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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NA COLONIA PENAL e O VEREDICTO / Franz Kafka
NA COLONIA PENAL e O VEREDICTO / Franz Kafka

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 


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O VEREDICTO

Era uma manhã de domingo no auge da primavera. Georg Bendemann, um jovem comerciante, estava sentado no seu quarto, no primeiro andar de um dos prédios baixos, de construção leve, que se estendiam em longa fila ao longo do rio, diferentes um do outro quase só na altura e na cor. Tinha justamente acabado de escrever uma carta a um amigo que se achava no estrangeiro, fechou-a com uma lentidão lúdica e depois, o cotovelo apoiado sobre a escrivaninha, olhou da janela para o rio, para a ponte e para as colinas da outra margem, com o seu verde sem vigor.
Ficou pensando como esse amigo, insatisfeito com suas perspectivas na própria terra, já fazia anos havia literalmente se refugiado na Rússia. Tinha agora uma casa comercial em São Petersburgo, que a princípio havia caminhado muito bem, mas que parecia há muito ter estacionado, conforme se queixava o amigo nas suas visitas cada vez mais raras. Assim é que ele se desgastava inutilmente no estrangeiro: a exótica barba cheia ocultava mal o rosto tão conhecido desde os anos de infância, e a cor amarela da pele parecia apontar para uma moléstia em evolução. Como ele contava, lá não mantinha nenhuma ligação autêntica com a colônia dos seus conterrâneos e quase nenhum contato social com as famílias do lugar, de maneira que se encaminhava definitivamente para a vida de solteiro.
O que se devia escrever a um homem assim, que evidentemente tinha saído fora dos trilhos e a quem se podia lastimar mas não prestar auxílio? Devia-se talvez aconselhá-lo a voltar de novo para casa, a transferir para cá sua existência, a retomar as velhas relações de amizade — para o que certamente não havia obstáculo algum — e no mais confiar na ajuda dos amigos? Mas isso não significava outra coisa senão estar ao mesmo tempo lhe dizendo, de uma maneira tanto mais ofensiva quanto maior a consideração, que suas tentativas até agora tinham malogrado, que ele devia finalmente desistir delas, regressar e permitir que todos o olhassem com espanto como a alguém para sempre de volta, que só os seus amigos sabiam um pouco das coisas e que ele era uma criança crescida, pura e simplesmente necessitada de seguir os companheiros bem-sucedidos que haviam permanecido em casa. E além do mais, era mesmo certo que todo esse transtorno, que seria preciso infligir a ele, tivesse um sentido? Talvez não se conseguisse nem ao menos trazê-lo de volta — ele mesmo afirmou que não entendia mais as condições vigentes no seu país —, e desse modo, a despeito de tudo, talvez continuasse na terra estranha, amargurado com os conselhos e um pouco mais distanciado dos amigos. Se ele porém seguisse de fato o conselho e — naturalmente sem essa intenção, mas em virtude dos fatos — fosse esmagado, não se encontrasse nos seus amigos nem sem eles, sofresse com o vexame, de fato então não possuísse lar ou amigos, nesse caso não teria sido muito melhor para ele ficar no estrangeiro, do modo como estava? Era possível, em tais circunstâncias, pensar que aqui ele iria efetivamente levar as coisas avante?
Por essas razões, mesmo que se quisesse manter a ligação por correspondência, não se podia na verdade transmitir a ele nenhuma comunicação real, como se faria sem temor até aos conhecidos mais distantes. O amigo já não vinha ao país fazia mais de três anos e explicava muito precariamente esse fato pela incerteza da situação política na Rússia, que não permitiria nem mesmo a mais breve ausência de um pequeno comerciante, ao passo que centenas de milhares de russos circulavam tranquilamente pelo mundo. Para Georg, entretanto, muita coisa havia mudado no curso desses três anos. Sobre a morte da mãe de Georg, que havia ocorrido dois anos antes, e depois da qual ele passara a viver em comum com o velho pai na mesma casa, o amigo naturalmente tinha recebido notícia e manifestado o seu pesar numa carta de tamanha secura que o motivo só podia ser que no estrangeiro o luto por um acontecimento dessa natureza é inteiramente inconcebível. Mas desde aquela época Georg havia assumido com maior determinação o negócio, bem como tudo o mais. Talvez o pai, enquanto a mãe era viva, por querer fazer valer só o seu próprio ponto de vista na firma, o tivesse impedido de exercer uma atividade pessoal efetiva; talvez o pai, desde a morte da mãe, embora ainda continuasse trabalhando no estabelecimento, tivesse ficado mais retraído; talvez — o que era até muito provável — acasos felizes houvessem desempenhado um papel muito mais importante; fosse como fosse, porém, nesses dois anos a firma tinha se desenvolvido de um modo totalmente inesperado, fora preciso dobrar o pessoal, o movimento havia quintuplicado e sem dúvida se estava na iminência de um novo avanço. Mas o amigo não fazia ideia dessa mudança. Anteriormente — talvez pela última vez naquela carta de pêsames — tinha querido convencer Georg a emigrar para a Rússia, estendendo-se sobre as perspectivas que existiam em São Petersburgo justamente para o ramo comercial de Georg. As cifras desapareciam diante do volume que os negócios de Georg tinham alcançado. Mas este não havia sentido vontade alguma de escrever ao amigo sobre seus êxitos comerciais, e caso o tivesse feito agora, em retrospecto, isso realmente teria adquirido uma aparência estranha.
Assim sendo, Georg se limitava sempre a escrever ao amigo só sobre incidentes insignificantes, da maneira como estes se acumulam desordenadamente na lembrança, quando se reflete sobre eles num domingo tranquilo. Ele não pretendia senão deixar inalterada a imagem que o amigo, no decorrer do longo intervalo, tinha feito da cidade natal e à qual se havia conformado. Aconteceu assim que Georg, em cartas bem distantes uma da outra, anunciou por três vezes o noivado de uma pessoa sem importância com uma moça igualmente sem importância, até que o amigo, na realidade contra as intenções de Georg, começou a se interessar por essa ocorrência notável.
Mas Georg preferia escrever-lhe sobre coisas como essa a admitir que ele próprio tinha ficado noivo, um mês atrás, da senhorita Frieda Brandenfeld, uma jovem de família bem situada. Muitas vezes conversou com a noiva sobre esse amigo e a situação peculiar da correspondência que mantinha com ele.
— Então ele não virá de modo algum para o nosso casamento — dizia ela. — E eu tenho o direito de conhecer todos os seus amigos.
— Não quero perturbá-lo — respondia Georg. — Entenda bem, é provável que ele viesse, pelo menos é o que acredito; mas iria se sentir forçado e prejudicado, talvez ficasse com inveja de mim; e certamente insatisfeito e incapaz de pôr de lado essa insatisfação, regressaria sozinho. Sozinho — você sabe o que é isso?
— Sim, eu sei, mas ele não pode ficar sabendo do nosso casamento de outra maneira?
— Seja como for, isso eu não posso evitar; mas, vivendo como vive, é improvável.
— Se você tem amigos assim, Georg, não devia ter ficado noivo.
— Bem, a culpa é de nós dois; mas mesmo agora eu não queria que as coisas fossem diferentes.
E quando ela, então, respirando rápido sob seus beijos, ainda argumentava: “na verdade isso me ofende”, ele achou que realmente não era embaraçoso escrever tudo ao amigo.
“Eu sou assim e é assim que ele tem de me aceitar”, disse consigo. “Não posso talhar em mim mesmo uma pessoa que talvez fosse mais ajustada à amizade com ele do que eu sou.”
E de fato, na longa carta que escreveu nessa manhã de domingo, relatou ao amigo a realização do noivado com as seguintes palavras: “A melhor novidade eu guardei para o fim. Fiquei noivo da senhorita Frieda Brandenfeld, uma jovem da família bem-posta que só se estabeleceu aqui tempos depois da sua partida e que portanto você dificilmente poderia ter conhecido. Ainda haverá ocasião para lhe contar mais sobre a minha noiva, basta hoje que lhe diga que estou muito feliz e que nossa atual relação só mudou alguma coisa na medida em que agora você terá em mim, ao invés de um amigo comum, um amigo feliz. Além disso você ganha, com a minha noiva, que manda saudá-lo cordialmente, e que em breve vai escrever pessoalmente a você, uma amiga sincera, o que não é sem importância para um solteiro. Sei que muita coisa o impede de nos visitar, mas não seria justamente o meu casamento a oportunidade certa para afastar os obstáculos? Seja como for, porém, aja sem qualquer escrúpulo e segundo o que achar melhor”.
Com essa carta na mão Georg ficou longo tempo sentado à escrivaninha, o rosto voltado para a janela. Mal respondeu, com um sorriso ausente, a um conhecido que, passando pela rua, o cumprimentara.
Finalmente enfiou a carta no bolso e, do seu quarto, atravessando um pequeno corredor escuro, entrou no quarto do pai, ao qual não ia já fazia meses. De resto não havia necessidade disso, pois sempre encontrava o pai na loja e almoçavam juntos num restaurante; à noite, efetivamente, cada um cuidava de si a seu critério, mas na maioria das vezes, quando Georg não estava com os amigos ou visitava a noiva, o que acontecia com mais frequência, ficavam sentados ainda um pouco na sala de estar comum, cada qual com o seu jornal.
Surpreendeu Georg como estava escuro o quarto do pai mesmo nessa manhã ensolarada. A sombra era pois lançada pelo muro alto que se erguia do outro lado do estreito pátio. O pai estava sentado junto à janela, num canto enfeitado com várias lembranças da finada mãe, e lia o jornal segurando-o de lado para compensar alguma deficiência da vista. Sobre a mesa jaziam os restos do café da manhã, do qual não parecia ter sido consumida muita coisa.
— Ah, Georg! — disse o pai e caminhou ao seu encontro.
Seu roupão pesado se abriu quando andava e as pontas esvoaçaram em volta dele. “Meu pai continua sendo um gigante”, pensou Georg consigo.
— Aqui está insuportavelmente escuro — disse depois.
— É verdade, está escuro — respondeu o pai.
— Você fechou também a janela?
— Prefiro assim.
— Fora está fazendo bastante calor — disse Georg como um acréscimo ao que havia dito antes e sentou-se.
O pai retirou a louça do café e colocou-a em cima de uma cômoda.
— Na realidade eu só queria dizer a você — continuou Georg, acompanhando completamente absorto os movimentos do velho — que acabo de anunciar a São Petersburgo o meu noivado.
Puxou um pouco a carta de dentro do bolso e deixou-a cair outra vez.
— Como assim, a São Petersburgo? — perguntou o pai.
— Ao meu amigo, é claro — disse Georg buscando os olhos do pai.
“Na loja ele é totalmente diferente do que é aqui, sentado com todo o peso do corpo e os braços cruzados sobre o peito”, pensou.
— Ah, sim, ao seu amigo — disse o pai com ênfase.
— Você sabe muito bem, pai, que a princípio eu quis ocultar o meu noivado dele. Por consideração, por nenhum outro motivo. Você mesmo sabe que ele é uma pessoa difícil. Eu disse cá comigo: ele pode ter notícia do meu noivado através de terceiros, embora seja pouco provável com o tipo de vida solitária que leva — isso eu não posso evitar —, mas por mim é que ele não deve ficar sabendo.
— E agora você mudou de opinião? — perguntou o pai, pôs o amplo jornal sobre o parapeito da janela e sobre os óculos, que cobriu com a mão.
— É, agora mudei de opinião. Se ele é um bom amigo, pensei comigo, então um noivado que me faz feliz é também uma felicidade para ele. Por isso não hesitei mais em anunciá-lo. Antes porém de remeter a carta, queria dizer isso a você.
— Georg — disse o pai esticando para os lados a boca desdentada —, ouça bem. Você veio a mim para se aconselhar comigo sobre esse assunto. Isso o honra, sem dúvida. Mas não é nada, é pior do que nada, se você agora não me disser toda a verdade. Não quero levantar questões que não cabem aqui. Desde a morte da nossa querida mãe aconteceram certas coisas que não são nada bonitas. Talvez chegue a hora de também discuti-las — e talvez ela chegue mais cedo do que pensamos. Na loja muita coisa foge ao meu controle, talvez não pelas minhas costas — não quero agora supor que seja pelas minhas costas —, não tenho mais força suficiente, minha memória começa a falhar, já não tenho visão para tudo isso. Em primeiro lugar, é o curso da natureza; em segundo, a morte da nossa mamãe me abateu muito mais do que a você. Mas já que estamos falando desse assunto, dessa carta, peço-lhe por favor, Georg, que não me engane. É uma ninharia, não vale nem um suspiro, por isso não me engane. Você realmente tem esse amigo em São Petersburgo?
Georg levantou-se, embaraçado.
— Vamos deixar de lado os amigos. Para mim mil amigos não substituiriam meu pai. Sabe o que eu acho? Você não se poupa o necessário. Mas a idade reclama os seus direitos. Você sabe muito bem que me é indispensável na loja, mas se for para ela ameaçar sua saúde, amanhã mesmo eu a fecho definitivamente. E isso não é possível. Portanto temos de encontrar um novo modo de vida para você. Radicalmente novo. Você fica sentado aqui no escuro, no entanto na sala de estar teria uma boa luz. Belisca o café da manhã ao invés de se alimentar direito. Senta-se junto à janela fechada quando o ar lhe faria tão bem. Não, pai! Vou chamar o médico e nós seguiremos as prescrições dele. Vamos trocar de quarto, você vai para o da frente, eu venho para este. Não significará nenhuma mudança para você, todas as suas coisas serão transportadas junto. Mas tudo isso tem tempo, deite-se agora mais um pouco na cama, você precisa de repouso sem falta. Venha, vou ajudá-lo a tirar a roupa, você vai ver como sei fazer isso. Ou quer ir já para o quarto da frente? Se é assim, deite-se por enquanto na minha cama. Aliás, seria uma coisa muito sensata.
Georg estava em pé bem ao lado do pai, que tinha deixado pender sobre o peito a cabeça de cabelos brancos e desgrenhados.
— Georg — disse o pai em voz baixa, sem se mover.
Georg ajoelhou-se imediatamente ao seu lado, viu nos cantos dos olhos do rosto cansado do pai as pupilas dilatadas se voltarem para ele.
— Você não tem nenhum amigo em São Petersburgo. Você sempre foi um trapaceiro e não se conteve nem mesmo diante de mim. Como iria ter justamente lá um amigo? Não posso de maneira alguma acreditar nisso.
— Pense outra vez, pai — disse Georg, erguendo o velho da cadeira e lhe tirando o roupão, enquanto o pai ficava em pé numa posição frágil. — Agora vai fazer três anos que o meu amigo nos fez uma visita. Ainda me lembro que você não simpatizou muito com ele. Pelo menos duas vezes omiti de você a sua presença, embora ele estivesse sentado logo ali no meu quarto. Eu podia compreender perfeitamente sua aversão por ele: meu amigo tem muitas idiossincrasias. Mas depois você sem dúvida se entendeu bem com ele. Na ocasião fiquei muito orgulhoso porque você lhe deu atenção, assentiu com a cabeça e lhe fez perguntas. Se pensar um pouco, logo vai se lembrar. Daquela vez ele contou histórias incríveis sobre a Revolução Russa. Como por exemplo ter visto, numa viagem de negócios, durante um tumulto em Kiev, um padre que, no alto de uma sacada, havia cortado na palma da mão uma grande cruz de sangue, levantando-a enquanto conclamava a multidão. Você mesmo contou aqui e ali essa história para outras pessoas.
Nesse meio-tempo Georg tinha conseguido fazer o pai se sentar outra vez, despindo com cuidado a calça de malha que ele vestia sobre as ceroulas de linho, bem como as meias. Ao ver que a roupa de baixo não estava muito limpa, censurou-se por ter descuidado do pai. Teria sido sem dúvida seu dever zelar pela troca dessa roupa. Ainda não havia conversado expressamente com a noiva sobre a maneira como pretendiam organizar o futuro do velho, pois tinham admitido de forma tácita que ele iria ficar sozinho na antiga casa. Nesse momento porém ele decidiu, rápido e com toda firmeza, levá-lo para sua futura residência. Num exame mais atento, quase parecia que o tratamento a ser lá dispensado ao pai poderia estar vindo tarde demais.
Carregou nos braços o velho para a cama. Teve um sentimento terrível quando, ao dar uns poucos passos até lá, notou que o pai estava brincando com a corrente do seu relógio. Não conseguiu colocá-lo logo na cama, tão firme ele se agarrava à corrente.
Mas mal o pai ficou na cama tudo pareceu estar bem. Ele mesmo se cobriu e depois puxou o cobertor bem acima dos ombros. Ergueu os olhos para Georg de um modo não inamistoso.
— Você já se lembra dele, não é verdade? — perguntou Georg enquanto lhe fazia um aceno de estímulo com a cabeça.
— Estou bem coberto agora? — perguntou o pai, como se não pudesse verificar se os pés estavam suficientemente protegidos.
— Então você já se sente bem na cama — disse Georg, estendendo melhor as cobertas sobre ele.
— Estou bem coberto? — perguntou o pai outra vez; parecia estar particularmente atento à resposta.
— Fique tranquilo, você está bem coberto.
— Não! — bradou o pai de tal forma que a resposta colidiu com a pergunta, atirou fora a coberta com tamanha força que por um instante ela ficou completamente estirada no voo e pôs-se em pé na cama, apoiando-se de leve só com uma mão no forro. — Você queria me cobrir, eu sei disso, meu frutinho, mas ainda não estou recoberto. E mesmo que seja a última força que tenho, ela é suficiente para você, demais para você. É claro que conheço o seu amigo. Ele seria um filho na medida do meu coração. Foi por isso que você o traiu todos esses anos. Por que outra razão? Você pensa que não chorei por ele? É por isso que você se fecha no seu escritório: ninguém deve incomodar, o chefe está ocupado — só para que possa escrever suas cartinhas mentirosas para a Rússia. Mas felizmente ninguém precisa ensinar o pai a ver o filho por dentro. E agora que você acredita tê-lo aos seus pés, tão submetido que é capaz de sentar em cima dele com o traseiro sem que ele se mova, o senhor meu filho se decidiu casar!
Georg levantou os olhos para a imagem aterrorizante do pai. O amigo de São Petersburgo, que de repente o pai conhecia tão bem, o comoveu como nunca antes. Viu-o perdido na vasta Rússia. Viu-o na porta da loja vazia e saqueada. Entre os escombros das prateleiras, das mercadorias destroçadas, dos tubos de gás caindo, ele ainda continuava em pé. Por que tinha precisado viajar para tão longe?
— Mas olhe para mim! — bradou o pai, e Georg, quase distraído, correu até a cama para registrar tudo, mas ficou parado no meio do caminho.
— Só porque ela levantou a saia — começou o pai em voz de falsete —, só porque a nojenta idiota levantou a saia — e para fazer a mímica suspendeu tão alto o camisolão, que dava para ver na parte superior da coxa a cicatriz dos seus anos de guerra —, só porque ela levantou a saia assim, assim e assim, você foi se achegando, e para que pudesse se satisfazer nela sem ser perturbado, você profanou a memória da sua mãe, traiu o amigo e enfiou seu pai na cama para que ele não se movesse. Mas ele pode ou não se mover?
E, sem se apoiar em nada, passou a esticar as pernas para a frente. Resplandecia de perspicácia.
Georg encolheu-se a um canto o mais possível distante do pai. Fazia já algum tempo tinha tomado a firme decisão de observar tudo de maneira absolutamente precisa, para não ser surpreendido num descaminho, seja por trás ou de cima para baixo. Lembrou-se nesse momento da decisão há muito esquecida e a esqueceu de novo, como um fio curto que se enfia pelo buraco de uma agulha.
— Mas o seu amigo não foi atraiçoado! — exclamou o pai, sublinhando a fala com o dedo indicador que se mexia de lá para cá. — Eu era o seu representante aqui no lugar.
— Comediante! — gritou Georg sem conseguir se conter, reconheceu logo o erro e, com os olhos arregalados, mordeu — só que tarde demais — a língua com tanta força que se dobrou de dor.
— Sim, sem dúvida interpretei uma comédia! Comédia! Boa palavra! Que outro consolo restava ao velho pai viúvo? Diga — e no instante da resposta seja ainda o meu filho vivo — o que me restava, neste meu quarto dos fundos, perseguido pelos empregados desleais, velho até os ossos? E o meu filho caminhava triunfante pelo mundo, fechava negócios que eu tinha preparado, dava cambalhotas de satisfação e passava diante do pai com o rosto circunspecto de um homem respeitável! Você acha que eu não o teria amado — eu, de quem você saiu?
“Agora vai se inclinar para a frente”, pensou Georg. “Se ele caísse e rebentasse!” Essa palavra passou zunindo pela sua cabeça.
O pai se inclinou para a frente, mas não caiu. Uma vez que Georg não se aproximou como ele esperava, endireitou o corpo outra vez.
— Fique onde está, não preciso de você! Julga que ainda tem força para vir até aqui e que só não faz isso porque não quer. Cuidado para não se enganar! Continuo sendo de longe o mais forte. Sozinho eu talvez precisasse recuar, mas sua mãe me transmitiu a energia que tinha, liguei-me ao seu amigo de uma forma estupenda e tenho aqui no bolso a sua clientela!
“Até no camisolão ele tem bolsos!”, disse Georg a si mesmo; achava que com essa observação podia tornar-lhe a vida impossível no mundo inteiro. Pensou assim só por um instante, pois continuava esquecendo tudo.
— Pendure-se na sua noiva e venha ao meu encontro! Vou varrê-la do seu lado, você não imagina como!
Georg fez caretas como se não acreditasse nisso. O pai simplesmente acenou com a cabeça, acentuando a verdade do que estava dizendo, em direção ao canto de Georg.
— Como você hoje me divertiu quando veio perguntar se devia escrever ao seu amigo sobre o noivado! Ele sabe de tudo, jovem estúpido, ele sabe de tudo! Eu escrevi a ele porque você se esqueceu de me tirar o material para escrever. É por isso que há anos ele não vem, ele sabe de tudo cem vezes mais do que você mesmo, amassa sem abrir as suas cartas na mão esquerda enquanto com a direita segura as minhas diante dos olhos para ler.
De entusiasmo, arremessou o braço sobre a cabeça.
— Ele sabe de tudo mil vezes melhor! — gritou.
— Dez mil vezes! — disse Georg para ridicularizar o pai, mas já na sua boca as palavras ganharam uma tonalidade mortalmente séria.
— Estava aguardando há anos que você viesse com essa pergunta. Você acha que eu me preocupava com qualquer outra coisa? Você acha que leio jornais? Olhe aí — e atirou na direção de Georg uma folha de jornal que de algum modo tinha sido carregada para a cama, um jornal velho, com um nome já completamente desconhecido de Georg.
— Quanto tempo você levou para amadurecer! Sua mãe precisou morrer, não pôde viver o dia da alegria, o amigo se arruinando na Rússia — três anos atrás ele já estava amarelo de jogar fora — e quanto a mim você está vendo como vão as coisas. É para isso que tem olhos!
— Então você ficou à minha espreita — bradou Georg.
Compassivamente disse o pai, de passagem:
— Provavelmente você queria dizer isso antes. Agora já não dá mais.
E em voz alta:
— Agora portanto você sabe o que existia além de você, até aqui sabia apenas de si mesmo! Na verdade você era uma criança inocente, mas mais verdadeiramente ainda você era uma pessoa diabólica! Por isso saiba agora: eu o condeno à morte por afogamento!
Georg sentiu-se expulso do quarto, levando ainda nos ouvidos o baque com que o pai, atrás dele, desabou sobre a cama. Na escadaria, sobre cujos degraus passou correndo como se fosse por cima de uma superfície oblíqua, atropelou a criada que se dispunha a subir para arrumar a casa pela manhã.
— Jesus! — exclamou ela, cobrindo o rosto com o avental, mas ele já tinha desaparecido. No portão do prédio deu um pulo, impelido sobre a pista da rua em direção à água. Já agarrava firme a amurada, como um faminto a comida. Saltou por cima dela como o excelente atleta que tinha sido nos anos de juventude para orgulho dos pais. Segurou-se ainda com as mãos que ficavam cada vez mais fracas, espiou por entre as grades da amurada um ônibus que iria abafar com facilidade o barulho da sua queda e exclamou em voz baixa:
— Queridos pais, eu sempre os amei — e se deixou cair.
Nesse momento o trânsito sobre a ponte era praticamente interminável.
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NA COLONIA PENAL

— É um aparelho singular — disse o oficial ao explorador, percorrendo com um olhar até certo ponto de admiração o aparelho que ele no entanto conhecia bem.
O explorador parecia ter aceito só por polidez o convite do comandante, que o havia exortado a assistir à execução de um soldado por desobediência e insulto ao superior. Certamente o interesse pela execução não era muito grande nem na colônia penal. Pelo menos aqui no pequeno vale, profundo e arenoso, cercado de encostas nuas por todos os lados, estavam presentes, além do oficial e do explorador, apenas o condenado, uma pessoa de ar estúpido, boca larga, cabelo e rosto em desalinho, e um soldado que segurava a pesada corrente de onde partiam as correntes menores, com as quais o condenado estava agrilhoado pelos pulsos e cotovelos bem como pelo pescoço e que também se uniam umas às outras por cadeias de ligação. Aliás, o condenado parecia de uma sujeição tão canina que a impressão que dava era a de que se poderia deixá-lo vaguear livremente pelas encostas, sendo preciso apenas que se assobiasse no começo da execução para que ele viesse.
O explorador tinha pouco interesse pelo aparelho e andava de um lado para outro por trás do condenado, com uma indiferença quase visível, enquanto o oficial providenciava os últimos preparativos, ora rastejando sob a máquina assentada fundo na terra, ora subindo uma escada para examinar as partes de cima. Eram trabalhos que na realidade poderiam ter sido deixados para um mecânico, mas o oficial os realizava com grande zelo, seja porque era um adepto especial do aparelho, seja porque não podia, por outras razões, confiar essa tarefa a mais ninguém.
— Agora está tudo pronto! — finalmente exclamou e desceu da escada.
Estava excepcionalmente esgotado, respirava de boca aberta e tinha enfiado à força dois delicados lenços de mulher sob a gola do uniforme.
— Esses uniformes são sem dúvida muito pesados para os trópicos — disse o explorador, ao invés de se informar sobre o aparelho, como o oficial havia esperado.
— É verdade — disse o oficial lavando as mãos encardidas de óleo e graxa num balde de água já à disposição. — Mas eles simbolizam a pátria e a pátria nós não podemos perder.
— Mas agora venha ver este aparelho — acrescentou logo em seguida, enxugando as mãos com uma toalha enquanto apontava para o aparelho. — Até este instante era necessário o trabalho das mãos, mas daqui para a frente ele funciona completamente sozinho.
O explorador assentiu com a cabeça e acompanhou o oficial. Este procurou se assegurar contra qualquer incidente e depois disse:
— Naturalmente surgem problemas; espero na verdade que hoje não apareça nenhum; mas de qualquer modo é preciso contar com eles. O aparelho deve ficar em funcionamento doze horas sem interrupção. Se no entanto houver problemas, eles serão muito pequenos e a solução será imediata.
— O senhor não quer se sentar? — perguntou por fim, puxou de uma pilha uma cadeira de palha e a ofereceu ao explorador.
Este não pôde recusar. Estava agora à beira de um fosso, sobre o qual lançou um olhar fugidio. Não era muito fundo. De um lado do fosso a terra escavada estava amontoada num talude, do outro ficava o aparelho.
— Não sei se o comandante já explicou o aparelho para o senhor — disse o oficial.
O explorador fez um movimento vago com a mão; o oficial não desejava nada melhor, pois agora ele próprio podia explicar o aparelho.
— Este aparelho — disse, segurando uma manivela sobre a qual se apoiou — é uma invenção do nosso antigo comandante. Colaborei desde as primeiras experiências e participei de todos os trabalhos até a conclusão. No entanto o mérito da invenção pertence totalmente a ele. O senhor já ouviu falar do nosso antigo comandante? Não? Bem, não estou falando demais quando digo que a instalação de toda a colônia penal é obra sua. Nós, amigos dele, já sabíamos, por ocasião da sua morte, que a organização dela é tão fechada em si mesma, que o seu sucessor, mesmo tendo na cabeça milhares de planos novos, não poderia mudar nada pelo menos durante muitos anos. Nossa previsão estava certa; o novo comandante teve de reconhecer isso. É uma pena que o senhor não tenha conhecido o antigo comandante! Mas — interrompeu-se o oficial — fico tagarelando e o aparelho está aqui à nossa frente. Como se vê, ele se compõe de três partes. Com o correr do tempo surgiram denominações populares para cada uma delas. A parte de baixo tem o nome de cama, a de cima de desenhador e a do meio, que oscila entre as duas, se chama rastelo.
— Rastelo? — perguntou o explorador.
Ele não tinha escutado com muita atenção, o sol forte demais se enredava no vale sem sombras, era com dificuldade que se juntavam os pensamentos. Tanto mais digno de admiração lhe parecia o oficial, que, na sua farda justa, própria para um desfile, carregada de dragonas, guarnecida de cordões, dava as explicações com tamanho fervor — além do que, enquanto falava, apertava aqui e ali um parafuso com uma chave de fenda. O soldado parecia estar num estado semelhante ao do explorador. Tinha enrolado a corrente do condenado em volta dos pulsos, apoiava-se com uma das mãos sobre o fuzil e, deixando a cabeça pender sobre a nuca, não se interessava por nada. O explorador não ficou espantado com isso, pois o oficial falava francês e certamente nem o condenado nem o soldado entendiam francês. De qualquer modo, chamava ainda mais a atenção o fato de que o condenado, apesar disso, se esforçasse para seguir as explicações do oficial. Com uma espécie de pertinácia sonolenta, dirigia o olhar para onde quer que o oficial apontasse e quando este então foi interrompido pelo explorador com uma pergunta, também ele, da mesma forma que o oficial, olhou para o explorador.
— É, rastelo — disse o oficial. — O nome combina. As agulhas estão dispostas como as grades de um rastelo e o conjunto é acionado como um rastelo, embora se limite a um mesmo lugar e exija muito maior perícia. Aliás, o senhor vai compreender logo. Aqui sobre a cama coloca-se o condenado. Quero no entanto primeiro descrever o aparelho e só depois fazê-lo funcionar eu mesmo. Aí o senhor poderá acompanhá-lo melhor. No desenhador há uma engrenagem muito gasta, ela range bastante quando está em movimento, nessa hora mal dá para entender o que se fala; aqui infelizmente é muito difícil obter peças de reposição. Muito bem: como eu disse, esta é a cama. Está totalmente coberta com uma camada de algodão; o senhor ainda vai saber qual é o objetivo dela. O condenado é posto de bruços sobre o algodão, naturalmente nu; aqui estão, para as mãos, aqui para os pés e aqui para o pescoço, as correias para segurá-lo firme. Aqui na cabeceira da cama, onde, como eu disse, o homem apoia primeiro a cabeça, existe este pequeno tampão de feltro, que pode ser regulado com a maior facilidade, a ponto de entrar bem na boca da pessoa. Seu objetivo é impedir que ela grite ou morda a língua. Evidentemente o homem é obrigado a admitir o feltro na boca, pois caso contrário as correias do pescoço quebram sua nuca.
— Isso é algodão? — perguntou o explorador, inclinando-se para a frente.
— Sem dúvida — respondeu sorrindo o oficial. — Sinta o senhor mesmo.
Pegou a mão do explorador e passou-a sobre a cama.
— É um algodão especialmente preparado, por isso parece tão irreconhecível; ainda volto a falar sobre a sua finalidade.
O explorador já estava um pouco conquistado pelo aparelho; protegendo-se contra o sol com a mão sobre os olhos, levantou a vista para ele. Era uma estrutura bem grande. A cama e o desenhador tinham as mesmas dimensões e pareciam duas arcas escuras. O desenhador estava disposto a cerca de dois metros sobre a cama; ambos se ligavam nas pontas por quatro barras de latão que quase emitiam raios sob o sol. Entre as arcas oscilava, preso a uma fita de aço, o rastelo.
O oficial mal tinha notado antes a indiferença do explorador, mas estava alerta para o interesse que agora aflorava; por isso suspendeu as explicações para dar ao explorador tempo para uma contemplação tranquila. O condenado imitou o explorador; já que não podia colocar a mão acima dos olhos, ficou piscando para o alto com a vista desprotegida.
— Pois bem, o homem agora está deitado — disse o explorador enquanto se recostava na cadeira e cruzava as pernas.
— Sim — disse o oficial, empurrando o quepe um pouco para trás e passando a mão pelo rosto acalorado. — Agora ouça: tanto a cama como o desenhador têm bateria elétrica própria; a cama precisa da energia para si mesma, o desenhador para o rastelo. Assim que o homem está manietado, a cama é posta em movimento. Ela vibra com sacudidas mínimas e muito rápidas simultaneamente para os lados, para cima e para baixo. O senhor deve ter visto aparelhos semelhantes em casas de saúde; a diferença é que na nossa cama todos os movimentos são calculados com precisão; de fato eles precisam estar em estrita consonância com os movimentos do rastelo. Mas é a este que se entrega a execução propriamente dita da sentença.
— E o que diz a sentença? — perguntou o explorador.
— Nem isso o senhor sabe? — retrucou com espanto o oficial, mordendo os lábios. — Perdoe-me se por acaso minhas explicações estão fora de ordem; peço-lhe muitas desculpas. Antigamente era o comandante que costumava dá-las, mas o novo furtou-se a esse dever de honra; que ele no entanto, a um visitante tão ilustre — o explorador tentou repelir a homenagem com ambas as mãos, mas o oficial insistiu na expressão —, que a um visitante tão ilustre ele não informe nem mesmo sobre a forma da sentença, é outra inovação que —
Tinha uma praga entre os lábios, mas se conteve e disse apenas:
— Não fui cientificado disso, a culpa não é minha. Seja como for, aliás, estou nas melhores condições de esclarecer nossos tipos de sentença, pois trago aqui — bateu no bolso do peito — os desenhos correspondentes, feitos à mão pelo antigo comandante.
— Desenhos feitos pelo próprio comandante? — perguntou o explorador. — Então ele reunia em si mesmo todas as coisas? Era soldado, juiz, construtor, químico, desenhista?
— Certamente — disse o oficial meneando a cabeça com o olhar fixo e pensativo.
A seguir inspecionou as mãos; elas não lhe pareceram suficientemente limpas para pegar nos desenhos; por isso foi até o balde e lavou-as outra vez. Depois tirou do bolso uma pequena carteira de couro e disse:
— Nossa sentença não soa severa. O mandamento que o condenado infringiu é escrito no seu corpo com o rastelo. No corpo deste condenado, por exemplo — o oficial apontou para o homem —, será gravado: Honra o teu superior!
O explorador levantou fugazmente os olhos na direção do homem; este manteve a cabeça baixa quando o oficial apontou para ele, parecendo concentrar toda a energia da audição para ficar sabendo de alguma coisa. Mas o movimento dos seus lábios protuberantes e comprimidos mostrava claramente que não conseguia entender nada. O explorador queria perguntar diversas coisas, mas à vista do homem indagou apenas:
— Ele conhece a sentença?
— Não — disse o oficial, e logo quis continuar com as suas explicações.
Mas o explorador o interrompeu:
— Ele não conhece a própria sentença?
— Não — repetiu o oficial e estacou um instante, como se exigisse do explorador uma fundamentação mais detalhada da sua pergunta; depois disse:
— Seria inútil anunciá-la. Ele vai experimentá-la na própria carne.
O explorador já estava querendo ficar quieto quando sentiu que o condenado lhe dirigia o olhar; parecia indagar se ele podia aprovar o procedimento descrito. Por isso o explorador, que já tinha se recostado, inclinou-se de novo para a frente e ainda perguntou:
— Mas ele certamente sabe que foi condenado, não?
— Também não — disse o oficial e sorriu para o explorador, como se ainda esperasse dele algumas manifestações insólitas.
— Não — disse o explorador passando a mão pela testa. — Então até agora o homem ainda não sabe como foi acolhida sua defesa?
— Ele não teve oportunidade de se defender — disse o oficial, olhando de lado como se falasse consigo mesmo e não quisesse envergonhar o explorador com o relato de coisas que lhe eram tão óbvias.
— Mas ele deve ter tido oportunidade de se defender — disse o explorador erguendo-se da cadeira.
O oficial se deu conta de que corria perigo de ser interrompido por longo tempo na explicação do aparelho; por isso caminhou até o explorador, tomou-o pelo braço, indicou com a mão o condenado, que agora se punha em posição de sentido, já que a atenção se dirigia a ele com tanta evidência — o soldado também deu um puxão na corrente —, e disse:
— As coisas se passam da seguinte maneira. Fui nomeado juiz aqui na colônia penal. Apesar da minha juventude. Pois em todas as questões penais estive lado a lado com o comandante e sou também o que melhor conhece o aparelho. O princípio segundo o qual tomo decisões é: a culpa é sempre indubitável. Outros tribunais podem não seguir esse princípio, pois são compostos por muitas cabeças e além disso se subordinam a tribunais mais altos. Aqui não acontece isso, ou pelo menos não acontecia com o antigo comandante. O novo entretanto já mostrou vontade de se intrometer no meu tribunal, mas até agora consegui rechaçá-lo — e vou continuar conseguindo. O senhor queria que eu lhe esclarecesse este caso; é tão simples como todos os outros. Hoje de manhã um capitão apresentou a denúncia de que este homem, que foi designado seu ordenança e dorme diante da sua porta, dormiu durante o serviço. Na realidade ele tem o dever de se levantar a cada hora que soa e bater continência diante da porta do capitão. Dever sem dúvida nada difícil, mas necessário, pois ele precisa ficar desperto tanto para vigiar como para servir. Na noite de ontem o capitão quis verificar se o ordenança cumpria o seu dever. Abriu a porta às duas horas e o encontrou dormindo todo encolhido. Pegou o chicote de montaria e vergastou-o no rosto. Ao invés de se levantar e pedir perdão, o homem agarrou o superior pelas pernas, sacudiu-o e disse: “Atire fora o chicote ou eu o engulo vivo!”. São estes os fatos. Faz uma hora o capitão se dirigiu a mim, tomei nota das suas declarações e em seguida lavrei a sentença. Depois determinei que pusessem o homem na corrente. Tudo isso foi muito simples. Se eu tivesse primeiro intimado e depois interrogado o homem, só teria surgido confusão. Ele teria mentido, e se eu o tivesse desmentido, teria substituído essas mentiras por outras e assim por diante. Mas agora eu o agarrei e não o largo mais. Está tudo esclarecido? Mas o tempo está passando, a execução já deveria começar e ainda não acabei de explicar o aparelho.
Fez com que o explorador se sentasse na cadeira, voltou ao aparelho e começou:
— Como o senhor vê, o rastelo corresponde à forma do ser humano; este aqui é o rastelo para o tronco, estes outros os rastelos para as pernas. Para a cabeça está destinado apenas este pequeno estilete. Está claro?
Inclinou-se amavelmente em direção ao explorador, pronto para esclarecimentos mais abrangentes.
Com o cenho franzido o explorador observou o rastelo. As informações sobre o procedimento judicial não o tinham deixado satisfeito. Teve contudo de admitir a si mesmo que aqui se tratava de uma colônia penal, que aqui eram necessárias medidas excepcionais e que se precisava proceder até o limite de modo militar. Além disso depositava alguma esperança no novo comandante, que, embora devagar, pretendia evidentemente introduzir um procedimento novo que não podia entrar na cabeça limitada deste oficial. Partindo desse raciocínio o explorador perguntou:
— O comandante vai assistir à execução?
— Não é certeza — disse, dolorosamente tocado pela pergunta sem mediações, o oficial, cuja expressão amigável se descompôs. — Exatamente por isso precisamos nos apressar. Por mais que o lamente, vou ter até de abreviar minhas explicações. Mas amanhã, quando o aparelho estiver outra vez limpo — seu único defeito é ficar tão sujo —, poderia acrescentar os esclarecimentos mais pormenorizados. Agora, portanto, só o estritamente necessário. Quando o homem está deitado na cama e esta começa a vibrar, o rastelo baixa até o corpo. Ele se posiciona automaticamente de tal forma que toca o corpo apenas com as pontas; quando o contato se realiza, este cabo de força fica imediatamente rígido como uma barra. E aí começa a função. O não iniciado não nota por fora nenhuma diferença nas punições. O rastelo parece trabalhar de maneira uniforme. Vibrando, ele finca suas pontas no corpo, que além disso vibra por causa da cama. Para possibilitar que todos vistoriem a execução da sentença, o rastelo foi feito de vidro. Fixar nele as agulhas deu origem a algumas dificuldades técnicas, mas depois de muitas tentativas o objetivo foi alcançado. Não poupamos esforços para isso. E agora qualquer um pode ver através do vidro como se realiza a inscrição no corpo. O senhor não quer chegar mais perto para observar as agulhas?
O explorador ergueu-se devagar, andou até lá e se inclinou sobre o rastelo.
— O senhor está vendo dois tipos de agulhas em disposições variadas — disse o oficial. — Cada agulha comprida tem ao seu lado uma curta. A comprida é a que escreve, a curta esguicha água para lavar o sangue e manter a escrita sempre clara. A água e o sangue são depois conduzidos aqui nestas canaletas e escorrem por fim para a canaleta principal, cujo cano de escoamento leva ao fosso.
O oficial indicava com o dedo o caminho exato que a água e o sangue tinham de seguir. Quando, para tornar o quadro o mais vívido possível, o oficial literalmente ficou com as mãos em concha para recolher o fluxo na embocadura do cano de escoamento, o explorador suspendeu a cabeça e, tateando com a mão para trás, quis recuar até a sua cadeira. Viu então com horror que o condenado havia, como ele, seguido o convite do oficial para examinar de perto a disposição do rastelo. Ele tinha arrastado um pouco o soldado sonolento pela corrente e também se debruçara sobre o vidro. Via-se como buscava, com o olhar incerto, aquilo que os dois senhores tinham observado, mas não conseguia, já que lhe faltava a explicação. Inclinava-se para cá e para lá. Percorria o vidro continuamente com o olhar. O explorador quis afastá-lo, pois o que estava fazendo provavelmente era passível de punição. Mas o oficial reteve firmemente o explorador com uma mão, com a outra pegou um torrão de terra do talude e atirou-o em direção ao soldado. Este levantou os olhos num sobressalto, viu o que o condenado tinha ousado fazer, deixou o fuzil cair, fincou os tacões no chão, puxou o condenado com tanta força para trás que ele logo caiu e o fitou de cima para baixo, enquanto o condenado se contorcia fazendo as correntes rangerem.
— Ponha-o em pé! — gritou o oficial, pois notou que a atenção do explorador estava sendo desviada demais pelo condenado.
O explorador chegou a se inclinar sobre o rastelo, sem se importar com ele, interessado apenas em verificar o que acontecia com o condenado.
— Trate-o com cuidado! — gritou de novo o oficial.
Deu a volta em torno do aparelho e agarrou pessoalmente pelas axilas o condenado que às vezes escorregava e com a ajuda do soldado colocou-o de pé.
— Já sei tudo agora — disse o explorador quando o oficial se dirigiu de volta a ele.
— Tudo, menos o mais importante — disse o oficial segurando o explorador pelo braço e apontando para cima. — Lá no desenhador ficam as engrenagens que comandam o movimento do rastelo; elas estão dispostas segundo o desenho que acompanha o teor da sentença. Eu ainda uso os desenhos do antigo comandante. Aqui estão eles — puxou algumas folhas da carteira de couro —, mas infelizmente não os posso pôr na sua mão, são a coisa mais preciosa que eu tenho. Sente-se, eu os mostro ao senhor desta distância, assim poderá ver tudo bem.
Mostrou a primeira folha. O explorador gostaria de dizer algo aprovador, mas enxergava apenas linhas labirínticas, que se cruzavam umas com as outras de múltiplas maneiras e cobriam o papel tão densamente que só com esforço se distinguiam os espaços em branco entre elas.
— Leia — disse o oficial.
— Não consigo — disse o explorador.
— Mas está nítido — disse o oficial.
— Muito engenhoso — disse evasivamente o explorador. — Mas não consigo decifrar nada.
— Sim — disse o oficial rindo e guardando de novo a carteira. — Não é caligrafia para escolares. É preciso estudá-la muito tempo. Sem dúvida o senhor também acabaria entendendo. Naturalmente não pode ser uma escrita simples, ela não deve matar de imediato, mas em média só num espaço de tempo de doze horas; o ponto de inflexão é calculado para a sexta hora. É preciso portanto que muitos floreios rodeiem a escrita propriamente dita; esta só cobre o corpo numa faixa estreita; o resto é destinado aos ornamentos. O senhor consegue agora apreciar o trabalho do rastelo e de todo o aparelho? Veja!
Saltou sobre a escada, girou uma engrenagem e gritou para baixo:
— Atenção, fique de lado!
Tudo entrou em movimento. Se a engrenagem não rangesse seria magnífico. Como se estivesse surpreso com a perturbação que ela provocava, o oficial a ameaçou com o punho; depois, desculpando-se, abriu os braços para o explorador e desceu apressadamente a escada, para observar o aparelho por baixo. Ainda havia alguma coisa que não estava em ordem e que só ele percebia; subiu outra vez a escada, enfiou as duas mãos no interior do desenhador; em seguida, para descer mais depressa, escorregou por uma das barras ao invés de usar a escada e, para se fazer entender no meio do barulho, gritou com o máximo de força no ouvido do explorador:
— Compreende o processo? O rastelo começa a escrever; quando o primeiro esboço de inscrição nas costas está pronto, a camada de algodão rola, fazendo o corpo virar de lado lentamente, a fim de dar mais espaço para o rastelo. Nesse ínterim as partes feridas pela escrita entram em contato com o algodão, o qual, por ser um produto de tipo especial, estanca instantaneamente o sangramento e prepara o corpo para novo aprofundamento da escrita. Então, à medida que o corpo continua a virar, os dentes na extremidade do rastelo removem o algodão das feridas, atiram-no ao fosso e o rastelo tem trabalho outra vez. Assim ele vai escrevendo cada vez mais fundo durante as doze horas. Nas primeiras seis o condenado vive praticamente como antes, apenas sofre dores. Depois de duas horas é retirado o tampão de feltro, pois o homem já não tem mais força para gritar. Aqui nesta tigela aquecida por eletricidade, na cabeceira da cama, é colocada papa de arroz quente, da qual, se tiver vontade, o homem pode comer o que consegue apanhar com a língua. Nenhum deles perde a oportunidade. Eu pelo menos não conheço nenhum, e minha experiência é grande. Só na sexta hora ele perde o prazer de comer. Nesse momento, em geral eu me ajoelho aqui e observo o fenômeno. Raramente o homem engole o último bocado, apenas o revolve na boca e o cospe no fosso. Preciso então me agachar, senão escorre no meu rosto. Mas como o condenado fica tranquilo na sexta hora! O entendimento ilumina até o mais estúpido. Começa em volta dos olhos. A partir daí se espalha. Uma visão que poderia seduzir alguém a se deitar junto embaixo do rastelo. Mais nada acontece, o homem simplesmente começa a decifrar a escrita, faz bico com a boca como se estivesse escutando. O senhor viu como não é fácil decifrar a escrita com os olhos; mas o nosso homem a decifra com os seus ferimentos. Seja como for exige muito trabalho; ele precisa de seis horas para completá-lo. Mas aí o rastelo o atravessa de lado a lado e o atira no fosso, onde cai de estalo sobre o sangue misturado à água e o algodão. A sentença está então cumprida e nós, eu e o soldado, o enterramos.
O explorador tinha inclinado o ouvido para o oficial e, as mãos no bolso da jaqueta, observava o trabalho da máquina. O condenado também olhava, mas sem entender. Curvou-se um pouco e estava seguindo o movimento das agulhas quando, a um sinal do oficial, o soldado, com uma faca, lhe cortou por trás a camisa e as calças, de tal modo que elas caíram; o condenado ainda quis segurar a roupa para cobrir a nudez, mas o soldado o levantou no ar e arrancou dele os últimos trapos. O oficial desligou a máquina e no silêncio que então se seguiu o condenado foi colocado sob o rastelo. As correntes foram soltas e no lugar delas amarradas as correias; no primeiro momento isso pareceu significar quase um alívio para o condenado. E então o rastelo baixou mais um pouco, pois o homem era magro. Quando as pontas o tocaram, um arrepio percorreu sua pele; enquanto o soldado estava ocupado com sua mão direita, ele esticou a esquerda sem saber para onde; mas era na direção de onde estava o explorador. O oficial observava de lado, continuamente, o explorador, como se quisesse ler no seu rosto a impressão que lhe causava a execução que ele havia explicado pelo menos superficialmente.
A correia que se destinava ao pulso rebentou; provavelmente o soldado a tinha esticado demais. O oficial tinha de ajudar, o soldado lhe mostrava um pedaço da correia rebentada. O oficial foi até onde ele estava e, com o rosto voltado para o explorador, disse:
— A máquina é muito complexa, aqui e ali alguma coisa tem de rebentar ou quebrar; mas não se deve por isso chegar a um falso julgamento do conjunto. Para a correia, aliás, arranja-se logo um substituto; vou usar uma corrente; com isso no entanto fica prejudicada a delicadeza da vibração para o braço direito.
E enquanto colocava a corrente, acrescentou:
— Os recursos para a manutenção da máquina agora estão muito limitados. Sob o antigo comandante eu tinha livre acesso a um fundo destinado só para isso. Havia aqui um armazém onde eram guardadas todas as peças de reposição possíveis. Confesso que desse modo eu chegava quase ao desperdício — digo antes, não agora, como afirma o novo comandante, para quem tudo serve de pretexto para combater as velhas instituições. Agora ele próprio administra o fundo para a máquina, e se eu solicito uma correia nova, é exigida a que rebentou como prova e a nova só vem em dez dias, mas é de qualidade inferior e não serve para quase nada. Mas uma coisa com que ninguém se preocupa é como nesse ínterim eu vou fazer a máquina funcionar sem correia.
O explorador pensou consigo: é sempre problemático intervir com determinação em assuntos estrangeiros. Ele não era membro da colônia penal nem cidadão do Estado a que ela pertencia. Se quisesse condenar esta execução ou mesmo tentar impedi-la, poderiam lhe dizer: você é um estrangeiro, fique quieto. A isso ele não poderia replicar nada, apenas acrescentar que não compreendia sua própria situação neste caso, pois estava viajando com o único intuito de observar e não, de forma alguma, para mudar procedimentos judiciais estrangeiros. Fosse como fosse, porém, as coisas aqui se colocavam de maneira muito tentadora. A injustiça do processo e a desumanidade da execução estavam fora de dúvida. Ninguém poderia supor qualquer benefício em causa própria por parte do observador, pois o condenado era uma pessoa estranha a ele, não era seu compatriota e não demandava nenhuma compaixão. O explorador tinha recomendações de altos funcionários, fora recebido aqui com grande cortesia e o fato de ter sido convidado para esta execução parecia até sugerir que solicitavam a sua opinião sobre este julgamento. Isso era tanto mais provável porque o comandante, conforme tinha ouvido agora da maneira mais clara, não era adepto desse procedimento e se comportava quase com hostilidade em relação ao oficial.
Nesse momento o explorador ouviu um grito de raiva do oficial. Ele tinha acabado de enfiar, não sem esforço, o tampão de feltro na boca do condenado, quando este, num acesso irresistível de náusea, fechou os olhos e vomitou. Para afastá-lo do tampão, o oficial o ergueu rapidamente, enquanto tentava virar sua cabeça para o fosso; mas era tarde demais, a sujeira já escorria pelo aparelho.
— Tudo culpa do comandante! — berrou o oficial, sacudindo, fora de si, as barras de latão da frente. — Sujam-me o aparelho como se fosse uma estrebaria.
Com as mãos trêmulas, mostrou ao explorador o que tinha acontecido.
— Não tentei horas a fio fazer o comandante entender que um dia antes da execução não se deve mais dar comida ao condenado? Mas a nova orientação, benevolente, pensa de outro modo. As senhoras do comandante entopem de doces o homem antes que ele seja conduzido para cá. Durante a vida inteira ele se alimentou de peixes fedidos e agora tem de comer doces! Seria até possível, eu não teria nada contra, mas por que não providenciam um feltro novo, como solicitei faz três meses? Como é que se pode enfiar sem nojo na boca este feltro que mais de cem homens já chuparam e morderam na hora de morrer?
O condenado tinha baixado a cabeça e parecia em paz, o soldado estava ocupado em limpar a máquina com a camisa do condenado. O oficial caminhou até o explorador, que pressentindo alguma coisa recuou um passo; mas o oficial o segurou pelo braço, puxando-o para o lado.
— Quero falar-lhe em confiança algumas coisas, o senhor me permite, não é?
— Certamente — disse o explorador, escutando com os olhos baixos.
— Tanto o procedimento como a execução que o senhor está tendo oportunidade de admirar não têm no momento mais nenhum adepto declarado em nossa colônia. Sou o seu único defensor e ao mesmo tempo o único que defende a herança do antigo comandante. Não posso mais cogitar nenhuma ampliação do processo, despendo todas as energias para preservar o que existe. Quando o antigo comandante era vivo, a colônia estava cheia de adeptos seus; tenho em parte a força de convicção dele, mas me falta inteiramente o seu poder; em vista disso os adeptos se esconderam, existem muitos ainda, mas nenhum o admite. Se o senhor for à casa de chá hoje, ou seja, num dia de execução, e ficar escutando em volta, talvez ouça apenas declarações ambíguas. São todos fiéis, mas sob o atual comandante e seus atuais pontos de vista, eles não me servem para coisa alguma. E agora eu lhe pergunto: será que por causa desse comandante e das mulheres que o influenciam deve perecer a obra de toda uma vida, como esta? — e apontou para a máquina. — Pode-se permitir uma coisa dessas, mesmo que só se esteja passando alguns dias em nossa ilha como estrangeiro? Mas não há tempo a perder, estão preparando alguma coisa contra o meu poder judicial; já se realizam reuniões de consulta no comando, para as quais não sou convocado; mesmo a visita do senhor, hoje, parece significativa da minha situação; são covardes e mandam à frente o senhor, um estrangeiro. Como era diferente a execução nos velhos tempos! Já um dia antes o vale inteiro estava superlotado de gente; todos vinham só para ver; de manhã cedo o comandante aparecia com as suas damas; as fanfarras acordavam todo o acampamento; eu fazia o anúncio de que estava tudo pronto; a sociedade — nenhum alto funcionário podia faltar — se alinhava em volta da máquina; esta pilha de cadeiras de palha é um pobre resquício daqueles tempos. A máquina, polida pouco antes, resplendia; praticamente a cada execução eu dispunha de peças novas. Diante de centenas de olhos — todos os espectadores ficavam nas pontas dos pés até aquela elevação — o condenado era posto sob o rastelo pelo próprio comandante. O que hoje um soldado raso pode fazer era naquela época tarefa minha, presidente do tribunal, e ela me honrava. E então começava a execução! Nenhum som discrepante perturbava o trabalho da máquina. Muitos já nem olhavam mais, ficavam deitados na areia com os olhos cerrados; todos sabiam: agora se faz justiça. No silêncio só se ouviam os suspiros do condenado, abafados pelo feltro. Hoje a máquina já não consegue extrair do condenado um gemido mais forte que o feltro ainda não possa sufocar, mas antes as agulhas que escrevem borrifavam um líquido cáustico, cujo emprego não é mais permitido. Bem, então chegava a sexta hora! Era impossível atender a todos os pedidos para ficar olhando de perto. O comandante, com a visão que tinha das coisas, determinava que sobretudo as crianças deviam ser levadas em consideração; eu no entanto podia permanecer lá graças à minha profissão; muitas vezes ficava agachado no lugar com duas crianças pequenas no colo, uma à esquerda e outra à direita. Como captávamos todos a expressão de transfiguração no rosto martirizado, como banhávamos as nossas faces no brilho dessa justiça finalmente alcançada e que logo se desvanecia! Que tempos aqueles, meu camarada!
O oficial evidentemente esquecera quem estava à sua frente; tinha abraçado o explorador e posto a cabeça no seu ombro. O explorador estava profundamente embaraçado e olhava para a distância por cima do oficial. O soldado havia terminado o trabalho de limpeza na máquina e agora despejava papa de arroz de uma lata na tigela. Mal percebeu isso, o condenado, que já parecia ter se recuperado plenamente, começou a apanhar papa de arroz com a língua. O soldado o repelia sempre, pois sem dúvida a papa estava prevista para mais tarde, assim como era igualmente impróprio que o soldado enfiasse as mãos sujas na comida para comê-la na frente do condenado ávido.
O oficial se recompôs rápido.
— Eu não estava querendo emocioná-lo — disse ele. — Sei que é impossível dar hoje uma ideia do que foram aqueles tempos. Além disso, a máquina ainda funciona e produz sozinha os seus efeitos. Funciona mesmo quando está a sós neste vale. E o cadáver continua no final a cair num voo inconcebivelmente suave no fosso, ainda que não se juntem em volta dele, como moscas, centenas de pessoas como antes. Antigamente tínhamos de instalar em torno do fosso um corrimão forte, retirado dali já faz muito tempo.
O explorador queria desviar do oficial o próprio rosto, olhando ao redor sem um alvo definido. O oficial julgou que ele contemplava o ermo do vale, por isso agarrou-lhe as mãos, girou em volta dele para encará-lo e perguntou:
— O senhor está vendo que vergonha?
Mas o explorador ficou em silêncio. O oficial se afastou por um instante; com as pernas apartadas, as mãos nos quadris, permaneceu quieto, olhando para o chão. Depois sorriu para o explorador, com a intenção de encorajá-lo, e disse:
— Ontem eu estava perto do senhor, quando o comandante o convidou. Ouvi o convite. Conheço o comandante. Entendi imediatamente o que pretendia com o convite. Embora o poder dele seja suficientemente grande para investir contra mim, ele ainda não ousa fazer isso, mas quer sem dúvida me expor ao julgamento de um estrangeiro ilustre como o senhor. Seus cálculos são cuidadosos; o senhor está pelo segundo dia na ilha, não conheceu o antigo comandante nem suas ideias, mantém-se preso à visão europeia das coisas, talvez seja um opositor decidido da pena de morte em geral e em particular deste tipo de execução mecânica; além disso, vê como a execução se processa sem participação pública, triste, numa máquina já um tanto avariada — juntando tudo isso, não seria bem provável (assim pensa o comandante) que o senhor considerasse o meu procedimento incorreto? E se o senhor não o considera correto, não silenciará sua opinião (continuo falando do ponto de vista do comandante), uma vez que certamente confia nas suas convicções tantas vezes comprovadas. Efetivamente o senhor viu muitas peculiaridades de muitos povos e aprendeu a respeitá-las; por isso é provável que não vá se pronunciar contra este procedimento com toda a energia, como talvez em seu próprio país. Mas disso o comandante não precisa de modo algum. Basta uma palavra passageira, uma simples palavra descuidada. Ela não precisa nem corresponder às convicções do senhor, ainda que só na aparência atenda ao desejo dele. Estou certo de que ele o vai encher de perguntas com a maior astúcia. E as damas ficarão sentadas em círculo, aguçando os ouvidos; o senhor dirá talvez: “No meu país o procedimento judicial é diferente”, ou “No meu país o acusado é interrogado antes da sentença”, ou “No meu país o condenado tem ciência da condenação”, ou “No meu país existem outras punições que não a pena de morte”, ou “No meu país só houve torturas na Idade Média”. Todas estas observações são tão corretas quanto lhe parecem naturais, observações inocentes que não incidem sobre o meu procedimento. Mas como o comandante irá recebê-las? Já o estou vendo, o bom comandante, pôr imediatamente de lado a cadeira e ir às pressas para o balcão, vejo as damas o imitarem, ouço a voz dele — as senhoras dizem que é uma voz de trovão — e ele então afirmar: “Um grande pesquisador do Ocidente, encarregado de examinar o procedimento judicial em todos os países, acabou de declarar que o nosso antigo procedimento é desumano. Depois do juízo de uma personalidade como essa, naturalmente não me é mais possível tolerar este procedimento. Portanto, no dia de hoje, determino etc.”. O senhor quer intervir, o senhor não disse o que ele proclama, o senhor não chamou o meu procedimento de desumano, pelo contrário, de acordo com a sua percepção mais profunda, o senhor o considera o mais humano e o mais digno de todos, o senhor também admira esse maquinismo — mas é tarde demais; o senhor não consegue nem chegar ao balcão, que já está tomado pelas damas; o senhor quer se fazer notar; o senhor quer gritar; mas uma mão de mulher tapa a sua boca — e com isso eu e a obra do antigo comandante estamos perdidos.
O explorador teve de reprimir um sorriso; então era fácil assim a tarefa que ele havia considerado tão difícil. Disse evasivamente:
— O senhor superestima minha influência; o comandante leu minha carta de recomendação, ele sabe que não sou um perito em procedimento judicial. Se eu expressasse uma opinião, seria a de um cidadão particular, em nada mais importante que a opinião de qualquer outro, e seja como for muito menos importante que a do comandante, que nesta colônia, segundo acredito, tem direitos muito amplos. Se a opinião dele sobre o procedimento é tão determinada como o senhor julga, então eu temo ter chegado o fim desse procedimento sem a menor necessidade da minha modesta colaboração.
Será que o oficial já estava entendendo? Não, ele ainda não entendia. Sacudiu a cabeça com vivacidade, voltou um instante o olhar para o condenado e o soldado, que estremeceram e se afastaram do arroz, chegou bem perto do explorador, não fitou seu rosto, mas sim algum ponto da sua jaqueta e disse em voz mais baixa que antes:
— O senhor não conhece o comandante; diante dele e de todos nós o senhor — desculpe a expressão — está na posição do inocente; sua influência, acredite em mim, não pode ser estimada num nível suficientemente alto. Fiquei feliz quando ouvi que o senhor deveria assistir sozinho à execução. Essa decisão do comandante pretendia me atingir, mas agora eu a reverto em meu favor. Sem ser influenciado por falsas insinuações e olhares de desprezo — como não se poderia evitar no caso de uma participação mais ampla na execução — o senhor escutou minhas explicações, viu a máquina e agora está na iminência de assistir à execução. Certamente o seu julgamento já está firmado; se ainda houver pequenas dúvidas, elas serão eliminadas à vista da execução. E agora apresento ao senhor o seguinte pedido: ajude-me diante do comandante!
O explorador não o deixou continuar falando.
— Como poderia fazer isso? — exclamou. — É completamente impossível! Posso ajudá-lo tão pouco quanto prejudicá-lo.
— O senhor pode — disse o oficial.
O explorador viu com um certo receio que o oficial cerrava os punhos.
— O senhor pode — repetiu o oficial com mais insistência. — Tenho um plano que tem de dar certo. O senhor julga que sua influência é insuficiente. Eu sei que ela é suficiente. Mas mesmo admitindo que o senhor tenha razão, não é preciso tentar até o inexequível para conservar este procedimento? Ouça portanto o meu plano. Para realizá-lo é necessário sobretudo que o senhor se mantenha hoje na colônia o mais reservado possível sobre o procedimento. Se não for diretamente perguntado, não deve de modo algum se pronunciar; mas suas declarações precisam ser breves e indefinidas; as pessoas devem perceber que lhe é difícil falar sobre esse assunto, que o senhor está amargurado, que caso devesse falar abertamente irromperia em claras imprecações. Eu não exijo que o senhor deva mentir; de maneira alguma; o senhor deve apenas responder secamente, como por exemplo: “Sim, eu vi a execução”, ou “Sim, escutei todas as explicações”. Só isso, nada mais. Para a acrimônia que se deve notar no senhor existe motivo suficiente, mesmo que não seja da perspectiva do comandante. Naturalmente ele irá entender tudo errado e interpretar segundo o ponto de vista dele. É nisso que se baseia meu plano. Amanhã se realiza na sede do comando, sob a presidência do comandante, uma grande reunião de todos os altos funcionários da administração. Evidentemente o comandante conseguiu fazer um espetáculo dessas reuniões. Foi construída uma galeria, que está sempre lotada de espectadores. Eu sou obrigado a participar das deliberações, embora a repulsa me faça estremecer. Bem, de qualquer modo o senhor será sem dúvida convidado para a reunião; se se comportar hoje de acordo com o meu plano, o convite se tornará um pedido premente. Mas se por algum motivo incompreensível o senhor não for convidado, então precisa exigir de qualquer maneira o convite; não há dúvida de que nesse caso irá recebê-lo. Amanhã, portanto, estará sentado com as damas no camarote do comandante. Com frequentes olhares para cima ele se assegura de que o senhor está lá. Depois de diversos temas de discussão sem importância, ridículos — na maioria das vezes são construções portuárias, sempre as construções portuárias! —, chega a vez do procedimento judicial. Se por iniciativa do comandante isso não acontecer, ou não acontecer logo, então eu me encarrego de fazer com que aconteça. Levanto-me e faço o anúncio da execução de hoje. Muito breve, apenas o anúncio. Na verdade não é uma coisa usual lá, mas assim mesmo eu o faço. O comandante me agradece, como sempre com um sorriso amigável, e aí, sem poder se conter, ele aproveita a oportunidade. “Acaba de ser feito o anúncio da execução” — dirá isso ou algo semelhante. “Gostaria apenas de acrescentar ao anúncio que precisamente a essa execução esteve presente o grande pesquisador cuja visita tão honrosa à nossa colônia é do conhecimento de todos. Nossa reunião de hoje também tem sua importância realçada por essa presença. Não vamos, pois, dirigir a esse grande pesquisador a pergunta sobre como julga a execução segundo o costume antigo e o procedimento que a antecede?” Naturalmente aplausos de todos os lados, assentimento geral, eu sou o mais ruidoso. O comandante se inclina à sua frente e diz: “Neste caso eu coloco a pergunta em nome de todos”. E então o senhor vai até o parapeito. Coloque as mãos num lugar visível para todos, senão as damas as agarram e brincam com os seus dedos. Ouve-se agora por fim a sua própria palavra. Não sei como vou suportar a tensão das horas até esse instante. No seu discurso o senhor não precisa se impor nenhuma barreira, faça alarde da verdade, vergue o corpo sobre o parapeito, berre, berre sim, berre ao comandante a sua opinião, a sua inabalável opinião. Mas talvez o senhor não queira isso, não condiz com o seu caráter, talvez no seu país as pessoas se comportem de outra maneira nessas situações; também isso está certo, também isso basta, nem ao menos se levante, diga apenas algumas palavras, sussurre-as de modo que só os funcionários embaixo do senhor as ouçam, não precisa absolutamente falar da escassa participação pública na execução, da engrenagem que range, da correia rebentada, do feltro repugnante, não, eu assumo pessoalmente todo o resto, e acredite: se o meu discurso não fizer o comandante sair da sala, ele vai obrigá-lo a se pôr de joelhos até confessar: antigo comandante, eu me dobro diante de você. É este o meu plano; o senhor quer me ajudar a executá-lo? Mas é claro que quer, mais que isso, o senhor precisa me ajudar.
E o oficial segurou pelos dois braços o explorador, olhando-o no rosto com a respiração ofegante. As últimas frases ele as tinha gritado tanto que até o soldado e o condenado ficaram prestando atenção; embora não pudessem entender nada, pararam de comer e, mastigando, ergueram o olhar na direção do explorador.
Para o explorador estava desde o início fora de dúvida a resposta que precisava dar; na sua vida havia experimentado muitas coisas para que pudesse vacilar aqui; era um homem basicamente honrado e não tinha medo. Apesar disso hesitou um instante à vista do homem e do soldado. Mas finalmente disse o que tinha de dizer:
— Não.
O oficial piscou várias vezes, mas não desviou o olhar dele.
— O senhor quer uma explicação? — perguntou o explorador.
O oficial assentiu em silêncio.
— Sou contra este procedimento — disse então o explorador. — Antes mesmo que o senhor tivesse falado comigo em confiança — naturalmente não vou em circunstância alguma abusar dessa confiança — eu já havia refletido se estaria no direito de intervir contra este procedimento e se a minha intervenção poderia ter a menor perspectiva de êxito. Estava claro para mim, nesse caso, a quem eu teria de me dirigir em primeiro lugar: ao comandante, evidentemente. O senhor tornou isso mais claro ainda, mas sem ter porventura consolidado a minha decisão; pelo contrário: sua honesta convicção me toca, embora ela também não possa me confundir.
O oficial permaneceu mudo; voltou-se para a máquina, segurou uma das barras de latão e depois, um pouco inclinado para trás, ergueu os olhos para o desenhador, como que verificando se estava tudo em ordem. O soldado e o condenado pareciam ter feito amizade um com o outro; por mais difícil que isso fosse, em virtude das fortes cadeias, o condenado fazia sinais ao soldado; o soldado se inclinava para ele; o condenado sussurrava-lhe alguma coisa e o soldado concordava com a cabeça.
O explorador foi atrás do oficial e disse:
— O senhor ainda não sabe o que eu quero fazer. Vou de fato comunicar ao comandante o meu ponto de vista sobre o procedimento, mas não em uma reunião, e sim a sós; também não devo ficar aqui tanto tempo para assistir a alguma reunião; amanhã cedo eu já parto ou pelo menos embarco num navio.
Não parecia que o oficial tivesse ouvido.
— Então o procedimento não o convenceu — disse para si mesmo e sorriu como um velho sorri da insensatez de uma criança e conserva atrás do sorriso seu verdadeiro pensamento.
— Portanto chegou a hora — disse por fim e de repente dirigiu ao explorador um olhar iluminado que continha alguma exortação, algum incitamento no sentido de participar.
— Hora do quê? — perguntou inquieto o explorador, mas sem receber resposta.
— Você está livre — disse o oficial ao condenado na sua língua.
Este a princípio não acreditou.
— Livre, você está livre — disse o oficial.
Pela primeira vez o rosto do condenado adquiriu realmente vida. Era verdade? Era apenas um capricho passageiro do oficial? O explorador estrangeiro tinha obtido dele clemência? O que estava acontecendo? Assim parecia perguntar o seu rosto. Mas não por muito tempo. Fosse o que fosse, ele queria, se tinha permissão para tanto, estar realmente livre, e por isso começou a se sacudir, na medida em que o rastelo o admitia.
— Você me rebenta as correias — gritou o oficial. — Fique quieto. Nós já vamos desatá-las.
E se pôs a trabalhar com o soldado, a quem fizera um sinal. O condenado ria sozinho, mansamente, sem dizer uma palavra, voltando o rosto ora à esquerda, para o oficial, ora à direita, para o soldado; também não esqueceu o explorador.
— Puxe-o para fora — ordenou o oficial ao soldado.
Aqui foi preciso ter algum cuidado em vista do rastelo. O condenado já tinha alguns pequenos rasgos nas costas por causa da sua impaciência.
Mas a partir daí o oficial não se preocupou mais com ele. Caminhou até o explorador, tirou do bolso outra vez a pequena carteira de couro, folheou-a, encontrou por fim a folha que estava procurando e mostrou-a.
— Leia — disse.
— Não consigo — disse o explorador. — Já falei que não consigo ler essas folhas.
— Olhe com atenção — disse o oficial e se pôs ao lado do explorador para ler com ele.
Mas quando isso também não deu resultado, o oficial seguiu as linhas com o dedo mínimo, a uma altura bem distante do papel, como se não pudesse de forma alguma tocar a folha, para desse modo facilitar a leitura ao explorador. Este fez um esforço para pelo menos nisto ser agradável ao oficial, mas não lhe foi possível. O oficial começou então a soletrar a inscrição e depois a leu no conjunto.
— Seja justo, é o que consta aqui. Agora o senhor certamente consegue ler.
O explorador se inclinava tanto sobre o papel que o oficial o colocou mais a distância com medo do contato; o explorador na verdade não disse mais nada, mas era evidente que continuava não conseguindo ler.
— Seja justo, é o que consta aqui — disse outra vez o oficial.
— Pode ser — disse o explorador. — Acredito que sim.
— Muito bem — disse o oficial, pelo menos em parte satisfeito, e subiu na escada com a folha.
Depositou-a com muito cuidado no desenhador e pareceu modificar completamente a disposição das engrenagens; era um trabalho muito minucioso, devia se tratar de engrenagens bem pequenas, às vezes a cabeça do oficial desaparecia inteiramente no desenhador, tanta era a exatidão com que precisava examinar o mecanismo.
Embaixo o explorador acompanhava sem interrupção esse trabalho, seu pescoço endurecia e os olhos lhe doíam por causa do céu devassado de sol. O soldado e o condenado só se ocupavam um do outro. A camisa e as calças do condenado, que jaziam no fosso, foram pescadas pelo soldado com a ponta da baioneta. A camisa estava pavorosamente suja e o condenado a lavou no balde de água. Quando depois vestiu a camisa e a calça, o soldado e o condenado tiveram de rir alto, pois as peças de vestuário estavam cortadas pelo meio na parte de baixo. Talvez o condenado se julgasse na obrigação de divertir o soldado; com a roupa rasgada girava em círculo diante do soldado, que agachado no chão ria batendo nos joelhos. Os dois entretanto ainda se continham por consideração com a presença dos senhores.
Quando o oficial finalmente terminou o trabalho lá em cima, abarcou mais uma vez com o olhar sorridente todas as partes do conjunto, fechou desta feita a tampa do desenhador, que até aí tinha ficado aberta, desceu a escada, olhou para o fosso e em seguida para o condenado, percebeu com satisfação que este havia retirado de lá as suas roupas, caminhou então até o balde de água para lavar as mãos, reconheceu tarde demais a sujeira horrorosa, ficou triste por agora não poder lavar as mãos, finalmente as mergulhou na areia — essa alternativa não o satisfazia, mas tinha de se sujeitar a ela —, depois ficou em pé e começou a desabotoar a túnica do seu uniforme. Ao fazer isso caíram-lhe às mãos, logo em primeiro lugar, os dois lenços que tinha enfiado atrás da gola.
— Aqui estão os seus lenços — disse, atirando-os na direção do condenado.
E para o explorador, como forma de explicação, afirmou:
— Presente das damas.
Apesar da pressa evidente com que tirou a túnica e depois se despiu por completo, tratou com muito cuidado cada peça do uniforme, chegando mesmo a correr os dedos sobre o cordão de prata da túnica, sacudindo uma borla até endireitá-la. De qualquer forma condizia pouco com esse esmero o fato de que, assim que acabava de cuidar de uma peça, ele a atirasse imediatamente no fosso com um empurrão irritado. A última coisa que lhe restava era o espadim com o cinturão. Tirou o espadim da bainha, quebrou-o, depois juntou tudo, os pedaços do espadim, a bainha e o cinturão, e os lançou fora com tanta violência que eles ressoaram uns contra os outros no fundo do fosso.
Agora estava ali, nu. O explorador mordeu os lábios e não disse nada. Sabia na verdade o que ia acontecer, mas não tinha o direito de impedir o oficial em nada. Se o procedimento judicial de que o oficial era adepto estava de fato tão próximo da supressão — possivelmente em consequência da intervenção do explorador, com a qual este por seu lado se sentia comprometido —, então o oficial estava agora agindo de um modo inteiramente correto; se estivesse no seu lugar não teria se conduzido de outra maneira.
O soldado e o condenado a princípio não entenderam nada, no começo nem mesmo ficaram olhando. O condenado estava contente por ter recebido de volta os lenços, mas não pôde se alegrar com eles por muito tempo, pois o soldado os arrebatou com um golpe de mão rápido e imprevisto. Tentava agora reavê-los do soldado, que os havia guardado por trás do cinturão, mas o soldado estava atento. Desse modo disputavam, meio brincando. Só quando o oficial ficou completamente nu eles prestaram atenção. Principalmente o condenado parecia assaltado pelo pressentimento de uma grande reviravolta. O que tinha acontecido com ele agora acontecia com o oficial. Talvez isso chegasse às últimas consequências. Provavelmente o explorador estrangeiro tinha dado ordens nesse sentido. Era portanto uma vingança. Sem ter sofrido até o fim, seria vingado até o fim. Apareceu então no seu rosto um sorriso amplo e silencioso que não desapareceu mais.
O oficial porém havia se voltado para a máquina. Se antes já era manifesto que entendia bem do aparelho, agora chegava quase a causar espanto como sabia manipulá-lo e como ele lhe obedecia. Tinha apenas aproximado a mão do rastelo e este subiu e baixou várias vezes até alcançar a posição certa para o receber; bastou ele tocar a borda da cama para ela imediatamente começar a vibrar; o feltro veio ao encontro da sua boca, via-se que o oficial na verdade não queria aceitá-lo, mas a hesitação só durou um instante, ele se submeteu logo e o acolheu na boca. Estava tudo pronto, só as correias ainda pendiam dos lados, mas elas eram evidentemente desnecessárias, o oficial não precisava ser amarrado. Aí o condenado notou as correias soltas, na sua opinião a execução não seria completa se as correias não estivessem apertadas, fez um sinal exasperado para o soldado e os dois correram para atar o oficial. Este já tinha esticado um pé para empurrar a manivela que devia pôr o desenhador em movimento; viu então que os dois tinham chegado; por isso recuou o pé e se deixou amarrar. De qualquer modo agora não podia mais alcançar a manivela; nem o soldado nem o condenado iriam encontrá-la e o explorador estava decidido a não se mexer. Não foi necessário: mal tinham sido ajustadas as correias a máquina começou a trabalhar; a cama vibrava, as agulhas dançavam sobre a pele, o rastelo oscilava para cima e para baixo. O explorador já havia fixado o olhar durante algum tempo quando se lembrou de que uma engrenagem no desenhador deveria ranger; mas estava tudo silencioso, não se ouvia o mínimo zumbido.
Com esse trabalho silencioso a máquina literalmente se subtraiu à atenção. O explorador olhou para o soldado e o condenado. O condenado era o mais animado, tudo na máquina o interessava, ora ele se abaixava, ora espichava o corpo, o indicador continuamente esticado para mostrar alguma coisa ao soldado. Para o explorador isso era penoso. Estava decidido a ficar ali até o fim, mas não iria aturar por muito tempo a visão dos dois.
— Vão para casa — disse ele.
Talvez o soldado estivesse disposto a isso, mas o condenado recebeu a ordem como um castigo. De mãos juntas, implorou que o deixasse ali e quando o explorador, sacudindo a cabeça, não quis ceder, ele até se ajoelhou. O explorador viu que aqui as ordens não valiam nada e pensou em expulsar os dois à força. Mas nesse momento escutou um ruído no desenhador lá em cima. Ergueu os olhos. Será que aquela engrenagem ainda funcionava mal? Era no entanto outra coisa. A tampa do desenhador se levantou devagar e depois se abriu completamente. Os dentes de uma engrenagem ficaram à mostra e subiram, logo apareceu a engrenagem inteira, como se uma grande força pressionasse o desenhador, de tal modo que não sobrasse mais espaço para essa engrenagem; ela foi girando até a beira do desenhador, caiu, rolou um trecho em pé na areia e depois ficou deitada. Mas lá em cima já emergia outra, outras se seguiram, muitas, grandes, pequenas, mal discerníveis entre si, e com todas sucedeu a mesma coisa, sempre era possível pensar que agora o desenhador já estava de algum modo esvaziado, mas aí surgia um novo grupo, particularmente numeroso, emergia, desabava, rolava na areia e se deitava. Diante desse processo o condenado esqueceu por completo a ordem do explorador, as engrenagens literalmente o fascinavam, estava sempre querendo agarrar uma, ao mesmo tempo conclamava o soldado a ajudá-lo, mas retirava a mão com medo, pois logo aparecia outra engrenagem, que pelo menos enquanto começava a rodar o assustava.
O explorador, ao contrário, estava muito inquieto; obviamente a máquina estava se destroçando; seu andamento tranquilo era um engano; ele tinha o sentimento de que agora precisava se ocupar do oficial, já que este não podia mais cuidar de si mesmo. Mas enquanto a queda das engrenagens exigira toda a sua atenção, ele havia deixado de observar o resto da máquina; entretanto, depois que a última engrenagem tinha saído do desenhador, ele se inclinou sobre o rastelo e teve uma nova surpresa, ainda pior. O rastelo não estava escrevendo, só dava estocadas, e a cama não rolava o corpo, apenas o levantava vibrando de encontro às agulhas. O explorador queria intervir, se possível fazendo o conjunto parar, já não era mais uma tortura, como pretendia o oficial, e sim assassinato direto. Ele estendeu as mãos. Mas o rastelo já se erguia para o lado com o corpo espetado, como só fazia na décima segunda hora. O sangue fluía em centenas de fios (não misturado com água, pois desta vez os caninhos de água também falharam). E então deixou de funcionar a última coisa: o corpo não se soltava das agulhas longas, seu sangue escorria, mas ele pendia sobre o fosso sem cair. O rastelo queria voltar à posição antiga, mas como se percebesse por si mesmo que ainda não estava livre da sua carga, permanecia sobre o fosso.
— Ajudem aqui! — gritou o explorador para o soldado e o condenado, segurando ele próprio os pés do oficial.
Queria fazer pressão deste lado sobre os pés, do outro os dois homens deveriam pegar a cabeça do oficial e assim o corpo seria aos poucos retirado das agulhas. Mas os dois não conseguiam se decidir; o condenado literalmente virou as costas; o explorador teve de ir até eles e pressioná-los com violência para o lugar onde estava a cabeça do oficial. Nesse ato viu quase contra a vontade o rosto do cadáver. Estava como tinha sido em vida; não se descobria nele nenhum sinal da prometida redenção; o que todos os outros haviam encontrado na máquina, o oficial não encontrou; os lábios se comprimiam com força, os olhos abertos tinham uma expressão de vida, o olhar era calmo e convicto, pela testa passava atravessada a ponta do grande estilete de ferro.
Quando o explorador, seguido pelo soldado e pelo condenado, chegou às primeiras casas da colônia, o soldado apontou para uma delas e disse:
— Esta é a casa de chá.
Havia no térreo um espaço mais baixo, profundo, como se fosse uma cova, de paredes e teto impregnados de fumaça. Ele se abria em toda a sua extensão para a rua. Embora a casa de chá se distinguisse pouco das demais casas da colônia, que estavam muito deterioradas até onde começavam as construções do palácio do comando, ela causou no explorador a impressão de uma recordação histórica e ele sentiu a força dos velhos tempos. Aproximou-se mais e, à frente dos seus acompanhantes, passou pelo meio das mesas desocupadas que se achavam na rua diante da casa de chá, aspirando o ar frio e pesado que vinha do interior.
— O velho está enterrado aqui — disse o soldado. — O clero negou para ele um lugar no cemitério. Durante algum tempo não se sabia onde enterrá-lo, até que finalmente o enterraram aqui. Decerto o oficial não contou nada disso ao senhor, pois naturalmente era a coisa que mais o envergonhava. Tentou até desenterrar algumas vezes o velho à noite, mas foi sempre repelido.
— Onde está o túmulo? — perguntou o explorador, que não podia acreditar no soldado.
Imediatamente tanto o soldado como o condenado passaram à frente do explorador, apontando com as mãos estendidas para o lugar onde devia estar o túmulo. Levaram-no até a parede dos fundos, onde estavam sentados alguns fregueses. Eram provavelmente estivadores, homens fortes de barbas cheias, negras e luzidias. Estavam todos sem casaco, as camisas esfarrapadas, gente pobre e humilde. Quando o explorador se aproximou, alguns se levantaram, ficaram de encontro à parede e olharam para ele.
— É um estrangeiro — sussurrou-se em volta do explorador. — Ele quer visitar o túmulo.
Empurraram uma das mesas, sob a qual se encontrava de fato uma lápide. Era uma pedra simples, suficientemente baixa para poder ficar escondida debaixo de uma mesa. Tinha uma inscrição com letras muito miúdas. Para poder lê-las o explorador precisou se ajoelhar. Dizia o seguinte: “Aqui jaz o antigo comandante. Seus adeptos, que agora não podem dizer o nome, cavaram-lhe o túmulo e assentaram a lápide. Existe uma profecia segundo a qual o comandante, depois de determinado número de anos, ressuscitará e chefiará seus adeptos para a reconquista da colônia. Acreditai e esperai!”.
Quando o explorador terminou de ler e se levantou, viu em torno os homens sentados e sorrindo, como se tivessem lido com ele a inscrição, achando que ela era ridícula e o convidassem a ser da mesma opinião. O explorador agiu como se não o notasse, distribuiu entre eles algumas moedas, ainda esperou que a mesa fosse empurrada sobre o túmulo, deixou a casa de chá e se dirigiu ao porto.
O soldado e o condenado tinham encontrado na casa de chá alguns conhecidos que os retiveram. Mas devem ter se livrado logo deles, pois o explorador ainda estava no meio da longa escada que dava para os barcos quando os dois vieram correndo atrás. Provavelmente queriam forçar no último instante o explorador a levá-los consigo. Enquanto o explorador negociava com um barqueiro a travessia até o navio a vapor, os dois desceram a escada a toda pressa, sem dizer nada, pois não ousavam gritar. Mas quando chegaram embaixo, o explorador já estava no barco e o barqueiro acabava de soltá-lo da margem. Ainda teriam podido saltar dentro da embarcação, mas o explorador ergueu do fundo do barco uma pesada amarra, ameaçou-os com ela e desse modo impediu que eles saltassem. — É um aparelho singular — disse o oficial ao explorador, e contemplou com certa admiração o aparelho, que lhe era tão conhecido. O explorador parecia ter aceito apenas por cortesia o convite do comandante para presenciar a execução de um soldado condenado por desobediência e insulto aos seus superiores. Na colônia penal não era tampouco muito grande o interesse suscitado por esta execução. Pelo menos, nesse pequeno vale, profundo e arenoso, cercado totalmente por campos nus, apenas se encontravam, além do oficial e do explorador, o condenado, um homem de boca grande e aspecto estúpido, de cabelo e rosto descuidados, e um soldado, que sustinha a pesada cadeia de onde convergiam as pequenas cadeias que retinham o condenado pelos tornozelos e as munhecas, assim como pelo pescoço, e que estavam unidas entre si mediante cadeias secundárias. De todos os modos, o condenado tinha um aspecto tão caninamente submisso, que ao que parece teriam podido permitir-lhe correr em liberdade pelos campos circundantes, para chamá-lo com um simples assovio quando chegasse o momento da execução. O explorador não se interessava muito pelo aparelho, e passeava atrás do condenado com visível indiferença, enquanto o oficial dava fim aos últimos preparativos, arrastando-se de repente sob o aparelho, profundamente colado à terra, ou subindo de repente por uma escada para examinar as partes superiores. Facilmente teria podido ocupar-se destes trabalhos um mecânico, mas o oficial desempenhava-os com grande zelo, talvez porque admirasse sobremaneira o aparelho, ou talvez porque por diversos motivos não se podia confiar esse trabalho a outra pessoa.
— Já está tudo pronto! — exclamou por fim, e desceu da escada. Parecia extraordinariamente cansado, respirava com a boca muito aberta, e havia colocado dois finos lenços de mulher sob a gola do uniforme.
— Estes uniformes são muito pesados para o trópico — disse o explorador, em vez de fazer alguma pergunta sobre o aparelho, como teria desejado o oficial.
— Com efeito — disse este, e lavou as mãos sujas de graxa e óleo em um balde que ali havia. — Mas para nós são símbolos da pátria; não queremos esquecer-nos de nossa pátria. E agora observe este aparelho — prosseguiu imediatamente, enxugando as mãos com uma toalha e mostrando ao mesmo tempo o aparelho. — Até agora eu trabalhei, mas daqui em diante o aparelho funciona absolutamente sozinho.O explorador confirmou, e seguiu o oficial. Este queria cobrir todas as contingências, e por isso disse:— Naturalmente, às vezes há inconvenientes; espero que não os tenha hoje, mas sempre se deve contar com essa possibilidade. O aparelho deveria funcionar ininterruptamente durante doze horas. Mas há entorpecimentos, são contudo desdenháveis, e solucionam-se rapidamente. — Não quer sentar-se? — perguntou depois, tirando uma cadeira de vime de um montão de cadeiras semelhantes, e oferecendo-a ao explorador; este não podia recusá-la. Sentou-se então, à borda de um buraco destinado à sepultura, para o qual dirigiu um rápido olhar. Nãoera muito profundo. A um lado do buraco estava a terra removida,disposta em forma de parapeito; do outro lado estava o aparelho.
— Não sei — disse o oficial — se o comandante lhe explicou já o aparelho.
O explorador fez um gesto incerto; o oficial não desejava nada melhor, porque assim podia explicar pessoalmente o funcionamento.— Este aparelho — disse, tomando uma manivela e apoiando-se sobre ela — é um invento de nosso antigo comandante. Eu assisti às primeiríssimas experiências, e tomei parte em todos os trabalhos, até seu término. Mas o mérito do descobrimento apenas corresponde a ele. Não ouviu falar de nosso antigo comandante? Não? Bem, não exagero se lhe digo que quase toda a organização da colônia penal é obra dele. Nós, seus amigos, sabíamos ainda antes de sua morte que a organização da colônia era um todo tão perfeito que seu sucessor, embora tivesse mil novos projetos na cabeça, pelo menos durante muitos anos não poderia mudar nada. E nossa profecia cumpriu-se; o novo comandante viu-se obrigado a admiti-lo. É pena que o senhor não tenha conhecido o nosso antigo comandante. Mas — o oficial interrompeu-se — estou divagando, e aqui está o aparelho. Como o senhor vê, consta de três partes. Com o correr do tempo, generalizou-se o costume de designar cada parte com uma espécie de sobrenome popular. A inferior chama-se a Cama, a de cima o Desenhador, e esta do meio o Ancinho.
— O Ancinho? — perguntou o explorador. Não havia escutado com muita atenção; o sol caía com força demais nesse vale sem sombras, mal podia alguém concentrar os pensamentos. Por isso mesmo parecia-lhe mais admirável esse oficial, que, apesar de sua jaqueta de gala, ajustada, carregada de presilhas e enfeites, prosseguia com tanto entusiasmo suas explicações, e além disso, enquanto falava, ajustava aqui e ali algum parafuso, com uma chave de parafusos. Em situação semelhante à do explorador parecia encontrar-se o soldado.
Tinha enrolado a corrente do condenado em torno das mãos; apoiado no fuzil, cabisbaixo, não se preocupava com nada do que acontecia. Isto não surpreendeu ao explorador, já que o oficial falava em francês, e nem o soldado nem o condenado entendiam francês. Por isso mesmo era mais curioso que o condenado se esforçasse por seguir as explicações do oficial.
Com uma espécie de sonolenta insistência, dirigia o olhar para onde o oficial apontava, e cada vez que o explorador fazia uma pergunta, também ele, como o oficial, o olhava.
— Sim, o Ancinho — disse o oficial — , um nome bem adequado. As agulhas estão colocadas nela como os dentes de um ancinho, e o conjunto funciona além disso como um ancinho, ainda que somente em um local determinado, e com muito mais arte. De todo modo, já o compreenderá melhor quando explicar. Aqui, sobre a Cama, coloca-se o condenado. Primeiro lhe descreverei o aparelho, e depois o porei em movimento. Assim poderá entendê-lo melhor. Além disso, uma das engrenagens do Desenhador está muito gasta; chia muito, senhor, mesmo quando funciona, e mal se entende o que se fala; infelizmente, aqui é muito difícil conseguir peças de reposição. Bem, esta é a Cama, como dizíamos. Está totalmente coberta com uma capa de algodão em rama, logo o senhor saberá por quê. Sobre este algodão coloca-se o condenado, boca para baixo, naturalmente nu; aqui há correias para prender-lhe as mãos, aqui para os pés, e aqui para o pescoço. Aqui, na cabeceira da Cama (onde o indivíduo, como já lhe disse, é colocado primeiramente de boca para baixo), esta pequena mordaça de feltro que pode ser facilmente regulada, de modo que entre diretamente na boca do homem. Tem a finalidade de impedir que grite ou morda a própria língua. Naturalmente, o homem não pode afastar a boca do feltro, porque senão a correia do pescoço lhe quebraria as vértebras.
— Isto é algodão? — perguntou o explorador, e abaixou-se para olhar.
— Sim, claro — disse o oficial rindo —; toque o senhor mesmo.
Segurou a mão do explorador e a fez passar pela cama.
— É um algodão especialmente preparado, por isso parece tão irreconhecível; logo lhe falarei de sua finalidade.
O explorador começava a interessar-se um pouco pelo aparelho; protegendo os olhos com a mão, por causa do sol, contemplou o conjunto. Era uma construção elevada. A Cama e o Desenhador tinham igual tamanho, e pareciam dois escuros caixões de madeira. O Desenhador elevava-se uns dois metros sobre a Cama; os dois estavam unidos entre si, nos ângulos, por quatro barras de bronze, que quase resplandeciam ao sol. Entre os caixões, oscilava sobre uma cinta de aço o Ancinho. O oficial não havia percebido a anterior indiferença do explorador, mas sim notou seu interesse nascente, portanto interrompeu as explicações, para que seu interlocutor pudesse dedicar-se sem inconvenientes ao exame dos dispositivos. O condenado imitou o explorador; como não podia cobrir os olhos com a mão, olhava para cima, piscando.
— Então, aqui se coloca o homem — disse o explorador, deitando-se para trás em sua cadeira, e cruzando as pernas.
— Sim — disse o oficial, empurrando o quepe um pouco para trás, e passando a mão pelo rosto cheio de suor —, e agora ouça. Tanto a Cama como o Desenhador têm baterias elétricas próprias; a Cama a requer para ela mesma, o Desenhador para o Ancinho. Quando o homem está bem seguro com as correias, a Cama é posta em movimento. Oscila com vibrações diminutas e muito rápidas, tanto lateralmente como verticalmente. O senhor terá visto aparelhos semelhantes nos hospitais; mas em nossa Cama todos os movimentos estão exatamente calculados; com efeito, devem estar minuciosamente sincronizados com os movimentos do Ancinho. Contudo, a verdadeira execução da sentença corresponde ao Ancinho.
— Como é a sentença? — perguntou o explorador.
— O senhor também não sabe isto? — disse o oficial, assombrado, e mordeu os lábios. — Perdoe-me se minhas explicações são talvez um pouco desordenadas: rogo-lhe realmente que me desculpe. Em outros tempos, correspondia na realidade ao comandante dar as explicações, mas o novo comandante recusa este honroso dever; de qualquer modo, o fato de que a uma visita de tal importância — e aqui o explorador procurou diminuir a importância do elogio, com um gesto de mão, mas o oficial insistiu — a uma visita de tal importância nem sequer seja posta no conhecimento do caráter de nossas sentenças, constitui também uma insólita novidade, que... — e com uma maldição à borda dos lábios, conteve-se e prosseguiu — ... Eu não sabia nada, a culpa não é minha. De todos os modos, eu sou a pessoa mais capacitada para explicar os processos, já que tenho em meu poder — e bateu com a mão no bolso superior — os respectivos desenhos preparados pela própria mão de nosso antigo comandante.
— Os desenhos do próprio comandante? — perguntou o explorador. — Reunia então todas as qualidades? Era soldado, juiz, construtor, químico e desenhista? — Efetivamente — disse o oficial, confirmando com um olhar impenetrável e distante. Depois examinou as próprias mãos; não lhe pareciam suficientemente limpas para tocar os desenhos; portanto, dirigiu-se para o balde e lavou-as novamente. Depois tirou uma pequena carteira de couro e disse: — Nossa sentença não é aparentemente severa. Consiste em escrever sobre o corpo do condenado, por meio do Ancinho, a disposição que ele mesmo violou.
Por exemplo, as palavras inscritas sobre o corpo deste condenado — e o oficial apontou o indivíduo — serão: HONRA A TEUS SUPERIORES.
O explorador olhou rapidamente o homem; no momento em que o oficial o assinalava, estava cabisbaixo e parecia prestar toda a atenção de que seus ouvidos eram capazes, para poder entender alguma coisa. Mas os movimentos de seus lábios grossos e apertados demonstravam evidentemente que não entendia nada. O explorador teria querido formular diversas perguntas, mas ao ver o indivíduo apenas perguntou: — Ele conhece sua sentença?
— Não — disse o oficial, procurando prosseguir imediatamente com suas explicações, mas o explorador o interrompeu: — Não conhece sua sentença?
— Não — repetiu o oficial, calando-se um instante como para permitir que o explorador ampliasse sua pergunta. — Seria inútil anunciá-la. Já a conhecerá na própria carne. O explorador não queria perguntar mais; mas sentia o olhar do condenado fixo nele, como perguntando-lhe se aprovava o procedimento descrito. Em consequência, embora se tivesse refestelado na cadeira, tornou a inclinar-se para diante e continuou perguntando: — Mas ao menos sabe que foi condenado?
— Também não — disse o oficial, sorrindo como se esperasse que lhe fizesse outra pergunta extraordinária.
— Não... — disse o explorador, e passou a mão pela fronte —, então, o indivíduo também ignora como foi conduzida a sua defesa?
— Não lhe foi dada nenhuma oportunidade de defender-se — disse o oficial, e voltou o olhar, como falando consigo mesmo, para evitar ao explorador a vergonha de ouvir uma explicação de coisas tão evidentes. — Mas deve haver tido alguma oportunidade de defesa — disse o explorador, e ergueu-se de seu assento. O oficial compreendeu que corria o perigo de ver prolongada indefinidamente a descrição do aparelho; portanto, aproximou-se do explorador, tomou-o pelo braço, e apontou com a mão o condenado, que ao ver tão evidentemente que toda a atenção se dirigia a ele, pôs-se em posição firme, enquanto o soldado dava um puxão na corrente. — Explicarei como se desenvolve o processo — disse o oficial. — Fui designado juiz da colônia penal. Apesar de minha juventude. Porque eu era o conselheiro do antigo comandante em todas as questões penais, e além disso conheço o aparelho melhor que ninguém. Meu princípio fundamental é este: a culpa é sempre indubitável. Talvez outros tribunais não sigam este princípio fundamental, mas são multipessoais, e além disso dependem de outras câmaras superiores. Este não é nosso caso, pelo menos não o era na época de nosso antigo comandante. O novo demonstrou contudo certo desejo de imiscuir-se em meus juízos, mas até agora consegui mantê-lo a certa distancia, e espero continuar conseguindo. O senhor deseja que lhe explique este caso particular; pois é muito simples, como todos os outros.
Um capitão apresentou esta manhã a acusação de que este indivíduo, que foi designado para seu criado, e que dorme diante de sua porta, tinha adormecido durante a guarda. Com efeito, tem a obrigação de levantar-se ao bater cada hora, e fazer a reverência diante da porta do capitão. Como se vê, não é uma obrigação excessiva, e sim muito necessária, porque assim se mantém alerta em suas funções, tanto de sentinela como de criado. Ontem à noite o capitão quis comprovar se seu criado cumpria o seu dever. Abriu a porta exatamente às duas horas, e encontrou-o adormecido no solo. Apanhou o chicote, e cortou-lhe a cara. Em vez de levantar-se e suplicar perdão, o indivíduo agarrou o superior pelas pernas, sacudiu-o e exclamou: "Larga esse chicote ou te como vivo". Estas são as provas. O capitão veio ver-me faz uma hora, tomei nota de sua declaração, e ditei imediatamente a sentença. Depois fiz prender o culpado. Tudo muito simples. Se primeiramente o chamasse e o tivesse interrogado apenas teriam surgido complicações. Teria mentido, e se eu tivesse querido desmenti-lo, reforçaria suas mentiras com novas mentiras, e assim sucessivamente. Em troca, assim o tenho em meu poder, e não escapará. Está tudo esclarecido? Mas o tempo passa, já deveria começar a execução, e ainda não acabei de lhe explicar o aparelho. Obrigou o explorador a sentar-se novamente, aproximou-se outra vez do aparelho, e começou: — Como você vê, a forma do Ancinho corresponde à forma do corpo humano; aqui está a parte do torso, aqui estão os rastilhos para as pernas. Para a cabeça, apenas existe esta agulhinha. Parece-lhe claro? Inclinou-se amistosamente diante do explorador, disposto a dar as mais amplas explicações.
O explorador, com a testa franzida, considerou o Ancinho. A descrição dos processos judiciais não o satisfizera. Constantemente devia fazer um esforço para não esquecer que se tratava de uma colônia penal, que requeria medidas extraordinárias de segurança, e onde a disciplina devia ser exagerada até o extremo. Mas fundava certas esperanças no novo comandante, que evidentemente projetava introduzir, embora pouco a pouco, um novo sistema de processos; processos que a estreita mentalidade deste oficial não podia compreender.
Estes pensamentos lhe fizeram perguntar: — O comandante assistirá à execução?
— Não é certo — disse o oficial, dolorosamente impressionado por uma pergunta tão direta, enquanto sua expressão amistosa se desvanecia —, por isso mesmo devemos nos apressar. Em consequência, ainda que eu o sinta muitíssimo, sou obrigado a simplificar minhas explicações. Mas amanhã, quando tiverem limpado novamente o aparelho (sua única falha consiste em que se suja muito), poderei dar mais pormenores. Limitemo-nos por enquanto, então, ao mais indispensável. Desde que o homem está deitado na Cama, e esta começa a vibrar, o Ancinho desce sobre seu corpo. Regula-se automaticamente de modo que mal roça o corpo com a ponta das agulhas; enquanto se estabelece o contato, a cinta de aço converte-se imediatamente numa barra rígida. E então começa a função. Uma pessoa que não esteja preparada não percebe nenhuma diferença entre um castigo e outro. O Ancinho parece trabalhar uniformemente. Ao vibrar, rasga com a ponta das agulhas a superfície do corpo, estremecido por sua vez pela Cama. Para permitir a observação do desenvolvimento da sentença, o Ancinho foi construído de vidro. A fixação das agulhas no vidro originou algumas dificuldades técnicas, mas depois de diversas experiências solucionamos o problema. Digo-lhe que temos feito todos os esforços. E agora qualquer um pode observar, através do vidro, como vai tomando forma a inscrição sobre o corpo. Não quer aproximar-se, e ver as agulhas? O explorador ergueu-se lentamente, aproximou-se, e inclinou-se sobre o Ancinho.
— Como o senhor vê — disse o oficial — , há duas espécies de agulhas, dispostas de modo diverso. Cada agulha longa vai acompanhada por uma mais curta. A longa reduz-se a escrever, e a curta borrifa água, para lavar o sangue e manter legível a inscrição. A mistura de água e sangue corre depois por pequenos canaizinhos, e por fim desemboca neste canal principal, para derramar-se no buraco, através de um cano de desaguamento. O oficial mostrava com o dedo o caminho exato que seguia a mistura de água e sangue. Enquanto ele, para tornar mais gráfica possível a imagem, formava um bojo com ambas as mãos na desembocadura do cano de saída, o explorador ergueu a cabeça e procurou retornar a seu assento, tateando atrás de si com a mão.
Viu então com horror que também o condenado tinha obedecido ao convite do oficial para ver mais de perto a disposição do Ancinho. Com a corrente, arrastara um pouco o soldado adormecido, e agora inclinava-se sobre o vidro. Via-se como seu olhar incerto procurava entender o que os dois senhores acabavam de observar e, como que lhe faltando a explicação, não compreendia nada. O explorador procurou afastá-lo, porque o que fazia era provavelmente punível. Mas o oficial reteve-o com a mão, com a outra apanhou do parapeito um torrão e jogou-o contra o soldado. Este se assustou, abriu os olhos, constatou o atrevimento do condenado, deixou cair o rifle, enterrou os tacões no solo, arrastou com um puxão o condenado, que imediatamente caiu ao solo, e depois ficou olhando como se debatia e fazia soar correntes. — Ponha-o de pé! — gritou o oficial, porque percebeu que o condenado distraía demais o explorador. Com efeito, este tinha se inclinado sobre o Ancinho, sem se preocupar muito com seu funcionamento, e apenas queria saber o que acontecia ao condenado.
— Trate-o com cuidado! — tornou a gritar o oficial. Depois correu em torno do aparelho, segurou pessoalmente o condenado pelas axilas e, embora este resvalasse constantemente, com a ajuda do soldado enfim o pôs de pé.
— Já estou inteirado de tudo — disse o explorador, quando o oficial voltou para seu lado.
— Menos do mais importante — disse este, segurando-o pelo braço e apontando para o alto. — Lá em cima, no Desenhador, está a engrenagem que põe em movimento o Ancinho; dita engrenagem é regulada de acordo com a inscrição que corresponde à sentença. Ainda utilizo os desenhos do antigo comandante. Aqui estão — e tirou algumas folhas da pasta de couro —, mas infelizmente não posso dá-los a você para que examine; são minha posse mais preciosa. Sente-se, eu lhes mostrarei daqui, e o senhor poderá ver tudo perfeitamente. Mostrou a primeira folha.
O explorador queria fazer alguma observação pertinente, mas somente viu linhas que se cruzavam repetida e labirinticamente, e que cobriam de tal forma o papel, que mal se podia ver os espaços em branco que as separavam.
— Leia — disse o oficial.
— Não posso — disse o explorador.
— Contudo está claro — disse o oficial.
— É muito engenhoso — disse o explorador evasivamente —, mas não posso decifrá-lo.
— Sim — disse o oficial, rindo e guardando novamente o plano —, não é exatamente caligrafia para escolares. É preciso estudá-lo longamente. Também o senhor acabaria por entendê-lo, estou certo. Naturalmente, não pode ser uma inscrição simples, seu fim não é provocar diretamente a morte, porém após um lapso de doze horas, em média; calcula-se que o momento crítico aparece na sexta hora. Portanto, muitos, muitíssimos adornos rodeiam a verdadeira inscrição; esta apenas ocupa uma estreita faixa em torno do corpo; o restante reserva-se aos embelezamentos. Está agora em condições de apreciar o trabalho do Ancinho e de todo o aparelho? Observe! — e subiu de um salto a escada, e fez girar uma roda. — Atenção, ponha-se de lado! O conjunto começou a funcionar. Se a roda não tivesse rangido, teria sido maravilhoso. Como se o ruído da roda o tivesse surpreendido, o oficial ameaçou-a com o punho, depois abriu os braços como se desculpando diante do explorador, e desceu rapidamente, para observar de baixo o funcionamento do aparelho. Ainda havia algo que não funcionava bem, e que apenas ele percebia; tornou a subir, procurou algo com ambas as mãos no interior do Desenhador, deixou-se deslizar por uma das barras em lugar de utilizar a escada, para descer mais rapidamente, e exclamou com toda sua voz no ouvido do explorador, para fazer-se ouvir em meio ao estrépito: — Compreende o funcionamento? O Ancinho começa a escrever; quando termina o primeiro rascunho da inscrição no dorso do indivíduo, a capa de algodão gira e faz girar o corpo lentamente sobre um lado, para dar mais lugar ao Ancinho. Ao mesmo tempo, as partes já escritas se apoiam sobre o algodão, que graças à sua preparação especial contém a emissão de sangue e prepara a superfície para continuar aprofundando-a inscrição. Depois à medida que o corpo continua girando, estes dentes da borda do Ancinho arrancam o algodão das feridas, jogam no buraco, e o Ancinho pode continuar seu trabalho. Assim continua inscrevendo, cada vez mais fundo, durante as doze horas. Durante as primeiras seis horas, o condenado mantém-se quase tão vivo como no princípio, apenas sente dores. Depois de duas horas, tira-se a mordaça de feltro, porque já não tem forças para gritar. Aqui, neste recipiente esquentado eletricamente, junto à cabeceira da Cama, verte-se papa quente de arroz, para que o homem se alimente, se assim o desejar, lambendo-a com a língua. Ninguém desdenha esta oportunidade. Não sei de nenhum, e minha experiência é vasta. Apenas depois de seis horas desaparece todo o desejo de comer. Geralmente ajoelho-me aqui, nesse momento, e observo o fenômeno. O homem não engole quase nunca o último bocado, apenas o faz girar na boca, e cospe-o no buraco. Então tenho de me abaixar, pois se não o fizesse me cuspiria na cara. Quão tranquilo fica o homem depois da sexta hora... Até o mais estoico começa a compreender. A compreensão se inicia em torno dos olhos. Dali se expande. Nesse momento o desejo que se tem é de se deitar com ele debaixo do Ancinho. Já não acontece nada; o homem começa somente a decifrar a inscrição, estira os lábios para fora, como se escutasse. O senhor já viu que não é fácil decifrar a inscrição com os olhos; mas nosso homem decifra-a com suas feridas. Realmente, custa muito trabalho; precisa de seis horas pelo menos. Mas então o Ancinho já o atravessou completamente e joga-o no buraco, onde cai em meio ao sangue e à água e ao algodão. A sentença cumpriu-se, e nós, eu e o soldado, o enterramos.
O explorador tinha inclinado o ouvido para o oficial, e com as mãos nos bolsos da jaqueta contemplava o funcionamento da máquina.
Também o condenado contemplava, mas sem compreender. Um pouco abaixado,seguia o movimento das agulhas oscilantes; enquanto isso o soldado, diante de um sinal do oficial, cortou com uma faca a camisa e as calças, pela parte de trás, de modo que estas caíram ao chão; o indivíduo procurou reter as roupas que lhe caíam, para cobrir sua nudez, mas o soldado o ergueu no ar e sacudindo-o fez cair os últimos trapos do vestuário. O oficial deteve a máquina, e em meio do repentino silêncio o condenado foi colocado debaixo do Ancinho.Desataram-lhe as cadeias, e em seu lugar amarraram-no com as correias; no primeiro instante, isto pareceu significar quase um alívio para o condenado. Depois, fizeram descer um pouco mais o Ancinho,porque era um homem magro. Quando as pontas o roçaram, um estremecimento percorreu sua pele; enquanto o soldado lhe amarrava a mão direita, o condenado jogou para fora a esquerda, sem saber para onde, mas na direção do explorador. O oficial observava constantemente este último, de través, como se quisesse ler em seu rosto a impressão que lhe causava a execução que pelo menos superficialmente acabava de explicar-lhe.
A correia destinada à mão esquerda partiu-se; provavelmente o soldado a esticara demais. O oficial precisou intervir, e o soldado mostrou-lhe o pedaço partido da correia. Então o oficial aproximou-se dele, e com o rosto voltado para o explorador disse: — Esta máquina é muito complexa, a cada instante se parte ou se descompõe alguma coisa; mas não se deve permitir que estas circunstancias influam na apreciação do conjunto. De qualquer modo, as correias são facilmente substituíveis; usarei uma corrente; é claro que a delicadeza das vibrações do braço direito sofrerá um pouco.
E enquanto segurava a cadeira, acrescentou:— Os recursos destinados à conservação da máquina são agora sumamente reduzidos. Quando era o antigo comandante, eu tinha à minha disposição uma soma de dinheiro com essa única finalidade. Havia aqui um depósito, onde se guardavam peças de reposição de todas as espécies. Confesso que fui bem pródigo com elas, refiro-me ao passado, não agora, como insinua o novo comandante, para o qual tudo é motivo de ataque contra a antiga ordem. Agora encarrega-se pessoalmente do dinheiro destinado à máquina, e se mando pedir correia nova, pedem-me, como prova, a correia partida; a nova chega pelo menos dez dias depois e além disso é de má qualidade, e não serve para muita coisa. Como pode funcionar enquanto isso a máquina sem correias, isso não preocupa a ninguém.
O explorador pensou: Sempre é preciso refletir um pouco antes de intervir decisivamente nos assuntos dos outros. Ele não era nem membro da colônia penal, nem cidadão do país ao qual esta pertencia.
Se pretendesse emitir juízo sobre a execução ou procurasse diretamente obstá-la, podiam dizer: "És um estrangeiro, não te metas". Diante disso, não poderia responder, apenas acrescentar que realmente não compreendia sua própria atitude, já que viajara com a mera intenção de observar, e de nenhum modo pretendia modificar os métodos judiciais dos outros. Mas aqui topava com coisas que realmente o tentavam a quebrar sua resolução de não se imiscuir. A injustiça do processo e a desumanidade da execução eram inquestionáveis. Ninguém podia supor que o explorador tivesse algum interesse pessoal no assunto, porque o condenado era para ele um desconhecido, não era compatriota seu, e nem sequer capaz de inspirar compaixão. O explorador tinha sido recomendado por pessoas muito importantes, fora recebido com grande cortesia e o fato de que o tivessem convidado para a execução podia justamente significar que se desejava conhecer sua opinião sobre o assunto. Isto parecia bastante provável, porque o comandante, como bem claramente acabavam de lhe dizer, não era partidário desses processos, e sua atitude diante do oficial era quase hostil.
Nesse momento ouviu o explorador um grito irritado do oficial. Acabava de colocar, não sem grande esforço, a mordaça de feltro na boca do condenado, quando este último, com náusea irreprimível, fechou os olhos e vomitou. Rapidamente o oficial ergueu-lhe a cabeça, afastando-a da mordaça e procurando dirigi-la para o buraco, mas era tarde demais, e o vômito derramou-se sobre a máquina.
— É tudo culpa do comandante! — gritou o oficial, sacudindo insensatamente a barra de cobre que tinha à frente. — Deixaram-me a máquina mais suja do que uma pocilga — e com mãos trêmulas mostrou ao explorador o que havia acontecido. — Horas a fio procurei fazer o comandante compreender que o condenado deve jejuar um dia inteiro antes da execução. Mas nossa nova doutrina compassiva não o quer assim. As senhoras do comandante visitam o condenado e enchem-lhe a garganta de doces. Durante toda a vida alimentou-se de peixes hediondos, e agora precisa comer doces. Mas enfim, poderíamos passar por alto nisso, eu não protestaria, mas, por que não querem me dar uma nova mordaça de feltro, já que há três meses que a peço? Quem poderia meter na boca, sem asco, uma mordaça que mais de cem moribundos chuparam e morderam?
O condenado deixara cair a cabeça e parecia tranquilo; enquanto isso, o soldado limpava a máquina com a camisa do outro. O oficial dirigiu-se ao explorador, que talvez num pressentimento retrocedeu um passo, mas o oficial o segurou pela mão e levou-o à parte. — Queria dizer algumas palavras ao senhor confidencialmente — disse. — Permite?
— Naturalmente — disse o explorador, e escutou com o olhar baixo.
— Este processo judicial, e este método de castigo, que o senhor tem agora oportunidade de admirar, não goza atualmente em nossa colônia de nenhum defensor aberto. Sou seu único mantenedor, e ao mesmo tempo o único sustentador da tradição do antigo comandante. Já nem poderia pensar na menor ampliação do processo, e preciso empregar todas as minhas forças para mantê-lo tal como é atualmente. Em vida de nosso antigo comandante, a colônia estava cheia de partidários; eu possuo em parte a força de convicção do antigo comandante, mas careço totalmente de seu poder; em consequência, os partidários se escondem; ainda há muitos, mas nenhum o confessa. Se o senhor entra hoje, que é dia de execução, na confeitaria, e ouve as conversas, talvez apenas ouça frases de sentido ambíguo. São todos partidários, mas sob o comandante atual, e com suas doutrinas atuais, não me servem absolutamente de nada. E agora lhe pergunto: parece certo que por culpa deste comandante e suas senhoras, que influem sobre ele, semelhante obra de toda uma vida — e apontou a máquina —desapareça? Podemos permitir? Mesmo sendo estrangeiro, e apenas tendo vindo passar alguns dias em nossa ilha. Mas não podemos perder tempo, porque também se prepara algo contra minhas funções judiciais; já se realizam conferencias no escritório do comandante, das quais me vejo excluído, e até sua visita de hoje, senhor, parece-me fazer parte de um plano; por covardia, utilizam-no, ao senhor, um estrangeiro, como testa de ferro. Quão diferente era em outros tempos a execução! Já um dia antes da cerimônia, o vale estava completamente cheio de gente; todos vinham apenas para ver; de manhã cedo aparecia o comandante com suas senhoras; as fanfarras despertavam todo o acampamento, eu apresentava uma informação de que tudo estava preparado; todo o estado-maior — nenhum alto oficial se atrevia a faltar — reunia-se em torno da máquina; este montão de cadeiras de vime é um mísero resto daqueles tempos. A máquina resplandecia, muito limpa; antes de cada execução entregavam-me peças novas de reposição. Diante de centenas de olhos — todos os assistentes nas pontas dos pés, até o cume das colinas — o condenado era colocado pelo próprio comandante debaixo do Ancinho. O que hoje corresponde a um simples soldado, era nessa época tarefa minha, tarefa do juiz-presidente do tribunal, e uma grande honra para mim. E então começava a execução. Nenhum ruído discordante enfeava o funcionamento da máquina. Muitos já não olhavam; permaneciam com os olhos fechados, na areia; todos sabiam: agora faz-se justiça. Nesse silêncio, ouviam-se apenas os suspiros do condenado, mal abafados pelo feltro. Hoje a máquina já não é capaz de arrancar ao condenado um suspiro tão forte que o feltro não possa apagar totalmente; mas nessa oportunidade as agulhas inscritoras derramavam um líquido ácido, que hoje já não nos permitem usar. E chegava a sexta hora! Era impossível satisfazer a todos os pedidos formulados para contemplá-la de perto. O comandante, muito sabiamente, tinha ordenado que os meninos tivessem preferência sobre todos; eu, por certo, graças ao meu cargo, tinha o privilégio de permanecer junto à máquina, com frequência de joelhos, com um menininho em cada braço, à direita e à esquerda. Como absorvíamos todos essa expressão de transfiguração que aparecia no rosto martirizado, como banhávamos as faces no resplendor dessa justiça, por fim alcançada e que tão depressa desaparecia! Que bons tempos, camarada!
O oficial tinha esquecido evidentemente quem era seu interlocutor; tinha-o abraçado, e apoiava a cabeça em seu ombro. O explorador sentia-se grandemente embaraçado; inquieto, olhava ao longe. O soldado terminara a limpeza, e agora derramava polpa de arroz no recipiente.
Mal a percebeu o condenado, que parecia ter melhorado completamente, começou a lamber a papa com a língua. O soldado procurava afastá-lo, porque a papa era para mais tarde, mas de qualquer modo também era incorreto que o soldado colocasse no recipiente suas mãos sujas, e se pusesse a comer diante do ávido condenado.
O oficial recuperou rapidamente o domínio de si mesmo. — Não quis emocioná-lo — disse —, já sei que atualmente é impossível dar uma ideia do que eram esses tempos. De qualquer modo, a máquina ainda funciona, e basta-se a si mesma. Basta-se a si mesma, embora esteja muito solitária neste vale. E ao terminar, o cadáver cai como antes no fosso, com um movimento incompreensivelmente suave, ainda que já não se apinhem as multidões como moscas em torno da sepultura, como nos outros tempos. Antes precisávamos colocar uma sólida grade em torno da sepultura, mas há muito que a arrancamos.
O explorador queria esconder seu rosto do oficial, e olhava em volta ao acaso. O oficial acreditava que ele contemplasse a desolação do vale; segurou-o portanto pelas mãos, colocou-se diante dele, para olhá-lo nos olhos, e perguntou: — Percebe, que vergonha?
Mas o explorador se calou. O oficial deixou-o um instante entregue a seus pensamentos; com as mãos nos quadris, as pernas abertas, permaneceu calado, cabisbaixo.
Depois sorriu animadamente ao explorador, e disse: — Eu estava ontem próximo do senhor quando o comandante o convidou. Ouvi o convite. Conheço o comandante. Imediatamente compreendi o propósito desse convite. Embora seu poder seja grande para tomar medidas contra mim, não se atreve ainda, mas certamente tem a intenção de opor contra mim seu veredicto, o veredicto de um ilustre estrangeiro. Calculou tudo perfeitamente; há dois dias que o senhor está na ilha, não conheceu o antigo comandante nem sua maneira de pensar, está habituado aos pontos de vista europeus, talvez se oponha fundamentalmente à pena capital em geral e a este tipo de castigo mecânico em particular; além disso, comprova que a execução se verifica sem nenhum apoio popular, tristemente, por meio de uma máquina já um tanto arruinada; considerando tudo isto (assim pensa o comandante), não seria então muito provável que desaprovasse meus métodos? E se os desaprova, não esconderia sua desaprovação (falo sempre em nome do comandante), porque confia amplamente em suas bem provadas conclusões. É verdade que o senhor viu numerosas peculiaridades de numerosos povos, e aprendeu a apreciá-las, e portanto é provável que não se expresse com excessivo rigor contra o processo, como o faria em seu próprio país. Mas o comandante não precisa tanto. Uma palavra qualquer, até uma observação um pouco imprudente lhe bastaria. Nem mesmo é preciso que essa observação expresse sua opinião, basta que aparentemente corrobore a intenção do comandante, que ele tratará de arrancá-la com perguntas astutas, disso estou certo. E as senhoras estarão sentadas em volta, e erguerão as orelhas; talvez o senhor diga: "Em meu país o processo judicial é diferente", ou "Em meu país permite-se ao acusado defender-se antes da sentença", ou "Em meu país há outros castigos, além da pena de morte", ou "Em meu país apenas existiu tortura na Idade Média". Todas estas são observações corretas e que ao senhor parecem evidentes, observações inocentes, que não pretendem julgar meus processos. Mas, como as receberá o comandante? Já estou vendo o bom comandante, vejo como afasta sua cadeira e sai rapidamente ao balcão, vejo suas senhoras, que se precipitam atrás dele como uma torrente, ouço sua voz (as senhoras a chamam “voz de trovão”) que diz: "Um famoso investigador europeu, enviado para estudar o processo judicial em todos os países do mundo, acaba de dizer que nossa antiga maneira de administrar justiça é inumana. Depois de ouvir o juízo de semelhante personalidade, já não me será possível continuar permitindo esse processo. Portanto, ordeno que desde o dia de hoje..." e assim sucessivamente. O senhor procura interrompê-lo para explicar que não disse o que ele pretende, que não chamou nunca inumano meu processo, que em troca sua profunda experiência lhe demonstra que é o processo mais humano e de acordo com a dignidade humana, que admira esta máquina... mas já é tarde demais, o senhor não pode aparecer no balcão, que está cheio de senhoras; procura chamar atenção; procura gritar; mas a mão de uma senhora lhe tapa a boca... e tanto eu como a obra do antigo comandante estamos irremediavelmente perdidos.
O explorador teve de sustar um sorriso; tão fácil era então a tarefa que lhe tinha parecido tão difícil.
Disse evasivamente:— O senhor exagera a minha influência; o comandante leu minhas cartas de recomendação, e sabe que não sou nenhum entendido em processos judiciais. Se eu expressasse uma opinião, seria a opinião de um particular, em nada mais significativa do que a opinião de qualquer outra pessoa, e em todo caso muito menos significativa do que a opinião do comandante, que segundo creio possui nesta colônia penal prerrogativas extensíssimas. Se a opinião dele sobre este processo é tão hostil como o senhor diz, então, temo que tenha chegado sua hora decisiva sem que se requeira minha humilde ajuda.
Tinha compreendido o oficial? Não, ainda não o compreendia. Meneou enfaticamente a cabeça, voltou rapidamente o olhar para o condenado e o soldado, que se afastaram instintivamente do arroz, aproximou-se bem do explorador, olhou-o não nos olhos, porém em algum local do paletó, e lhe disse mais lentamente do que antes: — O senhor não conhece o comandante; o senhor crê (perdoe a expressão) que é uma espécie de estranho para ele e para nós; contudo, acredite-me, sua influência não poderia ser subestimada. Foi uma verdadeira felicidade para mim saber que o senhor assistiria sozinho à execução. Essa ordem do comandante deveria me prejudicar, mas saberei tirar vantagem dela. Sem distrações provocadas por falsos murmúrios e por olhares desdenhosos (impossíveis de serem evitados se uma grande multidão assistisse à execução), o senhor ouviu minhas explicações, viu a máquina, e está agora a ponto de contemplar a execução. Já formou, indubitavelmente, um juízo; se ainda não está certo de algum pequeno pormenor, o desenvolvimento da execução dissipará suas últimas dúvidas. E agora elevo ante o senhor esta súplica: ajude-me contra o comandante.
O explorador não lhe permitiu prosseguir. — Como você me pede isso?! — exclamou. — É totalmente impossível. Não posso ajudá-lo nem um pouquinho, assim como também não posso prejudicá-lo.
— Pode — disse o oficial, com certo temor, e o explorador viu que o oficial contraía os punhos. — Pode — repetiu, com mais insistência. — Tenho um plano que não falhará. O senhor acredita que sua influência não é suficiente. Eu sei que é suficiente. Mas supondo que você tivesse razão, não seria de qualquer modo necessário procurar utilizar toda espécie de recursos, embora duvidemos de sua eficácia, contanto que se conservasse o antigo processo? Portanto, escute meu plano. Antes de tudo é necessário para seu êxito que hoje, quando voltar, o senhor seja o mais reticente possível em suas opiniões sobre o processo. A menos que lhe formulem uma pergunta direta, não deve dizer uma palavra sobre o assunto; se o fizer, que seja com frases breves e ambíguas; deve dar a entender que não lhe agrada discutir esse tema, que já está farto dele, que se tivesse que dizer algo, prorromperia facilmente em maldições. Não lhe peço que minta; de modo algum; apenas deve responder laconicamente, por exemplo: "Sim, assisti à execução", ou "Sim, ouvi todas as explicações". Apenas isso, nada mais. Quanto ao fastio que possa o senhor dar a entender, tem motivos suficientes, embora não sejam tão evidentes para o comandante. Naturalmente, este compreenderá tudo mal, e o interpretará à sua maneira. Nisso se baseia justamente meu plano. Amanhã haverá no escritório do comandante, presidida por ele, uma grande reunião de todos os altos oficiais administrativos. O comandante, por certo, conseguiu converter essas reuniões em espetáculo público. Fez construir uma galeria, que está sempre cheia de espectadores. Sou obrigado a tomar parte nas assembleias, mas me deixam doente de nojo. Pois bem, aconteça o que acontecer, é certo que o convidarão; se se ativer hoje ao meu plano, o convite se tornará uma insistente súplica. Mas se por qualquer motivo imprevisível não fosse convidado, o senhor deve de todos os modos pedir que o convidem; e assim o farão. Portanto, amanhã estará o senhor sentado com as senhoras no palco do comandante. Ele olha com frequência para cima, para certificar-se de sua presença. Depois de várias ordens do dia, triviais e ridículas, calculadas para impressionar o auditório — em sua maioria são obras portuárias, eternamente obras portuárias! — passa-se a discutir nosso processo judicial. Se isto não acontecer, ou não acontecer muito depressa, por desconsideração do comandante, eu me encarregarei de introduzir o tema. Ficarei de pé e mencionarei que a execução de hoje se realizou. Muito breve, uma simples menção. Semelhante menção não é na realidade usual, mas não importa. O comandante agradecerá, como sempre, com um sorriso amistoso, e já sem poder se conter aproveitará a excelente oportunidade. "Acabam de anunciar — mais ou menos assim ele dirá — que se realizou a execução. Apenas quisera acrescentar a este anúncio que a referida execução foi presenciada pelo grande investigador que como os senhores sabem honra extraordinariamente nossa colônia com a sua visita. Também nossa assembleia de hoje adquire singular significado graças à sua presença. Não conviria agora perguntar a este famoso investigador que juízo lhe merece nossa forma tradicional de administrar a pena capital, e o processo judicial que a precede?"
— Naturalmente, aplauso geral, acordo unânime, — prosseguia o oficial — o meu mais que dos demais. O comandante se inclina ante ante o senhor e diz: "Portanto, formulo em nome de todos a pergunta". Então o senhor se adianta, apoia as mãos onde todos possam ver, porque senão as senhoras brincarão com seus dedos. Por fim, suas palavras. Não sei com aguentarei esperar até este ponto. Em seu discurso não deve haver reticência alguma, diga a verdade a plenos pulmões, incline-se sobre a borda do balcão, grite, sim, grite ao comandante sua opinião. Mas talvez isto não combine com sua personalidade, com os costumes em seu país, não precisa ficar de pé, diga apenas algumas palavras, sussurre, basta que o ouçam os oficiais, é suficiente, não precisa sequer mencionar a falta de apoio popular à execução, nem a roda que guincha, nem as correias velhas, nem o feltro nojento, não, disso tudo me encarrego eu, e lhe asseguro que se meu discurso não fizer o comandante deixar o salão ele será obrigado a ajoelhar-se e gritar: "Velho Comandante , eu me curvo a você". Este é o meu plano, você vai me ajudar? Mas é claro que você quer, ou melhor, deve ajudar.
O oficial segurou o Explorador pelos braços e olhou em seus olhos, respirando pesadamente. Ele chorou tanto nas últimas frases que até o soldado e o condenado ficaram atentos, mas não conseguiam entender nada; tinham parado de comer e dirigiram o olhar para o Explorador, ainda mastigando.
O Explorador não tinha dúvida de qual deveria ser sua resposta. Em sua vida reunira experiência demais para ter dúvida neste caso; era uma pessoa fundamentalmente honesta e não conhecia o medo. Mas, contemplando o soldado e o condenado, hesitou por um momento. E finalmente disse o que tinha a dizer:
— Não.
O oficial piscou várias vezes, mas não desviou o olhar.
— Gostaria de uma explicação?
O oficial assentiu sem falar.
— Eu desaprovava esse procedimento — disse, — mesmo antes de me fazer essas confidências (é claro que sob nenhuma circunstância trairei sua confiança em mim), e me perguntava se seria meu dever intervir, e se minha intervenção afinal teria qualquer chance de sucesso. Mas eu sabia exatamente a quem deveria abordar em primeira instância, naturalmente o comandante. Você tornou minha convicção ainda mais forte. Confesso que não só fortaleceu minha decisão, mas sua honesta convicção chegou a me comover muito, embora não modifique minha opinião.
O oficial estava em silêncio. Virou-se para a máquina, retirou uma das barras de bronze e olhou, um pouco atrás, o Desenhador, como que para comprovar que tudo estava em ordem. O soldado e o condenado pareciam ter ficado amigos; o condenado fazia sinais ao soldado, embora as correias prejudicassem significativamente seu intento.
O soldado se inclinou para a frente, o condenado sussurrou algo e o soldado assentiu.
O Explorador se aproximou do oficial e disse: — Não sei o que você pretende fazer. Vou comunicar ao comandante o que acho do procedimento, mas não numa cena montada, mas em particular; além disso, não vou ficar aqui para assistir a reunião nenhuma: amanhã de manhã vou embora, ou pelo menos embarco.
Não parecia que o oficial o tinha escutado.
— Assim, o procedimento não o convenceu — disse a si mesmo, e sorriu, como um velho rindo da loucura de uma criança, e apesar do sorriso continuava em suas próprias meditações. Em seguida, falou, finalmente: — Então, chegou o momento. — Tinha um ar de um certo desafio, e de um certo pedido de cooperação.
— Que momento? — perguntou o Explorador, inquieto. Nenhuma resposta.
— Você está livre —, disse o oficial ao condenado, em seu idioma. O homem não podia acreditar. — Vá embora, você está livre —, repetiu.
Pela primeira vez o rosto do condenado parecia realmente animado. Seria verdade? Não era mero capricho do oficial, que não duraria um momento? Talvez o Explorador estrangeiro o tivesse defendido e conseguido seu perdão? O que estava acontecendo? Seu rosto parecia fazer estas perguntas. Mas não por muito tempo. Fosse o que fosse, queria se sentir totalmente livre, e começou a se debater.
— Vou cortar as tiras — gritou o oficial, — fique quieto.
Fez sinal ao soldado, para que ajudasse. Por causa do Ancinho, a operação requeria cuidado. A impaciência do Condenado acabou causando uma pequena ferida nas costas.
A partir deste ponto, o oficial não prestou mais atenção ao homem. Aproximou-se do Explorador, pegou a pequena pasta de couro, procurou e finalmente encontrou a folha de papel que queria. Mostrou-o ao Explorador.
— Leia isso —, disse.
— Não consigo —, disse o batedor —, já disse que eu não entendo esses esquemas.
— Olhe mais de perto —, insistiu o oficial.
Como nem isso adiantasse, o oficial tentou ajudar, seguindo o plano com o dedo mindinho levantado, como se jamais devesse tocar o papel. O Explorador fez mais um esforço, para ser amável com o oficial, mas não teve êxito.
O policial começou então a soletrar a inscrição, em seguida, a ler tudo. — “Ser justo", diz — ele explicou —, agora você pode ler.
O Explorador segurou o papel, o Explorador nada disse, mas era evidente que ele ainda não tinha conseguido ler.
— "Ser justo", — repetiu o oficial.
— Estou disposto a acreditar que sim — disse o estrangeiro.
— Muito bem —, disse o oficial, parecendo parcialmente satisfeito, e subiu a escada com o papel na mão, que prendeu com muito cuidado no Desenhador. E começou a mudar todo o layout das engrenagens, pelo que o Explorador conseguia perceber, parecia uma tarefa muito difícil, tinha que manusear muitas rodinhas pequeninas; a cabeça do oficial muitas vezes desaparecia entre as engrenagens, tamanha a exatidão que exigia o conjunto de engrenagens.
De baixo, o Explorador constantemente contemplava o trabalho com o pescoço contraído e os olhos doendo do reflexo do sol. O soldado estava agora muito ocupado pescando as roupas do condenado com a ponta da baioneta. Pegou a camisa e as calças dele no fundo do poço. A camisa estava espantosamente suja, e o condenado a lavou num balde de água. Quando ele se vestiu o soldado e o condenado riram alto, porque as roupas estavam rasgadas atrás. Talvez o condenado se sentisse na obrigação de divertir o soldado, e então rodava e as roupas giravam antes dele. O soldado se agachou de tanto rir, batendo nos joelhos. Mas trataram de se conter, em respeito aos presentes.
Quando o oficial acabou o trabalho, novamente revisou todos os detalhes da máquina, sorriu, fechou a tampa do Desenhador, que estava aberta, desceu, olhou para o buraco, depois para o condenado, mostrou-se satisfeito por ele ter recuperado as roupas, em seguida dirigiu-se ao balde para lavar as mãos, viu que a água estava imunda e, triste porque não pôde lavar as mãos, enterrou-as na areia. Esta alternativa nãoo agradava muito, mas teve que contentar-se.
Levantou-se e começou a desabotoar a farda. Pegou do pescoço os dois lenços de mulher com que protegera o colarinho e jogou-os ao Condenado.
— Presentes das senhoras —, explicou ao navegador.
Apesar da aparente pressa com que se despia, cada peça foi cuidadosamente dobrada; acariciou levemente com os dedos a borla de prata da túnica. De repente, numa espécie de arrepio de desgosto, jogou as peças de roupa no buraco. A última coisa que restava era o espadim e o cinturão que o sustentava. Quebrou o espadim, juntou tudo, os pedaços da espada, a bainha e o cinturão e atirou com tal violência no buraco que a queda dos fragmentos no fundo ecoou.
Ele já estava nu. O Explorador mordeu os lábios e nada disse. Ele sabia o que estava por vir, mas não tinha o direito de interferir. Se o processo judicial, que tanto significava para o oficial, estava realmente tão perto do desaparecimento após a intervenção do Explorador, que para ele era obrigação inevitável, então o oficial feria o que tinha que fazer.
O soldado e o condenado nada entendiam; para começar, nem estavam olhando. O condenado estava feliz com os lenços, mas essa alegria não durara muito, porque o soldado os tinha tomado num gesto rápido. Agora, o condenado tentava recuperar os lencinhos do soldado, que os prendera sob o cinturão. Eles lutaram, meio brincando. Somente quando o oficial apareceu completamente nu é que lhe chamou a atenção. O Condenado parecia especialmente impressionado com este assombroso truque da sorte. O que lhe tinha acontecido acontecia agora com o oficial. Talvez até o final. Aparentemente, o Explorador estrangeiro tinha dado a ordem. Então, esta era a vingança. Sem ter sofrido até o fim, seria vingado até o fim. Um sorriso largo e silencioso apareceu em seguida em seu rosto e não desapareceu mais.
Enquanto isso, o oficial se dirigia para dentro da máquina. Embora houvesse já ricamente demonstrado que a entendia, era no entanto quase alucinante ver como a manejava, e como ela respondia. Apenas segurava o Ancinho e ele subia e descia facilmente várias vezes, até ficar na posição correta para recebê-lo. Mal tocou a borda da Cama e esta já começou a vibrar; sentiu a hesitação do oficial diante da mordaça próxima de sua boca, mas durou apenas um instante, e então, submisso, aceitou a tira na boca. Tudo estava preparado, somente as correias estavam ainda penduradas dos lados, mas elas eram obviamente desnecessárias.
O Condenado, porém, advertiu que as tiras estavam soltas, e como em sua opinião a execução seria incompleta sem as correias, fez um gesto ansioso ao soldado e ambos foram amarrar o oficial. Este já havia esticado um pé um pé para mover a manivela que operava o Desenhador, mas viu que os dois se aproximavam, recolheu o pé e deixou-se amarrar. Mas ele viu então que amarrado não poderia alcançar a manivela, nem o soldado condenado saberia encontrá-la. O Explorador estava determinado a não se mover.
Não houve necessidade; mal as correias foram fechadas e a máquina começou a operar, a Cama vibrando, as agulhas dançando sobre a pele, o Desenhador para cima e para baixo. O Explorador olhou um tempo, e de repente se lembrou que uma roda do Desenhador deveria estar guinchando. Mas nenhum som foi ouvido, nem o mais leve zumbido.
Trabalhando quase silenciosamente, a máquina passava quase despercebida.
O estrangeiro olhou para o soldado e o condenado. O condenado mostrava mais animação, tudo na máquina o interessava; de repente se agachava, de repente se esticava, o tempo todo apontando algo ao soldado com o indicador.
Para o Explorador, isso era embaraçoso. Ele estava determinado a permanecer lá até o fim, mas a visão desses dois homens era insuportável.
— Vão para casa —, disse ele.
O soldado estava disposto a obedecer, mas o condenado considerou o pedido uma punição. Com as mãos cruzadas implorou lastimosamente que lhe permitisse ficar. Como o explorador sacudiu a cabeça e não queria ceder, até de joelhos o condenado se pôs. O Explorador entendeu que suas ordens eram inúteis e decidiu aproximar-se dos dois e empurrá-los. Mas ouviu um barulho no alto do Desenhador. Olhou para cima. Seria a famosa roda? Mas era outra coisa.
Lentamente, a tampa do Desenhador se entreabriu e logo se abriu completamente. Os dentes de uma roda surgiram e cresceram. Logo apareceu a roda inteira, como se alguma força enorme dentro do Desenhador comprimisse as rodas, de modo que já não houvesse espaço para elas. A primeira roda caiu, rodou um tempo sobre a areia e então parou. Mas logo veio outra, e as outros se seguiram, grandes, pequenas, imperceptivelmente diminutas, todas caíam, e sempre que parecia ser o último grupo, e que o Desenhador já estaria oco, aparecia um novo grupo, extraordinariamente grande, que subia, caía, rolava na areia e parava.
Diante desse fenômeno, o condenado esqueceu completamente a ordem do Explorador, as rodas dentadas o fascinavam, tentava pegar uma, mas sempre retirava a mão com medo, porque outra roda caía e o assustava.
O Explorador, no entanto, estava muito inquieto, a máquina obviamente se quebrara, seu funcionamento silencioso era agora mera ilusão. Teve a sensação de que deveria agora cuidar do oficial, porque o oficial não podia mais cuidar de si mesmo. Mas enquanto a queda das engrenagens absorvia toda sua atenção, esqueceu-se do resto da máquina. Quando caiu a última roda do Desenhador, o explorador voltou-se para o Ancinho, e recebeu uma nova e mais desagradável surpresa. O Ancinho não escrevia, apenas furava, e a Cama não fazia girar o corpo, porém erguia-o tremendo para as agulhas. O explorador quis fazer algo que pudesse deter o conjunto da máquina, porque isto não era a tortura que o oficial tinha buscado, porém uma franca matança. Estendeu as mãos. Nesse momento, o Ancinho ergueu-se para um lado com o corpo atravessado nele, como costumava fazer depois da duodécima hora. O sangue corria por uma centena de feridas, não já misturado com água, porque também os canaizinhos de água tinham-se desfeito. E agora falhava também a última função; o corpo não se desprendeu das compridas agulhas; emanando sangue, pendia sobre o buraco da sepultura, sem cair. O Ancinho quis tornar então a sua posição anterior, mas como se ele mesmo percebesse que ainda não tinha se libertado de sua carga, permaneceu suspenso sobre o buraco.
— Ajude-me — gritou o explorador ao soldado e ao condenado, e segurou os pés do oficial. Queria empurrar os pés, enquanto os outros dois seguravam do outro lado a cabeça do oficial, para desenganchá-lo lentamente das agulhas. Mas nenhum dos dois se decidia a se aproximar; o condenado acabou por se afastar; o explorador teve de ir buscá-los e empurrá-los à força até a cabeça do oficial. Nesse momento, quase contra a vontade, viu o rosto do cadáver. Era como havia sido em vida; não se descobria nele nenhum sinal da prometida redenção; o que todos os outros tinham encontrado na máquina, o oficial não encontrara; tinha os lábios apertados, os olhos abertos com a mesma expressão de sempre, o olhar tranquilo e convencido; e atravessada no meio da testa a ponta da grande agulha de ferro.
Quando o explorador chegou às primeiras casas da colônia, seguido pelo condenado e o soldado, este lhe mostrou um dos edifícios e disse: — Essa é a confeitaria.
No andar de baixo de uma casa havia um espaço profundo, de teto baixo, cavernoso de paredes e altos enegrecidos pelo fumo. Toda a frente que dava para a rua estava aberta. Embora esta confeitaria não se distinguisse muito das outras casas da colônia, todas em notável mau estado de conservação (mesmo o palácio onde se instalara o comandante), não deixou de causar no explorador uma sensação como de evocação histórica, ao permitir-lhe vislumbrar a grandeza dos tempos idos. Aproximou-se e avançou, seguido pelos acompanhantes, entre as mesinhas vazias, dispostas na rua diante do edifício, e respirou o ar fresco e carregado que provinha do interior.
— O velho está enterrado aqui — disse o soldado — porque o padre lhe negou lugar no cemitério. Duvidaram algum tempo onde o enterrariam, por fim enterraram-no aqui. O oficial não contou nada ao senhor, certamente, porque esta era evidentemente sua maior vergonha. Até procurou diversas vezes desenterrar o velho, de noite, mas sempre o expulsavam.
— Onde está o túmulo? — perguntou o explorador, que não podia acreditar no que ouvia. Imediatamente, o soldado e o condenado lhe mostraram com a mão onde devia estar o túmulo. Conduziram o explorador até a parede; em torno de algumas mesinhas estavam sentados vários clientes. Aparentemente eram trabalhadores do porto, homens gordos, de barba curta, negra e luzidia. Todos estavam sem paletó, tinham as camisas rasgadas, era gente pobre e humilde. Quando o explorador se aproximou, alguns se levantaram, colocaram-se junto à parede e olharam-no. — É um estrangeiro — murmuravam em torno dele — , quer ver o túmulo. Correram para um lado uma das mesas, debaixo da qual se encontrava realmente a lápide de uma sepultura. Era uma lápide simples, baixa, de modo que uma mesa podia cobri-la.
Mostrava uma inscrição de letras diminutas; para lê-las, o explorador teve de ajoelhar-se.
Dizia assim: "Aqui jaz o antigo comandante. Seus partidários, que devem ser já incontáveis, cavaram esta tumba e colocaram esta lápide. Uma profecia diz que depois de determinado número de anos o comandante ressurgirá, e desta casa conduzirá seus partidários para reconquistar a colônia. Creiam e esperem!"
Quando o explorador terminou de ler e se ergueu, viu que os homens riam, como se tivessem lido com ele a inscrição e esta lhes tivesse parecido risível, e esperavam que ele compartilhasse dessa opinião. O explorador simulou não ter percebido isso, distribuiu algumas moedas entre eles, esperou até que tornassem a colocar a mesinha sobre a sepultura, saiu da confeitaria e encaminhou-se para o porto. O soldado e o condenado tinham encontrado alguns conhecidos na confeitaria, e permaneceram conversando.
Mas de súbito se desligaram deles, porque quando o explorador se encontrava na metade da comprida escada que descia para a margem, alcançaram-no correndo. Provavelmente queriam pedir no último momento que os levasse com ele. Enquanto o explorador discutia já embaixo com o barqueiro o preço do transporte até o navio, precipitaram-se ambos pela escada, em silêncio, porque não se atreviam a gritar. Mas quando chegaram o explorador já estava no bote, e o barqueiro acabava de desatá-lo da margem. Ainda poderiam saltar para dentro do barco, mas o explorador ergueu do fundo do bote uma pesada corda grossa cheia de nós, ameaçou-os com ela e evitou que saltassem.

 

 

                                                                  Franz Kafka

 

 

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