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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NA FLORESTA EM CHAMAS / Anne e Serge Golon
NA FLORESTA EM CHAMAS / Anne e Serge Golon

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Em meados do século XVII, os exploradores franceses do Novo Mundo buscam nas terras do norte dos Estados Unidos e do Canadá tanto índios para converter e peles para comerciar quanto um caminho fluvial que os levasse ao Pacífico.

Entre 1660 e 1680, em expedições em que tomam parte, quase sempre juntos, missionários e comerciantes de peles, ou ainda sieurs atraídos por aventuras, são explorados os lagos Ontário e Ene, o oeste do Superior e a região da bacia de Hudson. A foz do Mississipi chega Robert Cavelier, sieur de La Salle, que ali funda a Luisiânia, em homenagem ao soberano francês Luís XIV.

Vários grupos indígenas viviam na região, destacando-se os algonquinos e os iroqueses. Os primeiros dispersos da costa atlântica até as Montanhas Rochosas, os segundos na bacia inferior do rio São Lourenço.

Os contatos iniciais entre colonos e índios foram amistosos. Diz-se até que os índios ensinaram ao branco o cultivo do milho e o uso de peixe como fertilizante. Mas depois passaram a tomar partido nas lutas entre as colónias francesa e inglesa.

No coração desse mundo efervescente, Angélica e seu marido, o Conde de Peyrac, vão buscar uma vida emocionante.

"Que importa o amanhã, se temos esta noite?" sussurra-lhe seu amor. "Uma noite vale uma vida inteira!..."

Na escuridão do leito em que seu corpo saciado repousava, Angélica teve um sonho. Do seio da floresta, acima do pequeno forte perdido onde um véu de brumas pressagiava o inverno, um imenso índio americano avançava sobre ela com seus olhos cruéis. No alto da cabeça tatuada, o tufo de penas lembrava o penacho de uma ave estranha. Quando ele a apertou entre os braços rijos, foi como se o mundo se abrisse a seus pés...

Tremula, ela despertou sobressaltada. O que a esperava no Movo Mundo? Quem era ela naquele imenso país multicolorido e esplêndido, de ricas nascentes e terras bravias, com seus povos bizarros e invasores brancos de costumes selvagens? A Diaba da Acádia, mulher belíssima e tentadora, encarnação do Mal saída nua das águas no dorso de um unicórnio? A invulnerável esposa de Tekonderoga, o Homem do Trovão, que afastara do caminho a Tartaruga, sinal sagrado do Iroquês?

No coração da América começaria sua nova aventura. Ali ela estaria só com seu amor. Um amor de um homem por uma mulher, duas chamas numa só, ardendo na solidão árida, no deserto gelada Dois corações ardendo na noite do mundo novo, como nos primeiros tempos...

Angélica, agora a Condessa de. Peyrac de Morens e Irristru, reencontrara seu lugar ao lado do marido Joffrey e dos filhos, Florimond, Cantor e Honorina, em seus domínios de Gouldsboro, em terras americanas dá Nova França. Depois de acomodados os huguenotes que haviam trazido de La Rochelle, em conturbada viagem da França ao Novo Mundo através do Atlântico, seguiam todos numa expedição ao interior, com uma comitiva de amigos" e desbravadores das terras selvagensy em direção à fortaleza de Katarunk, onde o Conde de Peyrac pretendia se estabelecer com a família para passar o inverno.

 

 

 

 

OS PRIMEIROS DIAS

CAPITULO I

A caravana na trilha do desconhecido

"Então,- estou com ele!"

Este pensamento-esvõaçava à volta, de Angélica. Não saberia dizer se era uma reflexão intejior, nascida de seu espírito - pois no momento se sentia absolutamente incapaz de elaborar uma reflexão interior -, ou antes algo de exterior* semelhante ao vôo zumbidor dos mosquitos e moscas ao redor... O pensamento vinha, ia embora, retornava, insistia, sumia...

"Então, estou com ele!"

Com toda a atenção concentrada em manter em segurança o passo do cavalo numa senda escarpada, Angélica não poderia dizer que atribuísse o menor interesse ao significado desse zumbido lancinante.

"Estou com ele!... Estou com ele!"

Isso se repetia em dois tons. Um que duvidava, outro que afirmava. Um que se assustava, outro que se regozijava. E acompanhava suavemente, como um leitmotiv, o passo fatigado da montaria.

A jovem, que naquele dia de outono americano seguia a cavalo sob a folhagem púrpura de bordos, usava um grande chapéu de homem, contornado por uma pluma, sob cuja sombra seus olhos pareciam claros como a água de uma fonte. Para poupar os cabelos da poeira do caminho, prendera-os numa touca de tela. Desistira de montar à amazona, e suas longas saias descobriam-lhe até os joelhos as pernas metidas em botas de cavaleiro. Tomara-as emprestadas ao filho Cantor, muito solícito. Seus dedos, segurando rédeas cujo couro estava morno e como que esponjoso por estar apertado entre suas palmas úmidas, estavam esbranquiçados nas juntas, pelo esforço que ela fazia para manter a cabeça do cavalo bem dirigida para o cume, impedindo-o assim de desviar-se para o abismo, à esquerda, cuja escuridão e ressonâncias pareciam ao mesmo tempo atraí-lo e atemorizá-lo. Seria o vazio ou os ruídos da água torrencial, estimulando-lhe a sede, que punham nervosa a égua de nome Wallis?

O animal era resistente e muito bonito, mas desde o início da viagem parecia desconcertado com a marcha que lhe impunham. Pensando bem, a égua tinha seus motivos, pois nada parecia menos destinado ao nobre caminhar de um cavalo do que aquelas pistas sinuosas, serpeando de encostas para vales, quase invisíveis sob as árvores, perdendo-se por charnecas queimadas ou lodaçais, diluindo-se em riachos em que era preciso chapinhar durante longas horas quando a floresta se. fazia impenetrável demais, escalando picos e mergulhando em abismos, com a ousadia comum a todos os caminhos por onde passa o homem que deseja encurtar ao máximo o trajeto e que só precisa cuidar dos próprios pés descalços, não dos preciosos jarretes de um cavalo.

A senda que seguiam era atapetada de uma erva seca e escorregadia, quase rosada à força de ser clareada pelo ardor do sol. O cavalo deslizava a todo instante, sem encontrar apoio para os cascos impacientes. Com mão firme Angélica o sustinha, acalmava-o apenas com uma pressão atenta, e forçava-o a avançar. Agora o conhecia e, se ele lhe exigia um esforço constante, ela já não temia vê-lo esquivar-se a seus comandos. Faria o que ela lhe ordenasse, e se à noite estivesse moída de cansaço, era outra história.

Avançavam. Chegava-se ao topo, uma espécie de platô onde soprava um vento suave, com perfume de resina.

Angélica respirou profundamente.

A sua frente estendia-se um bosque de coníferas. Os pinheiros, os cedros azuis, os arbustos desiguais compunham um exército sombrio, onde as nuances graves e suaves do verde-esmeralda e do cinza-azulado intercambiavam-se, bordadas por agulhas em tufos, em ramalhetes, em rosáceas, em guirlandas, formando uma tapeçaria em ponto miúdo, tom sobre tom, verde sobre verde.

O solo tornara-se pedregoso outra vez, e os cascos do cavalo ressoavam.    .

Aneélica diminuiu a pressão dos dedos sobre as rédeas e a dos joelhos contra os flancos do animal. O tenaz pensamentozinho vem novamente esvoaçar-lhe em torno, desta vez mesclado ao sopro benfazejo da brisa.

"Então, é verdade, estou com' ele!"

Detém-se no pensamento e, corno que saindo de um sonho, ouve-lhe o eco. Tem um sobressalto, ergue a cabeça, e seu olhar procura, adiante da caravana, uma silhueta.

Ele! Lá estava, à testa da caravana, o Conde Joffrey de Peyrac, grande viajante, aventureiro dos dois mundos, o homem de destino dramático, que, após haver conhecido todas as grandezas e todas as misérias, avançava, cavaleiro escuro, arrastando dia após dia sua tropa atrás de si, com uma desenvoltura altiva que às vezes parecia inconsciente, mas que sempre se revelava segura.

"Nunca passaremos por aí", dissera-se Angélica inúmeras vezes diante de um obstáculo, "Joffrey não deveria..."

Mas já enfiavam para a frente, um depois do outro, cavaleiro depois do rastreador, carregador atrás de cavaleiro, pelo buraco numa mata semelhante a um covil, pelo túnel num desfiladeiro, pela corrente do rio, pela areia movediça de um lodaçal, pelo desconhecido de uma montanha através da qual deslizava o anoitecer. E passava-se, avançava-se, descobria-se do outro lado a luz, a margem, o abrigo para a noite. A cada vez parecia impossível e imprevisível, mas não era. Joffrey de Peyrac nunca prevenia ninguém de suas surpresas. Oferecia-as como se fossem natura-líssimas. Angélica ainda se perguntava se ele sabia de fato para onde ia ou se era o acaso que os conduzia a bom porto. Por cem vezes deveriam ter-se perdido, perecido. Mas era um fato: ninguém morrera. E há três semanas, os que compunham a pequena caravana partida de Gouldsboro nos últimos dias de setembro haviam-se submetido ao próprio destino, rolados, inebriados pela floresta e seus caminhos, como seixos no fluxo da torrente, a pele amorenada nos ângulos do rosto, os"olhos lavados de luz viva, de azuis resplandecentes, do azul do céu entrevisto através de um cahdoscópio colorido de folhagens, e, nas dobras de suas roupas, os odores de madeira queimada, de outono, de resina e framboesa. No calor daquele final de estação, o hálito dos lagos evaporava-se às primeiras horas da manha, deixando a superfície da água brilhante e límpida e, sob as árvores, uma secura estalejante que ressoava longe.

Ao cair da noite o frescor aumentava bruscamente e de modo quase inesperado. Um frio brusco deixava pressentir o inverno, mas ainda havia muitas árvores verdes, mal começando a amarelar. Como por milagre5 então, aparecia a área do acampamento, em local ligeiramente afastado, para espantar mosquitos e pernilongos. Acendiam-se as fogueiras. Com destreza as índias cortavam longas varas. Em menos de uma hora viam-se erguer na clareira tipis pontudos sobre os quais se desenrolavam cascas de bétulas costuradas umas às outras, ou então grandes pedaços de casca de olmo sobrepostos como as telhas de um telhado. Nas primeiras vezes Angélica se perguntara como se haviam podido "levantar" aquelas placas de casca sobre as árvores em tão pouco tempo. Depois percebeu que Joffrey de Peyrac enviava na frente uma equipe encarregada de desbastar o caminho e às vezes até de traçá-lo, e também de preparar o acampamento. Outras vezes ninguém aguardava a caravana no local de parada, mas então, com a habilidade de um cão desenterrando um osso, uns e outros iam erguer, em alguns cantos do bosque, grandes tiras de musgo, ou rolavam pedras à entrada de uma caverna, revelando um esconderijo bem provido de cascas de olmo, empilhadas ali para o viajante, bem como algumas provisões de milho enterrado.

Era primitivo, com certeza, mas suficiente. Para as três mulheres brancas - Angélica, a Sra. Jonas e sua sobrinha Elvira - e as três crianças que as acompanhavam, erguia-se uma tenda de cotim. Recobria-se o chão com folhas de abeto e peles de urso, as quais serviam igualmente de cobertas. Sob esses abrigos reinava um bom calor, e dormia-se bem, contanto que não se fizesse questão de colchões e cobertas de penas, o que era o caso de Angélica e sua filha, cuja vida aventurosa conhecera paradas bem mais desconfortáveis.

O tempo imutavelmente bom facilitava a viagem. Pelo menos não era preciso secar a roupa encharcada de chuva. A caça e a pesca forneciam toda noite comida saborosa, completada pela ração de biscoitos e toucinho trazidos de Gouldsboro.

No entanto, à medida que passavam os dias, depois as semanas a marcha cheia de precauções dissimulava uma extrema lassidão. Angélica a sentia particularmente essa manhã, enquanto os cascos de seu cavalo ressecavam sobre o solo pedregoso. O ruído parecia-lhe amplificado pelos troncos cinzentos dos pinheiros e, por contraste, acusava o silêncio em que avançavam. Angélica deu-se conta de que há alguns dias a guitarra de Cantor se calara, bem como as vozes alegres de Maupertuis e de Perrot, trocando gracejos ou conselhos. Caminhava-se e já não se falava. Fadiga, ou então astúcia instintiva de seres ameaçados que a cada passo se protegem e procuram fazer-se esquecer. Logo cedo Honorina quisera montar na garupa de Angélica. Fora a primeira vez, desde a partida. Até então impusera sua companhia a cada um dos cavaleiros, uma companhia, aliás, muito solicitada, pois ela distraía. Até se fizera carregar nos ombros gordurosos de alguns índios, com que-m pretendia haver mantido conversas mui to interessantes.      .

Hoje queria a mãe. Angélica sentia-a adormecida contra suas costas. Nas passagens difíceis a criança corria*o risco de escorregar. Mas Honorina fora criada a cavalo, tivera a infância toda embalada pelo passo de montarias, cavalgando em florestas profundas, e instintivamente, no sono, aumentava a pressão na cintura da mãe.

O caminho perdeu-se num traço de areia cinza, misturada com agulhas de pinheiro, e sobre esse veludo os ruídos novamente se abafaram. O sopro das respirações, o ranger das selas, o leve bufido dos cavalos defendendo-se das moscas confundiam-se com o sopro do vento, que passava por entre os pinheiros com um grave sussurro, lembrando o mar. As árvores eram muito altas agora. Os troncos retos, de um cinza-claro, lançavam-se para cima, exibindo as ramagens horizontais com um rigor arquitetô-nico. Aquelas árvores teriam merecido ser plantadas pela mão do homem. Faziam pensar irresistivelmente nas catedrais, nos parques da Ue-de-France, em Versalhes.

Mas era apenas um parque da natureza selvagem, espontaneamente alinhado pela vontade arisca dos ventos, dos solos e de frágeis sementes, e que pela primeira vez, desde a aurora do mundo, ressoavam com o eco dos passos de um cavalo. Os altivos pinheiros da América viam passar aqueles cavalos. Nunca os tinham visto antes.

Os cavalos respiravam o frescor perfumado. Seus sentidos os preveniam do que havia de inusitado naquele primeiro encontro com os gigantes de um mundo inexplorado, mas na qualidade de criaturas civilizadas, de nobre sangue inglês e irlandês, controlavam a própria apreensão.

Uma pinha despencou do galho e caiu, um desses frutos redondos e eriçados, abertos como nenúfares e cobertos de resina branca. Com o ruído, Angélica estremeceu. A montaria deu um passo em falso. Honorina acordou.

- Não foi nada - disse a mãe.

Falou baixo. Havia esquilos no alto, que os seguiam com o olhar.

Já fazia quase uma hora que andavam em terreno plano, por entre as colunas cinzentas de pinheiros.

O terreno começou a inclinar-se suavemente na direção do vale, levando consigo os pinheiros, depois os abetos, e, à medida que se acentuava a descida, surgiam novamente as bétulas e as faias de folhas ainda quase verdes, depois os olmos já avermelhados, os carvalhos desiguais, carregados de enormes folhas castanhas ou avinhadas, e por último toda a sinfonia dos bordos, uma espécie que Angélica jamais encontrara em tão grande profusão. Eram eles que davam ao outono seus matizes mais belos, do mel ao ouro queimado, passando pelo escarlate.

Pouco antes de mergulhar numa vegetação tingida de púrpura, descobriu-se à esquerda um horizonte imenso, alinhado de montanhas escuras. Eram as primeiras que se viam, pois até então, embora se tivesse a impressão de descer e subir o tempo todo, os viajantes só haviam percorrido, desde o mar, um vasto peneplano, com falhas bruscas abertas pelos cursos de água e pelos lagos.

As montanhas não pareciam muito altas, mas numerosas e intermináveis, desenrolando-se até o infinito com movimentos suaves e prolongados, sobrepondo azuis e cinzentos, para se fundirem, muito longe, sob o amontoado de uma massa de nuvens, parecida com elas, que enchia o fundo do céu.

Aos seus pés, em primeiro plano, estendia-se um vale, rosado sob leves brumas. Era vasto, calmo e sereno. E absolutamente deserto.

O panorama entrevisto, que lhe dava bruscamente a escala do mundo onde se encontrava, deixou Angélica atónita. Sentiu-se oprimida. Era como que a descoberta, depois de muitas ilusões, das verdadeiras dimensões de uma tarefa quase irrealizável. Ela se perguntava se jamais vivera, em outro lugar, se alguma vez se vira numa multidão, entre outras mulheres, na corte, em Versalhes, se era possível que houvesse no mundo cidades fervilhantes de seres humanos e de gritos, de gente amontoada, de nações transbordantes e agitadas. Não parecia concebível. Estava-se nos primeiros dias do mundo, no orgulho da matéria muda: águas, terra, rochas, pantanais e nuvens, folhas e..céu. E para ela tudo se calara. A cortina caíra sobre a ruidosa comédia do passado, onde ela vivera seu destino fulgurante e solitário de mulher jovem, bela, cobiçada, ameaçada, E«=a como uma cortina vermelha de teatro que caíra e atrás dá qual ela ouvia risadas, troças, falatórios.

Angélica estremeceu, recompôs-se sobre asela, com uma sensação dolorida: "Quase adormeci, que tolice, poderia quebrar as costelas e arrastar Honorina".

— Você está bem, Honorina querida?

— Sim, mamãe.

— Está tudo vermelho...

A coluna avançava em pleno escarlate, através de uma floresta de bordos que o outono tornava completamente vermelhos, do cimo aos pés, pois as folhas caídas já formavam um grosso tapete. Na massa da folhagem, mal se distinguiam os troncos pretos e os galhos que sustentavam toda aquela panóplia. Ao atravessá-la, a luz tinha as incandescências do fogo de forja, luminosidades de vitral. Três pegas pretas e brancas, assustadas, delirantes, saltavam de galho em galho, fazendo grande alvoroço.

-        Ah, é só isso... Mas tive a impressão de ouvir a Sra. de Montespan.

Angélica começou a rir baixinho. A Sra. de Montespan, sua rival em Versalhes, estava longe, e sua evocação, na verdade, podia fazer parte de um pesadelo pitoresco. Não tinha mais consistência do que a casca vazia de um fruto que se esmaga entre dois dedos. A corte, o amor do rei Luís XIV por ela, Angélica. A cortina caíra. Ficara tudo para trás. Era isso o que ela sentia. E à sua frente havia o deserto e aquele homem reencontrado. Um começo em todas as coisas.

Angélica sentira algo semelhante outrora, quando atravessava os ermos de Maghreb com Colin Paturel. Uma decantação de todo o ser, uma ruptura consigo mesma. Mas não era o mesmo, pois naquela ocasião ela fugia do deserto e Colin Paturel estava apenas.cruzando seu caminho, enquanto hoje o deserto a atravessar jamais acabaria de ser atravessado e ela estava ligada ao homem que amava.

Estava com ele.

E esse pensamento, nela e à volta dela, trespassava-a subitamente de sensações contraditórias - uma paz e uma felicidade inefáveis, depois um medo gelado e brusco como a repentina aparição de um abismo a seus pés. De modo que era como que sacudida por arrepios de febre, que a deixavam quebrada por dentro. O medo vinha das palavras que ela pronunciava sem ter consciência, como estar "Jigada" ou que o deserto não acabaria nunca de ser atravessado. Olhava as mãos segurando as rédeas do cavalo e reconhecia-as. Eram finas e longas, e muitos homens as haviam beijado sem adivinhar o vigor que ocultavam. Era esse vigor, exercido no correr dos anos, que hoje lhe permitia manejar armas pesadas, sovar a massa ou torcer a roupa, nas duras tarefas domésticas, ou ainda montar um cavalo espantadiço.

Estavam nuas, bem dela, sem um anel, uma jóia. Suas mãos!

Angélica tinha confiança em suas mãos, eram suas melhores aliadas. Mas quanto ao resto, às vezes se sentia cansada. Uma fraqueza infantil. O coração e o espírito desordenados, uma sensibilidade à flor da pele, as lágrimas próximas ao riso, perturbada com uma palavra, alegre com outra, a incerteza, a perplexidade, e aquela opressão, sem nome nem objeto, invadindo-a como ao longe as nuvens amontoadas acima dos vales começavam insidiosamente a crescer e a invadir um céu puro.

Tudo fora rápido demais. Agora tudo ia lento demais.

Rápida demais, fulgurante demais a alegria daquela manhã em que ele lhe tomara a mão diante de todos, dizendo: "Apresento-Ihes minha mulher, a Condessa de Peyrac". Resplandecente demais dolorosa como o relâmpago, a alegria do momento em que vira os filhos vivos e dera-se conta da presença deles.

Violenta demais, exaustiva demais a alegria das noites em que seu corpo, ressuscitado, reencontrava o impulso do desejo.

Era como um turbilhão que a apanhasse, violentasse. O ferro em brasa da alegria, da felicidade, marcava-a, atravessava-a, mas ainda sem que ela pudesse libertar-sede tudo o que fora por muito tempo, aquela outra Angélica gerada-com dificuldade pela dor, a mulher marcada com o selo do rei; a Revoltada. De modo que por vezes ela se revia viúva e solitária, com reflexos antigos e insensatos.

Era nesses momentos que a realidade a atingia como uma bala, deixando-a em estado de choque e "estupor.

"Mas é verdade. Ele está aqui. Estou com ele." A alegria e o medo misturavam-se. Ela tinha a impressão de desfalecer.

A essas tomadas de.consciência ardentes ou gélidas, Angélica preferia a atonia do pensamento, o torpor favorecido pela marcha lenta e laboriosa 3o cayalo.-Não se podia falar, propriamente, de passagens perigosas naquela viagem, mas tudo era insólito. A atenção permanecia alerta. Mas a reflexão cochilava, vaga e como que se recusando a conceber fosse o que fosse além daquela pista estreita, seus meandros e saliências, sinais e odores, recusando-se sobretudo.a imaginar outra coisa além de marcas tangíveis e imediatas, pedras, folhas, moitas a atravessar, a afastar, o que pudesse haver à volta... Ou seja, nada, nada, nada, a perder de vista, o silêncio e a terra morta numa mortalha de folhas crepitantes.

"No entanto, sempre tive um excesso de imaginação", dizia Angélica consigo mesma. "Eu sonhava... Instalava-me em imagens, comprazia-me tão bem nelas, que depois encontrava dificuldade em me recolocar numa realidade diferente... e com frequência decepcionante. Se começo a imaginar que por trás dessas massas de árvores intermináveis há um monstruoso deserto hostil, vou me desgastar por antecipação... Melhor esperar para saber o que significa de fato este país, e não pensar. Oh, este vermelho!... E possível sonhar com esplendores assim? Pode-se ao menos vê-los em sonho?", pensava ela, de súbito exaltada e transportada por um sentimento de admiração impulsiva que a mergulhava num deleite quase sobrenatural, os olhos abertos fartando* se com a abundância de cores, onde a luz e a sombra rivalizavam para conferir às menores nuances o fulgor de jóias. O vermelho, o amarelo e o rosa drapejavam contra o fundo bronzeado da vegetação emaranhada de espinheiros pretos e cor de ferrugem, de onde exalava um hálito tépido, com odor de amoras e mel. Angélica teve a impressão-de que algo se movia ao longo de um tronco próximo e descobriu dois filhotes de urso que subiam na árvore, agarrados com as quatro patas à casca, e que, ao surgir o cavalo, voltaram o focinho curioso, ao mesmo tempo sagaz e cheio de candura.

Eram tão engraçados os dois, que por pouco Angélica não despertou Honorina para mostrá-los a ela.

Mas refletiu que a mãe ursa não devia estar longe, e examinou se continuavam na bolsa da sela as pistolas que Joffrey lhe dera.

Bem atrás dela, o cavalo de mestre Jonas desembocava sob uma dupla ogiva encarnada. Como que arcado sob o peso daquela folhagem incandescente, o dorso do relojoeiro rochelês se arredondava. Também ele devia estar meio que cochilando. Angélica observou o modo como ele avançava pelo caminho de folhas mortas. Se a mãe ursa se remexesse entre os arbustos, os cavalos não deixariam de se assustar. Mas nada aconteceu. Mestre Jonas e sua montaria desfilaram sob o nariz dos ursinhos, prodigiosamente interessados, que por muito tempo seguiram com olhos atentos aquele animal apocalíptico, cuja parte inferior, com quatro patas, parecia com a do alce, e cuja parte superior, encimada por uma espécie de cone preto - os ursinhos não sabiam que aquilo se chamava chapéu -, soltava um sonoro ronco.

Mestre Jonas e a mulher tinham pedido ao Conde de Peyrac para participar da expedição ao invés de ficar em Gouldsboro. Com a sobrinha Elvira, a viúva do padeiro e seus dois filhos pequenos, representavam o contingente huguenote da caravana, ou seja, as relações pessoais de Angélica. Os outros, entre os quais havia italianos, alemães, ingleses, talvez escoceses, ela ainda os conhecia mal e sequer os distinguia direito. Censurava-se por essa confusão que não lhe era habitual, pois sempre tivera certa curiosidade por seus semelhantes, que a levava a travar conhecimentos rapidamente. Mas eram os "homens" de Peyrac, não os seus, e com relação a ela todos ainda estavam na expectativa.

Continuava a destacar-se do grupo o caçador canadense, Nicolau Perrot, mais.onipotente ç indispensável do que nunca, que possuía o dom de surgir no momento oportuno para ajudá-la. Viajava a pé, por preferência, como passo infatigável e silencioso dos índios, com o fuzil, de corónha.para o alto, contra o ombro. Com frequência passava à dianteira, para preparar a pista e o acampamento da noite. Angélica tinha a impressão de que aquele rapaz ao mesmo tempo pacífico e misterioso poderia tornar-lhe acessível tudo o que a assustava, mas sem dúvida ele ficaria muito surpreso côm os pensamentos da jovem, pois tudo o que rodeava Nicolau era familiar: uma árvore era uma árvore, vermelha ou dê qualquer outra cor, um riacho era um riacho, um índio, um" índio, o importante era determinar bem rapidamente se se tratava de-^migo ou inimigo: Um amigo era um amigo, um inimigo era utn inimigo," um escalpo era um escalpo, uma parada com o cachimbo cheio de tabaco, a melhor coisa do mundo, uma flecha no coração, a mais desagradável.

Era nisso"que ele era simples, e seu mistério vinha apenas desse conhecimento que possuía das coisas estranhas e inusitadas. E não tinha consciência- desse conhecimento.

Angélica lamentou que ele não estivesse nas imediações. Ter-lhe-ia perguntado o nome das plantas que vira ao longo da senda. Algumas lhe eram conhecidas, outras não. Teria perguntado como se podia pretender alimentar cavalos num país onde não havia pradarias, não havia clareiras, e onde a vegetação rasteira era composta apenas de arbustos, folhas mortas e galhos caídos, sem erva. Adivinhava que essa questão dos cavalos o atormentava. Ele já lhe explicara que naquela região as únicas vias de penetração eram os rios, e os únicos meios de transporte, as canoinhas indígenas de casca de bétula, que se podem carregar na cabeça ao vadear corredeiras, para logo adiante recolocá-las sobre águas calmas. "Mas claro que com cavalos e mulheres...", dizia ele, balançando a cabeça.

A floresta terminava, cor de poente púrpura, entre flancos rochosos que encolhiam cada vez mais para formar uma espécie de desfiladeiro. A água escorria por degraus ao encontro deles, mas desta vez não foi muito difícil subir a encosta.

Angélica fez alto e voltou-se para dar uma olhada nos membros da caravana que, uns a cavalo, outros a pé, saíam uns atrás dos outros da ravina como de um poço.

Notou o andar pesado deles. Todos, até os jovens, pareciam derreados de cansaço e calor.

Hortorina, a menininha de três anos, dormia com os braços em torno da cintura da mãe, apoiada às costas dela. No ponto onde se apoiava a face redonda da criança, Angélica tinha uma sensação de queimadura. O menor contato era quase insurpotável, devido ao calor intenso que trazia o ar seco e agitado.

O suor escorria-lhe pela espinha e colava-lhe a roupa à pele. Apesar do chapéu de aba larga, tinha a nuca dolorida.

Uns dos homens da caravana chegou até Angélica e a ultrapassou com um vago cumprimento. Ele sequer levantou a cabeça, enquanto seus passos arrastados deixavam no chão uni pequeno rastro de poeira levantada. Angélica olhou outra vez para trás. Não via Cantor, e preocupou-se com o filho mais novo.

Os homens passavam uns atrás dos outros, curvados ao peso dos fardos que carregavam.

Alguns, estrangeiros, falavam inglês entre si. Ao passarem, davam uma olhada rápida na jovem a cavalo à beira do caminho, às vezes cumprimentavam, mas não paravam.

No decorrer daquelas três semanas, Angélica descobrira apenas, observando aqueles homens escolhidos pelo Conde de Pey-rac para acompanhá-lo em sua expedição ao interior do continente americano, que eram de natureza pouco tagarela, de uma resistência a toda prova e de grande dedicação ao chefe. Eram brutamontes, e não era preciso ser um grande adivinho para entender que cada um deles ocultava em si um segredo. Essa espécie de homem não era desconhecida de Angélica, que também sabia que não é fácil cativá-la.

Tentaria abordá-los mais tarde. Sua tarefa de controlar um cavalo arisco, cuidar da filhinha e olhar pelos amigos huguenotes que a acompanhavam requeria-lhe todas as forças.

Apesar do hábito das longas cavalgadas por florestas, montes e vales, tivera momentos de inquietação. Lembrava-se da expressão dubitativa do marido quando lhe pedira que a levasse consigo, e começava a entender os motivos dele. A aventura que os aguardava no interior da província do Maine, onde o Conde de Peyrac resolvera explorar as minas de ouro e prata, essa aventura, ela entendia agora, seria pontilhada de dificuldades desconhecidas, imprevisíveis, a exemplo daquela senda por onde seguiam há tantos dias.       Também passavam índios, homens e mulheres, deixando no ar superaquecido um ranço animal. Haviam-se juntado à caravana quando esta atingira as margens do rio Penobscot. Pertenciam a uma pequena tribo de raça abenaki, os metallaks, que, depois de um expedição comercial até o litoral, retornavam a seus terrenos de caça habituais, junto-ao lago-Umbagog. Tinham pedido a proteção do Conde de Peyrac para a viagem, temendo os possíveis encontros com os iroqueses, o inimigo cruel e hereditário, que com íreqiiêncía devastavam.a região no verão.

Mestre Jonas, o relojoeiro rochelês, chegou por sua vez, puxando o cavalo pela rédea'. Parou e tirou o chapéu. Enxugou-o cuidadosamente por dentro, depois a testa e os óculos.

— Ufa, como a encosta é íngreme! E dizer que há vinte como esta a escalar .todos os dias...

— Sua mulher não está encontrando muita dificuldade?

— Pedi a um homem que a ajudasse na subida. Um passo em falso e minha pobre mulher seria triturada por uma catarata... Ah, ei-los!

A boa senhora rochelesa alcançou-os. O jovem bretão Yann Le Couénnec, um homem de Gouldsboro, muito solícito, guiava-lhe o cavalo. A Sra. Jonas estava escarlate, mas mostrava bom humor. Mulher forte e cortês, com seus cinquenta anos, revelara-se uma resistente amazona.

-        E para variar um pouco da minha casa do fundo da loja em La Rochelle - dizia.

E explicara a Angélica que, filha de um grande fazendeiro, passara a juventude no campo.

— Você viu Cantor? - perguntou-lhe Angélica.

— Sim, está ajudando Elvira, que não é muito boa amazona. A coitada! Não sei o que lhe deu na cabeça de nos acompanhar nesta aventura, com os dois filhos, ao invés de ficar em Gouldsboro. É verdade que é nossa sobrinha e que somos a única família que ela tem...

Cantor apareceu à saída da ravina, e Angélica sentiu orgulho ao ver surgir sua silhueta de adolescente, bem desenvolta, guiando com a mão segura o cavalo sobre o qual se agarravam uma jovem e um garotinho de seis anos.

Elvira parecia assustada e confessou que era principalmente o estrondo das quedas-d'água que lhe dava medo. Agora prosseguiria sem auxílio. Agradeceu gentilmente a Cantor e perguntou se tinham visto seu filho mais velho, Bartolomeu, que tinha oito anos. Angélica tranqiiilizou-a. Bartolomeu estava na frente, com Florimond, que se incumbira dele e de quem o menino não se afastava.

O grupo de rocheleses pôs-se em marcha, e Cantor os observou balançando a cabeça.

— Se eu não estivesse aqui, queria saber como essa pobre coitada se sairia - lançou, com um desprezo matizado de piedade. - Sobrecarregar-se com mulheres e crianças numa caravana! É loucura. Não digo isso por você, minha mãe... Sendo a mulher de meu pai, é normal que nos acompanhe. Mas confesse que viajar numa caravana num país desconhecido é coisa diferente de dançar nos salões de Versalhes!

— Confesso, Cantor, confesso... - reconheceu Angélica, dissimulando um sorriso diante do tom grave do rapaz - e admiro sua resistência, pois você vai a pé, com uma carga pesada, enquanto nós, mulheres e crianças, estamos a cavalo!

— Ora, o hábito! Não somos alfenins.

— Mas não está cansado com esse calor terrível?

Ele ergueu os ombros e se proibiu de sentir o menor cansaço. Ela adivinhou que ele mentia um pouco. Pois na caravana, até os homens empedernidos se queixavam às vezes da duração e da rudeza das etapas. Notou que ele emagrecera e que olheiras lhe escureciam os olhos claros, da mesma cor verde dos da mãe. Ela se perguntou mais uma vez por que Joffrey os mantinha naquele ritmo quase desumano. Queria pô-los à prova, saber o que poderia esperar de cada um? Provar a si próprio que mulheres e crianças não contavam nada em seus projetos? Ou uma razão secreta o obrigava a apressar-se rumo a um objetivo que para Angélica ainda era vago?...

-        E você, mãe, como está? Esse cavalo continua a fazer das suas? - perguntou Cantor, forçando os lábios rachados pela seca a sorrir.        

Seu porte robusto já era o de um rapaz, mas sob a camada de poeira e suor as faces rosadas conservavam a suavidade da infância. Por causa daquele rosto imberbe fresco, Angélica reconhecia nele o pajenzinho bochechudo que outrora cantava diante da rainha, em Versalhes, e tinha vontade de acariciar-lhe a cabeleira cacheada e de sorrir-lhe com ternura, atraindo contra si a cabeça daquele filho ressuscitado, do filho finalmente reencontrado, e que estava à sua frente, miraculosamente vivo...

Mas evitava fazer o gesto, pois a adolescência é pudica na expressão de seus sentimentos, e após vários anos de separação o coração do filho lhe e/fa desconhecido. Ele aspirava pelo dia em que a caravana finalmente parasse sob um teto que não deixariam mais, o cansaço opressivo se dissipasse e ela pudesse reaproximaç-se dos seus, reuni-los à sua volta, o marido e os dois filhos, e reaprender aconhecê-los melhor, na paz da vida cotidiana.

Mas, ao que lhe parecia, a viagem os afastava dela. Cada um tinha que haver-secom suas próprias dificuldades, inquieto com a preocupação de não ser aquele ou aquela que retardaria a marcha.

Respondeu a Cantor que ia tudo bem. Wallis parecia haver-se tornado mais sensata e agora lhe obedecia.

— Foi difícil demais - disse Cantor, preocupado. - Florimond e eu bem vimos que esse animal era difícil, e estávamos inquietos que você tivesse ficado com ele. Várias vezes imaginamos que fosse cair numa ravina ou que não conseguiria fazê-lo avançar por uma passagem difícil...

— E meus filhos acham que me saí bem?

— Hum, sim, sim, claro - fez Cantor com uma condescendência que ocultava certo espanto. - Você é uma ótima amazona - reconheceu, dando ênfase aos terfhõs.

— Agradeço-lhe. Você me encoraja a prosseguir caminho, pois esta manhã eu estava a ponto de me dar por vencida. Faz muito calor.

— Quer tomar um pouco de água? - ofereceu ele solícito. - Enchi meu cantil ao pé da cascata, ainda está fresca.

— Não, obrigada, mas vou dar um pouco a Honorina.

— Então não vale a pena. Ela está dormindo - disse com vivacidade o rapazinho, afastando o cantil. Arrolhou-o e pendurou-o de novo no cinto. - Vou na frente. Depois da travessia deste bosque, podemos contar que vamos topar com outra ladeira rochosa, difícil de passar, e terei de ajudar a coitada da Sra. Elvira. - E partiu a passos largos.

Angélica reconduziu o cavalo para o caminho. Acompanhava Cantor com os olhos e pensava que era um belo garoto, gentil e atencioso com ela, e que não lhe seria difícil reconquistá-lo, mas também já entendera há algum tempo que ele não gostava de Honorina.

Suspirou e inclinou um pouco a cabeça.

Será que um dia teria coragem de falar de Honorina aos dois filhos mais velhos? Dizer-lhes o quê?... Era natural que os dois rapazes se interrogassem acerca da meia irmã que a mãe lhes trouxera do Velho Mundo!

Nascera de que amante da mãe? Esse devia ser o pensamento que às vezes lhe vinha à mente. Como reagiam um e outroj no fundo do coração, a essas revelações decepcionantes?... Como julgavam a atitude do pai, que perdoava e recebia a criança?

Honorina era o sinal de tudo o que se gostaria de esquecer: o passado cruel, a separação e as traições inevitáveis...

"Será que eu deveria tê-la deixado em Gouldsboro?" perguntou-se Angélica. "Abigail tomaria conta dela, e com ternura. Não, eu não podia! Bem sei que você morreria longe de mim, minha pobre filha bastarda", pensou, olhando por sobre o ombro a cabeça redonda apoiada tão confiantemente contra ela. "E eu, poderia eu esquecê-la e viver em paz, depois de afastá-la mais uma vez do meu caminho?... Pobre pequena, lançada com tanta violência e horror neste mundo tão duro!... Não, eu não poderia."

Por que Honorina, naquela manhã, quisera com exigência e obstinação ficar com a mãe? Não era um sinal?... Quando alguma coisa angustiava a criança, ela reclamava Angélica.

Até então se mostrara alegre e muito sociável. Mas hoje, de que perigo inesperado se estaria protegendo? De uma passagem mais difícil de atravessar? Uma tempestade? Um furacão? Um encontro com os iroqueses?

Durante toda a viagem, o índio, amigo ou inimigo, permanecera quase invisível. Perrot e Maupertuis explicavam que as tribos haviam partido para o comércio de peles no litoral, onde os navios as esperavam com sua carga de aguardente, bugigangas e pérolas. As inúmeras tribos nakis que constituem a raça original do Maine têm o nomadismo na sangue.

No começo da viagem houvera o' encontro com os metallaks, que se haviam juntado à caravana dós brancos. Com exceção deles, não se vira ninguém, fossem abenakis ou iroqueses. E essa ausência de seres humanos, que por muito tempo pareceu protegê-los, hoje oprimia seus'corações cansados.

A direita as montanhas reapareciam, graças a.um longo trecho de terreno calcinado. Angélica olhou esperançosa na direção das montanhas. Sabia que ao pé dos Apalaches devia ficar o entreposto de Katarunk, que pertencia ao Conde de Peyrac e que era o destino da viagem: Passariam lá o inverno, e na primavera seguiriam para as minas, mais distantes. A égua avançou pelo platô cor de fuligem. Um forte odor de madeira queimada e de resina pairava no ar como um incenso pesado.

Na crepitante seca do verão, os incêndios começavam com facilidade. Uma fagulha escapada de uma fogueira bastava para desencadear um exército de chamas estrepitosas, que devastavam e devoravam a floresta com uma gula de dragão feroz, expulsando os animais desesperados e detendo-se somente diante de falésias ou riachos, num chiado infernal. Muito tempo depois, a distância, pairava no ar límpido um ranço de fumaça, que parecia ser o odor próprio e definitivo daqueles grandes espaços florestais.

Aqui o incêndio devia ser recente. Os passos dos cavalos levantaram as cinzas mornas. Os gravetos deixavam rastros negros, os tocos e troncos ainda em pé estavam carbonizados e áridos. Entre seus picos pontiagudos, o vale rosa e malva emitia reflexos de todos os seus lagos. A caravana atingiu as margens de um deles. O fogo roera-lhe as bordas e quase não havia mato para os cavalos esfomeados pastarem.

Seguiram então a margem por entre as cinzas até chegarem a um vau, onde os animais, com passos cautelosos, atravessaram uma barragem de seixos redondos. Do outro lado se subia de modo bastante abrupto, sob o frescor de árvores e abetos intactos. Ainda não eram as montanhas, mas uma ilhota erguida no centro do vale, uma muralha de rochas encalhada entre os lagos que, outrora, deviam ter sido rios, ou então formar um único mar de água doce. Depois de atravessar essa saliência sombreada por pinheiros e cedros, desceram para logo topar com a cintilação de outro lago por entre os ramos de um amarelo agressivo de um bosquezinho de bétulas novas.

Sob o céu cor de pérola, o espelho de água coruscava à luz direta do meio-dia. Era um lago extremamente límpido, ao contrário dos que haviam encontrado antes, sempre cheios de algas e musgos. Através da água luminosa percebia-se a areia cinzenta.

-        Gostaria de molhar os pés nessa água - exclamou Honorina.

Havia os sinais precursores de uma parada. Adiante, por trás dos salgueiros, ouviam-se chamados e o rincho dos cavalos. Um dos caçadores, que precedera Angélica, reapareceu e acenou com o braço, para avisar os que ainda estavam descendo de que teriam um momento de descanso. Para os que talvez não o vissem, ele soltou um grito gutural, que os índios que vinham na retaguarda responderam de bem longe.

Angélica deslizou para o chão e ajudou Honorina a desmontar.

Num instante a menina tirou os sapatos e as meias e, segurando as saias, entrou na água.

-        Está muito fria - gritou, rindo de prazer.

O cavalo, que bebera, pendia a cabeça cansada. Angélica acariciou o pescoço do animal, cuja pelagem, sob a luz intensa, tinha os mesmos reflexos suntuosos da floresta.

-        Não se preocupe - disse a meia voz. - Olhe, talvez ainda haja um pouquinho para você comer. Um dia acharemos grandes espaços para você galopar. Logo chegaremos a nosso destino.

O cavalo mexia as orelhas e dir-se-ia que os suspiros lhe enchiam o peitoral. Pois os cavalos não gostam da floresta. Angélica lembrava-se da guerra do Poitou e das longas incursões que fizera com seus homens pelos recantos mais afastados das florestas do oeste. Naquela altura, a inquietação das montarias não resultava em absoluto do perigo pressentido, do inimigo à espreita, mas do silêncio tão particular dos bosques, esse silêncio tecido de mil ruídos vivos e ameaçadores e dos jogos de claro e escuro entre os troncos e as margens, que criam visões fantasmagóricas, dão asas a imaginações supersticiosas e acrescentam às ameaças reais as dos espíritos e demónios.

A grande floresta do norte da América Talvez fosse menos assustadora e desagradável do que aquela onde Angélica passara a infância. Inúmeros lagos a semeavam de grandes superfícies azuladas. A atmosfera cristalina, vibrante, de uma seca que nem as brumas do inverno pareciam combater, dava a seus contornos uma limpidez sem mistério. Esta não era uma floresta de fantasmas.

Angélica parcra à beira do lago. Não queria soltar a rédea de Wailis, pois um dia, pastando, ô animal bruscamente arremetera por entre os arbustos. Por pouco não se empalara em galhos partidos e não quebrarias pernas nas fendas do solo, e fora necessária a habilidade dos índios, familiarizados com a vegetação espessa, para encontrar-lhe os rastros."

A jovem sentia o sangue bater-lhe nas têmporas, e a nuca principalmente lhe pesava. O canto estridente das cigarras a atordoava.

Vendo que i égua parecia calma, ela se animou a passar a extremidade da rédea pelo galho de uma arvorezinha, e avançou para recolher um pouco de água com as mãos e levá-la aos lábios.

Uma exclamação atrás dela deteve-lhe o gesto. O grande saga-more Mopuntuk, chefe dos metallaks, fazia-lhe sinal para não beber. Sempre por meio de gestos, explicou que mais acima havia uma nascente cuja água era melhor e onde seus guerreiros haviam parado para refrescar-se. Convidou-a a ir até lá. Angélica mostrou-lhe o cavalo, dando a entender que não podia afastar-se. Ele entendeu e, com gesto imperioso, mandou-a esperar. Pouco depois voltou acompanhado de uma índia, que trazia numa tigela de madeira a água da nascente preciosa. O desagradável é que a tigela contivera papa de milho e talvez várias outras misturas, e so fora lavada com uma passada de dedos e unhas, de modo que a água vinha turva e nada convidativa.

No entanto, Angélica forçou-se a levá-la aos lábios e a engolir alguns tragos. Já tivera ocasião de notar que os índios eram muito suscetíveis.

O grande chefe continuava ali plantado, olhando-a beber, certamente à espera de que ela manifestasse a maior admiração por aquela água notável que ele se dera ao trabalho de trazer-lhe.

Era incómodo seu odor de grande macho, untado de gordura de urso da cabeça aos pés. Sobre o peito liso, tinha sinais pretos e azuis tatuados. Duas serpentes sublinhavam-lhe os músculos peitorais, sobre, os quais um colar de dentes de urso projetava sombras pontudas.

Era um chefe, um sagamore. Percebia-se sua posição pelas penas de águia que lhe ornavam a cabeleira presa na nuca, bem como pela espessa cauda de jaritataca.

Ao longo da margem ouviam-se os mergulhos ruidosos e as exclamações alegres dos homens que saboreavam o prazer da água fresca.

Florimond apareceu, vindo saudar a mãe como fazia em cada parada. Conteve uma explosão de riso ao ver a situação delicada em que ela se encontrava, e imediatamente interveio, com tato.

-        Oh, estou com uma sede terrível! Minha mãe, não poderia dar-me um pouco dessa água maravilhosa que tem a felicidade de beber?

Esse Florimond! Que bom garoto!...

Angélica estendeu-lhe a cabaça com alívio, mas mais uma vez Mopuntuk lhe deteve o gesto com uma exclamação ultrajada. Seguiu-se uma discussão em que Nicolau Perrot foi chamado a intervir, a título de intérprete e diplomata.

— Se estou entendendo direito - disse Florimond -, um fedelho como eu não seria digno de beber da mesma fonte que sua honorável mãe...

— Há dessas coisas...

— Não haveria antes algum desprezo pelas mulheres na indignação do nosso grande chefe? - perguntou Angélica.

— Não, muito pelo contrário. Ao lhe oferecer a melhor água que pôde encontrar, o sagamore quis honrar em você a Mulher, a Mãe. As mulheres são muito honradas entre os índios...

— E mesmo? - interrompeu Angélica, surpresa, olhando a escrava de olhos baixos que se mantinha atrás do chefe.

— De fato, senhora, é difícil de entender. É preciso ter ido até o vale sagrado dos iroqueses para compreender... - disse o caçador.

Devolveu a tigela ao índio com uma enxurrada de palavras que finalmente pareceram satisfazê-lo.

— E agora, garoto, o que diria de um mergulho?

— Urra! - exclamou Florimond-

Desapareceram por trás da cortina de salgueiros e amieiros, cujas longas folhas se inclinavam para a superfície da água, e pouco depois ela os viu nadar com vigor, a cabeça aparecendo à superfície cintilante do lago.

Angélica daria tudo no mundo para imitá-los.

-        Eu também quero tomar banho - disse Honorina, começando a tirar asroupinhas.

A Sra. Jonas e Elvira surgiam com os garotinhos, filhos de Elvira, Tomás e-Bartolomeu. Resolveu-se que iam deixar as três crianças chapinhar à vontade.

Nuas, dançavam perto da margem, soltando agudos gritos de alegria.

Grandes aves pernaltas, indignadas, levantaram vôo dentre os caniços com ruidosas batidas de asa.

Patos rechonchudos, com um penacho cor de fogo e violeta, grasnaram sonOrarnente de descontentamento e se afastaram deixando um rastro na superfície da água cintilante.

Angélica suspirava de inveja vendo a água fresca. Vítima do dever, permanecia perto do cavalo.

Foi assim que Joffrey de Peyrac a encontrou, quando apareceu na praia estreita à beira do lago.

CAPITULO II

Angélica contempla seu amor - Cena doméstica na floresta

Peyrac ainda segurava ò sextante com que acabava de determinar a posição. Entregou-o ao marinheiro bordeies chamado Otávio Malaprade, que o escoltava carregando a escrivaninha de couro e o pergaminho. O homem instalou-se perto de um rochedo para ajeitar os instrumentos e as cartas na secretária portátil de que estava encarregado.

Angélica olhava o marido aproximar-se sob a claridade. Sua alta estatura adquiria uma densidade brutal. Ele parecia atravessar e desordenar sem cerimonia aquele cenário fascinante. Não se preocupava com a indiferença daquela paisagem que feria Angélica.

Ouvia-se o cascalho ranger sob suas botas de couro, sob seu andar ritmado e pesado.

"Ainda manca um pouco", pensou Angélica. "No Gouldsboro notava-se menos, com o balanço do navio, mas aqui, em terra, é perceptível."

— Qual é o pensamento sutil que lhe faz brilhar os olhos? - indagou Joffrey de Peyrac.

— Constato que você ainda coxeia um pouco.

— E isso lhe agrada?

— Sim!

— As mulheres são de fato criaturas de reações imprevisíveis! Assim, todos os meus esforços para lhe restituir um esposo apresentável serviram apenas para despertar sua nostalgia? Ou suas suspeitas? Você não está longe de temer que tenha havido uma substituição de pessoas... Contam-se tantas histórias divertidas a esse respeito, nos serões nas províncias da França... Ah, não é fácil desempenhar sempre o papel de ressuscitado! Vou acabar lamentando minha perna curta.

— E que outrora o amei assim!

— E sem ela, hoje, não tem certeza de me amar? Sorriu com malícia.

Depois, sem esperar-lhe a resposta, saudou Mopuntuk.

Era sempre extremamente cerimonioso com o chefe indígena. Tirou o chapéu emplumado e a espessa cabeleira reluziu ao sol com um brilho metálico. Reflexos de aço corriam pelos seus cachos cerrados de gascão, de um preto ainda intenso, mas que nas têmporas tinham uma cintilação prateada. Sua herança mediterrânea, mistura-de espanhol e sarraceno, tornava-lhe a tez, ao sol, tão escura e bronzeada quanto a de seu interlocutor de raça vermelha. Via-se-lhe nasmaçãs do rosto a marca mais clara da máscara, que ele usava às -vezes. As 'sobrancelhas, espessas, conservavam seu encanto acima do olhar prodigioso. Mas o perfil continuava abrupto, atormentado, com a linha sinuosa dos lábios, qual provocação agressiva e sensual.

Seus lábios eram fortes, grossos, de pele fina e levemente rosada contra o bronzeado do rosto. Eremiam, endureciam ou entreabriam-se sobre o brilho dos dentes. Tinham vida própria naquele rosto extraordinário onde cada elemento parecia um sinal destinado a recompor a personalidade do gentil-homem: testa imensa e burilada pela inteligência, refinamento da arcada superciliar revelando a nobreza de sua raça, fogo do espírito no fundo dos olhos escuros. O nariz e o queixo ousados, duros, eram os do conquistador, do montanhês, do ser habituado a erguer a cabeça, a olhar as águias, e entre eles se desenhava aquela boca ligeiramente mourisca, imperiosa, aparentemente exigente, mesmo quando se calava e permanecia impassível, uma boca de homem terrestre, um sinal de materialidade entre os traços sublimados, e que por isso ganhava uma força mais ambígua, mais inquietante. Uma boca assim os escultores antigos a deram a suas imagens dos deuses, sem saber que traduziam sob o cinzel todo o apetite de vida e gozo das primeiras civilizações mediterrâneas.

Quando olhava aquela boca tão viva e sensível, num rosto às vezes severo e bastante temível, Angélica tinha uma súbita vontade de senti-la pousar sobre a sua.

Como naquele momento, por exemplo, em que ele respondia com gestos e algumas palavras indígenas ao chefe dos metallaks. Depois se voltou para olhar ao longe, para a outra margem, tentando desvendar algum mistério da paisagem indecifrável.

Ausentou-se por um instante, talvez preocupado com as palavras trocadas. Refletia e sua boca estremecia. Ao observá-lo, Angélica sentiu o ritmo do coração acelerar. Desejava aqueles lábios sobre os seus, seu toque terno, depois violento. Devorava-o com os olhos.

O calor da cavalgada molhara a testa do cavaleiro e algumas gotas de suor escorriam-lhe pelas têmporas, seguindo, sem que ele notasse, a linha de suas cicatrizes. Angélica teve vontade de enxugar ternamente aquele rosto marcado. Não ousava. Ainda havia desses gestos espontâneos que ela se proibia, retida por uma espécie de receio. Dizia consigo que ele vivera muito tempo sem mulher a seu lado, sem entraves. Estava habituado a uma grande liberdade sexual e sentimental. Não haveria o risco de sentir-se importunado pelas atenções cotidianas de uma esposa?

Aqui, mais ainda do que no navio, ela sentia a independência daquele homem. Estava rodeado dela como que de um halo. Um homem que tivera várias vidas.

Um homem complicado sob uma aparente simplicidade. E nos meandros daquele espírito superior, ela devia encontrar seu lugar.

Sob a luz ofuscante, via-lhe a idade que fazia dele um homem no zénite da existência, em plena posse de sua força, de suas faculdades e de sua experiência. Ele estava concluído, denso, personalizado, sem incertezas, forjado pela aventura, pela guerra, morte, tortura, paixão. Quando se imobilizava assim, sua respiração era quase imperceptível. Ela não lhe via o peito mover-se, aquele peito cingido num gibão de veludo negro, nem a cintura, apertada por um cinturão largo de couro, e isso tinha algo um pouco assustador. Ela não se lembrava de haver notado nele, antigamente, essa particularidade das grandes feras em repouso até o instante exato de dar o bote. Mas antigamente ela quase não pensava em observá-lo, em pormenorizá-lo, com exceção daquela cicatriz que lhe dava medo. Foi por isso que se esquecera tão depressa de seus traços depois que ele desapareceu. Como era embotada naquela altura! A vida lhe ensinara a ler nos rostos, a perscrutar uma fisionomia, a distinguir numa expressão o pensamento fugidio. Isso são coisas que se aprendem quando se tem ocasião de ver a própria vida depender do -veredicto dos outros...

Antigamente ela vivera dois-anos perto "dele, mas nunca o observara com minúcia como agora: Fazia-o com uma avidez singular. Ele se lhe impunha para além de sua vontade. Seus gestos, as inflexões de sua voz, que ela começava a achar mais familiares, intrigavam-na e apaixonavam-na, sem que ela pudesse impedir-se nem explicar por quê. Talvez, na verdade, não houvesse nada a explicar. Fazia parte daquela atração excessiva e natural que impele para outra carne aqu.elã que lhe está predestinada.

Seu coração bateu mais depressa quando ele se aproximou dela; as atenções dele a enlevavam, o temor a invadia assim que ele se afastava. Airida'não-esta.va habituada principalmente a não perdê-lo mais, a não; esperá-lo mais.

-        "Como te amoj você, a quem temo!..."

Imóvel, contemplava-o. Depois de conversar- com o chefe Mo-puntuk, ele levou a luneta ao olho, examinando os arredores. Fechou o instrumento, entregou-o a Malaprade e foi de novo na direção de Angélica.

Com aquela-cortesia inimitável, que contrastava com a rudeza de sua personagem de bandoleiro, tomou-lhe as mãos nas suas, voltou-as e, elevando-as até os lábios, beijou-lhes as palmas ligeiramente, gesto furtivo acompanhado pelo olhar cúmplice de seus olhos calorosos, subitamente cheios de uma grande doçura ao pousarem nela.

— Estas belas mãos me parecem menos machucadas do que ontem. Devo entender que sua montaria se mostra mais dócil?

— De fato. Ela está se domesticando. Já não tenho os punhos entorpecidos à força de segurá-la.

— Foi porque eu conhecia sua força que a confiei a você. Apenas você conseguiria isso. Quanto a mim, domei o garanhão. É da mesma raça que ela. Ainda há mais dois", ingleses. O resto vem do México.

— Este país é bom para cavalos? - perguntou ela deixando transparecer sua preocupação.

-        Há de tornar-se! Onde for possível viver o homem, deve chegar o cavalo. É um princípio de civilização bem estabelecido. Os hunos não trouxeram seus cavalos? Alexandre, o Grande, não conquistou a índia a cavalo? E os árabes, a África?

Mopuntuk afastara-se. Voltou com água e deu de beber a Honorina naquela mesma cabaça duvidosa. A garotinha não fez cerimónia, e brincava com Q índio como se pudessem entender-se. Respingava-o, chapinhando no lago, e o orgulhoso metallak não se aborrecia com isso.

Joffrey de Peyrac sacara uma das pistolas e a carregava. Suas mãos elegantes tinham os gestos precisos e vivos conferidos pelo longo hábito.

— Suas armas também estão carregadas?

— Sim, verifiquei-as esta manhã e troquei a espoleta, que a umi-dade estragou.

— Muito bem. Nesta região é preferível que as armas estejam sempre prontas para atirar.

— No entanto a região me pareceu bem deserta, e parece que os animais selvagens antes fugiriam que nos atacariam.

— Não há apenas animais selvagens. E os desertos são enganadores.

Passou a outra ideia.

— Nenhum dos dez cavalos que trouxemos da costa morreu. Já é uma vitória, e podemos nos considerar felizes por termos levado a bom termo esta viagem. Realizá-la por terra, ao invés de seguir os rios, foi uma aventura que nunca ninguém ousou.

— Eu sei. Nicolau Perrot me disse. Mas eu já havia entendido que os cavalos não vieram para nos transportar, e sim nós é que devíamos conduzi-los a bom porto. Assim como não são os índios que nos escoltam, e sim nós que os escoltamos.

— Exato. Os Metallaks tinham muito medo de topar com os iroqueses, que não param de incursionar em suas terras durante o verão. Colocaram-se sob a proteção de nossos mosquetes, aceitando em troca, não sem suspiros, carregar parte de nossa bagagem. Aliás, são as mulheres que carregam. A América não é a África, minha amiga, que você conheceu e que pulula de escravos. O homem branco aqui está sozinho; é ao mesmo tempo seu único senhor e seu único criado.

— No entanto há escravos negros nas colónias inglesas do sul.

— Mas não no norte. Foi por isso, de resto, que escolhi o norte... Porque também havia minas de prata e ouro - acrescentou, como se subitamente se lembrasse das verdadeiras razões de sua escolha. - A escravidão é boa... sobretudo para os amos. Aqui é preciso passar sem domésticos e esçravosTPois o índio é tudo o que se quiser, menos um servo. Se"é forçado a trabalhar, morre.

Angélica ousou aproximar-se de Peyrac, tocou-lhe a manga e inclinou um instante a face contra o ombro dele. Receava manifestar sua ternura diante dos homens dele.

— Tenho pressa de recuperá-lo um pouco para mim. Parece-me que quando durmo longe de você perco-o novamente. Quando chegaremos a Katarunk?

— Logo, talvez... Talvez nunca!

— Receia alguma coisa? - perguntou ela com vivacidade.

— Nada, querida! TJma-antigà desconfiança! Só acreditarei que estou em Katarunk quando as portas de sua paliçada se fecharem sobre nós e meu estandarte esvoaçar no alto do mastro, para afirmar a quem quer que seja que me encontro em minhas terras. Querida,, quanto mais a olho, mais maravilhosamente bela acho-a. Você não pode imaginar como é perturbadora. Quando seus olhos brilham assim em seu rosto purpurado, quando suas pálpebras escurecem um pouco dexansaço, quando você sente calor e se impede de demonstrar sua fadiga... Adoro-a.

— Oh, com certeza estou com calor e não aguento mais! - exclamou Angélica. - E não é apenas com vistas à sedução, acredite. Daria a vida para poder mergulhar nessa água fresca.

— Não seja por isso.

Com um gesto chamou Nicolau Perrot, que saíra da água e se vestira.

-        Meu caro amigo, posso instituí-lo como guardião da virtude destas senhoras? Notei, não longe daqui, uma pequena enseada protegida por salgueiros, onde elas poderão entregar-se a gosto ao prazer do banho. Eu lhe pediria apenas que se colocasse de sentinela à entrada do caminho que leva até a enseada, a fim de afastar os indiscretos ou os desnorteados que fossem naquela direção. Coloque também uma sentinela na extremidade do promontório, a fim de afastar os nadadores. Prolongaremos a parada por mais uma hora.

CAPÍTULO III

Instante de encantamento - Algo se move entre as folhagens

Foi com uma alegria sem igual que Angélica descobriu á pequena enseada, calma e protegida como convinha. Suas duas companheiras hesitavam. Banharem-se assim, nuas, a céu aberto, não, realmente, não ousariam nunca! Por mais que Angélica lhes garantisse que estavam protegidas de olhares e guardadas por sentinelas, elas não se decidiam. Ainda assim resolveram aproveitar' do isolamento para tirarem as meias e as coifas e se refrescarem um pouco. Angélica deixou-as e afastou-se. Por trás de um amontoado de árvores, começou a tirar a roupa, contemplando deleitada a superfície liso do lago, dourada de sol.

Despida, avançou com cuidado pela inclinação da margem. A água estava fria de fato. Ela quase sufocou. Mas ao cabo de um instante se fez sentir a reação' benfazeja da água gelada sobre sua carne ardente. Entrou na água até o pescoço e deixou-se deslizar para trás, com um suspiro de bem-estar. A água rodeava-lhe a nuca dolorida. Fechou os olhos. O frio subiu-lhe até a raiz dos cabelos. Ela se sentiu ressuscitar.

Com um gesto lento das mãos, mantinha-se à superfície. Sabia nadar um pouco. Antigamente, durante o verão parisiense, ia aos banhos no Sena. Em Marly também, com a corte, tomava-se banho no Sena.

Mas o Sena estava longe.

Angélica abriu os olhos. Apareceu-lhe todo um mundo de frescor, de beleza, de luz e sombras, um mundo que lhe pertencia. Rolou um pouco sobre si mesma e começou a nadar suavemente. Seus cabelos arrastavam-se à superfície como algas louras.

Afastou-se da margem.

Contornou um promontório e achou, do outro lado, outra enseada, maior, que devia formar uma das extremidades do lago.

No fundo, a beira de uma prainha, um imenso bordo vermelho estendia grossas raízes à flor da areia, num canteiro de áste-res arroxeados.

Perto da margem, à tona ora clara, ora azul, emergiam rochas arrendondadas.

Angélica atingiu uma delas e se içou, gotejante, ao pedestal de granito. E contemplou o ermo" à sua ,volta.

Lentamente, como- que entorpecida, despertando de um sono encantado, elar se ergueu inteira, apresentando à tepidez do sol seu corpo branco e dourado sob a luz. Com as duas mãos torceu a cabeleira, ergueu-a acima do corpo, como uma homenagem ou encarnação e, com a cabeça meio atirada para trás, os olhos perdidos no azul seráfico do céu, pronunciava palavras espontâneas que lhe vinham aos lábios.

-        Obrigada, ó Criador, por este instante... Obrigada pelo vermelho do bordo e pelo ouro dos álamos, e pelo odor do cervo na mata, e o da framboesa... Obrigada pelo silêncio e pela água gelada... Obrigada por estar viva e salva... Obrigada, obrigada, ó Criador, por estar apaixonada. Obrigada por meu corpo... Obrigada por me concedê-lo ainda belo, jovem e vivo, ó Criador...

Deixou cair as mãos abertas, enquanto seus olhos se enchiam com as maravilhas daquele dia.

-        Glória a ti, Novo Mundo!... Novo Mundo!...

Subitamente deslizou para a água, num flexível movimento de sereia.

Arrancada ao êxtase, sentia o coração bater, descontrolado.

Com o rosto erguido para a ramagem dourada, acima das rochas cinzentas, esforçava-se por decifrar o mistério.

-        Quem está aí em cima?... Ouvi um ruído. Vi uma coisa preta mover-se... Quem está aí? Quem estava me olhando?...

Fixava intensamente a franja cintilante contra o azul escuro do céu. Nada se movia além do lento e convulsivo tremor das árvores sob a brisa. Mas a calma aparente não conseguia dissipar-lhe a angústia que a dominara de repente.

- Ali, agora há pouco, um olhar! Sim, um olhar que me trespassou a alma.

E estremeceu. Um profundo mal-estar a invadiu e ela teve a impressão de que ia afundar, sem forças, na água límpida. Conseguiu riadar até a praia. Agarrando-se aos galhos dos arbustos, atingiu a enseada onde deixara a roupa. Arrastou-se pela areia e ficou longo tempo reclinada, recobrando o fôlego. Não entendia muito bem o que lhe acontecera, mas todos os membros lhe tremiam.

Ouvira um ruído insólito? Vira ou imaginara ver alguma coisa mover-se por entre a folhagem, enquanto estava ereta, nua, sobre o pedestral de pedra e a superfície lisa do lago devolvia na água o reflexo de sua imagem branca?

Em todo caso, não podia ser o olhar de um ser humano. Fora algo de sobrenatural.

Os membros da caravana agrupavam-se na margem direita do lago e ela ouvia os risos e chamados. O resto da região estava deserto.

As histórias que Perrot e Maupertuis contavam à noite, junto ao fogo, voltavam-lhe de súbito à memória, histórias sobre as coisas (estranhas que aconteciam nos grandes bosques no Novo Mundo, ainda não exorcizados e onde com frequência missionários, viajantes e mercadores sentiram roçá-los o sopro do horror e dos malefícios.

O monstro selvagem à espreita, a alma feroz dos povos pagãos, vagando e assumindo formas desconhecidas para melhor atrair às suas armadilhas... Angélica disse consigo que o mal-estar talvez se devesse à reação da água gelada contra sua pele superaquecida. Mas também sabia que algo de inexplicável acabava de ocorrer, algo que a atingira em pleno coração. No momento em que o amor pelo país que lhe era dado penetrava seu ser, outra força contrária se interpusera, e lançara-a nas trevas. "Afaste-se", gritara-lhe essa força, "você não tem direito de vida aqui! Nenhum direito de permanecer..." Fora essa a mensagem que recebera como um furacão súbito e desaparecido com a mesma rapidez.

Ela continuava imóvel, estendida sobre a ribanceira.

De repente se ergueu parcialmente e fixou de novo, intensamente, um ponto na floresta ao longe. Nada se movia. Estava tudo impassível.

Angélica levantou-se e vestiu-se às pressas. Sentia-se melhor, mas a inquietação e a angústia subsistiam: O país a rejeitava, o país era seu inimigo. Ela dizia consigo que não possuía nenhuma das qualidades necessárias pára enfrentá-lo, e para enfrentar a vida que a esperava ao lado de um marido desconhecido.

CAPITULO IV

Encontro com a Tartaruga - Primeiro sinal dos iroqueses

Angélica olhou a praia onde o jovem bretão Yann guardava sua égua. Os cavaleiros já estavam montados. Honorina, parcialmente vestida, continuava a chapinhar. Olhava na palma da mão alguma coisa que lhe concentrava toda a atenção. Era uma pele de arminho branco, tão bem tratada que parecia um animalzinho vivo e macio.

-        Foi Mopuntuk que me deu.

Saiu da água, acrescentando:

— Fizemos uma troca. Ele me deu este animalzinho e eu lhe dei meu diamante.

— O diamante que seu pai lhe deu em Gouldsboro?

— Sim! Era disso que Mopuntuk tinha vontade. Vai colocá-lo no alto do cabelo, quando dançar. Ficará muito bonito, você verá!

No estado em que Angélica se encontrava, o comunicado da filha a pôs a um nada de uma crise de nervos.

"Realmente não sei como lidar com esta situação", pensou, contendo-se com dificuldade. "Joffrey disse que o diamante tinha menos valor do que uma espiga de milho, mas ainda assim!... E ele lhe deu a pedra na noite em que lhe declarou: 'Sou seu pai'. Às vezes ela é exasperante!"

Içou a filha para a sela sem cerimonias, instalou-se por sua vez e juntou as rédeas para desviar Wallis da água e reconduzi-la para o caminho árido.

Cavalgou por um longo momento sem ter consciência do trajeto percorrido.

Subia-se por uma senda ainda argilosa, onde as raízes formavam degrauzinhos. Uma mula se sentiria à vontade naquele terreno, mas a aristocrática Wallis manifestava apreensão.

Numa volta do caminho, apareceram que3as-d'água, e seu estrondo encheu os ouvidos. A águadespencava de três patamares abruptos de rochas negras, para arrebentar-se no leito do rio, profundamente entalhado. As árvores cerravam estreitamente o precipício, quase que o recobrindo. O céu estava invisível, a penumbra cavernosa, e no entanto a luz se infiltrava por toda parte, impiedosa, ferindo os olhos, burilando a vegetação como se fosse cobre. Angélica não distinguia osjndios que a precediam. O ruído da queda-d'água isolava-a de alguns ecos que até então lhe tinham revelado a presença da caravana, mesmo quando a floresta era densa dema*is para que se percebessem uns aos outros. Ela era como a viajante de algum mau sonho, nos confins de domínios temíveis, onde não percebia sequer o som dos passos de seu cavalo.

O estrondo tornava-se ensurdecedor.

A sua frente, uma pedra enorme, um bloco redondo, desprendeu-se e veio.cair atravessado sobre a senda. Sob as encarnações da luz esverdeada, o bloco duro, inerte, pareceu ganhar vida. Inchou, dilatou-se, bola enorme e cinzenta, rebentou de todos os lados como um fruto hediondo, rompeu-se, e assim, erguido, movediço e mineral, dardejou na direção dela uma cabeça de réptil cruel, com um balanço mórbido.

Horrorizado, o cavalo de Angélica empinou em toda a sua altura. Ela gritou, mas seu grito se perdeu. Honorina deve ter gritado também. Não se ouvia nada. O cavalo, empinado, batendo o ar com os cascos, recuava. Ia cair, arrastando sob seu peso a amazona e a criança, e os três rolariam enroscados nos arreios, nas rédeas, na sela, e depois seria a queda vertical no abismo.

Num esforço sobre-humano, Angélica lançou-se contra o pescoço do cavalo, içando-se até a cabeça defe para obrigá-lo, com seu peso, a pelo menos cair sobre as quatro patas.

Mas nem por isso estavam salvas, pois Wallis continuava a recuar na rampa fatal.

Angélica sabia muito bem. Era apenas uma enorme tartaruga terrestre. Mas como explicá-lo à égua apavorada? O ruído medonho aumentava à sua volta e parecia abafar todos os outros sons. Ela já nem ouvia os galhos rachar, mas via-osquebrar, rebentar em gravetos. Via a brancura das águas furiosas encaracolar cada vez mais próxima e invasora, um bale de espuma vomitando por algum monstro mítico, mas não se dava conta de que era da rebentação daquela matéria delirante que vinha o estrondo que os atordoava. De repente uma grande mancha ensanguentada lhe saltou aos olhos. Foi uma fração de segundo. Pareceu-lhe ouvir a queda, o despencar desordenado nas profundezas da ravina. Teve até a impressão de que ela própria caía, tragada pelo ronco infernal.

Uma vareta a atingiu em plena testa e arrancou-a à sensação mortal. A terra rochosa desmoronava sob os cascos de Wallis a algumas polegadas do precipício, mas Angélica ainda podia não ceder à morte. O pensamento em Honorina, cujas mãozinhas se agarravam a ela, galvanizava-a. Pareceu-lhe que toda a sua consciência e lucidez refugiavam-se naquelas mãos. Soube o que era preciso fazer. Suas mãos crispadas abriram-se sobre as rédeas, soltando-as completamente e deixando livre o cavalo. Este, libertado, sacudiu a cabeça, surpreso com o alívio. Então ela o esporeou até sangrar. O animal pulou para a frente, recuperando um pouco de espaço salvador. Com firmeza, ela conseguiu guiá-lo até a senda, e ele parou ali, de pernas tremulas. A queda imediata fora evitada, mas a tartaruga continuava a barrar-lhe o caminho.

- Uma tartaruga! É somente uma tartaruga! - gritou Angélica, como se a montaria devesse compreender.

Não ouviu o som da própria voz. Começou a notar a dor que sentia nos pulsos e nas pernas. Ninguém viria ajudá-la a controlar o animal, ou pelo menos a afastar o espantalho que barrava o caminho.

Os índios as rodeavam, imóveis. Olhavam-na lutar, debater-se, roçar a morte, com uma impassibilidade que, mesmo vindo de criaturas tão misteriosas, tinha algo de insólito. Subitamente ela teve a impressão de perceber na atitude deles estupor e medo. Mas o seu intenso odor de gordura morna e carniça subia-lhe às narinas. Dir-se-ia que era o cheiro da tartaruga, ou da floresta, ou do abismo.

Honorina continuava ali!

Angélica conseguiu voltar-se para a filha e gritou-lhe que desmontasse. A criança acabou ouvindo.

Aliviada, a mãe viu-a rolar sobre folhas s"ecas e depois, erguendo-se, correr para o índio mais- próximo.

Então também ela desmontou, não sem dificuldade. Wallis tentava escapar-lhe, lançar-se pela mata. Empinou de novo e foi por pouco que Angélica escapou a um coice. Prontamente se colocou na frente do cavalo e, segurando-o firmemente com uma mão, enquanto com a outra lhe chicoteava as narinas com violência, conseguiu pouco a pouco levar o animal pára debaixo das árvores. Queria principalmente afastá-lo da causa de seu medo.

Afinal Wallis pareceu atalmar-se. Tremula, recoberta de espuma, deixou-sç amarrar solidamente a uma árvore, parou de agitar-se e rebelar-se, e suâ fina cabeça de repente baixou para o solo, num gesto de abandono e renúncia. Pòr pouco Angélica não fez o mesmo.

Voltando à senda, aproximou-se da tartaruga. Os índios não faziam um gesto sequer. Pareciam fixados ali para toda a eternidade. A carapaça- da tartaruga era grande como uma mesa. As patas, com escamas de réptil, tinham o tamanho de uma mão de adulto.

A cólera de Angélica foi mais forte do que a repugnância que lhe inspirava o monstro antediluviano que, à aproximação dela, começava a se encolher medonhamente. Curvando-se sobre a carapaça, ela a atirou de um golpe para fora da passagem. Levada pela rampa, a coisa enorme oscilou, rolou, ricocheteou, e foi ela, finalmente, que tombou no rio, por entre uma chuva de respingos.

Angélica sentou-se, limpou vagamente as mãos com folhas secas, depois retornou em direção ao cavalo. Levou-o pela rédea até o alto da encosta. Desembocou numa planície coberta de mirtilos vermelhos e de pequenos abetos azuis. Como que por magia, o ronco das águas calou-se, engolido pela profundeza do despenhadeiro. Recomeçava-se a ouvir as cigarras, os pássaros, o vento. Agora os viajantes se encontravam num vale alto, de serto, ao pé dos montes, domínio de mil lagos. Os índios surgiram por sua vez; tagarelas de novo, puseram-se a discutir entre si, com cacarejos de aves.

Angélica ouviu os gemidos de Honorina, que soluçava. Montou novamente. Daria tudo para deitar-se sobre os mirtilos e dormir pesadamente, ainda que por um breve momento. Mas Wallis poderia aproveitar para fugir definitivamente.

-        Venha - disse.a Honorina.

Sentou-se à sua frente, sobre a sela, assoóu-a, enxugou-lhe o rosto inchado, beijou-a apertando-a contra si. Sentia-se atordoada. De repente viu a alguns passos o Conde de Peyrac, a cavalo, seus filhos e a maioria dos homens, que vinham na retaguarda.

— O que está acontecendo, afinal?

— Não foi nada - disse Angélica, pálida como a morte. Com a roupa gotejando, a filha lacrimejante entre os braços,

a montaria com as comissuras ensanguentadas, Angélica tinha consciência de estar oferecendo o espetáculo mais aflitivo a um homem que não tinha o hábito de cuidar da família em suas expedições.

-        Falam-me de um encontro com os iroqueses! - insistia Joffrey de Peyrac.

Angélica meneou a cabeça, negando. Felizmente o vento dissipava o odor nauseabundo dos selvagens. Estes, prolixos agora, davam amplas explicações. Florimond e Cantor interferiam, utilizando todo o seu conhecimento do dialeto indígena.

-        Mopuntuk é categórico. Diz que há iroqueses por aqui.

Ouviu-se o estalido de vários mosquetes, armando-se à simples menção do nome. Os soldados espanhóis dispuseram-se em torno deles. Angélica não conseguia explicar-se, até que foi capaz de dizer:

-        Era apenas uma tartaruga... Uma tartaruga atravessada no caminho.

Contou brevemente o incidente. O Conde de Peyrac franziu o cenho e lançou à égua um olhar tão severo que Angélica se sentiu culpada.

Os soluços de Honorina redobraram.

-        Pobre tartaruga! - gemeu. - Tão estúpida e desajeitada. E você a empurrou para o precipício. É malvada.

Por pouco Angélica não se pôs a chorar também. Tanto mais porque no mesmo instante notava que Honorina estava descalça. Devia ter esquecido as meias e os sapatos junto ao pequeno lago onde estivera chapinhando. Era uma catástrofe. Onde encontrar outras meias e sapatos de criança naquele deserto? Foi. a gota d'água no copo cheio. Não 'estivesse ela obrigada a segurar a filha e.o cavalo com as duas-mãos, teria procurado o lenço para nele mergulhar a própria desolação. Desviou a cabeça, para dissimular os olhos brilhantes demais.

Os índios agora pareciam presa-de uma agitação histérica, e entregavam-se a uma calorosa pantomima para dialogar com os brancos, que lhes faziam perguntas em todas as línguas e tentavam entender o que ocorrera. Os espanhóis reclamavam que lhes mostrassem o inimigo.         

O conde ergueu-se um pouco sobre a sela e disse:

-        Silêncio!

O tom em que se-exprimiu produziu efeito imediato. Os índios submeíeram-serQuando havia determinada expressão no rosto de Joffrey de Peyrac,' surgia -a evidência de que era preciso obedecer. "Ele seria capaz de abater um homem no ato", pensou Angélica, com um arrepio. Joffrey de Peyrac pousou uma mão tranquilizadora sobre a cabeça de Honorina.

-        As tartarugas sabem nadar - disse, suavemente. - A que os assustou já saiu da água e está passeando pela margem do rio, comendo moscas.

A criança pareceu consolada como que por encanto. Depois o conde desmontou e se aproximou do sagamore para ouvi-lo. Tão alto quanto o índio, prestou muita atenção às suas explicações. A chegada de Nicolau Perrot acabou de dissipar o mal-entendido.

Joffrey de Peyrac sorriu, montou de novo e veio colocar-se perto de Angélica.

-        É mais uma interpretação da mentalidade supersticiosa deles - disse. - Para eles a tartaruga é o símbolo do Iroquês. O ncontro representa-lhes mau presságio, o anúncio quase certo de que seus inimigos mais temíveis rondam por perto. Daí o seu estupor e receio à vista desse animal inofensivo, bastante comum nesta região. Nicolau Perrot interveio.

— Também dizem que o sinal do Iroques ergueu-se diante da mulher branca para causar-lhe a morte, mas ela não se deixou abater e enfrentou-o. Doravante, senhora, os metallaks acreditarão que nenhuma das cinco nações iroquesas levará a melhor contra sua pessoa.

— Aceito o augúrio - disse ela, esforçando-se por sorrir também.

-- Você vai caminhar a meu lado, este caminho é suficientemente largo. Pois desembocamos numa pista frequentada pelos índios, um longo trail, como dizem os ingleses, e que segue por centenas de léguas a linha dos picos dos Apalaches. Não me deixe mais, querida.

A voz pausada do marido fazia-lhe bem. E cavalgar perto dele tranqúilizou-a. No entanto, ele continuava intimidante, e ela se perguntava se ele não estaria secretamente descontente com um incidente que quase redundara em drama. Em todo caso, com o autocontrole habitual, ele não deixava transparecer nada.

Na extremidade de um grande lago verde-claro, com sinuosidades de rio, e que desenrolava seus reflexos entre promontórios eriçados de delgados abetos, descobriram a seus pés outro vale, bem profundo e estreito. Cara a cara, a montanha não era mais que um tabuleiro de borlas rosadas, vermelhas, alaranjadas, pontilhadas de azul e malva, ainda, aqui e acolá, com manchas de um verde surpreendente. Alguma coisa naquela montanha florida deteve o olhar de Joffrey de Peyrac, e ele fez alto na orla do bosque.

Pediu a luneta. O céu, invadido de nuvens agora, descia ao encontro dos nevoeiros terrestres.

— Em alguns instantes talvez já não vejamos mais nada - disse. Estendeu rapidamente a luneta a Angélica.

— Olhe e diga-me o que pensa ver.

Angélica pegou a luneta. Os troncos brancos e negros pareciam sustentar com um hieratismo estudado as massas ardentes de folhagens. No círculo da luneta, ela espantou-se de ver silhuetas humanas moverem-se. Mas não havia como enganar-se acerca dos reflexos furta-cor das plumagens acima deles.

— O que está vendo?

— Vejo selvagens. Dois ou três? Não, mais!

— Notou o cabelo deles?

-        Têm a cabeça raspada, com um tufo de cabelos no meio, onde há penas espetadas.

Baixou a luneta.

-        Toffrey, os cayugas tinham o cabelo assim...

_ É exatamente isso!

Fechou lentamente o aparelho.

-        Será que realmente se deve crenque seu encontro com a tartaruga tinha um significado? Não gostaria de passar por crédulo, mas ainda assim é de apostar que nos encontramos diante de um grupo de iroqueses...

Dois ou três homens-resmungaram. Pouco a pouco a pequena caravana reuniu-se, e os próprios índios da escolta se misturavam aos brancos e olhavam com o mesmo rancor enfadado na direção da pequena montanha sarapintada, onde o perigo invisível espreitava.

— Que azar! - disse o intendente Malaprade. - Estávamos quase às portas de Katarunk. Em,breve estaríamos cumprimentando o bravo 0'Connell e gozaríamos de todos os benefícios da civilização, Sr. de Peyrac, eu estava decidido a cozinhar-lhe empadões de aves com repolho assim que chegássemos. Mas não somos nós que seremos transformados em empadões?

— Ora! - exclamou Florimond. - Nada de caras tão tristes. Comeremos seu angu, Malaprade. Os iroqueses abusam um pouco de sua reputação no norte. Ali as pessoas fogem antes mesmo de tê-los avistado, mas eu os vi na Nova Inglaterra, onde os chamam de mohawks. Não parecem muito piores do que os moicanos. Até ajudaram, perto de Nova York, os ingleses contra o rei Filipe, um Narrangaset que de tempos em tempos massacra os habitantes brancos das fronteiras.

— Tudo depende de saber se esses que temos à nossa frente, do outro lado da ravina, nos tomarão por franceses ou por ingleses. De qualquer maneira, não gostam dos metallaks, que nos acompanham. Todos os que pertencem à raça algonquina são, para eles, objeto de escravidão ou caça para o espeto. Os metallaks sabem muito bem disso. Olhem-nos!

De fato, sob as ordens de seu sagamore, eles se preparavam para o combate.

Com presteza as bagagens foram colocadas no chão. As mulheres e crianças indígenas desapareceram, como que aspiradas pela profundeza da floresta vermelha. Os homens maquilavam-se às pressas com pós vermelhos, pretos e brancos, mas entre os quais o vermelho predominava de longe. Os arqueiros examinavam a corda, seu retesamento, depois a plumagem das flechas, cada uma provida de três penas para assegurar-lhes a precisão.

Cada um verificou "o enorme porrete que levava pendurado ao braço esquerdo e apalpou a faca de escalpo, que foi colocada entre os dentes, para finalmente se ocuparem do arco.

Vários batedores deslizaram como serpentes sob os arbustos amarelos e vermelhos. O chefe e o contingente principal de guerreiros formaram um batalhão cerrado junto aos brancos. Uma alegria feroz iluminava todos os índios.

Os europeus, exceto talvez os jovens como Florimond, não compartilhavam do entusiasmo ante a perspectiva de um combate. Seus rostos enegrecidos pelos dias de marcha de uma longa viagem exprimiam cansaço e tédio. Se era verdade que apenas algumas horas de marcha os separavam do entreposto onde poderiam encontrar a segurança de uma paliçada e o conforto talvez rústico, mas apesar de tudo bem-vindo, conferido pelos artigos de primeira necessidade, era realmente muito decepcionante serem retardados por uma emboscada, arriscar mortes e ferimentos. Angélica dirigiu o olhar ao marido, pedindo-lhe o veredicto.

- Esperemos - disse ele. - Quando os batedores retornarem, estaremos posicionados. Caso esses iroqueses manifestem a intenção de nos atacar, nós nos entrincheiraremos e nos defenderemos; se passarem ao largo, faremos o mesmo! Preveni Mopuntuk de que, se ele quiser travar combate sem que haja manifestações de hostilidade por parte dos outros, não lhe darei assistência.

Esperaram, de armas em riste.

Quando os índios regressaram, vinham desapontados. Não só os iroqueses não haviam demonstrado o menor desejo de atacar a caravana, como também era provável que não a tivessem notado, pois haviam literalmente desaparecido. Não se encontrava vestígio deles.

Os metallaks voltaram para Angélica os rostos pesados e grotescamente pintados, e balançaram a cabeça. A mulher branca espantara o Iroquês.

CAPÍTULO V

Cânticos de igreja no meio da noite

-Há o Lobo, o Cabrito, o Urso e a Raposa, e a Aranha, mas acima de todos há a Tartaruga.

Era o que contava naquela .noite, no acampamento, Nicolau Perrot. O frio começava a subir das ravinas, e as pessoas estavam agrupadas em volta de fogueiras.

No momento em que atingiram o local do acampamento, Joffrey e Peyrac.apontara ao longe uma longa faixa líquida que brilhava, um rio.

-        O Kennebec...

Como os hebreus contemplando a Terra Prometida, a comitiva de Peyrac se regozijou, cada um à sua maneira. As pessoas se felicitavam pelo fato de que em breve estariam protegidas por uma boa e sólida paliçada, tanto mais porque as silhuetas inquietantes de índios, vislumbradas entre as árvores, e, mais ainda, o incidente estranho ainda que fortuito com a tartaruga faziam pesar sobre a caravana uma vaga apreensão.

Os mosquitos zumbiam. Sentada, Angélica segurava no colo, sob a capa de lã grossa, Honorina, que pegara no sono. Por vezes seus olhos se voltavam para a linha brilhante do Kennebec, coleando através da planície. Lá ficava-Katarunk, o porto seguro!

-        O Lobo para os mohawks, o Cabrito para os onontagues a Raposa para os oneiuts, o Urso para os cayugas e a Aranha para os senecas, mas para todos eles, povos iroqueses das cinco nações, a Tartaruga... sinal de reunião de forças e espírito de comandante-em-chefe.

Quando Nicolau Perrot refletia profundamente, a pele bronzeada de sua testa se enrugava e ele movia o gorro de pele.

-        As nações desta região, abenakis, etchemins ou suriqueses, estão acostumadas à vida de nómade. Vivem sem ordem, sem comida, sem pão, sem sal... Já os iroqueses são de uma essência superior.

Uma grande nação de agricultores...

-        Dir-se-ia que você gosta deles - observou Angélica.

O caçador teve um sobressalto.

— Deus me livre! São verdadeiros demónios. Não há maior inimigo para um canadense do que um iroquês. Vivi com eles - continuou após um instante de reflexão. - É coisa que não se pode esquecer. Aquele que tiver compartilhado da vida dos iroqueses me compreenderá. Conheci o vale sagrado onde reinam os três deuses venerados pelas cinco nações...

— Três deuses?...

— Sim! O Milho, a Abóbora e o Feijão - respondeu Nicolau Perrot, sem sorrir.

Honorina adormecera completamente. Tomando cuidado para não despertá-la, Angélica levantou-se e foi até a tenda de co-tim, erguida para as mulheres e crianças passarem a noite. Depois de envolver cuidadosamente a filha nas peles, saiu outra vez para ajudar a Sra. Jonas, que se azafamava cozinhando com Otávio Malaprade.

Sob os reflexos do sol poente, os Apalaches brilhavam com clarões púrpura. O vento varria o promontório avançado onde o acampamento fora erguido a fim de evitar, com a passagem de uma brisa contínua, as picadas de mosquitos e pernilongos. O promontório também fora escolhido para que se pudessem vigiar melhor os arredores.

Florimond e Cantor ocupavam-se em assar sob a cinza e envoltos em folhas os peixes que tinham pescado à mão no rio.

Pernis de alce assavam num espeto e, numa caçarola, a língua, iguaria requintada, cozia entre ervas e legumes. Outra panela contendo milho fervido fora tirada do fogo, e a Sra. Jonas começava a distribuição.

Sempre se sentia um pouco indignada de ver aqueles índios gordurosos misturar-se aos brancos sem cerimónia e serem os primeiros a estender as escudelas sujas.

Metiam-se em tudo, tocavam em tudo, desarrumavam tudo, com uma tranquila insolência. Afinal, estavam em casa e, no fundo, aqueles brancos não passavam -de protegidos seus!

A pobre senhora franzia os lábios e lançava olhares, que esperava fossem eloquentes, na direção do Conde de Peyrac. Não conseguia entender como um homem tão refinado tolerava aquela promiscuidade malcheirosa, e também Angélica se indagava isso por vezes.

Agora uma fria claridade azul se estendia sobre a natureza. As sentinelas iam e vinham pela orla da mata. O Kennebec cintilou por longo tempo, única coisa visível no vale.

Um dia fértil em emoções, mais uma etapa que se concluía. O que reservava a seguinte?

Com os olhos, Angélica procurou o marido e avistou-o um pouco afastado, fitando a distância. 

Estava sozinho. "

Pela sua atitude se adivinhava uma profunda concentração de pensamento. .

Angélica já.notara que, quando ele se retirava assim, ninguém ousava interromptr-lhe a meditação.

Um respeito singular rodeava o chefe a quem aqueles homens distintos e, na maioria, muito desconfiados haviam entregado o próprio destino. Não fora sem ciúme e inquietação que viram Angélica aparecer na vida daquele a quem veneravam.

-        Mulheres! Todo mundo sabe o que fazem de um homem digno do nome - dizia Clóvis, o auvergnat (natural de Auvergne, região central da França), estreitando os olhinhos de mongol. - Transformam-no num palerma!

— Não a este - protestava Yann Le Couénnec, o bretão. E lançando um olhar admirativo na direção da jovem:

— Nem esta!

-        Ora, você não passa de um inocente!- replicava o auvergnat, dando de ombros.

O bigode preto de pontas caídas fazia-lhe uma ruga amarga em torno dos lábios. Angélica adivinhava sem dificuldade o que comentavam. Ela mesma fora chefe do bando. Ora, aqueles homens não eram "dela"; uma existência de perigos e vitórias compartilhados reunira-os em torno do Conde de Peyrac. Laços pessoais, preciosos, indestrutíveis, e que em seu pudor de homens eles jamais desvendariam, uniam cada um deles àquele que a experiência de todos ensinara a considerar seu senhor e única esperança. Junto com ele haviam combatido o sarraceno ou o cristão, sondado as Caraíbas, enfrentado tempestades. Com ele haviam partilhado o butim. Encorajados por ele, tinham farreado, levado uma vida e tanto nos portos de escaja. O vinho jorrava, convidavam-se mulheres, e o patrão, generoso, distribuía ouro a mancheias.

Nesse passado de que não compartilhara, Angélica às vezes tentava imaginar a vida do marido.

Era em meio a seus instrumentos de sábio que ele lhe aparecia com mais frequência.

Via-o debruçado sobre um globo, sobre um mapa, no balanço de sua cabina, ou então no alto de um terraço mourisco, sob o céu de Cândia, observando as estrelas com uma luneta astronómica de alto preço. Mas, nesse passado, chegava um momento, à noite, em que um criado entrava, introduzia uma forma feminina velada, ou, quando se encontravam nas Caraíbas, uma bela espanhola, uma mestiça índia ou negra.

Para essa mulher, deixando de lado seus trabalhos, ele reservava a acolhida de sua inegável gentileza, fazendo-se solícito e rindo para lisonjeá-la e assim ganhar o prazer dos sentidos que ele viera dispensar-lhe.

Um homem só!... Eis o que ele era.

Um homem consumado, em plena posse de sua força e faculdades, e que'se bastava. Ao lado desse homem, hoje, ela, Angélica, reclamava seu lugar. Mas quando ele se imobilizava assim, distante e absorto, ela não ousava aproximar-se.

A noite fez-se profunda. Junto do fogo, Cantor preludiou na guitarra uma cantilena toscana. Sua voz, já forte e segura, mas com inflexões aveludadas de adolescentes, era sedutora. Quando cantava, parecia feliz. Até então Angélica tivera pouquíssimo tempo para conversar com os dois filhos, conhecer-lhes os pensamentos, ganhar-lhes a confiança...

Quando chegariam a Katarunk?

A preocupação com o cavalo voltou à mente de Angélica e, antes de unir-se ao grupo, desceu até a margem do rio, aonde os animais tinham sido levados para pastar.

Wallis fugira! Sua corda, partida, pendia da árvore onde fora amarrada.

Um pressentimento preveniu Angélica de que o animal não podia estar longe. Depois de subir'para apanhar uma rédea e um freio, ela seguiu a margem doJrioj chamando baixinho, calmamente.

Erguia-se uma lua embaçada. O rio, quase seco, murmurava entre os seixos. Galhos estalaram.

Angélica foi em frente. Percebeu a égua, a um reflexo da lua, pastando numa pequena clareira, mas,quando se aproximou, o inconstante animal já se distanciara.

Quando finalmente Angélica conseguiu alcançá-la no topo de uma colina, notou"qyi perderá de vista as fogueiras do acampamento. Mas não eraúiada de grave. Desceria até o leito do rio e o seguiria a jusante:* Depois de apertar vigorosamente as narinas do animal, e segurando-o com pulso firme> prestou atenção a fim de distinguir o murmúrio da água embaixo.

Sozinha no meio daquela noite densa, não sentia medo. Mais uma vez saboreava, de modo furtivo mas intenso, a sensação de estar viva, cheia de vigor e_juventude,.no limiar de uma vida nova, que teria que construir inteiramente. Contaria com a aliança daqueles grandes espaços desconhecidos, aonde haviam aportado depois de tantos perigos. E o mesmo sentimento de amor pela terra virgem, que sentira há pouco enquanto se banhava por entre os reflexos mágicos do lago, dilatou-lhe o coração. Foi nesse momento que começaram as alucinações.

Misturados aos chamados distantes de um alce, aos sussurros do vento, ao ronco surdo das cataratas no fundo dos bosques, ela ouviu cantos de igreja.

CAPITULO VI

A Diaba da Acádia

Ave Maria stella

Gracia mater alma...

As palavras de um cântico viajavam através da noite primitiva. Angélica olhou para o cimo das árvores, como se esperasse ver o céu abrir-se entre os galhos sobre um coro de anjos. Estremeceu e voltou-se com precaução.

Atrás dela, à beira da falésia, erguia-se como que uma aurora inquietante, um clarão rosado que recortava sombras dançando entre os pinheiros.

Segurando Wallis pela rédea, Angélica aproximou-se a passos de lobo da beira da ravina. Dali alçavam-se vozes de homens, cantando.

Angélica não estava longe de imaginar-se de volta aos tempos da floresta de Nieul, onde os huguenotes, perseguidos, se refugiavam para rezar e cantar salmos.

Aproximou-se mais e, inclinando-se, descobriu uma cena estranha, inimaginável.

No fundo da garganta, as rochas estavam vermelhas còm o reflexo de duas grandes fogueiras acesas à beira do rio. Um religioso de batina preta, erguendo os braços num gesto de bênção, estava de pé diante de um grupo de homens ajoelhados.

Entre aqueles cujos rostos ela conseguia ver, quando o religioso lhe dava as costas, havia quem estivesse vestido de couro e peles, mas outros usavam uniformes azuis com galões dourados, e Angélica notou dois gentis-homens com gola e punhos de renda. Às últimas estrofes, o canto cessou. A voz do padre ergueu-se sozinha, sonora e ardente.

— Rainha do céu...

— Rogai por nós - respondeu o grupo num murmúrio. Angélica recuou.

Franceses!...

— Torre de Davi!

— Rogai por nós!

— Arca da Aliançai... 

— Rogai por nós!

— Refúgio dos pecadores! Consoladora dos aflitos!...

— Rogai por nós!. Rogai por nós! - respondia o coro a cada invocação. Caçadores, soldados e senhores, ajoelhados, a cabeça piedosamente abaixada, enquanto um terço lhes deslizava por entre os dedos.      

Franceses!        

O coração de Angélica .batia desvairadamente.

Pensaria estar em meio a um pesadelo, em que revivesse todos os horrores dá sua" guerra do Poitou, não houvesse percebido, por trás dos ffance.ses, as silhuetas de cobre vermelho de índios seminus. Alguns deles também cantavam e rezavam. Outros, sentados perto da segunda fogueira, raspavam com os dedos alguns restos de comida no fundo de uma tigela de madeira. O odor da sopa pairava no ar e um caldeirão de tamanho médio fora colocado de lado, depois de distribuído o conteúdo.

Inclinado sobre as brasas ardentes, um grande diabo reluzente de gordura, de cabeleira hirsuta, levantou-se tirando das chamas um machado cujo metal incandescente soltava um clarão. Segurando a arma com cuidado, o selvagem afastou-se do círculo alguns passos. Foi só então que Angélica notou parcialmente na penumbra outro índio nu, amarrado ao tronco de uma árvore.

Sem pressa e como se fizesse a coisa mais natural do mundo, o homem com o machado aplicou contra a coxa o rrfetal em brasa. Não se ouviu nenhum grito. Apenas um insuportável cheiro de carne queimada chegou às narinas de Angélica.

Horrorizada, ela teve um movimento brusco, susteve um grito, e Wallis moveu-se, quebrando galhos. Compreendendo que seria vista, Angélica saltou para cima do cavalo.

O selvagem, que acabava de recolocar o machado nas brasas, ergueu a cabeça e estendeu para o topo da falésia o braço musculoso, cheio de braceletes de plumas.

Num instante todos se levantaram e a viram destacando-se contra o céu enluarado, a silhueta de amazona, a mulher de cabelo comprido.

Então um grito terrível irrompeu do peito deles:

- A Diaba! A Diaba, da Acádia!

CAPÍTULO VII

Emboscada no vau de Sakoos

— Está dizendo que eles gritaram "a Diaba da Acádia"?

— Foi o que me pareceu ouvir.

— Deus! Contanto que não a tenham tomado por "ela"! - exclamou Nicolau Perrot, persignando-se.

E Maupertuis imitou-o,

— Não sei por quem me tomaram, mas lançaram-se em minha perseguição como loucos furiosos. Um deles, uma espécie de gigante, pôr pouco não me alcançou quando eu lançava Wallis no rio.

— Você o matou? - perguntou vivamente Peyrac.

— Não. Atirei no chapéu dele e ele caiu de borco na água. São franceses, estou dizendo, acampados na ravina do outro lado desta montanha mesma onde erguemos nossas tendas.

— Se permite, Sr. de Peyrac, nós, os canadenses, iremos ao encontro deles, Maupertuis, seu filho Pedro José e eu - disse Nicolau Perrot. - Seria o diabo se não encontrássemos entre essa gente de Quebec alguns bons amigos e conhecidos com quem conferenciar.

— Não se esqueça, Perrot, de que estamos condenados à morte pelo governo de Quebec - objetou Maupertuis -, e até excomungados pelo senhor bispo        

— Ora! Tolices! Quando se é natural do Saint-Laurent, é com prazer que se encontram amigos.

Os dois canadenses, seguidos do filho de Maupertuis, um garoto mestiço que ele tivera de uma índia, embrenharam-se no matagal escuro.

O acampamento estava em armas desde que Angélica retornara e dera o alarme. Depois de os três canadenses afundarem na mata, Angélica voltou-se para Peyrac. Tinha dificuldade em reprimir um tremor, e sua voz estava um pouco agressiva.

— Você não me avisou que corríamos o risco de topar com franceses no lugar para onde nos dirigimos.

— Sempre se cofre o risco de topar com franceses quando se anda pela América do Norte. Já lhe disse que eles eram pouco numerosos, mas virulentos, e tão viajantes e néscios quanto os índios. Era inevitável que lhes atraíssemos a curiosidade... Aproxime-se do fogo, querida. Você está gelada. Esse mau encontro a perturbou. É mais uma vez culpa dessa sua égua insuportável.

Angélica estendeu as duas mãos para o calor das chamas. Gelada ela estava, com certeza, e até o fundo do coração.

As perguntas se acumulavam em seus lábios. Queria ao mesmo tempo que a tranquilizassem e descobrir sem subterfúgios toda a amplidão do perigo.

— Era isso que temia, não é? Foi essa a razão pela qual fez que nos apressássemos? Temia uma incursão dos franceses às terras onde pretende instalar-se?

— Sim! Não longe de Gouldsboro, o meu vizinho mais próximo, o Barão de Saint-Castine de Pentagoet, que gere o entreposto francês de Acádia, e com quem sempre mantive boas relações, veio me prevenir de que missionários católicos, que catequizam os abenakis do Maine, estão preocupados com a minha ida às nascentes do Kennebec, e solicitaram ao governo de Quebec o envio de uma expedição contra mim.

— Mas com que direito os franceses podem desconfiar de sua ida a esses lugares?

— Acham que a região lhes pertence, sob o nome de Acádia.

— A quem pertencem estes ermos, de fato?

— Ao mais ousado. O Tratado de Breda, assinado pela França, reconheceu a posse dos ingleses, mas estes receiam a floresta e não se atrevem a afastar-se da costa para fazer valer as cláusulas do tratado.

— E se um dia esses franceses do norte descobrirem quem você é, quem sou eu...

— Isso não vai acontecer amanhã... E então serei mais forte do que essa pobre colónia abandonada aos antípodas pelo rei da França... Não, não tema nada. A mão de Luís XIV não pode estender-se até nós. Em todo ca.so, se ousar? poderemos combatê-lo. A América é grande e somos livres... Tranqiiilize-se. Aqueça-se, minha querida...

— O que significa esse grito que deram ao me verem: a Diaba da Acádia?

— Devem tê-la tomado por uma aparição. Castne e Perrot me haviam avisado de que a Nova França estava em polvorosa com as revelações de~uma santa religiosa de Quebec, que viu em sonho um demónio fêmea arrancando a Igreja as almas de todos os índios da Acádia, batizados ou não. Daí a suspeita e a agitação deles. E daí támbérrvtalYêz, a razão de sua expedição até aqui... Dizia-se que a Diaba cavalgava um animal mítico, um unicórnio...

— Ah, entendo -^exclamou Angélica, com um riso nervoso -, quando me viram, uma mulher, um cavalo... Era impensável por aqui... ;E correspondia à visão deles...

Peyrac parecia contrariado.

— É uma tólice„. mas bastante sério. Essa confusão no espírito deles pode.ser causa de aborrecimentos suplementares para nós. Essa gente é fanática.

— Mas, afinal, eles não podem nos atacar sem nenhum gesto hostil de nossa parte...

— Esperemos! O futuro nos dirá de suas intenções... Esta manhã Perrot enviou seu índio Mazok em reconhecimento. Quando regressar, informará dos movimentos na região, de franceses, iroqueses, ou ainda dos aliados dos franceses, que os acompanham em suas expedições, os abenakis, algonquinos e huronianos. Estou pensando - disse de repente -, é muito possível que os selvagens que avistamos há pouco fossem huronianos da comitiva dos franceses. Essa gente, embora inimiga ferrenha dos iroqueses, pertence à mesma raça e conservou-rhe os costumes, entre outros a maneira de usar uma única mecha de cabelo no alto do crânio. Mas tivemos notícia de que também havia um grupo de guerra iroquês rondando pela região, e talvez os franceses só estejam aqui por causa deles, e poderíamos... É isso a América, você está vendo... Desertos que de repente se animam e fervilham dos seres humanos mais diversos, todos inimigos...

Tochas brilhavam na mata, avançando rumo ao acampamento. Ouviu-se estalar o cão dos mosquetes e sentiu-se o cheiro das varetas finas que alguns homens acendiam.

Mas eram só os três canadenses, que retornavam de mãos abanando.

Haviam encontrado, de fato, ri» acima, os vestígios do acampamento francês, bem como um prisioneiro iroquês parcialmente queimado, amarrado a uma árvore, mas nem sombra de militares ou de huronianos.

Chamaram em vão: - Ei, gente do Saint-Laurent, onde estão, primos? Onde estão, irmãos?... - Nenhuma resposta.

Quanto ao prisioneiro iroquês, que soltaram, embora queimado como estava, conseguira aproveitar-se de um momento de dis-tração para se erguer de um salto e desaparecer na mata.

Agora estavam rodeados apenas de fantasmas buliçosos, de espécies diferentes: franceses, algonquinos, huronianos, abenakis, iroqueses, e a floresta misteriosa continuava a murmurar ao sopro do vento, sem outros ruídos que o das águas longínquas e o chamado do alce no cio.

Joffrey de Peyrac deixou uma parte de seus homens armados e organizou turnos de ronda. Não se deixariam surpreender.

Aconselhou Angélica a ir repousar na tenda reservada às mulheres e crianças. Acompanhou-a até lá e, como a escuridão fosse profunda, tomou-a nos braços e quis beijar-lhe os lábios. Mas ela estava agitada e inquieta demais para poder responder-lhe às carícias.

Em momentos como esse ela se ressentia de estarem separados e de ele não levá-la para junto de si, à noite. A disciplina da caravana e o recente ingresso de mulheres naquele mundo de homens exigiam isso, Angélica reconhecia.

Lembrava-se de que quando fugira de Miquenez com os cativos cristãos, no Marrocos, Colin Paturel, o chefe do grupo, praticara o mesmo ostracismo. "Essa mulher não pertence a ninguém", dissera ele, "nada de história de amor antes de estarmos sãos e salvos em território cristão..."

Havia algo desse princípio no rigor com que Joffrey de Peyrac insistia em reunir mulheres e crianças sob um mesmo abrigo, enquanto os homens dormiam separados, três a três, nas cabanas de casca de árvore.

Assim, mantinha-se um chefe só, sem privilégios, comprometido com aqueles que tomara -sob sua guarda.

Fazia sua a lei das antigas tribps primitivas, segundo a qual o guerreiro, na véspera do combate ou quando deve enfrentar algum perigo, afasta-se da mulher a fim de preservar intactas sua lucidez e sua força.

Mas Angélica não compartilhava dessa força. Era fraca, dizia-se às vezes, e necessitava-muitíssimo dele. Seu espírito não se acalmava de todo quando estava longe dele. Temia perdê-lo de novo. Era muito-recente o milagre do reencontro de ambos.

Claro que sabia jqug o controle, a frieza de Joffrey de Peyrac ocultavam uma sensualidade viva e ardente, que não se desmentia em relação a ela. Mas por vezes ela receava sér para ele apenas um objeto de prazer que certamente o encantava, mas que ele a afastava de sua vida mais pessoal, de suas alegrias, de suas ambições e preocupações. No decorrer dos dias notara que estava unida a um homem a quem conhecia mal, mas a quem devia submissão e dedicação, e que com frequência se chocaria com a férrea vontade dele, pois ele tinha aspectos duros, secretos, positivos, e era ainda mais astuto do que antigamente. Nunca se sabia o que ele preparava.

Ela dormiu mal, esperando ouvir tiros a cada instante e, no mínimo, uma ruidosa invasão dos franceses.

Ao alvorecer, ouvindo murmúrios, deslizou para fora da tenda.

O índio Mazok surgia do nevoeiro. O panis, chegando à América depois de sua viagem à França, readotara a tanga e os mocas-sins de pele. O cabelo trançado estava novamente entremeado de penas. Na mão levava um arco e, atravessada às costas, uma aljava cheia de flechas.

Saudou o amo e Joffrey de Peyrac, que" lhe iam ao encontro.

Angélica aproximou-se. Comunicaram-lhe a notícia, trazida pelo índio.

Fazia dois dias que um pequeno destacamento de franceses, acompanhados de seus aliados algonquinos e huronianos, ocupava o entreposto de Katarunk.

A caravana de Peyrac levantou acampamento. Continuava fazendo frio. Um nevoeiro irisado envolvia os arredores e não se via nada a três passos.

Um atrás do outro, segurando os cavalos pela rédea, os viajantes deixaram a clareira, e enfiaram por entre as densas sarças molhadas. Os comandos eram passados aos murmúrios e dizia-se às crianças transidas que contivessem as tossidelas. O orvalho caía sobre eles. Uma atmosfera de mistério acompanhava-lhes a marcha em surdina. Pouco a pouco a bruma se tornou úmida, e quando o sol apareceu, disco de um amarelo pálido desabrochando sobre a terra invisível, bastaram alguns instantes para que a neblina se dissipasse, revelando a paisagem luzidia e lavada, cintilando em todas as suas cores violentas.

Eles acabavam de atravessar um descampado, e correu a ordem de se apressarem na direção do abrigo de um bosque de carvalhos, um pouco abaixo. Ali se deu outra ordem: reagruparem-se e fazerem alto.

O calor subia aos poucos de sob a ramagem de folhagem escura e violácea dos altos e vigorosos carvalhos. Continuava-se a respeitar a ordem de silêncio absoluto.

Os quatro militares espanhóis começaram a descer rumo ao fundo da ravina. Andavam pesadamente, fazendo estalar a mata, enquanto os índios de Mopuntuk pareciam fundir-se através da vegetação e foram os primeiros a chegar embaixo, mais silenciosos que fantasmas. Dissimulados por uma sebe de galhos secos, os espanhóis cravaram seus forcados no cascalho do rio e neles apoiaram os arcabuzes de mecha. Eram armas muito mais potentes do que os mosquetes, com alcance três vezes maior, mas menos precisas, uma espécie de pequenas colubrinas portáteis.

Angélica indagava-se acerca do comportamento a adotar, visto que parecia preparar-se um combate, quando o Conde de Peyrac foi até ela.

- Angélica, devo requerer-lhe os talentos como os do atirador mais hábil que tenho em minha companhia. Eles nos serão indispensáveis...

Recomendou a Honorina que ficasse bem-comportada junto com os Jonas e as outras crianças, e dois homens foram desigrtV dos para guardá-los e vigiar os cavalos.

Depois levou Angélica até a extremidade da falésia, com grandes rochedos salientes. Era um excelente observatório, e o olho abarcava uma grande distância rio acima e rio abaixo, aquele rio que corria lá embaixo, entre duas fundas ribanceiras. O curso d'água era largo, e mesmo naquele' final de estação parecia torrencial. Havia um vau, mas aforaas florações rochosas que permitiam cruzá-lo sem dificuldade, quase, a seco,"o rio era profundo, pontilhado de turbilhões. Era mais um salto, como diziam os canadenses, que descia em degraus até o lago, cuja cintilação se via adiante através das frondes púrpura.

-        O vau de Sakoos - disse Nicolau Perrot em voz baixa.

O vau era cortado no meio do rio por uma ilhota de areia, plantada de bosquezuíhos.

O conde mostrou-a^a Angélica, depois de apontar-lhe na margem em frente a passa'gem escura por entre o cerrado, pela qual os viajantes, seguindo a pista da floresta, desembocavam na praia.

— Em breve aparecerão homens ali, que vão se posicionar no vau, e possivelmente serão os franceses de ontem à noite, com seus índios... Você os reconhecerá, você que os viu de perto. Quando tiverem ocupado a ilhota, mas só então, você atirará para impedi-los de cruzar a segunda parte do vau.

— A ilha fica bem longe para um tiro preciso - disse Angélica, franzindo o cenho.

— Foi o que também alegaram os atiradores que designei para a tarefa, mas não podemos nos posicionar em outro lugar. Há uma falha que nos separa de uma posição melhor, diante da ilha, e já não temos tempo para atravessá-la. Requereria várias horas. Portanto, é preciso atirar daqui e deter a cabeça do comboio, de modo que ninguém possa ir dar o alerta no entreposto. Detê-los, mas sem atingir ninguém. Não quero derramamento de sangue.

— O que me pede é uma proeza e tanto.

— Eu sei, minha cara. O próprio Florimond se recusou, e é um hábil atirador...

O rapazinho estava ali, examinando o pai e a mãe com um olho dubitativo, tentado a exibir seus talentos, mas leal o suficiente para duvidar de si mesmo.

— Na ponta da ilha, pai, isso me parece impossível - exclamou. - Se fosse no momento em que eles tomassem posição, sim...

— Nessa altura uma parte da tropa ainda estará na floresta. Não quero que ninguém possa fugir. Há alguns atiradores postados rio acima, para apanhar os possíveis fujões, mas se eles forem muitos, vai haver uma verdadeira batalha, e sempre haverá um ou dois que escaparão. Não. Antes de atirar, quero que todos ou quase todos estejam fofa do bosque, posicionados no vau ou na ilha. Os nossos espanhóis, embaixo, poderão então cortar-lhes completamente a retirada deste lado, de modo que eles ficarão cercados por todos os lados.

— Mas a ilha se alonga direto à nossa frente. Deter a cabeça do comboio no momento em que ela ocupar a segunda parte do vau, a esta distância e sem ferir ninguém, me parece uma verdadeira aposta...

— Pode fazê-lo, Angélica?

Angélica observara o local com uma aguda atenção. Seu olhar pousou sobre ele novamente.

— E você, Joffrey?... Não é um experimentado atirador?

— A uma distância assim, estou convencido de que seus olhos valem mais do que os meus...

— Se é assim,..

Ela hesitava. O que ele lhe pedia era extremamente difícil. O sol enchia o desfiladeiro.

Por outro lado, sentia-se feliz com a confiança que o conde lhe demonstrava com o gesto e com a oportunidade de passar à ação. Seus filhos e os homens que se encontravam postados ali olhavam-na perplexos, atónitos com a atitude do conde. E ela não estava descontente de provar-lhes que guerras e tiros ela conhecera tantos quanto eles, se não mais, ainda que todos fossem piratas.

E como Joffrey repetisse:

— Pode tentar, Angélica? Ela respondeu:

— Tentarei... Que arma me dá?

Um dos homens estendeu o mosquete que acabava de carregar, mas ela recusou.

-        Quero uma arma que eu mesma carregue.

Deram-lhe o próprio fuzil do Sr. de Peyrac, que o bretão Yann Le Couénnec transportava e cuidava. Era uma arma a sílex, que podia dar dois tiros sem ser recarregada."^ coronha incrustada de nácar era de nogueira, ou seja^forte e leve ao mesmo tempo, e foi com satisfação que Angélica a experimentou contra o ombro. Examinou a pólvora, as balas e as espoletas que lhe apresentaram, limpou o cano duplo, socou uma vez, introduziu as balas, socou outra vez. Olhares curiosos acompanhavam cada um de seus gestos.

Colocada a espoleta*ela se apoiou nos rebordos de pedra.

Uma ligeira excitação, que ela conhecia bem, começava a invadi-la. O odor dá" guerra! Adiante, sob a luz, via a extremidade da ilha, a crista coruscãfltejJos rochedos que cortavam a segunda parte do vau.

O coração"batia-lhe mais. depressa. Isso, antes, pois quando chegasse o momento ela ficaria estranhamente calma. Ergueu-se.

-        E bom deixar duas armas carregadas e prontas, para o caso

de os primeiros tiros não bastarem para detê-los.

Depois, esperou.

Menos de umí hora mais tarde, o.grito do corvo ressoou na floresta. Grito tão familiar, como o das rolas, que já não se lhe prestava atenção. Nicolau Perrot, contudo, pareceu encontrar nesse chamado um significado particular, pois inclinou-se ligeiramente para Angélica e cochichou:

-        E o sinal de Mazok.

Na praia apareceu primeiro um índio, um huroniano, e depois um caçador que Angélica vira na véspera, na ravina. Em seguida um oficial, acompanhado de vários índios e de um francês, muito jovem este, quase uma criança de cachos louros, vestido com a casaca azul dos oficiais do rei e carregando a parafernália de armas diversas, machado, alfange e chifre de pólvora. Tinha a gravata de renda bem amassada e atada tle" qualquer jeito; o chapéu, muito pisado, estava enfeitado com penas brancas e pretas de águia, que não tinham nada a ver com a volta de plumas regulamentares, mas os bordados dos punhos e das botoeiras conseguiam lembrar os de um uniforme. Usava perneiras de couro e mocassins.

Viram-no atirar-se alegremente à água à beira da praia, aspergir o rosto e lavar-se num rodopio de espuma. O oficial, que era aquele colosso cujo chapéu Angélica furara na véspera, chamou-o de volta à ordem.

— Calma, Maudreud! Você faz tanto estrépito quanto um alce atacando.

— Ora! - replicou o outro alegrerhente. - Estamos a apenas meia légua de Katarunk. Você ainda teme algum mau encontro com espíritos diabólicos como ontem à noite?...

Levadas pelo eco do vale, as vozes chegavam claras e distintas.

-        Não sei o que temo - tornou o lugar-tenente -, mas este lugar não me cheira bem. Sempre me pareceu uma verdadeira armadilha...

Levantou a cabeça na direção das falésias e seus olhos pareciam querer atravessar o segredo das folhagens que o vento movia suavemente.

— Está farejando o Iroquês? - perguntou o jovem militar,rin-do. - Para eles você tem um faro de uma fineza particular.

— Não! Mas estou farejando outra coisa, não sei o quê. Apressemo-nos. Quanto mais depressa estivermos do outro lado, melhor. Vamos... Eu passo primeiro. L'Aubigniere - disse ao caçador -, fique na retaguarda.

Começou a atravessar o vau, vencendo as pedras a grandes pernadas flexíveis.

Lá em cima, sob as árvores que os dissimulavam, Nicolau Perrot tocou com a ponta dos dedos o ombro de Angélica.

-        Por piedade, não os mate - sussurrou. - Aquele, o gigante, é o Tenente de Pont-Briand, meu melhor amigo. O outro é Três Dedos de Trois-Rivieres, e o mais jovem é o Barãozinho de Maudreuil, a mais maravilhosa criança do Canadá.

Com uma batida de pálpebras, Angélica fez sinal de que entendera. Muito bem, ela cuidaria de inimigos tão preciosos, mas todas aquelas apresentações não lhe simplificavam a tarefa.

O colosso que Nicolau designara como o Tenente de Pont-Briand acabava de tocar a ilha. Ali, novamente, manteve-se imóvel, os punhos nas ancas, o rosto levantado, examinando os arredores com uma desconfiança de cão. E de fato parecia farejar. Não usava chapéu. Seus cabelos castanhos-escuros espalhavam-se à volta da cabeça e dos ombros. Contra a luz, o sol lhe desenhava uma pequena auréola avermelhada. Não pareceu notar nada de suspeito e, dando de ombros, começou a atravessar a ilha, seguido dos huronianos que já haviam cruzado o vau.

Angélica concentrou toda a afénção, firmou a arma contra o ombro. Com a extremidade do cano, começou a seguir a silhueta de Pont-Briand, que se afastava ao longo da praia.

Mais perto, o caçador L'Aubigniere, dito Três-Dedos, que ficara na margem, apressava os selvagens, que continuavam a sair da floresta.

Pont-Briand acabava de atingir a extremidade da ilhota. Parou, examinou sua_tropa, que atravessava a passagem. Sem saber, fazia o jogo dácjuelesjjue o'espreitavam do alto da falésia. Logo todo o contingente estaria reunido no desfiladeiro, conforme desejara Joffrey de Pevrac.        

Afinal o tenente se dirigiu para a segunda parte do vau.

Era a hora..

Angélica transformou-se num único olhar, preocupado com um único ponto: a pedra chata do vau sobre a qual o pé do homem ia pousar.., -

Seu dedo apertou o gatilho. A ponta da pedra lá embaixo voou em pedaços, enquanto a garganta se enchia com o ruído súbito e retumbante da detonação.

O oficial francês dera um pulo para trás.

-        No chão! - gritou, enquanto índios e franceses reunidos na ilha se atiravam de bruços e se arrastavam para o abrigo de uns magros arbustos.

Mas o tenente, ao invés de imitá-los, saltou de novo, para a frente, na direção do vau. Angélica atirou. Ele já estava a meio caminho do vau. Outra pedra estilhaçou-se a seus pés. Viram-no perder o equilíbrio e cair na água. Angélica pensou consigo que era o segundo banho que ele lhe devia em dois dias, pois também na véspera ele caíra no rio. Tinha certeza de que não o alvejara.

-        A outra arma - disse secamente.

A cabeça do tenente reapareceu. Debatia-se na correnteza e afastava-se mais. Angélica levou a arma ao ombro, mirou, atirou. A bala ricocheteou na superfície da água. Passou tão perto que deve tê-lo borrifado.

- Não o mate - suplicou Nicolau Perrot a meia voz.

"Inferno!" pensou Angélica, irritada. Então ele não estava vendo que o outro não se deixaria deter, e como impedir aquele temerário de atingir a margem sem matá-lo?

Atirou de novo. Desta vez o gentil-homem francês pareceu compreender. Entre as correntezas mortais do rio e um tiroteio prolongado que não lhe atingia a cabeça apenas por algumas polegadas, não havia como hesitar. Retornou à ilha, içou-se para fora da água e arrastou-se para o refúgio de um mirrado amieiro.

Continuando a vigiar a passagem, Angélica pôde então relaxar um pouco a atenção. Mas ninguém parecia disposto a imitar a loucura do oficial. Era pouco provável agora que alguém se arriscasse na direção daquele local tão bem vigiado.

Angélica descontraiu-se, soergueu-se. O suor escorria-lhe das têmporas. Enxugou maquinalmente a testa com uma mão negra de pólvora, tomou da arma recarregada que lhe estendia um de seus filhos, atónito, e recolocou-se em posição de tiro. Bem a tempo, pois o tenente tentou a sorte outra vez, lançando-se como um diabo...

Uma bala ricocheteou sob seus pés, na areia da praia. Prontamente ele retornou ao abrigo. Durante esse tempo, o ataque surpresa se desencadeara em todas as frentes. No momento em que, com o primeiro tiro, Angélica deteve a marcha do comboio, os huronianos que se encontravam no meio do primeiro vau quiseram recuar para se abrigar na floresta, mas daquela margem mesma que acabavam de deixar vinham tiros. L'Aubigniere arrojou-se para trás de uma árvore e começou a revidar na direção da falésia.

Fechados por um denso tiroteio de um lado e de outro, no meio da primeira passagem, os huronianos já não ousavam avançar nem recuar. Um deles, porém, com a audácia habitual de sua raça, atirou-se no rio turbilhonante, mas ao vir à tona um pouco abaixo, logo acima das quedas, um disparo dos espanhóis o atingiu e feriu na perna.

Outro conseguiu afundar-se no cerrado. Topou com o inimigo invisível, postado ali por Peyrac, pois ouviu-se um ruído de luta e uma exclamação de raiva.

Depois reinou o silêncio, tão completo que o canto das cigarras pareceu altear-se, estridente, e cobriu todos os outros ruídos, até o do rio tumultuoso...

Um odor de pólvora enchia o desfiladeiro.

Angélica contraía os dentes. Havia esquecido de onde se encontrava. Parecia-lhe que estava de ;iovo à espreita, no coração da floresta do Poitou e, sob a mira de sua arma, os soldados do rei tombavam. Por trás de seus dentes cerrados, subia o grito antigo de seu coração, que com tanta frequência lhe jorrara dos lábios: "Mata! Mata!...".

Estremeceu. Uma mão pousou em-seu ombro.

-        Pronto, acabou! - disse a voz calma de Peyrac.

Ela se ergueu um tanto desorientada, a arma fumegante na mão. Olhou-o como se não-o reconhecesse. Ele a fez levantar-se e suavemente limpou-lhe da testa, com um lçnço, a pólvora negra que a maculava.

Havia um sorriso no fuhdo de seus olhos, e também algo de indefinível.onde a piedade e a admiração disputavam, enquanto ele contemplava aquele rosto de mulher de uma beleza refinada, enodoado pelo suor da guerra.

-        Bravo, meu amor! - disse, a meia voz.

Por que ele lhe dizia "bravo"? Aplaudia o quê? Seu êxito de agora? Ou sua antiga luta? Sua luta louca, desesperada, contra o rei da França? Aplaudia tudo o que a prodigiosa habilidade de suas mãos pousadas sobre uma arma mortífera ocultava?...

Com respeito, ele beijou-lhe a mão encantadora e enegrecida de pólvora.

Seus filhos e os homens de Peyrac olhavam Angélica de olhos arregalados.

Lá de baixo, os canadenses atiraram. Pelo movimento das folhagens, Pont-Briand adivinhara as presenças. A rocha proeminente rebentou, bem perto deles.

-        Ah, não! - exclamou Perrot. - Basta, boa gente! Chega de estragos. Vamos parar com este joguinho, está bem? Pont-Briand, meu primo, acahne-se ou o desafio para uma luta e faço-o tocar os ombros no chão, como naquele famoso dia de Saint-Médard, de que você deve estar lembrado!

A voz estentórea do canadense ressoou longamente através do desfiladeiro invadido de uma acre fumaça.

Houve um silêncio. Depois, dá ilha:

— Você, que fala, quem é?

— Nicolau Perrot, de Ville-Marie, na ilha de Montreal.

— Quem o acompanha?

— Amigos, franceses!

— E o que mais?...

Perrot voltou-se para o conde. Fez-lhe um pequeno sinal interrogativo. Joffrey respondeu com um meneio de cabeça afirmativo.

Então o canadense, colocando as mãos em concha em torno da boca:

-        Ouça, boa gente de Saint-Laurent, ouça a quem anuncio.

Aqui o Sr. Conde de Peyrac de Morens d'Irristru, senhor de Gouldsboro, de Katarunk e de outros lugares, e as pessoas de sua comitiva.

Angélica estremeceu ao ouvir a floresta indígena vibrar com aquele nome relegado há tantos anos ao silêncio do opróbrio e da tumba. Joffrey de Peyrac de Morens d'IrristruL. Estaria escrito que o velho patronímico gascão poderia reviver, ousaria renascer, tão longe de seu berço original? Não seria arriscado?...

Voltou-se para o marido, mas o rosto dele não revelaria nada.

Em pé na extremidade do promontório, dissimulado pelos galhos cadentes de um pinheiro a que se apoiava, ele continuava a observar com atenção o local da escaramuça, como que indiferente às falas que eram trocadas.

A fumaça só se dissipava lentamente. Os sons se amorteciam naquela atmosfera esfumaçada. Enxergava-se pouco, e a prudência exigia, de ambas as partes, que permanecessem alerta. Joffrey de Peyrac continuava empunhando a pistola carregada.

Finalmente alguém se levantou na ilha, atrás dos arbustos. Era o grande Pont-Briand.

— Venha até aqui sem armas, Nicolau Perrot, se é mesmo você e não seu fantasma!

— Estou indo.

O canadense passou o fuzil às mãos de seu criado e desceu a encosta até a praia.

Quando surgiu na prainha, em suas roupas de couro e seu gorro de pele, foi recebido com exclamações de entusiasmo. Franceses e huroniãnos correram-lhe ao encontro, aclamando-o. Ele lhes gritou que subissem um pouco;, até a"curva do rio, e atravessassem uma "pontezinha de troncos de árvore que os espanhóis haviam lançado num ponto onde as margens eram próximas uma da outra. Essa passagem raramente era utilizada, pois apenas o vau evitava um desvio de várias horas, poupando a travessia de uma falha muito funda. Quando todos se reuniram, ouviram-se abraços enérgicos e congratulações ruidosas. O canadense e seus compatriotas envolviam-se mutuamente em grandes tapas nos ombros e grandes murros nas costelas.

— Irmão! Você aqui! A gente o imaginava morto!

— A gente acrédífava-que, você tivesse partido para sempre!

— Que tivesse voltado para os iroqueses! : .

— Acostumado a viver com "os selvagens até o fim de seus dias!

— Por pouco não me aconteceu exatamentê isso - respondia Nicolau Perrot -, e era minha intenção voltar para junto dos iroqueses quando parti de Quebec, há três anos. Mas encontrei o Sr. de Peyrãc e_mudei de ideia.

Os huroniãnos reconhgciam Perrot com prazer. Mas alguns resmungavam, reclamando o preço de sangue, pois um dos seus, Anahstaha, fora ferido.

Perrot lhes disse na sua língua:

-        O meu irmão Anahstaha tinha apenas que não tentar me escapar como uma cobra por entre os dedos, quando nossos mosquetes lhe ordenaram que fizesse alto. Quem não entende a linguagem da pólvora, que não se meta a fazer guerra... Venham, senhores, por favor - concluiu, dirigindo-se aos oficiais franceses, enquanto os huroniãnos, dominados por aquela voz enérgica que conheciam bem, sentavam para confabular e decidir, finalmente, que deixariam os brancos se entender entre si.

CAPÍTULO VIII

A chegada a Katarunk - A recepção do Conde Loménie-Chambord

Os três homens que, seguindo Nicolau Perrot, subiam o flanco abrupto da montanha não iam sem curiosidade, apesar do desagradável incidente de que acabavam de ser alvo. O nome do Conde de Peyrac já alcançara certa celebridade na América setentrional. Pouca gente o vira, mas falava-se muito dessa personagem enigmática, desde a costa do Massachusetts e da Nova Escócia até os confins do Canadá.

Além disso, como haviam ocupado militarmente o estabelecimento que o Conde de Peyrac possuía sobre o Kenebec, os franceses sentiam-se em má posição, e sem a presença de seu amigo Perrot não teriam previsto nada de bom para o próprio destino. Na passagem, entreviram homens postados atrás dos arbustos, autênticos rostos de flibusteiros de raças diversas, que os seguiam com um olhar sombrio.

Chegando ao topo, estacaram de súbito, dominados por um medo mesclado de espanto.

Na penumbra toda picotada de pontos luminosos pelo jogo das folhas, notaram um cavaleiro mascarado de preto, montado num garanhão de ébano, imóvel como.uma estátua.

Por trás dele delineavam-se outras silhuetas montadas e mulheres.

- Saúdo-os, senhores - disse o cavaleiro mascarado em voz surda. - Aproximem-se, rogo-lhes.

Apesar de sua coragem, encontraram dificuldade em se recompor. Mas saudaram, e como o alto-tenente parecesse incapaz de pronunciar uma palavra, foi o caçador Romain de L'Aubignie-re, dito Três-Dedos de Trois-Rivieres, que tomou a palavra. Apresentou-se e acrescentou:

— Senhor, estamos à sua disposição para conferenciar, embora os vossos procedimentos paca'abrir as conversações nos tenham parecido um pouco... detonantes.

— Os seus são menos? Fui informado de que se acreditaram no direito de ocupar o entreposto que me pertence às margens do Kennebec...

L'Aubigniere e Maudreuil voltaram-se para Pont-Briand. O tenente passou a mão pela testa-e recobrou a fala.

-        Monseigneur - disse, empregando espontaneamente o vocativo defereifte, coisa de que, mais tarde, ele próprio se surpreendeu - monseigneur, -e-fato que fomos encarregados pelo governo da Nova França de nos dirigir às nascentes do Kennebec a fim de obter todas as informações acerca de seus atos e intenções. Pensávamos que chegaria pelo rio e o esperávamos com a expectativa de poder entabular conversações de bom entendimento.

Peyrac deu um vago sorriso. O tenente dissera: "O esperávamos pelo rio". Sua vinda a cavalo, por terra, os pegara desprevenidos.

— E o meu irlandês, como foi que o trataram?

— Oh, quer dizer aquele inglês gordo e vermelho, tão engraçado - exclamou o Barãozinho de Maudreuil. - Deu-nos trabalho. Ele sozinho nos deu a impressão de que havia uma guarnição inteira lá dentro. Os huronianos queriam escalpelá-lo, mas nosso coronel se opôs, e por ora ele está apenas à fresca, na adega, bem amarrado como um salsichão.

— Deus seja louvado! - disse Peyrac. - Eu não poderia perdoar-lhes a morte de um dos meus, e nesse caso a questão seria resolvida pelas armas. Qual é o nome de seu coronel?

— O Conde de Loménie-Chambord.

— Ouvi falar dele. É um grande soldado e homem honestíssimo.

— Somos prisioneiros seus, senhor?

Se podem garantir-me que nenhuma traição nos aguarda em Katarunk e que sua expedição não tem outra finalidade senão a de entabular comigo conversações de bom entendimento, eu ficarei feliz em poder tratá-los como amigos e não como reféns, conforme me recomenda meu conselheiro, seu compatriota, o Sr. Perrot.

O tenente inclinou a cabeça e pareceu refletir por um longo momento.

— Creio que posso garantir-lhe isso, senhor - disse afinal. - Sei que se seus atos pareceram inquietantes a certas pessoas que quiseram ver neles uma incursão dos ingleses em nossos territórios, outras pessoas, em particular o Sr. Governador Frontenac, encaram com interesse a possibilidade de uma aliança com o senhor, quer dizer, com um compatriota que sem dúvida se empenharia em não prejudicar a Nova França.

— Se é assim, consentirei em conversar com o Sr. de Loménie antes de travar hostilidades inúteis. Sr. de L'Aubigniere, queira incumbir-se de ir anunciar a seu coronel a minha chegada, assim como a da Condessa de Peyrac, minha esposa.

Com um gesto, convidara Angélica a adiantar-se. Ela puxou a égua da sombra e foi postar-se ao lado do marido. Não se sentia disposta a prodigalizar amabilidades depois do susto que lhe tinham causado na véspera, mas a expressão que surgiu nos três rostos quando a perceberam e viram-na aproximar-se desa-nuviou-a.

Recuaram num movimento simultâneo, e os lábios deles moveram-se sobre a palavra estranha, que não pronunciaram, mas que se adivinhava: "A Diaba!... A Diaba da Acádia!"

-        Senhora, apresento-lhe estes senhores do Canadá. Cavalheiros, a Condessa de Peyrac, minha mulher.

Ele observou, irónico, os sentimentos diversos cujo reflexo transparecia no rosto deles.

— A condessa participou do encontro com vocês ontem à noite. Creio que se assustaram mutuamente... Com certeza o aparecimento de uma mulher branca, a cavalo, nesta região, era motivo de surpresa, mas como vêem, não se trata de uma visão...

— Mas sim! - exclamou Pont-Briand, com uma galanteria toda francesa. - A Sra. de Peyrac, em sua beleza e sua graça, continua a fazer-nos duvidar dos próprios olhos, como se de fato estivéssemos diante de uma visão ou aparição.

Angélica não pôde deixar de sorrir ante esse amável restabelecimento.

— Fico-lhe i "ata por sua cortesia, tenente. Lamento que nosso primeiro tn_ontro tenha carecido de elegância. Creio que lhe devo um chapéu!         -

— Por pouco teria sido, uma cabeça, senríora. Mas o que importa! Eu teria gostado de morrer "sob mão tão bela.

E Gaspar de Pont-Briand, dobrahdo.o joelho, inclinou-se com a cortesia de um homem de corte. Era .visível que Angélica o fascinava.

A caravana reencetou a marcha em meio a certa desordem.

Estabelecido o acordo, ioram buscar o, huroniano ferido para transportá-lo a cavalo, mas o índio ficou assustadíssimo com o animal desconhecido.

O Barão de M"audreúil apresentara o capitão dos índios, Odes-sonik, esplêndido sob os atavios de dentes de urso e plumas que lhe eriçavam a penacho cerrado. Quando não.se estava habituado com os índios, era possível confundi-los, mas Angélica teve certeza de que aquele era o guerreiro que na outra noite torturara com muita aplicação o prisioneiro iroquês. Os huronianos se aglomeravam à volta deles, agora amistosos e curiosos, todos querendo ver os novqs-brancos. Os penachos de cabelo e plumas no alto dos crânios raspados dançavam-uma autêntica sarabanda em torno dos cavaleiros.

-        Eles me dão medo - disse a Sra. Jonas. - Realmente se parecem demais com os iroqueses. Essa corja é toda igual.

Os protestantes estavam aterrorizados. Sentiam mais ainda, talvez, do que Angélica o trágico daquele encontro com franceses católicos e militares, a mesma espécie de que haviam fugido em La Rochelle, à custa de riscos incontáveis. Mantinham-se calados e procuravam não se fazer notar pelos dois oficiais.

Em todo caso, o interesse destes passava sucessivamente do rosto mascarado de Peyrac, que os intrigava ao máximo, para o de Angélica. Apesar do cansaço e da poeira que a cobria, Pont-Briand não parava de se perguntar se aquele não era o mais belo rosto do mundo. Diaba ou não, os olhos dela cintilavam com uma luz estranha, e quando encontravam o olhar dele, o tenente não podia impedir-se de desviá-lo precipitadamente.

O choque que levara ao vê-la sobre o cavalo, criatura de carne e osso, não uma visão, ainda lhe contraía a garganta, e seus pensamentos se desinteressavam totalmente da situação presente, que no entanto era bastante delicada para ele. Quanto mais dava rédeas à imaginação, mais se convencia de que aquela mulher surgida dos bosques era a mais bela que jamais conhecera.

O Tenente de Pont-Briand era um homem colossal, uma massa de músculos a que apenas a aristocracia de seus ancestrais podia comunicar certa elegância. Nascido militar, sem dúvida alguma, e além disso forçado a esse destino pela sua situação de filho mais novo da família, tinha a voz sonora, o riso largo. Era um espadachim extraordinário, um mastigador de cartuchos de dentes rápidos, um atirador infatigável, guerreiro de resistência a toda a prova. Mas embora fosse um homem na força da idade, com mais de trinta anos, parecia haver conservado uma mentalidade de adolescente. Isso explicava que tivesse permanecido em patente relativamente subalterna para um homem de alto nascimento, pois se fazia maravilhas sob as ordens de um chefe esclarecido, seu caráter impulsivo com frequência tornava perigosas suas iniciativas. No entanto, fora nomeado chefe da guarda de um dos fortes franceses mais importantes, o São Francisco, e era grande a sua popularidade entre os selvagens da região. Apesar de sua força e corpulência, na floresta andava tão silenciosamente quanto um índio.

Consciente da atenção que ele lhe testemunhava, Angélica sentia-se agastada. Havia naquele homem sanguíneo, de andar surpreendentemente felino, algo que logo lhe despertou a desconfiança.

Em certos momentos lamentava que de manhã não tivesse havido uma boa e declarada batalha. O marido queria negociar, mas ela, com todo o seu instinto, com todas as suas recordações, rejeitava a conciliação com os franceses.

Enquanto isso a montanha cor de fogo desaparecia e súbito, ao longe, na passagem que ela não estava mais defendendo, viu-se reluzir uma poça de água azulada.

Em menos de uma hora atingiram o rio.

De perto o Kennebec se revelava de um azul de armadura, e o observador se surpreendia alçando os olhos para o céu claro para ver que espécie de reflexo se mirava naquelas águas. Não sem alegria Angélica captou o odor de fogueiras. E de repente avistou o forte. Seu rosto iluminou-se e ela ergueu-se um pouco na sela.

O forte fora construído recuado, acima da ribanceira, no centro de uma área desmatada de onde se haviam extraído as sólidas estacas da paliçada. Esta, retangular, só deixava ver os telhados cobertos de ripas de duas habitações eujas chaminés fumegavam preguiçosamente. Ao redor o terreno parecia revolvido, caótico, embora verdejante. Não evocava nem a simetria de um jardim nem a bela aparência de uma pradaria,- e isso se explicava quando se percebia que os tocos das árvores abatidas não tinham sido arrancados-e que as poucas culturas iniciadas em volta da fortificação proliferavam entre raízes nodosas e pipas partidas... Mas eram as primeiras culturas encontradas em várias semanas de marcha péla-floresta. .Os lábios secos de Angélica abriram-se num sorriso." Ela gostou do lugar. Ficaria feliz de finalmente encontrar ali s"ua residência, depois de tanto andar.

Pont-Briand a olhava.

Ela não se dava conta daquele olhar fito. Concentrava-se toda na contemplação dos lugares descobertos do alto da encosta, sobre os quais parecia flutuar contra a luz um nevoeiro dourado, feito de fumos e poeiras.

Ainda não era mais do que o local de remotas edificações, sem contornos precisos, e ridiculamente restrito ao coração da floresta sem limites, mas para quem caminhara longos dias, sem avistar vestígio algum de obras humanas, exceto alguns wigwams (cabanas) miseráveis, canoas de casca de árvore esquecidas numa enseada, o aparecimento daquele canto de terra parecia prometer ao viajor o almejado reconforto de um mundo menos primitivo.

A frente o rio se alargava, até formar como que um grande lago tranquilo onde deslizavam vivamente as canoas, com a ligeireza de libélulas, algumas se distanciando rumo a uma ilhota próxima, outras acompanhando as margens, outras ainda vindo unir-se a uma flotilha em repouso desses esquifes leves, aglomerados uns contra os outros, na extremidade sul da praia em meia lua.

Ainda se distinguiam mal os homens que manobravam essas canoas, assim como os que certamente se moviam nas margens, mas na primeira olhada se registrava naquele trecho pelado uma impressão de movimentação, como a que nos previne, a alguma distância, que um formigueiro é habitado e não foi abandonado.

Mais abaixo Angélica avistara a praia de areia cinza e grandes calhaus, .plantada de inúmeras tipis de casca de árvore, cabanas indígenas em forma de-çone pontudo, de onde a fumaça subia em filetes brancos e lentos, pois o lugar devia ter sido escolhido por estar protegido contra os ventos caprichosos da montanha.

Ao anúncio da caravana por um longo grito, todos os índios dispersos em torno do forte convergiram na direção anunciada com exclamações agudas e muito falatório, e começaram a galgar a encosta indo ao encontro da comitiva. UAubigniere devia tê-los avisado da chegada de brancos desconhecidos, montados em cavalos...

Joffrey de Peyrac, depois de fazer alto, também observava o forte e a praia do alto de seu cavalo.

— Sr. de Maudreuil!

— Senhor?

— Não é um pavilhão branco que vejo adejar no mastro central?-

— Exatamente, senhor, o pavilhão branco do rei da França.

Peyrac levou a mão ao chapéu e, tirando-o, com um gesto largo, fez uma respeitosa saudação, que - para quem o conhecia bem - não deixava de ter uma ponta de exagero.

— Inclino-me diante da majestade daquele a quem serve, barão, e sinto-me honrado de que ele visite minha residência em sua pessoa.

— E na de meus superiores - disse às pressas o jovem Maudreuil, intimidado.

— Alegro-me antecipadamente...

Recolocou o chapéu. Havia tanta altivez na atitude de Peyrac que sua amabilidade mesma parecia perigosa.

-        O costume feudal, porém, quer que, quando o senhor retorne a seu domínio, seja sua a bandeira a flutuar no topo do mastro. Poderia ir dar ordens nesse sentido, barão, pois parece que ninguém está tomando providências. O'Connell sabe onde encontrar meu pavilhão.

-        Certamente, Monseigneur - disse o jovem canadense, que disparou na corrida pela pista pedregosa.

Passou aos pulos por entre os selvagens que subiam. Enfiou pelo cerrado e correu até o forte. Pouco depois as portas se abriram, enquanto subia pelo mastro um pavilhão azul com escudo de prata.    

-       As armas do Rescator -'disse Peyrac a meia voz. - Talvez sua glória seja obscura, quase duvidosa, mas ainda não chegou

o momento de depô-las, não é, senhora?

Angélica não soube o que responder.

Mais uma vez a atitude do marido a desconcertava. Sentia que os franceses não eram jàe todo sinceros quando diziam que tinham vindo a Katarunk sem propósitos hostis. Ocupar um forte militarmente nunca foi uma demonstração de muita amizade. Mas a situação se inverterá. Peyrac chegara e os surpreendera. Tinha consigo, comò-amfgos,'Perrot e Maupertuis, veteranos do Canadá e dentre os mais reputados.

Nem por isso deixavam'de andar sobre um barril de pólvora. E não era sem receios que ela via a nuvem de" guerreiros selvagens, aliados das tropas francesas, subir na direção deles com um ulular apavorante que, àquela altura, não passava de exclamações cordiais de divertimento e boas-vindas.

Com a luneta, Joffrey de Peyrac ccfntinuava a observar o porto e a esplanada. A frente as duas folhas da porta da paliçada estavam escancaradas. Os soldados se haviam alinhado de um lado e de outro, como para uma parada, e um pouco adiante deles postava-se um oficial em uniforme de gala, sem dúvida aquele Loménie-Chambord que lhe haviam anunciado.

Então o conde fechou a luneta, e de cabeça inclinada, pareceu meditar.

Era o último momento, ele sabia, em que lhe restava a possibilidade de responder pelas armas ao ataque das armas. Depois estaria na goela do lobo.

Estariam misturados, ele e os seus, com-pessoas inconstantes que de um momento para outro podiam transformar-se em inimigos ferozes. Tudo dependeria da lealdade do coronel, de sua ascendência sobre seus homens, da prudência, em suma, daquele que Peyrac ia encontrar face a face representando o rei da França.

Olhou novamente. No círculo da luneta inscrevia-se a silhueta de um homem distinto que, de mãos às costas, parecia aguardar sem nervosismo a chegada do proprietário de Katarunk, que Maudreuil acabava de anunciar.

- Vamos - disse Peyrac.

Pediu aos cavaleiros e amazonas que se agrupassem atrás dele, os espanhóis de armadura caminhando na frente com suas armas, depois Florimond e Cantor portando as bandeiras com a marca de Peyrac, e os homens segurando cada um seu mosquete, a mecha acesa na mão.

Os índios surgiam de toda parte, com grandes manifestações de curiosidade. Nicolau Perrot se multiplicava em todas as línguas que conhecia para cumprimentá-los e pedir-lhes um pouco de calma, pois os animais, irritados com a súbita algazarra, a movimentação de penachos, rostos pintados, arcos e tomahawks, relinchavam e empinavam. Finalmente o cortejo se formou e pouco depois o casco fino de Wallis tocava a areia à beira do rio, por entre fileiras de guerreiros. Peyrac pedira a Angélica que ficasse a seu lado. Ela estava aborrecida por causa dos pés descalços de Honorina, e também gostaria de ter ajeitado um pouco o cabelo, mas já tinha o suficiente com que se ocupar mantendo sua montaria em passo de parada. Depois da solidão de regiões infinitamente desertas, os viajantes se encontravam como centro de atenção de toda uma multidão morena, agitada, emplumada, de odor acre, que queria vê-los, tocá-los.

Perrot, os caçadores e outros sagamores, chefes das várias tribos reunidas, esgoelavam-se em vão para afastar os mais arrebatados. Aconteceu, fatalmente, que Wallis empinou e seus cascos feriram sem suavidade algumas cabeças gordurentas; depois disparou em rápido galope até o rio. Angélica conseguiu detê-la e trazê-la de volta, fremente, mas dócil e soberba, sob os olhos dilatados de espanto de todos os espectadores índios, extasiados e urrando de alegria. Exceto por esse incidente, que foi considerado um interlúdio aprazível, a chegada do Conde de Peyrac e comitiva a Katarunk desenrolou-se com todo o protocolo devido.

Peyrac imobilizou-se diante das portas de madeira abertas, sua mulher perto dele, e os companheiros atrás, enquanto dois jovens tambores canadenses, de uniforme militar azul, avançavam ao seu encontro, fazendo ressoar as caixas. Atrás deles, a passo, seis soldados e sargentos alinharam-se cara a cara para formar uma ala de honra, pequena mas de aparência impecável, ainda que improvisada às pressas.

O coronel adiantoú-se, apertado na casaca azul com filetes de ouro dos oficiais do regimento de Carignan-Saliere e abas amarelo-claras nas mangas e no colarinho,, presas por grandes botões lavrados.

Era um homem de uns quarenta anos, de belo porte, botas, espada ao lado do corpo, atada por uma faixa branca - refinamento que traduzia o cuidado, num militar em campanha, de não dispensar certa disciplina no traje. A barba curta, pontuda, um pouco fora dé moda, convinha à distinção do rosto, de traços finos e sedutores sob o bronzeado que lhe escurecia as maçãs do rosto e a testa, tornando mais claro o olhar cinza, calmo e penetrante.

O que de imediato xhamou a atenção de Angélica no oficial foi a suavidade que parecia-emanar dele', e como que uma espécie de luz difusa, interior,^que o habitava.

Não usava" peruca, mas tinha a cabeleira bem-cuidada. Fez uma saudação, com a mão no punho da espada, e apresentou-se:

— Conde de Loménie-Chambord, chefe da expedição do lago Mégantic.

— Um grande nome! - disse Peyrac, inclinando a cabeça. - Sr. de Loménie, devo compreender que a localização de minha feitoria simplesmente lhe permitiu acampar tranquilamente? Ou devo considerar sua presença aqui, em companhia de seus aliados selvagens, como uma tomada de posse de meu território?

— Tomada de posse! Deus, claro que não! - exclamou o outro. - Sr. de Peyrac, sabemos que é francês, embora sem mandato do rei, nosso senhor, mas em Quebec estamos muito longe de considerar sua presença aqui como nociva aos interesses da Nova França, pelo contrário! Pelo menos antes que nos dê razão para isso.

— É exatamente como eu entendo, é fico feliz de logo dissiparmos qualquer ambiguidade. Não serei nocivo aos interesses da Nova França com meus trabalhos nem com minha presença às margens do Kennebec, desde que não sejam nocivos aos meus.

Pode levar esse compromisso, exatamente como o coloco, a seu governador.

Loménie fez outra reverência, sem responder. Apesar de uma experiência bem matizada de situações espinhosas, de que sua carreira não era escassa, a que vivia hoje lhe parecia a mais surpreendente. Naturalmente havia-se começado a contar muitas coisas, no Canadá, sobre o francês,aventureiro, de passado obscuro, explorador de metais nobres, fabricante de pólvora, amigo dos ingleses ainda por cima, que há mais de uni ano resolvera cravar algumas estacas, em seu nome, dentro da imensa região inexplorada da Acádia francesa. Mas o encontro ultrapassava o que a curiosidade mais espicaçada poderia esperar.

Seria preciso contar em Quebec aquela coisa surpreendente e que merecia que se tomassem precauções: a chegada de europeus vindos do sul a cavalo, e não por via fluvial, a uma região que jamais ouvira o rincho de tal animal. Entre eles, mulheres e crianças. A sua testa, um cavaleiro mascarado, de voz lenta e rouca, e que desde as primeiras palavras ousava tomar posição, falava como senhor. Como se duzentos selvagens armados, aliados dos franceses, prontos a responder ao menor sinal, não estivessem ali, comprimindo-o por todos os lados, bem como à sua escolta.

O Conde de Loménie amava a coragem, a grandeza...

Quando levantou a cabeça, havia em seu olhar uma luz onde a estima se unia a um sentimento espontâneo de afeição, incal-culado, que acabava de invadi-lo subitamente. "Se se aplica à amizade", pensou ele, "talvez isto seja amizade à primeira vista..."

Muitos anos mais tarde escreveu essas palavras ao Reverendo Padre Daniel de Maubeuge, numa carta datada de setembro de 1682, e que ficou inacabada. Evocava naquelas páginas seu primeiro encontro com o Conde de Peyrac, e apesar do tempo que passara, revivia cada detalhe com uma melancólica admiração: "Naquela noite", escreveu, "à beira de um rio selvagem nestes desertos que tentamos em vão conquistar para o pensamento civilizador e cristão, eu soube que havia encontrado um dos homens mais extraordinários de nossos tempos. Estava ali, a cavalo, e não sei, meu padre, se avalia tudo o que significa este 'a cavalo', se alguma vez veio dar nestas paragens malditas e majestosas do Alto Kennebec. Estava ali, cercado de sua mulher, crianças, rapazes, submetidos a todas as adversidades, mulheres que desconheciam a própria coragem, crianças tranquilas, adolescentes audaciosos e ardorosos. Ele não parecia dar-se conta de que acabava de realizar uma proeza ou, talvez, se o sabia, não o deixava transparecer. Tive o pressentimento dè que aquele homem vivia sua vida em grau supremo, com a naturalidade com que tratamos os atos cotidianos. Pus-me aíinvejá-lo. Tudo isso num átimo, enquanto tentava desvendar o segredo de sua máscara negra".

Surdamente os tambores continuavam a bater, e seu rufar em surdina cadenciava não se sabia que drama em potencial.

Loménie aproximou-se do cavalo e alçou a cabeça para o cavaleiro mascarado. Sua grande simplicidade o fizera amado pela sua comitiva. Via-se em seu olhar calmo e franco que a astúcia e o medo lhe erairTsentimentos. desconhecidos.

-        Senhor - clisse-, sem rodeios -, creio que nunca precisaremos de muitas" palavras para nos entendermos. Também creio que acabamos'de conceder amizade um ao outro. Pode dar-me um símbolo dessa amizade?

Peyrac o examinou com atenção.

— Talvez. De que tipo?

— Um amigo não tem necessidade de ocultar os traços. Pode mostrar-nos seu rosto?

Peyrac hesitou ligeiramente, depois deu um meio sorriso e levou as mãos à nuca para desatar a máscara de couro.

Tirou-a e colocou-a no gibão.

Todos os franceses fizeram um movimento de curiosidade. Examinaram em silêncio aquele rosto de condottiere marcado pelos combates. Podiam ler ali a certeza de que tinham pela frente um adversário de porte.

-        Agradeço-lhe - disse Loménie, grave.

E acrescentou, com um humor imperceptível:

-        Agora que o vejo, estou convencido de que fizemos melhor em nos entendermos com sua pessoa... e fizemos bem.

Uma troca de olhares, depois, com uma gargalhada:

-        Sr. de Loménie-Chambord, é-me muito simpático - disse Peyrac.

Pulou para o chão, atirando as rédeas a um de seus servidores.

Tirou a luva e os dois gentis-homens trocaram um forte aperto de mão.

— Aceito o augúrio de que nossas relações progredirão para vantagem mútua - disse ainda Peyrac. - Encontrou aqui, em Wapassu, o necessário para se refazer de sua campanha?

— Mais do que o necessário, pois seu forte não deixa nada a desejar aos mais bem abastecidos que se possam encontrar. Confesso que meus oficiais e eu mesmo... visitamos sem pudor suas provisões de vinhos finos. Desnecessário dizer que o recompensaremos por isso, se não com vinhos de qualidade igual, que não teríamos como enviar-lhe, pelo menos com as vantagens que nossa presença poderia representar para o senhor no caso de ameaça dos iroqueses. Diz-se que eles rondam a região.

— Fizemos um prisioneiro, ontem, um mohawk, mas fugiu - interveio o Tenente de Pont-Briand.

— E nós enfrentamos um grupo de cayugas, no sul - disse Peyrac.

— Essa raça traiçoeira infiltra-se por toda parte - suspirou o Conde de Loménie.

Nesse meio tempo seu olhar recaiu sobre Nicolau Perrot e ele provou que aquele olhar que parecera a Angélica tão cheio de doçura podia tornar-se muito severo.

O que dirigiu ao braço-direito do Conde de Peyrac teria feito enfiar-se na terra qualquer outro que não o descontraidíssimo canadense.

— E você, Nicolau, ou estou com alucinações? - perguntou, friamente.

— Sou eu mesmo, senhor cavaleiro - disse, alegre, Perrot, com um largo sorriso -, e muito contente de revê-lo...

Com um gesto espontâneo, dobrou o joelho diante do oficial, tomou a mão que o fidalgo não lhe estendia, e beijou-a.

— Nunca esqueci os belos combates que travou outrora contra os iroqueses, senhor. Pensei em sua pessoa inúmeras vezes durante minhas viagens...

— Teria feito melhor pensando em sua mulher e seu filho, que abandonou no Canadá, sem o cuidado de enviar-lhes a menor notícia por mais de três anos.

Confuso, o pobre Perrot curvou a cabeça sob a reprimenda e se ergueu com uma expressão de criança admoestada.

Os soldados franceses haviam rompido as fileiras e acorriam para segurar as rédeas das senhoras. Elas puderam desmontar, saudadas com largos gestos de chapéu, e o grupo se dirigiu para a entrada do forte.

De perto, o lugar na verdade não passava, conforme o designara Peyrac, de uma feitoria para tropas^ comerciais e não para a defesa fortificada de um ponto estratégico. A paliçada mal ultrapassava a altura de um homem, e toda a artilharia era representada por quatro pequenas colubrinas, nos ângulos da paliçada, dando para o rio.

O interior da fortificação oferecia um pouco o aspecto de pasto de carneiros, talera a confusão de gente e objetos diversos. Avançar por ali representava uma aventura. O que Angélica notou de início foram os cadáveres de dois ursos negros, pendurados como monstruosas mdancias de um vermelho berrante e que os índios começavam a cortar -em pedaços com destreza.

-        Vejamos, não consumiremos suas reservas de earne de caça -disse o Sr. deLoménie. - A caça foi boa hoje, e nossos selvagens resolveram fazer um festim. Já há dois outros animais cozendo naqueles caldeirões. Com um bom número de abetardas e perus, toda a companhia será alimentada, e amanhã também.

-        Sabe dizer-me se a pequena habitação se encontra acessível?

-        perguntou Peyrac. - Eu gostaria de instalar ali minha mulher e minha filha, para que possam repousar, bem como as senhoras e crianças que as acompanham.

-        Eu havia me instalado lá, assim como meus oficiais, mas o lugar será desocupado. Se tiver paciência por mais alguns ins

tantes... Maudreuil, vá fazer uma vistoria na pequena habitação.

O jovem Barão de Maudreuil foi na hora, sempre aos pulos, enquanto Peyrac prevenia o coronel de que tinha em sua escolta o grande sagamore Mopuntuk, dos metallaks. Loménie conhecia-o de reputação, mas nunca o encontrara. Felicitou-o muito, empregando a língua abenaki com facilidade.""

A poeira começava a levantar sob o pateado da multidão, misturada à fumaça dos diversos fogos. O vento era fraco naquele local e não dispersava a fumaça. Angélica tinha muita vontade de se retirar daquele ruído. Finalmente o pátio foi atravessado, em etapas minúsculas, com dificuldade, por entre o embaraço de recipientes diversos, vísceras ensanguentadas de animais, cinzas e brasas, barris e aljavas, peles de animais e plumas, mosquetes e chifres de pólvora. Inadvertidamente Angélica esmagou uma espécie de matéria azulada e gordurosa, que servia, parece, para os índios pintarem o rosto..Honorina por pouco não caiu num caldeirão. Elvira escorregou em vísceras viscosas, enquanto seus dois meninos foram afetuosamente convidados pelos selvagens a provar cérebro de urso cru, prato reservado apenas aos homens. Tudo isso acabou por levá-las à soleira da casa que lhes estava reservada. O Barão de Maudreuil saía da construção, enquanto um índio de raça indistinta acabava de limpar o chão com uma vassoura de folhas. O jovem oficial fora diligente: o aposento onde entraram era pequeno, mas livre de todo objeto supérfluo, e mal pairava no ar ainda o inevitável odor de tabaco e couro. Na lareira, no centro do cómodo, haviam atirado uma grande braçada de zimbro sobre um punhado de cascas de árvore, deixando-a pronta para ser acesa quando o frescor da noite se fizesse sentir.

CAPÍTULO IX

Impertinência do Tenente de Pont-Briand - Alguém à janela de Angélica

Angélica não pôde deixar de suspirar de alívio quando a porta se fechou. Desabou sobre um tamborete de madeira. A mobília era pobre. A Sra. Jonas sentou-se erfi outro tamborete.

— Não esti-exaustá, minha pobre amiga? - perguntou Angélica, pensando com comiseração nos cinquenta anos passados daquela corajosa mulher.

— Por Deus, digo-ihe que na estrada não houve problema, mas toda esta algazarra me racha a cabeça. Neste país ora não se vê ninguém ora se vê gente demais...

— Como se sente, Elvira?

— Estou com medo, oh, estou com medo - disse a jovem viúva. - Todos esses homens vão nos massacrar.

Mestre Jonas olhava por um interstício da janela, levantando um dos pedaços de pele que servia de vidro e que estava ligeiramente solto. Seu rosto grave e bonachão também traía o receio.

Angélica calou as próprias apreensões para tentar tranquilizá-los.

Não se inquietem. Aqui estão sob a proteção de meu marido. Os militares franceses não têm o mesmo poder que no reino de França.

— O que não impede que esses senhores nos olhem com cara esquisita. Sem dúvida alguma descobriram que somos huguenotes!

— Também viram que entre nós havia espanhóis e até ingleses, pessoas a quem consideram inimigos bem piores do que vocês. Mas aqui estamos longe do reino de França, estou dizendo.

-        Isso é verdade! - aquiesceu o relojoeiro, observando os índios que fervilhavam em torno da casa. - Não parecem aqueles mascarados que correm pelos campos na Terça-Feira Gorda? Alguns têm o nariz pintado de azul, olhos, sobrancelhas e faces, de preto, o resto do rosto, de vermelho. Que mascarada!

Os garotinhos foram olhar por sua vez. Angélica descalçou a bota direita e, com um canivete, raspou da sola o resto de ma-quilagem azulada que ficara colada ali.

-        Gostaria de saber com que ingrediente eles fabricam essas pastas. A cor é resistente. Daria uma bela pintura de olhos para se ir a um baile...

Depois descalçou a meia, para examinar um machucado no tornozelo que lhe doía há alguns dias.

A porta abriu-se com estrépito e o Tenente de Pont-Briand estacou na soleira, petrificado, notando que se esquecera de bater.

-        Perdoem-me - balbuciou -, eu estava trazendo... candeias.

Malgrado seu, seus olhos se fixaram na perna nua de Angélica e no pé pousado sobre a pedra da lareira. Ela baixou a saia e lançou-lhe um olhar altivo.

-        Entre, tenente, rogo-lhe, e obrigada pela sua gentileza.

Dois homens acompanhavam o tenente, carregando as bagagens. Enquanto depositavam num canto os sacos e baú de couro, o tenente colocava sobre a mesa as candeias nas palmatórias de estanho, junto com um jarro de cerveja e taças, e falava sem parar, para fazer esquecer seu descuido.

-        Refresquem-se, senhoras. Adivinho sem dificuldade que sua cavalgada deve ter sido longa e árdua. Meus camaradas e eu estamos cheios de admiração pela sua coragem. Digam-me sem receio o que posso fazer quanto a sua instalação. O Sr. de

Loménie-Chambord nos incumbiu, ao Sr. de Maudreuil e a mim, de nos colocarmos a seu serviço, enquanto ele recebe o Sr. Conde de Peyrac. Eu lhes recomendo que de preferência, esta noite, não coloquem muito o nariz fora de casa. Nossos selvagens são numerosos e resolveram festejar. Podem tornar-se inoportunos. Amanhã a maioria deles prosseguirá viagem, e vocês poderão conhecer melhor o local. De qualquer maneira, não deixem ninguém entrar e cuidem-se. Não é tanto pelos abenakis ou outros algonquinos que lhes faço essa recomendação, mas entre eles há muitos huronianos, e, segundo um provérbio bem conhecido no Canadá, "quem diz huroniano, diz ladrão".

Sempre discorrendo, ele por vezes lançava olhares bem atrevidos na direçao de Angélica. Esta quase não prestava atenção ao que ele dizia e aguardava cóm impaciência que ele se fosse. Estava cansada. Tudo lhe doía. Apesar da rusticidade, a feitoria de Katarunk lhe teria agradado muitíssimo se a caravana tivesse podido chegar como senhora do lugar. Cóm todos os protestos de amizade, a situação carecia de atrativos. Os viajantes ainda não estavam em casa e Angélica já estava vendo como seriam as coisas. O marido seria requisitado pelos hóspedes forçados e obrigado a vigiá-los. Para começar, não o veria essa noite. Feliz dela se no dia seguinte ele não partisse com eles numa expedição de reconhecimento, deixando naquela cloaca malcheirosa com a presença de índios imgudentes, cuja língua ela desconhecia/

Com um gesto brusco, maquinal, tirou o grande chapéu que lhe apertava a testa e, atirando a cabeça para trás,, de olhos fechados, passou a mão pela têmpora, onde sentia apontar uma enxaqueca.

Pont-Briand parou de falar e sua garganta contraiu-se. Decididamente ela era bela! Bela de tirar o fôlego.

Ollhando-o, Angélica achou-o com cara de imbecil e por pouco não deu de ombros.

— Fico-lhe muito grata pelos seus bons serviços, senhor - disse, friamente -, e confie em nós. Minhas companheiras e eu não temos vontade alguma de irmos misturar-nos aos selvagens, nem de perdermos nossos poucos pertences à cobiça deles. Minha filha já está sem sapatos. Esqueceu-os à beira de um lago. Não vejo onde poderei encontrar outro par do tamanho dela.

— Pont-Brian balbuciou que se encarregaria disso. Pediria a uma índia que cortasse mocóssins para a criança. Amanhã ela estaria calçada. - Ganhou a porta de costas, apanhou algumas ala-bardas militares que tinham iicado sobre um banco e virou-se na soleira da cabana, com o espírito tão excitado e vacilante co-mo se tivesse tomado três copos de aguardente de centeio canadense.

-        Caramba - resmungou entre dentes -, o que significa isto? Será que por acaso vai acontecer alguma coisa nesta país do diabo?

O sentimento de amor começava a arrastar-se nele como uma serpente. Ele adivinhava-lhe a aproximação e fremia por dentro. Parecia-se com a excitação da caça ou da guerra. E ele não sabia por quê. Mas o sabor da existência pareceu-lhe modificado. Adíantando-se através do pátio, ergueu o rosto para o céu e soltou um grito rouco em que rebentava uma alegria selvagem e louca.

-        Por que dá seu grito de vitória? - perguntaram-lhe os índios mais próximos.

Ele os afastou, imitando-lhes a dança sincopada à volta da fogueira, a dança de guerra, com flechas e tacapes brandidos no ar. Os índios riram. E esboçaram os movimentos da dança, soltando gritos estridentes e altos, que pareciam destinados a rasgar as nuvens.

-        Deus, que algazarra! - suspirou Angélica.

Causava-lhe um arrepio desagradável pela espinha. Segurou Honorina nos braços e apertou-a com força. O perigo de morte violenta estava por toda parte! Infestava o próprio ar que se respirava. Ela sentia-lhe o gosto na língua. Como explicar? Era aquilo a América. A morte violenta estava por toda parte, mas tinha-se o direito de viver e de defender-se.

-        Senhora - chamou Elvira -, venha ver. Há dois cómodos contíguos, três até, com camas, e cada um tem uma lareira. Vamos poder nos acomodar muito bem.

Os quartos, bem pequenos, estavam dispostos em torno da chaminé central, como à volta de uma coluna, o que permitia que cada aposento tivesse sua lareira individual. A chaminé mesma era bastante grosseira, aparentemente construída com seixos do rio, unidos por uma argamassa de areia, cal e cascalho. Os leitos rústicos com traves de toras, algumas das quais sequer tinham sido descascadas, tinham colchões de musgo, mas estavam confortavelmente guarnecidos de cobertas de la e de peles. O que ficava no aposento da direita era um móvel de boa construção, sólido embora elegante, com baldaquino e cortinas de brocatel, presas por cordões. Havia outro mais simples, mas igualmente guarnecido de cortinas, no aposento da esquerda. O quarto dos fundos continha várias caminhas com traves de toras, todas cobertas de lã ou pele. Elvira decidiu que dormiria ali, com as três crianças.

O casal Jonas ficaria com o da esquerda e a Sra. de Peyrac, com o da direita. De resto, seu baú já tinha sido coTocado lá. Alguma coisa na mobília daquele pequeno cómodo rústico, que tinha menos de quarto de fazenda do que de cabana de lenhador, com suas paredes de toras grossas mal-e-mal esquadriadas, revelava a Angélica que era aquele o alojamento que Joffrey de Peyrac reservara para si quando estivera em Katarunk no ano anterior. Puxando uma cortina, ela descobriu sobre as prateleiras de uma estante livros encadernados em couro, exibindo títulos latinos, gregos ou árabes.

Ele devia ter previstops outros quartos para alojar os filhos ou então seu imediato, crriomem' de confiança que levava consigo. A seus olhos-aquilo rtâo era mais que uma acampamento, uma pousada de etapa de viagem, para viver entre homens; mas por alguns detalhes ela reconhecia a mão dele, aquele gosto pelo conforto ou pelo prazer na escolha dos objetos, que ele sempre demonstrara. O candelabro sobre a mesa maciça, a um canto, era de bronze lavrado. Pela delicadeza de seus arabescos, a peça trazia reconforto, embora sua beleza-parecesse estranha e bastante inútil naquela cabana, no fundo da mata. Infelizmente ninguém se dera ao trabalho de limpá-lo das montanhas de sebo que escorrera de vela após vela em todas as noites anteriores. A pedra da lareira era guarnecida de cães bem forjados, mas a cinza e tições enegrecidos espalhavam-se pelo assoalho. Por toda parte havia os vestígios de uma desordem militar.

Angélica entendeu que a primeira coisa a fazer era empunhar uma vassoura. Pelos cantos havia algumas, de folhas ou de gravetos. As mulheres azafamaram-se, dominadas pela necessidade de livrar seu domínio de todo aquele ranço de soldadesca.

Em seguida decidiram que gostavam daquela casinha bem protegida, com suas quatro lareiras onde em breve a lenha crepitaria alegremente. Tinham pressa em imprimir sua marca ao lugar, de ali construir sua toca, com seus hábitos de ordem e limpeza, a fim de se sentirem em casa de fato e não como nómades, vagando como faziam há três longas semanas.

A porta fechada, o ferrolho bem passado, sentiam-se decididamente cada vez melhor. Mestre Jonas pôs-se a secar diante de sua lareira as meias e sapatos encharcados desde a travessia do último brejo. Elvira despiu as três criança e mergulhou-as num balde.

Acabando de varrer, Angélica procurou lençóis para os colchões. Ao erquer a tampa de um baú contra a parede do seu quarto, descobriu um grande espelho, preso à tampa. Mais uma marca de Joffrey de Peyrac, como uma surpresa sorridente, um sinal de cumplicidade.

"Oh, eu o adoro!", pensou ela.

Ficou ajoelhada diante do baú, contemplando-se. Descansava. Não havia roupa de cama naquele baú, apenas roupas de homem. Depois de examiná-las, levantou-se e tornou a fechar a grande mala. O momento que passara diante do espelho dera-lhe vontade de trocar de vestido e de vestir-se com mais elegância. Abriu a própria bagagem. De imediato ocupou-se de achar uma camisa limpa para Honorina. Felizmente as criança estavam com sono e pôde-se deitá-las no pequeno quarto dos fundos, onde o ruído do pátio chegava abafado.

Durante a arrumação, a Sra. Jonas desentocara um grande caldeirão para pendurar na cremalheira. Era preciso ir buscar água. Mas nenhuma das três mulheres sentia coragem de enfrentar a confusão do pátio para chegar ao poço. Mestre Jonas ofereceu-se. Retornou acompanhado de um grupo de indígenas que lhe fazia mil perguntas e se acotovelava na soleira da porta para ver as mulheres brancas. Mas não carregava para ele o balde de água. Aliás, achava escandaloso que o tcheno, o homem idoso, se incumbisse da tarefa, enquanto suas três mulheres não faziam nada. A casinha estava correndo o risco de ser invadida por um populacho malcheiroso, agitado e reivindicante.

- Nunca vi raça mais confiada que a desses bárbaros - exclamou o relojoeiro, sacudindo a poeira e se limpando quando a porta finalmente foi trancada e reforçada com uma barricada. - A partir do momento em que o escolhem como alvo de sua diversão, você lhes pertence.

A fim de não obrigá-lo a uma segunda expedição, as senhoras decidiram dividir equanimemente o líquido precioso para suas abluções.

Colocou-se o caldeirão sobre o fogo que crepitava alegremente. Enquanto esperavam que a áqua esquentassej_sentaram-se diante da lareira e serviram-se de cerveja.

Desta vez bateram levemente na porta. Nicolau Perrot apareceu com um grande pão de frumento, linguiças e frutinhas, framboesas e amoras, num cestinho. Seu índio trazia uma provisão de achas.

As vitualhas alegraram o coração de todos; levaram alguns bocados às crianças, que pegaram no sono mastigando os últimos pedaços.

— Mas que história é essa de ser casado e ter um filho, Nicolau? - indagou Angélica. - Nunca nos disse nada.

— Eu não sabia - disse cTcarradense, precipitado e corando muito.     

— Como não sabia que era casado?

— Não, quero dizer, eu não sabia que tinha um filho. Fui embora logo depois.

— Depois de quê?    

— Do casamento, ora. A senhora compreende, fui obrigado. Se não me casasse, precisaria pagar uma multa enorme, e na época eu não era rico. Tanto mais que se tratava do fato de me condenarem por haver praticado comércio sem permissão do governador do Canadá, e além disso de me excomungarem, por ter levado aguardente para os selvagens. Então preferi casar... Era mais simples.

— O que tinha feito à pobre moça para ser obrigado a casar? - perguntou a Sra. Jonas.

— Nada. Eu nem a conhecia.

— Verdade?

— Era uma Moça do Rei, que acabava de chegar no último .navio. Aliás, acho que é moça honesta e gentil.

— Não tem certeza disso?

— Não tive tempo...

— Explique-se melhor, Nicolau - disse Angélica. - Não estamos entendendo nada de suas histórias.

— Mas é simples. O rei da França deseja que se trabalhe no sentido de povoar sua colónia. De tempos em tempos nos envia um navio de senhoritas e os solteiros do lugar são obrigados a casar em quinze dias, sob pena de pagarem a multa ou mesmo de serem presos. Bom, era preciso passar por isso, então passei... Mas depois, adeus à companhia, e volto para o meio dos selvagens...

— Sua esposa o desagradou tanto assim? - perguntou Elvira.

— Não tenho a menor ideia, não tivemos tempo de nos conhecer, estou dizendo.

— Você teve tempo suficiente, no entanto, para ser pai de um filho - observou Angélica.

— Senhora, era preciso! Se ela se queixasse de que o casamento não se consumara, eu corria o risco de outra multa.

— Assim, no dia seguinte às suas núpcias, você partiu sem olhar para trás? E durante esses três anos nunca teve remorso, Nicolau? - indagou Angélica, fingindo severidade.

— Ora, não! - reconheceu o canadense, suspirando. - Mas confesso que desde que o Sr. de Loménie-Chambord me olhou de certa maneira há pouco, não me sinto à vontade. Aquele homem é a criatura mais santa que conheço. Pena que ele e eu não sejamos da mesma espécie - concluiu o homem de Saint-Laurent com uma careta.

Apesar da parcimônia na distribuição de água, Angélica lavou-se com prazer diante do fogo de seu quarto. Trouxera consigo dois vestidos cuja elegância podia parecer bem inútil naquele lugar selvagem, mas refletira que mesmo que não houvesse sociedade alguma para admirá-la, havia que saber agradar a si mesma. Além disso, havia o marido, os filhos e até Honorina. Numa palavra, o prestígio! Por que não lhes oferecer, de vez em quando, a imagem de uma mulher elegante, como as que existem nas cidades longínquas, lá onde passam carruagens pelas ruas e onde por trás de cada janela há um olhar para espiar e uma boca para exclamar: "Viu a nova toalete da Sra. X..."?

Vestiu-se, então, o vestido cinza-prata, com galões de prata sublinhando as costuras das mangas e dos ombros, acompanhado de uma gola e punhos de cambraia branca, salientados por uma fina renda prateada. Tirou a coifa, sacudiu os cabelos e escovou-

os longamente, usando escovas de tartaruga e ouro, de um maravilhoso estojo de viagem que o marido lhe presenteara antes de deixarem Gouldsboro. Aqueles objetos de luxo ao alcance da mão reconfortavam. 

Antes de partir na caravana, Angélica pedira à sua amiga Abi-gail Berne que lhe aparasse um pouccíos longos cabelos. Trazia-os agora sobre a nuca, tocando os ombros, emoldurando-lhe o rosto com sua massa luminosa. Eram abundantes e sedosos, com ondas largas, cachos vaporosos nas extremidades e uma leve franja caindo sobre a testa que o sol bronzeara.

Havia um pouco decoqueteria e provocação na maneira com que Angélica de Peyrac gostava de adornar os cabelos. Pois ao ouro cintilante da cor original já se misturavam, embora tivesse apenas trinta e seteranos, precoces cabelos brancos. Mas ela não se entristecia com isso. Na verdade sabia que. os reflexos prateados davam um encanto ambíguo à viçosa juventude que seu rosto conservava.

Para prender no cabelo um pequeno diadema encimado de pérolas, foi debruçar-se sobre o espelho da arca.

Foi nesse momento que passou uma sombra diante do pergaminho amarelado da jarrela, que foi suavemente arranhado por unhas humanas.

CAPITULO X

Angélica sai em defesa de sua égua Wallis

Após uma leve hesitação, Angélica ergueu o trinco de madeira e puxou uma das folhas da pequena janela grosseiramente talhada. Havia um homem ali, inclinado, com um ar de mistério, olhando à volta como se tivesse medo de ser notado. Ela reconheceu o jovem Yann, o bretão, que fazia parte da tripulação do Goulds-boro e que Peyrac trouxera consigo, pois era um hábil carpinteiro e um rapaz de muita resistência.

Sorria, um pouco embaraçado. Dir-se-ia que premeditava uma brincadeira. Súbito, lançou-lhe num fôlego:

-        Monseigneur quer abater a sua Wallis. Diz que o animal é manhoso e já ontem resolveu livrar-se dele.

E desapareceu. Angélica não tivera tempo de entendê-lo, mal o ouvira. Debruçou-se para chamá-lo:

— Yann!

Sumira. Ela meditava, apoiada ao peitoril, pois o aviso do pequeno bretão começava a penetrar-lhe no espírito. Em poucos instantes causou uma devastação fulgurante. Os olhos dela faiscaram. A cólera fez-lhe o coração disparar com tanta violência que por pouco ela não sufocou. Procurou o xale, chocando-se contra os móveis, pois o dia morria e a penumbra se adensava... Abater Wallis, sua égua, que ela trouxera ao forte à custa de dificuldades inauditas!...

É com gestos assim que os homens dão às mulheres a impressão de que elas não têm a menor importância!... E essa é uma sensação que um ser humano bem constituído, ainda que do sexo fraco, não pode suportar sem revolta.

Assim, sem sequer informá-la, Joffrey pretendia abater Wallis? O animal que, ela trouxera, arrebentando rins e punhos, às vezes com risco de vida! Todo-o trabalho que tivera para tranquilizá-la, domá-la, dobrá-la aquele país inculto, de que cada pedacinho parecia provocar naquele animal hipersensível um medo e uma repulsa insuperáveis! Wallis não suportava o cheiro dos selvagens, por exemplo, nem o da-vegetação rasteira da floresta eterna que a mão do homem jamais domesticara. Sofria na carne e no espírito os imponderáveis que lhe impunham: a imensidão, a incivilização dos-lugares, a hostilidade latente de uma natureza fechada sobre si mesma, até se "diria que sentia um sofrimento físico ao pousar o fino casco sobre aquele solo jamais trabalhado. Quantas_vezes Angélica não pedira ao ferreiro borguinhão, que integrava-a comitiva, que lhe examinasse as ferraduras? Mas ele não notara nada. Portanto, era no espírito de Wallis que se desenrolava o drama. Ainda assim, sua dona vencera, ou quase...     .

Prestes a atravessarão outro aposento como um vendaval, Angélica se conteve.. Devia temperar um pouco a violência de seus impulsos a fim de não criar problemas para o jovem bretão. Ele dera prova de certa coragem ao yjr infbrmá-la, já que não fora incumbido disso. Joffrey de Peyrac era um amo cujas decisões seus subordinados não se sentiam muito tentados a discutir. Sob o seu comando, a indisciplina e mesmo os erros se pagavam caro. Yann Le Couénnec devia ter hesitado muito.

Era um rapaz dotado de certa fineza, perto de seus companheiros mais grosseiros. Durante a viagem com frequência aparecera para oferecer auxílio à Sra. de Peyrac, segurar-lhe as rédeas de um lado, esfregar-lhe a montaria nas paradas, e os dois haviam-se tornado bons amigos.

Então, essa noite, ao saber que o conde dera a ordem de abater a égua, resolvera avisar Angélica. Esta prometeu a si mesma que ficaria calma ao conversar com o marido, e que não pronunciaria o nome do rapaz.

Envolveu-se na capa de tafetá rosa-amaranto, forrada de pele de lobo, que não tivera ocasião de estrear.

Ao vê-la, a Sra. Jonas ergueu os braços para o céu.

— Pretende ir ao baile, Dame Angélica?

— Não! Vou apenas visitar aqueles cavalheiros na outra habitação. Preciso falar com meu marido o mais breve possível.

— Não, não vá - protestou mestre Jonas. - Todos esses índios!... Não há lugar para uma mulher sozinha entre esses bárbaros!...

— Tudo o que tenho a fazer é atravessar o pátio - disse Angélica abrindo a porta.

Um tumulto assustador atingiu-a de chofre.

CAPÍTULO XI

O napeopunaao converte-se em mokuchano sob o fascínio de Angélica

A noite ainda não caíralUm grande clarão dourado, vindo do oeste, fazia reinar uma luminosidade difusa, poeirenta, um nevoeiro colorido, onde poeira, fumos e vapor se mesclavam.

Dos enormes caldeirões pretos, colocados sobre as três fogueiras, escapava numa nuvem o odor insulso e açucarado do milho cozido. Os soldados distribuíam a comida com grandes colheres de madeira, e os selvagens aglomeravam-se em torno dos caldeirões, estendendo escudelas de «asca de árvore ou de madeira, ou mesmo as duas mãos juntas para receber sua porção fumegante, sem parecerem absolutamente incomodados.

Angélica chegou até a porta do alojamento central, onde uma sentinela vigiava vagamente, trocando com os índios folhas de tabaco por meia dúzia de peles de lontra negra.

Ela não se preocupou em pedir-lhe licença para passar e entrou no aposento onde esperava encontrar o Conde de Peyrac. Ele estava lá, de fato, ocupado em festejar com toda uma companhia indistinta entre a qual Angélica teve certa dificuldade em reconhecer o Conde de Loménie e seus tenentes. A fumaça de tabaco era tão densa que o salão da feitoria parecia mergulhado em escuridão. No entanto, já haviam acendido as lâmpadas de gordura penduradas às paredes, só que a luz delas era amarela e tremula, como a de estrelas longínquas.

Em todo caso a abertura da porta dissipou o nevoeiro, deixando penetrar um pouco de ar respirável, bem como a luz de fora. Angélica pôde ver que a sala, bem grande, estava ocupada desde a soleira, que descia em dois degraus, até a lareira, no fundo, por uma longa mesa de madeira maciça, com uma profusão de recipientes fumegantes e taças de estanho, bem como de algumas garrafas de vidro escuro e um cântaro de barro, de onde saía uma espuma branca e uni odor de cerveja. Depois do cheiro do tabaco, era odor ácido o mais forte, seguido do de gordura quente, de carne cozida, do cheiro atenuado de couros e peles e, acima disso tudo, misturada como um agudo contraponto, de fineza extrema, que se ouviria em meio a um concerto de instrumentos diversos, a tonalidade sutil da aguardente.

Havia cachimbos no canto dos lábios, um copo ou uma taça ao alcance de cada mão. O jogo das facas partindo a carne em pedaços parecia muito ativo. Os maxilares faziam bom trabalho. As línguas também. O alarido das conversas em rouca língua indígena era acompanhado pelo estalar de lábios apanhando a comida, para formar um contínuo ruído de fundo que, de vez em quando, era entrecortado por uma gargalhada, explodindo como um trovão. Depois se voltava a comer e a falar, no mesmo ronco surdo.

Ao centro da mesa Angélica distinguiu o sagamore Mopuntuk, limpando as mãos nas longas tranças, e não longe do huroniano Odessonik, que ostentava na cabeça o chapéu de feltro engalo-nado de ouro do Tenente de Falieres. Angélica teve a impressão de haver caído em pleno acampamento indígena. Mas os chefes índios só estavam ali, segundo o hábito, como convidados à mesa dos brancos, e eram bem os brancos que, apesar de algumas aparências desconcertantes, comiam naquele final de dia de outubro para comemorar um encontro tanto mais fortuito por ocorrer num ponto quase ignorado do continente entre pessoas que, vindas de direções diferentes, tinham tido, secretamente, a vontade de se evitar ou de se aniquilar. Sob a cordialidade aparente, as pessoas espreitavam-se. A tensão, o choque dos pensamentos contrários não se exteriorizavam. O Conde de Loménie-Chambord talvez fosse sincero ao afirmar que se sentia feliz com o encontro pacífico com o Conde de Peyrac, mas Dom Juan Alvarez, o capitão espanhol de Peyrac, sentado, sombrio e desdenhoso, entre um índio e um francês, irritava-se com a presença daqueles invasores num local que as decisões do papa haviam, desde 1506 e pela eternidade, entregado aos súditos de Suas Majestades Muito Católicas, o rei e a rainha da Espanha.

O irlandês O'Cofmell, vermelho como um tomate, meditava sobre as explicações que um pouco mais tard€ teria que dar ao Conde de Peyrac acerca da invasão; os dois ou três caçadores franceses vindos com aquele do Down Èast preferiam não ter que fornecer explicações a respeito de suas ocupações durante o ano precedente aos dois ou três caçadores amigos seus, vindos do norte, que - alguns, como L'Aubigniere - tinham seguido para a feitoria do Kennebec com vaga ideia de ali encontrar o novo traficante de peles, masnão os soldados e oficiais de Sua Majestade Luís XIV.

Quanto ao velhíssimo Elói Macollet, que há duas luas escapara aos dedicados cuidados da~nora na aldeia de Levis, perto de Quebec, e remara para as profundezas da floresta com a firme intenção de nunca mais-rever ninguém, exc"eto ursos e alces, no máximo alguns castores também, dizia consigo que a América, na verdade, não era um lugar para gente que ama a solidão. E um país completamente "desperdiçado". Com o gorro de lã vermelha enfeitado còm duas penas de peru enfiado até as sobrancelhas hirsutas, o velho remoía a desventura junto com a piteira do cachimbo de barro, mas, com o auxílio do álcool, no terceiro copo seus olhos tinham recomeçado a cintilar alegremente e ele pensava que pelo menos a nora não viria procurá-lo ali e que não era desagradável rever-se entre bons amigos num napeopu-nano conforme as regras, o "festim do urso", só de homens, realizado segundo os ritos depois de se haver insuflado tabaco nas narinas do animal e lançado ao fogo um bocado de carne e uma colherada de gordura, para dar sorte.

Pont-Briand, que matara o urso, fora o primeiro a comer, trinchando o pedaço à volta do pescoço e distribuindo aos amigos a nádega, um regalo. Era outono, a estação em que os ursos, alimentados com o fruto das centáureas, são-particularmente saborosos.

Mal o velho concluíra suas reflexões e por pouco não sufocou com um ossinho. Cuspiu, praguejando." Tivera a impressão de avistar a nora entre a fumaça, dirigindo-se para ele. Mas não, não era Sidónia; em todo caso era uma mulher, parada à soleira da porta, observando-os.

Uma mulher num napeopunano! Que sacrilégio! Uma mulher no interior da região mais deserta do sul da Chaudiere, no local onde quase ninguém gosta de descer quando vem do Saint-Laurent, aonde nunca se sobe quando se é das margens da Acádia, sobre o oceano, um lugar onde se evitaria extraviar-se, caso não houvesse de tempos em tempos alguns hereges a escalpelar na Nova Inglaterra.

O velho soltou gritos inarticulados, debatendo-se entre as voltas de fumaça e os vapores espessos do cozido de milho. Seu vizinho, Francisco Maupertuis, fê-lo sentar-se de novo.

- Fica calmo, avô!

O sagamore levantou a mão e falou solenemente, apontando a mulher. Contou uma história obscura de tartaruga e iroque-ses, e disse que aquela mulher vencera a tartaruga e tinha o direito de sentar-se entre os guerreiros.

Então não era mais um napeopunano, o festim dos homens, mas um mokuchano, e para isso não valia a pena correr até tão longe para evitar uma saia. De resto aqueles metallaks dos lagos Umbagog são os mais imbecis dos algonquinos, caçadores, claro, pois a terra deles é o paraíso da caça, mas os mais estúpidos dos índios, a quem não se conseguia ensinar sequer o sinal-da-cruz.

Cale-se velho demente! - gritou-lhe Francisco Maupertuis, enterrando-lhe o gorro até os olhos. - Não tem vergonha de insultar uma dama?

A barba de Maupertuis agitava-se de indignação e excitação. Achava Angélica muito perturbadora em sua aparição por entre os véus azulados de fumaça de tabaco, com seus cabelos claros e brilhantes, sobre os quais a luz do anoitecer, entrando pela porta, lançava reflexos dourados. Mal a reconhecia. No entanto, tinham vindo juntos de Gouldsboro, na caravana. Só que, com o cabelo solto e envolta naquela grande capa cor da aurora, ela já não era a mesma.

Parecia descer de um quadro, de uma daquelas telas que se viam na casa do governador de Quebec, com os cabelos sobre os ombros e a mão branca saindo de um pequeno punho de renda e pousada sobre a madeira rugosa. Pareceu-lhe frágil e não mais a infatigável amazona das semanas passadas.

O caçador quis acorrer em seu socorro, enredou os pés no escabelo e caiu de cabeça no chão de pedregulhos. Levantando-se, e segurando o nariz machucado, acusava a aguardente traiçoeira de 0'Connell. O irlandês devia misturai cevada fermentada e raízes fervidas, para torná-la .tão violenta.

Hesitando entre o riso e o receio, Angélica pensava consigo que no final das contas nem quando geria outrora a Taberna da Máscara Vermelha contemplara tão bela reunião de homens. Entre os quais, o seu não lhe parecia o menos temível!...

Ele ainda não notara sua entrada. Estava sentado à extremidade da mesa e fumava seu longo cachimbo holandês, conversando com o Sr. de Loménie. Quando ria, via-se-lhe o brilho dos dentes cerrados em tprno da piteira do cachimbo. Seu perfil negro e abrupto destacãva-se contra as chamas dançantes da lareira.

Havia na cena algc* que lembrava irresistivelmente a Angélica cenas passadas: o grande Conde de Toulouse recebendo no Palácio da Gaia Ciência seus convidados por entrego fausto da baixela de ouro e dos pratos suntuosos. Era assim que presidia à mesa, e por trás delegas chamas da lareira monumental, de fundo brasonado e frontão esculpido, contorciam-se e projetavam suas luzes alegres sobre os veludos, os cristais, as rendas...

A cena do momento assemelhava-se a uma paródia daqueles tempos felizes. Tudo parecia combinar-se para fazer sentir a Angélica a decadência em que ele e ela, no decorrer dos anos, tinham sido lançados. Já não eram senhores graciosos e damas gentis que se sentavam à sua mesa, mas criaturas de todas as condições: caçadores, selvagens, soldados, e mesmo entre os oficiais se sentia o toque grosseiro conferido por uma existência rude, perigosa, unicamente voltada para as peripécias da guerra e da caça.

Até a distinção do Conde de Loménie se diluía naquela concentração de elementos demasiadamente viris: tabaco, couro, caça, álcool, pólvora. Descobria-se que também ele tinha a pele bronzeada, os dentes carniceiros, o olhar sonhador e fixo do fumante de tabaco.

Descobria-se que Joffrey de Peyrac também se afinava com aquele mundo brutal.

O mar, as tempestades, a vida de corsário, as batalhas incessantes, os combates sem mercê, a luta travada a cada dia, a espada ou a pistola na mão, para fazer triunfar ambições, dominar homens, alcançar um objetivo, vencer uma natureza extremada - deserto, oceano ou floresta -, haviam acentuado nele aquele lado aventuroso que, outrora, por vezes se adivinhava sob a elegância do grão-senhor e os gestos comedidos do sábio. Transformado em chefe de guerra por necessidade, mas também por gosto, fizera sua vida entre os homens.

Angélica esboçou um movimento de recuo.

Mas Pont-Briand dera um pulo. Mais feliz do que Maupertuis, conseguiu manter-se sobre as pernas e chegar até ela. Aliás, não estava bêbado. Até o momento só tomara duas boas taças de aguardente, para se pôr em forma.

-        Senhora, minhas homenagens...

Estendeu-lhe a mão e ajudou-a a descer os dois degraus, depois guiou-a, para encontrar-lhe um assento, até o centro da mesa. Ela hesitava, resistia um pouco.

-        Receio, senhor, que minha presença seja considerada ofensiva pelos chefes índios. Diz-se que não recebem mulheres de bom grado em seus festins...

O sagamore Mopuntuk, que estava perto, levantou a mão e pronunciou novamente algumas palavras. Pont-Briand apressou-se a traduzi-las para Angélica.

-        Veja, senhora, o sagamore nos repete que é digna de sentar entre os guerreiros, pois venceu o símbolo dos iroqueses... Assim, não tenha escrúpulo algum em nos dar a alegria de sua presença.

Com gestos vigorosos, abriu lugar ao centro da mesa. Não podendo segurar o Cabo Jeanson, que ele afastara com vivacidade excessiva e que se debatia embaixo da mesa, foi buscar um jovem colosso de belo rosto. Aterrou-o à força à direita de Angélica, enquanto ele próprio se instalava à esquerda.

A intervenção de Pont-Briand e de Mopuntuk havia chamado atenção. O estrépito de vozes cessou e todos os olhares convergiram para Angélica.

Ela teria preferido estar ao lado do marido para explicar-lhe as razões de sua vinda. Mas era-lhe difícil escapar à peremptória acolhida do tenente e de seus amigos. O vizinho da direita inclinava-se e tentava beijar-lhe a mão, errou o alvo, presa de um soluço que teve muita dificuldade em controlar. Desculpou-se com um sorriso.

-        Apresento-me: Romain de L'Aubigniere! Creio que já me viu. Perdoe-me, não estou sendo preciso. Se tivesse chegado um pouco mais cedo... Mas tranqúilize-se, ainda estou suficientemente lúcido para não insultá-la, vendo dobrado, e achando que haja outra mulher tão bela quanto a senhora sobre esta terra. Eu vejo e basta. Afirmo que é a única... única...

Angélica começava a rir, mas seu riso imobilizou-se quando seu olhar recaiu sobre as mãos do rapaz. Na esquerda, faltavam o polegar e o dedo médio; na direita, --o anular. Os dedos restantes tinham as-extremidades túrgidas, algumas sem unha e, em seu lugar, pedaço~s de .peje endurecida e enegrecida. Quando ele lhe fora apresentado na-floFesta", ela não notara a deficiência.

— Não preste ateflçao, belasenhora.- exclamou alegremente L'Aubigniere. - Isto são apenas algumas recordações que devo à amizade.dos iroqueses. Não é bonito, admito, mas não me impede de usar meu fuzil.

— Os iroqueses o torturaram?

— Capturaram-me quando eu tinha dezesseis anos, num outono em que eu fora caçar patos no brejo, nos arredores de Trois-Rivieres. E por isso que agora também me chamam de Três Dedos de Trois-Rivieres.

E como ela não pudesse deixar de olhar com piedade aquelas mãos horríveis:

— Começaram cortando-me três dedos com conchas afiadas. Este polegar que me resta foi queimado num cachimbo. Quanto aos outros, as-unhas foram arrancadas com os dentes, e depois alguns dedos também foram queimados.

— E você resistiu?

Era a voz de Florimond, que estendia a cabeça desguedelhada por sobre a sopeira. Seus olhos brilhavam de excitação.

-        Nem um grito, rapaz! Acha que eu daria o gosto àqueles lobos de me verem fazer caretas e me contorcer? Seria condenar-me à morte igualmente, mas pela mão das mulheres. Que vergonha! Quando viram que eu possuía a resistência de um guerreiro, adotaram-me e fiquei mais de um ano com eles.

— Você fala iroquês?

— Talvez até melhor do que Swanissit, o grande chefe dos senecas...

E de súbito acrescentou, com um olhar à volta que parecia descobrir alguma coisa para além das aparências.

-        É a ele que procuro aqui.

Tinha olhos negros num rosto moreno. Os cabelos eram castanhos, bem cacheados, e caíam-lhe sobre o casaco de pele à indígena, guarnecido de grandes tiras de couro. Em torno da cabeça usava uma faixa bordada de perolazinhas minúsculas, que atrás seguravam duas plumas. Sem dúvida era aquela fita entre seus cabelos que lhe dava um rosto efeminado e quase pueril, apesar de sua compleição de urso e de uma estatura acima da média.

— Se é Swanissit que procura, meu rapaz, então parece é que está fugindo dele, pois ele estava no norte, no lago Mistassini, no mês passado, com uma expedição de sua nação - disse o Conde de Loménie. - Soubemos por dois selvagens que felizmente escaparam das mãos deles quando estes se aproximavam da aldeia dos dois indígenas.

— E eu afirmo que ele está aqui - exclamou L'Aubigniere, dando um murro na mesa. - Veio ao encontro de Utakê, o grande capitão dos mohawks. Capturamos um iroquês na noite passada. Ele falou... Onde utakê estiver, você encontrará Swanissit. Escalpelemos a ambos e as cinco nações iroquesas estarão aniquiladas.

— Você quer é vingar seus três dedos - disse Maupertuis, rindo.

— Quero vingar minha irmã e meu cunhado e também os pais de meu vizinho Maudreuil, aqui presente. Faz seis anos que estamos na pista dessa raposa velha do Swanissit, para fazer-lhe o cabelo... Tenha paciência - disse ele dirigindo-se ao barãozinho a seu lado. - Um dia o escalpo de Swanissit estará em suas mãos. E o de Utakê, nas minhas.

E continuou: - Quando estive entre os iroqueses, Utakê foi meu irmão. É a criatura mais eloquente que conheço, a mais dissimulada, a mais vingativa. É um pouco feiticeiro e estreitamente ligado ao Espírito dos Sonhos. Eu o amo e o odeio. Digamos que o estimo por seu valor, mas hei de matá-lo de bom grado, pois é o pior animal com que um francês pode topar em seu caminho.

— Pretende ou não dar de comer a essa senhora, primo? - interrompeu-o mal-humorado Elói Macôllet.

— Sim, avô, não se irrite. Senhora, estou confuso. Pont-Briand, não poderia fazer alguma coisa?

— Pois estou procurando um pedaço nesta comida infecta que seja digno do garfo de uma bela jnulher, mas...

— E este, a pata do urso, é o melhor, você não conhece nada, Pont-Briand, meu irmão, bem se vê que chegou há pouco tempo...

— Eu? Tenho quinze anos de Canadá!...

— Vão dar-lhe de comer? - resmungou de novo o velho, ameaçador.

— Pronto, pronto.

Puxaram a travessa enorme onde rodelas gelatinosas e escuras nadavam numa gordura cor de âmbar. Romão de L'Aubigniere mergulhou os dedos mutilados.sem se preocupar com queimaduras. Com destreza, separou da carne cozida as garras aceradas, pequenos estiletes curvos e cruéis, que o cozimento amolecera um pouco, mas que ao se empilharem sobre a mesa soltavam estalidos.      

-        Com isto o nosso amigo Mopuntuk fará um adorno muito elegante para os quadris ou o pescoço. Aqui está, senhora, um bocado que poderá apreciar sem correr o risco de que uma das armas defensivas de Maskwa, o Senhor Urso, lhe fique atraves sada na garganta.

Angélica examinava, circunspecta, o pedaço de carne de urso que seus vizinhos, solícita e cortesmente, haviam-lhe colocado no prato, regando-o com o molho untuoso. Ela viera discutir com o marido a questão da égua e se via caída na armadilha de um festim quase oficial. Lançava olhares para o marido, que estava bem afastado, na extremidade da grande mesa, mas por causa da fumaça e da agitação dos convivas não conseguia cruzar-lhe o olhar e percebia mal a expressão dós traços dele. Tinha consciência de que às vezes ele a fitava de maneira enigmática. Ela resolveu demonstrar polidez para satisfazer os franceses um pouco embriagados que a haviam convidado a sentar-se e que poderiam levar a mal o seu desdém. Quase não sentia fome, mas afinal de contas já fizera na vida coisas mais difíceis do que comer urso, e levou um pedaço à boca.

-        Beba! - disse Pont-Briand. - Há que beber para descer toda essa gordura.

Angélica bebeu e por pouco não caiu tesa.

Toda a mesa seguia cadaum de seus gestos num silêncio pesado. Dir-se-ia serem todos caçadores de tocaia.

Felizmente Angélica aprendera a beber na corte da França, e pôde fazer boa figura.

-        Começo a entender por que os índios chamam o seu álcool de água ardente - disse, ao se recobrar.

Todos caíram na risada e a contemplaram encantados. Depois cada um mergulhou na própria escudela e a algaravia das conversas recomeçou.

Angélica notou o cozinheiro Otávio Malaprade, que vinha do fundo da sala, trazendo aves assadas. Pensando em seus amigos Jonas, soergueu-se com a intenção de pedir-lhe que levasse alguns pratos até a casa. Mas Pont-Briand reteve-a com tal força que lhe machucou o antebraço.

-        Não se afaste - disse com voz premente. - Eu não poderia suportar.

Na outra extremidade da mesa, o Conde de Loménie captou o movimento de cólera de Peyrac, que se erguera a meio, e interpôs-se:

-        Permita, conde - disse baixinho -, vou desembaraçar a Sra. de Peyrac e conduzi-la ao lugar de honra. Fique tranquilo, tomo-a

sob a minha guarda. Evitemos incidentes... Estão todos bêbados.

De repente Angélica viu inclinar-se à sua frente o coronel francês.

-        Senhora, permita que eu a conduza ao lugar que lhe cabe de direito, como castelã deste local.

Dizendo isso, com um olhar breve mas imperioso, intimou Pont-Briand a soltar-lhe o braço. Tomando ele o braço de Angélica, levou-a muito galantemente para a outra extremidade da mesa, que estava desocupada, sentou-a e instalou-se à sua direita. Angélica agora estava ainda mais afastada do marido, mas via-o exa-tamente à sua frente, do outro lado, e era exatamente como no tempo da Gaia Ciência. O coronel fez-se solícito e mandou servir-lhe peru assado acompanhado de legumes passados na brasa.

-        Eis um alimento mais de acordo com seus gostos de jovem recém-desembarcada da França.

Ela protestou. No final das contas, ensopado de urso negro não lhe parecera tão grosseiro. Adivinhava que se acostumaria sem dificuldade. 

-        Mas não forcemos a natureza inutilmente - disse Loménie. - Verá que no outono temos muita caça emplumada, a que nosso paladar de europeus está mais habituado. É melhor aproveitar. Senhor - disse a Malaprade -, a Sra. de Peyrac deseja enviar uma ceia confortável a seus amigos na pequena habitação. Quer fazer o obséquio de providenciar?

E recomendou ao cozinheiro que incluísse unia garrafa de bom vinho na refeição.

Por maisiiêbado que estivesse ó Tenente de Pont-Briand, a intervenção de seu coronel bastou para torná-lo sóbrio.

— Não sei o que me deu - resmungou, lastimando-se, a L'Aubigniere.

— Você es.tá louco! - disse o outro, preocupado. - Louco ou enfeitiçado... Mas cuidado! Talvez a Diaba da Acádia não seja um mito!... Essa mulher é-realmente bela demais... E se fosse "ela"? Lembra-se das palavras do Padre d'Orgeval?...

Sentada ao lado do Coronel de Loménie-Chambord, Angélica começava a descontrair-se.

O marido estava à sua frente, como antigamente. Via-o à extremidade da mesa, num halo um pouco anuviado, e assim como outrora, quando ele começava a amá-la, sentia-lhe o olhar atento pousado sobre ela. Isso comunicava-lhe uma sensação de euforia, o desejo de brilhar e de participar do que a rodeava. Estava feliz. O álcool começava a embaralhar-lhe um pouco as ideias. Esquecia por que viera. O encanto cortês do coronel agia sobre ela. A simpatia que lhe inspirara desde o primeiro contato transformava-se num sentimento de confiança.

A simplicidade de suas maneiras, de seus gestos nítidos e precisos, era acompanhada de uma espécie de graça envolvente e suave, na qual o espírito observador de Angélica não deixou de perceber o hábito que aquele homem tinha de conversar com mulheres. Não no sentido de galanteria, que frequentemente é associado a esse hábito, mas no sentido, mais raro, que consiste em saber falar com as mulheres uma linguagem que lhes é familiar e que as põe à vontade - que, numa palavra, sem tentar seduzi-las, tranqúiliza-as e cativa-as. Ele a intrigava, e havia algo de inusitado nele.

Ela o ouvia falar das regiões do norte, das três cidades francesas à margem do Saint-Laurent, das inúmeras tribos que formigavam à volta delas, e quando Angélica indagou sobre os huronianos, ele confirmou que esses índios eram de origem iro-quesa. Haviam-se separado de seus irmãos do Vale Sagrado em tempos já longínquos, em consequência de alguma disputa desconhecida, e agora se consideravam inimigos ancestrais. Fora com os huronianos que o primeiro explorador francês, Jacques Car-tier, aprendera o nome dos iroqueses, uma palavra que quer dizer "víboras cruéis".

Não importa o que se dissesse, sempre se voltava a falar dos iroqueses. Os vizinhos contíguos de Angélica ficaram contentes por encontrar uma oportunidade de participar da conversa, falando sobre um tema que conheciam e que parecia interessá-la. Todos se sentiam subjugados pelos seus modos de grande dama. Cada um pressentia que aquela mulher se sentara à mesa do rei. Não duvidavam de que tivesse reinado na corte, por entre homens que a cercavam de homenagens. Pressentiam que fora adulada por príncipes.

Pormenorizavam cada um de seus gestos, a maneira de cruzar as mãos flexíveis, de nelas apoiar o queixo, de fitar ousadamente o interlocutor ou, ao contrário, de baixar as longas pálpebras com um ar sigiloso, ao ouvi-lo, de mordiscar algo distraidamente, de agarrar a taça e esvaziá-la de um trago, sem cerimonias, e de súbito rir às gargalhadas, um riso irresistível.

E foi um estranho paraíso que se abriu naquela noite para aquelas disparatadas criaturas reunidas em Katarunk.

Com aquela mulher à sua mesa, era o céu sobre a terra, a primavera em pleno inverno, a beleza que descera entre eles, rústicos que eram, cheirando a couro e suor, era a luz do sol atravessando as brumas de tabaco, e um sorriso de mulher como um bálsamo sobre seus corações endurecidos. Sentiam-se como heróis, a alma firme e o espírito ágil, e as palavras lhes vinham por si para descrever as regiões qúe haviam percorrido ou expor um ponto de vista.

Romão de L'Aubigniere falou do Vale Sagrado dos iroqueses, da luz rosada que banha as vertentes onde se alinham longas casas de casca de árvore com o teto arredondado, do cheiro do milho verde: - ...são raros os que retornam vivos desse vale... São raros os que retornam com todos os dedos...

— Eu - disse Perrot, exibindo as mãos abertas.

— Você! A você eles consideram um.pouco bruxo. Você deve ter feito uma aliança com o Diabo, meu amigo, para se safar...

— Não é estranho que o simples nome "francês" lance os iroqueses em transesdé furor demente, e isso não é prova de que os génios do mal os habifam de modo mais particular? - observou um caçador chamado Aubertin. - Parecem recear nos franceses sobretudo o poder dá religião que estes trazem. Olhe como trataram nossos missionários!... Jamais poderemos nos gabar de estarmos protegidos contra seus avanços, nem no inverno. Não foi em pleno mês de fevereiro que atacaram seus domínios, Mau-dreuil, e os seus, L'Aubigniere? Escalpelaram seus pais e seus criados, e atearam fogo às propriedades.- E os feridos morreram de frio...

— Sim, foi bem assim que aconteceu - disse Eliacin de Mau-dreuil.

Seus olhos azuis brilharam com um fogo sombrio, como se a dor ali estagnasse como chumbo derretido.

— Foi Swanissit quem fez isso, com os senecas dele, e desde então praticamente não parou de correr, semeando o terror por toda parte. Não o deixarei regressar a seu covil sem arrancar-lhe a cabeleira.

— E eu ficarei com a cabeleira de Utakê - disse Romão de L'Aubigniere.

Mopuntuk levantou a mão e ergueú-sé para falar. Ouviram-no num silêncio religioso.

Os brancos presentes haviam aprendido com os selvagens a não cortar a palavra um do outro e a se escutar mutuamente com respeito. Todos ali pareciam entender o discurso do chefe dos metallaks. Loménie, adivinhando a curiosidade de Angélica, inclinou-se para ela e murmurou-lhe a arenga que fazia o sagamore.

— O Iroquês está aqui, à nossa volta. Ronda como um coiote esfomeado. Deseja a destruição dos filhos da aurora. Encontramo-lo no limite de nossos territórios. Anunciava-nos a guerra. Mas a mulher branca não temeu enfrentá-lo e lançá-lo às águas. E agora o Iroquês perdeu sua força. Ele sabe disso. Vai pedir a paz.

— Deus te ouça - replicou Perrot.

— Outra vez essa história da tartaruga!... - disse Angélica a Loménie. - Na hora tive medo, confesso. Mas nem me passou pela cabeça atribuir ao incidente um significado tão místico. Tem realmente tanta importância?

Tomou um gole de aguardente e sentiu no fundo do copo um perfume de bagaço de maçã. Loménie observava-a, sorrindo.

— Creio que a senhora começa a se tranquilizar - disse. - Está no ponto em que as histórias de horror cotidiano já não lhe causam maior efeito do que as últimas tagarelices da vizinhança. Verá que a gente se habitua logo.

— Talvez seja graças a esta generosa aguardente, e também graças ao amparo de sua gentileza para comigo - disse ela, lançando-lhe um olhar afetuoso. - Você sabe lidar tão bem com as mulheres!... Oh, não se equivoque. Quero dizer que tem um modo todo seu, raro num homem de guerra, de inspirar-lhes confiança, tranquilizá-las, dar-lhes a impressão de que existem. Onde adquiriu esses talentos, Sr. de Loménie?

— Pois bem - fez o conde, sem se desconcertar -, penso que foi durante os anos em que me vi a serviço do Sr. de Maisonneuve.

E contou como chegara ao Canadá quando aquele corajoso gentil-homem viera fundar Ville-Marie, na ilha de Montreal. Na época chegavam casais da França, ou Moças do Rei, enviadas para se casarem com os colonos. Ele, Loménie, era encarregado de ir recebê-las à margem do rio Saint-Laurent, de orientá-las e encorajá-las em sua nova existência, tão desconcertante.

-        Vivíamos então expostos a ataques incessantes dos iroqueses, e não havia um só homem que não corresse o risco de perder o escalpo já na soleira da própria casa. Os colonos ceifavam com os fuzis ao alcance da mão. As Moças do Rei que nos envia

vam eram na maioria educadas, afáveis e de bons costumes, mas pouco informadas acerca da administração de uma casa ou dos trabalhos nos campos. A Srta. Bòurgoys e eu estávamos incumbidos de instruí-las.  

— Quem .era essa Srta. Boúrgoys?

— Uma santa moça, vinda' da França com o único objetivo de instruir os filhos dos colonos.

— Sozinha?

— No início, sim, sob a proteção do Sr. de Maisonneuve. Na época nosso governador não achava possível levar para um forte tão avançado uma ordem de religiosas. O mais frequente era vivermos todos reunidos no forte. A Srta. Boúrgoys cuidava dos feridos, lavava a roupa, ensinava as mulheres á tricotar e resolvia as pequenas disputas."

— Gostaria de conhecer essa mulher - disse Angélica. - Ainda está no Canadá?'  

— Certamente! No decorrer dos anos encontrou companheiras para auxiliá-la em suá tarefa e agora está*à testa de uma pequena congrãgação que educa mais de uma centena de crianças em Ville-Marie, e também nas aldeias afastadas, nos arredores de Quebec e de Trois-Rivieres. De minha parte, como Montreal já podia viver com as próprias forças e o Sr. de Maisonneuve fora chamado de volta à França, coloquei-me sob as ordens do Sr. de Castel-Morgeat, governador militar da Nova França. Mas não esqueço o tempo em que me fantasiava de mestre-cuca para ensinar às francesinhas recém-desembarcadas receitas culinárias capazes de reter-lhes o marido no lar.

Angélica ria ao imaginar o oficial de avental azul, inculcando os rudimentos da culinária trivial a alguma meretriz de aldeia ou órfã do Hospital Geral, de quem a administração generosamente se livrara, enviando-a para casar-se além-mar.

— Devia ser maravilhoso viver em sua companhia, ser recebida por você. Todas as mulheres deviam estar loucas por você...

— Não, não creio - disse Lomériíe.

— Você me surpreende. É tão encantador!...

Loménie ria, percebendo que ela começava a embriagar-se.

-        Não havia dramas passionais? - indagou Angélica.

-        Não, garanto-lhe, senhora. Veja, éramos um grupo muito religioso, de costumes rigorosos. Sem isso não teríamos podido nos manter nos postos avançados da cristandade. Eu mesmo sou um religioso, pertenço à ordem dos Cavaleiros de Malta.

Angélica abriu a boca, atónita.

-        Oh, que louca eu sou!

E exclamou, extasiada:

-       Um cavaleiro de Malta! Que felicidade! Gosto muitíssimo dos Cavaleiros de Malta. Tentaram comprar-me quando fui vendida como escrava no batistãn de Cândia... Enfim, fizeram o melhor que puderam... Os lances foram altos demais, mas jamais esquecerei o gesto deles... E quando penso em todas as tolices que lhe disse! Oh, sou imperdoável!

Atirou para trás o pescoço maravilhoso e caiu na risada.

Todos, inclusive Loménie, olhavam-na encantados. O riso de Angélica revelava-lhes a presença feminina com uma perturbadora realidade.

Peyrac contraiu os maxilares. Observara-a com paixão, subjugado pelo seu encanto: agora, porém, sentia-se encolerizado contra ela, queria-lhe mal por aquela faiscante sedução, seus olhares, suas, gargalhadas e sua atitude matizada de coqueteria para com Loménie. Era flagrante que o homem lhe agradava! E depois, ela bebera demais.

Como era bela!

Aquele riso revolvia a felicidade no fundo dos corações.

Não! Decididamente não se podia querer-lhe mal por ser tão bela e atrair todos os olhares. Ela fora criada para fascinar...

Esta noite ele saberia lembrar-lhe que ela pertencia apenas a ele!...

Clóvis, o auvergnat, gnomo tenebroso, com gorro de lã, apareceu de repente ao lado de Peyrac. Trazia um mosquete embaixo do braço.

-        Vou abater a égua, senhor conde - cochichou.

Peyrac lançou mais um olhar na direção de Angélica. Se ela estava um pouco fora de si, pelo menos em Loménie se podia confiar.

-        Bem, eu o acompanho - disse ele, levantando-se.

CAPÍTULO XII

Olhos luminosos espreitam Angélica da escuridão

Angélica te-ve um sebrSssako tão forte que Loménie, surpreso, avançou-a mão como que para ampará-la.

-        Não foi nada - balbuciou eja -, mas...

Acabara de perceber que o lugar do marido estava vazio. Ergueu-se de um salta.

— Desculpe-me, mas tenho que me retirar...

— Já, senhora?,Ficaremos todos desolados. Não pode quedar-se mais um pouco?

— Não, não, tenho que trocar duas palavras com o Sr. de Pey-rac... e vejo que ele saiu...

— Permita-me pelo menos acompanhá-la.

— Não, por favor... Fique com seus amigos... Posso muito bem...

Mas Loménie se comportou como deve fazê-lo todo homem galante em relação a uma mulher amável que ele adivinha ligeiramente embriagada. Sem insistir, amparou-a até a soleira, abriu-lhè a porta e só a deixou quando teve certeza de que o ar puro lhe fizera bem e que ela se mantinha nas pernas e estava a dois passos de sua casa.

Assim que ele a deixou, Angélica lançou-se às carreiras através do pátio, que estava mais atulhado do que nunca.

Angélica abriu passagem sem cerimonias até a porta da paliçada. Avistou o marido, que descia rumo à pradaria à beira do rio, ladeado pela silhueta baixa do ferreiro auvergnat, que levava um mosquete.

Disparou na corrida.

Não era fácil circular entre os cepos traiçoeiros, enroscados de plantações de feijão. Angélica prendeu o pé e caiu violentamente de joelhos. Praguejou como um ladrão. Mas o choque devolveu-lhe um pouco de sobriedade. Levantando-se, prosseguiu mais devagar, pousando o pé com mais cuidado. Tremia de impaciência. Receava chegar tarde demais...

Em sombras negras contra o poente cintilante, via a silhueta dos cavalos, pastando a erva rara nascida de vasas ressecadas.

Finalmente atingiu um ponto de onde sua voz seria ouvida.

-        Joffrey! Joffrey!

O conde voltou-se.

Angélica ofegava quando o alcançou.

— Vai matar Wallis?

— Sim!... Quem lhe contou?

Angélica não se dignou responder. Sufocava, fora de si. Não conseguia ver o rosto de Joffrey de Peyrac, contra a luz, e parecia-lhe que odiava aquela forma masculina negra e opaca, erguida à sua frente como uma rocha.

— Não tem o direito de fazer isso - gritou. - Não tem o direito. Sem me avisar... Eu trouxe... sim, eu trouxe esse animal até aqui, à custa de dificuldades e cansaços inauditos. E agora você quer aniquilá-lo com um simples gesto.

— Minha cara, surpreende-me que tome sua defesa. A égua provou que é um animal manhoso e indomável. Com seu pânico ontem, diante da tartaruga, por pouco não foi a causa de sua morte e da de sua filha. Ao romper a corda, à noite, forçou-a a uma busca que poderia ter acabado bem mal...

-        O que importa! Cabe a mim julgar isso. Não é da sua conta...

Seu fôlego continuava entrecortado e a voz, fremente.

-        Você a confiou a mim para que eu a trouxesse, e eu o consegui. Simplesmente o ruído da queda-d'água a impedia de me ouvir. E o cheiro horrível desses índios, que ela não pode supor tar. Como eu, aliás. Não é ela a culpada, é o país. E você ia abatê-la sem ao menos me avisar! Ah, jamais poderei me entender com o homem em que você se tornou... eu teria feito melhor se...

Angélica soltou um soluço. Achou que ia rebentar em soluços. Desviou-se e disparou na corrida tão depressa quanto podia, e em tal estado de excitação que não tropeçou uma vez sequer.

Só parou quando se viu sem. fôlego, junto a um riacho onde o poente se refletia.

Por instinto; correra na direção da luz, para ali onde a planície e as montanhas ainda estavam esbraseadas pelos raios do sol desaparecido. Dera as costas à noite e aó alarido do acampamento, e agora, no silêncio, o ruído de sua própria respiração lhe parecia altíssimo, como que amplificado. Dir-se-ia que toda uma paisagem grandiosa e taciturna se imobilizava de súbito para escutar aquela mulher Solitária recobrar o fôlego.

"Decididamente, estou completamente bêbada", pensou. "Pois sim que volto a-beber-desse detestável álcool canadense!... O que foi mesmo que eu contei^tp Sr- de Loménie hápouco?... Acho que até lhe disse que ijie venderam-.comò escrava no batistan de Cândia! Oh, é terrível!... E a Jõffrey? Como pude falar-lhe naquele tom?... E na frente de*um de seus homens, justamente Clóvis, o pior "de todos!... Joffrey não me perdoará nunca. Mas também, por quê? Por que ele é tão... tão..."

As palavras lhe fugiam. Ainda tinha a visão embaralhada. Respirou profundamente e "âs-batidas de -seu coração começaram a acalmar-se. Sua grande capa cor de amaranto inflava sob os ataques do vento...

No horizonte, nuvenzinhas cinzas-pérola, alongadas, amontoadas, confundiam-se com os picos de Apalaches. A oeste, pouco a pouco os montes se apagavam, numa bruma açafrão. Em compensação, a pradaria que se estendia a seus pés escurecia, mas de uma escuridão moldada de luz, que fazia pensar na translucidez fugaz do mercúrio, por léguas e léguas, listrando-se de mil lagos de ouro puro, de um clarão insustentável. Sob aquela armadura, sob aquele véu estendido, à aproximação da noite, Angélica adivinhava a verdadeira natureza daquela terra abandonada às árvores e às águas, numa renovação incessante mas estéril, e o lento movimento das montanhas estiradas até o infinito dava-lhe vontade de gemer surdamente como se deparasse com um mal imenso. Não havia fumaça sequer elevando-se lentamente de um ponto qualquer para trair uma presença humana. O deserto! A terra morta! Angélica caiu de joelhos, subjugada.

— Perto dela, as folhagens que bordejavam o riacho exalavam um odor sutil, um pouco acre, mas que ela reconheceu. Agarrou algumas folhas, esfregou-as na palma da mão.

— Hortelã! Hortelã-selvagem...

Súbito mergulhou o rosto entre as mãos, inebriando-se com aquele aroma finalmente familiar, que lhe lembrava os bosque-zinhos de sua infância. Inalou aquele odor com exaltação e suspirava passando as mãos perfumadas pelas faces e pelas têmporas.

Olhou à volta, lentamente, e lambeu nos lábios o sabor do vento.

Mas quando seu olhar atingiu o limiar do bosque, voltou vivamente a cabeça. Continuou a fitar as montanhas distantes, com o espírito vazio, perguntando a si mesma se sonhara. O que fora, afinal, que vira brilhar por entre os troncos imóveis?

Olhos!

Olhou ainda duas vezes na mesma direção para, cada vez, voltar a contemplar a planície obscurecida onde os lagos continuavam a cintilar como longos charcos de ouro, pontilhados de ilhas escuras.

Na terceira vez, afinal, não se desviou mais.

Era certo. Havia alguém a alguns passos dela. Era uma árvore que se tornara homem, uma coluna de carne viva entre os troncos de madeira, mas da mesma cor sombria e impassível.

Havia um índio em pé, ali, olhando-a, tão intimamente casado à penumbra da floresta e tão completamente imóvel, que nada parecia distingui-lo, em sua essência, das árvores que o rodeavam. Estava em pé entre elas como entre seus semelhantes. Vivia a mesma vida vegetal, de pulsações ocultas, nascido do húmus, prisioneiro de suas raízes e, como elas, testemunha sigilosa e muda, cheia de orgulho, dos tempos e das estações. Uma árvore de olhos vivos. Duas fendas de ágata numa casca lisa.

A claridade amarelada que se filtrava pelos galhos descia-lhe pelos ombros, pelos braços e as ancas, acusando-lhe a musculatura vigorosa.

Um colar de dentes de urso, brancos e luzidios, sublinhava-lhe a base do pescoço muito longo, mas largo e fortemente mus

culoso, de cujos lados pendiam brincos em forma de bolas escarlates. O rosto era curto e redondo, com traços vigorosos, nariz, maçãs e órbitas largamente modelados acima de uma boca longa e esquiva. 

As orelhas separadas, grandes e pontudas, não pareciam de modo algum pertencer àquela cabeça calhada na massa; era como se tivessem sido acrescentadas, com os brincos como ornamentos.

Saindo do meio da testa, uma enorme mecha de cabelo ia engrossando até o alto do crânio raspado, onde se abria num tufo entremeado de penas de águia e caudas pretas e brancas de jaritataca.

Tinha o cabelo como o de um huroniano.

Mas não era um huronianol

Era uma certeza gelada que a fazia examinar o índio, a seis passos dela, com a atenção"que se dedica a um animal perigoso.

Ao mesmo tempo, porém, havia algo nela que se recusava a aceitá-lo como uma realidade humana, pois ele não se movia. Tinha a imobilidade da rocha. E mesmo os olhos brilhantes perdiam a vida, à força de estarem fitos e sem movimento.

De repente ela se convenceu de que ele não existia, era uma alucinação.

Então sentiu-lhe o cheiro no vento, o odor de fera do índio, untado de gordura de urso, impregnado de tabaco e sangue, talvez ocultando nas dobras da tanga de pele escalpos ainda frescos.

O odor era bem real e fez que Angélica desse um salto, num reflexo do horror. O índio continuava paralisado. Angélica começou a recuar suavemente. Logo não o viu mais, pois o crepúsculo caía e a escuridão se adensava.

Então, voltando-se, correu na direção do forte, com o terror de sentir uma flecha cravar-se entre seus ombros.

Surpresa de continuar viva, viu-se diante da construção, por entre o ruidoso movimento do acampamento indígena. Esteve a ponto de gritar: "Alerta aos iroqueses!", mas conteve-se. Já não tinha muita certeza do que vira lá em"cima... Mas não era um huroniano... Os huronianos vivem há muito tempo à sombra dos franceses, seguindo-lhes os rastros, participando de suas guerras, acampando nos arredores de suas cidades, comendo-lhes os restos, orando a seu Deus... São chacais, sempre em bandos. Não rondam assim, sozinhos e ariscos nos bosques, como os lobos.

Ela os viu ali, dançando, agitando os guizos, os penachos, as medalhas, e, quando passou, mãos sujas tentaram acariciar-lhe a capa.

Angélica cruzou a entrada, atravessou o pátio e logo pôde fechar atrás de si a porta da pequena habitação.

Toda aquela corrida, aquele encontro, as idas e vindas num silêncio povoado de sombras, atravessado de vento e ruídos indistintos, tinham tido a incoerência de um pesadelo. Angélica sentia-se no estado de espírito da pessoa que sonha, consciente de viver certos atos, mas esquecida de quem é e daquilo que procura. Lembrava-se de que correra de um lado para o outro no crepúsculo, como que fugindo de ameaças insuportáveis, tivera a sensação de encontrar a paz ao colher a hortelã-selvagem, olhara para uma árvore e vira que não era uma árvore, mas um índio e, fitando o índio, vira que não era um ser humano, mas a imagem do ódio, e agora nem sabia mais se vira tudo isso. O fogo morria na lareira da sala de entrada. Não havia ninguém. A impressão de irrealidade se prolongava e por um instante Angélica não conseguiu se lembrar direito do que esperava encontrar ali. Um ruído obcecante, que se ampliava e depois diminuía, renovando-se sem cessar, trouxe-a de volta a si. Estremeceu. Não conseguia entender o significado daquele ruído que a intervalos regulares cortava o silêncio pesado. Finalmente compreendeu. Era simplesmente mestre Jonas, que roncava no quarto contíguo.

Angélica respirou e zombou de si mesma. Seus amigos tinham-se deitado, aproveitando o conforto rústico, tão merecido depois de semanas de viagem. Todo mundo dormia pesadamente, inclusive Honorina, sem dúvida. Sobre a mesa, escudelas lavadas e empilhadas traíam o cuidado das donas de casa protestantes de deixar a casa em ordem antes de repousarem. O balde que servira às abluções secava num canto. Haviam cuidadosamente secado os respingos de água no chão e limpado a mesa de madeira grossa dos restos da refeição.

Uma candeia fixada numa palmatória esperava, com um isqueiro ao lado. A jovem bateu o isqueiro e, empunhando a palmatória, ganhou a porta à esquerda. O quarto de onde saíra algumas horas antes também estava vazio. Mas alguém, talvez Elvira, havia discretamente levado sua roupa de viagem e suas botas para limpá-las e levantara as cortinas do leito grosseiro, dobrando a ponta do lençol de linho como num preparativo para uma noite repousante. Angélica dedicou um agradecimento amistoso à jovem gentil e foi ajoelhar-se diante da lareira para reavivar o fogo.

Maquinalmente seus dedos ágeis', hábeis em todas as tarefas, quebraram os gravetos, reuniraín as achas, evitaram os longos espinhos dos zimbros antes de atirar um punhado sobre as chamas para torná-las aromáticas. Alteando-se, o fogo soltou estalidos vivazes.       ..

Angélica pensava no homem que vira entre as árvores, perto da nascente... Nos franceses vindos do norte, do frio Saint-Laurent, para espioná-los, talvez abatê-lòs... Em seus dois filhos e na enigmática juventude deles. Pensava em Honorina... Não haveria sempre algo de insuperável entre ela e a filha, algo que nunca poderiam vencer? Pensava também no'marido e ora desejava que viesse a seu encontro, ora queria que -a deixasse só.

A angústia continuava a oprimida. Não sabia exatamente por quê. Estendeu as mãos para o fogo. A chama cresceu e crepitou. Angélica se atkiha-a coisas conhecidas e que ainda podia domesticar: o fogo, a hortelã-selvagem...

O trinco de uma"porta saltou e, percebendo na soleira do quarto a grande estatura de Joffrêy de-Peyrác, ela pensou, invadida por uma alegria de uma fome que lhe faziam o sangue .correr mais rápido nas veias: "Ele voltou... Não me deixará... Sabe que preciso dele... Ele precisa de mim... Felizmente nossos corpos se entendem..."

CAPITULO XIII

"Felizmente nossos corpos se entendem"

Quando transpôs a porta da habitação, Joffrey de Peyrac foi dominado pelo receio de não encontrá-la ali. Há pouco, à beira do rio, ela fugira tão bruscamente! Naquele momento ele hesitara em se lançar atrás dela, depois temera que o tempestuoso humor de Angélica se irritasse com isso.

De resto, antes de ir-lhe ao encontro precisava posicionar as sentinelas para a noite. Sentinelas que vigiaram as sentinelas francesas. Haveria um de seus homens para cada grupo de franceses ou de índios. Durante a noite, Cantor tocaria guitarra para os soldados e lhes cantaria canções francesas.

- Alouette, gentille alouette... Alouette, je teplumerai... Calhandra, bele calhandra, vou te depenar.

Quem depenaria a quem? Florimond iria substituí-lo às primeiras horas do dia, e se os soldados resolvessem dormir, afinal, Florimond faria o mesmo, mas só com um olho. Eram essas as ordens de Peyrac.

Otávio Malaprade ofereceria seus serviços aos oficiais; quando estes tivessem retornado aos leitos, Yann Le Couénnec assumiria o turno, pronto a dar um pulo ao menor movimento daqueles senhores.

Durante a noite toda Perrot, Maupertuis e seu filho iriam de wigwam em wingwam, entre algonquinos, huronianos e abena-kis, falando com os capitães índios, fumando com eles, entretendo-os com boas recordações.

 

Pois eram todos bons amigos, não eram? Em todo caso, era melhor não se perderem de vista um único instante.

Finalmente o Conde de Peyrac pudera dirigir-se à casa e de repente pensara: e se ela não estiver mais lá?

Tantos dias, tantos anos vivera sem ela, eom a chaga de sua ausência no peito! Agora que estavam reurndos, às vezes lhe parecia loucura. Ele duvida. Ela não está mais lá. Desaparecera de novo.

Tornou-se novamente uma sombra, uma lembrança, amarga e torturante recordação quando a imaginava rios braços de outros homens, ou morta nas areias do deserto, no Marrocos.

Aterrado, contemploup primeiro aposento deserto. Depois viu uma luz à esquerda, pela fenda de uma porta, e ouviu crepitar o fogo. Deu uma larga passada e a viu. Estava ali, ajoelhada diante da lareira, com os cabelos dourados sobre os ombros, voltando para ele os grande olhos de expressão inesquecível.

Então, sem. ruído, ele empurrou uma folha da porta e girou na fechadura a grande chave grosseirarhente forjada.

Depois se aproximou a passos lentos e apoiou-se no anteparo da lareira de pedras.

Nada podia separá-los, pensavam ambos naquele instante. Nada, enquanto a simples visão um do outro os enchesse, a cada vez, de uma premente necessidade de se unirem e se amarem.

Ela pensava que para ter a alegria de senti-lo ali, presente, sólido, plantado sobre as altas pernas rijas, em botas de couro negro, aceitaria tudo.

Ele pensava que para ter o direito de tomá-la nos braços, pousar seus lábios sobre os dela, acariciar-lhe a cintura generosa e flexível, perdoar-lhe-ia tudo...

Ela o olhou de baixo para cima e viu que ele sorria ligeiramente.

— Acho que" a bebida me desnorteou o espírito esta noite - disse ela a meia voz, com uma confusão sincera. - Quer perdoar-me pelas palavras que me ultrapassaram o pensamento?... Não matou Wallis, não é?

— Não, eu me odiaria por lhe causarlal sofrimento. Nem por isso esse animal deixa de ser perigoso e eu de ter-lhe rancor pelos riscos que a fez correr... Mas reconheço que cometi uma grossa indelicadeza não avisando-a de minhas intenções de abatê-la, um erro indigno de um homem que outrora posava de mestre da arte de amar. Por sua vez, Angélica, perdoe-me. Já faz muito tempo que não considero as mulheres como gostava de fazê-lo, no tempo de Toulouse. O Mediterrâneo é má escola para essa finalidade. O contato com odaliscasindolentes e tolas faz perder o hábito de ver numa mulher um ser pensante... Brinquedo, obje-to de prazer ou escrava, é-se levado a desprezá-las... Diga-me aonde foi correr, esta tarde",-para se acalmar, depois que me deixou...

— Lá em cima, pelas colinas a oeste. Descobri um regato perto do qual cresce hortelaTselvagem...

— Tenha cuidado!.,. É uma grave imprudência afastar-se assim do acampamento... Os perigos estão por toda parte e... não confio em ninguém. Prometa-me não repetir isso, minha querida!

Novamente a serpente da angústia levantou-se no coração de Angélica.

-        Estou com medo - murmurou.

E, olhando-o no rosto, com toda a coragem:

-        Estou com medo - repetiu. - Decepciono-o não é? Tinha- lhe dito que nunca teria medo, que podia levar-me e que eu seria forte e que o ajudaria, e aí está!

Torceu as mãos, angustiada.

-        Nada está indo conforme eu previra. Não sei se tomei as coisas pelo lado errado ou se... tudo aqui me revulsa... Pergunto-me o que viemos procurar nestes ermos assustadores e perigosos, onde todo tipo de inimigo nos espreita. Parece-me que estas distâncias enormes só podem separar-nos, que não é uma vida para nós, e que não tenho ou deixei de ter as qualidades necessárias para enfrentá-la.

E repetiu:

-        Decepciono-o, não é?

Preferia que ele dissesse de imediato, que a acusasse, que se desvendasse afinal! Mas ele permaneceu silencioso e ela via os clarões do fogo brincar-lhe no rosto sulcado e enrijecido, indecifrável.

-        Não, não me decepciona, meu,amor - disse finalmente. -Pelo contrário, gosto de saber que você não é tola nem inconsciente... De que você tem medo exatamente?

-        Não sei - confessou ela, com um gesto de impotência.

Pois eram coisas demais, e se lhe fosse preciso detalhá-las, conseguiria dizer que o que a fazia tremer eram coisas informula-das como aquele peso de um olhar invisível por trás das árvores?... E falaria do índio entrevisto naquele entardecer?...

Meneou a cabeça...

_ É pena - respondeu ele -, se soubesse nitidamente o que a assusta, isso talvez nos esclarecesse...

De um bolso do gibão tirou uma folha de tabaco enrolada em forma de charuto. Ás vezes cansava do cachimbo. Ela gostava de vê-lo fumar como no tempo do Gaia Ciência. Solícita, estendeu-lhe um graveto com a ponta incandescente..

Ele deixou que a fumaça lhe escapasse lentamente dos lábios.

-        Tenho medo principalmente - retomou ela, hesitante - de perceber que me enganei. E que sou incapaz de me habituar a este país e agente que o habita... e a você também - concluiu, com um sorriso queihe jitenuava a declaração. Uma mulher é coisa incómoda, não'"é, meu"senhor?... E oferecer-lhe, com a graça -de seu sorriso, á homenagem do sentimento ardente que a habitava. Ele fez um pequeno aceno afirmativo de cabeça.

— Sim, é incómoda uma mulher que não se pode olhar sem ter vontade de fazer amor.

— Não foi isso que eu quis dizer.

— Eu disse!

Andou pelo aposento, envolvendo-se em fumaça azul.

-        É verdade, minha cara, você me embaraça muito. Tenho que conservar a cabeça fria, e no entanto, seja qual for a hora do dia, sua aproximação me perturba. Sinto uma vontade terrível de me isolar com você, de estreitá-la em meus braços, de beijá-la longamente, de ouvi-la falando apenas a mim, de contemplá-la... Mas outras tarefas me solicitam e assim que você surge me parecem supérfulas. Sua voz me causa arrepios, seu riso me paralisa.

Esqueço de onde estou...

Conseguir pelo menos fazê-la rir. Um pouco de cor voltava-lhe às faces.       

— Não acredito. Você está dizendo loucuras.

— Loucuras, talvez, mas realidades. Não nego nada. E ainda não terminei. E incómoda, sim, uma mulher que nenhum homem pode deixar de olhar maravilhado e que por mais longe que eu a leve, para o fundo dos ermos mais áridos, pode criar-me os piores inimigos. No Gaia Ciência de Toulouse, eu pelo menos era o senhor, era conhecido, considerado, temido. Bem poucos teriam ousado arvorar-se em rivais. Aqui não é o mesmo. Resta-me ensinar à gente do Down East, bem como à da Nova França, que não sou um marido complacente. Prevejo duelos, emboscadas e manifestações sangrentas. Mas que importa! Não trocaria os tormentos que sua presença me causa pela tranquilidade às vezes amarga de minha solidão.

Voltou a apoiar-se na lareira, acima dela, e Angélica, de rosto erguido, as mãos postas sobre os joelhos, não conseguia desviar os olhos daquele olhar escuro que a admirava.

— Sua maturidade me impressiona muito - continuou Pey-rac, suavemente. - Você era uma garotinha quando a tomei por esposa. Seu cérebro, assim como seu corpo, era virgem. Hoje, quantas marcas no lugar da minha! Você não é o fruto de meu amor, conforme eu havia sonhado. Sonho, de resto, que era utópico, mesmo se tivéssemos permanecido juntos. O tempo passou. Hoje você é você! Ou seja, uma mulher em toda a acepção da palavra. Uma mulher com seus mistérios. Uma mulher que perdeu o hábito de refletir-se no outro para conhecer-se. Uma mulher só... que pertence apenas a si mesma, que se faz por si. E é isso o que por vezes me afasta de você.

— Mas... eu lhe pertenço - disse ela timidamente.

-        Não... Não de todo ainda. Mas isso virá...

Obrigou-a a levantar-se, rodeou-lhe os ombros com o braço e levou-a até um mapa que mandara prender à parede de madeira tosca.

-        Aqui... a norte e a leste: a Nova França. Ao sul, a Nova Inglaterra. A oeste, os iroqueses. E eu aqui, no meio, com um

punhado de homens. Está entendendo? Só me resta um caminho: as alianças. Com a Nova Inglaterra, está feito. Com a Nova França, o encontro com o Coronel de Loménie-Chambord, providencial, talvez me permita realizá-la... Quanto aos iroqueses, enviei-lhes há um ano, antes de minha partida para a Europa, emissários plenipotenciários e presentes. O ataque dos cayugas me traz maus presságios, mas... esperemos. Neste momento, toda declaração de guerra, todo combate seria catastrófico. E preciso aguardar, tecerá a trama. Se sairmos vivos das armadilhas que nos cercam, garanto que um dia seremos mais fortes do que eles todos... E agora, venha, meu amor... E tempo de pensar em coisas sérias.

Voltou-a para si, rindo, apertou-a contra seu torso rijo, e suavemente sua mão começou a acariciaf-lhe o ombro, a nuca inclinada, as formas cheias que retesavam um pouco a blusa, ali, sob o braço.

-        Iroquês não virá esta noite, meu" amor... E o Francês vai dormir. Bebeu, cantou, festejou... Ficam para amanhã os projetos de massacre... Uma noite! Que importa o amanhã se uma

noite ainda nos éxoncedída... Uma noite é uma vida inteira!...

Ergueu-lhe o queixo entre os dedos e beijou incansavelmente os lábios que ek oferecia. Etepois escondeu a bela cabeça altiva contra o ombro è novamente,abraçou Angélica com força.

-        Somos seres novos, querida. O mundo que nos observa também é. Antigamente,~ém nossos velhos palácios, imaginávamonos livres. No entanto, todos os nossos gestos eram sancionados por mil olhos impiedosos, os olhos de uma sociedade mesquinha e invejosa, decadente. Não era fácil, mesmo com ideias novas, ser diferente dos outros no Velho Mundo. Aqui é outra coisa...

Baixinho, com os lábios no cabelo dela, acrescentou:

-        E ainda que devêssemos morrer, amanhã mesmo, de morte horrível, pelo menos morreríamos juntos e não por servidões estéreis e estúpidas.

Ela sentiu-lhe a mão sobre as ancas através do tecido do vestido, e depois, de repente, sentiu-a deslizando mais acima, sobre o peito desnudo. Via estrelas por toda parte. Sim, ele tinha razão... Nada mais tinha importância... Ainda que devessem morrer amanhã, de morte horrível... Ela era coisa dele, submissa à sua força de homem. Ele desabotoara-lhe o vestido, tirava-lhe a blusa.

-        Deixe-me fazer, minha bela. E preciso respirar livremente quando se tem o coração contraído pelo medo do Francês ou do Iroquês. Não está melhor assim?... Deixe-me fazer... Faz muito tempo que não tenho o prazer de desatar estes complicados laços europeus. No Oriente as mulheres se oferecem ao homem sem fazer mistério algum.

— Ah, não me fale mais de suas odaliscas.

— No entanto, você só poderia ganhar com a comparação...

— É possível! Mas eu as detesto.

— Adoro quando você fica com ciúme - disse ele, deitando-a no leito rústico.

E assim como ela, há pouco, ele pensou num átimo: "Felizmente nossos corpos se entendem!"

CAPÍTULO. XIV

Angélica tem um presságio - Peyrac devaneia

Na escuridão do leito em que seus corpos saciados repousavam, ela teve um sonho. O iroquês avistado aquela noite surgia da floresta e a fitava com seys olhos cruéis. O dia substituíra o crepúsculo e-o sol transformava em couraça de ouro vivo seu oleoso peito.1 Seu rosto estava banhado em luz e o tufo do escalpo, erguido ao vento, trançado com pernas, lembrava o penacho de uma ave-estranha. Ele se erguia acima dela, brandindo um tomahawk para partir-lhe a caBeça. Atingiu-a com furor, mas ela não sentia nada. De repente ela viu na própria mão o punhal que lhe dera a Polaca, sua amiga no Pátio dos Milagres, quando ela vivia entre os malfeitores. "Sei utilizá-lo", lembrou-se ela. E atingiu-o por sua vez. E o iroquês desapareceu, como uma nuvem que se evapora.

Ficou tão agitada que o homem deitado a seu lado despertou.

— O que foi, meu bem?

— Eu o matei - murmurou ela. E mergulhou no sono.

Ele bateu o isqueiro, acendeu a candeia pousada sobre uma prateleirinha acima do leito.

Para se defenderem do frio da noite, haviam fechado as cortinas de tela da alcova.

Na noite espessa, onde, acima do pequeno forte perdido, forma-se um véu frio de brumas pressagiando o inverno, eles estão sós, e é como se estivessem sozinhos no mundo.

Joffrey de Peyrac, soerguido sobre um cotovelo, aproxima um pouco a luz para examinar sua mulher adormecida.

Ela parece haver mergulhado de novo na escuridão de um sono tranquilo. Os lábios que há pouco murmuraram "Eu o matei" estão entreabertos numa respiração suave. Sobre o grosseiro colchão de musgo e ervas secas, seu corpo adquire uma amplidão nova. Deitada perto dele, no abandono de sua soberba nudez, ela tem rins mais opulentos, seios mais pesados, uma beleza marmórea, que, de dia, a vivacidade de seu porte dissimula.

Deusa de curvas fecundas, ela dorme. E seu rosto liso guarda seus segredos. Nada subsiste das expressões que podem nascer ali, repentinas como chamas, clarões aflorando à superfície e por um instante revelando a alma secreta de Angélica. Sentimentos múltiplos e surpreendentes: o ódio, por exemplo, como quando ela empunhava o mosquete fumegante e ele vira projetar-se seu delicado maxilar, enquanto ela murmurava como uma encarnação entre os dentes cerrados: "Mata! Mata!..."

E a sedução, essa noite, quando ela ria entre os homens dele; no banquete, mudo e aparentemente desligado dela, ele deixara o ciúme sangrar-lhe o coração, desejoso de saber tudo sobre ela, pois nunca recusara a luz da verdade. Não seria melhor ser um pouco cego quando o amor se infiltra em nós com uma exigência tão profunda?

Quanto a ele, o que deseja além do que já possui hoje? Nada. Tem tudo. O perigo, a luta, a conquista e a vitória, e toda noite aquele corpo de mulher apenas para ele, em sua exuberância carnal.

Um braço de Angélica, meio atirado para trás, é como um flexível talo aberto sobre o cálice escuro e aromático da axila.

O que mais desejar para si? A felicidade? Mas a felicidade é isso! Ele recebeu tudo o que há sobre a terra. Mas ela? Quem É? Que inocência ou que artimanhas oculta aquele envelope onde parece estar refugiado todo o encanto da feminilidade? Que chagas abertas se dissimulam ainda sob a serenidade daquele rosto?

A mão de Peyrac roça a face imóvel, a carne macia. Se com uma mesma carícia ele pudesse alcançar-lhe o espírito inquieto, a dor dos ferimentos de que ele suspeita se atenuaria. Ela a curaria. Mas ela se entrega pouco. E quando dorme, afasta-se ainda mais. E sozinha. É como se uma cortina se abrisse sobre aqueles quinze anos de ausência e a revelasse tal como era, frágil e apaixonada, arrastada pelo turbilhão de uma vida feita em pedaços. Ele começa a entender a veracidade dos protestos dela: "Longe de você, não vivi, apenas sobrevivi..." Aventuras para enganar a fome, para defender-se...

Apesar das solicitações múltiplas de que era alvo e dos próprios entusiasmos de seu coração, os longos períodos de continência que lhe impunha a vida de mulher sem mando haviam feito dela uma mulher de corpo solitário e frequentemente frustrado.

O feroz distanciamento, que ela Experimentara nos últimos anos, das manifestações físicas do amor moldara-a sem que ela soubesse, marcara-a conTum selo estranho. Havia que recomeçar tudo, empreender todo.-Mas ele é o amante de que ela necessita. Ela es_tá ali, portanto, a seu lado, mulher que conheceu inúmeras experiências e no entanto habitada por um espécie de virgindade que atrai, numa amazona incorruptível que por isso mesmo emais doce vencer...

Com ternura, quase devoção, ele lhe beija o ombro suave, e como ela estremece ligeiramente, ele se afasta e mergulha o rosto em seus cabelos saltos, com perfume de vento e floresta.

Ela conserva o odor das regiões percorridas. O sol dourou-lhe a tez, e suas atitudes adquiriram um langor primitivo. As terras selvagens já a revestem de seus mistérios.

O que vai acontecer entre ela e essas terras selvagens?

As mulheres autênticas não sabem ficar de fora das coisas. Penetram-nas, envolvem-se nelas, fazem-nas suas.

A ele o Mediterrâneo não atingiu, nem o oceano, nem as Caraíbas. Passarapela América do Norte nela imprimindo sua marca, mas a América não o marcará... ou muito pouco...

Enquanto ela... O que acontecerá entre Angélica e o Novo Mundo?

"Durma, meu amor misterioso. Durma! Não a deixarei. Ficarei a seu lado para defendê-la."

Uma ave noturna pia lá fora, lançando várias vezes seu grito aveludado e lúgubre. Cães lhe respondem e ouvem-se os índios interpelar-se à volta das wigwams. Depois o silêncio se refaz.

Joffrey de Peyrac levantou-se. Suas armas estão preparadas à sua cabeceira, um pistola carregada sobre a mesa, um mosquete encostado ao pé da cama.

Depois se deita de novo, estende o braço para a mulher adormecida e a atrai para o coração.

Uma noite é uma vida inteira.

Na noite gelada, lá no alto da colina, no seio da floresta tenebrosa, os iroqueses nus e sós espreitam e observam o forte, e seus olhos de gato brilham entre os galhos.

CAPITULO XV

Sob olhares de cobiça no pátio - Correspondência do Conde Loménie-Chambord

O dia nascia; e a véspera parecia longe. Aquele dia de outono, junto às nascentes dó Kennebec, que poderia ter retinido com o eco de mosquetes fratricidas entre homens de raça branca e de mesma língua, terminara em paz.

De manhã, nos arredores da pequena feitoria, a fumaça subia de todos os abrigos de casca de árvore e desenhava arabescos de um branco puro no céu azul.

Com a faculdade de ressurreição dás mulheres, Angélica acordou feliz, suas apreensões tinham desaparecido. Perto dela, o leito onde repousara conservava a forma de um corpo amado e lembrava-lhe aqueles momentos de abandono, de vida intensa que ele lhe dispensara. Era como um sonho miraculoso, e sua mão acariciou o lugar vazio a seu lado, para convencer-se.

Ocorreu-lhe que precisava ocupar-se com a casa e providenciar um almoço excelente.

Angélica era uma nómade. Depois de Toulouse, a vida a expulsara de tantos lugares que adquirira o hábito de se sentir em casa em toda parte. Pouca coisa lhe bastava para recriar o clima de intimidade que lhe era necessário: um bom fogo, calor, alguns objetos numa sacola, algumas roupas confortáveis, e para Ho-norina, a caixa de tesouros. Gostara de suas sucessivas residências. Não se apegara a nenhuma. O quartinho da Rue des Francs-Bourgeois, onde vivera com os dois filhos pequenos, deixara-lhe melhor recordação do que a Mansão do Beautreillis, onde dava recepções tão belas. Em lembranças felizes, seu apartamento em Versalhes não valia a lareira de La Rochelle, sob cujo aparadouro, à noite, com a velha Rebeca, ela "raspava" um caranguejo assado na brasa, ou mesmo o estábulo da Abadia de Nieul, ande dormia perto da filha em meio à paz sobrenatural dos cânticos da igreja.

No entanto, desde que reencontrara 9 marido e os filhos, viera-lhe uma nostalgia de finalmente ter uma casa sua, onde os acolheria e os cercaria de cuidados. Não morrera nela o impulso natural que leva as mulheres a construir e reconstruir incessantemente o ninho destruído. Assim, essa manhã, estava com a cabeça cheia de projetos, que resolvera realizar mesmo sem aguardar a partida dos franceses.

Na sala vizinha encontrou os Jonas debruçados sobre os interstícios da janelinha, examinando o pátio do forte.

- Dame Angélica - disseram, baixando a voz e correndo um olhar à volta, como se esperassem ver o Diabo surgir do soalho -, não estamos nada tranquilos. Parece que veio um missionário rezar missa para os militares franceses... Um jesuíta...

Pronunciaram a última palavra com os olhos tão arregalados que Angélica se conteve para não sorrir.

Havia um drama na vida daquela gente. Huguenotes de La Rochelle, tinham visto, anos antes, os dois filhos, de sete e oito anos, sair uma manhã para a escola e não retornar nunca mais. Soube-se depois que as duas crianças protestantes tinham cometido a imprudência de parar à passagem de uma procissão católica para contemplar com curiosidade as casulas bordadas e os ostensórios de ouro, e que algumas boas almas interpretaram aquele interesse como um desejo certo de conversão e os encaminharam aos jesuítas. Uma carroça de crianças protestantes, retiradas à guarda dos pais, estava justamente deixando a cidade. Fizeram os dois garotinhos subir também, e desde então toda tentativa de reencontrá-los ou mesmo saber o que lhes acontecera fora vã.

Havia que entender o pavor deles hoje. Ela própria, Angélica, compartilhara dos perigos sem conta vividos pelos huguenotes franceses, obrigados a fugir de um reino onde a perseguição aos protestantes se agravava dia-a-dia, mas era católica, fora educada num convento, e um de seus irmãos, Raimundo, pertencia à Companhia de Jesus.

-        Não se assustem - recomendou-lhes. - Já não estamos em La Rochelle. Vou me informar das novidades. Mas já estou convencida de que esse bravo missionário .não tem nada de muito perigoso.

No pátio, descobriu ura objeto inesperado, sim, mas sem nada de alarmente em si: um altar portátil,' de madeira dourada esculpida.

índios altos, recobertos de medalhas, ocupavam-se de apoiá-lo numa moldura de madeira, que dois escravos "seguravam sobre os ombros. O chefe deles era um homem de grande estatura, magro e flexível. Estava envolto numa pele de urso negro e empunhava uma lança. O perfil agudo, com o lábio superior avançando sobre dois dentes proeminentes, dava-lhe uma expressão de esquilo zombeteiro.

Ao passar, Angélica achou bom cumprimentar, mas ele não respondeu. Alguns instantes mais tarde, saíram dos limites da paliçada.

Depois que partiram-, o pátie pareceu quase deserto. Ainda havia vestígios do festim-da véspera: cinzas e tições apagados no local das três fogueiras^pedaçós de uma carcaça que um cão amarelo farejava e mordiscava sem apetite. De ossadas, nem sinal, e todos os recipientes, desde os grandes caldeirões até as escudelas de madeira, tinham sido levados.

O velho Elói Macollet, com a boina vermelha enfiada até as sobrancelhas, fumava sentado num banco, ao sol, encostado à parede da casa. Lançou uma olhada oblíqua a Angélica, à índia, e também ele não pareceu ouvir-lhe a saudação.

Num canto, perto do paiol de munição, encontrou Honorina e os dois garotinhos de Elvira ocupados em admirar os exercícios do mais jovem dos tambores. O rapazelho, bastante enfezado, que não parecia ter mais de doze ou treze anos, literalmente desaparecia sob o tricórnio e o capote militar azul. No entanto, seus pulsos magros eram dotados de uma agilidade e de uma força pouco comuns. Quando se lançava em surpreendentes modulações, não se viam as baquetas passar.

-        Ele prometeu que vai nos ensinar - disse Honorina, muito animada.

A caixa do tambor era mais alta do que ela, mas a menina não duvidava de que muito depressa adquiriria um perfeito domínio do instrumento.

Angélica foi em frente. A caminho, topou com Otávio Malaprade.

-        Senhora, não somos selvagens e não podemos continuar a nos alimentar com gordura de urso. Preciso elaborar um cardápio com víveres de bons cristãos. Pode ajudar-me?

Ele fora cozinheiro no Couldsboro e comportava-se menos como mestre-cuca do que como intendente. Os bordeleses são finos gourmets, está na raça. O sotaque cantante do Médoc, que revestia suas palavras de um quê meridional, evocava banquetes de cogumelos com creme e costela untuosas cobertas com o célebre molho de vinho tinto e alho que se saboreia nas tabernas de Bordeaux.

Neste país bárbaro, estava-se longe de se poder oferecer tais obras-primas, mas, com a imaginação do artista, Malaprade já via o partido que se podia tirar dos produtos locais.

Em companhia de Angélica, penetrou no deposito de víveres. Já fizera um inventário, disse, da pequena adega, que só continha barricas de vinho, cerveja e garrafas de aguardente.

Enquanto Angélica se entregava à inspiração, teria ficado bem surpresa se soubesse que ocupava de modo absolutamente imperioso e inusitado os pensamentos de dois homens tão diferentes quanto o Cavalheiro de Malta Loménie-Chambord e seu tenente, o Sr. de Pont-Briand.

Este último retornava da esplanada, onde a missa fora celebrada em companhia de Romain de L'Aubigniere e do segundo-tenente, Falieres.

Teve tempo de avistar Angélica antes que ela desaparecesse pela porta e estacou.

-        Essa mulher! Oh, essa mulher!

L'Aubignire soltou um suspiro de cansaço.

— Isso ainda?... Esperava que depois de curar a carraspana parasse de se fazer de imbecil.

— Ora, cale-se! Você sabe de nada. Será que não é capaz de ver que uma mulher como essa só se encontra uma vez na vida? É bela, mas tem algo mais. Quer que lhe diga?... Sente-se que é uma mulher que 'gosta de fazer amor, e que o faz bem...

— E você adivinhou tudo isso com uma olhada? - indagou o caçador, irónico. - A troco de que você vai se enrabichar com uma branca? Tem a filha do chefe Faronho, e todas as selvagens que quiser no Forte de São Francisco, onde você reina como príncipe...

Gosto muito das selvagens - disse o pequeno Falieres. - É engraçado... Não têm pêlos!... São lisas no corpo tudo, como crianças.

— Pois eu, justamente tenho vontade de sentir pêlos. São macios sob a mão...

— Cale-se, lascivo! Perdeu o juízo?

— Tive que. bastasse de selvagens. Quero pele branca! Uma mulher que me lembre as de minha juventude, que eu frequentava nos bordéis de Paris. Ah, era bom,^e ria-se bastante...

-        Pois volte para a sua Paris!,.. Que é que o impede...

L'Aubigniere e Falieres caíram na risada, pois ambos sabiam

muito bem por que Pont-Briand não retornara à França. Enjoava no mar, e suaprimeir-a viagem lhe deixara uma acomodação tão atroz que jurara nunca mais recolocar os pés num navio.

Não há necessidade de retornar a Paris se eu encontrar aqui o que preciso --- resmungou ele, lançando um olhar de desafio aos dois companheiros.

Estes ficariam sérios, e o caçador pousou-lhe a mão no braço.

— Escute, Pont-Briand, vejo-o mal encaminhado nessa história, meu primd. Não se esqueça de que há o Conde de Peyrac. E também ele tem a sua reputação, pode crer-me. Castine me contou que ele.é chegado à galanteria e que sabe oferecer-se às índias que quiser quando lhe dá na telha. Também ele é um homem que gosta' de fazer amor e-que fàz bem. O bastante, pelo menos, para contentar uma mulher, que por isso não sente atra-ção por outros. Basta ver o modo extasiado como ela o olha. Acredite-me, você tem poucas chances desse lado. E ele... ele gosta da sua bela rapariga!...

— Rapariga!... Mas é a mulher dele! - protestou o Jovem Fa-' lieres, chocando com a desenvoltura com que aqueles dois grosseiros falavam de uma mulher que ele, desde a primeira olhada, colocara entre as grandes damas, tão fascinantes quanto inacessíveis.

— Mulher dele!... Vá-se saber. São eles que o dizem!... Para o começo de conversa, nem um nem outro usa aliança...

Pont-Briand era desses homens que são capazes de fazer uma abstração total das realidades evidentes para dobrar os fatos conforme seus desejos e ficar com a consciência limpa. Convenceu-se cada vez mais, então, de que Angélica era livre. Pôs-se a imaginar que ela era uma daquelas belas condenadas de que o reino se desembaraçava despachando-as para as colónias e que se podem recolher nas ilhas do Caribe. Se Peyrac a tomara para si, por que não ele?

Quando os amigos se afastaram, ficou encostado à paliçada, fumando, sem despregar os olhos da porta do depósito por onde ela desaparecera.

Do outro lado do pátio, o Conde de Loménie-Chambord, sentado diante de uma barrica que lhe servia de escrivaninha, lia a carta do Reverendo Padre d'Orgeval. Pois não fora o diretor da missão da Acádia que celebrara a missa aquela manhã em Kata-runk, mas um de seus adjuntos, o Padre Lespinas, que trouxera uma missiva de seu superior para o coronel.

O Conde de Loménie lia.

"Meu caríssimo amigo,

É uma grande privação para mim não poder encontrá-lo. Quando me preparava para partir, um acontecimento inesperado - quase poderia dizer sobrenatural - me transtornou e me provocou uma febre tão violenta que, depois de precisar interromper minha viagem e retornar com grande dificuldade à pequena aldeia de Modesean, não posso deixar o leito, onde ainda tirito de frio. É preciso, contudo, que eu encontre forças para escrever-lhe.

Na aldeia onde me encontro estão reunidos nossos abenakis fiéis, os patsuikett, e seu chefe, vindos das nascentes do Connec-ticut. Esperam apenas por um sinal seu para se unirem às suas tropas e auxiliá-lo a levar a cabo a sua santa campanha, reduzindo à impotência não só esse grupo de iroqueses que ronda a região, como também os estrangeiros indesejáveis que se instalaram aí. Seria encerrar nossa ação com dupla vitória, e hoje, quando celebramos a festa do grande arcanjo Rafael, não pude deixar de pensar em você ao ler as palavras do versículos: 'Rafael, o anjo do Senhor, capturou o Demónio e acorrentou-o....'

Assim a força, sustentada pela Graça, não necessita de mil artimanhas e de mil combates para alcançar seus fins."

Loménie sabia traduzir com clareza os símbolos de seu amigo de infância, o jesuíta. Peyrac nas nascentes do Kennebec era "o inglês herético penetrando atrás dele no coração de nossas terras..."

"Ei-lo acorrentado e reduzido à impotência, graças a seus cuidados."

O conde de Loménie cofiou a barba, preocupado. Havia um mal-entendido... O reverendcfpadre não-parecia colocar em dúvi-' da por um só instante a detenção do Conde de Peyrac e sua comitiva; não parecia imaginar qué fosse possível um entendimento.

Por que, então, não viera ele mesmo até Katarunk, depois de haver-se unido na antevéspera a Pónt-Briand, Maudreuil e L'Au-bigniere? O incidente que tomaram, à noite, por uma aparição demoníaca - uma mulher a cavalo, a diaba montada no unicórnio - justificava sua" brusca fuga?...

Fora ele próprio, esse Padre Sebastião d'Orgeval, que na primavera passada pedia socorro armado contra os estrangeiros que se instalavam na Acádia.

Loménie" esteve á ponto de embarcar e ir ao encontro do jesuíta, rio acima. Chegaria lá naquela noite mesmo e retornaria dois dias depois. Mas mudou de ideia* Sentia que não devia deixar seus homens e seus aliados selvagens. A situação era instável, explosiva, e suapresença no forte, indispensável para evitar a centelha perigosa.

"Aguardo com impaciência notícias suas", escrevia ainda o padre."Se soubesse como édoce, meu caro amigo, meu caro irmão, senti-lo próximo..."

Aqui passava pela pena voluntariamente fria e peremptória do jesuíta a sensiblidade que fazia seu encanto e a felicidade daqueles a quem concedia sua amizade. Loménie era um desses. Sua amizade era antiga. Datava do colégio. Era a amizade de duas crianças sob abóbadas sombrias, apertadas uma contra a outra na tristeza dos alvoreceres frios com odor de tinta e incenso, o murmúrio das missas e a cantilena das aulas. Sebastião d'Orge-val, taciturno e sensível, suportava mal a austeridade do internato. Loménie, tranquilo, meigo, mas fisicamente forte, de caráter feliz, amparava-o, afastava as sombras que se adensavam sobre aquela alma infantil que, sem essa amizade, talvez se tivesse rompido. Muitas crianças morrem de langor e fenecem na enfermaria dos colégios.

Com a adolescência, os papéis se inverteram. Sebastião d'Orgeval, desenvolvendo-se magnificamente, ardendo de um fogo lúgubre, suportando todas as penitências e as.austeridades com uma resistência a toda prova, arrastava Loménie, tão robusto quanto ele mas menos fervoroso, pelos caminhos da santidade. Separados pelos estudos teológicos, os dois amigos reencontraram-se, anos mais tarde, no Canadá. Loménie-Chambord, que desembarcou primeiro no país com outro cavaleiro de Malta, o Sr. Mai-sonneuve, ali fundou a feitoria de Montreal. A vinda de seu amigo jesuíta não lhe era estranha. Suas cartas haviam despertado no outro, que era então professor de filosofia e matemática no colégio de Annecy, uma ardente vocação para a conversão dos índios.

Nos dez anos em que se encontrava na Nova França, o Padre d'Orgeval fizera maravilhas. Conhecia toda a região, todas as tribos, todas as línguas, experimentara de tudo, inclusive o martírio. Aos olhos de Loménie, sua própria ação de expatriado parecia de bem pouco mérito e de uma relativa benignidade ao lado da do amigo. Sentia-se inferior, censurando-se por vezes por se haver sacrificado à sua paixão pelas armas; uma vocação religiosa que, achava ele, devia ter sido mais completa. Assim, sentia-se tocado no mais fundo do coração quando, na correspondência que trocavam, uma palavra, uma frase o aproximava daquele amigo cuja alma excepcional acabara por lhe inspirar uma espécie de veneração. E naquele mesmo instante, debruçado sobre a escrivaninha, evocava o perfil com a testa muito alta, encimada por uma franja espessa de cabelo castanho. Orgeval tinha uma testa imensa, que revelava uma inteligência transcendente. "Com uma testa assim, essa criança não poderá viver", gostavam de repetir os professores do colégio, "seu pensamento o matará."

Sob sobrancelhas espessas, um olhar azul, surpreendentemente límpido e muito fundo, traços talhados com nobreza que não eram enfeados pelo nariz agora quebrado pelos iroqueses, uma boca opulenta e farta em meio a uma barba de Cristo, era o retrato de um homem que suportava serenamente tarefas esmagadoras.

Loménie imaginava a pena correndo vivamente, embora trémula por causa da febre, sobre a casca de bétula que lhe servia de pergaminho. A mão que segurava aquela pena era estranhamente inchada e rosada, em consequência de queimaduras horríveis; alguns dedos eram curtos demais, como os dos leprosos, outros enegrecidos pelo fogo, outros ainda retorcidos pela extração das unhas. Sua coragem durante o martírio inspirara tamanha admiração aos iroqueses que estes lhe pouparam a vida. Curado dos terríveis ferimentos, o Padre d'Orgeval fugira e^custajie mil riscos atingira a Nova Holanda, de onde um navio o levara para a Europa. Apesar de suas mutilações, o papa lhe^concedera autorização para ce-lebar a Santa Missa, e em Versalhes, assim como em Notre-Dame de Paris, o grande jesuíta pregara diante de urna assembleia em lágrimas, e dez mulheres desmaiaram.

Ao regressar ao Canadá, enviaram-no para Acádia, província abandonada porque distante demais, e muito ameaçada, porque vizinha demais das possessões inglesas."Ao se pensar nisso, não se podia encontrar homem mais apto e preparado para essa missão difícil e qué incluía aspectos desconhecidos. A presença do Padre d'Orgeval nas margens do Kennebec e do Penobscot, grandes vias de penetração", fluvial, adquiria um significado político. Ele recebera suas instruções do próprio rei.

"Sem você, sem seu auxílio, a tarefa me pareceria pesada, não lhe escondo:què há4ongas semanas um pressentimento terrível me agita...", prosseguia a car.ta do jesuíta.

Também ele, Loménie, se sentia acabrunhado por pressentimentos. Pelo final do inverno ou do verão, a gente se sente rodeada de génios maléficos. É a época das manchas no sol. É a estação dos dramas, sangrentos ou mesquinhos. Nas cidades, o marido enganado mata o rival e, no fundo das florestas, o amigo assassina o melhor amigo por uma pele de castor ou de lontra.

O governador de Quebec envia admoestações ao bispo, que não o homenageou no dia de São Luís, festa não apenas sua, pelo seu prenome, mas também do rei da França, a quem ele representa. O mercador esvazia pela janela uma caixa de garrafas caras sobre a cabeça de um marinheiro que não lhe pagou, os indiozinhos seminaristas pulam os muros e retornam à mata, as religiosas no claustro sofrem mil paixõéSj. enquanto à noite o Demónio vai puxar os pés das mais santas, batendo as folhas da janela e fazendo surgir diante de seus olhos assustados visões de mulheres nuas com pupilas faiscantes, cavalgando unicórnios apocalípticos...

O Conde de Loménie-Chambord evoca uma frase da predição sobre a Diaba da Acádia: "Uma mulher belíssima, nua, saía das águas, cavalgando um unicórnio"...

Uma mulher belíssima...

E deu-se conta de que o tempo todo pensara em Angélica de Peyrac. Era como se o rosto dela, sua presença, estivessem inscritos em filigrana na carta que lia, e intuía que ao escrevê-la o Padre d'Orgeval, embora nunca a tivesse visto, também não parara de pensar nela. O missionário mártir sabia tudo a distância.

O Conde de Loménie-Chambord enfiou a mão no bolso de seu casaco militar. Encontrou as contas de um terço e o contato lhe fez bem: sentiu-se em paz novamente. Não ia se deixar desnortear. Sentando-se diante da barrica, redigiu a resposta ao Padre d'Orgeval.

"...no momento impõe-se um política temporal e não religiosa... A guerra não é a única solução desejável quando se visa à paz dos povos, e pareceu-me prudente e de acordo com os interesses do Canadá, bem como com os do rei... O Sr. de Peyrac já nos deu mostras de sua amizade, reabastecendo os entrepostos franceses na costa da Acádia durante o inverno... Além disso, L'Aubigniere, Pont-Briand e Maudreuil caíram nas mãos dele ontem e fomos obrigados a parlamentar e a dar nossa palavra. Creia que só teríamos chegado a cabo depois de combates sangrentos, que de toda maneira não pareceram necessários... Confio na lealdade desse homem..."

Concluindo, salpicou de areia a tinta fresca. Seu ordenança soprava uma vareta a fim de derreter a ponta de um bastonete de lacre vermelho com que o conde fechou a carta dobrada. No lacre ainda morno, apôs o selo de seu anel e suas armas: duas torres de sable sobre campo de goles, encimadas por um sol de ouro.

Absorto e preocupado, não prestava atenção aos índios que corriam de um lado para outro, acostumado que estava à infantil agitação deles.

CAPITULO XVI

Corte inconveniente do Sr. de Pont-Briand

Na compania de Otávio Malaprade, Angélica terminava seu inventário. No depósito de Katarunk, havia amplas provisões de milho, carnes salgadas e duas arcas de .madeira bem cheias, além de peças de carne-seca penduradas às traves e até presuntos, que não pareciam de modo algum feitos de carne selvagem. 0'Co-nell criara porcos.

Para os cavalos previra-se uma espécie de chucrute de ervas ácidas, de que Angélica vira uma pilha num canto do pátio, atrás das construções.

— O irlandês, a quem o senhor conde confiou este entreposto durante sua última viagem, disse-me que criou alguns porcos vindos da Europa - dizia Malaprade. -- Ainda restam quatro ou cinco, que pastam na floresta e que será preciso trazer para a pocilga antes das primeiras neves. Vamos engordá-los algum tempo com restos de comida, e depois poderemos matá-los para o Natal. Assim, prevemos quinhentas anãs de linguiça, trezentas libras de carne salgada, uma dezena de belos presuntos e cem anãs de chouriço preto ou branco. Teremos, portanto, com que passar o inverno sem aborrecimentos, mesmo se a caça escassear...

— Isso depende sobretudo da comunidade que teremos para alimentar, Sr. Otávio - respondeu Angélica. - Se tivermos que manter uma guarnição inteira, como agora...

O homem fez uma careta.

-        A intenção do senhor conde não é essa. Informou-me esta manhã. A dar crédito âs previsões, esses cavalheiros do Canadá e seus selvagens nos deixarão amanhã, à primeira hora da manhã.

— 0'Cannell é aquele homem gordo, redondo e ruivo, não é? Nunca está por perto, e quando, o vejo, parece um pouco desorientado.

— Justamente, é a vivacidade desses senhores canadenses que o desorienta, principalmente a do reverendo padre jesuíta que passou por aqui esta manhã. 0'Connell embarcou os índios abe-nakis para descer o rio até a missão onde quer receber a bênção do grande missionário e se confessar. Eu mesmo sou bom católico, senhora, mas achei que hoje o mais premente era saber em que ponto estávamos quanto aos víveres. O inverno se aproxima e não é agradável hibernar nestas regiões, mesmo quando se está garantido com boas reservas...

— Já passou uma. temporada neste país?

-        Arrastei as botas com o senhor conde no ano passado, sim.

Sempre conversando com seu mordomo de ocasião, Angélica continuava a examinar os géneros armazenados. Havia uma boa quantidade de bagas secas, e até cogumelos igualmente secos... Um complemento, mas que não seria de negligenciar quando, no final do inverno, as pessoas se cansassem de carnes salgadas e conservas. Lembrava-se da teoria do velho Savary, o viajante, que dizia que nos navios de alto-mar morrer-se-ia menos de escorbuto se todos os dias se consumisse um punhado de frutos secos, na falta de frutos frescos.

-        É mergulhá-los na água e depois enfeitar tortas doces e salgadas com eles. Oh, sei o que está faltando, Otávio: farinha branca, para assar um bolo ou uma boa micha de pão. Faz dias que não comemos isso.

-        Acho que há alguns sacos ali - disse o bordeies.

Angélica encantou-se com a descoberta. Mas Malaprade franziu o cenho ao examinar o conteúdo dos sacos.

-        Praticamente só temos vinte libras de farinha branca. O resto é cevada e centeio. Além disso, é farinha comprada aos bostonianos, portanto, farinha de trigo pobre, mal moído. Poeira... Os ingleses, realmente, não conhecem nada. Mas não importa assim mesmo vamos nos regalar com um quinhão de pão esta noite, usando cerveja de pinhão como levedo...

Otávio Malaprade pôs de lado numa cabaça a quantidade de farinha necessária à realização do luxuoso projeto. Depois foi registrando numa casca de bétula estendida entre duas varetas de abeto a lista de provisões. Anotou três rodas de queijo, barris de repolho ácido, tonéis de óleo, bem com_o potes de gordura, ervilhas secas, feijões e, alinhadas sobre um tabique, abóboras e morangas.    

A inspeçao reconfortou a ambos. Angélica se sentiu mais útil diante de um futuro que readquiria -matizes familiares.

Infelizmente o instante seguinte se encarregou de lembrar-lhe as realidades de sua nova existência. Ao saírem do depósito, virarrt-se face a face com_uma multidão de índios que se reunira ali em silêncio. Foi com dificuldade que puderam cruzar a soleira e sair. O bordeies, acreditando numa tentativa de pilhagem, apressou-se a fechar os batentes,de madeira, travando todos os ferrolhos.

-        Se conseguisserrrpehêtraf aqui, levariam tudo!... O que é que querem? O que foi que de.u neles?.

Conhecia algumas-palavras em língua indígena. Mas suas perguntas permaneceram sem*resposta.

O Tenente dè-Post-Briand, a grandes cotoveladas, abriu caminho até eles. Segurou Angélica pelo braço e interpôs entre ela e o assédio malcheifoso dos índios a fortaleza da sua notável estatura.     

-        Não se inquiete, senhora. Percebi que estava em dificuldade. Que está acontecendo?

-        E eu sei? Não entendo nada do que eles estão reclamando.

Os índios se dirigiam ao tenente. Gritavam todos ao mesmo tempo e pareciam angustiados ou extasiados.

-        A lenda de seu encontro com a tartaruga, sinal do Iroquês, viajou a noite toda de wigwam em wigwam. Querem saber da senhora mesma se o Iroquês foi vencido de fato e se o acorrentou... Para eles, o símbolo e o sonho têm mais importância do que a vida real... Mas não tema nada. Vou desembaraçá-la da curiosidade deles.  

Falou aos índios com muita convicção e estes concordaram em se afastar, tagarelando muito entre si, animadamente.

Pont-Briand estava feliz com a oportunidade de se aproximar de Angélica e de se inclinar sobre ela como que para protegê-la.

Sentia-lhe o perfume da pele, mas ela não se deixou lograr e se soltou da mão que lhe segurava o braço

— Senhora, gostaria de fazer-lhe uma pergunta.

— Pois faça sua pergunta.

— É a senhora realmente o atirador infernal que ontem me colocou em situação tão má? Dísseram-me que sim, mas não consigo acreditar.

— Mas é correto. E acredite que nunca tive que lidar antes com alguém tão cabeçudo. Achei que seria obrigada a quebrar-lhe no mínimo um braço para detê-lo, pois a ordem que eu tinha era de impedir que atingisse a outra margem. Decididamente, tenente, creio que precisa de muita coisa para entender o que se está querendo dizer-lhe - acrescentou, dando-lhe uma olhada cheia de significado.

Ele compreendeu que ela lhe considerava a corte insistente e deslocada. Mas não conseguia conformar-se em deixá-la. Como ele viera para tirá-la do embaraço em que se encontrava, Angélica ainda trocou algumas palavras e depois se afastou, com um gesto de cabeça e um sorriso discreto.

Ele ficou perturbado e vacilante, como um homem bêbado. O ar tremia à sua frente e ele viu dançar o brilho do sorriso dela. Um longo caminho fora percorrido desde a véspera e a antevéspera. Para ele o mundo se transtornara e já não tinha o mesmo gosto, nem a mesma cor. Mas por que Loménie se recusara a combater Peyrac? Ele, Pont-Briand, teria posto as mãos sobre ela e assim adquiriria o direito de levá-la cativa para Quebec... para convertê-la. "Não tenho o direito, eu também, de ganhar para o céu uma alma perdida?... E assim eu a teria recolhido em minha casa."

Com que malefício o grande diabo Negro, de rosto mascarado, dominara a todos eles, a ponto de torná-los, a eles, franceses do Canadá, meigos e dóceis como carneiros?...

"Desconfie, irmão, desconfie dos malefícios! Mas no final", pensava ele, "o que importa se ela é a Diaba da Acádia e se veio do inferno? Eu bem que gostaria de ir para lá com ela!..."

CAPÍTULO XVII

Cantor, "grande guerreiro de sua espécie" - Peyrac enternece-se com Honorina

Apesar das -aparências, ó dia transcorreu lentamente e todos permaneceram tensos.        

- O que será de nós? - gemia a Sra. Jonas, chorando. A vinda do jesuíta minara-lhe a coragem. - Mande seus filhos entrar, Elvira, vãa: massacrá-los.

Ao longo dos últimos dias Angélica adquirira uma estima particular pelos companheiros de Peyrac. O espírito de disciplina dos homens fora admirável, e -com sua calma haviam demonstrado a confiança no chefe. No entanto, havia estrangeiros entre eles: ingleses, espanhóis, franceses retornados do exílio sem permissão e que podiam esperar ser tratados como inimigos pelos que os espreitavam em Katarunk. Ainda assim tinham entrado no forte de cabeça erguida, atrás do Conde de Peyrac, e os franceses não haviam protestado. Haviam festejado juntos, e até rido e cantado muito.

Mas todos se vigiavam recíproca e constantemente. Peyrac ia conversar com o Sr. de Loménie, depois ia cumprimentar os capitães algonquinos ou huronianos, e enviava-lhes tabaco e pérolas.

Os homens ocupavam-se juntos, contavam-se casos.

"Que eles vão embora! Meu Deus! Que vão todos para o inferno!", dizia Angélica consigo.

Na expectativa, era preciso jogar, o jogo, estar de olho em tudo, não demonstrar receio nem impaciência.

Angélica tentava preservar, na vida, uma aparência cotidiana, instalando-se ostensivamente em sua casa, mas era difícil. Todo mundo estava com os nervos à flor da pele.

Ao ir ao poço e voltar com o pesado balde de madeira, reforçado com ferro, interpelou Cantor, que se encontrava próximo.

— Quer vir ajudar-me, meu rapaz? Ele respondeu com.arrogância:

— Por quem me toma? Isso são tarefas de mulheres! Angélica sentiu-se empalidecer e, num reflexo só, agarrou o

balde de água e esvaziou-o em cima do rapaz.

-        Pronto! É assim que se refrescam as ideias de um grande guerreiro de sua espécie, reputado demais para ajudar a mãe a carregar um fardo.

Pendurou novamente e com estardalhaço o balde vazio na corrente e o desceu ao fundo do poço, com os lábios contraídos de raiva. Cantor estava encharcado, da cabeça aos pés, e seus olhos brilhavam, ferozes. Mas Angélica enfrentava-o à altura.

Essa troca de olhares igualmente verdes e furibundos pareceu divertir ao máximo o velho Elói Macollet, única testemunha próxima da cena. Aproximou-se, casquinando com a boca desdentada.

-        Bravo, é assim que se doma a juventude!

Logo acorreram índios, boquiabertos, gargalhando diante do adolescente e sua roupa molhada, contando uns aos outros a coisa vista de longe e vindo olhar Angélica de perto, rindo a bandeiras despregadas, como se ela decididamente fosse o animal mais cómico do mundo... Acotovelavam-se de tal maneira contra ela que por pouco Angélica não largou o balde vazio e caiu no poço.

— Para trás! Para trás! - fez Macollet. Afastou-os com socos e algumas palavras enérgicas. - Vou ajudá-la, bela senhora. Gosto das mulheres de caráter. Ah, esses jovens de hoje!... É preciso dar-lhes umas aulas, não é verdade? Não sabem nada. Eu carrego seu balde. Não há vergonha alguma quando é para uma mulher de sua posição. E no entanto sou muito mais guerreiro do que esse imbecilzinho...

— Cai-lhe à perfeição fazer-se de galante - gritou Cantor, cuja voz esganiçava de cólera. - Aulas de polidez, pois sim! Você que nunca tira esse gorro de cima do crânio nem diante das senhoras, nem na missa. Eu bem que o vi esta manhã, quando o padre oficiava!

-        Meu gorro é meu gorro -. replicou o velho. - Se é tudo que quer para ficar contente, vou tirá-lo, meu jovem...

-        Oh, não, não faça isso - gritararn^m uníssono L'Aubigiére e Perrot, que passavam por ali, e correram para ele e

seguraram-lhe os braços. - Não olhe, senhora. Ele tem o crânio mais assustador da Nova França.

— Foi escalpado na juventude - explicou Perrot.

— Em Montreal - precisou Macollet, muito orgulhoso.

-        E raro que se sobreviva a uma operação dessas. Mas ele sim!

Foi Madre Margarida-Bourgois quem o salvou da morte. Mas o resultado não é bonito de ver. E melhor que fique com o gorro. Acalme-se, Elói.

-        Não, quero, dar uma lição a esse palerminha...

Cantor sumiu, para ocultar o despeito e trocar de roupa.

O dia escoava lentamente, numa luz ardente, e mais lentamente ainda alguns huronianoS e algonquinos começaram a partir, isseram-lhes que não haveria guerra. Haviam-lhes dado belos resentes para compensar-lhes a decepção. De longe Peyrac vigiava-lhes os movimentos, e cada vez que ma embarcação se afastava da margem e se aprumava rio aci-a, tinha uma sensação de alívio. Seu olhar perspicaz ia da barreira negra dos abetos, ao norte, aos ..suaves meandros do rio, nrolado como uma serpente de ouro através do império das ár-ores, e prosseguindo sua rota para sudeste. Por enquanto o es-ectro da guerra se afastava, deixando os grandes espaços ncivilizados retomarem seu ritmo de vida habitual: caça, pesca, ono, tabaco„. Se a praia fervilhava de novo, era com a animação alegre de um dia de mercado. Os índios das pequenas tribos locais - me-tallaks, narrandsuaks, sokokis - também arrumavam a bagagem, ndiferentes aos acontecimentos que os haviam roçado e de que les poderiam ter sido as vítimas, como todas as pequenas na-òes neutras entre duas forças adversas e poderosas. Um grito frágil e alegre alteou-se no ar límpido do entardecer, Joffrey de Peyrac voltou-se naquela direção. Era a pequena Honorina, que brincava com seus companheiros habituais, Bartolomeu e Tomás, os garotinhos huguenotes de La Rochelle.

Peyrac observou-a um instante. Ela parecia feliz, as faces vermelhas e lambuzadas de poeira, com aquele ar de santidade e enlevo das crianças que são deixadas entregues a si mesmas o dia inteiro.

Seu coração estremeceu de ternura. Tinha pela criança bastarda um apego singular,; nascido desses sentimentos ricos e complexos que os corações masculinos ocultam e dos quais, além disso, eles raramente têm ocasião de servir-se, e entre os quais, ao primeiro exame, se encontraria o sentimento de justiça.

Diante daquele pequeno ser humano, particularmente fraco e desarmado, que nada recebera ao vir ao mundo, nem o amor da mãe, ele achava que em troca devia dar-lhe tudo, já que ela fora colocada sòb a sua proteção.

Continuava atento à criança; via que Honorina, no forte de Katarunk, regozijava-se por estar em casa, com uma família que era a sua, e numa sociedade na qual não era apenas tolerada, como outrora em La Rochelle, onde sua mãe era criada. Agora ocupava o primeiro lugar, o primeiríssimo lugar, conforme decidira em sua cabecinha, já que era filha do Conde de Peyrac.

Filha daquele a quem chamavam Monseigneur, fazendo-lhe reverências, daquele que decidia sobre a vida e a morte, sobre a paz ou a guerra. Portanto, sendo filha de tão grande chefe, ela era necessariamente a pessoa mais importante depois dele, e o orgulho por uma posição tão elevada explodia em sua alegria de viver, em seus gritos de andorinha cinzenta.

Estava tudo bem. Ele sorriu. Sim, era sua autêntica filha por escolha, livre, ela o escolhera e jamais duvidaria da decisão.

OS IROQUESES

CAPITULO XVIII

Entrevista com Tahutaguete, subchefe dos onontagues

Chegara a noite fumarenta, com.seu cortejo de fogueiras vermelhas e luzes atravessando o azul frio da escuridão.

Na pequena casa érgueu-se um urro, agudo, histérico. Angélica estava colocando as escudelas sobre a mesa, para o jantar das crianças.

O grito veio do quarto da esquerda, do seu próprio quarto, onde alguns instantes atites Elvira entrara para lhe preparar o leito.

"Pronto, o massacre começou!", pensou Angélica.

E lançou a mão sobre a coronha da pistola, da qual não se separava.

No meio do aposento, viu um índio que segurava Elvira pelo pulso, meio louca de terror. Este era ainda mais hediondo e assustador do que o que ela vira um dia antes na colina. O rosto grumoso, desfigurado por marcas de sarampo, estava além disso lambuzado de fuligem, assim como o torso e os membros nus. Um pedaço de pano vermelho e sujo segurava-lhe a mecha do escalpo, tão alta e descabelada que lhe dava o aspecto de um porco-espinho. O cheiro do homem enchia o aposento.

"Um iroquês", pensou Angélica.

Ele acabava de pôr a outra mão sobre a boca de Elvira, que depois de se debater, sem ar, deslizou desfalecida. .

Angélica ergueu lentamente a arma, hesitou. O índio, com os olhos fulgurando, pronunciava palavras abafadas que ela não entendia, mas pela mímica adivinhava que ele lhe pedia silêncio.

-        Não se movam - disse ela aos Jonas, que estavam parados contra a porta do quarto.

Vendo que eles não davam o alerta e que se fazia silêncio de novo, o índio levou a mão à tanga gordurosa e puxou um pequeno objeto, que estendeu a Angélica. Fazia-lhe sinal para que se achegasse até ele»'sabendo que, caso ele se aproximasse, ela se assustaria. Séria, ela avançou. O objeto que ele lhe apresentava era um anel de cornalina, e inscrito na pedra vermelha ela reconheceu o sinete do Rescator... o sinete de seu marido.

Veio-lhe à memória uma frase que ele dissera na noite anterior: "Entre os iroqueses, tenho alguns capitães do meu lado". Com o olhar, interrogou os olhos oblíquos do selvagem.

— Tekonderoga, Tekonderoga - repetia ele com sua voz rouca e monocórdia.

— Peyrac?

Ele aprovou energicamente.

-        Nicolau Perrot? - perguntou ela ainda.

Um novo sinal afirmativo, enquanto uma luz de contentamento se acendia no rosto horrível.

-        Vou levar-lhe este anel...

O índio cravou-lhe no braço, como uma serra, a mão gordurenta.

Repetia uma palavra com ar ameaçador, e ela entendeu que ele reclamava silêncio.

Os Jonas se agarraram a ela.

— Não nos deixe sozinhos com esse demónio...

— Pois bem, vá o senhor então, Sr. Jonas. Diga a meu marido que... alguém quer vê-lo. Quando vir este anel, ele sem dúvida entenderá. E não fale com ninguém. Parece-me que este selvagem nos recomenda a maior discrição.

— E um iroquês, tenho certeza de que é um iroquês - balbuciou a Sra. Jonas, desabando de joelhos junto da sobrinha desmaiada.

O índio, alerta, continuava segurando Angélica pelo braço. Quando o Conde de Peyrac e o caçador canadense apareceram na soleira da porta, ele a soltou e cumprimentou com uma rouca onomatopéia de boas-vindas.

— Tahutaguete! - exclamou Nicolau Perrot. E, depois de cumprimentar o selvagem:

— E Tahutaguete, o subchefe dos onontagues - disse.

— Então não é um iroquês? - perguntou a Sra. Jonas, cheia de esperança.  

— Claro que é! E um dos mais ferozes. Uma grande personalidade das cinco nações. Ah, o velho Tahutaguete, que prazer em revê-lo! Mas por onde ele entrou?

— Pela chaminé - disse a voz débil de Elvira, que voltava a si. - Eu estava aqui, ajeitando a coberta do leito, quando ele caiu no fogo, sem ruído algum, como o diabo do inferno.

Peyrac olhava o iroquês com satisfação.

— Ele me trouxe ó anel" que lhe dei. Esse anel seria o meio de eu reconhecer um-meffsageiro seu se um dia o conselho deles aceitasse parlamentar comigo...

— Parece, então,.que esse dia chegou - disse Perrot. - Mas o momento do encontro é mal escolhido. Se õs huronianos, al-gonquinos e abenakis, e todos os franceses que rondam aí fora, desconfiarem de que há um iroquês aqui, principalmente Tahutaguete, não dou mada pelo escalpo dele. Escutem - disse, voltando-se para os Jonãs---, vão para a sala ao lado jantar com toda a calma. Caso apareça alguém,'não digam nada, e esqueçam que viram este homem.

— Será difícil - disse Elvira, que se levantava.

Angélica fora buscar uma porção de comida, e Joffrey de Peyrac ofereceu-a ao iroquês, junto com uma trança de tabaco, como sinal de hospitalidade. Mas o selvagem se esquivou, com gestos de veemente negação.

-        Diz que não quer comer nem fumar antes que comunique

mos nossas decisões ao Grande Conselho das Cinco Nações.

O iroquês foi acocorar-se diante da lareira. Reuniu as brasas que sua queda espalhara, atirou-as de volt a-ao fogo. Depois puxou da cintura uma bolsa que continha um pouco de farinha amarelada e muito fina. Derramou uma quantidade na palma da mão e, estendendo a mão, lançou uma palavra na direçao de Nicolau Perrot.

-        Água - disse este.

A um canto havia uma bilha de água fresca. Angélica passou-a a Perrot, que verteu algumas gotas na mão do selvagem.

Com o indicador, o índio misturou água e farinha. O resultado foi uma pasta transparente, de aspecto pouco apetitoso, que ele engoliu em pequenos bocados. Terminada a frugal refeição, arrotou, limpou as mãos nos mocassins e começou a falar.

Nicolau Perrot, agachado na mesma posição diante dele, ouvia-o com uma paciência amistosa, sem deixar transparecer nenhum de seus sentimentos, e traduzia escrupulosamente. Joffrey de Peyrac sentou-se num banquinho, entre eles.

Angélica sentara-se na cama, na penumbra. As palavras que Ta-hutaguete, sem parecer pensar nos perigos que pesavam sobre ele, único iroquês no coração do acampamento inimigo, trouxe àquele a quem chamavam Tekonderoga, ou seja, o Homem do Trovão, foram estas:

-        Faz dez luas, você, Tekonderoga, que chamamos de Homem do Trovão porque parece que pode explodir as montanhas, nos enviou presentes e dois colares de wampum. Não passou despercebido a ninguém que essas porcelanas eram de valor inestimável, das que se trocam entre grandes nações, para os grandes tratados apenas. Então, Swanissit, chefe supremo, informou-se sobre o homem branco que desejava a aliança dos povos da Casa Comprida a ponto de atribuir-lhe um preço considerável, nunca pago antes.

"Também me havia dado o anel, e eu falava por você. E os outros presentes, digo-lhe eu, eram negligenciáveis? Pólvora, balas, peças de tecido vermelho que nem a chuva nem o sol conseguem descorar, caldeirões que ressoam sob os dedos, de um metal tào negro e sólido que não quisemos dedicá-los à prosaica alimentação de cada dia, mas reservá-los a nossos mortos, machados e facões tão cintilantes que se podia mirar o rosto neles, um punhado de conchas tão raras que não sei em que wampum de aliança solene ousaríamos cosê-las, e por último um fuzil sem mecha, que esconde a faísca em suas entranhas e cuja coronha é toda incrustada de nácar e que Swanissit agora leva sempre consigo, sem que a arma nunca o tenha traído.

"Além disso, prometia um pó mágico para fertilizar nossas plantacões e nos convidava a virmos a Katarunk, aqui mesmo, concluir nossa aliança.

"Depois de ver tudo isso, Swanissit pensou em seu coração e reuniu o Conselho das Mães e também o dos Anciãos, e disse-lhes que era preciso entenderem-se com ujn branco que não obedecia nem aos ingleses, nem áos franceses, nem ao Casaco Negro, e que além do mais era generoso.

"Pois Swanissit é velho, como eu também sou velho, e nós dois sabemos que os povos,das cinco nações infelizmente já não são o que foram outrora. As guerras incessantes, nos enfraqueceram e o comércio de peles, que nos ocupa demais, faz que negligenciemos nossas rultura% de modo que ha grandes fomes, que nos dizimam no inverno. Os jovens gostariam de prosseguir no caminho da guerra para vingarem seus mortos e insultos, mas 'Basta de mortos', diz Swanissit, 'senão o povo iroquês cessará de ser grande e temido. Graças" a eSse branco poderoso e providencial, vemos o meio de retomar fôlego, pois num dia próximo ele será mais forte do que os franceses de» Canadá e conseguirá a aliança dos povos na paz,- conforfne está predito e cantado na nossa saga de Hiawathaj

"Assim falou Swanissit, e uma grande parte da nação o compreendeu. Viemos, então, para encontrá-lo, Branco do Trovão, mas o que encontramos em Katarunk? Nossos inimigos, que nos aguardavam para nos liquidar!"

Nicolau Perrot não se deixou impressionar com a indignação talvez fingida. A delegação ao Homem do Trovão não fora o único objetivo da viagem dos emissários iroqueses.

— Durante essa viagem para Katarunk, não avançaram um pouco mais longe, para leste? - perguntou Perrot com ar inocente.

— Claro, tínhamos uma pequena conta a acertar com os iroqueses do rio Saint-Jean.

— Também não queimaram algumas aldeias por lá, matando os habitantes?

— Bah! Apenas algumas dessas fuétas..vermelhas que os franceses adoram tanto, mas que na verdade não sabem sequer plantar uma espiga de milho e um grão de girassol. Selvagens e escravos!

— Bom! Digamos então que no regresso de sua campanha de guerra ao rio Saint-Jean, resolveram passar por Katarunk para avistar-se com o Homem do Trovão...

- Mas o que encontramos? - repetiu Tanhtaguete, desesperado e encolerizado. - Foi você, Tekonderoga, que preparou essa armadilha para nós? Todos os nossos piores inimigos reunidos!... E não falo apenas desses traidores dos huronianos e algon-quinos, que sonham com nossos escalpos para vendê-los a bom preço em Quebec. Há também esse Loménie, o coronel, esse que prometeu ao seu Deus louco nos exterminar antes de morrer, pois é verdade que a ele, nos combates, nada pode atingir, e há Pont-Briand, que anda sem ruído no caminho da guerra, um branco que ninguém ouve aproximar-se, embora seja pesado como um bisonte das planícies. E quem mais está com eles? Ah, como pude suportar a vista desses traidores! Três Dedos, que foi meu irmão entre os onontagues, e Maudreuil, que foi o filho de Swa-nissit. Estão aqui, falando de vingança, eles, que agiram com tamanha traição! Três Dedos não matou dois de nossos irmãos quando fugiu de nossa aldeia, isso quando durante mais de um ano havíamos compartilhado da mesma cabana? E Maudreuil, Swanissit recebeu-o pequeno. Era belo, hábil na caça, e nossos corações encheram-se de tristeza quando tivemos que trocá-lo por dois de nossos Principais, que os franceses tinham feito prisioneiros. Pois bem, Três Dedos também não se lembra dos benefícios recebidos de nossas mãos, nem do calor de nossa cabana, mas está aí, hoje, e conta que quer vingar a morte de sua família, de seu pai, mãe, irmãs, que Swanissit matou outrora. Ora, isso não é verdade, Swanissit jamais escalpou com as próprias mãos qualquer mulher ou criança. E Maudreuil sabe disso melhor que ninguém. Foram os brancos que nos ensinaram a matar as mulheres e as crianças, e que podemos fazer, nós, os anciãos, se nossos jovens guerreiros se puserem a imitá-los? Mas quanto a mim, que sou velho, morrerei na tradição de meus pais, sem nunca ter matado mulher ou criança.

"Quando eu ia a Quebec, quantas vezes não ouvi os franceses dizerem 'patife como um iroquês'?... Mas, diga-me, quem é mais patife, nós ou aqueles que, como Maudreuil e Três Dedos, traem as leis da adoção que os acolheu em lugar da morte... Vakia tuta-vesa!"

E repetiu várias vezes esse vakia tutavesa, que significa "isso me faz fremir e estremecer até a medula".

— E o Casaco Negro Etskon-Honsi, que está em Modesean? Para que veio? Para o Sortilégio? E nosso enfeitiçamento? E Pik-sarett, o chefe dos patsuiketts,-am de nossos-piores inimigos, que tem bem umas trinta cabeleiras,de nossos irmãos penduradas à porta de sua wingwam? Para que veio?

— Os abenakis fizeram a paz corn os ingleses e com o branco Tekonderoga - disse Perrot.

— Não Piksarett! Piksarett não é um abenaki como os outros. Por um escalpo de inglês ou de iroquês, trairá qualquer paz!... Ele só ouve uma voz: a do Casaco Negro. Proclama que o batismo é bom para os abenakis é que é" esse Deus. dos brancos que lhes dá a vitória... O Casaco Negro tem todo o poder sobre ele, e o Casaco Negro,quer a destruição dos iroqueses.

— Mas crCasaco Negro hão comanda os exércitos. É o Coronel de Loménie quem decide-sobre os combates. Ora, o coronel também deseja a-paz com Tekonderoga.

— Mas. vai conseguir conter seus amigos abenakis? Faz vários dias que estes farejam a nossa pista... Até capturaram Anhisera, o chefe dos eneiuts, e na outra noite o queimaram parcialmente. Ele fugiu e conseguiu reunir-se a nós. Neste momento vivemos em tocas e não ousamos nos-aproximar de sua residência, toda empestada pela presença desses chacais e desses lobos. Foi você, Tekonderoga, que nos preparou essa armadilha? - repetiu, em tom solene.

Por intermédio de Nicolau Perrot, Peyrac explicou brevemente que ele próprio fora surpreendido pela incursão dos franceses, e que no momento se esforçava por fazê-los partir sem prejuízos.

Ao contrário do que se poderia temer, o plenipotenciário iroquês não pareceu colocar-lhe a palavra em dúvida, mas continuou preocupado. Já pressentira a verdade. Só que isso não tornava a situação menos grave para eles.

-        Na outra margem escaparíamos rpais facilmente. Mas já não podemos atravessar o rio. Há gente demais rondando entre Katarunk e Modesean. Estamos encurralados na floresta. Acredita que possamos escapar por muito, tempo a esses cães que estão nas nossas pegadas?... Tekonderoga, se você é poderoso de fato, garanta-nos a passagem do Kennebec... garanta-nos contra esses coiotes...

— Penso que posso obter isso do Coronel Loménie - disse Peyrac. - Não cometeram nenhum ato repreensível na redondeza?

— Era só a você que vínhamos ver.

— Tenha paciência até depois de amanhã. Os aliados dos franceses começam a partir para o norte. Muitos já se terão distanciado e vocês poderão apresentar-se diante de Katarunk como uma delegação de paz.

O rosto de Tahutaguete, que parecia um grande tubérculo terroso, enrugou-se sob o peso da reflexão. Depois ele se levantou.

— Acho que pode ficar assim - disse. - Se nossas propostas de paz forem rejeitadas e não pudermos cruzar o rio, pelo menos nossos inimigos a combater terão diminuído em número. Você diz que as tribos retornam ao norte?

— Pelo menos nos esforçaremos para apressar mais ainda essa partida - disse Perrot.

— Agora o mais duro para mim ainda está por fazer - disse o índio. - Convencer Utakê, chefe dos mohawks, de que é necessário fazer a paz com você. Sabe que é preciso o acordo dos chefes de nossas cinco nações para que se possa realizar uma ação. Ora, Utakê não quer ouvir nada. Diz que dos brancos só se pode esperar traição e que não existe branco que possa ser exceção. E a favor da guerra, e guerra apenas. Quer se lançar com seus guerreiros sobre os patsuiketts, enquanto atacamos aqui.

— Loucura, você sabe, Tahutaguete, e Swanissit também sabe. Ele não pode convencer Utakê?

— Você conhece Utakê - disse o outro em tom desiludido -, tem o crânio ainda mais duro do que o granito. Depois, disse uma coisa terrível a Swanissit. Disse que soube num sonho que você, Tekonderoga, o Homem do Trovão, será a causa de sua morte, da morte de Swanissit, o grande chefe das cinco nações.

— Eu? - exclamou Peyrac, levantando-se parcialmente num impulso de cólera, na melhor tradição indígena. - Estaria me acusando de traição esse miserável chefe mohawk a quem jamais vi?

— Como você poderia ser a causa da morte de Swanissit se deseja uma aliança com ele?... Foi o que Swanissit respondeu a Utakê. Mas ficamos perturbados porque não ignoramos que Utakê tem amizade com o Espírito dos Sonhos... Também sabemos que é um grande mentiroso, pois ainda conta que ouviu os algonqui-nos dizerem n(c) acampamento que sua esposa venceu o sinal do Iroquês nas quedas de Moxie, prova de- que prepara a nossa derrota.

Os olhinhos avermelhados do velho-Tahutaguete foram de Pey-rac para Angélica, sentada na penumbra. Sentia-se que ele queria receber palavras de esperança, mas'que as duas graves objeções apresentadas pelo chefe Utakê haviam-lhe abalado muito a confiança no branco, Homem do Trovão, de quem fora um dos ardorosos partidários no conselho.

-        O Iroquês deseja a morte^de minha esposa? - indagou Peyrac. - Swanissit, você e os demais resolveram aparecer subitamente diante dela para C[ue sua montaria, assustada, a lançasse com sua filha no abismo? Claro que não, não é? Mas foi o que a tartaruga fez. Ora,:'4a mesma maneira que não os responsabilizo, a você e aos seus, pelo erro da* tartaruga, não devem atribuir à minha mulher, que a afastou de seu caminho para salvar a vida, a intenção-de prejudicar as cinco nações. Assim como eu, você sabe que atartaruga é um animal caprichoso e sonhador, e o espírito de seus ancestrais, que nela dormita, nem sempre a guia em seus atos.   

O sutil raciocínio pareceu agradar a Tahutaguete, que depois de tê-lo repassado várias vezes pelas circunvoluções de seu cérebro índio, aprovou com breves meneios de cabeça.

— Sempre achei que esse Utakê era um pouco louco. Seu ódio o desnorteia. Swanissit é um sábio. Quer salvar o futuro das cinco nações, e pareceu-lhe que você poderia ajudá-lo.

— Eu o ajudarei - disse Peyrac, pousando a mão sobre a do selvagem.

No momento considerou inútil pedir-lhe explicações sobre o ataque dos cayugas no sul.

-        Retorne à floresta e diga a Swanissit que continue a confiar em mim. Encontrarei um modo de apressar a partida da maioria dos índios que estão acampados em torno do meu forte e vou tentar obter uma trégua para vocês junto aos oficiais franceses, para que deixem seus guerreiros cruzarem o rio. Dentro de dois dias mandaremos dizer-lhes se os franceses aceitam a trégua e se os seus Principais podem vir sem risco a Katarunk.

O mensageiro iroquês ergueu-se e, depois de reforçar com um pouco de carvão a maquilagem de fuligem que lhe permitira tornar-se invisível na noite, afastou com um golpe de mocassim as brasas da lareira e num rápido impulso içou-se pela chaminé.

Os outros permaneceram imóveis um longo momento, aguardando os gritos que indicariam o encarniçamento dos selvagens, lançados na pista do inimigo descoberto. Mas não se ouviu nada.

— Estranho! - disse Nicolau Perrot, coçando a cabeleira sob o gorro de pele. - Que história! Tenho a impressão de que tudo isso não vai demorar a virar uma embrulhada dos diabos.

— Eu imaginava que o chefe hostil, Utakê, tivesse sido capturado pelos franceses, depois de um festim a que fora convidado, e que até o tinham enviado para a França e condenado às galés.

— Sim. Mas ele voltou. O Sr. de Frontenac conseguiu-lhe a libertação e o retorno.

— Que tolice! - exclamou Perrot com violência. - Nunca entenderão nos altos postos que se paga mais caro por um erro do que por um crime, e quando se chegou a ponto de cometer um crime de tal amplidão como o de capturar um convidado que se recebia à mesa e enviar um grande chefe iroquês para remar nas galeras do Mediterrâneo como escravo, que pelo menos se tivesse a coragem política de cometê-lo até o fim e deixar o homem morrer lá. Como puderam ter a ingenuidade de imaginar que, de regresso a seu país, ele logo não se tornasse seu pior inimigo? Como quer que ele algum dia esqueça o modo como o trataram?

— Quem é esse Utakê? - perguntou Angélica.

— Um grande chefe iroquês, da nação dos mohawks - explicou Perrot. - Não teve uma vida muito comum. Ainda criança, foi adotado pelo Sr. d'Arreboust, que o mandou educar à sua custa no seminário de Quebec. Ao contrário dos outros indiozi-nhos, ele era sério, bom estudante. Ainda hoje fala um francês muito correto, coisa rara num índio. Mas na adolescência desapareceu, e soube-se que se tornara entre os seus um dos mais ardorosos propagadores do ódio aos franceses. Ele próprio torturou alguns de nossos missionários com requintes de crueldade inacreditáveis. Na verdade, esse Utakê é uma fera selvagem.

Angélica lembrava do rosto de índio com brincos vermelhos que entrevira na mata e cujos olhos refletiam um ódio feroz.

- Como é ele? - murmurou.'- Quero dizer, qual é seu aspecto?

Mas não a ouviram... 

CAPITULO XIX

O desaparecimento de Angélica

Na floresta ensolarada, o chefe mohawk Utakê desliza por entre os galhos a grandes passadas silenciosas.

Não presta atenção aos espinhos, às raízes, nem ao entrelaçamento dos ramos. Toda essa muralha de folhas que a floresta opõe ao ser vivo, ele a atravessa, cruza-a como um espírito atravessaria magicamente um muro, e nada lhe desacelera o avanço, o ritmo igual e vivo de suas pernas duras, cuja pele, um dia, ele rasgou para retirar toda a gordura e deixar apenas os músculos infatigáveis.

Corre pela floresta abenaki, floresta inimiga, mas que ele conhece, pois desde a juventude percorre todas as matas no encalço do Huroniano, do Algonquino e do Francês.

Vadeia rios e riachos, contorna lagos, sobe falésias abruptas, segue a linha dos cumes rasgada de rochas e pinheiros, torna a descer para o meio de frondes tenebrosas, onde se acendem as massas púrpuras e douradas de árvores.

Pensa nos irmãos, os chefes das cinco nações, que deixou lá embaixo, acocorados como coelhos medrosos, ouvindo as palavras que Tahutaguete lhes trouxe de Katarunk. Não, jamais se unirá a eles para fazer a paz com um branco... Pois ele não é tolo! Não pode ser mais. Foi em vão que os preveniu. Irmãos insensatos!... Os brancos zombaram dele. No entanto, ele, Utakê, viu-os em sonho, com a cabeça coberta de sangue.

Eles também zombaram dele, seus irmãos vermelhos, quando lhe lembraram que a esposa de Tekonderoga afastara do próprio caminho o sinal do Iroquês. Mas ele, Utakê, vira-a em carne e osso ao crepúsculo, a mulher branca ajoelhada e que prestava homenagem ao deus da terra. Não, não rezava como os brancos, que encerram em si o próprio fervor e oproíbem de manifestar-se. Ela orava esfregando as folhas de hortelã entre as mãos, depois erguendo as mãos ao céu,ílepois passando-as no rosto, e baixava as pálpebras, e seu rosto estava todo iluminado pelo sol poente. Desde que a viu ele tem medo, sénte-se oprimido. Ei-lo agora que atravessa com seu passinho rápido um espaço desnudado pelos incêndios, e seu olhar vagueia pelo deserto de floresta, montanhas, a enfiada de lagos, os meandros dos rios que compõem a paisagem melancólica e-esplêndida das nascentes do Alto Kennebec. Alguma vez esses lugares viram tal afluência de gente como'agora quando chegou o Homem do Trovão com sua coluna de cavalos e suas mulheres, seus guerreiros arrastando canhões, para unir-se'^aos canadenses vindos do norte com seus aliados vermelhos, armados'de arcos, lanças e tacapes, enquanto do sul subiam os patsuiketts do Connecticut e os etchemins, todos abenakis, inimigos do Iroquês, acompanhando o rio Kennebec, azul e negro., sob o comando do Casaco Negro de olhar de fogo, o jesuíta Etskon-Honsi?

E essa multidão armada acabara convergindo para o forte de Katarunk. Com que objetivo senão o de massacrar os iroqueses?

Utakê mergulha novamente na floresta.

Pensa na mulher branca que topou com a tartaruga em seu caminho e não se desviou.

E ao erguer os olhos para o sol que dardeja entre os troncos, sente como que um ofuscamento e uma dor na boca do estômago que só pode ser devido às fadigas da fome, da caminhada e da guerra, que há três meses formam a trama de sua existência, mas também a lembrança do que ele sentiu quando, oculto pelas árvores, viu-a avançar, espírito estrangeiro e inquietante, toda adornada com sua capa cor de fogo. Sentimento detestável em que ele imaginou reconhecer o medo, a inquietação com o que é insólito e que não se entende.

A fome provoca-lhe vertigens sutis, uma visão transcendente e sublime. Seu espírito desprende-se do corpo e flutua-lhe à frente. Seu espírito é como um pássaro ébrio que o precede gemendo desesperadamente. Assim devem gemer as almas abandonadas. Sua alma geme perante a eterna atenção que os brancos inspiram, a eterna sedução que conduz o índio aos pés desses traidores, carrascos brutais, com a esperança definitivamente arraigada de que desta vez será ele, o Ancestral-de-Cara-Pálida, portador da tocha de glória, anunciado por todos os sacerdotes índios e pelas mais antigas lendas do Culto do Pássaro.

Você não sabe que não é ele, que nunca é ele? O falso Messias, como diria o Casaco Negro. O Ancestral-de-Cara-Pálida não existe, não virá... "Que fraqueza, então, vai lançá-lo, Swanissit", pensa Utakê, "aos pés de uma ilusão, para aí buscar a grandeza, a força, a vitória, a proteção, e receber apenas venenos... Já não levaram tiros de mosquestes suficientes, índios, já não os encharcaram da água ardente que corrói sua raça assim como o fogo corrói a floresta?"

Mas, contra toda a evidência, contra toda a experiência, Swanissit ainda tem esperança. Tem esperança no Homem do Trovão. E ele mesmo, Utakê, que neste momento avança para espreitar o forte dos brancos, infelizmente também tem esperança?

Para escapar à tentação dos brancos, seria necessário matá-los todos, extinguir-lhes a alma. Mas aí está: eles não têm alma! Sua alma é uma pele de castor...

O sol começa a declinar. O iroquês estaca, farejando a vizinhança.

Dissimula-se por trás de um tronco e vê passar dois abenakis. São patsuiketts, desse povo que, vindo das nascentes do Connec-ticut, introduziu-se astutamente no país dos Filhos da Aurora, e que têm o nariz comprido, os dentes salientes como os do coelho e o queixo curto. Sua pele é da cor da argila vermelha. Trançam os cabelos, e trazem a mecha do escalpo tão mal atada que não se sabe onde agarrá-la para "fazer-lhes" o cabelo.

Escondido, o iroquês, desdenhoso, os vê passar a alguns passos. Com o longo nariz adunco voltado para o chão, os dois seguem uma pista. Essa pista vai levá-los até o local onde, há pouco, os cinco chefes iroqueses deliberavam. Ainda que Utakê tenha tomado o cuidado de apagar as próprias pegadas, os abenakis fatalmente as encontrarão, pois são sabujos mais eficazes do que os coiotes, sem dúvida por causa do nariz comprido. Chegarão, assim, ao local da deliberação e certamente farejarão os odores do inimigo.     

Qual sombra furtiva, o iroquês vai na direção deles, deslizando de árvore em árvore, e quando se vê atrás dos homens, parte-lhes a cabeça com dois golpes de tomahawk tão precisos e vivos que os dois peles-vermelhas desabam sem um suspiro, com o crânio fendido. Sem se preocupar com os cadáveres e sequer com os escalpos, o iroquês prossegue seu caminho.

Ao atingir os arredores do forte de Katarunk, ouve cavalos relinchar, e o ruído é tão inusitado e impressionante que ele se arrepia inteiro. Fica longo tempo parado, como que em transe, escutando os sons nos quais discerne um, novo e ameaçador. Sem tê-lo visto, ele odeia a esse branco recém-chegado, pois parece prometer-lhe, também ele", um apoio, uma esperança, uma aventura nova e .talvez salvadora. No entanto, Utakê sabe que tudo isso não pajsa de miragens...      

Como extinguira alma do branco se não se pode fazê-lo desaparecer pelas armas, antes que mais uma vez ele os engane?

Correndo o risco de ser descoberto por um abenaki ou huroniano, e Sèr desalojado como caça vulgar pelos cães que ladram à beira do rio, o-iroquês continua ali, como que fascinado.

Neste local ele viu am-ulher branea ajoelhada entre os aromas das plantas, com os cabelos flutuando como plumas contra a penumbra do entardecer.

-        Oranda! Oranda! - murmura.

Chama o Espírito Supremo, que se une estreitamente às coisas criadas e lhes comunica sua força. Ouve soluçar a fonte e o calor acentua o odor tépido da hortelã. Então, Utakê se decide.

-        Amanhã"voltarei aqui. Chamarei a mulher branca. E quando vier, eu a matarei.

O êxodo dos índios aliados cessara. Pela voz dos tambores chegara-lhes uma mensagem: dois patsuiketts tinham sido encontrados na mata com o crânio rachado. Crime do Iroquês, sem dúvida alguma.

Nicolau Perrot usou de muita eloquência para demonstrar aos huronianos e aos outros algonquinos que os assuntos dos patsuiketts não lhes diziam respeito. Nem eram abenakis como os demais, frisou ele, seu nome significava "aqueles que vieram fraudulentamente". Na verdade eram estrangeiros, chegados do outro lado do Connecticut, que se infiltraram entre os filhos do País da Aurora para pilhar seus terrenos de caça e pesca.

Portanto, que se entendessem com os iroqueses, disse-lhes Perrot. Estes eram tão pouco numerosos que nem valia a pena que os bravos guerreiros do norte se colocassem no encalço deles. E a prova era que sem dúvida alguma os iroqueses mesmos estavam aterrorizados neste momento e não ousavam atacar as poderosas tribos reunidas em Katarunk. Sequer valia a pena desenterrar o machado de guerra enterrado por Onontio, o governador do Canadá, por alguns patifes iroqueses e patsuiketts em disputa.

Embora falando com ardor, o pobre Perrot não podia deixar de sentir a consciência pesada em relação aos patsuiketts, pois na verdade eram os melhores guerreiros e os melhores índios convertidos da Acádia. Um pouco estrangeiros, de fato, mas nem por isso deixavam de formar uma das tribos mais devotadas aos missionários católicos.

O Conde de Peyrac por sua vez falara com Loménie, prevenindo-o de que os iroqueses estavam na floresta e pediam para cruzar o Kennebec. Na realidade, o incidente dos dois patsuiketts assassinados recolocava tudo em questão.

Mas as ordens de Peyrac continuaram as mesmas:

- Se os patsuiketts quiserem vingar seus mortos, que lutem com os iroqueses rio abaixo. Quanto a mim, não quero que Katarunk se envolva em nada, nem os meus nem os que aqui se encontram hoje. O lamentável hábito que os franceses adquiriram de participar das inúmeras querelas das tribos acarreta a ruína da colonização - disse a Loménie, que hesitava.

Finalmente o coronel aquiesceu. Contentou-se em despachar um pequeno grupo de etchemins para o sul, para o caso de o Padre d'Orgeval necessitar de socorro.

Explorou-se o ódio que existia entre os patsuiketts e os outros abenakis, e pelo final da tarde a situação se acalmou. Carregados de presentes, os capitães índios preferiram voltar para casa e abandonar patsuiketts e iroqueses à própria sorte.

Só o Barão de Maudreuil não estava de acordo e queria lançar-se sobre o inimigo.

— E se o Padre d'Orgeval for atacado com seus catecúmenos? - indagou, fremente.

— Os iroqueses se comprometeram, caso os deixemos vadear o rio sem estorvos, a retornar a seu país sem causar dano algum às povoações que encontrarem no caminho - disse Peyrac.

-        A prova! Já começaram matando dois patsuiketts...

Peyrac teve que admitir que não entendia o ato de violência depois da conversa que tivera com Tahutaguete na véspera.

-        Também o senhor aprenderá a con-hecê-los - troçou Maudreuil. - Na cabeça de um iroquês só pode haver patifaria e traição.

Loménie chamou-o à ordem. Os canadenses esqueciam com facilidade excessiva que o governador real assinara tratados de paz com as cinco nações...

-        Com essa gente não existem tratados - replicou o outro. E cravando-Ihes. os olhos azuis com ferocidade: - A guerra, a guerra sem mercê!... Não pode haver outra solução entre franceses e iroqueses.

Ainda assim os guerreiros índios continuaram a embarcar, e ao anoitecer as mulheres e crianças, que tinham ido esconder-se na mata na expectativa da guerra anunciada, retornaram e colocaram os caldeirões ao fogo para a refeição da noite.

Foi quando alguém notou a ausência da Sra. de Peyrac.

Procuraram-na por toda parte. Vistoriaram-se as construções e fez-se a volta à paliçada. Chamaram-na nos "desmatados" e à beira do rio.

Uma sensação de catástrofe dominou a todos.

Angélica desaparecera.

CAPÍTULO XX

O punhal de Florimond - O perigo ronda por perto

Aquilo a invadira de um modo estranho, num momento em que se encontrava sozinha na pequena casa. Um mal-estar que lhe oprimia a alma.

E de súbito tivera a ideia de retornar ao topo da colina, atrás do forte, para colher hortelã.

Por várias vezes teve que expulsar o pensamento, e afinal sentiu-se um pouco melhor.

Ociosa, incapaz de executar qualquer tarefa, ficou apoiada à janela, olhando pelos quadradinhos de pergaminho, embora não pudesse distinguir outra coisa senão sombras que iam e vinham, confusas, no pátio.

Pensava no humor e no caráter do filho mais novo, Cantor, amuado com ela desde que lhe despejara um balde de água nas pernas. Nunca fora fácil conhecer os pensamentos daquele garoto, mesmo quando não passava de um querubim cacheado. Agora que era um robusto e sólido adolescente, com aquela beleza sadia, um pouco rústica, que ela conhecera em alguns dos próprios irmãos em Sancé, era ainda mais difícil contê-lo.

Maquinalmente Angélica tamborilava com os dedos nos quadradinhos de pergaminho. Lembrou-se do olhar de Cantor. Os olhos de menina num corpo de jovem atleta.

"O que há, rapazinho?" indagava-se consigo mesma a meia voz. "Já não somos nada um para o outro, embora mãe e filho?"

A indagação ecoava a pergunta que ela se fazia com frequência, ainda sem conhecer a resposta, desde que reencontrara os dois filhos em Gouldsboro.

"Para que, afinal, pode servir a mãe de dois garotos crescidos, de quinze e dezessete anos, que há muito tempo aprenderam a passar sem ela?"

Houve uma batida violenta na;porta, precedendo a aparição ligeira e sorridente do moreno Florimond.

Angélica, que levara a mão ao peito, assustada, perguntou-lhe se ele se lembrava de que fora o pajem mais cortês de Versalhes e se não podia adotar maneiras menos militares ao se apresentar diante de senhoras, ainda.que fosse poupar-lhes emoções inúteis.

O soco na portaxostuma ser o- da soldadesca, e Deus sabe que em geral isso não anuncia nada de bom para a pessoa visitada.

Florimond reconheceu, bem-humorado, que suas viagens e em particular sua vida de-grumete a bordo de uma navio mercante rapidamente apagaram as boas maneiras dos salões e da corte, inculcadas pelo preceptor, ò abade. Não era culpa sua: sempre fora estouvado.

E se na Nova Inglaterra os modos que ele encontrara eram mais afetados do que nos navios, sempre careciam de elegância.

Ali, pelo menos, ninguém complicava a vida com reverências e volteios de perna ridículos. Depois, argumentou ele com habilidade, a espessura das portas de madeira de um posto florestal impedia que se arranhasse a porta com a unha do dedo mínimo, como uma donzela de boa família educada segundo os princípios de civilidade honesta, pois se corria o risco de permanecer muito tempo à soleira sem ser ouvido.

Angélica riu e concordou. Olhava-o com prazer, enquanto ele ia e vinha, dizendo consigo que o rapaz era.realmente soberbo. No entanto, quando criança, dera-lhe muita preocupação por causa da saúde frágil.

Agora se penteava como Romain de L'Aubigniere e o Barão de Maudreuil, com uma fieira de pérolas nos longos cabelos, encimada por penas e caudas de pele. Caía-lhe à maravilha.

Também ele era belo, com a beleza que teria tido Joffrey de Peyrac caso um golpe de sabre não o tivesse desfigurado na infância.

Pelo tamanho, Florimond era quase um homem agora, mas pelo sorriso ainda era uma criança.

Disse que vinha para se explicar acerca de Cantor. O irmão, reconheceu ele, era um "cabeça-dura", mas bom, corajoso, e no momento "tinha dificuldades"... E não forneceu maiores explicações. .

Angélica emocionou-se com a solicitude ao mesmo tempo fraterna e filial de Florimond.

Afirmou que de modo algum queria mal a Cantor, mas que precisavam encontrar um meio-termo de entendimento.

Depois conversaram amigavelmente e Florimond falou dos projetos que alimentava. Disse que queria aproveitar o avanço do pai em terras americanas para levar mais adiante ainda uma expedição para oeste e sem dúvida descobrir a passagem do mar da China, que há muito tempo se procurava.

Tinha algumas ideias a respeito. Mas ainda não falara sobre elas com o pai.

Era melhor esperar a primavera.

Caía a noite. Sempre dialogando com o filho, Angélica começou a preparar as lâmpadas e a instalar as candeias nas palmatórias. E, de repente, brutalmente, a lembrança do sonho que tivera com o iroquês que a atacava com o tacape voltou-lhe à mente, e de modo tão pungente, que ela imaginou que fosse desmaiar.

Vendo-a empalidecer, Florimond parou de falar e perguntou o que havia.

Angélica admitiu que não se sentia bem. Tinha a impressão de sufocar. Ia sair para respirar a fresca do anoitecer. Ia colher hortelã, lá no alto, perto da nascente, pois logo a geada queimaria as folhas frágeis, que escureceriam e já não serviriam para medicamento. Angélica falava como num sonho. Parecia-lhe imprescindível fazer a colheita de hortelã, e ela se surpreendia de haver esquecido e de só se lembrar àquela hora tardia.

Atirou um manto sobre os ombros e pegou um cesto.

A soleira da porta, pareceu-lhe que esquecia algo e olhou um longo tempo para Florimond, que, sem se incomodar com essa partida abrupta, servia-se de cerveja.

— Florimond, pode emprestar-me seu punhal?

— Certamente, mãe - disse ele, sem surpresa.

Estendeu-lhe o objeto, uma faca muito bem-cuidada, como se deve, por um rapaz de dezessete anos que já se toma por um caçador confirmado e explorador experiente.

A arma tinha,os dois fios t.ão cortantes quando uma navalha. O cabo polido, esculpido no encaixe dos dedos, acomodava-se bem na mão.

-        Devolvo-lhe daqui a pouca - disse Angélica.

E saiu, apressada.

Quando, um pouco mais tarde, deram início à busca, Flori-mond tocava flajolé nas cozinhas, observando a elaboração, pelo Sr. Malaprade de um bolo onde entravam farinha de trigo, açúcar e baunilha, do tipo que ele não comia desde a infância. Um pouco de-gordura de alce substitui a manteiga, iguaria desconhecida na "região.

Indagado, Florimonti respondeu que a mãe fora colher hortelã no topo da colina, perto da nascente, e que lhe emprestara o punhal.       

Ficou surpreso ao ver o pai ter um sobressalto e lançar-lhe urn olhar terrível.;..

-        Depressa.- disse ele a Nicolau Perrot. - Vamos até lá. Tenho certeza de que ela está em perigo.

CAPITULO XXI

Utakê, chefe dos moawks - Conversação de paz com os iroqueses

Angélica subira a encosta por entre os tocos de árvores abatidas.

Ultrapassara a zona desmatada e continuara pela inclinação coberta de ervas.

Finalmente avistou a nascente. E soube que o local, como na véspera, estava habitado por uma presença, ainda invisível, mas certa, embora desta vez não distinguisse nada entre os troncos. Estava tudo calmo.

Mas o iroquês estava ali.

Ela soube também que era tarde demais para recuar e que era preciso que o sonho se cumprisse.

O nervosismo um tanto desvairado que a impelira até lá abandonou-a. Vinha-lhe de dentro uma força que ela conhecia bem. A que precede o combate. Vivera a sensação inúmeras vezes, sobretudo quando precisara defender os filhos, de punhal na mão. Ganhava então uma paz interior tão grande que mais tarde sempre se lembrava desses instantes como os de maior exaltação de sua vida.

Segurou com firmeza o punhal de Florimond e, dissimulando-o entre as dobras da saia, continuou a avançar até a beira da nascente, onde se ajoelhou.

Aquele que a espreitava, vendo-a de costas e aparentemente sem desconfiar de nada, não esperava que ela subitamente fosse enfrentá-lo quando deu o bote.

Angélica o percebeu, sombra negra, erguida contra o sol poente, com o tacape no ar e o tufo de cabelo transformado em penacho brilhante, assemelhando-se a uma grande ave de rapina, silenciosa e imensa, que se abatia sobre ela. Esquiv.ou-se. Ele tropeçou, errou o alvo e, como ela o agarrasse rapidamente pelo tornozelo, caiu pesadamente sobre as. folhagens à margem do regato. O tacape escapou-lhe da mão e quase no mesmo instante a ponta afiada do punhal apoiou-se contraia sua garganta.

Tudo se passara com rapidez extraordinária, sem ruído e sem que se notasse sequer o som da respiração de ambos.

Mas, no momento de extinguir aquela vida, Angélica hesitou. Largava todo o-seu peso sobre o índio tombado. Entre as fendas oblíquas das pálpebras, pupilas negras e brilhantes traduziam um estupor indizível.

O iroquês nãaconseguia entender como um guerreiro tão forte, tão hábil, tãõ Invulnerável quando ele se encontrasse à mercê de uma mulher, e de uma branca ainda por cima! Só se recobrou no momento em que lhe veio a ideia de que ela não era uma mulher real, mas um ser de essência superior, sem dúvida, divina. Então respirou. Podia admitir a derrota. Já não era uma desonra.

Sua voz soou, rouca e baixa:

-        Mulher,.dê~-me minha vida!

No momento de hesitação em que ela deixara de degolá-lo, ele poderia ter tentado lutar contra ela, mas pareceu renunciar ao combate.

-        Se lhe dou a vida, você toma a minha - murmurou ela.

A voz suave e musical tremeu e penetrou no espírito do selvagem.

-        Não - disse ele, resoluto. - Juro pelo Grande Espírito. Sua vida é sagrada-se você está encarnada. Doravante ninguém pode atentar contra ela.

E ela notou que haviam trocado essas palavras em francês.

— Você não é Utakê, chefe dos mohawksí

— Na verdade sou!   

Então Angélica se levantou lentamente e o soltou. O iroquês, também lentamente, rolou para o lado, sem desviar os olhos dela, depois se ergueu, com gestos flexíveis de felino. Não tentou pegar o tacape. Ficou ali, de mãos vazias, imóvel, contemplando-a.

-        E você é a esposa de Tekonderoga?

Como ela não parecesse entender, acrescentou:

-        O Homem do Trovão, o que explode montanhas e a quem o forte de Katarunk pertence?

Ela meneou a cabeça, afirmativamente.

-        Então, levç-me até ele - disse o índio.

Os que subiam rapidamente a encosta, de armas em riste, acorrendo ao socorro de Angélica, viram aproximar-se duas formas, de início imprecisas, pois a noite caía sobre aquele lado da montanha.

Reconheceram a jovem, mas logo ao alívio que sentiram misturou-se a desconfiança em relação ao homem que a acompanhava. Estacaram, expectantes. E muitos tiveram aquela vaga sensação de medo e timidez que deviam sentir, outrora, os que viam retornar da montanha as santas lendárias arrastando consigo o monstro, o dragão, a tarasca acorrentada e finalmente inofensiva.

Pois se podia sentir que o ser que a seguia não era de espécie comum. Parecia trazer em si o calor aterrorizante do monstro vencido.

Era bem o fôlego do dragão incendiário e voraz que inchava o busto tatuado e fazia brilhar como brasas incandescentes as pupilas dilatadas.

E o odor selvagem que emanava de sua pessoa, ranço de covil e de crimes, parecia mais pesado e agressivo perto da silhueta delgada da mulher que o precedia. Alguns dos homens de Peyrac, conquanto marujos aguerridos, recuaram ligeiramente. Os índios metailaks, que se haviam juntado ao grupo, viraram nos calcanhares e saíram correndo para apanhar as armas e se colocar em posição de emboscada. No acampamento, suas mulheres, prevenidas por eles, puseram de novo sobre os ombros as crianças, caldeirões e mantimentos e enfiaram para as matas, para se esconderem mais uma vez.

-        É Utakê, o chefe mohawk - apresentou Angélica. - Está sozinho e quer parlamentar. Dei-lhe garantias de vida.

Então, em silêncio, contemplaram o irredutível chefe dos mohawks. Utakê desejava parlamentar... Inacreditável! Mas os que já o haviam visto reconheciam-lhe a forma vigorosa, habitada de um ardor selvagem e contido, que dava uma impressão de força gigante.

Era mesmo ele.

Viam-no, como era hábito seu, como que atravessado pelas descargas de uma natureza inquietante que lhe eriçava o penacho, cabeleira e plumas empinadas, eretas, duras, como os pêlos de um animal invadido pela cólera pu pelo medo. A presença de Utakê, o mohawk, sempre dramatizava ã atmosfera à sua volta.

O jovem Barão de Maudreuil lançou algumas palavras em iro-quês. O índio respondeu com uma breve onomatopéia. O outro deu um pulo.

— Está dizendo que Swassinit está com ele... Eu sabia. Segui-lhe as pegadas. O "odor dessa raposa não engana. Finalmente os pegamos, esses índios,, esses bárbaros!

— Cale-se -plisse Nicolau Perrot, peremptório. - Você está esquecendo que nunca se-deve insultar um plenipotenciário.

— Isso, um plenipotenciário?!.., Não, ò pior inimigo de Deus que se introduz em fiòsso acampamento. Não confiarei numa única palavra que. lhe saia .da boca.

O iroquês permanecia impassível. Depois falou, e ficaram todos surpresos de ouvi-lo exprimir-se num francês gutural quase perfeito.

-        Onde está Tekonderoga, o Homem do Trovão? É você? - indagou, voltando-se para Peyrac. - Sim! Reconheço-o. Saúdo-o. Sou Utakê, chefe dos mohawks. Swanissit, o seneca, chefe das cinco nações, quer a paz com você. Venho em seu nome pedir sua aliança e sua mediação com os franceses para que estes nos deixem cruzar o Kennebec.

O Conde de Peyrac levou a mão ao chapéu, cujas plumas pretas e vermelhas o vento agitava. Tirou-o e fez uma profunda reverência diante do selvagem, em sinal de consideração e boas-vindas.

-        Eu sabia - contou Utakê mais tarde -, eu sabia que esse tipo de saudação os brancos só dirigem ao rei. Mas foi assim que ele me cumprimentou, esse homem branco, e então meu coração ardeu como se o fogo da amizade nele se houvesse acendido.

Algumas horas depois Utakê partiu, incumbido de levar a Swanissit propostas de entendimento. Se deixassem o grupo iroquês atravessar o rio livremente, seus chefes deviam comprometer-se a não molestar nenhum dos povos abenakis ou algonquinos que encontrassem em seu longo trajeto de retorno.

-        Ora, e por que vocês, franceses, se preocupam com essas raposas vermelhas? - dizia o mohawk com desprezo.

Maudreuil continuava irredutível, e até os dois tenentes, Pont-Briand e Falieres, o apoiavam de bom grado quando ele protestava:

-        Vão ver: eles assumirão compromissos e não respeitarão nenhum.

Os capitães aliados estavam descontentes.

-        Viemos para a guerra - disse o chefe dos horonianos -, e agora que o inimigo está aqui só se fala de tratados... O que dirão os da nossa nação ao nos verem regressar sem um único escalpo?

Lómenie resistia. Conseguir dos iroqueses que voltassem para casa sem causar depredações à sua passagem era melhor que reiniciar, com uma vitória fácil, as lutas sangrentas que o Sr. de Frontenac se empenhara em suspender.

— Não se esqueçam de que o machado de guerra foi enterrado entre Utakê e as cinco nações - repetia o coronel.

— Não esquecemos - respondia o iroquês -, faz muito tempo que não atacamos os franceses.

— Mas vocês têm atacado tribos amigas nossas...

— A única tribo com que enterramos o machado de guerra foi a dos franceses - insistia o índio, ardiloso. - Por que os franceses se imiscuem nisso?

No início das conversações Angélica quisera retirar-se, mas o chefe mohawk a detivera com um gesto.

-        Que ela fique!

A voz imperiosa e colérica exigia. Ninguém podia adivinhar a que sentimentos ele obedecia quando reclamava a presença daquela mulher branca no conselho. Pairava no ar um mistério. As pessoas indagavam-se sobre o que teria acontecido no alto da colina. E os olhares alçavam-se furtivos para Angélica, nem sempre despidos de ansiedade.

Esta começava a pensar que as coisas estavam se complicando e que teria preferido só precisar ocupar-se da cozinha e da casa.

A enxaqueca contraía-lhe as têmporas e ela passava a mão pela testa, com ar ausente. Não via de modo algum como explicaria de maneira lógica ao marido a origem do encontro com o chefe mohawk.

As vezes seu olhar recaía sobre o tacape de Utakê, que agora lhe pendia da cintura, e, ao ver-a arma terrível que fora erguida contra ela, um arrepio retrospectivo a sacudia de um medo que na hora não sentira.

Quando o iroquês seguiu para a mata, ela retornou a casa, sem participar dos comentários que continuaram, enfiou-se na cama e mergulhou em sono profundo.

No dia seguinte, ao despertar, sentia-se em forma.

Viu que o marido viera descansar a seu lado, mas já não estava ali. Não lhe notara a vinda nem a partida. Ainda se indagava sobre o que ele contaria, e decidiu que pediria que ele, com sua experiência, a-ajudasse;'a entender aqueles sentimentos inquietantes. Depois de querer'matá-la, por que o mohawk a seguira com um súbito desejo de lealdade e alknça?

Assim que se aprontou, saiu e correu para o pequeno bastião angular que permitia observar os arredores sob a proteção da paliçada.

As portas do forte estavam fechadas, mas reabriram-se assim que os sinais de fumaça enviados das colinas vizinhas informaram da chegada dos iroqueses, e o Conde de Peyrac, junto com Loménie-Chambord, saiu para a esplanada, seguido de soldados e dos seus homens armados.

Os índios aliados surgiram da floresta onde se tinham escondido, armados de arcos e tacapes, e espalharam-se em torno do forte, em silêncio, como uma maré vermelha.

Os Jonas e as- crianças foram ao encontro de Angélica sobre a plataforma. Por entre as pontas das estacas grosseiramente talhadas, olhavam tudo com curiosidade.

Na curva de um bosquezinho de chorões, perto do rio, viram os iroqueses finalmente aparecer. Eram- seis, seminus, e, como que indiferentes ao populacho em armas que os aguardava, seguiam sem pressa a margem pedregosa, para, atingindo a praia, virem alinhar-se diante do forte. Eram os chefes iroqueses.

Angélica reconheceu facilmente o mohawk Utakê com os brincos de pele de bexiga inchada, pintada de vermelhão.

A seu lado estava um homem idoso. Os cabelos entremeados de penas de águia eram grisalhos. Era magro e o corpo parecia composto de um feixe de cordas apertadas pelos músculos vigorosos, em relevo sob a pele de couro amarelecido. Com a expressão altiva de seu rosto alongado, raiado de pequenas rugas em torno dos plhos e da boca, inspirava medo. Inúmeras tatuagens sublinhavam-lhe as costelas, o peito e a ossatura das clavículas.

Angélica adivinhou nele Swanissit, o chefe dos senecas, o senhor supremo da liga iroquesa. Os homens avançaram um pouco, depois todos sentaram no chão, à beira da água, exceto um, Utakê, que lentamente se dirigiu para o forte dos brancos.

Quando parou diante do Conde de Peyrac e do Conde de Loménie, estendeu-lhes com um movimento dos dois braços um objeto que parecia uma espécie de écharpe com franjas, bordada com perolazinhas que formavam desenhos geométricos roxos contra um fundo branco.

Depois de apresentá-la, pousou-a no chão; em seguida tirou do cinto um cachimbo de pedra vermelha, enfeitado com duas penas pretas, e colocou-o ao lado da écharpe. Por último, recuando dois passos, cruzou os braços sobre o peito, fixou o olhar um pouco além das cabeças da multidão e ficou tão imóvel quanto uma estátua de pedra.

Agora todo mundo parecia perfeitamente calmo, até os abenakis e os huronianos, até Maudreuil, que sorria vagamente enquanto seus cabelos de arcanjo flutuavam ao vento.

Nicolau Perrot retomou seu papel de intérprete.

Conduziu a conversa segundo o rito consagrado. Longos períodos solenes, grandes gestos para designar o céu, a terra, uns ou outros, pacientes repetições das perguntas e das respostas. Angélica ficou espantada com a sutileza com que o iroquês confundia o interlocutor. Nicolau Perrot não se deixava lograr. Conhecia todas as nações dos lagos e seus dialetos. Servira cem vezes de língua entre eles em suas guerras, ou ainda nas campanhas militares dos franceses. Além disso, passara um ano como prisioneiro dos oneiuts. Não havia nuança no discurso do interlocutor que lhe escapasse.

Em certo momento o guerreiro iroquês perdeu a impassibilidade e deixou escapar uma reflexão mais viva, que provocou a ruidosa hilaridade do intérprete canadense.

-        Ele diz que se soubesse que eu estaria aqui, teria preferido não vir e usar logo do tacape..

Depois o chefe Utakê reotornou à praia, para junto dos seus, e os europeus voltaram para a jiabitação, para deliberar. O sol lançava de bem alto os seus raios, e chegara o momento de beber.

Ao passar, Angélica notou que os .oficiais canadenses pareciam preocupados. Foi ao encontro deles, para cumprimentá-los.

— Senhor, o que lhe parece? - indagou a Loménie. - Está satisfeito com as negociações com esses selvagens? O combate poderá ser evitado, como deseja o Sr. de Peyrac?

— O que dizer? É sempre a mesma coisa com esses iroqueses - disse Loménie. - Ainda que sejam um contra dez, sempre acham que fazem uma grande concessão ao adversário ao pedirem a paz. A seus olnos, isso basta para justificar todas as nossas indulgências. No caso presente não querem sequer comprometer-se a não molestar-se as populações. Se nos retirarmos nessas condições, nosso ato adquirirá aos olhos de todos a aparência de uma derrota, de que eles se orgulharão, troçando.

— Vamos cair em cima deles e exterminá-los - disse Maudreuil com violência.      

Pont-Briand mantinha-se calado. Olhava Angélica e não conseguia desviar os olhos daquele perfil puro e perfeito.

Joffrey de Peyrac também se mantinha calado. Seu olhar pousava sucessivamente sobre uns e outros, mas não se podiam ler seus pensamentos. Loménie-Chambord voltou-se para ele.

— E quanto ao senhor, não teme uma armadilha da parte deles? Suponhamos que seus protestos de aliança conosco não passem de falsidades. Depois de nos afastarem, cairão sobre o seu forte e o pilharão. Quanto ao senhor e aos seus...

— Correrei o risco...

— Sequer sabemos quantos eles são... Pouco numerosos para nos enfrentarem, talvez, mas em relação apenas à sua tropa...

— Não se preocupem comigo - replicou Peyrac, enquanto uma ironia sutil lhe fazia os olhos brilhar. - Admitamos que eu aposte na carta perdedora ao contar com a lealdade dos iroqueses. Com isso deveriam regozijar-se os que ainda ontem desejavam a minha perdição! No momento o problema é outro. Vai haver uma reabertura das hostilidades entre a Nova França e as cinco nações? Vão responsabilizar-se por isso?...

-        Oh, olhem quem vem aí! - disse Falieres.

A soleira da porta reaparecia o chefe mohawk. Não era protocolar que ele se apresentasse assim, antes do fim das deliberações.

— Teria esquecido de nos comunicar algumas observações importantes? - indagou Perrot.

— Adivinhou certo! Isto: meu irmão Swanissit me incumbe de dizer-lhe que na floresta, não longe daqui, está com seus guerreiros uma criança de sua raça. E o filho de sua irmã, seu sobrinho - disse, dirigindo-se a Romain de L'Aubigniere. - O grande notável dos senecas está pronto a devolver-lhe a criança se os franceses e seus aliados consentirem em nos deixar prosseguir nossa viagem rumo ao vale dos mohawks sem nos causar empecilhos.

Lia-se surpresa em todos os rostos.

— O pequeno Marcelino, meu sobrinho! - exclamou L'Aubigniere. - Então escapou ao massacre!...

— Patife! - resmungou Maudreuil. - Sentiu que o rastilho queimava e que a negociação fracassara. Então jogou a última cartada.

Voltando-se para Loménie, L'Aubigniere suplicou:

-        Senhor conde, é preciso fazer tudo para salvar esse menino! Arrancá-lo a esses miseráveis, que o criam no ódio a Deus e a seus ancestrais!...

Loménie inclinou a cabeça gravemente.

-        Penso que devemos aceitar - disse, após um olhar na direção de Peyrac. - E, dirigindo-se ao iroquês: - Que seja, devolvam a criança e poderão atravessar o Kennebec sem impedimentos.

Até a partida do mensageiro, o jovem Barão de Maudreuil se conteve. Mas logo explodiu:

— Não, é impossível! Esses miseráveis não podem deixar a região impunemente. Não se dirá que Swanissit passou tão perto de mim sem que eu lhe tenha arrancado o escalpo...

— Importa-se tão pouco com a vida de meu sobrinho e a salvação de sua alma? - exclamou L'Aubigniere, agarrando-o pela gola.

-        Não foi aos seus que Swanissit escalpelou! Ele está aí e não posso permitir que parta vivo. Prometi os cabelos dele a Nossa Senhora...

-        Acalmem-se - disse Loménie, separando os dois jovens.

Com um olhar enlouquecido, Eliacim de Maudreuil saiu correndo para .a sua cabana, para afivelar sua mochila.

Aqueles jovens tinham o sangue quente e a cada dia Angélica mais admirava Loménie, que apesar de uma longa permanência no Canadá conservara a afabilidade.

Compreendendo que era necessário afastar o jovem Maudreuil, o coronel não se opôs à sua partida.

Mandou chamá-lo, repreendeu-o e decidiu transformar o gesto impulsivo em missão oficial. Encarregou-o primeiro de entregar uma mensagem ao Padre d'Orgeval, depois uma carta ao Barão de Saint-Castine, que era governador do entreposto de Pen-tagouet-, na embocadura"do Penobscot.A longa viagem que Maureuil se via obrigado a empreender.o acalmaria.

-        O entreposto de Perítagouet-fica vizinho da praia de Gouldsdoro, onde o Sr. de Peyfac instalou um grupo de franceses huguenotes e quero dar-lhe minhas instruções a respeito. Se, ao chegar, encontrar por lá um navio da companhia que pretenda retornar a Queber antes dos gelos, embarque, caso contrário hiberne com Castine. Uma última recomendação: não leve huronianos com você. Vocês se estimulariam mutuamente à vingança. Dou-lhe meu amigo Utauê, massonk, como companheiro de estrada.

CAPÍTULO XXII

Impasse nas negociações: está tudo a perder por causa de uma criança

A troca do sobrinho de L'Aubigniere ocorreu no dia seguinte, pelo começo da tarde.

Desta vez os iroqueses vieram pelo rio. Viram-nos surgir rio abaixo, subindo a corrente em algumas canoas avermelhadas que deviam ter r oubado às tribos ribeirinhas. Desembarcaram na praia de cascalho e subiram para o forte.

Como na espera, os brancos estavam reunidos diante da entrada, e ao lado deles, em massa compacta e silenciosa, os índios huronianos, algonquinos e abenakis. Angélica mantinha-se um pouco afastadí., com Honorina e as outras duas mulheres. O espectro da guerra parecia afastado, sim, mas a reputação dos iroqueses era tal que cada vez que eles apareciam era difícil não sentir alguma inquietação.

Eram apenas dez e não traziam armas de fogo. Avançavam com uma desenvoltura desdenhosa, afetando não considerar os outros indígenas, cujo ódio à vista deles se manifestava por um murmúrio agitado.

O colar de wampun, colocado a meio caminho entre o rio e o forte, assegurava a imunidade dos parlamentares inimigos.

A testa deles caminhavam Swanissit e Utakê, e entre eles, dando-lhes a mão, vinha um garotinho de uns sete, oito anos, vestido apenas com uma tira dt couro entre as pernas e calçando mocas-sins. Apesar da gordura no cabelo, via-se que era louro como o trigo, e em seu rosto bronzeado seus olhos eram límpidos como a água de um lago. A senjelhança com o explorador de dedos mutilados não deixava margem a dúvidas e traía-lhes o parentesco.

Ao vê-lo, Angélica sentiu-se invadida de piedade e angústia, e apertou Honorina contra si. Elvira, a jovem viúva, lançou um olhar na direção de seus dois meninos, comportadamente sentados na relva, a alguns passos. O jríesmo pensamento dominou a ambas. Será que um dia o destino atiraria seus filhos seminus na floresta, nas mãos de índios bárbarps? Estava ali visível a prova de que essas coisas podiam ocorrer. As mulheres sentiram-se emocionadas e oprimidas diante do pequeno'infeliz. Mentalmente já aqueciam o banho que_lhe dariam em algumas horas, quando finalmente ele estaria são e salvo entre os seus.

Naquele dia os homens sentaram-se de um ladoe outro do colar de wampum. As negociações não transcorreram sem atritos.

— Por que - perguntou Nicolou Perrot - não trouxeram seu cachimbo da paz? Já vem rechaçando por antecipação qualquer possibilidade de paz?

— Viemos simplesmente para obter nossa passagem em troca do menino. Fumaremos nosso cachimbo da paz mais tarde com Tekonderoga, o Homem do Trovão, quando você tiver partido e tivermos certeza de que ele não nos traiu com vocês, franceses, que são da raça dele, e principalmente com esses chacais que os acompanham - respondeu Swanissit brutalmente.

— Por que trouxe uma criança tão nova numa expedição de guerra? - interrogou Romain de L'Aubigniere por sua vez.

Matreiros, os olhos do seneca se estiraram.

— Gosto dele e ele só tem a mim no mundo. Não quis separar-se de mim.

— Diga, antes, que queria tê-lo à mão quando as coisas saíssem mal para você e chegasse o momento de nós e as tribos nossas amigas o fazermos pagar pelos seus crimes...

Florimond ia e vinha, para solicitamente manter as senhoras a par do que acontecia. Finalmente pôde anunciar-lhes que pareciam a ponto de estabelecer uma anistia geral. Os franceses estavam dispostos a declarar que não se interessavam por aquele miserável grupo de iroqueses que se deixara encurralar entre o rio e o caminho de seu vale natal. Onontio, o governador de Quebec, desejava considerar os iroqueses seus filhos desde o tratado de Michilimakinac, e os franceses presentes esqueceriam suas queixas, a exemplo do pai Onontio, para se lembrarem apenas da satisfação que Swanissit lhes causava devolvendo o garotinho.

Um barril de aguardente, que o próprio Romain de L'Aubig-niére entregou a Swanissit, selou a nova era de paz, bem como a restituição do minúsculo refém.

Foi nesse momento que as coisas desandaram.

Todos estavam em pé agora. Swanissit e Utakê trouxeram a criança a alguns passos do tio. Depois, soltando-a, disseram: - Vá! -, com um grande gesto que o devolvia aos homens de sua raça.

Mas o menininho, depois de lançar à volta um olhar assustado, pôs-se a soltar gritos lancinantes. Atirou-se contra Swanissit, apertando com os dois braços as longas coxas magras do chefe seneca, e, levantando para ele o rosto lavado de lágrimas, dirigia-lhe em língua iroquesa súplicas amedrontadas.

Uma grande comoção logo dominou o grupo de guerreiros iroqueses. Perdendo a impassibilidade, deixaram transparecer nos rostos tatuados sentimentos de espanto e perplexidade. Amontoaram-se em torno da criança e se puseram a dirigir-lhe fluentes adjurações e admoestações.

-        Mas o que está acontecendo? - inquietou-se Angélica, falando ao velho Macollet, que fumava seu cachimbo à sombra da paliçada, observando a cena com ar irónico.

Ele meneou o gorro de lã vermelha.

-        O que devia acontecer, ora! O menino não quer vir com o tio e se recusa a deixar os selvagens!

Sempre troçando, deu uma sacudida de ombro fatalista.

-        Era de esperar...

Os berros do menino continuavam a dominar o tumulto. Com suas vozes esganiçadas, de onomatopéias estalejantes, e a agitação das cabeleiras emplumadas, os iroqueses assemelhavam-se a um grupo de papagaios em delírio.

Sem nenhuma preocupação com a própria dignidade, Utakê se ajoelhou para se colocar à altura da criança e melhor argumentar com ela, mas agora era a ele que o francesinho se agarrava, um braço à volta do pescoço vigoroso, a outra mão crispada sobre a tira de couro que Swanissit trazia em torno dos rins, segurando-lhe a tanga. Muito aborrecidos, os franceses se decidiram.

-        Acabemos com isso! - disse o Conde de Loménie. - L'Aubigniére, pegue seu sobrinho por bem ou por mal, e traga-o logo para cá. Que ele pare de gritar s Ou todo mundo acabará entrando em transe.  

O canadense encaminhou-se para os iroqueses a fim de se apoderar com energia do objeto de conflito, más mal avançou a mão e os guerreiros, ferozes, se ergueram contra ele com ar ameaçador.

— Não toque nele!

— Parece que vai de mal a pior - monologou Elói Macollet. -- Ora! Era de esperar! Era de esperar!,.. Estão dizendo que todo mundo sabe que os franceses são brutais com seus filhos, mas que na frente-deles ninguém tocará num fio de cabelo desse... Dizem que é précfso.ír c&m paciência. Isso promete. Se o menino for tão teimoso quanto o tio, amanha ainda estaremos nisto. Aliás, todos esses L~'Aubigniére são uris cabeças-de-mula!...

Angélica insinuou-se ura pouco para a frente e se aproximou do marido.

-        O que pensa desse incidente? - cochichou.

-        Que pode dar no pior.

-- O que vamos fazer?.

-        Nós, nada no momento. Ter paciência! É o que nos reco

mendam esse senhores iroqueses.

Ele permanecia calmo, alardeando distanciamento daquelas negociações que ainda não lhe diziam respeito diretamente. Assim como ele, Angélica entendia que era essencial não se enervar, mas a agitação crescia.

Muito vermelha, a criança berrava a plenos pulmões, de olhos fechados, como se recusasse para sempre o destino terrível que lhe reservavam: deixar os selvagens e voltar para o meio daqueles monstros de cara pálida! As lágrimas lhe corriam copiosamente pelas faces.

Angélica sentiu-se presa de piedade por aquele desespero infantil. Era preciso fazer alguma coisa... Voltou para o forte e voou ate o armazém de víveres. Às apalpadelas, encontrou o que procurava: uma barra de açúcar branco, de que partiu rapidamente alguns pedaços; depois enfiou a mão numa caixa de ameixas, apanhou um punhado e retornou às pressas para o palco do drama. Loménie chamara seus tenentes de parte.

— Deixemos que se afastem com essa criança insuportável e depois entraremos em combate para retomá-la e reduzi-los à nossa mercê.

— E se o matarem por vingança? - disse Maudreuil.

-        Não, são apegados demais ao menino.

Peyrac interveio.

-        No ponto onde nos encontramos, a ruptura das negociações acarretaria não apenas os aborrecimentos que quisemos evitar, mas outros bem piores. Peço-lhes que permaneçam calmos e tenham paciência.

Angélica inclinou-se para Honorina.

-        Olhe aquele menininho ali que chora, coitado. Está com medo de toda essa gente grande que ele não conhece. Vá levar-lhe um pedaço de açúcar e ameixas, depois pegue-o pela mão e traga-o até aqui.

Nunca se apelava em vão ao bom coração de Honorina. Sem nenhum receio, a menina avançou ereta diante dos iroqueses, a quem olhou com familiaridade.

Parecia uma bonequinha saída de um quadro, com o vestido de pregas largas e o avental verde. O gorro verde, de onde escapavam os cachos acobreados, brilhava ao sol. Os pés estavam calçados de mocassins com viras bordadas de pérolas.

Com um grande gesto espontâneo, estendeu os presentes ao garotinho. Swanissit e Utakê entraram imediatamente no jogo e se apressaram a gabar para o pupilo as maravilhas que Honorina lhe oferecia. O desesperado consentiu em abrir os olhos. Fungava espasmodicamente, examinando as oferendas. Conhecia açúcar branco? Preferiu pegar as ameixas, que lhe eram mais familiares, mas continuou de olhos fitos naquele pedaço de matéria branca que lhe diziam comestível. Honorina, então, pegou a criança selvagem pela mão e a levou devagarinho para Angélica.

Todas as nações contiveram o fôlego.

A pequena distância percorrida pelos pés infantis decidia pela paz ou pela guerra.

Angélica pusera-se de joelhos e via-o aproximar-se, evitando qualquer movimento que pudesse assustá-lo. Quando chegou à sua frente, ela falou com ele suavemente:

-        E açúcar. Passe a língua. Você vai ver!        ,

Ele não entendia, mas o som da.voz pareceu agradar-lhe. Alçou para ela os grandes olhos-azuis e, como que fascinado, pareceu esquecer o medo e até o -lugar onde se encontrava. Aquele rosto de mulher branca, de cabelos claros presos numa coifa, evocaria o da jovem francesa que fora sua mãe e que morrera escalpelada numa noite infernal? Dir-se-ia que ele tentava lembrar-se.

Ela continuava a falar de maneira tranquilizadora. O velho Ma-collet veio em socorro. Suavizando a voz áspera, repetiu em iro-quês as palavras de Angélica.

-        É açúcar. Prova...

Então a criança se decidiu a passar a língua no pedaço de açúcar, que logo mofdeti a grandes dentadas. Um sorriso iluminou-lhe o rostinho lambuzado e de repente, encantado, ele soltou uma gargalhada.

O alívio foi imenso.

A delegação iroquesa descontraiu-se. Todos se aproximaram, fazendo um círculo em torno de Angélica e das duas crianças.

Angélica mandou chamar os meninos de Elvira.

-        Não têm nos bolsos.alguma coisa que pudesse interessá-lo?

Adivinhara corretamente. Os bolsps de todo menino entre sete e dez anos que se respeita abundam de tesouros. Bartolomeu achou duas bolas de gude de ágata, vestígio de uma última disputa nas calçadas de La Rochelle.

Não foi preciso mais para seduzir definitivamente o garoto.

Rodeando-o de perto, o grupo formado pelas mulheres e crianças conduziu-o sem dificuldades para o pátio, depois para a casa. Até que se viram todos protegidos por uma porta fechada.

Angélica temia que, vendo-se fechado, ele recomeçasse a soltar os gritos agudos. Mas depois de lançar uma olhada às paredes e fazer um recuo imperceptível, ele pareceu resignar-se e, de maneira bastante inesperada, foi sentar nã pedra da lareira, diante do fogo chamejante. Angélica convenceu-se de que o ambiente lhe lembrara antigas alegrias na fazenda canadense e de que ele estava sob o impacto do déjà vu. Mordiscava o açúcar, olhando Bartolomeu, que fazia as bolinhas rolarem no chão. De vez em quando pronunciava algumas palavras em iroquês. Para arrematar a obra de conquista, Angélica mandou procurar o velho canadense, a quem instalou diante da chaminé, com um copo de bagaceira.

-        Sede gentil, Sr. Macollet, sirva-nos de língua, como se diz na sua terra, com este jovem bárbaro. Tenho medo de que ele se impaciente se perceber que ninguém o entende...

Depois deu a cada criança um pedaço do precioso açúcar, para recompensá-las pela ajuda.

-        Sem vocês, crianças, teríamos tido muitos aborrecimentos.

Foram intermediárias muito úteis.

Foi essa também a opinião do Sr. de Loménie quando, um pouco mais tarde, veio em pessoa agradecer à Sra. de Peyrac. Anunciou que os iroqueses se haviam retirado calmamente, tranquilizados com o destino de seu pupilo.

-        Devemos-lhe mil cortesias. Sem a senhora e suas amáveis crianças, estaríamos num impasse. Nós, militares, esquecemos com frequência excessiva que há situações onde apenas o tato de uma mulher pode encontrar a solução. Teríamos sido todos mor

tos por causa desse vermezinho, enquanto vocês, apenas com seu sorriso...

Voltando-se para as crianças, decidiu, imprudente:

-        Quero dar-lhes uma recompensa. O que desejam?

A juventude, exaltada pelos seus sucessos e por semanas de liberdade, não teve constrangimento. Bartolomeu logo declarou:

— Eu quero tabaco e um cachimbo.

— Eu quero um luís de ouro - disse o pequeno Tomás, que conservava a noção dos valores do Velho Mundo.

— E eu quero uma faca de escalpar... e depois, também quero ir a Quebec - disse Honorina.

O conde ficou muito surpreso com a diversidade dos desejos.

-        Uma faca de escalpar para uma senhorita? E a quem quer escalpar?

Honorina hesitou. Angélica sentia-se sobre brasas. Felizmente Honorina decidiu que ainda não sabia e que ia pensar.

-        E você, meu garoto, o que quer fazer com um cachimbo?

-        Fumar, ora!

O Conde de Loménie riu com gosto. Deu a Tomás uma moeda de ouro, confirmou a Bartolomeu que ele receberia o cachimbo, mas só para fazer bolhas de sabão.

-        Quanto ã você, Srta. Honorina, esperarei que se tenha decidido acerca de seus inimigos antes de dãr-lhe a faca. Mas já posso transmitir-lhe, da parte do Sr.,Governador Frontenac, o convite mais cordial, para a sua boa cidade de Quebec.

CAPÍTULO XXIII

Inesperada visita íntima dos grandes chefes iroqueses

Compreendendo o que tal mudança de vida podia ter de doloroso para uma criança pequena, Angélica desistiu do banho do novo pupilo.

— Mas ele cheira terrivelmente mal - protestaram a Sra. Jonas e Elvira. - E olhe, esses cabelos... Com certeza estão cheios de piolhos.

— Sim. Mas correríamos o risco de assustá-lo se o mergulhássemos hoje numa bacia. Tenhamos paciência. Amanhã talvez possamos tentar a delicada operação.

No entanto, as coisas se arranjaram por si. Até o final do dia o menino teve apenas umas rápidas revoltas. Chorou algumas vezes e Elói Macollet o acalmou com convicção.

-        Estou lhe dizendo que, se ele se comportar, Swanissit e Utakê vão levá-lo para caçar e guerrear amanhã.

Vendo as outras crianças chapinhar com entusiasmo numa bacia de água quente, o garoto concordou em unir-se a elas. Só conseguiram desengordurá-lo superficialmente. A mistura de gordura de urso e poeira formava uma espécie de resina sobre a pele.

Angélica conseguiu fazê-lo engolir uma tisana, na qual havia colocado algumas gotas de decocção de dormideira, encontrada na farmácia bastanta pobre do forte. O irlandês O'Connell não devia adoecer com frequência, e se por acaso lhe ocorresse esse dissabor, com certeza se tratava com aguardente. Angélica pensou nos saquinhos de plantas que deixara em La Rochelle, nos unguentos, xaropes e elixires que se comprouve a fabricar para a família Berne, aplicando as receitas que recebera da feiticeira Melusina e os bons conselhos do boticário Savary.

Tudo aquilo lhe teria sido muito, útil aqui, mas a estação já ia avançada demais para colher, plantas entre as mais necessárias. Supondo-se"que se pudesse encontrá-las neste novo hemisfério... Apesar de tudo, algumas cascas-e raízes podiam ser colhidas neste final de outono. Amanhã ela pensaria no assunto.

Ao anoitecer, Romain de L'Aubigniére veio informar-se do sobrinho. O menino estava dormindo suavemente, enrolado numa coberta, sobre um feito improvisado, pois se recusara a ir para a cama. O caçador contemplou-o com melancolia.

— Sei muko bem o que ele está sentindo - murmurou, balançando a cabeça. ~ Também eu fui prisioneiro dos iroqueses, lá no vale dos mohawks... Como esquecer aquele tempo? Como esquecer aquele vale?...

— Mas afinal - impacjentou-se Angélica ---, os. iroqueses são seus amigos ou inimigos? A vida entre eles é uma bênção ou um inferno? Decída-se de uma vez por todas!

Ele pareceu surpreso. Assim como Perrot, não via nenhuma contradição entre esses pesares nostálgicos e sentimentos sanguinários. Admitiu:

-        Pois bem, fui feliz entre os iroqueses. Mas nem por isso esquecerei que eles assassinaram toda a minha família e a de Maudreuil. Sei que o meu dever é escalpá-los e os escalparei. Reconheço que hoje fizemos um acordo com eles. Mas nós nos reencontraremos um dia, face a face, fique certa!

A meia voz, ela indagou:

— O que pretende fazer com essa criança?

— Vou confiá-la aos jesuítas! Têm um seminário em Quebec para órfãos e jovens índios a quem desejam encaminhar para o sacerdócio.

O olhar de Angélica voltou a pousar sobre o menino adormecido. Com o rostinho estranho, sombreado de gordura, num muxoxo amuado, parecia tão inocente e desarmado! O que seriam para essa criança das matas os muros do seminário de Quebec?

Os de uma prisão, sem dúvida! Levantou a cabeça para comunicar suas dúvidas ao jovem L'Aubigniére.

Valia a pena ter dado tanto valor à liberdade dele para em seguida trancafiá-lo? A única preocupação que eles tinham era a de arrancá-lo aos pagãos para salvar-lhe a alma. Nobre preocupação. Mas ela perguntava a si mesma se a preocupação com o bem-estar e a felicidade da criança fora considerada.

No momento em que abria a boca, percebeu que o canadense se eclipsara. Esses canadenses vão e vêm como sombras.

No aposento vizinho as outras crianças se deitavam sob a vigilância de Elvira. O Sr. e a Sra. Jonas, em seu quarto, faziam algumas arrumações. Elói Macollet fora procurar tabaco. Durante alguns momentos Angélica ficou sozinha à cabeceira do menino, na sala de entrada. Ele se agitava, gemia e parecia procurar algo a seu lado que não encontrava. Suavemente, para acalmá-lo, a mão de Angélica roçou com uma carícia os cabelos engordurados e desgrenhados. Depois ajeitou suavemente a coberta, que escorregara dos delgados ombros nus.

Naquele momento não havia ruído algum no aposento senão o crepitar do fogo.

No entanto, quando ela se levantou, os grandes chefes iroque-ses, Swanissit e Utakê, estavam atrás dela, tão perto que as franjas de suas tangas lhe roçavam o ombro.

Paralisada, Angélica examinou-os de alto a baixo. Como tinham entrado? A mão do grande chefe dos mohawks estava à altura de seu olhar, apertando o cabo do tacape de madeira polida, que terminava num enorme esporão de marfim, afiado e brilhante. Um único golpe com aquela arma atravessaria o crânio até o cérebro. Sobretudo quando empunhada por uma mão assim, grande e lisa também, uma mão de âmbar com músculos salientes.

Angélica conteve-se para não dar um pulo. Os olhos de Utakê não passavam de duas fendas negras quase invisíveis, e o grande seneca não olhava para ela. Contemplava a criança adormecida.

Ao cabo de alguns instantes, inclinou-se e depositou sobre o leito um pequeno arco e uma pequena aljava contendo flechas, as armas de que o garotinho francês aprendera a servir-se sob sua orientação.

Depois, sacudindo-se e parecendo voltar a si, ele começou a ir e vir pelo aposento, seguido de Utakê, olhando aqui e acolá com uma total insolência, tocando em tudo, sempre afetando não ver a jovem presente. Entraram no quarto vizinho.

Angélica ouviu o grito da Sra. Jonas, estupefata com a aparição deles, disparatada e emplumada, no instante em que ela se erguia depois de avivar o fogo. Os dois ifoqueses caíram numa gargalhada estrepitosa. Até então silenciosos, puseram-se a falar muito, trocando impressões num tom zombeteiro. A Sra. Jonas soltou um segundo grito quando eles apanharam de suas mãos hesitantes uma écharpe de renda que ela acabava de estender sobre a cama para desamarrotar. Infeliz ideia à' de desemalar hoje os seus tesouros!...

No quarto das" crianças os dois chefes provocaram grande alvoroço. Elvira, enroscada num canto, tremia inteira, mas as crianças olhavam os índios como se fossem máscaras de carnaval. Decepcionados por não haverem achado nada de interessante ali, os dois índios entraram no quarto de Angélica. Sua curiosidade finalmente pareceu encontrar satisfação. Abriram as arcas, tiraram as roupas, apanharam os livros nas prateleiras para folheá-los, revirando-os em todos os sentidos.

Angélica os seguira, tentando não se impacientar. Rogava aos céus para que aparecesse alguém que os tirasse dali, alguém que soubesse falar a língua-deles.

Os sentimentos de Utakê pára com ela lhe pareciam dúbios. Se Swanissit viera para rever uma última vez o filho adotivo, era visível que o outro estava ali para provocá-la, a ela, a mulher que o humilhara.

— Devo lançá-los porta afora? - cochichou-lhe o relojoeiro.

— Nem pense nisso! Haviam de partir-lhe o crânio. Falaram baixíssimo, mas ainda assim os dois selvagens fizeram

um brusco rodopio na direção deles, como que para surpreendê-los. Tudo o que conseguiram foi ler uma expressão de calma no rosto de Angélica, apoiada ao batente da porta.

Era visível que se divertiam com aqueles europeus assustados.

De repente Swanissit descobriu a frasqueira de Angélica e os objetos preciosos que continha. O índio pareceu fascinado. Posse a manejar o pente e a escova, a palmatória e o sinete de lacre, para finalmente lançar as vistas sobre o espelho de mão, diante do qual fez inúmeras caretas, rindo muito. Mas, mais do que o reflexo límpido do espelho, encantava-o a guirlanda de tartaruga e ouro que o emoldurava, bem como o cabo, feito dos mesmos materiais preciosos.

Utakê não parecia compartilhar do entusiasmo. Atirou algumas palavras numa voz seca. Estaria lembrando ao chefe seneca que os brancos não emprestam, que comerciam seus presentes, e que aquela mulher pertencia à mesma raça cobiçosa?...

Subitamente Swanissit voltou a ser um grande chefe, frio e hostil. Imobilizou-se, longo, magro em sua tanga de couro, e recolocou o espelho no baú. De cabeça baixa, observava Angélica com um olhar duro de águia ferida. Seu rosto enrugado tinha um vinco de amargura, como há pouco, quando se debruçara sobre o pequeno canadense. Mas, mudando de ideia, pareceu tomar uma decisão. Um clarão de triunfo passou-lhe pelos traços. Tornou a pegar o espelho e o pendurou à cintura, com um gesto possessivo. Fazendo isso, lançou novamente a Angélica um olhar de desafio. Mas na verdade era um olhar de moleque, matreiro e provocante.

Então Angélica se aproximou dele, olhou na frasqueira e achou um cordel de seda vermelha. Pegando o espelho na cintura de Swanissit, colocou-o sobre o peito dele, abaixo do colar de dentes de urso, e servindo-se do cordel vermelho para amarrar o cabo, acrescentou esse novo e suntuoso ornamento aos adornos bárbaros. Os dois chefes haviam-lhe acompanhado os gestos, com ar intrigado.

-        Você, que fala e entende a linguagem dos franceses - disse a Utakê -, quer traduzir minhas palavras ao Grande Séneca? Eu, mulher de Tekonderoga, faço-lhe presente desse espelho que lhe agrada, em nome de meu marido.

Hesitante, Utakê repetiu-lhe as palavras. Swanissit contemplava o espelho, que agora brilhava sobre seu peito, e falou rápido:

-        A mulher branca quer enganar o grande chefe dos senecas?

- traduziu Utakê. - Swanissit não ignora que os brancos reservam objetos tão belos apenas ao culto de seu Deus. O Casaco Negro já lhe recusou o espelho no qual se olha todas as manhãs e a que beija, embora Swanissit lhe tivesse proposto cem peles de castor em troca...

"O que estão querendo insinuar?" pensou Angélica. Certamente algum jesuíta lhes recusara a patena ou algum outro objeto do culto. Como explicar que não é a mesma coisa...

-        Por que o grande chefe dos senecas receia ser enganado? - indagou. - Esse objeto não é digno de ornar o peito do Grande Notável das Cinco Nações?

E de imediato teve certeza-de que Swanissit entendera o sentido de suas palavras, pois nas pupilas do índio grisalho surgiu um júbilo quase infantil. Ele irradiava alegria e orgulho. Esforçou-se por recuperar a dignidade e lançou algumas palavras, cujo tom desdenhoso Utakê acentuou.

— Os brancos não sabem dar presentes. É uma raça vil de mercadores. O que pretende obter a mulher branca com esse gesto?

— A mulher branca já foi paga por seu gesto - respondeu Angélica - com-a honra de receber em sua casa o grande Swanissit, chefe das cinco nações.

— A mulher francesa então não ficou assustada com a visita dos ferozes iroquesés? - perguntou ainda Swanissit por intermédio de Utakê.

-       Sim, fiquei assustada. A vinda dos grandes guerreiros iroqueses mê surpreendeu. Não passo de uma mulher fraca... que seria incapaz de manejar armas para se defender.

Dizendo isso, olhava Utakê bem no rosto. Achava que ele se-ia o único a perceber a flecha que ela lhe atirava, mas Swanissit 'evia ter ouvido acerca do infortúnio de seu imediato, que quase se deixara degolar por uma mulher branca, ou então era adivinho. Caiu na risada, de modo bastante ruidoso e ofensivo para o grande chefe dos mohawks, dando tapas nas próprias coxas 'e lançando olhares trocistas para o outro. Angélica receou haver ultrapassado os limites ao humilhar Utakê. Resolveu acalmar-lhe o humor~dando explicações.

-        Mas uma vez, tive um sonho - disse. - Eu estava perto da nascente lá no alto, ao pôrrdo-sol, e um inimigo me espreitava e surgia para me atacar... Assim, no dia seguinte, quando acordei, armei-me de um punhal antes de subir a colina, pois os sonhos

costumam ser um aviso...

A palavra "sonho", os dois haviam recuperado a gravidade. Todo ódio, toda ironia, toda desconfiança os deixaram.

-        Fale, afinal! - disse Utakê, com voz rouca. - Fale, mulher branca, conte-nos sua visão!

E se aproximaram dela, inclinando-se como crianças que esperam a continuação de uma história apaixonante e assustadora.

Nessa altura t porta foi literalmente arrombada com estrondo Caçadores e militares armados apareceram à soleira. Nicolau Perrot, Pont-Briand, Maupertuis e Três Dedos os traziam. Fixaram os olhos no assoalho e Angélica teve a nítida impressão àí que esperavam descobrir ali o seu cadáver com a cabeça esmagada. Ao vê-la em pé, bem viva, e aparentemente nos melhores termos com os dois temíveis iroqueses, ficaram boquiabertos.

— Senhora! - balbuciou Pont-Briand. - Não tem... não está?...

— Não, não estou morta - disse Angélica. - O que desejam?

— Avisaram-nos de que Swanissit e Utakê foram vistos entrando em sua casa.

— De fato, ei-los aqui. Vieram informar-se sobre o estado de seu pupilo e trazer-lhe armas. Um cuidado da parte deles que os torna muito simpáticos a meus olhos.

Nicolau Perrot estremeceu ao vê-la calma, entre os dois guerreiros sombrios e aterrorizantes que se mantinham a seu lado.

-        A senhora! - exclamou. - Desde que a conheci em La Rochelle não pára de surpreender.-me. Que seja! Já que tudo vai bem, não vamos nos incomodar com a audaciosa incursão deles.

Dirigiu-se aos dois chefes na língua deles e pela mímica Angélica entendeu vagamente que os convidava a festejar com os brancos. Mas os chefes menearam a cabeça.

-        Dizem que só festejarão com Tekonderoga e quando todos os franceses de Quebec tiverem partido - traduziu Perrot. - Eles a saúdam e dizem que voltarão.

Depois, com dignidade, os dois chefes se deixaram escoltar até a soleira e até a saída do forte. Em seguida, fecharam-se as portas.

CAPÍTULO XXIV

"Eles partirão"

"Partirão afinai? Partirão todos? Quando poderemos ficar sozinhos, no silênciojs no deserto?"

Assim suspirava Angélica. Esperava'o favor de um breve instante de isolamento, em que encontrasse o marido longe de olhares estranhos."'Deixaria então a cabeça pousar no ombro de Peyrac e o abraçaria convulsivamente, extraindo com avidez a força dele para aliviar a sua, que se esgotava, pois sentia que ele estava calmo, sem angústia. Angústia era um sentimento que ele nunca tivera, ou quase nunca. Mesmo na hora da morte ou da tortura. Por antecipação ele não dissimulava para si mesmo as ameaças de uma situação difícil e se protegia na medida do possível, mas o que pertencia apenas ao futuro ou à imaginação não o influenciava. Só o fato, presente, tangível, lhe importava.

Essa descoberta fazia dele quase um estranho para ela, mas um estranho tranquilizador. Ele ficava, de fato, profundamente calmo, no meio da tempestade, enquanto ela, de sua parte, sentia que se a situação se prolongasse mais um dia ou dois, seus nervos cederiam. Aquela tensão à flor da pele, aquelas alternâncias bruscas de esperança e catástrofe, passando como lufadas caprichosas... Ela ia ter um colapso nervoso.

Desde que trouxera o chefe Utakê da montanha a situação já não era bem a mesma para ela. Havia algo de diferente no comportamento dos outros.

Ela compreendia que, sem sentir, começava a fazer parte do Novo Mundo, a adotar-lhe as disputas e paixões.

Agora se sentia no interior do círculo, preocupada com existências e dramas que outrora ignorava totalmente.

-        Eles partirão - repetia Joffrey de Peyrac, em tom tão convicto que o fato já parecia consumado. - Partirão todos e ficaremos sozinhos em Katarunk.

E aos poucos os grupos de canoas largavam da margem, cada vez mais numerosos. Chegou o dia em que o próprio Conde de Loménie-Chambord foi o último a subir na última embarcação.

As coisas não haviam transcorrido conforme se previra quando se iniciara a jornada até Katarunk para atacá-lo, mas o Conde de Loménie não lamentava.

Olhava aquele casal na margem e se pegou a considerá-lo como o símbolo de algo que ele próprio não poderia viver, mas que sempre desejara encontrar. Ao longe, cavalos pastavam nos relvados. O cricrilar dos grilos enchia o ar.

— Deixo-os sós - disse o Conde de Loménie-Chambord.

— Agradeço-lhe.

— E se não conseguirem convencer os iroqueses de suas boas intenções e eles tiverem a aguda tentação de fazer-lhes a cabeleira e pilhá-los os bens antes de voltarem para casa?

— Inch Allahl - pronunciou o Conde de Peyrac em árabe. - Se Deus quiser!

O Conde de Loménie sorriu, pois também era um veterano do Mediterrâneo. E respondeu:

-        Allah Mobareck! Deus é grande!

Na curva do rio, acenou longamente com o chapéu.

CAPITULO XXV

Um destroço no fundo do oceano

Com a súbita solidão, começaria a aventura deles.

Estavam sozi-nhos, não pertenciam a nação alguma, não representavam rei algum. Quando os iroqueses viessem pedir aliança, tratariam com Joffrey de Peyrac como com um monarca, falando em seu próprio nome. '

Sem ousar, acreditar muito na situação, eles olhavam o forte reconquistado. ...

E, à noite, festejaram alegremente, "em família", a vitória e a independência salva. Os cálices de vfnho brindando a Joffrey de Peyrac homenageavam a habilidade do chefe, que mais uma vez os tirara de uma enrascada.

E naquela noite Angélica sentiu uma exaltação nova ao estreitar nos braços aquele que os defendia a todos e não lhes enganava a confiança, e ao sentir os lábios imperiosos que saboreavam os seus, como se, passado o perigo, ele quisesse saborear a reviravolta do destino.

Para esperar â delegação iroquesa, Joffrey de Peyrac vestiu o gibão de veludo vermelho, bordado de flores de prata e pérolas de azeviche. Também de prata eram as esporas que levava nas botas de couro. Com a mão sobre o punho de prata da espada, aguardou diante do forte.

Os seis espanhóis de sua guarda usavam armadura e capacete cintilantes, e se postaram à esquerda, imóveis com suas alabardas, enquanto à direita seis de seus marujos também se colocaram em posição de sentido, vestidos com uma espécie de uniforme de cores vivas: casacos metade amarelos metade vermelhos, calça escarlate, botas de couro avermelhado - um uniforme que Peyrac encomendara a um alfaiate de Sevilha para a libré de sua casa.

Eram raras as ocasiões em que dava aos seus a ordem de vestirem o traje de parada.

O Novo Mundo, exceto em seus territórios sob domínio espanhol, prestava-se mal aos faustos do Velho. O mais frequente era se chegar às terras do norte apenas com a camisa do corpo. Era o caso, por exemplo, dos que haviam fugido das perseguições religiosas, como os puritanos da Inglaterra ou os huguenotes da França, e desde La Rochelle que os Jonas arrastavam a mesma trouxa modesta, contendo todos os seus bens.

Joffrey de Peyrac viera depois de enriquecer com a busca de tesouros no Caribe. Podia, portanto, dar à sua colonização um ar mais suntuoso.

Subindo em direção ao forte, os iroqueses indagavam-se acerca dos brilhos, reflexos e cintilações que os acolhiam e que se somavam aos do cenário outonal. O vento, que era forte, inclinava a relva nacarada.

Swanissit trazia seu fuzil de coronha de nácar atravessado nos braços. Eram cinco homens: Swanissit, Utakê, Anhisera, Gana-tuha e Onasategan - torso nu, estômago vazio, e as tangas de couro flutuando ao vento.

Onasategan era o chefe dos onontagues, e Ganatuha, um dos mais valorosos capitães dos oneiuts. Anhisera falava em nome dos cayugas, pois embora de raça seneca, era irmão de sangue do chefe deles.

Eram, portanto, os mais respeitáveis dentre os representantes das cinco nações do vale do milho que vinham travar aliança com o Homem do Trovão. Tinham resolvido correr o risco por amor a seus povos, mas os sentimentos que lhes enchiam o coração estavam matizados de desconfiança, que eles tentavam dissimular com arrogância.

Ao vê-los avançar do alto da paliçada, Angélica perguntava a si mesma quais seriam os sentimentos verdadeiros que enchiam aqueles corações ferozes, e teve a impressão de perceber-lhes a desconfiança, a inquietação e a dor. Pois Swanissit lhe dissera: - As cinco nações já não são o que fora outrora. Agora precisamos nos entender com os brancos.

O destino dos iroqueses estava em vias de, "tecer-se" de maneira sutil com a existência de Angélica. Seria porque tivera a vida do chefe. Utakê sob a ponta de seu punhal, ou por causa daquela história da tartaruga, qire pairava entre eles e ela?...

De manhã, junto com Honorina, escolhera as pérolas mais belas entre as "miçangas" destinadas ao acordo.

— E para entregá-las pessoalmente ao velho Swanissit, caso volte a nos visitar. E um homem muito respeitável.

— Sim, também gostcr muito dele - declarou Honorina. - Ele é gentil com a garotinho. Por que o garotinho foi embora com os franceses? Ia nos ensinar a atirar com o arco.

Também Angélica teria de bom grado conservado consigo a criança canadense. Más a questão não fora sequer cogitada.

A meio caminho da colina, os-iroqueses encontraram os presentes que Joffrey de Peyrac mandafa colocar ali.para eles, junto com um cinto de wampum de grande valor, que ele extraíra de seus baús.

Swanissit e osseus, depois de decifrarem a mensagem traçada pelas contas de porcelana branca e azul-noite, manifestaram contentamento. Entreolharam-se, balançando a cabeça dizendo: - Muito bem! Isto tem valor!...

Swanissit precisou lembrar aos demais que aquele colar ainda recentemente fazia parte do maior tesouro dos moicanos. Que o Conde de Peyrac o tivesse consigo mostrava o valor de suas alianças e a importância que lhe atribuíam as grandes tribos do sul. Mas que lhes desse o colar de presente, fazia acelerar o coração. A simples ideia de que poderiam levá-lo consigo deixava-os febris. Swanissit já se via penetrando nas cidades das Casas Compridas com a preciosa tira de wampum sobre as duas mãos estendidas. A emoção do povo ante aquela cena fazia-o estremecer até as entranhas.    

Depuseram as armas: arcos e aljavas, o mosquete com coronha de nácar e o cachimbo de pedra vermelha. Era apenas um cachimbo, pobre e grosseiro, e sua pedra estava fria, pois não era aceso há muito meses... Pousaram-no e suspiraram ao verem ali entre os presentes dos brancos, sobre peles curtidas, tranças castanhas de tabaco, do melhor, o da Virgínia, cujo odor delicioso lhes enchia as narinas.

Como seria agradável fumar em breve, à volta de uma fogueira, na alegria das promessas trocadas! Mas pela tentação do bem-estar não se devia negligenciar os mistérios rituais e complicados de conversações tão importantes, em que estava em jogo o futuro da liga iroquesa.

Desta vez Angélica pedira ao marido para não ser obrigada a assistir à cerimónia. Apesar do papel que desempenhara, um pouco contra a vontade, na preparação daquela entrevista, não considerava necessária a sua presença. Nicolau Perrot lhe explicara, insistiu ela, que se na sociedade iroquesa as mulheres, principalmente as mães, têm direito à palavra, só se exprimem diante do Conselho dos Homens pela voz de um secretário, geralmente escolhido entre os jovens. Além disso, desde o amanhecer que ela sofria de uma enxaqueca terrível e já não tinha coragem de enfrentar durante horas os falatórios ruidosos dos índios, seu cheiro forte, seus arrotos e suas fungadelas, enxugadas com a mão ou com o cabelo. Joffrey de Peyrac conveio que, se os chefes não lhe reclamassem a presença imperativamente, ela estava livre de se apresentar. No fundo Angélica tinha certa apreensão de se rever diante de Utakê, o chefe dos mohawks. A Swanissit teria cumprimentado com mais disposição, e para desculpar-se pela ausência incumbiu Nicolau Perrot de entregar as pérolas de Veneza que selecionara para ele.

Quando viu que. as saudações tinham sido trocadas e que as conversações se iniciavam, retirou-se, com um pouco de frio, para a pequena casa, onde passou a tarde em companhia dos amigos e das crianças.

De vez em quando alguém vinha informá-los do andamento das negociações.

Por escrúpulo, por amor-próprio, porque estava com muita fome e os vapores apetitosos que vinham do pátio do forte torturavam-no com o desejo de arrematar às pressas seus longos períodos oratórios, Swanissit prolongou o discurso para além dos limites da paciência humana. Mas a do Conde de Peyrac parecia infinita.

Swanissit lembrou longamente que agora eles eram apenas cinco, pois deixara Tahutaguete no comando de seus homens - os que ainda se encontravam na floresta e.os que começavam a cruzar o rio. Eles eram numerosos, muito numerosos, mil talvez, muito mais do que suspeitavam -os franceses que haviam partido.

Se ele, Swanissit, percebesse que o Homem do Trovão tentara engodá-lo, que suas promessas eram mentirosas, que desejava somente enfraquecer os iroqueses fazendo-os enterrar o machado de guerra para depois ajudar os franceses á'enganar melhor as cinco nações, que Tekonderoga tomasse cuidado e preparasse suas armas imediatamente, pois antes de retornarem às suas terras os iroqueses se regozijariam de assar alguns daqueles brancos audaciosos e enganadores. Havia belas cabeleiras entre eles. - A sua e a de seus filhos, Tekonderoga. E a de sua mulher. Mas não serei eu quem arrancará a de sua mulher - comentou o velho chefe, como se já visse-a-cena.-, pois, sim', eu repito, é preciso que entenda, nunca na vida matei ou escalpei uma mulher ou criança. Morrerei sem haver atentado contra a vida de uma única mulher ou criança, segundo a antiga tradição de nossos povos.

"Não poderia dizer o mesmo acerca da nova geração de guerreiros", prosseguiu, lançando um olhar desdenhoso aos outros três chefes, que, no entanto, eram homens feitos. "Esses aprenderam com vocês, brancos, a não respeitar aquilo que dá a vida e aquilo que assegura o futuro; esses penduraram cabeleiras de mulher à porta de sua wigwan. Puah! Os homens de meu povo em breve serão criaturas tão vis e despidas de nobreza quanto vocês, brancos. Mas ainda assim devo defendê-los e preparar esse futuro."

Calmo e digno, Peyrac deixou passar ameaças e comentários. Soube apaziguar a desconfiança de Swanissit, que se traduzia por essa rabugice antecipada. A obra foi longa, e talvez ainda estivessem todos ali ao crepúsculo se o tempo não tivesse fechado de repente. O vento sumiu, substituído por uma bruma espessa que subiu do rio e dos lagos com uma rapidez de relâmpago, recobrindo tudo, rama de abetos e picos de montanhas, como um vasto oceano.

Foi preciso então recolher presentes, wampums e cachimbos e fecharem-se no forte. Na lareira do salão, acenderam dois fogos enormes. Comeu-se à farta: carne gorda, milho cheiroso, bagas ácidas. Embriagaram-se de tabaco, de fumaça azul e de álcool transparente. O acesso a esse paraíso foi vedado a todos os que não tivessem uma capacidade de absorção e uma resistência reconhecidas pela experiência de uma longa vida de banquetes selvagens ou orgias flibusteiras.

Florimond e Cantor, entre outros, foram mandados para a casa menor, a compartilhar da refeição das crianças, das mulheres e dos sóbrios, ou dos que tinham o fígado delicado.

Angélica riu muito do ar desolado com que chegaram. O jovem bretão Yann foi com eles, dizendo francamente que não gostava muito de beber, nem de comer o tempo todo urso cozido, e que as monstruosas bebedeiras dos índios o faziam vomitar.

O maltês Enrico Enzi também foi pedir hospitalidade. Era ele que tinha o fígado delicado. Essa fora a vergonha de sua vida, mas como também tinha a reputação de hábil manipulador de faca, já quase não topava com trocistas quando, um pouco pálido, afastava um copo de vinho ou álcool.

As senhoras fizeram com que a noite em sua companhia se passasse alegremente. Tocou-se guitarra e pífano, cantou-se. Havia filhoses e balas de açúcar perfumado com anis, que as crianças tinham feito sobre a pedra da lareira.

Mestre Jonas contou uma história de lobisomem da província de Saintonge. Fazia muito tempo que não a contava. De vez em quando perdia o fio. Não era tanto por falta de memória. Pelo contrário, lembrava-se muito bem da história, mas não a contava desde que seus dois filhos, uma bela manhã, tinham sido raptados pelos jesuítas de La Rochelle, para nunca mais serem encontrados. Chegou corajosamente ao epílogo e foi recompensado pelo interesse que todos demonstraram. Florimond e Cantor não foram dos últimos a pedir outra.

Depois foram todos dormir. Angélica recomendou aos dois filhos que ficassem para dormir, pois na outra casa, onde estavam alojados, o ruído os impediria de descansar. Eles se enrolaram em cobertas e se deitaram no chão, diante do fogo.

A bruma dava sono, sem que as pessoas percebessem. Pesava sobre a natureza com uma pressão suave e algodoada, atravessada em sua opacidade por ruídos molhados e confusos, impregnada de um silêncio conturbado.

Nos quatro cantos do forte, sobre as plataformas, as sentinelas aguçavam em vão olhos e ouvidos, tentando surpreender o significado daquele gotejar, daqueles sussurros, daquela marulhada que lhes chegavam de maneira imprecisa, quase como suspiros, ecos abafados que as brumas cambiantes enviavam umas às outras. Havia batráquios do lado do rfo, corvos e corujas do lado da floresta.

A ausência dos índios metallaks e narandsuaks, que tinham levantado acampamento, fazia a noite mais opaca. Numa outra noite, mesmo através do nevoeiro seria possível ver as brasas das fogueiras, sentir ò cheiro da fumaça filtrando-se .pelas cascas das wigwans redogdas, ouvir a choro dos bebés.

Essa noite, porém, nada.

O forte de Katarunk jazia no fundo da noite, como um destroço no fundo do oceano.

CAPITULO XXVI

A morte de Swanissit, o velho seneca

No forte de Katarunk, brumas do lado de fora das paredes e brumas do lado de dentro. Brumas geladas fora, bruma quente dentro. Na noite, bruma cinzenta, constelada pela? estrelas fugazes do gelo, e no interior, bruma azul do tabaco.

Fora, bruma dos vastos espaços, com o cheiro insípido e frio de túmulo, pairando sobre a terra escura qual animal ameaçador que quer forçar o abrigo dos homens. No salão do forte, bruma aromática, de volutas harmoniosas, alteando-se dos cachimbos que se fumam à saciedade, de barriga cheia, de cérebro vazio.

Swanissit está feliz. O velho seneca comeu a ponto de rebentar a pança. Bebeu pouco, pois os poderes delirantes da aguardente o assustam e nunca se entregou a eles. Recusou igualmente a cerveja e o vinho que lhe ofereceram. Mas a água, de gosto terroso, tirada do poço profundo, pareceu-lhe deliciosa, regando as abundantes escudelas de sagamitê ou cozido de milho. O excesso de comida e de tabaco, após um longo jejum, somados às fadigas da guerra, têm sobre ele os mesmos efeitos que as bebidas excitantes, e ele está tão bêbado quanto os outros. Sonha com o colar de wampum que levará com as duas mãos perante o Conselho das Mães e dos Anciãos. Sonha com os presentes recebidos, com as promessas trocadas. Com o país das grandes caçadas, que aguarda o guerreiro valoroso do outro lado da vida.

Há noites de festim em que o coração se deleita de satisfação. Embora ainda pertença a este mundo, imagina muito bem que

a alegria dos espíritos recompensados é da mesma espécie da que ele sente esta noite. Não falta nada. Até, oh, surpresa, de repente, em pé à sua frente, o Barão de Maudreuil, outra criança ado-tada por ele outrora, que ri com todos os dentes, brandindo um punhal...

CAPITULO XXVII

Noite fatídica em Katarunk - O Conde de Peyrac é ferido

Pelo final da noite, mas enquanto a escuridão ainda era profunda, os cavalos relincharam.

Alguém, do lado de fora, gritou.

- Os ursos!

Joffrey de Peyrac ergueu-se e precipitou-se para a porta. Apesar de sua resistência habitual, ele nào estava muito seguro de si ao transpor, bem ou mal, outros corpos caídos de embriaguês.

Por sólido que se seja diante de todas as manifestações de hospitalidade, há poucas mais desgastantes do que a de honrar um tratado importante com chefes indígenas, particularmente iro-queses.

A resistência deles aos discursos, à comilança e à bebida é daquelas que se perde a esperança de ver ceder.

Felizmente, a paciência de Peyrac estava provada e comprovada, e pelo menos ele podia dizer a si mesmo que numa única noite progredira muito na língua iroquesa.

Peyrac surpreendeu-se de não ouvir o ruído dos próprios passos ao andar pelo pátio em direção à porta do forte. Já não havia nenhuma luz brilhando. Ele ouviu mais um grito, rouco e estranho, e reconheceu a voz do espanhol Pedro Majorque, uma de suas sentinelas.

No mesmo instante um golpe violento se abateu sobre seu ombro e o fez vacilar. Na verdade a pancada deveria tê-lo atingido na cabeça, mas seus reflexos de defesa tinham agido. Ele pressentira o golpe e fizera um movimento para o lado. Seguiram-se outras pancadas, ao acaso, desabando sobre ele no nevoeiro denso. Às paliçadas ele agarrava membros viscosos, girava-os, naquelas viradas mortais cujo segredo aprendera em certos pontos orientais, e ouvia ossos estalando. Mas os que oratacavam pareciam dotados de uma vida que renascia s«mpre, como a hidra de cem cabeças. Outro golpe, de machado desta vez, e que poderia tê-lo atingido em plena testa, mas que ele conseguiu evitar também, roçou-lhe o couro cabeludo, um pouco acima da têmpora. O sangue correu e um gosto salgado lhe lambuzou os lábios.

Esquivou-se. Com um pulo conseguiu safar-se daquele ninho de víboras que o "retinha prisioneiro e.. tentava matá-lo.

Correu para ajxente, num silêncio estranho cuja razão ele não entendia. Seus olhos habitiravam-se à escuridão opaca, mas ele sabia que não podia ver/no escuro tão bem quanto os índios. Ainda assim distinguju uma "Silhueta que lhe vinha ao encontro, sombra aumentada pela atmosfera densa,. Desta vez conseguiu atacar primeiro, com a coronha de>prata maciça de sua pistola, em pleno rosto. A sombra tpmbou, apagou-se, mas na opacidade da noite outras sombras, afluíam e o cercavam, prontas a agarrá-lo.

O ferimento o enfraquecia.

Correndo, Peyrac arremeteu para o rio, a fim de escapar-lhes. Seguiu para a água. Assim que sentiu que os pés atingiam a ribanceira, mergulhou.

O abrigo negro e gelado pareceu-lhe benéfico. Teve a sensação de reviver sua fuga pelas águas do Sena, quinze anos antes, quando deslizara da barca onde os mosqueteiros do rei haviam atirado o quase cadáver que ele era então.

Um choque o_deteve. Ele agarrou-se a galhos, apoiou-se em raízes.

Uma claridade rosa e fria feriu-lhe os olhos. Ele teve a impressão de que projetavam na sua direção uma enfiada de fogos de artifício. Mas imediatamente entendeu que era o rosado da aurora e o brilho do sol nascente. Pingentes de ouro e diamante rodeavam-no. Um brancura cintilante substituíra a cortina negra da noite, e embora ele achasse que não perdera a consciência, compreendeu que depois de se içar para a margem devia ter desmaiado por algum tempo.

De imediato pensou: "Ela!... Angélica!... Lá, no forte... o que aconteceu?... Ela está em perigo!... As crianças!..."

Recuperou na hora a lucidez, e, apesar do sangue que perdera, a raiva que o invadiu transmitiu-lhe uma força terrível. Sentiu-se pronto, na defensiva, dominado por aquela espécie de atonia que o invadia no instante preciso da luta e que o tornava surdo e cego para tudo o que não fossem os próprios elementos da luta e os componentes do perigo a enfrentar.

Lentamente, ergueu-se e olhou à volta. A neve espalhada por toda parte explicava a brancura cegante, o silêncio, o abafamento súbito dos ruídos e dos passos. Caíra durante a noite, misturada com a neblina. Bastaram os primeiros raios de sol para apagar o espesso véu do nevoeiro e devolver a limpidez coruscante à paisagem.

O Conde de P.eyrac percebeu que estava longe do forte. Avistava a fortificação escura da paliçada no alto da encosta e os lentos penachos de fumaça das duas chaminés, que desenhavam seu rastro com a mesma brancura da neve no céu matinal.

Com prudência começou a avançar a descoberto. Segurava a pistola pelo cano, pronto a usá-la. Seu olhar penetrante vasculhava os arredores. Não percebeu nenhuma silhueta humana. Um pouco acima, cruzou uma trilha de pegadas, visível na neve fresca, acompanhando a ribanceira. A medida que se aproximava do forte, as pegadas se multiplicavam, dividindo-se para a direita e para a esquerda. Tinham cercado o forte antes de atacá-lo.

Atacá-lo? Não. Tinham entrado sem dificuldade. Pois no pátio é que ele fora atingido.

Finalmente, seguindo pelo caminho, visível sob a fina camada de neve, que subia da praia até a entrada principal do forte, viu uma forma humana estendida no chão.

Aproximou-se com prudência, desvirou o corpo. O índio tinha a testa afundada, aberta, o cérebro à mostra, sangue espalhado. Era o homem que ele golpeara com a coronha durante a noite. Demorou-se no exame do cadáver.

Embora estivesse a descoberto e apresentasse um alvo fácil ao inimigo, sabia que de imediato não precisava mais temer um ataque.

O índio pertencia aos que vêm à noite, que se retiram com a aurora. Os que não temem morrer nas trevas, pois a alma deles escapa à maldição ancestral, os únicas que ousam... São todos de uma única espécie, e, debruçando-se sobre o morto, Joffrey de Peyrac obteve a confirmação. Um objeto brilhava ao pescoço do índio. O conde puxou-o cormum golpe seco, a fim de rebentar o cordão do amuleto. Deu-lhe uma olhada rápida e enfiou-o no gibão.

Depois lentamente continuou a subir rumo a Katarunk.

CAPÍTULO XXVIII

A capa de Angélica salva uma vida

Angélica levara tempo a adormecer. A enxaqueca contraía-lhe as têmporas e os olhos doíam.

Durante a noite, alguns saltimbancos abenakis, que Nicolau Per-rot conseguira que viessem para homenagear com um pouco de música os chefes iroqueses, agitaram guizos, bateram tambores, sopraram em flautas de carvalho com seis furos. O reflexo das fogueiras lançava clarões rosados e intermitentes no pergaminho da janelinha.

Angélica temia o tempo todo ver desenhar-se sombras ameaçadoras na janela. Os índios dançavam em passinhos sincopados no pátio e, no salão do forte, ela imaginava os chefes e os brancos festejando, passando uns aos outros tigelas de madeira cheias de trigo-da-índia coberto de óleo de urso e sementes de girassol, os nacos de carne cozida e, principalmente, as taças de aguardente. De quando em quando, clamores roucos e uniformes dominavam o ruído estridente e lancinante da música, e Angélica estremecia, desassossegada.

Sentia falta da presença do marido e tinha medo.

"Queria tanto que você estivesse aqui!", pensava puerilmente. "Preciso tanto de você!..."

Depois tudo se embaralhara e ela mergulhara num sono profundo. Quando despertou, reinava o silêncio. A luz do dia assemelhava-se à claridade que brota de uma lâmpada de alabastro.

A sua cabeceira, viu o mohawk Utakê. Estava nu e de uma palidez mortal. Dir-se-ia uma estátua de mármore amarelado. Inclinava a cabeça, olhando-a, e de repente ela percebeu o sangue que lhe corria do ombro ou do peito, não estava muito nítido.

Num sopro, ele murmurou:

- Mulher, dê-mè minha vida!

Com um pulo ela saiu da cama, ,e isso bastou para que a sombra aflita dó mohawk se dissipasse. Não havia ninguém no aposento.

"Estou ficando louca", pensou ela. "Será que vou começar a ter visões, como toda essa gente por aqui?"

Passou pelo rosto úma mão que tremia um pouco. Seu coração batia disparado. Ela aguçou os ouvidos. O que significava aquele silêncio?"Era anormal, e ela soube que era resultado de alguma coisa.

Algo acontecera!

Vestiu-se rapidamente. Na pressa, apanhou uma capa ao acaso. Era a capa de faÉle vermelho-amaranto que havia colocado sobre os ombros para ir ao banquete, na outra noite. Não sabia que esse gesto sem premeditação a ajudaria a-salvar uma vida...

No cómodo vizinho, seus filhos continuavam dormindo, com o sono profundo da juventude. Depois de colar a orelha à porta dos Jonas e das crianças, e de perceber a respiração leve de gente adormecida, começou a acalmar-se. -

Mas o silêncio continuava a parecer-lhe insólito.

Sem ruído, foi desaferrolhar a porta de entrada e recebeu em pleno rosto o clarão da luz pálida que se filtrava pelos quadradinhos da janela quase opacos e que intrigara ao despertar.

Simultaneamente um sopro gelado a envolveu, enquanto seus olhos piscavam, ofuscados, e ela continha uma exclamação.

Neve!

A neve chegara durante a noite, uma neve precoce, inesperada, que se pusera a cair suavemente, envolvendo o forte em seu manto acolchoado, encobrindo toda vida, todo ruído, todo movimento.       

Pela manhã os flocos haviam interrompido sua dança furtiva, mas a impressão de surpresa permanecia. Estava tudo deserto. No entanto, o tapete branco no interior da fortificação apresentava vestígios de inúmeras idas e vindas recentes.

Angélica viu que o pórtico estava escancarado e, para além dele, uma coisa escura lhe pareceu um corpo estendido.

Ia correr para lá quando uma nuvem de neblina mais densa e baixa desceu atrás dela, acima do telhado, em rolos de fumaça cinzenta, apagando a luz do sol, e quase de imediato Angélica se viu mergulhada num mundo opaco e surdo.

Um grito lancinante, agudo, estranho. Ela não via nada. Teve que tatear para avançar ao longo da paliçada até a porta. Quando chegou do lado de fora, já não sabia em que direção tivera a impressão de avistar um homem estendido no chão.

Chamou. Sua voz devolveu um som compacto, que não se pro-jetava. Quase tão repentinamente quanto se abatera, o nevoeiro começou a ceder debilmente, carregado de gotinhas cintilantes. A direita, acima de Angélica, ganhava forma uma alta aparição encarnada. Era o bordo solitário, perto da entrada do forte. A neve não conseguiu dissimular-lhe a suntuosa veste. O debrum branco só fazia avivar-lhe o fulgor vermelho, enquanto a luz difusa do sol que lutava por triunfar se refletia através das folhas púrpura como através dos rubis de um vitral.

A neblina dissipou-se lentamente até a beira do rio. Uma silhueta humana vinha de lá, subindo a encosta. Belo e resplandecente como o próprio arcanjo São Miguel, era o pequeno Barão Eliacin de Maudreuil.

Seus cabelos louros cintilavam sob o adorno indígena de plumas e pérolai. Na lapela de seu paletó de pele, aberto sobre o peito nu, viam se brilhar com centelhas intermitentes três medalhas, e as mesmas cintilações brincavam sobre a lâmina do longo punhal que ele trazia em riste.

De cabeça erguida, ele subia, e a neve lhe abafava os passos. Um sonho paradisíaco enchia-lhe as pupilas claras.

O que ele via atiavés do nevoeiro, sob o bordo vermelho com reflexos de vitral, e a uma aparição aureolada de luz, de uma beleza sobrenatural, o rosto pálido como a brancura dos lírios, olhos admiráveis.

Ela o esperava, via-o chegar, serena e grave, envolta nas dobras de uma capa rosada.

Prostrado de emoçâi, ele dobrou o joelho.

- O Nossa Senhora - murmurou, numa voz alquebrada -, ó Mãe de Deus bendito seja este dia! Eu bem sabia que me seria dado vê-la na hora de minha vitória!

Diante dele a neve se estrelava de flores vermelhas. Sangue, que caía gota a gota...

E no punho erguido, ele brandiu um objeto negro, úmido, estriado de sulcos rosados.        

-        Eis a cabeleira do demônio!,E'is o despojo que eu lhe havia prometido! O Nossa Senhora!...'Eis. ó escalpo de Swanissit.

Uma nuvem deslizou, envolvendo-os a ambos em fria escuridão e roubando à vista de Angélica o homem ajoelhado. Ela o ouviu gritar com uma voz demente':'

-        Swanissit está morto! Glória a Deus nas alturas!

Tateando, ela recuou, procurando um ponto de apoio. Atravessava o pátio_procurando a habitação principal; onde ocorrera o festim na véspera. D« repente percebeu a alguns passos a porta escancarada como úm'buraco negro aberto para a escuridão fria. Ao sabor do vento, o;pesado painel de madeira rangia nos gonzos de couro.

Uma apreensão terrível apertou-lhe o coração.

-        A sala'do festim! - murmurou, e se dirigiu para a soleira.

Só havia quatro homens sentados à mesa. Na hora ela viu que o marido não estava entre eles. Eram os quatro chefes iroqueses, Swanissit, Anhisera, Onasategan e Ganatuha. Com a testa apoiada na mesa, pareciam curar a bebedeira. Um odor insulso subia da sala, onde o nevoeiro se infiltrara. Os fogos tinham se apagado. Angélica notou um ruído sinistro, que a fez arrepiar até a raiz dos cabelos. Era o ruído de um lento aguaceiro, como a ressu-mação de uma água viscosa no fundo de uma caverna escura.

O que importavam o frio da porta aberta e o fogo apagado!... Os que se encontravam ali não precisavam mais do calor. Pois, com o crânio em carne viva, dormiam num charco de sangue. E o ruído que Angélica ouviu era do sangue, escorrendo da mesa para o chão.

A náusea invadiu-a.

E até a inquietação que sentia pelo destino do marido foi submergida pelo horror, pela infâmia aterrorizante da cena.

Os chefes iroqueses tinham sido escalpelados, à mesa de seu anfitrião, sob o teto de Joffrey de Peyrac.

Uma sombra moveu-se atrás dela. Angélica voltou-se com vivacidade, levando a mão à coronha da pistola.

Viu Nicolau Perrot, que esfregava a cabeça sob o gorro e a olhava com olhos esgazeados. Também ele contemplava a cena e seus lábios moviam-se sobre imprecações que ele não tinha a força de pronunciar.

-        Sr. Perrot - disse Angélica, em voz baixa -, sabe quem fez isto?

Ele teve um gesto de ignorância.

— Onde está meu marido?

— Estamos procurando-o.

— O que aconteceu?

— Esta noite estávamos todos um bocado bêbados - disse Perrot. - Quando saí para o pátio, levei uma pancada na cabeça. Acabei de acordar.

— Quem o atacou?

— Ainda não sei... Mas aposto que foi o sagamore Piksarett, com os guerreiros enfurecidos, os patsuiketts.

— E Maudreuil!... Vi-o há pouco, na entrada do forte... Olhando os iroqueses, Perrot disse vagamente:

— Falta um... Contava os mortos.

— Falta um... Parece que é Utakê. Deve ter fugido.

— Como puderam entrar e surpreendê-los?

— Abriram de dentro. As sentinelas imaginaram que os franceses estivessem voltando...

— E ele? Oh, meu Deus, onde pode estar ele? Vou alertar meus filhos.

Angélica atravessou outra vez o pátio, que a opacidade cinzenta do nevoeiro transformava em deserto. A cada passo podia se chocar com um inimigo.

Reconheceu b prédio do armazém de víveres e parou apoiando-se à parede e empunhando alto a pistola, pois teve a impressão de ouvir uma roçadela.

O ruído repetiu-se.

E uma coisa pesada escorregou pelo telhado de ripas, arrastando blocos de neve.

Um corpo caiu pesadamente na frente dela. Era Utakê, inerte na brancura da neve. Tinha o corpo de uma palidez de cera.

Ao cabo de um instante, vendo que não se movia, ela se debruçou sobre ele. Mal respirava. Suas mãos abertas acabavam de soltar a cumeeira do telhado, onde devia-ter-se agarrado, ferido, há muitas horas.      

As pálpebras do iroquês se abriram, deixando filtrar o brilho do olhar. Seus lábios moveram-se. Ela adivinhou mais do que ouviu a frase que ele já lhe dissera uma .vez, à margem da nascente, e que lhe repetira em sonho:

-        Mulher, dê-me minha vida!

Angélica segurou-o por sob as axilas e arrastou-o. Ele pesava, e as mãos dela escorregavam na pele oleosa.

Procurou no-bolso do vestido a chave do armazém, abriu, empurrou a porta com„o cotovelo, puxou o ferido para dentro, deixou-o cair num camo ê*"atirou-lhe em cima alguns sacos para dissimulá-lo. 

Depois saiu e fechou a porta.

Atrás dela, alguém surgido da neblina observava-a.

Quando Angélica se voltou, teve um violento sobressalto. Havia um índio ali à .sua frente e ela reconheceu o grande chefe com a pele de urso, a quem notara na outra manhã, perto do altar de madeira dourada. Era de altura realmente gigantesca, mas muito magro. O abundante birote oleado estava entremeado de contas de um grande terço de madeira, e dos dois lados do rosto mechas de cabelo trançado eram seguras por presilhas feitas com patas de raposa vermelha.

Várias fieiras de medalhas e cruzinhas penduradas ao pescoço caíam-lhe baixo sobre o peito tatuado.

Observava Angélica, de cabeça inclinada, os olhos semicerra-dos de malícia.

Aproximou-se dela lentamente.

Seu riso mudo descobriu-lhe o maxilar de dentes brancos e pontudos de roedor. Com os dois incisivos superiores proeminentes, tinha um malicioso ar de esquilo.

Ela não soube por quê, mas não sentiu medo.

-        É você o sagamore Piksarett? - perguntou.

Como todos os abenakis estavam em contato com os franceses, ele devia compreender um pouco da língua, se é que não a falava.

Ela meneou a cabeça afirmativamente.

Ela se insinuou entre ele e a porta do armazém, decidida a impedi-lo de entrar. No entanto, não queria matá-lo. Apenas afastá-lo, impedi-lo de liquidar o ferido. Concluir um acordo com ele.

Puxou dos ombros a grande capa vermelha.

-        Tome esta capa... É para você... Pelos seus mortos...

Essa capa fascinara os índios. Já falavam dela longe pelas margens do Kennebec. Sonhavam com ela, alucinados que são por encontrar uma mortalha digna de envolver as ossadas de seus ancestrais. Quantos padres católicos não conheceram o martírio porque se recusaram a dar uma casula de presente?

O gesto era o único capaz de desviar a atenção do sagamore Piksarett. Fitou em êxtase a capa oferecida, que brilhava como um pedaço de aurora do próprio céu.

Agarrou-a impetuosamente, desdobrou-a, envolveu-se nela, depois enrolou-a como uma bola para apertá-la contra o coração.

Olhou outra vez a porta fechada, depois Angélica, depois a capa:

Nesse momento o sol, finalmente triunfante, apareceu, lançando seus raios em todas as direções, e casas e paliçada tornaram-se visíveis, enquanto a neve começava a derreter.

Nicolau Perrot, na outra extremidade do pátio, avistou Piksarett perto de Angélica.

Lançou-se na direção deles.

Mas o abenaki fugiu e, sempre agarrado à capa, pulou o muro no fundo da paliçada, como um esquilo imenso, e desapareceu.

Foi o instante em que Joffrey de Peyrac atingiu o forte e entrou. Angélica correu para ele e atirou-se em seus braços, assustada por vê-lo ferido, mas louca de alegria por encontrá-lo salvo.

— Deus seja louvado! Você está viva - disse ele, abraçando-a.

— Você está ferido?

— Não é nada. E as crianças? Os meninos?

— Estão bem. Creio que não há mortos a lamentar... entre nós. Os olhos de Peyrac já se fixavam na porta aberta da casa maior,

perto da qual homens começavam a se reunir, e dominado pelo pressentimento da tragédia que o aguardava ali, como Angélica um pouco antes, encaminhou-se para a construção.

Da soleira contemplou as figuras de cera, fixas na atitude do sono ou da embriaguez, as cabeças sangrentas inclinadas, repousando entre os pratos.

Depois uma cólera feroz fez briihar-lheos olhos negros. Praguejou, de dentes cerrados:

— Dammed! Dammed!... Maldito seja aquele a quem devemos isto!

— Com certeza foram os patsuiMetts - disse Nicolau Perrot.

— Eu sei... sei quem eles são, os que vieram nos trair dissimulados pela noite. Vi o sinal deles...

Sacou do casaco encharcado o objeto que havia arrancado do pescoço do índio morto e os outros viram cintilar-lhe sobre a palma uma cruzinha de »uro.

— A cruz - drssè- Peyrac^eom amargor. - Não haveria um lugar neste mundo onde eu pudesse empreender uma obra sem que me atirassem-ama cruz entre as pernas para me fazer tropeçar!...

— Senhor, não blasfeme, rogo-lhe - exclamou Nicolau Perrot, empalidecendo.

-        O que importa a blasfémia! São os atos que contam!

Lançou-lhes um olhar sombrio. Uma violência surda fazia-lhe a voz tremer. As palavras blasfemas que ele ardia por pronunciar, nenhum dos que o cercavam, nem eles, seus irmãos, entenderiam. Exceto ela. Pois sofrera com ele, como ele e pelas mesmas causas. Apertou-a com um braço, contra si, com paixão, contemplando-lhe com uma intensidade desesperada o belo rosto pálido de olhos claros.

Como ele, ela fora atirada para fora do mundo dos crentes e dos justos; por amor a ele, fora marcada tão jovem, aos vinte anos, com a insígnia da maldição, e agora ele descobria, num lampejo, que ela se tornara sua réplica, talvez a única criatura no mundo semelhante a ele.

-        Deve ter sido um golpe dos patsttiketts - repetiu Maupertuis para dizer alguma coisa. - Não podem ver um iroquês sem cravar-lhe os dentes no pescoço/Quando viram que estes lhes escapavam...

— Com certeza, foram eles. É preciso ser um índio fanaticamente cristão para ousar vir à noite correr o risco de um combate. Fanático e fanatizado. Dessa espécie há apenas os patsuiketts. Crentes o suficiente para não aceitarem as superstições de sua raça, para quem um guerreiro morto à noite vagará pelas trevas eternamente. Hipnotizados o suficiente pelo Casaco Negro para confiarem em seu poder místico, quando ele lhes afirma que a morte de um iroquês-ou de um inglês garante-lhes o paraíso.

— Está falando do Padre d'Orgeval?! - exclamaram Nicolau Perrot e Maupertuis. - Mas é impossível, ele é um santo!...

— E um santo que combate pelo seu Deus. Faz muito tempo que me informei a seu respeito. Foram o papa e o rei da França que o nomearam para a Acádia, e seu único objetivo deve ser impelir os abenakis à guerra santa contra os hereges ingleses e todos aqueles que podem ser considerados inimigos dos católicos e dos franceses. Foi ele quem pediu socorro a Quebec e mandou ocupar o nosso forte. Quando viu que eu entabulava negociações pacíficas com o Conde de Loménie, julgou que o contradiziam e quis desferir um golpe definitivo, irreversível... Não é a primeira vez que ele envia por iniciativa própria os patsuiketts a combate. E agora - disse Peyrac, numa voz rouca que. cedia -, agora, por culpa dele - e olhou na palma da mão a cruz de ouro cintilante -, por culpa dele tenho nas mãos o sangue da traição... Lembre-se, Perrot, das palavras de Tahutaguete, quando esteve aqui como mensageiro. Ele duvidava. Utakê lhes dissera que não havia possibilidade de entendimento com os brancos. Mas eles, iroqueses, ainda queriam ter esperança num branco que não os traísse. E agora, o que posso responder-lhes? Minha casa está conspurcada por um crime inexpiável...

Sua voz tremia. Ao mesmo tempo, Angélica, a quem ele continuava a enlaçar com um braço, teve a impressão de que esta última frase acabava de projetar nele como que uma súbita iluminação, fazendo-o perceber, obscuramente talvez, uma solução. Ele se acalmou, recuperou o autodomínio habitual e repetiu a meia voz:

— Minha casa está conspurcada... Tinha o olhar fixo e pensativo.

— Utakê fugiu - disse Perrot.

-        Isso só piora as coisas! Ele irá ao encontro de seus guerreiros do outro lado do rio e dentro de dois dias, senão amanhã, estarão aqui. Teremos que matá-los até o último homem ou morrer. Onde estão as sentinelas encarregadas da vigilância esta noite?

Jacques Vignol e dois espanhóis, avançaram.

O parisiense contou que pelas duas horas da manhã, quando terminava oturno dos três, ouyira no exterior da paliçada uma voz francesa pedir-lhe que abrisse as portas para o Sr. de Loménie-Chambord, que fora obrigado a retornar.

Estimulados pelas congratulações trocadas com o corpo expedicionário de Loménie, as sentinelas acharam que fariam bem em abrir e dar passagem. Havia um nevoeiro de cortar com faca. Mal abriram a "porta foram atacados, e amarrados.

Não era o Coronel de Loménie. Era o Barão de Maudreuil, à testa de um pequeno grupo de abenakis patsuiketts.

O grito "Ursos!" fizera acorrer para fora os que, no final da refeição, conservavam suficiente lucidez e capacidade de se aguentar nas pernas. Os índios, aproveitando-se da escuridão, golpearam-nos por sua vez.

Descobria-se agora um fato perturbador. Durante a refrega no-turna, rápida,'silenciosa, nenhum dos brancos da tropa da Pey-rac fora morto ou sequer seriamente ferido.

Alguns tinham ficado desacordados, a maioria não vira nada, dormindo o sono dos justos õu da embriaguez.

Parecia que se dera uma palavra de ordem precisa no sentido de deixar a vida aos europeus do forte. O que Maudreuil e Pik-sarett queriam não eram apenas os escalpos dos chefes iroqueses?

Os patsuiketts não haviam contado com a defesa encarniçada do Conde de Peyrac e com a sua força prodigiosa. Um deles estava morto.

Enquanto ete lutava no pátio e, para escapar aos golpes dos atacantes, lançava-se na direção do rio, na sala enfumaçada Dom Juan Alvarez, Maupertuis, Macollet, Malaprade e os que ainda não estavam roncando viram surgir o Barão de Maudreuil e o sagamore Piksarett.

-        Entendi na hora - explicou o velho Macollet -, mas o que é que eu podia fazer? Não podia me descolar do banco. E mesmo que pudesse... Era uma situação delicada, não era? Maudreuil é um senhorzinho cheio de santidade e dinheiro. Eu não passo de um velho pagão e sem tostão. E o garoto estava com a razão, de vir buscar o escalpo de Swanissit, que massacrou todos os seus... Quando Swanissit viu, também entendeu, mas já não podia se mexer, tão empanturrado estava... Anhisera e Ganatuha também estavam apalermados e Onasategan não viu nada, pois já roncava. Só Utakê se levantou. Lutou como um diabo antes de fugir pela janela, cujos alizares quebrou com os punhos... Olhem.

Joffrey de Peyrac passou a mão pela testa. Sentiu o ferimento, cuja dor importuna o toque despertou. Era o primeiro sangue que vertia pela conquista do Novo Mundo. Esse ferimento se chamaria Etskon-Honsi, o Casaco Negro.

Não seria o último.

A ordem de poupar os europeus era apenas para salvar as aparências. Eles não estavam menos condenados por isso. Que povo primitivo, que povo, fosse qual fosse, podia aceitar o ultraje do traiçoeiro assassinato sem reclamar vingança?

Apesar dos esforços de Loménie e do Conde de Peyrac, apesar da razão, da sabedoria, apesar de todas as manobras e da paciência que os dois homens haviam utilizado lealmente, para afastar o espectro de uma guerra inútil, ela agora se erguia entre eles, louca e estúpida, inevitável.

CAPITULO XXIX

Um duelo mágico

Angélica insinuou-se para dentro do armazém e imobilizou-se contra a porta, a espreka dos ruídos da penumbra.

O iroquês ferido ainda estaria vivo? Estaria morto? Iria pular sobre ela? Tudo era possível.

Esperou. Nada se moveu.

Ajoelhou-se e seguiu de quatro, às apalpadelas, até o local para onde o arrastara. O amontoado de sacos velhos que atirara sobre ele não parecia ter-se movido.

Pouco antes, quando alguém disse que o chefe dos mohawks, Utakê, não estava entre os mortos, ela preferira não dizer nada. Antes de avisar ao marido que possuíam um refém, era preciso ver se ele ainda vivia.

Escorregou a mão por entre os sacos e seus dedos encontraram a dureza de um corpo rijo. Ele continuava ali. Não se mexera. Mas Angélica constatou que a carne estava morna e macia.

Com um suspiro de alívio, começou a agir.

Trouxera uma lâmpada, que pousou sobre uma caixa e acendeu. Também trouxera uma cabaça de aguardente, alguns unguentes e pedaços de gaze que encontrara na farmácia bem desprovida do forte, bem como uma cabaça de água fresca, tirada do poço. Afastou os objetos empoeirados que jogara sobre o ferido para ocultá-lo em caso de buscas. A lua amarelada, o corpo marmóreo se descobriu inteiro, inerte. Ela o virou de costas e aproximou a luz.

Seu olhar treinado interrogava, estudava a posição das mãos, a dobra dos lábios, o vão das pálpebras fechadas, a crispação das narinas.

Bastou-lhe um instante. "Ele viverá", decidiu.

Pois se debruçara sobre muitos feridos ao longo de sua vida, tanto no Marrocos quanto nas suas guerras do Poitou. Pousou a lâmpada, começou um exame mais profundo, a fim de descobrir o ferimento que fazia o iroquês mergulhar naquele sono próximo da morte.

Quando pousava a mão sobre um doente ou ferido, era como se o corpo humano se tornasse transparente para ela. Sinais invisíveis lhe eram revelados pelo toque. Procurou, toda a atenção alerta, mal roçando o corpo. Suavemente seus dedos avançavam sobre aquela carne tatuada. Faziam uma pressão tão leve que, na inconsciência, ele não podia perceber. No entanto o mohawk abriu os olhos. Viu o perfil da mulher branca e sua cabeleira flutuante, que caía molemente sob a luz, como um raio de lua. Viu-lhe as pálpebras baixas, o vinco grave de seus lábios, dando ao rosto uma expressão tensa. E sentiu vivamente o toque de suas mãos sobre ele e a corrente tépida e magnética que parecia escapar daqueles dedos afilados, com unhas brilhantes e nacaradas como" conchas, espalhar-se dentro dele para reanimá-lo.

De repente ele a viu imobilizar-se, qual um índio diante de pegadas inimigas, e ouviu-lhe a breve exclamação:

- Ah!

E balançou a cabeça várias vezes. Afastando a tanga encharcada de sangue, ela acabava de descobrir o ferimento na coxa direita, que subia quase até a dobra da virilha. Uma lançada, que lhe visara no ventre e que se desviara.

Um cordel amarrado com força à volta da coxa estancara a hemorragia. Assim que escapou da sala, Utakê mesmo amarrara o cordel, para que não pudessem persegui-lo pelo rastro de sangue. Terapia eficaz, mas perigosa, pois os arredores da ferida e a própria perna estavam bem inchados. Havia o risco de uma embolia mortal.

Angélica pegou a lâmpada outra vez. Inclinou-se com mais atenção ainda sobre o ferimento. Com precaução, arriscou-se a afrouxar o cordel. Um pouco de sangue correu. Estava vermelho e deveria jorrar intermitentemente. Ela não entendeu. O sangue não corria mais. Será que dentro daquele corpo imobilizado já se efetuara um impossível trabalho de cura? Por que milagre? Ela alçou os olhos para ó rosto do ferido e estremeceu ao notar que ele a olhava fixamente. Poderes estranhos! Sim, claro. Por acaso ela ignorava que Utakê possuía mais desses" poderes que qualquer outro?... Ela refletira no impulso que a atraíra no outro dia para a nascente, onde ele a esperava para matá-la. Sabia agora que ele a atraíra por feitiçaria.

Ela podia adivinhar que ele era capaz de estancar o próprio sangue e de fazer a morte recuar passo a passo, por meio de uma ciência ao mesmo tempo adquirida e natural que ele possuía. Durante horas, imóvel, aguardando que a mulher branca voltasse para socorrê-lo, ele contivera a morte que queria raptá-lo à vida, e isso apenas com o poder da vontade.

Ela se pôs a estuda--lo,jdesconfiada. O cheiro de fera do índio a nauseava, e ela voltava ater a impressão que já experimentara várias vezes em suapresença:"a de não estar tratando com um ser completamente humapo, mas com um animal saído de mundos desconhecidos. E quase se surpreendia, ao examiná-lo nu e abandonado àfsuafrente, de descobrir-lhe mãos, pés com dedos, costelas salientes, um umbigo, um sexo de homem como todos os outros.

Estancou o sangue, limpou a"ferida com água e aplicou um unguento à base de raízes emolientes.

Apertou o curativo com energia. O emplastro desincharia a carne intumescida, e, com a forte constituição do selvagem, em breve o ferimento terrível não passaria de uma recordação.

O índio sabia que ela saiba. Também sabia que podia atingi-la, mas aprendera que ela tinha força para frustrar-lhe os planos. Ele a "chamara" para perto da nascente, mas ela fora com um punhal. Ela tinha força. E isso, sem dúvida, porque também tinha o Espírito dos Sonhos como amigo. Uma potência se não contrária, pelo menos diferente da sua animava a estrangeira, vinda de continentes longínquos, e ele se sentira-o frémito insólito quando ela pousara as mãos sobre ele.

Assim, com olhares, Angélica e o mohawk trocavam seus pensamentos, sem dizerem palavra. Ela queria convencer-se de que ele estava inconsciente e que, apesar da claridade oblíqua que se filtrava de suas pálpebras, ele não podia vê-la. Acusava-o de ser um espírito encarnado, perigoso, possesso, diabólico, e ele, de seu lado, fazia o mesmo. E, a cada olhar, o que conseguiam captar um do outro, o que aprendiam sobre seus respectivos poderes, forças, natureza, tornava esses olhares mais e mais ferozes, mas também cada vez mais compreensivos.

Era um duelo mágica Mas um duelo em condições de igualdade.

Quem teria adivinhado, ao ver aquela forma branca ajoelhada à cabeceira de um selvagem moribundo? Não se veria outra coisa senão uma europeia de boa classe cuidando dedicadamente de um infeliz índio ferido, quando na verdade se tratava de dois seres de força igual, de afinidades próximas, e que sem o saber davam início a uma inacreditável aventura...

De cenho franzido, Angélica atou a última volta de gaze, lançou uma última olhada furiosa ao ferido e se levantou. Foi procurar, num fardo de mercadorias, três cobertas.

Esforçando-se por deslocar sem mover muito aquele corpo que parecia pesado como pedra, conseguiu passar uma das cobertas entre o chão e ele. Com a outra, cobriu-o dos pés ao queixo, e a terceira, enrolada, colocou-lhe sob a cabeça.

Depois permitiu-se contemplá-lo com satisfação. Finalmente ele tinha agora o ar de um ferido autêntico, de um doente bem-comportado. Achou coragem para passar a mão sob a nuca dele, por entre os cabelos untados de resina do penacho eriçado, e erguer-lhe um pouco a cabeça, enquanto lhe aproximava dos lábios uma cabaça cheia de água. Os traços fixos do mohawk se animaram. Ele bebeu avidamente, como uma criança. Um profundo suspiro levantou-lhe o peito.

Quando ela lhe pousou a cabeça sobre o travesseiro, as pálpebras do iroquês estavam fechadas. Ela o acreditou morto, mas logo percebeu que ele dormia.

CAPÍTULO XXX

A defesa de Katarunk - No entanto, Joffrey de Peyrac falhara uma vez...

Angélica esperou.até o anoitecer pelo momento oportuno. O marido passou parte do dia fora do acampamento. E o resto do tempo conversou com Nicolau Perrot e Maupertuis. Estes, depois de se mostrarem reticentes, pareciam compartilhar cada vez mais dos projetos^que eles lhes expunha, e aprová-los. Angélica tinha uma preocupação: Peyrac não parecia estar organizando rapidamente a defesa do forte.

Tudo indicava que se devia esperar que a tropa iroquesa aparecesse de um dia para o outro, se não de uma hora para a outra. Ora, as portas continuavam abertas, os homens de Peyrac iam e vinham sem pressa. Havia alguns diálogos breves, ordens que se davam e que outros iam executar. Abriam-se buracos fora do forte, sobre a colina e à beira do rio, mas essas obras assemelhavam-se pouco a fortificações.

Angélica encontrou Florimond num canto do pátio, ocupado em encher tubos de papelão com pó de enxofre, clorato e óxido de cobre.

— O que é que está fabricando?

— Petardos.

— Isto é hora de se ocupar de petardos?

— Foi meu pai quem me incumbiu disto.

— Para fazer o quê?

— Não sei. Uma ideia dele.

Angélica correu os olhos à volta. A neve se derretera em algumas horas, deixando uma umidade brilhante sobre a terra e as folhas.

— Florimond, quais são as intenções de peu pai? As portas continuam abertas. No entanto, os iroqueses podem surgir de um momento para o outro.

— Méu pai despachou exploradores em reconhecimento, para nos avisarem dos movimentos deles e de sua aproximação.

— O que pretende fazer?

— Não sei. Mas não se preocupe, mãe. A situação é grave, reconheço, mas com nosso pai as coisas sempre se ajeitam.

Era essa a fórmula mágica de todos: "Com nosso pai, com nosso chefe, as coisas sempre se ajeitam..."

Quando reconheciam na fisionomia de Joffrey de Peyrac certas expressões, seus homens, seus filhos, sabiam que já não era necessário fazer-lhe perguntas, bastava obedecer.

Ela própria, porém, tivera ocasião de saber que as coisas nem sempre se ajeitavam, mesmo com ele. No fundo ainda não conseguia esquecer, perdoar, aquela única vez em que Joffrey de Peyrac parecera subestimar o inimigo, ou, no mínimo, a prontidão do inimigo para atacar. É verdade que o inimigo, na altura, era o discretíssimo, o cortesíssimo, o poderosíssimo rei da França, Luís Dieudonné, o décimo quarto. E verdade também que o Conde Joffrey de Peyrac fizera pouco-caso da prudência, que lhe recomendava fugir imediatamente. Pois quisera passar uma última noite com ela, sua mulher, Angélica... e Luís XIV investira como um relâmpago. E a vida de ambos fora destruída.

Ainda hoje havia momentos em que ela só podia contar com as próprias forças, e com frequência, infelizmente, tivera que constatar como elas estavam sujeitas ao fracasso.

Num acontecimento, ela percebia com mais facilidade a ameaça do que a porção de sorte ou a habilidade que podiam permitir evitá-lo.

Ela duvidava do acaso, enquanto Joffrey de Peyrac via o lado otimista e afirmava que na pior situação há sempre um meio de escapar.

Ela o invejava por isso, tinha mesmo uma ponta de ciúme. Ele era calmo.

No entanto, essa calma ele quase a perdeu uma segunda vez, no mesmo dia, quando, encontrando-o sozfnho afinal, Angélica lhe contou que o chefe mohawk Utakê estava vivo, que ela o salvara e tratara, e que, longe de poder reunir seus irmãos e excitá-los para a vingança, ele estava, à mercê deles, em suas mãos.

— Por que não me disse antes?! - exclamou ele, quase esmurrando a mesa. - O comunicado é importante, parece-me! Pode influenciar enormemente os meus projetos. O que estou dizendo? Reforça-os e quase me garante-a vitória.

— Que projetos são esses?

— Isso é assunto meu.

— Você predente defender o forte? Devemos combater?

— Sim!... Talvez em último caso. Estamos bem armados e poderíamos ganhar. Mas o extermínio desse grupo marcaria a nossa derrota nas nascentes do Kennebec. Seríamos obrigados a partir cedo ou tarde', pois os iroqueses não cessariam de nos molestar. Prefiro tentar outro caminho.

— Qual?

— Ainda não posso falar a respeito.

— Naturalmente, sou tola demais para entender - exclamou Angélica. - Você esquece que também fui chefe de guerra... Está me mandando'de volta às panelas! Nunca me diz nada! É exasperante!

— E você! - bradou Peyrac. - É, então, assim pródiga de explicações sobre seus atos e sentimentos? Contou-me que eventos, que imprudências de sua parte dominaram Utakê no outro dia, quando o trouxe quase na coleira, a ele, o mais terrível inimigo dos brancos?... Não há nada de estranho nisso, não é? Não requer explicação alguma, realmente!... Você vai, vem, coloca sua vida em risco conforme seus caprichos, faz coisas surpreendentes e loucas!... A mim, seu marido, isso não diz respeito?... E hoje, outra vez, depois de salvar o iroquês, você se cala durante horas, como se eu fosse um estranho a quem não se ousa abordar... E todos aqueles franceses que a olhavam na Outra noite e que você fascinava com uma arte consumada... Acha que é do meu gosto isso?... Acha que é fácil tê-la por mulher?

Encararam-se encolerizados, os olhos sombrios.

Depois, de repente, as feições de ambos estremeceram, descontraíram-se e os dois caíram na risada.

-        Meu amor! - disse Peyrac, puxando-a contra si. - Meu amor, perdoe minha violência. Amo-a demais, é esse o mal. Tenho medo de que você me escape e que uma imprudência sua provoque sua perda. Confesse que se me considera discreto, devolve na mesma moeda... Mas a cada dia me dou conta de como você é preciosa para mim. Ainda esta manhã eu teria sufocado de amargura sem você, se não estivesse ali, perto de mim. E lia em seus olhos que compartilhava de tudo o que eu estava sentindo. Talvez me tenha inspirado. Somos próximos um do outro, minha bem-amada, muito mais do que pensamos, e creio até que somos semelhantes. Mas não falarei. Ainda não, bela dama!... Só posso pedir-lhe paciência. E uma jogada que vou arriscar. Para me apoiar, tenho dois excelentes conselheiros, Perrot e Maupertuis. Eles aprovam o que vou tentar.

Tomou o rosto de Angélica entre as duas mãos e mergulhou os olhos nos dela.

-        Tenha confiança em mim, sim, minha querida?

E sob o olhar acariciante que a dominava, ela só pôde baixar as pálpebras, num sinal que dizia "sim", e submeter-se.

Utakê abriu os olhos. Viu as duas silhuetas erguidas à sua cabeceira, na tela luminosa da porta aberta. Um homem e uma mulher apoiados um no outro. Fechou os olhos, desfalecente. Pois sabia que contra aquela fortaleza seu ódio se faria em pedaços.

— Utakê, eu o saúdo - disse com gravidade o Conde de Peyrac. - Trago-lhe uma notícia. Meu irmão, tenha coragem! Swa-nissit, Onasategan, Anhisera e Ganatuha foram mortos esta noite, covardemente atingidos pelos tacapes dos patsuiketts.

— Eu sei. Eu vi.

— Utakê, lembro-me das palavras que Swanissit me confiou. Você é o herdeiro dele. Saúdo, então, em você o chefe das cinco nações.

O índio permaneceu longo tempo silencioso, antes de responder com voz surda:

-        Você nos chamou a seu forte, fez que entrássemos em sua paliçada, e a traição nos aguardava atrás destas estacas!

— Quem atacou? Diga-me! Quem atacou, já que viu?

— O Barão de Maudreuil e seus aliados malditos, os patsuiketts, filhos do Casaco Negro.

— Você sabe,,portanto, que não fui eu. Sabe, portanto, que os que entraram em meu forte para atacar traíram a mim também! Por isso, não tente fazer minha fronte corar de vergonha, pois já está vermelha do sangue'que esses mesmos patsuiketts derramaram com seus golpes. Veja!

E apontou a bandagem que lhe rodeava à cabeça.

Utakê pareceu hesitar, depois soergueu-se num cotovelo. Uma careta amarga contorcia-lhe as feições impassíveis.

— O que me importam as querelas dos brancos? - disse, com desprezo. - São todos solidários, e neles vejo apenas um único inimigo.

— A febre lhe perturba oentendimento, Utakê. De minha parte, não transfiro a traição de um huroniano para a cabeça de um iroquês, e no entanto os huronianos è iroqueses são da mesma raça, assim como eu sou dos franceses.

Deixou passar um longo silêncio, para dar aò índio tempo de pesar as comparações. Depois continuou, em tom persuasivo:

— Utakê, tenha coragem. Pense em minhas palavras e, antes de se declarar, medite no destino de seu povo.

— Deixamos guerreiros para além do rio - disse o mohawk -, e Tahutaguete na floresta. Logo saberão o que aconteceu, logo estarão aqui.

Caiu para trás.

— Pode matar-me, Tekonderoga, mas jamais impedirá as cinco nações de vingarem seus mortos.

— E quem lhe disse que quero impedi-las? - disse o conde, suavemente. -Sim, Povos da Casa Comprida, venham todos a Katarunk! Venham, cinco nações da liga iroquesa! Venham vingar seus mortos!

E afastou-se, levando Angélica e deixando o chefe dos mohawks perplexo e preocupado.

O ar estava tão seco e transparente que pareceu levar até Katarunk o eco da batalha feroz que patsuiketts e iroqueses travaram rio acima, perto de Modesean.

Soube-se mais tarde que quase todos os guerreiros patsuiketts foram massacrados. Alguns fugiram e Piksarett ficou sozinho.

O Padre d'Orgeval foi ferido com uma flechada no flanco. Piksarett, vendo-se só, colocou-o ao ombro e arremeteu cerrado afora. Apesar da perseguição em que se lançaram, os iroqueses não conseguiram pegá-lo. E levou o missionário até o Penobscot, onde havia um entreposto francês, na ilha de Norumbega. Por muito tempo não se soube.o que aconteceu com Maudreuil.

Vitoriosos, os iroqueses, depois de incendiar a aldeia, queimaram vivos dois abenakis que tinham conseguido agarrar.

No dia seguinte retornaram na direção de Katarunk, onde, tinham sido informados, seus chefes conheceram morte ignominiosa.

CAPÍTULO XXXI

Katarunk por um fio - "Que minhas palavras

se cravem como flechas em seus corações"

Ajoelhada, Angélica estava ocupada em pensar o iroquês deitado num catre na casinha, quando um ruído indefinível, agudo e ribombante ao mesmo tempo, alçou-se no céu puro, cresceu até invadir tudo, depois morreu, súbito, estacado.

Angélica lariçou.uma olhada para a janela aberta, procurando um sinal de tempestade. O céu estava azul.

Utakê se soerguera, as pupilas brilhando.

Então ela entendeu, e um arrepio percorreu-lhe a espinha.

O que acabava de ouvir era o grito de guerra dos iroqueses.

Mas o silêncio reinava de novo. Nenhum tiro de mosquete respondia ao clamor aterrorizador.

Angélica terminou o curativo. Arrumou cuidadosamente os medicamentos e a gaze, e colocou tudo na bolsa que havia preparado. Tinham dado ordem, sem maiores explicações, para que todos tivessem pronta uma pequena bagagem, a fim de enfrentarem qualquer eventualidade. Na sacola ela enfiara um vestido, roupa branca, o estojo de toalete de tartaruga e ouro, onde faltavam o espelho dado a Swanissit, e a caixa de tesouros de Honorina.

Ás vezes desconfiava da maneira como Peyrac esperava salvar a vida de todos, mantendo intacta sua influência na região. Mas meneava a cabeça, pois lhe parecia impossível conseguir isso sem um combate sangrento.

Verificou a presença da pistola contra a anca. Todos deviam estar armados. A Sra. Jonas carregava um mosquete nos braços como se fosse uma criança. Ao ouvir o grito, o casal tinha saído do quarto e, junto com as crianças, reunira-se em torno de Angélica, cuja calma os tranquilizava. Esperavam com armas e bagagens, olhando o iroquês a seus pés como a um animal venenoso.

Quando viessem preveni-los, deveriam atravessar o pátio e sair do forte, sem demonstrar medo. Era tudo o que tinham a fazer. Não tinham nenhuma ideia acerca de como se desenrolariam as coisas.

Maupertuis e o filho apareceram e, apoiando o mohawk nos ombros, ergueram-no e seguraram-no para que se aguentasse em pé.

O Conde de Peyrac entrou por sua vez, soberbamente vestido de vermelho.

-        Seus irmãos estão aí - disse.       .

Enfiava sem pressa as luvas de couro preto trabalhadas em prata e quase sorria. .

— Estão aí! Nicolau Perrot os vê do alto da colina e eles o olham. Não sabem se devem vará-lo de flechas. Esperam que vá dizer-lhes.

— Que papel quer fazer-me representar, Tekonderoga? - perguntou o índio, fremente. - Bem sabe que se eu abrir a boca será para chamar meus irmãos à vingança.

— Contra quem?

— Foi em seu acampamento, sob seu teto, que a traição se consumou...

— Eu sei. Apagarei sua vergonha. E assunto meu. Mas e você? Pediu a vida à mulher branca de Katarunk, minha esposa, e ela lhe concedeu. Por esse sinal você pôde avaliar que não desejávamos a morte dos iroqueses. Mas há mais... Utakê, lembre-se da causa pela qual Swanissit morreu. Ele arriscou tudo para vir ao meu encontro e obter minha aliança. Pois hoje você é o chefe das cinco nações. Para onde, pois, quer conduzi-los? Para a paz ou o extermínio?

Peyrac dominava o índio com sua grande estatura, e, da mesma forma como na outra noite se inclinara diante do selvagem desta vez esforçava-se por subjugá-lo. Captar aquela alma indócil era coisa quase inconcebível. Mas era uma questão de vida ou morte. A vida de todos dependia daquela fagulha vacilante.

— O extermínio - gritou' LJtákê. - Sim! Mas você morrerá antes...

— Que seja, morreremos todos! ---, disseTeyrac, filosófico. - Sr. Macollet - disse, dirigindo-se ao velho canadense que entrara com ele -, sabe o que tens a fazer. Confio-lhe as senhoras e seus filhos. Coloquem-se de modo a não perder Nicolau Per-rot de vista. Se ele lhes dirigir o sinal combinado, você saberá que deve trazer seus protegidos imediatamente de volta ao abrigo da paliçada .e preparar-se para o combate.

-        Ficarei-de olho- disse o velho.

Peyrac examinou 'o chefe iroquês, sustentado por Maupertuis e seu filho.    

Seu grande trunfo, graças a Angélica...

-        Dê-lhe uma dose de rum - disse -, para que se firme em pé! E agora venham todos.

E enquanto atravessava o pátio a grandes passadas, arrancou com força o curativo que tinha na testa. O ferimento ficou em carne viva e o sangue começou a correr lentamente.

Yann Le Couénnec o aguardava, segurando pelas rédeas o garanhão negro.

Com um salto, Peyrac montou. Lançou-se na direção da porta do forte aberta. Desapareceu pela brecha luminosa.

Ante o seu aparecimento, o grito de guerra dos iroqueses alteou-se uma segunda vez, e Angélica estacou, o coração comprimido pela angústia. Mas ainda dessa vez não houve detonações em resposta ao rugido belicoso.

-        Vamos! - disse Macollet. - Quando se representa uma comédia, há que representá-la até o fim, senhoras. Não há nada melhor para deter um animal selvagem em sua investida do que algo que o espante e que ele não compreenda. Entre esses bárbaros, alguns nunca viram cavalos!... E não se esqueçam, senhoras, se se sentirem um pouco preocupadas com um cavaleiro andante como eu, depois de mim jamais terão outro igual...

Ele tanto fez, que elas chegaram quase rindo à porta do forte.

E de fato Nicolau Perrot estava lá, mãos às costas, as franjas de sua roupa de couro e a cauda do gorro de pele flutuando ao vento, e olhava tranquilamente para o sopé da encosta, na direção do rio e do exército iroquês.

Joffrey de Peyrac fazia evoluções sobre o cavalo fogoso e parecia passar em revista seus homens reunidos, que seguravam estandartes.

A couraça negra dos espanhóis cintilava ao sol.

Maupertuis e o filho, segurando o chefe Utakê, foram colocar-se junto de Nicolau Perrot.

Um rumor confuso chegava lá de baixo.

Olhando naquela direção, Angélica sentiu o sangue fugir-lhe do rosto.

As duas margens e a praia estavam cobertas de uma multidão de selvagens emplumados, sujos e ensanguentados. Canoas carregadas de guerreiros cobriam o rio e chegavam sem cessar.

Na nuvem de poeira levantada pelo desembarque, eles formavam uma massa agitada e em movimento, brandindo arcos e tacapes, mas quase silenciosa.

Tinham todos os olhos alçados na direção do forte.

Miravam aquele Nicolau Perrot, que com tanta frequência fora dar no Vale Sagrado e navegar nos cinco lagos das cinco nações. Quase um índio para eles!... Miravam Utakê e já não entendiam. Tinham-lhe dito que todos os seus chefes tinham sido mortos em Katarunk!

E a visão do Conde de Peyrac sobre aquele animal negro e fabuloso enchia-os, visivelmente, de um temor supersticioso.

Continuavam a aglomerar-se, mas mantinham-se em expectativa.

Joffrey de Peyrac desmontou e foi por sua vez postar-se diante de Perrot e Utakê.

O vento fazia voar sua capa, a cabeleira, o peitilho de renda e as fitas presas aos ombros do gibão.

Angélica estreitou a mãozinha de Honorina. Procurou os filhos com os olhos. Viu-os, bem-eretos, um pouco recuados, cada um segurando um grande estandarte bordado de vermelho, azul e dourado, cujas flamas se contorciam ao vento.

Ela não sabia o que representavam os estandartes. Precisaria perguntar-lhes um dia... se vivessem outro dia.

Todo mundo estava tão calmo- que nenhum drama parecia possível.   

— O que vai acontecer? - perguntou Angélica a Macollet a meia voz.

— Bom, por enquanto todos se olham. Avaliam-se! Medem-se! Não esperavam encontrar Utakê vivo. Depois, esses sujeitos têm medo das paliçadas e dos terrenos descobertos. Se, além disso, topam com os brancos reunidos à'"espera deles do lado de fora, não entendem mais nada... Perguntam-se o que fazer!... Olhe, alguns começam a dançar para ganhar coragem. Fazem como o gato, que tenta atenlõrizar o camundongo. Mas, neste momento, quem é cr gato e quem é o camundongo? Ninguém sabe. Atenção! Vão soltar outra vez o grito de guerra. Não se mexa... Não demonstre medo...

O clamor inumano elevou-se de todas aquelas gargantas roucas, de todas aquelas bocas abertas.

A Sra. Jonas" e Elvira apertaram-se contra Angélica, que conteve as crianças assustadas dizendo: - Não temam nada, é só porque eles gritam todos juntos que o barulho é tão grande!

Os garotos esconderam o rosto nas saias dela.

Desta vez houve uma resposta. Ouviram-se duas explosões violentas, uma vindo da ribanceira, não longe do local onde se encontrava a vanguarda do exército iroquês, a outra, da falésia, atrás do forte.

Enormes pedaços de rocha saltaram pelo ar, estatelando-se com um estrondo que os ecos multiplicaram.

Uma onda de pânico ergueu-se sobre os iroqueses, que correram em todas as direçòes.

Vários deles recuaram para os bosques de salgueiros, buscando esconderijo, outros tornaram a embarcar às pressas.

Os mais corajosos tentavam reagrupar-se, assestando as flechas na corda dos arcos. Mas as explosões sucessivas desviavam-lhes a atenção e eles não sabiam em que direção se voltar.

— O que é isso, afinal? - perguntou Utakê, que empalidecera.

— Seus irmãos me saudaram com um grito -- disse Peyrac. - Essa é a minha resposta. Esquece-se de que sou o Homem do Trovão?

E acrescentou, com ironia:

-        O que receia, Utakê? O que receiam todos eles? São apenas pedras caindo.

O chefe mohawk encarou-o.

— Que quer de mim?

— Discutir com você e os seus o preço do sangue.

— Que preço pode ter o sangue de nossos chefes?

— Discutamos e você saberá.

Utakê voltou-se para seus guerreiros e pôs-se a lançar-lhes invectivas. Mas sua voz enfraquecida não se projetava. Perrot tomou-lhe o lugar e, com as mãos em concha, gritou-lhes sonoros insultos, da parte do chefe.

-        Cães! Chacais! Voltem! Mostrem-se! Isso são apenas pedras caindo. Que os Principais avancem. Vamos discutir o preço do sangue...

Os guerreiros acabaram por acalmar-se e pareceram dispostos a aceitar a conversação para resolver o preço do sangue.

Já era uma remissão.

O código da tradição ia permitir aos inimigos que se sentassem sob a aparência de amizade, e opor à impulsividade indígena o fogo cerrado dos argumentos, das propostas e da reflexão.

Os Principais tinham avançado, precedidos do velho Tahuta-guete, de rosto sombrio, medonho, todo esburacado. Mas atrás deles os outros também avançaram, è espraiaram-se como uma maré, cobrindo a colina com seus corpos aglomerados, juntos uns dos outros, sentados ou deitados. Sob o sol, o odor daqueles corpos nus desprendia-se em ondas vigorosas, e centenas de pupilas negras, de olhar enigmático, formavam como que um círculo mágico fechado em torno de Katarunk.

-        Já não há muito recuo - disse Macollet. - Tanto pior!

Sentemo-nos também, senhoras. Aqui estamos em boa posição. Se Perrot me der o sinal, é porque as coisas desandaram e já não resta esperança. Então teremos que andar depressa para nos abrigarmos. E adiante com a saraivada.

— São numerosos... - disse Angélica.

— Ora, não passam de cem. E estão, mal armados e cansados. Isso se vê. Deviam ser bandos que marcaram encontro aqui, depois da campanha de guerra deles. Com todo o nosso arsenal, levaríamos isso facilmente a cabo.

— Meu marido deseja que as coisas se resolvam amistosamente.

— Por que não? Neste pais, senhora, enquanto não se está morto não se pode dizer nunca que a situação não tem esperança. Desta vez não se .pode esquecer que lhes mataram quatro grandes chefes. Mas sempre se pode tentar.

E agitou a mão-na direçãcfde um iroquês, sentado não longe dele, e gritou-lhe alguma coisa, erguendo a meio o gorro de lã vermelha.

— Disse-lhe que não valia a pena vir escalpar-rhe, que isso já foi feito. Ah, ;ah, ah!

— Você tem a coragem de rir! - suspirou a Sra. Jonas, olhando-o admirada.

— É o hábito. Há que rir sempre-, mesmo na estaca de tortura.

Enquanto isso, Utakê, os dois canadenses e o Conde de Peyrac haviam sentado diante dos principais capitães. Os outros homens de Peyrac também se haviam agrupado atrás dele, em atitude calma, quase displicente, mas Angélica, que os vigiava disfarçadamente, notou que permaneciam todos em estado de alerta, cada um incumbido de um papel preciso. E a atenção deles não cedeu um instante^ Por vezes um entrava no forte ou retornava de lá, e tudo o que se fez naquele dia foi feito com segurança tão grande, com disciplina tão perfeita, que Angélica compreendeu que todos os homens trazidos pelo marido, alguns dos quais pareciam a ela pouco interessantes, inútek até, na realidade tinham sido escolhidos com muito cuidado. Se tinham seus defeitos e esquisitices, em caso de perigo revelavam-se astutos como serpentes, cegamente fiéis e de uma coragem a toda prova.

Por intermédio de Nicolau Perrot, o Conde de Peyrac começou lembrando aos guerreiros iroqueses os acordos que fizera com Swanissit antes que este fosse traiçoeiramente assassinado.

Do local onde se encontrava, Angélica acompanhava sem dificuldade a gesticulação, ouvia os rompantes, as exposições em francês que Nicolau Perrot traduzia infatigavelmente para os iroqueses, ou os longos períodos dos selvagens, que ele repetia sem omitir uma palavra, mesmo quando se tratava apenas de um fluxo de insultos e ameaças a Peyrac.

O conde então se levantava, punha-se ereto em sua roupagem cintilante, cravava o olhar de fogo sobre os adversários e acrescentava à força de seu magnetismo pessoal a de sua eloquência.

Lembrava-lhes os avanços que fizera na direção das cinco nações e o valor que Swanissit atribuíra a esses gestos. E na outra noite, com o velho e prudente chefe que durante mais de vinte anos conduzira os seus pelo caminho da guerra, ele tratara de uma paz mútua - os colares de wampum davam testemunho disso -, que se estendia a todos os brancos a serviço de Peyrac, ou aliados dele, em suma, a todos os que invocassem a sua bandeira ou o seu entendimento com o chefe.

Um sinal de reconhecimento devia permitir-lhes passar impunemente pelos povos iroqueses, fosse qual fosse sua nacionalidade - franceses, ingleses, espanhóis ou flamengos, isto é, holandeses.

Em contrapartida, Peyrac e os seus haviam-se comprometido a jamais empunhar armas contra os iroqueses, ainda que fossem solicitados a fazer isso pelos seus compatriotas franceses de Quebec ou pelos abenakis e os algonquinos, com quem também tinham assinado tratados de paz.

O conde acrescentara à promessa, exigência particular do velho chefe, que não comerciaria aguardente com os povos da Casa Comprida nem os impeliria ao comércio de peles de castor, a fim de não .desviá-los da caça ao cervo e das sementeiras.

Como um pai até o último fôlego, o velho seneca procurara preservar seu povo das duas grandes tentações que continham o risco de causar-lhes o fim rápido pela degenerescência e pela fome: a água de fogo e o comércio de peles.

Pois, levados pelos brancos comerciantes a caçar o castor, e só o castor, os iroqueses abandonavam a caça e as plantações, e nos invernos longos ou rudes tribos inteiras pereciam, já que não tinham reunido provisões suficientes. A terceira tentação, a mais aguda para o povo iroquês, era- a,gúerra. Swanissit explicara a Peyrac. E aí novamente o velho chefe tentara afastar o perigo mortal para os seus, impondo-lhes a_ obrigação de viver em paz no mínimo com um branco: o Homem do Trovão e sua tribo.

Reforçando essas promessas e a fim de lembrá-las aos que se sentissem tentados a esquecê-las nos anos vindouros, o Conde de Peyrac se comprometera a oferecer, todo ano, de presente a cada um dos cinco chefes das cinco nações, um fuzil a sílex de cano longo, dois.barris de-pólvora e dois barris de balas de chumbo para a caça, cinco redes-de fibra inglesa para a pesca, dez cobertas de tecido inglês escarlate é cinco trajes de tecido escarlate ou azul, conforme a escolha, quê não desbota ao sol nem à chuva, duzentas e cinquenta facas, duzentos machados, cinco serras para abater as árvores, cinco tonéis de salitre, que é-o pó milagroso para fazer o milho crescer, e mais alguns caldeirões, de tamanho diverso, no melhor metal das"fundições de Iron Mills, de Massa-chusetts.

Esses acordos, tão vantajosos para o povo iroquês, deviam ser ancelados antes mesmo de terem sido postos em prática, ainda que por um ano? Tahutaguete gritou alguma coisa e a voz de Nicolau Perrot repetiu depois dele:

- Foi você, branco, quem traiu seus acordos, antes mesmo de terem tido um começo de aplicação. Pois não vimos seus presentes, mas vimos a morte traiçoeira, o ataque. A guerra entre você e nós foi você que provocou, mal se havia resolvido cessá-la.

Peyrac não se perturbou. Respondeu por Nicolau Perrot que Tahutaguete estava enganado. Os presentes recebidos por Swanissit e seus plenipotenciários estavam ali, ele os veria em breve. Mas antes de mais nada ele pedia a Utakê que relatasse a seus irmãos o ataque e as circunstâncias em que os chefes iroqueses tinham sido mortos.

O mobawk acedeu, contra a vontade.

Perrot, Maupertuis e todos os brancos que conheciam a língua iroquesa acompanharam-lhe atentamente o relato. Em duas ocasiões obrigaram-no a reconhecer que vira com os próprios olhos os homens de Peyrac golpeados de morte pelos atacantes, e que o Barão de Maudreuil e os patsuiketts tinham entrado traiçoeiramente no forte. E que depois a mulher branca, esposa de Tekonderoga, o salvara de Piksarett, que o procurava para liquidá-lo.

Peyrac então afastou os cabelos e, mostrando a ferida ainda sangrenta, lembrou que lhe fora feita por um tacape abenaki.

Foi um desgastante duelo de palavras. Nem mesmo um duelo, antes uma luta, que ele enfrentava auxiliado por intérpretes, mas que travava sozinho. Para os selvagens o assunto já estava encerrado: ele devia morrer. Mas ao verem as marcas dos golpes que lhe tinham sido desferidos, pareceram impressionados.

Fazia muito calor. As conversações duravam já horas. De vez em quando alguém descia para beber ou banhar-se no rio. Angélica lembrou que preparara para qualquer eventualidade, e trazia na bagagem, fatias de pão com toucinho, e distribuiu-as às crianças, para que tivessem paciência.

Estavam todos tão cansados que já não se preocupavam. E de repente houve uma recrudescência dos ânimos e um imperceptível movimento dos espanhóis de Peyrac na direção de suas armas, prontas para atirar.

A efervescência da batalha e da vingança leva tempo a se acalmar no coração de um iroquês. Adivinhava-se que, vindos para matar, os selvagens não pretendiam ver frustrado o seu prazer, pois é uma volúpia sem nome vingar ao cêntuplo a morte de um irmão, tanto mais a de um chefe amado e venerado. Consumidos de pesar ante a ideia de que não poderiam saciar a sede de sangue, eles se agitavam e murmuravam.

Um jovem guerreiro, mais impaciente que os outros, aproximou-se de Florimond e, erguendo-lhe a pesada cabeleira, fez com a faca um gesto em torno da cabeça dele. Foi com dificuldade que Angélica conteve um grito.

Imitando o sangue-frio do pai, Florimond não se moveu. O outro afastou-se, desistindo de assustá-lo. Angélica admirou o filho mais velho. Seu belo perfil moreno se destacava contra o céu azul, e foi com emoção que ela pensou que ele era filho de Jof-frey de Peyrac. E porque um dia," às margens do Garona, sob o céu estrelado da Aquitânia, aquele homem tomara Angélica nos braços e a tornara mulher, hoje a ilustre qualidade de suas virtudes corria nas veias do rapaz. E ela pensou: nosso filho!

Por Florimond ela não chegava realmente a sentir medo, mas achava que Cantor ainda era novo demais para ser exposto assim, embora ele se mantivesse ali arrogantemente, sem se mover, de estandarte em riste. O suor escdrria-lhe pelo rosto redondo, e Angélica teria preferido que ele viesse sentar-se perto dela, com as outras crianças, mas ele jamais lhe perdoaria isso.

Preocupava-se tanlbém com o "seu" ferido, o chefe Utakê. Como é que um homem atingido daquele modo podia aguentar tal sessão de vindita e agitação?

— Não .se inquiete por causa dele - disse Elói Macollet, a quem ela confiaya seu cuidado. - Conheço esses animais. Têm várias vidas, e podendo arengar até perder o fôlego, ele só vai melhorar.

— Não poderia levar-lhe de beber? - pediu Angélica. - Se ele morresse ali, em pleno conselho, não nos ajudaria em nada.

O canadense aquiesceu e foi levar uma cabaça de água ao chefe salvo da matança abenaki. O gesto de consideração e atenção pareceu-lhe muito agradável.

Os murmúrios se haviam acalmado. Os iroqueses digeriam o relato do ataque que lhes fora feito e sua viva imaginação mostrava-lhes todas as peripécias. Às vezes lançavam uma pergunta, depois voltavam a sonhar.

Joffrey de Peyrac levantou-se e iniciou um longo discurso. Interrompia-se com frequência para permitir a Nicolau Perrot, que também se levantara, traduzir-lhe as palavras com solenidade e fazer os mais distantes ouvi-las.

-        Agora, escutem-me todos. Sei que a vingança sagrada os proíbe tocar em alimento antes que seus mortos estejam vingados. Atacaram os patsuiketts do outro lado do rio, matando-os e dispersando-os. Poderiam considerar cumprido seu dever para com seus chefes mortos, pois só os patsuiketts são culpados. Mas também conheço os sentimentos de ódio que lhes animam o coração em relação a mim. Ainda assim, considerando-me ligado a Swanissit mesmo para-além da morte, vou tratá-los como amigos. Recebo-os sem receio, como vêem, não querendo fazer a Swanissit a desfeita de considerar-lhe os filhos como inimigos antes que eles próprios não tenham dado sinal de hostilidade. - Fez uma pausa para que Perrot traduzisse e continuou: - Assim, preparei a acolhida que se deve dar a guerreiros amigos. Eis o que lhes está destinado: primeiro, víveres. Não os tocarão antes que seu coração se tenha apaziguado e que tenham sentido que sua honra está satisfeita. Então se saciarão. Vinte jarros de milho, quatro de carne de alce, dois de urso, bem como abóboras e bagas secas para aromatizar seu sagamite. Isso, para fortalecer o corpo de guerreiros fatigados por uma longa campanha, ao ponto de se deixarem cair na fraqueza da cólera cega ao invés de pensarem no futuro de sua raça.

Alguém se levantou e protestou com mau humor, mas os que o rodeavam fizeram-no calar-se. Sentia-se que estavam todos curiosos por saber que outros presentes havia.

— Machados e facas inglesas para se defenderem, dois barris de pólvora e dois de balas, três mosquetes de mecha e um fuzil a sílex.

— Você também deu um fuzil a Swanissit... - gritou alguém.

— Não lhe será retirado. Ele o levará consigo para o túmulo,, a fim de poder abater sem dificuldade a caça no País das Grandes Caçadas. E por último, algo que poderão usar imediatamente. Não façam sinais de desdém e recusa, guerreiros das cinco nações. É tabaco da Virgínia, e não há nada de desonroso em fumar antes de decidirmos pela paz ou pela guerra, pois o tabaco lhes permitirá agir com sabedoria no reconforto de seu espírito.

Utakê e Tahutaguete consultaram-se, e aquiesceram.

A tentação era forte demais para os iroqueses esgotados, que em certos momentos sentiam a vertigem da alucinação.

Nicolau Perrot, Maupertuis e Pedro José, o mestiço, distribuíram-lhes rolos de fumo seco, junto com alguns cachimbos que eles passaram uns áos outros.

-        Deixo-os por um instante - disse o velho Macollet às senhoras -, preciso ir fazer amizade com toda essa gentalha. Parece que já cheira menos a queimado. E preciso aproveitar.

E foi sentar-se entre os iroqueses, acendeu o cachimbo no de um deles e se pôs a conversar como bom vizinho. Maupertuis, seu filho e o mestiço huroniano desceram até o rio, cumprimentando ruidosamente os que reconheciam, e Angélica estremeceu com a coragem deles ao vê-los sozinhos e desarmados entre os selvagens cheios de hostilidade.

Os iroqueses fumavam""avidamente. Volutas espessas e azuis subiam-lhes dos lábios, e-sent-ià-se que, entregando-se à magia benfazeja do tabaco, seus corações se acalmavam, sua dor e sua irritação mergulhavam" numa breve, letargia.

Assim se passou uma'hora, quase em silêncio, rompido às vezes pelos gritos de abetardas e gansos selvagens à beira do rio.

Angélica sentiu-uma mão no braço. O velho Macollet voltara para junto dela e lhe apontavao sol,-que começava a descer para o horizonte.

Ela então olhou para o marido. Viu-o tossir em dois momentos. Fazia horas que ele falava, e a garganta doente devia fazê-lo sofrer.

Ela desejou com toda a alma estar perto dele, cercando-o com sua ternura, sua devoção apaixonada.

Fazia horas que ele lutava, que os mantinha a distância. Quando, afinal, lhe"seria dada a vitória?... Oh, meu Deus!...

Tahutaguete levantou-se de repente e lançou algumas frases em tom violento.

-        Eis o que declara Tahutaguete, em nome das cinco nações - disse Nicolau Perrot: - "Homemdo Trovão, acredita, então, que é com presentes que ressuscitará nossos chefes bem-amados? Pois nós recebemos presentes e -comida, mas eles não receberam nada além de vergonha e morte".

A essas palavras, uma onda de agitação correu entre os selvagens. Mais uma vez Joffrey de Peyrac os enfrentou. Pareceu reunir forças e falou com um ardor persuasivo, que comunicou a Nicolau Perrot, cuja voz se fazia ouvir forte e firme, alternando com a de Peyrac.

- É o que os engana, guerreiros iroqueses! Seus chefes não receberam apenas a morte e.a vergonha neste lugar, pois fiquem sabendo que, desde que o Vale Sagrado acolheu em seu seio as nações iroquesas, nenhum de seus chefes desceu ao túmulo acompanhado de tantas riquezas e presentes e honras quanto estes... Pensem: "Eles morreram longe de suas aldeias e sequer poderemos envolver-lhes os corpos em panos e peles, não poderemos dar-lhes caldeirões nem armas para o País das Grandes Caçadas!... Pois bem, olhem!

A um gesto solene de Peyrac, os espanhóis em armas, que se tinham mantido cerradamente agrupados na frente do forte, à esquerda, afastaram-se e desvendaram o que o conde quisera ocultar até então ao exército iroquês.

Chegara o momento. Aos pés do grande bordo vermelho, Swa-nissit, Onasategan, Anhisera e Ganatuha estavam sentados de pernas cruzadas, de armas entre os braços, a cabeça ereta e os olhos fechados.

Magníficos cocares de penas e penachos dissimulavam a chaga infamante dos crânios escalpelados, e uma mão hábil adornara a pele fria e pálida dos rostos mortos com uma tatuagem de festa, ocre e vermelha. Fora obra, mais uma vez, dos dois exploradores canadenses, que se haviam inclinado sobre aquelas faces iroquesas, evocando suas próprias recordações, que agora se entremeavam de tal maneira que nunca mais se saberia muito bem o que havia de indígena e de europeu em seus corações.

Piedosamente o cedo grosso de Maupertuis sublinhara de vermelho as maçãs do rosto de Swanissit, enquanto Nicolau Perrot traçara na face de Aahisera um longo risco amarelo, evocando seu primeiro ferimento de jovem guerreiro.

Depois haviam-nos vestido com suntuosos mantos de pele ou seda adamascada que o Conde de Peyrac trouxera em seus baús, e por trás de cada um haviam fincado uma estaca que lhes sustentava as costas e o pescoço, permitindo-lhes manterem-se sentados, eretos, de face para seu povo, e as estacas estavam enfeitadas com fitas e plumas que esvoaçavam ao vento.

Ante a visão, um gemido surdo e geral percorreu as hostes iro-quesas. Longe de seu vale, eni terra inimiga, contemplavam os chefes mortos, e viam-nos vestidos è honrados de modo que ultrapassava tudo o que poderiam-ter recebido dos seus numa morte de guerra.

Levantaram-se e avançaram.

-        Fale com eles - disse Peyrac pousando uma mão imperiosa sobre o ombro de Nicolau Perrot. - Fale com eles, depressa!... Diga qualquer coi§a! Mostre-lhes.os presentes dos mortos!        

E logo, com a mesma voz calma mas firme, e que se lhes impunha porque era familiar, o"canadense começou a falar-lhes, com modos de mercador de bãzarr

Retinha-lhes a atenção, desviava-lhes os pensamentos da horrível realidade ali sob seus olhos, distraía-lhes a dor com habilidades de saltimbanco. Mostfâva-lhes os quatro arcos de prata com as flechas multicoloridas incrustadas de conchas nas aljavas de couro bordadas com mil pérolas, as mantas vermelhas, os rolos de tabaco, as peles de arminho, urso-branco, lince e lobo, que iam ser atiradas na cova e servir de leito aos mortos. Enumerou-lhes os jarros de milho e de arroz, gordura e carne, um para cada chefe morto, a fim de poderem comer durante a longa viagem até atingirem o Paraíso das Grandes Caçadas. Explicou-lhes o significado simbólico dos quatro objetos estranhos e desconhecidos, espécie de flores amarelas, que estavam ali para enxugar-lhes as lágrimas, pois aqueles objetos enormes e leves, chamados esponjas e que vinham de ilhas muito distantes, tinham a propriedade de estancar a água.

E Perrot fez a demonstração numa cabaça.

-        Assim como a água pura desapareceu de repente em contato com a esponja, suas lágrimas de vergonha e desespero também serão estancadas - afirmou.

Descreveu-lhes a mensagem dos dois magníficos wampums, enquanto as lágrimas dos iroqueses escorriam pelos rostos lisos e as esponjas úmidas passavam de mão em mão, apagando dos rostos coloridos as pinturas de guerra.

Para os europeus recém-chegados foi um espetaculo estupefaciente o dos selvagens chorando e enxugando os olhos com esponjas, um espetaculo grotesco, emocionante, trágico, que dava vontade de rir e chorar também. Nicolau mostrou o célebre colar da fidelidade dos abenakis, um tesouro sem preço, antigo e venerável, que representava um sol levante, azul em fundo azul, e uma procissão de peixes e lobos-marinhos de mãos dadas - ou nadadeiras, segundo a interpretação pessoal -, dois colares dentre os mais belos do tesouro de Tekonderoga e que Swanissit poderia apresentar ao Grande Espírito como reparação pela traição de que fora vítima por parte dos abenakis.

Por último, arriscando-se mais, detalhou o magnífico traje de Swanissit, todo em passamanaria de prata e fio de ouro, o mesmo traje que Hiawatha,, o grande fundador da liga iroquesa, anunciara que deveria ser usado por aquele que consagraria sua obra, preservando os iroqueses da guerra contínua e os mantendo em paz, uma paz de colheitas e caçadas abundantes.

Os guerreiros comprimiam-se para ver e tocar os esplêndidos presentes dos mortos. Acotovelavam-se e excitavam-se. Estavam perigosamente próximos. E se a maioria testemunhava uma admiração, sincera, outros deixavam transparecer cobiça. Davam olhadas na direção do forte e discutiam entre si.

Angélica sentiu a mudança de atmosfera. Atingia-se um ponto de oscilação em que a partida seria ganha ou perdida.

Notou que os homens de Peyrac que se encontravam mais para trás, empunhando estandartes, começavam a se afastar sorrateiramente e a se fundir com a penumbra. Outros, aproveitando a escuridão, tinham levado os cavalos para a floresta, e Yann veio até Angélica cochichar-lhe que ela, as outras senhoras e as crianças deviam descer em silêncio até o rio, sem chamar muita atenção para os seus movimentos.

Os espanhóis cobriam a retirada silenciosa, depois de carregar e preparar as armas sem que ninguém tivesse ouvido o menor estalido.

- Confio-lhes Honorina. Desçam com Yann - disse Angélica aos Jonas. - Daqui a pouco irei ao seu encontro.

Nada a convenceria a deixar o local enquanto não visse o marido fora de perigo.

Ela percebeu que alguns iroqueses se insinuavam para a frente e espiavam pela porta o interior -do forte.

A escuridão se "adensava, azulada, mas uma grande mancha vermelha a oeste continuava a projetár sobre" a cena clarões acobreados.

Angélica aproximou-se do grupo formado por Joffrey de Pey-rac, Nicolau Perrot, Maupertuis e o fjlho, Elói Macollet, e mais alguns homens do Gouldsboro, como Malaprade e o maltês Henrique Enzi, postados como guarda-costas atrás do patrão.

Utakê estava no meio,, em pé e apoiado ao ombro de Pedro José Maupertuis, mas agora estavam todos rodeados de iroqueses, que se atreviam cada vez mais a vir olhar o forte mais de perto.

Não era a Jofrey de Peyrac que Angélica olhava, mas a Utakê. Fixava-o com tal intensidade que pouco a pouco, como que atraído, o mokawk.virou ligeiramente a cabeça e seus olhos impávidos e opacos cruzaram o olhar da .jovem mulher branca.

"Dei-lhe a vida na outra rfoite, perto da nascente", gritava-lhe aquele olhar,, "salveúo, ferido, das mãos de Piksarett, que queria seu escalpo... Agora, salve-o, salve-o, você, que pode fazê-lo, eu o conjuro!"

Era ao mesmo tempo uma ordem e iima súplica, e uma onda de sentimentos indefiníveis passou pelo rosto amarelo de mohawk.

Um grupo de guerreiros aproximara-se de Peyrac e lhe falava em tom insolente.

-        E a água de fogo, o precioso licor dos brancos, onde está? Vemos que a recusou a nossos chefes...

O que se fizera porta-voz dos outros zombava, balançando indolentemente o .tacape.

-        A aguardente e o rum estão no forte - respondeu o conde. - Estão reunidos numa única partida, reservada como homenagem ao Grande Espírito, não é para vocês.

O outro soltou uma exclamação irónica e atirou uma palavra em tom de raiva e triunfo.

Nicolau Perrot conteve uma careta, mas traduziu numa voz inalterada.

-        Vamos pegá-la nós mesmos, diz ele, sem lhe pedir permissão, Tekonderoga, aliado dos traidores que mataram nossos chefes.

Ante a declaração de má fé, Peyrac deu um passo na direção do selvagem até quase tocá-lo e o encarou duramente.

-        Como se chama, você que ousa disputar ao Grande Espírito o que lhe é oferecido como homenagem?

O índio pulou para trás e ergueu o tacape. Mas num movimento ágil Peyrac se esquivou ao golpe, que lhe silvou por sobre a cabeça, e, reerguendo-se, brandiu a pistola, que segurava pelo cano, e atingiu a têmpora do adversário com a coronha.

O índio recuou, vacilando, e foi cair entre os companheiros.

O grito de Angélica perdeu-se no clamor dos iroqueses.

Mas um grito mais imperioso dominou o tumulto. Foi Utakê quem o soltou.

De braço erguido, plantou-se na frente de Peyrac, protegendo-o com o corpo. Refez-se o silêncio. As armas baixaram. Utakê fez sinal a um jovem guerreiro para vir ajudá-lo a se manter em pé. Depois se voltou para Peyrac e lhe falou a meia voz, em francês:

-        Não quero sua morte, Tekonderoga. O espírito de justiça deseja que eu lhe conceda a vida, pois é verdade que, se a vingança é uma das leis de nossos povos, a do reconhecimento a prece de, e eu seria desleal se esquecesse que sua mulher, Kawa, a Estrela Fixa, salvou-me a vida duas vezes... sim, duas vezes... Mas meus guerreiros aceitarão deixá-lo viver e retirar-se sem combater? Não posso garantir! Ainda assim, vou tentar convencê-los... Se eu fracassar, você levará em conta que tentei...

Nos instantes mais difíceis, há sempre pensamentos incongruentes que nos vêm ao espírito. Angélica lembraria mais tarde que o que mais lhe chamara a atenção naquele exato momento foi que o mobawk, à moda dos canadenses, exploradores ou senhores que ele frequentara na juventude, utilizava um francês muito correto, e não havia nada de mais surpreendente do que essa linguagem elaborada em seus lábios bárbaros.

-        Nosso coração não está disposto a esquecer as afrontas - continuou ele. - Pedir que o poupem vai macular o meu poder.

-        Não lhes peço que esqueçam - disse Peyrac.

Angélica não podia mais. Sabia agora que nem a intervenção de Utakê salvaria coisa alguma. Só pensava numa coisa: lançar-se para dentro do forte, fechar as portas e empunhar os mosquetes. Já bastava! Ela não podia suportar mais ver Peyrac exposto assim, e a cada instante em risco de perder a vida...

Mas ele não parecia ter pressa de deixar o local, nem dava a impressão de estar tocado pela fadiga e anensão do dia.

- Não quero que esqueçam - repetiu, mais alto. - E vou até providenciar para que jamais esqueçam do que aconteceu em Katarunk. Todos vocês estão perguntando no íntimo: "Se pouparmos esses brancos, quem apagará a vergonha que a reputação dos iroqueses sofreu neste lugar"? E eu lhes respondo: eu!

"Perrot, traduza, por favor..."

"Todos acreditam quê as conversações estão encerradas. Não estão! Está tudo começando. Ainda não viram nem ouviram nada, povo iroques! É agora que vou falar. Escutem bem! Quero que minhas palavra? é-meus atps se cravem como flechas em seus corações, pois só depois disso poderão afastar-se sem amargor, com o coração leve. Não é verdade, meus irmãos, que o coração do homem branco e o do índio não possam experimentar os mesmos sentimentos. Pois assim como o seu, o meu enche-se de horror ao contemplar este forte de Katarunk. Como vocês, não posso deixar de pensar que este lugar conheceu o mais covarde atentado, a mais repugnante traição que vi. cometer em minha vida, que já é longa!... Como vocês, acredito que os locais de traição carregam em si, para sempre, uma nódoa indelével, e que a visão deles perpetua a recordação, mesmo quando o espírito dos homens justos deseja apagá-la... Ora, os que vierem a este forte em tempos futuros dirão: 'Foi aqui que Swanissit foi escalpelado, sob o teto do anfitrião que o recebia, o homem branco, Tekondero-ga, o Homem do Trovão'?... Não!... Não! Eu não suportarei isso", exclamou T> Conde de Peyrac, com uma violência e uma cólera que os impressionaram e que, naquele instante, Angélica sentiu, não eram fingidas. "Não, não suportarei. É melhor que se apague tudo... que se apague tudo!"

E, ao gritar estas últimas palavras, tossiu.

Nicolau Perrot repetia-lhe lentamente as palavras, com uma espécie de exaltação: "É melhor que tudo se apague... Que tudo se apague!" E agora, na noite, sentiam-se todos os olhos fitos naquelas duas silhuetas, a do explorador e a do Conde de Peyrac, em seu traje cor de tempestade, ambos iluminados por uma vaga claridade do poente.

-        Eu sei - continuou o conde. - Alguns de vocês pensam:

"Nesse forte há belas mercadorias'^ Gostariam de satisfazer ao mesmo tempo a cobiça e o desejo de vingança! Que esses chacais parem dé rosnar e farejar e que se afastem com o rabo entre as pernas! Pois sou eu quem lhes diz: doravante tudo o que está nesse forte pertence aos manes de seus ancestrais. Só assim eles ficarão satisfeitos! - Perrot traduzia. - Vocês já receberam seus presentes. São de valor. E quando tiverem que carregá-los às costas, perceberão que são de peso. Mas o que há no forte de Katarunk vocês não têm o direito de tomar, assim como eu não tenho o direito de usar. Tudo doei aos manes de seus chefes mortos, como compensação pela traição de que foram vítimas.

O conde fez uma pausa antes de prosseguir.

-        Escutem-me bem e lembrem-se de minhas palavras! Neste forte há víveres para vários meses, talvez anos, carne de cervo, de alce e de urso, bacalhau seco e salgado, sal marinho, dez barricas de óleo de girassol, de baleia e de lobo-marinho. Açúcar de bordo e açúcar de ilhas longínquas. Rum e vinhos para os brancos e os chefes índios. Vinte sacos de farinha de trigo e de milho. Duzentas tranças de fumo da Virgínia. Cem tranças de fumo do Méximo. Cinquenta fardos de tecido de algodão holandês. Dez fardos de seda da China e do Oriente. Casacos de lã e algodão do Egito, tapetes, fuzis, balas, pólvora. Quinze armadilhas de lobo, urso, raposa e lince. Agulhas, tesouras... Peles. Tudo isso não lhes pertence e não me pertence mais.

"Tudo isso pertence aos seus chefes mortos.

"Vocês, que diziam: 'Eles não têm nada, senão vergonha', eis o que eles possuem. Tudo. Exceto os barris de aguardente e de vinho, que eu sei que Swanissit não quereria e que estão reservados para o Grande Espírito, o único que pode purificá-los de seu poder nocivo.

"E agora, afastem-se! Utakê, ordena a seus guerreiros que recuem até o rio a fim de evitar que sejam feridos ou mortos.

"Vou explodir o trovão!"

Um silêncio estupefato reinou após essas palavras. Depois, lentamente, a massa de selvagens começou a refluir para a base da encosta, até as margens do rio.

Ao medo supersticioso mesclava-se uma ávida curiosidade. Aonde queria chegar aquele branco de língua hábil e que pretendia vingá-los melhor do que as armas-deles?

O Conde de Peyrac deu mais algumas^ordens a seus homens que se encontravam a seu lado. Depois, vendo Angélica, enlaçou-a pela cintura e levou-a consigo.'

- Venha, depressa! Não devemos ficar aqui. Maupertuis, verifique que todos os nossos estejam lá embaixo, na ribanceira, e que não haja mais ninguém dentro do forte!

A beira do rio, onde-começava a levantar-se o nevoeiro noturno, viram-se misturados com os iroqueses. Angélica sentiu que Peyrac a estreitava com força antes de soltá-la para, tranquilamente, pegar numa bolsa de couro que lhe pendia do cinto um isqueiro. Os índios atotovelávam-se em torno deles como crianças num espetáculo.'Todos queriam ver Peyrac é saber o que ele fazia.

Angélica procurou com os olhos Honorina, os Jonas e os filhos. Já não se via nada, mas Maupertuis veio dizer-lhes que todo mundo estava ali, reunido perto de um bosquezinho, sob a proteção dos espanhóis armados.

Yann Le Couénnec desceu a colina desenrolando uma mecha de cânhamo. Aproveitando-se da escuridão, os homens de Peyrac retornaram ao forte e apressadamente colocaram na cova já aberta os quatro chefes iroqueses, jogaram ali de qualquer jeito os presentes e fecharam o túmulo com grande pazadas.

Concluíam a tarefa quando se alteou o som rouco de uma trompa. Eles se afastaram e desceram correndo até os bosques perto do rio, onde-as mulheres e crianças estavam reunidas.

Ouviu-se a trompa uma segunda vez.

Então o Conde de Peyrac pegou o isqueiro, bateu a fagulha e, inclinando-se, acendeu a ponta da mecha de cânhamo que o bretão trouxera até ele.      

A chama ergueu-se, ligeira e viva, correu para o topo, insinuando-se por entre cepos, ervas e seixos, como uma serpente fugaz e dourada.

Atingiu a porta do forte e sumiu de vista.

Depois, de repente, uma explosão enorme iluminou o céu.

Num instante o forte se pôs a arder com chamas enormes, avivadas pelo vento. A madeira das construções e da paliçada fora impregnada de óleo e rum, e salpicada com salitre. Estalava furiosamente.

Na atmosfera árida e seca daquele fim de verão, imediatamente surgiu um braseiro estrepitoso e devorador. Os espectadores recuaram na praia, atingidos pelo bafio ardente do incêndio.

Subitamente saídos do escuro,, naquela claridade avermelhada, todos os rostos levantados traíam ao mesmo tempo admiração e terror, pasmo e alegria, essa mescla de sentimentos complexos que inspiram ao homem as manifestações das forças naturais desencadeadas em seu esplendor e força indomável.

Ao cabo de um longo momento, uma voz se ergueu da multidão arquejante, a do velho Tahutaguete, que fazia uma pergunta.

— Ele gostaria de saber - disse Utakê - se você tinha peles de castor no seu forte.

— Sim! Sim, tinha! - exclamou o irlandês 0'Connell, arrancando os cabelos. - Trinta pacotes! No mínimo dez mil libras de peles de castor no sótão. Ah, Sr. de Peyrac, se me tivesse dito o que pretendia fazer, se eu tivesse sabido!... Meus castores!... Meus castores!...

Havia tal desespero em sua voz, tanta comicidade na expressão de sua angústia, que os iroqueses caíram na risada.

Finalmente um branco que soltava um grito do coração! Um branco que se assemelhava aos outros... Um autêntico filho daquela raça de mercadores. Reconhecia-se o terreno onde se pisava...

-        E esta pele? - disse-lhe Peyrac, beliscando-lhe as gordas bochechas trémulas de pesar. - Em quanto a avalia? Dez mil? Vinte mil libras? E este escalpo que lhe deixaram? - continuou, agarrando a cabeleira vermelha do pobre comerciante. - Quanto? Trinta mil libras?...

Os guerreiros riram ainda mais. Seguravam a barriga e arremedavam o irlandês, apontando-o com o dedo.

As gargalhadas assustadoras eram como que um eco para o ruído das chamas.

-        Você ri conosco, Swanissit - exclamou de súbito Utakê, erguendo o rosto para o topo esbraseado da encosta -, ri com seus guerreiros? Está consolado com as riquezas e os presentes que eles lhes deixam?

E como que em resposta extravagante ao apelo, uma girândola branco-azulada jorrou do penacho, vermelho das chamas e subiu muito no céu negro, para cair, depois.de algumas explosões, numa chuva prateada.

Mal se ouviram os gritos de surpresa e espanto quando outra longa serpente vermelha se desenrolou-no escuro e rebentou em estrelas, cujas extremidades, por sua vez, explodiram em coroas de rubis que lentamente se desfizeram, liquefazendo-se e correndo como sangue contra a véu escuro da noite.

Houve índios que caíram de joelhos. Outros, recuando, caíram no rio.

Agora as girândolas e-ps rastros luminosos não paravam de se lançar em todas-as direções, numa saraivada que dominava até os estalidos das últimas paredes consumindo-se. Era uma profusão de verde, azul, vermelho e dourado, que caía em flores, lianas, cúpulas, longas serpentinas entrecruzadas que se perseguiam na escuridão, formavam desenhos bizarros, formas de animais, que se apagavam e desapareciam no momento em que pareciam prestes a dar o bote...

Num momento de calmam, Angélica ouviu os gritos de alegria das crianças. Com a fascinação, o medo sumira. O ódio também, e o receio, a suspeita...

E Florimond, o fogueteiro que preparara os fogos, tomava para si as aclamações. Ela ouviu-o dizer: - Hein!... O que acha dos meus talentos?... Isto é digno de Versalhes!

Pouco faltou para que o Capitão Alvarez e seus homens esquecessem a ordem severa de se manterem alertas,- com um dedo no gatilho.

Mas já não havia o que temer. Os ferozes iroqueses, de cabeça levantada, estavam fascinados como crianças..O encantamento habitava-lhes o coração. A embriaguez daquelas visões fazia-os, como os sonhos, esquecer a realidade de seus corpos e as razões pelas quais estavam ali, à beira do Kennebec. Uma imensa lagarta de esmeralda tombava ondulando na direção deles. Uma borboleta de fogo alçava vôo nas trevas. Uma gigantesca abóbora resplandecente rebentava...

Quando os últimos foguetes espalharam na noite seus pós luminosos, o forte de Katarunk havia desaparecido. Suas paredes haviam desabado em nuvens de fagulhas, e o local onde ele se erguera já não era mais que uma imensa chaga luminosa, que lentamente escurecia.

CAPÍTULO XXXII

Visão profética do grande chefe iroquês

Neste momento a lua se ergueu. Era uma lua tardia, de meio da noite. E sua luz-secena, misturando-se à claridade cambiante do braseiro qué se apagava, fez reinar sobre a cena uma surpreendente luminosidade. Eles esperaram. Naquele claro-escuro, os guerreiros seminus despertavam de um sonho inacreditável.

No silêncio, o murmúrio do rio, aos pés deles, engrossava.

Lentamente Utakê voltou a si. Seu olhar dissimulado entre as longas pálpebras estreitas cravou-se no casal de brancos a sua frente e pareceu vê-los com olhos novos. Eram um homem e uma mulher apoiados um no outro e-que esperavam dele um veredicto de vida ou morte.

Então seu coração se dilatou sob o impulso das encarnações poéticas e ardorosas que com frequência o dominavam, e ele se dirigiu em surdina ao homem parado à sua frente e que o subjugara.

- É você o Ancestral anunciado pelo Pássaro, que devia retornar sob a forma de um homem de pele branca?... Não sei... Ainda não sei quem você é realmente... Mas nunca esquecerei o que vi em Katarunk... Nunca esquecerei... Fale, você - disse, em voz alta, dirigindo-se a Nicolau Perrot. - Repita para meus guerreiros o que vou dizer-lhe. Não sei quem você é, Tekonderoga, mas nunca esquecerei o que vi em Katarunk.

Nicolau repetiu, e os guerreiros responderam com um longo brado em uníssono, cujo eco repercutiu no vale noturno:

— Nunca esqueceremos...

— Também vi que você não é um francês como os outros, Te-konderoga - continuou Utakê numa voz que ganhava firmeza e. se tornava mais clara. - Vejo que não é um francês de Que-bec, nem do rei da França. E realmente só e só fala em seu nome. Realmente lhe importa pouco perder todas aquelas peles?

— Importa-me, mas, mais do que o castor, importa-me ter perdido instrumentos que me permitiam descobrir os segredos da natureza, ver coisas invisíveis. Antes deste sacrifício eu podia conversar com as estrelas. Agora serão Swanissit e seus capitães mortos que se servirão desses instrumentos e conhecerão o segredo das estrelas.

— Que sejam felizes! - murmurou o iroquês.

— Quanto a vocês, sabem onde está a tumba deles. Diante do forte, junto às cinzas. Ninguém construirá mais nesse local e poderão retornar sem vergonha nem dor para lavar-lhes as ossadas memoráveis.

— E você, o que vai fazer, Tekonderoga? Não tem mais nada além dos cavalos e dessas roupas. Tem a floresta à sua volta, e a noite e o frio do inverno próximo.

— Isso não tem importância, pois minha honra está salva e paguei o preço do sangue.

— Vai retornar para o oceano?

— Não. A estação está avançada demais, e a viagem comportaria muitos riscos. Vou para as montanhas, ao encontro de quatro dos meus que têm uma cabana lá. Posso dizer-lhes que você conserva sua aliança conosco?

— Sim, pode. Quando o Conselho das Mães e os Anciãos tiverem aprovado minha decisão, eu lhe enviarei um colar de porcelana. Tekonderoga, você pensa de fato que pode vencer todos os seus inimigos?

— O resultado de um combate está nas mãos do Grande Espírito. No entanto estou decidido a lutar e a triunfar.

— Sua coragem, sua astúcia e seu conhecimento são grandes, e prevejo sua vitória. Mas tome cuidado, Tekonderoga, pois seus inimigos continuam sendo numerosos, e o mais terrível deles seus mosquetes não poderão abater. Digo-lhe que é, irmão: Etskon Honsi, o Casaco Negro. Ele fala por seu Deus, fala por seu rei.

É invencível. Inúmeras vezes tentamos matá-lo, mas ele sobreviveu sempre, pois não pode morrer, entende? E ele quer afastá-lo de seu caminho e o perseguirá sem trégua, pois você está do outro lado de sua vida. Você pertence ao mundo terrestre, enquanto ele pertence ao mundo dos espíritos invisíveis e até o cheiro da terra lhe é insuportável... -^ ò chefe guerreiro continuou: - Temo por você, agora que é meu amigo. Sei que ele quer a sua perda. Eu soube, eu vi, inúmeras vezes, em sonhos, vi brilhar seu olho azul. E eu tremia, eu, grande guerreiro, pois não conheço no mundo nada de mais temível do que. aquele olho. Quando me olhava assim outrora, quando eu estava entre os franceses, eu sentia que a alma e o espírito me escapavam... Tome cuidado, Tekonderoga - repetiu em tom insistente -, e fique atento, você possui um tesouro, você que não tem mais nada, e ele gostaria de arrancar-lhe esse último tesouro, principalmente esse.

Apontou Angélica."

- O ódio -de Etskón Honsi -já está sobre ela. Ele vai querer separá-la de você. Com todo o poder do raio, você poderá defender se de seus poderes? É muito poderoso, você sabe, e não se pode matá-lo.

De repente Utakê parecia extremamente inquieto.

E foi nesse instante, talvez, que o coração de Angélica se abriu para o amor aos índios.

Para além do medo, da repugnância que podiam inspirar aqueles seres selvagens, era um sentimento que se originava de tudo o que havia nela de amistoso para com os outros, de fraterno, de maternal.

Via-os nus agora, ingénuos, desarmados, com flechas nas mãos contra mosquetes assassinos e, diante do poder místico dos jesuítas, sem outras defesas além de grosseiras magias. A piedade e a estima insinuaram-se em seu coração.

A voz entrecortada do iroquês, que depois de tantas palavras de ódio lhes prodigalizava conselhos agora, revelava-lhe de súbito o aspecto humano daquelas raças cruéis.

Com a versatilidade cheia de ardor dos seres primitivos, ei-los que se preocupavam ardentemente com aqueles a quem algumas horas antes desejavam massacrar, e como agora eram seus amigos, sentiam por eles uma preocupação ainda maior do que com o próprio destino.

Joffrey de Peyrac aproximou-se de Utakê e falou-lhe, em tom confiante:

— Vou dizer-lhe uma coisa que você pode compreender. Meus génios particulares são de tal espécie que não temem os malefícios do homem vermelho nem os do homem branco. E, apesar de seus poderes, Etskon.Honsi continua sendo um homem branco. Como eu...

— É verdade - constatou o mohawk, que pareceu repentinamente tranquilizado -, você é branco, pode adivinhá-lo, enquanto nós, nossa cabeça às vezes se desorienta. Bom, eu entendo. Você saberá neutralizá-lo, assim como soube nos dissuadir quando quisemos sua morte. Muito bem! Continue forte, Tekonderoga. Também nós necessitamos de sua força. E agora, vá para onde lhe parecer melhor. Por mais longe que ande, você e os seus, se toparem com o guerreiro das cinco nações, ele entoará para vocês o canto da paz. Falei! Adeus.

CAPÍTULO XXXIlI

"Senhor, disponha dos dias de nossa vida"

O vento da noite passava por sobre as cinzas e agora estava tudo escura e silencioso. Joffrey de Peyrac andava a passos lentos ao longo da praia. Estava sozinho e, de tempos em tempos, parava para olhar pensativamente para o altb da encosta, para o ponto onde,, algumas horas antes, erguia-se o forte de Katarunk.

Angélica, um pouco afastada, adivinhava-lhe a sombra, via-a imobilizar-se, depois retomar a caminhada meditativa.

Também ela retornára-àqueje local, irresistivelmente atraída.

Na caverna para onde, na véspera, o conde mandara levar cobertas e alguns víveres, as crianças acabavam de adormecer junto a uma fogueira. A maioria dos adultos, exaustos, imitava-as. Angélica se distanciara. Andara silenciosamente na noite e, pela primeira vez, já não tinha medo. Os maus espíritos pareciam ter desaparecido. Um vento de tempestade e tragédia naquele dia os havia dispersado e arrastado para longe.

Ela agora caminhava por uma floresta amistosa, e todos os sons que lhe chegavam aos ouvidos adquiriam outro significado. Não eram mais que o eco de um mundo vivo, renascendo sob os galhos, um pequeno mundo animal preparando-se para o inverno, ocupando-se das últimas tarefas, cantando as últimas canções - nada além disso. O último perfume dos musgos, as últimas raspadelas dos esquilos enterrando avelãs e, bem longe, para além das ravinas, como uma melancólica trompa, um chamado original.

Angélica cessara de ter medo. Com seu gesto, Joffrey de Peyrac libertara-a da angústia.

Um gesto louco, mas o único a executar: queimar Katarunk. E ele era o único a poder ousar e executar. A ideia devia ter-lhe ocorrido quando dissera: "Minha casa foi conspurcada por um crime inexpiável"!

Então soubera o que devia fazer. E acalmara-se. Agora não lhes aconteceria mais nada de mau que procedesse da terra da América. O holocausto fora oferecido e aceito pelo céu.

De início Angélica tivera uma sensação imprecisa, depois uma forte revelação a tocara. E caminhava sob as árvores com o coração leve, pois sentia que os ritos tinham sido efetuados e isso lhe satisfazia a alma, impregnada de cristianismo.

Não era apenas para a vida deles, salva, que era bom que se tivesse realizado aquele sacrifício, mas também para a sua felicidade. E voltavam-lhe à memória palavras que com tanta frequência murmurara maquinalmente no convento, durante a missa: Hanc igitur oblationem...

"Eis a oferenda que lhe apresentamos, Senhor, nós, seus servidores, e conosco toda a nossa família. Aceite-a, Senhor, de bom grado. Disponha, agora, na sua paz, dos dias de nossa vida"...

A terra da América já não lhes seria hostil. O sacrifício de Joffrey de Peyrac tocara-lhe o coração desconfiado. Os iroqueses nunca esqueceriam. Mas, para além disso, Angélica contemplava o total despojamento em que se encontravam ele e ela, e de seu coração alçava-se a prece serena: "Disponha, agora, na sua paz, Senhor, dos dias de nossa vida..."

Tudo ardera! O que poderiam tomar-lhes doravante? Só lhes restava um tesouro maravilhoso e secreto: seu amor. Sem dúvida fora isso que o destino desejara ao devolver um ao outro, pois era preciso que ambos lhe conhecessem o preço para não subestimá-lo. Amor puro de um homem por uma mulher e de uma mulher por um homem, duas chamas numa só, ardendo na solidão árida, no deserto gelado, dois corações ardendo na noite do mundo, como nos primeiros tempos...

E agora ela olhava de longe a sombra de Joffrey de Peyrac, que caminhava pela praia com um passo de meditação.

O local conservava o odor do incêndio e, apesar do frio, o da multidão que chapinhara longamente ali, e agora estava tudo tão calmo que Angélica se sentia invadida de bem-estar.

De longe contemplava o homem sozinho que parava e levantava a cabeça para o alto da colina onde o vento reavivava por instantes um clarão vermelho.

Depois caminhou na direção dele, sem pressa, certa de achá-lo na noite e de reencontrá-lo. A alguns passos dele, parou de novo.

Ele a avistou, forma de mulher desenhada na sombra azul com a mancha clara de seu rosto, e, depois de observá-la por um instante, foi até ela. As mãos de Joffrey de Peyraç tocaram os ombros de Angélica e ela se aproximou dele como se teria aproximado de uma fonte de calor, pousando-lhe as mãos no peito, depois deslizando-as à volta dele, enquanto ele estreitava o abraço e a puxava para si, juntando em torno dela às abas de sua capa para cobri-la, e atraindo-a, atraindo-a para mais perto ainda, até ficarem estreitamente entrelaçados, apertados um contra o outro, sem desejo, sem outro desejo que esse sentimento animal de querer estar junto, como os animais que adormecem pousando um a cabeça sobre o pescoço do outro a fim de se comunicarem o reconforto de sua tepidez e de sua presença.

Joffrey e Peyrac quase falou. Mas calou-se. O que poderia dizer, pensava, que não fosse terrivelmente banal? Você teve medo? Quer-me mal por haver queimado essa casa que já considerava como sua? E por havê-la condenado a incontáveis dificuldades?

Coisas banais, que ele teria dito a qualquer mulher. Mas àquela, àquela que fremia contra ele seria ofendê-la falar-lhe assim. Ela estava muito além de tudo aquilo. Estava muito além de tudo o que ele imaginara a seu respeito.

E roçava a sua contra a delicada face dela, como para certificar-se da presença daquela coisa viva, tépida e suave, que estava ali, em seus braços, e que era sua mulher.

Também ela estivera a ponto de falar e dizer-lhe as palavras que lhe enchiam o coração: "Como o admirei hoje, meu amor! Salvou a todos nós com a sua coragem} Foi extraordinário"...

Mas todas essas palavras eram pobres e não exprimiam absolutamente o que ela queria dizer. Só tinha vontade de confiar-lhe o que acabara de descobrir: que o sacrifício fora realizado, que os deuses estavam satisfeitos... "Não há ninguém além de nós dois sobre a terra, meu amor, só nós dois, pobres e sozinhos... Estou feliz"...

Mas isso ele sabia tão bem como ela. Portanto, mantinham-se calados. E abraçavam-se cada vez mais forte, em silêncio, deliciados.

E às vezes ela atirava a cabeça para trás, para procurar a luz dos olhos dele, como.duas estrelas acima dela, e adivinhava que ele lhe sorria.

CAPÍTULO XXXIV

Para o coração das montanhas

Para o norte, há um lugar onde as águas paradas formam um imenso deserto prateado/Florestas mortas, de raízes afogadas, erguem para o céu cor-de pérola candelabros agudos, de um branco ósseo. Uma leve nuvem de mosquitos obscurece as margens incertas. A terra é móvel e traiçoeira.

É a região do lago Mégantic.

Quando os militares franceses chegaram ali, alguns dias depois de terem deixado_ Katarunk, o outono lhes pareceu muito mais avançado do que na outra vertente. No ar gelado que se respirava e na rude desolação daquelas paragens, reencontrava-se a atmosfera do Canadá. Os soldados, os huronianos e os algonquinos sentiram isso e concluíram entre si que daquele lado se sentiam bem "em casa".

Era o tempo de recolocar as canoas na água, atravessar o lago, e reencontrariam o bom rio Chaudiere, que os levaria sem dificuldade até o Saint-Laurent. Sua embocadura abria-se diante de Quebec.

Durante as últimas léguas desfilariam por entre as aldeias com maciças casas de pedra plantadas na margem, enquanto do alto das encostas os camponeses, ocupados em-colher um trigo tardio ou maçãs, agitariam os gorros para saudar a expedição guerreira de retorno. O campanário branco e pontudo de Levis apareceria na curva do rio e de repente estariam em Quebec.

Ergueriam então os olhos para saudar a cidade altiva, debruçada sobre seu rochedo, enquanto ela responderia com todos os sinos de suas inúmeras igrejas.

Seria o fim do deserto, dos selvagens, da sagamite insossa e do cachorro cozido. Seria a vez do calvados, do rum e do vinho trazidos pelos navios, do pão de trigo com muita manteiga, da carne de boi sumarenta e do presunto com repolho, o queijo, o vinho tinto, e as moças insinuantes da casa de Janine Gonfarel, na cidade baixa...

No Mégantic, o sol refletia-se, cegante no céu claro, as águas cintilavam, metálicas, as árvores estavam mortas, rondava o hálito do inverno.

As canoas de casca de árvore deslizavam com vivacidade pela superfície do lago, à procura, naquele arquipélago monótono, do início do Chaudiere, pois era preciso ser da região para descobri-lo entre as ilhas e sinuosidades sem fim dos canais.

O Conde de Loménie permanecia na margem, vigiando o embarque de suas tropas. Falieres, L'Aubigniere e o sobrinho e uma parte dos índios já estavam longe. Por terra chegavam outros, com as canoas à cabeça.

Um índio, que subira toda a coluna correndo, surgiu diante do oficial. Loménie-Chambord reconheceu nele o escravo panis que Nicolau Perrot arrastava por toda parte consigo. Proferiu algumas frases. Ninguém lhe entendia a língua, pois pertencia a uma tribo distante, do outro lado dos Mares Doces, um pequeno povo disperso, o panis. O selvagem afetava não compreender nenhum dos dialetos das nações presentes e consentiu em utilizar um mau francês.

Auxiliado por Pont-Briand, o coronel decifrou a mensagem: "Em Katarunk os chefes iroqueses foram escalpelados por Mau-dreuil e os patsuiketts. As tropas iroquesas marchavam sobre Ka-turunk para reclamar vingança. O Conde de Peyrac e sua família seriam massacrados".

- Partamos! Partamos imediatamente - exclamou Pont-Briand. - Voltemos para lá. Eles não são suficientes para resistir a essas hordas...

Loménie não fez nenhum comentário, mas logo deu ordem aos que ainda estavam com ele de fazer meia-volta. Uma boa parte dos huronianos e algonquinos concordou em acompanhá-los, assim como a metade dos soldados. Para lutar com os iroqueses sempre se encontravam voluntários.

Alguns dias mais tarde, quando se viram outra vez na região do Kennebec, esperavam ouvir tiros, o que lhes provaria que a defesa do forte continuava aguentando. Mas o silêncio era total a região parecia morta. Loménie preocupava-se também com o destino do Padre d'Orgeval. Quanto a Pont-Briand, estava sombrio e como que habitado por um .tormento interior.

Antes de atingirem a curva do fio que devia levá-los à praia de Katarunk, os dois oficiais fizeram a flotilha deter-se e puxar as canoas para a margem, por entre os salgueiros. Cada um preparou suas armas sem o menor ruído.

Loménie e Pont-Briand escalaram rochedos a fim de observar os arredores sem serem vistos. O ar" estava límpido, mas ainda assim sentiaín-lhe um gosto de fumaça fria. Chegando ao topo e assim que deram uma olhada por entre as folhagens, entenderam.

Katarunk"já nãoVéxistia.

Uma área enegrecida de cinzas e cepos calcinados estendia-se no local onde outrora se erguia* o entreposto.

A seus .pés o Kennebec continuava a desenrolar suas águas de um azul eru,-quase escuro, contra o vermelho dos sumagres, das sorveiras e das cerejeiras selvagens.

Nenhum vestígio humano nos arredores.

Pont-Briand soltou uma ex-elamação surda. Bateu várias vezes a testa contra o tronco de uma árvore.

— Ela morreu - gritou ele -, ela morreu, e agora, como ter a coragem de viver?... Estão vendo, não era uma diaba... Era apenas uma mulher!... Uma mulher bela e frágil... Uma mulher adorável! Oh, meu Deus, para que continuar no mundo agora?...

— Cale-se, você está divagando - disse Loménie, sacudindo-o pelo ombro.

Mas de repente também ele fechou os olhos e um luto amargo espalhou-se por sua alma. Revia o cavaleiro de máscara negra entre suas auriflamas, diante de Katurunk. E junto dele, a mulher daquele homem, tão bela!...       

Uma dor, uma mágoa lancinante comprimiram-lhe o coração. Depois recuperou a razão. Pensou que fora a mão do Padre d Ur-geval que dirigira tudo. Aquele padre não era guiado por Deus, por quem já derramara o próprio sangue? Quando Loménie descera de Quebec à testa de seus homens, um mês antes, recebera do jesuíta uma palavra de ordem:

- Afaste-os a qualquer preço! Elimine-os, se necessário, a situação ficará mais clara!

Seduzido pelos estrangeiros, ele se deixara desviar das diretrizes. Q céu decidira por ele.

"Missão cumpridar", pensou.

E a amargura encheu-lhe o coração. Ficou longo tempo com Pont-Briand, sem conseguir despregar-se do local. Depois deu ordem de retornarem para o norte.

Quando os franceses se afastaram difinitivamente, o escravo panis saiu da floresta e desceu por sua vez da montanha até a ribanceira.

Seus longos cabelos negros flutuavam ao vento. Com passo cauteloso, foi até a margem e caminhou, inclinado para o chão. Depois de seguir até o pequeno embarcadouro, subiu de novo a ribanceira calcinada, rodou pelos arredores da construção destruída, depois retornou ao rio.

No chão ele lia o relato de uma espantosa aventura.

Finalmente, levantou a cabeça, pareceu farejar o vento, depois, com ar resoluto, tomou a direção nordeste, rumando para o coração das montanhas.

A coragem e a astúcia do Conde de Peyrac, ao sacrificar a fortaleza de Katarunk pela memória dos grandes chefes assassinados, salvaram a pequena comunidade de franceses na selva imensa. Mas Angélica pressentia que um perigo maior tomava corpo no incerto horizonte de sua permanência no conturbado cenário da Nova França.

O fantasma da maldição que os perseguira e os condenara no Velho Mundo ameaçava transportar-separa o Novo. Seriam, ela e o marido, suficientemente fortes para enfrentá-lo? O mundo desconhecido para o qual se encaminhavam a atemorizava menos que o espectro da discriminação daqueles que queriam sua desgraça.

 

 

                                                                                                    Anne e Serge Golon

 

 

 

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