeu-se e desatou a rir. Depois recomeçou, com voz sacerdotal: "Sem dúvida acabará este desejo que nós temos de nos separar constantemente, esta paixão de fracionar todas as coisas e nós mesmos, de nos reduzir, agindo só para nos destruir e empregando o sexo como agente dessa redução; apeando os dois grandes elementos, masculino e feminino, da sua unidade altamente complexa; diminuindo as ideias estabelecidas e regressando ao estado selvagem quanto às nossas sensações; procurando sempre perder-nos numa suprema e sinistra sensação, ininteligente e indefinida; queimando-nos num fogo aniquilador que nos persegue com a esperança de nos consumir inteiramente..."
- Vou-me embora - disse Gudrun a Gerald, fazendo sinal ao garçom.
Tinha os olhos brilhantes e as faces escaldantes. A leitura da carta de Birkin, em voz alta, cadenciada, frase por frase, de forma nítida e ressonante, tivera o estranho efeito de lhe fazer subir o sangue à cabeça, quase enlouquecendo-a.
Levantou-se, enquanto Gerald pagava a despesa, e dirigiu-se à mesa de Halliday. Todos a encararam, espantados.
- Desculpe-me - disse ela - mas essa carta é verdadeira?
- Sim, senhora - respondeu Julius. - Verdadeira.
- Posso ver?
O outro sorriu de modo estúpido e entregou a carta, como que hipnotizado.
- Obrigada - disse ela.
Deu meia volta e dirigiu-se para a porta do café com a carta na mão, passando, com andar vagaroso, através das mesas da sala brilhantemente iluminada. Decorreram alguns segundos antes que alguém se compenetrasse do que havia acontecido.
Do grupo partiram gritos, exclamações, vozerio, enquanto Gudrun se afastava, elegantemente vestida de verde-escuro e prateado, com chapéu também verde, mais claro, brilhante, de abas cor do vestido, debruadas de prata; o casaco também verde, cintilante, com gola alta de peles cinzentas e punhos também de peles. A orla da saia mostrava listras prateadas sobre veludo negro e as meias eram de um cinzento claro. Com movimentos lentos, atingiu a porta, indiferente a tudo o mais. O porteiro abriu-a obsequiosamente, e, a um sinal dela, correu para a calçada e chamou um táxi. Logo os dois faróis do carro se voltaram, faiscando como olhos.
Gerald seguira-a boquiaberto, no meio dos apupos, sem perceber a razão de tudo aquilo. Ainda ouviu a voz da Bichana, que dizia:
- Corra e traga-a de volta. Nunca vi uma coisa destas veja se consegue apanhá-la! Ela tem que devolver a carta!
Gudrun estava parada diante do carro, cuja porta o homem do café havia escancarado.
- Vamos para o hotel? - perguntou ela, apressada, quando Gerald apareceu.
- Se você quiser...
- Está bem. - Depois, dirigindo-se ao motorista: - E o Wagestaff, na Barton Street.
O chofer colocou o boné e desceu a bandeirinha.
Gudrun subiu, com ar indiferente de uma senhora elegante e desdenhosa. Contudo, sentia-se agitada, com arrepios de frio.
Gerald entrou também no automóvel.
- Você se esqueceu do rapaz - disse ela, naturalmente, com ligeiro aceno de cabeça para o indicar. Gerald estendeu a mão com um xelim e o outro agradeceu. O carro pôs-se em movimento.
- Que foi aquele barulho? - perguntou Gerald com ar surpreendido.
- Arranquei-lhes a carta de Birkin - respondeu, mostrando um papel amarrotado.
Os olhos dele brilharam de satisfação.
- Magnífico! Que súcia de patifes!
- Tive vontade de matá-los! - exclamou a moça, com ênfase - Cães! Não passam de cães! Tolo foi Rupert em escrever a semelhante gente! Como é que ele foi confiar nessa canalha? Tudo isto é insuportável!
Gerald estava admirado de tanta indignação.
Ela não quis permanecer mais tempo em Londres. No dia seguinte, de manhã, tomaram o trem em Charing Cross. Ao passarem sobre a ponte, descobrindo o rio através das grades de ferro, Gudrun exclamou:
- Sinto que nunca mais poderei tolerar esta cidade infecta. Não concebo a ideia de voltar aqui.


Capítulo XXIX
Continental
Úrsula sentiu-se em estado de irrealidade durante as semanas que precederam a viagem. Parecia ter perdido a personalidade: já não era nada, ou então qualquer coisa que ainda viria a ser... em breve muito em breve! Entretanto vivia na iminência do fato.
Foi visitar os pais. O encontro decorreu seco e melancólico; dir-se-ia antes a verificação da ruptura do que propriamente uma reconciliação. Mantiveram-se uns e outros vagos e indefinidos, aceitando o destino que assim os separava.
Não chegou a convencer-se da realidade senão quando se encontrou a bordo do navio que a conduziu de Dover a Ostende. Estivera em Londres, com o marido, mas como quem vive num sonho; e de Londres até Dover continuara com a mesma impressão. Julgar-se sofrer de sonambulismo.
Mas, agora, e finalmente, sentia que a alma lhe despertava do sono letárgico. Sentada já à popa do navio, ao vento e na escuridão da noite, experimentava o balanço que as ondas transmitiam ao barco; como num país fantástico, brilhavam nas costas da Inglaterra luzinhas perdidas e distantes, que na profundidade das trevas a pouco e pouco se tornavam menores e Úrsula viu-as por fim desaparecer.
- Vamos ate à proa?
Era Birkin que lhe fazia esta proposta, desejando olhar o futuro e não o passado; assim, deixaram os dois de contemplar os tênues reflexos daquele reino quase irreal e já longínquo chama do Inglaterra e afrontaram a noite insondável que se lhes abria à frente.
Dirigiram-se para a outra extremidade do navio, que oscilava docemente. Na completa escuridão que os rodeava, Birkin descobriu um cantinho relativamente abrigado, onde estava enrolado um cabo muito forte. Era o limite dianteiro do barco, junto do espaço negro ainda não transposto. Ali se tornaram a sentar, embrulhados ambos na mesma manta de viagem, unindo-se o mais possível um contra o outro ate sentirem que se haviam fundido numa só e única substância. Estava bastante frio e as trevas pareciam palpáveis, tão densas eram.
Escuro como a noite, quase invisível, avançou pelo convés um homem da tripulação. Daí a pouco puderam ver-lhe a palidez do rosto o outro sentiu a presença de estranhos e deteve-se, indeciso curvando-se sobre eles. Quando o marinheiro já estava muito perto de Úrsula e de Birkin, as faces desmaiadas destes tornaram-se perceptíveis e o homem retirou-se, como um fantasma. Os dois ficaram observando-o desaparecer, silenciosos.
Sentiram-se, então, reentrar no mais profundo negrume da noite. Não havia céu, nem terra, mas só a sombra compacta na qual se diria terem mergulhado como num sono suave e oscilatório ou como germes de vida, pequeninos, perdidos através das sombras insondáveis do infinito.
Haviam-se esquecido de onde estavam, tudo o que eram ou tinham sido, e só possuíam consciência da sua alma e da trajetória que realizavam pelo espaço imenso. A proa do barco fendia as águas, cortando-as com imperceptível rumor, sem ver e sem compreender, apenas ocupada em prosseguir dentro da noite.
Em Úrsula, a sensação do mundo indescortinado, que surgia à sua frente, prevalecia sobre outra qualquer. No meio de tão profunda obscuridade raiava-lhe no peito o fulgor de um paraíso estranho e incompreendido. Seu coração enchia-se das mais belas claridades, douradas como se fossem o mel da sombra, doces como o calor do dia; e essa luz não se espalhava na terra, somente no ignorado éden para onde ela se dirigia, estância deliciosa, em que o encanto de viver era diverso mas que já lhe pertencia infalivelmente. No seu arrebatamento, ergueu a face para Birkin, de súbito, e ele roçou-a com os lábios. Face tão fresca, tão pura, sabendo tanto ao mar, que o beijo foi como uma flor que houvesse nascido sobre a espuma das ondas.
Birkin, porém, não estava a par do êxtase de antecipada felicidade em que a mulher se comprazia. Para ele, o prodígio da viagem quase o derrotava. Caía num abismo de sombras sem fim tal um meteoro que tomba no espaço que separa os mundos. O universo apartava-se em dois, e Rupert mergulhava como uma estrela apagada no sorvedouro indescritível. O que residia mais além não existia ainda para ele. O percurso ocupava-lhe inteiramente o espírito.
Naquele enleio das almas, Úrsula continuava apoiada ao corpo do marido. O rosto de Rupert encostava-se ao cabelo fino e frágil da mulher, e ele aspirava-lhe a fragrância juntamente com o cheiro do mar e da noite profunda. Sentia-se repousado, submisso, ao resvalar assim para o ignoto. Era a primeira vez que saboreava a paz - absoluta e perfeita - dentro do seu ser. Era a viagem derradeira, e esta ultrapassava-lhe decerto a vida.
Ao ouvir barulho no convés, ambos despertaram e se puseram de pé. Estavam tão enregelados e cheios de cãibras pelo ar da noite! E, todavia, tanto para Rupert como para ela, só havia a paz inefável da escuridão e a maravilhosa promessa paradisíaca.
Uma vez de pé, olharam em frente. Na sombra divisavam-se luzes tênues Era outra vez o mundo. Já não existia, para Úrsula, aquele êxtase do coração nem, para ele, a tranquilidade do espírito. Era o mundo de fato, superficial e incrível. Mas não, talvez, o mesmo a que estavam habituados. A beatitude e a paz continuariam na sua alma.
O desembarque noturno foi o mais estranho que se possa imaginar, como se tivessem ido sobre as águas do Estige, na desolação do país subterrâneo. Tudo parecia sinistro, mal iluminado, vasto e sem ar, fugindo debaixo dos pés, triste por todos os cantos. Úrsula distinguiu logo as enormes letras, pálidas e misteriosas, que, rodeadas de sombra, diziam a palavra OSTENDE. Toda a gente se apressava através daquele cinzento sombrio, como insetos desnorteados; os carregadores ofereciam-se, falando um inglês inverossímil; e depois se afastavam com a bagagem pesada, desaparecendo ao longe: a capa desbotada dava-lhes o aspecto de fantasmas. Úrsula detivera-se junto a um comprido balcão, forrado de zinco, com mais uma centena de pessoas de ar espectral. De um lado alongava-se, na sombra, o balcão das malas abertas, enquanto, do outro, funcionários lívidos, de bigodes e boné de pala, revolviam a roupa e escreviam a giz nos invólucros da bagagem.
Enfim, tudo aquilo terminou. Birkin fechou as maletas de mão e ambos partiram, seguidos pelo encarregado da bagagem. Passaram por um largo portão e penetraram outra vez na noite. Ah, a estação da estrada de ferro! Vozes que interpelam, numa agitação sobre-humana, num ambiente acinzentado... Espectros que deslizam na sombra, entre os vagões...
Koln... Berlin... Nos cartazes enormes, ali afixados Úrsula soletrou estes nomes.
- Cá estamos - disse Birkin. A seu lado, viu ela escrito: Elsass... Lothringen... Luxembourg... Metz... Basle.
- É este, para a Basiléia!
O carregador tornou a aparecer.
- À Bale... deuxième classe? Voilà.
Subiu para o vagão. Marido e mulher fizeram o mesmo. Havia já alguns com passageiros, mas a maior parte estava vazia e às escuras. Arrumaram as malas e pagaram ao homem.
- Nous avons encore...? - começou Birkin, consultando o relógio e olhando para o carregador.
- Encore une demi-heure - Para Basiléia... segunda classe? Aí está. / Ainda temos...? Uma meia hora ainda - nota da tradutora).
Com esta resposta, desapareceu com a sua capa azul. Era pouco amável e muito feio.
- Venha - disse Birkin. - Está frio aqui. Vamos comer qualquer coisa.
Havia na estação um bar-restaurante. Lá tomaram um café quente - terrivelmente aguado - e comeram aqueles compridos pães cilíndricos, abertos no meio e com presunto dentro, tão grandes que, para os trincar, Úrsula quase deslocava o queixo. Depois passearam ao longo da composição. Parecia tudo tão estranho, tão extremamente desolado, espécie de mundo subterrâneo, cinzento, muito cinzento, grisalho, sujo, triste, abandonado, inexistente! Horrivelmente sem existência, e cor de cinza.
Finalmente a composição cortou a escuridão noturna. Através das trevas, Úrsula distinguiu os campos rasos, a sombra baixa, úmida e lúgubre do continente. Daí a pouco tiveram um sobressalto Bruges! Mas, de novo, a noite os rodeou, cortada apenas, aqui e ali, por alguma luz das herdades adormecidas, pelo prateado dos choupos e pela brancura das estradas desertas. Úrsula descansava sucumbida, apertando a mão de Birkin; e este, imóvel, pálido como um fantasma, olhava de vez em quando pela janelinha; noutras ocasiões fechava os olhos. Mas, instantes depois, tornava a fixar a vista, sombria como a atmosfera lá fora.
Eis um foco subitamente na treva: a estação de Gand! Alguns vultos sob o alpendre... um sino... e outra vez em movimento através da superfície tenebrosa! Úrsula viu um homem que empunhando a lanterna, saía de um quintal, perto da linha férrea, e atravessava as dependências mergulhadas na escuridão. Lembrou-se ela do Marsh, da sua antiga vida no campo, cheia de intimidade, em Cossethay. Deus do céu, como já ia longe isso tudo, desde a infância - e aonde iria ainda parar?! Durante uma existência parece que atravessamos centenas de anos. Havia lacunas na sua memória, entre esse tempo decorrido nos arredores de Cossethay e na quinta do Marsh e o momento presente em que viajava com Birkin, em pleno desconhecido. Recordava-se da criada Tilly, que lhe dava pão com manteiga polvilhado de açúcar mascavo, na sala de estar, onde o relógio antigo tinha duas rosas pintadas dentro de uma cesta, por cima dos algarismos do mostrador. Essa lacuna era tão grande que se lhe afigurava haver perdido a identidade, e a criança que outrora fora, e que brincava no adro da igreja de Cossethay, era uma criaturinha imaginaria; pelo menos, não seria ela.
Chegaram a Bruxelas. Meia hora para almoçar. Saltaram. O relógio da estação indicava seis horas. Tomaram café e comeram pães com mel na sala deserta do restaurante, fúnebre, suja, espaçosa, melancólica. Úrsula lavou o rosto e as mãos em água quente, penteou o cabelo e isso lhes trouxe algum consolo.
Não tardou muito que voltassem ao vagão e que o comboio reiniciasse a marcha. Despertava uma alvorada lívida. Havia ali mais alguns passageiros: negociantes belgas, de barbas castanhas e fartas e aspecto florescente; falavam sem parar num francês desagradável. Úrsula estava muito fatigada para lhes acompanhar a conversa.
O trem parecia correr do escuro para uma claridade gradualmente mais acentuada ate que, sempre arfante mergulhou em pleno dia. Como aquilo era extenuante! Atenuadas, as árvores foram-se mostrando como sombras. Depois apareceu uma casa branca, com grande nitidez. O que seria agora? Surgiu então uma aldeia, e as habitações desfilaram umas atrás das outras.
Velho mundo esse em que ela viajava assim, sinistro e invernoso! Terras cultivadas, prados, bosques de árvores desnudas, grupos de arbustos, quintas, casas pobres. Nada de novo ali se via.
Úrsula olhou para o marido, que estava pálido, silencioso como uma estátua. Estendeu-lhe a mão, debaixo da manta, e tocou com os seus os dedos dele, suplicante. Birkin respondeu ao contato e enviou-lhe um olhar. Como aqueles olhos eram sombrios, semelhantes à noite e a um mundo do além! Ah, se ele fosse ao menos o mundo, se o mundo fosse ele! Se Rupert pudesse evocar um mundo qualquer, o deles, para eles só!
Os belgas desceram da carruagem, e o comboio seguiu através do Luxemburgo, da Alsácia e Lorena, de Metz. Úrsula, porém, ia como cega, não via mais nada. A alma não descortinava nada fora de si mesma.
Por fim entraram em Basiléia e foram para o hotel. A viagem fora toda feita num êxtase de que ela não conseguia acordar. Na manhã seguinte deram um passeio, antes da partida do trem. Úrsula viu as ruas e o rio e deteve-se na ponte. Mas aquilo nada significava para ela. Fixou na retina algumas lojas, uma delas cheia de quadros, outra com veludos e arminhos. Que queria dizer, porém, tudo isso? Absolutamente, nada!
Úrsula não se sentiu à vontade senão quando embarcaram outra vez. Aí experimentou uma sensação de alívio. Enquanto a máquina esteve em movimento, Úrsula considerou-se satisfeita. Pararam em Zurique, depois deslizaram, por muito tempo, no sopé das montanhas cobertas de neve. Finalmente, aproximaram-se do termo da viagem. Era bem o outro universo que desejavam.
Innsbruck apresentava-se como uma autêntica maravilha; entardecia, e tudo estava branco. Um trenó descoberto levou-os sobre a neve, e saborearam o contraste com o trem, que estava quente e sufocante. O hotel, com a luz dourada que saía pelo pórtico, pareceu-lhes bastante acolhedor.
Riram alegremente quando se encontraram no vestíbulo. Havia grande azáfama e a casa devia estar cheia.
- Sabe se o senhor e a senhora Crich, ingleses, teriam chegado vindos de Paris? - perguntou Birkin em alemão.
O porteiro refletiu um momento e ia responder quando Úrsula descobriu Gudrun, que descia a escada. Trazia um casaco escuro, de fazenda lustrosa, guarnecido de peles.
- Gudrun! Gudrun! - gritou ela, acenando do patamar. A outra olhou por cima do corrimão e abandonou seus ares indolentes e desconfiados. Os olhos brilharam.
- Úrsula! E recomeçou a descer, enquanto Úrsula subia os primeiros degraus. Encontraram-se e beijaram-se com risos e alegres exclamações inarticuladas.
- Mas nós - declarou Gudrun, penalizada - julgávamos que vocês só chegariam amanhã! Tencionava ir à estação.
- Mas resolvemos vir hoje! Como isto é agradável!
- Muito! - confirmou Gudrun. - Gerald acaba de sair para fazer uma compra. Úrsula, você deve estar cansadíssima!
- Nem tanto. Mas estou bastante empoeirada, não?
- Pelo contrário, você está fresca como uma flor. Gosto muito do seu chapéu de peles. - Examinou a irmã, que vestia um casaco comprido e espesso com uma gola de peles claras e macias e chapéu da mesma cor.
- E você - observou Úrsula - com que se parece?
A outra tomou uma expressão modesta e inexpressiva.
- Gosta? - perguntou.
- Está linda! - respondeu a primeira, sorrindo.
- Subam ou desçam - disse Birkin.
As duas irmãs estavam paradas a meio da escada na altura do primeiro lance, interrompendo a passagem e divertindo imensamente os que se encontravam no térreo, desde o porteiro ate o judeu barrigudo de roupa preta. Gudrun conversava muito calma, apoiando a mão no braço da irmã.
Subiram, então, vagarosamente, seguidas de Birkin e do empregado do hotel.
- No primeiro andar? - perguntou Gudrun, olhando para trás, por cima do ombro.
- No segundo, minha senhora. Toma-se o elevador. - E correu para lá, de forma a chegar antes das duas moças. Absorvidas, porém, pela conversa, elas não o viram, e continuaram a subir para o segundo andar. O empregado correu atrás delas, aborrecido.
Era curioso notar como as duas irmãs se haviam regozijado com o encontro. Era como se se sentissem exiladas, unindo suas forças individuais a fim de arremeter contra o mundo. Birkin olhava-as com desconfiança e admiração.
Já estavam de roupa mudada quando Gerald voltou. Vinha faiscante como um raio de sol sobre o gelo.
- Vocês vão fumar - disse Úrsula a Birkin. - Eu e Gudrun temos muito que conversar.
Sentaram-se no quarto de Gudrun, e falaram sobre vestidos e episódios divertidos. Gudrun contou a história da carta de Birkin no Café Pompadour. Úrsula ficou indignada e chegou a assustar-se.
- Onde está a carta? - perguntou.
- Guardei-a.
- Quero vê-la, sim?
Gudrun conservou-se uns instantes silenciosa, até que retorquiu:
- Deseja lê-la, realmente?
- Sim.
- Está bem. Não lhe parecia fácil fazer a irmã compreender o quanto lhe agradaria ter a carta como recordação, como coisa simbólica. Mas Úrsula percebeu e não gostou da ideia. Mudaram de assunto.
- Que fizeram vocês em Paris? - indagou esta última.
- O que se costuma fazer - respondeu a irmã laconicamente - Passamos uma noite com Fanny Bath, no seu estúdio.
- Ah, sim? Você e Gerald estiveram lá?! E quem mais? Conte-me tudo.
- Não há nada de especial para relatar. Sabe como Fanny anda apaixonada por aquele pintor, Billy Macfarlane. O homem estava presente, de maneira que ela não poupou nada, e tez tudo o que era possível para conquistá-lo. Claro que todos se embebedaram, mas de uma forma interessante, não como essa gente abjeta de Londres. A verdade é que só se viam pessoas de valor, o que faz alguma diferença. Havia um romeno, tipo de primeira ordem. Embriagou-se por completo, subiu ao topo de uma escada e fez um discurso estupendo... Acredite, Úrsula, estupendo! Começou por falar em francês... La vie, c'est une affaire d'âmes impériales - A vida é um negócio de almas imperiais - nota da tradutora), isto com esplêndida pronúncia. Depois desandou a divagar na sua língua, e ninguém entendeu patavina. Donald Gilchrist estava também e inteiramente frenético. Atirou um copo ao chão e jurou, por Deus, que se considerava feliz por haver nascido, que era milagrosa a sua existência... E quer crer, Úrsula, que é verdade?... - Gudrun riu, mas de uma forma que soava falso.
- E que fazia Gerald, no meio de todos?
- Ah, se você visse! Parecia estar no seu elemento. Uma vez que se excita, faz ele próprio a festa toda! Não houve dama a quem não se atirasse. Palavra, Úrsula, atrai as mulheres como um ímã. Não houve nenhuma que lhe resistisse. Era espantoso! Você entende uma coisa assim?
Úrsula meditou uns segundos, e no olhar perpassou-lhe um súbito clarão.
- Percebo - respondeu. - Não lhe escapa nenhuma.
- Nenhuma! Também acho que sim - exclamou Gudrun.
Pois é a pura verdade. Todas as mulheres que lá estavam se dispunham a se renderem, ate Fanny, apesar de apaixonada pelo seu Billy Macfarlane. Nunca na minha vida fiquei tão assombrada. E agora dá-me a impressão de que sou, para ele, não uma só mas uma súcia de mulheres. Sou tanto eu mesma como a Rainha Vitória. Qual! Uma coleção de fêmeas é o que eu sou! Enfim, isto estonteia-me. Aquele homem é um sultão!
Os olhos de Gudrun cintilavam. Tinha as maçãs do rosto abrasadas, e o aspecto estranho, exótico, um tanto excêntrico. Úrsula sentou-se perturbada e inquieta.
Já era tempo de se prepararem para o jantar. Gudrun desceu, daí a pouco, com um vestido muito audacioso, de seda, verde-claro e ouro; o corpete era de veludo verde, e em volta da cabeça havia enrolado um turbante esquisito, preto e branco. Estava realmente bonita, e toda a gente o notou. Gerald, de belas cores na face, parecia vender saúde. Birkin olhava-os com interesse. Úrsula estava abstrata. Imaginar-se-ia que a mesa, a que se haviam sentado os quatro, fora previamente enfeitiçada até a luz incidia mais sobre ela do que sobre as restantes.
- Não gosta disto aqui? - perguntou Gudrun - A neve é surpreendente. Reparou como dá relevo a tudo? Pura maravilha! Sentimo-nos, na verdade, übermenschlich, mais do que humanos.
- Também acho - respondeu Úrsula. - Mas não se deverá, em parte, ao fato de havermos deixado a Inglaterra.
- Naturalmente... Jamais se poderia ter esta impressão na nossa terra pelo simples motivo de que lá jogam sempre baldes de água fria no entusiasmo. Nunca se está bem à vontade, disso tenho a certeza. - Assim falou, e recomeçou a comer. Mostrava-se bastante animada.
- Sou da mesma opinião - disse Gerald. - Na Inglaterra não é a mesma coisa, e talvez seja isso o que nós preferimos muita liberdade, equivalerá a brincar com o fogo. Assusto-me só em pensar no que sucederia...
- Meu Deus, que lindo - exclamou Gudrun - se toda a Inglaterra explodisse subitamente como uma peça de fogo de artifício!
- É impossível - volveu Úrsula. - Há muita umidade e a pólvora deve estar molhada.
- Quem sabe... - atalhou Gerald.
- Eu penso - interveio Birkin - que quando os ingleses começarem a explodir, em massa, é hora de tapar os ouvidos e começar a fugir.
- Jamais acontecerá tal coisa - observou Úrsula.
- Veremos, replicou o marido.
- Em todo o caso demos graças Deus por termos podido abandonar a pátria. Até nem acredito. Bastou pisar terra estrangeira para me sentir outra. Eis-me renascida, foi o que disse de mim para mim, Gudrun, para com o nosso pobre país - disse Gerald. - Almadiçoa-mo-lo, é certo, mas gostamos bastante dele.
Aos ouvidos de Úrsula tais palavras soaram como reveladores de cinismo.
- Não contesto - comemorou Birkin. - Mas é uma espécie de amor um tanto incomodo, como o que dedicamos a uma pessoa da família, muito velha e muito doente, da qual nada podemos esperar...
Gudrun arregalou o s olhos para o cunhado.
- Parece-lhe que não há esperança? - interrogou ela, com aquele eu jeito peculiar.
Birkin, porém, pôs-se em guarda. Não lhe agradava aprofundar o assunto.
- Poderemos ter, francamente, esperanças na Inglaterra? Só Deus sabe. Por enquanto, não é mais que uma imensa irrealidade, um agregado sem consistência. Poderia tornar-se real, se não existissem os ingleses.
- Entende que os ingleses deveriam desaparecer? - insistiu Gudrun. Era de admirar aquele desejo de conhecer a opinião do Gudrun. Podia-se supor que ate o seu próprio estava em jogo. Manteve o olhar sombrio e ansioso fixado em Birkin, como se a verdade sobre o futuro devesse ser dita por ele, como se ele fosse um instrumento divino.
Rupert empalidecera. Depois, de má vontade, replicou:
- Sim... que é que lhes resta fazer, senão desaparecerem? De qualquer maneira, é forçoso que percam as suas características de ingleses.
Gudrun não retirara dele o olhar, fixo e espantado, como se estivesse sob influência hipnótica.
- Em que sentido - perguntou ela - emprega o verbo desaparecer?
- Quer dizer mudança de sentimentos? - inquiriu Gerald por seu turno.
- Não posso explicar melhor - volveu Birkin. - Sou inglês, e sofro as consequências de o ser. Não falei da Inglaterra em geral, mas apenas de mim mesmo.
- Você ama imensamente a sua pátria, Rupert - retorquiu Gudrun com voz muito pausada.
- E acabo de deixá-la.
- Mas não para sempre - atalhou Gerald. - Vai voltar para lá - sentenciou, movendo a cabeça em sinal afirmativo.
- Dizem que os parasitas abandonam os moribundos - disse Birkin com amargura - Foi assim que deixei a Inglaterra.
- Ora, voltará... - observou Gudrun, sorrindo irônica.
- Tant pis pour moi - Tanto pior para mim - nota da tradutora).
- Como ele detesta a mãe-pátria! - exclamou Gerald, rindo, divertidíssimo.
- Grande patriota! - acrescentou Gudrun. Birkin não se dignou responder mais nada.
Gudrun ficou observando-p por alguns segundos. Depois, voltou-se para o outro lado. Terminavam as suas faculdades espirituais; sentia-se agora puramente cínica. Olhou então para Gerald, que lhe pareceu maravilhoso como uma partícula de rádio. Calculou que se poderia consumir a si própria, e tudo conhecer, através daquele metal vivo e fatídico. Pensava nisso e sorria. E o que seria dela, quando estivesse destruída. Pois, se o espírito, se o ser constituído é destrutível, a matéria, em si mesma, não o é.
Gerald, nesse momento, estava absorto, pensativo, com ar radiante. Gudrun estendeu um dos seus belos braços, cobertos de tule verde e tocou no queixo dele com os dedos sensíveis, de artista plástica.
- Que tais são? - perguntou-lhe, com um estranho sorriso.
- O quê? - perguntou o rapaz, voltando a si, muito admirado.
- Os seus pensamentos.
Gerald tinha o aspecto de quem acaba de acordar.
- Acho que não tenho nenhum - respondeu.
_ Não - repetiu ela. A voz era grave, mas alegre.
Para Birkin, o contato daqueles dedos sobre Gerald equivalia a uma espécie de homicídio.
- Ora, então - continuou Gudrun - bebamos pela Inglaterra, bebamos pela Grã-Bretanha.
A entonação dela denunciava certo desespero. Gerald riu e encheu os copos.
- Percebo a ideia de Birkin - explicou ele. - É esta: nacionalmente, todos os ingleses deverão morrer; porém, continuarão a existir como indivíduos.
- Supernacionalmente... - emendou Gudrun, fazendo uma careta e levantando o copo.
No dia seguinte tomaram o trem que os levou ate a estação de Hohenhausen, no extremo da linha que serve o minúsculo vale. Havia neve por toda a parte, verdadeiro berço nevado, muito branco, renovando-se constantemente; de um lado e de outro emergiam penhascos negros, e outros, já prateados, erguendo-se todos para o céu palidamente azul.
Ao saltarem na plataforma desconfortável, rodeada de neve, Gudrun estremeceu como se o coração se lhe gelasse também.
- Meu Deus, Jerry - disse ela, voltando-se para Gerald, em inesperada explosão de intimidade. - Desta vez estou amedrontada.
- Por quê?
Ela fez um gesto indicando a paisagem circundante.
- Olhe!
Parecia ter medo de dizer o que sentia Gerald riu-se.
Estavam cercados de montanhas. Do alto, de toda a parte, desciam lençóis de alvura, e eles sentiam-se diminutos e insignificantes naquele vale, tão irradiante, silencioso e imóvel como se fosse éter solidificado.
- Sentimo-nos ínfimos e sós - disse Úrsula, pondo a mão no ombro de Birkin.
- Está arrependida de ter vindo? - perguntou Gerald a Gudrun.
A jovem ficou indecisa. Saíram todos da estação, entre blocos de gelo.
- Ah! - fez Gerald, respirando de prazer. - Como isto é bom! Aqui está um trenó. Vamos dar um passeio e depois subimos a encosta.
Gudrun, irresoluta, depôs o espesso casaco em cima do trenó - como Gerald havia feito - e seguiu em frente. De súbito, lançou a cabeça para trás e desatou numa correria sobre a neve, enfiando o gorro ate as orelhas. O vestido azul-claro flutuava ao vento; as meias vermelhas brilhavam sobre o chão alvo. Gerald contemplou-a e teve a impressão de que ela se arremessava ao seu destino, deixando-o, a ele, abandonado. Depois de perceber que ela continuava se afastando, correu, por sua vez e foi-lhe ao encalço.
Por toda a parte se estendia aquela alvura profunda e silenciosa. As goteiras pesavam e abarrotavam de neve os telhados largos das casas tirolesas, que por sua vez estavam mergulhadas nela ate os caixilhos das janelas. As camponesas, de amplas saias, com mantas na cabeça e botas adequadas, voltavam-se, no caminho, para observar aquela moça elegante e enérgica que fugia do homem que a perseguia e que se aproximava mais e mais, sem, todavia a alcançar.
Passaram diante da estalagem de madeira pintada e depois em frente de alguns chalés semi-enterrados nos flocos brancos, bem como junto à fábrica de serragem, que estava sem trabalhadores; e, enfim, sobre a ponte coberta que atravessava um riacho invisível, e daí, por cima de camadas de neve ainda não pisadas. O silêncio e a extrema brancura incitavam a uma alegria insensata. Mas aquele, por excessivo, tornava-se terrível: isolava a alma e fechava o coração com uma corrente gelada.
- Apesar de tudo, é um lugar admirável - disse Gudrun, fitando Gerald nos olhos, de forma estranha e significativa. A alma dele sobressaltou-se.
- Delicioso! - confirmou.
De todos os seus membros parecia irradiar-se energia elétrica: os músculos estavam tensos, as mãos endureciam-se de vigor. Seguiram a passo apressado pela estrada transbordante de neve, e indicada apenas, de vez em quando, pelos ramos desnudos das árvores. Sentiam-se separados um do outro como pólos contrários de força impetuosa. Tinham poder suficiente para saltar até os confins da vida, até lugares interditos, e de lá regressar ao ponto de partida.
Birkin e Úrsula corriam também sobre a superfície gelada. Desembaraçando-se de toda a bagagem, haviam conseguido tomar a dianteira aos trenós. Úrsula, excitada e feliz, voltava-se de repente e segurava o braço do marido, para se assegurar da sua presença.
- Nunca imaginei isso - declarou ela. - Encontrar um mundo assim tão diferente!
Seguiram por um prado que a neve atapetara. Ali esperaram o trenó, que vinha tilintando no meio do silêncio geral. Até encontrarem Gerald e Gudrun tinham de percorrer ainda uma grande distância; achavam-se estes mais acima, no alto de um despenhadeiro, ao pé de um santuário cor-de-rosa, meio oculto pelos flocos de neve.
Passaram depois por um barranco onde havia rochas negras e um regato cujo leito se cobrira de branco. Por cima brilhava o céu azul. Depois chegaram a uma ponte; as pranchas de madeira ressoaram surdamente sob os passos; atravessaram mais uma vez o fundo nevado do barranco, e começaram a subir a encosta. Os cavalos subiam apressados, e o condutor, marchando ao lado, fazia estalar o chicote, lançando estranhos gritos de incitamento. As pedras que marginavam o caminho ficavam lentamente para trás, até que foram surgir de novo entre taludes e montões de neve. Gradualmente ganhavam altitude sob a luz fria da tarde; a proximidade das montanhas fazia-os calarem-se; vertentes de alvura luminosa cresciam em frente e desciam no caminho que lhes ficava às costas.
Atingiram, enfim, um planalto muito extenso, cercado de altos picos de neve semelhantes a pétalas de rosa desabrochada. No meio dos últimos vales desertos estava uma construção solitária de madeira escura e pesado teto branco, perdida e sozinha na vastidão dealbada, como numa espécie de sonho. Dir-se-ia um penhasco que houvesse rolado de cima das vertentes escarpadas e que tomasse a forma de uma casa, permanecendo ali meio insermlta. Parecia inacreditável que alguém pudesse viver naquele lugar sem ser esmagado pela terrível imensidade da neve, pelo silêncio e pelo frio seco intenso e penetrante.
Os trenós acabaram de subir da melhor maneira que puderam; à porta da casa apareceram várias pessoas, rindo animadamente. O assoalho da estalagem rangia, o corredor estava úmido, mas na sala havia calor e conforto.
Os recém-chegados subiram a escada de madeira, guiados pela criada. Gudrun e Gerald ficaram no primeiro quarto. Viram-se, de um momento para outro, instalados em um pequenino aposento, pouco mobiliado, mas confortável; o quarto tinha uma cor dourada, porque o chão, as paredes, o teto, a porta, eram feitos da mesma qualidade de pinho, recoberto de cera. Defronte da porta, abria-se uma janela muito baixa, pois o teto era esconso. Na mesma direção estava a mesa com a bacia de lavar as mãos e o jarro; próximo, outra mesa com penteadeira de espelho. De cada lado da porta, as camas, sobre as quais se empilhavam enormes almofadas azuis, descomunais.
E nada mais havia. Faltavam o guarda-roupa e outras peças habituais. Ei-los encerrados numa cela de madeira dourada com dois leitos cobertos de lençóis e fronhas azuis! Olharam um para o outro e desataram a rir, admirados com aquela nudez que lhes fazia sentir ainda mais o isolamento.
Bateram à porta. Era um carregador com a bagagem, rapaz robusto, pálido, de faces encovadas e bigodinho louro e hirsuto. Gudrun ficou a observá-lo enquanto ele colocava as malas e se retirava, muito calado, com passadas fortes.
- Não acha isso tudo muito primitivo? - perguntou Gerald.
O quarto não estava suficientemente aquecido e Gudrun teve um breve arrepio.
- É adorável - respondeu ela, procurando iludir-se. - Repare no tom da madeira: delicioso, parece mesmo o interior de uma noz.
De pé, Gerald observava a moça, mordia o bigode e balançava levemente o corpo. Olhava-a com olhos penetrantes e corajosos, dominado por uma paixão constante, que pesava sobre ele como uma maldição.
Gudrun debruçou-se à janela, cheia de curiosidade.
- Ah, que beleza!... - exclamou quase involuntariamente.
Em frente estendia-se um vale, sob todo o espaço do céu, fechado entre declives de neve e rochedos escuros; ao fundo, como se fosse o centro da terra, havia uma encosta branca, lisa, com dois picos que cintilavam ao crepúsculo. E a vista perdia-se naquele berço de neve silenciosa que havia entre as vertentes imponentes e orladas de pinheirinhos agrestes que lhes serviam de cabeleira. Esse berço imaculado prolongava-se ate à barreira da eternidade, onde as muralhas de neve e de pedra se elevavam impenetráveis e os cimos das montanhas roçavam o céu. Era realmente o centro, o eixo, o umbigo da terra, que, pura, inacessível, inultrapassável, dormia ali como propriedade do firmamento.
Tudo aquilo embevecia Gudrun. Ajoelhou-se em frente a janela, apoiando o queixo nas mãos em atitude de arrebatamento. Chegara, finalmente! Atingira o seu destino! Gozaria ali a sua felicidade, engastando-se como um cristal no próprio centro da neve.
Gerald, curvado sobre ela, olhava, por cima do ombro da moça, a paisagem lá fora. Mas sentia-se sozinho. Gudrun havia partido. Partira para sempre, deixando apenas uma névoa fria em volta do coração dele. Contemplou o vale coberto de flocos brancos, àquele enorme cul-desac cheio de neve e as cristas das serras sob o céu azul. Não havia caminhos por onde escapasse; rodeavam-no o silêncio o frio, a cintilante alvura da tarde moribunda. Gudrun permanecia ajoelhada defronte da janela como uma sombra em frente a um altar.
- Gosta disto? - perguntou-lhe ele numa voz que soou desconhecida e distante. Ao menos assim ela saberia que ele estava ali. Mas Gudrun limitou-se a desviar o rosto, furtando-se aos olhares do homem. Este percebeu que ela havia chorado; e aquelas lágrimas, produto da sua estranha religião, reduziram-no a uma coisa insignificante.
Pegou no queixo de Gudrun e ergueu-lhe a cabeça. Os olhos dela, azul-escuros, molhados do pranto, dilatavam-se como se estivessem assustados. Gudrun o viu através de uma névoa, e sinto aterrorizada. As pupilas de Gerald, pequeninas, vivas, pareciam-lhe agora sobrenaturais. Ela abriu os lábios, a custo, enquanto respirava ofegante.
A paixão foi-se apoderando de Gerald, mais e mais, como o som de um sino de bronze, forte, bem timbrado, impossível de deter. E, como de bronze, igualmente, seus joelhos se endureceram, ao inclinar-se sobre a face macia da moça, cuja boca estava entreaberta e cujos olhos se arregalavam sob a impressão de um medo singular. Ao contato da mão de Gerald, o queixo de Gudrun era brando e sedoso. Ei-lo, poderoso como o próprio inverno, aquele homem dominador; as mãos eram de metal, mas cheias de vida, insensíveis, impossíveis de dobrar. E o coração, dentro do peito, badalava como um sino.
Ergueu-a nos braços. Ela estava frouxa, inerte, sem movimentos! Nos olhos, onde as lágrimas não haviam secado, a dilatação aumentara, e ela entrara numa espécie de desmaio, de fascinação, já vencida. Gerald tinha uma força sobre-humana, inquebrável, superior às leis da natureza.
Ergueu-a e estreitou-a contra si. Aquele corpo mole e sem resistência pesava-lhe nos braços rijos, nos membros de bronze, provocando-lhe profundos desejos que o enlouqueceriam se não conseguisse satisfazê-los. Gudrun debatia-se convulsa, tentando evitá-lo. Mas o amor de Gerald estalava como uma chama de gelo, e ele apertava-a duramente, com músculos de aço. Antes a destruiria, mas não a deixaria fugir.
A força do homem era excessiva para a fragilidade da mulher, que se abandonou, fraca e submissa, ofegante, em vago delírio. Para ele, afigurava-se-lhe tão carinhosa, tão prometedora de felicidade, que Gerald desejaria ser condenado eternamente a renunciar um segundo àquele prazer, quase doloroso.
- Meu Deus, - disse com o rosto transfigurado, estranho e ardente - que será de nós?
Ela ficara quieta, perfeitamente calma; a expressão era infantil e os olhos sombrios não o desfitavam. Mas estava perdida para ele, como se o houvesse renegado.
- Amar-te-ei para sempre - declarou Gerald, fitando-a.
Gudrun, porém, não o ouvia. Jazia desfalecida, examinando-o como a alguém que lhe fosse impossível compreender; como uma criança observando um adulto, sem esperança de o entender, submetida e nada mais.
Gerald beijou-a nas pálpebras, de maneira que ela não conseguia vê-lo. Gostaria que ela desse algum sinal, qualquer prova de entendimento, de concordância. Ela, porém, continuava silenciosa, distante, criança que não entende as coisas e que se sente perdida. E ele tornou a beijá-la, renunciando a tudo, por fim.
- E se fôssemos tomar café e comer Kuchen? - sugeriu ele.
O crepúsculo esmaecia cor de ardósia, através da janela. Gudrun fechou os olhos à monótona superfície daquela maravilha morta, e tornou a abri-los ao mundo quotidiano.
- Está bem - respondeu laconicamente, reencontrando de súbito a vontade. Voltou de novo à janela. Sobre o berço da neve e sobre as altas encostas lívidas caíra uma noite azulada. Mas, de encontro ao céu, os picos eriçavam-se róseos, brilhantes, translúcidos, como rebentos de uma planta luzidia voltada para o mundo celestial, adorável e distante.
Gudrun viu como tudo isso era belo, conheceu a imortalidade de que aquela beleza se revestia, enormes pistilos cor-de-rosa, fogo de neve no crepúsculo azulado do céu. Via, compreendia, mas não era parte daquele todo. Alma divorciada, a sua, excluída, exilada, e nada mais!
Lançou um último e saudoso olhar à paisagem e passou os dedos pelo cabelo, compondo o penteado. Gerald desatara as correias das malas e esperava por ela, observando-a. Gudrun percebeu que ele a mirava, o que a fez apressar-se de modo febril.
Desceram ao andar térreo; havia nos olhos de ambos como que um reflexo de outro mundo, tão brilhantes se mostravam. Descobriram logo Birkin e Úrsula sentados em um canto da mesa comprida, aguardando que eles chegassem.
"Têm tão bom aspecto! São tão simples!" pensou Gudrun, invejosa daquela espontaneidade, daquela inocência de crianças que ambos demonstravam e que ela jamais possuíra. Pareciam-lhe tão pueris!
- Deliciosos Kranzkuchen! - Magnífico, prodigioso, extraordinário, inexprimível - nota da tradutora), exclamou Úrsula, gulosamente. - Deliciosos!
- Vamos experimentar. Traga-nos Kafee mit Kranzkuchen - ordenou Gudrun ao garçom.
Depois sentou-se no banco, ao lado de Gerald. Birkin, olhando para eles, sentiu pelos dois uma ternura quase dolorosa.
- Gerald - disse -, acho este lugar realmente encantador. Prachtvoll, wunderbar, wunderschön, unbeschreiblich e todos os outros adjetivos da língua alemã.
O outro esboçou um sorriso.
- Também gosto muito - replicou.
As três mesas, de madeira branca bem esfregada, estavam postas ao longo das paredes, como em qualquer Gasthaus - Estalagem - nota da tradutora). Birkin e Úrsula tinham-se colocado de costas para aqueles tabiques de pinho encerado, e Gerald e Gudrun próximos deles, mais no extremo, perto da lareira. O compartimento era vasto, com um recanto para as bebidas, em tudo semelhante a um albergue rural, embora muito mais simples e despojado. Teto, paredes e assoalho em madeira encerada, e como única mobília, mesas e bancos; a lareira era verde, tão grande que ocupava uma parede inteira. As duas janelas não ostentavam cortinas. Começava a anoitecer.
Trouxeram o café, bom e quente, e um daqueles "bolos coroados".
- Um Kuchen inteiro! - gritou Úrsula. - Vocês ganharam mais do que nós. Quero um pedaço desse.
Havia outros hóspedes, dez ao todo, conforme Birkin deduziu: dois artistas, três estudantes, um casal e um professor com as duas filhas - todos alémães. Os quatro ingleses recém-vindos permaneceram no seu cantinho, belo posto de observação. Os alemães observaram os novos hóspedes, disseram qualquer coisa ao garçom e desapareceram. Não era hora de refeição, de forma que não tinham nada a fazer na sala de jantar, mas, depois de trocarem os sapatos vieram para a Reunionsaal - Sala de estar - nota da tradutora).
Os quatro ingleses ouviram, por instantes, sons de viola e de piano misturados com risos, gritos e canções. Como a casa era construída de madeira, a repercussão do ruído fazia-se por toda ela, de forma que os acordes da viola pareciam provir de um instrumento de crianças que tocassem em qualquer parte, e os do piano mais pareciam os de uma espineta.
O hospedeiro apareceu quando acabavam de tomar o café. Tratava-se de um tirolês espadaúdo, pálido, de faces encovadas e pele marcada pela varíola. Usava os mais florescentes bigodes que se podem imaginar.
- Querem ir à sala de estar para serem apresentados às senhoras e cavalheiros que lá se encontram? - perguntou, curvando-se e exibindo um sorriso que mostrou seus dentes largos e perfeitos. Com os olhinhos azuis fitava ora um ora outro, sentindo-se pouco à vontade no meio daqueles ingleses Sentia não saber falar o idioma deles e não tinha muita confiança no seu francês.
- Para irmos à sala e sermos apresentados às outras pessoas? - repetiu Gerald, sorridente.
Houve uns segundos de hesitação.
- Creio que seria bom - acudiu Birkin. - Quebraríamos o gelo de uma vez.
As senhoras puseram-se de pé, ruborizadas.
O Wirf - Dono da estalagem - nota da tradutora), com a sua figura loura, os ombros largos, passou, pouco delicadamente, em primeiro lugar, dirigindo-se ao lugar de onde vinha o ruído. Abriu uma porta e introduziu os estrangeiros na sala do concerto.
Seguiu-se um silêncio, e os outros pareceram, por momentos, embaraçados. Os recém-chegados tiveram a sensação de estar sendo observados por uma multidão de criaturas da mesma raça. Mas o estalajadeiro inclinou-se para um homem baixinho, de olhar enérgico e fartos bigodes e disse-lhe em voz confidencial:
- Herr Professor, darf ich vorstellen... Permita-me que lhe apresente, senhor professor... - nota da tradutora).
O homem reagiu prontamente. Cumprimentou com a cabeça os novos hóspedes, sorriu e assumiu uma franca atitude de camaradagem:
- Nehmen die Herrschaften Teil an unserer Unterhaltung? - Dignam-se tomar parte na nossa festa? - nota da tradutora) - foram as suas palavras, ditas com vigor e convicção.
Os quatro ingleses, risonhos, deixaram-se ir até ao meio da sala, com certo acanhamento. Gerald, fazendo de orador oficial, respondeu que teriam muito gosto em tomar parte no sarau. Gudrun e Úrsula, rindo animadamente, percebiam que os homens não tiravam os olhos de cima delas. Ergueram então a cabeça, fitando o teto, e assumiram uma atitude majestosa...
O professor declarou os nomes de todos os presentes, sans cérémonie. Houve flexões de cabeça para a esquerda e para a direita. Só faltava ali o casal que tinham mencionado antes como hóspedes da estalagem. As duas filhas do professor, altas, claras, atléticas, vestidas simplesmente com blusas azul-escuros e saias de lã, de pescoço comprido e forte e cabelos cuidadosamente trançados coraram, cumprimentaram e puseram-se um pouco afastadas os três estudantes curvaram-se reverentes, na humilde persuasão de incutirem a ideia de que eram muito bem educados. Depois chegou a vez de um sujeito delgado e moreno, com olhos grandes, um tipo estranho, misto de engraçado e esperto, um gnomo original. Fez um curto cumprimento e o companheiro que se achava junto dele, rapaz louro e alto, bem vestido, corou e baixou a cabeça.
Estavam feitas as apresentações.
- Herr Loerke estava recitando para nós no dialeto de Colônia - explicou o professor.
- Desculpe a interrupção - disse Gerald. - Teremos também imenso prazer em ouvi-lo.
Seguiu-se um novo cumprimento e oferta de lugares. Gudrun, Úrsula, Gerald e Birkin sentaram-se em confortáveis sofás, de costas para a parede. A sala era, como toda a casa, de madeira encerada. Havia piano, canapés, cadeiras e duas mesas com livros e revistas. Apesar da ausência total de ornatos - exceto no que respeitava ao fogão enorme, azul - não se deixava de sentir conforto e bem-estar.
Herr Loerke era o homenzinho de rosto infantil. Tinha a cabeça redonda, grande, olhos vivos como os de um mico e todo ele denotava sensibilidade. Relanceou o olhar pelos intrusos, conservando-se um tanto à parte.
- Queira continuar com a declamação - insistiu o professor, com voz suave, embora levemente autoritária. Loerke, que estava sentado no banquinho do piano, um pouco curvado, baixou os olhos e não respondeu.
- Seria muito agradável para nós... - interveio Úrsula, que estava há muito tempo preparando a frase em alemão.
Então, subitamente, o homenzinho, ate ali calado, avançou e, dirigindo-se aos primeiros ouvintes, continuou a história exatamente no ponto em que a havia interrompido. Com voz brincalhona, muito bem timbrada, fez a imitação de uma disputa entre uma velhota de Colônia e um condutor de trens.
O corpo daquele homem, débil e mal formado, assemelhava-se ao de um rapazola, porém a entonação era a de um adulto, com grande dose de sarcasmo; possuía a inflexão necessária, denunciando inteligência crítica e penetrante. Gudrun não conseguiu perceber patavina daquele monólogo, mas estava encantada com a figura dele. Devia ser artista, senão não conseguiria tanta perfeição e naturalidade. Os alémães não cessavam de rir ao ouvir as palavras tão engraçadas daquele divertido dialeto. No meio das gargalhadas, olhavam disfarçadamente para os ingleses, com deferência Gudrun e Úrsula não puderam deixar de rir também. A sala quase vinha abaixo com tanto barulho. Os olhos azuis das filhas do professor já estavam cheios de lágrimas provocadas pelo riso; as faces das moças estavam coradas de prazer. O pai fazia reboar pela casa estrondosas manifestações de hilaridade, e os estudantes, no auge da alegria, curvavam a cabeça ate os joelhos. Úrsula, surpreendida, perscrutava em volta de si e, involuntariamente, acompanhava as expansões da assembleia. Virou-se uma vez para a irmã e a irmã para ela, e as duas riram a valer. Loerke lançou-lhes um rápido olhar. Birkin divertia-se discretamente. Gerald mantinha-se ereto, com expressão brilhante e divertida. E as risadas prosseguiram, com intensidade crescente; as filhas do professor remexiam-se nas cadeiras, o pai mostrava as faces afogueadas e as veias do pescoço salientes: sentia-se sufocado e tinha espasmos de riso silencioso. Os estudantes soltavam gritos inarticulados que terminavam em explosões que não podiam evitar. Mas de repente, o monólogo do artista cessou; as exclamações subsistiram ainda, decrescendo gradualmente. Úrsula e Gudrun enxugaram os olhos, e o professor exclamou, em voz alta:
- Das war ausgezeichmet, das war famos... Soberbo, famoso! - nota da tradutora).
- Wirklich famos! Famosíssimo! - nota da tradutora) - repetiram em eco as filhas, extenuadas.
- Que pena não termos entendido! - lamentou Úrsula.
- Oh, leider, leider! - Infelizmente, infelizmente! - nota da tradutora)
- comentou o professor.
- Não compreenderam? - indagaram os estudantes, dirigindo-se finalmente aos estrangeiros. - Ja, das ist wirklich schade, das ist schade, gnadige Frau. Wissen Sie... - Sim, realmente foi pena, minha senhora. Acredite. - nota da tradutora).
Estabelecera-se a familiaridade, e os recém-chegados, como elementos novos, misturaram-se ao grupo, aumentando a animação da sala. Gerald estava como em sua casa, falava com desembaraço e boa disposição; assim nesta sua expressão mostrava quanto aquilo o divertia. Talvez sucedesse o mesmo a Birkin. Permanecia ainda tímido e contrafeito, embora atento a tudo o que se passava.
Pediram a Úrsula que cantasse Ano Lawrie - como dizia o professor. Fez-se um silêncio cheio de deferência. Nunca em sua vida fora tão cortejada. Gudrun acompanhou a irmã ao piano, tocando de cor.
Úrsula tinha uma voz bem timbrada, mas geralmente sem sensibilidade, o que prejudicava suas canções. Naquela noite, porém, sentiu-se mais à vontade e esforçou-se para cantar melhor. Birkin ouvia atentamente, e a jovem, cheia de confiança, tinha a impressão de que era um pássaro que flutuava no espaço, enquanto a voz se evolava, equilibrando e modelando a canção com um movimento de asas, como se levada pelo vento. Cantou com muita expressão, animada pelo interesse com que a assistência a distinguia, e considerando-se feliz em proceder daquela maneira, compenetrada da emoção e do domínio que exercia aquela gente toda e sobre si própria - contente por ser agradável e proporcionar distração aos alémães.
Quando terminou, estes, sensibilizados, cheios de admiração e ainda envoltos numa deliciosa melancolia, felicitaram-na efusiva e respeitosamente, sentindo que nenhum louvor seria demasiado.
"Wie schön, wie rührend! Ach, die schottischen Lieder, sie haben so viel Stimmung! Aber die gnädige Frau hat eine wunderbare Stimme; die gnädige Frau ist wirklich eine Kunstlerin, aber wirklich!" - Lindo, comovente! Ah, essas canções escocesas fazem tanto bem à gente! Esta senhora possui uma voz maravilhosa. É, de fato, uma artista, não tenham dúvida! - nota da tradutora).
Úrsula, radiante, parecia uma flor desabrochada ao sol da manhã. Pressentia que o marido a fitava, como se tivesse ciúmes, e o peito arfou-lhe mais. Considerava-se feliz, como um astro que houvesse conseguido atravessar as nuvens com os seus raios de ouro. Todos, aliás, pareciam contentes e satisfeitos. Tudo decorria às mil maravilhas.
Depois do jantar desejou sair para admirar a natureza. Os outros tentaram dissuadi-la; estava tanto frio! "Só para ver", disse ela.
Agasalharam-se os quatro e pouco depois se achavam num mundo vago e insubstancial, feito de neve, povoado de espectros que, de encontro às estrelas, projetavam sombras confusas. O frio era realmente intenso. Úrsula não queria acreditar que era o ar que lhe entrava pelas narinas. Dir-se-ia antes alguma coisa consciente, malévola, com premeditações de assassino.
No entanto, era belo o espetáculo: silêncio profundo na neve sombria, intoxicante, incompreensível, e aquele ser invisível interpunha-se entre eles e as coisas visíveis, entre os homens e os astros flamejantes. Úrsula descobriu Órion erguendo-se no céu. Maravilhoso a ponto de dar vontade de gritar!
Em toda a volta o berço de neve, dura sob os pés, enquanto o frio atravessava os sapatos. Era noite, era silêncio. A jovem imaginava poder ouvir as estrelas. Estava convencida de que ouvira o movimento musical das esferas celestes. Os astros estavam quase ao alcance da mão. Úrsula teve a ilusão de que era uma ave voando por entre a harmonia do universo.
Chegara-se mais ao corpo de Birkin. E, de repente, pensou que desconhecia os pensamentos do marido. Ignorava por onde vaguearia o espírito dele.
- Meu amor! - exclamou ela, parando para fitá-lo. Birkin empalidecera e brilhava em seus olhos um clarão fugidio. Ao ver o rosto da mulher tão próximo do seu, tão meiga e solícita, Birkin beijou-a suavemente.
- O que é? - perguntou-lhe.
- Você me ama? - quis saber ela.
- Tanto, tanto! - respondeu Rupert, tranquilo.
Úrsula aconchegou-se mais.
- Nem tanto... - duvidou.
- Muitíssimo - garantiu o marido, melancólico.
- Fica triste por isso? volveu a mulher, apreensiva. Birkin apertou-a contra si, beijando-a sempre; e disse, de forma quase inaudível:
- Isso não; mas sinto-me como um pedinte, sinto-me pobre. Ela calou-se, olhando agora para o firmamento. Depois, retribuiu-lhe os beijos.
- Você não é um mendigo - explicou, preocupada. - Não é nenhuma vergonha dedicar-me um pouco de amor.
- Mas é vergonhoso sentir-me um homem muito pobre.
- Por quê?
Birkin ficou imóvel, mantendo-a entre os braços. O ar que os envolvia vinha do alto das serras invisíveis.
- É que sem você - disse ele - eu não poderia suportar este frio, este lugar eternamente gelado. Não poderia; ele penetra-me, incisivo, e destrói-me a vida toda.
Úrsula beijou-o mais uma vez.
- Odeia-o, então? - indagou, muito admirada.
- Se não estivesse perto de você, detestá-lo-ia, com certeza.
- Mas as pessoas são agradáveis...
- Refiro-me ao silêncio, ao ar agreste, à neve constante. Ficou pensativa; mas logo sua alma foi-se refugiar na alma dele.
- Sim, - concordou é bom estarmos aquecidos, na companhia um do outro.
Voltaram para casa. Viram as luzes douradas da hospedaria cintilando através da noite silenciosa e glacial. Na imensidade do vale pareciam pequeninas, como um cacho de bagos amarelos. Assemelhavam-se a um ramalhete de raios solares, minúsculos e alaranjados no meio da escuridão e da neve. Por trás dele erguia-se a sombra da montanha; como um fantasma, ocultava o fulgor das estrelas.
Aproximavam-se já da hospedaria. Notaram que saia de la um homem com uma lanterna na mão. O que fazia com que os pés dele, presos num círculo de luz, brilhassem sobre a neve. Na vastidão da noite ele não era senão um vulto escuro pequenino. Dirigiu-se para uma dependência, cuja porta abriu; e chegou logo o cheiro das vacas, cheiro quente que se espalhou pesado, no ar frio. Birkin e Úrsula distinguiram dois animais na escuridão do estábulo. A porta fechou-se, então, sem deixar que se filtrasse a menor luz. Tudo aquilo recordou mais uma vez a Úrsula a sua infância, a casa, o Marsh, a viagem de Bruxelas e, estranha coisa, lembrou-se de Anton Shrsbensky!
"Meu Deus, poderei suportar esse passado desaparecido no abismo Admitirei a ideia de que ele jamais existiu?" Lançou os olhos em torno, ao silencioso e gelado, sobre o qual dominavam os astros e a temperatura glacial; e, sobrepondo-se a esse, viu perpassarem as imagens de lanterna mágica do outro mundo, posto em evidência por uma luz irreal: o Marsh, Cosseghay, Ilkeston... Percebeu a sombra fantástica de uma Úrsula e um conjunto de outras sombras sem a menor realidade. Era ainda a projeção estranha e consciente da lanterna mágica. Se aqueles vidros, ao menos, se quebrassem todos! Preferia não ter nenhum passado na sua vida. Gostaria de ter descido cem Birkin, por aquelas vertentes, como se caísse do céu diretamente naquele recanto da terra, sem ter atravessado uma infância obscura. Com tudo o que a manchava. Achava que a memória se divertia à sua custa. Com que direito a mandava recordar. Por que não experimentava um banho lustral, de puro esquecimento, ou não nascera de novo sem as tristezas e as evocações da vida passada? Estava agora na companhia de Birkin, acabava efetivamente de renascer - ali, sob as estrelas, pisando a neve. Que lhe importavam os pais e os antecedentes? Sentia-se nova, ainda não gerada, sem pai, nem mãe, sem família, ela própria somente, virginal como a prata, pertencendo apenas à unidade que formava com Birkin, unidade que vibrava em notas profundas, ressoando no coração do universo e da irrealidade, onde ate aí jamais existira.
Mesmo da própria irmã se considerava separada, distante, muito longe, sem nenhuma ligação, pois esta Úrsula vivia num mundo diverso e autêntico. Aquele velho planeta em que decorrera o passado sombrio estava desfeito! Erguia-se ela, agora livre, nas asas de uma existência diferente.
Gudrun e Gerald não tinham ainda voltado. Haviam descido a encosta fronteira à casa, enquanto Úrsula e Birkin faziam outro tanto na colina do lado direito. Gudrun fora impelida por um desejo singular. Queria precipitar-se cada vez mais além ate atingir o vale mergulhado em neve, e depois subir a vertente branca que fechava o caminho, como pétalas no coração do gelo, no misterioso umbigo do mundo. Sentia que ali, para trás do obstáculo terrível e enigmático, estava o arreio da terra, cercado por um ramalhete de picos e de serras, e lá naquele ponto não atingido, acabaria ela por se consumir. Se ao menos pudesse lá chegar, sozinha, àquele centro de neves perpétuas e inacessíveis, rodeadas de rochedos, poderia unifica-se com a natureza, seria ela mesma o silêncio eterno e infinito e adormeceria alheia ao tempo, ao âmago de todas as coisas.
Por fim voltaram à casa e entraram na Reunionssal. Gudrun tinha curiosidade de ver o que faziam ali. Os homens despertavam-lhe a curiosidade. A existência começava a proporcionar-lhe um sabor diferente: todos se prostravam diante dela, lépidos e viçosos.
A animação era grande. Dançavam, em conjunto a Schuhplat teln, número tirolês em que se bate palmas e os homens levantam o par na última marcação. Os alémães dançavam corretamente - eram quase todos de Munique. Gerald não destoava no grupo. Em um canto havia três músicos que tocavam viola, e o espetáculo tomava aspectos de imensa alegria e confusão. O catedrático iniciava Úrsula nos segredos da dança, batendo o pé, dando palmas e levantando-a no ar com espantosa força e entusiasmo. Quando chegou a parte final, o próprio Birkin se portou dignamente com uma das filhas do professor, que era jovem, robusta e visivelmente feliz. Toda a gente se divertia no meio de enorme alarido.
Subitamente a dança parou. Loerke e os estudantes correram para preparar bebidas. Houve um clamor de vozes excitadas, um bater de tampas e canecas e o grito geral de a saúde! Loerke estava em toda a parte ao mesmo tempo, como um gnomo oferecendo copos às senhoras, dizendo gracejos, mexendo com os homens e atrapalhando o garçom.
Tinha vontade de dançar com Gudrun. Desde que a vira ambicionara conhecê-la melhor. Ela, por sua vez, pressentira isso, e esperava que ele se aproximasse. Mas uma espécie de aborrecimento o conservava afastado e Gudrun chegou a pensar que o rapaz antipatizava com ela.
- Schuhplatteln, gnädige, Frau? - Uma dança triste, minha senhora? - nota da tradutora) - perguntou-lhe o companheiro de Loerke, rapaz louro e bem constituído. Ela o achava meio melífluo, demasiadamente humilde. Mas queria dançar e o moço louro, que se chamava Leitner, não era feio, apesar de suas maneiras acanhadas e levemente suspeitas; talvez a modéstia disfarçasse a timidez inata. Aceitou-o, pois, como seu par. Os instrumentos foram outra vez tangidos, e a dança principiou Gerald ia à frente de todos, conduzindo uma das filhas do catedrático. Úrsula dançava com um dos estudantes, Birkin com a outra filha do professor, este com Frau Kramer e os homens restantes, uns com os outros, tão entusiasmados como se houvesse entre eles promiscuidade de sexos.
Pelo fato de Gudrun estar dançando com o moço suave e elegante, seu companheiro Loerke ficou mais amuado e furioso do que nunca, e fingiu ignorar a existência da moça. O incidente magoou-a, porém distraiu-se dançando depois com o professor, que era forte como um touro no cio e cheio de energia rude, embora de idade já madura. Se o enfrentasse a sangue-frio não o teria podido suportar, mas, no ardor da dança, tudo ia bem e chegou a achar agradável ser erguida no ar com tanto ímpeto. Por seu lado, o professor estava radiante, e contemplava-a com os seus estranhos olhos azuis, repletos de fogo galvânico. Se bem que detestasse a animalidade protetora e semipaternal com que ele a mirava, Gudrun apreciou-lhe a energia.
A sala carregava-se de excitação, de entusiasmo estrepitoso e sensual. Loerke permanecia afastado de Gudrun, a quem desejaria falar, mas havia como que uma barreira de espinhos, além de que sentia pelo seu amigo Leitner certo ódio impiedoso e mesmo sarcástico. Leitner era pobre e dependia do companheiro. E este ria-lhe no rosto, caçoando cruelmente dele, fazendo-o corar e despertando-lhe, na alma, inútil ressentimento.
Gerald, que se saíra muito bem, dançava outra vez com a filha mais nova do professor, e ela desfalecia quase de paixão virginal, achando-o tão belo, tão sedutor! Gerald mantinha-a sob o seu poder, como se mantém um pássaro palpitante, uma criaturinha desnorteada, ruborizada e confusa. Sorria só por a ver tão excitada entre as suas mãos, a estremecer tão violentamente quando a arrebatava no espaço. Por fim, a jovem já sentia um amor tão intenso pelo seu par que mal podia articular sensatamente qualquer palavra.
Birkin e Úrsula dançavam juntos. Nos olhos dele cintilavam rápidos clarões; dir-se-ia que aquele homem se transformara em um ente perverso, instigador, verdadeiramente mau. A mulher tinha medo dele, mas sentia-se fascinada. Numa visão nítida, via-o passar diante dela, irônico, de olhar lúbrico; aproximava-se dela em movimentos sutis, às vezes indiferentes, outros perigosos. Faziam-na desmaiar de medo aquelas mãos tão estranhas, vivas, astuciosas, que se acercavam inevitáveis do peito da mulher e a levantavam em gosto pouco sério, num impulso cheio de intenções, e a conservavam no ar sem emprego de força, por uma espécie de magia negra. Úrsula, por instantes, revoltou-se. Aquilo era horrível. Precisava quebrar-lhe o encanto. Antes, porém, de formular definitivamente a solução, já se tinha de novo submetido, cedendo ao pavor que ele lhe inspirava. Birkin estava a par do que ela pensava, isso era bem visível no seu sorriso e no modo de piscar os olhos. Era dele a responsabilidade, deixá-lo-ia fazer o que lhe aprouvesse!
Quando se tornaram a encontrar, no escuro, e sozinhos, ela sentiu rondar em sua volta o espírito silencioso do homem e aquilo perturbou-a e assustou-a. Por que se tornara ele assim?
- Que quer? - perguntou cheia de horror.
Mas o rosto de Birkin brilhou mais perto, desconhecido, terrível. Úrsula estava hipnotizada. O seu primeiro movimento era o de o repelir, desfazer o encanto e pôr fim àquela brutalidade sardônica. Sentia-se, contudo, fascinada em demasia preferia sujeitar-se, conhecê-lo melhor. Que iria acontecer?
Rupert atraía-a e afugentava-a ao mesmo tempo. A atração que se irradiava daquele rosto insinuante e irônico, e que se transmitia de seus olhos semicerrados, dava a Úrsula vontade de se esconder e de o espiar de qualquer lugar desconhecido dele.
- Por que está assim? - perguntou, insurgindo-se contra o marido num ímpeto súbito e corajoso.
O fulgor que ardia no olhar de Rupert concentrou-se ao fita-la atentamente. Suas pálpebras se abaixaram num movimento rápido e desdenhoso, para se erguerem logo na mesma provocação impiedosa. Ela então cedeu, deixando-o proceder como quisesse. Aquele feitio sensual tornava-o ao mesmo tempo atraente e repulsivo. Mas como era ele o responsável, Úrsula queria ver o que o marido pretendia fazer.
Afinal, poderiam comportar-se como quisessem - pensou Úrsula no momento em que se deitou. Por que haveriam de eximir-se a qualquer coisa que lhes proporcionasse satisfação? Seria isso, por acaso, degradante? Quem se importaria? Os atos aviltantes existiam, mas a sua realidade é que seria diferente. Rupert era tão descarado, tão sem freios! Não parecia horrível ver agora um homem que podia ser tão espiritual, tão inteligente...? (Úrsula quis impedir a irrupção dos seus pensamentos e concluiu: vê-lo agora tão bestial!) Sim, ele e ela, como dois animais... que vergonha! Estremeceu ao recordar-se. E afinal, por que não? Esta ideia alegrou-a. Por que não haviam de ser bestiais e percorrer toda a escala das sensações? E que bom que era sentir-se envergonhada! No fundo, experimentava certa alegria. Passando por tudo quanto era proibido, adquiriria maior experiência. Já não se achava perplexa, sequer, retomara todo o domínio de si mesma. Por que não? Era livre, visto conhecer tudo e não recuar perante nenhum pecado.
Gudrun, que estivera observando Gerald na Reunionssal, pensou de repente:
"Pode ter tantas mulheres quantas quiser; está na sua natureza. É absurdo considerá-lo monógamo. A poligamia é a sua vocação."
Sem ela querer, este pensamento dominava-a e impressionava-a. Era como se tivesse lido na parede, também o seu Mene! Mene! - Cf. Daniel, V, 25 - nota da tradutora).
Não era apenas fantasia. Parecia que, ao mesmo tempo, uma voz lhe falava no íntimo e tão claramente, que, por instante, Gudrun acreditou estar inspirada.
"É a verdade nua e crua", disse ela consigo mesma.
Sabia muito bem, e implicitamente, que sempre fora aquela a sua opinião. Mas convinha guardar tal ideia, na sombra, quase fora dela mesma. Devia conservá-la secreta. Só ela é que devia estar a par do fato, fazendo o possível para não a aceitar completamente.
Tomou a inabalável resolução de combater Gerald. Um dos dois triunfaria, aniquilando o outro. Qual seria então? Procurou fortalecer o espírito. Tinha confiança, o que lhe permitiu um sorriso. Esboçava-se, assim, em favor de Gerald, uma certa piedade desdenhosa, misturada de ternura. Mas não: não haveria misericórdia!
Todos se recolheram cedo aos seus quartos. O professor e Loerke enterraram-se em um sofá, bebendo. Observaram Gudrun enquanto esta subia a escada.
- Ein schönes Frauenzimmer - Bela mulher! - nota da tradutora) - disse o primeiro.
- Ia! - concordou Loerke, secamente.
Gerald atravessou o quarto de dormir pé ante pé, de forma esquisita e, chegando à janela, debruçou-se e olhou para fora. Depois, voltou o corpo e encarou Gudrun, com olhos ardentes. Tinha nos lábios um vago sorriso. Para ela, dir-se-ia que aquele homem havia aumentado de estatura; viu-lhe luzirem aquelas sobrancelhas muito louras, quase brancas, que se juntavam no meio da testa.
- Que acha de tudo isto? - perguntou.
Parecia rir interiormente, sem mesmo dar por isso. Gudrun fitou-o. Era agora, para ela, como um fenômeno, e não um ser humano: espécie de criatura devorada pela gula.
- Acho muito bom - foi a resposta.
- Quem você achou mais simpático de todos os que estavam lá em baixo? - continuou Gerald, parado junto a ela, muito alto, resplandecente, de cabelos lisos e lustrosos.
- De quem gostei mais? - repetiu Gudrun, desejosa de dizer a verdade, mas achando difícil decidir-se. - Não sei, não os conheço bastante. E você, com quem simpatizou mais?
- Ora, para mim são todos iguais... Não gosto nem desgosto de ninguém. São indiferentes. Queria apenas saber a sua opinião.
- Mas por quê? - Gudrun empalideceu. Nos olhos deles intensificava-se uma expressão vaga, abstrata.
- Gostaria de saber - elucidou.
Ela se afastou, resolvida a quebrar o encanto. Sentia que aquele homem recuperava, de forma estranha, o ascendente que tivera sobre a sua pessoa.
- Pois bem... Por enquanto não posso dizer.
Foi ate diante do espelho para tirar os grampos dos cabelos. Todas as noites costumava ficar algum tempo escovando aqueles cabelos finos e escuros. Fazia parte do ritual da sua vida.
Gerald seguiu-a e colocou-se atrás dela. E Gudrun, com a cabeça curvada para frente, continuava a desembaraçar a cabeleira solta e farta, recolhendo os últimos grampos. Quando levantou os olhos e descobriu a imagem dele no espelho, ali de pé, a observá-la, sem consciência do que fazia, viu que seu olhar parecia sorrir, mas não sorria verdadeiramente.
Gudrun sobressaltou-se. Foi necessária toda a sua coragem para continuar o que fazia. Mas estava longe, muito longe de se sentir à vontade.
- Que pretende fazer amanhã? - perguntou-lhe, enfim, mostrando-se indiferente, enquanto o coração lhe batia apressadamente; tinha os olhos tão brilhantes de excitação que ele não poderia, assim pensou, deixar de notar. Mas Gerald parecia cego, como um lobo que ficasse cego ao contempla-la. Extraordinário combate entre a sua consciência de mulher e a daquele rapaz misteriosamente iniciado na magia negra!
- Não sei - respondeu ele. - E você, o que gostaria de fazer?
Falava ao acaso, com o espírito muito distante.
- O que você quiser; qualquer coisa me serve - respondeu ela vagarosamente.
Enquanto isso, pensava: "Meu Deus, por que estou tão nervosa. Por que você é assim, Gudrun, sua tola? Se ele desconfiar, acaba-se tudo para sempre; você bem sabe que será para sempre, se descobrir o estado absurdo em que você se encontra...
Depois, sorriu à sua imagem refletida, como se tudo aquilo não passasse de brincadeira de crianças. Entretanto, o coração enfraquecia e ela sentia que podia desfalecer. Podia vê-lo ainda, no espelho, atrás dela, alto e curvado, louro e terrivelmente assustador. E Gudrun lançava-lhe olhares furtivos, disposta a conceder-lhe fosse o que fosse, uma vez que ele não soubesse que o estava observando. Gerald, contudo, nada percebia olhava vagamente, com o olhar brilhante pousado na cabeça da moça, de onde alastravam-se seus cabelos finos penteados com mão nervosa. Ela punha o rosto para o lado e escovava, escovava, como uma louca. Ainda que lhe devesse custar a vida, não seria capaz de se voltar para enfrentá-lo. Sentia nas costas a presença de Gerald, ameaçadora, sentia-lhe o peito firme, sólido, irresistível, apoiando-se sobre ela e tinha a impressão de que isso se lhe tornava insuportável, que tombaria aos pés dele dentro de poucos minutos, que se arrastaria no chão, deixando que o homem a aniquilasse.
Tal pensamento, espicaçando-lhe a inteligência clara, restituiu-lhe a presença de espírito; mas não ousava voltar-se. Gerald continuava de pé, imóvel no mesmo lugar. Reunindo todas as suas forças, Gudrun dirigiu-lhe a palavra, em voz cheia, ressonante, indiferente. Fizera apelo a tudo quanto lhe restava de autodomínio.
- Por favor, procure na minha mala o meu...
Mas a energia abandonou-a. "O meu... O meu quê?", perguntava a si mesma.
Gerald sobressaltou-se, admirado de que ela o mandasse procurar qualquer coisa. E Gudrun voltou-se então, muito pálida, com os olhos brilhantes, numa estranha excitação. Ele estava inclinado para a mala, desapertando as correias, distraído...
- Procurar o quê?
- Uma caixinha de esmalte... amarela... com um desenho...
Ao dizer isso, levantara-se e fora ao encontro do rapaz; baixou o braço, nu e soberbo, e começou a remexer no conteúdo da maleta, ate que descobriu a caixa, delicadamente pintada.
- É esta. Vê? - e colocou-a sob os olhos de Gerald.
Tinha conseguido frustrá-lo. Deixou-o apertar os cordões da mala, e acabou de ajeitar, às pressas, o penteado para a noite; depois, sentou-se para tirar os sapatos. Não desejava ficar outra vez de costas para ele.
Gerald fora logrado, iludido, mas não tinha consciência disso. Agora a superioridade era de Gudrun. Percebeu que ele não notara o medo terrível que se apossara dela; o coração pulsava agora pausada e sossegadamente. Estúpida, estúpida, em se ter assustado àquele ponto! Graças a Deus, Gerald não reparara em nada, no meio da cegueira que o envolvera.
Desatou vagarosamente os sapatos; ele, por sua vez, começou a despir-se. Ainda bem que o momento crítico havia passado. E Gudrun já se sentia apaixonada por aquele homem e novamente enternecida.
- É verdade, Gerald - disse, rindo. Que brincadeira tão engraçada a sua com a filha do professor!
- Qual brincadeira - perguntou ele, admirado.
- Pobre menina, estava louquinha por você! - continuou ela, com o ar mais divertido e amável deste mundo.
- Que tolice!
- Tolice? - tornou Gudrun, querendo aborrecê-lo. - E agora, a pobre pequena está neste momento na cama, morrendo de paixão. Acha você belo como nenhum outro homem. Que coisa engraçada!
- Engraçado?
- Fazia gosto ver vocês dois - prosseguiu em tom de censura complacente, que lisonjeou em Gerald a sua vaidade de macho.
- Francamente, Gerald! Pobre pequena!
- Não fiz mal nenhum a ela...
- Chegava a ser escandalosa a maneira com que você a segurava...
- Era a dança tirolesa - explicou ele, rindo e mostrando os dentes brilhantes.
- Ah... Ah... Ah... - fazia Gudrun, rindo também.
O som de sua voz motejadora ressoava dentro dele, como prolongada por estranhos ecos. Quando adormeceu, parecia encolhido no leito e enrolado na sua própria força.
Gudrun dormiu profundamente, num sono vitorioso. De repente, despertou. As paredes de madeira do quarto iluminavam-se com a luz da aurora, que vinha através da janela baixa. Erguendo a cabeça, descobriu lá embaixo, no vale, a neve ainda pouco visível; parecia mágica, em tons de rosa. Viu também, no sopé da colina, a franja de pinheirinhos e um vulto magro que se movia no espaço fracamente iluminado...
Consultou o relógio. Eram sete horas. Gerald ainda estava profundamente adormecido. E ela já se sentia tão desperta que chegava a se sentir irritada. Que lucidez inflexível e metálica! Ficou estendida na cama, a olhar para ele.
Gerald dormia escravizado à sua derrota, e também ao seu vigor. Mas Gudrun considerava-se ainda mais vencida. Perante ele, recuava sempre amedrontada. Ali estava agora na cama, a contemplá-lo, a imaginar o que aquele homem significava no mundo. Tinha vontade livre, independente, com toda certeza. Lembrou-se da revolução que se fizera em suas minas, em tão pouco tempo. Qualquer problema que precisasse resolver, por mais árduo e difícil, conseguia sempre dominá-lo, disso estava ela também convencida. Se uma ideia se metia em sua cabeça, não descansava ate a colocar em prática. Sabia fazer surgir a ordem em meio à confusão. Em qualquer situação intrincada ele sabia encontrar a solução. Assim era Gerald.
Durante alguns instantes, Gudrun deixou-se arrebatar pelas asas da ambição. Gerald, com a sua força de vontade e o dom de compreender o mundo atual, seria a pessoa indicada para resolver os problemas novos, como o da industrialização na vida moderna. Gudrun não duvidava de que ele, com o decorrer do tempo, efetuaria as reformas que desejasse: reorganizaria, decerto, todo o sistema industrial. Quanto a isso não tinha dúvidas. Para tais coisas era um instrumento maravilhoso: jamais vira outro homem dispor de tamanha energia. Poderia o próprio Gerald não estar compenetrado dessa verdade; Gudrun, porém, sabia-o a perfeição. Necessitava, todavia, de alguém que o empurrasse, que lhe desse o impulso e a consciência da ação. Disto era ela capaz. Casariam, o marido seria deputado do Partido Conservador, e haveria de esclarecer a grande confusão que girava em torno da indústria e do trabalho. Soberbo e destemido, dominador por natureza, sabia que, na vida, como na matemática, todos os problemas são suscetíveis de resolução. E Gerald resolvê-los-ia sem que, nessa tarefa, o movessem interesses de qualquer espécie. Ninguém mais honesto, na realidade.
O coração da moça pulsava rápido: ei-la voando nas asas do entusiasmo, idealizando o futuro. Gerald seria um Napoleão da paz, ou um Bismarck, e ela a sua inspiradora. Tinha lido as cartas de Bismarck e ficara profundamente impressionada com elas. Mas Gerald talvez ainda fosse mais independente, mais intrépido do que o grande estadista.
Enquanto permanecia naquele arrebatamento, banhada pela estranha e falsa luz da esperança numa vida feliz, qualquer coisa se quebrou dentro dela e começou a sentir-se invadida por terrível descrença, como se uma ventania se levantasse de subido e varresse com ela seus bons pensamentos. Tudo agora se transformava em ironia, tudo tinha um sabor sarcástico. E, ao reconhecer a inutilidade de suas ideias e de seus projetos, sentiu a angústia de uma inegável realidade.
Observava-o enquanto ele dormia. Tão belo parecia, que se julgaria constituir um instrumento de perfeição. E, ao espírito dela Gerald significava na verdade um instrumento puro e sobre-humano. Esse caráter ia-se-lhe revelando cada vez mais nítido a ponto de Gudrun desejar ser Deus para se servir de Gerald como de uma ferramenta.
Mas, no mesmo momento, surgiu a pergunta cética: "Para quê". Lembrou-se das mulheres dos mineiros, com os seus oleados e cortinas de renda, mães de crianças com botinhas de amarrar. Pensou depois nas esposas e filhas dos gerentes das minas, com as suas partidas de tênis e seus tremendos esforços por parecerem superiores umas às outras na escala social. Só restava Shortlands, com as suas distinções idiotas e a turba desmiolada dos Criches, e depois Londres, a Câmara dos Deputados, a gente em evidência, ó Deus misericordioso!
Apesar de jovem, Gudrun conhecia a sociedade inglesa. Não pretendia subir na esfera social. Bem sabia - com o perfeito cinismo da mocidade cruel - que elevar-se na sociedade significava apenas mudar de aparência e que a vantagem não era superior à de ter uma moeda falsa de grande valor em lugar de uma moeda falsa de pequeno valor. Não era de lei a moeda com que se avaliavam as diferenças. Contudo, esse mesmo cinismo reconhecia que, num meio em que o dinheiro não é um cunho legal, mais vale um soberano falso do que um farthing de mentira. Mas, tanto aos ricos como aos pobres, Gudrun devotava igual despreza. Ela mesma já começava a troçar dos seus devaneios. Seria tão fácil realizá-los! Mas compreendia muito bem quanto eram ridículos os seus entusiasmos. Que lhe importava que Gerald transformasse em indústria rica aquela velha empresa extenuada? Sim, que lhe importava isso? Uma coisa, ou outra, não passava de insignificância para ela. É claro que, exteriormente não se podia negar interesse, mas, na verdade, para ela, aquilo tudo era cômico! Para ela tudo se transformava em motivo de riso. Inclinou-se sobre Gerald e murmurou compassivamente:
"Ah, meu bem amado, não vale a pena você se cansar tanto. Você é uma pessoa extraordinária, não se gaste assim numa tarefa tão ingrata!"
Enternecia-se por ele, cheia de pena e de tristeza; mas, ao mesmo tempo, a ironia que a levava a fazer esse discurso mudo entristecia-lhe os cantos da boca. Que farsa tudo aquilo. Recordou-se de Parnell e de Katherine O'Shea. Parnell! No fim de contas quem poderia tomar a sério o nacionalismo irlandês? Quem realmente acreditaria na política da Irlanda? Quem realmente acreditaria na da Inglaterra? Quem é que a tomava a sério? Quem se importava que a esfrangalhada Constituição fosse remendada mais uma vez? Quem se ocuparia dos princípios nacionais mais do que do chapéu de coco inglês? Tudo não passava de chapéus velhos, velhos chapéus de coco!
"É assim mesmo, Gerald, meu herói! Em todo caso, evitaremos as náuseas que resultariam de se mexer uma vez mais no caldo corrompido! Seja belo, Gerald, e descanse. Há momentos perfeitos na vida. Acorde, Gerald, acorde, e convença-se de que esses momentos perfeitos ainda existem. Convença-me, pois necessito demais ser convencida!"
Ele abriu os olhos e fitou-a. Ela o saudou com um sorriso enigmático, de uma alegria pungente. O sorriso refletiu-se no rosto de Gerald, que o retribuiu, inconsciente do que fazia.
Gudrun sentiu-se satisfeita por ver que o sorriso que ele esboçara pairava assim nos lábios dele. Lembrou-se que era assim que faziam as criancinhas; sentiu-se radiante, extraordinariamente feliz.
- Conseguiu - disse ela.
_ O quê? - perguntou Gerald, sem entender o que ela queria dizer.
- Convencer-me.
Curvou-se sobre ele e beijou-o com paixão, de tal maneira que ele não sabia o que acontecera com ela. Não lhe perguntou de que é que a tinha convencido, embora fosse esse o seu desejo. Ficara contente pelo fato de ter sido beijado. Parecia que ele lhe tocara o coração, queria também que atingisse todo o ser, ansiava por isso mais do que tudo na vida.
Lá fora alguém cantava com voz viril descuidosa e bela:
Mach mir auf, mach auf du Stolze,
Mach mir ein Feuer von Holze.
Vom Regen bin ich nass,
Vom Regen bin ich nass...
Faz-me, ó vaidosa,uma fogueira /De aparas de madeira / Molhou-me a chuva / Molhou-me a chuva. - nota da tradutora).
Gudrun compreendeu que aquela canção ressoaria dentro dela eternamente, entoada por uma voz viril, descuidada e zombeteira. Marcara uma dos momentos supremos, de angústia e ao mesmo tempo de nervosa satisfação. Ficaria em sua memória, eternamente dentro dela.
O dia raiou belo e azulado. Do alto das montanhas soprava um arzinho leve, fino como uma espada, trazendo consigo poeiras de neve imponderável. Gerald saiu; tinha o rosto sereno e o olhar distraído, como um homem cuja alma está cheia de contentamento. Ele e Gudrun formavam nessa manhã uma unidade perfeita e definitiva, mas sem o saberem, sem se darem por tal. Conduziram um trenó, deixando Úrsula e Birkin segui-los mais atrás.
Gudrun ia vestida de vermelho e azul, vermelhos a blusa e o gorro azuis, a saia e as meias. Mostrava-se alegre sobre a neve, e Gerald, ao lado dela, de branco e cinza, dirigia o veículo. Foram-se afastando, diminuindo na distancia, enquanto subiam a colina íngreme.
Ela própria tinha a impressão de se fundir na brancura envolvente, tornando-se pura como o cristal, destituída de quaisquer preocupações. Quando chegou ao alto, exposta ao vento, olhou em volta e viu muitos picos atrás de outros picos, rocha e neve, tudo azul, elevando-se para o céu. Lembrava-lhe um jardim onde as pontas agudas fossem flores puríssimas que o coração colhesse uma aura. A sua consciência e a de Gerald pareciam reunidas.
Quando desceram, aos solavancos, pela escarpada ladeira, Gudrun agarrou-se muito a ele, experimentado a sensação de que seu corpo se aguçava como se corresse sobre uma pedra de afiar, tão ardente como uma chama. A neve saltava de cada lado do trenó, como faíscas projetadas por uma lamina que se amola; a alvura corria cada vez mais ligeira, a vertente precipitava-se contra ela e Gudrun liquefazia-se como um glóbulo em fusão, dançando, deslizando através da imensidade alvinitente. Ao atingirem o sopé da colina, fizeram um desvio, inclinando-se como se fossem cair, e diminuíram então a velocidade.
Descansaram alguns instantes. Quando, porém, quis levantar-se, Gudrun não conseguiu equilibrar-se. Soltou um grito estranho, voltou-se e agarrou-se a Gerald, escondendo a cabeça no peito dele, quase desmaiando. Apoderou-se do seu espírito um alheamento completo, e ficou, por momentos, abandonada nos braços do rapaz.
- Que é que você tem? - inquiriu este. - Foi muito violento para você?
Ela, porém, nada ouvia.
Quando voltou a si, endireitou o busto e olhou em volta, espantada. Tinha o rosto pálido e as pupilas dilatadas e brilhantes.
- O que foi?
Gudrun fitou-o com aqueles olhos cintilantes que pareciam transfigurados. Depois riu-se, e o riso denotava uma alegria terrível.
- Não! - exclamou, tranquilamente. - Foi o momento mais completo da minha vida.
Continuou a mirá-lo, rindo sempre de forma excessiva, como se estivesse possessa. Gerald sentiu que uma lamina afiada lhe trespassava o coração; mas não fez caso nem deu a entender.
Tornaram a subir a encosta, e lançaram-se outra vez lá de cima, através da chama branca, esplendidamente... Gudrun soltava risadas, com os cabelos enfeitados de flocos níveos. Gerald manobrava o trenó com precisão; sabia-se capaz de o dirigir sem errar. Admitia que aquele carrinho-voador representava a exteriorização de sua vontade; bastava-lhe oscilar um braço e o movimento do veículo confundia-se como dele próprio. Exploraram as outras vertentes, em busca de novos declives. Gerald tinha a impressão de que haviam de encontrar um melhor; e realmente acharam uma descida rápida e extensa que ia findar na base da colina, junto a um grupo de árvores. Era perigosa, disso não tinha dúvida. Mas o rapaz não ignorava que poderia comandar o trenó com um simples movimento dos dedos.
Os primeiros dias passaram-se em êxtase de ardor físico, deslizando ora em trenó ora em patins, movendo-se com intensas velocidades numa atmosfera de luz branca; e tudo aquilo parecia ultrapassar a própria vida e arrastar a alma para além, numa correria sobre-humana e abstrata entre a neve imperecível...
Os olhos de Gerald tornavam-se estranhos e duros: e, quando ele seguia sobre as quilhas, dir-se-ia antes uma aparição fatal e temerosa e não um homem; os músculos elásticos eram perfeitos, a trajetória quase aérea, o corpo projetava-se em pleno voo, sem espírito, sem alma, num arranque impetuoso e impecável.
Felizmente, certo dia, começou a cair neve e tiveram de ficar dentro de casa; aliás - como notou Birkin - acabariam por perder as faculdades racionais e ver-se-iam obrigados a exprimir-se por grito e guinchos como estranhos animais polares, de uma espécie desconhecida.
À tarde, Úrsula estava conversando com Loerke, ambos sentados na Reunionsaal. Este parecia sempre aborrecido. Mas agora recuperara a vivacidade e mostrava-se cheio do perverso humor que lhe era peculiar.
Úrsula, no entanto, achava que ele devia ter qualquer motivo de preocupação. O companheiro, o rapaz forte, louro e elegante, andava sério, também, indo e vindo como se o tivessem feito prisioneiro e isso o revoltasse.
Loerke mal havia falado a Gudrun. O amigo, pelo contrário, testemunhara-lhe sempre as maiores atenções e deferências. Gudrun, por seu lado, desejaria aproximar-se de Loerke, que era escultor; gostaria de saber o que pensava a respeito da sua arte. Além disso, o aspecto do homem interessava-a. Tinha um ar de abandono em toda a sua pessoa, e isso despertava a curiosidade, assim como aquele olhar de criatura já muito vivida; além disso, demonstrava tanto amor à solidão, que Gudrun adivinhava nele um artista. Falava, às vezes, como um papagaio, fabricava trocadilhos maliciosos, em geral muito inteligentes, embora nem sempre felizes. E Gudrun descortinava-lhe nos olhos castanhos de gnomo o reflexo melancólico da miséria inorgânica que jazia no fundo de todos aqueles disfarces.
Fisicamente ele parecia um garoto. Loerke nem procurava disfarçar essa impressão. Usava constantemente roupa simples de lã e calções. Tinha pernas magras, mas não se importava em ocultá-las, o que era para admirar em um alemão. Nunca procurava a simpatia de ninguém, por menor que fosse; entretinha-se consigo mesmo apesar da sua aparente jovialidade.
O companheiro, Leitner, era grande desportista, robusto de corpo e possuidor de grandes olhos azuis. Loerke corria de trenó ou de patins, mas não tirava disso a menor satisfação. As narinas finas e delgadas, como as de uma garota de rua, estremeciam-lhe de desdém quando ele via os exercícios de Leitner. Era evidente que aqueles dois homens que tinham viajado e vivido juntos, na mais estreita intimidade, haviam atingido a fase do ódio recíproco. Leitner detestava Loerke com uma raiva impotente e humilhada, e este tratava aquele com desprezo e sarcasmo. Não tardaria muito a haver uma separação.
Atualmente, já pouco privavam um com o outro. Leitner procurava outras pessoas e Loerke permanecia quase todo o tempo sozinho. Quando saía, colocava na cabeça um gorro à moda da Vestfália de veludo castanho, com abas que desciam pelo rosto e tapavam os ouvidos, dando-lhe o aspecto de um coelho orelhudo ou de um gnomo. Tinha o rosto moreno e corado, pele brilhante, seca, parecendo enrugar-se na mobilidade das expressões. Os olhos vivos, castanhos, redondos como os de um coelho, estranhos, desconfiados, denotando depravação consciente, ardiam com uma chama sobrenatural. Sempre que percebia o desejo de Gudrun em lhe falar, afastava-se sem nada dizer olhando para ela com as pupilas sombrias e verrumantes, sem nunca estabelecer as mais simples relações de cortesia. Fizeram até sentir que o francês de Gudrun, demasiado lento e o seu alemão arrastado eram, para ele desagradáveis. Quanto a ele mesmo, falava um inglês estropiado e não fazia o menor esforço para aperfeiçoá-lo. Contudo, entendia muita coisa do que ela dizia. Gundrun, ofendida, deixou-o de lado.
Naquela tarde, ela entrava na sala, vinda da neve, no momento em que Loerke e Úrsula conversavam. Os cabelos dele, finos e negros trouxeram à lembrança de Gudrun a ideia de um morcego, talvez por serem ralos no alto da cabeça redonda e irrequieta, e quase invisíveis nas têmporas. Estava sentado, com o dorso pendido para frente, como se abrigasse também a alma de um morcego. Gudrun percebeu que fazia qualquer confidência com vontade decerto incompleta e rancorosa. Ela se aproximou, sentando-se ao lado da irmã.
Loerke fitou-a e desviou os olhos, como se não a tivesse notado. Na realidade a moça interessava-o profundamente.
- É curioso, Prune, - disse Úrsula, voltando-se para a outra - Herr Loerke está armando um enorme friso destinado a uma fábrica de Colônia para uma parede exterior.
Gudrun observou-o, reparando-lhe nas mãos magras, nervosas, morenas, tenazes; assemelhavam-se a presas, a garras; não pareciam humanas.
- De que tipo? - perguntou ela.
- Aus was? - repetiu Úrsula.
- Granit - elucidou o artista...
Seguiu-se uma série de perguntas e respostas lacônicas, de profissional a profissional.
- Que espécie de relevo?
- Alto-relevo.
- De que altura?
Gudrun achava interessante aquele trabalho: enorme friso de granito para uma imensa fábrica em Colônia. Conseguiu dele alguns esclarecimentos quanto a pormenores. O desenho representava uma feira com camponeses e operários em perfeita orgia, bêbados e ridículos nos seus trajes modernos uns dormindo vertiginosamente, outros boquiabertos em frente as barracas, ou beijando-se e rolando abraçados no chão, ou oscilando dentro de barcos, ou fazendo pontaria com espingardas, tudo num movimento frenético e caótico.
Houve discussões de ordem técnica. Gudrun estava impressionada.
- É esplêndido trabalhar para uma fábrica dessas! - exclamou Úrsula. - O aspecto geral do edifício é bonito?
- É, sim - retorquiu ele. - O friso fará parte do conjunto arquitetônico. É qualquer coisa de colossal.
Depois Loerke endireitou-se na cadeira, encolheu os ombros e prosseguiu:
- A escultura e a arquitetura não devem separar-se. Já passou o tempo da escultura como adorno e da pintura como enfeite. Na realidade, a primeira faz parte sempre da concepção do arquiteto. E, desde que as igrejas são hoje simples museus, e a indústria vem ao nosso encontro, é claro que precisamos aplicar a nossa arte aos edifícios industriais, que são os nossos Partenões... Ecco!
Úrsula meditava.
- O que me parece - disse ela - é que não há necessidade de serem tão soturnas essas construções.
Loerke respondeu animadamente.
- É isso mesmo! Não só não é necessário que esses templos do trabalho sejam feios, como é urgente que a sua fealdade não arruíne o fim em vista. Os homens, daqui por diante, deixarão de se sujeitar a semelhantes horrores. Com a continuação do mau gosto, a vontade deles desapareceria, atingindo o próprio trabalho. Pensariam que este fosse tão feio como os prédios e máquinas, e o próprio esforço seriam englobados no mesmo esquema. E, contudo, as máquinas e o trabalho são belos, doidamente belos. Todavia, quando o operário não quiser trabalhar por achar que isso lhe repugna, teremos o fim da civilização. Preferirá morrer de fome. Usará o martelo para destruir tudo; sim, poderíamos chegar a esse ponto. E, afinal, chegou a oportunidade de construirmos belas fábricas, belas casas para as máquinas.
Gudrun só conseguiu compreender parte do discurso. Sentia-se envergonhada por não ter podido captar tudo.
- Que disse ele? - perguntou ela à irmã. Esta fez um resumo, gaguejando na tradução. Loerke observava o rosto de Gudrun, curioso de descobrir o efeito das suas doutrinas.
- E acredita - disse então a moça - que a arte possa ser útil à indústria?
- A arte interpreta hoje a indústria como outrora o fez quanto à religião - respondeu ele - E a sua feira é uma interpretação?
- Sim, senhora. Que faz o homem quando se encontra numa feira dessas? Ele se desforra do trabalho. Em lugar de obrigar as máquinas a trabalhar, são elas que o obrigam ao movimento, pelo hábito adquirido. Possui no próprio corpo o impulso mecânico...
- Neste caso não há senão trabalho mecânico, na vida do operário. - disse Gudrun.
- Trabalho e nada mais! Concordou ele, inclinando-se para frente. Os olhos eram dois pontos negros onde brilhavam luzes finas como agulhas. - Não é mais do que isso: sujeição à máquina, ou prazer do movimento que esta lhe transmitiu. Movimento, sempre movimento. Se já tivesse trabalhado para comer, saberia então qual é o deus que põe e dispõe...
Gudrun estremeceu, corado. Tinha, não sabia por que, vontade de chorar.
- Não, nunca trabalhei para matar a fome. Mas, de qualquer forma, sempre tenho trabalhado.
- Travaillé? Lavorato? E Che lavoro? Che lavoro? Quel travail est-ce que vous avez fait? - Trabalhado? Trabalhado? E que trabalho? Que trabalho? Que trabalho fez? - nota da tradutora).
Falava uma mistura de italiano e francês, empregando instintivamente uma língua estrangeira quando se dirigia a Gudrun. Acrescentou, ainda sarcástico:
- Mas não trabalhou como se trabalha por esse mundo a fora!
- Sim, trabalhei, e ainda o faço, mas para as minhas despesas pessoais.
Loerke ficou silencioso, olhou-a fixamente, e depois deixou o assunto. Aquela mulher lhe parecia insignificante
- E o senhor - interveio Úrsula - tem trabalhado tanto assim?
O outro mirou-a com desconfiança.
- Sim - replicou, com uma espécie de insolência. - Sei o que é ficar três dias deitado na cama por não ter nada o que comer.
Gudrun contemplava-o com os olhos sérios e muito abertos como quem extraísse a medula dos ossos juntamente com aquela confissão. A natureza de Loerke era refratária a tais depoimentos, mas o olhar grave e profundo de Gudrun parecia abrir-lhe válvulas nas veias, e ele, involuntariamente, continuava a falar:
- Meu pai não gostava de trabalhar. Já não tínhamos mãe. Vivíamos na Áustria polaca. E de quê? Com o que nos pudéssemos arranjar... Quase sempre no mesmo quarto com três outras famílias, cada uma no seu canto... Ah! Ah! Tinha eu dois irmãos e uma irmã... Às vezes uma mulher junto do meu pai. Sempre foi homem independente, à sua maneira... Não trabalhava para ninguém... Ficava revoltado com isso; não conseguia.
- E de que viviam? - perguntou Úrsula.
Loerke fitou-a, e depois, voltando-se subitamente para Gudrun.
- Está compreendendo?
- Mais ou menos.
Os olhos dos dois se encontraram por instantes. Ele desviou os seus. Não pretendia dizer mais nada.
- Como é que se tornou escultor? - volveu Úrsula.
- Como me tornei escultor? - Suspendeu a frase. - Dunque - Mudando de tom: - Cresci... Comecei a furtar coisas do mercado. Mais tarde comecei a trabalhar, marcava com o sinal da casa as peças que iam ao forno. Era numa fabrica de cerâmica. Comecei então a modelar com o barro. Até que por fim achei que era demais. Fiquei em casa e não me apresentei na oficina. Fui a pé no caminho de Munique... depois para a Itália... mendigando, mendigando sempre.
"Os italianos foram muito bons para mim, bons e prestativos. De Bozen ate Roma encontrava quase sempre lugar onde passai a noite e comer. Camas de palha, em casa de camponeses... Estimo os italianos de todo o meu coração. Dunque, adesso... agora, ganho mil libras por ano, às vezes duas mil.
Pousou o olhar no chão e sua voz foi-se extinguindo no silêncio.
Gudrun examinava sua pele fina, delgada, brilhante, esticada na fronte e queimada de sol; admirava-lhe também o cabelo ralo e o bigode rude, espesso, semelhante a uma escova, cortado rente por cima da boca mal definida, de grande mobilidade.
- Que idade tem? - perguntou a moça.
Ele mirou-a, surpreendido.
_ Wie alt - repetiu. Ficou hesitante. Era evidente que preferiria ocultar essa circunstância biográfica.
- E a senhora? - perguntou.
- Tenho vinte e seis anos.
- Vinte e seis! - Contemplou-a nos olhos e calou-se. Depois disse:
- Und Ihr Herr Gemahl, wie alt is er? - E o seu marido, que idade tem? - nota da tradutora).
- Quem? - inquiriu Gudrun.
- Seu marido - explicou Úrsula, em tom irônico.
- É coisa que não tenho - murmurou a moça, em inglês. Todavia, respondeu em alemão:
- Trinta e um anos.
Mas Loerke observava-a atentamente com os seus olhinhos redondos misteriosos, desconfiados. Notava-lhe qualquer coisa de semelhante a si mesmo. Era, de fato, um daqueles indivíduos sem alma que encontra o seu companheiro numa criatura humana. Essa descoberta, porém, fazia-o sofrer. Gudrun, por sua vez, sentia-se fascinada como se um ser estranho - coelho, morcego, lobo marinho tivesse começado a falar com ela; mas, ao mesmo tempo percebia que o homem estava inconsciente daquilo do tremendo poder de compreensão que seria capaz de ter sobre ela, de lhe surpreender os próprios pensamentos. Não conhecia, realmente a força de que dispunha, nem adivinhava quanto com aqueles olhos redondos, perscrutadores e enigmáticos, poderia ler o que se passava dentro dela, descobrir-lhe os segredos, conhecer-lhe, enfim, a alma. Desejava apenas que aquela moça fosse tão somente o que era, e estava persuadido de que tinha disso uma ideia exata, derivada, de forma sinistra, do seu subconsciente e desprovida de ilusões ou de esperanças.
Quanto a Gudrun, parecia ver em Loerke a própria nudez da vida. Todos os outros seres possuíam as suas ilusões ilusão do passado futuro. Ele, porém, com perfeito estoicismo, vivia sem futuro nem passado, isento da menor ilusão. No fim de contas não se enganava a respeito de si mesmo; em ultima análise não se importava com coisa alguma, nada o incomodava nem fazia a menor tentativa para obter solidariedade. Existia como pura vontade sem compromissos, estóica e momentânea. De seu ele só tinha o trabalho.
Era também curioso notar como seduziu Gudrun o fato de conhecer a miséria e degradação dos seus próprios anos de existência. Nada mais insípido para ela do que a ideia do homem bem nascido que segue os trâmites normais através do ginásio e da universidade. Este filho do nada despertara-lhe violenta simpatia; achava o feito da verdadeira matéria subterrânea da vida. Ninguém como ele mergulhara tão fundo.
Úrsula também se sentia atraída. As duas irmãs consagravam-lhe uma espécie de homenagem. Mas, para a primeira havia momentos em que o considerava inferior, vulgar e falso.
Tanto Birkin como Gerald antipatizavam com o escultor; um exasperava se o outro fingia desdenhosamente nem sequer o ver.
- Que acham as mulheres de tão atraente naquele fedelho? - perguntava Gerald.
- Só Deus o sabe - respondeu Birkin. - A menos que haja algum feitiço com que ele as atraia e domine.
Gerald arregalou os olhos, embasbacado.
- Um feitiço com que ele as atraia? - repetiu.
- Decerto - volveu Birkin. - É uma criatura endemoninhada que vive como um criminoso. As mulheres precipitam-se para ele como uma corrente de ar atraída pelo vácuo.
- É estranho que elas façam isso.
_ A verdade é que as enlouquece. Exerce sobre as mulheres a fascinação da piedade e da repugnância, esse monstrinho repelente.
Gerald ficou silencioso, a meditar.
- Que procuram as mulheres, afinal de contas? - indagou ele.
Birkin encolheu os ombros.
- Só Deus o sabe! Cobrirem-se de lama, ao que me parece. É como se sentissem prazer em atravessar um cano de esgoto só ficando satisfeitas ao chegarem ao fim.
Gerald contemplou a neve fina e brumosa que descia la fora. Naquele dia tudo estava escuro, terrivelmente enevoado.
- E o que é que encontram no fim? - inquiriu ele.
Birkin abanou a cabeça.
- Nunca cheguei lá, de maneira que não sei. Pergunte a Loerke que deve saber mais sobre isso do que nos todos.
- Mas a que é que você se refere? - perguntou Gerald, com certa irritação.
Birkin suspirou. Enrugou a testa, aborrecido.
- No ódio da sociedade explicou. - Vive como uma ratazana num rio de corrupção, precisamente no lugar em que este transborda para os poços sem fundo. Tem ido mais longe do que nós. Detesta o ideal de forma intensa. Odeia-o profundamente, embora o ideal ainda o impressione. Suspeito que é judeu, pelo menos em parte.
-É provável! - concordou Gerald.
- Ele é um cancro de negação, que rói raízes da vida.
- Mas por que se ocupam tanto dele?
_ Porque detestam também o ideal, no fundo da alma. Gostam de explorar os esgotos, e ele é a ratazana mágica; vai-lhe mostrando o caminho.
Gerald olhou outra vez para a bruma, lá fora, produzida pela neve.
- Não percebo muito bem a sua linguagem, Rupert. - declarou com voz triste e resignada. - Quanto a elas, acho que possuem um gosto muito esquisito.
- Acho que o nosso não é melhor - atalhou Birkin - a diferença está em que nós pretendemos mergulhar, de vez numa espécie de arrebatamento, e ele deixa-se ir ao sabor da corrente, ou melhor, das imundícies.
Entretanto Úrsula e Gudrun esperavam outra oportunidade de conversar com Loerke. Não valia a pena fazê-lo em presença dos homens. Não seriam capazes de entreter um relacionamento com o escultor misantropo. Era mister que se encontrassem a sós com ele. E o artista preferia que Úrsula estivesse presente para servir de elemento de ligação com Gudrun.
_ Não faz senão escultura arquitetônica? - perguntou-me.
- Agora não. Mas tenho feito de tudo, menos retratos. Nunca os fiz; muitas outras coisas, porém...
- De que espécie?
Calou-se alguns instantes, depois levantou-se e saiu da sala. Voltou pouco depois com um papel enrolado, que entregou a Gudrun. Esta abriu-o e viu que era a reprodução fotográfica de uma estatueta, assinada por F. Loerke.
- Aqui tem um trabalho do início de minha carreira; não é nada arquitetônico. Antes, do gênero popular.
A estatueta representava uma moça nua, pequenina, graciosa, montada num enorme cavalo em pelo. A jovem era delicada, como uma flor em botão. Estava de lado sobre o dorso do animal com o rosto escondido nas mãos, como se sentisse vergonha e repugnância. O jeito do corpo denunciava abandono. Os cabelos curtos - que deviam ser louros - caiam-lhe no rosto e ocultavam-lhe parte das mãos.
Os braços e pernas eram finos e juvenis; estas, ainda mal formada, indicavam o começo de perigosa adolescência e tombavam, infantilmente, no flanco do cavalo majestoso. Fazia pena vê-la assim, com os pés por cima do outro, como se os quisesse ocultar. E ali estava, nua, em cima do corpo nu do animal.
O cavalo mantinha-se na posição largada, em cujo impulso todo ele se estendia. Era maciço e magnífico, cheio de força concentrada. Tinha o pescoço bem feito e terrível como uma foice, e rígidos e enérgicos os músculos.
- Que tamanho tem? - A voz parecia acusar indiferença, tanto ela persistia em afetar um tom desprendido e natural.
- Que tamanho? - repetiu o artista, reclamando-a com a vista. - Sem o pedestal, tem este...
Gudrun examinou Loerke com atenção. Os gestos rápidos e bruscos daquele homem denotavam certo desdém e calculada frieza. Ao mesmo tempo ele a observava também, fixamente. Não perdera o domínio que costumava exercer.
- De que é feita a estatueta? - inquiriu ela, erguendo a cabeça e encarando-o fria e calculadamente.
- Bronze - elucidou. - Bronze patinado.
- Bronze patinado repetiu - Gudrun, aceitando o desafio, muito calma. Estava imaginando os membros delicados, suaves, infantis da moça tornados frios e lisos no bronze verde.
- É muito belo - murmurou, fitando-o, numa homenagem cheia de simplicidade.
Loerke fechou os olhos, e depois abriu-os para os dirigir em outro sentido, triunfante.
- Por que fez o cavalo tão rígido? - interveio Úrsula. Tem a rigidez de um bloco.
_ Rígido? - tornou ele, pondo-se logo em guarda.
- Sim. Veja como mantém a rudeza e a brutalidade do bloco. Os cavalos são animais sensíveis, nervosos. Realmente.
Loerke encolheu os ombros e deixou cair os braços num gesto de indiferença, como que para dar a entender que ela não passava de amadora, ignorante e impertinente.
- Wissen Sie - disse em tom sossegado de condescendência insolente - este cavalo é uma figuração, uma parte de um todo. Está integrado na obra de arte; não se trata do retrato deste ou daquele cavalo a quem se dá um torrão de açúcar, percebe? É o pormenor de um conjunto. Fora deste trabalho, não tem nenhuma significação.
Úrsula, furiosa por ter sido tratada dessa maneira ofensiva, de haut em bas, com que ele descera das alturas da sua arte esotérica para o plano rasteiro do amadorismo em que ela jazia, encheu-se de rubor e levantou a cabeça.
- Em todo o caso - declarou - não deixa de ser um cavalo. O outro tornou a encolher os ombros.
- Como quiser; uma vaca, certamente, é que não é Gudrun, nesta altura, intrometeu-se na contenda, excitada e muito vermelha. Queria pôr termo àquela louca insistência da irmã em dar a sua opinião.
- Que quer dizer com essa observação de que isto não deixa de ser um cavalo? - exclamou, voltada para Úrsula. - Que é que você entende por um cavalo? Quer referir-se a ideia que tem na cabeça e que gostaria de ver representada? Mas pode haver outra ideia, inteiramente diversa. Você pode chamá-lo de cavalo ou do que quiser. Estamos também no direito de dizer que o seu cavalo não é igualmente um cavalo, que é um produto da sua imaginação.
Úrsula hesitou, desconcertada. Depois encontrou as palavras necessárias para responder:
- Mas por que teve ele a ideia de fazer assim o cavalo. É claro que compreendo a intenção: trata-se do próprio retrato do autor, assim interpretado...
Loerke resfolegou de cólera.
- O meu próprio retrato? - exclamou, com um riso escarninho. - Wissen Sie, gnädige Frau - Saiba, minha senhora... - nota da tradutora), que isto é Kunstwerk, ou seja uma obra de arte. Apenas obra de arte, sem ser retrato de ninguém, absolutamente de ninguém. Não tem nada que ver com o que quer que seja, não tem relação com as coisas triviais nem semelhantes, nem parentesco de qualquer ordem. São planos da existência diferentes, muito distintos; e traduzir um na linguagem do outro é rematada loucura, é querer confundir as coisas, lançar em tudo a perturbação. Ouça: não deve misturar o mundo cotidiano e banal com o mundo da arte absoluta. Não tem o direito de fazer isso.
- É claro - acrescentou Gudrun, numa espécie de recapitulação - As duas coisas permanecem totalmente diferenciadas, sem terem nada uma com a outra. Eu e a minha arte nada temos em comum. Eu estou num pólo e ela está no outro.
Tinha as faces coradas pelo ardor da discussão. Loerke estava sentado, com a cabeça pendida, constrangido olhou de repente para a moça, de um modo quase receoso, e murmurou.
- Ja, so ist, so ist es - Sim, é isso, é isso. - nota da tradutora).
Depois daquele sermão, Úrsula recolhera-se ao mutismo, aborrecidíssima. O seu desejo era arrasar a ambos. Mas, pouco depois, replicou, pausadamente:
- Não vejo o menor valor no que você acaba de dizer. O cavalo é mesmo um retrato do íntimo dele, na sua animalidade e a pequena deve ser qualquer moça que ele tivesse amado e torturado, atirando-a fora quando se cansou dela o homem fitou-a e sorriu com desprezo. Não se dignou dar-lhe resposta.
Gudrun também nada disse; sua indignação tornara-se desdenhosa. Úrsula era um profano insuportável, atrevendo-se a calcar terreno que os próprios anjos não pisavam. Mas não havia remédio senão tolerar os imbecis, embora não fosse agradável.
A outra, porém, insistia:
- Quanto a esse mundo de arte e ao mundo da realidade, vocês fazem essa separação pela impossibilidade que tem de saber ao certo quem são. Nem podem conceber como escondem a dureza, a brutalidade, a rigidez; e então dizem: é o mundo da arte! Ora, o mundo da arte é apenas o espelho do outro, e vocês estão muito longe de se verem nele.
Mostrava-se destemida. Empalidecera e toda ela tremia. Gudrun e Loerke continuavam imóveis aborrecidos com o incidente. Gerald que chegara no começo da discussão, ficou também a olhar para ela, reprovador e hostil. Achava aquela atitude pouco digna tinha sido uma nota de mau gosto no esoterismo que confere tanta distinção às criaturas humanas. Tomou os partidos dos outros dois, e todos três principiaram a desejar que ela se fosse embora. Úrsula, porém, conservava-se onde estava, sem nada dizer. Chorava intimamente, tinha as mãos trêmulas e amarrotava o lenço que tinha nas mãos.
Os outros mantinham um silêncio mortal, a espera que se desfizesse a atmosfera desagradável produzida pela intervenção de Úrsula. Por fim Gudrun perguntou, numa voz que afetava indiferença e naturalidade, como se resumisse uma conversa sem importância:
- A moça era modelo?
- Nein, sie war kein Modell. Sie war eine kleine Malscnulenn - Não, não era modelo. Era uma pequena que estudava pintura - nota da tradutora).
- Uma aluna de Belas-Artes! - exclamou Gudrun.
A situação se revelava agora claramente. Imaginava a estudante com o seu corpo ainda mal formado, ignorante e descuidada da vida, com os cabelos louros cortados, caindo-lhe pelo rosto ate ao pescoço e dobrando-se levemente na nuca; via também Loerke, escultor de renome, de quem a mocinha se recusava fazer-se amante, por ser bem educada e de boa família... Como conhecia bem tudo aquilo! Dresden, Paris, Londres, que diferença havia entre essas cidades? Todas iguais.
- Onde está ela agora? - indagou Úrsula.
Loerke fez um gesto de quem se desinteressa, querendo significar a sua máxima indiferença.
- Isso foi há seis anos - explicou. - Deverá ter uns vinte e três anos agora, pouco mais.
Gerald tomara a reprodução e a examinava. O trabalho do escultor o interessava também. E leu no pedestal que a obra se intitulava "Lady Godiva".
- Mas isto não é Lady Godiva - disse ele, sorrindo. - Era mulher de meia-idade, casada com um conde qualquer e tinha os cabelos tão compridos que até se cobriu com eles.
- À moda de Maud Allan - atalhou Gudrun, fazendo um trejeito cômico.
- Por que Maud Allan? - volveu Gerald. - Não seria como eu disse? Sempre pensei que a lenda fosse essa.
- Sim, querido Gerald, estou convencida de que você decorou a lenda exatamente como é.
Riu-se com uma expressão ao mesmo tempo carinhosa e vagamente divertida.
- É claro, prefiro admirar a mulher do que os cabelos... - replicou Gerald, bem disposto.
- Acredito - disse Gudrun, ainda irônica.
Úrsula levantou-se e desapareceu, deixando junto os três. Gudrun recebeu de novo a fotografia das mãos de Gerald e ficou a contemplá-la cuidadosamente.
- Já se sabe - disse ela, começando agora a brincar com o escultor - que você compreendeu bem a sua Malschülerin...
O outro deu de ombros e ergueu as sobrancelhas, condescendente.
- A pequena? - perguntou Gerald, apontando para a reprodução.
Gudrun, sentada, descansara o papel sobre os joelhos. Encontrou o olhar de Gerald e fitou-o com tal intensidade que ele se sentiu encantado.
- Você não acha que ele a compreendeu bem? - interrogou com ironia e bom humor. - Não reparou nos pés? São adoráveis, lindos, delicados! Maravilhosos!
Lentamente, dirigiu o olhar para Loerke, de maneira inflamada, escaldante. A alma do artista recebeu reconhecida aquela prova de admiração. Dir-se-ia que havia tomado uma atitude de superioridade e adquirido maior importância.
Gerald examinou os pés da menina: estavam voltados para o mesmo lado, cobrindo-se quase um ao outro, como que envergonhados e cheios de medo. Ficou assim muito tempo a contemplá-los; depois, sem grande pressa, pôs de lado a fotografia. Sentia-se acabrunhado.
- Como se chamava ela? - perguntou Gudrun ao escultor.
- Annette von Weck - respondeu o artista, como quem se recorda. - Ja, sie war hübsch. Era bonita, mas enfadonha. Insuportável! Incapaz de ficar um minuto sossegada. Tinha vontade de lhe dar bofetadas e ela, chorando, servia então de modelo, durante cinco minutos.
Loerke pensava apenas no seu trabalho; era a única coisa que lhe interessava.
- O senhor chegava a bater nela?
- Sim, cheguei, - respondeu muito naturalmente - e com força. Era preciso. De outra forma não se conseguia trabalhar.
Gudrun examinou-o por uns momentos com os seus olhos grandes e sombrios. Dir-se-ia penetrar-lhe até ao fundo da alma. Depois, silenciosamente, fitou o chão.
- Como é que lhe ocorreu uma Godiva tão menina? - disse Gerald. - Tão miúda, e nesse cavalo... muito criança para montar nele.
Os músculos do rosto de Loerke contraíram-se involuntariamente.
- Não gosto delas nem maiores nem mais velhas. São belas aos dezesseis, aos dezessete, aos dezoito anos. Depois disso não me servem mais.
Houve um instante de silêncio.
- Por que não? - indagou Gerald.
Loerke encolheu os ombros.
- Não as acho interessantes, nem belas... Não convém ao meu trabalho...
- Quer dizer que, depois dos vinte anos, a mulher deixa de ser bonita? - insistiu Gerald.
- Para mim, deixa. Antes dos vinte, é pequena fresca, delicada, leve. Depois disso, torne-se no que se tornar, já não me diz nada. A Vênus de Milo era uma matrona. São todas assim.
- Então, depois dessa idade, as mulheres perdem o valor para o senhor?
- Não me servem, não prestam para a minha arte - repetiu o escultor, impaciente. - Não as considero bonitas.
- Você é um epicurista - sentenciou Gerald, com um risinho sarcástico.
- E a respeito dos homens? - perguntou, de súbito, Gudrun.
- Esses interessam em qualquer idade - respondeu Loerke. - O homem deve ser vigoroso, dominador, velho ou moço, não importa... uma vez que tenha estatura, um tanto de maciço e uma figura estúpida.
Úrsula tinha saído e mergulhara num ambiente de neve, recentemente caída. Mas a brancura cintilante parecia magoá-la ate lhe causar dores; sentia o frio a estrangular-lhe a alma, lentamente. A cabeça estava vazia e aturdida.
De repente, experimentou um desejo feroz de se ir embora. A ideia de que podia partir para outro lugar ocorreu-lhe como que por milagre. Achava-se condenada naquele mundo de neve perpétua; era como se não houvesse salvação!
Agora, súbita e miraculosamente, lembrou-se que, para além, numa altitude menor, jazia a terra escura e fértil; que, para o sul, havia terrenos sombreados de laranjeiras e ciprestes, e oliveiras cinzentas, e robles erguidos para o céu azul com a sua copa frondosa. Milagre dos milagres! Esta paisagem de montanhas geladas e silenciosas não se estendia por todo o planeta. Podia-se abandoná-la. Podia-se fugir dali!
Se o milagre se realizasse imediatamente! Bem gostaria ela de acabar com aquele inferno de neve, com aquelas terríveis montanhas imóveis e glaciais. Ansiava por tornar a ver a terra sombria, respirar o aroma do humo fecundante, ver a vegetação perseverante de outros climas de inverno, sentir os efeitos do sol nos rebentos das plantas.
Voltou assim para a hospedaria, animada da melhor esperança.
Birkin lia, já deitado.
- Rupert, - gritou ela, precipitadamente, para o marido - quero ir-me embora.
O outro volveu-lhe um olhar vagaroso.
- Você quer? - perguntou em voz calma.
Úrsula sentou-se ao lado dele e passou-lhe os braços em volta do pescoço. Admirava-se de que o marido não demonstrasse maior surpresa.
- E você não quer? - perguntou inquieta.
- Não tinha pensado nisso. Mas é claro que sim.
A mulher pôs-se de pé, num movimento brusco.
- Detesto - declarou ela - detesto a neve, que não e natural como não é natural a luz que nos cerca, nem este sortilégio fantástico. Tudo quanto sentimos aqui é contra a natureza.
Birkin manteve-se calmo, pensativo e sorridente.
- Pois bem - concordou ele - podemos partir amanhã mesmo. Vamos a Verona, seremos Romeu e Julieta e sentar-nos-emos no anfiteatro. Sim?
Ela ocultou o rosto no ombro dele, intimidada, perplexa. Rupert era tão condescendente!
_ Sim - repetiu suavemente, como que aliviada. Parecia-lhe que a alma se enchia de júbilo, vendo-o assim tão descuidado. - Que bom sermos Romeu e Julieta! Meu amor! - acrescentou.
- Mas - replicou o marido - sopra dos Alpes, sobre Verona, um frio tremendo. Continuaremos com o cheiro da neve no nariz.
Úrsula sentou-se e fitou-o.
- Sente-se contente em partir? - perguntou-lhe apreensiva.
Os olhos de Birkin mantinham-se risonhos e penetráveis. Úrsula descansou a face no pescoço dele e abraçou-o implorando:
- Não se ria de mim! Não se ria de mim!
- Por quê? Que sucedeu? - Pôs-lhe os braços em torno da cintura e continuou a rir.
- Porque não quero que trocem de mim - murmurou ela.
O marido soltou uma gargalhada e beijou-lhe o cabelo fino e sedoso, perfumado.
- Gosta de mim? - indagou a mulher com gravidade, carregando o semblante.
- Gosto - respondeu Birkin, sempre jovialmente.
Ela, de repente, estendeu-lhe a boca, para que ele a beijasse. Tinha os lábios rijos, carnudos e trêmulos. Os do marido eram brandos, delicados. Demorou-se este uns momentos no beijo que lhe deu; e uma sombra de tristeza perpassou-lhe pelo espírito.
- A sua boca é tão rija - disse, como se a repreendesse levemente.
- E a sua é doce e submissa - tornou ela, contente.
- Mas por que é que você aperta tanto os lábios, Úrsula?
- Não se incomode - respondeu com vivacidade. É o meu jeito.
Sabia que Rupert a amava. Tinha a certeza disso. Entretanto, não gostava que ele a dominasse, nem tolerava que lhe fizesse muitas perguntas. Preferia abandonar-se a delícia de ser amada, mas desconfiava que o marido, apesar da alegria que lhe vinha do fato de Úrsula abandonar-se a ele, guardava no intimo uma vaga melancolia. Consentindo em ser sua mulher não podia, no entanto ser a própria, não se atrevia a revelar-se-lhe em toda a sua nudez, em por de parte a natural reserva nem em depositar nele absoluta confiança. Entregava-se-lhe, era certo, apropriava-se de Rupert e em Rupert encontrava inteira satisfação; naquele homem se achava a verdadeira felicidade. E contudo, não se sentiam inteiramente ligados. Mas estava feliz, gloriosa, independente, cheia de esperança e de liberdade. Rupert, por enquanto, mostrava-se tranquilo, meigo e paciente.
Fizeram os preparativos para irem embora no outro dia. Foram primeiro ao quarto de Gudrun, onde esta e Gerald acabavam de se vestir para descer.
_ Prune - disse Úrsula, é possível que partamos amanhã. Já não posso tolerar a neve. Estraga-me a pele e o coração.
- Sente-se mal? - perguntou a irmã, surpreendida. - Acredito que prejudique a pele; é terrível. Mas, quanto ao coração, suponho que seja admirável.
- Para mim, não. Pelo contrário, ele ofende.
- Engraçado! - exclamou Gudrun.
Houve um pequeno silêncio. Úrsula e Birkin perceberam que os outros ficavam aliviados com a ideia de partida deles.
_ Vão para o sul? - perguntou Gerald, cuja voz denotava certo constrangimento.
- Vamos - asseverou Birkin, desviando a conversa.
Havia ultimamente, entre os dois homens, uma estranha e inexplicável hostilidade. Birkin mostrava-se, de modo geral, sombrio e indiferente; era paciente, mas distraído, desde que chegara ao estrangeiro, ao passo que Gerald, pelo contrário, se sentia combativo e cheio de vida naquela atmosfera de neve. Os dois contrariavam-se em tudo.
Gerald e Gudrun foram muito amáveis para os que partiam, ocupando-se de quanto lhes restava, solicitamente, como se se tratasse de duas crianças. Gudrun apareceu no quarto da irmã; levou-lhe três pares de meias de cor, coisa em que era especialista, e colocou-os em cima da cama. Eram meias de seda grossa, compradas em Paris: vermelhas, azuis e cinzentas. Estas últimas, muito pesadas, não tinham costura e eram de malha. Úrsula ficou encantada. Compreendeu quanta ternura havia na irmã para que se separasse assim de tamanho tesouro.
- Não posso aceitá-las, Prune. Não posso privar você dessas maravilhas.
- Não são maravilhas! - exclamou Gudrun, lançando um olhar saudoso à sua oferta. - Bobagens!
- Mas você devia guardá-las - tornou Úrsula.
- Não preciso delas. Tenho mais três pares. Gostaria que você as aceitasse...
E, com mãos nervosas, excitada, depôs a dádiva debaixo do travesseiro da irmã.
- Um dos grandes prazeres da vida é possuir meias bonitas - disse Úrsula.
- É verdade - confirmou a outra. - Um dos maiores prazeres.
Sentou-se na poltrona. Era evidente que tinha vindo conversar antes da partida. Úrsula, sem saber o que a irmã desejava, conservou-se silenciosa.
- Você tem a impressão - principiou Gudrun, pouco convencida de suas palavras - tem a impressão de que se vai para sempre, para não mais voltar?
- Ah, não! Voltaremos - respondeu a irmã. - Mais cedo ou mais tarde, voltaremos.
- Sim, compreendo. Mas, em espírito, para assim me exprimir, vocês afastam-se de nós, não é verdade?
Úrsula sentiu um arrepio.
- Não faço nenhuma ideia do que possa acontecer. Sei apenas que partimos para qualquer lugar.
Gudrun ouviu a explicação e perguntou:
- Está contente?
Úrsula refletiu durante alguns momentos.
- Creio que sim, que estou muito contente.
Mais do que pelo tom incerto das palavras, Gudrun adivinhou a verdade no brilho inconsciente que a face da irmã irradiava.
- E não acha que pôde sentir necessidade de regressar aos velhos conhecimentos deste mundo, ao pai, ao resto da família e a tudo o mais que isso representa? A Inglaterra, a vida do pensamento? Não acredita que sejam precisas todas estas coisas para que o seu ambiente tenha realidade?
Úrsula estava silenciosa, procurando compenetrar-se daquelas razões.
- Penso - disse ela por fim, mas involuntariamente - Rupert tem razão: viver num espaço novo e diferente, desapegar-nos do antigo...
Gudrun observou a irmã, com os olhos fixos e o rosto impassível.
- Que se deseje viver num meio diverso, concordo inteiramente. Julgo, porém, que um mundo novo é sempre o desenvolvimento do velho mundo, e que isolar-se aí com outra pessoa não é encontrar aquele, mas sim criar mais uma ilusão.
Úrsula olhou para fora, através da janela. Começava-lhe um combate na alma e isso assustava-a. Sempre tivera medo das palavras, pois sabia que a simples força que emitem podia força-la a crer naquilo de que ela descria.
- Talvez - concordou, embora não muito persuadida, antes desconfiada de si própria. - Mas - acrescentou - penso que não se encontra nada de novo enquanto estamos apegados ao passado. Compreende o que quero dizer? Combater o passado e ainda pertencer-lhe de qualquer maneira. Bem sei que a tentação maior é a de ficar no mundo e lutar por algum tempo. Mas que vantagem haveria nisso?
Gudrun pensou em seu próprio caso.
_ Sim - disse ela - em certo sentido fazemos parte do aglomerado, uma vez que nele vivemos. Mas não será ilusão supor que podemos fugir? Aliás, uma casa de campo nos Abruzzos ou em outro canto qualquer não constitui um mundo novo. Não, Úrsula: a única coisa que se tem de fazer para nos desenganarmos da terra é visitá-la por inteiro.
A outra parecia olhar de muito longe. Assustava-se tanto com discussões!
- Mas pode haver outro processo, não acha? - disse ela. Podemos visitar o mundo através da nossa alma, muito tempo antes de o conhecer na realidade. E, uma vez que conheçamos bem a nossa alma, tudo se torna diferente.
- Vê-lo através do nosso espírito? - perguntou Gudrun. - Se você quer dizer que se pode adivinhar o que vai suceder não concordo. Não, não é possível. E em qualquer caso não e fácil voar assim para outro planeta pela razão de que já se sabe o que neste vai acontecer.
Úrsula pôs-se de pé repentinamente.
- É fácil, sim senhora, é fácil. Neste mundo nada temos a esperar. Possuímos uma espécie de outro eu que pertence a um planeta diferente. É forçoso fugirmos deste.
Gudrun meditou alguns segundos. Seu rosto mostrou uma expressão de complacência, quase de desprezo.
- E o que acontecerá quando você se encontrar no espaço? _ perguntou à irmã, em tom irônico. - Afinal de contas, as grandes ideias são as mesmas em toda parte. Não conseguira por de lado o fato por exemplo, de que o amor é o fim supremo, tanto na terra como fora dela.
- Não - replicou Úrsula - não é. O amor é demasiado humano e mesquinho. Acredito em qualquer coisa extra-humana, da qual o amor é apenas uma parcela. Creio que a nossa missão nos virá do desconhecido e dirá respeito a algo infinitamente superior ao amor. Não é unicamente humano.
Gudrun, com seus olhos firmes e equilibrados, contemplava a irmã. Admirava-a e desdenhava-a ao mesmo tempo. Depois, sem transição, desviou a vista e declarou friamente, em tom desagradável:
- Pois não conheço nada além do amor.
Foi então que um pensamento atravessou, como um relâmpago, o espírito de Úrsula: "Como você não amou ainda, não é capaz de ultrapassar o amor".
Gudrun levantou-se, aproximando-se da irmã, e passou-lhe o braço em torno do pescoço.
- Vá, minha querida, vá em busca do seu mundo novo - disse ela com voz em que se percebia benevolência fingida. - Em última análise, a mais feliz de todas as viagens deve ser em busca das Ilhas Encantadas de que fala Rupert.
Conservou o braço em volta do pescoço da irmã, e, com os dedos, acariciou-lhe a face durante algum tempo. Úrsula estava extremamente contrafeita. O ar protetor de Gudrun parecia-lhe um insulto. E esta, sentindo a resistência da irmã, afastou-se desajeitada. Levantou o travesseiro e descobriu as meias que lá estavam.
- Ah! Ah! - tentou rir, sem vontade. - De que é que estamos falando? Novos mundos, velhos mundos...
E trataram de passar a outros assuntos mais corriqueiros.
Gerald e Birkin tinham partido à frente; esperariam pelo trenó que devia conduzir os viajantes, para que Rupert tomasse o seu lugar no veículo.
- Quanto tempo ainda se demoram aqui? - perguntou Birkin, examinando o rosto corado, quase inexpressivo, do outro.
- Não posso dizer. Até ficarmos fartos.
- Não receia que a neve se derreta antes?
Gerald riu-se.
- Chega a derreter? - perguntou.
- Tudo corre bem entre vocês? - volveu Birkin.
Gerald contraiu um pouco o olhar.
- Se corre bem? Nunca percebi o que significa essa frase. Correr bem e correr mal são muitas vezes sinônimos.
- Sim, também acho. E quando regressam, afinal?
- Não sei. Talvez fiquemos aqui para sempre. Não olho para trás nem para frente de mim - respondeu Gerald.
- Nem para o que não existe... - atalhou Birkin. Gerald investigou ao longe com as pupilas diminuídas, abstrato, como um falcão.
- Em tudo isto há qualquer coisa definitiva. Gudrun, para mim, é a meta que eu queria alcançar Não sei... Mas vejo-a tão branca, pele tão sedosa, braços indolentes e meigos... Ela incendeia, de certo modo, o meu espírito... - Deu alguns passos, olhando sempre em frente, fixamente; dir-se-ia haver afivelado máscara semelhante à do ritual religioso dos povos bárbaros - Destrói a visão da alma, deixa-nos como cegos... E procurando ser cegos e amaldiçoados, não queremos mais outra.
Falava como se estivesse em transe, inconsciente e pálido. E, de súbito, em voz de melopeia, firmando-se em Birkin de forma rancorosa e assustada, foi dizendo:
- Sabe o que é sofrer quando se esta com uma mulher? - Ei-la tão bela, perfeita, bondosa; rasga-nos o coração como se fosse de seda, e a cada rasgão dói e queima... Ah, meu amigo esta perfeição... quando nos destruímos a nos mesmos! Além disso - Parou, ereto sobre a neve, e abriu as mãos, de punhos cerrados - Não é nada... O cérebro pode reduzir-se a pó, e... - Mirou em volta, para o nada, com um esquisito ar de histrião - Tudo se arrasa. Compreende o que digo. É uma grande aventura, talvez a derradeira... e então... encolhemo-nos como se recebêssemos uma descarga elétrica. - Recomeçou a andar em silêncio. Tinha o aspecto de quem dizia coisas absurdas, mas, ao mesmo tempo, era sincero, como se se visse obrigado à fazer tais confidências. - Decerto - prosseguiu - não procurei evitar que isso acontecesse. É uma aventura completa! E que mulher maravilhosa! Mas, as vezes, detesto-a... É curioso...
Birkin olhou para o outro, que parecia estranho, distante. Era como se Gerald estivesse confuso em face das suas próprias.
- Mas agora, chega, não? - acudiu Birkin. - A experiência foi suficiente. Para que prosseguir além?
- Não sei. Ainda não acabou...
E os dois continuaram a andar.
- Estimei-o tanto como Gudrun, não se esqueça - disse Birkin com certa amargura. Gerald atentou nele, de forma esquisita, sem compreender.
- Acha que sim? - disse então, em tom de descrença, friamente. - Ou será só na sua imaginação? - Dizia isto, no entanto, sem pensar.
O trenó chegou. Gudrun apeou-se. Fizeram as despedidas. Estavam desejosos daquela separação. Birkin entrou no carrinho, que se pôs em movimento, deixando sobre a neve Gerald e Gudrun ambos a agitarem as mãos, a dizer adeus. O coração de Birkin enregelava-se de os ver ficar para trás, na desolação daquela brancura, cada vez mais pequeninos, mais distanciados...


Capítulo XXX
No meio da neve
Depois que Birkin e Úrsula partiram, Gudrun sentiu-se a vontade na sua contenda com Gerald. À medida que se iam habituando um ao outro, parecia que ele a procurava subjugar cada vez mais. A princípio ainda ela conseguia impor-se, e a sua vontade conservava-se independente. Mas não tardou muito que Gerald começasse a desdenhar aquela tática feminina, perdendo o respeito pelos caprichos e segredos da moça e exercendo o seu domínio cegamente, sem jamais se submeter aos desejos dela.
Entre eles surgia, pois, um conflito: ambos estavam apavorados com essa ideia. Ele não tinha quem lhe valesse, ela, porém, procurava algum auxílio externo.
Quando a irmã se foi embora, Gudrun sentiu que a sua vida se tornava rígida e elementar. Subiu ao quarto e ficou ali sozinha, contemplando da janela as estrelas enormes e cintilantes. A sua frente estava a sombra indefinida das montanhas. Eram como o eixo do mundo. Gudrun sentia-se estranha, colocada sobre aquele eixo do mundo e da vida; para além, cessava a realidade.
Nesse momento, Gerald abriu a porta. Ela previra que ele não se demoraria lá fora. Nunca lhe era dado estar só: impunha a sua presença, como o frio amortecendo-lhe a energia.
- Está abandonada nas trevas? - Pela voz, ela compreendeu que estava irritado, e irritado contra a solidão de que ela procurava rodear-se. Contudo, percebendo que nada poderia fazer, Gudrun mostrou-se atenciosa e pediu-lhe:
- Quer acender a vela?
Gerald não respondeu, mas avançou e ficou por trás dela, no escuro.
- Veja - disse Gudrun - que estrela maravilhosa! Sabe que nome tem?
Gerald curvou-se ao lado de Gudrun para observar através da janela baixa.
- Não sei - respondeu. - É linda!
- Lindíssima! Veja como solta clarões de diferentes cores. É uma soberba cintilação.
Calaram-se. Mudamente, com um gesto fatigado, ela pôs-lhe a mão nos joelhos, e tomou a dele entre as suas.
- Está sentindo falta de Úrsula?
_ Não. - Depois, muito vagarosa, acrescentou: - Qual é a sua maneira de amar?
Gerald aproximou-se mais de Gudrun.
- O que é que você acha?
- Não sei.
- Diga - insistiu Gerald.
Houve uma pausa. Por fim, na escuridão do quarto, ouviu-se a voz dela, dura e indiferente:
- Creio que o seu amor é muito pequeno. - Disse aquilo em tom frio, quase petulante.
- E por que é que não amo você? - perguntou como se admitisse a verdade daquela acusação, embora lhe guardasse rancor.
- Não sei, tenho sido boa para você. Quando veio ter comigo estava em tal estado de excitação...
Falava de maneira ofegante, mas era forte e impiedosa em sua acusação.
- Quando é que você esteve assim?
_ Da primeira vez... Tive pena de você. Não era amor o que você sentia.
Esta declaração soava-lhe aos ouvidos de uma forma que o fazia enlouquecer.
_ Por que repetir tantas vezes que não era amor? - perguntou ele com voz encolerizada.
- Você pensa que ama?
Gerald estava tão irritado que não respondeu.
- Não se julga capaz de me amar? - perguntou ela em tom de mofa.
- Não.
- Você nem sabe que nunca me teve amor, não é verdade?
- Não sei o que você entende pela palavra amor - replicou ele.
- Sim, sabe. Sabe perfeitamente que nunca foi assim. Não é verdade? - respondeu Gerald, prontamente, levado pelo seu espírito de sinceridade e de teimosia.
- E você jamais me terá amor - concluiu ela.
Mostrava uma frieza diabólica, insuportável.
- Não.
- Então - retorquiu ela - de que se queixa?
O outro calava-se, frio, desesperado e receoso. "Se ao menos pudesse matá-la..., pensava consigo mesmo; "se ao menos pudesse matá-la, ficaria livre!"Achava que a morte seria a única maneira de resolver aquele problema.
- Mas, por que torturar-me? - exclamou.
Gudrun passou-lhe os braços em volta do pescoço.
_ Não quero torturá-lo - respondeu compadecida, como se estivesse consolando uma criança. A impertinência acabara com os sentimentos dele; mostrava-se insensível. Ela continuava a abraçá-lo numa atitude de triunfante misericórdia, numa piedade tão fria como uma pedra, no mais profundo ódio por aquele homem, e no meio do domínio que ele podia recuperar e que era preciso combater hora a hora.
- Diga que me ama - pediu Gudrun. - Diga que há de amar-me sempre, diga!
Porém, apenas a voz o acariciava. Os sentidos permaneciam à parte, afastados, hostis. Só a vontade imperiosa é que insistia.
- Não quer dizer que me terá amor para sempre? - tornou ela, fazendo-se persuasiva. - Diga, ainda que não seja verdade. Diga, Gerald.
- Amo você para sempre - repetiu este, a custo. As palavras se recusavam a ser pronunciadas, ele sentia-se agoniado.
Gudrun beijou-o, num movimento rápido.
- Imaginar que você o disse... que o disse agora - comentou ela, zombeteira.
Gerald sentia-se como uma criança que acabasse de receber um castigo.
- Tente gostar um pouco mais de mim e desejar-me um pouco menos - continuou a moça, semidesdenhosa e semi-afável.
As trevas pareciam ter invadido, em ondas sucessivas, o cérebro de Gerald, ondas soturnas, que lhe varriam o espírito. Julgava-se humilhado, reduzido a uma coisa desprezível.
- Quer dizer que não me deseja? - perguntou ele
_ Você insiste tanto! E tem tão pouca compaixão, tão pouca delicadeza! Você é brutal. Você me destrói, desgasta; é horrível para mim!
- Para você?
- Sim. Não acha que eu poderia ter um quarto só para mim, agora que Úrsula foi-se embora? Podíamos dizer que precisamos de um quarto de vestir.
Gerald esforçou-se para responder.
- Como quiser. Pode ate partir de vez, se quiser.
_ Eu sei - replicou ela. - Você também, sem precisar me prevenir.
Gerald a custo se mantinha de pé. Sentia-se fraco e tinha a impressão de que ia cair desamparadamente. Despiu-se e atirou-se na cama, como se estivesse bêbado, a obscuridade erguia-se e abaixava-se como se fosse um mar vertiginoso e negro. Durante algum tempo ficou estendido, imóvel, inconsciente, em meio a um martírio abominável.
Finalmente, Gudrun levantou-se e aproximou-se dele. Gerald permanecia rígido, de costas para ela. Dir-se-ia haver repudiado a voz dos sentidos.
Colocando os braços ao redor de seu corpo, que denunciava aterradora insensibilidade, encostou o rosto no ombro do rapaz.
- Gerald! - murmurou. - Gerald!
Ele não se mexeu. Ela o atraiu para si, premindo os seios nas espáduas dele, beijando-o através da camisa. Não compreendia por que aquele homem estava tão hirto, quase sem vida. Sentia-se desnorteada e queria que ele acordasse e lhe falasse.
- Gerald! Gerald querido! - balbuciou, inclinando-se e dando-lhe um beijo na orelha.
A rigidez pareceu atenuar-se com o calor morno das carícias, com o roçar rítmico dos lábios. O corpo, ela bem o sentia, ia-se humanizando pouco a pouco, perdendo aquela frieza tão anormal. As mãos dela corriam-lhe sobre o tronco, tateando os músculos, que se contraíam sob a pressão.
Finalmente, o sangue circulou, aquecido, nas veias, e os membros retomaram a sua mobilidade.
- Volte-se para mim - cochichou ela, abandonando-se ao consolo do triunfo.
Finalmente, Gerald reanimou-se, recuperando a agilidade e o calor. Virou-se para ela e abraçou-a; e sentindo-a tão perto, tão suave, perfeita e dócil, em atitude tão inesperada, a estreitou contra si. Gudrun sentia-se arrebatada, sem opor resistência, e o cérebro de Gerald ficara outra vez rijo e invencível: era como um diamante que nada pudesse destruir.
A paixão que experimentou por ela foi violenta, medonha, impessoal, semelhante a uma catástrofe. Gudrun supôs que ele a ia matar. Teve a sensação de estar sendo assassinada.
- Meu Deus! Meu Deus! - exclamou, na agonia daquele amplexo, julgando que a vida lhe fugia. Quando Gerald a encheu de beijos, acalmando-a lentamente, Gudrun considerou-se esgotada e moribunda.
- Vou morrer? Vou morrer? - repetia para si mesma.
Mas nem ele nem a noite responderam a essa pergunta.
Contudo, no dia seguinte, a parte da sua alma que não fora impressionada continuou intata e hostil. Não se foi embora. Permaneceu disposta a terminar as suas férias sem querer saber de mais nada. Ele quase nunca a deixava só, seguindo-a como uma sombra. Era como uma condenação, seguindo-a como uma sombra. Às vezes Gerald parecia ser mais forte e Gudrun nem existia, arrastando-se sobre a terra como uma aragem que esmorece Noutras ocasiões acontecia o contrario. Mas sempre, o eterno pêndulo oscilava, ora destruindo as esperanças de um, ora reanimando-o pelo aniquilamento do outro.
"Mais dia menos dia", pensava ela, "terei de deixa-lo". "Posso livrar-me desta mulher", comentava ele nos paroxismos do sofrimento.
Decidiu, pois, abandoná-la. Preparou-se para ir embora e ela que se arranjasse como pudesse. Todavia, pela primeira vez, a vontade vacilou.
"Ir para onde?", perguntou a si mesmo.
Você não se basta?", respondeu-lhe a consciência, fazendo apelo ao orgulho.
"Bastar-me a mim próprio!", repetiu ele.
Achava que a moça não precisava de ninguém que, como um aparelho num estojo formava um conjunto perfeito, independente. Assim raciocinava ele, muito tranquilo, e ela estava no seu direito de se bastar a si mesma, de ser suficiente e de não ter desejos. Compreendia o fato, aceitava-o, e necessitava somente de um esforço para alcançar ele próprio semelhante vantagem. Sabia que lhe faltava apenas forçar a vontade e conseguir obter igual suficiência, fechar-se dentro de si mesmo isolado, impenetrável satisfeito, como um penedo fixado a terra.
Mas tal ideia lançou-o num tremendo caos. Pois, embora mentalmente quisesse ser livre e completo, faltava-lhe a vontade, que não sabia como obter. Via perfeitamente que, para existir com independência, precisava libertar-se de Gudrun, deixa-la, nada revindicar.
Mas, para isso, era preciso manter-se por si mesmo. A ideia reduzia-o a nada; seria o mesmo que aniquilar-se totalmente. Mas também poderia declarar-se vencido, adulá-la... Finalmente, poderia matá-la - a não ser que se tornasse indiferente, disperso sem se importar com a vida. A sua natureza, porém, era seria em demasia sem a jovialidade e a sutileza necessárias para um amor despreocupado e licencioso.
Em sua alma rasgava-se uma estranha fenda: como uma vítima dilacerada brutalmente e oferecida aos céus em holocausto, assim ele se sacrificara pelo amor de Gudrun. Como sarar tais feridas? Essa chaga, esse ferimento singular, infinitamente sensível e aberto na sua alma, pelo qual ficava exposto como uma flor desabrochada, a todo o universo, e por onde escapara parte de si próprio, o seu outro eu; aquela ferida que o ponha naquele desdobramento do ser que o deixava incompleto, limitado, inacabado como uma corola desfolhada ao sol, isso constituía agora a sua alegria cruel. Privar-se dela, então, para que? Para que encerrar impenetrável e independente como uma semente dentro do fruto, quando a verdade é que havia germinado à luz fecundante para lançar rebentos e elevar-se no espaço?
Queria guardar a felicidade indefinível do desejo mesmo em meio ao martírio que a jovem lhe infringia. Apoderava-se dele uma estranha obstinação. Não se afastaria de Gudrun, por mais que ela fizesse ou dissesse. Arrastava-o para a mulher um desejo singular e fatal; era a influência determinante do seu ser embora ela o tratasse com desdém, o acolhesse mal e o recusasse. Não se resolvia a partir, porque, estando junto de Gudrun, se sentia mais vivo, até mais independente na sua própria limitação; saboreava a magia da promessa tanto como o mistério da destruição e do aniquilamento de si mesmo.
Martirizava seu coração ferido, quando Gerald se aproximava. Mas a própria Gudrun também se submetia à tortura. Tinha a impressão - e isso causava-lhe horror - de que ele lhe rasgava as fibras da alma, dilacerando-as por prazer. Era como uma criança arrancando as asas de uma mosca, ou abrindo um botão para descobrir lá dentro a flor, despedaçava-a para ver o segredo da sua intimidade, da sua existência, como quem revolve uma flor ainda fechada, cruel e violentamente.
Gudrun pudera abrir-se com ele, noutro tempo, nos seus sonhos, quando era puro espírito. Mas, agora, não queria ser forcada nem destruída. Fechava-se contra Gerald, insulada no seu orgulho.
À tarde, ambos subiram a altas colinas para admirar o pôr do sol. Detiveram-se sob o vento fino e áspero que soprava, contemplando o astro alaranjado que mergulhava numa atmosfera avermelhada que desaparecia. Depois, para os lados do oriente, os picos e as cristas das serras iluminaram-se de tons rosados, vivos, incandescentes como flores imortais de encontro a um céu de púrpura sombria, miraculosa, enquanto embaixo o mundo parecia uma sombra azulada, e lá no alto, como uma anunciação, pairava um halo róseo entre as nuvens.
Para Gudrun era tudo isto tão belo, tão delirante, que ela desejaria colher aqueles picos cintilantes e eternos, estreitá-los ao peito, e depois morrer. Gerald via-os também, e achava-os igualmente belos. Mas nenhum clamor lhe saía do peito, apenas experimentava amargura, que era ao mesmo tempo devaneio. Preferiria que as montanhas fossem cinzentas e sem esplendor, de forma que a moça não pudesse encontrar nelas estímulo nenhum. Por que motivo se atraiçoava, a si mesmo e a ele também, entregando-se ao fulgor da tarde moribunda? Por que o deixava ali, em pé, com a aragem fria a atravessar-lhe o coração como se fosse a própria morte, para se volver toda à contemplação dos cimos róseos e nevados?
_ Que importa o crepúsculo? - disse ele. - Por que se ajoelha diante dele? É assim tão importante para você?
Gudrun retraiu-se, ofendida e furiosa.
- Vá-se embora - ordenou-lhe - e deixe-me sozinha aqui. É lindo, lindo! - murmurava numa voz cantada e singular. - É a coisa mais bela que jamais vi na minha vida. Não tente interpor-se entre mim e o poente. Vá-se embora. Este não e o seu lugar!
Gerald recuou um pouco e deixou-a ficar onde estava espécie de estátua transposta para um místico pedestal resplandecente. Os tons de rosa já se iam desvanecendo, e enormes estrelas claras apontavam no céu. O rapaz esperou. Teria renunciado a tudo, menos a essa fascinação.
- É a coisa mais bela que já vi na vida - repetiu Gudrun numa entonação fria e cruel, quando se voltou, finalmente, para Gerald. - Aflige-me a ideia de que você tente perturbar este espetáculo. Se não sabe admirar, por que não me permitir que o faça - Na realidade, o encanto que ela sentira já fora até miado, e Gudrun esforçava-se em reanimar uma sensação desaparecida.
- Um dia - disse ele fitando-a calmamente - darei cabo de você quando estiver olhando para o poente, tudo em você e falso.
Ao pronunciar estas palavras, experimentou como que uma suave volúpia. Gudrun ficara gelada, mas não perdeu a arrogância.
- Ah! Não tenho medo de suas ameaças.
Fugiu dele e foi ocupar, na hospedaria, um quarto rigorosamente separado, onde mais ninguém poderia entrar. Ele, entretanto, aguardava paciente, sem perder o desejo que a moça lhe inspirava.
"No fim", dizia Gerald para consigo - e esta promessa começava a ser-lhe voluptuosa -, "quando chegar a determinado ponto, destruí-la-ei." E pressentindo aquela morte, todos os membros lhe tremiam no mais violento acesso de paixão, e aproximava-se dela ébrio de apetites.
Em frente de Loerke, Gudrun mostrava agora uma curiosa submissão, um tanto insidiosa e perversa. Gerald percebeu. Mas, no estado de paciência sobre-humana que se impunha, e não querendo mostrar-se aborrecido perante ela - em quem reconhecia uma parte de si mesmo - fingiu não reparar, se bem que aquela simpatia concedida a um homem que ele detestava como inseto pernicioso, o fizesse estremecer de cólera e lhe desse repetidos acessos de furor.
Gerald só a deixava quando ia patinar, desporto que adorava e que ela não praticava. Nesses momentos, o rapaz sentia-se fora da vida como um projétil lançado no além. E então, quando ele não estava presente, Gudrun entretinha-se com o escultorzinho alemão. O assunto invariável era a arte da sua profissão comum.
Comungavam nas mesmas ideias. Loerke não gostava de Mestrovic, não se satisfazia com os futuristas, apreciava as estatuetas de madeira do Oeste africano, a arte dos astecas, do México e da América Central. Sabia descobrir o grotesco, e certos movimentos mecânicos o perturbavam por estabelecerem confusão na natureza. Entregavam-se os dois, Gudrun e Loerke, a um estranho jogo de infinitas sugestões, raras e doentias, como se tivessem ambos o mesmo sentido esotérico da vida, como se fossem os únicos iniciados nos segredos vitais e assustadores que o resto do mundo não se atrevia a conhecer. A conversa decorria por meio de estranhas imagens, não facilmente compreensíveis. Entusiasmavam-se com a luxúria sutil dos egípcios e dos mexicanos e todo esse divertimento prosseguia centre alusões inteligentes, desejando qualquer deles manter-se no plano da insinuação. Dessas graduações verbais e físicas extraíam a mais alta satisfação para o sistema nervoso: era um intercâmbio estranho de ideias simplesmente sugeridas, olhares, expressões e gestos que, para Gerald, seriam intoleráveis, embora não os entendesse. Quanto a este, não tinha no seu vocabulário termos que servissem àquele comércio intelectual; os seus eram em demasia grosseiros.
O encontro da arte primitiva servia de principal motivo de conversa: refugiavam-se nesses mistérios íntimos da sensação, objeto do seu verdadeiro culto. A arte e a vida significavam para eles o real e o irreal.
- É claro - dizia Gudrun a existência não tem importância real: a arte só é que interessa. O que fazemos na vida tem peu de rapport, não significa quase nada.
- Nem mais nem menos - respondia o escultor. - O que se realiza em nossas almas artísticas é que representa o sopro vital. O que praticamos fora disso é uma insignificância, embora os outros se preocupem tanto com essas ninharias.
Era curioso observar como Gudrun aproveitava, daqueles colóquios, tantas sugestões de exaltação e de liberdade.
Sentia-se mais estabilizada, talvez de uma forma definitiva. Gerald, como se sabe, não passava de uma nulidade, o amor era um ato temporal na sua vida, exceto no que dizia respeito a sua qualidade de artista. Lembrou-se de Cleópatra, que também devia ter sido artista: retirara do homem tudo quanto ele possuía de essencial, colhera a derradeira sensação e deitara fora os restos. Assim, Maria Stuart e a ilustre Rachek - que delirava com os seus amantes, fora do palco - eram igualmente representantes esotéricos do amor. No fim de contas que era este sentimento senão a lenha utilizada para incendiar a ciência sutil da arte feminina, arte da pura e perfeita sabedoria na compreensão dos sentidos?
Certa tarde, Gerald e Loerke conversavam acerca da Itália e de Trípoli. O inglês estava inflamado e o outro parecia excitado. Digladiavam-se com palavras, mas na realidade o que havia entre eles era um conflito espiritual. Durante todo o tempo Gudrun pôde observar o desprezo arrogante dos da sua raça pelos estrangeiros. Embora tremesse um pouco, seus olhos flamejavam, seu rosto se avermelhava e, no que dizia, perpassava seu desdém selvagem e peculiar, que tanto indignava a moça e mortificava o alemão Gerald apresentava seus argumentos como marteladas, e tudo quanto o escultor dizia era considerado sem o menor valor.
Por fim, Loerke voltou-se para Gudrun, ergueu as mãos num gesto instintivo de desespero, e encolheu os ombros para indicar que desistia. Tinha, ao mesmo tempo, um ar impotente e infantil, na sua deserção.
- Sehen Sïe, gnädige Frau... - Está vendo isso, minha senhora - nota da tradutora) - começou ele.
- Bitte, sagen Sie nich immer gnädige Frau - É favor não me chamar sempre de Frau (senhora casada) - nota da tradutora) - começou Gudrun com as faces escaldando. Parecia uma autentica Medusa. A voz saía-lhe forte, atroadora, e as pessoas que estavam na sala ficaram espantadas. - Faça o favor de não me chamar de Senhora Crich - repetiu bem alto.
Aquele nome, especialmente nos lábios de Loerke, constituía ultimamente, para ela, um constrangimento humilhante e insuportável.
Os dois homens olharam para ela, pasmados. Gerald empalideceu.
- Como devo chamá-la, então? - perguntou Loerke em tom ligeiramente sarcástico.
- Sagen Sie nur nich das - A frase está traduzida mais adiante no mesmo parágrafo - nota da tradutora) murmurou ela, muito corada, com as faces ardentes - Pelo menos, não diga isso.
Pela expressão que despontou no rosto de Loerke, ela Percebeu que o rapaz havia percebido tudo. Não era a Senhora Crich! Aquilo explicava muita coisa.
- Soll ich Fraülein sagen? - Devo tratá-la por Fraulein (senhorita)? nota da tradutora), perguntou malevolamente.
- Não sou casada - confirmou Gudrun, com altivez. O coração batia-lhe com violência, como o de um pássaro desnorteado. Compreendia que se havia excedido, e só essa ideia era o bastante para a fazer sofrer.
Gerald ficara absolutamente calmo, pálido e imóvel, qual uma estátua. Desinteressara-se de Gudrun, de Loerke, de todos. Estava tranquilo, inalterável. O escultor, encolhido, de cabeça pendida para o chão, olhava para eles disfarçadamente.
Gudrun procurava, aflita, qualquer coisa que dizer, a fim de quebrar o silêncio. Contraindo a face num sorriso forçado, lançou a Gerald um olhar de compreensão, dizendo:
- É melhor que saibam a verdade.
E imediatamente recaiu sob o domínio dele - porque o ofendera, porque o magoara tanto, porque não sabia como Gerald iria reagir. Ficou a observá-lo. Interessava-se agora pelo homem. Loerke perdera todo o encanto.
Gerald levantou-se por fim, e foi, calmamente, conversar com o professor. Pouco depois ambos empenhavam-se numa discussão a respeito de Goethe.
Aquela naturalidade irritou bastante a moça. Gerald não se mostrara nem zangado, nem desgostoso; tinha, pelo contrario, um ar estranhamente cândido e puro. Muitas vezes apresentara aquele aspecto digno e distante, que tanto a fascinava.
Esperou apreensiva. Pensou que a fosse evitar, dando-lhe a entender o seu aborrecimento. Mas Gerald tratou-a com simplicidade, sem a mínima alusão ao incidente. Na alma de Gerald havia uma grande paz, que o tornava absorto e pensativo.
Gudrun recolheu-se ao quarto; experimentava por Gerald um amor escaldante, violento. Ele era tão belo e inacessível. O rapaz a beijou. Era o seu amante. Quanto prazer extraia ela daquela circunstância! Gerald, porém, não mudou a sua maneira de tratá-la. Continuou remoto, inocente, quase inconsciente. Gudrun queria que ele falasse; mas esbarrava com aquele estado de graça, de abstração em que ele parecia divagar.
Pela manhã, contudo, Gerald olhou para a moça comum pouco de aversão, de horror, de ódio tenebroso nas pupilas. Voltou ela então à sua posição anterior. Ele, no entanto, desconhecia toda a extensão da sua força, para que a pudesse empregar com eficiência.
Loerke esperava o reaparecimento de Gudrun. O artista, isolado em si mesmo, calculava que descobrira, enfim, uma mulher interessante. Sentia-se inquieto, esperando por ela para conversar, saboreando a ocasião de tê-la junto a si. A presença de Gudrun enchia-o de ardor, estimulava-o, e ele girava astutamente em volta dela como que arrastado por uma atração inevitável.
Loerke comparava-se a Gerald. Este era um profano e ele o detestava pela sua riqueza, orgulho e belo aspecto físico. Todas estas coisas, porém, representavam apenas elementos exteriores. Quando se tratava de agradar a uma mulher como Gudrun, ele, Loerke, dispunha de poder e atrativos que faltavam a Gerald e que ele não poderia imaginar nem em sonhos.
Como esperasse que uma mulher da categoria de Gudrun se satisfizesse com ele, Loerke detinha um segredo que ultrapassava aquelas qualidades. O maior poder é o que sabe adaptar-se sutilmente e não o que ataca de olhos fechados. Ele, Loerke seria capaz de penetrar nas profundezas de toda a ciência, ao contrario do amante de Gudrun. Gerald ficara para trás, como um noviço que espera na antecâmara do templo dos mistérios: esse templo era Gudrun. Loerke, pelo contrário, conseguiria penetrar até ao mais íntimo e oculto, descobrir o espírito dela e vencer a serpente enroscada no próprio âmago da vida. Afinal de contas, o que é que exige a mulher? Simples consideração pessoal, satisfação de ambições? A união no amor e na bondade? Deseja ela, realmente, "a bondade"? Quem seria tão louco de julgar isso de Gudrun? Seriam estes os seus desejos, aparentemente. Mas quem atravessasse o limiar, veria com quanto encarava ela o mundo social e todas as suas vantagens. Quem descesse ao fundo de sua alma notaria a atmosfera pungente de ceticismo, e a consciência crítica, viva e sutil com que ela apreciava a sociedade antipática e falsa.
Que sucederia então? A pura força do amor cego seria capaz de a satisfazer? Não, decerto: mas as emoções vivas e penetrantes de uma conquista lentamente conduzida o conseguiriam; antes uma vontade inflexível reagindo contra a vontade dela em sensações constantes, antes uma análise persistente e delicada exercendo-se no mais oculto da alma da mulher. A forma exterior e individual, pelo contrário, permanecendo sem alteração, seria ineficaz.
Mas entre duas criaturas, entre dois habitantes da terra, a série de impressões acaba por ser limitada. A sua escala, uma vez orientada em certa direção, deixa de produzir efeito, e extingue-se. Não há repetições possíveis, impõe-se a separação dos dois protagonistas ou a submissão de um ou de outro, ou ainda a morte.
Gerald atingira todos os pontos extremos da alma de Gudrun; tornara-se para esta o exemplo crucial do mundo exterior o nec plus ultra da vida dos homens nas relações para com ela Por ele ficara conhecendo a sociedade com a qual gostaria de romper. Tendo-o esgotado, assemelhava-se ela a um Alexandre a procura de novas conquistas. Mas não havia países novos nem novos homens, apenas indivíduos pequenos e fracos, seres ínfimos, da categoria de Loerke. O mundo, pois, finalizara para Gudrun. Restava-lhe apenas uma sombra interior, individual a sensação íntima do ego, o repugnante mistério da diabólica limitação, enigmática atividade para se reduzir e desintegrar do corpo orgânico da vida.
Tudo isto pressentia ela na sua inconsciência, nunca no espírito. Sabia que passos deveria dar quando deixasse Gerald. Tinha medo dele, receava que a matasse. Não queria ser assassinada, é claro. Sentia-se ainda unida a ele por um fio muito tênue, que a morte não despedaçaria. Gudrun precisava ir mais além, sentia existir ainda uma colheita de experiências lentas e delicadas a realizar, antes de abandonar a vida.
Para estas supremas sensações, Gerald não era a pessoa indicada. Não seria capaz de atingir o mais vivo da sua carne. Mas, onde os golpes violentos daquele homem não penetravam, a finura e agudeza de Loerke triunfariam. Era acerado como um inseto, perfurante como uma lâmina. Chegara, pois, a ocasião de passar para o outro, o artífice perfeito e definitivo. Não ignorava que Loerke, no mais recôndito de sua alma, se afastara de tudo e de todos; para ele não havia céu, nem terra, nem inferno. Não admitia autoridade alguma, não se submetia a ninguém. Solitário sempre e - por abstração do resto - absoluto em si próprio.
Gerald, pelo contrário, desejava pertencer ao mundo inteiro. Isso mostrava os seus limites. Era, de fato, limitado, borne, submetido, em última análise, ao que criara, bom, justo, coerente com as suas necessidades. Mas, entre essas necessidades, não figurava a morte com a sua experiência sutil e perfeita. Era aí que residia a sua limitação.
Loerke pairava numa atmosfera de triunfo desde que a moça lhe confessara não ser casada com Gerald. O artista parecia uma mariposa em voo, mantendo-se nas asas à espera do momento de pousar. Não se importava de esperar. Jamais seria importuno. Levado por um instinto seguro na obscuridade da sua alma, correspondia-se com a dela de forma imperceptível, misteriosa, mas palpável.
Conversaram durante dois dias, sempre sobre temas de arte, na qual encontravam ambos tanto prazer. Adoravam as coisas dos tempos idos, achavam encanto sentimental e infantil na perfeição das épocas pretéritas. Amavam particularmente o final do século XVIII, o período de Mozart, e a época do Goethe e de Shelley.
Entretinham-se com o passado e com as grandes figuras desaparecidas, numa espécie de jogo de xadrez, com o que se divertiam intensamente. Todos os homens notáveis lhes serviam de bonecos de molas; eles dois eram os dirigentes do espetáculo e puxavam os cordéis, pondo tudo a funcionar. Quanto ao futuro, jamais se ocupavam disso, exceto quando um deles expunha, a rir, qualquer fantasia humorística da destruição do mundo por meio de uma catástrofe ridícula, resultado de uma invenção qualquer: algum explosivo, talvez, poderosíssimo, que partiria a Terra em duas partes, ficando os dois pedaços a girar no espaço em direções opostas, diante do pasmo dos respectivos habitantes. Ou então imaginavam os homens divididos em dois partidos contrários, cada um deles convencido de ser o mais justo e perfeito, e considerando o outro indigno e merecedor de ser arrasado; calculavam, assim, várias espécies de fim do mundo. Havia ainda um sonho sinistro delineado por Loerke: a Terra se resfriaria, a neve cairia por todos os lados, e só os seres brancos - ursos polares, raposas brancas, homens semelhantes a terríveis aves das regiões árticas - permaneceriam na crueldade do gelo.
Quando não se distraíam com tais fantasias, Loerke e Gudrun evitavam falar no futuro. Preferiam divertir-se imaginando processos cômicos de destruição do planeta ou dissecando personagens românticas do passado. Era tão agradável reconstituir a vida de Goethe em Weimar, ou a de Schiller com a sua pobreza e o seu amor fiel, ou ressuscitar os temores de Jean-Jacques, ou Voltaire em Ferney, ou Frederico, o Grande, lendo seus próprios versos.
Palestravam durante horas sobre literatura, escultura e pintura recreando-se com Peuerbach e Bocklin. Seria necessária a duração de uma vida inteira, pensavam, para reviver in totum a existência dos grandes artistas. Mas tanto um como outro preteriam deter-se nos séculos XVIII e XIX.
Falavam numa mistura de idiomas, com base no francês. Loerke terminava a maior parte das frases por um tartamudear em inglês e uma tirada em alemão, ao passo que ela chegava ao fim do seu pensamento com as palavras que mais depressa lhe viessem ao espírito. Gudrun deliciava-se com estes colóquios. Havia estranhas expressões, fantásticas mesmo, frases de duplo sentido, evasivas sugestivas, reticências. Constituía, de fato, uma maravilhosa satisfação física poder tecer uma conversa com os fios diferentemente coloridos de três línguas.
Durante todo este tempo, volteavam, hesitantes, em torno de uma invisível declaração. Bem a desejava ele, mas impedia-o uma certa repugnância que não conseguia vencer. Ela, por seu lado, experimentava a mesma vontade, mas ia transferindo sempre; tinha pena de Gerald, sentia-se ainda ligada àquele homem foi o pior de tudo é que esse relacionamento derivava de reminiscências porque havia sido, considerava-se unida por laços invisíveis e imortais - sim, pelo que tinha sido, pelo fato de ter ido ele, naquela primeira noite, à sua casa, sob tremenda compulsão.
Gerald experimentava repulsa cada vez maior por Loerke. Não o levava a sério, desprezava-o simplesmente; porém, quando adivinhava em Gudrun a influência daquele entezinho mórbido, ficava fora de si; enfurecia-o perceber na jovem o predomínio de Loerke, a presença avassaladora do escultor.
- O que é que a entusiasma tanto nesse verme? - perguntou certa vez, sinceramente intrigado. Pois, para ele, nada via de atraente nem de notável no escultor. Pensava que só a beleza e a dignidade poderiam suscitar interesse às mulheres. Nada disso havia no alemão, apenas o que se via dele era a aparência repulsiva de um inseto.
Gudrun corou profundamente. Jamais lhe perdoaria as observações que fazia.
- Que quer dizer? - perguntou ela. - Como dou graças a Deus por não me ter casado com você!
O tom de voz, desdenhoso e insultante, impressionou-o. Mas, pouco depois, retomou o ataque:
- Responda-me, sim? O que vê de fascinante nele?
- Não estou fascinada - respondeu Gudrun, com ar inocente. Está, sim. A serpentezinha fascinou-a e a deixou qual um passarinho prestes a cair-lhe da boca.
Gudrun fitou-o, enfurecida.
- Não permito que o meu procedimento seja discutido - redarguiu.
- Que o permita ou não, pouco me importo. Isso não destrói o fato de estar prontinha para cair nas redes que ele armou. Faça o que entender, meta-se na boca da víbora. Mas o que eu gostaria de saber é o que tem ele de atraente.
Gudrun mergulhou numa cólera sombria.
- Como se atreve - disse finalmente - a tratar-me com tamanha arrogância? Como ousa fazer isso, meu provinciano fanfarrão? Que direitos supõe ter sobre mim?
O rosto de Gerald brilhava, pálido. Os olhos fulguravam. Gudrun percebeu que tombara em poder do lobo. Odiava-o por ser dominada por ele, odiava-o tanto que poderia ser capaz ate de matá-lo.
- Não é uma questão de direitos - replicou Gerald, sentando-se na poltrona.
Gudrun observava-lhe todos os gestos. Via seu corpo mexer-se em movimentos naturais, e aquilo era para ela uma verdadeira obsessão. À ira que sentia acrescentou-se um desprezo definitivo.
- Não se trata dos direitos que tenho sobre você - repetiu ele - porque os tenho, quer você queira, quer não. Quero apenas saber o que a subjuga a esse escultor de merda, que esta la embaixo e que a faz curvar-se em adoração à sua passagem. Quero saber, perante quem, em suma, você se prostra de joelhos.
Gudrun ouvia-o debruçada à janela. De repente, voltou-se para dentro.
- Quer saber? - exclamou num tom desembaraçado e fustigante. - Quer saber o que vejo nele? É a compreensão que tem da alma de uma mulher. É isso.
O rosto de Gerald animou-se de uma expressão estranha, sinistra, bestial.
- Que tipo de compreensão? A de uma pulga munida de tromba, saltitante? Por que você há de rastejar abjetamente em homenagem a uma pulga?
No espírito de Gudrun passou a ideia da representação de uma pulga, consoante a interpretação de Blake, e tentou aplica-la a Loerke. Mas Blake era demasiado caricatural. Que iria responder a Gerald?
_ Você não acha que a inteligência de uma pulga e mais interessante do que a de um imbecil? - perguntou ela.
- Um imbecil? - repetiu Gerald.
- Sim, um imbecil vaidoso, um dummkopf - confirmou a jovem enriquecendo o seu vocabulário com uma palavra alemã.
- Está dizendo que eu sou um imbecil? Pois prefiro ser isso do que a tal pulga que está lá embaixo.
Gudrun enfrentou-o. Gerald tinha um ar de estupidez tão cega e obtusa que ela desanimou, limitando-se a dizer:
- Com essas últimas palavras, você se definiu.
O rapaz refletiu.
- Não tardarei a ir-me embora - declarou.
Gudrun não o deixou sem resposta:
- Lembre-se de que sou completamente livre. Trate da sua vida que eu tratarei da minha.
Aquela observação levou-o a meditar.
- Quer dizer que deste momento em diante somos estranhos um para o outro?
Ela hesitou, corando. Gerald armava uma ratoeira.
- Estranhos - disse ela - nunca poderemos ser. Mas se quiser desembaraçar-se de mim, confirmo que você é independente e senhor de suas ações. Não se preocupe comigo.
Aquela observação, embora velada, era a confissão de que ela ainda precisava dele. Isso reacendeu-lhe o amor. Deixou-se ficar imóvel porém, a expressão já não era a mesma. Corria-lhe pelo corpo uma corrente semelhante ao metal fundido. Gemeu interiormente, sob o jugo, mas a escravidão lhe era grata. Mirou-a com os olhos claros e esperou.
Gudrun percebeu o que se passava e sentiu-se estremecer. Mas continuou fria e revoltada. Como podia ele contemplá-la com aqueles olhos claros, quentes, suplicantes? Como podia ter, mesmo naquele momento, esperanças nela? O que haviam dito, de parte a parte, não seria o bastante para cavar um abismo entre os dois para separá-los para sempre? Ei-lo entanto, ali estava ele alerta e transtornado, disposto a recebê-la!
Aquilo desconcertava a moça. Voltou-se para o lado e disse:
- Não deixarei de preveni-lo, assim que tomar uma decisão.
E com isto, saiu do quarto.
Gerald ficou sentado, entregue ao horror da decepção que parecia destruir-lhe gradualmente o entendimento. Todavia, a paciência persistia nele de forma inconsciente. Conservou-se imóvel, sem saber o que fazer, sem pensar sequer. Por fim levantou-se e desceu para o andar térreo, onde jogou uma partida de xadrez com um dos estudantes. Tinha um ar acolhedor e franco e certa inocência no seu laisser-aller, que perturbaram Gudrun o mais possível; ele fazia-lhe medo e inspirava-lhe simultaneamente profunda antipatia.
Foi depois dessa ocasião que Loerke - que nunca lhe perguntara nada de sua vida particular - começou a interrogá-la.
- Não é mesmo casada?
Gudrun fitou-o bem nos olhos e respondeu de modo categórico:
- Claro que não.
Loerke riu-se, franzindo o rosto de modo engraçado. Um tufozinho delgado de cabelos tombava-lhe sobre a testa, e Gudrun reparou em sua pele de um tom moreno-claro, assim como as mãos e os punhos, que se assemelhavam, estranhamente, a duas garras. Loerke assemelhava-se a um topázio, amarelado e transparente.
- Ainda bem - declarou.
No entanto, precisava de coragem para prosseguir.
- A Senhora Birkin é sua irmã, não é?
- É.
- É casada?
- Sim, é.
- Tem pais vivos?
- Sim, nossos pais ainda são vivos.
E expôs-lhe, em termos breves, lacônicos, qual era a sua posição. Loerke olhava-a atentamente, sempre debaixo da mais viva curiosidade.
- Só! - exclamou, um pouco surpreendido. - E Herr Crich é rico?
- Sim, é rico. É proprietário de minas de carvão.
- Há quanto tempo dura a sua intimidade com ele?
- Alguns meses.
Houve uma pausa.
- Estou admirado - volveu o escultor, finalmente. - Considerava os ingleses muito mais frios... Que pensa fazer quando o deixar?
- Que penso fazer? - repetiu ela.
- Sim, creio que não pretende voltar a ensinar. Não é possível mais - declarou, encolhendo os ombros. - Deixe isso à canaille que não sabe fazer outra coisa. A senhora é uma pessoa original, eine seltsame Frau. Para que negar a evidência? É uma mulher estranha, por conseguinte não deve seguir as outras estagnando-se em uma vida banal.
Gudrun, muito corada, olhava para as mãos. Agradava-lhe ouvir dizer que era uma pessoa diferente das outras. E ele não o dizia para a lisonjear não era aquele o jeito dele, tão objetivo se mostrava sempre! Declarava aquilo como se notasse que tal peça de estatuária tinha qualidades, porque sabia ser verdadeiro.
Ela se regozijava com semelhantes elogios. Os outros costumavam rebaixar tudo e todos ao mesmo nível, estabelecendo um modelo único. Na Inglaterra, era de bom-tom ser perfeitamente vulgar. Ser considerada como um ente diferente da multidão era coisa extremamente grata à moça. Não precisaria afligir-se com a opinião de mais ninguém.
- Mas a questão é que não disponho de dinheiro.
- Ach! Dinheiro! - exclamou o artista, num gesto de indiferença. - Quando já atingimos a maioridade, o dinheiro não é difícil de encontrar. Só quando somos inexperientes é que ele escasseia. Não pense em dinheiro, o terá sempre que quiser.
- Acha? - perguntou-lhe Gudrun, sorrindo.
- Sempre. Der Gerald dá-lhe o necessário, se lhe pedir.
Gudrun ruborizou-se intensamente.
- Pedirei a qualquer um - replicou a moça - menos a ele. - Dissera isto com certa dificuldade.
Loerke olhou-a com atenção.
- Está bem. Peça-o a quem melhor entender. O que não deve é voltar para a Inglaterra, para a tal escola. Isso seria uma coisa estúpida.
Houve novo silêncio. Loerke tinha medo de a convidar para ir com ele; nem ao menos estava certo de desejar tal solução. Ela, por sua vez, receava que ele lhe apresentasse essa proposta. O escultor prezava em extremo a sua solidão e não era pessoa para, nem sequer por um dia, fazer alguém compartilhar de sua vida.
- Só conheço outro centro importante: Paris - disse Gudrun. - Mas não gostaria de ir para lá.
Fitou o interlocutor com os seus olhos grandes, muito abertos. O outro baixou a cabeça, desviando a vista.
- Paris, não! - exclamou. - Entre a religion d'amour, o último "ismo", o regresso a Jesus, mais vale andar de carrossel todos os dias. Mas venha para Dresden. Tenho lá uma oficina, posso arranjar-lhe trabalho. Nunca vi nenhuma das suas escutarias, mas acredito no seu valor. Venha para Dresden: é uma cidade agradável, onde se pode viver. Lá encontrará tudo o que se espera de uma cidade, sem a imbecilidade de Paris ou a cerveja de Munique.
Gudrun contemplava-o tranquilamente. Gostava de o ouvir falar assim, com simplicidade, cavalheirescamente. Loerke era um artista, antes de tudo.
- Paris, não - repetiu ele. - Dá-me náuseas. O amor, detesto-o. L'amour, L'amour, die Liebe. Detesto-o em todas as línguas. As mulheres e o amor... não há nada mais enfadonho.
- Sou também dessa opinião - asseverou Gudrun.
Estava levemente ofendida. Contudo, não havia a menor dúvida: homens, amor... nada mais enfadonho.
- É uma grande maçada - prosseguiu o escultor. - Que importa que eu use este ou aquele chapéu? De igual forma o amor. Só uso chapéu por conveniência. É isto, gnädige Frau - inclinou-se diante da moça e fez um gesto rápido, grotesco como para afastar qualquer coisa. - Gnädige Fraulein, desculpe... É, isto que lhe digo, trocarei tudo, tudo o que chamam amor, por uma companheira inteligente... - Piscou os olhos sombrios, com malícia. - Compreende - continuou, com um sorriso. - Não faz mal que ela tenha cem anos, ou mil... para mim e indiferente, uma vez que me possa entender. - Baixou as pálpebras.
Gudrun sentiu-se ofendida, mais uma vez. Então não a achava bonita. E desatou a rir, bruscamente.
- Seria preciso esperar oitenta anos, pelo visto, para lhe agradar. E feia, já o serei bastante.
Loerke observou-a com olhar crítico, de artista e de entendido.
- É bonita, e tenho muito prazer em lhe dizer isso. Mas não é isso - prosseguiu em tom enfático que a sensibilizou - É porque a senhora tem inteligência, a espécie de inteligência que eu exijo. Eu sou baixinho, insignificante. Pois bem. Não me peça que seja belo e vigoroso. Mas é de mim - e pôs os dedos na boca, em gesto cômico - que alguma amante anda em busca, é a mim que ela espera, e o que deseja é uma união com a minha inteligência. Está compreendendo?
- Muito bem - disse Gudrun.
- Quanto ao outro, o tal amour - fez com a mão um movimento como o de expulsar um importuno - não tem importância nenhuma. Que resulta, se eu tomar esta noite vinho branco ou não tomar nada? Não interessa! Assim é o amor, esse amour, esse baiser. Sim ou não, soit ou soit pas, hoje, amanhã, ou nunca, é sempre o mesmo, não importa, ou importa tanto como o vinho branco.
Finalizou o discurso, deixando pender a cabeça para frente em movimento grotesco, sinal de desesperada negação.
De súbito, ela se aproximou, tomando-lhe a mão.
- É verdade - disse ela em voz cheia e veemente. - Para mim é assim também. Só a inteligência é que conta.
Loerke ergueu os olhos para a jovem. Parecia quase assustado. Depois de mau humor, abanou a cabeça. Gudrun largou sua mão. O escultor não correspondera à carícia dela.
Ficaram ambos silenciosos.
- Sabe? - disse ele por fim, mirando-a de repente com os seus olhos sombrios, orgulhosos e proféticos. - O seu destino e o meu hão de seguir lado a lado, ate que...
- Mas interrompeu-se, fazendo uma careta.
- Ate quando? - inquiriu a moça, pálida, com os lábios descorados. Era terrivelmente sensível a esse gênero de prognósticos. Loerke, porém, limitou-se a mover a cabeça, e depois acrescentou:
- Não sei... Não sei.
Só ao anoitecer Gerald voltou do seu exercício de patinação: faltara ao lanche de café e bolo que serviam às quatro horas. A neve estava em perfeitas condições, e o rapaz fizera um grande percurso, sozinho, até aos cimos gelados, subindo tão alto que pudera ver mais abaixo, à distância de cinco milhas, a Manenhutte, e a hospedaria do alto do desfiladeiro meio soterrada pela neve; descortinara o vale profundo ate a sombra produzida pelo grupo de pinheiros. Poderia voltar para casa por aquele caminho, mas só a ideia do regresso lhe causava náuseas. Poderia também descer, patinando, até a velha estrada imperial, logo por baixo do desfiladeiro. Mas para que seguir por uma estrada? Revoltava-se em pensar que encontraria gente. Antes ficar ali, no meio da neve, para sempre. Tinha sido feliz na solidão, deslizando suavemente e fazendo ressaltar pedaços de gelo entre os rochedos escuros estriados de linhas alvas e brilhantes.
Sentia, porém, gelar-se igualmente seu coração. Aquele estranho estado de paciência e candidez, que havia durado alguns dias desaparecia agora; Gerald tornava-se vítima de horríveis paixões e torturas.
Voltou, pois, de má vontade, queimado pela neve, tornado cruel pela ação do frio, e encaminhou-se para o côncavo que jazia entre os sopés ligados das montanhas. Viu, ao longe, as luzes amarelas das casas, e diminuiu a marcha, desejoso de não encontrar os outros nem ouvir o tumulto das vozes e sentir-se incomodado pela presença alheia. Experimentava um isolamento tal como se à sua roda se houvesse formado o vácuo ou uma camada de gelo puro.
No instante em que descobriu Gudrun, seu coração começou a bater descompassadamente. Ela lhe pareceu imponente e soberba, sorrindo lânguida e graciosamente para os alemães. Gerald sentiu a tentação de matar. Saboreava antecipadamente a volúpia da destruição. Seu espírito estava ausente; a neve e a paixão haviam-no enregelado e endurecido. A ideia, todavia, não o deixava; que prazer requintado não seria estrangulá-la, extinguir naquela mulher o último sopro de vida ate vê-la inerte e paralisada para sempre, carne flácida a lhe escapar dos dedos, perfeitamente aniquilada? Seria a forma de vê-la acabar-se da maneira mais completa.
Gudrun, ao vê-lo aparentemente tão calmo e amável, como de costume, não pressentiu quais os pensamentos que o animavam. Aquela amabilidade despertou-lhe, como sempre, um sentimento de ódio contra ele.
Entrou no quarto quando Gerald já estava meio despido e não reparou no brilho singular e jovial, de pura aversão, que o homem tinha no olhar. A jovem deteve-se no limiar da porta, com a mão atrás das costas.
- Estive pensando, Gerald - disse com ar de indiferença que pareceu a ele insultuosa - se devo voltar para a Inglaterra.
- Aonde quer ir, então? - indagou ele.
Ela, porém, evitou responder diretamente. Preferia fazer a sua exposição metodicamente, como havia imaginado.
- Acho melhor não continuarmos. Entre mim e você, tudo acabou...
Calou-se para deixar que ele respondesse. Gerald, contudo, não disse nada. Pensava apenas: "Acabou? - Sim, creio que acabou. Mas não de vez. Lembre-se de que não acabou ainda para sempre. É preciso acrescentar qualquer coisa; um ponto final, definitivo".
- O que aconteceu, aconteceu - prosseguiu ela. - Não me arrependo de nada. Espero que você, também...
Aguardou que ele desse qualquer explicação.
- Não, também não me arrependo de nada - asseverou o rapaz.
- Ainda bem - volveu Gudrun - ainda bem que nenhum de nós se queixa. É bem melhor assim.
- Claro - disse ele, distraído.
Gudrun fez uma pausa, e acrescentou:
- A nossa tentativa não deu resultado. Mas poderemos continuar as nossas experiências em outro lugar.
Percorreu-o um estremecimento de fúria. Parecia que ela o espicaçava. Para quê?
- Tentar o quê? - perguntou.
- Sermos amantes, é óbvio - respondeu ela, um tanto desconcertada.
- Falhou a nossa tentativa de sermos amantes - repetiu Gerald em voz alta.
Porém, com seus botões, ele pensava: "Devo matá-la aqui mesmo. É tudo o que me resta fazer". Apoderava-se dele uma vontade forte e imperiosa. Gudrun não percebia nada.
- Acha então que nossa união foi um completo êxito?
A ofensa daquela pergunta petulante passou pelo sangue de Gerald como se fosse uma corrente de fogo.
- Houve alguns momentos de êxito nas nossas relações - retorquiu ele.
- Podia ter sido bom o resultado.
Todavia, antes de concluir a frase, baixou a voz. Mesmo quando formulou o que ia dizer, sabia que não estava sendo sincero. Sabia muito bem que tudo não passara de um fracasso.
- Não podia - replicou Gudrun. - Você é incapaz de amar.
- E você? - atalhou ele.
Os olhos da moça fitavam-no sóbrios, como duas luas no meio das trevas.
- A você é que eu não consegui amar - declarou ela com franqueza fria e resoluta.
Gerald estremeceu, e diante dos olhos passou-lhe um clarão que o incendiou. O coração parecia jorrar-lhe numa chama. A consciência desceu-lhe para as mãos, para os pulsos. Não via nada, e só um desejo, insistente, o dominava: matá-la. Os punhos moviam-se e necessitava tê-la nas mãos para que se sentisse satisfeito.
Antes, porém, que avançasse para por o seu plano em prática, já a face de Gudrun denunciava haver-lhe compreendido o propósito, e, num relâmpago, ela correu para a porta. Depois, seguiu para seu quarto e fechou a porta à chave. Tinha medo sem ter perdido a confiança. Sabia que estava à beira de um abismo. Mas sentia-se segura. Calculava poder vencê-lo pela astúcia
Só, no quarto, Gudrun tremia, ainda excitada, com acessos de alegria insensata. Mantinha-se na certeza de que conseguiria enganá-lo. Tudo dependeria da sua presença de espírito. A luta, contudo, seria de morte; Gudrun não ignorava isso. Qualquer passo em falso, e estaria perdida. Experimentava um torpor estranho e ao mesmo tempo agradável, que lhe dava coragem, como alguém que se considera prestes a cair de grande altura, mas que não olha para baixo e que não admite ter medo.
- Vou-me embora depois de amanhã - resolveu consigo mesma.
Não queria, entretanto, que Gerald supusesse que o fazia para fugir, amedrontada com a atitude dele. No fundo não sentia medo. Percebeu que para sua salvação precisava evitar a violência física do rapaz. Mas, ainda fisicamente, ele não lhe infundia grande pavor. Precisava demonstrar isso a ele. Quando o tivesse feito, quando lhe provasse o que queria, poderia deixá-lo para sempre. Até aí, o combate entre os dois, terrível como ela não duvidava que fosse, manter-se-ia insolúvel. Gudrun necessitava ter confiança em si mesma. Por maiores que fossem os calafrios que a tomassem, não se deixaria vencer pelo horror. Gerald não a intimidaria, nem a dominaria, nem manifestaria direitos sobre ela. Gudrun estava pronta a prová-lo, e, uma vez que tivesse feito essa prova, ficaria livre dele para sempre.
Todavia, não fizera semelhante demonstração nem a Gerald nem a si própria, e era isto que a ligava ainda a ele. Estava amarrada a esse homem, não podia viver separada dele; sentou-se na cama, agasalhada, e ali ficou por largas horas meditando sem cessar no seu destino. Dir-se-ia que jamais se esgotavam seus pensamentos.
"Não é como se ele me amasse verdadeiramente! Ele não gosta de mim. Ama cada mulher que encontra. Exibe seus atrativos, goza com a sua irresistibilidade, procura despertar em cada uma a ideia de que seria uma maravilha tê-lo como amante. Sua ignorância sobre as mulheres também faz parte do jogo. Nunca deixa de se ocupar delas. Enfastia-me, porém, tal tipo de sedução tão estúpida e vaidosa. É ridícula essa inesgotável vaidade masculina... de pavões.
"Todos são assim. Birkin! Tire-se-lhe a vaidade e não sobra nada. Na verdade, é a sua ridícula insuficiência e perfeita insignificância que o tornam tão pretensioso.
"Quanto a Loerke, vale mil vezes mais do que Gerald. Este é tão acanhado de espírito, que encontra aí a sua perdição... Na verdade, não tem mais nada a dizer. Esgotou-se a sua provisão de ideias.
"Em todo o caso, Loerke é uma criatura independente. Não anda empertigado com a sua superioridade de macho. Quando imagino Gerald com as suas minas e o seu escritório a funcionar... Que pode haver entre mim e tudo isso? E ele pensando que sabia interessar uma mulher!
"Ao menos, em Dresden, voltarei as costas a tudo isso. Preciso divertir-me. Deve ser bom ir à Ópera Alemã, ao teatro alemão. Vou tomar parte na vida boêmia. Além disso, Loerke é artista, é uma pessoa livre. Quero escapar a tudo isso de que estou farta. Escapar a esse mundo de coisas vulgares, de frases vulgares, de gestos vulgares. Sei que não irei encontrar em Dresden o elixir da vida. Mas ficarei livre desta gente que tem um lar, crianças e conhecidos, tudo, tudo, muito deles. Estarei no meio de pessoas que não possuem nada, que não têm casa, não têm criados, posição social, categoria, nem roda de amigos da mesma laia. Meu Deus quanta complicação! Eles vivem com a precisão de um relógio; aquela monotonia, capaz de enlouquecer! Detesto a vida. Odeio-a. Detesto todos os Geralds incapazes de proporcionar qualquer coisa a alguém!
"Shortlands! Deus do Céu! Pensar que podia viver ali uma semana, a seguinte, outra ainda...
"Não, não posso nem lembrar-me! É demais para mim!"
Interrompeu o solilóquio, verdadeiramente horrorizada, sem mais poder suportar aquela ideia da sucessão maquinal dos dias, uns após outros, ad infinitum... Era um pensamento de lhe fazer bater o coração, levando-a quase à loucura. A terrível escravidão ao tique-taque do relógio, aquele marchar lento dos ponteiros, a eterna repetição das horas e dos dias... eram demasiada tortura para ela. Ah, fugir daquele pesadelo... fugir!
Quase desejou que Gerald estivesse presente, a fim de ver desvanecido o horror de tais pensamentos. Como sofria, ali sozinha em frente ao horrível relógio com o seu eterno tique-taque... As horas soavam... E outra vez tique-taque, tique-taque, com os ponteiros deslizando no mostrador...
Mas Gerald não a poderia salvar. Ele, e o seu corpo, a sua atividade, a sua existência, regulavam-se pelo mesmo tique-taque, pelo mesmo movimento dos ponteiros, pelo bater uniforme das horas. Assim, os beijos dele, os seus abraços. Tudo muito bem compassado.
"Ah! Ah!" Riu consigo mesma. Ria por se sentir tão assustada. "Ah! Ah!" Era mesmo de enlouquecer.
Depois retomando um pouco de serenidade, Gudrun perguntou a si própria se os seus cabelos não embranqueceriam durante aquela noite. Mas não. Continuariam castanhos e ela permaneceria jovem e sadia, como sempre.
Talvez mesmo devesse à sua constituição saudável o sair sempre ilesa em todos os ataques da adversidade. Se fosse doente, teria suas ilusões, suas fantasias. Mas assim como era, como escapar à verdade? Estava colocada diante do relógio da vida. Tinha de enfrentar o destino, sabendo que não havia possibilidade de fugir. Se voltasse as costas ao relógio, como fazia nas estações de estrada de ferro, para olhar as vitrinas de livros, continuaria mesmo assim a ver o mostrador descomunal e branco. Em vão folhearia os livros, modelaria inutilmente as suas estatuetas de barro. Bem sabia que não estava lendo, que não estava trabalhando. Olharia apenas o avanço dos ponteiros, eterno, automático, monótono. Não vivia a realidade. Limitava-se a olhar o transcorrer do tempo. Assemelhava-se, com efeito, a um relógio a que se dá corda, todos os dias, para acertar com o relógio da eternidade... Ela estava ali, como a Dignidade e a Impudência, ou a Impudência e a Dignidade...
A comparação agradava a Gudrun. O rosto dela parecia o disco de um mostrador, redondo, pálido, impassível. Teve vontade de ir se olhar num espelho, mas a ideia de achar o próprio rosto semelhante a um quadrante encheu-a de tamanho horror que procurou pensar em outra coisa qualquer.
Por que ninguém se mostrava bom para ela? Por que não haveria um ente que a tomasse nos braços e a apertasse contra o peito e lhe desse o repouso reparador, profundo e verdadeiro? Por que razão não aparecia alguém que a estreitasse e a mantivesse tranquila e segura, até que ela adormecesse? Ambicionava tanto aquele sono perfeito! Não tinha quem a defendesse durante o sono. Dormiria sempre desprotegida, abandonada e atormentada. Como poderia suportar tanto abandono, tanta incerteza?
Gerald? Seria capaz de a abraçar e proteger durante o sono? Pobre Gerald! Precisava também de alguém que o adormecesse. Era isso o que ele desejava. Por mais que fizesse, não conseguiria senão tornar mais pesado para ela o fardo da vida. Quando estava presente, os pesadelos de Gudrun eram maiores. Representava mais um tormento durante as noites imperfeitas, durante os sonos que não chegavam a amadurecer nem a dar frutos. Claro que roubava a ela o pouco repouso de que dispunha. E talvez o motivo pelo qual a importunava tanto, como uma criancinha esfomeada que chora para que lhe deem o peito. Talvez fosse esse o segredo da paixão que o arrastava para ela. Precisava de Gudrun para poder dormir, para alcançar um pouco de descanso.
Mas por quê? Não era sua mãe. Aceitara, por acaso, por amante, um bebê que precisasse embalar durante a noite? Eis o que era aquele Don Juan: uma criança rabugenta.
E como Gudrun abominava as crianças que choram à noite! Ela estrangularia calmamente o bebê e o enterraria como Hetty Sorel. Sem dúvida o filho de Hetty Sorel chorava durante a noite. E também o de Arthur Donnithorne. Ah, estes Donnithornes, estes Geralds de todo o mundo... Calados de dia, lamurientos depois de se deitarem! Deixá-los tornarem-se instrumentos, simples máquinas, vontades elementares que funcionam como relógios, numa constante repetição. Deixá-los ser assim, deixá-los serem puros maquinismos, dormitando ao som do tique-taque. Gerald que se ocupasse dos seus negócios. Ficará satisfeito o dia todo, Gudrun o sabia muito bem.
O carrinho, com a sua roda submissa, eis a unidade na aritmética da empresa. Depois, a carreta, com duas rodas; o vagão com as quatro; a locomotiva, com oito; outra maior, com dezesseis, e assim por diante, ate o mineiro com as suas mil rodas, e o eletricista, com três mil, e o gerente com vinte mil, e o diretor, finalmente, com cem mil rodas. E eis Gerald, com um milhão de rodízios, dentes e eixos!
Coitado de Gerald! Tantas rodinhas a pôr em movimento... Muito mais complicado do que um cronômetro. Meu Deus, que aborrecimento! Um cronômetro! A alma de Gudrun arrepiava-se só em pensar naquilo. Tantas rodas a contar, e a considerar, e a calcular! Basta! Basta! Há um limite para a capacidade humana em meio a tanta complicação. Ou, quem sabe se não há limite...
Entretanto, Gerald lia, sentado no leito, em seu quarto. Quando Gudrun se retirara, sentira espanto e não soubera o que fazer. Deixou-se abater sabre a cama e la ficou durante uma hora. Sulcavam-lhe o espírito clarões intermitentes. Estava imóvel com a cabeça pendida para o peito.
Pôs-se de pé, finalmente, e lembrou-se de que se preparara para dormir. Devia dormir. Sentia frio. Deitou-se no escuro.
Mas não conseguia suportar a escuridão Aquela sombra densa o sufocava. Levantou-se e acendeu a vela. Permaneceu alguns instantes sentado, olhando em frente. Não pensava em Gudrun nem em ninguém.
Teve vontade de ir buscar um livro. Sempre tivera horror às noites de insônia. Amedrontava-o a ideia de passar mais uma noite em claro, à espera de que o tempo decorresse. Ficou sentado na cama durante horas, lendo imóvel como uma estátua o espírito alerta e ágil, penetrava na leitura, mas não chegava a apreender bem o que lia. Em estado de rígida inconsciência, leu durante quase toda a noite, e só ao amanhecer cansado e infeliz, desgostoso de si mesmo, conseguiu dormir duas hora. Acordou cheio de energia. Gudrun mal se dirigiu a ele. Durante o café, declarou:
- Vou-me embora amanhã.
- Vamos juntos até Innsbruck, para salvar as aparências? - propôs ele.
- Talvez - condescendeu a jovem.
Disse isso entre dois sorvos de café. E a maneira como ela tomou fôlego, logo a seguir, desagradou a Gerald. Ergueu-se apressadamente, disposto a afastar-se dela e foi ocupar-se dos preparativos para a partida no dia seguinte. Depois, munido de provisões, saiu com os esquis, resolvido a passar o dia fora. Ao Wirt - Dono da hospedaria - nota da tradutora), ele explicou que iria ate Marienhutte, ou talvez, mesmo, à aldeia.
Gudrun recebera a manhã repleta de promessas como uma primavera. Sentia aproximar-se o momento da libertação, e uma nova fonte de vida jorrava por toda ela. Sentia prazer em andar de um lado para o outro, empacotando suas roupas, experimentando vestidos, mirando-se no espelho, lendo este ou aquele livro. Sentia que uma existência diferente se preparava parada e mostrava-se contente como uma criança; todos a achavam atraente e bela, com o seu ar carinhoso e exuberante e a irreprimível exteriorização da felicidade. Contudo, sob tal aparência o pensamento da morte não a abandonava.
Saiu à tarde com Loerke. O "amanhã" tornara-se impreciso e isso a deixava ainda mais satisfeita. Podia ir para a Inglaterra com Gerald ou para Dresden com Loerke, ou ainda para Munique, visitar uma amiga que residia lá. Tudo isto podia acontecer no dia seguinte. E o dia de hoje era o limiar branco, irisado de neve, de todas as possibilidades. Todas as possibilidades! Isto significava para Gudrun o encanto, o sortilégio adorável, cintilante, indefinido, a pura ilusão. Todas as possibilidades, mas a morte é inevitável, e nada é tão possível como a morte.
Não desejava que as coisas tomassem uma feição material e definida. Gostaria que, de repente, no dia seguinte, no meio da viagem, se visse impelida numa direção diferente, por qualquer circunstância inesperada. E assim, embora fosse com Loerke, pela última vez, correr sobre a neve, evitava as conversas serias ou qualquer coisa que se relacionasse com o futuro.
Loerke, por seu lado, não inspirava seriedade. Trazia na cabeça um gorro de veludo pardo, que a tornava redonda como uma castanha; e, com as abas caídas sobre o rosto - de onde escapava uma mecha de cabelos finos e escuros revoluteando ao vento - com seus olhos negros de elfo, e a pele trigueira, luzidia e fina que se encarquilhava nos cantos dando estranhas expressões àquele rosto, o escultor parecia antes uma criança com feições de homem, ou talvez se assemelhasse a uma morcego. Aquele vulto, vestido de lã grossa, verde, parecia tão débil, tão chétif, tão estranhamente diferente dos outros!
Haviam arranjado um trenó pequeno para os dois, e ambos se puseram a caminho, com dificuldade, entre os taludes de neve refulgente que lhes queimava as faces já crestadas. Riam sem cessar, desfiando uma série ininterrupta de brincadeiras e anedotas em vários idiomas. A fantasia se transformava era realidade. Sentiam-se felizes em atirar projéteis coloridos de bom humor e de capricho. Preferiam que a amizade se conservasse ao nível da brincadeira, uma espécie de passatempo.
Loerke não levava muito a sério os desportos de inverno. Não colocava neles o ardor que Gerald colocava nem tinha o mesmo entusiasmo do outro. Gudrun gostava disso; estava fatigada, bastante fatigada pela intensidade de movimento a que a havia obrigado a energia física do amante. Loerke deixava o trenó descer ao acaso, alegremente, como uma folha ao vento e quando, numa volta do percurso caíam ambos sobre a neve, punham-se de pé vagarosamente, verificavam não estar machucados e ali no solo alvíssimo, desatavam a dar gargalhadas. Gudrun sabia que o seu companheiro diria graças atrevidas quando vagueasse no inferno, se estivesse bem disposto e ela gostava de senti-lo assim. Era elevar-se acima das realidades do mundo, fugir à atualidade monótona e às próprias contingências da vida. Divertiram-se dessa maneira ate o pôr do sol, satisfeitíssimos, descuidados, indiferentes ao decorrer do tempo. Quando chegaram ao sopé de uma colina, o trenó parou e Loerke disse:
- Espere! - e exibiu, tirando não se sabe de onde, uma enorme garrafa térmica, um pacote de bolachas e um frasco de Schnapps.
- Oh, Loerke! - exclamou Gudrun. - Que inspiração! Que comble de joie, realmente! De que é esta Schnapps? - Aguardente - nota da tradutora).
Ele a encarou a rir e disse:
- Heidelbeere - Baga de murta - nota da tradutora).
- Sim? E isso se encontra debaixo da neve? Parece destilada do próprio gelo. - Gudrun cheirou e tornou a cheirar o gargalo da garrafa. Nota-se o aroma... Esplêndido. É como se cheirássemos a planta através da neve.
Bateu com o pé no chão muito de leve. Loerke ajoelhou-se e assobiou; depois aproximou o rosto da superfície gelada. Seus olhos sombrios cintilavam.
- Ah! Ah! - ria Gudrun, animada pela maneira caprichosa que ele tinha de zombar das suas extravagâncias. Estava sempre zombando e escarnecendo de tudo o que ela dizia ou fazia. Mas as réplicas do rapaz eram mais engraçadas do que tudo o que as provocava; a solução estava em rir-se ainda mais para se sentir vingada...
Ouviam-se as vozes deles ressoando como um retinir argentino como sinos na atmosfera enregelaste, no ar imóvel daquele começo de crepúsculo. Como aquilo tudo era agradável! E como eram perfeitos, na calma absoluta, aquele isolamento e aquelas diversões!
Gudrun sorveu o café quente, cujo aroma, naquele ambiente frio volteou em torno deles como uma abelha zumbindo em redor das flores; bebeu uns goles de Heidelbeerwasser, e comeu pastilhas geladas, doces, macias. Coisas tão boas. Como tudo aquilo possuía sabor, perfume, como rescendia bem. E como, na tranquilidade admirável, a ressonância era bela, naquele princípio de crepúsculo!
- Parte amanhã? - indagou ele, por fim.
- Parto.
Houve uma pausa. A tarde parecia morrer no calor silencioso que se espalhava por toda a parte, até ao infinito... que estava ali mesmo, a mão.
- Wohin? Para onde? - nota da tradutora)
Eis o problema: wohin? Aonde? Que palavra encantadora! Jamais responder a essa voz... Deixá-la repercutir indefinidamente...
- Ignoro - declarou, sorrindo.
Loerke absorveu o sorriso que a moça lhe dirigia. Murmurou:
- Nunca se sabe.
- Nunca - repetiu ela.
Estabeleceu-se uma nova pausa. Loerke trincou bolachas, como um coelhinho a comer folhas.
- Mas - objetou - para onde compra passagem?
- Céus! - gritou ela. - É preciso comprar passagem!
Era um contratempo. Gudrun via-se na bilheteria da estação. Mas, de súbito, teve uma ideia que a acalmou. Respirou desafogada.
- Não somos obrigados a ir...
- É claro.
- Quero dizer que não somos obrigados a chegar ao término da viagem.
A descoberta interessou-o. Podia-se comprar passagem e não ir até o destino indicado nela. Mudava-se de ideia, alterava-se o plano! Grande ideia!
- Compre então uma passagem para Londres - aconselhou ele - Não é preciso ir até o fim.
- Ótimo!
Loerke despejou café num copo de estanho.
- Não me quer dizer para onde vai?
- Não sei ainda para onde vou...
O homem lançou-lhe um olhar zombeteiro; depois, encheu as bochechas de ar, como Zéfiro, e soprou sobre a neve.
- Para o lado da Alemanha... - começou.
- Também acho - concordou ela.
De súbito tiveram a impressão de que se aproximava deles um vulto branco. Era Gerald. O coração de Gudrun palpitou de medo, de um profundo e repentino medo. Pôs-se logo de pé.
- Informaram-me onde estavam - disse o recém-chegado numa voz que retiniu como uma sentença na atmosfera crepuscular.
- Maria! Virgem Maria - nota da tradutora).
- Você aparece como um fantasma! - declarou o escultor.
Gerald não respondeu. A sua presença parecia, na verdade, fantástica, sobrenatural.
Loerke sacudiu a garrafa térmica e depois virou-a para baixo. Caíram apenas algumas gotas escuras.
- Está vazia - disse.
Para Gerald, a figura exótica do alemão surgia muito nítida, como se a estivesse vendo através de um binóculo. E como era desagradável aquela criatura! Gostaria de removê-lo dali.
O outro procurava, agora, bolachas no pacote.
- Ainda há algumas - disse ele.
Sem mudar de posição dentro do trenó, estendeu o braço para Gudrun, que remexeu no pacote e tirou uma bolacha. Ia oferecê-la a Gerald, mas a atitude deste era de tal modo denunciadora de uma recusa, que Loerke fez um gesto indeciso e pôs o embrulho de lado. Em seguida, pegou no frasco e mirou-o contra a luz.
- Temos um resto de Schnapps - disse para si mesmo.
Ergueu a garrafa num gesto educado, e curvando-se para Gudrun de forma engraçada, murmurou:
- Gnädiges Fraulein, wohl...
Ouviu-se um estalo, a garrafa voou e Loerke fez um movimento de recuo. Os três, violentamente impressionados, tremiam incontrolavelmente.
Loerke, dirigindo-se a Gerald, com um brilho demoníaco nos olhos, declarou em tom irônico:
- Muito bem! C'est le sport, sans doute - É o esporte, sem dúvida - nota da tradutora).
No mesmo instante já estava sentado sobre a neve numa posição ridícula. O punho de Gerald atingira-o na cabeça. Mas levantou-se logo, trêmulo, fitando o agressor com o seu olhar diabólico e satírico:
- Vive le héros, vive!...
Não pôde acabar. Gerald acertara-lhe outro murro, desta vez em cheio no rosto, mandando-o para longe como se fosse um boneco de palha.
Gudrun, porém, interpôs-se entre os dois. Ergueu a mão e bateu no peito e no rosto de Gerald, que ficou perplexo como se tivesse visto explodir uma bomba. Sua alma sufocava de espanto e de dor. Mas logo soltou uma gargalhada e avançou para a moça, tentando agarrá-la, como para colher o fruto do seu desejo. Ia, finalmente, satisfazê-lo.
Com as mãos rijas, dominadoras, impetuosas, prendeu a garganta de Gudrun. Tão bela, aquela garganta! Bela e suave, embora lá dentro jazessem as cordas da vida - e ele sentiu-a deslizar sob a pressão dos dedos. Eis o que iria esmagar, o que iria destruir. Suprema felicidade! Satisfação, enfim!
Olhava a face de Gudrun, agora feia, com a consciência prestes a desaparecer; via-lhe os olhos rolarem em estertor. Como se tornara horrível... Mas que prazer ele sentia... Como era bom, aquele gozo final! Nem percebia que ela se debatia, resistia... O esforço que ela fazia era, afinal de contas, sensual, também. E quanto mais forte o estrangulamento, maior para ambos o frenesi das delícias, ate atingirem o zênite. Depois, a luta afrouxou, os movimentos dela diminuíram e ela pouco a pouco se apaziguou.
Loerke conseguira endireitar-se sobre a neve, porém estava muito tonto para se erguer. Apenas seus olhos revelavam estar consciente do que se passava.
- Monsieur - disse ele, com voz débil e indignada - quand vous aurez fini - Senhor, quando tiver terminado - nota da tradutora).
Gerald revoltou-se, movido pelo desprezo e pela repugnância que sentia, repugnância que o tomava todo, que o enchia de náuseas. Que estaria fazendo? A que excesso se iria ele entregar? Como podia se preocupar tanto assim com aquela mulher, para que se dignasse a matá-la? Matá-la com suas próprias mãos...
Experimentou, então, certa fraqueza, certo entorpecimento, um diminuir de forças, como que o degelo da energia. Sem perceber, descerrara os punhos e Gudrun caíra a seus pés.
Sentiu-se muito enfraquecido. Tentou ainda um esforço, deu meia volta, e, como uma rajada de vento, partiu para longe, para além...
"Não a quero matar, não quero", ia repetindo, numa ultima confissão, enquanto subia a colina, fraco, esgotado, procurando, por instinto, fugir ao encontro de quem quer que fosse. "É demais. Preciso dormir. É demais." Sentia-se esgotado pelas náuseas.
Estava cansado, mas não queria repousar. Queria ir sempre até o fim. Nunca parar, ate descobrir o fim. Assim errou, perdido e sem forças, sem pensar em nada, enquanto as pernas o suportaram.
O poente deixara no céu uma luz encantada e irreal, entre rosa e azul, e a noite azulada e fria vinha mergulhando sobre a neve. Lá embaixo, atrás dele, no extenso leito alvo, notavam-se ainda duas figuras pequeninas; Gudrun, de joelhos, como quem se prepara para um suplício, e Loerke, sentado junto dela. Nada mais.
Gerald caminhava trôpego no aclive da colina, entre as sombras azuladas, sempre a subir, sem dar conta do que fazia, sem perceber que estava extenuado. Havia, à esquerda, uma descida rápida, cheia de enormes pedregulhos negros estriados de neve, e a neve serpenteava em redor da escuridão da pedra em veios longos e caprichosos. Não se ouvia o menor ruído. Nenhum som cortava o silêncio profundo.
Brilhava agora, por cima de Gerald, um disco lunar, e aquele novo esplendor aumentava-lhe a tortura. Surgia, ah!, cintilante, inexorável; não haveria maneira de evitar aquela cintilação. Contudo, Gerald queria chegar ao fim, sentia-se exausto e farto da vida. Seu espírito mantinha-se lúcido.
Continuava a andar com dificuldade; algumas vezes tinha de atravessar uma vertente de rocha viva, de onde o vento expulsara toda a neve. Naqueles lugares ele sentia medo de cair, um medo intenso de escorregar. E, naquela altitude, a ventania soprava rija, subjugando-o quase e entorpecendo-o com o frio. Todavia, não chegara ainda ao fim: era preciso continuar sem descanso. E o horror que o impelia para frente não permitia que ele parasse um só instante.
Tendo atingido o espinhaço do monte, viu a vaga sombra de qualquer coisa mais alta ainda, à sua frente. Sempre mais alta, sempre mais alta. Calculava encontrar-se na direção dos montes onde se achava a Marienhutte e por onde se atingia a descida do outro flanco da montanha. Mas não tinha muita consciência desses detalhes. Ansiava apenas por continuar, avançar mais além, enquanto pudesse mover-se ir, ir sempre, ate que tudo se acabasse. Perdera por completo o sentido da orientação. Entretanto, por um instinto vital, que ainda lhe restava, procurou pôr os pés nos vestígios de outros esquis que por ah houvessem passado.
Encontrou uma descida escarpada e deixou-se escorregar por ela. A velocidade trazia-lhe calafrios. Não possuía bastão, nem nada a que se apoiasse. A certa altura conseguiu parar e foi andando com cuidado, na obscuridade luminosa. Sentia tanto frio como se já estivesse no repouso eterno. Passava agora entre duas cristas, num vale. Vinha depois uma curva. Subiria o flanco e continuaria a errar pelo côncavo do terreno? Como sentia a vida por um fio! Talvez escalasse a montanha. A neve ali era dura, firme. Avançou. Elevava-se qualquer coisa à sua frente. Aproximou-se, levado por uma estranha curiosidade.
Era um cruzeiro, meio soterrado. No alto de um poste estava a imagem de Cristo, abrigada por um teto em declive. Gerald afastou-se. Alguém se preparava para o matar. Sentia tanto medo de ser assassinado! Mas o terror atingia-o exteriormente, como se fosse o seu próprio fantasma.
E afinal, para que ter medo? Aquilo tinha de acontecer. Sena assassinado! Olhou em volta, aflito, e viu a neve, as rochas as vertentes pálidas e sombrias do mundo que se erguiam acima dele. O destino arrastava-o para a morte, não havia a menor dúvida. E a morte levantava-se, naquele momento, para que Gerald não pudesse escapar...
Jesus! Estava, pois, destinado a isso? Jesus! Iam desferir o golpe. Não tardaria a ser morto. Prosseguiu ao acaso, ergueu as mãos acima da cabeça para sentir melhor o que devia acontecer, e esperou o instante em que chegaria o fim, em que cessaria de existir. Mas não era ainda o momento final.
Tinha alcançado um leito de neve cercado de taludes íngremes, de precipícios, e de onde partia um atalho que conduzia ao alto da montanha. Gerald vagou por ali, inconsciente, até que escorregou e caiu; ao bater no chão, sentiu que a alma se desprendia, e o sono chegou imediatamente.


Capítulo XXXI
"Exeunt"
Quando, no dia seguinte, trouxeram o cadáver para a hospedaria, Gudrun estava fechada no quarto. Da janela, viu aproximarem-se os homens que conduziam um fardo. Continuou sentada, tranquilamente, e os minutos foram passando.
Vieram bater à porta. Gudrun abriu. Estava ali uma mulher que lhe disse em voz baixa, com muita deferência:
- Já o encontraram, minha senhora.
- Morto?
- Sim, senhora.
Gudrun não sabia o que responder. Que poderia dizer? Quais os seus verdadeiros sentimentos na ocasião? Que esperariam dela? Permaneceu fria e perplexa.
- Obrigada - disse, tornando a fechar a porta. A mulher retirou-se, desgostosa. Nem uma palavra, nem uma lágrima. Aquela senhora era insensível; era uma mulher sem coração.
Gudrun sentou-se no quarto, e ficou impassível e pálida. Que havia de fazer? Chorar não podia, e muito menos representar cenas teatrais. Era incapaz de se transformar. Ficou assim imóvel, ocultando-se da curiosidade dos outros. O seu desejo era evitar contatos maiores com os acontecimentos. Limitou-se a redigir um extenso telegrama a Úrsula e Birkin.
De tarde, porém, ergueu-se bruscamente, disposta a avistar-se com Loerke. Lançou um olhar apreensivo à porta do aposento que fora de Gerald. Por nada deste mundo entraria naquele quarto.
Encontrou o escultor sozinho no andar térreo, recostado num sofá. Foi diretamente a ele.
- Não é verdade, não é? - começou por lhe dizer.
O outro a fitou. A face enrugou-se num sorriso de tristeza. Encolheu os ombros.
- Verdade? - repetiu.
- Nós não o matamos - explicou ela.
Loerke não gostou daquela maneira pela qual ela se dirigia a ele. Encolheu os ombros, fatigado.
- Coisas que acontecem - observou.
Gudrun olhou para ele. Viu-o esmagado pela tragédia, aniquilado, mas, do mesmo modo que ela, insensível à dor e incapaz de qualquer resolução. Que coisa angustiosa, vazia, vazia, vazia, Senhor!
Subiu novamente, esperando a chegada de Úrsula e Birkin. Gostaria de partir daquele lugar o mais depressa possível. Não poderia pensar nem sentir ate sair dali.
Passou-se o dia, veio o dia seguinte. Gudrun ouviu o trenó que se aproximava, assistiu à entrada dos viajantes e recuou na janela.
Úrsula dirigiu-se logo ao quarto da irmã.
- Gudrun! - exclamou, com as lágrimas a correrem pela face. Apertou a outra nos braços. Gudrun escondeu o rosto no peito da irmã, mas ainda desta vez não pôde escapar ao frio demônio da ironia que lhe enregelava o coração.
"Ah! É este o sistema usado em semelhantes conjunturas, pensou.
Não conseguia chorar, e o espetáculo da sua expressão impassível, rígida, sem mágoa, fez secar o pranto da recém-chegada. Logo notaram que não tinham nada a dizer uma à outra.
- Aborreceram-se de ter de voltar aqui? - perguntou finalmente Gudrun.
Úrsula fitou-a, um tanto desconcertada, dizendo:
- Não tinha pensado nisso.
- Acho-me cruel por tê-los obrigado a regressar - continuou Gudrun. - Mas não consigo enfrentar os outros.
- Imagino - foi a resposta da irmã, em tom seco.
Birkin bateu à porta e entrou. Estava pálido e compungido.
Gudrun percebeu que estava a par de tudo. O cunhado estendeu-lhe a mão, declarando:
- Acabou-se a nossa excursão!
Ela o fitou, assustada.
Os três permaneceram calados, sem ter o que dizer. Por fim, Úrsula perguntou, em voz baixa.
- Você já o viu?
Birkin lançou-lhe um olhar duro e frio, sem se dar ao trabalho de responder.
- Você o viu? - repetiu ela.
- Vi-o, sim - respondeu o marido, rispidamente. Depois, voltou-se para Gudrun:
- Já tomou alguma providência?
- Nada, absolutamente nada.
Aterrorizavam-na as formalidades a cumprir.
- Loerke diz que Gerald chegou quando vocês estavam sentados no trenó, perto de Rudelbahn, que trocaram algumas palavras e que Gerald se afastou. Que foi que disseram? Preciso estar a par de tudo para o caso de ser necessário contar às autoridades.
Gudrun ergueu os olhos para Birkin, ávida, muda, perturbada como uma criança.
- Ele não chegou sequer a falar - explicou. - Esmurrou Loerke e atirou-o ao chão. A mim, quase estrangulou. Depois, foi-se embora.
Para si mesma, ia dizendo:
"Bela amostra do eterno triângulo!" E afastou-se, sorrindo intimamente, pensando que, afinal, a luta se travara entre ela e Gerald, sem que a presença do outro fosse mais do que um simples incidente, talvez uma contingência inevitável; no fim de contas, sem outra classificação qualquer. Mas iria deixá-los imaginar que fora uma consequência do eterno triângulo, da trindade odiosa. Era mais fácil para a compreensão dos outros.
Birkin retirou-se, sempre com as mesmas maneiras secas e distraídas. Mas Gudrun tinha a certeza de que ele a ajudaria, apesar de tudo, e que a tiraria dos apuros. "Sim, que ele se ocupe de tudo", pensou ela, sorrindo desdenhosa, "visto que sabe tão bem ocupar-se dos outros. Deixá-lo fazer, pois, todo o trabalho".
E Birkin foi outra vez ver Gerald. Haviam-se estimado tanto! Era, todavia, enfado o que mais experimentava ao ver aquele corpo inerte ali estendido. Tão inerte, tão frio, tão penetrado da morte, nada mais do que uma carcaça! Perante aquele espetáculo, sentia geladas suas entranhas. E ficou em pé, contemplando o frio despojo mortal daquele que tinha sido Gerald.
Aquilo era um cadáver enregelado. Birkin lembrava-se de que uma vez encontrara um coelho hirto, em cima da neve; parecia teso como um cabo de vassoura, quando o ergueu do chão. E agora ali estava Gerald, igualmente duro como uma tábua, mas enroscado como se estivesse dormindo. Contudo, a rigidez era evidente e horrível. Birkin confrangeu-se, tomado de uma imensa dor. O quarto devia ser aquecido para se poder desenregelar o cadáver. Os membros se partiriam como gelo, ou como madeira, se os forçassem a tomar a devida posição.
Aproximou-se e tocou a face do morto, e de novo as suas entranhas sensíveis se contraíram mortificadas por uma terrível angústia. Pensou se ele próprio não estaria também sendo congelado. No bigode curto e louro de Gerald o último sopro da vida solidificara-se num pequeno pedaço de gelo, por baixo das narinas.
Eis o que era agora Gerald!
Apalpou outra vez os cabelos ásperos, de cor quase luminosa naquele corpo abandonado. Estavam frios, frios: dir-se-iam até maléficos. O coração de Birkin começou a endurecer. Tinha estimado tanto o outro! Mas, agora, olhando para aquelas formas elegantes, para o rosto estranhamente colorido, com o seu nariz fino e apertado, com as suas maçãs viris, achava tudo frio e rijo como uma pedra de gelo. Tinha querido tanto a Gerald! Que diferença havia entre pensar e sentir? O cérebro tornava-se semelhante à água quase a congelar. Tão frio, tão frio! Nos braços julgava ter uma montanha de neve e um peso mais frio ainda o dominava por dentro, no coração e nas entranhas.
Depois saiu, e foi ver o local onde se verificara o acidente, chegando finalmente à concavidade situada no meio do desfiladeiro, perto da garganta da montanha. O dia estava cinzento e era o terceiro de uma série de dias tristonhos e calmos. Tudo em redor era branco, nevado, pálido, exceto as rochas negras que, às vezes, pareciam raízes salientes e outras vezes se mostravam perfeitamente lisas e nuas. A certa distância descia uma vertente quase a pique, onde se notavam manchas de rochedos escuros.
Aquele lugar evocava uma panela pouco funda que jazesse entre neve e pedregulhos, num mundo perto das nuvens. Ali adormecera Gerald. Em volta os guias tinham pregado estacas de ferro, de maneira a poderem içar-se com o auxílio de uma comprida corda amarrada a elas; assim atingiriam, para além dos cimos denteados, a área de neve endurecida, que se confundia como havia picos aguçados erguidos para o firmamento, como compridos pregos muito alvos.
Gerald poderia ter encontrado aquela corda. Poderia ter subido por ela ate à crista da montanha. Poderia ter ouvido os cães na Marienhutte e achar ali um abrigo. E ainda poderia ter descido o flanco do lado sul, até o vale dos pinheiros e alcançar a estrada imperial que segue para a Itália.
Sim, teria podido! E depois? A estrada imperial? O sul? A Itália? E depois, depois? Seria uma saída? Ou antes, uma forma de regressar? Birkin, parado naquelas alturas, naquela atmosfera angustiante, olhava para os picos e para o caminho meridional. Haveria vantagem em seguir para o sul, para a Itália? Em descer pela velha estrada imperial?
Resolveu voltar. Ou seu coração se partiria, ou teria que deixar de se atormentar. Mais valia acabar com aquele sofrimento. Seja qual for o mistério que criou o homem no universo, trata-se de um mistério extra-humano, tem os seus fins próprios, e o homem não lhe serve de critério. Antes deixar de parte todo esse mistério tão vasto da criação. Preferível ocupar-se de si mesmo, e abandonar os problemas universais.
"Deus não pode passar sem o homem." Eis o que disse um dos grandes mestres religiosos da França. Mas, com certeza, o aforismo é falso. Deus pôde dispensar o ictiossauro e o mastodonte. Estes monstros não conseguiram desenvolver-se na criação, e Deus, mistério criador, acabou por dispensá-los. Da mesma forma podia desinteressar-se do homem, se este não lograsse progredir no mundo. O eterno mistério da criação disporia da humanidade, substituindo-a por uma espécie de seres mais per feitos. Exatamente como o cavalo tomou o lugar do mastodonte.
Tal ideia serviu de grande consolo a Birkin. Se a humanidade enveredar por um beco sem saída, se esgotar aí as suas energias, a força criadora produzirá outros entes, mais delicados, maravilhosos, e uma raça nova ajudará melhor o processo da criação. Esse trabalho não acabará nunca. O segredo da vida é insondável, infalível, inesgotável e eterno. As raças aparecem e desaparecem, as espécies passam e morrem, mas dão lugar a que outras surjam, mais belas ou tanto como as anteriores, porém sempre dignas de admiração. A fonte, a origem e incorruptível e não seca jamais. É impenetrável e não tem limites. Pode produzir milagres, inventar novas raças e novas espécies, sempre que lhe apetecer, novas formas de espírito e de corpo. Ser homem não é nada comparado com as possibilidades do mistério criador. Conseguir formar um coração palpitante de vida é a perfeição, perfeição inultrapassável. Humano ou sobre-humano, isso não tem importância. O coração perfeito estremece cheio de vitalidade e denuncia uma espécie nova, ainda não nascida.
Birkin voltou à hospedaria para tornar a ver Gerald. Entrou no quarto mortuário e sentou-se à beira da cama. Morto, morto e tão frio!

César, tirano, morto, em pó se fez... Agora serve
Para vedar alguma fenda, interceptando o ar...

Versos do 5º ato do Hamlet - A citação de Lawrence, feita decerto de memória, não é textual - nota da tradutora).
Nenhum eco do que havia sido Gerald. Só uma substância estranha, gelada, nada mais. Nada mais!
Terrivelmente cansado, Birkin saiu para se ocupar das formalidades a cumprir. Fez tudo cheio de calma, sem a menor perturbação. Declamar, delirar, assumir atitudes de tragédia, tudo isso causaria complicações inúteis. Era melhor conservar-se calmo e suportar os fatos com a alma paciente, sossegada.
Mas quando voltou, à noite, e viu Gerald entre dois castiçais, ele, que ali fora atraído pela exigência da amizade, sentiu o coração apertado e a própria vela que tinha na mão esteve a cair; soltou um gemido, e as lágrimas rebentaram-lhe de súbito. Sentou-se numa cadeira, tomado por um repentino pranto. Úrsula, que o havia seguido, recuou espantada, ao dar para o marido de cabeça baixa e com o corpo sacudido pelos soluços. O choro que o agitava fazia um rumor horrível e singular.
"Não queria que isto acontecesse, não queria", repetia ele consigo mesmo. Úrsula não pôde deixar de lembrar-se das palavras do Kaiser: "Ich habe es nicht gewollf." - Não tinha desejado isto - nota do tradutora). Olhou para Rupert, quase aterrada.
Ele se calou, de repente, mas ficou com o corpo inclinado, escondendo o rosto nas mãos. Enxugou, às escondidas, as lágrimas que tinha nos olhos. Mas no mesmo instante ergueu fitou a mulher com olhos sombrios e rancorosos.
- Era preferível que ele me tivesse estimado. Tantas vezes eu lhe propus...
A outra, muito pálida e assustada, murmurou sem descerrar lábios:
- Que teriam lucrado com isso?
-Muito - volveu ele. Muito!
Esqueceu-se da mulher e tornou a olhar para Gerald. Com o rosto estranhamente levantado, como quem se indigna por algum insulto acabado de ouvir, numa atitude orgulhosa. Birkin examinou o rosto mudo, frio, material, do cadáver, que tinha uma cor azulada. Aquele rosto lançava flechas de gelo ao coração de Birkin. Frio, mudo, material? Rupert lembrava-se como uma vez Gerald lhe apertara a mão de forma quente e afetuosa, um significativa de amizade definitiva. Mas aquilo durara um segundo depois desaparecera, desaparecera para sempre. Se Gerald houvesse mantido fidelidade à promessa, a morte não teria tanta importância. Os que morrem e que, antes de morrer, são suscetíveis de crer e de amar, permanecem vivos, não cessam de existir. Perduram no ente amado. Gerald poderia viver ainda no tirito de Birkin, mesmo depois do seu acidente. Viveria com seu amigo a vida do além.
Mas ali estava, destruído, como argila, como gelo corrompido. Birkin observou-lhe os dedos azulados, contemplou aquela massa inerte. Recordou-se de um cavalo morto que um dia encontrara: substância repugnante de um corpo que fora másculo. Recordou-se também da bela face de certa pessoa que ele havia amado tanto e que morrera julgando ceder ao mistério da natureza essas feições, mesmo paradas eram formosas, ninguém as poderia supor frias, mudas, materializadas. Ninguém as evocaria sem acreditar no mistério, sem que uma fé nova e profunda na vida deixasse de vir aquecer-lhe a alma.
E Gerald? Aquele cético! Deixava os corações frios, gelados, incapazes de palpitar. O pai dele era tão introvertido que chegava a incomodar: mas não tinha aquele aspecto terrível da matéria muda. Birkin não se cansava de examiná-lo.
Úrsula, de pé ao lado do marido, não deixava de acompanhar os movimentos deste em sua contemplação ao rosto do morto. Eram duas faces igualmente imóveis. A chama das velas oscilava no ar glacial, no meio do silêncio intenso.
- Ainda não o viu bastante? - perguntou a mulher.
Rupert levantou-se, dizendo:
- É tão doloroso para mim!
- O quê? A morte dele?
Os olhares dos dois se encontraram. Rupert conservou-se calado.
- Você tem a mim - prosseguiu ela.
O marido sorriu e beijou-a.
- Se eu morrer, saberá que eu não a abandonei.
- E eu?
- Você também não me abandonará. Não precisaremos separar-nos na morte.
Úrsula tomou-lhe a mão.
- Sente necessidade de sofrer tanto por causa de Gerald? - inquiriu ela.
- Sinto - respondeu o marido.

 

Partiram. O cadáver de Gerald foi enviado para a Inglaterra, onde devia ser enterrado. Birkin e Úrsula acompanharam o cadáver juntamente com um irmão do defunto. Os irmãos Criches é que insistiam pela inumação no solo da pátria. Birkin achava preferível ter deixado o morto nos Alpes, debaixo da neve. Mas a família opôs-se com grandes protestos.
Gudrun foi para Dresden. Não escreveu de lá, pormenorizadamente, para ninguém. Úrsula ficou com o marido no moinho durante algumas semanas. Estavam ambos muito tranquilos.
- Sente falta de Gerald? - perguntou ela um dia.
- Sinto.
- Não sou bastante para você?
- Não - respondeu ele. - Você me satisfaz como mulher. Para mim você resume todas as mulheres. Mas sinto falta de um homem como amigo, tão eterno como você e eu.
- É por que não sou suficiente? Você é tudo para mim. Não quero mais ninguém além de você. Por que não acontece o mesmo com você?
- Junto a você, Úrsula, posso passar a vida sem mais ninguém. Mas, para que a nossa vida seja completa, realmente feliz, necessito de uma união eterna com um homem também; é outra espécie de afeição.
- Não compreendo isso - volveu ela - É uma teimosia, uma teoria, uma perversidade.
- Talvez... - concordou ele.
- Não se pode ter duas espécies de amor. Por que você há de ser assim?
- Vejo que é impossível para eu satisfazer esse desejo. No entanto, queria-o imensamente.
- Nunca me seria possível. É coisa falsa, irrealizável.
- Não penso assim - foi a resposta de Birkin.

Capítulo XXIV
Morte e amor
Thomas Crich morria lentamente, com terrível sofrimento. A todos parecia impossível que o fio daquela existência pudesse ser tão estirado e a tal ponto adelgaçado, sem se quebrar. O doente jazia fraco e extenuado, apenas sustentado pela morfina que lhe administravam juntamente com outros remédios, ingeridos com dificuldade. Estava semiconsciente; um tênue cordão de compreensão ainda ligava a escuridão da morte à claridade da vida. Contudo, a vontade mantinha-se intacta, integral, completa. Queria em volta de si um silêncio absoluto.
Qualquer presença o fatigava, exceto a das enfermeiras. Todas as manhãs Gerald vinha vê-lo pensando encontrá-lo morto; mas descobria, invariavelmente, a mesma face transparente, o mesmo terrível cabelo escuro emoldurando um rosto cor de cera, e os mesmos olhos espantados e sombrios que pareciam desfazer-se em trevas, conservando lá dentro um débil vislumbre de vida.
E sempre que esse olhar desvairado caía sobre ele, Gerald sentia ferver-lhe nas entranhas uma espécie de revolta, que se transmitia através de todo o corpo, perturbando-lhe o espírito, enlouquecendo-o, quase.
Lá ficava ele, imóvel, cheio de vida, cintilando em seus cabelos louros. E o ar louro e cintilante daquele ser estranho e inevitável irritava o moribundo e chegava a aumentar-lhe a febre. Não podia suportar a expressão sobrenatural dos olhos azuis de Gerald, descendo sobre o leito de morte. Isto, porém, durava só uns instantes. Logo chegava o momento de se separarem, e pai e filho fitavam-se mais uma vez e despediam-se.
Durante muito tempo, Gerald conservou perfeito sangue-frio permanecendo ali com a maior serenidade. Mas o pavor acabou por desnorteá-lo. Tinha medo de sucumbir também. Era preciso, entretanto, submeter-se àquela tortura. Um vago desejo perverso o levava a observar o pai no transe derradeiro. E, diariamente o choque horrível daquele espetáculo o fazia estremecer de pavor. Gerald sentia vontade de se atirar ao chão, como se a espada de Democles lhe pendesse diretamente sobre a cabeça.
Não era possível esquivar-se; estava amarrado ao pai, devia assistir-lhe a agonia. Mas a vontade de Thomas Crich não se dobrava e recusava-se a acreditar na morte. Quando esta, afinal, se apoderasse dele, que remédio haveria senão aceitá-la? Contudo, a mesma vontade poderia persistir além da terra. Assim era, também, o filho: vontade intacta, independente da destruição física e daquele ser que sucumbia no leito.
Era um sacrifício contemplar o pai a dissolver-se e a ingressar no outro mundo, sem enfraquecimento da energia moral, sem condescender com a onipotência da morte! Como um pele-vermelha sujeito à tortura, Gerald submeter-se-ia à prova de assistir àquela lenta evolução para o nada sem dar mostras de dor ou de fraqueza. Triunfaria da experiência, tanto mais que desejava aquele passamento, quase até o impunha. Era como se ele mesmo esperasse a morte, embora o coração se lhe confrangesse de horror. Mas era o que julgava inevitável, afinal de contas.
No esforço de tão cruel missão, Gerald foi perdendo o domínio da sua vida quotidiana e profissional. Tudo quanto, anteriormente, valia para ele alguma coisa, passou a não ter o menor valor. O trabalho, o prazer, tudo foi posto de lado. Mas se ocupava dos seus negócios, trabalhando maquinalmente. A verdadeira tarefa consistia nesse lúgubre combate contra o destino dentro da sua própria alma. A vontade havia de vencer, fossem quais fossem os acontecimentos; jamais se curvaria, jamais reconheceria qualquer amo: a morte jamais o dominaria.
No decorrer da luta, aniquilava-se tudo quanto havia sido, e a vida em volta de Gerald assemelhava-se a um búzio vazio onde rugia a voz do mar, sussurro de que ele participava exteriormente; dentro da concha deserta existiam trevas, espaço destinado à morte apavorante. Gerald compreendia que era preciso adquirir coragem, ou cairia no abismo negro e profundo que se lhe cavava no meio da própria alma. A vontade preservava-lhe a vida externa, e a inteligência das coisas exteriores íntegras, mas a pressão tornava-se excessiva. Era preciso achar qualquer coisa que lhe garantisse o equilíbrio. Devia encontrar aquilo que pudesse acompanhá-lo no vácuo aberto em sua alma, de forma a preenchê-lo, e contrabalançasse assim a força exercida de dentro para fora com outra que viesse de fora para dentro - pois, dia a dia, sentia-se mais parecido com uma bolha de ar cheia de sombras, em volta da qual girasse a sua consciência.
O espírito impelia-o para Gudrun. Desprezava tudo e só desejava entrar em contato com ela. Gostava de acompanhá-la ao estúdio, de ficar em sua companhia, de conversar com ela. Agradava-lhe estar naquele quarto, mexendo ao acaso nas ferramentas, nos pedaços de barro, nas estatuetas já modeladas - tão caprichosas e grotescas! - e observá-las sem mesmo as compreender. Gudrun sentia-o sempre por perto, perseguindo-a como uma sombra.
- Ouça - disse-lhe Gerald certo dia, de forma singular indecisa. - Por que não fica para jantar? Eu gostaria muito!
Gudrun sobressaltou-se levemente. Gerald falara como um homem que se dirigisse a outro homem.
- Esperam por mim em casa - desculpou-se a moça.
- Ah!... Mas não ficarão preocupados... Gostaria muito que aceitasse.
O longo silêncio que se seguiu foi o sinal da sua aquiescência
- Vou prevenir Thomas, sim? - disse ele.
- Mas terei de partir logo depois do jantar - declarou Gudrun.
A noite estava escura e fria. No salão não havia fogo. Instalaram-se na biblioteca. Gerald estava calado, distraído, e Winifred falava pouco. Mas, apesar de calado, o rapaz mostrava-se amável e natural com a convidada.
Gudrun sentia-se bastante atraída para ele. Não sabia como interpretar aqueles silêncios profundos e estranhos. Ficava comovida, pensativa, enquanto sua admiração por ele crescia.
Ele fora um ótimo anfitrião. Oferecera-lhe o que havia de melhor na mesa, mandara servir uma garrafa de um vinho magnífico, levemente adocicado, cor de ouro, imaginando que ela o preteriria ao tinto. E Gudrun via o quanto era estimada, considerada quase uma pessoa da família.
Enquanto tomavam o café na biblioteca, ouviram bater de leve a porta. Gerald sobressaltou-se e disse: "Entre" o som daquela voz, vibrando em agudo diapasão, enervou a moça. Apareceu então o vulto branco de uma enfermeira; era como uma sombra clara projetando-se no limiar. Tratava-se de uma mulher muito bonita, mas - coisa estranha - parecia tímida e constrangida.
- O doutor deseja falar-lhe, Sr. Crich - explicou ela em voz baixa e discreta.
- O doutor! - repetiu ele, levantando-se. - Onde está?
- Na sala de jantar.
- Diga-lhe que já vou.
Tomou o resto do café e seguiu a enfermeira.
- Como é o nome dela? - perguntou Gudrun.
- Miss Inglis. É a mais simpática de todas - respondeu Winifred.
Pouco depois Gerald voltava, perdido em reflexões, ar preocupado e abstrato. Não se referiu a conversa com o médico; ficou de pé diante da lareira, mãos atrás das costas e expressão distante. Na verdade, ele não pensava. Mantinha-se em expectativa e as ideias se baralhavam em seu cérebro, desordenadamente.
- Agora preciso ir ver a mamãe - declarou Winifred - e despedir-me do papai antes que ele adormeça.
Disse isto e despediu-se dos presentes.
Gudrun ergueu-se também para ir-se embora.
- Não precisa ir agora - disse Gerald, olhando para o relógio. - Ainda é cedo. Sente-se, não há pressa, eu a levarei a casa.
Gudrun tornou a sentar-se como se estivesse sob o poder daquele homem, quase em transe. Sentia-se também quase magnetizada. Gerald era tão estranho, tão diferente! Em que pensaria, o que estaria sentindo, assim tão extático, sem nada dizer? Retinha-o sob a sua influência, era só o que Gudrun sabia. Não o deixava partir. Gudrun contemplava-o humilde e submissa.
- O médico tinha alguma coisa importante a comunicar? - indagou por fim, docemente, com ternura tímida e compassiva que tocava as fibras do coração dele. Gerald ergueu as sobrancelhas num gesto de indiferença.
- Não, nada de novo - respondeu, como se a pergunta fosse trivial. - Disse que o pulso estava muito fraco e irregular, mas isso não quer dizer muita coisa...
Depois, fitou-a. Os olhos de Gudrun permaneciam muito abertos, sombrios, suaves, com uma expressão assustada que o fez recair em si.
- Não - murmurou ela, finalmente. - Não entendo muito dessas coisas.
- Tanto melhor. Escute, vamos fumar um cigarro? - Foi buscar a caixa onde os guardava, e a seguir acendeu um fósforo. Em frente a ela, sempre junto ao fogão, tornou a cair em imobilidade.
- Aqui em casa - explicou - nunca tivemos doenças graves antes dessa de meu pai. - Deteve-se, como se ponderasse qualquer ideia; o seu olhar azul, estranhamente comunicativo, pousou sobre Gudrun, que ficou cheia de medo. - É uma coisa em que não se pensa ate que um dia se declara. Só então percebemos que já existia, que já existia desde muito tempo, desde sempre; compreende o que quero dizer? A possibilidade destas doenças incuráveis, destas mortes lentas...
Remexia os pés, inquieto, calcando o mármore da lareira. Levou o cigarro à boca e pôs-se a contemplar o teto. Gudrun, por sua vez, atalhou:
- Bem sei. É horrível.
Gerald fumava distraído. Tirou o cigarro dos lábios, descobriu os dentes e, colocando a ponta da língua entre eles, cuspiu um resíduo de fumo, voltando-se levemente de lado, como se estivesse só, ou perdido numa revoada de pensamentos.
- Ignoro ao certo qual é o efeito de tudo isto sobre a nossa pessoa - volveu ele, olhando de novo para a moça, cuja vista se turvou ao compreender a intenção daquelas palavras. Gerald viu-a perturbada e voltou o rosto para o outro lado. - Mas a verdade é que não sou mais o mesmo. Nada resta de mim... Sabe a que me quero referir? Julgamos agarrar-nos ao vácuo e o vácuo está dentro de nós. E já não sabemos o que fazer...
- Sim, - murmurou ela - que fazer? - Percorria-lhe os nervos um intenso calafrio, misto de prazer e de dor.
Gerald voltou-se, sacudiu a cinza do cigarro nas lajes de mármore do fogão, que, sem o resguardo usual, nem mesmo grades, se impunha ali na sala a descoberto.
- Não sei, é só o que posso afirmar - retorquiu ele. Mas suponho que estamos a ponto de resolver o problema, não porque se deseje, mas pela absoluta necessidade, sob pena de nos perdermos. Todas as coisas, incluídas as pessoas, estão a ponto de soçobrar. Com as mãos tentamos impedir que tal suceda. Mas é evidente que a situação não se pode prolongar; não é possível segurar o teto, indefinidamente dessa forma. Cedo ou tarde temos que retirar as mãos. Compreende o que quero dizer? É, pois, urgente tomar uma decisão, antes da subversão total, pelo menos no que nos atinge diretamente.
Esticou o pé para a lareira, esmagou uma brasa e ficou olhando para o carvão apagado. Gudrun observava as belas lajes de mármore antigo, com desenhos em relevo, onde Gerald estava agora enquadrado. Ela mesma teve a impressão de estar também prisioneira, mas do destino, fechada numa armadilha horrível e fatal.
- Que fazer? - perguntou, muito submissa. - Eu poderia ajudar de alguma forma?
Gerald fitou-a com superioridade.
- Não preciso do seu auxílio - retorquiu, um tanto enervado - porque não há nada a fazer. Só desejo um pouco de compaixão, percebe? Preciso de alguém a quem possa falar com o coração nas mãos. Isso facilita o trabalho. Mas não há ninguém nessas condições! É curioso, não há ninguém! Tenho Rupert Birkin, mas este não se comove, o que quer é ditar frases, que não me servem de nada.
Gudrun sentia-se apanhada no laço. Perplexa, olhava para as mãos.
Ouviu-se a porta abrindo de mansinho. Gerald estremeceu. Estava mortificado. E o sobressalto dele amedrontou também a Gudrun. Mas logo ele se dirigiu para a porta, cortês, atencioso, afável.
- Por aqui, mamãe? Que agradável surpresa. Como vai?
A recém-vinda, embrulhada negligentemente em um roupão cor de púrpura, muito largo, aproximou-se silenciosamente, desajeitada como sempre. O filho já estava ao lado dela. Puxou-lhe uma poltrona e perguntou: - Conhece a Senhorita Brangwen?
A outra lançou-lhe um olhar cheio de indiferença.
- Conheço - respondeu. Depois voltou-se para Gerald com aqueles seus olhos espantados, de um tom de miosótis, e sentou-se na poltrona que ele lhe havia trazido.
- Vim perguntar o que você sabe a respeito do seu pai - disse ela em voz rápida e quase inaudível. - Não sabia que estava acompanhado.
- Não? Winifred não lhe disse? A Senhorita Brangwen ficou para jantar conosco e alegrar-nos um pouco com a sua presença.
A Senhora Crich virou-se lentamente para Gudrun e mirou-a com expressão abstrata e vazia.
- Receio não ter sido grande divertimento para você... - Olhou novamente para o filho e continuou: - Winifred informou-me que o médico falou com você. Que foi que ele disse?
- Comunicou apenas que o pulso estava fraco, falhando de vez em quando..., de maneira que pode acontecer não passar desta noite.
A Senhora Crich manteve-se absolutamente impassível como se não tivesse ouvido, com aquela grande massa de carne abatida na cadeira e os cabelos louros desgrenhados sobre as têmporas. A pele, porém, era fina e alva, e as mãos, esquecidas e semicerradas no regaço, pareciam belas e repletas da máxima energia. E, na verdade, dir-se-ia amortecerem-se ondas de vontade naquela figura arruinada e gasta.
Contemplava o filho, que se conservava de pé, junto dela, atento, marcial. Os olhos da mulher tornaram-se extraordinariamente azulados, mais azuis do que as flores de miosótis. Parecia depositar muita confiança em Gerald, mas, ao mesmo tempo, desconfiança maternal.
- Como se sente? - inquiriu ela numa voz estranha e calma, como se falasse apenas com ele. - Não se ressentirá de tudo isto? Procure não ficar muito nervoso.
Gudrun estremeceu ao perceber o singular desafio que aquelas palavras encerravam.
- Assim o espero, mamãe - respondeu ele com risonha frieza. - Mas alguém deve assistir ao fim, penso eu.
- Acha que sim? Acha? - perguntou a Senhora Crich, precipitadamente. - Por que pensa assim? Por que ficar ate o fim? Tudo se resolve por si. Não é necessária a sua presença.
- Bem sei, mamãe. Mas a verdade é que nos afeta diretamente.
- Você gosta de se sentir afetado, não é isso? Está interessado nisso. Isso lhe dará importância. Pois não precisa ficar em casa. É melhor sair.
Tais observações, evidentemente feitas em momento de nervosismo, surpreenderam Gerald.
- Não acho conveniente sair agora, mamãe, neste momento crítico... - respondeu ele, muito calmo.
- Tome cuidado - prosseguiu a Senhora Crich. - Cuide de você, é isso que importa. Não se preocupe demais. Você é nervoso, sempre foi...
- Estou perfeitamente bem. Não vale a pena se preocupar comigo.
- Deixe os mortos tomarem conta dos mortos. Não se deixe enterrar com eles. Eu conheço bastante você...
Gerald silenciou, não sabendo o que responder. A mãe também permaneceu calada, e, com as belas mãos brancas, nuas de anéis, acariciou os braços da poltrona.
- Você não pode suportar aquilo - prosseguiu ela, quase com cerimônia. - Falta-lhe coragem. Você é frouxo como um gato, sempre foi. Esta menina vai ficar conosco?
- Não, senhora- elucidou Gerald. - Vai voltar para casa.
- Ela pode servir-se da carruagem. Mora longe?
- Não muito. Em Beldover.
- Ah! - Ela não olhava para a moça, embora lhe sentisse constantemente a presença. - Gerald, você tem a tendência de levar as coisas muito a sério. - Ao dizer isso, começou a erguer-se com certo constrangimento.
- Já vai? - perguntou ele, muito atencioso.
- Sim, vou lá para cima. - Voltando-se para Gudrun, murmurou "boa noite". Depois dirigiu-se devagar para a porta, com dificuldade, como se não estivesse habituada a andar. No limiar, estendeu a face e recebeu um beijo do filho. - Não precisa me acompanhar.
Gerald esperou que ela se aproximasse da escada, que subiu lentamente. Fechou então a porta, e voltou para junto de Gudrun, que se ergueu, disposta a partir.
- Minha mãe é muito complicada...
- Nota-se - concordou a moça.
Calaram-se por uns momentos.
- Quer ir-se embora? Apenas meio minuto: vou mandar atrelar o cavalo.
- Não - declarou Gudrun. - Vou a pé.
Gerald prometera acompanhá-la ate em casa e ela não se esquecera disso.
- Poderíamos ir muito bem na carruagem - insistiu ele.
- Prefiro ir a pé - declarou a jovem em tom enfático.
- Prefere? Nesse caso vou com você. Lembra-se de onde deixou seu agasalho? Deixe-me trocar de sapatos.
Munido de um boné e, sobretudo - por cima do temo com que jantara - preparou-se para partir e ambos penetraram na escuridão.
- Vou acender um cigarro - disse ele, abrigando-se no ângulo do portão fechado. - Tire um também.
E assim, entre o odor do fumo que aromatizava o ar, embrenharam-se ambos pela vereda sombria que atravessava, no meio de sebes, os prados em declive.
O desejo dele era passar o braço em volta da cintura da moça. Se tal pudesse fazer e a conseguisse atrair a si, Gerald estava certo de que recuperaria o equilíbrio, pois, naquele momento, sentia-se igual a uma balança, da qual um dos pratos descesse mais, cada vez mais no imenso vácuo sem fim. Era preciso contrabalançá-los. Residia ali a sua esperança de uma cura completa.
Sem mesmo olhar para Gudrun, pensando unicamente em si, Gerald lançou-lhe o braço em torno do corpo e puxou-a para o seu lado. O coração dela quase desfaleceu ao sentir-se arrastada assim. O braço do homem era tão vigoroso que a jovem não teve ânimo para se libertar; experimentava uma espécie de morte, muito unida a ele, enquanto avançavam na escuridão da noite tempestuosa. Aqueles dois corpos equilibravam-se perfeitamente no movimento rítmico do andar. E, então, sem demora, Gerald começou a sentir que se libertava das apreensões, e se tornava forte e heroico.
Levou a mão à boca e atirou fora o cigarro, que, na sebe invisível, formou um pontinho cintilante. Estava agora inteiramente apto para a manter mais segura.
- Assim é melhor - disse ele, exultando de prazer.
O entusiasmo que sua voz demonstrava era para ela como uma droga doce e venenosa. Significava, pois, tanto, para o coração daquele homem? E principiou a sorver o veneno...
- Está mais contente? - perguntou.
- Estou - disse ele, sempre no mesmo tom de satisfação. - Eu estava tão deprimido...
Gudrun aninhava-se no peito dele. Gerald aspirava o aroma quente e suave que emanava dela: tornava-se a substância própria do seu ser, nutriente e adorável. O calor e o movimento da moça penetravam-no e encantavam-no.
- Fico feliz em ajudá-lo...
- É verdade. Ninguém mais o conseguiria. Só você, Gudrun. "Acredito", pensou ela, com um sentimento de estranha e inevitável vaidade.
Durante a caminhada, parecia-lhe que a erguia do chão e a apertava tanto contra si que parecia conduzi-la toda suspensa. Era tão robusto que, à moça, não importava opor qualquer resistência: deixava-se ir naquela maravilhosa fusão dos corpos em movimento, ao descer a vertente sombria da colina batida pelo vento. Ao longe brilhavam as luzinhas amarelas de Beldover, a maior parte delas semeadas do outro lado da encosta. Mas aqueles dois seres seguiam alheios ao mundo, numa isolada e perfeita solidão.
- Gosta, então, muito de mim? - perguntou ela, em voz quase plangente. - Não sei, não consigo compreender...
- Muito, sim, muito! - respondeu ele em tom de satisfação dolorosa. - Não sei bem como, também eu... Mas amo-a acima de tudo! - Surpreendeu-se com a própria declaração, que era, aliás, verdadeira. Fazendo-a, despojava-se de futuro recuo, mas o certo era que Gudrun importava-lhe sobre todas as coisas. Ela era tudo para ele.
- Custa-me acreditar - volveu ela, trêmula e admirada. A dúvida e o prazer misturados punham-na assim nervosa. Sempre desejava ouvir isso. Contudo, agora que ouvia tais palavras, ditas com tão profundo tom de sinceridade, Gudrun recusava-se a crer. Não podia, não podia ser realidade. No íntimo ela admitia o fato e regozijava-se como de um triunfo finalmente obtido. No entanto...
- Por que não? - disse ele. - Por que não acreditar? É a mais pura verdade. Tão certo como estarmos aqui, nesta ocasião. - Ficaram bem juntos um do outro, parados, açoitados pelo vento. - Não há para mim - prosseguiu - nem no céu, nem na terra, outro lugar como este. A minha presença não importa; apenas a sua é que me interessa. Venderia antes a minha alma, cem vezes, a ficar privado da sua companhia. Não suporto mais estar só. Acredite. - Atraiu-a mais para si, num movimento definitivo.
- Não - murmurou a jovem, assustada. No entanto, não desejava outra coisa. Por que havia de perder a coragem?
Recomeçaram aquele estranho passeio. Tinham estado tão longe um do outro e agora vinham tão perto, temerosamente, inconcebivelmente perto! Chegava a ser loucura. Era, todavia, o que ela desejava. Haviam descido O outeiro e atingiam nesse momento o largo viaduto por onde passava a linha férrea das minas de carvão. A ponte - Gudrun conhecia-a bem - fora construída de pedras talhadas; era seca de um lado e musgosa do outro, em virtude da água que escorria. Gudrun pusera-se muitas vezes debaixo da abóbada para ouvir o estrondo da locomotiva deslizando lá em cima. E, quando chovia, costumava ver os mineiros refugiarem-se ali, no isolamento e no escuro, com as suas namoradas. Também ela ambicionava ter um noivo e ir com ele para baixo da ponte, a fim de se beijarem nas trevas impenetráveis. À medida que se aproximavam, diminuiu propositadamente o passo.
Pararam, pois, sob o viaduto e fizeram uma pausa; Gerald apertou-a contra o peito. O corpo dele vibrava, rijo e dominador, ao estreitá-la de encontro ao seu; e ela, ofegante, perturbada, vencida, aninhava-se nos braços dele. Ah, era terrível, sim, mas admirável! Assim faziam os mineiros às suas namoradas, debaixo daquela ponte. E, agora, o patrão de todos eles fazia o mesmo, naquele mesmo lugar! Como devia ser mais forte, mais poderoso o abraço de Gerald do que o dos seus operários! Como o amor dele devia ser mais concentrado e superior ao de todos os outros! Gudrun pensou que fosse desmaiar e morrer sob a pressão trêmula e sobre-humana daqueles braços e daquele peito; não poderia resistir. Depois a vibração extraordinária foi-se moderando ate se tornar pouco a pouco mais suave. Gerald encostou-se à parede e arrastou a moça com ele.
Gudrun estava quase inconsciente. Supunha ser assim que procediam os mineiros apaixonados, de costas voltadas para o muro, abraçando as suas amadas e beijando-as da mesma forma com que ele a beijava. Ah! Seria possível que os beijos deles fossem tão requintados e vigorosos como os que dava o patrão em seus lábios tão firmes? Nem sequer teriam, os operários, um bigodinho áspero e bem cortado!
E as namoradas, também deviam descair a cabeça para o lado e contemplar, sob a abóbada sombria, as luzes amareladas, distantes, na colina invisível, ou a forma incerta das árvores, ou ainda, em outra direção, as construções ao redor das minas.
Os braços do rapaz continuavam a cercá-la; parecia querê-la toda para ele, o seu calor, a sua suavidade, a sua beleza adorável, aspirando avidamente o aroma do seu corpo. Erguia-a e dir-se-ia entorná-la dentro de si mesmo, como quem despejasse vinho numa taça.
- Isto vale mais do que tudo! - disse com voz penetrante e singular.
Gudrun cedia, sentia-se misturar com ele e fornecer-lhe um líquido infinitamente precioso e morno que entrasse nas veias de Gerald e se comportasse como um tóxico. Tinha também passado os braços em torno do pescoço dele e recebia-lhe os beijos que ele lhe dava enquanto a tinha como que suspensa. A jovem desfalecia e sentia enterrar-lhe na carne aquele corpo duro e firme, ávida de receber aquele vinho que era a própria vida. Assim jazia abandonada nos braços do rapaz, suspensa de encontro a seu peito, dissolvendo-se, dissolvendo-se sob o calor dos beijos, fundindo os membros e os ossos como se ele fosse um ferro em brasa destinado a derretê-la.
A certa altura, julgou que ia desmaiar; foi, gradualmente perdendo a consciência de si própria. Sentiu-se gasta, nela tudo se misturava e era fluido; ficou tranquila, como se não existisse senão dentro de Gerald dormindo nele como a faísca dorme numa pedra lisa e pura. Assim se fundira no corpo do homem e esse homem agora era perfeito.
Quando tornou a abrir os olhos e voltou a descortinar o tapete de luzes a distância, pareceu-lhe extraordinário que o mundo ainda existisse e que ela estivesse ali de pé, debaixo da ponte, com a cabeça apoiada no peito de Gerald. Gerald... que significava ele? A aventura deliciosa, o desejo do imprevisto...
Ergueu a face e viu, no escuro, um rosto inclinado para o seu, rosto másculo e belo, que emitia uma luz branca e suave, espécie de aura, como se fosse enviado por algum poder oculto. Levantou-se até ele, no gesto de Eva ao colher a maçã da árvore da ciência, e beijou-o, embora a sua paixão vergasse ao medo transcendente desse ser misterioso; com dedos maravilhados, infinitamente delicados e indiscretos, Gudrun tateou-lhe as feições, seguindo-lhe o modelado da fisionomia, em todos os pormenores. Como era perfeito e desconhecido para ela, e tão perigoso! A alma arrepiou-se com tal revelação. Eis o fruto proibido, aquela face do homem fascinante. Tornou a beijá-lo, passando-lhe a mão pelo rosto, pelos olhos, narinas, testas, ouvidos e pescoço, a fim de o conhecer melhor a fim de o possuir pelo tato. Sentia-o tão bonito, tão rijo, cheio de satisfação, inconcebivelmente belo, único, de uma luz indescritível, inimigo que não se podia descrever e que brilhava, contudo, num fogo puro e sobrenatural. O seu desejo era tocá-lo mais, tocá-lo sempre, ate que o desvendasse todo por suas mãos, esforçando-se por conhecê-lo totalmente. Ah, se ela obtivesse esse precioso conhecimento, sentir-se-ia compensada; nada conseguiria privá-la dele, apesar da sua insegurança e dos riscos que corria no mundo vulgar e quotidiano.
- Como você é bonito! - murmurou-lhe em voz velada.
Gerald ficou surpreso, suspenso daquela frase. Ela, porém, sentiu-o estremecer e chegou-se mais, involuntariamente, para aquele homem que se lhe afigurava precisar de ajuda. Dominava-o pelo contato dos dedos. O insondável desejo que estes despertavam no rapaz era mais profundo do que a morte inevitável.
Entretanto, agora, conhecia-o ela bem, e isso bastava. Nessa ocasião tinha o espírito abalado por aquele invisível fluido luminoso, que lhe trouxera a revelação. Isso era uma espécie de morte da qual urgia ressuscitar. Haveria nele ainda muita coisa por descobrir? Ah, decerto! E quantos dias poderia gastar na sua investigação, com as mãos sutis e inteligentes no terreno daquele corpo vivo? Ah, tinha mãos ansiosas, gulosas de saber! Por enquanto não precisava mais, aquilo era bastante, o ânimo não lhe suportaria maior experiência. Um pouco mais, e ficaria repleta, encheria demasiadamente a delicada redoma da sua alma, suscetível de se quebrar. Era suficiente, suficiente por enquanto. Tinha ainda muitos dias à sua frente, durante os quais seus dedos, como pássaros, se alimentariam daquela plástica misteriosa. Até aí, esperaria sossegada.
Gerald, por seu turno, estava contente por haver encontrado resistência, repreensões, recusas. O desejo vale mais do que a posse, e a satisfação final receava-a ele tão intensamente quanto a ambicionava.
Recomeçaram a andar na direção da vila, na direção das lâmpadas acesas e distanciadas por longos intervalos, dispersas no escuro caminho do vale. Chegaram, enfim, à rua.
- É melhor nos despedirmos aqui - disse ela.
- Prefere assim? - perguntou ele, sentindo-se aliviado. Não gostaria de mostrar-se por aquelas ruas em companhia da moça, tão visível seria para os outros a satisfação que o tomava todo.
- Prefiro. Até amanhã. - Estendeu-lhe a mão, que Gerald agarrou, depondo os lábios sobre aqueles dedos tão dominadores, tão perigosos.
- Boa noite - volveu ele. - Até amanhã. Separaram-se. Gerald regressou à casa fortalecido pelo poder de um desejo sem limites.
No dia seguinte, porém, ela não veio. Mandou recado explicando que estava resfriada. Que tortura para o rapaz! Armou-se, entretanto, de paciência e escreveu-lhe um bilhetinho dizendo o quanto sentia a sua ausência.
Passou o dia e o outro sem ir ao escritório: achava isso perfeitamente inútil. O pai não duraria até o fim da semana e Gerald queria estar presente para qualquer eventualidade.
Sentou-se numa cadeira perto da janela, no quarto do industrial. A paisagem que dali desfrutava era sombria, invernosa. O velho Crich jazia na cama, lívido, cor de cinza; em silêncio, toda de branco, limpa, elegante e mesmo bonita, a enfermeira movia-se de um lado para outro. O ambiente cheirava a água-de-colônia. A moça saiu e Gerald ficou a sós com o moribundo ante o cenário hibernal.
- Há mais água em Denley? - interrogou uma voz fraca, vinda do leito, queixosa, mas decidida. O doente queria saber o que havia a respeito de uma infiltração numa das minas, originada em Willey Water.
- Alguma. Temos de esvaziar o lago - respondeu Gerald.
- Acha que sim? - A voz fraca parecia extinguir-se. Houve um silêncio tumular. O rosto pálido e acinzentado do enfermo mostrava-se de olhos fechados, mais morto do que se na verdade o estivesse. O filho observou-o. Sentia o coração apertado: se aquilo durasse mais tempo, talvez não pudesse resistir.
De repente, ouviu um ruído estranho. Voltou-se e notou que o pai abrira os olhos, rolando-os espantados num esforço sobre-humano. Gerald pôs-se de pé e ficou enregelado de horror.
"Ah... ah... ah..." Da garganta de Thomas Crich exalava um som cavernoso e horrível; o olhar, cada vez mais aflito, procurava em vão qualquer socorro, passando sobre Gerald sem o ver. Subiu-lhe ao rosto um rubor terroso, que o fez inchar; o corpo distendeu-se e a cabeça tombou para o lado, no travesseiro.
Gerald continuava apavorado. Queria mexer-se, mas não podia. Era impossível mover os braços ou as pernas. E o cérebro latejava, como o eco do pulso.
A enfermeira reapareceu, entrando silenciosamente. Olhou primeiro para o rapaz e depois para o leito.
- Oh! - exclamou, quase em um soluço, correndo em direção ao morto. - Oh! - repetiu em voz baixa, na sua perturbação, inclinando-se para a cama. Depois recuperou a calma e foi buscar uma toalha e uma esponja. Começou a lavar cuidadosamente a face do cadáver, murmurando num queixume, suavemente:
- Pobre Sr. Crich! Coitado do Sr. Crich!
- Morreu? - perguntou Gerald em tom áspero.
- Sim, morreu - confirmou a voz branda da enfermeira pousando o olhar no rosto do rapaz. Era nova, bela e estava emocionada. A expressão de Gerald tornou-se estranha, como uma espécie de careta; horrorizado, abandonou o quarto.
Correu a prevenir a mãe. No corredor encontrou-se com Basil, seu irmão.
- Morreu, Basil - disse ele, dominando a custo o tremor da voz; notava-se nele uma alegria inconsciente apesar da emoção com que falava.
- O quê?! - fez Basil, empalidecendo.
Gerald confirmou com a cabeça e seguiu para o quarto da mãe.
Ela estava envolta no roupão cor de púrpura, a coser, vagarosamente. Mirou o filho com os seus olhos azuis, aqueles olhos insubmissos.
- Papai morreu.
- Quem disse?
- Oh, mamãe, basta olhar para ele!
A Senhora Crich largou a costura e levantou-se a custo.
- A senhora vai lá?
- Vou.
Os mais novos já choravam em volta do leito.
- Oh, mamãe! - gritavam as moças, quase histéricas.
A mãe aproximou-se. O morto lá estava no seu repouso derradeiro, como se houvesse adormecido docemente, tão doce e pacificamente como uma criança no sono da inocência. Ainda não esfriara de todo. Christiana ficou a contemplá-lo durante uns momentos, num silêncio pesado e lúgubre.
- Sim - disse ela, como se falasse a testemunhas invisíveis e etéreas. - Sim, já não és deste mundo. - Permaneceu mais um tempo calada, de olhos baixos. Depois continuou: - Pareces belo, como se a vida não te houvesse cansado. Que Deus me dê sorte diferente! Espero então parecer com a minha idade, seja qual for... Belo, belo - repetiu ainda no mesmo tom. - Exatamente como na tua mocidade, com a barba de adolescente. Bondosa alma, a tua! - E, com um soluço na voz, acrescentou: - Nenhum de vocês deve ser como ele, quando morrerem. Não o imitem. - Parecia uma ordem singular, uma ordem insensata emanada do além. Os filhos agruparam-se mais, inconscientemente, ao ouvir aquelas imposições. As faces de Christiana haviam-se ruborizado, e brilhavam, e todo o vulto dela maravilhava e inspirava terror. - Censurem-me, se quiserem, pelo fato de ele aí estar, de estar aí como um rapaz que ainda não tem vinte anos, com a sua barba virginal. Censurem-me, se quiserem. Mas nenhum de vocês compreende. - Emudeceu, mergulhando num silêncio cheio de intensidade. E recomeçou, numa entonação profunda e ardente: - Se eu adivinhasse que algum dos filhos que dei à luz teria, depois de morto, esta aparência, tê-lo-ia estrangulado no berço.
- Não, mamãe - respondeu Gerald, e a sua voz vinha estranha e pura lá do fundo do quarto. - Nós somos diferentes, não a acusamos de nada.
A Senhora Crich voltou-se e fitou-o; em seguida ergueu as mãos num gesto soberbo de louco desespero.
- Rezem! - ordenou com voz portentosa. - Rezem a Deus por si mesmos, pois não têm nenhuma proteção a esperar do pai e da mãe.
Transtornadas, as moças gritaram: - Oh, mamãe! - Ela, entretanto, tinha-se retirado e os irmãos despediram-se uns dos outros, apressadamente.
Quando Gudrun soube da morte de Thomas Crich, sentiu-se tomada de remorso. Tinha evitado Gerald com medo que este a julgasse conquista demasiadamente fácil; e agora, que ele sofria aquele desgosto, não era justo continuar assim tão fria.
No dia seguinte veio, como de costume, ter com Winifred que estimou bastante vê-la e se alegrou por acompanhá-la ao estúdio. A menina havia chorado, e, depois, assustada, refugiara-se para escapar a qualquer acontecimento mais trágico ainda. Ela e Gudrun retomaram o trabalho como usualmente, naquele isolamento do costume, e isso pareceu-lhes imensa felicidade, verdadeiro mundo à parte, depois da confusão e da tristeza que reinavam em casa. Gudrun ficou até tarde. Serviram-lhe o jantar ali mesmo, e ali comeram à vontade, afastadas de todas as outras pessoas.
Gerald apareceu depois do jantar. O vasto anexo estava cheio de sombras e impregnado do aroma do café. Gudrun e Winifred haviam arrastado a mesinha para junto do fogão, lá no fim do quarto; o candeeiro com que iluminava a sala não espalhava muito longe a claridade. Constituíam assim, elas duas, o seu mundo à parte, rodeadas pelas sombras amenas, que atingiam as vigas e barrotes do teto, os bancos e as ferramentas do trabalho.
- Como é confortável aqui - observou Gerald, ao entrar. O lume ardia num fogão baixo, de tijolos; havia um velho tapete turco, de tom azul, sobre o qual pousava a mesa com o candeeiro, revestida de uma toalha azul e branca. Ali estava ainda o resto do jantar; Gudrun fazia o café numa curiosa cafeteira de cobre, enquanto Winifred aquecia um pouco de leite numa caçarola pequena.
- Já tomou café? - perguntou Gudrun ao recém-chegado.
- Já, mas posso repetir.
- Então, tem de beber no copo - interveio Winifred. - Só temos duas xícaras.
- Não tem importância - disse ele, pegando numa cadeira e aproximando-se daquela dupla encantadora. Como lhe pareciam tão felizes, como era bom estar naquela intimidade, envolto pelas sombras familiares! O mundo lá fora, no qual todo o dia Gerald se ocupara dos assuntos do funeral, apagava-se por completo da sua memória. Começava a aspirar o perfume daquela deliciosa magia.
Possuíam meia dúzia de coisas delicadas, duas xícaras encantadoras, vermelho e ouro, um jarrinho preto com pintinhas encamadas e uma interessante máquina de fazer café, sob a qual a chama de álcool ardia muito direita, quase invisível. Notava-se o reflexo de toda aquela riqueza sinistra, da qual Gerald gostaria de evadir-se.
Sentaram-se e Gudrun, amavelmente, começou a servir.
- Quer leite? - indagou muito calma, embora agitasse, num movimento nervoso, o jarro negro salpicado de escarlate. Dominava-se sempre o melhor que podia, mas não deixava de parecer enervada.
- Não, obrigado - respondeu ele.
Ela própria, por deferência, guardou para si o copo de vidro tosco e ofereceu-lhe uma das xícaras. Via-se que queria ser agradável.
- Dê-me o copo, que é tão grosseiro para as suas mãos - Gerald teria preferido ficar com ele e deixá-la, a ela, delicadamente servida. Mas Gudrun não disse mais nada sobre o assunto, contente com aquela disparidade, feliz por se poder humilhar.
- Estão perfeitamente en ménage - tornou ele.
- É verdade. E não estamos em casa para as visitas - acudiu Winifred.
- Nesse caso, sou intruso.
Ao dizer isso, verificou que o seu traje cerimonioso o fazia deslocado. Considerava-se, realmente, um estranho.
Gudrun mostrava-se tranquilo. Não sentia desejos de falar com ele. Ao ponto a que haviam chegado, o melhor ainda era o silêncio ou simples palavras convencionais. Era melhor pôr de lado as conversas sérias. Assim tagarelaram alegre e descuidadamente ate ouvirem o cocheiro, em baixo, conduzir o cavalo gritando "para trás, para trás", no momento de o atrelar à carruagem que devia levar Gudrun. A moça vestiu o agasalho, apertou a mão de Gerald e saiu, sem terem trocado, ao menos um olhar.
O enterro foi uma coisa enfadonha. Mais tarde, ao tomarem chá, as filhas do defunto diziam jumas para as outras: "Tão bom pai para nós!... O melhor pai do mundo..." Ou então: "Não se encontrará facilmente outro homem tão bom como o pai".
Gerald concordou com tudo isto. Era a atitude que mais se lhe ajustava, apesar de convencional. No estado atual das coisas, não lhe repugnava aceitar as convenções da sociedade, achando-as ate naturais. Mas Winifred é que as detestava e por isso se escondia no estúdio, onde dava largas à sua dor, ansiando pela chegada de Gudrun.
Felizmente todos os parentes se ausentaram. Os Crichs nunca passavam muito tempo em casa. Ao jantar, Gerald viu-se completamente só; a própria Winifred seguira para Londres, onde ficaria por alguns dias com uma das irmãs, Laura.
Quando, todavia, se sentiu sem mais ninguém, Gerald achou intolerável a solidão. Os dias passaram. Tinha a sensação de estar suspenso a correntes, à beira de um abismo. E, por mais esforços que fizesse, não conseguia pisar a terra firme nem desembaraçar-se das cadeias que o tolhiam. Estava debruçado no limiar do despenhadeiro, debatendo-se era vão. Pensasse o que pensasse, o abismo continuava ali, por maior convívio que tivesse com amigos ou estranhos, por mais que trabalhasse ou se divertisse. Sempre a visão do precipício insondável, sobre o qual o coração se lhe apertava, prestes a desfalecer! Não via salvação possível, não havia nada a que estender as mãos. Devia permanecer na iminência do sorvedouro, suspenso pelas correntes invisíveis, que eram a sua própria vida física.
A princípio mantivera-se calmo, paciente, aguardando o final das suas apreensões e esperando achar alívio entre os mortais depois de tão intenso sofrimento. Mas aquilo não passou, e pelo contrário, atingiu um estado crítico.
À noite do terceiro dia agravaram-se os seus receios. Não podia tolerar a ideia de continuar tanto tempo assim. Era mais uma noite, mais uma em que ele experimentaria a sensação de estar sobre o abismo, esse poço sem fundo a que o levava a sua existência física. Não podia suportar mais. Tinha frio e medo na alma, um medo tão profundo! Não acreditava já na sua força. Se tombasse no despenhadeiro incomensurável, jamais poderia de lá voltar. Se tal lhe sucedesse, desapareceria para sempre. Forçoso era resistir, e procurar qualquer auxílio. Não tinha confiança nele próprio, entregue dessa maneira a si mesmo! Depois do jantar, face a face com a derradeira impressão de vácuo, Gerald procurou fugir. Calçou botas, enfiou o sobretudo e foi passear na noite escura.
O tempo estava horrível enevoado. Atravessou o bosque, tropeçando aqui e ali, e encaminhou-se para a azenha. Birkin não estava em casa. Bem. Deixá-lo! Gerald sentia-se quase satisfeito. Contornou o moinho, subiu os barrancos ásperos, às cegas, perdido no meio daquela escuridão. Aonde iria agora? Não importava. Arrastar-se-ia de qualquer forma ate encontrar a estrada. À sua frente apareceu outro bosque. O espírito estava perturbado, deixando-o vaguear, a ele, como um autômato. Sem pensamentos, sem sensações, foi andando ao acaso: chegou a uma clareira, procurou, tateando, a paliçada da vedação, tornou a perder-se, e seguiu pelas sebes dos campos até descobrir uma saída.
Por fim alcançou a estrada principal. Tinha-se distraído durante aquela luta cega com o labirinto da noite. Agora, porém, devia tomar qualquer direção. Não sabia sequer onde se encontrava, mas era necessário dirigir-se para alguma parte. Continuar a andar, sempre a andar, não resolvia o problema. Convinha decidir-se.
Estava parado na estrada, que lhe parecia imensa nas densas trevas noturnas, e sem saber orientar-se. Dava-lhe aquilo uma impressão esquisita; o coração palpitava-lhe e envolvia-o; tornou a perder-se, e seguiu pelas sebes dos campos ate descobrir uma saída.
De repente, ouviu passos c avistou uma lanterna, que oscilava. Era um mineiro.
- Sabe me dizer onde vai dar este caminho?
- Sim, senhor. Vai dar em Whatmore.
- Whatmore? Está bem, muito obrigado. Julguei que me tivesse perdido. Boa noite.
- Boa noite - retribuiu o outro, com a sua voz grossa. Gerald já calculava que lugar era aquele. Ao chegar a Whatmore tiraria todas as dúvidas. Ainda bem que se encontrava na estrada principal. E avançou embalado na sua resolução.
Tratava-se então da aldeia de Whatmore? Sim, com a sua "King's Head" e, mais além, os portões do Palácio. Desceu a colina quase a correr. Passou defronte da escola e chegou à igreja de Willey Green. Lá estava o cemitério. Deteve-se.
Pouco depois escalava o muro e seguia pelo meio das sepulturas. Mesmo no escuro podia distinguir a seus pés muitos ramos de flores, já murchas. Abaixou-se. As flores pareceram-lhe frias e viscosas. Rescendia fortemente a crisântemos e a tuberosas fanadas; sentiu a terra, por baixo delas, e arrepiou-se àquele horrível contato úmido e pegajoso. Recuou, cheio de repugnância.
Estava, pois, num lugar conhecido, embora em completa escuridão, ao lado de uma sepultura invisível e recente. Mas o que lhe interessava isso? Nada tinha a fazer ali. Era como se aqueles pedaços de barro, frios, sujos, pegajosos, se lhe aderissem à alma. Não, aquilo era demais!
Voltaria para casa? Nunca! Seria pior. Precisava ir para outro lugar. Mas onde?
Como uma ideia fixa, um projeto germinava em sua mente. Gudrun. Precisava ir ter com ela; era imperioso. Não regressaria a Shortlands sem haver tentado aproximar-se dela, ainda que isso representasse para ele qualquer perigo de vida. Colocou todo o seu ardor nesse projeto.
Partiu, então, em linha reta na direção de Beldover. A noite era tão negra que ninguém o poderia reconhecer. Tinha os pés frios e molhados, e as botas pesadas de lama. Mas continuou sempre, persistente como vento, direto ao seu destino. Julgou, em certa ocasião, ter atingido o lugarejo de Winthorpe, sem saber afinal como tinha ido parar lá; depois como num sonho, viu-se na comprida rua de Beldover, iluminada por lampiões.
Havia um rumor de vozes, vindo de uma porta que se aferrolhava pesadamente. Eram homens que conversavam na sombra da noite. O "Lord Nelson" acabava de fechar e os frequentadores dirigiam-se para suas casas. O melhor seria Gerald perguntar a qualquer deles onde morava Guarun, pois não conhecia as outras ruas.
- Sabe dizer onde é Somerset Drive? - perguntou a um dos homens.
- Como? - perguntou o interpelado.
- Somerset Drive.
- Somerset Drive! Já ouvi falar, mas não sei onde fica. Quem procura?
- O Sr. Brangwen... William Brangwen.
- William Brangwen?
- Professor da escola de Willey Green. Tem uma filha que e também professora.
- Ah! Brangwen! Agora me lembro. Sim, tem duas filhas, ambas as professoras. Ah, sim, é esse mesmo. Mas não sei onde mora. Como é mesmo o nome que disse?
- Somerset Drive - repetiu Gerald, armado de paciência. Conhecia bem o jeito dos seus mineiros.
- Exatamente, Somerset Drive! - disse o outro. - Somerset Drive, sim, senhor. Como é que eu não me lembrei antes. Sim, eu sei, fique descansado.
Voltou-se, meio cambaleante, e apontou para a estrada deserta e escura.
- O senhor vai por ali... vire a primeira esquina... sim, vire primeira à esquerda... daquele lado... passa pela loja de Withamses, o que vende caramelos. .
- Sim - interrompeu Gerald.
- Pois é, senhor. Desça um pouco, passa pela casa do vigia das águas, e já está em Somerset Drive, ou sei lá que raio de nome tem; fica mesmo à direita. Não há senão três casas, só três, parece-me... e tenho quase certeza de que a dele é a última das três... Entendeu?
- Agradeço-lhe muito. Boa noite.
Afastou-se imediatamente, deixando o bêbado parado no meio do caminho.
Seguiu ao longo das lojas e das casas, na maior parte das quais os seus ocupantes já dormiam, e enveredou por uma travessa que ia dar num campo mergulhado em trevas. Afrouxou o passo ao aproximar-se do ponto indicado, indeciso quanto à maneira de agir. Que faria, se a casa estivesse toda às escuras?
Tal não acontecia, porém. Havia uma janela iluminada. Distinguiu vozes e ao mesmo tempo o ranger de uma porta. O seu ouvido apurado reconheceu a entonação de Birkin; os olhos perscrutadores preveniram-no de que ali estava Úrsula, vestida de branco, parada num degrau da escada do jardim. Ela começara a andar e, chegando junto de Birkin, tomou-lhe o braço.
Gerald escondeu-se na sombra, por trás deles. Os dois conversavam animadamente, Birkin em voz baixa, Úrsula naquele tom inconfundível. Gerald, sem perder tempo, meteu-se dentro do jardim.
Defronte da larga janela da sala de jantar, as cortinas estavam corridas. Olhando de onde se encontrava, notou que a porta ficara entreaberta, deixando passar a luz suave e colorida do vestíbulo. Seguiu rápido, sem fazer ruído, pelo passeio adiante e lançou um olhar investigador lá para dentro. Havia quadros e cabeças de veado nas paredes; reparou também numa escada lateral e, muito perto dela, viu aberta a porta da sala de jantar.
Com o coração aos pulos, entrou Gerald nessa antecâmara, cujo chão era coberto de ladrilhos de cores; e examinou às pressas a sala que ficava anexa. Junto do fogão, sentado numa poltrona, Brangwen dormia; tinha apoiado a cabeça no grosso revestimento de carvalho da chaminé. A face rubicunda parecia encolhida, as narinas abertas e os cantos da boca tombados. Podia despertar ao mais leve rumor.
Gerald hesitou um instante. Relanceou a vista pelo corredor que corria na direção contrária e que estava às escuras. Sempre indeciso, subiu os degraus; os sentidos denunciavam-lhe tal sutileza, uma apreensão quase sobrenatural, que parecia ser ele o condutor de todas as coisas.
Chegou ao primeiro andar. Deteve-se ali, com a respiração opressa. Correspondente ao quarto do rés do chão, havia aí também um, com a respectiva porta. Devia ser o da mãe das moças. Sentiu-a andar, deslocando a vela consigo. Naturalmente aguardava que o marido subisse. Gerald observou o corredor, que não estava iluminado.
Depois, silenciosamente, com infinitas precauções, foi andando sempre, tateando a parede com a ponta dos dedos. Encontrou uma porta e ficou um momento de ouvido à escuta. Percebeu que se tratava de duas pessoas, pelo ritmo da respiração. Não era ali, então. Prosseguiu, na ponta dos pés. Mais outra porta entreaberta. O quarto não tinha luz. Estava vazio. Mais adiante viu o banheiro, de onde vinha o cheiro de sabonete e um bafo morno. Por fim, na extremidade, descobriu outro quarto e ouviu alguém ressonando tranquilamente. Devia ser ela.
Com mil cuidados, quase num ritual, Gerald deu volta à maçaneta e abriu uma nesga da porta, que rangeu levemente. Empurrou mais um pouco, e mais ainda. O coração nem mais pulsava; era como se ele criasse à sua volta o silêncio e o esquecimento.
Conseguira entrar. Quem lá estava continuou a dormir placidamente. A escuridão era completa. Gerald foi seguindo, muito devagar, apalpando a parede, ate que chegou à cama e sentiu a respiração de quem dormia. Aproximou-se mais e inclinou-se como se os olhos pudessem descobrir a forma que ali jazia. E então muito perto do seu rosto, percebeu os cabelos escuros e o rosto redondo de um menino. Ficou atordoado.
Endireitou-se, deu meia volta e dirigiu-se à porta, de onde vinha um pouco de claridade. No patamar, hesitou; ainda havia tempo para fugir.
Mas não era esse o seu desejo. Queria levar a cabo o projeto. Tornou a passar, como uma sombra, em frente ao quarto do casal e subiu ao segundo andar. Os degraus estalaram sob o peso. Que aborrecimento! E que fracasso, se por acaso a mãe o apanhasse naquela situação! Se tal acontecesse... Mas não desanimou.
Não acabara ainda de subir, quando sentiu passos apressados no andar de baixo e alguém fechando à chave a porta da rua. Ouviu a voz de Úrsula e depois uma exclamação do pai, que despertara. Gerald correu ate o último andar.
Encontrou uma porta aberta: era outro quarto vazio; seguiu sempre para frente, andando às apalpadelas como um cego nas pontas dos pés. Movia-se, entretanto, com rapidez, com medo que Úrsula viesse. Encontrou mais uma porta. Escutou; os sentidos estavam alertas com uma acuidade sobrenatural. Pareceu-lhe que alguém se remexia na cama. Devia ser Gudrun. Docemente, como se naquele momento só tivesse a sensação tátil, Gerald deu volta à fechadura, que fez leve ruído Então estacou. Sentiu-se um roçar de lençóis. O coração oprimido, tornou a girar o fecho e empurrou a porta com a maior suavidade o que não a impediu de ranger.
- É você, Úrsula? - perguntou a jovem com voz atemorizada. Gerald abriu de vez a porta, muito depressa, e fechou-a atrás de si.
- Úrsula? - repetiu a moça, sempre com voz assustada. Ele percebeu que ela se sentava na cama. Não tardaria a gritar.
- Sou eu - disse o intruso dirigindo-se para ela. - É Gerald.
Ela ficou imóvel no leito. Seu espanto foi tão grande que sobrepujou o medo.
- Gerald! - exclamou ela, profundamente admirada. Mas ele já estava ao lado da cama e, com a mão estendida, tocava-lhe no seio quente, sem o ver. Gudrun recuou.
- Deixe-me acender a luz - pediu a jovem, saltando para o chão.
O homem estava calmo, mas não se movia. Sentiu-a pegar uma caixa de fósforos e riscar um. Surgiu o clarão e Gerald pode vê-la chegar o fogo ao pavio de uma vela.
A luz alastrou-se, depois diminuiu. O quarto recaía no escuro enquanto a vela não ardia bem; depois tornou a clarear.
Gudrun olhou para ele, que se mantinha de pé, do outro lado da cama. Tinha o boné enterrado ate aos olhos e o sobretudo preto abotoado ate ao queixo. O rosto parecia estranho e luminoso, como um ser sobrenatural. Logo que ela o viu, compreendeu o que se passava. Percebeu que havia, naquela situação, uma espécie de fatalidade, que lhe era forçoso aceitar. Todavia, convinha discutir.
- Como entrou? - inquiriu.
- A porta estava aberta... Subi as escadas.
Gudrun observava-o.
- Não fechei a porta - explicou ele. A moça atravessou rapidamente o quarto e deu volta à chave.
Estava extraordinariamente bem, com os olhos admirados, as faces coradas, os cabelos curtos e espessos na nuca e a camisola de dormir branca, tombando-lhe ate aos pés.
Ela notou que as botas de Gerald estavam enlameadas e que a terra úmida lhe chegava a atingir as calças. Imaginou se ele teria deixado vestígios de sua passagem no assoalho da casa. Que estranho vê-lo imóvel ao lado da cama, perto dos lençóis em desordem!
- Qual o motivo desta visita? - perguntou Gudrun fingindo-se zangada.
- Não pude resistir.
A verdade da resposta estampava-se no rosto dele.
- Está todo cheio de lama - comentou ela, repreendendo-o, embora carinhosamente. Gerald olhou para as botas.
- Estava tão escuro que não se via o caminho. - Disse isto bruscamente, com certa arrogância. Seguiu-se um silêncio. Gerald continuava no mesmo lugar, e ela do outro lado da cama revolvida. Ele nem sequer tirara o boné.
- E que pretende de mim? - perguntou Gudrun com ar de desafio.
Gerald desviou a vista e não respondeu. A extrema beleza, a misteriosa atração daquele rosto estranho e distinto, foi a única razão por que Gudrun não o mandou embora. Era, na verdade, um rosto maravilhoso, indecifrável para ela. Fascinava-a com o prestígio da beleza genuína, enfeitiçava-a, avivava-lhe as saudades, fazia-a sofrer.
- Que pretende de mim? - repetiu, afetando indiferença.
Gerald tirou o boné, como quem se desembaraçasse de um pesadelo, e dirigiu-se para ela. Mas não a tocou, vendo-a descalça e de camisola de dormir e reparando como ele próprio estava molhado e coberto de lama. Os olhos de Gudrun, grandes, muito abertos, fitavam-no, como que a insistir na pergunta formulada.
- Eu... vim para cá porque era preciso que viesse. Que tem a censurar-me?
Ela o contemplou admirada, como se não acreditasse no que ouvia.
- Estou no meu direito.
Gerald abanou a cabeça.
- Não é resposta - declarou, com expressão singularmente abstrata.
Tinha um ar ingênuo, quase divino, de simplicidade e franqueza inocentes. Lembrava-lhe, a ela, uma aparição de Hermes na sua mocidade.
- Mas por que veio? - insistiu.
- Porque estava escrito... Se você não vivesse neste mundo eu não viveria também.
Gudrun continuava a contemplá-lo com espanto, impressionada e ele fitava-a também, fixamente, numa estranha imobilidade que se julgaria inumana. A jovem suspirou. Sentia-se perdida sem remissão.
- Quer descalçar as botas? - sugeriu-lhe. Devem estar molhadas.
Gerald colocou então o boné sobre uma cadeira, desabotoou o sobretudo e levantou o queixo para desapertar a camisa. Os cabelos Imos e curtos estavam despenteados; mas parecia tão belo louro como o trigo! Acabou por despir o sobretudo.
Logo a seguir despiu o terno, desfez a gravata e desprendeu os botões dos punhos, em cada um dos quais havia uma pérola. Gudrun olhava-o inquieta, receosa de que alguém ouvisse o estalar da roupa engomada. Soavam para ela como tiros de canhão.
Gerald não precisava de justificação. Gudrun deixou-o tomá-la nos braços, apertá-la contra si. E ele, naquele amplexo, encontrava infinito alívio; espalhava por toda ela o poder tenebroso, corrosivo e mortal que trazia consigo, e readquiria assim a sua verdadeira personalidade. Era extraordinário, semelhante a um milagre, o milagre constantemente renovado da sua vida, em cuja realização se perdia num êxtase de prodígio e de consolo. E ela submissa, recolhia-o como um vaso repleto de amarga bebida fatídica. Nessa crise, não tinha forças para resistir. Havia-a penetrado a terrível e cruciante violência da morte, e comprazia-se arrebatada e submetida, nas agonias de uma sensação aguda e profunda.
Gerald apertou-a com mais força, embebendo-se profundamente naquele calor suave, admiravelmente criador, que lhe entrava nas veias e lhe dava novo alento. Julgava dissolver-se e afundava-se no banho repousante daquela energia reanimadora. Parecia-lhe que o coração da jovem vibrava lá dentro do peito como um segundo sol intangível em cujo brilho e vigor, proporcionando vida, Gerald procurava precipitar-se mais ainda. Todas as suas veias, rasgadas, laceradas, se iam brandamente cicatrizando ao mesmo tempo porque o ardor aí chegava e nelas corria, invisível, qual poderosa emanação solar. O sangue, que se teria suposto esgotado mortalmente, de novo lhe afluía, seguro, opulento, vivificador.
Notava que seus membros se enchiam de seiva nova, que seu corpo se robustecia com ímpeto desconhecido. Tornava a ser forte, vigoroso, amplo. Era como uma criança convalescente, que suavemente se restabelecesse; envolvia-o uma onda de gratidão.
E ela? Gudrun era a água purificadora da sua existência. Adorava-a como mãe e substância de todas as coisas. Ele, filho e homem, recebia esse alimento e se tornava um ser completo, integral. Viera com o corpo quase morto; mas fora envolvido pela doce emanação miraculosa daquele peito de mulher, entornando-se pelo cérebro ressequido e enfermo como linfa saneadora, tal o fluxo calmante da própria vida, fazendo-o perfeito como se houvesse nascido outra vez do ventre materno.
Estivera realmente ferido, esgotado; dir-se-ia que os tecidos do seu cérebro se haviam destruído. Nem tinha reparado até que ponto o fora, qual a profundidade a que haviam penetrado as matérias corrosivas da morte. Agora, porém, que essa linfa apaziguadora se derramava e lhe percorria o corpo, Gerald compreendia o quanto estivera doente, planta queimada interiormente pelo sopro da geada!
Descansou a cabeça entre os seios dela, apertando-os com as mãos e Gudrun, com as suas, chegou-o mais para si, deixando-o repousar tranquilamente. Um calor delicioso circulou por ele como um sono fecundo no seio materno. Ah, se a moça quisesse simplesmente deixar que aquela viva emanação o percorresse, Gerald ficaria curado de todo, restabelecido de vez! Tinha medo, contudo, de que ela retirasse o seu apoio antes que a cura se verificasse. Como uma criança de colo, o homem unia-se fortemente a Gudrun e ela não o podia afastar. Sentia-se gravíssimo para com Deus, como um menino é grato para sua mãe; grato e feliz ate o delírio, à medida que sua integridade se restabelecia, conforme o sono perfeito e inexprimível que o tomava, completo sono de cura e renovação.
Mas Gudrun permanecia desperta, na sua plena consciência. Estava imóvel, com os olhos fixos na obscuridade, enquanto ele adormecia, abraçado a ela.
Julgava ouvir o ruído das vagas rebentando numa praia invisível, longas ondas indolentes e sombrias que rolavam ao ritmo do destino, numa monotonia evoca Dora da eternidade. Este sussurrar constante do mar lento e triste apoderava-se-lhe da vida, e ela ali continuava de olhos abertos e enevoados, contemplando as sombras ao redor. Talvez visse de muito longe, talvez a eternidade, e, no entanto não distinguia nada. Mantinha-se absorta, mas consciente; consciente, porém, de quê?
Aquele estado, depois de haver atingido o máximo limite - quando ela mergulhou na eternidade, suspensa, inteirada de tudo - dissipou-se por fim e deixou-a desassossegada. Estivera tanto tempo imóvel! Mexia-se agora, recuperava a noção da realidade. E queria olhar para ele, observá-lo.
Não se atrevia, porém, a reacender a vela, certa de que Gerald acordaria, e desagradava-lhe perturbá-lo naquele sono tão perfeito que ela, bem sabia, lhe havia provocado.
Desprendeu-se dele cuidadosamente, soerguendo-se para contempla-lo na cama. No quarto, parecia descobrir uma claridade tênue. Podia ver as feições desse homem quieto e adormecido Julgava mesmo vê-lo distintamente, sem embargo da deficiência de luz. Ele, contudo, estava longe, num mundo diverso. Se ela gritasse, ele não a ouviria, tão ausente estava, num mundo distante. Gudrun tinha a impressão de que o via como um seixo afastado, meio submerso pela água límpida, no escuro. E ali ficava ela, entregue à angústia da sua consciência, enquanto ele mergulhava profundamente em outro elemento, descuidado, remoto, vivendo num mundo de claridade e de sombra! Belo, perfeito, longínquo. Jamais se poderiam reunir. Ah, atroz e inumana distância que se interpunha para sempre entre ela e aquele ser!
Nada restava a fazer senão ficar tranquila e sofrer o seu destino. Experimentava, por ele, a maior das ternuras e, ao mesmo tempo certo ciúme, certo ódio obscuro e confuso pelo fato de o ver tão calmo e imune em seu outro universo, enquanto ela estava atormentada, imersa em escuridão, vítima de cruel insônia.
Gudrun, em seu íntimo, sentia-se agitada. Extenuava-a aquela superatividade. O relógio da igreja batia horas que, à sua imaginação, se afiguravam suceder rapidamente. Ouvia-as distintas no meio da sua extrema tensão nervosa. Ele, porém, dormia, como se o momento fosse sempre o mesmo, imutável e estático.
A moça estava fatigadíssima. Contudo, era forçoso continuar naquele estado de excitação violenta; tudo lhe perpassava pela memória: a sua infância, a adolescência, episódios já esquecidos, coisas que não compreendera bem, cujo alcance lhe escapara, acontecidas a ela, à família, às amigas, aos namorados, aos conhecidos, fosse lá quem fosse. Era como se estivesse recolhendo, do fundo mar de sombras, o cabo cintilante das recordações, a puxar uma corda que não tinha fim, que nunca mais acabava, e ela precisava arrastar, retirá-la, fosforescente, das profundidades ilimitadas da lembrança, ate que, sem haver concluído a tarefa, a vencessem a lassidão, a dor e o esgotamento.
Ah, se ao menos pudesse acordar Gerald! A inquietação apoderara-se dela. Quando conseguiria despertá-lo e mandá-lo embora? Quando se atreveria a sacudi-lo? Ei-la de novo entregue à atividade automática da memória, sem esperança de a fazer cessar jamais!
Mas aproximava-se a hora de despertar Gerald. Sena um grande alívio o relógio, lá fora nas trevas, badalara quatro horas. Graças a Deus a noite ia findar. Às cinco tornava-se necessário que ele partisse, para que ela pudesse descansar. Repousaria, então estender-se-ia na cama, retomando a posição costumeira. Agora, naquele momento, opondo-se ao ritmo regular de um sono perfeito, era como uma faca muito aquecida de encontro a uma pedra de afiar. Havia nele qualquer coisa de monstruoso, na sua maneira de estar ali, assim unido, justaposto.
A última hora foi a mais comprida. Contudo, passou. O coração de Gudrun pulou de contentamento. Sim, lá estava batendo, pesada forte, a torre da igreja... Finalmente, depois de uma noite que parecia eternizar-se! Contava as badaladas, uma por uma: "três, quatro, cinco!" Pronto, estava acabado. Parecia retirar um peso enorme de cima.
Levantou-se, curvou-se ternamente sobre ele e beijou-o. Tinha pena de o despertar. Tornou a beijá-lo. Mas Gerald não se mexeu. Coitado, estava tão profundamente adormecido! Que maldade ter de acordá-lo! Deixou-o mais alguns minutos. Entretanto, fazia-se tarde; era preciso fazê-lo partir.
Cheia de ternura, tomou-lhe rosto entre as mãos e beijou-o nos olhos, que se abriram. Gerald ficou a observá-la, sem fazer qualquer movimento. O coração de Gudrun oprimiu-se. Para esconder o rosto daquele olhar espantado, que investigava a penumbra, inclinou-se e beijou-o mais uma vez, murmurando:
- Tem de ir, meu amor. Mas ao dizer isso, sentia-se triste.
Gerald lançou-lhe os braços ao pescoço. A jovem sentiu-se ainda mais angustiada.
- Você precisa ir - repetiu. - Está na hora.
- Que horas são?
Como soava singularmente aquela voz de homem! Gudrun estremeceu. A opressão tornava-se-lhe intolerável.
- Já passa das cinco.
Ele, porém, nada fez senão abraçá-la mais. O coração de Gudrun gemia-lhe no peito, torturado. Desprendeu-se dele à viva força.
- É preciso ir-se embora.
- Só mais um minuto.
Gudrun uniu-se a ele, muito sossegadamente, mas pouco disposta a lhe fazer a vontade.
- Mais um minuto - repetiu Gerald, apertando-a fortemente.
- Não - declarou ela. - Tenho medo, vá!
Havia na entonação da moça um pouco de frieza que o fez obedecer. Ela afastou-se, levantou-se e riscou um fósforo. Estava tudo terminado.
Gerald saltou da cama. Sentia-se quente, cheio de vida e de vigor. Contudo, experimentava um pouco de vergonha e humilhação em se vestir diante de Gudrun, à luz da vela. Era revelar-se expor-se excessivamente, principalmente agora que ela revelava hostilidade. Enfim, coisas difíceis de aceitar. Vestiu-se depressa, sem colocar nem o colarinho nem a gravata. Considerava-se agora uma pessoa completa, perfeita. Gudrun achava esquisito ver um homem vestir-se: camisa ridícula, ridículas calças e suspensórios... Teve uma ideia justificadora:
"Parece um operário que se levanta para ir para o trabalho - pensou. - Suponhamos que sou a mulher dele". Todavia, sentia um mal-estar, espécie de náusea do homem.
Gerald guardou no bolso do sobretudo o colarinho e a gravata. Depois sentou-se e calçou as botas, que estavam molhadas. Mas tinha pressa, e ele, ao menos, sentia-se quente.
- É melhor só calçar as botas lá embaixo - aconselhou ela.
Gerald, imediatamente, tirou as botas e ergueu-se com elas nas mãos. Gudrun calçara chinelas e envergava um roupão que não chegara a abotoar. Estava pronta e olhou para ele: Gerald esperava, com o sobretudo fechado ate o queixo e com o boné na cabeça. As botas pendiam-lhe das mãos. Por instantes, Gudrun sentiu-se tomada pela odiosa fascinação de sempre, que jamais se esgotava nela. Ele tinha o rosto tão ardente, os olhos imensos tão repletos de expressão! Achou-se velha, então, bastante velha... Aproximou-se com ar cansado e beijou-o. Gerald retribuiu-lhe o beijo, rapidamente. Ah, se aquela beleza fatal e sensual, beleza sem significação, não a enfeitiçasse mais, não a subjugasse tanto! Constituía para ela uma espécie de fardo, que a dominava e de que não se podia desvencilhar. Quando o contemplava, quando lhe via as sobrancelhas finas o nariz bem feito e os olhos azuis e indiferentes, Gudrun compreendia que a sua paixão não fora ainda satisfeita e que talvez nunca o viesse a ser. O pior é que, no momento, sentia-se fatigada, com uma sensação dolorosa. Gostaria que ele partisse.
Desceram. Tinham a impressão de que faziam muito ruído. Gerald seguia atrás, e Gudrun, embrulhada no seu roupão verde, levava na mão uma vela acesa. Assustava-a a ideia de despertar a família. Gerald não pensava nisso. Não se importava com o que os outros julgassem, e essa indiferença exasperava-a. Deviam rodear-se de precauções. Convinha não dar escândalo.
Tomaram o caminho da cozinha, que ficara limpa e arrumada como a criada a deixara. Gerald consultou o relógio: cinco horas e vinte minutos! Sentou-se e calçou as botas. Gudrun espiava-o, observando-lhe cada movimento. Desejaria pôr fim àquilo tudo que lhe causava aflição.
Ele se levantou outra vez, e ela destrancou a porta de serviço, investigando a escuridão. A madrugada estava áspera e fria, a aurora não despontava ainda e, num céu indeciso, pairava uma nesga de lua. Gudrun consolou-se com o pensamento de que voltaria para a cama.
- Bem, então adeus - murmurou ele.
- Vou até o portão - disse ela.
Passou à frente para indicar a escada. Chegando lá, parou nos degraus, enquanto Gerald descia.
- Adeus - cochichou a moça.
O homem beijou-a com delicadeza e partiu.
Era um sofrimento ouvir distintamente aquele passo vigoroso trilhando a estrada! E como aquele andar firme lhe revelava um mundo de insensibilidade!
Fechou o portão e voltou para a cama, rápida e silenciosa. Ao ver-se de novo no quarto, com a porta trancada, sã e salva, respirou de alívio, como se descarregasse um grande peso em cima. Aninhou-se entre os lençóis, na cavidade que o corpo de Gerald havia formado e que estava ainda quente como ele deixara. Enervada, cansada, mas apesar de tudo satisfeita, mergulhou muito depressa num sono profundo.
Gerald foi andando veloz na escuridão hostil daquela noite que findava. Não encontrou ninguém. Tinha o espírito perfeitamente calmo e despreocupado, semelhante a uma lagoa tranquila; sentia o corpo ágil, quente, apaziguado. Logo chegou a Shortlands, satisfeito consigo mesmo.

Capítulo XXV
Ser ou não ser casado
A família Brangwen ia deixar Beldover. Tornava-se conveniente que o pai morasse agora na cidade.
Birkin já havia requerido autorização para casar, mas Úrsula não se decidia. Não queria fixar a data definitiva; continuava a hesitar. Havia já três semanas que ela tinha pedido a sua demissão do colégio. O Natal se aproximava.
Gerald aguardava o casamento de Birkin com Úrsula. O caso tinha importância para ele.
- Quem sabe se, em vez de um casamento, serão dois? disse um dia ao amigo.
- Qual é o segundo? - inquiriu este.
- O meu e o de Gudrun - respondeu Gerald com uma piscadela de olhos.
Birkin encarou-o surpreso.
- Está falando sério?
- Sim, que tem isso de estranho? Podíamos casar no mesmo dia que vocês.
- Sem dúvida. Case! Não sabia que estavam tão adiantados.
- Adiantados? - repetiu Gerald, observando o outro e desatando a rir. - Sim, é verdade, estamos nesse ponto.
- Só resta colocá-los numa larga base social e realizar um fim moral elevado - declarou Birkin.
- Tudo isso: largura, altura... e comprimento - replicou Gerald, sempre rindo.
- Muito bem; é uma decisão digna de aplausos, julgo eu. Gerald fitou-o atentamente.
- Por que não se entusiasma mais um pouco? - indagou. - Julgava-o defensor acérrimo do matrimônio.
Birkin encolheu os ombros.
- Defenda-se, o que quiser, até narizes, que os há de várias espécies, achatados, torcidos...
Gerald achou a comparação divertida.
- E todas as espécies de casamentos, torcidos e achatados - observou.
- Isso mesmo.
- E pensa que o meu será dos torcidos? perguntou Gerald pondo a cabeça de lado, com ar zombeteiro.
Chegou a vez de Birkin sorrir.
- Como posso saber? Não se aproveite do meu estilo figurado para me submeter a interrogatórios.
Gerald refletiu uns instantes.
- Em todo caso, gostaria de saber ao certo a sua opinião.
- Acerca do seu casamento, ou do casamento em geral? Para que deseja conhecê-la? Opinião é coisa que não tenho. O casamento legal não me interessa, de modo nenhum. É pura questão de conveniência.
Gerald fitou-o mais uma vez com atenção.
- Acho que é mais do que isso - atalhou muito sério. Por muito enfadonha que seja a respectiva filosofia, em todo o caso... realmente... do ponto de vista de cada um, parece-me que é assunto grave, definitivo...
- Quer dizer que o fato de ir, com uma mulher, perante o registro civil, dá ao casamento aspecto definitivo?
- Se o ato se realiza ate ao fim, acho que é, de certa maneira, coisa irrevogável.
- Concordo - disse Birkin.
- A opinião que se tenha sobre a legitimidade não importa; contudo o fato, em relação aos contraentes, é coisa certa. - Creio que sim, em certas terras.
- O problema se resume em saber se nos devemos casar... Birkin observava-o, curioso, com os olhinhos risonhos.
- Você, Gerald, - disse ele - é tal qual Lord Bacon. Argumenta como um advogado, ou como o Hamlet no ser ou não ser. No seu caso, eu não me comprometeria. Mas vá perguntar isso a Gudrun e não a mim. Não é comigo que você quer casar...
Gerald não prestou atenção ao final do discurso.
- Sim - insinuou - devemos considerar tudo isso com serenidade. É um momento crítico da nossa vida. Chega-se a certa altura em que é preciso enveredar por um caminho ou por outro. O casamento é um desses caminhos.
- E qual é o outro? - acudiu logo Birkin.
Gerald ergueu para ele os seus olhos ardentes, estranhamente persuasivos, que o amigo, todavia, não pôde compreender.
- Não sei explicar - respondeu. - Se o soubesse... - Mexeu com os pés, inquieto, e não acabou a frase.
- Quer dizer que, se conhecesse a alternativa... ? - sugeriu Birkin. - Mas como não a conhece, o matrimônio é um pis aller - Uma situação que se aceita por não haver algo melhor - nota da tradutora).
Gerald dardejou-lhe um olhar fogoso, constrangido.
- A impressão, realmente, é que se trata de um pis aller.
- Então não se case - sentenciou Birkin. - Dir-lhe-ei - prosseguiu - o mesmo que já lhe disse uma vez: o casamento, no seu significado usual, repugna-me. Comparado com ele, o egoisme à deux não é nada. É uma espécie de caçada feita por grupos de dois; o mundo todo aos pares, cada qual na sua casa, tratando da sua vida, cozinhando na intimidade... Nunca vi coisa mais repelente sobre a face da terra.
- Sou da sua opinião - voltou Gerald. - Há nisso muita inferioridade. Mas, como eu dizia, qual será a alternativa?
- É preciso desembaraçarmo-nos deste instinto doméstico, que não é bem um instinto, mas um hábito de covardia. Não devíamos nunca ter um lar.
- Completamente de acordo. Mas não há outra solução.
- É preciso encontrar uma. Creio na união permanente do homem com a mulher. Mudar sempre seria trabalho puramente exaustivo; ora, união apenas sexual entre mulher e homem não é o ponto supremo... Com certeza não é.
- Também acho.
- E é pelo fato de fazerem dessas relações materiais o fim supremo e exclusivo que vemos surgir tanta incompreensão, tanta mesquinhez e tanta insuficiência.
- Perfeitamente - disse Gerald.
- Devia-se apear do pedestal a que a ergueram essa fórmula considerada ideal: o amor no casamento. Pretendo algo mais elevado. Acredito numa união perfeita entre homem e mulher como complemento do matrimônio.
- Não percebo como possa equivaler-se.
- Não é o mesmo: é coisa mais importante, igualmente criadora, igualmente sagrada, se prefere.
Gerald remexia-se, inquieto.
- Bem vê, não posso sentir assim - declarou. - Acho que nada existe de mais forte entre mulher e homem do que o amor sexual. A natureza não estipula bases.
- Pelo contrário, creio que estipula. Nem julgo que possamos ser felizes sem estabelecermos, por nosso lado, as regras que nos competem. Faça por se desembaraçar do exclusivismo do casamento de amor e admita a estima do homem pelo homem, que tanta aversão lhe causa. Assim haveria maior liberdade para toda gente, grande força individual não só para o homem como para a mulher.
- Bem sei - retorquiu Gerald. - Você crê em qualquer coisa nesse gênero. Eu é que não posso conceber nada disso. - Colocou a mão no ombro de Birkin, com uma espécie de simpatia suplicante, enquanto sorria como se houvesse triunfado na discussão. Estava pronto a se deixar condenar: era assim, como uma condenação, que lhe aparecia o casamento. Ele próprio desejava sofrer a pena do matrimônio, como um condenado a trabalhos nas minas que diz adeus à luz do sol e mergulha na terrível atividade subterrânea. Estava disposto a aceitar isso mesmo. O casamento era a penalidade imposta. Queria ser proscrito dessa forma para o subsolo, como uma alma penada que devesse viver para sempre em cativeiro. Não desejava, porém manter afinidades com mais nenhuma outra alma. Não o conseguiria. O casamento não era só unir-se a Gudrun: implicava também a aceitação do mundo tal qual existia. Devia admitir a ordem estabelecida, na qual não tinha confiança, e então retirar-se-ia para debaixo da terra, para sempre. Era esse o seu intento.
Por outro lado, havia a possibilidade de aceitar a aliança com Rupert, ligando-se por laços de pura estima com o homem, e, pela mesma doutrina, com a mulher. Se se comprometesse solenemente com o primeiro, mais tarde estaria apto a fazer o mesmo com uma mulher, não só por meio de casamento legal, mas numa união mística e absoluta.
Contudo, repudiava semelhante entendimento. Havia nele certo torpor, quer derivado de ausência de vontade, que jamais teria possuído, quer por se lhe haver ela atrofiado. Talvez a primeira hipótese. De fato, a proposta de Rupert Birkin entusiasmara-o singularmente. Mas sentia muito prazer em declarar que não aceitava.


Capítulo XXVI
A propósito de uma cadeira
Todas as segundas-feiras, à tarde, realizava-se uma feira de objetos usados no antigo mercado da terra. Úrsula e Birkin foram lá uma vez. Tinham conversado a respeito de móveis e quiseram ver se encontrariam qualquer coisa capaz de ser comprada no meio daquelas pilhas de trastes acumulados na praça.
O velho mercado não era muito vasto: simples quadrado com o chão coberto de pedras de granito, onde habitualmente, junto às paredes, se erguiam os tabuleiros dos vendedores de frutas. Ficava num bairro pobre e rodeavam-no, por um lado, casas em ruínas, de outro, uma fábrica de fiação, extensa fileira de inúmeras janelas oblongas; ao fundo, corria uma rua pavimentada de lajes, onde havia alguns estabelecimentos, e, na última face do quadrado, ficava um edifício do Estado, os banhos públicos, de tijolos novos, rubros e uma torre de relógio. As pessoas que por ali circulavam eram apenas figuras infelizes e sórdidas. O ar parecia impregnado de cheiros fétidos, dando a mesma sensação que se tem nas travessas pobres muito enredadas, cheias de casebres mesquinhos. De vez em quando, diante da fábrica, rodava a custo, rangendo, um grande carro americano, amarelo e cor de chocolate.
Úrsula sentiu arrepios na pele ao ver-se entre a gente do povo, no lugar onde se amontoavam camas velhas, objetos de ferro enferrujados, louça de barro em lotes tristes e conjuntos incríveis de roupa usada. Birkin seguia por aqueles espaços estreitos em que se sobrepunham todas aquelas mercadorias, que ele ia examinando com atenção. Úrsula observava as pessoas.
Contemplava agora uma mulher nova em vésperas de ser mãe; dispunha-se a comprar um colchão e incitava o rapaz que a acompanhava, desatento e abatido, a experimentá-lo também. Parecia tão ativa, preocupada e ansiosa quanto o rapaz se afigurava indiferente e com ar de quem pretende esquivar-se. Iam naturalmente casar por causa daquela criança prestes a vir ao mundo.
Depois de haverem apalpado o colchão, perguntou a freguesa ao homem, que estava sentado num banco em meio das suas mercadorias, qual era o preço que ele pedia. Uma vez informada do custo, comunicou a notícia ao rapaz. Este mostrou-se acanhado; desviou o rosto; sem no entanto mover o resto do corpo e pronunciou qualquer coisa em voz baixa. De novo a mulher, ansiosa e diligente, provou o colchão, fazendo cálculos consigo mesma e regateando com o vendedor desleixado. E, durante todo esse tempo, o rapaz ficou ao lado dela, envergonhado, sem energia, submisso.
- Veja - disse Birkin. - Aqui está uma cadeira bem bonita.
- Linda! - exclamou Úrsula. - Um encanto!
Era uma cadeira de braços, de qualquer madeira vulgar - vidoeiro, provavelmente - mas bastante delicada e graciosa quanto ao estilo; dava pena vê-la ali sobre aquelas pedras miseráveis. Era de forma quadrada, com linhas esbeltas e puras; o espaldar era constituído por quatro tiras de madeira, delgadas, cuja disposição lembrou a Úrsula a das cordas de uma harpa.
- Noutro tempo - observou Birkin - devia ter sido dourada e com assento de palhinha. Pregaram-lhe por cima esse tampo de madeira. Está vendo, aqui está um vestígio de tinta vermelha por baixo do dourado. A base é toda preta, exceto onde o uso pôs à mostra a própria madeira. O que a torna assim atraente é a perfeição de suas linhas. Repare como seguem, como se encontram e se desviam. O pior é o assento de pau, que não lhe pertence, destrói a elegância e a priva da unidade que lhe dava o entrançado da palhinha. Ainda assim, agrada-me...
- E a mim também - disse Úrsula.
- Quanto custa? - perguntou ao vendedor.
- Dez xelins.
- Pode mandar entregar?
Fizeram a compra.
- É tão bonita, tão graciosa! - disse Birkin. - Enternece o coração. - Continuaram o seu caminho entre os montões de coisas velhas. - Minha pátria amada, tinha qualquer coisa para exprimir, quando fizeste esta cadeira!
- E hoje não tem? - perguntou Úrsula. Irritava-se quando ele falava naquele tom.
- Não, não tem. Quando vejo esta cadeira, tão bela e elegante e penso na Inglaterra, ainda que seja a do tempo de Jane Austen!... Havia então pensamentos vivos a desenvolver, e havia prazer em desenvolvê-los... E agora só nos resta pescar, entre o lixo, o que ficou da velha expressão nacional. Não temos, presentemente, originalidade, somos apenas mecanismos sórdidos e grosseiros.
- Não é verdade! - atalhou Úrsula. - Por que você há de exaltar constantemente o passado em desprimor do futuro? Eu, na verdade, não sou muito pela Inglaterra de Jane Austen. Era bastante materialista, se me permite dizer...
- Podia dar-se ao luxo de o ser - contraveio Birkin - porque tinha possibilidades de fazer mais alguma coisa, o que não sucede conosco. Nós somos materialistas pela razão de não termos facilidade de ser de outra maneira. Bem podemos experimentar, mas não conseguimos senão materialismo; ou a mecânica, que é a alma daquele.
Úrsula guardava um silêncio hostil. Não fazia caso mais do que ele estava dizendo. Revoltava-se contra outro pensamento que lhe girava no cérebro.
- Odeio esse passado que você ama. Sinto náuseas. Parece ate que detesto essa cadeira antiga que compramos, apesar de achar bonita; mas não é desta beleza que eu gosto. Preferia que a tivessem destruído, uma vez que passou de época; que não tivesse sobrevivido, dando assim origem a estes seus panegíricos do passado... Estou farta desse passado que você adora.
- Não tanto quanto eu estou farto deste maldito presente - replicou ele.
- Pois é a mesma coisa. Detesto também o presente, mas não me agradaria que o passado o viesse substituir. Não quero a cadeira antiga.
Naquele momento Birkin estava furioso. Olhou para o céu que brilhava sobre a torre do estabelecimento de banhos e sua cólera passou. Começou a rir.
- Muito bem - disse ele. - Desfaçamo-nos desse objeto. Enfastia-me também. De qualquer maneira, não nos podemos continuar a alimentar de velharias, por mais belas que sejam.
- Não podemos - assentiu ela. - Não preciso de antiguidades.
- A verdade é que não necessitamos de móveis de nenhuma espécie - declarou Birkin. - A ideia de uma casa minha, com a respectiva mobília, enfurece-me.
Tal declaração sobressaltou-a por instantes. Mas depois retorquiu:
- A mim também. O caso, porém, é que precisamos viver em qualquer parte.
- Em qualquer parte, não, mas em parte nenhuma. Em nenhum lugar, sim! Não ter pouso definido! Não me falem em residência permanente. Logo que temos um quarto, e que o vemos completo, nosso desejo é fugir dele. Os meus aposentos no moinho estão agora quase prontos, e meu desejo seria lançá-los no fundo do mar; é uma tirania medonha essa do lugar fixo, onde cada peça de mobiliário tem a sua ordem estabelecida.
Úrsula apoiou-se ao braço dele enquanto se afastavam da feira.
- Mas que havemos de fazer? - murmurou ela. - Temos de viver seja lá onde for, e agradam-me coisas belas à minha volta. Aprecio uma espécie de esplendor natural, de magnificência.
- Você não achará nada disso, nem nas casas, nem na mobília, nem sequer nos vestidos. Casas, móveis, roupas, são termos de um mundo velho e mesquinho, da antipática sociedade humana. E pior ainda se você tiver uma residência de estilo Tudor com lindos móveis antigos, que faria perpetuar passado à sua volta. Mas se a casa é moderna e for decorada por Poiret expressamente para nós, é outra a ideia que perpetuamos à nossa volta: igualmente horrível. É tudo patrimônio, tudo são bens que nos atormentam, obrigando-nos à generalização... Devíamos fazer como Rodin e Miguel Ângelo, que deixavam em torno dos vultos esculpidos apenas pedaços de pedra rudes e imperfeitos. Em redor de nós, seguindo o exemplo, devíamos ter somente coisas incompletas, esboçadas, de maneira a não sermos nunca limitados, nem confinados pelo que nos rodeia.
Úrsula parou no meio da rua, meditando.
- Nunca teremos, então, uma casa nossa, uma instalação de verdade?
- Se Deus quiser, neste mundo, não.
- Mas só há este mundo - objetou ela.
Rupert estendeu os braços num gesto de indiferença.
- Entretanto, evitemos possuir seja que objetos forem.
- Você acaba de comprar uma cadeira.
- Direi ao homenzinho que não a quero mais.
Úrsula tornou a refletir. Sua face contraiu-se em um ritus estranho.
- Tem razão - disse ela. - Não precisamos de velharias. Estou farta disso.
- Quanto a mim, não aprecio mais que é moderno - replicou Birkin.
Resolveram voltar.
Em frente a uma pilha de móveis estava casal jovem: a moça que ia ter seu bebê e rapaz acanhado e inexperiente. Ela era loura, atarracada e forte. Ele, de altura mediana, bem constituído; tinha cabelos pretos, caindo sobre a testa. Com a boina enfiada na cabeça, parecia totalmente alheio ao que se passava.
- Vamos oferecê-la a eles? - cochichou Úrsula. - Repare, têm o aspecto de quem anda mobiliando o ninho...
- Nesse caso, não os ajudarei nem incitarei - afirmou Birkin com petulância, tomando logo o partido do rapaz indiferente e bisonho contra a fêmea ativa e procriadora.
- Sim, sim! - exclamou Úrsula. - Ela será ótima para eles. Não há nada melhor!
- Está bem, vá oferecer a cadeira: eu fico observando. Úrsula dirigiu-se, um tanto nervosamente, em direção ao casal, que discutia a compra de um lavatório de ferro; ou melhor, era a mulher quem regateava ao passo que o rapaz, como um prisioneiro, lançava olhares furtivos e desconfiados sobre o objeto abominável.
- Compramos uma cadeira - começou Úrsula - mas não a queremos. Querem-na para vocês? Teríamos muito gosto em que aceitasse.
Os dois olharam admirados, custando a acreditar que a conversa fosse com eles.
- Importa-se de ficar com ela? - prosseguiu Úrsula. - É realmente muito bonita, mas... mas... - E exibiu o seu melhor sorriso.
Os noivos limitaram-se a observar, trocando olhares significativos, para saberem que resposta deviam dar. O rapaz procurava apagar-se o mais possível; o seu desejo seria escapulir como um rato.
- Temos muito gosto em oferecê-la - continuou Úrsula, sempre confusa e receosa. O rapaz, no entanto, inspirava-lhe simpatia. Era silencioso, descuidado, pouco masculino, singularmente delicado, de pura raça, em certo sentido. Era, enfim, tímido, esperto, sutil. As pestanas, longas e finas, sombreavam-lhe os olhos, nos quais não existiam pensamentos apenas uma espécie de instinto terrível, lá no interior, vítreos e melancólicos. Tanto as sobrancelhas escuras como os estantes traços da fisionomia obedeciam a um desenho corresimo. Assim tão bem dotado, devia ser, para a mulher, um amante funesto, mas admirável. Sob as calças disformes adiavam-se-lhe as pernas finas e ágeis; dir-se-ia haver, em volta alguma coisa da esperteza, da cautela, do aveludado de ratinho de olhos pretos, silencioso.
Úrsula dirigia-se a ele, com um leve calafrio de sedução. A mulher encarava-o hostilmente. A professora repetiu, mais uma vez:
- Não querem a cadeira?
O rapaz olhou para ela de soslaio, admirando-a, mas com ar distante, quase insolente. A mulher empertigou-se. Tinha o aspecto de uma vendedora de hortaliças. Não percebia quais eram as intenções da doadora e mantinha-se de prevenção. Birkin aproximou-se sorrindo perversamente ao ver Úrsula confusa e asseada.
- Então, o que há? - perguntou ele, jovial. Tinha os olhos semicerrados opressão denunciava algo de misterioso, igual à que se nota o parzinho de noivos. O rapazola inclinou a cabeça para Úrsula, e disse com certo calor, amável:
- Que é que ela quer, hein? - Seus lábios arquearam-se em um sorriso muito especial.
Birkin olhou para ele, mirando-o por baixo das pálpebras descidas, ironicamente.
- Dar-lhe uma cadeira... aquela, que tem um letreiro amarrado - disse para o outro, apontando-lhe o móvel.
O rapaz olhou para a cadeira. Notava-se entre os dois homens certa camaradagem e compreensão.
- Por que é que ela nos quer oferecer? - perguntou o primeiro em tom de familiaridade que melindrou Úrsula.
- Pensei que talvez gostassem... É uma cadeira tão bonita! Comprei-a, mas não a quero mais. Não é obrigado a aceitá-la, quanto a isso, fique sossegado... - explicou Birkin, sempre sorridente.
O rapaz lançou-lhe um olhar meio formalizado, meio agradecido.
- Se a compraram, por que razão não a querem? - interveio a mulher, friamente. - Será que a observaram melhor e viram que não serve? Aposto que desconfiam de que tenha alguma coisa lá por dentro.
Ao dizer isto, contemplava Úrsula com admiração mesclada de ressentimento.
- Não pensei nisso - declarou Birkin. - Mas vejam, a madeira está em bom estado...
- Aí está - atalhou Úrsula, com a face risonha, fazendo-se amável. - Vamo-nos casar e pensamos comprar alguns móveis. Mas agora decidimos, neste momento mesmo, desistir da mobília e irmos para o estrangeiro.
A outra, moça saudável, de boas cores, examinou o rosto delicado de Úrsula. Apreciavam-se reciprocamente. O noivo daquela mantinha-se de parte, alheio ao tempo, inexpressivo, com a sombra negra do bigodinho desenhando-lhe a boca impassível, sempre abstrato, mera presença inofensiva, como a de qualquer objeto.
- Essas pessoas da alta roda são engraçadas - comentou a mulher, voltando-se para o rapaz; este nem olhou para ela, limitando-se a sorrir com a parte inferior da fisionomia e deitando a cabeça de lado, num gesto irônico de concordância. Os olhos conservavam-se na mesma, vítreos e melancólicos.
- Sai caro mudar de ideias - observou ele, numa voz estranhamente velada.
- Perco apenas dez xelins - esclareceu Birkin.
O rapaz encarou-o, sorrindo contrafeito, acanhado, pouco à vontade.
- É mais barato então do que o divórcio...
- Ainda não estamos casados - elucidou o outro.
- Nós também ainda não - acudiu a robusta jovem. - Casamo-nos qualquer sábado desses...
Lançou ao noivo uma olhadela decidida e protetora, ao mesmo tempo autoritária e carinhosa. Ele riu-se, com um risinho abafado e deu-lhe as costas. Estava nas mãos dela, evidentemente, mas fazia por se defender. Vinham-lhe pruridos de orgulho e esquivava-se para demonstrá-lo.
- Que sejam felizes! - disse Birkin.
- O mesmo desejo aos senhores - volveu a mulher. Depois, numa tentativa audaciosa, perguntou:
- Quando é o casamento? Birkin voltou-se para Úrsula.
- Ela é quem decide - respondeu. - Iremos ao cartório assim que ela estiver pronta.
Úrsula achou graça e sentiu-se confusa e embaraçada.
- Não tenha pressa - acudiu o rapazinho, deixando ver os dentes, muito risonho.
- Não se preocupem com isso - interveio outra vez a moça.
- Também para morrer há tempo. E ficarão casados por muitos anos!
O noivo desviou-se, como que magoado com aquelas palavras.
- Quanto mais durar, melhor. Tenhamos esperança - disse Birkin.
- É isso mesmo, senhor - afirmou o rapaz, com acentuada admiração. - Aproveitar enquanto há saúde. Depois do burro morto, nada se pode fazer.
- A não ser que ele se finja de morto - acudiu a mulher, olhando para o noivo, com ternura, e, simultaneamente, autoridade.
- Faz diferença, é claro - replicou ele.
- E a respeito da cadeira? - perguntou Birkin
- Aceitamos! - declarou a mulher.
Aproximaram-se do vendedor. O rapazinho manhoso, com seus belos ares, deixou-se ficar, entretanto, mais atrás.
- Cá está - explicou Birkin. - Levam-na consigo, ou muda-se o endereço?
- Fred pode com ela. Que faça ao menos isso em benefício da nossa casa.
- Vai ser muito útil - disse Fred em tom sarcástico, ao pegar a cadeira. Tinha movimentos elegantes, mas era servil, cheio de manha. - Mamãe vai gostar - observou ele. - Só lhe falta uma almofada. - Colocou-a no chão de pedras e esperou.
- Não a acha bonita? - perguntou Úrsula.
- Sim, senhora - respondeu a noiva.
- Sente-se aqui, para ver se se arrepende da oferta que fez - lembrou o rapaz.
Úrsula obedeceu e sentou-se, mesmo ali no meio da feira.
- Confortabilíssima - declarou. - Mas um tanto dura. Experimente. - Convidou o homem a sentar-se. Este, porém, relanceou-lhe um olhar envergonhado, pondo-se de lado, sem jeito, e tentando esquivar-se como um ratinho.
- Não o estrague com mimos - disse a moça. - Não está habituado a poltronas.
Sempre desviando o olhar, respondeu-lhe aquele, em tom de brincadeira:
- Às minhas só faltam os pés.
Separaram-se. A noiva manifestou o seu agradecimento pelo presente.
- Muito obrigada pela cadeira. Há de durar muito.
- Vamos guardá-la como enfeite - completou o rapaz.
- Boa tarde! Boa tarde! - disseram Úrsula e Birkin.
- Felicidades para ambos! - respondeu o rapaz, evitando o olhar de Birkin na ocasião em que este voltara a cabeça para ele.
Os dois casais seguiram cada qual o seu caminho. Úrsula tomou o braço de Rupert. Quando já iam a certa distancia, Úrsula olhou para trás e descobriu os noivos, ela grávida e vagarosa andando ao lado dele. As calças do rapaz desciam-lhe aos calcanhares; seguia como quem tem vontade de se esconder, sofrendo no seu orgulho por ser obrigado a carregar com a cadeira, que segurava pelo espaldar, enquanto os quatro pezinhos delgados se balançavam a pouca distância do chão, com perigo de se estragarem. E, contudo, lá ia ele insubmisso e independente como um rato ligeiro e esperto. Belo à sua maneira, um tanto singular, mas, ao mesmo tempo, repulsivo.
- Que casal estranho! - murmurou Úrsula.
- Filhos dos homens - elucidou Rupert. - Lembram-me Jesus quando disse: "Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra.
- Mas estes não são mansos - objetou Úrsula. - Não sei bem por que, mas são.
Esperaram o ônibus. A moça preferiu ir na parte de cima para contemplar a cidade. O crepúsculo principiava a descer sobre as casas apinhadas.
- E herdarão a terra?
- Sim, eles só.
- E nós, então, o que havemos de fazer? - perguntou ela. - Não somos iguais a eles, não é verdade?
- Decerto. Teremos de viver nos buracos que nos deixarem.
- É horrível! declarou Úrsula. - Não quero viver assim.
- Não se aflija. São filhos dos homens, preferem os mercados e as esquinas das ruas. Restam devolutos imensos buracos para nós.
- O mundo inteiro...
- Isso não, mas sempre sobra algum espaço.
O ônibus subia lentamente a colina, onde o medonho conjunto de habitações, de um tom acinzentado, se assemelhava a uma visão infernal, irritante e angulosa. Começaram a observar. O sol morria no horizonte, vermelho de furor. Tudo parecia triste, encolhido, sufocante, sugerindo o fim do mundo.
- Nada disso me interessa - proferiu Úrsula, olhando para o cenário repelente. - Não me diz respeito.
- Sem dúvida - replicou Rupert, tomando-lhe a mão. - Não é necessário ver. Cada qual segue o seu caminho. No meu há sol e há espaço...
- Está dizendo a verdade, meu amor? - Uniu-se mais a ele, enquanto os outros passageiros do carro os fitavam com estupefação.
- Erraremos sobre a face da terra - volveu Birkin. - Veremos outras coisas no mundo, diferentes desta paisagem.
Ficaram calados por muito tempo. Úrsula meditava e seu rosto se tornara radiante como o ouro.
- Não preciso herdar os bens da terra - disse ela. - Nem quero nada.
Rupert apertou-lhe mais a mão.
- Nem eu. Quero ser deserdado.
Úrsula premia-lhe fortemente os dedos.
- Não nos incomodaremos com coisa alguma - sentenciou a moça.
Rupert, muito calmo, principiou a rir.
- Casaremos e não daremos importância aos demais - prosseguiu ela.
Ele continuava a rir.
- E uma das maneiras de nos livrarmos de tudo é casar - acrescentou Úrsula.
- E aceitar um mundo inteirinho - atalhou Rupert.
- Sim, porém um mundo diferente - replicou a moça, satisfeita.
- Mas... Gerald e Gudrun?
- Que fiquem, se quiserem. Não nos incomodaremos com isso. É impossível modificá-los.
- Sim, nem temos o direito de intervir, mesmo com a melhor das intenções...
- Você seria capaz de tentar? - perguntou a moça.
- Talvez. Mas por que é que o desejo, a ele, livre, se a natureza não o talhou para tal?
Úrsula refletiu alguns instantes.
- De qualquer maneira, não podemos fazê-los felizes. Que o sejam, mas à sua custa.
- Bem sei. Todavia, precisamos de outras pessoas, junto de nós...
- Por quê?
- Não sei. - Rupert parecia embaraçado. - Desejamos sempre ter amigos...
- Mas por quê? - insistiu ela. - Que necessidade temos de outras pessoas? Não nos bastamos a nós mesmos?
Aquela teima espicaçava-o. Birkin tornou-se carrancudo.
- Só existimos nós dois na terra? - inquiriu nervoso.
- Sim, Rupert. Para que mais gente? Se alguém quiser aproximar-se, deixá-lo vir. Mas não é preciso correr atrás dos outros.
Birkin permanecia ansioso e descontente.
- Veja - disse então. Eu não concebo que sejamos realmente felizes senão em companhia de meia dúzia de pessoas... Um pouco de liberdade, no meio de um grupo...
Úrsula voltou a refletir.
- De fato, isso é necessário. Mas que aconteça por si mesmo, e não pela nossa vontade. Você tem sempre o ar de quem está querendo obrigar as plantas a crescer. Se os outros simpatizarem conosco, está bem; mas não os obriguemos.
- Bem sei - concordou ele - Contudo, pode-se dar uns passos nesse sentido. Ou devemos proceder como se estivéssemos sós no mundo, como se fôssemos os únicos habitantes do planeta?
- Você tem a mim - redarguiu ela. - Para que mais? Por que obrigar os outros a concordar com você? Não pode ficar isolado, como tanto preconiza? Quer forçar Gerald com ameaças, como já fez a Hermione? Aprenda a viver só. É horrível da sua parte. Você me tem, e, no entanto, pretende obrigar os outros a sentirem estima por você! Quando, afinal, não tem necessidade da afeição dessa gente...
Birkin ficara deveras perplexo com este discurso.
- Pensa assim? - replicou. - É um problema que eu não sei resolver. Compreendo que desejo ter com você uma união perfeita e completa e estamos prestes a consegui-la. Mas, fora isso? Quero manter com Gerald uma amizade definitiva, quase extra-humana, uma amizade suprema. Ou não quero?
Úrsula contemplou-o longamente, com os olhos brilhantes e admirados. Mas não deu resposta.


Capítulo XXVII
Batendo as asas
Naquela noite, Úrsula regressara a casa com os olhos brilhantes, diferente do que costumava ser, irritando com isso os demais membros da família. O pai viera cear, depois das aulas noturnas, cansado do trabalho e do trajeto. Gudrun lia e a mãe conservava-se silenciosa.
De repente, em voz bem timbrada, a mais velha das irmãs declarou:
- Rupert e eu vamos casar amanhã.
O pai olhou, colérico.
- O quê? - exclamou.
- Amanhã? - perguntou Gudrun.
- Que ideia é essa? - quis saber a mãe.
Úrsula, porém, limitou-se a sorrir, encantada consigo mesma, e não deu resposta.
- Casar-se amanhã! - tornou o pai, indignado. - Que é que está dizendo?
- Sim, senhor. Por que não? - Estas simples palavras tiveram o poder de enfurecê-lo. - Temos tudo pronto. Iremos ao Registro Civil.
Houve um silêncio de segundos na sala, depois daquela declaração feita com tanta naturalidade.
- Isso é verdade, Úrsula? - indagou a irmã.
- Pode-se saber por que guardou segredo? - interrogou a mãe, cheia de dignidade.
- Não houve segredo nenhum. Todos sabiam.
- Quem é que sabia? - gritou o pai. - Quem sabia? Que quer dizer com todos sabiam?
Assumira uma das suas atitudes de ira brutal, e a moça colocou-se logo em guarda.
- Claro que o senhor estava a par. Não ignorava que nos iríamos casar.
Houve uma pausa perigosa.
- Diz que eu sabia que vocês iam casar? Como iria saber? Quem pode saber jamais o que você pensa fazer, minha sonsa?
- O pai! - interveio Gudrun, em tom de censura, corando intensamente. Depois, em voz mais calma e afável, como para lembrar à irmã que devia condescender, perguntou-lhe: - Não será uma resolução um tanto impensada?
- Pelo contrário - objetou a outra, com a mesma jovialidade agressiva. - Há muitas semanas que ele espera o meu consentimento, e já tratou ate dos papéis. Eu é que não me tinha ainda resolvido. Acabo de o fazer. Que tem isso de censurável?
- Nada, decerto - respondeu Gudrun, porém de uma forma ainda meio repreensiva. - Você é senhora das suas ações.
- Não tinha ainda resolvido! É isso que importa, não é? Tomar uma resolução! - Brangwen dizia isto imitando a voz da filha, de maneira agressiva. - Você e só você!
Úrsula empertigou-se, ergueu o peito e nos olhos fuzilaram-lhe clarões dourados, assustadores.
- Sirvo de alguma coisa! - declarou, ofendida e penalizada. - Sei, no entanto, que para os outros não represento nada. O pai só trata de me repreender, nunca se preocupa com a minha felicidade.
Brangwen curvara-se para ela, estendendo-lhe o rosto congestionado.
- Úrsula! - acudiu a mãe. - O que é que está dizendo? Cale-se, por favor!
A moça voltou-se logo, de olhar coruscante.
- Não, não me calo. Não me calo nem me deixo espezinhar assim. Que importa que eu me case amanhã ou depois? Que lhes interessa isso? O assunto não diz respeito a mais ninguém, só a mim.
O pai continuava em guarda, como um gato pronto a investir.
- Não me diz respeito? - repetiu ele, chegando-se mais para o lado da filha, que recuou.
- É claro que não! - replicou ela, trêmula, mas inflexível.
- Com que então, o que você faz não me interessa? - a voz de Brangwen alcançara seu mais alto diapasão.
Gudrun e a mãe olharam-no como que hipnotizadas.
- Não! - balbuciou Úrsula. O pai estava muito junto dela. - O que o senhor quer é apenas...
Interrompeu-se, reconhecendo que era arriscado o que ia dizer. Brangwen estava pronto, com os músculos retesados.
- O quê? - perguntou, desafiando-a.
- Intimidar-me!
Mal tinha proferido isto e já a mão do pai, estampando-se-lhe no rosto, a mandava de encontro à porta.
- Papai! - exclamou Gudrun em altos brados. - É incrível!
Brangwen ficou petrificado. Úrsula endireitou-se, apoiando-se, com a mão, ao fecho da porta. Recompunha-se lentamente. O pai estava imóvel.
- Sim, senhor - disse ela, com os olhos brilhantes de lágrimas, erguendo a cabeça com ar atrevido.
- O que tem sido o seu amor paternal? Como se tem manifestado? Brutalidades, recusas, eis tudo!
O homem cresceu de novo para a moça com um ar assustador, de punho cerrado e expressão sanguinária. Ela, porém, célere como o relâmpago, abriu a porta e ouviram-na depois subir os degraus da escada.
Brangwen deteve-se uns momentos olhando para a entrada. Então como um animal vencido, deu meia volta e veio sentar-se junto ao fogo.
Gudrun estava lívida. Foi a mãe quem rompeu o silêncio intenso que se fizera, declarando furiosa e friamente:
- É melhor não fazer caso do que ela diz!
Recaíram no mutismo, cada qual seguindo o curso dos seus pensamentos e preocupações.
Abriu-se de repente a porta. Era Úrsula que reaparecia, de chapéu, casaco e maleta nas mãos.
- Adeus! - exclamou em tom decidido, exasperante, mas ao mesmo tempo irônico. - Vou-me embora.
No mesmo instante tornou a fechar a porta; ouviram depois ranger a de fora e os passos da moça, ligeiros, na calçada do quintal. Na casa reinou um silêncio de morte.
Úrsula foi direto à estação, andando como se tivesse asas nos pés. Não havia trem e teve de ir tomá-lo no entroncamento. Caminhando no escuro, sentiu vontade de chorar e derramou lágrimas amargas, com o coração ferido, experimentando temores infantis, e assim todo o percurso, mesmo já dentro da carruagem. O tempo decorria sem que ela lhe prestasse atenção, alheia por completo, sem saber onde se encontrava nem o que lhe sucedera. O pranto subia-lhe das profundezas insondáveis do desespero, desgosto imenso, terrível ansiedade como a das crianças a quem o choro não extenua.
A voz, contudo, recuperou a frescura quando perguntou à senhoria de Birkin, à porta do moinho:
- Boa noite! O Sr. Birkin está? Posso falar com ele?
- Sim, senhora, ele está no escritório.
Úrsula caminhou atrás da mulher. A porta do escritório estava aberta e Birkin ouvira-lhe a voz.
- Olá! - exclamou ele, surpreendido de a ver ali com a mala na mão e, no rosto, vestígios de lágrimas. Todavia, seu rosto estava tranquilo como o de uma criança.
- Devo estar horrível! - disse ela, recuando.
- Não. Por quê? Entre. - Pegou a maleta e os dois entraram na sala.
Lá chegados, os lábios da jovem começaram a tremer, como uma criança que se recorda do que lhe aconteceu. As lágrimas irromperam outra vez.
- Que foi? - repetiu ele logo que a noiva se tranquilizou um pouco. Úrsula, porém, apoiava-se com força ao ombro de Birkin, que esperava silencioso.
- Que foi? - repetiu ele logo que a moça se tranquilizou um pouco. Úrsula, porém, apertava-se ao ombro dele, como se não quisesse responder.
- Preciso saber o que aconteceu...
Ela se desviou dele, enxugou os olhos e foi sentar-se numa cadeira.
- Meu pai bateu-me - anunciou então, aconchegando-se como um passarinho enovelado. Os olhos cintilavam-lhe.
- Por quê?
Úrsula desviou os olhos, sem responder.
- Por quê? - insistiu Birkin com voz estranha, penetrante, persuasiva.
Ela o enfrentou desta vez, numa atitude de desafio.
- Porque eu lhe disse que nos casávamos amanhã.
- Então bateu em você?
Ela tornou a fazer beicinho, lembrando-se da cena em casa e as lágrimas assomaram-lhe de novo aos olhos.
- Declarei-lhe que o assunto não lhe dizia respeito, e, de fato, ele pouco se importa com estas coisas. O que o melindra é eu não fazer caso dos seus ares imperiosos. - Com os soluços, a boca torcia-se enquanto falava e aquilo era tão infantil que dava vontade de rir. Contudo, tratava-se de um conflito mortal para ela, algo a ferira profundamente.
- Não é tanto assim - atalhou ele.
- É sim, é sim! - soluçava ela. - Não quero ver-lhe expansões de amor paternal, que ele não tem, não tem!
Rupert ficou calado. Úrsula comovia-o profundamente.
- Você não o devia ter irritado - disse, por fim, muito tranquilo.
- E eu que fui tão sua amiga! Gostei sempre de papai, e ele me paga desta maneira...
- Isso é o que se chama amor contrariado... Não se importe, tudo acabará bem. Não há nada irremediável.
- Sim - choramingava ela. - É... - Por quê?
- Nunca mais o verei.
- Por enquanto, não. Mas cale-se. Você tinha mesmo que romper com ele, pronto. Agora não chore mais.
Aproximou-se dela e beijou-a nos cabelos finos e leves e acariciou-lhe meigamente as faces molhadas.
- Não chore - repetiu. - Não chore.
Com a cabeça da jovem apertada contra o peito, muito apertada e quieta, esperou.
Ela se acalmou, pouco a pouco. Olhou para ele, com seus olhos grandes e assustados.
- Não está zangado comigo? - inquiriu.
- Zangado? - O olhar sombrio e fixo de Rupert impressionava-a e não a deixava à vontade.
- Está contrariado por que eu vim para cá? - perguntou ela, perturbada agora pela ideia de ter fugido de casa.
- Não - respondeu ele. - Preferia que não tivesse havido essa cena violenta e desagradável; mas era, decerto, inevitável...
Úrsula contemplava-o em silêncio. Rupert parecia tão mortificado!
- Onde é que vou ficar? - perguntou ela, sentindo-se envergonhada.
Birkin refletiu alguns instantes.
- Aqui, comigo. Estamos tão casados hoje como estaremos amanhã.
- Mas...
- Vou avisar a Senhora Varley. Não se preocupe.
Birkin continuava a fitá-la. Úrsula sentia aqueles olhos sombrios constantemente dirigidos para ela. Aquilo impressionava-a. Com a mão nervosa, afastou os cabelos que lhe pendiam para a testa.
- Pareço muito feia? - perguntou, enquanto se assoava. O rosto de Birkin clareou-se num sorriso.
- Não, felizmente... - respondeu.
Levantou-se e tomou-a nos braços, como a uma coisa que lhe pertencia. Úrsula mostrava-se tão terna e bela que Rupert não se contentava com vê-la; era forçoso escondê-la dentro de si.
Agora, com as faces banhadas pelas lágrimas, parecia tenra e frágil como uma flor desabrochada, flor fresca, tornada perfeita pela luz interior, e Birkin não a podia sequer contemplar; queria ocultá-la imediatamente de encontro ao peito, cobrir os olhos unindo-os ao corpo dela. Aquela mulher possuía a mais completa inocência da criação, algo de translúcido e simples, espécie de flor radiante, deslumbradora, aberta nesse momento para exibir o seu recente esplendor. Era tão nova, de uma luminosidade que maravilhava, sem uma sombra sequer! Ele se julgava tão velho, tão cansado de recordações tenebrosas! A alma dela, juvenil, indefinida, mirando-se no invisível; e a de Birkin, escura, nublada, com uma esperança tão pequenina como um grão de mostarda! Mas esta sementinha que vivia ainda nele casava-se com a pureza dela.
- Amo-a! - disse Birkin, num murmúrio, beijando-a, tremendo de ansiedade, como alguém que houvesse renascido para uma confiança maior do que todos os limites da morte.
Úrsula não sabia o que isso representava para ele, o que significava ao certo aquela frase tão curta. Como uma criança, desejava outras provas, exigia afirmações concretas; tudo a deixava indecisa, queria revelações mais concludentes.
Mas aquela gratidão apaixonada com que ele a recebia na sua alma, a alegria suprema e indiscutível de se sentir vivo e apto a se unir com ela (apesar de tão próximo da morte, tão perto de se extinguir com o resto da sua raça, resvalando para o abismo) eram coisas que a moça não podia compreender. Rupert adorava-a como a velhice adora a juventude; glorificava-se pela razão de que, mercê do seu derradeiro clarão de fé, se convertia também em jovem como ela, e se tornava seu digno companheiro. O casamento trazia-lhe a ressurreição e a vida.
Úrsula não podia adivinhar tudo isso. Exigia que ele fizesse muito caso dela, pretendia ser adorada. Entre os dois havia infinitas distâncias de silêncio. Como lhe falaria, a ela, da imanência da sua beleza, que não residia na forma nem no peso nem na cor, mas em qualquer coisa mais, para sua estranha luz dourada?! E como saberia ele próprio em que consistia aos seus olhos, a graça daquela mulher? Dizia: "O teu nariz e belo, o teu queixo é adorável", mas estas frases soavam falso e ela ficava decepcionada, ressentida. Mesmo quando Birkin, balbuciando palavras sinceras, lhe dizia "meu amor, meu amor, ainda isso não era inteira realidade. Existia algo para além do amor, a satisfação de se ultrapassar a si mesmo, de transcender os limites da vida humana. Como podia Rupert proferir o pronome "eu", quando, nele, se revelava um ser novo e desconhecido, que já não tinha nada da sua pessoa? Esse eu , velha expressão decrépita, era uma fórmula sem sentido.
Nessa felicidade superior e tão diversa, paz que se sobrepunha a todas as coisas, não havia já nem "eu" nem "você", mas sim uma terceira e incompreensível maravilha, maravilha que insistia em existir, não como indivíduo, mas com a reunião, dele e dela, num só e único ente, unidade paradisíaca nascida daquela dualidade. Quem poderá dizer "amo-te" depois de haver cessado de existir e haver cessado a pessoa a quem a frase e dirigida? Ambos se sentiam elevados e transpostos a uma nova individualidade onde tudo era silêncio, pois nada tinham que responder, tudo era único e perfeito. As palavras são trocadas entre dois seres destacados um do outro; mas, numa unidade absoluta, reina apenas o silêncio da bem-aventurança.
Casaram-se no dia seguinte, perante a lei; Úrsula, seguindo o conselho do marido, escreveu à mãe e ao pai. A primeira respondeu-lhe, o segundo, não.
Não voltou mais à escola. Ficou vivendo no moinho, nos aposentos de Birkin e acompanhou-o por toda a parte. Não mantinha contato com mais ninguém, além de Gudrun e Gerald. Tudo para ela era estranho e maravilhoso, como se a aurora acabasse de raiar.
Certa vez, Gerald conversava com ela no escritório confortável da casa. Rupert ainda não tinha regressado.
- Sente-se feliz? - perguntou-lhe Gerald, sorridente.
- Muito! - respondeu Úrsula, procurando, contudo, não demonstrar toda a sua alegria.
- Nota-se.
- Verdade? - perguntou ela, surpresa.
Gerald mirou-a com risonha expressão comunicativa.
- Sem a menor dúvida...
Ela estava satisfeita. Refletiu uns instantes.
- Dá para perceber se Rupert é tão feliz como eu?
Gerald baixou os olhos.
- Decerto - replicou.
- Com certeza?
- Com certeza.
Gerald calou-se, como se houvesse falado de uma coisa sobre a qual devia ter feito silêncio. Parecia entristecido.
Úrsula era muito sensível. Formulou-lhe a pergunta que ele desejava:
- Por que motivo não se sente feliz como nós? Podia estar também...
Gerald não respondeu logo. Depois, perguntou:
- Com a Gudrun?
- Sim - exclamou ela, de olhos brilhantes. Havia naquele "sim" algo de forçado, exagerado.
- Acha que sua irmã me aceitará e que seríamos felizes os dois?
- Estou convencida disso.
Encarava-o satisfeita, embora, no fundo da sua alma, percebesse que tudo aquilo não era natural.
- Fico contente só de pensar nessa ideia!
Gerald sorriu.
- Por que fica tão contente?
- Por causa dela. Estou certa de que você seria... de que você é o marido que lhe convém.
- E será ela da mesma opinião?
- É - respondeu prontamente.
Depois, tendo meditado um momento, perguntou-lhe um tanto contrafeita:
- Gudrun não é assim tão simples, não acha? Ninguém a conhecerá em cinco minutos; não é como eu. - Disse isto e riu, com o seu rosto franco, aberto, cheio de vida.
- Parece que ela não é muito parecida com você - disse Gerald.
Úrsula franziu a testa.
- Assemelha-se em muitas coisas. Mas nunca sei como reagirá em qualquer assunto fora da rotina.
- Ah! - fez Gerald. Calou-se por uns segundos. Depois, tímida e cautelosamente, declarou: - Tencionava convidá-la a ir passear comigo, pelo Natal...
- Ir com você? Por quanto tempo?
- Tanto quanto ela quisesse - respondeu ele de forma um tanto suplicante.
Houve um silêncio.
- É natural - recomeçou Úrsula - que ela deseje casar-se primeiro. Procure saber.
- Sim, vou ver... Mas, caso ela não aceite o casamento, acha que iria comigo ao estrangeiro por uns dias... por quinze dias?
- Acho, sim. Por que não pergunta a ela?
- Poderíamos ir juntos?
- Todos? - A face de Úrsula resplandeceu de novo. - Seria ótimo!
- Acho que seria bem divertido.
- E durante a viagem você ficaria sabendo...
- O quê?
- Das coisas... Creio que é preferível passar a lua de mel antes do casamento. Hein?
Riu-se ela mesma daquela ideia espirituosa.
Gerald também riu.
- Em certos casos - volveu ele. - E talvez seja o meu.
- Realmente? - E, a seguir, como se duvidasse: - Sim, é possível que tenha razão. Devemos fazer o que nos for mais agradável.
Birkin chegou mais tarde, e Úrsula descreveu-lhe a conversa que tivera com Gerald.
- Gudrun! - exclamou Birkin. - Nasceu para ter um amante, como Gerald para ter uma. Amant en titre. Se as mulheres, como se diz, devem ser ou amantes ou esposas, Gudrun pertence à primeira categoria.
- E todos os homens amantes ou maridos - acrescentou Úrsula. - E por que não as duas hipóteses?
- Uma exclui a outra - disse ele, divertido.
- Então quero um amante.
- Não, você não quer.
- Quero - gemeu ela.
Rupert beijou-a e começou a rir.
Dois dias depois, Úrsula foi a Beldover buscar o que lhe pertencia. A família já se mudara. Gudrun ficara morando em Willey Green.
Depois de sair de casa, Úrsula não tornara a encontrar-se com os pais. A ideia de uma ruptura afligia-a, embora de nada servisse a reconciliação. Para o bem ou para o mal não deveria procurá-los. Como seus objetos tivessem ficado guardados, naquela tarde ela e Gudrun combinaram ir buscá-los.
Era uma tarde de inverno; quando chegaram, o céu mostrava-se vermelho. As janelas da casa estavam escuras e sem cortinas aquilo parecia desolador. Ao entrarem no vestíbulo vazio e pouco convidativo, sentiram um arrepio que as enregelou.
- Não me atreveria a vir aqui sozinha - disse a mais velha. - É impressionante.
- Úrsula! - exclamou Gudrun. - É curioso! Como se concebe que vivêssemos nesse lugar sem perceber a sua desolação? Como pude estar nessa casa sem ter morrido de terror? Isso deve acontecer a muitas pessoas, não?
Entraram na vasta sala de jantar. Era um compartimento espaçoso, mas, agora, uma simples cela lhes pareceria mais agradável. As largas janelas, rasgadas, estavam nuas, o chão fora despojado dos tapetes, e uma orla de encerado escuro contornava aquele vazio, fazendo sobressair a parte clara no meio do assoalho. O papel das paredes, desbotado, indicava, em manchas mais escuras, o lugar de onde haviam retirado os móveis e desprendido os quadros. Esses tabiques áridos e delgados, de aspecto tão frágil, aquela madeira barata do pavimento, descorada e com o rebordo escurecido artificialmente, exerciam no espírito delas uma ação depressiva. Havia em tudo a ideia de nulidade, de falta de substância, principalmente aquele papel na fragilidade das paredes. Onde se encontravam, afinal: na terra, ou suspensas em uma caixa de papelão? Na lareira viam-se ainda cinzas de coisas consumidas pelo fogo.
- Imaginar que passamos aqui a nossa vida! - murmurou Úrsula.
- É verdade - concordou Gudrun. - Que tristeza! Com que nos devemos parecer, se nos assemelhamos a este invólucro?
- Tudo isto é detestável! - confirmou Úrsula.
No fogão, reconheceu as capas meio queimadas do Vogue - figurinos semidestruídos, de senhoras em traje de baile.
Foram até a sala de visitas, outro lugar onde se notava a sensação de vazio: nem peso nem substância, apenas a intolerável impressão do nada encerrado entre quatro paredes forradas de papel. A cozinha parecia mais concreta devido aos tijolos vermelhos do chão e à existência do forno; contudo, sentia-se frio e experimentava-se horror.
Subiram depois a escada sem passadeira. Cada degrau que pisavam ecoava-lhes no coração. Seguiram pelo corredor desguarnecido. A bagagem de Úrsula estava encostada à parede do quarto dela; era uma mala, um cesto de costura, livros, agasalhos, uma caixa de chapéus; tudo isso, na tristeza geral do crepúsculo, tinha aspecto desolador.
- Espetáculo muito alegre... - observou Úrsula, contemplando suas coisas ali abandonadas.
- Muito... - concordou Gudrun.
Puseram mãos ao trabalho e transportaram tudo para a porta da rua. Fizeram várias viagens, e sempre o eco dos passos lhes ressoou no meio daquele vazio. Toda a casa parecia repetir os mínimos sons, e a sua vibração, repercutindo pelos quartos despidos, chegava a ser enervante. Da última vez em que chegaram à porta, vinham tão apressadas como se se tratasse de uma fuga.
Além disso, o tempo arrefecera. Esperavam Birkin que devia chegar com o automóvel. Tornaram a entrar, pois, e foram até o quarto dos pais, cujas janelas davam para a estrada e de onde se via, através dos campos, o poente sombrio, rubro e negro, já sem luz.
Sentaram-se, à espera, nos parapeitos das janelas, e ornaram para o aposento. Sem mobília, afigurava-se-lhes de uma exiguidade desconcertante.
- Realmente - disse a mais velha - este quarto não podia ser venerável...
Gudrun percorreu-o lentamente com o olhar.
- Impossível! - retorquiu.
Quando penso nessas duas vidas, do pai e da mãe, no seu amor e casamento, e em nós, os filhos, na nossa educação. Você gostaria, Prune, de ter uma vida assim?
- Não, Úrsula.
- Tudo isso me aparece como um vácuo; a vida dos pais foi destituída de significação. De fato, se não se houvessem encontrado nem casado, nem vivido juntos, que falta poderiam ter feito? Nenhuma.
- Decerto. Mas não podemos afirmar isso - disse Gudrun.
- Pois se eu pressentisse que a minha vida iria ser assim, fugiria - declarou Úrsula, agarrando o braço da irmã.
Gudrun ficou silenciosa por momentos.
- Na realidade - disse ela por fim - não se pode considerar friamente a vida quotidiana. Com você, Úrsula, o caso é diferente. Você estará sempre à margem desses inconvenientes casada com Birkin. É um caso especial. Mas, com outro homem qualquer, que tenha a sua existência agarrada à terra, o casamento é impossível. Há milhares de mulheres, com certeza, que não desejam outra coisa, que não concebem a vida de outra maneira. Só de pensar nisso eu sinto arrepios. Devemos ser livres, sobretudo livres! Arrisquemo-nos a perder tudo, mas que se salve a independência, senão seremos apenas a senhora que mora em Pinchbeck Street n° 7, ou em Somerset Drive, ou em Shortlands. Não há homem, por melhor que seja, que torne tal coisa aceitável. Para o casamento é necessário possuir liberdade de movimentos, ou então nada feito. Seja ele um camarada, um Glüksritter. Homens com posição social, isso é que não! Isso nunca!
- Que linda palavra é Glüksritter! Cavalheiro de indústria, homem que vive de expedientes - nota da tradutora) - exclamou Úrsula. - Melhor do que aventureiro.
- Não é? Seria capaz de arrostar o mundo ao lado de um deles. Mas ter lar, família... Pense, Úrsula, no que isso significa!
- Bem sei, já tivemos e ficamos saturadas.
- Bastante.
- Essa casinha parda, nas bandas do ocidente... Verso de um poema de D. E. Wilmont - nota da tradutora) - citou Úrsula, com ironia.
- Não soa também pardamente? - perguntou Gudrun horrorizada.
Veio interrompê-las o barulho do automóvel de Birkin. Úrsula admirou-sé de se ver tão longe, de súbito, daquela ideia de casinhas pardas no ocidente.
Ouviram os passos do homem no vestíbulo.
- Olá! - chamou ele; a voz ecoou por toda a casa. Úrsula sorriu; Rupert também devia estar com medo daquela casa deserta...
- Estamos aqui! - respondeu ela, do andar de cima. Ouviram então seus passos apressados na escada.
- Esta casa é assombrada? - perguntou Rupert.
- Não, ela não tem fantasmas, porque também não tem personalidade - explicou Gudrun. - Só um lugar com personalidade é que pode possuir espíritos.
- Também sou dessa opinião. Choraram ambas sobre o passado?
- Sim - respondeu Gudrun. Úrsula riu e declarou:
- Não chorávamos pelo fato de ele haver desaparecido, mas sim porque existiu.
- Ah! - fez Birkin, mais tranquilo.
Sentou-se também com elas. Havia na pessoa daquele homem, pensou Úrsula, algo de repousante e de muito vivo. Até fazia desaparecer a sensação triste daquele lugar tão mesquinho.
- Gudrun estava dizendo que não concebe a ideia de se casar e se instalar em um lar... - insinuou Úrsula, intencionalmente. Perceberam logo que Gerald estava em jogo, e, por momentos, guardaram silêncio.
- Está bem - começou ele - se você, de antemão, está assim tão bem informada, é sinal de que se pode salvar...
- Não tenha dúvida - volveu ela.
- Por que será que todas as mulheres consideram que a finalidade da vida é ter um maridinho e uma casa para os lados do ocidente? Será isto o bem supremo?
- Il faut avoir le respect de ses bêtises - observou Birkin.
- Mas não precisamos repetir a Bêtise antes de a ter cometido - acudiu Úrsula, sorridente.
- E as bêtises du papa?
- Et de la maman - acrescentou Gudrun com ar de mofa.
- Et des voisins - É preciso respeitar essas besteiras. / E as besteiras do papai? E da mamãe / E dos vizinhos - nota da tradutora)
- disse ainda Úrsula.
Desataram todos a rir, e levantaram-se. Começava a escurecer. Transportaram a bagagem para o carro. Gudrun trancou o portão da casa vazia. Birkin acendera os faróis do carro. Tudo aquilo dava uma impressão de felicidade, como se estivessem partindo para uma viagem.
- Não se importa de parar em frente aos Cousons? - perguntou Gudrun. - Tenho de deixar a chave lá.
Fizeram uma parada na rua principal. As lojas acabavam de ser iluminadas, e os últimos mineiros regressavam do trabalho, ao longo das calçadas, sombras mal visíveis no enfarruscado que as envolvia, deslizando no ar azulado...
Gudrun sentiu-se contente ao voltar para o carro, depois de sair da loja, e de seguir velozmente pelo declive da colina, naquela treva quase palpável, em companhia de Úrsula e de Birkin. A vida, naquele instante, pareceu-lhe uma aventura. De repente, teve inveja da irmã. A existência lhe decorria fácil, como através de uma porta aberta, tão descuidada como se não somente este mundo, mas ainda o passado e o futuro não fossem nada para ela. Se pudesse ser assim, julgar-se-ia perfeita.
Porque afinal - exceto em ocasiões de excitação - Gudrun sentia que lhe faltava qualquer coisa. Não se considerada segura. Mas compreendia que, por fim, ao embate do amor forte e violento de Gerald, a sua vida começava a definir-se. Comparando-se com a irmã, vinha-lhe, contudo à alma certa insatisfação, certo ciúme. Não estava satisfeita, e nunca o estaria.
Que lhe faltava? O casamento, a maravilhosa estabilidade do casamento. Precisava dele, por mais que o desdenhasse. Tinha mentido. A velha concepção do matrimônio possuía ainda valor: a família, o lar... Entretanto, a estas palavras, não pôde deixar de franzir o cenho. Lembrou-se de Gerald, de Shortlands, do casamento, da vida doméstica... Ah, pois bem; ficaria assim mesmo. O rapaz representava muito para Gudrun, mas... Talvez o feitio dela não se coadunasse com o matrimônio. Vivia à margem da vida, era uma daquelas criaturas sem raízes em parte alguma. Não, não, não devia ser assim. Evocou, de súbito, um quarto cor-de-rosa, ela trajada com um lindo vestido de baile, ele muito elegante, de casaca, segurando-a nos braços, beijando-a à luz da lareira... Eis um belo quadro, que a artista intitulava de "Interior". Muito próprio para enviar à Academia Real...
- Venha tomar chá conosco - disse-lhe Úrsula, ao aproximar-se de Willey Green.
- Obrigada, mas não posso - respondeu Gudrun. Gostaria, no íntimo, de ir com eles. Eles, sim, tinham uma vida verdadeira. Mas uma espécie de perversidade a retinha.
- Vamos, eu gostaria tanto! - insistiu a irmã.
- Lastimo. Ser-me-ia muito agradável. Mas é impossível, acreditem...
Saltou do carro depressa, muito trêmula.
- Que pena! - lamentou Úrsula.
- Não, não posso mesmo. - As suas palavras, que denotavam emoção, vinham já do escuro.
- Quer que a acompanhe? - perguntou Birkin.
- Não é preciso, obrigada. Boa noite!
- Boa noite - disseram os outros dois.
- Venha quando quiser, alegra-nos bastante... - ainda gritou Birkin.
- Muito obrigada - respondeu Gudrun em tom estranho, agudo e doloroso, que impressionou o cunhado.
Gudrun abriu o portão da residência e o carro continuou a marcha. Todavia, deteve-se ela ate que desaparecesse, vendo o automóvel sumir na distância E só então prosseguiu pela alameda que conduzia à casa, sentindo o coração mergulhado numa incompreensível amargura.
Havia na sala um relógio de caixa em cujo mostrador uma face redonda, pintada de cores vivas, lançava ridículas piscadelas de olho a cada oscilação do pêndulo. Continuamente aquele rosto rubicundo e absurdo mirava de soslaio, de uma forma indiscreta. Gudrun ficou uns minutos a olhar para ele ate que uma inexplicável aversão se apoderou dela e a fez soltar uma gargalhada intempestiva. A cara do relógio continuou a oscilar, olhando de esguelha para um e outro lado, alternadamente Ah, como se sentia infeliz! Sim, infeliz no meio da sua felicidade aparente. Relanceou a vista pela mesa. Ali havia doce de groselhas e o eterno licor feito em casa. O doce era bom e nem sempre Gudrun o tinha a seu dispor...
Durante toda a noite ela desejou ir ate o moinho, mas resistiu, friamente, indo ate lá apenas na tarde do dia seguinte. Alegrou-se por encontrar a irmã sozinha. O ambiente era agradável, de grande intimidade. As duas tagarelaram incessantemente, deliciadas ambas. "Não se sente felicíssima em sua casa?, perguntava Gudrun a Úrsula, lançando ao mesmo tempo olhadelas furtivas ao espelho. Invejava quase com ressentimento a atmosfera de felicidade pura e definitiva que rodeava Úrsula e Rupert Birkin.
- Este quarto é tão simpático, tão bem arrumado! - disse ela em voz alta. - E o tapete, tão habilmente tecido, tem uma cor bonita... cor de luz suave...
Tudo lhe parecia admirável.
- Úrsula, - continuou pouco depois numa voz que tentava mostrar indiferença sabe que Gerald Crich me propôs uma viagem pelo Natal?
- Sei. Ele falou com Rupert a esse respeito.
As faces de Gudrun cobriram-se de forte rubor. Ficou uns momentos calada, como surpreendida, sem saber o que dizer.
- Não lhe parece um atrevimento da parte dele?
Úrsula riu-se.
- Não, acho que foi uma ideia simpática.
Gudrun não respondeu. Era evidente que, embora envergonhada com o fato de Gerald ter falado nisso a Birkin, a ideia, contudo, não lhe era tão desagradável.
- Gerald tem uma simplicidade atraente - insinuou Úrsula - embora perigosa, às vezes. Mas, enfim ele é tão simpático!
Gudrun ainda se conservou mais uns segundos em silencio. Precisava refazer-se da indignação que lhe provocavam aquelas indiscrições de Gerald.
- E qual foi a opinião de Rupert? - perguntou, por fim.
- Disse que seria uma coisa esplêndida - respondeu a irmã.
Gudrun olhou mais uma vez para o chão, muito calada.
- Não pensa assim? - prosseguiu Úrsula. Nunca sabia ao certo quais eram os preconceitos de que a outra se rodeava.
Gudrun levantou o rosto e respondeu, sem fitar a irmã:
- Acho que seria esplêndido, como vocês dizem, mas isso não impede que eu ache indiscreto da parte de Gerald... falar de semelhantes coisas a Rupert, que, afinal de contas... compreende o que quero dizer... é um homem, e é como dois homens estivessem combinando um passeio com qualquer... - Empregara uma expressão francesa para designar o que ela queria dizer. - Oh, Úrsula, é imperdoável!
Os olhos faiscavam-lhe, o rosto estava brilhante de indignação. Úrsula mirou-a assustada, principalmente porque ao usar a expressão grosseira, a irmã parecia ter um ar ordinário, confirmando a frase que atribuíra à opinião dos dois homens. Mas não fez nenhum comentário.
- Não e não! - gritou-lhe Úrsula, aborrecida. - Parece-me que Rupert e Gerald, como são muito amigos, conversam naturalmente, com a maior franqueza, como irmãos...
Gudrun ruborizou-se ainda mais. Não tolerava a ideia de que Gerald falasse sobre ela, nem mesmo com Birkin.
- Você acha que, mesmo que fossem irmãos, tinham o direito de fazer tais confidências? - perguntou, furiosa.
- Penso - replicou Úrsula. Não dizem nada que seja comprometedor. Aliás, o que mais admiro em Gerald é a sua correção, a sua honestidade. Você bem sabe como isso é importante. A maior parte dos homens é desleal e covarde!
Gudrun, porém, continuava calada e ressentida. Preferia que se fizesse absoluto segredo em tudo que lhe dizia respeito.
- Vamos, sim? - insistiu Úrsula. - Será uma viagem deliciosa. Gerald é mais simpático do que eu imaginava. Impõe-se à nossa estima. E é sincero Gudrun, verdadeiramente sincero.
Esta mantinha-se, apesar de tudo, reservada. Estava quase feia. Falou, afinal:
- Sabe aonde é que ele quer ir?
- Sei. Ao Tirol, por onde costumava viajar quando estava na Alemanha. É uma região adorável, onde os estudantes praticam esportes de inverno.
No espírito de Gudrun bailava uma ideia tremendamente irritante: "Vocês estão a par de tudo?".
- Sim, - disse em voz alta - a cerca de quarenta quilômetros de Innsbruck...
- Não sei ao certo, mas o projeto é magnífico, não concorda? Lá no alto, sobre a neve...
- Esplêndido! - exclamou a outra com sarcasmo.
Úrsula ficou aborrecida.
- É claro que Gerald não falou a Rupert em termos que dessem a ideia de que iria acompanhado por uma mulherzinha qualquer...
- Ora, ora - volveu Gudrun. - Ele costuma fazer viagens desse tipo...
- Como sabe?
- Uma pessoa de Chelsea me contou...
Úrsula guardou silêncio.
- Bem, - disse pouco depois, com um sorriso equívoco - espero que ele se tenha divertido, pelo menos.
Ao ouvir tais palavras, Gudrun ficou ainda mais aborrecida.


Capítulo XXVIII
No "Pompadour"
Aproximava-se o Natal, e os quatro já estavam prontos para partir. Birkin e Úrsula andavam ocupados arrumando suas coisas, de maneira a poderem despachar as malas. Gudrun mostrava-se bastante excitada. Por seu gosto levantaria voo.
Ela e Gerald foram os primeiros a concluir os preparativos da viagem, de maneira que seguiram para Innsbruck (via Londres e Paris) onde se encontrariam com Úrsula e Birkin. Ficaram uma noite em Londres; foram ao music-hall e em seguida ao Café Pompadour.
Ela detestava esse lugar, embora aí tivesse ido muitas vezes; os artistas que o frequentavam também não eram da sua simpatia. Abominava em especial aquela atmosfera viciosa, de mesquinhos ciúmes e de arte corriqueira. Mas, sempre que passava pela capital, nunca deixava de entrar ali. Era como se tivesse obrigação de voltar ao remoinho central da pequenez e da corrupção, nem que fosse para uma vista de olhos.
Sentou-se, com Gerald, e tomou um refresco, lançando olhares sóbrios e indignados aos vários grupos que se distribuíam pelas mesas. Não queria reconhecer ninguém, mas, de vez em quando, um rapaz a cumprimentava, com uma inclinação de cabeça, com certa familiaridade. Gudrun não correspondia, mas sentiu prazer em estar ali, de faces afogueadas e olhar hostil, observando-os objetivamente, a distância, como se fossem animais em uma jaula, animais simiescos e degradados. Deus do Céu, que gente ignóbil! O sangue corria-lhe nas veias, sombrio, tanta era a raiva e desprezo que sentia. Contudo, era necessário ficar a contemplá-los, a olhar para eles... Um ou dois vieram falar com ela. Sentia os olhares que a buscavam: os homens por cima dos ombros, as mulheres por baixo do chapéu.
Todos estavam ali, Carlyon no seu cantinho com os discípulos e uma moça; Halliday, Libidnikov e a Bichana também haviam comparecido. Gudrun observou Gerald: notou que o olhar dele se fixara um instante em Halliday e depois nos que o acompanhavam. Estes estavam atentos e saudaram-no. Gerald retribuiu. Todos riram disfarçadamente e ele tornou a mirá-los com mais atenção. O grupo incitava Bichana a fazer qualquer coisa.
Esta acabou por se levantar. Tinha um vestido estranho, de seda escura, salpicada, gotejada de diferentes cores, formando uma curiosa mistura. Parecia muito delgada com olhos talvez mais ardentes. Mas não estava mudada. Gerald viu-a aproximar-se e continuou a olhar para ela com a mesma fixidez. A jovem estendeu-lhe a mão fina e morena.
- Como está? - perguntou-lhe.
Gerald apertou-lhe a mão, sem se erguer da cadeira, e deixou-a assim de pé junto dele, encostada à mesa. Quanto a Gudrun, a Bichana, que a conhecia apenas de vista, limitou-se a fazer um cumprimento com a cabeça.
- Estou muito bem - respondeu Gerald. - E você?
- Eu vou bem. E a respeito de Rupert? - Continuava a não pronunciar alguns rr.
- Rupert? Vai muito bem, igualmente.
- Não é isso que quero saber. Falo do casamento dele.
- Ah, sim, casou.
Os olhos de Bichana cintilaram com ardor. É verdade, então? Há quanto tempo?
- Uma semana ou duas.
_ É extraordinário! Não escreveu a ninguém.
- Não?
- Não é um tanto esquisito?
Estas últimas palavras foram pronunciadas em tom de desafio, e, dava para notar, endereçadas a Gudrun.
- Acho que ele não tinha obrigação de comunicar - tornou Gerald.
- Por quê?
Fez-se um silêncio. No rosto belo e pequenino daquela depravada criatura havia um sorriso irônico e persistente, que conseguia enfeá-la. Continuou ao lado de Gerald.
_ Demora-se em Londres? - perguntou ela.
- Só esta noite.
- Ah, sim? Venha falar com o Julius.
- Agora não posso.
- Está bem. Vou dizer isso a ele. - Acrescentou depois, com acento diabólico: - Você está ótimo.
- É verdade. - Gerald mostrava-se perfeitamente calmo e à vontade. Via-se no olhar dele uma certa cintilação zombeteira.
- Não se tem aborrecido? - perguntou ainda a mulher. Era uma seta desferida diretamente a Gudrun. A frase fora dita em tom de indiferença tranquila, sem cerimônia.
_ Não - respondeu ele, também com naturalidade.
- É pena não querer vir conosco. Você é pouco fiel a seus amigos...
- Realmente... - confirmou o rapaz.
Deu boa noite a ambos e voltou lentamente para o seu lugar. Gudrun ficou vendo o estranho andar da moça, rígido, mas sacudido. Ouviram-na dizer distintamente:
- Não pode vir. Já está comprometido. - Seguiu-se uma gargalhada geral, e muitas observações picantes em voz baixa.
- É sua amiga? - perguntou Gudrun, observando atentamente o companheiro.
- Fiquei uma vez na casa de Halliday, com Birkin - respondeu, trocando um olhar com o dela, que era calmo e repousado. Gudrun sabia que Bichana fora amante dele e Gerald não ignorava essa circunstância.
Gudrun chamou então o garçom, depois de relancear a sala com os olhos. Queria tomar um chocolate gelado, de uma receita complicadíssima. A ideia divertiu o companheiro, que ficou a imaginar o que iria acontecer.
O grupo de Halliday já estava ébrio e perdera a compostura. Falavam em Birkin em voz alta, ridicularizando-o sob vários aspectos, principalmente o do casamento.
- Não me obriguem a pensar nesse homem! - dizia Halliday, em tom agudo. - Tenho náuseas ao relembrar como implorava: "Senhor, que devo fazer para me salvar?"
E teve uma risada de bêbado.
- Lembra-se - interveio o russo - das cartas que enviava? "O desejo é coisa sagrada..."
- Se me lembro! Isso é extraordinário! Espere, tenho uma no bolso.
Tirou do bolso vários papéis.
- Tenho certeza de que a guardei - repetiu. - Ah! Aqui está!
Gerald e Gudrun estavam atraídos por aquela cena.
- Sim, senhores... Isso mesmo... Magnífico! Não me façam rir que fico com soluços. - E todos desataram a rir.
- Que é que ele diz nessa carta? - perguntou Bichana, debruçando-se com os cabelos escuros e leves tombados sobre os olhos. Havia qualquer coisa de esquisitamente indecoroso, obsceno mesmo, naquela cabeça pequenina, sombria e alongada.
- Esperem, esperem aí! Não, não a mostro. Vou ler em voz alta. Vou ler trechos seletos... Vocês acham que se eu beber água me passam os soluços? Ora, parece-me que é inútil..
- É a carta que se refere à luz e à sombra, ao fluxo da corrupção? - indagou Maxim na sua maneira de ler rápida e concisa.
- Acho que sim - respondeu a moça.
- Ah, é essa? Tinha-me esquecido. Hic! É, sim, é! - declarou Halliday, desdobrando-a. - Hic! Sim, senhores, esplêndida! Uma das melhores. - Começou a ler, com voz cantante, lenta, destacada, como um padre a soletrar a Bíblia: "Há uma fase particular em todas as espécies, em que o desejo de destruição se sobrepõe a todos os outros. No homem essa vontade transforma-se por fim na ânsia de dar cabo de si próprio..." Hic! - Aqui fez uma pausa e olhou para o auditório.
- Oxalá que ele não desista de se destruir a si mesmo - atalhou o russo, com a sua pronúncia cortante. Halliday fungou de gozo e refestelou-se na cadeira.
- Não é grande coisa destruir a sua pessoa... - comentou a Bichana. - Ele é tão magro... Já deve estar nas últimas.
- Não gostaram? É lindo. Faz-me bem ler isto, até me cura dos soluços. Deixem-me continuar. - E Halliday prosseguiu: "Trata-se do desejo de nos reduzirmos em nós próprios, de regressar às origens, voltar ao fluxo de corrupção, às condições rudimentares da existência". Isto é admirável - exclamou, interrompendo a leitura. - Deixa a perder de vista o Velho Testamento.
- Fluxo de corrupção, sim, senhores - disse o russo. - Lembro-me da frase.
- Fala sempre de corrupções - acudiu Bichana. - Devia estar muito corrompido, para que isso lhe subisse à cabeça...
- Exatamente! - asseverou o russo.
- Deixem-me continuar. Este pedaço agora é de se tirar o chapéu. Ouçam: "E nesta imensa regressão, neste reconduzir-se do corpo vivo ao meio onde foi criado, descobrimos a verdade, e, para além desse conhecimento, o êxtase fosforescente da mais pura sensação". Oh! - exclamou Halliday - estas expressões parecem-me de um absurdo genial! Não acham que é do melhor que há? "E - retomando a carta - se você, Julius, pretender aquele êxtase juntamente com a Bichana, devem ambos insistir até que o obtenham. Todavia ele existirá em qualquer parte de vocês, esse desejo vivo da criação positiva, relacionado com a derradeira fé, quando todos os processos de desagregação ativa, com todas as suas flores de lama, forem ultrapassados e mais ou menos abolidos." Gostaria de saber - disse Halliday em outro tom - o que são essas flores de lama. Você será uma delas, Bichana?
- Obrigada. E o que é você?
- Eu também, com certeza, em vista desta carta. Somos todos flores de lama. Fleurs du mal! Birkin advertindo-nos do mal... do inferno... pregando contra o Pompadour... Lindo! Hic!
- Vá, continue - pediu Maxim. - Que é que vem mais? É, na verdade, interessantíssimo.
- Acho que é preciso muito descaramento para escrever coisas assim - comentou Bichana.
- Também acho - tornou o russo. - Megalomania, na certa; uma forma de loucura religiosa. Julga-se salvador da humanidade. Continue.
- "Sem dúvida - leu Halliday - sem dúvida a bondade e a graça têm-me acompanhado toda a minha vida." - Interrompeu-se e desatou a rir. Depois recomeçou, com voz sacerdotal: "Sem dúvida acabará este desejo que nós temos de nos separar constantemente, esta paixão de fracionar todas as coisas e nós mesmos, de nos reduzir, agindo só para nos destruir e empregando o sexo como agente dessa redução; apeando os dois grandes elementos, masculino e feminino, da sua unidade altamente complexa; diminuindo as ideias estabelecidas e regressando ao estado selvagem quanto às nossas sensações; procurando sempre perder-nos numa suprema e sinistra sensação, ininteligente e indefinida; queimando-nos num fogo aniquilador que nos persegue com a esperança de nos consumir inteiramente..."
- Vou-me embora - disse Gudrun a Gerald, fazendo sinal ao garçom.
Tinha os olhos brilhantes e as faces escaldantes. A leitura da carta de Birkin, em voz alta, cadenciada, frase por frase, de forma nítida e ressonante, tivera o estranho efeito de lhe fazer subir o sangue à cabeça, quase enlouquecendo-a.
Levantou-se, enquanto Gerald pagava a despesa, e dirigiu-se à mesa de Halliday. Todos a encararam, espantados.
- Desculpe-me - disse ela - mas essa carta é verdadeira?
- Sim, senhora - respondeu Julius. - Verdadeira.
- Posso ver?
O outro sorriu de modo estúpido e entregou a carta, como que hipnotizado.
- Obrigada - disse ela.
Deu meia volta e dirigiu-se para a porta do café com a carta na mão, passando, com andar vagaroso, através das mesas da sala brilhantemente iluminada. Decorreram alguns segundos antes que alguém se compenetrasse do que havia acontecido.
Do grupo partiram gritos, exclamações, vozerio, enquanto Gudrun se afastava, elegantemente vestida de verde-escuro e prateado, com chapéu também verde, mais claro, brilhante, de abas cor do vestido, debruadas de prata; o casaco também verde, cintilante, com gola alta de peles cinzentas e punhos também de peles. A orla da saia mostrava listras prateadas sobre veludo negro e as meias eram de um cinzento claro. Com movimentos lentos, atingiu a porta, indiferente a tudo o mais. O porteiro abriu-a obsequiosamente, e, a um sinal dela, correu para a calçada e chamou um táxi. Logo os dois faróis do carro se voltaram, faiscando como olhos.
Gerald seguira-a boquiaberto, no meio dos apupos, sem perceber a razão de tudo aquilo. Ainda ouviu a voz da Bichana, que dizia:
- Corra e traga-a de volta. Nunca vi uma coisa destas veja se consegue apanhá-la! Ela tem que devolver a carta!
Gudrun estava parada diante do carro, cuja porta o homem do café havia escancarado.
- Vamos para o hotel? - perguntou ela, apressada, quando Gerald apareceu.
- Se você quiser...
- Está bem. - Depois, dirigindo-se ao motorista: - E o Wagestaff, na Barton Street.
O chofer colocou o boné e desceu a bandeirinha.
Gudrun subiu, com ar indiferente de uma senhora elegante e desdenhosa. Contudo, sentia-se agitada, com arrepios de frio.
Gerald entrou também no automóvel.
- Você se esqueceu do rapaz - disse ela, naturalmente, com ligeiro aceno de cabeça para o indicar. Gerald estendeu a mão com um xelim e o outro agradeceu. O carro pôs-se em movimento.
- Que foi aquele barulho? - perguntou Gerald com ar surpreendido.
- Arranquei-lhes a carta de Birkin - respondeu, mostrando um papel amarrotado.
Os olhos dele brilharam de satisfação.
- Magnífico! Que súcia de patifes!
- Tive vontade de matá-los! - exclamou a moça, com ênfase - Cães! Não passam de cães! Tolo foi Rupert em escrever a semelhante gente! Como é que ele foi confiar nessa canalha? Tudo isto é insuportável!
Gerald estava admirado de tanta indignação.
Ela não quis permanecer mais tempo em Londres. No dia seguinte, de manhã, tomaram o trem em Charing Cross. Ao passarem sobre a ponte, descobrindo o rio através das grades de ferro, Gudrun exclamou:
- Sinto que nunca mais poderei tolerar esta cidade infecta. Não concebo a ideia de voltar aqui.


Capítulo XXIX
Continental
Úrsula sentiu-se em estado de irrealidade durante as semanas que precederam a viagem. Parecia ter perdido a personalidade: já não era nada, ou então qualquer coisa que ainda viria a ser... em breve muito em breve! Entretanto vivia na iminência do fato.
Foi visitar os pais. O encontro decorreu seco e melancólico; dir-se-ia antes a verificação da ruptura do que propriamente uma reconciliação. Mantiveram-se uns e outros vagos e indefinidos, aceitando o destino que assim os separava.
Não chegou a convencer-se da realidade senão quando se encontrou a bordo do navio que a conduziu de Dover a Ostende. Estivera em Londres, com o marido, mas como quem vive num sonho; e de Londres até Dover continuara com a mesma impressão. Julgar-se sofrer de sonambulismo.
Mas, agora, e finalmente, sentia que a alma lhe despertava do sono letárgico. Sentada já à popa do navio, ao vento e na escuridão da noite, experimentava o balanço que as ondas transmitiam ao barco; como num país fantástico, brilhavam nas costas da Inglaterra luzinhas perdidas e distantes, que na profundidade das trevas a pouco e pouco se tornavam menores e Úrsula viu-as por fim desaparecer.
- Vamos ate à proa?
Era Birkin que lhe fazia esta proposta, desejando olhar o futuro e não o passado; assim, deixaram os dois de contemplar os tênues reflexos daquele reino quase irreal e já longínquo chama do Inglaterra e afrontaram a noite insondável que se lhes abria à frente.
Dirigiram-se para a outra extremidade do navio, que oscilava docemente. Na completa escuridão que os rodeava, Birkin descobriu um cantinho relativamente abrigado, onde estava enrolado um cabo muito forte. Era o limite dianteiro do barco, junto do espaço negro ainda não transposto. Ali se tornaram a sentar, embrulhados ambos na mesma manta de viagem, unindo-se o mais possível um contra o outro ate sentirem que se haviam fundido numa só e única substância. Estava bastante frio e as trevas pareciam palpáveis, tão densas eram.
Escuro como a noite, quase invisível, avançou pelo convés um homem da tripulação. Daí a pouco puderam ver-lhe a palidez do rosto o outro sentiu a presença de estranhos e deteve-se, indeciso curvando-se sobre eles. Quando o marinheiro já estava muito perto de Úrsula e de Birkin, as faces desmaiadas destes tornaram-se perceptíveis e o homem retirou-se, como um fantasma. Os dois ficaram observando-o desaparecer, silenciosos.
Sentiram-se, então, reentrar no mais profundo negrume da noite. Não havia céu, nem terra, mas só a sombra compacta na qual se diria terem mergulhado como num sono suave e oscilatório ou como germes de vida, pequeninos, perdidos através das sombras insondáveis do infinito.
Haviam-se esquecido de onde estavam, tudo o que eram ou tinham sido, e só possuíam consciência da sua alma e da trajetória que realizavam pelo espaço imenso. A proa do barco fendia as águas, cortando-as com imperceptível rumor, sem ver e sem compreender, apenas ocupada em prosseguir dentro da noite.
Em Úrsula, a sensação do mundo indescortinado, que surgia à sua frente, prevalecia sobre outra qualquer. No meio de tão profunda obscuridade raiava-lhe no peito o fulgor de um paraíso estranho e incompreendido. Seu coração enchia-se das mais belas claridades, douradas como se fossem o mel da sombra, doces como o calor do dia; e essa luz não se espalhava na terra, somente no ignorado éden para onde ela se dirigia, estância deliciosa, em que o encanto de viver era diverso mas que já lhe pertencia infalivelmente. No seu arrebatamento, ergueu a face para Birkin, de súbito, e ele roçou-a com os lábios. Face tão fresca, tão pura, sabendo tanto ao mar, que o beijo foi como uma flor que houvesse nascido sobre a espuma das ondas.
Birkin, porém, não estava a par do êxtase de antecipada felicidade em que a mulher se comprazia. Para ele, o prodígio da viagem quase o derrotava. Caía num abismo de sombras sem fim tal um meteoro que tomba no espaço que separa os mundos. O universo apartava-se em dois, e Rupert mergulhava como uma estrela apagada no sorvedouro indescritível. O que residia mais além não existia ainda para ele. O percurso ocupava-lhe inteiramente o espírito.
Naquele enleio das almas, Úrsula continuava apoiada ao corpo do marido. O rosto de Rupert encostava-se ao cabelo fino e frágil da mulher, e ele aspirava-lhe a fragrância juntamente com o cheiro do mar e da noite profunda. Sentia-se repousado, submisso, ao resvalar assim para o ignoto. Era a primeira vez que saboreava a paz - absoluta e perfeita - dentro do seu ser. Era a viagem derradeira, e esta ultrapassava-lhe decerto a vida.
Ao ouvir barulho no convés, ambos despertaram e se puseram de pé. Estavam tão enregelados e cheios de cãibras pelo ar da noite! E, todavia, tanto para Rupert como para ela, só havia a paz inefável da escuridão e a maravilhosa promessa paradisíaca.
Uma vez de pé, olharam em frente. Na sombra divisavam-se luzes tênues Era outra vez o mundo. Já não existia, para Úrsula, aquele êxtase do coração nem, para ele, a tranquilidade do espírito. Era o mundo de fato, superficial e incrível. Mas não, talvez, o mesmo a que estavam habituados. A beatitude e a paz continuariam na sua alma.
O desembarque noturno foi o mais estranho que se possa imaginar, como se tivessem ido sobre as águas do Estige, na desolação do país subterrâneo. Tudo parecia sinistro, mal iluminado, vasto e sem ar, fugindo debaixo dos pés, triste por todos os cantos. Úrsula distinguiu logo as enormes letras, pálidas e misteriosas, que, rodeadas de sombra, diziam a palavra OSTENDE. Toda a gente se apressava através daquele cinzento sombrio, como insetos desnorteados; os carregadores ofereciam-se, falando um inglês inverossímil; e depois se afastavam com a bagagem pesada, desaparecendo ao longe: a capa desbotada dava-lhes o aspecto de fantasmas. Úrsula detivera-se junto a um comprido balcão, forrado de zinco, com mais uma centena de pessoas de ar espectral. De um lado alongava-se, na sombra, o balcão das malas abertas, enquanto, do outro, funcionários lívidos, de bigodes e boné de pala, revolviam a roupa e escreviam a giz nos invólucros da bagagem.
Enfim, tudo aquilo terminou. Birkin fechou as maletas de mão e ambos partiram, seguidos pelo encarregado da bagagem. Passaram por um largo portão e penetraram outra vez na noite. Ah, a estação da estrada de ferro! Vozes que interpelam, numa agitação sobre-humana, num ambiente acinzentado... Espectros que deslizam na sombra, entre os vagões...
Koln... Berlin... Nos cartazes enormes, ali afixados Úrsula soletrou estes nomes.
- Cá estamos - disse Birkin. A seu lado, viu ela escrito: Elsass... Lothringen... Luxembourg... Metz... Basle.
- É este, para a Basiléia!
O carregador tornou a aparecer.
- À Bale... deuxième classe? Voilà.
Subiu para o vagão. Marido e mulher fizeram o mesmo. Havia já alguns com passageiros, mas a maior parte estava vazia e às escuras. Arrumaram as malas e pagaram ao homem.
- Nous avons encore...? - começou Birkin, consultando o relógio e olhando para o carregador.
- Encore une demi-heure - Para Basiléia... segunda classe? Aí está. / Ainda temos...? Uma meia hora ainda - nota da tradutora).
Com esta resposta, desapareceu com a sua capa azul. Era pouco amável e muito feio.
- Venha - disse Birkin. - Está frio aqui. Vamos comer qualquer coisa.
Havia na estação um bar-restaurante. Lá tomaram um café quente - terrivelmente aguado - e comeram aqueles compridos pães cilíndricos, abertos no meio e com presunto dentro, tão grandes que, para os trincar, Úrsula quase deslocava o queixo. Depois passearam ao longo da composição. Parecia tudo tão estranho, tão extremamente desolado, espécie de mundo subterrâneo, cinzento, muito cinzento, grisalho, sujo, triste, abandonado, inexistente! Horrivelmente sem existência, e cor de cinza.
Finalmente a composição cortou a escuridão noturna. Através das trevas, Úrsula distinguiu os campos rasos, a sombra baixa, úmida e lúgubre do continente. Daí a pouco tiveram um sobressalto Bruges! Mas, de novo, a noite os rodeou, cortada apenas, aqui e ali, por alguma luz das herdades adormecidas, pelo prateado dos choupos e pela brancura das estradas desertas. Úrsula descansava sucumbida, apertando a mão de Birkin; e este, imóvel, pálido como um fantasma, olhava de vez em quando pela janelinha; noutras ocasiões fechava os olhos. Mas, instantes depois, tornava a fixar a vista, sombria como a atmosfera lá fora.
Eis um foco subitamente na treva: a estação de Gand! Alguns vultos sob o alpendre... um sino... e outra vez em movimento através da superfície tenebrosa! Úrsula viu um homem que empunhando a lanterna, saía de um quintal, perto da linha férrea, e atravessava as dependências mergulhadas na escuridão. Lembrou-se ela do Marsh, da sua antiga vida no campo, cheia de intimidade, em Cossethay. Deus do céu, como já ia longe isso tudo, desde a infância - e aonde iria ainda parar?! Durante uma existência parece que atravessamos centenas de anos. Havia lacunas na sua memória, entre esse tempo decorrido nos arredores de Cossethay e na quinta do Marsh e o momento presente em que viajava com Birkin, em pleno desconhecido. Recordava-se da criada Tilly, que lhe dava pão com manteiga polvilhado de açúcar mascavo, na sala de estar, onde o relógio antigo tinha duas rosas pintadas dentro de uma cesta, por cima dos algarismos do mostrador. Essa lacuna era tão grande que se lhe afigurava haver perdido a identidade, e a criança que outrora fora, e que brincava no adro da igreja de Cossethay, era uma criaturinha imaginaria; pelo menos, não seria ela.
Chegaram a Bruxelas. Meia hora para almoçar. Saltaram. O relógio da estação indicava seis horas. Tomaram café e comeram pães com mel na sala deserta do restaurante, fúnebre, suja, espaçosa, melancólica. Úrsula lavou o rosto e as mãos em água quente, penteou o cabelo e isso lhes trouxe algum consolo.
Não tardou muito que voltassem ao vagão e que o comboio reiniciasse a marcha. Despertava uma alvorada lívida. Havia ali mais alguns passageiros: negociantes belgas, de barbas castanhas e fartas e aspecto florescente; falavam sem parar num francês desagradável. Úrsula estava muito fatigada para lhes acompanhar a conversa.
O trem parecia correr do escuro para uma claridade gradualmente mais acentuada ate que, sempre arfante mergulhou em pleno dia. Como aquilo era extenuante! Atenuadas, as árvores foram-se mostrando como sombras. Depois apareceu uma casa branca, com grande nitidez. O que seria agora? Surgiu então uma aldeia, e as habitações desfilaram umas atrás das outras.
Velho mundo esse em que ela viajava assim, sinistro e invernoso! Terras cultivadas, prados, bosques de árvores desnudas, grupos de arbustos, quintas, casas pobres. Nada de novo ali se via.
Úrsula olhou para o marido, que estava pálido, silencioso como uma estátua. Estendeu-lhe a mão, debaixo da manta, e tocou com os seus os dedos dele, suplicante. Birkin respondeu ao contato e enviou-lhe um olhar. Como aqueles olhos eram sombrios, semelhantes à noite e a um mundo do além! Ah, se ele fosse ao menos o mundo, se o mundo fosse ele! Se Rupert pudesse evocar um mundo qualquer, o deles, para eles só!
Os belgas desceram da carruagem, e o comboio seguiu através do Luxemburgo, da Alsácia e Lorena, de Metz. Úrsula, porém, ia como cega, não via mais nada. A alma não descortinava nada fora de si mesma.
Por fim entraram em Basiléia e foram para o hotel. A viagem fora toda feita num êxtase de que ela não conseguia acordar. Na manhã seguinte deram um passeio, antes da partida do trem. Úrsula viu as ruas e o rio e deteve-se na ponte. Mas aquilo nada significava para ela. Fixou na retina algumas lojas, uma delas cheia de quadros, outra com veludos e arminhos. Que queria dizer, porém, tudo isso? Absolutamente, nada!
Úrsula não se sentiu à vontade senão quando embarcaram outra vez. Aí experimentou uma sensação de alívio. Enquanto a máquina esteve em movimento, Úrsula considerou-se satisfeita. Pararam em Zurique, depois deslizaram, por muito tempo, no sopé das montanhas cobertas de neve. Finalmente, aproximaram-se do termo da viagem. Era bem o outro universo que desejavam.
Innsbruck apresentava-se como uma autêntica maravilha; entardecia, e tudo estava branco. Um trenó descoberto levou-os sobre a neve, e saborearam o contraste com o trem, que estava quente e sufocante. O hotel, com a luz dourada que saía pelo pórtico, pareceu-lhes bastante acolhedor.
Riram alegremente quando se encontraram no vestíbulo. Havia grande azáfama e a casa devia estar cheia.
- Sabe se o senhor e a senhora Crich, ingleses, teriam chegado vindos de Paris? - perguntou Birkin em alemão.
O porteiro refletiu um momento e ia responder quando Úrsula descobriu Gudrun, que descia a escada. Trazia um casaco escuro, de fazenda lustrosa, guarnecido de peles.
- Gudrun! Gudrun! - gritou ela, acenando do patamar. A outra olhou por cima do corrimão e abandonou seus ares indolentes e desconfiados. Os olhos brilharam.
- Úrsula! E recomeçou a descer, enquanto Úrsula subia os primeiros degraus. Encontraram-se e beijaram-se com risos e alegres exclamações inarticuladas.
- Mas nós - declarou Gudrun, penalizada - julgávamos que vocês só chegariam amanhã! Tencionava ir à estação.
- Mas resolvemos vir hoje! Como isto é agradável!
- Muito! - confirmou Gudrun. - Gerald acaba de sair para fazer uma compra. Úrsula, você deve estar cansadíssima!
- Nem tanto. Mas estou bastante empoeirada, não?
- Pelo contrário, você está fresca como uma flor. Gosto muito do seu chapéu de peles. - Examinou a irmã, que vestia um casaco comprido e espesso com uma gola de peles claras e macias e chapéu da mesma cor.
- E você - observou Úrsula - com que se parece?
A outra tomou uma expressão modesta e inexpressiva.
- Gosta? - perguntou.
- Está linda! - respondeu a primeira, sorrindo.
- Subam ou desçam - disse Birkin.
As duas irmãs estavam paradas a meio da escada na altura do primeiro lance, interrompendo a passagem e divertindo imensamente os que se encontravam no térreo, desde o porteiro ate o judeu barrigudo de roupa preta. Gudrun conversava muito calma, apoiando a mão no braço da irmã.
Subiram, então, vagarosamente, seguidas de Birkin e do empregado do hotel.
- No primeiro andar? - perguntou Gudrun, olhando para trás, por cima do ombro.
- No segundo, minha senhora. Toma-se o elevador. - E correu para lá, de forma a chegar antes das duas moças. Absorvidas, porém, pela conversa, elas não o viram, e continuaram a subir para o segundo andar. O empregado correu atrás delas, aborrecido.
Era curioso notar como as duas irmãs se haviam regozijado com o encontro. Era como se se sentissem exiladas, unindo suas forças individuais a fim de arremeter contra o mundo. Birkin olhava-as com desconfiança e admiração.
Já estavam de roupa mudada quando Gerald voltou. Vinha faiscante como um raio de sol sobre o gelo.
- Vocês vão fumar - disse Úrsula a Birkin. - Eu e Gudrun temos muito que conversar.
Sentaram-se no quarto de Gudrun, e falaram sobre vestidos e episódios divertidos. Gudrun contou a história da carta de Birkin no Café Pompadour. Úrsula ficou indignada e chegou a assustar-se.
- Onde está a carta? - perguntou.
- Guardei-a.
- Quero vê-la, sim?
Gudrun conservou-se uns instantes silenciosa, até que retorquiu:
- Deseja lê-la, realmente?
- Sim.
- Está bem. Não lhe parecia fácil fazer a irmã compreender o quanto lhe agradaria ter a carta como recordação, como coisa simbólica. Mas Úrsula percebeu e não gostou da ideia. Mudaram de assunto.
- Que fizeram vocês em Paris? - indagou esta última.
- O que se costuma fazer - respondeu a irmã laconicamente - Passamos uma noite com Fanny Bath, no seu estúdio.
- Ah, sim? Você e Gerald estiveram lá?! E quem mais? Conte-me tudo.
- Não há nada de especial para relatar. Sabe como Fanny anda apaixonada por aquele pintor, Billy Macfarlane. O homem estava presente, de maneira que ela não poupou nada, e tez tudo o que era possível para conquistá-lo. Claro que todos se embebedaram, mas de uma forma interessante, não como essa gente abjeta de Londres. A verdade é que só se viam pessoas de valor, o que faz alguma diferença. Havia um romeno, tipo de primeira ordem. Embriagou-se por completo, subiu ao topo de uma escada e fez um discurso estupendo... Acredite, Úrsula, estupendo! Começou por falar em francês... La vie, c'est une affaire d'âmes impériales - A vida é um negócio de almas imperiais - nota da tradutora), isto com esplêndida pronúncia. Depois desandou a divagar na sua língua, e ninguém entendeu patavina. Donald Gilchrist estava também e inteiramente frenético. Atirou um copo ao chão e jurou, por Deus, que se considerava feliz por haver nascido, que era milagrosa a sua existência... E quer crer, Úrsula, que é verdade?... - Gudrun riu, mas de uma forma que soava falso.
- E que fazia Gerald, no meio de todos?
- Ah, se você visse! Parecia estar no seu elemento. Uma vez que se excita, faz ele próprio a festa toda! Não houve dama a quem não se atirasse. Palavra, Úrsula, atrai as mulheres como um ímã. Não houve nenhuma que lhe resistisse. Era espantoso! Você entende uma coisa assim?
Úrsula meditou uns segundos, e no olhar perpassou-lhe um súbito clarão.
- Percebo - respondeu. - Não lhe escapa nenhuma.
- Nenhuma! Também acho que sim - exclamou Gudrun.
Pois é a pura verdade. Todas as mulheres que lá estavam se dispunham a se renderem, ate Fanny, apesar de apaixonada pelo seu Billy Macfarlane. Nunca na minha vida fiquei tão assombrada. E agora dá-me a impressão de que sou, para ele, não uma só mas uma súcia de mulheres. Sou tanto eu mesma como a Rainha Vitória. Qual! Uma coleção de fêmeas é o que eu sou! Enfim, isto estonteia-me. Aquele homem é um sultão!
Os olhos de Gudrun cintilavam. Tinha as maçãs do rosto abrasadas, e o aspecto estranho, exótico, um tanto excêntrico. Úrsula sentou-se perturbada e inquieta.
Já era tempo de se prepararem para o jantar. Gudrun desceu, daí a pouco, com um vestido muito audacioso, de seda, verde-claro e ouro; o corpete era de veludo verde, e em volta da cabeça havia enrolado um turbante esquisito, preto e branco. Estava realmente bonita, e toda a gente o notou. Gerald, de belas cores na face, parecia vender saúde. Birkin olhava-os com interesse. Úrsula estava abstrata. Imaginar-se-ia que a mesa, a que se haviam sentado os quatro, fora previamente enfeitiçada até a luz incidia mais sobre ela do que sobre as restantes.
- Não gosta disto aqui? - perguntou Gudrun - A neve é surpreendente. Reparou como dá relevo a tudo? Pura maravilha! Sentimo-nos, na verdade, übermenschlich, mais do que humanos.
- Também acho - respondeu Úrsula. - Mas não se deverá, em parte, ao fato de havermos deixado a Inglaterra.
- Naturalmente... Jamais se poderia ter esta impressão na nossa terra pelo simples motivo de que lá jogam sempre baldes de água fria no entusiasmo. Nunca se está bem à vontade, disso tenho a certeza. - Assim falou, e recomeçou a comer. Mostrava-se bastante animada.
- Sou da mesma opinião - disse Gerald. - Na Inglaterra não é a mesma coisa, e talvez seja isso o que nós preferimos muita liberdade, equivalerá a brincar com o fogo. Assusto-me só em pensar no que sucederia...
- Meu Deus, que lindo - exclamou Gudrun - se toda a Inglaterra explodisse subitamente como uma peça de fogo de artifício!
- É impossível - volveu Úrsula. - Há muita umidade e a pólvora deve estar molhada.
- Quem sabe... - atalhou Gerald.
- Eu penso - interveio Birkin - que quando os ingleses começarem a explodir, em massa, é hora de tapar os ouvidos e começar a fugir.
- Jamais acontecerá tal coisa - observou Úrsula.
- Veremos, replicou o marido.
- Em todo o caso demos graças Deus por termos podido abandonar a pátria. Até nem acredito. Bastou pisar terra estrangeira para me sentir outra. Eis-me renascida, foi o que disse de mim para mim, Gudrun, para com o nosso pobre país - disse Gerald. - Almadiçoa-mo-lo, é certo, mas gostamos bastante dele.
Aos ouvidos de Úrsula tais palavras soaram como reveladores de cinismo.
- Não contesto - comemorou Birkin. - Mas é uma espécie de amor um tanto incomodo, como o que dedicamos a uma pessoa da família, muito velha e muito doente, da qual nada podemos esperar...
Gudrun arregalou o s olhos para o cunhado.
- Parece-lhe que não há esperança? - interrogou ela, com aquele eu jeito peculiar.
Birkin, porém, pôs-se em guarda. Não lhe agradava aprofundar o assunto.
- Poderemos ter, francamente, esperanças na Inglaterra? Só Deus sabe. Por enquanto, não é mais que uma imensa irrealidade, um agregado sem consistência. Poderia tornar-se real, se não existissem os ingleses.
- Entende que os ingleses deveriam desaparecer? - insistiu Gudrun. Era de admirar aquele desejo de conhecer a opinião do Gudrun. Podia-se supor que ate o seu próprio estava em jogo. Manteve o olhar sombrio e ansioso fixado em Birkin, como se a verdade sobre o futuro devesse ser dita por ele, como se ele fosse um instrumento divino.
Rupert empalidecera. Depois, de má vontade, replicou:
- Sim... que é que lhes resta fazer, senão desaparecerem? De qualquer maneira, é forçoso que percam as suas características de ingleses.
Gudrun não retirara dele o olhar, fixo e espantado, como se estivesse sob influência hipnótica.
- Em que sentido - perguntou ela - emprega o verbo desaparecer?
- Quer dizer mudança de sentimentos? - inquiriu Gerald por seu turno.
- Não posso explicar melhor - volveu Birkin. - Sou inglês, e sofro as consequências de o ser. Não falei da Inglaterra em geral, mas apenas de mim mesmo.
- Você ama imensamente a sua pátria, Rupert - retorquiu Gudrun com voz muito pausada.
- E acabo de deixá-la.
- Mas não para sempre - atalhou Gerald. - Vai voltar para lá - sentenciou, movendo a cabeça em sinal afirmativo.
- Dizem que os parasitas abandonam os moribundos - disse Birkin com amargura - Foi assim que deixei a Inglaterra.
- Ora, voltará... - observou Gudrun, sorrindo irônica.
- Tant pis pour moi - Tanto pior para mim - nota da tradutora).
- Como ele detesta a mãe-pátria! - exclamou Gerald, rindo, divertidíssimo.
- Grande patriota! - acrescentou Gudrun. Birkin não se dignou responder mais nada.
Gudrun ficou observando-p por alguns segundos. Depois, voltou-se para o outro lado. Terminavam as suas faculdades espirituais; sentia-se agora puramente cínica. Olhou então para Gerald, que lhe pareceu maravilhoso como uma partícula de rádio. Calculou que se poderia consumir a si própria, e tudo conhecer, através daquele metal vivo e fatídico. Pensava nisso e sorria. E o que seria dela, quando estivesse destruída. Pois, se o espírito, se o ser constituído é destrutível, a matéria, em si mesma, não o é.
Gerald, nesse momento, estava absorto, pensativo, com ar radiante. Gudrun estendeu um dos seus belos braços, cobertos de tule verde e tocou no queixo dele com os dedos sensíveis, de artista plástica.
- Que tais são? - perguntou-lhe, com um estranho sorriso.
- O quê? - perguntou o rapaz, voltando a si, muito admirado.
- Os seus pensamentos.
Gerald tinha o aspecto de quem acaba de acordar.
- Acho que não tenho nenhum - respondeu.
_ Não - repetiu ela. A voz era grave, mas alegre.
Para Birkin, o contato daqueles dedos sobre Gerald equivalia a uma espécie de homicídio.
- Ora, então - continuou Gudrun - bebamos pela Inglaterra, bebamos pela Grã-Bretanha.
A entonação dela denunciava certo desespero. Gerald riu e encheu os copos.
- Percebo a ideia de Birkin - explicou ele. - É esta: nacionalmente, todos os ingleses deverão morrer; porém, continuarão a existir como indivíduos.
- Supernacionalmente... - emendou Gudrun, fazendo uma careta e levantando o copo.
No dia seguinte tomaram o trem que os levou ate a estação de Hohenhausen, no extremo da linha que serve o minúsculo vale. Havia neve por toda a parte, verdadeiro berço nevado, muito branco, renovando-se constantemente; de um lado e de outro emergiam penhascos negros, e outros, já prateados, erguendo-se todos para o céu palidamente azul.
Ao saltarem na plataforma desconfortável, rodeada de neve, Gudrun estremeceu como se o coração se lhe gelasse também.
- Meu Deus, Jerry - disse ela, voltando-se para Gerald, em inesperada explosão de intimidade. - Desta vez estou amedrontada.
- Por quê?
Ela fez um gesto indicando a paisagem circundante.
- Olhe!
Parecia ter medo de dizer o que sentia Gerald riu-se.
Estavam cercados de montanhas. Do alto, de toda a parte, desciam lençóis de alvura, e eles sentiam-se diminutos e insignificantes naquele vale, tão irradiante, silencioso e imóvel como se fosse éter solidificado.
- Sentimo-nos ínfimos e sós - disse Úrsula, pondo a mão no ombro de Birkin.
- Está arrependida de ter vindo? - perguntou Gerald a Gudrun.
A jovem ficou indecisa. Saíram todos da estação, entre blocos de gelo.
- Ah! - fez Gerald, respirando de prazer. - Como isto é bom! Aqui está um trenó. Vamos dar um passeio e depois subimos a encosta.
Gudrun, irresoluta, depôs o espesso casaco em cima do trenó - como Gerald havia feito - e seguiu em frente. De súbito, lançou a cabeça para trás e desatou numa correria sobre a neve, enfiando o gorro ate as orelhas. O vestido azul-claro flutuava ao vento; as meias vermelhas brilhavam sobre o chão alvo. Gerald contemplou-a e teve a impressão de que ela se arremessava ao seu destino, deixando-o, a ele, abandonado. Depois de perceber que ela continuava se afastando, correu, por sua vez e foi-lhe ao encalço.
Por toda a parte se estendia aquela alvura profunda e silenciosa. As goteiras pesavam e abarrotavam de neve os telhados largos das casas tirolesas, que por sua vez estavam mergulhadas nela ate os caixilhos das janelas. As camponesas, de amplas saias, com mantas na cabeça e botas adequadas, voltavam-se, no caminho, para observar aquela moça elegante e enérgica que fugia do homem que a perseguia e que se aproximava mais e mais, sem, todavia a alcançar.
Passaram diante da estalagem de madeira pintada e depois em frente de alguns chalés semi-enterrados nos flocos brancos, bem como junto à fábrica de serragem, que estava sem trabalhadores; e, enfim, sobre a ponte coberta que atravessava um riacho invisível, e daí, por cima de camadas de neve ainda não pisadas. O silêncio e a extrema brancura incitavam a uma alegria insensata. Mas aquele, por excessivo, tornava-se terrível: isolava a alma e fechava o coração com uma corrente gelada.
- Apesar de tudo, é um lugar admirável - disse Gudrun, fitando Gerald nos olhos, de forma estranha e significativa. A alma dele sobressaltou-se.
- Delicioso! - confirmou.
De todos os seus membros parecia irradiar-se energia elétrica: os músculos estavam tensos, as mãos endureciam-se de vigor. Seguiram a passo apressado pela estrada transbordante de neve, e indicada apenas, de vez em quando, pelos ramos desnudos das árvores. Sentiam-se separados um do outro como pólos contrários de força impetuosa. Tinham poder suficiente para saltar até os confins da vida, até lugares interditos, e de lá regressar ao ponto de partida.
Birkin e Úrsula corriam também sobre a superfície gelada. Desembaraçando-se de toda a bagagem, haviam conseguido tomar a dianteira aos trenós. Úrsula, excitada e feliz, voltava-se de repente e segurava o braço do marido, para se assegurar da sua presença.
- Nunca imaginei isso - declarou ela. - Encontrar um mundo assim tão diferente!
Seguiram por um prado que a neve atapetara. Ali esperaram o trenó, que vinha tilintando no meio do silêncio geral. Até encontrarem Gerald e Gudrun tinham de percorrer ainda uma grande distância; achavam-se estes mais acima, no alto de um despenhadeiro, ao pé de um santuário cor-de-rosa, meio oculto pelos flocos de neve.
Passaram depois por um barranco onde havia rochas negras e um regato cujo leito se cobrira de branco. Por cima brilhava o céu azul. Depois chegaram a uma ponte; as pranchas de madeira ressoaram surdamente sob os passos; atravessaram mais uma vez o fundo nevado do barranco, e começaram a subir a encosta. Os cavalos subiam apressados, e o condutor, marchando ao lado, fazia estalar o chicote, lançando estranhos gritos de incitamento. As pedras que marginavam o caminho ficavam lentamente para trás, até que foram surgir de novo entre taludes e montões de neve. Gradualmente ganhavam altitude sob a luz fria da tarde; a proximidade das montanhas fazia-os calarem-se; vertentes de alvura luminosa cresciam em frente e desciam no caminho que lhes ficava às costas.
Atingiram, enfim, um planalto muito extenso, cercado de altos picos de neve semelhantes a pétalas de rosa desabrochada. No meio dos últimos vales desertos estava uma construção solitária de madeira escura e pesado teto branco, perdida e sozinha na vastidão dealbada, como numa espécie de sonho. Dir-se-ia um penhasco que houvesse rolado de cima das vertentes escarpadas e que tomasse a forma de uma casa, permanecendo ali meio insermlta. Parecia inacreditável que alguém pudesse viver naquele lugar sem ser esmagado pela terrível imensidade da neve, pelo silêncio e pelo frio seco intenso e penetrante.
Os trenós acabaram de subir da melhor maneira que puderam; à porta da casa apareceram várias pessoas, rindo animadamente. O assoalho da estalagem rangia, o corredor estava úmido, mas na sala havia calor e conforto.
Os recém-chegados subiram a escada de madeira, guiados pela criada. Gudrun e Gerald ficaram no primeiro quarto. Viram-se, de um momento para outro, instalados em um pequenino aposento, pouco mobiliado, mas confortável; o quarto tinha uma cor dourada, porque o chão, as paredes, o teto, a porta, eram feitos da mesma qualidade de pinho, recoberto de cera. Defronte da porta, abria-se uma janela muito baixa, pois o teto era esconso. Na mesma direção estava a mesa com a bacia de lavar as mãos e o jarro; próximo, outra mesa com penteadeira de espelho. De cada lado da porta, as camas, sobre as quais se empilhavam enormes almofadas azuis, descomunais.
E nada mais havia. Faltavam o guarda-roupa e outras peças habituais. Ei-los encerrados numa cela de madeira dourada com dois leitos cobertos de lençóis e fronhas azuis! Olharam um para o outro e desataram a rir, admirados com aquela nudez que lhes fazia sentir ainda mais o isolamento.
Bateram à porta. Era um carregador com a bagagem, rapaz robusto, pálido, de faces encovadas e bigodinho louro e hirsuto. Gudrun ficou a observá-lo enquanto ele colocava as malas e se retirava, muito calado, com passadas fortes.
- Não acha isso tudo muito primitivo? - perguntou Gerald.
O quarto não estava suficientemente aquecido e Gudrun teve um breve arrepio.
- É adorável - respondeu ela, procurando iludir-se. - Repare no tom da madeira: delicioso, parece mesmo o interior de uma noz.
De pé, Gerald observava a moça, mordia o bigode e balançava levemente o corpo. Olhava-a com olhos penetrantes e corajosos, dominado por uma paixão constante, que pesava sobre ele como uma maldição.
Gudrun debruçou-se à janela, cheia de curiosidade.
- Ah, que beleza!... - exclamou quase involuntariamente.
Em frente estendia-se um vale, sob todo o espaço do céu, fechado entre declives de neve e rochedos escuros; ao fundo, como se fosse o centro da terra, havia uma encosta branca, lisa, com dois picos que cintilavam ao crepúsculo. E a vista perdia-se naquele berço de neve silenciosa que havia entre as vertentes imponentes e orladas de pinheirinhos agrestes que lhes serviam de cabeleira. Esse berço imaculado prolongava-se ate à barreira da eternidade, onde as muralhas de neve e de pedra se elevavam impenetráveis e os cimos das montanhas roçavam o céu. Era realmente o centro, o eixo, o umbigo da terra, que, pura, inacessível, inultrapassável, dormia ali como propriedade do firmamento.
Tudo aquilo embevecia Gudrun. Ajoelhou-se em frente a janela, apoiando o queixo nas mãos em atitude de arrebatamento. Chegara, finalmente! Atingira o seu destino! Gozaria ali a sua felicidade, engastando-se como um cristal no próprio centro da neve.
Gerald, curvado sobre ela, olhava, por cima do ombro da moça, a paisagem lá fora. Mas sentia-se sozinho. Gudrun havia partido. Partira para sempre, deixando apenas uma névoa fria em volta do coração dele. Contemplou o vale coberto de flocos brancos, àquele enorme cul-desac cheio de neve e as cristas das serras sob o céu azul. Não havia caminhos por onde escapasse; rodeavam-no o silêncio o frio, a cintilante alvura da tarde moribunda. Gudrun permanecia ajoelhada defronte da janela como uma sombra em frente a um altar.
- Gosta disto? - perguntou-lhe ele numa voz que soou desconhecida e distante. Ao menos assim ela saberia que ele estava ali. Mas Gudrun limitou-se a desviar o rosto, furtando-se aos olhares do homem. Este percebeu que ela havia chorado; e aquelas lágrimas, produto da sua estranha religião, reduziram-no a uma coisa insignificante.
Pegou no queixo de Gudrun e ergueu-lhe a cabeça. Os olhos dela, azul-escuros, molhados do pranto, dilatavam-se como se estivessem assustados. Gudrun o viu através de uma névoa, e sinto aterrorizada. As pupilas de Gerald, pequeninas, vivas, pareciam-lhe agora sobrenaturais. Ela abriu os lábios, a custo, enquanto respirava ofegante.
A paixão foi-se apoderando de Gerald, mais e mais, como o som de um sino de bronze, forte, bem timbrado, impossível de deter. E, como de bronze, igualmente, seus joelhos se endureceram, ao inclinar-se sobre a face macia da moça, cuja boca estava entreaberta e cujos olhos se arregalavam sob a impressão de um medo singular. Ao contato da mão de Gerald, o queixo de Gudrun era brando e sedoso. Ei-lo, poderoso como o próprio inverno, aquele homem dominador; as mãos eram de metal, mas cheias de vida, insensíveis, impossíveis de dobrar. E o coração, dentro do peito, badalava como um sino.
Ergueu-a nos braços. Ela estava frouxa, inerte, sem movimentos! Nos olhos, onde as lágrimas não haviam secado, a dilatação aumentara, e ela entrara numa espécie de desmaio, de fascinação, já vencida. Gerald tinha uma força sobre-humana, inquebrável, superior às leis da natureza.
Ergueu-a e estreitou-a contra si. Aquele corpo mole e sem resistência pesava-lhe nos braços rijos, nos membros de bronze, provocando-lhe profundos desejos que o enlouqueceriam se não conseguisse satisfazê-los. Gudrun debatia-se convulsa, tentando evitá-lo. Mas o amor de Gerald estalava como uma chama de gelo, e ele apertava-a duramente, com músculos de aço. Antes a destruiria, mas não a deixaria fugir.
A força do homem era excessiva para a fragilidade da mulher, que se abandonou, fraca e submissa, ofegante, em vago delírio. Para ele, afigurava-se-lhe tão carinhosa, tão prometedora de felicidade, que Gerald desejaria ser condenado eternamente a renunciar um segundo àquele prazer, quase doloroso.
- Meu Deus, - disse com o rosto transfigurado, estranho e ardente - que será de nós?
Ela ficara quieta, perfeitamente calma; a expressão era infantil e os olhos sombrios não o desfitavam. Mas estava perdida para ele, como se o houvesse renegado.
- Amar-te-ei para sempre - declarou Gerald, fitando-a.
Gudrun, porém, não o ouvia. Jazia desfalecida, examinando-o como a alguém que lhe fosse impossível compreender; como uma criança observando um adulto, sem esperança de o entender, submetida e nada mais.
Gerald beijou-a nas pálpebras, de maneira que ela não conseguia vê-lo. Gostaria que ela desse algum sinal, qualquer prova de entendimento, de concordância. Ela, porém, continuava silenciosa, distante, criança que não entende as coisas e que se sente perdida. E ele tornou a beijá-la, renunciando a tudo, por fim.
- E se fôssemos tomar café e comer Kuchen? - sugeriu ele.
O crepúsculo esmaecia cor de ardósia, através da janela. Gudrun fechou os olhos à monótona superfície daquela maravilha morta, e tornou a abri-los ao mundo quotidiano.
- Está bem - respondeu laconicamente, reencontrando de súbito a vontade. Voltou de novo à janela. Sobre o berço da neve e sobre as altas encostas lívidas caíra uma noite azulada. Mas, de encontro ao céu, os picos eriçavam-se róseos, brilhantes, translúcidos, como rebentos de uma planta luzidia voltada para o mundo celestial, adorável e distante.
Gudrun viu como tudo isso era belo, conheceu a imortalidade de que aquela beleza se revestia, enormes pistilos cor-de-rosa, fogo de neve no crepúsculo azulado do céu. Via, compreendia, mas não era parte daquele todo. Alma divorciada, a sua, excluída, exilada, e nada mais!
Lançou um último e saudoso olhar à paisagem e passou os dedos pelo cabelo, compondo o penteado. Gerald desatara as correias das malas e esperava por ela, observando-a. Gudrun percebeu que ele a mirava, o que a fez apressar-se de modo febril.
Desceram ao andar térreo; havia nos olhos de ambos como que um reflexo de outro mundo, tão brilhantes se mostravam. Descobriram logo Birkin e Úrsula sentados em um canto da mesa comprida, aguardando que eles chegassem.
"Têm tão bom aspecto! São tão simples!" pensou Gudrun, invejosa daquela espontaneidade, daquela inocência de crianças que ambos demonstravam e que ela jamais possuíra. Pareciam-lhe tão pueris!
- Deliciosos Kranzkuchen! - Magnífico, prodigioso, extraordinário, inexprimível - nota da tradutora), exclamou Úrsula, gulosamente. - Deliciosos!
- Vamos experimentar. Traga-nos Kafee mit Kranzkuchen - ordenou Gudrun ao garçom.
Depois sentou-se no banco, ao lado de Gerald. Birkin, olhando para eles, sentiu pelos dois uma ternura quase dolorosa.
- Gerald - disse -, acho este lugar realmente encantador. Prachtvoll, wunderbar, wunderschön, unbeschreiblich e todos os outros adjetivos da língua alemã.
O outro esboçou um sorriso.
- Também gosto muito - replicou.
As três mesas, de madeira branca bem esfregada, estavam postas ao longo das paredes, como em qualquer Gasthaus - Estalagem - nota da tradutora). Birkin e Úrsula tinham-se colocado de costas para aqueles tabiques de pinho encerado, e Gerald e Gudrun próximos deles, mais no extremo, perto da lareira. O compartimento era vasto, com um recanto para as bebidas, em tudo semelhante a um albergue rural, embora muito mais simples e despojado. Teto, paredes e assoalho em madeira encerada, e como única mobília, mesas e bancos; a lareira era verde, tão grande que ocupava uma parede inteira. As duas janelas não ostentavam cortinas. Começava a anoitecer.
Trouxeram o café, bom e quente, e um daqueles "bolos coroados".
- Um Kuchen inteiro! - gritou Úrsula. - Vocês ganharam mais do que nós. Quero um pedaço desse.
Havia outros hóspedes, dez ao todo, conforme Birkin deduziu: dois artistas, três estudantes, um casal e um professor com as duas filhas - todos alémães. Os quatro ingleses recém-vindos permaneceram no seu cantinho, belo posto de observação. Os alemães observaram os novos hóspedes, disseram qualquer coisa ao garçom e desapareceram. Não era hora de refeição, de forma que não tinham nada a fazer na sala de jantar, mas, depois de trocarem os sapatos vieram para a Reunionsaal - Sala de estar - nota da tradutora).
Os quatro ingleses ouviram, por instantes, sons de viola e de piano misturados com risos, gritos e canções. Como a casa era construída de madeira, a repercussão do ruído fazia-se por toda ela, de forma que os acordes da viola pareciam provir de um instrumento de crianças que tocassem em qualquer parte, e os do piano mais pareciam os de uma espineta.
O hospedeiro apareceu quando acabavam de tomar o café. Tratava-se de um tirolês espadaúdo, pálido, de faces encovadas e pele marcada pela varíola. Usava os mais florescentes bigodes que se podem imaginar.
- Querem ir à sala de estar para serem apresentados às senhoras e cavalheiros que lá se encontram? - perguntou, curvando-se e exibindo um sorriso que mostrou seus dentes largos e perfeitos. Com os olhinhos azuis fitava ora um ora outro, sentindo-se pouco à vontade no meio daqueles ingleses Sentia não saber falar o idioma deles e não tinha muita confiança no seu francês.
- Para irmos à sala e sermos apresentados às outras pessoas? - repetiu Gerald, sorridente.
Houve uns segundos de hesitação.
- Creio que seria bom - acudiu Birkin. - Quebraríamos o gelo de uma vez.
As senhoras puseram-se de pé, ruborizadas.
O Wirf - Dono da estalagem - nota da tradutora), com a sua figura loura, os ombros largos, passou, pouco delicadamente, em primeiro lugar, dirigindo-se ao lugar de onde vinha o ruído. Abriu uma porta e introduziu os estrangeiros na sala do concerto.
Seguiu-se um silêncio, e os outros pareceram, por momentos, embaraçados. Os recém-chegados tiveram a sensação de estar sendo observados por uma multidão de criaturas da mesma raça. Mas o estalajadeiro inclinou-se para um homem baixinho, de olhar enérgico e fartos bigodes e disse-lhe em voz confidencial:
- Herr Professor, darf ich vorstellen... Permita-me que lhe apresente, senhor professor... - nota da tradutora).
O homem reagiu prontamente. Cumprimentou com a cabeça os novos hóspedes, sorriu e assumiu uma franca atitude de camaradagem:
- Nehmen die Herrschaften Teil an unserer Unterhaltung? - Dignam-se tomar parte na nossa festa? - nota da tradutora) - foram as suas palavras, ditas com vigor e convicção.
Os quatro ingleses, risonhos, deixaram-se ir até ao meio da sala, com certo acanhamento. Gerald, fazendo de orador oficial, respondeu que teriam muito gosto em tomar parte no sarau. Gudrun e Úrsula, rindo animadamente, percebiam que os homens não tiravam os olhos de cima delas. Ergueram então a cabeça, fitando o teto, e assumiram uma atitude majestosa...
O professor declarou os nomes de todos os presentes, sans cérémonie. Houve flexões de cabeça para a esquerda e para a direita. Só faltava ali o casal que tinham mencionado antes como hóspedes da estalagem. As duas filhas do professor, altas, claras, atléticas, vestidas simplesmente com blusas azul-escuros e saias de lã, de pescoço comprido e forte e cabelos cuidadosamente trançados coraram, cumprimentaram e puseram-se um pouco afastadas os três estudantes curvaram-se reverentes, na humilde persuasão de incutirem a ideia de que eram muito bem educados. Depois chegou a vez de um sujeito delgado e moreno, com olhos grandes, um tipo estranho, misto de engraçado e esperto, um gnomo original. Fez um curto cumprimento e o companheiro que se achava junto dele, rapaz louro e alto, bem vestido, corou e baixou a cabeça.
Estavam feitas as apresentações.
- Herr Loerke estava recitando para nós no dialeto de Colônia - explicou o professor.
- Desculpe a interrupção - disse Gerald. - Teremos também imenso prazer em ouvi-lo.
Seguiu-se um novo cumprimento e oferta de lugares. Gudrun, Úrsula, Gerald e Birkin sentaram-se em confortáveis sofás, de costas para a parede. A sala era, como toda a casa, de madeira encerada. Havia piano, canapés, cadeiras e duas mesas com livros e revistas. Apesar da ausência total de ornatos - exceto no que respeitava ao fogão enorme, azul - não se deixava de sentir conforto e bem-estar.
Herr Loerke era o homenzinho de rosto infantil. Tinha a cabeça redonda, grande, olhos vivos como os de um mico e todo ele denotava sensibilidade. Relanceou o olhar pelos intrusos, conservando-se um tanto à parte.
- Queira continuar com a declamação - insistiu o professor, com voz suave, embora levemente autoritária. Loerke, que estava sentado no banquinho do piano, um pouco curvado, baixou os olhos e não respondeu.
- Seria muito agradável para nós... - interveio Úrsula, que estava há muito tempo preparando a frase em alemão.
Então, subitamente, o homenzinho, ate ali calado, avançou e, dirigindo-se aos primeiros ouvintes, continuou a história exatamente no ponto em que a havia interrompido. Com voz brincalhona, muito bem timbrada, fez a imitação de uma disputa entre uma velhota de Colônia e um condutor de trens.
O corpo daquele homem, débil e mal formado, assemelhava-se ao de um rapazola, porém a entonação era a de um adulto, com grande dose de sarcasmo; possuía a inflexão necessária, denunciando inteligência crítica e penetrante. Gudrun não conseguiu perceber patavina daquele monólogo, mas estava encantada com a figura dele. Devia ser artista, senão não conseguiria tanta perfeição e naturalidade. Os alémães não cessavam de rir ao ouvir as palavras tão engraçadas daquele divertido dialeto. No meio das gargalhadas, olhavam disfarçadamente para os ingleses, com deferência Gudrun e Úrsula não puderam deixar de rir também. A sala quase vinha abaixo com tanto barulho. Os olhos azuis das filhas do professor já estavam cheios de lágrimas provocadas pelo riso; as faces das moças estavam coradas de prazer. O pai fazia reboar pela casa estrondosas manifestações de hilaridade, e os estudantes, no auge da alegria, curvavam a cabeça ate os joelhos. Úrsula, surpreendida, perscrutava em volta de si e, involuntariamente, acompanhava as expansões da assembleia. Virou-se uma vez para a irmã e a irmã para ela, e as duas riram a valer. Loerke lançou-lhes um rápido olhar. Birkin divertia-se discretamente. Gerald mantinha-se ereto, com expressão brilhante e divertida. E as risadas prosseguiram, com intensidade crescente; as filhas do professor remexiam-se nas cadeiras, o pai mostrava as faces afogueadas e as veias do pescoço salientes: sentia-se sufocado e tinha espasmos de riso silencioso. Os estudantes soltavam gritos inarticulados que terminavam em explosões que não podiam evitar. Mas de repente, o monólogo do artista cessou; as exclamações subsistiram ainda, decrescendo gradualmente. Úrsula e Gudrun enxugaram os olhos, e o professor exclamou, em voz alta:
- Das war ausgezeichmet, das war famos... Soberbo, famoso! - nota da tradutora).
- Wirklich famos! Famosíssimo! - nota da tradutora) - repetiram em eco as filhas, extenuadas.
- Que pena não termos entendido! - lamentou Úrsula.
- Oh, leider, leider! - Infelizmente, infelizmente! - nota da tradutora)
- comentou o professor.
- Não compreenderam? - indagaram os estudantes, dirigindo-se finalmente aos estrangeiros. - Ja, das ist wirklich schade, das ist schade, gnadige Frau. Wissen Sie... - Sim, realmente foi pena, minha senhora. Acredite. - nota da tradutora).
Estabelecera-se a familiaridade, e os recém-chegados, como elementos novos, misturaram-se ao grupo, aumentando a animação da sala. Gerald estava como em sua casa, falava com desembaraço e boa disposição; assim nesta sua expressão mostrava quanto aquilo o divertia. Talvez sucedesse o mesmo a Birkin. Permanecia ainda tímido e contrafeito, embora atento a tudo o que se passava.
Pediram a Úrsula que cantasse Ano Lawrie - como dizia o professor. Fez-se um silêncio cheio de deferência. Nunca em sua vida fora tão cortejada. Gudrun acompanhou a irmã ao piano, tocando de cor.
Úrsula tinha uma voz bem timbrada, mas geralmente sem sensibilidade, o que prejudicava suas canções. Naquela noite, porém, sentiu-se mais à vontade e esforçou-se para cantar melhor. Birkin ouvia atentamente, e a jovem, cheia de confiança, tinha a impressão de que era um pássaro que flutuava no espaço, enquanto a voz se evolava, equilibrando e modelando a canção com um movimento de asas, como se levada pelo vento. Cantou com muita expressão, animada pelo interesse com que a assistência a distinguia, e considerando-se feliz em proceder daquela maneira, compenetrada da emoção e do domínio que exercia aquela gente toda e sobre si própria - contente por ser agradável e proporcionar distração aos alémães.
Quando terminou, estes, sensibilizados, cheios de admiração e ainda envoltos numa deliciosa melancolia, felicitaram-na efusiva e respeitosamente, sentindo que nenhum louvor seria demasiado.
"Wie schön, wie rührend! Ach, die schottischen Lieder, sie haben so viel Stimmung! Aber die gnädige Frau hat eine wunderbare Stimme; die gnädige Frau ist wirklich eine Kunstlerin, aber wirklich!" - Lindo, comovente! Ah, essas canções escocesas fazem tanto bem à gente! Esta senhora possui uma voz maravilhosa. É, de fato, uma artista, não tenham dúvida! - nota da tradutora).
Úrsula, radiante, parecia uma flor desabrochada ao sol da manhã. Pressentia que o marido a fitava, como se tivesse ciúmes, e o peito arfou-lhe mais. Considerava-se feliz, como um astro que houvesse conseguido atravessar as nuvens com os seus raios de ouro. Todos, aliás, pareciam contentes e satisfeitos. Tudo decorria às mil maravilhas.
Depois do jantar desejou sair para admirar a natureza. Os outros tentaram dissuadi-la; estava tanto frio! "Só para ver", disse ela.
Agasalharam-se os quatro e pouco depois se achavam num mundo vago e insubstancial, feito de neve, povoado de espectros que, de encontro às estrelas, projetavam sombras confusas. O frio era realmente intenso. Úrsula não queria acreditar que era o ar que lhe entrava pelas narinas. Dir-se-ia antes alguma coisa consciente, malévola, com premeditações de assassino.
No entanto, era belo o espetáculo: silêncio profundo na neve sombria, intoxicante, incompreensível, e aquele ser invisível interpunha-se entre eles e as coisas visíveis, entre os homens e os astros flamejantes. Úrsula descobriu Órion erguendo-se no céu. Maravilhoso a ponto de dar vontade de gritar!
Em toda a volta o berço de neve, dura sob os pés, enquanto o frio atravessava os sapatos. Era noite, era silêncio. A jovem imaginava poder ouvir as estrelas. Estava convencida de que ouvira o movimento musical das esferas celestes. Os astros estavam quase ao alcance da mão. Úrsula teve a ilusão de que era uma ave voando por entre a harmonia do universo.
Chegara-se mais ao corpo de Birkin. E, de repente, pensou que desconhecia os pensamentos do marido. Ignorava por onde vaguearia o espírito dele.
- Meu amor! - exclamou ela, parando para fitá-lo. Birkin empalidecera e brilhava em seus olhos um clarão fugidio. Ao ver o rosto da mulher tão próximo do seu, tão meiga e solícita, Birkin beijou-a suavemente.
- O que é? - perguntou-lhe.
- Você me ama? - quis saber ela.
- Tanto, tanto! - respondeu Rupert, tranquilo.
Úrsula aconchegou-se mais.
- Nem tanto... - duvidou.
- Muitíssimo - garantiu o marido, melancólico.
- Fica triste por isso? volveu a mulher, apreensiva. Birkin apertou-a contra si, beijando-a sempre; e disse, de forma quase inaudível:
- Isso não; mas sinto-me como um pedinte, sinto-me pobre. Ela calou-se, olhando agora para o firmamento. Depois, retribuiu-lhe os beijos.
- Você não é um mendigo - explicou, preocupada. - Não é nenhuma vergonha dedicar-me um pouco de amor.
- Mas é vergonhoso sentir-me um homem muito pobre.
- Por quê?
Birkin ficou imóvel, mantendo-a entre os braços. O ar que os envolvia vinha do alto das serras invisíveis.
- É que sem você - disse ele - eu não poderia suportar este frio, este lugar eternamente gelado. Não poderia; ele penetra-me, incisivo, e destrói-me a vida toda.
Úrsula beijou-o mais uma vez.
- Odeia-o, então? - indagou, muito admirada.
- Se não estivesse perto de você, detestá-lo-ia, com certeza.
- Mas as pessoas são agradáveis...
- Refiro-me ao silêncio, ao ar agreste, à neve constante. Ficou pensativa; mas logo sua alma foi-se refugiar na alma dele.
- Sim, - concordou é bom estarmos aquecidos, na companhia um do outro.
Voltaram para casa. Viram as luzes douradas da hospedaria cintilando através da noite silenciosa e glacial. Na imensidade do vale pareciam pequeninas, como um cacho de bagos amarelos. Assemelhavam-se a um ramalhete de raios solares, minúsculos e alaranjados no meio da escuridão e da neve. Por trás dele erguia-se a sombra da montanha; como um fantasma, ocultava o fulgor das estrelas.
Aproximavam-se já da hospedaria. Notaram que saia de la um homem com uma lanterna na mão. O que fazia com que os pés dele, presos num círculo de luz, brilhassem sobre a neve. Na vastidão da noite ele não era senão um vulto escuro pequenino. Dirigiu-se para uma dependência, cuja porta abriu; e chegou logo o cheiro das vacas, cheiro quente que se espalhou pesado, no ar frio. Birkin e Úrsula distinguiram dois animais na escuridão do estábulo. A porta fechou-se, então, sem deixar que se filtrasse a menor luz. Tudo aquilo recordou mais uma vez a Úrsula a sua infância, a casa, o Marsh, a viagem de Bruxelas e, estranha coisa, lembrou-se de Anton Shrsbensky!
"Meu Deus, poderei suportar esse passado desaparecido no abismo Admitirei a ideia de que ele jamais existiu?" Lançou os olhos em torno, ao silencioso e gelado, sobre o qual dominavam os astros e a temperatura glacial; e, sobrepondo-se a esse, viu perpassarem as imagens de lanterna mágica do outro mundo, posto em evidência por uma luz irreal: o Marsh, Cosseghay, Ilkeston... Percebeu a sombra fantástica de uma Úrsula e um conjunto de outras sombras sem a menor realidade. Era ainda a projeção estranha e consciente da lanterna mágica. Se aqueles vidros, ao menos, se quebrassem todos! Preferia não ter nenhum passado na sua vida. Gostaria de ter descido cem Birkin, por aquelas vertentes, como se caísse do céu diretamente naquele recanto da terra, sem ter atravessado uma infância obscura. Com tudo o que a manchava. Achava que a memória se divertia à sua custa. Com que direito a mandava recordar. Por que não experimentava um banho lustral, de puro esquecimento, ou não nascera de novo sem as tristezas e as evocações da vida passada? Estava agora na companhia de Birkin, acabava efetivamente de renascer - ali, sob as estrelas, pisando a neve. Que lhe importavam os pais e os antecedentes? Sentia-se nova, ainda não gerada, sem pai, nem mãe, sem família, ela própria somente, virginal como a prata, pertencendo apenas à unidade que formava com Birkin, unidade que vibrava em notas profundas, ressoando no coração do universo e da irrealidade, onde ate aí jamais existira.
Mesmo da própria irmã se considerava separada, distante, muito longe, sem nenhuma ligação, pois esta Úrsula vivia num mundo diverso e autêntico. Aquele velho planeta em que decorrera o passado sombrio estava desfeito! Erguia-se ela, agora livre, nas asas de uma existência diferente.
Gudrun e Gerald não tinham ainda voltado. Haviam descido a encosta fronteira à casa, enquanto Úrsula e Birkin faziam outro tanto na colina do lado direito. Gudrun fora impelida por um desejo singular. Queria precipitar-se cada vez mais além ate atingir o vale mergulhado em neve, e depois subir a vertente branca que fechava o caminho, como pétalas no coração do gelo, no misterioso umbigo do mundo. Sentia que ali, para trás do obstáculo terrível e enigmático, estava o arreio da terra, cercado por um ramalhete de picos e de serras, e lá naquele ponto não atingido, acabaria ela por se consumir. Se ao menos pudesse lá chegar, sozinha, àquele centro de neves perpétuas e inacessíveis, rodeadas de rochedos, poderia unifica-se com a natureza, seria ela mesma o silêncio eterno e infinito e adormeceria alheia ao tempo, ao âmago de todas as coisas.
Por fim voltaram à casa e entraram na Reunionssal. Gudrun tinha curiosidade de ver o que faziam ali. Os homens despertavam-lhe a curiosidade. A existência começava a proporcionar-lhe um sabor diferente: todos se prostravam diante dela, lépidos e viçosos.
A animação era grande. Dançavam, em conjunto a Schuhplat teln, número tirolês em que se bate palmas e os homens levantam o par na última marcação. Os alémães dançavam corretamente - eram quase todos de Munique. Gerald não destoava no grupo. Em um canto havia três músicos que tocavam viola, e o espetáculo tomava aspectos de imensa alegria e confusão. O catedrático iniciava Úrsula nos segredos da dança, batendo o pé, dando palmas e levantando-a no ar com espantosa força e entusiasmo. Quando chegou a parte final, o próprio Birkin se portou dignamente com uma das filhas do professor, que era jovem, robusta e visivelmente feliz. Toda a gente se divertia no meio de enorme alarido.
Subitamente a dança parou. Loerke e os estudantes correram para preparar bebidas. Houve um clamor de vozes excitadas, um bater de tampas e canecas e o grito geral de a saúde! Loerke estava em toda a parte ao mesmo tempo, como um gnomo oferecendo copos às senhoras, dizendo gracejos, mexendo com os homens e atrapalhando o garçom.
Tinha vontade de dançar com Gudrun. Desde que a vira ambicionara conhecê-la melhor. Ela, por sua vez, pressentira isso, e esperava que ele se aproximasse. Mas uma espécie de aborrecimento o conservava afastado e Gudrun chegou a pensar que o rapaz antipatizava com ela.
- Schuhplatteln, gnädige, Frau? - Uma dança triste, minha senhora? - nota da tradutora) - perguntou-lhe o companheiro de Loerke, rapaz louro e bem constituído. Ela o achava meio melífluo, demasiadamente humilde. Mas queria dançar e o moço louro, que se chamava Leitner, não era feio, apesar de suas maneiras acanhadas e levemente suspeitas; talvez a modéstia disfarçasse a timidez inata. Aceitou-o, pois, como seu par. Os instrumentos foram outra vez tangidos, e a dança principiou Gerald ia à frente de todos, conduzindo uma das filhas do catedrático. Úrsula dançava com um dos estudantes, Birkin com a outra filha do professor, este com Frau Kramer e os homens restantes, uns com os outros, tão entusiasmados como se houvesse entre eles promiscuidade de sexos.
Pelo fato de Gudrun estar dançando com o moço suave e elegante, seu companheiro Loerke ficou mais amuado e furioso do que nunca, e fingiu ignorar a existência da moça. O incidente magoou-a, porém distraiu-se dançando depois com o professor, que era forte como um touro no cio e cheio de energia rude, embora de idade já madura. Se o enfrentasse a sangue-frio não o teria podido suportar, mas, no ardor da dança, tudo ia bem e chegou a achar agradável ser erguida no ar com tanto ímpeto. Por seu lado, o professor estava radiante, e contemplava-a com os seus estranhos olhos azuis, repletos de fogo galvânico. Se bem que detestasse a animalidade protetora e semipaternal com que ele a mirava, Gudrun apreciou-lhe a energia.
A sala carregava-se de excitação, de entusiasmo estrepitoso e sensual. Loerke permanecia afastado de Gudrun, a quem desejaria falar, mas havia como que uma barreira de espinhos, além de que sentia pelo seu amigo Leitner certo ódio impiedoso e mesmo sarcástico. Leitner era pobre e dependia do companheiro. E este ria-lhe no rosto, caçoando cruelmente dele, fazendo-o corar e despertando-lhe, na alma, inútil ressentimento.
Gerald, que se saíra muito bem, dançava outra vez com a filha mais nova do professor, e ela desfalecia quase de paixão virginal, achando-o tão belo, tão sedutor! Gerald mantinha-a sob o seu poder, como se mantém um pássaro palpitante, uma criaturinha desnorteada, ruborizada e confusa. Sorria só por a ver tão excitada entre as suas mãos, a estremecer tão violentamente quando a arrebatava no espaço. Por fim, a jovem já sentia um amor tão intenso pelo seu par que mal podia articular sensatamente qualquer palavra.
Birkin e Úrsula dançavam juntos. Nos olhos dele cintilavam rápidos clarões; dir-se-ia que aquele homem se transformara em um ente perverso, instigador, verdadeiramente mau. A mulher tinha medo dele, mas sentia-se fascinada. Numa visão nítida, via-o passar diante dela, irônico, de olhar lúbrico; aproximava-se dela em movimentos sutis, às vezes indiferentes, outros perigosos. Faziam-na desmaiar de medo aquelas mãos tão estranhas, vivas, astuciosas, que se acercavam inevitáveis do peito da mulher e a levantavam em gosto pouco sério, num impulso cheio de intenções, e a conservavam no ar sem emprego de força, por uma espécie de magia negra. Úrsula, por instantes, revoltou-se. Aquilo era horrível. Precisava quebrar-lhe o encanto. Antes, porém, de formular definitivamente a solução, já se tinha de novo submetido, cedendo ao pavor que ele lhe inspirava. Birkin estava a par do que ela pensava, isso era bem visível no seu sorriso e no modo de piscar os olhos. Era dele a responsabilidade, deixá-lo-ia fazer o que lhe aprouvesse!
Quando se tornaram a encontrar, no escuro, e sozinhos, ela sentiu rondar em sua volta o espírito silencioso do homem e aquilo perturbou-a e assustou-a. Por que se tornara ele assim?
- Que quer? - perguntou cheia de horror.
Mas o rosto de Birkin brilhou mais perto, desconhecido, terrível. Úrsula estava hipnotizada. O seu primeiro movimento era o de o repelir, desfazer o encanto e pôr fim àquela brutalidade sardônica. Sentia-se, contudo, fascinada em demasia preferia sujeitar-se, conhecê-lo melhor. Que iria acontecer?
Rupert atraía-a e afugentava-a ao mesmo tempo. A atração que se irradiava daquele rosto insinuante e irônico, e que se transmitia de seus olhos semicerrados, dava a Úrsula vontade de se esconder e de o espiar de qualquer lugar desconhecido dele.
- Por que está assim? - perguntou, insurgindo-se contra o marido num ímpeto súbito e corajoso.
O fulgor que ardia no olhar de Rupert concentrou-se ao fita-la atentamente. Suas pálpebras se abaixaram num movimento rápido e desdenhoso, para se erguerem logo na mesma provocação impiedosa. Ela então cedeu, deixando-o proceder como quisesse. Aquele feitio sensual tornava-o ao mesmo tempo atraente e repulsivo. Mas como era ele o responsável, Úrsula queria ver o que o marido pretendia fazer.
Afinal, poderiam comportar-se como quisessem - pensou Úrsula no momento em que se deitou. Por que haveriam de eximir-se a qualquer coisa que lhes proporcionasse satisfação? Seria isso, por acaso, degradante? Quem se importaria? Os atos aviltantes existiam, mas a sua realidade é que seria diferente. Rupert era tão descarado, tão sem freios! Não parecia horrível ver agora um homem que podia ser tão espiritual, tão inteligente...? (Úrsula quis impedir a irrupção dos seus pensamentos e concluiu: vê-lo agora tão bestial!) Sim, ele e ela, como dois animais... que vergonha! Estremeceu ao recordar-se. E afinal, por que não? Esta ideia alegrou-a. Por que não haviam de ser bestiais e percorrer toda a escala das sensações? E que bom que era sentir-se envergonhada! No fundo, experimentava certa alegria. Passando por tudo quanto era proibido, adquiriria maior experiência. Já não se achava perplexa, sequer, retomara todo o domínio de si mesma. Por que não? Era livre, visto conhecer tudo e não recuar perante nenhum pecado.
Gudrun, que estivera observando Gerald na Reunionssal, pensou de repente:
"Pode ter tantas mulheres quantas quiser; está na sua natureza. É absurdo considerá-lo monógamo. A poligamia é a sua vocação."
Sem ela querer, este pensamento dominava-a e impressionava-a. Era como se tivesse lido na parede, também o seu Mene! Mene! - Cf. Daniel, V, 25 - nota da tradutora).
Não era apenas fantasia. Parecia que, ao mesmo tempo, uma voz lhe falava no íntimo e tão claramente, que, por instante, Gudrun acreditou estar inspirada.
"É a verdade nua e crua", disse ela consigo mesma.
Sabia muito bem, e implicitamente, que sempre fora aquela a sua opinião. Mas convinha guardar tal ideia, na sombra, quase fora dela mesma. Devia conservá-la secreta. Só ela é que devia estar a par do fato, fazendo o possível para não a aceitar completamente.
Tomou a inabalável resolução de combater Gerald. Um dos dois triunfaria, aniquilando o outro. Qual seria então? Procurou fortalecer o espírito. Tinha confiança, o que lhe permitiu um sorriso. Esboçava-se, assim, em favor de Gerald, uma certa piedade desdenhosa, misturada de ternura. Mas não: não haveria misericórdia!
Todos se recolheram cedo aos seus quartos. O professor e Loerke enterraram-se em um sofá, bebendo. Observaram Gudrun enquanto esta subia a escada.
- Ein schönes Frauenzimmer - Bela mulher! - nota da tradutora) - disse o primeiro.
- Ia! - concordou Loerke, secamente.
Gerald atravessou o quarto de dormir pé ante pé, de forma esquisita e, chegando à janela, debruçou-se e olhou para fora. Depois, voltou o corpo e encarou Gudrun, com olhos ardentes. Tinha nos lábios um vago sorriso. Para ela, dir-se-ia que aquele homem havia aumentado de estatura; viu-lhe luzirem aquelas sobrancelhas muito louras, quase brancas, que se juntavam no meio da testa.
- Que acha de tudo isto? - perguntou.
Parecia rir interiormente, sem mesmo dar por isso. Gudrun fitou-o. Era agora, para ela, como um fenômeno, e não um ser humano: espécie de criatura devorada pela gula.
- Acho muito bom - foi a resposta.
- Quem você achou mais simpático de todos os que estavam lá em baixo? - continuou Gerald, parado junto a ela, muito alto, resplandecente, de cabelos lisos e lustrosos.
- De quem gostei mais? - repetiu Gudrun, desejosa de dizer a verdade, mas achando difícil decidir-se. - Não sei, não os conheço bastante. E você, com quem simpatizou mais?
- Ora, para mim são todos iguais... Não gosto nem desgosto de ninguém. São indiferentes. Queria apenas saber a sua opinião.
- Mas por quê? - Gudrun empalideceu. Nos olhos deles intensificava-se uma expressão vaga, abstrata.
- Gostaria de saber - elucidou.
Ela se afastou, resolvida a quebrar o encanto. Sentia que aquele homem recuperava, de forma estranha, o ascendente que tivera sobre a sua pessoa.
- Pois bem... Por enquanto não posso dizer.
Foi ate diante do espelho para tirar os grampos dos cabelos. Todas as noites costumava ficar algum tempo escovando aqueles cabelos finos e escuros. Fazia parte do ritual da sua vida.
Gerald seguiu-a e colocou-se atrás dela. E Gudrun, com a cabeça curvada para frente, continuava a desembaraçar a cabeleira solta e farta, recolhendo os últimos grampos. Quando levantou os olhos e descobriu a imagem dele no espelho, ali de pé, a observá-la, sem consciência do que fazia, viu que seu olhar parecia sorrir, mas não sorria verdadeiramente.
Gudrun sobressaltou-se. Foi necessária toda a sua coragem para continuar o que fazia. Mas estava longe, muito longe de se sentir à vontade.
- Que pretende fazer amanhã? - perguntou-lhe, enfim, mostrando-se indiferente, enquanto o coração lhe batia apressadamente; tinha os olhos tão brilhantes de excitação que ele não poderia, assim pensou, deixar de notar. Mas Gerald parecia cego, como um lobo que ficasse cego ao contempla-la. Extraordinário combate entre a sua consciência de mulher e a daquele rapaz misteriosamente iniciado na magia negra!
- Não sei - respondeu ele. - E você, o que gostaria de fazer?
Falava ao acaso, com o espírito muito distante.
- O que você quiser; qualquer coisa me serve - respondeu ela vagarosamente.
Enquanto isso, pensava: "Meu Deus, por que estou tão nervosa. Por que você é assim, Gudrun, sua tola? Se ele desconfiar, acaba-se tudo para sempre; você bem sabe que será para sempre, se descobrir o estado absurdo em que você se encontra...
Depois, sorriu à sua imagem refletida, como se tudo aquilo não passasse de brincadeira de crianças. Entretanto, o coração enfraquecia e ela sentia que podia desfalecer. Podia vê-lo ainda, no espelho, atrás dela, alto e curvado, louro e terrivelmente assustador. E Gudrun lançava-lhe olhares furtivos, disposta a conceder-lhe fosse o que fosse, uma vez que ele não soubesse que o estava observando. Gerald, contudo, nada percebia olhava vagamente, com o olhar brilhante pousado na cabeça da moça, de onde alastravam-se seus cabelos finos penteados com mão nervosa. Ela punha o rosto para o lado e escovava, escovava, como uma louca. Ainda que lhe devesse custar a vida, não seria capaz de se voltar para enfrentá-lo. Sentia nas costas a presença de Gerald, ameaçadora, sentia-lhe o peito firme, sólido, irresistível, apoiando-se sobre ela e tinha a impressão de que isso se lhe tornava insuportável, que tombaria aos pés dele dentro de poucos minutos, que se arrastaria no chão, deixando que o homem a aniquilasse.
Tal pensamento, espicaçando-lhe a inteligência clara, restituiu-lhe a presença de espírito; mas não ousava voltar-se. Gerald continuava de pé, imóvel no mesmo lugar. Reunindo todas as suas forças, Gudrun dirigiu-lhe a palavra, em voz cheia, ressonante, indiferente. Fizera apelo a tudo quanto lhe restava de autodomínio.
- Por favor, procure na minha mala o meu...
Mas a energia abandonou-a. "O meu... O meu quê?", perguntava a si mesma.
Gerald sobressaltou-se, admirado de que ela o mandasse procurar qualquer coisa. E Gudrun voltou-se então, muito pálida, com os olhos brilhantes, numa estranha excitação. Ele estava inclinado para a mala, desapertando as correias, distraído...
- Procurar o quê?
- Uma caixinha de esmalte... amarela... com um desenho...
Ao dizer isso, levantara-se e fora ao encontro do rapaz; baixou o braço, nu e soberbo, e começou a remexer no conteúdo da maleta, ate que descobriu a caixa, delicadamente pintada.
- É esta. Vê? - e colocou-a sob os olhos de Gerald.
Tinha conseguido frustrá-lo. Deixou-o apertar os cordões da mala, e acabou de ajeitar, às pressas, o penteado para a noite; depois, sentou-se para tirar os sapatos. Não desejava ficar outra vez de costas para ele.
Gerald fora logrado, iludido, mas não tinha consciência disso. Agora a superioridade era de Gudrun. Percebeu que ele não notara o medo terrível que se apossara dela; o coração pulsava agora pausada e sossegadamente. Estúpida, estúpida, em se ter assustado àquele ponto! Graças a Deus, Gerald não reparara em nada, no meio da cegueira que o envolvera.
Desatou vagarosamente os sapatos; ele, por sua vez, começou a despir-se. Ainda bem que o momento crítico havia passado. E Gudrun já se sentia apaixonada por aquele homem e novamente enternecida.
- É verdade, Gerald - disse, rindo. Que brincadeira tão engraçada a sua com a filha do professor!
- Qual brincadeira - perguntou ele, admirado.
- Pobre menina, estava louquinha por você! - continuou ela, com o ar mais divertido e amável deste mundo.
- Que tolice!
- Tolice? - tornou Gudrun, querendo aborrecê-lo. - E agora, a pobre pequena está neste momento na cama, morrendo de paixão. Acha você belo como nenhum outro homem. Que coisa engraçada!
- Engraçado?
- Fazia gosto ver vocês dois - prosseguiu em tom de censura complacente, que lisonjeou em Gerald a sua vaidade de macho.
- Francamente, Gerald! Pobre pequena!
- Não fiz mal nenhum a ela...
- Chegava a ser escandalosa a maneira com que você a segurava...
- Era a dança tirolesa - explicou ele, rindo e mostrando os dentes brilhantes.
- Ah... Ah... Ah... - fazia Gudrun, rindo também.
O som de sua voz motejadora ressoava dentro dele, como prolongada por estranhos ecos. Quando adormeceu, parecia encolhido no leito e enrolado na sua própria força.
Gudrun dormiu profundamente, num sono vitorioso. De repente, despertou. As paredes de madeira do quarto iluminavam-se com a luz da aurora, que vinha através da janela baixa. Erguendo a cabeça, descobriu lá embaixo, no vale, a neve ainda pouco visível; parecia mágica, em tons de rosa. Viu também, no sopé da colina, a franja de pinheirinhos e um vulto magro que se movia no espaço fracamente iluminado...
Consultou o relógio. Eram sete horas. Gerald ainda estava profundamente adormecido. E ela já se sentia tão desperta que chegava a se sentir irritada. Que lucidez inflexível e metálica! Ficou estendida na cama, a olhar para ele.
Gerald dormia escravizado à sua derrota, e também ao seu vigor. Mas Gudrun considerava-se ainda mais vencida. Perante ele, recuava sempre amedrontada. Ali estava agora na cama, a contemplá-lo, a imaginar o que aquele homem significava no mundo. Tinha vontade livre, independente, com toda certeza. Lembrou-se da revolução que se fizera em suas minas, em tão pouco tempo. Qualquer problema que precisasse resolver, por mais árduo e difícil, conseguia sempre dominá-lo, disso estava ela também convencida. Se uma ideia se metia em sua cabeça, não descansava ate a colocar em prática. Sabia fazer surgir a ordem em meio à confusão. Em qualquer situação intrincada ele sabia encontrar a solução. Assim era Gerald.
Durante alguns instantes, Gudrun deixou-se arrebatar pelas asas da ambição. Gerald, com a sua força de vontade e o dom de compreender o mundo atual, seria a pessoa indicada para resolver os problemas novos, como o da industrialização na vida moderna. Gudrun não duvidava de que ele, com o decorrer do tempo, efetuaria as reformas que desejasse: reorganizaria, decerto, todo o sistema industrial. Quanto a isso não tinha dúvidas. Para tais coisas era um instrumento maravilhoso: jamais vira outro homem dispor de tamanha energia. Poderia o próprio Gerald não estar compenetrado dessa verdade; Gudrun, porém, sabia-o a perfeição. Necessitava, todavia, de alguém que o empurrasse, que lhe desse o impulso e a consciência da ação. Disto era ela capaz. Casariam, o marido seria deputado do Partido Conservador, e haveria de esclarecer a grande confusão que girava em torno da indústria e do trabalho. Soberbo e destemido, dominador por natureza, sabia que, na vida, como na matemática, todos os problemas são suscetíveis de resolução. E Gerald resolvê-los-ia sem que, nessa tarefa, o movessem interesses de qualquer espécie. Ninguém mais honesto, na realidade.
O coração da moça pulsava rápido: ei-la voando nas asas do entusiasmo, idealizando o futuro. Gerald seria um Napoleão da paz, ou um Bismarck, e ela a sua inspiradora. Tinha lido as cartas de Bismarck e ficara profundamente impressionada com elas. Mas Gerald talvez ainda fosse mais independente, mais intrépido do que o grande estadista.
Enquanto permanecia naquele arrebatamento, banhada pela estranha e falsa luz da esperança numa vida feliz, qualquer coisa se quebrou dentro dela e começou a sentir-se invadida por terrível descrença, como se uma ventania se levantasse de subido e varresse com ela seus bons pensamentos. Tudo agora se transformava em ironia, tudo tinha um sabor sarcástico. E, ao reconhecer a inutilidade de suas ideias e de seus projetos, sentiu a angústia de uma inegável realidade.
Observava-o enquanto ele dormia. Tão belo parecia, que se julgaria constituir um instrumento de perfeição. E, ao espírito dela Gerald significava na verdade um instrumento puro e sobre-humano. Esse caráter ia-se-lhe revelando cada vez mais nítido a ponto de Gudrun desejar ser Deus para se servir de Gerald como de uma ferramenta.
Mas, no mesmo momento, surgiu a pergunta cética: "Para quê". Lembrou-se das mulheres dos mineiros, com os seus oleados e cortinas de renda, mães de crianças com botinhas de amarrar. Pensou depois nas esposas e filhas dos gerentes das minas, com as suas partidas de tênis e seus tremendos esforços por parecerem superiores umas às outras na escala social. Só restava Shortlands, com as suas distinções idiotas e a turba desmiolada dos Criches, e depois Londres, a Câmara dos Deputados, a gente em evidência, ó Deus misericordioso!
Apesar de jovem, Gudrun conhecia a sociedade inglesa. Não pretendia subir na esfera social. Bem sabia - com o perfeito cinismo da mocidade cruel - que elevar-se na sociedade significava apenas mudar de aparência e que a vantagem não era superior à de ter uma moeda falsa de grande valor em lugar de uma moeda falsa de pequeno valor. Não era de lei a moeda com que se avaliavam as diferenças. Contudo, esse mesmo cinismo reconhecia que, num meio em que o dinheiro não é um cunho legal, mais vale um soberano falso do que um farthing de mentira. Mas, tanto aos ricos como aos pobres, Gudrun devotava igual despreza. Ela mesma já começava a troçar dos seus devaneios. Seria tão fácil realizá-los! Mas compreendia muito bem quanto eram ridículos os seus entusiasmos. Que lhe importava que Gerald transformasse em indústria rica aquela velha empresa extenuada? Sim, que lhe importava isso? Uma coisa, ou outra, não passava de insignificância para ela. É claro que, exteriormente não se podia negar interesse, mas, na verdade, para ela, aquilo tudo era cômico! Para ela tudo se transformava em motivo de riso. Inclinou-se sobre Gerald e murmurou compassivamente:
"Ah, meu bem amado, não vale a pena você se cansar tanto. Você é uma pessoa extraordinária, não se gaste assim numa tarefa tão ingrata!"
Enternecia-se por ele, cheia de pena e de tristeza; mas, ao mesmo tempo, a ironia que a levava a fazer esse discurso mudo entristecia-lhe os cantos da boca. Que farsa tudo aquilo. Recordou-se de Parnell e de Katherine O'Shea. Parnell! No fim de contas quem poderia tomar a sério o nacionalismo irlandês? Quem realmente acreditaria na política da Irlanda? Quem realmente acreditaria na da Inglaterra? Quem é que a tomava a sério? Quem se importava que a esfrangalhada Constituição fosse remendada mais uma vez? Quem se ocuparia dos princípios nacionais mais do que do chapéu de coco inglês? Tudo não passava de chapéus velhos, velhos chapéus de coco!
"É assim mesmo, Gerald, meu herói! Em todo caso, evitaremos as náuseas que resultariam de se mexer uma vez mais no caldo corrompido! Seja belo, Gerald, e descanse. Há momentos perfeitos na vida. Acorde, Gerald, acorde, e convença-se de que esses momentos perfeitos ainda existem. Convença-me, pois necessito demais ser convencida!"
Ele abriu os olhos e fitou-a. Ela o saudou com um sorriso enigmático, de uma alegria pungente. O sorriso refletiu-se no rosto de Gerald, que o retribuiu, inconsciente do que fazia.
Gudrun sentiu-se satisfeita por ver que o sorriso que ele esboçara pairava assim nos lábios dele. Lembrou-se que era assim que faziam as criancinhas; sentiu-se radiante, extraordinariamente feliz.
- Conseguiu - disse ela.
_ O quê? - perguntou Gerald, sem entender o que ela queria dizer.
- Convencer-me.
Curvou-se sobre ele e beijou-o com paixão, de tal maneira que ele não sabia o que acontecera com ela. Não lhe perguntou de que é que a tinha convencido, embora fosse esse o seu desejo. Ficara contente pelo fato de ter sido beijado. Parecia que ele lhe tocara o coração, queria também que atingisse todo o ser, ansiava por isso mais do que tudo na vida.
Lá fora alguém cantava com voz viril descuidosa e bela:
Mach mir auf, mach auf du Stolze,
Mach mir ein Feuer von Holze.
Vom Regen bin ich nass,
Vom Regen bin ich nass...
Faz-me, ó vaidosa,uma fogueira /De aparas de madeira / Molhou-me a chuva / Molhou-me a chuva. - nota da tradutora).
Gudrun compreendeu que aquela canção ressoaria dentro dela eternamente, entoada por uma voz viril, descuidada e zombeteira. Marcara uma dos momentos supremos, de angústia e ao mesmo tempo de nervosa satisfação. Ficaria em sua memória, eternamente dentro dela.
O dia raiou belo e azulado. Do alto das montanhas soprava um arzinho leve, fino como uma espada, trazendo consigo poeiras de neve imponderável. Gerald saiu; tinha o rosto sereno e o olhar distraído, como um homem cuja alma está cheia de contentamento. Ele e Gudrun formavam nessa manhã uma unidade perfeita e definitiva, mas sem o saberem, sem se darem por tal. Conduziram um trenó, deixando Úrsula e Birkin segui-los mais atrás.
Gudrun ia vestida de vermelho e azul, vermelhos a blusa e o gorro azuis, a saia e as meias. Mostrava-se alegre sobre a neve, e Gerald, ao lado dela, de branco e cinza, dirigia o veículo. Foram-se afastando, diminuindo na distancia, enquanto subiam a colina íngreme.
Ela própria tinha a impressão de se fundir na brancura envolvente, tornando-se pura como o cristal, destituída de quaisquer preocupações. Quando chegou ao alto, exposta ao vento, olhou em volta e viu muitos picos atrás de outros picos, rocha e neve, tudo azul, elevando-se para o céu. Lembrava-lhe um jardim onde as pontas agudas fossem flores puríssimas que o coração colhesse uma aura. A sua consciência e a de Gerald pareciam reunidas.
Quando desceram, aos solavancos, pela escarpada ladeira, Gudrun agarrou-se muito a ele, experimentado a sensação de que seu corpo se aguçava como se corresse sobre uma pedra de afiar, tão ardente como uma chama. A neve saltava de cada lado do trenó, como faíscas projetadas por uma lamina que se amola; a alvura corria cada vez mais ligeira, a vertente precipitava-se contra ela e Gudrun liquefazia-se como um glóbulo em fusão, dançando, deslizando através da imensidade alvinitente. Ao atingirem o sopé da colina, fizeram um desvio, inclinando-se como se fossem cair, e diminuíram então a velocidade.
Descansaram alguns instantes. Quando, porém, quis levantar-se, Gudrun não conseguiu equilibrar-se. Soltou um grito estranho, voltou-se e agarrou-se a Gerald, escondendo a cabeça no peito dele, quase desmaiando. Apoderou-se do seu espírito um alheamento completo, e ficou, por momentos, abandonada nos braços do rapaz.
- Que é que você tem? - inquiriu este. - Foi muito violento para você?
Ela, porém, nada ouvia.
Quando voltou a si, endireitou o busto e olhou em volta, espantada. Tinha o rosto pálido e as pupilas dilatadas e brilhantes.
- O que foi?
Gudrun fitou-o com aqueles olhos cintilantes que pareciam transfigurados. Depois riu-se, e o riso denotava uma alegria terrível.
- Não! - exclamou, tranquilamente. - Foi o momento mais completo da minha vida.
Continuou a mirá-lo, rindo sempre de forma excessiva, como se estivesse possessa. Gerald sentiu que uma lamina afiada lhe trespassava o coração; mas não fez caso nem deu a entender.
Tornaram a subir a encosta, e lançaram-se outra vez lá de cima, através da chama branca, esplendidamente... Gudrun soltava risadas, com os cabelos enfeitados de flocos níveos. Gerald manobrava o trenó com precisão; sabia-se capaz de o dirigir sem errar. Admitia que aquele carrinho-voador representava a exteriorização de sua vontade; bastava-lhe oscilar um braço e o movimento do veículo confundia-se como dele próprio. Exploraram as outras vertentes, em busca de novos declives. Gerald tinha a impressão de que haviam de encontrar um melhor; e realmente acharam uma descida rápida e extensa que ia findar na base da colina, junto a um grupo de árvores. Era perigosa, disso não tinha dúvida. Mas o rapaz não ignorava que poderia comandar o trenó com um simples movimento dos dedos.
Os primeiros dias passaram-se em êxtase de ardor físico, deslizando ora em trenó ora em patins, movendo-se com intensas velocidades numa atmosfera de luz branca; e tudo aquilo parecia ultrapassar a própria vida e arrastar a alma para além, numa correria sobre-humana e abstrata entre a neve imperecível...
Os olhos de Gerald tornavam-se estranhos e duros: e, quando ele seguia sobre as quilhas, dir-se-ia antes uma aparição fatal e temerosa e não um homem; os músculos elásticos eram perfeitos, a trajetória quase aérea, o corpo projetava-se em pleno voo, sem espírito, sem alma, num arranque impetuoso e impecável.
Felizmente, certo dia, começou a cair neve e tiveram de ficar dentro de casa; aliás - como notou Birkin - acabariam por perder as faculdades racionais e ver-se-iam obrigados a exprimir-se por grito e guinchos como estranhos animais polares, de uma espécie desconhecida.
À tarde, Úrsula estava conversando com Loerke, ambos sentados na Reunionsaal. Este parecia sempre aborrecido. Mas agora recuperara a vivacidade e mostrava-se cheio do perverso humor que lhe era peculiar.
Úrsula, no entanto, achava que ele devia ter qualquer motivo de preocupação. O companheiro, o rapaz forte, louro e elegante, andava sério, também, indo e vindo como se o tivessem feito prisioneiro e isso o revoltasse.
Loerke mal havia falado a Gudrun. O amigo, pelo contrário, testemunhara-lhe sempre as maiores atenções e deferências. Gudrun, por seu lado, desejaria aproximar-se de Loerke, que era escultor; gostaria de saber o que pensava a respeito da sua arte. Além disso, o aspecto do homem interessava-a. Tinha um ar de abandono em toda a sua pessoa, e isso despertava a curiosidade, assim como aquele olhar de criatura já muito vivida; além disso, demonstrava tanto amor à solidão, que Gudrun adivinhava nele um artista. Falava, às vezes, como um papagaio, fabricava trocadilhos maliciosos, em geral muito inteligentes, embora nem sempre felizes. E Gudrun descortinava-lhe nos olhos castanhos de gnomo o reflexo melancólico da miséria inorgânica que jazia no fundo de todos aqueles disfarces.
Fisicamente ele parecia um garoto. Loerke nem procurava disfarçar essa impressão. Usava constantemente roupa simples de lã e calções. Tinha pernas magras, mas não se importava em ocultá-las, o que era para admirar em um alemão. Nunca procurava a simpatia de ninguém, por menor que fosse; entretinha-se consigo mesmo apesar da sua aparente jovialidade.
O companheiro, Leitner, era grande desportista, robusto de corpo e possuidor de grandes olhos azuis. Loerke corria de trenó ou de patins, mas não tirava disso a menor satisfação. As narinas finas e delgadas, como as de uma garota de rua, estremeciam-lhe de desdém quando ele via os exercícios de Leitner. Era evidente que aqueles dois homens que tinham viajado e vivido juntos, na mais estreita intimidade, haviam atingido a fase do ódio recíproco. Leitner detestava Loerke com uma raiva impotente e humilhada, e este tratava aquele com desprezo e sarcasmo. Não tardaria muito a haver uma separação.
Atualmente, já pouco privavam um com o outro. Leitner procurava outras pessoas e Loerke permanecia quase todo o tempo sozinho. Quando saía, colocava na cabeça um gorro à moda da Vestfália de veludo castanho, com abas que desciam pelo rosto e tapavam os ouvidos, dando-lhe o aspecto de um coelho orelhudo ou de um gnomo. Tinha o rosto moreno e corado, pele brilhante, seca, parecendo enrugar-se na mobilidade das expressões. Os olhos vivos, castanhos, redondos como os de um coelho, estranhos, desconfiados, denotando depravação consciente, ardiam com uma chama sobrenatural. Sempre que percebia o desejo de Gudrun em lhe falar, afastava-se sem nada dizer olhando para ela com as pupilas sombrias e verrumantes, sem nunca estabelecer as mais simples relações de cortesia. Fizeram até sentir que o francês de Gudrun, demasiado lento e o seu alemão arrastado eram, para ele desagradáveis. Quanto a ele mesmo, falava um inglês estropiado e não fazia o menor esforço para aperfeiçoá-lo. Contudo, entendia muita coisa do que ela dizia. Gundrun, ofendida, deixou-o de lado.
Naquela tarde, ela entrava na sala, vinda da neve, no momento em que Loerke e Úrsula conversavam. Os cabelos dele, finos e negros trouxeram à lembrança de Gudrun a ideia de um morcego, talvez por serem ralos no alto da cabeça redonda e irrequieta, e quase invisíveis nas têmporas. Estava sentado, com o dorso pendido para frente, como se abrigasse também a alma de um morcego. Gudrun percebeu que fazia qualquer confidência com vontade decerto incompleta e rancorosa. Ela se aproximou, sentando-se ao lado da irmã.
Loerke fitou-a e desviou os olhos, como se não a tivesse notado. Na realidade a moça interessava-o profundamente.
- É curioso, Prune, - disse Úrsula, voltando-se para a outra - Herr Loerke está armando um enorme friso destinado a uma fábrica de Colônia para uma parede exterior.
Gudrun observou-o, reparando-lhe nas mãos magras, nervosas, morenas, tenazes; assemelhavam-se a presas, a garras; não pareciam humanas.
- De que tipo? - perguntou ela.
- Aus was? - repetiu Úrsula.
- Granit - elucidou o artista...
Seguiu-se uma série de perguntas e respostas lacônicas, de profissional a profissional.
- Que espécie de relevo?
- Alto-relevo.
- De que altura?
Gudrun achava interessante aquele trabalho: enorme friso de granito para uma imensa fábrica em Colônia. Conseguiu dele alguns esclarecimentos quanto a pormenores. O desenho representava uma feira com camponeses e operários em perfeita orgia, bêbados e ridículos nos seus trajes modernos uns dormindo vertiginosamente, outros boquiabertos em frente as barracas, ou beijando-se e rolando abraçados no chão, ou oscilando dentro de barcos, ou fazendo pontaria com espingardas, tudo num movimento frenético e caótico.
Houve discussões de ordem técnica. Gudrun estava impressionada.
- É esplêndido trabalhar para uma fábrica dessas! - exclamou Úrsula. - O aspecto geral do edifício é bonito?
- É, sim - retorquiu ele. - O friso fará parte do conjunto arquitetônico. É qualquer coisa de colossal.
Depois Loerke endireitou-se na cadeira, encolheu os ombros e prosseguiu:
- A escultura e a arquitetura não devem separar-se. Já passou o tempo da escultura como adorno e da pintura como enfeite. Na realidade, a primeira faz parte sempre da concepção do arquiteto. E, desde que as igrejas são hoje simples museus, e a indústria vem ao nosso encontro, é claro que precisamos aplicar a nossa arte aos edifícios industriais, que são os nossos Partenões... Ecco!
Úrsula meditava.
- O que me parece - disse ela - é que não há necessidade de serem tão soturnas essas construções.
Loerke respondeu animadamente.
- É isso mesmo! Não só não é necessário que esses templos do trabalho sejam feios, como é urgente que a sua fealdade não arruíne o fim em vista. Os homens, daqui por diante, deixarão de se sujeitar a semelhantes horrores. Com a continuação do mau gosto, a vontade deles desapareceria, atingindo o próprio trabalho. Pensariam que este fosse tão feio como os prédios e máquinas, e o próprio esforço seriam englobados no mesmo esquema. E, contudo, as máquinas e o trabalho são belos, doidamente belos. Todavia, quando o operário não quiser trabalhar por achar que isso lhe repugna, teremos o fim da civilização. Preferirá morrer de fome. Usará o martelo para destruir tudo; sim, poderíamos chegar a esse ponto. E, afinal, chegou a oportunidade de construirmos belas fábricas, belas casas para as máquinas.
Gudrun só conseguiu compreender parte do discurso. Sentia-se envergonhada por não ter podido captar tudo.
- Que disse ele? - perguntou ela à irmã. Esta fez um resumo, gaguejando na tradução. Loerke observava o rosto de Gudrun, curioso de descobrir o efeito das suas doutrinas.
- E acredita - disse então a moça - que a arte possa ser útil à indústria?
- A arte interpreta hoje a indústria como outrora o fez quanto à religião - respondeu ele - E a sua feira é uma interpretação?
- Sim, senhora. Que faz o homem quando se encontra numa feira dessas? Ele se desforra do trabalho. Em lugar de obrigar as máquinas a trabalhar, são elas que o obrigam ao movimento, pelo hábito adquirido. Possui no próprio corpo o impulso mecânico...
- Neste caso não há senão trabalho mecânico, na vida do operário. - disse Gudrun.
- Trabalho e nada mais! Concordou ele, inclinando-se para frente. Os olhos eram dois pontos negros onde brilhavam luzes finas como agulhas. - Não é mais do que isso: sujeição à máquina, ou prazer do movimento que esta lhe transmitiu. Movimento, sempre movimento. Se já tivesse trabalhado para comer, saberia então qual é o deus que põe e dispõe...
Gudrun estremeceu, corado. Tinha, não sabia por que, vontade de chorar.
- Não, nunca trabalhei para matar a fome. Mas, de qualquer forma, sempre tenho trabalhado.
- Travaillé? Lavorato? E Che lavoro? Che lavoro? Quel travail est-ce que vous avez fait? - Trabalhado? Trabalhado? E que trabalho? Que trabalho? Que trabalho fez? - nota da tradutora).
Falava uma mistura de italiano e francês, empregando instintivamente uma língua estrangeira quando se dirigia a Gudrun. Acrescentou, ainda sarcástico:
- Mas não trabalhou como se trabalha por esse mundo a fora!
- Sim, trabalhei, e ainda o faço, mas para as minhas despesas pessoais.
Loerke ficou silencioso, olhou-a fixamente, e depois deixou o assunto. Aquela mulher lhe parecia insignificante
- E o senhor - interveio Úrsula - tem trabalhado tanto assim?
O outro mirou-a com desconfiança.
- Sim - replicou, com uma espécie de insolência. - Sei o que é ficar três dias deitado na cama por não ter nada o que comer.
Gudrun contemplava-o com os olhos sérios e muito abertos como quem extraísse a medula dos ossos juntamente com aquela confissão. A natureza de Loerke era refratária a tais depoimentos, mas o olhar grave e profundo de Gudrun parecia abrir-lhe válvulas nas veias, e ele, involuntariamente, continuava a falar:
- Meu pai não gostava de trabalhar. Já não tínhamos mãe. Vivíamos na Áustria polaca. E de quê? Com o que nos pudéssemos arranjar... Quase sempre no mesmo quarto com três outras famílias, cada uma no seu canto... Ah! Ah! Tinha eu dois irmãos e uma irmã... Às vezes uma mulher junto do meu pai. Sempre foi homem independente, à sua maneira... Não trabalhava para ninguém... Ficava revoltado com isso; não conseguia.
- E de que viviam? - perguntou Úrsula.
Loerke fitou-a, e depois, voltando-se subitamente para Gudrun.
- Está compreendendo?
- Mais ou menos.
Os olhos dos dois se encontraram por instantes. Ele desviou os seus. Não pretendia dizer mais nada.
- Como é que se tornou escultor? - volveu Úrsula.
- Como me tornei escultor? - Suspendeu a frase. - Dunque - Mudando de tom: - Cresci... Comecei a furtar coisas do mercado. Mais tarde comecei a trabalhar, marcava com o sinal da casa as peças que iam ao forno. Era numa fabrica de cerâmica. Comecei então a modelar com o barro. Até que por fim achei que era demais. Fiquei em casa e não me apresentei na oficina. Fui a pé no caminho de Munique... depois para a Itália... mendigando, mendigando sempre.
"Os italianos foram muito bons para mim, bons e prestativos. De Bozen ate Roma encontrava quase sempre lugar onde passai a noite e comer. Camas de palha, em casa de camponeses... Estimo os italianos de todo o meu coração. Dunque, adesso... agora, ganho mil libras por ano, às vezes duas mil.
Pousou o olhar no chão e sua voz foi-se extinguindo no silêncio.
Gudrun examinava sua pele fina, delgada, brilhante, esticada na fronte e queimada de sol; admirava-lhe também o cabelo ralo e o bigode rude, espesso, semelhante a uma escova, cortado rente por cima da boca mal definida, de grande mobilidade.
- Que idade tem? - perguntou a moça.
Ele mirou-a, surpreendido.
_ Wie alt - repetiu. Ficou hesitante. Era evidente que preferiria ocultar essa circunstância biográfica.
- E a senhora? - perguntou.
- Tenho vinte e seis anos.
- Vinte e seis! - Contemplou-a nos olhos e calou-se. Depois disse:
- Und Ihr Herr Gemahl, wie alt is er? - E o seu marido, que idade tem? - nota da tradutora).
- Quem? - inquiriu Gudrun.
- Seu marido - explicou Úrsula, em tom irônico.
- É coisa que não tenho - murmurou a moça, em inglês. Todavia, respondeu em alemão:
- Trinta e um anos.
Mas Loerke observava-a atentamente com os seus olhinhos redondos misteriosos, desconfiados. Notava-lhe qualquer coisa de semelhante a si mesmo. Era, de fato, um daqueles indivíduos sem alma que encontra o seu companheiro numa criatura humana. Essa descoberta, porém, fazia-o sofrer. Gudrun, por sua vez, sentia-se fascinada como se um ser estranho - coelho, morcego, lobo marinho tivesse começado a falar com ela; mas, ao mesmo tempo percebia que o homem estava inconsciente daquilo do tremendo poder de compreensão que seria capaz de ter sobre ela, de lhe surpreender os próprios pensamentos. Não conhecia, realmente a força de que dispunha, nem adivinhava quanto com aqueles olhos redondos, perscrutadores e enigmáticos, poderia ler o que se passava dentro dela, descobrir-lhe os segredos, conhecer-lhe, enfim, a alma. Desejava apenas que aquela moça fosse tão somente o que era, e estava persuadido de que tinha disso uma ideia exata, derivada, de forma sinistra, do seu subconsciente e desprovida de ilusões ou de esperanças.
Quanto a Gudrun, parecia ver em Loerke a própria nudez da vida. Todos os outros seres possuíam as suas ilusões ilusão do passado futuro. Ele, porém, com perfeito estoicismo, vivia sem futuro nem passado, isento da menor ilusão. No fim de contas não se enganava a respeito de si mesmo; em ultima análise não se importava com coisa alguma, nada o incomodava nem fazia a menor tentativa para obter solidariedade. Existia como pura vontade sem compromissos, estóica e momentânea. De seu ele só tinha o trabalho.
Era também curioso notar como seduziu Gudrun o fato de conhecer a miséria e degradação dos seus próprios anos de existência. Nada mais insípido para ela do que a ideia do homem bem nascido que segue os trâmites normais através do ginásio e da universidade. Este filho do nada despertara-lhe violenta simpatia; achava o feito da verdadeira matéria subterrânea da vida. Ninguém como ele mergulhara tão fundo.
Úrsula também se sentia atraída. As duas irmãs consagravam-lhe uma espécie de homenagem. Mas, para a primeira havia momentos em que o considerava inferior, vulgar e falso.
Tanto Birkin como Gerald antipatizavam com o escultor; um exasperava se o outro fingia desdenhosamente nem sequer o ver.
- Que acham as mulheres de tão atraente naquele fedelho? - perguntava Gerald.
- Só Deus o sabe - respondeu Birkin. - A menos que haja algum feitiço com que ele as atraia e domine.
Gerald arregalou os olhos, embasbacado.
- Um feitiço com que ele as atraia? - repetiu.
- Decerto - volveu Birkin. - É uma criatura endemoninhada que vive como um criminoso. As mulheres precipitam-se para ele como uma corrente de ar atraída pelo vácuo.
- É estranho que elas façam isso.
_ A verdade é que as enlouquece. Exerce sobre as mulheres a fascinação da piedade e da repugnância, esse monstrinho repelente.
Gerald ficou silencioso, a meditar.
- Que procuram as mulheres, afinal de contas? - indagou ele.
Birkin encolheu os ombros.
- Só Deus o sabe! Cobrirem-se de lama, ao que me parece. É como se sentissem prazer em atravessar um cano de esgoto só ficando satisfeitas ao chegarem ao fim.
Gerald contemplou a neve fina e brumosa que descia la fora. Naquele dia tudo estava escuro, terrivelmente enevoado.
- E o que é que encontram no fim? - inquiriu ele.
Birkin abanou a cabeça.
- Nunca cheguei lá, de maneira que não sei. Pergunte a Loerke que deve saber mais sobre isso do que nos todos.
- Mas a que é que você se refere? - perguntou Gerald, com certa irritação.
Birkin suspirou. Enrugou a testa, aborrecido.
- No ódio da sociedade explicou. - Vive como uma ratazana num rio de corrupção, precisamente no lugar em que este transborda para os poços sem fundo. Tem ido mais longe do que nós. Detesta o ideal de forma intensa. Odeia-o profundamente, embora o ideal ainda o impressione. Suspeito que é judeu, pelo menos em parte.
-É provável! - concordou Gerald.
- Ele é um cancro de negação, que rói raízes da vida.
- Mas por que se ocupam tanto dele?
_ Porque detestam também o ideal, no fundo da alma. Gostam de explorar os esgotos, e ele é a ratazana mágica; vai-lhe mostrando o caminho.
Gerald olhou outra vez para a bruma, lá fora, produzida pela neve.
- Não percebo muito bem a sua linguagem, Rupert. - declarou com voz triste e resignada. - Quanto a elas, acho que possuem um gosto muito esquisito.
- Acho que o nosso não é melhor - atalhou Birkin - a diferença está em que nós pretendemos mergulhar, de vez numa espécie de arrebatamento, e ele deixa-se ir ao sabor da corrente, ou melhor, das imundícies.
Entretanto Úrsula e Gudrun esperavam outra oportunidade de conversar com Loerke. Não valia a pena fazê-lo em presença dos homens. Não seriam capazes de entreter um relacionamento com o escultor misantropo. Era mister que se encontrassem a sós com ele. E o artista preferia que Úrsula estivesse presente para servir de elemento de ligação com Gudrun.
_ Não faz senão escultura arquitetônica? - perguntou-me.
- Agora não. Mas tenho feito de tudo, menos retratos. Nunca os fiz; muitas outras coisas, porém...
- De que espécie?
Calou-se alguns instantes, depois levantou-se e saiu da sala. Voltou pouco depois com um papel enrolado, que entregou a Gudrun. Esta abriu-o e viu que era a reprodução fotográfica de uma estatueta, assinada por F. Loerke.
- Aqui tem um trabalho do início de minha carreira; não é nada arquitetônico. Antes, do gênero popular.
A estatueta representava uma moça nua, pequenina, graciosa, montada num enorme cavalo em pelo. A jovem era delicada, como uma flor em botão. Estava de lado sobre o dorso do animal com o rosto escondido nas mãos, como se sentisse vergonha e repugnância. O jeito do corpo denunciava abandono. Os cabelos curtos - que deviam ser louros - caiam-lhe no rosto e ocultavam-lhe parte das mãos.
Os braços e pernas eram finos e juvenis; estas, ainda mal formada, indicavam o começo de perigosa adolescência e tombavam, infantilmente, no flanco do cavalo majestoso. Fazia pena vê-la assim, com os pés por cima do outro, como se os quisesse ocultar. E ali estava, nua, em cima do corpo nu do animal.
O cavalo mantinha-se na posição largada, em cujo impulso todo ele se estendia. Era maciço e magnífico, cheio de força concentrada. Tinha o pescoço bem feito e terrível como uma foice, e rígidos e enérgicos os músculos.
- Que tamanho tem? - A voz parecia acusar indiferença, tanto ela persistia em afetar um tom desprendido e natural.
- Que tamanho? - repetiu o artista, reclamando-a com a vista. - Sem o pedestal, tem este...
Gudrun examinou Loerke com atenção. Os gestos rápidos e bruscos daquele homem denotavam certo desdém e calculada frieza. Ao mesmo tempo ele a observava também, fixamente. Não perdera o domínio que costumava exercer.
- De que é feita a estatueta? - inquiriu ela, erguendo a cabeça e encarando-o fria e calculadamente.
- Bronze - elucidou. - Bronze patinado.
- Bronze patinado repetiu - Gudrun, aceitando o desafio, muito calma. Estava imaginando os membros delicados, suaves, infantis da moça tornados frios e lisos no bronze verde.
- É muito belo - murmurou, fitando-o, numa homenagem cheia de simplicidade.
Loerke fechou os olhos, e depois abriu-os para os dirigir em outro sentido, triunfante.
- Por que fez o cavalo tão rígido? - interveio Úrsula. Tem a rigidez de um bloco.
_ Rígido? - tornou ele, pondo-se logo em guarda.
- Sim. Veja como mantém a rudeza e a brutalidade do bloco. Os cavalos são animais sensíveis, nervosos. Realmente.
Loerke encolheu os ombros e deixou cair os braços num gesto de indiferença, como que para dar a entender que ela não passava de amadora, ignorante e impertinente.
- Wissen Sie - disse em tom sossegado de condescendência insolente - este cavalo é uma figuração, uma parte de um todo. Está integrado na obra de arte; não se trata do retrato deste ou daquele cavalo a quem se dá um torrão de açúcar, percebe? É o pormenor de um conjunto. Fora deste trabalho, não tem nenhuma significação.
Úrsula, furiosa por ter sido tratada dessa maneira ofensiva, de haut em bas, com que ele descera das alturas da sua arte esotérica para o plano rasteiro do amadorismo em que ela jazia, encheu-se de rubor e levantou a cabeça.
- Em todo o caso - declarou - não deixa de ser um cavalo. O outro tornou a encolher os ombros.
- Como quiser; uma vaca, certamente, é que não é Gudrun, nesta altura, intrometeu-se na contenda, excitada e muito vermelha. Queria pôr termo àquela louca insistência da irmã em dar a sua opinião.
- Que quer dizer com essa observação de que isto não deixa de ser um cavalo? - exclamou, voltada para Úrsula. - Que é que você entende por um cavalo? Quer referir-se a ideia que tem na cabeça e que gostaria de ver representada? Mas pode haver outra ideia, inteiramente diversa. Você pode chamá-lo de cavalo ou do que quiser. Estamos também no direito de dizer que o seu cavalo não é igualmente um cavalo, que é um produto da sua imaginação.
Úrsula hesitou, desconcertada. Depois encontrou as palavras necessárias para responder:
- Mas por que teve ele a ideia de fazer assim o cavalo. É claro que compreendo a intenção: trata-se do próprio retrato do autor, assim interpretado...
Loerke resfolegou de cólera.
- O meu próprio retrato? - exclamou, com um riso escarninho. - Wissen Sie, gnädige Frau - Saiba, minha senhora... - nota da tradutora), que isto é Kunstwerk, ou seja uma obra de arte. Apenas obra de arte, sem ser retrato de ninguém, absolutamente de ninguém. Não tem nada que ver com o que quer que seja, não tem relação com as coisas triviais nem semelhantes, nem parentesco de qualquer ordem. São planos da existência diferentes, muito distintos; e traduzir um na linguagem do outro é rematada loucura, é querer confundir as coisas, lançar em tudo a perturbação. Ouça: não deve misturar o mundo cotidiano e banal com o mundo da arte absoluta. Não tem o direito de fazer isso.
- É claro - acrescentou Gudrun, numa espécie de recapitulação - As duas coisas permanecem totalmente diferenciadas, sem terem nada uma com a outra. Eu e a minha arte nada temos em comum. Eu estou num pólo e ela está no outro.
Tinha as faces coradas pelo ardor da discussão. Loerke estava sentado, com a cabeça pendida, constrangido olhou de repente para a moça, de um modo quase receoso, e murmurou.
- Ja, so ist, so ist es - Sim, é isso, é isso. - nota da tradutora).
Depois daquele sermão, Úrsula recolhera-se ao mutismo, aborrecidíssima. O seu desejo era arrasar a ambos. Mas, pouco depois, replicou, pausadamente:
- Não vejo o menor valor no que você acaba de dizer. O cavalo é mesmo um retrato do íntimo dele, na sua animalidade e a pequena deve ser qualquer moça que ele tivesse amado e torturado, atirando-a fora quando se cansou dela o homem fitou-a e sorriu com desprezo. Não se dignou dar-lhe resposta.
Gudrun também nada disse; sua indignação tornara-se desdenhosa. Úrsula era um profano insuportável, atrevendo-se a calcar terreno que os próprios anjos não pisavam. Mas não havia remédio senão tolerar os imbecis, embora não fosse agradável.
A outra, porém, insistia:
- Quanto a esse mundo de arte e ao mundo da realidade, vocês fazem essa separação pela impossibilidade que tem de saber ao certo quem são. Nem podem conceber como escondem a dureza, a brutalidade, a rigidez; e então dizem: é o mundo da arte! Ora, o mundo da arte é apenas o espelho do outro, e vocês estão muito longe de se verem nele.
Mostrava-se destemida. Empalidecera e toda ela tremia. Gudrun e Loerke continuavam imóveis aborrecidos com o incidente. Gerald que chegara no começo da discussão, ficou também a olhar para ela, reprovador e hostil. Achava aquela atitude pouco digna tinha sido uma nota de mau gosto no esoterismo que confere tanta distinção às criaturas humanas. Tomou os partidos dos outros dois, e todos três principiaram a desejar que ela se fosse embora. Úrsula, porém, conservava-se onde estava, sem nada dizer. Chorava intimamente, tinha as mãos trêmulas e amarrotava o lenço que tinha nas mãos.
Os outros mantinham um silêncio mortal, a espera que se desfizesse a atmosfera desagradável produzida pela intervenção de Úrsula. Por fim Gudrun perguntou, numa voz que afetava indiferença e naturalidade, como se resumisse uma conversa sem importância:
- A moça era modelo?
- Nein, sie war kein Modell. Sie war eine kleine Malscnulenn - Não, não era modelo. Era uma pequena que estudava pintura - nota da tradutora).
- Uma aluna de Belas-Artes! - exclamou Gudrun.
A situação se revelava agora claramente. Imaginava a estudante com o seu corpo ainda mal formado, ignorante e descuidada da vida, com os cabelos louros cortados, caindo-lhe pelo rosto ate ao pescoço e dobrando-se levemente na nuca; via também Loerke, escultor de renome, de quem a mocinha se recusava fazer-se amante, por ser bem educada e de boa família... Como conhecia bem tudo aquilo! Dresden, Paris, Londres, que diferença havia entre essas cidades? Todas iguais.
- Onde está ela agora? - indagou Úrsula.
Loerke fez um gesto de quem se desinteressa, querendo significar a sua máxima indiferença.
- Isso foi há seis anos - explicou. - Deverá ter uns vinte e três anos agora, pouco mais.
Gerald tomara a reprodução e a examinava. O trabalho do escultor o interessava também. E leu no pedestal que a obra se intitulava "Lady Godiva".
- Mas isto não é Lady Godiva - disse ele, sorrindo. - Era mulher de meia-idade, casada com um conde qualquer e tinha os cabelos tão compridos que até se cobriu com eles.
- À moda de Maud Allan - atalhou Gudrun, fazendo um trejeito cômico.
- Por que Maud Allan? - volveu Gerald. - Não seria como eu disse? Sempre pensei que a lenda fosse essa.
- Sim, querido Gerald, estou convencida de que você decorou a lenda exatamente como é.
Riu-se com uma expressão ao mesmo tempo carinhosa e vagamente divertida.
- É claro, prefiro admirar a mulher do que os cabelos... - replicou Gerald, bem disposto.
- Acredito - disse Gudrun, ainda irônica.
Úrsula levantou-se e desapareceu, deixando junto os três. Gudrun recebeu de novo a fotografia das mãos de Gerald e ficou a contemplá-la cuidadosamente.
- Já se sabe - disse ela, começando agora a brincar com o escultor - que você compreendeu bem a sua Malschülerin...
O outro deu de ombros e ergueu as sobrancelhas, condescendente.
- A pequena? - perguntou Gerald, apontando para a reprodução.
Gudrun, sentada, descansara o papel sobre os joelhos. Encontrou o olhar de Gerald e fitou-o com tal intensidade que ele se sentiu encantado.
- Você não acha que ele a compreendeu bem? - interrogou com ironia e bom humor. - Não reparou nos pés? São adoráveis, lindos, delicados! Maravilhosos!
Lentamente, dirigiu o olhar para Loerke, de maneira inflamada, escaldante. A alma do artista recebeu reconhecida aquela prova de admiração. Dir-se-ia que havia tomado uma atitude de superioridade e adquirido maior importância.
Gerald examinou os pés da menina: estavam voltados para o mesmo lado, cobrindo-se quase um ao outro, como que envergonhados e cheios de medo. Ficou assim muito tempo a contemplá-los; depois, sem grande pressa, pôs de lado a fotografia. Sentia-se acabrunhado.
- Como se chamava ela? - perguntou Gudrun ao escultor.
- Annette von Weck - respondeu o artista, como quem se recorda. - Ja, sie war hübsch. Era bonita, mas enfadonha. Insuportável! Incapaz de ficar um minuto sossegada. Tinha vontade de lhe dar bofetadas e ela, chorando, servia então de modelo, durante cinco minutos.
Loerke pensava apenas no seu trabalho; era a única coisa que lhe interessava.
- O senhor chegava a bater nela?
- Sim, cheguei, - respondeu muito naturalmente - e com força. Era preciso. De outra forma não se conseguia trabalhar.
Gudrun examinou-o por uns momentos com os seus olhos grandes e sombrios. Dir-se-ia penetrar-lhe até ao fundo da alma. Depois, silenciosamente, fitou o chão.
- Como é que lhe ocorreu uma Godiva tão menina? - disse Gerald. - Tão miúda, e nesse cavalo... muito criança para montar nele.
Os músculos do rosto de Loerke contraíram-se involuntariamente.
- Não gosto delas nem maiores nem mais velhas. São belas aos dezesseis, aos dezessete, aos dezoito anos. Depois disso não me servem mais.
Houve um instante de silêncio.
- Por que não? - indagou Gerald.
Loerke encolheu os ombros.
- Não as acho interessantes, nem belas... Não convém ao meu trabalho...
- Quer dizer que, depois dos vinte anos, a mulher deixa de ser bonita? - insistiu Gerald.
- Para mim, deixa. Antes dos vinte, é pequena fresca, delicada, leve. Depois disso, torne-se no que se tornar, já não me diz nada. A Vênus de Milo era uma matrona. São todas assim.
- Então, depois dessa idade, as mulheres perdem o valor para o senhor?
- Não me servem, não prestam para a minha arte - repetiu o escultor, impaciente. - Não as considero bonitas.
- Você é um epicurista - sentenciou Gerald, com um risinho sarcástico.
- E a respeito dos homens? - perguntou, de súbito, Gudrun.
- Esses interessam em qualquer idade - respondeu Loerke. - O homem deve ser vigoroso, dominador, velho ou moço, não importa... uma vez que tenha estatura, um tanto de maciço e uma figura estúpida.
Úrsula tinha saído e mergulhara num ambiente de neve, recentemente caída. Mas a brancura cintilante parecia magoá-la ate lhe causar dores; sentia o frio a estrangular-lhe a alma, lentamente. A cabeça estava vazia e aturdida.
De repente, experimentou um desejo feroz de se ir embora. A ideia de que podia partir para outro lugar ocorreu-lhe como que por milagre. Achava-se condenada naquele mundo de neve perpétua; era como se não houvesse salvação!
Agora, súbita e miraculosamente, lembrou-se que, para além, numa altitude menor, jazia a terra escura e fértil; que, para o sul, havia terrenos sombreados de laranjeiras e ciprestes, e oliveiras cinzentas, e robles erguidos para o céu azul com a sua copa frondosa. Milagre dos milagres! Esta paisagem de montanhas geladas e silenciosas não se estendia por todo o planeta. Podia-se abandoná-la. Podia-se fugir dali!
Se o milagre se realizasse imediatamente! Bem gostaria ela de acabar com aquele inferno de neve, com aquelas terríveis montanhas imóveis e glaciais. Ansiava por tornar a ver a terra sombria, respirar o aroma do humo fecundante, ver a vegetação perseverante de outros climas de inverno, sentir os efeitos do sol nos rebentos das plantas.
Voltou assim para a hospedaria, animada da melhor esperança.
Birkin lia, já deitado.
- Rupert, - gritou ela, precipitadamente, para o marido - quero ir-me embora.
O outro volveu-lhe um olhar vagaroso.
- Você quer? - perguntou em voz calma.
Úrsula sentou-se ao lado dele e passou-lhe os braços em volta do pescoço. Admirava-se de que o marido não demonstrasse maior surpresa.
- E você não quer? - perguntou inquieta.
- Não tinha pensado nisso. Mas é claro que sim.
A mulher pôs-se de pé, num movimento brusco.
- Detesto - declarou ela - detesto a neve, que não e natural como não é natural a luz que nos cerca, nem este sortilégio fantástico. Tudo quanto sentimos aqui é contra a natureza.
Birkin manteve-se calmo, pensativo e sorridente.
- Pois bem - concordou ele - podemos partir amanhã mesmo. Vamos a Verona, seremos Romeu e Julieta e sentar-nos-emos no anfiteatro. Sim?
Ela ocultou o rosto no ombro dele, intimidada, perplexa. Rupert era tão condescendente!
_ Sim - repetiu suavemente, como que aliviada. Parecia-lhe que a alma se enchia de júbilo, vendo-o assim tão descuidado. - Que bom sermos Romeu e Julieta! Meu amor! - acrescentou.
- Mas - replicou o marido - sopra dos Alpes, sobre Verona, um frio tremendo. Continuaremos com o cheiro da neve no nariz.
Úrsula sentou-se e fitou-o.
- Sente-se contente em partir? - perguntou-lhe apreensiva.
Os olhos de Birkin mantinham-se risonhos e penetráveis. Úrsula descansou a face no pescoço dele e abraçou-o implorando:
- Não se ria de mim! Não se ria de mim!
- Por quê? Que sucedeu? - Pôs-lhe os braços em torno da cintura e continuou a rir.
- Porque não quero que trocem de mim - murmurou ela.
O marido soltou uma gargalhada e beijou-lhe o cabelo fino e sedoso, perfumado.
- Gosta de mim? - indagou a mulher com gravidade, carregando o semblante.
- Gosto - respondeu Birkin, sempre jovialmente.
Ela, de repente, estendeu-lhe a boca, para que ele a beijasse. Tinha os lábios rijos, carnudos e trêmulos. Os do marido eram brandos, delicados. Demorou-se este uns momentos no beijo que lhe deu; e uma sombra de tristeza perpassou-lhe pelo espírito.
- A sua boca é tão rija - disse, como se a repreendesse levemente.
- E a sua é doce e submissa - tornou ela, contente.
- Mas por que é que você aperta tanto os lábios, Úrsula?
- Não se incomode - respondeu com vivacidade. É o meu jeito.
Sabia que Rupert a amava. Tinha a certeza disso. Entretanto, não gostava que ele a dominasse, nem tolerava que lhe fizesse muitas perguntas. Preferia abandonar-se a delícia de ser amada, mas desconfiava que o marido, apesar da alegria que lhe vinha do fato de Úrsula abandonar-se a ele, guardava no intimo uma vaga melancolia. Consentindo em ser sua mulher não podia, no entanto ser a própria, não se atrevia a revelar-se-lhe em toda a sua nudez, em por de parte a natural reserva nem em depositar nele absoluta confiança. Entregava-se-lhe, era certo, apropriava-se de Rupert e em Rupert encontrava inteira satisfação; naquele homem se achava a verdadeira felicidade. E contudo, não se sentiam inteiramente ligados. Mas estava feliz, gloriosa, independente, cheia de esperança e de liberdade. Rupert, por enquanto, mostrava-se tranquilo, meigo e paciente.
Fizeram os preparativos para irem embora no outro dia. Foram primeiro ao quarto de Gudrun, onde esta e Gerald acabavam de se vestir para descer.
_ Prune - disse Úrsula, é possível que partamos amanhã. Já não posso tolerar a neve. Estraga-me a pele e o coração.
- Sente-se mal? - perguntou a irmã, surpreendida. - Acredito que prejudique a pele; é terrível. Mas, quanto ao coração, suponho que seja admirável.
- Para mim, não. Pelo contrário, ele ofende.
- Engraçado! - exclamou Gudrun.
Houve um pequeno silêncio. Úrsula e Birkin perceberam que os outros ficavam aliviados com a ideia de partida deles.
_ Vão para o sul? - perguntou Gerald, cuja voz denotava certo constrangimento.
- Vamos - asseverou Birkin, desviando a conversa.
Havia ultimamente, entre os dois homens, uma estranha e inexplicável hostilidade. Birkin mostrava-se, de modo geral, sombrio e indiferente; era paciente, mas distraído, desde que chegara ao estrangeiro, ao passo que Gerald, pelo contrário, se sentia combativo e cheio de vida naquela atmosfera de neve. Os dois contrariavam-se em tudo.
Gerald e Gudrun foram muito amáveis para os que partiam, ocupando-se de quanto lhes restava, solicitamente, como se se tratasse de duas crianças. Gudrun apareceu no quarto da irmã; levou-lhe três pares de meias de cor, coisa em que era especialista, e colocou-os em cima da cama. Eram meias de seda grossa, compradas em Paris: vermelhas, azuis e cinzentas. Estas últimas, muito pesadas, não tinham costura e eram de malha. Úrsula ficou encantada. Compreendeu quanta ternura havia na irmã para que se separasse assim de tamanho tesouro.
- Não posso aceitá-las, Prune. Não posso privar você dessas maravilhas.
- Não são maravilhas! - exclamou Gudrun, lançando um olhar saudoso à sua oferta. - Bobagens!
- Mas você devia guardá-las - tornou Úrsula.
- Não preciso delas. Tenho mais três pares. Gostaria que você as aceitasse...
E, com mãos nervosas, excitada, depôs a dádiva debaixo do travesseiro da irmã.
- Um dos grandes prazeres da vida é possuir meias bonitas - disse Úrsula.
- É verdade - confirmou a outra. - Um dos maiores prazeres.
Sentou-se na poltrona. Era evidente que tinha vindo conversar antes da partida. Úrsula, sem saber o que a irmã desejava, conservou-se silenciosa.
- Você tem a impressão - principiou Gudrun, pouco convencida de suas palavras - tem a impressão de que se vai para sempre, para não mais voltar?
- Ah, não! Voltaremos - respondeu a irmã. - Mais cedo ou mais tarde, voltaremos.
- Sim, compreendo. Mas, em espírito, para assim me exprimir, vocês afastam-se de nós, não é verdade?
Úrsula sentiu um arrepio.
- Não faço nenhuma ideia do que possa acontecer. Sei apenas que partimos para qualquer lugar.
Gudrun ouviu a explicação e perguntou:
- Está contente?
Úrsula refletiu durante alguns momentos.
- Creio que sim, que estou muito contente.
Mais do que pelo tom incerto das palavras, Gudrun adivinhou a verdade no brilho inconsciente que a face da irmã irradiava.
- E não acha que pôde sentir necessidade de regressar aos velhos conhecimentos deste mundo, ao pai, ao resto da família e a tudo o mais que isso representa? A Inglaterra, a vida do pensamento? Não acredita que sejam precisas todas estas coisas para que o seu ambiente tenha realidade?
Úrsula estava silenciosa, procurando compenetrar-se daquelas razões.
- Penso - disse ela por fim, mas involuntariamente - Rupert tem razão: viver num espaço novo e diferente, desapegar-nos do antigo...
Gudrun observou a irmã, com os olhos fixos e o rosto impassível.
- Que se deseje viver num meio diverso, concordo inteiramente. Julgo, porém, que um mundo novo é sempre o desenvolvimento do velho mundo, e que isolar-se aí com outra pessoa não é encontrar aquele, mas sim criar mais uma ilusão.
Úrsula olhou para fora, através da janela. Começava-lhe um combate na alma e isso assustava-a. Sempre tivera medo das palavras, pois sabia que a simples força que emitem podia força-la a crer naquilo de que ela descria.
- Talvez - concordou, embora não muito persuadida, antes desconfiada de si própria. - Mas - acrescentou - penso que não se encontra nada de novo enquanto estamos apegados ao passado. Compreende o que quero dizer? Combater o passado e ainda pertencer-lhe de qualquer maneira. Bem sei que a tentação maior é a de ficar no mundo e lutar por algum tempo. Mas que vantagem haveria nisso?
Gudrun pensou em seu próprio caso.
_ Sim - disse ela - em certo sentido fazemos parte do aglomerado, uma vez que nele vivemos. Mas não será ilusão supor que podemos fugir? Aliás, uma casa de campo nos Abruzzos ou em outro canto qualquer não constitui um mundo novo. Não, Úrsula: a única coisa que se tem de fazer para nos desenganarmos da terra é visitá-la por inteiro.
A outra parecia olhar de muito longe. Assustava-se tanto com discussões!
- Mas pode haver outro processo, não acha? - disse ela. Podemos visitar o mundo através da nossa alma, muito tempo antes de o conhecer na realidade. E, uma vez que conheçamos bem a nossa alma, tudo se torna diferente.
- Vê-lo através do nosso espírito? - perguntou Gudrun. - Se você quer dizer que se pode adivinhar o que vai suceder não concordo. Não, não é possível. E em qualquer caso não e fácil voar assim para outro planeta pela razão de que já se sabe o que neste vai acontecer.
Úrsula pôs-se de pé repentinamente.
- É fácil, sim senhora, é fácil. Neste mundo nada temos a esperar. Possuímos uma espécie de outro eu que pertence a um planeta diferente. É forçoso fugirmos deste.
Gudrun meditou alguns segundos. Seu rosto mostrou uma expressão de complacência, quase de desprezo.
- E o que acontecerá quando você se encontrar no espaço? _ perguntou à irmã, em tom irônico. - Afinal de contas, as grandes ideias são as mesmas em toda parte. Não conseguira por de lado o fato por exemplo, de que o amor é o fim supremo, tanto na terra como fora dela.
- Não - replicou Úrsula - não é. O amor é demasiado humano e mesquinho. Acredito em qualquer coisa extra-humana, da qual o amor é apenas uma parcela. Creio que a nossa missão nos virá do desconhecido e dirá respeito a algo infinitamente superior ao amor. Não é unicamente humano.
Gudrun, com seus olhos firmes e equilibrados, contemplava a irmã. Admirava-a e desdenhava-a ao mesmo tempo. Depois, sem transição, desviou a vista e declarou friamente, em tom desagradável:
- Pois não conheço nada além do amor.
Foi então que um pensamento atravessou, como um relâmpago, o espírito de Úrsula: "Como você não amou ainda, não é capaz de ultrapassar o amor".
Gudrun levantou-se, aproximando-se da irmã, e passou-lhe o braço em torno do pescoço.
- Vá, minha querida, vá em busca do seu mundo novo - disse ela com voz em que se percebia benevolência fingida. - Em última análise, a mais feliz de todas as viagens deve ser em busca das Ilhas Encantadas de que fala Rupert.
Conservou o braço em volta do pescoço da irmã, e, com os dedos, acariciou-lhe a face durante algum tempo. Úrsula estava extremamente contrafeita. O ar protetor de Gudrun parecia-lhe um insulto. E esta, sentindo a resistência da irmã, afastou-se desajeitada. Levantou o travesseiro e descobriu as meias que lá estavam.
- Ah! Ah! - tentou rir, sem vontade. - De que é que estamos falando? Novos mundos, velhos mundos...
E trataram de passar a outros assuntos mais corriqueiros.
Gerald e Birkin tinham partido à frente; esperariam pelo trenó que devia conduzir os viajantes, para que Rupert tomasse o seu lugar no veículo.
- Quanto tempo ainda se demoram aqui? - perguntou Birkin, examinando o rosto corado, quase inexpressivo, do outro.
- Não posso dizer. Até ficarmos fartos.
- Não receia que a neve se derreta antes?
Gerald riu-se.
- Chega a derreter? - perguntou.
- Tudo corre bem entre vocês? - volveu Birkin.
Gerald contraiu um pouco o olhar.
- Se corre bem? Nunca percebi o que significa essa frase. Correr bem e correr mal são muitas vezes sinônimos.
- Sim, também acho. E quando regressam, afinal?
- Não sei. Talvez fiquemos aqui para sempre. Não olho para trás nem para frente de mim - respondeu Gerald.
- Nem para o que não existe... - atalhou Birkin. Gerald investigou ao longe com as pupilas diminuídas, abstrato, como um falcão.
- Em tudo isto há qualquer coisa definitiva. Gudrun, para mim, é a meta que eu queria alcançar Não sei... Mas vejo-a tão branca, pele tão sedosa, braços indolentes e meigos... Ela incendeia, de certo modo, o meu espírito... - Deu alguns passos, olhando sempre em frente, fixamente; dir-se-ia haver afivelado máscara semelhante à do ritual religioso dos povos bárbaros - Destrói a visão da alma, deixa-nos como cegos... E procurando ser cegos e amaldiçoados, não queremos mais outra.
Falava como se estivesse em transe, inconsciente e pálido. E, de súbito, em voz de melopeia, firmando-se em Birkin de forma rancorosa e assustada, foi dizendo:
- Sabe o que é sofrer quando se esta com uma mulher? - Ei-la tão bela, perfeita, bondosa; rasga-nos o coração como se fosse de seda, e a cada rasgão dói e queima... Ah, meu amigo esta perfeição... quando nos destruímos a nos mesmos! Além disso - Parou, ereto sobre a neve, e abriu as mãos, de punhos cerrados - Não é nada... O cérebro pode reduzir-se a pó, e... - Mirou em volta, para o nada, com um esquisito ar de histrião - Tudo se arrasa. Compreende o que digo. É uma grande aventura, talvez a derradeira... e então... encolhemo-nos como se recebêssemos uma descarga elétrica. - Recomeçou a andar em silêncio. Tinha o aspecto de quem dizia coisas absurdas, mas, ao mesmo tempo, era sincero, como se se visse obrigado à fazer tais confidências. - Decerto - prosseguiu - não procurei evitar que isso acontecesse. É uma aventura completa! E que mulher maravilhosa! Mas, as vezes, detesto-a... É curioso...
Birkin olhou para o outro, que parecia estranho, distante. Era como se Gerald estivesse confuso em face das suas próprias.
- Mas agora, chega, não? - acudiu Birkin. - A experiência foi suficiente. Para que prosseguir além?
- Não sei. Ainda não acabou...
E os dois continuaram a andar.
- Estimei-o tanto como Gudrun, não se esqueça - disse Birkin com certa amargura. Gerald atentou nele, de forma esquisita, sem compreender.
- Acha que sim? - disse então, em tom de descrença, friamente. - Ou será só na sua imaginação? - Dizia isto, no entanto, sem pensar.
O trenó chegou. Gudrun apeou-se. Fizeram as despedidas. Estavam desejosos daquela separação. Birkin entrou no carrinho, que se pôs em movimento, deixando sobre a neve Gerald e Gudrun ambos a agitarem as mãos, a dizer adeus. O coração de Birkin enregelava-se de os ver ficar para trás, na desolação daquela brancura, cada vez mais pequeninos, mais distanciados...


Capítulo XXX
No meio da neve
Depois que Birkin e Úrsula partiram, Gudrun sentiu-se a vontade na sua contenda com Gerald. À medida que se iam habituando um ao outro, parecia que ele a procurava subjugar cada vez mais. A princípio ainda ela conseguia impor-se, e a sua vontade conservava-se independente. Mas não tardou muito que Gerald começasse a desdenhar aquela tática feminina, perdendo o respeito pelos caprichos e segredos da moça e exercendo o seu domínio cegamente, sem jamais se submeter aos desejos dela.
Entre eles surgia, pois, um conflito: ambos estavam apavorados com essa ideia. Ele não tinha quem lhe valesse, ela, porém, procurava algum auxílio externo.
Quando a irmã se foi embora, Gudrun sentiu que a sua vida se tornava rígida e elementar. Subiu ao quarto e ficou ali sozinha, contemplando da janela as estrelas enormes e cintilantes. A sua frente estava a sombra indefinida das montanhas. Eram como o eixo do mundo. Gudrun sentia-se estranha, colocada sobre aquele eixo do mundo e da vida; para além, cessava a realidade.
Nesse momento, Gerald abriu a porta. Ela previra que ele não se demoraria lá fora. Nunca lhe era dado estar só: impunha a sua presença, como o frio amortecendo-lhe a energia.
- Está abandonada nas trevas? - Pela voz, ela compreendeu que estava irritado, e irritado contra a solidão de que ela procurava rodear-se. Contudo, percebendo que nada poderia fazer, Gudrun mostrou-se atenciosa e pediu-lhe:
- Quer acender a vela?
Gerald não respondeu, mas avançou e ficou por trás dela, no escuro.
- Veja - disse Gudrun - que estrela maravilhosa! Sabe que nome tem?
Gerald curvou-se ao lado de Gudrun para observar através da janela baixa.
- Não sei - respondeu. - É linda!
- Lindíssima! Veja como solta clarões de diferentes cores. É uma soberba cintilação.
Calaram-se. Mudamente, com um gesto fatigado, ela pôs-lhe a mão nos joelhos, e tomou a dele entre as suas.
- Está sentindo falta de Úrsula?
_ Não. - Depois, muito vagarosa, acrescentou: - Qual é a sua maneira de amar?
Gerald aproximou-se mais de Gudrun.
- O que é que você acha?
- Não sei.
- Diga - insistiu Gerald.
Houve uma pausa. Por fim, na escuridão do quarto, ouviu-se a voz dela, dura e indiferente:
- Creio que o seu amor é muito pequeno. - Disse aquilo em tom frio, quase petulante.
- E por que é que não amo você? - perguntou como se admitisse a verdade daquela acusação, embora lhe guardasse rancor.
- Não sei, tenho sido boa para você. Quando veio ter comigo estava em tal estado de excitação...
Falava de maneira ofegante, mas era forte e impiedosa em sua acusação.
- Quando é que você esteve assim?
_ Da primeira vez... Tive pena de você. Não era amor o que você sentia.
Esta declaração soava-lhe aos ouvidos de uma forma que o fazia enlouquecer.
_ Por que repetir tantas vezes que não era amor? - perguntou ele com voz encolerizada.
- Você pensa que ama?
Gerald estava tão irritado que não respondeu.
- Não se julga capaz de me amar? - perguntou ela em tom de mofa.
- Não.
- Você nem sabe que nunca me teve amor, não é verdade?
- Não sei o que você entende pela palavra amor - replicou ele.
- Sim, sabe. Sabe perfeitamente que nunca foi assim. Não é verdade? - respondeu Gerald, prontamente, levado pelo seu espírito de sinceridade e de teimosia.
- E você jamais me terá amor - concluiu ela.
Mostrava uma frieza diabólica, insuportável.
- Não.
- Então - retorquiu ela - de que se queixa?
O outro calava-se, frio, desesperado e receoso. "Se ao menos pudesse matá-la..., pensava consigo mesmo; "se ao menos pudesse matá-la, ficaria livre!"Achava que a morte seria a única maneira de resolver aquele problema.
- Mas, por que torturar-me? - exclamou.
Gudrun passou-lhe os braços em volta do pescoço.
_ Não quero torturá-lo - respondeu compadecida, como se estivesse consolando uma criança. A impertinência acabara com os sentimentos dele; mostrava-se insensível. Ela continuava a abraçá-lo numa atitude de triunfante misericórdia, numa piedade tão fria como uma pedra, no mais profundo ódio por aquele homem, e no meio do domínio que ele podia recuperar e que era preciso combater hora a hora.
- Diga que me ama - pediu Gudrun. - Diga que há de amar-me sempre, diga!
Porém, apenas a voz o acariciava. Os sentidos permaneciam à parte, afastados, hostis. Só a vontade imperiosa é que insistia.
- Não quer dizer que me terá amor para sempre? - tornou ela, fazendo-se persuasiva. - Diga, ainda que não seja verdade. Diga, Gerald.
- Amo você para sempre - repetiu este, a custo. As palavras se recusavam a ser pronunciadas, ele sentia-se agoniado.
Gudrun beijou-o, num movimento rápido.
- Imaginar que você o disse... que o disse agora - comentou ela, zombeteira.
Gerald sentia-se como uma criança que acabasse de receber um castigo.
- Tente gostar um pouco mais de mim e desejar-me um pouco menos - continuou a moça, semidesdenhosa e semi-afável.
As trevas pareciam ter invadido, em ondas sucessivas, o cérebro de Gerald, ondas soturnas, que lhe varriam o espírito. Julgava-se humilhado, reduzido a uma coisa desprezível.
- Quer dizer que não me deseja? - perguntou ele
_ Você insiste tanto! E tem tão pouca compaixão, tão pouca delicadeza! Você é brutal. Você me destrói, desgasta; é horrível para mim!
- Para você?
- Sim. Não acha que eu poderia ter um quarto só para mim, agora que Úrsula foi-se embora? Podíamos dizer que precisamos de um quarto de vestir.
Gerald esforçou-se para responder.
- Como quiser. Pode ate partir de vez, se quiser.
_ Eu sei - replicou ela. - Você também, sem precisar me prevenir.
Gerald a custo se mantinha de pé. Sentia-se fraco e tinha a impressão de que ia cair desamparadamente. Despiu-se e atirou-se na cama, como se estivesse bêbado, a obscuridade erguia-se e abaixava-se como se fosse um mar vertiginoso e negro. Durante algum tempo ficou estendido, imóvel, inconsciente, em meio a um martírio abominável.
Finalmente, Gudrun levantou-se e aproximou-se dele. Gerald permanecia rígido, de costas para ela. Dir-se-ia haver repudiado a voz dos sentidos.
Colocando os braços ao redor de seu corpo, que denunciava aterradora insensibilidade, encostou o rosto no ombro do rapaz.
- Gerald! - murmurou. - Gerald!
Ele não se mexeu. Ela o atraiu para si, premindo os seios nas espáduas dele, beijando-o através da camisa. Não compreendia por que aquele homem estava tão hirto, quase sem vida. Sentia-se desnorteada e queria que ele acordasse e lhe falasse.
- Gerald! Gerald querido! - balbuciou, inclinando-se e dando-lhe um beijo na orelha.
A rigidez pareceu atenuar-se com o calor morno das carícias, com o roçar rítmico dos lábios. O corpo, ela bem o sentia, ia-se humanizando pouco a pouco, perdendo aquela frieza tão anormal. As mãos dela corriam-lhe sobre o tronco, tateando os músculos, que se contraíam sob a pressão.
Finalmente, o sangue circulou, aquecido, nas veias, e os membros retomaram a sua mobilidade.
- Volte-se para mim - cochichou ela, abandonando-se ao consolo do triunfo.
Finalmente, Gerald reanimou-se, recuperando a agilidade e o calor. Virou-se para ela e abraçou-a; e sentindo-a tão perto, tão suave, perfeita e dócil, em atitude tão inesperada, a estreitou contra si. Gudrun sentia-se arrebatada, sem opor resistência, e o cérebro de Gerald ficara outra vez rijo e invencível: era como um diamante que nada pudesse destruir.
A paixão que experimentou por ela foi violenta, medonha, impessoal, semelhante a uma catástrofe. Gudrun supôs que ele a ia matar. Teve a sensação de estar sendo assassinada.
- Meu Deus! Meu Deus! - exclamou, na agonia daquele amplexo, julgando que a vida lhe fugia. Quando Gerald a encheu de beijos, acalmando-a lentamente, Gudrun considerou-se esgotada e moribunda.
- Vou morrer? Vou morrer? - repetia para si mesma.
Mas nem ele nem a noite responderam a essa pergunta.
Contudo, no dia seguinte, a parte da sua alma que não fora impressionada continuou intata e hostil. Não se foi embora. Permaneceu disposta a terminar as suas férias sem querer saber de mais nada. Ele quase nunca a deixava só, seguindo-a como uma sombra. Era como uma condenação, seguindo-a como uma sombra. Às vezes Gerald parecia ser mais forte e Gudrun nem existia, arrastando-se sobre a terra como uma aragem que esmorece Noutras ocasiões acontecia o contrario. Mas sempre, o eterno pêndulo oscilava, ora destruindo as esperanças de um, ora reanimando-o pelo aniquilamento do outro.
"Mais dia menos dia", pensava ela, "terei de deixa-lo". "Posso livrar-me desta mulher", comentava ele nos paroxismos do sofrimento.
Decidiu, pois, abandoná-la. Preparou-se para ir embora e ela que se arranjasse como pudesse. Todavia, pela primeira vez, a vontade vacilou.
"Ir para onde?", perguntou a si mesmo.
Você não se basta?", respondeu-lhe a consciência, fazendo apelo ao orgulho.
"Bastar-me a mim próprio!", repetiu ele.
Achava que a moça não precisava de ninguém que, como um aparelho num estojo formava um conjunto perfeito, independente. Assim raciocinava ele, muito tranquilo, e ela estava no seu direito de se bastar a si mesma, de ser suficiente e de não ter desejos. Compreendia o fato, aceitava-o, e necessitava somente de um esforço para alcançar ele próprio semelhante vantagem. Sabia que lhe faltava apenas forçar a vontade e conseguir obter igual suficiência, fechar-se dentro de si mesmo isolado, impenetrável satisfeito, como um penedo fixado a terra.
Mas tal ideia lançou-o num tremendo caos. Pois, embora mentalmente quisesse ser livre e completo, faltava-lhe a vontade, que não sabia como obter. Via perfeitamente que, para existir com independência, precisava libertar-se de Gudrun, deixa-la, nada revindicar.
Mas, para isso, era preciso manter-se por si mesmo. A ideia reduzia-o a nada; seria o mesmo que aniquilar-se totalmente. Mas também poderia declarar-se vencido, adulá-la... Finalmente, poderia matá-la - a não ser que se tornasse indiferente, disperso sem se importar com a vida. A sua natureza, porém, era seria em demasia sem a jovialidade e a sutileza necessárias para um amor despreocupado e licencioso.
Em sua alma rasgava-se uma estranha fenda: como uma vítima dilacerada brutalmente e oferecida aos céus em holocausto, assim ele se sacrificara pelo amor de Gudrun. Como sarar tais feridas? Essa chaga, esse ferimento singular, infinitamente sensível e aberto na sua alma, pelo qual ficava exposto como uma flor desabrochada, a todo o universo, e por onde escapara parte de si próprio, o seu outro eu; aquela ferida que o ponha naquele desdobramento do ser que o deixava incompleto, limitado, inacabado como uma corola desfolhada ao sol, isso constituía agora a sua alegria cruel. Privar-se dela, então, para que? Para que encerrar impenetrável e independente como uma semente dentro do fruto, quando a verdade é que havia germinado à luz fecundante para lançar rebentos e elevar-se no espaço?
Queria guardar a felicidade indefinível do desejo mesmo em meio ao martírio que a jovem lhe infringia. Apoderava-se dele uma estranha obstinação. Não se afastaria de Gudrun, por mais que ela fizesse ou dissesse. Arrastava-o para a mulher um desejo singular e fatal; era a influência determinante do seu ser embora ela o tratasse com desdém, o acolhesse mal e o recusasse. Não se resolvia a partir, porque, estando junto de Gudrun, se sentia mais vivo, até mais independente na sua própria limitação; saboreava a magia da promessa tanto como o mistério da destruição e do aniquilamento de si mesmo.
Martirizava seu coração ferido, quando Gerald se aproximava. Mas a própria Gudrun também se submetia à tortura. Tinha a impressão - e isso causava-lhe horror - de que ele lhe rasgava as fibras da alma, dilacerando-as por prazer. Era como uma criança arrancando as asas de uma mosca, ou abrindo um botão para descobrir lá dentro a flor, despedaçava-a para ver o segredo da sua intimidade, da sua existência, como quem revolve uma flor ainda fechada, cruel e violentamente.
Gudrun pudera abrir-se com ele, noutro tempo, nos seus sonhos, quando era puro espírito. Mas, agora, não queria ser forcada nem destruída. Fechava-se contra Gerald, insulada no seu orgulho.
À tarde, ambos subiram a altas colinas para admirar o pôr do sol. Detiveram-se sob o vento fino e áspero que soprava, contemplando o astro alaranjado que mergulhava numa atmosfera avermelhada que desaparecia. Depois, para os lados do oriente, os picos e as cristas das serras iluminaram-se de tons rosados, vivos, incandescentes como flores imortais de encontro a um céu de púrpura sombria, miraculosa, enquanto embaixo o mundo parecia uma sombra azulada, e lá no alto, como uma anunciação, pairava um halo róseo entre as nuvens.
Para Gudrun era tudo isto tão belo, tão delirante, que ela desejaria colher aqueles picos cintilantes e eternos, estreitá-los ao peito, e depois morrer. Gerald via-os também, e achava-os igualmente belos. Mas nenhum clamor lhe saía do peito, apenas experimentava amargura, que era ao mesmo tempo devaneio. Preferiria que as montanhas fossem cinzentas e sem esplendor, de forma que a moça não pudesse encontrar nelas estímulo nenhum. Por que motivo se atraiçoava, a si mesmo e a ele também, entregando-se ao fulgor da tarde moribunda? Por que o deixava ali, em pé, com a aragem fria a atravessar-lhe o coração como se fosse a própria morte, para se volver toda à contemplação dos cimos róseos e nevados?
_ Que importa o crepúsculo? - disse ele. - Por que se ajoelha diante dele? É assim tão importante para você?
Gudrun retraiu-se, ofendida e furiosa.
- Vá-se embora - ordenou-lhe - e deixe-me sozinha aqui. É lindo, lindo! - murmurava numa voz cantada e singular. - É a coisa mais bela que jamais vi na minha vida. Não tente interpor-se entre mim e o poente. Vá-se embora. Este não e o seu lugar!
Gerald recuou um pouco e deixou-a ficar onde estava espécie de estátua transposta para um místico pedestal resplandecente. Os tons de rosa já se iam desvanecendo, e enormes estrelas claras apontavam no céu. O rapaz esperou. Teria renunciado a tudo, menos a essa fascinação.
- É a coisa mais bela que já vi na vida - repetiu Gudrun numa entonação fria e cruel, quando se voltou, finalmente, para Gerald. - Aflige-me a ideia de que você tente perturbar este espetáculo. Se não sabe admirar, por que não me permitir que o faça - Na realidade, o encanto que ela sentira já fora até miado, e Gudrun esforçava-se em reanimar uma sensação desaparecida.
- Um dia - disse ele fitando-a calmamente - darei cabo de você quando estiver olhando para o poente, tudo em você e falso.
Ao pronunciar estas palavras, experimentou como que uma suave volúpia. Gudrun ficara gelada, mas não perdeu a arrogância.
- Ah! Não tenho medo de suas ameaças.
Fugiu dele e foi ocupar, na hospedaria, um quarto rigorosamente separado, onde mais ninguém poderia entrar. Ele, entretanto, aguardava paciente, sem perder o desejo que a moça lhe inspirava.
"No fim", dizia Gerald para consigo - e esta promessa começava a ser-lhe voluptuosa -, "quando chegar a determinado ponto, destruí-la-ei." E pressentindo aquela morte, todos os membros lhe tremiam no mais violento acesso de paixão, e aproximava-se dela ébrio de apetites.
Em frente de Loerke, Gudrun mostrava agora uma curiosa submissão, um tanto insidiosa e perversa. Gerald percebeu. Mas, no estado de paciência sobre-humana que se impunha, e não querendo mostrar-se aborrecido perante ela - em quem reconhecia uma parte de si mesmo - fingiu não reparar, se bem que aquela simpatia concedida a um homem que ele detestava como inseto pernicioso, o fizesse estremecer de cólera e lhe desse repetidos acessos de furor.
Gerald só a deixava quando ia patinar, desporto que adorava e que ela não praticava. Nesses momentos, o rapaz sentia-se fora da vida como um projétil lançado no além. E então, quando ele não estava presente, Gudrun entretinha-se com o escultorzinho alemão. O assunto invariável era a arte da sua profissão comum.
Comungavam nas mesmas ideias. Loerke não gostava de Mestrovic, não se satisfazia com os futuristas, apreciava as estatuetas de madeira do Oeste africano, a arte dos astecas, do México e da América Central. Sabia descobrir o grotesco, e certos movimentos mecânicos o perturbavam por estabelecerem confusão na natureza. Entregavam-se os dois, Gudrun e Loerke, a um estranho jogo de infinitas sugestões, raras e doentias, como se tivessem ambos o mesmo sentido esotérico da vida, como se fossem os únicos iniciados nos segredos vitais e assustadores que o resto do mundo não se atrevia a conhecer. A conversa decorria por meio de estranhas imagens, não facilmente compreensíveis. Entusiasmavam-se com a luxúria sutil dos egípcios e dos mexicanos e todo esse divertimento prosseguia centre alusões inteligentes, desejando qualquer deles manter-se no plano da insinuação. Dessas graduações verbais e físicas extraíam a mais alta satisfação para o sistema nervoso: era um intercâmbio estranho de ideias simplesmente sugeridas, olhares, expressões e gestos que, para Gerald, seriam intoleráveis, embora não os entendesse. Quanto a este, não tinha no seu vocabulário termos que servissem àquele comércio intelectual; os seus eram em demasia grosseiros.
O encontro da arte primitiva servia de principal motivo de conversa: refugiavam-se nesses mistérios íntimos da sensação, objeto do seu verdadeiro culto. A arte e a vida significavam para eles o real e o irreal.
- É claro - dizia Gudrun a existência não tem importância real: a arte só é que interessa. O que fazemos na vida tem peu de rapport, não significa quase nada.
- Nem mais nem menos - respondia o escultor. - O que se realiza em nossas almas artísticas é que representa o sopro vital. O que praticamos fora disso é uma insignificância, embora os outros se preocupem tanto com essas ninharias.
Era curioso observar como Gudrun aproveitava, daqueles colóquios, tantas sugestões de exaltação e de liberdade.
Sentia-se mais estabilizada, talvez de uma forma definitiva. Gerald, como se sabe, não passava de uma nulidade, o amor era um ato temporal na sua vida, exceto no que dizia respeito a sua qualidade de artista. Lembrou-se de Cleópatra, que também devia ter sido artista: retirara do homem tudo quanto ele possuía de essencial, colhera a derradeira sensação e deitara fora os restos. Assim, Maria Stuart e a ilustre Rachek - que delirava com os seus amantes, fora do palco - eram igualmente representantes esotéricos do amor. No fim de contas que era este sentimento senão a lenha utilizada para incendiar a ciência sutil da arte feminina, arte da pura e perfeita sabedoria na compreensão dos sentidos?
Certa tarde, Gerald e Loerke conversavam acerca da Itália e de Trípoli. O inglês estava inflamado e o outro parecia excitado. Digladiavam-se com palavras, mas na realidade o que havia entre eles era um conflito espiritual. Durante todo o tempo Gudrun pôde observar o desprezo arrogante dos da sua raça pelos estrangeiros. Embora tremesse um pouco, seus olhos flamejavam, seu rosto se avermelhava e, no que dizia, perpassava seu desdém selvagem e peculiar, que tanto indignava a moça e mortificava o alemão Gerald apresentava seus argumentos como marteladas, e tudo quanto o escultor dizia era considerado sem o menor valor.
Por fim, Loerke voltou-se para Gudrun, ergueu as mãos num gesto instintivo de desespero, e encolheu os ombros para indicar que desistia. Tinha, ao mesmo tempo, um ar impotente e infantil, na sua deserção.
- Sehen Sïe, gnädige Frau... - Está vendo isso, minha senhora - nota da tradutora) - começou ele.
- Bitte, sagen Sie nich immer gnädige Frau - É favor não me chamar sempre de Frau (senhora casada) - nota da tradutora) - começou Gudrun com as faces escaldando. Parecia uma autentica Medusa. A voz saía-lhe forte, atroadora, e as pessoas que estavam na sala ficaram espantadas. - Faça o favor de não me chamar de Senhora Crich - repetiu bem alto.
Aquele nome, especialmente nos lábios de Loerke, constituía ultimamente, para ela, um constrangimento humilhante e insuportável.
Os dois homens olharam para ela, pasmados. Gerald empalideceu.
- Como devo chamá-la, então? - perguntou Loerke em tom ligeiramente sarcástico.
- Sagen Sie nur nich das - A frase está traduzida mais adiante no mesmo parágrafo - nota da tradutora) murmurou ela, muito corada, com as faces ardentes - Pelo menos, não diga isso.
Pela expressão que despontou no rosto de Loerke, ela Percebeu que o rapaz havia percebido tudo. Não era a Senhora Crich! Aquilo explicava muita coisa.
- Soll ich Fraülein sagen? - Devo tratá-la por Fraulein (senhorita)? nota da tradutora), perguntou malevolamente.
- Não sou casada - confirmou Gudrun, com altivez. O coração batia-lhe com violência, como o de um pássaro desnorteado. Compreendia que se havia excedido, e só essa ideia era o bastante para a fazer sofrer.
Gerald ficara absolutamente calmo, pálido e imóvel, qual uma estátua. Desinteressara-se de Gudrun, de Loerke, de todos. Estava tranquilo, inalterável. O escultor, encolhido, de cabeça pendida para o chão, olhava para eles disfarçadamente.
Gudrun procurava, aflita, qualquer coisa que dizer, a fim de quebrar o silêncio. Contraindo a face num sorriso forçado, lançou a Gerald um olhar de compreensão, dizendo:
- É melhor que saibam a verdade.
E imediatamente recaiu sob o domínio dele - porque o ofendera, porque o magoara tanto, porque não sabia como Gerald iria reagir. Ficou a observá-lo. Interessava-se agora pelo homem. Loerke perdera todo o encanto.
Gerald levantou-se por fim, e foi, calmamente, conversar com o professor. Pouco depois ambos empenhavam-se numa discussão a respeito de Goethe.
Aquela naturalidade irritou bastante a moça. Gerald não se mostrara nem zangado, nem desgostoso; tinha, pelo contrario, um ar estranhamente cândido e puro. Muitas vezes apresentara aquele aspecto digno e distante, que tanto a fascinava.
Esperou apreensiva. Pensou que a fosse evitar, dando-lhe a entender o seu aborrecimento. Mas Gerald tratou-a com simplicidade, sem a mínima alusão ao incidente. Na alma de Gerald havia uma grande paz, que o tornava absorto e pensativo.
Gudrun recolheu-se ao quarto; experimentava por Gerald um amor escaldante, violento. Ele era tão belo e inacessível. O rapaz a beijou. Era o seu amante. Quanto prazer extraia ela daquela circunstância! Gerald, porém, não mudou a sua maneira de tratá-la. Continuou remoto, inocente, quase inconsciente. Gudrun queria que ele falasse; mas esbarrava com aquele estado de graça, de abstração em que ele parecia divagar.
Pela manhã, contudo, Gerald olhou para a moça comum pouco de aversão, de horror, de ódio tenebroso nas pupilas. Voltou ela então à sua posição anterior. Ele, no entanto, desconhecia toda a extensão da sua força, para que a pudesse empregar com eficiência.
Loerke esperava o reaparecimento de Gudrun. O artista, isolado em si mesmo, calculava que descobrira, enfim, uma mulher interessante. Sentia-se inquieto, esperando por ela para conversar, saboreando a ocasião de tê-la junto a si. A presença de Gudrun enchia-o de ardor, estimulava-o, e ele girava astutamente em volta dela como que arrastado por uma atração inevitável.
Loerke comparava-se a Gerald. Este era um profano e ele o detestava pela sua riqueza, orgulho e belo aspecto físico. Todas estas coisas, porém, representavam apenas elementos exteriores. Quando se tratava de agradar a uma mulher como Gudrun, ele, Loerke, dispunha de poder e atrativos que faltavam a Gerald e que ele não poderia imaginar nem em sonhos.
Como esperasse que uma mulher da categoria de Gudrun se satisfizesse com ele, Loerke detinha um segredo que ultrapassava aquelas qualidades. O maior poder é o que sabe adaptar-se sutilmente e não o que ataca de olhos fechados. Ele, Loerke seria capaz de penetrar nas profundezas de toda a ciência, ao contrario do amante de Gudrun. Gerald ficara para trás, como um noviço que espera na antecâmara do templo dos mistérios: esse templo era Gudrun. Loerke, pelo contrário, conseguiria penetrar até ao mais íntimo e oculto, descobrir o espírito dela e vencer a serpente enroscada no próprio âmago da vida. Afinal de contas, o que é que exige a mulher? Simples consideração pessoal, satisfação de ambições? A união no amor e na bondade? Deseja ela, realmente, "a bondade"? Quem seria tão louco de julgar isso de Gudrun? Seriam estes os seus desejos, aparentemente. Mas quem atravessasse o limiar, veria com quanto encarava ela o mundo social e todas as suas vantagens. Quem descesse ao fundo de sua alma notaria a atmosfera pungente de ceticismo, e a consciência crítica, viva e sutil com que ela apreciava a sociedade antipática e falsa.
Que sucederia então? A pura força do amor cego seria capaz de a satisfazer? Não, decerto: mas as emoções vivas e penetrantes de uma conquista lentamente conduzida o conseguiriam; antes uma vontade inflexível reagindo contra a vontade dela em sensações constantes, antes uma análise persistente e delicada exercendo-se no mais oculto da alma da mulher. A forma exterior e individual, pelo contrário, permanecendo sem alteração, seria ineficaz.
Mas entre duas criaturas, entre dois habitantes da terra, a série de impressões acaba por ser limitada. A sua escala, uma vez orientada em certa direção, deixa de produzir efeito, e extingue-se. Não há repetições possíveis, impõe-se a separação dos dois protagonistas ou a submissão de um ou de outro, ou ainda a morte.
Gerald atingira todos os pontos extremos da alma de Gudrun; tornara-se para esta o exemplo crucial do mundo exterior o nec plus ultra da vida dos homens nas relações para com ela Por ele ficara conhecendo a sociedade com a qual gostaria de romper. Tendo-o esgotado, assemelhava-se ela a um Alexandre a procura de novas conquistas. Mas não havia países novos nem novos homens, apenas indivíduos pequenos e fracos, seres ínfimos, da categoria de Loerke. O mundo, pois, finalizara para Gudrun. Restava-lhe apenas uma sombra interior, individual a sensação íntima do ego, o repugnante mistério da diabólica limitação, enigmática atividade para se reduzir e desintegrar do corpo orgânico da vida.
Tudo isto pressentia ela na sua inconsciência, nunca no espírito. Sabia que passos deveria dar quando deixasse Gerald. Tinha medo dele, receava que a matasse. Não queria ser assassinada, é claro. Sentia-se ainda unida a ele por um fio muito tênue, que a morte não despedaçaria. Gudrun precisava ir mais além, sentia existir ainda uma colheita de experiências lentas e delicadas a realizar, antes de abandonar a vida.
Para estas supremas sensações, Gerald não era a pessoa indicada. Não seria capaz de atingir o mais vivo da sua carne. Mas, onde os golpes violentos daquele homem não penetravam, a finura e agudeza de Loerke triunfariam. Era acerado como um inseto, perfurante como uma lâmina. Chegara, pois, a ocasião de passar para o outro, o artífice perfeito e definitivo. Não ignorava que Loerke, no mais recôndito de sua alma, se afastara de tudo e de todos; para ele não havia céu, nem terra, nem inferno. Não admitia autoridade alguma, não se submetia a ninguém. Solitário sempre e - por abstração do resto - absoluto em si próprio.
Gerald, pelo contrário, desejava pertencer ao mundo inteiro. Isso mostrava os seus limites. Era, de fato, limitado, borne, submetido, em última análise, ao que criara, bom, justo, coerente com as suas necessidades. Mas, entre essas necessidades, não figurava a morte com a sua experiência sutil e perfeita. Era aí que residia a sua limitação.
Loerke pairava numa atmosfera de triunfo desde que a moça lhe confessara não ser casada com Gerald. O artista parecia uma mariposa em voo, mantendo-se nas asas à espera do momento de pousar. Não se importava de esperar. Jamais seria importuno. Levado por um instinto seguro na obscuridade da sua alma, correspondia-se com a dela de forma imperceptível, misteriosa, mas palpável.
Conversaram durante dois dias, sempre sobre temas de arte, na qual encontravam ambos tanto prazer. Adoravam as coisas dos tempos idos, achavam encanto sentimental e infantil na perfeição das épocas pretéritas. Amavam particularmente o final do século XVIII, o período de Mozart, e a época do Goethe e de Shelley.
Entretinham-se com o passado e com as grandes figuras desaparecidas, numa espécie de jogo de xadrez, com o que se divertiam intensamente. Todos os homens notáveis lhes serviam de bonecos de molas; eles dois eram os dirigentes do espetáculo e puxavam os cordéis, pondo tudo a funcionar. Quanto ao futuro, jamais se ocupavam disso, exceto quando um deles expunha, a rir, qualquer fantasia humorística da destruição do mundo por meio de uma catástrofe ridícula, resultado de uma invenção qualquer: algum explosivo, talvez, poderosíssimo, que partiria a Terra em duas partes, ficando os dois pedaços a girar no espaço em direções opostas, diante do pasmo dos respectivos habitantes. Ou então imaginavam os homens divididos em dois partidos contrários, cada um deles convencido de ser o mais justo e perfeito, e considerando o outro indigno e merecedor de ser arrasado; calculavam, assim, várias espécies de fim do mundo. Havia ainda um sonho sinistro delineado por Loerke: a Terra se resfriaria, a neve cairia por todos os lados, e só os seres brancos - ursos polares, raposas brancas, homens semelhantes a terríveis aves das regiões árticas - permaneceriam na crueldade do gelo.
Quando não se distraíam com tais fantasias, Loerke e Gudrun evitavam falar no futuro. Preferiam divertir-se imaginando processos cômicos de destruição do planeta ou dissecando personagens românticas do passado. Era tão agradável reconstituir a vida de Goethe em Weimar, ou a de Schiller com a sua pobreza e o seu amor fiel, ou ressuscitar os temores de Jean-Jacques, ou Voltaire em Ferney, ou Frederico, o Grande, lendo seus próprios versos.
Palestravam durante horas sobre literatura, escultura e pintura recreando-se com Peuerbach e Bocklin. Seria necessária a duração de uma vida inteira, pensavam, para reviver in totum a existência dos grandes artistas. Mas tanto um como outro preteriam deter-se nos séculos XVIII e XIX.
Falavam numa mistura de idiomas, com base no francês. Loerke terminava a maior parte das frases por um tartamudear em inglês e uma tirada em alemão, ao passo que ela chegava ao fim do seu pensamento com as palavras que mais depressa lhe viessem ao espírito. Gudrun deliciava-se com estes colóquios. Havia estranhas expressões, fantásticas mesmo, frases de duplo sentido, evasivas sugestivas, reticências. Constituía, de fato, uma maravilhosa satisfação física poder tecer uma conversa com os fios diferentemente coloridos de três línguas.
Durante todo este tempo, volteavam, hesitantes, em torno de uma invisível declaração. Bem a desejava ele, mas impedia-o uma certa repugnância que não conseguia vencer. Ela, por seu lado, experimentava a mesma vontade, mas ia transferindo sempre; tinha pena de Gerald, sentia-se ainda ligada àquele homem foi o pior de tudo é que esse relacionamento derivava de reminiscências porque havia sido, considerava-se unida por laços invisíveis e imortais - sim, pelo que tinha sido, pelo fato de ter ido ele, naquela primeira noite, à sua casa, sob tremenda compulsão.
Gerald experimentava repulsa cada vez maior por Loerke. Não o levava a sério, desprezava-o simplesmente; porém, quando adivinhava em Gudrun a influência daquele entezinho mórbido, ficava fora de si; enfurecia-o perceber na jovem o predomínio de Loerke, a presença avassaladora do escultor.
- O que é que a entusiasma tanto nesse verme? - perguntou certa vez, sinceramente intrigado. Pois, para ele, nada via de atraente nem de notável no escultor. Pensava que só a beleza e a dignidade poderiam suscitar interesse às mulheres. Nada disso havia no alemão, apenas o que se via dele era a aparência repulsiva de um inseto.
Gudrun corou profundamente. Jamais lhe perdoaria as observações que fazia.
- Que quer dizer? - perguntou ela. - Como dou graças a Deus por não me ter casado com você!
O tom de voz, desdenhoso e insultante, impressionou-o. Mas, pouco depois, retomou o ataque:
- Responda-me, sim? O que vê de fascinante nele?
- Não estou fascinada - respondeu Gudrun, com ar inocente. Está, sim. A serpentezinha fascinou-a e a deixou qual um passarinho prestes a cair-lhe da boca.
Gudrun fitou-o, enfurecida.
- Não permito que o meu procedimento seja discutido - redarguiu.
- Que o permita ou não, pouco me importo. Isso não destrói o fato de estar prontinha para cair nas redes que ele armou. Faça o que entender, meta-se na boca da víbora. Mas o que eu gostaria de saber é o que tem ele de atraente.
Gudrun mergulhou numa cólera sombria.
- Como se atreve - disse finalmente - a tratar-me com tamanha arrogância? Como ousa fazer isso, meu provinciano fanfarrão? Que direitos supõe ter sobre mim?
O rosto de Gerald brilhava, pálido. Os olhos fulguravam. Gudrun percebeu que tombara em poder do lobo. Odiava-o por ser dominada por ele, odiava-o tanto que poderia ser capaz ate de matá-lo.
- Não é uma questão de direitos - replicou Gerald, sentando-se na poltrona.
Gudrun observava-lhe todos os gestos. Via seu corpo mexer-se em movimentos naturais, e aquilo era para ela uma verdadeira obsessão. À ira que sentia acrescentou-se um desprezo definitivo.
- Não se trata dos direitos que tenho sobre você - repetiu ele - porque os tenho, quer você queira, quer não. Quero apenas saber o que a subjuga a esse escultor de merda, que esta la embaixo e que a faz curvar-se em adoração à sua passagem. Quero saber, perante quem, em suma, você se prostra de joelhos.
Gudrun ouvia-o debruçada à janela. De repente, voltou-se para dentro.
- Quer saber? - exclamou num tom desembaraçado e fustigante. - Quer saber o que vejo nele? É a compreensão que tem da alma de uma mulher. É isso.
O rosto de Gerald animou-se de uma expressão estranha, sinistra, bestial.
- Que tipo de compreensão? A de uma pulga munida de tromba, saltitante? Por que você há de rastejar abjetamente em homenagem a uma pulga?
No espírito de Gudrun passou a ideia da representação de uma pulga, consoante a interpretação de Blake, e tentou aplica-la a Loerke. Mas Blake era demasiado caricatural. Que iria responder a Gerald?
_ Você não acha que a inteligência de uma pulga e mais interessante do que a de um imbecil? - perguntou ela.
- Um imbecil? - repetiu Gerald.
- Sim, um imbecil vaidoso, um dummkopf - confirmou a jovem enriquecendo o seu vocabulário com uma palavra alemã.
- Está dizendo que eu sou um imbecil? Pois prefiro ser isso do que a tal pulga que está lá embaixo.
Gudrun enfrentou-o. Gerald tinha um ar de estupidez tão cega e obtusa que ela desanimou, limitando-se a dizer:
- Com essas últimas palavras, você se definiu.
O rapaz refletiu.
- Não tardarei a ir-me embora - declarou.
Gudrun não o deixou sem resposta:
- Lembre-se de que sou completamente livre. Trate da sua vida que eu tratarei da minha.
Aquela observação levou-o a meditar.
- Quer dizer que deste momento em diante somos estranhos um para o outro?
Ela hesitou, corando. Gerald armava uma ratoeira.
- Estranhos - disse ela - nunca poderemos ser. Mas se quiser desembaraçar-se de mim, confirmo que você é independente e senhor de suas ações. Não se preocupe comigo.
Aquela observação, embora velada, era a confissão de que ela ainda precisava dele. Isso reacendeu-lhe o amor. Deixou-se ficar imóvel porém, a expressão já não era a mesma. Corria-lhe pelo corpo uma corrente semelhante ao metal fundido. Gemeu interiormente, sob o jugo, mas a escravidão lhe era grata. Mirou-a com os olhos claros e esperou.
Gudrun percebeu o que se passava e sentiu-se estremecer. Mas continuou fria e revoltada. Como podia ele contemplá-la com aqueles olhos claros, quentes, suplicantes? Como podia ter, mesmo naquele momento, esperanças nela? O que haviam dito, de parte a parte, não seria o bastante para cavar um abismo entre os dois para separá-los para sempre? Ei-lo entanto, ali estava ele alerta e transtornado, disposto a recebê-la!
Aquilo desconcertava a moça. Voltou-se para o lado e disse:
- Não deixarei de preveni-lo, assim que tomar uma decisão.
E com isto, saiu do quarto.
Gerald ficou sentado, entregue ao horror da decepção que parecia destruir-lhe gradualmente o entendimento. Todavia, a paciência persistia nele de forma inconsciente. Conservou-se imóvel, sem saber o que fazer, sem pensar sequer. Por fim levantou-se e desceu para o andar térreo, onde jogou uma partida de xadrez com um dos estudantes. Tinha um ar acolhedor e franco e certa inocência no seu laisser-aller, que perturbaram Gudrun o mais possível; ele fazia-lhe medo e inspirava-lhe simultaneamente profunda antipatia.
Foi depois dessa ocasião que Loerke - que nunca lhe perguntara nada de sua vida particular - começou a interrogá-la.
- Não é mesmo casada?
Gudrun fitou-o bem nos olhos e respondeu de modo categórico:
- Claro que não.
Loerke riu-se, franzindo o rosto de modo engraçado. Um tufozinho delgado de cabelos tombava-lhe sobre a testa, e Gudrun reparou em sua pele de um tom moreno-claro, assim como as mãos e os punhos, que se assemelhavam, estranhamente, a duas garras. Loerke assemelhava-se a um topázio, amarelado e transparente.
- Ainda bem - declarou.
No entanto, precisava de coragem para prosseguir.
- A Senhora Birkin é sua irmã, não é?
- É.
- É casada?
- Sim, é.
- Tem pais vivos?
- Sim, nossos pais ainda são vivos.
E expôs-lhe, em termos breves, lacônicos, qual era a sua posição. Loerke olhava-a atentamente, sempre debaixo da mais viva curiosidade.
- Só! - exclamou, um pouco surpreendido. - E Herr Crich é rico?
- Sim, é rico. É proprietário de minas de carvão.
- Há quanto tempo dura a sua intimidade com ele?
- Alguns meses.
Houve uma pausa.
- Estou admirado - volveu o escultor, finalmente. - Considerava os ingleses muito mais frios... Que pensa fazer quando o deixar?
- Que penso fazer? - repetiu ela.
- Sim, creio que não pretende voltar a ensinar. Não é possível mais - declarou, encolhendo os ombros. - Deixe isso à canaille que não sabe fazer outra coisa. A senhora é uma pessoa original, eine seltsame Frau. Para que negar a evidência? É uma mulher estranha, por conseguinte não deve seguir as outras estagnando-se em uma vida banal.
Gudrun, muito corada, olhava para as mãos. Agradava-lhe ouvir dizer que era uma pessoa diferente das outras. E ele não o dizia para a lisonjear não era aquele o jeito dele, tão objetivo se mostrava sempre! Declarava aquilo como se notasse que tal peça de estatuária tinha qualidades, porque sabia ser verdadeiro.
Ela se regozijava com semelhantes elogios. Os outros costumavam rebaixar tudo e todos ao mesmo nível, estabelecendo um modelo único. Na Inglaterra, era de bom-tom ser perfeitamente vulgar. Ser considerada como um ente diferente da multidão era coisa extremamente grata à moça. Não precisaria afligir-se com a opinião de mais ninguém.
- Mas a questão é que não disponho de dinheiro.
- Ach! Dinheiro! - exclamou o artista, num gesto de indiferença. - Quando já atingimos a maioridade, o dinheiro não é difícil de encontrar. Só quando somos inexperientes é que ele escasseia. Não pense em dinheiro, o terá sempre que quiser.
- Acha? - perguntou-lhe Gudrun, sorrindo.
- Sempre. Der Gerald dá-lhe o necessário, se lhe pedir.
Gudrun ruborizou-se intensamente.
- Pedirei a qualquer um - replicou a moça - menos a ele. - Dissera isto com certa dificuldade.
Loerke olhou-a com atenção.
- Está bem. Peça-o a quem melhor entender. O que não deve é voltar para a Inglaterra, para a tal escola. Isso seria uma coisa estúpida.
Houve novo silêncio. Loerke tinha medo de a convidar para ir com ele; nem ao menos estava certo de desejar tal solução. Ela, por sua vez, receava que ele lhe apresentasse essa proposta. O escultor prezava em extremo a sua solidão e não era pessoa para, nem sequer por um dia, fazer alguém compartilhar de sua vida.
- Só conheço outro centro importante: Paris - disse Gudrun. - Mas não gostaria de ir para lá.
Fitou o interlocutor com os seus olhos grandes, muito abertos. O outro baixou a cabeça, desviando a vista.
- Paris, não! - exclamou. - Entre a religion d'amour, o último "ismo", o regresso a Jesus, mais vale andar de carrossel todos os dias. Mas venha para Dresden. Tenho lá uma oficina, posso arranjar-lhe trabalho. Nunca vi nenhuma das suas escutarias, mas acredito no seu valor. Venha para Dresden: é uma cidade agradável, onde se pode viver. Lá encontrará tudo o que se espera de uma cidade, sem a imbecilidade de Paris ou a cerveja de Munique.
Gudrun contemplava-o tranquilamente. Gostava de o ouvir falar assim, com simplicidade, cavalheirescamente. Loerke era um artista, antes de tudo.
- Paris, não - repetiu ele. - Dá-me náuseas. O amor, detesto-o. L'amour, L'amour, die Liebe. Detesto-o em todas as línguas. As mulheres e o amor... não há nada mais enfadonho.
- Sou também dessa opinião - asseverou Gudrun.
Estava levemente ofendida. Contudo, não havia a menor dúvida: homens, amor... nada mais enfadonho.
- É uma grande maçada - prosseguiu o escultor. - Que importa que eu use este ou aquele chapéu? De igual forma o amor. Só uso chapéu por conveniência. É isto, gnädige Frau - inclinou-se diante da moça e fez um gesto rápido, grotesco como para afastar qualquer coisa. - Gnädige Fraulein, desculpe... É, isto que lhe digo, trocarei tudo, tudo o que chamam amor, por uma companheira inteligente... - Piscou os olhos sombrios, com malícia. - Compreende - continuou, com um sorriso. - Não faz mal que ela tenha cem anos, ou mil... para mim e indiferente, uma vez que me possa entender. - Baixou as pálpebras.
Gudrun sentiu-se ofendida, mais uma vez. Então não a achava bonita. E desatou a rir, bruscamente.
- Seria preciso esperar oitenta anos, pelo visto, para lhe agradar. E feia, já o serei bastante.
Loerke observou-a com olhar crítico, de artista e de entendido.
- É bonita, e tenho muito prazer em lhe dizer isso. Mas não é isso - prosseguiu em tom enfático que a sensibilizou - É porque a senhora tem inteligência, a espécie de inteligência que eu exijo. Eu sou baixinho, insignificante. Pois bem. Não me peça que seja belo e vigoroso. Mas é de mim - e pôs os dedos na boca, em gesto cômico - que alguma amante anda em busca, é a mim que ela espera, e o que deseja é uma união com a minha inteligência. Está compreendendo?
- Muito bem - disse Gudrun.
- Quanto ao outro, o tal amour - fez com a mão um movimento como o de expulsar um importuno - não tem importância nenhuma. Que resulta, se eu tomar esta noite vinho branco ou não tomar nada? Não interessa! Assim é o amor, esse amour, esse baiser. Sim ou não, soit ou soit pas, hoje, amanhã, ou nunca, é sempre o mesmo, não importa, ou importa tanto como o vinho branco.
Finalizou o discurso, deixando pender a cabeça para frente em movimento grotesco, sinal de desesperada negação.
De súbito, ela se aproximou, tomando-lhe a mão.
- É verdade - disse ela em voz cheia e veemente. - Para mim é assim também. Só a inteligência é que conta.
Loerke ergueu os olhos para a jovem. Parecia quase assustado. Depois de mau humor, abanou a cabeça. Gudrun largou sua mão. O escultor não correspondera à carícia dela.
Ficaram ambos silenciosos.
- Sabe? - disse ele por fim, mirando-a de repente com os seus olhos sombrios, orgulhosos e proféticos. - O seu destino e o meu hão de seguir lado a lado, ate que...
- Mas interrompeu-se, fazendo uma careta.
- Ate quando? - inquiriu a moça, pálida, com os lábios descorados. Era terrivelmente sensível a esse gênero de prognósticos. Loerke, porém, limitou-se a mover a cabeça, e depois acrescentou:
- Não sei... Não sei.
Só ao anoitecer Gerald voltou do seu exercício de patinação: faltara ao lanche de café e bolo que serviam às quatro horas. A neve estava em perfeitas condições, e o rapaz fizera um grande percurso, sozinho, até aos cimos gelados, subindo tão alto que pudera ver mais abaixo, à distância de cinco milhas, a Manenhutte, e a hospedaria do alto do desfiladeiro meio soterrada pela neve; descortinara o vale profundo ate a sombra produzida pelo grupo de pinheiros. Poderia voltar para casa por aquele caminho, mas só a ideia do regresso lhe causava náuseas. Poderia também descer, patinando, até a velha estrada imperial, logo por baixo do desfiladeiro. Mas para que seguir por uma estrada? Revoltava-se em pensar que encontraria gente. Antes ficar ali, no meio da neve, para sempre. Tinha sido feliz na solidão, deslizando suavemente e fazendo ressaltar pedaços de gelo entre os rochedos escuros estriados de linhas alvas e brilhantes.
Sentia, porém, gelar-se igualmente seu coração. Aquele estranho estado de paciência e candidez, que havia durado alguns dias desaparecia agora; Gerald tornava-se vítima de horríveis paixões e torturas.
Voltou, pois, de má vontade, queimado pela neve, tornado cruel pela ação do frio, e encaminhou-se para o côncavo que jazia entre os sopés ligados das montanhas. Viu, ao longe, as luzes amarelas das casas, e diminuiu a marcha, desejoso de não encontrar os outros nem ouvir o tumulto das vozes e sentir-se incomodado pela presença alheia. Experimentava um isolamento tal como se à sua roda se houvesse formado o vácuo ou uma camada de gelo puro.
No instante em que descobriu Gudrun, seu coração começou a bater descompassadamente. Ela lhe pareceu imponente e soberba, sorrindo lânguida e graciosamente para os alemães. Gerald sentiu a tentação de matar. Saboreava antecipadamente a volúpia da destruição. Seu espírito estava ausente; a neve e a paixão haviam-no enregelado e endurecido. A ideia, todavia, não o deixava; que prazer requintado não seria estrangulá-la, extinguir naquela mulher o último sopro de vida ate vê-la inerte e paralisada para sempre, carne flácida a lhe escapar dos dedos, perfeitamente aniquilada? Seria a forma de vê-la acabar-se da maneira mais completa.
Gudrun, ao vê-lo aparentemente tão calmo e amável, como de costume, não pressentiu quais os pensamentos que o animavam. Aquela amabilidade despertou-lhe, como sempre, um sentimento de ódio contra ele.
Entrou no quarto quando Gerald já estava meio despido e não reparou no brilho singular e jovial, de pura aversão, que o homem tinha no olhar. A jovem deteve-se no limiar da porta, com a mão atrás das costas.
- Estive pensando, Gerald - disse com ar de indiferença que pareceu a ele insultuosa - se devo voltar para a Inglaterra.
- Aonde quer ir, então? - indagou ele.
Ela, porém, evitou responder diretamente. Preferia fazer a sua exposição metodicamente, como havia imaginado.
- Acho melhor não continuarmos. Entre mim e você, tudo acabou...
Calou-se para deixar que ele respondesse. Gerald, contudo, não disse nada. Pensava apenas: "Acabou? - Sim, creio que acabou. Mas não de vez. Lembre-se de que não acabou ainda para sempre. É preciso acrescentar qualquer coisa; um ponto final, definitivo".
- O que aconteceu, aconteceu - prosseguiu ela. - Não me arrependo de nada. Espero que você, também...
Aguardou que ele desse qualquer explicação.
- Não, também não me arrependo de nada - asseverou o rapaz.
- Ainda bem - volveu Gudrun - ainda bem que nenhum de nós se queixa. É bem melhor assim.
- Claro - disse ele, distraído.
Gudrun fez uma pausa, e acrescentou:
- A nossa tentativa não deu resultado. Mas poderemos continuar as nossas experiências em outro lugar.
Percorreu-o um estremecimento de fúria. Parecia que ela o espicaçava. Para quê?
- Tentar o quê? - perguntou.
- Sermos amantes, é óbvio - respondeu ela, um tanto desconcertada.
- Falhou a nossa tentativa de sermos amantes - repetiu Gerald em voz alta.
Porém, com seus botões, ele pensava: "Devo matá-la aqui mesmo. É tudo o que me resta fazer". Apoderava-se dele uma vontade forte e imperiosa. Gudrun não percebia nada.
- Acha então que nossa união foi um completo êxito?
A ofensa daquela pergunta petulante passou pelo sangue de Gerald como se fosse uma corrente de fogo.
- Houve alguns momentos de êxito nas nossas relações - retorquiu ele.
- Podia ter sido bom o resultado.
Todavia, antes de concluir a frase, baixou a voz. Mesmo quando formulou o que ia dizer, sabia que não estava sendo sincero. Sabia muito bem que tudo não passara de um fracasso.
- Não podia - replicou Gudrun. - Você é incapaz de amar.
- E você? - atalhou ele.
Os olhos da moça fitavam-no sóbrios, como duas luas no meio das trevas.
- A você é que eu não consegui amar - declarou ela com franqueza fria e resoluta.
Gerald estremeceu, e diante dos olhos passou-lhe um clarão que o incendiou. O coração parecia jorrar-lhe numa chama. A consciência desceu-lhe para as mãos, para os pulsos. Não via nada, e só um desejo, insistente, o dominava: matá-la. Os punhos moviam-se e necessitava tê-la nas mãos para que se sentisse satisfeito.
Antes, porém, que avançasse para por o seu plano em prática, já a face de Gudrun denunciava haver-lhe compreendido o propósito, e, num relâmpago, ela correu para a porta. Depois, seguiu para seu quarto e fechou a porta à chave. Tinha medo sem ter perdido a confiança. Sabia que estava à beira de um abismo. Mas sentia-se segura. Calculava poder vencê-lo pela astúcia
Só, no quarto, Gudrun tremia, ainda excitada, com acessos de alegria insensata. Mantinha-se na certeza de que conseguiria enganá-lo. Tudo dependeria da sua presença de espírito. A luta, contudo, seria de morte; Gudrun não ignorava isso. Qualquer passo em falso, e estaria perdida. Experimentava um torpor estranho e ao mesmo tempo agradável, que lhe dava coragem, como alguém que se considera prestes a cair de grande altura, mas que não olha para baixo e que não admite ter medo.
- Vou-me embora depois de amanhã - resolveu consigo mesma.
Não queria, entretanto, que Gerald supusesse que o fazia para fugir, amedrontada com a atitude dele. No fundo não sentia medo. Percebeu que para sua salvação precisava evitar a violência física do rapaz. Mas, ainda fisicamente, ele não lhe infundia grande pavor. Precisava demonstrar isso a ele. Quando o tivesse feito, quando lhe provasse o que queria, poderia deixá-lo para sempre. Até aí, o combate entre os dois, terrível como ela não duvidava que fosse, manter-se-ia insolúvel. Gudrun necessitava ter confiança em si mesma. Por maiores que fossem os calafrios que a tomassem, não se deixaria vencer pelo horror. Gerald não a intimidaria, nem a dominaria, nem manifestaria direitos sobre ela. Gudrun estava pronta a prová-lo, e, uma vez que tivesse feito essa prova, ficaria livre dele para sempre.
Todavia, não fizera semelhante demonstração nem a Gerald nem a si própria, e era isto que a ligava ainda a ele. Estava amarrada a esse homem, não podia viver separada dele; sentou-se na cama, agasalhada, e ali ficou por largas horas meditando sem cessar no seu destino. Dir-se-ia que jamais se esgotavam seus pensamentos.
"Não é como se ele me amasse verdadeiramente! Ele não gosta de mim. Ama cada mulher que encontra. Exibe seus atrativos, goza com a sua irresistibilidade, procura despertar em cada uma a ideia de que seria uma maravilha tê-lo como amante. Sua ignorância sobre as mulheres também faz parte do jogo. Nunca deixa de se ocupar delas. Enfastia-me, porém, tal tipo de sedução tão estúpida e vaidosa. É ridícula essa inesgotável vaidade masculina... de pavões.
"Todos são assim. Birkin! Tire-se-lhe a vaidade e não sobra nada. Na verdade, é a sua ridícula insuficiência e perfeita insignificância que o tornam tão pretensioso.
"Quanto a Loerke, vale mil vezes mais do que Gerald. Este é tão acanhado de espírito, que encontra aí a sua perdição... Na verdade, não tem mais nada a dizer. Esgotou-se a sua provisão de ideias.
"Em todo o caso, Loerke é uma criatura independente. Não anda empertigado com a sua superioridade de macho. Quando imagino Gerald com as suas minas e o seu escritório a funcionar... Que pode haver entre mim e tudo isso? E ele pensando que sabia interessar uma mulher!
"Ao menos, em Dresden, voltarei as costas a tudo isso. Preciso divertir-me. Deve ser bom ir à Ópera Alemã, ao teatro alemão. Vou tomar parte na vida boêmia. Além disso, Loerke é artista, é uma pessoa livre. Quero escapar a tudo isso de que estou farta. Escapar a esse mundo de coisas vulgares, de frases vulgares, de gestos vulgares. Sei que não irei encontrar em Dresden o elixir da vida. Mas ficarei livre desta gente que tem um lar, crianças e conhecidos, tudo, tudo, muito deles. Estarei no meio de pessoas que não possuem nada, que não têm casa, não têm criados, posição social, categoria, nem roda de amigos da mesma laia. Meu Deus quanta complicação! Eles vivem com a precisão de um relógio; aquela monotonia, capaz de enlouquecer! Detesto a vida. Odeio-a. Detesto todos os Geralds incapazes de proporcionar qualquer coisa a alguém!
"Shortlands! Deus do Céu! Pensar que podia viver ali uma semana, a seguinte, outra ainda...
"Não, não posso nem lembrar-me! É demais para mim!"
Interrompeu o solilóquio, verdadeiramente horrorizada, sem mais poder suportar aquela ideia da sucessão maquinal dos dias, uns após outros, ad infinitum... Era um pensamento de lhe fazer bater o coração, levando-a quase à loucura. A terrível escravidão ao tique-taque do relógio, aquele marchar lento dos ponteiros, a eterna repetição das horas e dos dias... eram demasiada tortura para ela. Ah, fugir daquele pesadelo... fugir!
Quase desejou que Gerald estivesse presente, a fim de ver desvanecido o horror de tais pensamentos. Como sofria, ali sozinha em frente ao horrível relógio com o seu eterno tique-taque... As horas soavam... E outra vez tique-taque, tique-taque, com os ponteiros deslizando no mostrador...
Mas Gerald não a poderia salvar. Ele, e o seu corpo, a sua atividade, a sua existência, regulavam-se pelo mesmo tique-taque, pelo mesmo movimento dos ponteiros, pelo bater uniforme das horas. Assim, os beijos dele, os seus abraços. Tudo muito bem compassado.
"Ah! Ah!" Riu consigo mesma. Ria por se sentir tão assustada. "Ah! Ah!" Era mesmo de enlouquecer.
Depois retomando um pouco de serenidade, Gudrun perguntou a si própria se os seus cabelos não embranqueceriam durante aquela noite. Mas não. Continuariam castanhos e ela permaneceria jovem e sadia, como sempre.
Talvez mesmo devesse à sua constituição saudável o sair sempre ilesa em todos os ataques da adversidade. Se fosse doente, teria suas ilusões, suas fantasias. Mas assim como era, como escapar à verdade? Estava colocada diante do relógio da vida. Tinha de enfrentar o destino, sabendo que não havia possibilidade de fugir. Se voltasse as costas ao relógio, como fazia nas estações de estrada de ferro, para olhar as vitrinas de livros, continuaria mesmo assim a ver o mostrador descomunal e branco. Em vão folhearia os livros, modelaria inutilmente as suas estatuetas de barro. Bem sabia que não estava lendo, que não estava trabalhando. Olharia apenas o avanço dos ponteiros, eterno, automático, monótono. Não vivia a realidade. Limitava-se a olhar o transcorrer do tempo. Assemelhava-se, com efeito, a um relógio a que se dá corda, todos os dias, para acertar com o relógio da eternidade... Ela estava ali, como a Dignidade e a Impudência, ou a Impudência e a Dignidade...
A comparação agradava a Gudrun. O rosto dela parecia o disco de um mostrador, redondo, pálido, impassível. Teve vontade de ir se olhar num espelho, mas a ideia de achar o próprio rosto semelhante a um quadrante encheu-a de tamanho horror que procurou pensar em outra coisa qualquer.
Por que ninguém se mostrava bom para ela? Por que não haveria um ente que a tomasse nos braços e a apertasse contra o peito e lhe desse o repouso reparador, profundo e verdadeiro? Por que razão não aparecia alguém que a estreitasse e a mantivesse tranquila e segura, até que ela adormecesse? Ambicionava tanto aquele sono perfeito! Não tinha quem a defendesse durante o sono. Dormiria sempre desprotegida, abandonada e atormentada. Como poderia suportar tanto abandono, tanta incerteza?
Gerald? Seria capaz de a abraçar e proteger durante o sono? Pobre Gerald! Precisava também de alguém que o adormecesse. Era isso o que ele desejava. Por mais que fizesse, não conseguiria senão tornar mais pesado para ela o fardo da vida. Quando estava presente, os pesadelos de Gudrun eram maiores. Representava mais um tormento durante as noites imperfeitas, durante os sonos que não chegavam a amadurecer nem a dar frutos. Claro que roubava a ela o pouco repouso de que dispunha. E talvez o motivo pelo qual a importunava tanto, como uma criancinha esfomeada que chora para que lhe deem o peito. Talvez fosse esse o segredo da paixão que o arrastava para ela. Precisava de Gudrun para poder dormir, para alcançar um pouco de descanso.
Mas por quê? Não era sua mãe. Aceitara, por acaso, por amante, um bebê que precisasse embalar durante a noite? Eis o que era aquele Don Juan: uma criança rabugenta.
E como Gudrun abominava as crianças que choram à noite! Ela estrangularia calmamente o bebê e o enterraria como Hetty Sorel. Sem dúvida o filho de Hetty Sorel chorava durante a noite. E também o de Arthur Donnithorne. Ah, estes Donnithornes, estes Geralds de todo o mundo... Calados de dia, lamurientos depois de se deitarem! Deixá-los tornarem-se instrumentos, simples máquinas, vontades elementares que funcionam como relógios, numa constante repetição. Deixá-los ser assim, deixá-los serem puros maquinismos, dormitando ao som do tique-taque. Gerald que se ocupasse dos seus negócios. Ficará satisfeito o dia todo, Gudrun o sabia muito bem.
O carrinho, com a sua roda submissa, eis a unidade na aritmética da empresa. Depois, a carreta, com duas rodas; o vagão com as quatro; a locomotiva, com oito; outra maior, com dezesseis, e assim por diante, ate o mineiro com as suas mil rodas, e o eletricista, com três mil, e o gerente com vinte mil, e o diretor, finalmente, com cem mil rodas. E eis Gerald, com um milhão de rodízios, dentes e eixos!
Coitado de Gerald! Tantas rodinhas a pôr em movimento... Muito mais complicado do que um cronômetro. Meu Deus, que aborrecimento! Um cronômetro! A alma de Gudrun arrepiava-se só em pensar naquilo. Tantas rodas a contar, e a considerar, e a calcular! Basta! Basta! Há um limite para a capacidade humana em meio a tanta complicação. Ou, quem sabe se não há limite...
Entretanto, Gerald lia, sentado no leito, em seu quarto. Quando Gudrun se retirara, sentira espanto e não soubera o que fazer. Deixou-se abater sabre a cama e la ficou durante uma hora. Sulcavam-lhe o espírito clarões intermitentes. Estava imóvel com a cabeça pendida para o peito.
Pôs-se de pé, finalmente, e lembrou-se de que se preparara para dormir. Devia dormir. Sentia frio. Deitou-se no escuro.
Mas não conseguia suportar a escuridão Aquela sombra densa o sufocava. Levantou-se e acendeu a vela. Permaneceu alguns instantes sentado, olhando em frente. Não pensava em Gudrun nem em ninguém.
Teve vontade de ir buscar um livro. Sempre tivera horror às noites de insônia. Amedrontava-o a ideia de passar mais uma noite em claro, à espera de que o tempo decorresse. Ficou sentado na cama durante horas, lendo imóvel como uma estátua o espírito alerta e ágil, penetrava na leitura, mas não chegava a apreender bem o que lia. Em estado de rígida inconsciência, leu durante quase toda a noite, e só ao amanhecer cansado e infeliz, desgostoso de si mesmo, conseguiu dormir duas hora. Acordou cheio de energia. Gudrun mal se dirigiu a ele. Durante o café, declarou:
- Vou-me embora amanhã.
- Vamos juntos até Innsbruck, para salvar as aparências? - propôs ele.
- Talvez - condescendeu a jovem.
Disse isso entre dois sorvos de café. E a maneira como ela tomou fôlego, logo a seguir, desagradou a Gerald. Ergueu-se apressadamente, disposto a afastar-se dela e foi ocupar-se dos preparativos para a partida no dia seguinte. Depois, munido de provisões, saiu com os esquis, resolvido a passar o dia fora. Ao Wirt - Dono da hospedaria - nota da tradutora), ele explicou que iria ate Marienhutte, ou talvez, mesmo, à aldeia.
Gudrun recebera a manhã repleta de promessas como uma primavera. Sentia aproximar-se o momento da libertação, e uma nova fonte de vida jorrava por toda ela. Sentia prazer em andar de um lado para o outro, empacotando suas roupas, experimentando vestidos, mirando-se no espelho, lendo este ou aquele livro. Sentia que uma existência diferente se preparava parada e mostrava-se contente como uma criança; todos a achavam atraente e bela, com o seu ar carinhoso e exuberante e a irreprimível exteriorização da felicidade. Contudo, sob tal aparência o pensamento da morte não a abandonava.
Saiu à tarde com Loerke. O "amanhã" tornara-se impreciso e isso a deixava ainda mais satisfeita. Podia ir para a Inglaterra com Gerald ou para Dresden com Loerke, ou ainda para Munique, visitar uma amiga que residia lá. Tudo isto podia acontecer no dia seguinte. E o dia de hoje era o limiar branco, irisado de neve, de todas as possibilidades. Todas as possibilidades! Isto significava para Gudrun o encanto, o sortilégio adorável, cintilante, indefinido, a pura ilusão. Todas as possibilidades, mas a morte é inevitável, e nada é tão possível como a morte.
Não desejava que as coisas tomassem uma feição material e definida. Gostaria que, de repente, no dia seguinte, no meio da viagem, se visse impelida numa direção diferente, por qualquer circunstância inesperada. E assim, embora fosse com Loerke, pela última vez, correr sobre a neve, evitava as conversas serias ou qualquer coisa que se relacionasse com o futuro.
Loerke, por seu lado, não inspirava seriedade. Trazia na cabeça um gorro de veludo pardo, que a tornava redonda como uma castanha; e, com as abas caídas sobre o rosto - de onde escapava uma mecha de cabelos finos e escuros revoluteando ao vento - com seus olhos negros de elfo, e a pele trigueira, luzidia e fina que se encarquilhava nos cantos dando estranhas expressões àquele rosto, o escultor parecia antes uma criança com feições de homem, ou talvez se assemelhasse a uma morcego. Aquele vulto, vestido de lã grossa, verde, parecia tão débil, tão chétif, tão estranhamente diferente dos outros!
Haviam arranjado um trenó pequeno para os dois, e ambos se puseram a caminho, com dificuldade, entre os taludes de neve refulgente que lhes queimava as faces já crestadas. Riam sem cessar, desfiando uma série ininterrupta de brincadeiras e anedotas em vários idiomas. A fantasia se transformava era realidade. Sentiam-se felizes em atirar projéteis coloridos de bom humor e de capricho. Preferiam que a amizade se conservasse ao nível da brincadeira, uma espécie de passatempo.
Loerke não levava muito a sério os desportos de inverno. Não colocava neles o ardor que Gerald colocava nem tinha o mesmo entusiasmo do outro. Gudrun gostava disso; estava fatigada, bastante fatigada pela intensidade de movimento a que a havia obrigado a energia física do amante. Loerke deixava o trenó descer ao acaso, alegremente, como uma folha ao vento e quando, numa volta do percurso caíam ambos sobre a neve, punham-se de pé vagarosamente, verificavam não estar machucados e ali no solo alvíssimo, desatavam a dar gargalhadas. Gudrun sabia que o seu companheiro diria graças atrevidas quando vagueasse no inferno, se estivesse bem disposto e ela gostava de senti-lo assim. Era elevar-se acima das realidades do mundo, fugir à atualidade monótona e às próprias contingências da vida. Divertiram-se dessa maneira ate o pôr do sol, satisfeitíssimos, descuidados, indiferentes ao decorrer do tempo. Quando chegaram ao sopé de uma colina, o trenó parou e Loerke disse:
- Espere! - e exibiu, tirando não se sabe de onde, uma enorme garrafa térmica, um pacote de bolachas e um frasco de Schnapps.
- Oh, Loerke! - exclamou Gudrun. - Que inspiração! Que comble de joie, realmente! De que é esta Schnapps? - Aguardente - nota da tradutora).
Ele a encarou a rir e disse:
- Heidelbeere - Baga de murta - nota da tradutora).
- Sim? E isso se encontra debaixo da neve? Parece destilada do próprio gelo. - Gudrun cheirou e tornou a cheirar o gargalo da garrafa. Nota-se o aroma... Esplêndido. É como se cheirássemos a planta através da neve.
Bateu com o pé no chão muito de leve. Loerke ajoelhou-se e assobiou; depois aproximou o rosto da superfície gelada. Seus olhos sombrios cintilavam.
- Ah! Ah! - ria Gudrun, animada pela maneira caprichosa que ele tinha de zombar das suas extravagâncias. Estava sempre zombando e escarnecendo de tudo o que ela dizia ou fazia. Mas as réplicas do rapaz eram mais engraçadas do que tudo o que as provocava; a solução estava em rir-se ainda mais para se sentir vingada...
Ouviam-se as vozes deles ressoando como um retinir argentino como sinos na atmosfera enregelaste, no ar imóvel daquele começo de crepúsculo. Como aquilo tudo era agradável! E como eram perfeitos, na calma absoluta, aquele isolamento e aquelas diversões!
Gudrun sorveu o café quente, cujo aroma, naquele ambiente frio volteou em torno deles como uma abelha zumbindo em redor das flores; bebeu uns goles de Heidelbeerwasser, e comeu pastilhas geladas, doces, macias. Coisas tão boas. Como tudo aquilo possuía sabor, perfume, como rescendia bem. E como, na tranquilidade admirável, a ressonância era bela, naquele princípio de crepúsculo!
- Parte amanhã? - indagou ele, por fim.
- Parto.
Houve uma pausa. A tarde parecia morrer no calor silencioso que se espalhava por toda a parte, até ao infinito... que estava ali mesmo, a mão.
- Wohin? Para onde? - nota da tradutora)
Eis o problema: wohin? Aonde? Que palavra encantadora! Jamais responder a essa voz... Deixá-la repercutir indefinidamente...
- Ignoro - declarou, sorrindo.
Loerke absorveu o sorriso que a moça lhe dirigia. Murmurou:
- Nunca se sabe.
- Nunca - repetiu ela.
Estabeleceu-se uma nova pausa. Loerke trincou bolachas, como um coelhinho a comer folhas.
- Mas - objetou - para onde compra passagem?
- Céus! - gritou ela. - É preciso comprar passagem!
Era um contratempo. Gudrun via-se na bilheteria da estação. Mas, de súbito, teve uma ideia que a acalmou. Respirou desafogada.
- Não somos obrigados a ir...
- É claro.
- Quero dizer que não somos obrigados a chegar ao término da viagem.
A descoberta interessou-o. Podia-se comprar passagem e não ir até o destino indicado nela. Mudava-se de ideia, alterava-se o plano! Grande ideia!
- Compre então uma passagem para Londres - aconselhou ele - Não é preciso ir até o fim.
- Ótimo!
Loerke despejou café num copo de estanho.
- Não me quer dizer para onde vai?
- Não sei ainda para onde vou...
O homem lançou-lhe um olhar zombeteiro; depois, encheu as bochechas de ar, como Zéfiro, e soprou sobre a neve.
- Para o lado da Alemanha... - começou.
- Também acho - concordou ela.
De súbito tiveram a impressão de que se aproximava deles um vulto branco. Era Gerald. O coração de Gudrun palpitou de medo, de um profundo e repentino medo. Pôs-se logo de pé.
- Informaram-me onde estavam - disse o recém-chegado numa voz que retiniu como uma sentença na atmosfera crepuscular.
- Maria! Virgem Maria - nota da tradutora).
- Você aparece como um fantasma! - declarou o escultor.
Gerald não respondeu. A sua presença parecia, na verdade, fantástica, sobrenatural.
Loerke sacudiu a garrafa térmica e depois virou-a para baixo. Caíram apenas algumas gotas escuras.
- Está vazia - disse.
Para Gerald, a figura exótica do alemão surgia muito nítida, como se a estivesse vendo através de um binóculo. E como era desagradável aquela criatura! Gostaria de removê-lo dali.
O outro procurava, agora, bolachas no pacote.
- Ainda há algumas - disse ele.
Sem mudar de posição dentro do trenó, estendeu o braço para Gudrun, que remexeu no pacote e tirou uma bolacha. Ia oferecê-la a Gerald, mas a atitude deste era de tal modo denunciadora de uma recusa, que Loerke fez um gesto indeciso e pôs o embrulho de lado. Em seguida, pegou no frasco e mirou-o contra a luz.
- Temos um resto de Schnapps - disse para si mesmo.
Ergueu a garrafa num gesto educado, e curvando-se para Gudrun de forma engraçada, murmurou:
- Gnädiges Fraulein, wohl...
Ouviu-se um estalo, a garrafa voou e Loerke fez um movimento de recuo. Os três, violentamente impressionados, tremiam incontrolavelmente.
Loerke, dirigindo-se a Gerald, com um brilho demoníaco nos olhos, declarou em tom irônico:
- Muito bem! C'est le sport, sans doute - É o esporte, sem dúvida - nota da tradutora).
No mesmo instante já estava sentado sobre a neve numa posição ridícula. O punho de Gerald atingira-o na cabeça. Mas levantou-se logo, trêmulo, fitando o agressor com o seu olhar diabólico e satírico:
- Vive le héros, vive!...
Não pôde acabar. Gerald acertara-lhe outro murro, desta vez em cheio no rosto, mandando-o para longe como se fosse um boneco de palha.
Gudrun, porém, interpôs-se entre os dois. Ergueu a mão e bateu no peito e no rosto de Gerald, que ficou perplexo como se tivesse visto explodir uma bomba. Sua alma sufocava de espanto e de dor. Mas logo soltou uma gargalhada e avançou para a moça, tentando agarrá-la, como para colher o fruto do seu desejo. Ia, finalmente, satisfazê-lo.
Com as mãos rijas, dominadoras, impetuosas, prendeu a garganta de Gudrun. Tão bela, aquela garganta! Bela e suave, embora lá dentro jazessem as cordas da vida - e ele sentiu-a deslizar sob a pressão dos dedos. Eis o que iria esmagar, o que iria destruir. Suprema felicidade! Satisfação, enfim!
Olhava a face de Gudrun, agora feia, com a consciência prestes a desaparecer; via-lhe os olhos rolarem em estertor. Como se tornara horrível... Mas que prazer ele sentia... Como era bom, aquele gozo final! Nem percebia que ela se debatia, resistia... O esforço que ela fazia era, afinal de contas, sensual, também. E quanto mais forte o estrangulamento, maior para ambos o frenesi das delícias, ate atingirem o zênite. Depois, a luta afrouxou, os movimentos dela diminuíram e ela pouco a pouco se apaziguou.
Loerke conseguira endireitar-se sobre a neve, porém estava muito tonto para se erguer. Apenas seus olhos revelavam estar consciente do que se passava.
- Monsieur - disse ele, com voz débil e indignada - quand vous aurez fini - Senhor, quando tiver terminado - nota da tradutora).
Gerald revoltou-se, movido pelo desprezo e pela repugnância que sentia, repugnância que o tomava todo, que o enchia de náuseas. Que estaria fazendo? A que excesso se iria ele entregar? Como podia se preocupar tanto assim com aquela mulher, para que se dignasse a matá-la? Matá-la com suas próprias mãos...
Experimentou, então, certa fraqueza, certo entorpecimento, um diminuir de forças, como que o degelo da energia. Sem perceber, descerrara os punhos e Gudrun caíra a seus pés.
Sentiu-se muito enfraquecido. Tentou ainda um esforço, deu meia volta, e, como uma rajada de vento, partiu para longe, para além...
"Não a quero matar, não quero", ia repetindo, numa ultima confissão, enquanto subia a colina, fraco, esgotado, procurando, por instinto, fugir ao encontro de quem quer que fosse. "É demais. Preciso dormir. É demais." Sentia-se esgotado pelas náuseas.
Estava cansado, mas não queria repousar. Queria ir sempre até o fim. Nunca parar, ate descobrir o fim. Assim errou, perdido e sem forças, sem pensar em nada, enquanto as pernas o suportaram.
O poente deixara no céu uma luz encantada e irreal, entre rosa e azul, e a noite azulada e fria vinha mergulhando sobre a neve. Lá embaixo, atrás dele, no extenso leito alvo, notavam-se ainda duas figuras pequeninas; Gudrun, de joelhos, como quem se prepara para um suplício, e Loerke, sentado junto dela. Nada mais.
Gerald caminhava trôpego no aclive da colina, entre as sombras azuladas, sempre a subir, sem dar conta do que fazia, sem perceber que estava extenuado. Havia, à esquerda, uma descida rápida, cheia de enormes pedregulhos negros estriados de neve, e a neve serpenteava em redor da escuridão da pedra em veios longos e caprichosos. Não se ouvia o menor ruído. Nenhum som cortava o silêncio profundo.
Brilhava agora, por cima de Gerald, um disco lunar, e aquele novo esplendor aumentava-lhe a tortura. Surgia, ah!, cintilante, inexorável; não haveria maneira de evitar aquela cintilação. Contudo, Gerald queria chegar ao fim, sentia-se exausto e farto da vida. Seu espírito mantinha-se lúcido.
Continuava a andar com dificuldade; algumas vezes tinha de atravessar uma vertente de rocha viva, de onde o vento expulsara toda a neve. Naqueles lugares ele sentia medo de cair, um medo intenso de escorregar. E, naquela altitude, a ventania soprava rija, subjugando-o quase e entorpecendo-o com o frio. Todavia, não chegara ainda ao fim: era preciso continuar sem descanso. E o horror que o impelia para frente não permitia que ele parasse um só instante.
Tendo atingido o espinhaço do monte, viu a vaga sombra de qualquer coisa mais alta ainda, à sua frente. Sempre mais alta, sempre mais alta. Calculava encontrar-se na direção dos montes onde se achava a Marienhutte e por onde se atingia a descida do outro flanco da montanha. Mas não tinha muita consciência desses detalhes. Ansiava apenas por continuar, avançar mais além, enquanto pudesse mover-se ir, ir sempre, ate que tudo se acabasse. Perdera por completo o sentido da orientação. Entretanto, por um instinto vital, que ainda lhe restava, procurou pôr os pés nos vestígios de outros esquis que por ah houvessem passado.
Encontrou uma descida escarpada e deixou-se escorregar por ela. A velocidade trazia-lhe calafrios. Não possuía bastão, nem nada a que se apoiasse. A certa altura conseguiu parar e foi andando com cuidado, na obscuridade luminosa. Sentia tanto frio como se já estivesse no repouso eterno. Passava agora entre duas cristas, num vale. Vinha depois uma curva. Subiria o flanco e continuaria a errar pelo côncavo do terreno? Como sentia a vida por um fio! Talvez escalasse a montanha. A neve ali era dura, firme. Avançou. Elevava-se qualquer coisa à sua frente. Aproximou-se, levado por uma estranha curiosidade.
Era um cruzeiro, meio soterrado. No alto de um poste estava a imagem de Cristo, abrigada por um teto em declive. Gerald afastou-se. Alguém se preparava para o matar. Sentia tanto medo de ser assassinado! Mas o terror atingia-o exteriormente, como se fosse o seu próprio fantasma.
E afinal, para que ter medo? Aquilo tinha de acontecer. Sena assassinado! Olhou em volta, aflito, e viu a neve, as rochas as vertentes pálidas e sombrias do mundo que se erguiam acima dele. O destino arrastava-o para a morte, não havia a menor dúvida. E a morte levantava-se, naquele momento, para que Gerald não pudesse escapar...
Jesus! Estava, pois, destinado a isso? Jesus! Iam desferir o golpe. Não tardaria a ser morto. Prosseguiu ao acaso, ergueu as mãos acima da cabeça para sentir melhor o que devia acontecer, e esperou o instante em que chegaria o fim, em que cessaria de existir. Mas não era ainda o momento final.
Tinha alcançado um leito de neve cercado de taludes íngremes, de precipícios, e de onde partia um atalho que conduzia ao alto da montanha. Gerald vagou por ali, inconsciente, até que escorregou e caiu; ao bater no chão, sentiu que a alma se desprendia, e o sono chegou imediatamente.


Capítulo XXXI
"Exeunt"
Quando, no dia seguinte, trouxeram o cadáver para a hospedaria, Gudrun estava fechada no quarto. Da janela, viu aproximarem-se os homens que conduziam um fardo. Continuou sentada, tranquilamente, e os minutos foram passando.
Vieram bater à porta. Gudrun abriu. Estava ali uma mulher que lhe disse em voz baixa, com muita deferência:
- Já o encontraram, minha senhora.
- Morto?
- Sim, senhora.
Gudrun não sabia o que responder. Que poderia dizer? Quais os seus verdadeiros sentimentos na ocasião? Que esperariam dela? Permaneceu fria e perplexa.
- Obrigada - disse, tornando a fechar a porta. A mulher retirou-se, desgostosa. Nem uma palavra, nem uma lágrima. Aquela senhora era insensível; era uma mulher sem coração.
Gudrun sentou-se no quarto, e ficou impassível e pálida. Que havia de fazer? Chorar não podia, e muito menos representar cenas teatrais. Era incapaz de se transformar. Ficou assim imóvel, ocultando-se da curiosidade dos outros. O seu desejo era evitar contatos maiores com os acontecimentos. Limitou-se a redigir um extenso telegrama a Úrsula e Birkin.
De tarde, porém, ergueu-se bruscamente, disposta a avistar-se com Loerke. Lançou um olhar apreensivo à porta do aposento que fora de Gerald. Por nada deste mundo entraria naquele quarto.
Encontrou o escultor sozinho no andar térreo, recostado num sofá. Foi diretamente a ele.
- Não é verdade, não é? - começou por lhe dizer.
O outro a fitou. A face enrugou-se num sorriso de tristeza. Encolheu os ombros.
- Verdade? - repetiu.
- Nós não o matamos - explicou ela.
Loerke não gostou daquela maneira pela qual ela se dirigia a ele. Encolheu os ombros, fatigado.
- Coisas que acontecem - observou.
Gudrun olhou para ele. Viu-o esmagado pela tragédia, aniquilado, mas, do mesmo modo que ela, insensível à dor e incapaz de qualquer resolução. Que coisa angustiosa, vazia, vazia, vazia, Senhor!
Subiu novamente, esperando a chegada de Úrsula e Birkin. Gostaria de partir daquele lugar o mais depressa possível. Não poderia pensar nem sentir ate sair dali.
Passou-se o dia, veio o dia seguinte. Gudrun ouviu o trenó que se aproximava, assistiu à entrada dos viajantes e recuou na janela.
Úrsula dirigiu-se logo ao quarto da irmã.
- Gudrun! - exclamou, com as lágrimas a correrem pela face. Apertou a outra nos braços. Gudrun escondeu o rosto no peito da irmã, mas ainda desta vez não pôde escapar ao frio demônio da ironia que lhe enregelava o coração.
"Ah! É este o sistema usado em semelhantes conjunturas, pensou.
Não conseguia chorar, e o espetáculo da sua expressão impassível, rígida, sem mágoa, fez secar o pranto da recém-chegada. Logo notaram que não tinham nada a dizer uma à outra.
- Aborreceram-se de ter de voltar aqui? - perguntou finalmente Gudrun.
Úrsula fitou-a, um tanto desconcertada, dizendo:
- Não tinha pensado nisso.
- Acho-me cruel por tê-los obrigado a regressar - continuou Gudrun. - Mas não consigo enfrentar os outros.
- Imagino - foi a resposta da irmã, em tom seco.
Birkin bateu à porta e entrou. Estava pálido e compungido.
Gudrun percebeu que estava a par de tudo. O cunhado estendeu-lhe a mão, declarando:
- Acabou-se a nossa excursão!
Ela o fitou, assustada.
Os três permaneceram calados, sem ter o que dizer. Por fim, Úrsula perguntou, em voz baixa.
- Você já o viu?
Birkin lançou-lhe um olhar duro e frio, sem se dar ao trabalho de responder.
- Você o viu? - repetiu ela.
- Vi-o, sim - respondeu o marido, rispidamente. Depois, voltou-se para Gudrun:
- Já tomou alguma providência?
- Nada, absolutamente nada.
Aterrorizavam-na as formalidades a cumprir.
- Loerke diz que Gerald chegou quando vocês estavam sentados no trenó, perto de Rudelbahn, que trocaram algumas palavras e que Gerald se afastou. Que foi que disseram? Preciso estar a par de tudo para o caso de ser necessário contar às autoridades.
Gudrun ergueu os olhos para Birkin, ávida, muda, perturbada como uma criança.
- Ele não chegou sequer a falar - explicou. - Esmurrou Loerke e atirou-o ao chão. A mim, quase estrangulou. Depois, foi-se embora.
Para si mesma, ia dizendo:
"Bela amostra do eterno triângulo!" E afastou-se, sorrindo intimamente, pensando que, afinal, a luta se travara entre ela e Gerald, sem que a presença do outro fosse mais do que um simples incidente, talvez uma contingência inevitável; no fim de contas, sem outra classificação qualquer. Mas iria deixá-los imaginar que fora uma consequência do eterno triângulo, da trindade odiosa. Era mais fácil para a compreensão dos outros.
Birkin retirou-se, sempre com as mesmas maneiras secas e distraídas. Mas Gudrun tinha a certeza de que ele a ajudaria, apesar de tudo, e que a tiraria dos apuros. "Sim, que ele se ocupe de tudo", pensou ela, sorrindo desdenhosa, "visto que sabe tão bem ocupar-se dos outros. Deixá-lo fazer, pois, todo o trabalho".
E Birkin foi outra vez ver Gerald. Haviam-se estimado tanto! Era, todavia, enfado o que mais experimentava ao ver aquele corpo inerte ali estendido. Tão inerte, tão frio, tão penetrado da morte, nada mais do que uma carcaça! Perante aquele espetáculo, sentia geladas suas entranhas. E ficou em pé, contemplando o frio despojo mortal daquele que tinha sido Gerald.
Aquilo era um cadáver enregelado. Birkin lembrava-se de que uma vez encontrara um coelho hirto, em cima da neve; parecia teso como um cabo de vassoura, quando o ergueu do chão. E agora ali estava Gerald, igualmente duro como uma tábua, mas enroscado como se estivesse dormindo. Contudo, a rigidez era evidente e horrível. Birkin confrangeu-se, tomado de uma imensa dor. O quarto devia ser aquecido para se poder desenregelar o cadáver. Os membros se partiriam como gelo, ou como madeira, se os forçassem a tomar a devida posição.
Aproximou-se e tocou a face do morto, e de novo as suas entranhas sensíveis se contraíram mortificadas por uma terrível angústia. Pensou se ele próprio não estaria também sendo congelado. No bigode curto e louro de Gerald o último sopro da vida solidificara-se num pequeno pedaço de gelo, por baixo das narinas.
Eis o que era agora Gerald!
Apalpou outra vez os cabelos ásperos, de cor quase luminosa naquele corpo abandonado. Estavam frios, frios: dir-se-iam até maléficos. O coração de Birkin começou a endurecer. Tinha estimado tanto o outro! Mas, agora, olhando para aquelas formas elegantes, para o rosto estranhamente colorido, com o seu nariz fino e apertado, com as suas maçãs viris, achava tudo frio e rijo como uma pedra de gelo. Tinha querido tanto a Gerald! Que diferença havia entre pensar e sentir? O cérebro tornava-se semelhante à água quase a congelar. Tão frio, tão frio! Nos braços julgava ter uma montanha de neve e um peso mais frio ainda o dominava por dentro, no coração e nas entranhas.
Depois saiu, e foi ver o local onde se verificara o acidente, chegando finalmente à concavidade situada no meio do desfiladeiro, perto da garganta da montanha. O dia estava cinzento e era o terceiro de uma série de dias tristonhos e calmos. Tudo em redor era branco, nevado, pálido, exceto as rochas negras que, às vezes, pareciam raízes salientes e outras vezes se mostravam perfeitamente lisas e nuas. A certa distância descia uma vertente quase a pique, onde se notavam manchas de rochedos escuros.
Aquele lugar evocava uma panela pouco funda que jazesse entre neve e pedregulhos, num mundo perto das nuvens. Ali adormecera Gerald. Em volta os guias tinham pregado estacas de ferro, de maneira a poderem içar-se com o auxílio de uma comprida corda amarrada a elas; assim atingiriam, para além dos cimos denteados, a área de neve endurecida, que se confundia como havia picos aguçados erguidos para o firmamento, como compridos pregos muito alvos.
Gerald poderia ter encontrado aquela corda. Poderia ter subido por ela ate à crista da montanha. Poderia ter ouvido os cães na Marienhutte e achar ali um abrigo. E ainda poderia ter descido o flanco do lado sul, até o vale dos pinheiros e alcançar a estrada imperial que segue para a Itália.
Sim, teria podido! E depois? A estrada imperial? O sul? A Itália? E depois, depois? Seria uma saída? Ou antes, uma forma de regressar? Birkin, parado naquelas alturas, naquela atmosfera angustiante, olhava para os picos e para o caminho meridional. Haveria vantagem em seguir para o sul, para a Itália? Em descer pela velha estrada imperial?
Resolveu voltar. Ou seu coração se partiria, ou teria que deixar de se atormentar. Mais valia acabar com aquele sofrimento. Seja qual for o mistério que criou o homem no universo, trata-se de um mistério extra-humano, tem os seus fins próprios, e o homem não lhe serve de critério. Antes deixar de parte todo esse mistério tão vasto da criação. Preferível ocupar-se de si mesmo, e abandonar os problemas universais.
"Deus não pode passar sem o homem." Eis o que disse um dos grandes mestres religiosos da França. Mas, com certeza, o aforismo é falso. Deus pôde dispensar o ictiossauro e o mastodonte. Estes monstros não conseguiram desenvolver-se na criação, e Deus, mistério criador, acabou por dispensá-los. Da mesma forma podia desinteressar-se do homem, se este não lograsse progredir no mundo. O eterno mistério da criação disporia da humanidade, substituindo-a por uma espécie de seres mais per feitos. Exatamente como o cavalo tomou o lugar do mastodonte.
Tal ideia serviu de grande consolo a Birkin. Se a humanidade enveredar por um beco sem saída, se esgotar aí as suas energias, a força criadora produzirá outros entes, mais delicados, maravilhosos, e uma raça nova ajudará melhor o processo da criação. Esse trabalho não acabará nunca. O segredo da vida é insondável, infalível, inesgotável e eterno. As raças aparecem e desaparecem, as espécies passam e morrem, mas dão lugar a que outras surjam, mais belas ou tanto como as anteriores, porém sempre dignas de admiração. A fonte, a origem e incorruptível e não seca jamais. É impenetrável e não tem limites. Pode produzir milagres, inventar novas raças e novas espécies, sempre que lhe apetecer, novas formas de espírito e de corpo. Ser homem não é nada comparado com as possibilidades do mistério criador. Conseguir formar um coração palpitante de vida é a perfeição, perfeição inultrapassável. Humano ou sobre-humano, isso não tem importância. O coração perfeito estremece cheio de vitalidade e denuncia uma espécie nova, ainda não nascida.
Birkin voltou à hospedaria para tornar a ver Gerald. Entrou no quarto mortuário e sentou-se à beira da cama. Morto, morto e tão frio!

César, tirano, morto, em pó se fez... Agora serve
Para vedar alguma fenda, interceptando o ar...

Versos do 5º ato do Hamlet - A citação de Lawrence, feita decerto de memória, não é textual - nota da tradutora).
Nenhum eco do que havia sido Gerald. Só uma substância estranha, gelada, nada mais. Nada mais!
Terrivelmente cansado, Birkin saiu para se ocupar das formalidades a cumprir. Fez tudo cheio de calma, sem a menor perturbação. Declamar, delirar, assumir atitudes de tragédia, tudo isso causaria complicações inúteis. Era melhor conservar-se calmo e suportar os fatos com a alma paciente, sossegada.
Mas quando voltou, à noite, e viu Gerald entre dois castiçais, ele, que ali fora atraído pela exigência da amizade, sentiu o coração apertado e a própria vela que tinha na mão esteve a cair; soltou um gemido, e as lágrimas rebentaram-lhe de súbito. Sentou-se numa cadeira, tomado por um repentino pranto. Úrsula, que o havia seguido, recuou espantada, ao dar para o marido de cabeça baixa e com o corpo sacudido pelos soluços. O choro que o agitava fazia um rumor horrível e singular.
"Não queria que isto acontecesse, não queria", repetia ele consigo mesmo. Úrsula não pôde deixar de lembrar-se das palavras do Kaiser: "Ich habe es nicht gewollf." - Não tinha desejado isto - nota do tradutora). Olhou para Rupert, quase aterrada.
Ele se calou, de repente, mas ficou com o corpo inclinado, escondendo o rosto nas mãos. Enxugou, às escondidas, as lágrimas que tinha nos olhos. Mas no mesmo instante ergueu fitou a mulher com olhos sombrios e rancorosos.
- Era preferível que ele me tivesse estimado. Tantas vezes eu lhe propus...
A outra, muito pálida e assustada, murmurou sem descerrar lábios:
- Que teriam lucrado com isso?
-Muito - volveu ele. Muito!
Esqueceu-se da mulher e tornou a olhar para Gerald. Com o rosto estranhamente levantado, como quem se indigna por algum insulto acabado de ouvir, numa atitude orgulhosa. Birkin examinou o rosto mudo, frio, material, do cadáver, que tinha uma cor azulada. Aquele rosto lançava flechas de gelo ao coração de Birkin. Frio, mudo, material? Rupert lembrava-se como uma vez Gerald lhe apertara a mão de forma quente e afetuosa, um significativa de amizade definitiva. Mas aquilo durara um segundo depois desaparecera, desaparecera para sempre. Se Gerald houvesse mantido fidelidade à promessa, a morte não teria tanta importância. Os que morrem e que, antes de morrer, são suscetíveis de crer e de amar, permanecem vivos, não cessam de existir. Perduram no ente amado. Gerald poderia viver ainda no tirito de Birkin, mesmo depois do seu acidente. Viveria com seu amigo a vida do além.
Mas ali estava, destruído, como argila, como gelo corrompido. Birkin observou-lhe os dedos azulados, contemplou aquela massa inerte. Recordou-se de um cavalo morto que um dia encontrara: substância repugnante de um corpo que fora másculo. Recordou-se também da bela face de certa pessoa que ele havia amado tanto e que morrera julgando ceder ao mistério da natureza essas feições, mesmo paradas eram formosas, ninguém as poderia supor frias, mudas, materializadas. Ninguém as evocaria sem acreditar no mistério, sem que uma fé nova e profunda na vida deixasse de vir aquecer-lhe a alma.
E Gerald? Aquele cético! Deixava os corações frios, gelados, incapazes de palpitar. O pai dele era tão introvertido que chegava a incomodar: mas não tinha aquele aspecto terrível da matéria muda. Birkin não se cansava de examiná-lo.
Úrsula, de pé ao lado do marido, não deixava de acompanhar os movimentos deste em sua contemplação ao rosto do morto. Eram duas faces igualmente imóveis. A chama das velas oscilava no ar glacial, no meio do silêncio intenso.
- Ainda não o viu bastante? - perguntou a mulher.
Rupert levantou-se, dizendo:
- É tão doloroso para mim!
- O quê? A morte dele?
Os olhares dos dois se encontraram. Rupert conservou-se calado.
- Você tem a mim - prosseguiu ela.
O marido sorriu e beijou-a.
- Se eu morrer, saberá que eu não a abandonei.
- E eu?
- Você também não me abandonará. Não precisaremos separar-nos na morte.
Úrsula tomou-lhe a mão.
- Sente necessidade de sofrer tanto por causa de Gerald? - inquiriu ela.
- Sinto - respondeu o marido.

 

Partiram. O cadáver de Gerald foi enviado para a Inglaterra, onde devia ser enterrado. Birkin e Úrsula acompanharam o cadáver juntamente com um irmão do defunto. Os irmãos Criches é que insistiam pela inumação no solo da pátria. Birkin achava preferível ter deixado o morto nos Alpes, debaixo da neve. Mas a família opôs-se com grandes protestos.
Gudrun foi para Dresden. Não escreveu de lá, pormenorizadamente, para ninguém. Úrsula ficou com o marido no moinho durante algumas semanas. Estavam ambos muito tranquilos.
- Sente falta de Gerald? - perguntou ela um dia.
- Sinto.
- Não sou bastante para você?
- Não - respondeu ele. - Você me satisfaz como mulher. Para mim você resume todas as mulheres. Mas sinto falta de um homem como amigo, tão eterno como você e eu.
- É por que não sou suficiente? Você é tudo para mim. Não quero mais ninguém além de você. Por que não acontece o mesmo com você?
- Junto a você, Úrsula, posso passar a vida sem mais ninguém. Mas, para que a nossa vida seja completa, realmente feliz, necessito de uma união eterna com um homem também; é outra espécie de afeição.
- Não compreendo isso - volveu ela - É uma teimosia, uma teoria, uma perversidade.
- Talvez... - concordou ele.
- Não se pode ter duas espécies de amor. Por que você há de ser assim?
- Vejo que é impossível para eu satisfazer esse desejo. No entanto, queria-o imensamente.
- Nunca me seria possível. É coisa falsa, irrealizável.
- Não penso assim - foi a resposta de Birkin.

Capítulo XXIV
Morte e amor
Thomas Crich morria lentamente, com terrível sofrimento. A todos parecia impossível que o fio daquela existência pudesse ser tão estirado e a tal ponto adelgaçado, sem se quebrar. O doente jazia fraco e extenuado, apenas sustentado pela morfina que lhe administravam juntamente com outros remédios, ingeridos com dificuldade. Estava semiconsciente; um tênue cordão de compreensão ainda ligava a escuridão da morte à claridade da vida. Contudo, a vontade mantinha-se intacta, integral, completa. Queria em volta de si um silêncio absoluto.
Qualquer presença o fatigava, exceto a das enfermeiras. Todas as manhãs Gerald vinha vê-lo pensando encontrá-lo morto; mas descobria, invariavelmente, a mesma face transparente, o mesmo terrível cabelo escuro emoldurando um rosto cor de cera, e os mesmos olhos espantados e sombrios que pareciam desfazer-se em trevas, conservando lá dentro um débil vislumbre de vida.
E sempre que esse olhar desvairado caía sobre ele, Gerald sentia ferver-lhe nas entranhas uma espécie de revolta, que se transmitia através de todo o corpo, perturbando-lhe o espírito, enlouquecendo-o, quase.
Lá ficava ele, imóvel, cheio de vida, cintilando em seus cabelos louros. E o ar louro e cintilante daquele ser estranho e inevitável irritava o moribundo e chegava a aumentar-lhe a febre. Não podia suportar a expressão sobrenatural dos olhos azuis de Gerald, descendo sobre o leito de morte. Isto, porém, durava só uns instantes. Logo chegava o momento de se separarem, e pai e filho fitavam-se mais uma vez e despediam-se.
Durante muito tempo, Gerald conservou perfeito sangue-frio permanecendo ali com a maior serenidade. Mas o pavor acabou por desnorteá-lo. Tinha medo de sucumbir também. Era preciso, entretanto, submeter-se àquela tortura. Um vago desejo perverso o levava a observar o pai no transe derradeiro. E, diariamente o choque horrível daquele espetáculo o fazia estremecer de pavor. Gerald sentia vontade de se atirar ao chão, como se a espada de Democles lhe pendesse diretamente sobre a cabeça.
Não era possível esquivar-se; estava amarrado ao pai, devia assistir-lhe a agonia. Mas a vontade de Thomas Crich não se dobrava e recusava-se a acreditar na morte. Quando esta, afinal, se apoderasse dele, que remédio haveria senão aceitá-la? Contudo, a mesma vontade poderia persistir além da terra. Assim era, também, o filho: vontade intacta, independente da destruição física e daquele ser que sucumbia no leito.
Era um sacrifício contemplar o pai a dissolver-se e a ingressar no outro mundo, sem enfraquecimento da energia moral, sem condescender com a onipotência da morte! Como um pele-vermelha sujeito à tortura, Gerald submeter-se-ia à prova de assistir àquela lenta evolução para o nada sem dar mostras de dor ou de fraqueza. Triunfaria da experiência, tanto mais que desejava aquele passamento, quase até o impunha. Era como se ele mesmo esperasse a morte, embora o coração se lhe confrangesse de horror. Mas era o que julgava inevitável, afinal de contas.
No esforço de tão cruel missão, Gerald foi perdendo o domínio da sua vida quotidiana e profissional. Tudo quanto, anteriormente, valia para ele alguma coisa, passou a não ter o menor valor. O trabalho, o prazer, tudo foi posto de lado. Mas se ocupava dos seus negócios, trabalhando maquinalmente. A verdadeira tarefa consistia nesse lúgubre combate contra o destino dentro da sua própria alma. A vontade havia de vencer, fossem quais fossem os acontecimentos; jamais se curvaria, jamais reconheceria qualquer amo: a morte jamais o dominaria.
No decorrer da luta, aniquilava-se tudo quanto havia sido, e a vida em volta de Gerald assemelhava-se a um búzio vazio onde rugia a voz do mar, sussurro de que ele participava exteriormente; dentro da concha deserta existiam trevas, espaço destinado à morte apavorante. Gerald compreendia que era preciso adquirir coragem, ou cairia no abismo negro e profundo que se lhe cavava no meio da própria alma. A vontade preservava-lhe a vida externa, e a inteligência das coisas exteriores íntegras, mas a pressão tornava-se excessiva. Era preciso achar qualquer coisa que lhe garantisse o equilíbrio. Devia encontrar aquilo que pudesse acompanhá-lo no vácuo aberto em sua alma, de forma a preenchê-lo, e contrabalançasse assim a força exercida de dentro para fora com outra que viesse de fora para dentro - pois, dia a dia, sentia-se mais parecido com uma bolha de ar cheia de sombras, em volta da qual girasse a sua consciência.
O espírito impelia-o para Gudrun. Desprezava tudo e só desejava entrar em contato com ela. Gostava de acompanhá-la ao estúdio, de ficar em sua companhia, de conversar com ela. Agradava-lhe estar naquele quarto, mexendo ao acaso nas ferramentas, nos pedaços de barro, nas estatuetas já modeladas - tão caprichosas e grotescas! - e observá-las sem mesmo as compreender. Gudrun sentia-o sempre por perto, perseguindo-a como uma sombra.
- Ouça - disse-lhe Gerald certo dia, de forma singular indecisa. - Por que não fica para jantar? Eu gostaria muito!
Gudrun sobressaltou-se levemente. Gerald falara como um homem que se dirigisse a outro homem.
- Esperam por mim em casa - desculpou-se a moça.
- Ah!... Mas não ficarão preocupados... Gostaria muito que aceitasse.
O longo silêncio que se seguiu foi o sinal da sua aquiescência
- Vou prevenir Thomas, sim? - disse ele.
- Mas terei de partir logo depois do jantar - declarou Gudrun.
A noite estava escura e fria. No salão não havia fogo. Instalaram-se na biblioteca. Gerald estava calado, distraído, e Winifred falava pouco. Mas, apesar de calado, o rapaz mostrava-se amável e natural com a convidada.
Gudrun sentia-se bastante atraída para ele. Não sabia como interpretar aqueles silêncios profundos e estranhos. Ficava comovida, pensativa, enquanto sua admiração por ele crescia.
Ele fora um ótimo anfitrião. Oferecera-lhe o que havia de melhor na mesa, mandara servir uma garrafa de um vinho magnífico, levemente adocicado, cor de ouro, imaginando que ela o preteriria ao tinto. E Gudrun via o quanto era estimada, considerada quase uma pessoa da família.
Enquanto tomavam o café na biblioteca, ouviram bater de leve a porta. Gerald sobressaltou-se e disse: "Entre" o som daquela voz, vibrando em agudo diapasão, enervou a moça. Apareceu então o vulto branco de uma enfermeira; era como uma sombra clara projetando-se no limiar. Tratava-se de uma mulher muito bonita, mas - coisa estranha - parecia tímida e constrangida.
- O doutor deseja falar-lhe, Sr. Crich - explicou ela em voz baixa e discreta.
- O doutor! - repetiu ele, levantando-se. - Onde está?
- Na sala de jantar.
- Diga-lhe que já vou.
Tomou o resto do café e seguiu a enfermeira.
- Como é o nome dela? - perguntou Gudrun.
- Miss Inglis. É a mais simpática de todas - respondeu Winifred.
Pouco depois Gerald voltava, perdido em reflexões, ar preocupado e abstrato. Não se referiu a conversa com o médico; ficou de pé diante da lareira, mãos atrás das costas e expressão distante. Na verdade, ele não pensava. Mantinha-se em expectativa e as ideias se baralhavam em seu cérebro, desordenadamente.
- Agora preciso ir ver a mamãe - declarou Winifred - e despedir-me do papai antes que ele adormeça.
Disse isto e despediu-se dos presentes.
Gudrun ergueu-se também para ir-se embora.
- Não precisa ir agora - disse Gerald, olhando para o relógio. - Ainda é cedo. Sente-se, não há pressa, eu a levarei a casa.
Gudrun tornou a sentar-se como se estivesse sob o poder daquele homem, quase em transe. Sentia-se também quase magnetizada. Gerald era tão estranho, tão diferente! Em que pensaria, o que estaria sentindo, assim tão extático, sem nada dizer? Retinha-o sob a sua influência, era só o que Gudrun sabia. Não o deixava partir. Gudrun contemplava-o humilde e submissa.
- O médico tinha alguma coisa importante a comunicar? - indagou por fim, docemente, com ternura tímida e compassiva que tocava as fibras do coração dele. Gerald ergueu as sobrancelhas num gesto de indiferença.
- Não, nada de novo - respondeu, como se a pergunta fosse trivial. - Disse que o pulso estava muito fraco e irregular, mas isso não quer dizer muita coisa...
Depois, fitou-a. Os olhos de Gudrun permaneciam muito abertos, sombrios, suaves, com uma expressão assustada que o fez recair em si.
- Não - murmurou ela, finalmente. - Não entendo muito dessas coisas.
- Tanto melhor. Escute, vamos fumar um cigarro? - Foi buscar a caixa onde os guardava, e a seguir acendeu um fósforo. Em frente a ela, sempre junto ao fogão, tornou a cair em imobilidade.
- Aqui em casa - explicou - nunca tivemos doenças graves antes dessa de meu pai. - Deteve-se, como se ponderasse qualquer ideia; o seu olhar azul, estranhamente comunicativo, pousou sobre Gudrun, que ficou cheia de medo. - É uma coisa em que não se pensa ate que um dia se declara. Só então percebemos que já existia, que já existia desde muito tempo, desde sempre; compreende o que quero dizer? A possibilidade destas doenças incuráveis, destas mortes lentas...
Remexia os pés, inquieto, calcando o mármore da lareira. Levou o cigarro à boca e pôs-se a contemplar o teto. Gudrun, por sua vez, atalhou:
- Bem sei. É horrível.
Gerald fumava distraído. Tirou o cigarro dos lábios, descobriu os dentes e, colocando a ponta da língua entre eles, cuspiu um resíduo de fumo, voltando-se levemente de lado, como se estivesse só, ou perdido numa revoada de pensamentos.
- Ignoro ao certo qual é o efeito de tudo isto sobre a nossa pessoa - volveu ele, olhando de novo para a moça, cuja vista se turvou ao compreender a intenção daquelas palavras. Gerald viu-a perturbada e voltou o rosto para o outro lado. - Mas a verdade é que não sou mais o mesmo. Nada resta de mim... Sabe a que me quero referir? Julgamos agarrar-nos ao vácuo e o vácuo está dentro de nós. E já não sabemos o que fazer...
- Sim, - murmurou ela - que fazer? - Percorria-lhe os nervos um intenso calafrio, misto de prazer e de dor.
Gerald voltou-se, sacudiu a cinza do cigarro nas lajes de mármore do fogão, que, sem o resguardo usual, nem mesmo grades, se impunha ali na sala a descoberto.
- Não sei, é só o que posso afirmar - retorquiu ele. Mas suponho que estamos a ponto de resolver o problema, não porque se deseje, mas pela absoluta necessidade, sob pena de nos perdermos. Todas as coisas, incluídas as pessoas, estão a ponto de soçobrar. Com as mãos tentamos impedir que tal suceda. Mas é evidente que a situação não se pode prolongar; não é possível segurar o teto, indefinidamente dessa forma. Cedo ou tarde temos que retirar as mãos. Compreende o que quero dizer? É, pois, urgente tomar uma decisão, antes da subversão total, pelo menos no que nos atinge diretamente.
Esticou o pé para a lareira, esmagou uma brasa e ficou olhando para o carvão apagado. Gudrun observava as belas lajes de mármore antigo, com desenhos em relevo, onde Gerald estava agora enquadrado. Ela mesma teve a impressão de estar também prisioneira, mas do destino, fechada numa armadilha horrível e fatal.
- Que fazer? - perguntou, muito submissa. - Eu poderia ajudar de alguma forma?
Gerald fitou-a com superioridade.
- Não preciso do seu auxílio - retorquiu, um tanto enervado - porque não há nada a fazer. Só desejo um pouco de compaixão, percebe? Preciso de alguém a quem possa falar com o coração nas mãos. Isso facilita o trabalho. Mas não há ninguém nessas condições! É curioso, não há ninguém! Tenho Rupert Birkin, mas este não se comove, o que quer é ditar frases, que não me servem de nada.
Gudrun sentia-se apanhada no laço. Perplexa, olhava para as mãos.
Ouviu-se a porta abrindo de mansinho. Gerald estremeceu. Estava mortificado. E o sobressalto dele amedrontou também a Gudrun. Mas logo ele se dirigiu para a porta, cortês, atencioso, afável.
- Por aqui, mamãe? Que agradável surpresa. Como vai?
A recém-vinda, embrulhada negligentemente em um roupão cor de púrpura, muito largo, aproximou-se silenciosamente, desajeitada como sempre. O filho já estava ao lado dela. Puxou-lhe uma poltrona e perguntou: - Conhece a Senhorita Brangwen?
A outra lançou-lhe um olhar cheio de indiferença.
- Conheço - respondeu. Depois voltou-se para Gerald com aqueles seus olhos espantados, de um tom de miosótis, e sentou-se na poltrona que ele lhe havia trazido.
- Vim perguntar o que você sabe a respeito do seu pai - disse ela em voz rápida e quase inaudível. - Não sabia que estava acompanhado.
- Não? Winifred não lhe disse? A Senhorita Brangwen ficou para jantar conosco e alegrar-nos um pouco com a sua presença.
A Senhora Crich virou-se lentamente para Gudrun e mirou-a com expressão abstrata e vazia.
- Receio não ter sido grande divertimento para você... - Olhou novamente para o filho e continuou: - Winifred informou-me que o médico falou com você. Que foi que ele disse?
- Comunicou apenas que o pulso estava fraco, falhando de vez em quando..., de maneira que pode acontecer não passar desta noite.
A Senhora Crich manteve-se absolutamente impassível como se não tivesse ouvido, com aquela grande massa de carne abatida na cadeira e os cabelos louros desgrenhados sobre as têmporas. A pele, porém, era fina e alva, e as mãos, esquecidas e semicerradas no regaço, pareciam belas e repletas da máxima energia. E, na verdade, dir-se-ia amortecerem-se ondas de vontade naquela figura arruinada e gasta.
Contemplava o filho, que se conservava de pé, junto dela, atento, marcial. Os olhos da mulher tornaram-se extraordinariamente azulados, mais azuis do que as flores de miosótis. Parecia depositar muita confiança em Gerald, mas, ao mesmo tempo, desconfiança maternal.
- Como se sente? - inquiriu ela numa voz estranha e calma, como se falasse apenas com ele. - Não se ressentirá de tudo isto? Procure não ficar muito nervoso.
Gudrun estremeceu ao perceber o singular desafio que aquelas palavras encerravam.
- Assim o espero, mamãe - respondeu ele com risonha frieza. - Mas alguém deve assistir ao fim, penso eu.
- Acha que sim? Acha? - perguntou a Senhora Crich, precipitadamente. - Por que pensa assim? Por que ficar ate o fim? Tudo se resolve por si. Não é necessária a sua presença.
- Bem sei, mamãe. Mas a verdade é que nos afeta diretamente.
- Você gosta de se sentir afetado, não é isso? Está interessado nisso. Isso lhe dará importância. Pois não precisa ficar em casa. É melhor sair.
Tais observações, evidentemente feitas em momento de nervosismo, surpreenderam Gerald.
- Não acho conveniente sair agora, mamãe, neste momento crítico... - respondeu ele, muito calmo.
- Tome cuidado - prosseguiu a Senhora Crich. - Cuide de você, é isso que importa. Não se preocupe demais. Você é nervoso, sempre foi...
- Estou perfeitamente bem. Não vale a pena se preocupar comigo.
- Deixe os mortos tomarem conta dos mortos. Não se deixe enterrar com eles. Eu conheço bastante você...
Gerald silenciou, não sabendo o que responder. A mãe também permaneceu calada, e, com as belas mãos brancas, nuas de anéis, acariciou os braços da poltrona.
- Você não pode suportar aquilo - prosseguiu ela, quase com cerimônia. - Falta-lhe coragem. Você é frouxo como um gato, sempre foi. Esta menina vai ficar conosco?
- Não, senhora- elucidou Gerald. - Vai voltar para casa.
- Ela pode servir-se da carruagem. Mora longe?
- Não muito. Em Beldover.
- Ah! - Ela não olhava para a moça, embora lhe sentisse constantemente a presença. - Gerald, você tem a tendência de levar as coisas muito a sério. - Ao dizer isso, começou a erguer-se com certo constrangimento.
- Já vai? - perguntou ele, muito atencioso.
- Sim, vou lá para cima. - Voltando-se para Gudrun, murmurou "boa noite". Depois dirigiu-se devagar para a porta, com dificuldade, como se não estivesse habituada a andar. No limiar, estendeu a face e recebeu um beijo do filho. - Não precisa me acompanhar.
Gerald esperou que ela se aproximasse da escada, que subiu lentamente. Fechou então a porta, e voltou para junto de Gudrun, que se ergueu, disposta a partir.
- Minha mãe é muito complicada...
- Nota-se - concordou a moça.
Calaram-se por uns momentos.
- Quer ir-se embora? Apenas meio minuto: vou mandar atrelar o cavalo.
- Não - declarou Gudrun. - Vou a pé.
Gerald prometera acompanhá-la ate em casa e ela não se esquecera disso.
- Poderíamos ir muito bem na carruagem - insistiu ele.
- Prefiro ir a pé - declarou a jovem em tom enfático.
- Prefere? Nesse caso vou com você. Lembra-se de onde deixou seu agasalho? Deixe-me trocar de sapatos.
Munido de um boné e, sobretudo - por cima do temo com que jantara - preparou-se para partir e ambos penetraram na escuridão.
- Vou acender um cigarro - disse ele, abrigando-se no ângulo do portão fechado. - Tire um também.
E assim, entre o odor do fumo que aromatizava o ar, embrenharam-se ambos pela vereda sombria que atravessava, no meio de sebes, os prados em declive.
O desejo dele era passar o braço em volta da cintura da moça. Se tal pudesse fazer e a conseguisse atrair a si, Gerald estava certo de que recuperaria o equilíbrio, pois, naquele momento, sentia-se igual a uma balança, da qual um dos pratos descesse mais, cada vez mais no imenso vácuo sem fim. Era preciso contrabalançá-los. Residia ali a sua esperança de uma cura completa.
Sem mesmo olhar para Gudrun, pensando unicamente em si, Gerald lançou-lhe o braço em torno do corpo e puxou-a para o seu lado. O coração dela quase desfaleceu ao sentir-se arrastada assim. O braço do homem era tão vigoroso que a jovem não teve ânimo para se libertar; experimentava uma espécie de morte, muito unida a ele, enquanto avançavam na escuridão da noite tempestuosa. Aqueles dois corpos equilibravam-se perfeitamente no movimento rítmico do andar. E, então, sem demora, Gerald começou a sentir que se libertava das apreensões, e se tornava forte e heroico.
Levou a mão à boca e atirou fora o cigarro, que, na sebe invisível, formou um pontinho cintilante. Estava agora inteiramente apto para a manter mais segura.
- Assim é melhor - disse ele, exultando de prazer.
O entusiasmo que sua voz demonstrava era para ela como uma droga doce e venenosa. Significava, pois, tanto, para o coração daquele homem? E principiou a sorver o veneno...
- Está mais contente? - perguntou.
- Estou - disse ele, sempre no mesmo tom de satisfação. - Eu estava tão deprimido...
Gudrun aninhava-se no peito dele. Gerald aspirava o aroma quente e suave que emanava dela: tornava-se a substância própria do seu ser, nutriente e adorável. O calor e o movimento da moça penetravam-no e encantavam-no.
- Fico feliz em ajudá-lo...
- É verdade. Ninguém mais o conseguiria. Só você, Gudrun. "Acredito", pensou ela, com um sentimento de estranha e inevitável vaidade.
Durante a caminhada, parecia-lhe que a erguia do chão e a apertava tanto contra si que parecia conduzi-la toda suspensa. Era tão robusto que, à moça, não importava opor qualquer resistência: deixava-se ir naquela maravilhosa fusão dos corpos em movimento, ao descer a vertente sombria da colina batida pelo vento. Ao longe brilhavam as luzinhas amarelas de Beldover, a maior parte delas semeadas do outro lado da encosta. Mas aqueles dois seres seguiam alheios ao mundo, numa isolada e perfeita solidão.
- Gosta, então, muito de mim? - perguntou ela, em voz quase plangente. - Não sei, não consigo compreender...
- Muito, sim, muito! - respondeu ele em tom de satisfação dolorosa. - Não sei bem como, também eu... Mas amo-a acima de tudo! - Surpreendeu-se com a própria declaração, que era, aliás, verdadeira. Fazendo-a, despojava-se de futuro recuo, mas o certo era que Gudrun importava-lhe sobre todas as coisas. Ela era tudo para ele.
- Custa-me acreditar - volveu ela, trêmula e admirada. A dúvida e o prazer misturados punham-na assim nervosa. Sempre desejava ouvir isso. Contudo, agora que ouvia tais palavras, ditas com tão profundo tom de sinceridade, Gudrun recusava-se a crer. Não podia, não podia ser realidade. No íntimo ela admitia o fato e regozijava-se como de um triunfo finalmente obtido. No entanto...
- Por que não? - disse ele. - Por que não acreditar? É a mais pura verdade. Tão certo como estarmos aqui, nesta ocasião. - Ficaram bem juntos um do outro, parados, açoitados pelo vento. - Não há para mim - prosseguiu - nem no céu, nem na terra, outro lugar como este. A minha presença não importa; apenas a sua é que me interessa. Venderia antes a minha alma, cem vezes, a ficar privado da sua companhia. Não suporto mais estar só. Acredite. - Atraiu-a mais para si, num movimento definitivo.
- Não - murmurou a jovem, assustada. No entanto, não desejava outra coisa. Por que havia de perder a coragem?
Recomeçaram aquele estranho passeio. Tinham estado tão longe um do outro e agora vinham tão perto, temerosamente, inconcebivelmente perto! Chegava a ser loucura. Era, todavia, o que ela desejava. Haviam descido O outeiro e atingiam nesse momento o largo viaduto por onde passava a linha férrea das minas de carvão. A ponte - Gudrun conhecia-a bem - fora construída de pedras talhadas; era seca de um lado e musgosa do outro, em virtude da água que escorria. Gudrun pusera-se muitas vezes debaixo da abóbada para ouvir o estrondo da locomotiva deslizando lá em cima. E, quando chovia, costumava ver os mineiros refugiarem-se ali, no isolamento e no escuro, com as suas namoradas. Também ela ambicionava ter um noivo e ir com ele para baixo da ponte, a fim de se beijarem nas trevas impenetráveis. À medida que se aproximavam, diminuiu propositadamente o passo.
Pararam, pois, sob o viaduto e fizeram uma pausa; Gerald apertou-a contra o peito. O corpo dele vibrava, rijo e dominador, ao estreitá-la de encontro ao seu; e ela, ofegante, perturbada, vencida, aninhava-se nos braços dele. Ah, era terrível, sim, mas admirável! Assim faziam os mineiros às suas namoradas, debaixo daquela ponte. E, agora, o patrão de todos eles fazia o mesmo, naquele mesmo lugar! Como devia ser mais forte, mais poderoso o abraço de Gerald do que o dos seus operários! Como o amor dele devia ser mais concentrado e superior ao de todos os outros! Gudrun pensou que fosse desmaiar e morrer sob a pressão trêmula e sobre-humana daqueles braços e daquele peito; não poderia resistir. Depois a vibração extraordinária foi-se moderando ate se tornar pouco a pouco mais suave. Gerald encostou-se à parede e arrastou a moça com ele.
Gudrun estava quase inconsciente. Supunha ser assim que procediam os mineiros apaixonados, de costas voltadas para o muro, abraçando as suas amadas e beijando-as da mesma forma com que ele a beijava. Ah! Seria possível que os beijos deles fossem tão requintados e vigorosos como os que dava o patrão em seus lábios tão firmes? Nem sequer teriam, os operários, um bigodinho áspero e bem cortado!
E as namoradas, também deviam descair a cabeça para o lado e contemplar, sob a abóbada sombria, as luzes amareladas, distantes, na colina invisível, ou a forma incerta das árvores, ou ainda, em outra direção, as construções ao redor das minas.
Os braços do rapaz continuavam a cercá-la; parecia querê-la toda para ele, o seu calor, a sua suavidade, a sua beleza adorável, aspirando avidamente o aroma do seu corpo. Erguia-a e dir-se-ia entorná-la dentro de si mesmo, como quem despejasse vinho numa taça.
- Isto vale mais do que tudo! - disse com voz penetrante e singular.
Gudrun cedia, sentia-se misturar com ele e fornecer-lhe um líquido infinitamente precioso e morno que entrasse nas veias de Gerald e se comportasse como um tóxico. Tinha também passado os braços em torno do pescoço dele e recebia-lhe os beijos que ele lhe dava enquanto a tinha como que suspensa. A jovem desfalecia e sentia enterrar-lhe na carne aquele corpo duro e firme, ávida de receber aquele vinho que era a própria vida. Assim jazia abandonada nos braços do rapaz, suspensa de encontro a seu peito, dissolvendo-se, dissolvendo-se sob o calor dos beijos, fundindo os membros e os ossos como se ele fosse um ferro em brasa destinado a derretê-la.
A certa altura, julgou que ia desmaiar; foi, gradualmente perdendo a consciência de si própria. Sentiu-se gasta, nela tudo se misturava e era fluido; ficou tranquila, como se não existisse senão dentro de Gerald dormindo nele como a faísca dorme numa pedra lisa e pura. Assim se fundira no corpo do homem e esse homem agora era perfeito.
Quando tornou a abrir os olhos e voltou a descortinar o tapete de luzes a distância, pareceu-lhe extraordinário que o mundo ainda existisse e que ela estivesse ali de pé, debaixo da ponte, com a cabeça apoiada no peito de Gerald. Gerald... que significava ele? A aventura deliciosa, o desejo do imprevisto...
Ergueu a face e viu, no escuro, um rosto inclinado para o seu, rosto másculo e belo, que emitia uma luz branca e suave, espécie de aura, como se fosse enviado por algum poder oculto. Levantou-se até ele, no gesto de Eva ao colher a maçã da árvore da ciência, e beijou-o, embora a sua paixão vergasse ao medo transcendente desse ser misterioso; com dedos maravilhados, infinitamente delicados e indiscretos, Gudrun tateou-lhe as feições, seguindo-lhe o modelado da fisionomia, em todos os pormenores. Como era perfeito e desconhecido para ela, e tão perigoso! A alma arrepiou-se com tal revelação. Eis o fruto proibido, aquela face do homem fascinante. Tornou a beijá-lo, passando-lhe a mão pelo rosto, pelos olhos, narinas, testas, ouvidos e pescoço, a fim de o conhecer melhor a fim de o possuir pelo tato. Sentia-o tão bonito, tão rijo, cheio de satisfação, inconcebivelmente belo, único, de uma luz indescritível, inimigo que não se podia descrever e que brilhava, contudo, num fogo puro e sobrenatural. O seu desejo era tocá-lo mais, tocá-lo sempre, ate que o desvendasse todo por suas mãos, esforçando-se por conhecê-lo totalmente. Ah, se ela obtivesse esse precioso conhecimento, sentir-se-ia compensada; nada conseguiria privá-la dele, apesar da sua insegurança e dos riscos que corria no mundo vulgar e quotidiano.
- Como você é bonito! - murmurou-lhe em voz velada.
Gerald ficou surpreso, suspenso daquela frase. Ela, porém, sentiu-o estremecer e chegou-se mais, involuntariamente, para aquele homem que se lhe afigurava precisar de ajuda. Dominava-o pelo contato dos dedos. O insondável desejo que estes despertavam no rapaz era mais profundo do que a morte inevitável.
Entretanto, agora, conhecia-o ela bem, e isso bastava. Nessa ocasião tinha o espírito abalado por aquele invisível fluido luminoso, que lhe trouxera a revelação. Isso era uma espécie de morte da qual urgia ressuscitar. Haveria nele ainda muita coisa por descobrir? Ah, decerto! E quantos dias poderia gastar na sua investigação, com as mãos sutis e inteligentes no terreno daquele corpo vivo? Ah, tinha mãos ansiosas, gulosas de saber! Por enquanto não precisava mais, aquilo era bastante, o ânimo não lhe suportaria maior experiência. Um pouco mais, e ficaria repleta, encheria demasiadamente a delicada redoma da sua alma, suscetível de se quebrar. Era suficiente, suficiente por enquanto. Tinha ainda muitos dias à sua frente, durante os quais seus dedos, como pássaros, se alimentariam daquela plástica misteriosa. Até aí, esperaria sossegada.
Gerald, por seu turno, estava contente por haver encontrado resistência, repreensões, recusas. O desejo vale mais do que a posse, e a satisfação final receava-a ele tão intensamente quanto a ambicionava.
Recomeçaram a andar na direção da vila, na direção das lâmpadas acesas e distanciadas por longos intervalos, dispersas no escuro caminho do vale. Chegaram, enfim, à rua.
- É melhor nos despedirmos aqui - disse ela.
- Prefere assim? - perguntou ele, sentindo-se aliviado. Não gostaria de mostrar-se por aquelas ruas em companhia da moça, tão visível seria para os outros a satisfação que o tomava todo.
- Prefiro. Até amanhã. - Estendeu-lhe a mão, que Gerald agarrou, depondo os lábios sobre aqueles dedos tão dominadores, tão perigosos.
- Boa noite - volveu ele. - Até amanhã. Separaram-se. Gerald regressou à casa fortalecido pelo poder de um desejo sem limites.
No dia seguinte, porém, ela não veio. Mandou recado explicando que estava resfriada. Que tortura para o rapaz! Armou-se, entretanto, de paciência e escreveu-lhe um bilhetinho dizendo o quanto sentia a sua ausência.
Passou o dia e o outro sem ir ao escritório: achava isso perfeitamente inútil. O pai não duraria até o fim da semana e Gerald queria estar presente para qualquer eventualidade.
Sentou-se numa cadeira perto da janela, no quarto do industrial. A paisagem que dali desfrutava era sombria, invernosa. O velho Crich jazia na cama, lívido, cor de cinza; em silêncio, toda de branco, limpa, elegante e mesmo bonita, a enfermeira movia-se de um lado para outro. O ambiente cheirava a água-de-colônia. A moça saiu e Gerald ficou a sós com o moribundo ante o cenário hibernal.
- Há mais água em Denley? - interrogou uma voz fraca, vinda do leito, queixosa, mas decidida. O doente queria saber o que havia a respeito de uma infiltração numa das minas, originada em Willey Water.
- Alguma. Temos de esvaziar o lago - respondeu Gerald.
- Acha que sim? - A voz fraca parecia extinguir-se. Houve um silêncio tumular. O rosto pálido e acinzentado do enfermo mostrava-se de olhos fechados, mais morto do que se na verdade o estivesse. O filho observou-o. Sentia o coração apertado: se aquilo durasse mais tempo, talvez não pudesse resistir.
De repente, ouviu um ruído estranho. Voltou-se e notou que o pai abrira os olhos, rolando-os espantados num esforço sobre-humano. Gerald pôs-se de pé e ficou enregelado de horror.
"Ah... ah... ah..." Da garganta de Thomas Crich exalava um som cavernoso e horrível; o olhar, cada vez mais aflito, procurava em vão qualquer socorro, passando sobre Gerald sem o ver. Subiu-lhe ao rosto um rubor terroso, que o fez inchar; o corpo distendeu-se e a cabeça tombou para o lado, no travesseiro.
Gerald continuava apavorado. Queria mexer-se, mas não podia. Era impossível mover os braços ou as pernas. E o cérebro latejava, como o eco do pulso.
A enfermeira reapareceu, entrando silenciosamente. Olhou primeiro para o rapaz e depois para o leito.
- Oh! - exclamou, quase em um soluço, correndo em direção ao morto. - Oh! - repetiu em voz baixa, na sua perturbação, inclinando-se para a cama. Depois recuperou a calma e foi buscar uma toalha e uma esponja. Começou a lavar cuidadosamente a face do cadáver, murmurando num queixume, suavemente:
- Pobre Sr. Crich! Coitado do Sr. Crich!
- Morreu? - perguntou Gerald em tom áspero.
- Sim, morreu - confirmou a voz branda da enfermeira pousando o olhar no rosto do rapaz. Era nova, bela e estava emocionada. A expressão de Gerald tornou-se estranha, como uma espécie de careta; horrorizado, abandonou o quarto.
Correu a prevenir a mãe. No corredor encontrou-se com Basil, seu irmão.
- Morreu, Basil - disse ele, dominando a custo o tremor da voz; notava-se nele uma alegria inconsciente apesar da emoção com que falava.
- O quê?! - fez Basil, empalidecendo.
Gerald confirmou com a cabeça e seguiu para o quarto da mãe.
Ela estava envolta no roupão cor de púrpura, a coser, vagarosamente. Mirou o filho com os seus olhos azuis, aqueles olhos insubmissos.
- Papai morreu.
- Quem disse?
- Oh, mamãe, basta olhar para ele!
A Senhora Crich largou a costura e levantou-se a custo.
- A senhora vai lá?
- Vou.
Os mais novos já choravam em volta do leito.
- Oh, mamãe! - gritavam as moças, quase histéricas.
A mãe aproximou-se. O morto lá estava no seu repouso derradeiro, como se houvesse adormecido docemente, tão doce e pacificamente como uma criança no sono da inocência. Ainda não esfriara de todo. Christiana ficou a contemplá-lo durante uns momentos, num silêncio pesado e lúgubre.
- Sim - disse ela, como se falasse a testemunhas invisíveis e etéreas. - Sim, já não és deste mundo. - Permaneceu mais um tempo calada, de olhos baixos. Depois continuou: - Pareces belo, como se a vida não te houvesse cansado. Que Deus me dê sorte diferente! Espero então parecer com a minha idade, seja qual for... Belo, belo - repetiu ainda no mesmo tom. - Exatamente como na tua mocidade, com a barba de adolescente. Bondosa alma, a tua! - E, com um soluço na voz, acrescentou: - Nenhum de vocês deve ser como ele, quando morrerem. Não o imitem. - Parecia uma ordem singular, uma ordem insensata emanada do além. Os filhos agruparam-se mais, inconscientemente, ao ouvir aquelas imposições. As faces de Christiana haviam-se ruborizado, e brilhavam, e todo o vulto dela maravilhava e inspirava terror. - Censurem-me, se quiserem, pelo fato de ele aí estar, de estar aí como um rapaz que ainda não tem vinte anos, com a sua barba virginal. Censurem-me, se quiserem. Mas nenhum de vocês compreende. - Emudeceu, mergulhando num silêncio cheio de intensidade. E recomeçou, numa entonação profunda e ardente: - Se eu adivinhasse que algum dos filhos que dei à luz teria, depois de morto, esta aparência, tê-lo-ia estrangulado no berço.
- Não, mamãe - respondeu Gerald, e a sua voz vinha estranha e pura lá do fundo do quarto. - Nós somos diferentes, não a acusamos de nada.
A Senhora Crich voltou-se e fitou-o; em seguida ergueu as mãos num gesto soberbo de louco desespero.
- Rezem! - ordenou com voz portentosa. - Rezem a Deus por si mesmos, pois não têm nenhuma proteção a esperar do pai e da mãe.
Transtornadas, as moças gritaram: - Oh, mamãe! - Ela, entretanto, tinha-se retirado e os irmãos despediram-se uns dos outros, apressadamente.
Quando Gudrun soube da morte de Thomas Crich, sentiu-se tomada de remorso. Tinha evitado Gerald com medo que este a julgasse conquista demasiadamente fácil; e agora, que ele sofria aquele desgosto, não era justo continuar assim tão fria.
No dia seguinte veio, como de costume, ter com Winifred que estimou bastante vê-la e se alegrou por acompanhá-la ao estúdio. A menina havia chorado, e, depois, assustada, refugiara-se para escapar a qualquer acontecimento mais trágico ainda. Ela e Gudrun retomaram o trabalho como usualmente, naquele isolamento do costume, e isso pareceu-lhes imensa felicidade, verdadeiro mundo à parte, depois da confusão e da tristeza que reinavam em casa. Gudrun ficou até tarde. Serviram-lhe o jantar ali mesmo, e ali comeram à vontade, afastadas de todas as outras pessoas.
Gerald apareceu depois do jantar. O vasto anexo estava cheio de sombras e impregnado do aroma do café. Gudrun e Winifred haviam arrastado a mesinha para junto do fogão, lá no fim do quarto; o candeeiro com que iluminava a sala não espalhava muito longe a claridade. Constituíam assim, elas duas, o seu mundo à parte, rodeadas pelas sombras amenas, que atingiam as vigas e barrotes do teto, os bancos e as ferramentas do trabalho.
- Como é confortável aqui - observou Gerald, ao entrar. O lume ardia num fogão baixo, de tijolos; havia um velho tapete turco, de tom azul, sobre o qual pousava a mesa com o candeeiro, revestida de uma toalha azul e branca. Ali estava ainda o resto do jantar; Gudrun fazia o café numa curiosa cafeteira de cobre, enquanto Winifred aquecia um pouco de leite numa caçarola pequena.
- Já tomou café? - perguntou Gudrun ao recém-chegado.
- Já, mas posso repetir.
- Então, tem de beber no copo - interveio Winifred. - Só temos duas xícaras.
- Não tem importância - disse ele, pegando numa cadeira e aproximando-se daquela dupla encantadora. Como lhe pareciam tão felizes, como era bom estar naquela intimidade, envolto pelas sombras familiares! O mundo lá fora, no qual todo o dia Gerald se ocupara dos assuntos do funeral, apagava-se por completo da sua memória. Começava a aspirar o perfume daquela deliciosa magia.
Possuíam meia dúzia de coisas delicadas, duas xícaras encantadoras, vermelho e ouro, um jarrinho preto com pintinhas encamadas e uma interessante máquina de fazer café, sob a qual a chama de álcool ardia muito direita, quase invisível. Notava-se o reflexo de toda aquela riqueza sinistra, da qual Gerald gostaria de evadir-se.
Sentaram-se e Gudrun, amavelmente, começou a servir.
- Quer leite? - indagou muito calma, embora agitasse, num movimento nervoso, o jarro negro salpicado de escarlate. Dominava-se sempre o melhor que podia, mas não deixava de parecer enervada.
- Não, obrigado - respondeu ele.
Ela própria, por deferência, guardou para si o copo de vidro tosco e ofereceu-lhe uma das xícaras. Via-se que queria ser agradável.
- Dê-me o copo, que é tão grosseiro para as suas mãos - Gerald teria preferido ficar com ele e deixá-la, a ela, delicadamente servida. Mas Gudrun não disse mais nada sobre o assunto, contente com aquela disparidade, feliz por se poder humilhar.
- Estão perfeitamente en ménage - tornou ele.
- É verdade. E não estamos em casa para as visitas - acudiu Winifred.
- Nesse caso, sou intruso.
Ao dizer isso, verificou que o seu traje cerimonioso o fazia deslocado. Considerava-se, realmente, um estranho.
Gudrun mostrava-se tranquilo. Não sentia desejos de falar com ele. Ao ponto a que haviam chegado, o melhor ainda era o silêncio ou simples palavras convencionais. Era melhor pôr de lado as conversas sérias. Assim tagarelaram alegre e descuidadamente ate ouvirem o cocheiro, em baixo, conduzir o cavalo gritando "para trás, para trás", no momento de o atrelar à carruagem que devia levar Gudrun. A moça vestiu o agasalho, apertou a mão de Gerald e saiu, sem terem trocado, ao menos um olhar.
O enterro foi uma coisa enfadonha. Mais tarde, ao tomarem chá, as filhas do defunto diziam jumas para as outras: "Tão bom pai para nós!... O melhor pai do mundo..." Ou então: "Não se encontrará facilmente outro homem tão bom como o pai".
Gerald concordou com tudo isto. Era a atitude que mais se lhe ajustava, apesar de convencional. No estado atual das coisas, não lhe repugnava aceitar as convenções da sociedade, achando-as ate naturais. Mas Winifred é que as detestava e por isso se escondia no estúdio, onde dava largas à sua dor, ansiando pela chegada de Gudrun.
Felizmente todos os parentes se ausentaram. Os Crichs nunca passavam muito tempo em casa. Ao jantar, Gerald viu-se completamente só; a própria Winifred seguira para Londres, onde ficaria por alguns dias com uma das irmãs, Laura.
Quando, todavia, se sentiu sem mais ninguém, Gerald achou intolerável a solidão. Os dias passaram. Tinha a sensação de estar suspenso a correntes, à beira de um abismo. E, por mais esforços que fizesse, não conseguia pisar a terra firme nem desembaraçar-se das cadeias que o tolhiam. Estava debruçado no limiar do despenhadeiro, debatendo-se era vão. Pensasse o que pensasse, o abismo continuava ali, por maior convívio que tivesse com amigos ou estranhos, por mais que trabalhasse ou se divertisse. Sempre a visão do precipício insondável, sobre o qual o coração se lhe apertava, prestes a desfalecer! Não via salvação possível, não havia nada a que estender as mãos. Devia permanecer na iminência do sorvedouro, suspenso pelas correntes invisíveis, que eram a sua própria vida física.
A princípio mantivera-se calmo, paciente, aguardando o final das suas apreensões e esperando achar alívio entre os mortais depois de tão intenso sofrimento. Mas aquilo não passou, e pelo contrário, atingiu um estado crítico.
À noite do terceiro dia agravaram-se os seus receios. Não podia tolerar a ideia de continuar tanto tempo assim. Era mais uma noite, mais uma em que ele experimentaria a sensação de estar sobre o abismo, esse poço sem fundo a que o levava a sua existência física. Não podia suportar mais. Tinha frio e medo na alma, um medo tão profundo! Não acreditava já na sua força. Se tombasse no despenhadeiro incomensurável, jamais poderia de lá voltar. Se tal lhe sucedesse, desapareceria para sempre. Forçoso era resistir, e procurar qualquer auxílio. Não tinha confiança nele próprio, entregue dessa maneira a si mesmo! Depois do jantar, face a face com a derradeira impressão de vácuo, Gerald procurou fugir. Calçou botas, enfiou o sobretudo e foi passear na noite escura.
O tempo estava horrível enevoado. Atravessou o bosque, tropeçando aqui e ali, e encaminhou-se para a azenha. Birkin não estava em casa. Bem. Deixá-lo! Gerald sentia-se quase satisfeito. Contornou o moinho, subiu os barrancos ásperos, às cegas, perdido no meio daquela escuridão. Aonde iria agora? Não importava. Arrastar-se-ia de qualquer forma ate encontrar a estrada. À sua frente apareceu outro bosque. O espírito estava perturbado, deixando-o vaguear, a ele, como um autômato. Sem pensamentos, sem sensações, foi andando ao acaso: chegou a uma clareira, procurou, tateando, a paliçada da vedação, tornou a perder-se, e seguiu pelas sebes dos campos até descobrir uma saída.
Por fim alcançou a estrada principal. Tinha-se distraído durante aquela luta cega com o labirinto da noite. Agora, porém, devia tomar qualquer direção. Não sabia sequer onde se encontrava, mas era necessário dirigir-se para alguma parte. Continuar a andar, sempre a andar, não resolvia o problema. Convinha decidir-se.
Estava parado na estrada, que lhe parecia imensa nas densas trevas noturnas, e sem saber orientar-se. Dava-lhe aquilo uma impressão esquisita; o coração palpitava-lhe e envolvia-o; tornou a perder-se, e seguiu pelas sebes dos campos ate descobrir uma saída.
De repente, ouviu passos c avistou uma lanterna, que oscilava. Era um mineiro.
- Sabe me dizer onde vai dar este caminho?
- Sim, senhor. Vai dar em Whatmore.
- Whatmore? Está bem, muito obrigado. Julguei que me tivesse perdido. Boa noite.
- Boa noite - retribuiu o outro, com a sua voz grossa. Gerald já calculava que lugar era aquele. Ao chegar a Whatmore tiraria todas as dúvidas. Ainda bem que se encontrava na estrada principal. E avançou embalado na sua resolução.
Tratava-se então da aldeia de Whatmore? Sim, com a sua "King's Head" e, mais além, os portões do Palácio. Desceu a colina quase a correr. Passou defronte da escola e chegou à igreja de Willey Green. Lá estava o cemitério. Deteve-se.
Pouco depois escalava o muro e seguia pelo meio das sepulturas. Mesmo no escuro podia distinguir a seus pés muitos ramos de flores, já murchas. Abaixou-se. As flores pareceram-lhe frias e viscosas. Rescendia fortemente a crisântemos e a tuberosas fanadas; sentiu a terra, por baixo delas, e arrepiou-se àquele horrível contato úmido e pegajoso. Recuou, cheio de repugnância.
Estava, pois, num lugar conhecido, embora em completa escuridão, ao lado de uma sepultura invisível e recente. Mas o que lhe interessava isso? Nada tinha a fazer ali. Era como se aqueles pedaços de barro, frios, sujos, pegajosos, se lhe aderissem à alma. Não, aquilo era demais!
Voltaria para casa? Nunca! Seria pior. Precisava ir para outro lugar. Mas onde?
Como uma ideia fixa, um projeto germinava em sua mente. Gudrun. Precisava ir ter com ela; era imperioso. Não regressaria a Shortlands sem haver tentado aproximar-se dela, ainda que isso representasse para ele qualquer perigo de vida. Colocou todo o seu ardor nesse projeto.
Partiu, então, em linha reta na direção de Beldover. A noite era tão negra que ninguém o poderia reconhecer. Tinha os pés frios e molhados, e as botas pesadas de lama. Mas continuou sempre, persistente como vento, direto ao seu destino. Julgou, em certa ocasião, ter atingido o lugarejo de Winthorpe, sem saber afinal como tinha ido parar lá; depois como num sonho, viu-se na comprida rua de Beldover, iluminada por lampiões.
Havia um rumor de vozes, vindo de uma porta que se aferrolhava pesadamente. Eram homens que conversavam na sombra da noite. O "Lord Nelson" acabava de fechar e os frequentadores dirigiam-se para suas casas. O melhor seria Gerald perguntar a qualquer deles onde morava Guarun, pois não conhecia as outras ruas.
- Sabe dizer onde é Somerset Drive? - perguntou a um dos homens.
- Como? - perguntou o interpelado.
- Somerset Drive.
- Somerset Drive! Já ouvi falar, mas não sei onde fica. Quem procura?
- O Sr. Brangwen... William Brangwen.
- William Brangwen?
- Professor da escola de Willey Green. Tem uma filha que e também professora.
- Ah! Brangwen! Agora me lembro. Sim, tem duas filhas, ambas as professoras. Ah, sim, é esse mesmo. Mas não sei onde mora. Como é mesmo o nome que disse?
- Somerset Drive - repetiu Gerald, armado de paciência. Conhecia bem o jeito dos seus mineiros.
- Exatamente, Somerset Drive! - disse o outro. - Somerset Drive, sim, senhor. Como é que eu não me lembrei antes. Sim, eu sei, fique descansado.
Voltou-se, meio cambaleante, e apontou para a estrada deserta e escura.
- O senhor vai por ali... vire a primeira esquina... sim, vire primeira à esquerda... daquele lado... passa pela loja de Withamses, o que vende caramelos. .
- Sim - interrompeu Gerald.
- Pois é, senhor. Desça um pouco, passa pela casa do vigia das águas, e já está em Somerset Drive, ou sei lá que raio de nome tem; fica mesmo à direita. Não há senão três casas, só três, parece-me... e tenho quase certeza de que a dele é a última das três... Entendeu?
- Agradeço-lhe muito. Boa noite.
Afastou-se imediatamente, deixando o bêbado parado no meio do caminho.
Seguiu ao longo das lojas e das casas, na maior parte das quais os seus ocupantes já dormiam, e enveredou por uma travessa que ia dar num campo mergulhado em trevas. Afrouxou o passo ao aproximar-se do ponto indicado, indeciso quanto à maneira de agir. Que faria, se a casa estivesse toda às escuras?
Tal não acontecia, porém. Havia uma janela iluminada. Distinguiu vozes e ao mesmo tempo o ranger de uma porta. O seu ouvido apurado reconheceu a entonação de Birkin; os olhos perscrutadores preveniram-no de que ali estava Úrsula, vestida de branco, parada num degrau da escada do jardim. Ela começara a andar e, chegando junto de Birkin, tomou-lhe o braço.
Gerald escondeu-se na sombra, por trás deles. Os dois conversavam animadamente, Birkin em voz baixa, Úrsula naquele tom inconfundível. Gerald, sem perder tempo, meteu-se dentro do jardim.
Defronte da larga janela da sala de jantar, as cortinas estavam corridas. Olhando de onde se encontrava, notou que a porta ficara entreaberta, deixando passar a luz suave e colorida do vestíbulo. Seguiu rápido, sem fazer ruído, pelo passeio adiante e lançou um olhar investigador lá para dentro. Havia quadros e cabeças de veado nas paredes; reparou também numa escada lateral e, muito perto dela, viu aberta a porta da sala de jantar.
Com o coração aos pulos, entrou Gerald nessa antecâmara, cujo chão era coberto de ladrilhos de cores; e examinou às pressas a sala que ficava anexa. Junto do fogão, sentado numa poltrona, Brangwen dormia; tinha apoiado a cabeça no grosso revestimento de carvalho da chaminé. A face rubicunda parecia encolhida, as narinas abertas e os cantos da boca tombados. Podia despertar ao mais leve rumor.
Gerald hesitou um instante. Relanceou a vista pelo corredor que corria na direção contrária e que estava às escuras. Sempre indeciso, subiu os degraus; os sentidos denunciavam-lhe tal sutileza, uma apreensão quase sobrenatural, que parecia ser ele o condutor de todas as coisas.
Chegou ao primeiro andar. Deteve-se ali, com a respiração opressa. Correspondente ao quarto do rés do chão, havia aí também um, com a respectiva porta. Devia ser o da mãe das moças. Sentiu-a andar, deslocando a vela consigo. Naturalmente aguardava que o marido subisse. Gerald observou o corredor, que não estava iluminado.
Depois, silenciosamente, com infinitas precauções, foi andando sempre, tateando a parede com a ponta dos dedos. Encontrou uma porta e ficou um momento de ouvido à escuta. Percebeu que se tratava de duas pessoas, pelo ritmo da respiração. Não era ali, então. Prosseguiu, na ponta dos pés. Mais outra porta entreaberta. O quarto não tinha luz. Estava vazio. Mais adiante viu o banheiro, de onde vinha o cheiro de sabonete e um bafo morno. Por fim, na extremidade, descobriu outro quarto e ouviu alguém ressonando tranquilamente. Devia ser ela.
Com mil cuidados, quase num ritual, Gerald deu volta à maçaneta e abriu uma nesga da porta, que rangeu levemente. Empurrou mais um pouco, e mais ainda. O coração nem mais pulsava; era como se ele criasse à sua volta o silêncio e o esquecimento.
Conseguira entrar. Quem lá estava continuou a dormir placidamente. A escuridão era completa. Gerald foi seguindo, muito devagar, apalpando a parede, ate que chegou à cama e sentiu a respiração de quem dormia. Aproximou-se mais e inclinou-se como se os olhos pudessem descobrir a forma que ali jazia. E então muito perto do seu rosto, percebeu os cabelos escuros e o rosto redondo de um menino. Ficou atordoado.
Endireitou-se, deu meia volta e dirigiu-se à porta, de onde vinha um pouco de claridade. No patamar, hesitou; ainda havia tempo para fugir.
Mas não era esse o seu desejo. Queria levar a cabo o projeto. Tornou a passar, como uma sombra, em frente ao quarto do casal e subiu ao segundo andar. Os degraus estalaram sob o peso. Que aborrecimento! E que fracasso, se por acaso a mãe o apanhasse naquela situação! Se tal acontecesse... Mas não desanimou.
Não acabara ainda de subir, quando sentiu passos apressados no andar de baixo e alguém fechando à chave a porta da rua. Ouviu a voz de Úrsula e depois uma exclamação do pai, que despertara. Gerald correu ate o último andar.
Encontrou uma porta aberta: era outro quarto vazio; seguiu sempre para frente, andando às apalpadelas como um cego nas pontas dos pés. Movia-se, entretanto, com rapidez, com medo que Úrsula viesse. Encontrou mais uma porta. Escutou; os sentidos estavam alertas com uma acuidade sobrenatural. Pareceu-lhe que alguém se remexia na cama. Devia ser Gudrun. Docemente, como se naquele momento só tivesse a sensação tátil, Gerald deu volta à fechadura, que fez leve ruído Então estacou. Sentiu-se um roçar de lençóis. O coração oprimido, tornou a girar o fecho e empurrou a porta com a maior suavidade o que não a impediu de ranger.
- É você, Úrsula? - perguntou a jovem com voz atemorizada. Gerald abriu de vez a porta, muito depressa, e fechou-a atrás de si.
- Úrsula? - repetiu a moça, sempre com voz assustada. Ele percebeu que ela se sentava na cama. Não tardaria a gritar.
- Sou eu - disse o intruso dirigindo-se para ela. - É Gerald.
Ela ficou imóvel no leito. Seu espanto foi tão grande que sobrepujou o medo.
- Gerald! - exclamou ela, profundamente admirada. Mas ele já estava ao lado da cama e, com a mão estendida, tocava-lhe no seio quente, sem o ver. Gudrun recuou.
- Deixe-me acender a luz - pediu a jovem, saltando para o chão.
O homem estava calmo, mas não se movia. Sentiu-a pegar uma caixa de fósforos e riscar um. Surgiu o clarão e Gerald pode vê-la chegar o fogo ao pavio de uma vela.
A luz alastrou-se, depois diminuiu. O quarto recaía no escuro enquanto a vela não ardia bem; depois tornou a clarear.
Gudrun olhou para ele, que se mantinha de pé, do outro lado da cama. Tinha o boné enterrado ate aos olhos e o sobretudo preto abotoado ate ao queixo. O rosto parecia estranho e luminoso, como um ser sobrenatural. Logo que ela o viu, compreendeu o que se passava. Percebeu que havia, naquela situação, uma espécie de fatalidade, que lhe era forçoso aceitar. Todavia, convinha discutir.
- Como entrou? - inquiriu.
- A porta estava aberta... Subi as escadas.
Gudrun observava-o.
- Não fechei a porta - explicou ele. A moça atravessou rapidamente o quarto e deu volta à chave.
Estava extraordinariamente bem, com os olhos admirados, as faces coradas, os cabelos curtos e espessos na nuca e a camisola de dormir branca, tombando-lhe ate aos pés.
Ela notou que as botas de Gerald estavam enlameadas e que a terra úmida lhe chegava a atingir as calças. Imaginou se ele teria deixado vestígios de sua passagem no assoalho da casa. Que estranho vê-lo imóvel ao lado da cama, perto dos lençóis em desordem!
- Qual o motivo desta visita? - perguntou Gudrun fingindo-se zangada.
- Não pude resistir.
A verdade da resposta estampava-se no rosto dele.
- Está todo cheio de lama - comentou ela, repreendendo-o, embora carinhosamente. Gerald olhou para as botas.
- Estava tão escuro que não se via o caminho. - Disse isto bruscamente, com certa arrogância. Seguiu-se um silêncio. Gerald continuava no mesmo lugar, e ela do outro lado da cama revolvida. Ele nem sequer tirara o boné.
- E que pretende de mim? - perguntou Gudrun com ar de desafio.
Gerald desviou a vista e não respondeu. A extrema beleza, a misteriosa atração daquele rosto estranho e distinto, foi a única razão por que Gudrun não o mandou embora. Era, na verdade, um rosto maravilhoso, indecifrável para ela. Fascinava-a com o prestígio da beleza genuína, enfeitiçava-a, avivava-lhe as saudades, fazia-a sofrer.
- Que pretende de mim? - repetiu, afetando indiferença.
Gerald tirou o boné, como quem se desembaraçasse de um pesadelo, e dirigiu-se para ela. Mas não a tocou, vendo-a descalça e de camisola de dormir e reparando como ele próprio estava molhado e coberto de lama. Os olhos de Gudrun, grandes, muito abertos, fitavam-no, como que a insistir na pergunta formulada.
- Eu... vim para cá porque era preciso que viesse. Que tem a censurar-me?
Ela o contemplou admirada, como se não acreditasse no que ouvia.
- Estou no meu direito.
Gerald abanou a cabeça.
- Não é resposta - declarou, com expressão singularmente abstrata.
Tinha um ar ingênuo, quase divino, de simplicidade e franqueza inocentes. Lembrava-lhe, a ela, uma aparição de Hermes na sua mocidade.
- Mas por que veio? - insistiu.
- Porque estava escrito... Se você não vivesse neste mundo eu não viveria também.
Gudrun continuava a contemplá-lo com espanto, impressionada e ele fitava-a também, fixamente, numa estranha imobilidade que se julgaria inumana. A jovem suspirou. Sentia-se perdida sem remissão.
- Quer descalçar as botas? - sugeriu-lhe. Devem estar molhadas.
Gerald colocou então o boné sobre uma cadeira, desabotoou o sobretudo e levantou o queixo para desapertar a camisa. Os cabelos Imos e curtos estavam despenteados; mas parecia tão belo louro como o trigo! Acabou por despir o sobretudo.
Logo a seguir despiu o terno, desfez a gravata e desprendeu os botões dos punhos, em cada um dos quais havia uma pérola. Gudrun olhava-o inquieta, receosa de que alguém ouvisse o estalar da roupa engomada. Soavam para ela como tiros de canhão.
Gerald não precisava de justificação. Gudrun deixou-o tomá-la nos braços, apertá-la contra si. E ele, naquele amplexo, encontrava infinito alívio; espalhava por toda ela o poder tenebroso, corrosivo e mortal que trazia consigo, e readquiria assim a sua verdadeira personalidade. Era extraordinário, semelhante a um milagre, o milagre constantemente renovado da sua vida, em cuja realização se perdia num êxtase de prodígio e de consolo. E ela submissa, recolhia-o como um vaso repleto de amarga bebida fatídica. Nessa crise, não tinha forças para resistir. Havia-a penetrado a terrível e cruciante violência da morte, e comprazia-se arrebatada e submetida, nas agonias de uma sensação aguda e profunda.
Gerald apertou-a com mais força, embebendo-se profundamente naquele calor suave, admiravelmente criador, que lhe entrava nas veias e lhe dava novo alento. Julgava dissolver-se e afundava-se no banho repousante daquela energia reanimadora. Parecia-lhe que o coração da jovem vibrava lá dentro do peito como um segundo sol intangível em cujo brilho e vigor, proporcionando vida, Gerald procurava precipitar-se mais ainda. Todas as suas veias, rasgadas, laceradas, se iam brandamente cicatrizando ao mesmo tempo porque o ardor aí chegava e nelas corria, invisível, qual poderosa emanação solar. O sangue, que se teria suposto esgotado mortalmente, de novo lhe afluía, seguro, opulento, vivificador.
Notava que seus membros se enchiam de seiva nova, que seu corpo se robustecia com ímpeto desconhecido. Tornava a ser forte, vigoroso, amplo. Era como uma criança convalescente, que suavemente se restabelecesse; envolvia-o uma onda de gratidão.
E ela? Gudrun era a água purificadora da sua existência. Adorava-a como mãe e substância de todas as coisas. Ele, filho e homem, recebia esse alimento e se tornava um ser completo, integral. Viera com o corpo quase morto; mas fora envolvido pela doce emanação miraculosa daquele peito de mulher, entornando-se pelo cérebro ressequido e enfermo como linfa saneadora, tal o fluxo calmante da própria vida, fazendo-o perfeito como se houvesse nascido outra vez do ventre materno.
Estivera realmente ferido, esgotado; dir-se-ia que os tecidos do seu cérebro se haviam destruído. Nem tinha reparado até que ponto o fora, qual a profundidade a que haviam penetrado as matérias corrosivas da morte. Agora, porém, que essa linfa apaziguadora se derramava e lhe percorria o corpo, Gerald compreendia o quanto estivera doente, planta queimada interiormente pelo sopro da geada!
Descansou a cabeça entre os seios dela, apertando-os com as mãos e Gudrun, com as suas, chegou-o mais para si, deixando-o repousar tranquilamente. Um calor delicioso circulou por ele como um sono fecundo no seio materno. Ah, se a moça quisesse simplesmente deixar que aquela viva emanação o percorresse, Gerald ficaria curado de todo, restabelecido de vez! Tinha medo, contudo, de que ela retirasse o seu apoio antes que a cura se verificasse. Como uma criança de colo, o homem unia-se fortemente a Gudrun e ela não o podia afastar. Sentia-se gravíssimo para com Deus, como um menino é grato para sua mãe; grato e feliz ate o delírio, à medida que sua integridade se restabelecia, conforme o sono perfeito e inexprimível que o tomava, completo sono de cura e renovação.
Mas Gudrun permanecia desperta, na sua plena consciência. Estava imóvel, com os olhos fixos na obscuridade, enquanto ele adormecia, abraçado a ela.
Julgava ouvir o ruído das vagas rebentando numa praia invisível, longas ondas indolentes e sombrias que rolavam ao ritmo do destino, numa monotonia evoca Dora da eternidade. Este sussurrar constante do mar lento e triste apoderava-se-lhe da vida, e ela ali continuava de olhos abertos e enevoados, contemplando as sombras ao redor. Talvez visse de muito longe, talvez a eternidade, e, no entanto não distinguia nada. Mantinha-se absorta, mas consciente; consciente, porém, de quê?
Aquele estado, depois de haver atingido o máximo limite - quando ela mergulhou na eternidade, suspensa, inteirada de tudo - dissipou-se por fim e deixou-a desassossegada. Estivera tanto tempo imóvel! Mexia-se agora, recuperava a noção da realidade. E queria olhar para ele, observá-lo.
Não se atrevia, porém, a reacender a vela, certa de que Gerald acordaria, e desagradava-lhe perturbá-lo naquele sono tão perfeito que ela, bem sabia, lhe havia provocado.
Desprendeu-se dele cuidadosamente, soerguendo-se para contempla-lo na cama. No quarto, parecia descobrir uma claridade tênue. Podia ver as feições desse homem quieto e adormecido Julgava mesmo vê-lo distintamente, sem embargo da deficiência de luz. Ele, contudo, estava longe, num mundo diverso. Se ela gritasse, ele não a ouviria, tão ausente estava, num mundo distante. Gudrun tinha a impressão de que o via como um seixo afastado, meio submerso pela água límpida, no escuro. E ali ficava ela, entregue à angústia da sua consciência, enquanto ele mergulhava profundamente em outro elemento, descuidado, remoto, vivendo num mundo de claridade e de sombra! Belo, perfeito, longínquo. Jamais se poderiam reunir. Ah, atroz e inumana distância que se interpunha para sempre entre ela e aquele ser!
Nada restava a fazer senão ficar tranquila e sofrer o seu destino. Experimentava, por ele, a maior das ternuras e, ao mesmo tempo certo ciúme, certo ódio obscuro e confuso pelo fato de o ver tão calmo e imune em seu outro universo, enquanto ela estava atormentada, imersa em escuridão, vítima de cruel insônia.
Gudrun, em seu íntimo, sentia-se agitada. Extenuava-a aquela superatividade. O relógio da igreja batia horas que, à sua imaginação, se afiguravam suceder rapidamente. Ouvia-as distintas no meio da sua extrema tensão nervosa. Ele, porém, dormia, como se o momento fosse sempre o mesmo, imutável e estático.
A moça estava fatigadíssima. Contudo, era forçoso continuar naquele estado de excitação violenta; tudo lhe perpassava pela memória: a sua infância, a adolescência, episódios já esquecidos, coisas que não compreendera bem, cujo alcance lhe escapara, acontecidas a ela, à família, às amigas, aos namorados, aos conhecidos, fosse lá quem fosse. Era como se estivesse recolhendo, do fundo mar de sombras, o cabo cintilante das recordações, a puxar uma corda que não tinha fim, que nunca mais acabava, e ela precisava arrastar, retirá-la, fosforescente, das profundidades ilimitadas da lembrança, ate que, sem haver concluído a tarefa, a vencessem a lassidão, a dor e o esgotamento.
Ah, se ao menos pudesse acordar Gerald! A inquietação apoderara-se dela. Quando conseguiria despertá-lo e mandá-lo embora? Quando se atreveria a sacudi-lo? Ei-la de novo entregue à atividade automática da memória, sem esperança de a fazer cessar jamais!
Mas aproximava-se a hora de despertar Gerald. Sena um grande alívio o relógio, lá fora nas trevas, badalara quatro horas. Graças a Deus a noite ia findar. Às cinco tornava-se necessário que ele partisse, para que ela pudesse descansar. Repousaria, então estender-se-ia na cama, retomando a posição costumeira. Agora, naquele momento, opondo-se ao ritmo regular de um sono perfeito, era como uma faca muito aquecida de encontro a uma pedra de afiar. Havia nele qualquer coisa de monstruoso, na sua maneira de estar ali, assim unido, justaposto.
A última hora foi a mais comprida. Contudo, passou. O coração de Gudrun pulou de contentamento. Sim, lá estava batendo, pesada forte, a torre da igreja... Finalmente, depois de uma noite que parecia eternizar-se! Contava as badaladas, uma por uma: "três, quatro, cinco!" Pronto, estava acabado. Parecia retirar um peso enorme de cima.
Levantou-se, curvou-se ternamente sobre ele e beijou-o. Tinha pena de o despertar. Tornou a beijá-lo. Mas Gerald não se mexeu. Coitado, estava tão profundamente adormecido! Que maldade ter de acordá-lo! Deixou-o mais alguns minutos. Entretanto, fazia-se tarde; era preciso fazê-lo partir.
Cheia de ternura, tomou-lhe rosto entre as mãos e beijou-o nos olhos, que se abriram. Gerald ficou a observá-la, sem fazer qualquer movimento. O coração de Gudrun oprimiu-se. Para esconder o rosto daquele olhar espantado, que investigava a penumbra, inclinou-se e beijou-o mais uma vez, murmurando:
- Tem de ir, meu amor. Mas ao dizer isso, sentia-se triste.
Gerald lançou-lhe os braços ao pescoço. A jovem sentiu-se ainda mais angustiada.
- Você precisa ir - repetiu. - Está na hora.
- Que horas são?
Como soava singularmente aquela voz de homem! Gudrun estremeceu. A opressão tornava-se-lhe intolerável.
- Já passa das cinco.
Ele, porém, nada fez senão abraçá-la mais. O coração de Gudrun gemia-lhe no peito, torturado. Desprendeu-se dele à viva força.
- É preciso ir-se embora.
- Só mais um minuto.
Gudrun uniu-se a ele, muito sossegadamente, mas pouco disposta a lhe fazer a vontade.
- Mais um minuto - repetiu Gerald, apertando-a fortemente.
- Não - declarou ela. - Tenho medo, vá!
Havia na entonação da moça um pouco de frieza que o fez obedecer. Ela afastou-se, levantou-se e riscou um fósforo. Estava tudo terminado.
Gerald saltou da cama. Sentia-se quente, cheio de vida e de vigor. Contudo, experimentava um pouco de vergonha e humilhação em se vestir diante de Gudrun, à luz da vela. Era revelar-se expor-se excessivamente, principalmente agora que ela revelava hostilidade. Enfim, coisas difíceis de aceitar. Vestiu-se depressa, sem colocar nem o colarinho nem a gravata. Considerava-se agora uma pessoa completa, perfeita. Gudrun achava esquisito ver um homem vestir-se: camisa ridícula, ridículas calças e suspensórios... Teve uma ideia justificadora:
"Parece um operário que se levanta para ir para o trabalho - pensou. - Suponhamos que sou a mulher dele". Todavia, sentia um mal-estar, espécie de náusea do homem.
Gerald guardou no bolso do sobretudo o colarinho e a gravata. Depois sentou-se e calçou as botas, que estavam molhadas. Mas tinha pressa, e ele, ao menos, sentia-se quente.
- É melhor só calçar as botas lá embaixo - aconselhou ela.
Gerald, imediatamente, tirou as botas e ergueu-se com elas nas mãos. Gudrun calçara chinelas e envergava um roupão que não chegara a abotoar. Estava pronta e olhou para ele: Gerald esperava, com o sobretudo fechado ate o queixo e com o boné na cabeça. As botas pendiam-lhe das mãos. Por instantes, Gudrun sentiu-se tomada pela odiosa fascinação de sempre, que jamais se esgotava nela. Ele tinha o rosto tão ardente, os olhos imensos tão repletos de expressão! Achou-se velha, então, bastante velha... Aproximou-se com ar cansado e beijou-o. Gerald retribuiu-lhe o beijo, rapidamente. Ah, se aquela beleza fatal e sensual, beleza sem significação, não a enfeitiçasse mais, não a subjugasse tanto! Constituía para ela uma espécie de fardo, que a dominava e de que não se podia desvencilhar. Quando o contemplava, quando lhe via as sobrancelhas finas o nariz bem feito e os olhos azuis e indiferentes, Gudrun compreendia que a sua paixão não fora ainda satisfeita e que talvez nunca o viesse a ser. O pior é que, no momento, sentia-se fatigada, com uma sensação dolorosa. Gostaria que ele partisse.
Desceram. Tinham a impressão de que faziam muito ruído. Gerald seguia atrás, e Gudrun, embrulhada no seu roupão verde, levava na mão uma vela acesa. Assustava-a a ideia de despertar a família. Gerald não pensava nisso. Não se importava com o que os outros julgassem, e essa indiferença exasperava-a. Deviam rodear-se de precauções. Convinha não dar escândalo.
Tomaram o caminho da cozinha, que ficara limpa e arrumada como a criada a deixara. Gerald consultou o relógio: cinco horas e vinte minutos! Sentou-se e calçou as botas. Gudrun espiava-o, observando-lhe cada movimento. Desejaria pôr fim àquilo tudo que lhe causava aflição.
Ele se levantou outra vez, e ela destrancou a porta de serviço, investigando a escuridão. A madrugada estava áspera e fria, a aurora não despontava ainda e, num céu indeciso, pairava uma nesga de lua. Gudrun consolou-se com o pensamento de que voltaria para a cama.
- Bem, então adeus - murmurou ele.
- Vou até o portão - disse ela.
Passou à frente para indicar a escada. Chegando lá, parou nos degraus, enquanto Gerald descia.
- Adeus - cochichou a moça.
O homem beijou-a com delicadeza e partiu.
Era um sofrimento ouvir distintamente aquele passo vigoroso trilhando a estrada! E como aquele andar firme lhe revelava um mundo de insensibilidade!
Fechou o portão e voltou para a cama, rápida e silenciosa. Ao ver-se de novo no quarto, com a porta trancada, sã e salva, respirou de alívio, como se descarregasse um grande peso em cima. Aninhou-se entre os lençóis, na cavidade que o corpo de Gerald havia formado e que estava ainda quente como ele deixara. Enervada, cansada, mas apesar de tudo satisfeita, mergulhou muito depressa num sono profundo.
Gerald foi andando veloz na escuridão hostil daquela noite que findava. Não encontrou ninguém. Tinha o espírito perfeitamente calmo e despreocupado, semelhante a uma lagoa tranquila; sentia o corpo ágil, quente, apaziguado. Logo chegou a Shortlands, satisfeito consigo mesmo.

Capítulo XXV
Ser ou não ser casado
A família Brangwen ia deixar Beldover. Tornava-se conveniente que o pai morasse agora na cidade.
Birkin já havia requerido autorização para casar, mas Úrsula não se decidia. Não queria fixar a data definitiva; continuava a hesitar. Havia já três semanas que ela tinha pedido a sua demissão do colégio. O Natal se aproximava.
Gerald aguardava o casamento de Birkin com Úrsula. O caso tinha importância para ele.
- Quem sabe se, em vez de um casamento, serão dois? disse um dia ao amigo.
- Qual é o segundo? - inquiriu este.
- O meu e o de Gudrun - respondeu Gerald com uma piscadela de olhos.
Birkin encarou-o surpreso.
- Está falando sério?
- Sim, que tem isso de estranho? Podíamos casar no mesmo dia que vocês.
- Sem dúvida. Case! Não sabia que estavam tão adiantados.
- Adiantados? - repetiu Gerald, observando o outro e desatando a rir. - Sim, é verdade, estamos nesse ponto.
- Só resta colocá-los numa larga base social e realizar um fim moral elevado - declarou Birkin.
- Tudo isso: largura, altura... e comprimento - replicou Gerald, sempre rindo.
- Muito bem; é uma decisão digna de aplausos, julgo eu. Gerald fitou-o atentamente.
- Por que não se entusiasma mais um pouco? - indagou. - Julgava-o defensor acérrimo do matrimônio.
Birkin encolheu os ombros.
- Defenda-se, o que quiser, até narizes, que os há de várias espécies, achatados, torcidos...
Gerald achou a comparação divertida.
- E todas as espécies de casamentos, torcidos e achatados - observou.
- Isso mesmo.
- E pensa que o meu será dos torcidos? perguntou Gerald pondo a cabeça de lado, com ar zombeteiro.
Chegou a vez de Birkin sorrir.
- Como posso saber? Não se aproveite do meu estilo figurado para me submeter a interrogatórios.
Gerald refletiu uns instantes.
- Em todo caso, gostaria de saber ao certo a sua opinião.
- Acerca do seu casamento, ou do casamento em geral? Para que deseja conhecê-la? Opinião é coisa que não tenho. O casamento legal não me interessa, de modo nenhum. É pura questão de conveniência.
Gerald fitou-o mais uma vez com atenção.
- Acho que é mais do que isso - atalhou muito sério. Por muito enfadonha que seja a respectiva filosofia, em todo o caso... realmente... do ponto de vista de cada um, parece-me que é assunto grave, definitivo...
- Quer dizer que o fato de ir, com uma mulher, perante o registro civil, dá ao casamento aspecto definitivo?
- Se o ato se realiza ate ao fim, acho que é, de certa maneira, coisa irrevogável.
- Concordo - disse Birkin.
- A opinião que se tenha sobre a legitimidade não importa; contudo o fato, em relação aos contraentes, é coisa certa. - Creio que sim, em certas terras.
- O problema se resume em saber se nos devemos casar... Birkin observava-o, curioso, com os olhinhos risonhos.
- Você, Gerald, - disse ele - é tal qual Lord Bacon. Argumenta como um advogado, ou como o Hamlet no ser ou não ser. No seu caso, eu não me comprometeria. Mas vá perguntar isso a Gudrun e não a mim. Não é comigo que você quer casar...
Gerald não prestou atenção ao final do discurso.
- Sim - insinuou - devemos considerar tudo isso com serenidade. É um momento crítico da nossa vida. Chega-se a certa altura em que é preciso enveredar por um caminho ou por outro. O casamento é um desses caminhos.
- E qual é o outro? - acudiu logo Birkin.
Gerald ergueu para ele os seus olhos ardentes, estranhamente persuasivos, que o amigo, todavia, não pôde compreender.
- Não sei explicar - respondeu. - Se o soubesse... - Mexeu com os pés, inquieto, e não acabou a frase.
- Quer dizer que, se conhecesse a alternativa... ? - sugeriu Birkin. - Mas como não a conhece, o matrimônio é um pis aller - Uma situação que se aceita por não haver algo melhor - nota da tradutora).
Gerald dardejou-lhe um olhar fogoso, constrangido.
- A impressão, realmente, é que se trata de um pis aller.
- Então não se case - sentenciou Birkin. - Dir-lhe-ei - prosseguiu - o mesmo que já lhe disse uma vez: o casamento, no seu significado usual, repugna-me. Comparado com ele, o egoisme à deux não é nada. É uma espécie de caçada feita por grupos de dois; o mundo todo aos pares, cada qual na sua casa, tratando da sua vida, cozinhando na intimidade... Nunca vi coisa mais repelente sobre a face da terra.
- Sou da sua opinião - voltou Gerald. - Há nisso muita inferioridade. Mas, como eu dizia, qual será a alternativa?
- É preciso desembaraçarmo-nos deste instinto doméstico, que não é bem um instinto, mas um hábito de covardia. Não devíamos nunca ter um lar.
- Completamente de acordo. Mas não há outra solução.
- É preciso encontrar uma. Creio na união permanente do homem com a mulher. Mudar sempre seria trabalho puramente exaustivo; ora, união apenas sexual entre mulher e homem não é o ponto supremo... Com certeza não é.
- Também acho.
- E é pelo fato de fazerem dessas relações materiais o fim supremo e exclusivo que vemos surgir tanta incompreensão, tanta mesquinhez e tanta insuficiência.
- Perfeitamente - disse Gerald.
- Devia-se apear do pedestal a que a ergueram essa fórmula considerada ideal: o amor no casamento. Pretendo algo mais elevado. Acredito numa união perfeita entre homem e mulher como complemento do matrimônio.
- Não percebo como possa equivaler-se.
- Não é o mesmo: é coisa mais importante, igualmente criadora, igualmente sagrada, se prefere.
Gerald remexia-se, inquieto.
- Bem vê, não posso sentir assim - declarou. - Acho que nada existe de mais forte entre mulher e homem do que o amor sexual. A natureza não estipula bases.
- Pelo contrário, creio que estipula. Nem julgo que possamos ser felizes sem estabelecermos, por nosso lado, as regras que nos competem. Faça por se desembaraçar do exclusivismo do casamento de amor e admita a estima do homem pelo homem, que tanta aversão lhe causa. Assim haveria maior liberdade para toda gente, grande força individual não só para o homem como para a mulher.
- Bem sei - retorquiu Gerald. - Você crê em qualquer coisa nesse gênero. Eu é que não posso conceber nada disso. - Colocou a mão no ombro de Birkin, com uma espécie de simpatia suplicante, enquanto sorria como se houvesse triunfado na discussão. Estava pronto a se deixar condenar: era assim, como uma condenação, que lhe aparecia o casamento. Ele próprio desejava sofrer a pena do matrimônio, como um condenado a trabalhos nas minas que diz adeus à luz do sol e mergulha na terrível atividade subterrânea. Estava disposto a aceitar isso mesmo. O casamento era a penalidade imposta. Queria ser proscrito dessa forma para o subsolo, como uma alma penada que devesse viver para sempre em cativeiro. Não desejava, porém manter afinidades com mais nenhuma outra alma. Não o conseguiria. O casamento não era só unir-se a Gudrun: implicava também a aceitação do mundo tal qual existia. Devia admitir a ordem estabelecida, na qual não tinha confiança, e então retirar-se-ia para debaixo da terra, para sempre. Era esse o seu intento.
Por outro lado, havia a possibilidade de aceitar a aliança com Rupert, ligando-se por laços de pura estima com o homem, e, pela mesma doutrina, com a mulher. Se se comprometesse solenemente com o primeiro, mais tarde estaria apto a fazer o mesmo com uma mulher, não só por meio de casamento legal, mas numa união mística e absoluta.
Contudo, repudiava semelhante entendimento. Havia nele certo torpor, quer derivado de ausência de vontade, que jamais teria possuído, quer por se lhe haver ela atrofiado. Talvez a primeira hipótese. De fato, a proposta de Rupert Birkin entusiasmara-o singularmente. Mas sentia muito prazer em declarar que não aceitava.


Capítulo XXVI
A propósito de uma cadeira
Todas as segundas-feiras, à tarde, realizava-se uma feira de objetos usados no antigo mercado da terra. Úrsula e Birkin foram lá uma vez. Tinham conversado a respeito de móveis e quiseram ver se encontrariam qualquer coisa capaz de ser comprada no meio daquelas pilhas de trastes acumulados na praça.
O velho mercado não era muito vasto: simples quadrado com o chão coberto de pedras de granito, onde habitualmente, junto às paredes, se erguiam os tabuleiros dos vendedores de frutas. Ficava num bairro pobre e rodeavam-no, por um lado, casas em ruínas, de outro, uma fábrica de fiação, extensa fileira de inúmeras janelas oblongas; ao fundo, corria uma rua pavimentada de lajes, onde havia alguns estabelecimentos, e, na última face do quadrado, ficava um edifício do Estado, os banhos públicos, de tijolos novos, rubros e uma torre de relógio. As pessoas que por ali circulavam eram apenas figuras infelizes e sórdidas. O ar parecia impregnado de cheiros fétidos, dando a mesma sensação que se tem nas travessas pobres muito enredadas, cheias de casebres mesquinhos. De vez em quando, diante da fábrica, rodava a custo, rangendo, um grande carro americano, amarelo e cor de chocolate.
Úrsula sentiu arrepios na pele ao ver-se entre a gente do povo, no lugar onde se amontoavam camas velhas, objetos de ferro enferrujados, louça de barro em lotes tristes e conjuntos incríveis de roupa usada. Birkin seguia por aqueles espaços estreitos em que se sobrepunham todas aquelas mercadorias, que ele ia examinando com atenção. Úrsula observava as pessoas.
Contemplava agora uma mulher nova em vésperas de ser mãe; dispunha-se a comprar um colchão e incitava o rapaz que a acompanhava, desatento e abatido, a experimentá-lo também. Parecia tão ativa, preocupada e ansiosa quanto o rapaz se afigurava indiferente e com ar de quem pretende esquivar-se. Iam naturalmente casar por causa daquela criança prestes a vir ao mundo.
Depois de haverem apalpado o colchão, perguntou a freguesa ao homem, que estava sentado num banco em meio das suas mercadorias, qual era o preço que ele pedia. Uma vez informada do custo, comunicou a notícia ao rapaz. Este mostrou-se acanhado; desviou o rosto; sem no entanto mover o resto do corpo e pronunciou qualquer coisa em voz baixa. De novo a mulher, ansiosa e diligente, provou o colchão, fazendo cálculos consigo mesma e regateando com o vendedor desleixado. E, durante todo esse tempo, o rapaz ficou ao lado dela, envergonhado, sem energia, submisso.
- Veja - disse Birkin. - Aqui está uma cadeira bem bonita.
- Linda! - exclamou Úrsula. - Um encanto!
Era uma cadeira de braços, de qualquer madeira vulgar - vidoeiro, provavelmente - mas bastante delicada e graciosa quanto ao estilo; dava pena vê-la ali sobre aquelas pedras miseráveis. Era de forma quadrada, com linhas esbeltas e puras; o espaldar era constituído por quatro tiras de madeira, delgadas, cuja disposição lembrou a Úrsula a das cordas de uma harpa.
- Noutro tempo - observou Birkin - devia ter sido dourada e com assento de palhinha. Pregaram-lhe por cima esse tampo de madeira. Está vendo, aqui está um vestígio de tinta vermelha por baixo do dourado. A base é toda preta, exceto onde o uso pôs à mostra a própria madeira. O que a torna assim atraente é a perfeição de suas linhas. Repare como seguem, como se encontram e se desviam. O pior é o assento de pau, que não lhe pertence, destrói a elegância e a priva da unidade que lhe dava o entrançado da palhinha. Ainda assim, agrada-me...
- E a mim também - disse Úrsula.
- Quanto custa? - perguntou ao vendedor.
- Dez xelins.
- Pode mandar entregar?
Fizeram a compra.
- É tão bonita, tão graciosa! - disse Birkin. - Enternece o coração. - Continuaram o seu caminho entre os montões de coisas velhas. - Minha pátria amada, tinha qualquer coisa para exprimir, quando fizeste esta cadeira!
- E hoje não tem? - perguntou Úrsula. Irritava-se quando ele falava naquele tom.
- Não, não tem. Quando vejo esta cadeira, tão bela e elegante e penso na Inglaterra, ainda que seja a do tempo de Jane Austen!... Havia então pensamentos vivos a desenvolver, e havia prazer em desenvolvê-los... E agora só nos resta pescar, entre o lixo, o que ficou da velha expressão nacional. Não temos, presentemente, originalidade, somos apenas mecanismos sórdidos e grosseiros.
- Não é verdade! - atalhou Úrsula. - Por que você há de exaltar constantemente o passado em desprimor do futuro? Eu, na verdade, não sou muito pela Inglaterra de Jane Austen. Era bastante materialista, se me permite dizer...
- Podia dar-se ao luxo de o ser - contraveio Birkin - porque tinha possibilidades de fazer mais alguma coisa, o que não sucede conosco. Nós somos materialistas pela razão de não termos facilidade de ser de outra maneira. Bem podemos experimentar, mas não conseguimos senão materialismo; ou a mecânica, que é a alma daquele.
Úrsula guardava um silêncio hostil. Não fazia caso mais do que ele estava dizendo. Revoltava-se contra outro pensamento que lhe girava no cérebro.
- Odeio esse passado que você ama. Sinto náuseas. Parece ate que detesto essa cadeira antiga que compramos, apesar de achar bonita; mas não é desta beleza que eu gosto. Preferia que a tivessem destruído, uma vez que passou de época; que não tivesse sobrevivido, dando assim origem a estes seus panegíricos do passado... Estou farta desse passado que você adora.
- Não tanto quanto eu estou farto deste maldito presente - replicou ele.
- Pois é a mesma coisa. Detesto também o presente, mas não me agradaria que o passado o viesse substituir. Não quero a cadeira antiga.
Naquele momento Birkin estava furioso. Olhou para o céu que brilhava sobre a torre do estabelecimento de banhos e sua cólera passou. Começou a rir.
- Muito bem - disse ele. - Desfaçamo-nos desse objeto. Enfastia-me também. De qualquer maneira, não nos podemos continuar a alimentar de velharias, por mais belas que sejam.
- Não podemos - assentiu ela. - Não preciso de antiguidades.
- A verdade é que não necessitamos de móveis de nenhuma espécie - declarou Birkin. - A ideia de uma casa minha, com a respectiva mobília, enfurece-me.
Tal declaração sobressaltou-a por instantes. Mas depois retorquiu:
- A mim também. O caso, porém, é que precisamos viver em qualquer parte.
- Em qualquer parte, não, mas em parte nenhuma. Em nenhum lugar, sim! Não ter pouso definido! Não me falem em residência permanente. Logo que temos um quarto, e que o vemos completo, nosso desejo é fugir dele. Os meus aposentos no moinho estão agora quase prontos, e meu desejo seria lançá-los no fundo do mar; é uma tirania medonha essa do lugar fixo, onde cada peça de mobiliário tem a sua ordem estabelecida.
Úrsula apoiou-se ao braço dele enquanto se afastavam da feira.
- Mas que havemos de fazer? - murmurou ela. - Temos de viver seja lá onde for, e agradam-me coisas belas à minha volta. Aprecio uma espécie de esplendor natural, de magnificência.
- Você não achará nada disso, nem nas casas, nem na mobília, nem sequer nos vestidos. Casas, móveis, roupas, são termos de um mundo velho e mesquinho, da antipática sociedade humana. E pior ainda se você tiver uma residência de estilo Tudor com lindos móveis antigos, que faria perpetuar passado à sua volta. Mas se a casa é moderna e for decorada por Poiret expressamente para nós, é outra a ideia que perpetuamos à nossa volta: igualmente horrível. É tudo patrimônio, tudo são bens que nos atormentam, obrigando-nos à generalização... Devíamos fazer como Rodin e Miguel Ângelo, que deixavam em torno dos vultos esculpidos apenas pedaços de pedra rudes e imperfeitos. Em redor de nós, seguindo o exemplo, devíamos ter somente coisas incompletas, esboçadas, de maneira a não sermos nunca limitados, nem confinados pelo que nos rodeia.
Úrsula parou no meio da rua, meditando.
- Nunca teremos, então, uma casa nossa, uma instalação de verdade?
- Se Deus quiser, neste mundo, não.
- Mas só há este mundo - objetou ela.
Rupert estendeu os braços num gesto de indiferença.
- Entretanto, evitemos possuir seja que objetos forem.
- Você acaba de comprar uma cadeira.
- Direi ao homenzinho que não a quero mais.
Úrsula tornou a refletir. Sua face contraiu-se em um ritus estranho.
- Tem razão - disse ela. - Não precisamos de velharias. Estou farta disso.
- Quanto a mim, não aprecio mais que é moderno - replicou Birkin.
Resolveram voltar.
Em frente a uma pilha de móveis estava casal jovem: a moça que ia ter seu bebê e rapaz acanhado e inexperiente. Ela era loura, atarracada e forte. Ele, de altura mediana, bem constituído; tinha cabelos pretos, caindo sobre a testa. Com a boina enfiada na cabeça, parecia totalmente alheio ao que se passava.
- Vamos oferecê-la a eles? - cochichou Úrsula. - Repare, têm o aspecto de quem anda mobiliando o ninho...
- Nesse caso, não os ajudarei nem incitarei - afirmou Birkin com petulância, tomando logo o partido do rapaz indiferente e bisonho contra a fêmea ativa e procriadora.
- Sim, sim! - exclamou Úrsula. - Ela será ótima para eles. Não há nada melhor!
- Está bem, vá oferecer a cadeira: eu fico observando. Úrsula dirigiu-se, um tanto nervosamente, em direção ao casal, que discutia a compra de um lavatório de ferro; ou melhor, era a mulher quem regateava ao passo que o rapaz, como um prisioneiro, lançava olhares furtivos e desconfiados sobre o objeto abominável.
- Compramos uma cadeira - começou Úrsula - mas não a queremos. Querem-na para vocês? Teríamos muito gosto em que aceitasse.
Os dois olharam admirados, custando a acreditar que a conversa fosse com eles.
- Importa-se de ficar com ela? - prosseguiu Úrsula. - É realmente muito bonita, mas... mas... - E exibiu o seu melhor sorriso.
Os noivos limitaram-se a observar, trocando olhares significativos, para saberem que resposta deviam dar. O rapaz procurava apagar-se o mais possível; o seu desejo seria escapulir como um rato.
- Temos muito gosto em oferecê-la - continuou Úrsula, sempre confusa e receosa. O rapaz, no entanto, inspirava-lhe simpatia. Era silencioso, descuidado, pouco masculino, singularmente delicado, de pura raça, em certo sentido. Era, enfim, tímido, esperto, sutil. As pestanas, longas e finas, sombreavam-lhe os olhos, nos quais não existiam pensamentos apenas uma espécie de instinto terrível, lá no interior, vítreos e melancólicos. Tanto as sobrancelhas escuras como os estantes traços da fisionomia obedeciam a um desenho corresimo. Assim tão bem dotado, devia ser, para a mulher, um amante funesto, mas admirável. Sob as calças disformes adiavam-se-lhe as pernas finas e ágeis; dir-se-ia haver, em volta alguma coisa da esperteza, da cautela, do aveludado de ratinho de olhos pretos, silencioso.
Úrsula dirigia-se a ele, com um leve calafrio de sedução. A mulher encarava-o hostilmente. A professora repetiu, mais uma vez:
- Não querem a cadeira?
O rapaz olhou para ela de soslaio, admirando-a, mas com ar distante, quase insolente. A mulher empertigou-se. Tinha o aspecto de uma vendedora de hortaliças. Não percebia quais eram as intenções da doadora e mantinha-se de prevenção. Birkin aproximou-se sorrindo perversamente ao ver Úrsula confusa e asseada.
- Então, o que há? - perguntou ele, jovial. Tinha os olhos semicerrados opressão denunciava algo de misterioso, igual à que se nota o parzinho de noivos. O rapazola inclinou a cabeça para Úrsula, e disse com certo calor, amável:
- Que é que ela quer, hein? - Seus lábios arquearam-se em um sorriso muito especial.
Birkin olhou para ele, mirando-o por baixo das pálpebras descidas, ironicamente.
- Dar-lhe uma cadeira... aquela, que tem um letreiro amarrado - disse para o outro, apontando-lhe o móvel.
O rapaz olhou para a cadeira. Notava-se entre os dois homens certa camaradagem e compreensão.
- Por que é que ela nos quer oferecer? - perguntou o primeiro em tom de familiaridade que melindrou Úrsula.
- Pensei que talvez gostassem... É uma cadeira tão bonita! Comprei-a, mas não a quero mais. Não é obrigado a aceitá-la, quanto a isso, fique sossegado... - explicou Birkin, sempre sorridente.
O rapaz lançou-lhe um olhar meio formalizado, meio agradecido.
- Se a compraram, por que razão não a querem? - interveio a mulher, friamente. - Será que a observaram melhor e viram que não serve? Aposto que desconfiam de que tenha alguma coisa lá por dentro.
Ao dizer isto, contemplava Úrsula com admiração mesclada de ressentimento.
- Não pensei nisso - declarou Birkin. - Mas vejam, a madeira está em bom estado...
- Aí está - atalhou Úrsula, com a face risonha, fazendo-se amável. - Vamo-nos casar e pensamos comprar alguns móveis. Mas agora decidimos, neste momento mesmo, desistir da mobília e irmos para o estrangeiro.
A outra, moça saudável, de boas cores, examinou o rosto delicado de Úrsula. Apreciavam-se reciprocamente. O noivo daquela mantinha-se de parte, alheio ao tempo, inexpressivo, com a sombra negra do bigodinho desenhando-lhe a boca impassível, sempre abstrato, mera presença inofensiva, como a de qualquer objeto.
- Essas pessoas da alta roda são engraçadas - comentou a mulher, voltando-se para o rapaz; este nem olhou para ela, limitando-se a sorrir com a parte inferior da fisionomia e deitando a cabeça de lado, num gesto irônico de concordância. Os olhos conservavam-se na mesma, vítreos e melancólicos.
- Sai caro mudar de ideias - observou ele, numa voz estranhamente velada.
- Perco apenas dez xelins - esclareceu Birkin.
O rapaz encarou-o, sorrindo contrafeito, acanhado, pouco à vontade.
- É mais barato então do que o divórcio...
- Ainda não estamos casados - elucidou o outro.
- Nós também ainda não - acudiu a robusta jovem. - Casamo-nos qualquer sábado desses...
Lançou ao noivo uma olhadela decidida e protetora, ao mesmo tempo autoritária e carinhosa. Ele riu-se, com um risinho abafado e deu-lhe as costas. Estava nas mãos dela, evidentemente, mas fazia por se defender. Vinham-lhe pruridos de orgulho e esquivava-se para demonstrá-lo.
- Que sejam felizes! - disse Birkin.
- O mesmo desejo aos senhores - volveu a mulher. Depois, numa tentativa audaciosa, perguntou:
- Quando é o casamento? Birkin voltou-se para Úrsula.
- Ela é quem decide - respondeu. - Iremos ao cartório assim que ela estiver pronta.
Úrsula achou graça e sentiu-se confusa e embaraçada.
- Não tenha pressa - acudiu o rapazinho, deixando ver os dentes, muito risonho.
- Não se preocupem com isso - interveio outra vez a moça.
- Também para morrer há tempo. E ficarão casados por muitos anos!
O noivo desviou-se, como que magoado com aquelas palavras.
- Quanto mais durar, melhor. Tenhamos esperança - disse Birkin.
- É isso mesmo, senhor - afirmou o rapaz, com acentuada admiração. - Aproveitar enquanto há saúde. Depois do burro morto, nada se pode fazer.
- A não ser que ele se finja de morto - acudiu a mulher, olhando para o noivo, com ternura, e, simultaneamente, autoridade.
- Faz diferença, é claro - replicou ele.
- E a respeito da cadeira? - perguntou Birkin
- Aceitamos! - declarou a mulher.
Aproximaram-se do vendedor. O rapazinho manhoso, com seus belos ares, deixou-se ficar, entretanto, mais atrás.
- Cá está - explicou Birkin. - Levam-na consigo, ou muda-se o endereço?
- Fred pode com ela. Que faça ao menos isso em benefício da nossa casa.
- Vai ser muito útil - disse Fred em tom sarcástico, ao pegar a cadeira. Tinha movimentos elegantes, mas era servil, cheio de manha. - Mamãe vai gostar - observou ele. - Só lhe falta uma almofada. - Colocou-a no chão de pedras e esperou.
- Não a acha bonita? - perguntou Úrsula.
- Sim, senhora - respondeu a noiva.
- Sente-se aqui, para ver se se arrepende da oferta que fez - lembrou o rapaz.
Úrsula obedeceu e sentou-se, mesmo ali no meio da feira.
- Confortabilíssima - declarou. - Mas um tanto dura. Experimente. - Convidou o homem a sentar-se. Este, porém, relanceou-lhe um olhar envergonhado, pondo-se de lado, sem jeito, e tentando esquivar-se como um ratinho.
- Não o estrague com mimos - disse a moça. - Não está habituado a poltronas.
Sempre desviando o olhar, respondeu-lhe aquele, em tom de brincadeira:
- Às minhas só faltam os pés.
Separaram-se. A noiva manifestou o seu agradecimento pelo presente.
- Muito obrigada pela cadeira. Há de durar muito.
- Vamos guardá-la como enfeite - completou o rapaz.
- Boa tarde! Boa tarde! - disseram Úrsula e Birkin.
- Felicidades para ambos! - respondeu o rapaz, evitando o olhar de Birkin na ocasião em que este voltara a cabeça para ele.
Os dois casais seguiram cada qual o seu caminho. Úrsula tomou o braço de Rupert. Quando já iam a certa distancia, Úrsula olhou para trás e descobriu os noivos, ela grávida e vagarosa andando ao lado dele. As calças do rapaz desciam-lhe aos calcanhares; seguia como quem tem vontade de se esconder, sofrendo no seu orgulho por ser obrigado a carregar com a cadeira, que segurava pelo espaldar, enquanto os quatro pezinhos delgados se balançavam a pouca distância do chão, com perigo de se estragarem. E, contudo, lá ia ele insubmisso e independente como um rato ligeiro e esperto. Belo à sua maneira, um tanto singular, mas, ao mesmo tempo, repulsivo.
- Que casal estranho! - murmurou Úrsula.
- Filhos dos homens - elucidou Rupert. - Lembram-me Jesus quando disse: "Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra.
- Mas estes não são mansos - objetou Úrsula. - Não sei bem por que, mas são.
Esperaram o ônibus. A moça preferiu ir na parte de cima para contemplar a cidade. O crepúsculo principiava a descer sobre as casas apinhadas.
- E herdarão a terra?
- Sim, eles só.
- E nós, então, o que havemos de fazer? - perguntou ela. - Não somos iguais a eles, não é verdade?
- Decerto. Teremos de viver nos buracos que nos deixarem.
- É horrível! declarou Úrsula. - Não quero viver assim.
- Não se aflija. São filhos dos homens, preferem os mercados e as esquinas das ruas. Restam devolutos imensos buracos para nós.
- O mundo inteiro...
- Isso não, mas sempre sobra algum espaço.
O ônibus subia lentamente a colina, onde o medonho conjunto de habitações, de um tom acinzentado, se assemelhava a uma visão infernal, irritante e angulosa. Começaram a observar. O sol morria no horizonte, vermelho de furor. Tudo parecia triste, encolhido, sufocante, sugerindo o fim do mundo.
- Nada disso me interessa - proferiu Úrsula, olhando para o cenário repelente. - Não me diz respeito.
- Sem dúvida - replicou Rupert, tomando-lhe a mão. - Não é necessário ver. Cada qual segue o seu caminho. No meu há sol e há espaço...
- Está dizendo a verdade, meu amor? - Uniu-se mais a ele, enquanto os outros passageiros do carro os fitavam com estupefação.
- Erraremos sobre a face da terra - volveu Birkin. - Veremos outras coisas no mundo, diferentes desta paisagem.
Ficaram calados por muito tempo. Úrsula meditava e seu rosto se tornara radiante como o ouro.
- Não preciso herdar os bens da terra - disse ela. - Nem quero nada.
Rupert apertou-lhe mais a mão.
- Nem eu. Quero ser deserdado.
Úrsula premia-lhe fortemente os dedos.
- Não nos incomodaremos com coisa alguma - sentenciou a moça.
Rupert, muito calmo, principiou a rir.
- Casaremos e não daremos importância aos demais - prosseguiu ela.
Ele continuava a rir.
- E uma das maneiras de nos livrarmos de tudo é casar - acrescentou Úrsula.
- E aceitar um mundo inteirinho - atalhou Rupert.
- Sim, porém um mundo diferente - replicou a moça, satisfeita.
- Mas... Gerald e Gudrun?
- Que fiquem, se quiserem. Não nos incomodaremos com isso. É impossível modificá-los.
- Sim, nem temos o direito de intervir, mesmo com a melhor das intenções...
- Você seria capaz de tentar? - perguntou a moça.
- Talvez. Mas por que é que o desejo, a ele, livre, se a natureza não o talhou para tal?
Úrsula refletiu alguns instantes.
- De qualquer maneira, não podemos fazê-los felizes. Que o sejam, mas à sua custa.
- Bem sei. Todavia, precisamos de outras pessoas, junto de nós...
- Por quê?
- Não sei. - Rupert parecia embaraçado. - Desejamos sempre ter amigos...
- Mas por quê? - insistiu ela. - Que necessidade temos de outras pessoas? Não nos bastamos a nós mesmos?
Aquela teima espicaçava-o. Birkin tornou-se carrancudo.
- Só existimos nós dois na terra? - inquiriu nervoso.
- Sim, Rupert. Para que mais gente? Se alguém quiser aproximar-se, deixá-lo vir. Mas não é preciso correr atrás dos outros.
Birkin permanecia ansioso e descontente.
- Veja - disse então. Eu não concebo que sejamos realmente felizes senão em companhia de meia dúzia de pessoas... Um pouco de liberdade, no meio de um grupo...
Úrsula voltou a refletir.
- De fato, isso é necessário. Mas que aconteça por si mesmo, e não pela nossa vontade. Você tem sempre o ar de quem está querendo obrigar as plantas a crescer. Se os outros simpatizarem conosco, está bem; mas não os obriguemos.
- Bem sei - concordou ele - Contudo, pode-se dar uns passos nesse sentido. Ou devemos proceder como se estivéssemos sós no mundo, como se fôssemos os únicos habitantes do planeta?
- Você tem a mim - redarguiu ela. - Para que mais? Por que obrigar os outros a concordar com você? Não pode ficar isolado, como tanto preconiza? Quer forçar Gerald com ameaças, como já fez a Hermione? Aprenda a viver só. É horrível da sua parte. Você me tem, e, no entanto, pretende obrigar os outros a sentirem estima por você! Quando, afinal, não tem necessidade da afeição dessa gente...
Birkin ficara deveras perplexo com este discurso.
- Pensa assim? - replicou. - É um problema que eu não sei resolver. Compreendo que desejo ter com você uma união perfeita e completa e estamos prestes a consegui-la. Mas, fora isso? Quero manter com Gerald uma amizade definitiva, quase extra-humana, uma amizade suprema. Ou não quero?
Úrsula contemplou-o longamente, com os olhos brilhantes e admirados. Mas não deu resposta.


Capítulo XXVII
Batendo as asas
Naquela noite, Úrsula regressara a casa com os olhos brilhantes, diferente do que costumava ser, irritando com isso os demais membros da família. O pai viera cear, depois das aulas noturnas, cansado do trabalho e do trajeto. Gudrun lia e a mãe conservava-se silenciosa.
De repente, em voz bem timbrada, a mais velha das irmãs declarou:
- Rupert e eu vamos casar amanhã.
O pai olhou, colérico.
- O quê? - exclamou.
- Amanhã? - perguntou Gudrun.
- Que ideia é essa? - quis saber a mãe.
Úrsula, porém, limitou-se a sorrir, encantada consigo mesma, e não deu resposta.
- Casar-se amanhã! - tornou o pai, indignado. - Que é que está dizendo?
- Sim, senhor. Por que não? - Estas simples palavras tiveram o poder de enfurecê-lo. - Temos tudo pronto. Iremos ao Registro Civil.
Houve um silêncio de segundos na sala, depois daquela declaração feita com tanta naturalidade.
- Isso é verdade, Úrsula? - indagou a irmã.
- Pode-se saber por que guardou segredo? - interrogou a mãe, cheia de dignidade.
- Não houve segredo nenhum. Todos sabiam.
- Quem é que sabia? - gritou o pai. - Quem sabia? Que quer dizer com todos sabiam?
Assumira uma das suas atitudes de ira brutal, e a moça colocou-se logo em guarda.
- Claro que o senhor estava a par. Não ignorava que nos iríamos casar.
Houve uma pausa perigosa.
- Diz que eu sabia que vocês iam casar? Como iria saber? Quem pode saber jamais o que você pensa fazer, minha sonsa?
- O pai! - interveio Gudrun, em tom de censura, corando intensamente. Depois, em voz mais calma e afável, como para lembrar à irmã que devia condescender, perguntou-lhe: - Não será uma resolução um tanto impensada?
- Pelo contrário - objetou a outra, com a mesma jovialidade agressiva. - Há muitas semanas que ele espera o meu consentimento, e já tratou ate dos papéis. Eu é que não me tinha ainda resolvido. Acabo de o fazer. Que tem isso de censurável?
- Nada, decerto - respondeu Gudrun, porém de uma forma ainda meio repreensiva. - Você é senhora das suas ações.
- Não tinha ainda resolvido! É isso que importa, não é? Tomar uma resolução! - Brangwen dizia isto imitando a voz da filha, de maneira agressiva. - Você e só você!
Úrsula empertigou-se, ergueu o peito e nos olhos fuzilaram-lhe clarões dourados, assustadores.
- Sirvo de alguma coisa! - declarou, ofendida e penalizada. - Sei, no entanto, que para os outros não represento nada. O pai só trata de me repreender, nunca se preocupa com a minha felicidade.
Brangwen curvara-se para ela, estendendo-lhe o rosto congestionado.
- Úrsula! - acudiu a mãe. - O que é que está dizendo? Cale-se, por favor!
A moça voltou-se logo, de olhar coruscante.
- Não, não me calo. Não me calo nem me deixo espezinhar assim. Que importa que eu me case amanhã ou depois? Que lhes interessa isso? O assunto não diz respeito a mais ninguém, só a mim.
O pai continuava em guarda, como um gato pronto a investir.
- Não me diz respeito? - repetiu ele, chegando-se mais para o lado da filha, que recuou.
- É claro que não! - replicou ela, trêmula, mas inflexível.
- Com que então, o que você faz não me interessa? - a voz de Brangwen alcançara seu mais alto diapasão.
Gudrun e a mãe olharam-no como que hipnotizadas.
- Não! - balbuciou Úrsula. O pai estava muito junto dela. - O que o senhor quer é apenas...
Interrompeu-se, reconhecendo que era arriscado o que ia dizer. Brangwen estava pronto, com os músculos retesados.
- O quê? - perguntou, desafiando-a.
- Intimidar-me!
Mal tinha proferido isto e já a mão do pai, estampando-se-lhe no rosto, a mandava de encontro à porta.
- Papai! - exclamou Gudrun em altos brados. - É incrível!
Brangwen ficou petrificado. Úrsula endireitou-se, apoiando-se, com a mão, ao fecho da porta. Recompunha-se lentamente. O pai estava imóvel.
- Sim, senhor - disse ela, com os olhos brilhantes de lágrimas, erguendo a cabeça com ar atrevido.
- O que tem sido o seu amor paternal? Como se tem manifestado? Brutalidades, recusas, eis tudo!
O homem cresceu de novo para a moça com um ar assustador, de punho cerrado e expressão sanguinária. Ela, porém, célere como o relâmpago, abriu a porta e ouviram-na depois subir os degraus da escada.
Brangwen deteve-se uns momentos olhando para a entrada. Então como um animal vencido, deu meia volta e veio sentar-se junto ao fogo.
Gudrun estava lívida. Foi a mãe quem rompeu o silêncio intenso que se fizera, declarando furiosa e friamente:
- É melhor não fazer caso do que ela diz!
Recaíram no mutismo, cada qual seguindo o curso dos seus pensamentos e preocupações.
Abriu-se de repente a porta. Era Úrsula que reaparecia, de chapéu, casaco e maleta nas mãos.
- Adeus! - exclamou em tom decidido, exasperante, mas ao mesmo tempo irônico. - Vou-me embora.
No mesmo instante tornou a fechar a porta; ouviram depois ranger a de fora e os passos da moça, ligeiros, na calçada do quintal. Na casa reinou um silêncio de morte.
Úrsula foi direto à estação, andando como se tivesse asas nos pés. Não havia trem e teve de ir tomá-lo no entroncamento. Caminhando no escuro, sentiu vontade de chorar e derramou lágrimas amargas, com o coração ferido, experimentando temores infantis, e assim todo o percurso, mesmo já dentro da carruagem. O tempo decorria sem que ela lhe prestasse atenção, alheia por completo, sem saber onde se encontrava nem o que lhe sucedera. O pranto subia-lhe das profundezas insondáveis do desespero, desgosto imenso, terrível ansiedade como a das crianças a quem o choro não extenua.
A voz, contudo, recuperou a frescura quando perguntou à senhoria de Birkin, à porta do moinho:
- Boa noite! O Sr. Birkin está? Posso falar com ele?
- Sim, senhora, ele está no escritório.
Úrsula caminhou atrás da mulher. A porta do escritório estava aberta e Birkin ouvira-lhe a voz.
- Olá! - exclamou ele, surpreendido de a ver ali com a mala na mão e, no rosto, vestígios de lágrimas. Todavia, seu rosto estava tranquilo como o de uma criança.
- Devo estar horrível! - disse ela, recuando.
- Não. Por quê? Entre. - Pegou a maleta e os dois entraram na sala.
Lá chegados, os lábios da jovem começaram a tremer, como uma criança que se recorda do que lhe aconteceu. As lágrimas irromperam outra vez.
- Que foi? - repetiu ele logo que a noiva se tranquilizou um pouco. Úrsula, porém, apoiava-se com força ao ombro de Birkin, que esperava silencioso.
- Que foi? - repetiu ele logo que a moça se tranquilizou um pouco. Úrsula, porém, apertava-se ao ombro dele, como se não quisesse responder.
- Preciso saber o que aconteceu...
Ela se desviou dele, enxugou os olhos e foi sentar-se numa cadeira.
- Meu pai bateu-me - anunciou então, aconchegando-se como um passarinho enovelado. Os olhos cintilavam-lhe.
- Por quê?
Úrsula desviou os olhos, sem responder.
- Por quê? - insistiu Birkin com voz estranha, penetrante, persuasiva.
Ela o enfrentou desta vez, numa atitude de desafio.
- Porque eu lhe disse que nos casávamos amanhã.
- Então bateu em você?
Ela tornou a fazer beicinho, lembrando-se da cena em casa e as lágrimas assomaram-lhe de novo aos olhos.
- Declarei-lhe que o assunto não lhe dizia respeito, e, de fato, ele pouco se importa com estas coisas. O que o melindra é eu não fazer caso dos seus ares imperiosos. - Com os soluços, a boca torcia-se enquanto falava e aquilo era tão infantil que dava vontade de rir. Contudo, tratava-se de um conflito mortal para ela, algo a ferira profundamente.
- Não é tanto assim - atalhou ele.
- É sim, é sim! - soluçava ela. - Não quero ver-lhe expansões de amor paternal, que ele não tem, não tem!
Rupert ficou calado. Úrsula comovia-o profundamente.
- Você não o devia ter irritado - disse, por fim, muito tranquilo.
- E eu que fui tão sua amiga! Gostei sempre de papai, e ele me paga desta maneira...
- Isso é o que se chama amor contrariado... Não se importe, tudo acabará bem. Não há nada irremediável.
- Sim - choramingava ela. - É... - Por quê?
- Nunca mais o verei.
- Por enquanto, não. Mas cale-se. Você tinha mesmo que romper com ele, pronto. Agora não chore mais.
Aproximou-se dela e beijou-a nos cabelos finos e leves e acariciou-lhe meigamente as faces molhadas.
- Não chore - repetiu. - Não chore.
Com a cabeça da jovem apertada contra o peito, muito apertada e quieta, esperou.
Ela se acalmou, pouco a pouco. Olhou para ele, com seus olhos grandes e assustados.
- Não está zangado comigo? - inquiriu.
- Zangado? - O olhar sombrio e fixo de Rupert impressionava-a e não a deixava à vontade.
- Está contrariado por que eu vim para cá? - perguntou ela, perturbada agora pela ideia de ter fugido de casa.
- Não - respondeu ele. - Preferia que não tivesse havido essa cena violenta e desagradável; mas era, decerto, inevitável...
Úrsula contemplava-o em silêncio. Rupert parecia tão mortificado!
- Onde é que vou ficar? - perguntou ela, sentindo-se envergonhada.
Birkin refletiu alguns instantes.
- Aqui, comigo. Estamos tão casados hoje como estaremos amanhã.
- Mas...
- Vou avisar a Senhora Varley. Não se preocupe.
Birkin continuava a fitá-la. Úrsula sentia aqueles olhos sombrios constantemente dirigidos para ela. Aquilo impressionava-a. Com a mão nervosa, afastou os cabelos que lhe pendiam para a testa.
- Pareço muito feia? - perguntou, enquanto se assoava. O rosto de Birkin clareou-se num sorriso.
- Não, felizmente... - respondeu.
Levantou-se e tomou-a nos braços, como a uma coisa que lhe pertencia. Úrsula mostrava-se tão terna e bela que Rupert não se contentava com vê-la; era forçoso escondê-la dentro de si.
Agora, com as faces banhadas pelas lágrimas, parecia tenra e frágil como uma flor desabrochada, flor fresca, tornada perfeita pela luz interior, e Birkin não a podia sequer contemplar; queria ocultá-la imediatamente de encontro ao peito, cobrir os olhos unindo-os ao corpo dela. Aquela mulher possuía a mais completa inocência da criação, algo de translúcido e simples, espécie de flor radiante, deslumbradora, aberta nesse momento para exibir o seu recente esplendor. Era tão nova, de uma luminosidade que maravilhava, sem uma sombra sequer! Ele se julgava tão velho, tão cansado de recordações tenebrosas! A alma dela, juvenil, indefinida, mirando-se no invisível; e a de Birkin, escura, nublada, com uma esperança tão pequenina como um grão de mostarda! Mas esta sementinha que vivia ainda nele casava-se com a pureza dela.
- Amo-a! - disse Birkin, num murmúrio, beijando-a, tremendo de ansiedade, como alguém que houvesse renascido para uma confiança maior do que todos os limites da morte.
Úrsula não sabia o que isso representava para ele, o que significava ao certo aquela frase tão curta. Como uma criança, desejava outras provas, exigia afirmações concretas; tudo a deixava indecisa, queria revelações mais concludentes.
Mas aquela gratidão apaixonada com que ele a recebia na sua alma, a alegria suprema e indiscutível de se sentir vivo e apto a se unir com ela (apesar de tão próximo da morte, tão perto de se extinguir com o resto da sua raça, resvalando para o abismo) eram coisas que a moça não podia compreender. Rupert adorava-a como a velhice adora a juventude; glorificava-se pela razão de que, mercê do seu derradeiro clarão de fé, se convertia também em jovem como ela, e se tornava seu digno companheiro. O casamento trazia-lhe a ressurreição e a vida.
Úrsula não podia adivinhar tudo isso. Exigia que ele fizesse muito caso dela, pretendia ser adorada. Entre os dois havia infinitas distâncias de silêncio. Como lhe falaria, a ela, da imanência da sua beleza, que não residia na forma nem no peso nem na cor, mas em qualquer coisa mais, para sua estranha luz dourada?! E como saberia ele próprio em que consistia aos seus olhos, a graça daquela mulher? Dizia: "O teu nariz e belo, o teu queixo é adorável", mas estas frases soavam falso e ela ficava decepcionada, ressentida. Mesmo quando Birkin, balbuciando palavras sinceras, lhe dizia "meu amor, meu amor, ainda isso não era inteira realidade. Existia algo para além do amor, a satisfação de se ultrapassar a si mesmo, de transcender os limites da vida humana. Como podia Rupert proferir o pronome "eu", quando, nele, se revelava um ser novo e desconhecido, que já não tinha nada da sua pessoa? Esse eu , velha expressão decrépita, era uma fórmula sem sentido.
Nessa felicidade superior e tão diversa, paz que se sobrepunha a todas as coisas, não havia já nem "eu" nem "você", mas sim uma terceira e incompreensível maravilha, maravilha que insistia em existir, não como indivíduo, mas com a reunião, dele e dela, num só e único ente, unidade paradisíaca nascida daquela dualidade. Quem poderá dizer "amo-te" depois de haver cessado de existir e haver cessado a pessoa a quem a frase e dirigida? Ambos se sentiam elevados e transpostos a uma nova individualidade onde tudo era silêncio, pois nada tinham que responder, tudo era único e perfeito. As palavras são trocadas entre dois seres destacados um do outro; mas, numa unidade absoluta, reina apenas o silêncio da bem-aventurança.
Casaram-se no dia seguinte, perante a lei; Úrsula, seguindo o conselho do marido, escreveu à mãe e ao pai. A primeira respondeu-lhe, o segundo, não.
Não voltou mais à escola. Ficou vivendo no moinho, nos aposentos de Birkin e acompanhou-o por toda a parte. Não mantinha contato com mais ninguém, além de Gudrun e Gerald. Tudo para ela era estranho e maravilhoso, como se a aurora acabasse de raiar.
Certa vez, Gerald conversava com ela no escritório confortável da casa. Rupert ainda não tinha regressado.
- Sente-se feliz? - perguntou-lhe Gerald, sorridente.
- Muito! - respondeu Úrsula, procurando, contudo, não demonstrar toda a sua alegria.
- Nota-se.
- Verdade? - perguntou ela, surpresa.
Gerald mirou-a com risonha expressão comunicativa.
- Sem a menor dúvida...
Ela estava satisfeita. Refletiu uns instantes.
- Dá para perceber se Rupert é tão feliz como eu?
Gerald baixou os olhos.
- Decerto - replicou.
- Com certeza?
- Com certeza.
Gerald calou-se, como se houvesse falado de uma coisa sobre a qual devia ter feito silêncio. Parecia entristecido.
Úrsula era muito sensível. Formulou-lhe a pergunta que ele desejava:
- Por que motivo não se sente feliz como nós? Podia estar também...
Gerald não respondeu logo. Depois, perguntou:
- Com a Gudrun?
- Sim - exclamou ela, de olhos brilhantes. Havia naquele "sim" algo de forçado, exagerado.
- Acha que sua irmã me aceitará e que seríamos felizes os dois?
- Estou convencida disso.
Encarava-o satisfeita, embora, no fundo da sua alma, percebesse que tudo aquilo não era natural.
- Fico contente só de pensar nessa ideia!
Gerald sorriu.
- Por que fica tão contente?
- Por causa dela. Estou certa de que você seria... de que você é o marido que lhe convém.
- E será ela da mesma opinião?
- É - respondeu prontamente.
Depois, tendo meditado um momento, perguntou-lhe um tanto contrafeita:
- Gudrun não é assim tão simples, não acha? Ninguém a conhecerá em cinco minutos; não é como eu. - Disse isto e riu, com o seu rosto franco, aberto, cheio de vida.
- Parece que ela não é muito parecida com você - disse Gerald.
Úrsula franziu a testa.
- Assemelha-se em muitas coisas. Mas nunca sei como reagirá em qualquer assunto fora da rotina.
- Ah! - fez Gerald. Calou-se por uns segundos. Depois, tímida e cautelosamente, declarou: - Tencionava convidá-la a ir passear comigo, pelo Natal...
- Ir com você? Por quanto tempo?
- Tanto quanto ela quisesse - respondeu ele de forma um tanto suplicante.
Houve um silêncio.
- É natural - recomeçou Úrsula - que ela deseje casar-se primeiro. Procure saber.
- Sim, vou ver... Mas, caso ela não aceite o casamento, acha que iria comigo ao estrangeiro por uns dias... por quinze dias?
- Acho, sim. Por que não pergunta a ela?
- Poderíamos ir juntos?
- Todos? - A face de Úrsula resplandeceu de novo. - Seria ótimo!
- Acho que seria bem divertido.
- E durante a viagem você ficaria sabendo...
- O quê?
- Das coisas... Creio que é preferível passar a lua de mel antes do casamento. Hein?
Riu-se ela mesma daquela ideia espirituosa.
Gerald também riu.
- Em certos casos - volveu ele. - E talvez seja o meu.
- Realmente? - E, a seguir, como se duvidasse: - Sim, é possível que tenha razão. Devemos fazer o que nos for mais agradável.
Birkin chegou mais tarde, e Úrsula descreveu-lhe a conversa que tivera com Gerald.
- Gudrun! - exclamou Birkin. - Nasceu para ter um amante, como Gerald para ter uma. Amant en titre. Se as mulheres, como se diz, devem ser ou amantes ou esposas, Gudrun pertence à primeira categoria.
- E todos os homens amantes ou maridos - acrescentou Úrsula. - E por que não as duas hipóteses?
- Uma exclui a outra - disse ele, divertido.
- Então quero um amante.
- Não, você não quer.
- Quero - gemeu ela.
Rupert beijou-a e começou a rir.
Dois dias depois, Úrsula foi a Beldover buscar o que lhe pertencia. A família já se mudara. Gudrun ficara morando em Willey Green.
Depois de sair de casa, Úrsula não tornara a encontrar-se com os pais. A ideia de uma ruptura afligia-a, embora de nada servisse a reconciliação. Para o bem ou para o mal não deveria procurá-los. Como seus objetos tivessem ficado guardados, naquela tarde ela e Gudrun combinaram ir buscá-los.
Era uma tarde de inverno; quando chegaram, o céu mostrava-se vermelho. As janelas da casa estavam escuras e sem cortinas aquilo parecia desolador. Ao entrarem no vestíbulo vazio e pouco convidativo, sentiram um arrepio que as enregelou.
- Não me atreveria a vir aqui sozinha - disse a mais velha. - É impressionante.
- Úrsula! - exclamou Gudrun. - É curioso! Como se concebe que vivêssemos nesse lugar sem perceber a sua desolação? Como pude estar nessa casa sem ter morrido de terror? Isso deve acontecer a muitas pessoas, não?
Entraram na vasta sala de jantar. Era um compartimento espaçoso, mas, agora, uma simples cela lhes pareceria mais agradável. As largas janelas, rasgadas, estavam nuas, o chão fora despojado dos tapetes, e uma orla de encerado escuro contornava aquele vazio, fazendo sobressair a parte clara no meio do assoalho. O papel das paredes, desbotado, indicava, em manchas mais escuras, o lugar de onde haviam retirado os móveis e desprendido os quadros. Esses tabiques áridos e delgados, de aspecto tão frágil, aquela madeira barata do pavimento, descorada e com o rebordo escurecido artificialmente, exerciam no espírito delas uma ação depressiva. Havia em tudo a ideia de nulidade, de falta de substância, principalmente aquele papel na fragilidade das paredes. Onde se encontravam, afinal: na terra, ou suspensas em uma caixa de papelão? Na lareira viam-se ainda cinzas de coisas consumidas pelo fogo.
- Imaginar que passamos aqui a nossa vida! - murmurou Úrsula.
- É verdade - concordou Gudrun. - Que tristeza! Com que nos devemos parecer, se nos assemelhamos a este invólucro?
- Tudo isto é detestável! - confirmou Úrsula.
No fogão, reconheceu as capas meio queimadas do Vogue - figurinos semidestruídos, de senhoras em traje de baile.
Foram até a sala de visitas, outro lugar onde se notava a sensação de vazio: nem peso nem substância, apenas a intolerável impressão do nada encerrado entre quatro paredes forradas de papel. A cozinha parecia mais concreta devido aos tijolos vermelhos do chão e à existência do forno; contudo, sentia-se frio e experimentava-se horror.
Subiram depois a escada sem passadeira. Cada degrau que pisavam ecoava-lhes no coração. Seguiram pelo corredor desguarnecido. A bagagem de Úrsula estava encostada à parede do quarto dela; era uma mala, um cesto de costura, livros, agasalhos, uma caixa de chapéus; tudo isso, na tristeza geral do crepúsculo, tinha aspecto desolador.
- Espetáculo muito alegre... - observou Úrsula, contemplando suas coisas ali abandonadas.
- Muito... - concordou Gudrun.
Puseram mãos ao trabalho e transportaram tudo para a porta da rua. Fizeram várias viagens, e sempre o eco dos passos lhes ressoou no meio daquele vazio. Toda a casa parecia repetir os mínimos sons, e a sua vibração, repercutindo pelos quartos despidos, chegava a ser enervante. Da última vez em que chegaram à porta, vinham tão apressadas como se se tratasse de uma fuga.
Além disso, o tempo arrefecera. Esperavam Birkin que devia chegar com o automóvel. Tornaram a entrar, pois, e foram até o quarto dos pais, cujas janelas davam para a estrada e de onde se via, através dos campos, o poente sombrio, rubro e negro, já sem luz.
Sentaram-se, à espera, nos parapeitos das janelas, e ornaram para o aposento. Sem mobília, afigurava-se-lhes de uma exiguidade desconcertante.
- Realmente - disse a mais velha - este quarto não podia ser venerável...
Gudrun percorreu-o lentamente com o olhar.
- Impossível! - retorquiu.
Quando penso nessas duas vidas, do pai e da mãe, no seu amor e casamento, e em nós, os filhos, na nossa educação. Você gostaria, Prune, de ter uma vida assim?
- Não, Úrsula.
- Tudo isso me aparece como um vácuo; a vida dos pais foi destituída de significação. De fato, se não se houvessem encontrado nem casado, nem vivido juntos, que falta poderiam ter feito? Nenhuma.
- Decerto. Mas não podemos afirmar isso - disse Gudrun.
- Pois se eu pressentisse que a minha vida iria ser assim, fugiria - declarou Úrsula, agarrando o braço da irmã.
Gudrun ficou silenciosa por momentos.
- Na realidade - disse ela por fim - não se pode considerar friamente a vida quotidiana. Com você, Úrsula, o caso é diferente. Você estará sempre à margem desses inconvenientes casada com Birkin. É um caso especial. Mas, com outro homem qualquer, que tenha a sua existência agarrada à terra, o casamento é impossível. Há milhares de mulheres, com certeza, que não desejam outra coisa, que não concebem a vida de outra maneira. Só de pensar nisso eu sinto arrepios. Devemos ser livres, sobretudo livres! Arrisquemo-nos a perder tudo, mas que se salve a independência, senão seremos apenas a senhora que mora em Pinchbeck Street n° 7, ou em Somerset Drive, ou em Shortlands. Não há homem, por melhor que seja, que torne tal coisa aceitável. Para o casamento é necessário possuir liberdade de movimentos, ou então nada feito. Seja ele um camarada, um Glüksritter. Homens com posição social, isso é que não! Isso nunca!
- Que linda palavra é Glüksritter! Cavalheiro de indústria, homem que vive de expedientes - nota da tradutora) - exclamou Úrsula. - Melhor do que aventureiro.
- Não é? Seria capaz de arrostar o mundo ao lado de um deles. Mas ter lar, família... Pense, Úrsula, no que isso significa!
- Bem sei, já tivemos e ficamos saturadas.
- Bastante.
- Essa casinha parda, nas bandas do ocidente... Verso de um poema de D. E. Wilmont - nota da tradutora) - citou Úrsula, com ironia.
- Não soa também pardamente? - perguntou Gudrun horrorizada.
Veio interrompê-las o barulho do automóvel de Birkin. Úrsula admirou-sé de se ver tão longe, de súbito, daquela ideia de casinhas pardas no ocidente.
Ouviram os passos do homem no vestíbulo.
- Olá! - chamou ele; a voz ecoou por toda a casa. Úrsula sorriu; Rupert também devia estar com medo daquela casa deserta...
- Estamos aqui! - respondeu ela, do andar de cima. Ouviram então seus passos apressados na escada.
- Esta casa é assombrada? - perguntou Rupert.
- Não, ela não tem fantasmas, porque também não tem personalidade - explicou Gudrun. - Só um lugar com personalidade é que pode possuir espíritos.
- Também sou dessa opinião. Choraram ambas sobre o passado?
- Sim - respondeu Gudrun. Úrsula riu e declarou:
- Não chorávamos pelo fato de ele haver desaparecido, mas sim porque existiu.
- Ah! - fez Birkin, mais tranquilo.
Sentou-se também com elas. Havia na pessoa daquele homem, pensou Úrsula, algo de repousante e de muito vivo. Até fazia desaparecer a sensação triste daquele lugar tão mesquinho.
- Gudrun estava dizendo que não concebe a ideia de se casar e se instalar em um lar... - insinuou Úrsula, intencionalmente. Perceberam logo que Gerald estava em jogo, e, por momentos, guardaram silêncio.
- Está bem - começou ele - se você, de antemão, está assim tão bem informada, é sinal de que se pode salvar...
- Não tenha dúvida - volveu ela.
- Por que será que todas as mulheres consideram que a finalidade da vida é ter um maridinho e uma casa para os lados do ocidente? Será isto o bem supremo?
- Il faut avoir le respect de ses bêtises - observou Birkin.
- Mas não precisamos repetir a Bêtise antes de a ter cometido - acudiu Úrsula, sorridente.
- E as bêtises du papa?
- Et de la maman - acrescentou Gudrun com ar de mofa.
- Et des voisins - É preciso respeitar essas besteiras. / E as besteiras do papai? E da mamãe / E dos vizinhos - nota da tradutora)
- disse ainda Úrsula.
Desataram todos a rir, e levantaram-se. Começava a escurecer. Transportaram a bagagem para o carro. Gudrun trancou o portão da casa vazia. Birkin acendera os faróis do carro. Tudo aquilo dava uma impressão de felicidade, como se estivessem partindo para uma viagem.
- Não se importa de parar em frente aos Cousons? - perguntou Gudrun. - Tenho de deixar a chave lá.
Fizeram uma parada na rua principal. As lojas acabavam de ser iluminadas, e os últimos mineiros regressavam do trabalho, ao longo das calçadas, sombras mal visíveis no enfarruscado que as envolvia, deslizando no ar azulado...
Gudrun sentiu-se contente ao voltar para o carro, depois de sair da loja, e de seguir velozmente pelo declive da colina, naquela treva quase palpável, em companhia de Úrsula e de Birkin. A vida, naquele instante, pareceu-lhe uma aventura. De repente, teve inveja da irmã. A existência lhe decorria fácil, como através de uma porta aberta, tão descuidada como se não somente este mundo, mas ainda o passado e o futuro não fossem nada para ela. Se pudesse ser assim, julgar-se-ia perfeita.
Porque afinal - exceto em ocasiões de excitação - Gudrun sentia que lhe faltava qualquer coisa. Não se considerada segura. Mas compreendia que, por fim, ao embate do amor forte e violento de Gerald, a sua vida começava a definir-se. Comparando-se com a irmã, vinha-lhe, contudo à alma certa insatisfação, certo ciúme. Não estava satisfeita, e nunca o estaria.
Que lhe faltava? O casamento, a maravilhosa estabilidade do casamento. Precisava dele, por mais que o desdenhasse. Tinha mentido. A velha concepção do matrimônio possuía ainda valor: a família, o lar... Entretanto, a estas palavras, não pôde deixar de franzir o cenho. Lembrou-se de Gerald, de Shortlands, do casamento, da vida doméstica... Ah, pois bem; ficaria assim mesmo. O rapaz representava muito para Gudrun, mas... Talvez o feitio dela não se coadunasse com o matrimônio. Vivia à margem da vida, era uma daquelas criaturas sem raízes em parte alguma. Não, não, não devia ser assim. Evocou, de súbito, um quarto cor-de-rosa, ela trajada com um lindo vestido de baile, ele muito elegante, de casaca, segurando-a nos braços, beijando-a à luz da lareira... Eis um belo quadro, que a artista intitulava de "Interior". Muito próprio para enviar à Academia Real...
- Venha tomar chá conosco - disse-lhe Úrsula, ao aproximar-se de Willey Green.
- Obrigada, mas não posso - respondeu Gudrun. Gostaria, no íntimo, de ir com eles. Eles, sim, tinham uma vida verdadeira. Mas uma espécie de perversidade a retinha.
- Vamos, eu gostaria tanto! - insistiu a irmã.
- Lastimo. Ser-me-ia muito agradável. Mas é impossível, acreditem...
Saltou do carro depressa, muito trêmula.
- Que pena! - lamentou Úrsula.
- Não, não posso mesmo. - As suas palavras, que denotavam emoção, vinham já do escuro.
- Quer que a acompanhe? - perguntou Birkin.
- Não é preciso, obrigada. Boa noite!
- Boa noite - disseram os outros dois.
- Venha quando quiser, alegra-nos bastante... - ainda gritou Birkin.
- Muito obrigada - respondeu Gudrun em tom estranho, agudo e doloroso, que impressionou o cunhado.
Gudrun abriu o portão da residência e o carro continuou a marcha. Todavia, deteve-se ela ate que desaparecesse, vendo o automóvel sumir na distância E só então prosseguiu pela alameda que conduzia à casa, sentindo o coração mergulhado numa incompreensível amargura.
Havia na sala um relógio de caixa em cujo mostrador uma face redonda, pintada de cores vivas, lançava ridículas piscadelas de olho a cada oscilação do pêndulo. Continuamente aquele rosto rubicundo e absurdo mirava de soslaio, de uma forma indiscreta. Gudrun ficou uns minutos a olhar para ele ate que uma inexplicável aversão se apoderou dela e a fez soltar uma gargalhada intempestiva. A cara do relógio continuou a oscilar, olhando de esguelha para um e outro lado, alternadamente Ah, como se sentia infeliz! Sim, infeliz no meio da sua felicidade aparente. Relanceou a vista pela mesa. Ali havia doce de groselhas e o eterno licor feito em casa. O doce era bom e nem sempre Gudrun o tinha a seu dispor...
Durante toda a noite ela desejou ir ate o moinho, mas resistiu, friamente, indo ate lá apenas na tarde do dia seguinte. Alegrou-se por encontrar a irmã sozinha. O ambiente era agradável, de grande intimidade. As duas tagarelaram incessantemente, deliciadas ambas. "Não se sente felicíssima em sua casa?, perguntava Gudrun a Úrsula, lançando ao mesmo tempo olhadelas furtivas ao espelho. Invejava quase com ressentimento a atmosfera de felicidade pura e definitiva que rodeava Úrsula e Rupert Birkin.
- Este quarto é tão simpático, tão bem arrumado! - disse ela em voz alta. - E o tapete, tão habilmente tecido, tem uma cor bonita... cor de luz suave...
Tudo lhe parecia admirável.
- Úrsula, - continuou pouco depois numa voz que tentava mostrar indiferença sabe que Gerald Crich me propôs uma viagem pelo Natal?
- Sei. Ele falou com Rupert a esse respeito.
As faces de Gudrun cobriram-se de forte rubor. Ficou uns momentos calada, como surpreendida, sem saber o que dizer.
- Não lhe parece um atrevimento da parte dele?
Úrsula riu-se.
- Não, acho que foi uma ideia simpática.
Gudrun não respondeu. Era evidente que, embora envergonhada com o fato de Gerald ter falado nisso a Birkin, a ideia, contudo, não lhe era tão desagradável.
- Gerald tem uma simplicidade atraente - insinuou Úrsula - embora perigosa, às vezes. Mas, enfim ele é tão simpático!
Gudrun ainda se conservou mais uns segundos em silencio. Precisava refazer-se da indignação que lhe provocavam aquelas indiscrições de Gerald.
- E qual foi a opinião de Rupert? - perguntou, por fim.
- Disse que seria uma coisa esplêndida - respondeu a irmã.
Gudrun olhou mais uma vez para o chão, muito calada.
- Não pensa assim? - prosseguiu Úrsula. Nunca sabia ao certo quais eram os preconceitos de que a outra se rodeava.
Gudrun levantou o rosto e respondeu, sem fitar a irmã:
- Acho que seria esplêndido, como vocês dizem, mas isso não impede que eu ache indiscreto da parte de Gerald... falar de semelhantes coisas a Rupert, que, afinal de contas... compreende o que quero dizer... é um homem, e é como dois homens estivessem combinando um passeio com qualquer... - Empregara uma expressão francesa para designar o que ela queria dizer. - Oh, Úrsula, é imperdoável!
Os olhos faiscavam-lhe, o rosto estava brilhante de indignação. Úrsula mirou-a assustada, principalmente porque ao usar a expressão grosseira, a irmã parecia ter um ar ordinário, confirmando a frase que atribuíra à opinião dos dois homens. Mas não fez nenhum comentário.
- Não e não! - gritou-lhe Úrsula, aborrecida. - Parece-me que Rupert e Gerald, como são muito amigos, conversam naturalmente, com a maior franqueza, como irmãos...
Gudrun ruborizou-se ainda mais. Não tolerava a ideia de que Gerald falasse sobre ela, nem mesmo com Birkin.
- Você acha que, mesmo que fossem irmãos, tinham o direito de fazer tais confidências? - perguntou, furiosa.
- Penso - replicou Úrsula. Não dizem nada que seja comprometedor. Aliás, o que mais admiro em Gerald é a sua correção, a sua honestidade. Você bem sabe como isso é importante. A maior parte dos homens é desleal e covarde!
Gudrun, porém, continuava calada e ressentida. Preferia que se fizesse absoluto segredo em tudo que lhe dizia respeito.
- Vamos, sim? - insistiu Úrsula. - Será uma viagem deliciosa. Gerald é mais simpático do que eu imaginava. Impõe-se à nossa estima. E é sincero Gudrun, verdadeiramente sincero.
Esta mantinha-se, apesar de tudo, reservada. Estava quase feia. Falou, afinal:
- Sabe aonde é que ele quer ir?
- Sei. Ao Tirol, por onde costumava viajar quando estava na Alemanha. É uma região adorável, onde os estudantes praticam esportes de inverno.
No espírito de Gudrun bailava uma ideia tremendamente irritante: "Vocês estão a par de tudo?".
- Sim, - disse em voz alta - a cerca de quarenta quilômetros de Innsbruck...
- Não sei ao certo, mas o projeto é magnífico, não concorda? Lá no alto, sobre a neve...
- Esplêndido! - exclamou a outra com sarcasmo.
Úrsula ficou aborrecida.
- É claro que Gerald não falou a Rupert em termos que dessem a ideia de que iria acompanhado por uma mulherzinha qualquer...
- Ora, ora - volveu Gudrun. - Ele costuma fazer viagens desse tipo...
- Como sabe?
- Uma pessoa de Chelsea me contou...
Úrsula guardou silêncio.
- Bem, - disse pouco depois, com um sorriso equívoco - espero que ele se tenha divertido, pelo menos.
Ao ouvir tais palavras, Gudrun ficou ainda mais aborrecida.


Capítulo XXVIII
No "Pompadour"
Aproximava-se o Natal, e os quatro já estavam prontos para partir. Birkin e Úrsula andavam ocupados arrumando suas coisas, de maneira a poderem despachar as malas. Gudrun mostrava-se bastante excitada. Por seu gosto levantaria voo.
Ela e Gerald foram os primeiros a concluir os preparativos da viagem, de maneira que seguiram para Innsbruck (via Londres e Paris) onde se encontrariam com Úrsula e Birkin. Ficaram uma noite em Londres; foram ao music-hall e em seguida ao Café Pompadour.
Ela detestava esse lugar, embora aí tivesse ido muitas vezes; os artistas que o frequentavam também não eram da sua simpatia. Abominava em especial aquela atmosfera viciosa, de mesquinhos ciúmes e de arte corriqueira. Mas, sempre que passava pela capital, nunca deixava de entrar ali. Era como se tivesse obrigação de voltar ao remoinho central da pequenez e da corrupção, nem que fosse para uma vista de olhos.
Sentou-se, com Gerald, e tomou um refresco, lançando olhares sóbrios e indignados aos vários grupos que se distribuíam pelas mesas. Não queria reconhecer ninguém, mas, de vez em quando, um rapaz a cumprimentava, com uma inclinação de cabeça, com certa familiaridade. Gudrun não correspondia, mas sentiu prazer em estar ali, de faces afogueadas e olhar hostil, observando-os objetivamente, a distância, como se fossem animais em uma jaula, animais simiescos e degradados. Deus do Céu, que gente ignóbil! O sangue corria-lhe nas veias, sombrio, tanta era a raiva e desprezo que sentia. Contudo, era necessário ficar a contemplá-los, a olhar para eles... Um ou dois vieram falar com ela. Sentia os olhares que a buscavam: os homens por cima dos ombros, as mulheres por baixo do chapéu.
Todos estavam ali, Carlyon no seu cantinho com os discípulos e uma moça; Halliday, Libidnikov e a Bichana também haviam comparecido. Gudrun observou Gerald: notou que o olhar dele se fixara um instante em Halliday e depois nos que o acompanhavam. Estes estavam atentos e saudaram-no. Gerald retribuiu. Todos riram disfarçadamente e ele tornou a mirá-los com mais atenção. O grupo incitava Bichana a fazer qualquer coisa.
Esta acabou por se levantar. Tinha um vestido estranho, de seda escura, salpicada, gotejada de diferentes cores, formando uma curiosa mistura. Parecia muito delgada com olhos talvez mais ardentes. Mas não estava mudada. Gerald viu-a aproximar-se e continuou a olhar para ela com a mesma fixidez. A jovem estendeu-lhe a mão fina e morena.
- Como está? - perguntou-lhe.
Gerald apertou-lhe a mão, sem se erguer da cadeira, e deixou-a assim de pé junto dele, encostada à mesa. Quanto a Gudrun, a Bichana, que a conhecia apenas de vista, limitou-se a fazer um cumprimento com a cabeça.
- Estou muito bem - respondeu Gerald. - E você?
- Eu vou bem. E a respeito de Rupert? - Continuava a não pronunciar alguns rr.
- Rupert? Vai muito bem, igualmente.
- Não é isso que quero saber. Falo do casamento dele.
- Ah, sim, casou.
Os olhos de Bichana cintilaram com ardor. É verdade, então? Há quanto tempo?
- Uma semana ou duas.
_ É extraordinário! Não escreveu a ninguém.
- Não?
- Não é um tanto esquisito?
Estas últimas palavras foram pronunciadas em tom de desafio, e, dava para notar, endereçadas a Gudrun.
- Acho que ele não tinha obrigação de comunicar - tornou Gerald.
- Por quê?
Fez-se um silêncio. No rosto belo e pequenino daquela depravada criatura havia um sorriso irônico e persistente, que conseguia enfeá-la. Continuou ao lado de Gerald.
_ Demora-se em Londres? - perguntou ela.
- Só esta noite.
- Ah, sim? Venha falar com o Julius.
- Agora não posso.
- Está bem. Vou dizer isso a ele. - Acrescentou depois, com acento diabólico: - Você está ótimo.
- É verdade. - Gerald mostrava-se perfeitamente calmo e à vontade. Via-se no olhar dele uma certa cintilação zombeteira.
- Não se tem aborrecido? - perguntou ainda a mulher. Era uma seta desferida diretamente a Gudrun. A frase fora dita em tom de indiferença tranquila, sem cerimônia.
_ Não - respondeu ele, também com naturalidade.
- É pena não querer vir conosco. Você é pouco fiel a seus amigos...
- Realmente... - confirmou o rapaz.
Deu boa noite a ambos e voltou lentamente para o seu lugar. Gudrun ficou vendo o estranho andar da moça, rígido, mas sacudido. Ouviram-na dizer distintamente:
- Não pode vir. Já está comprometido. - Seguiu-se uma gargalhada geral, e muitas observações picantes em voz baixa.
- É sua amiga? - perguntou Gudrun, observando atentamente o companheiro.
- Fiquei uma vez na casa de Halliday, com Birkin - respondeu, trocando um olhar com o dela, que era calmo e repousado. Gudrun sabia que Bichana fora amante dele e Gerald não ignorava essa circunstância.
Gudrun chamou então o garçom, depois de relancear a sala com os olhos. Queria tomar um chocolate gelado, de uma receita complicadíssima. A ideia divertiu o companheiro, que ficou a imaginar o que iria acontecer.
O grupo de Halliday já estava ébrio e perdera a compostura. Falavam em Birkin em voz alta, ridicularizando-o sob vários aspectos, principalmente o do casamento.
- Não me obriguem a pensar nesse homem! - dizia Halliday, em tom agudo. - Tenho náuseas ao relembrar como implorava: "Senhor, que devo fazer para me salvar?"
E teve uma risada de bêbado.
- Lembra-se - interveio o russo - das cartas que enviava? "O desejo é coisa sagrada..."
- Se me lembro! Isso é extraordinário! Espere, tenho uma no bolso.
Tirou do bolso vários papéis.
- Tenho certeza de que a guardei - repetiu. - Ah! Aqui está!
Gerald e Gudrun estavam atraídos por aquela cena.
- Sim, senhores... Isso mesmo... Magnífico! Não me façam rir que fico com soluços. - E todos desataram a rir.
- Que é que ele diz nessa carta? - perguntou Bichana, debruçando-se com os cabelos escuros e leves tombados sobre os olhos. Havia qualquer coisa de esquisitamente indecoroso, obsceno mesmo, naquela cabeça pequenina, sombria e alongada.
- Esperem, esperem aí! Não, não a mostro. Vou ler em voz alta. Vou ler trechos seletos... Vocês acham que se eu beber água me passam os soluços? Ora, parece-me que é inútil..
- É a carta que se refere à luz e à sombra, ao fluxo da corrupção? - indagou Maxim na sua maneira de ler rápida e concisa.
- Acho que sim - respondeu a moça.
- Ah, é essa? Tinha-me esquecido. Hic! É, sim, é! - declarou Halliday, desdobrando-a. - Hic! Sim, senhores, esplêndida! Uma das melhores. - Começou a ler, com voz cantante, lenta, destacada, como um padre a soletrar a Bíblia: "Há uma fase particular em todas as espécies, em que o desejo de destruição se sobrepõe a todos os outros. No homem essa vontade transforma-se por fim na ânsia de dar cabo de si próprio..." Hic! - Aqui fez uma pausa e olhou para o auditório.
- Oxalá que ele não desista de se destruir a si mesmo - atalhou o russo, com a sua pronúncia cortante. Halliday fungou de gozo e refestelou-se na cadeira.
- Não é grande coisa destruir a sua pessoa... - comentou a Bichana. - Ele é tão magro... Já deve estar nas últimas.
- Não gostaram? É lindo. Faz-me bem ler isto, até me cura dos soluços. Deixem-me continuar. - E Halliday prosseguiu: "Trata-se do desejo de nos reduzirmos em nós próprios, de regressar às origens, voltar ao fluxo de corrupção, às condições rudimentares da existência". Isto é admirável - exclamou, interrompendo a leitura. - Deixa a perder de vista o Velho Testamento.
- Fluxo de corrupção, sim, senhores - disse o russo. - Lembro-me da frase.
- Fala sempre de corrupções - acudiu Bichana. - Devia estar muito corrompido, para que isso lhe subisse à cabeça...
- Exatamente! - asseverou o russo.
- Deixem-me continuar. Este pedaço agora é de se tirar o chapéu. Ouçam: "E nesta imensa regressão, neste reconduzir-se do corpo vivo ao meio onde foi criado, descobrimos a verdade, e, para além desse conhecimento, o êxtase fosforescente da mais pura sensação". Oh! - exclamou Halliday - estas expressões parecem-me de um absurdo genial! Não acham que é do melhor que há? "E - retomando a carta - se você, Julius, pretender aquele êxtase juntamente com a Bichana, devem ambos insistir até que o obtenham. Todavia ele existirá em qualquer parte de vocês, esse desejo vivo da criação positiva, relacionado com a derradeira fé, quando todos os processos de desagregação ativa, com todas as suas flores de lama, forem ultrapassados e mais ou menos abolidos." Gostaria de saber - disse Halliday em outro tom - o que são essas flores de lama. Você será uma delas, Bichana?
- Obrigada. E o que é você?
- Eu também, com certeza, em vista desta carta. Somos todos flores de lama. Fleurs du mal! Birkin advertindo-nos do mal... do inferno... pregando contra o Pompadour... Lindo! Hic!
- Vá, continue - pediu Maxim. - Que é que vem mais? É, na verdade, interessantíssimo.
- Acho que é preciso muito descaramento para escrever coisas assim - comentou Bichana.
- Também acho - tornou o russo. - Megalomania, na certa; uma forma de loucura religiosa. Julga-se salvador da humanidade. Continue.
- "Sem dúvida - leu Halliday - sem dúvida a bondade e a graça têm-me acompanhado toda a minha vida." - Interrompeu-se e desatou a rir. Depois recomeçou, com voz sacerdotal: "Sem dúvida acabará este desejo que nós temos de nos separar constantemente, esta paixão de fracionar todas as coisas e nós mesmos, de nos reduzir, agindo só para nos destruir e empregando o sexo como agente dessa redução; apeando os dois grandes elementos, masculino e feminino, da sua unidade altamente complexa; diminuindo as ideias estabelecidas e regressando ao estado selvagem quanto às nossas sensações; procurando sempre perder-nos numa suprema e sinistra sensação, ininteligente e indefinida; queimando-nos num fogo aniquilador que nos persegue com a esperança de nos consumir inteiramente..."
- Vou-me embora - disse Gudrun a Gerald, fazendo sinal ao garçom.
Tinha os olhos brilhantes e as faces escaldantes. A leitura da carta de Birkin, em voz alta, cadenciada, frase por frase, de forma nítida e ressonante, tivera o estranho efeito de lhe fazer subir o sangue à cabeça, quase enlouquecendo-a.
Levantou-se, enquanto Gerald pagava a despesa, e dirigiu-se à mesa de Halliday. Todos a encararam, espantados.
- Desculpe-me - disse ela - mas essa carta é verdadeira?
- Sim, senhora - respondeu Julius. - Verdadeira.
- Posso ver?
O outro sorriu de modo estúpido e entregou a carta, como que hipnotizado.
- Obrigada - disse ela.
Deu meia volta e dirigiu-se para a porta do café com a carta na mão, passando, com andar vagaroso, através das mesas da sala brilhantemente iluminada. Decorreram alguns segundos antes que alguém se compenetrasse do que havia acontecido.
Do grupo partiram gritos, exclamações, vozerio, enquanto Gudrun se afastava, elegantemente vestida de verde-escuro e prateado, com chapéu também verde, mais claro, brilhante, de abas cor do vestido, debruadas de prata; o casaco também verde, cintilante, com gola alta de peles cinzentas e punhos também de peles. A orla da saia mostrava listras prateadas sobre veludo negro e as meias eram de um cinzento claro. Com movimentos lentos, atingiu a porta, indiferente a tudo o mais. O porteiro abriu-a obsequiosamente, e, a um sinal dela, correu para a calçada e chamou um táxi. Logo os dois faróis do carro se voltaram, faiscando como olhos.
Gerald seguira-a boquiaberto, no meio dos apupos, sem perceber a razão de tudo aquilo. Ainda ouviu a voz da Bichana, que dizia:
- Corra e traga-a de volta. Nunca vi uma coisa destas veja se consegue apanhá-la! Ela tem que devolver a carta!
Gudrun estava parada diante do carro, cuja porta o homem do café havia escancarado.
- Vamos para o hotel? - perguntou ela, apressada, quando Gerald apareceu.
- Se você quiser...
- Está bem. - Depois, dirigindo-se ao motorista: - E o Wagestaff, na Barton Street.
O chofer colocou o boné e desceu a bandeirinha.
Gudrun subiu, com ar indiferente de uma senhora elegante e desdenhosa. Contudo, sentia-se agitada, com arrepios de frio.
Gerald entrou também no automóvel.
- Você se esqueceu do rapaz - disse ela, naturalmente, com ligeiro aceno de cabeça para o indicar. Gerald estendeu a mão com um xelim e o outro agradeceu. O carro pôs-se em movimento.
- Que foi aquele barulho? - perguntou Gerald com ar surpreendido.
- Arranquei-lhes a carta de Birkin - respondeu, mostrando um papel amarrotado.
Os olhos dele brilharam de satisfação.
- Magnífico! Que súcia de patifes!
- Tive vontade de matá-los! - exclamou a moça, com ênfase - Cães! Não passam de cães! Tolo foi Rupert em escrever a semelhante gente! Como é que ele foi confiar nessa canalha? Tudo isto é insuportável!
Gerald estava admirado de tanta indignação.
Ela não quis permanecer mais tempo em Londres. No dia seguinte, de manhã, tomaram o trem em Charing Cross. Ao passarem sobre a ponte, descobrindo o rio através das grades de ferro, Gudrun exclamou:
- Sinto que nunca mais poderei tolerar esta cidade infecta. Não concebo a ideia de voltar aqui.


Capítulo XXIX
Continental
Úrsula sentiu-se em estado de irrealidade durante as semanas que precederam a viagem. Parecia ter perdido a personalidade: já não era nada, ou então qualquer coisa que ainda viria a ser... em breve muito em breve! Entretanto vivia na iminência do fato.
Foi visitar os pais. O encontro decorreu seco e melancólico; dir-se-ia antes a verificação da ruptura do que propriamente uma reconciliação. Mantiveram-se uns e outros vagos e indefinidos, aceitando o destino que assim os separava.
Não chegou a convencer-se da realidade senão quando se encontrou a bordo do navio que a conduziu de Dover a Ostende. Estivera em Londres, com o marido, mas como quem vive num sonho; e de Londres até Dover continuara com a mesma impressão. Julgar-se sofrer de sonambulismo.
Mas, agora, e finalmente, sentia que a alma lhe despertava do sono letárgico. Sentada já à popa do navio, ao vento e na escuridão da noite, experimentava o balanço que as ondas transmitiam ao barco; como num país fantástico, brilhavam nas costas da Inglaterra luzinhas perdidas e distantes, que na profundidade das trevas a pouco e pouco se tornavam menores e Úrsula viu-as por fim desaparecer.
- Vamos ate à proa?
Era Birkin que lhe fazia esta proposta, desejando olhar o futuro e não o passado; assim, deixaram os dois de contemplar os tênues reflexos daquele reino quase irreal e já longínquo chama do Inglaterra e afrontaram a noite insondável que se lhes abria à frente.
Dirigiram-se para a outra extremidade do navio, que oscilava docemente. Na completa escuridão que os rodeava, Birkin descobriu um cantinho relativamente abrigado, onde estava enrolado um cabo muito forte. Era o limite dianteiro do barco, junto do espaço negro ainda não transposto. Ali se tornaram a sentar, embrulhados ambos na mesma manta de viagem, unindo-se o mais possível um contra o outro ate sentirem que se haviam fundido numa só e única substância. Estava bastante frio e as trevas pareciam palpáveis, tão densas eram.
Escuro como a noite, quase invisível, avançou pelo convés um homem da tripulação. Daí a pouco puderam ver-lhe a palidez do rosto o outro sentiu a presença de estranhos e deteve-se, indeciso curvando-se sobre eles. Quando o marinheiro já estava muito perto de Úrsula e de Birkin, as faces desmaiadas destes tornaram-se perceptíveis e o homem retirou-se, como um fantasma. Os dois ficaram observando-o desaparecer, silenciosos.
Sentiram-se, então, reentrar no mais profundo negrume da noite. Não havia céu, nem terra, mas só a sombra compacta na qual se diria terem mergulhado como num sono suave e oscilatório ou como germes de vida, pequeninos, perdidos através das sombras insondáveis do infinito.
Haviam-se esquecido de onde estavam, tudo o que eram ou tinham sido, e só possuíam consciência da sua alma e da trajetória que realizavam pelo espaço imenso. A proa do barco fendia as águas, cortando-as com imperceptível rumor, sem ver e sem compreender, apenas ocupada em prosseguir dentro da noite.
Em Úrsula, a sensação do mundo indescortinado, que surgia à sua frente, prevalecia sobre outra qualquer. No meio de tão profunda obscuridade raiava-lhe no peito o fulgor de um paraíso estranho e incompreendido. Seu coração enchia-se das mais belas claridades, douradas como se fossem o mel da sombra, doces como o calor do dia; e essa luz não se espalhava na terra, somente no ignorado éden para onde ela se dirigia, estância deliciosa, em que o encanto de viver era diverso mas que já lhe pertencia infalivelmente. No seu arrebatamento, ergueu a face para Birkin, de súbito, e ele roçou-a com os lábios. Face tão fresca, tão pura, sabendo tanto ao mar, que o beijo foi como uma flor que houvesse nascido sobre a espuma das ondas.
Birkin, porém, não estava a par do êxtase de antecipada felicidade em que a mulher se comprazia. Para ele, o prodígio da viagem quase o derrotava. Caía num abismo de sombras sem fim tal um meteoro que tomba no espaço que separa os mundos. O universo apartava-se em dois, e Rupert mergulhava como uma estrela apagada no sorvedouro indescritível. O que residia mais além não existia ainda para ele. O percurso ocupava-lhe inteiramente o espírito.
Naquele enleio das almas, Úrsula continuava apoiada ao corpo do marido. O rosto de Rupert encostava-se ao cabelo fino e frágil da mulher, e ele aspirava-lhe a fragrância juntamente com o cheiro do mar e da noite profunda. Sentia-se repousado, submisso, ao resvalar assim para o ignoto. Era a primeira vez que saboreava a paz - absoluta e perfeita - dentro do seu ser. Era a viagem derradeira, e esta ultrapassava-lhe decerto a vida.
Ao ouvir barulho no convés, ambos despertaram e se puseram de pé. Estavam tão enregelados e cheios de cãibras pelo ar da noite! E, todavia, tanto para Rupert como para ela, só havia a paz inefável da escuridão e a maravilhosa promessa paradisíaca.
Uma vez de pé, olharam em frente. Na sombra divisavam-se luzes tênues Era outra vez o mundo. Já não existia, para Úrsula, aquele êxtase do coração nem, para ele, a tranquilidade do espírito. Era o mundo de fato, superficial e incrível. Mas não, talvez, o mesmo a que estavam habituados. A beatitude e a paz continuariam na sua alma.
O desembarque noturno foi o mais estranho que se possa imaginar, como se tivessem ido sobre as águas do Estige, na desolação do país subterrâneo. Tudo parecia sinistro, mal iluminado, vasto e sem ar, fugindo debaixo dos pés, triste por todos os cantos. Úrsula distinguiu logo as enormes letras, pálidas e misteriosas, que, rodeadas de sombra, diziam a palavra OSTENDE. Toda a gente se apressava através daquele cinzento sombrio, como insetos desnorteados; os carregadores ofereciam-se, falando um inglês inverossímil; e depois se afastavam com a bagagem pesada, desaparecendo ao longe: a capa desbotada dava-lhes o aspecto de fantasmas. Úrsula detivera-se junto a um comprido balcão, forrado de zinco, com mais uma centena de pessoas de ar espectral. De um lado alongava-se, na sombra, o balcão das malas abertas, enquanto, do outro, funcionários lívidos, de bigodes e boné de pala, revolviam a roupa e escreviam a giz nos invólucros da bagagem.
Enfim, tudo aquilo terminou. Birkin fechou as maletas de mão e ambos partiram, seguidos pelo encarregado da bagagem. Passaram por um largo portão e penetraram outra vez na noite. Ah, a estação da estrada de ferro! Vozes que interpelam, numa agitação sobre-humana, num ambiente acinzentado... Espectros que deslizam na sombra, entre os vagões...
Koln... Berlin... Nos cartazes enormes, ali afixados Úrsula soletrou estes nomes.
- Cá estamos - disse Birkin. A seu lado, viu ela escrito: Elsass... Lothringen... Luxembourg... Metz... Basle.
- É este, para a Basiléia!
O carregador tornou a aparecer.
- À Bale... deuxième classe? Voilà.
Subiu para o vagão. Marido e mulher fizeram o mesmo. Havia já alguns com passageiros, mas a maior parte estava vazia e às escuras. Arrumaram as malas e pagaram ao homem.
- Nous avons encore...? - começou Birkin, consultando o relógio e olhando para o carregador.
- Encore une demi-heure - Para Basiléia... segunda classe? Aí está. / Ainda temos...? Uma meia hora ainda - nota da tradutora).
Com esta resposta, desapareceu com a sua capa azul. Era pouco amável e muito feio.
- Venha - disse Birkin. - Está frio aqui. Vamos comer qualquer coisa.
Havia na estação um bar-restaurante. Lá tomaram um café quente - terrivelmente aguado - e comeram aqueles compridos pães cilíndricos, abertos no meio e com presunto dentro, tão grandes que, para os trincar, Úrsula quase deslocava o queixo. Depois passearam ao longo da composição. Parecia tudo tão estranho, tão extremamente desolado, espécie de mundo subterrâneo, cinzento, muito cinzento, grisalho, sujo, triste, abandonado, inexistente! Horrivelmente sem existência, e cor de cinza.
Finalmente a composição cortou a escuridão noturna. Através das trevas, Úrsula distinguiu os campos rasos, a sombra baixa, úmida e lúgubre do continente. Daí a pouco tiveram um sobressalto Bruges! Mas, de novo, a noite os rodeou, cortada apenas, aqui e ali, por alguma luz das herdades adormecidas, pelo prateado dos choupos e pela brancura das estradas desertas. Úrsula descansava sucumbida, apertando a mão de Birkin; e este, imóvel, pálido como um fantasma, olhava de vez em quando pela janelinha; noutras ocasiões fechava os olhos. Mas, instantes depois, tornava a fixar a vista, sombria como a atmosfera lá fora.
Eis um foco subitamente na treva: a estação de Gand! Alguns vultos sob o alpendre... um sino... e outra vez em movimento através da superfície tenebrosa! Úrsula viu um homem que empunhando a lanterna, saía de um quintal, perto da linha férrea, e atravessava as dependências mergulhadas na escuridão. Lembrou-se ela do Marsh, da sua antiga vida no campo, cheia de intimidade, em Cossethay. Deus do céu, como já ia longe isso tudo, desde a infância - e aonde iria ainda parar?! Durante uma existência parece que atravessamos centenas de anos. Havia lacunas na sua memória, entre esse tempo decorrido nos arredores de Cossethay e na quinta do Marsh e o momento presente em que viajava com Birkin, em pleno desconhecido. Recordava-se da criada Tilly, que lhe dava pão com manteiga polvilhado de açúcar mascavo, na sala de estar, onde o relógio antigo tinha duas rosas pintadas dentro de uma cesta, por cima dos algarismos do mostrador. Essa lacuna era tão grande que se lhe afigurava haver perdido a identidade, e a criança que outrora fora, e que brincava no adro da igreja de Cossethay, era uma criaturinha imaginaria; pelo menos, não seria ela.
Chegaram a Bruxelas. Meia hora para almoçar. Saltaram. O relógio da estação indicava seis horas. Tomaram café e comeram pães com mel na sala deserta do restaurante, fúnebre, suja, espaçosa, melancólica. Úrsula lavou o rosto e as mãos em água quente, penteou o cabelo e isso lhes trouxe algum consolo.
Não tardou muito que voltassem ao vagão e que o comboio reiniciasse a marcha. Despertava uma alvorada lívida. Havia ali mais alguns passageiros: negociantes belgas, de barbas castanhas e fartas e aspecto florescente; falavam sem parar num francês desagradável. Úrsula estava muito fatigada para lhes acompanhar a conversa.
O trem parecia correr do escuro para uma claridade gradualmente mais acentuada ate que, sempre arfante mergulhou em pleno dia. Como aquilo era extenuante! Atenuadas, as árvores foram-se mostrando como sombras. Depois apareceu uma casa branca, com grande nitidez. O que seria agora? Surgiu então uma aldeia, e as habitações desfilaram umas atrás das outras.
Velho mundo esse em que ela viajava assim, sinistro e invernoso! Terras cultivadas, prados, bosques de árvores desnudas, grupos de arbustos, quintas, casas pobres. Nada de novo ali se via.
Úrsula olhou para o marido, que estava pálido, silencioso como uma estátua. Estendeu-lhe a mão, debaixo da manta, e tocou com os seus os dedos dele, suplicante. Birkin respondeu ao contato e enviou-lhe um olhar. Como aqueles olhos eram sombrios, semelhantes à noite e a um mundo do além! Ah, se ele fosse ao menos o mundo, se o mundo fosse ele! Se Rupert pudesse evocar um mundo qualquer, o deles, para eles só!
Os belgas desceram da carruagem, e o comboio seguiu através do Luxemburgo, da Alsácia e Lorena, de Metz. Úrsula, porém, ia como cega, não via mais nada. A alma não descortinava nada fora de si mesma.
Por fim entraram em Basiléia e foram para o hotel. A viagem fora toda feita num êxtase de que ela não conseguia acordar. Na manhã seguinte deram um passeio, antes da partida do trem. Úrsula viu as ruas e o rio e deteve-se na ponte. Mas aquilo nada significava para ela. Fixou na retina algumas lojas, uma delas cheia de quadros, outra com veludos e arminhos. Que queria dizer, porém, tudo isso? Absolutamente, nada!
Úrsula não se sentiu à vontade senão quando embarcaram outra vez. Aí experimentou uma sensação de alívio. Enquanto a máquina esteve em movimento, Úrsula considerou-se satisfeita. Pararam em Zurique, depois deslizaram, por muito tempo, no sopé das montanhas cobertas de neve. Finalmente, aproximaram-se do termo da viagem. Era bem o outro universo que desejavam.
Innsbruck apresentava-se como uma autêntica maravilha; entardecia, e tudo estava branco. Um trenó descoberto levou-os sobre a neve, e saborearam o contraste com o trem, que estava quente e sufocante. O hotel, com a luz dourada que saía pelo pórtico, pareceu-lhes bastante acolhedor.
Riram alegremente quando se encontraram no vestíbulo. Havia grande azáfama e a casa devia estar cheia.
- Sabe se o senhor e a senhora Crich, ingleses, teriam chegado vindos de Paris? - perguntou Birkin em alemão.
O porteiro refletiu um momento e ia responder quando Úrsula descobriu Gudrun, que descia a escada. Trazia um casaco escuro, de fazenda lustrosa, guarnecido de peles.
- Gudrun! Gudrun! - gritou ela, acenando do patamar. A outra olhou por cima do corrimão e abandonou seus ares indolentes e desconfiados. Os olhos brilharam.
- Úrsula! E recomeçou a descer, enquanto Úrsula subia os primeiros degraus. Encontraram-se e beijaram-se com risos e alegres exclamações inarticuladas.
- Mas nós - declarou Gudrun, penalizada - julgávamos que vocês só chegariam amanhã! Tencionava ir à estação.
- Mas resolvemos vir hoje! Como isto é agradável!
- Muito! - confirmou Gudrun. - Gerald acaba de sair para fazer uma compra. Úrsula, você deve estar cansadíssima!
- Nem tanto. Mas estou bastante empoeirada, não?
- Pelo contrário, você está fresca como uma flor. Gosto muito do seu chapéu de peles. - Examinou a irmã, que vestia um casaco comprido e espesso com uma gola de peles claras e macias e chapéu da mesma cor.
- E você - observou Úrsula - com que se parece?
A outra tomou uma expressão modesta e inexpressiva.
- Gosta? - perguntou.
- Está linda! - respondeu a primeira, sorrindo.
- Subam ou desçam - disse Birkin.
As duas irmãs estavam paradas a meio da escada na altura do primeiro lance, interrompendo a passagem e divertindo imensamente os que se encontravam no térreo, desde o porteiro ate o judeu barrigudo de roupa preta. Gudrun conversava muito calma, apoiando a mão no braço da irmã.
Subiram, então, vagarosamente, seguidas de Birkin e do empregado do hotel.
- No primeiro andar? - perguntou Gudrun, olhando para trás, por cima do ombro.
- No segundo, minha senhora. Toma-se o elevador. - E correu para lá, de forma a chegar antes das duas moças. Absorvidas, porém, pela conversa, elas não o viram, e continuaram a subir para o segundo andar. O empregado correu atrás delas, aborrecido.
Era curioso notar como as duas irmãs se haviam regozijado com o encontro. Era como se se sentissem exiladas, unindo suas forças individuais a fim de arremeter contra o mundo. Birkin olhava-as com desconfiança e admiração.
Já estavam de roupa mudada quando Gerald voltou. Vinha faiscante como um raio de sol sobre o gelo.
- Vocês vão fumar - disse Úrsula a Birkin. - Eu e Gudrun temos muito que conversar.
Sentaram-se no quarto de Gudrun, e falaram sobre vestidos e episódios divertidos. Gudrun contou a história da carta de Birkin no Café Pompadour. Úrsula ficou indignada e chegou a assustar-se.
- Onde está a carta? - perguntou.
- Guardei-a.
- Quero vê-la, sim?
Gudrun conservou-se uns instantes silenciosa, até que retorquiu:
- Deseja lê-la, realmente?
- Sim.
- Está bem. Não lhe parecia fácil fazer a irmã compreender o quanto lhe agradaria ter a carta como recordação, como coisa simbólica. Mas Úrsula percebeu e não gostou da ideia. Mudaram de assunto.
- Que fizeram vocês em Paris? - indagou esta última.
- O que se costuma fazer - respondeu a irmã laconicamente - Passamos uma noite com Fanny Bath, no seu estúdio.
- Ah, sim? Você e Gerald estiveram lá?! E quem mais? Conte-me tudo.
- Não há nada de especial para relatar. Sabe como Fanny anda apaixonada por aquele pintor, Billy Macfarlane. O homem estava presente, de maneira que ela não poupou nada, e tez tudo o que era possível para conquistá-lo. Claro que todos se embebedaram, mas de uma forma interessante, não como essa gente abjeta de Londres. A verdade é que só se viam pessoas de valor, o que faz alguma diferença. Havia um romeno, tipo de primeira ordem. Embriagou-se por completo, subiu ao topo de uma escada e fez um discurso estupendo... Acredite, Úrsula, estupendo! Começou por falar em francês... La vie, c'est une affaire d'âmes impériales - A vida é um negócio de almas imperiais - nota da tradutora), isto com esplêndida pronúncia. Depois desandou a divagar na sua língua, e ninguém entendeu patavina. Donald Gilchrist estava também e inteiramente frenético. Atirou um copo ao chão e jurou, por Deus, que se considerava feliz por haver nascido, que era milagrosa a sua existência... E quer crer, Úrsula, que é verdade?... - Gudrun riu, mas de uma forma que soava falso.
- E que fazia Gerald, no meio de todos?
- Ah, se você visse! Parecia estar no seu elemento. Uma vez que se excita, faz ele próprio a festa toda! Não houve dama a quem não se atirasse. Palavra, Úrsula, atrai as mulheres como um ímã. Não houve nenhuma que lhe resistisse. Era espantoso! Você entende uma coisa assim?
Úrsula meditou uns segundos, e no olhar perpassou-lhe um súbito clarão.
- Percebo - respondeu. - Não lhe escapa nenhuma.
- Nenhuma! Também acho que sim - exclamou Gudrun.
Pois é a pura verdade. Todas as mulheres que lá estavam se dispunham a se renderem, ate Fanny, apesar de apaixonada pelo seu Billy Macfarlane. Nunca na minha vida fiquei tão assombrada. E agora dá-me a impressão de que sou, para ele, não uma só mas uma súcia de mulheres. Sou tanto eu mesma como a Rainha Vitória. Qual! Uma coleção de fêmeas é o que eu sou! Enfim, isto estonteia-me. Aquele homem é um sultão!
Os olhos de Gudrun cintilavam. Tinha as maçãs do rosto abrasadas, e o aspecto estranho, exótico, um tanto excêntrico. Úrsula sentou-se perturbada e inquieta.
Já era tempo de se prepararem para o jantar. Gudrun desceu, daí a pouco, com um vestido muito audacioso, de seda, verde-claro e ouro; o corpete era de veludo verde, e em volta da cabeça havia enrolado um turbante esquisito, preto e branco. Estava realmente bonita, e toda a gente o notou. Gerald, de belas cores na face, parecia vender saúde. Birkin olhava-os com interesse. Úrsula estava abstrata. Imaginar-se-ia que a mesa, a que se haviam sentado os quatro, fora previamente enfeitiçada até a luz incidia mais sobre ela do que sobre as restantes.
- Não gosta disto aqui? - perguntou Gudrun - A neve é surpreendente. Reparou como dá relevo a tudo? Pura maravilha! Sentimo-nos, na verdade, übermenschlich, mais do que humanos.
- Também acho - respondeu Úrsula. - Mas não se deverá, em parte, ao fato de havermos deixado a Inglaterra.
- Naturalmente... Jamais se poderia ter esta impressão na nossa terra pelo simples motivo de que lá jogam sempre baldes de água fria no entusiasmo. Nunca se está bem à vontade, disso tenho a certeza. - Assim falou, e recomeçou a comer. Mostrava-se bastante animada.
- Sou da mesma opinião - disse Gerald. - Na Inglaterra não é a mesma coisa, e talvez seja isso o que nós preferimos muita liberdade, equivalerá a brincar com o fogo. Assusto-me só em pensar no que sucederia...
- Meu Deus, que lindo - exclamou Gudrun - se toda a Inglaterra explodisse subitamente como uma peça de fogo de artifício!
- É impossível - volveu Úrsula. - Há muita umidade e a pólvora deve estar molhada.
- Quem sabe... - atalhou Gerald.
- Eu penso - interveio Birkin - que quando os ingleses começarem a explodir, em massa, é hora de tapar os ouvidos e começar a fugir.
- Jamais acontecerá tal coisa - observou Úrsula.
- Veremos, replicou o marido.
- Em todo o caso demos graças Deus por termos podido abandonar a pátria. Até nem acredito. Bastou pisar terra estrangeira para me sentir outra. Eis-me renascida, foi o que disse de mim para mim, Gudrun, para com o nosso pobre país - disse Gerald. - Almadiçoa-mo-lo, é certo, mas gostamos bastante dele.
Aos ouvidos de Úrsula tais palavras soaram como reveladores de cinismo.
- Não contesto - comemorou Birkin. - Mas é uma espécie de amor um tanto incomodo, como o que dedicamos a uma pessoa da família, muito velha e muito doente, da qual nada podemos esperar...
Gudrun arregalou o s olhos para o cunhado.
- Parece-lhe que não há esperança? - interrogou ela, com aquele eu jeito peculiar.
Birkin, porém, pôs-se em guarda. Não lhe agradava aprofundar o assunto.
- Poderemos ter, francamente, esperanças na Inglaterra? Só Deus sabe. Por enquanto, não é mais que uma imensa irrealidade, um agregado sem consistência. Poderia tornar-se real, se não existissem os ingleses.
- Entende que os ingleses deveriam desaparecer? - insistiu Gudrun. Era de admirar aquele desejo de conhecer a opinião do Gudrun. Podia-se supor que ate o seu próprio estava em jogo. Manteve o olhar sombrio e ansioso fixado em Birkin, como se a verdade sobre o futuro devesse ser dita por ele, como se ele fosse um instrumento divino.
Rupert empalidecera. Depois, de má vontade, replicou:
- Sim... que é que lhes resta fazer, senão desaparecerem? De qualquer maneira, é forçoso que percam as suas características de ingleses.
Gudrun não retirara dele o olhar, fixo e espantado, como se estivesse sob influência hipnótica.
- Em que sentido - perguntou ela - emprega o verbo desaparecer?
- Quer dizer mudança de sentimentos? - inquiriu Gerald por seu turno.
- Não posso explicar melhor - volveu Birkin. - Sou inglês, e sofro as consequências de o ser. Não falei da Inglaterra em geral, mas apenas de mim mesmo.
- Você ama imensamente a sua pátria, Rupert - retorquiu Gudrun com voz muito pausada.
- E acabo de deixá-la.
- Mas não para sempre - atalhou Gerald. - Vai voltar para lá - sentenciou, movendo a cabeça em sinal afirmativo.
- Dizem que os parasitas abandonam os moribundos - disse Birkin com amargura - Foi assim que deixei a Inglaterra.
- Ora, voltará... - observou Gudrun, sorrindo irônica.
- Tant pis pour moi - Tanto pior para mim - nota da tradutora).
- Como ele detesta a mãe-pátria! - exclamou Gerald, rindo, divertidíssimo.
- Grande patriota! - acrescentou Gudrun. Birkin não se dignou responder mais nada.
Gudrun ficou observando-p por alguns segundos. Depois, voltou-se para o outro lado. Terminavam as suas faculdades espirituais; sentia-se agora puramente cínica. Olhou então para Gerald, que lhe pareceu maravilhoso como uma partícula de rádio. Calculou que se poderia consumir a si própria, e tudo conhecer, através daquele metal vivo e fatídico. Pensava nisso e sorria. E o que seria dela, quando estivesse destruída. Pois, se o espírito, se o ser constituído é destrutível, a matéria, em si mesma, não o é.
Gerald, nesse momento, estava absorto, pensativo, com ar radiante. Gudrun estendeu um dos seus belos braços, cobertos de tule verde e tocou no queixo dele com os dedos sensíveis, de artista plástica.
- Que tais são? - perguntou-lhe, com um estranho sorriso.
- O quê? - perguntou o rapaz, voltando a si, muito admirado.
- Os seus pensamentos.
Gerald tinha o aspecto de quem acaba de acordar.
- Acho que não tenho nenhum - respondeu.
_ Não - repetiu ela. A voz era grave, mas alegre.
Para Birkin, o contato daqueles dedos sobre Gerald equivalia a uma espécie de homicídio.
- Ora, então - continuou Gudrun - bebamos pela Inglaterra, bebamos pela Grã-Bretanha.
A entonação dela denunciava certo desespero. Gerald riu e encheu os copos.
- Percebo a ideia de Birkin - explicou ele. - É esta: nacionalmente, todos os ingleses deverão morrer; porém, continuarão a existir como indivíduos.
- Supernacionalmente... - emendou Gudrun, fazendo uma careta e levantando o copo.
No dia seguinte tomaram o trem que os levou ate a estação de Hohenhausen, no extremo da linha que serve o minúsculo vale. Havia neve por toda a parte, verdadeiro berço nevado, muito branco, renovando-se constantemente; de um lado e de outro emergiam penhascos negros, e outros, já prateados, erguendo-se todos para o céu palidamente azul.
Ao saltarem na plataforma desconfortável, rodeada de neve, Gudrun estremeceu como se o coração se lhe gelasse também.
- Meu Deus, Jerry - disse ela, voltando-se para Gerald, em inesperada explosão de intimidade. - Desta vez estou amedrontada.
- Por quê?
Ela fez um gesto indicando a paisagem circundante.
- Olhe!
Parecia ter medo de dizer o que sentia Gerald riu-se.
Estavam cercados de montanhas. Do alto, de toda a parte, desciam lençóis de alvura, e eles sentiam-se diminutos e insignificantes naquele vale, tão irradiante, silencioso e imóvel como se fosse éter solidificado.
- Sentimo-nos ínfimos e sós - disse Úrsula, pondo a mão no ombro de Birkin.
- Está arrependida de ter vindo? - perguntou Gerald a Gudrun.
A jovem ficou indecisa. Saíram todos da estação, entre blocos de gelo.
- Ah! - fez Gerald, respirando de prazer. - Como isto é bom! Aqui está um trenó. Vamos dar um passeio e depois subimos a encosta.
Gudrun, irresoluta, depôs o espesso casaco em cima do trenó - como Gerald havia feito - e seguiu em frente. De súbito, lançou a cabeça para trás e desatou numa correria sobre a neve, enfiando o gorro ate as orelhas. O vestido azul-claro flutuava ao vento; as meias vermelhas brilhavam sobre o chão alvo. Gerald contemplou-a e teve a impressão de que ela se arremessava ao seu destino, deixando-o, a ele, abandonado. Depois de perceber que ela continuava se afastando, correu, por sua vez e foi-lhe ao encalço.
Por toda a parte se estendia aquela alvura profunda e silenciosa. As goteiras pesavam e abarrotavam de neve os telhados largos das casas tirolesas, que por sua vez estavam mergulhadas nela ate os caixilhos das janelas. As camponesas, de amplas saias, com mantas na cabeça e botas adequadas, voltavam-se, no caminho, para observar aquela moça elegante e enérgica que fugia do homem que a perseguia e que se aproximava mais e mais, sem, todavia a alcançar.
Passaram diante da estalagem de madeira pintada e depois em frente de alguns chalés semi-enterrados nos flocos brancos, bem como junto à fábrica de serragem, que estava sem trabalhadores; e, enfim, sobre a ponte coberta que atravessava um riacho invisível, e daí, por cima de camadas de neve ainda não pisadas. O silêncio e a extrema brancura incitavam a uma alegria insensata. Mas aquele, por excessivo, tornava-se terrível: isolava a alma e fechava o coração com uma corrente gelada.
- Apesar de tudo, é um lugar admirável - disse Gudrun, fitando Gerald nos olhos, de forma estranha e significativa. A alma dele sobressaltou-se.
- Delicioso! - confirmou.
De todos os seus membros parecia irradiar-se energia elétrica: os músculos estavam tensos, as mãos endureciam-se de vigor. Seguiram a passo apressado pela estrada transbordante de neve, e indicada apenas, de vez em quando, pelos ramos desnudos das árvores. Sentiam-se separados um do outro como pólos contrários de força impetuosa. Tinham poder suficiente para saltar até os confins da vida, até lugares interditos, e de lá regressar ao ponto de partida.
Birkin e Úrsula corriam também sobre a superfície gelada. Desembaraçando-se de toda a bagagem, haviam conseguido tomar a dianteira aos trenós. Úrsula, excitada e feliz, voltava-se de repente e segurava o braço do marido, para se assegurar da sua presença.
- Nunca imaginei isso - declarou ela. - Encontrar um mundo assim tão diferente!
Seguiram por um prado que a neve atapetara. Ali esperaram o trenó, que vinha tilintando no meio do silêncio geral. Até encontrarem Gerald e Gudrun tinham de percorrer ainda uma grande distância; achavam-se estes mais acima, no alto de um despenhadeiro, ao pé de um santuário cor-de-rosa, meio oculto pelos flocos de neve.
Passaram depois por um barranco onde havia rochas negras e um regato cujo leito se cobrira de branco. Por cima brilhava o céu azul. Depois chegaram a uma ponte; as pranchas de madeira ressoaram surdamente sob os passos; atravessaram mais uma vez o fundo nevado do barranco, e começaram a subir a encosta. Os cavalos subiam apressados, e o condutor, marchando ao lado, fazia estalar o chicote, lançando estranhos gritos de incitamento. As pedras que marginavam o caminho ficavam lentamente para trás, até que foram surgir de novo entre taludes e montões de neve. Gradualmente ganhavam altitude sob a luz fria da tarde; a proximidade das montanhas fazia-os calarem-se; vertentes de alvura luminosa cresciam em frente e desciam no caminho que lhes ficava às costas.
Atingiram, enfim, um planalto muito extenso, cercado de altos picos de neve semelhantes a pétalas de rosa desabrochada. No meio dos últimos vales desertos estava uma construção solitária de madeira escura e pesado teto branco, perdida e sozinha na vastidão dealbada, como numa espécie de sonho. Dir-se-ia um penhasco que houvesse rolado de cima das vertentes escarpadas e que tomasse a forma de uma casa, permanecendo ali meio insermlta. Parecia inacreditável que alguém pudesse viver naquele lugar sem ser esmagado pela terrível imensidade da neve, pelo silêncio e pelo frio seco intenso e penetrante.
Os trenós acabaram de subir da melhor maneira que puderam; à porta da casa apareceram várias pessoas, rindo animadamente. O assoalho da estalagem rangia, o corredor estava úmido, mas na sala havia calor e conforto.
Os recém-chegados subiram a escada de madeira, guiados pela criada. Gudrun e Gerald ficaram no primeiro quarto. Viram-se, de um momento para outro, instalados em um pequenino aposento, pouco mobiliado, mas confortável; o quarto tinha uma cor dourada, porque o chão, as paredes, o teto, a porta, eram feitos da mesma qualidade de pinho, recoberto de cera. Defronte da porta, abria-se uma janela muito baixa, pois o teto era esconso. Na mesma direção estava a mesa com a bacia de lavar as mãos e o jarro; próximo, outra mesa com penteadeira de espelho. De cada lado da porta, as camas, sobre as quais se empilhavam enormes almofadas azuis, descomunais.
E nada mais havia. Faltavam o guarda-roupa e outras peças habituais. Ei-los encerrados numa cela de madeira dourada com dois leitos cobertos de lençóis e fronhas azuis! Olharam um para o outro e desataram a rir, admirados com aquela nudez que lhes fazia sentir ainda mais o isolamento.
Bateram à porta. Era um carregador com a bagagem, rapaz robusto, pálido, de faces encovadas e bigodinho louro e hirsuto. Gudrun ficou a observá-lo enquanto ele colocava as malas e se retirava, muito calado, com passadas fortes.
- Não acha isso tudo muito primitivo? - perguntou Gerald.
O quarto não estava suficientemente aquecido e Gudrun teve um breve arrepio.
- É adorável - respondeu ela, procurando iludir-se. - Repare no tom da madeira: delicioso, parece mesmo o interior de uma noz.
De pé, Gerald observava a moça, mordia o bigode e balançava levemente o corpo. Olhava-a com olhos penetrantes e corajosos, dominado por uma paixão constante, que pesava sobre ele como uma maldição.
Gudrun debruçou-se à janela, cheia de curiosidade.
- Ah, que beleza!... - exclamou quase involuntariamente.
Em frente estendia-se um vale, sob todo o espaço do céu, fechado entre declives de neve e rochedos escuros; ao fundo, como se fosse o centro da terra, havia uma encosta branca, lisa, com dois picos que cintilavam ao crepúsculo. E a vista perdia-se naquele berço de neve silenciosa que havia entre as vertentes imponentes e orladas de pinheirinhos agrestes que lhes serviam de cabeleira. Esse berço imaculado prolongava-se ate à barreira da eternidade, onde as muralhas de neve e de pedra se elevavam impenetráveis e os cimos das montanhas roçavam o céu. Era realmente o centro, o eixo, o umbigo da terra, que, pura, inacessível, inultrapassável, dormia ali como propriedade do firmamento.
Tudo aquilo embevecia Gudrun. Ajoelhou-se em frente a janela, apoiando o queixo nas mãos em atitude de arrebatamento. Chegara, finalmente! Atingira o seu destino! Gozaria ali a sua felicidade, engastando-se como um cristal no próprio centro da neve.
Gerald, curvado sobre ela, olhava, por cima do ombro da moça, a paisagem lá fora. Mas sentia-se sozinho. Gudrun havia partido. Partira para sempre, deixando apenas uma névoa fria em volta do coração dele. Contemplou o vale coberto de flocos brancos, àquele enorme cul-desac cheio de neve e as cristas das serras sob o céu azul. Não havia caminhos por onde escapasse; rodeavam-no o silêncio o frio, a cintilante alvura da tarde moribunda. Gudrun permanecia ajoelhada defronte da janela como uma sombra em frente a um altar.
- Gosta disto? - perguntou-lhe ele numa voz que soou desconhecida e distante. Ao menos assim ela saberia que ele estava ali. Mas Gudrun limitou-se a desviar o rosto, furtando-se aos olhares do homem. Este percebeu que ela havia chorado; e aquelas lágrimas, produto da sua estranha religião, reduziram-no a uma coisa insignificante.
Pegou no queixo de Gudrun e ergueu-lhe a cabeça. Os olhos dela, azul-escuros, molhados do pranto, dilatavam-se como se estivessem assustados. Gudrun o viu através de uma névoa, e sinto aterrorizada. As pupilas de Gerald, pequeninas, vivas, pareciam-lhe agora sobrenaturais. Ela abriu os lábios, a custo, enquanto respirava ofegante.
A paixão foi-se apoderando de Gerald, mais e mais, como o som de um sino de bronze, forte, bem timbrado, impossível de deter. E, como de bronze, igualmente, seus joelhos se endureceram, ao inclinar-se sobre a face macia da moça, cuja boca estava entreaberta e cujos olhos se arregalavam sob a impressão de um medo singular. Ao contato da mão de Gerald, o queixo de Gudrun era brando e sedoso. Ei-lo, poderoso como o próprio inverno, aquele homem dominador; as mãos eram de metal, mas cheias de vida, insensíveis, impossíveis de dobrar. E o coração, dentro do peito, badalava como um sino.
Ergueu-a nos braços. Ela estava frouxa, inerte, sem movimentos! Nos olhos, onde as lágrimas não haviam secado, a dilatação aumentara, e ela entrara numa espécie de desmaio, de fascinação, já vencida. Gerald tinha uma força sobre-humana, inquebrável, superior às leis da natureza.
Ergueu-a e estreitou-a contra si. Aquele corpo mole e sem resistência pesava-lhe nos braços rijos, nos membros de bronze, provocando-lhe profundos desejos que o enlouqueceriam se não conseguisse satisfazê-los. Gudrun debatia-se convulsa, tentando evitá-lo. Mas o amor de Gerald estalava como uma chama de gelo, e ele apertava-a duramente, com músculos de aço. Antes a destruiria, mas não a deixaria fugir.
A força do homem era excessiva para a fragilidade da mulher, que se abandonou, fraca e submissa, ofegante, em vago delírio. Para ele, afigurava-se-lhe tão carinhosa, tão prometedora de felicidade, que Gerald desejaria ser condenado eternamente a renunciar um segundo àquele prazer, quase doloroso.
- Meu Deus, - disse com o rosto transfigurado, estranho e ardente - que será de nós?
Ela ficara quieta, perfeitamente calma; a expressão era infantil e os olhos sombrios não o desfitavam. Mas estava perdida para ele, como se o houvesse renegado.
- Amar-te-ei para sempre - declarou Gerald, fitando-a.
Gudrun, porém, não o ouvia. Jazia desfalecida, examinando-o como a alguém que lhe fosse impossível compreender; como uma criança observando um adulto, sem esperança de o entender, submetida e nada mais.
Gerald beijou-a nas pálpebras, de maneira que ela não conseguia vê-lo. Gostaria que ela desse algum sinal, qualquer prova de entendimento, de concordância. Ela, porém, continuava silenciosa, distante, criança que não entende as coisas e que se sente perdida. E ele tornou a beijá-la, renunciando a tudo, por fim.
- E se fôssemos tomar café e comer Kuchen? - sugeriu ele.
O crepúsculo esmaecia cor de ardósia, através da janela. Gudrun fechou os olhos à monótona superfície daquela maravilha morta, e tornou a abri-los ao mundo quotidiano.
- Está bem - respondeu laconicamente, reencontrando de súbito a vontade. Voltou de novo à janela. Sobre o berço da neve e sobre as altas encostas lívidas caíra uma noite azulada. Mas, de encontro ao céu, os picos eriçavam-se róseos, brilhantes, translúcidos, como rebentos de uma planta luzidia voltada para o mundo celestial, adorável e distante.
Gudrun viu como tudo isso era belo, conheceu a imortalidade de que aquela beleza se revestia, enormes pistilos cor-de-rosa, fogo de neve no crepúsculo azulado do céu. Via, compreendia, mas não era parte daquele todo. Alma divorciada, a sua, excluída, exilada, e nada mais!
Lançou um último e saudoso olhar à paisagem e passou os dedos pelo cabelo, compondo o penteado. Gerald desatara as correias das malas e esperava por ela, observando-a. Gudrun percebeu que ele a mirava, o que a fez apressar-se de modo febril.
Desceram ao andar térreo; havia nos olhos de ambos como que um reflexo de outro mundo, tão brilhantes se mostravam. Descobriram logo Birkin e Úrsula sentados em um canto da mesa comprida, aguardando que eles chegassem.
"Têm tão bom aspecto! São tão simples!" pensou Gudrun, invejosa daquela espontaneidade, daquela inocência de crianças que ambos demonstravam e que ela jamais possuíra. Pareciam-lhe tão pueris!
- Deliciosos Kranzkuchen! - Magnífico, prodigioso, extraordinário, inexprimível - nota da tradutora), exclamou Úrsula, gulosamente. - Deliciosos!
- Vamos experimentar. Traga-nos Kafee mit Kranzkuchen - ordenou Gudrun ao garçom.
Depois sentou-se no banco, ao lado de Gerald. Birkin, olhando para eles, sentiu pelos dois uma ternura quase dolorosa.
- Gerald - disse -, acho este lugar realmente encantador. Prachtvoll, wunderbar, wunderschön, unbeschreiblich e todos os outros adjetivos da língua alemã.
O outro esboçou um sorriso.
- Também gosto muito - replicou.
As três mesas, de madeira branca bem esfregada, estavam postas ao longo das paredes, como em qualquer Gasthaus - Estalagem - nota da tradutora). Birkin e Úrsula tinham-se colocado de costas para aqueles tabiques de pinho encerado, e Gerald e Gudrun próximos deles, mais no extremo, perto da lareira. O compartimento era vasto, com um recanto para as bebidas, em tudo semelhante a um albergue rural, embora muito mais simples e despojado. Teto, paredes e assoalho em madeira encerada, e como única mobília, mesas e bancos; a lareira era verde, tão grande que ocupava uma parede inteira. As duas janelas não ostentavam cortinas. Começava a anoitecer.
Trouxeram o café, bom e quente, e um daqueles "bolos coroados".
- Um Kuchen inteiro! - gritou Úrsula. - Vocês ganharam mais do que nós. Quero um pedaço desse.
Havia outros hóspedes, dez ao todo, conforme Birkin deduziu: dois artistas, três estudantes, um casal e um professor com as duas filhas - todos alémães. Os quatro ingleses recém-vindos permaneceram no seu cantinho, belo posto de observação. Os alemães observaram os novos hóspedes, disseram qualquer coisa ao garçom e desapareceram. Não era hora de refeição, de forma que não tinham nada a fazer na sala de jantar, mas, depois de trocarem os sapatos vieram para a Reunionsaal - Sala de estar - nota da tradutora).
Os quatro ingleses ouviram, por instantes, sons de viola e de piano misturados com risos, gritos e canções. Como a casa era construída de madeira, a repercussão do ruído fazia-se por toda ela, de forma que os acordes da viola pareciam provir de um instrumento de crianças que tocassem em qualquer parte, e os do piano mais pareciam os de uma espineta.
O hospedeiro apareceu quando acabavam de tomar o café. Tratava-se de um tirolês espadaúdo, pálido, de faces encovadas e pele marcada pela varíola. Usava os mais florescentes bigodes que se podem imaginar.
- Querem ir à sala de estar para serem apresentados às senhoras e cavalheiros que lá se encontram? - perguntou, curvando-se e exibindo um sorriso que mostrou seus dentes largos e perfeitos. Com os olhinhos azuis fitava ora um ora outro, sentindo-se pouco à vontade no meio daqueles ingleses Sentia não saber falar o idioma deles e não tinha muita confiança no seu francês.
- Para irmos à sala e sermos apresentados às outras pessoas? - repetiu Gerald, sorridente.
Houve uns segundos de hesitação.
- Creio que seria bom - acudiu Birkin. - Quebraríamos o gelo de uma vez.
As senhoras puseram-se de pé, ruborizadas.
O Wirf - Dono da estalagem - nota da tradutora), com a sua figura loura, os ombros largos, passou, pouco delicadamente, em primeiro lugar, dirigindo-se ao lugar de onde vinha o ruído. Abriu uma porta e introduziu os estrangeiros na sala do concerto.
Seguiu-se um silêncio, e os outros pareceram, por momentos, embaraçados. Os recém-chegados tiveram a sensação de estar sendo observados por uma multidão de criaturas da mesma raça. Mas o estalajadeiro inclinou-se para um homem baixinho, de olhar enérgico e fartos bigodes e disse-lhe em voz confidencial:
- Herr Professor, darf ich vorstellen... Permita-me que lhe apresente, senhor professor... - nota da tradutora).
O homem reagiu prontamente. Cumprimentou com a cabeça os novos hóspedes, sorriu e assumiu uma franca atitude de camaradagem:
- Nehmen die Herrschaften Teil an unserer Unterhaltung? - Dignam-se tomar parte na nossa festa? - nota da tradutora) - foram as suas palavras, ditas com vigor e convicção.
Os quatro ingleses, risonhos, deixaram-se ir até ao meio da sala, com certo acanhamento. Gerald, fazendo de orador oficial, respondeu que teriam muito gosto em tomar parte no sarau. Gudrun e Úrsula, rindo animadamente, percebiam que os homens não tiravam os olhos de cima delas. Ergueram então a cabeça, fitando o teto, e assumiram uma atitude majestosa...
O professor declarou os nomes de todos os presentes, sans cérémonie. Houve flexões de cabeça para a esquerda e para a direita. Só faltava ali o casal que tinham mencionado antes como hóspedes da estalagem. As duas filhas do professor, altas, claras, atléticas, vestidas simplesmente com blusas azul-escuros e saias de lã, de pescoço comprido e forte e cabelos cuidadosamente trançados coraram, cumprimentaram e puseram-se um pouco afastadas os três estudantes curvaram-se reverentes, na humilde persuasão de incutirem a ideia de que eram muito bem educados. Depois chegou a vez de um sujeito delgado e moreno, com olhos grandes, um tipo estranho, misto de engraçado e esperto, um gnomo original. Fez um curto cumprimento e o companheiro que se achava junto dele, rapaz louro e alto, bem vestido, corou e baixou a cabeça.
Estavam feitas as apresentações.
- Herr Loerke estava recitando para nós no dialeto de Colônia - explicou o professor.
- Desculpe a interrupção - disse Gerald. - Teremos também imenso prazer em ouvi-lo.
Seguiu-se um novo cumprimento e oferta de lugares. Gudrun, Úrsula, Gerald e Birkin sentaram-se em confortáveis sofás, de costas para a parede. A sala era, como toda a casa, de madeira encerada. Havia piano, canapés, cadeiras e duas mesas com livros e revistas. Apesar da ausência total de ornatos - exceto no que respeitava ao fogão enorme, azul - não se deixava de sentir conforto e bem-estar.
Herr Loerke era o homenzinho de rosto infantil. Tinha a cabeça redonda, grande, olhos vivos como os de um mico e todo ele denotava sensibilidade. Relanceou o olhar pelos intrusos, conservando-se um tanto à parte.
- Queira continuar com a declamação - insistiu o professor, com voz suave, embora levemente autoritária. Loerke, que estava sentado no banquinho do piano, um pouco curvado, baixou os olhos e não respondeu.
- Seria muito agradável para nós... - interveio Úrsula, que estava há muito tempo preparando a frase em alemão.
Então, subitamente, o homenzinho, ate ali calado, avançou e, dirigindo-se aos primeiros ouvintes, continuou a história exatamente no ponto em que a havia interrompido. Com voz brincalhona, muito bem timbrada, fez a imitação de uma disputa entre uma velhota de Colônia e um condutor de trens.
O corpo daquele homem, débil e mal formado, assemelhava-se ao de um rapazola, porém a entonação era a de um adulto, com grande dose de sarcasmo; possuía a inflexão necessária, denunciando inteligência crítica e penetrante. Gudrun não conseguiu perceber patavina daquele monólogo, mas estava encantada com a figura dele. Devia ser artista, senão não conseguiria tanta perfeição e naturalidade. Os alémães não cessavam de rir ao ouvir as palavras tão engraçadas daquele divertido dialeto. No meio das gargalhadas, olhavam disfarçadamente para os ingleses, com deferência Gudrun e Úrsula não puderam deixar de rir também. A sala quase vinha abaixo com tanto barulho. Os olhos azuis das filhas do professor já estavam cheios de lágrimas provocadas pelo riso; as faces das moças estavam coradas de prazer. O pai fazia reboar pela casa estrondosas manifestações de hilaridade, e os estudantes, no auge da alegria, curvavam a cabeça ate os joelhos. Úrsula, surpreendida, perscrutava em volta de si e, involuntariamente, acompanhava as expansões da assembleia. Virou-se uma vez para a irmã e a irmã para ela, e as duas riram a valer. Loerke lançou-lhes um rápido olhar. Birkin divertia-se discretamente. Gerald mantinha-se ereto, com expressão brilhante e divertida. E as risadas prosseguiram, com intensidade crescente; as filhas do professor remexiam-se nas cadeiras, o pai mostrava as faces afogueadas e as veias do pescoço salientes: sentia-se sufocado e tinha espasmos de riso silencioso. Os estudantes soltavam gritos inarticulados que terminavam em explosões que não podiam evitar. Mas de repente, o monólogo do artista cessou; as exclamações subsistiram ainda, decrescendo gradualmente. Úrsula e Gudrun enxugaram os olhos, e o professor exclamou, em voz alta:
- Das war ausgezeichmet, das war famos... Soberbo, famoso! - nota da tradutora).
- Wirklich famos! Famosíssimo! - nota da tradutora) - repetiram em eco as filhas, extenuadas.
- Que pena não termos entendido! - lamentou Úrsula.
- Oh, leider, leider! - Infelizmente, infelizmente! - nota da tradutora)
- comentou o professor.
- Não compreenderam? - indagaram os estudantes, dirigindo-se finalmente aos estrangeiros. - Ja, das ist wirklich schade, das ist schade, gnadige Frau. Wissen Sie... - Sim, realmente foi pena, minha senhora. Acredite. - nota da tradutora).
Estabelecera-se a familiaridade, e os recém-chegados, como elementos novos, misturaram-se ao grupo, aumentando a animação da sala. Gerald estava como em sua casa, falava com desembaraço e boa disposição; assim nesta sua expressão mostrava quanto aquilo o divertia. Talvez sucedesse o mesmo a Birkin. Permanecia ainda tímido e contrafeito, embora atento a tudo o que se passava.
Pediram a Úrsula que cantasse Ano Lawrie - como dizia o professor. Fez-se um silêncio cheio de deferência. Nunca em sua vida fora tão cortejada. Gudrun acompanhou a irmã ao piano, tocando de cor.
Úrsula tinha uma voz bem timbrada, mas geralmente sem sensibilidade, o que prejudicava suas canções. Naquela noite, porém, sentiu-se mais à vontade e esforçou-se para cantar melhor. Birkin ouvia atentamente, e a jovem, cheia de confiança, tinha a impressão de que era um pássaro que flutuava no espaço, enquanto a voz se evolava, equilibrando e modelando a canção com um movimento de asas, como se levada pelo vento. Cantou com muita expressão, animada pelo interesse com que a assistência a distinguia, e considerando-se feliz em proceder daquela maneira, compenetrada da emoção e do domínio que exercia aquela gente toda e sobre si própria - contente por ser agradável e proporcionar distração aos alémães.
Quando terminou, estes, sensibilizados, cheios de admiração e ainda envoltos numa deliciosa melancolia, felicitaram-na efusiva e respeitosamente, sentindo que nenhum louvor seria demasiado.
"Wie schön, wie rührend! Ach, die schottischen Lieder, sie haben so viel Stimmung! Aber die gnädige Frau hat eine wunderbare Stimme; die gnädige Frau ist wirklich eine Kunstlerin, aber wirklich!" - Lindo, comovente! Ah, essas canções escocesas fazem tanto bem à gente! Esta senhora possui uma voz maravilhosa. É, de fato, uma artista, não tenham dúvida! - nota da tradutora).
Úrsula, radiante, parecia uma flor desabrochada ao sol da manhã. Pressentia que o marido a fitava, como se tivesse ciúmes, e o peito arfou-lhe mais. Considerava-se feliz, como um astro que houvesse conseguido atravessar as nuvens com os seus raios de ouro. Todos, aliás, pareciam contentes e satisfeitos. Tudo decorria às mil maravilhas.
Depois do jantar desejou sair para admirar a natureza. Os outros tentaram dissuadi-la; estava tanto frio! "Só para ver", disse ela.
Agasalharam-se os quatro e pouco depois se achavam num mundo vago e insubstancial, feito de neve, povoado de espectros que, de encontro às estrelas, projetavam sombras confusas. O frio era realmente intenso. Úrsula não queria acreditar que era o ar que lhe entrava pelas narinas. Dir-se-ia antes alguma coisa consciente, malévola, com premeditações de assassino.
No entanto, era belo o espetáculo: silêncio profundo na neve sombria, intoxicante, incompreensível, e aquele ser invisível interpunha-se entre eles e as coisas visíveis, entre os homens e os astros flamejantes. Úrsula descobriu Órion erguendo-se no céu. Maravilhoso a ponto de dar vontade de gritar!
Em toda a volta o berço de neve, dura sob os pés, enquanto o frio atravessava os sapatos. Era noite, era silêncio. A jovem imaginava poder ouvir as estrelas. Estava convencida de que ouvira o movimento musical das esferas celestes. Os astros estavam quase ao alcance da mão. Úrsula teve a ilusão de que era uma ave voando por entre a harmonia do universo.
Chegara-se mais ao corpo de Birkin. E, de repente, pensou que desconhecia os pensamentos do marido. Ignorava por onde vaguearia o espírito dele.
- Meu amor! - exclamou ela, parando para fitá-lo. Birkin empalidecera e brilhava em seus olhos um clarão fugidio. Ao ver o rosto da mulher tão próximo do seu, tão meiga e solícita, Birkin beijou-a suavemente.
- O que é? - perguntou-lhe.
- Você me ama? - quis saber ela.
- Tanto, tanto! - respondeu Rupert, tranquilo.
Úrsula aconchegou-se mais.
- Nem tanto... - duvidou.
- Muitíssimo - garantiu o marido, melancólico.
- Fica triste por isso? volveu a mulher, apreensiva. Birkin apertou-a contra si, beijando-a sempre; e disse, de forma quase inaudível:
- Isso não; mas sinto-me como um pedinte, sinto-me pobre. Ela calou-se, olhando agora para o firmamento. Depois, retribuiu-lhe os beijos.
- Você não é um mendigo - explicou, preocupada. - Não é nenhuma vergonha dedicar-me um pouco de amor.
- Mas é vergonhoso sentir-me um homem muito pobre.
- Por quê?
Birkin ficou imóvel, mantendo-a entre os braços. O ar que os envolvia vinha do alto das serras invisíveis.
- É que sem você - disse ele - eu não poderia suportar este frio, este lugar eternamente gelado. Não poderia; ele penetra-me, incisivo, e destrói-me a vida toda.
Úrsula beijou-o mais uma vez.
- Odeia-o, então? - indagou, muito admirada.
- Se não estivesse perto de você, detestá-lo-ia, com certeza.
- Mas as pessoas são agradáveis...
- Refiro-me ao silêncio, ao ar agreste, à neve constante. Ficou pensativa; mas logo sua alma foi-se refugiar na alma dele.
- Sim, - concordou é bom estarmos aquecidos, na companhia um do outro.
Voltaram para casa. Viram as luzes douradas da hospedaria cintilando através da noite silenciosa e glacial. Na imensidade do vale pareciam pequeninas, como um cacho de bagos amarelos. Assemelhavam-se a um ramalhete de raios solares, minúsculos e alaranjados no meio da escuridão e da neve. Por trás dele erguia-se a sombra da montanha; como um fantasma, ocultava o fulgor das estrelas.
Aproximavam-se já da hospedaria. Notaram que saia de la um homem com uma lanterna na mão. O que fazia com que os pés dele, presos num círculo de luz, brilhassem sobre a neve. Na vastidão da noite ele não era senão um vulto escuro pequenino. Dirigiu-se para uma dependência, cuja porta abriu; e chegou logo o cheiro das vacas, cheiro quente que se espalhou pesado, no ar frio. Birkin e Úrsula distinguiram dois animais na escuridão do estábulo. A porta fechou-se, então, sem deixar que se filtrasse a menor luz. Tudo aquilo recordou mais uma vez a Úrsula a sua infância, a casa, o Marsh, a viagem de Bruxelas e, estranha coisa, lembrou-se de Anton Shrsbensky!
"Meu Deus, poderei suportar esse passado desaparecido no abismo Admitirei a ideia de que ele jamais existiu?" Lançou os olhos em torno, ao silencioso e gelado, sobre o qual dominavam os astros e a temperatura glacial; e, sobrepondo-se a esse, viu perpassarem as imagens de lanterna mágica do outro mundo, posto em evidência por uma luz irreal: o Marsh, Cosseghay, Ilkeston... Percebeu a sombra fantástica de uma Úrsula e um conjunto de outras sombras sem a menor realidade. Era ainda a projeção estranha e consciente da lanterna mágica. Se aqueles vidros, ao menos, se quebrassem todos! Preferia não ter nenhum passado na sua vida. Gostaria de ter descido cem Birkin, por aquelas vertentes, como se caísse do céu diretamente naquele recanto da terra, sem ter atravessado uma infância obscura. Com tudo o que a manchava. Achava que a memória se divertia à sua custa. Com que direito a mandava recordar. Por que não experimentava um banho lustral, de puro esquecimento, ou não nascera de novo sem as tristezas e as evocações da vida passada? Estava agora na companhia de Birkin, acabava efetivamente de renascer - ali, sob as estrelas, pisando a neve. Que lhe importavam os pais e os antecedentes? Sentia-se nova, ainda não gerada, sem pai, nem mãe, sem família, ela própria somente, virginal como a prata, pertencendo apenas à unidade que formava com Birkin, unidade que vibrava em notas profundas, ressoando no coração do universo e da irrealidade, onde ate aí jamais existira.
Mesmo da própria irmã se considerava separada, distante, muito longe, sem nenhuma ligação, pois esta Úrsula vivia num mundo diverso e autêntico. Aquele velho planeta em que decorrera o passado sombrio estava desfeito! Erguia-se ela, agora livre, nas asas de uma existência diferente.
Gudrun e Gerald não tinham ainda voltado. Haviam descido a encosta fronteira à casa, enquanto Úrsula e Birkin faziam outro tanto na colina do lado direito. Gudrun fora impelida por um desejo singular. Queria precipitar-se cada vez mais além ate atingir o vale mergulhado em neve, e depois subir a vertente branca que fechava o caminho, como pétalas no coração do gelo, no misterioso umbigo do mundo. Sentia que ali, para trás do obstáculo terrível e enigmático, estava o arreio da terra, cercado por um ramalhete de picos e de serras, e lá naquele ponto não atingido, acabaria ela por se consumir. Se ao menos pudesse lá chegar, sozinha, àquele centro de neves perpétuas e inacessíveis, rodeadas de rochedos, poderia unifica-se com a natureza, seria ela mesma o silêncio eterno e infinito e adormeceria alheia ao tempo, ao âmago de todas as coisas.
Por fim voltaram à casa e entraram na Reunionssal. Gudrun tinha curiosidade de ver o que faziam ali. Os homens despertavam-lhe a curiosidade. A existência começava a proporcionar-lhe um sabor diferente: todos se prostravam diante dela, lépidos e viçosos.
A animação era grande. Dançavam, em conjunto a Schuhplat teln, número tirolês em que se bate palmas e os homens levantam o par na última marcação. Os alémães dançavam corretamente - eram quase todos de Munique. Gerald não destoava no grupo. Em um canto havia três músicos que tocavam viola, e o espetáculo tomava aspectos de imensa alegria e confusão. O catedrático iniciava Úrsula nos segredos da dança, batendo o pé, dando palmas e levantando-a no ar com espantosa força e entusiasmo. Quando chegou a parte final, o próprio Birkin se portou dignamente com uma das filhas do professor, que era jovem, robusta e visivelmente feliz. Toda a gente se divertia no meio de enorme alarido.
Subitamente a dança parou. Loerke e os estudantes correram para preparar bebidas. Houve um clamor de vozes excitadas, um bater de tampas e canecas e o grito geral de a saúde! Loerke estava em toda a parte ao mesmo tempo, como um gnomo oferecendo copos às senhoras, dizendo gracejos, mexendo com os homens e atrapalhando o garçom.
Tinha vontade de dançar com Gudrun. Desde que a vira ambicionara conhecê-la melhor. Ela, por sua vez, pressentira isso, e esperava que ele se aproximasse. Mas uma espécie de aborrecimento o conservava afastado e Gudrun chegou a pensar que o rapaz antipatizava com ela.
- Schuhplatteln, gnädige, Frau? - Uma dança triste, minha senhora? - nota da tradutora) - perguntou-lhe o companheiro de Loerke, rapaz louro e bem constituído. Ela o achava meio melífluo, demasiadamente humilde. Mas queria dançar e o moço louro, que se chamava Leitner, não era feio, apesar de suas maneiras acanhadas e levemente suspeitas; talvez a modéstia disfarçasse a timidez inata. Aceitou-o, pois, como seu par. Os instrumentos foram outra vez tangidos, e a dança principiou Gerald ia à frente de todos, conduzindo uma das filhas do catedrático. Úrsula dançava com um dos estudantes, Birkin com a outra filha do professor, este com Frau Kramer e os homens restantes, uns com os outros, tão entusiasmados como se houvesse entre eles promiscuidade de sexos.
Pelo fato de Gudrun estar dançando com o moço suave e elegante, seu companheiro Loerke ficou mais amuado e furioso do que nunca, e fingiu ignorar a existência da moça. O incidente magoou-a, porém distraiu-se dançando depois com o professor, que era forte como um touro no cio e cheio de energia rude, embora de idade já madura. Se o enfrentasse a sangue-frio não o teria podido suportar, mas, no ardor da dança, tudo ia bem e chegou a achar agradável ser erguida no ar com tanto ímpeto. Por seu lado, o professor estava radiante, e contemplava-a com os seus estranhos olhos azuis, repletos de fogo galvânico. Se bem que detestasse a animalidade protetora e semipaternal com que ele a mirava, Gudrun apreciou-lhe a energia.
A sala carregava-se de excitação, de entusiasmo estrepitoso e sensual. Loerke permanecia afastado de Gudrun, a quem desejaria falar, mas havia como que uma barreira de espinhos, além de que sentia pelo seu amigo Leitner certo ódio impiedoso e mesmo sarcástico. Leitner era pobre e dependia do companheiro. E este ria-lhe no rosto, caçoando cruelmente dele, fazendo-o corar e despertando-lhe, na alma, inútil ressentimento.
Gerald, que se saíra muito bem, dançava outra vez com a filha mais nova do professor, e ela desfalecia quase de paixão virginal, achando-o tão belo, tão sedutor! Gerald mantinha-a sob o seu poder, como se mantém um pássaro palpitante, uma criaturinha desnorteada, ruborizada e confusa. Sorria só por a ver tão excitada entre as suas mãos, a estremecer tão violentamente quando a arrebatava no espaço. Por fim, a jovem já sentia um amor tão intenso pelo seu par que mal podia articular sensatamente qualquer palavra.
Birkin e Úrsula dançavam juntos. Nos olhos dele cintilavam rápidos clarões; dir-se-ia que aquele homem se transformara em um ente perverso, instigador, verdadeiramente mau. A mulher tinha medo dele, mas sentia-se fascinada. Numa visão nítida, via-o passar diante dela, irônico, de olhar lúbrico; aproximava-se dela em movimentos sutis, às vezes indiferentes, outros perigosos. Faziam-na desmaiar de medo aquelas mãos tão estranhas, vivas, astuciosas, que se acercavam inevitáveis do peito da mulher e a levantavam em gosto pouco sério, num impulso cheio de intenções, e a conservavam no ar sem emprego de força, por uma espécie de magia negra. Úrsula, por instantes, revoltou-se. Aquilo era horrível. Precisava quebrar-lhe o encanto. Antes, porém, de formular definitivamente a solução, já se tinha de novo submetido, cedendo ao pavor que ele lhe inspirava. Birkin estava a par do que ela pensava, isso era bem visível no seu sorriso e no modo de piscar os olhos. Era dele a responsabilidade, deixá-lo-ia fazer o que lhe aprouvesse!
Quando se tornaram a encontrar, no escuro, e sozinhos, ela sentiu rondar em sua volta o espírito silencioso do homem e aquilo perturbou-a e assustou-a. Por que se tornara ele assim?
- Que quer? - perguntou cheia de horror.
Mas o rosto de Birkin brilhou mais perto, desconhecido, terrível. Úrsula estava hipnotizada. O seu primeiro movimento era o de o repelir, desfazer o encanto e pôr fim àquela brutalidade sardônica. Sentia-se, contudo, fascinada em demasia preferia sujeitar-se, conhecê-lo melhor. Que iria acontecer?
Rupert atraía-a e afugentava-a ao mesmo tempo. A atração que se irradiava daquele rosto insinuante e irônico, e que se transmitia de seus olhos semicerrados, dava a Úrsula vontade de se esconder e de o espiar de qualquer lugar desconhecido dele.
- Por que está assim? - perguntou, insurgindo-se contra o marido num ímpeto súbito e corajoso.
O fulgor que ardia no olhar de Rupert concentrou-se ao fita-la atentamente. Suas pálpebras se abaixaram num movimento rápido e desdenhoso, para se erguerem logo na mesma provocação impiedosa. Ela então cedeu, deixando-o proceder como quisesse. Aquele feitio sensual tornava-o ao mesmo tempo atraente e repulsivo. Mas como era ele o responsável, Úrsula queria ver o que o marido pretendia fazer.
Afinal, poderiam comportar-se como quisessem - pensou Úrsula no momento em que se deitou. Por que haveriam de eximir-se a qualquer coisa que lhes proporcionasse satisfação? Seria isso, por acaso, degradante? Quem se importaria? Os atos aviltantes existiam, mas a sua realidade é que seria diferente. Rupert era tão descarado, tão sem freios! Não parecia horrível ver agora um homem que podia ser tão espiritual, tão inteligente...? (Úrsula quis impedir a irrupção dos seus pensamentos e concluiu: vê-lo agora tão bestial!) Sim, ele e ela, como dois animais... que vergonha! Estremeceu ao recordar-se. E afinal, por que não? Esta ideia alegrou-a. Por que não haviam de ser bestiais e percorrer toda a escala das sensações? E que bom que era sentir-se envergonhada! No fundo, experimentava certa alegria. Passando por tudo quanto era proibido, adquiriria maior experiência. Já não se achava perplexa, sequer, retomara todo o domínio de si mesma. Por que não? Era livre, visto conhecer tudo e não recuar perante nenhum pecado.
Gudrun, que estivera observando Gerald na Reunionssal, pensou de repente:
"Pode ter tantas mulheres quantas quiser; está na sua natureza. É absurdo considerá-lo monógamo. A poligamia é a sua vocação."
Sem ela querer, este pensamento dominava-a e impressionava-a. Era como se tivesse lido na parede, também o seu Mene! Mene! - Cf. Daniel, V, 25 - nota da tradutora).
Não era apenas fantasia. Parecia que, ao mesmo tempo, uma voz lhe falava no íntimo e tão claramente, que, por instante, Gudrun acreditou estar inspirada.
"É a verdade nua e crua", disse ela consigo mesma.
Sabia muito bem, e implicitamente, que sempre fora aquela a sua opinião. Mas convinha guardar tal ideia, na sombra, quase fora dela mesma. Devia conservá-la secreta. Só ela é que devia estar a par do fato, fazendo o possível para não a aceitar completamente.
Tomou a inabalável resolução de combater Gerald. Um dos dois triunfaria, aniquilando o outro. Qual seria então? Procurou fortalecer o espírito. Tinha confiança, o que lhe permitiu um sorriso. Esboçava-se, assim, em favor de Gerald, uma certa piedade desdenhosa, misturada de ternura. Mas não: não haveria misericórdia!
Todos se recolheram cedo aos seus quartos. O professor e Loerke enterraram-se em um sofá, bebendo. Observaram Gudrun enquanto esta subia a escada.
- Ein schönes Frauenzimmer - Bela mulher! - nota da tradutora) - disse o primeiro.
- Ia! - concordou Loerke, secamente.
Gerald atravessou o quarto de dormir pé ante pé, de forma esquisita e, chegando à janela, debruçou-se e olhou para fora. Depois, voltou o corpo e encarou Gudrun, com olhos ardentes. Tinha nos lábios um vago sorriso. Para ela, dir-se-ia que aquele homem havia aumentado de estatura; viu-lhe luzirem aquelas sobrancelhas muito louras, quase brancas, que se juntavam no meio da testa.
- Que acha de tudo isto? - perguntou.
Parecia rir interiormente, sem mesmo dar por isso. Gudrun fitou-o. Era agora, para ela, como um fenômeno, e não um ser humano: espécie de criatura devorada pela gula.
- Acho muito bom - foi a resposta.
- Quem você achou mais simpático de todos os que estavam lá em baixo? - continuou Gerald, parado junto a ela, muito alto, resplandecente, de cabelos lisos e lustrosos.
- De quem gostei mais? - repetiu Gudrun, desejosa de dizer a verdade, mas achando difícil decidir-se. - Não sei, não os conheço bastante. E você, com quem simpatizou mais?
- Ora, para mim são todos iguais... Não gosto nem desgosto de ninguém. São indiferentes. Queria apenas saber a sua opinião.
- Mas por quê? - Gudrun empalideceu. Nos olhos deles intensificava-se uma expressão vaga, abstrata.
- Gostaria de saber - elucidou.
Ela se afastou, resolvida a quebrar o encanto. Sentia que aquele homem recuperava, de forma estranha, o ascendente que tivera sobre a sua pessoa.
- Pois bem... Por enquanto não posso dizer.
Foi ate diante do espelho para tirar os grampos dos cabelos. Todas as noites costumava ficar algum tempo escovando aqueles cabelos finos e escuros. Fazia parte do ritual da sua vida.
Gerald seguiu-a e colocou-se atrás dela. E Gudrun, com a cabeça curvada para frente, continuava a desembaraçar a cabeleira solta e farta, recolhendo os últimos grampos. Quando levantou os olhos e descobriu a imagem dele no espelho, ali de pé, a observá-la, sem consciência do que fazia, viu que seu olhar parecia sorrir, mas não sorria verdadeiramente.
Gudrun sobressaltou-se. Foi necessária toda a sua coragem para continuar o que fazia. Mas estava longe, muito longe de se sentir à vontade.
- Que pretende fazer amanhã? - perguntou-lhe, enfim, mostrando-se indiferente, enquanto o coração lhe batia apressadamente; tinha os olhos tão brilhantes de excitação que ele não poderia, assim pensou, deixar de notar. Mas Gerald parecia cego, como um lobo que ficasse cego ao contempla-la. Extraordinário combate entre a sua consciência de mulher e a daquele rapaz misteriosamente iniciado na magia negra!
- Não sei - respondeu ele. - E você, o que gostaria de fazer?
Falava ao acaso, com o espírito muito distante.
- O que você quiser; qualquer coisa me serve - respondeu ela vagarosamente.
Enquanto isso, pensava: "Meu Deus, por que estou tão nervosa. Por que você é assim, Gudrun, sua tola? Se ele desconfiar, acaba-se tudo para sempre; você bem sabe que será para sempre, se descobrir o estado absurdo em que você se encontra...
Depois, sorriu à sua imagem refletida, como se tudo aquilo não passasse de brincadeira de crianças. Entretanto, o coração enfraquecia e ela sentia que podia desfalecer. Podia vê-lo ainda, no espelho, atrás dela, alto e curvado, louro e terrivelmente assustador. E Gudrun lançava-lhe olhares furtivos, disposta a conceder-lhe fosse o que fosse, uma vez que ele não soubesse que o estava observando. Gerald, contudo, nada percebia olhava vagamente, com o olhar brilhante pousado na cabeça da moça, de onde alastravam-se seus cabelos finos penteados com mão nervosa. Ela punha o rosto para o lado e escovava, escovava, como uma louca. Ainda que lhe devesse custar a vida, não seria capaz de se voltar para enfrentá-lo. Sentia nas costas a presença de Gerald, ameaçadora, sentia-lhe o peito firme, sólido, irresistível, apoiando-se sobre ela e tinha a impressão de que isso se lhe tornava insuportável, que tombaria aos pés dele dentro de poucos minutos, que se arrastaria no chão, deixando que o homem a aniquilasse.
Tal pensamento, espicaçando-lhe a inteligência clara, restituiu-lhe a presença de espírito; mas não ousava voltar-se. Gerald continuava de pé, imóvel no mesmo lugar. Reunindo todas as suas forças, Gudrun dirigiu-lhe a palavra, em voz cheia, ressonante, indiferente. Fizera apelo a tudo quanto lhe restava de autodomínio.
- Por favor, procure na minha mala o meu...
Mas a energia abandonou-a. "O meu... O meu quê?", perguntava a si mesma.
Gerald sobressaltou-se, admirado de que ela o mandasse procurar qualquer coisa. E Gudrun voltou-se então, muito pálida, com os olhos brilhantes, numa estranha excitação. Ele estava inclinado para a mala, desapertando as correias, distraído...
- Procurar o quê?
- Uma caixinha de esmalte... amarela... com um desenho...
Ao dizer isso, levantara-se e fora ao encontro do rapaz; baixou o braço, nu e soberbo, e começou a remexer no conteúdo da maleta, ate que descobriu a caixa, delicadamente pintada.
- É esta. Vê? - e colocou-a sob os olhos de Gerald.
Tinha conseguido frustrá-lo. Deixou-o apertar os cordões da mala, e acabou de ajeitar, às pressas, o penteado para a noite; depois, sentou-se para tirar os sapatos. Não desejava ficar outra vez de costas para ele.
Gerald fora logrado, iludido, mas não tinha consciência disso. Agora a superioridade era de Gudrun. Percebeu que ele não notara o medo terrível que se apossara dela; o coração pulsava agora pausada e sossegadamente. Estúpida, estúpida, em se ter assustado àquele ponto! Graças a Deus, Gerald não reparara em nada, no meio da cegueira que o envolvera.
Desatou vagarosamente os sapatos; ele, por sua vez, começou a despir-se. Ainda bem que o momento crítico havia passado. E Gudrun já se sentia apaixonada por aquele homem e novamente enternecida.
- É verdade, Gerald - disse, rindo. Que brincadeira tão engraçada a sua com a filha do professor!
- Qual brincadeira - perguntou ele, admirado.
- Pobre menina, estava louquinha por você! - continuou ela, com o ar mais divertido e amável deste mundo.
- Que tolice!
- Tolice? - tornou Gudrun, querendo aborrecê-lo. - E agora, a pobre pequena está neste momento na cama, morrendo de paixão. Acha você belo como nenhum outro homem. Que coisa engraçada!
- Engraçado?
- Fazia gosto ver vocês dois - prosseguiu em tom de censura complacente, que lisonjeou em Gerald a sua vaidade de macho.
- Francamente, Gerald! Pobre pequena!
- Não fiz mal nenhum a ela...
- Chegava a ser escandalosa a maneira com que você a segurava...
- Era a dança tirolesa - explicou ele, rindo e mostrando os dentes brilhantes.
- Ah... Ah... Ah... - fazia Gudrun, rindo também.
O som de sua voz motejadora ressoava dentro dele, como prolongada por estranhos ecos. Quando adormeceu, parecia encolhido no leito e enrolado na sua própria força.
Gudrun dormiu profundamente, num sono vitorioso. De repente, despertou. As paredes de madeira do quarto iluminavam-se com a luz da aurora, que vinha através da janela baixa. Erguendo a cabeça, descobriu lá embaixo, no vale, a neve ainda pouco visível; parecia mágica, em tons de rosa. Viu também, no sopé da colina, a franja de pinheirinhos e um vulto magro que se movia no espaço fracamente iluminado...
Consultou o relógio. Eram sete horas. Gerald ainda estava profundamente adormecido. E ela já se sentia tão desperta que chegava a se sentir irritada. Que lucidez inflexível e metálica! Ficou estendida na cama, a olhar para ele.
Gerald dormia escravizado à sua derrota, e também ao seu vigor. Mas Gudrun considerava-se ainda mais vencida. Perante ele, recuava sempre amedrontada. Ali estava agora na cama, a contemplá-lo, a imaginar o que aquele homem significava no mundo. Tinha vontade livre, independente, com toda certeza. Lembrou-se da revolução que se fizera em suas minas, em tão pouco tempo. Qualquer problema que precisasse resolver, por mais árduo e difícil, conseguia sempre dominá-lo, disso estava ela também convencida. Se uma ideia se metia em sua cabeça, não descansava ate a colocar em prática. Sabia fazer surgir a ordem em meio à confusão. Em qualquer situação intrincada ele sabia encontrar a solução. Assim era Gerald.
Durante alguns instantes, Gudrun deixou-se arrebatar pelas asas da ambição. Gerald, com a sua força de vontade e o dom de compreender o mundo atual, seria a pessoa indicada para resolver os problemas novos, como o da industrialização na vida moderna. Gudrun não duvidava de que ele, com o decorrer do tempo, efetuaria as reformas que desejasse: reorganizaria, decerto, todo o sistema industrial. Quanto a isso não tinha dúvidas. Para tais coisas era um instrumento maravilhoso: jamais vira outro homem dispor de tamanha energia. Poderia o próprio Gerald não estar compenetrado dessa verdade; Gudrun, porém, sabia-o a perfeição. Necessitava, todavia, de alguém que o empurrasse, que lhe desse o impulso e a consciência da ação. Disto era ela capaz. Casariam, o marido seria deputado do Partido Conservador, e haveria de esclarecer a grande confusão que girava em torno da indústria e do trabalho. Soberbo e destemido, dominador por natureza, sabia que, na vida, como na matemática, todos os problemas são suscetíveis de resolução. E Gerald resolvê-los-ia sem que, nessa tarefa, o movessem interesses de qualquer espécie. Ninguém mais honesto, na realidade.
O coração da moça pulsava rápido: ei-la voando nas asas do entusiasmo, idealizando o futuro. Gerald seria um Napoleão da paz, ou um Bismarck, e ela a sua inspiradora. Tinha lido as cartas de Bismarck e ficara profundamente impressionada com elas. Mas Gerald talvez ainda fosse mais independente, mais intrépido do que o grande estadista.
Enquanto permanecia naquele arrebatamento, banhada pela estranha e falsa luz da esperança numa vida feliz, qualquer coisa se quebrou dentro dela e começou a sentir-se invadida por terrível descrença, como se uma ventania se levantasse de subido e varresse com ela seus bons pensamentos. Tudo agora se transformava em ironia, tudo tinha um sabor sarcástico. E, ao reconhecer a inutilidade de suas ideias e de seus projetos, sentiu a angústia de uma inegável realidade.
Observava-o enquanto ele dormia. Tão belo parecia, que se julgaria constituir um instrumento de perfeição. E, ao espírito dela Gerald significava na verdade um instrumento puro e sobre-humano. Esse caráter ia-se-lhe revelando cada vez mais nítido a ponto de Gudrun desejar ser Deus para se servir de Gerald como de uma ferramenta.
Mas, no mesmo momento, surgiu a pergunta cética: "Para quê". Lembrou-se das mulheres dos mineiros, com os seus oleados e cortinas de renda, mães de crianças com botinhas de amarrar. Pensou depois nas esposas e filhas dos gerentes das minas, com as suas partidas de tênis e seus tremendos esforços por parecerem superiores umas às outras na escala social. Só restava Shortlands, com as suas distinções idiotas e a turba desmiolada dos Criches, e depois Londres, a Câmara dos Deputados, a gente em evidência, ó Deus misericordioso!
Apesar de jovem, Gudrun conhecia a sociedade inglesa. Não pretendia subir na esfera social. Bem sabia - com o perfeito cinismo da mocidade cruel - que elevar-se na sociedade significava apenas mudar de aparência e que a vantagem não era superior à de ter uma moeda falsa de grande valor em lugar de uma moeda falsa de pequeno valor. Não era de lei a moeda com que se avaliavam as diferenças. Contudo, esse mesmo cinismo reconhecia que, num meio em que o dinheiro não é um cunho legal, mais vale um soberano falso do que um farthing de mentira. Mas, tanto aos ricos como aos pobres, Gudrun devotava igual despreza. Ela mesma já começava a troçar dos seus devaneios. Seria tão fácil realizá-los! Mas compreendia muito bem quanto eram ridículos os seus entusiasmos. Que lhe importava que Gerald transformasse em indústria rica aquela velha empresa extenuada? Sim, que lhe importava isso? Uma coisa, ou outra, não passava de insignificância para ela. É claro que, exteriormente não se podia negar interesse, mas, na verdade, para ela, aquilo tudo era cômico! Para ela tudo se transformava em motivo de riso. Inclinou-se sobre Gerald e murmurou compassivamente:
"Ah, meu bem amado, não vale a pena você se cansar tanto. Você é uma pessoa extraordinária, não se gaste assim numa tarefa tão ingrata!"
Enternecia-se por ele, cheia de pena e de tristeza; mas, ao mesmo tempo, a ironia que a levava a fazer esse discurso mudo entristecia-lhe os cantos da boca. Que farsa tudo aquilo. Recordou-se de Parnell e de Katherine O'Shea. Parnell! No fim de contas quem poderia tomar a sério o nacionalismo irlandês? Quem realmente acreditaria na política da Irlanda? Quem realmente acreditaria na da Inglaterra? Quem é que a tomava a sério? Quem se importava que a esfrangalhada Constituição fosse remendada mais uma vez? Quem se ocuparia dos princípios nacionais mais do que do chapéu de coco inglês? Tudo não passava de chapéus velhos, velhos chapéus de coco!
"É assim mesmo, Gerald, meu herói! Em todo caso, evitaremos as náuseas que resultariam de se mexer uma vez mais no caldo corrompido! Seja belo, Gerald, e descanse. Há momentos perfeitos na vida. Acorde, Gerald, acorde, e convença-se de que esses momentos perfeitos ainda existem. Convença-me, pois necessito demais ser convencida!"
Ele abriu os olhos e fitou-a. Ela o saudou com um sorriso enigmático, de uma alegria pungente. O sorriso refletiu-se no rosto de Gerald, que o retribuiu, inconsciente do que fazia.
Gudrun sentiu-se satisfeita por ver que o sorriso que ele esboçara pairava assim nos lábios dele. Lembrou-se que era assim que faziam as criancinhas; sentiu-se radiante, extraordinariamente feliz.
- Conseguiu - disse ela.
_ O quê? - perguntou Gerald, sem entender o que ela queria dizer.
- Convencer-me.
Curvou-se sobre ele e beijou-o com paixão, de tal maneira que ele não sabia o que acontecera com ela. Não lhe perguntou de que é que a tinha convencido, embora fosse esse o seu desejo. Ficara contente pelo fato de ter sido beijado. Parecia que ele lhe tocara o coração, queria também que atingisse todo o ser, ansiava por isso mais do que tudo na vida.
Lá fora alguém cantava com voz viril descuidosa e bela:
Mach mir auf, mach auf du Stolze,
Mach mir ein Feuer von Holze.
Vom Regen bin ich nass,
Vom Regen bin ich nass...
Faz-me, ó vaidosa,uma fogueira /De aparas de madeira / Molhou-me a chuva / Molhou-me a chuva. - nota da tradutora).
Gudrun compreendeu que aquela canção ressoaria dentro dela eternamente, entoada por uma voz viril, descuidada e zombeteira. Marcara uma dos momentos supremos, de angústia e ao mesmo tempo de nervosa satisfação. Ficaria em sua memória, eternamente dentro dela.
O dia raiou belo e azulado. Do alto das montanhas soprava um arzinho leve, fino como uma espada, trazendo consigo poeiras de neve imponderável. Gerald saiu; tinha o rosto sereno e o olhar distraído, como um homem cuja alma está cheia de contentamento. Ele e Gudrun formavam nessa manhã uma unidade perfeita e definitiva, mas sem o saberem, sem se darem por tal. Conduziram um trenó, deixando Úrsula e Birkin segui-los mais atrás.
Gudrun ia vestida de vermelho e azul, vermelhos a blusa e o gorro azuis, a saia e as meias. Mostrava-se alegre sobre a neve, e Gerald, ao lado dela, de branco e cinza, dirigia o veículo. Foram-se afastando, diminuindo na distancia, enquanto subiam a colina íngreme.
Ela própria tinha a impressão de se fundir na brancura envolvente, tornando-se pura como o cristal, destituída de quaisquer preocupações. Quando chegou ao alto, exposta ao vento, olhou em volta e viu muitos picos atrás de outros picos, rocha e neve, tudo azul, elevando-se para o céu. Lembrava-lhe um jardim onde as pontas agudas fossem flores puríssimas que o coração colhesse uma aura. A sua consciência e a de Gerald pareciam reunidas.
Quando desceram, aos solavancos, pela escarpada ladeira, Gudrun agarrou-se muito a ele, experimentado a sensação de que seu corpo se aguçava como se corresse sobre uma pedra de afiar, tão ardente como uma chama. A neve saltava de cada lado do trenó, como faíscas projetadas por uma lamina que se amola; a alvura corria cada vez mais ligeira, a vertente precipitava-se contra ela e Gudrun liquefazia-se como um glóbulo em fusão, dançando, deslizando através da imensidade alvinitente. Ao atingirem o sopé da colina, fizeram um desvio, inclinando-se como se fossem cair, e diminuíram então a velocidade.
Descansaram alguns instantes. Quando, porém, quis levantar-se, Gudrun não conseguiu equilibrar-se. Soltou um grito estranho, voltou-se e agarrou-se a Gerald, escondendo a cabeça no peito dele, quase desmaiando. Apoderou-se do seu espírito um alheamento completo, e ficou, por momentos, abandonada nos braços do rapaz.
- Que é que você tem? - inquiriu este. - Foi muito violento para você?
Ela, porém, nada ouvia.
Quando voltou a si, endireitou o busto e olhou em volta, espantada. Tinha o rosto pálido e as pupilas dilatadas e brilhantes.
- O que foi?
Gudrun fitou-o com aqueles olhos cintilantes que pareciam transfigurados. Depois riu-se, e o riso denotava uma alegria terrível.
- Não! - exclamou, tranquilamente. - Foi o momento mais completo da minha vida.
Continuou a mirá-lo, rindo sempre de forma excessiva, como se estivesse possessa. Gerald sentiu que uma lamina afiada lhe trespassava o coração; mas não fez caso nem deu a entender.
Tornaram a subir a encosta, e lançaram-se outra vez lá de cima, através da chama branca, esplendidamente... Gudrun soltava risadas, com os cabelos enfeitados de flocos níveos. Gerald manobrava o trenó com precisão; sabia-se capaz de o dirigir sem errar. Admitia que aquele carrinho-voador representava a exteriorização de sua vontade; bastava-lhe oscilar um braço e o movimento do veículo confundia-se como dele próprio. Exploraram as outras vertentes, em busca de novos declives. Gerald tinha a impressão de que haviam de encontrar um melhor; e realmente acharam uma descida rápida e extensa que ia findar na base da colina, junto a um grupo de árvores. Era perigosa, disso não tinha dúvida. Mas o rapaz não ignorava que poderia comandar o trenó com um simples movimento dos dedos.
Os primeiros dias passaram-se em êxtase de ardor físico, deslizando ora em trenó ora em patins, movendo-se com intensas velocidades numa atmosfera de luz branca; e tudo aquilo parecia ultrapassar a própria vida e arrastar a alma para além, numa correria sobre-humana e abstrata entre a neve imperecível...
Os olhos de Gerald tornavam-se estranhos e duros: e, quando ele seguia sobre as quilhas, dir-se-ia antes uma aparição fatal e temerosa e não um homem; os músculos elásticos eram perfeitos, a trajetória quase aérea, o corpo projetava-se em pleno voo, sem espírito, sem alma, num arranque impetuoso e impecável.
Felizmente, certo dia, começou a cair neve e tiveram de ficar dentro de casa; aliás - como notou Birkin - acabariam por perder as faculdades racionais e ver-se-iam obrigados a exprimir-se por grito e guinchos como estranhos animais polares, de uma espécie desconhecida.
À tarde, Úrsula estava conversando com Loerke, ambos sentados na Reunionsaal. Este parecia sempre aborrecido. Mas agora recuperara a vivacidade e mostrava-se cheio do perverso humor que lhe era peculiar.
Úrsula, no entanto, achava que ele devia ter qualquer motivo de preocupação. O companheiro, o rapaz forte, louro e elegante, andava sério, também, indo e vindo como se o tivessem feito prisioneiro e isso o revoltasse.
Loerke mal havia falado a Gudrun. O amigo, pelo contrário, testemunhara-lhe sempre as maiores atenções e deferências. Gudrun, por seu lado, desejaria aproximar-se de Loerke, que era escultor; gostaria de saber o que pensava a respeito da sua arte. Além disso, o aspecto do homem interessava-a. Tinha um ar de abandono em toda a sua pessoa, e isso despertava a curiosidade, assim como aquele olhar de criatura já muito vivida; além disso, demonstrava tanto amor à solidão, que Gudrun adivinhava nele um artista. Falava, às vezes, como um papagaio, fabricava trocadilhos maliciosos, em geral muito inteligentes, embora nem sempre felizes. E Gudrun descortinava-lhe nos olhos castanhos de gnomo o reflexo melancólico da miséria inorgânica que jazia no fundo de todos aqueles disfarces.
Fisicamente ele parecia um garoto. Loerke nem procurava disfarçar essa impressão. Usava constantemente roupa simples de lã e calções. Tinha pernas magras, mas não se importava em ocultá-las, o que era para admirar em um alemão. Nunca procurava a simpatia de ninguém, por menor que fosse; entretinha-se consigo mesmo apesar da sua aparente jovialidade.
O companheiro, Leitner, era grande desportista, robusto de corpo e possuidor de grandes olhos azuis. Loerke corria de trenó ou de patins, mas não tirava disso a menor satisfação. As narinas finas e delgadas, como as de uma garota de rua, estremeciam-lhe de desdém quando ele via os exercícios de Leitner. Era evidente que aqueles dois homens que tinham viajado e vivido juntos, na mais estreita intimidade, haviam atingido a fase do ódio recíproco. Leitner detestava Loerke com uma raiva impotente e humilhada, e este tratava aquele com desprezo e sarcasmo. Não tardaria muito a haver uma separação.
Atualmente, já pouco privavam um com o outro. Leitner procurava outras pessoas e Loerke permanecia quase todo o tempo sozinho. Quando saía, colocava na cabeça um gorro à moda da Vestfália de veludo castanho, com abas que desciam pelo rosto e tapavam os ouvidos, dando-lhe o aspecto de um coelho orelhudo ou de um gnomo. Tinha o rosto moreno e corado, pele brilhante, seca, parecendo enrugar-se na mobilidade das expressões. Os olhos vivos, castanhos, redondos como os de um coelho, estranhos, desconfiados, denotando depravação consciente, ardiam com uma chama sobrenatural. Sempre que percebia o desejo de Gudrun em lhe falar, afastava-se sem nada dizer olhando para ela com as pupilas sombrias e verrumantes, sem nunca estabelecer as mais simples relações de cortesia. Fizeram até sentir que o francês de Gudrun, demasiado lento e o seu alemão arrastado eram, para ele desagradáveis. Quanto a ele mesmo, falava um inglês estropiado e não fazia o menor esforço para aperfeiçoá-lo. Contudo, entendia muita coisa do que ela dizia. Gundrun, ofendida, deixou-o de lado.
Naquela tarde, ela entrava na sala, vinda da neve, no momento em que Loerke e Úrsula conversavam. Os cabelos dele, finos e negros trouxeram à lembrança de Gudrun a ideia de um morcego, talvez por serem ralos no alto da cabeça redonda e irrequieta, e quase invisíveis nas têmporas. Estava sentado, com o dorso pendido para frente, como se abrigasse também a alma de um morcego. Gudrun percebeu que fazia qualquer confidência com vontade decerto incompleta e rancorosa. Ela se aproximou, sentando-se ao lado da irmã.
Loerke fitou-a e desviou os olhos, como se não a tivesse notado. Na realidade a moça interessava-o profundamente.
- É curioso, Prune, - disse Úrsula, voltando-se para a outra - Herr Loerke está armando um enorme friso destinado a uma fábrica de Colônia para uma parede exterior.
Gudrun observou-o, reparando-lhe nas mãos magras, nervosas, morenas, tenazes; assemelhavam-se a presas, a garras; não pareciam humanas.
- De que tipo? - perguntou ela.
- Aus was? - repetiu Úrsula.
- Granit - elucidou o artista...
Seguiu-se uma série de perguntas e respostas lacônicas, de profissional a profissional.
- Que espécie de relevo?
- Alto-relevo.
- De que altura?
Gudrun achava interessante aquele trabalho: enorme friso de granito para uma imensa fábrica em Colônia. Conseguiu dele alguns esclarecimentos quanto a pormenores. O desenho representava uma feira com camponeses e operários em perfeita orgia, bêbados e ridículos nos seus trajes modernos uns dormindo vertiginosamente, outros boquiabertos em frente as barracas, ou beijando-se e rolando abraçados no chão, ou oscilando dentro de barcos, ou fazendo pontaria com espingardas, tudo num movimento frenético e caótico.
Houve discussões de ordem técnica. Gudrun estava impressionada.
- É esplêndido trabalhar para uma fábrica dessas! - exclamou Úrsula. - O aspecto geral do edifício é bonito?
- É, sim - retorquiu ele. - O friso fará parte do conjunto arquitetônico. É qualquer coisa de colossal.
Depois Loerke endireitou-se na cadeira, encolheu os ombros e prosseguiu:
- A escultura e a arquitetura não devem separar-se. Já passou o tempo da escultura como adorno e da pintura como enfeite. Na realidade, a primeira faz parte sempre da concepção do arquiteto. E, desde que as igrejas são hoje simples museus, e a indústria vem ao nosso encontro, é claro que precisamos aplicar a nossa arte aos edifícios industriais, que são os nossos Partenões... Ecco!
Úrsula meditava.
- O que me parece - disse ela - é que não há necessidade de serem tão soturnas essas construções.
Loerke respondeu animadamente.
- É isso mesmo! Não só não é necessário que esses templos do trabalho sejam feios, como é urgente que a sua fealdade não arruíne o fim em vista. Os homens, daqui por diante, deixarão de se sujeitar a semelhantes horrores. Com a continuação do mau gosto, a vontade deles desapareceria, atingindo o próprio trabalho. Pensariam que este fosse tão feio como os prédios e máquinas, e o próprio esforço seriam englobados no mesmo esquema. E, contudo, as máquinas e o trabalho são belos, doidamente belos. Todavia, quando o operário não quiser trabalhar por achar que isso lhe repugna, teremos o fim da civilização. Preferirá morrer de fome. Usará o martelo para destruir tudo; sim, poderíamos chegar a esse ponto. E, afinal, chegou a oportunidade de construirmos belas fábricas, belas casas para as máquinas.
Gudrun só conseguiu compreender parte do discurso. Sentia-se envergonhada por não ter podido captar tudo.
- Que disse ele? - perguntou ela à irmã. Esta fez um resumo, gaguejando na tradução. Loerke observava o rosto de Gudrun, curioso de descobrir o efeito das suas doutrinas.
- E acredita - disse então a moça - que a arte possa ser útil à indústria?
- A arte interpreta hoje a indústria como outrora o fez quanto à religião - respondeu ele - E a sua feira é uma interpretação?
- Sim, senhora. Que faz o homem quando se encontra numa feira dessas? Ele se desforra do trabalho. Em lugar de obrigar as máquinas a trabalhar, são elas que o obrigam ao movimento, pelo hábito adquirido. Possui no próprio corpo o impulso mecânico...
- Neste caso não há senão trabalho mecânico, na vida do operário. - disse Gudrun.
- Trabalho e nada mais! Concordou ele, inclinando-se para frente. Os olhos eram dois pontos negros onde brilhavam luzes finas como agulhas. - Não é mais do que isso: sujeição à máquina, ou prazer do movimento que esta lhe transmitiu. Movimento, sempre movimento. Se já tivesse trabalhado para comer, saberia então qual é o deus que põe e dispõe...
Gudrun estremeceu, corado. Tinha, não sabia por que, vontade de chorar.
- Não, nunca trabalhei para matar a fome. Mas, de qualquer forma, sempre tenho trabalhado.
- Travaillé? Lavorato? E Che lavoro? Che lavoro? Quel travail est-ce que vous avez fait? - Trabalhado? Trabalhado? E que trabalho? Que trabalho? Que trabalho fez? - nota da tradutora).
Falava uma mistura de italiano e francês, empregando instintivamente uma língua estrangeira quando se dirigia a Gudrun. Acrescentou, ainda sarcástico:
- Mas não trabalhou como se trabalha por esse mundo a fora!
- Sim, trabalhei, e ainda o faço, mas para as minhas despesas pessoais.
Loerke ficou silencioso, olhou-a fixamente, e depois deixou o assunto. Aquela mulher lhe parecia insignificante
- E o senhor - interveio Úrsula - tem trabalhado tanto assim?
O outro mirou-a com desconfiança.
- Sim - replicou, com uma espécie de insolência. - Sei o que é ficar três dias deitado na cama por não ter nada o que comer.
Gudrun contemplava-o com os olhos sérios e muito abertos como quem extraísse a medula dos ossos juntamente com aquela confissão. A natureza de Loerke era refratária a tais depoimentos, mas o olhar grave e profundo de Gudrun parecia abrir-lhe válvulas nas veias, e ele, involuntariamente, continuava a falar:
- Meu pai não gostava de trabalhar. Já não tínhamos mãe. Vivíamos na Áustria polaca. E de quê? Com o que nos pudéssemos arranjar... Quase sempre no mesmo quarto com três outras famílias, cada uma no seu canto... Ah! Ah! Tinha eu dois irmãos e uma irmã... Às vezes uma mulher junto do meu pai. Sempre foi homem independente, à sua maneira... Não trabalhava para ninguém... Ficava revoltado com isso; não conseguia.
- E de que viviam? - perguntou Úrsula.
Loerke fitou-a, e depois, voltando-se subitamente para Gudrun.
- Está compreendendo?
- Mais ou menos.
Os olhos dos dois se encontraram por instantes. Ele desviou os seus. Não pretendia dizer mais nada.
- Como é que se tornou escultor? - volveu Úrsula.
- Como me tornei escultor? - Suspendeu a frase. - Dunque - Mudando de tom: - Cresci... Comecei a furtar coisas do mercado. Mais tarde comecei a trabalhar, marcava com o sinal da casa as peças que iam ao forno. Era numa fabrica de cerâmica. Comecei então a modelar com o barro. Até que por fim achei que era demais. Fiquei em casa e não me apresentei na oficina. Fui a pé no caminho de Munique... depois para a Itália... mendigando, mendigando sempre.
"Os italianos foram muito bons para mim, bons e prestativos. De Bozen ate Roma encontrava quase sempre lugar onde passai a noite e comer. Camas de palha, em casa de camponeses... Estimo os italianos de todo o meu coração. Dunque, adesso... agora, ganho mil libras por ano, às vezes duas mil.
Pousou o olhar no chão e sua voz foi-se extinguindo no silêncio.
Gudrun examinava sua pele fina, delgada, brilhante, esticada na fronte e queimada de sol; admirava-lhe também o cabelo ralo e o bigode rude, espesso, semelhante a uma escova, cortado rente por cima da boca mal definida, de grande mobilidade.
- Que idade tem? - perguntou a moça.
Ele mirou-a, surpreendido.
_ Wie alt - repetiu. Ficou hesitante. Era evidente que preferiria ocultar essa circunstância biográfica.
- E a senhora? - perguntou.
- Tenho vinte e seis anos.
- Vinte e seis! - Contemplou-a nos olhos e calou-se. Depois disse:
- Und Ihr Herr Gemahl, wie alt is er? - E o seu marido, que idade tem? - nota da tradutora).
- Quem? - inquiriu Gudrun.
- Seu marido - explicou Úrsula, em tom irônico.
- É coisa que não tenho - murmurou a moça, em inglês. Todavia, respondeu em alemão:
- Trinta e um anos.
Mas Loerke observava-a atentamente com os seus olhinhos redondos misteriosos, desconfiados. Notava-lhe qualquer coisa de semelhante a si mesmo. Era, de fato, um daqueles indivíduos sem alma que encontra o seu companheiro numa criatura humana. Essa descoberta, porém, fazia-o sofrer. Gudrun, por sua vez, sentia-se fascinada como se um ser estranho - coelho, morcego, lobo marinho tivesse começado a falar com ela; mas, ao mesmo tempo percebia que o homem estava inconsciente daquilo do tremendo poder de compreensão que seria capaz de ter sobre ela, de lhe surpreender os próprios pensamentos. Não conhecia, realmente a força de que dispunha, nem adivinhava quanto com aqueles olhos redondos, perscrutadores e enigmáticos, poderia ler o que se passava dentro dela, descobrir-lhe os segredos, conhecer-lhe, enfim, a alma. Desejava apenas que aquela moça fosse tão somente o que era, e estava persuadido de que tinha disso uma ideia exata, derivada, de forma sinistra, do seu subconsciente e desprovida de ilusões ou de esperanças.
Quanto a Gudrun, parecia ver em Loerke a própria nudez da vida. Todos os outros seres possuíam as suas ilusões ilusão do passado futuro. Ele, porém, com perfeito estoicismo, vivia sem futuro nem passado, isento da menor ilusão. No fim de contas não se enganava a respeito de si mesmo; em ultima análise não se importava com coisa alguma, nada o incomodava nem fazia a menor tentativa para obter solidariedade. Existia como pura vontade sem compromissos, estóica e momentânea. De seu ele só tinha o trabalho.
Era também curioso notar como seduziu Gudrun o fato de conhecer a miséria e degradação dos seus próprios anos de existência. Nada mais insípido para ela do que a ideia do homem bem nascido que segue os trâmites normais através do ginásio e da universidade. Este filho do nada despertara-lhe violenta simpatia; achava o feito da verdadeira matéria subterrânea da vida. Ninguém como ele mergulhara tão fundo.
Úrsula também se sentia atraída. As duas irmãs consagravam-lhe uma espécie de homenagem. Mas, para a primeira havia momentos em que o considerava inferior, vulgar e falso.
Tanto Birkin como Gerald antipatizavam com o escultor; um exasperava se o outro fingia desdenhosamente nem sequer o ver.
- Que acham as mulheres de tão atraente naquele fedelho? - perguntava Gerald.
- Só Deus o sabe - respondeu Birkin. - A menos que haja algum feitiço com que ele as atraia e domine.
Gerald arregalou os olhos, embasbacado.
- Um feitiço com que ele as atraia? - repetiu.
- Decerto - volveu Birkin. - É uma criatura endemoninhada que vive como um criminoso. As mulheres precipitam-se para ele como uma corrente de ar atraída pelo vácuo.
- É estranho que elas façam isso.
_ A verdade é que as enlouquece. Exerce sobre as mulheres a fascinação da piedade e da repugnância, esse monstrinho repelente.
Gerald ficou silencioso, a meditar.
- Que procuram as mulheres, afinal de contas? - indagou ele.
Birkin encolheu os ombros.
- Só Deus o sabe! Cobrirem-se de lama, ao que me parece. É como se sentissem prazer em atravessar um cano de esgoto só ficando satisfeitas ao chegarem ao fim.
Gerald contemplou a neve fina e brumosa que descia la fora. Naquele dia tudo estava escuro, terrivelmente enevoado.
- E o que é que encontram no fim? - inquiriu ele.
Birkin abanou a cabeça.
- Nunca cheguei lá, de maneira que não sei. Pergunte a Loerke que deve saber mais sobre isso do que nos todos.
- Mas a que é que você se refere? - perguntou Gerald, com certa irritação.
Birkin suspirou. Enrugou a testa, aborrecido.
- No ódio da sociedade explicou. - Vive como uma ratazana num rio de corrupção, precisamente no lugar em que este transborda para os poços sem fundo. Tem ido mais longe do que nós. Detesta o ideal de forma intensa. Odeia-o profundamente, embora o ideal ainda o impressione. Suspeito que é judeu, pelo menos em parte.
-É provável! - concordou Gerald.
- Ele é um cancro de negação, que rói raízes da vida.
- Mas por que se ocupam tanto dele?
_ Porque detestam também o ideal, no fundo da alma. Gostam de explorar os esgotos, e ele é a ratazana mágica; vai-lhe mostrando o caminho.
Gerald olhou outra vez para a bruma, lá fora, produzida pela neve.
- Não percebo muito bem a sua linguagem, Rupert. - declarou com voz triste e resignada. - Quanto a elas, acho que possuem um gosto muito esquisito.
- Acho que o nosso não é melhor - atalhou Birkin - a diferença está em que nós pretendemos mergulhar, de vez numa espécie de arrebatamento, e ele deixa-se ir ao sabor da corrente, ou melhor, das imundícies.
Entretanto Úrsula e Gudrun esperavam outra oportunidade de conversar com Loerke. Não valia a pena fazê-lo em presença dos homens. Não seriam capazes de entreter um relacionamento com o escultor misantropo. Era mister que se encontrassem a sós com ele. E o artista preferia que Úrsula estivesse presente para servir de elemento de ligação com Gudrun.
_ Não faz senão escultura arquitetônica? - perguntou-me.
- Agora não. Mas tenho feito de tudo, menos retratos. Nunca os fiz; muitas outras coisas, porém...
- De que espécie?
Calou-se alguns instantes, depois levantou-se e saiu da sala. Voltou pouco depois com um papel enrolado, que entregou a Gudrun. Esta abriu-o e viu que era a reprodução fotográfica de uma estatueta, assinada por F. Loerke.
- Aqui tem um trabalho do início de minha carreira; não é nada arquitetônico. Antes, do gênero popular.
A estatueta representava uma moça nua, pequenina, graciosa, montada num enorme cavalo em pelo. A jovem era delicada, como uma flor em botão. Estava de lado sobre o dorso do animal com o rosto escondido nas mãos, como se sentisse vergonha e repugnância. O jeito do corpo denunciava abandono. Os cabelos curtos - que deviam ser louros - caiam-lhe no rosto e ocultavam-lhe parte das mãos.
Os braços e pernas eram finos e juvenis; estas, ainda mal formada, indicavam o começo de perigosa adolescência e tombavam, infantilmente, no flanco do cavalo majestoso. Fazia pena vê-la assim, com os pés por cima do outro, como se os quisesse ocultar. E ali estava, nua, em cima do corpo nu do animal.
O cavalo mantinha-se na posição largada, em cujo impulso todo ele se estendia. Era maciço e magnífico, cheio de força concentrada. Tinha o pescoço bem feito e terrível como uma foice, e rígidos e enérgicos os músculos.
- Que tamanho tem? - A voz parecia acusar indiferença, tanto ela persistia em afetar um tom desprendido e natural.
- Que tamanho? - repetiu o artista, reclamando-a com a vista. - Sem o pedestal, tem este...
Gudrun examinou Loerke com atenção. Os gestos rápidos e bruscos daquele homem denotavam certo desdém e calculada frieza. Ao mesmo tempo ele a observava também, fixamente. Não perdera o domínio que costumava exercer.
- De que é feita a estatueta? - inquiriu ela, erguendo a cabeça e encarando-o fria e calculadamente.
- Bronze - elucidou. - Bronze patinado.
- Bronze patinado repetiu - Gudrun, aceitando o desafio, muito calma. Estava imaginando os membros delicados, suaves, infantis da moça tornados frios e lisos no bronze verde.
- É muito belo - murmurou, fitando-o, numa homenagem cheia de simplicidade.
Loerke fechou os olhos, e depois abriu-os para os dirigir em outro sentido, triunfante.
- Por que fez o cavalo tão rígido? - interveio Úrsula. Tem a rigidez de um bloco.
_ Rígido? - tornou ele, pondo-se logo em guarda.
- Sim. Veja como mantém a rudeza e a brutalidade do bloco. Os cavalos são animais sensíveis, nervosos. Realmente.
Loerke encolheu os ombros e deixou cair os braços num gesto de indiferença, como que para dar a entender que ela não passava de amadora, ignorante e impertinente.
- Wissen Sie - disse em tom sossegado de condescendência insolente - este cavalo é uma figuração, uma parte de um todo. Está integrado na obra de arte; não se trata do retrato deste ou daquele cavalo a quem se dá um torrão de açúcar, percebe? É o pormenor de um conjunto. Fora deste trabalho, não tem nenhuma significação.
Úrsula, furiosa por ter sido tratada dessa maneira ofensiva, de haut em bas, com que ele descera das alturas da sua arte esotérica para o plano rasteiro do amadorismo em que ela jazia, encheu-se de rubor e levantou a cabeça.
- Em todo o caso - declarou - não deixa de ser um cavalo. O outro tornou a encolher os ombros.
- Como quiser; uma vaca, certamente, é que não é Gudrun, nesta altura, intrometeu-se na contenda, excitada e muito vermelha. Queria pôr termo àquela louca insistência da irmã em dar a sua opinião.
- Que quer dizer com essa observação de que isto não deixa de ser um cavalo? - exclamou, voltada para Úrsula. - Que é que você entende por um cavalo? Quer referir-se a ideia que tem na cabeça e que gostaria de ver representada? Mas pode haver outra ideia, inteiramente diversa. Você pode chamá-lo de cavalo ou do que quiser. Estamos também no direito de dizer que o seu cavalo não é igualmente um cavalo, que é um produto da sua imaginação.
Úrsula hesitou, desconcertada. Depois encontrou as palavras necessárias para responder:
- Mas por que teve ele a ideia de fazer assim o cavalo. É claro que compreendo a intenção: trata-se do próprio retrato do autor, assim interpretado...
Loerke resfolegou de cólera.
- O meu próprio retrato? - exclamou, com um riso escarninho. - Wissen Sie, gnädige Frau - Saiba, minha senhora... - nota da tradutora), que isto é Kunstwerk, ou seja uma obra de arte. Apenas obra de arte, sem ser retrato de ninguém, absolutamente de ninguém. Não tem nada que ver com o que quer que seja, não tem relação com as coisas triviais nem semelhantes, nem parentesco de qualquer ordem. São planos da existência diferentes, muito distintos; e traduzir um na linguagem do outro é rematada loucura, é querer confundir as coisas, lançar em tudo a perturbação. Ouça: não deve misturar o mundo cotidiano e banal com o mundo da arte absoluta. Não tem o direito de fazer isso.
- É claro - acrescentou Gudrun, numa espécie de recapitulação - As duas coisas permanecem totalmente diferenciadas, sem terem nada uma com a outra. Eu e a minha arte nada temos em comum. Eu estou num pólo e ela está no outro.
Tinha as faces coradas pelo ardor da discussão. Loerke estava sentado, com a cabeça pendida, constrangido olhou de repente para a moça, de um modo quase receoso, e murmurou.
- Ja, so ist, so ist es - Sim, é isso, é isso. - nota da tradutora).
Depois daquele sermão, Úrsula recolhera-se ao mutismo, aborrecidíssima. O seu desejo era arrasar a ambos. Mas, pouco depois, replicou, pausadamente:
- Não vejo o menor valor no que você acaba de dizer. O cavalo é mesmo um retrato do íntimo dele, na sua animalidade e a pequena deve ser qualquer moça que ele tivesse amado e torturado, atirando-a fora quando se cansou dela o homem fitou-a e sorriu com desprezo. Não se dignou dar-lhe resposta.
Gudrun também nada disse; sua indignação tornara-se desdenhosa. Úrsula era um profano insuportável, atrevendo-se a calcar terreno que os próprios anjos não pisavam. Mas não havia remédio senão tolerar os imbecis, embora não fosse agradável.
A outra, porém, insistia:
- Quanto a esse mundo de arte e ao mundo da realidade, vocês fazem essa separação pela impossibilidade que tem de saber ao certo quem são. Nem podem conceber como escondem a dureza, a brutalidade, a rigidez; e então dizem: é o mundo da arte! Ora, o mundo da arte é apenas o espelho do outro, e vocês estão muito longe de se verem nele.
Mostrava-se destemida. Empalidecera e toda ela tremia. Gudrun e Loerke continuavam imóveis aborrecidos com o incidente. Gerald que chegara no começo da discussão, ficou também a olhar para ela, reprovador e hostil. Achava aquela atitude pouco digna tinha sido uma nota de mau gosto no esoterismo que confere tanta distinção às criaturas humanas. Tomou os partidos dos outros dois, e todos três principiaram a desejar que ela se fosse embora. Úrsula, porém, conservava-se onde estava, sem nada dizer. Chorava intimamente, tinha as mãos trêmulas e amarrotava o lenço que tinha nas mãos.
Os outros mantinham um silêncio mortal, a espera que se desfizesse a atmosfera desagradável produzida pela intervenção de Úrsula. Por fim Gudrun perguntou, numa voz que afetava indiferença e naturalidade, como se resumisse uma conversa sem importância:
- A moça era modelo?
- Nein, sie war kein Modell. Sie war eine kleine Malscnulenn - Não, não era modelo. Era uma pequena que estudava pintura - nota da tradutora).
- Uma aluna de Belas-Artes! - exclamou Gudrun.
A situação se revelava agora claramente. Imaginava a estudante com o seu corpo ainda mal formado, ignorante e descuidada da vida, com os cabelos louros cortados, caindo-lhe pelo rosto ate ao pescoço e dobrando-se levemente na nuca; via também Loerke, escultor de renome, de quem a mocinha se recusava fazer-se amante, por ser bem educada e de boa família... Como conhecia bem tudo aquilo! Dresden, Paris, Londres, que diferença havia entre essas cidades? Todas iguais.
- Onde está ela agora? - indagou Úrsula.
Loerke fez um gesto de quem se desinteressa, querendo significar a sua máxima indiferença.
- Isso foi há seis anos - explicou. - Deverá ter uns vinte e três anos agora, pouco mais.
Gerald tomara a reprodução e a examinava. O trabalho do escultor o interessava também. E leu no pedestal que a obra se intitulava "Lady Godiva".
- Mas isto não é Lady Godiva - disse ele, sorrindo. - Era mulher de meia-idade, casada com um conde qualquer e tinha os cabelos tão compridos que até se cobriu com eles.
- À moda de Maud Allan - atalhou Gudrun, fazendo um trejeito cômico.
- Por que Maud Allan? - volveu Gerald. - Não seria como eu disse? Sempre pensei que a lenda fosse essa.
- Sim, querido Gerald, estou convencida de que você decorou a lenda exatamente como é.
Riu-se com uma expressão ao mesmo tempo carinhosa e vagamente divertida.
- É claro, prefiro admirar a mulher do que os cabelos... - replicou Gerald, bem disposto.
- Acredito - disse Gudrun, ainda irônica.
Úrsula levantou-se e desapareceu, deixando junto os três. Gudrun recebeu de novo a fotografia das mãos de Gerald e ficou a contemplá-la cuidadosamente.
- Já se sabe - disse ela, começando agora a brincar com o escultor - que você compreendeu bem a sua Malschülerin...
O outro deu de ombros e ergueu as sobrancelhas, condescendente.
- A pequena? - perguntou Gerald, apontando para a reprodução.
Gudrun, sentada, descansara o papel sobre os joelhos. Encontrou o olhar de Gerald e fitou-o com tal intensidade que ele se sentiu encantado.
- Você não acha que ele a compreendeu bem? - interrogou com ironia e bom humor. - Não reparou nos pés? São adoráveis, lindos, delicados! Maravilhosos!
Lentamente, dirigiu o olhar para Loerke, de maneira inflamada, escaldante. A alma do artista recebeu reconhecida aquela prova de admiração. Dir-se-ia que havia tomado uma atitude de superioridade e adquirido maior importância.
Gerald examinou os pés da menina: estavam voltados para o mesmo lado, cobrindo-se quase um ao outro, como que envergonhados e cheios de medo. Ficou assim muito tempo a contemplá-los; depois, sem grande pressa, pôs de lado a fotografia. Sentia-se acabrunhado.
- Como se chamava ela? - perguntou Gudrun ao escultor.
- Annette von Weck - respondeu o artista, como quem se recorda. - Ja, sie war hübsch. Era bonita, mas enfadonha. Insuportável! Incapaz de ficar um minuto sossegada. Tinha vontade de lhe dar bofetadas e ela, chorando, servia então de modelo, durante cinco minutos.
Loerke pensava apenas no seu trabalho; era a única coisa que lhe interessava.
- O senhor chegava a bater nela?
- Sim, cheguei, - respondeu muito naturalmente - e com força. Era preciso. De outra forma não se conseguia trabalhar.
Gudrun examinou-o por uns momentos com os seus olhos grandes e sombrios. Dir-se-ia penetrar-lhe até ao fundo da alma. Depois, silenciosamente, fitou o chão.
- Como é que lhe ocorreu uma Godiva tão menina? - disse Gerald. - Tão miúda, e nesse cavalo... muito criança para montar nele.
Os músculos do rosto de Loerke contraíram-se involuntariamente.
- Não gosto delas nem maiores nem mais velhas. São belas aos dezesseis, aos dezessete, aos dezoito anos. Depois disso não me servem mais.
Houve um instante de silêncio.
- Por que não? - indagou Gerald.
Loerke encolheu os ombros.
- Não as acho interessantes, nem belas... Não convém ao meu trabalho...
- Quer dizer que, depois dos vinte anos, a mulher deixa de ser bonita? - insistiu Gerald.
- Para mim, deixa. Antes dos vinte, é pequena fresca, delicada, leve. Depois disso, torne-se no que se tornar, já não me diz nada. A Vênus de Milo era uma matrona. São todas assim.
- Então, depois dessa idade, as mulheres perdem o valor para o senhor?
- Não me servem, não prestam para a minha arte - repetiu o escultor, impaciente. - Não as considero bonitas.
- Você é um epicurista - sentenciou Gerald, com um risinho sarcástico.
- E a respeito dos homens? - perguntou, de súbito, Gudrun.
- Esses interessam em qualquer idade - respondeu Loerke. - O homem deve ser vigoroso, dominador, velho ou moço, não importa... uma vez que tenha estatura, um tanto de maciço e uma figura estúpida.
Úrsula tinha saído e mergulhara num ambiente de neve, recentemente caída. Mas a brancura cintilante parecia magoá-la ate lhe causar dores; sentia o frio a estrangular-lhe a alma, lentamente. A cabeça estava vazia e aturdida.
De repente, experimentou um desejo feroz de se ir embora. A ideia de que podia partir para outro lugar ocorreu-lhe como que por milagre. Achava-se condenada naquele mundo de neve perpétua; era como se não houvesse salvação!
Agora, súbita e miraculosamente, lembrou-se que, para além, numa altitude menor, jazia a terra escura e fértil; que, para o sul, havia terrenos sombreados de laranjeiras e ciprestes, e oliveiras cinzentas, e robles erguidos para o céu azul com a sua copa frondosa. Milagre dos milagres! Esta paisagem de montanhas geladas e silenciosas não se estendia por todo o planeta. Podia-se abandoná-la. Podia-se fugir dali!
Se o milagre se realizasse imediatamente! Bem gostaria ela de acabar com aquele inferno de neve, com aquelas terríveis montanhas imóveis e glaciais. Ansiava por tornar a ver a terra sombria, respirar o aroma do humo fecundante, ver a vegetação perseverante de outros climas de inverno, sentir os efeitos do sol nos rebentos das plantas.
Voltou assim para a hospedaria, animada da melhor esperança.
Birkin lia, já deitado.
- Rupert, - gritou ela, precipitadamente, para o marido - quero ir-me embora.
O outro volveu-lhe um olhar vagaroso.
- Você quer? - perguntou em voz calma.
Úrsula sentou-se ao lado dele e passou-lhe os braços em volta do pescoço. Admirava-se de que o marido não demonstrasse maior surpresa.
- E você não quer? - perguntou inquieta.
- Não tinha pensado nisso. Mas é claro que sim.
A mulher pôs-se de pé, num movimento brusco.
- Detesto - declarou ela - detesto a neve, que não e natural como não é natural a luz que nos cerca, nem este sortilégio fantástico. Tudo quanto sentimos aqui é contra a natureza.
Birkin manteve-se calmo, pensativo e sorridente.
- Pois bem - concordou ele - podemos partir amanhã mesmo. Vamos a Verona, seremos Romeu e Julieta e sentar-nos-emos no anfiteatro. Sim?
Ela ocultou o rosto no ombro dele, intimidada, perplexa. Rupert era tão condescendente!
_ Sim - repetiu suavemente, como que aliviada. Parecia-lhe que a alma se enchia de júbilo, vendo-o assim tão descuidado. - Que bom sermos Romeu e Julieta! Meu amor! - acrescentou.
- Mas - replicou o marido - sopra dos Alpes, sobre Verona, um frio tremendo. Continuaremos com o cheiro da neve no nariz.
Úrsula sentou-se e fitou-o.
- Sente-se contente em partir? - perguntou-lhe apreensiva.
Os olhos de Birkin mantinham-se risonhos e penetráveis. Úrsula descansou a face no pescoço dele e abraçou-o implorando:
- Não se ria de mim! Não se ria de mim!
- Por quê? Que sucedeu? - Pôs-lhe os braços em torno da cintura e continuou a rir.
- Porque não quero que trocem de mim - murmurou ela.
O marido soltou uma gargalhada e beijou-lhe o cabelo fino e sedoso, perfumado.
- Gosta de mim? - indagou a mulher com gravidade, carregando o semblante.
- Gosto - respondeu Birkin, sempre jovialmente.
Ela, de repente, estendeu-lhe a boca, para que ele a beijasse. Tinha os lábios rijos, carnudos e trêmulos. Os do marido eram brandos, delicados. Demorou-se este uns momentos no beijo que lhe deu; e uma sombra de tristeza perpassou-lhe pelo espírito.
- A sua boca é tão rija - disse, como se a repreendesse levemente.
- E a sua é doce e submissa - tornou ela, contente.
- Mas por que é que você aperta tanto os lábios, Úrsula?
- Não se incomode - respondeu com vivacidade. É o meu jeito.
Sabia que Rupert a amava. Tinha a certeza disso. Entretanto, não gostava que ele a dominasse, nem tolerava que lhe fizesse muitas perguntas. Preferia abandonar-se a delícia de ser amada, mas desconfiava que o marido, apesar da alegria que lhe vinha do fato de Úrsula abandonar-se a ele, guardava no intimo uma vaga melancolia. Consentindo em ser sua mulher não podia, no entanto ser a própria, não se atrevia a revelar-se-lhe em toda a sua nudez, em por de parte a natural reserva nem em depositar nele absoluta confiança. Entregava-se-lhe, era certo, apropriava-se de Rupert e em Rupert encontrava inteira satisfação; naquele homem se achava a verdadeira felicidade. E contudo, não se sentiam inteiramente ligados. Mas estava feliz, gloriosa, independente, cheia de esperança e de liberdade. Rupert, por enquanto, mostrava-se tranquilo, meigo e paciente.
Fizeram os preparativos para irem embora no outro dia. Foram primeiro ao quarto de Gudrun, onde esta e Gerald acabavam de se vestir para descer.
_ Prune - disse Úrsula, é possível que partamos amanhã. Já não posso tolerar a neve. Estraga-me a pele e o coração.
- Sente-se mal? - perguntou a irmã, surpreendida. - Acredito que prejudique a pele; é terrível. Mas, quanto ao coração, suponho que seja admirável.
- Para mim, não. Pelo contrário, ele ofende.
- Engraçado! - exclamou Gudrun.
Houve um pequeno silêncio. Úrsula e Birkin perceberam que os outros ficavam aliviados com a ideia de partida deles.
_ Vão para o sul? - perguntou Gerald, cuja voz denotava certo constrangimento.
- Vamos - asseverou Birkin, desviando a conversa.
Havia ultimamente, entre os dois homens, uma estranha e inexplicável hostilidade. Birkin mostrava-se, de modo geral, sombrio e indiferente; era paciente, mas distraído, desde que chegara ao estrangeiro, ao passo que Gerald, pelo contrário, se sentia combativo e cheio de vida naquela atmosfera de neve. Os dois contrariavam-se em tudo.
Gerald e Gudrun foram muito amáveis para os que partiam, ocupando-se de quanto lhes restava, solicitamente, como se se tratasse de duas crianças. Gudrun apareceu no quarto da irmã; levou-lhe três pares de meias de cor, coisa em que era especialista, e colocou-os em cima da cama. Eram meias de seda grossa, compradas em Paris: vermelhas, azuis e cinzentas. Estas últimas, muito pesadas, não tinham costura e eram de malha. Úrsula ficou encantada. Compreendeu quanta ternura havia na irmã para que se separasse assim de tamanho tesouro.
- Não posso aceitá-las, Prune. Não posso privar você dessas maravilhas.
- Não são maravilhas! - exclamou Gudrun, lançando um olhar saudoso à sua oferta. - Bobagens!
- Mas você devia guardá-las - tornou Úrsula.
- Não preciso delas. Tenho mais três pares. Gostaria que você as aceitasse...
E, com mãos nervosas, excitada, depôs a dádiva debaixo do travesseiro da irmã.
- Um dos grandes prazeres da vida é possuir meias bonitas - disse Úrsula.
- É verdade - confirmou a outra. - Um dos maiores prazeres.
Sentou-se na poltrona. Era evidente que tinha vindo conversar antes da partida. Úrsula, sem saber o que a irmã desejava, conservou-se silenciosa.
- Você tem a impressão - principiou Gudrun, pouco convencida de suas palavras - tem a impressão de que se vai para sempre, para não mais voltar?
- Ah, não! Voltaremos - respondeu a irmã. - Mais cedo ou mais tarde, voltaremos.
- Sim, compreendo. Mas, em espírito, para assim me exprimir, vocês afastam-se de nós, não é verdade?
Úrsula sentiu um arrepio.
- Não faço nenhuma ideia do que possa acontecer. Sei apenas que partimos para qualquer lugar.
Gudrun ouviu a explicação e perguntou:
- Está contente?
Úrsula refletiu durante alguns momentos.
- Creio que sim, que estou muito contente.
Mais do que pelo tom incerto das palavras, Gudrun adivinhou a verdade no brilho inconsciente que a face da irmã irradiava.
- E não acha que pôde sentir necessidade de regressar aos velhos conhecimentos deste mundo, ao pai, ao resto da família e a tudo o mais que isso representa? A Inglaterra, a vida do pensamento? Não acredita que sejam precisas todas estas coisas para que o seu ambiente tenha realidade?
Úrsula estava silenciosa, procurando compenetrar-se daquelas razões.
- Penso - disse ela por fim, mas involuntariamente - Rupert tem razão: viver num espaço novo e diferente, desapegar-nos do antigo...
Gudrun observou a irmã, com os olhos fixos e o rosto impassível.
- Que se deseje viver num meio diverso, concordo inteiramente. Julgo, porém, que um mundo novo é sempre o desenvolvimento do velho mundo, e que isolar-se aí com outra pessoa não é encontrar aquele, mas sim criar mais uma ilusão.
Úrsula olhou para fora, através da janela. Começava-lhe um combate na alma e isso assustava-a. Sempre tivera medo das palavras, pois sabia que a simples força que emitem podia força-la a crer naquilo de que ela descria.
- Talvez - concordou, embora não muito persuadida, antes desconfiada de si própria. - Mas - acrescentou - penso que não se encontra nada de novo enquanto estamos apegados ao passado. Compreende o que quero dizer? Combater o passado e ainda pertencer-lhe de qualquer maneira. Bem sei que a tentação maior é a de ficar no mundo e lutar por algum tempo. Mas que vantagem haveria nisso?
Gudrun pensou em seu próprio caso.
_ Sim - disse ela - em certo sentido fazemos parte do aglomerado, uma vez que nele vivemos. Mas não será ilusão supor que podemos fugir? Aliás, uma casa de campo nos Abruzzos ou em outro canto qualquer não constitui um mundo novo. Não, Úrsula: a única coisa que se tem de fazer para nos desenganarmos da terra é visitá-la por inteiro.
A outra parecia olhar de muito longe. Assustava-se tanto com discussões!
- Mas pode haver outro processo, não acha? - disse ela. Podemos visitar o mundo através da nossa alma, muito tempo antes de o conhecer na realidade. E, uma vez que conheçamos bem a nossa alma, tudo se torna diferente.
- Vê-lo através do nosso espírito? - perguntou Gudrun. - Se você quer dizer que se pode adivinhar o que vai suceder não concordo. Não, não é possível. E em qualquer caso não e fácil voar assim para outro planeta pela razão de que já se sabe o que neste vai acontecer.
Úrsula pôs-se de pé repentinamente.
- É fácil, sim senhora, é fácil. Neste mundo nada temos a esperar. Possuímos uma espécie de outro eu que pertence a um planeta diferente. É forçoso fugirmos deste.
Gudrun meditou alguns segundos. Seu rosto mostrou uma expressão de complacência, quase de desprezo.
- E o que acontecerá quando você se encontrar no espaço? _ perguntou à irmã, em tom irônico. - Afinal de contas, as grandes ideias são as mesmas em toda parte. Não conseguira por de lado o fato por exemplo, de que o amor é o fim supremo, tanto na terra como fora dela.
- Não - replicou Úrsula - não é. O amor é demasiado humano e mesquinho. Acredito em qualquer coisa extra-humana, da qual o amor é apenas uma parcela. Creio que a nossa missão nos virá do desconhecido e dirá respeito a algo infinitamente superior ao amor. Não é unicamente humano.
Gudrun, com seus olhos firmes e equilibrados, contemplava a irmã. Admirava-a e desdenhava-a ao mesmo tempo. Depois, sem transição, desviou a vista e declarou friamente, em tom desagradável:
- Pois não conheço nada além do amor.
Foi então que um pensamento atravessou, como um relâmpago, o espírito de Úrsula: "Como você não amou ainda, não é capaz de ultrapassar o amor".
Gudrun levantou-se, aproximando-se da irmã, e passou-lhe o braço em torno do pescoço.
- Vá, minha querida, vá em busca do seu mundo novo - disse ela com voz em que se percebia benevolência fingida. - Em última análise, a mais feliz de todas as viagens deve ser em busca das Ilhas Encantadas de que fala Rupert.
Conservou o braço em volta do pescoço da irmã, e, com os dedos, acariciou-lhe a face durante algum tempo. Úrsula estava extremamente contrafeita. O ar protetor de Gudrun parecia-lhe um insulto. E esta, sentindo a resistência da irmã, afastou-se desajeitada. Levantou o travesseiro e descobriu as meias que lá estavam.
- Ah! Ah! - tentou rir, sem vontade. - De que é que estamos falando? Novos mundos, velhos mundos...
E trataram de passar a outros assuntos mais corriqueiros.
Gerald e Birkin tinham partido à frente; esperariam pelo trenó que devia conduzir os viajantes, para que Rupert tomasse o seu lugar no veículo.
- Quanto tempo ainda se demoram aqui? - perguntou Birkin, examinando o rosto corado, quase inexpressivo, do outro.
- Não posso dizer. Até ficarmos fartos.
- Não receia que a neve se derreta antes?
Gerald riu-se.
- Chega a derreter? - perguntou.
- Tudo corre bem entre vocês? - volveu Birkin.
Gerald contraiu um pouco o olhar.
- Se corre bem? Nunca percebi o que significa essa frase. Correr bem e correr mal são muitas vezes sinônimos.
- Sim, também acho. E quando regressam, afinal?
- Não sei. Talvez fiquemos aqui para sempre. Não olho para trás nem para frente de mim - respondeu Gerald.
- Nem para o que não existe... - atalhou Birkin. Gerald investigou ao longe com as pupilas diminuídas, abstrato, como um falcão.
- Em tudo isto há qualquer coisa definitiva. Gudrun, para mim, é a meta que eu queria alcançar Não sei... Mas vejo-a tão branca, pele tão sedosa, braços indolentes e meigos... Ela incendeia, de certo modo, o meu espírito... - Deu alguns passos, olhando sempre em frente, fixamente; dir-se-ia haver afivelado máscara semelhante à do ritual religioso dos povos bárbaros - Destrói a visão da alma, deixa-nos como cegos... E procurando ser cegos e amaldiçoados, não queremos mais outra.
Falava como se estivesse em transe, inconsciente e pálido. E, de súbito, em voz de melopeia, firmando-se em Birkin de forma rancorosa e assustada, foi dizendo:
- Sabe o que é sofrer quando se esta com uma mulher? - Ei-la tão bela, perfeita, bondosa; rasga-nos o coração como se fosse de seda, e a cada rasgão dói e queima... Ah, meu amigo esta perfeição... quando nos destruímos a nos mesmos! Além disso - Parou, ereto sobre a neve, e abriu as mãos, de punhos cerrados - Não é nada... O cérebro pode reduzir-se a pó, e... - Mirou em volta, para o nada, com um esquisito ar de histrião - Tudo se arrasa. Compreende o que digo. É uma grande aventura, talvez a derradeira... e então... encolhemo-nos como se recebêssemos uma descarga elétrica. - Recomeçou a andar em silêncio. Tinha o aspecto de quem dizia coisas absurdas, mas, ao mesmo tempo, era sincero, como se se visse obrigado à fazer tais confidências. - Decerto - prosseguiu - não procurei evitar que isso acontecesse. É uma aventura completa! E que mulher maravilhosa! Mas, as vezes, detesto-a... É curioso...
Birkin olhou para o outro, que parecia estranho, distante. Era como se Gerald estivesse confuso em face das suas próprias.
- Mas agora, chega, não? - acudiu Birkin. - A experiência foi suficiente. Para que prosseguir além?
- Não sei. Ainda não acabou...
E os dois continuaram a andar.
- Estimei-o tanto como Gudrun, não se esqueça - disse Birkin com certa amargura. Gerald atentou nele, de forma esquisita, sem compreender.
- Acha que sim? - disse então, em tom de descrença, friamente. - Ou será só na sua imaginação? - Dizia isto, no entanto, sem pensar.
O trenó chegou. Gudrun apeou-se. Fizeram as despedidas. Estavam desejosos daquela separação. Birkin entrou no carrinho, que se pôs em movimento, deixando sobre a neve Gerald e Gudrun ambos a agitarem as mãos, a dizer adeus. O coração de Birkin enregelava-se de os ver ficar para trás, na desolação daquela brancura, cada vez mais pequeninos, mais distanciados...


Capítulo XXX
No meio da neve
Depois que Birkin e Úrsula partiram, Gudrun sentiu-se a vontade na sua contenda com Gerald. À medida que se iam habituando um ao outro, parecia que ele a procurava subjugar cada vez mais. A princípio ainda ela conseguia impor-se, e a sua vontade conservava-se independente. Mas não tardou muito que Gerald começasse a desdenhar aquela tática feminina, perdendo o respeito pelos caprichos e segredos da moça e exercendo o seu domínio cegamente, sem jamais se submeter aos desejos dela.
Entre eles surgia, pois, um conflito: ambos estavam apavorados com essa ideia. Ele não tinha quem lhe valesse, ela, porém, procurava algum auxílio externo.
Quando a irmã se foi embora, Gudrun sentiu que a sua vida se tornava rígida e elementar. Subiu ao quarto e ficou ali sozinha, contemplando da janela as estrelas enormes e cintilantes. A sua frente estava a sombra indefinida das montanhas. Eram como o eixo do mundo. Gudrun sentia-se estranha, colocada sobre aquele eixo do mundo e da vida; para além, cessava a realidade.
Nesse momento, Gerald abriu a porta. Ela previra que ele não se demoraria lá fora. Nunca lhe era dado estar só: impunha a sua presença, como o frio amortecendo-lhe a energia.
- Está abandonada nas trevas? - Pela voz, ela compreendeu que estava irritado, e irritado contra a solidão de que ela procurava rodear-se. Contudo, percebendo que nada poderia fazer, Gudrun mostrou-se atenciosa e pediu-lhe:
- Quer acender a vela?
Gerald não respondeu, mas avançou e ficou por trás dela, no escuro.
- Veja - disse Gudrun - que estrela maravilhosa! Sabe que nome tem?
Gerald curvou-se ao lado de Gudrun para observar através da janela baixa.
- Não sei - respondeu. - É linda!
- Lindíssima! Veja como solta clarões de diferentes cores. É uma soberba cintilação.
Calaram-se. Mudamente, com um gesto fatigado, ela pôs-lhe a mão nos joelhos, e tomou a dele entre as suas.
- Está sentindo falta de Úrsula?
_ Não. - Depois, muito vagarosa, acrescentou: - Qual é a sua maneira de amar?
Gerald aproximou-se mais de Gudrun.
- O que é que você acha?
- Não sei.
- Diga - insistiu Gerald.
Houve uma pausa. Por fim, na escuridão do quarto, ouviu-se a voz dela, dura e indiferente:
- Creio que o seu amor é muito pequeno. - Disse aquilo em tom frio, quase petulante.
- E por que é que não amo você? - perguntou como se admitisse a verdade daquela acusação, embora lhe guardasse rancor.
- Não sei, tenho sido boa para você. Quando veio ter comigo estava em tal estado de excitação...
Falava de maneira ofegante, mas era forte e impiedosa em sua acusação.
- Quando é que você esteve assim?
_ Da primeira vez... Tive pena de você. Não era amor o que você sentia.
Esta declaração soava-lhe aos ouvidos de uma forma que o fazia enlouquecer.
_ Por que repetir tantas vezes que não era amor? - perguntou ele com voz encolerizada.
- Você pensa que ama?
Gerald estava tão irritado que não respondeu.
- Não se julga capaz de me amar? - perguntou ela em tom de mofa.
- Não.
- Você nem sabe que nunca me teve amor, não é verdade?
- Não sei o que você entende pela palavra amor - replicou ele.
- Sim, sabe. Sabe perfeitamente que nunca foi assim. Não é verdade? - respondeu Gerald, prontamente, levado pelo seu espírito de sinceridade e de teimosia.
- E você jamais me terá amor - concluiu ela.
Mostrava uma frieza diabólica, insuportável.
- Não.
- Então - retorquiu ela - de que se queixa?
O outro calava-se, frio, desesperado e receoso. "Se ao menos pudesse matá-la..., pensava consigo mesmo; "se ao menos pudesse matá-la, ficaria livre!"Achava que a morte seria a única maneira de resolver aquele problema.
- Mas, por que torturar-me? - exclamou.
Gudrun passou-lhe os braços em volta do pescoço.
_ Não quero torturá-lo - respondeu compadecida, como se estivesse consolando uma criança. A impertinência acabara com os sentimentos dele; mostrava-se insensível. Ela continuava a abraçá-lo numa atitude de triunfante misericórdia, numa piedade tão fria como uma pedra, no mais profundo ódio por aquele homem, e no meio do domínio que ele podia recuperar e que era preciso combater hora a hora.
- Diga que me ama - pediu Gudrun. - Diga que há de amar-me sempre, diga!
Porém, apenas a voz o acariciava. Os sentidos permaneciam à parte, afastados, hostis. Só a vontade imperiosa é que insistia.
- Não quer dizer que me terá amor para sempre? - tornou ela, fazendo-se persuasiva. - Diga, ainda que não seja verdade. Diga, Gerald.
- Amo você para sempre - repetiu este, a custo. As palavras se recusavam a ser pronunciadas, ele sentia-se agoniado.
Gudrun beijou-o, num movimento rápido.
- Imaginar que você o disse... que o disse agora - comentou ela, zombeteira.
Gerald sentia-se como uma criança que acabasse de receber um castigo.
- Tente gostar um pouco mais de mim e desejar-me um pouco menos - continuou a moça, semidesdenhosa e semi-afável.
As trevas pareciam ter invadido, em ondas sucessivas, o cérebro de Gerald, ondas soturnas, que lhe varriam o espírito. Julgava-se humilhado, reduzido a uma coisa desprezível.
- Quer dizer que não me deseja? - perguntou ele
_ Você insiste tanto! E tem tão pouca compaixão, tão pouca delicadeza! Você é brutal. Você me destrói, desgasta; é horrível para mim!
- Para você?
- Sim. Não acha que eu poderia ter um quarto só para mim, agora que Úrsula foi-se embora? Podíamos dizer que precisamos de um quarto de vestir.
Gerald esforçou-se para responder.
- Como quiser. Pode ate partir de vez, se quiser.
_ Eu sei - replicou ela. - Você também, sem precisar me prevenir.
Gerald a custo se mantinha de pé. Sentia-se fraco e tinha a impressão de que ia cair desamparadamente. Despiu-se e atirou-se na cama, como se estivesse bêbado, a obscuridade erguia-se e abaixava-se como se fosse um mar vertiginoso e negro. Durante algum tempo ficou estendido, imóvel, inconsciente, em meio a um martírio abominável.
Finalmente, Gudrun levantou-se e aproximou-se dele. Gerald permanecia rígido, de costas para ela. Dir-se-ia haver repudiado a voz dos sentidos.
Colocando os braços ao redor de seu corpo, que denunciava aterradora insensibilidade, encostou o rosto no ombro do rapaz.
- Gerald! - murmurou. - Gerald!
Ele não se mexeu. Ela o atraiu para si, premindo os seios nas espáduas dele, beijando-o através da camisa. Não compreendia por que aquele homem estava tão hirto, quase sem vida. Sentia-se desnorteada e queria que ele acordasse e lhe falasse.
- Gerald! Gerald querido! - balbuciou, inclinando-se e dando-lhe um beijo na orelha.
A rigidez pareceu atenuar-se com o calor morno das carícias, com o roçar rítmico dos lábios. O corpo, ela bem o sentia, ia-se humanizando pouco a pouco, perdendo aquela frieza tão anormal. As mãos dela corriam-lhe sobre o tronco, tateando os músculos, que se contraíam sob a pressão.
Finalmente, o sangue circulou, aquecido, nas veias, e os membros retomaram a sua mobilidade.
- Volte-se para mim - cochichou ela, abandonando-se ao consolo do triunfo.
Finalmente, Gerald reanimou-se, recuperando a agilidade e o calor. Virou-se para ela e abraçou-a; e sentindo-a tão perto, tão suave, perfeita e dócil, em atitude tão inesperada, a estreitou contra si. Gudrun sentia-se arrebatada, sem opor resistência, e o cérebro de Gerald ficara outra vez rijo e invencível: era como um diamante que nada pudesse destruir.
A paixão que experimentou por ela foi violenta, medonha, impessoal, semelhante a uma catástrofe. Gudrun supôs que ele a ia matar. Teve a sensação de estar sendo assassinada.
- Meu Deus! Meu Deus! - exclamou, na agonia daquele amplexo, julgando que a vida lhe fugia. Quando Gerald a encheu de beijos, acalmando-a lentamente, Gudrun considerou-se esgotada e moribunda.
- Vou morrer? Vou morrer? - repetia para si mesma.
Mas nem ele nem a noite responderam a essa pergunta.
Contudo, no dia seguinte, a parte da sua alma que não fora impressionada continuou intata e hostil. Não se foi embora. Permaneceu disposta a terminar as suas férias sem querer saber de mais nada. Ele quase nunca a deixava só, seguindo-a como uma sombra. Era como uma condenação, seguindo-a como uma sombra. Às vezes Gerald parecia ser mais forte e Gudrun nem existia, arrastando-se sobre a terra como uma aragem que esmorece Noutras ocasiões acontecia o contrario. Mas sempre, o eterno pêndulo oscilava, ora destruindo as esperanças de um, ora reanimando-o pelo aniquilamento do outro.
"Mais dia menos dia", pensava ela, "terei de deixa-lo". "Posso livrar-me desta mulher", comentava ele nos paroxismos do sofrimento.
Decidiu, pois, abandoná-la. Preparou-se para ir embora e ela que se arranjasse como pudesse. Todavia, pela primeira vez, a vontade vacilou.
"Ir para onde?", perguntou a si mesmo.
Você não se basta?", respondeu-lhe a consciência, fazendo apelo ao orgulho.
"Bastar-me a mim próprio!", repetiu ele.
Achava que a moça não precisava de ninguém que, como um aparelho num estojo formava um conjunto perfeito, independente. Assim raciocinava ele, muito tranquilo, e ela estava no seu direito de se bastar a si mesma, de ser suficiente e de não ter desejos. Compreendia o fato, aceitava-o, e necessitava somente de um esforço para alcançar ele próprio semelhante vantagem. Sabia que lhe faltava apenas forçar a vontade e conseguir obter igual suficiência, fechar-se dentro de si mesmo isolado, impenetrável satisfeito, como um penedo fixado a terra.
Mas tal ideia lançou-o num tremendo caos. Pois, embora mentalmente quisesse ser livre e completo, faltava-lhe a vontade, que não sabia como obter. Via perfeitamente que, para existir com independência, precisava libertar-se de Gudrun, deixa-la, nada revindicar.
Mas, para isso, era preciso manter-se por si mesmo. A ideia reduzia-o a nada; seria o mesmo que aniquilar-se totalmente. Mas também poderia declarar-se vencido, adulá-la... Finalmente, poderia matá-la - a não ser que se tornasse indiferente, disperso sem se importar com a vida. A sua natureza, porém, era seria em demasia sem a jovialidade e a sutileza necessárias para um amor despreocupado e licencioso.
Em sua alma rasgava-se uma estranha fenda: como uma vítima dilacerada brutalmente e oferecida aos céus em holocausto, assim ele se sacrificara pelo amor de Gudrun. Como sarar tais feridas? Essa chaga, esse ferimento singular, infinitamente sensível e aberto na sua alma, pelo qual ficava exposto como uma flor desabrochada, a todo o universo, e por onde escapara parte de si próprio, o seu outro eu; aquela ferida que o ponha naquele desdobramento do ser que o deixava incompleto, limitado, inacabado como uma corola desfolhada ao sol, isso constituía agora a sua alegria cruel. Privar-se dela, então, para que? Para que encerrar impenetrável e independente como uma semente dentro do fruto, quando a verdade é que havia germinado à luz fecundante para lançar rebentos e elevar-se no espaço?
Queria guardar a felicidade indefinível do desejo mesmo em meio ao martírio que a jovem lhe infringia. Apoderava-se dele uma estranha obstinação. Não se afastaria de Gudrun, por mais que ela fizesse ou dissesse. Arrastava-o para a mulher um desejo singular e fatal; era a influência determinante do seu ser embora ela o tratasse com desdém, o acolhesse mal e o recusasse. Não se resolvia a partir, porque, estando junto de Gudrun, se sentia mais vivo, até mais independente na sua própria limitação; saboreava a magia da promessa tanto como o mistério da destruição e do aniquilamento de si mesmo.
Martirizava seu coração ferido, quando Gerald se aproximava. Mas a própria Gudrun também se submetia à tortura. Tinha a impressão - e isso causava-lhe horror - de que ele lhe rasgava as fibras da alma, dilacerando-as por prazer. Era como uma criança arrancando as asas de uma mosca, ou abrindo um botão para descobrir lá dentro a flor, despedaçava-a para ver o segredo da sua intimidade, da sua existência, como quem revolve uma flor ainda fechada, cruel e violentamente.
Gudrun pudera abrir-se com ele, noutro tempo, nos seus sonhos, quando era puro espírito. Mas, agora, não queria ser forcada nem destruída. Fechava-se contra Gerald, insulada no seu orgulho.
À tarde, ambos subiram a altas colinas para admirar o pôr do sol. Detiveram-se sob o vento fino e áspero que soprava, contemplando o astro alaranjado que mergulhava numa atmosfera avermelhada que desaparecia. Depois, para os lados do oriente, os picos e as cristas das serras iluminaram-se de tons rosados, vivos, incandescentes como flores imortais de encontro a um céu de púrpura sombria, miraculosa, enquanto embaixo o mundo parecia uma sombra azulada, e lá no alto, como uma anunciação, pairava um halo róseo entre as nuvens.
Para Gudrun era tudo isto tão belo, tão delirante, que ela desejaria colher aqueles picos cintilantes e eternos, estreitá-los ao peito, e depois morrer. Gerald via-os também, e achava-os igualmente belos. Mas nenhum clamor lhe saía do peito, apenas experimentava amargura, que era ao mesmo tempo devaneio. Preferiria que as montanhas fossem cinzentas e sem esplendor, de forma que a moça não pudesse encontrar nelas estímulo nenhum. Por que motivo se atraiçoava, a si mesmo e a ele também, entregando-se ao fulgor da tarde moribunda? Por que o deixava ali, em pé, com a aragem fria a atravessar-lhe o coração como se fosse a própria morte, para se volver toda à contemplação dos cimos róseos e nevados?
_ Que importa o crepúsculo? - disse ele. - Por que se ajoelha diante dele? É assim tão importante para você?
Gudrun retraiu-se, ofendida e furiosa.
- Vá-se embora - ordenou-lhe - e deixe-me sozinha aqui. É lindo, lindo! - murmurava numa voz cantada e singular. - É a coisa mais bela que jamais vi na minha vida. Não tente interpor-se entre mim e o poente. Vá-se embora. Este não e o seu lugar!
Gerald recuou um pouco e deixou-a ficar onde estava espécie de estátua transposta para um místico pedestal resplandecente. Os tons de rosa já se iam desvanecendo, e enormes estrelas claras apontavam no céu. O rapaz esperou. Teria renunciado a tudo, menos a essa fascinação.
- É a coisa mais bela que já vi na vida - repetiu Gudrun numa entonação fria e cruel, quando se voltou, finalmente, para Gerald. - Aflige-me a ideia de que você tente perturbar este espetáculo. Se não sabe admirar, por que não me permitir que o faça - Na realidade, o encanto que ela sentira já fora até miado, e Gudrun esforçava-se em reanimar uma sensação desaparecida.
- Um dia - disse ele fitando-a calmamente - darei cabo de você quando estiver olhando para o poente, tudo em você e falso.
Ao pronunciar estas palavras, experimentou como que uma suave volúpia. Gudrun ficara gelada, mas não perdeu a arrogância.
- Ah! Não tenho medo de suas ameaças.
Fugiu dele e foi ocupar, na hospedaria, um quarto rigorosamente separado, onde mais ninguém poderia entrar. Ele, entretanto, aguardava paciente, sem perder o desejo que a moça lhe inspirava.
"No fim", dizia Gerald para consigo - e esta promessa começava a ser-lhe voluptuosa -, "quando chegar a determinado ponto, destruí-la-ei." E pressentindo aquela morte, todos os membros lhe tremiam no mais violento acesso de paixão, e aproximava-se dela ébrio de apetites.
Em frente de Loerke, Gudrun mostrava agora uma curiosa submissão, um tanto insidiosa e perversa. Gerald percebeu. Mas, no estado de paciência sobre-humana que se impunha, e não querendo mostrar-se aborrecido perante ela - em quem reconhecia uma parte de si mesmo - fingiu não reparar, se bem que aquela simpatia concedida a um homem que ele detestava como inseto pernicioso, o fizesse estremecer de cólera e lhe desse repetidos acessos de furor.
Gerald só a deixava quando ia patinar, desporto que adorava e que ela não praticava. Nesses momentos, o rapaz sentia-se fora da vida como um projétil lançado no além. E então, quando ele não estava presente, Gudrun entretinha-se com o escultorzinho alemão. O assunto invariável era a arte da sua profissão comum.
Comungavam nas mesmas ideias. Loerke não gostava de Mestrovic, não se satisfazia com os futuristas, apreciava as estatuetas de madeira do Oeste africano, a arte dos astecas, do México e da América Central. Sabia descobrir o grotesco, e certos movimentos mecânicos o perturbavam por estabelecerem confusão na natureza. Entregavam-se os dois, Gudrun e Loerke, a um estranho jogo de infinitas sugestões, raras e doentias, como se tivessem ambos o mesmo sentido esotérico da vida, como se fossem os únicos iniciados nos segredos vitais e assustadores que o resto do mundo não se atrevia a conhecer. A conversa decorria por meio de estranhas imagens, não facilmente compreensíveis. Entusiasmavam-se com a luxúria sutil dos egípcios e dos mexicanos e todo esse divertimento prosseguia centre alusões inteligentes, desejando qualquer deles manter-se no plano da insinuação. Dessas graduações verbais e físicas extraíam a mais alta satisfação para o sistema nervoso: era um intercâmbio estranho de ideias simplesmente sugeridas, olhares, expressões e gestos que, para Gerald, seriam intoleráveis, embora não os entendesse. Quanto a este, não tinha no seu vocabulário termos que servissem àquele comércio intelectual; os seus eram em demasia grosseiros.
O encontro da arte primitiva servia de principal motivo de conversa: refugiavam-se nesses mistérios íntimos da sensação, objeto do seu verdadeiro culto. A arte e a vida significavam para eles o real e o irreal.
- É claro - dizia Gudrun a existência não tem importância real: a arte só é que interessa. O que fazemos na vida tem peu de rapport, não significa quase nada.
- Nem mais nem menos - respondia o escultor. - O que se realiza em nossas almas artísticas é que representa o sopro vital. O que praticamos fora disso é uma insignificância, embora os outros se preocupem tanto com essas ninharias.
Era curioso observar como Gudrun aproveitava, daqueles colóquios, tantas sugestões de exaltação e de liberdade.
Sentia-se mais estabilizada, talvez de uma forma definitiva. Gerald, como se sabe, não passava de uma nulidade, o amor era um ato temporal na sua vida, exceto no que dizia respeito a sua qualidade de artista. Lembrou-se de Cleópatra, que também devia ter sido artista: retirara do homem tudo quanto ele possuía de essencial, colhera a derradeira sensação e deitara fora os restos. Assim, Maria Stuart e a ilustre Rachek - que delirava com os seus amantes, fora do palco - eram igualmente representantes esotéricos do amor. No fim de contas que era este sentimento senão a lenha utilizada para incendiar a ciência sutil da arte feminina, arte da pura e perfeita sabedoria na compreensão dos sentidos?
Certa tarde, Gerald e Loerke conversavam acerca da Itália e de Trípoli. O inglês estava inflamado e o outro parecia excitado. Digladiavam-se com palavras, mas na realidade o que havia entre eles era um conflito espiritual. Durante todo o tempo Gudrun pôde observar o desprezo arrogante dos da sua raça pelos estrangeiros. Embora tremesse um pouco, seus olhos flamejavam, seu rosto se avermelhava e, no que dizia, perpassava seu desdém selvagem e peculiar, que tanto indignava a moça e mortificava o alemão Gerald apresentava seus argumentos como marteladas, e tudo quanto o escultor dizia era considerado sem o menor valor.
Por fim, Loerke voltou-se para Gudrun, ergueu as mãos num gesto instintivo de desespero, e encolheu os ombros para indicar que desistia. Tinha, ao mesmo tempo, um ar impotente e infantil, na sua deserção.
- Sehen Sïe, gnädige Frau... - Está vendo isso, minha senhora - nota da tradutora) - começou ele.
- Bitte, sagen Sie nich immer gnädige Frau - É favor não me chamar sempre de Frau (senhora casada) - nota da tradutora) - começou Gudrun com as faces escaldando. Parecia uma autentica Medusa. A voz saía-lhe forte, atroadora, e as pessoas que estavam na sala ficaram espantadas. - Faça o favor de não me chamar de Senhora Crich - repetiu bem alto.
Aquele nome, especialmente nos lábios de Loerke, constituía ultimamente, para ela, um constrangimento humilhante e insuportável.
Os dois homens olharam para ela, pasmados. Gerald empalideceu.
- Como devo chamá-la, então? - perguntou Loerke em tom ligeiramente sarcástico.
- Sagen Sie nur nich das - A frase está traduzida mais adiante no mesmo parágrafo - nota da tradutora) murmurou ela, muito corada, com as faces ardentes - Pelo menos, não diga isso.
Pela expressão que despontou no rosto de Loerke, ela Percebeu que o rapaz havia percebido tudo. Não era a Senhora Crich! Aquilo explicava muita coisa.
- Soll ich Fraülein sagen? - Devo tratá-la por Fraulein (senhorita)? nota da tradutora), perguntou malevolamente.
- Não sou casada - confirmou Gudrun, com altivez. O coração batia-lhe com violência, como o de um pássaro desnorteado. Compreendia que se havia excedido, e só essa ideia era o bastante para a fazer sofrer.
Gerald ficara absolutamente calmo, pálido e imóvel, qual uma estátua. Desinteressara-se de Gudrun, de Loerke, de todos. Estava tranquilo, inalterável. O escultor, encolhido, de cabeça pendida para o chão, olhava para eles disfarçadamente.
Gudrun procurava, aflita, qualquer coisa que dizer, a fim de quebrar o silêncio. Contraindo a face num sorriso forçado, lançou a Gerald um olhar de compreensão, dizendo:
- É melhor que saibam a verdade.
E imediatamente recaiu sob o domínio dele - porque o ofendera, porque o magoara tanto, porque não sabia como Gerald iria reagir. Ficou a observá-lo. Interessava-se agora pelo homem. Loerke perdera todo o encanto.
Gerald levantou-se por fim, e foi, calmamente, conversar com o professor. Pouco depois ambos empenhavam-se numa discussão a respeito de Goethe.
Aquela naturalidade irritou bastante a moça. Gerald não se mostrara nem zangado, nem desgostoso; tinha, pelo contrario, um ar estranhamente cândido e puro. Muitas vezes apresentara aquele aspecto digno e distante, que tanto a fascinava.
Esperou apreensiva. Pensou que a fosse evitar, dando-lhe a entender o seu aborrecimento. Mas Gerald tratou-a com simplicidade, sem a mínima alusão ao incidente. Na alma de Gerald havia uma grande paz, que o tornava absorto e pensativo.
Gudrun recolheu-se ao quarto; experimentava por Gerald um amor escaldante, violento. Ele era tão belo e inacessível. O rapaz a beijou. Era o seu amante. Quanto prazer extraia ela daquela circunstância! Gerald, porém, não mudou a sua maneira de tratá-la. Continuou remoto, inocente, quase inconsciente. Gudrun queria que ele falasse; mas esbarrava com aquele estado de graça, de abstração em que ele parecia divagar.
Pela manhã, contudo, Gerald olhou para a moça comum pouco de aversão, de horror, de ódio tenebroso nas pupilas. Voltou ela então à sua posição anterior. Ele, no entanto, desconhecia toda a extensão da sua força, para que a pudesse empregar com eficiência.
Loerke esperava o reaparecimento de Gudrun. O artista, isolado em si mesmo, calculava que descobrira, enfim, uma mulher interessante. Sentia-se inquieto, esperando por ela para conversar, saboreando a ocasião de tê-la junto a si. A presença de Gudrun enchia-o de ardor, estimulava-o, e ele girava astutamente em volta dela como que arrastado por uma atração inevitável.
Loerke comparava-se a Gerald. Este era um profano e ele o detestava pela sua riqueza, orgulho e belo aspecto físico. Todas estas coisas, porém, representavam apenas elementos exteriores. Quando se tratava de agradar a uma mulher como Gudrun, ele, Loerke, dispunha de poder e atrativos que faltavam a Gerald e que ele não poderia imaginar nem em sonhos.
Como esperasse que uma mulher da categoria de Gudrun se satisfizesse com ele, Loerke detinha um segredo que ultrapassava aquelas qualidades. O maior poder é o que sabe adaptar-se sutilmente e não o que ataca de olhos fechados. Ele, Loerke seria capaz de penetrar nas profundezas de toda a ciência, ao contrario do amante de Gudrun. Gerald ficara para trás, como um noviço que espera na antecâmara do templo dos mistérios: esse templo era Gudrun. Loerke, pelo contrário, conseguiria penetrar até ao mais íntimo e oculto, descobrir o espírito dela e vencer a serpente enroscada no próprio âmago da vida. Afinal de contas, o que é que exige a mulher? Simples consideração pessoal, satisfação de ambições? A união no amor e na bondade? Deseja ela, realmente, "a bondade"? Quem seria tão louco de julgar isso de Gudrun? Seriam estes os seus desejos, aparentemente. Mas quem atravessasse o limiar, veria com quanto encarava ela o mundo social e todas as suas vantagens. Quem descesse ao fundo de sua alma notaria a atmosfera pungente de ceticismo, e a consciência crítica, viva e sutil com que ela apreciava a sociedade antipática e falsa.
Que sucederia então? A pura força do amor cego seria capaz de a satisfazer? Não, decerto: mas as emoções vivas e penetrantes de uma conquista lentamente conduzida o conseguiriam; antes uma vontade inflexível reagindo contra a vontade dela em sensações constantes, antes uma análise persistente e delicada exercendo-se no mais oculto da alma da mulher. A forma exterior e individual, pelo contrário, permanecendo sem alteração, seria ineficaz.
Mas entre duas criaturas, entre dois habitantes da terra, a série de impressões acaba por ser limitada. A sua escala, uma vez orientada em certa direção, deixa de produzir efeito, e extingue-se. Não há repetições possíveis, impõe-se a separação dos dois protagonistas ou a submissão de um ou de outro, ou ainda a morte.
Gerald atingira todos os pontos extremos da alma de Gudrun; tornara-se para esta o exemplo crucial do mundo exterior o nec plus ultra da vida dos homens nas relações para com ela Por ele ficara conhecendo a sociedade com a qual gostaria de romper. Tendo-o esgotado, assemelhava-se ela a um Alexandre a procura de novas conquistas. Mas não havia países novos nem novos homens, apenas indivíduos pequenos e fracos, seres ínfimos, da categoria de Loerke. O mundo, pois, finalizara para Gudrun. Restava-lhe apenas uma sombra interior, individual a sensação íntima do ego, o repugnante mistério da diabólica limitação, enigmática atividade para se reduzir e desintegrar do corpo orgânico da vida.
Tudo isto pressentia ela na sua inconsciência, nunca no espírito. Sabia que passos deveria dar quando deixasse Gerald. Tinha medo dele, receava que a matasse. Não queria ser assassinada, é claro. Sentia-se ainda unida a ele por um fio muito tênue, que a morte não despedaçaria. Gudrun precisava ir mais além, sentia existir ainda uma colheita de experiências lentas e delicadas a realizar, antes de abandonar a vida.
Para estas supremas sensações, Gerald não era a pessoa indicada. Não seria capaz de atingir o mais vivo da sua carne. Mas, onde os golpes violentos daquele homem não penetravam, a finura e agudeza de Loerke triunfariam. Era acerado como um inseto, perfurante como uma lâmina. Chegara, pois, a ocasião de passar para o outro, o artífice perfeito e definitivo. Não ignorava que Loerke, no mais recôndito de sua alma, se afastara de tudo e de todos; para ele não havia céu, nem terra, nem inferno. Não admitia autoridade alguma, não se submetia a ninguém. Solitário sempre e - por abstração do resto - absoluto em si próprio.
Gerald, pelo contrário, desejava pertencer ao mundo inteiro. Isso mostrava os seus limites. Era, de fato, limitado, borne, submetido, em última análise, ao que criara, bom, justo, coerente com as suas necessidades. Mas, entre essas necessidades, não figurava a morte com a sua experiência sutil e perfeita. Era aí que residia a sua limitação.
Loerke pairava numa atmosfera de triunfo desde que a moça lhe confessara não ser casada com Gerald. O artista parecia uma mariposa em voo, mantendo-se nas asas à espera do momento de pousar. Não se importava de esperar. Jamais seria importuno. Levado por um instinto seguro na obscuridade da sua alma, correspondia-se com a dela de forma imperceptível, misteriosa, mas palpável.
Conversaram durante dois dias, sempre sobre temas de arte, na qual encontravam ambos tanto prazer. Adoravam as coisas dos tempos idos, achavam encanto sentimental e infantil na perfeição das épocas pretéritas. Amavam particularmente o final do século XVIII, o período de Mozart, e a época do Goethe e de Shelley.
Entretinham-se com o passado e com as grandes figuras desaparecidas, numa espécie de jogo de xadrez, com o que se divertiam intensamente. Todos os homens notáveis lhes serviam de bonecos de molas; eles dois eram os dirigentes do espetáculo e puxavam os cordéis, pondo tudo a funcionar. Quanto ao futuro, jamais se ocupavam disso, exceto quando um deles expunha, a rir, qualquer fantasia humorística da destruição do mundo por meio de uma catástrofe ridícula, resultado de uma invenção qualquer: algum explosivo, talvez, poderosíssimo, que partiria a Terra em duas partes, ficando os dois pedaços a girar no espaço em direções opostas, diante do pasmo dos respectivos habitantes. Ou então imaginavam os homens divididos em dois partidos contrários, cada um deles convencido de ser o mais justo e perfeito, e considerando o outro indigno e merecedor de ser arrasado; calculavam, assim, várias espécies de fim do mundo. Havia ainda um sonho sinistro delineado por Loerke: a Terra se resfriaria, a neve cairia por todos os lados, e só os seres brancos - ursos polares, raposas brancas, homens semelhantes a terríveis aves das regiões árticas - permaneceriam na crueldade do gelo.
Quando não se distraíam com tais fantasias, Loerke e Gudrun evitavam falar no futuro. Preferiam divertir-se imaginando processos cômicos de destruição do planeta ou dissecando personagens românticas do passado. Era tão agradável reconstituir a vida de Goethe em Weimar, ou a de Schiller com a sua pobreza e o seu amor fiel, ou ressuscitar os temores de Jean-Jacques, ou Voltaire em Ferney, ou Frederico, o Grande, lendo seus próprios versos.
Palestravam durante horas sobre literatura, escultura e pintura recreando-se com Peuerbach e Bocklin. Seria necessária a duração de uma vida inteira, pensavam, para reviver in totum a existência dos grandes artistas. Mas tanto um como outro preteriam deter-se nos séculos XVIII e XIX.
Falavam numa mistura de idiomas, com base no francês. Loerke terminava a maior parte das frases por um tartamudear em inglês e uma tirada em alemão, ao passo que ela chegava ao fim do seu pensamento com as palavras que mais depressa lhe viessem ao espírito. Gudrun deliciava-se com estes colóquios. Havia estranhas expressões, fantásticas mesmo, frases de duplo sentido, evasivas sugestivas, reticências. Constituía, de fato, uma maravilhosa satisfação física poder tecer uma conversa com os fios diferentemente coloridos de três línguas.
Durante todo este tempo, volteavam, hesitantes, em torno de uma invisível declaração. Bem a desejava ele, mas impedia-o uma certa repugnância que não conseguia vencer. Ela, por seu lado, experimentava a mesma vontade, mas ia transferindo sempre; tinha pena de Gerald, sentia-se ainda ligada àquele homem foi o pior de tudo é que esse relacionamento derivava de reminiscências porque havia sido, considerava-se unida por laços invisíveis e imortais - sim, pelo que tinha sido, pelo fato de ter ido ele, naquela primeira noite, à sua casa, sob tremenda compulsão.
Gerald experimentava repulsa cada vez maior por Loerke. Não o levava a sério, desprezava-o simplesmente; porém, quando adivinhava em Gudrun a influência daquele entezinho mórbido, ficava fora de si; enfurecia-o perceber na jovem o predomínio de Loerke, a presença avassaladora do escultor.
- O que é que a entusiasma tanto nesse verme? - perguntou certa vez, sinceramente intrigado. Pois, para ele, nada via de atraente nem de notável no escultor. Pensava que só a beleza e a dignidade poderiam suscitar interesse às mulheres. Nada disso havia no alemão, apenas o que se via dele era a aparência repulsiva de um inseto.
Gudrun corou profundamente. Jamais lhe perdoaria as observações que fazia.
- Que quer dizer? - perguntou ela. - Como dou graças a Deus por não me ter casado com você!
O tom de voz, desdenhoso e insultante, impressionou-o. Mas, pouco depois, retomou o ataque:
- Responda-me, sim? O que vê de fascinante nele?
- Não estou fascinada - respondeu Gudrun, com ar inocente. Está, sim. A serpentezinha fascinou-a e a deixou qual um passarinho prestes a cair-lhe da boca.
Gudrun fitou-o, enfurecida.
- Não permito que o meu procedimento seja discutido - redarguiu.
- Que o permita ou não, pouco me importo. Isso não destrói o fato de estar prontinha para cair nas redes que ele armou. Faça o que entender, meta-se na boca da víbora. Mas o que eu gostaria de saber é o que tem ele de atraente.
Gudrun mergulhou numa cólera sombria.
- Como se atreve - disse finalmente - a tratar-me com tamanha arrogância? Como ousa fazer isso, meu provinciano fanfarrão? Que direitos supõe ter sobre mim?
O rosto de Gerald brilhava, pálido. Os olhos fulguravam. Gudrun percebeu que tombara em poder do lobo. Odiava-o por ser dominada por ele, odiava-o tanto que poderia ser capaz ate de matá-lo.
- Não é uma questão de direitos - replicou Gerald, sentando-se na poltrona.
Gudrun observava-lhe todos os gestos. Via seu corpo mexer-se em movimentos naturais, e aquilo era para ela uma verdadeira obsessão. À ira que sentia acrescentou-se um desprezo definitivo.
- Não se trata dos direitos que tenho sobre você - repetiu ele - porque os tenho, quer você queira, quer não. Quero apenas saber o que a subjuga a esse escultor de merda, que esta la embaixo e que a faz curvar-se em adoração à sua passagem. Quero saber, perante quem, em suma, você se prostra de joelhos.
Gudrun ouvia-o debruçada à janela. De repente, voltou-se para dentro.
- Quer saber? - exclamou num tom desembaraçado e fustigante. - Quer saber o que vejo nele? É a compreensão que tem da alma de uma mulher. É isso.
O rosto de Gerald animou-se de uma expressão estranha, sinistra, bestial.
- Que tipo de compreensão? A de uma pulga munida de tromba, saltitante? Por que você há de rastejar abjetamente em homenagem a uma pulga?
No espírito de Gudrun passou a ideia da representação de uma pulga, consoante a interpretação de Blake, e tentou aplica-la a Loerke. Mas Blake era demasiado caricatural. Que iria responder a Gerald?
_ Você não acha que a inteligência de uma pulga e mais interessante do que a de um imbecil? - perguntou ela.
- Um imbecil? - repetiu Gerald.
- Sim, um imbecil vaidoso, um dummkopf - confirmou a jovem enriquecendo o seu vocabulário com uma palavra alemã.
- Está dizendo que eu sou um imbecil? Pois prefiro ser isso do que a tal pulga que está lá embaixo.
Gudrun enfrentou-o. Gerald tinha um ar de estupidez tão cega e obtusa que ela desanimou, limitando-se a dizer:
- Com essas últimas palavras, você se definiu.
O rapaz refletiu.
- Não tardarei a ir-me embora - declarou.
Gudrun não o deixou sem resposta:
- Lembre-se de que sou completamente livre. Trate da sua vida que eu tratarei da minha.
Aquela observação levou-o a meditar.
- Quer dizer que deste momento em diante somos estranhos um para o outro?
Ela hesitou, corando. Gerald armava uma ratoeira.
- Estranhos - disse ela - nunca poderemos ser. Mas se quiser desembaraçar-se de mim, confirmo que você é independente e senhor de suas ações. Não se preocupe comigo.
Aquela observação, embora velada, era a confissão de que ela ainda precisava dele. Isso reacendeu-lhe o amor. Deixou-se ficar imóvel porém, a expressão já não era a mesma. Corria-lhe pelo corpo uma corrente semelhante ao metal fundido. Gemeu interiormente, sob o jugo, mas a escravidão lhe era grata. Mirou-a com os olhos claros e esperou.
Gudrun percebeu o que se passava e sentiu-se estremecer. Mas continuou fria e revoltada. Como podia ele contemplá-la com aqueles olhos claros, quentes, suplicantes? Como podia ter, mesmo naquele momento, esperanças nela? O que haviam dito, de parte a parte, não seria o bastante para cavar um abismo entre os dois para separá-los para sempre? Ei-lo entanto, ali estava ele alerta e transtornado, disposto a recebê-la!
Aquilo desconcertava a moça. Voltou-se para o lado e disse:
- Não deixarei de preveni-lo, assim que tomar uma decisão.
E com isto, saiu do quarto.
Gerald ficou sentado, entregue ao horror da decepção que parecia destruir-lhe gradualmente o entendimento. Todavia, a paciência persistia nele de forma inconsciente. Conservou-se imóvel, sem saber o que fazer, sem pensar sequer. Por fim levantou-se e desceu para o andar térreo, onde jogou uma partida de xadrez com um dos estudantes. Tinha um ar acolhedor e franco e certa inocência no seu laisser-aller, que perturbaram Gudrun o mais possível; ele fazia-lhe medo e inspirava-lhe simultaneamente profunda antipatia.
Foi depois dessa ocasião que Loerke - que nunca lhe perguntara nada de sua vida particular - começou a interrogá-la.
- Não é mesmo casada?
Gudrun fitou-o bem nos olhos e respondeu de modo categórico:
- Claro que não.
Loerke riu-se, franzindo o rosto de modo engraçado. Um tufozinho delgado de cabelos tombava-lhe sobre a testa, e Gudrun reparou em sua pele de um tom moreno-claro, assim como as mãos e os punhos, que se assemelhavam, estranhamente, a duas garras. Loerke assemelhava-se a um topázio, amarelado e transparente.
- Ainda bem - declarou.
No entanto, precisava de coragem para prosseguir.
- A Senhora Birkin é sua irmã, não é?
- É.
- É casada?
- Sim, é.
- Tem pais vivos?
- Sim, nossos pais ainda são vivos.
E expôs-lhe, em termos breves, lacônicos, qual era a sua posição. Loerke olhava-a atentamente, sempre debaixo da mais viva curiosidade.
- Só! - exclamou, um pouco surpreendido. - E Herr Crich é rico?
- Sim, é rico. É proprietário de minas de carvão.
- Há quanto tempo dura a sua intimidade com ele?
- Alguns meses.
Houve uma pausa.
- Estou admirado - volveu o escultor, finalmente. - Considerava os ingleses muito mais frios... Que pensa fazer quando o deixar?
- Que penso fazer? - repetiu ela.
- Sim, creio que não pretende voltar a ensinar. Não é possível mais - declarou, encolhendo os ombros. - Deixe isso à canaille que não sabe fazer outra coisa. A senhora é uma pessoa original, eine seltsame Frau. Para que negar a evidência? É uma mulher estranha, por conseguinte não deve seguir as outras estagnando-se em uma vida banal.
Gudrun, muito corada, olhava para as mãos. Agradava-lhe ouvir dizer que era uma pessoa diferente das outras. E ele não o dizia para a lisonjear não era aquele o jeito dele, tão objetivo se mostrava sempre! Declarava aquilo como se notasse que tal peça de estatuária tinha qualidades, porque sabia ser verdadeiro.
Ela se regozijava com semelhantes elogios. Os outros costumavam rebaixar tudo e todos ao mesmo nível, estabelecendo um modelo único. Na Inglaterra, era de bom-tom ser perfeitamente vulgar. Ser considerada como um ente diferente da multidão era coisa extremamente grata à moça. Não precisaria afligir-se com a opinião de mais ninguém.
- Mas a questão é que não disponho de dinheiro.
- Ach! Dinheiro! - exclamou o artista, num gesto de indiferença. - Quando já atingimos a maioridade, o dinheiro não é difícil de encontrar. Só quando somos inexperientes é que ele escasseia. Não pense em dinheiro, o terá sempre que quiser.
- Acha? - perguntou-lhe Gudrun, sorrindo.
- Sempre. Der Gerald dá-lhe o necessário, se lhe pedir.
Gudrun ruborizou-se intensamente.
- Pedirei a qualquer um - replicou a moça - menos a ele. - Dissera isto com certa dificuldade.
Loerke olhou-a com atenção.
- Está bem. Peça-o a quem melhor entender. O que não deve é voltar para a Inglaterra, para a tal escola. Isso seria uma coisa estúpida.
Houve novo silêncio. Loerke tinha medo de a convidar para ir com ele; nem ao menos estava certo de desejar tal solução. Ela, por sua vez, receava que ele lhe apresentasse essa proposta. O escultor prezava em extremo a sua solidão e não era pessoa para, nem sequer por um dia, fazer alguém compartilhar de sua vida.
- Só conheço outro centro importante: Paris - disse Gudrun. - Mas não gostaria de ir para lá.
Fitou o interlocutor com os seus olhos grandes, muito abertos. O outro baixou a cabeça, desviando a vista.
- Paris, não! - exclamou. - Entre a religion d'amour, o último "ismo", o regresso a Jesus, mais vale andar de carrossel todos os dias. Mas venha para Dresden. Tenho lá uma oficina, posso arranjar-lhe trabalho. Nunca vi nenhuma das suas escutarias, mas acredito no seu valor. Venha para Dresden: é uma cidade agradável, onde se pode viver. Lá encontrará tudo o que se espera de uma cidade, sem a imbecilidade de Paris ou a cerveja de Munique.
Gudrun contemplava-o tranquilamente. Gostava de o ouvir falar assim, com simplicidade, cavalheirescamente. Loerke era um artista, antes de tudo.
- Paris, não - repetiu ele. - Dá-me náuseas. O amor, detesto-o. L'amour, L'amour, die Liebe. Detesto-o em todas as línguas. As mulheres e o amor... não há nada mais enfadonho.
- Sou também dessa opinião - asseverou Gudrun.
Estava levemente ofendida. Contudo, não havia a menor dúvida: homens, amor... nada mais enfadonho.
- É uma grande maçada - prosseguiu o escultor. - Que importa que eu use este ou aquele chapéu? De igual forma o amor. Só uso chapéu por conveniência. É isto, gnädige Frau - inclinou-se diante da moça e fez um gesto rápido, grotesco como para afastar qualquer coisa. - Gnädige Fraulein, desculpe... É, isto que lhe digo, trocarei tudo, tudo o que chamam amor, por uma companheira inteligente... - Piscou os olhos sombrios, com malícia. - Compreende - continuou, com um sorriso. - Não faz mal que ela tenha cem anos, ou mil... para mim e indiferente, uma vez que me possa entender. - Baixou as pálpebras.
Gudrun sentiu-se ofendida, mais uma vez. Então não a achava bonita. E desatou a rir, bruscamente.
- Seria preciso esperar oitenta anos, pelo visto, para lhe agradar. E feia, já o serei bastante.
Loerke observou-a com olhar crítico, de artista e de entendido.
- É bonita, e tenho muito prazer em lhe dizer isso. Mas não é isso - prosseguiu em tom enfático que a sensibilizou - É porque a senhora tem inteligência, a espécie de inteligência que eu exijo. Eu sou baixinho, insignificante. Pois bem. Não me peça que seja belo e vigoroso. Mas é de mim - e pôs os dedos na boca, em gesto cômico - que alguma amante anda em busca, é a mim que ela espera, e o que deseja é uma união com a minha inteligência. Está compreendendo?
- Muito bem - disse Gudrun.
- Quanto ao outro, o tal amour - fez com a mão um movimento como o de expulsar um importuno - não tem importância nenhuma. Que resulta, se eu tomar esta noite vinho branco ou não tomar nada? Não interessa! Assim é o amor, esse amour, esse baiser. Sim ou não, soit ou soit pas, hoje, amanhã, ou nunca, é sempre o mesmo, não importa, ou importa tanto como o vinho branco.
Finalizou o discurso, deixando pender a cabeça para frente em movimento grotesco, sinal de desesperada negação.
De súbito, ela se aproximou, tomando-lhe a mão.
- É verdade - disse ela em voz cheia e veemente. - Para mim é assim também. Só a inteligência é que conta.
Loerke ergueu os olhos para a jovem. Parecia quase assustado. Depois de mau humor, abanou a cabeça. Gudrun largou sua mão. O escultor não correspondera à carícia dela.
Ficaram ambos silenciosos.
- Sabe? - disse ele por fim, mirando-a de repente com os seus olhos sombrios, orgulhosos e proféticos. - O seu destino e o meu hão de seguir lado a lado, ate que...
- Mas interrompeu-se, fazendo uma careta.
- Ate quando? - inquiriu a moça, pálida, com os lábios descorados. Era terrivelmente sensível a esse gênero de prognósticos. Loerke, porém, limitou-se a mover a cabeça, e depois acrescentou:
- Não sei... Não sei.
Só ao anoitecer Gerald voltou do seu exercício de patinação: faltara ao lanche de café e bolo que serviam às quatro horas. A neve estava em perfeitas condições, e o rapaz fizera um grande percurso, sozinho, até aos cimos gelados, subindo tão alto que pudera ver mais abaixo, à distância de cinco milhas, a Manenhutte, e a hospedaria do alto do desfiladeiro meio soterrada pela neve; descortinara o vale profundo ate a sombra produzida pelo grupo de pinheiros. Poderia voltar para casa por aquele caminho, mas só a ideia do regresso lhe causava náuseas. Poderia também descer, patinando, até a velha estrada imperial, logo por baixo do desfiladeiro. Mas para que seguir por uma estrada? Revoltava-se em pensar que encontraria gente. Antes ficar ali, no meio da neve, para sempre. Tinha sido feliz na solidão, deslizando suavemente e fazendo ressaltar pedaços de gelo entre os rochedos escuros estriados de linhas alvas e brilhantes.
Sentia, porém, gelar-se igualmente seu coração. Aquele estranho estado de paciência e candidez, que havia durado alguns dias desaparecia agora; Gerald tornava-se vítima de horríveis paixões e torturas.
Voltou, pois, de má vontade, queimado pela neve, tornado cruel pela ação do frio, e encaminhou-se para o côncavo que jazia entre os sopés ligados das montanhas. Viu, ao longe, as luzes amarelas das casas, e diminuiu a marcha, desejoso de não encontrar os outros nem ouvir o tumulto das vozes e sentir-se incomodado pela presença alheia. Experimentava um isolamento tal como se à sua roda se houvesse formado o vácuo ou uma camada de gelo puro.
No instante em que descobriu Gudrun, seu coração começou a bater descompassadamente. Ela lhe pareceu imponente e soberba, sorrindo lânguida e graciosamente para os alemães. Gerald sentiu a tentação de matar. Saboreava antecipadamente a volúpia da destruição. Seu espírito estava ausente; a neve e a paixão haviam-no enregelado e endurecido. A ideia, todavia, não o deixava; que prazer requintado não seria estrangulá-la, extinguir naquela mulher o último sopro de vida ate vê-la inerte e paralisada para sempre, carne flácida a lhe escapar dos dedos, perfeitamente aniquilada? Seria a forma de vê-la acabar-se da maneira mais completa.
Gudrun, ao vê-lo aparentemente tão calmo e amável, como de costume, não pressentiu quais os pensamentos que o animavam. Aquela amabilidade despertou-lhe, como sempre, um sentimento de ódio contra ele.
Entrou no quarto quando Gerald já estava meio despido e não reparou no brilho singular e jovial, de pura aversão, que o homem tinha no olhar. A jovem deteve-se no limiar da porta, com a mão atrás das costas.
- Estive pensando, Gerald - disse com ar de indiferença que pareceu a ele insultuosa - se devo voltar para a Inglaterra.
- Aonde quer ir, então? - indagou ele.
Ela, porém, evitou responder diretamente. Preferia fazer a sua exposição metodicamente, como havia imaginado.
- Acho melhor não continuarmos. Entre mim e você, tudo acabou...
Calou-se para deixar que ele respondesse. Gerald, contudo, não disse nada. Pensava apenas: "Acabou? - Sim, creio que acabou. Mas não de vez. Lembre-se de que não acabou ainda para sempre. É preciso acrescentar qualquer coisa; um ponto final, definitivo".
- O que aconteceu, aconteceu - prosseguiu ela. - Não me arrependo de nada. Espero que você, também...
Aguardou que ele desse qualquer explicação.
- Não, também não me arrependo de nada - asseverou o rapaz.
- Ainda bem - volveu Gudrun - ainda bem que nenhum de nós se queixa. É bem melhor assim.
- Claro - disse ele, distraído.
Gudrun fez uma pausa, e acrescentou:
- A nossa tentativa não deu resultado. Mas poderemos continuar as nossas experiências em outro lugar.
Percorreu-o um estremecimento de fúria. Parecia que ela o espicaçava. Para quê?
- Tentar o quê? - perguntou.
- Sermos amantes, é óbvio - respondeu ela, um tanto desconcertada.
- Falhou a nossa tentativa de sermos amantes - repetiu Gerald em voz alta.
Porém, com seus botões, ele pensava: "Devo matá-la aqui mesmo. É tudo o que me resta fazer". Apoderava-se dele uma vontade forte e imperiosa. Gudrun não percebia nada.
- Acha então que nossa união foi um completo êxito?
A ofensa daquela pergunta petulante passou pelo sangue de Gerald como se fosse uma corrente de fogo.
- Houve alguns momentos de êxito nas nossas relações - retorquiu ele.
- Podia ter sido bom o resultado.
Todavia, antes de concluir a frase, baixou a voz. Mesmo quando formulou o que ia dizer, sabia que não estava sendo sincero. Sabia muito bem que tudo não passara de um fracasso.
- Não podia - replicou Gudrun. - Você é incapaz de amar.
- E você? - atalhou ele.
Os olhos da moça fitavam-no sóbrios, como duas luas no meio das trevas.
- A você é que eu não consegui amar - declarou ela com franqueza fria e resoluta.
Gerald estremeceu, e diante dos olhos passou-lhe um clarão que o incendiou. O coração parecia jorrar-lhe numa chama. A consciência desceu-lhe para as mãos, para os pulsos. Não via nada, e só um desejo, insistente, o dominava: matá-la. Os punhos moviam-se e necessitava tê-la nas mãos para que se sentisse satisfeito.
Antes, porém, que avançasse para por o seu plano em prática, já a face de Gudrun denunciava haver-lhe compreendido o propósito, e, num relâmpago, ela correu para a porta. Depois, seguiu para seu quarto e fechou a porta à chave. Tinha medo sem ter perdido a confiança. Sabia que estava à beira de um abismo. Mas sentia-se segura. Calculava poder vencê-lo pela astúcia
Só, no quarto, Gudrun tremia, ainda excitada, com acessos de alegria insensata. Mantinha-se na certeza de que conseguiria enganá-lo. Tudo dependeria da sua presença de espírito. A luta, contudo, seria de morte; Gudrun não ignorava isso. Qualquer passo em falso, e estaria perdida. Experimentava um torpor estranho e ao mesmo tempo agradável, que lhe dava coragem, como alguém que se considera prestes a cair de grande altura, mas que não olha para baixo e que não admite ter medo.
- Vou-me embora depois de amanhã - resolveu consigo mesma.
Não queria, entretanto, que Gerald supusesse que o fazia para fugir, amedrontada com a atitude dele. No fundo não sentia medo. Percebeu que para sua salvação precisava evitar a violência física do rapaz. Mas, ainda fisicamente, ele não lhe infundia grande pavor. Precisava demonstrar isso a ele. Quando o tivesse feito, quando lhe provasse o que queria, poderia deixá-lo para sempre. Até aí, o combate entre os dois, terrível como ela não duvidava que fosse, manter-se-ia insolúvel. Gudrun necessitava ter confiança em si mesma. Por maiores que fossem os calafrios que a tomassem, não se deixaria vencer pelo horror. Gerald não a intimidaria, nem a dominaria, nem manifestaria direitos sobre ela. Gudrun estava pronta a prová-lo, e, uma vez que tivesse feito essa prova, ficaria livre dele para sempre.
Todavia, não fizera semelhante demonstração nem a Gerald nem a si própria, e era isto que a ligava ainda a ele. Estava amarrada a esse homem, não podia viver separada dele; sentou-se na cama, agasalhada, e ali ficou por largas horas meditando sem cessar no seu destino. Dir-se-ia que jamais se esgotavam seus pensamentos.
"Não é como se ele me amasse verdadeiramente! Ele não gosta de mim. Ama cada mulher que encontra. Exibe seus atrativos, goza com a sua irresistibilidade, procura despertar em cada uma a ideia de que seria uma maravilha tê-lo como amante. Sua ignorância sobre as mulheres também faz parte do jogo. Nunca deixa de se ocupar delas. Enfastia-me, porém, tal tipo de sedução tão estúpida e vaidosa. É ridícula essa inesgotável vaidade masculina... de pavões.
"Todos são assim. Birkin! Tire-se-lhe a vaidade e não sobra nada. Na verdade, é a sua ridícula insuficiência e perfeita insignificância que o tornam tão pretensioso.
"Quanto a Loerke, vale mil vezes mais do que Gerald. Este é tão acanhado de espírito, que encontra aí a sua perdição... Na verdade, não tem mais nada a dizer. Esgotou-se a sua provisão de ideias.
"Em todo o caso, Loerke é uma criatura independente. Não anda empertigado com a sua superioridade de macho. Quando imagino Gerald com as suas minas e o seu escritório a funcionar... Que pode haver entre mim e tudo isso? E ele pensando que sabia interessar uma mulher!
"Ao menos, em Dresden, voltarei as costas a tudo isso. Preciso divertir-me. Deve ser bom ir à Ópera Alemã, ao teatro alemão. Vou tomar parte na vida boêmia. Além disso, Loerke é artista, é uma pessoa livre. Quero escapar a tudo isso de que estou farta. Escapar a esse mundo de coisas vulgares, de frases vulgares, de gestos vulgares. Sei que não irei encontrar em Dresden o elixir da vida. Mas ficarei livre desta gente que tem um lar, crianças e conhecidos, tudo, tudo, muito deles. Estarei no meio de pessoas que não possuem nada, que não têm casa, não têm criados, posição social, categoria, nem roda de amigos da mesma laia. Meu Deus quanta complicação! Eles vivem com a precisão de um relógio; aquela monotonia, capaz de enlouquecer! Detesto a vida. Odeio-a. Detesto todos os Geralds incapazes de proporcionar qualquer coisa a alguém!
"Shortlands! Deus do Céu! Pensar que podia viver ali uma semana, a seguinte, outra ainda...
"Não, não posso nem lembrar-me! É demais para mim!"
Interrompeu o solilóquio, verdadeiramente horrorizada, sem mais poder suportar aquela ideia da sucessão maquinal dos dias, uns após outros, ad infinitum... Era um pensamento de lhe fazer bater o coração, levando-a quase à loucura. A terrível escravidão ao tique-taque do relógio, aquele marchar lento dos ponteiros, a eterna repetição das horas e dos dias... eram demasiada tortura para ela. Ah, fugir daquele pesadelo... fugir!
Quase desejou que Gerald estivesse presente, a fim de ver desvanecido o horror de tais pensamentos. Como sofria, ali sozinha em frente ao horrível relógio com o seu eterno tique-taque... As horas soavam... E outra vez tique-taque, tique-taque, com os ponteiros deslizando no mostrador...
Mas Gerald não a poderia salvar. Ele, e o seu corpo, a sua atividade, a sua existência, regulavam-se pelo mesmo tique-taque, pelo mesmo movimento dos ponteiros, pelo bater uniforme das horas. Assim, os beijos dele, os seus abraços. Tudo muito bem compassado.
"Ah! Ah!" Riu consigo mesma. Ria por se sentir tão assustada. "Ah! Ah!" Era mesmo de enlouquecer.
Depois retomando um pouco de serenidade, Gudrun perguntou a si própria se os seus cabelos não embranqueceriam durante aquela noite. Mas não. Continuariam castanhos e ela permaneceria jovem e sadia, como sempre.
Talvez mesmo devesse à sua constituição saudável o sair sempre ilesa em todos os ataques da adversidade. Se fosse doente, teria suas ilusões, suas fantasias. Mas assim como era, como escapar à verdade? Estava colocada diante do relógio da vida. Tinha de enfrentar o destino, sabendo que não havia possibilidade de fugir. Se voltasse as costas ao relógio, como fazia nas estações de estrada de ferro, para olhar as vitrinas de livros, continuaria mesmo assim a ver o mostrador descomunal e branco. Em vão folhearia os livros, modelaria inutilmente as suas estatuetas de barro. Bem sabia que não estava lendo, que não estava trabalhando. Olharia apenas o avanço dos ponteiros, eterno, automático, monótono. Não vivia a realidade. Limitava-se a olhar o transcorrer do tempo. Assemelhava-se, com efeito, a um relógio a que se dá corda, todos os dias, para acertar com o relógio da eternidade... Ela estava ali, como a Dignidade e a Impudência, ou a Impudência e a Dignidade...
A comparação agradava a Gudrun. O rosto dela parecia o disco de um mostrador, redondo, pálido, impassível. Teve vontade de ir se olhar num espelho, mas a ideia de achar o próprio rosto semelhante a um quadrante encheu-a de tamanho horror que procurou pensar em outra coisa qualquer.
Por que ninguém se mostrava bom para ela? Por que não haveria um ente que a tomasse nos braços e a apertasse contra o peito e lhe desse o repouso reparador, profundo e verdadeiro? Por que razão não aparecia alguém que a estreitasse e a mantivesse tranquila e segura, até que ela adormecesse? Ambicionava tanto aquele sono perfeito! Não tinha quem a defendesse durante o sono. Dormiria sempre desprotegida, abandonada e atormentada. Como poderia suportar tanto abandono, tanta incerteza?
Gerald? Seria capaz de a abraçar e proteger durante o sono? Pobre Gerald! Precisava também de alguém que o adormecesse. Era isso o que ele desejava. Por mais que fizesse, não conseguiria senão tornar mais pesado para ela o fardo da vida. Quando estava presente, os pesadelos de Gudrun eram maiores. Representava mais um tormento durante as noites imperfeitas, durante os sonos que não chegavam a amadurecer nem a dar frutos. Claro que roubava a ela o pouco repouso de que dispunha. E talvez o motivo pelo qual a importunava tanto, como uma criancinha esfomeada que chora para que lhe deem o peito. Talvez fosse esse o segredo da paixão que o arrastava para ela. Precisava de Gudrun para poder dormir, para alcançar um pouco de descanso.
Mas por quê? Não era sua mãe. Aceitara, por acaso, por amante, um bebê que precisasse embalar durante a noite? Eis o que era aquele Don Juan: uma criança rabugenta.
E como Gudrun abominava as crianças que choram à noite! Ela estrangularia calmamente o bebê e o enterraria como Hetty Sorel. Sem dúvida o filho de Hetty Sorel chorava durante a noite. E também o de Arthur Donnithorne. Ah, estes Donnithornes, estes Geralds de todo o mundo... Calados de dia, lamurientos depois de se deitarem! Deixá-los tornarem-se instrumentos, simples máquinas, vontades elementares que funcionam como relógios, numa constante repetição. Deixá-los ser assim, deixá-los serem puros maquinismos, dormitando ao som do tique-taque. Gerald que se ocupasse dos seus negócios. Ficará satisfeito o dia todo, Gudrun o sabia muito bem.
O carrinho, com a sua roda submissa, eis a unidade na aritmética da empresa. Depois, a carreta, com duas rodas; o vagão com as quatro; a locomotiva, com oito; outra maior, com dezesseis, e assim por diante, ate o mineiro com as suas mil rodas, e o eletricista, com três mil, e o gerente com vinte mil, e o diretor, finalmente, com cem mil rodas. E eis Gerald, com um milhão de rodízios, dentes e eixos!
Coitado de Gerald! Tantas rodinhas a pôr em movimento... Muito mais complicado do que um cronômetro. Meu Deus, que aborrecimento! Um cronômetro! A alma de Gudrun arrepiava-se só em pensar naquilo. Tantas rodas a contar, e a considerar, e a calcular! Basta! Basta! Há um limite para a capacidade humana em meio a tanta complicação. Ou, quem sabe se não há limite...
Entretanto, Gerald lia, sentado no leito, em seu quarto. Quando Gudrun se retirara, sentira espanto e não soubera o que fazer. Deixou-se abater sabre a cama e la ficou durante uma hora. Sulcavam-lhe o espírito clarões intermitentes. Estava imóvel com a cabeça pendida para o peito.
Pôs-se de pé, finalmente, e lembrou-se de que se preparara para dormir. Devia dormir. Sentia frio. Deitou-se no escuro.
Mas não conseguia suportar a escuridão Aquela sombra densa o sufocava. Levantou-se e acendeu a vela. Permaneceu alguns instantes sentado, olhando em frente. Não pensava em Gudrun nem em ninguém.
Teve vontade de ir buscar um livro. Sempre tivera horror às noites de insônia. Amedrontava-o a ideia de passar mais uma noite em claro, à espera de que o tempo decorresse. Ficou sentado na cama durante horas, lendo imóvel como uma estátua o espírito alerta e ágil, penetrava na leitura, mas não chegava a apreender bem o que lia. Em estado de rígida inconsciência, leu durante quase toda a noite, e só ao amanhecer cansado e infeliz, desgostoso de si mesmo, conseguiu dormir duas hora. Acordou cheio de energia. Gudrun mal se dirigiu a ele. Durante o café, declarou:
- Vou-me embora amanhã.
- Vamos juntos até Innsbruck, para salvar as aparências? - propôs ele.
- Talvez - condescendeu a jovem.
Disse isso entre dois sorvos de café. E a maneira como ela tomou fôlego, logo a seguir, desagradou a Gerald. Ergueu-se apressadamente, disposto a afastar-se dela e foi ocupar-se dos preparativos para a partida no dia seguinte. Depois, munido de provisões, saiu com os esquis, resolvido a passar o dia fora. Ao Wirt - Dono da hospedaria - nota da tradutora), ele explicou que iria ate Marienhutte, ou talvez, mesmo, à aldeia.
Gudrun recebera a manhã repleta de promessas como uma primavera. Sentia aproximar-se o momento da libertação, e uma nova fonte de vida jorrava por toda ela. Sentia prazer em andar de um lado para o outro, empacotando suas roupas, experimentando vestidos, mirando-se no espelho, lendo este ou aquele livro. Sentia que uma existência diferente se preparava parada e mostrava-se contente como uma criança; todos a achavam atraente e bela, com o seu ar carinhoso e exuberante e a irreprimível exteriorização da felicidade. Contudo, sob tal aparência o pensamento da morte não a abandonava.
Saiu à tarde com Loerke. O "amanhã" tornara-se impreciso e isso a deixava ainda mais satisfeita. Podia ir para a Inglaterra com Gerald ou para Dresden com Loerke, ou ainda para Munique, visitar uma amiga que residia lá. Tudo isto podia acontecer no dia seguinte. E o dia de hoje era o limiar branco, irisado de neve, de todas as possibilidades. Todas as possibilidades! Isto significava para Gudrun o encanto, o sortilégio adorável, cintilante, indefinido, a pura ilusão. Todas as possibilidades, mas a morte é inevitável, e nada é tão possível como a morte.
Não desejava que as coisas tomassem uma feição material e definida. Gostaria que, de repente, no dia seguinte, no meio da viagem, se visse impelida numa direção diferente, por qualquer circunstância inesperada. E assim, embora fosse com Loerke, pela última vez, correr sobre a neve, evitava as conversas serias ou qualquer coisa que se relacionasse com o futuro.
Loerke, por seu lado, não inspirava seriedade. Trazia na cabeça um gorro de veludo pardo, que a tornava redonda como uma castanha; e, com as abas caídas sobre o rosto - de onde escapava uma mecha de cabelos finos e escuros revoluteando ao vento - com seus olhos negros de elfo, e a pele trigueira, luzidia e fina que se encarquilhava nos cantos dando estranhas expressões àquele rosto, o escultor parecia antes uma criança com feições de homem, ou talvez se assemelhasse a uma morcego. Aquele vulto, vestido de lã grossa, verde, parecia tão débil, tão chétif, tão estranhamente diferente dos outros!
Haviam arranjado um trenó pequeno para os dois, e ambos se puseram a caminho, com dificuldade, entre os taludes de neve refulgente que lhes queimava as faces já crestadas. Riam sem cessar, desfiando uma série ininterrupta de brincadeiras e anedotas em vários idiomas. A fantasia se transformava era realidade. Sentiam-se felizes em atirar projéteis coloridos de bom humor e de capricho. Preferiam que a amizade se conservasse ao nível da brincadeira, uma espécie de passatempo.
Loerke não levava muito a sério os desportos de inverno. Não colocava neles o ardor que Gerald colocava nem tinha o mesmo entusiasmo do outro. Gudrun gostava disso; estava fatigada, bastante fatigada pela intensidade de movimento a que a havia obrigado a energia física do amante. Loerke deixava o trenó descer ao acaso, alegremente, como uma folha ao vento e quando, numa volta do percurso caíam ambos sobre a neve, punham-se de pé vagarosamente, verificavam não estar machucados e ali no solo alvíssimo, desatavam a dar gargalhadas. Gudrun sabia que o seu companheiro diria graças atrevidas quando vagueasse no inferno, se estivesse bem disposto e ela gostava de senti-lo assim. Era elevar-se acima das realidades do mundo, fugir à atualidade monótona e às próprias contingências da vida. Divertiram-se dessa maneira ate o pôr do sol, satisfeitíssimos, descuidados, indiferentes ao decorrer do tempo. Quando chegaram ao sopé de uma colina, o trenó parou e Loerke disse:
- Espere! - e exibiu, tirando não se sabe de onde, uma enorme garrafa térmica, um pacote de bolachas e um frasco de Schnapps.
- Oh, Loerke! - exclamou Gudrun. - Que inspiração! Que comble de joie, realmente! De que é esta Schnapps? - Aguardente - nota da tradutora).
Ele a encarou a rir e disse:
- Heidelbeere - Baga de murta - nota da tradutora).
- Sim? E isso se encontra debaixo da neve? Parece destilada do próprio gelo. - Gudrun cheirou e tornou a cheirar o gargalo da garrafa. Nota-se o aroma... Esplêndido. É como se cheirássemos a planta através da neve.
Bateu com o pé no chão muito de leve. Loerke ajoelhou-se e assobiou; depois aproximou o rosto da superfície gelada. Seus olhos sombrios cintilavam.
- Ah! Ah! - ria Gudrun, animada pela maneira caprichosa que ele tinha de zombar das suas extravagâncias. Estava sempre zombando e escarnecendo de tudo o que ela dizia ou fazia. Mas as réplicas do rapaz eram mais engraçadas do que tudo o que as provocava; a solução estava em rir-se ainda mais para se sentir vingada...
Ouviam-se as vozes deles ressoando como um retinir argentino como sinos na atmosfera enregelaste, no ar imóvel daquele começo de crepúsculo. Como aquilo tudo era agradável! E como eram perfeitos, na calma absoluta, aquele isolamento e aquelas diversões!
Gudrun sorveu o café quente, cujo aroma, naquele ambiente frio volteou em torno deles como uma abelha zumbindo em redor das flores; bebeu uns goles de Heidelbeerwasser, e comeu pastilhas geladas, doces, macias. Coisas tão boas. Como tudo aquilo possuía sabor, perfume, como rescendia bem. E como, na tranquilidade admirável, a ressonância era bela, naquele princípio de crepúsculo!
- Parte amanhã? - indagou ele, por fim.
- Parto.
Houve uma pausa. A tarde parecia morrer no calor silencioso que se espalhava por toda a parte, até ao infinito... que estava ali mesmo, a mão.
- Wohin? Para onde? - nota da tradutora)
Eis o problema: wohin? Aonde? Que palavra encantadora! Jamais responder a essa voz... Deixá-la repercutir indefinidamente...
- Ignoro - declarou, sorrindo.
Loerke absorveu o sorriso que a moça lhe dirigia. Murmurou:
- Nunca se sabe.
- Nunca - repetiu ela.
Estabeleceu-se uma nova pausa. Loerke trincou bolachas, como um coelhinho a comer folhas.
- Mas - objetou - para onde compra passagem?
- Céus! - gritou ela. - É preciso comprar passagem!
Era um contratempo. Gudrun via-se na bilheteria da estação. Mas, de súbito, teve uma ideia que a acalmou. Respirou desafogada.
- Não somos obrigados a ir...
- É claro.
- Quero dizer que não somos obrigados a chegar ao término da viagem.
A descoberta interessou-o. Podia-se comprar passagem e não ir até o destino indicado nela. Mudava-se de ideia, alterava-se o plano! Grande ideia!
- Compre então uma passagem para Londres - aconselhou ele - Não é preciso ir até o fim.
- Ótimo!
Loerke despejou café num copo de estanho.
- Não me quer dizer para onde vai?
- Não sei ainda para onde vou...
O homem lançou-lhe um olhar zombeteiro; depois, encheu as bochechas de ar, como Zéfiro, e soprou sobre a neve.
- Para o lado da Alemanha... - começou.
- Também acho - concordou ela.
De súbito tiveram a impressão de que se aproximava deles um vulto branco. Era Gerald. O coração de Gudrun palpitou de medo, de um profundo e repentino medo. Pôs-se logo de pé.
- Informaram-me onde estavam - disse o recém-chegado numa voz que retiniu como uma sentença na atmosfera crepuscular.
- Maria! Virgem Maria - nota da tradutora).
- Você aparece como um fantasma! - declarou o escultor.
Gerald não respondeu. A sua presença parecia, na verdade, fantástica, sobrenatural.
Loerke sacudiu a garrafa térmica e depois virou-a para baixo. Caíram apenas algumas gotas escuras.
- Está vazia - disse.
Para Gerald, a figura exótica do alemão surgia muito nítida, como se a estivesse vendo através de um binóculo. E como era desagradável aquela criatura! Gostaria de removê-lo dali.
O outro procurava, agora, bolachas no pacote.
- Ainda há algumas - disse ele.
Sem mudar de posição dentro do trenó, estendeu o braço para Gudrun, que remexeu no pacote e tirou uma bolacha. Ia oferecê-la a Gerald, mas a atitude deste era de tal modo denunciadora de uma recusa, que Loerke fez um gesto indeciso e pôs o embrulho de lado. Em seguida, pegou no frasco e mirou-o contra a luz.
- Temos um resto de Schnapps - disse para si mesmo.
Ergueu a garrafa num gesto educado, e curvando-se para Gudrun de forma engraçada, murmurou:
- Gnädiges Fraulein, wohl...
Ouviu-se um estalo, a garrafa voou e Loerke fez um movimento de recuo. Os três, violentamente impressionados, tremiam incontrolavelmente.
Loerke, dirigindo-se a Gerald, com um brilho demoníaco nos olhos, declarou em tom irônico:
- Muito bem! C'est le sport, sans doute - É o esporte, sem dúvida - nota da tradutora).
No mesmo instante já estava sentado sobre a neve numa posição ridícula. O punho de Gerald atingira-o na cabeça. Mas levantou-se logo, trêmulo, fitando o agressor com o seu olhar diabólico e satírico:
- Vive le héros, vive!...
Não pôde acabar. Gerald acertara-lhe outro murro, desta vez em cheio no rosto, mandando-o para longe como se fosse um boneco de palha.
Gudrun, porém, interpôs-se entre os dois. Ergueu a mão e bateu no peito e no rosto de Gerald, que ficou perplexo como se tivesse visto explodir uma bomba. Sua alma sufocava de espanto e de dor. Mas logo soltou uma gargalhada e avançou para a moça, tentando agarrá-la, como para colher o fruto do seu desejo. Ia, finalmente, satisfazê-lo.
Com as mãos rijas, dominadoras, impetuosas, prendeu a garganta de Gudrun. Tão bela, aquela garganta! Bela e suave, embora lá dentro jazessem as cordas da vida - e ele sentiu-a deslizar sob a pressão dos dedos. Eis o que iria esmagar, o que iria destruir. Suprema felicidade! Satisfação, enfim!
Olhava a face de Gudrun, agora feia, com a consciência prestes a desaparecer; via-lhe os olhos rolarem em estertor. Como se tornara horrível... Mas que prazer ele sentia... Como era bom, aquele gozo final! Nem percebia que ela se debatia, resistia... O esforço que ela fazia era, afinal de contas, sensual, também. E quanto mais forte o estrangulamento, maior para ambos o frenesi das delícias, ate atingirem o zênite. Depois, a luta afrouxou, os movimentos dela diminuíram e ela pouco a pouco se apaziguou.
Loerke conseguira endireitar-se sobre a neve, porém estava muito tonto para se erguer. Apenas seus olhos revelavam estar consciente do que se passava.
- Monsieur - disse ele, com voz débil e indignada - quand vous aurez fini - Senhor, quando tiver terminado - nota da tradutora).
Gerald revoltou-se, movido pelo desprezo e pela repugnância que sentia, repugnância que o tomava todo, que o enchia de náuseas. Que estaria fazendo? A que excesso se iria ele entregar? Como podia se preocupar tanto assim com aquela mulher, para que se dignasse a matá-la? Matá-la com suas próprias mãos...
Experimentou, então, certa fraqueza, certo entorpecimento, um diminuir de forças, como que o degelo da energia. Sem perceber, descerrara os punhos e Gudrun caíra a seus pés.
Sentiu-se muito enfraquecido. Tentou ainda um esforço, deu meia volta, e, como uma rajada de vento, partiu para longe, para além...
"Não a quero matar, não quero", ia repetindo, numa ultima confissão, enquanto subia a colina, fraco, esgotado, procurando, por instinto, fugir ao encontro de quem quer que fosse. "É demais. Preciso dormir. É demais." Sentia-se esgotado pelas náuseas.
Estava cansado, mas não queria repousar. Queria ir sempre até o fim. Nunca parar, ate descobrir o fim. Assim errou, perdido e sem forças, sem pensar em nada, enquanto as pernas o suportaram.
O poente deixara no céu uma luz encantada e irreal, entre rosa e azul, e a noite azulada e fria vinha mergulhando sobre a neve. Lá embaixo, atrás dele, no extenso leito alvo, notavam-se ainda duas figuras pequeninas; Gudrun, de joelhos, como quem se prepara para um suplício, e Loerke, sentado junto dela. Nada mais.
Gerald caminhava trôpego no aclive da colina, entre as sombras azuladas, sempre a subir, sem dar conta do que fazia, sem perceber que estava extenuado. Havia, à esquerda, uma descida rápida, cheia de enormes pedregulhos negros estriados de neve, e a neve serpenteava em redor da escuridão da pedra em veios longos e caprichosos. Não se ouvia o menor ruído. Nenhum som cortava o silêncio profundo.
Brilhava agora, por cima de Gerald, um disco lunar, e aquele novo esplendor aumentava-lhe a tortura. Surgia, ah!, cintilante, inexorável; não haveria maneira de evitar aquela cintilação. Contudo, Gerald queria chegar ao fim, sentia-se exausto e farto da vida. Seu espírito mantinha-se lúcido.
Continuava a andar com dificuldade; algumas vezes tinha de atravessar uma vertente de rocha viva, de onde o vento expulsara toda a neve. Naqueles lugares ele sentia medo de cair, um medo intenso de escorregar. E, naquela altitude, a ventania soprava rija, subjugando-o quase e entorpecendo-o com o frio. Todavia, não chegara ainda ao fim: era preciso continuar sem descanso. E o horror que o impelia para frente não permitia que ele parasse um só instante.
Tendo atingido o espinhaço do monte, viu a vaga sombra de qualquer coisa mais alta ainda, à sua frente. Sempre mais alta, sempre mais alta. Calculava encontrar-se na direção dos montes onde se achava a Marienhutte e por onde se atingia a descida do outro flanco da montanha. Mas não tinha muita consciência desses detalhes. Ansiava apenas por continuar, avançar mais além, enquanto pudesse mover-se ir, ir sempre, ate que tudo se acabasse. Perdera por completo o sentido da orientação. Entretanto, por um instinto vital, que ainda lhe restava, procurou pôr os pés nos vestígios de outros esquis que por ah houvessem passado.
Encontrou uma descida escarpada e deixou-se escorregar por ela. A velocidade trazia-lhe calafrios. Não possuía bastão, nem nada a que se apoiasse. A certa altura conseguiu parar e foi andando com cuidado, na obscuridade luminosa. Sentia tanto frio como se já estivesse no repouso eterno. Passava agora entre duas cristas, num vale. Vinha depois uma curva. Subiria o flanco e continuaria a errar pelo côncavo do terreno? Como sentia a vida por um fio! Talvez escalasse a montanha. A neve ali era dura, firme. Avançou. Elevava-se qualquer coisa à sua frente. Aproximou-se, levado por uma estranha curiosidade.
Era um cruzeiro, meio soterrado. No alto de um poste estava a imagem de Cristo, abrigada por um teto em declive. Gerald afastou-se. Alguém se preparava para o matar. Sentia tanto medo de ser assassinado! Mas o terror atingia-o exteriormente, como se fosse o seu próprio fantasma.
E afinal, para que ter medo? Aquilo tinha de acontecer. Sena assassinado! Olhou em volta, aflito, e viu a neve, as rochas as vertentes pálidas e sombrias do mundo que se erguiam acima dele. O destino arrastava-o para a morte, não havia a menor dúvida. E a morte levantava-se, naquele momento, para que Gerald não pudesse escapar...
Jesus! Estava, pois, destinado a isso? Jesus! Iam desferir o golpe. Não tardaria a ser morto. Prosseguiu ao acaso, ergueu as mãos acima da cabeça para sentir melhor o que devia acontecer, e esperou o instante em que chegaria o fim, em que cessaria de existir. Mas não era ainda o momento final.
Tinha alcançado um leito de neve cercado de taludes íngremes, de precipícios, e de onde partia um atalho que conduzia ao alto da montanha. Gerald vagou por ali, inconsciente, até que escorregou e caiu; ao bater no chão, sentiu que a alma se desprendia, e o sono chegou imediatamente.


Capítulo XXXI
"Exeunt"
Quando, no dia seguinte, trouxeram o cadáver para a hospedaria, Gudrun estava fechada no quarto. Da janela, viu aproximarem-se os homens que conduziam um fardo. Continuou sentada, tranquilamente, e os minutos foram passando.
Vieram bater à porta. Gudrun abriu. Estava ali uma mulher que lhe disse em voz baixa, com muita deferência:
- Já o encontraram, minha senhora.
- Morto?
- Sim, senhora.
Gudrun não sabia o que responder. Que poderia dizer? Quais os seus verdadeiros sentimentos na ocasião? Que esperariam dela? Permaneceu fria e perplexa.
- Obrigada - disse, tornando a fechar a porta. A mulher retirou-se, desgostosa. Nem uma palavra, nem uma lágrima. Aquela senhora era insensível; era uma mulher sem coração.
Gudrun sentou-se no quarto, e ficou impassível e pálida. Que havia de fazer? Chorar não podia, e muito menos representar cenas teatrais. Era incapaz de se transformar. Ficou assim imóvel, ocultando-se da curiosidade dos outros. O seu desejo era evitar contatos maiores com os acontecimentos. Limitou-se a redigir um extenso telegrama a Úrsula e Birkin.
De tarde, porém, ergueu-se bruscamente, disposta a avistar-se com Loerke. Lançou um olhar apreensivo à porta do aposento que fora de Gerald. Por nada deste mundo entraria naquele quarto.
Encontrou o escultor sozinho no andar térreo, recostado num sofá. Foi diretamente a ele.
- Não é verdade, não é? - começou por lhe dizer.
O outro a fitou. A face enrugou-se num sorriso de tristeza. Encolheu os ombros.
- Verdade? - repetiu.
- Nós não o matamos - explicou ela.
Loerke não gostou daquela maneira pela qual ela se dirigia a ele. Encolheu os ombros, fatigado.
- Coisas que acontecem - observou.
Gudrun olhou para ele. Viu-o esmagado pela tragédia, aniquilado, mas, do mesmo modo que ela, insensível à dor e incapaz de qualquer resolução. Que coisa angustiosa, vazia, vazia, vazia, Senhor!
Subiu novamente, esperando a chegada de Úrsula e Birkin. Gostaria de partir daquele lugar o mais depressa possível. Não poderia pensar nem sentir ate sair dali.
Passou-se o dia, veio o dia seguinte. Gudrun ouviu o trenó que se aproximava, assistiu à entrada dos viajantes e recuou na janela.
Úrsula dirigiu-se logo ao quarto da irmã.
- Gudrun! - exclamou, com as lágrimas a correrem pela face. Apertou a outra nos braços. Gudrun escondeu o rosto no peito da irmã, mas ainda desta vez não pôde escapar ao frio demônio da ironia que lhe enregelava o coração.
"Ah! É este o sistema usado em semelhantes conjunturas, pensou.
Não conseguia chorar, e o espetáculo da sua expressão impassível, rígida, sem mágoa, fez secar o pranto da recém-chegada. Logo notaram que não tinham nada a dizer uma à outra.
- Aborreceram-se de ter de voltar aqui? - perguntou finalmente Gudrun.
Úrsula fitou-a, um tanto desconcertada, dizendo:
- Não tinha pensado nisso.
- Acho-me cruel por tê-los obrigado a regressar - continuou Gudrun. - Mas não consigo enfrentar os outros.
- Imagino - foi a resposta da irmã, em tom seco.
Birkin bateu à porta e entrou. Estava pálido e compungido.
Gudrun percebeu que estava a par de tudo. O cunhado estendeu-lhe a mão, declarando:
- Acabou-se a nossa excursão!
Ela o fitou, assustada.
Os três permaneceram calados, sem ter o que dizer. Por fim, Úrsula perguntou, em voz baixa.
- Você já o viu?
Birkin lançou-lhe um olhar duro e frio, sem se dar ao trabalho de responder.
- Você o viu? - repetiu ela.
- Vi-o, sim - respondeu o marido, rispidamente. Depois, voltou-se para Gudrun:
- Já tomou alguma providência?
- Nada, absolutamente nada.
Aterrorizavam-na as formalidades a cumprir.
- Loerke diz que Gerald chegou quando vocês estavam sentados no trenó, perto de Rudelbahn, que trocaram algumas palavras e que Gerald se afastou. Que foi que disseram? Preciso estar a par de tudo para o caso de ser necessário contar às autoridades.
Gudrun ergueu os olhos para Birkin, ávida, muda, perturbada como uma criança.
- Ele não chegou sequer a falar - explicou. - Esmurrou Loerke e atirou-o ao chão. A mim, quase estrangulou. Depois, foi-se embora.
Para si mesma, ia dizendo:
"Bela amostra do eterno triângulo!" E afastou-se, sorrindo intimamente, pensando que, afinal, a luta se travara entre ela e Gerald, sem que a presença do outro fosse mais do que um simples incidente, talvez uma contingência inevitável; no fim de contas, sem outra classificação qualquer. Mas iria deixá-los imaginar que fora uma consequência do eterno triângulo, da trindade odiosa. Era mais fácil para a compreensão dos outros.
Birkin retirou-se, sempre com as mesmas maneiras secas e distraídas. Mas Gudrun tinha a certeza de que ele a ajudaria, apesar de tudo, e que a tiraria dos apuros. "Sim, que ele se ocupe de tudo", pensou ela, sorrindo desdenhosa, "visto que sabe tão bem ocupar-se dos outros. Deixá-lo fazer, pois, todo o trabalho".
E Birkin foi outra vez ver Gerald. Haviam-se estimado tanto! Era, todavia, enfado o que mais experimentava ao ver aquele corpo inerte ali estendido. Tão inerte, tão frio, tão penetrado da morte, nada mais do que uma carcaça! Perante aquele espetáculo, sentia geladas suas entranhas. E ficou em pé, contemplando o frio despojo mortal daquele que tinha sido Gerald.
Aquilo era um cadáver enregelado. Birkin lembrava-se de que uma vez encontrara um coelho hirto, em cima da neve; parecia teso como um cabo de vassoura, quando o ergueu do chão. E agora ali estava Gerald, igualmente duro como uma tábua, mas enroscado como se estivesse dormindo. Contudo, a rigidez era evidente e horrível. Birkin confrangeu-se, tomado de uma imensa dor. O quarto devia ser aquecido para se poder desenregelar o cadáver. Os membros se partiriam como gelo, ou como madeira, se os forçassem a tomar a devida posição.
Aproximou-se e tocou a face do morto, e de novo as suas entranhas sensíveis se contraíram mortificadas por uma terrível angústia. Pensou se ele próprio não estaria também sendo congelado. No bigode curto e louro de Gerald o último sopro da vida solidificara-se num pequeno pedaço de gelo, por baixo das narinas.
Eis o que era agora Gerald!
Apalpou outra vez os cabelos ásperos, de cor quase luminosa naquele corpo abandonado. Estavam frios, frios: dir-se-iam até maléficos. O coração de Birkin começou a endurecer. Tinha estimado tanto o outro! Mas, agora, olhando para aquelas formas elegantes, para o rosto estranhamente colorido, com o seu nariz fino e apertado, com as suas maçãs viris, achava tudo frio e rijo como uma pedra de gelo. Tinha querido tanto a Gerald! Que diferença havia entre pensar e sentir? O cérebro tornava-se semelhante à água quase a congelar. Tão frio, tão frio! Nos braços julgava ter uma montanha de neve e um peso mais frio ainda o dominava por dentro, no coração e nas entranhas.
Depois saiu, e foi ver o local onde se verificara o acidente, chegando finalmente à concavidade situada no meio do desfiladeiro, perto da garganta da montanha. O dia estava cinzento e era o terceiro de uma série de dias tristonhos e calmos. Tudo em redor era branco, nevado, pálido, exceto as rochas negras que, às vezes, pareciam raízes salientes e outras vezes se mostravam perfeitamente lisas e nuas. A certa distância descia uma vertente quase a pique, onde se notavam manchas de rochedos escuros.
Aquele lugar evocava uma panela pouco funda que jazesse entre neve e pedregulhos, num mundo perto das nuvens. Ali adormecera Gerald. Em volta os guias tinham pregado estacas de ferro, de maneira a poderem içar-se com o auxílio de uma comprida corda amarrada a elas; assim atingiriam, para além dos cimos denteados, a área de neve endurecida, que se confundia como havia picos aguçados erguidos para o firmamento, como compridos pregos muito alvos.
Gerald poderia ter encontrado aquela corda. Poderia ter subido por ela ate à crista da montanha. Poderia ter ouvido os cães na Marienhutte e achar ali um abrigo. E ainda poderia ter descido o flanco do lado sul, até o vale dos pinheiros e alcançar a estrada imperial que segue para a Itália.
Sim, teria podido! E depois? A estrada imperial? O sul? A Itália? E depois, depois? Seria uma saída? Ou antes, uma forma de regressar? Birkin, parado naquelas alturas, naquela atmosfera angustiante, olhava para os picos e para o caminho meridional. Haveria vantagem em seguir para o sul, para a Itália? Em descer pela velha estrada imperial?
Resolveu voltar. Ou seu coração se partiria, ou teria que deixar de se atormentar. Mais valia acabar com aquele sofrimento. Seja qual for o mistério que criou o homem no universo, trata-se de um mistério extra-humano, tem os seus fins próprios, e o homem não lhe serve de critério. Antes deixar de parte todo esse mistério tão vasto da criação. Preferível ocupar-se de si mesmo, e abandonar os problemas universais.
"Deus não pode passar sem o homem." Eis o que disse um dos grandes mestres religiosos da França. Mas, com certeza, o aforismo é falso. Deus pôde dispensar o ictiossauro e o mastodonte. Estes monstros não conseguiram desenvolver-se na criação, e Deus, mistério criador, acabou por dispensá-los. Da mesma forma podia desinteressar-se do homem, se este não lograsse progredir no mundo. O eterno mistério da criação disporia da humanidade, substituindo-a por uma espécie de seres mais per feitos. Exatamente como o cavalo tomou o lugar do mastodonte.
Tal ideia serviu de grande consolo a Birkin. Se a humanidade enveredar por um beco sem saída, se esgotar aí as suas energias, a força criadora produzirá outros entes, mais delicados, maravilhosos, e uma raça nova ajudará melhor o processo da criação. Esse trabalho não acabará nunca. O segredo da vida é insondável, infalível, inesgotável e eterno. As raças aparecem e desaparecem, as espécies passam e morrem, mas dão lugar a que outras surjam, mais belas ou tanto como as anteriores, porém sempre dignas de admiração. A fonte, a origem e incorruptível e não seca jamais. É impenetrável e não tem limites. Pode produzir milagres, inventar novas raças e novas espécies, sempre que lhe apetecer, novas formas de espírito e de corpo. Ser homem não é nada comparado com as possibilidades do mistério criador. Conseguir formar um coração palpitante de vida é a perfeição, perfeição inultrapassável. Humano ou sobre-humano, isso não tem importância. O coração perfeito estremece cheio de vitalidade e denuncia uma espécie nova, ainda não nascida.
Birkin voltou à hospedaria para tornar a ver Gerald. Entrou no quarto mortuário e sentou-se à beira da cama. Morto, morto e tão frio!

César, tirano, morto, em pó se fez... Agora serve
Para vedar alguma fenda, interceptando o ar...

Versos do 5º ato do Hamlet - A citação de Lawrence, feita decerto de memória, não é textual - nota da tradutora).
Nenhum eco do que havia sido Gerald. Só uma substância estranha, gelada, nada mais. Nada mais!
Terrivelmente cansado, Birkin saiu para se ocupar das formalidades a cumprir. Fez tudo cheio de calma, sem a menor perturbação. Declamar, delirar, assumir atitudes de tragédia, tudo isso causaria complicações inúteis. Era melhor conservar-se calmo e suportar os fatos com a alma paciente, sossegada.
Mas quando voltou, à noite, e viu Gerald entre dois castiçais, ele, que ali fora atraído pela exigência da amizade, sentiu o coração apertado e a própria vela que tinha na mão esteve a cair; soltou um gemido, e as lágrimas rebentaram-lhe de súbito. Sentou-se numa cadeira, tomado por um repentino pranto. Úrsula, que o havia seguido, recuou espantada, ao dar para o marido de cabeça baixa e com o corpo sacudido pelos soluços. O choro que o agitava fazia um rumor horrível e singular.
"Não queria que isto acontecesse, não queria", repetia ele consigo mesmo. Úrsula não pôde deixar de lembrar-se das palavras do Kaiser: "Ich habe es nicht gewollf." - Não tinha desejado isto - nota do tradutora). Olhou para Rupert, quase aterrada.
Ele se calou, de repente, mas ficou com o corpo inclinado, escondendo o rosto nas mãos. Enxugou, às escondidas, as lágrimas que tinha nos olhos. Mas no mesmo instante ergueu fitou a mulher com olhos sombrios e rancorosos.
- Era preferível que ele me tivesse estimado. Tantas vezes eu lhe propus...
A outra, muito pálida e assustada, murmurou sem descerrar lábios:
- Que teriam lucrado com isso?
-Muito - volveu ele. Muito!
Esqueceu-se da mulher e tornou a olhar para Gerald. Com o rosto estranhamente levantado, como quem se indigna por algum insulto acabado de ouvir, numa atitude orgulhosa. Birkin examinou o rosto mudo, frio, material, do cadáver, que tinha uma cor azulada. Aquele rosto lançava flechas de gelo ao coração de Birkin. Frio, mudo, material? Rupert lembrava-se como uma vez Gerald lhe apertara a mão de forma quente e afetuosa, um significativa de amizade definitiva. Mas aquilo durara um segundo depois desaparecera, desaparecera para sempre. Se Gerald houvesse mantido fidelidade à promessa, a morte não teria tanta importância. Os que morrem e que, antes de morrer, são suscetíveis de crer e de amar, permanecem vivos, não cessam de existir. Perduram no ente amado. Gerald poderia viver ainda no tirito de Birkin, mesmo depois do seu acidente. Viveria com seu amigo a vida do além.
Mas ali estava, destruído, como argila, como gelo corrompido. Birkin observou-lhe os dedos azulados, contemplou aquela massa inerte. Recordou-se de um cavalo morto que um dia encontrara: substância repugnante de um corpo que fora másculo. Recordou-se também da bela face de certa pessoa que ele havia amado tanto e que morrera julgando ceder ao mistério da natureza essas feições, mesmo paradas eram formosas, ninguém as poderia supor frias, mudas, materializadas. Ninguém as evocaria sem acreditar no mistério, sem que uma fé nova e profunda na vida deixasse de vir aquecer-lhe a alma.
E Gerald? Aquele cético! Deixava os corações frios, gelados, incapazes de palpitar. O pai dele era tão introvertido que chegava a incomodar: mas não tinha aquele aspecto terrível da matéria muda. Birkin não se cansava de examiná-lo.
Úrsula, de pé ao lado do marido, não deixava de acompanhar os movimentos deste em sua contemplação ao rosto do morto. Eram duas faces igualmente imóveis. A chama das velas oscilava no ar glacial, no meio do silêncio intenso.
- Ainda não o viu bastante? - perguntou a mulher.
Rupert levantou-se, dizendo:
- É tão doloroso para mim!
- O quê? A morte dele?
Os olhares dos dois se encontraram. Rupert conservou-se calado.
- Você tem a mim - prosseguiu ela.
O marido sorriu e beijou-a.
- Se eu morrer, saberá que eu não a abandonei.
- E eu?
- Você também não me abandonará. Não precisaremos separar-nos na morte.
Úrsula tomou-lhe a mão.
- Sente necessidade de sofrer tanto por causa de Gerald? - inquiriu ela.
- Sinto - respondeu o marido.

 

Partiram. O cadáver de Gerald foi enviado para a Inglaterra, onde devia ser enterrado. Birkin e Úrsula acompanharam o cadáver juntamente com um irmão do defunto. Os irmãos Criches é que insistiam pela inumação no solo da pátria. Birkin achava preferível ter deixado o morto nos Alpes, debaixo da neve. Mas a família opôs-se com grandes protestos.
Gudrun foi para Dresden. Não escreveu de lá, pormenorizadamente, para ninguém. Úrsula ficou com o marido no moinho durante algumas semanas. Estavam ambos muito tranquilos.
- Sente falta de Gerald? - perguntou ela um dia.
- Sinto.
- Não sou bastante para você?
- Não - respondeu ele. - Você me satisfaz como mulher. Para mim você resume todas as mulheres. Mas sinto falta de um homem como amigo, tão eterno como você e eu.
- É por que não sou suficiente? Você é tudo para mim. Não quero mais ninguém além de você. Por que não acontece o mesmo com você?
- Junto a você, Úrsula, posso passar a vida sem mais ninguém. Mas, para que a nossa vida seja completa, realmente feliz, necessito de uma união eterna com um homem também; é outra espécie de afeição.
- Não compreendo isso - volveu ela - É uma teimosia, uma teoria, uma perversidade.
- Talvez... - concordou ele.
- Não se pode ter duas espécies de amor. Por que você há de ser assim?
- Vejo que é impossível para eu satisfazer esse desejo. No entanto, queria-o imensamente.
- Nunca me seria possível. É coisa falsa, irrealizável.
- Não penso assim - foi a resposta de Birkin.

Capítulo XXIV
Morte e amor
Thomas Crich morria lentamente, com terrível sofrimento. A todos parecia impossível que o fio daquela existência pudesse ser tão estirado e a tal ponto adelgaçado, sem se quebrar. O doente jazia fraco e extenuado, apenas sustentado pela morfina que lhe administravam juntamente com outros remédios, ingeridos com dificuldade. Estava semiconsciente; um tênue cordão de compreensão ainda ligava a escuridão da morte à claridade da vida. Contudo, a vontade mantinha-se intacta, integral, completa. Queria em volta de si um silêncio absoluto.
Qualquer presença o fatigava, exceto a das enfermeiras. Todas as manhãs Gerald vinha vê-lo pensando encontrá-lo morto; mas descobria, invariavelmente, a mesma face transparente, o mesmo terrível cabelo escuro emoldurando um rosto cor de cera, e os mesmos olhos espantados e sombrios que pareciam desfazer-se em trevas, conservando lá dentro um débil vislumbre de vida.
E sempre que esse olhar desvairado caía sobre ele, Gerald sentia ferver-lhe nas entranhas uma espécie de revolta, que se transmitia através de todo o corpo, perturbando-lhe o espírito, enlouquecendo-o, quase.
Lá ficava ele, imóvel, cheio de vida, cintilando em seus cabelos louros. E o ar louro e cintilante daquele ser estranho e inevitável irritava o moribundo e chegava a aumentar-lhe a febre. Não podia suportar a expressão sobrenatural dos olhos azuis de Gerald, descendo sobre o leito de morte. Isto, porém, durava só uns instantes. Logo chegava o momento de se separarem, e pai e filho fitavam-se mais uma vez e despediam-se.
Durante muito tempo, Gerald conservou perfeito sangue-frio permanecendo ali com a maior serenidade. Mas o pavor acabou por desnorteá-lo. Tinha medo de sucumbir também. Era preciso, entretanto, submeter-se àquela tortura. Um vago desejo perverso o levava a observar o pai no transe derradeiro. E, diariamente o choque horrível daquele espetáculo o fazia estremecer de pavor. Gerald sentia vontade de se atirar ao chão, como se a espada de Democles lhe pendesse diretamente sobre a cabeça.
Não era possível esquivar-se; estava amarrado ao pai, devia assistir-lhe a agonia. Mas a vontade de Thomas Crich não se dobrava e recusava-se a acreditar na morte. Quando esta, afinal, se apoderasse dele, que remédio haveria senão aceitá-la? Contudo, a mesma vontade poderia persistir além da terra. Assim era, também, o filho: vontade intacta, independente da destruição física e daquele ser que sucumbia no leito.
Era um sacrifício contemplar o pai a dissolver-se e a ingressar no outro mundo, sem enfraquecimento da energia moral, sem condescender com a onipotência da morte! Como um pele-vermelha sujeito à tortura, Gerald submeter-se-ia à prova de assistir àquela lenta evolução para o nada sem dar mostras de dor ou de fraqueza. Triunfaria da experiência, tanto mais que desejava aquele passamento, quase até o impunha. Era como se ele mesmo esperasse a morte, embora o coração se lhe confrangesse de horror. Mas era o que julgava inevitável, afinal de contas.
No esforço de tão cruel missão, Gerald foi perdendo o domínio da sua vida quotidiana e profissional. Tudo quanto, anteriormente, valia para ele alguma coisa, passou a não ter o menor valor. O trabalho, o prazer, tudo foi posto de lado. Mas se ocupava dos seus negócios, trabalhando maquinalmente. A verdadeira tarefa consistia nesse lúgubre combate contra o destino dentro da sua própria alma. A vontade havia de vencer, fossem quais fossem os acontecimentos; jamais se curvaria, jamais reconheceria qualquer amo: a morte jamais o dominaria.
No decorrer da luta, aniquilava-se tudo quanto havia sido, e a vida em volta de Gerald assemelhava-se a um búzio vazio onde rugia a voz do mar, sussurro de que ele participava exteriormente; dentro da concha deserta existiam trevas, espaço destinado à morte apavorante. Gerald compreendia que era preciso adquirir coragem, ou cairia no abismo negro e profundo que se lhe cavava no meio da própria alma. A vontade preservava-lhe a vida externa, e a inteligência das coisas exteriores íntegras, mas a pressão tornava-se excessiva. Era preciso achar qualquer coisa que lhe garantisse o equilíbrio. Devia encontrar aquilo que pudesse acompanhá-lo no vácuo aberto em sua alma, de forma a preenchê-lo, e contrabalançasse assim a força exercida de dentro para fora com outra que viesse de fora para dentro - pois, dia a dia, sentia-se mais parecido com uma bolha de ar cheia de sombras, em volta da qual girasse a sua consciência.
O espírito impelia-o para Gudrun. Desprezava tudo e só desejava entrar em contato com ela. Gostava de acompanhá-la ao estúdio, de ficar em sua companhia, de conversar com ela. Agradava-lhe estar naquele quarto, mexendo ao acaso nas ferramentas, nos pedaços de barro, nas estatuetas já modeladas - tão caprichosas e grotescas! - e observá-las sem mesmo as compreender. Gudrun sentia-o sempre por perto, perseguindo-a como uma sombra.
- Ouça - disse-lhe Gerald certo dia, de forma singular indecisa. - Por que não fica para jantar? Eu gostaria muito!
Gudrun sobressaltou-se levemente. Gerald falara como um homem que se dirigisse a outro homem.
- Esperam por mim em casa - desculpou-se a moça.
- Ah!... Mas não ficarão preocupados... Gostaria muito que aceitasse.
O longo silêncio que se seguiu foi o sinal da sua aquiescência
- Vou prevenir Thomas, sim? - disse ele.
- Mas terei de partir logo depois do jantar - declarou Gudrun.
A noite estava escura e fria. No salão não havia fogo. Instalaram-se na biblioteca. Gerald estava calado, distraído, e Winifred falava pouco. Mas, apesar de calado, o rapaz mostrava-se amável e natural com a convidada.
Gudrun sentia-se bastante atraída para ele. Não sabia como interpretar aqueles silêncios profundos e estranhos. Ficava comovida, pensativa, enquanto sua admiração por ele crescia.
Ele fora um ótimo anfitrião. Oferecera-lhe o que havia de melhor na mesa, mandara servir uma garrafa de um vinho magnífico, levemente adocicado, cor de ouro, imaginando que ela o preteriria ao tinto. E Gudrun via o quanto era estimada, considerada quase uma pessoa da família.
Enquanto tomavam o café na biblioteca, ouviram bater de leve a porta. Gerald sobressaltou-se e disse: "Entre" o som daquela voz, vibrando em agudo diapasão, enervou a moça. Apareceu então o vulto branco de uma enfermeira; era como uma sombra clara projetando-se no limiar. Tratava-se de uma mulher muito bonita, mas - coisa estranha - parecia tímida e constrangida.
- O doutor deseja falar-lhe, Sr. Crich - explicou ela em voz baixa e discreta.
- O doutor! - repetiu ele, levantando-se. - Onde está?
- Na sala de jantar.
- Diga-lhe que já vou.
Tomou o resto do café e seguiu a enfermeira.
- Como é o nome dela? - perguntou Gudrun.
- Miss Inglis. É a mais simpática de todas - respondeu Winifred.
Pouco depois Gerald voltava, perdido em reflexões, ar preocupado e abstrato. Não se referiu a conversa com o médico; ficou de pé diante da lareira, mãos atrás das costas e expressão distante. Na verdade, ele não pensava. Mantinha-se em expectativa e as ideias se baralhavam em seu cérebro, desordenadamente.
- Agora preciso ir ver a mamãe - declarou Winifred - e despedir-me do papai antes que ele adormeça.
Disse isto e despediu-se dos presentes.
Gudrun ergueu-se também para ir-se embora.
- Não precisa ir agora - disse Gerald, olhando para o relógio. - Ainda é cedo. Sente-se, não há pressa, eu a levarei a casa.
Gudrun tornou a sentar-se como se estivesse sob o poder daquele homem, quase em transe. Sentia-se também quase magnetizada. Gerald era tão estranho, tão diferente! Em que pensaria, o que estaria sentindo, assim tão extático, sem nada dizer? Retinha-o sob a sua influência, era só o que Gudrun sabia. Não o deixava partir. Gudrun contemplava-o humilde e submissa.
- O médico tinha alguma coisa importante a comunicar? - indagou por fim, docemente, com ternura tímida e compassiva que tocava as fibras do coração dele. Gerald ergueu as sobrancelhas num gesto de indiferença.
- Não, nada de novo - respondeu, como se a pergunta fosse trivial. - Disse que o pulso estava muito fraco e irregular, mas isso não quer dizer muita coisa...
Depois, fitou-a. Os olhos de Gudrun permaneciam muito abertos, sombrios, suaves, com uma expressão assustada que o fez recair em si.
- Não - murmurou ela, finalmente. - Não entendo muito dessas coisas.
- Tanto melhor. Escute, vamos fumar um cigarro? - Foi buscar a caixa onde os guardava, e a seguir acendeu um fósforo. Em frente a ela, sempre junto ao fogão, tornou a cair em imobilidade.
- Aqui em casa - explicou - nunca tivemos doenças graves antes dessa de meu pai. - Deteve-se, como se ponderasse qualquer ideia; o seu olhar azul, estranhamente comunicativo, pousou sobre Gudrun, que ficou cheia de medo. - É uma coisa em que não se pensa ate que um dia se declara. Só então percebemos que já existia, que já existia desde muito tempo, desde sempre; compreende o que quero dizer? A possibilidade destas doenças incuráveis, destas mortes lentas...
Remexia os pés, inquieto, calcando o mármore da lareira. Levou o cigarro à boca e pôs-se a contemplar o teto. Gudrun, por sua vez, atalhou:
- Bem sei. É horrível.
Gerald fumava distraído. Tirou o cigarro dos lábios, descobriu os dentes e, colocando a ponta da língua entre eles, cuspiu um resíduo de fumo, voltando-se levemente de lado, como se estivesse só, ou perdido numa revoada de pensamentos.
- Ignoro ao certo qual é o efeito de tudo isto sobre a nossa pessoa - volveu ele, olhando de novo para a moça, cuja vista se turvou ao compreender a intenção daquelas palavras. Gerald viu-a perturbada e voltou o rosto para o outro lado. - Mas a verdade é que não sou mais o mesmo. Nada resta de mim... Sabe a que me quero referir? Julgamos agarrar-nos ao vácuo e o vácuo está dentro de nós. E já não sabemos o que fazer...
- Sim, - murmurou ela - que fazer? - Percorria-lhe os nervos um intenso calafrio, misto de prazer e de dor.
Gerald voltou-se, sacudiu a cinza do cigarro nas lajes de mármore do fogão, que, sem o resguardo usual, nem mesmo grades, se impunha ali na sala a descoberto.
- Não sei, é só o que posso afirmar - retorquiu ele. Mas suponho que estamos a ponto de resolver o problema, não porque se deseje, mas pela absoluta necessidade, sob pena de nos perdermos. Todas as coisas, incluídas as pessoas, estão a ponto de soçobrar. Com as mãos tentamos impedir que tal suceda. Mas é evidente que a situação não se pode prolongar; não é possível segurar o teto, indefinidamente dessa forma. Cedo ou tarde temos que retirar as mãos. Compreende o que quero dizer? É, pois, urgente tomar uma decisão, antes da subversão total, pelo menos no que nos atinge diretamente.
Esticou o pé para a lareira, esmagou uma brasa e ficou olhando para o carvão apagado. Gudrun observava as belas lajes de mármore antigo, com desenhos em relevo, onde Gerald estava agora enquadrado. Ela mesma teve a impressão de estar também prisioneira, mas do destino, fechada numa armadilha horrível e fatal.
- Que fazer? - perguntou, muito submissa. - Eu poderia ajudar de alguma forma?
Gerald fitou-a com superioridade.
- Não preciso do seu auxílio - retorquiu, um tanto enervado - porque não há nada a fazer. Só desejo um pouco de compaixão, percebe? Preciso de alguém a quem possa falar com o coração nas mãos. Isso facilita o trabalho. Mas não há ninguém nessas condições! É curioso, não há ninguém! Tenho Rupert Birkin, mas este não se comove, o que quer é ditar frases, que não me servem de nada.
Gudrun sentia-se apanhada no laço. Perplexa, olhava para as mãos.
Ouviu-se a porta abrindo de mansinho. Gerald estremeceu. Estava mortificado. E o sobressalto dele amedrontou também a Gudrun. Mas logo ele se dirigiu para a porta, cortês, atencioso, afável.
- Por aqui, mamãe? Que agradável surpresa. Como vai?
A recém-vinda, embrulhada negligentemente em um roupão cor de púrpura, muito largo, aproximou-se silenciosamente, desajeitada como sempre. O filho já estava ao lado dela. Puxou-lhe uma poltrona e perguntou: - Conhece a Senhorita Brangwen?
A outra lançou-lhe um olhar cheio de indiferença.
- Conheço - respondeu. Depois voltou-se para Gerald com aqueles seus olhos espantados, de um tom de miosótis, e sentou-se na poltrona que ele lhe havia trazido.
- Vim perguntar o que você sabe a respeito do seu pai - disse ela em voz rápida e quase inaudível. - Não sabia que estava acompanhado.
- Não? Winifred não lhe disse? A Senhorita Brangwen ficou para jantar conosco e alegrar-nos um pouco com a sua presença.
A Senhora Crich virou-se lentamente para Gudrun e mirou-a com expressão abstrata e vazia.
- Receio não ter sido grande divertimento para você... - Olhou novamente para o filho e continuou: - Winifred informou-me que o médico falou com você. Que foi que ele disse?
- Comunicou apenas que o pulso estava fraco, falhando de vez em quando..., de maneira que pode acontecer não passar desta noite.
A Senhora Crich manteve-se absolutamente impassível como se não tivesse ouvido, com aquela grande massa de carne abatida na cadeira e os cabelos louros desgrenhados sobre as têmporas. A pele, porém, era fina e alva, e as mãos, esquecidas e semicerradas no regaço, pareciam belas e repletas da máxima energia. E, na verdade, dir-se-ia amortecerem-se ondas de vontade naquela figura arruinada e gasta.
Contemplava o filho, que se conservava de pé, junto dela, atento, marcial. Os olhos da mulher tornaram-se extraordinariamente azulados, mais azuis do que as flores de miosótis. Parecia depositar muita confiança em Gerald, mas, ao mesmo tempo, desconfiança maternal.
- Como se sente? - inquiriu ela numa voz estranha e calma, como se falasse apenas com ele. - Não se ressentirá de tudo isto? Procure não ficar muito nervoso.
Gudrun estremeceu ao perceber o singular desafio que aquelas palavras encerravam.
- Assim o espero, mamãe - respondeu ele com risonha frieza. - Mas alguém deve assistir ao fim, penso eu.
- Acha que sim? Acha? - perguntou a Senhora Crich, precipitadamente. - Por que pensa assim? Por que ficar ate o fim? Tudo se resolve por si. Não é necessária a sua presença.
- Bem sei, mamãe. Mas a verdade é que nos afeta diretamente.
- Você gosta de se sentir afetado, não é isso? Está interessado nisso. Isso lhe dará importância. Pois não precisa ficar em casa. É melhor sair.
Tais observações, evidentemente feitas em momento de nervosismo, surpreenderam Gerald.
- Não acho conveniente sair agora, mamãe, neste momento crítico... - respondeu ele, muito calmo.
- Tome cuidado - prosseguiu a Senhora Crich. - Cuide de você, é isso que importa. Não se preocupe demais. Você é nervoso, sempre foi...
- Estou perfeitamente bem. Não vale a pena se preocupar comigo.
- Deixe os mortos tomarem conta dos mortos. Não se deixe enterrar com eles. Eu conheço bastante você...
Gerald silenciou, não sabendo o que responder. A mãe também permaneceu calada, e, com as belas mãos brancas, nuas de anéis, acariciou os braços da poltrona.
- Você não pode suportar aquilo - prosseguiu ela, quase com cerimônia. - Falta-lhe coragem. Você é frouxo como um gato, sempre foi. Esta menina vai ficar conosco?
- Não, senhora- elucidou Gerald. - Vai voltar para casa.
- Ela pode servir-se da carruagem. Mora longe?
- Não muito. Em Beldover.
- Ah! - Ela não olhava para a moça, embora lhe sentisse constantemente a presença. - Gerald, você tem a tendência de levar as coisas muito a sério. - Ao dizer isso, começou a erguer-se com certo constrangimento.
- Já vai? - perguntou ele, muito atencioso.
- Sim, vou lá para cima. - Voltando-se para Gudrun, murmurou "boa noite". Depois dirigiu-se devagar para a porta, com dificuldade, como se não estivesse habituada a andar. No limiar, estendeu a face e recebeu um beijo do filho. - Não precisa me acompanhar.
Gerald esperou que ela se aproximasse da escada, que subiu lentamente. Fechou então a porta, e voltou para junto de Gudrun, que se ergueu, disposta a partir.
- Minha mãe é muito complicada...
- Nota-se - concordou a moça.
Calaram-se por uns momentos.
- Quer ir-se embora? Apenas meio minuto: vou mandar atrelar o cavalo.
- Não - declarou Gudrun. - Vou a pé.
Gerald prometera acompanhá-la ate em casa e ela não se esquecera disso.
- Poderíamos ir muito bem na carruagem - insistiu ele.
- Prefiro ir a pé - declarou a jovem em tom enfático.
- Prefere? Nesse caso vou com você. Lembra-se de onde deixou seu agasalho? Deixe-me trocar de sapatos.
Munido de um boné e, sobretudo - por cima do temo com que jantara - preparou-se para partir e ambos penetraram na escuridão.
- Vou acender um cigarro - disse ele, abrigando-se no ângulo do portão fechado. - Tire um também.
E assim, entre o odor do fumo que aromatizava o ar, embrenharam-se ambos pela vereda sombria que atravessava, no meio de sebes, os prados em declive.
O desejo dele era passar o braço em volta da cintura da moça. Se tal pudesse fazer e a conseguisse atrair a si, Gerald estava certo de que recuperaria o equilíbrio, pois, naquele momento, sentia-se igual a uma balança, da qual um dos pratos descesse mais, cada vez mais no imenso vácuo sem fim. Era preciso contrabalançá-los. Residia ali a sua esperança de uma cura completa.
Sem mesmo olhar para Gudrun, pensando unicamente em si, Gerald lançou-lhe o braço em torno do corpo e puxou-a para o seu lado. O coração dela quase desfaleceu ao sentir-se arrastada assim. O braço do homem era tão vigoroso que a jovem não teve ânimo para se libertar; experimentava uma espécie de morte, muito unida a ele, enquanto avançavam na escuridão da noite tempestuosa. Aqueles dois corpos equilibravam-se perfeitamente no movimento rítmico do andar. E, então, sem demora, Gerald começou a sentir que se libertava das apreensões, e se tornava forte e heroico.
Levou a mão à boca e atirou fora o cigarro, que, na sebe invisível, formou um pontinho cintilante. Estava agora inteiramente apto para a manter mais segura.
- Assim é melhor - disse ele, exultando de prazer.
O entusiasmo que sua voz demonstrava era para ela como uma droga doce e venenosa. Significava, pois, tanto, para o coração daquele homem? E principiou a sorver o veneno...
- Está mais contente? - perguntou.
- Estou - disse ele, sempre no mesmo tom de satisfação. - Eu estava tão deprimido...
Gudrun aninhava-se no peito dele. Gerald aspirava o aroma quente e suave que emanava dela: tornava-se a substância própria do seu ser, nutriente e adorável. O calor e o movimento da moça penetravam-no e encantavam-no.
- Fico feliz em ajudá-lo...
- É verdade. Ninguém mais o conseguiria. Só você, Gudrun. "Acredito", pensou ela, com um sentimento de estranha e inevitável vaidade.
Durante a caminhada, parecia-lhe que a erguia do chão e a apertava tanto contra si que parecia conduzi-la toda suspensa. Era tão robusto que, à moça, não importava opor qualquer resistência: deixava-se ir naquela maravilhosa fusão dos corpos em movimento, ao descer a vertente sombria da colina batida pelo vento. Ao longe brilhavam as luzinhas amarelas de Beldover, a maior parte delas semeadas do outro lado da encosta. Mas aqueles dois seres seguiam alheios ao mundo, numa isolada e perfeita solidão.
- Gosta, então, muito de mim? - perguntou ela, em voz quase plangente. - Não sei, não consigo compreender...
- Muito, sim, muito! - respondeu ele em tom de satisfação dolorosa. - Não sei bem como, também eu... Mas amo-a acima de tudo! - Surpreendeu-se com a própria declaração, que era, aliás, verdadeira. Fazendo-a, despojava-se de futuro recuo, mas o certo era que Gudrun importava-lhe sobre todas as coisas. Ela era tudo para ele.
- Custa-me acreditar - volveu ela, trêmula e admirada. A dúvida e o prazer misturados punham-na assim nervosa. Sempre desejava ouvir isso. Contudo, agora que ouvia tais palavras, ditas com tão profundo tom de sinceridade, Gudrun recusava-se a crer. Não podia, não podia ser realidade. No íntimo ela admitia o fato e regozijava-se como de um triunfo finalmente obtido. No entanto...
- Por que não? - disse ele. - Por que não acreditar? É a mais pura verdade. Tão certo como estarmos aqui, nesta ocasião. - Ficaram bem juntos um do outro, parados, açoitados pelo vento. - Não há para mim - prosseguiu - nem no céu, nem na terra, outro lugar como este. A minha presença não importa; apenas a sua é que me interessa. Venderia antes a minha alma, cem vezes, a ficar privado da sua companhia. Não suporto mais estar só. Acredite. - Atraiu-a mais para si, num movimento definitivo.
- Não - murmurou a jovem, assustada. No entanto, não desejava outra coisa. Por que havia de perder a coragem?
Recomeçaram aquele estranho passeio. Tinham estado tão longe um do outro e agora vinham tão perto, temerosamente, inconcebivelmente perto! Chegava a ser loucura. Era, todavia, o que ela desejava. Haviam descido O outeiro e atingiam nesse momento o largo viaduto por onde passava a linha férrea das minas de carvão. A ponte - Gudrun conhecia-a bem - fora construída de pedras talhadas; era seca de um lado e musgosa do outro, em virtude da água que escorria. Gudrun pusera-se muitas vezes debaixo da abóbada para ouvir o estrondo da locomotiva deslizando lá em cima. E, quando chovia, costumava ver os mineiros refugiarem-se ali, no isolamento e no escuro, com as suas namoradas. Também ela ambicionava ter um noivo e ir com ele para baixo da ponte, a fim de se beijarem nas trevas impenetráveis. À medida que se aproximavam, diminuiu propositadamente o passo.
Pararam, pois, sob o viaduto e fizeram uma pausa; Gerald apertou-a contra o peito. O corpo dele vibrava, rijo e dominador, ao estreitá-la de encontro ao seu; e ela, ofegante, perturbada, vencida, aninhava-se nos braços dele. Ah, era terrível, sim, mas admirável! Assim faziam os mineiros às suas namoradas, debaixo daquela ponte. E, agora, o patrão de todos eles fazia o mesmo, naquele mesmo lugar! Como devia ser mais forte, mais poderoso o abraço de Gerald do que o dos seus operários! Como o amor dele devia ser mais concentrado e superior ao de todos os outros! Gudrun pensou que fosse desmaiar e morrer sob a pressão trêmula e sobre-humana daqueles braços e daquele peito; não poderia resistir. Depois a vibração extraordinária foi-se moderando ate se tornar pouco a pouco mais suave. Gerald encostou-se à parede e arrastou a moça com ele.
Gudrun estava quase inconsciente. Supunha ser assim que procediam os mineiros apaixonados, de costas voltadas para o muro, abraçando as suas amadas e beijando-as da mesma forma com que ele a beijava. Ah! Seria possível que os beijos deles fossem tão requintados e vigorosos como os que dava o patrão em seus lábios tão firmes? Nem sequer teriam, os operários, um bigodinho áspero e bem cortado!
E as namoradas, também deviam descair a cabeça para o lado e contemplar, sob a abóbada sombria, as luzes amareladas, distantes, na colina invisível, ou a forma incerta das árvores, ou ainda, em outra direção, as construções ao redor das minas.
Os braços do rapaz continuavam a cercá-la; parecia querê-la toda para ele, o seu calor, a sua suavidade, a sua beleza adorável, aspirando avidamente o aroma do seu corpo. Erguia-a e dir-se-ia entorná-la dentro de si mesmo, como quem despejasse vinho numa taça.
- Isto vale mais do que tudo! - disse com voz penetrante e singular.
Gudrun cedia, sentia-se misturar com ele e fornecer-lhe um líquido infinitamente precioso e morno que entrasse nas veias de Gerald e se comportasse como um tóxico. Tinha também passado os braços em torno do pescoço dele e recebia-lhe os beijos que ele lhe dava enquanto a tinha como que suspensa. A jovem desfalecia e sentia enterrar-lhe na carne aquele corpo duro e firme, ávida de receber aquele vinho que era a própria vida. Assim jazia abandonada nos braços do rapaz, suspensa de encontro a seu peito, dissolvendo-se, dissolvendo-se sob o calor dos beijos, fundindo os membros e os ossos como se ele fosse um ferro em brasa destinado a derretê-la.
A certa altura, julgou que ia desmaiar; foi, gradualmente perdendo a consciência de si própria. Sentiu-se gasta, nela tudo se misturava e era fluido; ficou tranquila, como se não existisse senão dentro de Gerald dormindo nele como a faísca dorme numa pedra lisa e pura. Assim se fundira no corpo do homem e esse homem agora era perfeito.
Quando tornou a abrir os olhos e voltou a descortinar o tapete de luzes a distância, pareceu-lhe extraordinário que o mundo ainda existisse e que ela estivesse ali de pé, debaixo da ponte, com a cabeça apoiada no peito de Gerald. Gerald... que significava ele? A aventura deliciosa, o desejo do imprevisto...
Ergueu a face e viu, no escuro, um rosto inclinado para o seu, rosto másculo e belo, que emitia uma luz branca e suave, espécie de aura, como se fosse enviado por algum poder oculto. Levantou-se até ele, no gesto de Eva ao colher a maçã da árvore da ciência, e beijou-o, embora a sua paixão vergasse ao medo transcendente desse ser misterioso; com dedos maravilhados, infinitamente delicados e indiscretos, Gudrun tateou-lhe as feições, seguindo-lhe o modelado da fisionomia, em todos os pormenores. Como era perfeito e desconhecido para ela, e tão perigoso! A alma arrepiou-se com tal revelação. Eis o fruto proibido, aquela face do homem fascinante. Tornou a beijá-lo, passando-lhe a mão pelo rosto, pelos olhos, narinas, testas, ouvidos e pescoço, a fim de o conhecer melhor a fim de o possuir pelo tato. Sentia-o tão bonito, tão rijo, cheio de satisfação, inconcebivelmente belo, único, de uma luz indescritível, inimigo que não se podia descrever e que brilhava, contudo, num fogo puro e sobrenatural. O seu desejo era tocá-lo mais, tocá-lo sempre, ate que o desvendasse todo por suas mãos, esforçando-se por conhecê-lo totalmente. Ah, se ela obtivesse esse precioso conhecimento, sentir-se-ia compensada; nada conseguiria privá-la dele, apesar da sua insegurança e dos riscos que corria no mundo vulgar e quotidiano.
- Como você é bonito! - murmurou-lhe em voz velada.
Gerald ficou surpreso, suspenso daquela frase. Ela, porém, sentiu-o estremecer e chegou-se mais, involuntariamente, para aquele homem que se lhe afigurava precisar de ajuda. Dominava-o pelo contato dos dedos. O insondável desejo que estes despertavam no rapaz era mais profundo do que a morte inevitável.
Entretanto, agora, conhecia-o ela bem, e isso bastava. Nessa ocasião tinha o espírito abalado por aquele invisível fluido luminoso, que lhe trouxera a revelação. Isso era uma espécie de morte da qual urgia ressuscitar. Haveria nele ainda muita coisa por descobrir? Ah, decerto! E quantos dias poderia gastar na sua investigação, com as mãos sutis e inteligentes no terreno daquele corpo vivo? Ah, tinha mãos ansiosas, gulosas de saber! Por enquanto não precisava mais, aquilo era bastante, o ânimo não lhe suportaria maior experiência. Um pouco mais, e ficaria repleta, encheria demasiadamente a delicada redoma da sua alma, suscetível de se quebrar. Era suficiente, suficiente por enquanto. Tinha ainda muitos dias à sua frente, durante os quais seus dedos, como pássaros, se alimentariam daquela plástica misteriosa. Até aí, esperaria sossegada.
Gerald, por seu turno, estava contente por haver encontrado resistência, repreensões, recusas. O desejo vale mais do que a posse, e a satisfação final receava-a ele tão intensamente quanto a ambicionava.
Recomeçaram a andar na direção da vila, na direção das lâmpadas acesas e distanciadas por longos intervalos, dispersas no escuro caminho do vale. Chegaram, enfim, à rua.
- É melhor nos despedirmos aqui - disse ela.
- Prefere assim? - perguntou ele, sentindo-se aliviado. Não gostaria de mostrar-se por aquelas ruas em companhia da moça, tão visível seria para os outros a satisfação que o tomava todo.
- Prefiro. Até amanhã. - Estendeu-lhe a mão, que Gerald agarrou, depondo os lábios sobre aqueles dedos tão dominadores, tão perigosos.
- Boa noite - volveu ele. - Até amanhã. Separaram-se. Gerald regressou à casa fortalecido pelo poder de um desejo sem limites.
No dia seguinte, porém, ela não veio. Mandou recado explicando que estava resfriada. Que tortura para o rapaz! Armou-se, entretanto, de paciência e escreveu-lhe um bilhetinho dizendo o quanto sentia a sua ausência.
Passou o dia e o outro sem ir ao escritório: achava isso perfeitamente inútil. O pai não duraria até o fim da semana e Gerald queria estar presente para qualquer eventualidade.
Sentou-se numa cadeira perto da janela, no quarto do industrial. A paisagem que dali desfrutava era sombria, invernosa. O velho Crich jazia na cama, lívido, cor de cinza; em silêncio, toda de branco, limpa, elegante e mesmo bonita, a enfermeira movia-se de um lado para outro. O ambiente cheirava a água-de-colônia. A moça saiu e Gerald ficou a sós com o moribundo ante o cenário hibernal.
- Há mais água em Denley? - interrogou uma voz fraca, vinda do leito, queixosa, mas decidida. O doente queria saber o que havia a respeito de uma infiltração numa das minas, originada em Willey Water.
- Alguma. Temos de esvaziar o lago - respondeu Gerald.
- Acha que sim? - A voz fraca parecia extinguir-se. Houve um silêncio tumular. O rosto pálido e acinzentado do enfermo mostrava-se de olhos fechados, mais morto do que se na verdade o estivesse. O filho observou-o. Sentia o coração apertado: se aquilo durasse mais tempo, talvez não pudesse resistir.
De repente, ouviu um ruído estranho. Voltou-se e notou que o pai abrira os olhos, rolando-os espantados num esforço sobre-humano. Gerald pôs-se de pé e ficou enregelado de horror.
"Ah... ah... ah..." Da garganta de Thomas Crich exalava um som cavernoso e horrível; o olhar, cada vez mais aflito, procurava em vão qualquer socorro, passando sobre Gerald sem o ver. Subiu-lhe ao rosto um rubor terroso, que o fez inchar; o corpo distendeu-se e a cabeça tombou para o lado, no travesseiro.
Gerald continuava apavorado. Queria mexer-se, mas não podia. Era impossível mover os braços ou as pernas. E o cérebro latejava, como o eco do pulso.
A enfermeira reapareceu, entrando silenciosamente. Olhou primeiro para o rapaz e depois para o leito.
- Oh! - exclamou, quase em um soluço, correndo em direção ao morto. - Oh! - repetiu em voz baixa, na sua perturbação, inclinando-se para a cama. Depois recuperou a calma e foi buscar uma toalha e uma esponja. Começou a lavar cuidadosamente a face do cadáver, murmurando num queixume, suavemente:
- Pobre Sr. Crich! Coitado do Sr. Crich!
- Morreu? - perguntou Gerald em tom áspero.
- Sim, morreu - confirmou a voz branda da enfermeira pousando o olhar no rosto do rapaz. Era nova, bela e estava emocionada. A expressão de Gerald tornou-se estranha, como uma espécie de careta; horrorizado, abandonou o quarto.
Correu a prevenir a mãe. No corredor encontrou-se com Basil, seu irmão.
- Morreu, Basil - disse ele, dominando a custo o tremor da voz; notava-se nele uma alegria inconsciente apesar da emoção com que falava.
- O quê?! - fez Basil, empalidecendo.
Gerald confirmou com a cabeça e seguiu para o quarto da mãe.
Ela estava envolta no roupão cor de púrpura, a coser, vagarosamente. Mirou o filho com os seus olhos azuis, aqueles olhos insubmissos.
- Papai morreu.
- Quem disse?
- Oh, mamãe, basta olhar para ele!
A Senhora Crich largou a costura e levantou-se a custo.
- A senhora vai lá?
- Vou.
Os mais novos já choravam em volta do leito.
- Oh, mamãe! - gritavam as moças, quase histéricas.
A mãe aproximou-se. O morto lá estava no seu repouso derradeiro, como se houvesse adormecido docemente, tão doce e pacificamente como uma criança no sono da inocência. Ainda não esfriara de todo. Christiana ficou a contemplá-lo durante uns momentos, num silêncio pesado e lúgubre.
- Sim - disse ela, como se falasse a testemunhas invisíveis e etéreas. - Sim, já não és deste mundo. - Permaneceu mais um tempo calada, de olhos baixos. Depois continuou: - Pareces belo, como se a vida não te houvesse cansado. Que Deus me dê sorte diferente! Espero então parecer com a minha idade, seja qual for... Belo, belo - repetiu ainda no mesmo tom. - Exatamente como na tua mocidade, com a barba de adolescente. Bondosa alma, a tua! - E, com um soluço na voz, acrescentou: - Nenhum de vocês deve ser como ele, quando morrerem. Não o imitem. - Parecia uma ordem singular, uma ordem insensata emanada do além. Os filhos agruparam-se mais, inconscientemente, ao ouvir aquelas imposições. As faces de Christiana haviam-se ruborizado, e brilhavam, e todo o vulto dela maravilhava e inspirava terror. - Censurem-me, se quiserem, pelo fato de ele aí estar, de estar aí como um rapaz que ainda não tem vinte anos, com a sua barba virginal. Censurem-me, se quiserem. Mas nenhum de vocês compreende. - Emudeceu, mergulhando num silêncio cheio de intensidade. E recomeçou, numa entonação profunda e ardente: - Se eu adivinhasse que algum dos filhos que dei à luz teria, depois de morto, esta aparência, tê-lo-ia estrangulado no berço.
- Não, mamãe - respondeu Gerald, e a sua voz vinha estranha e pura lá do fundo do quarto. - Nós somos diferentes, não a acusamos de nada.
A Senhora Crich voltou-se e fitou-o; em seguida ergueu as mãos num gesto soberbo de louco desespero.
- Rezem! - ordenou com voz portentosa. - Rezem a Deus por si mesmos, pois não têm nenhuma proteção a esperar do pai e da mãe.
Transtornadas, as moças gritaram: - Oh, mamãe! - Ela, entretanto, tinha-se retirado e os irmãos despediram-se uns dos outros, apressadamente.
Quando Gudrun soube da morte de Thomas Crich, sentiu-se tomada de remorso. Tinha evitado Gerald com medo que este a julgasse conquista demasiadamente fácil; e agora, que ele sofria aquele desgosto, não era justo continuar assim tão fria.
No dia seguinte veio, como de costume, ter com Winifred que estimou bastante vê-la e se alegrou por acompanhá-la ao estúdio. A menina havia chorado, e, depois, assustada, refugiara-se para escapar a qualquer acontecimento mais trágico ainda. Ela e Gudrun retomaram o trabalho como usualmente, naquele isolamento do costume, e isso pareceu-lhes imensa felicidade, verdadeiro mundo à parte, depois da confusão e da tristeza que reinavam em casa. Gudrun ficou até tarde. Serviram-lhe o jantar ali mesmo, e ali comeram à vontade, afastadas de todas as outras pessoas.
Gerald apareceu depois do jantar. O vasto anexo estava cheio de sombras e impregnado do aroma do café. Gudrun e Winifred haviam arrastado a mesinha para junto do fogão, lá no fim do quarto; o candeeiro com que iluminava a sala não espalhava muito longe a claridade. Constituíam assim, elas duas, o seu mundo à parte, rodeadas pelas sombras amenas, que atingiam as vigas e barrotes do teto, os bancos e as ferramentas do trabalho.
- Como é confortável aqui - observou Gerald, ao entrar. O lume ardia num fogão baixo, de tijolos; havia um velho tapete turco, de tom azul, sobre o qual pousava a mesa com o candeeiro, revestida de uma toalha azul e branca. Ali estava ainda o resto do jantar; Gudrun fazia o café numa curiosa cafeteira de cobre, enquanto Winifred aquecia um pouco de leite numa caçarola pequena.
- Já tomou café? - perguntou Gudrun ao recém-chegado.
- Já, mas posso repetir.
- Então, tem de beber no copo - interveio Winifred. - Só temos duas xícaras.
- Não tem importância - disse ele, pegando numa cadeira e aproximando-se daquela dupla encantadora. Como lhe pareciam tão felizes, como era bom estar naquela intimidade, envolto pelas sombras familiares! O mundo lá fora, no qual todo o dia Gerald se ocupara dos assuntos do funeral, apagava-se por completo da sua memória. Começava a aspirar o perfume daquela deliciosa magia.
Possuíam meia dúzia de coisas delicadas, duas xícaras encantadoras, vermelho e ouro, um jarrinho preto com pintinhas encamadas e uma interessante máquina de fazer café, sob a qual a chama de álcool ardia muito direita, quase invisível. Notava-se o reflexo de toda aquela riqueza sinistra, da qual Gerald gostaria de evadir-se.
Sentaram-se e Gudrun, amavelmente, começou a servir.
- Quer leite? - indagou muito calma, embora agitasse, num movimento nervoso, o jarro negro salpicado de escarlate. Dominava-se sempre o melhor que podia, mas não deixava de parecer enervada.
- Não, obrigado - respondeu ele.
Ela própria, por deferência, guardou para si o copo de vidro tosco e ofereceu-lhe uma das xícaras. Via-se que queria ser agradável.
- Dê-me o copo, que é tão grosseiro para as suas mãos - Gerald teria preferido ficar com ele e deixá-la, a ela, delicadamente servida. Mas Gudrun não disse mais nada sobre o assunto, contente com aquela disparidade, feliz por se poder humilhar.
- Estão perfeitamente en ménage - tornou ele.
- É verdade. E não estamos em casa para as visitas - acudiu Winifred.
- Nesse caso, sou intruso.
Ao dizer isso, verificou que o seu traje cerimonioso o fazia deslocado. Considerava-se, realmente, um estranho.
Gudrun mostrava-se tranquilo. Não sentia desejos de falar com ele. Ao ponto a que haviam chegado, o melhor ainda era o silêncio ou simples palavras convencionais. Era melhor pôr de lado as conversas sérias. Assim tagarelaram alegre e descuidadamente ate ouvirem o cocheiro, em baixo, conduzir o cavalo gritando "para trás, para trás", no momento de o atrelar à carruagem que devia levar Gudrun. A moça vestiu o agasalho, apertou a mão de Gerald e saiu, sem terem trocado, ao menos um olhar.
O enterro foi uma coisa enfadonha. Mais tarde, ao tomarem chá, as filhas do defunto diziam jumas para as outras: "Tão bom pai para nós!... O melhor pai do mundo..." Ou então: "Não se encontrará facilmente outro homem tão bom como o pai".
Gerald concordou com tudo isto. Era a atitude que mais se lhe ajustava, apesar de convencional. No estado atual das coisas, não lhe repugnava aceitar as convenções da sociedade, achando-as ate naturais. Mas Winifred é que as detestava e por isso se escondia no estúdio, onde dava largas à sua dor, ansiando pela chegada de Gudrun.
Felizmente todos os parentes se ausentaram. Os Crichs nunca passavam muito tempo em casa. Ao jantar, Gerald viu-se completamente só; a própria Winifred seguira para Londres, onde ficaria por alguns dias com uma das irmãs, Laura.
Quando, todavia, se sentiu sem mais ninguém, Gerald achou intolerável a solidão. Os dias passaram. Tinha a sensação de estar suspenso a correntes, à beira de um abismo. E, por mais esforços que fizesse, não conseguia pisar a terra firme nem desembaraçar-se das cadeias que o tolhiam. Estava debruçado no limiar do despenhadeiro, debatendo-se era vão. Pensasse o que pensasse, o abismo continuava ali, por maior convívio que tivesse com amigos ou estranhos, por mais que trabalhasse ou se divertisse. Sempre a visão do precipício insondável, sobre o qual o coração se lhe apertava, prestes a desfalecer! Não via salvação possível, não havia nada a que estender as mãos. Devia permanecer na iminência do sorvedouro, suspenso pelas correntes invisíveis, que eram a sua própria vida física.
A princípio mantivera-se calmo, paciente, aguardando o final das suas apreensões e esperando achar alívio entre os mortais depois de tão intenso sofrimento. Mas aquilo não passou, e pelo contrário, atingiu um estado crítico.
À noite do terceiro dia agravaram-se os seus receios. Não podia tolerar a ideia de continuar tanto tempo assim. Era mais uma noite, mais uma em que ele experimentaria a sensação de estar sobre o abismo, esse poço sem fundo a que o levava a sua existência física. Não podia suportar mais. Tinha frio e medo na alma, um medo tão profundo! Não acreditava já na sua força. Se tombasse no despenhadeiro incomensurável, jamais poderia de lá voltar. Se tal lhe sucedesse, desapareceria para sempre. Forçoso era resistir, e procurar qualquer auxílio. Não tinha confiança nele próprio, entregue dessa maneira a si mesmo! Depois do jantar, face a face com a derradeira impressão de vácuo, Gerald procurou fugir. Calçou botas, enfiou o sobretudo e foi passear na noite escura.
O tempo estava horrível enevoado. Atravessou o bosque, tropeçando aqui e ali, e encaminhou-se para a azenha. Birkin não estava em casa. Bem. Deixá-lo! Gerald sentia-se quase satisfeito. Contornou o moinho, subiu os barrancos ásperos, às cegas, perdido no meio daquela escuridão. Aonde iria agora? Não importava. Arrastar-se-ia de qualquer forma ate encontrar a estrada. À sua frente apareceu outro bosque. O espírito estava perturbado, deixando-o vaguear, a ele, como um autômato. Sem pensamentos, sem sensações, foi andando ao acaso: chegou a uma clareira, procurou, tateando, a paliçada da vedação, tornou a perder-se, e seguiu pelas sebes dos campos até descobrir uma saída.
Por fim alcançou a estrada principal. Tinha-se distraído durante aquela luta cega com o labirinto da noite. Agora, porém, devia tomar qualquer direção. Não sabia sequer onde se encontrava, mas era necessário dirigir-se para alguma parte. Continuar a andar, sempre a andar, não resolvia o problema. Convinha decidir-se.
Estava parado na estrada, que lhe parecia imensa nas densas trevas noturnas, e sem saber orientar-se. Dava-lhe aquilo uma impressão esquisita; o coração palpitava-lhe e envolvia-o; tornou a perder-se, e seguiu pelas sebes dos campos ate descobrir uma saída.
De repente, ouviu passos c avistou uma lanterna, que oscilava. Era um mineiro.
- Sabe me dizer onde vai dar este caminho?
- Sim, senhor. Vai dar em Whatmore.
- Whatmore? Está bem, muito obrigado. Julguei que me tivesse perdido. Boa noite.
- Boa noite - retribuiu o outro, com a sua voz grossa. Gerald já calculava que lugar era aquele. Ao chegar a Whatmore tiraria todas as dúvidas. Ainda bem que se encontrava na estrada principal. E avançou embalado na sua resolução.
Tratava-se então da aldeia de Whatmore? Sim, com a sua "King's Head" e, mais além, os portões do Palácio. Desceu a colina quase a correr. Passou defronte da escola e chegou à igreja de Willey Green. Lá estava o cemitério. Deteve-se.
Pouco depois escalava o muro e seguia pelo meio das sepulturas. Mesmo no escuro podia distinguir a seus pés muitos ramos de flores, já murchas. Abaixou-se. As flores pareceram-lhe frias e viscosas. Rescendia fortemente a crisântemos e a tuberosas fanadas; sentiu a terra, por baixo delas, e arrepiou-se àquele horrível contato úmido e pegajoso. Recuou, cheio de repugnância.
Estava, pois, num lugar conhecido, embora em completa escuridão, ao lado de uma sepultura invisível e recente. Mas o que lhe interessava isso? Nada tinha a fazer ali. Era como se aqueles pedaços de barro, frios, sujos, pegajosos, se lhe aderissem à alma. Não, aquilo era demais!
Voltaria para casa? Nunca! Seria pior. Precisava ir para outro lugar. Mas onde?
Como uma ideia fixa, um projeto germinava em sua mente. Gudrun. Precisava ir ter com ela; era imperioso. Não regressaria a Shortlands sem haver tentado aproximar-se dela, ainda que isso representasse para ele qualquer perigo de vida. Colocou todo o seu ardor nesse projeto.
Partiu, então, em linha reta na direção de Beldover. A noite era tão negra que ninguém o poderia reconhecer. Tinha os pés frios e molhados, e as botas pesadas de lama. Mas continuou sempre, persistente como vento, direto ao seu destino. Julgou, em certa ocasião, ter atingido o lugarejo de Winthorpe, sem saber afinal como tinha ido parar lá; depois como num sonho, viu-se na comprida rua de Beldover, iluminada por lampiões.
Havia um rumor de vozes, vindo de uma porta que se aferrolhava pesadamente. Eram homens que conversavam na sombra da noite. O "Lord Nelson" acabava de fechar e os frequentadores dirigiam-se para suas casas. O melhor seria Gerald perguntar a qualquer deles onde morava Guarun, pois não conhecia as outras ruas.
- Sabe dizer onde é Somerset Drive? - perguntou a um dos homens.
- Como? - perguntou o interpelado.
- Somerset Drive.
- Somerset Drive! Já ouvi falar, mas não sei onde fica. Quem procura?
- O Sr. Brangwen... William Brangwen.
- William Brangwen?
- Professor da escola de Willey Green. Tem uma filha que e também professora.
- Ah! Brangwen! Agora me lembro. Sim, tem duas filhas, ambas as professoras. Ah, sim, é esse mesmo. Mas não sei onde mora. Como é mesmo o nome que disse?
- Somerset Drive - repetiu Gerald, armado de paciência. Conhecia bem o jeito dos seus mineiros.
- Exatamente, Somerset Drive! - disse o outro. - Somerset Drive, sim, senhor. Como é que eu não me lembrei antes. Sim, eu sei, fique descansado.
Voltou-se, meio cambaleante, e apontou para a estrada deserta e escura.
- O senhor vai por ali... vire a primeira esquina... sim, vire primeira à esquerda... daquele lado... passa pela loja de Withamses, o que vende caramelos. .
- Sim - interrompeu Gerald.
- Pois é, senhor. Desça um pouco, passa pela casa do vigia das águas, e já está em Somerset Drive, ou sei lá que raio de nome tem; fica mesmo à direita. Não há senão três casas, só três, parece-me... e tenho quase certeza de que a dele é a última das três... Entendeu?
- Agradeço-lhe muito. Boa noite.
Afastou-se imediatamente, deixando o bêbado parado no meio do caminho.
Seguiu ao longo das lojas e das casas, na maior parte das quais os seus ocupantes já dormiam, e enveredou por uma travessa que ia dar num campo mergulhado em trevas. Afrouxou o passo ao aproximar-se do ponto indicado, indeciso quanto à maneira de agir. Que faria, se a casa estivesse toda às escuras?
Tal não acontecia, porém. Havia uma janela iluminada. Distinguiu vozes e ao mesmo tempo o ranger de uma porta. O seu ouvido apurado reconheceu a entonação de Birkin; os olhos perscrutadores preveniram-no de que ali estava Úrsula, vestida de branco, parada num degrau da escada do jardim. Ela começara a andar e, chegando junto de Birkin, tomou-lhe o braço.
Gerald escondeu-se na sombra, por trás deles. Os dois conversavam animadamente, Birkin em voz baixa, Úrsula naquele tom inconfundível. Gerald, sem perder tempo, meteu-se dentro do jardim.
Defronte da larga janela da sala de jantar, as cortinas estavam corridas. Olhando de onde se encontrava, notou que a porta ficara entreaberta, deixando passar a luz suave e colorida do vestíbulo. Seguiu rápido, sem fazer ruído, pelo passeio adiante e lançou um olhar investigador lá para dentro. Havia quadros e cabeças de veado nas paredes; reparou também numa escada lateral e, muito perto dela, viu aberta a porta da sala de jantar.
Com o coração aos pulos, entrou Gerald nessa antecâmara, cujo chão era coberto de ladrilhos de cores; e examinou às pressas a sala que ficava anexa. Junto do fogão, sentado numa poltrona, Brangwen dormia; tinha apoiado a cabeça no grosso revestimento de carvalho da chaminé. A face rubicunda parecia encolhida, as narinas abertas e os cantos da boca tombados. Podia despertar ao mais leve rumor.
Gerald hesitou um instante. Relanceou a vista pelo corredor que corria na direção contrária e que estava às escuras. Sempre indeciso, subiu os degraus; os sentidos denunciavam-lhe tal sutileza, uma apreensão quase sobrenatural, que parecia ser ele o condutor de todas as coisas.
Chegou ao primeiro andar. Deteve-se ali, com a respiração opressa. Correspondente ao quarto do rés do chão, havia aí também um, com a respectiva porta. Devia ser o da mãe das moças. Sentiu-a andar, deslocando a vela consigo. Naturalmente aguardava que o marido subisse. Gerald observou o corredor, que não estava iluminado.
Depois, silenciosamente, com infinitas precauções, foi andando sempre, tateando a parede com a ponta dos dedos. Encontrou uma porta e ficou um momento de ouvido à escuta. Percebeu que se tratava de duas pessoas, pelo ritmo da respiração. Não era ali, então. Prosseguiu, na ponta dos pés. Mais outra porta entreaberta. O quarto não tinha luz. Estava vazio. Mais adiante viu o banheiro, de onde vinha o cheiro de sabonete e um bafo morno. Por fim, na extremidade, descobriu outro quarto e ouviu alguém ressonando tranquilamente. Devia ser ela.
Com mil cuidados, quase num ritual, Gerald deu volta à maçaneta e abriu uma nesga da porta, que rangeu levemente. Empurrou mais um pouco, e mais ainda. O coração nem mais pulsava; era como se ele criasse à sua volta o silêncio e o esquecimento.
Conseguira entrar. Quem lá estava continuou a dormir placidamente. A escuridão era completa. Gerald foi seguindo, muito devagar, apalpando a parede, ate que chegou à cama e sentiu a respiração de quem dormia. Aproximou-se mais e inclinou-se como se os olhos pudessem descobrir a forma que ali jazia. E então muito perto do seu rosto, percebeu os cabelos escuros e o rosto redondo de um menino. Ficou atordoado.
Endireitou-se, deu meia volta e dirigiu-se à porta, de onde vinha um pouco de claridade. No patamar, hesitou; ainda havia tempo para fugir.
Mas não era esse o seu desejo. Queria levar a cabo o projeto. Tornou a passar, como uma sombra, em frente ao quarto do casal e subiu ao segundo andar. Os degraus estalaram sob o peso. Que aborrecimento! E que fracasso, se por acaso a mãe o apanhasse naquela situação! Se tal acontecesse... Mas não desanimou.
Não acabara ainda de subir, quando sentiu passos apressados no andar de baixo e alguém fechando à chave a porta da rua. Ouviu a voz de Úrsula e depois uma exclamação do pai, que despertara. Gerald correu ate o último andar.
Encontrou uma porta aberta: era outro quarto vazio; seguiu sempre para frente, andando às apalpadelas como um cego nas pontas dos pés. Movia-se, entretanto, com rapidez, com medo que Úrsula viesse. Encontrou mais uma porta. Escutou; os sentidos estavam alertas com uma acuidade sobrenatural. Pareceu-lhe que alguém se remexia na cama. Devia ser Gudrun. Docemente, como se naquele momento só tivesse a sensação tátil, Gerald deu volta à fechadura, que fez leve ruído Então estacou. Sentiu-se um roçar de lençóis. O coração oprimido, tornou a girar o fecho e empurrou a porta com a maior suavidade o que não a impediu de ranger.
- É você, Úrsula? - perguntou a jovem com voz atemorizada. Gerald abriu de vez a porta, muito depressa, e fechou-a atrás de si.
- Úrsula? - repetiu a moça, sempre com voz assustada. Ele percebeu que ela se sentava na cama. Não tardaria a gritar.
- Sou eu - disse o intruso dirigindo-se para ela. - É Gerald.
Ela ficou imóvel no leito. Seu espanto foi tão grande que sobrepujou o medo.
- Gerald! - exclamou ela, profundamente admirada. Mas ele já estava ao lado da cama e, com a mão estendida, tocava-lhe no seio quente, sem o ver. Gudrun recuou.
- Deixe-me acender a luz - pediu a jovem, saltando para o chão.
O homem estava calmo, mas não se movia. Sentiu-a pegar uma caixa de fósforos e riscar um. Surgiu o clarão e Gerald pode vê-la chegar o fogo ao pavio de uma vela.
A luz alastrou-se, depois diminuiu. O quarto recaía no escuro enquanto a vela não ardia bem; depois tornou a clarear.
Gudrun olhou para ele, que se mantinha de pé, do outro lado da cama. Tinha o boné enterrado ate aos olhos e o sobretudo preto abotoado ate ao queixo. O rosto parecia estranho e luminoso, como um ser sobrenatural. Logo que ela o viu, compreendeu o que se passava. Percebeu que havia, naquela situação, uma espécie de fatalidade, que lhe era forçoso aceitar. Todavia, convinha discutir.
- Como entrou? - inquiriu.
- A porta estava aberta... Subi as escadas.
Gudrun observava-o.
- Não fechei a porta - explicou ele. A moça atravessou rapidamente o quarto e deu volta à chave.
Estava extraordinariamente bem, com os olhos admirados, as faces coradas, os cabelos curtos e espessos na nuca e a camisola de dormir branca, tombando-lhe ate aos pés.
Ela notou que as botas de Gerald estavam enlameadas e que a terra úmida lhe chegava a atingir as calças. Imaginou se ele teria deixado vestígios de sua passagem no assoalho da casa. Que estranho vê-lo imóvel ao lado da cama, perto dos lençóis em desordem!
- Qual o motivo desta visita? - perguntou Gudrun fingindo-se zangada.
- Não pude resistir.
A verdade da resposta estampava-se no rosto dele.
- Está todo cheio de lama - comentou ela, repreendendo-o, embora carinhosamente. Gerald olhou para as botas.
- Estava tão escuro que não se via o caminho. - Disse isto bruscamente, com certa arrogância. Seguiu-se um silêncio. Gerald continuava no mesmo lugar, e ela do outro lado da cama revolvida. Ele nem sequer tirara o boné.
- E que pretende de mim? - perguntou Gudrun com ar de desafio.
Gerald desviou a vista e não respondeu. A extrema beleza, a misteriosa atração daquele rosto estranho e distinto, foi a única razão por que Gudrun não o mandou embora. Era, na verdade, um rosto maravilhoso, indecifrável para ela. Fascinava-a com o prestígio da beleza genuína, enfeitiçava-a, avivava-lhe as saudades, fazia-a sofrer.
- Que pretende de mim? - repetiu, afetando indiferença.
Gerald tirou o boné, como quem se desembaraçasse de um pesadelo, e dirigiu-se para ela. Mas não a tocou, vendo-a descalça e de camisola de dormir e reparando como ele próprio estava molhado e coberto de lama. Os olhos de Gudrun, grandes, muito abertos, fitavam-no, como que a insistir na pergunta formulada.
- Eu... vim para cá porque era preciso que viesse. Que tem a censurar-me?
Ela o contemplou admirada, como se não acreditasse no que ouvia.
- Estou no meu direito.
Gerald abanou a cabeça.
- Não é resposta - declarou, com expressão singularmente abstrata.
Tinha um ar ingênuo, quase divino, de simplicidade e franqueza inocentes. Lembrava-lhe, a ela, uma aparição de Hermes na sua mocidade.
- Mas por que veio? - insistiu.
- Porque estava escrito... Se você não vivesse neste mundo eu não viveria também.
Gudrun continuava a contemplá-lo com espanto, impressionada e ele fitava-a também, fixamente, numa estranha imobilidade que se julgaria inumana. A jovem suspirou. Sentia-se perdida sem remissão.
- Quer descalçar as botas? - sugeriu-lhe. Devem estar molhadas.
Gerald colocou então o boné sobre uma cadeira, desabotoou o sobretudo e levantou o queixo para desapertar a camisa. Os cabelos Imos e curtos estavam despenteados; mas parecia tão belo louro como o trigo! Acabou por despir o sobretudo.
Logo a seguir despiu o terno, desfez a gravata e desprendeu os botões dos punhos, em cada um dos quais havia uma pérola. Gudrun olhava-o inquieta, receosa de que alguém ouvisse o estalar da roupa engomada. Soavam para ela como tiros de canhão.
Gerald não precisava de justificação. Gudrun deixou-o tomá-la nos braços, apertá-la contra si. E ele, naquele amplexo, encontrava infinito alívio; espalhava por toda ela o poder tenebroso, corrosivo e mortal que trazia consigo, e readquiria assim a sua verdadeira personalidade. Era extraordinário, semelhante a um milagre, o milagre constantemente renovado da sua vida, em cuja realização se perdia num êxtase de prodígio e de consolo. E ela submissa, recolhia-o como um vaso repleto de amarga bebida fatídica. Nessa crise, não tinha forças para resistir. Havia-a penetrado a terrível e cruciante violência da morte, e comprazia-se arrebatada e submetida, nas agonias de uma sensação aguda e profunda.
Gerald apertou-a com mais força, embebendo-se profundamente naquele calor suave, admiravelmente criador, que lhe entrava nas veias e lhe dava novo alento. Julgava dissolver-se e afundava-se no banho repousante daquela energia reanimadora. Parecia-lhe que o coração da jovem vibrava lá dentro do peito como um segundo sol intangível em cujo brilho e vigor, proporcionando vida, Gerald procurava precipitar-se mais ainda. Todas as suas veias, rasgadas, laceradas, se iam brandamente cicatrizando ao mesmo tempo porque o ardor aí chegava e nelas corria, invisível, qual poderosa emanação solar. O sangue, que se teria suposto esgotado mortalmente, de novo lhe afluía, seguro, opulento, vivificador.
Notava que seus membros se enchiam de seiva nova, que seu corpo se robustecia com ímpeto desconhecido. Tornava a ser forte, vigoroso, amplo. Era como uma criança convalescente, que suavemente se restabelecesse; envolvia-o uma onda de gratidão.
E ela? Gudrun era a água purificadora da sua existência. Adorava-a como mãe e substância de todas as coisas. Ele, filho e homem, recebia esse alimento e se tornava um ser completo, integral. Viera com o corpo quase morto; mas fora envolvido pela doce emanação miraculosa daquele peito de mulher, entornando-se pelo cérebro ressequido e enfermo como linfa saneadora, tal o fluxo calmante da própria vida, fazendo-o perfeito como se houvesse nascido outra vez do ventre materno.
Estivera realmente ferido, esgotado; dir-se-ia que os tecidos do seu cérebro se haviam destruído. Nem tinha reparado até que ponto o fora, qual a profundidade a que haviam penetrado as matérias corrosivas da morte. Agora, porém, que essa linfa apaziguadora se derramava e lhe percorria o corpo, Gerald compreendia o quanto estivera doente, planta queimada interiormente pelo sopro da geada!
Descansou a cabeça entre os seios dela, apertando-os com as mãos e Gudrun, com as suas, chegou-o mais para si, deixando-o repousar tranquilamente. Um calor delicioso circulou por ele como um sono fecundo no seio materno. Ah, se a moça quisesse simplesmente deixar que aquela viva emanação o percorresse, Gerald ficaria curado de todo, restabelecido de vez! Tinha medo, contudo, de que ela retirasse o seu apoio antes que a cura se verificasse. Como uma criança de colo, o homem unia-se fortemente a Gudrun e ela não o podia afastar. Sentia-se gravíssimo para com Deus, como um menino é grato para sua mãe; grato e feliz ate o delírio, à medida que sua integridade se restabelecia, conforme o sono perfeito e inexprimível que o tomava, completo sono de cura e renovação.
Mas Gudrun permanecia desperta, na sua plena consciência. Estava imóvel, com os olhos fixos na obscuridade, enquanto ele adormecia, abraçado a ela.
Julgava ouvir o ruído das vagas rebentando numa praia invisível, longas ondas indolentes e sombrias que rolavam ao ritmo do destino, numa monotonia evoca Dora da eternidade. Este sussurrar constante do mar lento e triste apoderava-se-lhe da vida, e ela ali continuava de olhos abertos e enevoados, contemplando as sombras ao redor. Talvez visse de muito longe, talvez a eternidade, e, no entanto não distinguia nada. Mantinha-se absorta, mas consciente; consciente, porém, de quê?
Aquele estado, depois de haver atingido o máximo limite - quando ela mergulhou na eternidade, suspensa, inteirada de tudo - dissipou-se por fim e deixou-a desassossegada. Estivera tanto tempo imóvel! Mexia-se agora, recuperava a noção da realidade. E queria olhar para ele, observá-lo.
Não se atrevia, porém, a reacender a vela, certa de que Gerald acordaria, e desagradava-lhe perturbá-lo naquele sono tão perfeito que ela, bem sabia, lhe havia provocado.
Desprendeu-se dele cuidadosamente, soerguendo-se para contempla-lo na cama. No quarto, parecia descobrir uma claridade tênue. Podia ver as feições desse homem quieto e adormecido Julgava mesmo vê-lo distintamente, sem embargo da deficiência de luz. Ele, contudo, estava longe, num mundo diverso. Se ela gritasse, ele não a ouviria, tão ausente estava, num mundo distante. Gudrun tinha a impressão de que o via como um seixo afastado, meio submerso pela água límpida, no escuro. E ali ficava ela, entregue à angústia da sua consciência, enquanto ele mergulhava profundamente em outro elemento, descuidado, remoto, vivendo num mundo de claridade e de sombra! Belo, perfeito, longínquo. Jamais se poderiam reunir. Ah, atroz e inumana distância que se interpunha para sempre entre ela e aquele ser!
Nada restava a fazer senão ficar tranquila e sofrer o seu destino. Experimentava, por ele, a maior das ternuras e, ao mesmo tempo certo ciúme, certo ódio obscuro e confuso pelo fato de o ver tão calmo e imune em seu outro universo, enquanto ela estava atormentada, imersa em escuridão, vítima de cruel insônia.
Gudrun, em seu íntimo, sentia-se agitada. Extenuava-a aquela superatividade. O relógio da igreja batia horas que, à sua imaginação, se afiguravam suceder rapidamente. Ouvia-as distintas no meio da sua extrema tensão nervosa. Ele, porém, dormia, como se o momento fosse sempre o mesmo, imutável e estático.
A moça estava fatigadíssima. Contudo, era forçoso continuar naquele estado de excitação violenta; tudo lhe perpassava pela memória: a sua infância, a adolescência, episódios já esquecidos, coisas que não compreendera bem, cujo alcance lhe escapara, acontecidas a ela, à família, às amigas, aos namorados, aos conhecidos, fosse lá quem fosse. Era como se estivesse recolhendo, do fundo mar de sombras, o cabo cintilante das recordações, a puxar uma corda que não tinha fim, que nunca mais acabava, e ela precisava arrastar, retirá-la, fosforescente, das profundidades ilimitadas da lembrança, ate que, sem haver concluído a tarefa, a vencessem a lassidão, a dor e o esgotamento.
Ah, se ao menos pudesse acordar Gerald! A inquietação apoderara-se dela. Quando conseguiria despertá-lo e mandá-lo embora? Quando se atreveria a sacudi-lo? Ei-la de novo entregue à atividade automática da memória, sem esperança de a fazer cessar jamais!
Mas aproximava-se a hora de despertar Gerald. Sena um grande alívio o relógio, lá fora nas trevas, badalara quatro horas. Graças a Deus a noite ia findar. Às cinco tornava-se necessário que ele partisse, para que ela pudesse descansar. Repousaria, então estender-se-ia na cama, retomando a posição costumeira. Agora, naquele momento, opondo-se ao ritmo regular de um sono perfeito, era como uma faca muito aquecida de encontro a uma pedra de afiar. Havia nele qualquer coisa de monstruoso, na sua maneira de estar ali, assim unido, justaposto.
A última hora foi a mais comprida. Contudo, passou. O coração de Gudrun pulou de contentamento. Sim, lá estava batendo, pesada forte, a torre da igreja... Finalmente, depois de uma noite que parecia eternizar-se! Contava as badaladas, uma por uma: "três, quatro, cinco!" Pronto, estava acabado. Parecia retirar um peso enorme de cima.
Levantou-se, curvou-se ternamente sobre ele e beijou-o. Tinha pena de o despertar. Tornou a beijá-lo. Mas Gerald não se mexeu. Coitado, estava tão profundamente adormecido! Que maldade ter de acordá-lo! Deixou-o mais alguns minutos. Entretanto, fazia-se tarde; era preciso fazê-lo partir.
Cheia de ternura, tomou-lhe rosto entre as mãos e beijou-o nos olhos, que se abriram. Gerald ficou a observá-la, sem fazer qualquer movimento. O coração de Gudrun oprimiu-se. Para esconder o rosto daquele olhar espantado, que investigava a penumbra, inclinou-se e beijou-o mais uma vez, murmurando:
- Tem de ir, meu amor. Mas ao dizer isso, sentia-se triste.
Gerald lançou-lhe os braços ao pescoço. A jovem sentiu-se ainda mais angustiada.
- Você precisa ir - repetiu. - Está na hora.
- Que horas são?
Como soava singularmente aquela voz de homem! Gudrun estremeceu. A opressão tornava-se-lhe intolerável.
- Já passa das cinco.
Ele, porém, nada fez senão abraçá-la mais. O coração de Gudrun gemia-lhe no peito, torturado. Desprendeu-se dele à viva força.
- É preciso ir-se embora.
- Só mais um minuto.
Gudrun uniu-se a ele, muito sossegadamente, mas pouco disposta a lhe fazer a vontade.
- Mais um minuto - repetiu Gerald, apertando-a fortemente.
- Não - declarou ela. - Tenho medo, vá!
Havia na entonação da moça um pouco de frieza que o fez obedecer. Ela afastou-se, levantou-se e riscou um fósforo. Estava tudo terminado.
Gerald saltou da cama. Sentia-se quente, cheio de vida e de vigor. Contudo, experimentava um pouco de vergonha e humilhação em se vestir diante de Gudrun, à luz da vela. Era revelar-se expor-se excessivamente, principalmente agora que ela revelava hostilidade. Enfim, coisas difíceis de aceitar. Vestiu-se depressa, sem colocar nem o colarinho nem a gravata. Considerava-se agora uma pessoa completa, perfeita. Gudrun achava esquisito ver um homem vestir-se: camisa ridícula, ridículas calças e suspensórios... Teve uma ideia justificadora:
"Parece um operário que se levanta para ir para o trabalho - pensou. - Suponhamos que sou a mulher dele". Todavia, sentia um mal-estar, espécie de náusea do homem.
Gerald guardou no bolso do sobretudo o colarinho e a gravata. Depois sentou-se e calçou as botas, que estavam molhadas. Mas tinha pressa, e ele, ao menos, sentia-se quente.
- É melhor só calçar as botas lá embaixo - aconselhou ela.
Gerald, imediatamente, tirou as botas e ergueu-se com elas nas mãos. Gudrun calçara chinelas e envergava um roupão que não chegara a abotoar. Estava pronta e olhou para ele: Gerald esperava, com o sobretudo fechado ate o queixo e com o boné na cabeça. As botas pendiam-lhe das mãos. Por instantes, Gudrun sentiu-se tomada pela odiosa fascinação de sempre, que jamais se esgotava nela. Ele tinha o rosto tão ardente, os olhos imensos tão repletos de expressão! Achou-se velha, então, bastante velha... Aproximou-se com ar cansado e beijou-o. Gerald retribuiu-lhe o beijo, rapidamente. Ah, se aquela beleza fatal e sensual, beleza sem significação, não a enfeitiçasse mais, não a subjugasse tanto! Constituía para ela uma espécie de fardo, que a dominava e de que não se podia desvencilhar. Quando o contemplava, quando lhe via as sobrancelhas finas o nariz bem feito e os olhos azuis e indiferentes, Gudrun compreendia que a sua paixão não fora ainda satisfeita e que talvez nunca o viesse a ser. O pior é que, no momento, sentia-se fatigada, com uma sensação dolorosa. Gostaria que ele partisse.
Desceram. Tinham a impressão de que faziam muito ruído. Gerald seguia atrás, e Gudrun, embrulhada no seu roupão verde, levava na mão uma vela acesa. Assustava-a a ideia de despertar a família. Gerald não pensava nisso. Não se importava com o que os outros julgassem, e essa indiferença exasperava-a. Deviam rodear-se de precauções. Convinha não dar escândalo.
Tomaram o caminho da cozinha, que ficara limpa e arrumada como a criada a deixara. Gerald consultou o relógio: cinco horas e vinte minutos! Sentou-se e calçou as botas. Gudrun espiava-o, observando-lhe cada movimento. Desejaria pôr fim àquilo tudo que lhe causava aflição.
Ele se levantou outra vez, e ela destrancou a porta de serviço, investigando a escuridão. A madrugada estava áspera e fria, a aurora não despontava ainda e, num céu indeciso, pairava uma nesga de lua. Gudrun consolou-se com o pensamento de que voltaria para a cama.
- Bem, então adeus - murmurou ele.
- Vou até o portão - disse ela.
Passou à frente para indicar a escada. Chegando lá, parou nos degraus, enquanto Gerald descia.
- Adeus - cochichou a moça.
O homem beijou-a com delicadeza e partiu.
Era um sofrimento ouvir distintamente aquele passo vigoroso trilhando a estrada! E como aquele andar firme lhe revelava um mundo de insensibilidade!
Fechou o portão e voltou para a cama, rápida e silenciosa. Ao ver-se de novo no quarto, com a porta trancada, sã e salva, respirou de alívio, como se descarregasse um grande peso em cima. Aninhou-se entre os lençóis, na cavidade que o corpo de Gerald havia formado e que estava ainda quente como ele deixara. Enervada, cansada, mas apesar de tudo satisfeita, mergulhou muito depressa num sono profundo.
Gerald foi andando veloz na escuridão hostil daquela noite que findava. Não encontrou ninguém. Tinha o espírito perfeitamente calmo e despreocupado, semelhante a uma lagoa tranquila; sentia o corpo ágil, quente, apaziguado. Logo chegou a Shortlands, satisfeito consigo mesmo.

Capítulo XXV
Ser ou não ser casado
A família Brangwen ia deixar Beldover. Tornava-se conveniente que o pai morasse agora na cidade.
Birkin já havia requerido autorização para casar, mas Úrsula não se decidia. Não queria fixar a data definitiva; continuava a hesitar. Havia já três semanas que ela tinha pedido a sua demissão do colégio. O Natal se aproximava.
Gerald aguardava o casamento de Birkin com Úrsula. O caso tinha importância para ele.
- Quem sabe se, em vez de um casamento, serão dois? disse um dia ao amigo.
- Qual é o segundo? - inquiriu este.
- O meu e o de Gudrun - respondeu Gerald com uma piscadela de olhos.
Birkin encarou-o surpreso.
- Está falando sério?
- Sim, que tem isso de estranho? Podíamos casar no mesmo dia que vocês.
- Sem dúvida. Case! Não sabia que estavam tão adiantados.
- Adiantados? - repetiu Gerald, observando o outro e desatando a rir. - Sim, é verdade, estamos nesse ponto.
- Só resta colocá-los numa larga base social e realizar um fim moral elevado - declarou Birkin.
- Tudo isso: largura, altura... e comprimento - replicou Gerald, sempre rindo.
- Muito bem; é uma decisão digna de aplausos, julgo eu. Gerald fitou-o atentamente.
- Por que não se entusiasma mais um pouco? - indagou. - Julgava-o defensor acérrimo do matrimônio.
Birkin encolheu os ombros.
- Defenda-se, o que quiser, até narizes, que os há de várias espécies, achatados, torcidos...
Gerald achou a comparação divertida.
- E todas as espécies de casamentos, torcidos e achatados - observou.
- Isso mesmo.
- E pensa que o meu será dos torcidos? perguntou Gerald pondo a cabeça de lado, com ar zombeteiro.
Chegou a vez de Birkin sorrir.
- Como posso saber? Não se aproveite do meu estilo figurado para me submeter a interrogatórios.
Gerald refletiu uns instantes.
- Em todo caso, gostaria de saber ao certo a sua opinião.
- Acerca do seu casamento, ou do casamento em geral? Para que deseja conhecê-la? Opinião é coisa que não tenho. O casamento legal não me interessa, de modo nenhum. É pura questão de conveniência.
Gerald fitou-o mais uma vez com atenção.
- Acho que é mais do que isso - atalhou muito sério. Por muito enfadonha que seja a respectiva filosofia, em todo o caso... realmente... do ponto de vista de cada um, parece-me que é assunto grave, definitivo...
- Quer dizer que o fato de ir, com uma mulher, perante o registro civil, dá ao casamento aspecto definitivo?
- Se o ato se realiza ate ao fim, acho que é, de certa maneira, coisa irrevogável.
- Concordo - disse Birkin.
- A opinião que se tenha sobre a legitimidade não importa; contudo o fato, em relação aos contraentes, é coisa certa. - Creio que sim, em certas terras.
- O problema se resume em saber se nos devemos casar... Birkin observava-o, curioso, com os olhinhos risonhos.
- Você, Gerald, - disse ele - é tal qual Lord Bacon. Argumenta como um advogado, ou como o Hamlet no ser ou não ser. No seu caso, eu não me comprometeria. Mas vá perguntar isso a Gudrun e não a mim. Não é comigo que você quer casar...
Gerald não prestou atenção ao final do discurso.
- Sim - insinuou - devemos considerar tudo isso com serenidade. É um momento crítico da nossa vida. Chega-se a certa altura em que é preciso enveredar por um caminho ou por outro. O casamento é um desses caminhos.
- E qual é o outro? - acudiu logo Birkin.
Gerald ergueu para ele os seus olhos ardentes, estranhamente persuasivos, que o amigo, todavia, não pôde compreender.
- Não sei explicar - respondeu. - Se o soubesse... - Mexeu com os pés, inquieto, e não acabou a frase.
- Quer dizer que, se conhecesse a alternativa... ? - sugeriu Birkin. - Mas como não a conhece, o matrimônio é um pis aller - Uma situação que se aceita por não haver algo melhor - nota da tradutora).
Gerald dardejou-lhe um olhar fogoso, constrangido.
- A impressão, realmente, é que se trata de um pis aller.
- Então não se case - sentenciou Birkin. - Dir-lhe-ei - prosseguiu - o mesmo que já lhe disse uma vez: o casamento, no seu significado usual, repugna-me. Comparado com ele, o egoisme à deux não é nada. É uma espécie de caçada feita por grupos de dois; o mundo todo aos pares, cada qual na sua casa, tratando da sua vida, cozinhando na intimidade... Nunca vi coisa mais repelente sobre a face da terra.
- Sou da sua opinião - voltou Gerald. - Há nisso muita inferioridade. Mas, como eu dizia, qual será a alternativa?
- É preciso desembaraçarmo-nos deste instinto doméstico, que não é bem um instinto, mas um hábito de covardia. Não devíamos nunca ter um lar.
- Completamente de acordo. Mas não há outra solução.
- É preciso encontrar uma. Creio na união permanente do homem com a mulher. Mudar sempre seria trabalho puramente exaustivo; ora, união apenas sexual entre mulher e homem não é o ponto supremo... Com certeza não é.
- Também acho.
- E é pelo fato de fazerem dessas relações materiais o fim supremo e exclusivo que vemos surgir tanta incompreensão, tanta mesquinhez e tanta insuficiência.
- Perfeitamente - disse Gerald.
- Devia-se apear do pedestal a que a ergueram essa fórmula considerada ideal: o amor no casamento. Pretendo algo mais elevado. Acredito numa união perfeita entre homem e mulher como complemento do matrimônio.
- Não percebo como possa equivaler-se.
- Não é o mesmo: é coisa mais importante, igualmente criadora, igualmente sagrada, se prefere.
Gerald remexia-se, inquieto.
- Bem vê, não posso sentir assim - declarou. - Acho que nada existe de mais forte entre mulher e homem do que o amor sexual. A natureza não estipula bases.
- Pelo contrário, creio que estipula. Nem julgo que possamos ser felizes sem estabelecermos, por nosso lado, as regras que nos competem. Faça por se desembaraçar do exclusivismo do casamento de amor e admita a estima do homem pelo homem, que tanta aversão lhe causa. Assim haveria maior liberdade para toda gente, grande força individual não só para o homem como para a mulher.
- Bem sei - retorquiu Gerald. - Você crê em qualquer coisa nesse gênero. Eu é que não posso conceber nada disso. - Colocou a mão no ombro de Birkin, com uma espécie de simpatia suplicante, enquanto sorria como se houvesse triunfado na discussão. Estava pronto a se deixar condenar: era assim, como uma condenação, que lhe aparecia o casamento. Ele próprio desejava sofrer a pena do matrimônio, como um condenado a trabalhos nas minas que diz adeus à luz do sol e mergulha na terrível atividade subterrânea. Estava disposto a aceitar isso mesmo. O casamento era a penalidade imposta. Queria ser proscrito dessa forma para o subsolo, como uma alma penada que devesse viver para sempre em cativeiro. Não desejava, porém manter afinidades com mais nenhuma outra alma. Não o conseguiria. O casamento não era só unir-se a Gudrun: implicava também a aceitação do mundo tal qual existia. Devia admitir a ordem estabelecida, na qual não tinha confiança, e então retirar-se-ia para debaixo da terra, para sempre. Era esse o seu intento.
Por outro lado, havia a possibilidade de aceitar a aliança com Rupert, ligando-se por laços de pura estima com o homem, e, pela mesma doutrina, com a mulher. Se se comprometesse solenemente com o primeiro, mais tarde estaria apto a fazer o mesmo com uma mulher, não só por meio de casamento legal, mas numa união mística e absoluta.
Contudo, repudiava semelhante entendimento. Havia nele certo torpor, quer derivado de ausência de vontade, que jamais teria possuído, quer por se lhe haver ela atrofiado. Talvez a primeira hipótese. De fato, a proposta de Rupert Birkin entusiasmara-o singularmente. Mas sentia muito prazer em declarar que não aceitava.


Capítulo XXVI
A propósito de uma cadeira
Todas as segundas-feiras, à tarde, realizava-se uma feira de objetos usados no antigo mercado da terra. Úrsula e Birkin foram lá uma vez. Tinham conversado a respeito de móveis e quiseram ver se encontrariam qualquer coisa capaz de ser comprada no meio daquelas pilhas de trastes acumulados na praça.
O velho mercado não era muito vasto: simples quadrado com o chão coberto de pedras de granito, onde habitualmente, junto às paredes, se erguiam os tabuleiros dos vendedores de frutas. Ficava num bairro pobre e rodeavam-no, por um lado, casas em ruínas, de outro, uma fábrica de fiação, extensa fileira de inúmeras janelas oblongas; ao fundo, corria uma rua pavimentada de lajes, onde havia alguns estabelecimentos, e, na última face do quadrado, ficava um edifício do Estado, os banhos públicos, de tijolos novos, rubros e uma torre de relógio. As pessoas que por ali circulavam eram apenas figuras infelizes e sórdidas. O ar parecia impregnado de cheiros fétidos, dando a mesma sensação que se tem nas travessas pobres muito enredadas, cheias de casebres mesquinhos. De vez em quando, diante da fábrica, rodava a custo, rangendo, um grande carro americano, amarelo e cor de chocolate.
Úrsula sentiu arrepios na pele ao ver-se entre a gente do povo, no lugar onde se amontoavam camas velhas, objetos de ferro enferrujados, louça de barro em lotes tristes e conjuntos incríveis de roupa usada. Birkin seguia por aqueles espaços estreitos em que se sobrepunham todas aquelas mercadorias, que ele ia examinando com atenção. Úrsula observava as pessoas.
Contemplava agora uma mulher nova em vésperas de ser mãe; dispunha-se a comprar um colchão e incitava o rapaz que a acompanhava, desatento e abatido, a experimentá-lo também. Parecia tão ativa, preocupada e ansiosa quanto o rapaz se afigurava indiferente e com ar de quem pretende esquivar-se. Iam naturalmente casar por causa daquela criança prestes a vir ao mundo.
Depois de haverem apalpado o colchão, perguntou a freguesa ao homem, que estava sentado num banco em meio das suas mercadorias, qual era o preço que ele pedia. Uma vez informada do custo, comunicou a notícia ao rapaz. Este mostrou-se acanhado; desviou o rosto; sem no entanto mover o resto do corpo e pronunciou qualquer coisa em voz baixa. De novo a mulher, ansiosa e diligente, provou o colchão, fazendo cálculos consigo mesma e regateando com o vendedor desleixado. E, durante todo esse tempo, o rapaz ficou ao lado dela, envergonhado, sem energia, submisso.
- Veja - disse Birkin. - Aqui está uma cadeira bem bonita.
- Linda! - exclamou Úrsula. - Um encanto!
Era uma cadeira de braços, de qualquer madeira vulgar - vidoeiro, provavelmente - mas bastante delicada e graciosa quanto ao estilo; dava pena vê-la ali sobre aquelas pedras miseráveis. Era de forma quadrada, com linhas esbeltas e puras; o espaldar era constituído por quatro tiras de madeira, delgadas, cuja disposição lembrou a Úrsula a das cordas de uma harpa.
- Noutro tempo - observou Birkin - devia ter sido dourada e com assento de palhinha. Pregaram-lhe por cima esse tampo de madeira. Está vendo, aqui está um vestígio de tinta vermelha por baixo do dourado. A base é toda preta, exceto onde o uso pôs à mostra a própria madeira. O que a torna assim atraente é a perfeição de suas linhas. Repare como seguem, como se encontram e se desviam. O pior é o assento de pau, que não lhe pertence, destrói a elegância e a priva da unidade que lhe dava o entrançado da palhinha. Ainda assim, agrada-me...
- E a mim também - disse Úrsula.
- Quanto custa? - perguntou ao vendedor.
- Dez xelins.
- Pode mandar entregar?
Fizeram a compra.
- É tão bonita, tão graciosa! - disse Birkin. - Enternece o coração. - Continuaram o seu caminho entre os montões de coisas velhas. - Minha pátria amada, tinha qualquer coisa para exprimir, quando fizeste esta cadeira!
- E hoje não tem? - perguntou Úrsula. Irritava-se quando ele falava naquele tom.
- Não, não tem. Quando vejo esta cadeira, tão bela e elegante e penso na Inglaterra, ainda que seja a do tempo de Jane Austen!... Havia então pensamentos vivos a desenvolver, e havia prazer em desenvolvê-los... E agora só nos resta pescar, entre o lixo, o que ficou da velha expressão nacional. Não temos, presentemente, originalidade, somos apenas mecanismos sórdidos e grosseiros.
- Não é verdade! - atalhou Úrsula. - Por que você há de exaltar constantemente o passado em desprimor do futuro? Eu, na verdade, não sou muito pela Inglaterra de Jane Austen. Era bastante materialista, se me permite dizer...
- Podia dar-se ao luxo de o ser - contraveio Birkin - porque tinha possibilidades de fazer mais alguma coisa, o que não sucede conosco. Nós somos materialistas pela razão de não termos facilidade de ser de outra maneira. Bem podemos experimentar, mas não conseguimos senão materialismo; ou a mecânica, que é a alma daquele.
Úrsula guardava um silêncio hostil. Não fazia caso mais do que ele estava dizendo. Revoltava-se contra outro pensamento que lhe girava no cérebro.
- Odeio esse passado que você ama. Sinto náuseas. Parece ate que detesto essa cadeira antiga que compramos, apesar de achar bonita; mas não é desta beleza que eu gosto. Preferia que a tivessem destruído, uma vez que passou de época; que não tivesse sobrevivido, dando assim origem a estes seus panegíricos do passado... Estou farta desse passado que você adora.
- Não tanto quanto eu estou farto deste maldito presente - replicou ele.
- Pois é a mesma coisa. Detesto também o presente, mas não me agradaria que o passado o viesse substituir. Não quero a cadeira antiga.
Naquele momento Birkin estava furioso. Olhou para o céu que brilhava sobre a torre do estabelecimento de banhos e sua cólera passou. Começou a rir.
- Muito bem - disse ele. - Desfaçamo-nos desse objeto. Enfastia-me também. De qualquer maneira, não nos podemos continuar a alimentar de velharias, por mais belas que sejam.
- Não podemos - assentiu ela. - Não preciso de antiguidades.
- A verdade é que não necessitamos de móveis de nenhuma espécie - declarou Birkin. - A ideia de uma casa minha, com a respectiva mobília, enfurece-me.
Tal declaração sobressaltou-a por instantes. Mas depois retorquiu:
- A mim também. O caso, porém, é que precisamos viver em qualquer parte.
- Em qualquer parte, não, mas em parte nenhuma. Em nenhum lugar, sim! Não ter pouso definido! Não me falem em residência permanente. Logo que temos um quarto, e que o vemos completo, nosso desejo é fugir dele. Os meus aposentos no moinho estão agora quase prontos, e meu desejo seria lançá-los no fundo do mar; é uma tirania medonha essa do lugar fixo, onde cada peça de mobiliário tem a sua ordem estabelecida.
Úrsula apoiou-se ao braço dele enquanto se afastavam da feira.
- Mas que havemos de fazer? - murmurou ela. - Temos de viver seja lá onde for, e agradam-me coisas belas à minha volta. Aprecio uma espécie de esplendor natural, de magnificência.
- Você não achará nada disso, nem nas casas, nem na mobília, nem sequer nos vestidos. Casas, móveis, roupas, são termos de um mundo velho e mesquinho, da antipática sociedade humana. E pior ainda se você tiver uma residência de estilo Tudor com lindos móveis antigos, que faria perpetuar passado à sua volta. Mas se a casa é moderna e for decorada por Poiret expressamente para nós, é outra a ideia que perpetuamos à nossa volta: igualmente horrível. É tudo patrimônio, tudo são bens que nos atormentam, obrigando-nos à generalização... Devíamos fazer como Rodin e Miguel Ângelo, que deixavam em torno dos vultos esculpidos apenas pedaços de pedra rudes e imperfeitos. Em redor de nós, seguindo o exemplo, devíamos ter somente coisas incompletas, esboçadas, de maneira a não sermos nunca limitados, nem confinados pelo que nos rodeia.
Úrsula parou no meio da rua, meditando.
- Nunca teremos, então, uma casa nossa, uma instalação de verdade?
- Se Deus quiser, neste mundo, não.
- Mas só há este mundo - objetou ela.
Rupert estendeu os braços num gesto de indiferença.
- Entretanto, evitemos possuir seja que objetos forem.
- Você acaba de comprar uma cadeira.
- Direi ao homenzinho que não a quero mais.
Úrsula tornou a refletir. Sua face contraiu-se em um ritus estranho.
- Tem razão - disse ela. - Não precisamos de velharias. Estou farta disso.
- Quanto a mim, não aprecio mais que é moderno - replicou Birkin.
Resolveram voltar.
Em frente a uma pilha de móveis estava casal jovem: a moça que ia ter seu bebê e rapaz acanhado e inexperiente. Ela era loura, atarracada e forte. Ele, de altura mediana, bem constituído; tinha cabelos pretos, caindo sobre a testa. Com a boina enfiada na cabeça, parecia totalmente alheio ao que se passava.
- Vamos oferecê-la a eles? - cochichou Úrsula. - Repare, têm o aspecto de quem anda mobiliando o ninho...
- Nesse caso, não os ajudarei nem incitarei - afirmou Birkin com petulância, tomando logo o partido do rapaz indiferente e bisonho contra a fêmea ativa e procriadora.
- Sim, sim! - exclamou Úrsula. - Ela será ótima para eles. Não há nada melhor!
- Está bem, vá oferecer a cadeira: eu fico observando. Úrsula dirigiu-se, um tanto nervosamente, em direção ao casal, que discutia a compra de um lavatório de ferro; ou melhor, era a mulher quem regateava ao passo que o rapaz, como um prisioneiro, lançava olhares furtivos e desconfiados sobre o objeto abominável.
- Compramos uma cadeira - começou Úrsula - mas não a queremos. Querem-na para vocês? Teríamos muito gosto em que aceitasse.
Os dois olharam admirados, custando a acreditar que a conversa fosse com eles.
- Importa-se de ficar com ela? - prosseguiu Úrsula. - É realmente muito bonita, mas... mas... - E exibiu o seu melhor sorriso.
Os noivos limitaram-se a observar, trocando olhares significativos, para saberem que resposta deviam dar. O rapaz procurava apagar-se o mais possível; o seu desejo seria escapulir como um rato.
- Temos muito gosto em oferecê-la - continuou Úrsula, sempre confusa e receosa. O rapaz, no entanto, inspirava-lhe simpatia. Era silencioso, descuidado, pouco masculino, singularmente delicado, de pura raça, em certo sentido. Era, enfim, tímido, esperto, sutil. As pestanas, longas e finas, sombreavam-lhe os olhos, nos quais não existiam pensamentos apenas uma espécie de instinto terrível, lá no interior, vítreos e melancólicos. Tanto as sobrancelhas escuras como os estantes traços da fisionomia obedeciam a um desenho corresimo. Assim tão bem dotado, devia ser, para a mulher, um amante funesto, mas admirável. Sob as calças disformes adiavam-se-lhe as pernas finas e ágeis; dir-se-ia haver, em volta alguma coisa da esperteza, da cautela, do aveludado de ratinho de olhos pretos, silencioso.
Úrsula dirigia-se a ele, com um leve calafrio de sedução. A mulher encarava-o hostilmente. A professora repetiu, mais uma vez:
- Não querem a cadeira?
O rapaz olhou para ela de soslaio, admirando-a, mas com ar distante, quase insolente. A mulher empertigou-se. Tinha o aspecto de uma vendedora de hortaliças. Não percebia quais eram as intenções da doadora e mantinha-se de prevenção. Birkin aproximou-se sorrindo perversamente ao ver Úrsula confusa e asseada.
- Então, o que há? - perguntou ele, jovial. Tinha os olhos semicerrados opressão denunciava algo de misterioso, igual à que se nota o parzinho de noivos. O rapazola inclinou a cabeça para Úrsula, e disse com certo calor, amável:
- Que é que ela quer, hein? - Seus lábios arquearam-se em um sorriso muito especial.
Birkin olhou para ele, mirando-o por baixo das pálpebras descidas, ironicamente.
- Dar-lhe uma cadeira... aquela, que tem um letreiro amarrado - disse para o outro, apontando-lhe o móvel.
O rapaz olhou para a cadeira. Notava-se entre os dois homens certa camaradagem e compreensão.
- Por que é que ela nos quer oferecer? - perguntou o primeiro em tom de familiaridade que melindrou Úrsula.
- Pensei que talvez gostassem... É uma cadeira tão bonita! Comprei-a, mas não a quero mais. Não é obrigado a aceitá-la, quanto a isso, fique sossegado... - explicou Birkin, sempre sorridente.
O rapaz lançou-lhe um olhar meio formalizado, meio agradecido.
- Se a compraram, por que razão não a querem? - interveio a mulher, friamente. - Será que a observaram melhor e viram que não serve? Aposto que desconfiam de que tenha alguma coisa lá por dentro.
Ao dizer isto, contemplava Úrsula com admiração mesclada de ressentimento.
- Não pensei nisso - declarou Birkin. - Mas vejam, a madeira está em bom estado...
- Aí está - atalhou Úrsula, com a face risonha, fazendo-se amável. - Vamo-nos casar e pensamos comprar alguns móveis. Mas agora decidimos, neste momento mesmo, desistir da mobília e irmos para o estrangeiro.
A outra, moça saudável, de boas cores, examinou o rosto delicado de Úrsula. Apreciavam-se reciprocamente. O noivo daquela mantinha-se de parte, alheio ao tempo, inexpressivo, com a sombra negra do bigodinho desenhando-lhe a boca impassível, sempre abstrato, mera presença inofensiva, como a de qualquer objeto.
- Essas pessoas da alta roda são engraçadas - comentou a mulher, voltando-se para o rapaz; este nem olhou para ela, limitando-se a sorrir com a parte inferior da fisionomia e deitando a cabeça de lado, num gesto irônico de concordância. Os olhos conservavam-se na mesma, vítreos e melancólicos.
- Sai caro mudar de ideias - observou ele, numa voz estranhamente velada.
- Perco apenas dez xelins - esclareceu Birkin.
O rapaz encarou-o, sorrindo contrafeito, acanhado, pouco à vontade.
- É mais barato então do que o divórcio...
- Ainda não estamos casados - elucidou o outro.
- Nós também ainda não - acudiu a robusta jovem. - Casamo-nos qualquer sábado desses...
Lançou ao noivo uma olhadela decidida e protetora, ao mesmo tempo autoritária e carinhosa. Ele riu-se, com um risinho abafado e deu-lhe as costas. Estava nas mãos dela, evidentemente, mas fazia por se defender. Vinham-lhe pruridos de orgulho e esquivava-se para demonstrá-lo.
- Que sejam felizes! - disse Birkin.
- O mesmo desejo aos senhores - volveu a mulher. Depois, numa tentativa audaciosa, perguntou:
- Quando é o casamento? Birkin voltou-se para Úrsula.
- Ela é quem decide - respondeu. - Iremos ao cartório assim que ela estiver pronta.
Úrsula achou graça e sentiu-se confusa e embaraçada.
- Não tenha pressa - acudiu o rapazinho, deixando ver os dentes, muito risonho.
- Não se preocupem com isso - interveio outra vez a moça.
- Também para morrer há tempo. E ficarão casados por muitos anos!
O noivo desviou-se, como que magoado com aquelas palavras.
- Quanto mais durar, melhor. Tenhamos esperança - disse Birkin.
- É isso mesmo, senhor - afirmou o rapaz, com acentuada admiração. - Aproveitar enquanto há saúde. Depois do burro morto, nada se pode fazer.
- A não ser que ele se finja de morto - acudiu a mulher, olhando para o noivo, com ternura, e, simultaneamente, autoridade.
- Faz diferença, é claro - replicou ele.
- E a respeito da cadeira? - perguntou Birkin
- Aceitamos! - declarou a mulher.
Aproximaram-se do vendedor. O rapazinho manhoso, com seus belos ares, deixou-se ficar, entretanto, mais atrás.
- Cá está - explicou Birkin. - Levam-na consigo, ou muda-se o endereço?
- Fred pode com ela. Que faça ao menos isso em benefício da nossa casa.
- Vai ser muito útil - disse Fred em tom sarcástico, ao pegar a cadeira. Tinha movimentos elegantes, mas era servil, cheio de manha. - Mamãe vai gostar - observou ele. - Só lhe falta uma almofada. - Colocou-a no chão de pedras e esperou.
- Não a acha bonita? - perguntou Úrsula.
- Sim, senhora - respondeu a noiva.
- Sente-se aqui, para ver se se arrepende da oferta que fez - lembrou o rapaz.
Úrsula obedeceu e sentou-se, mesmo ali no meio da feira.
- Confortabilíssima - declarou. - Mas um tanto dura. Experimente. - Convidou o homem a sentar-se. Este, porém, relanceou-lhe um olhar envergonhado, pondo-se de lado, sem jeito, e tentando esquivar-se como um ratinho.
- Não o estrague com mimos - disse a moça. - Não está habituado a poltronas.
Sempre desviando o olhar, respondeu-lhe aquele, em tom de brincadeira:
- Às minhas só faltam os pés.
Separaram-se. A noiva manifestou o seu agradecimento pelo presente.
- Muito obrigada pela cadeira. Há de durar muito.
- Vamos guardá-la como enfeite - completou o rapaz.
- Boa tarde! Boa tarde! - disseram Úrsula e Birkin.
- Felicidades para ambos! - respondeu o rapaz, evitando o olhar de Birkin na ocasião em que este voltara a cabeça para ele.
Os dois casais seguiram cada qual o seu caminho. Úrsula tomou o braço de Rupert. Quando já iam a certa distancia, Úrsula olhou para trás e descobriu os noivos, ela grávida e vagarosa andando ao lado dele. As calças do rapaz desciam-lhe aos calcanhares; seguia como quem tem vontade de se esconder, sofrendo no seu orgulho por ser obrigado a carregar com a cadeira, que segurava pelo espaldar, enquanto os quatro pezinhos delgados se balançavam a pouca distância do chão, com perigo de se estragarem. E, contudo, lá ia ele insubmisso e independente como um rato ligeiro e esperto. Belo à sua maneira, um tanto singular, mas, ao mesmo tempo, repulsivo.
- Que casal estranho! - murmurou Úrsula.
- Filhos dos homens - elucidou Rupert. - Lembram-me Jesus quando disse: "Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra.
- Mas estes não são mansos - objetou Úrsula. - Não sei bem por que, mas são.
Esperaram o ônibus. A moça preferiu ir na parte de cima para contemplar a cidade. O crepúsculo principiava a descer sobre as casas apinhadas.
- E herdarão a terra?
- Sim, eles só.
- E nós, então, o que havemos de fazer? - perguntou ela. - Não somos iguais a eles, não é verdade?
- Decerto. Teremos de viver nos buracos que nos deixarem.
- É horrível! declarou Úrsula. - Não quero viver assim.
- Não se aflija. São filhos dos homens, preferem os mercados e as esquinas das ruas. Restam devolutos imensos buracos para nós.
- O mundo inteiro...
- Isso não, mas sempre sobra algum espaço.
O ônibus subia lentamente a colina, onde o medonho conjunto de habitações, de um tom acinzentado, se assemelhava a uma visão infernal, irritante e angulosa. Começaram a observar. O sol morria no horizonte, vermelho de furor. Tudo parecia triste, encolhido, sufocante, sugerindo o fim do mundo.
- Nada disso me interessa - proferiu Úrsula, olhando para o cenário repelente. - Não me diz respeito.
- Sem dúvida - replicou Rupert, tomando-lhe a mão. - Não é necessário ver. Cada qual segue o seu caminho. No meu há sol e há espaço...
- Está dizendo a verdade, meu amor? - Uniu-se mais a ele, enquanto os outros passageiros do carro os fitavam com estupefação.
- Erraremos sobre a face da terra - volveu Birkin. - Veremos outras coisas no mundo, diferentes desta paisagem.
Ficaram calados por muito tempo. Úrsula meditava e seu rosto se tornara radiante como o ouro.
- Não preciso herdar os bens da terra - disse ela. - Nem quero nada.
Rupert apertou-lhe mais a mão.
- Nem eu. Quero ser deserdado.
Úrsula premia-lhe fortemente os dedos.
- Não nos incomodaremos com coisa alguma - sentenciou a moça.
Rupert, muito calmo, principiou a rir.
- Casaremos e não daremos importância aos demais - prosseguiu ela.
Ele continuava a rir.
- E uma das maneiras de nos livrarmos de tudo é casar - acrescentou Úrsula.
- E aceitar um mundo inteirinho - atalhou Rupert.
- Sim, porém um mundo diferente - replicou a moça, satisfeita.
- Mas... Gerald e Gudrun?
- Que fiquem, se quiserem. Não nos incomodaremos com isso. É impossível modificá-los.
- Sim, nem temos o direito de intervir, mesmo com a melhor das intenções...
- Você seria capaz de tentar? - perguntou a moça.
- Talvez. Mas por que é que o desejo, a ele, livre, se a natureza não o talhou para tal?
Úrsula refletiu alguns instantes.
- De qualquer maneira, não podemos fazê-los felizes. Que o sejam, mas à sua custa.
- Bem sei. Todavia, precisamos de outras pessoas, junto de nós...
- Por quê?
- Não sei. - Rupert parecia embaraçado. - Desejamos sempre ter amigos...
- Mas por quê? - insistiu ela. - Que necessidade temos de outras pessoas? Não nos bastamos a nós mesmos?
Aquela teima espicaçava-o. Birkin tornou-se carrancudo.
- Só existimos nós dois na terra? - inquiriu nervoso.
- Sim, Rupert. Para que mais gente? Se alguém quiser aproximar-se, deixá-lo vir. Mas não é preciso correr atrás dos outros.
Birkin permanecia ansioso e descontente.
- Veja - disse então. Eu não concebo que sejamos realmente felizes senão em companhia de meia dúzia de pessoas... Um pouco de liberdade, no meio de um grupo...
Úrsula voltou a refletir.
- De fato, isso é necessário. Mas que aconteça por si mesmo, e não pela nossa vontade. Você tem sempre o ar de quem está querendo obrigar as plantas a crescer. Se os outros simpatizarem conosco, está bem; mas não os obriguemos.
- Bem sei - concordou ele - Contudo, pode-se dar uns passos nesse sentido. Ou devemos proceder como se estivéssemos sós no mundo, como se fôssemos os únicos habitantes do planeta?
- Você tem a mim - redarguiu ela. - Para que mais? Por que obrigar os outros a concordar com você? Não pode ficar isolado, como tanto preconiza? Quer forçar Gerald com ameaças, como já fez a Hermione? Aprenda a viver só. É horrível da sua parte. Você me tem, e, no entanto, pretende obrigar os outros a sentirem estima por você! Quando, afinal, não tem necessidade da afeição dessa gente...
Birkin ficara deveras perplexo com este discurso.
- Pensa assim? - replicou. - É um problema que eu não sei resolver. Compreendo que desejo ter com você uma união perfeita e completa e estamos prestes a consegui-la. Mas, fora isso? Quero manter com Gerald uma amizade definitiva, quase extra-humana, uma amizade suprema. Ou não quero?
Úrsula contemplou-o longamente, com os olhos brilhantes e admirados. Mas não deu resposta.


Capítulo XXVII
Batendo as asas
Naquela noite, Úrsula regressara a casa com os olhos brilhantes, diferente do que costumava ser, irritando com isso os demais membros da família. O pai viera cear, depois das aulas noturnas, cansado do trabalho e do trajeto. Gudrun lia e a mãe conservava-se silenciosa.
De repente, em voz bem timbrada, a mais velha das irmãs declarou:
- Rupert e eu vamos casar amanhã.
O pai olhou, colérico.
- O quê? - exclamou.
- Amanhã? - perguntou Gudrun.
- Que ideia é essa? - quis saber a mãe.
Úrsula, porém, limitou-se a sorrir, encantada consigo mesma, e não deu resposta.
- Casar-se amanhã! - tornou o pai, indignado. - Que é que está dizendo?
- Sim, senhor. Por que não? - Estas simples palavras tiveram o poder de enfurecê-lo. - Temos tudo pronto. Iremos ao Registro Civil.
Houve um silêncio de segundos na sala, depois daquela declaração feita com tanta naturalidade.
- Isso é verdade, Úrsula? - indagou a irmã.
- Pode-se saber por que guardou segredo? - interrogou a mãe, cheia de dignidade.
- Não houve segredo nenhum. Todos sabiam.
- Quem é que sabia? - gritou o pai. - Quem sabia? Que quer dizer com todos sabiam?
Assumira uma das suas atitudes de ira brutal, e a moça colocou-se logo em guarda.
- Claro que o senhor estava a par. Não ignorava que nos iríamos casar.
Houve uma pausa perigosa.
- Diz que eu sabia que vocês iam casar? Como iria saber? Quem pode saber jamais o que você pensa fazer, minha sonsa?
- O pai! - interveio Gudrun, em tom de censura, corando intensamente. Depois, em voz mais calma e afável, como para lembrar à irmã que devia condescender, perguntou-lhe: - Não será uma resolução um tanto impensada?
- Pelo contrário - objetou a outra, com a mesma jovialidade agressiva. - Há muitas semanas que ele espera o meu consentimento, e já tratou ate dos papéis. Eu é que não me tinha ainda resolvido. Acabo de o fazer. Que tem isso de censurável?
- Nada, decerto - respondeu Gudrun, porém de uma forma ainda meio repreensiva. - Você é senhora das suas ações.
- Não tinha ainda resolvido! É isso que importa, não é? Tomar uma resolução! - Brangwen dizia isto imitando a voz da filha, de maneira agressiva. - Você e só você!
Úrsula empertigou-se, ergueu o peito e nos olhos fuzilaram-lhe clarões dourados, assustadores.
- Sirvo de alguma coisa! - declarou, ofendida e penalizada. - Sei, no entanto, que para os outros não represento nada. O pai só trata de me repreender, nunca se preocupa com a minha felicidade.
Brangwen curvara-se para ela, estendendo-lhe o rosto congestionado.
- Úrsula! - acudiu a mãe. - O que é que está dizendo? Cale-se, por favor!
A moça voltou-se logo, de olhar coruscante.
- Não, não me calo. Não me calo nem me deixo espezinhar assim. Que importa que eu me case amanhã ou depois? Que lhes interessa isso? O assunto não diz respeito a mais ninguém, só a mim.
O pai continuava em guarda, como um gato pronto a investir.
- Não me diz respeito? - repetiu ele, chegando-se mais para o lado da filha, que recuou.
- É claro que não! - replicou ela, trêmula, mas inflexível.
- Com que então, o que você faz não me interessa? - a voz de Brangwen alcançara seu mais alto diapasão.
Gudrun e a mãe olharam-no como que hipnotizadas.
- Não! - balbuciou Úrsula. O pai estava muito junto dela. - O que o senhor quer é apenas...
Interrompeu-se, reconhecendo que era arriscado o que ia dizer. Brangwen estava pronto, com os músculos retesados.
- O quê? - perguntou, desafiando-a.
- Intimidar-me!
Mal tinha proferido isto e já a mão do pai, estampando-se-lhe no rosto, a mandava de encontro à porta.
- Papai! - exclamou Gudrun em altos brados. - É incrível!
Brangwen ficou petrificado. Úrsula endireitou-se, apoiando-se, com a mão, ao fecho da porta. Recompunha-se lentamente. O pai estava imóvel.
- Sim, senhor - disse ela, com os olhos brilhantes de lágrimas, erguendo a cabeça com ar atrevido.
- O que tem sido o seu amor paternal? Como se tem manifestado? Brutalidades, recusas, eis tudo!
O homem cresceu de novo para a moça com um ar assustador, de punho cerrado e expressão sanguinária. Ela, porém, célere como o relâmpago, abriu a porta e ouviram-na depois subir os degraus da escada.
Brangwen deteve-se uns momentos olhando para a entrada. Então como um animal vencido, deu meia volta e veio sentar-se junto ao fogo.
Gudrun estava lívida. Foi a mãe quem rompeu o silêncio intenso que se fizera, declarando furiosa e friamente:
- É melhor não fazer caso do que ela diz!
Recaíram no mutismo, cada qual seguindo o curso dos seus pensamentos e preocupações.
Abriu-se de repente a porta. Era Úrsula que reaparecia, de chapéu, casaco e maleta nas mãos.
- Adeus! - exclamou em tom decidido, exasperante, mas ao mesmo tempo irônico. - Vou-me embora.
No mesmo instante tornou a fechar a porta; ouviram depois ranger a de fora e os passos da moça, ligeiros, na calçada do quintal. Na casa reinou um silêncio de morte.
Úrsula foi direto à estação, andando como se tivesse asas nos pés. Não havia trem e teve de ir tomá-lo no entroncamento. Caminhando no escuro, sentiu vontade de chorar e derramou lágrimas amargas, com o coração ferido, experimentando temores infantis, e assim todo o percurso, mesmo já dentro da carruagem. O tempo decorria sem que ela lhe prestasse atenção, alheia por completo, sem saber onde se encontrava nem o que lhe sucedera. O pranto subia-lhe das profundezas insondáveis do desespero, desgosto imenso, terrível ansiedade como a das crianças a quem o choro não extenua.
A voz, contudo, recuperou a frescura quando perguntou à senhoria de Birkin, à porta do moinho:
- Boa noite! O Sr. Birkin está? Posso falar com ele?
- Sim, senhora, ele está no escritório.
Úrsula caminhou atrás da mulher. A porta do escritório estava aberta e Birkin ouvira-lhe a voz.
- Olá! - exclamou ele, surpreendido de a ver ali com a mala na mão e, no rosto, vestígios de lágrimas. Todavia, seu rosto estava tranquilo como o de uma criança.
- Devo estar horrível! - disse ela, recuando.
- Não. Por quê? Entre. - Pegou a maleta e os dois entraram na sala.
Lá chegados, os lábios da jovem começaram a tremer, como uma criança que se recorda do que lhe aconteceu. As lágrimas irromperam outra vez.
- Que foi? - repetiu ele logo que a noiva se tranquilizou um pouco. Úrsula, porém, apoiava-se com força ao ombro de Birkin, que esperava silencioso.
- Que foi? - repetiu ele logo que a moça se tranquilizou um pouco. Úrsula, porém, apertava-se ao ombro dele, como se não quisesse responder.
- Preciso saber o que aconteceu...
Ela se desviou dele, enxugou os olhos e foi sentar-se numa cadeira.
- Meu pai bateu-me - anunciou então, aconchegando-se como um passarinho enovelado. Os olhos cintilavam-lhe.
- Por quê?
Úrsula desviou os olhos, sem responder.
- Por quê? - insistiu Birkin com voz estranha, penetrante, persuasiva.
Ela o enfrentou desta vez, numa atitude de desafio.
- Porque eu lhe disse que nos casávamos amanhã.
- Então bateu em você?
Ela tornou a fazer beicinho, lembrando-se da cena em casa e as lágrimas assomaram-lhe de novo aos olhos.
- Declarei-lhe que o assunto não lhe dizia respeito, e, de fato, ele pouco se importa com estas coisas. O que o melindra é eu não fazer caso dos seus ares imperiosos. - Com os soluços, a boca torcia-se enquanto falava e aquilo era tão infantil que dava vontade de rir. Contudo, tratava-se de um conflito mortal para ela, algo a ferira profundamente.
- Não é tanto assim - atalhou ele.
- É sim, é sim! - soluçava ela. - Não quero ver-lhe expansões de amor paternal, que ele não tem, não tem!
Rupert ficou calado. Úrsula comovia-o profundamente.
- Você não o devia ter irritado - disse, por fim, muito tranquilo.
- E eu que fui tão sua amiga! Gostei sempre de papai, e ele me paga desta maneira...
- Isso é o que se chama amor contrariado... Não se importe, tudo acabará bem. Não há nada irremediável.
- Sim - choramingava ela. - É... - Por quê?
- Nunca mais o verei.
- Por enquanto, não. Mas cale-se. Você tinha mesmo que romper com ele, pronto. Agora não chore mais.
Aproximou-se dela e beijou-a nos cabelos finos e leves e acariciou-lhe meigamente as faces molhadas.
- Não chore - repetiu. - Não chore.
Com a cabeça da jovem apertada contra o peito, muito apertada e quieta, esperou.
Ela se acalmou, pouco a pouco. Olhou para ele, com seus olhos grandes e assustados.
- Não está zangado comigo? - inquiriu.
- Zangado? - O olhar sombrio e fixo de Rupert impressionava-a e não a deixava à vontade.
- Está contrariado por que eu vim para cá? - perguntou ela, perturbada agora pela ideia de ter fugido de casa.
- Não - respondeu ele. - Preferia que não tivesse havido essa cena violenta e desagradável; mas era, decerto, inevitável...
Úrsula contemplava-o em silêncio. Rupert parecia tão mortificado!
- Onde é que vou ficar? - perguntou ela, sentindo-se envergonhada.
Birkin refletiu alguns instantes.
- Aqui, comigo. Estamos tão casados hoje como estaremos amanhã.
- Mas...
- Vou avisar a Senhora Varley. Não se preocupe.
Birkin continuava a fitá-la. Úrsula sentia aqueles olhos sombrios constantemente dirigidos para ela. Aquilo impressionava-a. Com a mão nervosa, afastou os cabelos que lhe pendiam para a testa.
- Pareço muito feia? - perguntou, enquanto se assoava. O rosto de Birkin clareou-se num sorriso.
- Não, felizmente... - respondeu.
Levantou-se e tomou-a nos braços, como a uma coisa que lhe pertencia. Úrsula mostrava-se tão terna e bela que Rupert não se contentava com vê-la; era forçoso escondê-la dentro de si.
Agora, com as faces banhadas pelas lágrimas, parecia tenra e frágil como uma flor desabrochada, flor fresca, tornada perfeita pela luz interior, e Birkin não a podia sequer contemplar; queria ocultá-la imediatamente de encontro ao peito, cobrir os olhos unindo-os ao corpo dela. Aquela mulher possuía a mais completa inocência da criação, algo de translúcido e simples, espécie de flor radiante, deslumbradora, aberta nesse momento para exibir o seu recente esplendor. Era tão nova, de uma luminosidade que maravilhava, sem uma sombra sequer! Ele se julgava tão velho, tão cansado de recordações tenebrosas! A alma dela, juvenil, indefinida, mirando-se no invisível; e a de Birkin, escura, nublada, com uma esperança tão pequenina como um grão de mostarda! Mas esta sementinha que vivia ainda nele casava-se com a pureza dela.
- Amo-a! - disse Birkin, num murmúrio, beijando-a, tremendo de ansiedade, como alguém que houvesse renascido para uma confiança maior do que todos os limites da morte.
Úrsula não sabia o que isso representava para ele, o que significava ao certo aquela frase tão curta. Como uma criança, desejava outras provas, exigia afirmações concretas; tudo a deixava indecisa, queria revelações mais concludentes.
Mas aquela gratidão apaixonada com que ele a recebia na sua alma, a alegria suprema e indiscutível de se sentir vivo e apto a se unir com ela (apesar de tão próximo da morte, tão perto de se extinguir com o resto da sua raça, resvalando para o abismo) eram coisas que a moça não podia compreender. Rupert adorava-a como a velhice adora a juventude; glorificava-se pela razão de que, mercê do seu derradeiro clarão de fé, se convertia também em jovem como ela, e se tornava seu digno companheiro. O casamento trazia-lhe a ressurreição e a vida.
Úrsula não podia adivinhar tudo isso. Exigia que ele fizesse muito caso dela, pretendia ser adorada. Entre os dois havia infinitas distâncias de silêncio. Como lhe falaria, a ela, da imanência da sua beleza, que não residia na forma nem no peso nem na cor, mas em qualquer coisa mais, para sua estranha luz dourada?! E como saberia ele próprio em que consistia aos seus olhos, a graça daquela mulher? Dizia: "O teu nariz e belo, o teu queixo é adorável", mas estas frases soavam falso e ela ficava decepcionada, ressentida. Mesmo quando Birkin, balbuciando palavras sinceras, lhe dizia "meu amor, meu amor, ainda isso não era inteira realidade. Existia algo para além do amor, a satisfação de se ultrapassar a si mesmo, de transcender os limites da vida humana. Como podia Rupert proferir o pronome "eu", quando, nele, se revelava um ser novo e desconhecido, que já não tinha nada da sua pessoa? Esse eu , velha expressão decrépita, era uma fórmula sem sentido.
Nessa felicidade superior e tão diversa, paz que se sobrepunha a todas as coisas, não havia já nem "eu" nem "você", mas sim uma terceira e incompreensível maravilha, maravilha que insistia em existir, não como indivíduo, mas com a reunião, dele e dela, num só e único ente, unidade paradisíaca nascida daquela dualidade. Quem poderá dizer "amo-te" depois de haver cessado de existir e haver cessado a pessoa a quem a frase e dirigida? Ambos se sentiam elevados e transpostos a uma nova individualidade onde tudo era silêncio, pois nada tinham que responder, tudo era único e perfeito. As palavras são trocadas entre dois seres destacados um do outro; mas, numa unidade absoluta, reina apenas o silêncio da bem-aventurança.
Casaram-se no dia seguinte, perante a lei; Úrsula, seguindo o conselho do marido, escreveu à mãe e ao pai. A primeira respondeu-lhe, o segundo, não.
Não voltou mais à escola. Ficou vivendo no moinho, nos aposentos de Birkin e acompanhou-o por toda a parte. Não mantinha contato com mais ninguém, além de Gudrun e Gerald. Tudo para ela era estranho e maravilhoso, como se a aurora acabasse de raiar.
Certa vez, Gerald conversava com ela no escritório confortável da casa. Rupert ainda não tinha regressado.
- Sente-se feliz? - perguntou-lhe Gerald, sorridente.
- Muito! - respondeu Úrsula, procurando, contudo, não demonstrar toda a sua alegria.
- Nota-se.
- Verdade? - perguntou ela, surpresa.
Gerald mirou-a com risonha expressão comunicativa.
- Sem a menor dúvida...
Ela estava satisfeita. Refletiu uns instantes.
- Dá para perceber se Rupert é tão feliz como eu?
Gerald baixou os olhos.
- Decerto - replicou.
- Com certeza?
- Com certeza.
Gerald calou-se, como se houvesse falado de uma coisa sobre a qual devia ter feito silêncio. Parecia entristecido.
Úrsula era muito sensível. Formulou-lhe a pergunta que ele desejava:
- Por que motivo não se sente feliz como nós? Podia estar também...
Gerald não respondeu logo. Depois, perguntou:
- Com a Gudrun?
- Sim - exclamou ela, de olhos brilhantes. Havia naquele "sim" algo de forçado, exagerado.
- Acha que sua irmã me aceitará e que seríamos felizes os dois?
- Estou convencida disso.
Encarava-o satisfeita, embora, no fundo da sua alma, percebesse que tudo aquilo não era natural.
- Fico contente só de pensar nessa ideia!
Gerald sorriu.
- Por que fica tão contente?
- Por causa dela. Estou certa de que você seria... de que você é o marido que lhe convém.
- E será ela da mesma opinião?
- É - respondeu prontamente.
Depois, tendo meditado um momento, perguntou-lhe um tanto contrafeita:
- Gudrun não é assim tão simples, não acha? Ninguém a conhecerá em cinco minutos; não é como eu. - Disse isto e riu, com o seu rosto franco, aberto, cheio de vida.
- Parece que ela não é muito parecida com você - disse Gerald.
Úrsula franziu a testa.
- Assemelha-se em muitas coisas. Mas nunca sei como reagirá em qualquer assunto fora da rotina.
- Ah! - fez Gerald. Calou-se por uns segundos. Depois, tímida e cautelosamente, declarou: - Tencionava convidá-la a ir passear comigo, pelo Natal...
- Ir com você? Por quanto tempo?
- Tanto quanto ela quisesse - respondeu ele de forma um tanto suplicante.
Houve um silêncio.
- É natural - recomeçou Úrsula - que ela deseje casar-se primeiro. Procure saber.
- Sim, vou ver... Mas, caso ela não aceite o casamento, acha que iria comigo ao estrangeiro por uns dias... por quinze dias?
- Acho, sim. Por que não pergunta a ela?
- Poderíamos ir juntos?
- Todos? - A face de Úrsula resplandeceu de novo. - Seria ótimo!
- Acho que seria bem divertido.
- E durante a viagem você ficaria sabendo...
- O quê?
- Das coisas... Creio que é preferível passar a lua de mel antes do casamento. Hein?
Riu-se ela mesma daquela ideia espirituosa.
Gerald também riu.
- Em certos casos - volveu ele. - E talvez seja o meu.
- Realmente? - E, a seguir, como se duvidasse: - Sim, é possível que tenha razão. Devemos fazer o que nos for mais agradável.
Birkin chegou mais tarde, e Úrsula descreveu-lhe a conversa que tivera com Gerald.
- Gudrun! - exclamou Birkin. - Nasceu para ter um amante, como Gerald para ter uma. Amant en titre. Se as mulheres, como se diz, devem ser ou amantes ou esposas, Gudrun pertence à primeira categoria.
- E todos os homens amantes ou maridos - acrescentou Úrsula. - E por que não as duas hipóteses?
- Uma exclui a outra - disse ele, divertido.
- Então quero um amante.
- Não, você não quer.
- Quero - gemeu ela.
Rupert beijou-a e começou a rir.
Dois dias depois, Úrsula foi a Beldover buscar o que lhe pertencia. A família já se mudara. Gudrun ficara morando em Willey Green.
Depois de sair de casa, Úrsula não tornara a encontrar-se com os pais. A ideia de uma ruptura afligia-a, embora de nada servisse a reconciliação. Para o bem ou para o mal não deveria procurá-los. Como seus objetos tivessem ficado guardados, naquela tarde ela e Gudrun combinaram ir buscá-los.
Era uma tarde de inverno; quando chegaram, o céu mostrava-se vermelho. As janelas da casa estavam escuras e sem cortinas aquilo parecia desolador. Ao entrarem no vestíbulo vazio e pouco convidativo, sentiram um arrepio que as enregelou.
- Não me atreveria a vir aqui sozinha - disse a mais velha. - É impressionante.
- Úrsula! - exclamou Gudrun. - É curioso! Como se concebe que vivêssemos nesse lugar sem perceber a sua desolação? Como pude estar nessa casa sem ter morrido de terror? Isso deve acontecer a muitas pessoas, não?
Entraram na vasta sala de jantar. Era um compartimento espaçoso, mas, agora, uma simples cela lhes pareceria mais agradável. As largas janelas, rasgadas, estavam nuas, o chão fora despojado dos tapetes, e uma orla de encerado escuro contornava aquele vazio, fazendo sobressair a parte clara no meio do assoalho. O papel das paredes, desbotado, indicava, em manchas mais escuras, o lugar de onde haviam retirado os móveis e desprendido os quadros. Esses tabiques áridos e delgados, de aspecto tão frágil, aquela madeira barata do pavimento, descorada e com o rebordo escurecido artificialmente, exerciam no espírito delas uma ação depressiva. Havia em tudo a ideia de nulidade, de falta de substância, principalmente aquele papel na fragilidade das paredes. Onde se encontravam, afinal: na terra, ou suspensas em uma caixa de papelão? Na lareira viam-se ainda cinzas de coisas consumidas pelo fogo.
- Imaginar que passamos aqui a nossa vida! - murmurou Úrsula.
- É verdade - concordou Gudrun. - Que tristeza! Com que nos devemos parecer, se nos assemelhamos a este invólucro?
- Tudo isto é detestável! - confirmou Úrsula.
No fogão, reconheceu as capas meio queimadas do Vogue - figurinos semidestruídos, de senhoras em traje de baile.
Foram até a sala de visitas, outro lugar onde se notava a sensação de vazio: nem peso nem substância, apenas a intolerável impressão do nada encerrado entre quatro paredes forradas de papel. A cozinha parecia mais concreta devido aos tijolos vermelhos do chão e à existência do forno; contudo, sentia-se frio e experimentava-se horror.
Subiram depois a escada sem passadeira. Cada degrau que pisavam ecoava-lhes no coração. Seguiram pelo corredor desguarnecido. A bagagem de Úrsula estava encostada à parede do quarto dela; era uma mala, um cesto de costura, livros, agasalhos, uma caixa de chapéus; tudo isso, na tristeza geral do crepúsculo, tinha aspecto desolador.
- Espetáculo muito alegre... - observou Úrsula, contemplando suas coisas ali abandonadas.
- Muito... - concordou Gudrun.
Puseram mãos ao trabalho e transportaram tudo para a porta da rua. Fizeram várias viagens, e sempre o eco dos passos lhes ressoou no meio daquele vazio. Toda a casa parecia repetir os mínimos sons, e a sua vibração, repercutindo pelos quartos despidos, chegava a ser enervante. Da última vez em que chegaram à porta, vinham tão apressadas como se se tratasse de uma fuga.
Além disso, o tempo arrefecera. Esperavam Birkin que devia chegar com o automóvel. Tornaram a entrar, pois, e foram até o quarto dos pais, cujas janelas davam para a estrada e de onde se via, através dos campos, o poente sombrio, rubro e negro, já sem luz.
Sentaram-se, à espera, nos parapeitos das janelas, e ornaram para o aposento. Sem mobília, afigurava-se-lhes de uma exiguidade desconcertante.
- Realmente - disse a mais velha - este quarto não podia ser venerável...
Gudrun percorreu-o lentamente com o olhar.
- Impossível! - retorquiu.
Quando penso nessas duas vidas, do pai e da mãe, no seu amor e casamento, e em nós, os filhos, na nossa educação. Você gostaria, Prune, de ter uma vida assim?
- Não, Úrsula.
- Tudo isso me aparece como um vácuo; a vida dos pais foi destituída de significação. De fato, se não se houvessem encontrado nem casado, nem vivido juntos, que falta poderiam ter feito? Nenhuma.
- Decerto. Mas não podemos afirmar isso - disse Gudrun.
- Pois se eu pressentisse que a minha vida iria ser assim, fugiria - declarou Úrsula, agarrando o braço da irmã.
Gudrun ficou silenciosa por momentos.
- Na realidade - disse ela por fim - não se pode considerar friamente a vida quotidiana. Com você, Úrsula, o caso é diferente. Você estará sempre à margem desses inconvenientes casada com Birkin. É um caso especial. Mas, com outro homem qualquer, que tenha a sua existência agarrada à terra, o casamento é impossível. Há milhares de mulheres, com certeza, que não desejam outra coisa, que não concebem a vida de outra maneira. Só de pensar nisso eu sinto arrepios. Devemos ser livres, sobretudo livres! Arrisquemo-nos a perder tudo, mas que se salve a independência, senão seremos apenas a senhora que mora em Pinchbeck Street n° 7, ou em Somerset Drive, ou em Shortlands. Não há homem, por melhor que seja, que torne tal coisa aceitável. Para o casamento é necessário possuir liberdade de movimentos, ou então nada feito. Seja ele um camarada, um Glüksritter. Homens com posição social, isso é que não! Isso nunca!
- Que linda palavra é Glüksritter! Cavalheiro de indústria, homem que vive de expedientes - nota da tradutora) - exclamou Úrsula. - Melhor do que aventureiro.
- Não é? Seria capaz de arrostar o mundo ao lado de um deles. Mas ter lar, família... Pense, Úrsula, no que isso significa!
- Bem sei, já tivemos e ficamos saturadas.
- Bastante.
- Essa casinha parda, nas bandas do ocidente... Verso de um poema de D. E. Wilmont - nota da tradutora) - citou Úrsula, com ironia.
- Não soa também pardamente? - perguntou Gudrun horrorizada.
Veio interrompê-las o barulho do automóvel de Birkin. Úrsula admirou-sé de se ver tão longe, de súbito, daquela ideia de casinhas pardas no ocidente.
Ouviram os passos do homem no vestíbulo.
- Olá! - chamou ele; a voz ecoou por toda a casa. Úrsula sorriu; Rupert também devia estar com medo daquela casa deserta...
- Estamos aqui! - respondeu ela, do andar de cima. Ouviram então seus passos apressados na escada.
- Esta casa é assombrada? - perguntou Rupert.
- Não, ela não tem fantasmas, porque também não tem personalidade - explicou Gudrun. - Só um lugar com personalidade é que pode possuir espíritos.
- Também sou dessa opinião. Choraram ambas sobre o passado?
- Sim - respondeu Gudrun. Úrsula riu e declarou:
- Não chorávamos pelo fato de ele haver desaparecido, mas sim porque existiu.
- Ah! - fez Birkin, mais tranquilo.
Sentou-se também com elas. Havia na pessoa daquele homem, pensou Úrsula, algo de repousante e de muito vivo. Até fazia desaparecer a sensação triste daquele lugar tão mesquinho.
- Gudrun estava dizendo que não concebe a ideia de se casar e se instalar em um lar... - insinuou Úrsula, intencionalmente. Perceberam logo que Gerald estava em jogo, e, por momentos, guardaram silêncio.
- Está bem - começou ele - se você, de antemão, está assim tão bem informada, é sinal de que se pode salvar...
- Não tenha dúvida - volveu ela.
- Por que será que todas as mulheres consideram que a finalidade da vida é ter um maridinho e uma casa para os lados do ocidente? Será isto o bem supremo?
- Il faut avoir le respect de ses bêtises - observou Birkin.
- Mas não precisamos repetir a Bêtise antes de a ter cometido - acudiu Úrsula, sorridente.
- E as bêtises du papa?
- Et de la maman - acrescentou Gudrun com ar de mofa.
- Et des voisins - É preciso respeitar essas besteiras. / E as besteiras do papai? E da mamãe / E dos vizinhos - nota da tradutora)
- disse ainda Úrsula.
Desataram todos a rir, e levantaram-se. Começava a escurecer. Transportaram a bagagem para o carro. Gudrun trancou o portão da casa vazia. Birkin acendera os faróis do carro. Tudo aquilo dava uma impressão de felicidade, como se estivessem partindo para uma viagem.
- Não se importa de parar em frente aos Cousons? - perguntou Gudrun. - Tenho de deixar a chave lá.
Fizeram uma parada na rua principal. As lojas acabavam de ser iluminadas, e os últimos mineiros regressavam do trabalho, ao longo das calçadas, sombras mal visíveis no enfarruscado que as envolvia, deslizando no ar azulado...
Gudrun sentiu-se contente ao voltar para o carro, depois de sair da loja, e de seguir velozmente pelo declive da colina, naquela treva quase palpável, em companhia de Úrsula e de Birkin. A vida, naquele instante, pareceu-lhe uma aventura. De repente, teve inveja da irmã. A existência lhe decorria fácil, como através de uma porta aberta, tão descuidada como se não somente este mundo, mas ainda o passado e o futuro não fossem nada para ela. Se pudesse ser assim, julgar-se-ia perfeita.
Porque afinal - exceto em ocasiões de excitação - Gudrun sentia que lhe faltava qualquer coisa. Não se considerada segura. Mas compreendia que, por fim, ao embate do amor forte e violento de Gerald, a sua vida começava a definir-se. Comparando-se com a irmã, vinha-lhe, contudo à alma certa insatisfação, certo ciúme. Não estava satisfeita, e nunca o estaria.
Que lhe faltava? O casamento, a maravilhosa estabilidade do casamento. Precisava dele, por mais que o desdenhasse. Tinha mentido. A velha concepção do matrimônio possuía ainda valor: a família, o lar... Entretanto, a estas palavras, não pôde deixar de franzir o cenho. Lembrou-se de Gerald, de Shortlands, do casamento, da vida doméstica... Ah, pois bem; ficaria assim mesmo. O rapaz representava muito para Gudrun, mas... Talvez o feitio dela não se coadunasse com o matrimônio. Vivia à margem da vida, era uma daquelas criaturas sem raízes em parte alguma. Não, não, não devia ser assim. Evocou, de súbito, um quarto cor-de-rosa, ela trajada com um lindo vestido de baile, ele muito elegante, de casaca, segurando-a nos braços, beijando-a à luz da lareira... Eis um belo quadro, que a artista intitulava de "Interior". Muito próprio para enviar à Academia Real...
- Venha tomar chá conosco - disse-lhe Úrsula, ao aproximar-se de Willey Green.
- Obrigada, mas não posso - respondeu Gudrun. Gostaria, no íntimo, de ir com eles. Eles, sim, tinham uma vida verdadeira. Mas uma espécie de perversidade a retinha.
- Vamos, eu gostaria tanto! - insistiu a irmã.
- Lastimo. Ser-me-ia muito agradável. Mas é impossível, acreditem...
Saltou do carro depressa, muito trêmula.
- Que pena! - lamentou Úrsula.
- Não, não posso mesmo. - As suas palavras, que denotavam emoção, vinham já do escuro.
- Quer que a acompanhe? - perguntou Birkin.
- Não é preciso, obrigada. Boa noite!
- Boa noite - disseram os outros dois.
- Venha quando quiser, alegra-nos bastante... - ainda gritou Birkin.
- Muito obrigada - respondeu Gudrun em tom estranho, agudo e doloroso, que impressionou o cunhado.
Gudrun abriu o portão da residência e o carro continuou a marcha. Todavia, deteve-se ela ate que desaparecesse, vendo o automóvel sumir na distância E só então prosseguiu pela alameda que conduzia à casa, sentindo o coração mergulhado numa incompreensível amargura.
Havia na sala um relógio de caixa em cujo mostrador uma face redonda, pintada de cores vivas, lançava ridículas piscadelas de olho a cada oscilação do pêndulo. Continuamente aquele rosto rubicundo e absurdo mirava de soslaio, de uma forma indiscreta. Gudrun ficou uns minutos a olhar para ele ate que uma inexplicável aversão se apoderou dela e a fez soltar uma gargalhada intempestiva. A cara do relógio continuou a oscilar, olhando de esguelha para um e outro lado, alternadamente Ah, como se sentia infeliz! Sim, infeliz no meio da sua felicidade aparente. Relanceou a vista pela mesa. Ali havia doce de groselhas e o eterno licor feito em casa. O doce era bom e nem sempre Gudrun o tinha a seu dispor...
Durante toda a noite ela desejou ir ate o moinho, mas resistiu, friamente, indo ate lá apenas na tarde do dia seguinte. Alegrou-se por encontrar a irmã sozinha. O ambiente era agradável, de grande intimidade. As duas tagarelaram incessantemente, deliciadas ambas. "Não se sente felicíssima em sua casa?, perguntava Gudrun a Úrsula, lançando ao mesmo tempo olhadelas furtivas ao espelho. Invejava quase com ressentimento a atmosfera de felicidade pura e definitiva que rodeava Úrsula e Rupert Birkin.
- Este quarto é tão simpático, tão bem arrumado! - disse ela em voz alta. - E o tapete, tão habilmente tecido, tem uma cor bonita... cor de luz suave...
Tudo lhe parecia admirável.
- Úrsula, - continuou pouco depois numa voz que tentava mostrar indiferença sabe que Gerald Crich me propôs uma viagem pelo Natal?
- Sei. Ele falou com Rupert a esse respeito.
As faces de Gudrun cobriram-se de forte rubor. Ficou uns momentos calada, como surpreendida, sem saber o que dizer.
- Não lhe parece um atrevimento da parte dele?
Úrsula riu-se.
- Não, acho que foi uma ideia simpática.
Gudrun não respondeu. Era evidente que, embora envergonhada com o fato de Gerald ter falado nisso a Birkin, a ideia, contudo, não lhe era tão desagradável.
- Gerald tem uma simplicidade atraente - insinuou Úrsula - embora perigosa, às vezes. Mas, enfim ele é tão simpático!
Gudrun ainda se conservou mais uns segundos em silencio. Precisava refazer-se da indignação que lhe provocavam aquelas indiscrições de Gerald.
- E qual foi a opinião de Rupert? - perguntou, por fim.
- Disse que seria uma coisa esplêndida - respondeu a irmã.
Gudrun olhou mais uma vez para o chão, muito calada.
- Não pensa assim? - prosseguiu Úrsula. Nunca sabia ao certo quais eram os preconceitos de que a outra se rodeava.
Gudrun levantou o rosto e respondeu, sem fitar a irmã:
- Acho que seria esplêndido, como vocês dizem, mas isso não impede que eu ache indiscreto da parte de Gerald... falar de semelhantes coisas a Rupert, que, afinal de contas... compreende o que quero dizer... é um homem, e é como dois homens estivessem combinando um passeio com qualquer... - Empregara uma expressão francesa para designar o que ela queria dizer. - Oh, Úrsula, é imperdoável!
Os olhos faiscavam-lhe, o rosto estava brilhante de indignação. Úrsula mirou-a assustada, principalmente porque ao usar a expressão grosseira, a irmã parecia ter um ar ordinário, confirmando a frase que atribuíra à opinião dos dois homens. Mas não fez nenhum comentário.
- Não e não! - gritou-lhe Úrsula, aborrecida. - Parece-me que Rupert e Gerald, como são muito amigos, conversam naturalmente, com a maior franqueza, como irmãos...
Gudrun ruborizou-se ainda mais. Não tolerava a ideia de que Gerald falasse sobre ela, nem mesmo com Birkin.
- Você acha que, mesmo que fossem irmãos, tinham o direito de fazer tais confidências? - perguntou, furiosa.
- Penso - replicou Úrsula. Não dizem nada que seja comprometedor. Aliás, o que mais admiro em Gerald é a sua correção, a sua honestidade. Você bem sabe como isso é importante. A maior parte dos homens é desleal e covarde!
Gudrun, porém, continuava calada e ressentida. Preferia que se fizesse absoluto segredo em tudo que lhe dizia respeito.
- Vamos, sim? - insistiu Úrsula. - Será uma viagem deliciosa. Gerald é mais simpático do que eu imaginava. Impõe-se à nossa estima. E é sincero Gudrun, verdadeiramente sincero.
Esta mantinha-se, apesar de tudo, reservada. Estava quase feia. Falou, afinal:
- Sabe aonde é que ele quer ir?
- Sei. Ao Tirol, por onde costumava viajar quando estava na Alemanha. É uma região adorável, onde os estudantes praticam esportes de inverno.
No espírito de Gudrun bailava uma ideia tremendamente irritante: "Vocês estão a par de tudo?".
- Sim, - disse em voz alta - a cerca de quarenta quilômetros de Innsbruck...
- Não sei ao certo, mas o projeto é magnífico, não concorda? Lá no alto, sobre a neve...
- Esplêndido! - exclamou a outra com sarcasmo.
Úrsula ficou aborrecida.
- É claro que Gerald não falou a Rupert em termos que dessem a ideia de que iria acompanhado por uma mulherzinha qualquer...
- Ora, ora - volveu Gudrun. - Ele costuma fazer viagens desse tipo...
- Como sabe?
- Uma pessoa de Chelsea me contou...
Úrsula guardou silêncio.
- Bem, - disse pouco depois, com um sorriso equívoco - espero que ele se tenha divertido, pelo menos.
Ao ouvir tais palavras, Gudrun ficou ainda mais aborrecida.


Capítulo XXVIII
No "Pompadour"
Aproximava-se o Natal, e os quatro já estavam prontos para partir. Birkin e Úrsula andavam ocupados arrumando suas coisas, de maneira a poderem despachar as malas. Gudrun mostrava-se bastante excitada. Por seu gosto levantaria voo.
Ela e Gerald foram os primeiros a concluir os preparativos da viagem, de maneira que seguiram para Innsbruck (via Londres e Paris) onde se encontrariam com Úrsula e Birkin. Ficaram uma noite em Londres; foram ao music-hall e em seguida ao Café Pompadour.
Ela detestava esse lugar, embora aí tivesse ido muitas vezes; os artistas que o frequentavam também não eram da sua simpatia. Abominava em especial aquela atmosfera viciosa, de mesquinhos ciúmes e de arte corriqueira. Mas, sempre que passava pela capital, nunca deixava de entrar ali. Era como se tivesse obrigação de voltar ao remoinho central da pequenez e da corrupção, nem que fosse para uma vista de olhos.
Sentou-se, com Gerald, e tomou um refresco, lançando olhares sóbrios e indignados aos vários grupos que se distribuíam pelas mesas. Não queria reconhecer ninguém, mas, de vez em quando, um rapaz a cumprimentava, com uma inclinação de cabeça, com certa familiaridade. Gudrun não correspondia, mas sentiu prazer em estar ali, de faces afogueadas e olhar hostil, observando-os objetivamente, a distância, como se fossem animais em uma jaula, animais simiescos e degradados. Deus do Céu, que gente ignóbil! O sangue corria-lhe nas veias, sombrio, tanta era a raiva e desprezo que sentia. Contudo, era necessário ficar a contemplá-los, a olhar para eles... Um ou dois vieram falar com ela. Sentia os olhares que a buscavam: os homens por cima dos ombros, as mulheres por baixo do chapéu.
Todos estavam ali, Carlyon no seu cantinho com os discípulos e uma moça; Halliday, Libidnikov e a Bichana também haviam comparecido. Gudrun observou Gerald: notou que o olhar dele se fixara um instante em Halliday e depois nos que o acompanhavam. Estes estavam atentos e saudaram-no. Gerald retribuiu. Todos riram disfarçadamente e ele tornou a mirá-los com mais atenção. O grupo incitava Bichana a fazer qualquer coisa.
Esta acabou por se levantar. Tinha um vestido estranho, de seda escura, salpicada, gotejada de diferentes cores, formando uma curiosa mistura. Parecia muito delgada com olhos talvez mais ardentes. Mas não estava mudada. Gerald viu-a aproximar-se e continuou a olhar para ela com a mesma fixidez. A jovem estendeu-lhe a mão fina e morena.
- Como está? - perguntou-lhe.
Gerald apertou-lhe a mão, sem se erguer da cadeira, e deixou-a assim de pé junto dele, encostada à mesa. Quanto a Gudrun, a Bichana, que a conhecia apenas de vista, limitou-se a fazer um cumprimento com a cabeça.
- Estou muito bem - respondeu Gerald. - E você?
- Eu vou bem. E a respeito de Rupert? - Continuava a não pronunciar alguns rr.
- Rupert? Vai muito bem, igualmente.
- Não é isso que quero saber. Falo do casamento dele.
- Ah, sim, casou.
Os olhos de Bichana cintilaram com ardor. É verdade, então? Há quanto tempo?
- Uma semana ou duas.
_ É extraordinário! Não escreveu a ninguém.
- Não?
- Não é um tanto esquisito?
Estas últimas palavras foram pronunciadas em tom de desafio, e, dava para notar, endereçadas a Gudrun.
- Acho que ele não tinha obrigação de comunicar - tornou Gerald.
- Por quê?
Fez-se um silêncio. No rosto belo e pequenino daquela depravada criatura havia um sorriso irônico e persistente, que conseguia enfeá-la. Continuou ao lado de Gerald.
_ Demora-se em Londres? - perguntou ela.
- Só esta noite.
- Ah, sim? Venha falar com o Julius.
- Agora não posso.
- Está bem. Vou dizer isso a ele. - Acrescentou depois, com acento diabólico: - Você está ótimo.
- É verdade. - Gerald mostrava-se perfeitamente calmo e à vontade. Via-se no olhar dele uma certa cintilação zombeteira.
- Não se tem aborrecido? - perguntou ainda a mulher. Era uma seta desferida diretamente a Gudrun. A frase fora dita em tom de indiferença tranquila, sem cerimônia.
_ Não - respondeu ele, também com naturalidade.
- É pena não querer vir conosco. Você é pouco fiel a seus amigos...
- Realmente... - confirmou o rapaz.
Deu boa noite a ambos e voltou lentamente para o seu lugar. Gudrun ficou vendo o estranho andar da moça, rígido, mas sacudido. Ouviram-na dizer distintamente:
- Não pode vir. Já está comprometido. - Seguiu-se uma gargalhada geral, e muitas observações picantes em voz baixa.
- É sua amiga? - perguntou Gudrun, observando atentamente o companheiro.
- Fiquei uma vez na casa de Halliday, com Birkin - respondeu, trocando um olhar com o dela, que era calmo e repousado. Gudrun sabia que Bichana fora amante dele e Gerald não ignorava essa circunstância.
Gudrun chamou então o garçom, depois de relancear a sala com os olhos. Queria tomar um chocolate gelado, de uma receita complicadíssima. A ideia divertiu o companheiro, que ficou a imaginar o que iria acontecer.
O grupo de Halliday já estava ébrio e perdera a compostura. Falavam em Birkin em voz alta, ridicularizando-o sob vários aspectos, principalmente o do casamento.
- Não me obriguem a pensar nesse homem! - dizia Halliday, em tom agudo. - Tenho náuseas ao relembrar como implorava: "Senhor, que devo fazer para me salvar?"
E teve uma risada de bêbado.
- Lembra-se - interveio o russo - das cartas que enviava? "O desejo é coisa sagrada..."
- Se me lembro! Isso é extraordinário! Espere, tenho uma no bolso.
Tirou do bolso vários papéis.
- Tenho certeza de que a guardei - repetiu. - Ah! Aqui está!
Gerald e Gudrun estavam atraídos por aquela cena.
- Sim, senhores... Isso mesmo... Magnífico! Não me façam rir que fico com soluços. - E todos desataram a rir.
- Que é que ele diz nessa carta? - perguntou Bichana, debruçando-se com os cabelos escuros e leves tombados sobre os olhos. Havia qualquer coisa de esquisitamente indecoroso, obsceno mesmo, naquela cabeça pequenina, sombria e alongada.
- Esperem, esperem aí! Não, não a mostro. Vou ler em voz alta. Vou ler trechos seletos... Vocês acham que se eu beber água me passam os soluços? Ora, parece-me que é inútil..
- É a carta que se refere à luz e à sombra, ao fluxo da corrupção? - indagou Maxim na sua maneira de ler rápida e concisa.
- Acho que sim - respondeu a moça.
- Ah, é essa? Tinha-me esquecido. Hic! É, sim, é! - declarou Halliday, desdobrando-a. - Hic! Sim, senhores, esplêndida! Uma das melhores. - Começou a ler, com voz cantante, lenta, destacada, como um padre a soletrar a Bíblia: "Há uma fase particular em todas as espécies, em que o desejo de destruição se sobrepõe a todos os outros. No homem essa vontade transforma-se por fim na ânsia de dar cabo de si próprio..." Hic! - Aqui fez uma pausa e olhou para o auditório.
- Oxalá que ele não desista de se destruir a si mesmo - atalhou o russo, com a sua pronúncia cortante. Halliday fungou de gozo e refestelou-se na cadeira.
- Não é grande coisa destruir a sua pessoa... - comentou a Bichana. - Ele é tão magro... Já deve estar nas últimas.
- Não gostaram? É lindo. Faz-me bem ler isto, até me cura dos soluços. Deixem-me continuar. - E Halliday prosseguiu: "Trata-se do desejo de nos reduzirmos em nós próprios, de regressar às origens, voltar ao fluxo de corrupção, às condições rudimentares da existência". Isto é admirável - exclamou, interrompendo a leitura. - Deixa a perder de vista o Velho Testamento.
- Fluxo de corrupção, sim, senhores - disse o russo. - Lembro-me da frase.
- Fala sempre de corrupções - acudiu Bichana. - Devia estar muito corrompido, para que isso lhe subisse à cabeça...
- Exatamente! - asseverou o russo.
- Deixem-me continuar. Este pedaço agora é de se tirar o chapéu. Ouçam: "E nesta imensa regressão, neste reconduzir-se do corpo vivo ao meio onde foi criado, descobrimos a verdade, e, para além desse conhecimento, o êxtase fosforescente da mais pura sensação". Oh! - exclamou Halliday - estas expressões parecem-me de um absurdo genial! Não acham que é do melhor que há? "E - retomando a carta - se você, Julius, pretender aquele êxtase juntamente com a Bichana, devem ambos insistir até que o obtenham. Todavia ele existirá em qualquer parte de vocês, esse desejo vivo da criação positiva, relacionado com a derradeira fé, quando todos os processos de desagregação ativa, com todas as suas flores de lama, forem ultrapassados e mais ou menos abolidos." Gostaria de saber - disse Halliday em outro tom - o que são essas flores de lama. Você será uma delas, Bichana?
- Obrigada. E o que é você?
- Eu também, com certeza, em vista desta carta. Somos todos flores de lama. Fleurs du mal! Birkin advertindo-nos do mal... do inferno... pregando contra o Pompadour... Lindo! Hic!
- Vá, continue - pediu Maxim. - Que é que vem mais? É, na verdade, interessantíssimo.
- Acho que é preciso muito descaramento para escrever coisas assim - comentou Bichana.
- Também acho - tornou o russo. - Megalomania, na certa; uma forma de loucura religiosa. Julga-se salvador da humanidade. Continue.
- "Sem dúvida - leu Halliday - sem dúvida a bondade e a graça têm-me acompanhado toda a minha vida." - Interrompeu-se e desatou a rir. Depois recomeçou, com voz sacerdotal: "Sem dúvida acabará este desejo que nós temos de nos separar constantemente, esta paixão de fracionar todas as coisas e nós mesmos, de nos reduzir, agindo só para nos destruir e empregando o sexo como agente dessa redução; apeando os dois grandes elementos, masculino e feminino, da sua unidade altamente complexa; diminuindo as ideias estabelecidas e regressando ao estado selvagem quanto às nossas sensações; procurando sempre perder-nos numa suprema e sinistra sensação, ininteligente e indefinida; queimando-nos num fogo aniquilador que nos persegue com a esperança de nos consumir inteiramente..."
- Vou-me embora - disse Gudrun a Gerald, fazendo sinal ao garçom.
Tinha os olhos brilhantes e as faces escaldantes. A leitura da carta de Birkin, em voz alta, cadenciada, frase por frase, de forma nítida e ressonante, tivera o estranho efeito de lhe fazer subir o sangue à cabeça, quase enlouquecendo-a.
Levantou-se, enquanto Gerald pagava a despesa, e dirigiu-se à mesa de Halliday. Todos a encararam, espantados.
- Desculpe-me - disse ela - mas essa carta é verdadeira?
- Sim, senhora - respondeu Julius. - Verdadeira.
- Posso ver?
O outro sorriu de modo estúpido e entregou a carta, como que hipnotizado.
- Obrigada - disse ela.
Deu meia volta e dirigiu-se para a porta do café com a carta na mão, passando, com andar vagaroso, através das mesas da sala brilhantemente iluminada. Decorreram alguns segundos antes que alguém se compenetrasse do que havia acontecido.
Do grupo partiram gritos, exclamações, vozerio, enquanto Gudrun se afastava, elegantemente vestida de verde-escuro e prateado, com chapéu também verde, mais claro, brilhante, de abas cor do vestido, debruadas de prata; o casaco também verde, cintilante, com gola alta de peles cinzentas e punhos também de peles. A orla da saia mostrava listras prateadas sobre veludo negro e as meias eram de um cinzento claro. Com movimentos lentos, atingiu a porta, indiferente a tudo o mais. O porteiro abriu-a obsequiosamente, e, a um sinal dela, correu para a calçada e chamou um táxi. Logo os dois faróis do carro se voltaram, faiscando como olhos.
Gerald seguira-a boquiaberto, no meio dos apupos, sem perceber a razão de tudo aquilo. Ainda ouviu a voz da Bichana, que dizia:
- Corra e traga-a de volta. Nunca vi uma coisa destas veja se consegue apanhá-la! Ela tem que devolver a carta!
Gudrun estava parada diante do carro, cuja porta o homem do café havia escancarado.
- Vamos para o hotel? - perguntou ela, apressada, quando Gerald apareceu.
- Se você quiser...
- Está bem. - Depois, dirigindo-se ao motorista: - E o Wagestaff, na Barton Street.
O chofer colocou o boné e desceu a bandeirinha.
Gudrun subiu, com ar indiferente de uma senhora elegante e desdenhosa. Contudo, sentia-se agitada, com arrepios de frio.
Gerald entrou também no automóvel.
- Você se esqueceu do rapaz - disse ela, naturalmente, com ligeiro aceno de cabeça para o indicar. Gerald estendeu a mão com um xelim e o outro agradeceu. O carro pôs-se em movimento.
- Que foi aquele barulho? - perguntou Gerald com ar surpreendido.
- Arranquei-lhes a carta de Birkin - respondeu, mostrando um papel amarrotado.
Os olhos dele brilharam de satisfação.
- Magnífico! Que súcia de patifes!
- Tive vontade de matá-los! - exclamou a moça, com ênfase - Cães! Não passam de cães! Tolo foi Rupert em escrever a semelhante gente! Como é que ele foi confiar nessa canalha? Tudo isto é insuportável!
Gerald estava admirado de tanta indignação.
Ela não quis permanecer mais tempo em Londres. No dia seguinte, de manhã, tomaram o trem em Charing Cross. Ao passarem sobre a ponte, descobrindo o rio através das grades de ferro, Gudrun exclamou:
- Sinto que nunca mais poderei tolerar esta cidade infecta. Não concebo a ideia de voltar aqui.


Capítulo XXIX
Continental
Úrsula sentiu-se em estado de irrealidade durante as semanas que precederam a viagem. Parecia ter perdido a personalidade: já não era nada, ou então qualquer coisa que ainda viria a ser... em breve muito em breve! Entretanto vivia na iminência do fato.
Foi visitar os pais. O encontro decorreu seco e melancólico; dir-se-ia antes a verificação da ruptura do que propriamente uma reconciliação. Mantiveram-se uns e outros vagos e indefinidos, aceitando o destino que assim os separava.
Não chegou a convencer-se da realidade senão quando se encontrou a bordo do navio que a conduziu de Dover a Ostende. Estivera em Londres, com o marido, mas como quem vive num sonho; e de Londres até Dover continuara com a mesma impressão. Julgar-se sofrer de sonambulismo.
Mas, agora, e finalmente, sentia que a alma lhe despertava do sono letárgico. Sentada já à popa do navio, ao vento e na escuridão da noite, experimentava o balanço que as ondas transmitiam ao barco; como num país fantástico, brilhavam nas costas da Inglaterra luzinhas perdidas e distantes, que na profundidade das trevas a pouco e pouco se tornavam menores e Úrsula viu-as por fim desaparecer.
- Vamos ate à proa?
Era Birkin que lhe fazia esta proposta, desejando olhar o futuro e não o passado; assim, deixaram os dois de contemplar os tênues reflexos daquele reino quase irreal e já longínquo chama do Inglaterra e afrontaram a noite insondável que se lhes abria à frente.
Dirigiram-se para a outra extremidade do navio, que oscilava docemente. Na completa escuridão que os rodeava, Birkin descobriu um cantinho relativamente abrigado, onde estava enrolado um cabo muito forte. Era o limite dianteiro do barco, junto do espaço negro ainda não transposto. Ali se tornaram a sentar, embrulhados ambos na mesma manta de viagem, unindo-se o mais possível um contra o outro ate sentirem que se haviam fundido numa só e única substância. Estava bastante frio e as trevas pareciam palpáveis, tão densas eram.
Escuro como a noite, quase invisível, avançou pelo convés um homem da tripulação. Daí a pouco puderam ver-lhe a palidez do rosto o outro sentiu a presença de estranhos e deteve-se, indeciso curvando-se sobre eles. Quando o marinheiro já estava muito perto de Úrsula e de Birkin, as faces desmaiadas destes tornaram-se perceptíveis e o homem retirou-se, como um fantasma. Os dois ficaram observando-o desaparecer, silenciosos.
Sentiram-se, então, reentrar no mais profundo negrume da noite. Não havia céu, nem terra, mas só a sombra compacta na qual se diria terem mergulhado como num sono suave e oscilatório ou como germes de vida, pequeninos, perdidos através das sombras insondáveis do infinito.
Haviam-se esquecido de onde estavam, tudo o que eram ou tinham sido, e só possuíam consciência da sua alma e da trajetória que realizavam pelo espaço imenso. A proa do barco fendia as águas, cortando-as com imperceptível rumor, sem ver e sem compreender, apenas ocupada em prosseguir dentro da noite.
Em Úrsula, a sensação do mundo indescortinado, que surgia à sua frente, prevalecia sobre outra qualquer. No meio de tão profunda obscuridade raiava-lhe no peito o fulgor de um paraíso estranho e incompreendido. Seu coração enchia-se das mais belas claridades, douradas como se fossem o mel da sombra, doces como o calor do dia; e essa luz não se espalhava na terra, somente no ignorado éden para onde ela se dirigia, estância deliciosa, em que o encanto de viver era diverso mas que já lhe pertencia infalivelmente. No seu arrebatamento, ergueu a face para Birkin, de súbito, e ele roçou-a com os lábios. Face tão fresca, tão pura, sabendo tanto ao mar, que o beijo foi como uma flor que houvesse nascido sobre a espuma das ondas.
Birkin, porém, não estava a par do êxtase de antecipada felicidade em que a mulher se comprazia. Para ele, o prodígio da viagem quase o derrotava. Caía num abismo de sombras sem fim tal um meteoro que tomba no espaço que separa os mundos. O universo apartava-se em dois, e Rupert mergulhava como uma estrela apagada no sorvedouro indescritível. O que residia mais além não existia ainda para ele. O percurso ocupava-lhe inteiramente o espírito.
Naquele enleio das almas, Úrsula continuava apoiada ao corpo do marido. O rosto de Rupert encostava-se ao cabelo fino e frágil da mulher, e ele aspirava-lhe a fragrância juntamente com o cheiro do mar e da noite profunda. Sentia-se repousado, submisso, ao resvalar assim para o ignoto. Era a primeira vez que saboreava a paz - absoluta e perfeita - dentro do seu ser. Era a viagem derradeira, e esta ultrapassava-lhe decerto a vida.
Ao ouvir barulho no convés, ambos despertaram e se puseram de pé. Estavam tão enregelados e cheios de cãibras pelo ar da noite! E, todavia, tanto para Rupert como para ela, só havia a paz inefável da escuridão e a maravilhosa promessa paradisíaca.
Uma vez de pé, olharam em frente. Na sombra divisavam-se luzes tênues Era outra vez o mundo. Já não existia, para Úrsula, aquele êxtase do coração nem, para ele, a tranquilidade do espírito. Era o mundo de fato, superficial e incrível. Mas não, talvez, o mesmo a que estavam habituados. A beatitude e a paz continuariam na sua alma.
O desembarque noturno foi o mais estranho que se possa imaginar, como se tivessem ido sobre as águas do Estige, na desolação do país subterrâneo. Tudo parecia sinistro, mal iluminado, vasto e sem ar, fugindo debaixo dos pés, triste por todos os cantos. Úrsula distinguiu logo as enormes letras, pálidas e misteriosas, que, rodeadas de sombra, diziam a palavra OSTENDE. Toda a gente se apressava através daquele cinzento sombrio, como insetos desnorteados; os carregadores ofereciam-se, falando um inglês inverossímil; e depois se afastavam com a bagagem pesada, desaparecendo ao longe: a capa desbotada dava-lhes o aspecto de fantasmas. Úrsula detivera-se junto a um comprido balcão, forrado de zinco, com mais uma centena de pessoas de ar espectral. De um lado alongava-se, na sombra, o balcão das malas abertas, enquanto, do outro, funcionários lívidos, de bigodes e boné de pala, revolviam a roupa e escreviam a giz nos invólucros da bagagem.
Enfim, tudo aquilo terminou. Birkin fechou as maletas de mão e ambos partiram, seguidos pelo encarregado da bagagem. Passaram por um largo portão e penetraram outra vez na noite. Ah, a estação da estrada de ferro! Vozes que interpelam, numa agitação sobre-humana, num ambiente acinzentado... Espectros que deslizam na sombra, entre os vagões...
Koln... Berlin... Nos cartazes enormes, ali afixados Úrsula soletrou estes nomes.
- Cá estamos - disse Birkin. A seu lado, viu ela escrito: Elsass... Lothringen... Luxembourg... Metz... Basle.
- É este, para a Basiléia!
O carregador tornou a aparecer.
- À Bale... deuxième classe? Voilà.
Subiu para o vagão. Marido e mulher fizeram o mesmo. Havia já alguns com passageiros, mas a maior parte estava vazia e às escuras. Arrumaram as malas e pagaram ao homem.
- Nous avons encore...? - começou Birkin, consultando o relógio e olhando para o carregador.
- Encore une demi-heure - Para Basiléia... segunda classe? Aí está. / Ainda temos...? Uma meia hora ainda - nota da tradutora).
Com esta resposta, desapareceu com a sua capa azul. Era pouco amável e muito feio.
- Venha - disse Birkin. - Está frio aqui. Vamos comer qualquer coisa.
Havia na estação um bar-restaurante. Lá tomaram um café quente - terrivelmente aguado - e comeram aqueles compridos pães cilíndricos, abertos no meio e com presunto dentro, tão grandes que, para os trincar, Úrsula quase deslocava o queixo. Depois passearam ao longo da composição. Parecia tudo tão estranho, tão extremamente desolado, espécie de mundo subterrâneo, cinzento, muito cinzento, grisalho, sujo, triste, abandonado, inexistente! Horrivelmente sem existência, e cor de cinza.
Finalmente a composição cortou a escuridão noturna. Através das trevas, Úrsula distinguiu os campos rasos, a sombra baixa, úmida e lúgubre do continente. Daí a pouco tiveram um sobressalto Bruges! Mas, de novo, a noite os rodeou, cortada apenas, aqui e ali, por alguma luz das herdades adormecidas, pelo prateado dos choupos e pela brancura das estradas desertas. Úrsula descansava sucumbida, apertando a mão de Birkin; e este, imóvel, pálido como um fantasma, olhava de vez em quando pela janelinha; noutras ocasiões fechava os olhos. Mas, instantes depois, tornava a fixar a vista, sombria como a atmosfera lá fora.
Eis um foco subitamente na treva: a estação de Gand! Alguns vultos sob o alpendre... um sino... e outra vez em movimento através da superfície tenebrosa! Úrsula viu um homem que empunhando a lanterna, saía de um quintal, perto da linha férrea, e atravessava as dependências mergulhadas na escuridão. Lembrou-se ela do Marsh, da sua antiga vida no campo, cheia de intimidade, em Cossethay. Deus do céu, como já ia longe isso tudo, desde a infância - e aonde iria ainda parar?! Durante uma existência parece que atravessamos centenas de anos. Havia lacunas na sua memória, entre esse tempo decorrido nos arredores de Cossethay e na quinta do Marsh e o momento presente em que viajava com Birkin, em pleno desconhecido. Recordava-se da criada Tilly, que lhe dava pão com manteiga polvilhado de açúcar mascavo, na sala de estar, onde o relógio antigo tinha duas rosas pintadas dentro de uma cesta, por cima dos algarismos do mostrador. Essa lacuna era tão grande que se lhe afigurava haver perdido a identidade, e a criança que outrora fora, e que brincava no adro da igreja de Cossethay, era uma criaturinha imaginaria; pelo menos, não seria ela.
Chegaram a Bruxelas. Meia hora para almoçar. Saltaram. O relógio da estação indicava seis horas. Tomaram café e comeram pães com mel na sala deserta do restaurante, fúnebre, suja, espaçosa, melancólica. Úrsula lavou o rosto e as mãos em água quente, penteou o cabelo e isso lhes trouxe algum consolo.
Não tardou muito que voltassem ao vagão e que o comboio reiniciasse a marcha. Despertava uma alvorada lívida. Havia ali mais alguns passageiros: negociantes belgas, de barbas castanhas e fartas e aspecto florescente; falavam sem parar num francês desagradável. Úrsula estava muito fatigada para lhes acompanhar a conversa.
O trem parecia correr do escuro para uma claridade gradualmente mais acentuada ate que, sempre arfante mergulhou em pleno dia. Como aquilo era extenuante! Atenuadas, as árvores foram-se mostrando como sombras. Depois apareceu uma casa branca, com grande nitidez. O que seria agora? Surgiu então uma aldeia, e as habitações desfilaram umas atrás das outras.
Velho mundo esse em que ela viajava assim, sinistro e invernoso! Terras cultivadas, prados, bosques de árvores desnudas, grupos de arbustos, quintas, casas pobres. Nada de novo ali se via.
Úrsula olhou para o marido, que estava pálido, silencioso como uma estátua. Estendeu-lhe a mão, debaixo da manta, e tocou com os seus os dedos dele, suplicante. Birkin respondeu ao contato e enviou-lhe um olhar. Como aqueles olhos eram sombrios, semelhantes à noite e a um mundo do além! Ah, se ele fosse ao menos o mundo, se o mundo fosse ele! Se Rupert pudesse evocar um mundo qualquer, o deles, para eles só!
Os belgas desceram da carruagem, e o comboio seguiu através do Luxemburgo, da Alsácia e Lorena, de Metz. Úrsula, porém, ia como cega, não via mais nada. A alma não descortinava nada fora de si mesma.
Por fim entraram em Basiléia e foram para o hotel. A viagem fora toda feita num êxtase de que ela não conseguia acordar. Na manhã seguinte deram um passeio, antes da partida do trem. Úrsula viu as ruas e o rio e deteve-se na ponte. Mas aquilo nada significava para ela. Fixou na retina algumas lojas, uma delas cheia de quadros, outra com veludos e arminhos. Que queria dizer, porém, tudo isso? Absolutamente, nada!
Úrsula não se sentiu à vontade senão quando embarcaram outra vez. Aí experimentou uma sensação de alívio. Enquanto a máquina esteve em movimento, Úrsula considerou-se satisfeita. Pararam em Zurique, depois deslizaram, por muito tempo, no sopé das montanhas cobertas de neve. Finalmente, aproximaram-se do termo da viagem. Era bem o outro universo que desejavam.
Innsbruck apresentava-se como uma autêntica maravilha; entardecia, e tudo estava branco. Um trenó descoberto levou-os sobre a neve, e saborearam o contraste com o trem, que estava quente e sufocante. O hotel, com a luz dourada que saía pelo pórtico, pareceu-lhes bastante acolhedor.
Riram alegremente quando se encontraram no vestíbulo. Havia grande azáfama e a casa devia estar cheia.
- Sabe se o senhor e a senhora Crich, ingleses, teriam chegado vindos de Paris? - perguntou Birkin em alemão.
O porteiro refletiu um momento e ia responder quando Úrsula descobriu Gudrun, que descia a escada. Trazia um casaco escuro, de fazenda lustrosa, guarnecido de peles.
- Gudrun! Gudrun! - gritou ela, acenando do patamar. A outra olhou por cima do corrimão e abandonou seus ares indolentes e desconfiados. Os olhos brilharam.
- Úrsula! E recomeçou a descer, enquanto Úrsula subia os primeiros degraus. Encontraram-se e beijaram-se com risos e alegres exclamações inarticuladas.
- Mas nós - declarou Gudrun, penalizada - julgávamos que vocês só chegariam amanhã! Tencionava ir à estação.
- Mas resolvemos vir hoje! Como isto é agradável!
- Muito! - confirmou Gudrun. - Gerald acaba de sair para fazer uma compra. Úrsula, você deve estar cansadíssima!
- Nem tanto. Mas estou bastante empoeirada, não?
- Pelo contrário, você está fresca como uma flor. Gosto muito do seu chapéu de peles. - Examinou a irmã, que vestia um casaco comprido e espesso com uma gola de peles claras e macias e chapéu da mesma cor.
- E você - observou Úrsula - com que se parece?
A outra tomou uma expressão modesta e inexpressiva.
- Gosta? - perguntou.
- Está linda! - respondeu a primeira, sorrindo.
- Subam ou desçam - disse Birkin.
As duas irmãs estavam paradas a meio da escada na altura do primeiro lance, interrompendo a passagem e divertindo imensamente os que se encontravam no térreo, desde o porteiro ate o judeu barrigudo de roupa preta. Gudrun conversava muito calma, apoiando a mão no braço da irmã.
Subiram, então, vagarosamente, seguidas de Birkin e do empregado do hotel.
- No primeiro andar? - perguntou Gudrun, olhando para trás, por cima do ombro.
- No segundo, minha senhora. Toma-se o elevador. - E correu para lá, de forma a chegar antes das duas moças. Absorvidas, porém, pela conversa, elas não o viram, e continuaram a subir para o segundo andar. O empregado correu atrás delas, aborrecido.
Era curioso notar como as duas irmãs se haviam regozijado com o encontro. Era como se se sentissem exiladas, unindo suas forças individuais a fim de arremeter contra o mundo. Birkin olhava-as com desconfiança e admiração.
Já estavam de roupa mudada quando Gerald voltou. Vinha faiscante como um raio de sol sobre o gelo.
- Vocês vão fumar - disse Úrsula a Birkin. - Eu e Gudrun temos muito que conversar.
Sentaram-se no quarto de Gudrun, e falaram sobre vestidos e episódios divertidos. Gudrun contou a história da carta de Birkin no Café Pompadour. Úrsula ficou indignada e chegou a assustar-se.
- Onde está a carta? - perguntou.
- Guardei-a.
- Quero vê-la, sim?
Gudrun conservou-se uns instantes silenciosa, até que retorquiu:
- Deseja lê-la, realmente?
- Sim.
- Está bem. Não lhe parecia fácil fazer a irmã compreender o quanto lhe agradaria ter a carta como recordação, como coisa simbólica. Mas Úrsula percebeu e não gostou da ideia. Mudaram de assunto.
- Que fizeram vocês em Paris? - indagou esta última.
- O que se costuma fazer - respondeu a irmã laconicamente - Passamos uma noite com Fanny Bath, no seu estúdio.
- Ah, sim? Você e Gerald estiveram lá?! E quem mais? Conte-me tudo.
- Não há nada de especial para relatar. Sabe como Fanny anda apaixonada por aquele pintor, Billy Macfarlane. O homem estava presente, de maneira que ela não poupou nada, e tez tudo o que era possível para conquistá-lo. Claro que todos se embebedaram, mas de uma forma interessante, não como essa gente abjeta de Londres. A verdade é que só se viam pessoas de valor, o que faz alguma diferença. Havia um romeno, tipo de primeira ordem. Embriagou-se por completo, subiu ao topo de uma escada e fez um discurso estupendo... Acredite, Úrsula, estupendo! Começou por falar em francês... La vie, c'est une affaire d'âmes impériales - A vida é um negócio de almas imperiais - nota da tradutora), isto com esplêndida pronúncia. Depois desandou a divagar na sua língua, e ninguém entendeu patavina. Donald Gilchrist estava também e inteiramente frenético. Atirou um copo ao chão e jurou, por Deus, que se considerava feliz por haver nascido, que era milagrosa a sua existência... E quer crer, Úrsula, que é verdade?... - Gudrun riu, mas de uma forma que soava falso.
- E que fazia Gerald, no meio de todos?
- Ah, se você visse! Parecia estar no seu elemento. Uma vez que se excita, faz ele próprio a festa toda! Não houve dama a quem não se atirasse. Palavra, Úrsula, atrai as mulheres como um ímã. Não houve nenhuma que lhe resistisse. Era espantoso! Você entende uma coisa assim?
Úrsula meditou uns segundos, e no olhar perpassou-lhe um súbito clarão.
- Percebo - respondeu. - Não lhe escapa nenhuma.
- Nenhuma! Também acho que sim - exclamou Gudrun.
Pois é a pura verdade. Todas as mulheres que lá estavam se dispunham a se renderem, ate Fanny, apesar de apaixonada pelo seu Billy Macfarlane. Nunca na minha vida fiquei tão assombrada. E agora dá-me a impressão de que sou, para ele, não uma só mas uma súcia de mulheres. Sou tanto eu mesma como a Rainha Vitória. Qual! Uma coleção de fêmeas é o que eu sou! Enfim, isto estonteia-me. Aquele homem é um sultão!
Os olhos de Gudrun cintilavam. Tinha as maçãs do rosto abrasadas, e o aspecto estranho, exótico, um tanto excêntrico. Úrsula sentou-se perturbada e inquieta.
Já era tempo de se prepararem para o jantar. Gudrun desceu, daí a pouco, com um vestido muito audacioso, de seda, verde-claro e ouro; o corpete era de veludo verde, e em volta da cabeça havia enrolado um turbante esquisito, preto e branco. Estava realmente bonita, e toda a gente o notou. Gerald, de belas cores na face, parecia vender saúde. Birkin olhava-os com interesse. Úrsula estava abstrata. Imaginar-se-ia que a mesa, a que se haviam sentado os quatro, fora previamente enfeitiçada até a luz incidia mais sobre ela do que sobre as restantes.
- Não gosta disto aqui? - perguntou Gudrun - A neve é surpreendente. Reparou como dá relevo a tudo? Pura maravilha! Sentimo-nos, na verdade, übermenschlich, mais do que humanos.
- Também acho - respondeu Úrsula. - Mas não se deverá, em parte, ao fato de havermos deixado a Inglaterra.
- Naturalmente... Jamais se poderia ter esta impressão na nossa terra pelo simples motivo de que lá jogam sempre baldes de água fria no entusiasmo. Nunca se está bem à vontade, disso tenho a certeza. - Assim falou, e recomeçou a comer. Mostrava-se bastante animada.
- Sou da mesma opinião - disse Gerald. - Na Inglaterra não é a mesma coisa, e talvez seja isso o que nós preferimos muita liberdade, equivalerá a brincar com o fogo. Assusto-me só em pensar no que sucederia...
- Meu Deus, que lindo - exclamou Gudrun - se toda a Inglaterra explodisse subitamente como uma peça de fogo de artifício!
- É impossível - volveu Úrsula. - Há muita umidade e a pólvora deve estar molhada.
- Quem sabe... - atalhou Gerald.
- Eu penso - interveio Birkin - que quando os ingleses começarem a explodir, em massa, é hora de tapar os ouvidos e começar a fugir.
- Jamais acontecerá tal coisa - observou Úrsula.
- Veremos, replicou o marido.
- Em todo o caso demos graças Deus por termos podido abandonar a pátria. Até nem acredito. Bastou pisar terra estrangeira para me sentir outra. Eis-me renascida, foi o que disse de mim para mim, Gudrun, para com o nosso pobre país - disse Gerald. - Almadiçoa-mo-lo, é certo, mas gostamos bastante dele.
Aos ouvidos de Úrsula tais palavras soaram como reveladores de cinismo.
- Não contesto - comemorou Birkin. - Mas é uma espécie de amor um tanto incomodo, como o que dedicamos a uma pessoa da família, muito velha e muito doente, da qual nada podemos esperar...
Gudrun arregalou o s olhos para o cunhado.
- Parece-lhe que não há esperança? - interrogou ela, com aquele eu jeito peculiar.
Birkin, porém, pôs-se em guarda. Não lhe agradava aprofundar o assunto.
- Poderemos ter, francamente, esperanças na Inglaterra? Só Deus sabe. Por enquanto, não é mais que uma imensa irrealidade, um agregado sem consistência. Poderia tornar-se real, se não existissem os ingleses.
- Entende que os ingleses deveriam desaparecer? - insistiu Gudrun. Era de admirar aquele desejo de conhecer a opinião do Gudrun. Podia-se supor que ate o seu próprio estava em jogo. Manteve o olhar sombrio e ansioso fixado em Birkin, como se a verdade sobre o futuro devesse ser dita por ele, como se ele fosse um instrumento divino.
Rupert empalidecera. Depois, de má vontade, replicou:
- Sim... que é que lhes resta fazer, senão desaparecerem? De qualquer maneira, é forçoso que percam as suas características de ingleses.
Gudrun não retirara dele o olhar, fixo e espantado, como se estivesse sob influência hipnótica.
- Em que sentido - perguntou ela - emprega o verbo desaparecer?
- Quer dizer mudança de sentimentos? - inquiriu Gerald por seu turno.
- Não posso explicar melhor - volveu Birkin. - Sou inglês, e sofro as consequências de o ser. Não falei da Inglaterra em geral, mas apenas de mim mesmo.
- Você ama imensamente a sua pátria, Rupert - retorquiu Gudrun com voz muito pausada.
- E acabo de deixá-la.
- Mas não para sempre - atalhou Gerald. - Vai voltar para lá - sentenciou, movendo a cabeça em sinal afirmativo.
- Dizem que os parasitas abandonam os moribundos - disse Birkin com amargura - Foi assim que deixei a Inglaterra.
- Ora, voltará... - observou Gudrun, sorrindo irônica.
- Tant pis pour moi - Tanto pior para mim - nota da tradutora).
- Como ele detesta a mãe-pátria! - exclamou Gerald, rindo, divertidíssimo.
- Grande patriota! - acrescentou Gudrun. Birkin não se dignou responder mais nada.
Gudrun ficou observando-p por alguns segundos. Depois, voltou-se para o outro lado. Terminavam as suas faculdades espirituais; sentia-se agora puramente cínica. Olhou então para Gerald, que lhe pareceu maravilhoso como uma partícula de rádio. Calculou que se poderia consumir a si própria, e tudo conhecer, através daquele metal vivo e fatídico. Pensava nisso e sorria. E o que seria dela, quando estivesse destruída. Pois, se o espírito, se o ser constituído é destrutível, a matéria, em si mesma, não o é.
Gerald, nesse momento, estava absorto, pensativo, com ar radiante. Gudrun estendeu um dos seus belos braços, cobertos de tule verde e tocou no queixo dele com os dedos sensíveis, de artista plástica.
- Que tais são? - perguntou-lhe, com um estranho sorriso.
- O quê? - perguntou o rapaz, voltando a si, muito admirado.
- Os seus pensamentos.
Gerald tinha o aspecto de quem acaba de acordar.
- Acho que não tenho nenhum - respondeu.
_ Não - repetiu ela. A voz era grave, mas alegre.
Para Birkin, o contato daqueles dedos sobre Gerald equivalia a uma espécie de homicídio.
- Ora, então - continuou Gudrun - bebamos pela Inglaterra, bebamos pela Grã-Bretanha.
A entonação dela denunciava certo desespero. Gerald riu e encheu os copos.
- Percebo a ideia de Birkin - explicou ele. - É esta: nacionalmente, todos os ingleses deverão morrer; porém, continuarão a existir como indivíduos.
- Supernacionalmente... - emendou Gudrun, fazendo uma careta e levantando o copo.
No dia seguinte tomaram o trem que os levou ate a estação de Hohenhausen, no extremo da linha que serve o minúsculo vale. Havia neve por toda a parte, verdadeiro berço nevado, muito branco, renovando-se constantemente; de um lado e de outro emergiam penhascos negros, e outros, já prateados, erguendo-se todos para o céu palidamente azul.
Ao saltarem na plataforma desconfortável, rodeada de neve, Gudrun estremeceu como se o coração se lhe gelasse também.
- Meu Deus, Jerry - disse ela, voltando-se para Gerald, em inesperada explosão de intimidade. - Desta vez estou amedrontada.
- Por quê?
Ela fez um gesto indicando a paisagem circundante.
- Olhe!
Parecia ter medo de dizer o que sentia Gerald riu-se.
Estavam cercados de montanhas. Do alto, de toda a parte, desciam lençóis de alvura, e eles sentiam-se diminutos e insignificantes naquele vale, tão irradiante, silencioso e imóvel como se fosse éter solidificado.
- Sentimo-nos ínfimos e sós - disse Úrsula, pondo a mão no ombro de Birkin.
- Está arrependida de ter vindo? - perguntou Gerald a Gudrun.
A jovem ficou indecisa. Saíram todos da estação, entre blocos de gelo.
- Ah! - fez Gerald, respirando de prazer. - Como isto é bom! Aqui está um trenó. Vamos dar um passeio e depois subimos a encosta.
Gudrun, irresoluta, depôs o espesso casaco em cima do trenó - como Gerald havia feito - e seguiu em frente. De súbito, lançou a cabeça para trás e desatou numa correria sobre a neve, enfiando o gorro ate as orelhas. O vestido azul-claro flutuava ao vento; as meias vermelhas brilhavam sobre o chão alvo. Gerald contemplou-a e teve a impressão de que ela se arremessava ao seu destino, deixando-o, a ele, abandonado. Depois de perceber que ela continuava se afastando, correu, por sua vez e foi-lhe ao encalço.
Por toda a parte se estendia aquela alvura profunda e silenciosa. As goteiras pesavam e abarrotavam de neve os telhados largos das casas tirolesas, que por sua vez estavam mergulhadas nela ate os caixilhos das janelas. As camponesas, de amplas saias, com mantas na cabeça e botas adequadas, voltavam-se, no caminho, para observar aquela moça elegante e enérgica que fugia do homem que a perseguia e que se aproximava mais e mais, sem, todavia a alcançar.
Passaram diante da estalagem de madeira pintada e depois em frente de alguns chalés semi-enterrados nos flocos brancos, bem como junto à fábrica de serragem, que estava sem trabalhadores; e, enfim, sobre a ponte coberta que atravessava um riacho invisível, e daí, por cima de camadas de neve ainda não pisadas. O silêncio e a extrema brancura incitavam a uma alegria insensata. Mas aquele, por excessivo, tornava-se terrível: isolava a alma e fechava o coração com uma corrente gelada.
- Apesar de tudo, é um lugar admirável - disse Gudrun, fitando Gerald nos olhos, de forma estranha e significativa. A alma dele sobressaltou-se.
- Delicioso! - confirmou.
De todos os seus membros parecia irradiar-se energia elétrica: os músculos estavam tensos, as mãos endureciam-se de vigor. Seguiram a passo apressado pela estrada transbordante de neve, e indicada apenas, de vez em quando, pelos ramos desnudos das árvores. Sentiam-se separados um do outro como pólos contrários de força impetuosa. Tinham poder suficiente para saltar até os confins da vida, até lugares interditos, e de lá regressar ao ponto de partida.
Birkin e Úrsula corriam também sobre a superfície gelada. Desembaraçando-se de toda a bagagem, haviam conseguido tomar a dianteira aos trenós. Úrsula, excitada e feliz, voltava-se de repente e segurava o braço do marido, para se assegurar da sua presença.
- Nunca imaginei isso - declarou ela. - Encontrar um mundo assim tão diferente!
Seguiram por um prado que a neve atapetara. Ali esperaram o trenó, que vinha tilintando no meio do silêncio geral. Até encontrarem Gerald e Gudrun tinham de percorrer ainda uma grande distância; achavam-se estes mais acima, no alto de um despenhadeiro, ao pé de um santuário cor-de-rosa, meio oculto pelos flocos de neve.
Passaram depois por um barranco onde havia rochas negras e um regato cujo leito se cobrira de branco. Por cima brilhava o céu azul. Depois chegaram a uma ponte; as pranchas de madeira ressoaram surdamente sob os passos; atravessaram mais uma vez o fundo nevado do barranco, e começaram a subir a encosta. Os cavalos subiam apressados, e o condutor, marchando ao lado, fazia estalar o chicote, lançando estranhos gritos de incitamento. As pedras que marginavam o caminho ficavam lentamente para trás, até que foram surgir de novo entre taludes e montões de neve. Gradualmente ganhavam altitude sob a luz fria da tarde; a proximidade das montanhas fazia-os calarem-se; vertentes de alvura luminosa cresciam em frente e desciam no caminho que lhes ficava às costas.
Atingiram, enfim, um planalto muito extenso, cercado de altos picos de neve semelhantes a pétalas de rosa desabrochada. No meio dos últimos vales desertos estava uma construção solitária de madeira escura e pesado teto branco, perdida e sozinha na vastidão dealbada, como numa espécie de sonho. Dir-se-ia um penhasco que houvesse rolado de cima das vertentes escarpadas e que tomasse a forma de uma casa, permanecendo ali meio insermlta. Parecia inacreditável que alguém pudesse viver naquele lugar sem ser esmagado pela terrível imensidade da neve, pelo silêncio e pelo frio seco intenso e penetrante.
Os trenós acabaram de subir da melhor maneira que puderam; à porta da casa apareceram várias pessoas, rindo animadamente. O assoalho da estalagem rangia, o corredor estava úmido, mas na sala havia calor e conforto.
Os recém-chegados subiram a escada de madeira, guiados pela criada. Gudrun e Gerald ficaram no primeiro quarto. Viram-se, de um momento para outro, instalados em um pequenino aposento, pouco mobiliado, mas confortável; o quarto tinha uma cor dourada, porque o chão, as paredes, o teto, a porta, eram feitos da mesma qualidade de pinho, recoberto de cera. Defronte da porta, abria-se uma janela muito baixa, pois o teto era esconso. Na mesma direção estava a mesa com a bacia de lavar as mãos e o jarro; próximo, outra mesa com penteadeira de espelho. De cada lado da porta, as camas, sobre as quais se empilhavam enormes almofadas azuis, descomunais.
E nada mais havia. Faltavam o guarda-roupa e outras peças habituais. Ei-los encerrados numa cela de madeira dourada com dois leitos cobertos de lençóis e fronhas azuis! Olharam um para o outro e desataram a rir, admirados com aquela nudez que lhes fazia sentir ainda mais o isolamento.
Bateram à porta. Era um carregador com a bagagem, rapaz robusto, pálido, de faces encovadas e bigodinho louro e hirsuto. Gudrun ficou a observá-lo enquanto ele colocava as malas e se retirava, muito calado, com passadas fortes.
- Não acha isso tudo muito primitivo? - perguntou Gerald.
O quarto não estava suficientemente aquecido e Gudrun teve um breve arrepio.
- É adorável - respondeu ela, procurando iludir-se. - Repare no tom da madeira: delicioso, parece mesmo o interior de uma noz.
De pé, Gerald observava a moça, mordia o bigode e balançava levemente o corpo. Olhava-a com olhos penetrantes e corajosos, dominado por uma paixão constante, que pesava sobre ele como uma maldição.
Gudrun debruçou-se à janela, cheia de curiosidade.
- Ah, que beleza!... - exclamou quase involuntariamente.
Em frente estendia-se um vale, sob todo o espaço do céu, fechado entre declives de neve e rochedos escuros; ao fundo, como se fosse o centro da terra, havia uma encosta branca, lisa, com dois picos que cintilavam ao crepúsculo. E a vista perdia-se naquele berço de neve silenciosa que havia entre as vertentes imponentes e orladas de pinheirinhos agrestes que lhes serviam de cabeleira. Esse berço imaculado prolongava-se ate à barreira da eternidade, onde as muralhas de neve e de pedra se elevavam impenetráveis e os cimos das montanhas roçavam o céu. Era realmente o centro, o eixo, o umbigo da terra, que, pura, inacessível, inultrapassável, dormia ali como propriedade do firmamento.
Tudo aquilo embevecia Gudrun. Ajoelhou-se em frente a janela, apoiando o queixo nas mãos em atitude de arrebatamento. Chegara, finalmente! Atingira o seu destino! Gozaria ali a sua felicidade, engastando-se como um cristal no próprio centro da neve.
Gerald, curvado sobre ela, olhava, por cima do ombro da moça, a paisagem lá fora. Mas sentia-se sozinho. Gudrun havia partido. Partira para sempre, deixando apenas uma névoa fria em volta do coração dele. Contemplou o vale coberto de flocos brancos, àquele enorme cul-desac cheio de neve e as cristas das serras sob o céu azul. Não havia caminhos por onde escapasse; rodeavam-no o silêncio o frio, a cintilante alvura da tarde moribunda. Gudrun permanecia ajoelhada defronte da janela como uma sombra em frente a um altar.
- Gosta disto? - perguntou-lhe ele numa voz que soou desconhecida e distante. Ao menos assim ela saberia que ele estava ali. Mas Gudrun limitou-se a desviar o rosto, furtando-se aos olhares do homem. Este percebeu que ela havia chorado; e aquelas lágrimas, produto da sua estranha religião, reduziram-no a uma coisa insignificante.
Pegou no queixo de Gudrun e ergueu-lhe a cabeça. Os olhos dela, azul-escuros, molhados do pranto, dilatavam-se como se estivessem assustados. Gudrun o viu através de uma névoa, e sinto aterrorizada. As pupilas de Gerald, pequeninas, vivas, pareciam-lhe agora sobrenaturais. Ela abriu os lábios, a custo, enquanto respirava ofegante.
A paixão foi-se apoderando de Gerald, mais e mais, como o som de um sino de bronze, forte, bem timbrado, impossível de deter. E, como de bronze, igualmente, seus joelhos se endureceram, ao inclinar-se sobre a face macia da moça, cuja boca estava entreaberta e cujos olhos se arregalavam sob a impressão de um medo singular. Ao contato da mão de Gerald, o queixo de Gudrun era brando e sedoso. Ei-lo, poderoso como o próprio inverno, aquele homem dominador; as mãos eram de metal, mas cheias de vida, insensíveis, impossíveis de dobrar. E o coração, dentro do peito, badalava como um sino.
Ergueu-a nos braços. Ela estava frouxa, inerte, sem movimentos! Nos olhos, onde as lágrimas não haviam secado, a dilatação aumentara, e ela entrara numa espécie de desmaio, de fascinação, já vencida. Gerald tinha uma força sobre-humana, inquebrável, superior às leis da natureza.
Ergueu-a e estreitou-a contra si. Aquele corpo mole e sem resistência pesava-lhe nos braços rijos, nos membros de bronze, provocando-lhe profundos desejos que o enlouqueceriam se não conseguisse satisfazê-los. Gudrun debatia-se convulsa, tentando evitá-lo. Mas o amor de Gerald estalava como uma chama de gelo, e ele apertava-a duramente, com músculos de aço. Antes a destruiria, mas não a deixaria fugir.
A força do homem era excessiva para a fragilidade da mulher, que se abandonou, fraca e submissa, ofegante, em vago delírio. Para ele, afigurava-se-lhe tão carinhosa, tão prometedora de felicidade, que Gerald desejaria ser condenado eternamente a renunciar um segundo àquele prazer, quase doloroso.
- Meu Deus, - disse com o rosto transfigurado, estranho e ardente - que será de nós?
Ela ficara quieta, perfeitamente calma; a expressão era infantil e os olhos sombrios não o desfitavam. Mas estava perdida para ele, como se o houvesse renegado.
- Amar-te-ei para sempre - declarou Gerald, fitando-a.
Gudrun, porém, não o ouvia. Jazia desfalecida, examinando-o como a alguém que lhe fosse impossível compreender; como uma criança observando um adulto, sem esperança de o entender, submetida e nada mais.
Gerald beijou-a nas pálpebras, de maneira que ela não conseguia vê-lo. Gostaria que ela desse algum sinal, qualquer prova de entendimento, de concordância. Ela, porém, continuava silenciosa, distante, criança que não entende as coisas e que se sente perdida. E ele tornou a beijá-la, renunciando a tudo, por fim.
- E se fôssemos tomar café e comer Kuchen? - sugeriu ele.
O crepúsculo esmaecia cor de ardósia, através da janela. Gudrun fechou os olhos à monótona superfície daquela maravilha morta, e tornou a abri-los ao mundo quotidiano.
- Está bem - respondeu laconicamente, reencontrando de súbito a vontade. Voltou de novo à janela. Sobre o berço da neve e sobre as altas encostas lívidas caíra uma noite azulada. Mas, de encontro ao céu, os picos eriçavam-se róseos, brilhantes, translúcidos, como rebentos de uma planta luzidia voltada para o mundo celestial, adorável e distante.
Gudrun viu como tudo isso era belo, conheceu a imortalidade de que aquela beleza se revestia, enormes pistilos cor-de-rosa, fogo de neve no crepúsculo azulado do céu. Via, compreendia, mas não era parte daquele todo. Alma divorciada, a sua, excluída, exilada, e nada mais!
Lançou um último e saudoso olhar à paisagem e passou os dedos pelo cabelo, compondo o penteado. Gerald desatara as correias das malas e esperava por ela, observando-a. Gudrun percebeu que ele a mirava, o que a fez apressar-se de modo febril.
Desceram ao andar térreo; havia nos olhos de ambos como que um reflexo de outro mundo, tão brilhantes se mostravam. Descobriram logo Birkin e Úrsula sentados em um canto da mesa comprida, aguardando que eles chegassem.
"Têm tão bom aspecto! São tão simples!" pensou Gudrun, invejosa daquela espontaneidade, daquela inocência de crianças que ambos demonstravam e que ela jamais possuíra. Pareciam-lhe tão pueris!
- Deliciosos Kranzkuchen! - Magnífico, prodigioso, extraordinário, inexprimível - nota da tradutora), exclamou Úrsula, gulosamente. - Deliciosos!
- Vamos experimentar. Traga-nos Kafee mit Kranzkuchen - ordenou Gudrun ao garçom.
Depois sentou-se no banco, ao lado de Gerald. Birkin, olhando para eles, sentiu pelos dois uma ternura quase dolorosa.
- Gerald - disse -, acho este lugar realmente encantador. Prachtvoll, wunderbar, wunderschön, unbeschreiblich e todos os outros adjetivos da língua alemã.
O outro esboçou um sorriso.
- Também gosto muito - replicou.
As três mesas, de madeira branca bem esfregada, estavam postas ao longo das paredes, como em qualquer Gasthaus - Estalagem - nota da tradutora). Birkin e Úrsula tinham-se colocado de costas para aqueles tabiques de pinho encerado, e Gerald e Gudrun próximos deles, mais no extremo, perto da lareira. O compartimento era vasto, com um recanto para as bebidas, em tudo semelhante a um albergue rural, embora muito mais simples e despojado. Teto, paredes e assoalho em madeira encerada, e como única mobília, mesas e bancos; a lareira era verde, tão grande que ocupava uma parede inteira. As duas janelas não ostentavam cortinas. Começava a anoitecer.
Trouxeram o café, bom e quente, e um daqueles "bolos coroados".
- Um Kuchen inteiro! - gritou Úrsula. - Vocês ganharam mais do que nós. Quero um pedaço desse.
Havia outros hóspedes, dez ao todo, conforme Birkin deduziu: dois artistas, três estudantes, um casal e um professor com as duas filhas - todos alémães. Os quatro ingleses recém-vindos permaneceram no seu cantinho, belo posto de observação. Os alemães observaram os novos hóspedes, disseram qualquer coisa ao garçom e desapareceram. Não era hora de refeição, de forma que não tinham nada a fazer na sala de jantar, mas, depois de trocarem os sapatos vieram para a Reunionsaal - Sala de estar - nota da tradutora).
Os quatro ingleses ouviram, por instantes, sons de viola e de piano misturados com risos, gritos e canções. Como a casa era construída de madeira, a repercussão do ruído fazia-se por toda ela, de forma que os acordes da viola pareciam provir de um instrumento de crianças que tocassem em qualquer parte, e os do piano mais pareciam os de uma espineta.
O hospedeiro apareceu quando acabavam de tomar o café. Tratava-se de um tirolês espadaúdo, pálido, de faces encovadas e pele marcada pela varíola. Usava os mais florescentes bigodes que se podem imaginar.
- Querem ir à sala de estar para serem apresentados às senhoras e cavalheiros que lá se encontram? - perguntou, curvando-se e exibindo um sorriso que mostrou seus dentes largos e perfeitos. Com os olhinhos azuis fitava ora um ora outro, sentindo-se pouco à vontade no meio daqueles ingleses Sentia não saber falar o idioma deles e não tinha muita confiança no seu francês.
- Para irmos à sala e sermos apresentados às outras pessoas? - repetiu Gerald, sorridente.
Houve uns segundos de hesitação.
- Creio que seria bom - acudiu Birkin. - Quebraríamos o gelo de uma vez.
As senhoras puseram-se de pé, ruborizadas.
O Wirf - Dono da estalagem - nota da tradutora), com a sua figura loura, os ombros largos, passou, pouco delicadamente, em primeiro lugar, dirigindo-se ao lugar de onde vinha o ruído. Abriu uma porta e introduziu os estrangeiros na sala do concerto.
Seguiu-se um silêncio, e os outros pareceram, por momentos, embaraçados. Os recém-chegados tiveram a sensação de estar sendo observados por uma multidão de criaturas da mesma raça. Mas o estalajadeiro inclinou-se para um homem baixinho, de olhar enérgico e fartos bigodes e disse-lhe em voz confidencial:
- Herr Professor, darf ich vorstellen... Permita-me que lhe apresente, senhor professor... - nota da tradutora).
O homem reagiu prontamente. Cumprimentou com a cabeça os novos hóspedes, sorriu e assumiu uma franca atitude de camaradagem:
- Nehmen die Herrschaften Teil an unserer Unterhaltung? - Dignam-se tomar parte na nossa festa? - nota da tradutora) - foram as suas palavras, ditas com vigor e convicção.
Os quatro ingleses, risonhos, deixaram-se ir até ao meio da sala, com certo acanhamento. Gerald, fazendo de orador oficial, respondeu que teriam muito gosto em tomar parte no sarau. Gudrun e Úrsula, rindo animadamente, percebiam que os homens não tiravam os olhos de cima delas. Ergueram então a cabeça, fitando o teto, e assumiram uma atitude majestosa...
O professor declarou os nomes de todos os presentes, sans cérémonie. Houve flexões de cabeça para a esquerda e para a direita. Só faltava ali o casal que tinham mencionado antes como hóspedes da estalagem. As duas filhas do professor, altas, claras, atléticas, vestidas simplesmente com blusas azul-escuros e saias de lã, de pescoço comprido e forte e cabelos cuidadosamente trançados coraram, cumprimentaram e puseram-se um pouco afastadas os três estudantes curvaram-se reverentes, na humilde persuasão de incutirem a ideia de que eram muito bem educados. Depois chegou a vez de um sujeito delgado e moreno, com olhos grandes, um tipo estranho, misto de engraçado e esperto, um gnomo original. Fez um curto cumprimento e o companheiro que se achava junto dele, rapaz louro e alto, bem vestido, corou e baixou a cabeça.
Estavam feitas as apresentações.
- Herr Loerke estava recitando para nós no dialeto de Colônia - explicou o professor.
- Desculpe a interrupção - disse Gerald. - Teremos também imenso prazer em ouvi-lo.
Seguiu-se um novo cumprimento e oferta de lugares. Gudrun, Úrsula, Gerald e Birkin sentaram-se em confortáveis sofás, de costas para a parede. A sala era, como toda a casa, de madeira encerada. Havia piano, canapés, cadeiras e duas mesas com livros e revistas. Apesar da ausência total de ornatos - exceto no que respeitava ao fogão enorme, azul - não se deixava de sentir conforto e bem-estar.
Herr Loerke era o homenzinho de rosto infantil. Tinha a cabeça redonda, grande, olhos vivos como os de um mico e todo ele denotava sensibilidade. Relanceou o olhar pelos intrusos, conservando-se um tanto à parte.
- Queira continuar com a declamação - insistiu o professor, com voz suave, embora levemente autoritária. Loerke, que estava sentado no banquinho do piano, um pouco curvado, baixou os olhos e não respondeu.
- Seria muito agradável para nós... - interveio Úrsula, que estava há muito tempo preparando a frase em alemão.
Então, subitamente, o homenzinho, ate ali calado, avançou e, dirigindo-se aos primeiros ouvintes, continuou a história exatamente no ponto em que a havia interrompido. Com voz brincalhona, muito bem timbrada, fez a imitação de uma disputa entre uma velhota de Colônia e um condutor de trens.
O corpo daquele homem, débil e mal formado, assemelhava-se ao de um rapazola, porém a entonação era a de um adulto, com grande dose de sarcasmo; possuía a inflexão necessária, denunciando inteligência crítica e penetrante. Gudrun não conseguiu perceber patavina daquele monólogo, mas estava encantada com a figura dele. Devia ser artista, senão não conseguiria tanta perfeição e naturalidade. Os alémães não cessavam de rir ao ouvir as palavras tão engraçadas daquele divertido dialeto. No meio das gargalhadas, olhavam disfarçadamente para os ingleses, com deferência Gudrun e Úrsula não puderam deixar de rir também. A sala quase vinha abaixo com tanto barulho. Os olhos azuis das filhas do professor já estavam cheios de lágrimas provocadas pelo riso; as faces das moças estavam coradas de prazer. O pai fazia reboar pela casa estrondosas manifestações de hilaridade, e os estudantes, no auge da alegria, curvavam a cabeça ate os joelhos. Úrsula, surpreendida, perscrutava em volta de si e, involuntariamente, acompanhava as expansões da assembleia. Virou-se uma vez para a irmã e a irmã para ela, e as duas riram a valer. Loerke lançou-lhes um rápido olhar. Birkin divertia-se discretamente. Gerald mantinha-se ereto, com expressão brilhante e divertida. E as risadas prosseguiram, com intensidade crescente; as filhas do professor remexiam-se nas cadeiras, o pai mostrava as faces afogueadas e as veias do pescoço salientes: sentia-se sufocado e tinha espasmos de riso silencioso. Os estudantes soltavam gritos inarticulados que terminavam em explosões que não podiam evitar. Mas de repente, o monólogo do artista cessou; as exclamações subsistiram ainda, decrescendo gradualmente. Úrsula e Gudrun enxugaram os olhos, e o professor exclamou, em voz alta:
- Das war ausgezeichmet, das war famos... Soberbo, famoso! - nota da tradutora).
- Wirklich famos! Famosíssimo! - nota da tradutora) - repetiram em eco as filhas, extenuadas.
- Que pena não termos entendido! - lamentou Úrsula.
- Oh, leider, leider! - Infelizmente, infelizmente! - nota da tradutora)
- comentou o professor.
- Não compreenderam? - indagaram os estudantes, dirigindo-se finalmente aos estrangeiros. - Ja, das ist wirklich schade, das ist schade, gnadige Frau. Wissen Sie... - Sim, realmente foi pena, minha senhora. Acredite. - nota da tradutora).
Estabelecera-se a familiaridade, e os recém-chegados, como elementos novos, misturaram-se ao grupo, aumentando a animação da sala. Gerald estava como em sua casa, falava com desembaraço e boa disposição; assim nesta sua expressão mostrava quanto aquilo o divertia. Talvez sucedesse o mesmo a Birkin. Permanecia ainda tímido e contrafeito, embora atento a tudo o que se passava.
Pediram a Úrsula que cantasse Ano Lawrie - como dizia o professor. Fez-se um silêncio cheio de deferência. Nunca em sua vida fora tão cortejada. Gudrun acompanhou a irmã ao piano, tocando de cor.
Úrsula tinha uma voz bem timbrada, mas geralmente sem sensibilidade, o que prejudicava suas canções. Naquela noite, porém, sentiu-se mais à vontade e esforçou-se para cantar melhor. Birkin ouvia atentamente, e a jovem, cheia de confiança, tinha a impressão de que era um pássaro que flutuava no espaço, enquanto a voz se evolava, equilibrando e modelando a canção com um movimento de asas, como se levada pelo vento. Cantou com muita expressão, animada pelo interesse com que a assistência a distinguia, e considerando-se feliz em proceder daquela maneira, compenetrada da emoção e do domínio que exercia aquela gente toda e sobre si própria - contente por ser agradável e proporcionar distração aos alémães.
Quando terminou, estes, sensibilizados, cheios de admiração e ainda envoltos numa deliciosa melancolia, felicitaram-na efusiva e respeitosamente, sentindo que nenhum louvor seria demasiado.
"Wie schön, wie rührend! Ach, die schottischen Lieder, sie haben so viel Stimmung! Aber die gnädige Frau hat eine wunderbare Stimme; die gnädige Frau ist wirklich eine Kunstlerin, aber wirklich!" - Lindo, comovente! Ah, essas canções escocesas fazem tanto bem à gente! Esta senhora possui uma voz maravilhosa. É, de fato, uma artista, não tenham dúvida! - nota da tradutora).
Úrsula, radiante, parecia uma flor desabrochada ao sol da manhã. Pressentia que o marido a fitava, como se tivesse ciúmes, e o peito arfou-lhe mais. Considerava-se feliz, como um astro que houvesse conseguido atravessar as nuvens com os seus raios de ouro. Todos, aliás, pareciam contentes e satisfeitos. Tudo decorria às mil maravilhas.
Depois do jantar desejou sair para admirar a natureza. Os outros tentaram dissuadi-la; estava tanto frio! "Só para ver", disse ela.
Agasalharam-se os quatro e pouco depois se achavam num mundo vago e insubstancial, feito de neve, povoado de espectros que, de encontro às estrelas, projetavam sombras confusas. O frio era realmente intenso. Úrsula não queria acreditar que era o ar que lhe entrava pelas narinas. Dir-se-ia antes alguma coisa consciente, malévola, com premeditações de assassino.
No entanto, era belo o espetáculo: silêncio profundo na neve sombria, intoxicante, incompreensível, e aquele ser invisível interpunha-se entre eles e as coisas visíveis, entre os homens e os astros flamejantes. Úrsula descobriu Órion erguendo-se no céu. Maravilhoso a ponto de dar vontade de gritar!
Em toda a volta o berço de neve, dura sob os pés, enquanto o frio atravessava os sapatos. Era noite, era silêncio. A jovem imaginava poder ouvir as estrelas. Estava convencida de que ouvira o movimento musical das esferas celestes. Os astros estavam quase ao alcance da mão. Úrsula teve a ilusão de que era uma ave voando por entre a harmonia do universo.
Chegara-se mais ao corpo de Birkin. E, de repente, pensou que desconhecia os pensamentos do marido. Ignorava por onde vaguearia o espírito dele.
- Meu amor! - exclamou ela, parando para fitá-lo. Birkin empalidecera e brilhava em seus olhos um clarão fugidio. Ao ver o rosto da mulher tão próximo do seu, tão meiga e solícita, Birkin beijou-a suavemente.
- O que é? - perguntou-lhe.
- Você me ama? - quis saber ela.
- Tanto, tanto! - respondeu Rupert, tranquilo.
Úrsula aconchegou-se mais.
- Nem tanto... - duvidou.
- Muitíssimo - garantiu o marido, melancólico.
- Fica triste por isso? volveu a mulher, apreensiva. Birkin apertou-a contra si, beijando-a sempre; e disse, de forma quase inaudível:
- Isso não; mas sinto-me como um pedinte, sinto-me pobre. Ela calou-se, olhando agora para o firmamento. Depois, retribuiu-lhe os beijos.
- Você não é um mendigo - explicou, preocupada. - Não é nenhuma vergonha dedicar-me um pouco de amor.
- Mas é vergonhoso sentir-me um homem muito pobre.
- Por quê?
Birkin ficou imóvel, mantendo-a entre os braços. O ar que os envolvia vinha do alto das serras invisíveis.
- É que sem você - disse ele - eu não poderia suportar este frio, este lugar eternamente gelado. Não poderia; ele penetra-me, incisivo, e destrói-me a vida toda.
Úrsula beijou-o mais uma vez.
- Odeia-o, então? - indagou, muito admirada.
- Se não estivesse perto de você, detestá-lo-ia, com certeza.
- Mas as pessoas são agradáveis...
- Refiro-me ao silêncio, ao ar agreste, à neve constante. Ficou pensativa; mas logo sua alma foi-se refugiar na alma dele.
- Sim, - concordou é bom estarmos aquecidos, na companhia um do outro.
Voltaram para casa. Viram as luzes douradas da hospedaria cintilando através da noite silenciosa e glacial. Na imensidade do vale pareciam pequeninas, como um cacho de bagos amarelos. Assemelhavam-se a um ramalhete de raios solares, minúsculos e alaranjados no meio da escuridão e da neve. Por trás dele erguia-se a sombra da montanha; como um fantasma, ocultava o fulgor das estrelas.
Aproximavam-se já da hospedaria. Notaram que saia de la um homem com uma lanterna na mão. O que fazia com que os pés dele, presos num círculo de luz, brilhassem sobre a neve. Na vastidão da noite ele não era senão um vulto escuro pequenino. Dirigiu-se para uma dependência, cuja porta abriu; e chegou logo o cheiro das vacas, cheiro quente que se espalhou pesado, no ar frio. Birkin e Úrsula distinguiram dois animais na escuridão do estábulo. A porta fechou-se, então, sem deixar que se filtrasse a menor luz. Tudo aquilo recordou mais uma vez a Úrsula a sua infância, a casa, o Marsh, a viagem de Bruxelas e, estranha coisa, lembrou-se de Anton Shrsbensky!
"Meu Deus, poderei suportar esse passado desaparecido no abismo Admitirei a ideia de que ele jamais existiu?" Lançou os olhos em torno, ao silencioso e gelado, sobre o qual dominavam os astros e a temperatura glacial; e, sobrepondo-se a esse, viu perpassarem as imagens de lanterna mágica do outro mundo, posto em evidência por uma luz irreal: o Marsh, Cosseghay, Ilkeston... Percebeu a sombra fantástica de uma Úrsula e um conjunto de outras sombras sem a menor realidade. Era ainda a projeção estranha e consciente da lanterna mágica. Se aqueles vidros, ao menos, se quebrassem todos! Preferia não ter nenhum passado na sua vida. Gostaria de ter descido cem Birkin, por aquelas vertentes, como se caísse do céu diretamente naquele recanto da terra, sem ter atravessado uma infância obscura. Com tudo o que a manchava. Achava que a memória se divertia à sua custa. Com que direito a mandava recordar. Por que não experimentava um banho lustral, de puro esquecimento, ou não nascera de novo sem as tristezas e as evocações da vida passada? Estava agora na companhia de Birkin, acabava efetivamente de renascer - ali, sob as estrelas, pisando a neve. Que lhe importavam os pais e os antecedentes? Sentia-se nova, ainda não gerada, sem pai, nem mãe, sem família, ela própria somente, virginal como a prata, pertencendo apenas à unidade que formava com Birkin, unidade que vibrava em notas profundas, ressoando no coração do universo e da irrealidade, onde ate aí jamais existira.
Mesmo da própria irmã se considerava separada, distante, muito longe, sem nenhuma ligação, pois esta Úrsula vivia num mundo diverso e autêntico. Aquele velho planeta em que decorrera o passado sombrio estava desfeito! Erguia-se ela, agora livre, nas asas de uma existência diferente.
Gudrun e Gerald não tinham ainda voltado. Haviam descido a encosta fronteira à casa, enquanto Úrsula e Birkin faziam outro tanto na colina do lado direito. Gudrun fora impelida por um desejo singular. Queria precipitar-se cada vez mais além ate atingir o vale mergulhado em neve, e depois subir a vertente branca que fechava o caminho, como pétalas no coração do gelo, no misterioso umbigo do mundo. Sentia que ali, para trás do obstáculo terrível e enigmático, estava o arreio da terra, cercado por um ramalhete de picos e de serras, e lá naquele ponto não atingido, acabaria ela por se consumir. Se ao menos pudesse lá chegar, sozinha, àquele centro de neves perpétuas e inacessíveis, rodeadas de rochedos, poderia unifica-se com a natureza, seria ela mesma o silêncio eterno e infinito e adormeceria alheia ao tempo, ao âmago de todas as coisas.
Por fim voltaram à casa e entraram na Reunionssal. Gudrun tinha curiosidade de ver o que faziam ali. Os homens despertavam-lhe a curiosidade. A existência começava a proporcionar-lhe um sabor diferente: todos se prostravam diante dela, lépidos e viçosos.
A animação era grande. Dançavam, em conjunto a Schuhplat teln, número tirolês em que se bate palmas e os homens levantam o par na última marcação. Os alémães dançavam corretamente - eram quase todos de Munique. Gerald não destoava no grupo. Em um canto havia três músicos que tocavam viola, e o espetáculo tomava aspectos de imensa alegria e confusão. O catedrático iniciava Úrsula nos segredos da dança, batendo o pé, dando palmas e levantando-a no ar com espantosa força e entusiasmo. Quando chegou a parte final, o próprio Birkin se portou dignamente com uma das filhas do professor, que era jovem, robusta e visivelmente feliz. Toda a gente se divertia no meio de enorme alarido.
Subitamente a dança parou. Loerke e os estudantes correram para preparar bebidas. Houve um clamor de vozes excitadas, um bater de tampas e canecas e o grito geral de a saúde! Loerke estava em toda a parte ao mesmo tempo, como um gnomo oferecendo copos às senhoras, dizendo gracejos, mexendo com os homens e atrapalhando o garçom.
Tinha vontade de dançar com Gudrun. Desde que a vira ambicionara conhecê-la melhor. Ela, por sua vez, pressentira isso, e esperava que ele se aproximasse. Mas uma espécie de aborrecimento o conservava afastado e Gudrun chegou a pensar que o rapaz antipatizava com ela.
- Schuhplatteln, gnädige, Frau? - Uma dança triste, minha senhora? - nota da tradutora) - perguntou-lhe o companheiro de Loerke, rapaz louro e bem constituído. Ela o achava meio melífluo, demasiadamente humilde. Mas queria dançar e o moço louro, que se chamava Leitner, não era feio, apesar de suas maneiras acanhadas e levemente suspeitas; talvez a modéstia disfarçasse a timidez inata. Aceitou-o, pois, como seu par. Os instrumentos foram outra vez tangidos, e a dança principiou Gerald ia à frente de todos, conduzindo uma das filhas do catedrático. Úrsula dançava com um dos estudantes, Birkin com a outra filha do professor, este com Frau Kramer e os homens restantes, uns com os outros, tão entusiasmados como se houvesse entre eles promiscuidade de sexos.
Pelo fato de Gudrun estar dançando com o moço suave e elegante, seu companheiro Loerke ficou mais amuado e furioso do que nunca, e fingiu ignorar a existência da moça. O incidente magoou-a, porém distraiu-se dançando depois com o professor, que era forte como um touro no cio e cheio de energia rude, embora de idade já madura. Se o enfrentasse a sangue-frio não o teria podido suportar, mas, no ardor da dança, tudo ia bem e chegou a achar agradável ser erguida no ar com tanto ímpeto. Por seu lado, o professor estava radiante, e contemplava-a com os seus estranhos olhos azuis, repletos de fogo galvânico. Se bem que detestasse a animalidade protetora e semipaternal com que ele a mirava, Gudrun apreciou-lhe a energia.
A sala carregava-se de excitação, de entusiasmo estrepitoso e sensual. Loerke permanecia afastado de Gudrun, a quem desejaria falar, mas havia como que uma barreira de espinhos, além de que sentia pelo seu amigo Leitner certo ódio impiedoso e mesmo sarcástico. Leitner era pobre e dependia do companheiro. E este ria-lhe no rosto, caçoando cruelmente dele, fazendo-o corar e despertando-lhe, na alma, inútil ressentimento.
Gerald, que se saíra muito bem, dançava outra vez com a filha mais nova do professor, e ela desfalecia quase de paixão virginal, achando-o tão belo, tão sedutor! Gerald mantinha-a sob o seu poder, como se mantém um pássaro palpitante, uma criaturinha desnorteada, ruborizada e confusa. Sorria só por a ver tão excitada entre as suas mãos, a estremecer tão violentamente quando a arrebatava no espaço. Por fim, a jovem já sentia um amor tão intenso pelo seu par que mal podia articular sensatamente qualquer palavra.
Birkin e Úrsula dançavam juntos. Nos olhos dele cintilavam rápidos clarões; dir-se-ia que aquele homem se transformara em um ente perverso, instigador, verdadeiramente mau. A mulher tinha medo dele, mas sentia-se fascinada. Numa visão nítida, via-o passar diante dela, irônico, de olhar lúbrico; aproximava-se dela em movimentos sutis, às vezes indiferentes, outros perigosos. Faziam-na desmaiar de medo aquelas mãos tão estranhas, vivas, astuciosas, que se acercavam inevitáveis do peito da mulher e a levantavam em gosto pouco sério, num impulso cheio de intenções, e a conservavam no ar sem emprego de força, por uma espécie de magia negra. Úrsula, por instantes, revoltou-se. Aquilo era horrível. Precisava quebrar-lhe o encanto. Antes, porém, de formular definitivamente a solução, já se tinha de novo submetido, cedendo ao pavor que ele lhe inspirava. Birkin estava a par do que ela pensava, isso era bem visível no seu sorriso e no modo de piscar os olhos. Era dele a responsabilidade, deixá-lo-ia fazer o que lhe aprouvesse!
Quando se tornaram a encontrar, no escuro, e sozinhos, ela sentiu rondar em sua volta o espírito silencioso do homem e aquilo perturbou-a e assustou-a. Por que se tornara ele assim?
- Que quer? - perguntou cheia de horror.
Mas o rosto de Birkin brilhou mais perto, desconhecido, terrível. Úrsula estava hipnotizada. O seu primeiro movimento era o de o repelir, desfazer o encanto e pôr fim àquela brutalidade sardônica. Sentia-se, contudo, fascinada em demasia preferia sujeitar-se, conhecê-lo melhor. Que iria acontecer?
Rupert atraía-a e afugentava-a ao mesmo tempo. A atração que se irradiava daquele rosto insinuante e irônico, e que se transmitia de seus olhos semicerrados, dava a Úrsula vontade de se esconder e de o espiar de qualquer lugar desconhecido dele.
- Por que está assim? - perguntou, insurgindo-se contra o marido num ímpeto súbito e corajoso.
O fulgor que ardia no olhar de Rupert concentrou-se ao fita-la atentamente. Suas pálpebras se abaixaram num movimento rápido e desdenhoso, para se erguerem logo na mesma provocação impiedosa. Ela então cedeu, deixando-o proceder como quisesse. Aquele feitio sensual tornava-o ao mesmo tempo atraente e repulsivo. Mas como era ele o responsável, Úrsula queria ver o que o marido pretendia fazer.
Afinal, poderiam comportar-se como quisessem - pensou Úrsula no momento em que se deitou. Por que haveriam de eximir-se a qualquer coisa que lhes proporcionasse satisfação? Seria isso, por acaso, degradante? Quem se importaria? Os atos aviltantes existiam, mas a sua realidade é que seria diferente. Rupert era tão descarado, tão sem freios! Não parecia horrível ver agora um homem que podia ser tão espiritual, tão inteligente...? (Úrsula quis impedir a irrupção dos seus pensamentos e concluiu: vê-lo agora tão bestial!) Sim, ele e ela, como dois animais... que vergonha! Estremeceu ao recordar-se. E afinal, por que não? Esta ideia alegrou-a. Por que não haviam de ser bestiais e percorrer toda a escala das sensações? E que bom que era sentir-se envergonhada! No fundo, experimentava certa alegria. Passando por tudo quanto era proibido, adquiriria maior experiência. Já não se achava perplexa, sequer, retomara todo o domínio de si mesma. Por que não? Era livre, visto conhecer tudo e não recuar perante nenhum pecado.
Gudrun, que estivera observando Gerald na Reunionssal, pensou de repente:
"Pode ter tantas mulheres quantas quiser; está na sua natureza. É absurdo considerá-lo monógamo. A poligamia é a sua vocação."
Sem ela querer, este pensamento dominava-a e impressionava-a. Era como se tivesse lido na parede, também o seu Mene! Mene! - Cf. Daniel, V, 25 - nota da tradutora).
Não era apenas fantasia. Parecia que, ao mesmo tempo, uma voz lhe falava no íntimo e tão claramente, que, por instante, Gudrun acreditou estar inspirada.
"É a verdade nua e crua", disse ela consigo mesma.
Sabia muito bem, e implicitamente, que sempre fora aquela a sua opinião. Mas convinha guardar tal ideia, na sombra, quase fora dela mesma. Devia conservá-la secreta. Só ela é que devia estar a par do fato, fazendo o possível para não a aceitar completamente.
Tomou a inabalável resolução de combater Gerald. Um dos dois triunfaria, aniquilando o outro. Qual seria então? Procurou fortalecer o espírito. Tinha confiança, o que lhe permitiu um sorriso. Esboçava-se, assim, em favor de Gerald, uma certa piedade desdenhosa, misturada de ternura. Mas não: não haveria misericórdia!
Todos se recolheram cedo aos seus quartos. O professor e Loerke enterraram-se em um sofá, bebendo. Observaram Gudrun enquanto esta subia a escada.
- Ein schönes Frauenzimmer - Bela mulher! - nota da tradutora) - disse o primeiro.
- Ia! - concordou Loerke, secamente.
Gerald atravessou o quarto de dormir pé ante pé, de forma esquisita e, chegando à janela, debruçou-se e olhou para fora. Depois, voltou o corpo e encarou Gudrun, com olhos ardentes. Tinha nos lábios um vago sorriso. Para ela, dir-se-ia que aquele homem havia aumentado de estatura; viu-lhe luzirem aquelas sobrancelhas muito louras, quase brancas, que se juntavam no meio da testa.
- Que acha de tudo isto? - perguntou.
Parecia rir interiormente, sem mesmo dar por isso. Gudrun fitou-o. Era agora, para ela, como um fenômeno, e não um ser humano: espécie de criatura devorada pela gula.
- Acho muito bom - foi a resposta.
- Quem você achou mais simpático de todos os que estavam lá em baixo? - continuou Gerald, parado junto a ela, muito alto, resplandecente, de cabelos lisos e lustrosos.
- De quem gostei mais? - repetiu Gudrun, desejosa de dizer a verdade, mas achando difícil decidir-se. - Não sei, não os conheço bastante. E você, com quem simpatizou mais?
- Ora, para mim são todos iguais... Não gosto nem desgosto de ninguém. São indiferentes. Queria apenas saber a sua opinião.
- Mas por quê? - Gudrun empalideceu. Nos olhos deles intensificava-se uma expressão vaga, abstrata.
- Gostaria de saber - elucidou.
Ela se afastou, resolvida a quebrar o encanto. Sentia que aquele homem recuperava, de forma estranha, o ascendente que tivera sobre a sua pessoa.
- Pois bem... Por enquanto não posso dizer.
Foi ate diante do espelho para tirar os grampos dos cabelos. Todas as noites costumava ficar algum tempo escovando aqueles cabelos finos e escuros. Fazia parte do ritual da sua vida.
Gerald seguiu-a e colocou-se atrás dela. E Gudrun, com a cabeça curvada para frente, continuava a desembaraçar a cabeleira solta e farta, recolhendo os últimos grampos. Quando levantou os olhos e descobriu a imagem dele no espelho, ali de pé, a observá-la, sem consciência do que fazia, viu que seu olhar parecia sorrir, mas não sorria verdadeiramente.
Gudrun sobressaltou-se. Foi necessária toda a sua coragem para continuar o que fazia. Mas estava longe, muito longe de se sentir à vontade.
- Que pretende fazer amanhã? - perguntou-lhe, enfim, mostrando-se indiferente, enquanto o coração lhe batia apressadamente; tinha os olhos tão brilhantes de excitação que ele não poderia, assim pensou, deixar de notar. Mas Gerald parecia cego, como um lobo que ficasse cego ao contempla-la. Extraordinário combate entre a sua consciência de mulher e a daquele rapaz misteriosamente iniciado na magia negra!
- Não sei - respondeu ele. - E você, o que gostaria de fazer?
Falava ao acaso, com o espírito muito distante.
- O que você quiser; qualquer coisa me serve - respondeu ela vagarosamente.
Enquanto isso, pensava: "Meu Deus, por que estou tão nervosa. Por que você é assim, Gudrun, sua tola? Se ele desconfiar, acaba-se tudo para sempre; você bem sabe que será para sempre, se descobrir o estado absurdo em que você se encontra...
Depois, sorriu à sua imagem refletida, como se tudo aquilo não passasse de brincadeira de crianças. Entretanto, o coração enfraquecia e ela sentia que podia desfalecer. Podia vê-lo ainda, no espelho, atrás dela, alto e curvado, louro e terrivelmente assustador. E Gudrun lançava-lhe olhares furtivos, disposta a conceder-lhe fosse o que fosse, uma vez que ele não soubesse que o estava observando. Gerald, contudo, nada percebia olhava vagamente, com o olhar brilhante pousado na cabeça da moça, de onde alastravam-se seus cabelos finos penteados com mão nervosa. Ela punha o rosto para o lado e escovava, escovava, como uma louca. Ainda que lhe devesse custar a vida, não seria capaz de se voltar para enfrentá-lo. Sentia nas costas a presença de Gerald, ameaçadora, sentia-lhe o peito firme, sólido, irresistível, apoiando-se sobre ela e tinha a impressão de que isso se lhe tornava insuportável, que tombaria aos pés dele dentro de poucos minutos, que se arrastaria no chão, deixando que o homem a aniquilasse.
Tal pensamento, espicaçando-lhe a inteligência clara, restituiu-lhe a presença de espírito; mas não ousava voltar-se. Gerald continuava de pé, imóvel no mesmo lugar. Reunindo todas as suas forças, Gudrun dirigiu-lhe a palavra, em voz cheia, ressonante, indiferente. Fizera apelo a tudo quanto lhe restava de autodomínio.
- Por favor, procure na minha mala o meu...
Mas a energia abandonou-a. "O meu... O meu quê?", perguntava a si mesma.
Gerald sobressaltou-se, admirado de que ela o mandasse procurar qualquer coisa. E Gudrun voltou-se então, muito pálida, com os olhos brilhantes, numa estranha excitação. Ele estava inclinado para a mala, desapertando as correias, distraído...
- Procurar o quê?
- Uma caixinha de esmalte... amarela... com um desenho...
Ao dizer isso, levantara-se e fora ao encontro do rapaz; baixou o braço, nu e soberbo, e começou a remexer no conteúdo da maleta, ate que descobriu a caixa, delicadamente pintada.
- É esta. Vê? - e colocou-a sob os olhos de Gerald.
Tinha conseguido frustrá-lo. Deixou-o apertar os cordões da mala, e acabou de ajeitar, às pressas, o penteado para a noite; depois, sentou-se para tirar os sapatos. Não desejava ficar outra vez de costas para ele.
Gerald fora logrado, iludido, mas não tinha consciência disso. Agora a superioridade era de Gudrun. Percebeu que ele não notara o medo terrível que se apossara dela; o coração pulsava agora pausada e sossegadamente. Estúpida, estúpida, em se ter assustado àquele ponto! Graças a Deus, Gerald não reparara em nada, no meio da cegueira que o envolvera.
Desatou vagarosamente os sapatos; ele, por sua vez, começou a despir-se. Ainda bem que o momento crítico havia passado. E Gudrun já se sentia apaixonada por aquele homem e novamente enternecida.
- É verdade, Gerald - disse, rindo. Que brincadeira tão engraçada a sua com a filha do professor!
- Qual brincadeira - perguntou ele, admirado.
- Pobre menina, estava louquinha por você! - continuou ela, com o ar mais divertido e amável deste mundo.
- Que tolice!
- Tolice? - tornou Gudrun, querendo aborrecê-lo. - E agora, a pobre pequena está neste momento na cama, morrendo de paixão. Acha você belo como nenhum outro homem. Que coisa engraçada!
- Engraçado?
- Fazia gosto ver vocês dois - prosseguiu em tom de censura complacente, que lisonjeou em Gerald a sua vaidade de macho.
- Francamente, Gerald! Pobre pequena!
- Não fiz mal nenhum a ela...
- Chegava a ser escandalosa a maneira com que você a segurava...
- Era a dança tirolesa - explicou ele, rindo e mostrando os dentes brilhantes.
- Ah... Ah... Ah... - fazia Gudrun, rindo também.
O som de sua voz motejadora ressoava dentro dele, como prolongada por estranhos ecos. Quando adormeceu, parecia encolhido no leito e enrolado na sua própria força.
Gudrun dormiu profundamente, num sono vitorioso. De repente, despertou. As paredes de madeira do quarto iluminavam-se com a luz da aurora, que vinha através da janela baixa. Erguendo a cabeça, descobriu lá embaixo, no vale, a neve ainda pouco visível; parecia mágica, em tons de rosa. Viu também, no sopé da colina, a franja de pinheirinhos e um vulto magro que se movia no espaço fracamente iluminado...
Consultou o relógio. Eram sete horas. Gerald ainda estava profundamente adormecido. E ela já se sentia tão desperta que chegava a se sentir irritada. Que lucidez inflexível e metálica! Ficou estendida na cama, a olhar para ele.
Gerald dormia escravizado à sua derrota, e também ao seu vigor. Mas Gudrun considerava-se ainda mais vencida. Perante ele, recuava sempre amedrontada. Ali estava agora na cama, a contemplá-lo, a imaginar o que aquele homem significava no mundo. Tinha vontade livre, independente, com toda certeza. Lembrou-se da revolução que se fizera em suas minas, em tão pouco tempo. Qualquer problema que precisasse resolver, por mais árduo e difícil, conseguia sempre dominá-lo, disso estava ela também convencida. Se uma ideia se metia em sua cabeça, não descansava ate a colocar em prática. Sabia fazer surgir a ordem em meio à confusão. Em qualquer situação intrincada ele sabia encontrar a solução. Assim era Gerald.
Durante alguns instantes, Gudrun deixou-se arrebatar pelas asas da ambição. Gerald, com a sua força de vontade e o dom de compreender o mundo atual, seria a pessoa indicada para resolver os problemas novos, como o da industrialização na vida moderna. Gudrun não duvidava de que ele, com o decorrer do tempo, efetuaria as reformas que desejasse: reorganizaria, decerto, todo o sistema industrial. Quanto a isso não tinha dúvidas. Para tais coisas era um instrumento maravilhoso: jamais vira outro homem dispor de tamanha energia. Poderia o próprio Gerald não estar compenetrado dessa verdade; Gudrun, porém, sabia-o a perfeição. Necessitava, todavia, de alguém que o empurrasse, que lhe desse o impulso e a consciência da ação. Disto era ela capaz. Casariam, o marido seria deputado do Partido Conservador, e haveria de esclarecer a grande confusão que girava em torno da indústria e do trabalho. Soberbo e destemido, dominador por natureza, sabia que, na vida, como na matemática, todos os problemas são suscetíveis de resolução. E Gerald resolvê-los-ia sem que, nessa tarefa, o movessem interesses de qualquer espécie. Ninguém mais honesto, na realidade.
O coração da moça pulsava rápido: ei-la voando nas asas do entusiasmo, idealizando o futuro. Gerald seria um Napoleão da paz, ou um Bismarck, e ela a sua inspiradora. Tinha lido as cartas de Bismarck e ficara profundamente impressionada com elas. Mas Gerald talvez ainda fosse mais independente, mais intrépido do que o grande estadista.
Enquanto permanecia naquele arrebatamento, banhada pela estranha e falsa luz da esperança numa vida feliz, qualquer coisa se quebrou dentro dela e começou a sentir-se invadida por terrível descrença, como se uma ventania se levantasse de subido e varresse com ela seus bons pensamentos. Tudo agora se transformava em ironia, tudo tinha um sabor sarcástico. E, ao reconhecer a inutilidade de suas ideias e de seus projetos, sentiu a angústia de uma inegável realidade.
Observava-o enquanto ele dormia. Tão belo parecia, que se julgaria constituir um instrumento de perfeição. E, ao espírito dela Gerald significava na verdade um instrumento puro e sobre-humano. Esse caráter ia-se-lhe revelando cada vez mais nítido a ponto de Gudrun desejar ser Deus para se servir de Gerald como de uma ferramenta.
Mas, no mesmo momento, surgiu a pergunta cética: "Para quê". Lembrou-se das mulheres dos mineiros, com os seus oleados e cortinas de renda, mães de crianças com botinhas de amarrar. Pensou depois nas esposas e filhas dos gerentes das minas, com as suas partidas de tênis e seus tremendos esforços por parecerem superiores umas às outras na escala social. Só restava Shortlands, com as suas distinções idiotas e a turba desmiolada dos Criches, e depois Londres, a Câmara dos Deputados, a gente em evidência, ó Deus misericordioso!
Apesar de jovem, Gudrun conhecia a sociedade inglesa. Não pretendia subir na esfera social. Bem sabia - com o perfeito cinismo da mocidade cruel - que elevar-se na sociedade significava apenas mudar de aparência e que a vantagem não era superior à de ter uma moeda falsa de grande valor em lugar de uma moeda falsa de pequeno valor. Não era de lei a moeda com que se avaliavam as diferenças. Contudo, esse mesmo cinismo reconhecia que, num meio em que o dinheiro não é um cunho legal, mais vale um soberano falso do que um farthing de mentira. Mas, tanto aos ricos como aos pobres, Gudrun devotava igual despreza. Ela mesma já começava a troçar dos seus devaneios. Seria tão fácil realizá-los! Mas compreendia muito bem quanto eram ridículos os seus entusiasmos. Que lhe importava que Gerald transformasse em indústria rica aquela velha empresa extenuada? Sim, que lhe importava isso? Uma coisa, ou outra, não passava de insignificância para ela. É claro que, exteriormente não se podia negar interesse, mas, na verdade, para ela, aquilo tudo era cômico! Para ela tudo se transformava em motivo de riso. Inclinou-se sobre Gerald e murmurou compassivamente:
"Ah, meu bem amado, não vale a pena você se cansar tanto. Você é uma pessoa extraordinária, não se gaste assim numa tarefa tão ingrata!"
Enternecia-se por ele, cheia de pena e de tristeza; mas, ao mesmo tempo, a ironia que a levava a fazer esse discurso mudo entristecia-lhe os cantos da boca. Que farsa tudo aquilo. Recordou-se de Parnell e de Katherine O'Shea. Parnell! No fim de contas quem poderia tomar a sério o nacionalismo irlandês? Quem realmente acreditaria na política da Irlanda? Quem realmente acreditaria na da Inglaterra? Quem é que a tomava a sério? Quem se importava que a esfrangalhada Constituição fosse remendada mais uma vez? Quem se ocuparia dos princípios nacionais mais do que do chapéu de coco inglês? Tudo não passava de chapéus velhos, velhos chapéus de coco!
"É assim mesmo, Gerald, meu herói! Em todo caso, evitaremos as náuseas que resultariam de se mexer uma vez mais no caldo corrompido! Seja belo, Gerald, e descanse. Há momentos perfeitos na vida. Acorde, Gerald, acorde, e convença-se de que esses momentos perfeitos ainda existem. Convença-me, pois necessito demais ser convencida!"
Ele abriu os olhos e fitou-a. Ela o saudou com um sorriso enigmático, de uma alegria pungente. O sorriso refletiu-se no rosto de Gerald, que o retribuiu, inconsciente do que fazia.
Gudrun sentiu-se satisfeita por ver que o sorriso que ele esboçara pairava assim nos lábios dele. Lembrou-se que era assim que faziam as criancinhas; sentiu-se radiante, extraordinariamente feliz.
- Conseguiu - disse ela.
_ O quê? - perguntou Gerald, sem entender o que ela queria dizer.
- Convencer-me.
Curvou-se sobre ele e beijou-o com paixão, de tal maneira que ele não sabia o que acontecera com ela. Não lhe perguntou de que é que a tinha convencido, embora fosse esse o seu desejo. Ficara contente pelo fato de ter sido beijado. Parecia que ele lhe tocara o coração, queria também que atingisse todo o ser, ansiava por isso mais do que tudo na vida.
Lá fora alguém cantava com voz viril descuidosa e bela:
Mach mir auf, mach auf du Stolze,
Mach mir ein Feuer von Holze.
Vom Regen bin ich nass,
Vom Regen bin ich nass...
Faz-me, ó vaidosa,uma fogueira /De aparas de madeira / Molhou-me a chuva / Molhou-me a chuva. - nota da tradutora).
Gudrun compreendeu que aquela canção ressoaria dentro dela eternamente, entoada por uma voz viril, descuidada e zombeteira. Marcara uma dos momentos supremos, de angústia e ao mesmo tempo de nervosa satisfação. Ficaria em sua memória, eternamente dentro dela.
O dia raiou belo e azulado. Do alto das montanhas soprava um arzinho leve, fino como uma espada, trazendo consigo poeiras de neve imponderável. Gerald saiu; tinha o rosto sereno e o olhar distraído, como um homem cuja alma está cheia de contentamento. Ele e Gudrun formavam nessa manhã uma unidade perfeita e definitiva, mas sem o saberem, sem se darem por tal. Conduziram um trenó, deixando Úrsula e Birkin segui-los mais atrás.
Gudrun ia vestida de vermelho e azul, vermelhos a blusa e o gorro azuis, a saia e as meias. Mostrava-se alegre sobre a neve, e Gerald, ao lado dela, de branco e cinza, dirigia o veículo. Foram-se afastando, diminuindo na distancia, enquanto subiam a colina íngreme.
Ela própria tinha a impressão de se fundir na brancura envolvente, tornando-se pura como o cristal, destituída de quaisquer preocupações. Quando chegou ao alto, exposta ao vento, olhou em volta e viu muitos picos atrás de outros picos, rocha e neve, tudo azul, elevando-se para o céu. Lembrava-lhe um jardim onde as pontas agudas fossem flores puríssimas que o coração colhesse uma aura. A sua consciência e a de Gerald pareciam reunidas.
Quando desceram, aos solavancos, pela escarpada ladeira, Gudrun agarrou-se muito a ele, experimentado a sensação de que seu corpo se aguçava como se corresse sobre uma pedra de afiar, tão ardente como uma chama. A neve saltava de cada lado do trenó, como faíscas projetadas por uma lamina que se amola; a alvura corria cada vez mais ligeira, a vertente precipitava-se contra ela e Gudrun liquefazia-se como um glóbulo em fusão, dançando, deslizando através da imensidade alvinitente. Ao atingirem o sopé da colina, fizeram um desvio, inclinando-se como se fossem cair, e diminuíram então a velocidade.
Descansaram alguns instantes. Quando, porém, quis levantar-se, Gudrun não conseguiu equilibrar-se. Soltou um grito estranho, voltou-se e agarrou-se a Gerald, escondendo a cabeça no peito dele, quase desmaiando. Apoderou-se do seu espírito um alheamento completo, e ficou, por momentos, abandonada nos braços do rapaz.
- Que é que você tem? - inquiriu este. - Foi muito violento para você?
Ela, porém, nada ouvia.
Quando voltou a si, endireitou o busto e olhou em volta, espantada. Tinha o rosto pálido e as pupilas dilatadas e brilhantes.
- O que foi?
Gudrun fitou-o com aqueles olhos cintilantes que pareciam transfigurados. Depois riu-se, e o riso denotava uma alegria terrível.
- Não! - exclamou, tranquilamente. - Foi o momento mais completo da minha vida.
Continuou a mirá-lo, rindo sempre de forma excessiva, como se estivesse possessa. Gerald sentiu que uma lamina afiada lhe trespassava o coração; mas não fez caso nem deu a entender.
Tornaram a subir a encosta, e lançaram-se outra vez lá de cima, através da chama branca, esplendidamente... Gudrun soltava risadas, com os cabelos enfeitados de flocos níveos. Gerald manobrava o trenó com precisão; sabia-se capaz de o dirigir sem errar. Admitia que aquele carrinho-voador representava a exteriorização de sua vontade; bastava-lhe oscilar um braço e o movimento do veículo confundia-se como dele próprio. Exploraram as outras vertentes, em busca de novos declives. Gerald tinha a impressão de que haviam de encontrar um melhor; e realmente acharam uma descida rápida e extensa que ia findar na base da colina, junto a um grupo de árvores. Era perigosa, disso não tinha dúvida. Mas o rapaz não ignorava que poderia comandar o trenó com um simples movimento dos dedos.
Os primeiros dias passaram-se em êxtase de ardor físico, deslizando ora em trenó ora em patins, movendo-se com intensas velocidades numa atmosfera de luz branca; e tudo aquilo parecia ultrapassar a própria vida e arrastar a alma para além, numa correria sobre-humana e abstrata entre a neve imperecível...
Os olhos de Gerald tornavam-se estranhos e duros: e, quando ele seguia sobre as quilhas, dir-se-ia antes uma aparição fatal e temerosa e não um homem; os músculos elásticos eram perfeitos, a trajetória quase aérea, o corpo projetava-se em pleno voo, sem espírito, sem alma, num arranque impetuoso e impecável.
Felizmente, certo dia, começou a cair neve e tiveram de ficar dentro de casa; aliás - como notou Birkin - acabariam por perder as faculdades racionais e ver-se-iam obrigados a exprimir-se por grito e guinchos como estranhos animais polares, de uma espécie desconhecida.
À tarde, Úrsula estava conversando com Loerke, ambos sentados na Reunionsaal. Este parecia sempre aborrecido. Mas agora recuperara a vivacidade e mostrava-se cheio do perverso humor que lhe era peculiar.
Úrsula, no entanto, achava que ele devia ter qualquer motivo de preocupação. O companheiro, o rapaz forte, louro e elegante, andava sério, também, indo e vindo como se o tivessem feito prisioneiro e isso o revoltasse.
Loerke mal havia falado a Gudrun. O amigo, pelo contrário, testemunhara-lhe sempre as maiores atenções e deferências. Gudrun, por seu lado, desejaria aproximar-se de Loerke, que era escultor; gostaria de saber o que pensava a respeito da sua arte. Além disso, o aspecto do homem interessava-a. Tinha um ar de abandono em toda a sua pessoa, e isso despertava a curiosidade, assim como aquele olhar de criatura já muito vivida; além disso, demonstrava tanto amor à solidão, que Gudrun adivinhava nele um artista. Falava, às vezes, como um papagaio, fabricava trocadilhos maliciosos, em geral muito inteligentes, embora nem sempre felizes. E Gudrun descortinava-lhe nos olhos castanhos de gnomo o reflexo melancólico da miséria inorgânica que jazia no fundo de todos aqueles disfarces.
Fisicamente ele parecia um garoto. Loerke nem procurava disfarçar essa impressão. Usava constantemente roupa simples de lã e calções. Tinha pernas magras, mas não se importava em ocultá-las, o que era para admirar em um alemão. Nunca procurava a simpatia de ninguém, por menor que fosse; entretinha-se consigo mesmo apesar da sua aparente jovialidade.
O companheiro, Leitner, era grande desportista, robusto de corpo e possuidor de grandes olhos azuis. Loerke corria de trenó ou de patins, mas não tirava disso a menor satisfação. As narinas finas e delgadas, como as de uma garota de rua, estremeciam-lhe de desdém quando ele via os exercícios de Leitner. Era evidente que aqueles dois homens que tinham viajado e vivido juntos, na mais estreita intimidade, haviam atingido a fase do ódio recíproco. Leitner detestava Loerke com uma raiva impotente e humilhada, e este tratava aquele com desprezo e sarcasmo. Não tardaria muito a haver uma separação.
Atualmente, já pouco privavam um com o outro. Leitner procurava outras pessoas e Loerke permanecia quase todo o tempo sozinho. Quando saía, colocava na cabeça um gorro à moda da Vestfália de veludo castanho, com abas que desciam pelo rosto e tapavam os ouvidos, dando-lhe o aspecto de um coelho orelhudo ou de um gnomo. Tinha o rosto moreno e corado, pele brilhante, seca, parecendo enrugar-se na mobilidade das expressões. Os olhos vivos, castanhos, redondos como os de um coelho, estranhos, desconfiados, denotando depravação consciente, ardiam com uma chama sobrenatural. Sempre que percebia o desejo de Gudrun em lhe falar, afastava-se sem nada dizer olhando para ela com as pupilas sombrias e verrumantes, sem nunca estabelecer as mais simples relações de cortesia. Fizeram até sentir que o francês de Gudrun, demasiado lento e o seu alemão arrastado eram, para ele desagradáveis. Quanto a ele mesmo, falava um inglês estropiado e não fazia o menor esforço para aperfeiçoá-lo. Contudo, entendia muita coisa do que ela dizia. Gundrun, ofendida, deixou-o de lado.
Naquela tarde, ela entrava na sala, vinda da neve, no momento em que Loerke e Úrsula conversavam. Os cabelos dele, finos e negros trouxeram à lembrança de Gudrun a ideia de um morcego, talvez por serem ralos no alto da cabeça redonda e irrequieta, e quase invisíveis nas têmporas. Estava sentado, com o dorso pendido para frente, como se abrigasse também a alma de um morcego. Gudrun percebeu que fazia qualquer confidência com vontade decerto incompleta e rancorosa. Ela se aproximou, sentando-se ao lado da irmã.
Loerke fitou-a e desviou os olhos, como se não a tivesse notado. Na realidade a moça interessava-o profundamente.
- É curioso, Prune, - disse Úrsula, voltando-se para a outra - Herr Loerke está armando um enorme friso destinado a uma fábrica de Colônia para uma parede exterior.
Gudrun observou-o, reparando-lhe nas mãos magras, nervosas, morenas, tenazes; assemelhavam-se a presas, a garras; não pareciam humanas.
- De que tipo? - perguntou ela.
- Aus was? - repetiu Úrsula.
- Granit - elucidou o artista...
Seguiu-se uma série de perguntas e respostas lacônicas, de profissional a profissional.
- Que espécie de relevo?
- Alto-relevo.
- De que altura?
Gudrun achava interessante aquele trabalho: enorme friso de granito para uma imensa fábrica em Colônia. Conseguiu dele alguns esclarecimentos quanto a pormenores. O desenho representava uma feira com camponeses e operários em perfeita orgia, bêbados e ridículos nos seus trajes modernos uns dormindo vertiginosamente, outros boquiabertos em frente as barracas, ou beijando-se e rolando abraçados no chão, ou oscilando dentro de barcos, ou fazendo pontaria com espingardas, tudo num movimento frenético e caótico.
Houve discussões de ordem técnica. Gudrun estava impressionada.
- É esplêndido trabalhar para uma fábrica dessas! - exclamou Úrsula. - O aspecto geral do edifício é bonito?
- É, sim - retorquiu ele. - O friso fará parte do conjunto arquitetônico. É qualquer coisa de colossal.
Depois Loerke endireitou-se na cadeira, encolheu os ombros e prosseguiu:
- A escultura e a arquitetura não devem separar-se. Já passou o tempo da escultura como adorno e da pintura como enfeite. Na realidade, a primeira faz parte sempre da concepção do arquiteto. E, desde que as igrejas são hoje simples museus, e a indústria vem ao nosso encontro, é claro que precisamos aplicar a nossa arte aos edifícios industriais, que são os nossos Partenões... Ecco!
Úrsula meditava.
- O que me parece - disse ela - é que não há necessidade de serem tão soturnas essas construções.
Loerke respondeu animadamente.
- É isso mesmo! Não só não é necessário que esses templos do trabalho sejam feios, como é urgente que a sua fealdade não arruíne o fim em vista. Os homens, daqui por diante, deixarão de se sujeitar a semelhantes horrores. Com a continuação do mau gosto, a vontade deles desapareceria, atingindo o próprio trabalho. Pensariam que este fosse tão feio como os prédios e máquinas, e o próprio esforço seriam englobados no mesmo esquema. E, contudo, as máquinas e o trabalho são belos, doidamente belos. Todavia, quando o operário não quiser trabalhar por achar que isso lhe repugna, teremos o fim da civilização. Preferirá morrer de fome. Usará o martelo para destruir tudo; sim, poderíamos chegar a esse ponto. E, afinal, chegou a oportunidade de construirmos belas fábricas, belas casas para as máquinas.
Gudrun só conseguiu compreender parte do discurso. Sentia-se envergonhada por não ter podido captar tudo.
- Que disse ele? - perguntou ela à irmã. Esta fez um resumo, gaguejando na tradução. Loerke observava o rosto de Gudrun, curioso de descobrir o efeito das suas doutrinas.
- E acredita - disse então a moça - que a arte possa ser útil à indústria?
- A arte interpreta hoje a indústria como outrora o fez quanto à religião - respondeu ele - E a sua feira é uma interpretação?
- Sim, senhora. Que faz o homem quando se encontra numa feira dessas? Ele se desforra do trabalho. Em lugar de obrigar as máquinas a trabalhar, são elas que o obrigam ao movimento, pelo hábito adquirido. Possui no próprio corpo o impulso mecânico...
- Neste caso não há senão trabalho mecânico, na vida do operário. - disse Gudrun.
- Trabalho e nada mais! Concordou ele, inclinando-se para frente. Os olhos eram dois pontos negros onde brilhavam luzes finas como agulhas. - Não é mais do que isso: sujeição à máquina, ou prazer do movimento que esta lhe transmitiu. Movimento, sempre movimento. Se já tivesse trabalhado para comer, saberia então qual é o deus que põe e dispõe...
Gudrun estremeceu, corado. Tinha, não sabia por que, vontade de chorar.
- Não, nunca trabalhei para matar a fome. Mas, de qualquer forma, sempre tenho trabalhado.
- Travaillé? Lavorato? E Che lavoro? Che lavoro? Quel travail est-ce que vous avez fait? - Trabalhado? Trabalhado? E que trabalho? Que trabalho? Que trabalho fez? - nota da tradutora).
Falava uma mistura de italiano e francês, empregando instintivamente uma língua estrangeira quando se dirigia a Gudrun. Acrescentou, ainda sarcástico:
- Mas não trabalhou como se trabalha por esse mundo a fora!
- Sim, trabalhei, e ainda o faço, mas para as minhas despesas pessoais.
Loerke ficou silencioso, olhou-a fixamente, e depois deixou o assunto. Aquela mulher lhe parecia insignificante
- E o senhor - interveio Úrsula - tem trabalhado tanto assim?
O outro mirou-a com desconfiança.
- Sim - replicou, com uma espécie de insolência. - Sei o que é ficar três dias deitado na cama por não ter nada o que comer.
Gudrun contemplava-o com os olhos sérios e muito abertos como quem extraísse a medula dos ossos juntamente com aquela confissão. A natureza de Loerke era refratária a tais depoimentos, mas o olhar grave e profundo de Gudrun parecia abrir-lhe válvulas nas veias, e ele, involuntariamente, continuava a falar:
- Meu pai não gostava de trabalhar. Já não tínhamos mãe. Vivíamos na Áustria polaca. E de quê? Com o que nos pudéssemos arranjar... Quase sempre no mesmo quarto com três outras famílias, cada uma no seu canto... Ah! Ah! Tinha eu dois irmãos e uma irmã... Às vezes uma mulher junto do meu pai. Sempre foi homem independente, à sua maneira... Não trabalhava para ninguém... Ficava revoltado com isso; não conseguia.
- E de que viviam? - perguntou Úrsula.
Loerke fitou-a, e depois, voltando-se subitamente para Gudrun.
- Está compreendendo?
- Mais ou menos.
Os olhos dos dois se encontraram por instantes. Ele desviou os seus. Não pretendia dizer mais nada.
- Como é que se tornou escultor? - volveu Úrsula.
- Como me tornei escultor? - Suspendeu a frase. - Dunque - Mudando de tom: - Cresci... Comecei a furtar coisas do mercado. Mais tarde comecei a trabalhar, marcava com o sinal da casa as peças que iam ao forno. Era numa fabrica de cerâmica. Comecei então a modelar com o barro. Até que por fim achei que era demais. Fiquei em casa e não me apresentei na oficina. Fui a pé no caminho de Munique... depois para a Itália... mendigando, mendigando sempre.
"Os italianos foram muito bons para mim, bons e prestativos. De Bozen ate Roma encontrava quase sempre lugar onde passai a noite e comer. Camas de palha, em casa de camponeses... Estimo os italianos de todo o meu coração. Dunque, adesso... agora, ganho mil libras por ano, às vezes duas mil.
Pousou o olhar no chão e sua voz foi-se extinguindo no silêncio.
Gudrun examinava sua pele fina, delgada, brilhante, esticada na fronte e queimada de sol; admirava-lhe também o cabelo ralo e o bigode rude, espesso, semelhante a uma escova, cortado rente por cima da boca mal definida, de grande mobilidade.
- Que idade tem? - perguntou a moça.
Ele mirou-a, surpreendido.
_ Wie alt - repetiu. Ficou hesitante. Era evidente que preferiria ocultar essa circunstância biográfica.
- E a senhora? - perguntou.
- Tenho vinte e seis anos.
- Vinte e seis! - Contemplou-a nos olhos e calou-se. Depois disse:
- Und Ihr Herr Gemahl, wie alt is er? - E o seu marido, que idade tem? - nota da tradutora).
- Quem? - inquiriu Gudrun.
- Seu marido - explicou Úrsula, em tom irônico.
- É coisa que não tenho - murmurou a moça, em inglês. Todavia, respondeu em alemão:
- Trinta e um anos.
Mas Loerke observava-a atentamente com os seus olhinhos redondos misteriosos, desconfiados. Notava-lhe qualquer coisa de semelhante a si mesmo. Era, de fato, um daqueles indivíduos sem alma que encontra o seu companheiro numa criatura humana. Essa descoberta, porém, fazia-o sofrer. Gudrun, por sua vez, sentia-se fascinada como se um ser estranho - coelho, morcego, lobo marinho tivesse começado a falar com ela; mas, ao mesmo tempo percebia que o homem estava inconsciente daquilo do tremendo poder de compreensão que seria capaz de ter sobre ela, de lhe surpreender os próprios pensamentos. Não conhecia, realmente a força de que dispunha, nem adivinhava quanto com aqueles olhos redondos, perscrutadores e enigmáticos, poderia ler o que se passava dentro dela, descobrir-lhe os segredos, conhecer-lhe, enfim, a alma. Desejava apenas que aquela moça fosse tão somente o que era, e estava persuadido de que tinha disso uma ideia exata, derivada, de forma sinistra, do seu subconsciente e desprovida de ilusões ou de esperanças.
Quanto a Gudrun, parecia ver em Loerke a própria nudez da vida. Todos os outros seres possuíam as suas ilusões ilusão do passado futuro. Ele, porém, com perfeito estoicismo, vivia sem futuro nem passado, isento da menor ilusão. No fim de contas não se enganava a respeito de si mesmo; em ultima análise não se importava com coisa alguma, nada o incomodava nem fazia a menor tentativa para obter solidariedade. Existia como pura vontade sem compromissos, estóica e momentânea. De seu ele só tinha o trabalho.
Era também curioso notar como seduziu Gudrun o fato de conhecer a miséria e degradação dos seus próprios anos de existência. Nada mais insípido para ela do que a ideia do homem bem nascido que segue os trâmites normais através do ginásio e da universidade. Este filho do nada despertara-lhe violenta simpatia; achava o feito da verdadeira matéria subterrânea da vida. Ninguém como ele mergulhara tão fundo.
Úrsula também se sentia atraída. As duas irmãs consagravam-lhe uma espécie de homenagem. Mas, para a primeira havia momentos em que o considerava inferior, vulgar e falso.
Tanto Birkin como Gerald antipatizavam com o escultor; um exasperava se o outro fingia desdenhosamente nem sequer o ver.
- Que acham as mulheres de tão atraente naquele fedelho? - perguntava Gerald.
- Só Deus o sabe - respondeu Birkin. - A menos que haja algum feitiço com que ele as atraia e domine.
Gerald arregalou os olhos, embasbacado.
- Um feitiço com que ele as atraia? - repetiu.
- Decerto - volveu Birkin. - É uma criatura endemoninhada que vive como um criminoso. As mulheres precipitam-se para ele como uma corrente de ar atraída pelo vácuo.
- É estranho que elas façam isso.
_ A verdade é que as enlouquece. Exerce sobre as mulheres a fascinação da piedade e da repugnância, esse monstrinho repelente.
Gerald ficou silencioso, a meditar.
- Que procuram as mulheres, afinal de contas? - indagou ele.
Birkin encolheu os ombros.
- Só Deus o sabe! Cobrirem-se de lama, ao que me parece. É como se sentissem prazer em atravessar um cano de esgoto só ficando satisfeitas ao chegarem ao fim.
Gerald contemplou a neve fina e brumosa que descia la fora. Naquele dia tudo estava escuro, terrivelmente enevoado.
- E o que é que encontram no fim? - inquiriu ele.
Birkin abanou a cabeça.
- Nunca cheguei lá, de maneira que não sei. Pergunte a Loerke que deve saber mais sobre isso do que nos todos.
- Mas a que é que você se refere? - perguntou Gerald, com certa irritação.
Birkin suspirou. Enrugou a testa, aborrecido.
- No ódio da sociedade explicou. - Vive como uma ratazana num rio de corrupção, precisamente no lugar em que este transborda para os poços sem fundo. Tem ido mais longe do que nós. Detesta o ideal de forma intensa. Odeia-o profundamente, embora o ideal ainda o impressione. Suspeito que é judeu, pelo menos em parte.
-É provável! - concordou Gerald.
- Ele é um cancro de negação, que rói raízes da vida.
- Mas por que se ocupam tanto dele?
_ Porque detestam também o ideal, no fundo da alma. Gostam de explorar os esgotos, e ele é a ratazana mágica; vai-lhe mostrando o caminho.
Gerald olhou outra vez para a bruma, lá fora, produzida pela neve.
- Não percebo muito bem a sua linguagem, Rupert. - declarou com voz triste e resignada. - Quanto a elas, acho que possuem um gosto muito esquisito.
- Acho que o nosso não é melhor - atalhou Birkin - a diferença está em que nós pretendemos mergulhar, de vez numa espécie de arrebatamento, e ele deixa-se ir ao sabor da corrente, ou melhor, das imundícies.
Entretanto Úrsula e Gudrun esperavam outra oportunidade de conversar com Loerke. Não valia a pena fazê-lo em presença dos homens. Não seriam capazes de entreter um relacionamento com o escultor misantropo. Era mister que se encontrassem a sós com ele. E o artista preferia que Úrsula estivesse presente para servir de elemento de ligação com Gudrun.
_ Não faz senão escultura arquitetônica? - perguntou-me.
- Agora não. Mas tenho feito de tudo, menos retratos. Nunca os fiz; muitas outras coisas, porém...
- De que espécie?
Calou-se alguns instantes, depois levantou-se e saiu da sala. Voltou pouco depois com um papel enrolado, que entregou a Gudrun. Esta abriu-o e viu que era a reprodução fotográfica de uma estatueta, assinada por F. Loerke.
- Aqui tem um trabalho do início de minha carreira; não é nada arquitetônico. Antes, do gênero popular.
A estatueta representava uma moça nua, pequenina, graciosa, montada num enorme cavalo em pelo. A jovem era delicada, como uma flor em botão. Estava de lado sobre o dorso do animal com o rosto escondido nas mãos, como se sentisse vergonha e repugnância. O jeito do corpo denunciava abandono. Os cabelos curtos - que deviam ser louros - caiam-lhe no rosto e ocultavam-lhe parte das mãos.
Os braços e pernas eram finos e juvenis; estas, ainda mal formada, indicavam o começo de perigosa adolescência e tombavam, infantilmente, no flanco do cavalo majestoso. Fazia pena vê-la assim, com os pés por cima do outro, como se os quisesse ocultar. E ali estava, nua, em cima do corpo nu do animal.
O cavalo mantinha-se na posição largada, em cujo impulso todo ele se estendia. Era maciço e magnífico, cheio de força concentrada. Tinha o pescoço bem feito e terrível como uma foice, e rígidos e enérgicos os músculos.
- Que tamanho tem? - A voz parecia acusar indiferença, tanto ela persistia em afetar um tom desprendido e natural.
- Que tamanho? - repetiu o artista, reclamando-a com a vista. - Sem o pedestal, tem este...
Gudrun examinou Loerke com atenção. Os gestos rápidos e bruscos daquele homem denotavam certo desdém e calculada frieza. Ao mesmo tempo ele a observava também, fixamente. Não perdera o domínio que costumava exercer.
- De que é feita a estatueta? - inquiriu ela, erguendo a cabeça e encarando-o fria e calculadamente.
- Bronze - elucidou. - Bronze patinado.
- Bronze patinado repetiu - Gudrun, aceitando o desafio, muito calma. Estava imaginando os membros delicados, suaves, infantis da moça tornados frios e lisos no bronze verde.
- É muito belo - murmurou, fitando-o, numa homenagem cheia de simplicidade.
Loerke fechou os olhos, e depois abriu-os para os dirigir em outro sentido, triunfante.
- Por que fez o cavalo tão rígido? - interveio Úrsula. Tem a rigidez de um bloco.
_ Rígido? - tornou ele, pondo-se logo em guarda.
- Sim. Veja como mantém a rudeza e a brutalidade do bloco. Os cavalos são animais sensíveis, nervosos. Realmente.
Loerke encolheu os ombros e deixou cair os braços num gesto de indiferença, como que para dar a entender que ela não passava de amadora, ignorante e impertinente.
- Wissen Sie - disse em tom sossegado de condescendência insolente - este cavalo é uma figuração, uma parte de um todo. Está integrado na obra de arte; não se trata do retrato deste ou daquele cavalo a quem se dá um torrão de açúcar, percebe? É o pormenor de um conjunto. Fora deste trabalho, não tem nenhuma significação.
Úrsula, furiosa por ter sido tratada dessa maneira ofensiva, de haut em bas, com que ele descera das alturas da sua arte esotérica para o plano rasteiro do amadorismo em que ela jazia, encheu-se de rubor e levantou a cabeça.
- Em todo o caso - declarou - não deixa de ser um cavalo. O outro tornou a encolher os ombros.
- Como quiser; uma vaca, certamente, é que não é Gudrun, nesta altura, intrometeu-se na contenda, excitada e muito vermelha. Queria pôr termo àquela louca insistência da irmã em dar a sua opinião.
- Que quer dizer com essa observação de que isto não deixa de ser um cavalo? - exclamou, voltada para Úrsula. - Que é que você entende por um cavalo? Quer referir-se a ideia que tem na cabeça e que gostaria de ver representada? Mas pode haver outra ideia, inteiramente diversa. Você pode chamá-lo de cavalo ou do que quiser. Estamos também no direito de dizer que o seu cavalo não é igualmente um cavalo, que é um produto da sua imaginação.
Úrsula hesitou, desconcertada. Depois encontrou as palavras necessárias para responder:
- Mas por que teve ele a ideia de fazer assim o cavalo. É claro que compreendo a intenção: trata-se do próprio retrato do autor, assim interpretado...
Loerke resfolegou de cólera.
- O meu próprio retrato? - exclamou, com um riso escarninho. - Wissen Sie, gnädige Frau - Saiba, minha senhora... - nota da tradutora), que isto é Kunstwerk, ou seja uma obra de arte. Apenas obra de arte, sem ser retrato de ninguém, absolutamente de ninguém. Não tem nada que ver com o que quer que seja, não tem relação com as coisas triviais nem semelhantes, nem parentesco de qualquer ordem. São planos da existência diferentes, muito distintos; e traduzir um na linguagem do outro é rematada loucura, é querer confundir as coisas, lançar em tudo a perturbação. Ouça: não deve misturar o mundo cotidiano e banal com o mundo da arte absoluta. Não tem o direito de fazer isso.
- É claro - acrescentou Gudrun, numa espécie de recapitulação - As duas coisas permanecem totalmente diferenciadas, sem terem nada uma com a outra. Eu e a minha arte nada temos em comum. Eu estou num pólo e ela está no outro.
Tinha as faces coradas pelo ardor da discussão. Loerke estava sentado, com a cabeça pendida, constrangido olhou de repente para a moça, de um modo quase receoso, e murmurou.
- Ja, so ist, so ist es - Sim, é isso, é isso. - nota da tradutora).
Depois daquele sermão, Úrsula recolhera-se ao mutismo, aborrecidíssima. O seu desejo era arrasar a ambos. Mas, pouco depois, replicou, pausadamente:
- Não vejo o menor valor no que você acaba de dizer. O cavalo é mesmo um retrato do íntimo dele, na sua animalidade e a pequena deve ser qualquer moça que ele tivesse amado e torturado, atirando-a fora quando se cansou dela o homem fitou-a e sorriu com desprezo. Não se dignou dar-lhe resposta.
Gudrun também nada disse; sua indignação tornara-se desdenhosa. Úrsula era um profano insuportável, atrevendo-se a calcar terreno que os próprios anjos não pisavam. Mas não havia remédio senão tolerar os imbecis, embora não fosse agradável.
A outra, porém, insistia:
- Quanto a esse mundo de arte e ao mundo da realidade, vocês fazem essa separação pela impossibilidade que tem de saber ao certo quem são. Nem podem conceber como escondem a dureza, a brutalidade, a rigidez; e então dizem: é o mundo da arte! Ora, o mundo da arte é apenas o espelho do outro, e vocês estão muito longe de se verem nele.
Mostrava-se destemida. Empalidecera e toda ela tremia. Gudrun e Loerke continuavam imóveis aborrecidos com o incidente. Gerald que chegara no começo da discussão, ficou também a olhar para ela, reprovador e hostil. Achava aquela atitude pouco digna tinha sido uma nota de mau gosto no esoterismo que confere tanta distinção às criaturas humanas. Tomou os partidos dos outros dois, e todos três principiaram a desejar que ela se fosse embora. Úrsula, porém, conservava-se onde estava, sem nada dizer. Chorava intimamente, tinha as mãos trêmulas e amarrotava o lenço que tinha nas mãos.
Os outros mantinham um silêncio mortal, a espera que se desfizesse a atmosfera desagradável produzida pela intervenção de Úrsula. Por fim Gudrun perguntou, numa voz que afetava indiferença e naturalidade, como se resumisse uma conversa sem importância:
- A moça era modelo?
- Nein, sie war kein Modell. Sie war eine kleine Malscnulenn - Não, não era modelo. Era uma pequena que estudava pintura - nota da tradutora).
- Uma aluna de Belas-Artes! - exclamou Gudrun.
A situação se revelava agora claramente. Imaginava a estudante com o seu corpo ainda mal formado, ignorante e descuidada da vida, com os cabelos louros cortados, caindo-lhe pelo rosto ate ao pescoço e dobrando-se levemente na nuca; via também Loerke, escultor de renome, de quem a mocinha se recusava fazer-se amante, por ser bem educada e de boa família... Como conhecia bem tudo aquilo! Dresden, Paris, Londres, que diferença havia entre essas cidades? Todas iguais.
- Onde está ela agora? - indagou Úrsula.
Loerke fez um gesto de quem se desinteressa, querendo significar a sua máxima indiferença.
- Isso foi há seis anos - explicou. - Deverá ter uns vinte e três anos agora, pouco mais.
Gerald tomara a reprodução e a examinava. O trabalho do escultor o interessava também. E leu no pedestal que a obra se intitulava "Lady Godiva".
- Mas isto não é Lady Godiva - disse ele, sorrindo. - Era mulher de meia-idade, casada com um conde qualquer e tinha os cabelos tão compridos que até se cobriu com eles.
- À moda de Maud Allan - atalhou Gudrun, fazendo um trejeito cômico.
- Por que Maud Allan? - volveu Gerald. - Não seria como eu disse? Sempre pensei que a lenda fosse essa.
- Sim, querido Gerald, estou convencida de que você decorou a lenda exatamente como é.
Riu-se com uma expressão ao mesmo tempo carinhosa e vagamente divertida.
- É claro, prefiro admirar a mulher do que os cabelos... - replicou Gerald, bem disposto.
- Acredito - disse Gudrun, ainda irônica.
Úrsula levantou-se e desapareceu, deixando junto os três. Gudrun recebeu de novo a fotografia das mãos de Gerald e ficou a contemplá-la cuidadosamente.
- Já se sabe - disse ela, começando agora a brincar com o escultor - que você compreendeu bem a sua Malschülerin...
O outro deu de ombros e ergueu as sobrancelhas, condescendente.
- A pequena? - perguntou Gerald, apontando para a reprodução.
Gudrun, sentada, descansara o papel sobre os joelhos. Encontrou o olhar de Gerald e fitou-o com tal intensidade que ele se sentiu encantado.
- Você não acha que ele a compreendeu bem? - interrogou com ironia e bom humor. - Não reparou nos pés? São adoráveis, lindos, delicados! Maravilhosos!
Lentamente, dirigiu o olhar para Loerke, de maneira inflamada, escaldante. A alma do artista recebeu reconhecida aquela prova de admiração. Dir-se-ia que havia tomado uma atitude de superioridade e adquirido maior importância.
Gerald examinou os pés da menina: estavam voltados para o mesmo lado, cobrindo-se quase um ao outro, como que envergonhados e cheios de medo. Ficou assim muito tempo a contemplá-los; depois, sem grande pressa, pôs de lado a fotografia. Sentia-se acabrunhado.
- Como se chamava ela? - perguntou Gudrun ao escultor.
- Annette von Weck - respondeu o artista, como quem se recorda. - Ja, sie war hübsch. Era bonita, mas enfadonha. Insuportável! Incapaz de ficar um minuto sossegada. Tinha vontade de lhe dar bofetadas e ela, chorando, servia então de modelo, durante cinco minutos.
Loerke pensava apenas no seu trabalho; era a única coisa que lhe interessava.
- O senhor chegava a bater nela?
- Sim, cheguei, - respondeu muito naturalmente - e com força. Era preciso. De outra forma não se conseguia trabalhar.
Gudrun examinou-o por uns momentos com os seus olhos grandes e sombrios. Dir-se-ia penetrar-lhe até ao fundo da alma. Depois, silenciosamente, fitou o chão.
- Como é que lhe ocorreu uma Godiva tão menina? - disse Gerald. - Tão miúda, e nesse cavalo... muito criança para montar nele.
Os músculos do rosto de Loerke contraíram-se involuntariamente.
- Não gosto delas nem maiores nem mais velhas. São belas aos dezesseis, aos dezessete, aos dezoito anos. Depois disso não me servem mais.
Houve um instante de silêncio.
- Por que não? - indagou Gerald.
Loerke encolheu os ombros.
- Não as acho interessantes, nem belas... Não convém ao meu trabalho...
- Quer dizer que, depois dos vinte anos, a mulher deixa de ser bonita? - insistiu Gerald.
- Para mim, deixa. Antes dos vinte, é pequena fresca, delicada, leve. Depois disso, torne-se no que se tornar, já não me diz nada. A Vênus de Milo era uma matrona. São todas assim.
- Então, depois dessa idade, as mulheres perdem o valor para o senhor?
- Não me servem, não prestam para a minha arte - repetiu o escultor, impaciente. - Não as considero bonitas.
- Você é um epicurista - sentenciou Gerald, com um risinho sarcástico.
- E a respeito dos homens? - perguntou, de súbito, Gudrun.
- Esses interessam em qualquer idade - respondeu Loerke. - O homem deve ser vigoroso, dominador, velho ou moço, não importa... uma vez que tenha estatura, um tanto de maciço e uma figura estúpida.
Úrsula tinha saído e mergulhara num ambiente de neve, recentemente caída. Mas a brancura cintilante parecia magoá-la ate lhe causar dores; sentia o frio a estrangular-lhe a alma, lentamente. A cabeça estava vazia e aturdida.
De repente, experimentou um desejo feroz de se ir embora. A ideia de que podia partir para outro lugar ocorreu-lhe como que por milagre. Achava-se condenada naquele mundo de neve perpétua; era como se não houvesse salvação!
Agora, súbita e miraculosamente, lembrou-se que, para além, numa altitude menor, jazia a terra escura e fértil; que, para o sul, havia terrenos sombreados de laranjeiras e ciprestes, e oliveiras cinzentas, e robles erguidos para o céu azul com a sua copa frondosa. Milagre dos milagres! Esta paisagem de montanhas geladas e silenciosas não se estendia por todo o planeta. Podia-se abandoná-la. Podia-se fugir dali!
Se o milagre se realizasse imediatamente! Bem gostaria ela de acabar com aquele inferno de neve, com aquelas terríveis montanhas imóveis e glaciais. Ansiava por tornar a ver a terra sombria, respirar o aroma do humo fecundante, ver a vegetação perseverante de outros climas de inverno, sentir os efeitos do sol nos rebentos das plantas.
Voltou assim para a hospedaria, animada da melhor esperança.
Birkin lia, já deitado.
- Rupert, - gritou ela, precipitadamente, para o marido - quero ir-me embora.
O outro volveu-lhe um olhar vagaroso.
- Você quer? - perguntou em voz calma.
Úrsula sentou-se ao lado dele e passou-lhe os braços em volta do pescoço. Admirava-se de que o marido não demonstrasse maior surpresa.
- E você não quer? - perguntou inquieta.
- Não tinha pensado nisso. Mas é claro que sim.
A mulher pôs-se de pé, num movimento brusco.
- Detesto - declarou ela - detesto a neve, que não e natural como não é natural a luz que nos cerca, nem este sortilégio fantástico. Tudo quanto sentimos aqui é contra a natureza.
Birkin manteve-se calmo, pensativo e sorridente.
- Pois bem - concordou ele - podemos partir amanhã mesmo. Vamos a Verona, seremos Romeu e Julieta e sentar-nos-emos no anfiteatro. Sim?
Ela ocultou o rosto no ombro dele, intimidada, perplexa. Rupert era tão condescendente!
_ Sim - repetiu suavemente, como que aliviada. Parecia-lhe que a alma se enchia de júbilo, vendo-o assim tão descuidado. - Que bom sermos Romeu e Julieta! Meu amor! - acrescentou.
- Mas - replicou o marido - sopra dos Alpes, sobre Verona, um frio tremendo. Continuaremos com o cheiro da neve no nariz.
Úrsula sentou-se e fitou-o.
- Sente-se contente em partir? - perguntou-lhe apreensiva.
Os olhos de Birkin mantinham-se risonhos e penetráveis. Úrsula descansou a face no pescoço dele e abraçou-o implorando:
- Não se ria de mim! Não se ria de mim!
- Por quê? Que sucedeu? - Pôs-lhe os braços em torno da cintura e continuou a rir.
- Porque não quero que trocem de mim - murmurou ela.
O marido soltou uma gargalhada e beijou-lhe o cabelo fino e sedoso, perfumado.
- Gosta de mim? - indagou a mulher com gravidade, carregando o semblante.
- Gosto - respondeu Birkin, sempre jovialmente.
Ela, de repente, estendeu-lhe a boca, para que ele a beijasse. Tinha os lábios rijos, carnudos e trêmulos. Os do marido eram brandos, delicados. Demorou-se este uns momentos no beijo que lhe deu; e uma sombra de tristeza perpassou-lhe pelo espírito.
- A sua boca é tão rija - disse, como se a repreendesse levemente.
- E a sua é doce e submissa - tornou ela, contente.
- Mas por que é que você aperta tanto os lábios, Úrsula?
- Não se incomode - respondeu com vivacidade. É o meu jeito.
Sabia que Rupert a amava. Tinha a certeza disso. Entretanto, não gostava que ele a dominasse, nem tolerava que lhe fizesse muitas perguntas. Preferia abandonar-se a delícia de ser amada, mas desconfiava que o marido, apesar da alegria que lhe vinha do fato de Úrsula abandonar-se a ele, guardava no intimo uma vaga melancolia. Consentindo em ser sua mulher não podia, no entanto ser a própria, não se atrevia a revelar-se-lhe em toda a sua nudez, em por de parte a natural reserva nem em depositar nele absoluta confiança. Entregava-se-lhe, era certo, apropriava-se de Rupert e em Rupert encontrava inteira satisfação; naquele homem se achava a verdadeira felicidade. E contudo, não se sentiam inteiramente ligados. Mas estava feliz, gloriosa, independente, cheia de esperança e de liberdade. Rupert, por enquanto, mostrava-se tranquilo, meigo e paciente.
Fizeram os preparativos para irem embora no outro dia. Foram primeiro ao quarto de Gudrun, onde esta e Gerald acabavam de se vestir para descer.
_ Prune - disse Úrsula, é possível que partamos amanhã. Já não posso tolerar a neve. Estraga-me a pele e o coração.
- Sente-se mal? - perguntou a irmã, surpreendida. - Acredito que prejudique a pele; é terrível. Mas, quanto ao coração, suponho que seja admirável.
- Para mim, não. Pelo contrário, ele ofende.
- Engraçado! - exclamou Gudrun.
Houve um pequeno silêncio. Úrsula e Birkin perceberam que os outros ficavam aliviados com a ideia de partida deles.
_ Vão para o sul? - perguntou Gerald, cuja voz denotava certo constrangimento.
- Vamos - asseverou Birkin, desviando a conversa.
Havia ultimamente, entre os dois homens, uma estranha e inexplicável hostilidade. Birkin mostrava-se, de modo geral, sombrio e indiferente; era paciente, mas distraído, desde que chegara ao estrangeiro, ao passo que Gerald, pelo contrário, se sentia combativo e cheio de vida naquela atmosfera de neve. Os dois contrariavam-se em tudo.
Gerald e Gudrun foram muito amáveis para os que partiam, ocupando-se de quanto lhes restava, solicitamente, como se se tratasse de duas crianças. Gudrun apareceu no quarto da irmã; levou-lhe três pares de meias de cor, coisa em que era especialista, e colocou-os em cima da cama. Eram meias de seda grossa, compradas em Paris: vermelhas, azuis e cinzentas. Estas últimas, muito pesadas, não tinham costura e eram de malha. Úrsula ficou encantada. Compreendeu quanta ternura havia na irmã para que se separasse assim de tamanho tesouro.
- Não posso aceitá-las, Prune. Não posso privar você dessas maravilhas.
- Não são maravilhas! - exclamou Gudrun, lançando um olhar saudoso à sua oferta. - Bobagens!
- Mas você devia guardá-las - tornou Úrsula.
- Não preciso delas. Tenho mais três pares. Gostaria que você as aceitasse...
E, com mãos nervosas, excitada, depôs a dádiva debaixo do travesseiro da irmã.
- Um dos grandes prazeres da vida é possuir meias bonitas - disse Úrsula.
- É verdade - confirmou a outra. - Um dos maiores prazeres.
Sentou-se na poltrona. Era evidente que tinha vindo conversar antes da partida. Úrsula, sem saber o que a irmã desejava, conservou-se silenciosa.
- Você tem a impressão - principiou Gudrun, pouco convencida de suas palavras - tem a impressão de que se vai para sempre, para não mais voltar?
- Ah, não! Voltaremos - respondeu a irmã. - Mais cedo ou mais tarde, voltaremos.
- Sim, compreendo. Mas, em espírito, para assim me exprimir, vocês afastam-se de nós, não é verdade?
Úrsula sentiu um arrepio.
- Não faço nenhuma ideia do que possa acontecer. Sei apenas que partimos para qualquer lugar.
Gudrun ouviu a explicação e perguntou:
- Está contente?
Úrsula refletiu durante alguns momentos.
- Creio que sim, que estou muito contente.
Mais do que pelo tom incerto das palavras, Gudrun adivinhou a verdade no brilho inconsciente que a face da irmã irradiava.
- E não acha que pôde sentir necessidade de regressar aos velhos conhecimentos deste mundo, ao pai, ao resto da família e a tudo o mais que isso representa? A Inglaterra, a vida do pensamento? Não acredita que sejam precisas todas estas coisas para que o seu ambiente tenha realidade?
Úrsula estava silenciosa, procurando compenetrar-se daquelas razões.
- Penso - disse ela por fim, mas involuntariamente - Rupert tem razão: viver num espaço novo e diferente, desapegar-nos do antigo...
Gudrun observou a irmã, com os olhos fixos e o rosto impassível.
- Que se deseje viver num meio diverso, concordo inteiramente. Julgo, porém, que um mundo novo é sempre o desenvolvimento do velho mundo, e que isolar-se aí com outra pessoa não é encontrar aquele, mas sim criar mais uma ilusão.
Úrsula olhou para fora, através da janela. Começava-lhe um combate na alma e isso assustava-a. Sempre tivera medo das palavras, pois sabia que a simples força que emitem podia força-la a crer naquilo de que ela descria.
- Talvez - concordou, embora não muito persuadida, antes desconfiada de si própria. - Mas - acrescentou - penso que não se encontra nada de novo enquanto estamos apegados ao passado. Compreende o que quero dizer? Combater o passado e ainda pertencer-lhe de qualquer maneira. Bem sei que a tentação maior é a de ficar no mundo e lutar por algum tempo. Mas que vantagem haveria nisso?
Gudrun pensou em seu próprio caso.
_ Sim - disse ela - em certo sentido fazemos parte do aglomerado, uma vez que nele vivemos. Mas não será ilusão supor que podemos fugir? Aliás, uma casa de campo nos Abruzzos ou em outro canto qualquer não constitui um mundo novo. Não, Úrsula: a única coisa que se tem de fazer para nos desenganarmos da terra é visitá-la por inteiro.
A outra parecia olhar de muito longe. Assustava-se tanto com discussões!
- Mas pode haver outro processo, não acha? - disse ela. Podemos visitar o mundo através da nossa alma, muito tempo antes de o conhecer na realidade. E, uma vez que conheçamos bem a nossa alma, tudo se torna diferente.
- Vê-lo através do nosso espírito? - perguntou Gudrun. - Se você quer dizer que se pode adivinhar o que vai suceder não concordo. Não, não é possível. E em qualquer caso não e fácil voar assim para outro planeta pela razão de que já se sabe o que neste vai acontecer.
Úrsula pôs-se de pé repentinamente.
- É fácil, sim senhora, é fácil. Neste mundo nada temos a esperar. Possuímos uma espécie de outro eu que pertence a um planeta diferente. É forçoso fugirmos deste.
Gudrun meditou alguns segundos. Seu rosto mostrou uma expressão de complacência, quase de desprezo.
- E o que acontecerá quando você se encontrar no espaço? _ perguntou à irmã, em tom irônico. - Afinal de contas, as grandes ideias são as mesmas em toda parte. Não conseguira por de lado o fato por exemplo, de que o amor é o fim supremo, tanto na terra como fora dela.
- Não - replicou Úrsula - não é. O amor é demasiado humano e mesquinho. Acredito em qualquer coisa extra-humana, da qual o amor é apenas uma parcela. Creio que a nossa missão nos virá do desconhecido e dirá respeito a algo infinitamente superior ao amor. Não é unicamente humano.
Gudrun, com seus olhos firmes e equilibrados, contemplava a irmã. Admirava-a e desdenhava-a ao mesmo tempo. Depois, sem transição, desviou a vista e declarou friamente, em tom desagradável:
- Pois não conheço nada além do amor.
Foi então que um pensamento atravessou, como um relâmpago, o espírito de Úrsula: "Como você não amou ainda, não é capaz de ultrapassar o amor".
Gudrun levantou-se, aproximando-se da irmã, e passou-lhe o braço em torno do pescoço.
- Vá, minha querida, vá em busca do seu mundo novo - disse ela com voz em que se percebia benevolência fingida. - Em última análise, a mais feliz de todas as viagens deve ser em busca das Ilhas Encantadas de que fala Rupert.
Conservou o braço em volta do pescoço da irmã, e, com os dedos, acariciou-lhe a face durante algum tempo. Úrsula estava extremamente contrafeita. O ar protetor de Gudrun parecia-lhe um insulto. E esta, sentindo a resistência da irmã, afastou-se desajeitada. Levantou o travesseiro e descobriu as meias que lá estavam.
- Ah! Ah! - tentou rir, sem vontade. - De que é que estamos falando? Novos mundos, velhos mundos...
E trataram de passar a outros assuntos mais corriqueiros.
Gerald e Birkin tinham partido à frente; esperariam pelo trenó que devia conduzir os viajantes, para que Rupert tomasse o seu lugar no veículo.
- Quanto tempo ainda se demoram aqui? - perguntou Birkin, examinando o rosto corado, quase inexpressivo, do outro.
- Não posso dizer. Até ficarmos fartos.
- Não receia que a neve se derreta antes?
Gerald riu-se.
- Chega a derreter? - perguntou.
- Tudo corre bem entre vocês? - volveu Birkin.
Gerald contraiu um pouco o olhar.
- Se corre bem? Nunca percebi o que significa essa frase. Correr bem e correr mal são muitas vezes sinônimos.
- Sim, também acho. E quando regressam, afinal?
- Não sei. Talvez fiquemos aqui para sempre. Não olho para trás nem para frente de mim - respondeu Gerald.
- Nem para o que não existe... - atalhou Birkin. Gerald investigou ao longe com as pupilas diminuídas, abstrato, como um falcão.
- Em tudo isto há qualquer coisa definitiva. Gudrun, para mim, é a meta que eu queria alcançar Não sei... Mas vejo-a tão branca, pele tão sedosa, braços indolentes e meigos... Ela incendeia, de certo modo, o meu espírito... - Deu alguns passos, olhando sempre em frente, fixamente; dir-se-ia haver afivelado máscara semelhante à do ritual religioso dos povos bárbaros - Destrói a visão da alma, deixa-nos como cegos... E procurando ser cegos e amaldiçoados, não queremos mais outra.
Falava como se estivesse em transe, inconsciente e pálido. E, de súbito, em voz de melopeia, firmando-se em Birkin de forma rancorosa e assustada, foi dizendo:
- Sabe o que é sofrer quando se esta com uma mulher? - Ei-la tão bela, perfeita, bondosa; rasga-nos o coração como se fosse de seda, e a cada rasgão dói e queima... Ah, meu amigo esta perfeição... quando nos destruímos a nos mesmos! Além disso - Parou, ereto sobre a neve, e abriu as mãos, de punhos cerrados - Não é nada... O cérebro pode reduzir-se a pó, e... - Mirou em volta, para o nada, com um esquisito ar de histrião - Tudo se arrasa. Compreende o que digo. É uma grande aventura, talvez a derradeira... e então... encolhemo-nos como se recebêssemos uma descarga elétrica. - Recomeçou a andar em silêncio. Tinha o aspecto de quem dizia coisas absurdas, mas, ao mesmo tempo, era sincero, como se se visse obrigado à fazer tais confidências. - Decerto - prosseguiu - não procurei evitar que isso acontecesse. É uma aventura completa! E que mulher maravilhosa! Mas, as vezes, detesto-a... É curioso...
Birkin olhou para o outro, que parecia estranho, distante. Era como se Gerald estivesse confuso em face das suas próprias.
- Mas agora, chega, não? - acudiu Birkin. - A experiência foi suficiente. Para que prosseguir além?
- Não sei. Ainda não acabou...
E os dois continuaram a andar.
- Estimei-o tanto como Gudrun, não se esqueça - disse Birkin com certa amargura. Gerald atentou nele, de forma esquisita, sem compreender.
- Acha que sim? - disse então, em tom de descrença, friamente. - Ou será só na sua imaginação? - Dizia isto, no entanto, sem pensar.
O trenó chegou. Gudrun apeou-se. Fizeram as despedidas. Estavam desejosos daquela separação. Birkin entrou no carrinho, que se pôs em movimento, deixando sobre a neve Gerald e Gudrun ambos a agitarem as mãos, a dizer adeus. O coração de Birkin enregelava-se de os ver ficar para trás, na desolação daquela brancura, cada vez mais pequeninos, mais distanciados...


Capítulo XXX
No meio da neve
Depois que Birkin e Úrsula partiram, Gudrun sentiu-se a vontade na sua contenda com Gerald. À medida que se iam habituando um ao outro, parecia que ele a procurava subjugar cada vez mais. A princípio ainda ela conseguia impor-se, e a sua vontade conservava-se independente. Mas não tardou muito que Gerald começasse a desdenhar aquela tática feminina, perdendo o respeito pelos caprichos e segredos da moça e exercendo o seu domínio cegamente, sem jamais se submeter aos desejos dela.
Entre eles surgia, pois, um conflito: ambos estavam apavorados com essa ideia. Ele não tinha quem lhe valesse, ela, porém, procurava algum auxílio externo.
Quando a irmã se foi embora, Gudrun sentiu que a sua vida se tornava rígida e elementar. Subiu ao quarto e ficou ali sozinha, contemplando da janela as estrelas enormes e cintilantes. A sua frente estava a sombra indefinida das montanhas. Eram como o eixo do mundo. Gudrun sentia-se estranha, colocada sobre aquele eixo do mundo e da vida; para além, cessava a realidade.
Nesse momento, Gerald abriu a porta. Ela previra que ele não se demoraria lá fora. Nunca lhe era dado estar só: impunha a sua presença, como o frio amortecendo-lhe a energia.
- Está abandonada nas trevas? - Pela voz, ela compreendeu que estava irritado, e irritado contra a solidão de que ela procurava rodear-se. Contudo, percebendo que nada poderia fazer, Gudrun mostrou-se atenciosa e pediu-lhe:
- Quer acender a vela?
Gerald não respondeu, mas avançou e ficou por trás dela, no escuro.
- Veja - disse Gudrun - que estrela maravilhosa! Sabe que nome tem?
Gerald curvou-se ao lado de Gudrun para observar através da janela baixa.
- Não sei - respondeu. - É linda!
- Lindíssima! Veja como solta clarões de diferentes cores. É uma soberba cintilação.
Calaram-se. Mudamente, com um gesto fatigado, ela pôs-lhe a mão nos joelhos, e tomou a dele entre as suas.
- Está sentindo falta de Úrsula?
_ Não. - Depois, muito vagarosa, acrescentou: - Qual é a sua maneira de amar?
Gerald aproximou-se mais de Gudrun.
- O que é que você acha?
- Não sei.
- Diga - insistiu Gerald.
Houve uma pausa. Por fim, na escuridão do quarto, ouviu-se a voz dela, dura e indiferente:
- Creio que o seu amor é muito pequeno. - Disse aquilo em tom frio, quase petulante.
- E por que é que não amo você? - perguntou como se admitisse a verdade daquela acusação, embora lhe guardasse rancor.
- Não sei, tenho sido boa para você. Quando veio ter comigo estava em tal estado de excitação...
Falava de maneira ofegante, mas era forte e impiedosa em sua acusação.
- Quando é que você esteve assim?
_ Da primeira vez... Tive pena de você. Não era amor o que você sentia.
Esta declaração soava-lhe aos ouvidos de uma forma que o fazia enlouquecer.
_ Por que repetir tantas vezes que não era amor? - perguntou ele com voz encolerizada.
- Você pensa que ama?
Gerald estava tão irritado que não respondeu.
- Não se julga capaz de me amar? - perguntou ela em tom de mofa.
- Não.
- Você nem sabe que nunca me teve amor, não é verdade?
- Não sei o que você entende pela palavra amor - replicou ele.
- Sim, sabe. Sabe perfeitamente que nunca foi assim. Não é verdade? - respondeu Gerald, prontamente, levado pelo seu espírito de sinceridade e de teimosia.
- E você jamais me terá amor - concluiu ela.
Mostrava uma frieza diabólica, insuportável.
- Não.
- Então - retorquiu ela - de que se queixa?
O outro calava-se, frio, desesperado e receoso. "Se ao menos pudesse matá-la..., pensava consigo mesmo; "se ao menos pudesse matá-la, ficaria livre!"Achava que a morte seria a única maneira de resolver aquele problema.
- Mas, por que torturar-me? - exclamou.
Gudrun passou-lhe os braços em volta do pescoço.
_ Não quero torturá-lo - respondeu compadecida, como se estivesse consolando uma criança. A impertinência acabara com os sentimentos dele; mostrava-se insensível. Ela continuava a abraçá-lo numa atitude de triunfante misericórdia, numa piedade tão fria como uma pedra, no mais profundo ódio por aquele homem, e no meio do domínio que ele podia recuperar e que era preciso combater hora a hora.
- Diga que me ama - pediu Gudrun. - Diga que há de amar-me sempre, diga!
Porém, apenas a voz o acariciava. Os sentidos permaneciam à parte, afastados, hostis. Só a vontade imperiosa é que insistia.
- Não quer dizer que me terá amor para sempre? - tornou ela, fazendo-se persuasiva. - Diga, ainda que não seja verdade. Diga, Gerald.
- Amo você para sempre - repetiu este, a custo. As palavras se recusavam a ser pronunciadas, ele sentia-se agoniado.
Gudrun beijou-o, num movimento rápido.
- Imaginar que você o disse... que o disse agora - comentou ela, zombeteira.
Gerald sentia-se como uma criança que acabasse de receber um castigo.
- Tente gostar um pouco mais de mim e desejar-me um pouco menos - continuou a moça, semidesdenhosa e semi-afável.
As trevas pareciam ter invadido, em ondas sucessivas, o cérebro de Gerald, ondas soturnas, que lhe varriam o espírito. Julgava-se humilhado, reduzido a uma coisa desprezível.
- Quer dizer que não me deseja? - perguntou ele
_ Você insiste tanto! E tem tão pouca compaixão, tão pouca delicadeza! Você é brutal. Você me destrói, desgasta; é horrível para mim!
- Para você?
- Sim. Não acha que eu poderia ter um quarto só para mim, agora que Úrsula foi-se embora? Podíamos dizer que precisamos de um quarto de vestir.
Gerald esforçou-se para responder.
- Como quiser. Pode ate partir de vez, se quiser.
_ Eu sei - replicou ela. - Você também, sem precisar me prevenir.
Gerald a custo se mantinha de pé. Sentia-se fraco e tinha a impressão de que ia cair desamparadamente. Despiu-se e atirou-se na cama, como se estivesse bêbado, a obscuridade erguia-se e abaixava-se como se fosse um mar vertiginoso e negro. Durante algum tempo ficou estendido, imóvel, inconsciente, em meio a um martírio abominável.
Finalmente, Gudrun levantou-se e aproximou-se dele. Gerald permanecia rígido, de costas para ela. Dir-se-ia haver repudiado a voz dos sentidos.
Colocando os braços ao redor de seu corpo, que denunciava aterradora insensibilidade, encostou o rosto no ombro do rapaz.
- Gerald! - murmurou. - Gerald!
Ele não se mexeu. Ela o atraiu para si, premindo os seios nas espáduas dele, beijando-o através da camisa. Não compreendia por que aquele homem estava tão hirto, quase sem vida. Sentia-se desnorteada e queria que ele acordasse e lhe falasse.
- Gerald! Gerald querido! - balbuciou, inclinando-se e dando-lhe um beijo na orelha.
A rigidez pareceu atenuar-se com o calor morno das carícias, com o roçar rítmico dos lábios. O corpo, ela bem o sentia, ia-se humanizando pouco a pouco, perdendo aquela frieza tão anormal. As mãos dela corriam-lhe sobre o tronco, tateando os músculos, que se contraíam sob a pressão.
Finalmente, o sangue circulou, aquecido, nas veias, e os membros retomaram a sua mobilidade.
- Volte-se para mim - cochichou ela, abandonando-se ao consolo do triunfo.
Finalmente, Gerald reanimou-se, recuperando a agilidade e o calor. Virou-se para ela e abraçou-a; e sentindo-a tão perto, tão suave, perfeita e dócil, em atitude tão inesperada, a estreitou contra si. Gudrun sentia-se arrebatada, sem opor resistência, e o cérebro de Gerald ficara outra vez rijo e invencível: era como um diamante que nada pudesse destruir.
A paixão que experimentou por ela foi violenta, medonha, impessoal, semelhante a uma catástrofe. Gudrun supôs que ele a ia matar. Teve a sensação de estar sendo assassinada.
- Meu Deus! Meu Deus! - exclamou, na agonia daquele amplexo, julgando que a vida lhe fugia. Quando Gerald a encheu de beijos, acalmando-a lentamente, Gudrun considerou-se esgotada e moribunda.
- Vou morrer? Vou morrer? - repetia para si mesma.
Mas nem ele nem a noite responderam a essa pergunta.
Contudo, no dia seguinte, a parte da sua alma que não fora impressionada continuou intata e hostil. Não se foi embora. Permaneceu disposta a terminar as suas férias sem querer saber de mais nada. Ele quase nunca a deixava só, seguindo-a como uma sombra. Era como uma condenação, seguindo-a como uma sombra. Às vezes Gerald parecia ser mais forte e Gudrun nem existia, arrastando-se sobre a terra como uma aragem que esmorece Noutras ocasiões acontecia o contrario. Mas sempre, o eterno pêndulo oscilava, ora destruindo as esperanças de um, ora reanimando-o pelo aniquilamento do outro.
"Mais dia menos dia", pensava ela, "terei de deixa-lo". "Posso livrar-me desta mulher", comentava ele nos paroxismos do sofrimento.
Decidiu, pois, abandoná-la. Preparou-se para ir embora e ela que se arranjasse como pudesse. Todavia, pela primeira vez, a vontade vacilou.
"Ir para onde?", perguntou a si mesmo.
Você não se basta?", respondeu-lhe a consciência, fazendo apelo ao orgulho.
"Bastar-me a mim próprio!", repetiu ele.
Achava que a moça não precisava de ninguém que, como um aparelho num estojo formava um conjunto perfeito, independente. Assim raciocinava ele, muito tranquilo, e ela estava no seu direito de se bastar a si mesma, de ser suficiente e de não ter desejos. Compreendia o fato, aceitava-o, e necessitava somente de um esforço para alcançar ele próprio semelhante vantagem. Sabia que lhe faltava apenas forçar a vontade e conseguir obter igual suficiência, fechar-se dentro de si mesmo isolado, impenetrável satisfeito, como um penedo fixado a terra.
Mas tal ideia lançou-o num tremendo caos. Pois, embora mentalmente quisesse ser livre e completo, faltava-lhe a vontade, que não sabia como obter. Via perfeitamente que, para existir com independência, precisava libertar-se de Gudrun, deixa-la, nada revindicar.
Mas, para isso, era preciso manter-se por si mesmo. A ideia reduzia-o a nada; seria o mesmo que aniquilar-se totalmente. Mas também poderia declarar-se vencido, adulá-la... Finalmente, poderia matá-la - a não ser que se tornasse indiferente, disperso sem se importar com a vida. A sua natureza, porém, era seria em demasia sem a jovialidade e a sutileza necessárias para um amor despreocupado e licencioso.
Em sua alma rasgava-se uma estranha fenda: como uma vítima dilacerada brutalmente e oferecida aos céus em holocausto, assim ele se sacrificara pelo amor de Gudrun. Como sarar tais feridas? Essa chaga, esse ferimento singular, infinitamente sensível e aberto na sua alma, pelo qual ficava exposto como uma flor desabrochada, a todo o universo, e por onde escapara parte de si próprio, o seu outro eu; aquela ferida que o ponha naquele desdobramento do ser que o deixava incompleto, limitado, inacabado como uma corola desfolhada ao sol, isso constituía agora a sua alegria cruel. Privar-se dela, então, para que? Para que encerrar impenetrável e independente como uma semente dentro do fruto, quando a verdade é que havia germinado à luz fecundante para lançar rebentos e elevar-se no espaço?
Queria guardar a felicidade indefinível do desejo mesmo em meio ao martírio que a jovem lhe infringia. Apoderava-se dele uma estranha obstinação. Não se afastaria de Gudrun, por mais que ela fizesse ou dissesse. Arrastava-o para a mulher um desejo singular e fatal; era a influência determinante do seu ser embora ela o tratasse com desdém, o acolhesse mal e o recusasse. Não se resolvia a partir, porque, estando junto de Gudrun, se sentia mais vivo, até mais independente na sua própria limitação; saboreava a magia da promessa tanto como o mistério da destruição e do aniquilamento de si mesmo.
Martirizava seu coração ferido, quando Gerald se aproximava. Mas a própria Gudrun também se submetia à tortura. Tinha a impressão - e isso causava-lhe horror - de que ele lhe rasgava as fibras da alma, dilacerando-as por prazer. Era como uma criança arrancando as asas de uma mosca, ou abrindo um botão para descobrir lá dentro a flor, despedaçava-a para ver o segredo da sua intimidade, da sua existência, como quem revolve uma flor ainda fechada, cruel e violentamente.
Gudrun pudera abrir-se com ele, noutro tempo, nos seus sonhos, quando era puro espírito. Mas, agora, não queria ser forcada nem destruída. Fechava-se contra Gerald, insulada no seu orgulho.
À tarde, ambos subiram a altas colinas para admirar o pôr do sol. Detiveram-se sob o vento fino e áspero que soprava, contemplando o astro alaranjado que mergulhava numa atmosfera avermelhada que desaparecia. Depois, para os lados do oriente, os picos e as cristas das serras iluminaram-se de tons rosados, vivos, incandescentes como flores imortais de encontro a um céu de púrpura sombria, miraculosa, enquanto embaixo o mundo parecia uma sombra azulada, e lá no alto, como uma anunciação, pairava um halo róseo entre as nuvens.
Para Gudrun era tudo isto tão belo, tão delirante, que ela desejaria colher aqueles picos cintilantes e eternos, estreitá-los ao peito, e depois morrer. Gerald via-os também, e achava-os igualmente belos. Mas nenhum clamor lhe saía do peito, apenas experimentava amargura, que era ao mesmo tempo devaneio. Preferiria que as montanhas fossem cinzentas e sem esplendor, de forma que a moça não pudesse encontrar nelas estímulo nenhum. Por que motivo se atraiçoava, a si mesmo e a ele também, entregando-se ao fulgor da tarde moribunda? Por que o deixava ali, em pé, com a aragem fria a atravessar-lhe o coração como se fosse a própria morte, para se volver toda à contemplação dos cimos róseos e nevados?
_ Que importa o crepúsculo? - disse ele. - Por que se ajoelha diante dele? É assim tão importante para você?
Gudrun retraiu-se, ofendida e furiosa.
- Vá-se embora - ordenou-lhe - e deixe-me sozinha aqui. É lindo, lindo! - murmurava numa voz cantada e singular. - É a coisa mais bela que jamais vi na minha vida. Não tente interpor-se entre mim e o poente. Vá-se embora. Este não e o seu lugar!
Gerald recuou um pouco e deixou-a ficar onde estava espécie de estátua transposta para um místico pedestal resplandecente. Os tons de rosa já se iam desvanecendo, e enormes estrelas claras apontavam no céu. O rapaz esperou. Teria renunciado a tudo, menos a essa fascinação.
- É a coisa mais bela que já vi na vida - repetiu Gudrun numa entonação fria e cruel, quando se voltou, finalmente, para Gerald. - Aflige-me a ideia de que você tente perturbar este espetáculo. Se não sabe admirar, por que não me permitir que o faça - Na realidade, o encanto que ela sentira já fora até miado, e Gudrun esforçava-se em reanimar uma sensação desaparecida.
- Um dia - disse ele fitando-a calmamente - darei cabo de você quando estiver olhando para o poente, tudo em você e falso.
Ao pronunciar estas palavras, experimentou como que uma suave volúpia. Gudrun ficara gelada, mas não perdeu a arrogância.
- Ah! Não tenho medo de suas ameaças.
Fugiu dele e foi ocupar, na hospedaria, um quarto rigorosamente separado, onde mais ninguém poderia entrar. Ele, entretanto, aguardava paciente, sem perder o desejo que a moça lhe inspirava.
"No fim", dizia Gerald para consigo - e esta promessa começava a ser-lhe voluptuosa -, "quando chegar a determinado ponto, destruí-la-ei." E pressentindo aquela morte, todos os membros lhe tremiam no mais violento acesso de paixão, e aproximava-se dela ébrio de apetites.
Em frente de Loerke, Gudrun mostrava agora uma curiosa submissão, um tanto insidiosa e perversa. Gerald percebeu. Mas, no estado de paciência sobre-humana que se impunha, e não querendo mostrar-se aborrecido perante ela - em quem reconhecia uma parte de si mesmo - fingiu não reparar, se bem que aquela simpatia concedida a um homem que ele detestava como inseto pernicioso, o fizesse estremecer de cólera e lhe desse repetidos acessos de furor.
Gerald só a deixava quando ia patinar, desporto que adorava e que ela não praticava. Nesses momentos, o rapaz sentia-se fora da vida como um projétil lançado no além. E então, quando ele não estava presente, Gudrun entretinha-se com o escultorzinho alemão. O assunto invariável era a arte da sua profissão comum.
Comungavam nas mesmas ideias. Loerke não gostava de Mestrovic, não se satisfazia com os futuristas, apreciava as estatuetas de madeira do Oeste africano, a arte dos astecas, do México e da América Central. Sabia descobrir o grotesco, e certos movimentos mecânicos o perturbavam por estabelecerem confusão na natureza. Entregavam-se os dois, Gudrun e Loerke, a um estranho jogo de infinitas sugestões, raras e doentias, como se tivessem ambos o mesmo sentido esotérico da vida, como se fossem os únicos iniciados nos segredos vitais e assustadores que o resto do mundo não se atrevia a conhecer. A conversa decorria por meio de estranhas imagens, não facilmente compreensíveis. Entusiasmavam-se com a luxúria sutil dos egípcios e dos mexicanos e todo esse divertimento prosseguia centre alusões inteligentes, desejando qualquer deles manter-se no plano da insinuação. Dessas graduações verbais e físicas extraíam a mais alta satisfação para o sistema nervoso: era um intercâmbio estranho de ideias simplesmente sugeridas, olhares, expressões e gestos que, para Gerald, seriam intoleráveis, embora não os entendesse. Quanto a este, não tinha no seu vocabulário termos que servissem àquele comércio intelectual; os seus eram em demasia grosseiros.
O encontro da arte primitiva servia de principal motivo de conversa: refugiavam-se nesses mistérios íntimos da sensação, objeto do seu verdadeiro culto. A arte e a vida significavam para eles o real e o irreal.
- É claro - dizia Gudrun a existência não tem importância real: a arte só é que interessa. O que fazemos na vida tem peu de rapport, não significa quase nada.
- Nem mais nem menos - respondia o escultor. - O que se realiza em nossas almas artísticas é que representa o sopro vital. O que praticamos fora disso é uma insignificância, embora os outros se preocupem tanto com essas ninharias.
Era curioso observar como Gudrun aproveitava, daqueles colóquios, tantas sugestões de exaltação e de liberdade.
Sentia-se mais estabilizada, talvez de uma forma definitiva. Gerald, como se sabe, não passava de uma nulidade, o amor era um ato temporal na sua vida, exceto no que dizia respeito a sua qualidade de artista. Lembrou-se de Cleópatra, que também devia ter sido artista: retirara do homem tudo quanto ele possuía de essencial, colhera a derradeira sensação e deitara fora os restos. Assim, Maria Stuart e a ilustre Rachek - que delirava com os seus amantes, fora do palco - eram igualmente representantes esotéricos do amor. No fim de contas que era este sentimento senão a lenha utilizada para incendiar a ciência sutil da arte feminina, arte da pura e perfeita sabedoria na compreensão dos sentidos?
Certa tarde, Gerald e Loerke conversavam acerca da Itália e de Trípoli. O inglês estava inflamado e o outro parecia excitado. Digladiavam-se com palavras, mas na realidade o que havia entre eles era um conflito espiritual. Durante todo o tempo Gudrun pôde observar o desprezo arrogante dos da sua raça pelos estrangeiros. Embora tremesse um pouco, seus olhos flamejavam, seu rosto se avermelhava e, no que dizia, perpassava seu desdém selvagem e peculiar, que tanto indignava a moça e mortificava o alemão Gerald apresentava seus argumentos como marteladas, e tudo quanto o escultor dizia era considerado sem o menor valor.
Por fim, Loerke voltou-se para Gudrun, ergueu as mãos num gesto instintivo de desespero, e encolheu os ombros para indicar que desistia. Tinha, ao mesmo tempo, um ar impotente e infantil, na sua deserção.
- Sehen Sïe, gnädige Frau... - Está vendo isso, minha senhora - nota da tradutora) - começou ele.
- Bitte, sagen Sie nich immer gnädige Frau - É favor não me chamar sempre de Frau (senhora casada) - nota da tradutora) - começou Gudrun com as faces escaldando. Parecia uma autentica Medusa. A voz saía-lhe forte, atroadora, e as pessoas que estavam na sala ficaram espantadas. - Faça o favor de não me chamar de Senhora Crich - repetiu bem alto.
Aquele nome, especialmente nos lábios de Loerke, constituía ultimamente, para ela, um constrangimento humilhante e insuportável.
Os dois homens olharam para ela, pasmados. Gerald empalideceu.
- Como devo chamá-la, então? - perguntou Loerke em tom ligeiramente sarcástico.
- Sagen Sie nur nich das - A frase está traduzida mais adiante no mesmo parágrafo - nota da tradutora) murmurou ela, muito corada, com as faces ardentes - Pelo menos, não diga isso.
Pela expressão que despontou no rosto de Loerke, ela Percebeu que o rapaz havia percebido tudo. Não era a Senhora Crich! Aquilo explicava muita coisa.
- Soll ich Fraülein sagen? - Devo tratá-la por Fraulein (senhorita)? nota da tradutora), perguntou malevolamente.
- Não sou casada - confirmou Gudrun, com altivez. O coração batia-lhe com violência, como o de um pássaro desnorteado. Compreendia que se havia excedido, e só essa ideia era o bastante para a fazer sofrer.
Gerald ficara absolutamente calmo, pálido e imóvel, qual uma estátua. Desinteressara-se de Gudrun, de Loerke, de todos. Estava tranquilo, inalterável. O escultor, encolhido, de cabeça pendida para o chão, olhava para eles disfarçadamente.
Gudrun procurava, aflita, qualquer coisa que dizer, a fim de quebrar o silêncio. Contraindo a face num sorriso forçado, lançou a Gerald um olhar de compreensão, dizendo:
- É melhor que saibam a verdade.
E imediatamente recaiu sob o domínio dele - porque o ofendera, porque o magoara tanto, porque não sabia como Gerald iria reagir. Ficou a observá-lo. Interessava-se agora pelo homem. Loerke perdera todo o encanto.
Gerald levantou-se por fim, e foi, calmamente, conversar com o professor. Pouco depois ambos empenhavam-se numa discussão a respeito de Goethe.
Aquela naturalidade irritou bastante a moça. Gerald não se mostrara nem zangado, nem desgostoso; tinha, pelo contrario, um ar estranhamente cândido e puro. Muitas vezes apresentara aquele aspecto digno e distante, que tanto a fascinava.
Esperou apreensiva. Pensou que a fosse evitar, dando-lhe a entender o seu aborrecimento. Mas Gerald tratou-a com simplicidade, sem a mínima alusão ao incidente. Na alma de Gerald havia uma grande paz, que o tornava absorto e pensativo.
Gudrun recolheu-se ao quarto; experimentava por Gerald um amor escaldante, violento. Ele era tão belo e inacessível. O rapaz a beijou. Era o seu amante. Quanto prazer extraia ela daquela circunstância! Gerald, porém, não mudou a sua maneira de tratá-la. Continuou remoto, inocente, quase inconsciente. Gudrun queria que ele falasse; mas esbarrava com aquele estado de graça, de abstração em que ele parecia divagar.
Pela manhã, contudo, Gerald olhou para a moça comum pouco de aversão, de horror, de ódio tenebroso nas pupilas. Voltou ela então à sua posição anterior. Ele, no entanto, desconhecia toda a extensão da sua força, para que a pudesse empregar com eficiência.
Loerke esperava o reaparecimento de Gudrun. O artista, isolado em si mesmo, calculava que descobrira, enfim, uma mulher interessante. Sentia-se inquieto, esperando por ela para conversar, saboreando a ocasião de tê-la junto a si. A presença de Gudrun enchia-o de ardor, estimulava-o, e ele girava astutamente em volta dela como que arrastado por uma atração inevitável.
Loerke comparava-se a Gerald. Este era um profano e ele o detestava pela sua riqueza, orgulho e belo aspecto físico. Todas estas coisas, porém, representavam apenas elementos exteriores. Quando se tratava de agradar a uma mulher como Gudrun, ele, Loerke, dispunha de poder e atrativos que faltavam a Gerald e que ele não poderia imaginar nem em sonhos.
Como esperasse que uma mulher da categoria de Gudrun se satisfizesse com ele, Loerke detinha um segredo que ultrapassava aquelas qualidades. O maior poder é o que sabe adaptar-se sutilmente e não o que ataca de olhos fechados. Ele, Loerke seria capaz de penetrar nas profundezas de toda a ciência, ao contrario do amante de Gudrun. Gerald ficara para trás, como um noviço que espera na antecâmara do templo dos mistérios: esse templo era Gudrun. Loerke, pelo contrário, conseguiria penetrar até ao mais íntimo e oculto, descobrir o espírito dela e vencer a serpente enroscada no próprio âmago da vida. Afinal de contas, o que é que exige a mulher? Simples consideração pessoal, satisfação de ambições? A união no amor e na bondade? Deseja ela, realmente, "a bondade"? Quem seria tão louco de julgar isso de Gudrun? Seriam estes os seus desejos, aparentemente. Mas quem atravessasse o limiar, veria com quanto encarava ela o mundo social e todas as suas vantagens. Quem descesse ao fundo de sua alma notaria a atmosfera pungente de ceticismo, e a consciência crítica, viva e sutil com que ela apreciava a sociedade antipática e falsa.
Que sucederia então? A pura força do amor cego seria capaz de a satisfazer? Não, decerto: mas as emoções vivas e penetrantes de uma conquista lentamente conduzida o conseguiriam; antes uma vontade inflexível reagindo contra a vontade dela em sensações constantes, antes uma análise persistente e delicada exercendo-se no mais oculto da alma da mulher. A forma exterior e individual, pelo contrário, permanecendo sem alteração, seria ineficaz.
Mas entre duas criaturas, entre dois habitantes da terra, a série de impressões acaba por ser limitada. A sua escala, uma vez orientada em certa direção, deixa de produzir efeito, e extingue-se. Não há repetições possíveis, impõe-se a separação dos dois protagonistas ou a submissão de um ou de outro, ou ainda a morte.
Gerald atingira todos os pontos extremos da alma de Gudrun; tornara-se para esta o exemplo crucial do mundo exterior o nec plus ultra da vida dos homens nas relações para com ela Por ele ficara conhecendo a sociedade com a qual gostaria de romper. Tendo-o esgotado, assemelhava-se ela a um Alexandre a procura de novas conquistas. Mas não havia países novos nem novos homens, apenas indivíduos pequenos e fracos, seres ínfimos, da categoria de Loerke. O mundo, pois, finalizara para Gudrun. Restava-lhe apenas uma sombra interior, individual a sensação íntima do ego, o repugnante mistério da diabólica limitação, enigmática atividade para se reduzir e desintegrar do corpo orgânico da vida.
Tudo isto pressentia ela na sua inconsciência, nunca no espírito. Sabia que passos deveria dar quando deixasse Gerald. Tinha medo dele, receava que a matasse. Não queria ser assassinada, é claro. Sentia-se ainda unida a ele por um fio muito tênue, que a morte não despedaçaria. Gudrun precisava ir mais além, sentia existir ainda uma colheita de experiências lentas e delicadas a realizar, antes de abandonar a vida.
Para estas supremas sensações, Gerald não era a pessoa indicada. Não seria capaz de atingir o mais vivo da sua carne. Mas, onde os golpes violentos daquele homem não penetravam, a finura e agudeza de Loerke triunfariam. Era acerado como um inseto, perfurante como uma lâmina. Chegara, pois, a ocasião de passar para o outro, o artífice perfeito e definitivo. Não ignorava que Loerke, no mais recôndito de sua alma, se afastara de tudo e de todos; para ele não havia céu, nem terra, nem inferno. Não admitia autoridade alguma, não se submetia a ninguém. Solitário sempre e - por abstração do resto - absoluto em si próprio.
Gerald, pelo contrário, desejava pertencer ao mundo inteiro. Isso mostrava os seus limites. Era, de fato, limitado, borne, submetido, em última análise, ao que criara, bom, justo, coerente com as suas necessidades. Mas, entre essas necessidades, não figurava a morte com a sua experiência sutil e perfeita. Era aí que residia a sua limitação.
Loerke pairava numa atmosfera de triunfo desde que a moça lhe confessara não ser casada com Gerald. O artista parecia uma mariposa em voo, mantendo-se nas asas à espera do momento de pousar. Não se importava de esperar. Jamais seria importuno. Levado por um instinto seguro na obscuridade da sua alma, correspondia-se com a dela de forma imperceptível, misteriosa, mas palpável.
Conversaram durante dois dias, sempre sobre temas de arte, na qual encontravam ambos tanto prazer. Adoravam as coisas dos tempos idos, achavam encanto sentimental e infantil na perfeição das épocas pretéritas. Amavam particularmente o final do século XVIII, o período de Mozart, e a época do Goethe e de Shelley.
Entretinham-se com o passado e com as grandes figuras desaparecidas, numa espécie de jogo de xadrez, com o que se divertiam intensamente. Todos os homens notáveis lhes serviam de bonecos de molas; eles dois eram os dirigentes do espetáculo e puxavam os cordéis, pondo tudo a funcionar. Quanto ao futuro, jamais se ocupavam disso, exceto quando um deles expunha, a rir, qualquer fantasia humorística da destruição do mundo por meio de uma catástrofe ridícula, resultado de uma invenção qualquer: algum explosivo, talvez, poderosíssimo, que partiria a Terra em duas partes, ficando os dois pedaços a girar no espaço em direções opostas, diante do pasmo dos respectivos habitantes. Ou então imaginavam os homens divididos em dois partidos contrários, cada um deles convencido de ser o mais justo e perfeito, e considerando o outro indigno e merecedor de ser arrasado; calculavam, assim, várias espécies de fim do mundo. Havia ainda um sonho sinistro delineado por Loerke: a Terra se resfriaria, a neve cairia por todos os lados, e só os seres brancos - ursos polares, raposas brancas, homens semelhantes a terríveis aves das regiões árticas - permaneceriam na crueldade do gelo.
Quando não se distraíam com tais fantasias, Loerke e Gudrun evitavam falar no futuro. Preferiam divertir-se imaginando processos cômicos de destruição do planeta ou dissecando personagens românticas do passado. Era tão agradável reconstituir a vida de Goethe em Weimar, ou a de Schiller com a sua pobreza e o seu amor fiel, ou ressuscitar os temores de Jean-Jacques, ou Voltaire em Ferney, ou Frederico, o Grande, lendo seus próprios versos.
Palestravam durante horas sobre literatura, escultura e pintura recreando-se com Peuerbach e Bocklin. Seria necessária a duração de uma vida inteira, pensavam, para reviver in totum a existência dos grandes artistas. Mas tanto um como outro preteriam deter-se nos séculos XVIII e XIX.
Falavam numa mistura de idiomas, com base no francês. Loerke terminava a maior parte das frases por um tartamudear em inglês e uma tirada em alemão, ao passo que ela chegava ao fim do seu pensamento com as palavras que mais depressa lhe viessem ao espírito. Gudrun deliciava-se com estes colóquios. Havia estranhas expressões, fantásticas mesmo, frases de duplo sentido, evasivas sugestivas, reticências. Constituía, de fato, uma maravilhosa satisfação física poder tecer uma conversa com os fios diferentemente coloridos de três línguas.
Durante todo este tempo, volteavam, hesitantes, em torno de uma invisível declaração. Bem a desejava ele, mas impedia-o uma certa repugnância que não conseguia vencer. Ela, por seu lado, experimentava a mesma vontade, mas ia transferindo sempre; tinha pena de Gerald, sentia-se ainda ligada àquele homem foi o pior de tudo é que esse relacionamento derivava de reminiscências porque havia sido, considerava-se unida por laços invisíveis e imortais - sim, pelo que tinha sido, pelo fato de ter ido ele, naquela primeira noite, à sua casa, sob tremenda compulsão.
Gerald experimentava repulsa cada vez maior por Loerke. Não o levava a sério, desprezava-o simplesmente; porém, quando adivinhava em Gudrun a influência daquele entezinho mórbido, ficava fora de si; enfurecia-o perceber na jovem o predomínio de Loerke, a presença avassaladora do escultor.
- O que é que a entusiasma tanto nesse verme? - perguntou certa vez, sinceramente intrigado. Pois, para ele, nada via de atraente nem de notável no escultor. Pensava que só a beleza e a dignidade poderiam suscitar interesse às mulheres. Nada disso havia no alemão, apenas o que se via dele era a aparência repulsiva de um inseto.
Gudrun corou profundamente. Jamais lhe perdoaria as observações que fazia.
- Que quer dizer? - perguntou ela. - Como dou graças a Deus por não me ter casado com você!
O tom de voz, desdenhoso e insultante, impressionou-o. Mas, pouco depois, retomou o ataque:
- Responda-me, sim? O que vê de fascinante nele?
- Não estou fascinada - respondeu Gudrun, com ar inocente. Está, sim. A serpentezinha fascinou-a e a deixou qual um passarinho prestes a cair-lhe da boca.
Gudrun fitou-o, enfurecida.
- Não permito que o meu procedimento seja discutido - redarguiu.
- Que o permita ou não, pouco me importo. Isso não destrói o fato de estar prontinha para cair nas redes que ele armou. Faça o que entender, meta-se na boca da víbora. Mas o que eu gostaria de saber é o que tem ele de atraente.
Gudrun mergulhou numa cólera sombria.
- Como se atreve - disse finalmente - a tratar-me com tamanha arrogância? Como ousa fazer isso, meu provinciano fanfarrão? Que direitos supõe ter sobre mim?
O rosto de Gerald brilhava, pálido. Os olhos fulguravam. Gudrun percebeu que tombara em poder do lobo. Odiava-o por ser dominada por ele, odiava-o tanto que poderia ser capaz ate de matá-lo.
- Não é uma questão de direitos - replicou Gerald, sentando-se na poltrona.
Gudrun observava-lhe todos os gestos. Via seu corpo mexer-se em movimentos naturais, e aquilo era para ela uma verdadeira obsessão. À ira que sentia acrescentou-se um desprezo definitivo.
- Não se trata dos direitos que tenho sobre você - repetiu ele - porque os tenho, quer você queira, quer não. Quero apenas saber o que a subjuga a esse escultor de merda, que esta la embaixo e que a faz curvar-se em adoração à sua passagem. Quero saber, perante quem, em suma, você se prostra de joelhos.
Gudrun ouvia-o debruçada à janela. De repente, voltou-se para dentro.
- Quer saber? - exclamou num tom desembaraçado e fustigante. - Quer saber o que vejo nele? É a compreensão que tem da alma de uma mulher. É isso.
O rosto de Gerald animou-se de uma expressão estranha, sinistra, bestial.
- Que tipo de compreensão? A de uma pulga munida de tromba, saltitante? Por que você há de rastejar abjetamente em homenagem a uma pulga?
No espírito de Gudrun passou a ideia da representação de uma pulga, consoante a interpretação de Blake, e tentou aplica-la a Loerke. Mas Blake era demasiado caricatural. Que iria responder a Gerald?
_ Você não acha que a inteligência de uma pulga e mais interessante do que a de um imbecil? - perguntou ela.
- Um imbecil? - repetiu Gerald.
- Sim, um imbecil vaidoso, um dummkopf - confirmou a jovem enriquecendo o seu vocabulário com uma palavra alemã.
- Está dizendo que eu sou um imbecil? Pois prefiro ser isso do que a tal pulga que está lá embaixo.
Gudrun enfrentou-o. Gerald tinha um ar de estupidez tão cega e obtusa que ela desanimou, limitando-se a dizer:
- Com essas últimas palavras, você se definiu.
O rapaz refletiu.
- Não tardarei a ir-me embora - declarou.
Gudrun não o deixou sem resposta:
- Lembre-se de que sou completamente livre. Trate da sua vida que eu tratarei da minha.
Aquela observação levou-o a meditar.
- Quer dizer que deste momento em diante somos estranhos um para o outro?
Ela hesitou, corando. Gerald armava uma ratoeira.
- Estranhos - disse ela - nunca poderemos ser. Mas se quiser desembaraçar-se de mim, confirmo que você é independente e senhor de suas ações. Não se preocupe comigo.
Aquela observação, embora velada, era a confissão de que ela ainda precisava dele. Isso reacendeu-lhe o amor. Deixou-se ficar imóvel porém, a expressão já não era a mesma. Corria-lhe pelo corpo uma corrente semelhante ao metal fundido. Gemeu interiormente, sob o jugo, mas a escravidão lhe era grata. Mirou-a com os olhos claros e esperou.
Gudrun percebeu o que se passava e sentiu-se estremecer. Mas continuou fria e revoltada. Como podia ele contemplá-la com aqueles olhos claros, quentes, suplicantes? Como podia ter, mesmo naquele momento, esperanças nela? O que haviam dito, de parte a parte, não seria o bastante para cavar um abismo entre os dois para separá-los para sempre? Ei-lo entanto, ali estava ele alerta e transtornado, disposto a recebê-la!
Aquilo desconcertava a moça. Voltou-se para o lado e disse:
- Não deixarei de preveni-lo, assim que tomar uma decisão.
E com isto, saiu do quarto.
Gerald ficou sentado, entregue ao horror da decepção que parecia destruir-lhe gradualmente o entendimento. Todavia, a paciência persistia nele de forma inconsciente. Conservou-se imóvel, sem saber o que fazer, sem pensar sequer. Por fim levantou-se e desceu para o andar térreo, onde jogou uma partida de xadrez com um dos estudantes. Tinha um ar acolhedor e franco e certa inocência no seu laisser-aller, que perturbaram Gudrun o mais possível; ele fazia-lhe medo e inspirava-lhe simultaneamente profunda antipatia.
Foi depois dessa ocasião que Loerke - que nunca lhe perguntara nada de sua vida particular - começou a interrogá-la.
- Não é mesmo casada?
Gudrun fitou-o bem nos olhos e respondeu de modo categórico:
- Claro que não.
Loerke riu-se, franzindo o rosto de modo engraçado. Um tufozinho delgado de cabelos tombava-lhe sobre a testa, e Gudrun reparou em sua pele de um tom moreno-claro, assim como as mãos e os punhos, que se assemelhavam, estranhamente, a duas garras. Loerke assemelhava-se a um topázio, amarelado e transparente.
- Ainda bem - declarou.
No entanto, precisava de coragem para prosseguir.
- A Senhora Birkin é sua irmã, não é?
- É.
- É casada?
- Sim, é.
- Tem pais vivos?
- Sim, nossos pais ainda são vivos.
E expôs-lhe, em termos breves, lacônicos, qual era a sua posição. Loerke olhava-a atentamente, sempre debaixo da mais viva curiosidade.
- Só! - exclamou, um pouco surpreendido. - E Herr Crich é rico?
- Sim, é rico. É proprietário de minas de carvão.
- Há quanto tempo dura a sua intimidade com ele?
- Alguns meses.
Houve uma pausa.
- Estou admirado - volveu o escultor, finalmente. - Considerava os ingleses muito mais frios... Que pensa fazer quando o deixar?
- Que penso fazer? - repetiu ela.
- Sim, creio que não pretende voltar a ensinar. Não é possível mais - declarou, encolhendo os ombros. - Deixe isso à canaille que não sabe fazer outra coisa. A senhora é uma pessoa original, eine seltsame Frau. Para que negar a evidência? É uma mulher estranha, por conseguinte não deve seguir as outras estagnando-se em uma vida banal.
Gudrun, muito corada, olhava para as mãos. Agradava-lhe ouvir dizer que era uma pessoa diferente das outras. E ele não o dizia para a lisonjear não era aquele o jeito dele, tão objetivo se mostrava sempre! Declarava aquilo como se notasse que tal peça de estatuária tinha qualidades, porque sabia ser verdadeiro.
Ela se regozijava com semelhantes elogios. Os outros costumavam rebaixar tudo e todos ao mesmo nível, estabelecendo um modelo único. Na Inglaterra, era de bom-tom ser perfeitamente vulgar. Ser considerada como um ente diferente da multidão era coisa extremamente grata à moça. Não precisaria afligir-se com a opinião de mais ninguém.
- Mas a questão é que não disponho de dinheiro.
- Ach! Dinheiro! - exclamou o artista, num gesto de indiferença. - Quando já atingimos a maioridade, o dinheiro não é difícil de encontrar. Só quando somos inexperientes é que ele escasseia. Não pense em dinheiro, o terá sempre que quiser.
- Acha? - perguntou-lhe Gudrun, sorrindo.
- Sempre. Der Gerald dá-lhe o necessário, se lhe pedir.
Gudrun ruborizou-se intensamente.
- Pedirei a qualquer um - replicou a moça - menos a ele. - Dissera isto com certa dificuldade.
Loerke olhou-a com atenção.
- Está bem. Peça-o a quem melhor entender. O que não deve é voltar para a Inglaterra, para a tal escola. Isso seria uma coisa estúpida.
Houve novo silêncio. Loerke tinha medo de a convidar para ir com ele; nem ao menos estava certo de desejar tal solução. Ela, por sua vez, receava que ele lhe apresentasse essa proposta. O escultor prezava em extremo a sua solidão e não era pessoa para, nem sequer por um dia, fazer alguém compartilhar de sua vida.
- Só conheço outro centro importante: Paris - disse Gudrun. - Mas não gostaria de ir para lá.
Fitou o interlocutor com os seus olhos grandes, muito abertos. O outro baixou a cabeça, desviando a vista.
- Paris, não! - exclamou. - Entre a religion d'amour, o último "ismo", o regresso a Jesus, mais vale andar de carrossel todos os dias. Mas venha para Dresden. Tenho lá uma oficina, posso arranjar-lhe trabalho. Nunca vi nenhuma das suas escutarias, mas acredito no seu valor. Venha para Dresden: é uma cidade agradável, onde se pode viver. Lá encontrará tudo o que se espera de uma cidade, sem a imbecilidade de Paris ou a cerveja de Munique.
Gudrun contemplava-o tranquilamente. Gostava de o ouvir falar assim, com simplicidade, cavalheirescamente. Loerke era um artista, antes de tudo.
- Paris, não - repetiu ele. - Dá-me náuseas. O amor, detesto-o. L'amour, L'amour, die Liebe. Detesto-o em todas as línguas. As mulheres e o amor... não há nada mais enfadonho.
- Sou também dessa opinião - asseverou Gudrun.
Estava levemente ofendida. Contudo, não havia a menor dúvida: homens, amor... nada mais enfadonho.
- É uma grande maçada - prosseguiu o escultor. - Que importa que eu use este ou aquele chapéu? De igual forma o amor. Só uso chapéu por conveniência. É isto, gnädige Frau - inclinou-se diante da moça e fez um gesto rápido, grotesco como para afastar qualquer coisa. - Gnädige Fraulein, desculpe... É, isto que lhe digo, trocarei tudo, tudo o que chamam amor, por uma companheira inteligente... - Piscou os olhos sombrios, com malícia. - Compreende - continuou, com um sorriso. - Não faz mal que ela tenha cem anos, ou mil... para mim e indiferente, uma vez que me possa entender. - Baixou as pálpebras.
Gudrun sentiu-se ofendida, mais uma vez. Então não a achava bonita. E desatou a rir, bruscamente.
- Seria preciso esperar oitenta anos, pelo visto, para lhe agradar. E feia, já o serei bastante.
Loerke observou-a com olhar crítico, de artista e de entendido.
- É bonita, e tenho muito prazer em lhe dizer isso. Mas não é isso - prosseguiu em tom enfático que a sensibilizou - É porque a senhora tem inteligência, a espécie de inteligência que eu exijo. Eu sou baixinho, insignificante. Pois bem. Não me peça que seja belo e vigoroso. Mas é de mim - e pôs os dedos na boca, em gesto cômico - que alguma amante anda em busca, é a mim que ela espera, e o que deseja é uma união com a minha inteligência. Está compreendendo?
- Muito bem - disse Gudrun.
- Quanto ao outro, o tal amour - fez com a mão um movimento como o de expulsar um importuno - não tem importância nenhuma. Que resulta, se eu tomar esta noite vinho branco ou não tomar nada? Não interessa! Assim é o amor, esse amour, esse baiser. Sim ou não, soit ou soit pas, hoje, amanhã, ou nunca, é sempre o mesmo, não importa, ou importa tanto como o vinho branco.
Finalizou o discurso, deixando pender a cabeça para frente em movimento grotesco, sinal de desesperada negação.
De súbito, ela se aproximou, tomando-lhe a mão.
- É verdade - disse ela em voz cheia e veemente. - Para mim é assim também. Só a inteligência é que conta.
Loerke ergueu os olhos para a jovem. Parecia quase assustado. Depois de mau humor, abanou a cabeça. Gudrun largou sua mão. O escultor não correspondera à carícia dela.
Ficaram ambos silenciosos.
- Sabe? - disse ele por fim, mirando-a de repente com os seus olhos sombrios, orgulhosos e proféticos. - O seu destino e o meu hão de seguir lado a lado, ate que...
- Mas interrompeu-se, fazendo uma careta.
- Ate quando? - inquiriu a moça, pálida, com os lábios descorados. Era terrivelmente sensível a esse gênero de prognósticos. Loerke, porém, limitou-se a mover a cabeça, e depois acrescentou:
- Não sei... Não sei.
Só ao anoitecer Gerald voltou do seu exercício de patinação: faltara ao lanche de café e bolo que serviam às quatro horas. A neve estava em perfeitas condições, e o rapaz fizera um grande percurso, sozinho, até aos cimos gelados, subindo tão alto que pudera ver mais abaixo, à distância de cinco milhas, a Manenhutte, e a hospedaria do alto do desfiladeiro meio soterrada pela neve; descortinara o vale profundo ate a sombra produzida pelo grupo de pinheiros. Poderia voltar para casa por aquele caminho, mas só a ideia do regresso lhe causava náuseas. Poderia também descer, patinando, até a velha estrada imperial, logo por baixo do desfiladeiro. Mas para que seguir por uma estrada? Revoltava-se em pensar que encontraria gente. Antes ficar ali, no meio da neve, para sempre. Tinha sido feliz na solidão, deslizando suavemente e fazendo ressaltar pedaços de gelo entre os rochedos escuros estriados de linhas alvas e brilhantes.
Sentia, porém, gelar-se igualmente seu coração. Aquele estranho estado de paciência e candidez, que havia durado alguns dias desaparecia agora; Gerald tornava-se vítima de horríveis paixões e torturas.
Voltou, pois, de má vontade, queimado pela neve, tornado cruel pela ação do frio, e encaminhou-se para o côncavo que jazia entre os sopés ligados das montanhas. Viu, ao longe, as luzes amarelas das casas, e diminuiu a marcha, desejoso de não encontrar os outros nem ouvir o tumulto das vozes e sentir-se incomodado pela presença alheia. Experimentava um isolamento tal como se à sua roda se houvesse formado o vácuo ou uma camada de gelo puro.
No instante em que descobriu Gudrun, seu coração começou a bater descompassadamente. Ela lhe pareceu imponente e soberba, sorrindo lânguida e graciosamente para os alemães. Gerald sentiu a tentação de matar. Saboreava antecipadamente a volúpia da destruição. Seu espírito estava ausente; a neve e a paixão haviam-no enregelado e endurecido. A ideia, todavia, não o deixava; que prazer requintado não seria estrangulá-la, extinguir naquela mulher o último sopro de vida ate vê-la inerte e paralisada para sempre, carne flácida a lhe escapar dos dedos, perfeitamente aniquilada? Seria a forma de vê-la acabar-se da maneira mais completa.
Gudrun, ao vê-lo aparentemente tão calmo e amável, como de costume, não pressentiu quais os pensamentos que o animavam. Aquela amabilidade despertou-lhe, como sempre, um sentimento de ódio contra ele.
Entrou no quarto quando Gerald já estava meio despido e não reparou no brilho singular e jovial, de pura aversão, que o homem tinha no olhar. A jovem deteve-se no limiar da porta, com a mão atrás das costas.
- Estive pensando, Gerald - disse com ar de indiferença que pareceu a ele insultuosa - se devo voltar para a Inglaterra.
- Aonde quer ir, então? - indagou ele.
Ela, porém, evitou responder diretamente. Preferia fazer a sua exposição metodicamente, como havia imaginado.
- Acho melhor não continuarmos. Entre mim e você, tudo acabou...
Calou-se para deixar que ele respondesse. Gerald, contudo, não disse nada. Pensava apenas: "Acabou? - Sim, creio que acabou. Mas não de vez. Lembre-se de que não acabou ainda para sempre. É preciso acrescentar qualquer coisa; um ponto final, definitivo".
- O que aconteceu, aconteceu - prosseguiu ela. - Não me arrependo de nada. Espero que você, também...
Aguardou que ele desse qualquer explicação.
- Não, também não me arrependo de nada - asseverou o rapaz.
- Ainda bem - volveu Gudrun - ainda bem que nenhum de nós se queixa. É bem melhor assim.
- Claro - disse ele, distraído.
Gudrun fez uma pausa, e acrescentou:
- A nossa tentativa não deu resultado. Mas poderemos continuar as nossas experiências em outro lugar.
Percorreu-o um estremecimento de fúria. Parecia que ela o espicaçava. Para quê?
- Tentar o quê? - perguntou.
- Sermos amantes, é óbvio - respondeu ela, um tanto desconcertada.
- Falhou a nossa tentativa de sermos amantes - repetiu Gerald em voz alta.
Porém, com seus botões, ele pensava: "Devo matá-la aqui mesmo. É tudo o que me resta fazer". Apoderava-se dele uma vontade forte e imperiosa. Gudrun não percebia nada.
- Acha então que nossa união foi um completo êxito?
A ofensa daquela pergunta petulante passou pelo sangue de Gerald como se fosse uma corrente de fogo.
- Houve alguns momentos de êxito nas nossas relações - retorquiu ele.
- Podia ter sido bom o resultado.
Todavia, antes de concluir a frase, baixou a voz. Mesmo quando formulou o que ia dizer, sabia que não estava sendo sincero. Sabia muito bem que tudo não passara de um fracasso.
- Não podia - replicou Gudrun. - Você é incapaz de amar.
- E você? - atalhou ele.
Os olhos da moça fitavam-no sóbrios, como duas luas no meio das trevas.
- A você é que eu não consegui amar - declarou ela com franqueza fria e resoluta.
Gerald estremeceu, e diante dos olhos passou-lhe um clarão que o incendiou. O coração parecia jorrar-lhe numa chama. A consciência desceu-lhe para as mãos, para os pulsos. Não via nada, e só um desejo, insistente, o dominava: matá-la. Os punhos moviam-se e necessitava tê-la nas mãos para que se sentisse satisfeito.
Antes, porém, que avançasse para por o seu plano em prática, já a face de Gudrun denunciava haver-lhe compreendido o propósito, e, num relâmpago, ela correu para a porta. Depois, seguiu para seu quarto e fechou a porta à chave. Tinha medo sem ter perdido a confiança. Sabia que estava à beira de um abismo. Mas sentia-se segura. Calculava poder vencê-lo pela astúcia
Só, no quarto, Gudrun tremia, ainda excitada, com acessos de alegria insensata. Mantinha-se na certeza de que conseguiria enganá-lo. Tudo dependeria da sua presença de espírito. A luta, contudo, seria de morte; Gudrun não ignorava isso. Qualquer passo em falso, e estaria perdida. Experimentava um torpor estranho e ao mesmo tempo agradável, que lhe dava coragem, como alguém que se considera prestes a cair de grande altura, mas que não olha para baixo e que não admite ter medo.
- Vou-me embora depois de amanhã - resolveu consigo mesma.
Não queria, entretanto, que Gerald supusesse que o fazia para fugir, amedrontada com a atitude dele. No fundo não sentia medo. Percebeu que para sua salvação precisava evitar a violência física do rapaz. Mas, ainda fisicamente, ele não lhe infundia grande pavor. Precisava demonstrar isso a ele. Quando o tivesse feito, quando lhe provasse o que queria, poderia deixá-lo para sempre. Até aí, o combate entre os dois, terrível como ela não duvidava que fosse, manter-se-ia insolúvel. Gudrun necessitava ter confiança em si mesma. Por maiores que fossem os calafrios que a tomassem, não se deixaria vencer pelo horror. Gerald não a intimidaria, nem a dominaria, nem manifestaria direitos sobre ela. Gudrun estava pronta a prová-lo, e, uma vez que tivesse feito essa prova, ficaria livre dele para sempre.
Todavia, não fizera semelhante demonstração nem a Gerald nem a si própria, e era isto que a ligava ainda a ele. Estava amarrada a esse homem, não podia viver separada dele; sentou-se na cama, agasalhada, e ali ficou por largas horas meditando sem cessar no seu destino. Dir-se-ia que jamais se esgotavam seus pensamentos.
"Não é como se ele me amasse verdadeiramente! Ele não gosta de mim. Ama cada mulher que encontra. Exibe seus atrativos, goza com a sua irresistibilidade, procura despertar em cada uma a ideia de que seria uma maravilha tê-lo como amante. Sua ignorância sobre as mulheres também faz parte do jogo. Nunca deixa de se ocupar delas. Enfastia-me, porém, tal tipo de sedução tão estúpida e vaidosa. É ridícula essa inesgotável vaidade masculina... de pavões.
"Todos são assim. Birkin! Tire-se-lhe a vaidade e não sobra nada. Na verdade, é a sua ridícula insuficiência e perfeita insignificância que o tornam tão pretensioso.
"Quanto a Loerke, vale mil vezes mais do que Gerald. Este é tão acanhado de espírito, que encontra aí a sua perdição... Na verdade, não tem mais nada a dizer. Esgotou-se a sua provisão de ideias.
"Em todo o caso, Loerke é uma criatura independente. Não anda empertigado com a sua superioridade de macho. Quando imagino Gerald com as suas minas e o seu escritório a funcionar... Que pode haver entre mim e tudo isso? E ele pensando que sabia interessar uma mulher!
"Ao menos, em Dresden, voltarei as costas a tudo isso. Preciso divertir-me. Deve ser bom ir à Ópera Alemã, ao teatro alemão. Vou tomar parte na vida boêmia. Além disso, Loerke é artista, é uma pessoa livre. Quero escapar a tudo isso de que estou farta. Escapar a esse mundo de coisas vulgares, de frases vulgares, de gestos vulgares. Sei que não irei encontrar em Dresden o elixir da vida. Mas ficarei livre desta gente que tem um lar, crianças e conhecidos, tudo, tudo, muito deles. Estarei no meio de pessoas que não possuem nada, que não têm casa, não têm criados, posição social, categoria, nem roda de amigos da mesma laia. Meu Deus quanta complicação! Eles vivem com a precisão de um relógio; aquela monotonia, capaz de enlouquecer! Detesto a vida. Odeio-a. Detesto todos os Geralds incapazes de proporcionar qualquer coisa a alguém!
"Shortlands! Deus do Céu! Pensar que podia viver ali uma semana, a seguinte, outra ainda...
"Não, não posso nem lembrar-me! É demais para mim!"
Interrompeu o solilóquio, verdadeiramente horrorizada, sem mais poder suportar aquela ideia da sucessão maquinal dos dias, uns após outros, ad infinitum... Era um pensamento de lhe fazer bater o coração, levando-a quase à loucura. A terrível escravidão ao tique-taque do relógio, aquele marchar lento dos ponteiros, a eterna repetição das horas e dos dias... eram demasiada tortura para ela. Ah, fugir daquele pesadelo... fugir!
Quase desejou que Gerald estivesse presente, a fim de ver desvanecido o horror de tais pensamentos. Como sofria, ali sozinha em frente ao horrível relógio com o seu eterno tique-taque... As horas soavam... E outra vez tique-taque, tique-taque, com os ponteiros deslizando no mostrador...
Mas Gerald não a poderia salvar. Ele, e o seu corpo, a sua atividade, a sua existência, regulavam-se pelo mesmo tique-taque, pelo mesmo movimento dos ponteiros, pelo bater uniforme das horas. Assim, os beijos dele, os seus abraços. Tudo muito bem compassado.
"Ah! Ah!" Riu consigo mesma. Ria por se sentir tão assustada. "Ah! Ah!" Era mesmo de enlouquecer.
Depois retomando um pouco de serenidade, Gudrun perguntou a si própria se os seus cabelos não embranqueceriam durante aquela noite. Mas não. Continuariam castanhos e ela permaneceria jovem e sadia, como sempre.
Talvez mesmo devesse à sua constituição saudável o sair sempre ilesa em todos os ataques da adversidade. Se fosse doente, teria suas ilusões, suas fantasias. Mas assim como era, como escapar à verdade? Estava colocada diante do relógio da vida. Tinha de enfrentar o destino, sabendo que não havia possibilidade de fugir. Se voltasse as costas ao relógio, como fazia nas estações de estrada de ferro, para olhar as vitrinas de livros, continuaria mesmo assim a ver o mostrador descomunal e branco. Em vão folhearia os livros, modelaria inutilmente as suas estatuetas de barro. Bem sabia que não estava lendo, que não estava trabalhando. Olharia apenas o avanço dos ponteiros, eterno, automático, monótono. Não vivia a realidade. Limitava-se a olhar o transcorrer do tempo. Assemelhava-se, com efeito, a um relógio a que se dá corda, todos os dias, para acertar com o relógio da eternidade... Ela estava ali, como a Dignidade e a Impudência, ou a Impudência e a Dignidade...
A comparação agradava a Gudrun. O rosto dela parecia o disco de um mostrador, redondo, pálido, impassível. Teve vontade de ir se olhar num espelho, mas a ideia de achar o próprio rosto semelhante a um quadrante encheu-a de tamanho horror que procurou pensar em outra coisa qualquer.
Por que ninguém se mostrava bom para ela? Por que não haveria um ente que a tomasse nos braços e a apertasse contra o peito e lhe desse o repouso reparador, profundo e verdadeiro? Por que razão não aparecia alguém que a estreitasse e a mantivesse tranquila e segura, até que ela adormecesse? Ambicionava tanto aquele sono perfeito! Não tinha quem a defendesse durante o sono. Dormiria sempre desprotegida, abandonada e atormentada. Como poderia suportar tanto abandono, tanta incerteza?
Gerald? Seria capaz de a abraçar e proteger durante o sono? Pobre Gerald! Precisava também de alguém que o adormecesse. Era isso o que ele desejava. Por mais que fizesse, não conseguiria senão tornar mais pesado para ela o fardo da vida. Quando estava presente, os pesadelos de Gudrun eram maiores. Representava mais um tormento durante as noites imperfeitas, durante os sonos que não chegavam a amadurecer nem a dar frutos. Claro que roubava a ela o pouco repouso de que dispunha. E talvez o motivo pelo qual a importunava tanto, como uma criancinha esfomeada que chora para que lhe deem o peito. Talvez fosse esse o segredo da paixão que o arrastava para ela. Precisava de Gudrun para poder dormir, para alcançar um pouco de descanso.
Mas por quê? Não era sua mãe. Aceitara, por acaso, por amante, um bebê que precisasse embalar durante a noite? Eis o que era aquele Don Juan: uma criança rabugenta.
E como Gudrun abominava as crianças que choram à noite! Ela estrangularia calmamente o bebê e o enterraria como Hetty Sorel. Sem dúvida o filho de Hetty Sorel chorava durante a noite. E também o de Arthur Donnithorne. Ah, estes Donnithornes, estes Geralds de todo o mundo... Calados de dia, lamurientos depois de se deitarem! Deixá-los tornarem-se instrumentos, simples máquinas, vontades elementares que funcionam como relógios, numa constante repetição. Deixá-los ser assim, deixá-los serem puros maquinismos, dormitando ao som do tique-taque. Gerald que se ocupasse dos seus negócios. Ficará satisfeito o dia todo, Gudrun o sabia muito bem.
O carrinho, com a sua roda submissa, eis a unidade na aritmética da empresa. Depois, a carreta, com duas rodas; o vagão com as quatro; a locomotiva, com oito; outra maior, com dezesseis, e assim por diante, ate o mineiro com as suas mil rodas, e o eletricista, com três mil, e o gerente com vinte mil, e o diretor, finalmente, com cem mil rodas. E eis Gerald, com um milhão de rodízios, dentes e eixos!
Coitado de Gerald! Tantas rodinhas a pôr em movimento... Muito mais complicado do que um cronômetro. Meu Deus, que aborrecimento! Um cronômetro! A alma de Gudrun arrepiava-se só em pensar naquilo. Tantas rodas a contar, e a considerar, e a calcular! Basta! Basta! Há um limite para a capacidade humana em meio a tanta complicação. Ou, quem sabe se não há limite...
Entretanto, Gerald lia, sentado no leito, em seu quarto. Quando Gudrun se retirara, sentira espanto e não soubera o que fazer. Deixou-se abater sabre a cama e la ficou durante uma hora. Sulcavam-lhe o espírito clarões intermitentes. Estava imóvel com a cabeça pendida para o peito.
Pôs-se de pé, finalmente, e lembrou-se de que se preparara para dormir. Devia dormir. Sentia frio. Deitou-se no escuro.
Mas não conseguia suportar a escuridão Aquela sombra densa o sufocava. Levantou-se e acendeu a vela. Permaneceu alguns instantes sentado, olhando em frente. Não pensava em Gudrun nem em ninguém.
Teve vontade de ir buscar um livro. Sempre tivera horror às noites de insônia. Amedrontava-o a ideia de passar mais uma noite em claro, à espera de que o tempo decorresse. Ficou sentado na cama durante horas, lendo imóvel como uma estátua o espírito alerta e ágil, penetrava na leitura, mas não chegava a apreender bem o que lia. Em estado de rígida inconsciência, leu durante quase toda a noite, e só ao amanhecer cansado e infeliz, desgostoso de si mesmo, conseguiu dormir duas hora. Acordou cheio de energia. Gudrun mal se dirigiu a ele. Durante o café, declarou:
- Vou-me embora amanhã.
- Vamos juntos até Innsbruck, para salvar as aparências? - propôs ele.
- Talvez - condescendeu a jovem.
Disse isso entre dois sorvos de café. E a maneira como ela tomou fôlego, logo a seguir, desagradou a Gerald. Ergueu-se apressadamente, disposto a afastar-se dela e foi ocupar-se dos preparativos para a partida no dia seguinte. Depois, munido de provisões, saiu com os esquis, resolvido a passar o dia fora. Ao Wirt - Dono da hospedaria - nota da tradutora), ele explicou que iria ate Marienhutte, ou talvez, mesmo, à aldeia.
Gudrun recebera a manhã repleta de promessas como uma primavera. Sentia aproximar-se o momento da libertação, e uma nova fonte de vida jorrava por toda ela. Sentia prazer em andar de um lado para o outro, empacotando suas roupas, experimentando vestidos, mirando-se no espelho, lendo este ou aquele livro. Sentia que uma existência diferente se preparava parada e mostrava-se contente como uma criança; todos a achavam atraente e bela, com o seu ar carinhoso e exuberante e a irreprimível exteriorização da felicidade. Contudo, sob tal aparência o pensamento da morte não a abandonava.
Saiu à tarde com Loerke. O "amanhã" tornara-se impreciso e isso a deixava ainda mais satisfeita. Podia ir para a Inglaterra com Gerald ou para Dresden com Loerke, ou ainda para Munique, visitar uma amiga que residia lá. Tudo isto podia acontecer no dia seguinte. E o dia de hoje era o limiar branco, irisado de neve, de todas as possibilidades. Todas as possibilidades! Isto significava para Gudrun o encanto, o sortilégio adorável, cintilante, indefinido, a pura ilusão. Todas as possibilidades, mas a morte é inevitável, e nada é tão possível como a morte.
Não desejava que as coisas tomassem uma feição material e definida. Gostaria que, de repente, no dia seguinte, no meio da viagem, se visse impelida numa direção diferente, por qualquer circunstância inesperada. E assim, embora fosse com Loerke, pela última vez, correr sobre a neve, evitava as conversas serias ou qualquer coisa que se relacionasse com o futuro.
Loerke, por seu lado, não inspirava seriedade. Trazia na cabeça um gorro de veludo pardo, que a tornava redonda como uma castanha; e, com as abas caídas sobre o rosto - de onde escapava uma mecha de cabelos finos e escuros revoluteando ao vento - com seus olhos negros de elfo, e a pele trigueira, luzidia e fina que se encarquilhava nos cantos dando estranhas expressões àquele rosto, o escultor parecia antes uma criança com feições de homem, ou talvez se assemelhasse a uma morcego. Aquele vulto, vestido de lã grossa, verde, parecia tão débil, tão chétif, tão estranhamente diferente dos outros!
Haviam arranjado um trenó pequeno para os dois, e ambos se puseram a caminho, com dificuldade, entre os taludes de neve refulgente que lhes queimava as faces já crestadas. Riam sem cessar, desfiando uma série ininterrupta de brincadeiras e anedotas em vários idiomas. A fantasia se transformava era realidade. Sentiam-se felizes em atirar projéteis coloridos de bom humor e de capricho. Preferiam que a amizade se conservasse ao nível da brincadeira, uma espécie de passatempo.
Loerke não levava muito a sério os desportos de inverno. Não colocava neles o ardor que Gerald colocava nem tinha o mesmo entusiasmo do outro. Gudrun gostava disso; estava fatigada, bastante fatigada pela intensidade de movimento a que a havia obrigado a energia física do amante. Loerke deixava o trenó descer ao acaso, alegremente, como uma folha ao vento e quando, numa volta do percurso caíam ambos sobre a neve, punham-se de pé vagarosamente, verificavam não estar machucados e ali no solo alvíssimo, desatavam a dar gargalhadas. Gudrun sabia que o seu companheiro diria graças atrevidas quando vagueasse no inferno, se estivesse bem disposto e ela gostava de senti-lo assim. Era elevar-se acima das realidades do mundo, fugir à atualidade monótona e às próprias contingências da vida. Divertiram-se dessa maneira ate o pôr do sol, satisfeitíssimos, descuidados, indiferentes ao decorrer do tempo. Quando chegaram ao sopé de uma colina, o trenó parou e Loerke disse:
- Espere! - e exibiu, tirando não se sabe de onde, uma enorme garrafa térmica, um pacote de bolachas e um frasco de Schnapps.
- Oh, Loerke! - exclamou Gudrun. - Que inspiração! Que comble de joie, realmente! De que é esta Schnapps? - Aguardente - nota da tradutora).
Ele a encarou a rir e disse:
- Heidelbeere - Baga de murta - nota da tradutora).
- Sim? E isso se encontra debaixo da neve? Parece destilada do próprio gelo. - Gudrun cheirou e tornou a cheirar o gargalo da garrafa. Nota-se o aroma... Esplêndido. É como se cheirássemos a planta através da neve.
Bateu com o pé no chão muito de leve. Loerke ajoelhou-se e assobiou; depois aproximou o rosto da superfície gelada. Seus olhos sombrios cintilavam.
- Ah! Ah! - ria Gudrun, animada pela maneira caprichosa que ele tinha de zombar das suas extravagâncias. Estava sempre zombando e escarnecendo de tudo o que ela dizia ou fazia. Mas as réplicas do rapaz eram mais engraçadas do que tudo o que as provocava; a solução estava em rir-se ainda mais para se sentir vingada...
Ouviam-se as vozes deles ressoando como um retinir argentino como sinos na atmosfera enregelaste, no ar imóvel daquele começo de crepúsculo. Como aquilo tudo era agradável! E como eram perfeitos, na calma absoluta, aquele isolamento e aquelas diversões!
Gudrun sorveu o café quente, cujo aroma, naquele ambiente frio volteou em torno deles como uma abelha zumbindo em redor das flores; bebeu uns goles de Heidelbeerwasser, e comeu pastilhas geladas, doces, macias. Coisas tão boas. Como tudo aquilo possuía sabor, perfume, como rescendia bem. E como, na tranquilidade admirável, a ressonância era bela, naquele princípio de crepúsculo!
- Parte amanhã? - indagou ele, por fim.
- Parto.
Houve uma pausa. A tarde parecia morrer no calor silencioso que se espalhava por toda a parte, até ao infinito... que estava ali mesmo, a mão.
- Wohin? Para onde? - nota da tradutora)
Eis o problema: wohin? Aonde? Que palavra encantadora! Jamais responder a essa voz... Deixá-la repercutir indefinidamente...
- Ignoro - declarou, sorrindo.
Loerke absorveu o sorriso que a moça lhe dirigia. Murmurou:
- Nunca se sabe.
- Nunca - repetiu ela.
Estabeleceu-se uma nova pausa. Loerke trincou bolachas, como um coelhinho a comer folhas.
- Mas - objetou - para onde compra passagem?
- Céus! - gritou ela. - É preciso comprar passagem!
Era um contratempo. Gudrun via-se na bilheteria da estação. Mas, de súbito, teve uma ideia que a acalmou. Respirou desafogada.
- Não somos obrigados a ir...
- É claro.
- Quero dizer que não somos obrigados a chegar ao término da viagem.
A descoberta interessou-o. Podia-se comprar passagem e não ir até o destino indicado nela. Mudava-se de ideia, alterava-se o plano! Grande ideia!
- Compre então uma passagem para Londres - aconselhou ele - Não é preciso ir até o fim.
- Ótimo!
Loerke despejou café num copo de estanho.
- Não me quer dizer para onde vai?
- Não sei ainda para onde vou...
O homem lançou-lhe um olhar zombeteiro; depois, encheu as bochechas de ar, como Zéfiro, e soprou sobre a neve.
- Para o lado da Alemanha... - começou.
- Também acho - concordou ela.
De súbito tiveram a impressão de que se aproximava deles um vulto branco. Era Gerald. O coração de Gudrun palpitou de medo, de um profundo e repentino medo. Pôs-se logo de pé.
- Informaram-me onde estavam - disse o recém-chegado numa voz que retiniu como uma sentença na atmosfera crepuscular.
- Maria! Virgem Maria - nota da tradutora).
- Você aparece como um fantasma! - declarou o escultor.
Gerald não respondeu. A sua presença parecia, na verdade, fantástica, sobrenatural.
Loerke sacudiu a garrafa térmica e depois virou-a para baixo. Caíram apenas algumas gotas escuras.
- Está vazia - disse.
Para Gerald, a figura exótica do alemão surgia muito nítida, como se a estivesse vendo através de um binóculo. E como era desagradável aquela criatura! Gostaria de removê-lo dali.
O outro procurava, agora, bolachas no pacote.
- Ainda há algumas - disse ele.
Sem mudar de posição dentro do trenó, estendeu o braço para Gudrun, que remexeu no pacote e tirou uma bolacha. Ia oferecê-la a Gerald, mas a atitude deste era de tal modo denunciadora de uma recusa, que Loerke fez um gesto indeciso e pôs o embrulho de lado. Em seguida, pegou no frasco e mirou-o contra a luz.
- Temos um resto de Schnapps - disse para si mesmo.
Ergueu a garrafa num gesto educado, e curvando-se para Gudrun de forma engraçada, murmurou:
- Gnädiges Fraulein, wohl...
Ouviu-se um estalo, a garrafa voou e Loerke fez um movimento de recuo. Os três, violentamente impressionados, tremiam incontrolavelmente.
Loerke, dirigindo-se a Gerald, com um brilho demoníaco nos olhos, declarou em tom irônico:
- Muito bem! C'est le sport, sans doute - É o esporte, sem dúvida - nota da tradutora).
No mesmo instante já estava sentado sobre a neve numa posição ridícula. O punho de Gerald atingira-o na cabeça. Mas levantou-se logo, trêmulo, fitando o agressor com o seu olhar diabólico e satírico:
- Vive le héros, vive!...
Não pôde acabar. Gerald acertara-lhe outro murro, desta vez em cheio no rosto, mandando-o para longe como se fosse um boneco de palha.
Gudrun, porém, interpôs-se entre os dois. Ergueu a mão e bateu no peito e no rosto de Gerald, que ficou perplexo como se tivesse visto explodir uma bomba. Sua alma sufocava de espanto e de dor. Mas logo soltou uma gargalhada e avançou para a moça, tentando agarrá-la, como para colher o fruto do seu desejo. Ia, finalmente, satisfazê-lo.
Com as mãos rijas, dominadoras, impetuosas, prendeu a garganta de Gudrun. Tão bela, aquela garganta! Bela e suave, embora lá dentro jazessem as cordas da vida - e ele sentiu-a deslizar sob a pressão dos dedos. Eis o que iria esmagar, o que iria destruir. Suprema felicidade! Satisfação, enfim!
Olhava a face de Gudrun, agora feia, com a consciência prestes a desaparecer; via-lhe os olhos rolarem em estertor. Como se tornara horrível... Mas que prazer ele sentia... Como era bom, aquele gozo final! Nem percebia que ela se debatia, resistia... O esforço que ela fazia era, afinal de contas, sensual, também. E quanto mais forte o estrangulamento, maior para ambos o frenesi das delícias, ate atingirem o zênite. Depois, a luta afrouxou, os movimentos dela diminuíram e ela pouco a pouco se apaziguou.
Loerke conseguira endireitar-se sobre a neve, porém estava muito tonto para se erguer. Apenas seus olhos revelavam estar consciente do que se passava.
- Monsieur - disse ele, com voz débil e indignada - quand vous aurez fini - Senhor, quando tiver terminado - nota da tradutora).
Gerald revoltou-se, movido pelo desprezo e pela repugnância que sentia, repugnância que o tomava todo, que o enchia de náuseas. Que estaria fazendo? A que excesso se iria ele entregar? Como podia se preocupar tanto assim com aquela mulher, para que se dignasse a matá-la? Matá-la com suas próprias mãos...
Experimentou, então, certa fraqueza, certo entorpecimento, um diminuir de forças, como que o degelo da energia. Sem perceber, descerrara os punhos e Gudrun caíra a seus pés.
Sentiu-se muito enfraquecido. Tentou ainda um esforço, deu meia volta, e, como uma rajada de vento, partiu para longe, para além...
"Não a quero matar, não quero", ia repetindo, numa ultima confissão, enquanto subia a colina, fraco, esgotado, procurando, por instinto, fugir ao encontro de quem quer que fosse. "É demais. Preciso dormir. É demais." Sentia-se esgotado pelas náuseas.
Estava cansado, mas não queria repousar. Queria ir sempre até o fim. Nunca parar, ate descobrir o fim. Assim errou, perdido e sem forças, sem pensar em nada, enquanto as pernas o suportaram.
O poente deixara no céu uma luz encantada e irreal, entre rosa e azul, e a noite azulada e fria vinha mergulhando sobre a neve. Lá embaixo, atrás dele, no extenso leito alvo, notavam-se ainda duas figuras pequeninas; Gudrun, de joelhos, como quem se prepara para um suplício, e Loerke, sentado junto dela. Nada mais.
Gerald caminhava trôpego no aclive da colina, entre as sombras azuladas, sempre a subir, sem dar conta do que fazia, sem perceber que estava extenuado. Havia, à esquerda, uma descida rápida, cheia de enormes pedregulhos negros estriados de neve, e a neve serpenteava em redor da escuridão da pedra em veios longos e caprichosos. Não se ouvia o menor ruído. Nenhum som cortava o silêncio profundo.
Brilhava agora, por cima de Gerald, um disco lunar, e aquele novo esplendor aumentava-lhe a tortura. Surgia, ah!, cintilante, inexorável; não haveria maneira de evitar aquela cintilação. Contudo, Gerald queria chegar ao fim, sentia-se exausto e farto da vida. Seu espírito mantinha-se lúcido.
Continuava a andar com dificuldade; algumas vezes tinha de atravessar uma vertente de rocha viva, de onde o vento expulsara toda a neve. Naqueles lugares ele sentia medo de cair, um medo intenso de escorregar. E, naquela altitude, a ventania soprava rija, subjugando-o quase e entorpecendo-o com o frio. Todavia, não chegara ainda ao fim: era preciso continuar sem descanso. E o horror que o impelia para frente não permitia que ele parasse um só instante.
Tendo atingido o espinhaço do monte, viu a vaga sombra de qualquer coisa mais alta ainda, à sua frente. Sempre mais alta, sempre mais alta. Calculava encontrar-se na direção dos montes onde se achava a Marienhutte e por onde se atingia a descida do outro flanco da montanha. Mas não tinha muita consciência desses detalhes. Ansiava apenas por continuar, avançar mais além, enquanto pudesse mover-se ir, ir sempre, ate que tudo se acabasse. Perdera por completo o sentido da orientação. Entretanto, por um instinto vital, que ainda lhe restava, procurou pôr os pés nos vestígios de outros esquis que por ah houvessem passado.
Encontrou uma descida escarpada e deixou-se escorregar por ela. A velocidade trazia-lhe calafrios. Não possuía bastão, nem nada a que se apoiasse. A certa altura conseguiu parar e foi andando com cuidado, na obscuridade luminosa. Sentia tanto frio como se já estivesse no repouso eterno. Passava agora entre duas cristas, num vale. Vinha depois uma curva. Subiria o flanco e continuaria a errar pelo côncavo do terreno? Como sentia a vida por um fio! Talvez escalasse a montanha. A neve ali era dura, firme. Avançou. Elevava-se qualquer coisa à sua frente. Aproximou-se, levado por uma estranha curiosidade.
Era um cruzeiro, meio soterrado. No alto de um poste estava a imagem de Cristo, abrigada por um teto em declive. Gerald afastou-se. Alguém se preparava para o matar. Sentia tanto medo de ser assassinado! Mas o terror atingia-o exteriormente, como se fosse o seu próprio fantasma.
E afinal, para que ter medo? Aquilo tinha de acontecer. Sena assassinado! Olhou em volta, aflito, e viu a neve, as rochas as vertentes pálidas e sombrias do mundo que se erguiam acima dele. O destino arrastava-o para a morte, não havia a menor dúvida. E a morte levantava-se, naquele momento, para que Gerald não pudesse escapar...
Jesus! Estava, pois, destinado a isso? Jesus! Iam desferir o golpe. Não tardaria a ser morto. Prosseguiu ao acaso, ergueu as mãos acima da cabeça para sentir melhor o que devia acontecer, e esperou o instante em que chegaria o fim, em que cessaria de existir. Mas não era ainda o momento final.
Tinha alcançado um leito de neve cercado de taludes íngremes, de precipícios, e de onde partia um atalho que conduzia ao alto da montanha. Gerald vagou por ali, inconsciente, até que escorregou e caiu; ao bater no chão, sentiu que a alma se desprendia, e o sono chegou imediatamente.


Capítulo XXXI
"Exeunt"
Quando, no dia seguinte, trouxeram o cadáver para a hospedaria, Gudrun estava fechada no quarto. Da janela, viu aproximarem-se os homens que conduziam um fardo. Continuou sentada, tranquilamente, e os minutos foram passando.
Vieram bater à porta. Gudrun abriu. Estava ali uma mulher que lhe disse em voz baixa, com muita deferência:
- Já o encontraram, minha senhora.
- Morto?
- Sim, senhora.
Gudrun não sabia o que responder. Que poderia dizer? Quais os seus verdadeiros sentimentos na ocasião? Que esperariam dela? Permaneceu fria e perplexa.
- Obrigada - disse, tornando a fechar a porta. A mulher retirou-se, desgostosa. Nem uma palavra, nem uma lágrima. Aquela senhora era insensível; era uma mulher sem coração.
Gudrun sentou-se no quarto, e ficou impassível e pálida. Que havia de fazer? Chorar não podia, e muito menos representar cenas teatrais. Era incapaz de se transformar. Ficou assim imóvel, ocultando-se da curiosidade dos outros. O seu desejo era evitar contatos maiores com os acontecimentos. Limitou-se a redigir um extenso telegrama a Úrsula e Birkin.
De tarde, porém, ergueu-se bruscamente, disposta a avistar-se com Loerke. Lançou um olhar apreensivo à porta do aposento que fora de Gerald. Por nada deste mundo entraria naquele quarto.
Encontrou o escultor sozinho no andar térreo, recostado num sofá. Foi diretamente a ele.
- Não é verdade, não é? - começou por lhe dizer.
O outro a fitou. A face enrugou-se num sorriso de tristeza. Encolheu os ombros.
- Verdade? - repetiu.
- Nós não o matamos - explicou ela.
Loerke não gostou daquela maneira pela qual ela se dirigia a ele. Encolheu os ombros, fatigado.
- Coisas que acontecem - observou.
Gudrun olhou para ele. Viu-o esmagado pela tragédia, aniquilado, mas, do mesmo modo que ela, insensível à dor e incapaz de qualquer resolução. Que coisa angustiosa, vazia, vazia, vazia, Senhor!
Subiu novamente, esperando a chegada de Úrsula e Birkin. Gostaria de partir daquele lugar o mais depressa possível. Não poderia pensar nem sentir ate sair dali.
Passou-se o dia, veio o dia seguinte. Gudrun ouviu o trenó que se aproximava, assistiu à entrada dos viajantes e recuou na janela.
Úrsula dirigiu-se logo ao quarto da irmã.
- Gudrun! - exclamou, com as lágrimas a correrem pela face. Apertou a outra nos braços. Gudrun escondeu o rosto no peito da irmã, mas ainda desta vez não pôde escapar ao frio demônio da ironia que lhe enregelava o coração.
"Ah! É este o sistema usado em semelhantes conjunturas, pensou.
Não conseguia chorar, e o espetáculo da sua expressão impassível, rígida, sem mágoa, fez secar o pranto da recém-chegada. Logo notaram que não tinham nada a dizer uma à outra.
- Aborreceram-se de ter de voltar aqui? - perguntou finalmente Gudrun.
Úrsula fitou-a, um tanto desconcertada, dizendo:
- Não tinha pensado nisso.
- Acho-me cruel por tê-los obrigado a regressar - continuou Gudrun. - Mas não consigo enfrentar os outros.
- Imagino - foi a resposta da irmã, em tom seco.
Birkin bateu à porta e entrou. Estava pálido e compungido.
Gudrun percebeu que estava a par de tudo. O cunhado estendeu-lhe a mão, declarando:
- Acabou-se a nossa excursão!
Ela o fitou, assustada.
Os três permaneceram calados, sem ter o que dizer. Por fim, Úrsula perguntou, em voz baixa.
- Você já o viu?
Birkin lançou-lhe um olhar duro e frio, sem se dar ao trabalho de responder.
- Você o viu? - repetiu ela.
- Vi-o, sim - respondeu o marido, rispidamente. Depois, voltou-se para Gudrun:
- Já tomou alguma providência?
- Nada, absolutamente nada.
Aterrorizavam-na as formalidades a cumprir.
- Loerke diz que Gerald chegou quando vocês estavam sentados no trenó, perto de Rudelbahn, que trocaram algumas palavras e que Gerald se afastou. Que foi que disseram? Preciso estar a par de tudo para o caso de ser necessário contar às autoridades.
Gudrun ergueu os olhos para Birkin, ávida, muda, perturbada como uma criança.
- Ele não chegou sequer a falar - explicou. - Esmurrou Loerke e atirou-o ao chão. A mim, quase estrangulou. Depois, foi-se embora.
Para si mesma, ia dizendo:
"Bela amostra do eterno triângulo!" E afastou-se, sorrindo intimamente, pensando que, afinal, a luta se travara entre ela e Gerald, sem que a presença do outro fosse mais do que um simples incidente, talvez uma contingência inevitável; no fim de contas, sem outra classificação qualquer. Mas iria deixá-los imaginar que fora uma consequência do eterno triângulo, da trindade odiosa. Era mais fácil para a compreensão dos outros.
Birkin retirou-se, sempre com as mesmas maneiras secas e distraídas. Mas Gudrun tinha a certeza de que ele a ajudaria, apesar de tudo, e que a tiraria dos apuros. "Sim, que ele se ocupe de tudo", pensou ela, sorrindo desdenhosa, "visto que sabe tão bem ocupar-se dos outros. Deixá-lo fazer, pois, todo o trabalho".
E Birkin foi outra vez ver Gerald. Haviam-se estimado tanto! Era, todavia, enfado o que mais experimentava ao ver aquele corpo inerte ali estendido. Tão inerte, tão frio, tão penetrado da morte, nada mais do que uma carcaça! Perante aquele espetáculo, sentia geladas suas entranhas. E ficou em pé, contemplando o frio despojo mortal daquele que tinha sido Gerald.
Aquilo era um cadáver enregelado. Birkin lembrava-se de que uma vez encontrara um coelho hirto, em cima da neve; parecia teso como um cabo de vassoura, quando o ergueu do chão. E agora ali estava Gerald, igualmente duro como uma tábua, mas enroscado como se estivesse dormindo. Contudo, a rigidez era evidente e horrível. Birkin confrangeu-se, tomado de uma imensa dor. O quarto devia ser aquecido para se poder desenregelar o cadáver. Os membros se partiriam como gelo, ou como madeira, se os forçassem a tomar a devida posição.
Aproximou-se e tocou a face do morto, e de novo as suas entranhas sensíveis se contraíram mortificadas por uma terrível angústia. Pensou se ele próprio não estaria também sendo congelado. No bigode curto e louro de Gerald o último sopro da vida solidificara-se num pequeno pedaço de gelo, por baixo das narinas.
Eis o que era agora Gerald!
Apalpou outra vez os cabelos ásperos, de cor quase luminosa naquele corpo abandonado. Estavam frios, frios: dir-se-iam até maléficos. O coração de Birkin começou a endurecer. Tinha estimado tanto o outro! Mas, agora, olhando para aquelas formas elegantes, para o rosto estranhamente colorido, com o seu nariz fino e apertado, com as suas maçãs viris, achava tudo frio e rijo como uma pedra de gelo. Tinha querido tanto a Gerald! Que diferença havia entre pensar e sentir? O cérebro tornava-se semelhante à água quase a congelar. Tão frio, tão frio! Nos braços julgava ter uma montanha de neve e um peso mais frio ainda o dominava por dentro, no coração e nas entranhas.
Depois saiu, e foi ver o local onde se verificara o acidente, chegando finalmente à concavidade situada no meio do desfiladeiro, perto da garganta da montanha. O dia estava cinzento e era o terceiro de uma série de dias tristonhos e calmos. Tudo em redor era branco, nevado, pálido, exceto as rochas negras que, às vezes, pareciam raízes salientes e outras vezes se mostravam perfeitamente lisas e nuas. A certa distância descia uma vertente quase a pique, onde se notavam manchas de rochedos escuros.
Aquele lugar evocava uma panela pouco funda que jazesse entre neve e pedregulhos, num mundo perto das nuvens. Ali adormecera Gerald. Em volta os guias tinham pregado estacas de ferro, de maneira a poderem içar-se com o auxílio de uma comprida corda amarrada a elas; assim atingiriam, para além dos cimos denteados, a área de neve endurecida, que se confundia como havia picos aguçados erguidos para o firmamento, como compridos pregos muito alvos.
Gerald poderia ter encontrado aquela corda. Poderia ter subido por ela ate à crista da montanha. Poderia ter ouvido os cães na Marienhutte e achar ali um abrigo. E ainda poderia ter descido o flanco do lado sul, até o vale dos pinheiros e alcançar a estrada imperial que segue para a Itália.
Sim, teria podido! E depois? A estrada imperial? O sul? A Itália? E depois, depois? Seria uma saída? Ou antes, uma forma de regressar? Birkin, parado naquelas alturas, naquela atmosfera angustiante, olhava para os picos e para o caminho meridional. Haveria vantagem em seguir para o sul, para a Itália? Em descer pela velha estrada imperial?
Resolveu voltar. Ou seu coração se partiria, ou teria que deixar de se atormentar. Mais valia acabar com aquele sofrimento. Seja qual for o mistério que criou o homem no universo, trata-se de um mistério extra-humano, tem os seus fins próprios, e o homem não lhe serve de critério. Antes deixar de parte todo esse mistério tão vasto da criação. Preferível ocupar-se de si mesmo, e abandonar os problemas universais.
"Deus não pode passar sem o homem." Eis o que disse um dos grandes mestres religiosos da França. Mas, com certeza, o aforismo é falso. Deus pôde dispensar o ictiossauro e o mastodonte. Estes monstros não conseguiram desenvolver-se na criação, e Deus, mistério criador, acabou por dispensá-los. Da mesma forma podia desinteressar-se do homem, se este não lograsse progredir no mundo. O eterno mistério da criação disporia da humanidade, substituindo-a por uma espécie de seres mais per feitos. Exatamente como o cavalo tomou o lugar do mastodonte.
Tal ideia serviu de grande consolo a Birkin. Se a humanidade enveredar por um beco sem saída, se esgotar aí as suas energias, a força criadora produzirá outros entes, mais delicados, maravilhosos, e uma raça nova ajudará melhor o processo da criação. Esse trabalho não acabará nunca. O segredo da vida é insondável, infalível, inesgotável e eterno. As raças aparecem e desaparecem, as espécies passam e morrem, mas dão lugar a que outras surjam, mais belas ou tanto como as anteriores, porém sempre dignas de admiração. A fonte, a origem e incorruptível e não seca jamais. É impenetrável e não tem limites. Pode produzir milagres, inventar novas raças e novas espécies, sempre que lhe apetecer, novas formas de espírito e de corpo. Ser homem não é nada comparado com as possibilidades do mistério criador. Conseguir formar um coração palpitante de vida é a perfeição, perfeição inultrapassável. Humano ou sobre-humano, isso não tem importância. O coração perfeito estremece cheio de vitalidade e denuncia uma espécie nova, ainda não nascida.
Birkin voltou à hospedaria para tornar a ver Gerald. Entrou no quarto mortuário e sentou-se à beira da cama. Morto, morto e tão frio!

César, tirano, morto, em pó se fez... Agora serve
Para vedar alguma fenda, interceptando o ar...

Versos do 5º ato do Hamlet - A citação de Lawrence, feita decerto de memória, não é textual - nota da tradutora).
Nenhum eco do que havia sido Gerald. Só uma substância estranha, gelada, nada mais. Nada mais!
Terrivelmente cansado, Birkin saiu para se ocupar das formalidades a cumprir. Fez tudo cheio de calma, sem a menor perturbação. Declamar, delirar, assumir atitudes de tragédia, tudo isso causaria complicações inúteis. Era melhor conservar-se calmo e suportar os fatos com a alma paciente, sossegada.
Mas quando voltou, à noite, e viu Gerald entre dois castiçais, ele, que ali fora atraído pela exigência da amizade, sentiu o coração apertado e a própria vela que tinha na mão esteve a cair; soltou um gemido, e as lágrimas rebentaram-lhe de súbito. Sentou-se numa cadeira, tomado por um repentino pranto. Úrsula, que o havia seguido, recuou espantada, ao dar para o marido de cabeça baixa e com o corpo sacudido pelos soluços. O choro que o agitava fazia um rumor horrível e singular.
"Não queria que isto acontecesse, não queria", repetia ele consigo mesmo. Úrsula não pôde deixar de lembrar-se das palavras do Kaiser: "Ich habe es nicht gewollf." - Não tinha desejado isto - nota do tradutora). Olhou para Rupert, quase aterrada.
Ele se calou, de repente, mas ficou com o corpo inclinado, escondendo o rosto nas mãos. Enxugou, às escondidas, as lágrimas que tinha nos olhos. Mas no mesmo instante ergueu fitou a mulher com olhos sombrios e rancorosos.
- Era preferível que ele me tivesse estimado. Tantas vezes eu lhe propus...
A outra, muito pálida e assustada, murmurou sem descerrar lábios:
- Que teriam lucrado com isso?
-Muito - volveu ele. Muito!
Esqueceu-se da mulher e tornou a olhar para Gerald. Com o rosto estranhamente levantado, como quem se indigna por algum insulto acabado de ouvir, numa atitude orgulhosa. Birkin examinou o rosto mudo, frio, material, do cadáver, que tinha uma cor azulada. Aquele rosto lançava flechas de gelo ao coração de Birkin. Frio, mudo, material? Rupert lembrava-se como uma vez Gerald lhe apertara a mão de forma quente e afetuosa, um significativa de amizade definitiva. Mas aquilo durara um segundo depois desaparecera, desaparecera para sempre. Se Gerald houvesse mantido fidelidade à promessa, a morte não teria tanta importância. Os que morrem e que, antes de morrer, são suscetíveis de crer e de amar, permanecem vivos, não cessam de existir. Perduram no ente amado. Gerald poderia viver ainda no tirito de Birkin, mesmo depois do seu acidente. Viveria com seu amigo a vida do além.
Mas ali estava, destruído, como argila, como gelo corrompido. Birkin observou-lhe os dedos azulados, contemplou aquela massa inerte. Recordou-se de um cavalo morto que um dia encontrara: substância repugnante de um corpo que fora másculo. Recordou-se também da bela face de certa pessoa que ele havia amado tanto e que morrera julgando ceder ao mistério da natureza essas feições, mesmo paradas eram formosas, ninguém as poderia supor frias, mudas, materializadas. Ninguém as evocaria sem acreditar no mistério, sem que uma fé nova e profunda na vida deixasse de vir aquecer-lhe a alma.
E Gerald? Aquele cético! Deixava os corações frios, gelados, incapazes de palpitar. O pai dele era tão introvertido que chegava a incomodar: mas não tinha aquele aspecto terrível da matéria muda. Birkin não se cansava de examiná-lo.
Úrsula, de pé ao lado do marido, não deixava de acompanhar os movimentos deste em sua contemplação ao rosto do morto. Eram duas faces igualmente imóveis. A chama das velas oscilava no ar glacial, no meio do silêncio intenso.
- Ainda não o viu bastante? - perguntou a mulher.
Rupert levantou-se, dizendo:
- É tão doloroso para mim!
- O quê? A morte dele?
Os olhares dos dois se encontraram. Rupert conservou-se calado.
- Você tem a mim - prosseguiu ela.
O marido sorriu e beijou-a.
- Se eu morrer, saberá que eu não a abandonei.
- E eu?
- Você também não me abandonará. Não precisaremos separar-nos na morte.
Úrsula tomou-lhe a mão.
- Sente necessidade de sofrer tanto por causa de Gerald? - inquiriu ela.
- Sinto - respondeu o marido.

 

Partiram. O cadáver de Gerald foi enviado para a Inglaterra, onde devia ser enterrado. Birkin e Úrsula acompanharam o cadáver juntamente com um irmão do defunto. Os irmãos Criches é que insistiam pela inumação no solo da pátria. Birkin achava preferível ter deixado o morto nos Alpes, debaixo da neve. Mas a família opôs-se com grandes protestos.
Gudrun foi para Dresden. Não escreveu de lá, pormenorizadamente, para ninguém. Úrsula ficou com o marido no moinho durante algumas semanas. Estavam ambos muito tranquilos.
- Sente falta de Gerald? - perguntou ela um dia.
- Sinto.
- Não sou bastante para você?
- Não - respondeu ele. - Você me satisfaz como mulher. Para mim você resume todas as mulheres. Mas sinto falta de um homem como amigo, tão eterno como você e eu.
- É por que não sou suficiente? Você é tudo para mim. Não quero mais ninguém além de você. Por que não acontece o mesmo com você?
- Junto a você, Úrsula, posso passar a vida sem mais ninguém. Mas, para que a nossa vida seja completa, realmente feliz, necessito de uma união eterna com um homem também; é outra espécie de afeição.
- Não compreendo isso - volveu ela - É uma teimosia, uma teoria, uma perversidade.
- Talvez... - concordou ele.
- Não se pode ter duas espécies de amor. Por que você há de ser assim?
- Vejo que é impossível para eu satisfazer esse desejo. No entanto, queria-o imensamente.
- Nunca me seria possível. É coisa falsa, irrealizável.
- Não penso assim - foi a resposta de Birkin.

Capítulo XXIV
Morte e amor
Thomas Crich morria lentamente, com terrível sofrimento. A todos parecia impossível que o fio daquela existência pudesse ser tão estirado e a tal ponto adelgaçado, sem se quebrar. O doente jazia fraco e extenuado, apenas sustentado pela morfina que lhe administravam juntamente com outros remédios, ingeridos com dificuldade. Estava semiconsciente; um tênue cordão de compreensão ainda ligava a escuridão da morte à claridade da vida. Contudo, a vontade mantinha-se intacta, integral, completa. Queria em volta de si um silêncio absoluto.
Qualquer presença o fatigava, exceto a das enfermeiras. Todas as manhãs Gerald vinha vê-lo pensando encontrá-lo morto; mas descobria, invariavelmente, a mesma face transparente, o mesmo terrível cabelo escuro emoldurando um rosto cor de cera, e os mesmos olhos espantados e sombrios que pareciam desfazer-se em trevas, conservando lá dentro um débil vislumbre de vida.
E sempre que esse olhar desvairado caía sobre ele, Gerald sentia ferver-lhe nas entranhas uma espécie de revolta, que se transmitia através de todo o corpo, perturbando-lhe o espírito, enlouquecendo-o, quase.
Lá ficava ele, imóvel, cheio de vida, cintilando em seus cabelos louros. E o ar louro e cintilante daquele ser estranho e inevitável irritava o moribundo e chegava a aumentar-lhe a febre. Não podia suportar a expressão sobrenatural dos olhos azuis de Gerald, descendo sobre o leito de morte. Isto, porém, durava só uns instantes. Logo chegava o momento de se separarem, e pai e filho fitavam-se mais uma vez e despediam-se.
Durante muito tempo, Gerald conservou perfeito sangue-frio permanecendo ali com a maior serenidade. Mas o pavor acabou por desnorteá-lo. Tinha medo de sucumbir também. Era preciso, entretanto, submeter-se àquela tortura. Um vago desejo perverso o levava a observar o pai no transe derradeiro. E, diariamente o choque horrível daquele espetáculo o fazia estremecer de pavor. Gerald sentia vontade de se atirar ao chão, como se a espada de Democles lhe pendesse diretamente sobre a cabeça.
Não era possível esquivar-se; estava amarrado ao pai, devia assistir-lhe a agonia. Mas a vontade de Thomas Crich não se dobrava e recusava-se a acreditar na morte. Quando esta, afinal, se apoderasse dele, que remédio haveria senão aceitá-la? Contudo, a mesma vontade poderia persistir além da terra. Assim era, também, o filho: vontade intacta, independente da destruição física e daquele ser que sucumbia no leito.
Era um sacrifício contemplar o pai a dissolver-se e a ingressar no outro mundo, sem enfraquecimento da energia moral, sem condescender com a onipotência da morte! Como um pele-vermelha sujeito à tortura, Gerald submeter-se-ia à prova de assistir àquela lenta evolução para o nada sem dar mostras de dor ou de fraqueza. Triunfaria da experiência, tanto mais que desejava aquele passamento, quase até o impunha. Era como se ele mesmo esperasse a morte, embora o coração se lhe confrangesse de horror. Mas era o que julgava inevitável, afinal de contas.
No esforço de tão cruel missão, Gerald foi perdendo o domínio da sua vida quotidiana e profissional. Tudo quanto, anteriormente, valia para ele alguma coisa, passou a não ter o menor valor. O trabalho, o prazer, tudo foi posto de lado. Mas se ocupava dos seus negócios, trabalhando maquinalmente. A verdadeira tarefa consistia nesse lúgubre combate contra o destino dentro da sua própria alma. A vontade havia de vencer, fossem quais fossem os acontecimentos; jamais se curvaria, jamais reconheceria qualquer amo: a morte jamais o dominaria.
No decorrer da luta, aniquilava-se tudo quanto havia sido, e a vida em volta de Gerald assemelhava-se a um búzio vazio onde rugia a voz do mar, sussurro de que ele participava exteriormente; dentro da concha deserta existiam trevas, espaço destinado à morte apavorante. Gerald compreendia que era preciso adquirir coragem, ou cairia no abismo negro e profundo que se lhe cavava no meio da própria alma. A vontade preservava-lhe a vida externa, e a inteligência das coisas exteriores íntegras, mas a pressão tornava-se excessiva. Era preciso achar qualquer coisa que lhe garantisse o equilíbrio. Devia encontrar aquilo que pudesse acompanhá-lo no vácuo aberto em sua alma, de forma a preenchê-lo, e contrabalançasse assim a força exercida de dentro para fora com outra que viesse de fora para dentro - pois, dia a dia, sentia-se mais parecido com uma bolha de ar cheia de sombras, em volta da qual girasse a sua consciência.
O espírito impelia-o para Gudrun. Desprezava tudo e só desejava entrar em contato com ela. Gostava de acompanhá-la ao estúdio, de ficar em sua companhia, de conversar com ela. Agradava-lhe estar naquele quarto, mexendo ao acaso nas ferramentas, nos pedaços de barro, nas estatuetas já modeladas - tão caprichosas e grotescas! - e observá-las sem mesmo as compreender. Gudrun sentia-o sempre por perto, perseguindo-a como uma sombra.
- Ouça - disse-lhe Gerald certo dia, de forma singular indecisa. - Por que não fica para jantar? Eu gostaria muito!
Gudrun sobressaltou-se levemente. Gerald falara como um homem que se dirigisse a outro homem.
- Esperam por mim em casa - desculpou-se a moça.
- Ah!... Mas não ficarão preocupados... Gostaria muito que aceitasse.
O longo silêncio que se seguiu foi o sinal da sua aquiescência
- Vou prevenir Thomas, sim? - disse ele.
- Mas terei de partir logo depois do jantar - declarou Gudrun.
A noite estava escura e fria. No salão não havia fogo. Instalaram-se na biblioteca. Gerald estava calado, distraído, e Winifred falava pouco. Mas, apesar de calado, o rapaz mostrava-se amável e natural com a convidada.
Gudrun sentia-se bastante atraída para ele. Não sabia como interpretar aqueles silêncios profundos e estranhos. Ficava comovida, pensativa, enquanto sua admiração por ele crescia.
Ele fora um ótimo anfitrião. Oferecera-lhe o que havia de melhor na mesa, mandara servir uma garrafa de um vinho magnífico, levemente adocicado, cor de ouro, imaginando que ela o preteriria ao tinto. E Gudrun via o quanto era estimada, considerada quase uma pessoa da família.
Enquanto tomavam o café na biblioteca, ouviram bater de leve a porta. Gerald sobressaltou-se e disse: "Entre" o som daquela voz, vibrando em agudo diapasão, enervou a moça. Apareceu então o vulto branco de uma enfermeira; era como uma sombra clara projetando-se no limiar. Tratava-se de uma mulher muito bonita, mas - coisa estranha - parecia tímida e constrangida.
- O doutor deseja falar-lhe, Sr. Crich - explicou ela em voz baixa e discreta.
- O doutor! - repetiu ele, levantando-se. - Onde está?
- Na sala de jantar.
- Diga-lhe que já vou.
Tomou o resto do café e seguiu a enfermeira.
- Como é o nome dela? - perguntou Gudrun.
- Miss Inglis. É a mais simpática de todas - respondeu Winifred.
Pouco depois Gerald voltava, perdido em reflexões, ar preocupado e abstrato. Não se referiu a conversa com o médico; ficou de pé diante da lareira, mãos atrás das costas e expressão distante. Na verdade, ele não pensava. Mantinha-se em expectativa e as ideias se baralhavam em seu cérebro, desordenadamente.
- Agora preciso ir ver a mamãe - declarou Winifred - e despedir-me do papai antes que ele adormeça.
Disse isto e despediu-se dos presentes.
Gudrun ergueu-se também para ir-se embora.
- Não precisa ir agora - disse Gerald, olhando para o relógio. - Ainda é cedo. Sente-se, não há pressa, eu a levarei a casa.
Gudrun tornou a sentar-se como se estivesse sob o poder daquele homem, quase em transe. Sentia-se também quase magnetizada. Gerald era tão estranho, tão diferente! Em que pensaria, o que estaria sentindo, assim tão extático, sem nada dizer? Retinha-o sob a sua influência, era só o que Gudrun sabia. Não o deixava partir. Gudrun contemplava-o humilde e submissa.
- O médico tinha alguma coisa importante a comunicar? - indagou por fim, docemente, com ternura tímida e compassiva que tocava as fibras do coração dele. Gerald ergueu as sobrancelhas num gesto de indiferença.
- Não, nada de novo - respondeu, como se a pergunta fosse trivial. - Disse que o pulso estava muito fraco e irregular, mas isso não quer dizer muita coisa...
Depois, fitou-a. Os olhos de Gudrun permaneciam muito abertos, sombrios, suaves, com uma expressão assustada que o fez recair em si.
- Não - murmurou ela, finalmente. - Não entendo muito dessas coisas.
- Tanto melhor. Escute, vamos fumar um cigarro? - Foi buscar a caixa onde os guardava, e a seguir acendeu um fósforo. Em frente a ela, sempre junto ao fogão, tornou a cair em imobilidade.
- Aqui em casa - explicou - nunca tivemos doenças graves antes dessa de meu pai. - Deteve-se, como se ponderasse qualquer ideia; o seu olhar azul, estranhamente comunicativo, pousou sobre Gudrun, que ficou cheia de medo. - É uma coisa em que não se pensa ate que um dia se declara. Só então percebemos que já existia, que já existia desde muito tempo, desde sempre; compreende o que quero dizer? A possibilidade destas doenças incuráveis, destas mortes lentas...
Remexia os pés, inquieto, calcando o mármore da lareira. Levou o cigarro à boca e pôs-se a contemplar o teto. Gudrun, por sua vez, atalhou:
- Bem sei. É horrível.
Gerald fumava distraído. Tirou o cigarro dos lábios, descobriu os dentes e, colocando a ponta da língua entre eles, cuspiu um resíduo de fumo, voltando-se levemente de lado, como se estivesse só, ou perdido numa revoada de pensamentos.
- Ignoro ao certo qual é o efeito de tudo isto sobre a nossa pessoa - volveu ele, olhando de novo para a moça, cuja vista se turvou ao compreender a intenção daquelas palavras. Gerald viu-a perturbada e voltou o rosto para o outro lado. - Mas a verdade é que não sou mais o mesmo. Nada resta de mim... Sabe a que me quero referir? Julgamos agarrar-nos ao vácuo e o vácuo está dentro de nós. E já não sabemos o que fazer...
- Sim, - murmurou ela - que fazer? - Percorria-lhe os nervos um intenso calafrio, misto de prazer e de dor.
Gerald voltou-se, sacudiu a cinza do cigarro nas lajes de mármore do fogão, que, sem o resguardo usual, nem mesmo grades, se impunha ali na sala a descoberto.
- Não sei, é só o que posso afirmar - retorquiu ele. Mas suponho que estamos a ponto de resolver o problema, não porque se deseje, mas pela absoluta necessidade, sob pena de nos perdermos. Todas as coisas, incluídas as pessoas, estão a ponto de soçobrar. Com as mãos tentamos impedir que tal suceda. Mas é evidente que a situação não se pode prolongar; não é possível segurar o teto, indefinidamente dessa forma. Cedo ou tarde temos que retirar as mãos. Compreende o que quero dizer? É, pois, urgente tomar uma decisão, antes da subversão total, pelo menos no que nos atinge diretamente.
Esticou o pé para a lareira, esmagou uma brasa e ficou olhando para o carvão apagado. Gudrun observava as belas lajes de mármore antigo, com desenhos em relevo, onde Gerald estava agora enquadrado. Ela mesma teve a impressão de estar também prisioneira, mas do destino, fechada numa armadilha horrível e fatal.
- Que fazer? - perguntou, muito submissa. - Eu poderia ajudar de alguma forma?
Gerald fitou-a com superioridade.
- Não preciso do seu auxílio - retorquiu, um tanto enervado - porque não há nada a fazer. Só desejo um pouco de compaixão, percebe? Preciso de alguém a quem possa falar com o coração nas mãos. Isso facilita o trabalho. Mas não há ninguém nessas condições! É curioso, não há ninguém! Tenho Rupert Birkin, mas este não se comove, o que quer é ditar frases, que não me servem de nada.
Gudrun sentia-se apanhada no laço. Perplexa, olhava para as mãos.
Ouviu-se a porta abrindo de mansinho. Gerald estremeceu. Estava mortificado. E o sobressalto dele amedrontou também a Gudrun. Mas logo ele se dirigiu para a porta, cortês, atencioso, afável.
- Por aqui, mamãe? Que agradável surpresa. Como vai?
A recém-vinda, embrulhada negligentemente em um roupão cor de púrpura, muito largo, aproximou-se silenciosamente, desajeitada como sempre. O filho já estava ao lado dela. Puxou-lhe uma poltrona e perguntou: - Conhece a Senhorita Brangwen?
A outra lançou-lhe um olhar cheio de indiferença.
- Conheço - respondeu. Depois voltou-se para Gerald com aqueles seus olhos espantados, de um tom de miosótis, e sentou-se na poltrona que ele lhe havia trazido.
- Vim perguntar o que você sabe a respeito do seu pai - disse ela em voz rápida e quase inaudível. - Não sabia que estava acompanhado.
- Não? Winifred não lhe disse? A Senhorita Brangwen ficou para jantar conosco e alegrar-nos um pouco com a sua presença.
A Senhora Crich virou-se lentamente para Gudrun e mirou-a com expressão abstrata e vazia.
- Receio não ter sido grande divertimento para você... - Olhou novamente para o filho e continuou: - Winifred informou-me que o médico falou com você. Que foi que ele disse?
- Comunicou apenas que o pulso estava fraco, falhando de vez em quando..., de maneira que pode acontecer não passar desta noite.
A Senhora Crich manteve-se absolutamente impassível como se não tivesse ouvido, com aquela grande massa de carne abatida na cadeira e os cabelos louros desgrenhados sobre as têmporas. A pele, porém, era fina e alva, e as mãos, esquecidas e semicerradas no regaço, pareciam belas e repletas da máxima energia. E, na verdade, dir-se-ia amortecerem-se ondas de vontade naquela figura arruinada e gasta.
Contemplava o filho, que se conservava de pé, junto dela, atento, marcial. Os olhos da mulher tornaram-se extraordinariamente azulados, mais azuis do que as flores de miosótis. Parecia depositar muita confiança em Gerald, mas, ao mesmo tempo, desconfiança maternal.
- Como se sente? - inquiriu ela numa voz estranha e calma, como se falasse apenas com ele. - Não se ressentirá de tudo isto? Procure não ficar muito nervoso.
Gudrun estremeceu ao perceber o singular desafio que aquelas palavras encerravam.
- Assim o espero, mamãe - respondeu ele com risonha frieza. - Mas alguém deve assistir ao fim, penso eu.
- Acha que sim? Acha? - perguntou a Senhora Crich, precipitadamente. - Por que pensa assim? Por que ficar ate o fim? Tudo se resolve por si. Não é necessária a sua presença.
- Bem sei, mamãe. Mas a verdade é que nos afeta diretamente.
- Você gosta de se sentir afetado, não é isso? Está interessado nisso. Isso lhe dará importância. Pois não precisa ficar em casa. É melhor sair.
Tais observações, evidentemente feitas em momento de nervosismo, surpreenderam Gerald.
- Não acho conveniente sair agora, mamãe, neste momento crítico... - respondeu ele, muito calmo.
- Tome cuidado - prosseguiu a Senhora Crich. - Cuide de você, é isso que importa. Não se preocupe demais. Você é nervoso, sempre foi...
- Estou perfeitamente bem. Não vale a pena se preocupar comigo.
- Deixe os mortos tomarem conta dos mortos. Não se deixe enterrar com eles. Eu conheço bastante você...
Gerald silenciou, não sabendo o que responder. A mãe também permaneceu calada, e, com as belas mãos brancas, nuas de anéis, acariciou os braços da poltrona.
- Você não pode suportar aquilo - prosseguiu ela, quase com cerimônia. - Falta-lhe coragem. Você é frouxo como um gato, sempre foi. Esta menina vai ficar conosco?
- Não, senhora- elucidou Gerald. - Vai voltar para casa.
- Ela pode servir-se da carruagem. Mora longe?
- Não muito. Em Beldover.
- Ah! - Ela não olhava para a moça, embora lhe sentisse constantemente a presença. - Gerald, você tem a tendência de levar as coisas muito a sério. - Ao dizer isso, começou a erguer-se com certo constrangimento.
- Já vai? - perguntou ele, muito atencioso.
- Sim, vou lá para cima. - Voltando-se para Gudrun, murmurou "boa noite". Depois dirigiu-se devagar para a porta, com dificuldade, como se não estivesse habituada a andar. No limiar, estendeu a face e recebeu um beijo do filho. - Não precisa me acompanhar.
Gerald esperou que ela se aproximasse da escada, que subiu lentamente. Fechou então a porta, e voltou para junto de Gudrun, que se ergueu, disposta a partir.
- Minha mãe é muito complicada...
- Nota-se - concordou a moça.
Calaram-se por uns momentos.
- Quer ir-se embora? Apenas meio minuto: vou mandar atrelar o cavalo.
- Não - declarou Gudrun. - Vou a pé.
Gerald prometera acompanhá-la ate em casa e ela não se esquecera disso.
- Poderíamos ir muito bem na carruagem - insistiu ele.
- Prefiro ir a pé - declarou a jovem em tom enfático.
- Prefere? Nesse caso vou com você. Lembra-se de onde deixou seu agasalho? Deixe-me trocar de sapatos.
Munido de um boné e, sobretudo - por cima do temo com que jantara - preparou-se para partir e ambos penetraram na escuridão.
- Vou acender um cigarro - disse ele, abrigando-se no ângulo do portão fechado. - Tire um também.
E assim, entre o odor do fumo que aromatizava o ar, embrenharam-se ambos pela vereda sombria que atravessava, no meio de sebes, os prados em declive.
O desejo dele era passar o braço em volta da cintura da moça. Se tal pudesse fazer e a conseguisse atrair a si, Gerald estava certo de que recuperaria o equilíbrio, pois, naquele momento, sentia-se igual a uma balança, da qual um dos pratos descesse mais, cada vez mais no imenso vácuo sem fim. Era preciso contrabalançá-los. Residia ali a sua esperança de uma cura completa.
Sem mesmo olhar para Gudrun, pensando unicamente em si, Gerald lançou-lhe o braço em torno do corpo e puxou-a para o seu lado. O coração dela quase desfaleceu ao sentir-se arrastada assim. O braço do homem era tão vigoroso que a jovem não teve ânimo para se libertar; experimentava uma espécie de morte, muito unida a ele, enquanto avançavam na escuridão da noite tempestuosa. Aqueles dois corpos equilibravam-se perfeitamente no movimento rítmico do andar. E, então, sem demora, Gerald começou a sentir que se libertava das apreensões, e se tornava forte e heroico.
Levou a mão à boca e atirou fora o cigarro, que, na sebe invisível, formou um pontinho cintilante. Estava agora inteiramente apto para a manter mais segura.
- Assim é melhor - disse ele, exultando de prazer.
O entusiasmo que sua voz demonstrava era para ela como uma droga doce e venenosa. Significava, pois, tanto, para o coração daquele homem? E principiou a sorver o veneno...
- Está mais contente? - perguntou.
- Estou - disse ele, sempre no mesmo tom de satisfação. - Eu estava tão deprimido...
Gudrun aninhava-se no peito dele. Gerald aspirava o aroma quente e suave que emanava dela: tornava-se a substância própria do seu ser, nutriente e adorável. O calor e o movimento da moça penetravam-no e encantavam-no.
- Fico feliz em ajudá-lo...
- É verdade. Ninguém mais o conseguiria. Só você, Gudrun. "Acredito", pensou ela, com um sentimento de estranha e inevitável vaidade.
Durante a caminhada, parecia-lhe que a erguia do chão e a apertava tanto contra si que parecia conduzi-la toda suspensa. Era tão robusto que, à moça, não importava opor qualquer resistência: deixava-se ir naquela maravilhosa fusão dos corpos em movimento, ao descer a vertente sombria da colina batida pelo vento. Ao longe brilhavam as luzinhas amarelas de Beldover, a maior parte delas semeadas do outro lado da encosta. Mas aqueles dois seres seguiam alheios ao mundo, numa isolada e perfeita solidão.
- Gosta, então, muito de mim? - perguntou ela, em voz quase plangente. - Não sei, não consigo compreender...
- Muito, sim, muito! - respondeu ele em tom de satisfação dolorosa. - Não sei bem como, também eu... Mas amo-a acima de tudo! - Surpreendeu-se com a própria declaração, que era, aliás, verdadeira. Fazendo-a, despojava-se de futuro recuo, mas o certo era que Gudrun importava-lhe sobre todas as coisas. Ela era tudo para ele.
- Custa-me acreditar - volveu ela, trêmula e admirada. A dúvida e o prazer misturados punham-na assim nervosa. Sempre desejava ouvir isso. Contudo, agora que ouvia tais palavras, ditas com tão profundo tom de sinceridade, Gudrun recusava-se a crer. Não podia, não podia ser realidade. No íntimo ela admitia o fato e regozijava-se como de um triunfo finalmente obtido. No entanto...
- Por que não? - disse ele. - Por que não acreditar? É a mais pura verdade. Tão certo como estarmos aqui, nesta ocasião. - Ficaram bem juntos um do outro, parados, açoitados pelo vento. - Não há para mim - prosseguiu - nem no céu, nem na terra, outro lugar como este. A minha presença não importa; apenas a sua é que me interessa. Venderia antes a minha alma, cem vezes, a ficar privado da sua companhia. Não suporto mais estar só. Acredite. - Atraiu-a mais para si, num movimento definitivo.
- Não - murmurou a jovem, assustada. No entanto, não desejava outra coisa. Por que havia de perder a coragem?
Recomeçaram aquele estranho passeio. Tinham estado tão longe um do outro e agora vinham tão perto, temerosamente, inconcebivelmente perto! Chegava a ser loucura. Era, todavia, o que ela desejava. Haviam descido O outeiro e atingiam nesse momento o largo viaduto por onde passava a linha férrea das minas de carvão. A ponte - Gudrun conhecia-a bem - fora construída de pedras talhadas; era seca de um lado e musgosa do outro, em virtude da água que escorria. Gudrun pusera-se muitas vezes debaixo da abóbada para ouvir o estrondo da locomotiva deslizando lá em cima. E, quando chovia, costumava ver os mineiros refugiarem-se ali, no isolamento e no escuro, com as suas namoradas. Também ela ambicionava ter um noivo e ir com ele para baixo da ponte, a fim de se beijarem nas trevas impenetráveis. À medida que se aproximavam, diminuiu propositadamente o passo.
Pararam, pois, sob o viaduto e fizeram uma pausa; Gerald apertou-a contra o peito. O corpo dele vibrava, rijo e dominador, ao estreitá-la de encontro ao seu; e ela, ofegante, perturbada, vencida, aninhava-se nos braços dele. Ah, era terrível, sim, mas admirável! Assim faziam os mineiros às suas namoradas, debaixo daquela ponte. E, agora, o patrão de todos eles fazia o mesmo, naquele mesmo lugar! Como devia ser mais forte, mais poderoso o abraço de Gerald do que o dos seus operários! Como o amor dele devia ser mais concentrado e superior ao de todos os outros! Gudrun pensou que fosse desmaiar e morrer sob a pressão trêmula e sobre-humana daqueles braços e daquele peito; não poderia resistir. Depois a vibração extraordinária foi-se moderando ate se tornar pouco a pouco mais suave. Gerald encostou-se à parede e arrastou a moça com ele.
Gudrun estava quase inconsciente. Supunha ser assim que procediam os mineiros apaixonados, de costas voltadas para o muro, abraçando as suas amadas e beijando-as da mesma forma com que ele a beijava. Ah! Seria possível que os beijos deles fossem tão requintados e vigorosos como os que dava o patrão em seus lábios tão firmes? Nem sequer teriam, os operários, um bigodinho áspero e bem cortado!
E as namoradas, também deviam descair a cabeça para o lado e contemplar, sob a abóbada sombria, as luzes amareladas, distantes, na colina invisível, ou a forma incerta das árvores, ou ainda, em outra direção, as construções ao redor das minas.
Os braços do rapaz continuavam a cercá-la; parecia querê-la toda para ele, o seu calor, a sua suavidade, a sua beleza adorável, aspirando avidamente o aroma do seu corpo. Erguia-a e dir-se-ia entorná-la dentro de si mesmo, como quem despejasse vinho numa taça.
- Isto vale mais do que tudo! - disse com voz penetrante e singular.
Gudrun cedia, sentia-se misturar com ele e fornecer-lhe um líquido infinitamente precioso e morno que entrasse nas veias de Gerald e se comportasse como um tóxico. Tinha também passado os braços em torno do pescoço dele e recebia-lhe os beijos que ele lhe dava enquanto a tinha como que suspensa. A jovem desfalecia e sentia enterrar-lhe na carne aquele corpo duro e firme, ávida de receber aquele vinho que era a própria vida. Assim jazia abandonada nos braços do rapaz, suspensa de encontro a seu peito, dissolvendo-se, dissolvendo-se sob o calor dos beijos, fundindo os membros e os ossos como se ele fosse um ferro em brasa destinado a derretê-la.
A certa altura, julgou que ia desmaiar; foi, gradualmente perdendo a consciência de si própria. Sentiu-se gasta, nela tudo se misturava e era fluido; ficou tranquila, como se não existisse senão dentro de Gerald dormindo nele como a faísca dorme numa pedra lisa e pura. Assim se fundira no corpo do homem e esse homem agora era perfeito.
Quando tornou a abrir os olhos e voltou a descortinar o tapete de luzes a distância, pareceu-lhe extraordinário que o mundo ainda existisse e que ela estivesse ali de pé, debaixo da ponte, com a cabeça apoiada no peito de Gerald. Gerald... que significava ele? A aventura deliciosa, o desejo do imprevisto...
Ergueu a face e viu, no escuro, um rosto inclinado para o seu, rosto másculo e belo, que emitia uma luz branca e suave, espécie de aura, como se fosse enviado por algum poder oculto. Levantou-se até ele, no gesto de Eva ao colher a maçã da árvore da ciência, e beijou-o, embora a sua paixão vergasse ao medo transcendente desse ser misterioso; com dedos maravilhados, infinitamente delicados e indiscretos, Gudrun tateou-lhe as feições, seguindo-lhe o modelado da fisionomia, em todos os pormenores. Como era perfeito e desconhecido para ela, e tão perigoso! A alma arrepiou-se com tal revelação. Eis o fruto proibido, aquela face do homem fascinante. Tornou a beijá-lo, passando-lhe a mão pelo rosto, pelos olhos, narinas, testas, ouvidos e pescoço, a fim de o conhecer melhor a fim de o possuir pelo tato. Sentia-o tão bonito, tão rijo, cheio de satisfação, inconcebivelmente belo, único, de uma luz indescritível, inimigo que não se podia descrever e que brilhava, contudo, num fogo puro e sobrenatural. O seu desejo era tocá-lo mais, tocá-lo sempre, ate que o desvendasse todo por suas mãos, esforçando-se por conhecê-lo totalmente. Ah, se ela obtivesse esse precioso conhecimento, sentir-se-ia compensada; nada conseguiria privá-la dele, apesar da sua insegurança e dos riscos que corria no mundo vulgar e quotidiano.
- Como você é bonito! - murmurou-lhe em voz velada.
Gerald ficou surpreso, suspenso daquela frase. Ela, porém, sentiu-o estremecer e chegou-se mais, involuntariamente, para aquele homem que se lhe afigurava precisar de ajuda. Dominava-o pelo contato dos dedos. O insondável desejo que estes despertavam no rapaz era mais profundo do que a morte inevitável.
Entretanto, agora, conhecia-o ela bem, e isso bastava. Nessa ocasião tinha o espírito abalado por aquele invisível fluido luminoso, que lhe trouxera a revelação. Isso era uma espécie de morte da qual urgia ressuscitar. Haveria nele ainda muita coisa por descobrir? Ah, decerto! E quantos dias poderia gastar na sua investigação, com as mãos sutis e inteligentes no terreno daquele corpo vivo? Ah, tinha mãos ansiosas, gulosas de saber! Por enquanto não precisava mais, aquilo era bastante, o ânimo não lhe suportaria maior experiência. Um pouco mais, e ficaria repleta, encheria demasiadamente a delicada redoma da sua alma, suscetível de se quebrar. Era suficiente, suficiente por enquanto. Tinha ainda muitos dias à sua frente, durante os quais seus dedos, como pássaros, se alimentariam daquela plástica misteriosa. Até aí, esperaria sossegada.
Gerald, por seu turno, estava contente por haver encontrado resistência, repreensões, recusas. O desejo vale mais do que a posse, e a satisfação final receava-a ele tão intensamente quanto a ambicionava.
Recomeçaram a andar na direção da vila, na direção das lâmpadas acesas e distanciadas por longos intervalos, dispersas no escuro caminho do vale. Chegaram, enfim, à rua.
- É melhor nos despedirmos aqui - disse ela.
- Prefere assim? - perguntou ele, sentindo-se aliviado. Não gostaria de mostrar-se por aquelas ruas em companhia da moça, tão visível seria para os outros a satisfação que o tomava todo.
- Prefiro. Até amanhã. - Estendeu-lhe a mão, que Gerald agarrou, depondo os lábios sobre aqueles dedos tão dominadores, tão perigosos.
- Boa noite - volveu ele. - Até amanhã. Separaram-se. Gerald regressou à casa fortalecido pelo poder de um desejo sem limites.
No dia seguinte, porém, ela não veio. Mandou recado explicando que estava resfriada. Que tortura para o rapaz! Armou-se, entretanto, de paciência e escreveu-lhe um bilhetinho dizendo o quanto sentia a sua ausência.
Passou o dia e o outro sem ir ao escritório: achava isso perfeitamente inútil. O pai não duraria até o fim da semana e Gerald queria estar presente para qualquer eventualidade.
Sentou-se numa cadeira perto da janela, no quarto do industrial. A paisagem que dali desfrutava era sombria, invernosa. O velho Crich jazia na cama, lívido, cor de cinza; em silêncio, toda de branco, limpa, elegante e mesmo bonita, a enfermeira movia-se de um lado para outro. O ambiente cheirava a água-de-colônia. A moça saiu e Gerald ficou a sós com o moribundo ante o cenário hibernal.
- Há mais água em Denley? - interrogou uma voz fraca, vinda do leito, queixosa, mas decidida. O doente queria saber o que havia a respeito de uma infiltração numa das minas, originada em Willey Water.
- Alguma. Temos de esvaziar o lago - respondeu Gerald.
- Acha que sim? - A voz fraca parecia extinguir-se. Houve um silêncio tumular. O rosto pálido e acinzentado do enfermo mostrava-se de olhos fechados, mais morto do que se na verdade o estivesse. O filho observou-o. Sentia o coração apertado: se aquilo durasse mais tempo, talvez não pudesse resistir.
De repente, ouviu um ruído estranho. Voltou-se e notou que o pai abrira os olhos, rolando-os espantados num esforço sobre-humano. Gerald pôs-se de pé e ficou enregelado de horror.
"Ah... ah... ah..." Da garganta de Thomas Crich exalava um som cavernoso e horrível; o olhar, cada vez mais aflito, procurava em vão qualquer socorro, passando sobre Gerald sem o ver. Subiu-lhe ao rosto um rubor terroso, que o fez inchar; o corpo distendeu-se e a cabeça tombou para o lado, no travesseiro.
Gerald continuava apavorado. Queria mexer-se, mas não podia. Era impossível mover os braços ou as pernas. E o cérebro latejava, como o eco do pulso.
A enfermeira reapareceu, entrando silenciosamente. Olhou primeiro para o rapaz e depois para o leito.
- Oh! - exclamou, quase em um soluço, correndo em direção ao morto. - Oh! - repetiu em voz baixa, na sua perturbação, inclinando-se para a cama. Depois recuperou a calma e foi buscar uma toalha e uma esponja. Começou a lavar cuidadosamente a face do cadáver, murmurando num queixume, suavemente:
- Pobre Sr. Crich! Coitado do Sr. Crich!
- Morreu? - perguntou Gerald em tom áspero.
- Sim, morreu - confirmou a voz branda da enfermeira pousando o olhar no rosto do rapaz. Era nova, bela e estava emocionada. A expressão de Gerald tornou-se estranha, como uma espécie de careta; horrorizado, abandonou o quarto.
Correu a prevenir a mãe. No corredor encontrou-se com Basil, seu irmão.
- Morreu, Basil - disse ele, dominando a custo o tremor da voz; notava-se nele uma alegria inconsciente apesar da emoção com que falava.
- O quê?! - fez Basil, empalidecendo.
Gerald confirmou com a cabeça e seguiu para o quarto da mãe.
Ela estava envolta no roupão cor de púrpura, a coser, vagarosamente. Mirou o filho com os seus olhos azuis, aqueles olhos insubmissos.
- Papai morreu.
- Quem disse?
- Oh, mamãe, basta olhar para ele!
A Senhora Crich largou a costura e levantou-se a custo.
- A senhora vai lá?
- Vou.
Os mais novos já choravam em volta do leito.
- Oh, mamãe! - gritavam as moças, quase histéricas.
A mãe aproximou-se. O morto lá estava no seu repouso derradeiro, como se houvesse adormecido docemente, tão doce e pacificamente como uma criança no sono da inocência. Ainda não esfriara de todo. Christiana ficou a contemplá-lo durante uns momentos, num silêncio pesado e lúgubre.
- Sim - disse ela, como se falasse a testemunhas invisíveis e etéreas. - Sim, já não és deste mundo. - Permaneceu mais um tempo calada, de olhos baixos. Depois continuou: - Pareces belo, como se a vida não te houvesse cansado. Que Deus me dê sorte diferente! Espero então parecer com a minha idade, seja qual for... Belo, belo - repetiu ainda no mesmo tom. - Exatamente como na tua mocidade, com a barba de adolescente. Bondosa alma, a tua! - E, com um soluço na voz, acrescentou: - Nenhum de vocês deve ser como ele, quando morrerem. Não o imitem. - Parecia uma ordem singular, uma ordem insensata emanada do além. Os filhos agruparam-se mais, inconscientemente, ao ouvir aquelas imposições. As faces de Christiana haviam-se ruborizado, e brilhavam, e todo o vulto dela maravilhava e inspirava terror. - Censurem-me, se quiserem, pelo fato de ele aí estar, de estar aí como um rapaz que ainda não tem vinte anos, com a sua barba virginal. Censurem-me, se quiserem. Mas nenhum de vocês compreende. - Emudeceu, mergulhando num silêncio cheio de intensidade. E recomeçou, numa entonação profunda e ardente: - Se eu adivinhasse que algum dos filhos que dei à luz teria, depois de morto, esta aparência, tê-lo-ia estrangulado no berço.
- Não, mamãe - respondeu Gerald, e a sua voz vinha estranha e pura lá do fundo do quarto. - Nós somos diferentes, não a acusamos de nada.
A Senhora Crich voltou-se e fitou-o; em seguida ergueu as mãos num gesto soberbo de louco desespero.
- Rezem! - ordenou com voz portentosa. - Rezem a Deus por si mesmos, pois não têm nenhuma proteção a esperar do pai e da mãe.
Transtornadas, as moças gritaram: - Oh, mamãe! - Ela, entretanto, tinha-se retirado e os irmãos despediram-se uns dos outros, apressadamente.
Quando Gudrun soube da morte de Thomas Crich, sentiu-se tomada de remorso. Tinha evitado Gerald com medo que este a julgasse conquista demasiadamente fácil; e agora, que ele sofria aquele desgosto, não era justo continuar assim tão fria.
No dia seguinte veio, como de costume, ter com Winifred que estimou bastante vê-la e se alegrou por acompanhá-la ao estúdio. A menina havia chorado, e, depois, assustada, refugiara-se para escapar a qualquer acontecimento mais trágico ainda. Ela e Gudrun retomaram o trabalho como usualmente, naquele isolamento do costume, e isso pareceu-lhes imensa felicidade, verdadeiro mundo à parte, depois da confusão e da tristeza que reinavam em casa. Gudrun ficou até tarde. Serviram-lhe o jantar ali mesmo, e ali comeram à vontade, afastadas de todas as outras pessoas.
Gerald apareceu depois do jantar. O vasto anexo estava cheio de sombras e impregnado do aroma do café. Gudrun e Winifred haviam arrastado a mesinha para junto do fogão, lá no fim do quarto; o candeeiro com que iluminava a sala não espalhava muito longe a claridade. Constituíam assim, elas duas, o seu mundo à parte, rodeadas pelas sombras amenas, que atingiam as vigas e barrotes do teto, os bancos e as ferramentas do trabalho.
- Como é confortável aqui - observou Gerald, ao entrar. O lume ardia num fogão baixo, de tijolos; havia um velho tapete turco, de tom azul, sobre o qual pousava a mesa com o candeeiro, revestida de uma toalha azul e branca. Ali estava ainda o resto do jantar; Gudrun fazia o café numa curiosa cafeteira de cobre, enquanto Winifred aquecia um pouco de leite numa caçarola pequena.
- Já tomou café? - perguntou Gudrun ao recém-chegado.
- Já, mas posso repetir.
- Então, tem de beber no copo - interveio Winifred. - Só temos duas xícaras.
- Não tem importância - disse ele, pegando numa cadeira e aproximando-se daquela dupla encantadora. Como lhe pareciam tão felizes, como era bom estar naquela intimidade, envolto pelas sombras familiares! O mundo lá fora, no qual todo o dia Gerald se ocupara dos assuntos do funeral, apagava-se por completo da sua memória. Começava a aspirar o perfume daquela deliciosa magia.
Possuíam meia dúzia de coisas delicadas, duas xícaras encantadoras, vermelho e ouro, um jarrinho preto com pintinhas encamadas e uma interessante máquina de fazer café, sob a qual a chama de álcool ardia muito direita, quase invisível. Notava-se o reflexo de toda aquela riqueza sinistra, da qual Gerald gostaria de evadir-se.
Sentaram-se e Gudrun, amavelmente, começou a servir.
- Quer leite? - indagou muito calma, embora agitasse, num movimento nervoso, o jarro negro salpicado de escarlate. Dominava-se sempre o melhor que podia, mas não deixava de parecer enervada.
- Não, obrigado - respondeu ele.
Ela própria, por deferência, guardou para si o copo de vidro tosco e ofereceu-lhe uma das xícaras. Via-se que queria ser agradável.
- Dê-me o copo, que é tão grosseiro para as suas mãos - Gerald teria preferido ficar com ele e deixá-la, a ela, delicadamente servida. Mas Gudrun não disse mais nada sobre o assunto, contente com aquela disparidade, feliz por se poder humilhar.
- Estão perfeitamente en ménage - tornou ele.
- É verdade. E não estamos em casa para as visitas - acudiu Winifred.
- Nesse caso, sou intruso.
Ao dizer isso, verificou que o seu traje cerimonioso o fazia deslocado. Considerava-se, realmente, um estranho.
Gudrun mostrava-se tranquilo. Não sentia desejos de falar com ele. Ao ponto a que haviam chegado, o melhor ainda era o silêncio ou simples palavras convencionais. Era melhor pôr de lado as conversas sérias. Assim tagarelaram alegre e descuidadamente ate ouvirem o cocheiro, em baixo, conduzir o cavalo gritando "para trás, para trás", no momento de o atrelar à carruagem que devia levar Gudrun. A moça vestiu o agasalho, apertou a mão de Gerald e saiu, sem terem trocado, ao menos um olhar.
O enterro foi uma coisa enfadonha. Mais tarde, ao tomarem chá, as filhas do defunto diziam jumas para as outras: "Tão bom pai para nós!... O melhor pai do mundo..." Ou então: "Não se encontrará facilmente outro homem tão bom como o pai".
Gerald concordou com tudo isto. Era a atitude que mais se lhe ajustava, apesar de convencional. No estado atual das coisas, não lhe repugnava aceitar as convenções da sociedade, achando-as ate naturais. Mas Winifred é que as detestava e por isso se escondia no estúdio, onde dava largas à sua dor, ansiando pela chegada de Gudrun.
Felizmente todos os parentes se ausentaram. Os Crichs nunca passavam muito tempo em casa. Ao jantar, Gerald viu-se completamente só; a própria Winifred seguira para Londres, onde ficaria por alguns dias com uma das irmãs, Laura.
Quando, todavia, se sentiu sem mais ninguém, Gerald achou intolerável a solidão. Os dias passaram. Tinha a sensação de estar suspenso a correntes, à beira de um abismo. E, por mais esforços que fizesse, não conseguia pisar a terra firme nem desembaraçar-se das cadeias que o tolhiam. Estava debruçado no limiar do despenhadeiro, debatendo-se era vão. Pensasse o que pensasse, o abismo continuava ali, por maior convívio que tivesse com amigos ou estranhos, por mais que trabalhasse ou se divertisse. Sempre a visão do precipício insondável, sobre o qual o coração se lhe apertava, prestes a desfalecer! Não via salvação possível, não havia nada a que estender as mãos. Devia permanecer na iminência do sorvedouro, suspenso pelas correntes invisíveis, que eram a sua própria vida física.
A princípio mantivera-se calmo, paciente, aguardando o final das suas apreensões e esperando achar alívio entre os mortais depois de tão intenso sofrimento. Mas aquilo não passou, e pelo contrário, atingiu um estado crítico.
À noite do terceiro dia agravaram-se os seus receios. Não podia tolerar a ideia de continuar tanto tempo assim. Era mais uma noite, mais uma em que ele experimentaria a sensação de estar sobre o abismo, esse poço sem fundo a que o levava a sua existência física. Não podia suportar mais. Tinha frio e medo na alma, um medo tão profundo! Não acreditava já na sua força. Se tombasse no despenhadeiro incomensurável, jamais poderia de lá voltar. Se tal lhe sucedesse, desapareceria para sempre. Forçoso era resistir, e procurar qualquer auxílio. Não tinha confiança nele próprio, entregue dessa maneira a si mesmo! Depois do jantar, face a face com a derradeira impressão de vácuo, Gerald procurou fugir. Calçou botas, enfiou o sobretudo e foi passear na noite escura.
O tempo estava horrível enevoado. Atravessou o bosque, tropeçando aqui e ali, e encaminhou-se para a azenha. Birkin não estava em casa. Bem. Deixá-lo! Gerald sentia-se quase satisfeito. Contornou o moinho, subiu os barrancos ásperos, às cegas, perdido no meio daquela escuridão. Aonde iria agora? Não importava. Arrastar-se-ia de qualquer forma ate encontrar a estrada. À sua frente apareceu outro bosque. O espírito estava perturbado, deixando-o vaguear, a ele, como um autômato. Sem pensamentos, sem sensações, foi andando ao acaso: chegou a uma clareira, procurou, tateando, a paliçada da vedação, tornou a perder-se, e seguiu pelas sebes dos campos até descobrir uma saída.
Por fim alcançou a estrada principal. Tinha-se distraído durante aquela luta cega com o labirinto da noite. Agora, porém, devia tomar qualquer direção. Não sabia sequer onde se encontrava, mas era necessário dirigir-se para alguma parte. Continuar a andar, sempre a andar, não resolvia o problema. Convinha decidir-se.
Estava parado na estrada, que lhe parecia imensa nas densas trevas noturnas, e sem saber orientar-se. Dava-lhe aquilo uma impressão esquisita; o coração palpitava-lhe e envolvia-o; tornou a perder-se, e seguiu pelas sebes dos campos ate descobrir uma saída.
De repente, ouviu passos c avistou uma lanterna, que oscilava. Era um mineiro.
- Sabe me dizer onde vai dar este caminho?
- Sim, senhor. Vai dar em Whatmore.
- Whatmore? Está bem, muito obrigado. Julguei que me tivesse perdido. Boa noite.
- Boa noite - retribuiu o outro, com a sua voz grossa. Gerald já calculava que lugar era aquele. Ao chegar a Whatmore tiraria todas as dúvidas. Ainda bem que se encontrava na estrada principal. E avançou embalado na sua resolução.
Tratava-se então da aldeia de Whatmore? Sim, com a sua "King's Head" e, mais além, os portões do Palácio. Desceu a colina quase a correr. Passou defronte da escola e chegou à igreja de Willey Green. Lá estava o cemitério. Deteve-se.
Pouco depois escalava o muro e seguia pelo meio das sepulturas. Mesmo no escuro podia distinguir a seus pés muitos ramos de flores, já murchas. Abaixou-se. As flores pareceram-lhe frias e viscosas. Rescendia fortemente a crisântemos e a tuberosas fanadas; sentiu a terra, por baixo delas, e arrepiou-se àquele horrível contato úmido e pegajoso. Recuou, cheio de repugnância.
Estava, pois, num lugar conhecido, embora em completa escuridão, ao lado de uma sepultura invisível e recente. Mas o que lhe interessava isso? Nada tinha a fazer ali. Era como se aqueles pedaços de barro, frios, sujos, pegajosos, se lhe aderissem à alma. Não, aquilo era demais!
Voltaria para casa? Nunca! Seria pior. Precisava ir para outro lugar. Mas onde?
Como uma ideia fixa, um projeto germinava em sua mente. Gudrun. Precisava ir ter com ela; era imperioso. Não regressaria a Shortlands sem haver tentado aproximar-se dela, ainda que isso representasse para ele qualquer perigo de vida. Colocou todo o seu ardor nesse projeto.
Partiu, então, em linha reta na direção de Beldover. A noite era tão negra que ninguém o poderia reconhecer. Tinha os pés frios e molhados, e as botas pesadas de lama. Mas continuou sempre, persistente como vento, direto ao seu destino. Julgou, em certa ocasião, ter atingido o lugarejo de Winthorpe, sem saber afinal como tinha ido parar lá; depois como num sonho, viu-se na comprida rua de Beldover, iluminada por lampiões.
Havia um rumor de vozes, vindo de uma porta que se aferrolhava pesadamente. Eram homens que conversavam na sombra da noite. O "Lord Nelson" acabava de fechar e os frequentadores dirigiam-se para suas casas. O melhor seria Gerald perguntar a qualquer deles onde morava Guarun, pois não conhecia as outras ruas.
- Sabe dizer onde é Somerset Drive? - perguntou a um dos homens.
- Como? - perguntou o interpelado.
- Somerset Drive.
- Somerset Drive! Já ouvi falar, mas não sei onde fica. Quem procura?
- O Sr. Brangwen... William Brangwen.
- William Brangwen?
- Professor da escola de Willey Green. Tem uma filha que e também professora.
- Ah! Brangwen! Agora me lembro. Sim, tem duas filhas, ambas as professoras. Ah, sim, é esse mesmo. Mas não sei onde mora. Como é mesmo o nome que disse?
- Somerset Drive - repetiu Gerald, armado de paciência. Conhecia bem o jeito dos seus mineiros.
- Exatamente, Somerset Drive! - disse o outro. - Somerset Drive, sim, senhor. Como é que eu não me lembrei antes. Sim, eu sei, fique descansado.
Voltou-se, meio cambaleante, e apontou para a estrada deserta e escura.
- O senhor vai por ali... vire a primeira esquina... sim, vire primeira à esquerda... daquele lado... passa pela loja de Withamses, o que vende caramelos. .
- Sim - interrompeu Gerald.
- Pois é, senhor. Desça um pouco, passa pela casa do vigia das águas, e já está em Somerset Drive, ou sei lá que raio de nome tem; fica mesmo à direita. Não há senão três casas, só três, parece-me... e tenho quase certeza de que a dele é a última das três... Entendeu?
- Agradeço-lhe muito. Boa noite.
Afastou-se imediatamente, deixando o bêbado parado no meio do caminho.
Seguiu ao longo das lojas e das casas, na maior parte das quais os seus ocupantes já dormiam, e enveredou por uma travessa que ia dar num campo mergulhado em trevas. Afrouxou o passo ao aproximar-se do ponto indicado, indeciso quanto à maneira de agir. Que faria, se a casa estivesse toda às escuras?
Tal não acontecia, porém. Havia uma janela iluminada. Distinguiu vozes e ao mesmo tempo o ranger de uma porta. O seu ouvido apurado reconheceu a entonação de Birkin; os olhos perscrutadores preveniram-no de que ali estava Úrsula, vestida de branco, parada num degrau da escada do jardim. Ela começara a andar e, chegando junto de Birkin, tomou-lhe o braço.
Gerald escondeu-se na sombra, por trás deles. Os dois conversavam animadamente, Birkin em voz baixa, Úrsula naquele tom inconfundível. Gerald, sem perder tempo, meteu-se dentro do jardim.
Defronte da larga janela da sala de jantar, as cortinas estavam corridas. Olhando de onde se encontrava, notou que a porta ficara entreaberta, deixando passar a luz suave e colorida do vestíbulo. Seguiu rápido, sem fazer ruído, pelo passeio adiante e lançou um olhar investigador lá para dentro. Havia quadros e cabeças de veado nas paredes; reparou também numa escada lateral e, muito perto dela, viu aberta a porta da sala de jantar.
Com o coração aos pulos, entrou Gerald nessa antecâmara, cujo chão era coberto de ladrilhos de cores; e examinou às pressas a sala que ficava anexa. Junto do fogão, sentado numa poltrona, Brangwen dormia; tinha apoiado a cabeça no grosso revestimento de carvalho da chaminé. A face rubicunda parecia encolhida, as narinas abertas e os cantos da boca tombados. Podia despertar ao mais leve rumor.
Gerald hesitou um instante. Relanceou a vista pelo corredor que corria na direção contrária e que estava às escuras. Sempre indeciso, subiu os degraus; os sentidos denunciavam-lhe tal sutileza, uma apreensão quase sobrenatural, que parecia ser ele o condutor de todas as coisas.
Chegou ao primeiro andar. Deteve-se ali, com a respiração opressa. Correspondente ao quarto do rés do chão, havia aí também um, com a respectiva porta. Devia ser o da mãe das moças. Sentiu-a andar, deslocando a vela consigo. Naturalmente aguardava que o marido subisse. Gerald observou o corredor, que não estava iluminado.
Depois, silenciosamente, com infinitas precauções, foi andando sempre, tateando a parede com a ponta dos dedos. Encontrou uma porta e ficou um momento de ouvido à escuta. Percebeu que se tratava de duas pessoas, pelo ritmo da respiração. Não era ali, então. Prosseguiu, na ponta dos pés. Mais outra porta entreaberta. O quarto não tinha luz. Estava vazio. Mais adiante viu o banheiro, de onde vinha o cheiro de sabonete e um bafo morno. Por fim, na extremidade, descobriu outro quarto e ouviu alguém ressonando tranquilamente. Devia ser ela.
Com mil cuidados, quase num ritual, Gerald deu volta à maçaneta e abriu uma nesga da porta, que rangeu levemente. Empurrou mais um pouco, e mais ainda. O coração nem mais pulsava; era como se ele criasse à sua volta o silêncio e o esquecimento.
Conseguira entrar. Quem lá estava continuou a dormir placidamente. A escuridão era completa. Gerald foi seguindo, muito devagar, apalpando a parede, ate que chegou à cama e sentiu a respiração de quem dormia. Aproximou-se mais e inclinou-se como se os olhos pudessem descobrir a forma que ali jazia. E então muito perto do seu rosto, percebeu os cabelos escuros e o rosto redondo de um menino. Ficou atordoado.
Endireitou-se, deu meia volta e dirigiu-se à porta, de onde vinha um pouco de claridade. No patamar, hesitou; ainda havia tempo para fugir.
Mas não era esse o seu desejo. Queria levar a cabo o projeto. Tornou a passar, como uma sombra, em frente ao quarto do casal e subiu ao segundo andar. Os degraus estalaram sob o peso. Que aborrecimento! E que fracasso, se por acaso a mãe o apanhasse naquela situação! Se tal acontecesse... Mas não desanimou.
Não acabara ainda de subir, quando sentiu passos apressados no andar de baixo e alguém fechando à chave a porta da rua. Ouviu a voz de Úrsula e depois uma exclamação do pai, que despertara. Gerald correu ate o último andar.
Encontrou uma porta aberta: era outro quarto vazio; seguiu sempre para frente, andando às apalpadelas como um cego nas pontas dos pés. Movia-se, entretanto, com rapidez, com medo que Úrsula viesse. Encontrou mais uma porta. Escutou; os sentidos estavam alertas com uma acuidade sobrenatural. Pareceu-lhe que alguém se remexia na cama. Devia ser Gudrun. Docemente, como se naquele momento só tivesse a sensação tátil, Gerald deu volta à fechadura, que fez leve ruído Então estacou. Sentiu-se um roçar de lençóis. O coração oprimido, tornou a girar o fecho e empurrou a porta com a maior suavidade o que não a impediu de ranger.
- É você, Úrsula? - perguntou a jovem com voz atemorizada. Gerald abriu de vez a porta, muito depressa, e fechou-a atrás de si.
- Úrsula? - repetiu a moça, sempre com voz assustada. Ele percebeu que ela se sentava na cama. Não tardaria a gritar.
- Sou eu - disse o intruso dirigindo-se para ela. - É Gerald.
Ela ficou imóvel no leito. Seu espanto foi tão grande que sobrepujou o medo.
- Gerald! - exclamou ela, profundamente admirada. Mas ele já estava ao lado da cama e, com a mão estendida, tocava-lhe no seio quente, sem o ver. Gudrun recuou.
- Deixe-me acender a luz - pediu a jovem, saltando para o chão.
O homem estava calmo, mas não se movia. Sentiu-a pegar uma caixa de fósforos e riscar um. Surgiu o clarão e Gerald pode vê-la chegar o fogo ao pavio de uma vela.
A luz alastrou-se, depois diminuiu. O quarto recaía no escuro enquanto a vela não ardia bem; depois tornou a clarear.
Gudrun olhou para ele, que se mantinha de pé, do outro lado da cama. Tinha o boné enterrado ate aos olhos e o sobretudo preto abotoado ate ao queixo. O rosto parecia estranho e luminoso, como um ser sobrenatural. Logo que ela o viu, compreendeu o que se passava. Percebeu que havia, naquela situação, uma espécie de fatalidade, que lhe era forçoso aceitar. Todavia, convinha discutir.
- Como entrou? - inquiriu.
- A porta estava aberta... Subi as escadas.
Gudrun observava-o.
- Não fechei a porta - explicou ele. A moça atravessou rapidamente o quarto e deu volta à chave.
Estava extraordinariamente bem, com os olhos admirados, as faces coradas, os cabelos curtos e espessos na nuca e a camisola de dormir branca, tombando-lhe ate aos pés.
Ela notou que as botas de Gerald estavam enlameadas e que a terra úmida lhe chegava a atingir as calças. Imaginou se ele teria deixado vestígios de sua passagem no assoalho da casa. Que estranho vê-lo imóvel ao lado da cama, perto dos lençóis em desordem!
- Qual o motivo desta visita? - perguntou Gudrun fingindo-se zangada.
- Não pude resistir.
A verdade da resposta estampava-se no rosto dele.
- Está todo cheio de lama - comentou ela, repreendendo-o, embora carinhosamente. Gerald olhou para as botas.
- Estava tão escuro que não se via o caminho. - Disse isto bruscamente, com certa arrogância. Seguiu-se um silêncio. Gerald continuava no mesmo lugar, e ela do outro lado da cama revolvida. Ele nem sequer tirara o boné.
- E que pretende de mim? - perguntou Gudrun com ar de desafio.
Gerald desviou a vista e não respondeu. A extrema beleza, a misteriosa atração daquele rosto estranho e distinto, foi a única razão por que Gudrun não o mandou embora. Era, na verdade, um rosto maravilhoso, indecifrável para ela. Fascinava-a com o prestígio da beleza genuína, enfeitiçava-a, avivava-lhe as saudades, fazia-a sofrer.
- Que pretende de mim? - repetiu, afetando indiferença.
Gerald tirou o boné, como quem se desembaraçasse de um pesadelo, e dirigiu-se para ela. Mas não a tocou, vendo-a descalça e de camisola de dormir e reparando como ele próprio estava molhado e coberto de lama. Os olhos de Gudrun, grandes, muito abertos, fitavam-no, como que a insistir na pergunta formulada.
- Eu... vim para cá porque era preciso que viesse. Que tem a censurar-me?
Ela o contemplou admirada, como se não acreditasse no que ouvia.
- Estou no meu direito.
Gerald abanou a cabeça.
- Não é resposta - declarou, com expressão singularmente abstrata.
Tinha um ar ingênuo, quase divino, de simplicidade e franqueza inocentes. Lembrava-lhe, a ela, uma aparição de Hermes na sua mocidade.
- Mas por que veio? - insistiu.
- Porque estava escrito... Se você não vivesse neste mundo eu não viveria também.
Gudrun continuava a contemplá-lo com espanto, impressionada e ele fitava-a também, fixamente, numa estranha imobilidade que se julgaria inumana. A jovem suspirou. Sentia-se perdida sem remissão.
- Quer descalçar as botas? - sugeriu-lhe. Devem estar molhadas.
Gerald colocou então o boné sobre uma cadeira, desabotoou o sobretudo e levantou o queixo para desapertar a camisa. Os cabelos Imos e curtos estavam despenteados; mas parecia tão belo louro como o trigo! Acabou por despir o sobretudo.
Logo a seguir despiu o terno, desfez a gravata e desprendeu os botões dos punhos, em cada um dos quais havia uma pérola. Gudrun olhava-o inquieta, receosa de que alguém ouvisse o estalar da roupa engomada. Soavam para ela como tiros de canhão.
Gerald não precisava de justificação. Gudrun deixou-o tomá-la nos braços, apertá-la contra si. E ele, naquele amplexo, encontrava infinito alívio; espalhava por toda ela o poder tenebroso, corrosivo e mortal que trazia consigo, e readquiria assim a sua verdadeira personalidade. Era extraordinário, semelhante a um milagre, o milagre constantemente renovado da sua vida, em cuja realização se perdia num êxtase de prodígio e de consolo. E ela submissa, recolhia-o como um vaso repleto de amarga bebida fatídica. Nessa crise, não tinha forças para resistir. Havia-a penetrado a terrível e cruciante violência da morte, e comprazia-se arrebatada e submetida, nas agonias de uma sensação aguda e profunda.
Gerald apertou-a com mais força, embebendo-se profundamente naquele calor suave, admiravelmente criador, que lhe entrava nas veias e lhe dava novo alento. Julgava dissolver-se e afundava-se no banho repousante daquela energia reanimadora. Parecia-lhe que o coração da jovem vibrava lá dentro do peito como um segundo sol intangível em cujo brilho e vigor, proporcionando vida, Gerald procurava precipitar-se mais ainda. Todas as suas veias, rasgadas, laceradas, se iam brandamente cicatrizando ao mesmo tempo porque o ardor aí chegava e nelas corria, invisível, qual poderosa emanação solar. O sangue, que se teria suposto esgotado mortalmente, de novo lhe afluía, seguro, opulento, vivificador.
Notava que seus membros se enchiam de seiva nova, que seu corpo se robustecia com ímpeto desconhecido. Tornava a ser forte, vigoroso, amplo. Era como uma criança convalescente, que suavemente se restabelecesse; envolvia-o uma onda de gratidão.
E ela? Gudrun era a água purificadora da sua existência. Adorava-a como mãe e substância de todas as coisas. Ele, filho e homem, recebia esse alimento e se tornava um ser completo, integral. Viera com o corpo quase morto; mas fora envolvido pela doce emanação miraculosa daquele peito de mulher, entornando-se pelo cérebro ressequido e enfermo como linfa saneadora, tal o fluxo calmante da própria vida, fazendo-o perfeito como se houvesse nascido outra vez do ventre materno.
Estivera realmente ferido, esgotado; dir-se-ia que os tecidos do seu cérebro se haviam destruído. Nem tinha reparado até que ponto o fora, qual a profundidade a que haviam penetrado as matérias corrosivas da morte. Agora, porém, que essa linfa apaziguadora se derramava e lhe percorria o corpo, Gerald compreendia o quanto estivera doente, planta queimada interiormente pelo sopro da geada!
Descansou a cabeça entre os seios dela, apertando-os com as mãos e Gudrun, com as suas, chegou-o mais para si, deixando-o repousar tranquilamente. Um calor delicioso circulou por ele como um sono fecundo no seio materno. Ah, se a moça quisesse simplesmente deixar que aquela viva emanação o percorresse, Gerald ficaria curado de todo, restabelecido de vez! Tinha medo, contudo, de que ela retirasse o seu apoio antes que a cura se verificasse. Como uma criança de colo, o homem unia-se fortemente a Gudrun e ela não o podia afastar. Sentia-se gravíssimo para com Deus, como um menino é grato para sua mãe; grato e feliz ate o delírio, à medida que sua integridade se restabelecia, conforme o sono perfeito e inexprimível que o tomava, completo sono de cura e renovação.
Mas Gudrun permanecia desperta, na sua plena consciência. Estava imóvel, com os olhos fixos na obscuridade, enquanto ele adormecia, abraçado a ela.
Julgava ouvir o ruído das vagas rebentando numa praia invisível, longas ondas indolentes e sombrias que rolavam ao ritmo do destino, numa monotonia evoca Dora da eternidade. Este sussurrar constante do mar lento e triste apoderava-se-lhe da vida, e ela ali continuava de olhos abertos e enevoados, contemplando as sombras ao redor. Talvez visse de muito longe, talvez a eternidade, e, no entanto não distinguia nada. Mantinha-se absorta, mas consciente; consciente, porém, de quê?
Aquele estado, depois de haver atingido o máximo limite - quando ela mergulhou na eternidade, suspensa, inteirada de tudo - dissipou-se por fim e deixou-a desassossegada. Estivera tanto tempo imóvel! Mexia-se agora, recuperava a noção da realidade. E queria olhar para ele, observá-lo.
Não se atrevia, porém, a reacender a vela, certa de que Gerald acordaria, e desagradava-lhe perturbá-lo naquele sono tão perfeito que ela, bem sabia, lhe havia provocado.
Desprendeu-se dele cuidadosamente, soerguendo-se para contempla-lo na cama. No quarto, parecia descobrir uma claridade tênue. Podia ver as feições desse homem quieto e adormecido Julgava mesmo vê-lo distintamente, sem embargo da deficiência de luz. Ele, contudo, estava longe, num mundo diverso. Se ela gritasse, ele não a ouviria, tão ausente estava, num mundo distante. Gudrun tinha a impressão de que o via como um seixo afastado, meio submerso pela água límpida, no escuro. E ali ficava ela, entregue à angústia da sua consciência, enquanto ele mergulhava profundamente em outro elemento, descuidado, remoto, vivendo num mundo de claridade e de sombra! Belo, perfeito, longínquo. Jamais se poderiam reunir. Ah, atroz e inumana distância que se interpunha para sempre entre ela e aquele ser!
Nada restava a fazer senão ficar tranquila e sofrer o seu destino. Experimentava, por ele, a maior das ternuras e, ao mesmo tempo certo ciúme, certo ódio obscuro e confuso pelo fato de o ver tão calmo e imune em seu outro universo, enquanto ela estava atormentada, imersa em escuridão, vítima de cruel insônia.
Gudrun, em seu íntimo, sentia-se agitada. Extenuava-a aquela superatividade. O relógio da igreja batia horas que, à sua imaginação, se afiguravam suceder rapidamente. Ouvia-as distintas no meio da sua extrema tensão nervosa. Ele, porém, dormia, como se o momento fosse sempre o mesmo, imutável e estático.
A moça estava fatigadíssima. Contudo, era forçoso continuar naquele estado de excitação violenta; tudo lhe perpassava pela memória: a sua infância, a adolescência, episódios já esquecidos, coisas que não compreendera bem, cujo alcance lhe escapara, acontecidas a ela, à família, às amigas, aos namorados, aos conhecidos, fosse lá quem fosse. Era como se estivesse recolhendo, do fundo mar de sombras, o cabo cintilante das recordações, a puxar uma corda que não tinha fim, que nunca mais acabava, e ela precisava arrastar, retirá-la, fosforescente, das profundidades ilimitadas da lembrança, ate que, sem haver concluído a tarefa, a vencessem a lassidão, a dor e o esgotamento.
Ah, se ao menos pudesse acordar Gerald! A inquietação apoderara-se dela. Quando conseguiria despertá-lo e mandá-lo embora? Quando se atreveria a sacudi-lo? Ei-la de novo entregue à atividade automática da memória, sem esperança de a fazer cessar jamais!
Mas aproximava-se a hora de despertar Gerald. Sena um grande alívio o relógio, lá fora nas trevas, badalara quatro horas. Graças a Deus a noite ia findar. Às cinco tornava-se necessário que ele partisse, para que ela pudesse descansar. Repousaria, então estender-se-ia na cama, retomando a posição costumeira. Agora, naquele momento, opondo-se ao ritmo regular de um sono perfeito, era como uma faca muito aquecida de encontro a uma pedra de afiar. Havia nele qualquer coisa de monstruoso, na sua maneira de estar ali, assim unido, justaposto.
A última hora foi a mais comprida. Contudo, passou. O coração de Gudrun pulou de contentamento. Sim, lá estava batendo, pesada forte, a torre da igreja... Finalmente, depois de uma noite que parecia eternizar-se! Contava as badaladas, uma por uma: "três, quatro, cinco!" Pronto, estava acabado. Parecia retirar um peso enorme de cima.
Levantou-se, curvou-se ternamente sobre ele e beijou-o. Tinha pena de o despertar. Tornou a beijá-lo. Mas Gerald não se mexeu. Coitado, estava tão profundamente adormecido! Que maldade ter de acordá-lo! Deixou-o mais alguns minutos. Entretanto, fazia-se tarde; era preciso fazê-lo partir.
Cheia de ternura, tomou-lhe rosto entre as mãos e beijou-o nos olhos, que se abriram. Gerald ficou a observá-la, sem fazer qualquer movimento. O coração de Gudrun oprimiu-se. Para esconder o rosto daquele olhar espantado, que investigava a penumbra, inclinou-se e beijou-o mais uma vez, murmurando:
- Tem de ir, meu amor. Mas ao dizer isso, sentia-se triste.
Gerald lançou-lhe os braços ao pescoço. A jovem sentiu-se ainda mais angustiada.
- Você precisa ir - repetiu. - Está na hora.
- Que horas são?
Como soava singularmente aquela voz de homem! Gudrun estremeceu. A opressão tornava-se-lhe intolerável.
- Já passa das cinco.
Ele, porém, nada fez senão abraçá-la mais. O coração de Gudrun gemia-lhe no peito, torturado. Desprendeu-se dele à viva força.
- É preciso ir-se embora.
- Só mais um minuto.
Gudrun uniu-se a ele, muito sossegadamente, mas pouco disposta a lhe fazer a vontade.
- Mais um minuto - repetiu Gerald, apertando-a fortemente.
- Não - declarou ela. - Tenho medo, vá!
Havia na entonação da moça um pouco de frieza que o fez obedecer. Ela afastou-se, levantou-se e riscou um fósforo. Estava tudo terminado.
Gerald saltou da cama. Sentia-se quente, cheio de vida e de vigor. Contudo, experimentava um pouco de vergonha e humilhação em se vestir diante de Gudrun, à luz da vela. Era revelar-se expor-se excessivamente, principalmente agora que ela revelava hostilidade. Enfim, coisas difíceis de aceitar. Vestiu-se depressa, sem colocar nem o colarinho nem a gravata. Considerava-se agora uma pessoa completa, perfeita. Gudrun achava esquisito ver um homem vestir-se: camisa ridícula, ridículas calças e suspensórios... Teve uma ideia justificadora:
"Parece um operário que se levanta para ir para o trabalho - pensou. - Suponhamos que sou a mulher dele". Todavia, sentia um mal-estar, espécie de náusea do homem.
Gerald guardou no bolso do sobretudo o colarinho e a gravata. Depois sentou-se e calçou as botas, que estavam molhadas. Mas tinha pressa, e ele, ao menos, sentia-se quente.
- É melhor só calçar as botas lá embaixo - aconselhou ela.
Gerald, imediatamente, tirou as botas e ergueu-se com elas nas mãos. Gudrun calçara chinelas e envergava um roupão que não chegara a abotoar. Estava pronta e olhou para ele: Gerald esperava, com o sobretudo fechado ate o queixo e com o boné na cabeça. As botas pendiam-lhe das mãos. Por instantes, Gudrun sentiu-se tomada pela odiosa fascinação de sempre, que jamais se esgotava nela. Ele tinha o rosto tão ardente, os olhos imensos tão repletos de expressão! Achou-se velha, então, bastante velha... Aproximou-se com ar cansado e beijou-o. Gerald retribuiu-lhe o beijo, rapidamente. Ah, se aquela beleza fatal e sensual, beleza sem significação, não a enfeitiçasse mais, não a subjugasse tanto! Constituía para ela uma espécie de fardo, que a dominava e de que não se podia desvencilhar. Quando o contemplava, quando lhe via as sobrancelhas finas o nariz bem feito e os olhos azuis e indiferentes, Gudrun compreendia que a sua paixão não fora ainda satisfeita e que talvez nunca o viesse a ser. O pior é que, no momento, sentia-se fatigada, com uma sensação dolorosa. Gostaria que ele partisse.
Desceram. Tinham a impressão de que faziam muito ruído. Gerald seguia atrás, e Gudrun, embrulhada no seu roupão verde, levava na mão uma vela acesa. Assustava-a a ideia de despertar a família. Gerald não pensava nisso. Não se importava com o que os outros julgassem, e essa indiferença exasperava-a. Deviam rodear-se de precauções. Convinha não dar escândalo.
Tomaram o caminho da cozinha, que ficara limpa e arrumada como a criada a deixara. Gerald consultou o relógio: cinco horas e vinte minutos! Sentou-se e calçou as botas. Gudrun espiava-o, observando-lhe cada movimento. Desejaria pôr fim àquilo tudo que lhe causava aflição.
Ele se levantou outra vez, e ela destrancou a porta de serviço, investigando a escuridão. A madrugada estava áspera e fria, a aurora não despontava ainda e, num céu indeciso, pairava uma nesga de lua. Gudrun consolou-se com o pensamento de que voltaria para a cama.
- Bem, então adeus - murmurou ele.
- Vou até o portão - disse ela.
Passou à frente para indicar a escada. Chegando lá, parou nos degraus, enquanto Gerald descia.
- Adeus - cochichou a moça.
O homem beijou-a com delicadeza e partiu.
Era um sofrimento ouvir distintamente aquele passo vigoroso trilhando a estrada! E como aquele andar firme lhe revelava um mundo de insensibilidade!
Fechou o portão e voltou para a cama, rápida e silenciosa. Ao ver-se de novo no quarto, com a porta trancada, sã e salva, respirou de alívio, como se descarregasse um grande peso em cima. Aninhou-se entre os lençóis, na cavidade que o corpo de Gerald havia formado e que estava ainda quente como ele deixara. Enervada, cansada, mas apesar de tudo satisfeita, mergulhou muito depressa num sono profundo.
Gerald foi andando veloz na escuridão hostil daquela noite que findava. Não encontrou ninguém. Tinha o espírito perfeitamente calmo e despreocupado, semelhante a uma lagoa tranquila; sentia o corpo ágil, quente, apaziguado. Logo chegou a Shortlands, satisfeito consigo mesmo.

Capítulo XXV
Ser ou não ser casado
A família Brangwen ia deixar Beldover. Tornava-se conveniente que o pai morasse agora na cidade.
Birkin já havia requerido autorização para casar, mas Úrsula não se decidia. Não queria fixar a data definitiva; continuava a hesitar. Havia já três semanas que ela tinha pedido a sua demissão do colégio. O Natal se aproximava.
Gerald aguardava o casamento de Birkin com Úrsula. O caso tinha importância para ele.
- Quem sabe se, em vez de um casamento, serão dois? disse um dia ao amigo.
- Qual é o segundo? - inquiriu este.
- O meu e o de Gudrun - respondeu Gerald com uma piscadela de olhos.
Birkin encarou-o surpreso.
- Está falando sério?
- Sim, que tem isso de estranho? Podíamos casar no mesmo dia que vocês.
- Sem dúvida. Case! Não sabia que estavam tão adiantados.
- Adiantados? - repetiu Gerald, observando o outro e desatando a rir. - Sim, é verdade, estamos nesse ponto.
- Só resta colocá-los numa larga base social e realizar um fim moral elevado - declarou Birkin.
- Tudo isso: largura, altura... e comprimento - replicou Gerald, sempre rindo.
- Muito bem; é uma decisão digna de aplausos, julgo eu. Gerald fitou-o atentamente.
- Por que não se entusiasma mais um pouco? - indagou. - Julgava-o defensor acérrimo do matrimônio.
Birkin encolheu os ombros.
- Defenda-se, o que quiser, até narizes, que os há de várias espécies, achatados, torcidos...
Gerald achou a comparação divertida.
- E todas as espécies de casamentos, torcidos e achatados - observou.
- Isso mesmo.
- E pensa que o meu será dos torcidos? perguntou Gerald pondo a cabeça de lado, com ar zombeteiro.
Chegou a vez de Birkin sorrir.
- Como posso saber? Não se aproveite do meu estilo figurado para me submeter a interrogatórios.
Gerald refletiu uns instantes.
- Em todo caso, gostaria de saber ao certo a sua opinião.
- Acerca do seu casamento, ou do casamento em geral? Para que deseja conhecê-la? Opinião é coisa que não tenho. O casamento legal não me interessa, de modo nenhum. É pura questão de conveniência.
Gerald fitou-o mais uma vez com atenção.
- Acho que é mais do que isso - atalhou muito sério. Por muito enfadonha que seja a respectiva filosofia, em todo o caso... realmente... do ponto de vista de cada um, parece-me que é assunto grave, definitivo...
- Quer dizer que o fato de ir, com uma mulher, perante o registro civil, dá ao casamento aspecto definitivo?
- Se o ato se realiza ate ao fim, acho que é, de certa maneira, coisa irrevogável.
- Concordo - disse Birkin.
- A opinião que se tenha sobre a legitimidade não importa; contudo o fato, em relação aos contraentes, é coisa certa. - Creio que sim, em certas terras.
- O problema se resume em saber se nos devemos casar... Birkin observava-o, curioso, com os olhinhos risonhos.
- Você, Gerald, - disse ele - é tal qual Lord Bacon. Argumenta como um advogado, ou como o Hamlet no ser ou não ser. No seu caso, eu não me comprometeria. Mas vá perguntar isso a Gudrun e não a mim. Não é comigo que você quer casar...
Gerald não prestou atenção ao final do discurso.
- Sim - insinuou - devemos considerar tudo isso com serenidade. É um momento crítico da nossa vida. Chega-se a certa altura em que é preciso enveredar por um caminho ou por outro. O casamento é um desses caminhos.
- E qual é o outro? - acudiu logo Birkin.
Gerald ergueu para ele os seus olhos ardentes, estranhamente persuasivos, que o amigo, todavia, não pôde compreender.
- Não sei explicar - respondeu. - Se o soubesse... - Mexeu com os pés, inquieto, e não acabou a frase.
- Quer dizer que, se conhecesse a alternativa... ? - sugeriu Birkin. - Mas como não a conhece, o matrimônio é um pis aller - Uma situação que se aceita por não haver algo melhor - nota da tradutora).
Gerald dardejou-lhe um olhar fogoso, constrangido.
- A impressão, realmente, é que se trata de um pis aller.
- Então não se case - sentenciou Birkin. - Dir-lhe-ei - prosseguiu - o mesmo que já lhe disse uma vez: o casamento, no seu significado usual, repugna-me. Comparado com ele, o egoisme à deux não é nada. É uma espécie de caçada feita por grupos de dois; o mundo todo aos pares, cada qual na sua casa, tratando da sua vida, cozinhando na intimidade... Nunca vi coisa mais repelente sobre a face da terra.
- Sou da sua opinião - voltou Gerald. - Há nisso muita inferioridade. Mas, como eu dizia, qual será a alternativa?
- É preciso desembaraçarmo-nos deste instinto doméstico, que não é bem um instinto, mas um hábito de covardia. Não devíamos nunca ter um lar.
- Completamente de acordo. Mas não há outra solução.
- É preciso encontrar uma. Creio na união permanente do homem com a mulher. Mudar sempre seria trabalho puramente exaustivo; ora, união apenas sexual entre mulher e homem não é o ponto supremo... Com certeza não é.
- Também acho.
- E é pelo fato de fazerem dessas relações materiais o fim supremo e exclusivo que vemos surgir tanta incompreensão, tanta mesquinhez e tanta insuficiência.
- Perfeitamente - disse Gerald.
- Devia-se apear do pedestal a que a ergueram essa fórmula considerada ideal: o amor no casamento. Pretendo algo mais elevado. Acredito numa união perfeita entre homem e mulher como complemento do matrimônio.
- Não percebo como possa equivaler-se.
- Não é o mesmo: é coisa mais importante, igualmente criadora, igualmente sagrada, se prefere.
Gerald remexia-se, inquieto.
- Bem vê, não posso sentir assim - declarou. - Acho que nada existe de mais forte entre mulher e homem do que o amor sexual. A natureza não estipula bases.
- Pelo contrário, creio que estipula. Nem julgo que possamos ser felizes sem estabelecermos, por nosso lado, as regras que nos competem. Faça por se desembaraçar do exclusivismo do casamento de amor e admita a estima do homem pelo homem, que tanta aversão lhe causa. Assim haveria maior liberdade para toda gente, grande força individual não só para o homem como para a mulher.
- Bem sei - retorquiu Gerald. - Você crê em qualquer coisa nesse gênero. Eu é que não posso conceber nada disso. - Colocou a mão no ombro de Birkin, com uma espécie de simpatia suplicante, enquanto sorria como se houvesse triunfado na discussão. Estava pronto a se deixar condenar: era assim, como uma condenação, que lhe aparecia o casamento. Ele próprio desejava sofrer a pena do matrimônio, como um condenado a trabalhos nas minas que diz adeus à luz do sol e mergulha na terrível atividade subterrânea. Estava disposto a aceitar isso mesmo. O casamento era a penalidade imposta. Queria ser proscrito dessa forma para o subsolo, como uma alma penada que devesse viver para sempre em cativeiro. Não desejava, porém manter afinidades com mais nenhuma outra alma. Não o conseguiria. O casamento não era só unir-se a Gudrun: implicava também a aceitação do mundo tal qual existia. Devia admitir a ordem estabelecida, na qual não tinha confiança, e então retirar-se-ia para debaixo da terra, para sempre. Era esse o seu intento.
Por outro lado, havia a possibilidade de aceitar a aliança com Rupert, ligando-se por laços de pura estima com o homem, e, pela mesma doutrina, com a mulher. Se se comprometesse solenemente com o primeiro, mais tarde estaria apto a fazer o mesmo com uma mulher, não só por meio de casamento legal, mas numa união mística e absoluta.
Contudo, repudiava semelhante entendimento. Havia nele certo torpor, quer derivado de ausência de vontade, que jamais teria possuído, quer por se lhe haver ela atrofiado. Talvez a primeira hipótese. De fato, a proposta de Rupert Birkin entusiasmara-o singularmente. Mas sentia muito prazer em declarar que não aceitava.


Capítulo XXVI
A propósito de uma cadeira
Todas as segundas-feiras, à tarde, realizava-se uma feira de objetos usados no antigo mercado da terra. Úrsula e Birkin foram lá uma vez. Tinham conversado a respeito de móveis e quiseram ver se encontrariam qualquer coisa capaz de ser comprada no meio daquelas pilhas de trastes acumulados na praça.
O velho mercado não era muito vasto: simples quadrado com o chão coberto de pedras de granito, onde habitualmente, junto às paredes, se erguiam os tabuleiros dos vendedores de frutas. Ficava num bairro pobre e rodeavam-no, por um lado, casas em ruínas, de outro, uma fábrica de fiação, extensa fileira de inúmeras janelas oblongas; ao fundo, corria uma rua pavimentada de lajes, onde havia alguns estabelecimentos, e, na última face do quadrado, ficava um edifício do Estado, os banhos públicos, de tijolos novos, rubros e uma torre de relógio. As pessoas que por ali circulavam eram apenas figuras infelizes e sórdidas. O ar parecia impregnado de cheiros fétidos, dando a mesma sensação que se tem nas travessas pobres muito enredadas, cheias de casebres mesquinhos. De vez em quando, diante da fábrica, rodava a custo, rangendo, um grande carro americano, amarelo e cor de chocolate.
Úrsula sentiu arrepios na pele ao ver-se entre a gente do povo, no lugar onde se amontoavam camas velhas, objetos de ferro enferrujados, louça de barro em lotes tristes e conjuntos incríveis de roupa usada. Birkin seguia por aqueles espaços estreitos em que se sobrepunham todas aquelas mercadorias, que ele ia examinando com atenção. Úrsula observava as pessoas.
Contemplava agora uma mulher nova em vésperas de ser mãe; dispunha-se a comprar um colchão e incitava o rapaz que a acompanhava, desatento e abatido, a experimentá-lo também. Parecia tão ativa, preocupada e ansiosa quanto o rapaz se afigurava indiferente e com ar de quem pretende esquivar-se. Iam naturalmente casar por causa daquela criança prestes a vir ao mundo.
Depois de haverem apalpado o colchão, perguntou a freguesa ao homem, que estava sentado num banco em meio das suas mercadorias, qual era o preço que ele pedia. Uma vez informada do custo, comunicou a notícia ao rapaz. Este mostrou-se acanhado; desviou o rosto; sem no entanto mover o resto do corpo e pronunciou qualquer coisa em voz baixa. De novo a mulher, ansiosa e diligente, provou o colchão, fazendo cálculos consigo mesma e regateando com o vendedor desleixado. E, durante todo esse tempo, o rapaz ficou ao lado dela, envergonhado, sem energia, submisso.
- Veja - disse Birkin. - Aqui está uma cadeira bem bonita.
- Linda! - exclamou Úrsula. - Um encanto!
Era uma cadeira de braços, de qualquer madeira vulgar - vidoeiro, provavelmente - mas bastante delicada e graciosa quanto ao estilo; dava pena vê-la ali sobre aquelas pedras miseráveis. Era de forma quadrada, com linhas esbeltas e puras; o espaldar era constituído por quatro tiras de madeira, delgadas, cuja disposição lembrou a Úrsula a das cordas de uma harpa.
- Noutro tempo - observou Birkin - devia ter sido dourada e com assento de palhinha. Pregaram-lhe por cima esse tampo de madeira. Está vendo, aqui está um vestígio de tinta vermelha por baixo do dourado. A base é toda preta, exceto onde o uso pôs à mostra a própria madeira. O que a torna assim atraente é a perfeição de suas linhas. Repare como seguem, como se encontram e se desviam. O pior é o assento de pau, que não lhe pertence, destrói a elegância e a priva da unidade que lhe dava o entrançado da palhinha. Ainda assim, agrada-me...
- E a mim também - disse Úrsula.
- Quanto custa? - perguntou ao vendedor.
- Dez xelins.
- Pode mandar entregar?
Fizeram a compra.
- É tão bonita, tão graciosa! - disse Birkin. - Enternece o coração. - Continuaram o seu caminho entre os montões de coisas velhas. - Minha pátria amada, tinha qualquer coisa para exprimir, quando fizeste esta cadeira!
- E hoje não tem? - perguntou Úrsula. Irritava-se quando ele falava naquele tom.
- Não, não tem. Quando vejo esta cadeira, tão bela e elegante e penso na Inglaterra, ainda que seja a do tempo de Jane Austen!... Havia então pensamentos vivos a desenvolver, e havia prazer em desenvolvê-los... E agora só nos resta pescar, entre o lixo, o que ficou da velha expressão nacional. Não temos, presentemente, originalidade, somos apenas mecanismos sórdidos e grosseiros.
- Não é verdade! - atalhou Úrsula. - Por que você há de exaltar constantemente o passado em desprimor do futuro? Eu, na verdade, não sou muito pela Inglaterra de Jane Austen. Era bastante materialista, se me permite dizer...
- Podia dar-se ao luxo de o ser - contraveio Birkin - porque tinha possibilidades de fazer mais alguma coisa, o que não sucede conosco. Nós somos materialistas pela razão de não termos facilidade de ser de outra maneira. Bem podemos experimentar, mas não conseguimos senão materialismo; ou a mecânica, que é a alma daquele.
Úrsula guardava um silêncio hostil. Não fazia caso mais do que ele estava dizendo. Revoltava-se contra outro pensamento que lhe girava no cérebro.
- Odeio esse passado que você ama. Sinto náuseas. Parece ate que detesto essa cadeira antiga que compramos, apesar de achar bonita; mas não é desta beleza que eu gosto. Preferia que a tivessem destruído, uma vez que passou de época; que não tivesse sobrevivido, dando assim origem a estes seus panegíricos do passado... Estou farta desse passado que você adora.
- Não tanto quanto eu estou farto deste maldito presente - replicou ele.
- Pois é a mesma coisa. Detesto também o presente, mas não me agradaria que o passado o viesse substituir. Não quero a cadeira antiga.
Naquele momento Birkin estava furioso. Olhou para o céu que brilhava sobre a torre do estabelecimento de banhos e sua cólera passou. Começou a rir.
- Muito bem - disse ele. - Desfaçamo-nos desse objeto. Enfastia-me também. De qualquer maneira, não nos podemos continuar a alimentar de velharias, por mais belas que sejam.
- Não podemos - assentiu ela. - Não preciso de antiguidades.
- A verdade é que não necessitamos de móveis de nenhuma espécie - declarou Birkin. - A ideia de uma casa minha, com a respectiva mobília, enfurece-me.
Tal declaração sobressaltou-a por instantes. Mas depois retorquiu:
- A mim também. O caso, porém, é que precisamos viver em qualquer parte.
- Em qualquer parte, não, mas em parte nenhuma. Em nenhum lugar, sim! Não ter pouso definido! Não me falem em residência permanente. Logo que temos um quarto, e que o vemos completo, nosso desejo é fugir dele. Os meus aposentos no moinho estão agora quase prontos, e meu desejo seria lançá-los no fundo do mar; é uma tirania medonha essa do lugar fixo, onde cada peça de mobiliário tem a sua ordem estabelecida.
Úrsula apoiou-se ao braço dele enquanto se afastavam da feira.
- Mas que havemos de fazer? - murmurou ela. - Temos de viver seja lá onde for, e agradam-me coisas belas à minha volta. Aprecio uma espécie de esplendor natural, de magnificência.
- Você não achará nada disso, nem nas casas, nem na mobília, nem sequer nos vestidos. Casas, móveis, roupas, são termos de um mundo velho e mesquinho, da antipática sociedade humana. E pior ainda se você tiver uma residência de estilo Tudor com lindos móveis antigos, que faria perpetuar passado à sua volta. Mas se a casa é moderna e for decorada por Poiret expressamente para nós, é outra a ideia que perpetuamos à nossa volta: igualmente horrível. É tudo patrimônio, tudo são bens que nos atormentam, obrigando-nos à generalização... Devíamos fazer como Rodin e Miguel Ângelo, que deixavam em torno dos vultos esculpidos apenas pedaços de pedra rudes e imperfeitos. Em redor de nós, seguindo o exemplo, devíamos ter somente coisas incompletas, esboçadas, de maneira a não sermos nunca limitados, nem confinados pelo que nos rodeia.
Úrsula parou no meio da rua, meditando.
- Nunca teremos, então, uma casa nossa, uma instalação de verdade?
- Se Deus quiser, neste mundo, não.
- Mas só há este mundo - objetou ela.
Rupert estendeu os braços num gesto de indiferença.
- Entretanto, evitemos possuir seja que objetos forem.
- Você acaba de comprar uma cadeira.
- Direi ao homenzinho que não a quero mais.
Úrsula tornou a refletir. Sua face contraiu-se em um ritus estranho.
- Tem razão - disse ela. - Não precisamos de velharias. Estou farta disso.
- Quanto a mim, não aprecio mais que é moderno - replicou Birkin.
Resolveram voltar.
Em frente a uma pilha de móveis estava casal jovem: a moça que ia ter seu bebê e rapaz acanhado e inexperiente. Ela era loura, atarracada e forte. Ele, de altura mediana, bem constituído; tinha cabelos pretos, caindo sobre a testa. Com a boina enfiada na cabeça, parecia totalmente alheio ao que se passava.
- Vamos oferecê-la a eles? - cochichou Úrsula. - Repare, têm o aspecto de quem anda mobiliando o ninho...
- Nesse caso, não os ajudarei nem incitarei - afirmou Birkin com petulância, tomando logo o partido do rapaz indiferente e bisonho contra a fêmea ativa e procriadora.
- Sim, sim! - exclamou Úrsula. - Ela será ótima para eles. Não há nada melhor!
- Está bem, vá oferecer a cadeira: eu fico observando. Úrsula dirigiu-se, um tanto nervosamente, em direção ao casal, que discutia a compra de um lavatório de ferro; ou melhor, era a mulher quem regateava ao passo que o rapaz, como um prisioneiro, lançava olhares furtivos e desconfiados sobre o objeto abominável.
- Compramos uma cadeira - começou Úrsula - mas não a queremos. Querem-na para vocês? Teríamos muito gosto em que aceitasse.
Os dois olharam admirados, custando a acreditar que a conversa fosse com eles.
- Importa-se de ficar com ela? - prosseguiu Úrsula. - É realmente muito bonita, mas... mas... - E exibiu o seu melhor sorriso.
Os noivos limitaram-se a observar, trocando olhares significativos, para saberem que resposta deviam dar. O rapaz procurava apagar-se o mais possível; o seu desejo seria escapulir como um rato.
- Temos muito gosto em oferecê-la - continuou Úrsula, sempre confusa e receosa. O rapaz, no entanto, inspirava-lhe simpatia. Era silencioso, descuidado, pouco masculino, singularmente delicado, de pura raça, em certo sentido. Era, enfim, tímido, esperto, sutil. As pestanas, longas e finas, sombreavam-lhe os olhos, nos quais não existiam pensamentos apenas uma espécie de instinto terrível, lá no interior, vítreos e melancólicos. Tanto as sobrancelhas escuras como os estantes traços da fisionomia obedeciam a um desenho corresimo. Assim tão bem dotado, devia ser, para a mulher, um amante funesto, mas admirável. Sob as calças disformes adiavam-se-lhe as pernas finas e ágeis; dir-se-ia haver, em volta alguma coisa da esperteza, da cautela, do aveludado de ratinho de olhos pretos, silencioso.
Úrsula dirigia-se a ele, com um leve calafrio de sedução. A mulher encarava-o hostilmente. A professora repetiu, mais uma vez:
- Não querem a cadeira?
O rapaz olhou para ela de soslaio, admirando-a, mas com ar distante, quase insolente. A mulher empertigou-se. Tinha o aspecto de uma vendedora de hortaliças. Não percebia quais eram as intenções da doadora e mantinha-se de prevenção. Birkin aproximou-se sorrindo perversamente ao ver Úrsula confusa e asseada.
- Então, o que há? - perguntou ele, jovial. Tinha os olhos semicerrados opressão denunciava algo de misterioso, igual à que se nota o parzinho de noivos. O rapazola inclinou a cabeça para Úrsula, e disse com certo calor, amável:
- Que é que ela quer, hein? - Seus lábios arquearam-se em um sorriso muito especial.
Birkin olhou para ele, mirando-o por baixo das pálpebras descidas, ironicamente.
- Dar-lhe uma cadeira... aquela, que tem um letreiro amarrado - disse para o outro, apontando-lhe o móvel.
O rapaz olhou para a cadeira. Notava-se entre os dois homens certa camaradagem e compreensão.
- Por que é que ela nos quer oferecer? - perguntou o primeiro em tom de familiaridade que melindrou Úrsula.
- Pensei que talvez gostassem... É uma cadeira tão bonita! Comprei-a, mas não a quero mais. Não é obrigado a aceitá-la, quanto a isso, fique sossegado... - explicou Birkin, sempre sorridente.
O rapaz lançou-lhe um olhar meio formalizado, meio agradecido.
- Se a compraram, por que razão não a querem? - interveio a mulher, friamente. - Será que a observaram melhor e viram que não serve? Aposto que desconfiam de que tenha alguma coisa lá por dentro.
Ao dizer isto, contemplava Úrsula com admiração mesclada de ressentimento.
- Não pensei nisso - declarou Birkin. - Mas vejam, a madeira está em bom estado...
- Aí está - atalhou Úrsula, com a face risonha, fazendo-se amável. - Vamo-nos casar e pensamos comprar alguns móveis. Mas agora decidimos, neste momento mesmo, desistir da mobília e irmos para o estrangeiro.
A outra, moça saudável, de boas cores, examinou o rosto delicado de Úrsula. Apreciavam-se reciprocamente. O noivo daquela mantinha-se de parte, alheio ao tempo, inexpressivo, com a sombra negra do bigodinho desenhando-lhe a boca impassível, sempre abstrato, mera presença inofensiva, como a de qualquer objeto.
- Essas pessoas da alta roda são engraçadas - comentou a mulher, voltando-se para o rapaz; este nem olhou para ela, limitando-se a sorrir com a parte inferior da fisionomia e deitando a cabeça de lado, num gesto irônico de concordância. Os olhos conservavam-se na mesma, vítreos e melancólicos.
- Sai caro mudar de ideias - observou ele, numa voz estranhamente velada.
- Perco apenas dez xelins - esclareceu Birkin.
O rapaz encarou-o, sorrindo contrafeito, acanhado, pouco à vontade.
- É mais barato então do que o divórcio...
- Ainda não estamos casados - elucidou o outro.
- Nós também ainda não - acudiu a robusta jovem. - Casamo-nos qualquer sábado desses...
Lançou ao noivo uma olhadela decidida e protetora, ao mesmo tempo autoritária e carinhosa. Ele riu-se, com um risinho abafado e deu-lhe as costas. Estava nas mãos dela, evidentemente, mas fazia por se defender. Vinham-lhe pruridos de orgulho e esquivava-se para demonstrá-lo.
- Que sejam felizes! - disse Birkin.
- O mesmo desejo aos senhores - volveu a mulher. Depois, numa tentativa audaciosa, perguntou:
- Quando é o casamento? Birkin voltou-se para Úrsula.
- Ela é quem decide - respondeu. - Iremos ao cartório assim que ela estiver pronta.
Úrsula achou graça e sentiu-se confusa e embaraçada.
- Não tenha pressa - acudiu o rapazinho, deixando ver os dentes, muito risonho.
- Não se preocupem com isso - interveio outra vez a moça.
- Também para morrer há tempo. E ficarão casados por muitos anos!
O noivo desviou-se, como que magoado com aquelas palavras.
- Quanto mais durar, melhor. Tenhamos esperança - disse Birkin.
- É isso mesmo, senhor - afirmou o rapaz, com acentuada admiração. - Aproveitar enquanto há saúde. Depois do burro morto, nada se pode fazer.
- A não ser que ele se finja de morto - acudiu a mulher, olhando para o noivo, com ternura, e, simultaneamente, autoridade.
- Faz diferença, é claro - replicou ele.
- E a respeito da cadeira? - perguntou Birkin
- Aceitamos! - declarou a mulher.
Aproximaram-se do vendedor. O rapazinho manhoso, com seus belos ares, deixou-se ficar, entretanto, mais atrás.
- Cá está - explicou Birkin. - Levam-na consigo, ou muda-se o endereço?
- Fred pode com ela. Que faça ao menos isso em benefício da nossa casa.
- Vai ser muito útil - disse Fred em tom sarcástico, ao pegar a cadeira. Tinha movimentos elegantes, mas era servil, cheio de manha. - Mamãe vai gostar - observou ele. - Só lhe falta uma almofada. - Colocou-a no chão de pedras e esperou.
- Não a acha bonita? - perguntou Úrsula.
- Sim, senhora - respondeu a noiva.
- Sente-se aqui, para ver se se arrepende da oferta que fez - lembrou o rapaz.
Úrsula obedeceu e sentou-se, mesmo ali no meio da feira.
- Confortabilíssima - declarou. - Mas um tanto dura. Experimente. - Convidou o homem a sentar-se. Este, porém, relanceou-lhe um olhar envergonhado, pondo-se de lado, sem jeito, e tentando esquivar-se como um ratinho.
- Não o estrague com mimos - disse a moça. - Não está habituado a poltronas.
Sempre desviando o olhar, respondeu-lhe aquele, em tom de brincadeira:
- Às minhas só faltam os pés.
Separaram-se. A noiva manifestou o seu agradecimento pelo presente.
- Muito obrigada pela cadeira. Há de durar muito.
- Vamos guardá-la como enfeite - completou o rapaz.
- Boa tarde! Boa tarde! - disseram Úrsula e Birkin.
- Felicidades para ambos! - respondeu o rapaz, evitando o olhar de Birkin na ocasião em que este voltara a cabeça para ele.
Os dois casais seguiram cada qual o seu caminho. Úrsula tomou o braço de Rupert. Quando já iam a certa distancia, Úrsula olhou para trás e descobriu os noivos, ela grávida e vagarosa andando ao lado dele. As calças do rapaz desciam-lhe aos calcanhares; seguia como quem tem vontade de se esconder, sofrendo no seu orgulho por ser obrigado a carregar com a cadeira, que segurava pelo espaldar, enquanto os quatro pezinhos delgados se balançavam a pouca distância do chão, com perigo de se estragarem. E, contudo, lá ia ele insubmisso e independente como um rato ligeiro e esperto. Belo à sua maneira, um tanto singular, mas, ao mesmo tempo, repulsivo.
- Que casal estranho! - murmurou Úrsula.
- Filhos dos homens - elucidou Rupert. - Lembram-me Jesus quando disse: "Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra.
- Mas estes não são mansos - objetou Úrsula. - Não sei bem por que, mas são.
Esperaram o ônibus. A moça preferiu ir na parte de cima para contemplar a cidade. O crepúsculo principiava a descer sobre as casas apinhadas.
- E herdarão a terra?
- Sim, eles só.
- E nós, então, o que havemos de fazer? - perguntou ela. - Não somos iguais a eles, não é verdade?
- Decerto. Teremos de viver nos buracos que nos deixarem.
- É horrível! declarou Úrsula. - Não quero viver assim.
- Não se aflija. São filhos dos homens, preferem os mercados e as esquinas das ruas. Restam devolutos imensos buracos para nós.
- O mundo inteiro...
- Isso não, mas sempre sobra algum espaço.
O ônibus subia lentamente a colina, onde o medonho conjunto de habitações, de um tom acinzentado, se assemelhava a uma visão infernal, irritante e angulosa. Começaram a observar. O sol morria no horizonte, vermelho de furor. Tudo parecia triste, encolhido, sufocante, sugerindo o fim do mundo.
- Nada disso me interessa - proferiu Úrsula, olhando para o cenário repelente. - Não me diz respeito.
- Sem dúvida - replicou Rupert, tomando-lhe a mão. - Não é necessário ver. Cada qual segue o seu caminho. No meu há sol e há espaço...
- Está dizendo a verdade, meu amor? - Uniu-se mais a ele, enquanto os outros passageiros do carro os fitavam com estupefação.
- Erraremos sobre a face da terra - volveu Birkin. - Veremos outras coisas no mundo, diferentes desta paisagem.
Ficaram calados por muito tempo. Úrsula meditava e seu rosto se tornara radiante como o ouro.
- Não preciso herdar os bens da terra - disse ela. - Nem quero nada.
Rupert apertou-lhe mais a mão.
- Nem eu. Quero ser deserdado.
Úrsula premia-lhe fortemente os dedos.
- Não nos incomodaremos com coisa alguma - sentenciou a moça.
Rupert, muito calmo, principiou a rir.
- Casaremos e não daremos importância aos demais - prosseguiu ela.
Ele continuava a rir.
- E uma das maneiras de nos livrarmos de tudo é casar - acrescentou Úrsula.
- E aceitar um mundo inteirinho - atalhou Rupert.
- Sim, porém um mundo diferente - replicou a moça, satisfeita.
- Mas... Gerald e Gudrun?
- Que fiquem, se quiserem. Não nos incomodaremos com isso. É impossível modificá-los.
- Sim, nem temos o direito de intervir, mesmo com a melhor das intenções...
- Você seria capaz de tentar? - perguntou a moça.
- Talvez. Mas por que é que o desejo, a ele, livre, se a natureza não o talhou para tal?
Úrsula refletiu alguns instantes.
- De qualquer maneira, não podemos fazê-los felizes. Que o sejam, mas à sua custa.
- Bem sei. Todavia, precisamos de outras pessoas, junto de nós...
- Por quê?
- Não sei. - Rupert parecia embaraçado. - Desejamos sempre ter amigos...
- Mas por quê? - insistiu ela. - Que necessidade temos de outras pessoas? Não nos bastamos a nós mesmos?
Aquela teima espicaçava-o. Birkin tornou-se carrancudo.
- Só existimos nós dois na terra? - inquiriu nervoso.
- Sim, Rupert. Para que mais gente? Se alguém quiser aproximar-se, deixá-lo vir. Mas não é preciso correr atrás dos outros.
Birkin permanecia ansioso e descontente.
- Veja - disse então. Eu não concebo que sejamos realmente felizes senão em companhia de meia dúzia de pessoas... Um pouco de liberdade, no meio de um grupo...
Úrsula voltou a refletir.
- De fato, isso é necessário. Mas que aconteça por si mesmo, e não pela nossa vontade. Você tem sempre o ar de quem está querendo obrigar as plantas a crescer. Se os outros simpatizarem conosco, está bem; mas não os obriguemos.
- Bem sei - concordou ele - Contudo, pode-se dar uns passos nesse sentido. Ou devemos proceder como se estivéssemos sós no mundo, como se fôssemos os únicos habitantes do planeta?
- Você tem a mim - redarguiu ela. - Para que mais? Por que obrigar os outros a concordar com você? Não pode ficar isolado, como tanto preconiza? Quer forçar Gerald com ameaças, como já fez a Hermione? Aprenda a viver só. É horrível da sua parte. Você me tem, e, no entanto, pretende obrigar os outros a sentirem estima por você! Quando, afinal, não tem necessidade da afeição dessa gente...
Birkin ficara deveras perplexo com este discurso.
- Pensa assim? - replicou. - É um problema que eu não sei resolver. Compreendo que desejo ter com você uma união perfeita e completa e estamos prestes a consegui-la. Mas, fora isso? Quero manter com Gerald uma amizade definitiva, quase extra-humana, uma amizade suprema. Ou não quero?
Úrsula contemplou-o longamente, com os olhos brilhantes e admirados. Mas não deu resposta.


Capítulo XXVII
Batendo as asas
Naquela noite, Úrsula regressara a casa com os olhos brilhantes, diferente do que costumava ser, irritando com isso os demais membros da família. O pai viera cear, depois das aulas noturnas, cansado do trabalho e do trajeto. Gudrun lia e a mãe conservava-se silenciosa.
De repente, em voz bem timbrada, a mais velha das irmãs declarou:
- Rupert e eu vamos casar amanhã.
O pai olhou, colérico.
- O quê? - exclamou.
- Amanhã? - perguntou Gudrun.
- Que ideia é essa? - quis saber a mãe.
Úrsula, porém, limitou-se a sorrir, encantada consigo mesma, e não deu resposta.
- Casar-se amanhã! - tornou o pai, indignado. - Que é que está dizendo?
- Sim, senhor. Por que não? - Estas simples palavras tiveram o poder de enfurecê-lo. - Temos tudo pronto. Iremos ao Registro Civil.
Houve um silêncio de segundos na sala, depois daquela declaração feita com tanta naturalidade.
- Isso é verdade, Úrsula? - indagou a irmã.
- Pode-se saber por que guardou segredo? - interrogou a mãe, cheia de dignidade.
- Não houve segredo nenhum. Todos sabiam.
- Quem é que sabia? - gritou o pai. - Quem sabia? Que quer dizer com todos sabiam?
Assumira uma das suas atitudes de ira brutal, e a moça colocou-se logo em guarda.
- Claro que o senhor estava a par. Não ignorava que nos iríamos casar.
Houve uma pausa perigosa.
- Diz que eu sabia que vocês iam casar? Como iria saber? Quem pode saber jamais o que você pensa fazer, minha sonsa?
- O pai! - interveio Gudrun, em tom de censura, corando intensamente. Depois, em voz mais calma e afável, como para lembrar à irmã que devia condescender, perguntou-lhe: - Não será uma resolução um tanto impensada?
- Pelo contrário - objetou a outra, com a mesma jovialidade agressiva. - Há muitas semanas que ele espera o meu consentimento, e já tratou ate dos papéis. Eu é que não me tinha ainda resolvido. Acabo de o fazer. Que tem isso de censurável?
- Nada, decerto - respondeu Gudrun, porém de uma forma ainda meio repreensiva. - Você é senhora das suas ações.
- Não tinha ainda resolvido! É isso que importa, não é? Tomar uma resolução! - Brangwen dizia isto imitando a voz da filha, de maneira agressiva. - Você e só você!
Úrsula empertigou-se, ergueu o peito e nos olhos fuzilaram-lhe clarões dourados, assustadores.
- Sirvo de alguma coisa! - declarou, ofendida e penalizada. - Sei, no entanto, que para os outros não represento nada. O pai só trata de me repreender, nunca se preocupa com a minha felicidade.
Brangwen curvara-se para ela, estendendo-lhe o rosto congestionado.
- Úrsula! - acudiu a mãe. - O que é que está dizendo? Cale-se, por favor!
A moça voltou-se logo, de olhar coruscante.
- Não, não me calo. Não me calo nem me deixo espezinhar assim. Que importa que eu me case amanhã ou depois? Que lhes interessa isso? O assunto não diz respeito a mais ninguém, só a mim.
O pai continuava em guarda, como um gato pronto a investir.
- Não me diz respeito? - repetiu ele, chegando-se mais para o lado da filha, que recuou.
- É claro que não! - replicou ela, trêmula, mas inflexível.
- Com que então, o que você faz não me interessa? - a voz de Brangwen alcançara seu mais alto diapasão.
Gudrun e a mãe olharam-no como que hipnotizadas.
- Não! - balbuciou Úrsula. O pai estava muito junto dela. - O que o senhor quer é apenas...
Interrompeu-se, reconhecendo que era arriscado o que ia dizer. Brangwen estava pronto, com os músculos retesados.
- O quê? - perguntou, desafiando-a.
- Intimidar-me!
Mal tinha proferido isto e já a mão do pai, estampando-se-lhe no rosto, a mandava de encontro à porta.
- Papai! - exclamou Gudrun em altos brados. - É incrível!
Brangwen ficou petrificado. Úrsula endireitou-se, apoiando-se, com a mão, ao fecho da porta. Recompunha-se lentamente. O pai estava imóvel.
- Sim, senhor - disse ela, com os olhos brilhantes de lágrimas, erguendo a cabeça com ar atrevido.
- O que tem sido o seu amor paternal? Como se tem manifestado? Brutalidades, recusas, eis tudo!
O homem cresceu de novo para a moça com um ar assustador, de punho cerrado e expressão sanguinária. Ela, porém, célere como o relâmpago, abriu a porta e ouviram-na depois subir os degraus da escada.
Brangwen deteve-se uns momentos olhando para a entrada. Então como um animal vencido, deu meia volta e veio sentar-se junto ao fogo.
Gudrun estava lívida. Foi a mãe quem rompeu o silêncio intenso que se fizera, declarando furiosa e friamente:
- É melhor não fazer caso do que ela diz!
Recaíram no mutismo, cada qual seguindo o curso dos seus pensamentos e preocupações.
Abriu-se de repente a porta. Era Úrsula que reaparecia, de chapéu, casaco e maleta nas mãos.
- Adeus! - exclamou em tom decidido, exasperante, mas ao mesmo tempo irônico. - Vou-me embora.
No mesmo instante tornou a fechar a porta; ouviram depois ranger a de fora e os passos da moça, ligeiros, na calçada do quintal. Na casa reinou um silêncio de morte.
Úrsula foi direto à estação, andando como se tivesse asas nos pés. Não havia trem e teve de ir tomá-lo no entroncamento. Caminhando no escuro, sentiu vontade de chorar e derramou lágrimas amargas, com o coração ferido, experimentando temores infantis, e assim todo o percurso, mesmo já dentro da carruagem. O tempo decorria sem que ela lhe prestasse atenção, alheia por completo, sem saber onde se encontrava nem o que lhe sucedera. O pranto subia-lhe das profundezas insondáveis do desespero, desgosto imenso, terrível ansiedade como a das crianças a quem o choro não extenua.
A voz, contudo, recuperou a frescura quando perguntou à senhoria de Birkin, à porta do moinho:
- Boa noite! O Sr. Birkin está? Posso falar com ele?
- Sim, senhora, ele está no escritório.
Úrsula caminhou atrás da mulher. A porta do escritório estava aberta e Birkin ouvira-lhe a voz.
- Olá! - exclamou ele, surpreendido de a ver ali com a mala na mão e, no rosto, vestígios de lágrimas. Todavia, seu rosto estava tranquilo como o de uma criança.
- Devo estar horrível! - disse ela, recuando.
- Não. Por quê? Entre. - Pegou a maleta e os dois entraram na sala.
Lá chegados, os lábios da jovem começaram a tremer, como uma criança que se recorda do que lhe aconteceu. As lágrimas irromperam outra vez.
- Que foi? - repetiu ele logo que a noiva se tranquilizou um pouco. Úrsula, porém, apoiava-se com força ao ombro de Birkin, que esperava silencioso.
- Que foi? - repetiu ele logo que a moça se tranquilizou um pouco. Úrsula, porém, apertava-se ao ombro dele, como se não quisesse responder.
- Preciso saber o que aconteceu...
Ela se desviou dele, enxugou os olhos e foi sentar-se numa cadeira.
- Meu pai bateu-me - anunciou então, aconchegando-se como um passarinho enovelado. Os olhos cintilavam-lhe.
- Por quê?
Úrsula desviou os olhos, sem responder.
- Por quê? - insistiu Birkin com voz estranha, penetrante, persuasiva.
Ela o enfrentou desta vez, numa atitude de desafio.
- Porque eu lhe disse que nos casávamos amanhã.
- Então bateu em você?
Ela tornou a fazer beicinho, lembrando-se da cena em casa e as lágrimas assomaram-lhe de novo aos olhos.
- Declarei-lhe que o assunto não lhe dizia respeito, e, de fato, ele pouco se importa com estas coisas. O que o melindra é eu não fazer caso dos seus ares imperiosos. - Com os soluços, a boca torcia-se enquanto falava e aquilo era tão infantil que dava vontade de rir. Contudo, tratava-se de um conflito mortal para ela, algo a ferira profundamente.
- Não é tanto assim - atalhou ele.
- É sim, é sim! - soluçava ela. - Não quero ver-lhe expansões de amor paternal, que ele não tem, não tem!
Rupert ficou calado. Úrsula comovia-o profundamente.
- Você não o devia ter irritado - disse, por fim, muito tranquilo.
- E eu que fui tão sua amiga! Gostei sempre de papai, e ele me paga desta maneira...
- Isso é o que se chama amor contrariado... Não se importe, tudo acabará bem. Não há nada irremediável.
- Sim - choramingava ela. - É... - Por quê?
- Nunca mais o verei.
- Por enquanto, não. Mas cale-se. Você tinha mesmo que romper com ele, pronto. Agora não chore mais.
Aproximou-se dela e beijou-a nos cabelos finos e leves e acariciou-lhe meigamente as faces molhadas.
- Não chore - repetiu. - Não chore.
Com a cabeça da jovem apertada contra o peito, muito apertada e quieta, esperou.
Ela se acalmou, pouco a pouco. Olhou para ele, com seus olhos grandes e assustados.
- Não está zangado comigo? - inquiriu.
- Zangado? - O olhar sombrio e fixo de Rupert impressionava-a e não a deixava à vontade.
- Está contrariado por que eu vim para cá? - perguntou ela, perturbada agora pela ideia de ter fugido de casa.
- Não - respondeu ele. - Preferia que não tivesse havido essa cena violenta e desagradável; mas era, decerto, inevitável...
Úrsula contemplava-o em silêncio. Rupert parecia tão mortificado!
- Onde é que vou ficar? - perguntou ela, sentindo-se envergonhada.
Birkin refletiu alguns instantes.
- Aqui, comigo. Estamos tão casados hoje como estaremos amanhã.
- Mas...
- Vou avisar a Senhora Varley. Não se preocupe.
Birkin continuava a fitá-la. Úrsula sentia aqueles olhos sombrios constantemente dirigidos para ela. Aquilo impressionava-a. Com a mão nervosa, afastou os cabelos que lhe pendiam para a testa.
- Pareço muito feia? - perguntou, enquanto se assoava. O rosto de Birkin clareou-se num sorriso.
- Não, felizmente... - respondeu.
Levantou-se e tomou-a nos braços, como a uma coisa que lhe pertencia. Úrsula mostrava-se tão terna e bela que Rupert não se contentava com vê-la; era forçoso escondê-la dentro de si.
Agora, com as faces banhadas pelas lágrimas, parecia tenra e frágil como uma flor desabrochada, flor fresca, tornada perfeita pela luz interior, e Birkin não a podia sequer contemplar; queria ocultá-la imediatamente de encontro ao peito, cobrir os olhos unindo-os ao corpo dela. Aquela mulher possuía a mais completa inocência da criação, algo de translúcido e simples, espécie de flor radiante, deslumbradora, aberta nesse momento para exibir o seu recente esplendor. Era tão nova, de uma luminosidade que maravilhava, sem uma sombra sequer! Ele se julgava tão velho, tão cansado de recordações tenebrosas! A alma dela, juvenil, indefinida, mirando-se no invisível; e a de Birkin, escura, nublada, com uma esperança tão pequenina como um grão de mostarda! Mas esta sementinha que vivia ainda nele casava-se com a pureza dela.
- Amo-a! - disse Birkin, num murmúrio, beijando-a, tremendo de ansiedade, como alguém que houvesse renascido para uma confiança maior do que todos os limites da morte.
Úrsula não sabia o que isso representava para ele, o que significava ao certo aquela frase tão curta. Como uma criança, desejava outras provas, exigia afirmações concretas; tudo a deixava indecisa, queria revelações mais concludentes.
Mas aquela gratidão apaixonada com que ele a recebia na sua alma, a alegria suprema e indiscutível de se sentir vivo e apto a se unir com ela (apesar de tão próximo da morte, tão perto de se extinguir com o resto da sua raça, resvalando para o abismo) eram coisas que a moça não podia compreender. Rupert adorava-a como a velhice adora a juventude; glorificava-se pela razão de que, mercê do seu derradeiro clarão de fé, se convertia também em jovem como ela, e se tornava seu digno companheiro. O casamento trazia-lhe a ressurreição e a vida.
Úrsula não podia adivinhar tudo isso. Exigia que ele fizesse muito caso dela, pretendia ser adorada. Entre os dois havia infinitas distâncias de silêncio. Como lhe falaria, a ela, da imanência da sua beleza, que não residia na forma nem no peso nem na cor, mas em qualquer coisa mais, para sua estranha luz dourada?! E como saberia ele próprio em que consistia aos seus olhos, a graça daquela mulher? Dizia: "O teu nariz e belo, o teu queixo é adorável", mas estas frases soavam falso e ela ficava decepcionada, ressentida. Mesmo quando Birkin, balbuciando palavras sinceras, lhe dizia "meu amor, meu amor, ainda isso não era inteira realidade. Existia algo para além do amor, a satisfação de se ultrapassar a si mesmo, de transcender os limites da vida humana. Como podia Rupert proferir o pronome "eu", quando, nele, se revelava um ser novo e desconhecido, que já não tinha nada da sua pessoa? Esse eu , velha expressão decrépita, era uma fórmula sem sentido.
Nessa felicidade superior e tão diversa, paz que se sobrepunha a todas as coisas, não havia já nem "eu" nem "você", mas sim uma terceira e incompreensível maravilha, maravilha que insistia em existir, não como indivíduo, mas com a reunião, dele e dela, num só e único ente, unidade paradisíaca nascida daquela dualidade. Quem poderá dizer "amo-te" depois de haver cessado de existir e haver cessado a pessoa a quem a frase e dirigida? Ambos se sentiam elevados e transpostos a uma nova individualidade onde tudo era silêncio, pois nada tinham que responder, tudo era único e perfeito. As palavras são trocadas entre dois seres destacados um do outro; mas, numa unidade absoluta, reina apenas o silêncio da bem-aventurança.
Casaram-se no dia seguinte, perante a lei; Úrsula, seguindo o conselho do marido, escreveu à mãe e ao pai. A primeira respondeu-lhe, o segundo, não.
Não voltou mais à escola. Ficou vivendo no moinho, nos aposentos de Birkin e acompanhou-o por toda a parte. Não mantinha contato com mais ninguém, além de Gudrun e Gerald. Tudo para ela era estranho e maravilhoso, como se a aurora acabasse de raiar.
Certa vez, Gerald conversava com ela no escritório confortável da casa. Rupert ainda não tinha regressado.
- Sente-se feliz? - perguntou-lhe Gerald, sorridente.
- Muito! - respondeu Úrsula, procurando, contudo, não demonstrar toda a sua alegria.
- Nota-se.
- Verdade? - perguntou ela, surpresa.
Gerald mirou-a com risonha expressão comunicativa.
- Sem a menor dúvida...
Ela estava satisfeita. Refletiu uns instantes.
- Dá para perceber se Rupert é tão feliz como eu?
Gerald baixou os olhos.
- Decerto - replicou.
- Com certeza?
- Com certeza.
Gerald calou-se, como se houvesse falado de uma coisa sobre a qual devia ter feito silêncio. Parecia entristecido.
Úrsula era muito sensível. Formulou-lhe a pergunta que ele desejava:
- Por que motivo não se sente feliz como nós? Podia estar também...
Gerald não respondeu logo. Depois, perguntou:
- Com a Gudrun?
- Sim - exclamou ela, de olhos brilhantes. Havia naquele "sim" algo de forçado, exagerado.
- Acha que sua irmã me aceitará e que seríamos felizes os dois?
- Estou convencida disso.
Encarava-o satisfeita, embora, no fundo da sua alma, percebesse que tudo aquilo não era natural.
- Fico contente só de pensar nessa ideia!
Gerald sorriu.
- Por que fica tão contente?
- Por causa dela. Estou certa de que você seria... de que você é o marido que lhe convém.
- E será ela da mesma opinião?
- É - respondeu prontamente.
Depois, tendo meditado um momento, perguntou-lhe um tanto contrafeita:
- Gudrun não é assim tão simples, não acha? Ninguém a conhecerá em cinco minutos; não é como eu. - Disse isto e riu, com o seu rosto franco, aberto, cheio de vida.
- Parece que ela não é muito parecida com você - disse Gerald.
Úrsula franziu a testa.
- Assemelha-se em muitas coisas. Mas nunca sei como reagirá em qualquer assunto fora da rotina.
- Ah! - fez Gerald. Calou-se por uns segundos. Depois, tímida e cautelosamente, declarou: - Tencionava convidá-la a ir passear comigo, pelo Natal...
- Ir com você? Por quanto tempo?
- Tanto quanto ela quisesse - respondeu ele de forma um tanto suplicante.
Houve um silêncio.
- É natural - recomeçou Úrsula - que ela deseje casar-se primeiro. Procure saber.
- Sim, vou ver... Mas, caso ela não aceite o casamento, acha que iria comigo ao estrangeiro por uns dias... por quinze dias?
- Acho, sim. Por que não pergunta a ela?
- Poderíamos ir juntos?
- Todos? - A face de Úrsula resplandeceu de novo. - Seria ótimo!
- Acho que seria bem divertido.
- E durante a viagem você ficaria sabendo...
- O quê?
- Das coisas... Creio que é preferível passar a lua de mel antes do casamento. Hein?
Riu-se ela mesma daquela ideia espirituosa.
Gerald também riu.
- Em certos casos - volveu ele. - E talvez seja o meu.
- Realmente? - E, a seguir, como se duvidasse: - Sim, é possível que tenha razão. Devemos fazer o que nos for mais agradável.
Birkin chegou mais tarde, e Úrsula descreveu-lhe a conversa que tivera com Gerald.
- Gudrun! - exclamou Birkin. - Nasceu para ter um amante, como Gerald para ter uma. Amant en titre. Se as mulheres, como se diz, devem ser ou amantes ou esposas, Gudrun pertence à primeira categoria.
- E todos os homens amantes ou maridos - acrescentou Úrsula. - E por que não as duas hipóteses?
- Uma exclui a outra - disse ele, divertido.
- Então quero um amante.
- Não, você não quer.
- Quero - gemeu ela.
Rupert beijou-a e começou a rir.
Dois dias depois, Úrsula foi a Beldover buscar o que lhe pertencia. A família já se mudara. Gudrun ficara morando em Willey Green.
Depois de sair de casa, Úrsula não tornara a encontrar-se com os pais. A ideia de uma ruptura afligia-a, embora de nada servisse a reconciliação. Para o bem ou para o mal não deveria procurá-los. Como seus objetos tivessem ficado guardados, naquela tarde ela e Gudrun combinaram ir buscá-los.
Era uma tarde de inverno; quando chegaram, o céu mostrava-se vermelho. As janelas da casa estavam escuras e sem cortinas aquilo parecia desolador. Ao entrarem no vestíbulo vazio e pouco convidativo, sentiram um arrepio que as enregelou.
- Não me atreveria a vir aqui sozinha - disse a mais velha. - É impressionante.
- Úrsula! - exclamou Gudrun. - É curioso! Como se concebe que vivêssemos nesse lugar sem perceber a sua desolação? Como pude estar nessa casa sem ter morrido de terror? Isso deve acontecer a muitas pessoas, não?
Entraram na vasta sala de jantar. Era um compartimento espaçoso, mas, agora, uma simples cela lhes pareceria mais agradável. As largas janelas, rasgadas, estavam nuas, o chão fora despojado dos tapetes, e uma orla de encerado escuro contornava aquele vazio, fazendo sobressair a parte clara no meio do assoalho. O papel das paredes, desbotado, indicava, em manchas mais escuras, o lugar de onde haviam retirado os móveis e desprendido os quadros. Esses tabiques áridos e delgados, de aspecto tão frágil, aquela madeira barata do pavimento, descorada e com o rebordo escurecido artificialmente, exerciam no espírito delas uma ação depressiva. Havia em tudo a ideia de nulidade, de falta de substância, principalmente aquele papel na fragilidade das paredes. Onde se encontravam, afinal: na terra, ou suspensas em uma caixa de papelão? Na lareira viam-se ainda cinzas de coisas consumidas pelo fogo.
- Imaginar que passamos aqui a nossa vida! - murmurou Úrsula.
- É verdade - concordou Gudrun. - Que tristeza! Com que nos devemos parecer, se nos assemelhamos a este invólucro?
- Tudo isto é detestável! - confirmou Úrsula.
No fogão, reconheceu as capas meio queimadas do Vogue - figurinos semidestruídos, de senhoras em traje de baile.
Foram até a sala de visitas, outro lugar onde se notava a sensação de vazio: nem peso nem substância, apenas a intolerável impressão do nada encerrado entre quatro paredes forradas de papel. A cozinha parecia mais concreta devido aos tijolos vermelhos do chão e à existência do forno; contudo, sentia-se frio e experimentava-se horror.
Subiram depois a escada sem passadeira. Cada degrau que pisavam ecoava-lhes no coração. Seguiram pelo corredor desguarnecido. A bagagem de Úrsula estava encostada à parede do quarto dela; era uma mala, um cesto de costura, livros, agasalhos, uma caixa de chapéus; tudo isso, na tristeza geral do crepúsculo, tinha aspecto desolador.
- Espetáculo muito alegre... - observou Úrsula, contemplando suas coisas ali abandonadas.
- Muito... - concordou Gudrun.
Puseram mãos ao trabalho e transportaram tudo para a porta da rua. Fizeram várias viagens, e sempre o eco dos passos lhes ressoou no meio daquele vazio. Toda a casa parecia repetir os mínimos sons, e a sua vibração, repercutindo pelos quartos despidos, chegava a ser enervante. Da última vez em que chegaram à porta, vinham tão apressadas como se se tratasse de uma fuga.
Além disso, o tempo arrefecera. Esperavam Birkin que devia chegar com o automóvel. Tornaram a entrar, pois, e foram até o quarto dos pais, cujas janelas davam para a estrada e de onde se via, através dos campos, o poente sombrio, rubro e negro, já sem luz.
Sentaram-se, à espera, nos parapeitos das janelas, e ornaram para o aposento. Sem mobília, afigurava-se-lhes de uma exiguidade desconcertante.
- Realmente - disse a mais velha - este quarto não podia ser venerável...
Gudrun percorreu-o lentamente com o olhar.
- Impossível! - retorquiu.
Quando penso nessas duas vidas, do pai e da mãe, no seu amor e casamento, e em nós, os filhos, na nossa educação. Você gostaria, Prune, de ter uma vida assim?
- Não, Úrsula.
- Tudo isso me aparece como um vácuo; a vida dos pais foi destituída de significação. De fato, se não se houvessem encontrado nem casado, nem vivido juntos, que falta poderiam ter feito? Nenhuma.
- Decerto. Mas não podemos afirmar isso - disse Gudrun.
- Pois se eu pressentisse que a minha vida iria ser assim, fugiria - declarou Úrsula, agarrando o braço da irmã.
Gudrun ficou silenciosa por momentos.
- Na realidade - disse ela por fim - não se pode considerar friamente a vida quotidiana. Com você, Úrsula, o caso é diferente. Você estará sempre à margem desses inconvenientes casada com Birkin. É um caso especial. Mas, com outro homem qualquer, que tenha a sua existência agarrada à terra, o casamento é impossível. Há milhares de mulheres, com certeza, que não desejam outra coisa, que não concebem a vida de outra maneira. Só de pensar nisso eu sinto arrepios. Devemos ser livres, sobretudo livres! Arrisquemo-nos a perder tudo, mas que se salve a independência, senão seremos apenas a senhora que mora em Pinchbeck Street n° 7, ou em Somerset Drive, ou em Shortlands. Não há homem, por melhor que seja, que torne tal coisa aceitável. Para o casamento é necessário possuir liberdade de movimentos, ou então nada feito. Seja ele um camarada, um Glüksritter. Homens com posição social, isso é que não! Isso nunca!
- Que linda palavra é Glüksritter! Cavalheiro de indústria, homem que vive de expedientes - nota da tradutora) - exclamou Úrsula. - Melhor do que aventureiro.
- Não é? Seria capaz de arrostar o mundo ao lado de um deles. Mas ter lar, família... Pense, Úrsula, no que isso significa!
- Bem sei, já tivemos e ficamos saturadas.
- Bastante.
- Essa casinha parda, nas bandas do ocidente... Verso de um poema de D. E. Wilmont - nota da tradutora) - citou Úrsula, com ironia.
- Não soa também pardamente? - perguntou Gudrun horrorizada.
Veio interrompê-las o barulho do automóvel de Birkin. Úrsula admirou-sé de se ver tão longe, de súbito, daquela ideia de casinhas pardas no ocidente.
Ouviram os passos do homem no vestíbulo.
- Olá! - chamou ele; a voz ecoou por toda a casa. Úrsula sorriu; Rupert também devia estar com medo daquela casa deserta...
- Estamos aqui! - respondeu ela, do andar de cima. Ouviram então seus passos apressados na escada.
- Esta casa é assombrada? - perguntou Rupert.
- Não, ela não tem fantasmas, porque também não tem personalidade - explicou Gudrun. - Só um lugar com personalidade é que pode possuir espíritos.
- Também sou dessa opinião. Choraram ambas sobre o passado?
- Sim - respondeu Gudrun. Úrsula riu e declarou:
- Não chorávamos pelo fato de ele haver desaparecido, mas sim porque existiu.
- Ah! - fez Birkin, mais tranquilo.
Sentou-se também com elas. Havia na pessoa daquele homem, pensou Úrsula, algo de repousante e de muito vivo. Até fazia desaparecer a sensação triste daquele lugar tão mesquinho.
- Gudrun estava dizendo que não concebe a ideia de se casar e se instalar em um lar... - insinuou Úrsula, intencionalmente. Perceberam logo que Gerald estava em jogo, e, por momentos, guardaram silêncio.
- Está bem - começou ele - se você, de antemão, está assim tão bem informada, é sinal de que se pode salvar...
- Não tenha dúvida - volveu ela.
- Por que será que todas as mulheres consideram que a finalidade da vida é ter um maridinho e uma casa para os lados do ocidente? Será isto o bem supremo?
- Il faut avoir le respect de ses bêtises - observou Birkin.
- Mas não precisamos repetir a Bêtise antes de a ter cometido - acudiu Úrsula, sorridente.
- E as bêtises du papa?
- Et de la maman - acrescentou Gudrun com ar de mofa.
- Et des voisins - É preciso respeitar essas besteiras. / E as besteiras do papai? E da mamãe / E dos vizinhos - nota da tradutora)
- disse ainda Úrsula.
Desataram todos a rir, e levantaram-se. Começava a escurecer. Transportaram a bagagem para o carro. Gudrun trancou o portão da casa vazia. Birkin acendera os faróis do carro. Tudo aquilo dava uma impressão de felicidade, como se estivessem partindo para uma viagem.
- Não se importa de parar em frente aos Cousons? - perguntou Gudrun. - Tenho de deixar a chave lá.
Fizeram uma parada na rua principal. As lojas acabavam de ser iluminadas, e os últimos mineiros regressavam do trabalho, ao longo das calçadas, sombras mal visíveis no enfarruscado que as envolvia, deslizando no ar azulado...
Gudrun sentiu-se contente ao voltar para o carro, depois de sair da loja, e de seguir velozmente pelo declive da colina, naquela treva quase palpável, em companhia de Úrsula e de Birkin. A vida, naquele instante, pareceu-lhe uma aventura. De repente, teve inveja da irmã. A existência lhe decorria fácil, como através de uma porta aberta, tão descuidada como se não somente este mundo, mas ainda o passado e o futuro não fossem nada para ela. Se pudesse ser assim, julgar-se-ia perfeita.
Porque afinal - exceto em ocasiões de excitação - Gudrun sentia que lhe faltava qualquer coisa. Não se considerada segura. Mas compreendia que, por fim, ao embate do amor forte e violento de Gerald, a sua vida começava a definir-se. Comparando-se com a irmã, vinha-lhe, contudo à alma certa insatisfação, certo ciúme. Não estava satisfeita, e nunca o estaria.
Que lhe faltava? O casamento, a maravilhosa estabilidade do casamento. Precisava dele, por mais que o desdenhasse. Tinha mentido. A velha concepção do matrimônio possuía ainda valor: a família, o lar... Entretanto, a estas palavras, não pôde deixar de franzir o cenho. Lembrou-se de Gerald, de Shortlands, do casamento, da vida doméstica... Ah, pois bem; ficaria assim mesmo. O rapaz representava muito para Gudrun, mas... Talvez o feitio dela não se coadunasse com o matrimônio. Vivia à margem da vida, era uma daquelas criaturas sem raízes em parte alguma. Não, não, não devia ser assim. Evocou, de súbito, um quarto cor-de-rosa, ela trajada com um lindo vestido de baile, ele muito elegante, de casaca, segurando-a nos braços, beijando-a à luz da lareira... Eis um belo quadro, que a artista intitulava de "Interior". Muito próprio para enviar à Academia Real...
- Venha tomar chá conosco - disse-lhe Úrsula, ao aproximar-se de Willey Green.
- Obrigada, mas não posso - respondeu Gudrun. Gostaria, no íntimo, de ir com eles. Eles, sim, tinham uma vida verdadeira. Mas uma espécie de perversidade a retinha.
- Vamos, eu gostaria tanto! - insistiu a irmã.
- Lastimo. Ser-me-ia muito agradável. Mas é impossível, acreditem...
Saltou do carro depressa, muito trêmula.
- Que pena! - lamentou Úrsula.
- Não, não posso mesmo. - As suas palavras, que denotavam emoção, vinham já do escuro.
- Quer que a acompanhe? - perguntou Birkin.
- Não é preciso, obrigada. Boa noite!
- Boa noite - disseram os outros dois.
- Venha quando quiser, alegra-nos bastante... - ainda gritou Birkin.
- Muito obrigada - respondeu Gudrun em tom estranho, agudo e doloroso, que impressionou o cunhado.
Gudrun abriu o portão da residência e o carro continuou a marcha. Todavia, deteve-se ela ate que desaparecesse, vendo o automóvel sumir na distância E só então prosseguiu pela alameda que conduzia à casa, sentindo o coração mergulhado numa incompreensível amargura.
Havia na sala um relógio de caixa em cujo mostrador uma face redonda, pintada de cores vivas, lançava ridículas piscadelas de olho a cada oscilação do pêndulo. Continuamente aquele rosto rubicundo e absurdo mirava de soslaio, de uma forma indiscreta. Gudrun ficou uns minutos a olhar para ele ate que uma inexplicável aversão se apoderou dela e a fez soltar uma gargalhada intempestiva. A cara do relógio continuou a oscilar, olhando de esguelha para um e outro lado, alternadamente Ah, como se sentia infeliz! Sim, infeliz no meio da sua felicidade aparente. Relanceou a vista pela mesa. Ali havia doce de groselhas e o eterno licor feito em casa. O doce era bom e nem sempre Gudrun o tinha a seu dispor...
Durante toda a noite ela desejou ir ate o moinho, mas resistiu, friamente, indo ate lá apenas na tarde do dia seguinte. Alegrou-se por encontrar a irmã sozinha. O ambiente era agradável, de grande intimidade. As duas tagarelaram incessantemente, deliciadas ambas. "Não se sente felicíssima em sua casa?, perguntava Gudrun a Úrsula, lançando ao mesmo tempo olhadelas furtivas ao espelho. Invejava quase com ressentimento a atmosfera de felicidade pura e definitiva que rodeava Úrsula e Rupert Birkin.
- Este quarto é tão simpático, tão bem arrumado! - disse ela em voz alta. - E o tapete, tão habilmente tecido, tem uma cor bonita... cor de luz suave...
Tudo lhe parecia admirável.
- Úrsula, - continuou pouco depois numa voz que tentava mostrar indiferença sabe que Gerald Crich me propôs uma viagem pelo Natal?
- Sei. Ele falou com Rupert a esse respeito.
As faces de Gudrun cobriram-se de forte rubor. Ficou uns momentos calada, como surpreendida, sem saber o que dizer.
- Não lhe parece um atrevimento da parte dele?
Úrsula riu-se.
- Não, acho que foi uma ideia simpática.
Gudrun não respondeu. Era evidente que, embora envergonhada com o fato de Gerald ter falado nisso a Birkin, a ideia, contudo, não lhe era tão desagradável.
- Gerald tem uma simplicidade atraente - insinuou Úrsula - embora perigosa, às vezes. Mas, enfim ele é tão simpático!
Gudrun ainda se conservou mais uns segundos em silencio. Precisava refazer-se da indignação que lhe provocavam aquelas indiscrições de Gerald.
- E qual foi a opinião de Rupert? - perguntou, por fim.
- Disse que seria uma coisa esplêndida - respondeu a irmã.
Gudrun olhou mais uma vez para o chão, muito calada.
- Não pensa assim? - prosseguiu Úrsula. Nunca sabia ao certo quais eram os preconceitos de que a outra se rodeava.
Gudrun levantou o rosto e respondeu, sem fitar a irmã:
- Acho que seria esplêndido, como vocês dizem, mas isso não impede que eu ache indiscreto da parte de Gerald... falar de semelhantes coisas a Rupert, que, afinal de contas... compreende o que quero dizer... é um homem, e é como dois homens estivessem combinando um passeio com qualquer... - Empregara uma expressão francesa para designar o que ela queria dizer. - Oh, Úrsula, é imperdoável!
Os olhos faiscavam-lhe, o rosto estava brilhante de indignação. Úrsula mirou-a assustada, principalmente porque ao usar a expressão grosseira, a irmã parecia ter um ar ordinário, confirmando a frase que atribuíra à opinião dos dois homens. Mas não fez nenhum comentário.
- Não e não! - gritou-lhe Úrsula, aborrecida. - Parece-me que Rupert e Gerald, como são muito amigos, conversam naturalmente, com a maior franqueza, como irmãos...
Gudrun ruborizou-se ainda mais. Não tolerava a ideia de que Gerald falasse sobre ela, nem mesmo com Birkin.
- Você acha que, mesmo que fossem irmãos, tinham o direito de fazer tais confidências? - perguntou, furiosa.
- Penso - replicou Úrsula. Não dizem nada que seja comprometedor. Aliás, o que mais admiro em Gerald é a sua correção, a sua honestidade. Você bem sabe como isso é importante. A maior parte dos homens é desleal e covarde!
Gudrun, porém, continuava calada e ressentida. Preferia que se fizesse absoluto segredo em tudo que lhe dizia respeito.
- Vamos, sim? - insistiu Úrsula. - Será uma viagem deliciosa. Gerald é mais simpático do que eu imaginava. Impõe-se à nossa estima. E é sincero Gudrun, verdadeiramente sincero.
Esta mantinha-se, apesar de tudo, reservada. Estava quase feia. Falou, afinal:
- Sabe aonde é que ele quer ir?
- Sei. Ao Tirol, por onde costumava viajar quando estava na Alemanha. É uma região adorável, onde os estudantes praticam esportes de inverno.
No espírito de Gudrun bailava uma ideia tremendamente irritante: "Vocês estão a par de tudo?".
- Sim, - disse em voz alta - a cerca de quarenta quilômetros de Innsbruck...
- Não sei ao certo, mas o projeto é magnífico, não concorda? Lá no alto, sobre a neve...
- Esplêndido! - exclamou a outra com sarcasmo.
Úrsula ficou aborrecida.
- É claro que Gerald não falou a Rupert em termos que dessem a ideia de que iria acompanhado por uma mulherzinha qualquer...
- Ora, ora - volveu Gudrun. - Ele costuma fazer viagens desse tipo...
- Como sabe?
- Uma pessoa de Chelsea me contou...
Úrsula guardou silêncio.
- Bem, - disse pouco depois, com um sorriso equívoco - espero que ele se tenha divertido, pelo menos.
Ao ouvir tais palavras, Gudrun ficou ainda mais aborrecida.


Capítulo XXVIII
No "Pompadour"
Aproximava-se o Natal, e os quatro já estavam prontos para partir. Birkin e Úrsula andavam ocupados arrumando suas coisas, de maneira a poderem despachar as malas. Gudrun mostrava-se bastante excitada. Por seu gosto levantaria voo.
Ela e Gerald foram os primeiros a concluir os preparativos da viagem, de maneira que seguiram para Innsbruck (via Londres e Paris) onde se encontrariam com Úrsula e Birkin. Ficaram uma noite em Londres; foram ao music-hall e em seguida ao Café Pompadour.
Ela detestava esse lugar, embora aí tivesse ido muitas vezes; os artistas que o frequentavam também não eram da sua simpatia. Abominava em especial aquela atmosfera viciosa, de mesquinhos ciúmes e de arte corriqueira. Mas, sempre que passava pela capital, nunca deixava de entrar ali. Era como se tivesse obrigação de voltar ao remoinho central da pequenez e da corrupção, nem que fosse para uma vista de olhos.
Sentou-se, com Gerald, e tomou um refresco, lançando olhares sóbrios e indignados aos vários grupos que se distribuíam pelas mesas. Não queria reconhecer ninguém, mas, de vez em quando, um rapaz a cumprimentava, com uma inclinação de cabeça, com certa familiaridade. Gudrun não correspondia, mas sentiu prazer em estar ali, de faces afogueadas e olhar hostil, observando-os objetivamente, a distância, como se fossem animais em uma jaula, animais simiescos e degradados. Deus do Céu, que gente ignóbil! O sangue corria-lhe nas veias, sombrio, tanta era a raiva e desprezo que sentia. Contudo, era necessário ficar a contemplá-los, a olhar para eles... Um ou dois vieram falar com ela. Sentia os olhares que a buscavam: os homens por cima dos ombros, as mulheres por baixo do chapéu.
Todos estavam ali, Carlyon no seu cantinho com os discípulos e uma moça; Halliday, Libidnikov e a Bichana também haviam comparecido. Gudrun observou Gerald: notou que o olhar dele se fixara um instante em Halliday e depois nos que o acompanhavam. Estes estavam atentos e saudaram-no. Gerald retribuiu. Todos riram disfarçadamente e ele tornou a mirá-los com mais atenção. O grupo incitava Bichana a fazer qualquer coisa.
Esta acabou por se levantar. Tinha um vestido estranho, de seda escura, salpicada, gotejada de diferentes cores, formando uma curiosa mistura. Parecia muito delgada com olhos talvez mais ardentes. Mas não estava mudada. Gerald viu-a aproximar-se e continuou a olhar para ela com a mesma fixidez. A jovem estendeu-lhe a mão fina e morena.
- Como está? - perguntou-lhe.
Gerald apertou-lhe a mão, sem se erguer da cadeira, e deixou-a assim de pé junto dele, encostada à mesa. Quanto a Gudrun, a Bichana, que a conhecia apenas de vista, limitou-se a fazer um cumprimento com a cabeça.
- Estou muito bem - respondeu Gerald. - E você?
- Eu vou bem. E a respeito de Rupert? - Continuava a não pronunciar alguns rr.
- Rupert? Vai muito bem, igualmente.
- Não é isso que quero saber. Falo do casamento dele.
- Ah, sim, casou.
Os olhos de Bichana cintilaram com ardor. É verdade, então? Há quanto tempo?
- Uma semana ou duas.
_ É extraordinário! Não escreveu a ninguém.
- Não?
- Não é um tanto esquisito?
Estas últimas palavras foram pronunciadas em tom de desafio, e, dava para notar, endereçadas a Gudrun.
- Acho que ele não tinha obrigação de comunicar - tornou Gerald.
- Por quê?
Fez-se um silêncio. No rosto belo e pequenino daquela depravada criatura havia um sorriso irônico e persistente, que conseguia enfeá-la. Continuou ao lado de Gerald.
_ Demora-se em Londres? - perguntou ela.
- Só esta noite.
- Ah, sim? Venha falar com o Julius.
- Agora não posso.
- Está bem. Vou dizer isso a ele. - Acrescentou depois, com acento diabólico: - Você está ótimo.
- É verdade. - Gerald mostrava-se perfeitamente calmo e à vontade. Via-se no olhar dele uma certa cintilação zombeteira.
- Não se tem aborrecido? - perguntou ainda a mulher. Era uma seta desferida diretamente a Gudrun. A frase fora dita em tom de indiferença tranquila, sem cerimônia.
_ Não - respondeu ele, também com naturalidade.
- É pena não querer vir conosco. Você é pouco fiel a seus amigos...
- Realmente... - confirmou o rapaz.
Deu boa noite a ambos e voltou lentamente para o seu lugar. Gudrun ficou vendo o estranho andar da moça, rígido, mas sacudido. Ouviram-na dizer distintamente:
- Não pode vir. Já está comprometido. - Seguiu-se uma gargalhada geral, e muitas observações picantes em voz baixa.
- É sua amiga? - perguntou Gudrun, observando atentamente o companheiro.
- Fiquei uma vez na casa de Halliday, com Birkin - respondeu, trocando um olhar com o dela, que era calmo e repousado. Gudrun sabia que Bichana fora amante dele e Gerald não ignorava essa circunstância.
Gudrun chamou então o garçom, depois de relancear a sala com os olhos. Queria tomar um chocolate gelado, de uma receita complicadíssima. A ideia divertiu o companheiro, que ficou a imaginar o que iria acontecer.
O grupo de Halliday já estava ébrio e perdera a compostura. Falavam em Birkin em voz alta, ridicularizando-o sob vários aspectos, principalmente o do casamento.
- Não me obriguem a pensar nesse homem! - dizia Halliday, em tom agudo. - Tenho náuseas ao relembrar como implorava: "Senhor, que devo fazer para me salvar?"
E teve uma risada de bêbado.
- Lembra-se - interveio o russo - das cartas que enviava? "O desejo é coisa sagrada..."
- Se me lembro! Isso é extraordinário! Espere, tenho uma no bolso.
Tirou do bolso vários papéis.
- Tenho certeza de que a guardei - repetiu. - Ah! Aqui está!
Gerald e Gudrun estavam atraídos por aquela cena.
- Sim, senhores... Isso mesmo... Magnífico! Não me façam rir que fico com soluços. - E todos desataram a rir.
- Que é que ele diz nessa carta? - perguntou Bichana, debruçando-se com os cabelos escuros e leves tombados sobre os olhos. Havia qualquer coisa de esquisitamente indecoroso, obsceno mesmo, naquela cabeça pequenina, sombria e alongada.
- Esperem, esperem aí! Não, não a mostro. Vou ler em voz alta. Vou ler trechos seletos... Vocês acham que se eu beber água me passam os soluços? Ora, parece-me que é inútil..
- É a carta que se refere à luz e à sombra, ao fluxo da corrupção? - indagou Maxim na sua maneira de ler rápida e concisa.
- Acho que sim - respondeu a moça.
- Ah, é essa? Tinha-me esquecido. Hic! É, sim, é! - declarou Halliday, desdobrando-a. - Hic! Sim, senhores, esplêndida! Uma das melhores. - Começou a ler, com voz cantante, lenta, destacada, como um padre a soletrar a Bíblia: "Há uma fase particular em todas as espécies, em que o desejo de destruição se sobrepõe a todos os outros. No homem essa vontade transforma-se por fim na ânsia de dar cabo de si próprio..." Hic! - Aqui fez uma pausa e olhou para o auditório.
- Oxalá que ele não desista de se destruir a si mesmo - atalhou o russo, com a sua pronúncia cortante. Halliday fungou de gozo e refestelou-se na cadeira.
- Não é grande coisa destruir a sua pessoa... - comentou a Bichana. - Ele é tão magro... Já deve estar nas últimas.
- Não gostaram? É lindo. Faz-me bem ler isto, até me cura dos soluços. Deixem-me continuar. - E Halliday prosseguiu: "Trata-se do desejo de nos reduzirmos em nós próprios, de regressar às origens, voltar ao fluxo de corrupção, às condições rudimentares da existência". Isto é admirável - exclamou, interrompendo a leitura. - Deixa a perder de vista o Velho Testamento.
- Fluxo de corrupção, sim, senhores - disse o russo. - Lembro-me da frase.
- Fala sempre de corrupções - acudiu Bichana. - Devia estar muito corrompido, para que isso lhe subisse à cabeça...
- Exatamente! - asseverou o russo.
- Deixem-me continuar. Este pedaço agora é de se tirar o chapéu. Ouçam: "E nesta imensa regressão, neste reconduzir-se do corpo vivo ao meio onde foi criado, descobrimos a verdade, e, para além desse conhecimento, o êxtase fosforescente da mais pura sensação". Oh! - exclamou Halliday - estas expressões parecem-me de um absurdo genial! Não acham que é do melhor que há? "E - retomando a carta - se você, Julius, pretender aquele êxtase juntamente com a Bichana, devem ambos insistir até que o obtenham. Todavia ele existirá em qualquer parte de vocês, esse desejo vivo da criação positiva, relacionado com a derradeira fé, quando todos os processos de desagregação ativa, com todas as suas flores de lama, forem ultrapassados e mais ou menos abolidos." Gostaria de saber - disse Halliday em outro tom - o que são essas flores de lama. Você será uma delas, Bichana?
- Obrigada. E o que é você?
- Eu também, com certeza, em vista desta carta. Somos todos flores de lama. Fleurs du mal! Birkin advertindo-nos do mal... do inferno... pregando contra o Pompadour... Lindo! Hic!
- Vá, continue - pediu Maxim. - Que é que vem mais? É, na verdade, interessantíssimo.
- Acho que é preciso muito descaramento para escrever coisas assim - comentou Bichana.
- Também acho - tornou o russo. - Megalomania, na certa; uma forma de loucura religiosa. Julga-se salvador da humanidade. Continue.
- "Sem dúvida - leu Halliday - sem dúvida a bondade e a graça têm-me acompanhado toda a minha vida." - Interrompeu-se e desatou a rir. Depois recomeçou, com voz sacerdotal: "Sem dúvida acabará este desejo que nós temos de nos separar constantemente, esta paixão de fracionar todas as coisas e nós mesmos, de nos reduzir, agindo só para nos destruir e empregando o sexo como agente dessa redução; apeando os dois grandes elementos, masculino e feminino, da sua unidade altamente complexa; diminuindo as ideias estabelecidas e regressando ao estado selvagem quanto às nossas sensações; procurando sempre perder-nos numa suprema e sinistra sensação, ininteligente e indefinida; queimando-nos num fogo aniquilador que nos persegue com a esperança de nos consumir inteiramente..."
- Vou-me embora - disse Gudrun a Gerald, fazendo sinal ao garçom.
Tinha os olhos brilhantes e as faces escaldantes. A leitura da carta de Birkin, em voz alta, cadenciada, frase por frase, de forma nítida e ressonante, tivera o estranho efeito de lhe fazer subir o sangue à cabeça, quase enlouquecendo-a.
Levantou-se, enquanto Gerald pagava a despesa, e dirigiu-se à mesa de Halliday. Todos a encararam, espantados.
- Desculpe-me - disse ela - mas essa carta é verdadeira?
- Sim, senhora - respondeu Julius. - Verdadeira.
- Posso ver?
O outro sorriu de modo estúpido e entregou a carta, como que hipnotizado.
- Obrigada - disse ela.
Deu meia volta e dirigiu-se para a porta do café com a carta na mão, passando, com andar vagaroso, através das mesas da sala brilhantemente iluminada. Decorreram alguns segundos antes que alguém se compenetrasse do que havia acontecido.
Do grupo partiram gritos, exclamações, vozerio, enquanto Gudrun se afastava, elegantemente vestida de verde-escuro e prateado, com chapéu também verde, mais claro, brilhante, de abas cor do vestido, debruadas de prata; o casaco também verde, cintilante, com gola alta de peles cinzentas e punhos também de peles. A orla da saia mostrava listras prateadas sobre veludo negro e as meias eram de um cinzento claro. Com movimentos lentos, atingiu a porta, indiferente a tudo o mais. O porteiro abriu-a obsequiosamente, e, a um sinal dela, correu para a calçada e chamou um táxi. Logo os dois faróis do carro se voltaram, faiscando como olhos.
Gerald seguira-a boquiaberto, no meio dos apupos, sem perceber a razão de tudo aquilo. Ainda ouviu a voz da Bichana, que dizia:
- Corra e traga-a de volta. Nunca vi uma coisa destas veja se consegue apanhá-la! Ela tem que devolver a carta!
Gudrun estava parada diante do carro, cuja porta o homem do café havia escancarado.
- Vamos para o hotel? - perguntou ela, apressada, quando Gerald apareceu.
- Se você quiser...
- Está bem. - Depois, dirigindo-se ao motorista: - E o Wagestaff, na Barton Street.
O chofer colocou o boné e desceu a bandeirinha.
Gudrun subiu, com ar indiferente de uma senhora elegante e desdenhosa. Contudo, sentia-se agitada, com arrepios de frio.
Gerald entrou também no automóvel.
- Você se esqueceu do rapaz - disse ela, naturalmente, com ligeiro aceno de cabeça para o indicar. Gerald estendeu a mão com um xelim e o outro agradeceu. O carro pôs-se em movimento.
- Que foi aquele barulho? - perguntou Gerald com ar surpreendido.
- Arranquei-lhes a carta de Birkin - respondeu, mostrando um papel amarrotado.
Os olhos dele brilharam de satisfação.
- Magnífico! Que súcia de patifes!
- Tive vontade de matá-los! - exclamou a moça, com ênfase - Cães! Não passam de cães! Tolo foi Rupert em escrever a semelhante gente! Como é que ele foi confiar nessa canalha? Tudo isto é insuportável!
Gerald estava admirado de tanta indignação.
Ela não quis permanecer mais tempo em Londres. No dia seguinte, de manhã, tomaram o trem em Charing Cross. Ao passarem sobre a ponte, descobrindo o rio através das grades de ferro, Gudrun exclamou:
- Sinto que nunca mais poderei tolerar esta cidade infecta. Não concebo a ideia de voltar aqui.


Capítulo XXIX
Continental
Úrsula sentiu-se em estado de irrealidade durante as semanas que precederam a viagem. Parecia ter perdido a personalidade: já não era nada, ou então qualquer coisa que ainda viria a ser... em breve muito em breve! Entretanto vivia na iminência do fato.
Foi visitar os pais. O encontro decorreu seco e melancólico; dir-se-ia antes a verificação da ruptura do que propriamente uma reconciliação. Mantiveram-se uns e outros vagos e indefinidos, aceitando o destino que assim os separava.
Não chegou a convencer-se da realidade senão quando se encontrou a bordo do navio que a conduziu de Dover a Ostende. Estivera em Londres, com o marido, mas como quem vive num sonho; e de Londres até Dover continuara com a mesma impressão. Julgar-se sofrer de sonambulismo.
Mas, agora, e finalmente, sentia que a alma lhe despertava do sono letárgico. Sentada já à popa do navio, ao vento e na escuridão da noite, experimentava o balanço que as ondas transmitiam ao barco; como num país fantástico, brilhavam nas costas da Inglaterra luzinhas perdidas e distantes, que na profundidade das trevas a pouco e pouco se tornavam menores e Úrsula viu-as por fim desaparecer.
- Vamos ate à proa?
Era Birkin que lhe fazia esta proposta, desejando olhar o futuro e não o passado; assim, deixaram os dois de contemplar os tênues reflexos daquele reino quase irreal e já longínquo chama do Inglaterra e afrontaram a noite insondável que se lhes abria à frente.
Dirigiram-se para a outra extremidade do navio, que oscilava docemente. Na completa escuridão que os rodeava, Birkin descobriu um cantinho relativamente abrigado, onde estava enrolado um cabo muito forte. Era o limite dianteiro do barco, junto do espaço negro ainda não transposto. Ali se tornaram a sentar, embrulhados ambos na mesma manta de viagem, unindo-se o mais possível um contra o outro ate sentirem que se haviam fundido numa só e única substância. Estava bastante frio e as trevas pareciam palpáveis, tão densas eram.
Escuro como a noite, quase invisível, avançou pelo convés um homem da tripulação. Daí a pouco puderam ver-lhe a palidez do rosto o outro sentiu a presença de estranhos e deteve-se, indeciso curvando-se sobre eles. Quando o marinheiro já estava muito perto de Úrsula e de Birkin, as faces desmaiadas destes tornaram-se perceptíveis e o homem retirou-se, como um fantasma. Os dois ficaram observando-o desaparecer, silenciosos.
Sentiram-se, então, reentrar no mais profundo negrume da noite. Não havia céu, nem terra, mas só a sombra compacta na qual se diria terem mergulhado como num sono suave e oscilatório ou como germes de vida, pequeninos, perdidos através das sombras insondáveis do infinito.
Haviam-se esquecido de onde estavam, tudo o que eram ou tinham sido, e só possuíam consciência da sua alma e da trajetória que realizavam pelo espaço imenso. A proa do barco fendia as águas, cortando-as com imperceptível rumor, sem ver e sem compreender, apenas ocupada em prosseguir dentro da noite.
Em Úrsula, a sensação do mundo indescortinado, que surgia à sua frente, prevalecia sobre outra qualquer. No meio de tão profunda obscuridade raiava-lhe no peito o fulgor de um paraíso estranho e incompreendido. Seu coração enchia-se das mais belas claridades, douradas como se fossem o mel da sombra, doces como o calor do dia; e essa luz não se espalhava na terra, somente no ignorado éden para onde ela se dirigia, estância deliciosa, em que o encanto de viver era diverso mas que já lhe pertencia infalivelmente. No seu arrebatamento, ergueu a face para Birkin, de súbito, e ele roçou-a com os lábios. Face tão fresca, tão pura, sabendo tanto ao mar, que o beijo foi como uma flor que houvesse nascido sobre a espuma das ondas.
Birkin, porém, não estava a par do êxtase de antecipada felicidade em que a mulher se comprazia. Para ele, o prodígio da viagem quase o derrotava. Caía num abismo de sombras sem fim tal um meteoro que tomba no espaço que separa os mundos. O universo apartava-se em dois, e Rupert mergulhava como uma estrela apagada no sorvedouro indescritível. O que residia mais além não existia ainda para ele. O percurso ocupava-lhe inteiramente o espírito.
Naquele enleio das almas, Úrsula continuava apoiada ao corpo do marido. O rosto de Rupert encostava-se ao cabelo fino e frágil da mulher, e ele aspirava-lhe a fragrância juntamente com o cheiro do mar e da noite profunda. Sentia-se repousado, submisso, ao resvalar assim para o ignoto. Era a primeira vez que saboreava a paz - absoluta e perfeita - dentro do seu ser. Era a viagem derradeira, e esta ultrapassava-lhe decerto a vida.
Ao ouvir barulho no convés, ambos despertaram e se puseram de pé. Estavam tão enregelados e cheios de cãibras pelo ar da noite! E, todavia, tanto para Rupert como para ela, só havia a paz inefável da escuridão e a maravilhosa promessa paradisíaca.
Uma vez de pé, olharam em frente. Na sombra divisavam-se luzes tênues Era outra vez o mundo. Já não existia, para Úrsula, aquele êxtase do coração nem, para ele, a tranquilidade do espírito. Era o mundo de fato, superficial e incrível. Mas não, talvez, o mesmo a que estavam habituados. A beatitude e a paz continuariam na sua alma.
O desembarque noturno foi o mais estranho que se possa imaginar, como se tivessem ido sobre as águas do Estige, na desolação do país subterrâneo. Tudo parecia sinistro, mal iluminado, vasto e sem ar, fugindo debaixo dos pés, triste por todos os cantos. Úrsula distinguiu logo as enormes letras, pálidas e misteriosas, que, rodeadas de sombra, diziam a palavra OSTENDE. Toda a gente se apressava através daquele cinzento sombrio, como insetos desnorteados; os carregadores ofereciam-se, falando um inglês inverossímil; e depois se afastavam com a bagagem pesada, desaparecendo ao longe: a capa desbotada dava-lhes o aspecto de fantasmas. Úrsula detivera-se junto a um comprido balcão, forrado de zinco, com mais uma centena de pessoas de ar espectral. De um lado alongava-se, na sombra, o balcão das malas abertas, enquanto, do outro, funcionários lívidos, de bigodes e boné de pala, revolviam a roupa e escreviam a giz nos invólucros da bagagem.
Enfim, tudo aquilo terminou. Birkin fechou as maletas de mão e ambos partiram, seguidos pelo encarregado da bagagem. Passaram por um largo portão e penetraram outra vez na noite. Ah, a estação da estrada de ferro! Vozes que interpelam, numa agitação sobre-humana, num ambiente acinzentado... Espectros que deslizam na sombra, entre os vagões...
Koln... Berlin... Nos cartazes enormes, ali afixados Úrsula soletrou estes nomes.
- Cá estamos - disse Birkin. A seu lado, viu ela escrito: Elsass... Lothringen... Luxembourg... Metz... Basle.
- É este, para a Basiléia!
O carregador tornou a aparecer.
- À Bale... deuxième classe? Voilà.
Subiu para o vagão. Marido e mulher fizeram o mesmo. Havia já alguns com passageiros, mas a maior parte estava vazia e às escuras. Arrumaram as malas e pagaram ao homem.
- Nous avons encore...? - começou Birkin, consultando o relógio e olhando para o carregador.
- Encore une demi-heure - Para Basiléia... segunda classe? Aí está. / Ainda temos...? Uma meia hora ainda - nota da tradutora).
Com esta resposta, desapareceu com a sua capa azul. Era pouco amável e muito feio.
- Venha - disse Birkin. - Está frio aqui. Vamos comer qualquer coisa.
Havia na estação um bar-restaurante. Lá tomaram um café quente - terrivelmente aguado - e comeram aqueles compridos pães cilíndricos, abertos no meio e com presunto dentro, tão grandes que, para os trincar, Úrsula quase deslocava o queixo. Depois passearam ao longo da composição. Parecia tudo tão estranho, tão extremamente desolado, espécie de mundo subterrâneo, cinzento, muito cinzento, grisalho, sujo, triste, abandonado, inexistente! Horrivelmente sem existência, e cor de cinza.
Finalmente a composição cortou a escuridão noturna. Através das trevas, Úrsula distinguiu os campos rasos, a sombra baixa, úmida e lúgubre do continente. Daí a pouco tiveram um sobressalto Bruges! Mas, de novo, a noite os rodeou, cortada apenas, aqui e ali, por alguma luz das herdades adormecidas, pelo prateado dos choupos e pela brancura das estradas desertas. Úrsula descansava sucumbida, apertando a mão de Birkin; e este, imóvel, pálido como um fantasma, olhava de vez em quando pela janelinha; noutras ocasiões fechava os olhos. Mas, instantes depois, tornava a fixar a vista, sombria como a atmosfera lá fora.
Eis um foco subitamente na treva: a estação de Gand! Alguns vultos sob o alpendre... um sino... e outra vez em movimento através da superfície tenebrosa! Úrsula viu um homem que empunhando a lanterna, saía de um quintal, perto da linha férrea, e atravessava as dependências mergulhadas na escuridão. Lembrou-se ela do Marsh, da sua antiga vida no campo, cheia de intimidade, em Cossethay. Deus do céu, como já ia longe isso tudo, desde a infância - e aonde iria ainda parar?! Durante uma existência parece que atravessamos centenas de anos. Havia lacunas na sua memória, entre esse tempo decorrido nos arredores de Cossethay e na quinta do Marsh e o momento presente em que viajava com Birkin, em pleno desconhecido. Recordava-se da criada Tilly, que lhe dava pão com manteiga polvilhado de açúcar mascavo, na sala de estar, onde o relógio antigo tinha duas rosas pintadas dentro de uma cesta, por cima dos algarismos do mostrador. Essa lacuna era tão grande que se lhe afigurava haver perdido a identidade, e a criança que outrora fora, e que brincava no adro da igreja de Cossethay, era uma criaturinha imaginaria; pelo menos, não seria ela.
Chegaram a Bruxelas. Meia hora para almoçar. Saltaram. O relógio da estação indicava seis horas. Tomaram café e comeram pães com mel na sala deserta do restaurante, fúnebre, suja, espaçosa, melancólica. Úrsula lavou o rosto e as mãos em água quente, penteou o cabelo e isso lhes trouxe algum consolo.
Não tardou muito que voltassem ao vagão e que o comboio reiniciasse a marcha. Despertava uma alvorada lívida. Havia ali mais alguns passageiros: negociantes belgas, de barbas castanhas e fartas e aspecto florescente; falavam sem parar num francês desagradável. Úrsula estava muito fatigada para lhes acompanhar a conversa.
O trem parecia correr do escuro para uma claridade gradualmente mais acentuada ate que, sempre arfante mergulhou em pleno dia. Como aquilo era extenuante! Atenuadas, as árvores foram-se mostrando como sombras. Depois apareceu uma casa branca, com grande nitidez. O que seria agora? Surgiu então uma aldeia, e as habitações desfilaram umas atrás das outras.
Velho mundo esse em que ela viajava assim, sinistro e invernoso! Terras cultivadas, prados, bosques de árvores desnudas, grupos de arbustos, quintas, casas pobres. Nada de novo ali se via.
Úrsula olhou para o marido, que estava pálido, silencioso como uma estátua. Estendeu-lhe a mão, debaixo da manta, e tocou com os seus os dedos dele, suplicante. Birkin respondeu ao contato e enviou-lhe um olhar. Como aqueles olhos eram sombrios, semelhantes à noite e a um mundo do além! Ah, se ele fosse ao menos o mundo, se o mundo fosse ele! Se Rupert pudesse evocar um mundo qualquer, o deles, para eles só!
Os belgas desceram da carruagem, e o comboio seguiu através do Luxemburgo, da Alsácia e Lorena, de Metz. Úrsula, porém, ia como cega, não via mais nada. A alma não descortinava nada fora de si mesma.
Por fim entraram em Basiléia e foram para o hotel. A viagem fora toda feita num êxtase de que ela não conseguia acordar. Na manhã seguinte deram um passeio, antes da partida do trem. Úrsula viu as ruas e o rio e deteve-se na ponte. Mas aquilo nada significava para ela. Fixou na retina algumas lojas, uma delas cheia de quadros, outra com veludos e arminhos. Que queria dizer, porém, tudo isso? Absolutamente, nada!
Úrsula não se sentiu à vontade senão quando embarcaram outra vez. Aí experimentou uma sensação de alívio. Enquanto a máquina esteve em movimento, Úrsula considerou-se satisfeita. Pararam em Zurique, depois deslizaram, por muito tempo, no sopé das montanhas cobertas de neve. Finalmente, aproximaram-se do termo da viagem. Era bem o outro universo que desejavam.
Innsbruck apresentava-se como uma autêntica maravilha; entardecia, e tudo estava branco. Um trenó descoberto levou-os sobre a neve, e saborearam o contraste com o trem, que estava quente e sufocante. O hotel, com a luz dourada que saía pelo pórtico, pareceu-lhes bastante acolhedor.
Riram alegremente quando se encontraram no vestíbulo. Havia grande azáfama e a casa devia estar cheia.
- Sabe se o senhor e a senhora Crich, ingleses, teriam chegado vindos de Paris? - perguntou Birkin em alemão.
O porteiro refletiu um momento e ia responder quando Úrsula descobriu Gudrun, que descia a escada. Trazia um casaco escuro, de fazenda lustrosa, guarnecido de peles.
- Gudrun! Gudrun! - gritou ela, acenando do patamar. A outra olhou por cima do corrimão e abandonou seus ares indolentes e desconfiados. Os olhos brilharam.
- Úrsula! E recomeçou a descer, enquanto Úrsula subia os primeiros degraus. Encontraram-se e beijaram-se com risos e alegres exclamações inarticuladas.
- Mas nós - declarou Gudrun, penalizada - julgávamos que vocês só chegariam amanhã! Tencionava ir à estação.
- Mas resolvemos vir hoje! Como isto é agradável!
- Muito! - confirmou Gudrun. - Gerald acaba de sair para fazer uma compra. Úrsula, você deve estar cansadíssima!
- Nem tanto. Mas estou bastante empoeirada, não?
- Pelo contrário, você está fresca como uma flor. Gosto muito do seu chapéu de peles. - Examinou a irmã, que vestia um casaco comprido e espesso com uma gola de peles claras e macias e chapéu da mesma cor.
- E você - observou Úrsula - com que se parece?
A outra tomou uma expressão modesta e inexpressiva.
- Gosta? - perguntou.
- Está linda! - respondeu a primeira, sorrindo.
- Subam ou desçam - disse Birkin.
As duas irmãs estavam paradas a meio da escada na altura do primeiro lance, interrompendo a passagem e divertindo imensamente os que se encontravam no térreo, desde o porteiro ate o judeu barrigudo de roupa preta. Gudrun conversava muito calma, apoiando a mão no braço da irmã.
Subiram, então, vagarosamente, seguidas de Birkin e do empregado do hotel.
- No primeiro andar? - perguntou Gudrun, olhando para trás, por cima do ombro.
- No segundo, minha senhora. Toma-se o elevador. - E correu para lá, de forma a chegar antes das duas moças. Absorvidas, porém, pela conversa, elas não o viram, e continuaram a subir para o segundo andar. O empregado correu atrás delas, aborrecido.
Era curioso notar como as duas irmãs se haviam regozijado com o encontro. Era como se se sentissem exiladas, unindo suas forças individuais a fim de arremeter contra o mundo. Birkin olhava-as com desconfiança e admiração.
Já estavam de roupa mudada quando Gerald voltou. Vinha faiscante como um raio de sol sobre o gelo.
- Vocês vão fumar - disse Úrsula a Birkin. - Eu e Gudrun temos muito que conversar.
Sentaram-se no quarto de Gudrun, e falaram sobre vestidos e episódios divertidos. Gudrun contou a história da carta de Birkin no Café Pompadour. Úrsula ficou indignada e chegou a assustar-se.
- Onde está a carta? - perguntou.
- Guardei-a.
- Quero vê-la, sim?
Gudrun conservou-se uns instantes silenciosa, até que retorquiu:
- Deseja lê-la, realmente?
- Sim.
- Está bem. Não lhe parecia fácil fazer a irmã compreender o quanto lhe agradaria ter a carta como recordação, como coisa simbólica. Mas Úrsula percebeu e não gostou da ideia. Mudaram de assunto.
- Que fizeram vocês em Paris? - indagou esta última.
- O que se costuma fazer - respondeu a irmã laconicamente - Passamos uma noite com Fanny Bath, no seu estúdio.
- Ah, sim? Você e Gerald estiveram lá?! E quem mais? Conte-me tudo.
- Não há nada de especial para relatar. Sabe como Fanny anda apaixonada por aquele pintor, Billy Macfarlane. O homem estava presente, de maneira que ela não poupou nada, e tez tudo o que era possível para conquistá-lo. Claro que todos se embebedaram, mas de uma forma interessante, não como essa gente abjeta de Londres. A verdade é que só se viam pessoas de valor, o que faz alguma diferença. Havia um romeno, tipo de primeira ordem. Embriagou-se por completo, subiu ao topo de uma escada e fez um discurso estupendo... Acredite, Úrsula, estupendo! Começou por falar em francês... La vie, c'est une affaire d'âmes impériales - A vida é um negócio de almas imperiais - nota da tradutora), isto com esplêndida pronúncia. Depois desandou a divagar na sua língua, e ninguém entendeu patavina. Donald Gilchrist estava também e inteiramente frenético. Atirou um copo ao chão e jurou, por Deus, que se considerava feliz por haver nascido, que era milagrosa a sua existência... E quer crer, Úrsula, que é verdade?... - Gudrun riu, mas de uma forma que soava falso.
- E que fazia Gerald, no meio de todos?
- Ah, se você visse! Parecia estar no seu elemento. Uma vez que se excita, faz ele próprio a festa toda! Não houve dama a quem não se atirasse. Palavra, Úrsula, atrai as mulheres como um ímã. Não houve nenhuma que lhe resistisse. Era espantoso! Você entende uma coisa assim?
Úrsula meditou uns segundos, e no olhar perpassou-lhe um súbito clarão.
- Percebo - respondeu. - Não lhe escapa nenhuma.
- Nenhuma! Também acho que sim - exclamou Gudrun.
Pois é a pura verdade. Todas as mulheres que lá estavam se dispunham a se renderem, ate Fanny, apesar de apaixonada pelo seu Billy Macfarlane. Nunca na minha vida fiquei tão assombrada. E agora dá-me a impressão de que sou, para ele, não uma só mas uma súcia de mulheres. Sou tanto eu mesma como a Rainha Vitória. Qual! Uma coleção de fêmeas é o que eu sou! Enfim, isto estonteia-me. Aquele homem é um sultão!
Os olhos de Gudrun cintilavam. Tinha as maçãs do rosto abrasadas, e o aspecto estranho, exótico, um tanto excêntrico. Úrsula sentou-se perturbada e inquieta.
Já era tempo de se prepararem para o jantar. Gudrun desceu, daí a pouco, com um vestido muito audacioso, de seda, verde-claro e ouro; o corpete era de veludo verde, e em volta da cabeça havia enrolado um turbante esquisito, preto e branco. Estava realmente bonita, e toda a gente o notou. Gerald, de belas cores na face, parecia vender saúde. Birkin olhava-os com interesse. Úrsula estava abstrata. Imaginar-se-ia que a mesa, a que se haviam sentado os quatro, fora previamente enfeitiçada até a luz incidia mais sobre ela do que sobre as restantes.
- Não gosta disto aqui? - perguntou Gudrun - A neve é surpreendente. Reparou como dá relevo a tudo? Pura maravilha! Sentimo-nos, na verdade, übermenschlich, mais do que humanos.
- Também acho - respondeu Úrsula. - Mas não se deverá, em parte, ao fato de havermos deixado a Inglaterra.
- Naturalmente... Jamais se poderia ter esta impressão na nossa terra pelo simples motivo de que lá jogam sempre baldes de água fria no entusiasmo. Nunca se está bem à vontade, disso tenho a certeza. - Assim falou, e recomeçou a comer. Mostrava-se bastante animada.
- Sou da mesma opinião - disse Gerald. - Na Inglaterra não é a mesma coisa, e talvez seja isso o que nós preferimos muita liberdade, equivalerá a brincar com o fogo. Assusto-me só em pensar no que sucederia...
- Meu Deus, que lindo - exclamou Gudrun - se toda a Inglaterra explodisse subitamente como uma peça de fogo de artifício!
- É impossível - volveu Úrsula. - Há muita umidade e a pólvora deve estar molhada.
- Quem sabe... - atalhou Gerald.
- Eu penso - interveio Birkin - que quando os ingleses começarem a explodir, em massa, é hora de tapar os ouvidos e começar a fugir.
- Jamais acontecerá tal coisa - observou Úrsula.
- Veremos, replicou o marido.
- Em todo o caso demos graças Deus por termos podido abandonar a pátria. Até nem acredito. Bastou pisar terra estrangeira para me sentir outra. Eis-me renascida, foi o que disse de mim para mim, Gudrun, para com o nosso pobre país - disse Gerald. - Almadiçoa-mo-lo, é certo, mas gostamos bastante dele.
Aos ouvidos de Úrsula tais palavras soaram como reveladores de cinismo.
- Não contesto - comemorou Birkin. - Mas é uma espécie de amor um tanto incomodo, como o que dedicamos a uma pessoa da família, muito velha e muito doente, da qual nada podemos esperar...
Gudrun arregalou o s olhos para o cunhado.
- Parece-lhe que não há esperança? - interrogou ela, com aquele eu jeito peculiar.
Birkin, porém, pôs-se em guarda. Não lhe agradava aprofundar o assunto.
- Poderemos ter, francamente, esperanças na Inglaterra? Só Deus sabe. Por enquanto, não é mais que uma imensa irrealidade, um agregado sem consistência. Poderia tornar-se real, se não existissem os ingleses.
- Entende que os ingleses deveriam desaparecer? - insistiu Gudrun. Era de admirar aquele desejo de conhecer a opinião do Gudrun. Podia-se supor que ate o seu próprio estava em jogo. Manteve o olhar sombrio e ansioso fixado em Birkin, como se a verdade sobre o futuro devesse ser dita por ele, como se ele fosse um instrumento divino.
Rupert empalidecera. Depois, de má vontade, replicou:
- Sim... que é que lhes resta fazer, senão desaparecerem? De qualquer maneira, é forçoso que percam as suas características de ingleses.
Gudrun não retirara dele o olhar, fixo e espantado, como se estivesse sob influência hipnótica.
- Em que sentido - perguntou ela - emprega o verbo desaparecer?
- Quer dizer mudança de sentimentos? - inquiriu Gerald por seu turno.
- Não posso explicar melhor - volveu Birkin. - Sou inglês, e sofro as consequências de o ser. Não falei da Inglaterra em geral, mas apenas de mim mesmo.
- Você ama imensamente a sua pátria, Rupert - retorquiu Gudrun com voz muito pausada.
- E acabo de deixá-la.
- Mas não para sempre - atalhou Gerald. - Vai voltar para lá - sentenciou, movendo a cabeça em sinal afirmativo.
- Dizem que os parasitas abandonam os moribundos - disse Birkin com amargura - Foi assim que deixei a Inglaterra.
- Ora, voltará... - observou Gudrun, sorrindo irônica.
- Tant pis pour moi - Tanto pior para mim - nota da tradutora).
- Como ele detesta a mãe-pátria! - exclamou Gerald, rindo, divertidíssimo.
- Grande patriota! - acrescentou Gudrun. Birkin não se dignou responder mais nada.
Gudrun ficou observando-p por alguns segundos. Depois, voltou-se para o outro lado. Terminavam as suas faculdades espirituais; sentia-se agora puramente cínica. Olhou então para Gerald, que lhe pareceu maravilhoso como uma partícula de rádio. Calculou que se poderia consumir a si própria, e tudo conhecer, através daquele metal vivo e fatídico. Pensava nisso e sorria. E o que seria dela, quando estivesse destruída. Pois, se o espírito, se o ser constituído é destrutível, a matéria, em si mesma, não o é.
Gerald, nesse momento, estava absorto, pensativo, com ar radiante. Gudrun estendeu um dos seus belos braços, cobertos de tule verde e tocou no queixo dele com os dedos sensíveis, de artista plástica.
- Que tais são? - perguntou-lhe, com um estranho sorriso.
- O quê? - perguntou o rapaz, voltando a si, muito admirado.
- Os seus pensamentos.
Gerald tinha o aspecto de quem acaba de acordar.
- Acho que não tenho nenhum - respondeu.
_ Não - repetiu ela. A voz era grave, mas alegre.
Para Birkin, o contato daqueles dedos sobre Gerald equivalia a uma espécie de homicídio.
- Ora, então - continuou Gudrun - bebamos pela Inglaterra, bebamos pela Grã-Bretanha.
A entonação dela denunciava certo desespero. Gerald riu e encheu os copos.
- Percebo a ideia de Birkin - explicou ele. - É esta: nacionalmente, todos os ingleses deverão morrer; porém, continuarão a existir como indivíduos.
- Supernacionalmente... - emendou Gudrun, fazendo uma careta e levantando o copo.
No dia seguinte tomaram o trem que os levou ate a estação de Hohenhausen, no extremo da linha que serve o minúsculo vale. Havia neve por toda a parte, verdadeiro berço nevado, muito branco, renovando-se constantemente; de um lado e de outro emergiam penhascos negros, e outros, já prateados, erguendo-se todos para o céu palidamente azul.
Ao saltarem na plataforma desconfortável, rodeada de neve, Gudrun estremeceu como se o coração se lhe gelasse também.
- Meu Deus, Jerry - disse ela, voltando-se para Gerald, em inesperada explosão de intimidade. - Desta vez estou amedrontada.
- Por quê?
Ela fez um gesto indicando a paisagem circundante.
- Olhe!
Parecia ter medo de dizer o que sentia Gerald riu-se.
Estavam cercados de montanhas. Do alto, de toda a parte, desciam lençóis de alvura, e eles sentiam-se diminutos e insignificantes naquele vale, tão irradiante, silencioso e imóvel como se fosse éter solidificado.
- Sentimo-nos ínfimos e sós - disse Úrsula, pondo a mão no ombro de Birkin.
- Está arrependida de ter vindo? - perguntou Gerald a Gudrun.
A jovem ficou indecisa. Saíram todos da estação, entre blocos de gelo.
- Ah! - fez Gerald, respirando de prazer. - Como isto é bom! Aqui está um trenó. Vamos dar um passeio e depois subimos a encosta.
Gudrun, irresoluta, depôs o espesso casaco em cima do trenó - como Gerald havia feito - e seguiu em frente. De súbito, lançou a cabeça para trás e desatou numa correria sobre a neve, enfiando o gorro ate as orelhas. O vestido azul-claro flutuava ao vento; as meias vermelhas brilhavam sobre o chão alvo. Gerald contemplou-a e teve a impressão de que ela se arremessava ao seu destino, deixando-o, a ele, abandonado. Depois de perceber que ela continuava se afastando, correu, por sua vez e foi-lhe ao encalço.
Por toda a parte se estendia aquela alvura profunda e silenciosa. As goteiras pesavam e abarrotavam de neve os telhados largos das casas tirolesas, que por sua vez estavam mergulhadas nela ate os caixilhos das janelas. As camponesas, de amplas saias, com mantas na cabeça e botas adequadas, voltavam-se, no caminho, para observar aquela moça elegante e enérgica que fugia do homem que a perseguia e que se aproximava mais e mais, sem, todavia a alcançar.
Passaram diante da estalagem de madeira pintada e depois em frente de alguns chalés semi-enterrados nos flocos brancos, bem como junto à fábrica de serragem, que estava sem trabalhadores; e, enfim, sobre a ponte coberta que atravessava um riacho invisível, e daí, por cima de camadas de neve ainda não pisadas. O silêncio e a extrema brancura incitavam a uma alegria insensata. Mas aquele, por excessivo, tornava-se terrível: isolava a alma e fechava o coração com uma corrente gelada.
- Apesar de tudo, é um lugar admirável - disse Gudrun, fitando Gerald nos olhos, de forma estranha e significativa. A alma dele sobressaltou-se.
- Delicioso! - confirmou.
De todos os seus membros parecia irradiar-se energia elétrica: os músculos estavam tensos, as mãos endureciam-se de vigor. Seguiram a passo apressado pela estrada transbordante de neve, e indicada apenas, de vez em quando, pelos ramos desnudos das árvores. Sentiam-se separados um do outro como pólos contrários de força impetuosa. Tinham poder suficiente para saltar até os confins da vida, até lugares interditos, e de lá regressar ao ponto de partida.
Birkin e Úrsula corriam também sobre a superfície gelada. Desembaraçando-se de toda a bagagem, haviam conseguido tomar a dianteira aos trenós. Úrsula, excitada e feliz, voltava-se de repente e segurava o braço do marido, para se assegurar da sua presença.
- Nunca imaginei isso - declarou ela. - Encontrar um mundo assim tão diferente!
Seguiram por um prado que a neve atapetara. Ali esperaram o trenó, que vinha tilintando no meio do silêncio geral. Até encontrarem Gerald e Gudrun tinham de percorrer ainda uma grande distância; achavam-se estes mais acima, no alto de um despenhadeiro, ao pé de um santuário cor-de-rosa, meio oculto pelos flocos de neve.
Passaram depois por um barranco onde havia rochas negras e um regato cujo leito se cobrira de branco. Por cima brilhava o céu azul. Depois chegaram a uma ponte; as pranchas de madeira ressoaram surdamente sob os passos; atravessaram mais uma vez o fundo nevado do barranco, e começaram a subir a encosta. Os cavalos subiam apressados, e o condutor, marchando ao lado, fazia estalar o chicote, lançando estranhos gritos de incitamento. As pedras que marginavam o caminho ficavam lentamente para trás, até que foram surgir de novo entre taludes e montões de neve. Gradualmente ganhavam altitude sob a luz fria da tarde; a proximidade das montanhas fazia-os calarem-se; vertentes de alvura luminosa cresciam em frente e desciam no caminho que lhes ficava às costas.
Atingiram, enfim, um planalto muito extenso, cercado de altos picos de neve semelhantes a pétalas de rosa desabrochada. No meio dos últimos vales desertos estava uma construção solitária de madeira escura e pesado teto branco, perdida e sozinha na vastidão dealbada, como numa espécie de sonho. Dir-se-ia um penhasco que houvesse rolado de cima das vertentes escarpadas e que tomasse a forma de uma casa, permanecendo ali meio insermlta. Parecia inacreditável que alguém pudesse viver naquele lugar sem ser esmagado pela terrível imensidade da neve, pelo silêncio e pelo frio seco intenso e penetrante.
Os trenós acabaram de subir da melhor maneira que puderam; à porta da casa apareceram várias pessoas, rindo animadamente. O assoalho da estalagem rangia, o corredor estava úmido, mas na sala havia calor e conforto.
Os recém-chegados subiram a escada de madeira, guiados pela criada. Gudrun e Gerald ficaram no primeiro quarto. Viram-se, de um momento para outro, instalados em um pequenino aposento, pouco mobiliado, mas confortável; o quarto tinha uma cor dourada, porque o chão, as paredes, o teto, a porta, eram feitos da mesma qualidade de pinho, recoberto de cera. Defronte da porta, abria-se uma janela muito baixa, pois o teto era esconso. Na mesma direção estava a mesa com a bacia de lavar as mãos e o jarro; próximo, outra mesa com penteadeira de espelho. De cada lado da porta, as camas, sobre as quais se empilhavam enormes almofadas azuis, descomunais.
E nada mais havia. Faltavam o guarda-roupa e outras peças habituais. Ei-los encerrados numa cela de madeira dourada com dois leitos cobertos de lençóis e fronhas azuis! Olharam um para o outro e desataram a rir, admirados com aquela nudez que lhes fazia sentir ainda mais o isolamento.
Bateram à porta. Era um carregador com a bagagem, rapaz robusto, pálido, de faces encovadas e bigodinho louro e hirsuto. Gudrun ficou a observá-lo enquanto ele colocava as malas e se retirava, muito calado, com passadas fortes.
- Não acha isso tudo muito primitivo? - perguntou Gerald.
O quarto não estava suficientemente aquecido e Gudrun teve um breve arrepio.
- É adorável - respondeu ela, procurando iludir-se. - Repare no tom da madeira: delicioso, parece mesmo o interior de uma noz.
De pé, Gerald observava a moça, mordia o bigode e balançava levemente o corpo. Olhava-a com olhos penetrantes e corajosos, dominado por uma paixão constante, que pesava sobre ele como uma maldição.
Gudrun debruçou-se à janela, cheia de curiosidade.
- Ah, que beleza!... - exclamou quase involuntariamente.
Em frente estendia-se um vale, sob todo o espaço do céu, fechado entre declives de neve e rochedos escuros; ao fundo, como se fosse o centro da terra, havia uma encosta branca, lisa, com dois picos que cintilavam ao crepúsculo. E a vista perdia-se naquele berço de neve silenciosa que havia entre as vertentes imponentes e orladas de pinheirinhos agrestes que lhes serviam de cabeleira. Esse berço imaculado prolongava-se ate à barreira da eternidade, onde as muralhas de neve e de pedra se elevavam impenetráveis e os cimos das montanhas roçavam o céu. Era realmente o centro, o eixo, o umbigo da terra, que, pura, inacessível, inultrapassável, dormia ali como propriedade do firmamento.
Tudo aquilo embevecia Gudrun. Ajoelhou-se em frente a janela, apoiando o queixo nas mãos em atitude de arrebatamento. Chegara, finalmente! Atingira o seu destino! Gozaria ali a sua felicidade, engastando-se como um cristal no próprio centro da neve.
Gerald, curvado sobre ela, olhava, por cima do ombro da moça, a paisagem lá fora. Mas sentia-se sozinho. Gudrun havia partido. Partira para sempre, deixando apenas uma névoa fria em volta do coração dele. Contemplou o vale coberto de flocos brancos, àquele enorme cul-desac cheio de neve e as cristas das serras sob o céu azul. Não havia caminhos por onde escapasse; rodeavam-no o silêncio o frio, a cintilante alvura da tarde moribunda. Gudrun permanecia ajoelhada defronte da janela como uma sombra em frente a um altar.
- Gosta disto? - perguntou-lhe ele numa voz que soou desconhecida e distante. Ao menos assim ela saberia que ele estava ali. Mas Gudrun limitou-se a desviar o rosto, furtando-se aos olhares do homem. Este percebeu que ela havia chorado; e aquelas lágrimas, produto da sua estranha religião, reduziram-no a uma coisa insignificante.
Pegou no queixo de Gudrun e ergueu-lhe a cabeça. Os olhos dela, azul-escuros, molhados do pranto, dilatavam-se como se estivessem assustados. Gudrun o viu através de uma névoa, e sinto aterrorizada. As pupilas de Gerald, pequeninas, vivas, pareciam-lhe agora sobrenaturais. Ela abriu os lábios, a custo, enquanto respirava ofegante.
A paixão foi-se apoderando de Gerald, mais e mais, como o som de um sino de bronze, forte, bem timbrado, impossível de deter. E, como de bronze, igualmente, seus joelhos se endureceram, ao inclinar-se sobre a face macia da moça, cuja boca estava entreaberta e cujos olhos se arregalavam sob a impressão de um medo singular. Ao contato da mão de Gerald, o queixo de Gudrun era brando e sedoso. Ei-lo, poderoso como o próprio inverno, aquele homem dominador; as mãos eram de metal, mas cheias de vida, insensíveis, impossíveis de dobrar. E o coração, dentro do peito, badalava como um sino.
Ergueu-a nos braços. Ela estava frouxa, inerte, sem movimentos! Nos olhos, onde as lágrimas não haviam secado, a dilatação aumentara, e ela entrara numa espécie de desmaio, de fascinação, já vencida. Gerald tinha uma força sobre-humana, inquebrável, superior às leis da natureza.
Ergueu-a e estreitou-a contra si. Aquele corpo mole e sem resistência pesava-lhe nos braços rijos, nos membros de bronze, provocando-lhe profundos desejos que o enlouqueceriam se não conseguisse satisfazê-los. Gudrun debatia-se convulsa, tentando evitá-lo. Mas o amor de Gerald estalava como uma chama de gelo, e ele apertava-a duramente, com músculos de aço. Antes a destruiria, mas não a deixaria fugir.
A força do homem era excessiva para a fragilidade da mulher, que se abandonou, fraca e submissa, ofegante, em vago delírio. Para ele, afigurava-se-lhe tão carinhosa, tão prometedora de felicidade, que Gerald desejaria ser condenado eternamente a renunciar um segundo àquele prazer, quase doloroso.
- Meu Deus, - disse com o rosto transfigurado, estranho e ardente - que será de nós?
Ela ficara quieta, perfeitamente calma; a expressão era infantil e os olhos sombrios não o desfitavam. Mas estava perdida para ele, como se o houvesse renegado.
- Amar-te-ei para sempre - declarou Gerald, fitando-a.
Gudrun, porém, não o ouvia. Jazia desfalecida, examinando-o como a alguém que lhe fosse impossível compreender; como uma criança observando um adulto, sem esperança de o entender, submetida e nada mais.
Gerald beijou-a nas pálpebras, de maneira que ela não conseguia vê-lo. Gostaria que ela desse algum sinal, qualquer prova de entendimento, de concordância. Ela, porém, continuava silenciosa, distante, criança que não entende as coisas e que se sente perdida. E ele tornou a beijá-la, renunciando a tudo, por fim.
- E se fôssemos tomar café e comer Kuchen? - sugeriu ele.
O crepúsculo esmaecia cor de ardósia, através da janela. Gudrun fechou os olhos à monótona superfície daquela maravilha morta, e tornou a abri-los ao mundo quotidiano.
- Está bem - respondeu laconicamente, reencontrando de súbito a vontade. Voltou de novo à janela. Sobre o berço da neve e sobre as altas encostas lívidas caíra uma noite azulada. Mas, de encontro ao céu, os picos eriçavam-se róseos, brilhantes, translúcidos, como rebentos de uma planta luzidia voltada para o mundo celestial, adorável e distante.
Gudrun viu como tudo isso era belo, conheceu a imortalidade de que aquela beleza se revestia, enormes pistilos cor-de-rosa, fogo de neve no crepúsculo azulado do céu. Via, compreendia, mas não era parte daquele todo. Alma divorciada, a sua, excluída, exilada, e nada mais!
Lançou um último e saudoso olhar à paisagem e passou os dedos pelo cabelo, compondo o penteado. Gerald desatara as correias das malas e esperava por ela, observando-a. Gudrun percebeu que ele a mirava, o que a fez apressar-se de modo febril.
Desceram ao andar térreo; havia nos olhos de ambos como que um reflexo de outro mundo, tão brilhantes se mostravam. Descobriram logo Birkin e Úrsula sentados em um canto da mesa comprida, aguardando que eles chegassem.
"Têm tão bom aspecto! São tão simples!" pensou Gudrun, invejosa daquela espontaneidade, daquela inocência de crianças que ambos demonstravam e que ela jamais possuíra. Pareciam-lhe tão pueris!
- Deliciosos Kranzkuchen! - Magnífico, prodigioso, extraordinário, inexprimível - nota da tradutora), exclamou Úrsula, gulosamente. - Deliciosos!
- Vamos experimentar. Traga-nos Kafee mit Kranzkuchen - ordenou Gudrun ao garçom.
Depois sentou-se no banco, ao lado de Gerald. Birkin, olhando para eles, sentiu pelos dois uma ternura quase dolorosa.
- Gerald - disse -, acho este lugar realmente encantador. Prachtvoll, wunderbar, wunderschön, unbeschreiblich e todos os outros adjetivos da língua alemã.
O outro esboçou um sorriso.
- Também gosto muito - replicou.
As três mesas, de madeira branca bem esfregada, estavam postas ao longo das paredes, como em qualquer Gasthaus - Estalagem - nota da tradutora). Birkin e Úrsula tinham-se colocado de costas para aqueles tabiques de pinho encerado, e Gerald e Gudrun próximos deles, mais no extremo, perto da lareira. O compartimento era vasto, com um recanto para as bebidas, em tudo semelhante a um albergue rural, embora muito mais simples e despojado. Teto, paredes e assoalho em madeira encerada, e como única mobília, mesas e bancos; a lareira era verde, tão grande que ocupava uma parede inteira. As duas janelas não ostentavam cortinas. Começava a anoitecer.
Trouxeram o café, bom e quente, e um daqueles "bolos coroados".
- Um Kuchen inteiro! - gritou Úrsula. - Vocês ganharam mais do que nós. Quero um pedaço desse.
Havia outros hóspedes, dez ao todo, conforme Birkin deduziu: dois artistas, três estudantes, um casal e um professor com as duas filhas - todos alémães. Os quatro ingleses recém-vindos permaneceram no seu cantinho, belo posto de observação. Os alemães observaram os novos hóspedes, disseram qualquer coisa ao garçom e desapareceram. Não era hora de refeição, de forma que não tinham nada a fazer na sala de jantar, mas, depois de trocarem os sapatos vieram para a Reunionsaal - Sala de estar - nota da tradutora).
Os quatro ingleses ouviram, por instantes, sons de viola e de piano misturados com risos, gritos e canções. Como a casa era construída de madeira, a repercussão do ruído fazia-se por toda ela, de forma que os acordes da viola pareciam provir de um instrumento de crianças que tocassem em qualquer parte, e os do piano mais pareciam os de uma espineta.
O hospedeiro apareceu quando acabavam de tomar o café. Tratava-se de um tirolês espadaúdo, pálido, de faces encovadas e pele marcada pela varíola. Usava os mais florescentes bigodes que se podem imaginar.
- Querem ir à sala de estar para serem apresentados às senhoras e cavalheiros que lá se encontram? - perguntou, curvando-se e exibindo um sorriso que mostrou seus dentes largos e perfeitos. Com os olhinhos azuis fitava ora um ora outro, sentindo-se pouco à vontade no meio daqueles ingleses Sentia não saber falar o idioma deles e não tinha muita confiança no seu francês.
- Para irmos à sala e sermos apresentados às outras pessoas? - repetiu Gerald, sorridente.
Houve uns segundos de hesitação.
- Creio que seria bom - acudiu Birkin. - Quebraríamos o gelo de uma vez.
As senhoras puseram-se de pé, ruborizadas.
O Wirf - Dono da estalagem - nota da tradutora), com a sua figura loura, os ombros largos, passou, pouco delicadamente, em primeiro lugar, dirigindo-se ao lugar de onde vinha o ruído. Abriu uma porta e introduziu os estrangeiros na sala do concerto.
Seguiu-se um silêncio, e os outros pareceram, por momentos, embaraçados. Os recém-chegados tiveram a sensação de estar sendo observados por uma multidão de criaturas da mesma raça. Mas o estalajadeiro inclinou-se para um homem baixinho, de olhar enérgico e fartos bigodes e disse-lhe em voz confidencial:
- Herr Professor, darf ich vorstellen... Permita-me que lhe apresente, senhor professor... - nota da tradutora).
O homem reagiu prontamente. Cumprimentou com a cabeça os novos hóspedes, sorriu e assumiu uma franca atitude de camaradagem:
- Nehmen die Herrschaften Teil an unserer Unterhaltung? - Dignam-se tomar parte na nossa festa? - nota da tradutora) - foram as suas palavras, ditas com vigor e convicção.
Os quatro ingleses, risonhos, deixaram-se ir até ao meio da sala, com certo acanhamento. Gerald, fazendo de orador oficial, respondeu que teriam muito gosto em tomar parte no sarau. Gudrun e Úrsula, rindo animadamente, percebiam que os homens não tiravam os olhos de cima delas. Ergueram então a cabeça, fitando o teto, e assumiram uma atitude majestosa...
O professor declarou os nomes de todos os presentes, sans cérémonie. Houve flexões de cabeça para a esquerda e para a direita. Só faltava ali o casal que tinham mencionado antes como hóspedes da estalagem. As duas filhas do professor, altas, claras, atléticas, vestidas simplesmente com blusas azul-escuros e saias de lã, de pescoço comprido e forte e cabelos cuidadosamente trançados coraram, cumprimentaram e puseram-se um pouco afastadas os três estudantes curvaram-se reverentes, na humilde persuasão de incutirem a ideia de que eram muito bem educados. Depois chegou a vez de um sujeito delgado e moreno, com olhos grandes, um tipo estranho, misto de engraçado e esperto, um gnomo original. Fez um curto cumprimento e o companheiro que se achava junto dele, rapaz louro e alto, bem vestido, corou e baixou a cabeça.
Estavam feitas as apresentações.
- Herr Loerke estava recitando para nós no dialeto de Colônia - explicou o professor.
- Desculpe a interrupção - disse Gerald. - Teremos também imenso prazer em ouvi-lo.
Seguiu-se um novo cumprimento e oferta de lugares. Gudrun, Úrsula, Gerald e Birkin sentaram-se em confortáveis sofás, de costas para a parede. A sala era, como toda a casa, de madeira encerada. Havia piano, canapés, cadeiras e duas mesas com livros e revistas. Apesar da ausência total de ornatos - exceto no que respeitava ao fogão enorme, azul - não se deixava de sentir conforto e bem-estar.
Herr Loerke era o homenzinho de rosto infantil. Tinha a cabeça redonda, grande, olhos vivos como os de um mico e todo ele denotava sensibilidade. Relanceou o olhar pelos intrusos, conservando-se um tanto à parte.
- Queira continuar com a declamação - insistiu o professor, com voz suave, embora levemente autoritária. Loerke, que estava sentado no banquinho do piano, um pouco curvado, baixou os olhos e não respondeu.
- Seria muito agradável para nós... - interveio Úrsula, que estava há muito tempo preparando a frase em alemão.
Então, subitamente, o homenzinho, ate ali calado, avançou e, dirigindo-se aos primeiros ouvintes, continuou a história exatamente no ponto em que a havia interrompido. Com voz brincalhona, muito bem timbrada, fez a imitação de uma disputa entre uma velhota de Colônia e um condutor de trens.
O corpo daquele homem, débil e mal formado, assemelhava-se ao de um rapazola, porém a entonação era a de um adulto, com grande dose de sarcasmo; possuía a inflexão necessária, denunciando inteligência crítica e penetrante. Gudrun não conseguiu perceber patavina daquele monólogo, mas estava encantada com a figura dele. Devia ser artista, senão não conseguiria tanta perfeição e naturalidade. Os alémães não cessavam de rir ao ouvir as palavras tão engraçadas daquele divertido dialeto. No meio das gargalhadas, olhavam disfarçadamente para os ingleses, com deferência Gudrun e Úrsula não puderam deixar de rir também. A sala quase vinha abaixo com tanto barulho. Os olhos azuis das filhas do professor já estavam cheios de lágrimas provocadas pelo riso; as faces das moças estavam coradas de prazer. O pai fazia reboar pela casa estrondosas manifestações de hilaridade, e os estudantes, no auge da alegria, curvavam a cabeça ate os joelhos. Úrsula, surpreendida, perscrutava em volta de si e, involuntariamente, acompanhava as expansões da assembleia. Virou-se uma vez para a irmã e a irmã para ela, e as duas riram a valer. Loerke lançou-lhes um rápido olhar. Birkin divertia-se discretamente. Gerald mantinha-se ereto, com expressão brilhante e divertida. E as risadas prosseguiram, com intensidade crescente; as filhas do professor remexiam-se nas cadeiras, o pai mostrava as faces afogueadas e as veias do pescoço salientes: sentia-se sufocado e tinha espasmos de riso silencioso. Os estudantes soltavam gritos inarticulados que terminavam em explosões que não podiam evitar. Mas de repente, o monólogo do artista cessou; as exclamações subsistiram ainda, decrescendo gradualmente. Úrsula e Gudrun enxugaram os olhos, e o professor exclamou, em voz alta:
- Das war ausgezeichmet, das war famos... Soberbo, famoso! - nota da tradutora).
- Wirklich famos! Famosíssimo! - nota da tradutora) - repetiram em eco as filhas, extenuadas.
- Que pena não termos entendido! - lamentou Úrsula.
- Oh, leider, leider! - Infelizmente, infelizmente! - nota da tradutora)
- comentou o professor.
- Não compreenderam? - indagaram os estudantes, dirigindo-se finalmente aos estrangeiros. - Ja, das ist wirklich schade, das ist schade, gnadige Frau. Wissen Sie... - Sim, realmente foi pena, minha senhora. Acredite. - nota da tradutora).
Estabelecera-se a familiaridade, e os recém-chegados, como elementos novos, misturaram-se ao grupo, aumentando a animação da sala. Gerald estava como em sua casa, falava com desembaraço e boa disposição; assim nesta sua expressão mostrava quanto aquilo o divertia. Talvez sucedesse o mesmo a Birkin. Permanecia ainda tímido e contrafeito, embora atento a tudo o que se passava.
Pediram a Úrsula que cantasse Ano Lawrie - como dizia o professor. Fez-se um silêncio cheio de deferência. Nunca em sua vida fora tão cortejada. Gudrun acompanhou a irmã ao piano, tocando de cor.
Úrsula tinha uma voz bem timbrada, mas geralmente sem sensibilidade, o que prejudicava suas canções. Naquela noite, porém, sentiu-se mais à vontade e esforçou-se para cantar melhor. Birkin ouvia atentamente, e a jovem, cheia de confiança, tinha a impressão de que era um pássaro que flutuava no espaço, enquanto a voz se evolava, equilibrando e modelando a canção com um movimento de asas, como se levada pelo vento. Cantou com muita expressão, animada pelo interesse com que a assistência a distinguia, e considerando-se feliz em proceder daquela maneira, compenetrada da emoção e do domínio que exercia aquela gente toda e sobre si própria - contente por ser agradável e proporcionar distração aos alémães.
Quando terminou, estes, sensibilizados, cheios de admiração e ainda envoltos numa deliciosa melancolia, felicitaram-na efusiva e respeitosamente, sentindo que nenhum louvor seria demasiado.
"Wie schön, wie rührend! Ach, die schottischen Lieder, sie haben so viel Stimmung! Aber die gnädige Frau hat eine wunderbare Stimme; die gnädige Frau ist wirklich eine Kunstlerin, aber wirklich!" - Lindo, comovente! Ah, essas canções escocesas fazem tanto bem à gente! Esta senhora possui uma voz maravilhosa. É, de fato, uma artista, não tenham dúvida! - nota da tradutora).
Úrsula, radiante, parecia uma flor desabrochada ao sol da manhã. Pressentia que o marido a fitava, como se tivesse ciúmes, e o peito arfou-lhe mais. Considerava-se feliz, como um astro que houvesse conseguido atravessar as nuvens com os seus raios de ouro. Todos, aliás, pareciam contentes e satisfeitos. Tudo decorria às mil maravilhas.
Depois do jantar desejou sair para admirar a natureza. Os outros tentaram dissuadi-la; estava tanto frio! "Só para ver", disse ela.
Agasalharam-se os quatro e pouco depois se achavam num mundo vago e insubstancial, feito de neve, povoado de espectros que, de encontro às estrelas, projetavam sombras confusas. O frio era realmente intenso. Úrsula não queria acreditar que era o ar que lhe entrava pelas narinas. Dir-se-ia antes alguma coisa consciente, malévola, com premeditações de assassino.
No entanto, era belo o espetáculo: silêncio profundo na neve sombria, intoxicante, incompreensível, e aquele ser invisível interpunha-se entre eles e as coisas visíveis, entre os homens e os astros flamejantes. Úrsula descobriu Órion erguendo-se no céu. Maravilhoso a ponto de dar vontade de gritar!
Em toda a volta o berço de neve, dura sob os pés, enquanto o frio atravessava os sapatos. Era noite, era silêncio. A jovem imaginava poder ouvir as estrelas. Estava convencida de que ouvira o movimento musical das esferas celestes. Os astros estavam quase ao alcance da mão. Úrsula teve a ilusão de que era uma ave voando por entre a harmonia do universo.
Chegara-se mais ao corpo de Birkin. E, de repente, pensou que desconhecia os pensamentos do marido. Ignorava por onde vaguearia o espírito dele.
- Meu amor! - exclamou ela, parando para fitá-lo. Birkin empalidecera e brilhava em seus olhos um clarão fugidio. Ao ver o rosto da mulher tão próximo do seu, tão meiga e solícita, Birkin beijou-a suavemente.
- O que é? - perguntou-lhe.
- Você me ama? - quis saber ela.
- Tanto, tanto! - respondeu Rupert, tranquilo.
Úrsula aconchegou-se mais.
- Nem tanto... - duvidou.
- Muitíssimo - garantiu o marido, melancólico.
- Fica triste por isso? volveu a mulher, apreensiva. Birkin apertou-a contra si, beijando-a sempre; e disse, de forma quase inaudível:
- Isso não; mas sinto-me como um pedinte, sinto-me pobre. Ela calou-se, olhando agora para o firmamento. Depois, retribuiu-lhe os beijos.
- Você não é um mendigo - explicou, preocupada. - Não é nenhuma vergonha dedicar-me um pouco de amor.
- Mas é vergonhoso sentir-me um homem muito pobre.
- Por quê?
Birkin ficou imóvel, mantendo-a entre os braços. O ar que os envolvia vinha do alto das serras invisíveis.
- É que sem você - disse ele - eu não poderia suportar este frio, este lugar eternamente gelado. Não poderia; ele penetra-me, incisivo, e destrói-me a vida toda.
Úrsula beijou-o mais uma vez.
- Odeia-o, então? - indagou, muito admirada.
- Se não estivesse perto de você, detestá-lo-ia, com certeza.
- Mas as pessoas são agradáveis...
- Refiro-me ao silêncio, ao ar agreste, à neve constante. Ficou pensativa; mas logo sua alma foi-se refugiar na alma dele.
- Sim, - concordou é bom estarmos aquecidos, na companhia um do outro.
Voltaram para casa. Viram as luzes douradas da hospedaria cintilando através da noite silenciosa e glacial. Na imensidade do vale pareciam pequeninas, como um cacho de bagos amarelos. Assemelhavam-se a um ramalhete de raios solares, minúsculos e alaranjados no meio da escuridão e da neve. Por trás dele erguia-se a sombra da montanha; como um fantasma, ocultava o fulgor das estrelas.
Aproximavam-se já da hospedaria. Notaram que saia de la um homem com uma lanterna na mão. O que fazia com que os pés dele, presos num círculo de luz, brilhassem sobre a neve. Na vastidão da noite ele não era senão um vulto escuro pequenino. Dirigiu-se para uma dependência, cuja porta abriu; e chegou logo o cheiro das vacas, cheiro quente que se espalhou pesado, no ar frio. Birkin e Úrsula distinguiram dois animais na escuridão do estábulo. A porta fechou-se, então, sem deixar que se filtrasse a menor luz. Tudo aquilo recordou mais uma vez a Úrsula a sua infância, a casa, o Marsh, a viagem de Bruxelas e, estranha coisa, lembrou-se de Anton Shrsbensky!
"Meu Deus, poderei suportar esse passado desaparecido no abismo Admitirei a ideia de que ele jamais existiu?" Lançou os olhos em torno, ao silencioso e gelado, sobre o qual dominavam os astros e a temperatura glacial; e, sobrepondo-se a esse, viu perpassarem as imagens de lanterna mágica do outro mundo, posto em evidência por uma luz irreal: o Marsh, Cosseghay, Ilkeston... Percebeu a sombra fantástica de uma Úrsula e um conjunto de outras sombras sem a menor realidade. Era ainda a projeção estranha e consciente da lanterna mágica. Se aqueles vidros, ao menos, se quebrassem todos! Preferia não ter nenhum passado na sua vida. Gostaria de ter descido cem Birkin, por aquelas vertentes, como se caísse do céu diretamente naquele recanto da terra, sem ter atravessado uma infância obscura. Com tudo o que a manchava. Achava que a memória se divertia à sua custa. Com que direito a mandava recordar. Por que não experimentava um banho lustral, de puro esquecimento, ou não nascera de novo sem as tristezas e as evocações da vida passada? Estava agora na companhia de Birkin, acabava efetivamente de renascer - ali, sob as estrelas, pisando a neve. Que lhe importavam os pais e os antecedentes? Sentia-se nova, ainda não gerada, sem pai, nem mãe, sem família, ela própria somente, virginal como a prata, pertencendo apenas à unidade que formava com Birkin, unidade que vibrava em notas profundas, ressoando no coração do universo e da irrealidade, onde ate aí jamais existira.
Mesmo da própria irmã se considerava separada, distante, muito longe, sem nenhuma ligação, pois esta Úrsula vivia num mundo diverso e autêntico. Aquele velho planeta em que decorrera o passado sombrio estava desfeito! Erguia-se ela, agora livre, nas asas de uma existência diferente.
Gudrun e Gerald não tinham ainda voltado. Haviam descido a encosta fronteira à casa, enquanto Úrsula e Birkin faziam outro tanto na colina do lado direito. Gudrun fora impelida por um desejo singular. Queria precipitar-se cada vez mais além ate atingir o vale mergulhado em neve, e depois subir a vertente branca que fechava o caminho, como pétalas no coração do gelo, no misterioso umbigo do mundo. Sentia que ali, para trás do obstáculo terrível e enigmático, estava o arreio da terra, cercado por um ramalhete de picos e de serras, e lá naquele ponto não atingido, acabaria ela por se consumir. Se ao menos pudesse lá chegar, sozinha, àquele centro de neves perpétuas e inacessíveis, rodeadas de rochedos, poderia unifica-se com a natureza, seria ela mesma o silêncio eterno e infinito e adormeceria alheia ao tempo, ao âmago de todas as coisas.
Por fim voltaram à casa e entraram na Reunionssal. Gudrun tinha curiosidade de ver o que faziam ali. Os homens despertavam-lhe a curiosidade. A existência começava a proporcionar-lhe um sabor diferente: todos se prostravam diante dela, lépidos e viçosos.
A animação era grande. Dançavam, em conjunto a Schuhplat teln, número tirolês em que se bate palmas e os homens levantam o par na última marcação. Os alémães dançavam corretamente - eram quase todos de Munique. Gerald não destoava no grupo. Em um canto havia três músicos que tocavam viola, e o espetáculo tomava aspectos de imensa alegria e confusão. O catedrático iniciava Úrsula nos segredos da dança, batendo o pé, dando palmas e levantando-a no ar com espantosa força e entusiasmo. Quando chegou a parte final, o próprio Birkin se portou dignamente com uma das filhas do professor, que era jovem, robusta e visivelmente feliz. Toda a gente se divertia no meio de enorme alarido.
Subitamente a dança parou. Loerke e os estudantes correram para preparar bebidas. Houve um clamor de vozes excitadas, um bater de tampas e canecas e o grito geral de a saúde! Loerke estava em toda a parte ao mesmo tempo, como um gnomo oferecendo copos às senhoras, dizendo gracejos, mexendo com os homens e atrapalhando o garçom.
Tinha vontade de dançar com Gudrun. Desde que a vira ambicionara conhecê-la melhor. Ela, por sua vez, pressentira isso, e esperava que ele se aproximasse. Mas uma espécie de aborrecimento o conservava afastado e Gudrun chegou a pensar que o rapaz antipatizava com ela.
- Schuhplatteln, gnädige, Frau? - Uma dança triste, minha senhora? - nota da tradutora) - perguntou-lhe o companheiro de Loerke, rapaz louro e bem constituído. Ela o achava meio melífluo, demasiadamente humilde. Mas queria dançar e o moço louro, que se chamava Leitner, não era feio, apesar de suas maneiras acanhadas e levemente suspeitas; talvez a modéstia disfarçasse a timidez inata. Aceitou-o, pois, como seu par. Os instrumentos foram outra vez tangidos, e a dança principiou Gerald ia à frente de todos, conduzindo uma das filhas do catedrático. Úrsula dançava com um dos estudantes, Birkin com a outra filha do professor, este com Frau Kramer e os homens restantes, uns com os outros, tão entusiasmados como se houvesse entre eles promiscuidade de sexos.
Pelo fato de Gudrun estar dançando com o moço suave e elegante, seu companheiro Loerke ficou mais amuado e furioso do que nunca, e fingiu ignorar a existência da moça. O incidente magoou-a, porém distraiu-se dançando depois com o professor, que era forte como um touro no cio e cheio de energia rude, embora de idade já madura. Se o enfrentasse a sangue-frio não o teria podido suportar, mas, no ardor da dança, tudo ia bem e chegou a achar agradável ser erguida no ar com tanto ímpeto. Por seu lado, o professor estava radiante, e contemplava-a com os seus estranhos olhos azuis, repletos de fogo galvânico. Se bem que detestasse a animalidade protetora e semipaternal com que ele a mirava, Gudrun apreciou-lhe a energia.
A sala carregava-se de excitação, de entusiasmo estrepitoso e sensual. Loerke permanecia afastado de Gudrun, a quem desejaria falar, mas havia como que uma barreira de espinhos, além de que sentia pelo seu amigo Leitner certo ódio impiedoso e mesmo sarcástico. Leitner era pobre e dependia do companheiro. E este ria-lhe no rosto, caçoando cruelmente dele, fazendo-o corar e despertando-lhe, na alma, inútil ressentimento.
Gerald, que se saíra muito bem, dançava outra vez com a filha mais nova do professor, e ela desfalecia quase de paixão virginal, achando-o tão belo, tão sedutor! Gerald mantinha-a sob o seu poder, como se mantém um pássaro palpitante, uma criaturinha desnorteada, ruborizada e confusa. Sorria só por a ver tão excitada entre as suas mãos, a estremecer tão violentamente quando a arrebatava no espaço. Por fim, a jovem já sentia um amor tão intenso pelo seu par que mal podia articular sensatamente qualquer palavra.
Birkin e Úrsula dançavam juntos. Nos olhos dele cintilavam rápidos clarões; dir-se-ia que aquele homem se transformara em um ente perverso, instigador, verdadeiramente mau. A mulher tinha medo dele, mas sentia-se fascinada. Numa visão nítida, via-o passar diante dela, irônico, de olhar lúbrico; aproximava-se dela em movimentos sutis, às vezes indiferentes, outros perigosos. Faziam-na desmaiar de medo aquelas mãos tão estranhas, vivas, astuciosas, que se acercavam inevitáveis do peito da mulher e a levantavam em gosto pouco sério, num impulso cheio de intenções, e a conservavam no ar sem emprego de força, por uma espécie de magia negra. Úrsula, por instantes, revoltou-se. Aquilo era horrível. Precisava quebrar-lhe o encanto. Antes, porém, de formular definitivamente a solução, já se tinha de novo submetido, cedendo ao pavor que ele lhe inspirava. Birkin estava a par do que ela pensava, isso era bem visível no seu sorriso e no modo de piscar os olhos. Era dele a responsabilidade, deixá-lo-ia fazer o que lhe aprouvesse!
Quando se tornaram a encontrar, no escuro, e sozinhos, ela sentiu rondar em sua volta o espírito silencioso do homem e aquilo perturbou-a e assustou-a. Por que se tornara ele assim?
- Que quer? - perguntou cheia de horror.
Mas o rosto de Birkin brilhou mais perto, desconhecido, terrível. Úrsula estava hipnotizada. O seu primeiro movimento era o de o repelir, desfazer o encanto e pôr fim àquela brutalidade sardônica. Sentia-se, contudo, fascinada em demasia preferia sujeitar-se, conhecê-lo melhor. Que iria acontecer?
Rupert atraía-a e afugentava-a ao mesmo tempo. A atração que se irradiava daquele rosto insinuante e irônico, e que se transmitia de seus olhos semicerrados, dava a Úrsula vontade de se esconder e de o espiar de qualquer lugar desconhecido dele.
- Por que está assim? - perguntou, insurgindo-se contra o marido num ímpeto súbito e corajoso.
O fulgor que ardia no olhar de Rupert concentrou-se ao fita-la atentamente. Suas pálpebras se abaixaram num movimento rápido e desdenhoso, para se erguerem logo na mesma provocação impiedosa. Ela então cedeu, deixando-o proceder como quisesse. Aquele feitio sensual tornava-o ao mesmo tempo atraente e repulsivo. Mas como era ele o responsável, Úrsula queria ver o que o marido pretendia fazer.
Afinal, poderiam comportar-se como quisessem - pensou Úrsula no momento em que se deitou. Por que haveriam de eximir-se a qualquer coisa que lhes proporcionasse satisfação? Seria isso, por acaso, degradante? Quem se importaria? Os atos aviltantes existiam, mas a sua realidade é que seria diferente. Rupert era tão descarado, tão sem freios! Não parecia horrível ver agora um homem que podia ser tão espiritual, tão inteligente...? (Úrsula quis impedir a irrupção dos seus pensamentos e concluiu: vê-lo agora tão bestial!) Sim, ele e ela, como dois animais... que vergonha! Estremeceu ao recordar-se. E afinal, por que não? Esta ideia alegrou-a. Por que não haviam de ser bestiais e percorrer toda a escala das sensações? E que bom que era sentir-se envergonhada! No fundo, experimentava certa alegria. Passando por tudo quanto era proibido, adquiriria maior experiência. Já não se achava perplexa, sequer, retomara todo o domínio de si mesma. Por que não? Era livre, visto conhecer tudo e não recuar perante nenhum pecado.
Gudrun, que estivera observando Gerald na Reunionssal, pensou de repente:
"Pode ter tantas mulheres quantas quiser; está na sua natureza. É absurdo considerá-lo monógamo. A poligamia é a sua vocação."
Sem ela querer, este pensamento dominava-a e impressionava-a. Era como se tivesse lido na parede, também o seu Mene! Mene! - Cf. Daniel, V, 25 - nota da tradutora).
Não era apenas fantasia. Parecia que, ao mesmo tempo, uma voz lhe falava no íntimo e tão claramente, que, por instante, Gudrun acreditou estar inspirada.
"É a verdade nua e crua", disse ela consigo mesma.
Sabia muito bem, e implicitamente, que sempre fora aquela a sua opinião. Mas convinha guardar tal ideia, na sombra, quase fora dela mesma. Devia conservá-la secreta. Só ela é que devia estar a par do fato, fazendo o possível para não a aceitar completamente.
Tomou a inabalável resolução de combater Gerald. Um dos dois triunfaria, aniquilando o outro. Qual seria então? Procurou fortalecer o espírito. Tinha confiança, o que lhe permitiu um sorriso. Esboçava-se, assim, em favor de Gerald, uma certa piedade desdenhosa, misturada de ternura. Mas não: não haveria misericórdia!
Todos se recolheram cedo aos seus quartos. O professor e Loerke enterraram-se em um sofá, bebendo. Observaram Gudrun enquanto esta subia a escada.
- Ein schönes Frauenzimmer - Bela mulher! - nota da tradutora) - disse o primeiro.
- Ia! - concordou Loerke, secamente.
Gerald atravessou o quarto de dormir pé ante pé, de forma esquisita e, chegando à janela, debruçou-se e olhou para fora. Depois, voltou o corpo e encarou Gudrun, com olhos ardentes. Tinha nos lábios um vago sorriso. Para ela, dir-se-ia que aquele homem havia aumentado de estatura; viu-lhe luzirem aquelas sobrancelhas muito louras, quase brancas, que se juntavam no meio da testa.
- Que acha de tudo isto? - perguntou.
Parecia rir interiormente, sem mesmo dar por isso. Gudrun fitou-o. Era agora, para ela, como um fenômeno, e não um ser humano: espécie de criatura devorada pela gula.
- Acho muito bom - foi a resposta.
- Quem você achou mais simpático de todos os que estavam lá em baixo? - continuou Gerald, parado junto a ela, muito alto, resplandecente, de cabelos lisos e lustrosos.
- De quem gostei mais? - repetiu Gudrun, desejosa de dizer a verdade, mas achando difícil decidir-se. - Não sei, não os conheço bastante. E você, com quem simpatizou mais?
- Ora, para mim são todos iguais... Não gosto nem desgosto de ninguém. São indiferentes. Queria apenas saber a sua opinião.
- Mas por quê? - Gudrun empalideceu. Nos olhos deles intensificava-se uma expressão vaga, abstrata.
- Gostaria de saber - elucidou.
Ela se afastou, resolvida a quebrar o encanto. Sentia que aquele homem recuperava, de forma estranha, o ascendente que tivera sobre a sua pessoa.
- Pois bem... Por enquanto não posso dizer.
Foi ate diante do espelho para tirar os grampos dos cabelos. Todas as noites costumava ficar algum tempo escovando aqueles cabelos finos e escuros. Fazia parte do ritual da sua vida.
Gerald seguiu-a e colocou-se atrás dela. E Gudrun, com a cabeça curvada para frente, continuava a desembaraçar a cabeleira solta e farta, recolhendo os últimos grampos. Quando levantou os olhos e descobriu a imagem dele no espelho, ali de pé, a observá-la, sem consciência do que fazia, viu que seu olhar parecia sorrir, mas não sorria verdadeiramente.
Gudrun sobressaltou-se. Foi necessária toda a sua coragem para continuar o que fazia. Mas estava longe, muito longe de se sentir à vontade.
- Que pretende fazer amanhã? - perguntou-lhe, enfim, mostrando-se indiferente, enquanto o coração lhe batia apressadamente; tinha os olhos tão brilhantes de excitação que ele não poderia, assim pensou, deixar de notar. Mas Gerald parecia cego, como um lobo que ficasse cego ao contempla-la. Extraordinário combate entre a sua consciência de mulher e a daquele rapaz misteriosamente iniciado na magia negra!
- Não sei - respondeu ele. - E você, o que gostaria de fazer?
Falava ao acaso, com o espírito muito distante.
- O que você quiser; qualquer coisa me serve - respondeu ela vagarosamente.
Enquanto isso, pensava: "Meu Deus, por que estou tão nervosa. Por que você é assim, Gudrun, sua tola? Se ele desconfiar, acaba-se tudo para sempre; você bem sabe que será para sempre, se descobrir o estado absurdo em que você se encontra...
Depois, sorriu à sua imagem refletida, como se tudo aquilo não passasse de brincadeira de crianças. Entretanto, o coração enfraquecia e ela sentia que podia desfalecer. Podia vê-lo ainda, no espelho, atrás dela, alto e curvado, louro e terrivelmente assustador. E Gudrun lançava-lhe olhares furtivos, disposta a conceder-lhe fosse o que fosse, uma vez que ele não soubesse que o estava observando. Gerald, contudo, nada percebia olhava vagamente, com o olhar brilhante pousado na cabeça da moça, de onde alastravam-se seus cabelos finos penteados com mão nervosa. Ela punha o rosto para o lado e escovava, escovava, como uma louca. Ainda que lhe devesse custar a vida, não seria capaz de se voltar para enfrentá-lo. Sentia nas costas a presença de Gerald, ameaçadora, sentia-lhe o peito firme, sólido, irresistível, apoiando-se sobre ela e tinha a impressão de que isso se lhe tornava insuportável, que tombaria aos pés dele dentro de poucos minutos, que se arrastaria no chão, deixando que o homem a aniquilasse.
Tal pensamento, espicaçando-lhe a inteligência clara, restituiu-lhe a presença de espírito; mas não ousava voltar-se. Gerald continuava de pé, imóvel no mesmo lugar. Reunindo todas as suas forças, Gudrun dirigiu-lhe a palavra, em voz cheia, ressonante, indiferente. Fizera apelo a tudo quanto lhe restava de autodomínio.
- Por favor, procure na minha mala o meu...
Mas a energia abandonou-a. "O meu... O meu quê?", perguntava a si mesma.
Gerald sobressaltou-se, admirado de que ela o mandasse procurar qualquer coisa. E Gudrun voltou-se então, muito pálida, com os olhos brilhantes, numa estranha excitação. Ele estava inclinado para a mala, desapertando as correias, distraído...
- Procurar o quê?
- Uma caixinha de esmalte... amarela... com um desenho...
Ao dizer isso, levantara-se e fora ao encontro do rapaz; baixou o braço, nu e soberbo, e começou a remexer no conteúdo da maleta, ate que descobriu a caixa, delicadamente pintada.
- É esta. Vê? - e colocou-a sob os olhos de Gerald.
Tinha conseguido frustrá-lo. Deixou-o apertar os cordões da mala, e acabou de ajeitar, às pressas, o penteado para a noite; depois, sentou-se para tirar os sapatos. Não desejava ficar outra vez de costas para ele.
Gerald fora logrado, iludido, mas não tinha consciência disso. Agora a superioridade era de Gudrun. Percebeu que ele não notara o medo terrível que se apossara dela; o coração pulsava agora pausada e sossegadamente. Estúpida, estúpida, em se ter assustado àquele ponto! Graças a Deus, Gerald não reparara em nada, no meio da cegueira que o envolvera.
Desatou vagarosamente os sapatos; ele, por sua vez, começou a despir-se. Ainda bem que o momento crítico havia passado. E Gudrun já se sentia apaixonada por aquele homem e novamente enternecida.
- É verdade, Gerald - disse, rindo. Que brincadeira tão engraçada a sua com a filha do professor!
- Qual brincadeira - perguntou ele, admirado.
- Pobre menina, estava louquinha por você! - continuou ela, com o ar mais divertido e amável deste mundo.
- Que tolice!
- Tolice? - tornou Gudrun, querendo aborrecê-lo. - E agora, a pobre pequena está neste momento na cama, morrendo de paixão. Acha você belo como nenhum outro homem. Que coisa engraçada!
- Engraçado?
- Fazia gosto ver vocês dois - prosseguiu em tom de censura complacente, que lisonjeou em Gerald a sua vaidade de macho.
- Francamente, Gerald! Pobre pequena!
- Não fiz mal nenhum a ela...
- Chegava a ser escandalosa a maneira com que você a segurava...
- Era a dança tirolesa - explicou ele, rindo e mostrando os dentes brilhantes.
- Ah... Ah... Ah... - fazia Gudrun, rindo também.
O som de sua voz motejadora ressoava dentro dele, como prolongada por estranhos ecos. Quando adormeceu, parecia encolhido no leito e enrolado na sua própria força.
Gudrun dormiu profundamente, num sono vitorioso. De repente, despertou. As paredes de madeira do quarto iluminavam-se com a luz da aurora, que vinha através da janela baixa. Erguendo a cabeça, descobriu lá embaixo, no vale, a neve ainda pouco visível; parecia mágica, em tons de rosa. Viu também, no sopé da colina, a franja de pinheirinhos e um vulto magro que se movia no espaço fracamente iluminado...
Consultou o relógio. Eram sete horas. Gerald ainda estava profundamente adormecido. E ela já se sentia tão desperta que chegava a se sentir irritada. Que lucidez inflexível e metálica! Ficou estendida na cama, a olhar para ele.
Gerald dormia escravizado à sua derrota, e também ao seu vigor. Mas Gudrun considerava-se ainda mais vencida. Perante ele, recuava sempre amedrontada. Ali estava agora na cama, a contemplá-lo, a imaginar o que aquele homem significava no mundo. Tinha vontade livre, independente, com toda certeza. Lembrou-se da revolução que se fizera em suas minas, em tão pouco tempo. Qualquer problema que precisasse resolver, por mais árduo e difícil, conseguia sempre dominá-lo, disso estava ela também convencida. Se uma ideia se metia em sua cabeça, não descansava ate a colocar em prática. Sabia fazer surgir a ordem em meio à confusão. Em qualquer situação intrincada ele sabia encontrar a solução. Assim era Gerald.
Durante alguns instantes, Gudrun deixou-se arrebatar pelas asas da ambição. Gerald, com a sua força de vontade e o dom de compreender o mundo atual, seria a pessoa indicada para resolver os problemas novos, como o da industrialização na vida moderna. Gudrun não duvidava de que ele, com o decorrer do tempo, efetuaria as reformas que desejasse: reorganizaria, decerto, todo o sistema industrial. Quanto a isso não tinha dúvidas. Para tais coisas era um instrumento maravilhoso: jamais vira outro homem dispor de tamanha energia. Poderia o próprio Gerald não estar compenetrado dessa verdade; Gudrun, porém, sabia-o a perfeição. Necessitava, todavia, de alguém que o empurrasse, que lhe desse o impulso e a consciência da ação. Disto era ela capaz. Casariam, o marido seria deputado do Partido Conservador, e haveria de esclarecer a grande confusão que girava em torno da indústria e do trabalho. Soberbo e destemido, dominador por natureza, sabia que, na vida, como na matemática, todos os problemas são suscetíveis de resolução. E Gerald resolvê-los-ia sem que, nessa tarefa, o movessem interesses de qualquer espécie. Ninguém mais honesto, na realidade.
O coração da moça pulsava rápido: ei-la voando nas asas do entusiasmo, idealizando o futuro. Gerald seria um Napoleão da paz, ou um Bismarck, e ela a sua inspiradora. Tinha lido as cartas de Bismarck e ficara profundamente impressionada com elas. Mas Gerald talvez ainda fosse mais independente, mais intrépido do que o grande estadista.
Enquanto permanecia naquele arrebatamento, banhada pela estranha e falsa luz da esperança numa vida feliz, qualquer coisa se quebrou dentro dela e começou a sentir-se invadida por terrível descrença, como se uma ventania se levantasse de subido e varresse com ela seus bons pensamentos. Tudo agora se transformava em ironia, tudo tinha um sabor sarcástico. E, ao reconhecer a inutilidade de suas ideias e de seus projetos, sentiu a angústia de uma inegável realidade.
Observava-o enquanto ele dormia. Tão belo parecia, que se julgaria constituir um instrumento de perfeição. E, ao espírito dela Gerald significava na verdade um instrumento puro e sobre-humano. Esse caráter ia-se-lhe revelando cada vez mais nítido a ponto de Gudrun desejar ser Deus para se servir de Gerald como de uma ferramenta.
Mas, no mesmo momento, surgiu a pergunta cética: "Para quê". Lembrou-se das mulheres dos mineiros, com os seus oleados e cortinas de renda, mães de crianças com botinhas de amarrar. Pensou depois nas esposas e filhas dos gerentes das minas, com as suas partidas de tênis e seus tremendos esforços por parecerem superiores umas às outras na escala social. Só restava Shortlands, com as suas distinções idiotas e a turba desmiolada dos Criches, e depois Londres, a Câmara dos Deputados, a gente em evidência, ó Deus misericordioso!
Apesar de jovem, Gudrun conhecia a sociedade inglesa. Não pretendia subir na esfera social. Bem sabia - com o perfeito cinismo da mocidade cruel - que elevar-se na sociedade significava apenas mudar de aparência e que a vantagem não era superior à de ter uma moeda falsa de grande valor em lugar de uma moeda falsa de pequeno valor. Não era de lei a moeda com que se avaliavam as diferenças. Contudo, esse mesmo cinismo reconhecia que, num meio em que o dinheiro não é um cunho legal, mais vale um soberano falso do que um farthing de mentira. Mas, tanto aos ricos como aos pobres, Gudrun devotava igual despreza. Ela mesma já começava a troçar dos seus devaneios. Seria tão fácil realizá-los! Mas compreendia muito bem quanto eram ridículos os seus entusiasmos. Que lhe importava que Gerald transformasse em indústria rica aquela velha empresa extenuada? Sim, que lhe importava isso? Uma coisa, ou outra, não passava de insignificância para ela. É claro que, exteriormente não se podia negar interesse, mas, na verdade, para ela, aquilo tudo era cômico! Para ela tudo se transformava em motivo de riso. Inclinou-se sobre Gerald e murmurou compassivamente:
"Ah, meu bem amado, não vale a pena você se cansar tanto. Você é uma pessoa extraordinária, não se gaste assim numa tarefa tão ingrata!"
Enternecia-se por ele, cheia de pena e de tristeza; mas, ao mesmo tempo, a ironia que a levava a fazer esse discurso mudo entristecia-lhe os cantos da boca. Que farsa tudo aquilo. Recordou-se de Parnell e de Katherine O'Shea. Parnell! No fim de contas quem poderia tomar a sério o nacionalismo irlandês? Quem realmente acreditaria na política da Irlanda? Quem realmente acreditaria na da Inglaterra? Quem é que a tomava a sério? Quem se importava que a esfrangalhada Constituição fosse remendada mais uma vez? Quem se ocuparia dos princípios nacionais mais do que do chapéu de coco inglês? Tudo não passava de chapéus velhos, velhos chapéus de coco!
"É assim mesmo, Gerald, meu herói! Em todo caso, evitaremos as náuseas que resultariam de se mexer uma vez mais no caldo corrompido! Seja belo, Gerald, e descanse. Há momentos perfeitos na vida. Acorde, Gerald, acorde, e convença-se de que esses momentos perfeitos ainda existem. Convença-me, pois necessito demais ser convencida!"
Ele abriu os olhos e fitou-a. Ela o saudou com um sorriso enigmático, de uma alegria pungente. O sorriso refletiu-se no rosto de Gerald, que o retribuiu, inconsciente do que fazia.
Gudrun sentiu-se satisfeita por ver que o sorriso que ele esboçara pairava assim nos lábios dele. Lembrou-se que era assim que faziam as criancinhas; sentiu-se radiante, extraordinariamente feliz.
- Conseguiu - disse ela.
_ O quê? - perguntou Gerald, sem entender o que ela queria dizer.
- Convencer-me.
Curvou-se sobre ele e beijou-o com paixão, de tal maneira que ele não sabia o que acontecera com ela. Não lhe perguntou de que é que a tinha convencido, embora fosse esse o seu desejo. Ficara contente pelo fato de ter sido beijado. Parecia que ele lhe tocara o coração, queria também que atingisse todo o ser, ansiava por isso mais do que tudo na vida.
Lá fora alguém cantava com voz viril descuidosa e bela:
Mach mir auf, mach auf du Stolze,
Mach mir ein Feuer von Holze.
Vom Regen bin ich nass,
Vom Regen bin ich nass...
Faz-me, ó vaidosa,uma fogueira /De aparas de madeira / Molhou-me a chuva / Molhou-me a chuva. - nota da tradutora).
Gudrun compreendeu que aquela canção ressoaria dentro dela eternamente, entoada por uma voz viril, descuidada e zombeteira. Marcara uma dos momentos supremos, de angústia e ao mesmo tempo de nervosa satisfação. Ficaria em sua memória, eternamente dentro dela.
O dia raiou belo e azulado. Do alto das montanhas soprava um arzinho leve, fino como uma espada, trazendo consigo poeiras de neve imponderável. Gerald saiu; tinha o rosto sereno e o olhar distraído, como um homem cuja alma está cheia de contentamento. Ele e Gudrun formavam nessa manhã uma unidade perfeita e definitiva, mas sem o saberem, sem se darem por tal. Conduziram um trenó, deixando Úrsula e Birkin segui-los mais atrás.
Gudrun ia vestida de vermelho e azul, vermelhos a blusa e o gorro azuis, a saia e as meias. Mostrava-se alegre sobre a neve, e Gerald, ao lado dela, de branco e cinza, dirigia o veículo. Foram-se afastando, diminuindo na distancia, enquanto subiam a colina íngreme.
Ela própria tinha a impressão de se fundir na brancura envolvente, tornando-se pura como o cristal, destituída de quaisquer preocupações. Quando chegou ao alto, exposta ao vento, olhou em volta e viu muitos picos atrás de outros picos, rocha e neve, tudo azul, elevando-se para o céu. Lembrava-lhe um jardim onde as pontas agudas fossem flores puríssimas que o coração colhesse uma aura. A sua consciência e a de Gerald pareciam reunidas.
Quando desceram, aos solavancos, pela escarpada ladeira, Gudrun agarrou-se muito a ele, experimentado a sensação de que seu corpo se aguçava como se corresse sobre uma pedra de afiar, tão ardente como uma chama. A neve saltava de cada lado do trenó, como faíscas projetadas por uma lamina que se amola; a alvura corria cada vez mais ligeira, a vertente precipitava-se contra ela e Gudrun liquefazia-se como um glóbulo em fusão, dançando, deslizando através da imensidade alvinitente. Ao atingirem o sopé da colina, fizeram um desvio, inclinando-se como se fossem cair, e diminuíram então a velocidade.
Descansaram alguns instantes. Quando, porém, quis levantar-se, Gudrun não conseguiu equilibrar-se. Soltou um grito estranho, voltou-se e agarrou-se a Gerald, escondendo a cabeça no peito dele, quase desmaiando. Apoderou-se do seu espírito um alheamento completo, e ficou, por momentos, abandonada nos braços do rapaz.
- Que é que você tem? - inquiriu este. - Foi muito violento para você?
Ela, porém, nada ouvia.
Quando voltou a si, endireitou o busto e olhou em volta, espantada. Tinha o rosto pálido e as pupilas dilatadas e brilhantes.
- O que foi?
Gudrun fitou-o com aqueles olhos cintilantes que pareciam transfigurados. Depois riu-se, e o riso denotava uma alegria terrível.
- Não! - exclamou, tranquilamente. - Foi o momento mais completo da minha vida.
Continuou a mirá-lo, rindo sempre de forma excessiva, como se estivesse possessa. Gerald sentiu que uma lamina afiada lhe trespassava o coração; mas não fez caso nem deu a entender.
Tornaram a subir a encosta, e lançaram-se outra vez lá de cima, através da chama branca, esplendidamente... Gudrun soltava risadas, com os cabelos enfeitados de flocos níveos. Gerald manobrava o trenó com precisão; sabia-se capaz de o dirigir sem errar. Admitia que aquele carrinho-voador representava a exteriorização de sua vontade; bastava-lhe oscilar um braço e o movimento do veículo confundia-se como dele próprio. Exploraram as outras vertentes, em busca de novos declives. Gerald tinha a impressão de que haviam de encontrar um melhor; e realmente acharam uma descida rápida e extensa que ia findar na base da colina, junto a um grupo de árvores. Era perigosa, disso não tinha dúvida. Mas o rapaz não ignorava que poderia comandar o trenó com um simples movimento dos dedos.
Os primeiros dias passaram-se em êxtase de ardor físico, deslizando ora em trenó ora em patins, movendo-se com intensas velocidades numa atmosfera de luz branca; e tudo aquilo parecia ultrapassar a própria vida e arrastar a alma para além, numa correria sobre-humana e abstrata entre a neve imperecível...
Os olhos de Gerald tornavam-se estranhos e duros: e, quando ele seguia sobre as quilhas, dir-se-ia antes uma aparição fatal e temerosa e não um homem; os músculos elásticos eram perfeitos, a trajetória quase aérea, o corpo projetava-se em pleno voo, sem espírito, sem alma, num arranque impetuoso e impecável.
Felizmente, certo dia, começou a cair neve e tiveram de ficar dentro de casa; aliás - como notou Birkin - acabariam por perder as faculdades racionais e ver-se-iam obrigados a exprimir-se por grito e guinchos como estranhos animais polares, de uma espécie desconhecida.
À tarde, Úrsula estava conversando com Loerke, ambos sentados na Reunionsaal. Este parecia sempre aborrecido. Mas agora recuperara a vivacidade e mostrava-se cheio do perverso humor que lhe era peculiar.
Úrsula, no entanto, achava que ele devia ter qualquer motivo de preocupação. O companheiro, o rapaz forte, louro e elegante, andava sério, também, indo e vindo como se o tivessem feito prisioneiro e isso o revoltasse.
Loerke mal havia falado a Gudrun. O amigo, pelo contrário, testemunhara-lhe sempre as maiores atenções e deferências. Gudrun, por seu lado, desejaria aproximar-se de Loerke, que era escultor; gostaria de saber o que pensava a respeito da sua arte. Além disso, o aspecto do homem interessava-a. Tinha um ar de abandono em toda a sua pessoa, e isso despertava a curiosidade, assim como aquele olhar de criatura já muito vivida; além disso, demonstrava tanto amor à solidão, que Gudrun adivinhava nele um artista. Falava, às vezes, como um papagaio, fabricava trocadilhos maliciosos, em geral muito inteligentes, embora nem sempre felizes. E Gudrun descortinava-lhe nos olhos castanhos de gnomo o reflexo melancólico da miséria inorgânica que jazia no fundo de todos aqueles disfarces.
Fisicamente ele parecia um garoto. Loerke nem procurava disfarçar essa impressão. Usava constantemente roupa simples de lã e calções. Tinha pernas magras, mas não se importava em ocultá-las, o que era para admirar em um alemão. Nunca procurava a simpatia de ninguém, por menor que fosse; entretinha-se consigo mesmo apesar da sua aparente jovialidade.
O companheiro, Leitner, era grande desportista, robusto de corpo e possuidor de grandes olhos azuis. Loerke corria de trenó ou de patins, mas não tirava disso a menor satisfação. As narinas finas e delgadas, como as de uma garota de rua, estremeciam-lhe de desdém quando ele via os exercícios de Leitner. Era evidente que aqueles dois homens que tinham viajado e vivido juntos, na mais estreita intimidade, haviam atingido a fase do ódio recíproco. Leitner detestava Loerke com uma raiva impotente e humilhada, e este tratava aquele com desprezo e sarcasmo. Não tardaria muito a haver uma separação.
Atualmente, já pouco privavam um com o outro. Leitner procurava outras pessoas e Loerke permanecia quase todo o tempo sozinho. Quando saía, colocava na cabeça um gorro à moda da Vestfália de veludo castanho, com abas que desciam pelo rosto e tapavam os ouvidos, dando-lhe o aspecto de um coelho orelhudo ou de um gnomo. Tinha o rosto moreno e corado, pele brilhante, seca, parecendo enrugar-se na mobilidade das expressões. Os olhos vivos, castanhos, redondos como os de um coelho, estranhos, desconfiados, denotando depravação consciente, ardiam com uma chama sobrenatural. Sempre que percebia o desejo de Gudrun em lhe falar, afastava-se sem nada dizer olhando para ela com as pupilas sombrias e verrumantes, sem nunca estabelecer as mais simples relações de cortesia. Fizeram até sentir que o francês de Gudrun, demasiado lento e o seu alemão arrastado eram, para ele desagradáveis. Quanto a ele mesmo, falava um inglês estropiado e não fazia o menor esforço para aperfeiçoá-lo. Contudo, entendia muita coisa do que ela dizia. Gundrun, ofendida, deixou-o de lado.
Naquela tarde, ela entrava na sala, vinda da neve, no momento em que Loerke e Úrsula conversavam. Os cabelos dele, finos e negros trouxeram à lembrança de Gudrun a ideia de um morcego, talvez por serem ralos no alto da cabeça redonda e irrequieta, e quase invisíveis nas têmporas. Estava sentado, com o dorso pendido para frente, como se abrigasse também a alma de um morcego. Gudrun percebeu que fazia qualquer confidência com vontade decerto incompleta e rancorosa. Ela se aproximou, sentando-se ao lado da irmã.
Loerke fitou-a e desviou os olhos, como se não a tivesse notado. Na realidade a moça interessava-o profundamente.
- É curioso, Prune, - disse Úrsula, voltando-se para a outra - Herr Loerke está armando um enorme friso destinado a uma fábrica de Colônia para uma parede exterior.
Gudrun observou-o, reparando-lhe nas mãos magras, nervosas, morenas, tenazes; assemelhavam-se a presas, a garras; não pareciam humanas.
- De que tipo? - perguntou ela.
- Aus was? - repetiu Úrsula.
- Granit - elucidou o artista...
Seguiu-se uma série de perguntas e respostas lacônicas, de profissional a profissional.
- Que espécie de relevo?
- Alto-relevo.
- De que altura?
Gudrun achava interessante aquele trabalho: enorme friso de granito para uma imensa fábrica em Colônia. Conseguiu dele alguns esclarecimentos quanto a pormenores. O desenho representava uma feira com camponeses e operários em perfeita orgia, bêbados e ridículos nos seus trajes modernos uns dormindo vertiginosamente, outros boquiabertos em frente as barracas, ou beijando-se e rolando abraçados no chão, ou oscilando dentro de barcos, ou fazendo pontaria com espingardas, tudo num movimento frenético e caótico.
Houve discussões de ordem técnica. Gudrun estava impressionada.
- É esplêndido trabalhar para uma fábrica dessas! - exclamou Úrsula. - O aspecto geral do edifício é bonito?
- É, sim - retorquiu ele. - O friso fará parte do conjunto arquitetônico. É qualquer coisa de colossal.
Depois Loerke endireitou-se na cadeira, encolheu os ombros e prosseguiu:
- A escultura e a arquitetura não devem separar-se. Já passou o tempo da escultura como adorno e da pintura como enfeite. Na realidade, a primeira faz parte sempre da concepção do arquiteto. E, desde que as igrejas são hoje simples museus, e a indústria vem ao nosso encontro, é claro que precisamos aplicar a nossa arte aos edifícios industriais, que são os nossos Partenões... Ecco!
Úrsula meditava.
- O que me parece - disse ela - é que não há necessidade de serem tão soturnas essas construções.
Loerke respondeu animadamente.
- É isso mesmo! Não só não é necessário que esses templos do trabalho sejam feios, como é urgente que a sua fealdade não arruíne o fim em vista. Os homens, daqui por diante, deixarão de se sujeitar a semelhantes horrores. Com a continuação do mau gosto, a vontade deles desapareceria, atingindo o próprio trabalho. Pensariam que este fosse tão feio como os prédios e máquinas, e o próprio esforço seriam englobados no mesmo esquema. E, contudo, as máquinas e o trabalho são belos, doidamente belos. Todavia, quando o operário não quiser trabalhar por achar que isso lhe repugna, teremos o fim da civilização. Preferirá morrer de fome. Usará o martelo para destruir tudo; sim, poderíamos chegar a esse ponto. E, afinal, chegou a oportunidade de construirmos belas fábricas, belas casas para as máquinas.
Gudrun só conseguiu compreender parte do discurso. Sentia-se envergonhada por não ter podido captar tudo.
- Que disse ele? - perguntou ela à irmã. Esta fez um resumo, gaguejando na tradução. Loerke observava o rosto de Gudrun, curioso de descobrir o efeito das suas doutrinas.
- E acredita - disse então a moça - que a arte possa ser útil à indústria?
- A arte interpreta hoje a indústria como outrora o fez quanto à religião - respondeu ele - E a sua feira é uma interpretação?
- Sim, senhora. Que faz o homem quando se encontra numa feira dessas? Ele se desforra do trabalho. Em lugar de obrigar as máquinas a trabalhar, são elas que o obrigam ao movimento, pelo hábito adquirido. Possui no próprio corpo o impulso mecânico...
- Neste caso não há senão trabalho mecânico, na vida do operário. - disse Gudrun.
- Trabalho e nada mais! Concordou ele, inclinando-se para frente. Os olhos eram dois pontos negros onde brilhavam luzes finas como agulhas. - Não é mais do que isso: sujeição à máquina, ou prazer do movimento que esta lhe transmitiu. Movimento, sempre movimento. Se já tivesse trabalhado para comer, saberia então qual é o deus que põe e dispõe...
Gudrun estremeceu, corado. Tinha, não sabia por que, vontade de chorar.
- Não, nunca trabalhei para matar a fome. Mas, de qualquer forma, sempre tenho trabalhado.
- Travaillé? Lavorato? E Che lavoro? Che lavoro? Quel travail est-ce que vous avez fait? - Trabalhado? Trabalhado? E que trabalho? Que trabalho? Que trabalho fez? - nota da tradutora).
Falava uma mistura de italiano e francês, empregando instintivamente uma língua estrangeira quando se dirigia a Gudrun. Acrescentou, ainda sarcástico:
- Mas não trabalhou como se trabalha por esse mundo a fora!
- Sim, trabalhei, e ainda o faço, mas para as minhas despesas pessoais.
Loerke ficou silencioso, olhou-a fixamente, e depois deixou o assunto. Aquela mulher lhe parecia insignificante
- E o senhor - interveio Úrsula - tem trabalhado tanto assim?
O outro mirou-a com desconfiança.
- Sim - replicou, com uma espécie de insolência. - Sei o que é ficar três dias deitado na cama por não ter nada o que comer.
Gudrun contemplava-o com os olhos sérios e muito abertos como quem extraísse a medula dos ossos juntamente com aquela confissão. A natureza de Loerke era refratária a tais depoimentos, mas o olhar grave e profundo de Gudrun parecia abrir-lhe válvulas nas veias, e ele, involuntariamente, continuava a falar:
- Meu pai não gostava de trabalhar. Já não tínhamos mãe. Vivíamos na Áustria polaca. E de quê? Com o que nos pudéssemos arranjar... Quase sempre no mesmo quarto com três outras famílias, cada uma no seu canto... Ah! Ah! Tinha eu dois irmãos e uma irmã... Às vezes uma mulher junto do meu pai. Sempre foi homem independente, à sua maneira... Não trabalhava para ninguém... Ficava revoltado com isso; não conseguia.
- E de que viviam? - perguntou Úrsula.
Loerke fitou-a, e depois, voltando-se subitamente para Gudrun.
- Está compreendendo?
- Mais ou menos.
Os olhos dos dois se encontraram por instantes. Ele desviou os seus. Não pretendia dizer mais nada.
- Como é que se tornou escultor? - volveu Úrsula.
- Como me tornei escultor? - Suspendeu a frase. - Dunque - Mudando de tom: - Cresci... Comecei a furtar coisas do mercado. Mais tarde comecei a trabalhar, marcava com o sinal da casa as peças que iam ao forno. Era numa fabrica de cerâmica. Comecei então a modelar com o barro. Até que por fim achei que era demais. Fiquei em casa e não me apresentei na oficina. Fui a pé no caminho de Munique... depois para a Itália... mendigando, mendigando sempre.
"Os italianos foram muito bons para mim, bons e prestativos. De Bozen ate Roma encontrava quase sempre lugar onde passai a noite e comer. Camas de palha, em casa de camponeses... Estimo os italianos de todo o meu coração. Dunque, adesso... agora, ganho mil libras por ano, às vezes duas mil.
Pousou o olhar no chão e sua voz foi-se extinguindo no silêncio.
Gudrun examinava sua pele fina, delgada, brilhante, esticada na fronte e queimada de sol; admirava-lhe também o cabelo ralo e o bigode rude, espesso, semelhante a uma escova, cortado rente por cima da boca mal definida, de grande mobilidade.
- Que idade tem? - perguntou a moça.
Ele mirou-a, surpreendido.
_ Wie alt - repetiu. Ficou hesitante. Era evidente que preferiria ocultar essa circunstância biográfica.
- E a senhora? - perguntou.
- Tenho vinte e seis anos.
- Vinte e seis! - Contemplou-a nos olhos e calou-se. Depois disse:
- Und Ihr Herr Gemahl, wie alt is er? - E o seu marido, que idade tem? - nota da tradutora).
- Quem? - inquiriu Gudrun.
- Seu marido - explicou Úrsula, em tom irônico.
- É coisa que não tenho - murmurou a moça, em inglês. Todavia, respondeu em alemão:
- Trinta e um anos.
Mas Loerke observava-a atentamente com os seus olhinhos redondos misteriosos, desconfiados. Notava-lhe qualquer coisa de semelhante a si mesmo. Era, de fato, um daqueles indivíduos sem alma que encontra o seu companheiro numa criatura humana. Essa descoberta, porém, fazia-o sofrer. Gudrun, por sua vez, sentia-se fascinada como se um ser estranho - coelho, morcego, lobo marinho tivesse começado a falar com ela; mas, ao mesmo tempo percebia que o homem estava inconsciente daquilo do tremendo poder de compreensão que seria capaz de ter sobre ela, de lhe surpreender os próprios pensamentos. Não conhecia, realmente a força de que dispunha, nem adivinhava quanto com aqueles olhos redondos, perscrutadores e enigmáticos, poderia ler o que se passava dentro dela, descobrir-lhe os segredos, conhecer-lhe, enfim, a alma. Desejava apenas que aquela moça fosse tão somente o que era, e estava persuadido de que tinha disso uma ideia exata, derivada, de forma sinistra, do seu subconsciente e desprovida de ilusões ou de esperanças.
Quanto a Gudrun, parecia ver em Loerke a própria nudez da vida. Todos os outros seres possuíam as suas ilusões ilusão do passado futuro. Ele, porém, com perfeito estoicismo, vivia sem futuro nem passado, isento da menor ilusão. No fim de contas não se enganava a respeito de si mesmo; em ultima análise não se importava com coisa alguma, nada o incomodava nem fazia a menor tentativa para obter solidariedade. Existia como pura vontade sem compromissos, estóica e momentânea. De seu ele só tinha o trabalho.
Era também curioso notar como seduziu Gudrun o fato de conhecer a miséria e degradação dos seus próprios anos de existência. Nada mais insípido para ela do que a ideia do homem bem nascido que segue os trâmites normais através do ginásio e da universidade. Este filho do nada despertara-lhe violenta simpatia; achava o feito da verdadeira matéria subterrânea da vida. Ninguém como ele mergulhara tão fundo.
Úrsula também se sentia atraída. As duas irmãs consagravam-lhe uma espécie de homenagem. Mas, para a primeira havia momentos em que o considerava inferior, vulgar e falso.
Tanto Birkin como Gerald antipatizavam com o escultor; um exasperava se o outro fingia desdenhosamente nem sequer o ver.
- Que acham as mulheres de tão atraente naquele fedelho? - perguntava Gerald.
- Só Deus o sabe - respondeu Birkin. - A menos que haja algum feitiço com que ele as atraia e domine.
Gerald arregalou os olhos, embasbacado.
- Um feitiço com que ele as atraia? - repetiu.
- Decerto - volveu Birkin. - É uma criatura endemoninhada que vive como um criminoso. As mulheres precipitam-se para ele como uma corrente de ar atraída pelo vácuo.
- É estranho que elas façam isso.
_ A verdade é que as enlouquece. Exerce sobre as mulheres a fascinação da piedade e da repugnância, esse monstrinho repelente.
Gerald ficou silencioso, a meditar.
- Que procuram as mulheres, afinal de contas? - indagou ele.
Birkin encolheu os ombros.
- Só Deus o sabe! Cobrirem-se de lama, ao que me parece. É como se sentissem prazer em atravessar um cano de esgoto só ficando satisfeitas ao chegarem ao fim.
Gerald contemplou a neve fina e brumosa que descia la fora. Naquele dia tudo estava escuro, terrivelmente enevoado.
- E o que é que encontram no fim? - inquiriu ele.
Birkin abanou a cabeça.
- Nunca cheguei lá, de maneira que não sei. Pergunte a Loerke que deve saber mais sobre isso do que nos todos.
- Mas a que é que você se refere? - perguntou Gerald, com certa irritação.
Birkin suspirou. Enrugou a testa, aborrecido.
- No ódio da sociedade explicou. - Vive como uma ratazana num rio de corrupção, precisamente no lugar em que este transborda para os poços sem fundo. Tem ido mais longe do que nós. Detesta o ideal de forma intensa. Odeia-o profundamente, embora o ideal ainda o impressione. Suspeito que é judeu, pelo menos em parte.
-É provável! - concordou Gerald.
- Ele é um cancro de negação, que rói raízes da vida.
- Mas por que se ocupam tanto dele?
_ Porque detestam também o ideal, no fundo da alma. Gostam de explorar os esgotos, e ele é a ratazana mágica; vai-lhe mostrando o caminho.
Gerald olhou outra vez para a bruma, lá fora, produzida pela neve.
- Não percebo muito bem a sua linguagem, Rupert. - declarou com voz triste e resignada. - Quanto a elas, acho que possuem um gosto muito esquisito.
- Acho que o nosso não é melhor - atalhou Birkin - a diferença está em que nós pretendemos mergulhar, de vez numa espécie de arrebatamento, e ele deixa-se ir ao sabor da corrente, ou melhor, das imundícies.
Entretanto Úrsula e Gudrun esperavam outra oportunidade de conversar com Loerke. Não valia a pena fazê-lo em presença dos homens. Não seriam capazes de entreter um relacionamento com o escultor misantropo. Era mister que se encontrassem a sós com ele. E o artista preferia que Úrsula estivesse presente para servir de elemento de ligação com Gudrun.
_ Não faz senão escultura arquitetônica? - perguntou-me.
- Agora não. Mas tenho feito de tudo, menos retratos. Nunca os fiz; muitas outras coisas, porém...
- De que espécie?
Calou-se alguns instantes, depois levantou-se e saiu da sala. Voltou pouco depois com um papel enrolado, que entregou a Gudrun. Esta abriu-o e viu que era a reprodução fotográfica de uma estatueta, assinada por F. Loerke.
- Aqui tem um trabalho do início de minha carreira; não é nada arquitetônico. Antes, do gênero popular.
A estatueta representava uma moça nua, pequenina, graciosa, montada num enorme cavalo em pelo. A jovem era delicada, como uma flor em botão. Estava de lado sobre o dorso do animal com o rosto escondido nas mãos, como se sentisse vergonha e repugnância. O jeito do corpo denunciava abandono. Os cabelos curtos - que deviam ser louros - caiam-lhe no rosto e ocultavam-lhe parte das mãos.
Os braços e pernas eram finos e juvenis; estas, ainda mal formada, indicavam o começo de perigosa adolescência e tombavam, infantilmente, no flanco do cavalo majestoso. Fazia pena vê-la assim, com os pés por cima do outro, como se os quisesse ocultar. E ali estava, nua, em cima do corpo nu do animal.
O cavalo mantinha-se na posição largada, em cujo impulso todo ele se estendia. Era maciço e magnífico, cheio de força concentrada. Tinha o pescoço bem feito e terrível como uma foice, e rígidos e enérgicos os músculos.
- Que tamanho tem? - A voz parecia acusar indiferença, tanto ela persistia em afetar um tom desprendido e natural.
- Que tamanho? - repetiu o artista, reclamando-a com a vista. - Sem o pedestal, tem este...
Gudrun examinou Loerke com atenção. Os gestos rápidos e bruscos daquele homem denotavam certo desdém e calculada frieza. Ao mesmo tempo ele a observava também, fixamente. Não perdera o domínio que costumava exercer.
- De que é feita a estatueta? - inquiriu ela, erguendo a cabeça e encarando-o fria e calculadamente.
- Bronze - elucidou. - Bronze patinado.
- Bronze patinado repetiu - Gudrun, aceitando o desafio, muito calma. Estava imaginando os membros delicados, suaves, infantis da moça tornados frios e lisos no bronze verde.
- É muito belo - murmurou, fitando-o, numa homenagem cheia de simplicidade.
Loerke fechou os olhos, e depois abriu-os para os dirigir em outro sentido, triunfante.
- Por que fez o cavalo tão rígido? - interveio Úrsula. Tem a rigidez de um bloco.
_ Rígido? - tornou ele, pondo-se logo em guarda.
- Sim. Veja como mantém a rudeza e a brutalidade do bloco. Os cavalos são animais sensíveis, nervosos. Realmente.
Loerke encolheu os ombros e deixou cair os braços num gesto de indiferença, como que para dar a entender que ela não passava de amadora, ignorante e impertinente.
- Wissen Sie - disse em tom sossegado de condescendência insolente - este cavalo é uma figuração, uma parte de um todo. Está integrado na obra de arte; não se trata do retrato deste ou daquele cavalo a quem se dá um torrão de açúcar, percebe? É o pormenor de um conjunto. Fora deste trabalho, não tem nenhuma significação.
Úrsula, furiosa por ter sido tratada dessa maneira ofensiva, de haut em bas, com que ele descera das alturas da sua arte esotérica para o plano rasteiro do amadorismo em que ela jazia, encheu-se de rubor e levantou a cabeça.
- Em todo o caso - declarou - não deixa de ser um cavalo. O outro tornou a encolher os ombros.
- Como quiser; uma vaca, certamente, é que não é Gudrun, nesta altura, intrometeu-se na contenda, excitada e muito vermelha. Queria pôr termo àquela louca insistência da irmã em dar a sua opinião.
- Que quer dizer com essa observação de que isto não deixa de ser um cavalo? - exclamou, voltada para Úrsula. - Que é que você entende por um cavalo? Quer referir-se a ideia que tem na cabeça e que gostaria de ver representada? Mas pode haver outra ideia, inteiramente diversa. Você pode chamá-lo de cavalo ou do que quiser. Estamos também no direito de dizer que o seu cavalo não é igualmente um cavalo, que é um produto da sua imaginação.
Úrsula hesitou, desconcertada. Depois encontrou as palavras necessárias para responder:
- Mas por que teve ele a ideia de fazer assim o cavalo. É claro que compreendo a intenção: trata-se do próprio retrato do autor, assim interpretado...
Loerke resfolegou de cólera.
- O meu próprio retrato? - exclamou, com um riso escarninho. - Wissen Sie, gnädige Frau - Saiba, minha senhora... - nota da tradutora), que isto é Kunstwerk, ou seja uma obra de arte. Apenas obra de arte, sem ser retrato de ninguém, absolutamente de ninguém. Não tem nada que ver com o que quer que seja, não tem relação com as coisas triviais nem semelhantes, nem parentesco de qualquer ordem. São planos da existência diferentes, muito distintos; e traduzir um na linguagem do outro é rematada loucura, é querer confundir as coisas, lançar em tudo a perturbação. Ouça: não deve misturar o mundo cotidiano e banal com o mundo da arte absoluta. Não tem o direito de fazer isso.
- É claro - acrescentou Gudrun, numa espécie de recapitulação - As duas coisas permanecem totalmente diferenciadas, sem terem nada uma com a outra. Eu e a minha arte nada temos em comum. Eu estou num pólo e ela está no outro.
Tinha as faces coradas pelo ardor da discussão. Loerke estava sentado, com a cabeça pendida, constrangido olhou de repente para a moça, de um modo quase receoso, e murmurou.
- Ja, so ist, so ist es - Sim, é isso, é isso. - nota da tradutora).
Depois daquele sermão, Úrsula recolhera-se ao mutismo, aborrecidíssima. O seu desejo era arrasar a ambos. Mas, pouco depois, replicou, pausadamente:
- Não vejo o menor valor no que você acaba de dizer. O cavalo é mesmo um retrato do íntimo dele, na sua animalidade e a pequena deve ser qualquer moça que ele tivesse amado e torturado, atirando-a fora quando se cansou dela o homem fitou-a e sorriu com desprezo. Não se dignou dar-lhe resposta.
Gudrun também nada disse; sua indignação tornara-se desdenhosa. Úrsula era um profano insuportável, atrevendo-se a calcar terreno que os próprios anjos não pisavam. Mas não havia remédio senão tolerar os imbecis, embora não fosse agradável.
A outra, porém, insistia:
- Quanto a esse mundo de arte e ao mundo da realidade, vocês fazem essa separação pela impossibilidade que tem de saber ao certo quem são. Nem podem conceber como escondem a dureza, a brutalidade, a rigidez; e então dizem: é o mundo da arte! Ora, o mundo da arte é apenas o espelho do outro, e vocês estão muito longe de se verem nele.
Mostrava-se destemida. Empalidecera e toda ela tremia. Gudrun e Loerke continuavam imóveis aborrecidos com o incidente. Gerald que chegara no começo da discussão, ficou também a olhar para ela, reprovador e hostil. Achava aquela atitude pouco digna tinha sido uma nota de mau gosto no esoterismo que confere tanta distinção às criaturas humanas. Tomou os partidos dos outros dois, e todos três principiaram a desejar que ela se fosse embora. Úrsula, porém, conservava-se onde estava, sem nada dizer. Chorava intimamente, tinha as mãos trêmulas e amarrotava o lenço que tinha nas mãos.
Os outros mantinham um silêncio mortal, a espera que se desfizesse a atmosfera desagradável produzida pela intervenção de Úrsula. Por fim Gudrun perguntou, numa voz que afetava indiferença e naturalidade, como se resumisse uma conversa sem importância:
- A moça era modelo?
- Nein, sie war kein Modell. Sie war eine kleine Malscnulenn - Não, não era modelo. Era uma pequena que estudava pintura - nota da tradutora).
- Uma aluna de Belas-Artes! - exclamou Gudrun.
A situação se revelava agora claramente. Imaginava a estudante com o seu corpo ainda mal formado, ignorante e descuidada da vida, com os cabelos louros cortados, caindo-lhe pelo rosto ate ao pescoço e dobrando-se levemente na nuca; via também Loerke, escultor de renome, de quem a mocinha se recusava fazer-se amante, por ser bem educada e de boa família... Como conhecia bem tudo aquilo! Dresden, Paris, Londres, que diferença havia entre essas cidades? Todas iguais.
- Onde está ela agora? - indagou Úrsula.
Loerke fez um gesto de quem se desinteressa, querendo significar a sua máxima indiferença.
- Isso foi há seis anos - explicou. - Deverá ter uns vinte e três anos agora, pouco mais.
Gerald tomara a reprodução e a examinava. O trabalho do escultor o interessava também. E leu no pedestal que a obra se intitulava "Lady Godiva".
- Mas isto não é Lady Godiva - disse ele, sorrindo. - Era mulher de meia-idade, casada com um conde qualquer e tinha os cabelos tão compridos que até se cobriu com eles.
- À moda de Maud Allan - atalhou Gudrun, fazendo um trejeito cômico.
- Por que Maud Allan? - volveu Gerald. - Não seria como eu disse? Sempre pensei que a lenda fosse essa.
- Sim, querido Gerald, estou convencida de que você decorou a lenda exatamente como é.
Riu-se com uma expressão ao mesmo tempo carinhosa e vagamente divertida.
- É claro, prefiro admirar a mulher do que os cabelos... - replicou Gerald, bem disposto.
- Acredito - disse Gudrun, ainda irônica.
Úrsula levantou-se e desapareceu, deixando junto os três. Gudrun recebeu de novo a fotografia das mãos de Gerald e ficou a contemplá-la cuidadosamente.
- Já se sabe - disse ela, começando agora a brincar com o escultor - que você compreendeu bem a sua Malschülerin...
O outro deu de ombros e ergueu as sobrancelhas, condescendente.
- A pequena? - perguntou Gerald, apontando para a reprodução.
Gudrun, sentada, descansara o papel sobre os joelhos. Encontrou o olhar de Gerald e fitou-o com tal intensidade que ele se sentiu encantado.
- Você não acha que ele a compreendeu bem? - interrogou com ironia e bom humor. - Não reparou nos pés? São adoráveis, lindos, delicados! Maravilhosos!
Lentamente, dirigiu o olhar para Loerke, de maneira inflamada, escaldante. A alma do artista recebeu reconhecida aquela prova de admiração. Dir-se-ia que havia tomado uma atitude de superioridade e adquirido maior importância.
Gerald examinou os pés da menina: estavam voltados para o mesmo lado, cobrindo-se quase um ao outro, como que envergonhados e cheios de medo. Ficou assim muito tempo a contemplá-los; depois, sem grande pressa, pôs de lado a fotografia. Sentia-se acabrunhado.
- Como se chamava ela? - perguntou Gudrun ao escultor.
- Annette von Weck - respondeu o artista, como quem se recorda. - Ja, sie war hübsch. Era bonita, mas enfadonha. Insuportável! Incapaz de ficar um minuto sossegada. Tinha vontade de lhe dar bofetadas e ela, chorando, servia então de modelo, durante cinco minutos.
Loerke pensava apenas no seu trabalho; era a única coisa que lhe interessava.
- O senhor chegava a bater nela?
- Sim, cheguei, - respondeu muito naturalmente - e com força. Era preciso. De outra forma não se conseguia trabalhar.
Gudrun examinou-o por uns momentos com os seus olhos grandes e sombrios. Dir-se-ia penetrar-lhe até ao fundo da alma. Depois, silenciosamente, fitou o chão.
- Como é que lhe ocorreu uma Godiva tão menina? - disse Gerald. - Tão miúda, e nesse cavalo... muito criança para montar nele.
Os músculos do rosto de Loerke contraíram-se involuntariamente.
- Não gosto delas nem maiores nem mais velhas. São belas aos dezesseis, aos dezessete, aos dezoito anos. Depois disso não me servem mais.
Houve um instante de silêncio.
- Por que não? - indagou Gerald.
Loerke encolheu os ombros.
- Não as acho interessantes, nem belas... Não convém ao meu trabalho...
- Quer dizer que, depois dos vinte anos, a mulher deixa de ser bonita? - insistiu Gerald.
- Para mim, deixa. Antes dos vinte, é pequena fresca, delicada, leve. Depois disso, torne-se no que se tornar, já não me diz nada. A Vênus de Milo era uma matrona. São todas assim.
- Então, depois dessa idade, as mulheres perdem o valor para o senhor?
- Não me servem, não prestam para a minha arte - repetiu o escultor, impaciente. - Não as considero bonitas.
- Você é um epicurista - sentenciou Gerald, com um risinho sarcástico.
- E a respeito dos homens? - perguntou, de súbito, Gudrun.
- Esses interessam em qualquer idade - respondeu Loerke. - O homem deve ser vigoroso, dominador, velho ou moço, não importa... uma vez que tenha estatura, um tanto de maciço e uma figura estúpida.
Úrsula tinha saído e mergulhara num ambiente de neve, recentemente caída. Mas a brancura cintilante parecia magoá-la ate lhe causar dores; sentia o frio a estrangular-lhe a alma, lentamente. A cabeça estava vazia e aturdida.
De repente, experimentou um desejo feroz de se ir embora. A ideia de que podia partir para outro lugar ocorreu-lhe como que por milagre. Achava-se condenada naquele mundo de neve perpétua; era como se não houvesse salvação!
Agora, súbita e miraculosamente, lembrou-se que, para além, numa altitude menor, jazia a terra escura e fértil; que, para o sul, havia terrenos sombreados de laranjeiras e ciprestes, e oliveiras cinzentas, e robles erguidos para o céu azul com a sua copa frondosa. Milagre dos milagres! Esta paisagem de montanhas geladas e silenciosas não se estendia por todo o planeta. Podia-se abandoná-la. Podia-se fugir dali!
Se o milagre se realizasse imediatamente! Bem gostaria ela de acabar com aquele inferno de neve, com aquelas terríveis montanhas imóveis e glaciais. Ansiava por tornar a ver a terra sombria, respirar o aroma do humo fecundante, ver a vegetação perseverante de outros climas de inverno, sentir os efeitos do sol nos rebentos das plantas.
Voltou assim para a hospedaria, animada da melhor esperança.
Birkin lia, já deitado.
- Rupert, - gritou ela, precipitadamente, para o marido - quero ir-me embora.
O outro volveu-lhe um olhar vagaroso.
- Você quer? - perguntou em voz calma.
Úrsula sentou-se ao lado dele e passou-lhe os braços em volta do pescoço. Admirava-se de que o marido não demonstrasse maior surpresa.
- E você não quer? - perguntou inquieta.
- Não tinha pensado nisso. Mas é claro que sim.
A mulher pôs-se de pé, num movimento brusco.
- Detesto - declarou ela - detesto a neve, que não e natural como não é natural a luz que nos cerca, nem este sortilégio fantástico. Tudo quanto sentimos aqui é contra a natureza.
Birkin manteve-se calmo, pensativo e sorridente.
- Pois bem - concordou ele - podemos partir amanhã mesmo. Vamos a Verona, seremos Romeu e Julieta e sentar-nos-emos no anfiteatro. Sim?
Ela ocultou o rosto no ombro dele, intimidada, perplexa. Rupert era tão condescendente!
_ Sim - repetiu suavemente, como que aliviada. Parecia-lhe que a alma se enchia de júbilo, vendo-o assim tão descuidado. - Que bom sermos Romeu e Julieta! Meu amor! - acrescentou.
- Mas - replicou o marido - sopra dos Alpes, sobre Verona, um frio tremendo. Continuaremos com o cheiro da neve no nariz.
Úrsula sentou-se e fitou-o.
- Sente-se contente em partir? - perguntou-lhe apreensiva.
Os olhos de Birkin mantinham-se risonhos e penetráveis. Úrsula descansou a face no pescoço dele e abraçou-o implorando:
- Não se ria de mim! Não se ria de mim!
- Por quê? Que sucedeu? - Pôs-lhe os braços em torno da cintura e continuou a rir.
- Porque não quero que trocem de mim - murmurou ela.
O marido soltou uma gargalhada e beijou-lhe o cabelo fino e sedoso, perfumado.
- Gosta de mim? - indagou a mulher com gravidade, carregando o semblante.
- Gosto - respondeu Birkin, sempre jovialmente.
Ela, de repente, estendeu-lhe a boca, para que ele a beijasse. Tinha os lábios rijos, carnudos e trêmulos. Os do marido eram brandos, delicados. Demorou-se este uns momentos no beijo que lhe deu; e uma sombra de tristeza perpassou-lhe pelo espírito.
- A sua boca é tão rija - disse, como se a repreendesse levemente.
- E a sua é doce e submissa - tornou ela, contente.
- Mas por que é que você aperta tanto os lábios, Úrsula?
- Não se incomode - respondeu com vivacidade. É o meu jeito.
Sabia que Rupert a amava. Tinha a certeza disso. Entretanto, não gostava que ele a dominasse, nem tolerava que lhe fizesse muitas perguntas. Preferia abandonar-se a delícia de ser amada, mas desconfiava que o marido, apesar da alegria que lhe vinha do fato de Úrsula abandonar-se a ele, guardava no intimo uma vaga melancolia. Consentindo em ser sua mulher não podia, no entanto ser a própria, não se atrevia a revelar-se-lhe em toda a sua nudez, em por de parte a natural reserva nem em depositar nele absoluta confiança. Entregava-se-lhe, era certo, apropriava-se de Rupert e em Rupert encontrava inteira satisfação; naquele homem se achava a verdadeira felicidade. E contudo, não se sentiam inteiramente ligados. Mas estava feliz, gloriosa, independente, cheia de esperança e de liberdade. Rupert, por enquanto, mostrava-se tranquilo, meigo e paciente.
Fizeram os preparativos para irem embora no outro dia. Foram primeiro ao quarto de Gudrun, onde esta e Gerald acabavam de se vestir para descer.
_ Prune - disse Úrsula, é possível que partamos amanhã. Já não posso tolerar a neve. Estraga-me a pele e o coração.
- Sente-se mal? - perguntou a irmã, surpreendida. - Acredito que prejudique a pele; é terrível. Mas, quanto ao coração, suponho que seja admirável.
- Para mim, não. Pelo contrário, ele ofende.
- Engraçado! - exclamou Gudrun.
Houve um pequeno silêncio. Úrsula e Birkin perceberam que os outros ficavam aliviados com a ideia de partida deles.
_ Vão para o sul? - perguntou Gerald, cuja voz denotava certo constrangimento.
- Vamos - asseverou Birkin, desviando a conversa.
Havia ultimamente, entre os dois homens, uma estranha e inexplicável hostilidade. Birkin mostrava-se, de modo geral, sombrio e indiferente; era paciente, mas distraído, desde que chegara ao estrangeiro, ao passo que Gerald, pelo contrário, se sentia combativo e cheio de vida naquela atmosfera de neve. Os dois contrariavam-se em tudo.
Gerald e Gudrun foram muito amáveis para os que partiam, ocupando-se de quanto lhes restava, solicitamente, como se se tratasse de duas crianças. Gudrun apareceu no quarto da irmã; levou-lhe três pares de meias de cor, coisa em que era especialista, e colocou-os em cima da cama. Eram meias de seda grossa, compradas em Paris: vermelhas, azuis e cinzentas. Estas últimas, muito pesadas, não tinham costura e eram de malha. Úrsula ficou encantada. Compreendeu quanta ternura havia na irmã para que se separasse assim de tamanho tesouro.
- Não posso aceitá-las, Prune. Não posso privar você dessas maravilhas.
- Não são maravilhas! - exclamou Gudrun, lançando um olhar saudoso à sua oferta. - Bobagens!
- Mas você devia guardá-las - tornou Úrsula.
- Não preciso delas. Tenho mais três pares. Gostaria que você as aceitasse...
E, com mãos nervosas, excitada, depôs a dádiva debaixo do travesseiro da irmã.
- Um dos grandes prazeres da vida é possuir meias bonitas - disse Úrsula.
- É verdade - confirmou a outra. - Um dos maiores prazeres.
Sentou-se na poltrona. Era evidente que tinha vindo conversar antes da partida. Úrsula, sem saber o que a irmã desejava, conservou-se silenciosa.
- Você tem a impressão - principiou Gudrun, pouco convencida de suas palavras - tem a impressão de que se vai para sempre, para não mais voltar?
- Ah, não! Voltaremos - respondeu a irmã. - Mais cedo ou mais tarde, voltaremos.
- Sim, compreendo. Mas, em espírito, para assim me exprimir, vocês afastam-se de nós, não é verdade?
Úrsula sentiu um arrepio.
- Não faço nenhuma ideia do que possa acontecer. Sei apenas que partimos para qualquer lugar.
Gudrun ouviu a explicação e perguntou:
- Está contente?
Úrsula refletiu durante alguns momentos.
- Creio que sim, que estou muito contente.
Mais do que pelo tom incerto das palavras, Gudrun adivinhou a verdade no brilho inconsciente que a face da irmã irradiava.
- E não acha que pôde sentir necessidade de regressar aos velhos conhecimentos deste mundo, ao pai, ao resto da família e a tudo o mais que isso representa? A Inglaterra, a vida do pensamento? Não acredita que sejam precisas todas estas coisas para que o seu ambiente tenha realidade?
Úrsula estava silenciosa, procurando compenetrar-se daquelas razões.
- Penso - disse ela por fim, mas involuntariamente - Rupert tem razão: viver num espaço novo e diferente, desapegar-nos do antigo...
Gudrun observou a irmã, com os olhos fixos e o rosto impassível.
- Que se deseje viver num meio diverso, concordo inteiramente. Julgo, porém, que um mundo novo é sempre o desenvolvimento do velho mundo, e que isolar-se aí com outra pessoa não é encontrar aquele, mas sim criar mais uma ilusão.
Úrsula olhou para fora, através da janela. Começava-lhe um combate na alma e isso assustava-a. Sempre tivera medo das palavras, pois sabia que a simples força que emitem podia força-la a crer naquilo de que ela descria.
- Talvez - concordou, embora não muito persuadida, antes desconfiada de si própria. - Mas - acrescentou - penso que não se encontra nada de novo enquanto estamos apegados ao passado. Compreende o que quero dizer? Combater o passado e ainda pertencer-lhe de qualquer maneira. Bem sei que a tentação maior é a de ficar no mundo e lutar por algum tempo. Mas que vantagem haveria nisso?
Gudrun pensou em seu próprio caso.
_ Sim - disse ela - em certo sentido fazemos parte do aglomerado, uma vez que nele vivemos. Mas não será ilusão supor que podemos fugir? Aliás, uma casa de campo nos Abruzzos ou em outro canto qualquer não constitui um mundo novo. Não, Úrsula: a única coisa que se tem de fazer para nos desenganarmos da terra é visitá-la por inteiro.
A outra parecia olhar de muito longe. Assustava-se tanto com discussões!
- Mas pode haver outro processo, não acha? - disse ela. Podemos visitar o mundo através da nossa alma, muito tempo antes de o conhecer na realidade. E, uma vez que conheçamos bem a nossa alma, tudo se torna diferente.
- Vê-lo através do nosso espírito? - perguntou Gudrun. - Se você quer dizer que se pode adivinhar o que vai suceder não concordo. Não, não é possível. E em qualquer caso não e fácil voar assim para outro planeta pela razão de que já se sabe o que neste vai acontecer.
Úrsula pôs-se de pé repentinamente.
- É fácil, sim senhora, é fácil. Neste mundo nada temos a esperar. Possuímos uma espécie de outro eu que pertence a um planeta diferente. É forçoso fugirmos deste.
Gudrun meditou alguns segundos. Seu rosto mostrou uma expressão de complacência, quase de desprezo.
- E o que acontecerá quando você se encontrar no espaço? _ perguntou à irmã, em tom irônico. - Afinal de contas, as grandes ideias são as mesmas em toda parte. Não conseguira por de lado o fato por exemplo, de que o amor é o fim supremo, tanto na terra como fora dela.
- Não - replicou Úrsula - não é. O amor é demasiado humano e mesquinho. Acredito em qualquer coisa extra-humana, da qual o amor é apenas uma parcela. Creio que a nossa missão nos virá do desconhecido e dirá respeito a algo infinitamente superior ao amor. Não é unicamente humano.
Gudrun, com seus olhos firmes e equilibrados, contemplava a irmã. Admirava-a e desdenhava-a ao mesmo tempo. Depois, sem transição, desviou a vista e declarou friamente, em tom desagradável:
- Pois não conheço nada além do amor.
Foi então que um pensamento atravessou, como um relâmpago, o espírito de Úrsula: "Como você não amou ainda, não é capaz de ultrapassar o amor".
Gudrun levantou-se, aproximando-se da irmã, e passou-lhe o braço em torno do pescoço.
- Vá, minha querida, vá em busca do seu mundo novo - disse ela com voz em que se percebia benevolência fingida. - Em última análise, a mais feliz de todas as viagens deve ser em busca das Ilhas Encantadas de que fala Rupert.
Conservou o braço em volta do pescoço da irmã, e, com os dedos, acariciou-lhe a face durante algum tempo. Úrsula estava extremamente contrafeita. O ar protetor de Gudrun parecia-lhe um insulto. E esta, sentindo a resistência da irmã, afastou-se desajeitada. Levantou o travesseiro e descobriu as meias que lá estavam.
- Ah! Ah! - tentou rir, sem vontade. - De que é que estamos falando? Novos mundos, velhos mundos...
E trataram de passar a outros assuntos mais corriqueiros.
Gerald e Birkin tinham partido à frente; esperariam pelo trenó que devia conduzir os viajantes, para que Rupert tomasse o seu lugar no veículo.
- Quanto tempo ainda se demoram aqui? - perguntou Birkin, examinando o rosto corado, quase inexpressivo, do outro.
- Não posso dizer. Até ficarmos fartos.
- Não receia que a neve se derreta antes?
Gerald riu-se.
- Chega a derreter? - perguntou.
- Tudo corre bem entre vocês? - volveu Birkin.
Gerald contraiu um pouco o olhar.
- Se corre bem? Nunca percebi o que significa essa frase. Correr bem e correr mal são muitas vezes sinônimos.
- Sim, também acho. E quando regressam, afinal?
- Não sei. Talvez fiquemos aqui para sempre. Não olho para trás nem para frente de mim - respondeu Gerald.
- Nem para o que não existe... - atalhou Birkin. Gerald investigou ao longe com as pupilas diminuídas, abstrato, como um falcão.
- Em tudo isto há qualquer coisa definitiva. Gudrun, para mim, é a meta que eu queria alcançar Não sei... Mas vejo-a tão branca, pele tão sedosa, braços indolentes e meigos... Ela incendeia, de certo modo, o meu espírito... - Deu alguns passos, olhando sempre em frente, fixamente; dir-se-ia haver afivelado máscara semelhante à do ritual religioso dos povos bárbaros - Destrói a visão da alma, deixa-nos como cegos... E procurando ser cegos e amaldiçoados, não queremos mais outra.
Falava como se estivesse em transe, inconsciente e pálido. E, de súbito, em voz de melopeia, firmando-se em Birkin de forma rancorosa e assustada, foi dizendo:
- Sabe o que é sofrer quando se esta com uma mulher? - Ei-la tão bela, perfeita, bondosa; rasga-nos o coração como se fosse de seda, e a cada rasgão dói e queima... Ah, meu amigo esta perfeição... quando nos destruímos a nos mesmos! Além disso - Parou, ereto sobre a neve, e abriu as mãos, de punhos cerrados - Não é nada... O cérebro pode reduzir-se a pó, e... - Mirou em volta, para o nada, com um esquisito ar de histrião - Tudo se arrasa. Compreende o que digo. É uma grande aventura, talvez a derradeira... e então... encolhemo-nos como se recebêssemos uma descarga elétrica. - Recomeçou a andar em silêncio. Tinha o aspecto de quem dizia coisas absurdas, mas, ao mesmo tempo, era sincero, como se se visse obrigado à fazer tais confidências. - Decerto - prosseguiu - não procurei evitar que isso acontecesse. É uma aventura completa! E que mulher maravilhosa! Mas, as vezes, detesto-a... É curioso...
Birkin olhou para o outro, que parecia estranho, distante. Era como se Gerald estivesse confuso em face das suas próprias.
- Mas agora, chega, não? - acudiu Birkin. - A experiência foi suficiente. Para que prosseguir além?
- Não sei. Ainda não acabou...
E os dois continuaram a andar.
- Estimei-o tanto como Gudrun, não se esqueça - disse Birkin com certa amargura. Gerald atentou nele, de forma esquisita, sem compreender.
- Acha que sim? - disse então, em tom de descrença, friamente. - Ou será só na sua imaginação? - Dizia isto, no entanto, sem pensar.
O trenó chegou. Gudrun apeou-se. Fizeram as despedidas. Estavam desejosos daquela separação. Birkin entrou no carrinho, que se pôs em movimento, deixando sobre a neve Gerald e Gudrun ambos a agitarem as mãos, a dizer adeus. O coração de Birkin enregelava-se de os ver ficar para trás, na desolação daquela brancura, cada vez mais pequeninos, mais distanciados...


Capítulo XXX
No meio da neve
Depois que Birkin e Úrsula partiram, Gudrun sentiu-se a vontade na sua contenda com Gerald. À medida que se iam habituando um ao outro, parecia que ele a procurava subjugar cada vez mais. A princípio ainda ela conseguia impor-se, e a sua vontade conservava-se independente. Mas não tardou muito que Gerald começasse a desdenhar aquela tática feminina, perdendo o respeito pelos caprichos e segredos da moça e exercendo o seu domínio cegamente, sem jamais se submeter aos desejos dela.
Entre eles surgia, pois, um conflito: ambos estavam apavorados com essa ideia. Ele não tinha quem lhe valesse, ela, porém, procurava algum auxílio externo.
Quando a irmã se foi embora, Gudrun sentiu que a sua vida se tornava rígida e elementar. Subiu ao quarto e ficou ali sozinha, contemplando da janela as estrelas enormes e cintilantes. A sua frente estava a sombra indefinida das montanhas. Eram como o eixo do mundo. Gudrun sentia-se estranha, colocada sobre aquele eixo do mundo e da vida; para além, cessava a realidade.
Nesse momento, Gerald abriu a porta. Ela previra que ele não se demoraria lá fora. Nunca lhe era dado estar só: impunha a sua presença, como o frio amortecendo-lhe a energia.
- Está abandonada nas trevas? - Pela voz, ela compreendeu que estava irritado, e irritado contra a solidão de que ela procurava rodear-se. Contudo, percebendo que nada poderia fazer, Gudrun mostrou-se atenciosa e pediu-lhe:
- Quer acender a vela?
Gerald não respondeu, mas avançou e ficou por trás dela, no escuro.
- Veja - disse Gudrun - que estrela maravilhosa! Sabe que nome tem?
Gerald curvou-se ao lado de Gudrun para observar através da janela baixa.
- Não sei - respondeu. - É linda!
- Lindíssima! Veja como solta clarões de diferentes cores. É uma soberba cintilação.
Calaram-se. Mudamente, com um gesto fatigado, ela pôs-lhe a mão nos joelhos, e tomou a dele entre as suas.
- Está sentindo falta de Úrsula?
_ Não. - Depois, muito vagarosa, acrescentou: - Qual é a sua maneira de amar?
Gerald aproximou-se mais de Gudrun.
- O que é que você acha?
- Não sei.
- Diga - insistiu Gerald.
Houve uma pausa. Por fim, na escuridão do quarto, ouviu-se a voz dela, dura e indiferente:
- Creio que o seu amor é muito pequeno. - Disse aquilo em tom frio, quase petulante.
- E por que é que não amo você? - perguntou como se admitisse a verdade daquela acusação, embora lhe guardasse rancor.
- Não sei, tenho sido boa para você. Quando veio ter comigo estava em tal estado de excitação...
Falava de maneira ofegante, mas era forte e impiedosa em sua acusação.
- Quando é que você esteve assim?
_ Da primeira vez... Tive pena de você. Não era amor o que você sentia.
Esta declaração soava-lhe aos ouvidos de uma forma que o fazia enlouquecer.
_ Por que repetir tantas vezes que não era amor? - perguntou ele com voz encolerizada.
- Você pensa que ama?
Gerald estava tão irritado que não respondeu.
- Não se julga capaz de me amar? - perguntou ela em tom de mofa.
- Não.
- Você nem sabe que nunca me teve amor, não é verdade?
- Não sei o que você entende pela palavra amor - replicou ele.
- Sim, sabe. Sabe perfeitamente que nunca foi assim. Não é verdade? - respondeu Gerald, prontamente, levado pelo seu espírito de sinceridade e de teimosia.
- E você jamais me terá amor - concluiu ela.
Mostrava uma frieza diabólica, insuportável.
- Não.
- Então - retorquiu ela - de que se queixa?
O outro calava-se, frio, desesperado e receoso. "Se ao menos pudesse matá-la..., pensava consigo mesmo; "se ao menos pudesse matá-la, ficaria livre!"Achava que a morte seria a única maneira de resolver aquele problema.
- Mas, por que torturar-me? - exclamou.
Gudrun passou-lhe os braços em volta do pescoço.
_ Não quero torturá-lo - respondeu compadecida, como se estivesse consolando uma criança. A impertinência acabara com os sentimentos dele; mostrava-se insensível. Ela continuava a abraçá-lo numa atitude de triunfante misericórdia, numa piedade tão fria como uma pedra, no mais profundo ódio por aquele homem, e no meio do domínio que ele podia recuperar e que era preciso combater hora a hora.
- Diga que me ama - pediu Gudrun. - Diga que há de amar-me sempre, diga!
Porém, apenas a voz o acariciava. Os sentidos permaneciam à parte, afastados, hostis. Só a vontade imperiosa é que insistia.
- Não quer dizer que me terá amor para sempre? - tornou ela, fazendo-se persuasiva. - Diga, ainda que não seja verdade. Diga, Gerald.
- Amo você para sempre - repetiu este, a custo. As palavras se recusavam a ser pronunciadas, ele sentia-se agoniado.
Gudrun beijou-o, num movimento rápido.
- Imaginar que você o disse... que o disse agora - comentou ela, zombeteira.
Gerald sentia-se como uma criança que acabasse de receber um castigo.
- Tente gostar um pouco mais de mim e desejar-me um pouco menos - continuou a moça, semidesdenhosa e semi-afável.
As trevas pareciam ter invadido, em ondas sucessivas, o cérebro de Gerald, ondas soturnas, que lhe varriam o espírito. Julgava-se humilhado, reduzido a uma coisa desprezível.
- Quer dizer que não me deseja? - perguntou ele
_ Você insiste tanto! E tem tão pouca compaixão, tão pouca delicadeza! Você é brutal. Você me destrói, desgasta; é horrível para mim!
- Para você?
- Sim. Não acha que eu poderia ter um quarto só para mim, agora que Úrsula foi-se embora? Podíamos dizer que precisamos de um quarto de vestir.
Gerald esforçou-se para responder.
- Como quiser. Pode ate partir de vez, se quiser.
_ Eu sei - replicou ela. - Você também, sem precisar me prevenir.
Gerald a custo se mantinha de pé. Sentia-se fraco e tinha a impressão de que ia cair desamparadamente. Despiu-se e atirou-se na cama, como se estivesse bêbado, a obscuridade erguia-se e abaixava-se como se fosse um mar vertiginoso e negro. Durante algum tempo ficou estendido, imóvel, inconsciente, em meio a um martírio abominável.
Finalmente, Gudrun levantou-se e aproximou-se dele. Gerald permanecia rígido, de costas para ela. Dir-se-ia haver repudiado a voz dos sentidos.
Colocando os braços ao redor de seu corpo, que denunciava aterradora insensibilidade, encostou o rosto no ombro do rapaz.
- Gerald! - murmurou. - Gerald!
Ele não se mexeu. Ela o atraiu para si, premindo os seios nas espáduas dele, beijando-o através da camisa. Não compreendia por que aquele homem estava tão hirto, quase sem vida. Sentia-se desnorteada e queria que ele acordasse e lhe falasse.
- Gerald! Gerald querido! - balbuciou, inclinando-se e dando-lhe um beijo na orelha.
A rigidez pareceu atenuar-se com o calor morno das carícias, com o roçar rítmico dos lábios. O corpo, ela bem o sentia, ia-se humanizando pouco a pouco, perdendo aquela frieza tão anormal. As mãos dela corriam-lhe sobre o tronco, tateando os músculos, que se contraíam sob a pressão.
Finalmente, o sangue circulou, aquecido, nas veias, e os membros retomaram a sua mobilidade.
- Volte-se para mim - cochichou ela, abandonando-se ao consolo do triunfo.
Finalmente, Gerald reanimou-se, recuperando a agilidade e o calor. Virou-se para ela e abraçou-a; e sentindo-a tão perto, tão suave, perfeita e dócil, em atitude tão inesperada, a estreitou contra si. Gudrun sentia-se arrebatada, sem opor resistência, e o cérebro de Gerald ficara outra vez rijo e invencível: era como um diamante que nada pudesse destruir.
A paixão que experimentou por ela foi violenta, medonha, impessoal, semelhante a uma catástrofe. Gudrun supôs que ele a ia matar. Teve a sensação de estar sendo assassinada.
- Meu Deus! Meu Deus! - exclamou, na agonia daquele amplexo, julgando que a vida lhe fugia. Quando Gerald a encheu de beijos, acalmando-a lentamente, Gudrun considerou-se esgotada e moribunda.
- Vou morrer? Vou morrer? - repetia para si mesma.
Mas nem ele nem a noite responderam a essa pergunta.
Contudo, no dia seguinte, a parte da sua alma que não fora impressionada continuou intata e hostil. Não se foi embora. Permaneceu disposta a terminar as suas férias sem querer saber de mais nada. Ele quase nunca a deixava só, seguindo-a como uma sombra. Era como uma condenação, seguindo-a como uma sombra. Às vezes Gerald parecia ser mais forte e Gudrun nem existia, arrastando-se sobre a terra como uma aragem que esmorece Noutras ocasiões acontecia o contrario. Mas sempre, o eterno pêndulo oscilava, ora destruindo as esperanças de um, ora reanimando-o pelo aniquilamento do outro.
"Mais dia menos dia", pensava ela, "terei de deixa-lo". "Posso livrar-me desta mulher", comentava ele nos paroxismos do sofrimento.
Decidiu, pois, abandoná-la. Preparou-se para ir embora e ela que se arranjasse como pudesse. Todavia, pela primeira vez, a vontade vacilou.
"Ir para onde?", perguntou a si mesmo.
Você não se basta?", respondeu-lhe a consciência, fazendo apelo ao orgulho.
"Bastar-me a mim próprio!", repetiu ele.
Achava que a moça não precisava de ninguém que, como um aparelho num estojo formava um conjunto perfeito, independente. Assim raciocinava ele, muito tranquilo, e ela estava no seu direito de se bastar a si mesma, de ser suficiente e de não ter desejos. Compreendia o fato, aceitava-o, e necessitava somente de um esforço para alcançar ele próprio semelhante vantagem. Sabia que lhe faltava apenas forçar a vontade e conseguir obter igual suficiência, fechar-se dentro de si mesmo isolado, impenetrável satisfeito, como um penedo fixado a terra.
Mas tal ideia lançou-o num tremendo caos. Pois, embora mentalmente quisesse ser livre e completo, faltava-lhe a vontade, que não sabia como obter. Via perfeitamente que, para existir com independência, precisava libertar-se de Gudrun, deixa-la, nada revindicar.
Mas, para isso, era preciso manter-se por si mesmo. A ideia reduzia-o a nada; seria o mesmo que aniquilar-se totalmente. Mas também poderia declarar-se vencido, adulá-la... Finalmente, poderia matá-la - a não ser que se tornasse indiferente, disperso sem se importar com a vida. A sua natureza, porém, era seria em demasia sem a jovialidade e a sutileza necessárias para um amor despreocupado e licencioso.
Em sua alma rasgava-se uma estranha fenda: como uma vítima dilacerada brutalmente e oferecida aos céus em holocausto, assim ele se sacrificara pelo amor de Gudrun. Como sarar tais feridas? Essa chaga, esse ferimento singular, infinitamente sensível e aberto na sua alma, pelo qual ficava exposto como uma flor desabrochada, a todo o universo, e por onde escapara parte de si próprio, o seu outro eu; aquela ferida que o ponha naquele desdobramento do ser que o deixava incompleto, limitado, inacabado como uma corola desfolhada ao sol, isso constituía agora a sua alegria cruel. Privar-se dela, então, para que? Para que encerrar impenetrável e independente como uma semente dentro do fruto, quando a verdade é que havia germinado à luz fecundante para lançar rebentos e elevar-se no espaço?
Queria guardar a felicidade indefinível do desejo mesmo em meio ao martírio que a jovem lhe infringia. Apoderava-se dele uma estranha obstinação. Não se afastaria de Gudrun, por mais que ela fizesse ou dissesse. Arrastava-o para a mulher um desejo singular e fatal; era a influência determinante do seu ser embora ela o tratasse com desdém, o acolhesse mal e o recusasse. Não se resolvia a partir, porque, estando junto de Gudrun, se sentia mais vivo, até mais independente na sua própria limitação; saboreava a magia da promessa tanto como o mistério da destruição e do aniquilamento de si mesmo.
Martirizava seu coração ferido, quando Gerald se aproximava. Mas a própria Gudrun também se submetia à tortura. Tinha a impressão - e isso causava-lhe horror - de que ele lhe rasgava as fibras da alma, dilacerando-as por prazer. Era como uma criança arrancando as asas de uma mosca, ou abrindo um botão para descobrir lá dentro a flor, despedaçava-a para ver o segredo da sua intimidade, da sua existência, como quem revolve uma flor ainda fechada, cruel e violentamente.
Gudrun pudera abrir-se com ele, noutro tempo, nos seus sonhos, quando era puro espírito. Mas, agora, não queria ser forcada nem destruída. Fechava-se contra Gerald, insulada no seu orgulho.
À tarde, ambos subiram a altas colinas para admirar o pôr do sol. Detiveram-se sob o vento fino e áspero que soprava, contemplando o astro alaranjado que mergulhava numa atmosfera avermelhada que desaparecia. Depois, para os lados do oriente, os picos e as cristas das serras iluminaram-se de tons rosados, vivos, incandescentes como flores imortais de encontro a um céu de púrpura sombria, miraculosa, enquanto embaixo o mundo parecia uma sombra azulada, e lá no alto, como uma anunciação, pairava um halo róseo entre as nuvens.
Para Gudrun era tudo isto tão belo, tão delirante, que ela desejaria colher aqueles picos cintilantes e eternos, estreitá-los ao peito, e depois morrer. Gerald via-os também, e achava-os igualmente belos. Mas nenhum clamor lhe saía do peito, apenas experimentava amargura, que era ao mesmo tempo devaneio. Preferiria que as montanhas fossem cinzentas e sem esplendor, de forma que a moça não pudesse encontrar nelas estímulo nenhum. Por que motivo se atraiçoava, a si mesmo e a ele também, entregando-se ao fulgor da tarde moribunda? Por que o deixava ali, em pé, com a aragem fria a atravessar-lhe o coração como se fosse a própria morte, para se volver toda à contemplação dos cimos róseos e nevados?
_ Que importa o crepúsculo? - disse ele. - Por que se ajoelha diante dele? É assim tão importante para você?
Gudrun retraiu-se, ofendida e furiosa.
- Vá-se embora - ordenou-lhe - e deixe-me sozinha aqui. É lindo, lindo! - murmurava numa voz cantada e singular. - É a coisa mais bela que jamais vi na minha vida. Não tente interpor-se entre mim e o poente. Vá-se embora. Este não e o seu lugar!
Gerald recuou um pouco e deixou-a ficar onde estava espécie de estátua transposta para um místico pedestal resplandecente. Os tons de rosa já se iam desvanecendo, e enormes estrelas claras apontavam no céu. O rapaz esperou. Teria renunciado a tudo, menos a essa fascinação.
- É a coisa mais bela que já vi na vida - repetiu Gudrun numa entonação fria e cruel, quando se voltou, finalmente, para Gerald. - Aflige-me a ideia de que você tente perturbar este espetáculo. Se não sabe admirar, por que não me permitir que o faça - Na realidade, o encanto que ela sentira já fora até miado, e Gudrun esforçava-se em reanimar uma sensação desaparecida.
- Um dia - disse ele fitando-a calmamente - darei cabo de você quando estiver olhando para o poente, tudo em você e falso.
Ao pronunciar estas palavras, experimentou como que uma suave volúpia. Gudrun ficara gelada, mas não perdeu a arrogância.
- Ah! Não tenho medo de suas ameaças.
Fugiu dele e foi ocupar, na hospedaria, um quarto rigorosamente separado, onde mais ninguém poderia entrar. Ele, entretanto, aguardava paciente, sem perder o desejo que a moça lhe inspirava.
"No fim", dizia Gerald para consigo - e esta promessa começava a ser-lhe voluptuosa -, "quando chegar a determinado ponto, destruí-la-ei." E pressentindo aquela morte, todos os membros lhe tremiam no mais violento acesso de paixão, e aproximava-se dela ébrio de apetites.
Em frente de Loerke, Gudrun mostrava agora uma curiosa submissão, um tanto insidiosa e perversa. Gerald percebeu. Mas, no estado de paciência sobre-humana que se impunha, e não querendo mostrar-se aborrecido perante ela - em quem reconhecia uma parte de si mesmo - fingiu não reparar, se bem que aquela simpatia concedida a um homem que ele detestava como inseto pernicioso, o fizesse estremecer de cólera e lhe desse repetidos acessos de furor.
Gerald só a deixava quando ia patinar, desporto que adorava e que ela não praticava. Nesses momentos, o rapaz sentia-se fora da vida como um projétil lançado no além. E então, quando ele não estava presente, Gudrun entretinha-se com o escultorzinho alemão. O assunto invariável era a arte da sua profissão comum.
Comungavam nas mesmas ideias. Loerke não gostava de Mestrovic, não se satisfazia com os futuristas, apreciava as estatuetas de madeira do Oeste africano, a arte dos astecas, do México e da América Central. Sabia descobrir o grotesco, e certos movimentos mecânicos o perturbavam por estabelecerem confusão na natureza. Entregavam-se os dois, Gudrun e Loerke, a um estranho jogo de infinitas sugestões, raras e doentias, como se tivessem ambos o mesmo sentido esotérico da vida, como se fossem os únicos iniciados nos segredos vitais e assustadores que o resto do mundo não se atrevia a conhecer. A conversa decorria por meio de estranhas imagens, não facilmente compreensíveis. Entusiasmavam-se com a luxúria sutil dos egípcios e dos mexicanos e todo esse divertimento prosseguia centre alusões inteligentes, desejando qualquer deles manter-se no plano da insinuação. Dessas graduações verbais e físicas extraíam a mais alta satisfação para o sistema nervoso: era um intercâmbio estranho de ideias simplesmente sugeridas, olhares, expressões e gestos que, para Gerald, seriam intoleráveis, embora não os entendesse. Quanto a este, não tinha no seu vocabulário termos que servissem àquele comércio intelectual; os seus eram em demasia grosseiros.
O encontro da arte primitiva servia de principal motivo de conversa: refugiavam-se nesses mistérios íntimos da sensação, objeto do seu verdadeiro culto. A arte e a vida significavam para eles o real e o irreal.
- É claro - dizia Gudrun a existência não tem importância real: a arte só é que interessa. O que fazemos na vida tem peu de rapport, não significa quase nada.
- Nem mais nem menos - respondia o escultor. - O que se realiza em nossas almas artísticas é que representa o sopro vital. O que praticamos fora disso é uma insignificância, embora os outros se preocupem tanto com essas ninharias.
Era curioso observar como Gudrun aproveitava, daqueles colóquios, tantas sugestões de exaltação e de liberdade.
Sentia-se mais estabilizada, talvez de uma forma definitiva. Gerald, como se sabe, não passava de uma nulidade, o amor era um ato temporal na sua vida, exceto no que dizia respeito a sua qualidade de artista. Lembrou-se de Cleópatra, que também devia ter sido artista: retirara do homem tudo quanto ele possuía de essencial, colhera a derradeira sensação e deitara fora os restos. Assim, Maria Stuart e a ilustre Rachek - que delirava com os seus amantes, fora do palco - eram igualmente representantes esotéricos do amor. No fim de contas que era este sentimento senão a lenha utilizada para incendiar a ciência sutil da arte feminina, arte da pura e perfeita sabedoria na compreensão dos sentidos?
Certa tarde, Gerald e Loerke conversavam acerca da Itália e de Trípoli. O inglês estava inflamado e o outro parecia excitado. Digladiavam-se com palavras, mas na realidade o que havia entre eles era um conflito espiritual. Durante todo o tempo Gudrun pôde observar o desprezo arrogante dos da sua raça pelos estrangeiros. Embora tremesse um pouco, seus olhos flamejavam, seu rosto se avermelhava e, no que dizia, perpassava seu desdém selvagem e peculiar, que tanto indignava a moça e mortificava o alemão Gerald apresentava seus argumentos como marteladas, e tudo quanto o escultor dizia era considerado sem o menor valor.
Por fim, Loerke voltou-se para Gudrun, ergueu as mãos num gesto instintivo de desespero, e encolheu os ombros para indicar que desistia. Tinha, ao mesmo tempo, um ar impotente e infantil, na sua deserção.
- Sehen Sïe, gnädige Frau... - Está vendo isso, minha senhora - nota da tradutora) - começou ele.
- Bitte, sagen Sie nich immer gnädige Frau - É favor não me chamar sempre de Frau (senhora casada) - nota da tradutora) - começou Gudrun com as faces escaldando. Parecia uma autentica Medusa. A voz saía-lhe forte, atroadora, e as pessoas que estavam na sala ficaram espantadas. - Faça o favor de não me chamar de Senhora Crich - repetiu bem alto.
Aquele nome, especialmente nos lábios de Loerke, constituía ultimamente, para ela, um constrangimento humilhante e insuportável.
Os dois homens olharam para ela, pasmados. Gerald empalideceu.
- Como devo chamá-la, então? - perguntou Loerke em tom ligeiramente sarcástico.
- Sagen Sie nur nich das - A frase está traduzida mais adiante no mesmo parágrafo - nota da tradutora) murmurou ela, muito corada, com as faces ardentes - Pelo menos, não diga isso.
Pela expressão que despontou no rosto de Loerke, ela Percebeu que o rapaz havia percebido tudo. Não era a Senhora Crich! Aquilo explicava muita coisa.
- Soll ich Fraülein sagen? - Devo tratá-la por Fraulein (senhorita)? nota da tradutora), perguntou malevolamente.
- Não sou casada - confirmou Gudrun, com altivez. O coração batia-lhe com violência, como o de um pássaro desnorteado. Compreendia que se havia excedido, e só essa ideia era o bastante para a fazer sofrer.
Gerald ficara absolutamente calmo, pálido e imóvel, qual uma estátua. Desinteressara-se de Gudrun, de Loerke, de todos. Estava tranquilo, inalterável. O escultor, encolhido, de cabeça pendida para o chão, olhava para eles disfarçadamente.
Gudrun procurava, aflita, qualquer coisa que dizer, a fim de quebrar o silêncio. Contraindo a face num sorriso forçado, lançou a Gerald um olhar de compreensão, dizendo:
- É melhor que saibam a verdade.
E imediatamente recaiu sob o domínio dele - porque o ofendera, porque o magoara tanto, porque não sabia como Gerald iria reagir. Ficou a observá-lo. Interessava-se agora pelo homem. Loerke perdera todo o encanto.
Gerald levantou-se por fim, e foi, calmamente, conversar com o professor. Pouco depois ambos empenhavam-se numa discussão a respeito de Goethe.
Aquela naturalidade irritou bastante a moça. Gerald não se mostrara nem zangado, nem desgostoso; tinha, pelo contrario, um ar estranhamente cândido e puro. Muitas vezes apresentara aquele aspecto digno e distante, que tanto a fascinava.
Esperou apreensiva. Pensou que a fosse evitar, dando-lhe a entender o seu aborrecimento. Mas Gerald tratou-a com simplicidade, sem a mínima alusão ao incidente. Na alma de Gerald havia uma grande paz, que o tornava absorto e pensativo.
Gudrun recolheu-se ao quarto; experimentava por Gerald um amor escaldante, violento. Ele era tão belo e inacessível. O rapaz a beijou. Era o seu amante. Quanto prazer extraia ela daquela circunstância! Gerald, porém, não mudou a sua maneira de tratá-la. Continuou remoto, inocente, quase inconsciente. Gudrun queria que ele falasse; mas esbarrava com aquele estado de graça, de abstração em que ele parecia divagar.
Pela manhã, contudo, Gerald olhou para a moça comum pouco de aversão, de horror, de ódio tenebroso nas pupilas. Voltou ela então à sua posição anterior. Ele, no entanto, desconhecia toda a extensão da sua força, para que a pudesse empregar com eficiência.
Loerke esperava o reaparecimento de Gudrun. O artista, isolado em si mesmo, calculava que descobrira, enfim, uma mulher interessante. Sentia-se inquieto, esperando por ela para conversar, saboreando a ocasião de tê-la junto a si. A presença de Gudrun enchia-o de ardor, estimulava-o, e ele girava astutamente em volta dela como que arrastado por uma atração inevitável.
Loerke comparava-se a Gerald. Este era um profano e ele o detestava pela sua riqueza, orgulho e belo aspecto físico. Todas estas coisas, porém, representavam apenas elementos exteriores. Quando se tratava de agradar a uma mulher como Gudrun, ele, Loerke, dispunha de poder e atrativos que faltavam a Gerald e que ele não poderia imaginar nem em sonhos.
Como esperasse que uma mulher da categoria de Gudrun se satisfizesse com ele, Loerke detinha um segredo que ultrapassava aquelas qualidades. O maior poder é o que sabe adaptar-se sutilmente e não o que ataca de olhos fechados. Ele, Loerke seria capaz de penetrar nas profundezas de toda a ciência, ao contrario do amante de Gudrun. Gerald ficara para trás, como um noviço que espera na antecâmara do templo dos mistérios: esse templo era Gudrun. Loerke, pelo contrário, conseguiria penetrar até ao mais íntimo e oculto, descobrir o espírito dela e vencer a serpente enroscada no próprio âmago da vida. Afinal de contas, o que é que exige a mulher? Simples consideração pessoal, satisfação de ambições? A união no amor e na bondade? Deseja ela, realmente, "a bondade"? Quem seria tão louco de julgar isso de Gudrun? Seriam estes os seus desejos, aparentemente. Mas quem atravessasse o limiar, veria com quanto encarava ela o mundo social e todas as suas vantagens. Quem descesse ao fundo de sua alma notaria a atmosfera pungente de ceticismo, e a consciência crítica, viva e sutil com que ela apreciava a sociedade antipática e falsa.
Que sucederia então? A pura força do amor cego seria capaz de a satisfazer? Não, decerto: mas as emoções vivas e penetrantes de uma conquista lentamente conduzida o conseguiriam; antes uma vontade inflexível reagindo contra a vontade dela em sensações constantes, antes uma análise persistente e delicada exercendo-se no mais oculto da alma da mulher. A forma exterior e individual, pelo contrário, permanecendo sem alteração, seria ineficaz.
Mas entre duas criaturas, entre dois habitantes da terra, a série de impressões acaba por ser limitada. A sua escala, uma vez orientada em certa direção, deixa de produzir efeito, e extingue-se. Não há repetições possíveis, impõe-se a separação dos dois protagonistas ou a submissão de um ou de outro, ou ainda a morte.
Gerald atingira todos os pontos extremos da alma de Gudrun; tornara-se para esta o exemplo crucial do mundo exterior o nec plus ultra da vida dos homens nas relações para com ela Por ele ficara conhecendo a sociedade com a qual gostaria de romper. Tendo-o esgotado, assemelhava-se ela a um Alexandre a procura de novas conquistas. Mas não havia países novos nem novos homens, apenas indivíduos pequenos e fracos, seres ínfimos, da categoria de Loerke. O mundo, pois, finalizara para Gudrun. Restava-lhe apenas uma sombra interior, individual a sensação íntima do ego, o repugnante mistério da diabólica limitação, enigmática atividade para se reduzir e desintegrar do corpo orgânico da vida.
Tudo isto pressentia ela na sua inconsciência, nunca no espírito. Sabia que passos deveria dar quando deixasse Gerald. Tinha medo dele, receava que a matasse. Não queria ser assassinada, é claro. Sentia-se ainda unida a ele por um fio muito tênue, que a morte não despedaçaria. Gudrun precisava ir mais além, sentia existir ainda uma colheita de experiências lentas e delicadas a realizar, antes de abandonar a vida.
Para estas supremas sensações, Gerald não era a pessoa indicada. Não seria capaz de atingir o mais vivo da sua carne. Mas, onde os golpes violentos daquele homem não penetravam, a finura e agudeza de Loerke triunfariam. Era acerado como um inseto, perfurante como uma lâmina. Chegara, pois, a ocasião de passar para o outro, o artífice perfeito e definitivo. Não ignorava que Loerke, no mais recôndito de sua alma, se afastara de tudo e de todos; para ele não havia céu, nem terra, nem inferno. Não admitia autoridade alguma, não se submetia a ninguém. Solitário sempre e - por abstração do resto - absoluto em si próprio.
Gerald, pelo contrário, desejava pertencer ao mundo inteiro. Isso mostrava os seus limites. Era, de fato, limitado, borne, submetido, em última análise, ao que criara, bom, justo, coerente com as suas necessidades. Mas, entre essas necessidades, não figurava a morte com a sua experiência sutil e perfeita. Era aí que residia a sua limitação.
Loerke pairava numa atmosfera de triunfo desde que a moça lhe confessara não ser casada com Gerald. O artista parecia uma mariposa em voo, mantendo-se nas asas à espera do momento de pousar. Não se importava de esperar. Jamais seria importuno. Levado por um instinto seguro na obscuridade da sua alma, correspondia-se com a dela de forma imperceptível, misteriosa, mas palpável.
Conversaram durante dois dias, sempre sobre temas de arte, na qual encontravam ambos tanto prazer. Adoravam as coisas dos tempos idos, achavam encanto sentimental e infantil na perfeição das épocas pretéritas. Amavam particularmente o final do século XVIII, o período de Mozart, e a época do Goethe e de Shelley.
Entretinham-se com o passado e com as grandes figuras desaparecidas, numa espécie de jogo de xadrez, com o que se divertiam intensamente. Todos os homens notáveis lhes serviam de bonecos de molas; eles dois eram os dirigentes do espetáculo e puxavam os cordéis, pondo tudo a funcionar. Quanto ao futuro, jamais se ocupavam disso, exceto quando um deles expunha, a rir, qualquer fantasia humorística da destruição do mundo por meio de uma catástrofe ridícula, resultado de uma invenção qualquer: algum explosivo, talvez, poderosíssimo, que partiria a Terra em duas partes, ficando os dois pedaços a girar no espaço em direções opostas, diante do pasmo dos respectivos habitantes. Ou então imaginavam os homens divididos em dois partidos contrários, cada um deles convencido de ser o mais justo e perfeito, e considerando o outro indigno e merecedor de ser arrasado; calculavam, assim, várias espécies de fim do mundo. Havia ainda um sonho sinistro delineado por Loerke: a Terra se resfriaria, a neve cairia por todos os lados, e só os seres brancos - ursos polares, raposas brancas, homens semelhantes a terríveis aves das regiões árticas - permaneceriam na crueldade do gelo.
Quando não se distraíam com tais fantasias, Loerke e Gudrun evitavam falar no futuro. Preferiam divertir-se imaginando processos cômicos de destruição do planeta ou dissecando personagens românticas do passado. Era tão agradável reconstituir a vida de Goethe em Weimar, ou a de Schiller com a sua pobreza e o seu amor fiel, ou ressuscitar os temores de Jean-Jacques, ou Voltaire em Ferney, ou Frederico, o Grande, lendo seus próprios versos.
Palestravam durante horas sobre literatura, escultura e pintura recreando-se com Peuerbach e Bocklin. Seria necessária a duração de uma vida inteira, pensavam, para reviver in totum a existência dos grandes artistas. Mas tanto um como outro preteriam deter-se nos séculos XVIII e XIX.
Falavam numa mistura de idiomas, com base no francês. Loerke terminava a maior parte das frases por um tartamudear em inglês e uma tirada em alemão, ao passo que ela chegava ao fim do seu pensamento com as palavras que mais depressa lhe viessem ao espírito. Gudrun deliciava-se com estes colóquios. Havia estranhas expressões, fantásticas mesmo, frases de duplo sentido, evasivas sugestivas, reticências. Constituía, de fato, uma maravilhosa satisfação física poder tecer uma conversa com os fios diferentemente coloridos de três línguas.
Durante todo este tempo, volteavam, hesitantes, em torno de uma invisível declaração. Bem a desejava ele, mas impedia-o uma certa repugnância que não conseguia vencer. Ela, por seu lado, experimentava a mesma vontade, mas ia transferindo sempre; tinha pena de Gerald, sentia-se ainda ligada àquele homem foi o pior de tudo é que esse relacionamento derivava de reminiscências porque havia sido, considerava-se unida por laços invisíveis e imortais - sim, pelo que tinha sido, pelo fato de ter ido ele, naquela primeira noite, à sua casa, sob tremenda compulsão.
Gerald experimentava repulsa cada vez maior por Loerke. Não o levava a sério, desprezava-o simplesmente; porém, quando adivinhava em Gudrun a influência daquele entezinho mórbido, ficava fora de si; enfurecia-o perceber na jovem o predomínio de Loerke, a presença avassaladora do escultor.
- O que é que a entusiasma tanto nesse verme? - perguntou certa vez, sinceramente intrigado. Pois, para ele, nada via de atraente nem de notável no escultor. Pensava que só a beleza e a dignidade poderiam suscitar interesse às mulheres. Nada disso havia no alemão, apenas o que se via dele era a aparência repulsiva de um inseto.
Gudrun corou profundamente. Jamais lhe perdoaria as observações que fazia.
- Que quer dizer? - perguntou ela. - Como dou graças a Deus por não me ter casado com você!
O tom de voz, desdenhoso e insultante, impressionou-o. Mas, pouco depois, retomou o ataque:
- Responda-me, sim? O que vê de fascinante nele?
- Não estou fascinada - respondeu Gudrun, com ar inocente. Está, sim. A serpentezinha fascinou-a e a deixou qual um passarinho prestes a cair-lhe da boca.
Gudrun fitou-o, enfurecida.
- Não permito que o meu procedimento seja discutido - redarguiu.
- Que o permita ou não, pouco me importo. Isso não destrói o fato de estar prontinha para cair nas redes que ele armou. Faça o que entender, meta-se na boca da víbora. Mas o que eu gostaria de saber é o que tem ele de atraente.
Gudrun mergulhou numa cólera sombria.
- Como se atreve - disse finalmente - a tratar-me com tamanha arrogância? Como ousa fazer isso, meu provinciano fanfarrão? Que direitos supõe ter sobre mim?
O rosto de Gerald brilhava, pálido. Os olhos fulguravam. Gudrun percebeu que tombara em poder do lobo. Odiava-o por ser dominada por ele, odiava-o tanto que poderia ser capaz ate de matá-lo.
- Não é uma questão de direitos - replicou Gerald, sentando-se na poltrona.
Gudrun observava-lhe todos os gestos. Via seu corpo mexer-se em movimentos naturais, e aquilo era para ela uma verdadeira obsessão. À ira que sentia acrescentou-se um desprezo definitivo.
- Não se trata dos direitos que tenho sobre você - repetiu ele - porque os tenho, quer você queira, quer não. Quero apenas saber o que a subjuga a esse escultor de merda, que esta la embaixo e que a faz curvar-se em adoração à sua passagem. Quero saber, perante quem, em suma, você se prostra de joelhos.
Gudrun ouvia-o debruçada à janela. De repente, voltou-se para dentro.
- Quer saber? - exclamou num tom desembaraçado e fustigante. - Quer saber o que vejo nele? É a compreensão que tem da alma de uma mulher. É isso.
O rosto de Gerald animou-se de uma expressão estranha, sinistra, bestial.
- Que tipo de compreensão? A de uma pulga munida de tromba, saltitante? Por que você há de rastejar abjetamente em homenagem a uma pulga?
No espírito de Gudrun passou a ideia da representação de uma pulga, consoante a interpretação de Blake, e tentou aplica-la a Loerke. Mas Blake era demasiado caricatural. Que iria responder a Gerald?
_ Você não acha que a inteligência de uma pulga e mais interessante do que a de um imbecil? - perguntou ela.
- Um imbecil? - repetiu Gerald.
- Sim, um imbecil vaidoso, um dummkopf - confirmou a jovem enriquecendo o seu vocabulário com uma palavra alemã.
- Está dizendo que eu sou um imbecil? Pois prefiro ser isso do que a tal pulga que está lá embaixo.
Gudrun enfrentou-o. Gerald tinha um ar de estupidez tão cega e obtusa que ela desanimou, limitando-se a dizer:
- Com essas últimas palavras, você se definiu.
O rapaz refletiu.
- Não tardarei a ir-me embora - declarou.
Gudrun não o deixou sem resposta:
- Lembre-se de que sou completamente livre. Trate da sua vida que eu tratarei da minha.
Aquela observação levou-o a meditar.
- Quer dizer que deste momento em diante somos estranhos um para o outro?
Ela hesitou, corando. Gerald armava uma ratoeira.
- Estranhos - disse ela - nunca poderemos ser. Mas se quiser desembaraçar-se de mim, confirmo que você é independente e senhor de suas ações. Não se preocupe comigo.
Aquela observação, embora velada, era a confissão de que ela ainda precisava dele. Isso reacendeu-lhe o amor. Deixou-se ficar imóvel porém, a expressão já não era a mesma. Corria-lhe pelo corpo uma corrente semelhante ao metal fundido. Gemeu interiormente, sob o jugo, mas a escravidão lhe era grata. Mirou-a com os olhos claros e esperou.
Gudrun percebeu o que se passava e sentiu-se estremecer. Mas continuou fria e revoltada. Como podia ele contemplá-la com aqueles olhos claros, quentes, suplicantes? Como podia ter, mesmo naquele momento, esperanças nela? O que haviam dito, de parte a parte, não seria o bastante para cavar um abismo entre os dois para separá-los para sempre? Ei-lo entanto, ali estava ele alerta e transtornado, disposto a recebê-la!
Aquilo desconcertava a moça. Voltou-se para o lado e disse:
- Não deixarei de preveni-lo, assim que tomar uma decisão.
E com isto, saiu do quarto.
Gerald ficou sentado, entregue ao horror da decepção que parecia destruir-lhe gradualmente o entendimento. Todavia, a paciência persistia nele de forma inconsciente. Conservou-se imóvel, sem saber o que fazer, sem pensar sequer. Por fim levantou-se e desceu para o andar térreo, onde jogou uma partida de xadrez com um dos estudantes. Tinha um ar acolhedor e franco e certa inocência no seu laisser-aller, que perturbaram Gudrun o mais possível; ele fazia-lhe medo e inspirava-lhe simultaneamente profunda antipatia.
Foi depois dessa ocasião que Loerke - que nunca lhe perguntara nada de sua vida particular - começou a interrogá-la.
- Não é mesmo casada?
Gudrun fitou-o bem nos olhos e respondeu de modo categórico:
- Claro que não.
Loerke riu-se, franzindo o rosto de modo engraçado. Um tufozinho delgado de cabelos tombava-lhe sobre a testa, e Gudrun reparou em sua pele de um tom moreno-claro, assim como as mãos e os punhos, que se assemelhavam, estranhamente, a duas garras. Loerke assemelhava-se a um topázio, amarelado e transparente.
- Ainda bem - declarou.
No entanto, precisava de coragem para prosseguir.
- A Senhora Birkin é sua irmã, não é?
- É.
- É casada?
- Sim, é.
- Tem pais vivos?
- Sim, nossos pais ainda são vivos.
E expôs-lhe, em termos breves, lacônicos, qual era a sua posição. Loerke olhava-a atentamente, sempre debaixo da mais viva curiosidade.
- Só! - exclamou, um pouco surpreendido. - E Herr Crich é rico?
- Sim, é rico. É proprietário de minas de carvão.
- Há quanto tempo dura a sua intimidade com ele?
- Alguns meses.
Houve uma pausa.
- Estou admirado - volveu o escultor, finalmente. - Considerava os ingleses muito mais frios... Que pensa fazer quando o deixar?
- Que penso fazer? - repetiu ela.
- Sim, creio que não pretende voltar a ensinar. Não é possível mais - declarou, encolhendo os ombros. - Deixe isso à canaille que não sabe fazer outra coisa. A senhora é uma pessoa original, eine seltsame Frau. Para que negar a evidência? É uma mulher estranha, por conseguinte não deve seguir as outras estagnando-se em uma vida banal.
Gudrun, muito corada, olhava para as mãos. Agradava-lhe ouvir dizer que era uma pessoa diferente das outras. E ele não o dizia para a lisonjear não era aquele o jeito dele, tão objetivo se mostrava sempre! Declarava aquilo como se notasse que tal peça de estatuária tinha qualidades, porque sabia ser verdadeiro.
Ela se regozijava com semelhantes elogios. Os outros costumavam rebaixar tudo e todos ao mesmo nível, estabelecendo um modelo único. Na Inglaterra, era de bom-tom ser perfeitamente vulgar. Ser considerada como um ente diferente da multidão era coisa extremamente grata à moça. Não precisaria afligir-se com a opinião de mais ninguém.
- Mas a questão é que não disponho de dinheiro.
- Ach! Dinheiro! - exclamou o artista, num gesto de indiferença. - Quando já atingimos a maioridade, o dinheiro não é difícil de encontrar. Só quando somos inexperientes é que ele escasseia. Não pense em dinheiro, o terá sempre que quiser.
- Acha? - perguntou-lhe Gudrun, sorrindo.
- Sempre. Der Gerald dá-lhe o necessário, se lhe pedir.
Gudrun ruborizou-se intensamente.
- Pedirei a qualquer um - replicou a moça - menos a ele. - Dissera isto com certa dificuldade.
Loerke olhou-a com atenção.
- Está bem. Peça-o a quem melhor entender. O que não deve é voltar para a Inglaterra, para a tal escola. Isso seria uma coisa estúpida.
Houve novo silêncio. Loerke tinha medo de a convidar para ir com ele; nem ao menos estava certo de desejar tal solução. Ela, por sua vez, receava que ele lhe apresentasse essa proposta. O escultor prezava em extremo a sua solidão e não era pessoa para, nem sequer por um dia, fazer alguém compartilhar de sua vida.
- Só conheço outro centro importante: Paris - disse Gudrun. - Mas não gostaria de ir para lá.
Fitou o interlocutor com os seus olhos grandes, muito abertos. O outro baixou a cabeça, desviando a vista.
- Paris, não! - exclamou. - Entre a religion d'amour, o último "ismo", o regresso a Jesus, mais vale andar de carrossel todos os dias. Mas venha para Dresden. Tenho lá uma oficina, posso arranjar-lhe trabalho. Nunca vi nenhuma das suas escutarias, mas acredito no seu valor. Venha para Dresden: é uma cidade agradável, onde se pode viver. Lá encontrará tudo o que se espera de uma cidade, sem a imbecilidade de Paris ou a cerveja de Munique.
Gudrun contemplava-o tranquilamente. Gostava de o ouvir falar assim, com simplicidade, cavalheirescamente. Loerke era um artista, antes de tudo.
- Paris, não - repetiu ele. - Dá-me náuseas. O amor, detesto-o. L'amour, L'amour, die Liebe. Detesto-o em todas as línguas. As mulheres e o amor... não há nada mais enfadonho.
- Sou também dessa opinião - asseverou Gudrun.
Estava levemente ofendida. Contudo, não havia a menor dúvida: homens, amor... nada mais enfadonho.
- É uma grande maçada - prosseguiu o escultor. - Que importa que eu use este ou aquele chapéu? De igual forma o amor. Só uso chapéu por conveniência. É isto, gnädige Frau - inclinou-se diante da moça e fez um gesto rápido, grotesco como para afastar qualquer coisa. - Gnädige Fraulein, desculpe... É, isto que lhe digo, trocarei tudo, tudo o que chamam amor, por uma companheira inteligente... - Piscou os olhos sombrios, com malícia. - Compreende - continuou, com um sorriso. - Não faz mal que ela tenha cem anos, ou mil... para mim e indiferente, uma vez que me possa entender. - Baixou as pálpebras.
Gudrun sentiu-se ofendida, mais uma vez. Então não a achava bonita. E desatou a rir, bruscamente.
- Seria preciso esperar oitenta anos, pelo visto, para lhe agradar. E feia, já o serei bastante.
Loerke observou-a com olhar crítico, de artista e de entendido.
- É bonita, e tenho muito prazer em lhe dizer isso. Mas não é isso - prosseguiu em tom enfático que a sensibilizou - É porque a senhora tem inteligência, a espécie de inteligência que eu exijo. Eu sou baixinho, insignificante. Pois bem. Não me peça que seja belo e vigoroso. Mas é de mim - e pôs os dedos na boca, em gesto cômico - que alguma amante anda em busca, é a mim que ela espera, e o que deseja é uma união com a minha inteligência. Está compreendendo?
- Muito bem - disse Gudrun.
- Quanto ao outro, o tal amour - fez com a mão um movimento como o de expulsar um importuno - não tem importância nenhuma. Que resulta, se eu tomar esta noite vinho branco ou não tomar nada? Não interessa! Assim é o amor, esse amour, esse baiser. Sim ou não, soit ou soit pas, hoje, amanhã, ou nunca, é sempre o mesmo, não importa, ou importa tanto como o vinho branco.
Finalizou o discurso, deixando pender a cabeça para frente em movimento grotesco, sinal de desesperada negação.
De súbito, ela se aproximou, tomando-lhe a mão.
- É verdade - disse ela em voz cheia e veemente. - Para mim é assim também. Só a inteligência é que conta.
Loerke ergueu os olhos para a jovem. Parecia quase assustado. Depois de mau humor, abanou a cabeça. Gudrun largou sua mão. O escultor não correspondera à carícia dela.
Ficaram ambos silenciosos.
- Sabe? - disse ele por fim, mirando-a de repente com os seus olhos sombrios, orgulhosos e proféticos. - O seu destino e o meu hão de seguir lado a lado, ate que...
- Mas interrompeu-se, fazendo uma careta.
- Ate quando? - inquiriu a moça, pálida, com os lábios descorados. Era terrivelmente sensível a esse gênero de prognósticos. Loerke, porém, limitou-se a mover a cabeça, e depois acrescentou:
- Não sei... Não sei.
Só ao anoitecer Gerald voltou do seu exercício de patinação: faltara ao lanche de café e bolo que serviam às quatro horas. A neve estava em perfeitas condições, e o rapaz fizera um grande percurso, sozinho, até aos cimos gelados, subindo tão alto que pudera ver mais abaixo, à distância de cinco milhas, a Manenhutte, e a hospedaria do alto do desfiladeiro meio soterrada pela neve; descortinara o vale profundo ate a sombra produzida pelo grupo de pinheiros. Poderia voltar para casa por aquele caminho, mas só a ideia do regresso lhe causava náuseas. Poderia também descer, patinando, até a velha estrada imperial, logo por baixo do desfiladeiro. Mas para que seguir por uma estrada? Revoltava-se em pensar que encontraria gente. Antes ficar ali, no meio da neve, para sempre. Tinha sido feliz na solidão, deslizando suavemente e fazendo ressaltar pedaços de gelo entre os rochedos escuros estriados de linhas alvas e brilhantes.
Sentia, porém, gelar-se igualmente seu coração. Aquele estranho estado de paciência e candidez, que havia durado alguns dias desaparecia agora; Gerald tornava-se vítima de horríveis paixões e torturas.
Voltou, pois, de má vontade, queimado pela neve, tornado cruel pela ação do frio, e encaminhou-se para o côncavo que jazia entre os sopés ligados das montanhas. Viu, ao longe, as luzes amarelas das casas, e diminuiu a marcha, desejoso de não encontrar os outros nem ouvir o tumulto das vozes e sentir-se incomodado pela presença alheia. Experimentava um isolamento tal como se à sua roda se houvesse formado o vácuo ou uma camada de gelo puro.
No instante em que descobriu Gudrun, seu coração começou a bater descompassadamente. Ela lhe pareceu imponente e soberba, sorrindo lânguida e graciosamente para os alemães. Gerald sentiu a tentação de matar. Saboreava antecipadamente a volúpia da destruição. Seu espírito estava ausente; a neve e a paixão haviam-no enregelado e endurecido. A ideia, todavia, não o deixava; que prazer requintado não seria estrangulá-la, extinguir naquela mulher o último sopro de vida ate vê-la inerte e paralisada para sempre, carne flácida a lhe escapar dos dedos, perfeitamente aniquilada? Seria a forma de vê-la acabar-se da maneira mais completa.
Gudrun, ao vê-lo aparentemente tão calmo e amável, como de costume, não pressentiu quais os pensamentos que o animavam. Aquela amabilidade despertou-lhe, como sempre, um sentimento de ódio contra ele.
Entrou no quarto quando Gerald já estava meio despido e não reparou no brilho singular e jovial, de pura aversão, que o homem tinha no olhar. A jovem deteve-se no limiar da porta, com a mão atrás das costas.
- Estive pensando, Gerald - disse com ar de indiferença que pareceu a ele insultuosa - se devo voltar para a Inglaterra.
- Aonde quer ir, então? - indagou ele.
Ela, porém, evitou responder diretamente. Preferia fazer a sua exposição metodicamente, como havia imaginado.
- Acho melhor não continuarmos. Entre mim e você, tudo acabou...
Calou-se para deixar que ele respondesse. Gerald, contudo, não disse nada. Pensava apenas: "Acabou? - Sim, creio que acabou. Mas não de vez. Lembre-se de que não acabou ainda para sempre. É preciso acrescentar qualquer coisa; um ponto final, definitivo".
- O que aconteceu, aconteceu - prosseguiu ela. - Não me arrependo de nada. Espero que você, também...
Aguardou que ele desse qualquer explicação.
- Não, também não me arrependo de nada - asseverou o rapaz.
- Ainda bem - volveu Gudrun - ainda bem que nenhum de nós se queixa. É bem melhor assim.
- Claro - disse ele, distraído.
Gudrun fez uma pausa, e acrescentou:
- A nossa tentativa não deu resultado. Mas poderemos continuar as nossas experiências em outro lugar.
Percorreu-o um estremecimento de fúria. Parecia que ela o espicaçava. Para quê?
- Tentar o quê? - perguntou.
- Sermos amantes, é óbvio - respondeu ela, um tanto desconcertada.
- Falhou a nossa tentativa de sermos amantes - repetiu Gerald em voz alta.
Porém, com seus botões, ele pensava: "Devo matá-la aqui mesmo. É tudo o que me resta fazer". Apoderava-se dele uma vontade forte e imperiosa. Gudrun não percebia nada.
- Acha então que nossa união foi um completo êxito?
A ofensa daquela pergunta petulante passou pelo sangue de Gerald como se fosse uma corrente de fogo.
- Houve alguns momentos de êxito nas nossas relações - retorquiu ele.
- Podia ter sido bom o resultado.
Todavia, antes de concluir a frase, baixou a voz. Mesmo quando formulou o que ia dizer, sabia que não estava sendo sincero. Sabia muito bem que tudo não passara de um fracasso.
- Não podia - replicou Gudrun. - Você é incapaz de amar.
- E você? - atalhou ele.
Os olhos da moça fitavam-no sóbrios, como duas luas no meio das trevas.
- A você é que eu não consegui amar - declarou ela com franqueza fria e resoluta.
Gerald estremeceu, e diante dos olhos passou-lhe um clarão que o incendiou. O coração parecia jorrar-lhe numa chama. A consciência desceu-lhe para as mãos, para os pulsos. Não via nada, e só um desejo, insistente, o dominava: matá-la. Os punhos moviam-se e necessitava tê-la nas mãos para que se sentisse satisfeito.
Antes, porém, que avançasse para por o seu plano em prática, já a face de Gudrun denunciava haver-lhe compreendido o propósito, e, num relâmpago, ela correu para a porta. Depois, seguiu para seu quarto e fechou a porta à chave. Tinha medo sem ter perdido a confiança. Sabia que estava à beira de um abismo. Mas sentia-se segura. Calculava poder vencê-lo pela astúcia
Só, no quarto, Gudrun tremia, ainda excitada, com acessos de alegria insensata. Mantinha-se na certeza de que conseguiria enganá-lo. Tudo dependeria da sua presença de espírito. A luta, contudo, seria de morte; Gudrun não ignorava isso. Qualquer passo em falso, e estaria perdida. Experimentava um torpor estranho e ao mesmo tempo agradável, que lhe dava coragem, como alguém que se considera prestes a cair de grande altura, mas que não olha para baixo e que não admite ter medo.
- Vou-me embora depois de amanhã - resolveu consigo mesma.
Não queria, entretanto, que Gerald supusesse que o fazia para fugir, amedrontada com a atitude dele. No fundo não sentia medo. Percebeu que para sua salvação precisava evitar a violência física do rapaz. Mas, ainda fisicamente, ele não lhe infundia grande pavor. Precisava demonstrar isso a ele. Quando o tivesse feito, quando lhe provasse o que queria, poderia deixá-lo para sempre. Até aí, o combate entre os dois, terrível como ela não duvidava que fosse, manter-se-ia insolúvel. Gudrun necessitava ter confiança em si mesma. Por maiores que fossem os calafrios que a tomassem, não se deixaria vencer pelo horror. Gerald não a intimidaria, nem a dominaria, nem manifestaria direitos sobre ela. Gudrun estava pronta a prová-lo, e, uma vez que tivesse feito essa prova, ficaria livre dele para sempre.
Todavia, não fizera semelhante demonstração nem a Gerald nem a si própria, e era isto que a ligava ainda a ele. Estava amarrada a esse homem, não podia viver separada dele; sentou-se na cama, agasalhada, e ali ficou por largas horas meditando sem cessar no seu destino. Dir-se-ia que jamais se esgotavam seus pensamentos.
"Não é como se ele me amasse verdadeiramente! Ele não gosta de mim. Ama cada mulher que encontra. Exibe seus atrativos, goza com a sua irresistibilidade, procura despertar em cada uma a ideia de que seria uma maravilha tê-lo como amante. Sua ignorância sobre as mulheres também faz parte do jogo. Nunca deixa de se ocupar delas. Enfastia-me, porém, tal tipo de sedução tão estúpida e vaidosa. É ridícula essa inesgotável vaidade masculina... de pavões.
"Todos são assim. Birkin! Tire-se-lhe a vaidade e não sobra nada. Na verdade, é a sua ridícula insuficiência e perfeita insignificância que o tornam tão pretensioso.
"Quanto a Loerke, vale mil vezes mais do que Gerald. Este é tão acanhado de espírito, que encontra aí a sua perdição... Na verdade, não tem mais nada a dizer. Esgotou-se a sua provisão de ideias.
"Em todo o caso, Loerke é uma criatura independente. Não anda empertigado com a sua superioridade de macho. Quando imagino Gerald com as suas minas e o seu escritório a funcionar... Que pode haver entre mim e tudo isso? E ele pensando que sabia interessar uma mulher!
"Ao menos, em Dresden, voltarei as costas a tudo isso. Preciso divertir-me. Deve ser bom ir à Ópera Alemã, ao teatro alemão. Vou tomar parte na vida boêmia. Além disso, Loerke é artista, é uma pessoa livre. Quero escapar a tudo isso de que estou farta. Escapar a esse mundo de coisas vulgares, de frases vulgares, de gestos vulgares. Sei que não irei encontrar em Dresden o elixir da vida. Mas ficarei livre desta gente que tem um lar, crianças e conhecidos, tudo, tudo, muito deles. Estarei no meio de pessoas que não possuem nada, que não têm casa, não têm criados, posição social, categoria, nem roda de amigos da mesma laia. Meu Deus quanta complicação! Eles vivem com a precisão de um relógio; aquela monotonia, capaz de enlouquecer! Detesto a vida. Odeio-a. Detesto todos os Geralds incapazes de proporcionar qualquer coisa a alguém!
"Shortlands! Deus do Céu! Pensar que podia viver ali uma semana, a seguinte, outra ainda...
"Não, não posso nem lembrar-me! É demais para mim!"
Interrompeu o solilóquio, verdadeiramente horrorizada, sem mais poder suportar aquela ideia da sucessão maquinal dos dias, uns após outros, ad infinitum... Era um pensamento de lhe fazer bater o coração, levando-a quase à loucura. A terrível escravidão ao tique-taque do relógio, aquele marchar lento dos ponteiros, a eterna repetição das horas e dos dias... eram demasiada tortura para ela. Ah, fugir daquele pesadelo... fugir!
Quase desejou que Gerald estivesse presente, a fim de ver desvanecido o horror de tais pensamentos. Como sofria, ali sozinha em frente ao horrível relógio com o seu eterno tique-taque... As horas soavam... E outra vez tique-taque, tique-taque, com os ponteiros deslizando no mostrador...
Mas Gerald não a poderia salvar. Ele, e o seu corpo, a sua atividade, a sua existência, regulavam-se pelo mesmo tique-taque, pelo mesmo movimento dos ponteiros, pelo bater uniforme das horas. Assim, os beijos dele, os seus abraços. Tudo muito bem compassado.
"Ah! Ah!" Riu consigo mesma. Ria por se sentir tão assustada. "Ah! Ah!" Era mesmo de enlouquecer.
Depois retomando um pouco de serenidade, Gudrun perguntou a si própria se os seus cabelos não embranqueceriam durante aquela noite. Mas não. Continuariam castanhos e ela permaneceria jovem e sadia, como sempre.
Talvez mesmo devesse à sua constituição saudável o sair sempre ilesa em todos os ataques da adversidade. Se fosse doente, teria suas ilusões, suas fantasias. Mas assim como era, como escapar à verdade? Estava colocada diante do relógio da vida. Tinha de enfrentar o destino, sabendo que não havia possibilidade de fugir. Se voltasse as costas ao relógio, como fazia nas estações de estrada de ferro, para olhar as vitrinas de livros, continuaria mesmo assim a ver o mostrador descomunal e branco. Em vão folhearia os livros, modelaria inutilmente as suas estatuetas de barro. Bem sabia que não estava lendo, que não estava trabalhando. Olharia apenas o avanço dos ponteiros, eterno, automático, monótono. Não vivia a realidade. Limitava-se a olhar o transcorrer do tempo. Assemelhava-se, com efeito, a um relógio a que se dá corda, todos os dias, para acertar com o relógio da eternidade... Ela estava ali, como a Dignidade e a Impudência, ou a Impudência e a Dignidade...
A comparação agradava a Gudrun. O rosto dela parecia o disco de um mostrador, redondo, pálido, impassível. Teve vontade de ir se olhar num espelho, mas a ideia de achar o próprio rosto semelhante a um quadrante encheu-a de tamanho horror que procurou pensar em outra coisa qualquer.
Por que ninguém se mostrava bom para ela? Por que não haveria um ente que a tomasse nos braços e a apertasse contra o peito e lhe desse o repouso reparador, profundo e verdadeiro? Por que razão não aparecia alguém que a estreitasse e a mantivesse tranquila e segura, até que ela adormecesse? Ambicionava tanto aquele sono perfeito! Não tinha quem a defendesse durante o sono. Dormiria sempre desprotegida, abandonada e atormentada. Como poderia suportar tanto abandono, tanta incerteza?
Gerald? Seria capaz de a abraçar e proteger durante o sono? Pobre Gerald! Precisava também de alguém que o adormecesse. Era isso o que ele desejava. Por mais que fizesse, não conseguiria senão tornar mais pesado para ela o fardo da vida. Quando estava presente, os pesadelos de Gudrun eram maiores. Representava mais um tormento durante as noites imperfeitas, durante os sonos que não chegavam a amadurecer nem a dar frutos. Claro que roubava a ela o pouco repouso de que dispunha. E talvez o motivo pelo qual a importunava tanto, como uma criancinha esfomeada que chora para que lhe deem o peito. Talvez fosse esse o segredo da paixão que o arrastava para ela. Precisava de Gudrun para poder dormir, para alcançar um pouco de descanso.
Mas por quê? Não era sua mãe. Aceitara, por acaso, por amante, um bebê que precisasse embalar durante a noite? Eis o que era aquele Don Juan: uma criança rabugenta.
E como Gudrun abominava as crianças que choram à noite! Ela estrangularia calmamente o bebê e o enterraria como Hetty Sorel. Sem dúvida o filho de Hetty Sorel chorava durante a noite. E também o de Arthur Donnithorne. Ah, estes Donnithornes, estes Geralds de todo o mundo... Calados de dia, lamurientos depois de se deitarem! Deixá-los tornarem-se instrumentos, simples máquinas, vontades elementares que funcionam como relógios, numa constante repetição. Deixá-los ser assim, deixá-los serem puros maquinismos, dormitando ao som do tique-taque. Gerald que se ocupasse dos seus negócios. Ficará satisfeito o dia todo, Gudrun o sabia muito bem.
O carrinho, com a sua roda submissa, eis a unidade na aritmética da empresa. Depois, a carreta, com duas rodas; o vagão com as quatro; a locomotiva, com oito; outra maior, com dezesseis, e assim por diante, ate o mineiro com as suas mil rodas, e o eletricista, com três mil, e o gerente com vinte mil, e o diretor, finalmente, com cem mil rodas. E eis Gerald, com um milhão de rodízios, dentes e eixos!
Coitado de Gerald! Tantas rodinhas a pôr em movimento... Muito mais complicado do que um cronômetro. Meu Deus, que aborrecimento! Um cronômetro! A alma de Gudrun arrepiava-se só em pensar naquilo. Tantas rodas a contar, e a considerar, e a calcular! Basta! Basta! Há um limite para a capacidade humana em meio a tanta complicação. Ou, quem sabe se não há limite...
Entretanto, Gerald lia, sentado no leito, em seu quarto. Quando Gudrun se retirara, sentira espanto e não soubera o que fazer. Deixou-se abater sabre a cama e la ficou durante uma hora. Sulcavam-lhe o espírito clarões intermitentes. Estava imóvel com a cabeça pendida para o peito.
Pôs-se de pé, finalmente, e lembrou-se de que se preparara para dormir. Devia dormir. Sentia frio. Deitou-se no escuro.
Mas não conseguia suportar a escuridão Aquela sombra densa o sufocava. Levantou-se e acendeu a vela. Permaneceu alguns instantes sentado, olhando em frente. Não pensava em Gudrun nem em ninguém.
Teve vontade de ir buscar um livro. Sempre tivera horror às noites de insônia. Amedrontava-o a ideia de passar mais uma noite em claro, à espera de que o tempo decorresse. Ficou sentado na cama durante horas, lendo imóvel como uma estátua o espírito alerta e ágil, penetrava na leitura, mas não chegava a apreender bem o que lia. Em estado de rígida inconsciência, leu durante quase toda a noite, e só ao amanhecer cansado e infeliz, desgostoso de si mesmo, conseguiu dormir duas hora. Acordou cheio de energia. Gudrun mal se dirigiu a ele. Durante o café, declarou:
- Vou-me embora amanhã.
- Vamos juntos até Innsbruck, para salvar as aparências? - propôs ele.
- Talvez - condescendeu a jovem.
Disse isso entre dois sorvos de café. E a maneira como ela tomou fôlego, logo a seguir, desagradou a Gerald. Ergueu-se apressadamente, disposto a afastar-se dela e foi ocupar-se dos preparativos para a partida no dia seguinte. Depois, munido de provisões, saiu com os esquis, resolvido a passar o dia fora. Ao Wirt - Dono da hospedaria - nota da tradutora), ele explicou que iria ate Marienhutte, ou talvez, mesmo, à aldeia.
Gudrun recebera a manhã repleta de promessas como uma primavera. Sentia aproximar-se o momento da libertação, e uma nova fonte de vida jorrava por toda ela. Sentia prazer em andar de um lado para o outro, empacotando suas roupas, experimentando vestidos, mirando-se no espelho, lendo este ou aquele livro. Sentia que uma existência diferente se preparava parada e mostrava-se contente como uma criança; todos a achavam atraente e bela, com o seu ar carinhoso e exuberante e a irreprimível exteriorização da felicidade. Contudo, sob tal aparência o pensamento da morte não a abandonava.
Saiu à tarde com Loerke. O "amanhã" tornara-se impreciso e isso a deixava ainda mais satisfeita. Podia ir para a Inglaterra com Gerald ou para Dresden com Loerke, ou ainda para Munique, visitar uma amiga que residia lá. Tudo isto podia acontecer no dia seguinte. E o dia de hoje era o limiar branco, irisado de neve, de todas as possibilidades. Todas as possibilidades! Isto significava para Gudrun o encanto, o sortilégio adorável, cintilante, indefinido, a pura ilusão. Todas as possibilidades, mas a morte é inevitável, e nada é tão possível como a morte.
Não desejava que as coisas tomassem uma feição material e definida. Gostaria que, de repente, no dia seguinte, no meio da viagem, se visse impelida numa direção diferente, por qualquer circunstância inesperada. E assim, embora fosse com Loerke, pela última vez, correr sobre a neve, evitava as conversas serias ou qualquer coisa que se relacionasse com o futuro.
Loerke, por seu lado, não inspirava seriedade. Trazia na cabeça um gorro de veludo pardo, que a tornava redonda como uma castanha; e, com as abas caídas sobre o rosto - de onde escapava uma mecha de cabelos finos e escuros revoluteando ao vento - com seus olhos negros de elfo, e a pele trigueira, luzidia e fina que se encarquilhava nos cantos dando estranhas expressões àquele rosto, o escultor parecia antes uma criança com feições de homem, ou talvez se assemelhasse a uma morcego. Aquele vulto, vestido de lã grossa, verde, parecia tão débil, tão chétif, tão estranhamente diferente dos outros!
Haviam arranjado um trenó pequeno para os dois, e ambos se puseram a caminho, com dificuldade, entre os taludes de neve refulgente que lhes queimava as faces já crestadas. Riam sem cessar, desfiando uma série ininterrupta de brincadeiras e anedotas em vários idiomas. A fantasia se transformava era realidade. Sentiam-se felizes em atirar projéteis coloridos de bom humor e de capricho. Preferiam que a amizade se conservasse ao nível da brincadeira, uma espécie de passatempo.
Loerke não levava muito a sério os desportos de inverno. Não colocava neles o ardor que Gerald colocava nem tinha o mesmo entusiasmo do outro. Gudrun gostava disso; estava fatigada, bastante fatigada pela intensidade de movimento a que a havia obrigado a energia física do amante. Loerke deixava o trenó descer ao acaso, alegremente, como uma folha ao vento e quando, numa volta do percurso caíam ambos sobre a neve, punham-se de pé vagarosamente, verificavam não estar machucados e ali no solo alvíssimo, desatavam a dar gargalhadas. Gudrun sabia que o seu companheiro diria graças atrevidas quando vagueasse no inferno, se estivesse bem disposto e ela gostava de senti-lo assim. Era elevar-se acima das realidades do mundo, fugir à atualidade monótona e às próprias contingências da vida. Divertiram-se dessa maneira ate o pôr do sol, satisfeitíssimos, descuidados, indiferentes ao decorrer do tempo. Quando chegaram ao sopé de uma colina, o trenó parou e Loerke disse:
- Espere! - e exibiu, tirando não se sabe de onde, uma enorme garrafa térmica, um pacote de bolachas e um frasco de Schnapps.
- Oh, Loerke! - exclamou Gudrun. - Que inspiração! Que comble de joie, realmente! De que é esta Schnapps? - Aguardente - nota da tradutora).
Ele a encarou a rir e disse:
- Heidelbeere - Baga de murta - nota da tradutora).
- Sim? E isso se encontra debaixo da neve? Parece destilada do próprio gelo. - Gudrun cheirou e tornou a cheirar o gargalo da garrafa. Nota-se o aroma... Esplêndido. É como se cheirássemos a planta através da neve.
Bateu com o pé no chão muito de leve. Loerke ajoelhou-se e assobiou; depois aproximou o rosto da superfície gelada. Seus olhos sombrios cintilavam.
- Ah! Ah! - ria Gudrun, animada pela maneira caprichosa que ele tinha de zombar das suas extravagâncias. Estava sempre zombando e escarnecendo de tudo o que ela dizia ou fazia. Mas as réplicas do rapaz eram mais engraçadas do que tudo o que as provocava; a solução estava em rir-se ainda mais para se sentir vingada...
Ouviam-se as vozes deles ressoando como um retinir argentino como sinos na atmosfera enregelaste, no ar imóvel daquele começo de crepúsculo. Como aquilo tudo era agradável! E como eram perfeitos, na calma absoluta, aquele isolamento e aquelas diversões!
Gudrun sorveu o café quente, cujo aroma, naquele ambiente frio volteou em torno deles como uma abelha zumbindo em redor das flores; bebeu uns goles de Heidelbeerwasser, e comeu pastilhas geladas, doces, macias. Coisas tão boas. Como tudo aquilo possuía sabor, perfume, como rescendia bem. E como, na tranquilidade admirável, a ressonância era bela, naquele princípio de crepúsculo!
- Parte amanhã? - indagou ele, por fim.
- Parto.
Houve uma pausa. A tarde parecia morrer no calor silencioso que se espalhava por toda a parte, até ao infinito... que estava ali mesmo, a mão.
- Wohin? Para onde? - nota da tradutora)
Eis o problema: wohin? Aonde? Que palavra encantadora! Jamais responder a essa voz... Deixá-la repercutir indefinidamente...
- Ignoro - declarou, sorrindo.
Loerke absorveu o sorriso que a moça lhe dirigia. Murmurou:
- Nunca se sabe.
- Nunca - repetiu ela.
Estabeleceu-se uma nova pausa. Loerke trincou bolachas, como um coelhinho a comer folhas.
- Mas - objetou - para onde compra passagem?
- Céus! - gritou ela. - É preciso comprar passagem!
Era um contratempo. Gudrun via-se na bilheteria da estação. Mas, de súbito, teve uma ideia que a acalmou. Respirou desafogada.
- Não somos obrigados a ir...
- É claro.
- Quero dizer que não somos obrigados a chegar ao término da viagem.
A descoberta interessou-o. Podia-se comprar passagem e não ir até o destino indicado nela. Mudava-se de ideia, alterava-se o plano! Grande ideia!
- Compre então uma passagem para Londres - aconselhou ele - Não é preciso ir até o fim.
- Ótimo!
Loerke despejou café num copo de estanho.
- Não me quer dizer para onde vai?
- Não sei ainda para onde vou...
O homem lançou-lhe um olhar zombeteiro; depois, encheu as bochechas de ar, como Zéfiro, e soprou sobre a neve.
- Para o lado da Alemanha... - começou.
- Também acho - concordou ela.
De súbito tiveram a impressão de que se aproximava deles um vulto branco. Era Gerald. O coração de Gudrun palpitou de medo, de um profundo e repentino medo. Pôs-se logo de pé.
- Informaram-me onde estavam - disse o recém-chegado numa voz que retiniu como uma sentença na atmosfera crepuscular.
- Maria! Virgem Maria - nota da tradutora).
- Você aparece como um fantasma! - declarou o escultor.
Gerald não respondeu. A sua presença parecia, na verdade, fantástica, sobrenatural.
Loerke sacudiu a garrafa térmica e depois virou-a para baixo. Caíram apenas algumas gotas escuras.
- Está vazia - disse.
Para Gerald, a figura exótica do alemão surgia muito nítida, como se a estivesse vendo através de um binóculo. E como era desagradável aquela criatura! Gostaria de removê-lo dali.
O outro procurava, agora, bolachas no pacote.
- Ainda há algumas - disse ele.
Sem mudar de posição dentro do trenó, estendeu o braço para Gudrun, que remexeu no pacote e tirou uma bolacha. Ia oferecê-la a Gerald, mas a atitude deste era de tal modo denunciadora de uma recusa, que Loerke fez um gesto indeciso e pôs o embrulho de lado. Em seguida, pegou no frasco e mirou-o contra a luz.
- Temos um resto de Schnapps - disse para si mesmo.
Ergueu a garrafa num gesto educado, e curvando-se para Gudrun de forma engraçada, murmurou:
- Gnädiges Fraulein, wohl...
Ouviu-se um estalo, a garrafa voou e Loerke fez um movimento de recuo. Os três, violentamente impressionados, tremiam incontrolavelmente.
Loerke, dirigindo-se a Gerald, com um brilho demoníaco nos olhos, declarou em tom irônico:
- Muito bem! C'est le sport, sans doute - É o esporte, sem dúvida - nota da tradutora).
No mesmo instante já estava sentado sobre a neve numa posição ridícula. O punho de Gerald atingira-o na cabeça. Mas levantou-se logo, trêmulo, fitando o agressor com o seu olhar diabólico e satírico:
- Vive le héros, vive!...
Não pôde acabar. Gerald acertara-lhe outro murro, desta vez em cheio no rosto, mandando-o para longe como se fosse um boneco de palha.
Gudrun, porém, interpôs-se entre os dois. Ergueu a mão e bateu no peito e no rosto de Gerald, que ficou perplexo como se tivesse visto explodir uma bomba. Sua alma sufocava de espanto e de dor. Mas logo soltou uma gargalhada e avançou para a moça, tentando agarrá-la, como para colher o fruto do seu desejo. Ia, finalmente, satisfazê-lo.
Com as mãos rijas, dominadoras, impetuosas, prendeu a garganta de Gudrun. Tão bela, aquela garganta! Bela e suave, embora lá dentro jazessem as cordas da vida - e ele sentiu-a deslizar sob a pressão dos dedos. Eis o que iria esmagar, o que iria destruir. Suprema felicidade! Satisfação, enfim!
Olhava a face de Gudrun, agora feia, com a consciência prestes a desaparecer; via-lhe os olhos rolarem em estertor. Como se tornara horrível... Mas que prazer ele sentia... Como era bom, aquele gozo final! Nem percebia que ela se debatia, resistia... O esforço que ela fazia era, afinal de contas, sensual, também. E quanto mais forte o estrangulamento, maior para ambos o frenesi das delícias, ate atingirem o zênite. Depois, a luta afrouxou, os movimentos dela diminuíram e ela pouco a pouco se apaziguou.
Loerke conseguira endireitar-se sobre a neve, porém estava muito tonto para se erguer. Apenas seus olhos revelavam estar consciente do que se passava.
- Monsieur - disse ele, com voz débil e indignada - quand vous aurez fini - Senhor, quando tiver terminado - nota da tradutora).
Gerald revoltou-se, movido pelo desprezo e pela repugnância que sentia, repugnância que o tomava todo, que o enchia de náuseas. Que estaria fazendo? A que excesso se iria ele entregar? Como podia se preocupar tanto assim com aquela mulher, para que se dignasse a matá-la? Matá-la com suas próprias mãos...
Experimentou, então, certa fraqueza, certo entorpecimento, um diminuir de forças, como que o degelo da energia. Sem perceber, descerrara os punhos e Gudrun caíra a seus pés.
Sentiu-se muito enfraquecido. Tentou ainda um esforço, deu meia volta, e, como uma rajada de vento, partiu para longe, para além...
"Não a quero matar, não quero", ia repetindo, numa ultima confissão, enquanto subia a colina, fraco, esgotado, procurando, por instinto, fugir ao encontro de quem quer que fosse. "É demais. Preciso dormir. É demais." Sentia-se esgotado pelas náuseas.
Estava cansado, mas não queria repousar. Queria ir sempre até o fim. Nunca parar, ate descobrir o fim. Assim errou, perdido e sem forças, sem pensar em nada, enquanto as pernas o suportaram.
O poente deixara no céu uma luz encantada e irreal, entre rosa e azul, e a noite azulada e fria vinha mergulhando sobre a neve. Lá embaixo, atrás dele, no extenso leito alvo, notavam-se ainda duas figuras pequeninas; Gudrun, de joelhos, como quem se prepara para um suplício, e Loerke, sentado junto dela. Nada mais.
Gerald caminhava trôpego no aclive da colina, entre as sombras azuladas, sempre a subir, sem dar conta do que fazia, sem perceber que estava extenuado. Havia, à esquerda, uma descida rápida, cheia de enormes pedregulhos negros estriados de neve, e a neve serpenteava em redor da escuridão da pedra em veios longos e caprichosos. Não se ouvia o menor ruído. Nenhum som cortava o silêncio profundo.
Brilhava agora, por cima de Gerald, um disco lunar, e aquele novo esplendor aumentava-lhe a tortura. Surgia, ah!, cintilante, inexorável; não haveria maneira de evitar aquela cintilação. Contudo, Gerald queria chegar ao fim, sentia-se exausto e farto da vida. Seu espírito mantinha-se lúcido.
Continuava a andar com dificuldade; algumas vezes tinha de atravessar uma vertente de rocha viva, de onde o vento expulsara toda a neve. Naqueles lugares ele sentia medo de cair, um medo intenso de escorregar. E, naquela altitude, a ventania soprava rija, subjugando-o quase e entorpecendo-o com o frio. Todavia, não chegara ainda ao fim: era preciso continuar sem descanso. E o horror que o impelia para frente não permitia que ele parasse um só instante.
Tendo atingido o espinhaço do monte, viu a vaga sombra de qualquer coisa mais alta ainda, à sua frente. Sempre mais alta, sempre mais alta. Calculava encontrar-se na direção dos montes onde se achava a Marienhutte e por onde se atingia a descida do outro flanco da montanha. Mas não tinha muita consciência desses detalhes. Ansiava apenas por continuar, avançar mais além, enquanto pudesse mover-se ir, ir sempre, ate que tudo se acabasse. Perdera por completo o sentido da orientação. Entretanto, por um instinto vital, que ainda lhe restava, procurou pôr os pés nos vestígios de outros esquis que por ah houvessem passado.
Encontrou uma descida escarpada e deixou-se escorregar por ela. A velocidade trazia-lhe calafrios. Não possuía bastão, nem nada a que se apoiasse. A certa altura conseguiu parar e foi andando com cuidado, na obscuridade luminosa. Sentia tanto frio como se já estivesse no repouso eterno. Passava agora entre duas cristas, num vale. Vinha depois uma curva. Subiria o flanco e continuaria a errar pelo côncavo do terreno? Como sentia a vida por um fio! Talvez escalasse a montanha. A neve ali era dura, firme. Avançou. Elevava-se qualquer coisa à sua frente. Aproximou-se, levado por uma estranha curiosidade.
Era um cruzeiro, meio soterrado. No alto de um poste estava a imagem de Cristo, abrigada por um teto em declive. Gerald afastou-se. Alguém se preparava para o matar. Sentia tanto medo de ser assassinado! Mas o terror atingia-o exteriormente, como se fosse o seu próprio fantasma.
E afinal, para que ter medo? Aquilo tinha de acontecer. Sena assassinado! Olhou em volta, aflito, e viu a neve, as rochas as vertentes pálidas e sombrias do mundo que se erguiam acima dele. O destino arrastava-o para a morte, não havia a menor dúvida. E a morte levantava-se, naquele momento, para que Gerald não pudesse escapar...
Jesus! Estava, pois, destinado a isso? Jesus! Iam desferir o golpe. Não tardaria a ser morto. Prosseguiu ao acaso, ergueu as mãos acima da cabeça para sentir melhor o que devia acontecer, e esperou o instante em que chegaria o fim, em que cessaria de existir. Mas não era ainda o momento final.
Tinha alcançado um leito de neve cercado de taludes íngremes, de precipícios, e de onde partia um atalho que conduzia ao alto da montanha. Gerald vagou por ali, inconsciente, até que escorregou e caiu; ao bater no chão, sentiu que a alma se desprendia, e o sono chegou imediatamente.


Capítulo XXXI
"Exeunt"
Quando, no dia seguinte, trouxeram o cadáver para a hospedaria, Gudrun estava fechada no quarto. Da janela, viu aproximarem-se os homens que conduziam um fardo. Continuou sentada, tranquilamente, e os minutos foram passando.
Vieram bater à porta. Gudrun abriu. Estava ali uma mulher que lhe disse em voz baixa, com muita deferência:
- Já o encontraram, minha senhora.
- Morto?
- Sim, senhora.
Gudrun não sabia o que responder. Que poderia dizer? Quais os seus verdadeiros sentimentos na ocasião? Que esperariam dela? Permaneceu fria e perplexa.
- Obrigada - disse, tornando a fechar a porta. A mulher retirou-se, desgostosa. Nem uma palavra, nem uma lágrima. Aquela senhora era insensível; era uma mulher sem coração.
Gudrun sentou-se no quarto, e ficou impassível e pálida. Que havia de fazer? Chorar não podia, e muito menos representar cenas teatrais. Era incapaz de se transformar. Ficou assim imóvel, ocultando-se da curiosidade dos outros. O seu desejo era evitar contatos maiores com os acontecimentos. Limitou-se a redigir um extenso telegrama a Úrsula e Birkin.
De tarde, porém, ergueu-se bruscamente, disposta a avistar-se com Loerke. Lançou um olhar apreensivo à porta do aposento que fora de Gerald. Por nada deste mundo entraria naquele quarto.
Encontrou o escultor sozinho no andar térreo, recostado num sofá. Foi diretamente a ele.
- Não é verdade, não é? - começou por lhe dizer.
O outro a fitou. A face enrugou-se num sorriso de tristeza. Encolheu os ombros.
- Verdade? - repetiu.
- Nós não o matamos - explicou ela.
Loerke não gostou daquela maneira pela qual ela se dirigia a ele. Encolheu os ombros, fatigado.
- Coisas que acontecem - observou.
Gudrun olhou para ele. Viu-o esmagado pela tragédia, aniquilado, mas, do mesmo modo que ela, insensível à dor e incapaz de qualquer resolução. Que coisa angustiosa, vazia, vazia, vazia, Senhor!
Subiu novamente, esperando a chegada de Úrsula e Birkin. Gostaria de partir daquele lugar o mais depressa possível. Não poderia pensar nem sentir ate sair dali.
Passou-se o dia, veio o dia seguinte. Gudrun ouviu o trenó que se aproximava, assistiu à entrada dos viajantes e recuou na janela.
Úrsula dirigiu-se logo ao quarto da irmã.
- Gudrun! - exclamou, com as lágrimas a correrem pela face. Apertou a outra nos braços. Gudrun escondeu o rosto no peito da irmã, mas ainda desta vez não pôde escapar ao frio demônio da ironia que lhe enregelava o coração.
"Ah! É este o sistema usado em semelhantes conjunturas, pensou.
Não conseguia chorar, e o espetáculo da sua expressão impassível, rígida, sem mágoa, fez secar o pranto da recém-chegada. Logo notaram que não tinham nada a dizer uma à outra.
- Aborreceram-se de ter de voltar aqui? - perguntou finalmente Gudrun.
Úrsula fitou-a, um tanto desconcertada, dizendo:
- Não tinha pensado nisso.
- Acho-me cruel por tê-los obrigado a regressar - continuou Gudrun. - Mas não consigo enfrentar os outros.
- Imagino - foi a resposta da irmã, em tom seco.
Birkin bateu à porta e entrou. Estava pálido e compungido.
Gudrun percebeu que estava a par de tudo. O cunhado estendeu-lhe a mão, declarando:
- Acabou-se a nossa excursão!
Ela o fitou, assustada.
Os três permaneceram calados, sem ter o que dizer. Por fim, Úrsula perguntou, em voz baixa.
- Você já o viu?
Birkin lançou-lhe um olhar duro e frio, sem se dar ao trabalho de responder.
- Você o viu? - repetiu ela.
- Vi-o, sim - respondeu o marido, rispidamente. Depois, voltou-se para Gudrun:
- Já tomou alguma providência?
- Nada, absolutamente nada.
Aterrorizavam-na as formalidades a cumprir.
- Loerke diz que Gerald chegou quando vocês estavam sentados no trenó, perto de Rudelbahn, que trocaram algumas palavras e que Gerald se afastou. Que foi que disseram? Preciso estar a par de tudo para o caso de ser necessário contar às autoridades.
Gudrun ergueu os olhos para Birkin, ávida, muda, perturbada como uma criança.
- Ele não chegou sequer a falar - explicou. - Esmurrou Loerke e atirou-o ao chão. A mim, quase estrangulou. Depois, foi-se embora.
Para si mesma, ia dizendo:
"Bela amostra do eterno triângulo!" E afastou-se, sorrindo intimamente, pensando que, afinal, a luta se travara entre ela e Gerald, sem que a presença do outro fosse mais do que um simples incidente, talvez uma contingência inevitável; no fim de contas, sem outra classificação qualquer. Mas iria deixá-los imaginar que fora uma consequência do eterno triângulo, da trindade odiosa. Era mais fácil para a compreensão dos outros.
Birkin retirou-se, sempre com as mesmas maneiras secas e distraídas. Mas Gudrun tinha a certeza de que ele a ajudaria, apesar de tudo, e que a tiraria dos apuros. "Sim, que ele se ocupe de tudo", pensou ela, sorrindo desdenhosa, "visto que sabe tão bem ocupar-se dos outros. Deixá-lo fazer, pois, todo o trabalho".
E Birkin foi outra vez ver Gerald. Haviam-se estimado tanto! Era, todavia, enfado o que mais experimentava ao ver aquele corpo inerte ali estendido. Tão inerte, tão frio, tão penetrado da morte, nada mais do que uma carcaça! Perante aquele espetáculo, sentia geladas suas entranhas. E ficou em pé, contemplando o frio despojo mortal daquele que tinha sido Gerald.
Aquilo era um cadáver enregelado. Birkin lembrava-se de que uma vez encontrara um coelho hirto, em cima da neve; parecia teso como um cabo de vassoura, quando o ergueu do chão. E agora ali estava Gerald, igualmente duro como uma tábua, mas enroscado como se estivesse dormindo. Contudo, a rigidez era evidente e horrível. Birkin confrangeu-se, tomado de uma imensa dor. O quarto devia ser aquecido para se poder desenregelar o cadáver. Os membros se partiriam como gelo, ou como madeira, se os forçassem a tomar a devida posição.
Aproximou-se e tocou a face do morto, e de novo as suas entranhas sensíveis se contraíram mortificadas por uma terrível angústia. Pensou se ele próprio não estaria também sendo congelado. No bigode curto e louro de Gerald o último sopro da vida solidificara-se num pequeno pedaço de gelo, por baixo das narinas.
Eis o que era agora Gerald!
Apalpou outra vez os cabelos ásperos, de cor quase luminosa naquele corpo abandonado. Estavam frios, frios: dir-se-iam até maléficos. O coração de Birkin começou a endurecer. Tinha estimado tanto o outro! Mas, agora, olhando para aquelas formas elegantes, para o rosto estranhamente colorido, com o seu nariz fino e apertado, com as suas maçãs viris, achava tudo frio e rijo como uma pedra de gelo. Tinha querido tanto a Gerald! Que diferença havia entre pensar e sentir? O cérebro tornava-se semelhante à água quase a congelar. Tão frio, tão frio! Nos braços julgava ter uma montanha de neve e um peso mais frio ainda o dominava por dentro, no coração e nas entranhas.
Depois saiu, e foi ver o local onde se verificara o acidente, chegando finalmente à concavidade situada no meio do desfiladeiro, perto da garganta da montanha. O dia estava cinzento e era o terceiro de uma série de dias tristonhos e calmos. Tudo em redor era branco, nevado, pálido, exceto as rochas negras que, às vezes, pareciam raízes salientes e outras vezes se mostravam perfeitamente lisas e nuas. A certa distância descia uma vertente quase a pique, onde se notavam manchas de rochedos escuros.
Aquele lugar evocava uma panela pouco funda que jazesse entre neve e pedregulhos, num mundo perto das nuvens. Ali adormecera Gerald. Em volta os guias tinham pregado estacas de ferro, de maneira a poderem içar-se com o auxílio de uma comprida corda amarrada a elas; assim atingiriam, para além dos cimos denteados, a área de neve endurecida, que se confundia como havia picos aguçados erguidos para o firmamento, como compridos pregos muito alvos.
Gerald poderia ter encontrado aquela corda. Poderia ter subido por ela ate à crista da montanha. Poderia ter ouvido os cães na Marienhutte e achar ali um abrigo. E ainda poderia ter descido o flanco do lado sul, até o vale dos pinheiros e alcançar a estrada imperial que segue para a Itália.
Sim, teria podido! E depois? A estrada imperial? O sul? A Itália? E depois, depois? Seria uma saída? Ou antes, uma forma de regressar? Birkin, parado naquelas alturas, naquela atmosfera angustiante, olhava para os picos e para o caminho meridional. Haveria vantagem em seguir para o sul, para a Itália? Em descer pela velha estrada imperial?
Resolveu voltar. Ou seu coração se partiria, ou teria que deixar de se atormentar. Mais valia acabar com aquele sofrimento. Seja qual for o mistério que criou o homem no universo, trata-se de um mistério extra-humano, tem os seus fins próprios, e o homem não lhe serve de critério. Antes deixar de parte todo esse mistério tão vasto da criação. Preferível ocupar-se de si mesmo, e abandonar os problemas universais.
"Deus não pode passar sem o homem." Eis o que disse um dos grandes mestres religiosos da França. Mas, com certeza, o aforismo é falso. Deus pôde dispensar o ictiossauro e o mastodonte. Estes monstros não conseguiram desenvolver-se na criação, e Deus, mistério criador, acabou por dispensá-los. Da mesma forma podia desinteressar-se do homem, se este não lograsse progredir no mundo. O eterno mistério da criação disporia da humanidade, substituindo-a por uma espécie de seres mais per feitos. Exatamente como o cavalo tomou o lugar do mastodonte.
Tal ideia serviu de grande consolo a Birkin. Se a humanidade enveredar por um beco sem saída, se esgotar aí as suas energias, a força criadora produzirá outros entes, mais delicados, maravilhosos, e uma raça nova ajudará melhor o processo da criação. Esse trabalho não acabará nunca. O segredo da vida é insondável, infalível, inesgotável e eterno. As raças aparecem e desaparecem, as espécies passam e morrem, mas dão lugar a que outras surjam, mais belas ou tanto como as anteriores, porém sempre dignas de admiração. A fonte, a origem e incorruptível e não seca jamais. É impenetrável e não tem limites. Pode produzir milagres, inventar novas raças e novas espécies, sempre que lhe apetecer, novas formas de espírito e de corpo. Ser homem não é nada comparado com as possibilidades do mistério criador. Conseguir formar um coração palpitante de vida é a perfeição, perfeição inultrapassável. Humano ou sobre-humano, isso não tem importância. O coração perfeito estremece cheio de vitalidade e denuncia uma espécie nova, ainda não nascida.
Birkin voltou à hospedaria para tornar a ver Gerald. Entrou no quarto mortuário e sentou-se à beira da cama. Morto, morto e tão frio!

César, tirano, morto, em pó se fez... Agora serve
Para vedar alguma fenda, interceptando o ar...

Versos do 5º ato do Hamlet - A citação de Lawrence, feita decerto de memória, não é textual - nota da tradutora).
Nenhum eco do que havia sido Gerald. Só uma substância estranha, gelada, nada mais. Nada mais!
Terrivelmente cansado, Birkin saiu para se ocupar das formalidades a cumprir. Fez tudo cheio de calma, sem a menor perturbação. Declamar, delirar, assumir atitudes de tragédia, tudo isso causaria complicações inúteis. Era melhor conservar-se calmo e suportar os fatos com a alma paciente, sossegada.
Mas quando voltou, à noite, e viu Gerald entre dois castiçais, ele, que ali fora atraído pela exigência da amizade, sentiu o coração apertado e a própria vela que tinha na mão esteve a cair; soltou um gemido, e as lágrimas rebentaram-lhe de súbito. Sentou-se numa cadeira, tomado por um repentino pranto. Úrsula, que o havia seguido, recuou espantada, ao dar para o marido de cabeça baixa e com o corpo sacudido pelos soluços. O choro que o agitava fazia um rumor horrível e singular.
"Não queria que isto acontecesse, não queria", repetia ele consigo mesmo. Úrsula não pôde deixar de lembrar-se das palavras do Kaiser: "Ich habe es nicht gewollf." - Não tinha desejado isto - nota do tradutora). Olhou para Rupert, quase aterrada.
Ele se calou, de repente, mas ficou com o corpo inclinado, escondendo o rosto nas mãos. Enxugou, às escondidas, as lágrimas que tinha nos olhos. Mas no mesmo instante ergueu fitou a mulher com olhos sombrios e rancorosos.
- Era preferível que ele me tivesse estimado. Tantas vezes eu lhe propus...
A outra, muito pálida e assustada, murmurou sem descerrar lábios:
- Que teriam lucrado com isso?
-Muito - volveu ele. Muito!
Esqueceu-se da mulher e tornou a olhar para Gerald. Com o rosto estranhamente levantado, como quem se indigna por algum insulto acabado de ouvir, numa atitude orgulhosa. Birkin examinou o rosto mudo, frio, material, do cadáver, que tinha uma cor azulada. Aquele rosto lançava flechas de gelo ao coração de Birkin. Frio, mudo, material? Rupert lembrava-se como uma vez Gerald lhe apertara a mão de forma quente e afetuosa, um significativa de amizade definitiva. Mas aquilo durara um segundo depois desaparecera, desaparecera para sempre. Se Gerald houvesse mantido fidelidade à promessa, a morte não teria tanta importância. Os que morrem e que, antes de morrer, são suscetíveis de crer e de amar, permanecem vivos, não cessam de existir. Perduram no ente amado. Gerald poderia viver ainda no tirito de Birkin, mesmo depois do seu acidente. Viveria com seu amigo a vida do além.
Mas ali estava, destruído, como argila, como gelo corrompido. Birkin observou-lhe os dedos azulados, contemplou aquela massa inerte. Recordou-se de um cavalo morto que um dia encontrara: substância repugnante de um corpo que fora másculo. Recordou-se também da bela face de certa pessoa que ele havia amado tanto e que morrera julgando ceder ao mistério da natureza essas feições, mesmo paradas eram formosas, ninguém as poderia supor frias, mudas, materializadas. Ninguém as evocaria sem acreditar no mistério, sem que uma fé nova e profunda na vida deixasse de vir aquecer-lhe a alma.
E Gerald? Aquele cético! Deixava os corações frios, gelados, incapazes de palpitar. O pai dele era tão introvertido que chegava a incomodar: mas não tinha aquele aspecto terrível da matéria muda. Birkin não se cansava de examiná-lo.
Úrsula, de pé ao lado do marido, não deixava de acompanhar os movimentos deste em sua contemplação ao rosto do morto. Eram duas faces igualmente imóveis. A chama das velas oscilava no ar glacial, no meio do silêncio intenso.
- Ainda não o viu bastante? - perguntou a mulher.
Rupert levantou-se, dizendo:
- É tão doloroso para mim!
- O quê? A morte dele?
Os olhares dos dois se encontraram. Rupert conservou-se calado.
- Você tem a mim - prosseguiu ela.
O marido sorriu e beijou-a.
- Se eu morrer, saberá que eu não a abandonei.
- E eu?
- Você também não me abandonará. Não precisaremos separar-nos na morte.
Úrsula tomou-lhe a mão.
- Sente necessidade de sofrer tanto por causa de Gerald? - inquiriu ela.
- Sinto - respondeu o marido.

 

Partiram. O cadáver de Gerald foi enviado para a Inglaterra, onde devia ser enterrado. Birkin e Úrsula acompanharam o cadáver juntamente com um irmão do defunto. Os irmãos Criches é que insistiam pela inumação no solo da pátria. Birkin achava preferível ter deixado o morto nos Alpes, debaixo da neve. Mas a família opôs-se com grandes protestos.
Gudrun foi para Dresden. Não escreveu de lá, pormenorizadamente, para ninguém. Úrsula ficou com o marido no moinho durante algumas semanas. Estavam ambos muito tranquilos.
- Sente falta de Gerald? - perguntou ela um dia.
- Sinto.
- Não sou bastante para você?
- Não - respondeu ele. - Você me satisfaz como mulher. Para mim você resume todas as mulheres. Mas sinto falta de um homem como amigo, tão eterno como você e eu.
- É por que não sou suficiente? Você é tudo para mim. Não quero mais ninguém além de você. Por que não acontece o mesmo com você?
- Junto a você, Úrsula, posso passar a vida sem mais ninguém. Mas, para que a nossa vida seja completa, realmente feliz, necessito de uma união eterna com um homem também; é outra espécie de afeição.
- Não compreendo isso - volveu ela - É uma teimosia, uma teoria, uma perversidade.
- Talvez... - concordou ele.
- Não se pode ter duas espécies de amor. Por que você há de ser assim?
- Vejo que é impossível para eu satisfazer esse desejo. No entanto, queria-o imensamente.
- Nunca me seria possível. É coisa falsa, irrealizável.
- Não penso assim - foi a resposta de Birkin.

                                                                  D.H. Lawrence

 

 

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