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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MUTAÇÃO - P.2 / Robin Cook
MUTAÇÃO - P.2 / Robin Cook

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

 

 

 

Uma vez lá dentro, Victor dirigiu-se para o telefone, ao passo que Marsha tentava conversar com o filho. De certeza que ele tinha de ter pena do animal. Victor conseguiu contactar com a esquadra de North Andover. A telefonista garantiu-lhe que um carro-patrulha seguiria de imediato para lá.

 

Desligou o aparelho e voltou para a sala. VJ subia os degraus da escada de serviço a dois e dois. Marsha estava sentada no sofá, de braços cruzados e com uma expressão zangada. Era mais do que óbvio que a sua irritação aumentara depois de o filho ter visto a gata.

 

— Vou contratar uma equipa de segurança até termos resolvido tudo isto — disse ele. — Quero que fiquem a observar a casa tanto de noite como de dia.

 

— Acho que já devíamos ter feito isso há mais tempo.

 

Victor encolheu os ombros. Acabou por se sentar no sofá, sentindo-se subitamente cansado.

 

— Sabes o que o VJ me respondeu quando lhe perguntei como se sentia? — quis ela saber. — Disse-me que sempre podíamos arranjar outro gato.

 

— Isso parece-me ser uma atitude bastante madura. Pelo menos, revela que ele é racional.

 

— Victor, já tínhamos a Kissa há anos. Era normal que ele se emocionasse, que chorasse a perda que sofreu. —Marsha engoliu em seco. — Creio tratar-se de uma reacção fria e distante. — Tinha esperança de não perder a compostura enquanto estivesse a falar a respeito do filho, mas, por muito que as tentasse reprimir, os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.

 

Ele voltou a encolher os ombros. Aquilo que menos queria era envolver-se numa outra discussão psicológica. O rapaz estava óptimo.

 

— A falta de emoções nunca é um bom sinal. — conseguiu ela dizer, esperando conseguir a aprovação do marido.

 

Contudo, ele permaneceu calado.

 

— Em que estás a pensar? — acabou Marsha por perguntar.

 

— Para te falar com franqueza, tenho andado algo preocupado. Ainda há pouco, antes de o VJ ter aparecido, estava a falar-te do Gephardt. Quando vinha para casa, fui fazer-lhe uma visita e nem queiras saber a cena com que deparei. Ele e toda a família foram hoje assassinados. Cravejados de balas de metralhadora a meio da tarde. Foi um autêntico massacre. — Passou as mãos pelo cabelo. — Fui eu que chamei a polícia.

 

— Que horror! — exclamou ela. — Meu Deus, que é que se está a passar? — Olhou para o marido. Ao fim e ao cabo, tratava-se do marido, do homem que amara durante todos estes anos. — Sentes-te bem? — acabou por lhe perguntar.

 

— Mais ou menos — respondeu, embora sem qualquer convicção.

 

— O VJ estava contigo?

 

— Sim, mas ficou no carro.

 

— Sendo assim, não assistiu a nada? Victor fez que não com a cabeça.

 

— Graças a Deus. A polícia chegou a descobrir o motivo que levou a todas essas mortes?

 

— Acham que tem qualquer coisa a ver com a droga.

 

— Que coisa mais horrível! — exclamou Marsha, ainda atordoada. — Queres que te vá arranjar uma bebida? Talvez um copo de vinho?

 

— Acho que preciso de algo mais forte, um uísque.

 

— Deixa-te ficar aí sentado — ordenou ela. Dirigiu-se ao bar e preparou uma bebida para o marido. Talvez estivesse a ser demasiado dura com ele, mas tinha de o fazer prestar mais atenção ao filho. Decidiu voltar à carga. Entregando-lhe o copo, começou:

 

— Hoje também tive uma experiência desagradável, se bem que totalmente diferente da tua. Fui à escola do VJ falar com o director.

 

Ele deu uma golada na bebida.

 

Só então Marsha lhe contou a conversa que tivera com Mr. Reemington. Para terminar, perguntou-lhe porque razão nunca discutira com ela o assunto de conceder autorizações ao filho para que faltasse às aulas.

 

— Mas eu nunca o autorizei a faltar à escola — retorquiu ele.

 

— Quer dizer que nunca escreveste um sem-número de bilhetes dizendo que ele podia faltar às aulas e ir para o laboratório?

 

— Claro que não!

 

— Já receava isso. Acho que estamos com um problema sério entre mãos. Mentiras deste tipo já são um sintoma sério.

 

— Sempre me pareceu que ele estava demasiado tempo no laboratório, mas, quando lhe perguntei a razão para isso, disse-me que a escola o mandara fazer uma série de experiências práticas. É, dado que as suas notas sempre foram boas, nunca me interroguei a este respeito.

 

— A Pauline Spaulding também me disse que o nosso filho passa a maior parte do tempo no laboratório — acrescentou Marsha. — Pelo menos, desde que a sua inteligência baixou.

 

— O VJ sempre passou muito tempo no laboratório — acabou Victor por admitir.

 

— E que é que ele faz?

 

— Muitas coisas. Começou por se ocupar com uma série de experiências químicas básicas, serve-se do microscópio e diverte-se com uma série de jogos de computador que aluguei para ele. Não sei ao certo, limita-se a andar por ali. Toda a gente o conhece. Gostam bastante dele. Sabes bem como ele se distrai sozinho.

 

A campainha da porta da frente tocou e tanto Victor como Marsha levantaram-se e receberam a polícia de North Andover.

 

— Sou o sargento Cerullo — anunciou um homem bastante grande e que envergava um uniforme. As suas feições eram algo indistintas e amontoavam-se num rosto bastante gordo. — E este aqui é o guarda Hood. Lamentamos muito o que aconteceu ao gato. Temos feito os possíveis por vigiar a casa desde o dia em que o Widdicomb aqui esteve, mas é bastante difícil. Para além do mais, está algo afastada da estrada principal.

 

Dito isto, e tal como Widdicomb fizera na noite de terça-feira, o sargento Cerullo pegou num lápis e num bloco-notas Victor levou-os até junto da porta da garagem. Hood tirou várias fotografias a Kissa e só depois os dois polícias começaram a vasculhar a área. Victor ficou bastante agradecido quando Hood se ofereceu para despregar a gata, chegando mesmo a ajudar a abrir uma cova junto de uma fila de tílias.

 

De volta a casa, Victor perguntou-lhes se conheciam alguém a quem pudesse contratar como segurança. Forneceram-lhe os nomes de várias firmas locais.

 

— E já que estamos a falar de nomes — atalhou Cerullo — , tem alguma ideia de quem teria sido capaz de fazer isto à sua gata?

 

— Consigo pensar em duas pessoas — respondeu ele. — Sharon Carver e William Hurst.

 

O sargento tomou nota dos nomes. Victor não mencionou Gephardt nem mesmo Ronald Beekman. Este último seria incapaz de fazer uma coisa deste tipo.

 

Depois de os polícias saírem, telefonou a ambas as firmas que lhe haviam sido recomendadas. Era mais que óbvio que era bastante tarde. Tudo o que conseguiu foi ser atendido por gravadores, tendo sido obrigado a deixar o nome e o número de telefone do local de trabalho.

 

— Acho que é melhor irmos os dois falar com o VJ — anunciou Marsha.

 

Pelo tom de voz, Victor sabia que não havia nada que a fizesse desistir. Limitou-se a acenar e seguiu-a pelas escadas. O garoto tinha a porta aberta e entraram sem bater.

 

VJ fechou um dos seus volumosos álbuns de selos e colocou o pesado volume na prateleira, que se encontrava por cima da secretária.

 

Marsha observou o filho. Este olhava para os pais com alguma ansiedade, quase como que possuído de alguma culpa, tal como se o tivessem apanhado a fazer uma qualquer malandrice. O facto de estar entretido com um álbum de selos não fazia aqui qualquer sentido.

 

— Queremos falar contigo — começou ela.

 

— Está bem — concordou o rapaz. —A respeito de quê? Subitamente, Marsha ficou com a impressão de que o filho não passava do garoto de dez anos que de facto era. Parecia-lhe tão vulnerável que teve de se dominar para não se baixar e pegar nele. Contudo, a hora era de gravidade. — Hoje fui à Pendleton Academy e falei com o director. Ele disse-me que tens apresentado bilhetes assinados pelo teu pai autorizando-te a saíres da escola e a ires para a Chimera. É verdade?

 

Dada a experiência profissional que tinha, Marsha esperava que o filho começasse por negar a acusação, e, quando visse que lhe era impossível continuar a fazê-lo, deitasse mãos de uma qualquer desculpa que lhe fosse exterior. Contudo, não foi assim que o garoto agiu.

 

— Sim, é verdade — admitiu. — Lamento ter-vos enganado. Peço desculpa pelo embaraço que o facto vos possa ter causado. Não era nada disso que eu queria.

 

Durante breves instantes, Marsha sentiu-se como um peixe fora de água. Teria dado tudo para ouvir a negação própria de qualquer criança. Mas, até aqui, VJ era diferente dos outros. Deitou um olhar ao marido. Este levantou as sobrancelhas, mas continuou calado.

 

— A única desculpa que tenho é que continuo a ter boas notas— continuou VJ. —Achei que essa era a minha maior responsabilidade.

 

— No entanto, é suposto encarares a escola como um desafio— disse o pai, que suspeitava que toda aquela calma estivesse a surpreender a mulher. — Se a escola é assim tão fácil, devias avançar. Ao fim e ao acabo, já tem havido casos de crianças da tua idade que foram para a universidade e chegaram mesmo a concluir as licenciaturas.

 

— Esse tipo de miúdos é sempre encarado como uma aberração — replicou o rapaz. — Para além do mais, não estou interessado na teoria. Tenho aprendido muito no laboratório, muito mais do que na escola. Quero dedicar-me à pesquisa.

 

— Por que é que não vieste conversar comigo a este respeito? — inquiriu Victor.

 

— Porque me pareceu ser a maneira mais fácil. Tinha medo que se te pedisse para passar mais tempo no laboratório, tu acabasses por dizer que não.

 

— O facto de julgares saber o resultado de uma conversa não te deveria impedir de a ter — retorquiu o pai.

 

VJ acenou com a cabeça.

 

Victor olhou para a mulher para ver se esta se encontrava prestes a dizer mais alguma coisa. Pensativa, Marsha, mordia o interior da bochecha. Ao sentir que o marido a olhava, encarou-o. Ele encolheu os ombros. Ela fez o mesmo.

 

— bom, havemos de voltar a falar a este respeito — concluiu. Depois disto, tanto ele como Marsha abandonaram o quarto do filho e desceram as escadas.

 

— Bem — disse Victor —, pelo menos não mentiu.

 

— É precisamente isso que não entendo — contrapôs ela. — Tinha a certeza absoluta de que ele ia negar tudo. — Pegou no copo de vinho, refrescou-o e sentou-se numa das cadeiras que se encontravam à volta da mesa da cozinha. — É difícil saber o que vai sair daquela cabeça.

 

— Mas o facto de ele não ter mentido é bom sinal, não é? — perguntou Victor, encostando-se à bancada.

 

— Para falar com franqueza, não, não é. Nas actuais circunstâncias, e para uma criança da idade dele, não tem nada de normal. Está bem, ele não mentiu, mas também não mostrou qualquer sinal de estar arrependido. Reparaste?

 

Victor girou os olhos.

 

— Tu nunca estás satisfeita, pois não? bom, de qualquer das formas, acho que isto não é assim tão importante. Quando andava no liceu, também faltei a uma série de aulas. Acho que a única diferença reside no facto de eu nunca ter sido apanhado.

 

— Não é a mesma coisa — contrariou ela. — Esse tipo de comportamento é típico da rebelião da adolescência. É por isso que só no liceu é que fizeste essas coisas. O VJ está apenas no 5.” ano.

 

— Não me parece que o facto de ter falsificado meia dúzia de bilhetes, principalmente quando se está a sair bem na escola, signifique que o nosso filho se vá lançar na senda do crime. Por amor de Deus, o miúdo é um prodígio! Falta à escola para ir para o laboratório. Pela maneira como falas, quase que se fica com a impressão de que o garoto anda metido na droga.

 

— Não estaria tão preocupada se as coisas não passassem daqui. No entanto, há uma série de factos que fazem que o nosso filho não apresente um comportamento normal. Não acredito que não dês por eles.

 

Foi interrompida pelo barulho de algo a partir-se no quintal.

 

— Que foi isto? — perguntou Victor.

 

— Pareceu-me que vinha da garagem.

 

Ele correu para a sala e acendeu a luz. Tirou uma lanterna de pilhas do armário, foi até à janela e espreitou para o pátio. Marshha seguiu-o.

 

— Estás a ver alguma coisa?

 

— Daqui não — respondeu ele, correndo para a porta.

 

— Não me vais dizer que vais lá fora, pois não?

 

— Vou ver o que se passa.

 

— Victor, sabes bem que não deves ir lá fora sozinho. Ignorando-a, seguiu até ao carreiro em bicos de pés. Agarrada à sua camisa, Marsha seguiu-o. Vindo da porta da garagem, ouviu-se um ligeiro raspar. Victor começou por apontar a lanterna na direcção de onde vinha o ruído e só depois a acendeu.

 

A luz descobriu um par de olhos brilhantes que os fitava, tendo-se estes depois embrenhado na noite.

 

— É um guaxinim! — exclamou Victor, aliviado.

 

SEXTA-FEIRA DE MANHA

Quando Victor chegou ao escritório, o assassínio da gata voltara a fazer que se irritasse. Dado que a preocupação que a mulher sentia pelo filho se agravava, todas aquelas ameaças vinham contribuir para aumentar o problema. Sabia que tinha de agir depressa para com isso impedir outro ataque, principalmente agora, que se estavam a tornar cada vez piores. Depois da gata, qual poderia ser o próximo alvo? Estremeceu só de considerar as outras possibilidades.

 

Arrumou o carro no lugar que lhe estava destinado e desligou o motor. VJ e Philip, que haviam seguido no banco traseiro, saíram a correr e dirigiram-se para a cafetaria. Victor ficou a observá-los, perguntando-se se Marsha não teria razão e o filho não constituiria um perigoso caso psiquiátrico. A noite passada, depois de se terem deitado, a mulher contara-lhe o que Mr. Remington lhe dissera a respeito das brigas em que VJ se envolvera. Esta informação chocara-o mais do que qualquer outra. Não parecia ser nada próprio do filho. Era incapaz de acreditar que o facto fosse verdade. E, se o fosse, não sabia como o encarar. De certa forma, sentia-se orgulhoso do rapaz. Ao fim ao cabo, seria assim tão mau uma pessoa defender-se? Até mesmo o próprio Mr. Remington parecia admirado com o modo como o rapaz tomara conta da situação.

 

— Que se lixe!—exclamou, saindo da viatura e dirigindo-se para a porta da frente. Vindo de parte nenhuma, apareceu-lhe à frente um homem com um uniforme de polícia.

 

— Dr. Victor Frank? — inquiriu.

 

— Sim.

 

O homem entregou-lhe uma encomenda.

 

— Tem aqui isto. Veio do escritório do xerife. Muito bom dia.

 

Victor abriu o envelope e viu que se tratava de uma convocatória para ir prestar declarações a tribunal, a propósito de uma determinada queixa. A página da frente apresentava o seguinte título: Sarou Carver contra Victor Frank e a Chimera, Inc.”.

 

Não precisou de ler mais nada. Sabia do que se tratava. Sharon sempre decidira avançar com tal processo baseado numa qualquer descriminação sexual. Teve vontade de rasgar os papéis e de os deitar fora. O facto só contribuiu para o irritar ainda mais e, à medida que subia os degraus que levavam ao interior do edifício, sentia-se a deitar fumo.

 

No escritório vivia-se uma atmosfera carregada de tensão. Reparou que as pessoas o olhavam quando passava e que ficavam a murmurar entre si depois de ele se ter afastado. Quando chegou ao seu gabinete, e depois de ter tirado o casaco, perguntou a Colleen o que se passava.

 

— Você transformou-se numa celebridade — esclareceu ela. — Vinha nos jornais que foi o primeiro a tomar conhecimento da morte de Gephardt e da família.

 

— Era mesmo disso que eu precisava — retorquiu. Foi até à secretária. Antes de se sentar, entregou a Colleen a convocatória do tribunal, dizendo para a enviar para o departamento jurídico. Só depois se sentou. — E quanto a boas notícias?

 

— Muitas. — A secretária entregou-lhe um papel. — Trata-se de um relatório preliminar sobre as pesquisas de Hurst. Ainda agora começaram e já encontraram irregularidades. Acharam que devia tomar conhecimento do facto.

 

— O que vale é que você só me dá boas notícias — comentou ele antes de pegar no relatório. Tendo em conta a reacção de Hurst face à decisão que tomara de averiguar a matéria, já calculava vir a encontrar irregularidades, muito embora não contasse vir a descobri-las tão depressa. Tinha esperança de que Hurst fosse um pouco mais subtil. —Que mais? — perguntou, pondo de parte o relatório.

 

— Tem uma reunião de direcção marcada para a próxima quarta-feira. Vai ser discutida a venda das acções — informou a secretária, ao mesmo tempo que lhe entregava uma nota a esse respeito.

 

— É a mesma coisa que receber um convite para ir jogar à roleta russa — comentou, agarrando o papel. — Que mais?

 

Colleen começou a percorrer a lista, desfolhando uma série de problemas, a maior parte dos quais insignificantes, mas que, mesmo assim, tinham de ser resolvidos. Dependendo das reacções de Victor, ia tomando notas. Demoraram cerca de meia hora a resolver tudo aquilo.

 

— Agora é a minha vez — disse ele. — Recebi algum telefonema de duas firmas de segurança?

 

Colleen fez que não com a cabeça.

 

— Está bem. Agora quero que pegue no telefone e que use todo o seu encanto para descobrir onde é que Ronald Beekman, Sharon Carver e William Hurst se encontravam ontem, ao meio-dia.

 

A secretária anotou o que lhe era pedido e ficou à espera de mais ordens. Quando viu que não havia mais nada, despediu-se e voltou ao seu posto.

 

Victor começou a despachar a enorme pilha de papéis que se encontrava à sua frente.

 

Trinta minutos mais tarde, Colleen estava de volta trazendo os seus apontamentos.

 

— Tanto o Dr. Beekman como o Dr. Hurst passaram o dia aqui, na Chimera, muito embora este último tenha desaparecido durante a hora de almoço. Ninguém o viu na cafetaria. Quanto a Miss Carver, não descobri nada a seu respeito.

 

Victor acenou e agradeceu-lhe. Pegou no telefone e experimentou marcar o primeiro número que anotara e que pertencia a uma das firmas de segurança, a qual dava pelo nome de Able Protection. Atendeu-o uma voz de mulher. Depois de ter esperado durante um bocado, foi a vez de ouvir um homem de voz profunda, com o qual combinou mandar vigiar a casa onde vivia entre as seis da tarde e as seis da manhã.

 

A secretária regressou com um papel que colocou mesmo debaixo do nariz do patrão.

 

— Aqui tem a relação do equipamento que Gephardt conseguiu fazer desaparecer.

 

Victor examinou a lista: um microscópio electrónico, centrifugadores, sintetizadores de pólipos, etc.

 

— Um microscópio electrónico!—exclamou. —Como é que isto desapareceu? Como é que este tipo conseguiu fazer tudo isto desaparecer? Quero dizer, um microscópio electrónico tem de ter um mercado reduzido, não é? — Como que à procura de uma resposta, fitou a secretária. Recordou-se da carrinha que vira estacionada à porta de Gephardt.

 

— Não faço a mínima ideia — foi tudo o que ela conseguiu dizer.

 

— Foi uma pena ele ter conseguido fazer estas falcatruas durante tanto tempo. Pelo menos ficamos a ter uma ideia do estado em que os nossos sistemas de contabilidade e de segurança se encontram.

 

Eram já onze e meia quando se conseguiu escapulir do escritório pela porta dos fundos e dirigir-se para o laboratório. Todo o trabalho burocrático que realizara até então exasperara-o ainda mais. Contudo, começou a desanuviar assim que entrou no laboratório. Tratava-se de uma resposta imediata, quase que inconsciente. A razão que o levara a fundar a Chimera fora a investigação, não o trabalho burocrático.

 

Victor dirigia-se para a porta do seu gabinete de trabalho quando uma das empregadas se precipitou ao seu encontro.

 

— O Robert anda à sua procura — disse-lhe. —Pediu-nos que o avisássemos assim que o víssemos.

 

Ele agradeceu-lhe e foi à procura do outro. Acabou por o encontrar na unidade de electrólise.

 

— Dr. Frank! — exclamou o homem com satisfação. — Duas das amostras que nos trouxe tiveram resultados positivos.

 

— Quer dizer que...

 

— As duas análises de sangue que me deu revelaram vestígios de cefaloclor.

 

Victor ficou gelado. Durante uns instantes não conseguiu sequer respirar. Quando entregara as amostras a Robert, não estava à espera que os resultados fossem positivos. Queria apenas certificar-se de que não se esquecia de nada, mais ou menos como um estudante de Medicina encarregado de um trabalho de rotina.

 

— Tem a certeza? — Victor tinha alguma dificuldade em articular as palavras.

 

— Foi o que o Harry disse, e ele não se costuma enganar. Não estava à espera disto?

 

— Não — acabou por admitir. Não conseguia deixar de pensar nas implicações que daí adviriam se isto fosse verdade. Voltou-se para Robert e acrescentou: —Quero que os resultados sejam confirmados.

 

Sem mais uma palavra, deu meia volta e regressou ao laboratório. Numa das gavetas da sua secretária havia um pequeno frasco de cápsulas de cefaloclor. Pegou numa e dirigiu-se à zona principal do laboratório. Atravessou a sala onde se dissecavam os animais e seguiu para a área das gaiolas. Uma vez aí chegado, pegou em dois dos seus ratos “espertos”, colocou-os numa gaiola vazia e adicionou o conteúdo das cápsulas à água. Ficou a ver o pó branco a dissolver-se e depois colocou o recipiente preso às grades.

 

Abandonou o departamento de biologia e avançou ao longo do corredor até alcançar o de imunologia. Foi de imediato ao encontro de Hobbs.

 

— Que tal se sente, agora que está de volta ao trabalho? — quis ele saber.

 

— Ainda não me consigo concentrar a cem por cento — admitiu o outro —, mas já estou muito melhor. Estou aqui e tenho com que me ocupar. Lá em casa estava a dar em doido. Passava-se a mesma coisa com a Sheila.

 

— Ficamos felizes por o ter de volta — acrescentou. —Queria perguntar-lhe mais uma vez se não terá havido qualquer hipótese de o seu filho ter tomado cefaloclor.

 

— De maneira nenhuma — respondeu o homem. —Porquê? Acha que foi o cefaloclor que despoletou o edema?

 

— Se ele não o tomou, então não pode ter sido essa a causa — concluiu Victor, de forma a dar o assunto por encerrado. Deixando para trás um Hobbs algo confuso, dirigiu-se à secção de contabilidade, com vista a interrogar Murray. A resposta que obteve foi a mesma. Não havia qualquer hipótese de ambas as crianças terem tomado o antibiótico.

 

Já de volta ao laboratório, Victor passou pelo centro de informática. Entrou, foi à procura de Louis e interrogou-o sobre os planos para aquela noite.

 

— Está tudo a postos — respondeu Louis. — Os homens da companhia dos telefones vão chegar por volta das seis, dando início aos preparativos. Só precisamos que o intruso nos contacte e esteja em linha o tempo suficiente. vou fazer figas para que isso aconteça.

 

— Eu também. vou estar no laboratório. Se ele tentar entrar em linha, mande alguém avisar-me. Virei imediatamente.

 

— Claro que sim, Dr. Frank.

 

Continuando o seu caminho para o laboratório, Victor ia fazendo os possíveis para não começar a especular. Foi só depois de se ter sentado que se permitiu tecer considerações sobre o significado do cefaloclor na corrente sanguínea das duas infelizes crianças. Era mais do que evidente que alguém lhes ministrara o antibiótico. Não havia qualquer dúvida de que fora ele a provocar a entrada em actividade do FCN, que, uma vez activado, teria estimulado as células nervosas ao ponto de estas se começarem a dividir. Dado que os crânios já estavam formados, o cérebro só se podia expandir até um determinado limite. Sem que ninguém desse pelo facto, as células nervosas começaram a descer a espinal medula, tal como fora revelado na autópsia das crianças.

 

Estremeceu. Dado que nenhum dos rapazinhos podia ter tomado o cefaloclor por acidente, e dado que este lhes devia ter sido ministrado sensivelmente ao mesmo tempo, Victor foi obrigado a concluir que ambos haviam recebido o antibiótico numa tentativa deliberada para os matar.

 

Esfregou o rosto com força e passou a mão pelo cabelo. Por que razão é que alguém estaria interessado em matar dois bobes prodigiosamente inteligentes? E de quem se poderia tratar?

 

Victor mal se podia conter. Levantou-se e começou a andar pela sala. A única coisa que lhe vinha à cabeça era pouco plausível: um qualquer reaccionário moralista tomara conhecimento da experiência do FCN. À laia de vingança, e para comprometer os seus esforços, o louco assassinara os bebés Hobbs e Murray.

 

No entanto, se esta hipótese estivesse correcta, por que razão teriam os ratos escapado incólumes? E quanto a VJ? Para além do mais, eram poucas as pessoas que tinham acesso ao computador e aos laboratórios. Lembrou-se do intruso que apagara as fichas. Mas como é que seria possível para essa pessoa ter acesso aos laboratórios e até mesmo à creche? Foi nesse preciso momento que compreendeu que a creche era o único traço comum existente na vida de ambas as crianças. Apenas aí lhe podiam ter ministrado o cefaloclor!

 

Zangado, lembrou-se da ameaça de Hurst: “Você não é o santinho que nos quer fazer parecer que é.” Talvez que ele soubesse tudo a respeito do projecto FCN e esta fosse a forma que arranjara para se vingar.

 

Victor recomeçou a andar de um lado para o outro. Mesmo assim, esta última hipótese não se encaixava nos factos. Se Hurst ou outra pessoa qualquer se quisessem vingar, por que não servirem-se dos velhos métodos de chantagem ou limitarem-se a contar tudo aos jornais? Fazia bastante mais sentido do que matar crianças inocentes. Não, tinha de haver outra explicação, algo de mais sinistro e de menos óbvio.

 

Sentou-se à secretária e pegou nos resultados de umas quantas experiências laboratoriais, decidido a trabalhar um pouco. No entanto, era incapaz de se concentrar. Não conseguia deixar de pensar no projecto FCN. Tendo em conta aquilo que se estava a passar, lamentava bastante não poder contar à polícia as suas suspeitas. Para o fazer, precisaria de revelar as suas experiências com o FCN, e sabia perfeitamente que se tratava de algo que nunca poderia fazer. Equivaleria a um suicídio profissional, já para não falar nas consequências que teria na sua vida familiar. Desejou nunca ter avançado com aquele projecto.

 

Recostou-se na cadeira e colocou as mãos atrás da cabeça, ficando a olhar para o tecto. Quando a inteligência do filho sofrera a tal queda, nunca pensara fazer-lhe a experiência do cefaloclor. Haveria alguma hipótese de o antibiótico ter permanecido no corpo da criança desde o instante em que esta nascera, tendo sido posteriormente libertado na altura em que se verificara a passagem dos três para os quatro anos? “Não”, respondeu ele a si mesmo, sem deixar de olhar para o tecto. Não havia qualquer processo fisiológico capaz de produzir semelhante fenómeno.

 

Victor passou revista à tempestade de acontecimentos que se desencadeara à sua volta: o assassínio de Gephardt, a eliminação deliberada de duas crianças concebidas através de processos de engenharia genética, uma série de ameaças feitas contra ele e a sua família, fraudes e desfalques. Será que todos estes incidentes, para os quais não havia qualquer ligação aparente, faziam parte de uma qualquer conspiração macabra?

 

Abanou a cabeça. O facto de tudo isto estar a acontecer ao mesmo tempo só podia ser uma coincidência. Contudo, não conseguia deixar de pensar que talvez existisse uma ligação. Voltou a pensar no filho. Será que este corria algum risco? Se havia alguma mão sinistra disposta a tentar dar-lhe cefaloclor, será que ele o poderia impedir?

 

Olhava em frente sem nada ver. Desde a tarde de quarta-feira que não deixava de pensar que o filho talvez estivesse em perigo. Começou a perguntar-se se os avisos que lhe fizera a respeito de Beekman e de Hurst haviam sido os mais apropriados. Levantou-se e foi até à porta. Subitamente, a ideia de que VJ andava sozinho pela Chimera deixou de lhe agradar.

 

Tal como fizera na quarta-feira, começou a perguntar no laboratório se alguém vira o garoto. Contudo, nem ele nem Philip haviam sido vistos. Victor abandonou o edifício e foi até à cafetaria. Aproximava-se a hora do almoço e os empregados andavam numa roda-viva a prepararem tudo para a invasão que se esperava assim que desse meio-dia. Algumas pessoas que preferiam antecipar-se a outras estavam já a comer. Foi ao encontro do gerente, Curt Tarkiington, que supervisionava as operações.

 

— Ando outra vez à procura do meu filho — disse.

 

— Ele ainda não apareceu por aqui. Talvez não fosse má ideia dar-lhe um aparelho para o poder localizar.

 

— Não é má ideia — admitiu. —Quando ele aparecer, é capaz de telefonar à minha secretária?

 

— Claro que sim — prometeu Curt.

 

Victor foi espreitar à biblioteca, que ficava no mesmo edifício, mas não estava lá ninguém. De volta ao exterior, ficou indeciso entre ir à creche ou ao centro de manutenção. Acabou por se dirigir para o portão principal, onde se situava o gabinete do segurança.

 

Depois de ter limpo os pés num tapete de corda, entrou no pequeno edifício que fora construído entre a entrada e a saída do complexo da Chimera. Estavam ali dois homens, um sentado a uma secretária, outro ocupado a abrir e a fechar os portões. Ambos vestiam uniformes castanhos com o emblema da firma na parte superior das mangas. Quando Victor entrou, o homem que estava sentado levantou-se de um salto.

 

— Bom dia — disse o guarda. O seu nome estava escrito no cartão de identificação: “Sheldon Farber”.

 

— Sente-se — pediu Victor num tom amigável. O outro sentou-se. — Tenho uma pergunta a fazer-lhe a respeito do protocolo. Quando uma carrinha ou um camião abandonam os terrenos da firma vai alguém revistá-los?

 

— Sim, sim — respondeu Sheldon. — Sempre.

 

— E se por acaso levam algum equipamento, vocês certificanv -se de que é suposto este aí se encontrar?

 

— Claro. Examinamos a guia de remessa ou ligamos para o centro de manutenção electrónica. Confirmamos sempre tudo.

 

— E se se der o caso de este ser conduzido por um dos funcionários da Chimera?

 

— Não tem importância — respondeu o guarda. — Examinamos sempre tudo.

 

— E se por acaso a viatura for conduzida por algum dos directores?

 

Sheldon hesitou antes de responder.

 

— Bom, nesse caso o procedimento será diferente.

 

— Sendo assim, sempre que aparece uma carrinha conduzida por um dos executivos, vocês deixam-na passar?

 

— Bem, isso não tenho a certeza — disse o outro, bastante nervoso.

 

— De hoje em diante, e não importa quem vá ao volante, quero que todas as carrinhas e camiões sejam revistados. E até mesmo eu não constituo excepção. Estamos entendidos?

 

— Sim, senhor.

 

— Uma outra pergunta: viram o meu filho?

 

— Eu não o vi — disse Sheldon. Depois, virou-se para o homem encarregue de controlar os movimentos do portão e perguntou:

 

— George, viste o VJ?

 

— Só quando ele aqui passou com o Dr. Frank.

 

Sheldon levantou uma das mãos e pediu a Victor para esperar. Virou-se para um aparelho de rádio que estava colocado atrás da secretária e tentou entrar em contacto com Hal, um outro funcionário.

 

— O Hal tem andado por aí durante toda a manhã — explicou. Uma série de ruídos anunciaram a voz do homem. Sheldon perguntou-lhe se tinha visto o VJ.

 

— Vi-o logo de manhã, lá para os lados da barragem — explicou o outro através de uma série de interferências.

 

Victor agradeceu aos seguranças e abandonou o gabinete. Ao lembrar-se de como o filho era voluntarioso, a irritação que sentia aumentou um pouco. Lembrava-se de lhe ter dito quatro ou cinco vezes para se manter afastado do rio.

 

Aconchegou a bata ao corpo e dirigiu-se para o rio. Ainda pensou em voltar ao edifício principal para ir buscar o casaco, mas acabou por desistir. Muito embora a temperatura tivesse descido desde a véspera, ainda não fazia frio.

 

Apesar de o dia ter amanhecido limpo, viam-se agora bastantes nuvens. A brisa que soprava, proveniente de nordeste, trazia consigo o cheiro do mar. Bem alto, nos céus, voavam algumas gaivotas, gritando a plenos pulmões.

 

À sua frente encontrava-se o edifício da torre do relógio, com a réplica do Big-Ben parada nas duas horas e quinze minutos. Victor tomou uma nota mental para, na próxima reunião de directores, trazer à baila o assunto da recuperação da estrutura e do velho relógio.

 

Quanto mais se aproximava do rio, mais alto lhe soava o rugido da água a escorregar pela cascata.

 

— VJ!—gritou, quando se aproximou da margem. Porém, o ruído da água abafou-lhe a voz. Contornou a torre do relógio, atravessou a ponte de madeira que se estendia a partir da cave do edifício e chegou ao cais de granito situado na base da barragem. Ficou a olhar para toda aquela água branca que se precipitava furiosamente em direcção ao oceano. À esquerda, acima da barragem, estava o moinho de água. O líquido que se precipitava para o centro da barragem formava uma espécie de arco verde-esmeralda. A força com que caía era tanta que sentia estremecer o cais de granito. Tudo aquilo era um poderoso testemunho do poder da natureza.

 

Voltou-se e gritou o mais alto que podia:

 

— VJ! —Contudo, não era preciso ter-se dado ao trabalho de o fazer. O filho estava mesmo atrás de si, com Philip a apenas alguns passos dele. — Ah, estás aí! — exclamou. — Tenho andado à tua procura por todo o lado.

 

— Já calculava — retorquiu o garoto. — Que queres?

 

— Quero... — fez uma pausa. Não tinha bem a certeza daquilo que queria. —Que tens andado a fazer?

 

— A divertir-me.

 

— Sabes bem que não te quero a vaguear por aí, principalmente aqui ao pé do rio — disse, com firmeza. Para ser franco, quero que vás para casa. vou mandar um dos motoristas levar-vos, a ti e ao Philip.

 

— Mas eu não quero ir para casa — queixou-se o garoto.

 

— Eu explico-te mais logo — disse. —Mas, por agora, quero que vás para casa. É para teu próprio bem.

 

Marsha abriu a porta do escritório que dava para a entrada e Joyce Hendricks esgueirou-se para fora. Dissera-lhe que vivia apavorada de encontrar alguém conhecido à porta do psiquiatra e ela resolvera ser indulgente. Tinha a certeza de que, passado algum tempo, seria capaz de convencer a outra de que procurar ajuda psiquiátrica não era nenhum estigma social.

 

Depois de ter actualizado a ficha da paciente, enfiou a cabeça na sala de espera e avisou Jean que ia almoçar. A secretária acenou, como que para dizer que recebera a mensagem. Como sempre, estava ocupada ao telefone.

 

Marsha preparava-se para ir almoçar com a Dr.a Valerie Maddox, uma colega de profissão a quem admirava e respeitava e cujo escritório se situava no mesmo edifício. Contudo, e mais do que colegas, as duas mulheres em questão eram amigas.

 

— Estás com fome? — perguntou, assim que Valerie lhe abriu a porta.

 

— Estou esfomeada. — Valerie andava na casa dos cinquenta e não parecia ter menos um dia. Fumava há já vários anos e a boca estava rodeada por uma série de rugas profundas, bastante parecidas com os riscos que as crianças costumam fazer em volta do Sol sempre que querem indicar os raios.

 

Desceram juntas no elevador e atravessaram o corredor do hospital. Conseguiram arranjar uma mesa a um canto da cantina, o que lhes garantia privacidade para conversar. Ambas encomendaram salada de atum.

 

— Fiquei muito contente por teres vindo almoçar comigo — declarou Marsha. — Preciso de te falar a respeito do VJ.

 

Como que para a encorajar, Valeiie sorriu.

 

— Deste-me uma grande ajuda quando o coeficiente de inteligência dele caiu. Tenho andado bastante preocupada com ele, mas, que posso fazer? Sou a mãe dele. Sempre que o assunto lhe diz respeito, adeus objectividade.

 

— Qual é o problema?

 

— Não tenho bem a certeza de que haja mesmo um problema. Pelo menos não se trata de nada específico. Dá uma olhadela a estes exames psicológicos.

 

Entregou-lhe a ficha do filho. Valerie examinou-a com um olhar clínico.

 

— Não há aqui nada de extraordinário — disse. — Há uma pequena discrepância nas tabelas do MMPI, mas, para além disso, não há nada com que tenhas de te preocupar.

 

Marsha sentiu que a amiga estava com a razão. Explicou-lhe as mentiras do filho, os bilhetes falsificados e as brigas em que se envolvera na escola.

 

— Parece-me ser um rapaz cheio de recursos — comentou a outra com um sorriso. — Que idade tem ele?

 

— Dez anos. Estou igualmente preocupada com o facto de o meu filho ter apenas um amigo da mesma idade, um garoto chamado Richie Blakemore, que eu nem sequer conheço.

 

— O VJ nunca levou um amigo a casa?

 

— Nunca.

 

— Nesse caso, talvez valha a pena conversares com a mãe do garoto. Assim, é provável que possas ficar com uma ideia do grau de intimidade dos rapazinhos.

 

— Acho que tens razão.

 

— Se achas que vale a pena, terei muito gosto em observá-lo — ofereceu-se Valerie.

 

— Nem calculas como a ideia me agrada. Acho que estou demasiado envolvida nas coisas para o poder avaliar. Ao mesmo tempo, a ideia de que o meu filho esteja a desenvolver um qualquer distúrbio de personalidade mesmo debaixo do meu nariz, deixa-me apavorada.

 

Marsha despediu-se da amiga no elevador, não sem antes lhe agradecer por ter arranjado tempo para a ouvir e por se ter oferecido para examinar VJ. Prometeu telefonar à secretária de Valerie assim que decidisse marcar a consulta.

 

— Telefonou o teu marido — disse }ean assim que Marsha chegou à porta. —Quer que lhe telefones.

 

— Algum problema?

 

— Acho que não. Apesar de não ter dito nada a esse respeito, não me pareceu preocupado.

 

Ela pegou na correspondência e entrou no gabinete, sem se esquecer de fechar a porta. Telefonou a Victor enquanto examinava as cartas. Foi Colleen quem atendeu, passando a ligação para o laboratório.

 

— Que se passa? — quis ela saber. Não era frequente o marido telefonar-lhe durante o dia.

 

— Nada de especial.

 

— Pareces cansado. — Preferiria ter dito que a voz dele estava estranha. Esta não revelava qualquer tom especial, tal como se Victor tivesse sofrido uma explosão emocional e estivesse a fazer todos os Possíveis para se manter calmo.

 

— Nestes últimos dias tenho tido bastantes surpresas — disse ele, sem entrar em explicações. —Telefonei só para te dizer que mandei o VJ e o Philip para casa.

 

— Passa-se alguma coisa?

 

— Não. Não se passa nada. vou ficar a trabalhar até tarde, por isso não esperem por mim para jantar. Ah, a propósito, vamos ter um segurança a vigiar a casa das seis da tarde às seis da manhã.

 

— A razão que te leva a ficar aí até mais tarde tem alguma coisa a ver com o problema das ameaças?

 

— Talvez. Quando chegar a casa explico-te.

 

Marsha desligou o telefone, mas deixou ficar a mão no auscultador. Mais uma vez, voltara a ter a sensação de que o marido lhe andava a esconder algo, algo que ela deveria saber. Por que razão é que Victor não podia confiar nela? Sentia-se cada vez mais sozinha.

 

Sempre que Victor ficava sozinho no laboratório, uma calma estranha pairava sobre este. À excepção do ruído esporádico feito por alguns instrumentos electrónicos, nada mais se ouvia. Às vinte e trinta já ali não havia mais ninguém. Dado que se encontrava separado do resto do mundo por várias portas, até mesmo os ruídos dos animais que estavam encerrados nas jaulas não lhe chegavam aos ouvidos.

 

Encontrava-se debruçado sobre uma série de películas que apresentavam riscas horizontais. Cada uma delas representava um pedaço de DNA que havia sido cortado num determinado ponto. De momento, estava ocupado a comparar a análise de DNA de David — uma que fora feita quando o garoto ainda estava de saúde — com a que tirara ao tumor canceroso que se lhe desenvolvera no fígado. O que o intrigava era o facto de não haver total correspondência entre ambas. A sua primeira impressão foi de que o Dr. Shryack lhe fornecera a amostra errada e que esta provinha de outro doente. Contudo, e a ser assim, então o que ficava sem explicação era a enorme quantidade de analogias existentes entre ambas, pois, muito embora as diferenças verificadas, as semelhanças eram-lhe bastante superiores.

 

Depois, introduziu-as num computador destinado a, e em termos numéricos, estabelecer quais as áreas semelhantes e pô-las em contraste com as zonas heterogéneas. Foi só então que descobriu que as discrepâncias existiam apenas numa área.

 

Para tornar as coisas ainda mais confusas, a amostra que entregara a Robert para analisar apresentava pequenas zonas de tecido são. Fazendo justiça à sua fama de pessoa meticulosa, Robert analisara ambas as partes da amostra. Quando Victor procedeu à comparação entre o DNA do fígado saudável com as partes normais do fígado doente, a combinação era perfeita.

 

Não era comum descobrir-se um cancro que apresentasse provas de alteração do DNA. Ele não sabia se devia ficar satisfeito com a possibilidade de realizar uma importante descoberta científica ou se devia recear estar prestes a descobrir algo que não soubesse explicar ou, mais importante ainda, que não quisesse saber.

 

Foi então que deu início ao processo de isolar a parcela de DNA que, embora pertencendo ao tumor, era saudável. Depois de ter dado início ao protocolo, Robert teria o trabalho facilitado quando, na manhã seguinte, lhe voltasse a pegar.

 

Abandonou a sala principal do laboratório, atravessou a parte destinada às dissecações e penetrou na área dos animais. Acendeu a luz, e de imediato se verificou um aumento de actividade dentro de todas aquelas gaiolas.

 

Victor aproximou-se do compartimento que albergava os dois ratos “espertos”, cuja água fora contaminada por uma única cápsula de cefaloclor. Ficou surpreendido por encontrar morto um dos animais, estando o outro em coma.

 

Pegou no rato morto, levou-o para a sala de dissecações e procedeu à sua autópsia. Quando abriu o crânio, o cérebro saltou para o exterior, tal como se tivesse sido insuflado.

 

com todo o cuidado, extraiu um pedaço de tecido cerebral e preparou-o para ser examinado na manhã seguinte. Foi então que o telefone tocou.

 

— Dr. Frank, fala Phil Moscone. Louis Kaspwicz pediu-me para entrar em contacto consigo mal o intruso desse sinais de vida.

 

— vou já para aí — respondeu. Pôs de parte a amostra do cérebro do rato, apagou as luzes e saiu do laboratório a correr.

 

Dado que o centro de informática não ficava longe, demorou apenas alguns minutos a chegar lá.

 

Assim que o viu, Louis foi ao seu encontro.

 

— As coisas estão a correr bem. O sujeito já está em linha há cerca de sete minutos. Só espero que ele não arme confusão.

 

— Há alguma hipótese de me dizer em que parte do sistema ele se encontra? — inquiriu Victor.

 

— De momento encontra-se no departamento de pessoal — esclareceu Louis. — Começou por andar por aí às voltas e acabou por se dirigir para a secção de equipamento. É bastante estranho.

 

— No departamento de pessoal? — Estava convencido de que o intruso não era nenhum garoto, mas sim alguém a mando da concorrência. A biotecnologia era um terreno bastante competitivo e quase todos estavam interessados em concorrer com uma firma tão importante como a Chimera. No entanto, um agente industrial iria directamente às fichas relativas às últimas pesquisas e não perderia tempo no departamento de pessoal.

 

— Captámos um sinal positivo! — exclamou o homem que manejava o rádio, sem conseguir esconder um sorriso.

 

Seguiu-se um ligeiro burburinho entre todos os que estavam presentes.

 

— Óptimo — disse Louis. — Já temos o número de telefone. Agora só precisamos de saber o nome.

 

O homem do rádio levantou uma das mãos, ficou à escuta e acabou por dizer:

 

— Trata-se de um número que não vem publicado.

 

Quando ouviram isto, uma série de indivíduos que já estavam ocupados a desmontar o equipamento ficaram de boca aberta.

 

— Isto quer dizer que não vamos conseguir saber o nome? — Era Victor quem falava.

 

— Não — esclareceu Louis. —Quer apenas dizer que vamos ter de esperar um pouco mais.

 

Victor encostou-se a uma qualquer peça que ali se encontrava e cruzou os braços.

 

— Quem é que tem um papel? — perguntou o homem do rádio de repente, encostando o auscultador ao ouvido esquerdo. Um dos funcionários que ali estavam entregou-lhe um bloco. O primeiro anotou o nome que lhe estava a ser fornecido. — Mais uma vez, obrigado. — Desligou o rádio, baixou a antena e entregou o papel a Louis.

 

Este leu o nome e o endereço que ali estavam escritos e ficou muito pálido. Sem fazer qualquer comentário, estendeu-o a Victor, que baixou os olhos e começou a ler. Sem poder acreditar no que os seus olhos viam, leu mais uma vez. O que estava escrito no papel não era mais do que o seu nome e morada.

 

— Isto é alguma piada? — perguntou, levantando a cabeça e fitando Louis. Deu uma olhadela aos outros que ali se encontravam. Ninguém abriu a boca.

 

— Não terá por acaso programado o seu computador pessoal para, e numa base regular, ter acesso à central? — inquiriu Louis, pondo fim ao silêncio.

 

Victor devolveu-lhe o olhar e compreendeu que o homem lhe estava a tentar arranjar uma saída airosa. Ao fim de um momento, acabou por concordar:

 

— Sim, deve ser isso.

 

Fez todos os possíveis por manter a compostura. Agradeceu a todos os esforços que tinham feito e saiu.

 

Depois de ter abandonado o centro de informática, foi ao edifício central buscar o casaco, e, meio atordoado, dirigiu-se para o automóvel. A ideia de que havia alguém a servir-se do seu computador para penetrar no sistema da Chimera não tinha qualquer fundamento. Não fazia sentido. Sabia que sempre deixara o número de telefone do computador, bem assim como o código, colados no fundo do teclado, mas quem se poderia estar a servir deles? Marsha? VJ? A mulher da limpeza? Tinha de haver algum engano. Será que o intruso era assim tão esperto que era capaz de deixar uma pista falsa? Victor ainda não tinha pensado nisso e tomou nota do caso para depois perguntar a Louis se havia qualquer hipótese de aquilo ser feito. Parecia-lhe fazer bastante sentido.

 

Mesmo antes de ter visto as luzes dos faróis subirem o caminho, Marsha ouviu o barulho feito pelo automóvel do marido. Encontrava-se no escritório, a dar uma vista de olhos às revistas que se amontoavam na sua secretária e que tratavam de assuntos profissionais. Pôs-se de pé e viu a luz recortar as árvores sem folhas que ladeavam o carreiro. O carro ficou visível por alguns instantes e depois desapareceu atrás da casa. Ouviu a porta da garagem fazer um ligeiro ruído.

 

Recostou-se no seu sofá de chita florida e deixou o olhar vaguear pelo aposento. Este estava decorado com um papel de parede em tons pastel, uma alcatifa rosa-pálido e mobília branca. Excepto nos últimos tempos, ali sempre se sentira em paz. Contudo, agora nada parecia capaz de aliviar a crescente preocupação que sentia pelo futuro. Ajudara-a o facto de ter visto Valerie, mas, infelizmente, esse conforto não durara muito.

 

Vindo da sala, chegavam-lhe aos ouvidos os sons provenientes do filme de terror que VJ e Philip tinham alugado e que estavam a passar no vídeo. Os gritos que constituíam a trilha sonora não contribuíam para lhe melhorar a disposição. Chegara mesmo a fechar a porta, mas não havia meio de os deixar de ouvir.

 

Ouviu o ruído surdo que a porta das traseiras fazia ao bater, o som de vozes abafadas na sala, e, finalmente, sentiu que alguém batia à porta.

 

Victor entrou e deu-lhe um beijo. Parecia tão cansado como a sua voz lhe dera a entender, quando falara com ele ao telefone. Passara já a ser costume a constante ruga de preocupação que se lhe desenhava entre as sobrancelhas.

 

— Reparaste no segurança que está lá fora? — perguntou ele a Marsha.

 

Ela acenou.

 

— Faz que me sinta muito melhor. Já comeste?

 

— Não. Mas também não tenho fome.

 

— vou mexer-te uns ovos e fazer-te uma torrada. Ele segurou-a.

 

— Obrigado, mas acho que vou nadar um bocadinho e depois tomar um duche. Talvez me fique a sentir melhor.

 

— Passa-se alguma coisa?

 

— Nada de especial — respondeu, sem se adiantar.

 

Saiu, deixando a porta aberta. A música algo tétrica que compunha a banda sonora do filme continuava a entoar no escritório. Marsha tentou ignorá-la e voltar à leitura, mas um grito bastante agudo fê-la dar um salto. Desistiu do que estava a fazer, levantou-se e bateu a porta com força. Esta fechou-se com um estalido metálico.

 

Meia hora mais tarde, Victor voltou a aparecer. Agora, que mudara de roupa e tinha um ar bastante mais casual, o seu aspecto melhorara bastante.

 

— Acho que afinal sempre vou comer os tais ovos — declarou. Já na cozinha, Marsha meteu mãos ao trabalho enquanto o marido ficava sentado à mesa. Da sala chegavam-lhes uma série de sons macabros. Pediu a Victor que fechasse a porta que ligava as duas divisões.

 

— Mas que raio estão eles a ver?

 

— Sheer Terror — respondeu ela. Victor abanou a cabeça.

 

— Os miúdos e os seus filmes de terror — comentou. Enquanto o marido se sentava para comer a omeleta, ela encheu uma chávena de chá e sentou-se no lado oposto ao dele.

 

— Há uma coisa que gostava de discutir contigo — disse, ainda à espera que o chá arrefecesse.

 

— Sim?

 

Foi então que lhe contou a conversa que tivera com Valerie Maddox. Contou-lhe também a oferta que esta fizera para examinar VJ numa base profissional.

 

— Que achas?

 

Depois de ter limpo a boca no guardanapo, respondeu:

 

— Essa pergunta diz respeito à tua área de competências. Se achas que está bem, então não tenho nada contra.

 

— Óptimo. Penso que é o melhor que temos a fazer. Agora só tenho de convencer o nosso filho.

 

— Boa sorte.

 

Fez-se silêncio durante alguns momentos, pois Victor estava a acabar de comer os ovos e o pão torrado. Então, perguntou:

 

— Por acaso não usaste o computador, pois não?

 

— Não, porquê?

 

— Quando fui lá acima tomar duche, reparei que o ecran estava quente — explicou ele. — E quanto ao VJ? Não o terá ele usado?

 

— Não faço a mínima ideia.

 

Ele recostou-se na cadeira com tanta força que Marsha foi obrigada a ranger os dentes. Sempre que isto acontecia, ficava com a sensação de que o marido ia cair e bater com a cabeça no mosaico que cobria o chão.

 

— Passei uma noite bastante interessante na central de informática da Chimera — anunciou ele. De seguida, contou-lhe então tudo o que acontecera, sem omitir o facto de que a pista que levava ao intruso terminava em sua casa.

 

Apesar de tudo, Marsha ainda conseguiu soltar uma gargalhada. Não demorou muito a pedir desculpa.

 

— Peço desculpa. Estava só a imaginar a cena. No meio de uma grande tensão, que é que se descobre? Nem mais nem menos do que o teu nome.

 

— Não teve graça nenhuma. Podes ter a certeza de que vou ter uma conversa com o VJ a este respeito. Por muito estranho que possa parecer, só pode ter sido ele quem penetrou no sistema da companhia.

 

— Será que essa conversa vai parecer-se com aquela que tiveste com ele quando ficaste a saber que falsificava notas em teu nome para poder faltar à escola? — comentou Marsha, em tom trocista.

 

— Veremos — retorquiu o marido, visivelmente irritado.

 

Ela estendeu as mãos e agarrou-lhe o braço, ainda antes de ele ter tido tempo para se levantar da mesa.

 

— Estava a brincar — explicou. — Para falar com franqueza, estou bastante preocupada. Receio bem que exista uma faceta da personalidade do nosso filho sobre a qual nada sabemos. É por isso que quero que a Valerie o examine.

 

Victor acenou e só depois se libertou do abraço de Marsha. Abriu a porta que dava para a sala.

 

— VJ, importas-te de chegar aqui por um minuto? Quero falar contigo.

 

Ela ouviu o garoto resmungar, mas o marido não desistiu. De súbito, deixou de se ouvir o som da banda sonora. O filho apareceu à porta. O seu olhar prendia-se ora no pai ora na mãe. O brilho mortiço da vista indicava que estivera ocupado a ver televisão.

 

— Por favor, senta-te — pediu Victor.

 

com uma expressão aborrecida, VJ acabou por se sentar à esquerda de Marsha. O pai sentou-se do lado oposto a ambos. Victor foi direito ao assunto.

 

— VJ, por acaso hoje não te serviste do computador?

 

— Sim.

 

Marsha notou que o garoto encarava o pai com insolência. Reparou que o marido hesitava e desviava o olhar, talvez para não interromper a sua linha de pensamento. Fez-se silêncio durante alguns instantes, ao fim dos quais Victor prosseguiu.

 

— Serviste-te do nosso computador pessoal para penetrar no sistema da Chimera?

 

— Sim — admitiu o rapazinho, sem qualquer hesitação.

 

— Porquê? — O seu tom de voz mudara de acusador para confundido. Marsha lembrou-se de como se sentira confusa quando, e sem pestanejar, o filho lhe confessara as falcatruas que fizera.

 

— O aumento de potência faz que os jogos de computador se tornem mais interessantes — prosseguiu o rapaz.

 

Ela viu o marido girar os olhos.

 

— Queres dizer com isso que tens usado toda a energia da nossa central para jogares ao Pac-Man e a outras coisas parecidas?

 

— É o que faço quando estou no laboratório.

 

— Suponho... Quem é que te ensinou a usar o código?

 

— Tu — respondeu VJ.

 

— Não me lembro de... —começou, mas acabou por se recordar. — Mas isso foi há sete anos!

 

— Talvez, só que o método continua a ser o mesmo.

 

— E servias-te do computador da firma todas as noites de sexta-feira?

 

— Normalmente. Jogo algumas coisas e depois divirto-me a vasculhar as fichas, principalmente as do departamento de pessoal e da secção de equipamento. Às vezes, chego mesmo a tentar as fichas relativas à pesquisa, mas essas são mais difíceis de achar.

 

— Mas porquê? — perguntou o pai.

 

— Quero aprender o mais que posso a respeito da firma — esclareceu. — Há-de chegar o dia em que ficarei à frente dela. Sempre me encorajaste a usar o computador. Se agora mudaste de ideias, eu paro de mexer nele.

 

— Acho que, de futuro, esse será o procedimento mais acertado.

 

— Está bem. Posso voltar para o meu filme?

 

— Claro.

 

VJ levantou-se da mesa e desapareceu pela porta. Nesse mesmo instante, voltaram a ouvir-se os sons de Sheer Terror.

 

Marsha olhou para o marido. Ele encolheu os ombros. Foi então que se ouviu a campainha da porta.

 

— Desculpem incomodá-los a estas horas — disse o sargento Cerullo, depois de Victor ter aberto a porta. — Este é o sargento Pempsey, da polícia de Lawrence. — À laia de saudação, o segundo oficial saiu de trás de Cerrulo e tocou na aba do chapéu. Tratava-se de um indivíduo sardento e de cabelo ruivo.

 

— Temos uma informação para lhe dar e também gostaríamos de lhe fazer algumas perguntas — continuou o polícia.

 

Victor convidou os homens a entrar. Quando já estavam dentro de casa, ambos tiraram os chapéus.

 

— Querem um cafezinho? — ofereceu Marsha.

 

— Não, obrigado — declinou Cerullo. — É melhor dizermos o que temos a dizer e irmo-nos embora. Não sei se sabem, mas a polícia de North Andover mantém excelentes relações com a de Lawrence. Ao fim ao cabo, somos vizinhos e estamos sempre em contacto. Seja como for, eles têm andado a investigar o massacre da família Gephardt, o tal que foi descoberto por si, Dr. Frank. bom, acabaram por encontrar os rascunhos dos bilhetes que apareceram atados ao tijolo e à cauda do gato. Estavam na casa de Gephardt. Achámos que gostariam de ter conhecimento do facto.

 

— Pode ter a certeza — disse Victor com algum alívio. Dempsey pigarreou para aclarar a voz.

 

— As nossas análises balísticas revelaram que as armas usadas para matar a família Gephardt são idênticas às que se usam na América do Sul, nas batalhas travadas entre grupos rivais de traficantes de droga. Foi Boston quem nos deu essa informação. Lá, estão bastante interessados em descobrir quais as possíveis ligações que existem entre os traficantes de droga e Lawrence. Têm fortes motivos para acreditar que as coisas aqui são para valer. Aquilo que queremos saber de si, e isto porque era o patrão de Gephardt, era se estava informado de qualquer ligação entre este e o mundo da droga. Tem alguma ideia a esse respeito?

 

— Nenhuma. Acho que já devem estar informados que o sujeito tinha de responder à acusação de ter praticado um desfalque.

 

— Sim, isso já sabemos — concordou Dempsey. —Tem a certeza de que não há mais nada que nos possa dizer? Lá, em Boston, estão mesmo ansiosos por saber tudo o que podem a este respeito.

 

— Também estamos desconfiados de que ele desviava equipamento do laboratório — acrescentou Victor. — Tínhamos acabado de dar início a essa investigação quando o tipo foi assassinado. Mas, por muitas suspeitas que tivesse a esse respeito, nunca me ocorreu que estivesse metido no negócio da droga.

 

— Se por acaso se lembrar de alguma coisa, ficaríamos agradecidos se nos telefonasse imediatamente. A última coisa que queremos é que rebente mais uma guerra de clãs da droga aqui na zona.

 

Os polícias acabaram por sair. Victor fechou a porta, encostou-se a ela e encarou a mulher.

 

— bom, pelo menos temos um problema resolvido — comentou. — Agora sabemos qual a proveniência das ameaças, e, melhor ainda, que não vão ter continuidade.

 

— Ainda bem que vieram dizer-nos que podemos deixar de nos preocupar — acrescentou Marsha. — Talvez não fosse má ideia mandarmos o segurança embora.

 

— Dispenso-o amanhã, de manhã. Tenho a certeza que, de uma maneira ou de outra, vamos ter de lhe pagar o dia.

 

Victor sentou-se com uma tal rapidez que acabou por destapar a mulher, que, por seu turno, acordou sobressaltada. Lá fora, a escuridão era completa.

 

— Que se passa? — perguntou ela, alarmada.

 

— Não tenho a certeza. Acho que foi a campainha que tocou. Ficaram à escuta durante alguns segundos. Tudo o que ela conseguiu ouvir foi o zumbido do vento e a chuva a tamborilar nas janelas.

 

Marsha virou-se e olhou para o despertador.

 

— Passam quinze minutos das cinco da manhã — disse. Voltou a encostar-se à almofada e tapou-se com os cobertores. — Tens a certeza de que não estavas a sonhar?

 

Foi nesse preciso momento que a campainha voltou a dar sinais de vida.

 

— Sempre era a campainha!—exclamou ele, pondo-se de pé de um salto. — Eu sabia que não estava a sonhar. — À pressa, tentou vestir o roupão, mas enfiou o braço direito na manga esquerda. Ela acendeu a luz.

 

— Quem será? Não me digas que é outra vez a polícia — queixou-se Marsha.

 

Victor acabou por acertar com as mangas do roupão e apertou o cinto.

 

— Em breve o saberemos — disse, abrindo a porta do corredor, Dirigiu-se para as escadas o mais depressa que podia e desceu-as com rapidez.

 

Depois de um momento de indecisão, ela pôs os pés no chão. vestiu o roupão e calçou os chinelos. Quando chegou ao andar de baixo, viu que, à frente do marido, estavam um homem e uma mulher. Aos pés de ambos haviam pequenas poças de água e esta de tinta. O homem segurava a mulher.

 

— Marsha! — chamou o marido, sem desviar os olhos dos recém-chegados. —Acho melhor chamares a polícia.

 

Sem deixar de apertar o roupão ao corpo, aproximou-se do grupo e deu uma olhadela àquela gente. O homem vestia uma capa de oleado com capuz, muito embora este não estivesse posto. Dava a impressão de se ter vestido para a chuva. A mulher envergava uma camisa com capuz, mas esta parecia estar mais do que ensopada.

 

— Este é Mr. Peter Norwell — apresentou Victor. — É o homem da Able Protection.

 

— Boa noite, minha senhora — cumprimentou Peter.

 

— E esta é a Sharon Carver — disse o marido, apontando para a mulher. — Trata-se de uma ex-empregada da Chimera que nos moveu uma acção que tem por base um qualquer acto de discriminação sexual.

 

— Estava preparada para pintar a porta da vossa garagem — explicou o segurança. —Deixei-a chegar a dar uma pincelada, pois assim temos mais qualquer coisa para além de invasão de propriedade privada.

 

Sentindo-se pouco à vontade em relação à mulher, Marsha precipitou-se para o telefone mais próximo e ligou para a polícia de North Andover. A telefonista disse que o carro não demoraria muito a chegar.

 

Entretanto, o grupo dirigiu-se para a cozinha, pois ela preparara chá para todos. Não tinham dado mais do que algumas goladas quando a campainha se voltou a fazer ouvir. Victor foi abrir a porta. Do outro lado estavam Widdlcomb e O’Connor.

 

— Vocês não nos dão um minuto de sossego — comentou o sargento Widdicomb, com um sorriso.

 

Entraram no vestíbulo e despiram as gabardinas encharcadas. Peter Norwell trouxe Sharon Carver da cozinha.

 

— Então esta é que é a senhora? — perguntou o sargento. Pegou num par de algemas.

 

— Por amor de Deus, vocês não precisam de me algemar! — exclamou Sharon.

 

— Temos muita pena — retorquiu o polícia. — Normas são normas.

 

Tudo ficou resolvido em apenas alguns minutos. Os agentes da polícia acabaram por se ir embora, levando consigo a prisioneira.

 

Foi então que Marsha se dirigiu ao segurança, que continuava parado junto à porta.

 

— Se quiser, pode ir acabar de tomar o seu chá.

 

— Obrigado, minha senhora, mas já tinha acabado. Boa noite. O homem abandonou a casa sem que ninguém o tivesse conduzido à saída e fechou a porta. Victor colocou a tranca e virou-se na direcção do quarto.

 

Ela encarou-o. Sorriu-lhe e abanou a cabeça como se não acreditasse no que vira.

 

— Se lesse isto num livro, de certeza que não acreditava — comentou.

 

— Ainda bem que contratámos um segurança. — Ao dizer isto, estendeu-lhe a mão. — Vamos — continuou. — Ainda podemos dormir durante algumas horas.

 

Contudo, esta hipótese não se revelou tão fácil como Victor pensara. Uma hora mais tarde ainda não tinha adormecido e escutava os sons da tempestade que decorria lá fora. A água abatia-se contra os vidros em súbitas bátegas, e, sempre que isto acontecia, via-se obrigado a estremecer. Não conseguia deixar de pensar no resultado das análises ao DNA de David nem no cefaloclor que fora descoberto nas amostras de sangue.

 

— Marsha — murmurou, procurando saber se também ela estava acordada. No entanto, não obteve qualquer resposta. Voltou a chamá-la, mas os resultados foram os mesmos. Em face disto, esgueirou-se da cama, vestiu o roupão e foi ao escritório.

 

Sentou-se à secretária e ligou o computador pessoal. Servindo-se da senha predeterminada, penetrou no sistema da firma e ficou bastante admirado por a operação ser bastante fácil. Algo distraído, interrogou-se sobre a possibilidade de alguma vez ter procedido à transferência de cópias das fichas dos bebés Hobbs e Murray para a memória do seu computador. Para confirmar a hipótese, carregou na tecla correspondente à memória e começou a procurar. Não existiam quaisquer fichas com esses nomes. Para dizer a verdade, ficou surpreendido por descobrir que tinha tão poucas fichas arquivadas. Foi então, quando já estava prestes a desligar a máquina, que reparou que a memória do computador estava quase totalmente preenchida.

 

Coçou a cabeça. Era algo que, sabendo da enorme capacidade de armazenagem do disco, não fazia qualquer sentido. Tentou fazer que o aparelho fornecesse uma explicação para o facto, mas não obteve qualquer tipo de informação. Por fim, e já bastante irritado, desligou o maldito computador.

 

Ainda pensou em voltar para a cama, mas, ao olhar para o relógio, compreendeu que não havia problema algum em continuar de pé. Já passava das sete. Foi assim que desceu as escadas e se dirigiu para a cozinha, pronto para preparar o pequeno-almoço.

 

Foi só enquanto descia as escadas que se lembrou que, quando conversara com o filho a respeito do uso que este fazia do computador, nada lhe perguntara a respeito do desaparecimento das fichas Murray e Hobbs. Da próxima vez que conversassem não podia deixar de o fazer. Andar a bisbilhotar o que estava nas fichas era uma coisa, fazê-las desaparecer era outra bem diferente.

 

Quando chegou à cozinha, lembrou-se de outra coisa que o andava a preocupar, muito concretamente a segurança de VJ. Philip era um bom elemento no que respeitava a fazer companhia ao garoto, mas era óbvio que não podia fazer mais nada para além disso. Decidiu entrar em contacto com a Able Protection, pois esta fizera um bom trabalho no que respeitava à vigilância da casa. Não duvidava de que arranjariam um homem competente para fazer companhia ao rapaz. É claro que tudo isto lhe iria sair caro, mas estava disposto a pagar o que quer que fosse para ficar descansado. Enquanto não descobrisse a verdade sobre a morte dos dois bebés, ficaria muito mais descansado se soubesse que o filho estava em segurança.

 

Ao deitar o café na chávena, foi atingido por uma lembrança. Dera-se conta de que as semelhanças existentes entre os tumores de David e de Janice eram bastante preocupantes, principalmente à luz dos resultados da análise de DNA feita ao cancro de David. Era mais uma coisa que tinha de averiguar o melhor que podia.

 

SÁBADO DE MANHA

Quando Victor saiu de casa e entrou no carro, o vento continuava a soprar e a chuva não parara de cair. Tinha tomado o pequeno-almoço, tomara duche, barbeara-se, vestira-se e ninguém se mexera. Deixara um bilhete explicando que ia passar a maior parte do dia no laboratório, e só então saíra.

 

Contudo, não se dirigiu directamente para lá. Em vez disso, virou para oeste e apanhou a auto-estrada 93, seguindo depois para sul, em direcção a Boston. Uma vez aí chegado, abandonou a Storrow Drive, precisamente no ponto em que a Charles Street e a Government Center se juntavam. A partir daí, conduzir até ao Massachusetts General Hospital era bastante fácil. Dez minutos mais tarde, já se encontrava no departamento de patologia.

 

Dado que se estava num sábado de manhã, não havia ali nenhum médico do quadro. Teve de contentar-se com uma estudante estagiária, de nome Angela Cirone.

 

Victor explicou-lhe que gostaria de conseguir a amostra de um tumor pertencente a uma doente que morrera quatro anos antes.

 

— Receio bem que isso não seja possível — informou-o a rapariga. — Não costumamos guardar... com toda a delicadeza, ele interrompeu-a para lhe explicar a natureza do cancro e também a sua raridade.

 

— Isso talvez torne as coisas diferentes.

 

O mais difícil foi encontrar a ficha de Janice Fay, pois ele não sabia a data de nascimento da empregada, e, nos hospitais, a data de nascimento é o elemento mais importante para arquivar os registos. Porém, a persistência compensa, e Angela conseguiu encontrar não só o número de registo, como também o próprio registo patológico. Conseguiu também informá-lo da existência de uma amostra do tumor.

 

— Só que não posso dar nada — disse a rapariga, depois de terem despendido todo aquele esforço. — Um dos membros do quadro está cá hoje a tratar dos preparados congelados. Talvez consiga arranjar uma autorização, mas só depois de ter falado com ele.

 

No entanto, Victor contou-lhe que o filho, David, morrera do mesmo tipo de cancro, falando-lhe também do seu interesse em examinar as células cancerígenas de Janice. Quando se esforçava, o seu encanto permitia-lhe obter o que queria. Não demorou muito a convencer a estagiária a ajudá-lo.

 

— Qual a quantidade que precisa? — acabou ela por perguntar.

 

— Só um bocadinho.

 

— Nesse caso, acho que não vai haver problema.

 

Quinze minutos mais tarde, Victor já estava no elevador, levando consigo um pequeno frasco dentro de um saco de papel. Sabia que podia muito bem ter esperado pelo médico, mas assim podia começar a trabalhar mais cedo. Entrou no carro, deixou o hospital e dirigiu-se para norte, para Lawrence.

 

Quando chegou à Chimera, telefonou para a Able Protection, mas tudo o que conseguiu foi ser atendido pelo gravador. Ao fim e ao cabo, sempre era sábado, por isso foi obrigado a deixar o nome e o número de telefone. Feito isto, foi à procura de Robert. Acabou por o encontrar absorvido no projecto a que Victor dera início na noite anterior, ou seja, à separação do DNA cancerígeno do saudável, ambos coexistentes no fígado de David.

 

— Sei que há-de estar prestes a detestar-me — começou — , mas tenho aqui outra amostra. — Puxou do frasco que lhe fora fornecido no hospital de Massachusetts. — Quero que me analise este DNA.

 

— Não se preocupe comigo — disse o funcionário. — Gosto de fazer estas coisas. Só gostava que não se esquecesse que estou a descurar o trabalho com que normalmente me ocupo.

 

— Eu sei, mas, e por agora, este projecto é prioritário. Pegou nas amostras do tecido cerebral dos ratos, as quais havia preparado na noite anterior, e começou a analisá-las. Enquanto esperava que secassem, recebeu um telefonema da Able Protection. Tratava-se do mesmo homem de voz profunda com quem já falara.

 

— Em primeiro lugar, gostaria de louvar o desempenho profissional de Mr. Norwell — começou Victor por dizer. — Fez um óptimo serviço ontem à noite.

 

— Obrigado.

 

— Para além disso, preciso de contratar mais um segurança temporário. Contudo, esse profissional terá de ser uma pessoa muito especial. Quero que fique com o meu filho, VJ, das seis da manhã às seis da tarde. E quando digo que o quero junto do meu filho, quero dizer sempre.

 

— Acho que não vai haver problema em arranjar alguém. Quando é que quer que ele comece?

 

— O mais depressa possível, talvez mesmo esta manhã. O meu filho ainda está em casa.

 

— Não há qualquer problema. Temos a pessoa certa. Chama-se Pedro Gonzáles e vou mandá-lo para aí.

 

Ele desligou e telefonou para a mulher.

 

— Como é que conseguiste sair sem me acordar? — perguntou ela.

 

— Depois de toda aquela confusão, já não consegui adormecer. O VJ está aí?

 

— Ele e o Philip ainda estão a dormir.

 

— Acabei de contratar um segurança para o acompanhar durante todo o dia. Chama-se Pedro Gonzáles. Não falta muito para que aí esteja.

 

— Mas porquê? — quis ela saber, visivelmente admirada.

 

— Apenas para ter a certeza de que ele está bem.

 

— Estás a esconder-me alguma coisa. Quero que me digas o quê.

 

— Já te disse que é só para me certificar que o nosso filho está a salvo — repetiu. — Falaremos a esse respeito mais tarde, quando eu chegar a casa. Prometo.

 

Desligou o telefone. Não estava disposto a fazer confidências a Marsha, pelo menos no que respeitava às suas últimas suspeitas, ou seja, que os bebés Hobbs e Murray haviam sido assassinados de propósito e que VJ poderia ter o mesmo fim, isto desde que alguém introduzisse cefaloclor no seu sistema. Sempre a pensar nisto, voltou a examinar as chapas que tirara aos cérebros dos ratos. Como já estavam secas, examinou-as ao microscópio. Confirmando as suas expectativas, eram idênticas às que tirara aos cérebros das crianças. Deixara de ter dúvidas quanto ao facto de os garotos terem morrido devido à presença deste antibiótico no sangue. O que ainda lhe faltava saber era como esta aí fora parar.

 

Retirou as chapas do microscópio e juntou-se a Robert. Trabalhavam juntos há já tanto tempo que Victor nem precisava de escutar as instruções do técnico para o poder acompanhar.

 

Depois de bebida a segunda chávena de café, Marsha sentou-se à mesa e olhou pela janela. Lá fora, o dia era de chuva e as nuvens amontoavam-se no céu. Apesar de ser obrigada a fazer o giro dos hospitais, sabia-lhe bem não ter de comparecer no consultório. Interrogou-se sobre se o facto de o marido ter contratado um segurança para o filho era motivo para grandes preocupações. Pelo menos, não parecia ser um bom augúrio, muito embora não fosse má ideia. O que mais a preocupava era saber que havia uma série de coisas que Victor não lhe dizia.

 

O som de passos na escada anunciou a chegada de V J e de Philip. Cumprimentaram-na, mas estavam muito mais interessados no frigorífico e a misturar leite e amoras nos flocos.

 

— Quais são os vossos planos para hoje? — inquiriu Marsha assim que eles se sentaram à mesa.

 

— Vamos para o laboratório — respondeu o filho. — O pai já lá está?

 

— Já. E que tal se fossem antes até Boston com o Richie Blakemore?

 

— Isso está fora de questão—retorquiu o garoto, empurrando o frasco das amoras na direcção de Philip.

 

— É pena — comentou ela.

 

— Não importa.

 

— Tenho de falar contigo a respeito de uma coisa — começou a mãe. — Ontem estive com a Valerie Maddox. Ainda te lembras dela?

 

VJ pousou a colher no prato.

 

— Não estou a gostar disto. Sim, lembro-me. É a psiquiatra que trabalha no andar por baixo do teu. É aquela senhora com uma boca que dá a sensação de estar sempre pronta para beijar toda a gente.

 

Philip soltou uma gargalhada explosiva, o que fez que lhe saltassem os flocos da boca. Envergonhado, limpou a boca, mas teve de fazer um esforço muito grande para se controlar e parar de rir. Ao ver o comportamento do homem, VJ foi obrigado a rir-se também.

 

— Isso não é nada simpático — atalhou Marsha. — Trata-se de uma mulher maravilhosa e com muito talento. Falámos a teu respeito.

 

— Isso só faz que as coisas se tornem ainda piores — comentou ele.

 

— Ofereceu-se para te ver, e eu acho que não seria má ideia. Talvez duas vezes por semana, depois da escola.

 

— Oh, mãe! — choramingou ele, franzindo o rosto de tal maneira que seria impossível não compreender o quanto o facto lhe desagradava.

 

— Quero que vás pensando no caso. Havemos de voltar a ele. Trata-se de algo que te poderá ser bastante útil daqui a uns anos.

 

— Ando demasiado ocupado para isso — queixou-se o garoto, ao mesmo tempo que abanava a cabeça.

 

O comentário fez que ela se visse forçada a soltar uma gargalhada.

 

Em qualquer dos casos, vai pensando nisto. Mais uma coisa.

 

Acabei de falar com o teu pai. Ele já te disse que tem andado preocupado com a tua segurança?

 

— Por alto. Disse-me para ter cuidado com o Beekman e com o Hurst, mas são pessoas com quem nunca me cruzo.

 

— Parece que continua preocupado — continuou a mãe. — Acabou de me dizer que contratara um homem para te acompanhar durante o dia. Chama-se Pedro e já vem a caminho.

 

— Oh, não!—lamentou-se VJ. —vou acabar por dar em maluco.

 

Depois de ter terminado a ronda dos hospitais, Marsha apanhou a auto-estrada 495 e dirigiu-se para Lowell. Tomou a estrada secundária ao fim de três cruzamentos, e, com a ajuda de algumas indicações que anotara numa qualquer receita, embrenhou-se numa série de carreiros, até que acabou por chegar ao 714 de Mapleleaf Road. Tratava-se de uma casa bastante mal conservada, de estilo vitoriano, pintada de um cinzento pardo e com uma vedação branca. Numa determinada altura da sua existência fora convertida em duplex. Os Fay moravam no andar de cima. Tocou à campainha e ficou à espera.

 

Marsha telefonara-lhes do hospital, por isso sabia que estavam à sua espera. Apesar de a filha de ambos ter trabalhado para si e para Victor durante onze anos, só conhecera o pai e a mãe da rapariga no funeral desta. Janice morrera há já quatro anos. Marsha sentia-se esquisita, ali parada à entrada da casa, à espera que lhe abrissem a porta. Dado que tinha privado com a empregada durante bastantes anos, chegara à conclusão de que existiam uma série de fricções emocionais na família desta última, mas não fazia a mínima ideia do que se poderia tratar. No que respeitava a este aspecto, Janice recusava a comunicação.

 

— Por favor, entre — disse Mrs. Fay, assim que abriu a porta. Tratava-se de uma senhora de cabelos brancos, simpática e frágil,

 

e que aparentava ter sessenta e poucos anos. Ela reparou que a mulher a evitava olhar nos olhos.

 

O interior da casa apresentava-se muito mais degradado do que o exterior. A mobília era velha e gasta. Contudo, o que tornava aquele lugar particularmente desagradável era o facto de estar sujo. Os cestos dos papéis estavam cheios de todo o tipo de coisas, desde latas de cerveja até aos papéis de embrulho do McDonald’s. Num dos cantos do tecto chegava mesmo a haver teias de aranha.

 

— vou dizer ao Harry que já chegou — avisou Mrs. Fay.

 

Aos ouvidos de Marsha chegavam os sons de um qualquer acontecimento desportivo que estava a ser transmitido pela televisão. Acabou por se sentar, mas deixou-se ficar na ponta do sofá, pois não queria tocar em nada.

 

— Ora bem — disse uma voz roufenha. — Tudo o que posso dizer é que estava mais do que na hora de a sr.a Doutora nos vir fazer uma visitinha.

 

Marsha voltou-se e viu um homem grande e barrigudo, vestido com uma camisola interior, que vinha a entrar na sala. Foi direito a ela e estendeu-lhe a mão. Tinha o cabelo muito curto, quase à escovinha. O que mais saltava à vista no rosto era o nariz, enorme e vermelho.

 

— Quer beber uma cerveja ou qualquer outra coisa? — pergunrtou ele.

 

— Não, obrigada.

 

Harry Fay afundou-se numa cadeira de braços.

 

— A que se fica a dever esta visita? — Arrotou e pediu desculpa pelo facto.

 

— Queria falar-lhe a respeito da Janice.

 

— Espero que ela não lhe tenha contado mentiras a meu respeito. Toda a vida trabalhei no duro a conduzir camiões de dezasseis rodas por esse país fora.

 

— Acredito que tenha sido um trabalho difícil. —Marsha começava a interrogar-se se teria sido boa ideia ir até ali.

 

— Pode crer.

 

— Aquilo que gostava de saber — começou ela — é. se a Janice falou alguma vez a respeito dos meus filhos, David e VJ.

 

— Muitas vezes. Não foi, Mary? Mary acenou, mas nada disse:

 

— Será que ela nunca vos contou nada de extraordinário sobre eles? — Havia uma série de perguntas específicas que poderia ter feito, mas preferiu não ser ela a conduzir a conversa.

 

— Claro que sim. Ainda antes de ter ficado maluca com aquela história da religião, disse-nos que fora o VJ quem matara o irmão. Chegou mesmo a contar-nos que a tentou avisar, mas você não lhe deu ouvidos.

 

— A Janice nunca me tentou avisar de nada — retorquiu Marsha, já com a cor a subir-lhe ao rosto. — E, antes do mais, devo dizer-lhe que o David morreu de cancro.

 

— Bom, isso é bastante diferente daquilo que a nossa filha nos disse. Segundo ela, o miúdo fora envenenado. Drogado e envenenado.

 

— Isso não corresponde à realidade.

 

— Não faço a mínima ideia do que quer dizer.

 

Marsha respirou fundo e tentou acalmar-se. Compreendeu que estava a defender-se, a si e à família, face a este homem agressivo e indelicado. Sabia que não era essa a razão por que ali fora.

 

— O que quero dizer é que não há qualquer hipótese de o David ter sido envenenado. Tal como a sua filha, ele morreu de cancro.

 

— Estou a vender o peixe pelo preço que o comprei, não é, Mary? Obediente, Mary acenou.

 

— Para lhe dizer a verdade — continuou o homem —, a Janice disse-nos que também a tinham drogado uma vez. Acrescentou que não contara nada a ninguém, pois já saberia que ninguém a ia acreditar. Contou-nos que, a partir desse dia, teria todo o cuidado com o que lhe dessem a comer.

 

Marsha não respondeu. Estava a lembrar-se da alteração que ocorrera na empregada. Do dia para a noite, tornara-se muito esquisita com a alimentação. Ela sempre se interrogou sobre o que poderia ter estado por detrás desta mudança. Agora sabia que se ficava a dever à ideia de que a queriam drogar ou envenenar.

 

— Por acaso, nunca acreditámos muito no que a Janice nos contava — confessou Harry. — Ela nunca mais ficou boa da cabeça depois de se ter tornado religiosa. Chegou mesmo ao ponto de nos dizer que o vosso filho, o VJ ou lá como ele se chama, tinha pacto com o diabo.

 

— Posso garantir-vos que não é esse o caso — atalhou ela. Levantou-se. Já ouvira o suficiente.

 

— É estranho que o seu filho David e a nossa filha tenham morrido com o mesmo tipo de cancro — disse o homem. Pôs-se de pé e o despêndio de energia fê-lo ficar vermelho.

 

— Não passou de coincidência. Por acaso, na altura também ficámos preocupados. Pôs-se a hipótese de o facto ter algo a ver com o ambiente. A nossa casa foi examinada de cima a baixo. Posso garantir-lhe que o facto de ambos o terem contraído não passou de uma triste coincidência.

 

— Eu cá chamo-lhe azar — concordou Harry.

 

— Bastante. Sentimos tanto a falta da Janice como sentimos a do David.

 

— Ela era boa pessoa — disse o homem. — Era boa rapariga. Mentia era muito. Dizia muitas mentiras a meu respeito.

 

— Nunca nos contou nada a seu respeito — contrariou Marsha. E, depois de um breve aperto de mão, foi-se embora.

 

— Tem a certeza de que não se importa? — perguntou Victor a Louis Kaspwicz. Tinha-lhe telefonado para casa para o interrogar a respeito da discrepância existente na memória do seu computador pessoal.

 

— Nem um bocadinho — respondeu o homem. — Se a memória do seu computador já não tem espaço para mais nada, isso significa que já está cheia. Não pode haver outra explicação.

 

— Mas eu verifiquei o registo. Tudo o que lá se encontra são as fichas relativas ao sistema de operações.

 

— Tem de haver mais fichas — contrapôs Louis. —Confie em mim.

 

— Se isto é uma palermice qualquer, nunca mais me perdoarei por lhe ter estragado a tarde de sábado.

 

— Dr. Frank, eu não me importo mesmo nada. Para lhe falar com franqueza, num dia de chuva como o de hoje, qualquer desculpa para sair de casa é bem vinda.

 

— Fico-lhe muito grato.

 

— Diga-me só para onde tenho de ir, que lá nos encontraremos.

 

Victor deu-lhe as instruções necessárias e depois foi ao laboratório principal avisar Robert de que se ia embora, mas que era provável que voltasse. Também lhe perguntou a que horas estava a pensar ir-se embora. Robert respondeu que a mulher lhe dissera que o jantar estaria pronto às seis, por isso ir-se-ia embora às cinco e meia.

 

Quando chegou a casa, já o técnico de informática aí se encontrava.

 

— Desculpe tê-lo feito esperar — disse, ainda à procura da chave.

 

— Não há problema — disse o outro, de bom humor. — Tem uma bela casa — acrescentou. Limpou os pés no tapete.

 

— Obrigado. — Victor levou-o até ao andar de cima, pois era lá que se encontrava o seu computador Wang. — Aqui está ele — anunciou. Estendeu o braço e ligou o aparelho.

 

Louis deu uma rápida vista de olhos ao computador e só então colocou a pequena pasta que trazia em cima da mesa, abrindo os fechos. Lá dentro encontrava-se uma vasta quantidade de aparelhos electrónicos, bastante bem protegidos.

 

Sentou-se em frente do terminal e esperou que o écran se iluminasse. Rapidamente, efectuou as mesmas operações que Victor levara a cabo de manhã, obtendo os mesmos resultados.

 

— Tem toda a razão — disse —, não há aqui muito espaço. — Estendeu uma das mãos para a pasta e abriu uma área em forma de acordeão, a qual se situava na zona imediatamente abaixo do fecho, retirando de lá um disco feito de um qualquer material pouco consistente.

 

— Felizmente, trago comigo um-instrumento especial para localizar fichas escondidas.

 

— Fichas escondidas? Que quer dizer com isso?

 

Louis estava todo atarefado a decifrar as informações que iam aparecendo no écran. Respondeu sem levantar os olhos:

 

— É possível armazenar fichas sem que estas apareçam registadas em lado nenhum — explicou.

 

Como que por milagre, o computador começou a fornecer uma enorme quantidade de informação.

 

— Ora bem! — exclamou o homem. Desviou-se, dando a Victor a oportunidade de ver melhor o écran. — Isto faz algum sentido para si?

 

Ele analisou atentamente todos aqueles dados.

 

— Sim, trata-se de informações a respeito das bases nucleares das moléculas de DNA. —O écran estava cheio de colunas verticais constituídas pelas letras AT, TA, GC e CG. — O A significa adenina, o T, piramidina, o G, guanina, e o C, citosina — explicou Victor.

 

Louis avançou para a página seguinte. As listas continuavam a aparecer. Avançou mais umas quantas páginas. As listas eram intermináveis.

 

— Que será isto? — quis saber o técnico, sem deixar de avançar.

 

— Deve ser a representação de uma molécula de DNA ou uma sequência de genes — disse Victor, seguindo as listas com os olhos, como se de um jogo de pingue-pongue se tratasse.

 

— bom, já viu o suficiente desta ficha? — inquiriu Louis. Ele acenou.

 

O homem carregou numa quantas teclas. Apareceu uma ficha, mas era semelhante à primeira.

 

— É provável que a memória esteja completamente cheia com coisas deste tipo — sugeriu ele. — Não se lembra de ter colocado este material aqui?

 

— Não fui eu quem o pôs — respondeu, sem entrar em detalhes. Sabia que Louis deveria estar morto de curiosidade por saber de onde é que tudo aquilo vinha e quem era a pessoa que se intrometera no sistema da Chimera na noite anterior. Ficou grato por o homem não lhe ter perguntado nada.

 

Na meia hora que se seguiu, Louis passou revista a um sem-número de fichas. Todas se pareciam com a primeira. Era como se de um arquivo de moléculas de DNA se tratasse. Então, sem qualquer aviso, as coisas mudaram.

 

— Ah, ah! — exclamou Louis. De seguida, teve de fazer uma série de operações com vista a conseguir fixar a imagem. O que apareceu no écran não era mais do que uma ficha pessoal. O técnico passou uma série de páginas. — Sei do que se trata porque fui eu que a criei. Trata-se de uma ficha pessoal para a Chimera.

 

Levantou os olhos para Victor, mas este não abriu a boca. Louis voltou a ocupar-se do computador e passou à ficha seguinte. Esta era a de George Gephardt.

 

— Isso foi directamente tirado do sistema principal! — exclamou. Dado que Victor continuava silencioso, foi prosseguindo. Havia ali dezoito fichas pessoais. Seguiam-se uma série de registos de contabilidade compostos por várias páginas.

 

— Não estou a reconhecer nada disto — disse o homem. Voltou a olhar para o patrão. — E a si? Diz-lhe alguma coisa?

 

Incrédulo, Victor abanou a cabeça.

 

O outro voltou a concentrar as suas atenções no computador.

 

— Seja qual for a sua fonte, o certo é que tudo isto implica bastante dinheiro. Só me resta acrescentar que estamos em presença de algo que foi feito com bastante inteligência. Gostaria de saber qual o programa que utilizaram. Não me importava nada de ter uma cópia dele.

 

Depois de ter visto um vasto número de páginas contendo elementos do sistema de contabilidade, Louis passou à ficha seguinte. Tratava-se do registo de acções de um sem-número de pequenas companhias, todas elas accionistas da Chimera. Em resumo, aquilo não era mais do que a representação de todas as acções da firma que não pertenciam aos três fundadores da empresa nem às respectivas famílias.

 

— Que acha disto? — perguntou Louis.

 

— Não faço a mínima ideia — respondeu Victor. No entanto, havia algo sobre que fazia uma ideia bastante precisa. Ia ter outra conversa com o filho a respeito do uso do computador. Se tudo o que tinha à sua frente não era brincadeira nem fazia parte de nenhum jogo inventado, então as suas consequências eram bastante graves. E, mais importante ainda, havia o caso do desaparecimento das fichas Hobbs e Murray.

 

— Bem, agora estamos de novo naquela história do DNA — comentou o técnico quando o écran se voltou a encher com as tais sequências do núcleo. — Quer que continue a investigar?

 

— Acho que não vai ser necessário. Já vi o suficiente. Não se importa de me deixar esse disco que usou para encontrar as fichas? Entrego-lho na segunda-feira, lá na Chimera.

 

— com todo o prazer. Para falar com franqueza, trata-se apenas de uma cópia. Se quiser, pode ficar com ele. O original está comigo, lá em casa.

 

Victor acompanhou o empregado até à saída, só fechando a porta depois de Louis ter entrado na carrinha e partido. Subiu as escadas e certificou-se de que VJ não estava por perto. De volta ao escritório, telefonou para o consultório de Marsha, mas foi a telefonista que o atendeu. Ninguém sabia onde ela estava e só lhe puderam dizer que fora bastante cedo para o giro dos hospitais.

 

Desligou o telefone. Foi então que lhe surgiu a ideia de entrar em contacto com a Able Protection. Talvez lhes fosse possível localizar o funcionário que andava com o filho. Se assim fosse, então ficaria a saber onde o garoto se encontrava.

 

Contudo, foi mais uma vez atendido pelo gravador. Foi forçado a deixar o nome e o número de telefone, bem assim como o pedido para que entrassem em contacto com ele o mais depressa possível.

 

Durante a meia hora que se seguiu, Victor não fez outra coisa senão andar de um lado para o outro, sem sair do escritório. Por mais que pensasse no assunto, não fazia a mínima ideia do que se estava a passar.

 

O telefone tocou e Victor correu para ele. Era mais uma vez a voz profunda do homem da Able Protection. Perguntou-lhe se seria possível entrar em contacto com o homem encarregado de acompanhar VJ.

 

— Todos os homens que trabalham para nós trazem consigo intercomunicadores — retorquiu a voz.

 

— Quero saber onde é que o meu filho está.

 

— Volto a telefonar-lhe dentro de alguns momentos. — Dito isto, desligou. Cinco minutos mais tarde, o telefone estava de novo a tocar. — O seu filho encontra-se na firma Chimera, Inc. O Pedro está junto ao portão, isto no caso de querer falar com ele.

 

Victor agradeceu a informação. Desligou o telefone e desceu as escadas para ir buscar o casaco. Pouco depois, o carro descrevia uma curva apertada em frente da casa.

 

Depois de uma breve viagem, acabou por fazer uma travagem brusca a apenas alguns centímetros do edifício do guarda do portão. Começou a tamborilar com os dedos no volante, à espera que o guarda levantasse o portão às riscas pretas e brancas. Em vez disso, e apesar da chuva, o homem saiu para o exterior e dobrou-se junto à janela de Victor. Sem esconder a irritação que sentia pelo facto de ter sido detido, baixou o vidro.

 

— Boa tarde, Dr. Frank! — disse o homem. À laia de saudação, levou dois dedos à pala do chapéu. — Se anda à procura do homem que contratou como segurança, ele está aqui connosco.

 

— Está a referir-se ao homem da Able Protection?

 

— Isso não sei. — Endireitou-se. — Pedro, és da Able Protection?

 

Um jovem bem-parecido apareceu à porta do edifício. O cabelo era de um preto-azulado e tinha bigode fino. Rondava os vinte anos.

 

— Quem está a perguntar por mim?

 

— O teu patrão, o Dr. Frank.

 

Pedro saiu da casa do guarda e aproximou-se do carro de Victor. Estendeu a mão.

 

— Prazer em conhecê-lo, Dr. Frank. Sou o Pedro Gonzáles, da Able Protection.

 

Ele apertou-lhe a mão. Não estava nada satisfeito.

 

— Por que razão é que não está com o meu filho — inquiriu Victor com maus modos.

 

— Bem, eu estava com ele — explicou o outro—, mas, quando aqui chegámos, o garoto disse.-me que ficava em segurança dentro dos limites da Chimera e que eu teria de esperar por ele na casa do guarda.

 

— Pensei que as ordens que recebeu fossem para ficar sempre com ele — disse Victor.

 

— Sim, senhor — retorquiu Pedro, compreendendo que cometera um erro. — Prometo-lhe que não voltará a acontecer. O seu filho foi bastante convincente. Disse que era o senhor que queria assim. Lamento muito.

 

— Onde é que ele está?

 

— Isso não lhe posso dizer. Ele e o Philip estão por aí, algures. Se é isso que o preocupa, posso garantir-lhe que daqui não saíram.

 

— Não é nada disso que me preocupa. Estou preocupado é por ter contratado um homem à Able Protection e por este não cumprir os seus deveres.

 

— Compreendo — balbuciou Pedro.

 

Victor levantou os olhos para o homem encarregue de abrir o portão.

 

— O Sheldon está hoje de serviço?

 

— Sheldon, chega aqui! —gritou o guarda.

 

O homem em questão apareceu à porta. Victor perguntou-lhe se fazia alguma ideia de onde VJ estava.

 

— Não, mas quando chegaram, tanto ele como o Philip se dirigiram para aquele lado. —Apontou para oeste.

 

— Em direcção ao rio?

 

— Talvez. Mas também podem ter ido para a cafetaria.

 

— Quer que eu vá consigo para o ajudar a procurar? — Era Pedro quem perguntava.

 

Victor fez que não com a cabeça, ao mesmo tempo que destravava o carro.

 

— Fique aqui à espera dele. — Depois, e já a falar com o guarda, que não fazia outra coisa senão prestar atenção à conversa, disse: — Gostaria bastante que levantasse o portão, isto para que eu pudesse entrar.

 

O homem deu um salto e voltou para dentro a correr, com vista a activar o mecanismo do portão. Sem prestar qualquer atenção ao lugar que lhe estava destinado no parque de estacionamento, conduziu até junto do edifício onde estava instalado o seu laboratório e estacionou em frente da entrada. Não existia ali qualquer parque de estacionamento, mas não ligou a mínima importância ao facto. Levantou a gola do casaco, encolheu-se um pouco e correu para a porta.

 

Robert era a única pessoa que ali se encontrava. Como sempre, estava ocupado, desta vez com a unidade destinada à electrólise. Era aí que as pequenas partículas de DNA eram separadas.

 

— Não viu o meu filho? — perguntou, sacudindo algumas gotas de chuva do casaco.

 

— Não, não o vi. — Robert esfregou os olhos com os punhos. — No entanto, tenho aqui uma coisa para lhe mostrar. — Pegou em dois pedaços de filme, os quais apresentavam uma mancha preta precisamente no mesmo local, e entregou-os a Victor. — A segunda amostra que me forneceu apresenta o mesmo pedaço extra de DNA que já havia sido descoberto no tumor de David. No entanto, a amostra pertence a outra pessoa.

 

— Sim, é da ama que vivia connosco — esclareceu ele. — Tem a certeza de que em ambas as amostras se trata da mesma metade?

 

— Certeza absoluta.

 

— Mas isso é incrível — comentou, sem deixar de pensar em VJ.

 

— Calculei que fosse achar o facto interessante — disse o outro, não sem uma ponta de orgulho. — Trata-se do tipo de descoberta de que os investigadores do cancro andam à procura. Pode mesmo tratar-se do tal dado novo que a medicina tem estado à espera.

 

— Tem de me arranjar a sequência disso! — ordenou ele com impaciência. — Imediatamente.

 

— É isso que tenho estado a fazer. }á consegui uma série de chapas e só estou à espera que o computador as processe.

 

— Se por acaso se tratar de um vírus ou de qualquer coisa semelhante... —começou Victor, deixando a frase em meio. Se assim fosse, tratava-se de mais uma descoberta inesperada para juntar a uma lista que não parava de crescer. — Se o VJ aparecer por aí, diga-lhe que ando à procura dele — disse. Voltou-se e abandonou o laboratório.

 

Já na cafetaria, dirigiu-se de imediato ao encontro do gerente.

 

— Por acaso não viu o meu filho, pois não?

 

— Esteve aqui a almoçar. Estava com o Philip e com um dos guardas.

 

— Com um dos guardas?

 

Perguntou-se por que razão Sheldon nada lhe dissera a este respeito. Acabou por pedir ao gerente que telefonasse para o laboratório assim que o filho aparecesse. O homem fez que sim com a cabeça.

 

A biblioteca estava cheia de gente. A maior parte estava a ler, outros dormiam, A bibliotecária informou-o de que VJ não estivera ali.

 

Victor obteve respostas semelhantes, tanto no centro de manutenção como na creche. À excepção da cafetaria, o filho não fora visto em mais nenhum local.

 

Foi ao carro buscar o chapéu-de-chuva e dirigiu-se para o rio. Encaminhou-se para norte e atingiu o seu objectivo quando se encontrava a meio do edifício da Chimera. Voltou para oeste, caminhando .pré ao longo do cais de granito. Nenhum dos edifícios que ladeavam as margens do rio haviam sido remodelados, mas constituíam local ideal para quando a firma pensasse em se expandir. Victor andava a pensar em mudar o edifício da administração para aquela zona. Ao fim e ao cabo, e já que tinha de passar o dia ocupado a realizar trabalho burocrático, ao menos que lhe fosse dado o prazer de usufruir de uma vista bonita.

 

À medida que andava, ia dando umas quantas olhadelas ao rio. com a chuva, a água que corria parecia ainda mais turbulenta do que no dia anterior. Quando levantou os olhos em direcção à barragem, o nevoeiro que se elevava da base das quedas de água impedia-o de se aperceber dos seus contornos.

 

Ao examinar a linha de edifícios abandonados, apercebeu-se de que existiam ali centenas de esconderijos onde um rapazinho podia brincar. Aquilo poderia ser o paraíso para se jogar às escondidas. Contudo, para levar por diante este tipo de jogos, era preciso um grupo de crianças, e, à excepção de Philip, o filho não tinha outro tipo de companhia.

 

Victor continuou a subir o carreiro até encontrar o caminho bloqueado por uma parte do edifício da torre do relógio. Para ir mais além, tinha de contornar o edifício e aproximar-se do rio pela direcção oposta. Aí, o caminho encontrava-se bloqueado por um dique com cerca de dez pés de largura, que separava a torre do moinho hidráulico, acabando por terminar num túnel. Na época em que a fábrica consumia apenas energia hidráulica, o dique transportara a água para a torre do relógio. Era aqui que aquela fazia girar uma enorme quantidade de rodas com pás, as quais forneciam energia às centenas de teares e de máquinas de coser, bem assim como ao relógio.

 

De pé na borda do dique, Victor inspeccionou o fundo deste. Para além de um fio de água, praticamente já só continha garrafas partidas e latas de cerveja vazias. Examinou o ponto de junção do dique e do rio enfurecido. A corrente em tempos fora regulada por duas pesadas portas de metal. Agora, a ferrugem corroerá tudo aquilo. Victor perguntou-se como é que aquela estrutura ainda conseguia conter a tremenda força que a água ali exercia. O rio estava praticamente au mesmo nível que a parte superior das portas.

 

Abandonou o dique e continuou o seu passeio para oeste. A chuva parara e ele fechou o chapéu-de-chuva. Não demorou muito a chegar junto do último edifício do complexo da firma. À semelhança da torre do relógio, também ele se debruçava sobre o rio. Mais à frente encontrava-se já uma das ruas da cidade. Victor deu meia volta e voltou para trás.

 

Ao contrário do que acontecera da outra vez, não chamou pelo filho. Limitou-se a olhar e a escutar. Quando voltou junto ao edifício do relógio, regressou à zona ocupada do complexo. Parou no laboratório e perguntou a Robert se o VJ aparecera por ali. A resposta foi negativa.

 

Sem saber bem o que fazer, voltou à cafetaria.

 

— Ainda não apareceu — disse o gerente, antes mesmo de ele ter perguntado alguma coisa.

 

— Também não foi só esse o motivo por que aqui vim — explicou. — Apeteceu-me tomar um café.

 

Dado que tinha a roupa molhada, o passeio que dera ao longo do rio fizera que ficasse gelado. Agora, que a tempestade se fora, reparava que a temperatura voltara a descer.

 

Assim que acabou de beber o café e se sentiu suficientemente quente, vestiu o casaco molhado. Voltou a avisar o gerente para telefonar para o laboratório assim que o filho aparecesse. Só então voltou ao gabinete do segurança. O calor que ali se fazia sentir era bem-vindo, apesar de o compartimento estar infestado com o fumo de muitos cigarros. Pedro estava sentado num pequeno sofá a um canto do gabinete. Levantou-se assim que viu Victor. Sheldon fez o mesmo, se bem que por detrás da sua pequena secretária.

 

— Alguém viu o meu filho? — quis saber, não sem alguma brusquidão.

 

— Acabei de falar com o Hal ainda há nem dois minutos — explicou o guarda. — Perguntei-lhe se vira o seu filho, mas ele disse que não.

 

— O gerente da cafetaria disse-me que o VJ almoçou com um de vocês. Por que foi que não me contaram?

 

— Mas eu não fui almoçar com o VJ!—exclamou Sheldon, encostando a mão ao peito. —E o Hal também não. Almoçámos juntos. Fred, chega aqui!

 

A partir do ponto onde fazia subir e descer os portões, Fred enfiou a cabeça na parte principal do gabinete. Sheldon perguntou-lhe se tinha almoçado com o VJ.

 

— De maneira nenhuma — explicou. — Fui almoçar lá fora. Sheldon encolheu os ombros. Depois, virou-se para Victor.

 

— Só estamos os três de serviço.

 

— Mas o gerente disse... — começou, acabando por deixar a frase incompleta. Não adiantava nada fazer uma discussão sobre quem tinha, ou não, almoçado com o filho. O que lhe interessava era saber onde este poderia estar. Começava a ficar curioso e também um pouco preocupado. Marsha costumava interrogar-se sobre o que poderia um rapazinho fazer na Chimera para se manter ocupado todo o dia e agora era a sua vez de o fazer. Nunca pensara muito a esse respeito até à data.

 

Abandonou o gabinete do segurança e voltou ao laboratório. Já não sabia mais onde procurar.

 

— O gerente da cafetaria acabou de telefonar — anunciou Robert assim que Victor apareceu. —O VJ foi até lá.

 

Ele dirigiu-se ao telefone mais próximo e entrou em contacto, com o gerente.

 

— Sim, ele está aqui — confirmou o homem.

 

— E está sozinho?

 

— Não. O Philip está com ele.

 

— Disse-lhe que eu andava à sua procura?

 

— Não, não disse. O senhor só me tinha pedido para eu lhe telefonar. Não me tinha dito para falar com o seu filho.

 

— Óptimo. Não lhe diga nada. vou já para aí.

 

Atravessou o edifício onde se encontravam instaladas a biblioteca e a cafetaria, mas preferiu não entrar nesta última pela porta principal. Em vez disso, optou por uma entrada secundária, dirigiu-se ao segundo andar e apareceu na varanda que dava para as mesas. Encostou-se ao gradeamento e olhou para baixo, acabando por descobrir VJ e Philip sentados a comer gelados.

 

Tendo sempre todo o cuidado para não ser visto, deixou que o filho e o funcionário acabassem de comer a refeição da tarde. Não demoraram muito para se levantarem e pegarem nos tabuleiros. Quando já estavam prestes a sair, Victor desceu as escadas encostado à parede, pois não queria ser visto. Ouviu a porta fechar-se e soube que os outros já tinham saído.

 

Estugando o passo, chegou junto à porta no preciso momento em que eles viraram para a esquerda.

 

— Passa-se alguma coisa? — inquiriu o gerente.

 

— Não, nada de especial — respondeu, endireitando-se e tentando aparentar um ar normal. A última coisa que queria era que começassem todos a falar no caso. —Ando curioso a respeito do lugar onde o meu filho se mete — explicou. —Disse-lhe vezes sem conta para não se aproximar do rio, pois este leva muita água. No entanto, estou com a impressão de que ele não ligou muito às minhas palavras.

 

— Coisas de rapazes — comentou o homem.

 

Victor abandonou a cafetaria mesmo a tempo de ver o filho e o empregado virarem à direita, um pouco além do edifício onde se situava o seu laboratório. Era mais do que evidente que se dirigiam para o rio. Começando a correr, foi até junto do lugar onde os outros dois tinham desaparecido. Viu-os a cerca de cinquenta jardas mais à frente. Esperou que virassem à esquerda e saíssem do seu campo visual. Foi só então que desceu o caminho a correr.

 

Quando atingiu o ponto onde o filho virara à esquerda, voltou a vê-lo quando este se aproximava do edifício do relógio. Deixou-se estar a observá-los e viu-os entrar no edifício abandonado.

 

— Mas que raio podem eles estar ali a fazer? — perguntou ele a si mesmo. Fazendo os possíveis para não ser visto, acabou por chegar à entrada da torre, parando depois para escutar. Contudo, tudo o que conseguia ouvir era o som das quedas de água.

 

Perplexo, entrou. Esperou um momento, até que os seus olhos se acabaram por habituar àquela luz fraca. Depois disto, descobriu que ali dentro existia o tipo de confusão susceptível de se encontrar num edifício abandonado. O chão estava coberto de lixo e de desperdícios.

 

O piso inferior era quase completamente ocupado por uma grande sala, cujas enormes janelas davam para a represa. Os vidros das janelas haviam sido partidos há muito. Nem mesmo os caixilhos restavam. No centro da divisão amontoava-se uma grande quantidade de lixo, o que só vinha provar que, antes da Chimera ter comprado e murado toda aquela zona, devia ali ter vivido um grupo de vagabundos. Por sobre tudo aquilo pairava o cheiro a madeira em decomposição e a tecidos e a cartão podres.

 

Movendo-se devagar até ao centro da divisão, Victor voltou a apurar o ouvido, mas o barulho das quedas de água era bem mais nítido no interior do que no exterior do edifício. Nenhum outro som lhe chegava aos ouvidos.

 

No lado oposto do rio encontrava-se uma série de pequenos quartos que davam para a divisão principal. Victor enfiou-se no primeiro e percorreu-os a todos. Tudo o que continham era lixo. Tanto nos extremos do quarto como no meio deste, viam-se escadas que levavam aos dois pisos superiores. Dirigiu-se para a escada do meio e começou a subir com todas as cautelas. Em ambos os andares vasculhou as filas de quartos existentes nos lados do enorme corredor. Mais uma vez, tudo o que conseguiu encontrar foi lixo e desperdícios.

 

Sem saber o que pensar, voltou ao andar de baixo. Dirigiu-se até uma das janelas e deitou uma olhadela ao rio, à barragem, ao moinho hidráulico e também ao dique vazio, o tal que duas portas ferrugentas mantinham fechado ao rio.

 

Foi então que se lembrou que o edifício da torre se ligava aos outros através de um elaborado sistema de túneis, pois só assim tinha sido possível distribuir a energia criada pelas rodas de pás. Era óbvio que o filho já não estava naquele edifício. Interrogou-se sobre se o garoto teria mesmo descoberto aquele sistema.

 

De súbito, deu meia volta. Por momentos, teve a nítida sensação de que ouvira outro som para além do ruído das quedas de água, muito embora não soubesse dizer qual. Os seus olhos percorreram o compartimento o mais depressa que podiam, mas nada encontraram. Voltou a escutar, mas tudo o que ouviu foi o rugido do rio.

 

Passando de uma escada para a outra, Victor começou à procura da entrada da cave. No entanto, não foi capaz de a encontrar. Voltou a procurar, mas sem qualquer resultado. Não havia ali quaisquer degraus. Dirigiu-se até junto a uma janela que se abria no lado sul do edifício e tentou ver se essa tal entrada para a cave se encontrava no exterior do prédio. Porém, nada descobriu. Parecia não haver qualquer maneira de penetrar na tal cave.

 

Victor abandonou o edifício e voltou à zona ocupada da firma, pois estava decidido a fazer uma visita ao gabinete de planeamento do espaço e dos edifícios. Servindo-se da chave mestra, entrou e acendeu a luz. De imediato, dirigiu-se ao ficheiro, de onde retirou os planos arquitectónicos de todas as estruturas existentes na propriedade pertencente à Chimera. Encontrou o desenho do edifício da torre do relógio no projecto principal e, depois disto, foi fácil encontrar-lhe os planos.

 

O primeiro projecto dizia respeito à cave. Revelava o local onde o túnel destinado à água penetrava no edifício. Já lá dentro, esta corria através de um canal, acabando por fazer mover uma série de rodas com pás, as quais tanto se dispunham na horizontal como na vertical. A própria cave dividia-se num compartimento central, onde se encontravam as rodas, e numa série de salas laterais. O sistema de túneis tinha origem num destes quartos, o qual se situava no extremo oriental do edifício.

 

Foi só então que olhou para a planta do primeiro piso. Foi-lhe fácil encontrar as escadas que levavam à cave. Ficavam à direita das que se situavam no centro do compartimento. Era incapaz de compreender como não tinha dado por elas.

 

Como para se precaver, tirou fotocópias dos planos da cave e do primeiro piso, servindo-se da máquina que a firma comprara para esse fim. Reduziu-as ao tamanho A4. Sempre com elas na mão, regressou à torre do relógio, firmemente determinado a explorar a parte inferior do edifício.

 

Abriu caminho por entre o lixo e aproximou-se da escadaria principal. Pôs-se em frente a esta e olhou para a direita. Chegou mesmo ao ponto de pegar na planta do andar em questão e dar-lhe uma olhadela para se certificar de que estava a fazer tudo como devia ser.

 

Era incapaz de perceber onde é que estava a falhar. Não conseguia encontrar nenhuma escada que dava para a cave. Deu-se ao trabalho de ir até ao lado oposto das escadas, não fosse dar-se o caso de haver um erro no projecto. Contudo, também não existia qualquer escada do outro lado.

 

De volta ao local onde esta se devia encontrar, Victor reparou que ali não existia lixo algum, o que não acontecia no resto da divisão. Achou o facto bastante estranho e ajoelhou-se. Foi então que reparou noutra coisa; as traves que cobriam o chão eram ali mais largas do que no resto da sala. Para além do mais, a madeira que as constituía era nova.

 

Um qualquer ruído atrás de si fê-lo dar um salto. Voltou-se, mas nada viu. Mesmo assim, sentia que estava ali alguém mesmo ao pé dele. Aterrorizado, tentou ver o que se passava no quarto escuro que ficava ali perto. Mais uma vez, voltou a ouvir ou a sentir o tal som ou vibração. Já não tinha qualquer dúvida sobre o que se tratava: era o som de um pé a bater no chão. Virou-se, mas era tarde de mais. Tudo o que conseguiu vislumbrar foi a silhueta de uma qualquer figura a levantar um objecto por sobre a sua cabeça. Tentou levantar as mãos para se proteger do golpe, mas foi-lhe impossível. Deixou de ver e de ouvir tudo o que se passava à sua volta.

 

Depois de deixar Lowell, Marsha fez uma paragem num restaurante à beira da estrada e telefonou para casa dos Blakemore. Apesar de se sentir pouco à vontade, conseguiu que a convidassem para lhes fazer uma visitinha. Demorou cerca de meia hora a chegar ao número 479 de PIum Island Road, em West Boxford.

 

À medida que arrumava o carro, não podia deixar de se sentir satisfeita por ter parado de chover. No entanto, mal abriu a porta da viatura, desejou ter vestido um dos seus casacos compridos. A temperatura tinha descido muito.

 

A casa dos Blakemore era muito bonita e lembrava as que existiam em Cape Cod. As janelas estavam divididas por muitas fasquias pintadas de branco. A porta principal estava protegida por um alpendre de madeira. Marsha subiu os degraus da frente e tocou à campainha.

 

Foi Mrs. Blakemore quem lhe abriu a porta. Tratava-se de uma mulher entroncada de cabelo curto, que aparentava ter a mesma idade de Marsha.

 

— Entre — disse, olhando a visita com curiosidade. — Chamo-me Edith Blakemore.

 

Ela sentiu que a mulher não parava de a olhar e perguntou-se se havia algo de estranho na sua aparência, como, por exemplo, ter os dentes da frente sujos com algum pedaço de fruta que acabara de comer. Apenas para se certificar, passou a língua pelos dentes.

 

O interior da casa era tão encantador quanto o exterior. A mobília era antiga, os sofás tinham coberturas de chita e via-se ali uma profusão de cadeiras de braços. O chão de madeira de pinho estava coberto por tapetes coloridos.

 

— Não quer tirar o casaco? — perguntou Edith. — Não lhe apetece tomar um cafezinho? Ou talvez antes um chá?

 

— Já agora, prefiro chá — respondeu Marsha. Seguiu a outra até à sala.

 

Mr. Blakemore, que estava sentado à lareira a ler o jornal, levantou-se assim que ela entrou.

 

— Chamo-me Cari Blakemore — apresentou-se, estendendo-lhe a mão. Tratava-se de um homem grande e moreno.

 

Marsha apertou-lha.

 

— Sente-se, faça de conta que está em sua casa — disse ele, apontando para o sofá. Depois de ela se ter sentado, voltou a ocupar o seu lugar, colocando o jornal no chão, ao lado da cadeira onde estava. Fez um sorriso agradável. Edith desaparecera na cozinha.

 

— O tempo está bastante estranho — afirmou o homem, numa tentativa de entabular conversa.

 

Ela não conseguia deixar de pensar na forma como se sentira quando Edith a olhara pela primeira vez. Havia nestas pessoas algo de rígido e pouco natural, mas ela não saberia dizer o quê.

 

Um rapazinho desceu as escadas e entrou na sala. Devia ter a mesma idade de VJ, mas era mais forte e entroncado. O cabelo era de um louro muito claro e os olhos de um castanho muito escuro. Havia nele qualquer coisa de duro e as parecenças entre ele e o pai eram bastante evidentes.

 

— Olá — disse o rapazinho estendendo a mão, ]á com modos de homenzinho.

 

— Deves ser o Richie — comentou ela, apertando-lhe a mão. — Sou a mãe do VJ. Tenho ouvido falar muito a teu respeito. — Marsha achou que um pequeno exagero não iria cair mal.

 

— Sim? — perguntou o rapazinho, num tom duvidoso.

 

— Sim. E, quanto mais ouvia, mais vontade tinha de te conhecer. Por que é que nunca foste a nossa casa? O VJ deve ter-te dito que temos piscina.

 

— O VJ nunca me disse que tinha piscina.

 

Richie sentou-se perto da lareira e olhou-a com uma intensidade tal que Marsha se sentiu ainda menos à vontade.

 

— Não faço a mínima ideia por que nunca o terá feito — retorquiu. Voltou os olhos para Cari. — Nunca sabemos o que vai dentro da cabeça destes garotos — disse, ao mesmo tempo que esboçava um sorriso.

 

— Acho que não — concordou o outro.

 

Seguiu-se um silêncio pesado. Ela interrogou-se sobre o que se poderia estar a passar.

 

— Leite ou limão? — quis saber Edith ao entrar na sala, acabando por quebrar o silêncio. Trazia consigo um tabuleiro e colocou-o na mesa do café.

 

— Limão. — Pegou na chávena e segurou-a enquanto Edith lhe deitava o chá. De seguida, espremeu lá dentro algumas gotas de limão. Quando terminou, recostou-se na cadeira. Foi então que reparou que mais ninguém se lhe juntara. Estavam todos a olhá-la.

 

— Ninguém mais quer chá? — perguntou, sentindo-se cada vez menos à vontade.

 

— Por favor, esteja à vontade. — Era Edith.

 

Deu uma golada. Estava bastante quente, por isso pousou a chávena na mesa. com algum nervosismo, pigarreou para aclarar a garganta.

 

— Peço desculpa por vos ter vindo incomodar assim sem mais nem menos.

 

— Não há problema — retorquiu a mulher. — Dado que está a chover, não íamos a lado nenhum.

 

— Há já algum tempo que vos quero conhecer — começou. — Vocês têm sido tão simpáticos com o meu filho, que eu gostava de vos retribuir o favor.

 

— Que quer ao certo dizer com isso? — perguntou a outra.

 

— bom, é bastante simples. Gostaria que o Richie fosse até nossa casa e passasse lá a noite. Isto se ele não se importar, claro. Estás de acordo, Richie?

 

O rapaz encolheu os ombros.

 

— Por que razão é que gostaria que o Richie fosse dormir à sua casa? — quis saber Cari.

 

— Para retribuir um favor, claro. Dado que o VJ tem passado tantas noites convosco, parece-me natural que o vosso filho vá até nossa casa uma vez por outra.

 

Cari e Edith entreolharam-se. Foi a mulher quem falou:

 

— O seu filho nunca aqui esteve durante a noite. Receio bem que não saiba do que está a falar.

 

Cada vez mais confusa, Marsha olhava ora para um ora para outro.

 

— O VJ nunca aqui esteve? — perguntou, incrédula.

 

— Nunca — esclareceu o homem.

 

Ela baixou os olhos para Richie e perguntou:

 

— E no domingo passado? Vocês passaram o domingo juntos, não passaram?

 

O garoto abanou a cabeça.

 

— Não.

 

— Bem, nesse caso acho que tenho de vos pedir desculpa por ter roubado o vosso tempo — desculpou-se, embaraçada. Pôs-se de pé. O casal Blakemore fez outro tanto.

 

— Pensámos que vinha falar a respeito da luta — disse Cari.

 

— Que luta?

 

— Parece que o seu filho e o meu tiveram um desentendimento — explicou o homem. — O Richie ficou com o nariz partido e teve de passar a noite na enfermaria.

 

— Òh, lamento muito. Prometo que vou ter uma conversa com o VJ.

 

Abandonou a casa dos Blakemore o mais depressa que podia. Estava mais do que furiosa quando chegou ao carro. Era óbvio que ia ter uma conversa com o filho. As coisas eram ainda piores do que aquilo que ela pensara. Como é que nunca tinha dado por nada? Era como se o filho tivesse uma vida à parte, completamente diferente da que aparentava ter. Todas aquelas mentiras frias eram mais do que anormais! Que estaria a passar-se com o filho?

 

SÁBADO À TARDE

Aos poucos, Victor foi recuperando consciência. Como que através de uma névoa, ouvia ruídos que não conseguia identificar. Só depois compreendeu que se tratava de vozes. Acabou por reconhecer a voz do filho. O rapaz estava zangado e gritava com alguém, dizendo que Victor era seu pai.

 

— Desculpe. — Esta palavra foi pronunciada com um forte sotaque espanhol. — Como é que eu podia saber?

 

Victor sentiu que alguém o abanava. Os movimentos bruscos fizeram-lhe dores de cabeça. Sentia-se tonto. Levou as mãos à cabeça e tocou num galo do tamanho de uma bola de golfe que se lhe projectava da testa.

 

— Pai? — chamou VJ.

 

Victor abriu os olhos. Por um breve instante, a dor de cabeça que sentia intensificou-se, acabando por abrandar. Deu consigo a fitar os olhos azuis e gelados do filho. Para lá do garoto, encontrava-se uma série de rostos de feições distorcidas. Mesmo ao lado de VJ estava um homem de expressão sinistra, a qual era intensificada por um qualquer defeito na pálpebra esquerda.

 

Voltou a fechar os olhos e rangeu os dentes, acabando por se sentar. O facto de estar tonto fê-lo vacilar um pouco, mas VJ ajudou-o a endireitar-se. Reabriu os olhos assim que as tonturas passaram. Voltou a tocar no galo e lembrou-se vagamente de como este aí fora parar.

 

— Pai, sentes-te bem? — Mais uma vez, tratava-se de VJ.

 

— Acho que sim. — Deitou uma olhadela aos estranhos que ali estavam. Apesar de envergarem o uniforme da Chimera, não reconheceu qualquer deles. Lá mais para trás, pôde vislumbrar Philip, que lhe pareceu acabrunhado e receoso.

 

Para se orientar, olhou à volta, e a primeira coisa que pensou foi que estava de volta ao laboratório, pois viu-se rodeado por toda uma vasta panóplia de aparelhos científicos. Mesmo a seu lado, verificou que se encontrava um dos últimos instrumentos que haviam sido lançados no mercado: uma unidade de processamento de proteínas líquidas.

 

No entanto, não era no seu laboratório que se encontrava. O cenário era constituído por uma combinação de alta tecnologia e um fundo rústico de granito e de traves de madeira.

 

— Onde é que estou? — Ao dizer isto, ia esfregando os olhos com os indicadores.

 

— Estás onde não devias — respondeu o filho.

 

— Que foi que me aconteceu? — inquiriu, tentando levantar-se.

 

— Por que razão é que não descansas um bocado? — perguntou o garoto, segurando-o. —Ao fim ao cabo, sempre bateste com a cabeça.

 

Victor sentiu-se tentado a dizer que aquilo não era muito exacto. Mais uma vez, levou uma das mãos à cabeça e tocou no alto que aí se encontrava, examinando depois os dedos para ver se estes tinham sangue. Continuava confuso, mas já começava a aperceber-se das coisas.

 

— Que queres dizer com isso de que estou onde não devia estar? — perguntou, tal como se tivesse acabado de ouvir o que o filho dissera.

 

— Só queria que visses este laboratório dentro de um ou dois meses. Nunca antes de nos termos mudado para as novas instalações, do outro lado do rio.

 

Victor pestanejou. Deixara de se sentir atordoado. Lembrou-se da figura escura que o agredira. Olhou para o rosto sorridente do filho e depois deixou os olhos vaguearem por aquele improvável laboratório. Era como se tivesse dado um passo para lá do real, para uma qualquer época em que os espectómetros coexistissem com blocos de granito cortados à mão. — Para ser preciso, onde é que me encontro?

 

— Estamos na cave do edifício da torre do relógio — explicou VJ, levantando-se. O rapaz estendeu a mão e disse: — No entanto, e para satisfazer as nossas necessidades, tivemos de fazer algumas modificações na decoração. Que achas?

 

Victor engoliu em seco e passou a língua pelos lábios. Olhou para o filho e reparou que este estava ultra-orgulhoso. Viu que Philip não parava de torcer as mãos. Fitou os três homens que envergavam os uniformes da firma. Tratava-se de indivíduos provenientes da América Latina, de rostos morenos e cabelo muito preto. Por último, deixou os olhos vaguear pelos tectos altos do compartimento. Tratava-se do cenário mais incrível que alguma vez vira. Mesmo à sua frente, estava a abertura que dava para o dique. O fecho inferior estava cheio de verdete. A maior parte da abertura estava coberta por um taipal de madeira velha. O antigo canal de madeira que servira para transportar água através do compartimento fora desmantelado com vista a fornecer matéria-prima para a escotilha, as bancadas e as prateleiras existentes no laboratório.

 

O quarto dava a impressão de ter sessenta pés de largura por cem de comprimento. A maior das rodas hidráulicas ainda aí se encontrava, mais ou menos como se de uma escultura moderna se tratasse. As suas enormes pás serviam agora de suporte a um sem-numero de aparelhos.

 

Em ambos os extremos da sala existiam várias portas pesadas, reforçadas com enormes rebites de metal. As paredes do compartimento eram feitas do mesmo granito cinzento. O tecto consistia em vários barrotes, que serviam de suporte a uma série de tábuas. Para além da roda, a grande maioria do velho equipamento ainda aí se encontrava.

 

Mesmo atrás de si via-se uma série de degraus que se elevavam até ao tecto, muito embora dessem apenas para placas de madeira.

 

— Bom, pai, que tal? — perguntou o garoto, com ansiedade.— Vá lá, que achas?

 

Ainda a cambalear, Victor pôs-se de pé.

 

— Então este é que é o teu laboratório?

 

— É verdade. É bastante frio, não é?

 

Aos ziguezagues, foi até junto de um sintetizador de DNA e passou a mão pela aresta superior do mesmo. Tratava-se do modelo mais recente que se encontrava no mercado e era muito superior ao que ele tinha no seu laboratório.

 

— De onde é que veio todo este equipamento? — inquiriu, quando descobriu um microscópio electrónico colocado no lado oposto ao da roda.

 

— Pode dizer-se que se trata de um empréstimo — esclareceu o rapaz. Foi atrás do pai e olhou para o sintetizador com todo o carinho.

 

Victor voltou-se para ele, analisando o rosto do filho.

 

— É este o equipamento que foi roubado à Chimera?

 

— Ninguém o roubou — contrapôs, não sem um sorriso. — É melhor dizermos que foi desviado. Prettence à firma e está dentro dos limites desta. Acho que só se poderia falar em roubo se este tivesse saí do do complexo da Chimera.

 

Acercando-se de um outro aparelho, desta feita uma complicada unidade de cromatografia, Victor tentou recompor-se. A dor de cabeça não deixara de o incomodar, principalmente quando andava, e continuava a sentir-se tonto. Contudo, começava a pensar que a dor de cabeça se devia mais ao facto de ter descoberto o laboratório secreto do que à pancada em si. Era como se estivesse no meio de um sonho ou de um pesadelo.

 

Devagar, e para se certificar que tudo aquilo era real, passou os dedos por uma das colunas do cromatógrafo. Depois, voltou-se para o filho, que estava mesmo atrás dele.

 

— Acho melhor que me expliques tudo do princípio — disse.

 

— Claro. Mas por que razão é que não vamos para a zona destinada à habitação? Está-se lá muito melhor. VJ contornou a roda que estava no meio do compartimento, passou pelo microscópio electrónico e dirigiu-se para o fundo da sala. Apontou para a porta que se situava à direita. — Lá dentro há mais salas que funcionam como laboratórios. Tenho a certeza de que nunca haveremos de arranjar espaço que chegue para tudo.

 

À medida que ia seguindo o filho, reparou que Philip ia com eles, ao passo que os guardas não fizeram qualquer movimento que indicasse que os iam acompanhar. De facto, dois deles já se haviam sentado numa das bancadas e preparavam-se para jogar às cartas.

 

Acabaram por parar num quarto que tinha todo o ar de pertencer a uma casa de habitação. Para que a atmosfera fosse um pouco mais quente, haviam pendurado uma série de tapetes nas paredes de granito. Podiam ver-se cerca de dez colchões espalhados pelo chão. Perto da entrada havia uma mesa redonda e seis cadeiras. VJ fez sinal ao pai para que se sentasse.

 

Victor puxou de uma cadeira e sentou-se. Em silêncio, Philip sentou-se num lugar algo afastado.

 

— Queres beber alguma coisa? Chá ou chocolate quente? — perguntou o rapaz, a brincar aos anfitriões. — Temos aqui todos os confortos próprios de um lar.

 

— Acho melhor contares-me o que tudo isto significa — pediu o pai.

 

O rapaz acenou, e, sem pressas, deu início à conversa.

 

— Sabes tão bem como eu que, desde o dia em que me trouxeste à Chimera pela primeira vez, sempre me interessei pelo que se passava no teu laboratório. O problema é que não me deixavam mexer em nada.

 

— Claro que não. Não passavas de um bebé.

 

— Eu não me sentia como tal. Escusado será dizer que não demorei muito a concluir que, se queria mesmo fazer alguma coisa, tinha de ter um laboratório só para mim. Começou com pouca coisa, mas, dado que estava sempre a precisar de equipamento novo, foi aumentando aos poucos.

 

— Que idade tinhas quando tudo isto começou?

 

— Foi mais ou menos há sete anos. Eu tinha três. Dado que o Philip estava por perto para me emprestar os seus músculos, foi bastante fácil montar o laboratório. — Orgulhoso, Philip sorriu. VJ continuou: —A princípio, este ficava no edifício mesmo ao lado da cafetaria. Foi então que se começou a falar em renovar aquilo, e lá tivemos de nos mudar para aqui. Tem sido o meu segredo desde então.

 

— Há já sete anos? O garoto acenou.

 

— Sim.

 

— Mas porquê?

 

— Para conseguir trabalhar a sério. Fiquei fascinado pela biotecnologia quando te vi a trabalhar no laboratório. Trata-se da ciência do futuro. Para além do mais, já tinha algumas ideias sobre o modo como deveria conduzir uma investigação.

 

— Mas podias ter ido trabalhar para o meu laboratório.

 

— De maneira nenhuma — retorquiu o garoto, ao mesmo tempo que abanava a mão. — Sou muito novo. Nunca ninguém me deixaria fazer o que tenho feito. Precisava de estar longe de restrições, de regras, de ajudantes. Precisava do meu próprio espaço, e, para te falar com franqueza, a coisa resultou muito para lá do que eu podia supor. Há já um ano que ando morto por te contar tudo o que tenho feito. Vais ficar maluco!

 

— Tens obtido bons resultados? — quis saber, sentindo uma súbita curiosidade.

 

— Tenho descoberto coisas incríveis. Talvez fosse boa ideia tentares adivinhar.

 

— Nem penses, não seria capaz.

 

— Acho que eras. Um dos projectos com que me ocupei é algo em que também tens trabalhado.

 

— Tenho andado a trabalhar em tanta coisa!...

 

— Ouve — começou o garoto —, a minha ideia é deixar que sejas tu a ficar com os louros de todas as descobertas, para que seja a Chimera a registar-lhes a patente, podendo assim prosperar. Não quero que ninguém saiba que estou envolvido no caso.

 

— Em suma, algo semelhante à corrida que fizemos na piscina. VJ riu-se com gosto.

 

— Acho que sim. Prefiro não chamar as atenções. Não quero que ninguém venha para aqui bisbilhotar, as pessoas parece que ainda ficam mais curiosas quando sabem que há um prodígio por perto. Prefiro que as descobertas te sejam creditadas. A Chimera acabará por ficar na posse da patente. Podemos dizer que te ofereço os resultados por mim obtidos em troca do espaço e do equipamento que a firma me emprestou.

 

— Dá-me um exemplo daquilo que descobriste.

 

— Para começar, resolvi o mistério da implantação de um óvulo fertilizado no útero — disse o rapaz com orgulho. — Desde que o zigote seja normal, posso dar-te uma garantia de cem por cento para todos os casos.

 

— Estás a brincar.

 

— Não, não estou — retorquiu o rapaz, algo zangado. — A resposta acabou por se revelar mais simples, mas também mais complicada do que aquilo que eu esperava. O que aqui está envolvido é a justaposição do zigote e das células da superfície do útero, facto que dá início a um processo de comunicação química ao qual as pessoas dariam o nome de reacção anticorpos-antigenes. É esta reacção que liberta um factor de proliferação dos pólipos e que resulta no implante. Isolei o factor em questão e combinei-o com uma série de técnicas de recombinação do DNA. Uma simples injecção com este produto e a implantação de um óvulo saudável está garantida. — Como que para enfatizar o que acabara de dizer, tirou do bolso um pequeno frasco e colocou-o na mesa em frente do pai. — É para ti — disse. — Quem sabe? Talvez acabes por ganhar o Prémio Nobel. — Soltou uma gargalhada e Philip juntou-se-lhe.

 

Victor pegou no frasco e olhou para o líquido viscoso que este continha.

 

— Temos de o testar — disse.

 

— Já foi testado — informou o garoto. — Tanto nos animais como nos seres humanos, e o resultado é garantido.

 

Ele olhou para o filho e depois para Philip. Este sorriu de um modo hesitante, pois não estava certo de qual seria a reacção do patrão. Victor voltou a fitar o frasco. Era fácil de imaginar as implicações académicas e económicas de uma descoberta daquele tipo. Seria qualquer coisa de monumental, capaz de revolucionar as técnicas de fertilização in vitro. com um produto deste tipo, a Fertility, Inc., dominaria o mercado. Seria algo capaz de ter um impacte mundial.

 

Respirou fundo.

 

— Tens a certeza que isto funciona com os seres humanos?

 

— Absoluta — assegurou VJ. —Como já te disse, o produto foi testado.

 

— Em quem?

 

— Em voluntários, claro. Não te preocupes. Vais ter muito tempo para saberes todos os pormenores.

 

“Voluntários”? Victor sentia a cabeça andar à roda. Será que o filho não sabia que não podia levar a cabo experiências com seres humanos? A lei e a ética eram coisas que convinha ter em linha de conta. No entanto, as possibilidades eram irresistíveis. E, ao fim e ao cabo, quem era ele para o julgar? Não fora ele o responsável pela concepção daquele rapaz extraordinário que estava ali à sua frente?

 

— Deixa-me dar mais uma vista de olhos ao teu laboratório — pediu, afastando-se da mesa.

 

O filho foi a correr abrir-lhe a porta e regressaram todos à divisão principal, onde os seguranças continuavam a jogar às cartas e a falar espanhol.

 

Victor caminhou por entre todos aqueles instrumentos. Dizer que tudo aquilo era impressionante não chegava. Compreendeu que a cabeça já mal lhe doía. Sentia-se extasiado. Custava-lhe a acreditar que aquele rapaz de dez anos era o responsável por tudo aquilo.

 

— Quem é que sabe da existência deste laboratório? — perguntou, ao mesmo tempo que parava para apreciar o microscópio electrónico. Tocou-lhe ao de leve.

 

— O Philip e meia dúzia de seguranças. E tu, claro. Victor dirigiu-lhe um olhar furtivo. VJ sorriu.

 

De súbito, Victor soltou uma gargalhada.

 

— E pensar que tudo isto se tem estado a passar debaixo dos nossos narizes! —Abanou a cabeça e continuou a examinar os aparelhos que aí se encontravam, não sem deixar de lhes tocar. — Tens mesmo a certeza de que esta proteína funciona? — perguntou, já a pensar nos nomes com que poderia comercializar o produto no mercado. “Conceptol” era uma boa ideia, mas “Fertol” também não era mau.

 

— Absoluta. E essa é apenas uma das muitas descobertas que fiz. Progredi bastante no que diz respeito à compreensão do processo de desenvolvimento celular e penso que tudo isto irá anunciar uma nova era na biologia.

 

Ele parou de andar e olhou para o filho.

 

— A tua mãe sabe alguma coisa a este respeito?

 

— Nada! —exclamou VJ.

 

— Ela vai ficar bastante feliz quando souber — disse Victor com um sorriso. — Tem andado bastante preocupada contigo, pois acha que não é normal não teres amigos da tua idade.

 

— Tenho andado demasiado ocupado para brincar aos escuteiros. Victor riu-se.

 

— Meu Deus, isso vejo eu. Ela vai adorar isto tudo. Temos de lhe contar e trazê-la até aqui.

 

— Não acho que seja boa ideia.

 

— Mas é, acredita em mim. Isto fará que fique mais descansada e eu não terei qualquer necessidade de ouvir palestras a respeito do teu desenvolvimento psicológico.

 

— Mas eu não quero que este laboratório seja do conhecimento público. Tu descobriste-o por acaso. Só estava disposto a falar-te nele depois de nos termos mudado para as nossas novas instalações.

 

— Onde é que ficam?

 

— Aqui perto. Mostro-tas para a próxima.

 

— Mesmo assim, a tua mãe tem de ficar a saber disto. Não fazes a mais pequena ideia de como ela tem andado preocupada contigo. Eu responsabilizo-me por ela. Vais ver como não diz nada a ninguém.

 

— É bastante arriscado. Acho que ela não vai ficar tão impressionada como tu por tudo aquilo que fiz. Não é uma grande entusiasta da ciência.

 

— Mas vai delirar quando souber que és um génio e construíste tudo isto sozinho. É extraordinário.

 

— Bom, talvez...—disse VJ, tentando decidir-se.

 

— Confia em mim — pediu ele.

 

— Talvez deva confiar em ti neste assunto. Acho que a conheces melhor que eu. Tudo o -que posso dizer é que espero que estejas certo. Ela é bem capaz de armar uma grande confusão.

 

— vou buscá-la imediatamente — disse Victor, visivelmente excitado.

 

— Como é que queres que ela entre aqui sem que ninguém dê por isso?

 

— Hoje é sábado. Não há muita gente por aí, especialmente a estas horas.

 

— Está bem — concordou VJ, resignado.

 

Quase a correr, Victor dirigiu-se para as escadas.

 

— Estarei de volta dentro de uma meia hora. Na pior das hipóteses, dentro de quarenta e cinco minutos. — Subiu meia dúzia de degraus e acabou por parar. Tal como já havia reparado, as escadas conduziam a uma série de placas de madeira. — A saída é mesmo por aqui? — inquiriu.

 

— Dá-lhes um empurrão — respondeu o filho.

 

Já com menos pressa, subiu o resto das escadas e pousou a mão nas tábuas que estavam mesmo por cima da sua cabeça. Deu-lhes um empurrão. Para sua surpresa, um enorme alçapão abriu-se com uma rapidez espantosa. Deitou um último olhar ao filho, piscou-lhe o olho e acabou por sair dali. Assim que deixou de exercer força no alçapão, este voltou ao lugar sem fazer qualquer ruído, impedindo que a luz que vinha do andar de baixo se visse no piso superior.

 

Incrivelmente excitado, Victor abandonou o edifício. Há já muitos anos que não se sentia tão entusiasmado.

 

Depois de ter concluído as visitas que efectuara, Marsha regressara a casa e preparara uma chávena de chá. Acabara de a levar para o escritório quando ouviu o carro do marido subir o caminho.

 

Pouco depois, a cabeça dele aparecia através da porta. Ainda não despira o casaco.

 

— Ah, estás aí, doçura!

 

“Doçura”?, pensou ela, com desdém. “Aos anos que ele não me chama assim”.

 

— Entra!—acabou por dizer.

 

Mas Victor já estava no meio da divisão. Pegou-lhe nas mãos e tentou levantá-la do sofá. Marsha resistiu e conseguiu soltar-se.

 

— Que é que estás a fazer? — perguntou.

 

— Tenho uma coisa para te mostrar. — Os olhos dele brilhavam muito.

 

— Que foi que te deu?

 

— Anda daí!—pediu, fazendo que ela se voltasse e levantar.— Tenho uma surpresa para ti e sei que vais adorar.

 

— E eu também tenho uma surpresa para ti, mas sei que não vais adorar — retorquiu. —Senta-te. Tenho uma coisa importante para te dizer.

 

— Dizes mais tarde. O que tenho para te mostrar é mais importante.

 

— Duvido. Fiquei a saber umas quantas coisas a respeito do VJ.

 

— Não é uma coincidência? — inquiriu Victor com um sorriso. — Eu também descobri uma coisa que vai fazer que te esqueças de tudo o que te tem feito sofrer.

 

Tentou arrastá-la para fora do quarto.

 

— Victor! — exclamou ela em voz alta. Conseguiu soltar-se de novo. — Pareces uma criança.

 

— Os nomes que me possas chamar não me fazem mal nenhum — disse ele na brincadeira. — Marsha, agora a sério, tenho óptimas notícias.

 

Ela pôs as mãos na cintura e afastou um pouco as pernas.

 

— O VJ tem-nos andado a mentir a respeito de muitas coisas e não só sobre o que se passa na escola. Descobri que nunca foi a casa dos Blakemore. Nunca!

 

— Isso não me surpreende nada — contrapôs ele, a pensar no tempo que o filho deveria ter passado no laboratório para conseguir ter tudo o que parecia ter.

 

— Não te surpreende? — interrogou ela com desespero, levantando as mãos para o ar. — O Richie Blakemore e o nosso filho nem sequer são amigos. Para te dizer a verdade, andaram à bulha há pouco tempo e o VJ partiu-lhe o nariz.

 

— Está bem, está bem — comentou ele, tentando parecer calmo. Agarrou-lhe os ombros e olhou-a nos olhos. — Acalma-te e escuta o que tenho para te dizer. Aquilo que tenho para te mostrar explica onde é que o nosso filho tem passado o tempo. És capaz de confiar em mim e vir comigo?

 

Marsha semicerrou os olhos. Pelo menos ele parecia-lhe sincero.

 

— Para onde é que me queres levar? — inquiriu, não sem algumas suspeitas.

 

— Para o carro — respondeu ele com entusiasmo. — Anda daí, vai vestir o casaco.

 

— Espero que saibas o que estás a fazer — resmungou ela, deixando-se conduzir para fora do escritório. Pegou no casaco e, alguns minutos mais tarde, tinha de seguir agarrada ao tablier, pois só assim se conseguia equilibrar. —Tens mesmo de conduzir a esta velocidade?

 

— Mal posso esperar para que vejas o que te quero mostrar. — Descreveu uma curva apertada. — E pensar que tinha o maior orgulho numa casa secreta que construí numa árvore quando tinha doze anos!

 

Marsha perguntou-se se o marido não teria perdido o juízo. Nos últimos tempos andava a comportar-se de um modo estranho, mas nunca antes o vira assim.

 

Victor seguiu na direcção do Merrimack e parou em frente dos portões da firma. O turno encarregado da segurança tinha mudado. Já não era Fred que se ocupava do manejo dos portões.

 

Por uma questão de respeito para com o segredo do filho, arrumou o carro no local que lhe estava destinado, ou seja, em frente ao edifício da administração.

 

— Vamos ter de andar um bocadinho — disse ele para a mulher, assim que saíram do carro.

 

Era já quase noite quando se aproximaram do rio. Os caminhos estavam invadidos por sombras. O frio era bastante intenso. Pelos seus cálculos, Marsha tinha a certeza de que a temperatura era inferior a zero graus. Victor seguia alguns passos à sua frente, olhando para trás de vez em quando, como se estivesse à espera que alguém os seguisse. Curiosa, ela seguiu-lhe o exemplo, mas nada viu. Aconchegou um pouco mais o casaco ao corpo e acabou por concluir que não era só devido ao frio que tremia.

 

Dado que abrandara um pouco, Victor pegou-lhe na mão e puxou-a. Ela reparou que se tinham afastado da zona que fora remodelada e se encontravam na zona em ruínas. As sombras dos edifícios abandonados debruçavam-se sobre si e o seu aspecto era bastante deprimente.

 

— Victor, para onde é que me estás a levar? — perguntou, ameaçando parar a qualquer momento.

 

— Estamos quase lá. — Ao dizer isto, puxou-a com mais força. Quando chegaram junto à entrada do prédio do relógio, Marsha parou.

 

— Não estás à espera que eu entre aí, pois não? — disse, não sem alguma incredulidade. Inclinou-se para trás e olhou para a torre. As nuvens que passavam a toda a velocidade fizeram-na sentir tonta.

 

— Por favor! O VJ está aqui. Vais ter uma surpresa maravilhosa. Confia em mim.

 

Ela desviou os olhos do rosto excitado do marido e fitou-os no interior escuro do edifício. Os olhos de Victor apresentavam um brilho anormal.

 

— Isto é de loucos — comentou.

 

Com alguma relutância, acabou por avançar. A escuridão envolveu-os. Deixou que ele a guiasse através do lixo.

 

— Estamos quase lá — disse Victor.

 

Os olhos de Marsha habituaram-se o suficiente à escuridão para distinguir o contorno de alguns objectos. À esquerda encontravam-se as enormes janelas através das quais chegava o rugido das quedas de água, bem assim como a luz que se reflectia no lago. O marido parou em frente a uma esquina onde aparentemente nada havia. Largou-lhe a mão e baixou-se. Deu umas pancadinhas no chão. Para sua surpresa, Marsha viu levantar-se uma parte do soalho e toda a zona ficou inundada de luz.

 

— Mãe — chamou VJ. —Entra, depressa.

 

Ela desceu os degraus com toda a cautela, sendo seguida por Victor. O garoto voltou a colocar o alçapão no sítio.

 

Marsha olhou à sua volta. Tudo aquilo lhe parecia saído de um filme de ficção científica. Estava completamente desorientada com aquela mistura de máquinas ferrugentas, uma enorme roda com pás, as paredes de granito, isto já para não falar de toda aquela panóplia de instrumentos tecnológicos. Cumprimentou Philip com a cabeça e este retribuiu-lhe da mesma forma. Acenou para os seguranças da Chimera, mas estes nem se mexeram. Não pôde deixar de reparar no homem que tinha o defeito na vista.

 

— Diz lá se isto não é a coisa mais incrível que viste até hoje? — perguntou o marido, juntando-se a ela.

 

Marsha fitou-o. A excitação há muito que o impedia de raciocinar com clareza.

 

— De que se trata? — quis ela saber.

 

— É o laboratório do nosso filho — esclareceu, dando início a uma pequena palestra em que explicava como tudo aquilo fora construído por VJ, sem que ninguém desconfiasse de nada. Chegou mesmo a desvendar-lhe o segredo da proteína de implante e o significado que esta descoberta tinha no campo da infertilidade. — bom, agora que já sabes o motivo que levou o nosso filho a não ser tão sociável como gostarias, podes deixar de te preocupar. Ele tem estado sempre aqui a matar-se com trabalho! — Soltou uma gargalhada e deixou os olhos vaguearem pelo aposento.

 

Marsha encarou o filho, que, sem qualquer margem para dúvida, a fitava, esperando a sua reacção. À frente dela estava uma enorme peça electrónica. Não fazia a mínima ideia do que se tratava.

 

— De onde é que saiu isto tudo? — inquiriu.

 

— Essa é a parte melhor — respondeu Victor. — Tudo o que aqui está pertence à Chimera.

 

— E como é que veio aqui parar?

 

— Acho que...—começou ele, acabando por parar. Fitou o filho. — Como é que isto veio aqui parar?

 

— Contei com a ajuda de uma série de pessoas — explicou o rapaz de um modo vago. — Foi o Philip quem se encarregou de fazer a mudança. Algumas das peças tiveram de ser desmontadas antes de aqui entrarem. Servimo-nos do velho sistema de túneis.

 

— Por acaso o Gephardt não foi uma dessas pessoas que ajudaram, pois não? — perguntou o pai, sentindo algumas suspeitas.

 

— Sim, foi — admitiu o garoto.

 

— E por que razão é que alguém como o Gephardt estaria disposto a ajudar-te? — perguntou Marsha.

 

— bom, ele partiu do princípio que seria melhor fazê-lo. Dado que passei algum tempo a investigar as fichas do computador da firma, descobri que havia uma série de gente a defraudar a companhia. Assim que obtive esta informação, limitei-me a perguntar a essa gente se não estaria disposta a dar-me uma mãozinha no que lhe fosse possível. Claro que nenhuma sabia da existência dos outros, nem do que estavam a fazer, por isso tudo correu bem. No entanto, o que interessa é que este equipamento pertence à Chimera. Não foi nada roubado. Está no lugar que lhe é devido.

 

— Bem, eu a isso chamo chantagem — retorquiu a mãe.

 

— Nunca ameacei ninguém. Limitei-me a contar-lhes aquilo que sabia e depois pedi-lhes um favor.

 

— Eu bem te disse que o nosso filho é um rapaz cheio de recursos — comentou Victor —, mas olha que não me importaria nada de ter essa lista de desfalques.

 

— Tenho muita pena — anunciou o rapazinho. — Fiz um acordo com as pessoas em questão. Para além do mais, o caso pior, o do Dr. Gephardt, já foi descoberto pelo fisco. O irónico da situação é que ele pensou que era eu quem estava por detrás de tudo. — O rapaz soltou uma gargalhada.

 

O rosto de Victor foi iluminado por um sentimento de compreensão.

 

— Já entendi — comentou. — O Gephardt queria impressionar-te quando atirou o tijolo e matou a pobre Kissa.

 

O garoto acenou.

 

— O idiota! — exclamou.

 

— Quero ir-me embora! —gritou Marsha subitamente, surpreendendo tanto pai como filho.

 

— Mas ainda não viste tudo! — Era Victor quem falara.

 

— Também acho que não — retorquiu ela —, mas já vi o suficiente. Quero ir-me embora. — Olhou para aqueles dois rostos que a fitavam e depois percorreu o compartimento com os olhos. Aquele sítio fazia-lhe medo.

 

— Há uma parte destinada à habitação... —começou o marido, apontando para o extremo oeste da sala.

 

Marsha ignorou o gesto. Dirigiu-se para as escadas e começou a subir.

 

— Eu bem te disse que não lhe devíamos ter dito — murmurou V J.

 

O pai pôs-lhe a mão no ombro e sussurrou:

 

— Não te preocupes. Eu trato dela. — Voltou-se para a mulher e gritou: —Espera, já vou ter contigo.

 

Marsha foi direita ao alçapão e empurrou-o. Assim que saiu da cave, começou a andar aos tropeções por entre o lixo, acabando por chegar à porta. O ar fresco do exterior fê-la sentir-se mais aliviada.

 

— Marsha, por amor de Deus — disse ele, agarrando-a por um braço e fazendo-a dar meia volta. — Onde é que vais?

 

— Para casa!

 

Determinada, recomeçou a andar. Contudo, o marido voltou a agarrá-la.

 

— Por que razão é que estás a agir assim?

 

Ela não respondeu. Em vez disso, estugou o passo. Estavam praticamente a correr. Quando chegaram ao carro, Marsha abriu a porta e entrou.

 

Victor seguiu-lhe o exemplo.

 

— Não queres falar comigo? — perguntou, bastante irritado. Ela nada disse e não deixou de olhar em frente. Ninguém abriu a boca durante toda a viagem.

 

Quando chegaram a casa, Marsha serviu-se de um copo de vinho branco.

 

— Marsha — principiou ele, quebrando o silêncio —, por que razão estás a comportar-te desta maneira? Pensei que ias ficar tão satisfeita quanto eu, principalmente depois do que te tens preocupado com uma possível queda dos níveis de inteligência do nosso filho. É mais que evidente que ele está óptimo. Mostra-se tão inteligente como sempre.

 

— É justamente aí que está o problema — cortou ela. — O nosso filho é inteligentíssimo e isso assusta-me. Pelo aspecto do laboratório, diria que continua a ser qualquer coisa de genial, não te parece?

 

— Claro. E isso não é maravilhoso?

 

— Não. — Colocou o copo de vinho em cima da mesa. — Se ele continua a ser um génio, então toda aquela história da queda de inteligência não passou de uma farsa. Tem sido suficientemente esperto para falsificar os meus testes psicológicos, a não ser no que diz respeito às colunas de validade. Victor, a vida que ele leva connosco não passa de uma impostura. Uma enorme mentira e nada mais do que isso.

 

— Talvez haja outra explicação. Talvez que a inteligência dele tenha mesmo chegado a baixar, voltando depois aos seus níveis iniciais.

 

— Ainda esta semana lhe fiz os testes relativos ao coeficiente de inteligência. Não passaram dos cento e trinta pontos, tal como vem acontecendo desde que ele fez três anos e meio.

 

— Está bem — admitiu ele. Era a sua vez de se sentir irritado. — O que nos interessa é que o garoto está bem e já não temos de nos preocupar com ele. Para dizer a verdade, ele está mais que bem. Construiu sozinho um laboratório. O seu coeficiente de inteligência tem de ser superior a cento e trinta. Bem, isto tudo quer dizer que a minha experiência com o FCN é um sucesso.

 

Marsha abanou a cabeça. Não conseguia acreditar que o marido fosse tão fanático.

 

— Agora a sério. Que é que pensas que criaste com o VJ, as tuas mutações e manipulações de genes?

 

— Criei uma criança normal com uma inteligência superior à média — respondeu ele, sem qualquer hesitação.

 

— Que mais?

 

— Que queres dizer com isso?

 

— E no que diz respeito à personalidade desta criatura?

 

— Criatura? Mas estás a falar a respeito do VJ, do nosso filho!

 

— E quanto à personalidade dele? — repetiu Marsha.

 

— Que se lixe a personalidade! —gritou ele. —O miúdo é um prodígio. Já conseguiu uma série de feitos científicos. Qual é o problema se nem tudo é um mar de rosas? Todos temos as nossas manias.

 

— Criaste um monstro — afirmou ela em voz baixa. Mordeu o lábio. Por que razão é que não era capaz de controlar as lágrimas? — Criaste um monstro e nunca te perdoarei por isso.

 

— Vai-te lixar!

 

— O VJ é uma aberração. A sua inteligência fê-lo marginalizar-se. Fez dele um solitário. Parece que ele descobriu tudo isto quando tinha três anos. O facto de ser muito mais inteligente do que os outros leva-o a não se guiar pelos mesmos códigos sociais. A sua inteligência colocou-o para lá de tudo e de todos.

 

— )á acabaste?

 

— Não, não acabei!—gritou ela, subitamente irritada, muito embora as lágrimas lhe continuassem a rolar pelo rosto. — E aquelas duas crianças que possuíam o mesmo gene do nosso filho? Por que razão morreram elas?

 

— Por que razão é que estás a falar nisso outra vez?

 

— E quanto às mortes do David e da Janice? — interrogou, baixando a voz, sem ligar nenhuma ao que o marido lhe perguntara. — Ainda não tive oportunidade de te dizer, mas hoje fui a casa dos Fay. Disseram-me que a Janice estava convencida de que o V J tinha alguma coisa a ver com a morte do David. Chegou a dizer-lhes que ele tinha pacto com o demónio.

 

— Já tínhamos ouvido esse disparate antes de ela ter morrido. Tu mesma costumavas dizer que ela se tinha transformado numa fanática religiosa.

 

— A visita que fiz aos pais dela fez-me ver as coisas de outra forma. A Janice andava convencida de que fora drogada ou envenenada.

 

— Marsha! — exclamou ele com brusquidão. Agarrou-a pelos ombros. — Domina-te. O David morreu de cancro no fígado, lembras-te? Antes de morrer, a Janice ficou um pouco amalucada. Lembras-te? Para além de todos os problemas que tinha, andava com uma paranóia qualquer. É provável que sofresse de metástase cerebral.

 

Para além disso, ninguém fica com um cancro no fígado por ter sido envenenado. — Palavras não eram ditas e já sentia algumas dúvidas. Lembrou-se dos estranhos pedaços de DNA que se encontravam nas células dos cancros de ambos os pacientes: Janice e David. — E no que diz respeito à morte dos garotos — disse, sentando-se longe dela —, tenho a certeza de que estão relacionadas com problemas internos da firma. Alguém descobriu o projecto FCN e quer desacreditar-me. É por isso que quero que ande sempre alguém com o VJ.

 

— E quando é que chegaste a essa conclusão? — perguntou ela, pousando o copo.

 

Victor encolheu os ombros.

 

— Não me lembro. Só sei que foi esta semana.

 

— Isso quer dizer que estás mesmo convencido de que essas mortes foram propositadas, que houve alguém que, deliberadamente, matou essas crianças — concluiu ela, cada vez mais alarmada.

 

Ele esquecera-se de que nada lhe tinha dito a este respeito. Pouco à vontade, engoliu em seco.

 

— Victor! — exclamou ela com algum ressentimento. — Por que foi que não me contaste?

 

Devagar, deu uma golada no que estava a beber. Tentou pensar em algo que pudesse ocultar a verdade, mas nada lhe ocorreu. Tudo o que descobrira durante o dia deixara-o bastante à vontade. Soltou um suspiro e contou-lhe que havia encontrado cefaloclor no sangue dos rapazinhos.

 

— Oh, meu Deus! — murmurou ela. — Tens a certeza de que foi alguém da Chimera que deu o antibiótico aos garotos?

 

— Absoluta. A única coisa em comum que eles tinham era passarem o dia na creche da firma. Só aí lhes podem ter dado o cefaloclor.

 

— Mas quem é que podia ter feito uma coisa tão terrível? — com esta questão, Marsha queria certificar-se de que o filho não poderia estar envolvido numa coisa daquelas.

 

— Só pode ter sido o Ronald ou o Hurst. Se tivesse de escolher entre os dois, ia pelo último. Contudo, e até arranjar provas mais consistentes, tudo o que posso fazer é manter o segurança ao lado do nosso filho, isto para me certificar de que ninguém se sente tentado a dar-lhe o antibiótico.

 

Foi nesse momento que a porta das traseiras se abriu e V J, Philip e Pedro Gonzáles entraram na sala. Marsha deixou-se ficar sentada, mas o marido levantou-se de um salto.

 

— Olá a todos — disse, tentando parecer animado. Começou por apresentar o segurança à mulher, mas ela interrompeu-o, dizendo que já se haviam encontrado de manhã.

 

— Já me tinha esquecido — desculpou-se ele, a esfregar as mãos. Era mais do que evidente que não sabia o que fazer.

 

Ela encarou o filho. Este devolveu-lhe o olhar de tal forma que Marsha se viu forçada a baixar a cabeça. Era bastante estranho e desconfortável saber o que sentia pelo filho, principalmente desde que se apercebera de que o receava.

 

— Por que não vão dar um mergulho na piscina? — inquiriu Victor a VJ e a Philip.

 

— Boa ideia — assentiu o rapaz. Tanto ele como Philip se dirigiram para as escadas.

 

— Então amanhã de manhã estará cá de novo? — Desta vez, Victor dirigira-se ao segurança.

 

— Sim. Às seis da manhã. Estarei lá fora, dentro do meu carro. Victor acompanhou o homem até à porta e depois regressou à cozinha.

 

— vou ter uma conversa com o VJ — anunciou. — vou perguntar-lhe directamente o que se passa com a história da inteligência Talvez o que ele me diga te faça sentir melhor.

 

— Acho que já sei o que ele te vai dizer — comentou ela —, mas faz como quiseres.

 

O mais depressa que podia, subiu as escadas e foi até ao quarto do filho. Este levantou os olhos para o pai assim que o viu entrar. Ao encará-lo, Victor compreendeu que receava aquilo que criara. Tratava-se de uma criança muito bonita, possuidora de uma inteligência sem limites. Por tudo isto, não sabia se se devia sentir ciumento ou orgulhoso.

 

— A mãe não ficou tão entusiasmada como tu a respeito do laboratório — começou ele por dizer. — Garanto-te.

 

— Aquilo foi de mais para ela — explicou o pai.

 

— Só gostava de não te ter deixado ires buscá-la.

 

— Não te preocupes. Eu tomo conta dela. No entanto, há uma coisa que já a preocupa há muitos anos. Aquela história da queda dos níveis de inteligência foi a fingir, não foi?

 

— Claro — respondeu o rapaz, ao mesmo tempo que vestia o roupão de natação. — Tive de o fazer. Se não o tivesse feito, nunca teria sido capaz de levar a cabo todo o trabalho que viste. Precisava de anonimato, que nunca poderia ter se fosse encarado como uma aberração superinteligente. Queria ser tratado de maneira normal, e, para que isso acontecesse, tinha de ter um comportamento normal. Ou, pelo menos, o mais normal possível.

 

— E nunca pensaste que podias ter falado comigo a esse respeito?

 

— Estás a brincar? Tu e a mãe não paravam de me exibir e nunca teriam deixado que eu agisse como queria.

 

— És capaz de ter razão — confessou. — Admito que, durante uns tempos, só tivemos olhos para as tuas habilidades.

 

— Queres vir nadar connosco? — perguntou o garoto com um sorriso. — Deixo-te ganhar.

 

Apesar de tudo, Victor foi obrigado a rir-se.

 

— Obrigado, mas acho melhor ir falar com a tua mãe e tentar acalmá-la. Diverte-te. — Dirigiu-se para a porta, mas acabou por voltar para trás. — Ficaria bastante satisfeito se amanhã me pudesses contar os pormenores do teu projecto de implantação.

 

— Terei o máximo prazer em te mostrar tudo.

 

Ele acenou, sorriu e desceu as escadas. À medida que se ia aproximando da cozinha, ia sentindo com maior intensidade o cheiro do alho, da cebola e dos pimentos, tudo a apurar para o molho que acompanharia o esparguete. O facto de Marsha estar a preparar o jantar era bom sinal.

 

À laia de terapia instantânea, ela decidira pôr-se a cozinhar. As coisas de que tomara conhecimento durante o dia faziam que não conseguisse ordenar as ideias. O acto de preparar o jantar era uma maneira de evitar pensar no assunto. Quando o marido regressou do quarto de VJ, ignorou-o de propósito, concentrando toda a sua atenção na lata de calda de tomate que estava empenhada em abrir.

 

Victor manteve-se em silêncio durante uns tempos. Pôs a mesa e abriu uma garrafa de Chianti. Quando já não tinha mais nada que fazer, sentou-se num dos bancos que estavam junto ao parapeito e disse:

 

— Tinhas razão. O VJ fingiu que tinha sofrido uma queda dos níveis de inteligência.

 

— Isso não me surpreende nada. — Pegou na alface, na cebola e nos pimentos e pôs-se a preparar a salada.

 

— Mas a razão que ele apresentou para isso é bastante boa. Dito isto, contou-lhe a versão do garoto.

 

— Acho que deves estar convencido de que, depois disso, estou mais descansada — comentou ela, assim que o marido terminou.

 

Ele não lhe deu resposta. Marsha prosseguiu:

 

— Quando estavas lá em cima a conversar com o VJ, perguntaste-lhe alguma coisa a respeito das mortes do David, da Janice e das outras duas crianças?

 

— Claro que não! — exclamou, horrorizado com a ideia. — Por que razão o haveria de fazer?

 

— Por que razão não o haverias de fazer?

 

— Porque não tem qualquer cabimento.

 

— Pois eu cá acho que não lhe perguntaste nada porque tiveste medo de o fazer.

 

— Oh, vá lá — atalhou ele. — Estás outra vez a dizer disparates.

 

— Eu cá tenho medo de lhe perguntar — afirmou ela. No entanto, não pôde deixar de sentir um aperto na garganta.

 

— Estás a deixar-te dominar pela imaginação. Eu sei que tiveste um dia terrível. Tenho muita pena. Estava convencido de que ias ficar entusiasmada. Contudo, sei que um dia te irás lembrar deste dia e soltar uma gargalhada. Se este trabalho de implantação é mesmo aquilo que parece ser, a carreira do nosso filho conhecerá um sucesso sem limites.

 

— Espero bem que sim. — Apesar das suas palavras, o tom de voz revelava que não estava nada convencida.

 

— Mas tens de prometer que não vais contar nada a ninguém a respeito do laboratório do VJ.

 

— E a quem é que eu poderia ir contar?

 

— Deixa-me ser eu a tratar dele. Tenho a certeza de que ainda te vais sentir orgulhosa do nosso filho.

 

Sentiu um arrepio e viu-se obrigada a estremecer.

 

— Está frio aqui? — perguntou. Victor olhou para o termómetro.

 

— Não. Acho mesmo que está calor a mais.

 

DOMINGO DE MANHA

Eram quatro e meia da manhã quando Marsha acordou em sobressalto. Não fazia a mínima ideia do que a acordara e, durante alguns minutos, a sua respiração não sossegou. Apesar de ter prestado a máxima atenção a todos os barulhos que iam ocorrendo na casa, não conseguiu ouvir nada de extraordinário. Virou-se e tentou voltar a adormecer, mas não foi capaz. Não conseguia deixar de pensar no laboratório de VJ e na mistura de estilos que ali se condensava. Foi então que se lembrou do homem com o defeito no olho.

 

Com muito cuidado, pois não queria acordar o marido, sentou-se na beira da cama. Levantou-se, enfiou os chinelos e vestiu o roupão. Sempre sem fazer ruído, abriu a porta do quarto, saiu e voltou a fechá-la.

 

Deixou-se ficar no corredor durante um momento, a pensar para onde deveria ir. Como que movida por uma qualquer força oculta, deu por si a caminhar pelo corredor, na direcção do quarto de VJ. Quando lá chegou, reparou que a porta estava entreaberta.

 

Silenciosamente, abriu-a por completo. Pela janela entrava a luz difusa dos candeeiros de iluminação pública. Para seu alívio, o filho estava a dormir profundamente. Estava deitado de lado e tinha o rosto virado para ela. Assim adormecido, dava a ideia de ser um amor de criança. Será que o seu querido filhinho tinha mesmo algo a ver com as coisas terríveis que aconteciam na Chimera? A última coisa que queria era pensar na ama, Janice, e em David, o seu adorado filho mais velho. Para seu horror, uma imagem de David tal como estava antes de morrer, com a pele toda amarela devido à doença, surgiu-lhe diante dos olhos.

 

Abafou um grito. Sem mais nem menos, pensou em agarrar numa almofada e em encostá-la ao rosto calmo do filho, sufucando-o. Horrorizada, tentou pensar noutra coisa, ao mesmo tempo que estremecia de medo. A fugir de si mesma, voltou ao corredor.

 

Parou em frente ao quarto de hóspedes, que agora albergava Philip. Abriu a porta e a primeira coisa em que reparou foi na enorme cabeça do homem recortada contra o branco da almofada. Depois de ter reflectido durante uns instantes, entrou no quarto e acercou-se da cama. O homem ressonava profundamente, soltando um pequeno assobio de cada vez que expirava. Baixou-se e tocou-lhe ao de leve no ombro.

 

— Philip — chamou ela em voz baixa. — Philip!

 

Este pestanejou e acabou por abrir os olhos. Sentou-se de um salto. Antes de reconhecer Marsha, o seu rosto apresentava uma expressão assustada. Acabou por sorrir, exibindo aqueles dentes enormes e quadrados que o caracterizavam.

 

— Peço desculpa por te ter acordado — murmurou —, mas preciso de falar contigo.

 

— Não faz mal — disse ele, ensonado. Inclinou-se para trás e apoiou-se num cotovelo.

 

Marsha pegou numa cadeira, levou-a para junto da cama e acendeu o candeeiro da mesinha-de-cabeceira, acabando por se sentar.

 

— Em primeiro lugar, queria agradecer-te por seres tão amigo do meu filho.

 

Ainda a ppestanejar devido à súbita intensidade da luz, Philip sorriu de orelha a orelha. Acenou.

 

— Deves ter-lhe sido bastante útil quando andaram a montar o laboratório.

 

Ele voltou a acenar.

 

— Quem mais é que o ajudou a montar?

 

O sorriso desapareceu do rosto do homem. Bastante nervoso, começou a olhar em volta.

 

— Não posso dizer.

 

— Sou a mãe do VJ — lembrou-lhe Marsha. — A mim podes contar.

 

Philip mudou o ponto de apoio para o outro cotovelo. Estava a sentir-se pouco à vontade.

 

Ela ficou à espera, mas o homem não abriu a boca.

 

— O Dr. Gephardt ajudou? Ele acenou.

 

— Mas foi então que Mr. Gephardt se meteu em trabalhos. Chegou mesmo a zangar-se com o VJ, não foi?

 

— Sim, claro. Ele zangou-se, mas depois foi a vez do VJ se zangar. Ele foi falar com Mr. Martinez.

 

— Qual é o primeiro nome de Mr. Martinez?

 

— Orlando.

 

— E Mr. Martinez também trabalha na Chimera?

 

Philip voltou a mostrar-se agitado.

 

— Não — acabou por responder. — Trabalha em Mattapan.

 

— Na cidade de Mattapan? A sul de Boston? O homem acenou.

 

Estava já a preparar-se para perguntar outra coisa quando sentiu uma presença que a fez gelar. Voltou-se para a porta. O filho estava lá, com as mãos apoiadas nas ombreiras e o queixo apontado para a frente.

 

— Sou da opinião de que devemos, deixar dormir o Philip — disse.

 

Marsha levantou-se de um salto. Queria dizer alguma coisa, mas as palavras não saíam. Em vez disso, passou pelo filho a correr e foi para o quarto o mais depressa que podia.

 

Durante a meia hora que se seguiu, Marsha deixou-se ficar deitada, tremendo com a ideia de que o garoto poderia entrar ali. Dava um salto sempre que o vento fazia que os ramos do carvalho batessem de encontro à casa.

 

Como os seus receios não se concretizaram, acabou por relaxar. Voltou-se e tentou adormecer de novo, mas não conseguia deixar de pensar. Tinha vontade de saber alguma coisa sobre o misterioso Orlando Martinez. Depois, começou a pensar em Janice Fay. Lembrou-se do filho e voltou a sentir a tristeza que lhe era familiar. Pensou em Mr. Remington e na Pendleton Academy. Recordou-se do professor que tentara estabelecer amizade com VJ e do facto de este ter morrido. Perguntou-se sobre qual poderia ter sido a causa desta morte.

 

A próxima coisa que soube foi que Victor a estava a acordar, para lhe dizer que se ia embora com o filho.

 

— Que horas são? — perguntou, ao mesmo tempo que olhava para o relógio. Para sua surpresa, viu que já passava das nove e meia.

 

— Estavas a dormir tão bem que não tive coragem para te acordar. O VJ e eu vamos até ao laboratório. Ele vai revelar-me os pormenores do projecto de implantação em que está a trabalhar. Por que razão é que não vens connosco?

 

Ela abanou a cabeça.

 

— Não, prefiro ficar em casa. Depois contas-me tudo.

 

— Tens a certeza? Se isto é de facto tão bom como o que estou a pensar, talvez venhas a sentir-te melhor a respeito de tudo isto.

 

— Talvez — disse, apesar de ter as mais sérias dúvidas. Victor deu-lhe um beijo na testa.

 

— Tenta descansar, está bem? Vai tudo correr pelo melhor, tenho a certeza.

 

A tremer de excitação, ele desceu as escadas que davam para a porta das traseiras. Se aquele negócio da implantação era para valer, então poderia surpreender os outros membros da direcção durante a reunião de quarta-feira.

 

— A mãe não vem? — interrogou o garoto. Encontrava-se junto da porta de trás e tinha o casaco vestido. Philip estava a seu lado.

 

— Não, mas pareceu-me mais calma esta manhã. Isso posso eu garantir-te.

 

— Mas ontem, à noite, andou a fazer perguntas ao Philip — contrapôs VJ. —É precisamente esse tipo de comportamento que me preocupa.

 

Assim que o carro se afastou, Marsha subiu ao escritório, situado no andar de cima, e pegou na lista telefónica da zona de Boston. Infelizmente, o que ali não faltava era gente com Martinez como apelido. Chegava mesmo a haver vários Orlandos. Contudo, acabou por encontrar um Orlando Martinez em Mattapan. Pôs o telefone no colo e marcou o número que encontrara. A chamada obteve resposta e Marsha estava prestes a falar quando compreendeu que estava a ser atendida por um gravador.

 

A mensagem que se encontrava na máquina dizia que o escritório da Martinez Enterprises estava aberto de segunda a sexta-feira. Não deixou mensagem Voltando a servir-se da lista, copiou a morada correspondente.

 

Depois, foi tomar um duche, vestiu-se, preparou um café e um ovo escalfado. Vestiu o casaco comprido e dirigiu-se para o carro.

 

Quinze minutos mais tarde, encontrava-se em Pendleton Academy.

 

O dia estava ventoso, mas não havia qualquer nuvem e o sol brilhava. Viam-se muitos alunos e a maior parte deles dirigia-se para a capela, prontos a assistir ao serviço religioso obrigatório.

 

Marsha estacionou o mais próximo que podia da pequena igreja gótica e ficou à espera. Andava à procura de Mr. Remington e tinha esperança de o conseguir apanhar por ali.

 

Não tardou muito para que os sinos da torre da igreja batessem as onze. As portas da capela abriram-se e um bando de garotos de faces rosadas saiu ao encontro do ar fresco e da luz do Sol. Entre eles encontrava-se uma série de adultos, os professores, e lá estava Mr. Remington. A sua barba cerrada fazia que se destacasse por entre a multidão.

 

Ela saiu do carro e ficou à espera. O homem seguia na sua direcção, avançando a um passo cadenciado. Quando estava apenas a um metro de distância, Marsha chamou-o. Ele parou e encarou-a.

 

— Dr.” Frank!—exclamou, não sem alguma surpresa.

 

— Bom dia — cumprimentou ela. — Espero não estar a incomodar.

 

— De maneira nenhuma. Deseja alguma coisa?

 

— Sim. Queria fazer uma pergunta que talvez lhe pareça estranha. Espero que me compreenda. Disse-me que aquele professor que tentara estabelecer amizade com o VJ morreu. Posso saber de quê?

 

— O pobre homem morreu de cancro.

 

— Era o que eu receava.

 

— Como disse?

 

No entanto, Marsha não lhe forneceu qualquer informação.

 

— E sabe de que tipo de cancro?

 

— Receio bem que não, mas acho que já lhe disse que a mulher dele ainda cá continua a trabalhar. Chama-se Stephanie. Stephanie

 

Cavendish.

 

— Acha que posso falar com ela ainda hoje?

 

— Não vejo por que razão não o há-de fazer. Ela habita numa moradia perto da minha casa. Partilhamos o mesmo relvado. vou a caminho de casa e a vivenda fica apenas a alguns metros. Ficaria bastante feliz se as pudesse apresentar.

 

Marsha regulou o passo pelo dele e caminharam juntos durante um bocado. Enquanto iam andando, ela perguntou:

 

— Havia algum professor que se desse bem com o meu outro filho, David?

 

— A maior parte dos professores gostava dele. Era um rapazinho bastante popular. Se tivesse de escolher apenas um, inclinar-me-ia para Joe Arnold. Trata-se de um professor de História bastante querido dos alunos e acho que era bastante chegado ao David.

 

A moradia de que Mr. Remington falara lembrava uma das casinhas da região de Cotswold, em Inglaterra. com as suas paredes caiadas de branco e o telhado a dar a impressão de estar coberto de colmo, ficava-se com a sensação de que esta saíra direitinha de um conto de fadas. Foi o próprio director quem tocou à campainha e apresentou Marsha a Mrs. Cavendish, uma mulher magra e atraente, que Marsha calculou rondar a sua idade. Só então esta ficou a saber que Stephanie Cavendish pertencia ao grupo de educação física da escola.

 

Mr. Remington apresentou as suas desculpas por ter de partir e Marsha foi convidada a entrar.

 

A dona da casa levou-a até à cozinha e ofereceu-lhe uma chávena de chá.

 

— Por favor, chame-me Stephanie — pediu, assim que se sentaram. -Então é a mãe do VJ! O meu marido era um grande admirador do seu filho. Estava convencido de que ele era incrivelmente esperto. A sério, gostava mesmo dele.

 

— Mr. Remington já me tinha dito.

 

— Adorava contar a toda a gente um determinado episódio em que o seu filho resolvera um certo problema de álgebra.

 

Marsha acenou e voltou a dizer que já conhecia a história por intermédio do director.

 

— Contudo, o Raymond achava que o seu filho tinha problemas — explicou Stephanie. — Era por isso que ele fazia os possíveis e os impossíveis para fazer que ele deixasse de ser introvertido. Posso dizer-lhe que se esforçou imenso. Partia do princípio que o VJ andava demasiado sozinho e que talvez viesse a desenvolver ideias suicidas. Preocupava-se bastante com ele, não em termos académicos, claro, mas a nível social.

 

Ela voltou a acenar.

 

— Como é que ele está agora? — quis saber a viúva de Raymond Cavendish. — Não costumo vê-lo por aí.

 

— Receio bem que continue a não ter muitos amigos. Não é nada extrovertido.

 

— Lamento ouvi-la dizer isso.

 

Marsha chamou a si toda a coragem que possuía.

 

— Espero que não me considere demasiado atrevida, mas gostaria de lhe fazer uma pergunta pessoal. Mr. Remington disse-me que o seu marido morreu de cancro. Ficaria aborrecida se lhe perguntttasse qual o tipo de cancro?

 

— De maneira nenhuma — disse, não sem um aperto na garganta. — Teve de passar um certo tempo até eu conseguir falar do assunto — admitiu. O Ray morreu com um cancro de fígado. Tratou-se de um caso bastante raro. Recebeu tratamento no Massachusetts General, em Boston. Os médicos disseram que só tinham conhecido meia dúzia de casos semelhantes.

 

Muito embora Marsha já estivesse à espera daquilo, sentiu-se como se lhe tivessem batido. Era precisamente isto o que ela mais receava ouvir.

 

Com o máximo de tacto possível, deu por terminada a conversa, não sem antes se ter servido da ajuda de Mrs. Cavendish para ser recebida em casa de Joe Arnold.

 

Não tinha nada a ver com o tipo de professor intelectual que ela esperava. Os seus olhos castanhos iluminaram-se quando abriu a porta para a cumprimentar. Tal como Stephanie Cavendish, aparentava ter a sua idade. Para lá do bom aspecto, dos olhos penetrantes e das roupas algo descuidadas, Marsha reconheceu que se tratava de uma pessoa com um encanto particular. Não tinha dúvidas de que se tratava de um excelente professor, pois possuía o tipo de entusiasmo que os alunos costumam achar contagiante. Não era para admirar que David se tivesse dado bem com este homem.

 

— É um prazer conhecê-la, Mrs. Frank. Por favor, entre, entre. — Segurou a porta para que ela pudesse passar e conduziu-a a um escritório cheio de livros. — O David costumava passar aqui muitas tardes.

 

Ela sentiu que estava prestes a chorar. Entristecia-a bastante saber que havia uma grande parte da vida de David que não se dera ao trabalho de conhecer. No entanto, tentou dominar-se o mais possível.

 

Depois de ter agradecido a Joe por a ter recebido sem ter sido avisado com antecedência, foi direita ao assunto que a levara ali. Perguntou-lhe se o filho mais velho chegara alguma vez a falar do irmão, VJ.

 

— Às vezes. O David contou-me que tivera problemas com o irmão desde o dia em que este chegara a casa. Isso é bastante normal, mas, para dizer a verdade, fiquei com a impressão de que se tratava de algo mais grave do que a rivalidade do costume. Tentei fazê-lo falar, mas ele nunca se adiantou. Tínhamos uma relação bastante forte, mas o David nunca se abria muito quando falávamos a este respeito.

 

— E nunca disse nada a respeito da forma como se sentia e que tipo de problemas eram?

 

— Bom, o seu filho chegou a dizer-me que tinha medo do VJ.

 

— E disse porquê?

 

— Fiquei com a impressão de que o VJ o ameaçara. Ele não disse mais do que isso. Sei que as relações entre irmãos podem ser traiçoeiras, principalmente naquelas idades. Mas, para ser franco, o problema existente entre eles não me parecia ser normal. O David dava a ideia de estar apavorado, demasiado apavorado, para falar sobre o caso. Por fim, acabei por insistir para que fosse ver a psicóloga da escola.

 

— E ele foi? — perguntou ela. Nunca tomara conhecimento de nada disto e o facto fazia-a sentir-se ainda mais culpada.

 

— Pode ter a certeza que sim — confirmou Joe. — Eu não estava nada interessado em deixar isto por resolver. O David era uma criança muito especial... — Por um momento, a comoção embargou-lhe a voz. —Desculpe — disse, depois de uma breve pausa. Contudo, Marsha ficou comovida com aquela demonstração de afecto. Acabou por acenar com a cabeça.

 

— A psicóloga ainda está por aí? — interrogou ela.

 

— A Madeline Zinnzer? Claro. Ela é uma espécie de instituição. Está aqui há mais tempo do que qualquer de nós.

 

Marsha serviu-se da hospitalidade de Joe Arnold para ser convidada para a casa de Madeline Zinnzer. Não tinha palavras para lhe agradecer.

 

— Sempre às ordens — disse Joe, apertando-lhe a mão mais uma vez. —A sério, sempre às ordens.

 

Madeline Zinnzer tinha o ar de uma instituição. Era uma mulher gordíssima, com quase cem quilos de peso. Tinha o cabelo grisalho, no qual fizera uma permanente bastante forte. Guiou-a até uma sala grande e confortável, que tinha uma janela da qual se avistava todo o pátio de Pendleton Academy.

 

— Trata-se de um dos privilégios de já cá estar há tanto tempo — explicou a psicóloga, seguindo o olhar da sua convidada. — Acabei por ficar com a melhor das casas existentes na escola.

 

— Espero que não se importe que eu tenha vindo a um domingo.

 

— De maneira nenhuma — declarou Madeline.

 

— Tenho algumas perguntas a fazer-lhe a respeito dos meus filhos e pensei que talvez me pudesse ajudar.

 

— Foi exactamente isso que o Joe Arnold me disse. Receio não me lembrar muito bem do David, mas, como ainda tenho a ficha dele, dei-lhe uma olhadela depois de o Joe ter telefonado. Qual é a sua ideia?

 

— O David contou ao Joe que o irmão mais novo, o VJ, o tinha ameaçado, mas não se adiantou mais. Conseguiu saber alguma coisa para além disto?

 

Madeline juntou os dedos até formar uma pirâmide e recostou-se na cadeira. Pigarreou para aclarar a garganta.

 

— Vi o David algumas vezes. Depois de ter conversado um pouco com ele, fiquei com a impressão de que se estava a servir dos seus mecanismos de defesa, projectando no irmão os sentimentos de competição e hostilidade que sentia.

 

— Nesse caso, a ameaça não era específica?

 

— Bom, já não iria tão longe. Aparentemente, chegara mesmo a haver uma ameaça concreta.

 

— E dizia respeito a quê?

 

— Coisas de rapazes. Dizia respeito a um esconderijo qualquer que o VJ tinha e que o irmão descobrira. Uma coisa desse estilo.

 

— Não se trataria antes de um laboratório secreto?

 

— É possível. É bastante provável que o David tenha dito laboratório, mas na ficha escrevi esconderijo.

 

— E chegou a falar com o VJ?

 

— Sim, uma vez. Pensei que talvez fosse bom tentar descobrir qual seria a base real em que esta relação assentava. O V J não podia ser mais directo. Contou-me que o David tivera ciúmes dele desde o dia em que chegara do hospital. — Ao dizer isto, soltou uma gargalhada. — Disse-me que se lembrava do dia em que o tinham levado da maternidade. Na altura, confesso que fiquei impressionada.

 

— E o David chegou a dizer de que ameaça se tratava?

 

— Sim. Contou-me que o irmão o ameaçara matar.

 

Quando deixou Pendleton Academy, Marsha dirigiu-se para Boston. Por muito que tentasse não juntar as peças do quebra-cabeças, sentia-se obrigada a fazê-lo. Continuava a dizer para consigo mesma que tudo o que ia sabendo só podia tratar-se de coincidência, ou então de algo totalmente inocente. Já tinha perdido um dos filhos. Mas, mesmo assim, sabia que só voltaria a ter descanso depois de ter descoberto toda a verdade.

 

Fizera o estágio no Massachusetts General Hospital. Ir até lá era como estar de volta a casa. No entanto, não se dirigiu para a unidade de psiquiatria. Em vez disso, foi direita ao departamento de patologia, onde encontrou um dos médicos do quadro, o Dr. Preston Gordon.

 

— Claro que posso fazê-lo — declarou ele. — Dado que não sabe a data de nascimento, vai demorar um pouco mais, mas não tenho mais nada que fazer.

 

Marsha seguiu-o até ao centro de informática e sentaram-se junto de um dos computadores que aí se encontravam. O sistema apresentava mais do que uma ficha no nome de Raymond Cavendish, mas, através da data aproximada da morte, conseguiram descobrir um Raymond Cavendish de Boxford, Massachusetts.

 

— Muito bem — disse Prestou. — Vamos lá examinar a ficha. — O écran encheu-se com a ficha clínica do homem. O médico examinou-a. — A biópsia está aqui. E aqui está o diagnóstico: cancro de fígado da célula de Kupffer. — Assobiou. — Ora aqui temos algo de interessante. Nunca ouvi falar em nada deste tipo.

 

— É capaz de me dizer se houve mais algum caso destes a receber tratamento neste hospital?

 

Preston voltou a ocupar-se do teclado e deu início à pesquisa. Demorou apenas alguns minutos a obter a resposta. Apareceu um nome no écran.

 

— Só houve mais um caso destes no nosso hospital. Tratou-se de uma tal Janice Fay.

 

Victor sintonizou o rádio num posto que tocava músicas antigas e acompanhou a plenos pulmões uma série de canções dos anos cinquenta, altura em que ainda se encontrava no liceu. Sentia-se muito bem disposto, pois passara o dia enfeitiçado com o trabalho que VJ realizara no seu laboratório secreto. As coisas haviam sido exactamente como o filho lhe dissera: muito além daquilo que poderia imaginar.

 

Quando entrou no caminho que levava a casa, a selecção musical mudara para um conjunto de músicas dos anos sessenta, e, junto com Neil Diamond, “atacou” a Sweet Caroline. Conduziu a viatura em torno da casa e esperou que a porta da garagem se abrisse. Depois de ter arrumado o automóvel, desligou o motor e esperou que a canção acabasse. Por fim, saiu, e, ao ver o carro de Marsha, dirigiu-se para casa.

 

— Marsha! —gritou, logo depois de ter entrado. Como o carro estava na garagem, sabia que ela não tinha saído, muito embora as luzes não estivessem acesas. — Marsha! — gritou de novo, apenas para reparar que não era necessário. Na penumbra que reinava na sala, viu que ela se encontrava sentada não muito longe dele. — Ah, estás aí! — exclamou.

 

— Onde é que está o VJ — perguntou ela. A sua voz revelava sinais de cansaço.

 

— Quis vir de bicicleta. No entanto, não estou preocupado com o facto. O Pedro está com ele.

 

— No ponto em que as coisas estão, não estou nada preocupada com o nosso filho. Talvez nos devêssemos preocupar mais com o segurança.

 

Victor acendeu o candeeiro. Ela cobriu os olhos com uma das mãos.

 

— Por favor — pediu —, deixa-a ficar apagada.

 

Ele obedeceu. Esperava encontrar a mulher de melhor humor, mas, pelos vistos, as coisas não se passavam assim. Acabou por se sentar, começando a elogiar o trabalho do filho, bem assim como as maravilhas por ele descobertas. Contou-lhe que a proteína destinada ao implante dos óvulos era mesmo eficaz. Contra factos não havia argumentos. Finalmente, falou-lhe a respeito da pièce de rèsistance do filho: o facto de se resolverem os problemas dos implantes abria as portas para a compreensão do processo de diferenciação na sua totalidade.

 

— Se o VJ não estivesse tão interessado em manter tudo isto em segredo — começou Victor—, podia muito bem ser nomeado para o Prémio Nobel. Disso estou convencido. Mas, como as coisas estão, quer que seja eu a ficar com os louros e a Chimera a recolher os lucros. Que achas? Não me vais dizer que é mais um sintoma de que possui distúrbios de personalidade, pois não? Na minha opinião, acho que se trata de um procedimento generoso.

 

Sem obter qualquer resposta da parte da mulher, acabou por ficar sem tema de conversa. Depois de alguns momentos de silêncio. Marsha acabou por dizer: —Detesto estragar-te o dia, mas receio bem ter sabido mais uma série de factos estranhos a respeito do VJ.

 

Ele revirou os olhos e passou as mãos pelo cabelo. Não era bem este tipo de resposta que esperava obter.

 

— O único professor de Pendleton Academy que fez algum esforço por se aproximar do nosso filho morreu há já alguns anos.

 

— Lamento muito.

 

— Morreu de cancro.

 

— Está bem, morreu de cancro. E depois? — inquiriu ele, sentindo o coração bater mais depressa.

 

— De cancro de fígado.

 

— Oh!—exclamou. Não estava a gostar do rumo que a conversa ia tomando.

 

— Tratou-se do mesmo tipo de cancro que vitimou a Janice e o David.

 

Fez-se silêncio. O motor do frigorífico começou a trabalhar. Victor não queria ouvir este tipo de coisas. Queria falar sobre as técnicas de implante e tudo o que estas poderiam fazer por todos aqueles casais estéreis sempre que os zigotes recusavam o implante.

 

— Para um cancro que é extremamente raro, parece que há muita gente a contraí-lo. Quero dizer, gente que se atravessa no caminho do VJ. Falei com a mulher de Mr. Cavendish, ou seja, a sua viúva. E uma senhora muito simpática. Também lecciona em Pendleton. E também tive uma conversa com um tal Mr. Arnold. Parece que era muito chegado ao David. Sabias que o VJ chegou a ameaçar o irmão?

 

— Por amor de Deus, Marsha! Os miúdos passam o tempo a ameaçar-se uns aos outros. Eu fiz o mesmo quando o meu irmão mais velho destruiu uma casa de neve que eu acabara de construir.

 

— O VJ ameaçou matar o David, Victor. E não foi no meio de uma discussão. — Marsha estava prestes a chorar. — Victor, acorda!

 

— Não quero falar mais a este respeito — disse ele, bastante zangado. — Pelo menos por agora. — Ainda não lhe passara a excitação provocada pelo que vivera no laboratório do filho. Seria possível que o génio que caracterizava VJ era marcado por uma faceta oculta? Houve tempos em que assim pensara, mas não sabia de nada que fosse consistente. O filho parecia-lhe ser uma criança perfeita. Contudo, Marsha sentia o mesmo tipo de dúvidas e distorcia-as até ganharem um sentido perverso. Seria possível que o rapazinho que lhe mostrara o laboratório, o génio que estava por detrás do novo processo de implantação de zigotcs, pudesse ser o responsável por uma série de actos pouco ou nada ortodoxos? Do assassínio de duas crianças, de Janice Fay e de David, o seu filho mais velho? Victor mal conseguia avaliar todo o horror destes actos. Fez força para deixar de pensar nestas coisas. Era impossível. Alguém que estava no laboratório fora o responsável pela morte dos garotos. Quanto às outras mortes, só podia tratar-se de uma coincidência. Marsha estava a levar as coisas longe de mais. Para dizer a verdade, desde a morte dos bebés Hobbs e Murray que ela andava meio histérica. Contudo, e se os seus medos fossem justificados, que poderia ele fazer? Como poderia continuar a apoiar as descobertas científicas do filho? E, se tudo aquilo fosse verdade, se VJ era meio prodígio e meio monstro, qual seria a posição que lhe restava assumir? Não se podia esquecer de que fora ele o responsável pela criação do garoto.

 

Era provável que Marsha continuasse a insistir, mas foi então que o filho chegou a casa. A sua entrada foi semelhante à que ocorrera há uma semana atrás, com a mochila ao ombro. Era como se ele soubesse aquilo de que tinham estado a falar. com os olhos mais gelados que nunca, fitou-a. Marsha estremeceu. Não conseguiu devolver-lhe o olhar. Sentia cada vez mais medo dele.

 

Sempre a morder a ponta da caneta, Victor não parava de andar de um lado para o outro no escritório. A porta estava fechada e reinava o mais absoluto silêncio. Tanto quanto sabia, há já muito que os outros se tinham deitado. Dado que Marsha se fechara no quarto quando ele se recusara a continuar a falar a respeito do filho, a noite não fora das mais agradáveis.

 

Planeara passar a noite a trabalhar no discurso de apresentação do novo método de implantes uterinos, o qual tencionava apresentar na reunião de quarta-feira. Porém, era incapaz de se concentrar. As palavras da mulher continuavam a martelar-lhe nos ouvidos. Por mais que tentasse, não conseguia deixar de pensar nelas. E se o filho tivesse mesmo ameaçado o irmão mais velho? Estava certo de que se tratava de coisas de rapazes.

 

No entanto, o facto de saber da existência de mais um caso de cancro de fígado perturbava-o bastante, principalmente quando pensava na tal partícula extra de DNA que existia nos tumores de David e de Janice. Mas essa particularidade ainda não fora explicada. Victor nada contara à mulher a este respeito. Já era suficientemente mau saber da sua existência. Se não a conseguisse poupar à revelação de uma verdade que só poderia ser pavorosa, ao menos que a poupasse à revelação inicial que poderia levar à descoberta de tudo.

 

E lá estava de novo a pergunta de Marsha sobre quais seriam as outras actividades de VJ sempre que este se fechava no laboratório. O rapaz tinha recursos e o equipamento necessário para fazer quase tudo o que dizia respeito ao campo da biologia experimental. Para além do método de implantação, em que outras coisas estaria ele mergulhado? Mesmo durante a excursão que fizera pelos domínios do filho, e bem grande que esta fora, Victor não pudera deixar de pensar que VJ lhe estava a esconder alguma coisa.

 

— Talvez fosse bom ir até lá — disse ele em voz alta, ao mesmo tempo que atirava a caneta para cima da secretária. Faltava um quarto para as duas da manhã, mas não havia problema.

 

Rabiscou algumas palavras num bilhete, não fosse dar-se o caso de a mulher ou o filho andarem à sua procura. Vestiu o casaco e pegou numa lanterna, tirou o carro da garagem e baixou a porta servindo-se do controlo remoto. Quando estava prestes a apanhar a estrada, olhou para trás e espiou a casa. Não se via qualquer luz, o que significava que ninguém acordara.

 

Já na Chimera, o guarda encarregado de vigiar o portão saiu do seu gabinete e apontou uma lanterna ao rosto dele.

 

— Desculpe, Dr. Frank — disse, voltando a correr para o edifício, pronto para levantar o portão.

 

Victor elogiou-o pelo modo como cumpria o seu dever e só depois se dirigiu para o edifício onde se encontrava o laboratório. Arrumou o carro mesmo em frente a este. Quando teve a certeza de que não estava ninguém a observá-lo, deu uma corrida até ao rio. Sentia-se tentado a usar a lanterna, mas teve medo de o fazer. Não queria que ninguém ficasse a saber da existência do laboratório de VJ.

 

À medida que se aproximava do rio, reparou que o barulho das quedas de água era ainda mais ensurdecedor durante a noite. O vento que soprava pelos caminhos levantava poeira e lixo, obrigando-o a baixar a cabeça. Por fim, acabou por chegar ao edifício da torre do relógio.

 

Quando lá chegou, hesitou por alguns instantes. Não era o tipo de pessoa que se assustava com facilidade, mas aquele lugar era tão escuro e desolado que acabou por sentir algum receio. Mais uma vez se sentiu tentado a servir-se da lanterna, mas voltou a recear que alguém visse o clarão.

 

Começou a abrir caminho através do escuro, avançando pé ante pé, cheio de cuidado. Já estava perto do alçapão quando sentiu um bater de asas mesmo em frente ao rosto. Surpreendido, soltou um grito, mas acabou por compreender que perturbara um ninho de pardais, que usavam a torre como se esta fosse a sua casa.

 

Victor respirou fundo e continuou a andar. Aliviado, chegou junto do alçapão, e foi só quando aí chegou que compreendeu que não o sabia abrir. Tentou descobrir uma abertura onde pudesse enfiar os dedos e agarrar as tábuas, mas nada conseguiu.

 

Frustrado, levantou a lanterna e examinou a área que o rodeava. Não tinha qualquer alternativa. No chão, no meio de uma grande quantidade de lixo, via-se uma vara de metal. Acabou por pegar nela e voltou ao ponto de partida. Sem despender um grande esforço, conseguiu que o alçapão subisse alguns milímetros. Depois disso, abriu-o sem qualquer dificuldade.

 

Desceu as escadas o mais depressa que podia. À excepção da lanterna que transportava, não havia outra luz no laboratório. Começou à procura do interruptor. Encontrou-o mesmo por baixo das escadas e acabou por acender a luz. Assim que as lâmpadas fluorescentes se acenderam, soltou um suspiro de alívio.

 

Estava decidido a examinar a área que VJ não lhe mostrara, um gabinete sobre o qual o garoto se recusara a falar quando o pai a esse respeito o interrogara.

 

Contudo, não chegou sequer a aproximar-se da porta. Estava apenas a cerca de um ou dois metros desta quando a porta da zona destinada à habitação se abriu e um enorme cão de guarda veio ao seu encontro, a rosnar. Acabou por recuar, levantando as mãos para proteger a cabeça. Fechou os olhos e ficou à espera que o animal atacasse.

 

Como nada aconteceu, abriu os olhos com todo o cuidado. Um dos seguranças da firma segurava o bicho por uma trela.

 

— Graças a Deus! — exclamou. — Nem calcula como estou feliz por o ver!

 

— Quem é você? — quis saber o homem. A sua voz apresentava um forte sotaque espanhol.

 

— Victor Frank. Sou um dos donos da Chimera. Admira-me que não me tenha reconhecido. Para além do mais, sou o pai do VJ.

 

— Está bem. — Como para acompanhar as palavras do homem, o cão rosnou.

 

— Qual é o seu nome? — interrogou ele.

 

— Ramirez.

 

— Nunca o tinha visto antes, mas estou bastante satisfeito por saber que a outra ponta da trela está nas suas mãos. — Fez um gesto na direcção da porta. Ramirez agarrou-lhe o braço e segurou-o.

 

Surpreendido com esta atitude, Victor olhou para a mão que se agarrava ao seu braço. Então, olhou o homem de frente e disse:

 

— Acabei de lhe dizer quem sou. É capaz de me largar? — Tentava falar com a maior dureza possível, mas sentia que era o outro quem dominava a situação.

 

O cão voltou a rosnar. Os seus dentes estavam apenas a alguns centímetros de distância.

 

— Tenho muita pena — disse o outro, muito embora aparentasse não ter pena nenhuma. — Ninguém está autorizado a atravessar essa porta, a menos que o VJ dê ordens nesse sentido.

 

Victor examinou a expressão do homem. Não restava qualquer dúvida de que Ramirez fazia tenções de seguir à risca as ordens que tinha. Interrogou-se sobre o que deveria fazer para sair desta situação ridícula.

 

— Talvez seja melhor chamarmos o seu superior hierárquico, Mr. Ramirez — acabou ele por dizer.

 

— Este é o turno dos mortos — explicou o segurança. — Aqui quem manda sou eu.

 

Fitaram-se durante mais alguns instantes. Victor acabou por compreender que o homem não podia ser mais intransigente, do mesmo modo que o animal não podia ser mais persuasivo.

 

— Está bem! — anuiu.

 

Ramirez largou-lhe o braço e puxou o cão para longe.

 

— Nesse caso, acho melhor ir-me embora — anunciou, sem deixar de olhar para o cão. Decidiu que trataria do caso Ramirez logo na manhã seguinte. Para mais, teria de mencionar o facto a VJ.

 

Saiu por onde entrara. Parou em frente do portão e chamou o guarda.

 

— Há quanto tempo é que o Ramirez trabalha com vocês?

 

— Qual Ramirez? — interrogou o guarda. — Não há nenhum Ramirez na nossa força.

 

SEGUNDA-FEIRA DE MANHÃ

A atmosfera que reinava à mesa do pequeno-almoço estava bastante longe de ser considerada normal. Durante o duche, Marsha prometera a si mesma que iria agir como se tudo estivesse em ordem, mas descobriu que era incapaz. Quando, quinze minutos depois da hora prevista, VJ apareceu à mesa, disse-lhe para se despachar, pois tinha de ir para a escola. Sabia que o estava a provocar, mas não o conseguia evitar.

 

— Agora que já sabem o meu segredo, acho que é bastante ridículo ter de ir para a escola fingir que estou interessado na matéria do 5.º ano.

 

— Mas eu pensei que era importante para ti manteres o anonimato — insistiu Marsha.

 

Como que a pedir apoio, o garoto olhou para o pai, mas este continuou a beber o café com toda a calma. Tudo o que queria era ficar fora daquela discussão.

 

— Nesta altura, não vejo como é que o facto de não ir à escola pode afectar o meu anonimato — retorquiu ele com frieza.

 

— A lei diz que tens de ir à escola.

 

— Mas existem leis que estão acima dessa

 

Marsha não estava disposta a continuar a defender sozinha o seu ponto de vista.

 

— Concordarei com aquilo que tu e o teu pai dicidirem — concluiu.

 

Saiu para o trabalho antes de Victor se ter decidido.

 

— Ela vai dar-nos que fazer — avisou o garoto assim que a mãe saiu.

 

— A tua mãe só precisa de um pouco mais de tempo. Contudo, é provável que tenhas de chegar a um compromisso no que respeita à escola.

 

— Não vejo motivos para isso. Para além do mais, só vai atrapalhar o meu trabalho, fazer que este se atrase. Sempre achei que os resultados é que interessavam.

 

— E é verdade — concordou Victor —, mas há mais coisas para além deles. Bem, como é que estás a pensar seguir até à Chimera? Queres que te dê boleia?

 

— Não, obrigado. Prefiro ir de bicicleta. Há algum problema se o Philip se servir da tua?

 

— De maneira nenhuma. Irei ter contigo ao laboratório por volta do meio-dia. vou precisar que me dês os pormenores a respeito da proteína de implante, para que o departamento jurídico possa avançar com os registos de patente. Para mais, quero que me mostres o resto do laboratório e também as novas instalações. —Não mencionou o episódio ocorrido com Ramirez durante a madrugada.

 

— Óptimo. Quando lá fores, tem cuidado. Não quero que ninguém te veja.

 

Quinze minutos mais tarde, VJ descia a Stanhope Street com o vento a assobiar-lhe nos ouvidos. Atrás de si vinha Philip, montado na bicicleta do pai. Ao volante do seu Ford Taurus, Pedro fechava o cortejo.

 

Quando se aproximaram do banco, o garoto disse aos outros dois para esperarem por ele, dirigindo-se então ao edifício, sem nunca largar a mochila. Para sua sorte, Mr. Scott estava ocupado com um outro cliente, e VJ conseguiu usar o cofre que alugara para fazer um outro depósito avultado sem ter de ouvir qualquer sermão.

 

A viagem de Victor até à firma não foi tão despreocupada. Muito embora fizesse todos os possíveis por não pensar no assunto, as palavras de Marsha não lhe saíam da cabeça. “Para um cancro assim tão raro, há muita gente a contraí-lo. Gente que entrou em contacto com o VJ.” Perguntou-se o que mentiria se a mulher o contraísse. Não fazia a mínima ideia de como o filho estaria preparado para enfrentar esta ameaça.

 

Apesar da apreensão que sentia, Victor continuava entusiasmadíssimo com o projecto da proteína de implante. Preparou-se para enfrentar todo o trabalho burocrático das manhãs de segunda-feira com muito mais boa vontade da que costumava ter. Não se queixou com o excesso de trabalho, dado que este o impedia de pensar em outras coisas. Colleen apareceu no escritório, transportando as mensagens de sempre, as quais falavam de situações urgentes e delicadas. Antes de tomar qualquer decisão, Victor obrigou-a a fazer um breve resumo de todas elas, meio esperançado de que houvesse ali algo que indicasse qualquer tipo de chantagem a respeito do projecto FCN, mas nem sinais de nada desta natureza.

 

Um dos assuntos que requeria a sua atenção envolvia o saber se estava decidido a mover um processo contra Sharon Carver. Disse a Colleen para comunicar ao advogado daquela que estava disposto a não levar o assunto por diante desde que ela retirasse a tal acção baseada num suposto acto de descriminação sexual.

 

A última coisa que ele pediu à secretária para fazer foi marcar uma reunião com Ronald, para que lhe pudesse expor os problemas relacionados com o trabalho do FCN. Se, e conforme previa, nada descobrise, reunir-se-ia com Hurst, pois só este poderia ser o culpado. Para falar com franqueza. Victor rezava para que as coisas fossem assim. Aquilo que mais queria no mundo era descobrir algo de peso que pudesse apresentar a Marsha, dizendo: “O VJ nada teve a ver com isto.”

 

Marsha mal conseguia trabalhar. Por muito que tentasse, não conseguia concentrar-se de maneira a levar a bom porto as sessões de terapia que conduzia. Sem dar qualquer explicação, acabou por dizer a Jean que cancelasse as últimas consultas. A secretária concordou, mas era mais do que óbvio que não ficara satisfeita.

 

Assim que despachou os doentes que ainda ali estavam, esgueirou-se pela porta das traseiras e meteu-se no carro. Apanhou a auto-estrada 495, entrou depois na 93 e fez um desvio na direcção de Boston. Contudo, não foi aí que parou. Prosseguiu viagem através da South East Expressway, acabando por chegar a Neponset, e só depois a Mattapan.

 

Com o papel onde escrevera a morada desdobrado no assento do lado, começou a procurar a Martinez Enterprises. A vizinhança não era grande coisa. Os prédios eram blocos de três andares a cair aos pedaços.

 

A Martinez Enterprises não era mais do que um armazém que não tinha quaisquer janelas. Sem mostrar qualquer receio, Marsha estacionou na curva e saiu do carro. Não viu campainha de espécie alguma. Bateu à porta, primeiro com alguma timidez, mas, como não obtivesse resposta, voltou a bater com mais força. Mesmo assim, ninguém a veio atender.

 

Recuou alguns passos, fitou a porta do edifício e depois inspeccionou a fachada. Deu um salto quando compreendeu que no canto esquerdo do edifício estava um homem de fato escuro e gravata branca que não parava de olhar para ela. O homem estava encostado ao prédio e o seu rosto apresentava uma expressão vagamente trocista. Segurava um cigarro entre o indicador e o polegar. Quando reparou que Marsha o descobrira, disse-lhe qualquer coisa em espanhol.

 

— Não sei falar espanhol — disse ela.

 

— Que quer daqui? — perguntou o sul-americano com um sotaque carregado.

 

— Quero falar com Orlando Martinez.

 

A princípio, o homem não respondeu. Fumou o cigarro até ao fim e atirou-o para a sarjeta.

 

— Venha comigo.

 

Ela dirigiu-se para a esquina do edifício e ficou de frente para um beco apinhado de lixo. Hesitou por alguns instantes, sentindo que talvez fosse melhor dar meia volta e meter-se no carro, mas queria muito chegar ao fim de tudo aquilo. Foi atrás do homem. Sensivelmente a meio do beco, havia uma outra porta. Esta encontrava-se aberta.

 

O interior do prédio condizia com o seu exterior. A principal diferença residia no facto de, lá dentro, existir um certo cheiro a mofo. As paredes eram de cimento e não tinham qualquer pintura. Do tecto pendiam umas quantas lâmpadas. Perto do fundo daquele compartimento cavernoso havia uma secretária, a qual estava rodeada por uns quantos sofás em bastante mau estado. Havia ali perto de dez homens, todos em atitudes bastante descontraídas e todos de fato escuro, exactamente como o homem que a introduzira na casa. O único que tinha um aspecto diferente era o que estava sentado à secretária. Tinha uma camisa de renda branca e usava-a por fora das calças.

 

— Quer alguma coisa? — perguntou o homem. Apesar de possuir sotaque espanhol, não era tão carregado como o do outro.

 

— Procuro Orlando Martinez. — Dito isto, dirigiu-se para a secretária.

 

— Para quê?

 

— Ando preocupada com o meu filho. O nome dele é VJ e constou-me que está ligado a um tal Orlando Martinez, de Mattapan.

 

Marsha apercebeu-se de que as suas declarações haviam provocado alguma agitação entre os homens que estavam nos sofás. Deitou-lhes uma olhadela, mas voltou a concentrar as suas atenções no homem sentado à secretária.

 

— Por acaso, você não será ele? — inquiriu.

 

— Talvez.

 

Ela examinou-o mais de perto Andava pela casa dos quarenta, era moreno, tinha os olhos muito escuros e o cabelo quase preto. Estava enfeitado com todo o tipo de jóias de ouro e usava botões de punho de diamantes.

 

— Queria perguntar-lhe se tem andado envolvido com o meu filho.

 

— Minha senhora, acho melhor dar-lhe um conselho. Se fosse a si, ia para casa e ficava feliz por estar viva. Não se meta naquilo que não compreende. O seu procedimento só pode vir a arranjar sarilhos a todos. — Levantou a mão e apontou para um dos outros homens. — José, acompanha esta senhora até à saída, isto antes que ela se magoe.

 

José avançou alguns passos e empurrou-a na direcção da porta. Ela continuava a olhar para Orlando, tentando descobrir algo mais que pudesse dizer. Contudo, tudo lhe parecia inútil. Voltou a cabeça e foi então que reparou num dos homens que estava sentado por ali e que tinha um defeito na vista. Reconheceu-o. Vira-o no laboratório de VJ quando o marido a levara lá.

 

José não pronunciou qualquer palavra. Acompanhou-a até à porta e bateu-lhe com ela na cara. Marsha deixou-se ficar a olhá-la, sem saber muito bem se havia de estar agradecida ou irritada.

 

Regressou ao carro e ligou o motor. Tinha percorrido apenas metade do bloco quando avistou um polícia. Encostou-se ao passeio e baixou o vidro da janela.

 

— Desculpe — disse, ao mesmo tempo que apontava para o armazém. — Faz alguma ideia de qual a ocupação das pessoas que estão naquele edifício?

 

O guarda baixou-se um pouco para ver em que direcção ela estava a apontar.

 

— Ah, ali!—Endireitou-se. — Não sei bem ao certo, mas disseram-me que se tratava de um grupo de colombianos que anda a montar um qualquer negócio relacionado com mobílias.

 

Assim que teve oportunidade para isso, Victor telefonou a Chad Newhouse, o director do departamento de segurança. Perguntou-lhe se conhecia um homem chamado Ramirez.

 

— Claro — retorquiu Chad. — É um dos membros da nossa força e trabalha connosco há já alguns anos. Há algum problema com ele?

 

— E contratou-o através dos canais normais? O outro soltou uma gargalhada.

 

— Dr. Frank, o senhor está a brincar comigo, não está? Foi o senhor quem o contratou, junto com todos os outros membros do grupo de espionagem industrial. Só o senhor é responsável por ele.

 

Victor desligou o telefone. Tinha mesmo de falar com o filho a respeito de Ramirez.

 

Depois de ter despachado todo o trabalho burocrático e de saber que a reunião que planeava ter com Ronald fora marcada para as onze e quinze, dirigiu-se para o laboratório secreto. Antes de chegar ao edifício do relógio, encostou-se a um dos outros prédios abandonados e certificou-se de que não estava a ser observado. Só então atravessou a rua a correr e penetrou no imóvel certo.

 

Conseguiu que lhe abrissem o alçapão com uma única pancada. Desceu as escadas. Uma série de seguranças envergando uniformes da Chimera andava por ali, entretida a jogar às cartas e a ler revistas. Vindo da porta que Victor tentara abrir nessa mesma madrugada, VJ dirigiu-se ao seu encontro a limpar as mãos a uma toalha. Os olhos tinham um brilho mais intenso do que era costume.

 

— Ontem à noite estiveste aqui no laboratório? — quis ele saber.

 

— Sim.

 

— Não quero que voltes a fazer isso — ordenou. —Só com a minha autorização. Compreendes? Tenho direito à privacidade e a um pouco de respeito.

 

Ele fitou o filho. Ficou sem fala durante alguns segundos. Contara ser ele a ficar zangado, mas acabou por se pôr na defensiva.

 

— Desculpa. Não fiz por mal. Tive curiosidade em ver que outro tipo de coisas tinhas por aqui.

 

— Já não falta muito para que as vejas. — O seu tom de voz era agora mais suave. — Mas primeiro quero que vejas o meu laboratório novo.

 

— Óptimo — concordou, satisfeito por ver que a fúria do rapaz se dissipara tão rapidamente.

 

Servindo-se do seu carro, abandonaram a firma e atravessaram a ponte sobre o Merrimack. Durante a viagem, conseguiu trazer à baila o nome de Ramirez.

 

— Contratei uma série de seguranças em nome da Chimera. Se estás preocupado com o rombo no orçamento, lembra-te dos lucros que a firma vai agora receber em troca de um investimento tão pequeno.

 

— Não era o orçamento que me estava a preocupar — explicou. De facto, aquilo que o preocupava era saber que o filho tinha liberdade para fazer aquilo que bem lhe apetecia.

 

Seguindo as instruções de VJ, pararam em frente de um dos velhos moinhos existentes na outra margem do rio. O garoto foi o primeiro a sair do carro, pois estava ansioso por mostrar a sua criação ao pai.

 

O edifício estava situado mesmo junto ao rio. Do ponto onde se encontrava, via-se a torre do relógio com toda a nitidez. Contudo, e ao contrário do que se passava com as instalações que já conhecia, o novo laboratório era moderno em todos os aspectos, incluindo a decoração. Era constituído por três andares e tratava-se do cenário mais impressionante que Victor jamais vira. Os alojamentos dos animais situavam-se na cave, bem assim como as salas de operação e os aparelhos destinados ao manejo de substâncias radioactivas. No primeiro piso encontravam-se os sistemas de análise NMR e PET e também todo o equipamento de microbiologia. O andar seguinte alojava a maior parte dos sofisticados aparelhos destinados à manipulação e ao fabrico de genes. O último piso albergava o centro de informática, a biblioteca e também os escritórios administrativos.

 

— Que achas? — interrogou o garoto depois de terem visto tudo e quando já se encontravam no hall do último piso. Tinham de andar constantemente a mudar de lugar, pois havia gente por todo o lado, muito atarefada com a instalação do equipamento recém-chegado e a dar os últimos retoques na pintura e nos trabalhos de carpintaria.

 

— Como tudo o mais que tens feito, não há palavras para o descrever. No entamto, isto deve ter custado uma fortuna. De onde é que veio todo este dinheiro?

 

— Um dos projectos em que me empenhei respeitava ao desenvolvimento de um produto bastante vendável, inserido no campo das pesquisas relativas ao DNA — explicou VJ. —Como podes ver, é mais do que evidente que resultou.

 

— E que produto é esse? — inquiriu o pai, curioso. O rapaz sorriu.

 

— É segredo.

 

Foi então que VJ se encaminhou para uma porta que se encontrava fechada, abriu uma nesga, espreitou lá para dentro e virou-se de novo para o pai.

 

— Tenho mais uma surpresa para ti. Há aqui alguém que gostaria que viesses ver.

 

Abriu o resto da porta e fez sinal a Victor para que entrasse. Uma jovem que estava debruçada sobre uma secretária endireitou-se e exclamou:

 

— Dr. Frank! Mas que grande surpresa!

 

Durante alguns instantes, ele não soube o que dizer. Estava a olhar para uma pessoa que nunca mais esperara encontrar: Mary Millman, a mãe de aluguer de VJ.

 

Este estava visivelmente divertido com o choque que causara ao pai.

 

— Precisava de uma boa secretária — explicou —, por isso mandeia-a vir de Detroit. Para mais, tenho de confessar que estava morto por conhecer a mulher que me deu à luz.

 

Victor acabou por apertar a mão que Mary lhe estendera.

 

— Tenho muito prazer em voltar a vê-la — disse, sentindo-se algo tonto.

 

— Igualmente.

 

— Bem — começou o rapaz, soltando uma gargalhada esteja na hora de voltar para o meu laboratório.

 

Victor olhou para o relógio.

 

— Eu também tenho de me ir embora.

 

— Talvez

 

A reunião com Ronald Beekman foi uma perda de tempo. Victor fizera os possíveis e os impossíveis por saber se Ronald sabia alguma coisa sobre o projecto FCN. Mas, apercebendo-se de que este era um assunto que talvez o pudesse colocar numa posição vantajosa, o sócio nada lhe dissera. Quando Victor lhe lembrou que, da última vez em que se haviam encontrado, ele ameaçara fazer-lhe a vida negra, Ronald respondera que se tratava apenas de uma maneira de falar. Por isso, quando saiu do escritório do sócio, não sabia mais do que quando para lá entrara.

 

O único facto positivo que conseguira obter com esta reunião fora o interesse que Beekman demonstrara pelo projecto de implante, e chegara mesmo a prometer arranjar-lhe algumas informações para que pudesse inteirar-se do que se passava.

 

Depois de concluída a reunião, voltou ao seu escritório. Tinha de pedir a Colleen para lhe arranjar uma reunião com Hurst. Não estava muito entusiasmado com a ideia.

 

— Robert Crimes telefonou-lhe do laboratório — avisou a secretária, assim que o viu. —Disse que tem novidades interessantes. Quer que lhe telefone imediatamente.

 

Ele sentou-se pesadamente na poltrona junto à secretária. Em circunstâncias normais, esse tipo de mensagem tê-lo-ia posto a vibrar de entusiasmo. O facto só poderia significar a descoberta de alguma coisa importante relacionada com uma das experiências em que andavam envolvidos. Porém, agora, tratava-se de algo diferente. Tinha de estar relacionada com o trabalho de última hora que Victor lhe fornecera e ele não estava certo de querer ouvir nenhuma “novidade interessante”.

 

Enchendo-se de coragem, acabou por fazer o telefonema, ficando à espera que o homem fosse localizado. Enquanto esperava, começou a pensar nas experiências que tinha entre mãos e acabou por compreender que estas pouco lhe interessavam. Ao fim e ao cabo, VJ acabara por as solucionar a todas. Era um pouco humilhante reconhecer que tinha ficado bastante aquém de um garoto de dez anos. Contudo, havia ali algo de positivo: podiam trabalhar juntos, o que era bastante emocionante.

 

— Dr. Frank! — A voz de Robert fê-lo acordar de repente. — Ainda bem que o encontro. Sequenciei com muita precisão o DNA dos dois tumores e gostava de saber se quer mesmo que eu vá em frente e reproduza as sequências, servindo-me, para isso, das técnicas de recombinação. Irá demorar algum tempo, mas é a única maneira de sabermos ao certo qual o seu código.

 

— E já tem alguma ideia do que possa ser? — interrogou ele, não sem algumas hesitações.

 

— Sim, com certeza. Sem qualquer sombra de dúvida que se trata de um factor de crescimento de pólipos.

 

— Nesse caso, não se trata de nenhum vírus — comentou, ainda com uma réstea de esperança, pois sabia que havia vírus possuidores de partículas infecciosas.

 

— Não, não se trata de nenhum vírus. Para falar com franqueza, penso tratar-se de um gene fabricado artificialmente. — Depois, com uma gargalhada, acrescentou: —Estou capaz de lhe chamar o gene da Chimera. Na sequência, verifica-se a presença de um reactor interno que já usei por mais de uma vez e que é retirado do vírus simiado SV40. No entanto, a outra parte do gene tem de ser proveniente de um outro microrganismo, quer se trate de uma bactéria ou de um vírus.

 

Seguiu-se uma pausa.

 

— Dr. Frank, está a ouvir-me? — inquiriu o funcionário, convencido que a ligação fora cortada.

 

— Tem a certeza? — perguntou Victor, sentindo que a voz lhe tremia. As implicações de tudo isto estavam a tornar-se demasiado óbvias.

 

— Absoluta. Eu próprio fiquei surpreendido. Nunca vi nada semelhante. A primeira coisa que pensei foi que esta gente apanhara um qualquer vector de DNA e que este se infiltrara na sua corrente sanguínea. Isto tudo tinha um aspecto muito estranho e achei melhor parar para reflectir no caso. A única hipótese que me pareceu plausível está relacionada com a possibilidade de as células dos glóbulos vermelhos se terem enchido com este gene infeccioso. Assim que as células de Kupffer existentes no fígado o apanharam, as partículas infecciosas instalaram-se aí de vez. Os genes que apareceram posteriormente transformaram-se em proto-oncogenes, evoluindo depois para ocongenes, até que chegámos ao cancro de fígado. No entanto, temos aqui um pequeno problema. Já reparou do que se trata?

 

— Não. Que é?

 

— Só há uma maneira de as membranas RBC penetrarem na corrente sanguínea de alguém — prosseguiu Robert, sem fazer a mínima ideia do efeito que tudo isto estava a causar em Victor. — Estou a referir-me a uma administração voluntária e não natural. Sei que...

 

Não chegou a concluir a frase. Victor desligou antes disso.

 

As provas que acumulara eram mais do que suficientes. Não havia forma de o negar: David e Janice tinham morrido de um cancro de fígado provocado por uma partícula estranha de DNA que se inserira nos seus cromossomas. E, para culminar, havia o tal professor de Pendleton Academy de que Marsha lhe falara. Todas estas pessoas estavam relacionadas com o filho mais novo. E este era um génio que possuía à sua disposição um laboratório sofisticado e ultramoderno.

 

Colleen enfiou a cabeça no escritório.

 

— Estava à espera que desligasse o telefone — anunciou. — A sua mulher está aqui. Posso mandá-la entrar?

 

Ele fez que sim com a cabeça. Subitamente, voltara a sentir-se muito cansado.

 

Marsha entrou na sala e fechou a porta com força. A deslocação de ar fez esvoaçar alguns dos papéis que estavam em cima da secretária. Dirigiu-se a ele, inclinou-se e olhou-o bem nos olhos.

 

— Sei muito bem que preferirias nada fazer — começou. —Sei que não queres perturbar o VJ e sei, também, que andas, todo entusiasmado com o que ele anda a fazer, mas vais ter de ficar a saber que o nosso filho tem andado metido em negócios escuros. Deixa-me contar-te o que acabei de descobrir. O nosso filho anda envolvido com um grupo de colombianos que é suposto estar a abrir uma firma de importação de móveis em Mattapan. Estive com eles e, deixa-me que te diga, não têm nada o aspecto de comerciantes de móveis. — Parou de repente. O marido não dava sinais de estar a reagir às notícias. —Victor? — chamou. Os olhos dele pareciam distantes, ausentes.

 

— Marsha, senta-te — pediu. Levou as mãos à cabeça e inclinou-se para a frente, apoiando os cotovelos na secretária. Passou as mãos pelo cabelo, esfregou o pescoço e acabou por se endireitar. Sempre a observar o marido com a maior das atenções, Marsha sentou-se. Sentia o coração bater mais depressa.

 

— Acabei de saber uma coisa bem pior do que essa — anunciou: —Há já alguns dias, arranjei amostras dos tumores do David e da Janice. O Robert tem estado a trabalhar nelas. Acabou de me telefonar, dizendo-me que os cancros foram provocados artificialmente, pois fora-lhes introduzido na corrente sanguínea um gene capaz de provocar tumores.

 

Ao mesmo tempo que levava as mãos à boca, Marsha soltou um grito. Muito embora já suspeitasse de tudo aquilo, o facto de ver as suas suspeitas confirmadas era tão terrível como se não estivesse à espera de nada. E, para piorar as coisas, era Victor, Victor, que lutara com unhas e dentes contra os seus medos e apreensões, quem lhe vinha dar a notícia. Mordeu o lábio inferior e começou a tremer, sem saber se de raiva, tristeza ou medo.

 

— Só pode ter sido o VJ — murmurou.

 

Ele deu uma palmada na secretária, fazendo voar os papéis que lá estavam.

 

— Não sabemos ao certo se foi ele! —gritou.

 

— Mas todos eles conheciam o VJ bastante bem — contrapôs ela, fazendo eco dos pensamentos do marido. — Para mais, o nosso filho queria que eles saíssem do seu caminho.

 

Resignado, Victor abanou a cabeça. A quem caberia a maior dose de culpa? A ele ou ao filho? Fora ele quem forjara a brilhante inteligência do garoto. Porém, nunca parara um segundo para se perguntar o que esta podia ocultar. Se tanto David como Janice, já para não falar do tal professor, tinham morrido às mãos de VJ, então ele nunca mais voltaria a ter paz de espírito.

 

Com algumas hesitações, Marsha começou a falar, mas as certezas que sentia acabaram por a fortalecer.

 

— Acho que vamos ter de saber ao certo o que o nosso filho está a fazer no resto do laboratório.

 

Victor deixou cair os braços ao longo do corpo e olhou através da janela. Os seus olhos pousaram na torre do relógio, certo de que o filho se encontrava lá a trabalhar. Voltou-se para a mulher e disse:

 

— Vamos lá descobrir isso.

 

SEGUNDA-FEIRA A TARDE

Marsha viu-se obrigada a correr para o acompanhar no percurso até ao rio. Não demorou muito para que ambos deixassem para trás a parte do complexo que fora renovada. À luz do dia, os edifícios abandonados não tinham um ar assim tão sinistro.

 

Quando entrou no prédio certo, Victor dirigiu-se de imediato para o alçapão, baixou-se e bateu no chão por mais de uma vez.

 

Este não demorou mais de um ou dois minutos a ser aberto. Um homem envergando o uniforme da Chimera examinou-os com algumas suspeitas e, depois, fez-lhes sinal para que descessem.

 

Victor foi o primeiro a fazê-lo. Quando Marsha chegou ao fundo das escadas, já o marido havia contornado a roda e dirigia-se para a famosa porta de metal que impedia a entrada à área secreta do laboratório. Para Marsha, tudo aquilo continuava a ser tão macabro como da primeira vez que ali fora. Sabia que os resultados da pesquisa científica tanto podiam ser bons como maus, mas naquela cave havia qualquer coisa de irreal, o que lhe dava a sensação de que as pesquisas aí efectuadas só podiam ter uma má utilização.

 

Ao ver que Victor se aproximava da porta proibida, um dos guardas soltou um grito. De seguida, pôs-se em pé, de um salto, e avançou na diagonal, agarrando-o por um braço e puxando-o com toda a força.

 

— Ninguém pode entrar ali — rosnou, fazendo uso do seu forte sotaque sul-americano.

 

Para sua surpresa, Marsha viu o marido levar as mãos à cara do outro e empurrá-lo para trás. O gesto apanhou o homem de surpresa e fê-lo levar um joelho ao chão, mas sem nunca largar a manga do casaco de Victor. com um empurrão, este soltou-se e deu meia volta, disposto a chegar à porta.

 

O segurança tirou uma faca da bota e abriu-a. A superfície desta tinha um brilho sinistro.

 

— Victor! — gritou ela.

 

O marido voltou-se quando a ouviu gritar. Sempre com a faca à sua frente, o segurança aproximou-se dele. Conseguiu desviar-se, mas o guarda segurou-lhe o braço. Ameaçadora, a faca ia subindo à sua frente.

 

— Parem- com isso! — gritou VJ, aparecendo junto à porta para onde o pai se pretendia dirigir. Os outros dois seguranças que se encontravam na cave interpuseram-se entre os combatentes, encarregando-se um de segurar Victor, enquanto o outro se ocupava do companheiro.

 

— Soltem o meu pai! — exigiu o garoto.

 

— Mas ele estava a tentar entrar -no laboratório das traseiras— explicou o homem da faca.

 

— Soltem-no! — ordenou ele, mostrando-se ainda mais duro do que na primeira vez.

 

com um empurrão, Victor voltou a ver-se em liberdade, muito embora tivesse algumas dificuldades em manter o equilíbrio. Logo que se recompôs, fez um gesto na direcção da porta. VJ agarrou-lhe o braço no preciso momento em que este estava prestes a abri-la.

 

— Tens a certeza de que estás preparado para isto? — perguntou.

 

— Quero ficar a saber tudo.

 

— Lembras-te da Árvore do Conhecimento?

 

— Do Bem e do Mal? Descansa que não é com isso que me vais fazer desistir.

 

O garoto soltou-lhe o braço.

 

— Faz como quiseres, mas desde já te digo que talvez não gostes daquilo que vais ver.

 

Victor dirigiu um olhar a Marsha, que lhe fez sinal para que avançasse. Voltou-se de novo para a porta e abriu-a. O compartimento interior estava iluminado por uma fraca luz azul. Reparou que a mulher o seguia. V J foi o último a entrar e fechou a porta atrás de si.

 

O quarto tinha cerca de cinquenta pés de comprimento e era bastante estreito. Numa prateleira de madeira viam-se quatro grandes tanques de vidro, cujas paredes haviam sido unidas com silicone. Estavam iluminados com lâmpadas destinadas a fornecer calor e era a elas que se devia aquela luz azulada.

 

Horrorizada, Marsha ficou de boca aberta quando viu o que os tanques continham. Dentro de cada um, envolvidos em membranas transparentes, viam-se quatro fetos humanos que aparentavam rondar os oito meses e que estavam metidos em úteros artificiais. À medida que ela ia avançando, fitavam-na com os seus olhos azuis. Faziam gestos, sorriam e chegavam mesmo a bocejar.

 

Como quem não dá muita importância à coisa, mas revelando um orgulho arrogante, VJ deu-lhes uma breve explicação do sistema. Em cada tanque, as placentas haviam sido agarradas a uma grelha de vidro, que, por sua vez, estava ligada a uma máquina que substituía o coração e os pulmões humanos. Cada uma destas máquinas tinha o seu próprio computador. Este estava ligado a um sintetizador de proteínas. O líquido que se encontrava na superfície do tanque fora coberto por bolas de plástico, numa tentativa de evitar a evaporação excessiva.

 

Maisha e Victor estavam incapazes de falar, de tal forma a visão dos fetos os impressionara. Apesar de se terem preparado o melhor possível para o que pudessem encontrar, o choque que haviam sofrido era superior ao que esperavam.

 

— Tenho a certeza de que se devem estar a perguntar o que tudo isto quer dizer — começou o garoto, aproximando-se de um dos tanques e examinando um qualquer aparelhómetro. Bateu-lhe com o pulso e a agulha do mostrador de imediato saltou para a zona pintada de verde, o que significava que estava tudo bem. — O trabalho que levei a cabo sobre a implantação de óvulos fez-me criar uma série de úteros. A resolução dos problemas do implante trouxe consigo a resposta para a pergunta sobre se o útero é mesmo necessário.

 

— Que idade têm estas crianças? — interrogou Marsha.

 

— Oito meses e meio — esclareceu VJ, o que só vinha confirmar a impressão que ela sentira. — vou mantê-las em gestação durante muito mais tempo do que os nove meses habituais. Quanto mais tempo estiverem no tanque, mais fáceis serão de criar.

 

— Onde é que foste arranjar os zigotes — inquiriu o pai, muito embora já soubesse a resposta.

 

— Tenho todo o prazer em vos informar que são os meus irmãos e irmãs.

 

O olhar incrédulo de Marsha desviou-se dos fetos e fixou-se no filho.

 

A sua expressão fez o garoto soltar uma gargalhada.

 

— Vá lá, a surpresa não pode ser assim tão grande. Tirei os zigotes do frigorífico que estava no laboratório do pai. Não fazia qualquer sentido deixá-los estragar ou esperar que o pai os implantasse noutra pessoa.

 

— Mas eles eram cinco — comentou Victor. — Onde é que está o quinto?

 

— Tens boa memória. Infelizmente, o último perdeu-se num trabalho que comecei a fazer a respeito do protocolo de implante. Contudo, e para a primeira vez, quatro já são um número bastante bom.

 

Marsha regressou para junto das crianças em gestação. Afinal, eram seus filhos!

 

— É melhor não ficarem por de mais surpreendidos com tudo isto — continuou o rapazinho. — Vocês sabem muito bem que a nova tecnologia está aí às portas. Eu apenas a antecipei.

 

Victor dirigiu-se para junto de um computador que estava ocupado no processo de impressão de meia página recheada de dados. Assim que a máquina parou, o sintetizador de proteínas deu início ao fabrico de mais uma.

 

— O sistema detectou que era necessário um determinado factor de crescimento — explicou VJ.

 

Victor olhou para o que estava escrito no papel. Encontravam-se ali todos os dados vitais e químicos, bem assim como a composição do sangue da criança em questão. Ficou surpreendido com a sofisticação de tudo aquilo. Sabia que o filho tivera de imitar a complicada inter-relação de forças necessárias a fazer que um óvulo fertilizado se transformasse num organismo completo. O feito representava um enorme salto na biotecnologia. Uma coisa era descobrir um novo e radical processo de fertilização, mas isto era completamente diferente. Quando considerou o potencial diabólico daquilo que a sua criação fora capaz de criar, viu-se obrigado a estremecer.

 

Algo receosa, Marsha aproximou-se de um dos tanques e examinou de perto uma criança do sexo masculino. O rapazinho fitou-a como se a quisesse para si e encostou uma mão pequenina ao vidro. Ela estendeu a mão e encostou-a à da criança, ficando apenas o vidro a separá-las. Foi então que, revoltada, se viu forçada a recolhê-la.

 

— Olha para as cabeças deles! — gritou.

 

O marido aproximou-se e inclinou-se na direcção da criança.

 

— Que se passa com a cabeça dele?

 

— Olha-lhes para as sobrancelhas. A cabeça termina aí. Não têm testas.

 

— São mutantes — explicou VJ. —Retirei o segmento que o pai acrescentou e destruí parte do FCN normal. Quero que eles tenham um nível de inteligência semelhante à do Philip, pois foi ele quem mais me ajudou durante todo este tempo.

 

Ela estremeceu e, sem que o filho visse, agarrou a mão do marido. Este ignorou-a e apontou para uma porta situada no fundo da sala.

 

— Que é que está para lá daquela porta?

 

— O que viste ainda não te chega?

 

— Tenho de ver tudo — declarou. Libertou-se da mulher e atravessou o quarto. Durante mais alguns insttantes ela deixou-se ficar a olhar para o rapazinho de sobrancelhas proeminentes e cabeça chata. Era como se a evolução humana tivesse recuado 500 000 anos. Como é que o VJ fora capaz de transformar os irmãos e as irmãs em atrasados mentais? O pensamento maquiavélico do garoto fê-la estremecer.

 

Afastou-se dos tanques de gestação e foi atrás do marido. Ela também sentia que tinha de saber tudo, mas será que poderia haver algo mais horrível do que aquilo que acabara de ver?

 

A divisão seguinte tinha uma série de contentores de aço inoxidável alinhados contra a parede. Marsha ficou com a impressão de que se tratava de uma espécie de caldeiras que vira numa destilaria durante a juventude. Este compartimento era bem mais quente e húmido do que o outro. Uma série de homens estava em tronco nu junto dos contentores, ocupados a acrecentar-lhes ingredientes. Pararam de trabalhar quando viram o casal.

 

— Que tanques são estes? — quis ela saber. Foi o marido quem lhe respondeu.

 

— São fermentadores destinados ao crescimento de microrganismos, tais como as bactérias e os fungos. — Voltou-se e interrogou o filho: — Que é que está lá dentro?

 

— Bactérias colóides E. Trata-se de um dos produtos do DNA.

 

— Que estão elas a fazer?

 

— Prefiro não responder. Não achas que as unidades de gestação são suficientes para apenas um dia?

 

— Quero saber tudo — afirmou o pai. —Quero que ponhas as cartas na mesa.

 

— Estão a fazer dinheiro — explicou o rapaz, com um sorriso.

 

— Não estou com disposição para charadas. VJ suspirou.

 

— Para poder construir o laboratório novo, precisava urgentemente de uma injecção de capital. Como é mais do que evidente, não podia pensar em entrar no mercado de acções. Em vez disso, importei umas quantas plantas de coca da América do Sul e extraí-lhes os genes apropriados. Posteriormente, inseri-os nos colóides E, e, servindo-me de um plasmídeo capaz de resistir à tetraciclina, voltei a colocar tudo nas bactérias. Trata-se de um produto maravilhoso. Até mesmo os colóides E o adoram.

 

— Que está ele a dizer? — inquiriu Marsha ao marido.

 

— Está a dizer que estes fermentadores fabricam cocaína.

 

— Isso explica a Martinez Enterprises — comentou ela com um suspiro.

 

— Contudo, esta linha de produção é apenas temporária — explicou o rapazinho. — Trata-se apenas de uma maneira fácil de conseguir dinheiro. Já falta pouco para que o novo laboratório se mantenha a si mesmo, sem precisar de recorrer a negociatas ilegais. Sim, tens razão, o Martinez é um sócio temporário. De facto, temos o nosso próprio exército. De momento, há uma série deles que recebem os seus salários aqui na Chimera.

 

Victor aproximou-se dos fermentadores. Ficou igualmente surpreendido com o grau de sofisticação destas unidades. Mesmo sem prestar atenção aos pormenores, era visível que eram bastante superiores às que a Chimera usava. Deu meia volta e, com um suspiro profundo, voltou para junto da mulher e do filho.

 

— bom, vocês já viram tudo — começou VJ. —Agora está na altura de termos uma conversa bastante séria.

 

Dito isto, e seguido pelos pais, o rapaz regressou à sala principal. Quando voltaram a passar pela sala de gestação, os fetos agitaram-se de novo. Dava a sensação de que queriam companhia humana. Se VJ reparara no facto, o certo é que não o demonstrara.

 

Sem uma palavra, o garoto levou-os para a zona destinada à habitação. Victor compreendeu que, mesmo aqui, havia um espaço que ainda não conhecia. A área maior comportava uma divisão mais pequena. Analisando a decoração e as revistas que ali se amontoavam, calculou que este era o quarto do filho. Havia ali uma cama, uma mesa de campanha e uma série de cadeiras de abrir, bem assim como uma poltrona. VJ dirigiu-se para a mesa e acabou por se sentar.

 

Victor e Marsha também se sentaram. O rapaz tinha os cotovelos apoiados na mesa e as mãos unidas. O seu olhar fixava-se ora na mãe, ora no pai.

 

— Tenho de saber o que vocês estão a pensar fazer a este respeito. Fui honesto convosco, agora é a vossa vez de serem honestos comigo.

 

Eles entreolharam-se. Dado que Victor nada disse, Marsha fez uso da palavra.

 

— Tenho de saber a verdade a respeito de Mr. Cavendish, do David e da Janice.

 

— De momento, não estou muito interessado em assuntos periféricos— retorquiu VJ. — Quero é discutir a magnitude dos meus projectos. Espero que vocês sejam capazes de apreciar a grandeza destas experiências. O seu valor transcende todos os assuntos, que, noutro contexto, talvez sejam pertinentes.

 

— Receio bem que tenhas de nos informar sobre o que se passou com estas pessoas antes de podermos decidir o que vamos fazer — insistiu ela, com toda a calma.

 

O rapaz encarou o pai.

 

— Partilhas desta opinião?

 

Devagar, Victor acenou afirmativamente.

 

— Era disto que eu tinha medo — murmurou o rapaz. Olhou-os com um ar severo, mais ou menos como se ele fosse o pai e Victor e Marsha não passassem de seus filhos desobedientes. Por fim, acabou por falar. — Está bem, vou responder às vossas questões. Dir-vos-ei tudo o que quiserem saber. As três pessoas que acabaram de referir estavam a pensar denunciar-me. Claro que isso teria destruído todo o meu trabalho. Tentei evitar que descobrissem muita coisa a respeito do laboratório e das minhas experiências, mas eles não se davam por vencidos. Claro que tive de deixar que a natureza se encarregasse deles.

 

— Que queres dizer com isso? — perguntou o pai.

 

— Dado que andava ocupado no projecto do útero artificial, tive de realizar experiências no campo dos factores de crescimento. Através delas, descobri certas proteínas capazes de agir como produtoras de proto-orcógenes. Coloquei-as nas membranas RBC e deixei que a natureza se ocupasse do caso.

 

— Queres dizer com isso que os injectaste?

 

— Claro que os injectei! — gritou o rapaz. — Só assim as poderia ter introduzido nos seus organismos.

 

Marsha fazia todos os possíveis por não perder a calma.

 

— Estás então a dizer-me que mataste o teu irmão. E não sentiste nada?

 

— Eu apenas fui o intermediário. O David morreu de cancro. Implorei-lhe que me deixasse em paz. Mas ele continuou a seguir-me, sempre convencido de que era capaz de me destruir. Foram os ciúmes que o mataram.

 

— E quanto aos bebés Murray e Hobbs? — Mais uma vez, era Marsha quem perguntava.

 

— Será que não podemos falar a respeito de coisas importantes? — inquiriu, batendo com o punho na mesa.

 

— Perguntaste-nos o que vamos fazer a respeito de tudo isto — repetiu Marsha. — Para tal, precisamos de saber todos os pormenores. Que aconteceu às crianças?

 

VJ tamborilou com os dedos na mesa. A sua paciência estava a esgotar-se.

 

— Estavam a ficar demasiado espertos. Começavam a compreender quais as potencialidades que tinham. Eu não queria competidores. Tudo o que precisei de fazer foi deitar um pouco de cefaloclor no leite que tomavam na creche da Chimera. Tenho a certeza de que as outras crianças se deram bastante bem com o tratamento.

 

— E como é que te sentiste quando eles morreram? — insistiu a mãe.

 

— Aliviado.

 

— Nem mesmo um pouco triste ou arrependido?

 

— Mãe, isto não é uma sessão de terapia. O que aqui temos de discutir não são os meus sentimentos. Vocês conhecem todos os meus segredos. Está na hora de serem honestos comigo. Preciso de saber quais são as vossas intenções.

 

Ela olhou para o marido, esperançada que este denunciasse as acções demoníacas do filho, mas Victor continuava a fitar o garoto, demasiado atordoado para falar.

 

Marsha interpretou este silêncio como sendo um sinal de compreensão, senão mesmo de aprovação. Será que o marido estava tão impressionado com as descobertas de VJ que era capaz de desculpar cinco assassínios, incluindo o do próprio filho? Bem, ela não iria aceitar isto com passividade. Victor que fosse dar uma volta.

 

— E então? — insistiu o rapaz.

 

Ela virou-se e enfrentou-o. Ele devolveu-lhe o olhar sem pestanejar, revelando uma calma olímpica. A cor azul dos seus olhos, bem assim como o ar angelical que se desprendia dos cabelos dourados, tudo isto fez que Marsha começasse a chorar. Ao fim e ao cabo, este também era seu filho. E, se tinha cometido tantos horrores, será que a culpa era mesmo dele? Não passava de uma aberração da ciência. Pois, por muito que Victor tivesse feito todos os possíveis por lhe garantir uma inteligência brilhante, esquecera-se que a consciência também era importante. Se VJ era culpado, o marido tinha tantas culpas como ele. Sentiu uma súbita vaga de compaixão pelo rapaz.

 

— Filho — começou ela—, não acredito que o teu pai tenha compreendido todas as repercussões da experiência do FCN...

 

Foi interrompida pelo filho.

 

— Bem pelo contrário — afirmou ele. — O pai sabia muito bem aquilo que pretendia obter. E agora que ele pode olhar para mim e para aquilo que consegui, sabe que obteve todo o sucesso que queria. Sou exactamente aquilo que o meu pai queria e desejava que eu fosse. Sou aquilo que ele gostaria de ter sido. Sou tudo o que a ciência pode ser. Sou o futuro. — Sorriu. — É melhor que te habitues a mim.

 

— Talvez sejas aquilo que o teu pai queria que fosses em termos científicos — prosseguiu a mãe sem se impressionar. — Contudo, não acredito que ele tenha pensado no tipo de personalidade que estava a criar. VJ, aquilo que quero dizer é que, se cometeste aqueles crimes, se continuas a fabricar cocaína e não vês o que estas acções representam no campo moral, a culpa não é toda tua.

 

— Mãe — disse o rapaz, bastante desesperado —, por que razão és tão limitada? Sentimentos, sintomas, personalidade. Acabei de te revelar a descoberta científica mais importante de todos os tempos e o mais provável é quereres que eu vá fazer outro teste Rorschach. É absurdo.

 

— A ciência não é tudo — contrapôs ela. — A moral também tem o seu papel. Será que não consegues compreender isto?

 

— É aí que te enganas — retorquiu o filho. — O pai provou que a ciência é o mais importante que existe e que a moral nada vale. Provou-o quando me criou. Segundo os valores convencionais, nunca devia ter avançado com a experiência do FCN, mas ele não ligou nenhuma às limitações. É um verdadeiro herói.

 

— O que o levou a criar-te teve origem numa enorme arrogância. Não parou para pensar nas consequências do seu acto, pois estava obcecado com a concretização do seu objectivo. Sempre que escapa aos limites da moral e da responsabilidade, a ciência torna-se uma coisa perigosa.

 

V J deu um estalo com a língua e depois encarou-a com aqueles olhos muito azuis.

 

— A moral não pode controlar a ciência, pois é relativa e variável. A ciência não. A moral baseia-se no homem e na sociedade, a qual muda através dos anos e de cultura para cultura. O que é tabu para alguns é sagrado para outros. Aqui não há lugar para coisas assim tão vagas. O único factor inevitável neste mundo são as leis da natureza, as quais governam o universo actual. Em último caso, só a razão pode fazer o papel de árbitro, mas nunca os valores morais.

 

— VJ, a culpa não é tua — insistiu ela, abanando a cabeça devagar. Não valia a pena continuar a conversar com o filho. — A tua inteligência superior acabou por te isolar e fazer de ti uma pessoa a quem faltam as qualidades humanas da compaixão, da simpatia e do amor. Achas que não conheces limites, mas não é bem assim. Nunca desenvolveste a tua consciência e nem consegues aperceber-te do facto. É a mesma coisa que tentar explicar a um cego de nascença o que são as cores.

 

Irritado, o rapaz levantou-se da cadeira.

 

— com todo o devido respeito, não tenho tempo para esse tipo de discussões. Tenho trabalho a fazer e preciso de saber quais são as vossas intenções”.

 

— O teu pai e eu precisamos de ter uma conversa — respondeu Marsha, evitando o seu olhar.

 

— Está bem, conversem — disse, levando as mãos às ancas estreitas.

 

— Não podemos falar em frente de crianças.

 

De um modo petulante, VJ comprimiu os lábios. Respirava agora mais depressa e os olhos deitavam chispas. Deu meia volta e abandonou a sala. A porta fechou-se com um estrondo e ouviram a chave rodar na fechadura. O filho fechara-os lá dentro.

 

Ela virou-se para o marido. Desalentado, Victor abanou a cabeça.

 

— Tens alguma ideia daquilo com que estamos a lutar? — perguntou Marsha.

 

Mais uma vez, a resposta dele traduziu-se por um abanar de cabeça.

 

— Óptimo. E já agora, quais são as acções que pretendes tomar contra este estado de coisas?

 

Ele voltou a abanar a cabeça.

 

— Nunca pensei que as coisas fossem chegar a este ponto. — Levantou os olhos para a mulher. — Marsha, tens de acreditar em mim. Se eu soubesse... — Não conseguiu acabar a frase. Precisava do apoio da mulher, da sua compreensão. Contudo, até mesmo ele tinha dificuldade em compreender a magnitude do seu erro. Se conseguissem superar tudo aquilo, não tinha a certeza de poder continuar a viver consigo mesmo. Como é que poderia esperar que a mulher o fizesse?

 

Enterrou o rosto nas mãos.

 

Marsha tocou-lhe no ombro. Por muito má que a situação fosse, pelo menos o facto fizera que Victor voltasse à realidade.

 

— Temos de decidir o que devemos fazer — disse ela, em voz baixa.

 

Como que tomado por uma fúria súbita, o marido levantou-se.

 

— A responsabilidade é minha. Estás mais do que certa a respeito do VJ. Ele não seria o que é se não fossem as minhas experiências científicas. — Voltou-se para a mulher. — Em primeiro lugar, temos de sair daqui.

 

Ela fitou-o com ar grave.

 

— E tu achas que o nosso filho nos vai deixar sair daqui? Tem juízo! Já te esqueceste como foi que ele resolveu todos os problemas com que teve de se confrontar? O David, a Janice, o pobre professor, os outros miúdos, e agora os metediços dos pais.

 

— Achas que ele nos vai manter aqui por tempo indefinido?

 

— Não faço a mínima ideia sobre quais são as suas intenções. Acho que não vai ser fácil sairmos daqui. Ele deve gostar um pouco de nós, caso contrário não se teria dado ao trabalho de nos explicar tudo, nem estaria interessado nos nossos planos e opiniões. No entanto, não tenho qualquer dúvida de que não nos vai deixar sair daqui antes de ter a certeza de que não representamos qualquer perigo.

 

Ficaram ambos calados durante um momento. Só depois ela prosseguiu.

 

— Talvez consigamos chegar a um acordo. Talvez ele deixe um de nós sair se o outro aqui ficar.

 

— Nesse caso, um de nós será usado como refém? Ela acenou.

 

— Se o VJ concordar, acho que deves ser tu a ires-te embora — concluiu Victor.

 

— De maneira nenhuma — ripostou Marsha, abanando a cabeça. — Se isso acontecer, terás de ser tu a partir. Vais ter de arranjar maneira de o fazer parar.

 

— Continuo a pensar que sou eu quem deve ficar. Tenho mais poder sobre ele do que tu.

 

— Na minha opinião, ninguém tem poder sobre ele. Não te esqueças de que vive num mundo que não é o nosso, sem limites nem consciência. No entanto, acho que não será capaz de me magoar, pelo menos enquanto não tiver a certeza de que estou disposta a arranjar confusão. Estou absolutamente convencida de que ele tem mais confiança em ti do que em mim. Nesse aspecto, acho que te dás melhor com ele do que eu. O V J parece andar à procura da tua aprovação. Quer que tenhas orgulho nele. Nisso faz-me lembrar qualquer outra criança.

 

— Mas que posso eu fazer? — perguntou Victor, sem deixar de andar de um lado para o outro. — Estou convencido de que a polícia não dará uma grande ajuda. Talvez que o melhor que possa fazer seja entrar em contacto com a brigada de narcóticos. Acho que o caso da droga é o ponto onde ele é mais vulnerável.

 

Marsha limitou-se a abanar a cabeça. Tinha os olhos cheios de lágrimas. Não podia acreditar que tinham chegado a tanto. Era-lhe difícil pensar em VJ nos termos que não fossem os de sempre. Contudo, não restavam dúvidas de que, devido à manipulação genética que sofrera, o rapaz acabara por se transformar num monstro. com ele não podia haver contemplação.

 

— Será que não o podíamos internar num hospital psiquiátrico? — questionou o marido.

 

— A não ser devido a comportamento psicótico, coisa que ele não demonstrou, ou por ter cometido assassínio devido a distúrbios mentais, seria bastante difícil. No entanto, duvido que sejamos capazes até de fazer que seja indiciado. Tenho a certeza de que teve todo o cuidado para não deixar vestígios dos crimes que cometeu, principalmente tendo em conta a tecnologia envolvida. Apesar de ter uma personalidade desequilibrada, não é nenhum maluco. Temos de arranjar algo melhor do que isso. Só gostava de poder saber o quê.

 

— Hei-de descobrir qualquer coisa — garantiu-lhe Victor. Endireitou o casaco, e, numa tentativa de se pentear, passou as mãos pelo cabelo. Respirou fundo e tentou abrir a porta. Estava fechada. Bateu-lhe com o punho fechado, pelo menos quatro vezes.

 

Passado algum tempo, acabaram por correr o fecho. Acompanhado por vários sul-americanos, VJ apareceu à entrada.

 

— Estou pronto — anunciou Victor.

 

O garoto olhou para os pais. Marsha virou o rosto, pois não queria encarar aquela mirada gélida.

 

— A sós — acrescentou o pai.

 

O rapaz acenou e desviou-se um pouco, dando passagem ao pai, que, por sua vez, se dirigiu para a divisão principal. Acabara de entrar no laboratório quando ouviu o filho fechar Marsha à chave. Era mais do que evidente que ele e a mulher eram prisioneiros de VJ.

 

— Ela está muito perturbada — disse. —Não te esqueças de que o David também era filho dela e tu mataste-o.

 

— Não tive outra alternativa.

 

— Está bem, mas é difícil para uma mãe aceitar uma coisa dessas.

 

O rapaz nem sequer pestanejou.

 

— Eu sabia que não lhe devíamos ter contado nada a respeito do laboratório — comentou VJ. —Ela não sente pela ciência a mesma consideração que tu.

 

— Nisso tens razão. Ficou estarrecida com os úteros artificiais. Eu fiquei admiradíssimo. Sei o que essa descoberta representa em termos científicos. O impacte com que será recebida na comunidade científica será enorme. Isto já para não falarmos do seu valor comercial.

 

— Estou a contar com esses lucros para me livrar do negócio da droga.

 

— Ora aí está uma boa ideia. Se continuares metido no mundo da droga, arriscas-te a perder tudo.

 

— Também já pensei nisso e tenho uma série de acções planeadas, caso as coisas dêem para o torto.

 

— Aposto que sim.

 

VJ examinou-o de perto.

 

— Acho melhor dizeres-me quais são as vossas intenções a respeito do meu laboratório e do meu trabalho.

 

— O meu objectivo é o de negociar com a tua mãe. Contudo, e assim que o choque passar, estou convencido de que ela acabará por reconsiderar.

 

— E como é que estás a planear tratar do caso?

 

— vou convencê-la da importância do teu trabalho e das tuas descobertas. Assim que compreender que fizeste mais do que qualquer outra pessoa no mundo da biologia, e que tens apenas dez anos, acabará por cair em si.

 

VJ parecia estar prestes a rebentar de orgulho. Marsha estava certa: como todas as crianças, o filho também gostava de impressionar o pai. “Se ao menos ele pudesse ser como as outras crianças”, pensou, não sem remorsos. “Mas, graças a mim, nunca o poderá ser.”

 

Resolveu prosseguir.

 

— Assim que te for possível, gostaria de dar uma olhadela à lista de proteínas e factores de crescimento que estão envolvidos no projecto dos úteros artificiais.

 

— São para mais de cem — informou o rapaz. — Posso dar-te um exemplar, mas, claro, não quero que o publiquem.

 

— Compreendo. — Dito isto, olhou para VJ e sorriu-se. — bom, tenho de voltar ao trabalho e tenho a certeza de que a tua mãe tem doentes para ver. Acho que está na altura de nos irmos embora. Encontramo-nos lá em casa.

 

VJ abanou a cabeça.

 

— Acho que é muito cedo para se irem embora. Penso que talvez seja bom ficarem aqui por mais uns dias. Podem tratar dos vossos assuntos pelo telefone. A mãe vai ter de transferir as suas consultas para outro dia. Estou convencido de que não se irão sentir mal aqui.

 

Ao ouvir isto, Victor soltou uma gargalhada oca.

 

— Só podes estar a brincar, claro. Não podemos aqui ficar. A tua mãe ainda pode mudar as consultas para outro dia, mas a Chimera não pode esperar. Tenho muito trabalho pela frente. Para além do mais, toda a gente aqui me conhece. Mais cedo ou mais tarde, acabam por vir à minha procura.

 

O rapaz reconsiderou o assunto.

 

— Está bem — acabou por dizer. — Tu podes ir embora. Mas a mãe vai ter de ficar aqui.

 

Victor não deixou de se sentir impressionado com o facto de a mulher ter sido capaz de antecipar tudo o que se estava a passar.

 

— Mas eu nunca sairia de junto dela — insistiu, tentando fazer que ela o acompanhasse.

 

— Ou um ou outro — intimou o garoto. — Não há mais nada para discutir.

 

— Está bem, já que tanto insistes. vou contar tudo à tua mãe. Não me demoro nada.

 

Voltou para os alojamentos do filho. Um dos guardas abriu a porta. Victor dirigiu-se para junto da mulher e murmurou:

 

— Ele concordou em deixar um de nós sair. Tens a certeza de que não queres ser tu?

 

Ela fez que não com a cabeça.

 

— Por favor, entra em contacto com a Jean e diz-lhe que vou estar uns tempos fora. Diz-lhe que transfira as emergências para a Dr.a Maddox.

 

Acenou. Deu-lhe um beijo no rosto e ficou grato por ela o ter consentido. Foi só então que se voltou e saiu.

 

No laboratório principal, VJ dava instruções a dois guardas.

 

— Este é o Jorge — acabou ele por dizer, apresentando ao pai um sul-americano sorridente. Tratava-se do mesmo homem que lhe apontara a faca. Não aparentava dar mostras de qualquer tipo de ressentimento, pois, para além do sorriso, estendeu-lhe a mão.

 

— O Jorge ofereceu-se para te acompanhar — explicou VJ.

 

— Mas eu não preciso de ama-seca — retorquiu o pai, esforçando-se por esconder a raiva que sentia.

 

Com um sorriso perverso, o rapaz prosseguiu:

 

— Acho que não estas a compreender. Não te cabe decidir nada. O Jorge irá ficar sempre a teu lado para te lembrar que não deves falar com ninguém que me possa vir a arranjar sarilhos. Está igualmente encarregue de te lembrar que a minha mãe está aqui com um dos amigos dele. — VJ deixou ficar a ameaça em suspenso.

 

— Mas eu não preciso de guarda. Para mais, como é que vou explicar a sua presença? com franqueza, filho, não esperava isto de ti.

 

— Tenho total confiança de que acabarás por arranjar maneira de explicar as coisas. O Jorge vai fazer que sejamos todos capazes de dormir um pouco melhor. E deixa-me que te diga: se arranjares confusão com a polícia, lembra-te que o facto só me irá aborrecer e atrasar, mas nunca me fará desistir dos meus planos. Não me desapontes, pai. Juntos, revolucionaremos o mundo da biotecnologia.

 

Victor engoliu com dificuldade. Tinha a boca totalmente seca.

 

SEGUNDA-FEIRA À TARDE

Durante o tempo que Victor permanecera no laboratório do filho, o dia tornara-se enevoado e ventoso. Seguido por Jorge a apenas alguns passos de distância, dirigiu-se para o escritório. O homem tivera todo o cuidado em lhe dar a entender que continuava a usar uma faca na bota direita e o gesto tivera o efeito desejado. Victor sabia que estava na presença de um homem habituado a matar.

 

Apesar de Marsha lhe ter dito que tinha de pensar em alguma coisa, não fazia a mínima ideia do que podia fazer. Quando penetrou no escritório estava totalmente angustiado. Sempre com Jorge a pisar-lhe os calcanhares, avançou a cambalear por entre as secretárias.

 

— Desculpe! — exclamou Colleen, quando ele passou por ela. Deu um salto e agarrou numa série de mensagens.

 

Victor estava agora à porta da sua sala. Virou-se para o sul-americana e disse:

 

— Vai ter de ficar aqui fora à espera.

 

O homem passou por ele como se nada tivesse ouvido. Colleen, que tudo presenciara, estava de boca aberta, principalmente porque o sul-americano envergava um uniforme da firma.

 

— Não será melhor chamar um segurança? — murmurou ela. Victor respondeu que não era necessário. A secretária encolheu

 

os ombros e foi direita ao assunto.

 

— Tenho aqui uma série de mensagens — anunciou. — Tenho estado a tentar localizá-lo. Preciso de...

 

Ele pousou-lhe a mão no ombro e empurrou-a para fora da sala.

 

— Mais tarde — acabou por dizer.

 

— Mas... —A porta fechou-se, deixando a secretária no meio da frase.

 

Para melhor se precaver, Victor girou a chave na fechadura. Jorge já se tinha instalado confortavelmente num dos sofás situados num dos extremos do compartimento e estava todo entretido a cortar as unhas.

 

Victor acabou por se sentar à secretária. O telefone tocou, mas ele não respondeu. Sabia que só podia ser Colleen. Deitou uma olhadela a Jorge; este acenou-lhe com o corta-unhas e dirigiu-lhe um sorriso enviesado.

 

Enterrou a cabeça nas mãos. Tudo o que precisava era de ter um plano. Jorge só servia para o atrapalhar. A atitude demonstrada pelo homem só podia querer dizer o seguinte: “Sou um assassino. estou sentado no teu escritório e não podes fazer nada contra mim.” Victor sentia dificuldade em concentrar-se, pois o olhar do outro não parava de o seguir.

 

— Não me parece que esteja a trabalhar assim tanto como isso — disse o homem, sem mais nem menos. — O VJ disse que você tinha de vir embora devido a ter muito que fazer. Sugiro que deite mãos ao trabalho antes que eu telefone ao seu filho e lhe diga que está para aqui sentado, sem fazer nada, a segurar a cabeça.

 

— Estava só a reflectir — contrapôs ele. Inclinou-se e carregou no botão do intercomunicador. Quando Colleen o atendeu, disse: — Traga as mensagens que tem aí para mim. Vamos começar a trabalhar.

 

Durante a primeira hora, Marsha ocupou-se a folhear algumas das centenas de revistas que se encontravam na estante. Contudo, cedo perdeu o interesse, pois todas elas eram demasiado especializadas, reproduzindo teorias e experiências da vanguarda da física, da biologia e também da química. Levantou-se, começou a andar de um lado para o outro, e chegou mesmo a tentar abrir a porta; mas, e como seria de esperar, estava fechada.

 

Voltou a sentar-se, interrogando-se sobre o que Victor poderia estar a fazer. Num caso como este, o marido teria de fazer uso de todos os recursos que possuía. V J era um adversário excepcional. Para além do mais, teria de mostrar uma grande dose de coragem moral, e, tendo em conta as experiências que efectuara com o FCN. não fazia a mínima ideia se ele ainda a possuía.

 

Foi nesse momento que a maçaneta da porta girou e VJ apareceu no quarto.

 

— Pensei que talvez gostasses de ter companhia — comentou ele alegremente. — Tenho aqui uma pessoa a quem gostaria de te apresentar. — Desviou-se e, de mão estendida e sorriso nos lábios, deu passagem a Mary Millman.

 

Sem saber o que dizer, Marsha levantou-se.

 

— Mrs. Frank! — exclamou a outra, apertando-lhe a mão com entusiasmo. — Tenho muito gosto em a voltar a ver. Pensei que iria ter de esperar outro ano. Como está?

 

— Penso que bastante bem.

 

— Acho que vocês agora têm muito que conversar — disse o rapaz. — vou deixar a porta aberta. Se tiverem fome ou sede, chamem um dos homens do Martinez.

 

— Obrigada — agradeceu Mary. Depois, voltando-se para Marsha, inquiriu: — Ele não é mesmo um amor?

 

— É único. Como foi que chegou até aqui?

 

— É surpreendente, não é? bom, na altura também fiquei admirada. vou contar-lhe como tudo se passou.

 

— Que mais temos nós? — perguntou Victor.

 

Colleen estava sentada no lugar habitual, mesmo à frente dele. Jorge continuava no sofá, confortavelmente instalado. A secretária vasculhou os papéis que tinha à frente.

 

— Acho que por agora é tudo. Quer que faça mais alguma coisa? — Virou os olhos na direcção do sul-americano.

 

— Não — respondeu, entregando-lhe o documento que acabara de assinar. — vou para casa. Se houver algum problema, telefone-me para lá.

 

Depois de uma rápida olhadela ao relógio, Colleen voltou a fixar o patrão.

 

— Está tudo bem? — Desde que ele voltara com o segurança atrás que agia de forma estranha.

 

— Está tudo na maior — retorquiu, enfiando a caneta na gaveta de cima.

 

Pasmada, a secretária examinou aquele para quem trabalhava há já sete anos. Nunca o ouvira utilizar aquele termo. Levantou-se, dirigiu a Jorge um olhar turvo e acabou por abandonar a sala.

 

O segurança levantou-se do sofá.

 

— Vamos voltar ao laboratório — perguntou, fazendo uso do seu sotaque carregado.

 

— Eu vou para casa — respondeu, vestindo o casaco. — Não sei para onde você vai.

 

— Eu vou consigo, amigo.

 

Victor tinha curiosidade em saber se haveria algum problema à saída do complexo. No entanto, o guarda que estava ao portão saudou-o, como era costume, e nada comentou em relação ao facto de ir acompanhado por um homem que envergava o uniforme de segurança da firma.

 

Quando estavam a atravessar o rio, Jorge inclinou-se, ligou o rádio e sintonizou-o numa estação espanhola. Depois disto, levantou o som até este quase se tornar ensurdecedor, estalando os dedos para acompanhar o ritmo.

 

Victor estava mais do que certo que Jorge era o primeiro problema que tinha de enfrentar. Quando chegou ao caminho que levava à garagem ia ocupado a pensar nas alternativas que lhe restavam. O celeiro tinha um depósito para guardar cereais, o qual possuía uma porta bastante forte. O problema era levar o homem até lá.

 

Saiu do carro, baixou a porta da garagem e interrogou-se sobre se lhe seria possível esgueirar-se para trás de Jorge e bater-lhe com uma tábua na cabeça, tal como lhe tinha acontecido a ele quando descobrira o laboratório do filho. Abriu a porta da sala e deixou-a aberta para dar passagem ao outro, mas este insistiu em entrar depois dele.

 

Tirou o casaco e atirou-o para cima do sofá. Dado que era realista, concluiu que o melhor seria não lhe bater. Sabia que ou lhe bateria com muita força ou, em alternativa, com pouca. Qualquer das hipóteses seria desastrosa. Teria de tentar outra coisa. Mas o quê?

 

Só deixou de se sentir desorientado quando se serviu da casa de banho do andar de baixo. Ao ver um frasco de aspirinas no armário dos medicamentos, lembrou-se da velha maleta que lhe haviam fornecido quando estava no 4.º ano de Medicina. Servira-se dela enquanto estagiário, e, pelo que se lembrava, continuava cheia de uma série de drogas que costumavam ser receitadas com frequência.

 

Saiu da casa de banho e descobriu Jorge em frente do televisor da sala, ocupado a mudar de canais. Subiu as escadas. Para seu azar, o outro seguiu-o. Porém, já no escritório, conseguiu que ele se voltasse a interessar pela televisão. Victor abriu o armário e encontrou a maleta preta.

 

Tirou lá de dentro uma quantidade de comprimidos para dormir: Seconal, Valium e Dalmane. Colocou-os no bolso e voltou a pôr a mala no lugar. Voltou à divisão e descobriu que o segurança acabara por encontrar uma estação sul-americana.

 

— Costumo sempre tomar uma bebida quando chego a casa — explicou Victor. — Quer fazer-me companhia?

 

— Que é que tem para aí? — perguntou Jorge, sem desviar os olhos do aparelho.

 

— Quase tudo. E que tal se eu preparar umas margaritas?

 

— Que são margaritas?

 

A pergunta deixou-o surpreendido. Sempre pensara que as margaritas eram muito populares na América do Sul. bom, talvez fossem mais mexicanas do que sul-americanas. Explicou-lhe quais os ingredientes que as compunham.

 

— Tomo o que você tomar.

 

Victor desceu as escadas e foi para a cozinha. Jorge seguiu-o, colocando-se em frente à televisão da sala. Ele pegou em todos os ingredientes, incluindo o sal. Preparou as bebidas num pequeno jarro, e, certificando-se de que o homem não estava a prestar atenção, abriu as cápsulas e despejou o conteúdo destas na mistura. Mesmo depois de ter mexido o líquido com toda a violência, havia ainda alguns sedimentos no fundo, de modo que colocou tudo aquilo no misturador. Depois disto, pegou no jarro contra a luz e examinou-o. Estava com bom aspecto. Calculava que havia ali mais droga do que a necessária para realizar uma operação demorada sem que o doente se mexesse.

 

Deu uma golada bastante pequena. Aquilo amargava um pouco, mas, dado que Jorge nunca bebera uma margarita, não daria pela diferença. Só então colocou o sal na borda dos copos. Preparou a sua bebida com sumo de limão. Assim que tudo ficou pronto, levou os dois copos cheios, bem assim como o jarro, para cima da mesa do café.

 

Sem desviar os olhos da televisão, Jorge pegou no copo que lhe era destinado. Victor recostou-se e deitou uma olhadela ao que se passava no ecran. Tratava-se de uma telenovela. Apesar de não compreender espanhol, não demorou muito para concluir o que ali se passava.

 

Pelo canto do olho, viu o segurança engolir tudo o que estava no copo e inclinar-se para ir buscar mais ao jarro. Ficou satisfeito por o homem ter gostado tanto. O primeiro sinal de que aquilo estava a fazer efeito não tardou a revelar-se: Jorge não parava de piscar os olhos. Não conseguia focar o que se estava a passar no écran. Finalmente, fazendo todos os possíveis por se concentrar, olhou para Victor. O álcool devia ter ajudado bastante a difundir a droga por todo o corpo. O homem ainda mal tocara no segundo copo e já não conseguia manter os olhos abertos.

 

De repente, e sem qualquer aviso, o guarda tentou levantar-se. Devia ter compreendido o que se estava a passar, pois deu um safanão ao copo. Por seu turno, Victor pousou a bebida que tinha entre mãos e agarrou o outro, que tentava a todo o custo marcar um número de telefone. O segurança tentou puxar da faca, mas não conseguiu coordenar os movimentos. Victor não teve dificuldade em o desarmar. Ao fim de um minuto o outro estava fora de combate. Colocou o corpo em cima do sofá. Agarrou numa quantidade de Valium injectavel que trouxera consigo e, à laia de medida preventiva, aplicou-a no sul-americano. Arrastou-o pelo pátio e dirigiu-se para o celeiro. Levou-o para o depósito de cereais e cobriu-o com cobertores e farrapos, pois só assim o corpo se manteria quente. Fechou a porta com um cadeado velho.

 

De volta a casa, não podia deixar de se sentir orgulhoso pelo que fizera e pensou que, agora, teria tempo para pensar à vontade no que deveria fazer a seguir. No entanto, assim que abriu a porta, ouviu o telefone tocar. O facto fê-lo pensar se não seria alguém para falar com Jorge ou se este não teria recebido ordens para ir ligando de vez em quando. Não atendeu. Em vez disso, vestiu o casaco e dirigiu-se para o carro. Como não conseguia pensar em nada melhor, resolveu ir até à esquadra da polícia.

 

Esta ficava situada numa das esquinas do jardim municipal. Era uma estrutura de dois andares a partir da qual pendiam dois candeeiros de iluminação pública encimados por globos de vidro azul. Victor pairou em frente dela e estacionou o carro na área destinada aos visitantes. Quando saíra de casa sentira-se bem por ter tomado uma decisão. Estava ansioso por poder contar a alguém o que se estava a passar. Contudo, à medida que ia subindo os degraus da frente, já não se sentia tão certo de ter tomado a decisão mais correcta.

 

Teve um momento de hesitação. Estava bastante preocupado com Marsha, mas havia mais coisas em que tinha de pensar. Tal como VJ dissera, o mais provável era a polícia não poder fazer grande coisa, e o rapaz acabaria por ficar em liberdade. O sistema legal não servia para pôr na ordem meia dúzia de punks, quanto mais para dominar um rapaz de dez anos com a inteligência de dois Einsteins!

 

Victor ainda se debatia para saber se devia ou não entrar quando a porta se abriu e o sargento Cerullo foi bater de encontro a ele.

 

O homem agarrou no chapéu, evitando assim que este caísse no chão, e, antes mesmo de o ter reconhecido, desfez-se em desculpas.

 

— Dr. Frank! — acabou por exclamar. Voltou a apresentar as suas desculpas e perguntou: —O que o traz por cá?

 

Ele tentou pensar em algo que soasse de forma razoável, mas não conseguiu. Não evitava deixar de pensar na verdade.

 

— Estou com um problema. Posso falar consigo?

 

— Caramba, lamento muito. Esta é a minha pausa para jantar. Convém comermos alguma coisa de vez em quando. Contudo, o Murphy está de serviço. Ele vai ajudá-lo. Quando voltar, farei que seja tratado da melhor forma possível. Até já.

 

Cerullo deu-lhe uma pancada amigável no braço e depois abriu a porta para lhe dar passagem. Quer fosse do seu gosto, quer não, o certo é que Victor acabou por se encontrar dentro da esquadra.

 

— Murphy — chamou Cerullo. com o pé, impedia que a porta se fechasse. — Este é o Dr. Frank. É um amigo meu. Trata-o bem.

 

Murphy era um polícia de origem irlandesa, gordo, de rosto vermelho, cujo pai e o avô já haviam sido polícias. Olhou-o através de uns óculos de lentes grossíssimas.

 

— Já não demoro nada — anuciou.— Sente-se. — com o lápis, apontou para um banco de madeira que o uso manchara e depois voltou ao formulário que estava a preencher.

 

Sentado onde lhe tinham indicado, Victor começou a pensar na conversa que estava prestes a ter com o guarda Murphy. Podia ver-se a contar ao polícia que o filho era um génio que criava atrasados mentais em jarros de vidro para depois os pôr a trabalhar para ele e que matara algumas pessoas para com isso proteger um laboratório secreto que construíra com a ajuda de um punhado de gente que andava a desfalcar a companhia do pai. O simples facto de tentar explicar a situação através de palavras convenceu-o de que ninguém acreditaria em si. E, se o fizessem, que poderia acontecer? Não havia prova alguma que associasse o filho àquelas mortes. Era tudo demasiado circunstancial. E quanto ao equipamento do laboratório, nada fora roubado, pelo menos não por VJ. No que respeitava à cocaína, era óbvio que o pobre garoto estava a ser ucado por um dos barões da droga columbianos.

 

Mordeu o lábio inferior. Murphy continuava ocupado com o formulário, com o lápis na mão e a língua a aparecer ao canto da boca. Não levantou a vista e, por isso, ele pôde continuar a sonhar acordado. Chegou mesmo a visualizar o filho nas malhas da lei e a sair ileso de todo o processo. Continuaria a ter o laboratório completamente equipado e a sua liberdade de acção seria ainda maior. Para mais, VJ provara ser capaz de eliminar todos os que se atravessassem no seu caminho. Victor interrogou-se durante quanto tempo ele e Marsha seriam capazes de aguentar aquela situação.

 

Sentindo-se deprimido ao ponto de chorar, teve de admitir a si mesmo que a experiência que efectuara resultara bem de mais. Tal como a mulher dissera, ele não pensara nas consequências do seu acto. A excitação de levar tudo aquilo por diante cegara-o em relação aos resultados que poderia obter. VJ era muito mais do que aquilo que ele esperara, e, devido aos condicionalismos da lei, o sistema estava mal equipado para lidar com um estranho, como VJ, pois era como se ele fosse de outro planeta.

 

— Ora bem — disse o polícia, atirando com o formulário para uma pasta de arame que se encontrava num dos cantos da secretária. — Que posso fazer por si, Dr. Frank? — Depois do esforço de ter segurado no lápis, soube-lhe bem estalar os dedos.

 

Sem demonstrar muita confiança, Victor levantou-se e encaminhou-se para a secretária. Murphy fitou-o com os seus olhos azuis.

 

O colarinho da camisa que usava era demasiado apertado e a pele do pescoço ficava como que pendurada por cima dele.

 

— Bom, doutor, que se passa? — voltou o homem a perguntar, recostando-se na cadeira. Tinha os braços grandes e pesados e era o tipo de pessoa que se gostada de ver chegar quando se estava a ser assaltado por um grupo de miúdos.

 

— Tenho problemas com o meu filho — começou. — Descobrimos que tem andado a faltar às aulas e...

 

— Desculpe, doutor — interrompeu o polícia. — Talvez fosse melhor ir procurar um assistente social, não acha?

 

— Receio bem que a situação requeira mais do que a ajuda de um assistente social. O meu filho anda ligado a elementos do mundo do crime e...

 

— Desculpe voltar a interromper, doutor. Talvez que a palavra certa fosse psicólogo. Que idade tem o seu filho?

 

— Dez anos. Mas...

 

— Talvez ceja bom dizer-lhe que nunca apresentaram queixa contra ele. Qual é o nome dele?

 

— VJ. Eu sei que nunca apresentaram queixa, mat,...

 

— Antes que diga mais alguma coisa — interrompeu o guarda de novo—, devo dizer-lhe que o? delinquentes juvenis nos dão bastante trabalho. Estou só a tentar ajudar. Se o seu filho fez mesmo algo grave, como praticar um acto de exibicionismo no parque ou entrar em casa de uma viúva, talvez assim valha a pena falar connosco. De outra forma, acho que será melhor procurar um psicólogo. Está a perceber o que quero dizer?

 

— Sim. Acho que tem toda a razão. Obrigado pela ajuda.

 

— De nada, doutor. Fui franco consigo porque sei que é amigo do Cerullo.

 

— Estou muito agradecido — declarou Victor, afastando-se da secretária.

 

Deu meia volta e regressou ao carro o mais depressa que podia. Assim que lá chegou, sentiu que o pânico o dominava De repente, sem estar à espera, apercebeu-se que tinha de lidar sozinho com VJ. Era uma luta de pai contra filho, de criador contra a criatura criada. A compreensão deste facto trouxe consigo um sentimento de náusea que lhe deu vontade de vomitar. Disposto a fazê-lo, abriu a porta da viatura, mas o ar fresco impediu-o de levar por diante os seus planos. Fechou a porta e encostou a testa ao volante. Estava inundado de suor.

 

Lembrou-se dos estudos bíblicos que fizera enquanto criança e do sacrifício de Abraão. No entanto, sabia que entre ambos existiam duas grandes diferenças. No seu caso, Deus não estava disposto a intervir, e Victor sabia que seria incapaz de matar o filho com as suas próprias mãos. Contudo, era cada vez mais óbvio que o problema tinha de ser resolvido entre os dois.

 

Depois, claro, havia o problema de Marsha. Como é que a ia tirar do laboratório? Sentiu-se invadido por uma outra onda de pânico. Sabia que tinha de agir depressa antes que o filho lhe levasse a melhor. Para mais, sabia também que, se não agisse depressa, acabaria por perder a coragem.

 

Ligou o motor e seguiu para casa sem mesmo prestar atenção ao caminho, pois a sua mente tentava arranjar um qualquer plano. Assim que chegou ao seu destino, a primeira coisa que fez foi ir até ao celeiro ver como Jorge se encontrava. Foi dar com ele a dormir como um bem-aventurado, quentinho e confortável debaixo de todo aquele amontoado de cobertores e farrapos. Victor encheu uma garrafa de água e deixou-a junto à cabeceira do outro.

 

Já na sala, o telefone voltou a tocar, assustando-o. Olhou para ele como se não soubesse o que fazer. E se fosse Marsha? Quando a campainha deu o seu quarto toque, pegou no auscultador. Atendeu a chamada em voz baixa, e tinha boas razões para isso. A voz que estava do outro lado era a de um homem com um sotaque espanhol, bastante carregado, que perguntou por Jorge.

 

Victor ficou sem saber o que dizer. A voz voltou a perguntar pelo outro, desta vez com mais insistência.

 

— Está na casinha — acabou Victor por dizer. Mesmo sem perceber uma palavra de espanhol, soube que o outro não o compreendera. — Na casa de banho! — gritou. — Está na casa de banho!

 

— Está bem.

 

Desligou o aparelho. Tal como acontece com uma descarga eléctrica, o corpo foi-lhe percorrido por outra vaga de pânico. Estava a ser pressionado pelo tempo. O Jorge não podia estar na casa de banho durante muito tempo, e, se o fizesse, não demoraria muito para que um exército semelhante ao que visitara Gephardt lhe aparecesse em casa.

 

Deixou cair a mão no lambril por mais de uma vez. Tinha esperança de que aquele acto de violência lhe desse ânimo para pensar em alguma coisa. Tinha de arranjar um plano.

 

Lembrou-se de provocar um incêndio. Ao fim ao cabo, o edifício do relógio era velho e a madeira estava seca. Gostaria de provocar um cataclismo tal que o libertasse de tudo aquilo de uma vez por todas. Contudo, o fogo podia extinguir-se. Não podia dar-se ao luxo de deixar as coisas a meio, caso contrário, teria de enfrentar a cólera de VJ, apoiado pelos homens de Martinez.

 

Uma explosão talvez não fosse má ideia, concluiu, depois de muito reflectir. Mas não sabia como a provocar. Tinha a certeza de que seria capaz de produzir um pequeno engenho explosivo, mas este não seria capaz de demolir todo o edifício.

 

bom, mas primeiro tinha de tirar Marsha de lá. De volta ao escritório, pegou na fotocópia que tirara quando andara à procura da entrada da cave. Tinha esperança de conseguir salvar a mulher servindo-se de um dos túneis. Porém, e por mais que estudasse os planos, era mais que evidente que nenhum deles entrava na cave perto do local onde a mantinham prisioneira. Dobrou os papéis e enfiou-os no bolso.

 

O telefone voltou a tocar, fazendo-o dar um salto. Desta vez nem sequer se deu ao trabalho de responder. Sabia que tinha de abandonar a casa. Era mais que evidente que VJ suspeitaria de alguma coisa se Jorge estivesse demasiado tempo sem dar notícias. Quem poderia saber quando é que eles iriam aparecer ali?

 

Quando Victor tirou o carro da garagem há muito que escurecera. Acendeu os faróis e dirigiu-se para a Chimera, pedindo a Deus para ter tempo de descobrir um plano de acção que lhe permitisse salvar Marsha das garras da sua própria criação.

 

Subitamente, carregou nos travões, facto que fez o carro parar na berma da estrada. Como que por milagre, acabara de pensar em algo. Começava agora a ter consciência dos pormenores.

 

— Tem de resultar — disse, cerrando os dentes. Retirou o pé do travão e carregou no acelerador, facto que fez que o carro voasse em frente.

 

Mal podia esperar que lhe abrissem o portão de segurança da firma. Uma vez lá dentro, dirigiu-se para o edifício onde estava instalado o seu laboratório e parou em frente da porta. Devido ao adiantado da hora, não se via vivalma e a porta estava trancada. Entrou, servindo-se para isso da chave que possuía. Quando chegou ao laboratório, obrigou-se a parar por um momento, tentando acalmar-se. Sentou-se numa cadeira, fechou os olhos e tentou relaxar todos os músculos do corpo. Aos poucos, o seu ritmo cardíaco acabou por se tornar regular. Sabia que havia conseguido concluir a primeira parte do plano e que precisava de estar calmo, pois as mãos não lhe podiam tremer.

 

Sabia que tinha ali tudo o que precisava. Possuía grandes quantidades de glicerina e também dos ácidos sulfúrico e nítrico. Tinha um recipiente destinado ao arrefecimento dos produtos em questão. Pela primeira vez na vida, deu por bem empregues as horas que passara no laboratório de química. com toda a facilidade, montou um sistema destinado à nitrificação da glicerina. Enquanto isso, preparou uma cuba neutralizadora. A parte mais difícil de tudo aquilo foi levada a cabo com um aparelho eléctrico de secagem, que montou no motor do ventilador.

 

Antes de a secagem estar completa, Victor pegou num dos relógios do laboratório e numa pequena pilha e ligou tudo a um filamento de ignição. Havia ali alguns fulminantes de mercúrio. com toda a cautela, colocou-os dentro de um pequeno recipiente de plástico. Cuidadosamente, empurrou lá para dentro o filamento de ignição e fechou a tampa.

 

Por esta altura, já a nitroglicerina secara o suficiente para ser colocada numa lata de refrigerante vazia que ele tirara do cesto dos papéis. Quando esta já tinha parte da sua capacidade ocupada, Victor colocou o recipiente de plástico dentro dela. Depois, juntou-lhe o resto da nitroglicerina e selou a lata com parafina.

 

Pegou em tudo isto e voltou ao escritório, começando à procura de algo onde pudesse colocar o engenho. Ao deitar uma olhadela ao gabinete de um dos técnicos, detectou uma pasta de vinil. Abriu os fechos, e, sem qualquer cerimónia, pôs tudo o que esta tinha em cima da secretária.

 

De novo no seu gabinete pessoal, colocou a mala em cima da secretária, e, pegando numa série de toalhas de papel, construiu uma espécie de cama. com todo o cuidado, colocou a lata de refrigerante, a pilha e o relógio em cima do papel. Então, acabou de encher a mala com toalhas de papel. com uma ligeira pressão, fechou a tampa e correu os fechos.

 

Pegou numa lanterna. Tirou do bolso os planos dos túneis subterrâneos. Analisou-os com todo o cuidado, reparando que um dos túneis principais seguia da torre do relógio para o edifício que alojava a cafetaria. O melhor de tudo era que, perto da torre, existia um túnel que se dirigia para a esquerda.

 

Pegando na mala com todo o cuidado, atravessou o edifício da cafetaria. O acesso para a cave fazia-se através de uma escada. Desceu os degraus e abriu a pesada porta que fechava o túnel que levava ao edifício da torre.

 

Iluminou o túnel com a lanterna. Este era construído por blocos de pedra. Teve a sensação de se encontrar num túmulo egípcio. À sua frente, o túnel estendia-se apenas por mais alguns metros, ao fim dos quais a passagem virava abruptamente para a esquerda. O chão estava cheio de lixo. Havia ali algumas poças de água.

 

Respirando fundo para ganhar coragem, penetrou no túnel frio e húmido, e fechou a porta atrás de si. A única luz que ali havia era a que a sua lanterna produzia.

 

Determinado mas cauteloso, Victor deu início à jornada. Estavam demasiadas coisas em jogo. Não podia falhar. À distância, ouvia o som da água a correr. Ao fim de alguns minutos, passara já por doze túneis que desembocavam naquele em que se encontrava. À medida que se aproximava do rio, começou a sentir, e não apenas a ouvir, as quedas de água.

 

De súbito, sentiu qualquer coisa peluda passar-lhe pelas pernas. Esquecendo-se do que transportava, o susto fê-lo dar um salto, facto que pôs a mala em risco. Assim que se acalmou, apontou a lanterna para o chão. Viu um par de olhos a piscar. Estremeceu, compreendendo que estava a olhar para uma ratazana do tamanho de um gato pequeno. Reunindo toda a coragem que possuía, continuou a avançar.

 

No entanto, e apenas a alguns passos do rato, escorregou em qualquer coisa húmida, que se encontrava no chão. Fazendo os possíveis por não perder o equilíbrio, teve presença de espírito suficiente para apertar a mala com toda a força, isto no momento em que foi bater com as costas na parede. Conseguiu permanecer de pé. Felizmente, fora o cotovelo e não a pasta que batera de encontro à pedra. Se fosse a mala a chocar de encontro à parede, ou se ele tivesse caído, não tinha quaisquer dúvidas de que a bomba teria explodido.

 

Retomou a viagem através do subterrâneo. Por fim, acabou por encontrar o túnel que procurava. com alguma confiança, subiu por ele acima, acabando por entrar na cave do edifício situado junto à torre do relógio.

 

Depois de ter fixado o ponto onde as escadas se encontravam, apagou a lanterna. Não podia dar-se ao luxo de deixar que alguém do prédio ao lado reparasse na luz.

 

Os metros que se seguiram foram o pior de tudo. Avançava muito devagar, quase que pedindo licença a um pé para mexer o outro. Sempre receoso de cair, pisava o lixo que juncava o chão com todo o cuidado.

 

Acabou por chegar às escadas e começou a subir. Assim que se viu no primeiro andar, foi até à janela mais próxima e deu uma olhadela à torre do relógio. A lua elevava-se do céu quase que em paralelo com a réplica do Big-Ben. Ficou a inspeccionar aquela forma escura durante mais de dez minutos, mas nada viu.

 

Foi então que se pôs a examinar o rio. Baixou os olhos e detectou aquilo que procurava. A escassos metros do local onde se encontrava, situava-se o ponto onde o velho dique abandonava o rio e se desviava para o edifício do relógio e o túnel correspondente.

 

Depois de uma última olhadela ao local onde se situava o laboratório secreto do filho, e dado que não via qualquer guarda por ali, abandonou o prédio onde estava e precipitou-se para o dique. Tentava baixar-se o mais possível, pois sabia que qualquer um o podia ver.

 

Quando atingiu o seu objectivo, e o mais depressa que podia, dirigiu-se para as escadas inclinadas que ficavam por detrás dos portões do dique. Sem qualquer hesitação, desceu os degraus a correr, mantendo-se o mais possível encostado à parede. Ao chegar lá abaixo, ficou satisfeito por descobrir que dali só se avistava uma pequena parte da torre. Isso queria dizer que não podia ser visto por ninguém que estivesse no piso térreo.

 

Sem perda de tempo, precipitou-se para os dois portões de metal enferrujados que mantinham a água afastada do moinho. À excepção de um pequeno fio de água que corria no fundo do dique, tudo indicava que os portões eram bastante sólidos.

 

Baixando-se, colocou a mala no chão com a máxima cautela. com igual cuidado, abriu os fechos e levantou a tampa. O engenho tinha sobrevivido à viagem. O que agora tinha de fazer era marcar a hora a que este deveria explodir.

 

Não podia fazê-lo detonar antes do tempo, mas também não lhe convinha fazê-lo explodir tarde de mais. Teria de fazer que o factor surpresa jogasse em seu favor. No entanto, não havia maneira de saber com certeza quanto tempo seria preciso para desempenhar a próxima tarefa. Finalmente e de forma algo arbitrária, acabou por decidir que trinta minutos seria uma boa opção. com o máximo cuidado, abriu o mostrador do relógio que trouxera do laboratório. De gatas, acendeu a lanterna e colocou o corpo à frente desta. Feito isto, pôs o ponteiro dos minutos a marcar o tempo que pretendia.

 

Apagou a luz e fechou a pasta. Respirou fundo, pegou nela e levou-a para junto dos portões do dique, acabando por a colocar entre o da esquerda e a dobradiça que lhe servia de apoio. Esta estava presa à parede por um único parafuso ferrugento. Victor ficou convencido de que este parafuso era o calcanhar de Aquiles de todo o mecanismo. Empurrou a pasta para o mais perto que podia do parafuso. Feito isto, dirigiu-se para os degraus de granito.

 

Espreitando por sobre a borda do dique, tentou ver se havia alguém no edifício da torre, mas estava tudo calmo. Sempre de cabeça baixa, correu até ao edifício mais próximo e penetrou no sistema de túneis. Quando chegou à cafetaria, estava mais do que convencido que trinta minutos eram um prazo muito curto.

 

Uma vez de volta ao ar livre, Victor correu na direcção do rio, abrandando um pouco assim que avistou a torre. No caso de estar a ser observado, queria aparentar a maior calma possível.

 

Acabou por chegar aos degraus da frente. Hesitou alguns minutos para recuperar o fôlego, mas ficou horrorizado quando olhou para o relógio e viu que horas eram.

 

— Meu Deus! —murmurou, entrando no edifício o mais depressa que podia.

 

Precipitou-se para o alçapão e bateu três vezes na madeira. Como não aparecesse ninguém para o abrir, bateu mais uma vez, desta feita com mais força. Continuou a não obter resposta. Baixou-se e começou à procura da vareta de metal que usara da primeira vez que ali fora, mas, antes mesmo de a ter encontrado, o alçapão abriu-se e o quarto ficou inundado de luz. Viu-se frente-a-frente com um dos homens de Martinez.

 

Victor desceu os degraus a correr.

 

— Onde é que está o VJ? — perguntou, tentando parecer o mais calmo que podia.

 

O guarda apontou para a sala de gestação. Victor deu alguns passos na direcção indicada, mas o filho abriu a porta antes de ele ter tido tempo de lá chegar.

 

— Pai? — perguntou, algo surpreendido. — Só te esperava amanhã.

 

— Não consegui ficar muito tempo longe — comentou Victor, com uma gargalhada. — Já acabei tudo o que tinha para fazer. Agora é a vez da tua mãe. Há alguns doentes que precisam bastante dela. Para mais, ainda não fez a ronda dos hospitais.

 

Afastou os olhos de VJ e fê-los percorrer a sala. Só lhe faltava decidir o melhor local para estar quando chegasse a hora zero. Achava que tinha de estar o mais perto possível das escadas. O instrumento mais próximo era a enorme unidade de cromatografia e Victor concluiu que, quando a hora chegasse, era aí que deveria estar.

 

Mesmo no meio da parede que dava para o rio via-se a abertura do dique e a tampa de madeira que a cobria. Mentalmente, calculou a força com que a água bateria na tampa quando o portão fosse pelos ares. A onda de choque teria os mesmos efeitos de uma explosão, e, combinada com a força da água, poderia rebentar os alicerces do edifício e fazê-lo abater-se sobre si mesmo. Achou que, entre a explosão e o impacte provocado por esta, talvez passassem vinte segundos.

 

— Acho que é um pouco cedo para deixar ir a mãe embora — disse o garoto. — Para além do mais, o Jorge não se sentiria muito à vontade se tivesse de andar o dia inteiro com ela. — Parou e cravou no pai aquele par de olhos penetrantes. —A propósito, onde é que ele está?

 

— Lá em cima — respondeu, não sem um arrepio de medo. O filho não deixava escapar nada. —Acompanhou-me até ao alçapão e ficou lá fora a fumar.

 

VJ olhou para dois indivíduos que estavam ocupados a folhear revistas.

 

—Juan, vai lá acima e diz ao Jorge que desça.

 

Pouco à vontade, Victor engoliu em seco. Tinha a garganta tão seca como cortiça.

 

— A tua mãe não nos vai dar qualquer problema, garanto-te.

 

— Mas ela não mudou de opinião — retorquiu o rapaz. — Tentei fazer que a Mary Millman a convencesse, mas nada modifica as suas opiniões moralistas. Receio bem que venhamos a ter problemas com ela.

 

Tentando passar despercebido, deitou uma olhadela ao relógio. Devia ter preparado aquilo para explodir mais tarde.

 

— Mas a tua mãe é bastante realista — insistiu. — E teimosa. Isso já nós sabemos. E, para além do mais, eu estaria aqui. Ela seria incapaz de fazer fosse o que fosse desde que eu estivesse em teu poder. Além disso, e mesmo que sentisse vontade de o fazer, não faria a mínima ideia de quais os passos a dar.

 

— Estás nervoso — comentou VJ.

 

— Claro que estou nervoso. Qualquer um estaria se tivesse de passar por isto. —Tentou sorrir e parecer mais à vontade. —Acima de tudo, estou excitado... com aquilo que fizeste, claro. Gostaria de ver aquela lista a respeito dos factores de crescimento relativos ao útero artificial, se possível ainda esta noite.

 

— Terei todo o prazer em mostrar-ta.

 

Victor avançou alguns passos e abriu a porta dos alojamentos destinados à habitação.

 

— bom, isto já é alguma coisa. Pelo menos já achas que ela não precisa de estar fechada.

 

VJ revirou os olhos.

 

Ele precipitou-se para o pequeno quarto onde Marsha e Mary se encontravam.

 

— Victor, olha quem está aqui — disse ela, apontando na direcção de Mary.

 

— Já nos encontrámos — explicou ele, cumprimentando a outra com a cabeça.

 

Encostado à porta, VJ presenciava a cena com um sorriso de orelha a orelha.

 

— Não é qualquer miúdo que se pode dar ao luxo de possuir três pais biológicos — comentou Victor, numa tentativa de aliviar a tensão. Olhou para o relógio: já só tinha seis minutos.

 

— A Mary contou-me algumas coisas interessantes a respeito do novo laboratório — comentou Marsha, com um sarcasmo que só o marido compreendeu.

 

— Óptimo — comentou Victor. — Óptimo. Marsha, agora é a tua vez de te ires embora. Tens imensos clientes que não fazem outra coisa que não seja chamar por ti. A Jean está a dar em doida. Agora que já resolvi todos os meus problemas, está na tua vez.

 

Ela levantou os olhos para o filho e depois cravou-os no marido.

 

— Pensei que ias tratar das coisas — comentou, não sem alguma irritação. —A Valerie Maddox pode ficar encarregue das minhas urgências. Acho que é da maior importância que resolvas tudo o que tens a resolver.

 

Victor tinha de a fazer sair dali. Porque razão é que ela não se ia embora? Será que não confiava nele? Será que estava mesmo convencida de que ele ia deixar as coisas como estavam? Não sem alguma tristeza compreendeu que, durante os últimos anos, não lhe tinha dado motivos para ter confiança nele. Porém, as coisas estavam prestes a chegar ao fim e só lhes restavam alguns minutos.

 

— Marsha, quero que vás fazer a ronda dos hospitais. Imediatamente!

 

No entanto, ela não se mexeu.

 

— Eu cá acho que a mãe gosta de estar aqui! — troçou VJ. Nesse preciso momento, um dos seguranças chamou-o e ele dirigiu-se para o laboratório principal.

 

Quase louco de ansiedade, inclinou-se para a mulher e, esquecendo-se de Mary, murmurou:

 

— Tens de sair daqui o mais depressa possível. Confia em mim. Marsha levantou os olhos. Ele acenou.

 

— Por favor!—gemeu. — Vai-te embora.

 

— Vai acontecer alguma coisa? — quis ela saber.

 

— Sim, por amor de Deus!

 

— Que vai acontecer? — perguntou Mary, com algum nervosismo. O seu olhar ia de um dos membros do casal Frank para o outro.

 

— E tu? — Marsha continuava a ignorar a outra mulher.

 

— Não te preocupes comigo.

 

— Não vais fazer nada de disparatado, pois não?

 

Victor cobriu os olhos com as mãos. Já não conseguia suportar a tensão. O relógio dizia-lhe que já só tinham menos de três minutos. VJ reapareceu.

 

— O Jorge não está lá em cima — anunciou, voltando-se para o pai.

 

Mary fitou o garoto.

 

— Vai acontecer alguma coisa! — gritou.

 

— O quê? — A avaliar pelo tom de voz, VJ perdera toda a vontade de brincar.

 

— Ele está preparado para fazer alguma coisa — continuou Mary. —Tenho a certeza de que tem alguma coisa na manga.

 

Victor voltou a olhar para o relógio. Dois minutos! O rapaz chamou um segurança e depois agarrou o braço do pai. Abanou-o e perguntou:

 

— Que foi que fizeste?

 

Ele descontrolou-se. A tensão era demasiada e o medo começava a dar sinais de si, acabando por se transformar em lágrimas. Durante alguns instantes não conseguiu articular qualquer som. Sabia que falhara. Não estivera à altura do desafio.

 

— Que foi que fizeste? — gritou VJ, voltando a abaná-lo. Victor não conseguiu resistir.

 

— Vamos ter todos de sair do laboratório — conseguiu ele articular, não sem parar de chorar.

 

— Porquê? — quis saber o garoto.

 

— Porque os portões se vão abrir — gemeu.

 

Seguiu-se uma breve pausa. VJ analisava mentalmente a situação, medindo as implicações do que acabara de saber.

 

— Quando? — À medida que falava, continuava a abanar o pai. Victor olhou para o relógio. Faltava menos de um minuto.

 

— Agora! — exclamou.

 

Se os olhos do garoto matassem, ele morreria naquele preciso momento.

 

— Confiei em ti! — gritou, demonstrando uma raiva profunda. — Pensei que fosses um cientista de verdade.

 

À laia de resposta. Victor deu um salto que atirou o filho para o lado, tendo este tropeçado na perna de uma cadeira. Agarrou no pulso de Marsha e obrigou-a a levantar-se. Sempre a puxá-la, atravessou a zona de habitação e levou-a para o laboratório principal.

 

VJ pôs-se de pé o mais depressa que podia e correu atrás dos pais, gritando aos seguranças que os fizessem parar.

 

Estes estavam sentados num banco de madeira e não tiveram qualquer dificuldade em agarrar ambos os braços de Victor. Quando isto aconteceu ele empurrou a mulher na direcção das escadas. Marsha subiu alguns degraus, mas acabou por voltar atrás.

 

— Foge daqui! — gritou. Depois, já voltado para os guardas, disse-lhes: — O laboratório vai explodir dentro de alguns segundos. Confiem em mim.

 

O seu rosto deve ter-lhes dito que estava a falar verdade, pois os guardas acreditaram. Deixaram-no em paz e subiram as escadas, passando por Marsha a correr.

 

— Parem! — gritou VJ.

 

No entanto, a debandada começara. Até mesmo Mary não lhe ligou nenhuma, de tão apressada que estava em chegar às escadas.

 

Sempre seguida de perto pela outra mulher, Marsha acabou por sair do alçapão.

 

Furioso, o rapaz encarou o pai.

 

— Confiei em ti!—explodiu. — Estava a contar contigo. Julguei que eras um cientista de verdade. Queria ser igual a ti. Guardas!— gritou. — Guardas! — Porém, e tal como acontecera com as mulheres, os guardas já tinham fugido.

 

VJ deu meia volta e ficou de frente para o laboratório principal. Só depois olhou para a sala de gestação.

 

Foi nesse preciso momento que o ruído abafado de uma explosão abanou todo o edifício. Começou a ouvir-se um som semelhante ao de um trovão. O rapaz não precisou de muito para saber o que se estava a passar e tentou correr para as escadas, mas Victor estendeu o braço e agarrou-o.

 

— Que estás a fazer? — gritou VJ. —Larga-me. Temos de sair daqui.

 

— Não — retorquiu o pai. —Não, não temos.

 

O rapaz tentou libertar-se, mas Victor segurava-o com toda a firmeza. com alguma tristeza, apercebeu-se de que, apesar dos seus vastos poderes mentais, o filho continuava a ter o corpo e a força de uma criança de dez anos.

 

V J contorcia-se e chegou mesmo a tentar dar-lhe alguns pontapés, mas, com a mão que continuava livre, Victor empurrou o filho e fê-lo cair.

 

— Socorro! — gritou o garoto. — Guardas!

 

Contudo, a sua voz perdeu-se por entre as vibrações provocadas por aquele ribombar surdo, as quais faziam tilintar os instrumentos de vidro do laboratório. Era como se estivesse para se dar um tremor de terra.

 

Victor aproximou-se da tampa que cobria a abertura do túnel que vinha do dique. Parou a apenas escassos centímetros. Fitou os olhos azuis do filho, os quais se cravaram nele sem pestanejar, como que a desafiá-lo.

 

— Desculpa, filho. — Mas não lhe pedia desculpa pelo que estava a fazer naquele momento, pois disso não sentia qualquer pena. Ao fim e ao cabo, estava a pedir-lhe desculpa pela experiência que levara a efeito no seu laboratório, há pouco mais de dez anos, experiência esta que produzira um rapazinho brilhante, mas sem consciência. — Adeus, Isaac.

 

Nesse preciso momento, cerca de cem toneladas de água irromperam pela abertura do dique. A velha roda que estava no meio da sala começou a girar furiosamente, fazendo que todas aquelas dobradiças e ferramentas velhas voltassem a funcionar, e, durante breves minutos, o relógio que se encontrava no cimo da torre voltou a dar sinais de vida. No entanto, toda aquela vasta quantidade de água que corria sem qualquer controlo pulverizou tudo o que encontrava pelo caminho, chegando mesmo a destruir as enormes paredes de granito que constituíam os alicerces do edifício. Quando isto aconteceu, as traves que suportavam o primeiro piso desmoronaram-se na cave. Dez minutos depois da explosão, a torre começou a tremer e, mais ou menos como se em câmara lenta, acabou por se despenhar. Passado pouco tempo, tudo o que restava do edifício e do laboratório secreto não era mais do que um monte de escombros.

 

UM ANO DEPOIS

— Tens só mais um doente — anunciou Jean, enfiando a cabeça através da porta — e depois podes ir-te embora.

— É alguma coisa urgente? — inquiriu, não sem uma leve apreensão. Estava a contar ficar livre por volta das quatro. Se tivesse mais um cliente, não se conseguiria despachar antes das cinco. Em circunstâncias normais, o facto não a teria afectado, mas hoje planeara encontrar-se às seis da tarde com Joe Arnold, o antigo professor de História de David. Era suposto ele levá-la à loja de animais, pois acabara por a convencer a comprar um cachorrinho de pêlo dourado. “Vai fazer-te bem”, dissera-lhe. “Os animais fazem milagres. Podes escrever o que digo: os cães podem fazer que muitos psiquiatras fiquem no desemprego.”

 

Alguns dias depois de ter tido conhecimento da tragédia através dos jornais, telefonara a Marsha para lhe dar os pêsames e também para confessar que sempre lamentara não ter entrado em contacto com ela depois da morte de David. Aos poucos, acabaram por se tornar amigos. Joe mostrava-se determinado a romper com o isolamento forçado a que ela se votara.

 

— A mulher insistiu bastante — explicou a secretária. —Como já tens a agenda cheia para a próxima semana, fui obrigada a marcar-lhe a consulta para hoje. Ela diz que é uma emergência.

 

— Emergência! — retorquiu Marsha, não muito convencida. Em psiquiatria, as emergências eram raras e esporádicas. — Está bem — acabou por concordar, não sem um suspiro.

 

— És um amor. — Dito isto, Jean fechou a porta.

 

Marsha voltou para junto da secretária e sentou-se. Registou a sessão que acabara de efectuar. Assim que terminou, fez a cadeira giratória dar meia volta e contemplou a paisagem que a enorme janela revelava. A erva apresentava agora um verde mais intenso. Os crocos não tardariam a surgir. As árvores já apresentavam alguns botões.

 

Respirou fundo. Muitas coisas tinham acontecido. Passara pouco mais de um ano desde a noite fatal em que perdera o marido e o segundo filho naquilo que fora considerado um estranho acidente.

 

272

 

 

 

Os jornais chegaram ao ponto de publicar a fotografia da dobradiça que, pelo menos aparentemente, acabara por ceder quando o Merrimack transbordara devido ao degelo da Primavera. Marsha nunca se dera ao trabalho de contrariar a história, pois preferia que o pesadelo terminasse com aquilo que parecia ser uma tragédia acidental. Tudo era preferível à verdade.

 

Fora-lhe bastante difícil ultrapassar o desgosto. Vendera o casarão que ela e Victor tinham partilhado, bem assim como as acções da Chimera, que lhe pertenciam. com uma parte do lucro que estas vendas lhe permitiram obter, comprara uma casa encantadora situada numa pequena ilhota de Ipswich. Demorava apenas alguns minutos a chegar à praia e às suas dunas maravilhosas. Passava a maior parte dos fins-de-semana sozinha na praia, sem ouvir mais nada a não ser o marulhar das ondas e o grito ocasional de uma ou outra gaivota. Desde pequena que a Natureza lhe proporcionava conforto.

 

Os corpos de Victor e de VJ não haviam sido encontrados. Era mais do que evidente que a força das águas os arrastara sabe Deus para onde. No entanto, o facto de não terem encontrado os corpos fazia que fosse ainda mais difícil para Marsha enfrentar a situação, muito embora não pelas razões que a maior parte dos psiquiatras suporia. Não sem alguma amabilidade, Jean sugerira-lhe que recorresse a algumas sessões de terapia, mas ela declinara. Como poderia Marsha explicar que, por não terem encontrado os corpos, continuava com a sensação de que aquele horrível episódio ainda não terminara. Também não haviam sido encontrados os corpos dos quatro fetos, isto apesar de ninguém os ter procurado. Mas, durante os meses que se seguiram, não parava de sonhar que encontrava os membros das crianças na praia onde caminhava.

 

O trabalho fora o seu maior consolo. Depois do choque inicial e do desgosto que se abatera sobre ela, atirara-se ao trabalho com unhas e dentes, chegando mesmo a fazer bastantes horas extraordinárias para uma série de organizações comunitárias. Para mais, contara com o apoio de Valerie Maddox, que passara vários fins-de-semana na sua nova casa, Marsha sabia que lhe devia bastante.

 

Voltou a virar a cadeira para a secretária. Eram quase quatro horas. Estava mais do que na hora de fazer a última consulta e depois ia para a loja de animais. Tocou à campainha para dar a entender à secretária que estava pronta. Pôs-se de pé e dirigiu-se para a porta. Quando pegou na ficha que Jean lhe estendia, avistou uma mulher que aparentava ter quarenta e cinco anos. Sorriu-lhe e ela devolveu-lhe o sorriso. Fez-lhe sinal para que entrasse no escritório.

 

Voltou-se, deixou a porta aberta e dirigiu-se para a poltrona em que se sentava durante as sessões. Perto desta estava uma pequena mesa onde se via uma caixa de lenços de papel, isto para os clientes que não conseguiam conter as emoções. À sua frente estavam duas cadeiras.

 

Quando ouviu a mulher entrar, voltou-se para a cumprimentar. Esta não vinha sozinha. Atrás dela vinha uma adolescente magra e abatida. O cabelo da rapariga era de um louro-claro e estava a precisar de ser lavado. Trazia ao colo um bebé louro que aparentava ter cerca de dezoito meses. O garoto vinha agarrado a uma revista.

 

Interrogou-se sobre quem seria a doente. Fosse quem fosse, tinha de insistir para que a deixassem a sós com ela. Mas tudo o que disse foi:

 

Sentem-se, por favor.

 

Decidiu que talvez fosse melhor explicarem-lhe por que razão ali se encontravam. A experiência dizia-lhe que, servindo-se desta técnica, conseguia mais informações do que através de um questionário.

 

A mulher segurou na criança enquanto a rapariga se sentava numa das duas cadeiras que ali estavam e acabou por voltar a sentar o bebé ao colo desta última. O rapazinho parecia estar muito interessado nas gravuras da revista. Marsha acabou por se interrogar sobre qual teria sido a razão que as fizera levar o bebé. Não devia ser muito difícil arranjar uma ama.

 

Ficou com a sensação de que a rapariga não se encontrava na sua melhor forma física. A constituição bastante frágil, junto com a extrema palidez, indicavam que se tratava de um caso de depressão, senão mesmo de subnutrição.

 

— Chamo-me Josephine Steinburger e esta é a minha filha, Judith — começou a mulher. — Obrigada por nos ter recebido. Estamos bastante desesperadas.

 

A encorajá-la, Marsha acenou.

 

Como quem vai dizer um segredo, Mrs. Steinburger inclinou-se para ela, mas falou suficientemente alto para que Judith ouvisse.

 

— A minha filha aqui não é lá muito certa, compreende? Há já muito tempo que anda metida em sarilhos. Droga-se, foge de casa, zanga-se com o irmão, anda com más companhias e coisas assim.

 

Ela voltou a acenar. Olhou para a rapariga para ver se ela reagia às críticas, mas Judith limitava-se a olhar em frente.

 

— Hoje em dia, esta juventude mete-se em tudo — prosseguiu Josephine. —A senhora sabe, sexo e isso tudo. Bem diferente do meu tempo. Só soube o que o sexo era quando já não tinha idade para o apreciar como deve ser, está a compreender?

 

Ela fez que sim com a cabeça. Tinha esperanças de que a filha participasse, mas esta permanecia em silêncio. Talvez estivesse sob o efeito de drogas.

 

— bom — Josephine não parecia disposta a calar-se —, a Judith sempre me disse que nunca tivera relações sexuais, por isso fiquei bastante surpreendida quando, há ano e meio, pôs no mundo esta criatura amorosa. —Soltou uma gargalhada sarcástica.

 

Marsha não ficou surpreendida. De todos os mecanismos de defesa, a negação era o mais comum. Havia uma série de adolescentes que continuavam a negar ter tido relações sexuais mesmo quando as provas do acto eram inegáveis.

 

— A Judith diz que o pai era um rapazinho que lhe deu dinheiro para colocar nela o conteúdo do seu tubinho — esclareceu a mãe, revirando os olhos. — Já tinha ouvido chamar-lhe muitas coisas, mas tubinho... confesso que foi a primeira vez. bom...

 

Marsha raramente interrompia as pessoas que a consultavam mas, neste caso, a interessada não abria a boca.

 

— Talvez não fosse má ideia a paciente contar-me a história pelas suas próprias palavras.

 

— Pelas suas próprias palavras? Que quer dizer com isso? — Como que confundida, Josephine franzira as sobrancelhas.

 

— Exactamente o que ouviu — informou ela. —Acho que a história deve ser contada pela paciente ou que esta deve, pelo menos, participar.

 

A mulher começou por se rir a bom rir, mas lá acabou por se controlar.

 

— Desculpe, caiu-me no goto. A Judith está óptima. Para dizer a verdade, agora que foi mãe até está mais responsável. O garoto é que não anda nada bem. O doente é ele.

 

— Ah, claro! — exclamou Marsha, não sem alguma surpresa. Já tratara de algumas crianças, mas nunca tão novas.

 

— O miúdo é horrível. — Era ainda Josephine quem falava. — Não o conseguimos controlar.

 

Ela tinha de fazer que a outra especificasse as coisas. O que não faltava eram pais que chamavam horríveis aos filhos. Precisava de possuir dados específicos.

 

— Em que aspectos é que ele é problemático?

 

— Ah! Em tudo. Pode acreditar no que lhe digo. Ele faz perder a paciência a um santo. —A mulher voltou-se para a criança. — Jason, olha para a senhora.

 

Contudo, Jason não tirava os olhos da revista.

 

— Jason! — gritou. Estendeu o braço e arrancou a revista das mãos do rapaz, atirando-a para cima da secretária de Marsha. Foi então que esta viu tratar-se do último número do Journal of Cell Biology, uma revista científica.

 

— O diabo do miúdo já consegue ler melhor do que a mãe. Agora até pediu um estojo de química.

 

Foi aí que Marsha começou a sentir os primeiros sintomas de medo. Sem pressas, acabou por levantar os olhos.

 

— Francamente, ele só tem ano e meio! Tenho medo de lhe arranjar um estojo de química — prosseguiu Josephine. — Não é normal. O mais provável é fazer que a casa vá pelos ares.

 

Marsha examinou o rapazinho que estava sentado ao colo de Judith. Ele fitou-a com os seus penetrantes olhos azuis. Apesar do rosto angelical, havia nele uma expressão profundamente inteligente. Ela sentiu-se viajar no tempo. Tinha em frente a si uma cópia de V J quando este tinha a mesma idade.

 

Nesse mesmo instante, soube que estava a ver o resultado do último zigote, daquele que VJ dissera ter desperdiçado aquando dos estudos que realizara. O que tinha à sua frente era o produto final de um dos seus óvulos.

 

Ficou sem se poder mexer. Deixou escapar um grito quando se apercebeu da realidade: o pesadelo não terminara.

 

Josephine pôs-se de pé e correu para junto dela.

 

— Dr.a Frank? — perguntou, algo alarmada. — Sente-se bem?

 

— Sim... sim, estou óptima — disse Marsha, com a voz a tremer. — A sério, estou óptima. — Não conseguia desviar os olhos da criança.

 

— bom, tal como eu estava a dizer — prosseguiu a outra — , este garoto dá conta de nós. Ainda no outro dia...

 

Marsha interrompeu-a. Fazendo os possíveis para não deixar transparecer o que sentia, anunciou:

 

— Mrs. Steinburger, temos de marcar uma consulta só para o Jason. Estou convencida de que será melhor observá-lo em particular. Contudo, tem de ficar para outro dia.

 

bom, como queira. — A mulher soltou um suspiro. — A senhora é que é a médica. A senhora é que sabe. Acho que não vai haver problema se esperarmos mais alguns dias. Espero apenas que nos possa ajudar.

 

Assim que o consultório ficou vazio, Marsha fechou a porta e encostou-se a ela. Suspirou e, em voz alta, disse:

 

— Eu também espero.

 

Sabia que tinha de fazer alguma coisa em relação àquela criança, um génio cuja vilania podia igualar ou ultrapassar a de VJ. Mas que poderia fazer?

 

Pegou no telefone e marcou o número de Joe Arnold, pois queria dizer-lhe que ia chegar um pouco atrasada. Só o facto de lhe ouvir a voz foi o bastante para a acalmar.

 

— Bem, estou contente por não me teres telefonado para adiarmos o nosso encontro, pois eu não sou dos que desistem com facilidade. — Soltou uma gargalhada calorosa. — Pensei que talvez pudéssemos jantar juntos. Espero que tenhas estofo para poderes apreciar os meus cozinhados. Faço um molho picante de se lhe tirar o chapéu. Para ser franco, estou neste momento a prepará-lo.

 

Marsha tinha esperança de ter estofo para enfrentar muitas coisas, principalmente a verdade. E de todas as pessoas a quem se sentia ligada — Valerie, Joe, Jean —, Joe era aquela em quem sentia poder confiar mais, aquela que lhe daria apoio.

 

— Adoro molho picante — disse. Esteve tentada a falar-lhe de Jason, mas achou que seria melhor esperar. Não queria contar-lhe nada pelo telefone.

 

— Óptimo. Já andava a pensar que, para me encontrar a sós contigo, tinha de arranjar uma doença psicológica qualquer e passar aí pelo consultório. Então, está combinado, às sete na loja de animais? Acho que eles estão abertos até às oito.

 

— Combinado, Joe... obrigada. Pousou o auscultador e vestiu o casaco.

 

Entrou no carro e desceu a alameda. O facto de saber que dentro em pouco ia contar toda a verdade a respeito das mortes de VJ e de Victor fazia-a sentir-se bastante melhor. Guardara tudo aquilo durante demasiado tempo. Seria um alívio poder abrir-se com alguém. Estava feliz por ter Joe do seu lado. Desde que ele entrara na sua vida tudo tinha mais sentido.

 

Penetrou no parque de estacionamento e escolheu um lugar o mais perto possível da loja de animais. Desligou o motor. Colocou as mãos no volante e começou a chorar devagar. Sabia que, de uma maneira ou de outra, tinha de enfrentar esta última criança-demónio, e, com a ajuda de Joe, terminar de vez com o pesadelo que o marido começara.

 

                                                                                Robin Cook  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

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