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OS RAPAZES QUE ESCAPARAM AOS LOBOS
Os Flats e o Point
Quando Sean Devinc e Jimmy Marcus eram garotos, os pais de ambos trabalhavam na fábrica Coleman Candy e levavam para casa o cheiro do chocolate quente. Um cheiro que acabara por tornar‑se uma característica permanente das roupas que vestiam, das camas onde dormiam, dos bancos forrados a vinil dos carros que conduziam. A cozinha de Sean cheirava a Fudgsicle, a casa de banho a Coleman Cbew‑Chew Bar. Aos onze anos, Sean e Jimmy tinham criado uma aversão tão absoluta aos doces que nunca mais na vida beberam café com açúcar ou tocaram numa sobremesa.
Aos sábados, o pai de Jimmy passava por casa dos Devine para beber uma cerveja com o pai de Sean. Levava o filho com ele, e enquanto uma cerveja se transformava em seis, mais dois ou três tragos de Dewar's, Jimmy e Sean brincavam no quintal das traseiras, por vezes com Dave Boyle, um miúdo que tinha pulsos de rapariga e olhos fracos e estava sempre a contar anedotas que aprendia com os tios. Através da rede da janela da cozinha, ouviam o silvo que as latas de cerveja faziam ao serem abertas e o pesado bater metálico das tampas dos Zippos quando Mr. Devine e Mr. Marcus acendiam os seus Lucky's.
......
O pai de Sean, um capataz, tinha o melhor emprego. Era alto e louro, com um sorriso solto e fácil que Sean vira muitas vezes acalmar as fúrias da mãe, desligando‑as como se, dentro dela, alguém tivesse rodado um interruptor. O pai de Jimmy carregava os camiões. Era baixo e os cabelos escuros caíam‑lhe emaranhados para a testa e havia nos olhos dele qualquer coisa que parecia estar sempre a mexer. Tinha uma curiosa maneira de se mover demasiado depressa; uma pessoa piscava os olhos e já ele estava do outro lado da sala. Dave Boyle não tinha pai, apenas montes de tios, e a única razão por que estava geralmente presente naqueles sábados era o facto de ter uma espécie de dom para colar‑se a Jimmy como estopa a serapilheira. Via‑o sair de casa com o pai, aparecia ao lado do carro, meio ofegante, e perguntava «Como é que é, Jimmy?», com um ar de tristonha expectativa.
Viviam todos em East Buckingham, do lado oeste da Baixa, uma zona de lojas de esquina atafulhadas de coisas, pequenos espaços de recreio e talhos onde as peças de carne, ainda rosadas de sangue, se mostravam na montra, suspensas de ganchos. Os bares tinham nomes escoceses e Dodges Dart estacionados junto ao passeio. As mulheres usavam lenços de cabeça atados na nuca e pequenas bolsas de imitação de couro para transportar os cigarros. Até um par de anos antes, os rapazes mais velhos tinham sido pescados das ruas, como que por naves espaciais, e mandados para a guerra. Voltavam, ocos e sombrios, um ano mais tarde, ou então pura e simplesmente não voltavam. De dia, as mães procuravam nos jornais cupões de desconto. À noite, os pais iam aos bares. Toda a gente se conhecia; nunca ninguém, excepto os tais rapazes mais velhos, se ia embora.
Jimmy e Dave moravam nos Flats, junto ao Penitentiary Chan‑nel, no lado sul de Buckingham Avenue. Apenas a doze quarteirões da rua de Sean, mas os Devine viviam a norte da avenida, no Point, e o Point e os Flats não se misturavam muito.
Não que o Point refulgisse de ruas pavimentadas a ouro e berços de prata. Era apenas o Point, classe operária, Chevys e Fords e Dodges estacionados diante de casas simples, de fachadas triangulares, com uma ou outra vitoriana pelo meio. Mas, no Point, as pessoas eram proprietárias. Nos Flats, eram inquilinas. As famílias do Point iam à igreja, mantinham‑se juntas, punham bandeirolas nas esquinas das ruas nos meses de eleições. Nos Flats, sabia‑se lá o que faziam, vivendo às vezes como animais, aos dez num apartamento, com lixo pelas ruas ‑ Wellieville1, chamavam‑lhe Sean e os amigos de Saint Mike's, famílias que viviam do subsídio de desemprego,
1 Referência às galochas de borracha (wellies) usadas nos matadouros, estaleiros e outros locais de trabalho por uma classe operária indiferenciada. (N. do T.)
mandavam os filhos para escolas públicas e se divorciavam. Assim, enquanto Sean frequentava a Saint Mike's Parochial, de calças pretas, gravata preta e camisa azul, Jimmy e Dave frequentavam a Lewis M. Dewey School, em Blaxston. Os miúdos da Loey & Doey usavam roupas de saír, o que era porreiro, mas quase sempre as mesmas toda a semana, o que já não era. E havia neles uma espécie de aura gordurosa: cabelos gordurosos, peles gordurosas, colarinhos e punhos gordurosos. Muitos dos rapazes tinham marcas de acne na cara e nunca chegavam a acabar o liceu. Algumas das raparigas apareciam na festa de fim de curso com vestidos de grávida.
Por isso, se não fossem os pais, provavelmente nunca teriam sido amigos. Durante a semana, nunca andavam juntos, mas tinham aqueles sábados, e havia qualquer coisa naqueles dias, quer ficassem pelo pátio das traseiras, ou deambulassem pelos depósitos de areão junto a Harvest Street, ou se metessem no metropolitano até à Baixa ‑ não para ver fosse o que fosse, só para passar pelos túneis escuros e ouvir o matraquear das rodas e o chiar dos travões das carruagens quando curvavam nos carris e as luzes a acender e a apagar numa rápida sucessão ‑, que fazia lembrar a Sean uma respiração contida. Com Jimmy, tudo podia acontecer. Se tinha consciência da existência de regras ‑ no metropolitano, nas ruas, no cinema ‑, ninguém o diria.
Certa vez, estavam na gare de South Station, a atirar uma bola de hóquei de rua, cor de laranja, e Jimmy falhara o lançamento de Sean e a bola, a saltitar, rolara para os carris. Antes que passasse pela cabeça de Sean que Jimmy pudesse pensar sequer nisso, já ele tinha saltado para a linha, onde havia os ratos e as ratazanas e o terceiro carril.
As pessoas que estavam na gare entraram em órbita. Gritaram com ele. Uma mulher pôs‑se cor de cinza de charuto enquanto se ajoelhava no chão e berrava, Volta para aqui, volta já para aqui, raios! Sean ouviu um ribombar espesso, que tanto podia ser um comboio a entrar no túnel em Washington Street como os camiões a passarem na rua lá em cima, e as pessoas que estavam na gare também o ouviram. Começaram a esbracejar e a olhar para todos os lados, à procura de um polícia. Um tipo tapou os olhos da filha com o braço. Jimmy agachou‑se, espreitando para a escuridão debaixo da plataforma à procura da bola. Encontrou‑a. Limpou uma mancha negra de sujidade com a manga da camisa e ignorou as pessoas de joelhos ao longo da linha amarela, de mãos estendidas.
Ao lado de Sean, Dave deu‑lhe uma cotovelada e assobiou para dentro, demasiado alto.
Jimmy caminhou pelo meio dos carris até aos degraus na extremidade mais distante da gare, onde o túnel abria a goela escancarada e negra, e um ribombar mais alto fez estremecer a estação, e as pessoas puseram‑se aos saltos, a bater com os punhos nas coxas. Jimmy não se apressou, parecia até andar a passear, e então olhou por cima do ombro, encontrou os olhos de Sean e sorriu. ‑ Está a sorrir ‑ disse Dave. ‑ O tipo é chalado, sabias? Quando Jimmy chegou ao primeiro degrau de cimento, várias mãos estenderam‑se para ele e puxaram‑no para cima. Sean viu‑lhe os pés rodarem em arco para a esquerda e a cabeça dobrar‑se e mergulhar para a direita, e pareceu‑lhe tão leve e pequeno nas maná‑pulas de um homenzarrão como se estivesse cheio de palha, mas sem deixar de apertar a bola contra o peito mesmo quando as pessoas o agarraram pelo cotovelo e o tornozelo dele bateu no rebordo da plataforma. Sean sentiu Dave estremecer a seu lado, perdido. Olhou para as caras das pessoas que puxavam por Jimmy e o que lá viu já não era preocupação nem medo, nem a impotência que tinham reflectido momentos antes. Viu raiva, caras de monstros, feições distorcidas e selvagens, como se fossem inclinar‑se para a frente e arrancar‑lhe com os dentes pedaços do corpo, e depois bater‑lhe até o matarem.
Içaram Jimmy para a plataforma e seguraram‑no, cravando‑lhe os dedos nos ombros enquanto procuravam em redor alguém que lhes dissesse o que fazer. O comboio saiu do túnel, e alguém gritou, mas então alguém riu ‑ uma gargalhada aguda que fez Sean pensar em bruxas à volta de um caldeirão ‑, porque o comboio passou velozmente do outro lado da estação, seguindo para norte, e Jimmy ergueu os olhos para as caras dos que o seguravam, como que a dizer, Vêem?
Ao lado de Sean, Dave lançou uma gargalhada estridente e
vomitou nas próprias mãos.
Sean desviou os olhos e perguntou a si mesmo onde é que encaixava no meio de tudo aquilo.
Nessa noite, o pai de Sean sentou‑se com ele na arrecadação das ferramentas, na cave. A arrecadação das ferramentas era um lugar acanhado onde havia tornos negros e latas de café cheias de pregos e de parafusos, rimas de tábuas cuidadosamente empilhadas debaixo da esmocada banca de trabalho que dividia o pequeno espaço ao meio, martelos suspensos de cintos de carpinteiro como armas enfiadas em coldres, uma oscilante serra de fita, suspensa de um gancho. Era ali que o pai de Sean, uma espécie de faz‑tudo da vizinhança, construía as suas casas de aves e as prateleiras que punha nas janelas para os vasos de flores da mulher. Fora ali que planeara o alpendre das traseiras, uma coisa que ele e os amigos tinham erguido num Verão escaldante, quando Sean tinha cinco anos, e era ali que se refugiava quando queria paz e sossego, e por vezes quando estava zangado, Sean bem o sabia, zangado com Sean, ou com a mulher, ou com o trabalho. As casas de aves ‑ minúsculas tudors e coloniais e vitorianas e chalets suíços ‑ acabavam amontoadas num canto da cave. Eram tantas que só se vivessem na Amazónia encontrariam aves em quantidade suficiente para ocupá‑las todas.
Sean sentou‑se no velho banco de bar vermelho e enfiou o dedo dentro do grande torno negro, esgaravatando o óleo e a serradura que lá se tinham acumulado, até que o pai disse:
‑ Sean, quantas vezes é preciso dizer‑te que não faças isso?
Sean retirou o dedo, limpou a gordura à palma da mão.
O pai juntou meia‑dúzia de pregos espalhados pela bancada e guardou‑os numa lata amarela, de café.
‑ Eu sei que gostas do Jimmy Marcus, mas, a partir de agora,
se os dois quiserem brincar juntos, terá de ser à vista da casa. Da tua, não da dele.
Sean assentiu. Era inútil tentar argumentar com o pai quando ele se punha a falar naquele tom calmo e baixo, cada palavra a sair‑‑lhe da boca como se trouxesse amarrada uma pequena pedra.
‑ Estamos entendidos? ‑ O pai empurrou a lata amarela para
a direita e baixou os olhos para ele.
Sean assentiu. Viu o pai esfregar as pontas dos dedos grossos, para sacudir a serradura.
‑ Durante quanto tempo?
O pai levantou a mão e limpou um monte de pó acumulado na curva de um gancho espetado no tecto. Amassou‑o entre os dedos por instantes e atirou‑o para o balde do lixo que estava debaixo da bancada.
Oh, bastante, diria eu. E, Sean...
Sim, senhor?
Não penses em ir ter com a tua mãe por causa disto. Por ela,
nunca mais voltavas a ver o Jimmy, depois da brincadeira de hoje.
Ele não é mau. É...
Não disse que fosse. É louco, e a tua mãe já teve a sua conta
de loucuras ao longo da vida.
Sean notou uma espécie de brilho na cara do pai quando disse «louco», e soube que era o outro Billy Devine que ele estava a ver naquele instante, aquele que tivera de construir pedaço a pedaço, a partir de fiapos de conversas que ouvira a tios e a tias. O Velho Billy, era como lhe chamavam, o «zaragateiro», dissera certa vez o tio Colm, com um sorriso, o Billy Devine que desaparecera antes de ele ter nascido e fora substituído por aquele homem calmo e meticuloso, de dedos grossos e hábeis, que construía demasiadas casas de aves.
‑ Lembra‑te do que falámos ‑ disse o pai, dando‑lhe uma palmadinha no ombro, a mandá‑lo embora.
Sean saiu da arrecadação das ferramentas e atravessou a fresca cave perguntando a si mesmo se aquilo que o fazia gostar da companhia de Jimmy seria a mesma coisa que fazia o pai gostar da companhia de Mr. Marcus, e beber com ele enquanto o sábado se transformava em domingo, e rir demasiado alto e a propósito de coisa nenhuma, e se seria disso que a mãe tinha medo.
Uns sábados mais tarde, Jimmy e Dave Boyle apareceram em casa dos Devine sem o pai de Jimmy. Bateram à porta das traseiras quando Sean estava a acabar de tomar o pequeno‑almoço e Sean ouviu a mãe abrir a porta e dizer, «Bom‑dia, Jimmy. Bom‑dia, Dave», naquele tom de voz delicado que usava na presença de pessoas que não estava muito certa de querer ver.
Jimmy esteve muito calado nesse dia. Toda aquela louca energia parecia enrolada dentro dele, como uma mola. Sean quase conseguia ouvi‑la bater contra as paredes do peito de Jimmy e Jimmy a engolir, para a empurrar para baixo. Jimmy parecia mais pequeno, mais escuro, como se fosse rebentar se lhe espetassem um alfinete. Não era a primeira vez que Sean o via assim. Jimmy sempre fora de humores. E, no entanto, nunca deixava de o afectar. Fazia‑o perguntar a si mesmo se Jimmy teria algum controlo sobre aquilo ou se aqueles maus humores apareciam como uma dor de garganta ou os primos da mãe, que se apresentavam lá em casa quer uma pessoa estivesse ou não disposta a aturá‑los.
Dave Boyle era sempre particularmente insuportável quando Jimmy estava assim. Dave Boyle parecia convencido de que tinha a obrigação de fazer com que toda a gente se sentisse feliz, o que regra geral acabava por chatear ás pessoas, ao fim de algum tempo.
Quando estavam no passeio, a tentar decidir o que fazer, Jimmy todo enrolado dentro de si mesmo e Sean ainda a acabar de acordar, os três a tentear com as pontas dos dedos o dia que se estendia à frente deles, mas limitados pelos dois extremos da rua, Dave perguntou:
‑ Eh, porque é que os cães lambem os tomates?
Nenhum dos dois respondeu. Já tinham ouvido aquela para aí umas mil vezes.
‑ Porque podem! ‑ gritou Dave, e agarrou‑se à barriga, como se aquilo fosse tão engraçado que fazia doer.
Jimmy aproximou‑se dos cavaletes que delimitavam o espaço onde os funcionários da Câmara estavam a reparar um troço do passeio. Tinham amarrado uma fita amarela, com a palavra CUIDADO escrita a vermelho, a quatro cavaletes de madeira dispostos em rectângulo, criando uma barreira à volta do passeio reconstruído, mas Jimmy cortou a fita limitando‑se a passar por ela. Acocorou‑se junto à beira, com as Keds no passeio antigo, e, usando um pequeno pau, traçou no cimento mole finas linhas que lembraram a Sean os dedos de um velho.
‑ O meu pai já não trabalha com o teu.
‑ Porquê? ‑ Sean foi acocorar‑se junto dele. Não tinha um pauzinho, mas queria ter. Queria fazer tudo o que Jimmy fizesse, ainda que não soubesse porquê, e mesmo que o pai lhe arrancasse a pele do rabo à correada por causa disso.
Jimmy encolheu os ombros.
Era mais esperto do que eles. Assustou‑os por saber tanta coisa.
Coisas inteligentes! ‑ disse Dave. ‑ Certo, Jimmy?
Certo, Jimmy? Certo, Jimmy? Havia dias em que Dave parecia um papagaio.
Sean perguntou a si mesmo quanto poderia qualquer pessoa saber a respeito de chocolate e por que razão um tal conhecimento seria importante.
Que espécie de coisas?
A maneira de dirigir aquilo melhor. ‑Jimmy não parecia muito
seguro de si mesmo. Acabou por encolher os ombros. ‑ Coisas. Coisas importantes.
‑Oh.
‑ Como dirigir aquilo. Certo, Jimmy?
Jimmy escavou um pouco mais o cimento. Dave Boyle encontrou um pau, agachou‑se ao lado dele e começou a desenhar um círculo. Jimmy franziu o sobrolho e atirou fora o pau que tinha na mão. Dave parou de desenhar e olhou para Jimmy, como que a perguntar, O que foi que eu fiz?
Sabes o que era giro? ‑ A voz de Jimmy tinha aquela pequena nota de excitação que fez agitar qualquer coisa no sangue de Sean,
provavelmente porque a ideia que Jimmy fazia de giro era regra
geral muito diferente da de todas as outras pessoas.
O quê?
Guiar um carro.
Ná ‑ disse Sean, lentamente.
Tu sabes... ‑Jimmy ergueu as mãos, com as palmas voltadas para fora, já esquecido do pau e do cimento. ‑ Só uma volta ao quarteirão.
Só uma volta ao quarteirão ‑ disse Sean.
Era giro, não era? ‑ Jimmy sorriu.
Sean sentiu um sorriso desenrolar‑se e espalhar‑se‑lhe pela cara.
Sim, era giro.
Era, assim, o mais giro de tudo. ‑ E Jimmy deu um pulo quase
de meio metro. Olhou para Sean com as sobrancelhas arqueadas e
voltou a saltar.
Era giro. ‑ Sean já conseguia sentir nas mãos a grande roda
do volante.
lá, iá, iá! ‑ Jimmy deu um murro no ombro de Sean.
lá, iá, iá! ‑ Sean deu um murro no ombro de Jimmy, a sentir
qualquer coisa a agitar‑se dentro dele, a correr, tudo a tornar‑se
muito rápido e brilhante.
Iá, iá, iá! ‑ gritou Dave, mas o murro falhou o ombro de
Jimmy.
Por um instante, Sean esquecera que Dave estava ali. Acontecia‑lhe muito, com Dave. Não sabia porquê.
‑ Uma porra de muita giro! ‑ Jimmy riu‑se e voltou a saltar.
E Sean viu que já começava a acontecer. Estavam os dois no
banco da frente (Dave estava no de trás, se é que estava) e a andar, dois miúdos de onze anos a guiar à volta de Buckingham, a tocar a buzina aos amigos, a fazer corridas com os putos mais velhos na Dunboy Avenue, deixando um rasto de borracha queimada no meio de uma nuvem de fumo. Cheirava o ar a entrar pela janela, sentia‑o nos cabelos.
Jimmy olhou para o fundo da rua.
‑ Conheces alguém desta rua que costume deixar as chaves no
carro?
Sean conhecia. Mr. Griffin deixava‑as debaixo do banco, e Dot‑tie Fiore deixava‑as no porta‑luvas, e o Velho Makowski, o bêbedo que ouvia discos do Frank Sinatra aos berros a qualquer hora do dia ou da noite, deixava‑as a maior parte das vezes na ignição.
No entanto, enquanto seguia o olhar de Jimmy e via os carros que sabia terem as chaves lá dentro, sentiu uma dor surda crescer‑‑lhe atrás dos olhos, e, à dura luz do Sol que refulgia nas bagageiras e capôs, sentiu o peso da rua, das suas casas, de todo o Point e das esperanças que alimentava em relação a ele. Não era miúdo que andasse para aí a roubar carros. Era um miúdo que um dia havia de ir para a universidade e tornar‑se mais e melhor do que capataz ou carregador de camiões. Era esse o plano, e Sean acreditava que os planos resultavam desde que uma pessoa tivesse cuidado, fosse cautelosa. Era como ver um filme, por mais chato e confuso que fosse, até ao fim. Porque, no fim, por vezes tudo se explicava, ou o próprio final era suficientemente giro para fazer uma pessoa sentir que valera a pena aguentar toda aquela estopada.
Esteve quase a dizer tudo isto a Jimmy, mas Jimmy já começara a subir a rua, a espreitar para dentro dos carros, com Dave a correr ao lado dele.
Que tal este? ‑Jimmy pousou a mão no Bei Air de Mr. Carl‑
ton, e a voz dele soou alta na brisa fresca.
Eh, Jimmy! ‑ Sean aproximou‑se. ‑ Fica para outra vez, está
bem?
A cara de Jimmy como que descaiu, tornando‑se mais estreita.
O que é que estás a dizer? Anda lá. Vai ser divertido. Giro à
brava. Lembras‑te?
Giro à brava ‑ ecoou Dave.
Não conseguimos ver por cima do tablier.
Listas telefónicas. ‑Jimmy sorriu à luz do Sol. ‑ Vamos busca-las a tua casa.
Listas telefónicas ‑ disse Dave. ‑ lá!
Sean estendeu os braços.
Não. Deixa isso.
O sorriso morreu no rosto de Jimmy, que olhou para os braços de Sean como se quisesse cortar‑lhos pelos cotovelos.
‑ Porque é que nunca queres fazer nada só pela piada, eh? ‑
Puxou o fecho do Bei Air, mas a porta estava trancada. Por um segundo, as faces de Jimmy agitaram‑se e o lábio inferior tremeu,
e então olhou para a cara de Sean com uma expressão de solitude
selvagem que encheu Sean de pena.
Dave olhou para Jimmy, e depois para Sean. Estendeu meio a medo o braço e bateu no ombro de Sean.
‑ Sim, porque é que nunca queres fazer nada divertido?
Sean nem queria acreditar que Dave acabava de bater‑lhe. Dave.
Deu‑lhe um murro no peito, e Dave caiu sentado.
Jimmy empurrou Sean.
Que raio estás tu a fazer?
Ele bateu‑me ‑ respondeu Sean.
‑ Não bateu nada ‑ disse Jimmy.
Sean abriu muito os olhos, incrédulo, e Jimmy imitou‑o.
Bateu‑me.
Bateu‑me ‑ repetiu Jimmy, fazendo voz de menina, e voltou
a empurrar Sean. ‑ Ele é meu amigo.
Também eu.
Também eu ‑ imitou Jimmy. ‑ Também eu, também eu, também eu.
Dave Boyle pôs‑se de pé e riu‑se.
Pára com isso ‑ disse Sean.
Pára com isso, pára com isso, pára com isso. ‑ Jimmy voltou a empurrar Sean, espetando‑lhe a base das mãos nas costelas.
‑ Obriga‑me. Queres obrigar‑me?
Queres obrigá‑lo? ‑ E Dave empurrou Sean.
Sean não fazia ideia de como aquilo tinha acontecido. Já nem sequer conseguia lembrar‑se do que fora que enfurecera Jimmy ou porque fora Dave suficientemente estúpido para lhe bater. Um segundo antes estavam junto do carro. Agora estavam no meio da rua e Jimmy estava a empurrá‑lo, com as feições contorcidas e rígidas, os olhos negros e pequenos, e Dave imitava‑o.
Vá lá. Obriga‑me.
‑Não...
Vá lá, menina.
Jimmy, não podemos... ?
Não, não podemos. És uma menina, Sean? Eh?
Ia empurrá‑lo outra vez, mas deteve‑se, e aquela expressão de solitude selvagem (e cansada, também, apercebeu‑se Sean, subitamente) esmagou‑lhe as feições quando olhou, para lá de Sean, para qualquer coisa que vinha a subir a rua.
Era um carro castanho‑escuro, quadrado e comprido, do tipo dos que os detectives da Polícia costumavam conduzir, um Plymouth, ou assim, e parou com o pára‑choques quase a tocar nas pernas deles, e os dois polícias que estavam lá dentro olharam para eles através do pára‑brisas, os rostos aquosos no reflexo das árvores que dançavam no vidro.
Sean sentiu um súbito safanão na manhã, um enrijecer da suavidade que até então tivera.
O condutor apeou‑se. Tinha ar de polícia ‑ cabelos louros cortados à escovinha, rosto vermelho, camisa branca, gravata de nylon preta e dourada, o ventre saliente a projectar‑se por cima do cinto como um monte de panquecas. O outro parecia doente. Era escanzelado e tinha um ar cansado e deixou‑se ficar sentado no banco, com uma mão a agarrar o crânio através dos cabelos negros e gordurosos, a olhar pelo retrovisor lateral enquanto os três rapazes contornavam a parte da frente do carro e se aproximavam da porta do condutor.
O gordo apontou‑lhes um dedo dobrado e agitou‑o na direcção do próprio peito até que se detiveram diante dele.
‑ Deixem‑me perguntar‑lhes uma coisa, O gordo Dobrou‑se
pela rotunda cintura e a cabeça enorme encheu todo o campo de
visão de Sean. ‑ Acham que é bonito andar à luta no meio da rua?
Sean reparou no escudo de ouro preso ao cinto do homem,
do lado esquerdo.
Como? ‑ O polícia pôs uma mão em concha atrás da orelha.
Não, senhor.
Não, senhor.
Não, senhor.
Um bando de vadios, eh? É isso que vocês são? ‑ Sacudiu o
polegar enorme na direcção do que ficara dentro do carro. ‑ Eu e
o meu parceiro estamos fartos de vadios de East Bucky, como vocês,
que andam por aí a assustar as pessoas decentes. Perceberam?
Sean e Jimmy ficaram calados.
‑ Pedimos desculpa ‑ disse Dave Boyle, e parecia à beira das lágrimas.
‑ Moram nesta rua? ‑ perguntou o polícia grande. Percorreu
com os olhos as casas do lado esquerdo, como se conhecesse pessoalmente todos os ocupantes e se preparasse para enfiá‑los na prisão se lhe mentissem.
‑ Moramos ‑ respondeu Jimmy, e olhou por cima do ombro
para a casa de Sean.
‑ Sim, senhor ‑ disse Sean.
Dave não disse nada.
O polícia olhou para ele.
‑ Hã? Disseste alguma coisa, miúdo?
‑ O quê? ‑ Dave olhou para Jimmy.
Não olhes para ele, olha para mim. ‑ O polícia grande respirou com força pelas narinas. ‑ Vives aqui, miúdo?
Hã? Não.
Não? ‑ O polícia inclinou‑se para Dave. ‑ Onde é que moras,
filho?
Em Rester Street ‑ respondeu Dave, ainda a olhar para Jimmy.
Lixo dos Flats no Point? ‑ O polícia mexeu os lábios como
se estivesse a chupar um rebuçado. ‑ Isso não é bom, pois não?
Senhor?
A tua mãe está em casa?
Sim, senhor. ‑ Uma lágrima deslizou pela face de Dave e Sean
e Jimmy desviaram os olhos.
Bem, vamos ter de falar com ela, contar‑lhe o que o vadio
do filho anda a fazer.
Eu não... eu não... ‑ gaguejou Dave.
Entra. ‑ O polícia abriu a porta traseira do carro e Sean sentiu o cheiro a maçãs, uma fragrância acre, de Outono.
Dave olhou para Jimmy.
‑ Entra ‑ repetiu o polícia. ‑ Ou preferes que te ponha as
algemas?
‑Eu...
‑ Tu o quê? ‑ O polícia parecia furioso. Bateu com a mão na
parte de cima da porta. ‑ Entra na merda do carro!
Dave subiu para o banco traseiro, a berrar.
O polícia apontou um dedo grosso e curto para Jimmy e Sean.
‑ Vão dizer às vossas mães o que estavam a fazer. E eu que
não volte a apanhá‑los à zaragata nas minhas ruas.
Jimmy e Sean recuaram, e o polícia meteu‑se no carro e arrancou. Viram‑no chegar à esquina e virar à direita, e a cabeça de Dave, escurecida pela distância e pelas sombras, a olhar para eles. E então a rua ficou novamente vazia, como se o bater da porta do carro a tivesse emudecido. Jimmy e Sean continuaram no sítio onde o carro estivera, olharam para os pés, para os extremos da rua, para todo o lado menos um para o outro.
Sean voltou a ter aquela sensação de sacudidela, desta vez acompanhada pelo gosto a moedas sujas na boca. Era como se lhe tivessem esvaziado o estômago com uma colher.
Então Jimmy disse‑o:
Tu é que começaste.
Ele é que começou.
Foste tu. E agora ele está lixado. A mãe não é boa da cabeça. Sabe‑se lá o que é capaz de fazer‑lhe depois de dois chuis o levarem a casa.
Não fui eu que comecei.
Jimmy empurrou‑o, e desta vez Sean empurrou‑o também, e então estavam a rebolar pelo chão, aos murros um ao outro.
‑ Eh!
Sean saiu de cima de Jimmy e puseram‑se os dois de pé, à espera de ver outra vez os dois polícias, mas o que viram foi Mr. De‑vine, a descer os degraus do alpendre em direcção a eles.
Que diabo estão vocês os dois a fazer?
Nada.
Nada? ‑ O pai de Sean franziu o sobrolho ao chegar ao passeio. ‑ Saiam do meio da rua.
Foram juntar‑se‑lhe no passeio.
Vocês não eram três? ‑ Mr. Devine olhou para a extremidade da rua. ‑ Onde está o Dave?
Como?
O Dave. ‑ O pai de Sean olhou para o filho e para Jimmy.
‑ O Dave não estava convosco?
Andávamos à pancada na rua.
O quê?
Andávamos à pancada na rua e apareceram os chuis.
Quando foi isso?
Aí há cinco minutos.
OK, então apareceram os chuis.
E prenderam o Dave.
O pai de Sean voltou a olhar para ambos os extremos da rua.
Fizeram o quê? Prenderam‑no?
Para o levarem a casa. Eu menti. Disse que vivia aqui. O Dave
disse que vivia nos Flats, e eles levaram‑no...
Que estás tu a dizer? Sean, como eram os polícias?
‑Hã?
Usavam uniforme?
Não. Não, estavam...
Então como sabes que eram polícias?
Não sabia. Eles...
Eles o quê?
Ele tinha um crachá ‑ explicou Jimmy. ‑ No cinto.
Que espécie de crachá?
Ouro?
OK, mas o que é que tinha escrito?
Como?
As palavras? Eram palavras que conseguisses ler?
Não. Não sei.
Billy?
Olharam todos para a mãe de Sean, de pé no alpendre, com uma expressão tensa e curiosa.
Olá, querida. Telefona para a esquadra, está bem? Pergunta se
alguns detectives apanharam um miúdo por andar à pancada na rua.
Um miúdo?
O Dave Boyle.
Oh, Jesus. A mãe dele.
Esperemos para ver, está bem? Agora o que é preciso é saber
o que diz a Polícia. Certo?
A mãe de Sean voltou para dentro. Sean olhou para o pai, que parecia não saber o que fazer com as mãos. Enfiou‑as nos bolsos, voltou a tirá‑las, limpou‑as às calças. «Raios me partam!», disse, muito baixo, e olhou para a extremidade da rua, como se Dave estivesse a pairar ali na esquina, uma miragem dançante para lá do campo de visão de Sean.
Era castanho ‑ disse Jimmy.
O quê?
O carro. Era castanho‑escuro. Um Plymouth, pareceu‑me.
Mais alguma coisa?
Sean tentou visualizá‑lo, mas não conseguiu. Via‑o apenas como uma coisa que lhe bloqueara a visão, mas não entrara nela. Obscurecera o Pinto cor de laranja de Mrs. Ryan e a metade inferior das sebes do quintal dela, mas não era capaz de ver o carro propriamente dito.
‑ Cheirava a maçãs ‑ disse.
O quê?
Maçãs. O carro cheirava a maçãs.
Cheirava a maçãs ‑ repetiu o pai.
Uma hora mais tarde, na cozinha de Sean, dois outros polícias fizeram‑lhe a ele e a Jimmy uma série de perguntas, e então apareceu um terceiro fulano que desenhou esboços do carro com base naquilo que Jimmy e Sean lhe disseram. O polícia grande e louro parecia mais ameaçador no bloco de desenho, tinha uma cara ainda maior, mas tirando isso, era ele. O segundo sujeito, o que não desviara os olhos do retrovisor lateral, não se parecia muito com coisa nenhuma, era apenas uma mancha com cabelos pretos, porque nem Sean nem Jimmy se lembravam bem dele.
O pai de Jimmy apareceu e deixou‑se ficar no canto da cozinha com um ar zangado e distraído, os olhos aquosos, a balançar‑se um pouco como se a parede a que estava encostado não parasse de mover‑se. Não falou com o pai de Sean, e ninguém falou com ele Com a sua habitual capacidade de mover‑se rapidamente como que entorpecida, pareceu a Sean mais pequeno, de algum modo mem real. Sean pensou que se desviasse os olhos dele e depois voltasse a olhar, descobriria que se tinha dissolvido no papel da parede.
Depois de terem voltado ao mesmo quatro ou cinco vezes, toda a gente embora ‑ os polícias, o tipo que fizera os desenhos, Jimmy e o pai. A mãe de Sean foi para o quarto e fechou a porta e minutos depois Sean ouviu‑lhe o choro abafado.
Sentou‑se no alpendre e o pai disse‑lhe que não tinha feito nada de mal, que ele e Jimmy tinham sido espertos ao não entrarem no carro. O pai deu‑lhe uma palmadinha no joelho e disse‑lhe que acabaria tudo bem. Esta noite o Dave está em casa, vais ver.
Então o pai calou‑se. Ficou sentado ao lado de Sean, a bebericar a sua cerveja, mas Sean sentiu que se tinha afastado dele. Talvi estivesse no quarto, com a mãe, ou lá em baixo na cave, a construir casas de aves.
Sean olhou para os carros enfileirados na rua, a reluzirem ao sol. Disse a si mesmo que aquilo ‑ tudo aquilo ‑ fazia parte de u plano que fazia sentido. Ele é que ainda não conseguia perceber como.
Mas havia de perceber, um dia. A adrenalina que lhe correra pelo corpo desde que Dave fora levado no carro e ele e Jimmy tinham rebolado pela rua aos murros um ao outro escoou‑se‑lhe finalmente através dos poros, como um resíduo inútil.
Viu o lugar onde ele, Jimmy e Dave Boyle tinham lutado, junto ao Bei Air, e esperou que os novos espaços vazios que se tinham formado quando a adrenalina lhe saíra do corpo voltassem a encher‑‑se. Esperou que o plano se reformasse e fizesse sentido. Esperou e observou a rua, sentindo‑lhe o zumbido, e esperou um pouco mais até que o pai se pôs de pé e voltaram ambos para dentro.
Jimmy regressou aos Flats atrás do velho. O velho ziguezagueava um pouco e fumava os cigarros mesmo até à ponta e resmungava qualquer coisa entre dentes. Quando chegassem a casa, talvez o pai lhe desse uma sova, ou talvez não, era difícil dizer. Depois de perder o emprego, dissera a Jimmy que nunca mais fosse a casa dos Devine, e Jimmy calculou que ia ter de pagar por ter violado essa regra. Mas talvez não naquele dia. O pai estava com aquele ar de embriaguês sonolenta que geralmente queria dizer que, quando chegasse a casa, ia sentar‑se à mesa da cozinha e beber até adormecer com a cabeça apoiada nos braços.
Pelo sim pelo não, Jimmy mantinha‑se meia‑dúzia de passos atrás dele, a atirar a bola ao ar e a apanhá‑la com a luva de basebol que roubara em casa de Sean enquanto os chuis se despediam dos Devine e ninguém lhe dissera uma palavra a ele nem ao pai enquanto percorriam o corredor em direcção à porta da frente. A porta do quarto de Sean estava aberta, e Jimmy vira a luva caída no chão, com a bola aninhada no meio, e estendera a mão e pegara nela, e então ele e o pai tinham saído. Não sabia porque roubara a luva. Não fora pelo brilho de orgulho surpreendido que vira nos olhos do pai quando lhe pegara. Isso que se lixasse. O velho que se lixasse.
Tivera qualquer coisa a ver com o facto de Sean ter batido em Dave Boyle e de se ter armado em menina com aquilo de roubar o carro e com várias outras coisas ao longo daquele ano em que tinham sido amigos, aquela sensação que Jimmy tinha de que fosse o que fosse que Sean lhe desse ‑ cartões de basebol, meia tablete de chocolate, fosse o que fosse ‑ era dado como esmola.
Quando Jimmy pegara na luva e saíra com ela, sentira‑se exultante. Sentira‑se óptimo. Um pouco mais tarde, enquanto passavam para o outro lado de Buckingham Avenue, sentiu a vergonha e o embaraço que o invadiam sempre que roubava qualquer coisa, uma raiva contra o que quer que fosse, ou quem quer que fosse, que o levava a fazer aquelas coisas. E ainda um pouco mais tarde, quando desceram a Crescent e entraram nos Flats, sentiu uma pontada de orgulho ao olhar para as feias casas de três andares e depois para a luva que tinha na mão.
Jimmy roubara a luva e arrependia‑se de tê‑lo feito. Sean ia sentir a falta dela. Jimmy roubara a luva e estava contente por tê‑lo feito. Sean ia sentir a falta dela.
Jimmy viu o pai cambalear à sua frente, a dar a impressão, o velho sacana, de ir desmanchar‑se de um momento para o outro e transformar‑se numa poça de si mesmo, e odiou Sean.
Odiava Sean e fora suficientemente estúpido para pensar que podiam ter sido amigos, e sabia que ia ficar com aquela luva até ao fim da sua vida, tomar conta dela, nunca a mostrar a ninguém, e nunca, nem uma única vez, havia de usar o raio daquela coisa. Nem morto.
Jimmy viu os Flats estenderem‑se à sua frente enquanto ele e o velho caminhavam pela sombra profunda da linha do comboio aéreo e se aproximavam do lugar onde a Crescent bifurcava e os comboios de mercadorias passavam, com o seu martelar surdo, ao lado do velho e piolhoso drive‑in e do Penitentiary Channell, mais além, e soube ‑ lá muito, muito no fundo do peito ‑ que nunca mais voltavam a ver Dave Boyle. Onde Jimmy vivia, na Rester, estavam sempre a roubar coisas. A ele tinham‑lhe roubado o triciclo, quando tinha quatro anos, e a bicicleta, quando tinha oito. O velho ficara sem o carro. E a mãe passara a pendurar a roupa em casa, para secar, depois de lhe terem levado tanta da corda do pátio das traseiras. Quando nos roubavam alguma coisa, a sensação era muito diferente de quando simplesmente a perdíamos. Uma pessoa sentia, no fundo do coração, que nunca mais ela ia aparecer. Era assim que Jimmy sentia a respeito de Dave. Talvez Sean, naquele preciso instante, estivesse a sentir o mesmo a respeito da sua luva de basebol, de pé junto ao lugar no chão onde ela estivera, sabendo, para lá da lógica, que nunca, nunca mais ia voltar a vê‑la.
Era pena, porque Jimmy tinha gostado de Dave, embora a maior parte das vezes não percebesse porquê. Talvez fosse qualquer coisa no puto, talvez a maneira como estava sempre por perto, mesmo que metade das vezes uma pessoa nem reparasse nele.
Quatro Dias
afinal, Jimmy estava enganado.
Dave Boyle regressou ao bairro quatro dias depois de ter desaparecido. Regressou sentado no banco da frente de um carro‑pa‑trulha. Os dois polícias que o levaram a casa deixaram‑no brincar com a sereia e tocar na coronha da caçadeira encaixada por baixo do tablier. Deram‑lhe um crachá honorário, e quando o entregaram em casa da mãe, em Rester Street, estavam lá repórteres dos jornais e da TV para registar o momento. Um dos polícias, o agente Eugene Kubiaki, tirou Dave do carro e fez‑lhe rodopiar as pernas num arco bem alto antes de o depositar no passeio diante da mãe, que chorava e ria e tremia.
Havia uma multidão em Rester Street, naquele dia ‑ pais, miúdos, um carteiro, os dois roliços Pork Chop Brothers, donos da casa de petiscos na esquina da Rester com a Sydney, e até Miss Powell, professora do quinto ano de Dave e de Jimmy, na Looey & Dewey. Jimmy estava com a mãe. A mãe puxava‑lhe a cabeça contra a cintura e mantinha uma mão húmida espalmada na testa dele, como que a certificar‑se de que não apanhara o mesmo que Dave tinha, fosse lá o que fosse, e Jimmy sentiu uma pontada de ciúmes quando o agente Kubiaki fez rodopiar Dave pelos ares antes de o depositar no passeio, os dois a rirem‑se como velhos amigalhaços, enquanto a bonita Miss Powel batia palmas.
Eu também quase entrei naquele carro, quis Jimmy dizer a alguém. Queria dizê‑lo a Miss Powell mais do que a qualquer outra pessoa. Miss Powell era bonita e limpa, e quando se ria via‑se que um dos dentes de cima era ligeiramente torto, o que, para Jimmy, a tornava ainda mais bonita. Jimmy queria dizer‑lhe que também ele estivera quase a entrar no tal carro e ver se a cara dela se enchia da mesma expressão com que estava naquele instante a olhar para Dave. Queria dizer‑lhe que pensava constantemente nela, e que nos seus pensamentos era mais velho e podia guiar um carro e levá‑‑la a sítios onde ela lhe sorria muito e faziam um piquenique e tudo o que ele dizia a fazia rir e mostrar aquele dente e tocar‑lhe na cara com a palma da mão.
Miss Powell, no entanto, não se sentia ali à vontade. Jimmy bem o via. Depois de ter dito umas palavras a Dave e de lhe ter tocado na cara e de o ter beijado ‑ deu‑lhe dois beijos ‑, outras pessoas avançaram e Miss Powell afastou‑se para o lado e ficou ali parada no passeio rachado, a olhar para os feios prédios de três andares e para o papel alcatroado que começava a enrolar‑se, deixando à mostra as ripas de madeira que ficavam por baixo, e pareceu a Jimmy mais nova e apesar disso ao mesmo tempo mais dura, como se de repente houvesse nela qualquer coisa de freira, a tocar nos cabelos como que à procura da coifa do hábito, o narizinho torcido e pronto a julgar.
Jimmy queria ir ter com ela, mas a mãe continuava a segurá‑lo com força, ignorando os esforços dele para se libertar, e então Miss Powell afastou‑se até à esquina da Rester com a Sydney e Jimmy viu‑‑a acenar desesperadamente a alguém. Um tipo com ar de hippie parou junto ao passeio um descapotável amarelo com ar de hippie, com pétalas de flores vermelhas desbotadas pelo sol pintadas nas portas, e Miss Powell entrou no carro e foram‑se embora, enquanto Jimmy pensava, Não.
Conseguiu finalmente libertar‑se do abraço da mãe. Ficou ali no meio da rua, a ver a multidão rodear Dave, e desejou ter entrado no carro, para ao menos poder sentir um pouco da adoração que Dave estava a sentir naquele instante, e ver todos aqueles olhos postos nele como se fosse qualquer coisa de especial.
Acabou por dar numa grande festa em Rester Street, com toda a gente a correr de câmara para câmara, na esperança de aparecer na TV ou ver‑se num dos jornais da manhã ‑ Sim, conheço o Dave, é o meu melhor amigo, cresci com ele, um bom miúdo, graças a Deus que está bem.
Alguém abriu uma boca‑de‑incêndio e a água jorrou pela Res‑ter como um grande suspiro de alívio, e os miúdos atiraram os sapatos para a sarjeta e arregaçaram as calças e dançaram na água que jorrava. Apareceu a camioneta dos gelados, e Dave pôde escolher o que quis, por conta da casa, e até Mr. Pakinaw, um estupor de um velho viúvo que costumava atirar aos esquilos com uma espingarda de pressão de ar (e aos miúdos também, por vezes, quando os pais não estavam a ver) e passava a vida a gritar às pessoas que fizessem menos barulho, estão a ouvir? ‑ abriu as janelas e encostou as colunas à rede e de repente Dean Martin estava a cantar «Memories Are Made of This» e «Volare» e uma porção de outras merdas que geralmente fariam Jimmy vomitar se tivesse de as ouvir, mas que naquele dia, fosse lá pelo que fosse, pareciam condizer. Naquele dia, a música flutuou pela Rester com faixas brancas de papel de seda. Misturou‑se com o jorrar da água que saía da boca‑‑de‑incêndio. Alguns dos tipos que controlavam o jogo de cartas nas traseiras da casa de petiscos dos Pork Chop Brothers trouxeram para o passeio uma mesa desdobrável e um pequeno grelhador, e pouco depois alguém arrastou para fora caixas refrigeradoras cheias de Schlitzs e de Narragansetts, e o ar ficou gorduroso com o cheiro dos cachorros quentes e dos enchidos italianos assados, e o bafo espesso, fumarento e esturricado da carne e o aroma adocicado da cerveja fizeram lembrar a Jimmy Fenway Park e as tardes de domingo e aquela alegria apertada que se sentia no peito quando os adultos pareciam voltar atrás e se comportavam mais como miúdos, e toda a gente ria, e toda a gente parecia mais nova e mais leve e feliz por estarem uns com os outros.
Era aquilo que fazia com que Jimmy, mesmo na fossa dos seus mais negros ódios, depois de o pai lhe ter dado uma sova ou de lhe terem roubado qualquer coisa verdadeiramente importante para ele, era aquilo que fazia com que gostasse tanto de viver ali. O modo como as pessoas eram capazes de, num ápice, atirar para trás das costas um ano de dores e queixas e lábios rachados e preocupações com o emprego e soltarem‑se, como se nada tivesse acontecido nas suas vidas. No Dia de S. Patrício, ou no Dia de Buckingham, por vezes no 4 de Julho, ou quando os Sox estavam a jogar bem em Setembro, ou, como agora, quando era encontrada qualquer
coisa que fora colectivamente perdida ‑ especialmente nessas ocasiões ‑, o bairro era capaz de irromper num delírio furioso.
Nada como no Point. No Point também tinham festas de quarteirão, claro, mas eram sempre planeadas, as necessárias licenças obtidas, com cada um a certificar‑se de que toda a gente tinha cuidado com os carros, cuidado com os relvados ‑ Cuidado, acabo de pintar essa vedação.
Nos Flats, metade das pessoas não tinha relvado, e as vedações estavam a cair, de modo que se lixasse. Quando as pessoas queriam fazer uma festa, faziam uma festa, porque, merda, bem a mereciam. Não havia ali patrões, naquele dia, nem investigadores da Segurança Social, nem cobradores dos usurários. Quanto aos chuis... bem, ali estavam os chuis, a festejar como todos os outros, o agente Ku‑biaki a tirar da grelha um spuckie2 de salsicha dos mais picantes, o parceiro a meter ao bolso uma lata de cerveja, para mais tarde. Os jornalistas tinham ido todos embora e o Sol estava a começar a pôr‑‑se, dando à rua aquela luz de são‑horas‑do‑jantar, mas nenhuma das mulheres estava a cozinhar, e ninguém ia para casa.
Excepto Dave. Dave tinha ido, apercebeu‑se Jimmy quando saiu de baixo do jacto de água da boca‑de‑incêndio e espremeu as pernas das calças e voltou a vestir a T‑shirt enquanto esperava na fila por um cachorro‑quente. A festa de Dave estava em grande, mas Dave devia ter ido para casa, e a mãe também, e quando Jimmy olhou para as janelas deles no segundo andar, as persianas estavam descidas e tinham um ar solitário.
Fosse lá pelo que fosse, aquelas persianas descidas fizeram‑no pensar em Miss Powell, nela a entrar naquele carro com ar de hippie, e fê‑lo sentir‑se sombrio e triste lembrar‑se de tê‑la visto dobrar a perna e o tornozelo direitos dentro do carro antes de fechar a porta. Aonde iria? Estaria naquele preciso instante a correr pela auto‑estrada, com o vento a escorrer‑lhe por entre os cabelos como a música escorria ao longo de Rester Street? Estaria a noite a fechar‑se à volta deles, naquele carro hippie, enquanto se dirigiam a... aonde? Quando ia a meio do cachorro‑quente, uma das persianas subiu e viu Dave de pé à janela, a olhar para ele. Jimmy ergueu o
Nome dado em Boston a uma sanduíche preparada com um pequeno pão tipo cacete e qualquer charcutaria. (N. do T.)
cachorro meio comido, num gesto de reconhecimento, mas Dave não lho retribuiu, nem mesmo quando ele tentou uma segunda vez. Dave limitou‑se a olhar. Olhava para Jimmy, e embora Jimmy não conseguisse ver‑lhe os olhos, sentia o vazio que havia neles. Vazio, e culpa.
A mãe de Jimmy sentou‑se junto dele, no passeio, e Dave afastou‑se da janela. A mãe de Jimmy era uma mulher baixinha, magra, com uns cabelos muito pálidos. Para alguém tão magro, mexia‑se como se carregasse um saco de tijolos em cada ombro, e suspirava muito e de uma maneira tal que Jimmy não estava muito certo de a mãe se aperceber de que era ela própria que fazia aquele som. Via fotografias da mãe antes de ter ficado grávida dele, e parecia‑lhe muito menos magra e muito mais nova, uma adolescente (como, fazendo as contas, de facto era). O rosto era mais redondo, nas fotografias, sem rugas junto aos olhos nem na testa, e tinha aquele belo sorriso cheio que parecia só muito ligeiramente assustado, ou talvez curioso, Jimmy não sabia dizer de certeza. O pai dissera‑lhe mais de mil vezes que ele quase a matara ao sair, que ela sangrara e sangrara ao ponto de os médicos recearem que nunca mais parasse de sangrar. Acabara com ela, dizia o pai de Jimmy. E, claro, não haveria mais filhos. Ninguém quereria passar por aquilo uma segunda vez.
A mãe de Jimmy pousou a mão no joelho dele e perguntou:
‑ Então, como vai isso, G.I. Joe?
A mãe estava sempre a tratá‑lo por alcunhas diferentes, frequentemente inventadas no momento, e metade das vezes Jimmy nem sabia a quem o nome se referia.
Encolheu os ombros.
A mãe sabe.
Não disseste nada ao Dave.
A mãe não deixou.
A mãe de Jimmy tirou a mão da perna dele e apertou os braços à volta do corpo, por causa do fresco que se acentuava com o cair da noite.
Queria dizer depois. Quando ele ainda estava cá fora.
Amanhã vejo‑o na escola.
A mãe procurou no bolso dos jeans o maço de Kent e acendeu um, soprando o fumo com força.
‑ Não me parece que ele amanhã vá à escola.
Jimmy acabou de comer o cachorro.
‑ Bem, então um destes dias. Certo?
A mãe assentiu com a cabeça e expeliu mais fumo pela boca. Apoiou o cotovelo na palma da mão e fumou e olhou para as janelas da casa de Dave.
‑ Como correu hoje a escola? ‑ perguntou, mas não parecia
verdadeiramente interessada na resposta.
Jimmy encolheu os ombros.
‑ Tudo bem.
‑ Conheci aquela tua professora. É bonita.
Jimmy ficou calado.
‑ Muito bonita ‑ insistiu a mãe, por entre uma fita cinzenta
de fumo.
Jimmy continuou calado. A maior parte das vezes, não sabia o que dizer aos pais. A mãe estava tão gasta. Ficava a olhar para lugares que Jimmy não conseguia ver e fumava os seus cigarros, e metade das vezes não o ouvia e ele tinha de repetir as coisas. O pai estava quase sempre zangado, e mesmo quando não estava e podia ser mais ou menos divertido, Jimmy sabia que ia transformar‑se num bêbedo zangado de um momento para o outro e dar‑lhe uma estalada por ele ter dito qualquer coisa que meia hora antes o teria feito rir. E sabia que por muito que se esforçasse por fingir que não era assim, tinha tanto o pai como a mãe dentro de si: os longos silêncios da mãe e os súbitos acessos de raiva do pai.
Quando Jimmy não estava a pensar em como seria ser o namorado de Miss Powell, por vezes pensava em como seria ser filho dela.
A mãe estava a olhar para ele, a segurar o cigarro junto ao ouvido, os olhos pequenos e inquisitivos.
‑ O que é? ‑ perguntou ele, e sorriu‑lhe embaraçadamente.
‑ Tens um bonito sorriso, Cassius Clay. ‑ E sorriu‑lhe também.
‑ Ah, sim?
Sim. Vais ser um conquistador.
Hum, está bem ‑ disse Jimmy, e riram‑se ambos.
‑ Podias ser um pouco mais falador ‑ observou a mãe.
Também a mãe, quis Jimmy dizer.
‑ Mas não faz mal. As mulheres gostam dos calados.
Por cima do ombro da mãe, Jimmy viu o pai sair de casa a cambalear, com o rosto inchado de sono ou de bebida, ou de ambas as coisas. O pai olhou para a festa que decorria à frente dele como se não fizesse ideia de onde viera.
A mãe seguiu o olhar de Jimmy, e quando voltou a olhar para ele estava de novo gasta, e o sorriso desaparecera‑lhe tão completamente do rosto que qualquer pessoa se espantaria ao saber que ela era capaz de sorrir.
‑ Eh, Jim!
Adorava quando ela lhe chamava «Jim». Fazia‑o sentir que partilhavam algo juntos.
‑ Sim?
‑ Estou muito contente por não teres entrado naquele carro,
querido. ‑ Beijou‑o na testa e Jimmy viu que tinha os olhos brilhantes, e então levantou‑se e aproximou‑se de um grupo de outras
mães, mantendo‑se de costas voltadas para o marido.
Jimmy ergueu os olhos e viu Dave à janela, a olhar outra vez para ele, agora com uma pálida luz amarela acesa algures atrás dele. Desta vez, Jimmy nem sequer tentou acenar. Agora que os polícias e os jornalistas se tinham ido embora, e a festa estava tão bem lançada que provavelmente já ninguém se lembrava do motivo por que começara, Jimmy sentiu Dave sozinho naquele apartamento, exceptuando a maluca da mãe, rodeado por paredes castanhas e pálidas luzes amareladas enquanto a festa continuava lá em baixo na rua.
E também ele ficou contente, mais uma vez, por não ter entrado no carro.
Mercadoria avariada. Fora o que o pai de Jimmy dissera à mãe na noite anterior: «Mesmo que o encontrem vivo, o miúdo é mercadoria avariada. Nunca mais volta a ser o mesmo.»
Dave levantou uma mão. Manteve‑a à altura do ombro e não a moveu durante muito tempo, e, enquanto lhe acenava, Jimmy sentiu uma tristeza invadi‑lo como uma erva daninha, chegar‑lhe ao fundo da alma e então espalhar‑se em pequenas ondas. Não sabia se aquela tristeza tinha alguma coisa a ver com o pai, a mãe, Miss Powell, aquele lugar, ou com o facto de Dave estar assim imóvel à janela, de mão levantada, mas fosse o que fosse que a causasse ‑ uma daquelas coisas ou todas elas ‑ nunca mais, teve a certeza, ela voltaria a deixá‑lo. Jimmy, sentado no passeio, tinha onze anos, mas já não se sentia como se os tivesse. Sentia‑se velho. Velho como os pais, velho como aquela rua.
Mercadoria avariada, pensou Jimmy, e deixou a mão voltar a cair no colo. Viu Dave acenar‑lhe com a cabeça e descer as persianas para voltar para dentro daquele apartamento demasiado silencioso, com as suas paredes castanhas e os seus relógios tiquetaqueantes, e sentiu a tristeza enraizar‑se nele, aninhar‑se‑lhe nas entranhas como se tivesse encontrado um lugarzinho quente, e nem sequer tentou desejar que ela se fosse embora, porque uma parte dele compreendia que seria inútil.
Pôs‑se de pé, sem saber muito bem, durante um segundo, o que queria fazer. Sentiu aquela necessidade coceguenta, formigante, de bater em qualquer coisa ou fazer qualquer coisa nova e louca. Mas então ouviu o estômago resmungar e apercebeu‑se de que ainda tinha fome, de modo que foi em busca de mais um cachorro‑quente, esperando que ainda restasse algum.
Durante três ou quatro dias, Dave Boyle tornou‑se uma pequena celebridade, e não só no bairro, mas em todo o estado. No dia seguinte, a primeira página do Record American dizia RAPAZINHO perdido/rapazinho encontrado. A fotografia da metade superior da página mostrava‑o sentado nos degraus da casa, com os magros braços da mãe à volta do peito e um magote de sorridentes putos dos Flats a fazerem caretas para a câmara de ambos os lados de Dave e da mãe, toda a gente com um ar muito feliz excepto a mãe de Dave, que estava com ar de quem acabava de perder o autocarro num dia frio.
Os mesmos miúdos que apareciam com ele na fotografia da primeira página do jornal começaram a chamar‑lhe «anormal» uma semana mais tarde, na escola. Dave olhava para as caras deles e via nelas uma raiva que duvidava que compreendessem muito melhor do que ele. A mãe de Dave disse que provavelmente era por causa do que ouviam aos pais e não lhes dês atenção, Davey, hão‑de cansar‑‑se e esquecer isto tudo e para o ano voltam a ser teus amigos.
Dave assentia com a cabeça e perguntava a si mesmo se haveria qualquer coisa nele ‑ qualquer marca na cara que não conseguisse ver ‑ que levava toda a gente a querer fazer‑lhe mal. Como aqueles dois tipos no carro. Porque o teriam escolhido a ele? Como teriam sabido que ele entraria para o carro e Jimmy e Sean não? Em retrospectiva, era assim que lhe parecia. Aqueles homens (e sabia os nomes deles, ou pelo menos os nomes por que se tratavam um ao outro, mas não conseguia obrigar‑se a usá‑los) tinham sabido que Sean e Jimmy nunca entrariam no carro sem luta. Sean teria corrido para casa, a gritar, provavelmente, e Jimmy... teriam tido de pô‑lo a dormir para enfiá‑lo no carro. O Lobo Grande até dissera, algumas horas mais tarde, enquanto conduzia: «Viste a maneira como o puto da T‑shirt branca olhou para mim? Nem medo, nem nada. Aquele puto vai fo‑der alguém um dia destes, e não vai perder o sono por causa disso.»
O parceiro, o Lobo Gorduroso, sorrira. «Gosto de um pouco de luta.»
O Lobo Grande abanara a cabeça. «Arrancava‑te o polegar à dentada se tentasses metê‑lo no carro. Limpinho, o sacaninha.»
Ajudava atribuir‑lhes nomes inventados: Lobo Grande e Lobo Gorduroso. Ajudava vê‑los como criaturas, lobos disfarçados com peles humanas, e ele próprio como uma personagem numa história: O Rapaz Levado pelos Lobos. O Rapaz Que Conseguiu Fugir e chegar, atravessando os húmidos bosques, até um posto da Esso. O Rapaz Que Permaneceu Calmo e Alerta, sempre à procura de um caminho de fuga.
Na escola, porém, era apenas O Rapaz Que Foi Roubado, e cada um deixava correr a imaginação no respeitante ao que tinha acontecido durante aqueles quatro dias perdidos. Na casa de banho, uma manhã, um rapaz do sétimo ano chamado Júnior McCaffery foi pôr‑se diante do urinol ao lado do de Dave e perguntou:
‑ Obrigaram‑te a chupá‑lo?
E todos os amigos dele do sétimo ano desataram a rir e a fazer o som de beijos.
Dave fechou a braguilha com dedos trémulos, muito vermelho, e voltou‑se para enfrentar Júnior McCaffery. Tentou pôr uma expressão má nos olhos, e Júnior franziu o sobrolho e deu‑lhe um estalo na cara.
O som daquela estalada ecoou na casa de banho. Um dos rapazes do sétimo ano abriu muito a boca e ofegou, como uma menina.
Tens alguma coisa a dizer, maricas? ‑ perguntou Júnior. ‑ Eh?
Queres que te dê outra palmada, ó panilas?
Está a chorar ‑ disse alguém.
Pois está ‑ gritou Júnior, e as lágrimas de Dave correram
ainda mais abundantes. Sentiu a dormência na cara transformar‑se
em ardor, mas não era a dor que o incomodava. A dor nunca o incomodara por aí além, e nunca o fizera chorar, nem sequer quando caíra com a bicicleta e abrira o tornozelo de alto a baixo com o pedal, e tivera de levar sete pontos. Era a gama de emoções que sentia emanarem dos rapazes reunidos na casa de banho que o cortava como uma faca. Ódio, nojo, raiva, desprezo. Tudo dirigido contra
ele. Não compreendia porquê. Nunca em toda a sua vida fizera mal fosse a quem fosse. E no entanto, eles odiavam‑no. E o ódio fazia‑
‑o sentir‑se órfão. Fazia‑o sentir‑se pútrido e culpado e minúsculo,
e chorava porque não queria sentir‑se assim.
Todos riram das lágrimas dele. Júnior dançou de um lado para o outro, distorcendo a cara em esgares que imitavam os soluços de Dave. E quando Dave conseguiu controlar‑se, reduzir o choro a um fungar intermitente, Júnior voltou a bater‑lhe, no mesmo sítio, com a mesma força.
‑ Olha para mim ‑ ordenou Júnior, enquanto Dave sentia um
novo vulcão de lágrimas explodir‑lhe dos olhos. ‑ Olha para mim.
Dave olhou para Júnior, na esperança de ver compaixão, ou humanidade, ou até piedade ‑ aceitaria piedade ‑ na cara dele, mas tudo o que viu foi um olhar duro e trocista.
‑ Sim ‑ disse Júnior. ‑ Chupaste‑o.
Simulou outra estalada e Dave baixou a cabeça e encolheu‑se, mas já Júnior se afastava com os amigos, todos a rirem quando saíram da casa de banho.
Dave lembrou‑se de uma coisa que Mr. Peters, um amigo da mãe que ia lá dormir de vez em quando, certa vez lhe dissera: «Há duas coisas que nunca aguentas a um homem: uma cuspidela ou uma estalada. São ambas pior do que um murro, e se um homem te faz qualquer delas, tu tentas matá‑lo, se puderes.»
Dave sentou‑se no chão da casa de banho e desejou ser assim, ter a força, a vontade necessária para matar alguém. Começaria por Júnior McCaffery, pensou, e em seguida passaria para o Grande Lobo e o Lobo Gorduroso, se alguma vez tornasse a encontrá‑los. Mas a verdade era que achava que nunca seria capaz. Não sabia por que razão eram as pessoas más umas para as outras. Não compreendia. Não compreendia.
Depois do incidente na casa de banho, foi como se tivesse vindo palavra lá de cima, ou coisa assim, e se tivesse espalhado pela escola, de modo que toda a gente, a partir do terceiro ano, soube o que Júnior McCaffery tinha feito a Dave e como Dave tinha reagido. Chegou‑se a uma espécie de sentença, e Dave descobriu que até os poucos colegas que se tinham mostrado mais ou menos seus amigos desde que regressara à escola passavam a tratá‑lo como se fosse um leproso.
Nem todos resmungavam «Homo» quando passavam por ele no corredor, ou usavam a língua para esticar por dentro a bochecha. Na realidade, muitos dos colegas de escola de Dave limitavam‑se a ignorá‑lo. Mas, de certo modo, isso era ainda pior. Sentia‑se isolado pelo silêncio.
Se por acaso davam de caras um com o outro ao sair de casa, Jimmy Marcus caminhava por vezes em silêncio ao lado dele até à escola, porque teria parecido esquisito não o fazer, ou dizia «Eh», quando se cruzavam no corredor ou ficavam lado a lado na fila para entrar na aula. Dave notava uma estranha mistura de piedade e embaraço no rosto de Jimmy nas ocasiões em que os olhos de ambos se encontravam, como se Jimmy quisesse dizer qualquer coisa e não conseguisse traduzi‑lo em palavras ‑ nem mesmo nos seus melhores momentos Jimmy podia ser considerado um grande falador, a menos que de repente começasse a comichá‑lo uma qualquer ideia louca, como saltar para a linha do metro ou roubar um carro. Mas Dave sentia que a amizade entre ambos (e nem sequer tinha a certeza, para dizer a verdade, de que alguma vez tivessem sido verdadeiramente amigos; recordava, com uma ponta de vergonha, todas as vezes em que tivera de impingir a sua companhia a Jimmy) morrera quando ele entrara para aquele carro e Jimmy ficara especado na rua.
No final, Jimmy acabaria por não andar muito mais tempo na escola com Dave, de modo que até aquelas caminhadas puderam passar a ser evitadas. Na escola, Jimmy sempre andara com Vai Sa‑vage, um pequeno psicopata com miolos de chimpanzé que já ficara retido no quinto ano duas vezes e volta não volta entrava numa estonteante tempestade de violência que aterrorizava mais ou menos toda a gente, alunos e professores incluídos. A piada que se contava a respeito de Vai (mas nunca quando ele estava por perto) era que os pais não andavam a juntar para lhe pagar a universidade, e sim para pagar‑lhe as fianças. Já antes de Dave ter entrado no carro, Jimmy sempre andara com Vai quando chegavam à escola. Uma vez por outra, deixava‑o acompanhá‑los quando assaltavam a cozinha do refeitório para roubar comida ou descobriam um novo telhado para escalar, mas, depois do carro, até disso Dave se vira excluído. Quando não estava a odiá‑lo por aquele súbito exílio, Dave notava que a nuvem negra que por vezes parecia pairar por cima da cabeça de Jimmy se tornara uma coisa permanente, como o contrário de um halo. Ultimamente, Jimmy parecia mais velho, e mais triste.
Jimmy sempre acabou por roubar um carro. Foi quase um ano depois da primeira tentativa na rua de Sean, e valeu‑lhe ser expulso da Looey & Doey e transferido quase para o outro lado da cidade, para a Carver School, para que soubesse como era a vida de um puto branco de East Bucky numa escola maioritariamente frequentada por negros. Vai foi, no entanto, transferido com ele, e Dave soube que em pouco tempo os dois se tornaram o terror da Carver, um par de putos brancos tão pirados que nem sequer sabiam ter medo.
O carro era um descapotável. Dave ouviu rumores de que pertencia a um amigo de uma das professoras, mas nunca descobriu qual delas. Jimmy e Vai roubaram‑no do parque de estacionamento enquanto os professores e os respectivos cônjuges e amigos festejavam o fim do ano escolar no salão académico, depois das aulas. Jimmy conduzia, e ele e Vai levaram‑no para uma corrida infernal à volta de Buckingham, tocando a buzina e acenando às raparigas, acelerando como loucos até que um carro‑patrulha os descobriu e acabaram por estampá‑lo contra um contentor de lixo, nas traseiras do Zayres, em Rome Basin. Vai torceu um tornozelo ao sair do carro e Jimmy, que já tinha escalado mais de metade de uma vedação que dava para um terreno vazio, voltou atrás para ajudá‑lo. Na sua mente, Dave via sempre a cena como fazendo parte de um filme de guerra ‑ o valente soldado a voltar atrás para ajudar o amigo caído enquanto as balas assobiavam à sua volta (claro que Dave duvidava que os polícias estivessem a disparar, mas assim era muito mais giro). Os polícias apanharam‑nos aos dois e passaram ambos a noite na choça. Deixaram‑nos completar o sexto, uma vez que faltavam apenas uns poucos dias para terminar o ano escolar, mas logo a seguir as famílias foram avisadas de que teriam de procurar uma nova escola para os rapazes.
Depois disso, Dave raramente voltou a ver Jimmy, talvez uma ou duas vezes por ano até entrarem para o ciclo. A mãe de Dave não o deixava sair de casa, a não ser para a escola. Estava convencida de que os tais dois homens ainda por ali andavam, à espera, conduzindo o tal carro que cheirava a maçãs, fixados em Dave como mísseis atraídos pelo calor.
Dave sabia que não. Eram lobos, ao fim e ao cabo, e os lobos cheiravam o ar da noite em busca da presa mais próxima e mais fácil, e então perseguiam‑na. No entanto, visitavam‑lhe agora o espírito com mais frequência, o Grande Lobo e o Lobo Gorduroso, juntamente com visões do que lhe tinham feito. As visões raramente lhe atacavam os sonhos, mas, furtivas, apanhavam‑no de surpresa na terrível quietude do apartamento da mãe, nos longos períodos de silêncio durante os quais tentava ler um livro de banda desenhada, ou ver televisão, ou olhar pela janela para Rester Street. Vinham, e Dave tentava mantê‑las à distância fechando os olhos, esforçando‑se por não recordar que o Lobo Grande se chamava Henry e o Lobo Gorduroso se chamava George.
Henry e George, gritava uma voz juntamente com o desfilar das visões na cabeça de Dave. Henry e George, Henry e George, Henry e George, seu montezinho de merda.
E Dave dizia à voz que lhe gritava dentro da cabeça que não era nenhum montezinho de merda. Era O Rapaz Que Escapara aos Lobos. E por vezes, para manter as visões em respeito, revia mentalmente a sua fuga, pormenor a pormenor ‑ a racha que notara no gonzo da porta da cave, o som do carro dos dois homens a afastar‑se quando foram beber uns copos, o parafuso sem cabeça que usara para abrir mais e mais a racha até que o ferrugento gonzo saltara trazendo consigo uma lasca de madeira em forma de faca. Saíra da cave, aquele Rapaz Que Era Esperto, e correra direito ao bosque, e seguira o Sol poente até ao posto da Esso, a uma milha da cabana. Fora um choque vê‑lo, aquele sinal redondo, azul e branco, já aceso para a noite, apesar de restar ainda alguma luz do dia. Espetara qualquer coisa em Dave, o branco do néon. Fizera‑‑o' cair de joelhos no lugar onde o bosque terminava e começava o velho asfalto cinzento. Fora assim que Ron Pierrot, o dono do posto, o encOntrara‑ de joelhos, a olhar para o sinal. Ron Pierrot era um homem magro, com umas mãos que pareciam capazes de partir um tubo de chumbo, e Dave muitas vezes perguntara a si mesmo o que teria acontecido se O Rapaz Que Escapara aos Lobos fosse na verdade uma personagem de um filme. Ele e Ron teriam criado laços, e Ron ter‑lhe‑ia ensinado todas as coisas que os pais ensinam aos filhos, e teriam selado os cavalos e carregado as espingardas e partido para intermináveis aventuras. Teriam feito grandes coisas, Ron e o Rapaz. Teriam sido heróis, nas vastidões selvagens, vencendo todos os lobos.
No sonho de Sean, a rua mexeu‑se. Olhou para a porta aberta do carro que cheirava a maçãs e a rua agarrou‑lhe os pés e empurrou‑o na direcção dela. Dave estava lá dentro, encolhido no extremo oposto do banco, contra a porta, a boca aberta num grito silencioso, enquanto a rua empurrava Sean para o carro. Tudo o que conseguia ver no sonho era a porta aberta e o banco traseiro. Não via o tipo que parecia um polícia. Não via o outro homem, sentado no banco da frente. Não via Jimmy, embora ele tivesse estado a seu lado o tempo todo. Só via o banco e Dave e a porta e o lixo no chão. Aquela, compreendeu, fora a campainha de alarme que nem se apercebera de ter ouvido ‑ o lixo no chão. Papéis que tinham servido para embrulhar comida, embalagens amarrotadas de batatas fritas, latas de cerveja e de refrigerantes, copos de plástico e uma T‑shirt verde, suja. Só depois de acordar e recordar o sonho percebeu que o chão do carro no sonho era igual ao chão do carro na vida real, e que só agora se lembrara do lixo. Nem sequer quando os polícias tinham estado em casa dele e lhe tinham pedido que pensasse ‑ pensasse a sério ‑ em qualquer pormenor que pudesse ter esquecido de contar‑lhes, lhe ocorrera que o chão do carro estava sujo, porque não se lembrava disso. Mas, no sonho, tudo voltara, e essa fora ‑ mais do que qualquer coisa ‑ a razão por que compreendera, de algum modo sem se aperceber disso, que havia algo de errado com aquele «polícia», o respectivo «parceiro» e o carro. Sean nunca vira o banco traseiro de um carro da Polícia na vida real, não de perto, mas uma parte dele sabia que não estaria cheio de lixo. Talvez por baixo de todo aquele lixo houvesse restos de maçãs meio comidas, e por isso o carro tinha aquele cheiro.
O pai entrou no quarto dele um ano depois do rapto de Dave para lhe dizer duas coisas.
A primeira era que tinha sido admitido na Latin School, e começaria lá o sétimo ano, em Setembro. Acrescentou que tanto ele como a mãe estavam muito orgulhosos.
A segunda coisa que disse, como se já quase fosse esquecer‑‑se, quando estava junto à porta, foi:
‑ Apanharam um deles, Sean.
O quê?
Um dos tipos que levaram o Dave. Apanharam‑no. Está
morto. Suicidou‑se na cela.
‑Sim?
O pai olhou para ele.
‑ Sim. Já podes deixar de ter pesadelos.
Mas Sean perguntou:
‑ E o outro?
‑ O tipo que foi apanhado ‑ explicou o pai de Sean ‑ disse à Polícia que o outro também tinha morrido. Num desastre de automóvel, o ano passado. O pai olhou para ele de uma maneira que disse a Sean que aquela era a última conversa que iam ter
a respeito do assunto. ‑ Vai lavar‑te para o jantar, rapaz.
O pai fechou a porta e Sean sentou‑se na cama, com o colchão a fazer um alto no lugar onde ele escondera a nova luva de basebol, com a bola aninhada no meio e grossos elásticos vermelhos apertados com força à volta do couro.
O outro também morrera. Num desastre de automóvel. Sean esperava que fosse a guiar o carro que cheirava a maçãs, e que tivesse caído de um precipício, levando o maldito carro com ele direito para o inferno.
SINATRAS DE OLHOS TRISTES
Lágrimas Nos Cabelos Dela
Brendan Harris amava Katie Marcus com um amor louco, com um amor de cinema, com uma orquestra a ribombar‑lhe no sangue e a inundar‑lhe os ouvidos. Amava‑a quando estava acordado, e quando ia para a cama, amava‑a durante todo o dia e a cada segundo que passava. Brendan Harris teria amado Katie Marcus mesmo que ela fosse gorda e feia. Tê‑la‑ia amado com uma pele má, e sem maminhas, e com um denso buço por cima do lábio superior. Tê‑la‑ia amado desdentada. Tê‑la‑ia amado careca.
Katie. O gorjeio do nome a deslizar‑lhe pelo cérebro era o bastante para fazer Brendan sentir como se tivesse os membros cheios de gás hilariante, como se fosse capaz de caminhar sobre a água e de fazer halteres com um camião de dezasseis rodas e atirá‑lo para o outro lado da rua quando se fartasse.
Brendan amava toda a gente porque amava Katie Marcus e porque Katie o amava. Brendan amava o trânsito, e o smog e o som dos martelos pneumáticos. Amava o inútil do pai que não lhe enviava nem sequer um postal pelos anos ou pelo Natal desde que o abandonara, e à mãe, tinha ele seis anos. Amava as manhãs de segunda‑feira, e as sitcoms da televisão que não conseguiriam fazer rir um atrasado mental, e esperar nas filas das repartições públicas. Até amava o emprego, apesar de não ter a intenção de lá voltar a pôr os pés.
Brendan ia sair daquela casa na manhã seguinte, deixar a mãe, sair por aquela feia porta e descer aqueles degraus rachados, subir a grande e larga rua com carros estacionados em dupla fila por todo o lado e toda a gente sentada nos degraus da entrada, caminhar como se fosse o raio de uma canção do Springsteen, e não o Springsteen de Nebraska‑Ghost‑of‑Tom‑Jod, mas o Bruce de Born‑To‑Run‑Two‑Hearts‑Are‑Better‑Than‑One‑Rosalita(Won't‑You‑Come‑Out‑‑Tonight), o Bruce do hino. Sim, um hino; era o que ele ia ser quando caminhasse mesmo pelo meio da rua, sem se importar que os pára‑‑choques lhe batessem nas pernas e as buzinas tocassem, subindo o raio daquela rua até ao coração de Buckingham para pegar na mãe da sua Katie, e então os dois iam deixar de uma vez por todas aquilo tudo para trás, iam meter‑se num avião e voar até Vegas e dar o nó, de dedos entrelaçados, Elvis a ler a Bíblia, a perguntar se ek aceitava aquela mulher, e Katie a dizer que aceitava aquele homem e então... então, esqueçam, estariam casados e ir‑se‑iam embora e nunca mais haviam de voltar, nem pensar, só ele e Katie e o resto das suas vidas a estender‑se diante deles aberto e limpo como uma corda de salvação lavada do passado, lavada do mundo.
De pé no meio do quarto, olhou em redor. Roupas arrumadas Cheques de viagem da American Express arrumados. Botas de ténis arrumadas. Fotografias dele e de Katie arrumadas. Reprodutor de CD portátil, CD, objectos de higiene pessoal arrumados.
Olhou para o que deixava ficar. Póster de Bird e Parris. Poster de Fisk a conseguir aquele home run, em 75. Póster de Sharon Stone com uma coisa branca colada ao corpo (enrolado e escondido debaixo da cama desde a primeira vez que levara Katie até ali, mas...) Metade dos CD. Que se lixasse, não ouvira a maior parte deles mais de duas vezes. MC Hammer, pelo amor de Deus. Billy Ray Cirus. Senhores. Um par de potentes colunas Sony para complementar uma aparelhagem Jensen de secretária, duzentos watts no total, acabada de pagar no Verão anterior, quando fizera uns arranjos no telhado da casa de Bobby O'Donnell.
Fora assim, aliás, que chegara suficientemente perto de Katie para meter conversa. Jesus. Só um ano. Umas vezes parecia‑lhe dez, no bom sentido, outras parecia‑lhe um minuto. Katie Marcus. Sabia dela claro; toda a gente no bairro sabia dela. Só para dar uma ideia de como era bonita. Mas poucos a conheciam verdadeiramente. A beleza tinta por vezes tem esse efeito; assustava as pessoas, mantinha‑as à distância Não era como nos filmes, em que a câmara fazia a beleza parecer qualquer coisa que nos convidava. No mundo real, a beleza era como uma vedação que nos mantinha do lado de fora, nos afastava.
Mas Katie, pá, desde aquele primeiro dia em que aparecera com Bobby O'Donnell, e então ele a deixara ficar enquanto ia com alguns dos rapazes até ao outro lado da cidade tratar de uns assuntos importantes, deixaram‑na ficar para trás como se se tivessem esquecido de que a tinham... logo nesse primeiro dia ela fora tão básica e normal; ficara por perto de Brendan enquanto ele aplicava umas placas isoladoras no telhado, como se não fosse nada com ela. Sabia o nome dele, e dissera: «Como é que um rapaz decente como tu, Brendan, trabalha para o Bobby O'Donnell?» Brendan. A palavra a sair‑lhe da boca como se a dissesse todos os dias, Brendan lá em cima de joelhos na beira do telhado e a sentir‑se como se fosse deslizar em êxtase dali para fora. Em êxtase. A sério. Era assim que ela o afectava.
E amanhã, mal ela telefonasse, iam‑se embora. Embora juntos. Embora para sempre.
Brendan deitou‑se na cama e imaginou a lua que era o rosto de Katie a pairar por cima dele. Sabia que não ia conseguir dormir. Estava demasiado excitado. Mas não se importou. Ficou ali estendido, com Katie a pairar e a sorrir, os olhos a brilharem na escuridão por detrás dos olhos dele.
Nessa noite, depois do trabalho, Jimmy Marcus foi beber uma cerveja com o cunhado, Kevin Savage, ao Warren Tap. Sentaram‑se os dois a uma janela, a ver um grupo de miúdos jogar hóquei de rua. Eram seis miúdos, e lutavam contra a escuridão que lhes escondia as feições. O Warren Tap ficava numa rua lateral, no velho bairro dos currais, o que o tornava ideal para jogar hóquei, porque não havia muito trânsito, mas uma merda para os jogos nocturnos, porque havia mais de uma década que nenhum dos candeeiros de iluminação pública funcionava.
Kevin era boa companhia, porque de um modo geral não falava muito, e Jimmy também não, de modo que ficaram ali sentados a beberricar as cervejas e a ouvir o raspar das solas de borracha e o entrechocar dos sticks de madeira e o ocasional e repentino estridor metálico da dura bola de borracha a ressaltar no tampão de uma roda.
Com trinta e seis anos, Jimmy Marcus acabara por apreciar a calma das suas noites de sábado. Não tinha paciência para bares cheios de barulho e de confissões alcoólicas. Fazia treze anos que saíra da prisão, e agora era dono de uma loja de esquina, tinha en casa uma mulher e três filhas, e acreditava ter trocado o rapaz es toura‑vergas que fora por um homem que gostava de uma certa calma na sua vida ‑ uma cerveja lentamente bebida, um passeio pela manhã, o som de um jogo de basebol no rádio.
Olhou para a rua. Quatro dos miúdos tinham desistido e ido para casa, mas dois continuavam lá fora, envoltos em escuridão a disputar a bola. Jimmy quase não os distinguia, mas sentia a fúria da energia que lhes sobrava no bater dos sticks, no raspar frenéti co dos pés.
Para algum lado tinha de ir, toda aquela juventude reprimida. Quando Jimmy era um garoto ‑ raios, quase até aos vinte e três anos ‑ aquela energia ditara todas as suas acções. E então... então uma pessoa aprende a armazená‑la num lado qualquer, achav: Punha‑a de lado.
A filha mais velha, Katie, estava agora a meio desse processo Dezanove anos e tão, tão bonita, todas as hormonas em alerta vermelho, a fervilharem. Mas, ultimamente, andava a notar na filha um ar de graça. Não sabia muito bem de onde vinha ‑ há raparigas que se tornam mulheres graciosamente, outras continuam a ser raparigas toda a vida ‑, mas, de repente, estava em Katie, uma calma, quase uma serenidade.
Nessa tarde, na loja, quando se preparava para sair, Katie beijara‑o na face e dissera, «Até logo, pai», e cinco minutos depois Jimmy apercebera‑se de que continuava a ouvir a voz dela dentro do peito. Era a voz da mãe, percebeu, ligeiramente mais baixa e mais confiante do que a voz que recordava ser a da filha, e Jimmy perguntou a si mesmo quando fora que aquela voz se instalara nas cordas vocais de Katie e como fora possível nunca a ter notado até àquele instante.
A voz da mãe. A mãe, que morrera havia já quase catorze anos e que agora voltava através da filha. A dizer: Está uma mulher, Jin Cresceu.
Uma mulher. Uau! Como fora que aquilo acontecera?
Dave Boyle nem sequer tinha planeado sair naquela noite.
Noite de sábado, claro, depois de uma longa semana de trabalho, mas chegara a uma idade em que as noites de sábado não lhe pareciam assim tão diferentes das de terça, e beber num bar não parecia muito mais divertido do que beber em casa. Em casa, pelo menos, tinha à mão o controlo remoto.
Por isso havia de dizer a si mesmo, mais tarde, depois de tudo feito e acabado, que o Destino metera a mão no jogo. Não era a primeira vez que o Destino se intrometia na vida de Dave Boyle ‑ ou pelo menos a sorte, a maior parte dela má ‑, mas nunca se fizera sentir como uma mão condutora. Fora mais como uma mão entediada, caprichosa. O Destino sentado algures lá em cima, nas nuvens, e alguém a perguntar‑lhe, Chateado, Destino? E o Destino a responder, Um pouco. Acho que vou lixar o Dave Boyle. Fico logo mais animado. O que é que uma pessoa há‑de fazer?
De modo que Dave sabia reconhecer o Destino, quando o via.
Talvez naquela noite de sábado o Destino estivesse a ter uma festa de anos, ou coisa assim, e decidisse dar ao velho Dave uma oportunidade, resolvesse deixá‑lo largar um pouco de pressão sem sofrer as consequências, dizendo qualquer coisa como, Vá lá, Davey, dá uma chapada no mundo. Prometo‑te que desta vez não levas o troco. Como se Lucy, segurando a bola para Charlie Brown e decidindo ao menos uma vez na vida não armar em parva, o deixasse acertar‑lhe um pontapé. Porque não tinha sido planeado. Não tinha. Nos dias que iam seguir‑se, sozinho, já bem entrada a noite, com as mãos abertas voltadas para fora como se estivesse a dirigir‑se a um júri, Dave havia de dizê‑lo em voz baixa para a cozinha vazia: Têm de compreender. Não foi planeado.
Naquela noite, acabava de descer a escada depois de se ter despedido do filho, Michael, e dirigia‑se ao frigorífico para ir buscar uma cerveja, quando a mulher, Celeste, lhe lembrou que era Noite das Raparigas.
‑ Outra vez? ‑ Dave abriu o frigorífico.
Já lá vão quatro semanas ‑ respondeu Celeste, naquele seio
jovial cantochão que por vezes era como dentadas na espinha de
Dave Boyle.
Não digas. ‑ Dave encostou‑se ao lava‑louça e abriu a lata
de cerveja. ‑ Qual é a escolha da noite.
A Madrasta ‑ disse Celeste, de olhos brilhantes e as mãos
entrelaçadas.
Uma vez por mês, Celeste e três colegas do Ozma Hair Desig: juntavam‑se no apartamento dos Boyle e liam umas às outras carta de tarot, bebiam montes de vinho e cozinhavam qualquer coisa que nunca tivessem experimentado. Culminavam a noite vendo um film «para mulheres», geralmente qualquer coisa a respeito de uma mulher de carreira, determinada mas solitária, que encontrava o verdadeiro amor e uma grande pica junto de um velho cowboy com uns grandes tomates, ou então a respeito de duas tipas que descobriam o significado da feminilidade e a verdadeira profundidade da amizade que as unia pouco antes de uma delas apanhar uma doença chata, no terceiro acto, e morrer toda bonita e impecavelmente penteada numa cama do tamanho do Peru.
Na Noite das Raparigas, Dave tinha três opções: podia ficar sentado no quarto de Michael a ver o filho dormir, esconder‑se no quarto que partilhava com Celeste e ver televisão por cabo, ou sair porta fora e descobrir um sítio onde não fosse obrigado a ouvir quatro mulheres a fungar porque o Senhor Grandes Tomates decidia que não podia aceitar amarras e voltava para os montes em busca de uma vida simples.
Geralmente, Dave escolhia a opção n.° 3.
E naquela noite, assim aconteceu. Acabou de beber a cerveja despediu‑se de Celeste com um beijo, sentindo um pequeno coalho leitoso agitar‑se‑lhe no estômago quando ela o agarrou pelas nádegas e retribuiu o beijo com algum entusiasmo, saiu, fechou a porta desceu as escadas passando diante do apartamento de Mr. McA lister e enfrentou a noite de sábado nos Flats. Ainda pensou em ir a pé até ao Bucky's ou ao Tap, ficou ali indeciso por alguns minutos, mas no fim acabou por resolver ir dar uma volta de carro Talvez até ao Point, espreitar as universitárias e os yuppies que ultimamente por lá apareciam aos magotes ‑ tantos, na realidade, que alguns já começavam a transvasar para os Flats.
Compravam os velhos prédios de tijolo, que de repente deixavam de ser velhos prédios de tijolo para passarem a ser Queen Annes. Envolviam‑nos em andaimes e esventravam‑nos, com os operários a trabalharem dia e noite até que, três meses mais tarde, os L.L. Beans estacionavam os seus Volvos em frente da porta e carregavam para dentro as caixas de bugigangas. Ouvia‑se suave música dejazz através das portadas das janelas, e compravam merdas como vinho do Porto na Eagle Liquors, passeavam os cães, do tamanho de ratazanas, à volta do quarteirão e cuidavam dos minúsculos relvados. Por enquanto eram só os velhos prédios de tijolo, entre a Galvin e Twoomey Avenue, mas a julgar pelo que estava a acontecer no Point, não tardaria muito começariam a ver Saabs e sacos de mercearias finas às dúzias até em Pen Channell, no início dos Flats.
Ainda na semana anterior, Mr. McAllister, o senhorio de Dave, lhe dissera (como quem não quer a coisa):
Os preços das casas estão a subir. Mas mesmo por aí acima.
Então é aguentar ‑ respondera Dave, olhando para o prédio onde tinha o seu apartamento ia para dez anos ‑ e na melhor
altura...
Qual melhor altura? ‑ McAllister olhara para ele. ‑ Dave,
estou afogado em taxas imobiliárias. Tenho um rendimento fixo,
pelo amor de Deus. Se não vendo depressa, dentro de dois, talvez
três anos, a porra do IRS3 fica‑me com tudo.
Nesse caso, para onde iria? ‑ perguntara Dave, pensando,
Para onde iria eu?
McAlistter encolhera os ombros.
‑ Não sei. Weymouth, talvez. Tenho uns amigos em Leomins‑
ter.
Dissera aquilo como se já tivesse feito uns quantos telefonemas, a apalpar terreno.
Enquanto conduzia o Accord pelas ruas do Point, Dave tentava recordar se conhecia alguém da sua idade que ainda ali vivesse. Parou num semáforo, viu dois yuppies vestindo pólos iguais e calções de caqui sentados no passeio à porta da antiga Primo's Pizza.
A semelhança fica‑se pelo cognome e pelo objectivo. Neste caso, IRS significa Internai Revenue Service, o equivalente americano à nossa Fazenda. (N. do T.)
Agora chamava‑se Café Society, e os dois yuppies, assexuados e bem constituídos, despejavam colheres de gelado, ou de iogurte, para dentro da boca, com as pernas bronzeadas estendidas pelo passeio e cruzadas nos tornozelos. Duas refulgentes bicicletas de montanha estavam encostadas à montra do café, sob a luz crua do néon branco.
Dave perguntou a si mesmo onde diabo iria viver se o espírito de fronteira fizesse rolar a fronteira por cima dele. Com o que ele e a mulher ganhavam juntos, se os bares e pizarias continuassem a transformar‑se em cafés, teriam muita sorte se conseguissem candidatar‑se a três assoalhadas em Parker Hill. Esperar dezoito meses pelo privilégio de ir viver para uma casa onde as escadas cheiravam a mijo e as carcaças das ratazanas mortas empestavam o ar através das paredes cobertas de humidade, e drogados e artistas da navalha rondavam pelos corredores, à espera que os coirões dos brancos adormecessem.
Desde que um daqueles marginais de Parker Hill tentara roubar‑lhe o carro com ele e Michael lá dentro, Dave andava com uma .22 debaixo do banco. Nunca a disparara, nem sequer numa carreira de tiro, mas pegava nela muitas vezes, apontava‑a a coisas. Permitiu a si mesmo a indulgência de pensar como lhe pareceriam aqueles dois yuppies clonados vistos através da mira da pistola, e sorriu.
Mas o semáforo passara para verde, e ele continuava parado, e o concerto de buzinadelas rebentou no mesmo instante, e os yuppies levantaram a cabeça e ficaram a olhar para o amuchacado carro, a ver qual seria a causa de tanta agitação no seu novo bairro.
Dave atravessou o cruzamento, sentindo‑se sufocado por aqueles súbitos olhares, aqueles súbitos e injustificados olhares.
Naquela noite, Katie Marcus foi sair com as suas duas melhores amigas, Diane Cestra e Eve Pigeon, para festejar a última noite de Katie nos Flats, provavelmente a sua última noite em Bucking‑ham. Festejar como se ciganas acabassem de polvilhá‑las com pó de ouro, dizendo‑lhes que todos os seus sonhos haviam de realizar‑‑se. Como se partilhassem um bilhete de lotaria premiado e tivessem todas recebido no mesmo dia testes de gravidez com resultados negativos.
Bateram com os pacotes de pastilhas de mentol no tampo da mesa do fundo do Spires Pub e despejaram shots kamikaze e Mich Lights e gritaram de cada vez que um rapaz bem‑parecido lhes lançava O Olhar. Tinham comido um jantar mortífero no East Coast Grill uma hora antes, e depois tinham voltado a Buckingham e acendido um charro no parque de estacionamento antes de entrarem no bar. Tudo ‑ velhas histórias que tinham ouvido as outras contar mais de cem vezes, o relato feito por Diane da última sova que o cretino do namorado lhe dera, o bâton subitamente esborratado nos lábios de Eve, dois tipos gorduchos à volta da mesa de bilhar ‑, tudo era divertido, hilariante.
Quando a casa ficou tão cheia que as pessoas se amontoavam em três filas diante do balcão e conseguir uma bebida começou a demorar vinte minutos, mudaram‑se para o Curley's Folly, no Point, fumando mais um charro pelo caminho, e Katie a sentir as lascas aguçadas da paranóia rasparem‑lhe o interior do crânio.
‑ Aquele carro vem a seguir‑nos.
Eve olhou para os faróis no retrovisor.
Não vem nada.
Vem atrás de nós desde que saímos do bar.
Fogo, Katie, raios, isso foi para aí há trinta segundos.
‑Oh.
Oh ‑ imitou‑a Diane, e então teve um soluço, voltou a passar o charro a Katie.
Está tudo silencioso ‑ disse Eve, baixando a voz.
Cala a boca ‑ protestou Katie, vendo ao que aquilo ia levar.
Demasiado silencioso ‑ concordou Eve, e desatou a rir.
Cabras ‑ ralhou Katie, tentando dar à voz uma aresta de irritação, mas apanhando em vez disso a crista de uma onda de gargalhadas. Caiu no banco traseiro, completamente flipada, enfiando a nuca entre o apoio do braço e o assento, as faces a arderem com aquela sensação de alfinetadas que tinha sempre nas raras ocasiões em que fumava erva. As gargalhadas acabaram por acalmar e Katie entrou num devaneio sonolento, com os olhos fixos na pálida luz
que iluminava o céu, pensando, é isto, é para isto que vivemos, para rir como uma louca com as loucas das nossas melhores amigas na véspera de casarmos com o homem que amamos. (Em Vegas, OK. Com uma ressaca, OK.) De todos os modos, era aquilo. Era aquele o sonho.
Quatro bares, três sbots e um par de números de telefone escritos em guardanapos mais tarde, Katie e Diane estavam tão pedradas que treparam para o balcão do McGills e dançaram ao ritmo de «Brown Eyed Girl» apesar de a máquina de discos estar calada. Eve cantou «Sliping and a sliding», e Katie e Diane escorregaram e deslizaram, abanando as ancas, sacudindo os cabelos até que eles lhes cobriram a cara. No McGills, os rapazes tinham achado que aquilo estava apertado, mas vinte minutos mais tarde, no Brown, não conseguiram sequer passar a porta.
Diane, Katie e Eve apareceram no meio deles precisamente nesta altura, e Eve continuava a cantar (Gloria Gaynor, desta vez, «I Will Survive»), o que constituía metade do problema, e a balouçar como um metrónomo, o que constituía a outra metade.
Por isso foram corridas antes sequer de entrarem no Brown, o que significava que a única opção que restava em termos de servir três raparigas sem pernas era o Last Drop, uma suja baiúca na zona mais miserável dos Flats, um filme de terror com três quarteirões de comprimento onde as pegas mais ganzadas e os respectivos clientes executavam as suas danças de acasalamento e qualquer carro sem alarme durava em média minuto e meio.
Que era onde estavam quando Roman Fallow apareceu com a sua última namorada tipo guppy (Roman gostava de mulheres pequenas, louras e com olhos grandes). O aparecimento de Roman era sempre uma boa notícia para os barmen, porque Roman dava gorgetas algures na casa dos cinquenta por cento. Mas era má notícia para Katie, porque Roman era amigo de Bobby O'Donnell.
‑ Estás um nadinha pedrada, Katie? ‑ perguntou Roman.
Katie sorriu, porque Roman a assustava. Roman assustava praticamente toda a gente. Bem‑parecido, e esperto, podia ser divertido como o diabo quando lhe dava para aí, mas, pá, havia um buraco no tipo, uma completa ausência de qualquer coisa que se parecesse com verdadeiro sentimento e que lhe pendia dos olhos como um cartaz a anunciar uma vaga.
‑ Estou um pouco tocada ‑ admitiu.
Roman achou a resposta divertida. Soltou uma gargalhadinha curta, mostrando os dentes perfeitos, e bebeu um golo de Tan.
Um pouco tocada, eh? lá, OK, Katie, deixa‑me perguntar‑te
uma coisa ‑ pediu, amavelmente. ‑ Achas que o Bobby vai gostar
de saber que andaste a fazer figura de parva no McGills esta noite?
Diz lá, achas que vai gostar?
Não.
Porque eu não gostei de saber, Katie. Compreendes o que
estou a dizer?
Certo.
Roman pôs uma mão em concha atrás da orelha.
Como?
Certo.
Roman deixou a mão onde estava, inclinou‑se para ela.
‑ Desculpa. Como?
‑ Vou já para casa ‑ disse Katie.
Roman sorriu.
Tens a certeza? Não quero obrigar‑te a fazer qualquer coisa
que não te apeteça.
Não, não. Para mim já chega.
Claro, claro. Eh, posso pagar a tua conta?
Não, não. Obrigada, Roman, já está paga.
Roman passou um braço pelos ombros da bimba da namorada.
‑ Queres que te chame um táxi?
Katie esteve quase a espalhar‑se e a dizer que tinha ido de carro, mas lembrou‑se a tempo.
Não, não. A estas horas da noite? Nós apanhamos um, não
há problema.
Pois, é isso. Tudo bem, então, Katie. Até à vista.
Eve e Diane já estavam à porta. Já lá estavam, na realidade, desde que tinham visto Roman entrar. No passeio, Diane perguntou:
‑ Jesus. Achas que ele vai telefonar ao Bobby?
Katie abanou a cabeça, embora não tivesse a certeza.
‑ Não. O Roman não gosta de dar más notícias. Gosta de ser
ele a criá‑las. ‑ Levou a mão à cara por um instante e, na escuridão,
sentiu o álcool que tinha no sangue transformar‑se numa borra áspera e sentiu o peso da sua solidão. Sempre se sentira só, desde que
a mãe morrera, e a mãe tinha morrido havia muito, muito tempo.
No parque de estacionamento, Eve vomitou, sujando as rodas do Toyota azul de Katie. Quando acabou, Katie pescou do fundo da bolsa um pequeno frasco de desinfectante bocal e estendeu‑lho.
‑ Estás capaz de conduzir? ‑ perguntou Eve.
Katie assentiu.
O quê, catorze quarteirões? Estou fina. ‑ E, quando iam a sair
do parque de estacionamento, acrescentou: ‑ Mais uma razão para me ir embora. Mais uma razão para sair desta merda deste bairro.
lá ‑ corroborou Diane, sem grande convicção.
Katie conduziu cuidadosamente, mantendo o ponteiro nos quarenta, chegando‑se bem à direita, concentrando‑se. Fizeram doze quarteirões na Dunboy e então meteram pela Crescent, onde as ruas eram mais escuras, mais sossegadas. No início dos Flats, seguiram por Sydney Street, a caminho da casa de Eve. Entretanto. Diane decidira que preferia ficar a dormir no sofá de Eve a ir para casa do namorado e ter de aturá‑lo por chegar pedrada, de modo que ela e Eve apearam‑se junto ao candeeiro partido em Sydney Street. Começara a chover, salpicando o pára‑brisas de Katie, mas Diane e Eve não pareceram dar por isso.
Dobraram‑se ambas pela cintura e espreitaram para Katie pela janela aberta do lado do passageiro. A volta para o torto que a noite dera na última hora alongara‑lhes os rostos e fizera‑lhes descair os ombros, e Katie sentiu a tristeza das amigas no lado direito da cara enquanto olhava para as gotas de chuva que salpicavam o pára‑brisas. Sentiu o resto das vidas delas a pesar‑lhes, chato e infeliz, sobre as cabeças. As suas melhores amigas desde a escola infantil, e era bem possível que nunca mais voltasse a vê‑las.
‑ Ficas bem? ‑ A voz de Diane soou com uma nota alta, borbulhante.
Katie voltou a cara para ela e sorriu, dando tudo o que tinha apesar de o esforço parecer querer rasgar‑lhe o queixo ao meio.
Sim, claro. Telefono‑lhes de Vegas. Podem ir visitar‑me.
Os voos são baratos ‑ disse Eve.
Muito baratos.
Muito baratos ‑ corroborou Diane, deixando morrer a voz
enquanto perdia os olhos na distância.
OK ‑ disse Katie, a palavra a saltar‑lhe da boca como uma
explosão brilhante. ‑ Vou‑me embora antes que alguém se ponha
a chorar.
Eve e Diane estenderam as mãos pela janela aberta e Katie apertou‑lhas longamente, e então elas endireitaram‑se e afastaram‑se do carro. Acenaram. Katie acenou, e então tocou a buzina e arrancou.
Ficaram no passeio, a olhar, muito depois de os farolins traseiros do carro de Katie terem flamejado, vermelhos, por um instante antes de ela fazer uma curva apertada a meio de Sydney Street. Sentiam que havia mais coisas para dizer. Sentiam o cheiro da chuva e o cheiro a lata do Penitentiary Channell a correr, escuro e silencioso, do outro lado do parque.
Diane havia de desejar, pelo resto da sua vida, ter ficado naquele carro. Iria ter um filho antes de decorrido um ano e iria dizer‑‑lhe quando ele ainda era novo (antes de tornar‑se igual ao pai, antes de tornar‑se mau, antes de pôr‑se a conduzir bêbedo e atropelar uma mulher que esperava para atravessar a rua, no Point) que acreditava que o destino queria que ela ficasse no carro, e que ao apear‑se, num impulso, alterara qualquer coisa, cortara a esquina de uma sebe no tempo. Carregaria aquilo consigo para sempre, juntamente com a esmagadora sensação de que durante toda a sua vida fora uma observadora passiva dos impulsos trágicos das outras pessoas, impulsos que nunca fizera o suficiente por controlar. Voltaria a dizer estas coisas ao filho nos dias de visita, na prisão, e ele encolheria desin‑teressadamente os ombros, agitar‑se‑ia no banco e perguntaria, «Trouxeste‑me cigarros, mãe?»
Eve casaria com um electricista e mudar‑se‑ia para um rancho em Braintree. Por vezes, a altas horas da noite, pousaria a mão no amplo e generoso peito do marido e falar‑lhe‑ia de Katie, daquela noite, e ele escutá‑la‑ia e acariciar‑lhe‑ia os cabelos, mas não diria muita coisa porque saberia que não havia nada a dizer. Por vezes, Eve só precisava de pronunciar o nome da amiga, ouvi‑lo, sentir‑lhe
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o peso na língua. Teriam filhos. Eve iria assistir aos jogos de futebol deles, na linha lateral, e de vez em quando abriria os lábios e diria o nome de Katie, silenciosamente, só para si, nos húmidos campos de Abril.
Naquela noite, porém, eram apenas duas raparigas embriagadas de East Bucky, e Katie viu‑as desaparecer do retrovisor quando fez a curva na Sydney e seguiu para casa.
Ali, à noite, era tudo morto. A maior parte das casas junto ao Pen Channell Park tinha ardido, quatro anos antes, num grande incêndio que as deixara esventradas, enegrecidas e entaipadas. Tudo o que Katie queria era chegar a casa, meter‑se na cama, levantar‑se de manhã e desaparecer muito antes que Bobby ou o pai se lembrassem sequer de procurá‑la. Queria despir aquele lugar como as pessoas despem as roupas que usaram durante uma tempestade. Enrolá‑lo numa bola e atirá‑lo para o lado, e nunca mais olhar para ele.
E lembrou‑se de uma coisa em que não pensava havia muito tempo. Lembrou‑se de ir a pé com a mãe até ao zoo, quando tinha cinco anos. Lembrou‑se disto sem ser por qualquer razão especial, talvez por as gavinhas de droga e álcool que se lhe estendiam pelo cérebro terem tocado por acaso na célula onde essa informação estava armazenada. A mãe pegava‑lhe na mão enquanto desciam Co‑lumbia Road em direcção ao zoo, e Katie sentia os ossos na mão dela sempre que os pequenos tremores lhe agitavam a pele junto ao pulso. Erguera os olhos para o rosto magro da mãe, para os olhos cansados, para o nariz afilado pela perda de peso, para a estreita saliência do queixo. E Katie, com cinco anos, curiosa e triste, perguntara: «Porque é que estás sempre cansada?»
O rosto duro e quebradiço da mãe desfizera‑se como uma esponja seca. Ajoelhara diante de Katie, pousara ambas as mãos nas faces dela e olhara‑a com olhos vermelhos. Katie pensara que ela estava louca, mas então a mãe sorrira, e o sorriso encurvara‑se imediatamente para baixo, e o queixo começara a tremer, e ela dissera. «Oh, querida», e apertara‑a contra o peito. Enterrara o queixo no ombro de Katie e voltara a dizer, «Oh, querida», e então Katie sentira as lágrimas dela nos cabelos.
Sentia‑as agora, o suave borriço das lágrimas nos seus cabelos como o suave borriço da chuva no pára‑brisas, e estava a tentar lembrar‑se da cor dos olhos da mãe quando viu o corpo estendido no meio da rua. Estava caído, como um saco, diante dos pneus dela, e Katie guinou bruscamente para a direita, sentindo a roda traseira do lado esquerdo passar por cima de qualquer coisa, e pensou, Oh Jesus, oh Deus, não, diz‑me que não o atropelei, por favor, Deus Jesus, não.
Atirou o Toyota contra o passeio no lado direito da rua, e tirou o pé da embraiagem, e o carro deu um solavanco para a frente, e o motor engasgou‑se e morreu.
‑ Eh, está bem? ‑ perguntou alguém.
Katie viu‑o avançar para ela, e começou a sentir‑se mais relaxada porque ele lhe pareceu familiar e inofensivo até reparar na arma que tinha na mão.
Às três da manhã, Brendan Harris conseguiu finalmente adormecer.
Adormeceu a sorrir, com Katie a pairar por cima dele, a dizer‑‑lhe que o amava, a sussurrar‑lhe o nome, o hálito suave dela doce como um beijo na orelha.
Já Quase Não Saio
Dave Boyle tinha acabado no McGills, naquela noite, sentado num canto do balcão, com Stanley, o Gigante, a ver um jogo dos Sox. Pedro Martinez reinava no monte do lançador, de modo que os Sox estavam a dar um autêntico festival de tareia aos Angels, com Pedro a fazer lançamentos de tal maneira diabólicos que a bola era como um traço de fogo. Por altura da terceira série, os batedores dos Angels pareciam assustados; na sexta, estavam com ar de quem queria ir para casa e começar a fazer planos para o jantar. Quando Garrett Anderson lançou uma curva para a direita baixa e arrumou a questão, qualquer interesse que o jogo de 8‑0 ainda pudesse ter foi às urtigas e Dave deu por si a prestar mais atenção às luzes e aos espectadores que enchiam o Anaheim Stadium do que ao encontro propriamente dito.
Observou sobretudo os rostos nas bancadas superiores ‑ o desgosto e o cansaço da derrota, os adeptos a parecerem estar a levar aquilo mais a peito do que os próprios jogadores. E talvez estivessem. Para alguns deles, pensou Dave, era o único jogo a que assistiriam naquele ano. Tinham levado a mulher e os filhos, saído de casa naquele fim de tarde californiano com latas de refrigerante para ajudar a aguentar as longas filas de trânsito e cinco bilhetes de trinta dólares para poderem sentar‑se nos lugares mais baratos < enfiar bonés de vinte e cinco dólares na cabeça dos filhos, comer hambúrgeres ordinários a seis dólares cada e cachorros‑quentes quatro dólares e meio, beber Pepsi aguada e chupar gelados pegajosos que se derretiam e lhes escorriam para os pulsos. Estavam lá para exultar e vibrar, Dave bem o sabia, para serem exaltados das suas vidas de caca pelo espectáculo raro da vitória. Por isso os recintos desportivos em geral eram tão parecidos com catedrais ‑ cheios de luzes e de orações murmuradas e quarenta mil corações a baterem todos ao ritmo da mesma esperança colectiva.
Ganhem por mim. Ganhem pelos meus filhos. Ganhem pelo meu casamento, para que eu possa levar a vossa vitória comigo para o carro e eu e a minha família possamos rejubilar nessa luz enquanto regressamos a casa e às nossas vidas sem vitórias.
Ganhem por mim. Ganhem. Ganhem. Ganhem.
Quando, porém, a equipa perdia, a esperança colectiva desfazia‑se em cacos e qualquer ilusão de unidade que um homem sentisse em relação aos outros adeptos desaparecia com ela. A equipa falhara e só servira para lhe recordar que, regra geral, quando tentava, perdia. Quando tinha esperança, a esperança morria. E então ficava ali sentado no meio do lixo dos invólucros de celofane e das pipocas e dos copos de cartão, moles e pegajosos, de novo atirado para o estúpido naufrágio da sua vida, enfrentando uma longa e escura caminhada de regresso através de um longo e escuro parque de estacionamento, juntamente com hordas de desconhecidos bêbedos e zangados, uma mulher silenciosa a contabilizar aquele seu último fracasso e três filhos mal‑humorados. Tudo aquilo para poder meter‑se no carro e voltar a casa, precisamente o lugar de onde aquela catedral prometera arrancá‑lo.
Dave Boyle, ex‑estrela da linha de defesa das equipas de basebol dos anos dourados da Don Bosco Technical High School, de 78 a 82, sabia que poucas coisas neste mundo são mais volúveis do que um adepto. Sabia o que era precisar deles, odiá‑los, cair de joelhos diante deles e suplicar‑lhes mais um rugido de aprovação, baixar a cabeça quando se lhes destroçava o coração furioso e partilhado.
‑ Olha‑me para aquelas miúdas ‑ disse Stanley, o Gigante, e Dave olhou e viu duas raparigas de pé em cima do balcão do bar, a dançar, enquanto uma terceira cantava desafinadamente «Brown Eyed Girl», e as duas em cima do balcão davam ao rabo e sacudiam as ancas. A da direita tinha uma pele suculenta e uns olhos cinzentos e brilhantes que diziam «fode‑me», e Dave calculou que devia estar no auge de um efémero apogeu, o tipo de rapariga que provavelmente seria uma grande cambalhota durante talvez mais uns seis meses. Dentro de dois anos, no entanto, ter‑se‑ia tornado azeda ‑ via‑se pelo queixo ‑, gorda e flácida, usaria batas de trazer por casa e ninguém imaginaria sequer que ainda há tão pouco tempo fora capaz de despertar desejos.
Mas a outra...
Dave conhecia‑a desde garota: Katie Marcus, filha de Jimmy e da pobre e já falecida Marita, agora enteada de uma prima de Celeste, Annabeth, mas toda crescidota, toda firme e fresca e a desafiar a gravidade. Ao vê‑la dançar, e sacudir as ancas, e espetar o peito, e rir, os cabelos louros a taparem‑lhe o rosto como um véu, e depois a saltarem para trás quando ela inclinava a cabeça, expondo a garganta arqueada e leitosa, Dave sentiu uma esperança negra e anelante percorrê‑lo como um fogo de gordura, e aquela esperança não vinha do nada. Vinha dela. Era transmitida do corpo dela para o dele, da súbita expressão de reconhecimento no suado rosto dela quando os olhos dos dois se encontraram e ela lhe sorriu e fez um pequeno gesto com o dedo que lhe passou ao de leve através dos ossos do peito e lhe foi direito ao coração.
Olhou para os outros tipos que estavam no bar e que pareciam aparvalhados a ver as duas raparigas dançar, como se elas fossem aparições oferecidas por Deus. Viu‑lhes nos rostos a mesma ânsia que vira nos rostos dos adeptos dos Angels nas primeiras jogadas, uma ânsia triste misturada com a patética aceitação de que iriam para casa insatisfeitos, reduzidos a masturbarem‑se na casa da banho, às três da manhã, enquanto a mulher e os filhos ressonavam lá em cima nos quartos.
Dave ficou a ver Katie refulgir em cima do balcão e lembrou‑‑se de Maura Keaveny nua e estendida debaixo dele, com a testa molhada de suor, os olhos soltos a flutuarem num lago de álcool e de desejo. Desejo por ele. Dave Boyle. Estrela do basebol. Orgulho dos Flats durante três curtos anos. A quem já ninguém se referia como sendo o miúdo que fora roubado quando tinha dez anos. Não, era um herói local. Com Maura na cama, debaixo dele. E com o Destino do seu lado.
Dave Boyle. Inconsciente, naquele tempo, de como os futuros podem ser curtos. De como podem desaparecer repentinamente, deixando uma pessoa sem nada excepto um interminável e chato presente sem surpresas, sem razões para ter esperança, nada excepto dias que se fundiam uns nos outros com tão pouco impacte que um ano inteiro tinha passado e o calendário na parede da cozinha continuava emperrado em Março.
Não vou sonhar mais, dizemos nós. Não vou expor‑me à dor. Mas então a nossa equipa chega às finais, ou vimos um filme, ou um póster cheio de um poente cor de laranja a anunciar Aruba, ou uma rapariga muito parecida com uma mulher com quem andámos no liceu ‑ uma mulher que amámos e perdemos ‑ a dançar de olhos brilhantes à nossa frente, e dizemos, que se lixe, sonhemos um pouco mais.
Certa vez, quando Rosemary Savage Samarco jazia estendida no seu leito de morte (o quinto de dez), dissera à filha, Celeste Boyle:
‑ Juro por Cristo, o único prazer que tive nesta vida foi torcer os tomates do teu pai como um lençol molhado num dia seco.
Celeste esboçara um sorriso distante e tentara desviar o olhar, mas a garra artrítica da mãe fechara‑se‑lhe sobre o pulso e apertara até ao osso.
‑ Ouve o que te digo, Celeste. Vou morrer, por isso estou a falar
a sério como a merda. É o que levas... se tiveres sorte... desta vida, e nem sequer é nada de especial. Amanhã estou morta e quero que a minha filha compreenda: consegues uma coisa. Estás a ouvir? Uma
única coisa, no mundo inteiro, que te dá prazer. No meu caso, foi agarrar o filho da puta do teu pai pelos tomates sempre que pude.
‑ Os olhos brilharam‑lhe e um fio de saliva escorreu‑lhe do canto da boca. ‑ E queres crer, ao fim de algum tempo? Ele até gostava.
Celeste limpou a testa da mãe com uma toalha. Sorriu‑lhe e disse «Mamã» numa voz meiga, tranquilizadora. Limpou‑lhe a saliva dos lábios e acariciou‑lhe a palma da mão, enquanto pensava, Tenho que sair daqui. Sair desta casa, sair deste bairro, sair deste manicómio onde o cérebro das pessoas apodrece por serem demasiado pobres e estarem demasiado cheias de raiva e se sentirem demasiado impotentes para fazer seja o que for durante demasiado tempo.
A mãe, no entanto, continuou a viver. Sobreviveu a uma colite, a comas diabéticos, a insuficiências renais, a dois enfartes do mio‑cárdio, a dois cancros, um na mama, outro no cólon. Certo dia, o pâncreas deixou de funcionar, pura e simplesmente desistiu, e então, uma semana mais tarde, voltou a apresentar‑se ao trabalho, pronto para tudo, e os médicos pediram insistentemente a Celeste que os deixasse estudar o corpo da mãe depois de ela ter morrido. Das primeiras vezes, Celeste perguntara:
Que parte?
Todo ‑ responderam os médicos.
Rosemary Savage Samarco tinha um irmão a morar nos Flats que odiava, duas irmãs a viver na Florida que não lhe falavam, e tão eficazmente apertara os tomates do marido que ele mergulhara de cabeça numa cova prematura só para lhe escapar. Celeste era a sua única filha, depois de oito abortos espontâneos. Quando era pequena, costumava imaginar todos aqueles quase‑irmãos e quase‑‑irmãs a flutuarem no Limbo, e pensava: tiveram sorte.
Quando Celeste era uma adolescente, sempre tivera a certeza de que havia de aparecer alguém que a levasse para longe de tudo aquilo. Não era feia, tinha bom feitio, sabia rir. Achava que, feitas as contas, era normal que acontecesse. O problema foi que, embora conhecesse alguns candidatos, nenhum deles era do género de cortar a respiração. A maior parte era de Buckingham, tipos do Point ou dos Flats ali mesmo em East Bucky, alguns de Rome Basin, e um de fora que conhecera quando frequentava a Blaine Hairstyling School, mas esse era maricas, embora na altura nem ele próprio o soubesse.
O seguro de saúde da mãe era uma merda, e não tardou muito que Celeste se visse a trabalhar exclusivamente para pagar os mínimos obrigatórios das monstruosas contas geradas por monstruosas doenças que nunca eram suficientemente monstruosas para acabar com o sofrimento da mãe. Não que a velha não saboreasse ao máximo esse sofrimento. Cada nova doença era mais um trunfo a usar naquilo a que Dave chamava o Grande Prémio a Vida de Rosemary É Uma Merda Maior do Que a Tua. Se estavam a ver o telejornal e viam uma mãe a chorar e a berrar sentada no passeio porque a casa onde morava acabava de arder com os dois filhos pequenos lá dentro, Rosemary fazia estalar a língua nas gengivas e disparava:
‑ Podes ter mais filhos. Experimenta lá viver com uma colite e um pulmão perfurado tudo no mesmo ano.
Dave sorria, tenso, e levantava‑se para ir buscar outra cerveja. Rosemary, ao ouvir fechar a porta do frigorífico na cozinha, dizia a Celeste:
Tu és só a amante dele, querida. A verdadeira mulher chama‑
‑se Budweiser.
Deixe‑se disso, Mãe ‑ pedia Celeste.
O quê? ‑ perguntava a mãe.
Fora por Dave que Celeste acabara por decidir‑se. Ou contentar‑se? Era bem‑parecido, simpático, e muito poucas coisas pareciam capazes de perturbá‑lo. Quando casaram, tinha um bom emprego a dirigir a sala de expedição postal na Raytheon, e apesar de ter perdido o lugar por causa dos cortes orçamentais, acabara por arranjar outro no serviço de carga e descarga de um hotel da Baixa (por metade do salário anterior) e nunca se queixara. A verdade era que Dave nunca se queixava fosse do que fosse e quase nunca falava da sua infância antes do liceu, circunstância que só começara a parecer estranha a Celeste naquele ano decorrido desde que a mãe morrera.
Fora uma trombose que resolvera finalmente a questão. Celeste chegara a casa, vinda do supermercado, e encontrara a mãe morta na banheira, com a cabeça inclinada, os lábios todos torcidos do lado direito da cara, como se tivesse mordido qualquer coisa muito azeda.
Nos meses que se seguiram ao funeral, Celeste confortou‑se com a ideia de que ao menos agora as coisas seriam mais fáceis, sem as constantes censuras e os cruéis apartes da mãe. Não, não tinha sido bem assim. Dave ganhava mais ou menos o mesmo que ela, o que significava pouco mais de um dólar por hora acima do que a McDonalds pagava, e se as contas com hospitais e farmácia que Rosemary acumulara ao longo da vida não passaram, graças a Deus, para a filha, a conta do funeral passou. Celeste contemplava o desastre financeiro em que a vida dos dois se transformara ‑ as contas que teriam de pagar durante anos, as reservas a desaparecerem, a nova montanha de contas que Michael e o iminente advento da respectiva escolaridade representavam, o crédito perdido ‑ e sentia que o resto dos seus dias seria vivido com a respiração suspensa. Nem ela nem David tinham frequentado a universidade nem possibilidades de vir a fazê‑lo, e embora sempre que uma pessoa ouvia os noticiários eles só falassem da baixa taxa de desemprego e do sentimento nacional de segurança no trabalho, ninguém referia que aquilo se aplicava sobretudo aos trabalhadores especializados e às pessoas dispostas a sujeitarem‑se a contratos a prazo sem protecção de saúde e com poucas perspectivas de carreira.
Por vezes, Celeste dava por si sentada na sanita, ao lado da banheira onde encontrara a mãe. Ficava ali sentada, no escuro. Ficava ali sentada e tentava não chorar e não perguntar a si mesma como fora que a sua vida chegara àquele ponto, e era isso que estava a fazer às três da manhã, naquele sábado, com uma chuva insistente a tamborilar na janela, quando Dave entrou, coberto de sangue.
Pareceu chocado ao encontrá‑la ali. Deu um salto para trás quando ela se levantou.
‑ Querido, que aconteceu? ‑ perguntou Celeste, e estendeu a
mão para ele.
Dave deu outro salto para trás e bateu com o pé no umbral da porta.
Fui naifado.
O quê?
Fui naifado.
Jesus Cristo! Dave, que aconteceu?
Ele levantou a camisa e Celeste ficou a olhar para o comprido golpe que lhe atravessava o peito e borbotava sangue.
Céus, tens de ir para o hospital!
Não, não. Olha, não é muito profundo. Só que sangra como
o diabo.
Dave tinha razão. Olhando melhor, Celeste viu que o golpe não teria mais de dois milímetros de profundidade. Mas era comprido. E sangrava imenso. Embora não o suficiente, em todo o caso, para explicar tanto sangue na camisa e no pescoço.
Quem te fez isto?
Um sacana de um preto drogado qualquer. ‑ Dave despiu a
camisa, atirou‑a para o lavatório. ‑ Querida, fiz asneira.
Tu? Como?
Dave olhou para ela, com os olhos a dançarem de um lado para o outro.
‑ O tipo tentou assaltar‑me, estás a ver? Por isso atirei‑me a
ele. Foi então que o gajo me cortou.
‑ Atiraste‑te a um tipo com uma navalha, Dave?
Ele abriu a torneira e enfiou a cabeça no lavatório, bebeu uns golos de água.
‑ Não sei porquê. Pirei. Quer dizer, pirei a sério, querida. Dei cabo dele.
‑Tu...?
Lixei o gajo, Celeste. Passei‑me de todo quando senti a navalha cortar‑me o peito. Percebes? Atirei‑o abaixo, saltei para cima dele, e, pá, saltou‑me a tampa.
Então foi legítima defesa?
Dave fez com a mão um gesto de «mais ou menos».
Não me parece que o tribunal seja da mesma opinião, para
te dizer a verdade.
Nem consigo acreditar nisto. Querido ‑ Celeste agarrou‑lhe
o pulso com ambas as mãos ‑, conta‑me exactamente o que aconteceu.
E, por um quarto de segundo, ao olhar para a cara dele, sentiu uma náusea. Sentiu qualquer coisa a sorrir por detrás dos olhos do marido, qualquer coisa excitada e satisfeita consigo mesma.
Foi da luz, decidiu, da lâmpada fluorescente, sem protecção, directamente por cima da cabeça dele, porque quando Dave baixou a cabeça para o peito e lhe acariciou as mãos, a náusea desapareceu e a cara dele voltou ao normal ‑ assustada, mas normal.
‑ Ia a caminho do carro ‑ começou ele, e Celeste recostou‑se
contra o autoclismo, sentada na tampa baixada da sanita enquanto
Dave se punha de joelhos no chão diante dela ‑ quando um tipo se
chegou a mim e me pediu lume. Não fumo, disse eu. E eu também
não, diz o tipo.
‑ Ele também não?
Dave assentiu.
Senti logo o coração disparar, porque não havia ninguém à vista
além de nós os dois. E foi então que vi a navalha, e o tipo disse,
«A tua carteira ou a tua vida, meu sacana, vou sair daqui com uma das duas.»
Foi isso que ele disse?
Dave inclinou‑se para trás, pôs a cabeça de lado.
‑ Porquê?
‑ Nada. ‑ Celeste estava a pensar que a frase tinha qualquer coisa de forçado, talvez demasiado espirituosa, como nos filmes. Mas a verdade era que toda a gente via filmes, sobretudo agora, com a televisão por cabo, de modo que talvez o assaltante a tivesse aprendido com um bandido do cinema, ficando de pé a repeti‑la diante do espelho até achar que parecia o Wesley ou o Denzel.
‑ Então... então... ‑ continuou Dave ‑, eu disse, «Vá lá, pá, deixa‑me meter‑me no carro e ir para casa», o que foi uma parvoíce, claro, porque então ele quis também as chaves do carro. E eu, não sei, querida, fiquei furioso em vez de ficar assustado. Talvez fosse do wiskey, não tenho a certeza, mas tentei passar por ele, e foi então
que ele me cortou.
‑ Pensei que tinhas dito que ele te deu um murro. :
Celeste, posso contar a porra da história?
Desculpa, querido ‑ disse ela, e tocou‑lhe na cara.
Dave beijou‑lhe a palma da mão.
‑ Bem, sim, ele empurrou‑me contra o carro e tentou dar‑me
um murro, e eu, bem, esquivei‑me e foi então que o sacana me cortou, e eu, quando senti a lâmina da navalha cortar‑me o peito, flipei.
Acertei‑lhe um murro no lado da cabeça, e ele não estava à espera,
e gritou, «Eh, grande cabrão!», e eu dei‑lhe outro murro e acertei‑
‑lhe no pescoço. E o gajo caiu, e a navalha escorregou para longe,
e eu saltei‑lhe em cima, e, e, e...
Dave olhou para a banheira, com a boca ainda aberta, os lábios
meio franzidos.
‑ E o quê? ‑ perguntou Celeste, ainda a tentar ver o assaltante
a atacar Dave com uma mão cerrada num punho enquanto com a
outra empunhava a navalha. ‑ Que foi que fizeste?
Dave voltou‑se para ela, olhou‑lhe para os joelhos.
‑ Perdi a cabeça, querida. Sou capaz de tê‑lo morto, sei lá. Bati‑
‑lhe com a cabeça no chão e esmurrei‑lhe aquela cara, esborrachei‑
‑lhe o nariz, nem sei. Estava tão furioso e tão assustado que só
pensava em ti e no Michael e em como podia não ter chegado vivo
ao carro, em como podia ter morrido numa merda de um parque de
estacionamento só porque um sacana de um drogado qualquer era
demasiado preguiçoso para ganhar a vida a trabalhar. ‑ Olhou‑a nos
olhos e repetiu: ‑ Sou capaz de tê‑lo morto, querida.
Parecia tão jovem. Com os olhos muito abertos, o rosto pálido e suado, os cabelos colados à cabeça pela transpiração e pelo terror e,.. aquilo seria sangue?..., sim, sangue.
SIDA, pensou ela por um instante. E se o tipo tinha SIDA?
Não, pensou. Concentra‑te no agora. Concentra‑te nisto.
Dave precisava dela. Não era costume. E naquele momento apercebeu‑se da razão por que o facto de ele nunca se queixar começava a perturbá‑la. Quando nos queixamos a alguém estamos, de certa maneira, a pedir ajuda, a pedir a essa pessoa que resolva o nosso problema. Mas Dave nunca antes precisara dela, e por isso nunca se queixara, nem depois de ter perdido o emprego, nem enquanto Rosemary fora viva. Mas agora, ali ajoelhado diante dela, a dizer, desesperadamente, que talvez tivesse matado um homem, estava a pedir‑lhe que lhe dissesse que ia acabar tudo bem.
E ia. Não ia? Um malandro qualquer tentava assaltar um cidadão honesto, azar o dele se as coisas não corriam como tinha planeado. Era uma pena ter morrido, pensou Celeste, quer dizer, lamento
muito, mas Uups. Quem joga arrisca. Beijou o marido na testa.
‑ Querido ‑ sussurrou ‑, vai tomar um duche. Eu trato das roupas.
‑Sim?
Sim.
O que é que vais fazer com elas?
Celeste não fazia a mínima ideia. Queimá‑las? Claro, mas onde? Dentro de casa não podia ser. O que deixava o quintal das traseiras. Mas depressa lhe ocorreu que alguém havia de vê‑la a queimar roupas no quintal das traseiras às três da manhã. Ou fosse a que horas fosse.
Vou lavá‑las ‑ disse, quando a ideia lhe acudiu ao espírito. ‑
Lavo‑as muito bem e então metemo‑las num saco do lixo e enterramo‑las.
Enterramo‑las?
Levamo‑las para a lixeira, então. Ou, não, espera... ‑ os pensamentos corriam agora mais depressa do que as palavras ‑ guardamos o saco até terça‑feira de manhã. É dia do lixo, certo?
Certo... ‑ Dave abriu o duche, a olhar para ela, à espera, com
aquele golpe no peito a ficar quase negro, fazendo com que Celeste voltasse a pensar em SIDA, ou talvez em hepatite, ou nas muitas outras maneiras de o sangue poder matar ou envenenar uma pessoa.
Eu sei a que horas chegam. Sete e um quarto, em ponto, todas
as semanas, excepto na primeira semana de Junho, quando os miúdos do colégio vão para férias e deixam aquele lixo todo e então
geralmente chegam atrasados, mas...
Celeste. Querida? A ideia?
Oh, por isso, quando ouvir o camião, corro atrás deles, como
se me tivesse esquecido de um saco, e atiro‑o para dentro daquela coisa que esmaga o lixo. Certo? ‑ E sorriu, apesar de não ter vontade de sorrir.
Dave pôs uma mão debaixo do chuveiro, com o resto do corpo ainda voltado para ela. ‑OK. Ouve...
O que é?
Não tens medo?
Não.
Hepatite A, B e C, pensou ela. Ebola. Zonas quentes. Os olhos de Dave voltaram a ficar muito abertos.
‑ Sou capaz de ter morto alguém, querida. Jesus.
Celeste queria aproximar‑se dele e tocar‑lhe. Queria sair dali. Queria acariciar‑lhe o pescoço, dizer‑lhe que ia correr tudo bem. Queria fugir e correr até conseguir pensar bem em tudo aquilo.
Ficou onde estava.
Vou lavar as roupas.
OK ‑ disse ele. ‑ Está bem.
Celeste encontrou umas luvas de borracha debaixo do lavatório, as luvas que usava para limpar a sanita, calçou‑as e verificou cuidadosamente se tinham algum golpe ou corte. Quando teve a certeza de que não, pegou na camisa, que estava no lavatório, e apanhou os jeans do chão. Também os jeans estavam escuros de sangue, e deixaram uma mancha vermelha nos azulejos brancos.
Como é que te foi parar às calças?
O quê?
O sangue.
Dave olhou para os jeans pendentes da mão dela. Olhou para o chão.
Estava de joelhos em cima dele. ‑ Encolheu os ombros. ‑ Não
sei. Acho que esguichou, como para a camisa.
Oh.
Ele enfrentou‑lhe o olhar.
‑ Pois. Oh.
Bem ‑ disse ela.
‑Bem?
Vou lavar isto no lava‑louça da cozinha.
‑OK.
‑ OK. ‑ Saiu da casa de banho a recuar, deixando‑o ali de pé, a agitar uma mão debaixo do chuveiro, à espera que a água aquecesse.
Na cozinha, atirou a roupa para dentro do lava‑louça e abriu a água, viu o sangue e pequenas lascas de carne e, oh Cristo, pedaços de cérebro, teve a certeza, rodopiarem e descerem pelo cano. Espantava‑a a quantidade de sangue que o corpo humano podia deitar. Dizia‑se que cada pessoa tinha cerca de cinco litros, mas a Celeste sempre parecera muito mais. Quando estava na quarta classe, andava um dia a correr pelo parque, com umas amigas, e tropeçara. Ao tentar travar a queda, espetara a palma da mão numa garrafa partida que apontava para cima, escondida no meio da erva. Cortara todas as principais artérias e veias da mão, e fora só por ser tão nova que ao longo da década seguinte tinham gradualmente recuperado. Mesmo assim, só aos vinte voltara a ter sensibilidade nas pontas dos dedos. Mas do que melhor se lembrava, era do sangue. Quando levantara a mão da erva, a sentir um formigueiro no cotovelo, como se tivesse batido com ele, o sangue jorrara para cima, como uma fonte, e duas das amigas tinham gritado. Em casa, enchera o lavatório enquanto a mãe chamava uma ambulância. Na ambulância, tinham‑lhe envolvido a mão num penso de gaze grosso como a coxa dela, e as várias camadas tinham‑se tornado vermelho‑escuras em menos de dois minutos. No hospital, ficara estendida numa maca branca, a ver as dobras do lençol formarem pequenos desfiladeiros que se enchiam de vermelho. E quando a maca ficara cheia, o sangue pingara para o chão e formara poças até que a mãe gritara suficientemente alto e durante o tempo suficiente para que um dos médicos das Urgências decidisse empurrá‑la para a cabeça da fila. Todo aquele sangue de uma mão.
E agora, todo aquele sangue de uma cabeça. Por Dave ter esmurrado a cara de outro ser humano, ter‑lhe batido com a cabeça no cimento. Histérico, tinha a certeza, de medo. Pôs as mãos enlu vadas debaixo do jacto de água e procurou mais uma vez rasgões ou buracos. Nada. Despejou detergente em cima da camisa e esfregou ‑a com palha‑d'aço, depois torceu‑a e repetiu todo o processo uma e outra vez até que a água que escorria da camisa quando ela a torcia deixou de ser rosada e passou a ser límpida. Fez o mesmo com os jeans, e entretanto Dave tinha saído do duche e estava sentado à mesa da cozinha, com uma toalha enrolada à volta da cintura, a fumar um dos compridos cigarros brancos que a mãe dela tinha deixado em cima do aparador e a beber uma cerveja, a observá‑la.
‑ Lixei tudo ‑ disse ele, em voz baixa.
Ela assentiu.
‑ Quer dizer, estás a ver? ‑ murmurou ele. ‑ Uma pessoa sai
à espera de uma coisa, uma noite de sábado, bom tempo, e então...
‑ Pôs‑se de pé e aproximou‑se dela, encostou‑se ao fogão, viu‑a torcer a perna esquerda dos jeans. ‑ Porque é que não usaste a máquina de lavar?
Celeste olhou para ele e reparou que o corte no peito estava já a tornar‑se uma linha esbranquiçada, depois do duche. Sentiu uma necessidade nervosa de rir. Engoliu em seco, para a conter, e disse:
Provas, amor.
Provas?
Bem, não sei de certeza, mas imagino que o sangue e... outras coisas têm mais possibilidades de agarrar‑se ao interior de uma máquina de lavar do que ao cano de um lava‑louça.
Ele deixou escapar um assobio baixo.
Provas.
Provas ‑ repetiu ela, cedendo agora a um sorriso, sentindo‑
‑se conspirativa, perigosa, parte de algo grande e importante.
Raios, boneca, és um génio ‑ disse ele.
Celeste acabou de torcer os jeans e fechou a água, fez uma pequena vénia.
Quatro da manhã, e sentia‑se mais acordada do que em qualquer outra ocasião naqueles últimos anos. Acordada do género manhã‑de‑‑Natal‑quando‑se‑tem‑oito‑anos. O sangue dela era pura cafeína.
Uma pessoa passava a vida inteira a desejar uma coisa como aquela. Dizia a si mesma que não, claro, mas passava. Estar envolvida num drama. E não o drama das contas por pagar ou mesquinhas discussões matrimoniais. Não. Aquilo era a vida real, mas ainda maior do que a vida real. Era hiper‑real. Era possível que o marido tivesse morto um homem mau. E se esse homem mau estivesse mesmo morto, a Polícia ia querer saber quem o matara. E se a pista os levasse até ali, até Dave, iam precisar de provas.
Estava a imaginá‑los sentados à mesa da cozinha, de blocos de notas abertos, a cheirar a café e aos bares da noite anterior, a fazer‑‑lhes perguntas, a ela e a Dave. Seriam delicados, mas assustadores. E ela e Dave seriam delicados, e impávidos.
Porque, no fim, tudo se resumia a provas. E ela acabava de lavar as provas no lava‑louça da cozinha e mandara‑as pelo cano até aos escuros esgotos. Quando amanhecesse, havia de tirar o sifão por baixo do lava‑louça e enchê‑lo de lixívia, e então voltaria a pô‑lo no seu lugar. Ia meter a camisa e os jeans num saco de lixo e esconder o saco até terça‑feira de manhã, e então atirá‑lo para a parte de trás do camião, onde seria esmagado e mastigado e compactado juntamente com ovos podres e frango estragado e pão bolorento. Faria tudo isto e sentir‑se‑ia maior, melhor do que era.
Faz uma pessoa sentir‑se só ‑ disse Dave
O quê?
Fazer mal a alguém ‑ murmurou ele.
Mas tu foste obrigado.
Ele assentiu. Parecia cinzento, na semipenumbra da cozinha. Parecia ainda mais novo, como que acabado de sair do ventre da mãe, com a boca muito aberta para respirar.
‑ Eu sei, pois foi. Mas, seja como for, faz‑nos sentir sós. Faz‑
‑nos sentir...
Ela acariciou‑lhe a face, e a maçã‑de‑adão dele subiu e desceu quando engoliu em seco.
‑ Estranhos ‑ disse.
Cortinas Cor de Laranja
seis da manhã de domingo, quatro horas e meia antes da primeira comunhão da sua filha Nadine, Jimmy Marcus recebeu um telefonema de Pete Gilibiowski, da loja, a dizer‑lhe que estava à brocha.
À brocha? ‑ Jimmy sentou‑se na cama e olhou para o relógio. ‑ Poça, Pete, são seis da manhã. Se tu e a Katie já estão à brocha às seis da manhã, como é que vai ser às oito, quando começar a aparecer a primeira malta das missas?
O problema é esse, Jim. A Katie não veio.
A Katie o quê? ‑Jimmy afastou as mantas e levantou‑se da
cama.
Não veio. Devia estar aqui às cinco e meia, certo? Tenho o
tipo dos donuts a tocar a buzina nas traseiras, e não tenho uma pinga de café feito porque...
Uh‑uh ‑ disse Jimmy, avançando pelo corredor em direcção
ao quarto de Katie, sentindo nos pés as correntes de ar frio da casa,
naquela altura em que as madrugadas de Maio traziam ainda con
sigo a ferroada das tardes de Março.
... um bando de gajos da construção civil, bêbados como a
merda e carregados de anfetaminas, apareceu aqui às cinco e meia
e limpou o que havia. E cagaram isto tudo. Quanto é que pagas
àqueles miúdos para trabalharem ao sábado à noite, Jim?
Jimmy voltou a dizer «Uh‑uh» e abriu a porta do quarto de Katie, quase sem bater. A cama estava vazia e, pior do que isso, feita, o que significava que ela não tinha dormido em casa.
‑ Porque ou tens de aumentá‑los, ou correr com esses inúteis
daqui para fora ‑ disse Pete. ‑ Tenho uma hora extra de trabalho preparatório antes que possa... Como vai, Mrs. Carmody? O cafezinho está a fazer, já não demora nada.
Vou para aí ‑ anunciou Jimmy.
Além disso, tenho os jornais de domingo ainda amarrados,
mais os cadernos para intercalar, isto está uma porra...
‑ Já disse que vou para aí.
‑ Oh. Palavra, Jim? Obrigado.
Pete? Telefona ao Sal, vê se ele pode entrar às oito e meia em vez de às dez.
Está bem.
Jimmy ouviu uma buzina a tocar insistentemente do outro lado da linha.
‑ E Pete, pelo amor de Deus, vê se abres a porta ao puto da
Yser, está bem? Ele não vai ficar todo o dia à espera com o raio dos donuts.
Jimmy desligou e voltou ao quarto. Annabeth estava sentada na cama, destapada, a bocejar.
‑ A loja? ‑ perguntou, arrastando as palavras com um novo longo bocejo.
Ele assentiu.
A Katie não apareceu.
Hoje? No dia da primeira comunhão da Nadine, ela não apareceu para trabalhar? E se também não aparece na igreja?
Tenho a certeza de que vai aparecer.
Não sei, Jimmy. Se ontem à noite se embebedou de tal maneira que não apareceu na loja, não sei...
Jimmy encolheu os ombros. Não valia a pena discutir com Annabeth quando se tratava de Katie. Annabeth tinha apenas duas atitudes no que respeitava à enteada: irritada e gélida, ou deliciada por serem as melhores amigas do mundo. Não havia meio‑termo, e Jimmy sabia ‑ com uma pequena pontada de culpa ‑ que grande parte da confusão derivava do facto de Annabeth ter entrado na imagem quando Katie tinha sete anos, mal começava a conhecer o pai e ainda não se refizera da perda da mãe. Katie mostrara‑se aberta e francamente grata por ter uma presença feminina no árido apartamento que partilhava com o pai. Mas também ficara muito magoada pela morte da mãe ‑ senão irreparavelmente, pelo menos muito profundamente, Jimmy bem o sabia ‑ e sempre que essa perda vinha à superfície e lhe rasgava as paredes do coração, ao longo dos anos, quem pagava era Annabeth, que, como mãe, nunca estivera à altura de tudo o que o fantasma de Marita podia ou devia ter sido.
Pelo amor de Deus, Jimmy ‑ disse Annabeth, enquanto ele
enfiava um camisolão por cima da T‑shirt com que dormira e procurava os jeans. ‑ Não vais para a loja, pois não?
Só uma hora. ‑Jimmy encontrou os jeans enrolados à volta
de um pé da cama. ‑ Duas, no máximo. O Sal ia substituir a Katie
às dez, de todos os modos. O Pete vai telefonar‑lhe, a pedir‑lhe para entrar mais cedo.
‑ O Sal tem setenta e não sei quantos anos.
‑ Exactamente. Achas que vai estar a dormir? O mais certo
é a bexiga tê‑lo acordado às quatro e ele estar a ver televisão desde essa hora.
‑ Caca. ‑ Annabeth afastou completamente os lençóis e saiu
da cama. ‑ Merda para a Katie. Será que ela também vai lixar este dia?
Jimmy sentiu o pescoço a arder.
‑ Que outros dias é que ela lixou, ultimamente?
Annabeth mostrou‑lhe as costas da mão enquanto chegava
à porta da casa de banho.
‑ Sabes ao menos onde é que possa estar?
‑ Em casa da Diane ou da Eve ‑ respondeu Jimmy, ainda preso
àquele gesto de desprezo que ela fizera com a mão por cima do
ombro. Annabeth... o grande amor da sua vida, sem discussão...
raios, não fazia ideia de como por vezes conseguia ser fria, não imaginava sequer (e isto era comum a toda a família Savage) o efeito
corrosivo que os seus humores ou momentos negativos podiam ter
nos outros. ‑ Talvez com um namorado.
Ah, sim? Com quem é que ela anda agora? ‑ Annabeth abriu
o duche e recuou um pouco, para dar‑lhe tempo a aquecer.
Julguei que soubesses melhor do que eu.
Annabeth procurou a pasta de dentes no armário dos medicamentos, abanando a cabeça.
‑ Deixou de andar com o Pequeno César em Novembro. Por
mim, já foi suficientemente bom.
Jimmy, que estava a calçar os sapatos, sorriu. Annabeth chamava sempre «Pequeno César» a Bobby O'Donnell, a menos que lhe chamasse qualquer outra coisa muito pior, e não apenas por ele ser um pretendente a gangster com um sorriso frio, mas porque era baixinho e gorducho como Edward G. Robinson. Tinham sido uns meses de grande tensão, quando Katie começara a andar com ele, no Verão anterior, e os irmãos Savage tinham dito a Jimmy que tratavam da saúde ao sacaninha, se fosse preciso, e Jimmy ficara sem saber muito bem se a proposta advinha de uma repulsa moral por um merdas daqueles andar com a sobrinha querida ou do facto de Bobby CDonnell começar a fazer‑lhes excessiva concorrência.
Finalmente, fora Katie a acabar com o namoro, e, tirando montes de telefonemas às três da manhã e uma brincadeira que quase dera para o torto quando, por alturas do Natal, Bobby e Roman Fallow lhes tinham aparecido à porta, a sequela do rompimento decorrera sem problemas de maior.
Jimmy até achava divertida a aversão de Annabeth a Bobby CDonnell, porque por vezes perguntava a si mesmo, meio a sério, se aquele ódio se deveria não só ao facto de Bobby se parecer com Edward G. e andar a dormir com a enteada, mas também de ser um criminoso de meia‑tigela, por oposição aos profissionais que assumia que os irmãos eram e que o marido fora, sabia‑o sem margem para dúvidas, durante os anos que tinham precedido a morte de Marita.
Fazia catorze anos que Marita morrera, quando Jimmy estava a cumprir uma pena de dois na Deer Island House of Correction, em Winthrop. Um sábado, durante a hora da visita, com a pequena Katie, na altura uma miúda de cinco anos, a contorcer‑se‑lhe no colo, Marita dissera a Jimmy que um sinal que tinha no braço começara a escurecer e que ia falar com um médico da clínica comunitária. Para jogar pelo seguro, dissera. Quatro sábados mais tarde, estava a fazer químio. Seis meses depois de lhe ter falado do sinal, estava morta, e, ao longo de uma sucessão de sábados, Jimmy fora obrigado a ver o corpo da mulher transformar‑se em giz, sentado do outro lado de uma escura mesa de madeira marcada por queimadelas de cigarros, por manchas de suor e de esperma e por mais de um século de tretas e lamentos de condenados. No último mês, Marita estivera demasiado doente para ir vê‑lo, demasiado fraca para escrever, e Jimmy tivera de contentar‑se com os telefonemas durante os quais ela estava exausta ou drogada ou ambas as coisas. Geralmente, ambas as coisas.
‑ Sabes com o que ando sempre a sonhar? ‑ murmurara certa vez.
Com o quê, querida?
Cortinas cor de laranja. Grandes e grossas cortinas cor de
laranja a... ‑ dera um estalo com os lábios e Jimmy ouvira‑a beber
água ‑...a drapejar ao vento, penduradas de umas cordas muito
altas, Jimmy. Só a drapejar. Nunca fazem mais nada. A drapejar,
a drapejar. Centenas e centenas delas, num campo muito, muito
grande. A drapejar...
Ele ficara à espera de mais, e não queria que Marita adormecesse a meio da conversa, como já tinha acontecido várias vezes, de modo que perguntara:
Como está a Katie?
‑Ha?
Como está a Katie, querida?
A tua mãe toma conta de nós. Está triste.
Quem? A minha mãe ou a Katie?
As duas. Olha, Jimmy, tenho de ir. Náuseas. Cansada.
OK, querida.
Amo‑te.
Também eu te amo. *|
‑Jimmy, nunca tivemos cortinas cor de laranja, pois não?
‑Não.
Estranho ‑ dissera ela, e desligara.
Fora a última coisa que a ouvira dizer: Estranho.
Sim, era estranho. Um sinal que uma pessoa tinha no braço desde quando estava deitada num berço a olhar para um móbil de cartão punha‑se de repente mais escuro, e vinte e quatro semanas mais tarde, quase dois anos inteiros desde a última vez que essa pessoa estivera na cama com o marido e enrolara as pernas à volta das dele, era metida numa caixa e enterrada, com o marido a ver a cinquenta metros de distância, vigiado por dois guardas armados e com grilhetas nos pulsos e nos tornozelos.
Jimmy saíra da prisão dois meses mais tarde e ficara ali de pé na cozinha, com as mesmas roupas com que saíra, e sorrira àquela criança desconhecida. Ele talvez recordasse os quatro primeiros anos dela, mas ela não. Lembrava‑se dos últimos dois, talvez fragmentos dispersos do homem que ele fora naquela casa antes de só a deixarem vê‑lo aos sábados, sentado do outro lado de uma velha mesa de madeira, num lugar que cheirava mal, construído no local de um antigo e assombrado cemitério índio, onde o vento chicoteava e as paredes pingavam e os tectos eram demasiado baixos. Ali de pé na cozinha, a vê‑la observá‑lo, Jimmy sentira‑se inútil como em nenhum outro momento da sua vida. Nunca se sentira nem metade sozinho ou assustado como quando se agachara junto de Katie e tomara nas suas as mãozinhas dela e os vira a ambos com os olhos da imaginação, como se estivesse a flutuar junto ao tecto. E o ele que flutuava junto ao tecto pensara: pá, tenho pena daqueles dois. Desconhecidos numa feia cozinha, a avaliarem‑se mutuamente, a tentar não se odiarem porque ela morrera e os deixara amarrados um ao outro e incapazes de saber que diabo iam fazer a seguir.
Aquela filha ‑ aquela criatura, que vivia e respirava, sob tantos aspectos só parcialmente formada ‑ dependia agora dele, quer qualquer dos dois gostasse ou não.
‑ Ela está a ver‑nos do céu e a sorrir ‑ dissera Jimmy a Katie.
‑ Está orgulhosa de nós. Muito orgulhosa.
‑ Tens de voltar para aquele lugar? ‑ perguntara Katie.
Não. Nunca mais.
Vais para outro sítio qualquer?
Naquele instante, Jimmy teria de boa vontade cumprido mais seis anos num buraco como Deer Island, ou num sítio ainda pior, de preferência a ter de enfrentar vinte e quatro horas naquela cozinha com aquela filha‑estranha, aquele futuro desconhecido e assustador, aquela rolha ‑ disso não tinha a mínima dúvida ‑ ao que restava da sua vida como jovem.
Nem pensar ‑ dissera. ‑ Vou ficar contigo.
Tenho fome.
E fora então que aquilo o atingira verdadeiramente ‑ Oh, meu Deus, vou ter de dar de comer a esta rapariguinha sempre que ela tiver fome. Pelo resto das nossas vidas. Jesus Cristo.
‑ Muito bem ‑ dissera, sentindo o sorriso tremer‑lhe na cara. Vamos comer.
Jimmy chegou à Cottage Market, a loja de esquina de que era proprietário, às seis e meia, e encarregou‑se da caixa e da máquina do totoloto enquanto Pete guarnecia o balcão do café com os do‑nuts da Yser Gaswami's Dunkin Donuts, na Kilmer, e os pastéis, can‑nolis e pãezinhos recheados fornecidos pela padaria de Tony Buca. Nas pausas, transferia o café das máquinas guardadas nas traseiras para as grandes garrafas‑termos colocadas em cima do balcão e abria os pacotes de Sunday Globes, Heralds e New York Times. Intercalou as circulares e os cadernos de banda desenhada e em seguida arrumou‑os em cuidadosas pilhas à frente das prateleiras dos doces, por baixo da caixa registadora.
O Sal disse a que horas vinha?
O mais cedo que consegue é nove e meia. O carro deu o
berro, de modo que vai ter de vir nos transportes públicos. São dois
comboios e um autocarro, e ele disse que ainda nem sequer estava vestido.
Merda.
Por volta das sete e meia, enfrentaram uma mini‑hora de ponta do pessoal que deixava os turnos da noite ‑ polícias, sobretudo, do D‑9, algumas enfermeiras do Saint Regina's, e algumas «trabalhadoras» que funcionavam nos clubes ilegais do outro lado de Bu‑ckingham Avenue, nos Flats e em Rome Basin. Todos eles estavam cansados, mas também simpáticos e animados, emanando uma aura de intenso alívio, como se acabassem de sair juntos do mesmo campo de batalha, cobertos de lama, ensanguentados, mas de pé e ilesos.
Durante os cinco minutos de intervalo antes de o pessoal das primeiras missas se lançar ao assalto dos portões, Jimmy telefonou a Drew Pigeon e perguntou‑lhe se tinha visto Katie.
Sim, acho que está cá em casa ‑ respondeu Drew.
Ah, sim? ‑Jimmy sentiu a nota de esperança na sua própria
voz e só então percebeu que estivera mais preocupado do que permitira a si mesmo admitir.
Acho que sim. Deixa‑me ir verificar.
Agradecia‑te, Drew.
Ouviu os passos pesados de Drew afastarem‑se pelo soalho de madeira enquanto pagava dois bilhetes de raspadinha à Velha Senhora Harmon, esforçando‑se por disfarçar as lágrimas que o duro assalto do perfume da velhota lhe fizera subir aos olhos. Ouviu Drew voltar para junto do telefone e sentiu uma leve palpitação no peito enquanto entregava à Velha Senhora Harmon os seus quinze dólares e lhe acenava um adeus.
Jimmy?
Sim, Drew.
Lamento. Foi a Diane Cestra que passou cá a noite. Está a
dormir no chão do quarto do Eve, mas nada da Katie.
A palpitação no peito de Jimmy parou bruscamente, como se tivesse sido esmagada por uma tenaz.
Eh, não há problema.
A Eve diz que a Katie as deixou por volta da uma. Não disse
para onde ia.
Tudo bem, pá. ‑ Jimmy pôs uma falsa despreocupação no
tom. ‑ Hei‑de encontrá‑la.
Andará com alguém?
Uma rapariga de dezanove anos, Drew? Quem é que consegue contá‑los?
E bem verdade ‑ disse Drew, com um bocejo. ‑ E a Eve,
Jimmy? Com todas as chamadas que recebe de tipos diferentes, juro
que precisaria de ter uma lista junto do telefone para não os baralhar.
Jimmy forçou uma gargalhada.
Eh, mais uma vez obrigado, Drew.
Sempre às ordens, Jimmy. Cuida‑te.
Jimmy desligou e olhou para o teclado da caixa registadora, como se ele pudesse dizer‑lhe alguma coisa. Não era a primeira vez que Katie passava a noite fora. Raios, não era sequer a décima. E também não era a primeira vez que faltava ao trabalho, mas, em ambos os casos, geralmente telefonava. No entanto, se tivesse encontrado um tipo com ares de estrela de cinema e conversa fiada suficiente... Jimmy não estava tão longe dos seus próprios dezanove anos que não se lembrasse de como era. E embora nunca desse entender a Katie que o consentia, não conseguia ser hipócrita ao ponto de, no fundo do coração, a condenar.
A sineta suspensa de uma fita por cima da porta tilintou e Jimm ergueu os olhos e viu o primeiro grupo de cabelos‑azuis da malt do rosário e da mantilha entrar pela loja dentro, tagarelando a res peito da frescura da manhã, da prédica do padre e do lixo nas ruas
Pete espetou a cabeça por detrás do balcão das charcutarias esfregou as mãos com a toalha que estivera a usar para limpar a mesa de preparação. Atirou uma caixa cheia de luvas cirúrgicas para cima do balcão e foi ocupar o seu posto atrás da segunda caixa registadora. Inclinou‑se para Jimmy e disse, «Bem‑vindo ao Inferno», o < segundo grupo de beatos entrou colado aos calcanhares do pri meiro.
Havia quase dois anos que Jimmy não fazia uma manhã de domingo, e quase esquecera o pandemónio em que aquilo podia tornar‑se. Pete tinha razão. As fanáticas de cabelos‑azuis, que enchiam a missa das sete em Saint Cecilia's, enquanto as pessoas normais es tavam a dormir, levaram a sua bíblica fúria consumista para a loj de Jimmy e dizimaram as bandejas de bolos e donuts, esgotaram < café, deixaram vazias as caixas frigoríficas dos lacticínios e reduziram a meio os montes de jornais. Chocaram com os expositores espezinharam as embalagens de batata frita e de amendoins caída no chão. Pediram, aos gritos, bolos e pastéis, boletins do totoloto e da raspadinha, Pall Malls e Chesterfields, tudo isto com uma agressiva indiferença pelas respectivas posições na fila. Então, com un mar de azul, branco e carecas brilhantes a agitar‑se atrás delas, atardaram‑se ao balcão, a inquirir sobre a saúde das famílias de Jimm e de Pete, enquanto pescavam nos porta‑moedas a quantia exacta até ao último cêntimo cheio de cotão e demoraram calmas eterni dades a pegar nos sacos de compras e afastarem‑se para dar lugar à turba ululante que esperava.
Jimmy não via nada que se assemelhasse àquele tipo de caos desde a última vez que fora convidado para um casamento irlandês com bar aberto, e quando finalmente olhou para o relógio, às oito e quarenta e cinco, no momento em que o último da horda saía para a rua, sentia o suor empapar‑lhe a T‑shirt por baixo da camisola
Olhou para a bomba que explodira no meio da loja e depois para Pete, e sentiu em relação a ele uma súbita vaga de fraterna afinidade que o fez pensar no grupo de polícias, enfermeiras e pegas das sete e um quarto, como se ele e Pete tivessem ascendido a um novo nível de amizade pelo simples facto de terem sobrevivido à explosão de assanhadas gerontes das oito horas de domingo. Pete dirigiu‑lhe um sorriso cansado.
‑ Agora acalma durante cerca de meia hora. Importas‑te que
vá lá fora fumar um cigarro?
Jimmy riu‑se, sentindo‑se renovado e cheio de um súbito e estranho orgulho naquela pequena loja que soubera transformar numa instituição do bairro.
‑ Porra, Pete, fuma o maço inteiro.
Limpou as coxias, reabasteceu as caixas de lacticínios, e estava a fazer o mesmo às bandejas de donuts e pastéis quando a sineta tilintou e, ao erguer os olhos, viu Brendan Harris e o irmão mais novo, Ray, o Silencioso, passarem pelo balcão e dirigirem‑se ao canto do pão, dos detergentes e dos biscoitos. Jimmy atarefou‑se, usando a luva de celofane, a dispor nas bandejas os pastéis e os donuts, esperando não ter dado a Pete a impressão de que podia tirar umas miniférias e que ele voltasse depressa.
Olhou disfarçadamente e reparou que Brendan espreitava por cima dos expositores para as caixas registadoras, como se estivesse a planear um assalto ou à procura de alguém. Por um irracional segundo, Jimmy perguntou a si mesmo se iria ter de despedir Pete por traficar dentro da loja. Mas acalmou no mesmo instante, recordando que Pete o olhara a direito nos olhos e lhe jurara que nunca poria em risco o ganha‑pão de Jimmy vendendo erva dentro do local de trabalho. Jimmy soubera que ele estava a dizer a verdade porque, a menos que se fosse o Grande Feiticeiro de Todos os Mentirosos, era praticamente impossível mentir‑lhe quando ele olhava alguém de frente e lhe fazia uma pergunta directa; conhecia todos os tiques e movimentos de olhos, por mínimos que fossem, que traíam uma mentira. Uma coisa que aprendera a observar o pai fazer as suas promessas de bêbedo que nunca cumpria ‑ quem via o animal vezes suficientes, reconhecia‑o sempre que ele decidia reaparecer à superfície. Por isso lembrou‑se de Pete o ter olhado nos olhos e jurado que nunca trancaria dentro da loja, e soubera que era verdade.
Portanto, de que andaria Brendan à procura? Seria possível que fosse suficientemente estúpido para estar a pensar num assalto Jimmy conhecera o pai de Brendan, Just Ray Harris, de modo que sabia que corria nos genes da família um considerável naco de es tupidez, mas ninguém seria cretino ao ponto de tentar roubar uma loja em East Bucky, na linha divisória Flats/Point, levando a rebo que o irmão de treze anos, ainda por cima mudo. Além disso, se alguém na família tinha alguma cabeça, Jimmy teria relutantemen te de admiti‑lo, era Brendan. Um rapaz tímido, mas bem‑parecido como o raio, e Jimmy aprendera havia muito a diferença entre alguém que não fala por não conhecer o significado de muitas palavras e alguém que se deixa ficar dentro de si mesmo, a observar a escutar, a absorver tudo. Brendan tinha essa qualidade; sentia‑se que compreendia as pessoas talvez um pouco melhor do que gos taria, e que esse conhecimento o tornava nervoso.
Voltou‑se para Jimmy e os olhos de ambos encontraram‑se, e o rapaz sorriu, um sorriso nervoso, amigável, exagerado, como que a compensar inconscientemente por estar a pensar noutra coisa.
Posso ajudar, Brendan? ‑ perguntou Jimmy.
Hum, não, Mr. Marcus. Vim só buscar uma, hã, uma lata daquele chá irlandês de que a minha mãe gosta.
Barry's?
Sim, sim, é isso mesmo.
Na coxia ao lado.
Oh. Obrigado.
Jimmy voltou para junto das caixas no instante em que Pet voltava, trazendo consigo o cheiro bafiento de um cigarro fumado à pressa.
A que horas é que o Sal vem? ‑ perguntou Jimmy.
Deve estar a chegar. ‑ Pete encostou‑se ao expositor de cigarros, por baixo da prateleira com os boletins da raspadinha, e suspirou. ‑ Ele é lento, Jimmy.
O Sal? ‑Jimmy estava a ver Bendan e o irmão comunicarem
por linguagem gestual, no meio da coxia central. Brendan tinha
uma lata de Barry's entalada debaixo do braço. ‑ O homem vai
quase nos oitenta, pá.
Eu sei porque é que ele é lento ‑ respondeu Pete. ‑ Estou só
a dizer que é. Imagina que era ele e eu às oito horas, em vez de nós os dois? Estávamos bem tramados.
É por isso que o ponho nos turnos mais calmos. Seja como
for, não era suposto ser eu e tu ou tu e o Sal esta manhã. Era suposto seres tu e a Katie.
Brendan e Ray, o Silencioso, tinham chegado junto do balcão, e Jimmy notou uma ligeira agitação no rosto de Brendan quando disse o nome da filha.
Pete afastou‑se do expositor dos cigarros e perguntou:
É tudo, Brendan?
A.. .a.. .a... ‑ gaguejou Brendan, e então olhou para o irmão.
‑ Acho que sim. Deixe‑me perguntar ao Ray.
As mãos recomeçaram a voar, fazendo gestos tão rápidos que teria sido difícil a Jimmy acompanhar o diálogo mesmo que estivessem a emitir qualquer som. O rosto de Ray, no entanto, era tão morto e pétreo como as mãos eram eléctricas e vivas. Sempre fora um miúdo esquisito, na opinião de Jimmy, mais parecido com a mãe do que com o pai, com um vazio a viver‑lhe na cara como um gesto de desafio. Falara no assunto a Annabeth, certa vez, e ela acusara‑o de ser insensível aos problemas dos deficientes, mas Jimmy não achava que fosse isso ‑ havia qualquer coisa no rosto morto e na boca silenciosa de Ray que dava vontade de arrancar à martelada.
Acabaram de agitar as mãos de um lado para o outro e Brendan inclinou‑se para o expositor dos doces e pegou numa tablete de Coleman Chew‑Chew, fazendo Jimmy pensar outra vez no pai, no cheiro que se entranhara nele durante aquele ano em que trabalhara na fábrica de chocolates.
E um Globe ‑ disse Brendan.
Certo ‑ assentiu Pete, martelando as teclas da registadora.
‑ Hum, pensei que a Katie trabalhava aos domingos ‑ comentou Brendan, estendendo a Pete uma nota de dez dólares.
Pete arqueou uma sobrancelha, premiu o botão da registadora e a gaveta abriu‑se contra a barriga dele.
‑ Andas a arrastar a asa à filha do meu patrão, Brendan?
Brendan não olhou para Jimmy.
Não, não, não. ‑ Riu‑se, mas o riso morreu‑lhe imediatamente
nos lábios. ‑ Estava a estranhar, porque geralmente costumo vê‑la aqui.
A irmã mais nova faz hoje a primeira comunhão ‑ disse Jimm}
Oh, a Nadine? ‑ Brendan olhou para Jimmy, os olhos demasiado abertos, o sorriso demasiado rasgado.
A Nadine ‑ confirmou Jimmy, achando curioso o modo como o nome ocorrera tão facilmente ao rapaz. ‑ Ela mesma.
Bem, dê‑lhe os parabéns, por mim e pelo Ray.
Serão entregues, Brendan.
Brendan baixou os olhos para o balcão e assentiu várias vezes. enquanto Pete metia a lata de chá e a tablete num saco de papel
‑ Bom, pois, OK. Gostei de vê‑los. Vamos, Ray.
Ray não estava a olhar para o irmão quando ele falou, mesmo assim seguiu‑o, e Jimmy recordou mais uma vez uma coisa que as pessoas tinham tendência para esquecer: Ray não era surdo era apenas mudo. Poucas pessoas do bairro, e até doutros lugares Jimmy tinha a certeza, tinham alguma vez conhecido alguém como ele.
Eh, Jimmy ‑ disse Pete, depois de os dois irmãos terem
saído ‑, posso perguntar‑te uma coisa?
Dispara.
‑ Porque é que odeias tanto o miúdo?
Jimmy encolheu os ombros.
Não sei se é ódio, pá. É que... Ora vamos, não me digas que
não achas o sacana do puto mudo um bocado arrepiante?
Oh, esse ‑ disse Pete. ‑ Sim, é um merdinhas esquisito, sempre a olhar como se estivesse a ver na nossa cara qualquer coisa que quisesse arrancar. Mas não estava a referir‑me a ele. Estava a falar
do Brendan. Quer dizer, parece ser bom rapaz. Tímido mas decente
estás a ver? Já reparaste que usa sempre aquela linguagem de sinais com o irmão apesar de não ser preciso? Como que para o miúdo não sentir que está sozinho. É bonito. Mas, Jimmy, pá, olhas para ele como se estivesses a dois passos de arrancar‑lhe o nariz e obrigá‑lo a comê‑lo.
Não.
Sim.
A sério?
Palavra.
Jimmy olhou por cima da máquina do totoloto, através da janela suja de pó, para Buckingham Avenue, a estender‑se cinzenta e húmida sob o sol matinal. Sentia o maldito sorriso tímido de Brendan Harris no sangue, como uma comichão.
‑Jimmy? Estava a brincar, pá. Não queria...
‑ Aí vem o Sal ‑ disse Jimmy, e não desviou os olhos da janela, de costas voltadas para Pete, enquanto via o velho avançar tro‑pegamente pelo passeio em direcção a eles. ‑Já não era sem tempo.
Porque Está Partido
O domingo de Sean Devine
o seu primeiro dia de regresso ao trabalho depois de uma semana de suspensão ‑ começou quando foi arrancado a um sonho, extirpado pelo bip‑bip do despertador seguido pela súbita compreensão, como um bebé expulso de
útero materno, de que nunca mais lhe seria permitido lá regressar
Não recordava nada de muito específico ‑ apenas alguns pormenores, desconexos ‑ e teve a sensação de que nunca houvera um grande fluxo narrativo, para começar. Mesmo assim, a textura cru;
daquele sonho cravara‑se‑lhe na nuca como pontas de navalha
deixando‑o enervado e irritadiço pelo resto da manhã. ;
A mulher, Lauren, aparecera no sonho, e Sean ainda sentia o cheiro da pele dela. Tinha os cabelos cor de areia molhada despenteados, mais escuros e mais compridos do que na vida real, e usava um fato de banho branco, húmido. Estava muito bronzeada e uma fina camada de areia polvilhava‑lhe os tornozelos e os pés nus. Cheirava a mar e a sol, e sentara‑se no colo de Sean e beijara‑lhe o nariz fizera‑lhe cócegas na garganta com os dedos compridos. Estavam na varanda de uma casa de praia, e Sean ouvia a rebentação das ondas mas não via qualquer oceano. Onde deveria estar o oceano, estava um ecrã de televisão apagado, do tamanho de um campo de futebol. Quando olhava para ele, Sean via apenas o seu próprio reflexo, não o de Lauren, como se estivesse a abraçar o ar.
E, todavia, era carne o que tinha entre as mãos, carne quente,
No instante seguinte, estava de pé no telhado da casa, e a carne
de Lauren fora substituída pelo metal liso de um cata‑vento. Agarrou‑o, e lá em baixo, na base da casa, escancarou‑se um buraco enorme no fundo do qual estava encalhado um barco à vela, de quilha voltada para cima. E então estava nu na cama com uma mulher que nunca tinha visto, a apalpá‑la, a sentir, numa espécie de lógica onírica, que Lauren estava noutra divisão da casa, a vê‑los num vídeo, e uma gaivota entrou pela janela, fazendo cair sobre a cama uma chuva de lascas de vidro que pareciam cubos de gelo, e Sean, outra vez completamente vestido, estava de pé a olhar para ela.
A gaivota arquejou. A gaivota disse, «Dói‑me o pescoço», e Sean acordou antes de poder dizer, «É porque está partido.»
Acordou com o sonho a escorrer‑lhe, espesso, da caixa craniana, deixando o cotão e as borras presas à parte de baixo das pálpebras e à camada superior da língua. Manteve os olhos fechados enquanto o bip‑bip do despertador continuava a soar, na esperança de que fosse apenas outro sonho, de que o bip‑bip soasse apenas na cabeça dele.
Acabou por abrir os olhos, com a sensação do corpo rijo da mulher desconhecida e do cheiro a mar na carne de Lauren ainda agarrada ao cérebro, e percebeu que não era um sonho, não era um filme, não era uma canção triste, triste.
Eram aqueles lençóis, aquele quarto e aquela cama. Era a lata de cerveja vazia no peitoril da janela, e aquele sol a bater‑lhe nos olhos e o bip‑bip do despertador a soar em cima da mesa‑de‑cabeceira. Era a torneira que continuava a pingar e que ele continuava a esquecer‑‑se de arranjar. Era a vida dele, tudo aquilo.
Desligou o despertador, mas não saiu logo da cama. Não queria levantar já a cabeça porque não queria saber se tinha uma ressaca. Se tinha uma ressaca, o primeiro dia de volta ao trabalho havia de parecer‑lhe duas vezes mais comprido, e o primeiro dia de trabalho depois de uma suspensão, com toda a merda que ia ter de engolir e todas as piadas que ia ter de ouvir, havia de parecer‑lhe longo como o caraças de qualquer maneira.
Ficou ali estendido a ouvir o bip‑bip que vinha da rua, o bip‑‑bip que vinha da merda dos vizinhos do lado que mantinham a televisão aos berros de manhã à noite, o bip‑bip da ventoinha de tecto, do microondas, dos detectores de fumo e o bip‑bip zumbido do frigorífico. Os computadores faziam bip‑bip, e os telemóveis e as agendas electrónicas faziam bip‑bip e a cozinha e a sala faziam bip‑bip e a rua lá em baixo e a esquadra e os apartamentos de Fe neuil Heights e dos East Bucky Flats faziam um bip‑bip‑bip que nunca parava.
Tudo agora fazia bip‑bip. Tudo era rápido e fluido e feito para andar. Toda a gente seguia em frente no mundo, avançando com ele, crescendo.
Quando porra começara aquilo a acontecer?
Era tudo o que queria saber, palavra. Quando fora que o ritmo acelerara, deixando‑o a olhar para as costas de toda a gente?
Fechou os olhos.
Quando Lauren partira.
Era essa a resposta.
Brendan Harris olhou para o telefone e desejou intensamemte que ele tocasse. Olhou para o relógio. Duas horas atrasada. Não era o que se pudesse chamar uma surpresa, uma vez que a pontualidade e Katie nunca se tinham tratado exactamente por tu, mas, raio ao menos hoje. Brendan só queria ir. E onde estava ela, se não estava no trabalho? O plano fora que Katie lhe telefonaria durante o seu turno no Cottage Market, assistiria à primeira comunhão da meia‑irmã e em seguida iria ter com ele. Mas não fora trabalhar E não lhe telefonara.
Não podia ligar‑lhe. Esse sempre fora o grande problema desde que tinham começado a andar juntos. Katie estava geralmente num de três lugares: em casa de Bobby O'Donnell nos primeiros tempos da sua relação com Brendan, no apartamento onde crescera, e Buckingham Avenue, com o pai, a madrasta e as duas meias irmãs ou no apartamento do andar de cima, onde viviam os malucos dos tios, dois dos quais, Nick e Vai, eram autênticas lendas em termos de psicose e incapacidade de controlar os impulsos. E depois havia o pai dela, Jimmy Marcus, que nutria por Brendan um ódio profundo, sem qualquer razão lógica que Brendan ou Katie conseguissem imaginar. O certo era que ‑ Katie fora bem clara a esse respeito ‑ ao longo dos anos o pai estabelecera um mandamento mantém‑te afastada dos Harris; se alguma vez trouxeres um cá a casa ponho‑te na rua.
Katie jurava que o pai era habitualmente um sujeito normal, mas certa noite dissera a Brendan, com as lágrimas a escorrerem para o peito dele:
‑ Fica louco quando se trata de ti. Completamente louco. Uma noite estava bêbedo, percebes? Quer dizer, completamente vidrado, e pôs‑se a falar a respeito da minha mãe, e de como ela me amava, e tudo isso, e então disse: «A merda dos Harris, Katie, são lixo.»
Lixo. O som da palavra ficara preso na garganta de Brendan como uma bola de expectoração.
«Mantém‑te longe deles. É a única coisa que te peço na vida,
Katie. Por favor.»
Nesse caso, porque foi que começaste a andar comigo? ‑ perguntara Brendan.
Ela rolara‑lhe nos braços e sorrira‑lhe tristemente.
‑ Não sabes?
A verdade era que Brendan não fazia a mínima ideia. Katie era Tudo. Uma Deusa. Brendan era... bem, Brendan.
‑ Não, não sei.
‑ Tu és bom.
‑Sou?
Ela assentira.
‑ Vejo‑te com o Ray, ou a tua mãe, ou com qualquer pessoa
na rua, e tu és bom, Brendan.
Há muitas pessoas boas.
Katie abanara a cabeça.
Há muitas pessoas simpáticas. Não é a mesma coisa.
E Brendan, pensando nisso, tivera de admitir que nunca em toda a sua vida conhecera alguém que não gostasse dele ‑ não no género concurso de popularidade, mas no género mais básico «Esse miúdo, o Harris, é bom rapaz.» Nunca tivera inimigos, não se envolvia numa luta desde a escola primária e não se lembrava da última vez que alguém lhe dirigira uma palavra dura. Talvez fosse por ele ser bom. E talvez, como Katie dizia, isso fosse raro. Ou talvez ele não fosse o género de pessoa que irrita os outros.
Bem, exceptuando o pai de Katie. Era um mistério. E não havia dúvidas quanto ao que ele sentia: era ódio puro.
Brendan sentira‑o, havia menos de meia hora, na loja de esquina de Mr. Marcus ‑ aquele ódio silencioso, enrolado, emanando do homem como uma infecção viral. Fizera‑o encolher‑se. Fizera‑o gaguejar. Não conseguira olhar para Ray durante todo o caminho de regresso a casa por causa da maneira como aquele ódio o fazia sentir‑se: sujo, com os cabelos cheios de lêndeas, os dentes cobertos de porcaria. E o facto de aquilo não fazer sentido ‑ Brendan nunca prejudicara Mr. Marcus fosse de que maneira fosse, que diabo, quase nem conhecia o homem ‑ não tornava as coisas mais fáceis. Brendan olhava para Jimmy Marcus e via um homem que nem sequer pararia para lhe mijar em cima se ele estivesse a arder.
Não podia ligar para Katie para os outros dois números porque não podia correr o risco de alguém do outro lado ter um identificador de chamadas e pôr‑se a perguntar que diabo quereria o odiado Brendan Harris à sua Katie. Estivera quase a fazê‑lo um milhão de vezes, mas a simples ideia de Mr. Marcus, ou Bobby O'Donnell, ou um daqueles psicopatas dos irmãos Savage atender a chamada era o bastante para fazê‑lo voltar a pôr o auscultador no descanso.
Brendan não sabia quem mais temer. Mr. Marcus era um sujeito normal, dono da loja de esquina onde fazia compras quase desde que se lembrava, mas havia qualquer coisa no homem ‑ mais do que o seu evidente ódio por ele ‑ que perturbava as pessoas, uma capacidade para qualquer coisa, Brendan não saberia dizer o quê, que fazia uma pessoa baixar a voz na presença dele e tentar não lhe enfrentar o olhar. Bobby O'Donnell era um desses tipos que ninguém sabia exactamente o que fazia para viver, mas de todos os modos as pessoas atravessavam a rua para evitar cruzar‑‑se com ele, e quanto aos irmãos Savage, estavam todo um sistema planetário afastados da maior parte das pessoas em termos de comportamento normal e aceitável. Os irmãos Savage, os mais lunáticos, os mais loucos, os mais tarados sacanas que alguma vez tinham vindo dos Flats, olhavam para as pessoas de uma maneira esquisita e tinham temperamentos tão susceptíveis que se poderia encher um bloco de notas do tamanho do Antigo Testamento com as coisas capazes de os enfurecer. O pai, um louco doentio por direito próprio, e a mãe, uma beata escanzelada, tinham‑nos posto neste mundo uns atrás dos outros, a intervalos de onze meses, como se tivessem uma linha de montagem de malucos à solta. Os irmãos tinham crescido amontoados e ranhosos e furiosos num quarto do tamanho de um rádio japonês junto aos carris do comboio aéreo que costumava atravessar os Flats, bloqueando a luz do Sol, até o terem deitado abaixo quando Brendan era um garoto. Os soalhos do apartamento inclinavam‑se acentuadamente para leste, e os comboios passavam a trovejar mesmo ao lado da janela dos irmãos vinte e uma horas em cada vinte e quatro, sete dias por semana, abanando com tanta força o velho prédio de três andares que a maior parte das noites os irmãos caíam da cama e acordavam empilhados em cima uns dos outros, acolhiam a manhã furiosos como ratazanas de cais e esmurravam‑se mutuamente para sair do monte e começar um novo dia.
Quando eram miúdos, não tinham individualidade para o mundo exterior. Eram apenas os Savage, uma alcateia, uma matilha, uma colecção de membros e sovacos e joelhos e cabelos emaranhados que parecia mover‑se no meio de uma nuvem de pó, como o Diabo da Tasmânia dos desenhos animados. Se uma pessoa via a nuvem de pó avançar na sua direcção, desviava‑se, na esperança de que encontrassem outro desgraçado qualquer para lixar antes de chegarem junto dela, ou então que se limitassem a rodopiar em frente, perdidos nas suas asquerosas psicoses.
Que diabo, antes de começar a namorar com Katie às escondidas, Brendan nem sequer sabia ao certo quantos eles eram, e tinha crescido nos Flats. Mas Katie explicara‑lhe: Nick era o mais velho, e desaparecera do bairro havia seis anos para cumprir uma pena de um mínimo de dez em Walpole; Vai, o segundo, era, segundo Katie, o melhor de todos; seguiam‑se Chuck, Kevin, Al (que as pessoas geralmente confundiam com Vai), Gerard, ele próprio acabado de sair de Walpole, e, finalmente, Scott, o benjamim e o preferido da mãe enquanto fora viva, o único que frequentara a universidade e o único que não vivia em casa num dos andares, o primeiro e o terceiro, que os irmãos tinham ocupado depois de aterrorizarem tão eficazmente os anteriores inquilinos que eles tinham fugido para outro estado.
‑ Eu sei que eles têm essa má reputação ‑ dissera Katie ‑, mas na verdade até são simpáticos. Bem, excepto o Scott. Desse é mais difícil gostar.
Scott, o «normal».
Brendan olhou para o relógio de pulso, e depois para o relógio na mesa‑de‑cabeceira, junto à cama. Olhou para o telefone.
Olhou para a cama, onde poucas noites antes adormecera a olhar para a parte de trás do pescoço de Katie, a contar os finos cabelos louros ali espalhados, o braço passado por cima da cintura de Katie, a mão pousada no macio ventre de Katie, o cheiro dos cabelos e do perfume de Katie e de uma ligeira transpiração a encher‑‑lhe as narinas.
Voltou a olhar para o telefone.
Toca, raios. Toca.
Foram dois miúdos que encontraram o carro. Ligaram para o 911 e o que falou ao telefone estava ofegante, apanhado por qualquer coisa que o ultrapassava enquanto as palavras lhe saíam da boca aos borbotões.
‑ Está aqui um carro cheio de sangue e, hã, a porta está aberta, e, hã...
O telefonista do 911 interrompeu‑o, para perguntar:
Qual é a localização do carro?
Nos Flats. Junto ao Pen Park. Eu e o meu amigo encontrámo‑lo.
Há um nome de rua?
Sydney Street ‑ disse o miúdo para o telefone. ‑ Está cheio
de sangue e a porta está aberta.
Como te chamas, filho?
Ele quer saber o nome dela ‑ disse o miúdo para o amigo. ‑
Chamou‑me «filho».
Está? ‑ interveio o telefonista. ‑ Perguntei como te chamas
tu. Qual é o teu nome?
‑ Vamos mas é cavar daqui, pá ‑ disse o miúdo. ‑ Boa sorte
O miúdo desligou e o telefonista verificou no visor do computador que tinha ligado de uma cabina pública na esquina da Kil‑mer com a Nauset, nos East Bucky Flats, a cerca de uma milha da entrada de Sidney Street para o Penitentiary Park. Transmitii a informação para as Operações, e as Operações enviaram um carro‑patrulha a Sydney Street. Um dos dois agentes ligou pouco depois a pedir mais unidades, um ou dois técnicos de laboratório e, ah, sim, talvez queiram mandar também alguém dos Homicídios, ou coisa assim. É só uma ideia.
Encontraram um corpo, Trinta e três. Escuto.
Hã, negativo, Operações.
Trinta e três, porquê o pedido de pessoal dos Homicídios se
não encontraram um corpo? Escuto.
Por causa do aspecto do carro, Operações. Tenho cá o pressentimento que vamos encontrar um mais tarde ou mais cedo.
Sean começou o seu dia de regresso ao trabalho estacionando na Crescent e contornando a pé as barreiras azuis no cruzamento com a Sydney. As barreiras tinham a insígnia do Departamento de Polícia de Boston, porque tinham sido eles os primeiros a chegar ao local, mas Sean calculou, pelo que ouvira no rádio durante o percurso até ali, que o caso acabaria por ir parar à Divisão de Homicídios da Polícia Estadual, a que ele pertencia.
O carro, segundo sabia, fora encontrado em Sydney, que era jurisdição municipal, mas o rasto de sangue conduzia ao Penitientary Park, o qual, fazendo parte dos terrenos da reserva, caía sob a alçada estadual. Sean desceu a pé a Crescent, ao longo da orla do parque, e a primeira coisa em que reparou foi na carrinha do Serviço de Investigação Pericial estacionada a meio do quarteirão.
Ao aproximar‑se, viu Whitey Powers, o sargento da sua secção, de pé a poucos metros de um carro que tinha a porta do lado do condutor completamente aberta. Souza e Connolly, que tinham sido promovidos aos Homicídios apenas na semana anterior, procuravam entre a erva diante da entrada do parque, de copos de café na mão, e havia dois carros‑patrulhas e a carrinha do Serviço de Investigação Pericial estacionados na berma de cascalho. A equipa do SIP examinava o carro e lançava olhares assassinos a Souza e a Connoly, por andarem a espezinhar possíveis provas e por terem atirado para o chão as tampas dos copos de plástico.
‑ Eh, menino mal‑comportado. ‑ Whitey Powers arqueou as sobrancelhas, surpreendido. ‑Já te chamaram?
‑ É verdade ‑ respondeu Sean. ‑ Mas estou sem parceiro,
O Adolph está de baixa.
Whitey Powers assentiu com a cabeça.
‑ Tu levas uma rabecada e o inútil desse alemão adoece de repente. ‑ Passou um braço pelos ombros de Sean. ‑ Ficas comigo
rapaz. Enquanto durar o teu período de observação.
Era então assim que a coisa ia funcionar: Whitey a mantê‑lo debaixo de olho enquanto os chefões do departamento decidiam se ele correspondia ou não aos seus elevados padrões.
E até parecia que ia ser um fim‑de‑semana calmo ‑ continuou Whitey, voltando Sean na direcção do carro com a porta aberta. ‑ O condado inteiro ontem à noite, Sean? Mais sossegado do que
um gato morto. Tivemos um esfaqueamento em Parker Hill, outro
em Bromley Heath, e um puto da universidade levou uma sova com uma garrafa de cerveja, no Allston. Nenhum deles fatal, e todos dí
metropolitana. Ah, e houve o caso do vigário de Parker Hill, claro. Entrou pelo seu pé nas Urgências do MGH, com uma grande faca de trinchar espetada no ombro, e perguntou à enfermeira da recepção onde é que tinham uma máquina de Coca‑Cola naquela tasca
E ela disse‑lhe? ‑ perguntou Sean.
Whitey sorriu. Era, e sempre fora, um dos elementos mais brilhantes da Divisão de Homicídios da Polícia Estadual, e por isso sorria muito. Deviam tê‑lo chamado quando estava de folga, pois vestia umas calças de fato de treino e a camisa de hóquei do filho, tinha um boné de basquete enfiado ao contrário na cabeça e calçava apenas umas chinelas de tiras de borracha azul iridescente. Trazia o crachá dourado preso ao pescoço por um fio de nylon.
Gosto da camisa ‑ disse Sean, e Whitey dirigiu‑lhe outro sorriso preguiçoso no instante em que uma ave saía a voar do bosque e descrevia uma curva por cima deles, soltando um grito agudo que mordeu a espinha de Sean.
Raios, há meia hora estava estendido no meu sofá.
A ver desenhos animados?
Luta‑livre. ‑ Whitey apontou para as ervas e para o parque
que se estendia além delas. ‑ Calculo que vamos encontrá‑la algures para aqueles lados. Mas, sabes como é, ainda agora começámos a procurar, e o Friel quer que consideremos isto uma Pessoa Desaparecida até termos um corpo.
A ave voltou a passar, um pouco mais baixo, e desta vez o seu grito agudo, rouco, encontrou a base do cérebro de Sean e fincou‑‑se nele.
‑ Mas é nosso? ‑ perguntou Sean.
Whitey assentiu.
‑ A menos que a vítima tenha voltado para trás a correr e sido morta na rua.
Sean olhou para cima. A ave tinha uma cabeça grande e patas curtas dobradas por baixo de um ventre branco com uma risca cinzenta no meio. Não reconheceu a espécie, mas também não era grande fa da natureza.
O que é aquilo?
Um guarda‑rios listado ‑ respondeu Whitey.
O tanas.
Whitey ergueu uma mão. ‑Juro, pá.
‑ Vias muito O Reino Selvagem quando eras miúdo, não?
A ave voltou a saltar o seu grito rouco, e Sean teve vontade de dar‑lhe um tiro.
Queres dar uma vista de olhos ao carro? ‑ perguntou Whitey.
Disseste «ela» ‑ observou Sean, enquanto ambos se inclinavam para passar por baixo da fita amarela da Polícia e se dirigiam ao carro.
O SIP encontrou o livrete no porta‑luvas. Está registado em
nome de uma Katherine Marcus.
Merda ‑ disse Sean.
Conhece‑la?
Pode ser a filha de um tipo que conheço.
‑ São chegados?
Sean abanou a cabeça.
Não. Trocamos um aceno de cabeça quando nos encontramos por aí.
De certeza? ‑ Whitey estava a perguntar‑lhe se queria passar o caso, ali mesmo e naquele instante.
‑ Sim ‑ respondeu Sean. ‑ Tão certo como a merda.
Chegaram junto do carro e Whitey apontou para a porta aberta
no momento em que uma técnica do SIP saía a recuar lá de dentro e se espreguiçava, arqueando as costas com as mãos entrelaçadas e
esticadas para o céu.
‑ Não toquem em nada ‑ recomendou ela. ‑ Quem é que vai
tomar conta disto?
‑ Acho que sou eu ‑ respondeu Whitey. ‑ O parque é jurisdição estadual.
Mas o carro está em propriedade municipal.
Whitey apontou para as ervas.
Aquele sangue caiu em terrenos do Estado.
‑ Não sei ‑ disse a técnica, com um suspiro.
‑ Vem um adjunto do procurador a caminho ‑ informou Whitey. ‑ Já o chamámos. Até lá, é estadual.
Sean olhou para a zona de erva que conduzia ao parque e soube que, se encontrassem um corpo, era lá dentro que o encontrariam.
‑ O que é que temos?
A técnica bocejou.
‑ A porta estava aberta quando o encontrámos. A chave estava na ignição, os faróis acesos. Como de propósito, a bateria foi‑se abaixo dez segundos depois de termos chegado ao local.
Sean notou a mancha de sangue por cima do altifalante, na
porta do condutor. Parte dele pingara, preto e encrostado, para o próprio altifalante. Pôs‑se de cócoras e rodou o corpo, viu outra mancha de sangue no volante. Uma terceira mancha, mais comprida e mais larga, alastrava a partir dos bordos de um buraco de bala
que furava as costas do banco do condutor, mais ou menos à altura do ombro. Rodou novamente, de modo a poder olhar para lá. a porta aberta, para as ervas à esquerda do carro, depois esticou‑se
para ver o lado exterior da porta, reparou na amolgadela recent
Olhou para Whitey, e Whitey assentiu.
‑ O atacante estava provavelmente fora do carro. A Katie Marcus... se era ela que estava ao volante... bateu‑lhe com a porta. O sacana disparou uma vez, atingiu‑a, hã, não sei, no ombro, talvez
no braço? De todos os modos, a rapariga tenta fugir. ‑ Apontou para as ervas recentemente pisadas. ‑ Deixam um rasto de ervas ao correrem para o parque. A ferida da rapariga não pode ser muito grave, uma vez que só encontrámos uns salpicos de sangue nas ervas.
Temos unidades no parque? ‑ perguntou Sean.
Duas, até agora.
A técnica do SIP bufou.
‑ São mais espertos do que aqueles dois?
Sean e Whitey seguiram o olhar dela e viram que Connolly entornara acidentalmente o café nas ervas e estava a olhar para o chão, a esmagar o copo entre os dedos.
São novos nisto ‑ disse Whitey. ‑ Dê‑lhes algum desconto.
Bom, tenho de continuar a polvilhar, rapazes.
Sean afastou‑se para deixá‑la passar.
‑ Encontraram alguma coisa além do livrete do carro?
‑ Sim. Uma bolsa, debaixo do banco, com carta de condução
em nome de Katherine Marcus. Havia uma mochila atrás do banco
do passageiro. O Billy está a verificar o conteúdo.
Sean olhou por cima do capô para o tipo que ela indicara com um gesto da cabeça. Estava de joelhos em frente do carro, com uma mochila azul‑escura à frente.
Quantos anos diz a carta que ela tinha? ‑ perguntou Whitey.
Dezanove, sargento.
‑ Dezanove ‑ disse Whitey, dirigindo‑se a Sean. ‑ E tu conheces o pai dela. Porra, pá, vai ser um choque do caraças. O pobre diabo provavelmente não faz a menor ideia.
Sean voltou a cabeça, viu a ave solitária voar de regresso ao canal, a gritar, e um duro feixe de luz do Sol furou as nuvens. Sentiu o grito da ave entrar‑lhe pelo ouvido e chegar‑lhe ao cérebro, e, por um instante, foi trespassado pela recordação daquela solidão selvagem que vira no rosto de Jimmy Marcus, então com onze anos, quando tinham estado quase a roubar aquele carro. Sean sentia‑a agora, ali de pé no meio das ervas que conduziam ao Peni‑tentiary Park, como se aqueles vinte e cinco anos tivessem passado tão depressa como um anúncio da televisão, sentiu a solidão batida, furiosa, suplicante que enchera Jimmy Marcus como polpa escavada do tronco de uma árvore morta. Para sacudi‑la, pensou em Lauren, a Lauren de longos cabelos cor de areia que lhe marinara o sonho naquela manhã e que cheirava a mar. Pensou nessa Lauren e desejou poder voltar a entrar para o túnel desse sonho e puxá‑lo para cima da cabeça, desaparecer.
Nadine Marcus, a filha mais nova de Jimmy e Annabet recebeu pela primeira vez o santo sacramento da sagrada comunhão na manhã de domingo, em Saint Cecilia's, nos East Buc Flats. Com as mãos juntas desde os pulsos até às pontas dos dedos, o véu branco e o vestido branco a fazerem‑na parecer uma noiva bebé ou um anjo de neve, avançou pela coxia em procissão com quarenta outras crianças, a deslizar, enquanto os outros miúdos arrastavam os pés.
Ou pelo menos foi assim que pareceu a Jimmy, e embora fosse
talvez ele o primeiro a admitir que não senhor, não conseguia ser imparcial no que respeitava às filhas, estava por outro lado absolutamente seguro de que tinha razão. Nos tempos que corriam, os miudos falavam ou gritavam quando lhes dava na gana, praguejavam diante dos pais, exigiam isto e aquilo, não mostravam o mínimo respeito pelos adultos e tinham os olhos ligeiramente vítreos, ligeiramente febris dos viciados que passavam demasiado tempo diante de uma televisão, ou de um computador, ou ambos. Faziam lembrar
a Jimmy as bolas prateadas das máquinas de jogar ‑ agora lentas e preguiçosas, no instante seguinte a chocar contra tudo à sua volta, a fazer soar campainhas e a correr de um lado para o outro, Se pediam qualquer coisa, geralmente conseguiam‑na. E se não conseguiam, pediam mais alto. Se a resposta continuava a ser um hirritante não, gritavam. E os pais ‑ todos eles uns maricas, na opinião
de Jimmy ‑ regra geral cediam. |
Jimmy e Annabeth adoravam as filhas. Trabalhavam duramente para mantê‑las felizes e entretidas e conscientes de que eram amaddas,
Mas havia uma ténue linha entre isso e fazerem o que quisessem, e jimmy tinha sempre o cuidado de certificar‑se de que elas sabiam exactamente onde essa linha se situava.
Como, por exemplo, aqueles dois estuporzinhos que iam na altura a passar junto ao banco onde ele estava: dois rapazes, a empurrarem‑se um ao outro, a rir alto, ignorando os pedidos de silêncio das freiras, a exibirem‑se para a plateia, e alguns dos adultos estavam até a sorrir‑lhes. Jesus. No tempo de Jimmy, os pais daqueles dois ter‑se‑iam levantado, pendurado os monstrozinhos pelos cabelos e aplicado um bom par de palmadas naqueles rabos, com promessas murmuradas ao ouvido de mais quando chegassem a casa, antes de voltarem a pô‑los no chão.
Jimmy, que sempre odiara o pai, sabia que os costumes antigos não prestavam, mas, raios, tinha de haver algures uma solução de meio termo que a maioria das pessoas parecia estar a ignorar. Uma zona de compromisso em que um miúdo soubesse que os pais o amavam mas que eram eles quem mandava, que as regras existiam por uma razão, que «não» queria mesmo dizer não e que o facto de se ser engraçadinho não significava que se era bestial.
Claro que uma pessoa podia fazer tudo isso, criar bem os filhos, e mesmo assim eles amargurarem‑lhe a vida. Como Katie, naquele domingo. Não só não aparecera para trabalhar, como tudo parecia indicar que se preparava para faltar à primeira comunhão da irmã mais nova. Que diabo teria ela na cabeça? Nada, provavelmente, e era esse o problema.
Ao voltar‑se para ver Nadine avançar pela coxia, Jimmy estava tão orgulhoso que sentiu a sua fúria (e, sim, alguma preocupação, só uma pontinha, mas persistente) contra Katie esbater‑se um pouco, embora soubesse que podia voltar de um momento para o outro. A primeira comunhão era um acontecimento na vida de uma criança católica ‑ um dia para se vestir de uma maneira especial, e ser adorada e mimada e levada ao Chuck E. Cheese's depois da cerimónia ‑, e Jimmny gostava de marcar bem os acontecimentos na vida das filhas, de torná‑los brilhantes e inesquecíveis. E era por isso que o facto de Katie não ter aparecido o enfurecia tanto. Tinha dezanove anos, OK, e o mundo das irmãs mais novas não podia provavelmente comparar‑se com roupas e rapazes e ir a bares que tivessem uma política de verificação de idades mais relaxada. Jimm compreendia isto, de modo que geralmente dava a Katie bastante espaço de manobra, mas faltar a um acontecimento, sobretudo depois de tudo o que ele fizera, quando Katie era criança, para marcar os acontecimentos da vida dela, era indecente.
Sentiu a fúria recomeçar a crescer, e soube que, mal a visse, iam ter outro dos seus «debates», como Annabeth lhes chamava, uma ocorrência muito frequente naquele último par de anos.
O que quer que fosse. Que se lixasse.
Porque aí vinha Nadine, a passar pelo banco de Jimmy. Anna beth obrigara Nadine a prometer que não olharia para o pai quando passasse por ele, estragando a seriedade do sacramento com qualquer patetice infantil de menina, mas Nadine lançou‑lhe mesmo assim um olhar... um olhar pequenino, só para que Jimmy soubesse que estava a arriscar incorrer na ira da mãe para mostrar ao pai como o amava. Não se exibiu para o avô, Theo, nem para os seis tios que ocupavam o banco atrás do de Jimmy, e Jimmy respeitou isso: estava a pôr o pé na beira da linha, mas não a pisá‑la. O olho esquerdo dela chegou‑se muito para o canto. Jimmy viu‑o através do véu e fez‑lhe um pequeno adeus com três dedos, da altura de cinto, e formou com a boca um grande e silencioso «Olá!»
O sorriso de Nadine explodiu mais branco do que tudo o que o véu ou o vestido ou os sapatos dela pudessem igualar, e Jimm; sentiu‑o correr‑lhe pelo coração e pelos olhos e pelos joelhos. As mulheres da sua vida ‑ Annabeth, Katie, Nadine e a irmã, Sara ‑ ti nham o condão de fazer‑lhe aquilo com toda a limpeza, amarrar ‑lhe os joelhos com um sorriso ou um olhar, deixá‑lo fraco.
Nadine baixou os olhos e fechou o rosto para esconder o sorriso, mas Annabeth vira‑o. E espetou o cotovelo no espaço entre a costelas e a anca esquerda de Jimmy. Jimmy voltou‑se para ela, sen tindo‑se corar, e perguntou:
‑ O que foi?
Annabeth lançou‑lhe um olhar que lhe disse que estava feito quando chegasse a casa. Depois olhou em frente, com os lábios cerrados, mas a encurvarem‑se muito ligeiramente nos cantos. E Jimm soube que lhe bastaria perguntar «Algum problema?» com aquela voz de menino inocente que sabia fazer, e ela desataria a rir por mais que se esforçasse, porque havia qualquer coisa nas igrejas que dava às pessoas vontade de rir, e esse sempre fora um dos grandes dons de Jimmy: sabia fazer rir as mulheres, fosse de que maneira fosse. Não voltou, no entanto, a olhar para Annabeth durante algum tempo, depois deste episódio. Acompanhou a missa e em seguida os ritos sacramentais, à medida que cada um dos miúdos tomava pela primeira vez a hóstia nas mãos em concha. Tinha enrolado a brochura com o programa, humedecendo‑a com a transpiração da palma da mão enquanto batia com ela na coxa e via Nadine levantar a hóstia e levá‑la à boca, e então benzer‑se, de cabeça baixa, e Annabeth inclinou‑se para ele e murmurou‑lhe ao ouvido:
‑ A nos?? b ;bé. Meu Deus, Jimmy, a nossa bebé.
Jimmy passou‑lhe o braço pela cintura, puxou‑a para si, desejando que fosse possível congelar momentos da vida como fotografias, ficar neles, suspenso, até estar pronto para voltar a sair, por muitas horas ou dias que demorasse. Voltou a cabeça e beijou a face de Annabeth, que se encostou um pouco mais a ele, ambos com os olhos presos na filha, no seu anjo que deslizava, na sua menina.
O sujeito com a espada de samurai estava na orla do parque, de costas voltadas para o Pen Channel, um pé levantado do chão enquanto rodava lentamente sobre o outro, a espada erguida num estranho ângulo por detrás da nuca. Sean, Whitey, Souza e Connolly aproximaram‑se cautelosamente, lançando uns aos outros olhares que diziam «Que porra é esta?». O sujeito prosseguiu a sua lenta rotação, aparentemente sem ver os quatro homens que avançavam para ele mais ou menos em linha. Ergueu a espada acima da cabeça e começou a fazê‑la descer à frente do peito. Sean, Whitey, Souza e Connolly estavam agora a cerca de seis metros de distância, e o homem rodara 180 graus, de modo que ficara de costas para eles, e Sean viu Connolly levar a mão à anca direita e soltar a presilha do coldre, deixando a mão apoiada na coronha da Glock.
Antes que a cena ficasse ainda mais louca e alguém apanhasse um tiro ou o tipo da espada se pusesse a fazer hara‑kiri, Sean tossicou para limpar a garganta e disse:
‑ Desculpe, senhor. Senhor? Desculpe.
O fulano inclinou ligeiramente a cabeça, como se o tivesse ouvido, mas não interrompeu a lenta e deliberada rotação, voltando‑se pouco a pouco para eles.
‑ Senhor, precisamos que ponha a sua arma no chão.
O sujeito pousou o pé na erva e voltou‑se para enfrentá‑los com os olhos a abrirem‑se e a pestanejarem ‑ uma, duas, três, quatro armas ‑ e segurou a espada, a apontá‑la para eles ou a tentar entregá‑la, Sean não saberia dizer.
‑ Porra... é surdo? ‑ rosnou Connolly. ‑ No chão.
Sean disse «Shiuu!» e deteve‑se, agora a três metros do sujeito a pensar nas gotas de sangue que tinham encontrado no trilho jogging, sessenta metros mais atrás, sabendo todos eles o que aqué-las gotas significavam, e então erguendo os olhos para ver Bru Lee a esgrimir uma espada do tamanho de um pequeno avião. ! que Bruce Lee fora asiático e aquele tipo era definitivamente branco, jovem, talvez vinte e cinco anos, com cabelos curtos e encaracolados e as faces escanhoadas, T‑shirt branca enfiada numas calças de fato de treino cinzentas.
Estava como que paralisado, e Sean teve a certeza de que e o medo que mantinha aquela espada apontada para eles, o cérebro gripado e incapaz de controlar o corpo.
Senhor ‑ disse Sean, num tom suficientemente seco para
fazer o homem olhar de frente para ele. ‑ Faça‑me um favor, está bem? Ponha a arma no chão. Abra os dedos e deixe‑a cair.
Quem diabo são vocês?
Somos agentes da Polícia. ‑ Whitey Powers mostrou o crachá. ‑ Está a ver? Portanto, faça o que lhe peço e largue essa espada.
Hã, claro. ‑ E, sem mais, a espada soltou‑se dos dedos e caiu
no chão com um baque surdo.
Sean sentiu Connolly começar a mover‑se à sua esquerda, pronto para atacar o sujeito. Estendeu a mão, mantendo os olhos do homem presos nos dele, e perguntou:
Como se chama?
Hã? Kent.
Como está, Kent? Sou o guarda Devine, da Polícia Estadual
Preciso que recue dois passos e se afaste da arma.
‑ A arma?
‑ A espada, Kent. Recue um par de passos. Qual é o seu apelido, Kent?
‑ Brewer ‑ disse o sujeito enquanto recuava, de braços estendidos e as mãos abertas, como se tivesse a certeza de que aqueles
quatro iam empunhar as pistolas todos ao mesmo tempo e começar
a disparar.
Sean sorriu e fez um aceno de cabeça a Whitey.
‑ Eh, Kent, que estava a fazer aqui? A mim pareceu‑me uma
espécie de bailado. ‑ Encolheu os ombros. ‑ Com uma espada, é verdade, mas...
Kent viu Whitey inclinar‑se e pegar cuidadosamente na espada, com um lenço.
‑ Kendo.
O que é isso, Kent?
Kendo ‑ repetiu Kent. ‑ É uma arte marcial. Tenho aulas às
terças e às quintas e pratico de manhã. Estava só a praticar, mais nada.
Connolly suspirou.
Souza olhou para Connolly.
‑ Está a chuchar connosco, não está?
Whitey segurou a espada de modo que Sean pudesse vê‑la. Era oleosa e brilhante e estava tão limpa como se tivesse acabado de sair da máquina.
Vê ‑ disse Whitey, passando a lâmina pela palma da mão. ‑
Já tive colheres mais afiadas do que isto.
Nunca foi afiada ‑ explicou Kent.
Sean voltou a sentir a tal ave no crânio, a gritar.
‑ Diga‑me, Kent, há quanto tempo está aqui?
Kent olhou para o parque de estacionamento, cem metros atrás deles.
Quinze minutos? No máximo. O que é que se passa? ‑ A voz
estava a ganhar confiança, um toque de indignação. ‑ Não é ilegal praticar kendo num parque, pois não, senhor guarda?
Ainda estamos a tentar decidir isso ‑ respondeu Whitey. ‑
E é «sargento», Kent.
Pode dizer‑nos onde esteve ontem à noite e hoje ao começo
da manhã? ‑ perguntou Sean.
Kent pareceu ficar novamente nervoso, procurando lembrar‑se, contendo a respiração. Fechou os olhos por instantes, e então deixou escapar o ar retido nos pulmões.
‑ Sim, sim. Estive numa festa, ontem à noite, com uns amigos
Fui para casa com a minha namorada. Adormecemos por volta das
três. Esta manhã tomei o café com ela e vim para aqui.
Sean beliscou a cana do nariz e assentiu.
Vamos confiscar a espada, Kent, e gostaríamos que fosse ao
destacamento com um dos guardas, responder a umas perguntas.
O destacamento?
A esquadra ‑ explicou Sean. ‑ Só que nós damos‑lhe um nome
diferente.
Porquê?
Kent, será que não pode simplesmente concordar em acompanhar
um dos guardas?
Hã, claro.
Sean olhou para Whitey, que fez uma careta. Sabiam que Kei estava demasiado assustado para mentir, e sabiam que a espada viria do laboratório limpinha, mas tinham de tocar todas as cordas e fazer relatórios até que a papelada se amontoasse nas respectivas secretárias como um desfile de carros alegóricos.
Vou ganhar o meu cinturão negro ‑ disse Kent.
Voltaram‑se todos para ele.
Como?
No sábado ‑ continuou Kent, com o rosto a brilhar por baixo
das gotas de suor. ‑ Demorou três anos, mas, hã, foi por isso que vim para aqui hoje de manhã, para me certificar de que a minha forma era perfeita.
Hum ‑ fez Sean.
Eh, Kent? ‑ disse Whitey, e Kent sorriu‑lhe. ‑ Quer dizer
não é por nada, mas quem quer saber dessa merda?
Quando Nadine e os outros miúdos acabaram de desaparecer no fundo da igreja, Jimmy estava a sentir‑se muito menos furioso com Katie e muito mais preocupado. Apesar de todas as entradas a desoras e dos namoricos com rapazes que ele não conhecia, Kat não era rapariga para deixar ficar mal as irmãs, que a adoravam, e que ela estragava com mimos: levava‑as ao cinema, a andar de patins, a comer gelados. Ultimamente, andava a prepará‑las para o desfile do próximo domingo, comportando‑se como se o Dia de Buckingham fosse um feriado nacionalmente reconhecido, ao mesmo nível que o Dia de S. Patrício ou o Natal. Chegara a casa cedo, na quarta‑feira, e levara as duas miúdas para o quarto para escolherem a roupa que iam vestir, transformando a ocasião num mini‑espectáculo, com ela sentada na cama e as garotas a entrar e a sair do quarto, a passar os vestidos, a pedir conselho sobre os cabelos, os olhos, a maneira de andar. Claro que o quarto das duas mais novas ficara como se por lá tivesse passado um ciclone, com roupa espalhada por todo o lado, mas Jimmy não se importara ‑Katie estava a ajudar as miúdas a marcar mais um acontecimento, usando os truques que ele lhe ensinara para fazer até a coisa mais simples parecer importante e especial.
Porque teria então faltado à primeira comunhão de Nadine?
Talvez tivesse apanhado uma de proporções lendárias. Ou talvez tivesse mesmo conhecido um tipo novo com ar de estrela de cinema e lata para dar e vender. Talvez se tivesse pura e simplesmente esquecido.
Jimmy levantou‑se do banco e desceu a coxia com Annabeth e Sara, Annabeth a apertar‑lhe a mão e a ler‑lhe a contracção do queixo, a expressão distante do olhar.
‑ Tenho a certeza de que ela está bem. Com uma ressaca, provavelmente, mas bem.
Jimmy sorriu e assentiu com a cabeça e apertou‑lhe também a mão. Annabeth, com a leitura física que fazia dele, com os seus oportunos apertos de mão, o seu terno sentido prático, era o alicerce de Jimmy, pura e simplesmente. Era a mulher, a mãe, o melhor amigo, a irmã, a amante e o padre dele. Sem ela, Jimmy sabia‑o para lá da mais pequena sombra de dúvida, teria acabado por voltar a Deer Island, ou, pior, por cair numa dessas prisões de segurança máxima, como Norfolk ou Cedar Junction, a cumprir uma pena das pesadas, com os dentes a apodrecer.
Quando conhecera Annabeth, um ano depois de ter saído e com dois de liberdade condicional pela frente, a relação dele com Katie mal começava a firmar‑se, pouco a pouco. Ela parecera habituar‑se ao facto de ele estar sempre por perto ‑ ainda retraída, mas a melhorar ‑ e Jimmy habituara‑se a estar permanentemente cansado ‑ cansado de trabalhar dez horas por dia e ter de atravessar a cidade para ir buscar a filha ou deixá‑la em casa da mãe, na escola, nos tempos livres. Estava cansado e com medo; eram essas as duas constantes da sua vida, na altura, e, passado algum tempo, acabara por aceitar que sempre assim seria. Acordava com medo ‑ com medo de que Katie tivesse conseguido rolar para o lado errado e morrido sufocada enquanto dormia, com medo de que a economia continuasse a cair até deixá‑lo sem trabalho, com medo de que Katie se tivesse magoado na escola durante o recreio, com medo de que ela precisasse de qualquer coisa que ele não pudesse dar‑lhe, com medo de que a vida continuasse a ser aquele constante remoer de medo e amor e cansaço, para sempre.
Jimmy levara o seu cansaço para a igreja no dia em que um dos irmãos de Annabeth, Vai Savage, casara com Terese Hickey, ambos, a noiva e o noivo, feios, zangados e baixinhos. Jimmy imaginava‑‑os a ter ninhadas em vez de filhos, a criar uma matilha de cães raivosos de focinho achatado e indistinguíveis uns dos outros, que haviam de correr para cima e para baixo em Buckingham Avenue durante anos e anos, a chispar. Vai fizera parte do bando de Jimmy nos tempos em que Jimmy tinha um bando, e ficara‑lhe agradecido por ter aguentado dois anos de cadeia, com mais três de pena suspensa, para safar o grupo, quando toda a gente sabia que podia muito bem tê‑los lixado a todos e escapado. Vai, curto de membros e de miolos, teria provavelmente idolatrado Jimmy se ele não tivesse casado com uma miúda porto‑riquenha, e ainda por cima de fora do bairro.
Depois de Marita morrer, as más línguas da vizinhança disseram: Bem, estão a ver, não estão? É o que acontece quando se vai contra a ordem das coisas. Essa Katie, no entanto, há‑de ser uma brasa. Todas as mestiças são.
Quando Jimmy saíra de Deer Island, as ofertas tinham chovido. Jimmy era um profissional, um dos melhores assaltantes por escalada num bairro que tinha uma longa e respeitada tradição nessa área artística. E mesmo quando Jimmy dizia que não, obrigado, que ia andar na linha, por causa da miúda, estão a ver, as pessoas assentiam e sorriam e sabiam que ele havia de regressar na primeira ocasião em que as coisas se pusessem más e ele tivesse de escolher entre pagar a prestação do carro ou comprar uma prenda de Natal para Katie.
Mas não aconteceu. Jimmy Marcus, um génio do B & E e chefe de um bando quando ainda nem sequer tinha idade legal para beber, o homem por detrás do assalto à Keldar Technics e uma tonelada de outras merdas, manteve‑se de tal maneira na linha que chegou a um ponto em que as pessoas pensaram que era só para as provocar. Raios, dizia‑se que Jimmy andava em negociações para comprar a loja a Al DeMarco, deixando o velho reformar‑se como proprietário nominal com uma boa fatia do dinheiro que Jimmy pusera de parte depois do assalto à KekLir. Jimmy lojista, de avental... Pois, está bem, disseram as pessoas.
No copo‑d'água do casamento de Vai e Terese, no K of C, na Dunboy, Jimmy convidou Annabeth para dançar, e quem lá estava percebeu logo ‑ o modo como se curvavam ao ritmo da música, o modo como inclinavam a cabeça para se olharem nos olhos, impudentes como touros, o modo como a mão dele acariciava ligeiramente os rins dela, o modo como ela se recostava naquela mão. Tinham‑se conhecido em garotos, alguém disse, embora ele fosse alguns anos mais velho. Talvez aquilo sempre tivesse ali estado, à espera de que a porto‑riquenha fizesse as malas, ou que Deus as fizesse por ela.
Tinham dançado uma música de Rickie Lee Jones em que havia uns versos que tocavam sempre qualquer coisa no fundo de Jimmy, por razões que ele não conseguia compreender: «Bem, adeus, rapazes/ Oh, meus amigos/Oh meus Sinatras de olhos tristes...» Formou‑as com os lábios para Annabeth enquanto dançavam, sentindo‑se solto e à vontade pela primeira vez em anos, voltou a cantar em silêncio com o coro que acompanhava o fio de voz ténue e triste de Rickie, «Adeus, solitária avenida», a sorrir para os olhos verdes e cristalinos de Annabeth, e ela sorriu também, daquela maneira suave e secreta que tinha de sorrir e que abria o coração de Jimmy, os dois a comportarem‑se como se aquela fosse a sua centésima dança, e não a primeira.
Foram os últimos a sair, sentados lá fora nos largos degraus do portal, a beber cerveja light e a fumar e a acenar aos outros casais quando passavam por eles a caminho dos carros. Ficaram ali sentados até que a noite de Verão arrefeceu e Jimmy despiu o casaco e o pôs sobre os ombros dela e lhe falou da prisão e de Katie, e dos sonhos de Marita a respeito de cortinas cor de laranja, e ela lhe contou o que fora crescer sendo a única rapariga numa casa cheia de irmãos maníacos, do Inverno em que tentara a sorte como bailarina em Nova Iorque até decidir que nunca seria suficientemente boa, da escola de enfermagem.
Quando a gerência acabara por correr com eles do portal, foram até à reunião familiar depois do copo‑d'água, e chegaram a tempo de assistir à primeira discussão de Vai e Terese como marido e mulher. Sacaram uma embalagem de seis cervejas do frigorífico de Vai e saíram, deambularam pela escuridão do Hurley's Drive‑in e sentaram‑se junto ao canal, a ouvir o triste marulhar da água. O drive‑‑in fechara anos antes, e todas as manhãs as atarracadas escavadoras amarelas e os camiões de entulho do Serviço de Parques e Zonas de Recreio e do Departamento de Transportes entravam por ali dentro, transformando toda a área ao longo do Pen numa erupção de terra revolvida e cimento rasgado. Dizia‑se que iam fazer ali um parque, mas, de momento, era apenas um drive‑in destruído, com o grande ecrã ainda visível atrás dos montes de terra castanha e de bolachas pretas‑e‑cinzentas de asfalto partido.
Dizem que nos está no sangue? ‑ disse Annabeth.
O quê?
Roubar, o crime. ‑ Encolheu os ombros. ‑ Tu sabes.
Jimmy, que ia levar a garrafa de cerveja à boca, sorriu‑lhe. Bebeu um golo.
‑ Está? ‑ perguntou ela.
Talvez. ‑ Foi a vez de ele encolher os ombros. ‑ Há muitas
coisas no meu sangue. Não significa que tenham de sair.
Não estou a julgar‑te. Acredita. ‑ O rosto dela nada revelava,
e a voz também não. Jimmy perguntou a si mesmo o que quereria
Annabeth que ele lhe dissesse. Que continuava na vida? Que a tinha deixado? Que ia torná‑la rica? Que nunca mais voltaria a cometer um crime?
De longe, Annabeth tinha uma cara calma, quase vulgar, mas, quando uma pessoa se aproximava, via nela muita coisa que não compreendia, a sensação de uma mente a funcionar a todo o gás, sem nunca dormir.
Quer dizer, a dança está‑te no sangue, certo?
Não sei. Suponho que sim.
Mas quando te disseram que não podias continuar a dançar,
paraste. Por muito que te tenha custado, paraste.
‑OK...
‑ OK ‑ disse ele, e tirou um cigarro do maço pousado na pedra entre os dois. ‑ Sim, é verdade, eu era bom no que fazia. Mas fui apanhado, e a minha mulher morreu, e isso lixou a cabeça à minha filha. ‑ Acendeu o cigarro e expeliu um longo jacto de fumo enquanto tentava formar as frases exactamente como tantas vezes as dissera na sua cabeça. ‑ Não vou voltar a lixar a minha filha, Anna
beth. Estás a perceber? Ela não pode passar mais dois anos comigo preso. A minha mãe? Não é uma mulher saudável. E se ela morre enquanto eu estou dentro? Pegam na minha filha, põem‑na à guarda do Estado, metem‑na numa Deer Island qualquer para miúdos. Não aguentaria uma merda dessas. Portanto, é assim. No sangue ou sem ser no sangue, quero que se lixe. Vou manter‑me limpo.
Jimmy sustentou‑lhe o olhar enquanto ela lhe examinava o rosto. Via que Annabeth andava à procura de falhas na explicação dele, de indícios de mentira, e esperava ter conseguido tornar o discurso convincente. Havia muito que o trabalhava, na expectativa de um momento como aquele. E o facto era que a maior parte do que dissera até era verdade. Só deixara de fora a única coisa que jurara a si mesmo nunca contar a ninguém, fosse quem fosse. Por isso olhou Annabeth nos olhos e esperou que ela tomasse a sua decisão, e tentou ignorar as imagens daquela noite junto ao ‑ o tipo de joelhos, com o cuspo a escorrer‑lhe para o queixo, a gemer, a suplicar ‑ imagens que teimavam, que não desistiam de tentar abrir caminho através da cabeça dele, como brocas.
Annabeth pegou num cigarro. Ele acendeu‑lho, e ela disse:
‑ Antigamente, tinha uma paixão danada por ti. Sabias?
Jimmy manteve a cabeça imóvel, a expressão calma, apesar de
o alívio que lhe percorreu o corpo ser como o disparar de um jacto:
ela comprara a sua meia verdade. Se as coisas resultassem com Anna beth, nunca mais ia ter de voltar a vendê‑la.
‑ A sério? Por mim?
Ela assentiu.
Quando ias lá a casa ter com o Vai? Meu Deus, eu tinha, o quê,
catorze, quinze anos? Esquece. A minha pele ficava a zunir só de ouvir a tua voz na cozinha.
Raios. ‑ Tocou‑lhe no braço. ‑ Agora não está a zunir.
Oh, claro que está, Jimmy. Claro que está.
E Jimmy sentiu o Mystic correr novamente para longe, dissolver‑se nas fétidas profundezas do Pen, afastar‑se dele, perder‑se na distância onde era o seu lugar.
Quando Sean voltou ao trilho de jogging, a técnica do SIP estava lá. Whitey Powers ordenou, pela rádio, a todas as unidades presentes no local que iniciassem uma operação de detecção e captura de quaisquer vadios que andassem pelo parque, e foi acocorar‑se ao lado de Sean e da mulher.
‑ O rasto de sangue vai nessa direcção ‑ disse a técnica, apon tando para o interior do parque. O trilho de jogging atravessava uma
pequena ponte de madeira e logo a seguir fazia uma curva e descia para a zona mais arborizada, contornando o ecrã do antigo drive‑in, na extremidade mais distante. ‑ E há mais ali. ‑ Apontou com a caneta, e Sean e Whitey olharam por cima do ombro, viram outros salpicos de sangue, mais pequenos, na erva no outro lado do trilho junto
à ponte de madeira, onde as folhas de um grande ácer os tinham
protegido da chuvada da noite anterior. ‑ Penso que ela correu para a ravina.
O rádio de Whitey crepitou e ele levou‑o à boca.
Sargento, precisamos de si aqui no jardim.
Vou a caminho.
Sean ficou a ver Whitey trotar pelo trilho e em seguida dirigir‑‑se ao jardim que ficava para lá da primeira curva, com a fralda da camisa de hóquei do filho a drapejar‑lhe à volta da cintura.
Pôs‑se de pé e olhou para o parque, sentiu‑lhe o tamanho, cada arbusto, cada elevação, toda a água. Olhou para trás, para a pequena ponte de madeira que galgava uma minúscula ravina onde a água era duas vezes mais negra e duas vezes mais poluída do que no canal. Coberta por uma permanente película de gordura, fervilhava de mosquitos, no Verão. Notou um ponto vermelho nas finas ervas esverdeadas que cresciam na margem da ravina e avançou nessa direcção, com a técnica do SIP subitamente a seu lado, tendo‑o visto também.
Como se chama? ‑ perguntou Sean.
Karen ‑ respondeu ela. ‑ Karen Hughes.
Sean apertou‑lhe a mão, ambos com a atenção centrada naquele ponto vermelho enquanto atravessavam o trilho, ao ponto de só ouvirem Whitey Powers quando já estava quase em cima deles, a correr, ofegante.
Encontrámos um sapato ‑ disse Whitey.
Onde?
Whitey apontou para trás, para o ponto onde o trilho encurvava para contornar o jardim.
No jardim. Um sapato de mulher. Tamanho trinta e sete.
Não lhe toquem ‑ pediu Karen Hughes.
Hum ‑ resmungou Whitey, o que lhe valeu um olhar de Karen,
que tinha um desses olhares glaciais capazes de encolher tudo dentro de uma pessoa. ‑ Peço desculpa. Quero dizer, sim, senhora.
Sean voltou‑se novamente para as árvores, e o ponto vermelho já não era um ponto, era um triângulo de tecido rasgado, suspenso de um pequeno ramo mais ou menos à altura de um ombro. Detiveram‑se os três diante dele e Karen Hughes recuou um pouco e tirou várias fotos de quatro ângulos diferentes, após o que se pôs à procura de qualquer coisa dentro da mala.
Era nylon, Sean tinha quase a certeza, provavelmente de um blusão, e manchado de sangue.
Karen usou umas pinças para tirá‑lo do ramo e examinou‑o por um minuto antes de deixá‑lo cair dentro de um saco de plástico.
Sean dobrou‑se pela cintura e esticou a cabeça, olhou para o fundo da ravina. Então olhou para o outro lado e viu o que podia ser a marca de um salto de sapato no solo macio.
Tocou com o cotovelo em Whitey e apontou até que também o sargento o viu. Então Karen Hughes seguiu a direcção do olhar deles e tirou imediatamente uma série de fotos com a Nikon distribuída pelo Departamento. Endireitou‑se, atravessou a ponte, desceu pelo outro lado e tirou mais algumas fotos.
Whitey acocorou‑se e espreitou para debaixo da ponte.
Diria que é capaz de ter‑se escondido aqui durante algum
tempo. O assassino aparece e ela salta para o outro lado e continua
a fugir.
Porquê embrenhar‑se cada vez mais no parque? ‑ observou
Sean. ‑ Quer dizer, aqui ficava encurralada pelo canal. Porque não correr direita à saída?
Talvez estivesse desorientada. Estava escuro, tinha levado um
tiro.
Whitey encolheu os ombros e serviu‑se do rádio para chamar Operações.
Fala o sargento Power. Estamos a inclinar‑nos para um possível um‑oitenta e sete. Vamos precisar de todos os agentes disponíveis para passar revista ao Pen Park. Vejam se conseguem arranjar alguns mergulhadores.
Mergulhadores?
Afirmativo. Precisamos do tenente Friel e de alguém do gabinete do procurador LQP.
O tenente Friel vai a caminho. O gabinete do procurador já
foi notificado. Escuto.
É tudo. Terminado, Operações.
Sean olhou para a marca de salto de sapato, e reparou nuns pequenos sulcos, à esquerda: fizera‑os a vítima, com os dedos, no esforço de subir a barreira.
Interessado em fazer uma ideia do que aconteceu aqui ontem
à noite?
Nem sequer vou tentar ‑ respondeu Whitey.
De pé no alto da escadaria da igreja, Jimmy distinguia ao longe o Penitentiary Channel. Era uma fita de púrpura baço do outro lado da passagem superior da via rápida, a delimitar o parque que constituía a única mancha verde daquela parte da cidade. Jimmy viu o rebordo superior do ecrã branco‑prateado do antigo drive‑in a espreitar por cima do viaduto. Ainda lá estava, depois de o Estado ter comprado o terreno em hasta pública, por meia‑dúzia de tostões, ao abrigo do Capítulo Onze, e de o ter entregado ao Serviço de Parques e Locais de Recreio. O Serviço de Parques e Locais de Recreio passara a década seguinte a embelezar o local, arrancando os postes que sustentavam os altifalantes para os carros, nivelando o terreno e plantando árvores e arbustos, abrindo trilhos para os ciclistas e os joggers ao longo do canal, erguendo um jardim murado, construindo até um abrigo e uma rampa para os praticantes de canoagem, que nunca podiam ir muito longe antes de as comportas do porto os obrigarem a voltar para trás. Mas o ecrã lá continuava, acabando por erguer‑se no final de um espaço fechado que tinham criado ao plantarem árvores já formadas, trazidas do Norte da Califórnia. No Verão, um grupo de teatro amador local representava Shakespeare diante do ecrã, no qual pintavam tapeçarias medievais, andando de um lado para o outro no palco com espadas de lata na mão e a dizer «Escutai» e «Por minha fé» e merdas no género. Jimmy fora assistir a um dos espectáculos, com Annabeth e as pequenas, dois verões atrás, e Annabeth, Nadine e Sara tinham adormecido antes do final do primeiro acto. Mas Katie mantivera‑se acordada, inclinada para a frente, com os cotovelos apoiados nos joelhos, o queixo na palma da mão, de modo que ele tivera de fazer o mesmo.
Representava‑se, nessa noite, A Fera Amansada, e Jimmy não conseguira acompanhar a maior parte da história ‑ qualquer coisa a respeito de um fulano que, à força de chapada, acabava por conseguir transformar a noiva numa mulher prestável. Não vira grande arte em tudo aquilo, mas supusera que, provavelmente, uma parte da culpa devia ser da tradução. Katie, pelo contrário, não desviara os olhos do palco. Rira‑se um par de vezes, ficara mortalmente silenciosa outras tantas, e, no fim, dissera ao pai que aquilo era «magia».
Jimmy ficara sem saber que diabo queria ela dizer com aquilo, e Katie não conseguira explicar melhor. Limitara‑se a dizer que se sentira «transportada», e durante os seis meses seguintes insistira em ir viver para Itália depois de acabar o liceu.
Jimmy, a olhar para a orla dos East Bucky Flats ali do alto da escadaria da igreja, pensou: Itália. Pois sim.
‑ Papá! Papá! ‑ Nadine separou‑se de um grupo de amigos,
correu para Jimmy quando ele chegou ao último degrau e chocou
contra as pernas do pai a toda a velocidade, ainda a gritar: ‑ Papá!
Papá!
Jimmy pegou‑lhe ao colo, cheirou a goma do vestido e beijou‑‑a na face.
‑ Minha filha.
Com o mesmo gesto com que a mãe costumava afastar os cabelos dos olhos, Nadine usou as costas de dois dedos para afastar o véu do rosto.
Este vestido faz cócegas.
Até a mim ‑ disse Jimmy ‑, e não o tenho vestido.
Ficavas esquisito de vestido, papá.
Não, se me ficasse tão bem como a ti.
Nadine rolou os olhos e raspou a parte de baixo do queixo dele com a coroa rígida do véu.
‑ Faz cócegas?
Jimmy olhou, por cima da cabeça de Nadine, para Annabeth e para Sara, sentiu as três soprarem‑lhe através do peito, encherem‑no, e ao mesmo tempo reduzirem‑no a pó.
Se naquele instante, naquele segundo, uma chuva de balas o tivesse atingido nas costas, ficaria na mesma. Nada lhe aconteceria. Estava feliz. Tão feliz quanto é possível estar.
Bem, quase. Perscrutou a multidão à procura de Katie, na esperança de que talvez tivesse chegado no último instante. Em vez disso, viu um carro‑patrulha dobrar a esquina de Buckingham Ave‑nue, entrando em derrapagem na Roseclair, com os pneus de trás a pisarem o traço contínuo, o uivo da sereia a rasgar o ar da manhã. Viu o condutor acelerar, ouviu o potente motor rugir enquanto o carro disparava pela Roseclair em direcção ao Pen Park. Um carro preto, sem quaisquer marcas, seguiu‑o segundos depois, com a sereia silenciosa, mas inconfundível. O condutor cortou por dentro a curva de noventa graus para a Roseclair, a noventa à hora, com o motor a roncar.
E, enquanto voltava a pôr Nadine no chão, Jimmy sentiu‑o no sangue, uma súbita e maldosa certeza, a sensação de coisas a encaixarem miseravelmente nos respectivos lugares. Viu os dois carros passarem por baixo do viaduto e fazerem uma brusca curva à direita em direcção à entrada do parque, e sentiu Katie no sangue agora juntamente com o roncar dos motores e o chiar dos pneus, os capilares e as células.
Katie, quase disse em voz alta. Jesus. Katie.
Old MacDonald
Celeste acordou no domingo de manhã a pensar em canos ‑ na rede de canos que percorria casas e restaurantes, cinemas e centros comerciais, e descia em grandes secções esqueléticas do alto dos edifícios de escritórios de quarenta andares, piso a piso, até uma outra rede ainda mais vasta de esgotos e aquedutos que corria por baixo das cidades e das aldeias, ligando as pessoas de uma forma mais concreta do que a própria linguagem, com o único objectivo de levar para longe as coisas que consumimos e rejeitamos dos nossos corpos, das nossas vidas, dos nossos pratos e das nossas travessas.
Para onde iria tudo aquilo?
Supôs que já antes considerara aquela questão, num sentido vago, da maneira como uma pessoa pergunta a si mesma como é que um avião se mantém no ar sem bater as asas, mas agora queria verdadeiramente saber. Sentou‑se na cama vazia, preocupada e curiosa, ouviu os sons de Dave e Michael a jogar Wiflle‑ball4 no pátio das traseiras, três andares mais abaixo. Para onde? perguntou a si mesma.
Para algum lado tinha de ser. Todos aqueles despejos, todo aquele sabonete e shampoo e detergente e papel higiénico e vomitado dos bares, todas as nódoas de café e as nódoas de sangue e as manchas de suor e o cotão das bainhas das nossas calças e a sujidade da parte de dentro dos nossos colarinhos e os vegetais frios que as pessoas raspavam do prato para o triturador do lixo e os cigarros e a urina e os pêlos das pernas, das faces, das virilhas e dos queixos
"* Wiffle é uma marca registada. Trata‑se de uma versão caseira do basebol, jogada com tacos e bola de plástico. (N. T.)
‑ tudo aquilo se encontrava todas as noites com centenas de milhares de entidades semelhantes ou idênticas e jorrava, assumia ela, através de húmidas passagens cheias de vermes e bichos nojentos, para dentro de vastas catacumbas onde se misturava com água corrente e corria para... para onde?
Já não o despejavam no mar, pois não? Não podiam. Pareceu‑‑lhe lembrar‑se de qualquer coisa a respeito de tratamento séptico e compactação de resíduos, mas não estava cem por cento segura de não ter sido num filme, e os filmes, muitas vezes, eram só treta. Então se não era no mar, onde era? E se era no mar, porquê? Tinha de haver uma maneira melhor, não é verdade? Mas então voltou a ter uma imagem de todos aqueles canos, e ficou a pensar.
Ouviu a pancada oca do taco ao bater na bola de plástico. Ouviu Dave gritar «Uá!» e Michael berrar e um cão ladrar uma única vez, um som tão seco como o do taco a bater na bola.
Celeste deitou‑se de costas, só então se apercebendo de que estava nua e de que dormira até depois das dez. Nenhuma destas coisas acontecia com frequência, se alguma vez acontecia, desde que Michael começara a andar, e sentiu uma pequena onda de culpa atravessar‑lhe o peito e ir morrer na cova do estômago ao recordar‑se de ter beijado a carne à volta da ferida de Dave, às quatro da madrugada, de joelhos no chão da cozinha, saboreando o medo e a adrenalina que lhe saíam dos poros, todos os receios a respeito de SIDA ou de hepatite varridos por aquela súbita necessidade de sentir‑lhe o sabor, de apertar‑se contra ele o mais intimamente que fosse possível. Fizera deslizar o roupão dos ombros ainda a percorrer‑lhe a pele com a língua, ficando apenas com a meia T‑sbirt e as cuecas pretas, sentindo a noite insinuar‑se por baixo da porta e gelar‑lhe os tornozelos e os joelhos. O medo dera à pele de Dave um sabor meio amargo meio doce, e ela passara a língua desde a ferida até à base da garganta dele, e metera‑lhe as mãos entre as coxas e sentira‑o endurecer e ouvira a respiração tornar‑se‑lhe mais rápida. Quisera que aquilo durasse o mais tempo possível, o sabor dele, o poder que subitamente possuía no seu corpo, e pusera‑se de pé e cobrira‑o. Fizera deslizar a língua pela dele e arrepanhara‑lhe os cabelos e imaginara que estava a sugar de dentro dele para dentro dela a dor do encontro no parque de estacionamento. Agarrara‑lhe a cabeça e apertara a pele contra ele até que Dave lhe despira a T‑shirt e enfiara a boca entre os seios dela, e balouçara‑se contra as virilhas dele e ouvira‑o gemer. Quisera que Dave compreendesse que era aquilo que eles eram, aquele apertar de pele, aquele envolver de corpos e cheiros e necessidade e amor, sim, amor, porque ela amava‑‑o tão profundamente como sempre agora que estivera quase a perdê‑lo.
Os dentes dele morderam‑lhe o seio, fazendo doer, chupando com demasiada força, e ela empurrara‑se ainda mais para dentro da boca dele e saboreara a dor. Não se teria importado se ele fizesse sangue, porque estava a chupá‑la, a precisar dela, a cravar‑lhe as pontas dos dedos nas costas, a libertar o medo para cima e para dentro dela. E ela engoliria todo aquele medo e depois cuspi‑lo‑ia, e ambos se sentiriam mais fortes do que alguma vez se tinham sentido. Disso tinha a certeza.
Quando começara a andar com Dave, a vida sexual deles caracterizara‑se por uma crua ausência de limitações; costumava regressar ao apartamento que partilhava com Rosemary cheia de nódoas negras e marcas de dentadas e arranhões nas costas, esgotada até aos ossos com essa espécie de exaustão ansiosa que, na sua ideia, o viciado sente entre dois chutos. A partir do nascimento de Michael... bem, mais exactamente a partir da altura em que Rosemary fora morar com eles, depois do primeiro cancro ‑ Celeste e Dave tinham caído no tipo de previsível rotina de casal casado que é alvo de incessantes piadas nas sitcoms da televisão, geralmente demasiado cansados ou sem privacidade suficiente para muito mais do que uns minutos de preliminares e um pouco de sexo oral antes de
passarem ao acontecimento principal, que, com o correr dos anos, começara a parecer cada vez menos um acontecimento principal e mais qualquer coisa com que entreter o tempo entre o boletim meteorológico e o Jay Leno. 1
A noite anterior, porém... a noite anterior fora definitivamente o tipo de paixão acontecimento principal, deixando‑a, ainda agora ali estendida na cama, moída até à medula.
Foi quando voltou a ouvir a voz de Dave lá fora, a dizer a Michael que se concentrasse, concentra‑te, raios, que se lembrou do que tinha estado a perturbá‑la ‑ antes dos canos, antes da recordação da louca sessão de sexo na cozinha, talvez até antes de se ter enfiado na cama já quase de manhã: Dave tinha‑lhe mentido.
Soubera‑o na casa de banho, quando ele chegara a casa, mas decidira ignorá‑lo. Depois, quando se deitara no chão da cozinha e arqueara as costas, levantando as coxas para que ele pudesse penetrá‑la, voltara a saber. Reparara‑lhe nos olhos, ligeiramente vidrados, quando entrara nela e lhe puxara os tornozelos para cima, e respondera às primeiras arremetidas dele com a certeza nascente de que aquela história não fazia sentido.
Para começar, quem dizia coisas como «A tua carteira ou a tua vida, meu sacana, vou sair daqui com uma das duas»? Era ridículo. Era, como ela tivera a certeza na casa de banho, conversa de filme. E mesmo que o assaltante tivesse preparado antecipadamente a frase, nunca a diria quando chegasse o momento. Nem pensar. Celeste fora assaltada uma vez, no Common, quando ainda nem sequer tinha vinte anos. O assaltante, um homem alto, negro‑amarelado, com pulsos lisos e finos e olhos castanhos inquietos, aproximara‑se dela na solidão de um fim de tarde frio e cinzento, encostara‑lhe uma navalha à anca e mostrara‑lhe um relance dos seus olhos invernais antes de perguntar: «Quanto é que tens?»
Não havia nada à volta deles excepto as árvores despidas por Dezembro, a pessoa mais próxima era um homem de negócios que descia apressadamente a Beacon, do outro lado da grade de ferro forjado, a vinte metros de distância. O assaltante fizera um pouco mais de pressão com a navalha, sem cortar, e ela sentira‑lhe o hálito de dentes podres e chocolate. Entregara‑lhe a carteira, tentando evitar os olhos inquietos e castanhos e a sensação irracional de que o homem tinha mais braços do que mostrava, e ele enfiara a carteira no bolso do sobretudo e dissera, «A tua sorte é eu ter pouco tempo», e afastara‑se na direcção de Park Street, sem pressa nem medo.
Celeste ouvira histórias semelhantes a muitas outras mulheres. Os homens, pelo menos naquela cidade, raramente eram assaltados, a menos que andassem mesmo a pedi‑las, mas as mulheres, era constantemente. E havia sempre a ameaça de violação, implícita ou intuída, e, em todas as histórias que ouvira, nunca lhe aparecera um assaltante que fizesse frases. Não tinham tempo para isso.
Precisavam de ser o mais sucintos possível. Entrar e sair antes que alguém se pusesse a gritar.
E havia aquela questão do murro que o assaltante tentara dar‑‑lhe enquanto segurava a navalha com a outra mão. Partindo do princípio que empunhava a arma com a mão melhor, bem, quem tentaria esmurrar alguém com a mão que não fosse a que usava para escrever?
Sim, acreditava que Dave se vira envolvido numa situação terrível em que fora forçado a sucumbir a uma mentalidade de matar‑ou‑‑ser‑morto. Sim, tinha a certeza de que Dave não era o género de homem capaz de ir deliberadamente à procura de uma situação daquelas. Mas... mas, mesmo assim, a história dele tinha falhas, buracos. Era como tentar explicar uma mancha de bâton no colarinho da camisa ‑ um homem podia sempre ter sido fiel, mas o melhor era que a sua explicação, por muito ridícula, fosse ao menos consistente.
Imaginou os dois detectives sentados à mesa da cozinha, a fazer‑lhes perguntas, e teve a certeza de que Dave se iria abaixo. A história cairia ao pedaços sob olhares impessoais e perguntas repetidas. Seria como quando ela o interrogara a respeito da infância. Tinha ouvido histórias, claro; os Flats não passavam de uma aldeia encravada no meio da grande cidade, e as pessoas murmuravam. Por isso, certa vez perguntara a Dave se lhe acontecera alguma coisa horrível quando era miúdo, alguma coisa que ele sentisse que não podia partilhar com ninguém, dando‑lhe a entender que podia partilhá‑la com ela, a sua mulher, grávida do filho dele, na altura.
Ele olhara para ela, com um ar confuso.
Oh, estás a referir‑te àquela coisa?
Que coisa?
Estava a brincar com o Jimmy e um outro miúdo, chamado
Sean Devine. Sim, tu conhece‑lo. Já lhe cortaste o cabelo uma ou duas vezes, lembras‑te?
Celeste lembrava‑se. Devine tinha qualquer coisa a ver com a Polícia, mas não na cidade. Era alto, com cabelos encaracolados e uma voz de âmbar que deslizava através das pessoas. Tinha o mesmo ar de calma autoconfiança que Jimmy ‑ o tipo de ar frequente nos homens que ou eram muito bonitos ou raramente se deixavam assaltar pela dúvida.
Custava‑lhe imaginar Dave com aqueles dois homens, mesmo quando miúdos.
Sim ‑ dissera.
Bom, um carro parou junto de nós, eu entrei e, pouco tempo
depois, consegui fugir.
Fugir?
Ele assentira.
Não foi grande coisa, querida.
Mas, Dave...
Ele pousara‑lhe um dedo nos lábios.
‑ É o fim da história, está bem?
Estava a sorrir, mas Celeste vira‑lhe uma... o que seria?... uma espécie de histeria nos olhos.
‑ Lembro‑me... o quê?... de jogar à bola e de dar pontapés
em latas ‑ continuara Dave ‑, e de frequentar a Looey‑Dooey, a tentar manter‑me acordado nas aulas. Lembro‑me de algumas festas de anos, e merdas assim. Mas, poça, foi uma época bem chata. Já o liceu...
Ela deixara morrer o assunto, como fizera quando ele lhe mentira a respeito do modo como perdera o emprego na American Messenger Service (Dave dissera que fora por causa de cortes orçamentais, mas nessa mesma altura outros tipos do bairro estavam a deixar as ruas e a arranjar emprego a torto e a direito), ou quando ele lhe dissera que a mãe morrera de um ataque cardíaco, quando toda a gente sabia que Dave chegara uma tarde a casa, quando andava no último ano do liceu, e a encontrara sentada junto ao fogão, com o gás aberto e as portas da cozinha fechadas e toalhas a tapar as frestas. Dave, Celeste chegara a essa conclusão, precisava das suas mentiras, precisava de reescrever a sua história e moldá‑‑la de modo a transformá‑la em qualquer coisa que pudesse aceitar e arrumar num canto. E se isso fazia dele uma pessoa melhor ‑ um marido apaixonado, ainda que por vezes distante, e um pai atento ‑, quem tinha o direito de julgá‑lo?
Aquela mentira, no entanto, pensou Celeste enquanto enfiava uns jeans e uma das camisas de Dave, podia enterrá‑lo. Enterrá‑los aos dois, agora que ela se tornara culpada de obstrução à justiça ao lavar as roupas. Se Dave não lhe contasse tudo, não poderia ajudá‑lo.
E quando os polícias aparecessem (e haviam de aparecer, aquilo não era a TV; o mais estúpido e bêbedo dos detectives era muito mais esperto do que qualquer deles tratando‑se de crimes), partiriam a história de Dave como um ovo na beira de uma frigideira.
A mão direita de Dave estava a matá‑lo. Os nós dos dedos tinham inchado até ao dobro do tamanho normal e os ossos mais próximos do pulso davam a impressão de querer furar a pele. Teria, pois, uma boa desculpa para lançar bolas fáceis a Michael, mas recusava fazê‑lo. Se o miúdo não conseguisse bater uma bola de Wiffle, mesmo com curvas e efeitos, nunca conseguiria seguir uma bola a sério, viajando ao dobro da velocidade, e acertar‑lhe com um taco cerca de dez vezes mais pesado.
O filho era pequeno para sete anos, e demasiado confiado para este mundo. Via‑se‑lhe na abertura do rosto, no brilho de esperança dos olhos azuis. Dave amava essa faceta de Michael, mas ao mesmo tempo detestava‑a. Não sabia se teria a força suficiente para lha tirar, mas sabia que muito em breve teria de tentar, ou o mundo encarregar‑se‑ia de o fazer por ele. Aquela coisa tenra, quebrável, que havia no filho era a maldição dos Boyle, a mesma coisa que fazia com que Dave, aos trinta e cinco anos, fosse constantemente confundido com um aluno da universidade e obrigado a mostrar um documento de identidade nas casas de bebidas fora do bairro. Mantinha a mesma cor de cabelos desde a idade de Michael, nem uma ruga lhe sulcava o rosto e os olhos azuis, como os do filho, eram vivos e inocentes.
Viu Michael fincar bem os pés, como lhe tinha ensinado, ajustar o boné e erguer o taco acima do ombro. Balouçou um pouco os joelhos, flectindo‑os, um hábito que Dave andava pouco a pouco a tentar fazê‑lo perder, mas que estava sempre a reaparecer, como um tique, e Dave lançou uma rápida, na esperança de explorar aquela fraqueza, escondendo o efeito ao soltar a bola antes de o braço ficar completamente esticado, sentindo a dor trespassar‑lhe a palma da mão.
Michael, no entanto, deixara de flectir os joelhos mal Dave iniciara o movimento, apesar de muito rápido, e quando a bola estremeceu e desceu em direcção à placa, rodou o taco num arco baixo e acertou‑lhe com toda a força. Dave viu o lampejo de um sorriso de esperança no rosto do filho, misturado com um pouco de espanto pela sua própria proeza, e esteve quase a deixar a bola passar, mas em vez disso apanhou‑a e fê‑la ressaltar no chão, sentindo qualquer coisa quebrar‑se‑lhe no peito quando o sorriso se desintegrou no rosto de Michael.
‑ Ei, ei ‑ exclamou, decidindo deixar o filho sentir a alegria de uma boa tacada ‑, essa foi boa, Yaz.
Michael estava a começar a franzir o sobrolho.
‑ Então porque foi que conseguiste apanhá‑la?
Dave apanhou a bola da relva.
‑ Não sei. Talvez porque sou muito mais alto do que os miúdos da Little League?
O sorriso de Michael estava hesitante, a desejar romper outra vez. ‑Sim?
Deixa‑me perguntar‑te uma coisa... conheces algum miúdo
do segundo ano que tenha um metro e setenta e cinco?
Não.
E eu tive de saltar para apanhá‑la.
Pois foi.
Pois foi. Apesar de ter um metro e setenta e cinco.
Michael estava agora a rir. Era o riso de Celeste, ondulante.
OK...
Mas estás a flectir os joelhos.
Eu sei, eu sei.
Uma vez que te ponhas em posição, pá, não mexes mais.
Mas o Nomar...
‑ Sei tudo a respeito do Nomar. E do Derek Jeter também.
São os teus heróis, OK. Quando estiveres a ganhar dez milhões,
podes fazer o que quiseres. Até lá?
Michael encolheu os ombros, deu um pontapé na relva.
Mike. Até lá?
Michael suspirou.
Até lá, concentro‑me nas regras básicas.
Dave sorriu, atirou a bola ao ar, apanhou‑a sem olhar.
‑ De qualquer modo, foi uma boa tacada.
Palavra?
Pá, aquela bola ia para o Point. Ia sair da cidade.
Sair da cidade ‑ repetiu Michael, e deixou ondular mais uma
das suas gargalhadas da mãe.
Quem é que vai sair da cidade?
Voltaram‑se ambos e viram Celeste a observá‑los do alpendre, com os cabelos atados na nuca e descalça, a camisa do marido a pender solta por cima dos jeans desbotados.
Olá, Mã.
Olá, querido. Vais sair com o teu pai?
Michael olhou para o pai. De repente, aquilo era um segredo só entre os dois. Fez um risinho.
Ná, Mã.
Dave?
A bola em que ele acertou, querida. Ia sair da cidade.
Ah. A bola.
‑ Foi em cheio, Mã. O pai apanhou‑a só por ser tão alto.
Dave sentia‑a observá‑lo mesmo estando a olhar para Michael.
A observá‑lo, à espera, a querer perguntar qualquer coisa. Recordou a voz rouca dela, na noite anterior, quando se levantara do chão da cozinha e o agarrara pelo pescoço e chegara a boca ao ouvido dele e dissera, «Eu sou tu. E tu és eu.»
Não percebera que diabo queria ela dizer com aquilo, mas gostara do som das palavras, e a rouquidão das cordas vocais tinha‑o levado muito mais perto do clímace.
Agora, porém, tinha a sensação de que aquilo era apenas mais uma tentativa de Celeste de lhe entrar na cabeça, para espiolhar, e isso irritou‑o. Porque quando as pessoas lá entravam, não gostavam do que viam e fugiam a correr.
‑ Que se passa, querida?
Oh, nada. ‑ Celeste envolveu‑se nos braços, apesar de o dia
estar a aquecer rapidamente. ‑ Mike, já comeste?
Ainda não.
Celeste olhou para Dave de sobrolho franzido, como se fosse o crime do século o puto bater umas quantas bolas antes de se encher de açúcar com aqueles cereais vermelhos que comia.
‑ A tua tigela está cheia e há leite em cima da mesa.
‑ Óptimo. Estou esfomeado ‑ disse Michael, e Dave sentiu
uma traição no modo como ele atirou o taco para a relva e correu
para os degraus. Ah, estavas esfomeado? E eu tapei‑te a boca com fita, de modo que não pudeste dizer‑me, não foi? Porra.
Michael passou a correr pela mãe e começou a subir as escadas que davam acesso ao terceiro andar como se receasse que elas desaparecessem se não chegasse lá acima suficientemente depressa.
A fugir ao pequeno‑almoço, Dave?
A dormir até ao meio‑dia, Celeste?
São dez e um quarto ‑ respondeu Celeste, e Dave sentiu toda
a boa vontade que tinham reintroduzido no casamento com a loucura da noite interior desfazer‑se em fumo e ser levada pelo vento para os quintais que ficavam para lá do deles.
Forçou um sorriso. Se o fizesse suficientemente real, ninguém conseguia dar‑lhe a volta.
‑ O que é que há, querida?
Celeste desceu até ao quintal, os pés a porem uma nota de cas‑tanho‑claro na relva.
Que aconteceu à navalha?
O quê?
A navalha? ‑ sussurrou ela, espreitando por cima do ombro
para a janela do quarto de McAlister. ‑ A que o assaltante tinha.
O que foi que lhe aconteceu, Dave?
Dave atirou a bola ao ar, apanhou‑a atrás das costas.
Desapareceu.
Desapareceu? ‑ Celeste franziu os lábios e olhou para a relva.
‑ Merda, Dave.
Merda o quê, querida?
Desapareceu para onde?
Desapareceu.
Tens a certeza?
Dave tinha a certeza. Sorriu, olhou‑a nos olhos.
Absoluta.
Tem o teu sangue. O teu ADN, Dave. Desapareceu de tal maneira que nunca conseguirão encontrá‑la?
Dave não tinha resposta para aquela, de modo que se limitou a olhar para a mulher até ela mudar de assunto.
Já viste o jornal desta manhã?
Claro.
Traz alguma coisa?
A respeito de quê.
A respeito de quê? ‑ silvou Celeste.
Oh... oh, pois. ‑ Dave abanou a cabeça. ‑ Não, não traz nada.
Nenhuma referência. Lembra‑te, querida, era muito tarde.
Era tarde. Ora vamos. As páginas da cidade? São sempre as
últimas a entrar, à espera dos registos da Polícia.
Agora trabalhas num jornal, é?
Isto não é brincadeira, Dave.
Não, querida, não é. Estava só a dizer que não vem nada no
jornal da manhã. Só isso. Porquê? Não sei. Vamos ver o noticiário
do meio‑dia, a ver o que é que aparece.
Celeste voltou a olhar para a relva, assentiu várias vezes para si mesma.
‑ Vamos ver alguma coisa, Dave?
Dave recuou dois passos, afastando‑se dela.
Quero dizer, a respeito de um preto ter aparecido morto à
pancada no parque de estacionamento do... onde é que foi?
No, ah, Last Drop.
O... ah... Last Drop?
Sim, Celeste.
Oh. OK, Dave. Tudo bem.
E deixou‑o. Voltou‑lhe as costas e subiu os degraus do alpendre, entrou em casa, e Dave ouviu os passos leves dos pés descalços dela escadas acima.
Era o que eles faziam. Deixavam‑nos. Talvez nem sempre fisicamente. Mas emocionalmente, mentalmente? Nunca estavam por perto quando se precisava deles. Fora o mesmo com a mãe. Na manhã seguinte aos polícias terem‑no levado a casa, a mãe preparara‑lhe o pequeno‑almoço, a cantarolar «Old MacDonald», voltando de vez em quando a cabeça para lhe lançar um sorriso nervoso por cima do ombro, como se ele fosse um inquilino em relação ao qual não se sentisse muito segura.
Colocara um prato com ovos mal passados, bacon queimado e torradas moles diante dele e perguntara‑lhe se queria sumo de laranja.
‑ Mã ‑ perguntara ele ‑, quem eram aqueles tipos? Porque foi
que...?
Davey ‑ interrompera‑o ela ‑, queres sumo de laranja? Não
ouvi.
Está bem. Ouça. Mã, não sei porque foi que eles me levaram...
Aqui tens. ‑ Pousando o copo de sumo diante dele. ‑ Come
o teu pequeno‑almoço, enquanto eu vou... ‑ Agitara as mãos para a cozinha, sem fazer a mínima ideia de que porra ia fazer. ‑ Vou... lavar a tua roupa. Está bem? E depois vamos ao cinema. O que é que achas?
Dave olhara para a mãe, à procura de qualquer coisa que estivesse à espera que ele abrisse a boca e lhe contasse, lhe contasse a respeito do carro e da cabana no bosque, e do cheiro da loção de barba do grande. Em vez disso, vira uma alegria dura, brilhante, o ar com que ela por vezes se punha quando se preparava para sair nas noites de sexta‑feira, a tentar encontrar a roupa exacta para vestir, desesperada com esperança.
Dave baixara a cabeça e comera os ovos. Ouvira a mãe sair da cozinha, a cantarolar «Old MacDonald» enquanto atravessava o vestíbulo.
Ali de pé no quintal, agora, com os nós dos dedos a doerem‑
‑lhe, voltava a ouvi‑lo. O Velho MacDonald tinha uma quinta. E lá era tudo do melhor. Arava‑se e semeava‑se e ceifava‑se e colhia‑se e era tudo óptimo. Todos se davam bem, até as galinhas e as vacas, e ninguém precisava de falar a respeito do que quer que fosse, por
que nunca acontecia nada, e ninguém tinha segredos porque os segredos faziam mal às pessoas, pessoas que não comiam os ovos, pessoas que entravam em carros que cheiravam a maçãs com homens desconhecidos e desapareciam durante quatro dias, e quando voltavam a casa descobriam que todas as pessoas que conheciam tinham desaparecido também e sido substituídas por sósias sorridentes que faziam praticamente tudo menos ouvir‑nos. Praticamente tudo
menos isso.
Homens‑Rãs No Pen
A primeira coisa que Jimmy viu quando se aproximou da entrada de Roseclair Street para o Pen Park foi uma carrinha K‑9 estacionada em Sydney Street, com as portas de trás abertas e dois agentes a tentar conter seis pastores‑alemães presos pelas compridas trelas. Tinha ido a pé da igreja até à Roseclair, fazendo um grande esforço para não correr, e juntara‑se ao pequeno grupo de curiosos reunido na passagem superior que galgava a Sydney. Estavam junto à base da rampa onde a Roseclair iniciava a subida para atravessar o canal, perdendo o nome do outro lado e passando a chamar‑se Va‑lenz Boulevard ao deixar Buckingham e entrar em Shawmut.
Onde o grupo se juntara, podia trepar‑se até ao topo da parede de retenção de cimento, com quatro metros e meio de altura, que fechava a Sydney, e ver lá de cima a última rua que corria no sentido norte‑sul nos East Bucky Flats, com uma enferrujada guarda de ferro apertada contra os joelhos. Uns poucos metros mais para leste, a guarda dava lugar a uma escada de pedra calcária vermelha. Quando eram miúdos, costumavam levar as namoradas para ali e sentavam‑se no meio das sombras, passando garrafas de cerveja de uns para os outros e vendo as imagens tremeluzirem no ecrã branco do Hurley's Drive‑in. Por vezes, Dave Boyle acompanhava‑os, não porque alguém gostasse particularmente de Dave, mas porque ele vira praticamente toda a porra dos filmes que alguma vez tinham sido feitos e, quando estavam pedrados, obrigavam‑no a recitar as frases enquanto olhavam para o ecrã silencioso. Dave entrava de tal maneira no papel que chegava a mudar a inflexão da voz conforme as personagens. Então, de repente, revelara‑se bom a jogar basebol, fora para a Don Bosco e tornara‑se uma estrela, e tinham deixado poder de levá‑lo a reboque para todo o lado só para se divertirem.
Jimmy não fazia a mínima ideia de por que razão recordava tudo aquilo naquele momento, ou porque estava como que petrificado, com os joelhos encostados à guarda de ferro forjado, a olhar para a Sydney, lá em baixo, excepto que tinha qualquer coisa a ver com aqueles cães, com o modo como se agitavam nervosamente presos pelas trelas, depois de terem saltado da carrinha, arranhando o asfalto com as unhas. Um dos tratadores levou um rádio à boca enquanto um helicópetro aparecia no céu por cima da Baixa e voava na direcção deles como uma gorda abelha, a tornar‑se mais gorda de cada vez que Jimmy piscava os olhos.
Um polícia que pouco mais era do que uma criança bloqueava as escadas cor de púrpura e, um pouco mais acima na Roseclair, dois carros‑patrulhas e mais alguns rapazes vestidos de azul montavam guarda junto ao caminho de acesso ao parque.
Os cães não ladravam. Jimmy voltou a cabeça e percebeu que era isso que estava a intrigá‑lo desde o instante em que os vira. Apesar de as suas vinte e quatro patas se moverem para trás e para a frente no asfalto, era um movimento tenso, concêntrico, como soldados a marcar passo, e Jimmy sentiu uma terrível eficência nos focinhos escuros e nos flancos encovados, e imaginou‑lhes os olhos como carvões em brasa.
O resto da Sydney parecia a sala de espera de um motim. A rua estava cheia de polícias, enquanto outros caminhavam metodicamente pela extensão de erva que precedia o parque. Do sítio onde estava, Jimmy tinha uma vista parcial do parque propriamente dito, e também lá havia uniformes azuis e casacos castanhos a progredir por entre as ervas, a perscrutar a margem do Pen, a chamar uns pelos outros.
Na Sydney, estavam reunidos à volta de qualquer coisa que se encontrava do outro lado da carrinha dos cães e vários agentes à paisana encostavam‑se a carros sem qualquer identificação estacionados no lado oposto da rua, a beberricar café, mas nenhum deles estava a armar em parvo como os chuis costumam fazer, a contar uns aos outros histórias de guerra de turnos recentes. Jimmy sentia pura tensão ‑ nos cães, nos chuis silenciosos encostados aos carros, no helicóptero, que já não parecia uma abelha e passava agora a rugir por cima da Sidney, voando baixo, antes de desaparecer no parque, do outro lado das árvores importadas e do ecrã do drive‑in.
‑ Eh, Jimmy. ‑ Ed Deveau, abrindo um pacote de M&M com
os dentes, tocou‑lhe com o cotovelo.
‑ O que é que se passa, Ed?
Deveau encolheu os ombros.
Aquele helicóptero é o segundo que aparece. O primeiro
andou a fazer passagens por cima da minha casa há coisa de meia hora, e eu disse à patroa, «Querida, mudámo‑nos para Watts e ninguém me disse nada?» ‑ Despejou mais um monte de M&M para dentro da boca e voltou a encolher os ombros. ‑ Por isso vim até
aqui ver qual era o motivo de toda esta choldra.
O que foi que ouviste?
Deveau agitou a mão no ar, diante deles.
‑ Nada. Estão mais fechados do que a bolsa da minha mãe. Mas
estão a sério, Jimmy. Quer dizer, merda, bloquearam a Sydney de todos os ângulos possíveis... chuis e barreiras na Crescent, na Har‑borview, na Sudan, na Romsey, por todo o lado até à Dunboy, segundo me disseram. As pessoas que moram na rua não podem sair
de casa, e estão todas lixadas. Ouvi dizer que têm barcos a subir e a descer o Pen, e o Boo Bear Durkin telefonou a dizer que tinha visto homens‑rãs, da janela dele. ‑ Apontou com a mão. ‑ Olha para aquela merda.
Jimmy seguiu a direcção do dedo de Deveau e viu três chuis a arrastarem um bêbedo para fora de um dos velhos prédios queimados no lado oposto da Sydney. O bêbedo não estava a gostar do tratamento e debateu‑se até que um dos chuis lhe deu um encontrão que o fez descer aos rebolões os últimos degraus calcinados. O cérebro de Jimmy ficara meio preso ao que Ed Deveau dissera instantes antes: homens‑rãs. Não mandariam homens‑rãs para dentro de água se andassem à procura de qualquer coisa boa, qualquer coisa viva.
‑ Não estão a brincar. ‑ Deveau assobiou, e então olhou para as roupas de Jimmy. ‑ Porque é que estás todo aperaltado?
‑ A primeira comunhão da Nadine. ‑Jimmy viu um dos polícias levantar o bêbedo do chão e dizer‑lhe qualquer coisa ao ouvido antes de o empurrar para um carro verde‑azeitona que tinha a
sereia e a luz rotativa postas de lado no tejadilho, por cima da porta do condutor.
‑ Eh, parabéns ‑ disse Deveau.
Jimmy sorriu um agradecimento.
‑ Então que raio estás tu aqui a fazer? ‑ perguntou Deveau,
olhando para o outro extremo da Roseclair na direcção de Saint
Cecilia's, e Jimmy sentiu‑se subitamente ridículo. Que raios estava ele ali a fazer, com a sua gravata de seda e o seu fato de seiscentos dólares, a raspar os sapatos nas ervas que nasciam por baixo da guarda de ferro?
Katie, lembrou‑se.
Mas continuava a parecer ridículo. Katie faltara à primeira comunhão da meia‑irmã para curtir uma bebedeira ou para ouvir um pouco mais de conversa de almofada do último namorado que arranjara. Merda. Porque havia ela de ir à igreja, a menos que a levassem de rastos? Até ao baptizado da filha mais velha, ele próprio, Jimmy, passara uns bons dez anos sem pôr os pés numa igreja. E mesmo depois disso, fora só quando conhecera Annabeth que voltara a ir regularmente. Se saíra da igreja e vira os carros da Polícia a fazer a curva para a Roseclair e sentira uma... uma quê, premonição?. .. de medo?... o que é que isso significava? Nada. Fora só por estar preocupado com Katie... e chateado com ela, também... que a filha lhe ocupara os pensamentos enquanto via os patas de chumbo entrar no Pen.
Mas agora? Agora sentia‑se estúpido. Estúpido, e com umas roupas idiotas, e completamente parvo por ter dito a Annabeth que levasse as miúdas para o Chuck E. Cheese's, que ele ia lá ter depois, e Annabeth a olhar‑lhe para a cara com uma mistura de exasperação, confusão e fúria que mal conseguia conter.
Voltou‑se para Deveau.
‑ Só por curiosidade, como toda a gente, suponho. ‑ Deu uma
palmada no ombro de Ed. ‑ Vou‑me pôr a andar ‑ disse, e, na
Sydney, um polícia atirou a outro um conjunto de chaves e o segundo polícia sentou‑se ao volante da carrinha dos cães.
Tudo bem, Jimmy. Cuida de ti.
Tu também ‑ respondeu Jimmy, lentamente, ainda a olhar
para a rua, enquanto a carrinha recuava e parava e engatava nova mudança e voltava as rodas para a direita, e Jimmy voltou a sentir aquela certeza malévola.
Era uma coisa que se sentia na alma, e em nenhum outro lugar. Por vezes era aí que se sentia a verdade... para lá de qualquer lógica... e geralmente a pessoa tinha razão quando era o tipo de verdade que era exactamente do género que a pessoa não queria enfrentar, não tinha a certeza de conseguir enfrentar. Era o que uma pessoa queria ignorar, e era por isso que ia ao psiquiatra e passava demasiado tempo enfiada em bares e aturdia o cérebro sentada diante da televisão... para se esconder das duras e feias verdades que a alma reconhece muito antes de a mente as ter percebido.
Jimmy sentiu aquela verdade malévola espetar‑lhe pregos nos sapatos e pregá‑lo ao chão, apesar de ele querer mais do que tudo fugir, correr mais depressa do que alguma vez tinha corrido, fazer qualquer coisa em vez de ficar ali a ver aquela carrinha arrancar e começar a afastar‑se. Os pregos encontraram‑lhe o peito, um grosso e frio grupo deles, como que disparados por um canhão, e quis fechar os olhos, mas também eles estavam pregados, abertos e pregados, quando a carrinha chegou ao meio da rua e Jimmy olhou para o carro que ela estivera a esconder, o carro à volta do qual estava toda aquela gente reunida, a pincelar com pincéis, a fotografar, a espreitar lá para dentro, a passar coisas enfiadas em sacos de plástico para os polícias que estavam cá fora na rua ou no passeio.
O carro de Katie.
Não apenas do mesmo modelo. Não um que fosse parecido. O carro dela. Até à amolgadela no pára‑choques dianteiro e ao vidro que faltava no farol do lado direito.
‑ Jesus, Jimmy. Jimmy? Jimmy! Sentes‑te bem?
Jimmy ergueu os olhos para Ed Deveau, sem saber muito bem como ficara assim, de joelhos, com as mãos enclavinhadas na terra, um círculo de redondas caras irlandesas a olhar para ele.
‑Jimmy? ‑ Deveau estendeu‑lhe a mão. ‑ Estás bem?
Jimmy olhou para a mão e não soube o que responder àquilo. Homens‑rãs, pensou. No Pen.
Whitey encontrou Sean no bosque, cem metros para lá da ravina. Tinham perdido o rastro de sangue e quaisquer marcas de pegadas nas áreas mais abertas do parque. A chuvada da noite anterior apagara tudo o que a natureza não cobria.
‑ Os cães estão a farejar qualquer coisa junto ao velho ecrã do drive‑in. Queres ir até lá?
Sean assentiu, mas nesse instante o rádio dele pôs‑se a apitar.
Guarda Devine
Temos aqui um tipo...
Onde é aqui3
Do lado de Sydney Street.
Prossiga.
O homem diz que é o pai da rapariga desaparecida.
' ‑ Que porra está ele aí a fazer? ‑ Sean sentiu o sangue subir‑‑lhe à cara.
Conseguiu escapulir‑se, guarda. Que posso eu dizer?
Bom, não o deixem entrar. Já temos um psicólogo no local?
Vem a caminho.
Sean fechou os olhos. Vinha toda a gente a caminho, como se estivessem todos metidos na mesma porra do mesmo engarrafamento de trânsito.
Mantenham o pai calmo até o mirra‑cabeças chegar. Vocês
sabem como é.
Pois sabemos, guarda, mas ele perguntou por si.
Por mím?
Diz que o conhece. Diz que alguém lhe disse que estava
aqui.
Não, não, não. Ouça...
Traz uns tipos com ele.
Tipos.
Um grupo de fulanos de ar ameaçador. Metade são quase
anões, e parecem todos iguais.
Os irmãos Savage. Merda.
‑ Vou para aí ‑ disse Sean.
Mais segundo menos segundo, e Vai Savage ia dentro. E Chuck também, talvez. O sangue dos Savage, sempre quente, estava a ferver como o inferno, e os irmãos gritavam com os polícias, e os polícias estavam com ar de quem não tardava nada começava a usar os punhos e os bastões.
Jimmy mantinha‑se junto de Kevin Savage, um dos menos loucos da alcateia, a poucos metros da fita amarela da Polícia, onde Vai e Chuck apontavam para o parque e gritavam, É a nossa sobrinha que está aí dentro, seus montes de merda do caralho.
Jimmy sentia uma histeria controlada, uma necessidade dificilmente reprimida de entrar em erupção que o deixava aturdido e um tudo nada confuso. OK, era o carro dela que ali estava, a três metros de distância. E, era verdade, ninguém voltara a vê‑la desde a noite anterior. E aquilo que vira de relance no banco do condutor era sangue. Portanto, sim, a coisa tinha mau aspecto. Mas havia agora um autêntico batalhão de polícias a revistar o parque, e ainda nenhum corpo saíra lá de dentro. Era isso.
Jimmy viu o polícia mais velho acender um cigarro e quis arrancar‑lho da boca, espetar‑lhe a ponta incandescente nas veias do nariz, com toda a força, e dizer‑lhe, Vai lá para dentro, porra, procurar a minha filha.
Contou para trás a partir de dez, um truque que aprendera em Deer Island, contando lentamente, vendo os números aparecerem, flutuantes e cinzentos, na escuridão do seu cérebro. Gritar só serviria para que o expulsassem do local. Qualquer demonstração exterior de desgosto ou ansiedade, ou do medo eléctrico que lhe corria no sangue, teria o mesmo resultado. E então os Savage entrariam em nuclear, e todos eles passariam aquele dia numa cela e não na rua onde a filha fora vista pela última vez.
‑ Vai ‑ chamou.
Vai Savage recuou a mão para o lado de cá da fita amarela, afastando‑a da cara de pedra do polícia, e olhou para trás. Jimmy abanou a cabeça.
‑ Calma.
Vai avançou direito a ele.
Estes gajos estão a lixar‑nos, Jim. Não nos deixam passar.
Estão a fazer o trabalho deles.
A fazer a porra do trabalho deles, Jim? Com todo o devido
respeito, a loja de donuts fica para o outro lado.
Querem ou não ajudar‑me? ‑ perguntou Jimmy quando
Chuck foi pôr‑se ao lado do irmão, quase duas vezes mais alto do que ele, mas duas vezes menos perigoso, o que mesmo assim era bastante mais perigoso que a maior parte da população.
‑ Claro ‑ respondeu Chuck. ‑ Diz‑nos o que fazer.
‑Vai?
O que é? ‑ Os olhos de Vai rolavam‑lhe nas órbitas e a fúria
emanava dele como um cheiro.
Queres ajudar?
Sim, sim, sim, quero ajudar, Jimmy. Jesus, porra, tu sabes que
sim.
Sei ‑ respondeu Jimmy, sentindo uma subida no tom da voz
que tentou controlar. ‑ Claro que sei, Vai. É a minha filha que está ali. Ouves o que eu estou a dizer?
Kevin pousou a mão no ombro de Jimmy e Vai recuou um passo, ficando a olhar para os pés durante um instante.
‑ Desculpa, Jimmy. Está bem, pá? É que me passei. Quer dizer, merda.
Jimmy devolveu a calma à voz, forçou o cérebro a funcionar.
Tu e o Kevin, Vai? Vão a casa do Drew Pigeon. Contem‑lhe
o que se passou.
Do Drew Pigeon? Porquê?
Eu digo‑te porquê, Vai. Fala com a filha dele, a Eve, e com
a Diane Cestra também, se ela ainda lá estiver. Pergunta‑lhes quando foi a última vez que viram a Katie. A que horas, Vai, exactamente. Descobre se estiveram a beber, se a Katie tinha planos para se encontrar com alguém, com quem é que andava. Consegues fazer isso, Vai? ‑ perguntou Jimmy a olhar para Kevin, aquele que,
assim esperava, ia manter Vai na linha.
Kevin assentiu.
‑ Tudo bem, Jim
‑Vai?
Vai olhou por cima do ombro para as ervas que limitavam o parque, e depois novamente para Jimmy, com a pequena cabeça a balouçar.
Está bem, está bem.
As duas raparigas são amigas. Não apertem com elas, mas
consigam‑me essas respostas. Certo?
Certo ‑ respondeu Kevin, dando a entender a Jimmy que
manteria as coisas sob controlo. Deu uma palmada no ombro do
irmão mais velho. ‑ Anda, Vai. Vamos tratar disto.
Jimmy ficou a vê‑los afastarem‑se pela Sydney. Sentiu Chuck a seu lado, tenso, pronto para matar alguém.
Como é que te estás a aguentar?
Porra ‑ respondeu Chuck. ‑ Eu estou bem. É contigo que
estou preocupado.
Não estejas. Agora estou calmo. Não há grande alternativa,
pois não?
Chuck não respondeu, e Jimmy olhou para o outro lado da Sydney, para lá do carro da filha, e viu Sean Devine sair do parque e atravessar a zona de ervas sem tirar os olhos dele, Sean, um tipo alto que se mexia depressa, mas Jimmy continuava a ver‑lhe na cara aquela coisa que sempre detestara, a expressão de um tipo que o mundo sempre desejou ter, e Sean a usá‑la como um crachá ainda maior do que o que trazia preso ao cinto, a lixar as pessoas com ela ainda que nem sequer se apercebesse disso.
‑Jimmy ‑ disse Sean, e apertou‑lhe a mão. ‑ Como vai isso, pá.
Olá, Sean. Disseram‑me que estavas aqui.
Desde o começo da manhã. ‑ Sean olhou para trás, por cima
do ombro, e depois de novo para Jimmy. ‑ Ainda não tenho nada
para te dizer, Jimmy.
Ela está ali dentro? ‑ Jimmy ouviu o tremor na sua própria
voz.
Não sei, Jim. Não a encontrámos. Isso posso eu dizer‑te.
Então deixa‑nos entrar ‑ sugeriu Chuck. ‑ Podemos ajudar
a procurar. Vê‑se todos os dias nos jornais, cidadãos vulgares a procurarem miúdos desaparecidos e essas merdas.
Sean manteve os olhos em Jimmy, como se Chuck nem ali estivesse.
É um pouco mais do que isso, Jimmy. Não podemos permitir a entrada a qualquer pessoal alheio à Polícia até termos revistado cada centímetro quadrado do local.
E qual é o local?
De momento, o raio do parque inteiro. Ouve ‑ Sean deu uma
pequena palmada no ombro de Jimmy ‑, vim até aqui para lhes dizer que não há nada que possam fazer, para já. Lamento. Lamento muito. Mas é assim. Logo que soubermos qualquer coisa... qual quer coisa, Jimmy, dizemos‑te imediatamente. Tens a minha palavra.
Jimmy assentiu e tocou no cotovelo de Sean.
Posso falar contigo um instante?
Claro.
Deixaram Chuck Savage no passeio e afastaram‑se alguns metros rua abaixo. Sean preparou‑se para aquilo que pensava que Jimmy ia dizer‑lhe, com os olhos de polícia voltados para ele, frios e sem misericórdia.
Aquele é o carro da minha filha ‑ começou Jimmy.
Eu sei...
Jimmy ergueu uma mão.
‑ Sean. É o carro da minha filha. Está manchado de sangue.
Ela não apareceu para trabalhar esta manhã, não apareceu na primeira comunhão da irmã. Ninguém a vê desde ontem à noite. OK?
É da minha filha que estamos a falar, Sean. Tu não tens filhos, não espero que compreendas completamente, mas vamos, pá. A minha filha.
Os olhos de polícia de Sean continuaram olhos de polícia. Jimmy não conseguira fazer sequer uma mossa.
Que queres que te responda, Jimmy? Se quiseres dizer‑me
com quem ela esteve ontem à noite, mandarei alguém falar com
essas pessoas. Se ela tinha inimigos, interrogo‑os. Queres...
Trouxeram a porra dos cães, Sean. Cães para a minha filha.
Cães e homens‑rãs.
Pois trouxeram. E temos aqui metade da porra da força policial, Jimmy. Estado e metropolitana. E dois helicópteros, e dois barcos, e vamos encontrá‑la. Mas quanto a ti, pá, não há nada que possas fazer. Pelo menos por enquanto. Nada. Estamos entendidos?
Jimmy olhou para Chuck, de pé no passeio, com os olhos postos na entrada do parque, o corpo inclinado para a frente, como que pronto a saltar através da própria pele.
Porque é que têm homens‑rãs a procurar a minha filha, Sean?
Estamos a cobrir todas as hipóteses, Jimmy. Temos um
corpo de água, é assim que o revistamos.
Ela está na água?
Tudo o que ela está é desaparecida, Jimmy. Mais nada.
Jimmy desviou a cabeça por instantes, com o cérebro a funcionar deficientemente, a tornar‑se escuro e pegajoso. Queria entrar no parque. Queria começar a percorrer o trilho dos joggers e ver Katie avançar para ele. Não conseguia pensar. Tinha de entrar.
‑ Queres ter um pesadelo de relações públicas entre mãos? ‑
perguntou. ‑ Queres ter que me prender a mim e a todos os irmãos Savage por tentarmos entrar naquele parque e procurar o
nosso ente querido?
Jimmy soube no momento em que acabou de falar que era uma fraca ameaça, uma tentativa desesperada, e odiou saber que Sean também o sabia.
Sean abanou a cabeça.
‑ Não quero ter de fazê‑lo. Acredita. Mas se for obrigado, faço‑o, Jimmy, podes crer que sim. ‑ Tirou o bloco de notas do bolso abriu‑o. ‑ Ouve, diz‑me com quem ela estava ontem à noite, o que estava a fazer, e eu...
Jimmy já ia a afastar‑se quando o rádio de Sean apitou, um som alto e agudo. Voltou para trás quando Sean levou o aparelho aos lábios.
‑ Sim.
Temos qualquer coisa, guarda.
Repita.
Jimmy chegou junto de Sean, notou a emoção mal contida na voz do homem que fazia a comunicação.
‑ Disse que temos qualquer coisa. O sargento Powers quer que venha até aqui. Hum, LGP, guarda. Ou seja, agora mesmo.
A sua localização.
O ecrã do drive‑in, guarda. E, pá, é uma merda das grandes.
Provas
Celeste viu o noticiário do meio‑dia no pequeno televisor que tinham no balcão da cozinha. Passava a ferro enquanto via, consciente a dado momento de que poderiam confundi‑la com uma dona de casa dos anos 50, a tratar das lides domésticas e a cuidar dos filhos enquanto o marido saía para o trabalho levando a sua lancheira metálica e regressava a casa à espera de ter uma bebida na mão e o jantar na mesa. Mas não era nada disso, na verdade. Dave, com todos os seus defeitos, ajudava bastante em casa. Limpava o pó, aspirava e lavava a louça, enquanto Celeste gostava de lavar a roupa, de escolhê‑la, dobrá‑la e engomá‑la, gostava do cheiro quente dos tecidos limpos de nódoas e desembaraçados de rugas.
Usava o ferro de engomar da mãe, um artefacto do princípio dos anos 60. Pesava como um tijolo, silvava como uma cobra e estava constantemente a lançar, sem aviso, súbitos jactos de vapor, mas era duas vezes mais eficaz do que qualquer dos outros que Celeste, iludida pelo marketing e pelas afirmações da tecnologia da era espacial, experimentara ao longo dos anos. O da mãe fazia vincos com os quais se poderia cortar um pão e alisava com uma única e suave passagem rugas sobre as quais os mais recentes, com as suas carcaças de plástico, teriam de passar pelo menos meia dúzia de vezes.
Por vezes, Celeste irritava‑se ao pensar no modo como tudo, nos tempos que corriam, parecia ter sido feito para se estragar ‑ vídeo‑‑gravadores, carros, computadores, telemóveis ‑, ao passo que as ferramentas do tempo dos pais eram feitas para durar. Ela e Dave ainda usavam o ferro de engomar e a batedeira da mãe, e conservavam o velho telefone atarracado e preto, de disco, na mesa‑de‑cabeceira.
E no entanto, ao longo dos seus anos de casamento, tinham deitado fora diversos electrodomésticos que se tinham avariado muito antes daquilo que se poderia considerar lógico ‑ TV com cinescó‑pios estourados, um aspirador que deitava um fumo azul, uma máquina de café que produzia um líquido apenas um pouco mais quente do que a água do banho. Estes e muitos outros aparelhos tinham acabado no lixo porque quase saía mais barato comprar um novo do que mandar reparar o antigo. Quase. De modo que, claro, uma pessoa gastava mais um pouco para comprar o último modelo, que era, Celeste não tinha a mínima dúvida, precisamente o que os fabricantes pretendiam. Por vezes, Celeste dava por si a tentar conscientemen‑te ignorar a noção de que não eram só as coisas da vida, mas a própria vida que estava destinada a não ter qualquer espécie de peso ou de impacto, estando, na realidade, programada para se avariar na primeira oportunidade, de modo que as poucas partes ainda utilizáveis pudessem ser recicladas para outra pessoa qualquer e o resto deitado fora.
Ali estava ela, pois, a engomar e a pensar na sua própria dis‑pensabilidade quando, dez minutos após o início do noticiário, o apresentador olhou gravemente para a câmara e anunciou que a Polícia procurava o culpado de um violento assalto cometido na noite anterior, perto de um dos bares da cidade. Celeste aproximou‑se da TV, para aumentar o volume, e o apresentador disse: «A história, e depois Harvey com o boletim meteorológico, quando voltarmos após este curto intervalo.» No instante seguinte, Celeste estava a olhar para as mãos impecavelmente cuidadas de uma mulher a limparem uma travessa de ir ao forno que parecia ter sido mergulhada em caramelo quente, enquanto uma voz exaltava as excelências de um novo‑e‑‑ainda‑melhor detergente para a louça, e teve vontade de gritar. De algum modo, os noticiários eram como aqueles electrodomésticos de deitar fora ‑ feitos para provocar e escarnecer, rindo à socapa da nossa ingenuidade ao acreditarmos, mais uma vez, que iam cumprir o que prometiam.
Ajustou o volume do som, resistiu à tentação de arrancar o botão à merda da TV e voltou para junto da tábua de engomar. Dave saíra com Michael havia cerca de meia hora, para comprar umas joelheiras e uma máscara de apanhador, dizendo que ouviria as notícias no rádio do carro, e Celeste nem sequer se dera ao incómodo de olhar para ele para ver se estava a mentir. Michael, apesar de pequeno e magro, provara ser um excelente apanhador ‑ um «prodígio», dissera Mr. Evans, o treinador, com um braço que era um autêntico «míssil balístico», para um miúdo daquela idade. Celeste pensou nos miúdos que conhecera ao longo dos anos e que jogavam naquela posição ‑ miúdos grandes, geralmente, com narizes achatados e sem os dentes da frente ‑, e falara a Dave dos seus receios.
‑ Estas máscaras que hoje fazem, querida? São como jaulas antitubarão. Se lhes bateres com um camião, o camião parte‑se.
Passara um dia inteiro a pensar naquilo e então apresentara a Dave a sua proposta. Michael podia jogar na posição de apanhador, ou em qualquer outra no basebol, desde que tivesse o melhor equipamento e ‑ e era aqui que estava o fulcro da questão ‑ não passasse para o futebol organizado.
Dave, que nunca fora jogador de futebol5, concordara ao cabo de apenas dez minutos de argumentação mais do que perfunctória.
Por isso tinham agora saído para ir comprar equipamento, para que Michael pudesse ser um reflexo do pai, e Celeste estava de olhos postos na TV, com o ferro de engomar parado no ar a poucos centímetros de uma camisa de algodão enquanto terminava um anúncio de comida para cães e a estação voltava ao noticiário.
‑ A noite passada, em Alston ‑ disse o apresentador, e o coração de Celeste afundou‑se‑lhe no peito ‑, um aluno da Universidade de Boston foi assaltado por dois homens à saída deste popular local de diversão. Testemunhas da ocorrência dizem que a vítima, Carey Whitaker, foi agredida com uma garrafa de cerveja e se encontra internada em estado crítico no... Nessa altura soube praticamente com toda a certeza, enquanto pequenos nódulos de areia molhada lhe deslizavam para dentro do peito, que não ia ouvir uma palavra que fosse a respeito de um homem ter sido atacado ou assassinado perto do Last Drop. E quando o apresentador anunciou o boletim meteorológico e depois as notícias desportivas, soube sem qualquer margem para dúvida.
5 Entenda‑se que se trata, aqui, do chamado futebol americano. (N. doT.)
Era impossível não terem encontrado o homem. Se estivesse morto («Sou capaz de ter morto alguém, querida.»), os jornalistas teriam sabido do caso através de fontes na esquadra, ou pelos boletins da Polícia, ou simplesmente escutando a frequência dos carros‑patrulhas.
Talvez Dave tivesse sobrestimado a fúria da sua violência contra o assaltante. Talvez o assaltante... ou quem quer que fosse... se tivesse arrastado para um buraco qualquer para lamber as feridas depois de Dave se ter afastado. Talvez não fossem pedaços de miolos aquilo que vira descer pelo cano do lava‑louça, na noite anterior. Mas tanto sangue? Como poderia alguém perder tanto sangue pela cabeça e sobreviver, quanto mais afastar‑se do local?
Depois de ter engomado o último par de calças e arrumado tudo no armário de Michael, no dela ou no de Dave, voltou à cozinha e ficou de pé no meio da divisão, sem saber o que fazer a seguir. A TV estava a dar um jogo de golfe, e o som suave dos tacos a baterem nas bolas e os aplausos curtos e comedidos acalmaram temporariamente qualquer coisa dentro dela que estivera a espicaçá‑la toda a manhã. Ia mais além dos problemas com Dave e dos buracos na história dele, mas ao mesmo tempo tinha qualquer coisa a ver com isso, alguma coisa a ver com a noite anterior e com vê‑lo entrar pela porta da casa de banho cheio de sangue, todo aquele sangue nas calças dele a sujar os azulejos, a borbulhar na ferida, a tornar‑se cor‑‑de‑rosa quando rodopiava no lava‑louça e descia pelo cano.
O cano. Era isso, Fora disso que se esquecera. Na noite anterior, dissera a Dave que lavaria com lixívia o sifão do lava‑louça, para eliminar todos os vestígios de prova. Resolveu tratar disso imediatamente. Ajoelhou‑se no chão da cozinha e abriu o armário por baixo do lava‑louça, ficou a olhar para os artigos de limpeza e para os trapos até encontrar a chave‑inglesa, encostada ao fundo. Estendeu a mão para pegar‑lhe, tentando dominar a fobia que o armário do lava‑‑louça lhe provocava, a sensação irracional que sempre tinha de que havia uma ratazana escondida entre os trapos, a detectar no ar o cheiro da carne dela, a esticar o focinho naquele preciso instante, com os bigodes a vibrar...
Pegou na chave‑inglesa e remexeu com ela os montes de trapos e as latas de detergentes, só para ter a certeza, perfeitamente consciente de que o seu medo era estúpido, mas mesmo assim determinada a fazê‑lo, porque, que diabo, era por isso mesmo que lhes chamavam fobias. Detestava meter a mão em lugares baixos e escuros; Rosemary tivera um medo mortal de elevadores; o pai odiava alturas; Dave punha‑se a suar frio sempre que tinha de ir à cave.
Pôs um balde debaixo do cano, para recolher a água que escorresse. Deitou‑se de costas e levantou as mãos, afrouxou o sifão com a chave‑inglesa, acabou de desenroscá‑lo com os dedos e puxou até que o cano saiu e a água que continha caiu dentro do balde de plástico. Receou por um instante que transbordasse, mas pouco depois o fluxo diminuiu até transformar‑se num fio e Celeste viu um emaranhado de cabelos pretos e alguns caroços de milho seguirem as últimas gotas de água para dentro do balde. Faltava a porca da junção na parede do fundo do armário, e essa foi mais difícil. A porca recusava ceder, e Celeste chegou a um ponto em que estava a apoiar um pé na base do lava‑louça e a puxar a chave‑inglesa com tanta força que receou que ou a chave ou os seus pulsos se partissem. E então a porca rodou, apenas alguns milímetros, com um agudo guincho metálico, e Celeste reposicionou a chave‑inglesa e voltou a puxar, e desta vez a porca rodou o dobro, mas ainda a lutar. Minutos depois, pousou o sifão inteiro no chão da cozinha, à sua frente. Tinha os cabelos e a camisa húmidos de suor, mas invadia‑a uma sensação de realização que raiava o puro triunfo, como se tivesse enfrentado qualquer coisa recalcitrante e indiscutivelmente masculina, músculo contra músculo, e vencido. Entre o monte de trapos, encontrou uma camisa que já não servia a Michael, e torceu‑a com as mãos até conseguir enfiá‑la no cano, puxando‑a várias vezes para trás e para a frente até ficar convencida de que o sifão estava limpo de tudo excepto de ferrugem, e então enfiou a camisa num pequeno saco de plástico. Levou o cano e um frasco de Clorox para o alpendre das traseiras e lavou o interior do sifão, deixando o líquido cair do outro lado para a terra seca de um vaso cuja planta morrera no Verão anterior e passara ali todo o Inverno à espera de que a deitassem para o lixo.
Feito isto, voltou a pôr o cano no seu lugar, o que lhe pareceu muito mais fácil do que tirá‑lo de lá, e atarraxou bem as porcas das duas extremidades. Foi buscar o saco de plástico onde, na noite anterior, guardara as roupas de Dave e juntou‑lhes o saco com a esfarrapada camisa de Michael, despejou o conteúdo do balde na retrete, utilizando um passador, limpou o passador com uma toalha de papel e atirou a toalha para dentro do saco. Estava feito: todas as provas.
Ou pelo menos todas as provas em relação às quais ela podia fazer qualquer coisa. Se Dave lhe tivesse mentido ‑ a respeito da faca, a respeito de ter deixado impressões digitais em qualquer lado, a respeito de eventuais testemunhas do seu... crime? legítima defesa? ‑, então não poderia ajudá‑lo. Mas estivera à altura do desafio ali na sua própria casa. Aguentara tudo o que lhe fora atirado para cima desde que ele entrara porta dentro, na noite anterior, e resolvera a questão, Vencera. Sentiu‑se novamente inebriada, poderosa, vibrante e válida como nunca se sentira, e soube com uma súbita e refrescante certeza que era ainda jovem e forte e que não era muito definitivamente uma torradeira ou um aspirador estragados e para deitar fora. Aguentara a morte de ambos os pais e anos de crises financeiras e o susto com a pneumonia do filho quando ele tinha seis meses e não se tornara mais fraca, como pensara, só mais cansada, sim, mas isso ia mudar, agora que recordara a si mesma quem era. E era ‑ sem a mínima discussão ‑ uma mulher que não fugia a desafios, antes os enfrentava, e dizia, OK, venha lá isso. Venha lá o pior. Voltarei a levantar‑me. Sempre. Não me vou encolher num canto e morrer. Portanto, o melhor é terem cuidado.
Apanhou do chão o saco de lixo verde e torceu‑o com as mãos até fazê‑lo parecer o pescoço escanzelado de um velho, e em seguida atou‑o com um nó. Fez uma pausa, a pensar que era estranho o saco ter‑lhe lembrado o pescoço de um velho. De onde teria vindo semelhante ideia? Reparou que o ecrã da TV estava vazio. Onde instantes antes estivera Tiger Woods a caminhar pelo green, havia agora apenas escuridão.
Então, uma fina linha branca riscou o ecrã, e Celeste soube que se a porcaria da televisão tinha estourado o cinescópio, ia pela janela fora. Agora mesmo, que se lixassem as consequências, ia pela janela fora.
A linha branca, porém, foi substituída por uma imagem do estúdio, e uma apresentadora, parecendo muito excitada, disse:
‑ Interrompemos a emissão para lhe trazer uma notícia de última hora. Valeri Corapi está no exterior, junto ao Penitentiary Park,
em East Buckingham, onde a Polícia conduz neste momento uma
maciça operação de busca com o objectivo de encontrar uma mulher desaparecida. Valerie?
A imagem passou do estúdio para um helicóptero ‑ uma trepidante vista aérea de Sidney Street e Penitentiary Park, e daquilo que parecia um exército de polícias a preparar‑se para uma invasão. Viu dúzias de pequenas figuras, pretas como formigas àquela distância, a percorrerem o parque, e barcos da Polícia no canal. Viu uma linha das tais figuras que pareciam formigas a avançar lentamente em direcção às árvores que rodeavam o ecrã do antigo drive‑in.
O helicóptero era açoitado pelo vento, tornando a imagem muito instável, e, por um instante, Celeste deu por si a olhar para o outro lado do canal, para Shawmut Boulevard e as suas filas de parques industriais.
‑ É esta a cena aqui em East Buckingham, onde a Polícia chegou
de manhã cedo e iniciou uma operação de busca em grande escala
que ainda prossegue, ao princípio da tarde. Fontes não confirmadas
disseram à News Four que o carro abandonado da mulher desaparecida apresenta vestígios de violência. Este é, Virginia... não sei se já
consegues vê‑lo...
A câmara do helicóptero afastou‑se dos parques industriais, num estonteante movimento sinuoso, e apontou para baixo, para o carro azul‑escuro, de porta aberta, que estava parado junto ao passeio em Sydney Street, parecendo estranhamente desamparado enquanto um reboque da Polícia manobrava para se colocar em posição.
‑ Sim ‑ continuou a jornalista ‑, aquilo que estão agora a ver é,
segundo nos foi dito, o carro da mulher desaparecida. A Polícia encontrou‑o esta manhã e lançou imediatamente a operação de busca.
Ninguém quis confirmar o nome da pessoa desaparecida nem as razões desta fortíssima... tenho a certeza de que estão a ver... presença policial. No entanto, fontes próximas da News Four dizem‑nos
que as buscas parecem concentrar‑se no ecrã do antigo drive‑in, que, como sabes, serve de palco a representações teatrais durante o Verão. Mas o que aqui se passa hoje não é uma representação, é real.
Virginia?
Celeste ficou a tentar perceber o que fora exactamente que lhe tinham dito? Não estava muito certa de ter ficado a saber fosse o que fosse, excepto que a Polícia tinha, de facto, invadido o bairro como se tencionasse ocupá‑lo.
Também a apresentadora parecia confusa, como se, por detrás das câmaras, alguém estivesse a dar‑lhe deixas numa língua que ela não compreendia. Disse:
‑ Continuaremos a acompanhar esta história e a informá‑lo... à medida que formos sabendo mais. Voltamos agora ao nosso programa.
Celeste mudou várias vezes de canal, mas, ao que parecia, nenhuma outra estação estava, para já, a cobrir o acontecimento, de modo que voltou ao golfe e deixou o som alto.
Desaparecera alguém nos Flats. O carro de uma mulher fora abandonado na Sydney. Mas a Polícia não lançava aquele tipo de operação maciça ‑ e aquela era uma operação maciça; tinha reparado nos carros da estadual estacionados na rua ‑ a menos que tivesse provas de qualquer coisa mais do que uma mulher desaparecida. Tinha de haver naquele carro qualquer coisa que os alertara. O que fora que a jornalista tinha dito?
Sinais de violência. Era isso.
Sangue, teve a certeza. Tinha de ser sangue. Provas. E olhou para o saco ainda torcido que continuava a segurar e pensou:
Dave.
Chuva Vermelha
Jimmy manteve‑se do lado de fora da fita amarela da Polícia, o lado dos civis, enfrentando uma linha de polícias, a ver Sean atravessar a zona de erva e entrar no parque, sem olhar para trás uma única vez.
‑ Mr. Marcus, quer que lhe arranje um café, ou qualquer outra coisa? ‑ perguntou o chui chamado Jefferts. Estava a olhar para a testa de Jimmy, e Jimmy detectou o ligeiro desprezo e a pena naquele olhar desinteressado e no modo como o tipo usava o lado do polegar para coçar a barriga. Sean apresentara‑os, dizendo a Jimmy que aquele era o guarda Jefferts, um bom homem, e dizendo a Jef
ferts que Jimmy era o pai da mulher que, hum, a quem pertencia o carro abandonado. Arranja‑lhe qualquer coisa de que ele precise e passa‑o à Talbot quando ela chegar, e Jimmy calculou que a tal Tal‑bot era uma mirra‑cabeças com um crachá ou uma dessas desgrenhadas assistentes sociais com montes de pedidos de empréstimos de estudantes e um carro a cheirar a Burger King.
Ignorou a oferta de Jefferts, voltou‑lhe as costas e atravessou a rua para ir juntar‑se a Chuck Savage.
‑ Que raio é que se passa, Jim?
Jimmy abanou a cabeça, não duvidando de que vomitaria ali mesmo se tentasse traduzir em palavras o que estava a sentir.
Tens um telemóvel?
Sim, claro. ‑ Chuck procurou nos bolsos do blusão. Pousou
o telefone na palma da mão aberta de Jimmy, e Jimmy marcou 411,
e uma voz gravada perguntou‑lhe que cidade e estado, e ele hesitou um instante antes de falar para o aparelho, imaginando as suas palavras a viajarem milhas e milhas por fios de cobre antes de caírem no vórtice de um qualquer gargantuesco computador com luzes vermelhas em vez de olhos.
Registo pretendido? ‑ perguntou o computador.
Chuck E. Cheese's. ‑ Jimmy sentiu uma vaga de súbito e
amargo terror ao dizer um nome tão ridículo em plena rua, junto ao carro vazio da filha. Teve vontade de enfiar o telefone inteiro na boca e morder até ouvi‑lo estalar.
O computador deu‑lhe o número. Ligou, e então teve de esperar que chamassem Annabeth. A pessoa que atendera limitara‑se a pousar o auscultador em cima do balcão, e Jimmy ouviu os minúsculos ecos do nome da mulher: «Annabeth Marcus, por favor contacte o balcão da recepção. Annabeth Marcus.» Ouviu o repicar de sinos e oitenta ou noventa miúdos a correr de um lado para o outro como doidos, a puxar os cabelos uns aos outros, aos gritos, tudo isto misturado com desesperadas vozes adultas a tentarem fazer‑se ouvir acima da balbúrdia, e então o nome da mulher voltou a ser chamado, e ficou a ecoar. Jimmy imaginou‑a a erguer os olhos para o som, confusa e cansada, com o grupo inteiro da primeira comunhão de Saint Cecilia's a lutar à volta dela por uma fatia de piza.
Pouco depois, ouviu a voz dela, abafada e curiosa:
‑ Chamaram‑me?
Por um instante, Jimmy quis desligar. Que podia ele dizer‑lhe? Qual era a vantagem de lhe telefonar sem nada de concreto para lhe dizer excepto os medos da sua louca imaginação? Não seria preferível deixá‑la a ela e às miúdas na paz da ignorância por mais algum tempo?
Mas sabia que já houvera demasiada dor naquele dia, e que Annabeth ficaria magoada se a deixasse às escuras enquanto ele arrepelava os cabelos em Sydney Street, junto ao carro de Katie. Recordaria a sua felicidade com as filhas como imerecida e, pior do que isso, como uma agressão, uma falsa promessa. E nunca lho perdoaria.
Voltou a ouvir‑lhe a voz abafada: «Este?», e a seguir o raspar do auscultador quando o levantou do balcão.
‑ Estou?
‑ Querida ‑ conseguiu Jimmy dizer, antes de ter de limpar a
garganta.
Jimmy? ‑ Um toque de aspereza na voz. ‑ Onde estás tu?
Estou... Ouve... Estou em Sydney Street.
O que é que se passa?
Encontraram o carro dela, Annabeth.
O carro de quem?
Da Katie.
Encontraram? Quem? A Polícia?
Sim. Ela... desapareceu. Algures em Pen Park.
Oh, Deus Jesus. Não, está bem? Não. Não, Jimmy.
Jimmy sentiu a vaga invadi‑lo ‑ o medo, a terrível certeza, o horror dos pensamentos que mantivera encurralados no fundo de uma prateleira dentro da cabeça.
‑ Ainda não sabemos nada ao certo. Mas o carro dela esteve aqui a noite toda e a Polícia...
‑Jesus Cristo, Jimmy.
... anda a revistar o parque à procura dela.
Onde estás tu?
Estou na Sydney. Escuta...
Na porra da rua? Porque é que não estás lá dentro?
Eles não me deixam entrar.
Eles? Quem porra são eles? Por acaso ela é filha deles?
Não. Ouve...
Vai lá dentro. Ela pode estar ferida. Caída por aí num sítio
qualquer, ferida e cheia de frio.
Eu sei, mas eles...
Vou para aí.
‑OK.
Vai lá dentro, Jimmy. Meu Deus, que diabo se passa contigo?
E desligou.
Jimmy devolveu o telefone a Chuck, sabendo que Annabeth tinha razão. Tinha tão completamente razão que foi como uma facada saber que enquanto vivesse ia envergonhar‑se da impotência daqueles últimos quarenta e cinco minutos, que nunca mais seria capaz de pensar naquilo sem se encolher, sem tentar, na sua cabeça, afastar‑se a rastejar. Quando fora que se tornara aquela coisa... aquele homem que dizia sim, senhor, e não, senhor, e tem razão, senhor, a uma porra de uns chuis quando a sua filha primogénita estava desaparecida? Que fora que lhe acontecera? Quando fora que ficara atrás do balcão e entregara a pila a troco de sentir‑se, o quê, um bom cidadão?
Voltou‑se para Chuck.
‑ Ainda trazes aqueles corta‑arames debaixo do pneu sobressalente da tua carrinha?
Chuck pôs uma cara de quem foi apanhado a fazer qualquer coisa.
Um gajo tem de ganhar a vida, Jim.
Onde é que tens o carro?
Ali mais acima, na esquina da Dawes.
Jimmy começou a andar, com Chuck a trotar a seu lado.
‑ Vamos entrar ali dentro? ‑ perguntou Chuck.
Jimmy assentiu e caminhou um pouco mais depressa.
Quando Sean chegou ao troço do trilho de jogging que contornava a vedação do jardim, fazendo um aceno de cabeça a alguns dos polícias que procuravam indícios no meio das flores, a tensão de expectativa que notou na maior parte dos rostos disse‑lhe que já sabiam. Todo o parque estava saturado de uma atmosfera que já sentira muitas outras vezes em muitos outros lugares, ao longo dos anos, uma atmosfera que carregava em si uma nota de fatalismo, a sombria aceitação da morte de alguém.
Já sabiam, ao entrarem no parque, que ela estava morta, e, no entanto, um infinitesimal pedaço de todos eles teimava em agarrar‑se à hipótese contrária. Era sempre assim, um tipo chegava ao local sabendo a verdade, e então passava o mais tempo possível a esperar estar enganado. Sean trabalhara num caso, um ano antes, em que um jovem casal comunicara o desaparecimento do filho ainda bebé. Os tipos da informação tinham aparecido em força, porque o casal era branco e respeitável, mas Sean e todos os outros polícias sabiam que a história deles era uma treta, sabiam que o miúdo estava morto mesmo enquanto consolavam os dois sacanas, murmurando garantias de que o bebé estava provavelmente óptimo, seguiam pistas cretinas e detinham meia‑dúzia de desgraçados de cor vistos na área nessa manhã, para acabarem por encontrar o puto ao fim da tarde, metido num saco de aspirador e enfiado numa fenda por baixo das escadas da cave. Sean vira um maçarico chorar naquele dia, todo ele a tremer encostado ao carro‑patrulha, mas o resto dos polícias tinham um ar furioso mas não surpreendido, como se tivessem passado a noite a sonhar a mesma merda do mesmo sonho.
Era aquilo que um tipo levava para casa e para os bares e para o vestiário da esquadra ou do destacamento ‑ uma aceitação magoada de que as pessoas não prestavam, de que as pessoas eram mesquinhas e más, por vezes assassinas, e que quando abriam a boca era para mentir, sempre, e que quando desapareciam sem qualquer boa razão acabavam geralmente por ser encontradas mortas ou muito pior do que isso.
E muitas vezes o pior nem sequer eram as vítimas ‑ essas estavam mortas, ao fim e ao cabo, para lá do sofrimento e da dor. O pior era aqueles que as amavam e lhes sobreviviam. Tantas vezes transformados em mortos‑vivos, aparvalhados pelo choque, aos tropeções pelo que lhes restava de vida, sem qualquer sentimento lá dentro, só sangue e órgãos, insensíveis à dor, sem terem aprendido coisa nenhuma a não ser que o pior, às vezes, acontece mesmo.
Como Jimmy Marcus. Sean não fazia a mínima ideia de como ia olhar aquele tipo nos olhos e dizer, Sim, está morta. A tua filha está morta, Jimmy. Alguém a levou para sempre. Jimmy, que já tinha perdido uma mulher. Merda. Ei, vê lá tu, Jimmy... Deus disse que lhe devias mais uma. Veio cobrar. Espero que isto te ajude a pôr a coisa em perspectiva, pá. Até um destes dias.
Sean atravessou a pequena ponte de tábuas por cima da ravina e seguiu o trilho até ao círculo de árvores de pé diante do ecrã do drive‑in como um público pagão. Estavam todos reunidos junto aos degraus que conduziam à porta ao lado do ecrã. Viu Karen Hughes a disparar fotografias, Whitey Powers encostado ao umbral da porta, a olhar lá para dentro, a tomar notas, um assistente do médico legista ajoelhado no chão ao lado de Karen, um raio de um pelotão inteiro de guardas da estadual, à civil, e de uniformizados da metropolitana a andar de um lado para o outro atrás daqueles três, Con‑nolly e Souza a examinar qualquer coisa nos degraus, e os chefões ‑ Frank Krauser do DPB e Martin Friel da estadual, o seu próprio comandante ‑ um pouco afastados em cima do estreito palco que corria ao longo do ecrã, a falar um com o outro, de cabeças juntas e inclinadas para baixo.
Se o assistente do médico legista dissesse que ela tinha morrido ali no parque, a jurisdição cabia à estadual e o caso passava para as mãos de Sean e de Whitey. E caber‑lhe‑ia a ele, Sean, falar com Jimmy. Caber‑lhe‑ia a ele, Sean, tornar‑se íntimo e obcecado com a vida da vítima. Caber‑lhe‑ia a ele, Sean, resolver o caso e dar a toda a gente pelo menos uma ilusão de conclusão.
O DPB podia, no entanto, pedir para ficar com o caso. E Friel poderia fazer‑lhes a vontade, se quisesse, porque o parque era, ao fim e ao cabo, uma espécie de enclave na jurisdição da metropolitana, e também porque a primeira tentativa contra a vida da vítima ocorrera na cidade. Aquela história ia atrair atenções, disso tinha Sean a certeza. Homicídio num parque da cidade, a vítima encontrada num sítio que estava rapidamente a tornar‑se uma referência local e de uma espécie de subcultura pop. Sem um motivo imediatamente evidente. E sem assassino, também, a menos que o tipo se tivesse suicidado ali ao pé de Katie Marcus, o que parecia muito pouco provável, ou Sean já teria ouvido qualquer coisa. Um belo naco para os media, por pensar nisso, sobretudo considerando que havia já um par de anos que não lhes aparecia uma coisa tão suculenta. Merda, os jornalistas iam babar‑se de uma ponta à outra do Pen.
Sean não queria o raio daquele caso, o que, se a experiência anterior servia de indicativo, praticamente garantia que ia ficar com ele. Desceu a encosta em direcção à base do ecrã do drive‑in, sem tirar os olhos de Friel e de Krauser, a tentar ler o veredicto nos mais pequenos movimentos das cabeças dos dois homens. Se era Katie Marcus que ali estava ‑ e Sean não tinha muitas dúvidas a esse respeito ‑ os Flats iam explodir. Nem sequer era Jimmy que o preocupava. .. o mais certo era ficar catatónico, de todos os modos. Mas, e os irmãos Savage? Na Divisão de Crimes Graves tinham ficheiros quase com dois metros de altura a respeito de cada um daqueles filhos de puta malucos. E mesmo assim só de coisas que tinham a ver com a estadual. Sean sabia que os tipos do DPB costumavam dizer que uma noite de sábado sem pelo menos um dos Savage trancafiado era como um eclipse solar ‑ os outros chuis iam verificar pessoalmente, porque nem queriam acreditar.
No palco por baixo do ecrã, Krauser assentiu uma vez e Friel voltou a cabeça, procurou em redor até encontrar os olhos de Sean, e Sean soube que agora era com ele e com Whitey. Viu um pouco de sangue espalhado nas folhas de um arbusto junto à base do ecrã, e um pouco mais nos degraus de acesso à porta.
Connolly e Souza ergueram os olhos da mancha de sangue na escada, dirigiram a Sean um sombrio aceno de cabeça e continuaram a examinar as fendas nas juntas dos degraus. Karen Hughes endireitou‑se, e Sean ouviu o zumbido da máquina fotográfica quando ela rodou uma patilha com o polegar e a película enrolou até ao fim. Karen tirou um novo rolo da mala e levantou a tampa da máquina. Sean notou que tinha os cabelos louro‑cinza escurecidos nas têmporas e na franja. Ela voltou para ele uns olhos sem expressão, deixou cair o rolo usado dentro da mala e recarregou a máquina.
Whitey estava de joelhos ao lado do assistente do ML, e Sean ouviu‑o diser «O quê?» num seco murmúrio.
‑ Exactamente o que disse.
Tem a certeza?
Não a cem por cento, mas anda lá perto.
‑ Merda. ‑ Whitey olhou por cima do ombro e viu Sean aproximar‑se. Abanou a cabeça e sacudiu o polegar na direcção do assistente do ML.
O campo de visão de Sean alargou‑se quando chegou junto deles e os ombros dos dois homens deixaram de estar à sua frente. Olhou para o interior da porta e para o corpo que ali estava entalado. O espaço entre as paredes não chegava a um metro, e o cadáver estava sentado com as costas contra a da esquerda e os pés dobrados contra a da direita, de modo que a primeira impressão que Sean teve foi a de um feto visto no monitor de um scanner de eco‑grafia. O pé esquerdo estava descalço e cheio de lama. O pedaço de meia que restava, amarrotado e rasgado, pendia à volta do tornozelo. No pé direito tinha um sapato simples, preto, de sola rasa, também cheio de lama seca. Mesmo depois de ter perdido um sapato no jardim, mantivera o outro calçado. O assassino devia estar a persegui‑la de muito perto, a respirar‑lhe ao pescoço. E, no entanto, ela fora ali para se esconder. Devia, portanto, ter conseguido escapar‑‑lhe por um instante, o que significava que alguma coisa o atrasara.
‑ Souza ‑ chamou.
‑Sim?
Manda alguns uniformizados revistar o trilho até aqui. Eles
que procurem nos arbustos roupas rasgadas, pedaços de pele, qualquer merda desse género.
Já temos um tipo a fazer moldes das pegadas.
Pois sim, mas precisamos de mais. Tratas disso?
Trato disso.
Sean voltou a olhar para o corpo. Vestia umas calças macias, escuras, e uma blusa azul‑marinho com uma gola larga. O casaco vermelho estava rasgado e Sean deduziu que aquilo eram roupas de fim‑de‑semana, demasiado elegantes para uma rapariga dos Flats usar no dia‑a‑dia. Tinha ido a um sítio qualquer, um sítio jeitoso, talvez com um rapaz.
E acabara ali, naquele estreito corredor. As paredes cobertas de musgo tinham sido a última coisa que vira, provavelmente a última coisa que cheirara.
Era como se tivesse corrido até ali para fugir a uma chuva vermelha, e a chuvada agarrara‑se‑lhe aos cabelos e à cara, manchando‑lhe as roupas com tiras molhadas. Tinha os joelhos muito apertados contra o peito, e o cotovelo direito apoiado no joelho desse lado, o punho cerrado a tapar o ouvido, e mais uma vez Sean teve a sensação de estar a olhar para uma criança e não para uma mulher, toda enrolada e a tentar não ouvir um qualquer som horrível. Pára, pára, dizia aquele corpo. Pára, por favor.
Whitey afastou‑se e Sean agachou‑se à entrada do corredor. Mesmo com todo o sangue que cobria o corpo e fizera uma poça no chão e com o bolor agarrado às paredes de cimento, conseguia detectar o perfume dela, só uma nota muito leve, ligeiramente doce, ligeiramente sensual, um aroma muito leve, que lhe recordou namoros de liceu e carros escuros, o frenético desapertar de roupas e o toque electrizante da pele. Por baixo da chuva vermelha, viu várias nódoas negras nos pulsos, no antebraço e nos tornozelos, e soube que eram os sítios onde lhe tinham batido com qualquer coisa.
‑ Ele bateu‑lhe? ‑ perguntou.
‑ É o que parece. O sangue na cabeça? É de um golpe na parte de cima. O tipo provavelmente partiu aquilo com que estava a bater‑lhe, tal foi a força.
Do outro lado do corpo, enchendo o estreito corredor por detrás do ecrã, estavam empilhadas paletes de madeira com o que parecia serem adereços de palco ‑ escunas de madeira e torres de catedral, a proa de... seria uma gôndola veneziana? Ela nem sequer teria podido mexer‑se. Uma vez ali dentro, ficava presa. Se quem a perseguia a encontrasse, então morreria. E ele encontrara‑a.
Abrira a porta, e ela encolhera‑se, tentando proteger o corpo com barreiras tão frágeis como os próprios membros. Sean esticou a cabeça e espreitou para lá do punho cerrado, olhou para a cara dela. Estava também riscada de vermelho, os olhos cerrados com tanta força como o punho, a tentar fazê‑lo desaparecer por pura força de vontade, as pálpebras tolhidas primeiro pelo medo e agora pela rigidez da morte.
É ela? ‑ perguntou Whitey Powers.
‑Hã?
Katherine Marcus ‑ disse Whitey. ‑ É ela?
É ‑ respondeu Sean. Katie tinha uma pequena cicatriz em
curva por baixo do lado direito do queixo, quase imperceptível e esbatida pelo tempo, mas que as pessoas notavam quando a viam a andar pelo bairro, por todo o resto dela ser tão perfeito, o rosto um registo impecável da beleza morena e angulosa da mãe combinada com a do pai, mais estouvada, os cabelos e os olhos claros dele.
Cem por cento positivo? ‑ perguntou por sua vez o assistente do ML.
Noventa e nove ‑ disse Sean. ‑ O pai vai ter de fazer uma
identificação definitiva na morgue. Mas sim, é ela.
Estás a ver a nuca? ‑ Whitey inclinou‑se e, com uma caneta, levantou os cabelos.
Sean espreitou, viu que faltava um pequeno pedaço da base do crânio, viu a parte de trás do pescoço negra de sangue.
Estão a dizer‑me que levou um tiro? ‑ Olhou para o ML.
O tipo assentiu.
A mim, essa coisa aí parece‑me um buraco de bala.
Sean endireitou‑se, afastando‑se do cheiro a perfume e a sangue, a cimento coberto de musgo e a madeira molhada. Desejou, só por um instante, poder baixar o punho cerrado de Katie Marcus, como se ao fazê‑lo todos aqueles ferimentos que via e os outros que sabia irem encontrar por baixo das roupas se evaporassem e a chuva vermelha subisse dos cabelos e do corpo dela, e ela saísse daquele túmulo e se pusesse de pé, a piscar os olhos para sacudir o sono, um pouco tonta.
Ouviu barulho à sua direita, o restolhar de pés que corriam, ordens gritadas, os cães a rosnar e a ladrar numa fúria louca. Quando olhou, viu Jimmy Marcus e Chuck Savage surgirem a correr de entre as árvores na extremidade oposta do círculo, onde o terreno se tornava verde e manicurado e descia suavemente até ao ecrã, o lugar onde, no Verão, as pessoas estendiam as mantas e se sentavam na erva para assistir a uma peça de teatro.
Pelo menos oito polícias de uniforme e dois à civil convergiram para Jimmy e Chuck, e Chuck foi logo atirado ao chão, mas Jimmy era rápido e Jimmy era escorregadio. Esgueirou‑se por entre a linha de polícias com uma série de fintas aparentemente ilógicas que deixaram os perseguidores a agarrar o ar, e se não tivesse tropeçado ao descer a vertente, teria conseguido chegar junto do ecrã sem ninguém para detê‑lo excepto Krauser e Friel.
Mas tropeçou, o pé escorregou‑lhe na erva húmida, e os olhos dele cravaram‑se nos de Sean quando aterrou de barriga na erva, enterrando o queixo no chão. Um jovem guarda, todo ele cabeça quadrada e corpo de ponta‑de‑lança do liceu, caiu em cima de Jimmy como se ele fosse um trenó, e os dois escorregaram mais alguns metros pela vertente. O guarda dobrou o braço direito de Jimmy para trás e procurou as algemas.
Sean subiu para o palco e gritou.
‑ Eh! Eh! É o pai. Levem‑no para fora do parque, mais nada.
O jovem guarda ergueu a cabeça, furioso e coberto de lama.
‑ Levem‑no para fora do parque ‑ repetiu Sean. ‑ O outro também.
Voltou‑se para o ecrã, e foi então que Jimmy o chamou, com uma voz rouca, como se os gritos que lhe ecoavam dentro da cabeça tivessem finalmente encontrado as cordas vocais.
‑ Sean!
Sean deteve‑se, apanhou Friel a olhar para ele.
‑ Olha para mim, Sean!
Sean voltou‑se, viu Jimmy arquear as costas sob o peso do corpo do jovem guarda, uma mancha escura de terra no queixo, farripas de erva a penderem‑lhe da cara.
‑ Encontraste‑a? E ela? ‑ gritou Jimmy.
Sean permaneceu imóvel. Prendeu com os seus os olhos de Jimmy, manteve‑os assim até que o olhar desesperado de Jimmy viu o que Sean tinha visto, viu que estava tudo acabado, que o seu medo mais medonho se tinha materializado.
Jimmy começou a gritar e cordas de cuspo saíram‑lhe da boca. Um outro polícia desceu a vertente para ajudar o que estava em cima dele, e Sean voltou as costas. O grito de Jimmy subiu no ar como uma coisa baixa e gutural, nada de alto ou agudo, a primeira fase do contacto de um animal com a dor. Sean tinha ouvido os gritos de muitos parentes de vítimas, ao longo de todos aqueles anos. Tinham sempre uma nota de queixume, uma súplica a Deus ou à razão para que voltassem, lhes dissessem que era apenas um sonho. Mas o grito de Jimmy não tinha nada disso, apenas amor e raiva, em partes iguais, enxotando as aves das copas das árvores e ecoando pelo Pen Channel.
Sean voltou à entrada do corredor e olhou para o corpo de Katie Marcus. Connolly, o membro mais recente da secção, chegou‑se junto dele e ficaram os dois a olhar durante algum tempo sem dizerem uma palavra, e o grito de Jimmy Marcus tornou‑se mais rouco e cortante, como se engolisse cacos de vidro de cada vez que inspirava.
Sean olhou para Katie, com o punho cerrado junto ao ouvido e encharcada em chuva vermelha, e depois para lá dela para os adereços de madeira que a tinham impedido de chegar ao outro lado.
A sua direita, Jimmy continuava a gritar enquanto o arrastavam vertente acima, e um helicóptero cortou fatias de ar por cima do pequeno grupo de árvores ao fazer uma passagem baixa, a zumbir como um zangão quando se inclinou para iniciar a curva, e Sean calculou que pertencesse a uma das estações de TV. O som do motor era mais leve do que os da Polícia.
‑Já alguma vez tinha visto uma coisa assim? ‑ perguntou Con‑nolly, falando pelo canto da boca.
Sean encolheu os ombros. Pouco importava que tivesse ou não. Chegava uma altura em que uma pessoa deixava de comparar.
‑ Quer dizer, isto é... ‑ Connolly calou‑se, tentando encontrar as palavras ‑ ... isto é uma espécie de... ‑ Desviou os olhos do corpo, olhou para as árvores, com uma expressão de espantada impotência, e deu a impressão de ir continuar a falar.
Então cerrou os lábios e, ao cabo de algum tempo, desistiu de tentar encontrar um nome para aquilo.
As Cores de Ti
Encostados ao palco que corria por baixo do ecrã do drive‑‑in, Sean e o tenente‑detective Martin Friel ficaram a ver Whitey Powers dar instruções à carrinha do Departamento de Medicina Legal que descia em marcha‑atrás o declive para chegar à porta do corredor onde o corpo de Katie Marcus fora encontrado. Whitey caminhava às arrecuas, com as mãos levantadas, fazendo de vez em quando sinais à esquerda ou à direita, a voz a cortar o ar com ordens secas que lhe assobiavam por entre os dentes de baixo, como latidos de um cachorro. Os olhos saltavam atentos da fita amarela que delimitava o local para os pneus da carrinha e dos pneus para o rosto nervoso do condutor reflectido no retrovisor lateral, como se estivesse a prestar provas para um lugar numa empresa de mudanças, certificando‑se de que aquelas rodas não se desviavam mais de um ou dois centímetros do caminho que lhes traçara.
‑ Mais um pouco. A direito, agora. Mais um pouco, mais um pouco. Está bom. ‑ Quando a carrinha ficou exactamente onde a queria, desviou‑se para um lado e deu‑lhe uma palmada na traseira. ‑ Isso mesmo.
Abriu então as duplas portas traseiras de modo a tapar a vista do pequeno espaço atrás do ecrã, e Sean pensou que nunca lhe teria ocorrido criar uma barreira protectora à volta da entrada do estreito corredor onde Katie Marcus tinha morrido, e então lembrou‑se de que Whitey era um velho cavalo de batalha, uma puta batida que já sabia o que era um local do crime quando ele ainda andava a tentar apalpar as miúdas no baile do liceu e não coçar as borbulhas do acne.
Os dois assistentes do ML já iam a meio caminho para se apearem da carrinha quando Whitey lhes gritou:
‑ Não é assim que vai ser, rapazes. Vão ter de sair pela parte de trás.
Os dois homens fecharam as portas e desapareceram na traseira da carrinha para irem buscar o corpo, e Sean sentiu uma nota de finalidade naquele desaparecimento, a certeza de que agora aquilo era com ele. Os outros polícias e as equipas de técnicos e os jornalistas que pairavam lá em cima nos seus helicópetros ou espreitavam do outro lado das barreiras que fechavam o parque iriam ocupar‑se de outra coisa, e ele e Whitey aguentariam sozinhos a parte de leão do assassínio de Katie Marcus, redigindo relatórios, anotando depoimentos, trabalhando a morte dela muito depois de toda aquela gente ter passado a preocupar‑se com outra coisa ‑ acidentes de viação, roubos, suicídios em quartos fechados a cheirar a ar bafiento e a cinzeiros a transbordar.
Martin Friel içou‑se para cima do palco e ficou lá sentado, a balouçar as pernas curtas. Tinham‑no apanhado no campo de golfe e cheirava a loção solar por baixo da pólo azul e das calças de caqui. Tamborilou com os calcanhares na face do balcão e Sean detectou nele uma sugestão de contrariedade moral.
‑ Já trabalhou com o sargento Powers, não é verdade?
‑Já‑
Algum problema?
Não. ‑ Sean viu Whitey chamar à parte um guarda uniformizado da estadual e apontar para um grupo de árvores situado atrás
do ecrã.
Trabalhámos juntos no caso Elizabeth Pitek, no ano passado.
A mulher que tinha uma providência cautelar? ‑ perguntou
Friel. ‑ O ex‑marido disse qualquer coisa a respeito de papéis?
Disse: «Os papéis podem governar a vida dela, o que não
quer dizer que governem a minha.»
Apanhou vinte, não foi?
É verdade, vinte. ‑ Sean desejou que alguém tivesse arranjado à pobre mulher um pedaço de papel mais forte. O filho a crescer numa casa adoptiva, a perguntar a si mesmo o que lhe acontecera, onde porra era agora o lugar dele.
O guarda afastou‑se de Whitey, arrebanhou pelo caminho mais dois ou três colegas e dirigiu‑se às árvores.
Ouvi dizer que ele bebe ‑ disse Friel, e puxou uma perna para
cima do palco, segurando o joelho dobrado contra o peito.
Nunca o vi chegar atrasado ‑ respondeu Sean, perguntando
a si mesmo quem estaria verdadeiramente a ser julgado aos olhos de Friel, ele ou o sargento. Viu Whitey inclinar‑se e examinar um tufo de erva junto à roda traseira da carrinha, levantando as bainhas das calças como se estivesse a usar um fato Brooks Brothers.
O seu parceiro safou‑se com aquela treta da baixa médica,
torceu qualquer coisa na espinha de modo que está a recuperar na Florida, a fazer jet‑ski e pára‑pente, segundo me disseram. ‑ Friel encolheu os ombros. ‑ O Powers pediu‑o a si, quando voltasse.
Agora já voltou. Vamos ter mais incidentes como aquele último?
Sean estava à espera daquele tipo de merda, sobretudo da parte de Friel, de modo que manteve um tom de perfeito arrependimento.
Não, senhor. Foi um erro de julgamento momentâneo.
Foram vários erros.
Sim, senhor.
Se a sua vida pessoal está uma baralhada, o problema é seu,
guarda. Não deixe que isso interfira com o seu trabalho. ‑ Sean olhou para Friel e viu‑lhe nos olhos um brilho de eléctrodo carregado que
já vira noutras ocasiões, um brilho que significava que Friel estava numa posição em que não se podia discutir com ele.
Voltou a assentir com a cabeça, sem dizer palavra.
Friel dirigiu‑lhe um sorriso gelado e pôs‑se a ver o helicóptero de uma estação de televisão descrever uma curva por cima do ecrã, voando a uma altitude inferior à autorizada. A expressão dele dizia que alguém ia perder o emprego antes que o dia acabasse.
Conhece a família, não é verdade? ‑ continuou, seguindo o
helicóptero com os olhos. ‑ Cresceu aqui.
Cresci no Point.
É aqui.
‑ Aqui são os Flats. Há uma diferença.
Friel agitou a mão, num gesto de indiferença.
‑ Cresceu aqui. Foi um dos primeiros a chegar ao local e conhece esta gente. ‑ Abriu as mãos. ‑ Estou enganado?
A respeito de quê?
Da sua capacidade para tratar disto. ‑ Lançou a Sean o seu
sorriso de treinador‑de‑campo‑de‑férias. ‑ É um dos meus melhores rapazes, certo? Cumpriu o seu castigo, está pronto para voltar ao jogo?
Sim, senhor ‑ disse Sean. ‑ Pode apostar, senhor. Tudo o
que for preciso para não perder esta porra deste emprego, senhor.
Voltaram‑se ambos ao ouvirem qualquer coisa cair no chão da carrinha e viram a carroçaria descer na direcção das rodas. A carroçaria voltou a subir e Friel comentou:
‑ Já reparou que os deixam sempre cair?
Sempre. Katie Marcus, agora fechada no calor escuro do saco de plástico negro. Atirada para dentro da carrinha, os cabelos a colarem‑se ao plástico, os órgãos a tornarem‑se moles.
‑ Guarda ‑ continuou Friel ‑ sabe do que é que gosto ainda
menos do que garotos negros de dez anos mortos no fogo cruzado
de uma merda de uma guerra de gangs?
Sean sabia a resposta, mas não disse nada.
É de raparigas brancas de dezanove anos a serem assassinadas nos meus parques. Nestas alturas as pessoas não dizem, «Oh,
os imponderáveis da economia». Não têm uma conformada sensação de um mal inevitável. Não, ficam furiosas e querem ver alguém algemado no noticiário das seis. ‑ Bateu com o cotovelo em
Sean. ‑ Tenho razão ou não tenho?
Certo.
É o que elas querem, porque nós somos elas e é isso que
nós queremos. ‑ Agarrou um ombro de Sean, forçando‑o a olhar
para ele.
Sim, senhor ‑ disse Sean, porque Friel estava com aquele
estranho brilho nos olhos, como se acreditasse no que estava a
dizer do mesmo modo que certas pessoas acreditam em Deus ou
no NASDAQ ou na Internet‑como‑aldeia‑global. Friel era um Renascido dos pés à cabeça, embora Sean não soubesse dizer para o que fora que renascera, só sabia que o tenente encontrara através do seu trabalho qualquer coisa que ele mal conseguia reconhecer, qualquer coisa que proporcionava alívio, talvez até fé, uma certeza em que apoiar os pés. Havia alturas, para dizer a verdade, em que pensava que o chefe era um idiota, sempre a debitar tretas e frases feitas a respeito da vida e da morte e da maneira de endireitar o mundo, curar os cancros e formar um grande coração colectivo, se ao menos alguém se desse ao trabalho de ouvir.
Noutras ocasiões, porém, lembrava‑lhe o pai, a construir as suas casas de aves numa cave onde nenhuma ave jamais voara, e Sean amava a ideia dele.
Martin Friel era o tenente‑detective da Divisão de Homicídios do Destacamento Seis desde há um par de presidentes e, que Sean soubesse, nunca ninguém lhe chamara «Marty», ou «camarada», ou «o velho». Quem o visse na rua, diria que era contabilista, ou talvez inspector de uma companhia de seguros, uma coisa assim. Tinha uma voz suave a condizer com o rosto suave, e tudo o que lhe restava de cabelo era uma faixa castanha em forma de ferradura. Era um fulano baixinho, especialmente para alguém que subira a pulso na hierarquia da Polícia Estadual, e era fácil perdê‑lo no meio de uma multidão, porque não havia nele, nem sequer na maneira de andar, fosse o que fosse que o distinguisse. Amava a mulher e os dois filhos, esquecia‑se de tirar o talão da lavandaria da parka quando chegava o Inverno, activo na igreja, fiscal e socialmente conservador.
Aquela voz suave, aquele rosto suave escondiam, porém, uma mente que era uma densa mistura do prático e do moralista, tão densa que não restava nela espaço para dúvidas ou hesitações. Se alguém cometia um crime grave dentro da sua jurisdição ‑ e bem lixado estava quem não percebesse que era mesmo a sua jurisdição ‑ Martin Friel levava a coisa muito, mas mesmo muito a peito.
‑ Quero‑o afiado e quero‑o cortante ‑ ouvira‑o Sean dizer‑lhe no seu primeiro dia na Divisão de Homicídios. ‑ Não o quero de‑claradamente furioso, porque a fúria é uma emoção e a emoção nunca deve ser declarada. Mas quero‑o sempre bastante chateado... chateado porque as cadeiras são demasiado duras e porque todos os seus ex‑colegas da universidade andam de Audi. Quero‑o chateado por todos os patifes serem tão estúpidos que pensam que podem fazer as suas detestáveis merdas na nossa jurisdição. Suficientemente chateado, Devine, para se agarrar de tal modo aos pormenores dos seus casos que eles nunca cheguem a ser corridos do tribunal por causa de mandatos nebulosos ou falta de causa provável. Suficientemente chateado para encerrar limpamente cada um dos seus casos e enfiar esses sujos filhos da puta na merda de uma cela pelo resto da porra das suas vidas.
No destacamento, chamavam‑lhe o «Discurso de Friel» e todos os recém‑chegados à Divisão tinham de ouvi‑lo exactamente da mesma maneira. Como a maior parte das coisas que Friel dizia, uma pessoa nunca sabia qual era a parte em que ele acreditava verdadeiramente e a que não passava de conversa fiada. Mas comprava‑‑o. Ou não durava muito.
Sean estava na Divisão de Homicídios da Polícia Estadual havia já dois anos, durante esse tempo conseguira a melhor taxa de condenações de toda a secção de Whitey Powers, e Friel ainda olhava para ele, de vez em quando, como se não tivesse bem a certeza. Como estava a fazer naquele preciso instante, a avaliar qualquer coisa, a tentar decidir se ele estava à altura daquilo: uma rapariga morta no seu parque.
Whitey Powers aproximou‑se lentamente deles, a folhear o bloco de notas, e fez um aceno de cabeça a Friel.
Tenente.
Sargento Powers ‑ respondeu Friel. ‑ Em que ponto estamos?
As indicações preliminares situam a hora da morte por volta
das duas e um quarto, duas e meia da manhã. Não há sinais de ataque sexual. A causa da morte foi muito provavelmente o ferimento de bala na nuca, mas não estamos a pôr de parte a possibilidade de traumatismos resultantes do espancamento. O atirador era muito provavelmente dextro. Encontrámos a bala cravada numa palete à esquerda do corpo da vítima. Parece ser de uma Smith trinta e oito,
mas teremos a certeza depois de a Balística lhe dar uma vista de olhos. Os mergulhadores no canal andam agora à procura de armas.
Estamos na esperança de que o perpetrador tenha atirado fora a
arma, ou pelo menos aquilo com que lhe bateu, e que parece ter
sido um taco de um tipo qualquer, ou talvez um stick.
Um stick ‑ disse Friel.
‑ Dois dos rapazes da metropolitana que andam a fazer o
porta‑a‑porta na Sydney falaram com uma mulher que afirma ter
ouvido um carro bater em qualquer coisa e ir‑se abaixo à uma e quarenta e cinco, cerca de meia hora antes da HDM.
Que espécie de provas físicas temos? ‑ perguntou Friel.
Bom, a chuva lixou‑nos. Temos meia‑dúzia de moldes de pegadas, muito pouco nítidos, que podem pertencer ao assassino, um
par delas que são sem a mínima dúvida da vítima. Encontrámos vinte e cinco impressões digitais diferentes naquela porta atrás do ecrã.
Mais uma vez, podem ser da vítima, do assassino ou de vinte e cinco pessoas que não têm nada a ver com isto e costumavam vir até aqui à noite beber ou descansar a meio de uma corrida. Temos sangue do lado de dentro da porta e cá fora... uma parte pode pertencer ao assassino, ou talvez não. Muito dele é definitivamente da vítima.
Tirámos várias impressões digitais diferentes da porta do carro da vítima. Em termos de provas físicas, é o que temos até agora.
Friel assentia com a cabeça.
‑ Alguma coisa de especial que eu possa dizer ao PG quando
ele me telefonar, dentro de dez a vinte minutos?
Powers encolheu os ombros.
‑ Diga‑lhe que a chuva lixou o local do crime, e que estamos a fazer tudo o que podemos.
Friel bocejou, tapando a boca com o punho.
Mais alguma coisa que eu deva saber?
A ausência de pegadas está a chatear‑me.
‑ Tinha dito qualquer coisa a respeito da chuva...
Whitey assentiu.
Mas deixou um par delas. Apostaria a minha casa em como
são dela, porque são recentes e nuns lugares estava a enterrar os calcanhares e noutros a saltar das pontas dos pés. Encontrámos três, talvez quatro destas, e tenho praticamente a certeza de que foram
feitas pela Katherine Marcus. Mas o assassino? Nada.
A chuva? ‑ sugeriu Sean.
Explica porque é que só encontrámos três dela, admito. Mas
nem uma única do tipo, tanto quanto possamos ver? ‑ Whitey olhou para Sean, depois para Friel, e encolheu os ombros. ‑ De qualquer modo. É uma coisa que me está a chatear, mais nada.
Friel desceu do palco e bateu as mãos para sacudir o pó.
‑ Muito bem, rapazes. Têm uma equipa de seis detectives à vossa disposição. Todo o vosso trabalho de laboratório foi empurrado para a cabeça da fila e passa a gozar de prioridade. Terão tantos guardas quantos precisarem para o trabalho de rotina. Portanto, sargento, diga‑me como tenciona usar todo este potencial humano que, na nossa sabedoria, resolvemos oferecer‑lhe.
‑ Suponho que vamos agora falar com o pai da vítima e descobrir o que ele sabe a respeito dos movimentos da filha na noite passada, com quem esteve, quem poderia ter motivos para lhe fazer mal. Então iremos falar com essas pessoas, voltaremos a conversar
com a tal mulher que diz ter ouvido um carro ir‑se abaixo na Sydney.
Vamos interrogar todos os bêbedos que foram apanhados no parque e na Sydney, esperar que os técnicos do laboratório nos dêem qualquer coisa sólida com que trabalhar, impressões ou fibras de cabelo. Talvez haja pele do tipo debaixo das unhas da pequena. Ou impressões digitais na porta do carro. Ou talvez ele fosse o namorado e se tivessem zangado. ‑ Whitey voltou a encolher os ombros
e deu um pontapé na terra. ‑ Acho que é isto, para já.
Friel olhou para Sean.
‑ Havemos de apanhá‑lo ‑ disse Sean.
Friel fez cara de quem estava à espera de melhor, mas acabou por assentir e deu uma ligeira palmada no cotovelo de Sean antes de afastar‑se do palco e encaminhar‑se para o local onde o tenente Krauser do DPB conversava com o respectivo chefe, o capitão Gil‑lis, do D‑6. Os três juntos voltaram‑se e lançaram a Whitey e a Sean os seus melhores olhares «Vejam lá se não lixam esta merda».
‑ «Havemos de apanhá‑lo» ‑ resmungou Whitey. ‑ Quatro anos
na universidade e foi o melhor que conseguiste arranjar?
Os olhos de Sean tornaram a encontrar os de Friel por um instante. Fez novo aceno de cabeça que, pelo menos assim esperava, ressumava competência e confiança.
‑ Vem no manual ‑ disse, em resposta a Whitey. ‑ Logo a seguir a «Havemos de caçar o filho da puta» e antes de «Deus seja louvado». Não leste?
Whitey abanou a cabeça.
‑ Estive de baixa, nesse dia.
Voltaram‑se quando o assistente do ML fechou as portas traseiras da carrinha e contornou a viatura para se sentar ao volante.
Alguma teoria? ‑ perguntou Sean.
Se fosse há dez anos ‑ respondeu Whitey ‑, apostaria num
rito de iniciação de um gang qualquer. Mas agora? Merda. A taxa de criminalidade desceu, as coisas tornaram‑se muito menos previsíveis. E tu?
Namorado ciumento, mas só pela estatística.
Bateu‑lhe com um taco} Digo‑te que é melhor esse namorado ter uma história de problemas de controlo de agressividade.
Têm sempre.
O assistente do ML abriu a porta do condutor e olhou para Whi‑tey e para Sean.
Disseram‑me que há alguém que quer ir connosco.
Somos nós ‑ respondeu Whitey. ‑ Ponham‑se à nossa frente assim que sairmos do parque, mas, eh, vamos levar parentes connosco, de modo que vejam lá se não a largam no corredor, quando
chegarmos. Faço‑me entender?
O homem assentiu e subiu para a carrinha.
Whitey e Sean instalaram‑se num carro‑patrulha e arrancaram
à frente, em direcção à base da encosta, por entre duas linhas de fita amarela, e Sean viu o Sol iniciar a sua descida por entre as árvores, pintando o Pen de dourado‑ferrugem, dando um brilho avermelhado às copas das árvores, e pensou que se estivesse morto
aquela seria provavelmente uma das coisas de que teria mais saudades, das cores, do modo como por vezes surgiam de parte nenhuma e nos surpreendiam, embora por vezes também pudessem
fazer‑nos sentir ligeiramente tristes, pequenos, como se não fosse ali o nosso lugar. ?
Jimmy passara a sua primeira noite na Deer Island Correctional sentado no beliche, das nove às seis da manhã, à espera de ser atacado.
O tipo com quem partilhava a cela era um motociclista de New Hampshire chamado Woodrell Daniels que, certa noite, atravessara para Massachusetts por causa de um negócio de droga, parara num bar para beber uns whiskies e acabara por cegar um fulano com um taco de bilhar. Woodrell Daniels era grande como um boi, com o corpo coberto de tatuagens e de cicatrizes de facadas, e olhara para ele e deixara escapar um risinho seco e sussurrado que atravessara o coração de Jimmy como um cano de chumbo.
‑ Vemo‑nos mais logo ‑ dissera Woodrell, quando as luzes se apagaram. ‑ Vemo‑nos mais logo ‑ repetira, e soltara outro dos seus risinhos sussurrados.
Por isso Jimmy passara a noite inteira acordado, atento a qualquer súbito rangido no beliche por cima dele, sabendo que teria de tentar atingir a traqueia do outro se as coisas chegassem a esse ponto, perguntando a si mesmo se conseguiria fazer passar nem que fosse um bom murro pelos braços maciços de Woodrell. Acerta‑lhe na garganta, dizia para si mesmo. Acerta‑lhe na garganta, acerta‑lhe na garganta, oh Jesus, aí vem ele...
Mas não, era apenas Woodrell a agitar‑se no seu sono, fazendo gemer as molas, o peso do corpo a vergar o colchão suspenso por cima de Jimmy como a barriga de um elefante.
Nessa noite, Jimmy ouviu a prisão como uma criatura viva. Um motor que respirava. Ouviu as ratazanas a lutar e a mastigar e a guinchar num desespero louco e agudo. Ouviu murmúrios e gemidos e o ranger rítmico de molas de cama, para cima e para baixo, para cima e para baixo. Ouviu água a pingar e homens a falar durante o sono e o eco dos passos de um guarda algures noutro corredor. Às quatro, ouviu um grito ‑ apenas um ‑ tão logo morto que viveu mais tempo no eco e na memória do que na realidade, e, nessa altura, Jimmy considerou a hipótese de pegar na almofada a que apoiava as costas, trepar ao beliche de cima e sufocar Woodrell Daniels com ela. Mas tinha as mãos demasiado escorregadias e húmidas, e quem sabia se Woodrell estava mesmo a dormir ou só a fingir, e talvez ele nem sequer tivesse, para começar, a força física necessária para manter a almofada no seu lugar enquanto os enormes braços do homem lhe batiam na cabeça, lhe arranhavam a cara, lhe arrancavam pedaços de carne dos pulsos, lhe esmagavam as cartilagens das orelhas com aqueles punhos que pareciam martelos.
A última hora foi a pior. Uma luz acizentada entrou pela alta e grossa janela e encheu a cela de um frio metálico. Jimmy ouviu homens acordarem e moverem‑se descalços pelas respectivas celas. Ouviu tosses ásperas, secas. Teve a sensação de que a máquina começava a acelerar, fria e ansiosa por consumir, sabendo que morreria sem violência, sem o sabor da pele humana.
Woodrell saltou para o chão, um movimento tão repentino que Jimmy nem conseguiu reagir. Semicerrou os olhos, aprofundou o ritmo da respiração e esperou que o outro se aproximasse o suficiente para poder atingi‑lo na garganta.
Woodrell Daniels, no entanto, nem sequer olhou para ele. Tirou um livro da prateleira por cima do lavatório e abriu‑o enquanto se punha de joelhos, e então começou a rezar.
Rezou, e leu passagens das epístolas de Paulo, e depois rezou um pouco mais, e de vez em quando o tal risinho sussurrado escapava‑‑se‑lhe da garganta sem nunca interromper o fluxo das palavras, até que Jimmy compreendeu que era uma coisa involuntária e incontro‑lada, como os suspiros da mãe quando era mais nova. Woodrell provavelmente já nem sequer se apercebia de que fazia aqueles sons.
Quando Woodrell se voltou e lhe perguntou se queria aceitar Cristo como seu salvador pessoal, Jimmy soube que a noite mais longa da sua vida tinha chegado ao fim. Viu na cara de Woodrell a luz dos malditos a tentarem encontrar o caminho da salvação, e era um clarão tão evidente que perguntou a si mesmo como fora possível não ter reparado nele mal olhara para o homem.
Jimmy nem queria acreditar na sua estúpida e maravilhosa sorte ‑ fora ter à cova do leão, só que o leão era um cristão, e Jimmy teria aceitado Jesus, Bob Hope, Doris Day ou quem raio fosse que Woodrell adorasse no seu febril espírito de drogado desde que isso significasse que aquele gorila se manteria na respectiva cama durante a noite e se sentaria a seu lado durante as refeições.
‑ Andei perdido ‑ disse Woodrell Daniels a Jimmy. ‑ Mas agora, o Senhor seja louvado, fui encontrado.
E Jimmy quase respondeu em voz alta: Podes apostar que sim, meu sacana.
Até àquele preciso instante, Jimmy sempre avaliara todos os testes de paciência por comparação com aquela primeira noite. Dizia a si mesmo que podia aguentar o tempo que fosse necessário ‑ um dia ou dois ‑ para conseguir aquilo que queria, porque nada podia concorrer com aquela longa primeira noite com a máquina viva de uma prisão a rosnar e a agitar‑se à sua volta enquanto as ratazanas guinchavam e as molas das camas rangiam e os gritos morriam à nascença.
Até àquele preciso instante.
Junto à entrada de Roseclair Street para o Pen Park, Jimmy e An‑nabeth esperavam. Estavam do lado de dentro da primeira barreira que os guardas da estadual tinham montado, mas fora da segunda. Tinham‑lhes dado copos de café e cadeiras desdobráveis para se sentarem, e os guardas mostravam‑se gentis para com eles. Mas mesmo assim, tinham de esperar, e quando pediam alguma informação, os rostos fechavam‑se e pareciam um pouco tristes, e os guardas desculpavam‑se e diziam que não sabiam mais do que qualquer outra pessoa no exterior do parque.
Kevin Savage levara Nadine e Sara para casa, mas Annabeth ficara. Estava sentada ao lado de Jimmy, com o vestido cor de lavanda que usara para a primeira comunhão de Nadine, um acontecimento que já parecia ter ocorrido semanas antes, e estava silenciosa e tensa no desespero da sua esperança. Esperança de que o que Jimmy lera na cara de Sean fosse uma má interpretação. Esperança de que o carro abandonado de Katie e a ausência dela durante todo o dia e os polícias espalhados pelo Pen Park não tivessem, magicamente, qualquer relação entre si. Esperança de que aquilo que ela provavelmente sabia ser verdade fosse de qualquer maneira, de qualquer maneira, uma mentira.
Queres que te vá buscar outro café? ‑ perguntou Jimmy.
Ela dirigiu‑lhe um sorriso duro, distante.
Não, estou bem.
Tens a certeza?
Sim.
Se uma pessoa não vê o corpo, Jimmy sabia‑o, ela não estava verdadeiramente morta. Fora assim que tentara racionalizar a sua própria esperança nas poucas horas decorridas desde que ele e Chuck Savage tinham sido arrastados para fora da colina sobranceira à bacia do ecrã. Podia ser uma rapariga parecida com ela. Ou talvez estivesse em coma. Ou talvez estivesse enfiada naquele espaço por detrás do ecrã e não conseguissem tirá‑la de lá. Estava a sofrer, talvez até a sofrer terrivelmente, mas estava viva. Era essa a esperança ‑ um fio da espessura de um cabelo de bebé ‑ que tre‑meluzia na ausência de uma confirmação definitiva.
E embora soubesse que era parvoíce, uma parte dele recusava abandoná‑la.
‑ Quer dizer, ainda ninguém te disse nada ‑ observara Anna‑
beth no início da vigília de ambos à entrada do parque. ‑ Certo?
‑ Ninguém disse nada. ‑^ Jimmy acariciara‑lhe a mão, sabendo
que o simples facto de os deixarem estar no interior das barreiras da Polícia era confirmação mais do que suficiente.
E no entanto, aquele micróbio de esperança recusava morrer sem ter um corpo para que pudesse olhar e dizer: «Sim, é ela. É a Katie. É a minha filha.»
Jimmy observava os polícias de pé junto ao arco de ferro forjado que se encurvava por cima da entrada do parque. Aquele arco era tudo o que restava da penitenciária que ali se erguera antes do parque, antes do drive‑in, antes de qualquer dos que ali estavam naquele dia ter nascido. O bairro crescera à volta da penitenciária, em vez de ser ao contrário. Os carreiros tinham‑se instalado no Point, enquanto as famílias dos condenados tinham assentado arraiais nos Flats. A incorporação na cidade começara quando os carcereiros, agora mais velhos, começaram a concorrer a cargos públicos.
O intercomunicador do guarda mais próximo apitou e o homem levou‑o aos lábios.
A mão de Annabeth apertou a de Jimmy com tanta força que os ossos da dele rangeram uns contra os outros.
‑ Aqui Powers. Vamos sair.
Afirmativo.
O senhor e a senhora Marcus estão aí?
O guarda lançou um olhar a Jimmy e baixou os olhos.
OK. Terminado.
Oh, Jesus, Jimmy. Oh, Jesus ‑ disse Annabeth.
Jimmy ouviu um guinchar de pneus e viu vários automóveis e carrinhas pararem do lado de fora da barreira na Roseclair. As carrinhas tinham antenas de satélite nos tejadilhos e Jimmy viu magotes de jornalistas e operadores de câmara saltar para a rua, empurrando‑se uns aos outros, erguendo as câmaras, desenrolando cabos de microfones.
‑ Tirem‑nos dali para fora! ‑ gritou o guarda que estava debaixo do arco. ‑ Agora! Mandem‑nos embora!
Os guardas que guarneciam a primeira barreira convergiram para os jornalistas e a gritaria começou.
O que ficara junto ao arco falou para o intercomunicador
Aqui Dugay. Sargento Powers?
Powers.
Temos um bloqueio aqui fora. A imprensa.
Corram com eles.
Estamos a tratar disso, sargento.
No caminho de entrada, talvez vinte metros para lá do arco, Jimmy viu um carro‑patrulha da estadual fazer a curva e parar. Viu um tipo ao volante, a falar para um rádio, e Sean Devine sentado ao lado dele. A grelha de um outro veículo parou atrás do carro‑‑patrulha, e Jimmy sentiu a boca subitamente seca.
Fá‑los recuar, Dugay. Não quero saber se for preciso dar um
tiro no cu desses sacanas. Tira‑me daí esse lixo.
Afirmativo.
Dugay e três outros guardas passaram a correr por Jimmy e Annabeth. Dugay ia de dedo estendido, a gritar:
Estão a violar um local selado pela autoridade. Regressem
imediatamente aos vossos veículos. Não têm autorização para entrar nesta área. Regressem imediatamente aos vossos veículos.
Oh, merda ‑ disse Annabeth, e Jimmy sentiu a deslocação
de ar do helicóptero antes de o ouvir. Olhou para cima e viu‑o a pairar lá no alto, e em seguida descrever uma curva sobre o carro‑ ‑patrulha parado do outro lado do portão. Viu o condutor a gritar para o rádio, e então ouviu as sereias, uma cacofonia delas, e subitamente carros‑patrulhas azuis‑e‑prata surgiram de todos os lados,
e os jornalistas começaram a correr para os carros e o helicóptero inclinou‑se numa curva apertada e afastou‑se para o interior do parque.
Jimmy ‑ disse Annabeth, na voz mais triste que ele alguma
vez lhe tinha ouvido. ‑Jimmy, por favor. Por favor.
Por favor, o quê, querida? ‑ perguntou Jimmy, abraçando‑a.
‑ O quê?
Oh, por favor, Jimmy. Não. Não.
Era o barulho ‑ as sereias e os pneus a guinchar e as vozes a gritar e o ribombar das pás dos rotores. O barulho era Katie, morta, a gritar‑lhes aos ouvidos, e Annabeth encolhia‑se sob aqueles gritos, nos braços do marido.
Dugay voltou a passar por eles a correr e arrastou as barreiras colocadas debaixo do arco, e antes que Jimmy se apercebesse de que se tinha sequer movido o carro‑patrulha parava de novo a seu lado e uma carrinha branca contornava‑o pela direita, disparava pela Ro‑seclair e virava à esquerda. Jimmy viu as palavras Dep. Medicina Legal de Sufolk County pintadas no lado da carrinha, e sentiu todas as articulações do corpo ‑ os tornozelos, os ombros, os joelhos, as ancas ‑ ficarem quebradiças e então liquefazerem‑se.
‑ Jimmy.
Jimmy baixou os olhos para Sean Devine. Sean estava a olhar para ele da janela aberta do lado do passageiro.
‑ Jimmy, vamos. Por favor, entra.
Sean saiu do carro e abriu a porta traseira no instante em que o helicóptero regressava, desta vez mais alto, mas ainda a retalhar o ar suficientemente perto de Jimmy para que ele o sentisse nos cabelos.
‑ Mrs. Marcus. Jimmy, pá. Entrem no carro.
Ela está morta? ‑ perguntou Annabeth, e as palavras entraram em Jimmy e transformaram‑se em ácido.
Por favor, Mrs. Marcus. Entrem para o carro.
Uma falange de carros‑patrulhas formara uma dupla fila de escolta na Roseclair, com as sereias a uivar. Annabeth gritou acima do barulho:
‑ A minha filha está...?
Jimmy empurrou‑a porque não conseguia ouvir outra vez aquela palavra. Empurrou‑a através do barulho e entrou para a parte de trás do carro e Sean fechou a porta e sentou‑se no banco da frente e o polícia que estava ao volante pisou o acelerador e ligou a sereia no mesmo instante. Saíram do parque e juntaram‑se aos carros da escolta e avançaram em grupo pela Roseclair, um exército de veículos com motores que rugiam e sereias que gritavam ao vento em direcção à via rápida, a rugir, a gritar.
Estava deitada numa mesa metálica. Tinha os olhos fechados e faltava‑lhe um sapato. A pele era púrpura‑escura, uma cor que Jimmy nunca antes tinha visto.
Detectou o perfume dela, só uma nota muito, muito leve no meio do fedor a formol que enchia aquela sala tão fria.
Sean pousou a mão nas costas de Jimmy, e Jimmy falou, quase sem sentir as palavras, sabendo que naquele momento estava tão morto como o corpo estendido em cima da mesa:
Sim, é ela ‑ disse.
E a Katie ‑ disse.
É a minha filha.
Luzes
á uma cafetaria lá em cima ‑ disse Sean a Jimmy. ‑ E se fôssemos beber um café?
Jimmy continuava de pé junto ao corpo. O lençol voltara a cobri‑la, e Jimmy levantou uma ponta e olhou uma vez mais para o rosto da filha, como se estivesse a espreitar da beira de um poço, a querer saltar lá para dentro, para junto dela.
Têm uma cafetaria no mesmo edifício de uma morgue?
É verdade. É um edifício muito grande.
Parece estranho ‑ disse Jimmy, com uma voz despida de
cor. ‑ Achas que quando os patologistas lá vão toda a gente se senta no outro extremo da sala?
Sean perguntou a si mesmo se aquilo seria os primeiros estádios do choque.
Não sei, Jim.
Mr. Marcus ‑ interveio Whitey ‑, estávamos na esperança de
poder fazer‑lhe umas perguntas. Sei que o momento é difícil, mas...
Jimmy tornou a baixar a ponta do lençol sobre o rosto da filha e moveu os lábios, mas nenhum som lhe saiu da boca. Olhou para Whitey como se estivesse surpreendido por vê‑lo ali, com a caneta pousada no bloco de apontamentos. Voltou a cabeça, olhou para Sean.
‑ Já alguma vez pensaste ‑ perguntou ‑ em como a mais pequena decisão pode alterar todo o curso da nossa vida?
Sean aguentou‑lhe o olhar.
‑ Como assim?
O rosto de Jimmy estava pálido e vazio. Moveu os olhos, como se estivesse a tentar lembrar‑se de onde deixara as chaves do carro.
Ouvi uma vez dizer que a mãe do Hitler esteve quase a abortar, mas que no último instante mudou de ideias. Ouvi dizer que
ele saiu de Viena porque não conseguia vender os seus quadros. E se ele tivesse vendido um quadro, Sean? Ou se a mãe tivesse mesmo abortado? O mundo seria agora um lugar diferente. Estás a ver? Ou, digamos, uma manhã perdes o autocarro, de modo que resolves beber uma segunda chávena de café, e já que estás ali compras um bilhete da raspadinha. E o bilhete é premiado. De repente, já nãoprecisas de voltar a apanhar o autocarro. Vais para o trabalho num Lincoln. Mas tens um acidente e morres. Tudo porque, uma manhã, perdeste o autocarro.
Sean olhou para Whitey. Whitey encolheu os ombros.
‑ Não ‑ disse Jimmy ‑, não faças isso. Não olhes para ele como se eu estivesse maluco. Não estou maluco nem estou em choque.
OK, Jim.
Só estou a dizer que há fios, OK? Fios nas nossas vidas. Puxas
por um, e todo o resto é afectado. Digamos que estava a chover
em Dálias e por isso o Kennedy não ia num descapotável. Ou que
o Estaline tinha ficado no seminário. Ou que tu e eu, Sean, tínhamos entrado naquele carro com o Dave Boyle.
‑ O quê? ‑ perguntou Whitey. ‑ Que carro?
Sean levantou uma mão na direcção dele e disse a Jimmy.
Acho que me perdi.
A sério? Se tivéssemos entrado naquele carro, a vida seria hoje uma coisa muito diferente. A minha primeira mulher, a Marita, a mãe
da Katie? Era tão bonita. Era majestosa. Tu sabes, como certas mulheres latinas conseguem ser. Maravilhosa. E sabia‑o. Um tipo que quisesse chegar‑se a ela tinha de ter um valente par de tomates. E eu tinha. Era o Rei da Merda, com dezasseis anos. Não tinha medo de nada. E cheguei‑me a ela, e convidei‑a para sair. E um ano mais tarde... Cristo, eu tinha dezassete anos, era uma porra de um puto...
casámos, e ela estava grávida da Katie.
Jimmy caminhava à volta do corpo da filha, em círculos lentos, regulares.
‑ É assim, Sean... se tivéssemos entrado naquele carro, e sido levados sabe Deus para onde, e se dois filhos da puta nos tivessem feito sabe Deus o quê durante quatro dias quando tínhamos, o quê, onze anos?... não creio que fosse tão duro aos dezasseis. Acho que teria sido um caso perdido, estás a ver, a tomar Ritalin, ou fosse lá o que fosse, pelo resto da vida. Sei que nunca teria tido os tomates para convidar para sair uma mulher tão bonita e altiva como a Marita. E nesse caso nunca teríamos tido a Katie. E então a Katie nunca teria sido assassinada. Mas foi. Tudo porque nós não entrámos naquele carro, Sean. Percebes o que estou a dizer?
Jimmy olhava para Sean como se estivesse à espera de uma confirmação, mas Sean não fazia ideia de quê. Jimmy parecia ter necessidade de ser absolvido, absolvido de ter gerado uma filha que acabaria por ser assassinada.
Por vezes, durante uma corrida, Sean dava por si de novo em Gannon Street, parado no lugar no meio da rua onde ele, Jimmy e Dave Boyle tinham andado à pancada, e então erguido os olhos para verem aquele carro à espera deles. Por vezes, conseguia até sentir o cheiro a maçãs que vinha do carro. E se voltasse a cabeça muito, muito depressa, conseguia ver Dave Boyle no banco de trás do carro que dobrava a esquina, a olhar para eles, apanhado e a desaparecer da vista.
Certa vez ocorrera a Sean ‑ cerca de dez anos antes, numa farra com amigos, quando, por causa de todo aquele bourbon que bebera, lhe dera para a filosofia ‑ que talvez eles tivessem entrado no carro. Os três. E que aquilo que agora julgavam ser as suas vidas era apenas um estado onírico. Que eles os três continuavam, na realidade, a ser garotos de onze anos trancados numa cave qualquer, a imaginar no que se tornariam se conseguissem fugir e crescer.
O pior fora que aquela ideia, que Sean sempre julgara que seria a primeira vítima de uma noite de bebedeira, lhe ficara encravada no cérebro como uma pedra na sola de um sapato.
E por isso, de vez em quando, dava por si parado em Gannon Street, diante da sua antiga casa, a ter pelo canto do olho um vislumbre de Dave Boyle a desaparecer, o cheiro a maçãs a encher‑‑lhe as narinas, e a pensar. Não. Volta para aqui.
Enfrentou o olhar dorido de Jimmy. Queria dizer qualquer coisa. Queria dizer‑lhe que também ele pensara no que teria acontecido se tivessem entrado para o carro. Que a ideia do que poderia ter sido a sua vida por vezes o perseguia, pairava do outro lado das esquinas, cavalgava a brisa como o eco de um nome gritado de uma janela. Queria dizer a Jimmy que, de vez em quando, suava o seu velho sonho, aquele em que a rua lhe agarrava os pés e o empurrava para a porta aberta do carro. Queria dizer‑lhe que ficara sem saber verdadeiramente o que fazer da sua vida desde aquele dia, que era um homem que muitas vezes se sentia leve com a sua própria ausência de peso, a natureza insubstancial do seu carácter.
Mas estavam numa morgue com o corpo da filha de Jimmy estendido numa mesa metálica entre os dois e a caneta de Whitey pousada no bloco de notas, de modo que tudo o que disse em resposta ao pedido que via na cara de Jimmy foi:
‑ Anda, Jimmy. Vamos lá beber o tal café.
Annabeth Marcus era, na opinião de Sean, um raio de uma mulher dura como o diabo. Estava ali sentada, no fim de uma tarde de domingo, numa fria cafetaria municipal com o seu cheiro requentado a celofane e vapor, sete andares acima de uma morgue, a falar da enteada com frios homens municipais, e via‑se que aquilo estava a matá‑la, e no entanto recusava ceder. Tinha os olhos vermelhos, mas Sean soube, passados alguns minutos, que não ia chorar. Diante deles, nunca. De maneira nenhuma.
Enquanto falavam, Annabeth teve de parar várias vezes para respirar. A garganta fechava‑se‑lhe a meio de uma frase, como se um punho estivesse a trespassar‑lhe o esterno, a pressionar‑lhe os órgãos. Levava então a mão ao peito e abria um pouco mais a boca e esperava até ter oxigénio suficiente para continuar.
Chegou a casa, da loja, às quatro e meia da tarde, no sábado.
De que loja está a falar, Mrs. Marcus.
Annabeth apontou para Jimmy.
O meu marido é o dono do Cottage Market.
Na esquina da East Cottage com a Bucky? ‑ perguntou Whitey. ‑ O raio do melhor café da cidade.
Chegou a casa e foi tomar duche ‑ continuou Annabeth. ‑
Depois jantámos... espere, não, ela não comeu. Sentou‑se connosco, conversou com as pequenas, mas não comeu. Disse que ia jantar com a Eve e a Diane.
‑ As raparigas com quem saiu ‑ disse Whitey, dirigindo‑se a
Jimmy.
Jimmy assentiu.
Portanto, não comeu... ‑ escrevinhou Whitey.
Mas esteve com as pequenas, as nossas, as irmãs dela ‑ prosseguiu Annabeth. ‑ Falaram a respeito do desfile da semana que vem, e da primeira comunhão da Nadine. E esteve ao telefone, no quarto dela, durante algum tempo, e então, por volta das oito, saiu.
‑ Sabe a quem telefonou?
Annabeth abanou a cabeça.
O telefone está no quarto dela ‑ disse Whitey. ‑ Linha privada?
Sim.
Têm algumas objecções a que requisitemos os registos da
companhia respeitantes a essa linha?
Annabeth olhou para Jimmy, e Jimmy disse:
Não. Nenhuma objecção.
Portanto, saiu por volta das oito. Tanto quanto sabe, para ir
encontrar‑se com essas duas amigas, a Eve e a Diane?
Sim.
E a essa hora ainda estava na loja, Mr. Marcus?
‑ Sim. Fiz um turno no sábado. Do meio‑dia às oito.
Whitey virou uma folha do bloco de notas e dirigiu‑lhes a
ambos um pequeno sorriso.
Eu sei que é duro, mas estão a portar‑se muito bem.
Annabeth assentiu com a cabeça e voltou‑se para o marido.
Telefonei ao Kevin.
Sim? Falaste com as pequenas?
Falei com a Sara. Só lhe disse que já íamos para casa. Mais nada.
Ela perguntou pela Katie?
Annabeth assentiu.
O que foi que lhe disseste?
‑ Só lhe disse que já íamos para casa ‑ repetiu Annabeth, e Sean notou‑lhe uma pequena falha na voz quando pronunciou a palavra «já».
Ela e Jimmy voltaram‑se para Whitey, que lhes dirigiu outro pequeno sorriso, tranquilizador.
‑ Quero garantir‑lhes... e isto vem directamente dos chefões, na Câmara Municipal... que este caso tem prioridade absoluta. E não vamos cometer erros. O guarda Devine foi escolhido por ser amigo
da família e o nosso chefe sabe que isso o fará trabalhar ainda com mais empenho. Vai estar comigo em todas as fases da investigação, e havemos de encontrar o homem responsável pelo mal que fizeram à vossa filha.
Annabeth lançou a Sean um olhar interrogativo.
Amigo da família? Não o conheço.
Whitey franziu a testa, apanhado em falso.
Eu e o seu marido fomos amigos, Mrs. Marcus ‑ explicou Sean.
Há muito tempo ‑ disse Jimmy.
Os nossos pais trabalhavam juntos.
Annabeth assentiu com a cabeça, ainda um pouco confusa.
Mr. Marcus, passou uma boa parte da tarde de sábado na loja
com a sua filha, não é verdade? ‑ perguntou Whitey.
Sim e não ‑ respondeu Jimmy. ‑ Estive quase sempre no escritório, ao fundo da loja. A Katie trabalhava na parte da frente, com as caixas.
Mas lembra‑se de alguma coisa fora do vulgar? Ela agiu de
um modo estranho? Pareceu‑lhe tensa? Com medo? Teve uma discussão com um cliente, talvez?
Não enquanto eu lá estive. Vou dar‑lhe o número de telefone do tipo que fez a manhã com ela. Talvez tenha acontecido alguma coisa antes de eu entrar e de que ele se lembre.
Fico‑lhe agradecido. Mas enquanto lá esteve?
Foi ela própria. Estava feliz. Talvez um pouco...
O quê?
Não, nada.
Nesta fase, a mais pequena coisa pode ser qualquer coisa.
Annabeth inclinou‑se para a frente.
Jimmy?
Jimmy fez uma careta de embaraço.
Não foi nada. É que... a dada altura levantei os olhos da secretária e ela estava parada à porta. Ali parada, a beber uma Coca por uma palhinha e a olhar para mim.
A olhar para si.
É. E, por um instante, fez a mesma cara que daquela vez em
que, tinha ela cinco anos, tive de deixá‑la sozinha no carro por uns segundos para ir comprar uma coisa. Naquele dia começou a chorar, porque eu acabava de sair da prisão e a mãe tinha morrido há pouco tempo, e acho que nessa altura ela pensava que se alguém a
deixava, nem que fosse por um segundo, nunca mais ia voltar.
E então fazia aquela cara. Quer dizer, quer acabasse ou não por chorar, fazia aquela cara, como se estivesse a preparar‑se para nunca mais voltar a ver as pessoas. ‑ Jimmy aclarou a garganta e deixou
escapar um longo suspiro que lhe abriu muito os olhos. ‑ Seja
como for, eu já não via aquela expressão há um par de anos, talvez sete ou oito, mas por um instante, no sábado, foi assim que ela olhou para mim.
Como se estivesse a preparar‑se para nunca mais voltar a vê‑lo.
Sim. ‑Jimmy ficou a ver Whitey escrever aquilo no bloco de
notas. ‑ Eh, não é caso para dar tanta importância. Foi só uma expressão.
Não estou a dar‑lhe nenhuma importância especial, Mr. Marcus, prometo‑lhe. É apenas informação. É isso que faço... recolho pedaços de informação até que dois ou três desses pedaços
encaixem uns nos outros. Diz que esteve preso?
Annabeth murmurou «Jesus», muito baixo, e abanou a cabeça. Jimmy recostou‑se na cadeira.
Lá vamos nós.
Estava só a perguntar ‑ protestou Whitey.
Teria feito a mesma coisa se eu dissesse que tinha trabalhado
no Sears há quinze anos, certo? ‑ Jimmy riu‑se. ‑ Cumpri pena por roubo. Dois anos em Deer Island. Escreva lá isso no seu bloco de notas. Esse pedaço da informação vai ajudá‑lo a apanhar o tipo que matou a minha filha, sargento? Quer dizer, estou só a perguntar.
Whitey lançou um olhar na direcção de Sean.
Jim ‑ interveio Sean. ‑ Ninguém está aqui para ofender seja
quem for. Deixemos isso, voltemos ao assunto.
Áo assunto ‑ disse Jimmy.
Tirando essa cara com que a Katie olhou para ti ‑ continuou
Sean ‑, houve mais alguma coisa fora do vulgar de que consigas
lembrar‑te?
Jimmy desviou de Whitey o seu olhar de preso‑no‑pátio e bebeu um golo de café.
Não. Nada. Espera... o tal garoto, o Brendan Harris... Mas
não, isso foi hoje de manhã.
O que é que ele tem?
É apenas um miúdo do bairro. Foi à loja hoje de manhã e
perguntou pela Katie, como se estivesse à espera de vê‑la. Mas eles mal se conheciam. Foi só um pouco estranho. Não quer dizer nada.
Whitney anotou o nome de Brendan, de todos os modos.
Talvez andassem a namorar... ‑ sugeriu Sean.
‑Não.
Nunca se sabe, Jim... ‑ disse Annabeth.
Eu sei ‑ afirmou Jimmy. ‑ Ela nunca namoraria aquele miúdo.
Não? ‑ perguntou Sean.
Não.
Porque é que tens tanta certeza?
Eh, Sean, que merda é esta? Vais apertar comigo?
‑ Não estou a apertar contigo, Jim. Estou só a perguntar como é que podes ter tanta certeza de que a tua filha não namorava esse tal Brendan Harris.
Jimmy soprou para o tecto.
‑ Um pai sabe essas coisas, OK?
Sean decidiu deixar correr, para já. Passou a bola de novo a Whitey, com um aceno de cabeça.
Então? Com quem andava ela? ‑ perguntou Whitey.
Com ninguém, de momento ‑ respondeu Annabeth. ‑ Tanto
quanto soubéssemos.
E quanto a ex‑namorados? Alguém que pudesse guardar‑lhe
rancor? Um tipo a quem ela tenha posto os patins?
Annabeth e Jimmy olharam um para o outro e Sean sentiu‑o entre os dois ‑ um suspeito.
‑ Bobby O'Donnell ‑ acabou Annabeth por dizer.
Whitey pousou a caneta em cima do bloco de notas e olhou
para eles do outro lado da mesa.
‑ Estamos a falar do mesmo Bobby O'Donnell?
‑ Não sei ‑ respondeu Jimmy. ‑ Traficante de cocaína e chulo?
Cerca de vinte e sete anos?
Esse mesmo ‑ assentiu Whitey. ‑ Sabemos que é responsável por muita da merda que tem acontecido no vosso bairro nos últimos dois anos.
Mas ainda não o acusaram de coisa nenhuma.
Bem, em primeiro lugar, Mr. Marcus, eu pertenço à Polícia
Estadual. Se este crime não tem ocorrido no Pen Park, nem sequer estava aqui. East Bucky é maioritariamente jurisdição da metropolitana, e eu não posso falar pelos meus colegas da metropolitana.
Vou ver se não me esqueço de explicar essa à minha amiga
Connie ‑ interveio Annabeth, acidamente. ‑ O Bobby e os amigos estouraram‑lhe com a loja de florista.
Porquê? ‑ perguntou Sean.
Porque ela não quis pagar‑lhe.
Pagar‑lhe o quê?
Para que não lhe estourasse com a porra da loja ‑ respondeu
Annabeth, e bebeu mais um golo de café, e Sean voltou a pensar:
esta mulher é um osso duro. Quem se meter com ela fá‑lo‑á por
sua conta e risco.
‑ E a sua filha andava com ele ‑ disse Whitey.
Annabeth assentiu.
Não por muito tempo. Uns meses, não, Jim? Acabou em Novembro.
E como reagiu o Bobby? ‑ quis Whitey saber.
Marido e mulher voltaram a trocar olhares, e então Jimmy disse:
‑ Houve uma cena, uma noite. O Bobby apareceu lá em casa
com o seu cão de guarda, o Roman Fallow.
‑E?
‑ E nós deixámos bem claro que era melhor ele ir‑se embora.
‑Nós?
Vários dos meus irmãos vivem no apartamento por cima e
no apartamento por baixo do nosso ‑ esclareceu Annabeth. ‑ Eram superprotectores em relação à Katie.
Os Savage ‑ explicou Sean a Whitey.
Whitey voltou a pousar a caneta em cima do bloco de notas e, com o polegar e o indicador, apertou a cana do narÍz, entre os olhos.
Os irmãos Savage.
Sim. Porquê?
‑ Com todo o devido respeito, minha senhora, estou com um
pouco de receio de que isto se transforme numa coisa muito feia.
‑ Whitey manteve a cabeça baixa, agora a massajar a nuca. ‑ Não quero de modo nenhum ofender, mas...
‑ Isso é o que as pessoas costumam dizer antes de dizerem
qualquer coisa ofensiva.
Whitey ergueu os olhos para ela, com um sorriso surpreendido.
‑ Os seus irmãos, como deve saber, têm também alguma fama.
Annabeth enfrentou o sorriso dele com o seu próprio sorriso,
duro como pedra.
Sei muito bem o que eles são, sargento Powers. Não precisa
de andar a dançar à volta do assunto.
Um amigo meu dos Crimes Graves disse‑me, há uns meses,
que o O'Donnell andava a falar em meter a mão na agiotagem e na heroína. Ambas as coisas território exclusivo dos Savage, segundo me dizem.
Não nos Flats.
Como disse, minha senhora?
Não nos Flats ‑ interveio Jimmy, com a mão na da mulher.
‑ Quer dizer que não fazem essa merda no seu próprio bairro.
‑ Só nos dos outros ‑ disse Whitey, e deixou a frase ficar em cima da mesa durante algum tempo. ‑ Em qualquer dos casos, isso deixaria um vazio nos Flats, certo? Um vazio explorável. Que, se as minhas informações estão correctas, o Bobby O'Donnell estaria disposto a explorar.
E? ‑ perguntou Jimmy, soerguendo‑se um pouco na cadeira.
‑E?
E o que é que isso tem a ver com a minha filha, sargento?
‑ Tudo ‑ respondeu Whitey, abrindo muito os braços. ‑ Tudo,
Mr. Marcus, porque tudo o que qualquer dos lados precisava era
de uma pequena desculpa para entrar em guerra. E agora já a têm.
Jimmy abanou a cabeça, um sorriso amargo a distorcer‑lhe os cantos da boca.
‑ Oh, acha que não, Mr. Marcus?
Jimmy levantou a cabeça.
‑ Penso, sargento, que o meu bairro vai desaparecer em breve. E o crime vai desaparecer com ele. E não será por causa dos Savages, ou dos O'Donnells, ou da vossa luta contra eles. Será porque as taxas de juro estão baixas e o imposto predial está a subir e toda a gente quer mudar‑se para a cidade porque os restaurantes dos subúrbios são uma merda. E essa gente que está a vir para cá não é do género de precisar de heroína ou de seis bares por quarteirão ou de broches a dez dólares. Têm boas vidas. Gostam dos seus empregos. Têm futuros, e seguros de reforma, e belos carros alemães. Por isso quando vierem... e já estão a chegar... o crime e metade do bairro mudar‑se‑ão para outro lado. Portanto eu não me preocuparia muito com a possibilidade de o Bobby O'Donnell e os meus cunhados entrarem em guerra. Para lutar porquê?
Pelo agora ‑ respondeu Whitey.
Acredita realmente que o Bobby O'Donnell matou a minha
filha?
Acredito que os Savage podem considerá‑lo um suspeito.
E acredito que alguém tem de falar com eles e tirar‑lhes a ideia da cabeça até nós termos tempo para fazer o nosso trabalho.
Jimmy e Annabeth estavam sentados do outro lado da mesa, e Sean tentou inutilmente ler‑lhes qualquer coisa nos rostos fechados.
Jimmy ‑ interveio Sean ‑, sem distracções, podemos resolver
rapidamente este caso.
Ah, sim? ‑ troçou Jimmy. ‑ Tenho a tua palavra de honra,
Sean?
Tens. E resolvê‑lo limpamente, de modo que nada falhe em
tribunal.
Quanto tempo?
O quê?
Quanto tempo achas que vão demorar a meter na cadeia o
assassino dela?
Whitey ergueu uma mão.
Esperem um segundo... Está a regatear connosco, Mr. Marcus?
Regatear? ‑ O rosto de Jimmy tinha outra vez essa ausência
total de expressão do condenado.
Sim. Porque estou a detectar...
‑ ‑ Está a detectar?
‑ ... uma nota de ameaça nesta conversa.
A sério? ‑ Agora todo ele era inocência, mas os olhos continuavam mortos.
Como se estivesse a dar‑nos um prazo.
O guarda Devine garantiu que encontraria o assassino da minha filha. Eu só estava a perguntar em que tipo de enquadramento
temporal ele pensa que isso vai acontecer.
Não é o guarda Devine ‑ disse Whitey ‑ que conduz esta investigação, sou eu. E vamos descobrir quem fez isto, Mr. e Mrs. Mar‑cus. O que não quero é que alguém meta na cabeça a ideia de que o nosso medo de uma guerra aberta entre os bandos dos Savage e do O'Donnell pode ser usado como uma espécie de alavanca contra nós. Acho que vou metê‑los a todos na prisão por perturbação da
ordem pública e perder a papelada até este assunto estar encerrado.
Dois funcionários passaram por eles, transportando bandejas com comida melada que exalava um fumo cinzento. Sean sentiu a atmosfera da sala tornar‑se mais abafada, a noite a fechar‑se à volta deles.
Nesse caso, muito bem ‑ disse Jimmy, com um sorriso rasgado.
Muito bem, o quê?
Descubram o assassino. Não serei eu a atravessar‑me no
vosso caminho. ‑ Voltou‑se para a mulher, pondo‑se de pé e estendendo‑lhe a mão. ‑ Querida?
Mr. Marcus ‑ disse Whitey.
Jimmy olhou de cima para ele, enquanto Annabeth lhe pegava na mão e se levantava também.
‑ Está um guarda lá em baixo, para os levar a casa. ‑ Continuou Whitey, e procurou na carteira. ‑ Se lhes ocorrer mais alguma coisa, telefonem‑nos.
Jimmy pegou no cartão e guardou‑o no bolso traseiro das calças.
Agora que estava de pé, Annabeth parecia muito menos firme, como se tivesse as pernas cheias de líquido. Apertou a mão do marido até a dela própria ficar branca.
‑ Obrigada ‑ murmurou, dirigindo‑se aos dois detectives.
Sean viu os estragos do dia chegarem‑lhe finalmente ao rosto
e ao corpo, começarem a envolvê‑la. A luz crua que vinha do tecto apanhou‑lhe a cara, e Sean viu como ela seria quando fosse muito mais velha ‑ uma mulher bonita, marcada por uma sabedoria que nunca desejara possuir.
Sean não fez a menor ideia de onde vieram as palavras. Nem sequer teve consciência de que estava a falar até ouvir o som da sua própria voz ecoar na fria cafetaria.
‑ Falaremos nós por ela, Mrs. Marcus. Se achar bem, fá‑lo‑emos nós.
O rosto de Annabeth enrugou‑se por um instante, e então ela encheu os pulmões de ar e assentiu várias vezes com a cabeça, cambaleando ligeiramente contra o marido.
‑ Sim, Mr. Devine, acho bem. Acho muito bem.
Enquanto atravessavam a cidade, Whitey perguntou:
Que história é essa do carro?
O quê?
O Marcus disse que vocês estiveram quase a entrar num
carro, quando eram miúdos.
Foi... ‑ Sean estendeu a mão para o tablier e ajustou o retrovisor lateral de modo a ver o rio de faróis acesos que brilhava atrás deles, pontos amarelos indistintos que saltitavam ligeiramente na
noite, tremeluzindo. ‑ Foi, bem, porra, foi um carro. Eu, o Jimmy e um puto chamado Dave Boyle estávamos a brincar na rua, diante de minha casa. Tínhamos para aí onze anos. Seja como for, o tal carro apareceu e levou o Dave.
Um rapto?
Sean assentiu, sem tirar os olhos das tremeluzentes luzes amarelas.
Os tipos fingiram ser polícias. Convenceram o Dave a entrar
no carro. Eu e o Jimmy não entrámos. Tiveram o Dave durante quatro dias, até que ele conseguiu fugir. Vive agora nos Flats.
Apanharam os gajos?
Um deles morreu. O outro foi apanhado cerca de um ano
mais tarde. Enforcou‑se na cela.
Pá ‑ disse Whitey ‑, quem me dera que houvesse uma ilha,
estás a ver? Como naquele velho filme com o Steve McQueen em
que ele é suposto ser francês e é o único que não fala com sotaque?
E só o Steve McQueen com um nome francês. No fim salta de uma falésia com uma jangada feita de cocos? Nunca viste?
Não.
Um bom filme. Mas imagina que havia uma ilha só para violadores de crianças. Levava‑se‑lhes comida de avião duas ou três vezes por semana, enchia‑se a água de minas. Ninguém saía de lá.
Primeiro delito? Paciência, vida inteira na ilha. Lamentamos muito, rapazes, mas não podemos correr o risco de infectarem outras pessoas. Porque é uma doença transmissível, sabias? Apanha‑la porque alguém te fez o mesmo. E então pega‑la a outros. É como a lepra.
Acho que se os pusessem todos nessa ilha, havia menos possibilidades de a doença se espalhar. A cada geração que passasse, iriam sendo cada vez menos. Dentro de umas centenas de anos, transformava‑se a ilha num Club Med, ou assim. E os miúdos ouviriam
falar desses anormais como hoje ouvem falar de fantasmas, como
qualquer coisa que, sei lá, tivéssemos evoluído para lá de.
‑ Porra, pá, deu‑te para a filosofia?
Whitey sorriu e meteu pela rampa de acesso à via‑rápida.
O teu compincha, o Marcus ‑ disse. ‑ Mal o vi, soube que
tinha estado dentro. Nunca perdem aquela tensão, estás a ver? Sobretudo nos ombros. Quando se passa dois anos a olhar para trás, a cada segundo do dia, a tensão tem de assentar num lugar qualquer.
O homem acaba de perder a filha, pá. Talvez seja isso que está
a assentar‑lhe nos ombros.
Whitey abanou a cabeça.
‑ Não. Isso, por enquanto, está no estômago. Reparaste em
como estava sempre a fazer caretas? Era a tensão a instalar‑se‑lhe no estômago, a transformar‑se em ácido. Já vi acontecer o mesmo milhões de vezes. Mas a prisão, é nos ombros.
Sean desviou os olhos do retrovisor, observou por instantes as luzes na faixa contrária da via‑rápida. Avançavam em direcção a eles como olhos de balas, passavam como fitas difusas, fundindo‑se umas nas outras. Sentiu a cidade a cercá‑los, com os seus arranha‑céus e os seus blocos de apartamentos, as suas torres de escritórios e os seus parques de estacionamento, os seus recintos desportivos e discotecas e igrejas, e soube que se uma daquelas luzes se apagasse, não faria a mais pequena diferença. E se alguma nova
luz se acendesse, ninguém repararia. E no entanto, elas pulsavam e brilhavam e tremeluziam e flamejavam e olhavam para uma pessoa, como naquele preciso instante ‑ a olharem para as luzes dele próprio e de Whitey que piscavam fugazmente na estrada, apenas mais um conjunto de luzes vermelhas e amarelas no meio de um rio de luzes vermelhas e amarelas que corriam e piscavam, piscavam, piscavam através de um crepúsculo de domingo sem nada que o distinguisse de outro qualquer.
Corriam em direcção a quê?
Em direcção às luzes apagadas, parvo. Em direcção aos vidros partidos.
Já depois da meia‑noite, quando Annabeth e as miúdas tinham finalmente ido para a cama e Celeste, a prima de Annabeth que aparecera mal soubera das notícias, dormitava no sofá. Jimmy desceu as escadas e foi sentar‑se no alpendre do prédio de três andares que partilhava com os irmãos Savage.
Levara consigo a luva de Sean e enfiou‑a na mão, apesar de o polegar não caber e de a luva só lhe chegar a meio da palma. Ficou ali sentado a olhar para as quatro faixas de trânsito da Buckingham Avenue e a atirar a bola para a luva, o bater suave do couro contra couro a acalmar qualquer coisa dentro dele.
Jimmy sempre gostara de ir sentar‑se ali, à noite. As lojas do outro lado da avenida estavam fechadas e quase todas às escuras. A noite, descia uma quietude sobre aquela área de intensa actividade comercial, uma quietude diferente de todas as outras. O barulho que normalmente ali reinava durante o dia não desaparecia, era apenas sugado, como que por um par de pulmões, e ficava retido, à espera de voltar a ser expelido. Jimmy confiava naquela quietude, gostava dela, porque ela prometia devolver o barulho, mesmo enquanto o retinha cativo. Jimmy não conseguia imaginar‑se a viver numa zona rural, onde a quietude era o barulho, onde o silêncio era tão delicado que se despedaçava ao mais pequeno toque.
Mas gostava daquela quietude, daquela calma surdamente ri‑bombante. Até momentos antes, a noite fora tão ruidosa, tão violentamente cheia das vozes e do choro da mulher e das filhas. Sean Devine mandara dois detectives, Brackett e Rosenthal, revistar o quarto de Katie, e eles tinham‑no feito de olhos embaraçados e baixos, murmurando desculpas enquanto abriam gavetas e espreitavam para debaixo da cama e do colchão, Jimmy a desejar que acabassem com aquilo depressa, que parassem de falar com ele. No fim, não encontraram nada de invulgar, excepto os setecentos dólares em notas novas que estavam escondidos na gaveta das meias. Mostraram‑nos a Jimmy juntamente com a caderneta do banco, com o carimbo de «Encerrada». O último levantamento fora feito na sexta‑feira à tarde.
Jimmy não tinha resposta para lhes dar. Era uma surpresa para ele. Mas, considerando todas as outras surpresas daquele dia, teve muito pouco efeito. Só contribuiu para o entorpecimento geral.
‑ Podemos matá‑lo.
Vai apareceu no alpendre e estendeu a Jimmy uma lata de cerveja. Sentou‑se ao lado dele, com os pés descalços nos degraus.
‑ O O'Donnell?
Vai assentiu.
‑ Eu gostava de o fazer. Percebes, Jim?
‑ Achas que foi ele que matou a Katie?
Vai tornou a assentir.
Ou mandou alguém matá‑la. Tu não? As amigas dela pensam que sim. Dizem que o Roman as encontrou num bar e ameaçou a Katie.
Ameaçou?
‑ Bom, disse‑lhe umas merdas, como se ela continuasse a ser
a miúda do O'Donnell. Porra, Jimmy, tem de ter sido o Bobby.
Ainda não sei de certeza ‑ disse Jimmy.
E o que vais fazer quando souberes de certeza?
Jimmy pousou a luva de basebol no degrau e abriu a lata de cerveja. Bebeu um longo e lento golo.
‑ Também ainda não sei.
Nunca Mais Volto a Sentir o Mesmo
continuaram a trabalhar a noite inteira, até de manhã ‑ Sean, Whitey Powers, Souza e Connolly, dois outros detectives da Divisão de Homicídios da estadual, Brackett e Rosenthal, além de uma legião de guardas e de técnicos, de fotógrafos e de assistentes do ML ‑ todos a martelar o caso como se ele fosse uma caixa de aço. Apanharam todas as folhas que pudessem servir de prova. Encheram blocos de notas com diagramas e relatórios de campo. Os guardas tinham interrogado os moradores num raio de uma milha, tinham enchido uma carrinha de vadios arrebanhados no parque e nas casas queimadas da Sydney. Passaram a pente fino a mochila encontrada no carro de Katie e descobriram a trampa do costume até darem com uma brochura a respeito de Las Vegas e uma lista de hotéis escrita numa folha de papel amarelo.
Whitey mostrou a brochura a Sean e assobiou.
‑ É aquilo a que, no ofício, chamamos uma pista. Vamos lá ter uma conversa com as amigas.
Eve Pigeon e Diane Cestra, talvez, segundo o pai da vítima, as duas últimas pessoas decentes a terem visto Katie Marcus viva, pareciam ter apanhado uma pancada na nuca dada com a mesma pá. Whitey e Sean trabalharam‑nas com luvas de veludo entre os quase constantes dilúvios de lágrimas que lhes corriam pelas faces. As duas raparigas forneceram‑lhes um esquema temporal da última noite de Katie Marcus e deram‑lhes os nomes dos bares que tinham visitado, com as horas aproximadas de entrada e saída, mas quando a conversa passou para assuntos pessoais, tanto Sean como Whitey sentiram que elas se retraíam, trocando olhares antes de responder, tartamudeando, indecisas e vagas onde momentos antes eram todas certezas.
Ela andava com alguém?
Assim, regularmente, não.
E de vez em quando?
‑Bem...
‑Sim?
Não nos mantinha muito ao corrente desse tipo de coisas.
Diane, Eve, ora vamos. A vossa melhor amiga desde a escola infantil, e não lhes dizia com quem andava a namorar?
Era muito reservada, nessas coisas.
‑ Sim, reservada. A Katie era assim mesmo.
Whitey tentou outra abordagem:
Portanto, não aconteceu nada de especial ontem à noite,
nada fora do vulgar?
Não.
E os planos dela para deixar a cidade?
O quê? Não.
Não? Diane, ela tinha uma mochila no carro. E dentro da
mochila tinha brochuras de Las Vegas. Trazia‑as consigo por qualquer outra razão?
Talvez. Não sei.
Foi aqui que o pai de Eve interveio.
‑ Querida, se sabes alguma coisa que possa ajudar, é melhor
falares. Jesus, estamos aqui a falar de a Katie ter sido assassinada.
O que provocou novo ataque de desespero. As duas raparigas agarraram‑se uma à outra, a soluçar e a gritar e a tremer, as bocas muito abertas e ligeiramente distorcidas na pantomima do desgosto que Sean já vira vezes sem conta, o momento em que, como Martin Friel costumava dizer, o dique cedia e o definitivo da ausência da vítima se tornava verdadeiramente real. Em alturas como aquela, só havia duas opções: ficar e observar, ou bater em retirada.
Whitey e Sean observaram e esperaram.
Eve Pigeon tinha, de facto, certos traços que a faziam parecer uma ave, pensou Sean. O rosto era muito afilado, o nariz muito fino. Mas quase resultava. Havia nela uma graça que lhe dava à magreza um ar meio aristocrático. Sean calculou que era o tipo de mulher que ficava melhor formalmente vestida do que com roupas do dia‑‑a‑dia, e emanava uma decência e uma inteligência que, na opinião dele, só atrairiam homens sérios, afugentando os bandalhos e os romeus.
Diane, pelo contrário, destilava uma sensualidade derrotada. Sean notou uma nódoa negra já muito esbatida junto ao olho direito, e pareceu‑lhe mais obtusa do que Eve, mais dada às emoções e, possivelmente, também ao riso. Tinha uma esperança fanada nos olhos, um ar de desamparo que, Sean sabia, raramente atraía outros homens além dos do tipo predador. Calculou que aquela rapariga havia, ao longo dos anos seguintes, de estar na origem de muitos telefonemas para o 911 com queixas de violência doméstica, e que, quando os polícias lhe batessem finalmente à porta, aquela esperança moribunda ter‑lhe‑ia há muito desaparecido dos olhos.
‑ Eve ‑ disse Whitey com toda a gentileza, quando as duas raparigas pararam finalmente de chorar. ‑ Preciso de saber a respeito do Roman Fallow.
Eve assentiu, como se estivesse à espera da pergunta, mas não respondeu imediatamente. Mordiscou a pele à volta da unha do polegar e olhou para algumas migalhas de pão em cima da toalha da mesa.
‑ Esse malandro não anda com o Bobby o'Donnell? ‑ perguntou o pai.
Whitey ergueu uma mão na direcção dele, olhou para Sean.
‑ Eve ‑ disse Sean, sabendo que era a ela que tinham de chegar. Ia ser mais difícil de quebrar do que Diane, mas também muito mais frutuosa em matéria de pormenores pertinentes.
Eve olhou para ele.
Não vai haver represálias, se é isso que está a preocupá‑la.
Tudo o que nos disser a respeito do Roman Fallow ou do Bobby
fica rigorosamente entre nós. Eles nunca saberão de onde veio.
E se o caso for a tribunal, hã? ‑ interveio Diane. ‑ O que é
que acontece?
Whitey dirigiu a Sean um olhar que dizia: estás por tua conta. Sean concentrou‑se em Eve.
‑ A menos que tenha visto o Roman ou o Bobby puxar a Katie
para fora do carro...
Não.
Nesse caso, o PG não obrigará qualquer das duas a testemunhar em tribunal, Eve. É possível que lhes peça muito, mas não as
obrigará.
Não os conhece ‑ disse Eve.
O Bobby e o Roman? Claro que conheço. Mandei o Bobby
para a prisão durante nove meses quando trabalhava nos narcóticos.
‑ Sean estendeu o braço e pousou a mão em cima da mesa, a dois
centímetros da dela. ‑ E ele ameaçou‑me. Mas é só isso que ele e o Roman são... conversa.
Eve dirigiu‑lhe um meio sorriso tenso, de lábios franzidos.
Conversa uma mer... da ‑ disse, arrastando a palavra.
Não falas dessa maneira nesta casa ‑ saltou o pai.
Mr. Pigeon ‑ pediu Whitey.
Não. A minha casa, as minhas regras. Não consinto que a
minha filha fale como se...
Era o Bobby ‑ disse Eve, e Diane deixou escapar o ar dos pulmões, olhando para a amiga como se ela tivesse perdido a cabeça.
Sean viu Whitey arquear as sobrancelhas.
Era o Bobby o quê? ‑ perguntou.
Era com ele que a Katie andava. Não com o Roman.
O Jimmy sabe disso? ‑ perguntou Drew à filha.
Eve encolheu molemente os ombros, daquele modo que Sean achava estar a tornar‑se endémico entre os miúdos da idade dela, um lento torcer do corpo que dizia que quase não valia a pena o esforço.
Eve ‑ insistiu Drew. ‑ Sabia?
Sabia e não sabia ‑ respondeu Eve. Suspirou e inclinou a cabeça para trás, olhou para o tecto com aqueles olhos escuros. ‑ Os pais pensavam que tinha acabado porque, durante algum tempo, ela
pensou que tinha acabado. O único que não pensava que tinha acabado era o Bobby. Não aceitou. Estava sempre a insistir. Certa vez, pendurou‑a de um terceiro andar.
‑ Assistiu a isso? ‑ perguntou Whitey.
Ela abanou a cabeça.
‑ A Katie contou‑me. Ele encontrou‑a numa festa, há seis semanas ou um mês. Convenceu‑a a ir para o patamar, para poderem falar. Só que o apartamento era num terceiro andar. ‑ Eve limpou a cara com as costas da mão, apesar de, pelo ar, já ter chorado tudo o que tinha a chorar, pelo menos de momento. ‑ A Katie contou‑‑me que tentou explicar‑lhe que estava tudo acabado, mas ele não quis ouvi‑la, e finalmente ficou tão furioso que a agarrou pelos ombros e a passou por cima do corrimão. Segurou‑a no ar por cima do poço da escada. Três andares, o psicopata. E disse‑lhe que se ela acabasse com ele, ele acabava com ela. Era a miúda dele até que ele dissesse o contrário, e que se ela não gostasse a deixava cair naquele mesmo instante.
Jesus ‑ exclamou Drew Pigeon ao cabo de alguns segundos
de silêncio. ‑ E tu conheces essa gente?
O que foi que o Roman lhe disse no bar, no sábado à noite?
‑ Desta vez, foi Whitey a perguntar.
Eve não disse nada durante um pedaço.
Porque é que não nos conta, Diane? ‑ insistiu Whitey.
Diane estava com ar de quem precisava de uma bebida.
Dissemos ao Vai. É quanto basta.
Vai? ‑ perguntou Whitey. ‑ O Vai Savage?
Esteve cá hoje à tarde ‑ explicou Diane,
E contou‑lhe a ele o que o Roman disse, mas não quer con‑tar‑no&a nós.
Ele é da família ‑ respondeu Diane, cruzando os braços sobre
o peito e fazendo a melhor cara «vai‑te foder, chui» de que foi capaz.
Eu digo‑lhes ‑ interveio Eve. ‑ Jesus. Disse que tinha ouvido dizer que nós estávamos bêbedas e a fazer figura de parvas e que não tinha gostado de ouvir, e que o Bobby com toda a certeza não ia gostar de ouvir e que talvez fosse melhor nós irmos para casa.
E vocês foram?
Alguma vez falou com o Roman? Tem uma maneira de fazer
as perguntas soarem como ameaças.
Foi só isso? ‑ perguntou Whitey. ‑ Não o viram segui‑las
quando saíram do bar, nem nada disso.
Ela abanou a cabeça. Olharam para Diane. Diane encolheu os ombros.
‑ Estávamos bastante bebidas.
Não voltaram a ter mais contactos com ele nessa noite, qualquer das duas?
A Katie trouxe‑nos a casa ‑ explicou Eve. ‑ Deixou‑nos na
rua. Foi a última vez que a vimos. ‑ Mordeu a última palavra, cerrando o rosto como um punho enquanto voltava a inclinar a cabeça para olhar para cima, inspirando com força.
Com quem estava ela a planear ir para Vegas? Com o Bobby?
‑ perguntou Sean.
Eve continuou a olhar para o tecto durante algum tempo, e a respiração tornou‑se‑lhe líquida.
Não, não era com o Bobby ‑ acabou por dizer.
Com quem, Eve? ‑ insistiu Sean. ‑ Com quem ia ela para Vegas?
Com o Brendan.
O Brendan Harris? ‑ perguntou Whitey.
‑ O Brendan Harris, sim.
Whitey e Sean entreolharam‑se.
‑ O filho do Just Ray? ‑ espantou‑se Drew Pigeon. ‑ O que tem um irmão mudo?
Eve assentiu e Drew voltou‑se para Sean e para Whitey.
Um bom miúdo, inofensivo.
Sean assentiu. Inofensivo. Pois.
Têm a morada? ‑ perguntou Whitey.
Não estava ninguém na morada de Brendan Harris, de modo que Sean ligou para a base e requisitou dois guardas para vigiarem a casa e o avisarem quando o rapaz regressasse.
A seguir foram a casa de Mrs. Prior, e tiveram de gramar chá e biscoitos moles e Touched by an Angel com o som tão alto que, uma hora mais tarde, Sean ainda tinha Delia Reese dentro da cabeça a gritar Amen e a falar de redenção.
Mrs. Prior disse que tinha olhado pela janela por volta da uma e meia, na noite anterior, vira dois miúdos a brincar na rua, miúdos pequenos, fora de casa a uma hora daquelas, a atirar latas um ao outro, a jogar à espada com sticks de hóquei e a dizer palavrões. Ainda pensara em chamar‑lhes a atenção, mas as pessoas de idade tinham de ser cautelosas. Os miúdos andam doidos, nos tempos que correm, aos tiros na escola, vestidos com essas roupas que parecem sacos e a usar uma linguagem indecente. De todos os modos, os dois miúdos tinham acabado por afastar‑se e o problema passara a ser de outra pessoa qualquer, mas o modo como eles se portam, quer dizer, será isto maneira de uma pessoa viver?
‑ O agente Medeiros disse‑nos que ouviu um carro por volta
da uma e quarenta e cinco ‑ disse Whitey.
Mrs. Prior estava a ver Delia explicar os caminhos de Deus a Roma Downey, e Roma estava com um ar muito solene, de olhos húmidos e cheia de Jesus até às bordas. Mrs. Prior assentiu várias vezes para a televisão e só então se voltou para olhar para Whitey e para Sean.
Ouvi um carro bater em qualquer coisa.
Bater em quê?
Da maneira como as pessoas conduzem nos tempos que correm, dou graças aos céus por já não ter carta. Teria medo de conduzir por essas ruas. Parece que anda tudo doido.
Sim, minha senhora ‑ concordou Sean. ‑ Pareceu‑lhe o som
de um carro a bater noutro carro.
Oh, não.
A bater numa pessoa? ‑ sugeriu Whitey.
Santo Deus, que som seria esse? Nem sequer quero saber.
Então não foi verdadeiramente, verdadeiramente, um som
muito alto ‑ disse Whitey.
Desculpe, querido?
Whitey repetiu a afirmação, inclinando‑se para a frente.
Não ‑ admitiu Mrs. Prior. ‑ Foi mais como o som de um carro
a bater numa pedra, ou num passeio. E então o motor foi‑se abaixo e alguém disse «Olá».
Alguém disse «Olá»?
Olá. ‑ Mrs. Prior olhou para Sean e assentiu. ‑ E então uma
parte do carro estalou.
Sean e Whitey olharam um para o outro.
‑ Estalou? ‑ perguntou Whitey.
Mrs. Prior agitou afirmativamente a cabecinha azulada.
‑ Quando o meu Leo ainda era vivo, partiu um eixo do nosso
Plymouth. Fez cá um barulho. Crac! ‑ Os olhos dela brilharam mais intensamente. ‑ Crac! ‑ repetiu. ‑ Crac!
E foi isso que ouviu depois de alguém ter dito «Olá».
Ela assentiu.
Olá e crac!
E então olhou pela janela e o que foi que viu?
Oh, não, não ‑ exclamou Mrs. Prior. ‑ Não olhei pela janela.
Nessa altura já estava de roupão. Já me tinha deitado. Não ia olhar pela janela de roupão. Podia alguém ver.
Mas quinze minutos antes tinha...
Jovem, quinze minutos antes ainda não estava de roupão.
Tinha acabado de ver a TV, um excelente filme com o Glenn Ford.
Oh, quem me dera lembrar‑me do nome.
Então, apagou a televisão...
E vi aquelas crianças sem mãe na rua, e então fui ao quarto
vestir o roupão, e então, jovem senhor, baixei as persianas.
A voz que disse «Olá», era de homem ou de mulher? ‑ perguntou Whitey.
De mulher, julgo ‑ respondeu Mrs. Prior. ‑ Era uma voz aguda. Nada como a de qualquer dos senhores ‑ acrescentou, sorridente ‑, que têm belas vozes masculinas. As vossas mães devem sentir‑se muito orgulhosas.
Oh, sim, minha senhora, nem imagina como ‑ afiançou Whitey.
Quando iam a sair, Sean disse:
Crac!
Whitey sorriu.
Ela gostou de dizer aquilo. Ainda tem algum sangue na guel‑ra, a velhota.
Estás a pensar em eixo partido ou em tiro?
Em tiro ‑ respondeu Whitey. ‑ O olá é que me está a despistar.
Sugeriria que ela conhecia o atacante, se lhe disse olá.
Sugeriria, não garantiria.
Depois de Mrs. Prior, trabalharam os bares, mas tudo o que conseguiram foi recordações alcoolizadas de talvez terem visto as raparigas, ou talvez não, e umas listas meio idiotas de clientes que poderiam ter estado presentes nas alturas aproximadas.
Quando chegaram ao McGills, Whitey começava a ficar chateado.
‑ Duas miúdas... e eram mesmo miúdas, a propósito, menores... saltam para cima deste balcão e põem‑se a dançar, e você diz‑me que não se lembra?
O barman já estava a acenar com a cabeça a meio da pergunta de Whitey.
Oh, essas miúdas. OK, OK, claro que me lembro. Deviam ter
uns documentos muito bons, detective, porque nós verificámos.
Sargento ‑ emendou Whitey. ‑ Há pouco não se lembrava de
as ter visto cá, e agora lembra‑se de lhes ter pedido a identificação.
Lembra‑se de a que horas saíram, por acaso? Ou a amnésia é selectiva?
O barman, um tipo novo com uns bicípites tão grandes que provavelmente estrangulavam a passagem do sangue para o cérebro, franziu a testa e disse:
Saíram?
Como a irem‑se embora.
Não...
Foi logo antes de o Crosby ter partido o relógio ‑ informou
um tipo sentado num banco alto diante do balcão.
Sean olhou para o sujeito ‑ um veterano, com o Herald aberto à frente entre uma garrafa de Bud e um copo de whisky, um cigarro a fumegar no cinzeiro.
Estava cá ‑ disse Sean.
Estava cá. O Cretino do Crosby quer ir de carro para casa.
Os amigos tentam tirar‑lhe as chaves. O cabeça de merda atira‑lhas
à cara. Falha. Acerta naquele relógio.
Sean olhou para o relógio por cima da porta de acesso à cozinha. O vidro estava rachado e os ponteiros marcavam 12:52.
E elas foram‑se embora antes da cena? ‑ perguntou Whitey
ao velho. ‑ As pequenas?
Cerca de cinco minutos antes ‑ respondeu o homem. ‑ As
chaves acertaram no relógio, e eu pensei, «Ainda bem que as miúdas já se foram embora. Não tinham necessidade nenhuma de assistir a esta merda.»
No carro, Whitey perguntou:
‑ Já conseguiste definir um horário?
Sean assentiu com a cabeça, folheando o bloco de notas.
‑ Saíram do Curley's Folly às nove e meia, passaram pelo Banshee, pelo Dick Doyle's Pub e pelo Spire's em rápida sucessão, chegaram ao McGills por volta das onze e meia, à uma e dez estavam no Last Drop.
E ela bate com o carro cerca de meia hora mais tarde.
Sean assentiu.
Estás a ver algum nome familiar na lista que o barman nos deu?
Sean percorreu com os olhos a lista de clientes que o barman
do McGills rabiscara numa folha de papel.
Dave Boyle ‑ disse em voz alta, quando lá chegou.
O mesmo tipo de quem foste amigo quando eras miúdo?
Pode ser.
Talvez valha a pena falar com ele. Se pensar que és um amigo,
talvez não nos trate como chuis e não cale a caixa só para chatear.
Claro.
Vamos pô‑lo na lista para amanhã.
Encontraram Roman Fallow a beberricar um garoto no Café So‑ciety, no Point. Estava com uma mulher que parecia uma modelo ‑joelhos tão pontiagudos como as maçãs do rosto, os olhos ligeiramente protuberantes devido à pele da cara estar tão esticada que parecia colada aos ossos, um bonito vestido de Verão, branco, com umas alças tipo spaghetti que a faziam parecer simultaneamente sexy e esquelética. Sean perguntou a si mesmo como conseguiria ela aquilo, e acabou por decidir que devia ser do brilho pérola da pele perfeita.
Roman usava uma T‑shirt de seda metida no cós de umas calças de linho pregueadas, parecendo acabado de sair do cenário de um daqueles velhos filmes da RKO passados em Havana ou em Key West. Beberricava o café com leite e folheava o jornal a meias com a namorada, ele a ler a secção de negócios, ela a consultar a secção da moda.
Whitey puxou uma cadeira para junto deles e perguntou:
‑ Eh, Roman, também vendem roupa para homem lá no sítio onde compraste essa camisa?
Roman manteve os olhos no jornal e enfiou um pedaço de crois‑sant na boca.
‑ Sargento Powers, como vai? Aquele seu Hyundai ainda anda?
Whitey riu‑se, enquanto Sean se sentava ao lado dele.
Sabes uma coisa, Roman, olhando para ti, aqui neste lugar, seria capaz de jurar que és apenas mais um yuppie, pronto para levantar‑ ‑se de manhã e iniciar um novo dia de trabalho com o teu iMac.
Uso um PC, sargento. ‑ Roman pousou o jornal e olhou para
Whitey e para Sean pela primeira vez. ‑ Oh, olá ‑ disse, dirigindo‑
‑se a Sean. ‑ Conheço‑o de qualquer lado.
Sean Devine, Polícia Estadual.
Certo, certo. Claro, já me lembro. Vi‑o no tribunal, a testemunhar contra um amigo meu. Bonito fato. A roupa do Sears está a melhorar muito, não está? Mais actual.
Whitey lançou um olhar à modelo.
Posso oferecer‑te um bife, ou assim, querida?
O quê? ‑ perguntou a modelo.
Talvez um pouco de glicose gota‑a‑gota por via intravenosa?
Pago eu.
Não faça isso ‑ disse Roman. ‑ Vamos tratar de negócios,
certo? Mantenhamos a conversa entre os dois.
Roman, não estou a perceber ‑ queixou‑se a modelo.
Roman sorriu‑lhe.
Não faz mal, Michaela. Não nos ligues.
Michaela ‑ disse Whitey. ‑ Nome giro.
Michaela manteve os olhos no jornal.
O que é que o traz por cá, sargento?
Os scones. Adoro os scones que aqui fazem. E, ah, pois, conheces uma mulher chamada Katherine Marcus, Roman?
Claro. ‑ Roman bebeu um pequeno golo do café com leite
e limpou o lábio superior com o guardanapo, que voltou a pousar
no colo. ‑ Apareceu morta esta tarde, segundo ouvi dizer.
Pois foi ‑ confirmou Whitey.
Nunca é bom para a reputação de um bairro, quando estas
coisas acontecem.
Whitey cruzou os braços, olhou para Roman.
Roman mastigou outro pedaço de croissant e bebeu mais um pouco de café com leite. Cruzou as pernas, limpou a boca com o guardanapo, sustentou o olhar de Whitey durante algum tempo, e Sean pensou que aquilo era uma das coisas que mais começavam a chateá‑lo naquele trabalho ‑ aquelas competições de gajos tesos, todos a sustentarem o olhar uns dos outros, sem ninguém ceder.
‑ Sim, sargento ‑ disse Roman ‑, conhecia a Katherine Marcus. Foi isso que veio perguntar?
Whitey encolheu os ombros.
Conhecia‑a e vi‑a ontem à noite.
E trocaste algumas palavras com ela.
É verdade.
Que palavras? ‑ perguntou Sean.
Roman manteve os olhos em Whitey, como se Sean não merecesse mais atenção do que aquela que já lhe dispensara.
‑ Ela namorava um amigo meu. Estava embriagada. Eu disse‑
‑lhe que estava a fazer figura de parva e que ela e as duas amigas deviam ir para casa.
Quem é o teu amigo? ‑ perguntou Whitey.
Roman sorriu.
Ora vamos, sargento. Sabe muito bem quem é.
Então diz lá.
O Bobby O'Donnell. Está satisfeito. Ela namorava o Bobby.
Actualmente?
Desculpe?
Actualmente ‑ repetiu Whitey. ‑ Namorava com ele actualmente? Ou tinha em tempos namorado?
Actualmente ‑ respondeu Roman.
Whitey rabiscou qualquer coisa no bloco de notas.
Contraria a informação de que disponho, Roman.
Ah, sim?
É verdade. Disseram‑nos que ela correu com esse sebento
há sete meses, mas que ele não se conformava.
Sabe como são as mulheres, sargento.
Whitey abanou a cabeça.
Não, Roman, não sei. Porque é que não me explicas tu?
Roman fechou a parte do jornal que tinha à frente.
‑ Tinham fases. Ela tão depressa estava loucamente apaixonada como o deixava pendurado.
‑ Deixava pendurado. ‑ Whitey voltou‑se para Sean. ‑ Parece‑te o Bobby O'Donnell que conheces?
‑ Nem um bocadinho ‑ disse Sean.
‑ Nem um bocadinho ‑ disse Whitey, voltando‑se de novo para
Roman.
Roman encolheu os ombros.
‑ Estou a dizer‑lhe aquilo que sei. Mais nada.
‑ É justo. ‑ Whitey escreveu no bloco de notas durante algum tempo. ‑ Roman, aonde foste ontem à noite depois de teres saído
do Last Drop?
Fomos a uma festa no sótão de um amigo, na Baixa.
Oooh, uma festa num sótão! ‑ exclamou Whitey. ‑ Sempre desejei ir a uma dessas. Droga da especial, modelos, um monte de gajos brancos a ouvir rap e a dizerem a si mesmos como são «street».
Esse «fomos» quer dizer tu e aí a Ally McBeal?
Michaela ‑ disse Roman. ‑ Sim. Michaela Davenport, já que
está a tomar nota.
Oh, estou a tomar nota, estou. É o teu verdadeiro nome, querida?
O quê?
O teu verdadeiro nome ‑ repetiu Whitey. ‑ Michaela Davenport?
Sim. ‑ Os olhos da modelo tornaram‑se um tudo nada mais
protuberantes. ‑ Porquê?
A tua mãe costumava ver muitas telenovelas antes de tu nasceres?
Roman ‑ gemeu Michaela.
Roman ergueu uma mão, olhou para Whitey.
Aquilo que eu disse a respeito de manter isto entre nós, eh?
Ficaste ofendido, Roman? Vais armar‑te em Christopher Wal‑ken comigo, fazer‑te forte? É essa a ideia. Porque, quer dizer, posso
levar‑te a dar uma volta enquanto mando verificar esse teu álibi. Podemos fazer isso. Tens planos para amanhã?
Roman recuou imediatamente para esse lugar onde Sean via a maior parte dos criminosos refugiarem‑se quando um chui apertava com eles a sério ‑ um retrocesso para dentro de si mesmos tão absoluto que uma pessoa juraria que deixavam de respirar, os olhos fixos, escuros, desinteressados e a encolherem.
Não fiquei ofendido, sargento ‑ disse Roman, e a voz dele
foi uma linha direita, sem inflexões. ‑ Terei muito prazer em proporcionar‑lhe os nomes de todos os que estiveram comigo na festa.
E tenho a certeza de que o barman do Last Drop, o Todd Lane, comprovará que saí do bar já depois das duas.
Menino bonito. E quanto ao teu amigo Bobby? Onde é que
podemos encontrá‑lo?
Roman permitiu‑se um sorriso rasgado.
Vai adorar esta.
Qual, Roman?
Se está a tentar ligar o Bobby à morte da Katherine Marcus,
garanto‑lhe, vai adorar esta.
Roman lançou o seu olhar de predador na direcção de Sean e Sean sentiu a excitação que o animava desde que Eve Pigeon mencionara os nomes de Roman e Bobby murchar e morrer.
‑ Bobby, Bobby, Bobby. ‑ Roman suspirou e piscou o olho à
namorada antes de voltar‑se novamente para Whitey e para Sean.
‑ O Bobby foi apanhado a conduzir embriagado, na sexta‑feira à noite. ‑ Bebeu mais um golo de café com leite, saboreando o gozo.
‑ Passou o fim‑de‑semana na prisão, sargento. ‑ Agitou o indicador esticado entre os dois. ‑ Será que vocês não verificam estas coisas?
Sean estava a sentir o dia nos ossos, a chupar‑lhe a medula, quando recebeu pela rádio a notícia de que Brendan Harris regressara a casa. Sean e Whitey chegaram lá às onze e sentaram‑se na cozinha com Brendan e a mãe, Esther, e Sean pensou, Já não se fazem apartamentos como este, graças a Deus. Era como uma coisa tirada de uma velha série da TV ‑ The Honeymooners, talvez ‑ e só podia ser verdadeiramente apreciada vista a preto e branco num ecrã de treze polegadas, a estralejar de electricidade estática e com uma recepção aguada. Era um apartamento tipo carruagem de comboio; a porta fora aberta bem no meio, de modo que se passava directamente da escada para a sala de estar. À direita da sala de estar havia uma pequena casa de jantar, que Esther Harris usava como quarto, empilhando as suas escovas e pentes e pós diversos em cima do decrépito aparador. A seguir ficava o quarto que Brendan partilhava com o irmão mais novo, Raymond.
A esquerda da sala de estar havia um curto corredor, com uma casa de banho assimétrica, no lado direito, e, ao fundo, a cozinha, aonde a luz do Sol devia chegar talvez uns quarenta e cinco minutos por dia, ao fim da tarde. A cozinha era em tons de verde desbotado e amarelo gordurento, e Sean, Whitey, Brendan e Esther estavam sentados à volta de uma pequena mesa com pernas metálicas e parafusos a menos em várias junções. O tampo fora forrado a papel Con‑Tact com motivos florais verdes e amarelos, rasgado nos cantos e apresentando no meio pequenas falhas da largura de unhas.
Esther parecia encaixar ali perfeitamente. Era pequena e angulosa e tanto podia ter quarenta anos como cinquenta e cinco. Cheirava a sabão castanho e a fumo de cigarro e os cabelos azulados condiziam com as veias azuladas que se lhe notavam nos antebraços e nas mãos. Usava uma camisola cor‑de‑rosa desbotado, uns jeans e umas sapatilhas que já tinham sido pretas. Fumava Par‑liaments uns atrás dos outros e estava a assistir à conversa de Whitey e Sean com o filho com o ar de quem achava que não poderiam ser menos interessantes mesmo que tentassem, mas não tinha outro sítio melhor onde estar.
Quando foi a última vez que viste a Katie Marcus? ‑ perguntou Whitey.
Foi o Bobby que a matou, não foi?
O Bobby O'Donnell?
Sim. ‑ Brendan raspou com as unhas o tampo da mesa. Parecia em choque. A voz era monótona, mas subitamente inspirava
fundo com força e enrugava o lado direito da cara como se lhe tivessem espetado qualquer coisa no olho.
Porque é que dizes isso? ‑ perguntou Sean.
Ela tinha medo dele. Tinham sido namorados, e a Katie dizia
sempre que se ele descobrisse a nosso respeito nos matava aos
dois.
Sean olhou para a mãe do rapaz, à espera de ver uma reacção qualquer, mas ela limitou‑se a continuar a fumar, expelindo rolos de fumo, envolvendo‑os a eles e à mesa numa nuvem cinzenta.
Parece que o Bobby tem um álibi ‑ disse Whitey. ‑ E tu, Bren‑dan?
Não a matei ‑ respondeu Brendan Harris, como que anestesiado. ‑ Nunca faria mal à Katie. Nunca.
Volto a perguntar, quando foi a última vez que a viste? ‑ insistiu Whitey.
Na sexta‑feira à noite.
A que horas?
Por volta das oito, mais ou menos.
Por volta, mais ou menos, Brendan, ou às oito?
Não sei. ‑ O rosto de Brendan contorceu‑se com uma ansiedade que Sean via saltar de um lado para o outro da mesa, entre
eles. Brendan cerrou os punhos e balouçou ligeiramente a cadeira.
‑ Sim, às oito. Fomos ao Hi‑Fi, certo? E então... ela teve de ir.
Whitey rabiscou: «Hi‑Fi, 8p, Sex» no bloco de notas.
Teve de ir aonde?
Não sei ‑ disse Brendan.
A mãe esmagou mais um cigarro no monte que tinha vindo a construir, reacendendo uma das beatas, de modo que uma espiral de fumo subiu em pirueta e entrou pela narina direita de Sean. Es‑ther Harris acendeu imediatamente outro e Sean imaginou‑lhe os pulmões ‑ cheios de nós e negros como carvão.
Brendan, que idade tens tu?
Dezanove.
E quando foi que acabaste o liceu?
Acabou ‑ rosnou Esther.
Eu, hã... Fiz os testes de aproveitamento final no ano passado ‑ respondeu Brendan.
Portanto, Brendan ‑ continuou Whitey ‑, não fazes a mínima
ideia de para onde a Katie foi depois de te ter deixado no Hi‑Fi?
Não ‑ disse Brendan, a palavra a morrer‑lhe molhada na garganta, os olhos a começarem a pôr‑se vermelhos. ‑ Ela tinha andado com o Bobby e ele não a largava e o pai dela não gosta de mim,
sei lá porquê, de modo que tínhamos que ter cuidado. Por vezes, ela não me dizia aonde ia porque podia ser a casa do Bobby, suponho,
para tentar convencê‑lo de que estava tudo acabado entre eles. Não sei. Naquela noite, só disse que ia para casa.
‑ O Jimmy Marcus não gosta de ti? ‑ perguntou Sean. ‑ Porquê?
Brendan encolheu os ombros.
Não faço ideia. Mas disse à Katie que não queria que ela andasse comigo.
O quê? ‑ gritou a mãe. ‑ Esse gatuno pensa que é melhor do
que esta família?
Ele não é nenhum gatuno ‑ disse Brendan.
Mas foi! Ou será que não sabias? Era uma merda de um ladrão, aqui há uns anos. E a filha provavelmente tinha os mesmos
genes. Se calhar, era tão má como ele. Podes dar‑te por feliz, filho.
Sean e Whitey trocaram um olhar. Esther Harris era talvez a mulher mais miserável que Sean vira em toda a sua vida. Era in‑trinsecamente má.
Brendan Harris abriu a boca como se fosse dizer qualquer coisa à mãe, mas voltou a fechá‑la.
A Katie tinha brochuras de Las Vegas na mochila ‑ continuou Whitey. ‑ Disseram‑nos que estava a planear ir para lá. Contigo, Brendan.
Nós... ‑ Brendan manteve a cabeça baixa. ‑ É verdade, íamos
para Las Vegas. íamos casar. Hoje. ‑ Ergueu a cabeça, e Sean viu as lágrimas borbulharem na parte inferior dos olhos dele. Brendan limpou‑as com as costas da mão antes que caíssem, e acrescentou:
‑ Quer dizer, era esse o plano.
Ias abandonar‑me? ‑ perguntou Esther Harris. ‑ Ias‑te embora sem dizer uma palavra?
‑Mã...
Como o teu pai? É isso? Deixar‑me com o teu irmão mais
novo sem dizer uma palavra? Era isso que ias fazer, Brendan?
Mrs. Harris ‑ interveio Sean ‑, e se nos concentrássemos na
questão presente? Haverá muito tempo para explicações, mais tarde.
Ela lançou‑lhe um olhar que Sean vira já em muitos presidiários empedernidos e em sociopatas das nove‑às‑cinco, um olhar que dizia que não era merecedor da sua atenção naquele instante, mas que se continuasse a chatear, tratava dele de uma maneira que deixaria marcas. Voltou‑se novamente para o filho.
‑ Era isso que ias fazer? Hã?
Mã, ouça...
Ouço o quê? Ouço o quê, hã? O que foi que eu fiz assim
de tão errado? Hã? O que foi que eu fiz além de criar‑te e dar‑te de comer e comprar‑te no Natal aquele saxofone que nunca aprendeste a tocar? Aquela coisa continua fechada no armário, Bren‑dan.
‑Mã...
‑ Não, vai buscá‑lo. Mostra a estes homens como tocas bem.
Vai buscá‑lo.
Whitey olhou para Sean, como se não conseguisse acreditar numa merda daquelas.
‑ Mrs. Harris ‑ disse ‑, não será necessário.
Ela acendeu outro cigarro, a cabeça do fósforo a saltar com a mesma raiva que a enchia.
‑ Tudo o que fiz foi dar‑lhe de comer. Comprar‑lhe roupas.
Criá‑lo.
Sim, minha senhora ‑ disse Whitey, no momento em que a
porta da frente se abria e entravam dois miúdos de skateboard debaixo do braço, dois miúdos de doze anos, talvez treze, um deles uma cópia chapada de Brendan ‑ tinha a mesma cara bonita e os cabelos escuros, mas havia qualquer coisa da mãe nos olhos, uma inquietante falta de enfoque.
Ei! ‑ exclamou o outro miúdo, quando entraram na cozinha.
Como o irmão de Brendan, parecia pequeno para a idade, e fora
amaldiçoado com um rosto comprido e encovado, o rosto de um
velho mau no corpo de um garoto, a espreitar por baixo de desgrenhadas farripas de cabelos louros.
Brendan Harris levantou a mão.
Ei, Johnny. Sargento Powers, guarda Devine, apresento‑lhes
o meu irmão, Ray, e o amigo dele, Johnny O'Shea.
Olá, rapazes ‑ disse Whitey.
‑ Ei ‑ disse Johnny O'Shea.
Ray fez um aceno de cabeça.
‑ Não fala ‑ explicou a mãe. ‑ O pai não se calava, e o filho
não fala. A porra da vida não é mesmo justa?
As mãos de Ray fizeram uma série de gestos, e Brendan disse:
‑ Sim, estão aqui por causa da Katie.
Fomos andar de skate para o parque ‑ disse Johnny. ‑ Está
fechado.
Amanhã já abre ‑ prometeu Whitey.
Dizem que amanhã vai chover. ‑ O miúdo disse aquilo como
se fosse por culpa deles que não podiam ir andar de skate no parque às onze da noite, quando no dia seguinte tinham escola. Sean perguntou a si mesmo quando fora que os pais tinham começado a deixar os filhos fazer tudo o que queriam.
Whitey voltou‑se para Brendan.
‑ Lembras‑te de alguns inimigos que ela tivesse? Alguém, além do Bobby O'Donnell, que pudesse estar chateado com ela?
Brendan abanou a cabeça.
‑ Ela era muito simpática. Era uma pessoa muito, muito simpática. Toda a gente gostava dela. Não sei o que lhe dizer.
Podemos ir agora? ‑ perguntou o miúdo O'Shea.
Whitey olhou para ele com uma sobrancelha arqueada.
Alguém tinha dito que não podiam?
Johnny O'Shea e Ray Harris saíram da cozinha. Ouviram‑nos atirar os skateboards para o chão da sala e entrar no quarto de Brendan e de Ray a chocar contra tudo o que encontravam pelo caminho, como os miúdos de doze anos geralmente fazem.
Whitey voltou a dirigir‑se a Brendan:
Onde estavas entre a uma e meia e as três desta madrugada?
A dormir.
Whitey olhou para a mãe do rapaz.
‑ Pode confirmar?
Ela encolheu os ombros.
‑ Não posso confirmar que ele não saltou pela janela e desceu pela escada de incêndio. Posso confirmar que foi para o quarto às dez da noite e que quando voltei a vê‑lo eram nove da manhã.
Whitey distendeu‑se na cadeira.
Muito bem, Brendan. Vamos ter de pedir‑te que te submetas ao detector de mentiras. Achas que estás à altura?
Estão a prender‑me?
Não. Só queremos que faças o teste.
Brendan encolheu os ombros.
O que quiserem. Pois sim.
‑ E olha, fica com o meu cartão.
Brendan pegou o cartão. Ainda estava a olhar para ele quando disse:
‑ Amava‑a tanto. Nunca nunca mais volto a sentir o mesmo.
Quer dizer, nunca acontece duas vezes, pois não? ‑ Olhou para Whitey e para Sean. Os olhos estavam secos, mas a dor que havia neles era algo de que Sean quis fugir.
‑ A maior parte das pessoas, nem sequer uma ‑ disse Whitey.
Trouxeram Brendan de volta cerca da uma ‑ o miúdo passara quatro vezes pelo detector de mentiras ‑, e em seguida Whitey deixou Sean no passeio diante de casa, disse‑lhe que dormisse um pouco, iam ter de levantar‑se cedo na manhã seguinte. Sean entrou no apartamento vazio, ouviu o estrépito do silêncio que o enchia e sentiu a borra do excesso de cafeína misturada com comida intragável arrastar‑se‑lhe no sangue, trepar‑lhe pela espinha. Abriu a porta do frigorífico e tirou de lá uma cerveja, sentou‑se na bancada para bebê‑la, com os barulhos e as luzes da noite a chocalharem‑lhe dentro do crânio, fazendo‑o perguntar a si mesmo se estaria finalmente a ficar demasiado velho para aquela vida, se estava pura e simplesmente farto de motivos estúpidos, e de culpados estúpidos, da sensação de papel de embrulho sujo de tudo aquilo.
Ultimamente, andava era farto de um modo geral. Farto de pessoas. Farto de livros e de TV e de noticiários da noite e de canções na rádio que pareciam exactamente iguais a outras canções na rádio que ouvira anos antes e de que já nessa altura não gostara muito. Estava farto das suas roupas e farto dos seus cabelos e farto das roupas das outras pessoas e farto dos cabelos das outras pessoas. Estava farto de desejar que as coisas fizessem sentido. Estava farto das políticas internas do serviço e de quem andava a foder quem, tanto no sentido figurativo como no literal. Chegara a um ponto em que tinha a certeza quase absoluta de que já ouvira tudo o que toda a gente tinha a dizer a respeito de tudo e daí aquela a sensação de passar os dias a ouvir velhos discos de coisas que já não lhe tinham parecido frescas da primeira vez que as ouvira.
Talvez estivesse simplesmente farto da vida, do esforço absoluto que era necessário para sair da cama todas as manhãs e enfrentar a mesma porra do mesmo dia com pequenas variações de tempo e de comida. Demasiado farto para querer saber da rapariga morta porque haveria outra depois dela. E outra. E mandar os assassinos para a prisão ‑ mesmo pelo resto da vida ‑ já não proporcionava o nível adequado de satisfação, porque eles estavam apenas a ir para casa, para o lugar para onde tinham começado a encaminhar‑se desde o início das suas estúpidas e ridículas existências, e os mortos continuavam mortos. E os roubados e as violadas continuavam a ser os roubados e as violadas.
Perguntou a si mesmo se uma depressão clínica seria aquilo que sentia, um total entorpecimento, uma cansada ausência de esperança.
Katie Marcus estava morta, sim. Uma tragédia. Compreendia‑‑o intelectualmente, mas não o sentia. Ela era apenas mais um corpo, mais uma luz partida.
E o casamento dele, o que era senão vidro partido? Jesus, ele amava‑a, mas eram o mais diferentes que duas pessoas podiam ser sem deixarem de pertencer à mesma espécie. Lauren gostava de teatro e de livros e de filmes que Sean não conseguia perceber quer tivessem ou não legendas. Era conversadora e emocional e gostava de enfileirar palavras umas atrás das outras em estonteantes fiadas que subiam e subiam em direcção a uma qualquer torre de linguagem que deixava Sean perdido algures no terceiro andar.
A primeira vez que a vira fora no palco, na universidade, a fazer o papel de namorada abandonada numa qualquer farsa adolescente, e ninguém entre o público acreditava por um segundo sequer que houvesse um homem capaz de abandonar uma mulher tão radiante de energia, tão inflamada de tudo ‑ experiência, apetite, curiosidade. Já naquela altura formavam um casal improvável ‑ Sean calado e prático e sempre reservado a menos que estivesse com ela, e Lauren a filha única de um par de liberais de meia‑‑idade que a tinham levado de uma ponta à outra do mundo no seu trabalho para o Peace Corps, lhe tinham enchido o sangue de uma necessidade de ver e tocar e investigar o que havia de melhor nas pessoas.
O lugar dela era no mundo do teatro, primeiro como actriz na universidade, depois como directora de pequenas casas locais, finalmente, como encenadora de grupos maiores, itinerantes. Mas não tinham sido as viagens a estragar‑lhes o casamento. Raios, Sean ainda agora não sabia muito bem o que fora que lhes estragara o casamento, embora suspeitasse que tivera qualquer coisa a ver com ele e os seus silêncios, o gradual assentar do desprezo que todos os polícias acabavam por sentir ‑ um desprezo pelas pessoas, na realidade, uma incapacidade para acreditar em motivos superiores e em altruísmos.
Os amigos dela, que em tempos lhe tinham parecido fascinantes, começaram a parecer‑lhe pueris, cobertos por um retardante antimundo real de teoria artística e filosofias impraticáveis. Sean passava as noites fora, nas arenas de asfalto azul onde as pessoas violavam e roubavam e matavam sem outra razão que não fosse o desejo de fazê‑lo, e então tinha de aguentar uma festa de fim‑de‑se‑mana em que cabeças com rabos‑de‑cavalo discutiam pela noite dentro (a mulher dele incluída) as motivações por detrás dos pecados humanos. A motivação era simples ‑ as pessoas são estúpidas. Chimpanzés. Pior, porque os chimpanzés não se matam uns aos outros por causa de um bilhete de raspadinha.
Ela dissera‑lhe que ele estava a tornar‑se duro, intratável, redutor na sua maneira de pensar. E ele não respondera porque não havia nada a argumentar. A questão não era se estava ou não a tornar‑se todas aquelas coisas, mas se tornar‑se todas aquelas coisas era negativo ou positivo.
Mesmo assim, porém, amavam‑se. Cada um à sua maneira, continuavam a tentar ‑ Sean a tentar partir a sua casca para sair dela, Lauren a tentar parti‑la para lá entrar. Fosse o que fosse essa coisa entre duas pessoas, essa necessidade total, química, de se ligarem uma à outra, eles tinham‑na. Sempre.
De todos os modos, ele deveria ter visto o que estava a acontecer. E talvez tivesse visto. Talvez não fosse sequer o affair que o incomodara, mas a gravidez que se seguira.
Merda. Sentou‑se no chão da cozinha, na ausência da mulher, levou as mãos à testa e tentou, pela enésima vez naquele último ano, ver claramente o naufrágio do seu casamento. Mas tudo o que via era os cacos e os pedaços partidos, espalhados pelas salas do seu espírito.
Quando o telefone tocou, ele soube ‑ antes mesmo de pegar no auscultador e premir a tecla «Falar» ‑ que era ela.
‑ Fala Sean.
Ouviu, vindo do outro extremo da linha, o ribombar abafado do motor de um dezasseis rodas em ponto morto e o som esvoa‑çante dos carros a passarem velozes na estrada. Imaginou instantaneamente a cena ‑ a área de serviço de uma auto‑estrada, as bombas de gasolina, a fila de cabinas telefónicas entre o Roy Rogers e o McDonald's. Lauren de pé, a ouvir.
‑ Lauren ‑ disse. ‑ Eu sei que és tu.
Alguém passou junto à fila de cabinas, a fazer tilintar as chaves. O camião engatou a primeira e o rugido do motor tornou‑se mais agudo ao atravessar o parque de estacionamento.
‑ Como está ela? ‑ perguntou Sean. Estivera quase a dizer,
«Como está a minha filha?», mas a verdade era que não sabia se era dele, só que era de Lauren. Por isso voltou a dizer: ‑ Como está ela?
O camião passou para segunda, o som dos grandes pneus no saibro a tornar‑se mais distante enquanto se dirigia para a saída a caminho da estrada.
‑ Isto é demasiado doloroso ‑ queixou‑se Sean. ‑ Não podes
ao menos falar comigo?
Lembrou‑se do que Whitey dissera a Brendan Harris a respeito do amor, a respeito de como não acontece uma vez sequer para a maior parte das pessoas, e imaginou a mulher ali de pé, a ver o camião afastar‑se, com o auscultador apertado contra o ouvido mas não junto da boca. Era uma mulher esbelta e alta, com cabelos cor de cerejeira. Quando ria, tapava a boca com os dedos. Na universidade, tinham atravessado os terrenos do campus durante uma trovoada, e ela beijara‑o pela primeira vez sob o arco da biblioteca onde se tinham abrigado, e qualquer coisa se soltara no peito de Sean quando a mão dela lhe segurara a nuca, qualquer coisa que estivera dobrada sobre si mesma e sem respirar desde que ele conseguia lembrar‑se. Ela dissera‑lhe que ele tinha a mais bela voz que alguma vez ouvira, que soava a whiskey e a fumo de lenha.
Desde que ela partira, o ritual habitual era ele falar até ela decidir desligar. Lauren nunca falara, nem uma única vez em todos aqueles telefonemas desde que se fora embora, telefonemas feitos de estações de serviço e de motéis e de cabinas cobertas de pó na berma de estradas desertas dali até à fronteira do México e na volta. E no entanto, apesar de geralmente ter apenas o zumbido da linha silenciosa no ouvido, Sean sabia sempre quando era ela. Sentia‑a através do telefone. Por vezes, conseguia até cheirá‑la.
As conversas ‑ se assim se lhes podia chamar ‑ chegavam a durar quinze minutos, dependendo do que ele dizia, mas naquela noite Sean estava exausto e desgastado de saudades dela, uma mulher que o abandonara certa manhã, quando estava grávida de sete meses, farta de os sentimentos que ele tinha por ela serem os únicos sentimentos que conseguia ter fosse pelo que fosse.
‑ Esta noite não consigo ‑ disse ele. ‑ Estou cansado e tenho dores e tu não queres saber sequer o suficiente para me deixares ouvir a tua voz.
Ali de pé na cozinha, deu‑lhe uns desperançados trinta segundos para responder. Ouviu o tilintar de uma campainha enquanto alguém metia ar num pneu.
‑ Adeus, querida ‑ disse, e as palavras estrangularam‑se na saliva que lhe enchia a garganta, e então desligou.
Ficou muito quieto por um instante, a ouvir o eco da campainha da bomba de ar misturado com o silêncio ressoante que desceu sobre a cozinha e lhe atravessou o coração.
Ia torturá‑lo, tinha a certeza. Talvez toda a noite e no dia seguinte. Talvez toda a semana. Quebrara o ritual. Fora ele a desligar. E se, no preciso instante em que o fizera, ela estivesse a abrir os lábios para falar, para dizer o nome dele?
Jesus.
A imagem fê‑lo encaminhar‑se para o duche, quanto mais não fosse para fugir dela, do pensamento dela junto de um daqueles telefones públicos, a boca a abrir‑se, as palavras a subirem‑lhe pela garganta.
Sean, talvez ela se preparasse para dizer, vou voltar para casa.
ANJOS DOS SILêNCIOS
Um Homem Perfeito
Na segunda‑feira de manhã, Celeste estava na cozinha com a prima Annabeth. A casa começava a encher‑se de gente, e Annabeth inclinava‑se para o fogão, cozinhando com uma concentração desinteressada, quando Jimmy, acabado de sair do duche, meteu a cabeça pela porta a perguntar se ela precisava de alguma coisa.
Quando eram as duas miúdas, Celeste e Annabeth tinham sido mais como irmãs do que como primas direitas. Annabeth era a única rapariga numa família de rapazes e Celeste a filha única de pais que não se suportavam um ao outro, de modo que passavam uma porção de tempo juntas e, nos primeiros anos de liceu, telefonavam‑‑se quase todas as noites. Tudo isso mudara, pouco a pouco, de uma forma quase imperceptível, ao longo dos anos, à medida que a relação entre a mãe de Celeste e o pai de Annabeth se deteriorara, passando do cordial para o frio e finalmente para o hostil. E de algum modo, sem que tivesse acontecido qualquer coisa a que se pudesse apontar o dedo, o afastamento entre irmão e irmã alastrara às filhas, até que Celeste e Annabeth já só se viam nas ocasiões mais formais ‑ casamentos, depois de terem dado à luz e nos subsequentes baptizados, por vezes no Natal e na Páscoa. Era a ausência de uma razão clara que mais custava a Celeste, e magoava‑a descobrir que uma amizade que em tempos parecera inquebrantável podia desfazer‑se tão facilmente devido a nada mais do que o tempo, as querelas familiares e as idiossincrasias do crescimento.
As coisas tinham melhorado desde que a mãe morrera, no entanto. Ainda no Verão anterior, ela e Dave tinham estado com Annabeth e Jimmy num churrasco, e durante o Inverno tinham saído para jantar e beber um copo um par de vezes. Em cada uma dessas ocasiões, a conversa fora‑se tornando gradualmente um pouco mais fácil, e Celeste sentira dez anos de incompreendido isolamento recuarem no tempo e encontrarem um nome: Rosemary.
Annabeth ajudara‑a quando da morte da mãe. Durante três dias, aparecera de manhã e só se fora embora à noite. Ajudara a cozinhar e a tratar do funeral e sentara‑se junto de Celeste enquanto esta chorava uma mãe que nunca lhe dera grandes provas de amor mas que, apesar de tudo, fora sua mãe.
E agora Celeste estava ali para retribuir o gesto, embora a ideia de alguém tão terrivelmente independente como Annabeth precisar de ajuda parecesse estranha à maior parte das pessoas, incluindo Celeste.
Fosse como fosse, manteve‑se ao lado da prima e deixou‑a cozinhar e foi buscar os alimentos ao frigorífico quando ela lho pediu e atendeu a maior parte dos telefonemas.
E agora ali estava Jimmy, menos de vinte e quatro horas depois de descobrir que a filha tinha morrido, a perguntar à mulher se precisava de alguma coisa. Tinha os cabelos ainda molhados e quase por pentear, e a camisa húmida no peito. Estava descalço, e bolsas de dor e de falta de sono pendiam‑lhe sob os olhos, e Celeste pensou, Jesus, Jimmy, e então to? Nunca pensas em ti?
Todas as outras pessoas que enchiam a casa naquele momento ‑ ocupando a sala e a casa de jantar, passeando de um lado para o outro no vestíbulo, empilhando os casacos em cima das camas no quarto de Sara e de Nadine ‑ olhavam para Jimmy, como se não pudesse sequer ocorrer‑lhes olhar por ele. Como se só ele pudesse explicar‑lhes aquela anedota brutal, acalmar a angústia que lhes torturava o cérebro, segurá‑los quando o choque passasse e os seus corpos se afundassem sob novas vagas de dor. Jimmy possuía uma aura de liderança que usava aparentemente sem esforço, e Celeste muitas vezes perguntara a si mesma se ele teria consciência dela, se a reconheceria como a carga que devia ser, especialmente em momentos como aquele.
‑ O quê? ‑ perguntou Annabeth, sem desviar os olhos do bacon que estralejava na frigideira.
‑ Precisas de alguma coisa? ‑ repetiu Jimmy. ‑ Posso cozinhar
um pedaço, se quiseres.
Annabeth lançou ao fogão um breve e tímido sorriso, e abanou a cabeça.
‑ Não, estou bem.
Jimmy olhou para Celeste, como que a perguntar: Está? Celeste assentiu.
‑ Temos a situação controlada, Jimmy.
Jimmy voltou a olhar para a mulher, e Celeste sentiu a mais dolorida das ternuras naquele olhar. Sentiu mais um pedaço do coração de Jimmy soltar‑se e cair‑lhe como uma lágrima dentro do peito. Jimmy inclinou‑se para dentro da cozinha, estendeu o braço e, com o indicador, limpou uma gota de transpiração que deslizava pela face de Annabeth, e Annabeth disse:
Não.
Olha para mim ‑ murmurou Jimmy.
Celeste teve a sensação de que deveria sair da cozinha, mas receou que o seu movimento quebrasse qualquer coisa entre a prima e Jimmy, qualquer coisa demasiado frágil.
‑ Não posso ‑ disse Annabeth. ‑Jimmy? Se olhar para ti, torno a perder o controlo, e não posso perdê‑lo com esta gente toda cá em casa. Por favor?
Jimmy endireitou‑se, afastando‑se do fogão.
OK, querida. OK.
Não quero voltar a descontrolar‑me ‑ murmurou Annabeth,
de cabeça baixa.
Eu compreendo.
Por um instante, Celeste sentiu‑se como se os dois estivessem nus diante dela, como se fosse testemunha de qualquer coisa entre marido e mulher que era tão íntima como se estivesse a vê‑los a fazer amor.
A porta do extremo oposto do corredor abriu‑se e o pai de Annabeth, Theo Savage, entrou e avançou para a cozinha carregando uma caixa de cerveja em cada ombro. Era um homem enorme, rubicundo e bochechudo, e percorreu o estreito corredor com uma inesperada graça de bailarino, equilibrando as caixas de cerveja em cima dos vastos ombros. Celeste ficava sempre um pouco espantada ao pensar que aquela montanha de homem gerara tantos filhos tão pequenos ‑ Kevin e Chuck eram, dos rapazes, os únicos que tinham alguma coisa da altura e do arcaboiço do pai, e Anna‑beth a única que herdara a sua graciosidade física.
Atrás de ti, Jim ‑ avisou Theo, e Jimmy afastou‑se para um
lado enquanto o sogro passava cuidadosamente por ele e entrava
na cozinha. Roçou os lábios pela face de Celeste, com um suave,
«Como vai isso, querida?», pousou as caixas de cerveja em cima da mesa e passou os braços pela cintura da filha, apertando o queixo contra o ombro dela.
Estás a aguentar, amor?
‑ A tentar, Pá ‑ respondeu Annabeth.
Ele beijou‑lhe o lado do pescoço.
‑ A minha menina! ‑ e então voltou‑se para Jimmy e acrescentou: ‑ Se tens algumas caixas refrigeradoras, podemos enchê‑las.
Encheram as caixas refrigeradoras que estavam no chão junto à despensa e Celeste continuou a desembrulhar toda a comida que familiares e amigos tinham trazido ao regressarem, naquela manhã. Havia tantos ‑ pães irlandeses, tortas, sonhos, pastéis e três bandejas de salada de batata. Sacos de pão, travessas de carnes frias, rolos de carne, um tacho gigantesco, dois fiambres cozinhados e um enorme peru envolto em papel de estanho. Não havia qualquer verdadeira razão para Annabeth estar a cozinhar ‑ todos os sabiam ‑, mas todos compreendiam: precisava de fazer aquilo. Por isso ela fritou bacon e salsichas e duas grandes frigideiras de ovos mexidos, e Celeste levou a comida para a mesa que fora encostada à parede da casa de jantar. Perguntou a si mesma se toda aquela comida seria uma tentativa de confortar os entes queridos da falecida, ou se de algum modo as pessoas esperavam comer o desgosto, metê‑lo na boca e empurrá‑lo para baixo com Coca e álcool, café e chá, até que ele as enchesse e inchasse ao ponto de adormecê‑las. Era o que se fazia nas reuniões de luto ‑ em velórios, em funerais, em serviços fúnebres e em ocasiões como aquela: comia‑se e bebia‑‑se e falava‑se até já não se ser capaz de comer nem beber nem falar mais.
Viu Dave entre a multidão que enchia a sala de estar. Estava a falar com Kevin Savage, os dois sentados num sofá, mas nenhum deles parecia particularmente animado ou à vontade, ambos tão chegados para as respectivas pontas do móvel que quase parecia um concurso a ver qual caía primeiro. Celeste sentiu uma pontada de pena do marido ‑ pena do ligeiro mas permanente ar de estranho que por vezes parecia pairar por cima dele, sobretudo no meio daquela gente. Ao fim e ao cabo, todos o conheciam. Todos sabiam o que lhe tinha acontecido quando era miúdo, e mesmo que conseguissem aceitá‑lo e não o julgar (e provavelmente conseguiam), era Dave que não conseguia sentir‑se totalmente à vontade entre pessoas que o tivessem conhecido toda a vida. Sempre que ele e Celeste saíam com pequenos grupos de colegas de trabalho ou de amigos de fora do bairro, Dave mostrava‑se o mais descontraído e confiante que se pudesse imaginar, sempre com a resposta divertida ou a observação espirituosa na ponta da língua, um tipo perfeitamente sociável e simpático. (As colegas dela no Ozma's Hair Design e os respectivos maridos adoravam‑no.) Mas ali, onde crescera e lançara raízes, parecia sempre meia frase atrasado em todas as conversas, meio passo desacertado em relação a todos os outros, o último a perceber qualquer piada.
Tentou captar‑lhe o olhar e dirigir‑lhe um sorriso, fazê‑lo sentir que enquanto ela ali estivesse ele não estaria sozinho. Mas um grupo de pessoas ocupou o arco que separava a casa de jantar da sala, e Celeste perdeu‑o de vista.
Era geralmente no meio de uma multidão que uma pessoa melhor notava o pouco tempo que verdadeiramente passava com aqueles que amava. Quase não estivera com Dave durante toda a semana anterior, tirando a noite de sábado no chão da cozinha, depois de ele quase ter sido assaltado. E praticamente não o via desde a tarde de domingo, quando Theo Savage telefonara, por volta das seis, para dizer:
Olha, querida, tenho más notícias. A Katie morreu.
A reacção inicial de Celeste fora:
Não morreu nada, tio Theo.
Doçura, arranca‑me a alma estar a dizer‑te isto, mas é verdade. Encontraram‑na assassinada.
Assassinada.
No Pen Park.
Celeste olhara para o televisor, em cima da bancada. Era a notícia de abertura do telejornal das seis, com cobertura em directo. As imagens tomadas de um helicóptero mostravam uma aglomeração de polícias junto a uma das extremidades do ecrã do drive‑in. Os jornalistas continuavam sem saber o nome da vítima, mas confirmavam que fora encontrado o corpo de uma jovem.
A Katie não. Não, não, não.
Celeste dissera a Theo que ia imediatamente para casa de Annabeth, e ali tinha estado, exceptuando um curto sono na sua própria cama entre as três e as seis da manhã, desde o telefonema.
Mas nem mesmo assim conseguia acreditar totalmente. Mesmo depois de tudo o que ela, Annabeth, Nadine e Sara tinham chorado, mesmo depois de ter segurado Annabeth no chão da sala de estar enquanto a prima era sacudida durante cinco violentos minutos por terríveis convulsões. Mesmo depois de ter visto Jim‑my de pé na escuridão do quarto de Katie, com a almofada da filha apertada contra o rosto. Não estava a chorar nem a falar sozinho nem a fazer qualquer espécie de ruído. Estava apenas ali com aquela almofada apertada contra a cara, a respirar o cheiro dos cabelos e da face da filha, uma e outra vez. Inspirar, expirar. Inspirar, expirar...
Mesmo depois de tudo isto, ainda não acreditava verdadeiramente. Sentia que Katie ia entrar por aquela porta de um momento para o outro, passar pela cozinha e roubar um pedaço de bacon da travessa que estava em cima do fogão. Katie não podia estar morta. Não podia.
Talvez quanto mais não fosse por haver aquela coisa, aquela coisa ilógica aninhada no mais fundo recesso do cérebro de Celeste, aquela coisa que sentira ao ver o carro de Katie o noticiário e pensara ‑ mais uma vez, ilogicamente ‑ sangue=Dave.
E sentia agora Dave do outro lado da multidão na sala de estar. Sentia o isolamento dele, e sabia que o marido era um homem bom. Com defeitos, mas bom. Amava‑o, e se o amava ele era bom, e se ele era bom, então o sangue no carro de Katie não tinha nada a ver com o sangue que ela lavara das roupas de Dave no sábado à noite. E portanto Katie tinha de, fosse lá como fosse, continuar viva. Porque todas as outras alternativas eram horríveis.
E ilógicas. Completamente ilógicas, Celeste teve a certeza absoluta disso enquanto voltava à cozinha para ir buscar mais comida.
Quase chocou com Jimmy e com o tio Theo, que arrastavam pelo chão uma caixa refrigeradora cheia de cervejas em direcção à casa de jantar. Theo saiu‑lhe da frente no último instante e disse:
‑ Tem cuidado com esta, Jimmy. É o diabo sobre rodas.
Celeste sorriu timidamente, como o tio Theo esperava que as mulheres sorrissem, e engoliu a sensação que tinha sempre que o tio Theo olhava para ela ‑ uma sensação que conhecia desde os doze anos ‑ de que os olhares dele se atardavam um tudo nada mais do que deveriam.
Lá arrastaram a enorme caixa pelo chão, e formavam um estranho par: Theo, vermelho e excessivo no corpo e na voz; Jimmy, calado e pálido e tão despojado de gordura corporal que parecia sempre acabado de sair da recruta. Abriram caminho por entre a multidão que obstruía o arco e empurraram a caixa refrigeradora até à mesa encostada à parede da casa de jantar, e Celeste reparou que todos se voltavam para vê‑los enfiá‑la debaixo da mesa, como se subitamente a carga que transportavam já não fosse uma enorme caixa refrigeradora de duro plástico vermelho e sim a filha que Jimmy iria enterrar nessa semana, a filha que os levara todos até ali para conviver e comer e ver se tinham coragem para pronunciar‑‑lhe o nome.
Ao vê‑los arrumar a caixa refrigeradora debaixo da mesa e depois, lado a lado, atravessarem a multidão que enchia a casa de jantar e a sala de estar ‑ Jimmy compreensivelmente abatido mas detendo‑se para agradecer a cada um dos presentes que encontrava com um quase caloroso duplo aperto de mão e Theo igual a si mesmo, uma tumultuosa força da natureza ‑, várias pessoas comentaram como pareciam ter‑se aproximado ao longo dos anos, o modo como atravessavam aquela sala como se fossem na verdade pai e filho.
Ninguém o teria julgado possível quando Jimmy casara com Annabeth. Nessa altura, Theo não era famoso pelas suas amizades. Era um bêbedo e um zaragateiro, um homem que complementava o seu salário como despachante numa empresa de táxis trabalhando à noite como porteiro em alguns dos clubes‑nocturnos mais mal afamados do bairro e que gostava verdadeiramente do que fazia. Era um homem gregário e de riso fácil, mas havia sempre um desafio nos seus risonhos apertos de mão, uma ameaça nas suas gargalhadas.
Jimmy, pelo contrário, mostrara‑se calado e sério desde que voltara de Deer Island. Era amistoso, mas de um modo reservado, e, nas reuniões, tendia a passar despercebido. Era o tipo de homem que, quando dizia qualquer coisa, os outros escutavam. Talvez por falar tão raramente que as pessoas estavam sempre à espera de ver quando, ou se, alguma coisa lhe saía boca fora.
Theo era divertido, ainda que não particularmente agradável. Jimmy era agradável, ainda que não particularmente divertido. A última coisa que alguém esperaria era que aqueles dois se tornassem amigos. Mas ali estavam eles, Theo a vigiar Jimmy como se pudesse vir a precisar de um momento para o outro de estender a mão e impedi‑lo de bater com a nuca no chão, Jimmy a fazer uma pausa ocasional para dizer qualquer coisa ao enorme ouvido de Theo antes de continuar a avançar por entre a multidão. Os melhores amigos do mundo, era o que as pessoas diziam. Era o que pareciam, os melhores amigos do mundo.
Uma vez que se aproximava o meio‑dia... bem, onze da manhã, mais exactamente, mas já devia ser meio‑dia noutro sítio qualquer. .. a maior parte das pessoas que chegavam trazia agora bebidas alcoólicas em vez de café e carnes em vez de bolos. Quando o congelador ficou cheio, Jimmy e Theo Savage foram procurar mais caixas refrigeradoras e gelo ao apartamento dos Savage no terceiro andar ‑ o que Vai partilhava com Chuck, Kevin e a mulher de Nick, Elaine, que vestia de luto, fosse para mostrar que se considerava uma viúva até Nick sair da prisão, fosse, como havia quem dissesse, por gostar do preto.
Theo e Jimmy encontraram duas caixas refrigeradoras na despensa, junto à máquina de secar, e vários sacos de gelo no frigorífico. Encheram as caixas, atiraram os sacos de plástico para o lixo e preparavam‑se para voltar a sair quando Theo disse:
‑ Eh, aguenta aí um instante, Jim.
Jimmy olhou para o sogro.
Theo acenou na direcção de uma cadeira.
‑ Descansemos um pouco.
Jimmy aquiesceu. Pousou a caixa refrigeradora ao lado da cadeira e sentou‑se, à espera de que Theo dissesse o que tinha a dizer. Theo Savage criara sete filhos naquele apartamento, um minúsculo três assoalhadas com chãos inclinados e canalizações barulhentas. Certa vez, dissera a Jimmy que, em sua opinião, isso significava que nunca mais enquanto vivesse teria de pedir desculpa fosse a quem fosse, pelo que quer que fosse. «Sete filhos», dissera a Jimmy, «com menos de dois anos de diferença entre qualquer deles, todos a berrar como danados naquela merda daquele apartamento. As pessoas falam a respeito das alegrias da paternidade, não é? Eu chegava a casa depois do trabalho, ouvia aquela chinfrineira e pensava, «Não, mostrem‑me lá o que é essa merda. Nunca tive alegrias. Mas dores de cabeça, isso sim. Disso, tive montes.»
Jimmy sabia, através de Annabeth, que quando Theo chegava a casa e enfrentava as dores de cabeça, geralmente não se demorava mais do que o tempo necessário para comer e voltar a sair. E Theo tinha‑lhe dito que nunca perdera muito sono com essa treta de educar crianças. Tinha sobretudo rapazes, e os rapazes eram simples, na opinião dele ‑ era dar‑lhes de comer, ensiná‑los a lutar e a jogar à bola, e estavam prontos para seguir. Se precisassem de carinhos, a mãe que lhos desse. Com o pai, iam ter se precisassem de dinheiro para um carro ou para pagar a fiança. As filhas é que são para mimar, dissera a Jimmy.
‑ Foi isso que ele lhe chamou? ‑ perguntara Annabeth, quando Jimmy lhe falara no caso.
Jimmy pouco se ralaria com o tipo de pai que Theo tinha sido se o sogro não aproveitasse as mais pequenas oportunidades para apontar as suas deficiências e as de Annabeth como educadores, sempre a dizer‑lhes com um sorriso isto sem ofensa, notem bem, mas eu não deixava um filho meu fazer isso.
Geralmente, Jimmy assentia com a cabeça, agradecia e ignorava‑o.
Naquele instante, ali na cozinha do apartamento, viu o tal brilho de velho sábio nos olhos do sogro quando Theo se sentou na outra cadeira e olhou para o chão e sorriu tristemente ao ruído de pés e de vozes que vinha lá de baixo.
Parece que um gajo só vê a família e os amigos nos casamentos e nos velórios, não é, Jim?
É verdade ‑ respondeu Jimmy, ainda a tentar livrar‑se da sensação que tinha desde as quatro horas do dia anterior de que o seu verdadeiro eu andava a pairar por cima dele, a nadar em pleno ar com braçadas ligeiramente frenéticas, tentando descobrir uma maneira de regressar ao próprio corpo antes de se cansar de tanto esbracejar e cair como uma pedra até ao negro coração da Terra.
Theo pousou as mãos nos joelhos e olhou para Jimmy até que ele ergueu a cabeça e lhe enfrentou o olhar.
Como é que estás a aguentar‑te até agora?
Jimmy encolheu os ombros.
Ainda não estou verdadeiramente convencido.
Vai doer como o caraças quando ficares, Jim.
Calculo.
Como o caraças. Posso garantir‑te.
Jimmy voltou a encolher os ombros e sentiu um vestígio de uma espécie de emoção ‑ seria raiva? ‑ subir‑lhe a borbulhar do fundo do estômago. Era mesmo do que estava a precisar: um sermão sobre a dor da parte de Theo Savage. Merda.
Theo inclinou‑se para a frente.
‑ Quando a minha Janey morreu? Deus a tenha em descanso, Jim, fiquei sem préstimo para nada durante seis meses. Um dia
estava aqui, a minha linda mulher, e no dia seguinte? Tinha desaparecido. ‑ Fez estalar os grossos dedos. ‑ Deus ganhou um anjo nesse dia, eu perdi uma santa. Mas nessa altura todos os meus filhos estavam criados, graças a Deus. Quer dizer, pude dar‑me ao luxo de chorá‑la durante seis meses. Tive essa possibilidade. Mas tu não tens.
Theo recostou‑se na cadeira e Jimmy voltou a ter a tal sensação borbulhante. Janey Savage morrera havia dez anos, e Theo enfiara‑‑se dentro de uma garrafa durante muito mais do que seis meses. Mais para os dois anos. A mesma garrafa, aliás, que andara a alugar a maior parte da sua vida, com a diferença de que passara a viver lá permanentemente depois de Janey morrer. Enquanto a mulher vivera, Theo prestara‑lhe tanta atenção como a uma carcaça da semana anterior.
Jimmy tolerava Theo porque não tinha outro remédio ‑ era o pai de Annabeth, ao fim e ao cabo. Vistos de fora, talvez até parecessem amigos. Talvez Theo pensasse que eram. E a idade amolecera‑o ao ponto de amar abertamente a filha e estragar as netas com mimos. Mas uma coisa era não julgar um homem pelos seus erros passados, e outra muito diferente aceitar conselhos vindos dele.
Percebes o que estou a dizer? ‑ insistiu Theo. ‑ Vê lá se não
deixas que o teu desgosto se transforme em desculpa, Jim, que, tu sabes, te afaste das tuas responsabilidades domésticas.
As minhas responsabilidades domésticas ‑ disse Jim.
Sim. Quer dizer, tens de tomar conta da minha filha e da
quelas garotas. Elas é que têm de ser agora a tua prioridade.
Uh‑uh. E achaste que eu ia esquecer‑me, Theo?
Não estou a dizer que ias, Jim. Estou a dizer que podias. Mais
nada.
Jimmy estudou o joelho esquerdo de Theo. Imaginou‑o a explodir num jorro vermelho.
Theo.
Sim, Jim.
Jimmy viu o outro joelho explodir e passou para os cotovelos.
Não achas que esta conversa podia ter esperado?
Não há altura como o presente. ‑ Theo soltou uma gargalhada retumbante, mas que continha um aviso.
Amanhã, digamos. ‑ O olhar de Jimmy deixou os cotovelos
de Theo e mudou‑se para os olhos. ‑ Quer dizer, amanhã seria uma boa altura. Não seria, Theo?
O que foi que eu te disse a respeito do presente, Jimmy. ‑ Theo
estava a ficar irritado. Era um homem grande, com um feitio violento, e Jimmy sabia que isso assustava algumas pessoas, que Theo via esse medo reflectido nos rostos, na rua, que se habituara a ele e que o confundia com respeito. ‑ Eh, para te dizer a verdade, acho
que até nem há uma boa altura para ter esta conversa. Tenho ou não razão? Por isso achei que o melhor era esclarecer já o assunto.
Oh, claro. Como tu disseste, não há altura como o presente.
Certo?
Certo. Bom rapaz. ‑ Theo deu uma palmadinha no joelho
de Jimmy e pôs‑se de pé. ‑ Vais ultrapassar isto, Jimmy. Vais seguir em frente. Carregarás a dor contigo, mas vais seguir em frente.
Porque és um homem. Disse à Annabeth... na noite em que vocês
casaram?... disse‑lhe: Querida, tens ali um homem da velha escola.
O homem perfeito, disse‑lhe eu. Um campeão. Um tipo que vai...
Como se a tivessem metido num saco ‑ disse Jimmy.
O quê? ‑ Theo baixou os olhos para ele.
Era como a Katie parecia quando a identifiquei na morgue,
ontem à noite. Como se alguém a tivesse metido num saco e batido no saco com canos de ferro.
Sim, bem, não deixes...
Nem sequer se percebia muito bem de que raça ela era, Theo.
Podia ser preta, podia ser porto‑riquenha, como a mãe. Podia ser árabe. Branca é que não parecia. ‑Jimmy olhou para as mãos enclavinhadas entre os joelhos, e reparou nas nódoas no chão da cozinha, uma castanha junto ao seu pé esquerdo, outra de mostarda junto à
perna da mesa. ‑ A Janey morreu enquanto dormia, Theo. Com todo o devido respeito e essas merdas, mas é assim mesmo. Foi para a cama e não voltou a acordar. Morreu em paz.
Não precisas de falar da Janey. Está bem?
Mas a minha filha? Foi assassinada. Há uma grande diferença.
Por um instante, a cozinha ficou silenciosa ‑ a zumbir de silêncio, na realidade, como só um apartamento vazio pode fazer quando o de baixo está cheio de gente ‑ e Jimmy perguntou a si mesmo se Theo seria suficientemente estúpido para continuar a falar. Vá Já, Theo, diz qualquer coisa estúpida. Estou no tal estado de espírito, como se precisasse de tirar esta coisa borbulhante de dentro de mim e enfiá‑la noutra pessoa qualquer.
Ouve, eu compreendo ‑ disse Theo, e Jimmy deixou escapar
um suspiro pelas narinas. ‑ Compreendo, palavra. Mas, Jim, também não é caso para ficares tão...
O quê? Não é caso para eu ficar tão o quê? Alguém encostou uma arma à cabeça da minha filha e estourou‑lhe os miolos,
e tu queres ter a certeza de que eu não baralho... o quê?... as minhas prioridades em matéria de desgosto? Diz‑me, por favor. Percebi bem? Queres pôr‑te aí à minha frente e fazer o papel de porra do patriarca da família?
Theo olhou para os sapatos e respirou pesadamente pelas narinas, a abrir e cerrar os punhos junto ao corpo.
‑ Acho que não mereço isso.
Jimmy pôs‑se de pé e arrumou a cadeira junto da mesa. Pegou numa das caixas refrigeradoras que estavam no chão. Olhou para a porta.
Podemos ir agora, Theo?
Claro ‑ disse Theo. Deixou ficar a cadeira onde estava e
pegou na outra caixa. ‑ OK, OK. Foi má ideia, eu tentar falar contigo esta manhã. Ainda não estás pronto. Mas...
Theo? Deixa. Não digas mais nada. Que tal? Pode ser?
Jimmy pôs a caixa ao ombro e começou a descer a escada. Perguntou a si mesmo se teria magoado Theo, mas decidiu que na verdade não queria saber. Theo que se lixasse. Por aquela altura deviam estar a começar a autopsiar Katie. Jimmy ainda tinha no nariz o cheiro do berço dela, mas na sala do médico legista haviam de estar a preparar os bisturis e os afastadores, a ligar à corrente as serras de cortar ossos.
Mais tarde, depois de a multidão ter diminuído um pouco, Jimmy saiu para o alpendre das traseiras e sentou‑se debaixo das roupas deixadas a secar na corda desde sábado de manhã. Ficou ali sentado, com o sol a aquecê‑lo e um par de calças de sarja de Nadine a balouçar‑se no ar para trás e para a frente. Annabeth e as pequenas tinham chorado durante toda a noite anterior, enchendo o apartamento com os seus prantos, e Jimmy pensara que ia juntar‑se‑lhes a qualquer momento. Mas não. Tinha gritado naquela encosta, ao ler nos olhos de Sean Devine que a filha estava morta. Gritara até ficar rouco. Mas, tirando isso, não conseguira sentir fosse o que fosse. Por isso estava ali sentado no alpendre, a desejar que as lágrimas viessem.
Torturou‑se com imagens de Katie em bebé, Katie do outro lado da suja e riscada mesa em Deer Island, Katie, aninhada nos seus braços, a chorar até que o sono a vencera, seis meses depois de ele ter saído da prisão, a perguntar‑lhe quando era que a mamã dela voltava para casa. Viu a pequena Katie a brincar na banheira e a Katie de oito anos a chegar da escola de bicicleta. Viu Katie a sorrir e Katie a amuar e Katie a contorcer o rosto furiosa e a voltar a contorcê‑lo confusa enquanto ele, à mesa da cozinha, a ajudava a fazer uma longa divisão. Viu uma Katie mais velha sentada no balouço montado nas traseiras com Diane e Eve, a preguiçar um dia de Verão, as três insuportáveis de pré‑adolescência e arames nos dentes, com braços e pernas que cresciam mais e mais depressa do que o resto do corpo. Viu Katie deitada de bruços na cama com Sara e Nadine a treparem por cima dela. Viu‑a com o vestido que usara na noite do baile de finalistas do liceu. Viu‑a sentada ao lado dele no Grand Marquis, o queixo a tremer, a afastar‑se muito devagar do passeio no primeiro dia em que começara a ensiná‑la a guiar. Viu‑a petulante, a gritar‑lhe na cara nos anos de adolescência, imagens que muitas vezes lhe pareciam mais enternecedoras do que as outras, risonha e alegres.
Viu‑a e viu‑a e viu‑a, e nem mesmo assim conseguiu chorar.
Há‑de vir, disse uma voz calma dentro da cabeça dele. Agora estás em choque.
Mas o choque começa a passar, respondeu Jimmy à voz que lhe soava dentro da cabeça. Tem estado a passar desde que o Theo se pôs a chatear‑me lá em cima.
Quando passar, hás‑de sentir qualquer coisa.
Já sinto qualquer coisa.
Isso é desgosto, disse a voz. Isso é dor.
Não é desgosto. Não é dor. É raiva.
Sentirás um pouco disso, também. Mas há‑de passar.
Não quero que passe.
Também Gostei de Te Ver
Dave voltava com Michael da escola quando, ao dobrar a esquina, viu Sean Devine e um outro tipo encostados à bagageira de um Sedan preto estacionado diante da casa dos Boyle. O Sedan preto tinha matrícula do governo do estado e antenas suficientes a eriçarem‑lhe a traseira para enviar mensagens até Vénus, e bastou a Dave olhar para o companheiro de Sean, mesmo a quinze metros de distância, para ver que o sujeito era também da Polícia. Tinha aquela maneira muito à chui de empinar o queixo, esticando‑o um pouco para fora, e aquela maneira de estar recostado, apoiado nos calcanhares, e mesmo assim parecer preparado para saltar em frente. E se isso não bastasse para o denunciar, o corte à escovinha num fulano de quarenta e tal anos e os óculos de lentes verdes e aros dourados eram provas definitivas.
A mão de Dave apertou a de Michael, e foi como se alguém tivesse mergulhado uma faca em água gelada e em seguida encostado o chato da lâmina ao peito dele. Quase parou, com os pés a quererem fincar‑se no passeio, mas alguma coisa o empurrou para a frente, e teve a esperança de parecer normal, descontraído. Sean voltara‑se na direcção deles, os olhos neutros e vazios nos primeiros instantes, depois a estreitarem‑se numa expressão de reconhecimento ao encontrarem os de Dave.
Ambos os homens sorriram ao mesmo tempo, Dave dando ao seu sorriso a voltagem máxima, o de Sean muito rasgado também, Dave surpreendido ao ver o que parecia ser verdadeiro prazer no rosto de Sean.
‑ Dave Boyle ‑ disse Sean, afastando‑se do carro de mão estendida ‑, há quanto tempo?
Dave apertou a mão que lhe era oferecida e teve outro pequeno sobressalto de surpresa quando Sean lhe deu uma ligeira palmada no braço.
Daquela vez no Tap ‑ respondeu Dave. ‑ Foi, o quê, há seis
anos?
Sim. Por essas bandas. Estás com bom aspecto, pá.
E tu como vais, Sean? ‑ perguntou Dave, sentindo‑se invadir
por uma onda de simpatia de que o cérebro o avisava que fugisse.
Mas porquê? Já restavam tão poucos dos velhos tempos. E não tinham sido só os chavões do costume ‑ prisão, drogas ou Polícia ‑ a levá‑los. Os subúrbios tinham reclamado a sua quota parte. E outros estados também, o engodo de ser como toda a gente, de tornar a América um grande país de jogadores de golfe, frequentadores de centros comerciais e donos de pequenos negócios com mulheres louras e TV de ecrãs gigantes.
Não, já não restavam muitos, e Dave sentiu uma mistura de orgulho e felicidade e estranha pena ao apertar a mão de Sean e recordar aquele dia na estação do metro quando Jimmy saltara para os carris, o tempo em que os sábados, em geral, pareciam Dias em que Tudo É Possível.
‑ Tenho andado bem ‑ disse Sean, e parecia estar a ser sincero, apesar de Dave notar qualquer coisa, uma ligeiríssima hesitação no sorriso dele. ‑ E este quem é?
Sean tinha‑se inclinado para Michael.
‑ É o meu filho, Michael.
Olá, Michael. Prazer em conhecer‑te.
‑Olá. Sou o Sean, um velho, velho amigo do teu pai.
Dave viu a voz de Sean iluminar qualquer coisa dentro de Michael. Não havia dúvidas de que Sean tinha uma voz especial, como o fulano que fazia os anúncios dos próximos filmes, e Michael animou‑se ao ouvi‑la, imaginando talvez uma lenda do pai e daquele desconhecido alto e confiante como miúdos que brincavam naquelas mesmas ruas e sonhavam sonhos parecidos com os dele e dos amigos.
‑ Prazer em conhecê‑lo ‑ disse Michael.
‑ O prazer é meu, Michael. ‑ Sean apertou‑lhe a mão e endireitou‑se para olhar para Dave. ‑ Um belo rapaz, Dave. Como vai a Celeste?
‑ Óptima, óptima. ‑ Dave tentou lembrar‑se no nome da mulher com quem Sean casara, mas só conseguiu recordar que se tinham conhecido na universidade. Laura? Erin?
~ Diz‑lhe que eu lhe mando cumprimentos, está bem?
Claro. Ainda estás na estadual? ‑ Dave franziu os olhos
quando o Sol surgiu de trás de uma nuvem e arrancou reflexos
ofuscantes à brilhante traseira do Sedan negro do governo.
É verdade ‑ disse Sean. ‑Já agora, apresento‑te o sargento
Whitey Powers, Dave. é o meu chefe. Divisão de Homicídios.
Dave apertou a mão ao sargento Powers, com aquela palavra suspensa entre os dois. Homicídios.
Como vai?
Bem, Mr. Boyle. E o senhor?
Óptimo.
Dave ‑ continuou Sean ‑, se tens um minuto, gostaríamos
de fazer‑te um par de perguntas muito rápidas.
Hã, claro. Que se passa?
Podemos entrar, Mr. Boyle? ‑ O sargento Powers inclinou
a cabeça na direcção da casa de Dave.
Sim, claro. ‑ Dave voltou a pegar na mão de Michael. ‑ Sigam‑me.
Ao passarem diante do apartamento de McAUister, enquanto subiam as escadas, Sean comentou:
Ouvi dizer que as rendas continuam a subir, mesmo aqui.
Mesmo aqui ‑ respondeu Dave. ‑ Estão a tentar transformar‑nos no Point, com uma loja de antiguidades em cada esquina.
O Point, pois ‑ disse Sean, com um riso seco. ‑ Lembras‑te
da casa do meu pai? Dividiram‑na em condomínios.
A sério? ‑ exclamou Dave. ‑ Era uma bela casa.
Claro que ele a vendeu antes de o mercado aquecer.
E agora são condomínios? ‑ A voz soou alta na estreita escada. Dave abanou a cabeça. ‑ Os yuppies que os compraram estão
provavelmente a pedir por unidade mais do que o teu velho recebeu pela casa toda.
Mais ou menos isso ‑ admitiu Sean. ‑ O que se há‑de fazer?
Não sei, pá, mas quase acho que tem de haver uma maneira
de travá‑los. Mandá‑los de volta para onde diabo os cultivam, a eles e aos seus malditos telemóveis. Aqui há dias, um amigo meu disse‑‑me assim: «Do que este bairro está a precisar é de uma porra de uma onda de crime.» ‑ Dave riu‑se. ‑ Quer dizer, havia de meter na ordem o valor das casas. E as rendas também, claro.
Continuam a ser assassinadas raparigas no Pen Park, Mr.
Boyle ‑ disse o sargento Powers. ‑ Talvez ainda veja o seu desejo satisfeito.
Oh, não é nada esse o meu desejo ‑ protestou Dave.
Claro que não ‑ concordou Powers.
Pai, disseste um palavrão ‑ disse Michael.
Desculpa, Mike. Prometo que não torna a acontecer. ‑ Piscou o olho a Sean, por cima do ombro, enquanto abria a porta do
apartamento.
A sua esposa está em casa, Mr. Boyle? ‑ perguntou o sargento Powers, quando entraram.
Hã? Não. Não, não está. Eh, Mike, vai fazer os trabalhos de
casa, está bem? Daqui a pouco temos de ir para casa do tio Jimmy e da tia Annabeth.
Oh, pai...
Mike ‑ interrompeu Dave, olhando para o filho. ‑ Vai para
cima, está bem? Eu e estes senhores temos que falar.
Michael fez aquele ar de abandono que os miúdos fazem quando são escorraçados das conversas dos adultos e avançou para as escadas, de ombros baixos e a arrastar os pés como se tivesse blocos de gelo amarrados aos tornozelos. Suspirou o suspiro da mãe e começou a subir as escadas.
Deve ser universal ‑ comentou o sargento Powers, sentando‑se no cadeirão da sala.
O quê?
Aquela coisa que ele está a fazer com os ombros. O meu filho
costumava fazer o mesmo quando tinha a idade dele e eu o mandava para a cama.
Sim? ‑ perguntou Dave, sentando‑se no sofá de dois lugares
do outro lado da mesa.
Durante cerca de um minuto, Dave olhou para Sean e para o sargento Powers, e Sean e o sargento Powers olharam para ele, todos com as sobrancelhas arqueadas em expressões de expectativa.
‑Já sabes da Katie Marcus? ‑ perguntou Sean.
Claro. Estive lá em casa esta manhã. A Celeste ainda lá está.
Quer dizer, Jesus Cristo, Sean, que porra de crime.
Pode dizê‑lo ‑ anuiu o sargento Powers.
‑Já apanharam o tipo? ‑ perguntou Dave. Esfregou o inchado punho direito com a palma da mão esquerda, e então reparou no que estava a fazer. Recostou‑se no sofá e enfiou as duas mãos nos bolsos, tentando parecer descontraído.
Estamos a trabalhar nisso. Pode crer, Mr. Boyle.
Como é que o Jimmy se está a aguentar? ‑ perguntou Sean.
É difícil dizer. ‑ Dave voltou‑se para Sean, feliz por poder
desviar os olhos do sargento Powers. Havia qualquer coisa na cara do homem de que não gostava, a maneira como o tipo espreitava para uma pessoa como se pudesse ver‑lhe as mentiras, todas e cada
uma delas até à primeira que dissera na porra da vida. ‑ Sabes
como é o Jimmy.
Não, verdadeiramente. Já não.
Bem, guarda tudo lá dentro. Não há modo de saber o que
se passa realmente naquela cabeça.
Sean assentiu.
‑ A razão que nos trouxe cá, Dave...
‑ Eu vi‑a ‑ interrompeu‑o Dave. ‑ Não sei se já sabias.
Olhou para Sean, e Sean abriu as mãos, à espera.
‑ Naquela noite ‑ continuou Dave ‑, suponho que foi na noite em que morreu, vi‑a no McGills.
Sean e o outro chui entreolharam‑se, e então Sean inclinou‑se para a frente e olhou para Dave com uma expressão amistosa.
‑ Bem, sim, Dave, foi exactamente por isso que viemos. O teu nome apareceu numa lista de pessoas que estavam no McGills naquela noite e de que o barman conseguiu lembrar‑se. Parece que a Katie deu um espectáculo e tanto.
Dave assentiu.
Ela e uma amiga puseram‑se a dançar em cima do balcão.
Estavam bastante bebidas, não? ‑ perguntou o outro chui.
Sim, mas...
Mas o quê?
Mas era uma bebedeira inofensiva. Dançaram, mas não se despiram, nem nada disso. Foram apenas, sei lá, miúdas de dezanove anos.
Dezanove anos e a serem servidas num bar significa que esse
bar fica sem a licença durante uns tempos ‑ disse o sargento Powers.
Nunca o fez?
Nunca fiz o quê?
Nunca bebeu num bar quando ainda não tinha idade?
O sargento Powers sorriu, e o sorriso entrou no crânio de Dave do mesmo modo que os olhos do homem, como se cada centímetro daquele tipo estivesse a espreitar.
A que horas diria que saiu do McGills, Mr. Boyle?
Dave encolheu os ombros.
Talvez por volta da uma?
O sargento Powers escreveu no bloco de notas que tinha pousado no joelho.
Dave olhou para Sean.
Só estou a pôr os traços nos tês e os pontos nos is, Dave. Estavas com o Stanley Kemp, certo? Stanley, o Gigante?
Exacto.
Como está ele, a propósito? Ouvi dizer que o filho apanhou
um cancro qualquer.
Leucemia. Há já um par de anos. Morreu. Tinha quatro anos.
Porra, pá ‑ exclamou Sean ‑, que grande merda. Uma pessoa
nunca sabe, pois não? Num momento vai tudo a correr sobre rodas, e de repente, ao virar uma esquina, apanhas uma porcaria de uma doença qualquer e cinco meses depois estás morto. A vida é assim.
A vida é assim ‑ concordou Dave. ‑ Mas o Stan está bem,
dentro do possível. Arranjou um bom emprego na Edison. Continua a jogar basquete na Park League todas as terças e quintas à noite.
Continua a ser um terror debaixo das tabelas? ‑ perguntou
Sean, e riu‑se.
Dave riu também.
E, continua a usar aqueles cotovelos que Deus lhe deu.
A que horas é que achas que as pequenas saíram do bar? ‑
perguntou Sean, ainda com uns restos de riso na voz.
Não sei. O jogo dos Sox estava a chegar ao fim.
Porque teria Sean metido a pergunta no meio da conversa? Podia tê‑la feito directamente, mas tentara adormecê‑lo com aquela história do Stan, o Gigante. Não tentara? Ou talvez tivesse perguntado no momento em que lhe ocorrera. Dave não podia ter a certeza de uma coisa nem da outra. Seria um dos suspeitos? Seria verdadeiramente suspeito da morte de Katie?
Foi um jogo que deu tarde ‑ disse Sean. ‑ Na Califórnia.
Hã? Ah, sim, às vinte e cinco para as onze. Acho que as miúdas devem ter saído aí uns quinze minutos antes de mim.
Digamos, à uma menos um quarto ‑ disse o outro chui.
Deve ser isso.
Faz alguma ideia de para onde foram?
Dave abanou a cabeça.
Foi a última vez que as vi.
Sim? ‑ A caneta do sargento Powers ficou suspensa sobre o
bloco de notas que tinha no joelho.
Sim ‑ confirmou Dave.
O sargento Powers rabiscou no bloco, a ponta da caneta a arranhar o papel como uma pequena garra.
Dave, lembras‑te de um tipo ter atirado as chaves a um outro
gajo?
O quê?
Um tipo ‑ Sean folheou o bloco de notas ‑ chamado, hum,
Joe Crosby. Os amigos queriam tirar‑lhe as chaves do carro. Ele atirou‑as à cara de um deles. Estás a ver, todo chateado. Estavas lá
quando aconteceu?
Não. Porquê?
É uma história esquisita ‑ disse Sean. ‑ Um tipo que não
quer entregar as chaves e as atira a alguém. Lógica de bêbedo, não achas?
Suponho que sim.
Não notaste nada de invulgar nessa noite?
Que queres dizer com isso?
Digamos que talvez alguém no bar não estivesse a olhar para
as raparigas com intenções amistosas. Com certeza já viste desses tipos... desses que odeiam as mulheres novas e bonitas, que ainda estão danados por terem ficado em casa na noite do baile dos finalistas e já passaram quinze anos e a vida deles continua a ser uma merda. Olham para as mulheres como se a culpa fosse delas. Conheces o género.
Conheci uns quantos, sim.
Estava algum deles no bar, naquela noite?
Que eu visse, não. Quer dizer, estive sobretudo a dar atenção
ao jogo. Nem sequer reparei nas pequenas até que elas saltaram para cima do balcão.
Sean assentiu.
Foi um bom jogo ‑ comentou o sargento Powers.
Bem, tínhamos o Pedro a lançar. Podia ter sido uma série
limpa, se não fosse aquela falha na oitava.
É verdade. O homem merece o que lhe pagam, não é?
Hoje por hoje, é o melhor de todos.
O sargento Powers voltou‑se para Sean e levantaram‑se ambos ao mesmo tempo.
É só? ‑ perguntou Dave.
Sim, Mr. Boyle. ‑ Powers apertou a mão a Dave. ‑ Agradecemos a sua ajuda.
Nenhum problema. Tenho muito gosto.
Oh, merda ‑ exclamou Powers ‑, esqueci‑me de perguntar.
Para onde foi quando saiu do McGills, Mr. Boyle?
As palavras saltaram da boca de Dave antes que ele pudesse detê‑las.
Para aqui.
Para casa?
É verdade. ‑ Dave manteve o olhar firme, a voz tranquila.
O sargento Powers voltou a abrir o bloco de notas.
Em casa à uma e um quarto. ‑ Ergueu os olhos para Dave.
‑ É isso?
‑ À volta disso, acho que sim.
‑ Muito bem, então, Mr. Boyle. Mais uma vez, obrigado.
Powers começou a descer a escada, mas Sean deteve‑se à porta.
‑ Gostei de te ver, Dave.
Igualmente ‑ respondeu Dave, tentando recordar‑se do que
era que não gostava em Sean quando eram miúdos. Mas não encontrou resposta.
Temos de ir beber uma cerveja uma noite destas ‑ disse Sean.
‑ Em breve.
‑ Gostava muito.
‑ Está combinado, então. Cuida de ti, Dave.
Trocaram um aperto de mão, e Dave esforçou‑se por disfarçar uma careta de dor.
‑ O mesmo, Sean.
Sean desceu as escadas e Dave ficou no patamar. Sean acenou‑‑lhe uma vez por cima do ombro, e Dave acenou em resposta, apesar de saber que Sean não o podia ver.
Decidiu beber uma cerveja na cozinha antes de voltar a casa de Jimmy e de Annabeth. Esperou que Michael não aparecesse a correr escadas abaixo agora que ouvira Sean e o outro polícia irem‑‑se embora, porque precisava de uns minutos de sossego, um pouco de tempo para arrumar as ideias. Não estava totalmente seguro do que acontecera na sala de estar. Sean e o outro polícia tinham‑lhe feito perguntas como se ele fosse uma testemunha ou um suspeito, e a falta de um tom claro no interrogatório deixara‑o na incerteza sobre as verdadeiras razões que os tinham levado a aparecer. E esta incerteza deixara‑o com uma porra de uma bruta dor de cabeça. Sempre que Dave se sentia inseguro relativamente a uma situação, sempre que o chão parecia estar a mover‑se e a deslizar‑lhe debaixo dos pés, o cérebro dele tendia a dividir‑se em duas metades, como que cortado por uma faca de trinchar. Isto provocava‑lhe dores de cabeça, e, ocasionalmente, coisas ainda piores.
Porque, por vezes, Dave não era Dave. Era o Rapaz. O Rapaz Que Escapara aos Lobos. Mas não apenas isso. O Rapaz Que Escapara aos Lobos e Crescera. E essa era uma criatura muito diferente do simplesmente Dave Boyle.
O Rapaz Que Escapara aos Lobos e Crescera era um animal crepuscular que se movia através de paisagens boscosas, silencioso e invisível. Vivia num mundo que os outros nunca viam, nunca enfrentavam, não sabiam nem queriam saber que existia ‑ um mundo que passava como uma escura corrente ao lado do nosso, invisível excepto como lampejos de microssegundos, entrevistos pelo canto do olho, já desaparecidos quando uma pessoa acabava de voltar a cabeça.
Era nesse mundo que Dave vivia muito do seu tempo. Não como Dave, mas como o Rapaz. E o Rapaz não crescera bem.
Tornara‑se mais raivoso, mais paranóico, capaz de coisas que o verdadeiro Dave não conseguiria sequer imaginar. Geralmente, o Rapaz só vivia no mundo dos sonhos de Dave, selvagem e escondendo‑‑se no meio de densos grupos de grandes árvores, mostrando‑se apenas em fugazes vislumbres. E enquanto permanecesse na floresta dos sonhos de Dave, era inofensivo.
Desde a infância, porém, que Dave sofria de acessos de insónia. Podiam atacá‑lo depois de meses e meses de sono descansado, e de repente lá estava ele de novo naquele agitado e instável mundo dos que estão constantemente a acordar e nunca verdadeiramente a dormir. Uns dias disto, e Dave começava a ver coisas pelo canto do olho ‑ ratos, sobretudo, deslizando velozes pelo soalho e por cima das mesas, e por vezes também grandes moscas pretas que surgiam a voar do outro lado de uma esquina e entravam nas salas. O ar diante da cara dele explodia inesperadamente em minúsculas bolas de luz e calor. As pessoas tornavam‑se borrachosas. E o Rapaz levantava a perna para atravessar o limiar da floresta dos sonhos e entrar no mundo acordado. Regra geral, Dave conseguia controlá‑lo, mas, por vezes, o Rapaz assustava‑o. O Rapaz gritava‑lhe aos ouvidos. O Rapaz tinha o hábito de rir nas alturas menos adequadas. O Rapaz ameaçava atravessar a máscara que geralmente cobria o rosto de Dave e mostrar‑se às pessoas do outro lado.
Havia já três dias que Dave pouco dormia. Ficava acordado noite após noite, a ver a mulher dormir, com o Rapaz a dançar através da esponja em que o cérebro se lhe transformara, clarões ofus‑cantes a explodirem no ar diante dos seus olhos.
‑ Só preciso de arrumar a cabeça ‑ murmurou, bebendo um golo de cerveja. Só preciso de arrumar a cabeça e tudo voltará a ficar bem, disse a si mesmo enquanto ouvia Michael descer as escadas. Só preciso de aguentá‑la inteira o tempo suficiente para que as coisas abrandem e então terei uma boa noite de sono e o Rapaz voltará para a floresta, as pessoas deixarão de parecer borrachosas, os ratos regressarão aos seus buracos, e as grandes moscas pretas segui‑los‑ão.
Quando Dave voltou a casa de Jimmy e de Annabeth com Mi‑chael, já passava das quatro. O número de pessoas diminuíra consideravelmente e havia agora uma sensação de coisas velhas ‑ as bandejas de donuts e de bolos reduzidas a metade, o ar na sala de estar onde as pessoas tinham passado o dia inteiro a fumar, a morte de Katie. Durante a manhã e o princípio da tarde houvera uma atmosfera calma e comunal de desgosto e amor, mas, quando Dave voltou, essa atmosfera‑se tinha‑se transformado em algo mais frio, uma espécie de afastamento, talvez, o sangue a começar a agitar‑se com o inquieto arrastar de cadeiras e as despedidas murmuradas no corredor.
Segundo Celeste, Jimmy passara a maior parte da tarde no alpendre das traseiras. Fora a casa várias vezes, para ver como estava Annabeth e aceitar mais algumas condolências pela perda que ambos tinham sofrido, mas voltava logo a seguir para o alpendre, onde estava sentado numa cadeira por baixo das roupas penduradas da corda e que tinham há muito secado e ficado tesas. Dave perguntou a Annabeth se havia qualquer coisa que pudesse fazer, qualquer coisa que pudesse ir buscar‑lhe, mas ela começara a abanar a cabeça logo a meio da oferta, e Dave soube que fora uma estupidez perguntar. Se Annabeth precisasse realmente de alguma coisa, havia pelo menos dez pessoas, talvez quinze, a quem recorreria antes de se lembrar dele, e Dave tentou recordar a si mesmo por que razão estava ali e não se ofender com isso. De um modo geral, descobrira, não era o género de pessoa para quem os outros se voltavam quando tinham alguma necessidade. Por vezes, era como se nem sequer estivesse naquele planeta, e sabia, com uma pena funda e resignada, que era o género de sujeito que viveria o resto da sua vida como alguém com quem as pessoas raramente contavam.
Levou esta sensação de ser quase como um fantasma para o alpendre. Aproximou‑se de Jimmy pelas costas, e Jimmy, sentado numa velha cadeira de praia debaixo das roupas que drapejavam, inclinou um pouco a cabeça ao ouvir‑lhe os passos.
‑ Incomodo, Jim?
‑ Dave. ‑ Jimmy sorriu quando Dave contornou a cadeira. ‑
Não, não, pá. Senta‑te.
Dave sentou‑se numa grade vazia de garrafas de leite, diante de Jimmy. Ouvia o apartamento como um zumbido quase imperceptível de vozes e entrechocar de talheres, os sons da vida.
‑ Não tive oportunidade de falar contigo o dia todo ‑ disse
Jimmy. ‑ Como vais tu?
‑ Como vais tu} ‑ exclamou Dave. ‑ Merda.
Jimmy esticou os braços acima da cabeça e bocejou.
‑ Sabes que as pessoas não param de me fazer essa pergunta?
Suponho que era de esperar. ‑ Baixou as mãos e encolheu os ombros. ‑ Parece mudar, de hora para hora. Neste instante? Estou bem.
Mas pode mudar. Provavelmente mudará. ‑ Voltou a encolher os
ombros e olhou para Dave. ‑ Que aconteceu à tua mão?
Dave olhou para ela. Tivera o dia inteiro para inventar uma explicação, e nunca chegara a fazê‑lo.
‑ Isto? Estava a ajudar um amigo a mudar um sofá, em casa
dele, e entalei a mão no umbral da porta quando íamos a subir aescada.
Jimmy pôs a cabeça de lado e olhou para os nós dos dedos esfolados, para as nódoas negras.
‑ Hum, OK.
Dave percebeu que Jimmy não acreditara e decidiu que precisava de inventar uma mentira melhor para a próxima pessoa que perguntasse.
‑ Uma daquelas coisas estúpidas ‑ disse. ‑ As maneiras que uma pessoa consegue arranjar de magoar‑se a si mesma.
Jimmy estava agora a olhar‑lhe para a cara, esquecido da mão, e as feições suavizaram‑se‑lhe.
‑ É bom ver‑te, pá.
Dave esteve quase a dizer, Palavra?
Naqueles vinte e cinco anos desde que conhecia Jimmy, não se lembrava de uma única vez em que sentisse que Jimmy ficara feliz por vê‑lo. Por vezes, sentia que Jimmy não se importava de vê‑lo, mas isso não era a mesma coisa. Mesmo depois de terem voltado a entrar na vida um do outro ao casarem com mulheres que eram primas direitas, nunca Jimmy dera a mais pequena indicação de recordar os tempos em que ele e Dave eram mais do que conhecidos. Ao fim de algum tempo, Dave acabara de aceitar como facto a versão de Jimmy do relacionamento entre os dois.
Nunca tinham sido amigos. Nunca tinham jogado hóquei e pontapé‑na‑lata e 76 em Rester Street. Nunca tinham passado um ano de sábados com Sean Devine, a brincar às guerras nos depósitos de areão da Harvest, nem saltado de telhado em telhado das garagens industriais perto de Pope Park, nem visto Tubarão juntos no Charles, encolhidos nas cadeiras e a gritar. Nunca tinham praticado derrapagens com as bicicletas nem discutido quem seria Starsky, e quem seria Hutch, e quem teria de ser Kolchak do The Night Stalker. Nunca tinham desfeito os togobãs na mesma descida kamikaze em Somerset Hill, nos primeiros dias do grande nevão de 75. O tal carro nunca parara em Gannon Street, a cheirar a laranjas.
E no entanto, ali estava Jimmy Marcus, um dia depois de a filha ter sido encontrada morta, a dizer que era bom ver‑te, Dave, e Dave ‑ como lhe acontecera duas horas antes com Sean ‑ a ser capaz de sentir que era.
Igualmente, Jim.
Como é que as nossas miúdas estão a aguentar‑se? ‑ perguntou Jimmy, e um sorriso brincalhão quase lhe chegou aos olhos.
Bem, suponho. Onde estão a Nadine e a Sara?
Com o Theo. Ouve, agradece por mim à Celeste, está bem?
Hoje foi Deus que a mandou.
‑Jimmy, tu não tens que agradecer a ninguém, pá. Tudo o que pudermos fazer, eu e a Celeste, faremos com muito gosto.
‑ Eu sei. ‑ Jimmy estendeu a mão e apertou o antebraço de
Dave. ‑ Obrigado.
Naquele instante, Dave teria levantado uma casa do chão se Jimmy lho pedisse, e aguentá‑la‑ia contra o peito até Jimmy lhe dizer onde a pousar.
E quase esqueceu a razão que o levara até ali ao alpendre: precisava de contar a Jimmy que tinha visto Katie no sábado à noite, no McGills. Tinha de transmitir aquela informação, ou acabaria por ir adiando o momento, e quando finalmente dissesse qualquer coisa, Jimmy perguntaria a si mesmo o que fora que o impedira de falar mais cedo. Tinha de falar antes que Jimmy o soubesse pela boca de outra pessoa.
Nem imaginas com quem estive hoje.
Quem? ‑ perguntou Jimmy.
O Sean Devine. Lembras‑te dele?
Claro. Ainda tenho a luva.
Como?
Jimmy afastou o assunto com um gesto da mão.
‑ Agora é polícia. Está a investigar o Está a trabalhar no caso da Katie, acho que é assim que lhe chamam.
‑ É ‑ disse Dave. ‑ Passou por minha casa.
‑ Sim? Hum. Que foi ele fazer a tua casa, Dave?
Dave tentou dar à voz um tom despreocupado, casual.
‑ Fui ao McGills no sábado à noite. A Katie estava lá. O meu nome apareceu numa lista de pessoas que lá estiveram.
‑ A Katie estava lá ‑ disse Jimmy, com os olhos fixos num
ponto indistinto, a tornarem‑se mais pequenos. ‑ Viste a Katie no sábado à noite, Dave? A minha Katie?
‑ É verdade, Jim. Estava no McGills. Depois foi‑se embora,
com as duas amigas...
‑ A Diane e a Eve?
Sim, aquelas duas pequenas com quem andava sempre.
Foram‑se embora, e mais nada.
Mais nada ‑ repetiu Jimmy, com os olhos perdidos na distância.
‑ Bem, quer dizer, não voltei a vê‑la. Mas o meu nome estava na lista.
‑ Estavas na lista, pois. ‑ Jimmy sorriu, mas não para Dave, para qualquer coisa que devia ter visto com aquele seu olhar distante. ‑ Chegaste a falar com ela?
‑ Com a Katie? Não, Jim. Estava a ver o jogo com Stanley, o Gigante. Só lhe fiz um sinal, estás a ver. Quando voltei a olhar, já ela tinha saído.
Jimmy ficou silencioso por instantes, inspirando o ar pelo nariz e assentindo várias vezes para si mesmo. Finalmente, olhou para Dave e dirigiu‑lhe um sorriso desfeito.
‑ É agradável?
O quê? ‑ perguntou Dave.
Estar aqui sentado. Sem fazer mais nada. É agradável.
‑É?
‑ Estar aqui sentado, a olhar para o bairro. Um tipo anda a correr de um lado para o outro a vida toda, com o trabalho e os filhos, e, merda, excepto quando dorme, mal tem tempo para abrandar um pouco. Até hoje, vê bem. Um dia fora do vulgar como nunca vi outro, e mesmo assim tenho de preocupar‑me com pormenores.
Tenho de telefonar ao Pete e ao Sal e certificar‑me de que tomam conta da loja. Tenho de certificar‑me de que as pequenas são lavadas e vestidas quando acordarem. Tenho de vigiar a minha mulher, ver como é que ela está a reagir, percebes? ‑ Lançou a Dave um sorriso torcido e inclinou‑se para a frente, as mãos cerradas num único e grande punho. ‑ Tenho de apertar mãos e aceitar condolências e arranjar espaço no frigorífico para toda essa comida e bebida que trouxeram, e aturar o meu sogro, e tenho de telefonar para
o gabinete do médico legista para saber quando é que libertam o corpo da minha filha porque tenho de tratar dos preparativos com a Reeds Funereal Home e com o padre Vera em Saint Cecilia's e arranjar um fornecedor para o velório e um salão para depois do funeral e...
‑Jimmy ‑ interrompeu‑o Dave ‑, nós podemos fazer algumas dessas coisas.
Jimmy, porém, continuou, como se ele nem sequer ali estivesse:
.. .não posso falhar em nenhuma destas coisas, não posso esquecer uma porra de um pormenor, ou ela morre outra vez e tudo o que as pessoas vão recordar da vida dela daqui a dez anos é que o funeral foi uma trapalhada, e eu não posso permitir que seja por
isso que a recordem, estás a perceber, porque a Katie, pá, há uma coisa que se pode dizer dela desde que tinha, sei lá, uns seis anos, e é que era uma rapariga muito arrumada, tomava conta das suas próprias roupas, de modo que está certo, é quase agradável, OK, vir
cá para fora e ficar só aqui sentado a olhar para o bairro e a tentar lembrar‑me de qualquer coisa a respeito da Katie que me faça chorar, porque, Dave, juro, começa a chatear‑me muito não ter chorado por ela, a minha filha, e eu não consigo chorar, foda‑se.
Jim.
‑ O que é?
Estás a chorar agora.
A sério?
‑ Toca na cara, pá.
Jimmy levantou as mãos e tocou nas lágrimas que lhe deslizavam pela cara. Afastou‑as e ficou um instante a olhar para as pontas húmidas dos dedos.
‑ Raios ‑ disse.
‑ Queres que te deixe sozinho?
‑ Não, Dave. Não. Senta‑te aí um bocadinho, se não te importares.
‑ Não me importo, Jim. Não me importo nada.
Uma Olhadela
Uma hora antes da reunião marcada para o gabinete de Martin Friel, Sean e Whitey passaram por casa do sargento, para que ele pudesse mudar de camisa, depois de ter entornado metade do almoço em cima da que tinha vestida.
Whitey vivia com o filho, Terrance, num edifício de apartamentos de tijolos brancos, no arrabalde sul da cidade. O apartamento tinha uma alcatifa bege, paredes brancas e esse cheiro a ar parado que têm os quartos de motel e os corredores dos hospitais. Encontraram a TV a funcionar, com o volume muito baixo, apesar de não estar ninguém em casa, e as várias peças de um sistema Sega espalhadas pelo chão, diante da enorme consola preta de um centro de jogos. Em frente da consola havia um sofá forrado de cretone com um ar bastante desconfortável e, calculou Sean, montes de embalagens da McDonald's no caixote do lixo e um frigorífico cheio de jantares congelados.
Onde está o Terry? ‑ perguntou Sean.
No hóquei, suponho ‑ respondeu Whitey. ‑ Também pode
ser no basebol, nesta altura do ano, mas o hóquei é o principal. Durante o ano todo.
Sean vira Terry uma vez. Com catorze anos, era um miúdo enorme, gargantuesco, e Sean estava a imaginar o tamanho que teria dois anos mais tarde, e o medo que devia infundir nos corações dos outros putos quando o viam avançar pelo gelo como uma locomotiva, a toda a velocidade.
Whitey ficara com a custódia do filho porque a mulher não a quisera. Deixara‑os a ambos, uns anos antes, por um advogado especializado em casos cíveis com um problema de crack que acabara por fazê‑lo ser expulso da ordem e processado por fraude. Ela aguentara firme ao lado do fulano, tanto quanto Sean sabia, e mantinha uma relação bastante cordial com Whitey. Por vezes, ao ouvi‑‑lo falar da ex‑mulher, uma pessoa tinha de recordar a si mesma que estavam divorciados.
Como naquele instante, enquanto levava Sean para a sala, olhava para o sistema Sega espalhado pelo chão e começava a desabotoar a camisa.
‑ A Suzanne diz que o que eu e o Terry temos aqui é uma espécie de fantasia masculina. Rola os olhos para cima, estás a ver o género, mas eu acho que o que ela tem é inveja. Uma cerveja, ou qualquer coisa?
Sean recordou o que Friel dissera a respeito de Whitey ter um problema de bebida, e imaginou o ar se o sargento aparecesse na reunião a cheirar a Budweiser. Além disso, conhecendo Whitey como conhecia, podia também ser um teste para ele. Aparentemente, andava toda a gente a vigiá‑lo, nos tempos que corriam.
Aceito uma água ‑ disse. ‑ Ou uma Coca.
Menino bonito ‑ Whitey sorriu, como se estivesse de facto a
testá‑lo, mas Sean viu a necessidade nos olhos inquietos do sargento, no modo como a ponta da língua espreitava pelos cantos da
boca. ‑ Saem duas Cocas.
Whitey saiu da cozinha com duas latas na mão e entregou uma a Sean. Dirigiu‑se à minúscula casa de banho, que dava para o vestíbulo de entrada, e Sean ouviu‑o despir a camisa e pôr água a correr.
Toda esta história me cheira cada vez mais a uma coisa aleatória ‑ disse, da casa de banho. ‑ Também tens a mesma sensação?
Um pouco ‑ admitiu Sean.
Os álibis do Fallow e do O'donnell parecem bastante sólidos.
Não quer dizer que não tenham contratado alguém ‑ objectou Sean.
Concordo. Mas achas que foi isso?
Sinceramente, não. Parece‑me demasiada trapalhice para um
trabalho profissional.
Mas não excluis a possibilidade.
‑ Não, não excluo
‑ Precisamos de ter mais uma conversa com o puto Harris,
quanto mais não seja porque não tem um álibi. Mas, se queres que te diga, não estou a vê‑lo. O puto é autêntica geleia.
‑ Mas tem motivo, se, por exemplo, andava com ciúmes do
O'Donnell, ou qualquer coisa assim.
Whitey saiu da casa de banho a limpar a cara a uma toalha, o ventre branco marcado pela cobra vermelha de uma cicatriz que lhe cortava um sorriso na carne desde o bordo inferior de um lado da caixa torácica até ao outro.
‑ Sim, mas aquele puto? ‑ Voltou a afastar‑se em direcção ao quarto.
Sean passou para o vestíbulo.
Também não estou a vê‑lo, mas temos de ter a certeza.
Bom, há o pai, também, e a porra dos tarados dos tios, já
tenho pessoal a falar com os vizinhos. Mas também não me parece que seja isso.
Sean encostou‑se à parede, beberricou um golo de Coca.
‑ Se foi uma coisa aleatória, quer dizer, merda...
Pois, conta‑me dessas. ‑ Whitey apareceu no vestíbulo, com
uma camisa lavada pelos ombros. ‑ A velhota, a Prior ‑ continuou, começando a abotoar‑se ‑, não ouviu nenhum grito.
Ouviu um tiro.
Nós achamos que foi um tiro. Mas, sim, provavelmente temos
razão. Mas não ouviu nenhum grito.
Talvez a pequena estivesse demasiado ocupada a dar com a
porta no tipo e a tentar fugir.
‑ OK, admito essa. Mas quando o viu? Ele dirigia‑se para o
carro? ‑ Whitey passou por Sean e entrou na cozinha.
Sean desencostou‑se da parede e seguiu‑o.
‑ O que significa que provavelmente o conhecia. Por isso lhe disse olá.
Sim ‑ concordou Whitey. ‑ Deve ter sido por isso que parou
o carro.
Não.
‑ Não? ‑ Whitey encostou‑se à bancada da cozinha, a olhar
para Sean.
‑ Não ‑ repetiu Sean. ‑ Aquele carro bateu, com as rodas voltadas para o passeio.
‑ Não há marcas de derrapagem.
Sean assentiu.
Devia ir a pouco mais de vinte à hora, e qualquer coisa a fez
guinar para o passeio.
O quê?
Que me enforquem se sei. Tu é que és o chefe.
Whitey sorriu e despejou a Coca de um longo trago. Abriu a porta do frigorífico para tirar outra.
•‑ O que é que faz alguém dar uma guinada sem tocar no travão?
‑ Qualquer coisa na estrada ‑ respondeu Sean.
Whitey levantou a nova lata de Coca, num gesto de concordância.
Mas não havia nada na estrada quando lá chegámos.
Isso foi na manhã seguinte.
Então o quê? Um tijolo, ou coisa assim?
Um tijolo é demasiado pequeno, não te parece? Aquela hora
da noite?
Um bloco de asfalto.
Está bem.
Alguma coisa foi.
Sim, alguma coisa ‑ concordou Sean.
Ela guina, bate no passeio, o pé escorrega‑lhe da embraiagem
e o carro vai‑se abaixo.
É nessa altura que o assassino aparece.
Alguém que ela conhece. E depois o quê? Vai direito a ela e dá‑ ‑lhe um tiro?
‑ E ela bate‑lhe com a porta, e...
‑Já alguma vez te bateram com a porta de um carro? ‑ Whitey levantou o colarinho, pôs a gravata ao pescoço e começou a fazer o nó.
Acho que me falta passar por essa experiência.
É como um murro. Se estiveres muito perto, e se uma mulher que pese à volta de quarenta e cinco quilos empurrar a porta
de uma porcaria de um toyotazito, não vai conseguir muito mais do que irritar‑te. A Karen Hughes disse que o atirador não devia estar a mais de quinze centímetros de distância quando disparou o primeiro tiro. Quinze centímetros. Sean viu o ponto.
OK. Mas talvez ela se tenha atirado para trás e empurrado a
porta com os pés. Isso já dava.
Mas a porta tinha de estar aberta. Podia ficar a dar‑lhe pontapés durante todo o dia, se estivesse fechada. Não, teve de abri‑la à mão e empurrá‑la com os braços. Portanto, ou o assassino recuou
e apanhou com a porta quando não estava à espera, ou...
O tipo não é muito pesado.
Whitey baixou o colarinho.
O que me traz de volta às pegadas.
A porra das pegadas ‑ resmungou Sean.
Sim! ‑ gritou Whitey. ‑ A porra das pegadas. ‑ Abotoou o
colarinho, empurrou o nó da gravata para cima. ‑ Sean, o assassino persegue uma mulher pelo parque. Ela foge a toda a velocidade, de modo que o gajo tem de correr como um gorila furioso. O tipo atravessa aquele parque a galope. Estás a dizer‑me que não deixa ao menos uma pegada?
Choveu durante toda a noite.
Mas encontrámos três dela. Ora vamos. Há aqui qualquer
coisa que não bate certo.
Sean apoiou a nuca no armário que tinha atrás de si, tentou imaginar a cena ‑ Katie Marcus, a agitar os braços enquanto descia a correr a escura encosta em direcção ao ecrã do drive‑in, a pele arranhada pelos arbustos, os cabelos empapados em chuva e suor, o sangue a escorrer‑lhe pelo braço e pelo peito. E o assassino, negro e sem rosto na mente de Sean, a aparecer no topo do declive segundos depois dela, também a correr, com a sede de sangue a latejar‑lhe nos ouvidos. Um homem grande, na mente de Sean, uma aberração da natureza. E esperto, de certo modo. Suficientemente esperto para pôr qualquer coisa no meio de Sydney Street e obrigar Katie Marcus a bater com os pneus da frente no passeio. Suficientemente esperto para escolher um ponto da Sydney onde seria menos provável que alguém ouvisse fosse o que fosse. O facto de a velha Prior ter ouvido qualquer coisa fora um acaso, a única coisa que o assassino não pudera prever, porque até Sean ficara surpreendido ao saber que ainda vivia alguém naquele quarteirão. Tirando isso, o tipo fora esperto.
Suficientemente esperto para disfarçar as pegadas, achas?
Hã?
O assassino. Talvez a tenha morto e depois voltado atrás e
tapado com lama as suas próprias pegadas.
Possível, mas como ia ele lembrar‑se de todos os sítios onde
pôs os pés. Está escuro. Digamos até que tinha uma lanterna.
Mesmo assim, é uma porção de terreno, um monte de pegadas para
identificar e fazer desaparecer.
Mas a chuva, pá.
Pois. ‑ Whitey suspirou. ‑ Compro a teoria da chuva se estivermos a falar de um tipo que pese sessenta e cinco quilos ou menos.
Caso contrário...
‑ O Brendan Harris não deve pesar muito mais do que isso.
Whitey gemeu.
Acreditas sinceramente que o puto era capaz de uma coisa
daquelas?
Não.
Eu também não. E aquele teu amigo? É bastante magro.
Quem?
O Boyle.
Como foi que chegámos até ele?
Estamos a chegar agora.
‑ Não, espera aí um instante...
Whitey ergueu uma mão.
‑ Diz ele que saiu do bar por volta da uma? Treta. Aquelas chaves partiram a porra do relógio às dez para a uma. A Katherine Marcus saiu do bar à meia‑noite e quarenta e cinco. Isto são factos, Sean.
O álibi do tipo tem um buraco de quinze minutos, que nós saibamos.
Como é que sabemos quando chegou a casa. Quer dizer, verdadeiramente a casa?
Sean riu‑se.
Whitey, é apenas um tipo que estava no bar.
O último sítio aonde ela foi. O último sítio. Tu próprio o
disseste, Sean.
O que foi que eu disse?
Que podíamos andar à procura de um tipo que ficou em casa
na noite do baile de finalistas.
Queria...
Não estou a dizer que foi ele, pá. Não estou sequer perto de
dizer isso. Por enquanto. Mas há qualquer coisa de errado com esse tipo. Ouviste aquela merda que ele disse a respeito de a cidade precisar de uma boa onda de crimes. O gajo estava a falar a sério.
Sean pousou a lata vazia em cima da bancada da cozinha.
‑ Reciclas?
Whitey franziu o sobrolho.
Não.
Nem sequer a cinco cêntimos a lata?
Sean.
Sean atirou a lata para o caixote do lixo.
Estás a dizer‑me que achas que um tipo como o Dave Boyle
seria capaz de matar a... o quê, prima em segundo grau?... da mulher só por estar chateado com o aburguesamento do bairro? é a coisa mais estúpida que alguma vez ouvi.
Uma vez prendi um tipo que tinha matado a mulher porque
ela o chateava por causa dos cozinhados que ele fazia.
Isso é casamento, pá. Isso é merda a acumular‑se entre duas
pessoas durante anos e anos. Estás a falar de um tipo que de repente dissesse: «Raios, estas rendas estão a dar cabo de mim. Vou matar umas pessoas até que voltem ao normal.»
Whitey riu‑se.
O que é? ‑ perguntou Sean.
A maneira como tu pões a coisa. Está bem, é parvoíce. De
todos os modos, há qualquer coisa com aquele tipo. Se ele não tivesse um buraco no álibi, eu diria, tudo bem. Se ele não tivesse visto a vítima uma hora antes de ela ser morta, eu diria, tudo bem. Mas
tem o buraco, e viu‑a, e há qualquer coisa de esquisito nele. Não disse que foi logo para casa? Quero que a mulher o confirme. Quero que o vizinho do primeiro andar diga que o ouviu subir as escadas à uma e um quarto. Estás a perceber? Então esqueço‑me dele. Reparaste na mão do bicho?
Sean ficou calado.
‑ A mão direita tinha o dobro do tamanho da esquerda. O homem andou metido numa sarrafusca qualquer há muito pouco tempo. Assim que souber que foi‑apenas uma briga de bar, ou coisa assim, tudo bem, largo‑o da mão.
Whitey despejou a segunda Coca e atirou a lata para o caixote do lixo.
Dave Boyle ‑ disse Sean. ‑ Queres mesmo dar uma olhada
ao Dave Boyle.
Uma olhada. Só uma olhadela.
Reuniram‑se numa sala de conferências do terceiro andar, partilhada pelas divisões de Crimes Graves e Homicídios, nas instalações do PG. Friel preferia sempre ter ali as suas reuniões por ser um espaço frio e funcional, com cadeiras duras, mesa preta e paredes cinzentas. Não era uma sala que se prestasse a apartes espirituosos nem a divagações incoerentes. Ninguém se demorava naquela sala: as pessoas tratavam dos seus assuntos e iam‑se embora.
Havia sete cadeiras à volta da mesa naquela tarde, todas elas ocupadas. Friel sentava‑se à cabeceira. A sua direita tinha a subchefe da Unidade de Homicídios da Procuradoria Geral de Sufolk County, Maggie Mason, e à sua esquerda o sargento Robert Burke, que chefiava a outra secção da Divisão de Homicídios. Whitey e Sean sentavam‑se frente a frente, seguidos por Joe Souza, Chris Connolly e os outros dois detectives da Divisão de Homicídios da estadual, Payne Brackett e Shira Rosenthal. Todos tinham à sua frente, em cima da mesa, montes de relatórios de campo ou cópias de relatórios de campo, fotografias do local do crime, relatórios do médico legista, relatórios do laboratório, além dos seus próprios relatórios e blocos de notas, alguns guardanapos de papel com nomes rabiscados e diagramas toscamente desenhados do local do crime.
Whitey e Sean foram os primeiros, descrevendo as conversas que tinham tido com Eve Pigeon e Diane Cestra, Mrs. Prior, Bren‑dan Harris, Jimmy e Annabeth Marcus, Roman Fallow e Dave Boyle, a quem Whitey, conquistando assim a gratidão de Sean, se referiu apenas como «uma testemunha do bar».
Seguiram‑se Brackett e Rosenthal. Brackett foi quem mais falou, mas Rosenthal, Sean estava certo disso, julgando por histórias passadas, fora quem fizera a maior parte do trabalho.
‑ Todos os colegas na loja do pai têm álibis sólidos e nenhum motivo evidente. Todos afirmaram que, tanto quanto soubessem, a vítima não tinha inimigos conhecidos, nenhuma dívida importante nem problemas de toxicodependência. Na busca passada ao quarto da vítima foram encontrados setecentos dólares em notas, nenhumas substâncias proibidas, nenhum diário. O exame da conta bancária da vítima revelou que os depósitos feitos são estatisticamente consistentes com o que ela ganhava. Não há grandes depósitos ou levantamentos até à manhã de sexta‑feira cinco, quando
encerrou a conta. O dinheiro foi encontrado numa gaveta da cómoda no quarto dela e é consistente com a descoberta do sargento Powers de que planeava deixar a cidade no domingo. As entrevistas preliminares com os vizinhos nada revelaram que suporte quaisquer teorias de desavenças familiares.
Brackett arrumou o seu monte de papéis em cima da mesa, para indicar que tinha terminado, e voltou‑se para Souza e Connolly.
‑ Trabalhámos as listas obtidas nos bares onde a vítima foi
vista na sua última noite. Até ao momento, entrevistámos vinte e oito clientes, de um total possível de setenta e cinco, sem contar com os dois de que o sargento Powers e o guarda Devine se encarregaram, ah, Fallow e este David Boyle. Os guardas Hewlett, Darton, Woods, Cecchi, Murray e Eastman ocuparam‑se dos restantes quarenta e cinco, e temos relatórios preliminares das entrevistas.
‑ O que é que temos relativamente ao Fallow e ao O'donnell?
‑ perguntou Friel, dirigindo‑se a Whitey.
‑ Estão limpos. O que não significa que não possam ter contratado o serviço, claro.
Friel recostou‑se na cadeira.
‑ Trabalhei em muitos casos de crimes contratados ao longo
dos anos, e este não me parece reunir as características.
‑ Se foi um contrato ‑ interveio Maggie Mason ‑, porque não
dar‑lhe um tiro logo ali no carro?
‑ Foi o que fizeram ‑ respondeu Whitey.
‑Julgo que Miss Mason queria dizer mais de uma vez, sargento. Porque não despejar o carregador?
‑ A arma podia ter encravado ‑ disse Sean, e acrescentou, ao ver os olhos semicerrados à volta da mesa: ‑ Foi uma possibilidade que não considerámos. A arma encrava, Katherine Marcus reage. Atira o tipo ao chão com uma pancada da porta do carro e foge.
Esta silenciou a sala por um instante. Friel olhava pensativamente para o telhado em bico que formara com os indicadores.
É possível ‑ disse, finalmente. ‑ Possível. Mas porquê bater‑
‑lhe com um taco, ou um stick, ou lá o que foi? Não me parece nada profissional.
Não sei se o O'Donnell e o Fallow já têm acesso a profissionais desse nível ‑ alegou Whitey. ‑ Podiam ter contratado um matador qualquer por dois dólares e uma Bic.
Mas disse que a tal velhota ouviu a pequena cumprimentar o
assassino. Tê‑lo‑ia feito se visse um viciado em crack aproximar‑se do carro?
Whitey fez o que poderia passar por um aceno de cabeça.
‑ É um ponto.
Maggie Mason inclinou‑se para cima da mesa.
‑ Estamos a partir do princípio de que ela conhecia o assassino. Correcto?
Whitey e Sean olharam um para o outro, depois de novo para a cabeceira da mesa, e assentiram.
Então, e não é que East Bucky não tenha a sua quota parte
de viciados em crack, sobretudo nos Flats, mas estaria uma rapariga como a Katherine Marcus associada a esse tipo de gente?
Outro bom ponto. ‑ Whitey suspirou. ‑ É verdade.
Bem desejaria, para bem de todos os implicados, que se tratasse de um contrato ‑ disse Friel. ‑ Mas o espancamento? A mim, isso fala de raiva. Fala de perda de controlo.
Whitey voltou a assentir.
Mas não podemos excluir inteiramente a possibilidade. É só
o que estou a dizer.
Concordo, sargento.
Friel olhou para Souza, que parecia incomodado com a digressão.
Souza tossicou para limpar a garganta e demorou‑se a consultar as suas notas, antes de prosseguir:
‑ Bom, falámos com este sujeito... um tal Thomas Moldana‑
do... que estava a beber no Last Drop, o último bar aonde Katherine Marcus foi antes de deixar as amigas. Parece que só há uma casa de banho, e este Moldanado diz que havia uma fila de todo o tamanho diante da porta quando reparou que as três raparigas estavam a sair. Resolveu então ir mijar ao parque de estacionamento e viu um tipo sentado num carro, com as luzes apagadas. Diz que era uma e meia em ponto. Diz que tinha um relógio novo e que queria ver se brilhava no escuro.
E brilhava?
Aparentemente.
O tipo no carro ‑ interveio Robert Burke ‑ podia estar só a
curtir uma bebedeira.
Foi a primeira coisa que lhe dissemos, sargento. O Moldanado respondeu que também tinha pensado nisso, mas não, o sujeito estava sentado direito, de olhos abertos. Diz que o teria tomado por um polícia se não fosse o carro, um pequeno modelo estrangeiro, tipo Honda ou Subaru.
Um pouco amachucado ‑ acrescentou Connolly. ‑ Uma
mossa na frente, do lado do passageiro.
Certo ‑ continuou Souza. ‑ Por isso o Moldanado julgou que
andasse à procura de pegas. Disse que a área é muito concorrida,
à noite. Mas, se era esse o caso, que estava ele a fazer num parque de estacionamento, em vez de percorrer a avenida?
‑ OK, portanto... ‑ disse Whitey.
Souza ergueu uma mão.
‑ Só um segundo, sargento. ‑ Olhou para Connolly, com os
olhos brilhantes e excitados. ‑ Demos uma nova vista de olhos ao parque de estacionamento, e encontrámos sangue.
‑ Sangue.
Souza assentiu.
Quem olhasse de passagem, poderia pensar que alguém tinha
estado ali a mudar o óleo. Era espesso, e quase todo concentrado
numa poça. Começámos a procurar à volta, encontrámos uma gota
aqui, outra mais além, todas afastando‑se do local. Descobrimos mais
umas quantas nas paredes e no chão do beco atrás do bar.
Guarda, que raio está a querer dizer‑nos? ‑ perguntou Friel.
Que mais alguém foi ferido no exterior do Last Drop, naquela
noite.
Como é que sabes que foi naquela noite? ‑ questionou Whitey.
O laboratório confirmou. Um guarda‑nocturno estacionou
o carro no parque naquela noite, escondeu o sangue, mas também
o protegeu da maior força da chuva. Fosse quem fosse, estava muito ferido. E o tipo que o atacou? Também está ferido. Encontrámos dois tipos diferentes de sangue no parque de estacionamento. Estamos a verificar os hospitais, e as empresas de táxis, para o caso de
a vítima ter apanhado um. Encontrámos cabelos ensanguentados,
pele, um, pouco de tecido craniano. Estamos à espera de respostas
de seis Urgências. As outras deram negativo, mas eu continuo a
apostar que vamos encontrar uma vítima que entrou nas Urgências de um hospital qualquer com um valente traumatismo craniano no sábado à noite ou no domingo de manhã.
Sean ergueu uma mão.
‑ Estás a dizer‑nos que na mesma noite em que a Katherine
Marcus saiu do Last Drop alguém rachou a cabeça de alguém no
parque de estacionamento do mesmo bar?
Souza sorriu.
‑ É isso mesmo.
Connolly pegou na bola.
‑ O laboratório encontrou sangue seco, tipos A e B negativo.
Muito mais A do que B negativo, de modo que assumimos que a
vítima era A.
‑ A Katherine Marcus era tipo O ‑ disse Whitey.
Connolly assentiu.
As fibras de cabelo indicam que a vítima era do sexo masculino.
Qual é então a vossa teoria operacional? ‑ perguntou Friel.
Não temos nenhuma. Só sabemos que, na mesma noite em
que a Katherine Marcus foi morta, alguém partiu a cabeça a outra pessoa qualquer no parque de estacionamento do último bar onde ela esteve.
Houve uma zaragata de bêbedos no parque de estaciona mento ‑ interveio Maggie Mason. ‑ E então?
Nenhum dos clientes do bar se lembra de qualquer luta... dentro ou fora do local. Entre a uma e meia e as dez para as duas, as
únicas pessoas que saíram do Last Drop foram Katherine Marcus, as duas amigas e esta testemunha, Moldanado, que voltou para dentro logo que acabou de mijar. Mais ninguém entrou. Moldanado vê alguém à espera no parque de estacionamento à uma e meia, um tipo que descreve como «de aspecto vulgar», talvez trinta e tantos anos, cabelos escuros. Já lá não estava quando saiu, às dez para as duas.
‑ Altura em que a Katherine Marcus andava a fugir pelo Pen
Park.
Souza assentiu.
‑ Não estamos a dizer que existe uma relação clara. Talvez até nem haja nenhuma. Mas é uma curiosa coincidência.
‑ Mais uma vez, qual é a vossa teoria operacional? ‑ insistiu Friel.
Souza encolheu os ombros.
‑ Não sei, senhor. Digamos que foi um contrato. O tipo no parque de estacionamento estava de vigia, à espera de ver a vítima sair.
Ela sai, e ele telefona ao assassino. A partir daí, o assassino fica à espera dela.
‑ E depois? ‑ perguntou Sean.
‑ E depois? Mata‑a.
Não, estou a falar do tipo no carro, do vigia. O que é que ele
faz? Fica todo excitado e resolve bater em alguém com uma pedra, ou coisa assim? Só pela graça da coisa?
Talvez alguém o tenha surpreendido.
‑ A fazer o quê? ‑ interveio Whitey. ‑ A falar ao telemóvel?
Merda, não sabemos se isto tem alguma coisa a ver com o caso
Marcus.
‑ Sargento, quer que esqueçamos o assunto? Que digamos, que
se lixe, não há aqui nada?
Foi isso que eu disse?
‑Bem...
Foi isso que eu disse? ‑ repetiu Whitey.
Não.
‑ Pois não, não disse. Mostra um pouco de respeito pelos mais velhos, Joseph, ou somos capazes de mandar‑te outra vez para o passeio da droga à volta de Springfield, a conviver com motoqueiros e gajas que cheiram mal e comem banha directamente da lata.
Souza controlou‑se expirando lentamente.
Só penso que há aqui qualquer coisa. Mais nada.
Não estou a discordar, guarda. Só estou a dizer que tens de
trazer‑nos essa qualquer coisa antes que desviemos pessoal para aquilo que pode ser um incidente isolado, sem relação com o nosso caso. Além disso, o Last Drop é jurisdição do DPB.
Entrámos em contacto ‑ esclareceu Souza.
‑ Disseram‑te que o caso é deles?
Souza assentiu.
Whitey abriu muito as mãos.
Estás a ver? Mantém‑te em contacto com o detective encarregado da investigação e vai‑nos pondo ao corrente, mas, tirando
isso, deixa o assunto, por agora.
Já que estamos a falar de teorias operacionais, sargento ‑ interveio Friel. ‑ Qual é a vossa?
Whitey encolheu os ombros.
Tenho um par delas, mas não passam disso mesmo. Katherine Marcus morreu em consequência de um ferimento de bala na
nuca. Nenhuma outra lesão, incluindo o ferimento de bala no braço, foi considerado potencialmente mortal. O espancamento foi levado a cabo com um instrumento de madeira de faces lisas, uma espécie
de stick ou uma tábua. Os exames médicos comprovam definitivamente que não houve assalto sexual. Pelas nossas próprias investigações, sabemos que a vítima se preparava para fugir com o Brendan Harris. O Bobby O'Donnell era o ex‑namorado. O problema é que
ainda não tinha conseguido digerir a parte do «ex». O pai não gos tava do O'Donnell nem do puto Harris.
Porque não do Harris?
‑ Não sabemos. ‑ Whitey olhou para Sean, e de novo para
Friel. ‑ Estamos a trabalhar nisso. Portanto, tanto quanto podemos ver, a pequena está a planear dar o salto de manhã. Faz uma pseudo festta de despedida de solteira com duas amigas, é corrida de um
bar pelo Roman Fallow, leva as amigas a casa. Começa a chover e os limpa‑pára‑brisas são uma merda, o vidro está cheio de lama. Calcula mal a distância até ao passeio por ter bebido demasiado, adormece momentaneamente pela mesma razão, ou dá uma guinada para evitar qualquer coisa que está na estrada. Seja qual for a causa, bate com as rodas da frente no passeio. O motor vai‑se abaixo e alguém se aproxima do carro. Segundo a nossa testemunha velhota, Katherine Marcus diz «Olá». É nesta altura que, julgamos nós, o assassino dispara o primeiro tiro. Ela consegue bater‑lhe com a porta do carro... talvez a arma tenha encravado, não faço ideia... e corre em direcção ao parque. Cresceu ali, talvez pense ter mais hipóteses de despistá‑lo lá dentro. Mais uma vez, não podemos sequer imaginar por que razão decidiu fugir para o parque, a não ser o facto de a Sydney ser uma corrida a direito em qualquer das direcções e haver muito pouco em termos de moradores capazes de ajudá‑la nos primeiros quatro quarteirões. Se corresse a descoberto, o assassino podia atropelá‑la com o seu próprio carro ou abatê‑la a tiro com toda a privacidade. Por isso, corre para o parque. A partir da entrada, segue uma linha mais ou menos constante para sudeste, atravessando o jardim, tentando depois esconder‑se na ravina, debaixo da ponte, correndo finalmente direita ao ecrã do drive‑‑in. Tem...
Um percurso que a faz internar‑se cada vez mais no parque
‑ interrompeu‑o Maggie Mason.
Sim, senhora.
Porquê?
Porquê?
Sim, sargento. ‑ Maggie Mason tirou os óculos e pousou‑os
na mesa à sua frente. ‑ Se eu fosse uma mulher que estivesse a ser perseguida num parque, e se conhecesse bem o terreno, talvez começasse por atrair o meu perseguidor para o interior, na esperança de que ele se perdesse ou se atrasasse. Mas, logo que pudesse, corria
para a saída. Porque foi que ela não cortou para norte, em direcção à Roseclair, ou não voltou para trás em, direcção à Sydney? Porquê
continuar a correr em frente?
Choque, talvez. E medo. O medo faz as pessoas esquecerem‑se de pensar. E recordemos, também, que a taxa de alcoolemia dela era de um vírgula nove. Katherine Marcus estava bêbeda.
Maggie Mason abanou a cabeça.
‑ Não compro essa. E há outra coisa... pelos vossos relatórios, devo deduzir que Miss Marcus era, na realidade, mais rápida do que
o seu perseguidor?
Whitey abriu ligeiramente a boca, mas então pareceu esquecer‑se do que ia dizer.
‑ O seu relatório, sargento. Afirma que, em pelo menos duas
ocasiões, Miss Marcus optou por esconder‑se em vez de correr. Escondeu‑se no jardim, e escondeu‑se debaixo da ponte. O que me diz duas coisas: uma, que era mais rápida do que o seu perseguidor, pois caso contrário não teria tido o tempo necessário para tentar esconder‑se. A outra, que, paradoxalmente, pensava que correr
mais depressa do que o seu perseguidor não bastava. Somemos isto ao facto de ela não fazer qualquer tentativa para sair do parque, e o que é que nos diz?
Ninguém respondeu.
‑ O que é que lhe diz a si, Maggie? ‑ acabou Friel por perguntar.
‑ Apresenta‑me a possibilidade de ela se sentir cercada.
Durante cerca de um minuto, pareceu a Sean que a atmosfera
da sala ficara carregada de estática, a crepitar de correntes eléctricas.
Um gang, ou coisa assim? ‑ disse Whitey, finalmente.
Ou coisa assim. Não sei, sargento. Estou apenas a basear‑me
no seu relatório. Não consigo, por mais que tente, compreender por que razão esta mulher, que aparentemente era mais rápida do que o atacante, optou por não voltar simplesmente para trás e sair do parque, a menos que pensasse que havia mais alguém a persegui‑la.
Whitey baixou a cabeça.
Com o devido respeito, minha senhora, mas com um cenário desses teria de haver muito mais provas físicas.
No seu relatório, o senhor mesmo refere várias vezes a chuva.
Sim ‑ admitiu Whitey. ‑ Mas se tivéssemos um bando de pessoas. .. ou, que diabo, duas que fossem... a perseguir Katherine Marcus, teríamos encontrado muito mais do que encontrámos. Pelo menos, mais algumas pegadas. Qualquer coisa.
Maggie Mason voltou a pôr os óculos e olhou para o relatório que tinha nas mãos. Passado algum tempo, disse:
‑ É uma teoria, sargento. Uma teoria que, com base no seu relatório, julgo valer a pena explorar.
Whitey manteve a cabeça baixa, mas Sean via o desprezo subir‑‑lhe dos ombros como vapor de um esgoto.
‑ Então, sargento? ‑ perguntou Friel.
Whitey endireitou a cabeça e dirigiu‑lhes um sorriso cansado.
Tê‑la‑ei em consideração ‑ disse. ‑ Mas a actividade dos gangs
na zona é praticamente nula. Se excluirmos isso, temos de considerar a possibilidade de dois assassinos, o que nos leva de volta à hipótese de um contrato.
Muito bem...
Mas se fosse esse o caso... e todos concordámos, no começo
desta reunião, que é uma hipótese muito remota... o segundo atirador teria descarregado a arma no instante em que a Katherine Marcus derrubou o parceiro com a porta do carro. A única maneira de isto fazer sentido é termos um atirador e uma mulher embriagada e em pânico, talvez a enfraquecer devido à perda de sangue, incapaz
de pensar claramente e ainda por cima com um azar dos diabos.
Mas terá a minha teoria em consideração, claro ‑ disse Maggie Mason com um sorriso amargo, os olhos postos na mesa.
Terei ‑ respondeu Whitey. ‑ Tal como as coisas estão, terei
tudo e mais alguma coisa em consideração. Palavra. Ela conhecia o assassino. OK. Até ao momento, pusemos praticamente de parte a hipótese de alguém ter um motivo minimamente lógico. A cada minuto que passa, quanto mais trabalhamos este caso, mais parece ter sido um crime aleatório. A chuva destruiu dois terços das nossas provas físicas, a vítima não tinha um raio de um inimigo, nem segredos
financeiros, nem dependência de drogas, nem era testemunha de
qualquer crime registado. A morte dela, tanto quanto saibamos, não beneficiou ninguém.
Excepto o O'Donnell ‑ disse Burke ‑, que não queria que
ela deixasse a cidade.
Excepto esse ‑ concordou Whitey. ‑ Mas o álibi dele é à prova
de bala e não parece ter‑se tratado de um contrato. Com que é que isso nos deixa em matéria de inimigos? Ninguém.
E no entanto ela está morta ‑ fez notar Friel.
E no entanto ela está morta ‑ assentiu Whitey. ‑ E é precisamente isso que me faz pensar que foi aleatório. Se tirarmos o dinheiro, o amor e o ódio como possíveis motivos, ficamos com muito pouca coisa. Ficamos com um sacana qualquer de um lunático que se calhar tem um web site dedicado à vítima, ou qualquer estupidez desse género.
Friel arqueou uma sobrancelha.
Também já estamos a investigar por esse lado ‑ esclareceu
Shira Rosenthal. ‑ Por enquanto, nada.
Resumindo, não sabem do que é que andamos à procura ‑
disse Friel, passado algum tempo.
Oh, claro que sabemos ‑ respondeu Whitey. ‑ De um tipo
com uma arma. Oh, sim, e com um stick.
Palavras Que Ele Em Tempos Soube
Depois de ter deixado Dave no alpendre, já com as faces e os olhos secos, Jimmy tomou o seu segundo duche desse dia. Continuava a senti‑la ali com ele, aquela necessidade de chorar. Crescia‑lhe dentro do peito como um balão, até quase o impedir de respirar.
Foi para o duche porque queria estar sozinho caso ela transbordasse em jorros imparáveis, em vez das poucas gotas que lhe tinham deslizado pelo rosto no alpendre. Receava transformar‑se numa massa trémula, pôr‑se a chorar como chorara na escuridão do seu quarto quando era um rapazinho, com a certeza de que quase matara a mãe ao nascer e de que era por isso que o pai o odiava.
No duche, sentiu‑a voltar ‑ a velha vaga de tristeza, aquela que tinha um sabor antigo e estava com ele desde que se lembrava, uma consciência de que a tragédia o aguardava algures no futuro, uma tragédia tão pesada como blocos de calcário. Como se um anjo lhe tivesse mostrado o que havia de acontecer quando ainda estava no útero, e Jimmy tivesse saído do ventre da mãe com as palavras do anjo gravadas algures na mente, mas incapazes de chegar‑lhe aos lábios.
Jimmy ergueu os olhos para o chuveiro. Disse sem falar: sei no fundo da minha alma que contribuí para a morte da minha filha. Sinto‑o. Mas não sei como.
E a voz calma disse, Um dia saberás.
Diz‑me.
Não.
Vai‑te foder.
Ainda não tinha acabado.
Oh.
O conhecimento virá.
Amaldiçoar‑me?
A escolha é tua.
Jimmy baixou a cabeça e pensou em Dave ter visto Katie pouco antes de ela morrer. Katie viva e embriagada e a dançar. A dançar, feliz.
Fora este conhecimento ‑ de que alguém possuía uma imagem de Katie posterior à que ele próprio tinha ‑ que finalmente lhe permitira chorar.
A última vez que a vira, Katie ia a sair da loja, no final do turno de sábado. Eram quatro e cinco, e Jimmy estava ao telefone com o distribuidor de Frito‑Lay, a fazer encomendas e distraído, e Katie inclinara‑se para beijá‑lo na face e dissera, «Até logo, Papá.»
«Até logo», dissera ele, vendo‑a sair do escritório.
Não. Mentira. Não a tinha visto sair. Tinha‑a ouvido sair, mas não erguera os olhos da folha de encomenda à sua frente, em cima da secretária.
Por isso, na realidade, a última imagem visual que tinha da filha era do lado da cara dela quando afastara os lábios da dele e dissera, «Até logo, Papá.»
Jimmy compreendeu que seria aquele «até logo» ‑ aquele logo que nunca haveria, o logo do fim do dia, o logo do fim da vida dela ‑ que ficaria a apunhalá‑lo. Se tivesse lá estado, se tivesse podido partilhar um pouco mais de tempo, logo ao fim da noite, com a filha, talvez guardasse agora dela uma imagem mais recente.
Mas não tinha. Dave tinha. E Eve e Diane. E o assassino.
Se tinhas de morrer, pensou Jimmy, se essas coisas estão realmente preestabelecidas, então quem me dera que pudesses ter morrido a olhar para a minha cara. Ter‑me‑ia doído ver‑te morrer, Katie, mas ao menos saberia que te tinhas sentido um pouco menos só a olhar para os meus olhos.
Amo‑te. Amo‑te tanto. Amo‑te, na verdade, mais do que amei a tua mãe, mais do que amo as tuas irmãs, mais do que amo Annabeth, juro por Deus. E amo‑as profundamente, mas a ti amo‑te mais porque quando voltei da prisão e ficámos os dois sentados na cozinha éramos as duas últimas pessoas à face da Terra. Esquecidas e indesejadas. E estávamos ambos tão assustados e confusos e tão medonhamente tristes. Mas ultrapassámos tudo isso, não foi? Transformámos as nossas vidas em algo suficientemente bom para que um dia não tivéssemos medo, nem estivéssemos tristes. E eu não poderia tê‑lo feito sem ti. Não poderia. Não sou assim tão forte.
Havias de tornar‑te uma bela mulher. Uma bela esposa, talvez. Um milagre de mãe. Eras a minha amiga, Katie. Viste o meu medo e não fugiste. Amo‑te mais do que à vida. E as saudades de ti hão‑‑de ser o meu cancro. Hão‑de matar‑me.
E por um fugaz instante, ali debaixo do chuveiro, Jimmy sentiu a mão de Katie nas costas. Era a parte que esquecera dos momentos finais que passara con ela. Katie pousara‑lhe a mão nas costas ao inclinar‑se para beijá‑lo. Pousara‑a bem aberta na espinha dele, entre as omoplatas, e ele sentira‑lhe o calor.
Jimmy deixou‑se ficar debaixo do chuveiro com o toque da mão de Katie a demorar‑se‑lhe na pele molhada, e sentiu a necessidade de chorar ir‑se embora. Sentiu‑se novamente forte no seu desgosto. Sentiu‑se amado pela filha.
Whitey e Sean encontraram um espaço para estacionar na transversal a seguir à casa de Jimmy e regressaram a pé a Buckingham Avenue. O fim da tarde estava a pôr‑se fresco, o céu a ganhar tons de azul mais carregados, e Sean deu por si a pensar no que estaria Lauren a fazer naquele momento, se estaria junto de uma janela, se veria o mesmo céu que ele, se sentiria a tarde arrefecer.
Poucos antes de chegarem ao prédio de três andares onde Jimmy e a mulher viviam ensanduichados entre vários lunáticos Savage e as respectivas esposas ou namoradas, viram Dave Boyle inclinado para dentro da porta aberta de um Honda parado junto ao passeio. Tirou qualquer coisa do porta‑luvas, fechou‑o com um estalido e recuou para fora do carro trazendo uma carteira na mão. Viu Whitey e Sean quando estava a trancar a porta, e sorriu‑lhes.
Vocês os dois outra vez?
Somos como a gripe ‑ disse Whitey. ‑ Estamos sempre a
aparecer.
Como vai isso, Dave? ‑ perguntou Sean.
Não houve grandes mudanças nas últimas horas. Vão falar
com o Jimmy?
Assentiram ambos.
‑ Descobriram alguma coisa de novo?
Sean abanou a cabeça.
Vimos só apresentar os nossos respeitos, ver como é que eles
estão.
Bem, por agora. Acho que estão esgotados. O Jimmy, tanto
quanto sei, não vai à cama desde ontem. A Annabeth queria desesperadamente um cigarro e eu ofereci‑me para lhos ir comprar, mas esqueci‑me de que tinha a carteira no carro. ‑ Mostrou‑a com a mão inchada e guardou‑a no bolso.
Whitey enfiou as mãos nos bolsos e inclinou‑se para trás, apoiado nos calcanhares, um sorriso tenso no rosto.
Essa coisa deve doer‑te ‑ comentou Sean.
Isto? ‑ Dave ergueu a mão, observando‑a. ‑ Não é tão mau
como parece.
Sean assentiu e acrescentou o seu próprio sorriso tenso ao de Whitey, os dois ali de pé, a olhar para Dave.
Estava a jogar bilhar aqui há dias ‑ explicou Dave. ‑ Estás a
ver a mesa do McGiUs, Sean? Mais de metade está encostada à parede, de modo que temos de estar sempre a usar o raio do taco pequeno.
Claro ‑ disse Sean.
A bola branca estava a um milímetro da tabela, e aquela em
que eu queria acertar na outra ponta da mesa. Puxei o braço atrás
para dar uma tacada com força, esquecendo‑me de que estava
mesmo junto à parede. E bam! Quase furei a merda da parede com
a mão.
Ui ‑ disse Sean.
E acertou? ‑ perguntou Whitey.
‑Hã?
Na bola.
Dave fraziu a testa.
Raspei. Claro que fiquei imprestável para o resto do jogo.
Claro ‑ concordou Whitey.
‑ É verdade. E foi uma merda, porque estava a safar‑me bastante bem até aquilo acontecer.
Whitey assentiu e olhou para o carro de Dave.
Eh, tem o mesmo problema que eu tive com o meu?
Dave olhou para o carro.
Nunca tive problemas com o meu.
Merda. A distribuição do meu Accord foi‑se aos cem mil certinhos. Depois vim a saber que tinha acontecido a mesma coisa a um amigo meu. O conserto custa quase tanto como o raio do carro.
Sabia?
Não, o meu tem sido uma maravilha ‑ disse Dave. Olhou
por cima do ombro e novamente para ele. ‑ Vou comprar os tais
cigarros. Encontramo‑nos lá dentro.
Até já ‑ respondeu Sean, e fez‑lhe um pequeno aceno antes
de Dave voltar costas e atravessar a avenida.
Whitey olhou para o Honda.
Uma bela mossa ali na parte da frente.
Eh, pá, sargento, estava a ver que não tinhas reparado ‑ troçou Sean.
E a história do bilhar? ‑ Whitey assobiou. ‑ Como é, ele estava a segurar a ponta do taco com a palma da mão?
Há só um problema ‑ disse Sean, enquanto viam Dave entrar na Eagle Liquors.
Ah, sim? Então qual é, Superpolícia?
Se achas que o Dave é o tipo que a testemunha do Souza
viu no parque de estacionamento do Last Drop, então é porque ele estava a rachar a cabeça de outra pessoa qualquer enquanto a Katie Marcus estava a ser assassinada.
Whitey dirigiu‑lhe uma careta de desapontamento.
‑ Achas que sim? Quanto a mim, ele é o tipo que estava sentado no carro no parque de estacionamento quando uma miúda que havia de morrer meia hora mais tarde saiu do bar. Quanto a mim, é alguém que não estava em casa à uma e um quarto, como disse que estava.
Através do vidro da montra, viram Dave ao balcão, a falar com o empregado.
‑ O sangue que os tipos do laboratório rasparam do chão
do parque de estacionamento podia lá estar há dias ‑ continuou Whitey. ‑ Não temos provas de que lá tenha acontecido qualquer coisa mais grave do que uma zaragata. Os tipos que estavam no bar dizem que não foi naquela noite? Pode ter sido no dia anterior. Pode ter sido naquela tarde. Não há qualquer relação causal entre o sangue no parque de estacionamento e o facto de o Dave Boyle estar sentado no seu carro à uma e meia. Mas há um raio de uma grande relação causal entre o facto de ele estar sentado no carro quando a Katie Marcus saiu do bar. ‑ Deu uma palmada no ombro de Sean. ‑ Anda, vamos subir.
Sean lançou um último olhar ao outro lado da avenida e viu Dave pagar ao empregado da loja. Teve pena dele. Independentemente do que fizesse, Dave despertava esse sentimento nas pessoas ‑ pena, bruta e um pouco feia, cortante como xisto.
Celeste, sentada na cama de Katie, ouviu os dois polícias subirem a escada, os sapatos pesados a pisarem os velhos degraus do outro lado da fina parede. Annabeth mandara‑a ali minutos antes buscar um vestido de Katie para Jimmy levar à casa mortuária, pedindo desculpa por não se sentir suficientemente forte para entrar naquele quarto. Era um vestido azul, com um largo decote nos ombros, e Celeste lembrava‑se de Katie o ter usado no casamento de Carla Eigen, com uma flor amarela e azul presa nos cabelos penteados para cima, sobre a orelha. Provocara literalmente algumas exclamações naquele dia, Celeste a saber que ela própria nunca fora assim tão bonita em toda a sua vida e Katie completamente inconsciente da sua estonteante beleza. No instante em que Annabeth falara de um vestido azul, Celeste soubera exactamente o que ela queria.
Entrara no quarto, onde, na noite anterior, vira Jimmy a apertar a almofada da filha contra a cara, a respirá‑la, e abrira a janela, para deixar sair o cheiro bafiento da perda. Encontrara o vestido protegido por uma capa de plástico no guarda‑fato, pegara nele e sentara‑se na cama por uns instantes. Ouvia os sons da avenida lá em baixo ‑ portas de carros a bater, pedaços de conversas das pessoas que passavam, o silvo de ar comprimido da porta de um autocarro a abrir‑se na esquina da Crescent ‑ e olhou para a fotografia de Katie com o pai que estava em cima da mesa‑de‑cabeceira. Fora tirada uns anos antes, e Katie, empoleirada nos ombros do pai, mostrava o aparelho dos dentes num sorriso rasgado. Jimmy segurava‑lhe os tornozelos e olhava para a câmara com aquele seu sorriso maravilhosamente aberto, o tal que surpreendia as pessoas quanto mais não fosse porque muito pouco em Jimmy parecia aberto, e o sorriso era o único lugar aonde a reserva dele não conseguia chegar.
Estava a pegar na fotografia quando ouvira a voz de Dave lá em baixo, no passeio: «Vocês os dois outra vez?»
E ficara ali sentada, a morrer aos bocadinhos, enquanto ouvia a conversa entre Dave e os polícias, e depois o que Sean Devine e o colega disseram quando Dave atravessou a avenida para ir comprar os cigarros.
Durante dez ou doze horríveis segundos, quase vomitou em cima do vestido de Katie. O diafragma saltava‑lhe para cima e para baixo e a garganta contraiu‑se‑lhe, e o conteúdo do estômago como que fervilhou. Dobrou‑se ao meio, tentando segurá‑lo lá dentro, e um som rouco e entrecortado escapou‑se‑lhe várias vezes dos lábios, mas não vomitou. E aquilo passou.
Mas continuava a sentir‑se agoniada. Agoniada e pegajosa, e o cérebro dela parecia ter pegado fogo. Ardia, e qualquer coisa rugia lá dentro, atenuando o brilho das luzes, enchendo os seios e os espaços imediatamente atrás dos olhos.
Deitou‑se para trás na cama enquanto Sean e o colega subiam as escadas, e desejou ser fulminada por um raio, ou que o tecto lhe caísse em cima, ou simplesmente que uma força qualquer pegasse nela e a atirasse pela janela fora. Todos esses cenários eram preferíveis àquele que agora enfrentava. Mas talvez ele estivesse só a proteger outra pessoa, ou talvez tivesse visto qualquer coisa que não devesse ter visto e o tivessem ameaçado. Talvez o facto de a Polícia o interrogar significasse apenas que o consideravam um dos suspeitos. Nada disto queria dizer, para lá de qualquer dúvida, que o marido tinha assassinado Katie Marcus.
A história dele a respeito do assaltante sempre fora mentira. Sabia disso. Tentara várias vezes, naquele último par de dias, fugir a esse conhecimento, tapá‑lo no seu cérebro como uma nuvem tapa o Sol. Mas soubera, logo na noite em que ele lha contara, que os assaltantes não dão murros com uma mão quando podem esfaquear com a outra, e que não usam frases como «A tua carteira ou a tua vida, meu sacana, vou sair daqui com uma das duas.» E não são desarmados e espancados por homens como Dave Boyle, que não se envolvia numa luta desde a escola primária.
Se tivesse sido Jimmy a chegar a casa com a mesma história, seria muito diferente. Jimmy, magro como era, parecia capaz de matar alguém. Tinha o ar de quem sabia lutar e apenas amadurecera para lá do ponto em que a violência era necessária na sua vida. Mas uma pessoa continuava a cheirar o perigo emanar de Jim, uma capacidade de destruição.
O cheiro que Dave exalava era de outro tipo. Era o cheiro de um homem com segredos, engrenagens sujas a girar dentro de uma cabeça por vezes suja, uma vida de fantasia a decorrer para lá daqueles olhos demasiado parados, uma vida onde ninguém podia entrar. Estava casada com Dave havia oito anos, e sempre pensara que ele acabaria por abrir‑lhe as portas do seu mundo secreto. Mas nunca o fizera. Dave vivia muito mais lá em cima, no mundo da sua cabeça, do que cá em baixo, no mundo de toda a gente, e talvez aqueles dois mundos se tivessem interpenetrado de tal maneira que a escuridão na cabeça de Dave tivesse derramado o seu negrume nas ruas de East Buckingham.
Teria Dave assassinado Katie? Seria possível?
Sempre gostara dela. Não gostara?
E, francamente, seria Dave ‑ o marido dela ‑ capaz de matar? De perseguir a filha do seu velho amigo na escuridão de um parque? De bater‑lhe e de ouvi‑la gritar e suplicar? De disparar‑lhe um tiro na nuca?
Porquê? Porque haveria alguém de fazer uma coisa daquelas? E aceitando que alguém, de facto podia, seria lógico assumir que Dave podia ser essa pessoa?
Sim, disse a si mesma, ele vivia num mundo secreto. Sim, provavelmente nunca teria uma personalidade completa por causa dos crimes cometidos contra ele quando era criança. Sim, tinha mentido a respeito do assaltante, mas talvez houvesse uma explicação razoável para essa mentira.
Como, por exemplo?
Katie fora assassinada em Pen Park pouco depois de ter saído do Last Drop. Dave afirmara ter lutado com um assaltante no parque de estacionamento do mesmo bar. Dissera que o tinha lá deixado estendido, inconsciente, mas, até ao momento, ninguém o encontrara. O polícia, no entanto, dissera qualquer coisa a respeito de ter sido encontrado sangue no parque de estacionamento. Portanto, talvez Dave estivesse a dizer a verdade. Talvez.
A questão dos tempos de tudo aquilo, porém, não lhe saía da cabeça. Dave dissera‑lhe a ela que tinha estado no Last Drop. Aparentemente, mentira à Polícia a esse respeito. Katie fora morta entre as duas e as três da manhã. Dave entrara em casa às dez para as três, coberto de sangue alheio e com uma história muito pouco convincente a respeito de como isso acontecera.
E essa era a mais gritante coincidência de todas ‑ Katie é assassinada, Dave chega a casa coberto de sangue.
Se não fosse mulher dele, poria sequer em causa a conclusão?
Voltou a dobrar‑se para a frente, tentando impedir que as entranhas lhe saltassem pela boca e calar a voz que, dentro da cabeça dela, repetia, num murmúrio sibilado:
O Dave matou a Katie. Jesus Cristo. O Dave matou a Katie.
Oh, santo Deus. O Dave matou a Katie e eu quero morrer.
‑ Portanto, puseram o Bobby e o Roman de parte como suspeitos? ‑ perguntou Jimmy.
Sean abanou a cabeça.
Não completamente. Não exclui a possibilidade de terem
contratado alguém.
Mas vejo na sua cara que não acredita que seja esse o caso
‑ disse Annabeth.
Não, Mrs. Marcus, não acreditamos.
De quem suspeitam, então? ‑ perguntou Jimmy. ‑ De toda
a gente?
Whitey e Sean trocaram um olhar, e nesse momento Dave entrou na cozinha, a retirar o celofane de um maço de cigarros, que entregou a Annabeth.
Aqui tens, Anna.
Obrigada. ‑ Annabeth olhou para Jimmy com uma ligeira
expressão de embaraço. ‑ Preciso mesmo de um cigarro.
Ele sorriu‑lhe docemente e acariciou‑lhe a mão.
‑ Querida, tudo o que tu precisares neste momento está bem,
está certo.
Annabeth voltou‑se para Whitey e para Sean enquanto acendia o cigarro.
‑ Tinha deixado de fumar há dez anos.
‑ Também eu ‑ disse Sean. ‑ Posso cravar um?
Annabeth riu‑se, com o cigarro a agitar‑se‑lhe entre os lábios, e Jimmy pensou que aquele era o primeiro som bonito que ouvia em vinte e quatro horas. Viu o sorriso na cara de Sean quando aceitou o cigarro, e quis agradecer‑lhe por tê‑la feito sorrir.
‑ É um menino mal comportado, guarda Devine ‑ disse Annabeth, acendendo‑lhe o cigarro.
Sean puxou uma passa.
Não é a primeira vez que mo dizem.
Disse‑lho a semana passada o nosso comandante, se bem me
lembro ‑ interveio Whitey.
‑ A sério? ‑ perguntou Annabeth, envolvendo Sean no calor
do seu interesse. Annabeth era uma dessas raras pessoas capazes de investir tanto esforço em escutar como em falar.
O sorriso de Sean alargou‑se enquanto Dave se sentava num banco, e Jimmy sentiu a atmosfera na cozinha tornar‑se mais distendida.
‑ Venho de uma semana de suspensão ‑ admitiu Jimmy. ‑ Ontem foi o meu primeiro dia de trabalho.
‑ O que foi que fizeste? ‑ perguntou Jimmy, inclinando‑se por cima da mesa.
‑ É confidencial ‑ respondeu Sean.
‑ Sargento Powers? ‑ apelou Annabeth.
‑ Bem, aqui o guarda Devine...
Sean olhou para ele.
‑Olha que eu também sei umas histórias a teu respeito.
‑ Boa malha ‑ disse Whitey. ‑ Lamento, Mrs. Marcus.
‑ Oh, vá lá.
Não posso. Lamento.
Sean ‑ disse Jimmy, e quando Sean olhou para ele, Jimmy
tentou transmitir‑lhe com os olhos a mensagem de que aquilo era bom, era do que estavam a precisar naquele momento. Uma pausa.
Uma conversa que não tivesse nada a ver com homicídios nem com
casas mortuárias nem com perda.
O rosto de Sean suavizou‑se até que, por um instante, pareceu o mesmo rosto que tinha aos onze anos, e assentiu. Voltou‑se para Annabeth e disse;
Enterrei um tipo em multas fantasmas.
Fez o quê? ‑ Annabeth inclinou‑se para a frente, o cigarro à
altura do ouvido, os olhos muito abertos.
Sean inclinou a cabeça para trás, inalou o fumo do cigarro e soprou‑o para o tecto.
Havia um tipo de quem eu não gostava, não importa agora
porquê. Seja como for, uma vez por mês, ou à volta disso, introduzia o nome dele na base de dados do RVM, com uma infracção de estacionamento. Ia variando... um mês era por ter estacionado num parquímetro sem pagar, noutro era por ter estacionado numa zona industrial, etc, etc. Seja como for, o tipo estava no sistema,
mas não fazia ideia.
Porque nunca recebia as multas ‑ disse Annabeth.
Exacto. E, a cada vinte e um dias, levava com mais cinco dólares por falta de pagamento, e a coisa foi‑se acumulando até que um dia recebe uma convocação do tribunal.
E fica a saber ‑ interveio Whitey ‑, que deve ao estado mil
e duzentos dólares.
Mil e cem ‑ corrigiu Sean. ‑ Mas sim, é verdade. Claro que
protesta, diz que nunca recebeu as multas, mas o juiz não acredita.
Farto dessa desculpa está ele. De modo que o nosso amigo tem de pagar. É o computador que o diz, e, que diabo, os computadores não mentem.
Está bestial ‑ exclamou Dave. ‑ Costumas fazer dessas muitas vezes?
Não! ‑ disse Sean, e Jimmy e Annabeth riram‑se. ‑ Não, não
costumo, David.
Chamou‑te David ‑ avisou Jimmy. ‑ Põe‑te a pau.
Foi uma vez, a um tipo.
Então, como foi que te apanharam?
A tia do fulano trabalha no Registo de Veículos Motorizados
‑ explicou Whitey. ‑ Dá para acreditar?
‑ Não ‑ respondeu Annabeth.
Sean assentiu.
Quem é que ia adivinhar? O tipo pagou as multas, mas então
pôs a tia a investigar o caso e ela seguiu o rasto da história até ao meu destacamento, e uma vez que eu já tinha antecedentes com o fulano em questão, não foi difícil ao comandante juntar motivo
e oportunidade e reduzir a um a lista de suspeitos. Lixou‑me.
Tiveste de engolir muita merda por causa da brincadeira? ‑
perguntou Jimmy.
Montes dela ‑ admitiu Jimmy, e desta vez riram‑se os quatro. ‑ Grandes montes dela. ‑ Sean notou o brilho nos olhos de
Jimmy, e também ele começou a rir.
Não tem sido um bom ano para o nosso pobre Devine ‑ comentou Whitey.
Foi uma sorte ninguém da imprensa saber do caso ‑ disse
Annabeth.
Oh, nós protegemos os nossos rapazes ‑ explicou Whitey.
‑ Chegámos‑lhe forte e feio, mas tudo o que a senhora do RMV tinha era o destacamento de onde tinham sido emitidas as multas, mais nada. Qual foi a justificação? Erro dos serviços.
Falha do computador ‑ acrescentou Sean. ‑ O comandante
obrigou‑me a pagar tudo, blá, blá blá, aplicou‑me uma semana de suspensão sem vencimento e três meses de pena suspensa. Podia ter sido muito pior.
Podiam tê‑lo despromovido ‑ disse Whitey.
Porque não o fizeram? ‑ espantou‑se Jimmy.
Sean apagou o cigarro e abriu os braços.
Porque eu sou o Superpolícia. Não lês os jornais, Jim?
‑ O que aqui o Senhor Peneiras está a querer dizer ‑ explicou Whitey ‑ é que nos últimos meses arrumou alguns casos dos difíceis. Tem a melhor taxa de «casos resolvidos» da minha unidade. Vamos ter de esperar que a média dele baixe para o pormos na rua.
‑ Aquela história da raiva‑da‑estrada ‑ disse Dave. ‑ Vi o teu nome no jornal, uma vez.
‑ O Dave lê ‑ disse Sean, dirigindo‑se a Jimmy.
‑ Livros sobre bilhar é que não, com certeza ‑ observou Whitey. ‑ Como vai essa mão?
Jimmy olhou para Dave, captou‑lhe o olhar antes de ele o baixar e teve uma sensação muito definida de que o chui estava a lixá‑‑lo, a apertar com ele. Jimmy tivera, nos seus tempos, experiência mais do que suficiente daquele tipo de jogo para reconhecer o tom, e percebeu que aquilo tinha a ver com a mão de Dave. Que história seria aquela do bilhar?
Dave abriu a boca para falar, mas então o seu rosto foi como que atingido por qualquer coisa que estava atrás de Sean. Jimmy seguiu‑lhe a direcção do olhar, e todo ele ficou rígido.
Sean voltou a cabeça e viu Celeste a segurar um vestido azul‑‑escuro, com o cabide à altura do ombro, de modo que o vestido estava suspenso ao lado dela, como que a cobrir um corpo que ninguém conseguia ver.
Celeste notou a expressão no rosto de Jimmy e disse.
‑ Eu levo‑o à casa mortuária, Jimmy. Palavra.
Jimmy parecia ter‑se esquecido de como mover os membros.
Não precisas de o fazer ‑ disse Annabeth.
Não, não, eu quero ir ‑ respondeu Celeste, com um riso estranho, desesperado. ‑ A sério. É uma oportunidade para sair durante uns minutos. Não me custa nada, Anna.
Tens a certeza? ‑ perguntou Jimmy, e a voz saiu‑lhe ligeiramente rouca.
Sim, sim.
Sean não se lembrava de quando vira outra pessoa tão desesperada por sair de uma sala. Levantou‑se da cadeira e aproximou‑‑se dela, de mão estendida.
‑ Já nos encontrámos um par de vezes. Sou o Sean Devine.
Oh, claro. ‑ A mão de Celeste estava húmida e escorregadia
quando apertou a de Sean.
Cortou‑me o cabelo, uma vez ‑ disse Sean.
‑ Eu sei, eu sei. Lembro‑me.
‑ Bem... ‑ disse Sean.
‑Bem.
‑ Não quero retê‑la.
Celeste voltou a deixar escapar o seu risinho desesperado.
Não, não. Prazer em vê‑lo. Tenho de ir.
Adeus.
Adeus.
Até logo, querida ‑ disse Dave, mas Celeste já ia pelo corredor a caminho da porta, como se tivesse cheirado uma fuga de gás.
Merda ‑ exclamou Sean, olhando para Whitey por cima do
ombro.
O que foi?
Deixei o bloco de relatórios no carro.
Oh, então é melhor ir buscá‑lo.
Enquanto se afastava pelo corredor, Sean ouviu Dave perguntar:
‑ Que diabo, não podia emprestar‑lhe uma folha do seu?
Não ouviu a treta que Whitey inventou para responder àquilo
porque já ia a descer as escadas. Chegou à rua no instante em que Celeste se detinha junto ao carro, do lado do condutor, enfiava a chave na fechadura, abria a porta e estendia a mão para destrancar a de trás. Abriu‑a e, com muito cuidado, estendeu o vestido em cima do banco. Quando fechou a porta, olhou por cima do tejadilho e viu Sean descer os degraus da entrada, e Sean viu a expressão de puro terror que se lhe espalhou no rosto, a expressão de alguém que esperava ser atropelada por um autocarro. Já.
Podia ser subtil ou directo, e um olhar para a cara dela disse‑‑lhe que directo era a sua única esperança. Apanhá‑la enquanto estava desequilibrada, fosse lá pelo que fosse.
Celeste, queria só fazer‑lhe uma pergunta muito rápida.
A mim?
Sean assentiu, encostando‑se ao carro e pousando as duas mãos em cima do tejadilho.
A que horas chegou o Dave a casa, no sábado à noite?
O quê?
Sean repetiu a pergunta, prendendo os olhos dela com os dele.
‑ Porque é que está interessado no que o Dave fez no sábado
à noite?
É uma coisa sem grande importância, Celeste. Fizemos umas
perguntas ao Dave porque ele esteve no McGills ao mesmo tempo
que a Katie. Algumas das respostas dele não batem certo, e isso está a intrigar o meu parceiro. Pelo meu lado, acho que o Dave bebeu uns copos a mais naquela noite e não consegue lembrar‑se dos pormenores exactos, mas o meu parceiro é um chato. Só preciso de saber a que horas é que o Dave chegou a casa, exactamente, para
ver se o meu parceiro deixa de me chatear e podemos concentrar‑nos em descobrir o assassino da Katie.
Acha que foi o Dave?
Sean inclinou‑se para trás, afastando‑se do carro, e pôs a cabeça ligeiramente de lado.
Não disse nada disso, Celeste. Raios, porque havia eu sequer
de pensar uma coisa dessas?
Bem, não sei.
Mas disse‑o.
‑ Disse o quê? De que é que estamos a falar? Estou baralhada.
Sean sorriu o mais confortantemente que foi capaz.
‑ Quanto mais depressa souber a que horas o Dave chegou a
casa, mais depressa consigo convencer o meu parceiro a voltar‑se para outro lado e deixar em paz os buracos na história do seu marido.
Por um instante, Celeste deu a impressão de ir atirar‑se de costas para o meio do trânsito. Tinha um ar abandonado, e confuso, e Sean sentiu por ela a mesma pena crua que tantas vezes sentira pelo marido.
Celeste ‑ começou, sabendo que Whitey lhe daria um zero
no relatório de observação se ouvisse o que se preparava para dizer.
‑ Não acho que o Dave tenha feito seja o que for. Juro por Deus.
Mas o meu parceiro acha, e ele é meu superior. É ele que decide que vias de investigação exploramos. Diga‑me a que horas o Dave chegou a casa, e fica a questão arrumada. O Dave nunca mais tem de voltar a preocupar‑se connosco.
Mas vocês viram o carro dele.
O quê?
Ouvi‑os falar, há pouco. Alguém viu o carro dele estacionado diante do Last Drop na noite em que a Katie foi morta. O seu
parceiro pensa que foi o Dave que a matou.
Merda. Sean nem queria acreditar naquilo.
‑ O meu parceiro quer examinar de mais perto a história do
Dave. Não é a mesma coisa. Não temos um suspeito, Celeste. OK?
Não temos. O que temos é buracos na história do Dave. Tapamos
esses buracos, e está feito. Acabaram‑se as preocupações.
Ele foi assaltado, quis Celeste dizer. Chegou a casa cheio de sangue, mas foi só porque alguém tentou assaltá‑lo. Mesmo que eu pense que pode ter sido ele, outra parte de mim sabe que o Dave não é esse género de homem. Fiz amor com ele. Casei com ele. E nunca me casaria com um assassino, seu chui de merda.
Tentou recordar o modo como planeara manter‑se calma quando os polícias aparecessem e começassem a fazer perguntas. Naquela noite, enquanto lavava o sangue das roupas, tivera a certeza de ter um plano para lidar com a situação. Mas nessa altura não sabia que Katie tinha morrido e que os polícias iam interrogá‑la a respeito do envolvimento de Dave na morte dela. Como poderia ter previsto uma coisa daquelas? E aquele polícia, tão suave e confiante e encantador. Não era nada o tipo de grande barriga, com um ressaca e furioso com a vida que esperara. Era um velho amigo de Dave. Dave contara‑lhe que aquele homem, Sean Devine, estava na rua com ele e com Jimmy Marcus quando o carro o levara. E crescera para transformar‑se naquele homem alto, inteligente e bonito, com uma voz que uma mulher seria capaz de ficar a ouvir toda a noite e uns olhos que pareciam despir as pessoas camada a camada.
Jesus Cristo. Como era ela suposta lidar com aquilo? Precisava de tempo. Precisava de tempo para pensar e estar sozinha e olhar racionalmente para aquela situação. Não precisava do vestido de uma rapariga morta a olhar para ela do banco de trás e um chui do outro lado do carro a olhar para ela com olhos venenosos, com olhos de cama.
‑ Estava a dormir ‑ disse.
‑Hã?
‑ Estava a dormir. No sábado à noite, quando o Dave chegou
a casa. Já estava deitada.
O polícia assentiu. Voltou a encostar‑se ao carro, tamborilou com os dedos no tejadilho. Parecia satisfeito. Como se tivesse obtido resposta para todas as suas perguntas. Celeste lembrou‑se de que o cabelo dele era muito denso e tinha uma madeixas quase louras em cima, entre o castanho‑claro. Lembrou‑se de ter pensado que aquele homem nunca teria de preocupar‑se com a possibilidade de ficar careca.
‑ Celeste ‑ disse ele, com aquela sua voz fumada, ambarina.
‑ Acho que está com medo.
Para Celeste, foi como se uma mão suja estivesse a apertar‑lhe o coração.
Acho que está com medo e acho que sabe qualquer coisa.
Quero que compreenda que estou do seu lado. E do lado do Dave,
também. Mas estou mais do seu lado porque, como disse, está com medo.
Não estou com medo ‑ conseguiu ela dizer, e abriu a porta
do carro.
‑ Claro que está ‑ disse Sean, afastando‑se quando ela engatou a primeira e arrancou.
O Que Eles Tinham Planeado Ser
voltou ao apartamento, Sean encontrou Jimmy no
corredor, a falar por um telemóvel.
‑ Não ‑ dizia Jimmy ‑, não me esqueço das fotografias. Obrigado. ‑ E desligou. Olhou para Sean. ‑ Da Reed's Funereal Home ‑ explicou. ‑Já foram levantar o corpo à morgue, dizem que posso ir lá levar as coisas dela. ‑ Encolheu os ombros. ‑ Tratar dos pormenores do serviço, esse tipo de coisas.
Sean assentiu.
‑Já tens o teu bloco de relatórios?
Sean deu uma palmadinha no bolso.
‑ Aqui.
Jimmy bateu várias vezes com o telemóvel na perna.
Bom, suponho que o melhor é ir até lá.
Estás com ar de quem precisa de dormir um pouco, pá.
‑ Não, estou bem.
‑OK.
Quando Sean se preparava para passar por ele, Jimmy perguntou:
Posso pedir‑te um favor?
Sean deteve‑se.
Claro.
‑ O Dave provavelmente não tarda a ir‑se embora, para levar
o Michael a casa. Não faço ideia de qual é o teu horário, mas estava na esperança de que pudesses fazer um pouco de companhia à Annabeth. Só para ela não ficar sozinha, estás a ver? A Celeste não deve demorar, de modo que não será por muito tempo. O Vai e os irmãos levaram as pequenas ao cinema, de modo que não está ninguém em casa, e eu sei que a Annabeth ainda não quer ir à casa mortuária, por isso, não sei, pensei...
Acho que não vai haver problema. Tenho de perguntar ao
meu sargento, mas o nosso turno oficial já acabou há um par de
horas. Deixa‑me falar com ele, está bem?
Agradeço‑te.
Ora. ‑ Sean começou a afastar‑se em direcção à cozinha, mas
então deteve‑se e olhou para Jimmy.
A verdade, Jimmy, é que precisava de perguntar‑te uma coisa.
Força ‑ disse Jimmy, e a expressão desconfiada do preso cobriu‑lhe instantaneamente o rosto.
Sean voltou para junto dele.
‑ Chegou‑nos de dois ou três lados que tiveste problemas com o tal miúdo de que falavas esta manhã, o Brendan Harris.
Não, problemas nenhuns. Só não gosto dele.
Porquê?
‑ Não sei. ‑Jimmy guardou o telemóvel no bolso. ‑ Há pessoas com quem antipatizamos sem uma razão especial, tu sabes como é.
Sean aproximou‑se mais, pousou uma mão no ombro de Jimmy.
Ele e a Katie namoravam. Iam fugir juntos.
Treta ‑ disse Jimmy, de olhos no chão.
‑ Encontrámos brochuras de Las Vegas na mochila dela, Jim. Fizemos uns telefonemas e descobrimos reservas em nome dos dois na TWA. O Brendan Harris confirmou. Jimmy sacudiu a mão de Sean.
‑ Foi ele que matou a minha filha?
‑Não.
‑ Estás cem por cento seguro?
Muito perto disso. O rapaz passou pelo detector de mentiras.
Além disso, não o acho o género. Parece que amava verdadeiramente a tua filha.
Foda‑se ‑ rosnou Jimmy.
Sean encostou‑se à parede e esperou, dando a Jimmy tempo para digerir aquilo.
‑ Fugir juntos? ‑ disse Jimmy, passado algum tempo.
Sim. Jim, segundo o Brendan Harris e as duas amigas da
Katie, tu opunhas‑te absolutamente a que se namorassem, sequer.
O que eu não compreendo é porquê. O miúdo não me pareceu um
desses putos‑problema. Talvez um pouco apagado, não sei. Mas pareceu‑me decente, bom rapaz. Estou confuso.
Tu estás confuso? ‑Jimmy soltou uma gargalhada amarga. ‑
E eu, que acabo de saber que a minha filha... que está morta... se preparava para fugir com o namorado, Sean?
Eu sei ‑ disse Sean, baixando a voz ao nível de um murmúrio,
na esperança de que Jimmy o imitasse. Via‑o tão agitado como na tarde anterior, junto ao ecrã do drive‑in. ‑ Estou cheio de curiosidade, pá... Porque é que fazias tanta questão que a tua filha nem sequer falasse com o rapaz?
Jimmy encostou‑se à parede ao lado de Sean, inspirou profundamente várias vezes e deixou escapar o ar num longo suspiro.
‑ Conheci o pai dele. Chamavam‑lhe «Just Ray».
‑ O quê, era juiz?
Jimmy abanou a cabeça.
‑ Havia tantos Rays naquela altura... Crazy Ray Bucheck e
Psycho Ray Dorian e Ray the Woodchuck Lane... que o Ray Har
ris ficou «Just Ray», porque todas as alcunhas boas já tinham dono.
‑ Encolheu os ombros. ‑ De qualquer modo, nunca gostei muito
do homem, e então ele abandonou a mulher quando ela estava grávida do puto mudo que agora tem e o Brendan tinha apenas seis anos, e então pensei, «A semente nunca cai muito longe da árvore»,
e, porra, não o queria perto da minha filha.
Sean assentiu, apesar de não acreditar. Qualquer coisa no modo como Jimmy dissera que nunca tinha gostado muito do homem ‑houvera uma pequena prisão na voz, e Sean já ouvira tanta mentira desde que estava na Polícia que as reconhecia instantaneamente, por muito lógico que o disfarce parecesse.
É só isso? É a única razão?
Só isso. ‑Jimmy desencostou‑se da parede e afastou‑se pelo
corredor.
A palavra inglesa «just» significa, entre muitas outras coisas, «justo» e também «apenas», «só». (N. doT.)
Acho boa ideia ‑ disse Whitey, à porta do prédio com Sean.
‑ Mantém‑te perto da família por uns tempos, vê se consegues apanhar mais alguma coisa. O que foi que disseste à mulher do Boyle, a propósito?
Disse‑lhe que parecia estar com medo.
Ela confirmou o álibi do marido?
Sean abanou a cabeça.
Disse que já estava a dormir.
Mas tu achas que ela está com medo.
Sean ergueu os olhos para as janelas que davam para a rua. Fez um sinal a Whitey e apontou com o queixo, e Whitey seguiu‑o até à esquina.
Ela ouviu‑nos falar a respeito do carro.
Porra. Se conta ao marido, ele é capaz de raspar‑se.
Para onde? É filho único, a mãe morreu, não tem dinheiro nem
muitos amigos. Não me parece que vá tentar a vida no Uruguai.
O que não significa que não haja aqui um risco de fuga.
‑ Porra, pá, não temos nada de que possamos acusá‑lo.
Whitey recuou um passo e olhou para Sean à luz do candeeiro
que brilhava por cima deles.
‑ Não me digas que vais começar a armar‑te em nativo comigo, Superpolícia?
É que não estou a vê‑lo a fazer isto. Falta de motivo, para começar.
O álibi dele é uma merda, Devine. As histórias que conta
estão tão cheias de buracos que, se fossem um barco, estavam a repousar no fundo do oceano. Disseste que a mulher está com medo.
Não foi aborrecida. Com medo.
OK, pronto. Está sem a mínima dúvida a esconder qualquer
coisa.
E acreditas que estava mesmo a dormir quando ele chegou
a casa?
Sean viu Dave quando eram garotos, a entrar naquele carro, a chorar. Viu‑o obscurecido e distante no banco de trás quando o carro dobrou a esquina. Apetecia‑lhe bater com a cabeça na parede a que estava encostado até expulsar a porra daquelas imagens.
Não. Acho que ela sabe a que horas ele chegou a casa. E agora
que nos ouviu, sabe que ele esteve no Last Drop naquela noite. Por isso, talvez, tinha na cabeça um monte de coisas a respeito daquela noite que não batiam certo, e agora está a juntar as peças.
E essas peças estão a assustá‑la como o caraças.
Talvez. Não sei. ‑ Sean deu um pontapé numa pedra solta
na base do prédio. ‑ Sinto‑me como...
O quê?
Sinto‑me como se tivéssemos uma porção de peças penduradas à nossa volta, perto umas das outras, mas nenhuma delas encaixasse. Sinto que estamos a deixar escapar qualquer coisa.
Não acreditas sinceramente que tenha sido o Boyle?
Não estou a excluí‑lo. Nada disso. Apostava nele num instante, se conseguisse imaginar um motivo.
Whitey recuou um passo e levantou o calcanhar, apoiando‑o no poste do candeeiro. Olhou para Sean daquela maneira que Sean já o vira olhar para uma testemunha em relação à qual tivesse dúvidas sobre o modo como iria aguentar‑se em tribunal.
OK ‑ disse. ‑ A falta de motivo também me está a chatear.
Mas não muito, Sean. Não muito. Penso que anda por aí qualquer
coisa capaz de ligá‑lo a tudo isto. Caso contrário, porque diabo nos mentiria?
Ora vamos, pá. Faz parte do nosso trabalho. As pessoas mentem‑nos sem outra razão que não seja ficarem a saber qual é a sensação. O quarteirão à volta do Last Drop? Há por ali muita actividade
comercial, à noite... prostitutas, travestis, miúdos, todos trabalham aquele circuito. Talvez o Dave só estivesse com uma tipa no carro e não queira que a mulher descubra. Talvez tenha uma amante. Quem sabe? Mas nada, até ao momento, o liga de perto ou de longe à
morte da Katherine Marcus.
Nada a não ser um monte de mentiras e a minha sensação
visceral de que o tipo é sujo.
É a tua sensação.
Sean ‑ disse Whitey, e começou a contar pelos dedos ‑, o tipo
mentiu a respeito da hora a que saiu do McGills. Mentiu a respeito da hora a que chegou a casa. Estava estacionado diante do Last Drop quando a vítima saiu. Esteve em dois dos mesmos bares que ela, mas continua a tentar esconder esse facto. Tem uma mão muito magoada e uma história completamente idiota a respeito da maneira como a magoou. Conhecia a vítima, tal como, já concordámos nesse ponto, o assassino também conhecia. Encaixa ponto por ponto no perfil do assassino por impulso: é branco, trinta e poucos anos, marginalmente empregado e, a julgar pelo que me contaste ontem, foi sexualmente abusado quando era criança. Estás a brincar comigo? No papel, esse tipo já devia estar preso.
Tu próprio o disseste, no entanto... é uma ex‑vítima de abuso
sexual, e a Katherine Marcus não foi sexualmente atacada. Não faz sentido.
Talvez tenha esgalhado uma a olhar para ela.
Não havia sémen no local do crime.
Choveu.
Não onde o corpo foi encontrado. No assassínio aleatório por
impulso, a emissão sexual faz parte da equação aí uns noventa e nove vírgula nove por cento das vezes. Onde é que ela está, neste caso?
Whitey baixou a cabeça e bateu no poste do candeeiro com as palmas das mãos.
‑ Foste amigo do pai da vítima e de um potencial suspeito quando eram...
‑ Oh, deixa‑te disso.
... miúdos. O que te compromete. Não me digas que não.
Es uma porra de um risco, neste caso.
Sou um...? ‑ Sean baixou a voz e tirou a mão do peito. ‑ Ouve,
estou simplesmente em desacordo contigo quanto ao perfil do suspeito. Não estou a dizer que se cairmos em cima do Dave Boyle por causa de uma porção de inconsistências, não vou estar a teu lado para fazer a detenção. Sabes que estarei. Mas se formos procurar o PG com aquilo que temos agora, o que é que achas que ele vai fazer?
As mãos de Whitey bateram com um pouco mais de força no poste do candeeiro.
‑ A sério ‑ insistiu Sean. ‑ O que é que achas que ele vai
fazer?
Whitey ergueu os braços acima da cabeça e abriu a boca num bocejo que lhe fez estremecer o corpo. Olhou Sean nos olhos e franziu o sobrolho.
Ponto aceite. Mas ‑ ergueu um dedo ‑, mas, meu advogado
de trazer por casa, vou encontrar o stick com que lhe bateram, ou a arma, ou as roupas de alguém. Ainda não sei exactamente o quê, mas vou encontrar qualquer coisa. E quando a encontrar, vou lixar o teu amigo.
Não é meu amigo ‑ respondeu Sean. ‑ Se tiveres razão, hei‑
‑de sacar as algemas mais depressa do que tu.
Whitey desencostou‑se do candeeiro e avançou para Sean.
‑ Não te comprometas nisto, Devine. Se o fizeres, comprometes‑me a mim, e eu enterro‑te. Estamos a falar de uma transferência para o raio das Berkshires, a caçar gajos em excesso de velocidade numa mota‑de‑neve.
Sean passou ambas as mãos pela cara e depois pelos cabelos, tentando afastar o cansaço.
‑ O relatório da balística já deve estar pronto ‑ disse.
Whitey recuou.
‑ Sim, vou para lá agora. O estudo das pegadas também já deve estar no computador. Vou dar‑lhe uma vista de olhos, talvez tenhamos sorte. Tens um telemóvel?
Sean bateu no bolso.
Tenho.
Depois ligo‑te. ‑ Whitey voltou‑lhe as costas e afastou‑se em
direcção à Crescent, onde tinham deixado o carro. Sean sentiu‑se varrido pelo desapontamento do homem, e a história do período de observação pareceu‑lhe muito mais real do que lhe tinha parecido
naquela manhã.Chegou diante da porta do prédio de Jimmy no instante em que Dave descia os degraus levando Michael pela mão.
‑ Vais para casa?
Dave deteve‑se.
Vou. Nem quero acreditar que a Celeste não voltou com o
carro.
Estou certo de que está bem.
‑ Oh, claro que está. Só que agora tenho de ir a pé.
Sean riu‑se.
São o quê, cinco quarteirões?
Quase seis, se virmos bem ‑ disse Dave, e sorriu.
Então é melhor ires andando, enquanto ainda há um pouco
de luz. Até à vista, Mike.
Adeus ‑ disse Michael.
Até à vista. ‑ Deixaram Sean junto aos degraus e começaram
a descer a avenida, os passos de Dave um pouco esponjosos da cerveja que bebera em casa de Jimmy, e Sean pensou, Se foste tu, Dave, é melhor parares já com essa merda. Vais precisar de todas as células cinzentas que tens se eu e o Whitey formos atrás de ti. Todas.
O Pen era uma fita de prata àquela hora da tarde, quando o Sol já se pusera mas restava ainda alguma luz no céu. Mas as copas das árvores tinham‑se posto negras, e, visto dali, o ecrã do drive~in era apenas uma sombra de arestas duras. Celeste estava sentada no carro, do lado de Shawmut, a olhar para o canal e para o parque, e depois para East Bucky a subir em declive, como um aterro, para lá deles. Os Flats ficavam quase completamente escondidos pelo parque, com excepção de uma ou outra torre de igreja e dos telhados mais altos. As casas do Point, pelo contrário, erguiam‑se acima dos Flats e olhavam para tudo aquilo do alto das suas suaves colinas asfaltadas.
Celeste nem sequer se lembrava de ter conduzido até ali. Entregara o vestido a um dos filhos de Bruce Reed, um rapaz vestido de fúnebre negro mas com umas faces tão frescas e uns olhos tão brilhantes que mais parecia preparado para ir ao baile de finalistas. Deixara a casa mortuária e, quando dera por si, estava a meter pelas traseiras da há muito abandonada Isaak Ironworks, passando diante das cascas vazias de edifícios do tamanho de hangares até chegar ao fim do lote, o pára‑choques do carro a tocar os apodrecidos postes de amarração, os olhos a seguirem a preguiçosa corrente do Pen que marulhava em direcção às comportas do porto.
Desde que ouvira os dois polícias a falar a respeito do carro de Dave ‑ o carro deles, o carro onde se encontrava sentada naquele preciso instante ‑ sentira‑se como que embriagada. Mas não de uma bebedeira alegre, daquelas que nos deixam soltos e à vontade, ligeiramente esfuziantes. Não, sentia‑se como se tivesse estado a beber uma zurrapa ordinária durante toda a noite, e tivesse chegado a casa e adormecido, e depois voltado a acordar, ainda tonta e com a língua espessa, agoniada, embotada e estúpida e incapaz de concentrar‑se.
«Está com medo», dissera o polícia, cortando tão completamente até ao cerne dela que a sua única resposta fora uma pura e beligerante negação. «Não, não estou.» Como se fosse uma criança. Não, não estou. Estás, pois. Não, não estou. Estás, pois. Eu sei que estás, mas quem sou eu. Nha‑nha‑nha‑nha‑nhanha.
Estava assustada. Estava aterrorizada. Estava esbodegada de medo.
Ia falar com ele, disse a si mesma. Continuava a ser o mesmo Dave, ao fim e ao cabo. Um bom pai. Um homem que nunca levantara a mão para ela ou mostrara a mais pequena propensão para a violência durante todos aqueles anos desde que o conhecia. Nunca dera sequer um pontapé numa porta ou um murro numa parede. Tinha a certeza de que ainda podia falar com ele.
Perguntar‑lhe‑ia, Dave, de quem era aquele sangue nas tuas roupas?
Podes dizer‑me. Sou a tua mulher. Podes dizer‑me tudo.
Era o que ia fazer. Falaria com ele. Não tinha qualquer motivo para ter medo dele. Era o Dave. Ela amava‑o e ele amava‑a e tudo aquilo havia de resolver‑se, fosse como fosse, tinha a certeza disso.
E no entanto ali continuava, do outro lado do Pen, ao pé de uma aciaria abandonada que fora recentemente adquirida por um empresário que supostamente tencionava transformá‑la num parque de estacionamento se o negócio do estádio do outro lado do rio fosse para a frente. Olhou para o parque onde Katie Marcus fora assassinada. Esperou que alguém lhe dissesse como mover‑se outra vez.
Jimmy estava no escritório da agência funerária com Ambro‑se, um dos filhos de Bruce Reed, a tratar dos pormenores e a desejar estar a falar com o próprio Bruce e não com aquele miúdo que parecia acabado de sair do liceu. Era muito mais fácil vê‑lo a jogar Frisbee do que a pegar num caixão, e Jimmy não conseguia imaginar aquelas mãos suaves e imaculadas na sala de embalsamento, a mexer em cadáveres. Tinha dado a Ambrose a data de nascimento e o número de Segurança Social de Katie, e o rapaz anotara‑os com uma caneta dourada no formulário preso a uma prancheta que tinha à sua frente, e então dissera com uma voz de veludo que era uma versão mais jovem da do pai:
Óptimo, óptimo. Ora bem, Mr. Marcus, vai ser uma cerimónia católica tradicional? Velório, missa?
Sim.
Nesse caso, sugiro que façamos o velório na quarta‑feira.
Jimmy assentiu.
A igreja já foi reservada para quinta‑feira de manhã, às nove.
Nove horas ‑ disse o rapaz, e escreveu. ‑Já pensou numa hora
para o velório?
Vamos fazer dois. Um entre as três e as cinco, outro das sete
às nove.
Sete às nove ‑ disse o rapaz, repetindo as palavras enquanto
as escrevia. ‑ Vejo que trouxe as fotografias. Óptimo, óptimo.
Jimmy olhou para o monte de fotografias que tinha no colo. Katie na festa de fim de curso. Katie e as irmãs na praia. Katie e ele na abertura do Cottage Market, quando ela tinha oito anos. Katie com Eve e Diane. Katie, Annabeth, Jimmy, Nadine e Sara no Six Flags. A festa do décimo sexto aniversário de Katie.
Pousou o monte na cadeira a seu lado, sentiu um ligeiro ardor na garganta que passou quando engoliu.
Já pensou nas flores? ‑ perguntou Ambrose Reed.
‑ Fiz a encomenda à Knopflers, esta tarde.
E o obituário?
Jimmy enfrentou pela primeira vez os olhos do rapaz.
‑ O obituário?
‑ Sim. ‑ Ambrose olhou para o formulário. ‑ O obituário para o jornal. Podemos encarregar‑nos disso, se nos der as informações básicas relativamente ao texto que pretende. Se prefere donativos em vez de flores, coisas assim.
Jimmy desviou os olhos do reconfortante rosto do rapaz e voltou‑os para o chão. Por baixo deles, algures na cave daquela branca casa vitoriana, Katie jazia estendida na sala de embalsamento.
Estaria nua diante de Bruce Reed e daquele rapaz e dos seus dois irmãos quando começassem a trabalhar nela, limpando‑a, tocando‑‑lhe, preservando‑a. Aquelas mãos frias e cuidadas percorrer‑lhe‑‑iam o corpo. Retirariam partes dele. Segurar‑lhe‑iam o queixo entre um polegar e um indicador e rodá‑lo‑iam. Passar‑lhe‑iam pentes pelos cabelos.
Pensou na filha nua e exposta, a pele despojada de cor, enquanto esperava ser tocada uma última vez por aqueles desconhecidos ‑ com cuidado, possivelmente, mas um cuidado impessoal, clínico. E então colocar‑lhe‑iam uma almofada de cetim debaixo da cabeça, no caixão, e levá‑la‑iam para a sala de exposição com a expressão congelada de uma boneca no rosto e o seu vestido azul preferido. E as pessoas espreitariam para ela, e rezariam por ela, e fariam comentários, e lamentá‑la‑iam, e, finalmente, seria sepultada. Descê‑la‑‑iam até ao fundo de um buraco aberto por homens que também não a tinham conhecido, e Jimmy ouviu o cair distante da terra, como se estivesse no caixão com ela.
E ela ali ficaria no escuro, com dois metros de terra por cima, e depois a relva e o ar livre que nunca mais voltaria a cheirar nem a sentir nem a tocar. Ficaria ali durante mil anos, incapaz de ouvir os passos das pessoas que fossem visitar‑lhe a tumba, incapaz de ouvir fosse o que fosse do mundo que deixara por causa de toda aquela terra que tinha em cima.
Vou matá‑lo, Katie. Seja como for, vou encontrá‑lo antes da Polícia, e vou matá‑lo. Vou enfiá‑lo num buraco muito pior do que aquele para onde tu vais. E não vou deixar‑lhes nada para embalsamar. Nada para chorar. Vou fazê‑lo desaparecer como se nunca tivesse existido, como se o nome dele e tudo o que ele foi, ou julga ser neste momento, fosse apenas um sonho que passou num relâmpago pela mente de alguém e foi esquecido antes de a pessoa acordar.
Vou encontrar o homem que te pôs nessa mesa de mármore aí em baixo, e vou apagá‑lo. E os entes queridos dele ‑ se tem alguns ‑ sentirão mais angústia ainda do que os teus, Katie. Porque nunca terão a certeza de saber o que lhe aconteceu.
E não receies que eu não seja capaz, querida. O Papá é capaz. Nunca o soubeste, mas o Papá já matou. O Papá fez o que tinha de ser feito. E pode fazê‑lo outra vez.
Voltou a dar atenção ao filho de Bruce, que era ainda suficientemente novo naquilo para ficar enervado por longas pausas.
‑ Gostaria que dissesse o seguinte: Marcus, Katherine Juanita, filha muito amada de James e Marita, falecida, enteada de Annabeth, irmã de Sara e Nadine...
Sean estava sentado no alpendre das traseiras com Annabeth Marcus, que bebia pequenos golos de um copo de vinho branco e fumava os seus cigarros só até meio antes de os apagar, o rosto iluminado pela lâmpada nua suspensa por cima deles. Era um rosto forte, não exactamente bonito, talvez, mas notável. Estava habituada a que as pessoas olhassem para ela, calculou Sean, embora provavelmente não soubesse por que razão consideravam que valia a pena fazê‑lo. Fez‑lhe lembrar um pouco a mãe de Jimmy, mas sem o ar de resignação e derrota, e fez‑lhe lembrar a sua própria mãe, no seu autodomínio absoluto e fácil. Nesse aspecto, fez‑lhe lembrar Jimmy, que também era assim. Via que Annabeth Marcus era uma mulher divertida, mas nunca uma mulher frívola.
Então ‑ perguntou ela, enquanto Sean lhe acendia o cigarro
‑, que vai fazer o resto da noite, quando for libertado da obrigação de consolar‑me?
Não estou...
Ela interrompeu‑o com um gesto da mão.
Fico‑lhe agradecida. Então, que vai fazer?
Ver a minha mãe.
Palavra?
Sean assentiu.
Faz anos hoje. Vou festejar com ela e com o meu velho.
Uh‑uh. Há quanto tempo está divorciado?
Nota‑se muito?
Usa‑o como um fato.
‑‑ Ah. Separado, para ser mais exacto, há um pouco mais de um ano.
Ela vive aqui?
‑Já não. Viaja.
Disse isso com acidez. «Viaja.»
‑ Disse? ‑ Sean encolheu os ombros.
Ela ergueu uma mão.
‑ Detesto estar a fazer‑lhe isto... servir‑me de si para deixar de pensar na Katie. Por isso não precisa de responder às minhas perguntas. É só que eu sou bisbilhoteira, e você é um tipo interessante.
Ele sorriu.
Não, não sou. Na realidade, sou um sensaborão, Mrs. Marcus. Tirem‑me o meu trabalho, e desapareço.
Annabeth ‑ disse ela. ‑ Trate‑me por Annabeth, sim?
Claro.
Custa‑me acreditar, guarda Devine, que seja um sensaborão.
Mas quer saber uma coisa curiosa?
Diga.
Não me parece o género de homem capaz de passar multas
fantasmas a quem quer que seja.
Porquê?
Porque é uma infantilidade. E não me parece que seja um
homem infantil.
Sean encolheu os ombros. A experiência dizia‑lhe que toda a gente é infantil, numa ocasião ou noutra. É aquilo a que todos revertemos, sobretudo quando a merda começa a amontoar‑se.
Em mais de um ano, nunca falara a respeito de Lauren fosse com quem fosse ‑ nem com os pais, nem com os poucos amigos que tinha, nem sequer com a psicóloga da Polícia a que o comandante fizera uma breve mas clara referência quando a partida de Lauren passara a ser do conhecimento geral no destacamento. Mas ali estava Annabeth, uma desconhecida que sofrera uma perda, e sentia‑a a sondar a perda dele, a necessitar de vê‑la, ou de partilhá‑la, ou qualquer coisa nessa linha, a precisar de saber, calculou Sean, que não era ela a única, que o destino não a escolhera deli‑beradamente.
‑ A minha mulher é encenadora ‑ disse, em voz baixa. ‑ De
espectáculos itinerantes, está a ver? O Lord ofthe Dance fez uma digressão por todo o país, no ano passado... foi a minha mulher que encenou. Esse tipo de coisa. Agora está a fazer um... Annie Get Your
Gun, talvez. Para dizer a verdade, não tenho bem a certeza. Seja lá o que for que estão a reciclar este ano. Éramos um casal esquisito.
Quer dizer, os nossos empregos. Quanto é que duas pessoas podem estar distantes uma da outra?
‑ Mas amava‑a.
Ele assentiu.
‑ Sim. Ainda a amo. ‑ Inspirou fundo, recostou‑se na cadeira e engoliu a mágoa. ‑ O tipo a quem passei as multas era... ‑ Sentiu a boca seca e abanou a cabeça. De repente, tinha uma necessidade quase irreprimível de sair do raio daquele alpendre e daquela casa.
‑ Era um rival? ‑ perguntou Annabeth, a voz delicada.
Sean tirou um cigarro do maço e acendeu‑o, assentindo com
a cabeça.
Uma palavra bonita para o descrever. Está bem, chamemos‑
‑lhe assim. Um rival. Eu e a minha mulher estávamos a passar por uma fase má, na altura. Nenhum dos dois parava muito em casa, e isso. E este, hum, rival... aproveitou para atacar.
E você reagiu mal ‑ disse Annabeth. Era uma afirmação, não
uma pergunta.
Sean olhou para ela.
‑ Conhece alguém que reaja bem?
Annabeth lançou‑lhe um olhar duro, um olhar que parecia sugerir que o sarcasmo era indigno dele, ou talvez uma coisa que ela não apreciava particularmente.
Mas continua a amá‑la.
Claro. Raios, acho que ela também me ama. ‑ Apagou o cigarro. ‑ Está sempre a telefonar‑me. Liga para mim, mas não fala.
Espere, ela...
Eu sei.
.. .liga para si mas não diz uma palavra?
‑ É verdade. Já dura há oito meses.
Annabeth riu‑se.
Sem ofensa, é a coisa mais estranha que ouço nestes últimos
tempos.
Não duvido. ‑ Sean viu uma mosca afastar‑se velozmente
da lâmpada acesa. ‑ Um destes dias, suponho, vai falar. É disso que estou à espera.
Ouviu a sua própria gargalhada meio tola morrer na noite, e o eco dela embaraçou‑o. Ficaram sentados em silêncio durante algum tempo, a fumar, a ouvir o zumbido da mosca que voava loucamente à volta da luz.
Como se chama ela? ‑ perguntou Annabeth. ‑ Durante este
tempo todo, não disse o nome dela uma única vez.
Lauren. Chama‑se Lauren.
O nome ficou suspenso no ar por instantes, como o fiapo solto de uma teia de aranha.
E ama‑a desde que eram miúdos?
Desde o primeiro ano da universidade. Sim, acho que éramos
miúdos.
Recordou uma trovoada de Novembro, os dois a beijarem‑se pela primeira vez no umbral de uma porta, o toque arrepiado da pele dela, ambos a tremer.
Talvez seja esse o problema ‑ disse Annabeth.
Sean olhou para ela.
O facto de já não sermos miúdos?
Um dos dois, pelo menos.
Sean não perguntou qual.
‑ O Jimmy contou‑me que você lhe disse que a Katie planeava fugir com o Brendan Harris.
Sean assentiu.
Bem, é isso mesmo, não é?
Ele voltou‑se na cadeira.
O quê?
Annabeth soprou um jacto de fumo para a corda da roupa, agora vazia.
‑ Esses sonhos patetas que temos quando somos miúdos. Quer
dizer, como é, a Katie e o Brendan Harris iam viver em Las Vegas?
Quanto tempo teria durado esse pequeno paraíso. Talvez quando já fossem no segundo parque de caravanas, no segundo filho, mas havia de cair‑lhes em cima mais tarde ou mais cedo... A vida não é felizes para sempre e poentes dourados e merdas dessas. É trabalho.
A pessoa que amamos raramente é digna de um amor tão grande
como o nosso. Porque ninguém é digno de um amor assim, e talvez ninguém mereça ser sobrecarregado com um amor assim, também.
Acabamos sempre desiludidos. Acabamos sempre desapontados,
e a sentir que a nossa confiança foi traída e que temos pela frente tempos de tristeza. Perde‑se sempre mais do que se ganha. Detestamos a pessoa que amamos tanto quanto a amamos. Mas, merda, arregaçamos as mangas e trabalhamos... seja no que for... porque tornarmo‑nos mais velhos é isso mesmo.
‑ Annabeth, alguma vez alguém lhe disse que é uma mulher
dura?
Ela voltou a cabeça para ele, os olhos fechados, um sorriso sonhador nos lábios.
‑ Constantemente.
Brendan Harris foi para o seu quarto naquela noite e enfrentou a mala que tinha debaixo da cama. Enchera‑a de calções e camisas havaianas, um casaco de desporto e dois pares de jeans, mas nem uma camisola ou calças de lã. Enchera‑a com aquilo que achava que se usava em Las Vegas, nada de roupas de Inverno, porque ele e Katie tinham concordado em que nenhum dos dois queria voltar a enfrentar outro nevão, nem comprar meias térmicas no Kmart, nem ver mais pára‑brisas cobertos de gelo. Por isso, quando abriu a mala, o que olhou para ele foi uma alegre mistura de cores vivas e motivos florais, uma explosão de Verão.
Aquilo era o que tinham planeado ser. Bronzeados e soltos, os corpos desembaraçados do peso de botas e de casacos e das expectativas de quem quer que fosse. Beberiam bebidas com nomes malucos por copos de daiquiri e passariam as tardes na piscina do hotel e os seus corpos cheirariam a protector solar e a cloro. Fariam amor num quarto gelado pelo ar condicionado mas aquecido onde o sol entrasse através das persianas, e quando a noite arrefecesse tudo, vestiriam as suas melhores roupas e iriam passear para a Strip. Via‑se a si mesmo e a Katie como que de muito longe, olhando do alto de vários andares para os dois amantes a deambular sob o clarão do néon, e aquelas luzes derramavam no asfalto negro manchas aquosas de vermelhos e amarelos e azuis. E lá estavam eles ‑ Katie e Brendan ‑ a passear preguiçosamente pelo meio da larga avenida, transformados em anões pelos edifícios enormes, com o vozear e o matraquear e o tilintar dos casinos a chegar‑lhes através das portas.
A qual queres ir esta noite, querida?
Escolhe tu.
Não, escolhe tu.
Não, vá lá, escolhe tu.
OK. Que tal este?
Parece giro.
Então é este.
Amo‑te, Brendan.
Amo‑te, Katie.
E teriam subido as escadas alcatifadas a vermelho por entre as colunas brancas e entrado no bulício daquele lugar cheio de fumo e de ruído. Fariam isto como marido e mulher, a iniciarem as suas vidas juntos, ainda garotos, na realidade, e East Bucky ficaria um milhão de milhas para trás e a afastar‑se mais um milhão a cada passo que dessem.
Era assim que teria sido.
Brendan sentou‑se no chão. Precisava de sentar‑se por um segundo. Só um segundo ou dois. Sentou‑se, e puxou as solas das botas de modo a ficarem de frente uma para a outra e agarrou os tornozelos, como um rapazinho. Balouçou‑se um pouco, deixando descair o queixo para o peito e fechando os olhos, e sentiu a dor abrandar por um instante. Sentiu uma calma na escuridão e no balouçar.
E então a calma passou, e o horror do desaparecimento de Katie da face da Terra ‑ a absoluta falta dela ‑ voltou a invadir‑lhe o sangue e Brendan sentiu‑se pulverizado por ele.
Tinham uma arma lá em casa. Pertencera ao pai, e a mãe deixara‑a atrás do painel amovível do tecto por cima da copa, onde o pai sempre a tivera. Uma pessoa podia sentar‑se na bancada da copa, e procurar por baixo do rebordo arredondado da cornija de madeira, e tocar nos três painéis que lá havia até sentir o peso da arma. Então, tudo o que precisava de fazer era empurrar o painel para cima, meter lá a mão e fechar os dedos à volta da arma. Estava lá desde que Brendan se lembrava, e uma das suas recordações mais antigas era sair, trôpego de sono, da casa de banho, certa noite, já muito tarde, e ver o pai tirar a mão de baixo da cornija. Brendan até tirara a arma do seu esconderijo, uma vez, para mostrá‑la a Jerry Diventa, quando tinham treze anos, e Jerry olhara para ela com os olhos muito abertos e dissera, «Volta a pô‑la lá, volta a pô‑la lá.» Estava coberta de pó e provavelmente nunca fora disparada, mas Bren‑dan sabia que era apenas uma questão de limpá‑la.
Podia levar a arma consigo naquela noite. Entraria no Café So‑ciety, onde Roman Fallow parava, ou no Atlantic Auto Glass, de que Bobby O'Donnell era dono e de onde, segundo Katie, dirigia a maior parte dos seus negócios, num escritório que tinha nas traseiras. Podia ir a qualquer desses lugares ‑ ou melhor ainda, aos dois ‑ e apontar a arma do pai à cara daqueles dois tipos e apertar o gatilho uma e outra vez até o percutor bater numa cápsula vazia e Roman e Bobby nunca mais voltariam a matar nenhuma mulher.
Podia fazê‑lo. Podia Fazê‑lo nos filmes. Bruce Willis, pá, se alguém matasse a mulher que eLe amava, não estaria sentado no chão, agarrado aos tornozelos, a balouçar‑se para trás e para a frente como um drogado. Estaria a carregar a arma. Certo?
Brendan imaginou a cara bochechuda de Bobby na mira da arma, e o homem a suplicar. Não, por favor, Brendan! Não, por favor!
E Brendan a dizer qualquer coisa porreira como, «Apanha lá esta, meu cabrão. Vai pedir favores ao diabo.»
Começou a chorar, ainda a balouçar‑se, ainda agarrado aos tornozelos, porque sabia que não era Bruce Willis e Bobby O'Don‑nell era uma pessoa real, e não uma coisa num filme, e a arma precisaria de ser limpa, limpa a sério, e ele nem sequer sabia se tinha balas, porque não estava muito certo de saber abrir aquela coisa, e quando chegasse o momento, a mão não se lhe poria a tremer? Não se lhe poria a tremer e a saltar como quando era miúdo e sabia que não havia modo de escapar, que ia ter de lutar? A vida não era a porra de um filme, pá, era... a porra da vida. E as coisas não eram como quando o bom tinha de ganhar em duas horas e por isso uma pessoa sabia que ia ganhar. Brendan não sabia grande coisa a respeito de si mesmo no sentido de ser herói; tinha dezanove anos e nunca fora desafiado dessa maneira. Mas não tinha a certeza de ser capaz de entrar no escritório de um tipo ‑ isto se as portas estivessem abertas e não houvesse por ali uma porção de outros tipos ‑ e dar‑lhe um tiro na cara. Pura e simplesmente, não tinha a certeza.
Mas tinha saudades dela. Tinha tantas saudades, e a dor de ela não estar ali ‑ e de nunca mais voltar a estar ‑ era tão insuportável que tinha de fazer alguma coisa, qualquer coisa, quanto mais não fosse para deixar de sentir‑se assim um segundo que fosse da sua nova e miserável vida.
OK, decidiu. OK. Limpo a arma amanhã. Limpo‑a e verifico se tem balas. Isso faço com certeza. Limpo a arma.
Ray entrou no quarto, ainda com os patins‑em‑linha calçados, usando o novo stick de hóquei como uma bengala para gingar sobre os tornozelos instáveis até à cama. Brendan pôs‑se precipitadamente de pé, a limpar as lágrimas das faces.
Ray descalçou os patins, observando o irmão, e disse com os dedos:
Estás bem?
Não ‑ respondeu Brendan.
Posso fazer alguma coisa?
Não tem importância, Ray. Não, não podes. Mas não te preocupes com isso.
A Mã diz que ficaste melhor assim.
O quê?
Ray repetiu os gestos.
Ah, sim? E porque é que ela diz isso?
As mãos de Ray voaram.
Se te fosses embora, a Mã pirava.
Acabava por passar‑lhe.
Talvez sim, talvez não.
Ray olhou para o irmão sentado na cama, com os olhos cravados na cara dele.
‑ Não me chateies agora, Ray. Está bem? ‑ Inclinou‑se para a frente, a pensar na arma. ‑ Eu amava‑a.
Ray devolveu‑lhe o olhar, o rosto vazio como uma máscara de borracha.
‑ Sabes o que isso é, Ray?
Ray abanou a cabeça.
‑ É como saberes todas as respostas ao teste no instante em
que te sentas na carteira. É como saberes que tudo vai correr bem pelo resto da tua vida. Vais vencer. Vais estar porreiro. Vais andar sempre por aí, a sentir‑te aliviado, porque venceste. ‑ Desviou os olhos do irmão. ‑ É assim.
Ray bateu nos pés da cama, para que o irmão olhasse para ele, e gesticulou:
‑ Hás‑de voltar a sentir isso.
Brendan pôs‑se de joelhos e aproximou muito a cara da de Ray.
‑ Não, não vou. Percebeste bem? Não vou.
Ray puxou os pés para cima da cama e afastou‑se para trás, e Brendan sentiu‑se envergonhado, mas ainda furioso, porque os mudos tinham aquilo ‑ conseguiam fazer uma pessoa sentir‑se estúpida por falar. Tudo o que Ray dizia era sucinto, exactamente o que queria dizer. Ray não sabia o que era andar à procura de palavras, ou tropeçar nelas porque a fala ia mais depressa do que o cérebro.
Brendan queria transbordar, queria que as palavras lhe saíssem da boca num jorro de apaixonado, furioso, não inteiramente sensato mas totalmente honesto testamento a Katie e ao que ela significara para ele e a como fora apertar o nariz contra o pescoço dela naquela mesma cama e enganchar um dedo num dos dela e limpar‑‑lhe um pouco de gelado do queixo e sentar‑se ao lado dela e ver‑‑lhe os olhos dardejarem muito vivos de um lado para o outro quando chegavam a um cruzamento e ouvi‑la falar e dormir e ressonar e...
Queria falar durante horas e horas. Queria que alguém o ouvisse e compreendesse que a fala não tinha só a ver com a transmisssão de ideia e de opiniões. Por vezes, tinha a ver com tentar transmitir uma vida humana inteira. E embora uma pessoa soubesse, ainda antes de abrir a boca, que não ia conseguir, tentar era de algum modo tudo o que importava. Tentar era tudo o que uma pessoa tinha.
Ray, no entanto, nunca o compreenderia. Para Ray, as palavras eram movimentos dos dedos, rápidos e precisos gestos das mãos. Ray não desperdiçava palavras. Para ele, a comunicação nada tinha de relativo. Uma pessoa dizia exactamente o que queria dizer, e pronto. Descarregar o seu desgosto e emocionar‑se diante daquele irmão de rosto inexpressivo só serviria para envergonhar Brendan. Não o ajudaria.
Olhou para o garoto assustado, como que refugiado no fundo da cama e a olhar para ele com uns olhos esbugalhados, e estendeu uma mão.
‑ Desculpa ‑ disse, e ouviu a sua própria voz tremer. ‑ Desculpa, Ray. Está bem? Não queria ralhar contigo.
Ray aceitou a mão e pôs‑se de pé.
Então está bem? ‑ gesticulou, a olhar para Brendan como se
estivesse preparado para saltar pela janela à próxima explosão.
Tudo bem, Ray ‑ respondeu Brendan, por gestos. ‑ Sim, acho
que está tudo bem.
Quando Ela Voltar a Casa
Os pais de Sean viviam em Wingate Estates, um condomínio fechado de pequenas casas de quatro assoalhadas, cinquenta quilómetros a sul da cidade. Cada vinte unidades formavam uma secção, e cada secção tinha a sua piscina e o seu centro recreacional onde, nos sábados à noite, se organizavam bailes. Um pequeno campo de golfe estendia‑se junto à orla exterior do complexo como um crescente de Lua caído do céu e, desde o fim da Primavera até ao início do Outono, o ar enchia‑se do zumbido dos pequenos carros eléctricos.
O pai de Sean não jogava golfe. Decidira havia muito que era um desporto de ricos e que começar a praticá‑lo seria de algum modo trair as suas raízes operárias. A mãe experimentara durante algum tempo, mas acabara por desistir por estar convencida de que as parceiras troçavam às escondidas da sua forma física, do seu ligeiro sotaque irlandês e das suas roupas.
Por isso viviam ali sossegadamente e quase sem amigos, embora Sean soubesse que o pai se dava com um fulano chamado Riley, um irlandês baixinho e gordo que, como ele, vivera num dos bairros da cidade antes de mudar‑se para Wingate. Riley, que também não gostava de golfe, fazia ocasionalmente companhia ao pai de Sean para uma bebida no Ground Round, do outro lado da Estrada 28. Quanto à mãe, uma prestadora de cuidados nata, ainda que reflexiva, costumava ajudar os vizinhos mais idosos e doentes. Levava‑os de carro à farmácia aviar receitas, ou ao médico, para que novos remédios pudessem ir ocupar o seu lugar ao lado dos antigos no armário da casa de banho. A mãe de Sean, quase com setenta anos, sentia‑sejovem e vibrante durante essas deslocações, e uma vez que a maior parte das pessoas que ajudava tinha enviuvado, sentia, também, que a continuada saúde dela própria e do marido era uma bênção vinda dos céus.
‑ Estão sozinhos ‑ dissera certa vez a Sean, olhando para os seus adoentados amigos ‑, e apesar de os médicos não lho dizerem, é disso que estão a morrer.
Muitas vezes, quando passava pela casa do guarda e subia a estrada principal, atravessada a intervalos de dez metros por bandas sonoras amarelas que faziam a suspensão sacolejar, Sean quase conseguia ver as ruas‑fantasmas e os bairros‑fantasmas e as vidas fantasmas que os residentes de Wingate tinham deixado para trás, como se os apartamentos sem água quente e os frigoríficos de um branco baço, as escadas de incêndio de ferro forjado e os miúdos sempre aos gritos flutuassem como uma névoa matinal através da actual paisagem de casas de paredes rebocadas em tons casca‑de‑ovo e relvados aparados, mesmo no limite da sua visão periférica. E então invadia‑o uma culpa irracional, a culpa de um filho que tivesse mandado os pais para um lar de idosos. Irracional, porque Wingate Es‑tates não era tecnicamente uma comunidade para pessoas com mais de sessenta anos (ainda que, para ser sincero, Sean nunca tivesse visto um residente abaixo dessa idade), mas sobretudo porque os pais se tinham mudado para lá por sua livre e espontânea vontade, ema‑lando décadas de queixas a respeito da cidade e do seu barulho e dos seus crimes e dos seus engarrafamentos para irem para ali, onde, como o pai dizia, «Uma pessoa pode andar à noite na rua sem ter de olhar por cima do ombro.»
Mesmo assim, Sean sentia que os desiludira, como se eles tivessem esperado da sua parte um esforço mais empenhado para mantê‑los perto. Sean via aquele lugar como via a morte, ou pelo menos um entreposto no caminho, e não se limitava a detestar a ideia de imaginar os pais ali ‑ à espera do dia em que alguém tivesse de levá‑los a eles ao médico ‑, detestava também a ideia de imaginar‑se a si mesmo ali ou em qualquer outro lugar igual àquele. Sabia, no entanto, que tinha poucas possibilidades de ir acabar num sítio diferente. E como estava agora, sem filhos nem mulher que quisessem saber dele. Tinha trinta e seis anos, já a um pouco mais de meio caminho para um duplex em Wingate, e a segunda metade passaria muito provavelmente a um ritmo bem mais veloz do que a primeira.
A mãe soprou as velas do bolo pousado em cima da pequena mesa de jantar que ocupava quase toda a divisão entre a minúscula cozinha e a mais espaçosa sala de estar, e comeram em silêncio, a ouvir o tiquetaque do relógio pendurado na parede por cima deles e o zumbido das condutas de ar condicionado.
Quando acabaram, o pai pôs‑se de pé.
Eu levanto a mesa.
Não, eu trato dissso.
Tu senta‑te.
Não, deixa‑me.
Senta‑te, menina dos anos.
A mãe sentou‑se com um pequeno sorriso e o pai de Sean juntou os pratos num monte e levou‑os para a cozinha.
Cuidado com as migalhas ‑ disse a mãe.
Eu tenho cuidado.
Se não as deixares ir bem pelo cano, voltamos a ter formigas.
Tivemos uma formiga. Uma.
Tivemos mais ‑ disse ela, dirigindo‑se a Sean.
Há seis meses ‑ acrescentou o pai, acima do ruído da água
a correr.
E ratos.
Nunca tivemos ratos.
Mrs. Feingold teve. Dois. Teve de comprar ratoeiras.
Nós não temos ratos.
Porque eu tenho o cuidado de não deixar migalhas no lavalouça.
Jesus ‑ exclamou o pai de Sean.
A mãe beberricou o chá e olhou para Sean por cima da beira da chávena.
‑ Recortei um artigo para a Lauren ‑ disse, enquanto voltava
a pousar a chávena no pires. ‑ Tenho‑o aí algures.
A mãe de Sean estava sempre a recortar artigos dos jornais e a dá‑los a Sean quando ele aparecia. Ou então enviava‑lhos pelo correio, em montes de nove ou dez, e Sean abria o sobrescrito e via‑os cuidadosamente dobrados, como que a recordar‑lhe o tempo que passara desde a sua última visita. O tema dos artigos variava, mas eram todos do tipo conselhos domésticos ou auto‑ajuda ‑ métodos para impedir incêndios na máquina de secar; como evitar queimaduras com gelo; os prós e os contras de assinar um documento a autorizar a interrupção de cuidados médicos para lá de um certo limite; como evitar carteiristas durante as férias; conselhos de saúde para homens com profissões de elevado stress («Ponha o Seu Coração a Andar!»). Eram a maneira que a mãe tinha de enviar‑lhe amor, Sean bem o sabia, o equivalente a abotoar‑lhe o sobretudo e compor‑lhe o cachecol antes de ele sair para a escola numa manhã de Janeiro, e ainda sorria quando se lembrava do recorte que chegara dois dias antes de Lauren se ir embora ‑ «Opte pelo Vitro!» Os pais nunca tinham conseguido compreender que o facto de Sean e Lauren não terem filhos era uma opção, se assim se lhe podia chamar, baseada no receio partilhado (mas nunca discutido) de virem a revelar‑se uns péssimos pais.
Quando Lauren finalmente engravidara, tinham guardado segredo enquanto tentavam decidir se ela ia ou não ter aquele bebé, numa altura em que o casamento se desmoronava à volta deles, em que Sean descobrira o affair que a mulher tivera com um actor, ainda por cima, e começara a perguntar‑lhe, «De quem é esse filho, Lauren?» E Lauren respondera: «Se estás tão preocupado, faz um teste de paternidade.»
Deixaram de jantar com os pais dele, começaram a arranjar desculpas para não estarem em casa quando eles faziam as suas raras visitas à cidade, e Sean sentiu o cérebro desfazer‑se sob a pressão do medo de que o filho não fosse dele e de outro medo também ‑ o de não o querer, se fosse.
Desde que Lauren se fora embora, a mãe de Sean referia‑se à ausência dela dizendo apenas que «tinha tirado um tempo para pensar», e todos os recortes eram agora para ela, não para ele, como se um dia transbordassem de uma gaveta ao ponto de os dois terem de voltar a viver juntos quanto mais não fossse para poderem fechá‑la.
‑ Falaste com ela recentemente? ‑ perguntou o pai da cozinha, o rosto escondido do outro lado da parede verde‑hortelã que os separava.
Com a Lauren?
Claro.
Com quem havia de ser? ‑ disse jovialmente a mãe, enquanto
remexia numa gaveta do aparador.
Ela telefona. Mas não diz nada.
Talvez faça conversa de circunstância por...
Não é isso, Pá. Não fala. Nem uma palavra.
Nada?
Nada.
Como sabes que é ela?
‑Sei.
Mas como?
Jesus ‑ exclamou Sean. ‑ Ouço‑a respirar, está bem?
Que estranho ‑ disse a mãe. ‑ Mas tu falas, Sean?
Por vezes. Cada vez menos.
‑ Bom, pelo menos estão a comunicar, de certa maneira ‑ rematou a mãe, e colocou o último recorte diante dele. ‑ Diz‑lhe que eu pensei que ela ia achar isto interessante. ‑ Sentou‑se e alisou uma ruga na toalha da mesa com os bordos exteriores das palmas. ‑
Quando ela voltar a casa ‑ acrescentou, ficando a olhar para a ruga
que as suas mãos tinham alisado. ‑ Quando ela voltar a casa ‑ repetiu, a voz um sussurro, como a voz de uma freira, absolutamente segura da ordem essencial das coisas.
‑ Dave Boyle ‑ disse Sean ao pai uma hora mais tarde, quando estavam ambos sentados a uma das mesas do Ground Round.
‑ Daquela vez que desapareceu de diante da nossa casa.
O pai franziu a testa e concentrou‑se no acto de deitar o resto de uma Kiliarís na caneca gelada. Quando a espuma chegou à beira da caneca e o escorrer da cerveja se transformou numa série de gordos pingos, perguntou:
Como é... não podias ir procurar nos jornais antigos?
‑Bem...
Porquê perguntar‑me a mim. Merda. Deu na televisão.
‑ Não quando o raptor foi encontrado ‑ disse Sean, na esperança de que isso bastasse, de que o pai não insistisse em saber por que razão fora ter com ele, porque ainda não tinha uma resposta completa.
Tinha qualquer coisa a ver com precisar que o pai o situasse no contexto do acontecimento, o ajudasse talvez a ver‑se a si mesmo naquela altura de uma maneira que nem os jornais nem os arquivos de casos antigos eram capazes de fazer. E talvez tivesse também algo a ver com poder falar com o pai a respeito de qualquer coisa mais do que as notícias do dia ou a necessidade que os Red Sox tinham de um esquerdino no banco.
Parecia a Sean ‑ por vezes ‑ que ele e o pai tinham em tempos falado a respeito de mais do que apenas coisas incidentais (como parecia que ele e Lauren falavam), mas, por mais que se esforçasse, não conseguia lembrar‑se do que pudesse ter sido. Receava ter, no nevoeiro que eram as suas recordações de infância, inventado intimidades e momentos de clara comunicação entre ele e o pai que, tendo embora adquirido uma dimensão mítica com o decorrer dos anos, nunca tivessem acontecido.
O pai era um homem de silêncios e frases inacabadas, e Sean passara a maior parte da sua vida a interpretar aqueles silêncios, a preencher os espaços em branco no final daquelas elipses, criando um conceito do que o pai queria dizer. E, ultimamente, perguntava a si mesmo se ele próprio terminaria as frases como julgava fazer, ou se era igualmente uma criatura de silêncios, silêncios que vira em Lauren, também, e a respeito dos quais nada fizera até que o silêncio fora a única parte dela que lhe restara. Isso, e o silvo do ar no telefone quando ela ligava.
‑ Porque é que queres voltar a esse tempo? ‑ acabou o pai por perguntar.
Sabia que a filha do Jimmy Marcus foi assassinada?
O pai olhou para ele.
A rapariga em Pen Park?
Sean assentiu.
Vi o nome ‑ disse o pai. ‑ Pensei que talvez fosse da família,
mas filha?
É verdade.
Ele é da tua idade. Como é que tem uma filha de dezanove
anos?
Nasceu quando ele tinha, não sei, dezassete, ou assim, um
par de anos antes de o mandarem para Deer Island.
Jesus ‑ murmurou o pai. ‑ Pobre filho da mãe. O pai continua preso?
Morreu, Pá.
Sean viu que a resposta magoara o pai, o projectara de regresso àquela cozinha em Gannon Street, quando ele e o pai de Jimmy passavam as tardes de sábado a beber cerveja enquanto os filhos brincavam no pátio, o estrépito das suas gargalhadas a explodir no ar.
‑ Merda. Morreu cá fora, ao menos?
Sean ainda pensou em mentir, mas já estava a abanar a cabeça.
Dentro. Walpole. Cirrose.
Quando?
Pouco depois de o Pá e a Mã se terem mudado. Seis anos, talvez sete.
A boca do pai moldou‑se à volta de um silencioso «sete». Bebeu um golo de cerveja, e as manchas de fígado nas costas das mãos dele pareceram mais pronunciadas à luz amarela que vinha de cima.
É fácil perder a conta. Ao tempo.
Lamento, Pá.
O pai fez uma careta. Era a sua invariável resposta à simpatia ou a elogios.
‑ Porquê? A culpa não foi tua. Raios, o Tim tramou‑se a si
mesmo quando matou o Sonny Todd.
‑ Por causa de um jogo de bilhar, não foi?
O pai encolheu os ombros.
Estavam os dois bêbedos. Quem pode agora dizê‑lo? Estavam os dois bêbedos e tinham grandes bocas e mau feitio. O feitio
do Tim era apenas um pouco pior do que o do Sonny Todd. ‑ Bebeu um pouco mais de cerveja. ‑ O que é que o desaparecimento do Dave
Boyle tem a ver com... Como se chamava ela, Katherine? Katherine Marcus?
É isso.
Então, o que é que as duas coisas têm a ver uma com a outra?
Não estou a dizer que têm.
Não estás a dizer que não têm.
Sean não pôde impedir‑se de sorrir. Dessem‑lhe um patife dos mais empedernidos, desses que gostam de armar‑se em advogados e julgam conhecer melhor o sistema do que a maior parte dos juizes, e ele não tinha qualquer dificuldade em arrasá‑lo. Mas pegasse‑‑se num daqueles velhos, um daqueles filhos da mãe desconfiados e duros como pregos da geração do pai ‑ trabalhadores rijos com muito orgulho e sem ponta de respeito por qualquer instituição estatal ou municipal ‑ e podia‑se estar a martelá‑los toda a noite, porque se eles não quisessem abrir a boca, um tipo ainda lá estaria na manhã seguinte sem mais nada além das mesmas perguntas sem resposta.
Eh, Pá, deixemos de parte as ligações, para já, está bem?
Porquê?
Sean ergueu uma mão.
Está bem? Faça‑me a vontade.
Oh, claro, é mesmo aquilo que me mantém vivo, a possibilidade que posso ter de fazer a vontade ao meu filho.
Sean sentiu que apertava os dedos à volta da pega da caneca.
Estive a ver o processo do rapto do Dave. O detective encarregado da investigação já morreu. Já ninguém se lembra do caso, que continua classificado como não resolvido.
E então?
Então, lembrei‑me de o Pá entrar no meu quarto um ano depois de o Dave ter voltado a casa e dizer: «Acabou‑se. Apanharam
os tipos.»
O pai encolheu os ombros.
Apanharam um deles.
Então, porque é que...
Em Albany ‑ continuou o pai. ‑ Vi a fotografia no jornal.
O tipo tinha confessado uma série de ofensas sexuais a menores em Nova Iorque e mais umas quantas no Massachusetts e em Vermont.
Enforcou‑se na cela antes de entrar em pormenores. Mas reconheci a cara dele a partir do esboço que o polícia desenhou na nossa cozinha.
‑ Tem a certeza?
O pai assentiu.
Cem por cento. O detective encarregado da investigação...
chamava‑se, ah...
Flynn ‑ disse Sean.
‑ Isso, Mike Flynn. Mantive‑me em contacto com ele, de vez
em quando. Telefonei‑lhe depois de ver a foto no jornal, e ele disse que sim, era o mesmo tipo. O Dave tinha‑o identificado.
Qual deles?
‑Hã?
Qual dos dois?
‑ Oh. O, ah, como foi que o descreveste? «O gorduroso, que
tinha um ar sonolento.»
As palavras de criança de Sean pareceram‑lhe estranhas vindas da boca do pai, do outro lado de uma mesa de bar.
O passageiro.
Sim.
‑ E o parceiro? ‑ perguntou Sean.
O pai abanou a cabeça.
‑ Morreu num acidente de viação. Pelo menos, foi o que o outro disse. É o que sei, mas acho que não se pode contar muito com o que sei. Raios, tiveste de ser tu a dizer‑me que o Tim Marcus tinha morrido.
Sean bebeu a cerveja que lhe restava e apontou para a caneca vazia do pai.
‑ Outra?
O pai ficou a olhar para a caneca por um instante.
‑ Que diabo. Pode ser.
Quando Sean regressou com as cervejas, o pai estava a verje‑opardy! que passava sem som num dos televisores por cima do balcão. Perguntou, ainda a olhar para a TV, enquanto Sean se sentava:
Quem é o Robert Oppenheimer?
Sem som, como é que hei‑de saber se é esse o nome?
Porque eu sei ‑ disse o pai, e despejou a cerveja na caneca,
franzindo o sobrolho agastado com a estupidez da pergunta. ‑ É uma coisa que vocês fazem constantemente. Acho que nunca conseguirei entender.
Nós quem? Fazemos o quê?
O pai fez um gesto vago com a caneca de cerveja.
‑ Os tipos da tua idade. Fazem uma porção de perguntas sem
se lembrarem de que a resposta pode ser óbvia se pensarem um bocadinho.
Oh ‑ disse Sean. ‑ OK.
Como essa história do Dave Boyle ‑ continuou o pai. ‑ Que
importa o que lhe aconteceu há vinte e cinco anos? Desapareceu
durante quatro dias com dois pedófilos. O que aconteceu foi exactamente o que esperarias que acontecesse. Mas aqui estás tu a voltar ao assunto porque... ‑ Bebeu um golo de cerveja. ‑ Raios, nem sei porquê.
O pai dirigiu‑lhe um sorriso confuso, a que Sean respondeu com outro igual. ‑Pá.
Sim.
Está a dizer‑me que não aconteceu no seu passado nada em
que de vez em quando pense, a que não dê voltas na cabeça?
O pai suspirou.
Não é essa a questão.
Claro que é.
Não, não é. Acontecem coisas chatas a toda a gente, Sean.
A toda a gente. Ou julgas que és especial? Mas a tua geração, passam a vida a remexer nas crostas. Não conseguem deixar o passado em paz. Têm alguma prova que ligue o Dave à morte da Katherine Marcus?
Sean riu‑se. O velho atacara‑o pelo flanco, a desviar‑lhe a atenção com aquela conversa da «tua geração», quando afinal o que queria era saber se Dave estava envolvido na morte de Katie.
‑ Digamos que há um par de coisas circunstanciais que fazem
com que o Dave pareça ser alguém que devamos manter debaixo
de olho.
Chamas a isso uma resposta?
Chama a isso uma pergunta?
O magnífico sorriso do pai espalhou‑se‑lhe pelo rosto, apagando de repente uns bons quinze anos, e Sean recordou como aquele sorriso por vezes alastrava a toda a casa, quando ele era novo, iluminando tudo.
‑ Estavas então a chagar‑me com o Dave porque perguntas a
ti mesmo se o que aqueles tipos lhe fizeram o terá transformado num tipo capaz de matar uma rapariga.
Sean encolheu os ombros.
‑ Mais ou menos isso.
O pai pensou um pouco no assunto, enquanto revolvia os amendoins na pequena taça com a ponta do dedo e bebia mais um golo de cerveja.
Não me parece.
Sean riu‑se.
Conhece‑o assim tão bem, eh?
Não. Só me lembro dele como miúdo. Não tinha aquilo que
faz de um homem um assassino.
Há montes de miúdos porreiros que se transformam em
adultos capazes de coisas em que nem ia acreditar.
O pai olhou para ele com uma sobrancelha arqueada.
Estás a querer falar‑me da natureza humana?
Sean abanou a cabeça.
Não. Só do meu trabalho como polícia.
O pai recostou‑se na cadeira, olhando para ele com o fantasma de um sorriso a repuxar‑lhe os cantos da boca.
‑ Vá lá. Esclarece‑me.
Sean sentiu‑se corar um pouco.
Eh, não. Só queria...
Por favor.
Sean sentiu‑se tolo. Era espantoso a facilidade com que o pai o conseguia fazê‑lo sentir‑se como se aquilo que aos olhos da maior parte das pessoas que conhecia não passaria de uma observação perfeitamente normal fosse, aos olhos dele, o puto Sean a tentar armar‑‑se em crescido e conseguindo apenas parecer pomposo e pateta.
Dê‑me um pouco de crédito. Acho que sei alguma coisa a respeito de pessoas e de crimes. Ao fim e ao cabo, é o meu trabalho.
Achas então que o Dave seria capaz de matar uma garota de
dezanove anos, Sean? Dave, que costumava brincar no nosso quintal? Aquele miúdo?
Considero toda a gente capaz de tudo.
Então, eu poderia tê‑lo feito. ‑ O pai levou uma mão ao peito.
‑ Ou a tua mãe.
Não.
É melhor verificar os nossos álibis.
Não foi isso que eu disse. Jesus.
Claro que foi. Disseste que toda a gente é capaz de tudo.
Dentro do razoável.
‑ Oh ‑ disse o pai. ‑ Bem, não ouvi essa parte.
Estava outra vez a fazê‑lo, a dar‑lhe voltas e nós, a jogar com ele como Sean jogava com um suspeito. Não admirava que Sean fosse bom a fazer interrogatórios. Aprendera com um mestre.
Ficaram calados durante algum tempo, até que finalmente o pai disse.
‑ Talvez tenhas razão.
Sean olhou para ele, à espera do resto.
‑ Talvez o Dave possa ter feito o que tu julgas. Não sei. Estou só a lembrar‑me do miúdo. Não conheço o homem.
Sean tentou ver‑se através dos olhos do pai. Perguntou a si mesmo se era isso que o pai via ‑ o miúdo, não o homem ‑ quando olhava para ele. Provavelmente, nem podia ser de outra maneira.
Lembrou‑se de como os tios costumavam falar do pai, o último de doze filhos, imigrados da Irlanda quando Bill tinha cinco anos. O «velho Bill», diziam, referindo‑se ao Bill Devine que existira antes de Sean ter nascido. O «zaragateiro». Só agora Sean conseguia ouvir‑lhes as vozes e detectar a nota de paternalismo que a geração mais antiga sente em relação à mais recente, sendo quase todos os tios uns bons doze a quinze anos mais velhos do que o irmão mais novo.
Estavam todos mortos, agora. Todos os onze irmãos e irmãs do pai. E ali estava o bebé da família, a aproximar‑se dos setenta e cinco, refugiado nos subúrbios junto de um campo de golfe que nunca utilizaria. O único que restava, e mesmo assim ainda o mais novo, sempre o mais novo, sempre a insurgir‑se contra a mais pequena insinuação de condescendência viesse ela de onde viesse, e especialmente do filho. A preferir bloquear o mundo inteiro, se fosse preciso, a ter de suportar semelhante coisa, ou sequer a percepção de semelhante coisa. Porque todos os que tinham tido o direito de falar‑lhe assim haviam desaparecido da face da Terra havia já muitos anos.
O pai olhou para a cerveja de Sean e atirou algumas moedas para cima da mesa, como gorjeta.
‑ Acabaste? ‑ perguntou.
Atravessaram a Estrada 28 em direcção à entrada do condomínio, com as suas bandas sonoras amarelas e os seus aspersores de rega.
Sabes do que é que a tua mãe gosta? ‑ disse o pai.
De quê?
Que tu lhe escrevas. Um postal de vez em quando, sem qual
quer razão especial. Diz que mandas postais engraçados e gosta do modo como escreves. Tem‑nos guardados no quarto, numa gaveta. Alguns ainda são do tempo em que andavas na universidade.
‑OK.
De vez em quando, estás a ver. Põe um no correio.
Claro.
Chegaram junto ao carro de Sean e o pai olhou para as janelas escuras do duplex.
‑ A Mã já se deitou? ‑ perguntou Sean.
O pai assentiu com a cabeça.
Amanhã de manhã vai levar Mrs. Coughlin à fisioterapia. ‑ Estendeu a mão e apertou bruscamente a de Sean. ‑ Gostei de te ver.
Eu também.
Ela vai voltar?
Sean não teve de perguntar quem era «ela».
‑ Não sei. Sinceramente, não sei.
O pai olhou para ele à luz pálida de um candeeiro de rua, e, por um instante, Sean sentiu que trespassava qualquer coisa nele, sabendo que o filho estava magoado, que fora abandonado, ferido, e que isso fazia às pessoas qualquer coisa de permanente, tirava‑lhes de dentro qualquer coisa que nunca recuperavam.
‑ Bem, estás com bom aspecto. Parece que és capaz de tomar
conta de ti mesmo. Andas a beber de mais, ou assim?
Sean abanou a cabeça.
Só trabalho muito.
Trabalhar é bom.
Sim ‑ disse Sean, e sentiu qualquer coisa amarga e abandonada subir‑lhe à garganta.
Então...
Então.
O pai deu‑lhe uma palmada no ombro.
‑ Tudo bem, então. Não te esqueças de telefonar à tua mãe no domingo ‑ disse, e deixou Sean junto ao carro, dirigindo‑se à porta da casa com o passo de um homem vinte anos mais novo.
‑ Cuide de si ‑ disse Sean, e o pai ergueu uma mão, a confirmar.
Sean usou o controlo remoto para abrir a porta do carro, e ia
estender a mão para o fecho quando ouviu o pai dizer. ‑Eh!
Sim? ‑ Voltou‑se e viu o pai parado diante da porta, a metade superior do corpo dissolvida numa escuridão suave.
Fizeste bem em não entrar no carro, naquele dia. Lembra‑te
disso.
Sean encostou‑se ao carro, com as mãos pousadas no tejadilho, e tentou distinguir a cara do pai no meio das sombras.
Devíamos ter protegido o Dave.
Eram miúdos. Não podiam saber. E mesmo que soubesses,
Sean...
Sean deixou aquilo assentar‑lhe no espírito. Bateu com as mãos no tejadilho do carro e procurou na escuridão os olhos do pai.
‑ É o que eu digo a mim mesmo.
‑ E então?
Encolheu os ombros.
‑ Continuo a pensar que devíamos saber. De algum modo. Não
lhe parece?
Durante um bom minuto, nenhum deles disse nada, e Sean ouviu os grilos e o silvo dos aspersores.
Boa‑noite, Sean ‑ disse o pai, por entre o silvo.
'Noite ‑ disse Sean, e esperou que o pai entrasse antes de se
meter no carro e seguir para casa.
Duendes
Dave estava na sala quando Celeste entrou, sentado num canto do velho sofá de couro, com duas colunas de latas de cerveja vazias em cima da pequena mesa e uma lata cheia na mão, o controlo remoto pousado na coxa. Estava a ver um filme em que, aparentemente, toda a gente gritava.
Celeste despiu o casaco no vestíbulo e viu a luz a relampejar no rosto de Dave, ouviu os gritos cada vez mais altos e mais aterrorizados, à mistura com efeitos sonoros hollywoodescos de mesas a partirem‑se e aquilo que só podia ser o esguichar de pedaços de corpos.
O que é que estás a ver? ‑ perguntou.
Um filme de vampiros ‑ respondeu Dave, sem tirar os olhos
do ecrã e enquanto levava a Bud à boca. ‑ O vampiro‑chefe está a matar toda a gente numa festa dos caçadores de vampiros. Trabalham para o Vaticano.
Quem?
Os caçadores de vampiros. Oooh, merda ‑ exclamou Dave ‑,
acaba de arrancar a cabeça a um tipo.
Celeste entrou na sala e olhou para o ecrã no momento em que um homem vestido de negro voava de um lado ao outro do quarto, agarrava a cara de uma mulher aterrorizada e lhe partia o pescoço.
Jesus, Dave.
Não, é porreiro, porque agora o James Woods ficou furioso.
Quem é o James Woods?
O chefe dos caçadores de vampiros. Um tipo bera à brava.
Celeste viu‑o então ‑ James Woods de blusão de couro preto e uns jeans muito justos a pegar numa espécie de besta e começar a apontá‑la para o vampiro. Mas o vampiro foi demasiado rápido. Com uma sapatada, atirou James Woods contra a parede mais distante como se fosse uma traça, e então outro tipo entrou a correr, a disparar uma pistola automática contra o vampiro. Não pareceu fazer grande efeito, mas então, de repente, passou a correr pelo vampiro, como se se tivesse esquecido de onde estava.
Aquele não é um dos irmãos Baldwin? ‑ perguntou Celeste. Sentou‑se no braço do cadeirão, na junção com o espaldar,
e apoiou a cabeça contra a parede.
Acho que sim.
Qual deles?
Não sei. Perco‑lhes o tino.
Celeste viu‑os atravessar a correr um quarto de motel mais cheio de cadáveres do que se julgaria possível caberem num espaço tão pequeno, e o marido comentou:
Pá, o Vaticano vai ter de treinar uma nova equipa de caçadores.
O que é que o Vaticano tem a ver com vampiros?
Dave sorriu e ergueu para ela o seu rosto de rapazinho de olhos bonitos.
São um grande problema, querida. Grandes ladrões de cálices.
Ladrões de cálices? ‑ repetiu ela, e sentiu um súbito desejo
de passar‑lhe a mão pelos cabelos, de deixar que todo o horror do dia fosse levado por aquela conversa tola. ‑ Não sabia.
Oh, sim. Grande problema ‑ disse Dave, e bebeu o resto da
cerveja enquanto James Woods e o irmão Baldwin e uma rapariga
com ar de drogada corriam a toda a velocidade por uma estrada
deserta numa carrinha, com o vampiro a voar atrás deles. ‑ Onde estiveste?
Fui deixar o vestido na Reed's.
Há horas.
E depois senti que precisava de ir sentar‑me algures e pensar.
Pensar. Claro. ‑ Dave pôs‑se de pé e dirigiu‑se à cozinha,
abriu o frigorífico. ‑ Queres uma?
Ela não queria, na realidade, mas disse:
‑ Sim, pode ser.
Dave voltou à sala e entregou‑lhe a cerveja. Celeste era muitas vezes capaz de adivinhar‑lhe o estado de espírito pelo simples facto de ele lhe entregar a lata aberta ou fechada. A lata estava aberta, mas ela não sabia muito bem se isso era bom ou mau sinal. Estava a ter dificuldade em avaliá‑lo.
E então, estiveste a pensar a respeito de quê? ‑ Dave levantou a patilha da sua própria lata, e foi um som ainda mais alto do
que o guinchar dos pneus na TV quando a carrinha capotou.
Oh, tu sabes.
Não, Celeste. Na realidade, não sei.
Coisas ‑ disse ela, e bebeu um pequeno golo de cerveja. ‑
O dia, a Katie estar morta, o pobre Jimmy e a Annabeth, essas
coisas.
Essas coisas ‑ repetiu Dave. ‑ Sabes no que foi que pensei
enquanto vinha a pé para casa com o Michael, Celeste? Pensei em como devia ser embaraçoso para ele saber que a mãe se foi embora com o carro sem dizer a ninguém aonde ia nem quando estaria de volta. Pensei muito nisso.
Acabo de te dizer, Dave.
De dizer‑me o quê? ‑ Dave ergueu de novo o rosto para ela
e sorriu, mas desta vez não foi um sorriso de rapazinho. ‑ Dizer‑ ‑me o quê, Celeste?
Precisava de pensar. Desculpa não ter telefonado. Mas têm
sido uns dias difíceis. Não estou em mim.
Ninguém está em si.
O quê?
É como este filme. Ninguém sabe quem são as pessoas a
sério e quem são os vampiros. Já tinha visto partes, e aquele irmão Baldwin, estás a ver, vai apaixonar‑se pela rapariga loura, apesar de saber que ela foi mordida. E ela vai transformá‑lo num vampiro, mas
ele não quer saber, certo? Porque a ama. E no entanto, ela é uma chupadora de sangue. Vai chupar‑lhe o sangue e transformá‑lo num morto‑vivo. Quer dizer, é o que tem o vampirismo, Celeste... há nele
qualquer coisa que atrai. Mesmo a pessoa sabendo que há‑de matá‑la e condenar‑lhe a alma por toda a eternidade, e que vai ter de passar o tempo a morder as pessoas no pescoço, e a esconder‑se da luz do Sol e dos esquadrões da morte do Vaticano. Talvez um dia acordem e se tenham esquecido de como era ser humano. Talvez isso aconteça, e então tudo bem. Uma pessoa foi envenenada, mas o veneno não é assim tão mau como isso desde que se aprenda a viver com ele. ‑ Dave pôs os pés em cima da mesa de café e bebeu um golo de cerveja. ‑ Pelo menos, é o que eu acho.
Celeste ficou muito quieta, sentada no braço do cadeirão e a olhar para o marido.
Dave, de que diabo estás tu a falar?
De vampiros, doçura. De lobisomens.
Lobisomens? Isso não faz sentido.
Ah, não? Tu achas que eu matei a Katie, Celeste. É o tipo
de sentido que as coisas fazem nos tempos que correm.
Eu não... Onde foste tu buscar essa ideia?
Dave fez vibrar a patilha da lata com a unha do polegar.
Mal conseguias olhar para mim na cozinha do Jimmy, antes
de saíres. Estavas a segurar o vestido como se ela ainda estivesse lá dentro, e nem sequer conseguias olhar para mim. Pus‑me a pensar naquilo. Pensei, porque é que a minha mulher parece ter‑me tanto asco? E então percebi... o Sean. Disse‑te qualquer coisa, não disse? Ele e aquele nojento do parceiro estiveram a fazer‑te perguntas, não foi?
Não.
Não? Uma porra.
Celeste não estava a gostar de o ver tão calmo. Uma parte podia atribuí‑la à cerveja, Dave sempre tinha sido um bêbedo sossegado, mas agora aquela calma tinha um ar mau, a sensação de qualquer coisa muito enrolada e muito tensa.
David...
Oh, agora é David.
‑... eu não penso coisa nenhuma. Estou apenas confusa. Dave inclinou a cabeça e olhou para ela.
‑ Bem, então vamos conversar a respeito do assunto, querida.
É essa a chave de qualquer boa relação... uma sólida comunicação.
Celeste tinha cento e quarenta e sete dólares na conta à ordem e um limite de quinhentos dólares no Visa, dos quais já gastara duzentos e cinquenta. Mesmo que conseguisse levar Michael para longe dali, não iriam muito longe. Duas ou três noites num motel algures, e Dave encontrá‑los‑ia. Nunca fora estúpido. Procurá‑la‑ia e encontrá‑la‑ia, tinha a certeza.
O saco. Podia entregar o saco de lixo a Sean Devine e ele encontraria vestígios de sangue nas roupas de Dave, tinha a certeza. Tinha ouvido falar de todos aqueles progressos que estava a ser feitos na tecnologia do ADN. Encontrariam o sangue de Katie nas roupas de Dave e prendê‑lo‑iam.
Vá lá ‑ insistiu Dave. ‑ Conversemos, querida. Vamos esclarecer isto. Estou a falar a sério. Quero, como é que se diz, aquietar os teus medos.
Não estou com medo.
Mas olha que parece.
Não parece nada.
OK. ‑ Dave tirou os pés de cima da mesa. ‑ Diz‑me então
o que é que está, hum, a preocupar‑te, querida.
‑ Estás bêbedo.
Ele assentiu.
‑ Pois estou. Mas isso não quer dizer que não possamos ter
uma conversa.
Na TV, o vampiro estava a decapitar alguém, um padre, desta vez.
O Sean não me fez perguntas nenhumas ‑ disse Celeste. ‑
Eu é que os ouvi falar quando foste comprar cigarros à Annabeth.
Não sei o que lhes disseste, Dave, mas eles não acreditam na tua história. Sabem que estiveste no Last Drop por volta da hora de fechar.
E que mais?
Alguém viu o nosso carro no parque de estacionamento
mais ou menos na altura em que a Katie saiu. E não acreditam no que lhes contaste a respeito de como magoaste a mão.
Dave ergueu a mão diante da cara, flectiu os dedos.
Só isso?
Foi só o que ouvi.
E isso fez‑te pensar o quê?
Mais uma vez, ela esteve quase a tocar‑lhe. Por um instante, a ameaça parecia ter‑lhe abandonado o corpo e sido substituída pela derrota. Via‑o nos ombros e nas costas dele e quis estender a mão e tocar‑lhe, mas não o fez.
Dave, conta‑lhes do assaltante.
Do assaltante.
Sim. Talvez tenhas de ir a tribunal. E então, que importância
é que isso tem? É bem melhor do que ser acusado de assassínio.
É agora o momento, pensou Celeste. Diz que não foste tu. Diz que nunca viste a Katie sair do Last Drop. Di‑lo, Dave. Em vez disso, ele disse:
‑ Vejo como é que a tua mente está a funcionar. Palavra. Chego a casa com sangue nas roupas e à mesma hora a Katie é assassinada. Devo ter sido eu a matá‑la.
A palavra saltou dos lábios de Celeste.
‑ Então?
Dave pousou a cerveja e começou a rir. Levantou os pés do chão e caiu para trás nas almofadas do cadeirão e riu, riu. Riu como se estivesse a ter um ataque, cada inspiração de ar a tornar‑se numa nova torrente de gargalhadas. Riu tanto que as lágrimas lhe saltaram dos olhos, e toda a metade superior do corpo dele tremia.
‑ Eu... eu... eu... ‑ Não conseguia falar. As gargalhadas eram demasiado fortes. Rolavam por cima dele e jorravam dele, e as lágrimas saltavam‑lhe dos olhos, deslizavam‑lhe pelas faces e entravam na boca aberta, borbulhando nos lábios.
Era oficial: Celeste nunca se sentira tão aterrorizada em toda a sua vida.
Ah, ah, ah, Henry ‑ disse Dave, quando as gargalhadas final
mente acalmaram.
O quê?
Henry. Henry e George, Celeste. Era assim que eles se chamavam. Não é hilariante. E o George, deixa que te diga, era curioso. O Henry não, o Henry era apenas mau.
De que estás tu a falar?
Do Henry e do George ‑ respondeu ele, animadamente. ‑
Estou a falar do Henry e do George. Levaram‑me a dar um passeio. Um passeio de quatro dias. E enterraram‑me numa cave com um velho saco‑cama em cima de um chão de pedra, e, pá, Celeste, divertiram‑se à brava comigo. Não apareceu ninguém para ajudar o velho Dave, nessa altura. Ninguém entrou de rompante porta dentro para salvar o velho Dave. O Dave teve de fingir que aquilo estava a acontecer a outra pessoa. Teve de tornar‑se tão forte na porra da mente que conseguia dividi‑la em duas. Foi o que o Dave fez. Raios, o Dave morreu. O miúdo que saiu daquela cave, porra, não sei quem ele era... bem, é eu, na realidade... mas com toda a certeza não é o Dave. O Dave morreu.
Celeste não conseguia falar. Durante oito anos, Dave nunca dissera uma palavra a respeito do que toda a gente sabia que lhe tinha acontecido. Tinha‑lhe contado que estava a brincar com Sean e com Jimmy e que fora raptado e que conseguira fugir e que não queria falar mais no assunto. Celeste nunca ouvira os nomes dos homens. Nunca soubera do saco‑cama. Nunca soubera de nada daquilo. Era como se, naquele preciso instante, estivessem a acordar do sonho que era a sua vida de casados e a confrontar, contra a vontade de ambos, todas as racionalizações, as meias‑mentiras, as necessidades submersas e os eus escondidos sobre os quais o tinham construído. A vê‑lo desmoronar‑se sob o embate da arrasadora verdade, e a verdade era que nunca se tinham conhecido, que apenas tinham esperado vir um dia a conhecer‑se.
A coisa é assim, certo? ‑ continuou Dave. ‑ É o que eu dizia
há pouco a respeito dos vampiros, Celeste. É o mesmo. É o mesmo
raio da mesma coisa.
É a mesma coisa o quê? ‑ sussurrou ela.
Não sai. Quando a apanhamos, fica. ‑ Estava a olhar outra
vez para a mesa de café, e Celeste sentiu‑o desvanecer‑se, afastar‑se dela.
Tocou‑lhe no braço.
‑ O que é que não sai, Dave? O que é que é a mesma coisa?
Dave olhou para a mão dela como se fosse cravar‑lhe os dentes com um rosnido e cortar‑lha pelo pulso.
‑ Já não posso confiar na minha mente, Celeste. Estou a avisar‑te. Já não posso confiar na minha mente.
Ela retirou a mão, sentindo um formigueiro onde tinha tocado na pele dele.
Dave levantou‑se, pouco firme nas pernas. Pôs a cabeça de lado e olhou para Celeste, como se não soubesse muito bem como tinha ela ido ali parar ao braço do seu cadeirão. Olhou para a TV no instante em que James Woods disparava a besta e varava o peito de alguém, e murmurou:
‑ Rebenta com eles. Caçador. Rebenta com eles.
Voltou‑se para Celeste, dirigiu‑lhe um sorriso embriagado e
anunciou:
Vou sair.
Está bem ‑ disse ela.
Vou sair para pensar.
Sim ‑ disse Celeste. ‑ Com certeza.
‑ Se conseguir dar a volta a isto na minha cabeça, acho que
fica tudo bem. Só preciso de dar a volta a isto na minha cabeça.
Celeste não perguntou o que era «isto».
‑ Muito bem, então ‑ continuou ele, e avançou para a porta.
Abriu, e já tinha passado o umbral quando Celeste o viu cerrar a mão na madeira e inclinar a cabeça para dentro.
Só a cabeça, inclinada e a olhar para ela, quando disse:
Oh, a propósito, já resolvi aquilo do lixo.
O quê?
O saco do lixo. Onde puseste a minha roupa e as outras coisas? Já o deitei fora.
Oh ‑ disse ela, e sentiu outra vez vontade de vomitar.
Então até logo.
Pois ‑ respondeu Celeste, enquanto a cabeça dele desaparecia outra vez. ‑ Até logo.
Ouviu‑lhe os passos até chegarem ao patamar inferior. Ouviu o rangido da porta exterior a abrir‑se e Dave sair para o portal e descer os degraus. Aproximou‑se das escadas que conduziam ao quarto de Michael e ouviu‑o a dormir lá em cima, a respirar profundamente. Então foi para a casa de banho e vomitou.
Não conseguiu descobrir onde Celeste arrumara o carro. Por vezes, sobretudo quando caíam grandes nevões, chegava a ser preciso percorrer oito quarteirões antes de encontrar um espaço para estacionar, de modo que Celeste podia ter ido deixar o carro no Point, tanto quanto sabia, apesar de ter reparado em vários lugares vazios não muito longe de casa. Provavelmente, era melhor assim. Estava demasiado bêbedo para guiar, de todos os modos. Talvez uma boa caminhada o ajudasse a aclarar as ideias.
Subiu a Crescent até à Buckingham Avenue e virou à esquerda, perguntando a si mesmo que raio lhe teria passado pela cabeça para tentar explicar as coisas a Celeste. Cristo, até dissera aqueles nomes ‑ Henry e George. Falara de lobisomens, que diabo. Merda.
E agora estava confirmado ‑ a Polícia suspeitava dele. Estariam a vigiá‑lo. Acabara‑se aquela conversa de pensar em Sean como um amigo há muito perdido. Tudo isso mudara, e agora Dave já conseguia lembrar‑se do que não gostava em Sean quando eram miúdos: a sensação que dav^ de se achar no direito, a sensação de estar convencido de ter sempre razão, como a maior parte dos miúdos que tinham a sorte ‑ e era só isso, sorte, mais nada ‑ de ter ambos os pais, e uma boa casa e roupas novas e os melhores equipamentos desportivos.
Sean que se lixasse. E aqueles seus olhos. E a voz. E a maneira como as mulheres reagiam, quase só lhes faltando baixar as cuecas quando ele entrava numa sala. Que se lixassem, ele e os seus ares de bonitão. Que se lixassem a sua atitude de superioridade moral e as histórias giras que contava e os seus ares de chui e o nome dele nos jornais.
Dave também não era estúpido. Havia de saber enfrentar o desafio mal conseguisse arrumar a cabeça. Era tudo o que precisava, arrumar a cabeça. E se tivesse de tirá‑la e voltar a enroscá‑la no lugar, até isso havia de arranjar maneira de fazer.
O grande problema, de momento, era o facto de o Rapaz que Escapara aos Lobos e Crescera andar a mostrar demasiado a cara. Dave esperara que aquilo que fizera no sábado à noite resolvesse essa parte, calasse o sacaninha, o mandasse de volta para o fundo da floresta da sua mente. Naquela noite, o Rapaz quisera sangue, quisera causar dor. E Dave fizera‑lhe a vontade.
Ao princípio, fora uma coisa de nada, uns murros, um pontapé. Mas então as coisas tinham‑se descontrolado, e Dave sentira a raiva crescer dentro dele à medida que o Rapaz assumia o comando. E o Rapaz era mau. O Rapaz só ficara satisfeito quando vira pedaços de cérebro.
Mas então, quando tudo acabara, o Rapaz desaparecera. Fora‑‑se embora, deixando Dave sozinho e a braços com o problema. E Dave resolvera‑o. Resolvera‑o até muito bem. (Talvez não tão bem como esperara, é certo, mas mesmo assim bastante bem.) E fizera‑‑o, especificamente, para que o Rapaz se mantivesse afastado durante uns tempos.
Mas o Rapaz era um estupor. Ali estava ele outra vez, a bater à porta, a dizer a Dave que ia sair, estivesse ele pronto ou não. Temos coisas que fazer, Dave.
A avenida parecia um pouco esfumada, deslizando de um lado para o outro enquanto ele caminhava, mas Dave sabia que estavam a aproximar‑se do Last Drop. Estavam a aproximar‑se daquela es‑trumeira daqueles dois quarteirões de anormais e prostitutas, onde toda a gente vendia alegremente o que a ele lhe fora arrancado pela força.
Me foi arrancado a mim, disse o Rapaz. Já sou crescido. Não tentes carregar tu a minha cruz.
O pior eram os miúdos. Pareciam duendes. Surgiam inesperadamente de uma porta ou da carcaça de um carro e ofereciam‑se para fazer um broche. Ou uma foda por vinte dólares. Faziam fosse o que fosse.
O mais novo, o que Dave vira na noite de sábado, não teria mais de onze anos. Tinha círculos de porcaria à volta dos olhos, e uma pele muito branca, e uma densa mata de cabelos vermelhos na cabeça, o que lhe dava ainda mais o aspecto de um duende. Devia estar em' casa a ver televisão, mas estava ali na rua, a oferecer broches a anormais.
Dave vira‑o do outro lado da rua, ao sair do Last Drop e chegar junto do carro. O miúdo estava encostado a um candeeiro, a fumar um cigarro, e quando os olhos dele encontraram os de Dave, Dave sentiu aquilo. A agitação. A vontade de derreter. De pegar na mão do miúdo ruivo e encontrar um lugar sossegado. Seria tão fácil, tão relaxante, tão agradável ceder. Ceder ao que vinha a sentir havia pelo menos uma década.
Sim, disse o Rapaz. Fá‑lo.
Mas (e era sempre aqui que o cérebro de Dave se dividia em dois) ele sabia no fundo da sua alma que aquele seria o maior de todos os pecados. Sabia que seria atravessar uma linha ‑ por mais convidativa que fosse ‑ de onde nunca mais poderia regressar. Sabia que, se atravessasse aquela linha, nunca mais conseguiria sentir‑se inteiro, que para isso mais lhe valia ter ficado naquela cave com Henry e George pelo resto da vida. Dizia estas coisas a si mesmo em momentos de tentação, quando passava por paragens de camionetas da escola ou por recreios, nas piscinas públicas durante o Verão. Dizia a si mesmo que não ia tornar‑se Henry e George. Era melhor do que isso. Estava a criar um filho. Amava a mulher. Ia ser forte. Era o que dizia a si mesmo cada vez mais frequentemente a cada ano que passava.
Mas nada disto ajudara muito no sábado à noite. No sábado à noite, a necessidade fora mais forte do que nunca. E o miúdo de cabelos ruivos encostado ao candeeiro parecia sabê‑lo. Sorrira para Dave à volta do cigarro, e Dave sentira‑se puxado para o passeio. Sentira‑se como se descesse descalço uma encosta feita de cetim.
E então um carro parara do outro lado da rua e, depois de uma breve troca de palavras, o miúdo entrara, lançando a Dave um olhar de pena. Dave vira o carro, um Cadillac azul‑escuro e branco, dar a volta na avenida e avançar para ele a caminho do extremo mais distante do parque do Last Drop. Dave entrara no seu próprio carro e o Cadillac parara junto às grandes árvores que se debruçavam por cima da meio derruída vedação do parque de estacionamento. O condutor apagara as luzes mas deixara o motor a trabalhar, e o Rapaz murmurara‑lhe ao ouvido: Henry e George, Henry e George, Henry e George...
Agora, Dave voltou para trás antes de chegar ao Last Drop, apesar de o Rapaz estar a gritar‑lhe aos ouvidos. Eu sou tu, eu sou tu, eu sou tu, gritava o Rapaz.
E Dave queria parar e chorar. Queria apoiar as mãos no edifício mais próximo e chorar, porque sabia que o Rapaz tinha razão. O Rapaz que Escapara aos Lobos e Crescera tornara‑se um Lobo. Tornara‑se Dave.
Dave, o Lobo.
Devia ter acontecido recentemente, porque Dave não conseguia lembrar‑se de qualquer circunstância especial em que tivesse sentido a alma agitar‑se e evaporar‑se para dar lugar à nova entidade. Mas acontecera. Provavelmente, enquanto ele dormia.
Mas não podia parar. Aquele troço da avenida era demasiado perigoso, demasiado povoado por drogados que veriam em Dave, embriagado como estava, um alvo fácil. Ali, naquele preciso instante, do outro lado da rua, viu um carro avançar lentamente, a vigiá‑lo, à espera de que exalasse o cheiro da vítima.
Inspirou fundo e caminhou mais a direito, concentrou‑se em ter um ar confiante e altivo. Ergueu um pouco os ombros, pôs nos olhos uma expressão de «vai‑te lixar» e retrocedeu pelo caminho que o levara até ali, de regresso a casa. Não que tivesse a cabeça muito mais arrumada, para dizer a verdade, com o Rapaz ainda a gritar‑lhe aos ouvidos, mas decidiu ignorá‑lo. Era capaz disso. Era forte. Era Dave, o Lobo.
E o volume da voz do Rapaz foi diminuindo. Foi adquirindo mais um tom de conversa enquanto Dave atravessava os Flats de regresso a casa.
Eu sou tu, disse o Rapaz no tom de um amigo. Eu sou tu.
Celeste saiu de casa, com Michael meio adormecido ao ombro, e descobriu que Dave levara o carro. Estacionara‑o a meio quarteirão de distância, surpreendida por encontrar um espaço àquela hora e numa noite de semana, mas agora estava lá um jeep azul.
Não tinha contado com aquilo nos seus planos. Imaginara‑se a sentar Michael no banco do passageiro, e a pôr as malas no banco de trás, e a percorrer os quatro quilómetros e meio até Econo Lodge, pela via‑rápida.
Merda ‑ disse em voz alta, e resistiu ao impulso de gritar.
Mamã? ‑ murmurou Michael.
Está tudo bem, Mike.
E talvez estivesse, porque ao olhar para trás viu um táxi dobrar a esquina da Pertshire com a Buckingham. Celeste levantou a mão que segurava a mala de Michael, e o táxi parou em frente dela, e Celeste pensou que podia dar‑se ao luxo de gastar os seis dólares da viagem até Econo Lodge. Gastaria cem para sair dali naquele instante, para ir para um lugar suficientemente distante onde pudesse pensar na sua vida sem ter de estar à espera de ver a maçaneta de porta rodar e do regresso de um homem que já decidira que ela era um vampiro, merecedor apenas de uma estaca de madeira cravada no coração e seguida por uma rápida decapitação, para ter a certeza.
‑ Para onde? ‑ perguntou o motorista enquanto Celeste pousava as malas no banco e se sentava ao lado delas com Michael ao ombro.
Qualquer sítio, quis dizer. Qualquer sítio menos aqui.
O Peixe Caçador
Rebocaste‑lhe o carro? ‑ espantou‑se Sean.
O carro foi rebocado ‑ disse Whitey. ‑ Não é a mesma coisa.
Com que espécie de justificação? ‑ perguntou Sean, enquanto
deixavam para trás o intenso trânsito da hora de ponta matinal e metiam pela rampa de acesso a East Buckingham.
Estava abandonado ‑ respondeu Whitey, e assobiou levemente por entre os dentes ao fazer a curva para a Roseclair.
Onde? Em frente da casa do homem?
Oh, não ‑ disse Whitey. ‑ O carro foi encontrado em Rome
Basin, junto à alameda. Felizmente para nós, a alameda é jurisdição da estadual, não é? Parece que alguém o roubou para dar uma volta e o abandonou ali. São coisas que acontecem, sabias?
Sean acordara naquela manhã de um sonho em que pegara na filha ao colo e dissera o nome dela, embora o ignorasse, e não conseguia lembrar‑se do que dissera no sonho, de modo que tinha a cabeça ainda um pouco enevoada.
Encontrámos sangue ‑ anunciou Whitey.
Onde?
No banco da frente do carro do Boyle.
Quanto?
Whitey mostrou o polegar e o indicador separados pela grossura de um cabelo.
Um bocadinho. Encontrámos mais na mala.
Na mala.
Muito mais, para ser exacto.
E então?
Então, está no laboratório.
Não, o que eu queria dizer é que diferença faz terem encontrado sangue na mala do carro? A Katie Marcus nunca esteve metida na mala de um carro.
É um problema, admito.
O tribunal não vai admitir a revista ao carro.
Vai, pois.
Como?
O carro foi roubado e abandonado na jurisdição do estado.
Puramente para efeitos do seguro, e, se me é permitido acrescentar, tendo em vista os interesses do proprietário...
Fizeram uma busca e preencheram um relatório.
Ah, menino esperto.
Pararam diante da casa de Dave Boyle, Whitey colocou a alavanca das mudanças em ponto morto e desligou o motor.
‑ Tenho o suficiente para levá‑lo para uma conversa. É tudo
o que quero, de momento.
Sean assentiu, sabendo que não valia a pena discutir com o homem. Whitey chegara a sargento da Divisão de Homicídios graças à tenacidade canina que tinha relativamente aos seus palpites. Não era possível desviá‑lo dos seus palpites, o mais que se podia fazer era apanhar a boleia.
Novidades da Balística?
Essa é outra coisa estranha ‑ respondeu Whitey, sentado no
carro a olhar para a casa de Dave, ainda sem fazer menção de sair do carro. ‑ A arma foi uma Smith trinta e oito, como tínhamos calculado. Parte de um lote roubado de um armeiro de New Hampshire, em oitenta e um. A arma que matou a Katherine Marcus esteve envolvida no assalto a uma loja de bebidas, em oitenta e dois.
Aqui mesmo, em Buckingham.
Nos Flats?
Whitey abanou a cabeça.
‑ Em Rome Basin, um sítio chamado Looney Liquors. O serviço foi feito por dois homens, ambos com máscaras de borracha.
Entraram pela porta das traseiras depois de o proprietário ter fechado a loja, e o primeiro tipo disparou um tiro de aviso que atravessou uma garrafa de whiskey e foi cravar‑se na parede. O resto do assalto decorreu sem problemas, mas a bala foi recuperada. Os tipos da Balística dizem que foi disparada pela mesma arma que matou a Katie Marcus.
O que tende a apontar numa outra direcção, não achas? Em
mil novecentos e oitenta e dois o Dave tinha aí dezassete anos e estava a começar na Raytheon. Não me parece que andasse a assaltar lojas de bebidas.
O que não quer dizer que a arma não tenha acabado por ir
parar às mãos dele. Porra, pá, sabes muito bem como elas circulam.
‑ Whitey não parecia tão seguro de si mesmo como na noite anterior, mas disse: ‑ Vamos lá buscá‑lo. ‑ E abriu a porta do carro, Sean
saiu pelo outro lado e dirigiram‑se ambos à entrada do prédio. Whitey tocava com os dedos as algemas que trazia suspensas do cinto, como que à espera de uma desculpa para usá‑las.
Jimmy estacionou o carro e atravessou o alcatrão estalado do parque de estacionamento transportando uma bandeja de cartão com copos de café e um saco de donuts em direcção ao . Os carros passavam ruidosamente pelo tabuleiro metálico da Tobin Bridge, por cima dele, e Katie estava ajoelhada à beira da água ao lado de Just Ray Harris, ambos a olhar para o rio. Dave Boyle também lá estava, com a mão magoada do tamanho de uma luva de boxe, sentado numa desconchavada cadeira de praia, ao lado de Celeste e de Annabeth. Celeste tinha uma coisa qualquer que parecia um fecho de correr a tapar‑lhe a boca e Annabeth fumava dois cigarros ao mesmo tempo. Todos os três usavam óculos escuros e nenhum deles olhou para Jimmy. Estavam a olhar para a face inferior do tabuleiro da ponte e tinham um ar que dizia que preferiam que os deixassem em paz nas suas cadeiras de praia, muito obrigado.
Jimmy pousou a bandeja com os cafés e o saco de donuts ao lado de Katie e ajoelhou‑se entre ela e Just Ray. Olhou para a água e viu o seu reflexo, e viu também os de Katie e de Just Ray, que se tinham voltado para ele, Ray com um grande peixe vermelho entalado entre os dentes, o peixe ainda a estrebuchar.
Deixei cair o meu vestido no rio ‑ explicou Katie.
Não o vejo ‑ disse Jimmy.
O peixe saltou da boca de Just Ray e caiu na água, ficando à superfície, ainda a estrebuchar.
Ele encontra‑o ‑ disse Katie. ‑ É um peixe caçador.
Sabia a galinha ‑ disse Ray.
Jimmy sentiu a mão quente de Katie nas costas, e então sentiu a de Ray na nuca, e Katie perguntou:
‑ Porque é que não vais procurá‑lo, Papá.
E os dois empurraram‑no da borda, e Jimmy viu a água negra e o peixe que estrebuchava subirem ao seu encontro e soube que ia afogar‑se. Abriu a boca para gritar e o peixe saltou lá para dentro, impedindo‑o de respirar, e a água era como tinta negra quando mergulhou nela.
Abriu os olhos e voltou a cabeça, viu no relógio que eram sete e dezasseis, e não se lembrava de ter ido para a cama. Mas devia ter ido, uma vez que ali estava, com Annabeth a dormir a seu lado, Jimmy a despertar para um novo dia, com encontro marcado para ir buscar uma lápide daí a pouco mais de uma hora, e Just Ray Harris e o a baterem‑lhe à porta.
A chave de qualquer interrogatório bem‑sucedido é conseguir o máximo tempo possível sem que o suspeito peça um advogado. Os ossos‑duros ‑ os traficantes e os membros dos gangs e os tipos das motos e os mafiosos ‑ pediam geralmente uma «boca» logo para começar. Podia apertar‑se um pouco com eles, tentar sacudi‑los antes que o advogado aparecesse, mas, regra geral, dependia‑se de provas concretas para levar o caso por diante. Raras vezes Sean levara um duro para a «caixa» e saíra de lá com qualquer coisa que se visse.
Quando se estava a tratar com um cidadão vulgar ou um primário, era muito diferente, a maior parte dos casos resolvia‑se durante o interrogatório. O caso de «raiva‑da‑estrada», o maior êxito da carreira de Sean até ao momento, fora um desses. Em Middlesex, um tipo regressava a casa certa noite quando um pneu da frente do SUV saltou a cento e trinta quilómetros hora. Pura e simplesmente, saltou, rolou para o outro lado da estrada. O jeep capotou, fez oito ou nove cambalhotas e o condutor, Edwin Hurka, teve morte instantânea.
O exame do veículo revelou que as porcas de ambos os pneus dianteiros estavam soltas. Começou‑se a pensar em homicídio involuntário, na melhor das hipóteses, pois a opinião prevalecente era que o acidente ficara a dever‑se a qualquer mecânico com uma bebedeira mal curada que abandalhara o serviço, e Sean e o parceiro, Adolph, descobriram que, de facto, a vítima mandara substituir, semanas antes, os pneus do carro. Mas Sean também encontrou, no porta‑luvas do carro acidentado, um papel que ficou a intrigá‑lo. Era uma matrícula, apressadamente rabiscada, e quando Sean a passou pelo computador do RVM, apareceu‑lhe um nome: Alan Barnes. Deu um pulo a casa deste Barnes e perguntou ao sujeito que lhe abriu a porta se se chamava Alan Barnes. O tipo, nervoso como o diabo, disse, Sim, porquê? E Sean, sentindo‑o no corpo inteiro, respondeu: «Gostaria de falar consigo a respeito de umas porcas de rodas.»
Barnes foi‑se abaixo ali mesmo, à porta de casa, contou a Sean que só quisera lixar um pouco o carro do tipo, pregar‑lhe um susto, porque os dois tinham embirrado um com o outro uma semana antes, no estrangulamento de acesso ao túnel do aeroporto, e Barnes ficara tão furioso que, em vez de ir tratar do que tinha a fazer, seguira Edwin Hurka até casa e esperara que o tipo apagasse todas as luzes antes de começar a trabalhar com a chave de rodas.
As pessoas eram estúpidas. Matavam‑se umas às outras pelas razões mais idiotas e ficavam ali à espera de ser apanhadas, entravam no tribunal e declaravam‑se inocentes depois de terem dado à Polícia uma confissão assinada com quatro páginas. A melhor arma de um polícia era saber a que ponto eram realmente estúpidas. Deixá‑‑las falar. Sempre. Deixá‑las explicar. Deixá‑las descarregar a culpa e enchê‑las de café enquanto as bobinas do gravador giravam.
E quando pediam um advogado ‑ e o cidadão médio quase sempre pedia ‑, carregava‑se o sobrolho e perguntava‑se‑lhes se tinham a certeza de que era isso que queriam, deixando uma vibração muito pouco amistosa encher a sala até eles decidirem que o que realmente queriam era que fossem todos amigos, de modo que talvez pudessem conversar um pouco mais antes de o advogado aparecer e estragar o ambiente.
Dave, porém, não pediu um advogado. Nem uma única vez. Sentou‑se na cadeira que se desmanchava quando uma pessoa se inclinava demasiado para trás, com um ar de ressaca, aborrecido e chateado, com Sean em particular, mas não parecia assustado e não parecia nervoso, e Sean percebeu que aquilo começava a mexer com os nervos de Whitey.
‑ Ouça, Mr. Boyle ‑ disse Whitey ‑, sabemos que saiu do
McGills mais cedo do que nos disse. Sabemos que, meia hora mais tarde, estava no parque de estacionamento do Last Drop, mais ou menos pela mesma altura em que a pequena Marcus saiu. E sabemos com toda a certeza que não magoou essa mão batendo com ela numa parede quando estava a jogar bilhar.
Dave gemeu.
Que tal uma Sprite, ou qualquer coisa assim? ‑ pediu.
Daqui a pouco ‑ respondeu Whitey pela quarta vez naquela última meia hora. ‑ Diga‑nos o que realmente aconteceu naquela
noite, Mr. Boyle.
‑Já disse.
‑ Mentiu.
Dave encolheu os ombros.
É a sua opinião.
Não. É um facto. Mentiu a respeito da hora a que saiu do
McGills. A porra do relógio parou, Mr. Boyle, cinco minutos antes da hora a que o senhor afirma ter saído.
Cinco minutos inteiros?
Acha piada?
Dave recostou‑se um pouco na cadeira e Sean ficou à espera de ouvir o estalo de aviso que ela fazia antes de se desmanchar, mas não o ouviu. Dave estava a levá‑la ao limite, mas não mais do que isso.
Não, sargento, não acho piada. Estou cansado. Estou com
uma ressaca. E o meu carro não só foi roubado como agora está
a dizer‑me que não mo vão devolver. Diz que saí do McGills cinco minutos antes da hora a que disse ter saído?
Pelo menos.
Óptimo. Aceito que sim. Talvez tenha saído. Não olho para
o relógio tão frequentemente como vocês parecem fazer. Portanto, se diz que saí do McGills às dez para a uma em vez de às cinco para a uma, eu digo, tudo bem. Talvez tenha saído. Uuups. Mas mais nada.
Depois de sair fui para casa. Não fui a mais nenhum bar.
Esteve no parque de estacionamento do...
Não. Um Honda com uma mossa na frente foi visto no parque de estacionamento do Last Drop. Sabe quantos Hondas há nesta
cidade? Ora vamos.
Quantos com mossas, Mr Boyle, no mesmo sítio que o seu?
Dave voltou a encolher os ombros.
Um monte, aposto.
Whitey olhou para Sean e Sean sentiu que estavam a perder. Dave tinha razão ‑ o mais provável era encontrarem vinte Hondas com uma mossa na parte da frente do lado do passageiro. Vinte, de caras. E se Dave era capaz de lhes atirar com aquilo, um advogado arranjaria muito mais.
Whitey foi pôr‑se atrás da cadeira de Dave.
Diga‑nos como foi o sangue parar ao seu carro.
Que sangue?
O sangue que encontrámos no banco da frente. Comecemos
por aí.
A respeito da tal Sprite, Sean? ‑ pediu Dave.
‑ OK ‑ disse Sean.
Dave sorriu.
‑ Estou a topar. Tu és o polícia bonzinho. Que tal uma sanduíche de almôndegas, já que estás com a mão na massa?
Sean, que já estava meio levantado da cadeira, voltou a sentar‑se.
Não sou a tua puta, Dave. Parece que vais ter de esperar mais
um bocado.
Mas és a puta de alguém, não és, Sean? ‑ Havia um brilho de
loucura nos olhos dele quando o disse, uma petulância arrogante,
e Sean começou a pensar que talvez Whitey tivesse razão. Perguntou a si mesmo se o pai, vendo aquele Dave Boyle, continuaria a ter dele a mesma opinião que na noite anterior.
O sangue no banco da frente do teu carro, Dave ‑ disse. ‑
Responde ao sargento.
Dave olhou para trás, para Whitey.
‑ Temos uma vedação de rede de arame no nosso pátio das traseiras. Conhece o género, com a rede a dobrar para dentro, em cima?
Aqui há dias estava a fazer uns arranjos no pátio. O meu senhorio é velho. Eu faço uns trabalhos e ele mantém as rendas dentro do razoável. Bom, estava a cortar umas coisas que parecem canas que ele lá tem...
Dave suspirou, mas Sean pareceu não dar por isso.
.. .e escorreguei. Estava com o cortador eléctrico na mão e não queria largá‑lo, de modo que, quando escorreguei, caí contra a rede e cortei‑me. ‑ Bateu no peito. ‑ Aqui. Não foi muito mau, mas sangrou como tudo. Aí uns dez minutos mais tarde, tive de ir buscar o meu filho ao treino de basebol. Provavelmente ainda estava a sangrar
quando me sentei no carro. É a melhor explicação que me ocorre.
É então o seu sangue, no banco da frente? ‑ perguntou Whitey.
Como disse... é a melhor explicação que me ocorre.
E qual é o seu tipo de sangue?
B negativo.
Whitey dirigiu‑lhe um sorriso rasgado e voltou a pôr‑se diante da cadeira, empoleirado na beira da mesa.
‑ Curioso. Exactamente do tipo que encontrámos no banco
da frente.
Dave ergueu as mãos abertas.
‑ Está a ver?
Whitey imitou‑lhe o gesto.
‑ Não muito bem. Importa‑se de explicar o sangue na mala?
Não é do tipo B negativo.
‑ Não sei nada a respeito de sangue na mala do meu carro.
Whitey riu‑se.
Não faz ideia de como um bom quarto de litro de sangue
foi parar à mala do seu carro?
Não, não faço.
Whitey inclinou‑se para a frente, deu uma palmadinha no ombro de Dave.
Não me importo de lhe dizer, Mr. Boyle, que esse não é um
caminho que lhe convenha tomar. Se afirma em tribunal que não
sabe como é que o sangue de outra pessoa apareceu na mala do
seu carro, como é que isso vai parecer?
Bem, suponho.
Como assim?
Dave recostou‑se para trás e a mão de Whitey escorregou‑lhe do ombro.
O relatório está assinado por si, sargento.
Que relatório?
Sean viu o que ali vinha, e pensou, Oh, merda, apanhou‑nos.
O relatório sobre o roubo do carro.
E então?
Então, o carro não estava na minha posse ontem à noite. Não
sei para que foi que os ladrões o usaram, mas talvez seja melhor descobrirem, pois parece que não foi para coisa boa.
Durante uns longos trinta segundos, Whitey ficou perfeitamente imóvel, e Sean viu a compreensão descer sobre ele: quisera ser demasiado esperto e lixara‑se. Praticamente tudo o que encontrassem naquele carro seria rejeitado como prova porque o advogado diria que tinham sido os ladrões a pô‑lo lá.
O sangue era antigo, Mr. Boyle. Tinha mais do que umas quantas horas.
Ah, sim? ‑ perguntou Dave‑ E pode prová‑lo? Quer dizer,
conclusivamente, sargento? Tem a certeza de que não secou de
pressa. Quer dizer, a noite ontem não esteve muito húmida.
Podemos prová‑lo ‑ disse Whitey, mas Sean ouviu a dúvida
na voz dele, e teve a certeza de que Dave também.
Whitey levantou‑se da mesa e voltou costas a Dave. Tapou a boca com a mão e tamborilou com os dedos no lábio superior enquanto percorria o comprimento da mesa até onde Sean continuava sentado, de olhos no chão.
‑Então, há alguma possibilidade de me darem a tal Sprité? ‑ perguntou Dave.
Vamos chamar aqui o tal puto com quem o Souza falou, o que
viu o carro. Tommy, hum...
Moldanado ‑ disse Sean.
Isso ‑ assentiu Whitey, a voz um pouco fraca, a cara uma máscara de distracção, a expressão do tipo a quem tiraram a cadeira de baixo do rabo e se vê estatelado no meio do chão sem perceber como foi ali parar. ‑ Vamos, hã, pôr o Boyle num alinhamento, ver se esse Moldanado o reconhece.
Já é qualquer coisa ‑ admitiu Sean.
Whitey encostou‑se à parede do corredor quando uma secretária passou por eles, o perfume dela igual ao que Lauren usava, e Sean pensou que talvez lhe ligasse para o telemóvel, para saber como estava, ver se ela lhe falaria sendo ele a tomar a iniciativa.
O tipo está demasiado frio ali dentro ‑ comentou Whitey. ‑
A primeira vez que se vê numa sala de interrogatório e nem sequer está a suar?
A coisa não está a correr bem ‑ admitiu Sean.
Não me digas.
Não, quer dizer, mesmo que aquilo do carro não nos tivesse
estourado na cara, o sangue não é da Katie Marcus. Não há nada
que o ligue a isso.
Whitey olhou para a porta da sala de interrogatório.
Eu consigo quebrá‑lo.
Apanhámos uma sova ali dentro.
Ainda nem sequer comecei a aquecer.
Sean, porém, leu‑lho na cara, a dúvida, o primeiro desmoronar do palpite primário. Whitey era casmurro e tortuoso, quando estava convencido de ter razão, mas era também demasiado esperto para agarrar‑se a um palpite que estava a enfrentar sérios problemas de substanciação.
Ouve ‑ sugeriu ‑, deixa‑o suar um pedaço aí dentro.
O tipo não está a suar.
‑ Talvez comece, se o deixarmos sozinho para pensar.
Whitey olhou de novo para a porta, como se quisesse pegar‑lhe
fogo.
‑ Talvez.
‑ Para mim, é a arma ‑ disse Sean. ‑ A solução está na arma.
Whitey chupou as bochechas para dentro e acabou por assen
tir.
Seria bom saber mais qualquer coisa a respeito dessa arma.
Queres encarregar‑te disso?
A loja de bebidas ainda é do mesmo tipo?
Não sei. O processo é de oitenta e dois, mas o proprietário
na altura era um tal Lowell Looney.
Sean sorriu ao ouvir o nome.
‑ Tem uma certa pinta, não tem?
‑ Porque é que não vais até lá? Eu fico a observar ali o cara de cu através do vidro, a ver se ele se põe a cantar canções a respeito de raparigas mortas no parque.
Lowell Looney tinha cerca de oitenta anos e ar de ser capaz de bater Sean nos cem metros. Vestia uma T‑shirt cor de laranja do Porter's Gym, umas calças de fato‑de‑treino azul com risca branca e umas Reeboks novas, e movia‑se como se não lhe custasse nada saltar até à prateleira mais alta para ir buscar uma garrafa, se lho pedissem.
‑ Mesmo ali ‑ disse, apontando uma fila de meias garrafas atrás do balcão. ‑ Atravessou uma garrafa e cravou‑se na parede.
‑ Assustador, eh? ‑ disse Sean.
O velho encolheu os ombros.
Mais assustador do que um copo de leite, talvez. Mas não tão
assustador como muitas noites por estes lados. Um miúdo com‑
pletamente marado encostou‑me o cano de uma caçadeira à cara.
aí há uns dez anos. Tinha aquele olhar de cão louco, sempre a piscar os olhos por causa do suor. Isso sim, é assustador, filho. Os tipos que meteram a bala na parede, esses eram profissionais. Com os profissionais entendo‑me eu bem. Só querem o dinheiro, não estão
lixados com o mundo.
Então esses dois tipos...?
Entraram pelas traseiras ‑ disse Lowell Looney, deslizando
até ao outro extremo do balcão, onde uma cortina preta tapava a porta do armazém. ‑ Ali ao fundo há uma porta que dá para um
cais de descarga. Naquela altura tinha um miúdo a trabalhar para mim em part‑time. Ia despejar o lixo do caixote e fumar um pouco de erva enquanto lá estava. A maior parte das vezes, esquecia‑se de fechar a porta quando voltava a entrar. Ou estava feito com eles, ou os tipos
observaram‑no o tempo suficiente para descobrir que sofria de
morte cerebral. Naquela noite, entraram pela porta aberta, dispararam um tiro de aviso para me impedirem de pegar na minha própria arma e levaram o que tinham vindo buscar.
Quanto?
Seis mil.
É uma porção de trocos.
As quintas‑feiras, costumava descontar cheques. Agora já não,
mas naquele tempo ainda era estúpido. Claro que se os ladrões fossem um pouco mais espertos, tinham‑me assaltado de manhã, quando muitos daqueles cheques ainda não tinham sido descontados. ‑
Encolheu os ombros. ‑ Disse que eram profissionais, mas talvez não fossem dos mais espertos, suponho.
E o puto que deixou a porta aberta? ‑ perguntou Sean.
Chamava‑se Marvin Ellis ‑ disse Lowell. ‑ Raios, talvez estivesse envolvido. Despedi‑o no dia seguinte. A única razão para eles dispararem aquele tiro foi saberem que eu tinha uma arma debaixo do balcão. E não era do conhecimento geral, portanto, ou o Marvin lhes disse, ou um dos dois já tinha trabalhado aqui.
E na altura falou nisso à Polícia?
Oh, claro. ‑ O velho agitou uma mão. ‑ Passaram em revista
os meus livros, interrogaram toda a gente que tinha trabalhado para mim. Pelo menos, foi o que disseram. Nunca prenderam ninguém.
Diz que a mesma arma foi usada noutro crime?
É verdade ‑ respondeu Sean. ‑ Mr. Looney...
Lowell, pelo amor de Deus, por favor.
Lowell, ainda tem os tais livros antigos?
Dave olhou para o espelho da sala de interrogatório, sabendo que o parceiro de Sean, e talvez também o próprio Sean, estavam a olhar para ele.
Óptimo.
Como vai isso? Cá por mim, estou a saborear esta Sprite. O que é que eles põem nesta coisa? Limão. É isso. Estou a saborear o meu limão, sargento. Mm‑mmm, é bom. Sim, senhor. Mal posso esperar para beber outra.
Dave olhava fixamente para o meio do espelho, sentado do outro lado da comprida mesa, e sentia‑se óptimo. Não sabia, era verdade, para onde Celeste fugira com Michael, e o receio que nascia dessa ignorância poluía‑lhe o cérebro muito mais do que as cerca de quinze cervejas que despejara na noite anterior. Mas ela havia de voltar. Parecia‑lhe recordar que talvez a tivesse assustado. Não fora muito sensato, pôr‑se a falar de vampiros e de coisas que entravam em nós e não conseguiam voltar a sair, de modo que era natural que ela tivesse ficado um pouco assustada.
Não a censurava. A culpa fora dele, por ter deixado o Rapaz assumir o controlo daquela maneira e mostrar a sua feia e selvagem cara.
Mas, tirando o facto de Celeste e Michael se terem ido embora, sentia‑se forte. Sentia‑se completamente livre das indecisões que o tinham peado naqueles últimos dias. Raios, até conseguira dormir seis horas seguidas na noite anterior. Acordara mal disposto e com a boca a saber a cortiça, e a cabeça pesada como granito, mas apesar disso mais clara.
Sabia quem era. E sabia que fizera bem. E matar alguém (e Dave já não podia continuar a culpar o rapaz; era ele, Dave ‑ fora ele que matara) dera‑lhe poder, agora que arrumara a cabeça. Ouvira falar algures de antigas culturas em que era costume comer os corações das pessoas que matavam. Comiam os corações, e absorviam os mortos neles. Dava‑lhes poder, o poder de dois, o espírito de dois. Era assim que Dave se sentia. Não, não comera o coração de ninguém. Não estava lixado da cabeça. Mas sentira a glória do predador. Matara. E fizera bem. E calara o monstro que havia dentro dele, o anormal que queria tocar na mão de um rapazinho e derreter‑se no seu abraço.
O anormal fora‑se, pá. Fora para o inferno com a vítima de Dave. Ao matar alguém, matara aquela parte fraca de si mesmo, aquele anormal que vivia nele desde que tinha onze anos, de pé à janela, a olhar para a festa que estavam a fazer em Rester Street para comemorar o seu regresso. Sentira‑se tão fraco, tão exposto, naquela festa. Sentira que as pessoas estavam a rir‑se dele às escondidas, e os pais a sorrirem‑lhe com os sorrisos mais falsos, e podia ver, por detrás das caras públicas, que privadamente tinham pena dele e o temiam e o odiavam, e tivera de deixar a festa só para fugir do ódio porque aquele ódio o fazia sentir‑se uma poça de mijo.
Agora, porém, o ódio dos outros fá‑lo‑ia sentir‑se forte, porque agora tinha outro segredo que era melhor do que o seu pobre e antigo segredo, aquele que toda a gente parecia ao fim e ao cabo adivinhar. Agora, tinha um segredo que o tornava alto, e não pequeno.
Aproxima‑te, apetecia‑lhe agora dizer às pessoas, tenho um segredo. Mais perto, e eu digo‑te ao ouvido:
Matei uma pessoa.
Dave cravou os olhos no polícia gordo do outro lado do espelho.
Matei uma pessoa. E tu não podes prová‑lo.
Quem é agora o fraco?
Sean encontrou Whitey no gabinete do outro lado do vidro‑‑espelho que dava para a Sala de Interrogatórios e Whitey, com um pé em cima do assento de uma esfarrapada cadeira de couro, olhava para Dave e bebia café.
‑Já fizeste o alinhamento?
‑ Ainda não.
Sean chegou junto dele. Dave estava a olhar directamente para eles, parecia quase ter os olhos cravados em Whitey, como se pudesse vê‑lo. E, o que era ainda mais estranho, estava a sorrir. Era um pequeno sorriso, mas estava lá.
‑ Sentes‑te lixado, eh? ‑ disse Sean.
Whitey lançou‑lhe um olhar.
‑ Já me senti melhor.
Sean assentiu.
Whitey apontou a chávena de café para ele.
‑ Tens qualquer coisa. Topo‑te bem, meu sacana. Vá lá, despeja.
Sean queria arrastar um pouco mais, deixar Whitey um pouco mais louco com a espera, mas no fim não teve coragem.
‑ Tenho alguém interessante que trabalhou na Looney Liquors.
Whitey pousou a chávena de café em cima da mesa atrás dele
e tirou o pé da cadeira.
Quem?
Ray Harris.
‑Ray...?
Sean sentiu o sorriso espalhar‑se‑lhe pela cara.
‑ O pai do Brendan Harris. E tem cadastro.
Little Vince
Whitey sentou‑se na secretária vazia colocada de frente para a de Sean, com o relatório na mão.
‑ Raymond Matthew Harris ‑ nascido a seis de Setembro de 1955. Cresceu no número doze de Mayhew Street, nos East Bucky Flats. Mãe, Delores, doméstica. Pai, Seamus, operário, abandonou a família em 1967. Segue‑se a merda que seria de prever quando o pai é preso por furto em Bridgeport, Connecticut, 1973. Meia dúzia de prisões por conduzir em estado de embriaguez. Morre de ataque coronário em Bridgeport, 1979. Nesse mesmo ano, Raymond casa com Esther Scanell... sacana cheio de sorte... e começa a trabalhar para a MBTA7, como condutor de metro. Primeiro filho, Brendan Seamus, nascido em 1981. Mais tarde nesse mesmo ano, Raymond é acusado de participar numa tentativa de fraude envolvendo vinte mil dólares em bilhetes de metro. A queixa é posteriormente retirada, mas Raymond é despedido da MBTA, com justa causa. Depois disso, passa por vários empregos: construção civil, caixeiro ajudante na Looney Liquors, barman, operador de monta‑cargas. Perde o emprego como operador de monta‑cargas na sequência do desaparecimento de uma pequena quantia. Mais uma vez, é apresentada queixa, posteriormente retirada, e Raymond é despedido. Interrogado, em 1982, em relação com o assalto à Looney Liquors, posto em liberdade por falta de provas. Interrogado, nesse mesmo ano, em relação com o assalto à Blanchard Liquors, em Middlesex County; uma vez mais, posto em liberdade por falta de provas.
' Massachussets Bay Transportation Authority. Organismo que coordena os transportes colectivos na área de Boston, incluindo o Metro. (N. do T.)
Começa a tornar‑se conhecido, em todo o caso ‑ comentou
Sean.
Muito popular ‑ concordou Whitey. ‑ Em 1983, um associado, um tal Edmund Reese, denuncia‑o como autor do roubo de
uma colecção de livros de banda desenhada raros em...
Livros de banda desenhada? ‑ Sean riu‑se. ‑ Boa, Raymond!
Cento e cinquenta mil dólares de livros de banda desenhada
‑ precisou Whitey.
Oh, peço desculpa.
Raymond devolve a referida literatura intacta e apanha quatro meses, com um ano de pena suspensa, dois meses já cumpridos.
Aparentemente, sai da prisão com um pequeno problema de dependência de substâncias químicas.
Quem diria.
Cocaína, claro, estando nós a falar dos anos oitenta, e é aqui
que a coisa engrossa. De algum modo, Raymond é suficientemente
esperto para manter seja lá o que for que faz para pagar a cocaína
abaixo do alcance do radar, mas não suficientemente esperto para não ser apanhado nas suas tentativas de adquirir o referido narcótico. Violação de liberdade condicional, um ano de cadeia.
Onde se emenda e se torna um cidadão exemplar.
Aparentemente, não. É apanhado por uma operação conjunta da Divisão de Crimes Graves e do FBI por tráfico inter‑estadual de bens roubados. Vais adorar esta. Adivinha lá o que foi que
o nosso Raymond roubou. Pensa em 1984.
Nem uma pistazinha?
Segue o teu primeiro instinto.
‑ Máquinas fotográficas?
Whitey lançou‑lhe um olhar.
Máquinas fotográficas uma porra. Vai‑me buscar um café,
já não és polícia.
O que foi, então?
‑ Trivial Pursuit. Por esta não esperavas tu, pois não?
Banda desenhada e Trivial Pursuit. O nosso rapaz tem estilo.
E um monte de chatices também. Roubou o camião em Rhode
Island e trouxe‑o para Massachusetts.
Daí o crime federal e o FBI.
‑ Daí. ‑ Whitey lançou a Sean um novo olhar. ‑ Tinham‑no
agarrado pelos tomates, basicamente, mas não chega a cumprir pena.
Sean endireitou‑se na cadeira, tirou os pés de cima da secretária.
Cantou?
É o que parece. Depois disto, não há mais nada no cadastro.
O controlador da liberdade condicional nota que ele se apresenta pontualmente para as entrevistas até à libertação definitiva, em finais de oitenta e seis. Os registos de emprego? ‑ perguntou Whitey, olhando para Sean por cima do relatório.
Oh, já posso falar? ‑ disse Sean, e abriu a pasta que tinha à
sua frente. ‑ Registos de emprego, registos de IRS, pagamentos à Segurança Social... tudo cessa repentinamente em Agosto de 1987. Puf,
o homem desaparece.
Verificaste a nível nacional?
O pedido está a ser processado neste preciso instante, meu
bom senhor.
Quais são as possibilidades?
Sean voltou a pôr os pés em cima da secretária e recostou‑se na cadeira.
‑ Um, morreu. Dois, está incluído num programa de Protecção à Testemunha. Três, passou à clandestinidade mais profunda e
só reapareceu no bairro para pegar na sua velha arma e matar a namorada do filho.
Whitey atirou a pasta que tinha na mão para cima da secretária vazia.
Nem sequer sabemos se a arma é dele. Não sabemos porra
nenhuma. O que é que vamos fazer, Devine?
Vamos levantar‑nos para ir ao baile. Então, sargento, não te vás abaixo tão depressa. Temos um tipo suspeito de ter estado envolvido, há dezoito anos, num assalto em que a arma do crime foi utilizada. O filho do sujeito namorava a vítima. O homem tem cadastro.
Quero investigá‑lo a ele e quero investigar o filho. Sabes, o tal que não tem álibi.
Que passou pelo detector de mentiras e que ambos concordamos não ter o que é preciso para fazer uma coisa daquelas.
Talvez estivéssemos enganados.
Whitey esfregou os olhos com as palmas das mãos.
Pá, estou farto de estar enganado.
Estás a dizer que te enganaste em relação ao Boyle?
Whitey manteve as mãos nos olhos enquanto abanava a cabeça.
Não estou a dizer nada disso. Continuo a pensar que o tipo
é um monte de merda. Agora se consigo ou não relacioná‑lo com
a morte da Katherine Marcus, isso já é uma história completamente diferente. ‑ Baixou as mãos, e os papos de carne por baixo dos olhos estavam vermelhos. ‑ De qualquer maneira, este Raymond Harris também não parece muito mais promissor. OK, vamos ter mais uma conversa com o filho. Óptimo. E tentamos descobrir o pai. E depois?
Relacionamos alguém com aquela arma ‑ disse Sean.
A arma pode estar no fundo do mar, neste momento. É o
que eu teria feito com ela.
Sean assentiu.
E terias feito o mesmo há dezoito anos, depois de a teres
usado para assaltar uma loja de bebidas.
Verdade.
O nosso homem não o fez. O que significa...
Que não é tão esperto como eu ‑ disse Whitey.
Ou como eu.
O júri continua reunido.
Sean espreguiçou‑se na cadeira, entrelaçando os dedos e erguendo os braços acima da cabeça, fazendo força na direcção do tecto até sentir os músculos distenderem‑se. Soltou um suspiro, sacudiu‑‑se e baixou a cabeça e as mãos.
Whitey ‑ disse, tentando adiar o mais possível a pergunta que
toda a manhã soubera que tinha de fazer.
O que é?
‑ Alguma coisa no ficheiro de associados conhecidos?
Whitey voltou a pegar na pasta, abriu‑a e passou as primeiras
folhas.
‑ Associados criminosos conhecidos ‑ leu. ‑ Reginald (aliás
Reggie Duke) Neil, Patrick Moraghan, Kevin «Whackjob» Sirracci,
Nicholas Savage... hum... Anthony Waxman... ‑ Ergueu os olhos
para Sean, e Sean soube que estava lá. ‑James Marcus, aliás «Jimmy
Flats», alegado líder de um grupo de criminosos por vezes chamados os Rester Street Boys.
Whitey fechou a pasta, e Sean disse:
‑ E os êxitos não param, pois não?
A lápide que Jimmy escolheu era simples e branca. O vendedor falava numa voz baixa, respeitosa, como se preferisse estar em qualquer outro sítio que não ali, mas mesmo assim tentando encaminhar Jimmy para pedras mais caras, com anjos e querubins e rosas esculpidas no mármore.
‑ Talvez uma cruz celta? ‑ disse o homem. ‑ Tem sido uma
opção muito popular entre... ‑Jimmy estava à espera de que ele dissesse «a sua gente», mas o vendedor emendou a tempo e concluiu
com ‑ ... um grande número de pessoas.
Jimmy pagaria de boa vontade um mausoléu, se pensasse que isso faria Katie feliz, mas sabia que a filha nunca fora amiga de ostentações. Usava roupas simples e jóias simples, nada de ouros, e raramente se maquilhava, a não ser em ocasiões especiais. Katie gostava de coisas limpas, com o toque exacto de classe, e por isso Jimmy escolhera a pedra branca com os dizeres em letra caligráfica. O vendedor avisou‑o de que isso duplicaria o custo da gravação e Jimmy voltou a cabeça e olhou de cima para o abutrezito, fazendo‑‑o recuar dois ou três passos ao perguntar:
‑ Dinheiro ou cheque?
Jimmy pedira a Vai que o levasse dali e, quando saiu da loja, instalou‑se no banco do passageiro do Mitsubishi 3000 GT, perguntando a si mesmo, talvez pela nona ou décima vez, como seria possível um tipo de trinta e tal anos conduzir um carro daqueles sem perceber que andava a fazer figura de parvo.
Para onde, Jim?
Vamos beber um café.
Regra geral, Vai tinha uma merda qualquer de uma música rap a estrondear nas colunas, com os baixos a fazer vibrar os vidros fumados enquanto um puto preto da classe média ou um bimbo branco com a mania tagarelavam a respeito de pegas e hospitais e de puxar da pistola e faziam aquilo que Jimmy assumia ser referências claras a esses maricas da MTV cujos nomes nunca conheceria se não tivesse ouvido Katie usá‑los quando falava com as amigas ao telefone. Naquela manhã, porém, Vai manteve o stereo desligado, e Jimmy ficou‑lhe grato por isso. Jimmy detestava o rap, e não era por ser negro e vir do ghetto ‑ raios, fora de lá que tinham vindo o P‑Funk e o soul e um monte dos melhores blues ‑ mas porque não conseguia, por mais que se esforçasse, ver ponta de talento naquilo. Bastava juntar uns versos foleiros do género «Man from Nantucket», pôr um DJ a arranhar um disco para trás e para a frente e berrar até rebentar os pulmões diante do microfone. Oh, pois, era cru, era stre‑et, era verdadeiro, meu cabrão. Também escrever o nome com mijo na neve, e vomitar. Tempos antes, ouvira um cretino qualquer de um crítico de música dizer na rádio que o sampling era uma «forma de arte», e Jimmy, que não sabia muito a respeito de arte, sentira vontade de enfiar a mão pelo altifalante e dar umas palmadas no focinho daquele sacana obviamente branco, obviamente superinstruído e obviamente maricas.
Talvez estivesse a ficar velho. Sabia que um dos primeiros sinais de que uma geração estava pronta para passar o testemunho era sempre quando deixava de compreender a música da geração seguinte. No entanto, lá bem no fundo do coração, tinha a certeza de que não era isso. O rap era uma merda, pura e simples, e o facto de Vai gostar de o ouvir era muito como o Vai gostar de guiar aquele carro, tentar agarrar‑se a uma coisa que nunca tivera uma importância por aí além, para começar.
Pararam no Dunkin' Donuts e atiraram as tampas dos copos de plástico para o caixote do lixo ao sair e ficaram a beber o café encostados ao spoiler montado na traseira do carro de desporto.
‑ Ontem à noite andámos por aí a fazer umas perguntas, como
pediste ‑ disse Vai.
Jimmy bateu com o punho no de Vai.
‑ Obrigado, pá.
Vai retribuiu o gesto.
Não é só por teres feito dois anos à minha conta, Jim. E tam
bém não é só por eu ter saudades dos tempos em que a tua cabeça
governava as coisas. A Katie era minha sobrinha, pá.
Eu sei.
Talvez não pelo sangue, nem nada disso. Mas eu amava‑a.
Jimmy assentiu.
Vocês foram os melhores tios que qualquer miúda podia ter.
Palavra?
Palavra.
Vai bebeu um golo de café e ficou calado por alguns instantes.
Bom, então é assim: parece que os chuis têm razão a respeito
do O'Donnell e do Farrow. O O'Donnell estava na pildra. O Far‑row estava numa festa, e nós falámos pessoalmente aí com uns nove gajos que o confirmaram.
Todos sólidos?
Metade, pelo menos. Além disso, cheiricámos por aí, e já há
bastante tempo que não andam contratos na rua. E, Jim, a última vez que me lembro de ouvir falar de um contrato, foi há ano e meio, de modo que se aparecesse agora um, nós havíamos de saber.
Jimmy assentiu e bebeu mais um pouco de café.
Agora os chuis andam por todo o lado ‑ continuou Vai. ‑
Estão a lixar os bares, o negócio de rua à volta do Last Drop, tudo.
Todas as pegas com que falei já tinham sido interrogadas. Todos os barmen. Toda a malta que esteve no McGills ou no Last Drop naquela noite. A lei caiu‑nos em cima, Jim, a sério. Anda toda a gente a tentar lembrar‑se de qualquer coisa.
Falaste com alguém que se lembrasse?
Vai esticou dois dedos enquanto bebia um golo de café.
‑ Um tipo... conheces o Tommy Moldanado?
Jimmy abanou a cabeça.
‑ Cresceu em Basin, pinta casas. Seja como for, diz ter visto alguém a vigiar o parque de estacionamento do Last Drop pouco antes de a Katie sair de lá. Diz que tem a certeza de que o tipo não era um chui. Tinha um carro estrangeiro, com uma mossa na parte da frente, do lado do passageiro.
‑OK.
‑ Outra coisa esquisita é que falei com a Sandy Greene. Lembras‑te dela, da Looey?
Jimmy viu‑a sentada na sala de aula, com tranças castanhas e dentes tortos, sempre a roer os lápis até parti‑los na boca e ter de cuspir a mina.
Lembro‑me. O que é que ela faz agora?
É pega. Está muito estragada, pá. Da nossa idade, certo?
A minha mãe tinha melhor aspecto quando estava no caixão. De
todos os modos, é a profissional mais velha a bater o circuito à volta do Last Drop. Diz que a modos que adoptou um miúdo. Um puto da rua, anda na vida.
Miúdo?
Tem para aí uns onze, doze anos.
Ah, Jesus.
É a vida. Bom, o tal puto, ela julga que se chama Vincent.
Toda a gente lhe chama «Little Vince», excepto a Sandy. Diz que ele preferia «Vincent». E o Vincent é muito mais velho do que os seus doze anos, estás a perceber? Diz ela que é capaz de limpar o sebo a qualquer gajo que tente lixá‑lo, traz uma lâmina de barba de baixo da correia do Sivatch, esse tipo de coisa. Está lá seis noites por
semana. Ou seja, esteve, até sábado passado.
O que foi que lhe aconteceu no sábado passado?
Ninguém sabe. Mas desapareceu. Diz a Sandy que por vezes
dormia em casa dela. Mas quando chegou no domingo, de manhã,
não estava lá. Cavou da cidade.
Bom, então cavou da cidade. Melhor para ele. Talvez tenha
deixado a vida.
‑ Foi o que eu disse. Mas a Sandy diz que não, que o puto gostava daquilo. Diz que um dia há‑de ser um adulto bem assustador, estás a ver? Mas por enquanto é só um puto, e gosta do trabalho.
Diz a Sandy que, se fugiu da cidade, só pode ter sido por uma razão, o medo. A Sandy acha que ele viu qualquer coisa, qualquer coisa que o aterrorizou, e diz que há‑de ter sido qualquer coisa muito má,
porque o pequeno Vince não se assusta facilmente.
Tens ouvidos na rua?
Tenho, mas é difícil. O negócio do puto não é, digamos, organizado. Vivem na rua, ganham um par de dólares onde podem,
desaparecem quando lhes dá na gana. Mas tenho gente a procurar.
Se descobrirmos este tal Vincent, talvez ele saiba qualquer coisa a respeito do tipo que estava no parque de estacionamento do Last Drop, talvez tenha assistido a, tu sabes, à morte da Katie.
Se a morte da Katie teve alguma coisa a ver com o tipo do carro.
‑ O Moldanado disse que o gajo emitia vibrações más. Havia
qualquer coisa nele, apesar de estar escuro, não conseguiu vê‑lo muito bem, mas que vinha uma vibração daquele carro.
Uma vibração, pensou Jimmy. Oh, sim, era uma grande ajuda.
E isso foi antes de a Katie sair.
Instantes antes, sim. Os chuis selaram o parque de estacionamento na segunda‑feira de manhã. Andava por lá uma tropa deles, a raspar o asfalto.
Jimmy assentiu.
Portanto, alguma coisa aconteceu naquele parque.
Pois. É isso que não percebo, pá. A Katie foi apanhada na
Sydney. Fica a dez quarteirões de distância.
Jimmy acabou de beber o café.
‑ E se ela voltou para trás?
‑ Hã?
‑ Para o Last Drop. Bem sei que a teoria prevalecente é que
deixou a Eve e a Diane, subiu a Sydney, e foi então que aquilo aconteceu. Mas se antes disso ela voltou ao Last Drop? Volta para trás, encontra o tal tipo. Ele rapta‑a, obriga‑a a levá‑lo até ao Pen Park,
e então tudo acontece como os chuis pensam.
Vai estava a atirar o copo vazio de uma mão para a outra.
É possível. Mas porque havia ela de voltar ao Last Drop?
Não sei. ‑ Foram deitar os copos no caixote do lixo, e Jimmy
perguntou: ‑ E quanto ao filho do Just Ray, já descobriram alguma coisa por esse lado?
Fizemos umas perguntas em geral a respeito dele. O puto é
um ratinho, é o que toda a gente diz. Não dá chatices a ninguém.
Se não fosse tão bonito, duvido que alguém se lembrasse sequer
de o conhecer. Tanto a Eve como a Diane dizem que ele a amava,
Jim. Com aquele amor de uma‑vez‑na‑vida. Posso apertar com ele, se quiseres.
Deixemos as coisas como estão, por enquanto ‑ disse Jimmy.
‑ Observem e esperem, no que respeita a ele. Tenta descobrir o tal puto, o Vincent.
Sim, está bem.
Jimmy abriu a porta do lado do passageiro, viu Vai a olhar para ele por cima do tejadilho, Vai a reter qualquer coisa, a mastigá‑la.
‑ O que é?
Vai piscou os olhos à luz do Sol, sorriu. ‑Hã?
‑ Tens qualquer coisa para dizer. O que é?
Vai baixou a cara, estendeu os braços por cima do tejadilho.
‑ Ouvi uma coisa esta manhã. Pouco antes de sairmos.
‑Sim?
Sim ‑ disse Vai, e olhou por um instante para a loja de do‑nuts. ‑ Ouvi dizer que aqueles dois chuis voltaram a casa do Dave Boyle. Tu sabes, o Sean, do Point, e o parceiro, o gordo?
O Dave estava no McGills naquela noite, sim. Provavelmente esqueceram‑se de perguntar‑lhe qualquer coisa e tiveram de
lá voltar.
Os olhos de Vai deixaram a porta da loja de donuts e encontraram os de Jimmy.
‑ Levaram‑no com eles quando voltaram a sair, Jim. Estás a
perceber o que quero dizer? Enfiaram‑no no banco de trás.
Marshall Burden entrou na Divisão de Homicídios durante a hora do almoço e dirigiu‑se a Whitey enquanto empurrava a pequena cancela ao lado do balcão da recepção.
‑ São vocês que querem falar comigo?
‑ Nós mesmos. Venha até aqui.
Marshall Burden estava a um ano de completar os trinta de serviço, e notava‑se. Tinha os olhos húmidos e leitosos de alguém que vira mais do mundo e de si mesmo do que qualquer pessoa gostaria de ter visto, e toda a postura do corpo alto e flácido transmitia a sensação de que preferiria andar para trás em vez de para a frente, como se os membros estivessem em guerra com o cérebro e o cérebro quisesse apenas que o deixassem sair daquela história. Havia sete anos que tinha a seu cargo o depósito de provas, mas, antes disso, fora um dos grandes ases do Departamento de Polícia Estadual, destinado a um lugar de coronel, fazendo o seu caminho dos Narcóticos para os Homicídios e dos Homicídios para os Crimes Graves sem um sobressalto até ao dia em que, rezava a história, acordara com medo. Era uma doença que atacava os que trabalhavam sob disfarce e por vezes os rapazes da Brigada de Trânsito, que de repente descobriam que não eram capazes de mandar parar nem mais um único carro, tão convencidos estavam de que o condutor teria uma pistola na mão e nada mais a perder. Mas Marshall Bur‑den apanhara‑a, fosse lá como fosse, e começara a ser o último a atravessar o umbral da porta, e a tentar esquivar‑se às chamadas, a deter‑se no patamar enquanto todos os outros continuavam a subir a escada.
Sentou‑se numa cadeira ao lado da secretária de Sean, emanando um ar de fruta podre, e folheou com um dedo o calendário Sporting News que Sean ali tinha e cujas páginas, uma por dia, remontavam a Março.
Devine, certo? ‑ di^se, sem erguer os olhos.
Exacto. Prazer em conhecê‑lo. Estudámos alguns dos seus
casos na Academia.
Marshall encolheu os ombros, como se a recordação do seu antigo eu o embaraçasse. Voltou a passar o dedo pelas páginas do calendário.
‑ Então o que é que há? Tenho de estar de volta dentro de meia hora.
Whitey fez deslizar a cadeira de rodas até junto dele.
‑ Trabalhou numa força especial com os Feds nos anos oitenta, não é verdade?
Burden assentiu.
‑ Apanhou um safardanazito de meia‑tigela chamado Ray‑
mond Harris que tinha roubado um camião carregado de Trivial
Pursuit numa zona de descanso em Cranston, Rhode Island.
Burden sorriu a uma das citações de Yogi Berra que apareciam no calendário.
É verdade. O motorista tinha ido mijar, não sabia que estava a ser vigiado. O tal Harris meteu‑se no camião e arrancou, mas
o motorista telefonou, a coisa foi logo para o ar e apanhámo‑lo em Needham.
Mas o Harris safou‑se ‑ observou Whitey.
Burden olhou para ele pela primeira vez, e Sean viu o medo e o ódio por si mesmo naqueles olhos leitosos, e esperou nunca apanhar aquilo que o homem tinha apanhado.
‑ Não se safou ‑ disse Burden. ‑ Cantou. Denunciou o tipo
que o tinha contratado para o serviço do camião, um fulano chamado Stillson, parece‑me. Sim, Meyer Stillson.
Sean já ouvira falar da memória de Burden ‑ alegadamente fotográfica ‑, mas ver o homem recuar dezoito anos e tirar nomes do meio do nevoeiro como se tivesse estado a falar deles no dia anterior era simultaneamente humilhante e deprimente. Aquele tipo podia ter chegado ao topo, pelo amor de Deus.
‑ Portanto, cantou e questão resolvida? ‑ disse Whitey.
Burden franziu a testa.
O Harris tinha cadastro. Não se safou só por nos ter dado o
nome do patrão. Não, a Divisão Antigang do DPB entrou na dança
para obter informações sobre um outro caso, e ele voltou a cantar.
Sobre quem?
‑ O tipo que chefiava os Rester Street Boys, Jimmy Marcus.
Whitey olhou para Sean, com uma sobrancelha arqueada.
Isso foi depois do assalto à sala de contagem, certo? ‑ disse
Sean.
Que assalto à sala de contagem? ‑ perguntou Whitey.
‑ Foi o caso que levou o Jimmy à prisão ‑ explicou Sean.
Burden assentiu com a cabeça.
Ele e outro tipo assaltaram a sala de contagem da MBTA numa
sexta‑feira à noite. Entraram e saíram em dois minutos. Sabiam a que horas os guardas mudavam de turno. Sabiam exactamente a que horas os tipos ensacavam a massa. Tinham dois tipos na rua para atrasar o carro blindado da Brinks que ia fazer a recolha. Foram rápidos como o diabo e sabiam demasiado para não terem alguém lá
dentro, ou pelo menos alguém que tivesse trabalhado para o Metro há pouco tempo, no máximo dois anos.
O Ray Harris ‑ disse Whitey.
Exacto. Deu‑nos o Stillson a nós e ao DPB deu os Rester
Street Boys.
Todos?
Burden abanou a cabeça.
‑ Não, só o Marcus, mas era ele o cérebro. Corta‑se a cabeça, e o corpo morre. O DPB apanhou‑o a sair de um armazém na manhã do desfile do Dia de São Patrício. Era o dia combinado para fazer a divisão, de modo que o Marcus tinha na mão uma mala cheia de notas.
Espere um pouco ‑ pediu Sean. ‑ O Harris testemunhou em
tribunal?
Não. O Marcus fez um acordo muito antes de o caso chegar a
tribunal. Não revelou os nomes dos que tinham trabalhado com ele
e aguentou a porrada sozinho. Toda a merda que toda a gente sabia que era ele quem estava por detrás mas ninguém conseguia provar.
Tinha para aí dezanove anos, ou assim. Vinte? Chefiava aquele bando desde os dezassete e nunca tinha sido preso. O PG aceitou dois dentro e três suspensos porque sabia que havia uma boa possibilidade de nem sequer conseguirem condená‑lo em tribunal. Ouvi dizer
que os tipos da Antigang ficaram lixos, mas que se há‑de fazer?
Nesse caso, o Jimmy Marcus nunca chegou a saber que o Ray
Harris o tinha denunciado?
Burden voltou a erguer os olhos aguados do calendário e pousou‑os em Sean com uma ligeira expressão de desprezo.
No espaço de três anos, o Marcus organizou qualquer coisa
como dezasseis grandes golpes. Uma vez, assaltou doze joalharias diferentes no edifício da Bolsa dos Joalheiros, em Washington Street.
Ainda hoje, ninguém sabe como porra o conseguiu. Teve de desactivar vinte alarmes diferentes... alarmes ligados a linhas telefónicas,
a satélites, a telefones celulares, o que era, na época, uma tecnologia totalmente nova. Tinha dezoito anos. Acreditam numa merda destas?
Dezoito anos e a descodificar alarmes que teriam detido profissionais de quarenta. O caso da Keldar Technics? Entraram pelo telhado, empastelaram as frequências dos bombeiros e fizeram disparar o sistema de extintores. Na opinião dos peritos, ficaram suspensos
do tecto até os extintores curto‑circuitarem os detectores de movimento. O tipo era uma porra de um génio. Se trabalhasse para a NASA em vez de para si mesmo, já tinha levado a mulher e os filhos de férias a Plutão. Acham que um tipo destes não conseguia descobrir quem lhe apontou o dedo? O Ray Harris desapareceu da face da Terra dois meses depois de o Marcus ter regressado ao mundo
livre. O que é que isso lhes diz?
Diz‑me que acha que o Jimmy Marcus matou o Ray Harris
‑ respondeu Sean.
‑ Ou mandou o sacana do anão, o Vai Savage, fazer o serviço.
Ouçam, falem com o Ed Folan, do D‑7. Agora é capitão, mas em
tempos esteve na Divisão Antigang. Ele pode contar‑lhes tudo a respeito do Marcus e do Ray Harris. Todos os polícias que trabalharam em East Bucky nos anos oitenta lhes dirão a mesma coisa. Se o Jimmy Marcus não matou o Ray Harris, eu vou ser o próximo papa judeu. ‑ Empurrou o calendário com o dedo, pôs‑se de pé e puxou as calças para cima. ‑ Tenho de ir almoçar. Portem‑se bem, rapazes.
Atravessou a sala, rodando a cabeça para ver tudo, talvez a secretária a que costumava sentar‑se, o painel onde os casos dele costumavam ser afixados ao lado dos de todos os outros, a pessoa que tinha sido naquela sala antes de essa pessoa ter desertado, indo acabar no depósito de provas a rezar pelo dia em que picaria o ponto pela última vez e poderia ir para um lugar onde ninguém se lembrasse de quem ele podia ter sido. Whitey voltou‑se para Sean.
‑ Papa Marshall, o Perdido?
Quanto mais tempo continuava ali sentado naquela cadeira desconjuntada na fria sala de interrogatório, mais Dave se apercebia de que aquilo que nessa manhã julgara ser uma ressaca era na realidade apenas a continuação da bebedeira da noite anterior. A verdadeira ressaca começou por volta do meio‑dia, rastejando por ele como densos bandos de térmitas, invadindo‑lhe o sangue, assumindo o controlo da circulação, apertando‑lhe o coração e mordendo‑lhe o cérebro. A boca secou‑lhe e os cabelos ficaram húmidos de suor, e de repente sentiu o cheiro do seu próprio corpo quando começou a exsudar álcool pelos poros. Tinha os braços e as pernas cheios de lama. Doía‑lhe o peito. E uma vaga de depressão atravessou‑lhe o crânio em cascata e instalou‑se‑lhe atrás dos olhos.
Já não se sentia corajoso. Não se sentia forte. A clareza que, havia apenas duas horas, parecia tão permanente como uma cicatriz, fugiu‑lhe do corpo, saiu da sala e afastou‑se avenida abaixo, sendo substituída por um medo muito pior do que qualquer outro que alguma vez tivesse conhecido. Teve a certeza de que ia morrer em breve, e morrer de uma morte feia. Talvez lhe desse um ataque ali mesmo sentado naquela cadeira, a bater com a cabeça no chão e o corpo sacudido por violentas convulsões, com os olhos a jorrar sangue e a língua tão enrolada para dentro que ninguém conseguiria puxá‑la para fora. Talvez um enfarte, o coração já a bater contra as paredes do peito como um rato fechado numa caixa de aço. Talvez quando o deixassem sair dali, se alguma vez deixassem, pusesse o pé na rua, ouvisse uma buzinadela mesmo a seu lado e ficasse estendido de costas enquanto os grandes pneus de um autocarro lhe passavam por cima e continuavam a rolar.
Onde estava Celeste? Saberia sequer que o tinham levado para ali? Ou quereria saber? E Michael? Teria saudades do pai? O pior de estar morto era que Celeste e Michael seguiriam em frente. Oh, era possível que se sentissem desgostosos durante algum tempo, mas suportariam a dor e começariam novas vidas porque isso era o que as pessoas faziam todos os dias. Só nos filmes as pessoas enlanguesciam pelos mortos, as suas vidas imobilizadas como um relógio partido. Na vida real, a morte era um episódio, um acontecimento esquecível para toda a gente menos para quem morria.
Dave perguntava por vezes a si mesmo se os mortos olhariam lá de cima para os que deixavam neste mundo e choravam ao ver quão facilmente os seres amados continuavam a viver sem eles. Como Eugene, o filho de Stanley, o Gigante. Estaria algures lá no céu, com a sua cabecinha calva e a bata branca do hospital, a ver o pai a rir‑se num bar e a pensar, Eh, Papá, então e eu? Lembras‑te de mim? Eu vivi.
Michael teria um novo papá, e talvez fosse para a universidade e falasse a uma rapariga a respeito do pai que o tinha ensinado a jogar basebol, aquele de que mal se lembrava. Foi há tanto tempo, diria ele. Há tanto tempo.
E Celeste era com toda a certeza suficientemente atraente para arranjar outro homem. Teria de o fazer. A solidão, diria às amigas. Não suportava mais. E ele é um bom homem. Dá‑se bem com o Michael. E as amigas trairiam a memória de Dave num instante. Diriam, Fazes bem, querida. É saudável. Tens de voltar a montar na bicicleta e continuar com a tua vida.
E Dave estaria lá em cima com Eugene, a olhar cá para baixo, a chamar aqueles que tinham amado com vozes que nenhum vivo poderia ouvir.
Jesus. Dave só queria enrolar‑se num canto e abraçar‑se a si mesmo. Estava a desfazer‑se. Sabia que se os tais polícias aparecessem naquele instante, ir‑se‑ia abaixo. Dir‑lhes‑ia tudo o que quisessem saber se ao menos lhe mostrassem um pouco de simpatia e lhe dessem outra Sprite.
E então a porta da sala de interrogatórios abriu‑se, expondo Dave e o seu medo e a sua necessidade de calor humano, e o guarda uniformizado que entrou era jovem e forte e tinha aqueles olhos de polícia, que conseguiam parecer simultaneamente impessoais e imperiosos.
‑ Mr. Boyle, faça o favor de vir comigo.
Dave pôs‑se de pé e avançou para a porta, com as mãos a tremer ligeiramente enquanto o álcool continuava a tentar sair‑lhe do corpo.
... Aonde vamos? ‑ perguntou.
Vai entrar num alinhamento, Mr. Boyle. Há alguém que quer
olhar para si.
Tommy Moldanado vestia uns jeans e uma T‑shirt verde salpicados de tinta. Havia salpicos de tinta nos cabelos castanhos encaracolados e lágrimas de tinta nas botas castanhas e lascas de tinta nas armações dos óculos de grossas lentes.
Eram os óculos que preocupavam Sean. Qualquer testemunha que entrasse de óculos num tribunal mais lhe valia levar ao peito um alvo para o advogado de defesa. E quanto aos jurados, o melhor era esquecer. Peritos todos eles em matéria de óculos e de lei graças a Matlock e a The Practice, olhavam para as testemunhas com óculos do mesmo modo que olhavam para os traficantes de droga, os pretos sem gravata e os ratos de prisão que faziam acordos com o PG.
Moldanado comprimiu o nariz contra o vidro e olhou para os cinco homens alinhados.
‑ Assim com eles de frente para mim, não consigo dizer. Não
podem voltar‑se para a esquerda?
Whitey accionou um interruptor na consola que tinha à sua frente e falou para o microfone.
‑ Todos os sujeitos, voltar para a esquerda.
Os cinco homens rodaram para a esquerda.
Moldanado pousou as mãos no vidro e semicerrou os olhos.
O Número Dois. Pode ser o Número Dois. Pode pedir‑lhe
que se aproxime mais?
O Número Dois? ‑ perguntou Sean.
Moldanado olhou para ele por cima do ombro e assentiu. O segundo tipo da fila era um traficante chamado Scott Pais‑ner, que normalmente trabalhava a área de Norfolk County.
‑ Número Dois ‑ disse Whitey, com um suspiro. ‑ Dê um
passo em frente.
Scott Paisner era baixo, gordo, tinha barba e estava a ficar rapidamente careca. Parecia‑se tanto com Dave Boyle como Whitey. Voltou‑se para a frente e deu un passo em direcção ao vidro, e Moldanado disse:
Sim, sim. É o tipo que vi.
Tem a certeza?
Noventa e cinco por cento. Era de noite, está a ver. Não havia
luzes no parque de estacionamento, e eu já lhe tinha chegado bem.
Mas tirando isso, tenho quase a certeza que é o tipo que vi.
Não referiu uma barba no seu depoimento ‑ observou Sean.
Pois não, mas agora acho que sim, talvez ele tivesse barba.
Nenhum dos outros se parece com o homem que viu ‑ perguntou Whitey?
Porra, não. Nem sequer andam perto. Quem são eles... polícias?
Whitey baixou a cabeça para a consola e murmurou:
Porque é que eu faço esta merda deste trabalho?
Moldanado olhou para Sean.
O quê? O quê?
Sean abriu a porta para o deixar sair.
Obrigado por ter vindo, Mr. Moldanado. Entraremos em contacto consigo.
Mas saí‑me bem, não foi? Quer dizer, ajudei.
Claro ‑ respondeu Whitey. ‑ Depois mandamos‑lhe a medalha de mérito por correio expresso.
Sean sorriu a Moldanado, fez‑lhe um aceno de cabeça e fechou a porta mal ele passou o umbral.
Não temos testemunha ‑ disse.
Ah, não me digas.
‑ As provas físicas que encontrámos no carro não são admissíveis em tribunal.
‑ Estou consciente disso.
Sean viu Dave pôr a mão em pala por cima dos olhos semi‑cerrados por causa da luz. Tinha o ar de quem não dormia há mais de um mês.
‑ Vá lá, pá.
Whitey voltou‑se e olhou para ele. Também ele começava a parecer exausto, o branco dos olhos a ficar cor‑de‑rosa.
‑ Que se foda ‑ disse. ‑ Ponham‑no a andar.
Uma Tribo Banida
Celeste estava sentada junto à montra do Nate & Nancy's Coffee Shop, na Buckingham, em frente à casa de Jimmy Marcus, quando Vai Savage estacionou o carro meio quarteirão mais acima e ele e Jimmy se apearam e começaram a descer a avenida.
Se ia fazer aquilo, fazê‑lo mesmo, tinha de pôr‑se de pé agora e aproximar‑se deles. Levantou‑se, com as pernas a tremer, e bateu com a mão na parte de baixo do tampo da mesa. Olhou para ela. Também tremia, e a pele estava esfolada ao longo do osso do polegar. Levou‑a aos lábios e então voltou‑se para a porta. Ainda não estava certa de ser capaz de fazer aquilo, dizer as palavras que preparara no quarto de motel, naquela manhã. Decidira dizer a Jimmy apenas o que sabia ‑ os pormenores concretos do comportamento de Dave desde domingo de manhã, sem quaisquer conclusões pessoais quanto ao que significavam ‑ e ele que tirasse as suas próprias ilações. Sem as roupas que Dave usara naquela noite, não fazia muito sentido ir à Polícia. Fora o que dissera a si mesma. E dissera‑o a si mesma porque não tinha a certeza de que a Polícia pudesse protegê‑la. Tinha de viver naquele bairro, ao fim e ao cabo, e a única coisa capaz de protegê‑la de um perigo no bairro era o próprio bairro. E se contasse tudo a Jimmy, então não só ele, mas também os Savage, cavariam à volta dela um fosso que Dave nunca se atreveria a passar.
Saiu do café no instante em que Jimmy e Vai se aproximavam dos degraus de entrada. Ergueu a mão magoada. Chamou por Jimmy quando começou a atravessar a avenida, parecendo uma louca, tinha a certeza. ‑ os cabelos desgrenhados, os olhos inchados e escurecidos pelo medo.
‑Eh, Jimmy! Vai!
Os dois homens detiveram‑se no primeiro degrau e olharam para ela. Jimmy dirigiu‑lhe um pequeno e surpreendido sorriso, e Celeste notou uma vez mais como aquele sorriso era adorável e aberto. Era natural e forte e genuíno. Dizia, Sou teu amigo, Celeste? Posso ajudar‑te?
Chegou ao passeio, e Vai beijou‑a na face.
Olá, prima.
Olá, Vai.
Também Jimmy a beijou ao de leve, e aquele beijo pareceu entrar‑lhe na carne e ficar a tremer na base da garganta dela.
‑ A Annabeth tentou falar contigo esta manhã ‑ disse Jimmy.
‑ Mas não te encontrou em casa nem no trabalho.
Celeste assentiu.
Tenho estado, ah... ‑ Desviou os olhos da cara enrugada de
Vai, que a observava cheio de curiosidade. ‑Jimmy, tens um instante?
Claro ‑ respondeu ele, com o sorriso surpreendido a reaparecer. Voltou‑se para Vai. ‑ Falamos a respeito daquelas coisas mais tarde, OK?
Certo. Até logo, prima.
Obrigada, Vai.
Vai entrou no prédio e Jimmy sentou‑se no terceiro degrau, deixando a seu lado espaço para Celeste. Ela sentou‑se, pousou a mão magoada no colo e tentou encontrar as palavras. Jimmy observou‑‑a por instantes, à espera, e então pareceu aperceber‑se de que ela estava como que embatocada, incapaz de falar.
Num tom de voz descontraído, disse:
‑ Sabes do que é que estava a lembrar‑me, aqui há dias?
Celeste abanou a cabeça.
‑ Estava de pé lá no alto da velha escada, no fim da Sydney.
Lembras‑te do sítio para onde costumávamos ir ver os filmes do
drive‑in, fumar uns charros?
Celeste sorriu.
Tu namoravas...
Oh, não digas.
... a Jessica Lutzen, a boazona, e eu andava com o Duckie
Cooper.
O Duckster ‑ disse Jimmy. ‑ Que diabo é feito dele?
Ouvi dizer que entrou para os fuzileiros e apanhou uma doença de pele esquisita lá no estrangeiro. Vive na Califórnia.
Hum. ‑ Jimmy ergueu o queixo, o olhar a recuar metade da
sua vida, e, de repente, Celeste viu‑o a fazer exactamente a mesma coisa dezoito anos atrás, quando tinha os cabelos um pouco mais louros e era muitíssimo mais louco, Jimmy, o tipo de rapaz que trepava até ao alto de um poste telefónico no meio de uma trovoada,
com as raparigas todas à volta a rezarem para que não caísse. E no entanto, mesmo nos momentos de maior loucura, havia aquela imobilidade, aquelas pausas de auto‑reflexão, a sensação que emanava
dele, quando era ainda um garoto, de que considerava cuidadosamente todas as coisas, excepto a sua própria pele.
Jimmy voltou‑se e tocou‑lhe ao de leve no joelho com as costas da mão.
Então o que há? Estás com um ar...
Podes dizê‑lo.
O quê? Não, pareces, bem, um pouco cansada, mais nada.
‑ Recostou‑se no degrau e suspirou. ‑ Raios, julgo que todos nós estamos, certo?
‑ Passei a noite num motel. Com o Michael.
Jimmy estava a olhar em frente.
‑OK.
‑ Não sei, Jim. Acho que sou capaz de ter deixado o Dave. Para sempre.
Notou a diferença na cara dele, a tensão do queixo, e, subitamente, sentiu que Jimmy sabia o que ela ia dizer.
Deixaste o Dave. ‑ A voz dele era agora monótona, os olhos
fixos na avenida.
Sim, ele tem andado a comportar‑se, bem... Tem andado a
comportar‑se como um louco, ultimamente. Não parece o mesmo.
Começa a assustar‑me.
Jimmy voltou‑se para ela e o sorriso que tinha agora no rosto era tão gelado que Celeste quase lhe bateu com a mão. Viu, nos olhos dele, o rapaz que trepava aos postes telefónicos debaixo de chuva.
‑ Porque é que não começas pelo princípio? Quando o Dave
começou a comportar‑se de uma maneira diferente.
O que é que tu sabes, Jim?
Sei?
‑ Sabes qualquer coisa. Não ficaste surpreendido.
O sorriso feio desapareceu e Jimmy inclinou‑se para a frente, com as mãos entrelaçadas entre as pernas.
‑ Sei que ele foi levado pela Polícia esta manhã. Sei que tem um carro estrangeiro com uma mossa na parte da frente, do lado do passageiro. Sei que me contou a mim uma história a respeito de como magoou a mão e à Polícia contou outra. E sei que viu a Katie na noite em que ela morreu mas só mo contou depois de a Polícia o ter interrogado. ‑ Desentrelaçou os dedos e abriu as mãos. ‑ Não
sei o que tudo isto significa, exactamente, mas, sim, começa a intrigar‑me.
Celeste sentiu uma momentânea onda de piedade ao imaginar Dave numa sala de interrogatório da Polícia, talvez algemado a uma mesa, uma luz ofuscante apontada ao pálido rosto. E então viu o Dave que na noite anterior espreitara para ela do outro lado da porta, com uma expressão tresloucada, e o medo sobrepôs‑se à pena.
Inspirou fundo, e como que despejou as palavras:
‑ No sábado, às três da manhã, o Dave chegou a casa coberto
de sangue que não era dele.
Pronto, estava dito. As palavras tinham‑lhe saído da boca e entrado na atmosfera. Formaram uma parede diante dela e de Jimmy, e então dessa parede cresceu um tecto e uma outra parede atrás deles, e de súbito estavam fechados dentro de uma minúscula cela criada por uma única frase. Os ruídos da avenida cessaram e o vento deixou de soprar, e os únicos cheiros eram o da colónia de Jimmy e o dos degraus aquecidos pelo sol de Maio.
Quando falou, a voz de Jimmy soou como se uma mão estivesse a apertar‑lhe a garganta.
‑ O que foi que ele disse que tinha acontecido?
Ela contou‑lhe. Contou‑lhe tudo, incluindo a loucura da noite anterior. Contou‑lhe, e viu que cada palavra que lhe saía da boca era mais uma palavra de que ele queria esconder‑se. Queimavam‑‑no. Cravavam‑se‑lhe na carne como dardos. A boca e os olhos dele recuavam a tentar fugir‑lhes, e a pele do rosto ficou tão esticada que ela via os ossos, e sentiu‑se gelar ao imaginá‑lo estendido num caixão com umas unhas compridas e aguçadas, o queixo pendente e uma mata de musgo esverdeado em vez de cabelo.
E quando as lágrimas começaram a deslizar‑lhe silenciosas pelas faces, Celeste resistiu ao impulso de apertar‑lhe a cara contra o ombro e deixá‑las escorrerem‑lhe pelo pescoço, por dentro da blusa e pelas costas.
Continuou a falar porque sabia que se parasse, pararia de vez, e não podia parar porque tinha de contar a alguém porque fugira, porque abandonara o homem que jurara apoiar nos bons como nos maus momentos, o homem que era o pai do seu filho, e lhe contava piadas, e lhe acariciava a mão, e lhe oferecia um peito sobre o qual adormecer. Um homem que nunca se queixara e que nunca lhe batera e que fora um pai maravilhoso e um bom marido. Precisava de contar a alguém como ficara confusa quando aquele homem dera a impressão de desaparecer como se a máscara que fora o seu rosto tivesse caído no chão e uma monstruosidade malévola espreitasse para ela.
Terminou dizendo:
‑ Ainda não sei o que ele fez, Jimmy. Ainda não sei de quem
era aquele sangue. Não sei. Conclusivamente. Não sei. Mas tenho tanto, tanto medo.
Jimmy voltou‑se no degrau de modo a ficar com as costas apoiadas no corrimão de ferro forjado. As lágrimas tinham‑lhe secado na pele e a boca dele formava uma pequena oval de choque. Olhou para Celeste com um olhar que pareceu atravessá‑la e descer a avenida e fixar‑se em qualquer coisa a quarteirões de distância e que ninguém mais conseguia ver.
‑ Jimmy ‑ disse Celeste, mas ele fê‑la calar com um gesto da mão e fechou os olhos com força. Baixou a cabeça e inspirou fundo pela boca aberta.
A cela à volta deles evaporou‑se, e Celeste fez um aceno de cabeça a Joan Hamilton, que passou pela rua e lhes dirigiu um olhar amistoso e todavia vagamente desconfiado antes de continuar o seu caminho. Os sons da avenida voltaram com os seus apitos e rangidos de portas e nomes gritados ao longe.
Quando Celeste voltou a olhar para Jimmy, ficou presa à expressão dele. Os olhos estavam calmos, a boca fechada, e tinha puxado os joelhos para o peito, servindo de apoio aos braços cruzados, e Celeste sentiu a emanação de uma inteligência feroz e beligerante, sentiu aquele cérebro trabalhar muito mais depressa e com mais originalidade do que a maior parte das pessoas conseguiria ao longo de uma vida inteira.
As roupas que ele usou desapareceram ‑ disse Jimmy.
Ela assentiu.
Sim. Verifiquei.
Jimmy apoiou o queixo nos braços.
‑ Estás com muito, muito medo? Responde‑me sinceramente.
Celeste aclarou a garganta.
‑ Ontem à noite, Jimmy, pensei que ele ia morder‑me. E continuar a morder.
Jimmy inclinou a cabeça, de modo que foi a face que ficou agora apoiada nos braços cruzados, e fechou os olhos.
Celeste ‑ murmurou.
Sim?
Acreditas que o Dave matou a Katie?
Celeste sentiu a resposta subir‑lhe borbulhante pelo corpo como o vómito da noite anterior. Sentiu‑lhe os pés escaldantes martelarem‑lhe o coração.
Acredito ‑ disse.
Jimmy abriu os olhos.
Jimmy? ‑ disse Celeste. ‑ Deus me ajude.
Sean olhou para Brendan Harris por cima do tampo da secretária. O rapaz parecia confuso e cansado e assustado, exactamente como ele o queria. Mandara dois guardas buscá‑lo a casa e levá‑lo para ali, e então deixara‑o ficar sentado do outro lado da secretária enquanto consultava o computador e estudava todos os dados que reunira a respeito do pai do miúdo, sem se apressar, ignorando Brendan, deixando‑o ali sentado, a agitar‑se na cadeira, inquieto e inseguro.
Olhou outra vez para o visor, bateu com o lápis na tecla de scroll down apenas para obter efeito, e disse:
‑ Fala‑me do teu pai, Brendan.
O quê?
O teu pai. Raymond sénior. Lembras‑te dele?
Pouco. Tinha para aí uns seis anos quando ele nos deixou.
Portanto, não te lembras dele.
Brendan encolheu os ombros.
‑ Lembro‑me de pequenas coisas. Costumava entrar em casa a
cantar, quando vinha bêbedo. Uma vez, levou‑me ao Canobie Lake
Park e comprou‑me algodão‑doce e eu comi metade e vomitei no
carrocel. Não parava muito em casa, disso lembro‑me. Porquê?
Os olhos de Sean estavam novamente no visor.
De que mais te lembras?
Não sei. Cheirava a Scblitz e a Dentyne. Ele...
Sean ouviu o sorriso na voz de Brendam e ergueu os olhos, viu‑o deslizar suavemente pela face do rapaz.
‑ Ele o quê?
Brendan mexeu‑se na cadeira, o olhar fixo em qualquer coisa que não se encontrava dentro da sala, não pertencia sequer à mesma zona temporal.
‑ Costumava andar sempre com imensas moedas. Puxavam‑lhe
os bolsos para baixo e faziam barulho quando ele andava. Quando eu era miúdo, ia sentar‑me na sala de estar. Era uma casa diferente
daquela onde vivemos agora. Era agradável. Eu ia lá sentar‑me por volta das cinco horas e ficava de olhos fechados até ouvi‑lo a ele e às suas moedas subirem a rua. Então corria para fora de casa para
vê‑lo, e se conseguisse adivinhar quanto dinheiro ele tinha num bolso... até se andava lá perto... ele dava‑mo. ‑ Brendan abanou a cabeça e o sorriso alargou‑se‑lhe nos lábios. ‑ Aquele homem tinha montes de moedas.
‑ E uma arma? ‑ perguntou Sean. ‑ O teu pai tinha uma arma?
O sorriso gelou e Brendan semicerrou os olhos, como se não
compreendesse a língua.
O quê?
O teu pai tinha uma arma?
Não.
Sean assentiu com a cabeça, e disse:
‑ Pareces muito seguro, para alguém que tinha só seis anos
quando ele se foi embora.
ConnoUy entrou na sala transportando uma caixa de cartão. Aproximou‑se e pousou a caixa em cima da secretária de Whitey.
O que é isso? ‑ perguntou Sean.
Montes de coisas ‑ respondeu ConnoUy, espreitando para dentro da caixa. ‑ Relatórios laboratoriais, da balística, análise de impressões digitais, a gravação da chamada para o 911, montes de coisas.
‑Já tinhas dito isso. O que é que há em relação às impressões digitais?
Não correspondem a ninguém que tenhamos no computador.
Verificaste a base de dados nacional?
E a Interpol. Nada. Há uma impecável que tirámos da porta.
De um polegar. Se é do assassino, o tipo é pequeno.
Pequeno ‑ repetiu Sean.
Sim. Pequeno. Mas pode ser de qualquer pessoa. Recolhemos seis limpas. Nenhuma delas identificada.
Ouviste a chamada para o 911.
Não. Devia ter ouvido?
Connolly, deves familiarizar‑te com tudo o que tenha a ver
com o caso, pá.
Connolly assentiu.
Vais ouvi‑la?
É para isso que te temos a ti. ‑ Voltou‑se novamente para
Brendan Harris. ‑ Quanto à arma do teu pai.
O meu pai não tinha nenhuma arma ‑ disse Brendan.
A sério?
Sim.
Oh. Nesse caso, acho que fomos mal informados. A propósito, Brendan, falas muito com o teu pai?
Brendan abanou a cabeça.
‑ Nunca. Disse que ia beber um copo e foi‑se embora, deixou‑ ‑nos, à minha mãe e a mim. E ela estava grávida, ainda por cima.
Sean assentiu, como se partilhasse o desgosto dele.
Mas a tua mãe nunca deu parte do desaparecimento dele.
Porque ele não estava desaparecido ‑ replicou Brendan, uma
nota de beligerância a assomar‑lhe aos olhos. ‑ Disse à minha mãe que não a amava. Disse‑lhe que estava sempre a chateá‑lo. Dois dias depois, foi‑se embora.
E ela nunca tentou encontrá‑lo, nem nada disso?
Não. Ele manda‑lhe dinheiro, de modo que se lixe.
Sean tirou o lápis de cima do teclado e bateu com ele no tampo da secretária. Olhou para Brendan Harris, a tentar ler o puto e a encontrar apenas um fiapo de depressão e um resíduo de raiva.
Ele manda‑lhes dinheiro?
Brendan assentiu.
Uma vez por mês, sem falha.
De onde?
‑Hã?
Os sobrescritos com o dinheiro. De onde é que vêm?
De Nova Iorque.
Sempre?
Sim.
Em notas?
Sim. Quinhentos por mês, quase sempre. Mais no Natal.
Escreve alguma coisa, de vez em quando?
Nunca.
Então como é que sabem que é dele?
Quem mais nos enviaria dinheiro todos os meses? Sente‑se
culpado. A minha mãe diz que sempre foi assim... fazia merda e
convencia‑se de que lá porque ficava arrependido isso bastava para o absolver.
Quero ver um dos sobrescritos em que ele manda o dinheiro.
A minha mãe deita‑os fora.
Merda ‑ disse Sean, e rodou o visor do computador para fora
do seu campo de visão. Tudo naquele caso o intrigava ‑ o facto de Dave Boyle ser suspeito, o facto de Jimmy Marcus ser o pai da vítima, o facto de a vítima ter sido morta com a arma do pai do namorado. E então lembrou‑se de outra coisa que também o intrigava, ainda que não de uma forma pertinente para o caso. ‑ Brendan ‑ disse ‑, se o teu pai abandonou a família quando a tua mãe estava grávida, porque foi que ela deu o nome dele à criança?
Os olhos de Brendan puseram‑se a divagar pela sala.
A minha mãe não está inteiramente lá, percebe? Ela tenta,
e tudo isso, mas...
OK...
Diz que lhe chamou Ray para se lembrar a si mesma.
De quê?
De como são os homens. ‑ Brendan encolheu os homens.
‑ De como se uma pessoa lhes der meia hipótese eles a lixam, só para mostrar que podem fazê‑lo.
Mas o teu irmão nasceu mudo. Como foi que ela reagiu a
isso?
Ficou chateada ‑ respondeu Brendan, com um pequeno sorriso a brincar‑lhe nos lábios. ‑ E no entanto, prova que tem razão.
Pelo menos no ver dela. ‑ Tocou com um dedo na caixa de clips à beira da secretária de Sean, e o pequeno sorriso desapareceu. ‑ Por que é que está a perguntar‑me se o meu pai tinha uma arma?
Sean sentiu‑se subitamente farto de jogos, e de ser bem‑edu‑cado e cauteloso.
Sabes muito bem porquê, miúdo.
Não, não sei.
Sean inclinou‑se por cima da secretária, resistindo com dificuldade ao impulso de prosseguir o movimento, agarrar Brendan Harris e apertar‑lhe a garganta.
A arma que matou a tua namorada, Brendan, foi a mesma
que o teu pai usou num roubo, há dezoito anos. Queres falar‑me
a esse respeito?
O meu pai não tinha nenhuma arma ‑ repetiu Brendan, mas
Sean viu que qualquer coisa tinha começado a trabalhar no cérebro do rapaz.
Não? Mentira! ‑ Deu um murro na secretária com força suficiente para fazer Brendan dar um salto. ‑ Dizes que amavas a Katie Marcus? Deixa‑me dizer‑te o que eu amo, Brendan. Amo
a minha taxa de êxito. Amo a minha capacidade para resolver casos em setenta e duas horas. E agora tu estás a mentir‑me, porra.
Não, não estou.
Estás, sim. Sabias que o teu pai era um ladrão?
Era condutor...
Era uma merda de um ladrão. Trabalhava para o Jimmy Marcus. Que também era uma merda de um ladrão. E agora a filha do
Jimmy foi morta com a arma do teu pai?
‑ O meu pai não tinha nenhuma arma.
‑ Vai‑te foder! ‑ berrou Sean, e Connolly endireitou‑se na cadeira, olhou para eles. ‑ Estás com vontade de contar tretas a alguém, puto? Vai contá‑las para uma cela.
Sean tirou as chaves do cinto e atirou‑as a Connolly, por cima da cabeça.
Mete‑me este verme numa cela.
Brendan levantou‑se da cadeira.
Mas eu não fiz nada.
Sean viu Connolly ir pôr‑se atrás de Jimmy, tenso, apoiado nas pontas dos pés.
Não tens um álibi, Brendan, e tinhas uma relação com a vítima, e ela foi morta com a arma do teu pai. Até conseguir melhor,
fico contigo. Aproveita para descansar, pensa no que acabas de
dizer‑me.
Não pode prender‑me. ‑ Brendan olhou para trás, para Connolly. ‑ Não pode.
Connolly estava a olhar para Sean, de olhos muito abertos, porque o rapaz tinha razão. Tecnicamente, não podiam prendê‑lo a menos que o acusassem de qualquer coisa. E não tinham nada de que acusá‑lo. Era ilegal, naquele estado, acusar fosse quem fosse com base em suspeitas.
Brendan, porém, não o sabia, e Sean lançou a Connolly um olhar que dizia: Bem‑vindo aos Homicídios, rapaz.
Em voz alta, disse:
‑ Se não falas agora mesmo, rapaz, é o que vou fazer.
Brendan abriu a boca, e Sean viu uma nuvem negra de conhecimento passar através dele como uma enguia‑eléctrica. Mas voltou a fechar a boca, e abanou a cabeça.
‑ Suspeita de crime capital ‑ disse Sean, dirigindo‑se a Connolly.
‑ Mete‑o numa cela.
Dave regressou ao apartamento vazio a meio da tarde e foi direito ao frigorífico buscar uma cerveja. Não comera nada e sentia o estômago vazio e a borbulhar de ar. Não exactamente nas melhores condições para lhe atirar com cerveja, mas Dave estava a precisar de uma. Precisava de amolecer a cunha que tinha espetada na cabeça e livrar‑se das pregas que lhe tolhiam o pescoço, acalmar o furioso bater do coração.
A primeira foi para baixo com toda a facilidade, enquanto ele percorria o apartamento deserto. Celeste podia ter voltado para casa enquanto ele estivera fora e ter ido trabalhar, e Dave pensou em telefonar para o Ozama's a ver se ela lá estava, a cortar cabelos e a tagarelar com as pessoas, a flirtar com Paolo, o tipo maricas que fazia o mesmo turno que ela e flirtava dessa maneira descontraída mas não totalmente inofensiva tão própria dos maricas. Ou talvez fosse até à escola de Michael, lhe desse um grande adeus e um abraço, e então regressasse a casa, parando para um leite com chocolate pelo caminho.
Mas Michael não estava na escola nem Celeste estava no emprego. Dave sabia, sem poder dizer como, que estavam a esconder‑se dele, e por isso acabou a segunda cerveja sentado à mesa da cozinha, sentindo‑a trabalhar‑lhe o corpo, acalmando tudo, tornando o ar à frente dele um nadinha prateado, um nadinha revoluteante.
Devia ter‑lhe dito. Logo de princípio, devia ter dito à mulher o que realmente acontecera. Devia ter confiado nela. Poucas mulheres se teriam mantido firmes ao lado de um ex‑jogador de ba‑sebol do liceu que fora sexualmente molestado quando criança e não conseguia conservar um emprego decente. Mas Celeste fizera‑o. Só pensar nela junto ao lava‑louça, naquela noite, a lavar o sangue das roupas, a dizer que estava a tratar das provas, querido... Jesus, era uma mulher e tanto. Como pudera ele não o ver? Como é que se chega ao ponto em que estamos perto de uma pessoa há tanto tempo que deixamos de vê‑la?
Dave tirou a terceira e última cerveja do frigorífico e andou um pouco mais pela casa, o corpo a encher‑se de amor pela mulher e amor pelo filho. Queria aconchegar‑se contra o corpo nu da mulher enquanto ela lhe acariciava os cabelos e dizer‑lhe como sentira a falta dela naquela sala de interrogatório, com a sua cadeira rachada e o seu frio. Antes, pensara que queria calor humano, mas a verdade era que só queria o calor de Celeste. Queria envolver o corpo no dela e fazê‑la sorrir e beijar‑lhe as pálpebras e acariciar‑lhe as costas e sufocar‑se com ela.
Não é demasiado tarde, dir‑lhe‑ia, quando ela voltasse a casa. Foi só que houve uma troca de fios no meu cérebro, recentemente, ficou tudo baralhado. Esta cerveja que tenho na mão não ajuda muito, suponho, mas preciso dela até voltar a ter‑te a ti. E então paro. Deixo de beber e vou fazer um curso de computadores, ou coisa assim, arranjo um trabalho de escritório. A Guarda Nacional oferece reembolso de propinas, e isso eu posso fazer. Posso fazer um fim‑de‑semana por mês e meia‑dúzia de semanas no Verão, pela minha família. Vai ajudar‑me a ficar outra vez em forma, libertar‑‑me do peso da cerveja, aclarar‑me as ideias. E quando conseguir o tal emprego num escritório, vamos todos daqui para fora, deixamos o raio do bairro com as suas rendas sempre a subir e os seus estádios e o seu aburguesamento. Para quê tentar lutar? Hão‑de acabar por correr connosco, mais tarde ou mais cedo. Correm connosco e criam para eles próprios um mundo Crate & Barrei, discutem as suas casas de Verão nos cafés e nas coxias dos supermercados de comida integral.
Mas vamos para um sítio bom, diria a Celeste. Vamos para um sítio limpo, onde possamos criar o nosso filho. Vamos começar de novo. E eu vou dizer‑te o que aconteceu, Celeste. Não é bonito, mas não é tão mau como tu pensas. Vou dizer‑te que tenho algumas coisas assustadoras e perversas na cabeça e que talvez precise de falar com alguém por causa disso. Tenho desejos que me enojam, mas estou a tentar, querida, estou a tentar ser um homem bom. Estou a tentar enterrar o Rapaz. Ou, no mínimo, ensinar‑lhe alguma coisa a respeito de compaixão.
Talvez fosse disso que o tipo do Cadillac andava à procura ‑ um pouco de compaixão. Mas o Rapaz Que Escapara aos Lobos não estava voltado para porra de compaixão nenhuma naquela noite de sábado. Tinha a arma na mão e bateu com ela no tipo do Cadillac através da janela aberta, e Dave ouviu o osso estalar enquanto o rapaz de cabelos ruivos se endireitava e fugia pela porta do passageiro, ficando ali de boca aberta a ver Dave bater no tipo uma e outra vez. Dave metera a mão pela janela e puxara‑o para fora pelos cabelos, e o tipo não estava tão indefeso como queria fazer parecer. Estava a fingir, e Dave só viu a navalha quando ela lhe cortou a camisa e a pele. Era uma navalha de ponta‑e‑mola, debilmente esgrimida, mas mesmo assim suficientemente afiada para cortar Dave antes que ele espetasse o joelho no punho do tipo, prendendo‑lhe o braço contra a porta do carro. Quando a navalha caiu no chão, Dave, com o pé, empurrou‑a para debaixo do carro.
O miúdo ruivo parecia assustado, mas também excitado, e Dave, irracionalmente enraivecido, bateu com a arma na cabeça do tipo, com tanta força que rachou a coronha. O tipo rolou sobre si mesmo até ficar de bruços, e Dave saltou‑lhe para as costas, a sentir o lobo, a odiar o homem, aquele anormal, aquele cabrão daquele degenerado abusador de crianças, agarrando‑o bem pelos cabelos, puxando‑lhe a cabeça para cima e batendo‑lhe com a cara no chão. Uma e outra vez, pulverizando aquele tipo, aquele Henry, aquele Geor‑ge, aquele, oh, Jesus, aquele Dave, aquele Dave.
Morre, filho da puta. Morre, morre, morre.
Foi então que o puto ruivo fugiu, e Dave voltou a cabeça e compreendeu que era da sua boca que aquelas palavras saíam. «Morre, morre, morre, morre.» Viu o miúdo atravessar a correr o parque de estacionamento e foi atrás dele, com o sangue do homem a pingar‑lhe da mão. Queria dizer ao miúdo ruivo que fizera aquilo por ele. Que o salvara. E que o protegeria para sempre, se ele quisesse.
Deteve‑se no beco por detrás do bar, ofegante, sabendo que o miúdo fugira. Ergueu os olhos para o céu nocturno e perguntou:
‑ Porquê?
Porquê pôr‑me aqui? Porquê dar‑me esta vida? Porquê dar‑me esta doença, uma doença que desprezo mais do que qualquer outra? Porquê baralhar‑me o cérebro com momentos de beleza e ternura e amor intermitente pela minha mulher e pelo meu filho ‑ lampejos, na realidade, de uma vida que poderia ter sido minha se aquele carro não tivesse parado em Gannon Street e não me tivesse levado para aquela cave? Porquê?
Responde‑me, por favor. Oh, por favor, por favor, responde‑me.
Mas, claro, não houve resposta. Apenas o silêncio, e o gotejar dos algerozes, e a chuva ligeira a tornar‑se mais forte.
Voltou ao parque de estacionamento minutos mais tarde e encontrou o homem estendido ao lado do carro.
Uau, pensou Dave. Matei‑o.
Mas então o tipo rolou sobre um lado, a abrir e a fechar a boca, como um peixe. Tinha cabelos louros, e uma barriga proeminente num corpo magro. Dave tentou recordar como fora a cara dele antes de ter enfiado a mão pela janela aberta e lhe ter batido com a pistola. Lembrava‑se apenas de que os lábios lhe tinham parecido demasiado vermelhos e demasiado grandes.
A cara do homem desaparecera, porém. Era como se tivesse sido comprimida contra um motor de jacto, e Dave sentiu uma onda de náusea ao ver aquela coisa sangrenta inspirar ar, ofegante.
O homem parecia não ter consciência de Dave de pé, ali junto dele. Pôs‑se de gatas e começou a arrastar‑se. Arrastou‑se em direcção às árvores atrás do carro. Subiu o pequeno declive e pôs as mãos na vedação de rede que separava o parque de estacionamento do depósito de sucata que ficava do outro lado. Dave despiu a camisa de flanela que usava por cima da T‑shirt e enrolou‑a à volta do cano da arma enquanto avançava para a criatura sem rosto.
A criatura sem rosto chegou com as mãos à segunda fiada de arame e então as forças abandonaram‑na. Caiu e inclinou‑se para a direita, acabando por ficar sentada contra a vedação, de pernas abertas, o rosto sem rosto a ver Dave aproximar‑se.
‑ Não ‑ murmurou. ‑ Não.
Mas Dave soube que aquilo não era sincero. Estava tão farto de ser aquilo em que se tornara como o próprio Dave.
O Rapaz ajoelhou‑se junto do homem e encostou a bola de flanela ao peito dele, enquanto Dave pairava por cima deles, a observar.
Por favor ‑ rouquejou o homem.
Sssh ‑ disse Dave, e o Rapaz apertou o gatilho.
O corpo da criatura sem rosto teve uma sacudidela suficientemente forte para bater com um pé na axila de Dave, e então o ar escapou‑se dele com o assobio de uma chaleira.
E o Rapaz disse, Óptimo.
Foi só depois de ter carregado o corpo para dentro da mala do Honda que Dave se apercebeu de que devia ter usado o Cadillac. Já subira as janelas e desligara o motor e limpara com a camisa de flanela todos os lugares em que tinha tocado. Mas qual era a vantagem de andar por aí no Honda com o corpo do tipo no porta‑ba‑gagens, a tentar descobrir um lugar onde largá‑lo, quando a resposta estava mesmo ali à sua frente?
Por isso Dave fez recuar o Honda até junto do Cadillac, com os olhos postos na porta lateral do bar, de onde ninguém saía havia já algum tempo. Abriu a mala do seu próprio carro, depois abriu a do Cadillac, e passou o corpo de uma para a outra. Fechou as duas, embrulhou a arma e a navalha na camisa de flanela, atirou o embrulho para o banco da frente do Honda e pôs‑se a andar dali para fora.
Atirou a camisa com a arma e a navalha para o fundo do Pe‑nitentiary Channel ao passar pela ponte de Roseclair Street. Só muito mais tarde se apercebeu de que, no preciso instante em que o fazia, Katie Marcus estava provavelmente a ser assassinada, lá em baixo no parque. E então seguira para casa, seguro de que a qualquer momento alguém encontraria o carro e o corpo no porta‑ba‑gagens.
Passara pelo Last Drop, no domingo à tarde, e estava um carro estacionado ao lado do Cadillac, no parque completamente vazio. Mas reconhecera o outro carro como pertencendo a Reggie Damo‑ne, um dos barmen. O Caddy tinha um ar inocente, esquecido. Nessa mesma noite, voltara a passar por lá, e quase tivera um ataque cardíaco ao ver um espaço vazio no sítio onde o Cadillac estivera parado. Percebeu que não podia perguntar, mesmo com o ar mais casual possível, «Eh, Reggie, costumam mandar rebocar os carros quando ficam demasiado tempo no vosso parque?», e então compreendeu que, fosse o que fosse que lhe tivesse acontecido, já não havia nada que o relacionasse com ele.
Nada excepto o miúdo de cabelos ruivos.
Mas, à medida que o tempo passava, ocorrera‑lhe que o miúdo estava assustado, sim, mas também satisfeito, excitado. Estava do lado de Dave. Não precisava de preocupar‑se com ele.
E agora os chuis não tinham nada por onde lhe pegar. Não tinham testemunhas. Não tinham as provas do carro de Dave, pelo menos que pudessem usar em tribunal. Portanto, Dave podia descontrair‑se. Podia contar a Celeste, e desabafar, deixar as coisas seguirem o seu curso, oferecer‑se à mulher e esperar que ela o aceitasse, com defeitos mas a tentar mudar. Como um homem bom que tivesse feito uma coisa má por uma boa razão. Como um homem que estava a fazer tudo o que podia para matar o vampiro que morava na sua alma.
Vou deixar de andar a rondar os parques e as piscinas públicas, disse Dave a si mesmo enquanto acabava de beber a terceira cerveja. Levantou a lata vazia. E vou deixar isto, também.
Mas não naquele dia. Naquele dia já tinha bebido três cervejas e, que diabo, Celeste não dava sinais de voltar para casa tão cedo. Talvez no dia seguinte. Sim, isso seria bom. Dar a ambos um pouco de espaço, tempo para sarar e refazer. Ela regressaria para um homem novo, um Dave melhor, sem segredos.
‑ Porque os segredos são veneno ‑ disse em voz alta na cozinha onde tinha feito amor com a mulher. ‑ Os segredos são paredes. ‑ E então, com um sorriso, acrescentou: ‑ E eu estou sem cerveja.
Sentia‑se bem, quase alegre, quando saiu de casa para ir à Eagle Liquors. Estava um belo dia, com o sol a inundar a rua. Quando eram miúdos, a linha de comboio aéreo passava por ali, pelo meio da Crescent, enchendo a rua de porcaria e tapando o céu. Só acentuava a sensação que se tinha de que os Flats eram um lugar isolado do resto do mundo, enfiado debaixo daquela linha como uma tribo banida, livre de viver conforme quisesse desde que o fizesse no exílio.
Depois de terem tirado a linha, os Flats tinham crescido para a luz, e, durante algum tempo, todos tinham pensado que aquilo era uma coisa boa. Havia muito menos fuligem, muito mais sol, a pele das pessoas parecia mais saudável. Mas sem a capa, toda a gente podia vê‑los a descoberto, avaliar‑lhes as filas de casas de tijolos e a vista para o Penitentiary Channell e a proximidade do centro da cidade. De repente, já não eram uma tribo clandestina. Eram um valor imobiliário importante.
Dave ia ter de pensar a respeito de como aquilo acontecera quando voltasse a casa, formular uma teoria com a ajuda da embalagem de doze latas de cerveja que ia comprar. Ou talvez encontrasse um bar fresco e agradável, e se sentasse à sombra naquele dia de sol, e encomendasse um hambúrguer, e tagarelasse um pouco com o barman, a ver se entre os dois conseguiam descobrir quando fora que os Flats tinham começado a fugir‑lhes por entre os dedos, quando o mundo inteiro começara a girar para longe deles.
Talvez fosse isso mesmo que ia fazer. Sentar‑se num banco de couro diante de um balcão de mogno e deixar passar a tarde. Faria planos para o futuro. Faria planos para o futuro da família. Descobriria maneiras de compensar a mulher e o filho. Era espantoso como três cervejas podiam ser amigáveis ao fim de um longo e duro dia. Estavam a levar Dave pela mão enquanto ele subia a rua em direcção à Buckingham Avenue. Diziam‑lhe, Eh, não é porreiro estar connosco? Não é o máximo estar a voltar uma nova página, desembaraçares‑te desses sujos segredos, preparares‑te para renovar os teus votos para com os teus entes queridos e tornares‑te o homem que sempre soubeste que podias ser? Poça, é mesmo bestial.
E olha quem temos ali à nossa frente, na esquina, a preguiçar no seu brilhante carro de desporto. Está a sorrir‑nos. É o Vai Sa‑vage, a sorrir, a acenar‑nos! Anda daí, vamos cumprimentá‑lo.
Dandy Dave Boyle ‑ disse Vai, quando Dave se aproximou
do carro. ‑ Para que lado pendem as coisas, irmão?
Sempre para a esquerda ‑ respondeu Dave, e agachou‑se ao
lado do carro. Apoiou os cotovelos na fenda por onde o vidro
tinha desaparecido dentro da porta e olhou para Vai. ‑ Que fazes
por aqui?
Vai encolheu os ombros.
‑ Nada de especial, pá. Andava a ver se encontrava alguém que quisesse ir beber uma cerveja comigo, talvez comer qualquer coisa.
Dave nem queria acreditar. E ele a pensar a mesma coisa.
Palavra?
Palavra. Podíamos beber umas bejecas, talvez um jogo de bilhar. Que tal, Dave?
Claro.
A verdade era que Dave estava um pouco surpreendido. Dava‑‑se com Jimmy e com o irmão de Vai, Kevin, por vezes até com Chuck, mas não se lembrava de Vai alguma vez ter mostrado mais do que absoluta apatia na sua presença. Devia ser por causa de Katie, pensou. Na morte, estava a aproximá‑los uns dos outros. Estavam unidos nas suas perdas, a criar laços através da partilha da tragédia.
Entra ‑ convidou Vai. ‑ Vamos a um sítio que conheço do
outro lado da cidade. Um bom bar. O dono é meu amigo.
Do outro lado da cidade? ‑ Dave olhou para trás, para a rua
deserta que acabava de subir. ‑ Bem, vou ter de voltar a casa mais cedo ou mais tarde.
‑ Claro, claro ‑ disse Vai. ‑ Eu trago‑te quando quiseres. Vá lá, entra. Vamos fazer uma noitada de rapazes a meio do dia.
Dave sorriu e levou o sorriso com ele quando contornou a frente do carro até à porta do passageiro. Uma noitada de rapazes a meio do dia. Exactamente o que estava a fazer‑lhe falta. Ele e Vai, na borga como velhos amigos. E essa era uma das coisas mais porreiras que tinha um lugar como os Flats, aquilo que ele mais temia que se perdesse ‑ o modo como velhos sentimentos e passados inteiros podiam ser esquecidos com o tempo à medida que uma pessoa envelhecia, quando compreendia que estava tudo a mudar e as únicas coisas que continuavam na mesma eram aqueles com quem tinha crescido e o lugar de onde vinha. O bairro. Que viva para sempre, pensou Dave, enquanto abria a porta, quanto mais não seja nos nossos espíritos.
O Rapaz do Porta‑Bagagens
Whitey e Sean comeram um almoço tardio no Pat's Diner, na primeira saída da auto‑estrada a seguir ao Destacamento. O Pat's já existia desde a II Guerra Mundial e servia de pouso aos rapazes da estadual havia tanto tempo que Pat gostava de dizer que a dele era a única família de restauradores que tinha conseguido passar três gerações sem ser assaltada uma única vez.
Whitey engoliu um pedaço de cheeseburger e empurrou‑o para baixo com um pouco de Coca.
‑ Não acreditas nem por um segundo que tenha sido o puto, pois não?
Sean deu uma dentada na sanduíche de atum.
‑ Sei que ele está a mentir. Penso que sabe qualquer coisa a respeito da arma. E acho que é possível... estou a dizer possível, nota... que o pai dele continue vivo.
Whitey mergulhou uma rodela de cebola na taça de molho tártaro.
Os quinhentos por mês vindos de Nova Iorque?
Sim. Sabes quanto é que dá ao fim destes anos todos? Quase
oitenta mil. Quem lhos mandava, se não fosse o pai?
Whitey limpou os lábios com um guardanapo e voltou ao cheeseburger, e Sean perguntou a si mesmo como conseguira aquele tipo escapar até agora a um ataque cardíaco, a comer e a beber daquela maneira, trabalhando setenta horas por semana quando um caso lhe cravava os dentes na espinha.
Digamos que o pai está vivo ‑ disse Whitey.
Digamos.
‑ O que é que temos aqui, então?... Um plano genial para se vingar de qualquer coisa que o Jimmy Marcus lhe fez matando‑lhe a filha? Como é, agora somos estrelas de cinema?
Sean riu‑se.
‑ Quem achas que faria a tua personagem?
Whitey chupou a Coca pela palhinha até fazer um ruído de sorvedouro contra o gelo.
‑ Penso muito nisso, sabias? Até pode acontecer, se limparmos este caso, Superpolícia. Uma merda no género O Fantasma de Nova Iorque? Lá íamos nós para o grande ecrã. E o Brian Dennehy havia de babar‑se todo para conseguir o papel.
Sean olhou para ele.
‑ A ideia não é completamente louca ‑ disse, perguntando a si mesmo porque fora que nunca considerara a possibilidade. ‑ Não és tão alto como ele, mas tens a barriga.
Whitey assentiu com a cabeça e empurrou o prato para o lado.
Estava a pensar que um daqueles maricas do Friends podia
fazer o teu papel. Sabes, aqueles tipos que passam uma hora inteira diante do espelho todas as manhãs, a cortar os pêlos do nariz e a depilar as sobrancelhas e que vão à pedicura uma vez por semana? E, um desses era óptimo.
Estás é com inveja.
Há só uma coisa, no entanto ‑ disse Whitey. ‑ Essa hipótese
do Ray Harris é cá uma curva. Tem um quociente de probabilidade de para aí uns seis.
Em dez?
Em mil. Voltemos atrás, está bem? O Ray Harris chiba o
Jimmy Marcus. O Marcus descobre a coisa, fica chateado e põe um contrato na cabeça do Ray. Mas o Harris, sabe‑se lá como, consegue escapar, vai para Nova Iorque, arranja um emprego suficientemente bom para lhe permitir mandar cinco notas para casa todos os meses, durante treze anos. Então, um belo dia acorda e diz,
«Muito bem, é tempo de ajustar contas», e mete‑se num autocarro, vem até aqui, abafa a miúda. E não da maneira normal, do dia‑a‑dia.
Não, mata‑a com extrema violência. Aquilo que vimos no parque
era raiva psicótica. E então o velho Ray... e quero mesmo dizer velho, o tipo tem para aí uns quarenta e cinco anos, aos saltos pelo parque atrás dela... volta a meter‑se num autocarro e regressa a Nova Iorque com a sua arma? Verificaste com Nova Iorque? Sean assentiu.
‑ Nada em relação ao número de Segurança Social, nenhuns cartões de crédito nesse nome, nenhum registo de emprego de um tipo com esse nome e idade. Nem o DPNI nem a estadual têm registo de qualquer detenção com coincidência de impressões digitais.
‑ Mas tu achas que ele matou a Katherine Marcus.
Sean abanou a cabeça.
‑ Não. Quero dizer, não de certeza. Nem sequer sei se o tipo ainda é vivo. Só estou a dizer que penso que pode ter sido. E é mais que provável que a arma do crime seja a dele. E acho que o Brendan sabe qualquer coisa, e o rapaz não tem definitivamente ninguém que possa confirmar que estava em casa e na cama quando a Katie Marcus foi assassinada. Por isso estou na esperança de que se ele
passar tempo suficiente naquela cela, nos diga umas coisas.
Whitey soltou um arroto que rasgou o ar.
‑ És um autêntico príncipe, sargento.
Whitey encolheu os ombros.
Nem sequer sabemos se foi o Harris que assaltou aquela loja
de bebidas, há dezoito anos. Não sabemos se a arma era dele. São tudo conjecturas. Circunstancial, na melhor das hipóteses. Nunca se aguentaria em tribunal. Raios, um bom PG nem sequer apresentaria o caso.
Pois é, mas sinto que tenho razão.
‑ Sentes. ‑ Whitey olhou por cima do ombro de Sean quando
a porta se abriu. ‑ Oh, Jesus, os gémeos atrasadinhos mentais.
Souza chegou junto à mesa deles, com Connolly uns poucos passos atrás.
‑ E disse que não era nada, sargento.
Whitey pôs a mão atrás da orelha e olhou para Souza.
‑ O que foi que disseste, rapaz? O meu ouvido, sabes.
‑ Verificámos o registo de reboques do parque de estacionamento do Last Drop ‑ disse Souza.
‑ Isso é jurisdição do DPB. O que foi que eu lhes disse a esse respeito?
‑ Encontrámos um carro que ainda não foi reclamado.
Pedimos ao encarregado que fosse verificar se ainda lá estava. Quando voltou ao telefone, disse que a mala do carro estava a
verter.
A verter o quê?
Não sei, mas o tipo disse que cheirava muito mal.
Era um Cadillac de duas cores, capota branca e carroçaria azul‑‑escura. Whitey inclinou‑se para a janela do passageiro, com as mãos de ambos os lados dos olhos.
‑ Diria que há uma mancha castanha de aspecto suspeito na
porta do lado do condutor.
Connolly, que estava junto da traseira, exclamou:
‑ Jesus, já cheiraram esta merda? É pior do que a maré baixa em Wollaston.
Whitey deu a volta até à parte de trás do carro, enquanto o encarregado do parque entregava o alicate de grifo a Sean.
Sean foi pôr‑se ao lado de Connolly, afastando‑o do seu caminho ao mesmo tempo que dizia:
Usa a gravata.
O quê?
Para tapar a boca e o nariz, homem. Usa a gravata.
E vocês, o que é que usam?
Whitey apontou para o seu próprio lábio superior, que estava brilhante.
‑ Pusemos Vick quando vínhamos para cá. Lamento, rapazes,
já não há mais.
Sean posicionou a corrediça na extremidade da ferramenta, fez deslizar a ponta para cima do fecho da mala do Cadillac, carregou, sentiu o metal deslizar sobre metal e prender, agarrando todo o canhão da fechadura.
Entrámos? ‑ perguntou Whitey. ‑ A primeira tentativa e
tudo?
Entrámos. ‑ Sean puxou com força, trazendo o canhão preso
na garra, e teve um vislumbre do buraco que deixara na chapa antes
de o engate se soltar e a tampa se abrir e o cheiro a maré baixa ser substituído por qualquer coisa muito pior, uma mistura de gás metano com carne cozida deixada a apodrecer em cima de um monte de ovos mexidos.
‑ Jesus. ‑ Connolly apertou a gravata contra a cara e afastou‑se
vivamente do carro.
‑ Alguém quer uma sanduíche de ovo cozido com mayonaisé?
‑ perguntou Whitey, e Connolly ficou da cor da erva.
Souza, pelo contrário, permaneceu impávido. Aproximou‑se da mala do carro, com uma mão a apertar o nariz, e perguntou:
Onde está a cara do tipo?
Isso é a cara do tipo ‑ disse Sean.
O homem estava enrolado na posição fetal, com a cabeça dobrada para trás e para o lado, como se tivesse o pescoço partido, o resto do corpo dobrado na direcção contrária. O fato era de boa qualidade, os sapatos também, e Sean calculou‑lhe a idade à volta dos cinquenta, depois de uma olhada às mãos e ao cabelo. Reparou no orifício nas costas do casaco e usou uma caneta para afastar o tecido do corpo. O suor e o calor tinham amarelecido a camisa branca, mas Sean encontrou o orifício correspondente ao do casaco, a meio das costas, onde a camisa se misturava com a carne.
‑ Temos um orifício de saída. Tiro, cem por cento. ‑ Examinou por instantes o interior da mala. ‑ Mas não encontro a bala.
Whitey voltou‑se para Connolly, que começava a cambalear.
‑ Mete‑te no teu carro e volta ao parque de estacionamento do Last Drop. Antes de mais nada, informa o DPB. Não estamos interessados em porras de guerras territoriais. Começa a procurar a partir do sítio onde encontraste a maior parte do sangue. Há uma boa possibilidade de haver por lá uma bala, algures. Guarda, percebeste o que te disse?
Connolly assentiu, engolindo um grande hausto de ar.
‑ A bala entrou no esterno pelo quadrante inferior ‑ disse Sean
‑, quase em cheio no centro.
‑ Manda uma equipa do SIP para aqui e tantos guardas quantos puderes sem chatear o DPB ‑ continuou Whitey, ainda a falar com Connolly. ‑ Encontra essa bala e leva‑a pessoalmente ao laboratório.
Sean espreitou para dentro do porta‑bagagens e examinou com todo o cuidado a cara desfeita.
‑ A julgar pela quantidade de saibro, alguém lhe bateu com a cara no chão até já não conseguir bater mais.
Whitey pousou uma mão no ombro de Connolly.
‑ Diz ao DPB que vão precisar de uma equipa de Homicídios
completa... técnicos, fotógrafos, o APG de turno e o ML. Diz‑lhes que o sargento Powers pede alguém capaz de determinar um tipo de sangue no local. Desanda.
Connolly ficou encantado só por poder afastar‑se daquele cheiro. Correu para o carro‑patrulha e menos de um minuto mais tarde já estava a sair do parque, com as rodas a derrapar.
Whitty gastou um rolo a fotografar o exterior do carro e, com a cabeça, fez um sinal a Souza. Souza enfiou um par de luvas cirúrgicas e usou uma vareta para abrir a porta do lado do passageiro.
Encontraste alguma identificação? ‑ perguntou Whitey a Sean.
Carteira no bolso de trás. Faz umas fotos enquanto eu calço
as luvas.
Whitey contornou o carro e fotografou o corpo, após o que deixou a máquina suspensa do pescoço pela correia e traçou no bloco de notas um diagrama do local.
Sean tirou a carteira do bolso traseiro do cadáver e abriu‑a, no momento em que Souza anunciava da frente do carro:
‑ Registado em nome de August Larsen, Sandy Pine Lane três‑
‑dois‑três, Weston.
Sean olhou para a carta de condução.
‑ É o mesmo tipo.
Whitey olhou por cima do ombro.
‑ Tem aí algum cartão de doador de órgãos, ou coisa assim?
Sean procurou entre os cartões de crédito, cartões de sócio de
um clube de vídeo, de membro de um clube de ginástica, da AAA e, finalmente, encontrou um cartão de participante num sistema de assistência médica. Ergueu‑o, para que Whitey pudesse vê‑lo.
‑ Sangue tipo A.
‑ Souza ‑ disse Whitey ‑, chama a Central. Diz‑lhes que emitam uma ordem de detenção em nome de David Boyle, Crescent
Street 15, East Buckingham. Branco do sexo masculino, cabelos castanhos, olhos azuis, um metro e setenta e cinco, setenta e cinco quilos. Deve ser considerado armado e perigoso.
‑ Armado e perigoso? ‑ espantou‑se Sean. ‑ Duvido muito, pá.
Whitey voltou‑se para ele.
‑ Diz isso aí ao rapaz do porta‑bagagens.
O QG do Departamento de Polícia de Boston ficava a uns escassos oito quarteirões do depósito, de modo que cinco minutos depois de Connolly ter partido, um batalhão de carros‑patrulhas e veículos sem identificação atravessava os portões, seguido pela carrinha dos Serviços de Medicina Legal e pelo camião do SIP. Sean descalçou as luvas e afastou‑se da traseira do Cadillac assim que os viu. Agora, era com eles. Se quisessem perguntar‑lhe alguma coisa, tudo bem. Tirando isso, estava fora da jogada.
O primeiro detective dos Homicídios a apear‑se de um Crown Vic castanho foi Burt Corrigan, um cavalo de batalha da geração de Whitey, com um passado igual de relações desfeitas e dietas desastrosas. Apertou a mão a Whitey, sendo, aliás, ambos clientes habituais do JJ Foley's e participantes do mesmo campeonato de jogo de dardos.
‑Já passaste uma multa a este carro ‑ perguntou Burt a Sean ‑, ou vais esperar até depois do funeral?
‑ Essa é boa ‑ respondeu Sean. ‑ Quem é que te escreve as
piadas, Burt?
Burt deu‑lhe uma palmada no ombro e contornou o Cadillac até à traseira. Deu uma olhada, aspirou o cheiro, e disse:
‑ Porreiro.
Whitey aproximou‑se dele.
‑ Pensamos que o crime ocorreu no parque de estacionamento
do Last Drop, na madrugada de sábado para domingo.
Burt assentiu.
‑ Uma das nossas equipas periciais não vos encontrou no
local, na tarde de segunda‑feira?
Whitey assentiu.
‑ Mesmo caso. Mandaste os teus rapazes para lá?
Há uns minutos, sim. Ter com um tal guarda Connolly e procurar uma bala?
Isso mesmo.
Puseste um nome no ar, não foi?
David Boyle.
Burt olhou para a cara do morto.
Vamos precisar de todas as vossas notas sobre o caso, Whitey.
Nenhum problema. Vou ficar por aqui a fazer‑te companhia,
a ver o que acontece.
Tomaste banho hoje?
Logo de manhã.
Tudo bem, então. ‑ Burt olhou para Sean. ‑ E tu?
Tenho um tipo engavetado com quem preciso de falar ‑ respondeu Sean. ‑ A festa agora é vossa. Vou levar o Souza comigo.
Whitey assentiu e acompanhou‑o até ao carro.
Se ligarmos o Boyle a isto, talvez o apanhemos também no
caso Marcus. Fazemos uma dobradinha.
Um duplo homicídio a dez quarteirões de distância?
‑ Talvez ela tenha saído do bar e visto tudo.
Sean abanou a cabeça.
‑ Os tempos não batem certo. Se o Boyle matou aquele tipo,
fê‑lo entre a uma e meia e a uma e cinquenta e cinco. E teria tido
de fazer dez quarteirões e encontrar a Katie Marcus a descer a rua à uma e quarenta e cinco. Não me parece.
Whitey encostou‑se ao carro.
É, a mim também não.
Além disso, o orifício de saída nas costas daquele tipo? É pequeno. Demasiado pequeno para uma trinta e oito, em minha opi nião. Armas diferentes, assassinos diferentes.
Whitey assentiu, a olhar para os sapatos.
Vais dar mais um apertão ao puto Harris?
Tudo isto continua a girar à volta da arma do pai dele.
Talvez consigas arranjar uma foto do pai? Arranja quem te
faça uma simulação de envelhecimento, fá‑la circular por aí. Pode ser que alguém o tenha visto.
Souza chegou junto ao carro e abriu a porta do passageiro.
‑ Vou contigo, Sean?
Sean assentiu, voltou‑se para Whitey.
É uma coisinha pequena.
O quê?
O que nos está a escapar. É um pequeno pormenor. Se conseguir descobri‑lo, encerro o caso.
Whitey sorriu.
Qual foi o último homicídio fácil que te caiu no prato, miúdo?
O nome saltou no mesmo instante da língua de Sean.
Eileen Fields, há dezoito meses.
‑ Ninguém consegue encestar todas ‑ disse Whitey, afastando‑se em direcção ao Cadillac. ‑ Entendes o que estou a dizer?
O tempo que Brendan passara na cela de detenção não fora generoso para com ele. Parecia mais pequeno e mais novo, mas também mais agressivo, como se tivesse visto ali dentro coisas que nunca desejara sequer saber que existiam. Mas Sean tivera o cuidado de mandá‑lo para uma cela vazia, longe dos vadios e dos drogados, de modo que não percebia o que poderia ter sido assim tão horrível, a menos que o rapaz não fosse mesmo capaz de suportar o isolamento.
Onde está o teu pai? ‑ perguntou Sean.
Brendan roeu uma unha e encolheu os ombros.
Em Nova Iorque.
Não o viste?
Brendan atacou outra unha.
Desde que tinha seis anos, não.
O teu pai matou a Katherine Mar cus?
Brendam tirou o dedo da boca e ficou a olhar para Sean.
Responde.
Não.
Onde está a arma do teu pai?
Não sei nada a respeito de o meu pai ter uma arma.
Desta vez, não piscou os olhos. Nem os desviou dos de Sean.
Ficou a olhar‑lhe para a cara com uma espécie de fadiga cruel e derrotada que, pela primeira vez desde que conhecia o rapaz, deu a Sean a sensação de existir nele um potencial de violência.
Que raio acontecera naquela cela?
Porque quereria o teu pai matar a Katie Marcus?
O meu pai não matou ninguém.
Tu sabes qualquer coisa, Brendan. E não me estás a dizer.
Digo‑te uma coisa, vamos ver se o detector de mentiras está disponível neste momento. Quero fazer‑te mais umas perguntas.
Quero um advogado.
Daqui a pouco. Vamos...
Quero um advogado. Já.
Sean manteve a voz calma.
Tudo bem. Tens algum especial em mente?
A minha mãe conhece um. Deixe‑me fazer um telefonema.
Ouve, Brendan...
Já ‑ interrompeu‑o Brendan.
Sean suspirou e empurrou o telefone por cima da secretária.
‑ Marca o nove primeiro.
O advogado de Brendan era um velho fala‑barato que andava a correr atrás das ambulâncias desde os tempos em que elas eram puxadas por cavalos, mas até ele sabia que Sean não tinha o direito de deter o seu cliente apenas por falta de álibi.
Detê‑lo? ‑ espantou‑se Sean.
Fechou o meu cliente numa cela.
Nem sequer estava fechada ‑ respondeu Sean. ‑ O miúdo
quis dar uma vista de olhos.
O advogado fez uma careta, como se Sean o tivesse desapontado, e a seguir ele e Brendan saíram da sala, sem olharem para trás uma única vez. Sean pôs‑se a ler alguns relatórios, mas quase sem registar as palavras. Fechou as pastas e reclinou‑se na cadeira, fechou os olhos, viu a Lauren dos seus sonhos e a filha dos seus sonhos. Conseguia cheirá‑las, conseguia verdadeiramente cheirá‑las.
Abriu a carteira, tirou de lá um pedaço de papel com o número do telemóvel de Lauren e pousou‑o em cima da secretária, alisando‑o com as mãos. Nunca quisera filhos. Tirando a prioridade de embarque nos aviões, não via a vantagem. Tomavam conta da vida de uma pessoa e enchiam‑na de terror e de preocupações, e havia quem se portasse como se ter um fosse um acontecimento abençoado e falasse deles no tom reverente que antigamente reservavam para os deuses. Bem vistas as coisas, no entanto, uma pessoa não podia esquecer que aqueles sacanas que se lhe atravessavam à frente na estrada e andavam pelas ruas e gritavam nos bares e tinham sempre a música aos berros e assaltavam e violavam e vendiam carros marados ‑ todos esses sacanas eram apenas crianças que tinham crescido. Onde é que estava o milagre? Não havia nada de sagrado naquilo.
Além disso, nem sequer tinha a certeza de que a miúda fosse dele. Nunca fizera o teste de paternidade porque o orgulho dissera, Que se lixe essa merda. Fazer um teste para provar que sou o pai? Haveria alguma coisa menos dignificante? Hum, desculpe, preciso de tirar sangue porque a minha mulher anda a foder com outro gajo e agora ficou grávida.
Que se lixasse. Sim, sentia a falta dela. Sim, amava‑a. E sim, sonhara estar a pegar na filha. E depois? Lauren traíra‑o e a seguir abandonara‑o e tivera a filha quando estava longe e, mesmo assim, nunca pedira desculpa. Mesmo assim nunca dissera, Fiz mal Sean. Desculpa ter‑te magoado.
E ele, tinha‑a magoado? Bom, sim, claro. Quando soubera do affair, estivera muito perto de bater‑lhe, baixando o punho no último instante e enfiando a mão no bolso, mas Lauren vira a vontade de bater na cara dele. E as coisas que lhe chamara. Jesus.
Em todo o caso, a fúria dele, o tê‑la empurrado, fora uma reacção. Ele é que fora ofendido. Não ela.
Certo? Pensou naquilo durante mais uns segundos. Certo.
Voltou a guardar o papel na carteira e fechou novamente os olhos, dormitou sentado na cadeira. Foi acordado pelo ruído de passos no corredor e abriu os olhos no momento em que Whitey entrava na sala. Sean viu‑lhe a bebida na cara antes de lha cheirar no hálito. Whitey deixou‑se cair na cadeira e pôs os pés em cima da secretária, empurrando para um lado a caixa cheia de provas várias que Connolly lá deixara nessa tarde.
Porra de dia comprido ‑ disse.
Encontraram‑no?
O Boyle? ‑ Whitey abanou a cabeça. ‑ Não. O senhorio diz
que o ouviu sair por volta das três, e nunca mais voltou. Diz que a mulher e o filho também há já algum tempo que não estão em casa. Ligámos‑lhe para o emprego. Trabalha em turnos rotativos de quarta a sábado, de modo que não sabiam dele. ‑ Arrotou. ‑ Há‑‑de aparecer.
E a respeito da bala?
Encontrámos uma no Last Drop. O problema é que bateu
num poste de metal atrás do sítio onde o tipo levou o tiro. Os tipos da Balística dizem que talvez consigam identificá‑la, talvez não. ‑
Encolheu os ombros. ‑ O puto Harris?
O advogado levou‑o.
Não me digas.
Sean aproximou‑se da secretária de Whitey e começou a remexer no conteúdo da caixa.
Nenhuma pegada ‑ disse. ‑ As impressões digitais não coincidem com ninguém que tenhamos em arquivo. A arma foi usada
pela última vez num assalto, há dezoito anos. Quer dizer, que merda é esta? ‑ Atirou o relatório da Balística para dentro da caixa. O único tipo que não tem álibi é o único de que não suspeito.
Vai para casa ‑ disse Whitey. ‑ A sério.
Sim, sim. ‑ Sean pegou na cassete da chamada para o 911.
O que é isso? ‑ perguntou Whitey.
Snoop Dog.
Pensei que tinha morrido.
Quem morreu foi o Tupac.
Um tipo perde‑se.
Sean enfiou a cassete no gravador colocado na esquina da secretária e premiu a tecla «Play».
«‑ Nove um um serviços da Polícia. Qual é a natureza da sua emergência?»
Whitey esticou um elástico entre dois dedos e disparou‑o contra a ventoinha do tecto.
«‑ Está aqui um carro cheio de sangue e, hã, a porta está aberta, e, hã...
Qual é a localização do carro?
Nos Flats. Junto ao Pen Park. Eu e o meu amigo encontrá-mo‑lo.
Há um nome de rua?»
Whitey bocejou, tapando a boca com o punho, e estendeu a mão para pegar noutro elástico. Sean pôs‑se de pé e espreguiçou‑se, perguntando a si mesmo o que teria no frigorífico para o jantar.
«‑ Sydney Street. Está cheio de sangue e a porta está aberta.
Como te chamas, filho?
Ele quer saber o nome dela. Chamou‑me 'filho'.
Está? Perguntei como te chamas tu. Qual é o teu nome?
Vamos mas é cavar daqui, pá. Boa sorte.»
A ligação foi interrompida e então o telefonista fez a sua chamada para a Central, e Sean desligou o gravador.
‑ Sempre pensei que o Tupac tivesse uma secção rítmica melhor ‑ comentou Whitey.
Era o Snoop. Já te tinha dito.
Whitey bocejou.
Vai para casa, pá. Está bem?
Sean assentiu e extraiu a cassete do gravador. Enfiou‑a na embalagem plástica e atirou‑a por cima da cabeça de Whitey para dentro da caixa de cartão. Tirou o coldre com a Glock da gaveta da secretária e encaixou‑o no cinto.
Dela ‑ disse.
O quê? ‑ Whitey estava a olhar para ele.
O puto, na gravação, disse «o nome dela». «Ele quer saber o
nome dela.» Estava a falar da Katherine Marcus.
Naturalmente. ‑ disse Whitey. ‑ A vítima era uma rapariga,
diz‑se «ela».
Mas como raio é que ele sabia?
Quem?
O miúdo que fez a chamada. Como é que ele sabia que o sangue era de uma mulher?
Whitey tirou os pés de cima de secretária e olhou para a caixa. Estendeu a mão e pegou na cassete. Atirou‑a a Sean, que a apanhou no ar.
‑ Passa lá isso outra vez ‑ disse Whitey.
Perdido No Espaço
Dave e Vai atravessaram a cidade e foram a um pequeno bar em Chelsea, do outro lado do Mystic, onde a cerveja era barata e bem gelada e onde não havia muita gente, apenas meia‑dúzia de velhotes que pareciam ter trabalhado toda a vida nos cais e quatro operários da construção civil embrenhados numa discussão a respeito de alguém chamado Betty, que aparentemente tinha umas grandes mamas mas uma má atitude. O bar ficava encafuado por baixo da Tobin Bridge, com as traseiras voltadas para o Mystic, e tinha todo o ar de já ali estar havia várias décadas. Toda a gente conhecia Vai e o cumprimentou. O dono, um tipo esquelético com os cabelos muito pretos e uma pele muito branca, chamava‑se Huey. Estava ao balcão e ofereceu‑lhes a primeira rodada por conta da casa.
Dave e Vai jogaram um pouco de bilhar e depois foram sentar‑‑se num dos compartimentos, com uma grande jarra de cerveja e dois shots de whiskey. As pequenas janelas quadradas que davam para a rua tinham passado de dourado para índigo; a noite descera tão repentinamente que Dave quase sentiu que estava a querer empurrá‑‑lo. Vai era, afinal, um tipo até bastante simpático e bem‑disposto, quando uma pessoa o conhecia melhor. Contou histórias a respeito da prisão e de roubos que tinham dado para o torto, e todas elas eram um pouco assustadoras, na realidade, mas Vai conseguia fazê‑‑las parecer também engraçadas. Dave deu por si a pensar em como seria ser um tipo como Vai, tão perfeitamente destemido e confiante, apesar de ser tão pequeno.
‑ Uma vez, nos velhos tempos, o Jimmy tinha ido dentro e nós estávamos a tentar manter o grupo junto. Ainda não tínhamos percebido que a única razão porque éramos ladrões era que o Jimmy planeava tudo para nós. Tudo o que tínhamos de fazer era ouvi‑lo com atenção e seguir as ordens dele e corria tudo bem. Mas, sem ele, éramos uns paspalhos. Dessa tal vez, tínhamos assaltado um coleccionador de selos. O velho tinha ficado amarrado à cadeira no escritório e eu e o meu irmão Nick e um puto chamado Carson Le‑verett, que não era capaz de apertar a porra dos atacadores dos sapatos sem que alguém lhe mostrasse como, vínhamos a descer no elevador. Todos porreiros. De fato e gravata, a dar com o ambiente. Então, entra uma senhora no elevador e fica de boca aberta, com uma cara muito assustada, e nós sem sabermos porquê. Estávamos com um ar todo respeitável, certo? Voltei‑me para o meu irmão Nick, e ele estava a olhar para o Carson Leverett, porque o sacana do cabeça de pau ainda tinha a máscara posta. ‑ Vai deu uma palmada na mesa, rindo às gargalhadas. ‑ Acreditas numa destas? Era uma máscara do Ronald Reagan, aquela com um grande sorriso que costumavam vender? E ainda a tinha posta.
E nenhum de vocês reparou?
Não. Aí é que reside a questão ‑ respondeu Vai. ‑ Saímos do
escritório e eu e o Nick tirámos as nossas, e assumimos que o Carson tinha feito o mesmo. Acontecem sempre pequenas merdas
como esta, nos trabalhos. Porque estamos nervosos e somos estúpidos e queremos é cavar dali para fora, e por vezes esquecemos os detalhes mais óbvios. Estão ali mesmo diante do nosso nariz, e não os vemos. ‑ Voltou a rir‑se e despejou o whiskey. ‑ Por isso sentíamos tanto a falta do Jimmy. Ele pensava em todos os detalhes. Como
se diz que um bom defesa vê o campo todo? O Jimmy via o campo
todo, num trabalho. Via tudo o que podia correr mal. O tipo era uma porra de um génio.
Mas agora deixou‑se disso.
É verdade. ‑ Vai acendeu um cigarro. ‑ Pela Katie. E pela Annabeth. Aqui entre nós, acho que nunca foi aquilo que ele queria, mas a vida é assim. Por vezes, as pessoas crescem. A minha primeira mulher costumava dizer que era esse o meu problema... nunca mais crescia. Gosto demasiado da noite. Para mim, o dia é apenas um tempo que se passa a dormir.
Sempre julguei que fosse diferente.
O quê?
‑ Ser crescido. Devíamos sentir‑nos diferentes, certo? Sentir‑
‑nos crescidos. Homens.
‑ Não é assim que tu te sentes?
Dave sorriu.
Às vezes, talvez. Por lampejos. Mas, a maior parte do tempo,
não me sinto muito diferente de quando tinha dezoito anos. Acor do uma porção de vezes a pensar, «Tenho um filho? Tenho uma mulher? Como foi que aconteceu?» ‑ Dave sentia a língua tornar‑se espessa por causa do álcool, a cabeça como que a flutuar porque afinal não chegara a comer. Sentiu que precisava de explicar. Fazer
Vai ver o tipo que ele era e fazê‑lo gostar desse tipo. ‑ Acho que sempre pensei que um dia ia tornar‑se permanente, estás a ver? Um belo dia, um gajo acordava a sentir‑se crescido. A controlar as coisas, como
os pais fazem sempre naquelas séries da TV.
Do tipo Ward Cleaver?
Isso. Ou como aqueles xerifes, percebes, o James Arness,
tipos assim. Eram homens. Permanentemente.
Vai assentiu e bebeu um golo de cerveja.
‑ Uma vez, na prisão, um tipo disse‑me: «A felicidade vem por momentos, e então vai‑se embora até à próxima vez. Pode demorar anos. Mas a tristeza ‑ Vai piscou um olho ‑ instala‑se.» ‑ Apagou
o cigarro. ‑ Gostava daquele tipo. Estava sempre a dizer merdas porreiras. Vou beber mais um whiskey. Tu? ‑ E pôs‑se de pé.
Dave abanou a cabeça.
Ainda estou de volta deste.
Vá lá ‑ disse Vai. ‑ Anima‑te, pá.
Dave olhou para o rosto enrugado e sorridente de Vai Savage, e disse:
OK. Está bem.
É assim mesmo. ‑ Vai deu‑lhe uma palmada no ombro e dirigiu‑se ao balcão.
Dave viu‑o conversar com um dos velhos trabalhadores do cais enquanto esperava pelas bebidas e pensou que aqueles tipos que ali estavam eram homens. Homens sem dúvidas, homens que nunca punham em causa a justeza das suas acções, homens que não se deixavam confundir pelo mundo nem por aquilo que os outros esperavam que fizessem.
Era medo, pensou. Era o que ele sempre tivera e eles não tinham. O medo instalara‑se nele quando era muito novo ‑ permanentemente, como o companheiro de prisão de Vai dissera que a infelicidade fazia. O medo encontrara um lugar no coração de Dave e nunca mais se fora embora, de modo que agora tinha medo de se enganar e tinha medo de estragar tudo e tinha medo de não ser inteligente e tinha medo de não ser um bom marido ou um bom pai ou grande coisa como homem. O medo estava com ele havia tanto tempo que não tinha a certeza de conseguir lembrar‑se de como era viver sem ele.
Os faróis de um carro que passava reflectiram‑se na porta e projectaram um clarão de luz branca directamente para a cara de Dave, fazendo‑o piscar os olhos e permitindo‑lhe apenas vislumbrar a silhueta do homem que acabava de entrar. Era encorpado e vestia o que talvez fosse um blusão de couro. Parecia‑se um pouco com Jimmy, na verdade, mas maior, mais largo de ombros.
Não, era mesmo Jimmy, compreendeu Dave, quando a porta voltou a fechar‑se e conseguiu ver mais claramente. Jimmy, com um blusão de couro por cima de uma camisola de gola alta preta e umas calças de caqui, a fazer‑lhe um aceno de cabeça enquanto se dirigia ao balcão. Disse qualquer coisa ao ouvido de Vai, e Vai olhou por cima do ombro para Dave e disse qualquer coisa a Jimmy.
Dave começou a sentir‑se tonto. Era de toda aquela bebida num estômago vazio, teve a certeza. Mas era também de qualquer coisa em Jimmy, no modo como lhe acenara, com uma expressão vazia mas ao mesmo tempo determinada. E porque diabo pareceria inchado, como se tivesse engordado cinco quilos desde o dia anterior? E que estava ele a fazer ali em Chelsea, na noite anterior ao velório da filha?
Jimmy aproximou‑se e sentou‑se no lugar de Vai, em frente de Dave.
Como vai isso? ‑ perguntou.
Um pouco bêbedo ‑ admitiu Dave. ‑ Engordaste?
Jimmy dirigiu‑lhe um sorriso enigmático.
Não.
Pareces maior.
Jimmy encolheu os ombros.
Que andas a fazer por aqui? ‑ perguntou Dave.
Venho cá muitas vezes. Eu e o Vai conhecemos o Huey há
anos. Somos amigos há muito tempo. Porque é que não bebes esse
whiskey, Dave?
Dave pegou no copo.
‑Já estou a sentir‑me um tanto tocado.
E que mal é que isso faz? ‑ disse Jimmy, e Dave apercebeu‑
‑se de que também ele tinha um copo na mão. Levantou‑o e tocou
com ele no de Dave. ‑ Aos nossos filhos ‑ disse.
Aos nossos filhos ‑ conseguiu Dave dizer, sentindo‑se agora
verdadeiramente estranho, como se tivesse deslizado para fora do dia, atravessado a noite e entrado num sonho, um sonho em que todos os rostos estavam demasiado perto, mas as vozes soavam como se viessem do fundo de um esgoto.
Despejou o copo, fazendo uma careta por causa da queimadura, e Vai sentou‑se no banco ao lado dele. Passou‑lhe um braço pelos ombros e bebeu um golo directamente da jarra.
Sempre gostei deste lugar.
E um bom bar ‑ disse Jimmy. ‑ Ninguém nos chateia.
Isso é importante ‑ declarou Vai. ‑ Ninguém nos chatear nesta
vida. Ninguém lixar aqueles que amamos ou os nossos amigos. Não
é verdade, Dave?
Absolutamente ‑ concordou Dave.
Este gajo é de morrer a rir ‑ disse Vai. ‑ Não se consegue parar.
A sério? ‑ perguntou Jimmy.
Oh, sim ‑ respondeu Vai, apertando o ombro de Dave. ‑
Grande homem, Dave.
Celeste estava sentada na beira da cama, no quarto de motel, enquanto Michael via TV. Tinha o telefone no colo, e abria e fechava a mão sobre o auscultador.
Durante as horas do fim da tarde que passara com Michael junto da minúscula piscina em enferrujadas cadeiras de ferro, começara gradualmente a sentir‑se pequena e oca, como se pudesse ser vista de cima e parecesse posta de lado e tola e, pior do que isso, infiel.
O marido. Tinha traído o marido.
Talvez Dave tivesse assassinado Katie. Talvez. Mas em que estava ela a pensar quando contara tudo aJimmy, ajimmy, vejam bem? Porque não esperara, porque não pensara um pouco melhor naquilo? Porque fora que não considerara todas as outras alternativas con‑cebíveis? Porque tinha medo de Dave?
Mas aquele novo Dave que conhecera nos últimos dias era uma aberração, um Dave produzido pela tensão.
Talvez ele não tivesse assassinado Katie. Talvez.
A questão era que tinha pelo menos de dar‑lhe o benefício da dúvida até que aquilo se esclarecesse. Não tinha a certeza de poder viver com ele e pôr em perigo a vida de Michael, mas sabia agora que devia ter procurado a Polícia, e não Jimmy Marcus.
Teria querido fazer mal a Dave? Teria esperado que algo mais resultasse de olhar Jimmy nos olhos e falar‑lhe das suas suspeitas? E se sim, o quê? De todas as pessoas do mundo, porque fora ela dizer a Jimmy?
Havia uma porção de respostas possíveis para esta pergunta, e Celeste não gostava de qualquer delas. Pegou no auscultador e ligou para casa de Jimmy. Fê‑lo com o pulso a tremer, a pensar, Por favor, alguém atenda. Atendam. Por favor.
O sorriso no rosto de Jimmy estava agora a balouçar, para trás e para a frente, para cima de um lado, para baixo, para cima do outro, e Dave tentou focar os olhos no balcão, mas também ele estava a balouçar, como se fosse um barco e o mar começasse a ficar chateado.
Lembras‑te de uma vez termos trazido aqui o Ray Harris? ‑
perguntou Vai.
Claro ‑ respondeu Jimmy. ‑ O velho Ray.
Aquele Ray ‑ disse Vai, dando uma palmada no tampo da mesa
à frente de Dave ‑ era um cómico do caraças.
Sim ‑ concordou Jimmy ‑, o Ray era divertido. Sabia fazer rir.
A maior parte da malta chamava‑lhe Just Ray ‑ continuou Vai,
e Dave tentou concentrar‑se e perceber de que porra estavam eles a falar. ‑ Mas eu chamava‑lhe Ray Jingles.
Jimmy fez estalar os dedos e apontou para Vai.
‑ Isso mesmo. Por causa dos trocos.
Vai inclinou‑se para Dave, falou‑lhe ao ouvido.
‑ O tipo, estás a ver, trazia sempre nos bolsos para aí uns dez dólares em moedas. Ninguém sabia porquê. Gostava de trazer muitas moedas nos bolsos, para o caso de ter de telefonar para a Líbia, ou uma porra de um sítio assim, acho eu. Quem sabe? Mas andava todo o dia com as mãos nos bolsos, a fazer tilintar as moedas. Quer
dizer, o tipo era um ladrão, e as pessoas perguntavam‑lhe, «Quem é que não te ouve chegar, Ray?» Mas parece que ele deixava as moedas
em casa quando ia trabalhar. ‑ Vai suspirou. ‑ Um tipo engraçado.
Tirou o braço do ombro de Dave e acendeu outro cigarro. O fumo trepou pela cara de Dave, que o sentiu rastejar‑lhe pelas faces e enfiar‑se‑lhe pelos cabelos. Através do fumo, viu Jimmy olhar para ele com aquela expressão vazia, determinada, e houve qualquer coisa nos olhos de Jimmy de que não gostou, qualquer coisa familiar.
Era o olhar do chui, compreendeu. Do sargento Powers. A sensação de que estava a espreitar directamente para a mente dele. O sorriso voltou ao rosto de Jimmy, a subir e a descer como um bote, e Dave sentiu o estômago acompanhá‑lo, balouçando como se cavalgasse uma onda.
Engoliu em seco várias vezes, e inspirou profundamente.
‑ Estás bem? ‑ perguntou Vai.
Dave levantou uma mão. Se ao menos todos se calassem, ficaria óptimo.
Estou.
Tens a certeza? ‑ insistiu Vai. ‑ Estás verde, pá.
Subiu dentro dele e Dave sentiu a garganta fechar‑se como um punho e depois voltar a abrir‑se, e gotas de suor explodiram‑lhe na testa.
Oh, merda.
Dave.
Vou vomitar ‑ disse, sentindo‑o começar a subir outra vez.
‑ Palavra.
OK. OK. ‑ disse Vai, e deslizou a toda a pressa para fora do
compartimento. ‑ Vai às traseiras. O Huey não gosta de limpar vomitado da beira da sanita. Percebeste?
Dave saiu do compartimento e Vai agarrou‑o pelos ombros e voltou‑o para a porta junto ao extremo oposto do balcão, ao lado da mesa de bilhar.
Dave caminhou em direcção à porta, tentando avançar a direito, pôr um pé à frente do outro, mas mesmo assim a porta dançava um pouco. Era uma porta escura e pequena, de carvalho pintado de preto, riscado e lascado ao longo dos anos. Subitamente, Dave apercebeu‑se do calor da sala. Era pegajoso e espesso e soprava‑lhe nas costas enquanto cambaleava em frente e estendia a mão para a maçaneta de latão, grato pelo frio que sentiu na palma quando a rodou e abriu a porta.
A primeira coisa que viu foi as ervas. E depois a água. Saiu aos tropeções, surpreendido pela escuridão que havia ali fora, e então, como que em resposta ao seu pensamento, a lâmpada por cima da porta acendeu‑se e iluminou o alcatrão rachado à frente dele. Ouvia o ruído e o buzinar do trânsito na ponte e, de repente, sentiu a onda de náusea passar. Talvez estivesse bem, ao fim e ao cabo. Inspirou um fundo hausto de noite. A esquerda, alguém empilhara montes de paletes de madeira meio apodrecidas e enferrujadas armadilhas para lagostas, algumas delas com buracos de bordos irregulares, como se tivessem sido atacadas por tubarões. Perguntou a si mesmo que raio estariam a fazer aquelas armadilhas para lagostas tão para o interior e junto a um rio, e então decidiu que estava demasiado bêbedo para encontrar uma resposta. Para lá das pilhas de paletes e das armadilhas para lagostas havia uma vedação de rede de arame, tão ferrugenta como as armadilhas e estrangulada pelas ervas. Há direita, um campo de ervas da altura de um homem estendia‑se uns bons seis metros por um terreno pedregoso.
O estômago de Dave voltou a agitar‑se, e o novo vómito foi o mais violento, sacudindo‑lhe o corpo de baixo para cima. Tropeçou até à beira da água e baixou a cabeça no momento em que o medo e a Sprite e a cerveja jorraram de dentro dele para o oleoso Mystic. Era puro líquido. Não tinha mais nada lá dentro. Nem sequer se lembrava da última vez que comera. Mas no instante em que aquilo lhe saiu da boca e caiu na água, sentiu‑se muito melhor. Sentiu a frescura da noite nos cabelos. Uma brisa suave soprava do rio. Dave esperou, de joelhos, para o caso de vomitar mais, embora duvidasse. Era como se tivesse sido limpo por dentro.
Olhou para a parte inferior do tabuleiro da ponte, onde as pessoas se digladiavam para entrar na cidade ou para sair dela, todas irritadas e cheias de pressa, provavelmente meio conscientes de que não iam sentir‑se muito melhor quando chegassem a casa. Metade delas voltaria a sair logo a seguir ‑ para ir comprar qualquer coisa de que se tinha esquecido, para ir a um bar, a uma loja de vídeos, a um restaurante onde voltaria a esperar numa fila. E para quê? Para que é que fazemos fila? Aonde é que esperamos ir? E porque é que nunca somos tão felizes como pensávamos quando lá chegamos?
Dave reparou no pequeno barco com o motor fora‑de‑borda, à sua direita. Estava amarrado um pontão de tábuas tão estreito e periclitante que era quase abusivo chamar‑lhe um cais. O barco de Huey, imaginou, e sorriu à imagem do esquelético fulano a remar naquelas águas oleosas, com o vento a agitar‑lhe os cabelos negros como breu.
Rodou a cabeça e olhou para as paletes e para as ervas. Não admirava que as pessoas fossem ali vomitar. O sítio era completamente isolado. A menos que se estivesse do outro lado do rio, com binóculos, era impossível vê‑lo. Fechado por três lados, era tão silencioso que o ruído dos carros na ponte chegava abafado pela distância e a barreira de altas ervas bloqueava todos os sons excepto os gritos das gaivotas e o marulhar da água. Se Huey fosse esperto, limpava as ervas e as paletes e construía ali uma esplanada, atraía alguns dos yuppies que estavam a mudar‑se para Admirar e a tentar transformar Chelsea no próximo campo de batalha do aburguesamento, depois de terem acabado com East Bucky.
Cuspiu várias vezes e limpou a boca com as costas da mão. Pôs‑se de pé, decidido a dizer a Vai e a Jimmy que precisava de comer qualquer coisa antes de beber mais fosse o que fosse. Não tinha de ser comida boa, bastava que fosse substancial. E quando se voltou, viu os dois junto à porta preta, Vai à esquerda, Jimmy à direita. A porta estava fechada e Dave pensou que aqueles dois tinham um ar estranho, como se tivessem ido entregar mobília e não estivessem a ver onde descarregá‑la no meio de todas aquelas ervas.
‑ Eh, vieram ver se eu tinha caído à água?
Jimmy afastou‑se da parede e avançou para ele, e a lâmpada por cima da porta apagou‑se. Jimmy, que se tornara negro na escuridão, aproximou‑se lentamente, o rosto branco a apanhar alguma luz vinda da ponte, a entrar e a sair da escuridão.
‑ Deixa‑me falar‑te do Ray Harris ‑ disse Jimmy, tão baixo que Dave teve de inclinar‑se para a frente. ‑ O Ray Harris era um amigo meu, Dave. Costumava ir visitar‑me quando estive preso. Olhava pela Marita e pela Katie e pela minha mãe, via se precisavam de alguma coisa. Fazia estas coisas para eu pensar que era meu amigo, mas a verdadeira razão era a culpa. Sentia‑se culpado por lhe terem apertado
os tomates num torno e ele me ter chibado à Polícia. Estava muito arrependido do que tinha feito. Mas passados alguns meses depois de ele ter começado a ir visitar‑me à prisão, aconteceu uma coisa estranha. ‑Jimmy chegara junto de Dave e deteve‑se, olhou para a cara de Dave com a cabeça um pouco de lado. ‑ Descobri que gostava do
Ray. Apreciava verdadeiramente a companhia do fulano. Falávamos de desporto, de Deus, de livros, das nossas mulheres, dos nossos filhos, de política, de tudo. Ray era um desses tipos capazes de falar
a respeito seja do que for. Interessava‑se por tudo. O que é raro. Então a minha mulher morreu. Sabias? Morreu, e eles mandaram um guarda à minha cela dizer, «Lamento, prisioneiro, a sua mulher faleceu ontem à noite, às oito e quinze. Foi‑se.» E sabes o que me matou na morte da minha mulher, Dave? Foi ela ter tido de passar por aquilo
completamente sozinha. Sei o que estás a pensar, todos morremos
sozinhos. É verdade. Naquela última fase, quando já passámos para o outro lado, sim, estamos sozinhos. Mas a minha mulher tinha cancro da pele. Passou os últimos seis meses a morrer devagar. E eu podia ter estado com ela. Eu podia tê‑la ajudado com o morrer. Não com a morte, mas com o morrer. Mas não estive. O Ray, um tipo de quem eu gostava, roubou‑nos isso, a mim e à minha mulher.
Dave via uma fatia azul tinta do rio ‑ iluminada pelas luzes da ponte e a brilhar ‑ reflectida nos olhos de Jimmy.
‑ Porque é que estás a contar‑me isso, Jimmy? ‑ perguntou.
Jimmy apontou por cima do ombro de Dave.
‑ Obriguei o Ray a ajoelhar‑se ali adiante e dei‑lhe dois tiros.
Um no peito, o outro na garganta.
Vai afastou‑se da parede e foi colocar‑se à esquerda de Dave, sem pressas, com as ervas a erguerem‑se atrás dele. Dave sentiu a garganta apertar‑se e as entranhas secas.
Ouve, Jimmy, não sei... ‑ começou a dizer.
O Ray suplicou. Disse que éramos amigos. Disse que tinha
um filho. Disse que a mulher estava grávida. Disse que iria para outra cidade. Disse que eu nunca mais o veria. Pediu‑me que o deixasse viver para que pudesse ver o filho nascer. Disse que me conhecia e que sabia que eu era um homem bom e que não queria fazer aquilo. ‑ Jimmy olhou para a ponte. ‑ E eu queria dizer‑lhe uma
coisa. Queria dizer‑lhe que tinha amado a minha mulher e que ela tinha morrido e que o considerava responsável e, além disso, por uma questão de princípio, nunca se denuncia um amigo se se quer ter
uma vida longa. Mas não disse nada disso, Dave. Estava a chorar demasiado. Foi uma coisa patética, Dave. Ele chorava, eu chorava.
Quase não conseguia vê‑lo.
Então porque o mataste? ‑ perguntou Dave, e havia uma ânsia
desesperada na voz dele.
Já te disse ‑ respondeu Jimmy, como se estivesse a explicar‑
‑se a um garoto de quatro anos. ‑ Por uma questão de princípio.
Eu era um viúvo de vinte e dois anos com uma filha de cinco. Tinha perdido os dois últimos anos da vida da minha mulher. E, porra, o Ray conhecia muito bem a regra número um do nosso ofício...
nunca se denuncia um amigo.
É isso que julgas que eu fiz, Jimmy? Diz‑me?
‑ Quando matei o Ray ‑ continuou Jimmy ‑, senti, não sei,
senti uma falta absoluta de mim mesmo. Senti que Deus estava a
olhar para mim quando o matei e o empurrei para a água. E Deus
estava a abanar a cabeça. Mas não exactamente zangado. Estava
enojado, mas não surpreendido, acho, como ficamos quando um
cachorro caga na nossa alcatifa. Fiquei aí mesmo, atrás de onde tu estás agora, a ver o Ray afundar‑se, percebes? A cabeça foi a última coisa a desaparecer, e lembro‑me de ter pensado que, quando era pequeno, costumava acreditar que se nadasse até ao fundo de
qualquer corpo de água, atravessaria o chão e a minha cabeça romperia para o espaço. Era assim que imaginava o mundo, estás a perceber? Portanto ali ficaria eu, com a cabeça a espreitar para fora do mundo, e todo aquele espaço e estrelas e céu negro à minha volta, e então cairia para o espaço e afastar‑me‑ia a flutuar, sempre
a flutuar durante milhões de anos, no meio de todo aquele frio.
E quando o Ray se afundou foi nisso que pensei. Que continuaria a afundar‑se até que a cabeça dele saísse por um buraco no planeta e mergulhasse através de um milhão de anos de espaço.
Sei que estás a pensar qualquer coisa, Jimmy, mas estás enganado ‑ disse Dave. ‑ Pensas que matei a Katie, não pensas? É isso?
Não fales, Dave ‑ disse Jimmy.
Não, não, não ‑ gritou Dave, reparando na arma que aparecera na mão de Vai. ‑ Não tive nada a ver com a morte da Katie.
Vão matar‑me, compreendeu Dave. Oh, Jesus, não. Isto é uma coisa para a qual uma pessoa tem de poder preparar‑se. Não se sai de um bar para vomitar e quando nos voltamos descobrimos que é o fim da nossa vida. Não. Tenho de ir para casa. Tenho de fazer as pazes com a Celeste. Tenho de comer qualquer coisa.
Jimmy meteu a mão no bolso do casaco e tirou de lá uma navalha. A mão tremia‑lhe um pouco quando abriu a lâmina. E o lábio superior e uma parte do queixo também tremiam, notou Dave. Havia esperança. Não deixes o cérebro paralisar. Há esperança.
‑ Chegaste a casa na noite em que a Katie morreu com as roupas cheias de sangue, Dave. Contaste duas histórias diferentes a respeito de como tinhas magoado a mão, e o teu carro foi visto no
parque do Last Drop mais ou menos à hora a que a Katie de lá saiu.
Mentiste aos chuis e tens andado a mentir a toda a gente.
‑ Escuta, Jimmy. Por favor, olha para mim.
Jimmy manteve os olhos no chão.
Jimmy, tinha sangue nas roupas, é verdade. Bati num tipo.
Bati‑lhe muito.
Oh, é a história do assaltante?
Não. Era um abusador de crianças. Estava a praticar sexo com
um miúdo, dentro do carro. Era um vampiro, Jim. Estava a envenenar aquele miúdo.
Então não era um assaltante. Era um tipo qualquer que, se bem
entendo, estava a abusar sexualmente de uma criança. Claro, Dave.
Com certeza. Mataste o tipo?
Sim. Bem, eu... eu e o Rapaz.
Dave não fazia ideia do que o levara a dizer aquilo. Nunca tinha falado do Rapaz. Era uma coisa que não se fazia. As pessoas não compreendiam. Talvez tivesse sido o medo. Talvez fosse a necessidade de que Jimmy olhasse para dentro da cabeça dele, e compreendesse que, sim, era uma confusão, lá dentro, mas vê‑me a mim, Jimmy. Compreende que eu não sou o tipo de homem capaz de matar um inocente.
Então, tu e o miúdo e...
Não.
‑ Não o quê? Disseste que tu e o rapaz...
‑ Não, não. Esquece isso. Por vezes a minha cabeça baralha‑
‑se. Digo...
‑ Palavra? Então mataste um pedófilo? Estás a contar‑me isso
a mim mas não o contaste à tua mulher? Para mim, seria a primeira pessoa a quem o contarias. Sobretudo a noite passada, quando ela te disse que não acreditava na história do assaltante. Porque não
lhe contaste a ela? Quer dizer, a maior parte das pessoas não se importa quando um abusador de crianças morre, Dave. A tua mulher pensava que tu tinhas morto a minha filha, Dave. E queres que eu acredite que preferiste que ela pensasse isso em vez de pensar que mataste um pedófilo? Explica‑me lá isso, Dave.
Dave queria dizer, Matei‑o porque tinha medo de estar a transformar‑me nele. Se lhe comesse o coração, absorveria e submergiria o espírito dele. Mas não posso dizer isto em voz alta. Não posso dizer essa verdade. Bem sei que hoje jurei que não haveria mais segredos. Mas, merda, esse segredo tem de continuar a ser um segredo... por muitas mentiras que tenha de dizer para o manter enterrado.
‑ Vá lá, Dave. Diz‑me só porquê. Porque é que não podias contar a, hum, verdade, à tua própria mulher.
E o melhor que Dave conseguiu encontrar para dizer foi:
‑ Não sei.
‑ OK. Então, nesse conto de fadas, tu e o rapaz... o que é que ele é suposto ser, tu quando eras miúdo?... tu e ele vão e...
‑ Fui só eu ‑ disse Dave. ‑ Fui eu que matei a criatura sem rosto.
A quê? ‑ perguntou Vai.
O tipo. O abusador. Matei‑o. Eu. Só eu. No parque de estacionamento do Last Drop.
‑ Não ouvi falar de nenhum tipo morto encontrado perto do
Last Drop ‑ disse Jimmy, e olhou para Vai.
Estás a deixar esse monte de merda explicar, Jim? ‑ exclamou Vai. ‑ Estás a brincar comigo?
Não, é verdade ‑ disse Dave. ‑ Juro pelo meu filho. Meti o
tipo no porta‑bagagens do carro dele. Não sei o que aconteceu ao carro, mas foi o que fiz, juro por Deus. Quero ver a minha mulher,
Jimmy. Quero viver a minha vida. ‑ Dave ergueu os olhos para a
negra face inferior do tabuleiro da ponte, ouviu o ruído dos pneus lá em cima, as luzes amarelas que corriam para casa. ‑ Jimmy? Por favor, não me tires isso.
Jimmy olhou para a cara de Dave e Dave viu a sua própria morte. Vivia em Jimmy como os lobos. Desejou com muita força ser capaz de enfrentar aquilo. Mas não era. Não era capaz de enfrentar a morte. Estava ali naquele momento ‑ naquele preciso momento, com os pés naquele alcatrão, o coração a bombear sangue, o cérebro a enviar mensagens aos nervos e aos músculos e aos órgãos, as glândulas a segregarem hormonas ‑ e de um momento para o outro, podia ser já, uma lâmina cravar‑se‑lhe‑ia no peito. E com toda aquela dor viria a certeza de que a sua vida ‑ a sua vida e a sua visão e o comer e o fazer amor e o rir e o tocar e o cheirar
‑ terminaria. Não conseguia ser corajoso face a uma coisa daquelas. Ia suplicar. Sim. Ia fazer tudo o que eles quisessem desde que não o matassem.
‑ Penso que entraste naquele carro, há vinte e cinco anos, Dave,
e outra pessoa qualquer regressou no teu lugar. Penso que o teu cérebro fez curto‑circuito, ou coisa assim ‑ disse Jimmy. ‑ Ela tinha dezanove anos. Sabias? Dezanove anos, e nunca te tinha feito mal
nenhum. Na realidade, até gostava de ti. E tu mataste‑a? Porquê? Por que a tua vida é uma merda? Porque a beleza te ofende? Porque eu não entrei naquele carro? Porquê? Diz‑me só isso, Dave. Diz‑me
isso. Diz‑me isso, e eu deixo‑te viver.
Foda‑se, não! ‑ gritou Vai. ‑Jimmy? Não. Ora vamos. Estás
a ter pena deste sacana de merda? Ouve...
Cala a boca, Vai ‑ disse, Jimmy, apontando um dedo para ele.
‑ Entreguei‑te uma porra de uma máquina quando fui preso, e tu deixaste‑a desfazer‑se aos pedaços. Dei‑te tudo, e o melhor que tu conseguiste foi chefiar uns gorilas e vender merda de drogas. Não me dês conselhos, Vai. Não penses sequer em fazer essa merda.
Vai voltou‑lhe as costas, pôs‑se aos pontapés às ervas, falando muito depressa para si mesmo, em voz baixa.
‑ Diz‑me, Dave. Mas não me venhas com essa treta do abusador de crianças, porque esta noite não estou para ouvir tretas. OK?
Diz‑me a verdade. Se voltas a mentir‑me, abro‑te de alto a baixo.
Jimmy inspirou fundo várias vezes. Manteve a navalha diante da cara de Dave, e então baixou‑a e enfiou‑a entre o cinto e as calças, na anca direita. Mostrou as mãos vazias.
‑ Dave, dou‑te a tua vida. Diz‑me só porque foi que a mataste.
Vais para a prisão. Não estou a mentir‑te. Mas viverás. Respirarás.
Dave sentiu‑se tão grato que queria agradecer a Deus em voz alta. Queria abraçar Jimmy. Trinta segundos antes, estivera cheio do mais negro dos desesperos. Estivera preparado para cair de joelhos e dizer, não quero morrer. Não estou pronto. Não estou pronto para partir. Não sei o que é que há do outro lado, para lá de mim. Não acredito que seja o céu. Não acredito que seja brilhante. Acredito que é escuro e frio e um túnel interminável de nada. Como o teu buraco no planeta, Jim. E eu não quero estar sozinho no nada, anos de nada, séculos de nada frio, frio, e o meu coração solitário a flutuar através dele, sozinho e sozinho e sozinho.
Agora ia poder viver. Se mentisse. Se mordesse a bala e dissesse a Jimmy o que ele queria ouvir. Iam insultá‑lo. Provavelmente iam espancá‑lo. Mas viveria. Tinha‑o visto nos olhos de Jimmy. Jimmy não estava a mentir. Os lobos tinham‑se ido embora e tudo o que ficara à sua frente era um homem com uma navalha que precisava de encerrar o que ficara em aberto, um homem que estava a afundar‑se sob o peso de todo aquele não‑saber, a chorar uma filha em que nunca mais voltaria a tocar.
Vou voltar para ti, Celeste. Havemos de fazer a tal boa vida. Vais ver. E então, prometo, acabam‑se as mentiras. Acabam‑se os segredos. Mas acho que preciso de dizer esta última mentira, a pior mentira da minha vida mentirosa, porque não posso dizer a pior verdade da minha vida. Prefiro que ele pense que lhe matei a filha a que saiba por que razão matei aquele pedófilo. E uma mentira boa, Celeste. Vai comprar‑nos as nossas vidas.
‑ Diz‑me ‑ disse Jimmy.
Dave manteve‑se o mais perto da verdade que lhe foi possível.
Via‑a no McGills naquela noite, e ela lembrou‑me um sonho
que eu tinha tido.
A respeito de quê? ‑perguntou Jimmy, e o rosto dele afun
dou‑se, a voz soou estaladiça.
‑ Da juventude ‑ respondeu Dave.
Jimmy deixou pender a cabeça.
‑ Não me lembro de ter tido uma ‑ continuou Dave ‑, e a Katie era o sonho dela, e eu pifei, suponho.
Matava‑o estar a dizer aquilo a Jimmy, a rasgá‑lo com aquilo, mas tudo o que Dave queria era ir para casa e arrumar a cabeça e ver a família, e se aquele era o preço, ia pagá‑lo. Ia conseguir. E dentro de um ano, quando o verdadeiro assassino fosse apanhado e condenado, Jimmy havia de compreender o seu sacrifício.
‑ Uma parte de mim ‑ continuou ‑ nunca saiu daquele carro,
Jim. Foi como tu disseste. Um outro Dave qualquer voltou ao bairro com as roupas do Dave, mas não era o Dave. O Dave ainda continua naquela cave. Sabias?
Jimmy assentiu e, quando levantou a cabeça, Dave viu que tinha os olhos húmidos e brilhantes e cheios de compaixão, talvez até de amor.
Foi o sonho, então? ‑ murmurou Jimmy.
Foi o sonho, sim ‑ disse Dave, e sentiu o frio da mentira es
palhar‑se‑lhe pelo estômago e tornar‑se tão frio que ele pensou que
talvez fosse fome, tendo despejado os intestinos no Mystice minutos antes. Mas era um frio diferente, diferente de todos os que alguma vez sentira. Um frio gelado. Tão frio que era quase quente.
Não, era quente. Estava a arder, com labaredas a atravessarem‑lhe o ventre e a subirem‑lhe pelo peito, sugando o ar para fora dele.
Pelo canto do olho, viu Vai Savage dar um salto e gritar.
‑ Sim! É disso mesmo que eu estou a falar!
Olhou para a cara de Jimmy. Jimmy, com os lábios a moverem‑‑se simultaneamente demasiado devagar e demasiado depressa, disse:
‑ Enterramos os nossos pecados aqui, Dave. Lavamo‑los até ficarmos limpos.
Dave sentou‑se. Viu o sangue escorrer dele para as calças. Estava a jorrar dele, e quando levou a mão ao abdómen, tocou com os dedos uma fenda que ia de um lado ao outro.
Mentiste, disse.
Jimmy inclinou‑se para ele.
‑ O quê?
Mentiste.
Vê os lábios dele a mexer ‑ disse Vai. ‑ O sacana está a mexer
os lábios.
Tenho olhos, Vai.
Dave sentiu então o conhecimento invadi‑lo, e era o conhecimento mais horrível que alguma vez enfrentara. Era maldoso e indiferente. Era insensível, e era apenas isto: estou a morrer.
Não posso regressar disto. Não posso escapar a isto, por mais que minta ou me furte. Por mais que peça ou me esconda atrás dos meus segredos. Não posso contar com uma moratória baseada na pena. Pena de quem? Ninguém quer saber. Ninguém quer saber. Excepto eu. Eu quero saber, muito. E isto não é justo. Não consigo enfrentar aquele túnel sozinho. Por favor, não me deixem ir para lá. Por favor, acordem‑me. Quero acordar. Quero sentir‑te, Celeste. Quero sentir os teus braços. Ainda não estou pronto.
Forçou os olhos a focarem‑se quando Vai deu qualquer coisa a Jimmy e Jimmy a baixou até à testa dele. Era fresca. Era um círculo de frescura, de bondade e de alívio do fogo que lhe queimava o corpo.
Espera! Não. Não, Jimmy! Estou a ver o gatilho. Não, não, não, não. Olha para mim. Vê‑me. Não faças isso. Por favor. Se me levarem a um hospital, ficarei bem. Eles salvam‑me. Oh, Deus, Jimmy, não faças isso com o teu dedo não faças isso eu menti eu menti por favor não me me afastes disto por favor não posso estar preparado para uma bala no cérebro. Ninguém pode. Ninguém. Por favor, não.
Jimmy baixou a arma.
Obrigado, disse Dave. Obrigado, obrigado.
Estendido de costas, Dave viu os feixes de luz correrem pela ponte, cortando a escuridão da noite, brilhando. Obrigado, Jimmy. Vou passar a ser um homem bom. Ensinaste‑me uma coisa. Palavra. E eu vou dizer‑te o que foi assim que consiga voltar a respirar. Vou ser um bom pai. Vou ser um bom marido. Prometo. Juro...
‑ OK, está feito ‑ disse Vai.
Jimmy olhou para o corpo caído de Dave, para o desfiladeiro que lhe abrira no ventre, para o orifício da bala que lhe disparara na testa. Descalçou os sapatos e despiu o casaco. Depois, despiu a camisola de gola alta e as calças de caqui que sujara com o sangue de Dave. Desembaraçou‑se do fato de treino de nylon que usara por baixo daquelas roupas e juntou‑o ao monte junto ao cadáver. Ouviu Vai pôr os blocos de cimento e a corrente no barco de Huey, e então Vai voltou com um grande saco de lixo verde. Por baixo do fato de treino, Jimmy vestia uma T‑shirt e uns jeans, e Vai tirou um par de sapatos do saco de lixo e atirou‑lhos. Jimmy calçou‑os e verificou a T‑shirt e os jeans em busca de qualquer vestígio de sangue que pudesse ter passado. Não encontrou nada. O próprio fato de treino quase não estava sujo.
Ajoelhou‑se ao lado de Vai e enfiou as roupas no saco de lixo. Então levou a navalha e a pistola até à beira do cais e atirou‑as, uma de cada vez, para o meio do Mystic. Podia tê‑las metido no saco juntamente com as roupas e lançá‑las do barco mais tarde, juntamente com o corpo de Dave, mas, por qualquer razão, sentira a necessidade de fazê‑lo já, experimentar o movimento do braço a projectar‑se para a frente e as armas a rodopiarem, descreverem um arco, caírem e desaparecerem com um ligeiro espadanar.
Ajoelhou‑se à beira da água. O vómito de Dave fora há muito levado pela corrente e Jimmy mergulhou as mãos no rio, oleoso e poluído como estava, e lavou‑as do sangue de Dave. Por vezes, nos seus sonhos, estava a fazer exactamente aquilo ‑ a lavar‑se no Mystic ‑ e a cabeça de Just Ray aparecia à superfície, como uma rolha, a olhar para ele.
Just Ray dizia sempre a mesma coisa:
Não consegues correr mais do que um comboio.
E Jimmy, confuso, respondia:
Ninguém consegue, Ray.
Just Ray, começando novamente a afundar‑se, sorria.
‑ Pois não, mas especialmente tu.
Treze anos daqueles sonhos, treze anos da cabeça de Just Ray a balouçar à tona da água, e Jimmy continuava a não perceber que raio queria ele dizer com aquilo.
Quem É Que Tu Amas?
Quando Brendan chegou a casa, a mãe tinha saído para o Bingo. Deixara uma nota: «Frango no frigorífico. Contente por estares bem. Não faças disto um hábito.»
Brendan procurou no quarto que partilhava com o irmão, mas Ray também não estava. Foi buscar uma cadeira à cozinha e levou‑a para a copa. Subiu para a cadeira, que se inclinou para a esquerda, onde uma das pernas tinha um parafuso a menos. Olhou para o painel do tecto e viu as marcas de dedos no pó, e o ar directamente à frente dos olhos dele encheu‑se de pequenos pontos negros. Apoiou a palma da mão direita no painel e levantou‑o ligeiramente. Baixou a mão e limpou‑a às calças, e inspirou fundo várias vezes.
Havia coisas para as quais uma pessoa não queria saber a resposta. Depois de ter crescido, Brendan nunca quisera encontrar‑se face a face com o pai porque não queria olhar para a cara dele e ver como lhe fora fácil abandoná‑los. Nunca perguntara a Katie o que quer que fosse a respeito dos seus antigos namorados, nem sequer de Bobby O'Donnell, porque não queria imaginá‑la deitada em cima de outro homem, a beijá‑lo como o beijava a ele.
Brendan sabia da existência da verdade. Na maior parte dos casos, era só uma questão de decidir se se queria olhá‑la de frente ou viver no conforto da ignorância e das mentiras. E a ignorância e as mentiras eram com frequência subestimadas. A maior parte das pessoas que conhecia não conseguiria sobreviver até ao fim do dia sem um prato de ignorância e uma dose de mentiras a acompanhar.
Mas aquilo, aquela verdade, tinha de ser enfrentada. Porque já a enfrentara na cela de detenção, e ela rasgara‑o como uma bala e alojara‑se‑lhe no estômago. E não ia sair de lá, o que significava que não podia esconder‑se dela, não podia dizer a si mesmo que não estava ali. A ignorância deixara de ser possível. A mentira deixara de ser uma parte acessível da equação.
‑ Merda ‑ disse Brendan, e empurrou o painel para o lado, e procurou naquele espaço escuro, tocando com os dedos pó, lascas de madeira e mais pó, mas nenhuma arma. Tacteou com a mão durante mais um minuto, apesar de saber que ela tinha desaparecido. A arma do pai não estava onde era suposta estar. Andava à solta no mundo, e tinha matado Katie.
Voltou a colocar o painel no respectivo lugar. Foi buscar um espanador e limpou o pó que caíra no chão. Levou a cadeira para a cozinha. Sentiu uma necessidade de ser preciso nos seus movimentos. Sentiu que era importante permanecer calmo. Encheu um copo de sumo de laranja e pousou‑o em cima da mesa. Sentou‑se na cadeira que tinha a perna meio solta e colocou‑se de modo a ficar de frente para a porta no centro do apartamento. Bebeu um golo de sumo de laranja e esperou por Ray.
Olha para isto ‑ disse Sean, tirando a pasta com as impressões digitais de dentro da caixa e abrindo‑a diante de Whitey. ‑ E a mais nítida que recolheram da porta. É pequena porque pertence a um miúdo.
A velhota Pryor ouviu dois miúdos a brincar na rua pouco
antes de a Katie bater com o carro no passeio. A brincar com sticks
de hóquei, disse ela.
E também disse que ouviu a Katie dizer «Olá». Talvez não
fosse a Katie. A voz de um miúdo pequeno é muito parecida com
a de uma mulher. E não havia pegadas? Claro que não. O que é que eles podem pesar... quarenta e cinco quilos?
Reconheceste a voz do puto?
Pareceu‑me a do Johnny O'Shea.
Whitey assentiu.
O outro puto não disse nada.
Porque é mudo ‑ respondeu Sean.
‑ Eh, Ray ‑ chamou Brendan, quando os dois rapazes entraram no apartamento.
Ray fez‑lhe um sinal de cabeça. Johnny O'Shea acenou‑lhe com a mão. Começaram a dirigir‑se para o quarto.
‑ Chega aqui um instante, Ray.
Ray olhou para Johnny.
‑ É só um instante, Ray. Quero perguntar‑te uma coisa.
Ray voltou para trás e Johnny O'Shea deixou cair o saco de ginástica que transportava e sentou‑se na beira da cama de Mrs. Har‑ris. Ray percorreu o curto corredor até à cozinha e abriu as mãos, olhando para o irmão como que a peguntar: «O que é?»
Brendan enganchou o pé na perna de uma cadeira, puxou‑a de baixo da mesa e apontou para ela com o queixo.
Ray pôs a cabeça de lado, como se cheirasse alguma coisa no ar. Olhou para a cadeira. Olhou para Brendan.
O que foi que eu fiz? ‑ sinalizou.
Diz‑me tu ‑ respondeu Brendan.
Não fiz nada.
Então senta‑te.
Não quero.
Porque não?
Ray encolheu os ombros.
Quem é que tu odeias, Ray? ‑ perguntou Brendan.
Ray olhou para o irmão como se ele estivesse louco.
Vá lá ‑ insistiu Brendan. ‑ Quem é que tu odeias?
Ray fez um curto sinal.
Ninguém.
Brendan assentiu.
OK. E quem é que tu amas?
Ray voltou a fazer a mesma cara.
Brendan inclinou‑se para a frente, com as mãos apoiadas nos joelhos.
‑ Quem é que tu amas?
Ray olhou para os pés, depois para Brendan. Levantou a mão e apontou para o irmão.
Amas‑me a mim?
Ray assentiu, inquieto.
E a Mã?
Ray abanou a cabeça.
Não amas a Mã?
Não sinto nada por ela ‑ gesticulou Ray.
Sou então a única pessoa que tu amas?
Ray projectou o pequeno rosto para a frente. As mãos dele voaram.
Sim. Agora já posso ir?
Não ‑ disse Brendan. ‑ Senta‑te.
Ray olhou para a cadeira, vermelho de fúria. Olhou para Brendan. Levantou a mão e esticou o dedo médio, e então fez meia volta e saiu da cozinha.
Brendan quase só se apercebeu de que se tinha movido quando agarrou Ray pelos cabelos e começou a levantá‑lo do chão. Puxou o braço para trás, como se estivesse a puxar a corda de um enferrujado corta‑relva, e então abriu os dedos e Ray voou para trás, bateu na parede e caiu em cima da mesa da cozinha, que se desmanchou e tombou no chão, arrastando‑o consigo.
‑ Amas‑me? ‑ disse Brendan, sem sequer olhar para o irmão.
‑ Amas‑me, de modo que matas a porra da minha namorada, Ray?
É isso? ‑ Esta pôs Johnny O'Shea em movimento, como Brendan
calculara que aconteceria. Johnny pegou no saco de ginástica e correu para a porta, mas Brendan foi mais rápido. Agarrou o sacaninha pela garganta e bateu com ele contra a madeira.
O meu irmão nunca faz nada sem ti, O'She. Nunca.
Ergueu o punho e Johnny gritou:
Não, Bren! Não!
Brendan bateu‑lhe na cara com tanta força que lhe partiu o nariz. E depois bateu‑lhe outra vez. Quando Johnny caiu no chão, enrolou‑se numa bola, cuspindo sangue para as tábuas do soalho, e Brendan disse:
‑Já volto a falar contigo. E quando voltar sou capaz de matar‑‑te à porrada, seu monte de lixo.
Ray estava de pé a cambalear, com os ténis a escorregar nos pratos partidos, quando Brendan voltou à cozinha e lhe deu um estalo na cara, com tanta força que o atirou contra o lava‑louça. Agarrou o irmão pela camisa, e Ray olhou para a cara dele com lágrimas a caírem‑lhe dos olhos cheios de ódio e a boca suja de sangue, e Brendan atirou‑o ao chão, abriu‑lhe os braços e ajoelhou‑se em cima deles.
‑ Fala ‑ disse Brendan. ‑ Eu sei que podes falar. Fala, maldito
anormal, ou, juro‑o por Deus, Ray, mato‑te. Fala! ‑ gritou, e bateu
com ambos os punhos nos ouvidos de Ray. ‑ Fala! Diz o nome dela!
Di‑lo! Diz «Katie», Ray. Diz «Katie»!
Os olhos de Ray estavam a ficar enevoados e mortiços, e cuspiu sangue para o próprio rosto.
‑ Fala! ‑ gritou Brendan. ‑ Mato‑te se não falares!
Agarrou o irmão pelos cabelos, junto às têmporas, levantou‑lhe
a cabeça do chão e sacudiu‑lha de um lado para o outro até que os olhos de Ray voltaram a focar‑se e Brendan manteve‑lhe a cabeça imóvel e olhou para o fundo daquelas pupilas cinzentas, viu nelas tanto amor e tanto ódio que quis arrancar‑lhe a cabeça e atirá‑la pela janela.
‑ Fala ‑ voltou a dizer, mas desta vez a voz saiu‑lhe num murmúrio rouco e estrangulado. ‑ Fala.
Ouviu alguém tossir e olhou para trás, viu Johnny O'Shea de pé, a cuspir sangue, com a arma de Just Ray na mão.
Sean e Whitey iam a subir as escadas quando ouviram o ruído, alguém a gritar no apartamento e o som inconfundível de carne a bater em carne. Ouviram um homem gritar «Mato‑te!» e Sean tinha a mão na coronha da Glock quando agarrou a maçaneta da porta.
Espera ‑ disse Whitey, mas Sean já tinha rodado a maçaneta, e entrou no apartamento e viu‑se com uma arma apontada ao
peito, a uma distância de quinze centímetros.
Quieto! Não puxes esse gatilho, miúdo!
Sean olhou para o rosto ensanguentado de Johnny O'Shea e o que lá viu assustou‑o mortalmente. Não havia ali nada. Provavelmente, nunca houvera. O miúdo não ia carregar no gatilho por estar furioso ou por estar com medo. Ia carregar no gatilho porque Sean era apenas uma imagem de um jogo de vídeo com um metro e oitenta de altura, e a arma era um joystkk.
‑Johnny, tens de apontar essa arma para o chão.
Sean ouvia Whitey respirar do outro lado do umbral.
Johnny.
O sacana bateu‑me ‑ disse Johnny O'Shea. ‑ Duas vezes. Partiu‑me o nariz.
Quem?
O Brendan.
Sean olhou para a esquerda, viu Brendan de pé à porta da cozinha, com os braços pendentes ao longo do corpo, petrificado. Johnny O'Shea, compreendeu, preparava‑se para matar Brendan quando ele entrara porta dentro. Ouvia a respiração de Brendan, superficial e lenta.
Prendemo‑lo, se é isso que queres.
Não o quero preso. Quero‑o morto.
A morte é uma coisa séria, Johnny. A morte é nunca mais voltar, sabes disso?
Claro que sei ‑ respondeu o miúdo. ‑ Sei tudo a respeito dessa
merda. Vai usar essa coisa? ‑ O rapaz tinha a cara desfeita, com o sangue a escorrer‑lhe do nariz partido e a pingar‑lhe para o queixo.
Que coisa? ‑ perguntou Sean.
Johnny O'Shea apontou com o queixo para a anca dele.
Essa arma. É uma Glock, não é?
Sim, é uma Glock.
A Glock manda balanço, pá. Gostava de ter uma. Então, vai
usá‑la?
Agora?
Sim. Vai sacá‑la contra mim?
Sean sorriu.
Não, Johnny.
Porque caraças é que está a sorrir? ‑ disse Johnny. ‑ Vá lá,
saque. Veremos o que acontece. Vai ser giro. ‑ Empurrou a arma
para a frente, esticando os braços, e o cano ficou a talvez dois centímetros do peito de Sean.
Acho que me apanhaste, parceiro ‑ disse Sean. ‑ Percebes o
que quero dizer.
Apanhei o gajo, Ray ‑ gritou Johnny. ‑ Uma porra de um
chui, pá. Eu! Anda cá ver.
Vamos... ‑ começou Sean.
Uma vez vi um filme. Um chui ia a perseguir um preto pelos
telhados. E o preto atirou‑o lá de cima. O chui foi a gritar «Aaaagh!»
até bater no chão. O preto era tão mau que nem quis saber se o chui tinha uma mulher e umas merdas de uns filhos lá em casa. O sacana do preto era mesmo duro, pá.
Sean já vira aquilo acontecer uma vez. Quando ainda andava de uniforme e o tinham mandado conter a multidão durante um assalto a um banco que dera para o torto, o tipo que estava lá dentro a tornar‑se cada vez mais forte durante um período de duas horas, a sentir o poder da arma que empunhava e o efeito que ela tinha, Sean a vê‑lo gritar e gesticular no monitor ligado às câmaras do banco. Ao princípio, o fulano ficara assustado, mas depois tinha‑lhe passado. Apaixonara‑se por aquela arma.
E, por um momento, Sean viu Lauren a olhar para ele da almofada, com a cabeça apoiada numa mão. Viu a sua filha de sonho, cheirou‑a, e pensou que seria uma merda morrer sem conhecê‑la ou voltar a ver Lauren.
Concentrou a atenção no rosto vazio que tinha à sua frente. Disse:
‑ Estás a ver aquele tipo à tua esquerda, Johnny? O que está à porta?
Os olhos de Johnny dardejaram para a esquerda.
Estou.
Ele não quer dar‑te um tiro. A sério que não.
Quero lá saber ‑ disse Johnny, mas Sean viu o medo chegar‑
‑lhe aos olhos, que se puseram a saltar para cima e para baixo.
Mas se me matares, ele não terá por onde escolher.
Não tenho medo de morrer.
Eu sei que não. Mas vou dizer‑te uma coisa. Ele não vai
acertar‑te na cabeça, nem nada disso. Não matamos miúdos, pá.
Mas se disparar contra ti do sítio onde está, sabes onde é que a bala vai acertar?
Sean manteve os olhos em Johnny, apesar de a sua cabeça parecer hipnotizada pela arma que o miúdo tinha na mão, querendo olhar para ela, ver onde estava o gatilho, se o miúdo estava a apertá‑lo, e pensou, Não quero morrer, sobretudo, não quero ser morto por um miúdo. Que maneira mais patética de acabar. Sentiu Brendan, três metros para a sua esquerda e como que petrificado, provavelmente a pensar a mesma coisa. Johnny lambeu os lábios.
‑ Vai entrar‑te pela axila e alojar‑se na espinha, pá. Vai paralisar‑te. Vais ser como aqueles miúdos que aparecem nos anúncios
do Jimmy Fund. Tu sabes quais são. Sentados numa cadeira de rodas,
imobilizados de um lado, com a cabeça a cair para fora da cadeira.
Vais passar o resto da vida a babar‑te, Johnny. As pessoas vão ter de segurar o copo ao lado da tua cabeça para poderes chupar água por uma palhinha.
Johnny tomou uma decisão. Sean viu‑o, como se uma luz se tivesse apagado no escuro cérebro do miúdo, e sentiu o medo apoderar‑se dele, soube que aquele puto ia carregar no gatilho quanto mais não fosse para ouvir o som.
‑ A porra do meu nariz, pá ‑ disse Johnny, e virou‑se para
Brendan.
Sean ouviu o ar explodir‑lhe da boca para fora numa exclamação de surpresa, e baixou os olhos e viu a arma rodar para longe do seu corpo, como se girasse no alto de um tripé. Estendeu os braços tão rapidamente que foi como se outra pessoa qualquer estivesse a controlar‑lhe os músculos e fechou a mão sobre o cano da arma no momento em que Whitey entrava na sala, de Glock apontada ao peito do puto. Saiu um som da boca de Johnny ‑ uma exclamação de surpresa derrotada, como se acabasse de abrir um presente de Natal para encontrar uma meia suja lá dentro ‑ e Sean empurrou‑‑lhe a cabeça contra a parede e tirou‑lhe a arma da mão.
‑ Filho da puta ‑ disse Sean, e piscou os olhos para Whitey
através do suor que lhe escorria da testa.
Johnny começou a gritar como só um miúdo de treze anos é capaz, como se o mundo inteiro se lhe tivesse sentado em cima da cara.
Sean voltou‑o para a parede e puxou‑lhe as mãos para trás das costas, viu Brendan inspirar fundo, com os lábios e os braços a tremer, e Ray Harris de pé junto dele à porta da cozinha, com o aspecto de ter sido apanhado por um ciclone.
Whitey chegou atrás de Sean e pousou‑lhe uma mão num ombro.
Como é que estás?
O puto ia fazê‑lo ‑ disse Sean, sentindo o suor empapar‑lhe
cada centímetro da roupa, incluindo as meias.
Não ia nada ‑ gritou Johnny. ‑ Estava só a brincar.
Vai‑te foder ‑ disse Whitey, e aproximou muito a cara da do
miúdo. ‑ Ninguém quer saber das tuas lágrimas a não ser a tua
mamã, meu sacaninha. Vai‑te habituando a isso.
Sean algemou Johnny O'Shea, agarrou‑o pela camisa, levou‑o para a cozinha e empurrou‑o para uma cadeira.
‑ Eh, Ray ‑ disse Whitey ‑, parece que alguém te atirou da traseira de um camião.
Ray olhou para o irmão.
Brendan encostou‑se ao fogão, tão pouco firme nas pernas que Sean pensou que.bastaria um sopro para o derrubar.
Nós sabemos ‑ disse Sean.
O que é que vocês sabem? ‑ murmurou Brendan.
Sean olhou para o miúdo que fungava sentado na cadeira, e para o outro, o mudo, que olhava para eles como se esperasse que se fossem embora depressa para poder ir para o quarto jogar Doom. Teve a certeza de que mal conseguissem arranjar um intérprete de linguagem gestual e uma assistente social e os interrogassem, ambos diriam que o tinham feito «porque». Porque tinham a arma. Porque estavam na rua quando ela passara no carro. Talvez porque Ray nunca tivesse gostado dela. Porque parecera uma ideia porreira. Porque nunca tinham matado ninguém. Porque quando se tem o dedo dobrado no gatilho, tem‑se de disparar, pois caso contrário o dedo fica a formigar durante semanas.
‑ O que é que vocês sabem? ‑ repetiu Brendan, e a voz tornara‑se‑lhe rouca e húmida.
Sean encolheu os ombros. Quem lhe dera ter uma resposta para ele, mas, olhando para aqueles dois miúdos, nada lhe ocorreu ao espírito. Absolutamente nada.
Jimmy levou uma garrafa para Gannon Street. Havia um lar de idosos no fim da rua, um bloco de calcário e granito dos anos 60 com a altura de dois andares que se prolongava por meio quarteirão até Heller Court, a rua que começava onde a Cannon acabava. Jimmy sentou‑se nos degraus brancos da entrada, a olhar para a Cannon. Ouvira dizer que iam correr com os velhotes dali. O Point tornara‑se tão popular que o dono do edifício queria vendê‑lo a um empresário especializado em pequenos condomínios para jovens casais. O Point deixara de existir, essa é que era a verdade. Sempre fora uma espécie de irmão snobe dos Flats, mas agora era como se nem pertencesse à mesma família. Muito em breve, era bem capaz de declarar a independência, mudar de nome, separar‑se do mapa de Buckingham.
Jimmy tirou a meia garrafa do bolso do casaco e bebeu um golo de bourbon, olhou para o lugar onde vira Dave Boyle pela última vez naquele dia em que os homens o tinham levado, a cabeça dele a olhar para trás, coberto de sombra, esbatido pela distância.
Quem me dera que não tivesses sido tu, Dave. Palavra.
Ergueu a garrafa à memória de Katie. O Papá apanhou‑o, querida. O Papá acabou com ele.
‑ A falar sozinho?
Jimmy ergueu os olhos e viu Sean a descer do carro. Trazia uma cerveja na mão e sorriu ao ver a garrafa de Jimmy.
Qual é a tua desculpa?
Uma noite difícil ‑ disse Jimmy.
Sean assentiu.
Também eu. Vi uma bala com o meu nome escrito.
Jimmy chegou‑se para o lado e Sean sentou‑se.
Como soubeste que eu estava aqui?
A tua mulher disse‑me que era provável que estivesses.
A minha mulher? ‑ Jimmy nunca lhe falara das suas viagens
àquele lugar. Mas que peça.
É verdade. Jimmy, hoje fizemos uma detenção.
Jimmy bebeu um longo trago da garrafa, a sentir o coração bater.
Uma detenção?
Sim. Apanhámos os assassinos da tua filha. Bem apanhados.
‑ Assassinos? Plural?
Jimmy assentiu.
‑ Uns miúdos, imagina. Treze anos. O filho do Ray Harris e
um puto chamado Johnny O'Shea. Confessaram tudo, há meia hora.
Jimmy sentiu uma faca entrar‑lhe no cérebro por um ouvido e sair pelo outro lado.
Sem a mínima dúvida?
Nenhuma.
Porquê?
Porque foi que o fizeram? Nem sequer eles sabem. Estavam
a brincar com uma arma. Viram um carro aproximar‑se, e um deles
estendeu‑se no meio da rua. O carro guinou contra o passeio, foi‑ ‑se abaixo, e o O'Shea correu para ele de arma na mão, diz que só queria assustá‑la. Em vez disso, a arma disparou. A Katie bateu‑lhe
com a porta e os putos dizem que se passaram. Perseguiram‑na
para impedi‑la de dizer a alguém que tinham uma arma.
E o espancamento? ‑ perguntou Jimmy, e bebeu um novo
trago.
O puto Harris tinha um stick de hóquei. Não respondeu a nenhuma pergunta. É mudo, sabias? Ficou ali sentado, como uma estátua. Mas o O'Shea disse que lhe tinham batido porque ela os enfurecera ao fugir. ‑ Encolheu os ombros, como se o desperdício absoluto de tudo aquilo o espantasse até a ele. ‑ Merda de miúdos. Estavam com medo de ficar de castigo, ou assim, e por isso mataram‑na.
Jimmy pôs‑se de pé. Abriu a boca para engolir ar e as pernas
dobraram‑se‑lhe e deu por si novamente sentado no degrau. Sean
pôs uma mão no cotovelo dele. :
‑ Calma, Jim. Respira fundo.
Jimmy viu Dave sentado no chão, a tocar com os dedos no rasgão que ele lhe abrira de um lado ao outro da barriga. Ouviu a voz dele: Olha para mim, Jimmy. Olha para mim.
E Sean disse:
‑ A Celeste Boyle telefonou‑me. Disse que o Dave tinha desaparecido. Disse que tem andado um pouco louco, nestes últimos dias.
Disse que tu talvez soubesses onde é que ele está.
Jimmy tentou falar. Abriu a boca, mas a garganta encheu‑se‑lhe até acima com o que parecia ser pedaços de algodão húmido.
‑ Mais ninguém sabe onde é que o Dave possa estar ‑ continuou Sean. ‑ E é importante que nós falemos com ele, Jim, por que talvez saiba alguma coisa a respeito de um tipo que foi morto no parque de estacionamento do Last Drop, umas noites atrás.
Um tipo? ‑ conseguiu Jimmy dizer, antes que a garganta se
lhe entupisse novamente.
Exacto ‑ respondeu Sean, com uma nota de dureza a entrar‑
‑lhe na voz. ‑ Um pedófilo com três casos anteriores no cadastro.
Um autêntico monte de merda. A teoria no destacamento é que alguém o apanhou em flagrante com um puto e lhe fez a folha de uma vez por todas. Seja como for ‑ acrescentou ‑, precisamos de falar com o Dave a respeito disto. Sabes onde ele está, Jim?
Jimmy abanou a cabeça, agora incapaz de distinguir fosse o que fosse com a visão periférica, como se um túnel se lhe tivesse formado diante dos olhos.
‑ Não? A Celeste contou‑me que te disse que o Dave tinha matado a Katie. Aparentemente, acreditou que tu pensavas o mesmo. Ficou com a impressão de que ias fazer qualquer coisa a esse respeito.
Jimmy estava a olhar através do túnel para a tampa de um esgoto.
‑ Vais passar a mandar à Celeste quinhentos dólares todos os meses, Jimmy?
Jimmy ergueu os olhos e ambos o viram ao mesmo tempo na cara do outro ‑ Sean viu o que Jimmy tinha feito, e Jimmy viu esse conhecimento descer sobre Sean.
Fizeste‑o, não foi? ‑ disse Sean. ‑ Mataste‑o?
Jimmy pôs‑se de pé, agarrado ao corrimão.
Não sei do que é que estás a falar.
Mataste‑os aos dois... o Ray Harris e o Dave Boyle. Jesus,
Jimmy. Vim até aqui a pensar que a ideia era louca, mas vejo‑o na tua cara, pá. Seu monte de merda lunático, maldito psicopata! Mataste‑o. Mataste o Dave Boyle. O nosso amigo, Jimmy.
O nosso amigo ‑ bufou Jimmy. ‑ Sim, está bem, menino do
Point, era o teu grande compincha, não era? Andava sempre contigo, certo?
Sean avançou para ele.
‑ Era nosso amigo, Jimmy. Lembras‑te?
Jimmy ollhou Sean nos olhos, perguntou a si mesmo se ele iria tentar atacá‑lo.
‑ A última vez que vi o Dave ‑ disse ‑, foi em minha casa, ontem à noite. ‑ Empurrou Sean para o lado e desceu os degraus. ‑ Foi a última vez que o vi.
‑ És um mentiroso.
Jimmy voltou‑se, de braços abertos, e olhou para Sean.
Então prende‑me, se estás assim tão seguro.
Hei‑de arranjar provas. Sabes que sim.
Hás‑de arranjar merda. Obrigado por teres apanhado os assassinos da minha filha, Sean. Sinceramente. Embora talvez pudesses ter sido um pouco mais rápido? ‑ Encolheu os ombros e
voltou‑lhe as costas, começando a descer a Cannon.
Sean ficou a vê‑lo afastar‑se até perdê‑lo na escuridão por baixo de um candeeiro partido mesmo em frente da casa onde nascera.
Fizeste‑o, pensou. Fizeste‑o mesmo, grande animal de coração gelado. E o pior é que sei como és esperto. Não hás‑de ter deixado nada a que nos possamos agarrar. Não está na tua natureza, porque tu és o homem dos pormenores, Jimmy. Maldito sacana.
‑ Tiraste‑lhe a vida ‑ disse em voz alta. ‑ Não foi, pá?
Atirou a lata de cerveja para o passeio e foi até ao carro, ligou para Lauren pelo telemóvel. Quando ela atendeu, disse:
‑ Sou eu.
Silêncio.
Sabia agora o que nunca dissera e que ela precisava de ouvir, aquilo que recusara dizer durante mais de um ano. Tudo, costumava dizer a si mesmo, digo tudo, menos isso.
Disse‑o naquele momento, porém. Disse‑o vendo aquele miúdo apontar‑lhe a arma ao peito, o miúdo a feder a nada, e a ver, também, o pobre Dave no dia em que o convidara para uma cerveja, a centelha de esperança desesperada que vira no rosto de Dave, que provavelmente nunca acreditara, a sério, que alguém quisesse beber uma cerveja com ele. E disse‑o porque a sentia até à medula dos ossos, a necessidade de dizê‑lo, tanto por Lauren como por ele próprio.
Disse:
‑ Desculpa.
E Lauren falou.
Desculpo‑te o quê?
O ter posto tudo em ti.
Está bem...
‑Eh... ‑Eh...
Diz tu.
‑Eu...
O quê?
Eu... raios, Sean, também peço desculpa. Não queria...
‑ Não tem importância. A sério. ‑ Inspirou fundo, inalando o ar com cheiro a suor azedo do carro. ‑ Quero ver‑te. Quero ver a minha filha.
E Lauren respondeu:
Como sabes que é tua?
É minha.
Mas a análise de sangue...
É minha. Não preciso de nenhuma análise. Vens para casa,
Lauren? Vens?
Ouviu, algures na rua silenciosa, o zumbir de um gerador.
Nora ‑ disse ela.
O quê?
É o nome da tua filha, Sean.
Nora ‑ disse ele, sentindo a palavra húmida na garganta.
Quando Jimmy chegou a casa, Annabeth esperava‑o na cozinha. Jimmy sentou‑se na cadeira em frente, do outro lado da mesa, e ela dirigiu‑lhe aquele leve e secreto sorriso que ele tanto amava, aquele que parecia conhecê‑lo tão bem que poderia nunca mais abrir a boca pelo resto da vida e mesmo assim ela saberia o que queria dizer. Jimmy pegou‑lhe na mão e passou o polegar pelo dela e tentou encontrar força na imagem de si mesmo que via nos olhos da mulher.
O monitor de escuta estava em cima da mesa, entre os dois. Tinham‑no usado no mês anterior, quando Nadine aparecera com uma terrível inflamação da garganta. Ficavam os dois a ouvi‑la gorgolejar enquanto dormia, e Jimmy imaginava a filha a sufocar, atento ao som de uma tosse tão áspera e seca que ele tivesse de pegar nela e correr para as urgências do hospital mais próximo, vestindo apenas as boxers e uma T‑shirt. Nadine depressa ficara boa, mas Annabeth não devolvera o monitor à sua caixa no armário da casa de jantar. Costumava ligá‑lo durante a noite, para ouvir Nadine e Sara dormir.
Naquele momento não estavam a dormir. Jimmy ouvi‑as através do pequeno altifalante, a sussurrar, a rir, e horrorizou‑se por estar a imaginá‑las a elas e a pensar nos seus pecados ao mesmo tempo.
Matei um homem. O homem errado.
Estava a queimá‑lo, aquele conhecimento, aquela vergonha.
‑ Oh, querido ‑ disse Annabeth, procurando‑lhe o rosto. ‑ Oh,
amor, o que é que se passa? É a Katie? Querido, parece que estás a morrer.
Levantou‑se e contornou a mesa, com uma assustada mistura de preocupação e amor nos olhos. Sentou‑se às cavalitas nas pernas de Jimmy, segurou‑lhe a cara com as mãos e obrigou‑o a olhá‑la de frente.
‑ Jimmy ‑ murmurou. Beijou‑lhe as pálpebras. ‑Jimmy, fala
comigo, Por favor.
Apertou as palmas das mãos contra as têmporas dele e enfiou‑‑lhe os dedos nos cabelos e acariciou‑lhe a cabeça e beijou‑o. A língua dela deslizou para dentro da dele e sondou‑o, procurando bem fundo a fonte daquela dor, sugando‑a, capaz de tornar‑se um escalpelo, se necessário, e cortar os cancros, chupando‑os para fora dele.
‑ Diz‑me. Por favor, Jimmy. Diz‑me.
E ele soube, ao olhar para o amor dela, que tinha de lhe contar tudo ou estaria perdido. Não tinha a certeza de se ela conseguiria salvá‑lo, mas não duvidava de que, se não se abrisse naquele instante, morreria irremediavelmente.
Contou‑lhe.
Contou‑lhe tudo. Falou‑lhe de Just Ray Harris e falou‑lhe da tristeza que trazia ancorada dentro do peito desde os onze anos e disse‑‑lhe que amar Katie fora a única realização admirável da sua existência tirando isso inútil, que Katie com cinco anos ‑ aquela filha desconhecida que precisava e desconfiava dele ao mesmo tempo ‑ fora a coisa mais assustadora que enfrentara e a única tarefa a que nunca fugira. Disse à mulher que amar Katie e proteger Katie eram o cerne do seu próprio ser, e quando ela fora levada, ele fora levado também.
‑ E por isso ‑ disse‑lhe, enquanto a cozinha se tornava pequena e apertada à volta deles ‑, matei o Dave.
«Matei‑o e enterrei‑o no Mystic, e agora acabo de descobrir, como se esse crime não fosse já suficientemente grande, que ele estava inocente.
«Foram estas as coisas que eu fiz, Anna, e não posso desfazê‑‑las. Acho que devia ir para a prisão. Devia confessar a morte do Dave e ir para a prisão, porque acho que é lá o meu lugar. Não, querida, a sério. Não pertenço aqui. Não se pode confiar em mim.
A voz dele parecia a de outra pessoa. Parecia tão distante da que normalmente ouvia sair‑lhe dos lábios que perguntou a si mesmo se Annabeth veria um estranho à sua frente, uma cópia a papel químico de Jimmy, um Jimmy a desvanecer‑se no éter.
O rosto dela permanecia seco e calmo, no entanto, tão imóvel que poderia estar a posar para um retrato. O queixo erguido, os olhos claros e imprescrutáveis.
Jimmy voltou a ouvir as pequenas no monitor, a sussurar, o som como um leve restolhar de vento.
Annabeth baixou as mãos e começou a desabotoar‑lhe a camisa, e Jimmy seguiu com os olhos os movimentos hábeis dos dedos dela, sentindo o corpo entorpecido. Ela abriu a camisa e puxou‑lha para baixo até meio das costas, e então encostou a cabeça ao peito dele, o ouvido à altura do coração.
‑ Só... ‑ começou Jimmy a dizer.
‑ Sssshh ‑ sussurrou ela. ‑ Quero ouvir o teu coração.
As mãos dela deslizaram‑lhe pelos flancos e subiram pelas costas, e Annabeth apertou o lado da cara contra o peito dele ainda com mais força. Fechou os olhos, e um pequeno sorriso encurvou‑‑lhe os lábios.
Ficaram assim durante algum tempo. Os murmúrios no monitor tinham dado lugar ao respirar compassado do sono infantil.
Quando ela se afastou, Jimmy continuou a sentir‑lhe a face no peito, como uma marca permanente. Annabeth saiu de cima dele e sentou‑se no chão, a olhar‑lhe para a cara. Inclinou a cabeça na direcção do monitor e, por alguns instantes, ficaram a ouvir as filhas dormir.
‑ Sabes o que lhes disse quando fui deitá‑las esta noite?
Jimmy abanou a cabeça.
Disse‑lhes que tinham de ser extraboazinhas contigo durante
uns tempos porque por muito que nós amássemos a Katie, tu amava‑la ainda mais. Amava‑la tanto porque a tinhas criado e lhe tinhas pegado ao colo quando ela era pequenina e que por vezes o teu amor por ela era tão grande que o teu coração inchava como um balão e
tu sentias como se fosse rebentar de amor por ela.
Jesus ‑ murmurou Jimmy.
Disse‑lhes que o papá delas as amava da mesma maneira.
Que tinha quatro corações e que todos eles eram balões e estavam cheios e a doer. E que o teu amor significava que nunca teríamos de preocupar‑nos. E a Nadine perguntou, «Nunca?»
Por favor. ‑ Jimmy sentiu‑se como se estivesse a ser esmagado por blocos de granito. ‑ Pára.
Ela abanou a cabeça, mantendo‑o preso aos seus olhos calmos.
E eu disse‑lhe, «Exactamente. Nunca. Porque o Papá é um rei,
não um príncipe. E os reis sabem o que tem de ser feito... mesmo quando é duro... para que tudo fique bem. O Papá é um rei e fará...
Anna...
... fará seja o que for que tiver de fazer por aqueles que ama.
Toda a gente comete erros. Toda a gente. Os grandes homens tentam corrigi‑los. E isso é tudo o que importa. É isso que é um grande amor. É por isso que o Papá é um grande homem.»
Jimmy sentiu‑se cego. Disse:
Não...
Ela queria saber onde tu estavas. Disse‑me que te tinha falado das suas próprias suspeitas a respeito do Dave.
Jimmy limpou os olhos com as costas da mão, olhou para a mulher como se nunca a tivesse visto.
‑ Disse‑me aquilo, Jimmy, e eu pensei que espécie de mulher diz estas coisas a respeito do marido? Que espécie de porcaria sem vergonha é preciso ser para contar histórias daquelas fora da escola?
E porque havia ela de contar‑te? Hã, Jim? Porque havia ela de correr para ti?
Jimmy tinha uma ideia ‑ sempre tivera uma ideia a respeito de Celeste e do modo como ela por vezes o olhava ‑, mas não disse nada.
Annabeth sorriu, como se estivesse a ler a resposta na cara dele.
‑ Eu podia ter‑te ligado para o telemóvel. Podia. Depois de ela me ter dito o que tu sabias, e quando me lembrei de ter‑te visto sair com o Vai, foi fácil adivinhar o que ias fazer, Jimmy. Não sou estúpida.
Podia ser tudo menos isso.
‑ Mas não telefonei. Não te detive.
A voz de Jimmy estalou à volta das palavras:
‑ Porque não?
Annabeth olhou para ele com a cabeça de lado, como se a resposta devesse ser óbvia. Pôs‑se de pé, olhando de cima para ele com um brilho curioso nos olhos, e sacudiu os sapatos dos pés. Correu o fecho dos jeans e puxou‑os para as coxas, dobrou‑se pela cintura e empurrou‑os para os tornozelos. Saiu de dentro deles e despiu a camisa e o soutien. Levantou Jimmy da cadeira. Apertou‑o contra ela e beijou‑lhe as faces humedecidas.
Eles são fracos ‑ disse.
Quem?
Todos. Todos menos nós.
Acabou de puxar‑lhe a camisa para baixo e Jimmy viu a cara dela junto ao Pen, naquela primeira noite em que tinham saído juntos. Annabeth perguntara‑lhe se o crime lhe estava no sangue, e ele convencera‑a de que não, porque pensara que era a resposta que ela queria ouvir. Só agora, doze anos e meio mais tarde, compreendia que tudo o que ela queria dele era a verdade. Qualquer que tivesse sido a resposta, ela ter‑se‑lhe‑ia adaptado. Tê‑la‑ia apoiado. Teria construído a vida de ambos de acordo com ela.
‑ Nós não somos fracos ‑ continuou Annabeth, e Jimmy sentiu o desejo lançar raízes nele como se tivesse vindo a crescer desde que nascera. Se pudesse comê‑la viva sem lhe causar dor, ter‑lhe‑ia devorado os órgãos, cravado os dentes na garganta. ‑ Nunca seremos fracos. ‑ Sentou‑se na mesa da cozinha, com as pernas a penderem para o lado.
Jimmy olhou para a mulher e desembaraçou‑se das calças, consciente de que aquilo era apenas temporário, que estava meramente a bloquear a dor da morte de Dave, escondendo‑se dela na força e na carne da mulher. Mas por aquela noite serviria. Talvez não nodia seguinte nem nos que haviam de seguir‑se. Mas naquela noite sim, definitivamente. E não era assim que começavam todas as convalescenças? Por pequenos passos?
Annabeth pousou‑lhe as mãos nas ancas, cravou‑lhe as unhas na carne, perto da coluna.
Quando acabarmos, Jim.
Sim? ‑Jimmy sentia‑se ébrio dela.
Não te esqueças de ir dar um beijo às meninas.
JIMMY FLATS
Domingo
Nós Guardamos‑te Um Lugar
Jimmy acordou no domingo de manhã a ouvir o som distante de tambores.
Não o rata tá e o bater de pratos da bateria de uma qualquer banda de garagem mas o grave e regular tum‑tum‑tum de um exército acampado nos arredores do bairro. Ouviu então o estrondear dos metais, súbito e desafinado. Mais uma vez, foi um som afastado, trazido pela brisa matinal de uma distância de dez ou doze quarteirões, e morreu quase logo depois de ter começado. No silêncio que se seguiu, Jimmy continuou deitado, a ouvir o silêncio quebradiço do fim de uma manhã de domingo ‑ uma manhã cheia de sol, a julgar pela dura claridade dourada que se notava do outro lado das persianas corridas. Ouviu o arrulhar dos pombos no peitoril da janela e o ladrar seco de um cão lá em baixo na rua. A porta de um carro abriu‑se e fechou‑se, e Jimmy ficou à espera do arranque do motor, que não chegou, e então voltou a ouvir o mesmo tum‑tum‑‑tum de momentos antes, mas agora mais firme, mais confiante.
Olhou para o relógio em cima da mesa‑de‑cabeceira: 11 da manhã. A última vez que dormira até tão tarde fora... Não conseguia lembrar‑se da última vez que dormira até tão tarde. Há anos. Uma década, talvez. Recordou a exaustão dos últimos dias, a sensação que tivera de que o caixão de Katie subia e descia pelo corpo dele como um elevador. E então Just Ray Harris e Dave Boyle tinham ido visitá‑lo quando estava sentado, bêbedo, no sofá da sala, na noite anterior, com uma arma na mão, a vê‑los acenarem‑lhe do banco de trás de um carro que cheirava a maçãs. E a nuca de Katie surgiu no meio deles enquanto desciam Gannon Street, e Katie não olhou para trás uma única vez, e Just Ray e Dave acenavam como loucos, sorrindo como tolos, e Jimmy sentiu a arma comichar‑lhe na mão. Cheirava a óleo, e Jimmy pensou em enfiar o cano na boca.
O velório fora um pesadelo. Celeste aparecera, quando a sala estava cheia de gente, às oito da noite, e atacara Jimmy, batendo‑‑lhe com os punhos, chamando‑lhe assassino. «Tu tens o corpo dela!», gritara. «E eu o que é que tenho? Onde está ele, Jimmy? Onde?» Bruce Reed e os filhos tinham‑na agarrado e levado dali para fora, mas Celeste continuara a gritar: «Assassino! Ele é um assassino! Matou o meu marido! Assassino!»
Assassino.
Depois houvera o funeral, e o serviço religioso junto da campa, e Jimmy vira‑os descer a sua menina para o fundo do buraco e cobrir o caixão com montes de terra e pedras soltas e Katie desaparecera de vista dele sob toda aquela terra, como se nunca tivesse vivido.
O peso de tudo aquilo chegara‑lhe aos ossos na noite anterior e mordera fundo, o caixão de Katie a subir e a descer, a subir e a descer, de modo que quando voltara a guardar a arma na gaveta e caíra na cama sentira‑se imobilizado, como se a medula dos ossos estivesse cheia dos seus mortos e o sangue estivesse a coagular‑lhe nas veias.
Oh, Deus, pensara, nunca me senti tão cansado. Tão cansado, tão triste, tão inútil e sozinho. Estou exausto dos meus erros e da minha raiva e da minha amarga, amarga tristeza. Esgotado pelos meus pecados. Oh, Deus, deixa‑me sozinho e deixa‑me morrer para que eu não volte a fazer o mal e não me sinta tão cansado e não continue a carregar o fardo da minha natureza e dos meus amores, liberta‑me de tudo isto, porque estou demasiado cansado para fazê‑‑lo eu próprio.
Annabeth tentara compreender esta culpa, este horror de si mesmo, mas não conseguira. Porque não tinha apertado o gatilho.
E agora, dormira até às onze. Doze horas seguidas, e um sono de pedra, uma vez que nem sequer ouvira Annabeth acordar.
Tinha lido algures que o sintoma mais inequívoco de uma depressão profunda era um cansaço permanente, uma necessidade compulsiva de dormir, mas quando se sentou na cama e ouviu o rufar dos tambores, a que se juntou uma vez mais o coro dos metais, agora quase finado, sentiu‑se refrescado. Sentiu‑se como se tivesse vinte anos. Sentiu‑se bem, bem acordado, como se nunca mais fosse voltar a dormir.
O desfile, apercebeu‑se. Os tambores e as cornetas eram da banda que se preparava para desfilar pela Buckingham Avenue ao meio‑dia. Saiu da cama, aproximou‑se da janela e subiu as persianas. O carro não arrancara porque tinham fechado a avenida dos Flats até Roman Basin. Trinta e seis quarteirões. Olhou lá para baixo. A avenida era uma tira de asfalto azul‑acinzentado a brilhar ao sol, tão limpa como Jimmy não se lembrava de a ter visto. Cavaletes de madeira azuis e brancos bloqueavam o acesso em todas as transversais e formavam uma barreira junto ao passeio até onde a vista alcançava, em ambas as direcções.
As pessoas começavam a sair de casa, para marcar lugar no passeio. Jimmy viu‑as pousar as caixas refrigeradoras e os rádios e as cestas de piquenique, e acenou a Dan e a Maureen Guden quando os viu abrir as cadeiras de jardim diante da Hennessey's Landro‑mat. Quando eles responderam ao aceno, Jimmy sentiu‑se tocado pela preocupação que lhes notou nos rostos. Maureen pôs as mãos à volta da boca e gritou qualquer coisa. Jimmy abriu a janela e encostou‑se à rede, sentiu o sol da manhã, o ar radioso e os restos do pó do Verão agarrados à trama de arame.
Diz, Maureen?
Estava a perguntar como te sentes, querido ‑ gritou Maureen. ‑ Estás bem?
Estou ‑ respondeu Jimmy, e ficou surpreendido ao aperceber‑se de que de facto se sentia bem. Continuava a trazer Katie dentro de si como um segundo coração dorido e furioso que nunca, tinha a certeza, deixaria de bater o seu louco batimento. Não tinha
ilusões a esse respeito. O desgosto passara a ser uma constante, mais
uma parte dele do que um membro. Mas de algum modo, durante o longo sono, adquirira uma aceitação elementar desse desgosto. Ali estava, a fazer parte dele, e podia lidar com ele nesses termos.
E assim, dadas as circunstâncias, sentia‑se muito melhor do que teria esperado. ‑ Estou... estou bem ‑ gritou a Maureen e a Dan. ‑ Considerando, percebem?
Maureen assentiu e Dan perguntou:
Precisas de qualquer coisa, Jim?
E queremos mesmo dizer qualquer coisa? ‑ acrescentou Maureen.
E Jimmy sentiu uma orgulhosa e eterna vaga de amor por eles e por todo o bairro, quando disse:
Não, está tudo bem. Mas obrigado. Muito obrigado. Significa
muito para mim.
Vais descer? ‑ perguntou Maureen.
Sim, acho que sim ‑ respondeu Jimmy, que não tivera a certeza até as palavras lhe saírem da boca. ‑ Vemo‑nos daqui a pouco,
então.
‑ Nós guardamos‑te um lugar ‑ disse Dan.
Acenaram‑lhe, e Jimmy acenou‑lhes, e então deixou a janela,
com o peito a transbordar de uma avassaladora mistura de orgulho e amor. Aquela era a sua gente. E aquele era o seu bairro. Iam guardar um lugar para ele. Para ele. Jimmy, dos Flats.
Era assim que os grandalhões lhe chamavam nos velhos tempos, antes de ter sido embarcado para Deer Island. Levavam‑no aos clubes elegantes de Prince Street, no North End, e diziam, «Eh, Cario, este é aquele meu amigo de que te falei. Jimmy, dos Flats.»
E Cario ou Gino ou um dos outros abria muito os olhos e dizia, «A sério? Jimmy Flats? Prazer em conhecer‑te, Jimmy Flats. Há muito tempo que admiro o teu trabalho.»
Seguiam‑se as piadas a respeito da idade dele ‑ «Como é, arrombaste o teu primeiro cofre com o alfinete da fralda?» ‑, mas Jimmy notava o respeito, inclusivamente a ligeira admiração, que aqueles tipos sentiam na sua presença.
Era Jimmy Flats. Chefiara o seu primeiro bando aos dezassete anos. Dezassete... dá para acreditar numa merda assim? Um tipo sério. Com quem não convinha brincar. Um homem que mantinha a boca fechada e sabia como o jogo era jogado e sabia mostrar respeito. Um homem que dera dinheiro a ganhar aos amigos.
Fora Jimmy Flats naquele tempo, continuava a ser Jimmy Flats agora, e aquelas pessoas que começavam a juntar‑se ao longo do percurso do desfile ‑ todas elas o amavam. Preocupavam‑se com ele e partilhavam uma parte do seu desgosto o melhor que podiam. E por aquele amor, o que lhes dava ele em troca? Tinha de perguntar a si mesmo. O que era, verdadeiramente, que lhes dava?
A coisa mais parecida com uma presença governante que aquele bairro tivera desde que os Feds e a RICO tinham acabado com o bando de Louie Jello fora... o quê?... Bobby O'Donnell? Bobby O'Donnell e Roman Fallow. Um par de traficantes de droga de quinta categoria que tinham passado para o negócio da protecção e da usura. Jimmy ouvira rumores a respeito de eles terem feito um acordo qualquer com os gangs vietnamitas de Roman Basin para evitar que os chinocas entrassem ali à força, definido territórios e então festejado a aliança pegando fogo à loja de flores de Connie, como um aviso a quem recusasse pagar os seus prémios de seguro.
Não era assim que se fazia. Mantinha‑se o negócio fora do bairro; não se transformava o bairro no nosso negócio. O que se fazia era manter a nossa gente limpa e segura, e eles, por gratidão, tornavam‑se os nossos olhos e os nossos ouvidos. E se, por vezes, essa gratidão assumia a forma de um sobrescrito aqui, um bolo ou um carro ali, era porque eles queriam e era a nossa recompensa por os mantermos a salvo.
Era assim que se governava um bairro. Benevolentemente. Com um olho nos interesses das pessoas e o outro nos nossos. Não se deixava os Bobby O'Donnels e esses sacanas de olhos em bico pensar que podiam entrar por ali dentro e levar o que quisessem. Pelo menos, se quisessem voltar a sair usando as pernas que Deus lhes tinha dado.
Jimmy saiu do quarto e encontrou a casa vazia. A porta ao fundo do corredor estava aberta, e ouviu a voz de Annabeth no apartamento de cima, ouviu os pezinhos das filhas a correr pelo soalho, atrás do gato de Vai. Foi para a casa de banho e abriu o duche, entrou na banheira quando a água aqueceu e ergueu a cara para o chuveiro.
O'Donnell e Farrow só nunca tinham tentado a loja de Jimmy por saberem da ligação dele aos Savage. E como qualquer pessoa dotada de cérebro, O'Donnell tinha medo deles. E se ele e Roman temiam os Savage, isso significava que, por associação, o temiam a ele.
Tinham medo dele. Jimmy, dos Flats. Porque só por si, Deus bem o sabia, tinha os miolos. E com os Savage a vigiar‑lhe as costas, podia ter todo o músculo, tomates e louca temeridade que quisesse. Se Jimmy Marcus e os irmãos Savage se juntassem a sério, podiam...
O quê?
Tornar o bairro tão seguro quanto ele merecia ser.
Governar todo o raio da cidade.
Ser donos dela.
«Jimmy, por favor, não. Jesus. Quero ver a minha mulher. Quero viver a minha vida. Jimmy? Por favor, não me tires isso. Olha para mim!»
Jimmy fechou os olhos e deixou a água dura e quente martelar‑lhe o crânio.
«Olha para mim!»
Estou a olhar, Dave. Estou a olhar. Nunca devias ter saído daquele carro. Sabias? Devias ter continuado desaparecido. Voltaste para aqui, para nossa casa, e faltavam partes essenciais de ti. Nunca mais tornaste a encaixar, Dave, porque eles te tinham envenenado e o veneno estava só à espera de uma oportunidade para alastrar.
«Não matei a tua filha, Jimmy. Não matei a Katie. Não a matei, não a matei.»
Talvez não, Dave. Agora sei disso. Começa a parecer que não tiveste realmente nada a ver com aquilo. Há ainda uma pequena hipótese de os chuis terem apanhado os putos errados, mas admito, feitas as contas, que aparentemente estás isento de culpa no que respeita à Katie.
«Então?»
Então, mataste alguém, Dave. Mataste alguém. Nesse ponto, a Celeste tinha razão. Além disso, sabes o que acontece aos miúdos que são abusados.
«Não, Jim. Porque é que não me dizes?»
Tornam‑se eles próprios abusadores. Mais cedo ou mais tarde. O veneno está em ti e tem de sair. Não fiz mais do que proteger uma tua futura vítima. Talvez o teu próprio filho.
«Não metas o meu filho nisto.»
Óptimo. Talvez um dos amigos dele, então. Mas, Dave, mais cedo ou mais tarde, havias de mostrar as tuas verdadeiras cores.
«É assim que consegues viver com o que fizeste?»
Depois de teres entrado naquele carro, Dave, nunca mais devias ter voltado. É assim que eu consigo viver com o que fiz. O teu lugar não era aqui. Não estás a perceber? Um bairro é isso mesmo...
um sítio onde vivem juntas pessoas cujo lugar éali. Os outros, todos, é favor nem sequer se candidatarem.
A voz de Dave caiu por entre a água e martelou a cabeça de Jimmy:
«Agora vivo em ti, Jimmy. Não podes pôr‑me fora.»
Posso, Dave, posso.
E Jimmy fechou a água e saiu da banheira. Secou‑se e aspirou o ligeiro vapor pelas narinas. Sentia as ideias mais claras do que nunca. Desembaciou com a mão a pequena janela no canto da casa de banho e olhou para o beco que passava pelas traseiras do prédio. O dia estava tão claro e brilhante que até o beco parecia limpo. Cristo, que belo dia. Que domingo perfeito, Que dia perfeito para um desfile. Ia levar a mulher e as filhas para o passeio e dariam as mãos e veriam as pessoas e as bandas e os carros alegóricos e os políticos passar sob a luz clara do Sol. E comeriam cachorros‑quentes e algodão‑doce e ele compraria às pequenas galhardetes e T‑shirts com o emblema de Buckingham. E um processo de cura iniciar‑se‑‑ia ao som dos tambores e dos címbales e das cornetas e dos vivas. Instalar‑se‑ia neles, tinha a certeza, quando estivessem ali no passeio, a festejar a fundação do bairro. E quando a morte de Katie voltasse a esmagá‑los durante as horas nocturnas, e os seus corpos cedessem um pouco sob o peso dela, teriam ao menos o divertimento da tarde para contrabalançar um pouco o desgosto. Seria o início da cura. Todos eles compreenderiam que, pelo menos durante algumas horas naquela tarde, tinham sentido prazer, senão alegria.
Afastou‑se da janela e chapinhou a cara com água morna, cobriu as faces e a garganta com creme de barba, e ocorreu‑lhe, enquanto começava a barbear‑se, que era mau. Nada de especial, na verdade, nenhum clangor tonitruante de sinos a jorrar‑lhe do coração. Apenas isso ‑ uma lembrança, uma compreensão momentânea que foi como dedos gentilmente cobiçosos a atravessarem‑lhe o peito.
Pois sou, e então?
Olhou para o espelho e sentiu muito pouco fosse do que fosse. Amava a mulher e as filhas e elas amavam‑no. Encontrava certeza nelas, uma certeza absoluta. Poucos homens ‑ poucas pessoas ‑ podiam gabar‑se disso.
Matara um homem por um crime que esse homem provavelmente não cometera. Como se isso não fosse suficientemente mau, sentia muito poucos remorsos. E, muitos anos antes, matara outro homem. E carregara os dois corpos de pesos de modo que descessem até às profundesas do Mystic. E gostara genuinamente de ambos os homens ‑ de Ray um pouco mais do que de Dave, mas gostara dos dois. E no entanto, matara‑os. Por uma questão de princípio. Ficara à beira de uma cornija de pedra por cima do rio e vira a cara de Ray tornar‑se branca e balouçar antes de afundar‑se, os olhos abertos e sem vida. E durante todos aqueles anos, não sentira grande culpa por isso, embora dissesse a si mesmo que sim. Mas aquilo a que chamava culpa era na verdade o medo de um mau karma, de que aquilo que fizera viesse a ser‑lhe feito a ele ou a alguém que amasse. E a morte de Katie, supunha, fora talvez a materialização desse mau karma. A materialização perfeita, se se olhasse bem para as coisas ‑ Ray a regressar através do útero da mulher e a matar Katie sem qualquer razão excepto o karma.
E Dave? Tinham passado a corrente pelos buracos do bloco de cimento, tinham‑lha enrolado à volta do corpo e prendido as duas pontas com um cadeado. E então tinham, com muito esforço, levantado o corpo os poucos centímetros necessários para passar por cima da borda do barco, e Jimmy tivera uma imagem nítida do Dave criança, não do adulto, a mergulhar até ao fundo do rio. Quem sabia exactamente aonde fora cair? Mas estava lá em baixo, no leito do Mystic, a olhar para cima. Fica aí, Dave. Fica aí.
A verdade era que Jimmy nunca sentira grande culpa por qualquer coisa que tivesse feito. Sim, combinara com um amigo de Nova Iorque mandar aos Harris quinhentos dólares por mês durante os últimos treze anos, mas isso fora muito menos uma questão de culpa que de bom senso ‑ enquanto continuassem a julgar que Just Ray estava vivo, não mandariam ninguém à procura dele. Na realidade, agora que o filho de Ray estava preso, que se lixasse, podia deixar de mandar o dinheiro. Usá‑lo para qualquer coisa útil.
O bairro, decidiu. Usá‑lo‑ia para proteger o seu bairro. E, olhando para o espelho, decidiu que era exactamente assim que devia chamar‑lhe: o seu bairro. A partir de agora, era ele o dono. Vivera uma mentira durante treze anos, a fingir que pensava como um cidadão honesto, enquanto via à sua volta o desperdiçar de oportunidades perdidas. Iam construir um estádio? Óptimo. Vamos lá falar a respeito dos trabalhadores que representamos. Não? Oh, muito bem. É melhor manterem um olho nessas máquinas, rapazes. Seria horrível se houvesse um incêndio, ou coisa assim.
Ia ter de sentar‑se a uma mesa com Vai e Kevin e discutir o futuro. Aquela cidade estava à espera de ser aberta. E Bobby O'Don‑nell? Aí estava alguém cujo futuro não parecia nada brilhante, decidiu Jimmy, se tencionasse demorar‑se por East Bucky.
Acabou de fazer a barba e olhou mais uma vez para o seu reflexo no espelho. Era mau? Pois que fosse. Podia viver com isso porque tinha amor no coração e tinha uma certeza. Em matéria de compensações, não era nada mau.
Vestiu‑se. Atravessou a cozinha sentindo‑se como se o homem que fingira ser durante todos aqueles anos tivesse ido pelo cano abaixo, na casa de banho. Ouvia as filhas a gritar e a rir, talvez com o gato de Vai a lamber‑lhes a cara, e pensou, Pá, é um bonito som.
Lá fora na rua, Sean e Lauren encontraram um espaço diante do Nate & Nancy's Coffee Shop. Nora dormia no carrinho e eles puseram‑na à sombra do toldo. Encostaram‑se à parede e comeram os cones de gelado e Sean olhou para a mulher e perguntou a si mesmo se iam conseguir, ou se aquela separação de um ano provocara demasiados estragos, esbanjara o amor que os unira e os anos bons que tinham tido antes do desastre dos últimos dois. Mas Lauren pegou‑lhe na mão, apertou‑lha, e ele olhou para a filha e pensou que parecia um pouco uma coisa para ser adorada, uma pequena deusa, talvez, preenchendo‑o completamente.
Através do desfile que passava, viu Jimmy e Annabeth Mar‑cus, e as duas encantadoras filhas do casal empoleiradas nos ombros de Vai e Kevin Savage, a acenar a cada carro alegórico e a cada descapotável.
Duzentos e dezasseis anos antes, Sean sabia, tinham construído a primeira prisão junto ao canal a que acabara por dar o nome. Os primeiros moradores de Buckingham tinham sido os carcereiros e as respectivas famílias e as mulheres e os filhos dos homens encerrados na penitenciária. Nunca fora uma trégua fácil. Quando os presos saíam, estavam com frequência demasiado esgotados ou eram já demasiado velhos para se mudarem para muito longe, e Buckhingam cedo se tornara conhecido como uma espécie de depósito de lixo de ex‑condenados. Surgiram bares ao longo daquela avenida e das suas ruas de terra, e os carcereiros tinham‑se refugiado nas colinas, literalmente, construindo as suas casas no Point de modo a poderem continuar a olhar do alto para as pessoas que tinham enclausurado. Os anos 1800 tinham trazido o boom do gado, com os grandes currais a alastrarem onde agora passava a via‑rá‑pida e um ramal de carga da via‑férrea a bordejar Sydney Street para lá ir despejar os animais antes da longa caminhada até ao centro do que era actualmente o percurso do desfile. E gerações de presos e de trabalhadores do matadouro e respectiva descendência tinham empurrado os Flats até à beira dos carris. A prisão fora fechada na sequência de uma qualquer reforma havia muito esquecida e a época de ouro do gado terminara e os bares tinham continuado a surgir. A vaga de imigrantes irlandeses seguira‑se à de italianos, mas duas vezes mais numerosa, e o comboio aéreo fora construído, e os homens iam trabalhar para a cidade, mas voltavam sempre ao fim do dia. Voltavam porque tinham construído aquela aldeia, conheciam‑‑lhe os perigos e os prazeres, e, mais importante do que isso, nada do que ali acontecia os surpreendia. Havia uma lógica na corrupção e nos banhos de sangue e nas zaragatas de bar e nos jogos de basebol de rua e em fazer amor aos sábados de manhã. Mais ninguém conseguia ver onde estava a lógica, e era precisamente essa a questão. Mais ninguém era ali bem‑vindo.
Lauren encostou‑se‑lhe ao peito, com a cabeça por baixo do queixo dele, e Sean sentiu‑lhe a dúvida, mas também a determinação, a necessidade de reconstruir a fé nele.
Ficaste muito assustado quando o miúdo te apontou a arma
à cara? ‑ perguntou ela.
A verdade?
Por favor.
Quase ao ponto de perder o controlo da bexiga.
Lauren inclinou a cabeça para trás de modo a poder olhar‑lhe para a cara.
A sério?
A sério.
Pensaste em mim?
Pensei. Pensei nas duas.
O que foi que pensaste?
Pensei nisto. Pensei em agora.
O desfile, e tudo?
Ele assentiu.
Ela beijou‑lhe o pescoço.
És um mentiroso, querido, mas obrigada por mo teres dito.
Não estou a mentir. Palavra.
Lauren olhou para Nora.
Tem os teus olhos.
E o teu nariz.
Ela estava a olhar para a filha de ambos quando disse:
Espero que isto resulte.
Também eu ‑ disse ele, e beijou‑a.
Encostaram‑se ambos à parede, com um rio interminável de gente a desfilar pelo passeio, e então Celeste apareceu subitamente diante deles. Estava pálida e tinha os cabelos polvilhados de caspa e não parava de puxar pelos dedos, como se quisesse arrancá‑los das mãos.
Olhou para Sean, a piscar os olhos, e disse:
‑ Olá, guarda Devine.
Sean estendeu‑lhe a mão, porque ela dava a sensação de precisar de contacto, se não flutuaria para longe.
‑ Olá, Celeste. Trate‑me por Sean, sim?
Tinha a palma húmida, os dedos quentes, e retirou a mão mal tocou na dele.
A Lauren, a minha mulher ‑ disse Sean.
Olá.
‑Olá.
Por um instante, ninguém soube o que dizer. Ficaram ali, formais e distantes, e então Celeste olhou para o outro lado da rua e Sean seguiu‑lhe o olhar até Jimmy, que tinha o braço passado pela cintura de Annabeth, ambos brilhantes como o dia, rodeados pelos amigos e pela família. Davam a sensação de que nunca mais voltariam a perder fosse o que fosse.
Os olhos de Jimmy passaram por Celeste e encontraram os de Sean. Fez um aceno de reconhecimento, e Sean respondeu do mesmo modo.
Ele matou o meu marido ‑ disse Celeste.
Sean sentiu Lauren ficar rígida a seu lado.
Eu sei ‑ respondeu. ‑ Ainda não posso prová‑lo, mas sei.
E fá‑lo‑á?
O quê?
Prová‑lo.
Vou tentar, Celeste. Juro por Deus.
Celeste olhou para a avenida e coçou a cabeça com uma ferocidade preguiçosa, como se estivesse a catar piolhos.
‑ Ultimamente, parece que não consigo pôr o dedo na minha
própria mente. ‑ Riu‑se. ‑ Não soou lá muito bem. Mas não consigo. Simplesmente, não consigo.
Sean estendeu a mão e tocou‑lhe no pulso. Ela olhou para ele, os olhos castanhos envelhecidos e tresloucados. Parecia ter a certeza de que ele ia bater‑lhe.
‑ Posso dar‑lhe o nome de um médico, Celeste ‑ disse Sean.
‑ Especializado em ajudar aqueles que perderam entes queridos em crimes violentos.
Ela assentiu, embora as palavras dele não parecessem ter‑lhe proporcionado qualquer espécie de conforto. Deixou cair o braço e recomeçou a puxar pelos dedos. Reparou que Lauren estava a olhar para ela e baixou os olhos para as mãos. Baixou‑as, voltou a erguê‑las e cruzou os braços sobre o peito, enfiando as mãos debaixo dos cotovelos como se quisesse impedi‑las de fugir a voar. Sean viu Lauren dirigir‑lhe um pequeno e hesitante sorriso, um sorriso de abjecta empatia, e ficou surpreendido ao ver Celeste responder com um esboço de sorriso e uma admissão de gratidão no piscar dos olhos.
Naquele momento, amou a mulher mais profundamente do que alguma vez amara, e sentiu‑se humilde face à capacidade que ela tinha de transmitir uma ligação instantânea às almas perdidas. Teve a certeza de que fora ele quem estragara o casamento com a emergência do seu ego de polícia, o seu gradual desprezo pelas insuficiências e fragilidades das pessoas.
Estendeu a mão e tocou na cara de Lauren, e o gesto fez Celeste desviar os olhos.
Celeste olhou para a avenida no momento em que passava um carro alegórico com a forma de uma luva de basebol, a abarrotar de miúdos da Iittle League, radiantes, a acenar, loucos de alegria por se sentirem adorados.
Qualquer coisa no carro gelou o sangue de Sean, talvez o modo como a luva, mais do que proteger, parecia prestes a fechar‑se sobre os miúdos, esquecidos de tudo e a sorrir deslumbrados.
Menos um. Muito calado, olhava para os sapatos, e Sean reconheceu‑o imediatamente. O filho de Dave.
‑ Michael! ‑ Celeste acenou‑lhe, mas o miúdo não voltou a cabeça. Manteve os olhos baixos, apesar de ela ter voltado a gritar‑lhe
o nome. ‑ Michael, querido! Michael, olha! Michael.
O carro continuava a avançar, e Celeste continuava a chamar, e o filho recusava olhar para ela. Sean viu um jovem Dave nos ombros do miúdo e no abatimento do queixo, na sua beleza quase delicada.
‑ Michael! ‑ gritou Celeste. Recomeçou a puxar pelos dedos
e desceu do passeio.
O carro passou, mas Celeste correu atrás dele, fendendo a multidão, acenando, gritando o nome do filho.
Sean sentiu Lauren acariciar‑lhe o braço e olhou para o outro lado da rua, para Jimmy. Ainda que demorasse o resto da vida, havia de apanhá‑lo. Estás a ver‑me, Jimmy? Vá lá, olha outra vez.
E Jimmy voltou a cabeça. Sorriu a Sean.
Sean ergueu a mão, com o indicador esticado para a frente e o polegar dobrado como o cão de uma arma, e então baixou o polegar e disparou.
Jimmy sorriu ainda mais amplamente.
‑ Quem era aquela mulher? ‑ perguntou Lauren.
Sean viu Celeste correr ao longo da linha de espectadores, a ficar mais pequena à medida que o carro se afastava, o casaco a adejar atrás dela.
‑ Alguém que perdeu o marido ‑ disse.
E pensou em Dave Boyle, e desejou tê‑lo levado a beber a tal cerveja, como prometera no segundo dia da investigação. Desejou ter sido mais simpático para com ele quando eram miúdos, e que o pai dele não o tivesse deixado, e que a mãe não fosse louca, e que não lhe tivessem acontecido tantas coisas más. Ali a ver o desfile com a mulher e a filha, desejou uma porção de coisas para Dave Boyle. Mas principalmente, paz. Mais do que tudo, desejava que Dave, onde quer que estivesse, tivesse um pouco de paz.
Dennis Lehane
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