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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NA OUTRA MARGEM ENTRE AS ÁRVORES / E. Hemíngway
NA OUTRA MARGEM ENTRE AS ÁRVORES / E. Hemíngway

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

NA OUTRA MARGEM ENTRE AS ÁRVORES

 

Partiram duas horas antes do nascer do dia e de princípio, não foi necessário quebrar o gelo através do canal porque outros barcos tinham ido à frente. Em cada barco, na escuridão - não se podia vê-lo, mas apenas ouvi-lo -, o barqueiro mantinha-se à popa com o seu longo remo.

O caçador estava sentado num tamborete amarrado ao topo de uma caixa que continha o seu almoço e os cartuchos, e as duas ou mais armas do caçador estavam apoiadas ao carregamento de caniços. Em qualquer parte, em cada barco, havia um saco com duas patas vivas, ou um pato e uma pata, e em cada barco havia um cão que se agitava e tremia inquieto ao som das asas dos patos que passavam por cima, no escuro.

Quatro dos barcos subiram o canal principal em direcção à lagoa grande, para o norte. Um quinto tinha já voltado para um canal lateral. Agora o sexto voltava para o sul, para uma lagoa pouco profunda e já não havia gelo por quebrar.

Tudo era gelo que solidificara durante o súbito frio sem vento da noite. Era como borracha e dobrava-se perante o ímpeto do remo do barqueiro. Depois quebrava-se em lascas afiadas como uma vidraça, mas o barco fazia poucos progressos.

- Dê-me um remo - disse o caçador do sexto barco.

Ergueu-se e espreguiçou-se cuidadosamente. Podia ouvir os patos passarem no escuro e sentir os movimentos inquietos do cão. Lá para o norte ouviu o ruído dos outros barcos a quebrar o gelo.

- Tenha cuidado - disse, da popa, o barqueiro. - Não volte o barco.

- Também sou barqueiro - disse o caçador.

Agarrou o remo que o barqueiro lhe estendia e voltou-o de modo a poder segurá-lo pela pá. Agarrando a pá, estendeu-se para a frente e mergulhou o cabo pelo gelo. Sentiu o leito firme da lagoa pouco profunda, apoiou-se com toda a força na larga pá do remo, segurou-a com ambas as mãos e, primeiro despedaçando, depois empurrando até que a vara ficou bem à popa, impeliu o barco a quebrar o gelo. O gelo quebrava-se como folhas de vidro prateado à medida que o barco penetrava nele, e à ré o barqueiro empurrava o barco para a passagem que se abria.

Algum tempo depois, o caçador que trabalhava afanosamente e com firmeza, transpirando dentro das roupas pesadas que vestia, perguntou ao barqueiro:

- Onde está o barril?

- Ali para a esquerda. No meio da próxima baía.

- Posso dirigir-me para lá?

- Como quiser.

- O que é que quer dizer com isso, como quiser? Você conhece a água. Há água suficiente para nos levar lá?

- A maré está baixa. Como se poderá saber?

- Se não nos despachamos, nascerá o dia antes de lá chegarmos.

O barqueiro não respondeu.

Está bem, safado estúpido, pensou o caçador. Havemos de chegar lá. Fizemos dois terços do caminho e se estás preocupado por teres de quebrar o gelo para apanhar as aves, então ainda é um pouco pior.

- Deita-te a isso, bandido - disse ele em inglês.

- O quê? - Perguntou o barqueiro em italiano.

- Eu disse para seguirmos. Em breve será dia.

O dia nasceu antes de se alcançar o barril de carvalho afundado no meio da lagoa. Estava circundado por um rebordo de terra em declive onde haviam plantado erva e juncos, e o caçador trepou para cima de tudo isso, sentindo as ervas geladas estalarem quando as pisou. O barqueiro tirou o misto de banco de atirador e caixa de cartuchos para fora do barco, e estendeu-a ao caçador, que se debruçou, e a meteu no fundo do grande barril.

O caçador, usando botas que lhe chegavam aos quadris e um velho casaco de combate com uma insígnia no ombro esquerdo, que ninguém compreendia, e marcas ligeiramente mais claras nos sítios de onde as estrelas tinham sido retiradas, meteu-se dentro do barril e o barqueiro entregou-lhe as duas espingardas.

Ele colocou-as de encontro à parede do barril e pendurou entre elas o outro saco de cartuchos, em dois ganchos espetados nas paredes interiores do barril afundado. Pôs depois as espingardas de cada lado do saco de cartuchos.

- Há água? - perguntou ao barqueiro.

- Não há água - disse o barqueiro.

- Pode-se beber a água da lagoa?

- Não. É insalubre.

O caçador estava cansado por causa do trabalho violento que tivera a quebrar o gelo e a guiar o barco e sentia agora crescer nele a raiva mas conteve-se e disse:

- Quer que o ajude a quebrar o gelo e a tirar os caniços?

- Não - disse o barqueiro e atirou o barco selvaticamente contra a fina camada de gelo que estalou e fendeu à medida, que o barco nela penetrava. O barqueiro começou a esmagar o gelo com a pá do remo e depois espalhou caniços para os lados e para a frente.

Ele tem um lindo génio, pensou o caçador. Também é um grande bruto. Eu trabalhei como um cavalo para chegar até aqui. Ele, tudo o que fez, foi arrastar-se. Que diabo pensa? É ou não é este o seu ofício?

Dispôs o banco de atirador de modo a obter a máxima oscilação para a esquerda e para a direita, abriu uma caixa de cartuchos, encheu os bolsos, e abriu outra caixa que estava no saco para que facilmente a pudesse alcançar. Diante dele, no ponto onde a lagoa brilhava com a aurora, estava o barco negro e o barqueiro alto e pesadão esmagando o gelo com o remo, e atirando caniços pela borda fora como se estivesse a desembaraçar-se de qualquer coisa obscena.

Começava a despontar o dia, e o caçador podia ver através da lagoa a linha baixa do ponto mais próximo. Sabia que para lá desse ponto estavam dois outros postos de tiro e lá para longe havia mais um pântano e depois o mar alto. Carregou ambas as espingardas e verificou a posição do barco que espalhava os caniços.

Atrás dele ouviu o sussurro das asas que se aproximavam; agachou-se, agarrou com a mão direita a espingarda que estava à direita enquanto espreitava pela borda do barril, e depois ergueu-se para atirar aos dois patos que se precipitavam, asas prontas a poisar, descendo, negros, no céu cinzento e fusco, em linha oblíqua até aos caniços.

De cabeça baixa, apontou a espingarda bem para a frente do segundo pato e depois, sem ver o resultado do tiro, ergueu-a lentamente para a frente e para a esquerda do outro pato que para a esquerda se elevava e, quando disparou, viu-o dobrar-se no voo e tombar entre os caniços, no gelo quebrado. Olhou para a direita e viu o primeiro pato, como uma mancha negra sobre o gelo. Sabia que tinha atirado cuidadosamente ao primeiro pato, muito para a direita de onde estava o barco e ao segundo, para o alto, deixando-o subir, e para a esquerda para ter a certeza de que o barco ficava fora do campo de tiro. Fora um belo tiro duplo, disparado exactamente como devia ser, com total consideração e respeito pela posição do barco e ele sentia-se muito bem enquanto voltava a carregar a arma.

- Oiça - gritou, do barco, o homem. - Não atire em direcção ao barco.

Hei-de ser um triste filho de uma cabra, disse o caçador de si para si. Hei-de ser mesmo.

- Deite os caniços fora - gritou ao homem do barco.

- Mas deite-os depressa. Eu não disparo até que todos eles estejam cá fora. Ou então só disparo em linha recta para o alto.

O homem no barco nada disse que se pudesse ouvir.

Nem posso imaginar, pensou o caçador. Ele sabe como isto é. Ele sabe que me lanço ao trabalho ou a tudo o mais que apareça. Nunca atirei mais cuidadosamente a um pato em toda a minha vida do que atirei àquele. O que terá ele? Ofereci-me para o ajudar a tirar os caniços. Que o leve o diabo.

Agora, à direita, o barqueiro estava ainda a retalhar furiosamente o gelo e a espalhar os caniços com um ódio que mostrava em cada gesto que fazia.

Não o deixes estragar isto, disse para si próprio o caçador. Não pode haver muita caça com este gelo, a menos que o sol o derreta mais tarde. Provavelmente só podes apanhar alguns patos, por isso não deixes que ele estrague isto. Não sabes quantas vezes mais poderás caçar patos e não deixes que alguém possa estragar isto.

Via o céu clarear para lá do ponto distante no pântano, e regressando para o barril afundado, relanceou a vista pela lagoa gelada e pelo pântano e viu, muito ao longe, as montanhas cobertas de neve. Como estava muito em baixo, nenhuma colina se mostrava e as montanhas erguiam-se abruptamente da planície. Quando olhou para as montanhas, pôde sentir a brisa no rosto e soube então que dali viria o vento, levantando-se com o sol, e que algumas aves surgiriam do mar quando o vento as perturbasse.

O barqueiro tinha acabado de descarregar os caniços. Estavam em dois molhos, um mesmo à frente e para a esquerda em direcção ao ponto de onde o sol se ergueria, e o outro à direita do caçador. Soltou o pato que servia de isca que chapinhou a água.

- Não acha que seria melhor quebrar mais gelo junto às margens? - gritou o caçador ao barqueiro. - Não há bastante água para os atrair.

O barqueiro nada disse mas começou a despedaçar com o remo o recortado perímetro do gelo. Era desnecessário quebrar este gelo e o barqueiro bem o sabia. Mas o caçador não sabia isso e pensava, não o compreendo, mas não posso deixar que ele estrague tudo. Isto tem de ser assim e não posso permitir que ele estrague tudo. Cada vez que tu disparas pode ser o último tiro que dás e não é agora que eu vou permitir que um estúpido filho de uma cabra estrague tudo. Tem calma, rapaz, disse de si para si.

 

Mas ele já não era rapaz. Tinha cinquenta anos, era Coronel de Infantaria do Exército dos Estados Unidos e, para passar num exame físico a que tivera de se submeter no dia anterior àquele em que tinha vindo a Veneza para esta caçada, tomara bastante hexanitrato de manitol para - bem, ele não sabia perfeitamente para quê -, para passar, dizia de si para si.

O médico estivera muito céptico. Mas observou os averbamentos depois de por duas vezes lhes ter pegado.

- Você sabe, Dick - disse ele. - Não é indicado; de facto, está definitiva-mente contra-indicado nas lesões intra-oculares e intracranianas.

- Não sei de que está a falar - disse o caçador que não era caçador, excepto potencialmente, e era Coronel de Infantaria do Exército dos Estados Unidos, impedido de atingir o Generalato.

- Conheço-o há muito tempo, Coronel. Ou talvez apenas pareça que o conheço há muito tempo - disse-lhe o médico.

- Há muito tempo - disse o Coronel.

- Parecemos escritores de cançonetas - disse o médico. - Mas, por acaso, você nunca deu nenhum trambolhão, nem foi apanhado por uma faísca quando está encharcado de nitroglicerina! O que eles deviam fazer era obrigá-lo a puxar um auto-tanque carregado de gasolina.

- A minha cardiografia não estava correcta? - perguntou o Coronel.

- A sua cardiografia estava maravilhosa, Coronel. Podia ser a de um homem de vinte e cinco anos. Podia ser a de um rapaz de dezanove!

- Então do que é que está a falar? - perguntou o Coronel.

O hexanitrato de manitol em excesso produzia algumas vezes uma certa náusea e ele estava ansioso por ver a entrevista terminada. Estava também ansioso por se deitar e tomar um sedativo. Tenho de escrever o manual de táctica menor para o pelotão de ataque, pensou ele. Quem me dera poder dizer-lhe isto. Por que não me confio apenas à mercê do tribunal? Nunca o farás, disse de si para si. Representas sempre o papel de inocente.

- Quantas vezes foi atingido na cabeça? - perguntou o médico.

- Você sabe - disse-lhe o Coronel. - Duzentas vezes.

- Quantas vezes foi atingido na cabeça?

- Oh Cristo!

Depois disse:

- Está a fazer-me perguntas como médico ou por causa do exército?

- Como médico. Não pensou, por acaso, que eu estava a tentar roubar-lhe o relógio, não é verdade?

- Não, Wes. Desculpe-me. O que é que queria saber?

- Lesões.

- Lesões verdadeiras?

- Todas as vezes que ficou frio ou não conseguiu lembrar-se mais tarde.

- Talvez dez - disse o Coronel. - Contando o pólo... junte mais três.

- Seu pobre filho de uma cadela - disse o médico. - Coronel, senhor - acrescentou.

- Posso ir-me embora? - perguntou o Coronel.

- Sim, Senhor - disse o médico. - Você está em boa forma.

- Obrigado - disse o Coronel. - Quer ir a uma caçada aos patos nos pântanos da foz do Tagliamento? Bela caçada. É organizada por uns rapazes italianos que eu conheci na Cortina.

- É aí que vão atirar às gaivotas?

- Não. Desta vez vão caçar patos verdadeiros. Bons rapazes. Boa caçada. Patos bravos, alguns gansos. Quase tão bom como em casa quando éramos meninos.

- Eu fui menino aos vinte e nove ou aos trinta.

- É a primeira coisa com sentido que lhe oiço dizer.

- Não é o que você pensa. Apenas queria dizer que já não me recordo de quando caçar era bom. Sou um rapaz da cidade.

- É o seu único defeito. Aliás, nunca encontrei um rapaz da cidade que valesse grande coisa.

- Não está a falar a sério, não é verdade, Coronel?

- Claro que não! Bem sabe que não!

- Pois você está em boa forma, Coronel - disse o médico. - Tenho pena de não ir à caçada.. Nem sequer sei dar um tiro.

- Diabo! - disse o Coronel. - Isso não faz diferença. Nem você sabe, nem ninguém neste exército. Mas gostava de o ter junto de mim.

- Vou dar-lhe alguma coisa para diminuir o efeito das drogas que tomou.

- Tem havido novidades?

- Nem por isso. Continuam a preocupar-se com ninharias.

- Deixá-los preocupar-se - disse o Coronel.

- Suponho que é uma atitude muito louvável, Coronel.

- Diabos o levem - disse o Coronel. - Tem a certeza que não quer vir?

- Eu só apanho patos em Longchamps, na Avenida Madison - disse o médico. - Tem ar condicionado no Verão, é quente no Inverno e não tenho de levantar-me antes do nascer do sol ou usar roupa interior muito forte.

- Está bem, rapaz da cidade. Nunca saberá o que é bom.

- Nem nunca quis saber - disse o médico. - Você está em boa forma, meu Coronel.

- Obrigado - disse o Coronel e saiu.

 

Isto acontecera antes de ontem. Ontem tinha vindo de Trieste para Veneza pela velha estrada que liga Monfalcone a Latisana e atravessa a planície. Tinha um bom condutor e por isso deixara-se ir à vontade, no assento da frente, a admirar toda esta região que conhecera quando era ainda rapaz.

Está bastante diferente, pensou. Deve ser por causa das distâncias que estão todas modificadas. Tudo se torna mais pequeno quando envelhecemos. Depois, as estradas agora são melhores e já não há poeira. As únicas vezes em que costumava passar por aqui ia quase sempre de camioneta. De resto íamos a pé. Parece-me que as únicas coisas que eu procurava eram réstias de sombra, ou fontes nos terreiros das herdades. E valas também, pensou ele. Procurava sempre muitas valas.

Fizeram uma curva e atravessaram o Tagliamento por uma ponte provisória. Estava tudo verde nas margens e alguns homens pescavam no areal longínquo, onde o rio corria mais profundo.

A ponte atingida estava a ser reparada com grande estrondo pelos rebitadores e, a oitocentas jardas de distância, as construções esfaceladas do que era agora uma «villa» em ruínas, outrora construída por Longhena, mostravam os sítios onde os médios haviam despejado as suas cargas.

- Olhe para aquilo - disse o condutor. - Neste país, onde há uma ponte ou uma estação de caminho de ferro, em qualquer direcção, a meia milha de distância, também há sempre este espectáculo.

- Parece-me que disso se tira uma lição - disse o Coronel. - Nunca construas uma casa de campo ou incumbas Giotto dos frescos se quiseres uma igreja, quando a oitocentas jardas há uma ponte.

- Eu sabia que tinha de haver uma lição, meu Coronel – disse o condutor.

Tinham ultrapassado a «villa» arruinada e seguiam pela estrada plana bordada de salgueiros que se erguiam dos valados ainda enegrecidos pela invernia e de campos cheios de amoreiras. À frente, numa bicicleta, pedalava um homem que usava ambas as mãos para segurar o jornal que ia lendo.

- E se há artilharia pesada a lição deve estender-se até uma milha - disse o condutor. - Não é verdade, meu Coronel?

- E se há foguetões - disse o Coronel -, é melhor dizer duzentas e cinquenta milhas. E também é melhor buzinar a esse ciclista.

O condutor buzinou e o homem afastou-se para o outro lado da estrada, sem mesmo levantar os olhos do jornal ou tocar no guiador. Quando passaram por ele, o Coronel tentou ver o jornal que ele lia mas o vento dobrou-o.

- Desconfio que o melhor que agora há a fazer, é não se construírem casas bonitas ou igrejas, ou encarregar - quem é que o senhor disse? - das pinturas dos frescos.

- Giotto, foi quem eu disse. Mas podia ser Piero della Francesca ou Mantegna. Podia ser Miguel-Ângelo.

- O senhor sabe muito acerca de pintores, não é verdade, meu Coronel? - perguntou o condutor.

Estavam agora num trecho de estrada plana e as quintas sucediam-se, quase se confundiam umas às outras, de modo que apenas se podia ver o que estava lá longe correndo para eles. O panorama lateral era apenas uma condensação de invernosas terras baixas e lisas. Não tenho bem a certeza e gosto da velocidade, pensou o Coronel. Brueghel, serias um inferno de formas se tivesse de contemplar uma paisagem deste modo.

- Pintores? - respondeu ao condutor. - Sei um pouco acerca disso, Burnham.

- Eu sou o Jackson, meu Coronel. Burnham está lá em cima no centro de repouso da Cortina. É um belo sítio, meu Coronel.

- Estou a ficar estúpido - disse o Coronel. - Desculpa, Jackson. um belo sítio. Boa comida. Boas corridas. Ninguém nos aborrece.

- Verdade, meu Coronel - concordou Jackson. - O motivo por que lhe falei de pintores foram estas madonnas. Achei que devia ver alguns quadros e por isso fui àquela coisa grande em Florença.

- O Uffizi? O Pitti?

- Não sei como lhe chamam. O maior de todos. Pus-me a olhar para aqueles quadros até que as madonnas começaram a correr-me em frente dos olhos. Eu lhe digo, meu Coronel, que um homem que não esteja habituado a esta pintura, acaba por ver apenas muitas madonnas e a coisa transtorna-o. Sabe qual é a minha teoria? Sabe o senhor que eles gostam muito de bambinis e que quanto menos têm para comer mais bambinis arranjam? Bem, eu acho que estes pintores eram grandes apaixonados por bambinis, como todos os italianos. Não conheço esses a que o senhor se referiu, e por isso não os incluo na minha teoria, e de qualquer modo o senhor me explicará. Mas parece-me que todas estas madonnas que eu tantas vezes vi, meu Coronel, parece-me que estes pintores de madonnas eram uma espécie de manifestação, digamos, deste assunto de bambinis, se compreende o que pretendo dizer.

- Acrescentemos-lhe o facto de estarem limitados a assuntos religiosos.

- Sim senhor, meu Coronel. Então acha que há qualquer fundamento na minha teoria?

- Com certeza, embora pense que a coisa é um pouco complicada.

- Naturalmente, meu Coronel. Isto também é uma teoria preliminar.

- Tens outras teorias sobre a arte, Jackson?

- Não, meu Coronel. A teoria dos bambinis é tudo quanto pensei. O que eu queria era que eles tivessem pintado bons quadros sobre as montanhas em volta do centro de repouso, na Cortina.

- Daí era Ticiano - disse o Coronel. - Pelo menos é o que dizem. Desci ao vale e vi a casa onde se supõe que ele nasceu.

- E o sítio é belo, meu Coronel?

- Nem por isso.

- Bem, se pintou quadros sobre aquelas redondezas, com as rochas cor de sol-posto, os pinheiros, a neve e todas aquelas torres aguçadas...

- Campaniles - disse o Coronel. - Como a de Geggia. Quer dizer torre do sino.

- Bem, se ele pintou bons quadros sobre aqueles sítios, tenho a certeza que estava disposto a comprar-lhe alguns.

- Pintou mulheres maravilhosas - disse o Coronel:

- Se eu tivesse um apartamento ou uma estalagem à beira da estrada, digamos, ainda podia arranjar um quadro desses - disse o condutor. - Mas se levasse para casa quadros de mulheres, a minha velha corria comigo de Rawlins até Buffalo. E tinha sorte se conseguisse chegar a Buffalo.

- Podias dá-lo ao museu local.

- Tudo o que eles têm no museu local é pontas de flecha, barretes militares, facas, escalpelos de diferentes espécies, peixes petrificados, cachimbos da paz, fotografias de Johnston Come-Fígados, e a pele de algum malandro que eles enforcaram e que os médicos esfolaram depois. Um desses quadros de mulheres ficava fora do ambiente.

- Vês aquele campanile lá ao fundo, na planície? - disse o Coronel. - Vou-te mostrar um sítio onde combatemos quando era rapaz.

- Também combateu aqui, meu Coronel?

- Sim - disse o Coronel.

- De quem era Trieste nessa guerra?

- Dos Krauts. Quero dizer, dos Austríacos.

- E nós conseguimos tomá-la?

- Nunca. Só no fim, quando tudo acabou.

- Quem tinha Florença e Roma?

- Éramos nós.

- Bem, tenho a impressão que nessa altura também não éramos muito maus.

- Meu Coronel - disse o Coronel gentilmente.

- Desculpe, meu Coronel - disse logo o condutor. - Eu estive na 36.a Divisão, meu Coronel.

- Eu vi o distintivo.

- Estava a pensar no Rapido, meu Coronel; não queria ser insolente ou faltar ao respeito.

- Não foste insolente - disse o Coronel. - Estavas apenas a pensar no Rapido. Ouve, Jackson, todos os que são soldados há muito tempo tiveram os seus Rapidos e mais do que uma vez.

- Eu não resistia a mais de um, meu Coronel.

O carro atravessava agora a prazenteira cidade de San Dona di Piave. Foi reconstruída e parece nova, mas não é mais feia do que uma cidade do Oeste, e é tão próspera e alegre quanto Fossalta, junto ao rio, é miserável e triste, pensava o Coronel. Será que Fossalta nunca mais se ergueu depois da Primeira Grande Guerra? Nunca a vi antes de ser bombardeada, pensou ele. Eles bombardearam-na violentamente antes da grande ofensiva de 15 de Junho, em 1918. Depois fomos nós que a bombardeámos antes de a tomarmos. Recordava-se perfeitamente de como o assalto fora conduzido de Monastier através de Fornace; e naquele dia de Inverno recordava-se muito bem do que tinha acontecido nesse Verão.

Há poucas semanas passara por Fossalta e seguira ao longo da estrada lamacenta até encontrar o local onde fora ferido, na margem do rio. Era fácil chegar lá por causa da curva do rio, e no sítio onde estivera o posto da metralhadora pesada havia uma cratera ligeiramente coberta de relva. Fora ceifada por ovelhas ou cabras até ficar juncada de pequenas depressões, como nos campos de golfe. O rio ali era baixo e azul sujo, com juncos espalhados pelas margens, e o Coronel, depois de se certificar de que ninguém o via, acocorou-se e, olhando para o rio do ponto onde nunca à luz do dia se podia mostrar a cabeça, deitara-se no lugar exacto onde, por triangulação, concluíra que fora gravemente ferido trinta anos antes.

- Pobre esforço - disse em voz alta para o rio e para a margem do rio que pareciam graves com a tranquilidade do Outono, e húmidos das recentes chuvas. - Mas foi o meu esforço.

Ergueu-se e olhou em volta. Não havia ninguém por ali e ele deixara o carro na estrada em frente da última e mais triste casa de Fossalta.

- Agora vou completar o monumento - disse para ninguém mais, além dos mortos, e tirou do bolso uma velha navalha Sollingen, igual às que os caçadores furtivos costumam usar na Alemanha. Abriu-a e, rodando-a, cavou um esmerado buraco na terra húmida. Limpou a navalha às velhas botas de combate e depois meteu uma nota castanha de dez mil liras no buraco, tapou-o e colocou sobre ele a erva que tinha removido.

- Isto é a retribuição de vinte anos, a quinhentas liras por ano, pela Medaglia d'Argento al Valore Militare. A V. G. dá dez guinéus. O D. S. G. não dá nada. A Silver Star não rende. Guardo o troco - disse ele.

Agora está bem, pensou. Tem merda, dinheiro e sangue. Veja-se como a erva cresce; há ferro na terra juntamente com a perna de Gino, com ambas as pernas de Randolfo e com a minha rótula direita. É um maravilhoso monumento. Tem de tudo. Fertilidade, dinheiro, sangue e ferro. Parece uma nação. Onde está a fertilidade, dinheiro, sangue e ferro, está também a pátria. É verdade!, também precisamos de carvão. Temos de arranjar carvão.

Depois olhou para o rio para reconstruir a casa branca que outrora fora rubra e cuspiu no rio. Foi uma cuspidela longa.

- Naquela noite não seria capaz de cuspir; nem muito tempo depois - disse ele. - Mas agora, para um homem que não masca tabaco, cuspo bem.

Lentamente, dirigiu-se para o sítio onde deixara o carro. O condutor dormia.

- Acorda, meu filho - disse ele. - Faz marcha atrás e toma pela estrada de Treviso. Nesta zona não é preciso mapa. Eu indico-te as dunas.

 

Agora, a caminho de Veneza, abandonando-se à tranquilidade de não pensar na urgência de chegar lá depressa, ultrapassou as últimas casas de San Dona e atravessou a ponte sobre o Piave.

Atravessaram a ponte e estavam na margem italiana do rio e ele voltou a ver a velha estrada lamacenta. Era naquele ponto tão plana e indistinta como ao longo de todo o rio. Mas podia ver as antigas posições. E ali, a todo o comprimento da estrada lisa e recta ladeada de canais, erguiam-se salgueiros dos dois canais onde tinham depositado os mortos. No fim da última ofensiva tinha havido uma grande matança e alguém, para desembaraçar as posições na margem do rio e a estrada exposta ao calor, ordenara que os mortos fossem lançados nos canais. Infelizmente as comportas do canal, ainda nas mãos dos austríacos, estavam fechadas.

Assim, era pouco o movimento da água e os mortos haviam ficado ali durante muito tempo a flutuar, enturzecendo, indiferentes às suas nacionali-dades, até atingirem proporções colossais. Por fim, após se ter estabelecido uma certa organização, brigadas de soldados desalojaram-nos de noite e sepultaram-nos perto da estrada. O Coronel procurou com a vista vestígios de verdura mais forte no terreno junto à estrada, mas nada notou. Contudo, havia muitos patos nos canais e, ao longo da estrada, alguns homens pescavam.

Desenterraram-nos todos, pensou o Coronel, e voltaram a sepultá-los no grande ossário perto de Nervesa.

- Combatemos aqui quando eu era rapaz - disse o Coronel ao condutor.

- É uma terra lisa como a breca - disse o condutor. - Tomaram aquele rio?

- Sim - disse o Coronel. - Tomámo-lo e perdemo-lo e voltámos a tomá-lo.

- Até onde se pode ver, não há por aqui uma única elevação.

- E essa foi a grande dificuldade - disse o Coronel.

- Tínhamos de aproveitar elevações que ninguém distingue, coisas pequenas, ou então fossos e casas, as margens do canal e sebes. Era como a Normandia, mas ainda mais plana. Acho que deve ter sido qualquer coisa como combater na Holanda.

- Aquele rio não se parece nada com o Rapido.

- Um lindo e velho rio - disse o Coronel. - Lá para cima, antes destes projectos hidroeléctricos, ainda tinha muita água. E também tinha canais fundos que, quando as águas baixavam, corriam alegremente entre os seixos. Havia um lugar chamado o Grave di Papadopoli onde a água parecia brincar.

Ele sabia como a guerra de cada um é maçadora quando se conta a outro homem e por isso calou-se. Toda a gente considera a guerra de um modo pessoal, pensou. Ninguém se interessa por ela abstractamente, a não ser os soldados, e já não há muitos soldados. Somos nós que os fazemos e os melhores são mortos, e ainda por cima as pessoas estão sempre a pensar em coisas difíceis que nunca viram nem ouviram. Pensam sempre no que viram e, enquanto nós falamos, já eles estão a pensar no que hão-de dizer em seu favor.

Não fazia sentido estar a aborrecer este rapaz que, a avaliar por todas as medalhas e outras coisas que ostentava, nunca fora soldado, mas apenas um homem metido à força num uniforme e que depois pedira para ficar no exército, só para satisfazer os seus interesses.

- O que é que fazias na vida civil, Jackson? - perguntou.

- Era sócio do meu irmão numa garagem em Rawlins, Wyoming, meu Coronel.

- Vais voltar para lá?

- O meu irmão foi morto no Pacífico e o rapaz que ficou a dirigir a garagem não era nada bom - disse o condutor. - Perdemos tudo quanto lá tínhamos.

- Isso é mau - disse o Coronel.

- Tem razão. mau como os diabos - disse o condutor e acrescentou -, meu Coronel.

O Coronel olhou para a estrada.

Sabia que se continuassem por aquela estrada em breve chegariam à curva por que ele ansiava; mas estava impaciente.

- Abre bem os olhos e dobra à esquerda pela estrada que parte daquele marco - disse ele ao condutor.

- Acha que estas estradas lamacentas são boas para um carro tão grande, meu Coronel?

- Veremos - disse o Coronel. - Co's diabos, homem, há três semanas que não chove.

- Nunca confio nas estradas laterais das charnecas.

- Se nos atolarmos, arranja-se uma parelha de bois para nos puxar.

- Eu estava apenas a pensar no carro, meu Coronel.

- Bem! Pensa no que te disse e volta na primeira estrada à esquerda que julgares praticável.

- Parece que ali está uma, junto às sebes - disse o condutor.

- Tens o caminho livre por aqui. Chega um pouco à frente que eu desço para dar uma olhadela.

Desceu do carro e atravessou a estrada larga e dura para ver a outra estrada estreita e poeirenta, ladeada pelo canal de águas Rápidas e pela sebe espessa. Para lá da sebe distinguiu uma casa de quinta pintada de vermelho e um grande celeiro. A estrada estava seca. Nem sequer tinha sulcos de rodas de carroça. Voltou para o carro.

- É uma autêntica avenida - disse ele. - Deixa-te de preocupações.

- Sim, meu Coronel. O carro é seu, meu Coronel.

- Bem sei - disse o Coronel. - Ainda estou a pagá-lo. Diz-me lá, Jackson, tu sempre sofres tanto quando passas de uma auto-estrada para uma estrada secundária?

- Não, meu Coronel. Mas há uma grande diferença entre um jeep e um carro como este. Sabe a que distância está o diferencial do chassi, neste carro?

- Na mala tenho uma pá e uma corrente. Espera até veres onde vamos depois de partirmos de Veneza.

- Vai para toda a parte neste carro?

- Ainda não sei. Veremos.

- Pense nos guarda-lamas, meu Coronel.

- Deitamos os guarda-lamas fora, como fazem os índios em Oklahoma. Este carro tem de tudo menos motor. Oh! Jackson, ele tem um belo motor. Cento e cinquenta cavalos!

- Tem mesmo, meu Coronel. É um grande prazer guiar este carro nas estradas boas. É por isso que eu quero que nada lhe aconteça.

- Fazes bem, Jackson, mas agora deixa de sofrer!

- Eu não estava a sofrer, meu Coronel.

- Bom - disse o Coronel.

E ele também não estava, porque naquele mesmo momento tinha visto uma vela a mover-se para lá da linha espaçada das árvores castanhas. Era uma grande vela vermelha, rasgada agudamente desde o topo do mastro e movia-se lenta entre as árvores.

Por que é que nos comovemos sempre ao ver uma vela movendo-se pelo campo fora, pensou o Coronel. Por que é que me comovo ao ver os grandes bois, lentos e claros? Deve ser do modo de andar, do aspecto deles, do tamanho e da cor.

Mas uma mula fina e grande, ou uma fila de mulas de carga em boas condições, também me comovem. E o coiote, sempre que tive ocasião de ver um, e o lobo, cujo porte é diferente do dos outros animais, tão seguro de si próprio, com aquela cabeça pesadona e olhos hostis.

- Já alguma vez viste lobos lá por Rawlins, Jackson?

- Não, meu Coronel. Os lobos já tinham desaparecido quando nasci; envenenaram-nos. O que há é muitos coiotes.

- Gostas de coiotes?

- Gosto de os ouvir à noite.

- Também eu. Melhor que isso só quando se vê um barco a navegar no meio do campo.

- Vai um barco desses além, meu Coronel.

- No Canal de Sile - disse-lhe o Coronel. - É uma barca à vela que vai para Veneza. Como o vento está agora a cair das montanhas, a barca navega bem. Se este vento parar é provável que hoje à noite arrefeça, o que trará muitos patos. Volta agora para a esquerda e vamos seguir ao longo do canal. Há uma estrada boa.

- Na minha terra ninguém caça patos. Em Nebraska sim, junto ao Platte.

- Queres caçar no sítio para onde vamos?

- Não creio, meu Coronel. Não sou grande caçador e prefiro ficar metido no saco. O meu Coronel sabe, é manhã de domingo.

- Bem sei - disse o Coronel. - Podes ficar no saco até à tarde, se quiseres.

- Trouxe um soporífero. Tenho de dormir bem.

- Tenho a certeza que não precisarás disso - disse o Coronel. - Trouxeste rações K? Bem sabes que é provável que eles só tenham comida italiana.

- Trago aqui umas latas para ajudar e mais umas coisas.

- Bom - disse o Coronel.

Olhava agora em frente, para ver o sítio onde a estrada do canal ligava à auto-estrada. Sabia que num dia tão claro como este havia de o distinguir. Para lá dos pântanos castanhos como os que no Inverno há no Mississipi próximo de Lilot Town, e dos juncos vergados à nortada forte, via-se a torre quadrada da igreja de Torcello e mais para lá, o alto campanile de Burano. O mar parecia uma ardósia azul, e podia ver as velas de doze barcas arrastadas pelo vento em direcção a Veneza.

Tenho de esperar até atravessarmos o Dese, acima de Noghera, para a ver perfeitamente pensou ele. É estranho recordar como naquele Inverno combatemos junto ao canal para a defender e como nunca a vimos. Foi só uma vez, quando já estava lá para as bandas de Noghera, num dia claro e frio como hoje, que a vi através da água. De qualquer modo, é a minha cidade, porque foi por ela que combati quando era rapaz e agora que já tenho metade de cem anos, eles sabem que foi por ela que combati e tratam-me bem. Sabes se é por isso que eles te tratam bem? perguntou a si próprio.

Talvez me tratem bem porque sou coronel do exército que ganhou. Não, não acredito. Espero que assim não seja. Isto não é a França, pensou ele.

Combate-se primeiro por uma cidade que se ama, com muita cautela para nada quebrar e depois, se há bom senso , deve-se ter o cuidado de nunca mais voltar lá, por causa de algumas personalidades militares que estarão sempre ressentidas por termos combatido pela cidade. Vive la France et les pommes de terre frites. Liberté, Venalité, et Stupidité. A grande clarté do pensamento militar francês. Não têm, aliás, um pensador militar desde du Pieq, que também era um pobre e sangrento Coronel.

Magin, Maginot e Gamelin. Escolham, senhores. Três escolas de pensamento. Primeira: dou-lhes um soco no nariz. Segunda: escondo-me atrás desta coisa que não me cobre o flanco esquerdo. Terceira: escondo a cabeça na areia como a ostra, confiante na grandeza da França e no poder militar e depois safo-me.

E safar-se é pôr as coisas de modo agradável e asseado. Está visto, pensou, sempre que começamos a simplificar tornamo-nos injustos. Lembra-te de todos os valentes da Resistência, lembra-te de Foch tão combativo como organizado e lembra-te de como as pessoas eram boas. Lembra-te dos teus bons amigos, e lembra-te dos teus mortos. Lembra-te de tantas coisas e novamente dos teus melhores amigos e, das mais belas pessoas que conheceste. Não sejas áspero nem estúpido. E que tem isto que ver com o negócio da carreira militar? Acaba com isso, disse de si para si. Estás a passear para te divertires.

- Jackson - disse ele - és feliz?

- Sim, meu Coronel.

- Bem. Daqui a pouco chegamos a um sítio que eu quero que tu vejas. Basta apenas dar uma mirada. Não custa nada.

Quem me dera adivinhar o que ainda está para me acontecer, pensou o condutor. Lá porque chegou uma vez a postos de comando julga que sabe tudo. Se era assim tão bom no comando, por que é que não continuou? Apanhou tantas que agora está aparvalhado.

- Cá está o sítio, Jackson - disse o Coronel. - Pára junto à berma e vamos dar uma vista de olhos.

O Coronel e o condutor caminharam até ao lado da estrada que dava para Veneza e olharam para a lagoa fustigada pelo vento forte e frio que descia das montanhas e que recortava as silhuetas dos edifícios, de tal modo que pareciam ter sido traçados geometricamente.

- Além, mesmo na nossa frente, está Torcello. - Apontou o Coronel. - Era ali que vivia o povo que foi arrastado da sua terra pelos Visigodos. Construíram aquela igreja que tu vês além com a torre quadrada. Já viveram ali trinta mil pessoas e construíram aquela igreja em honra do Senhor. Depois de já a terem construído, a foz do Sile desviou-se ou uma grande cheia modificou-lhe o curso, e toda esta terra que temos estado a percorrer ficou alagada, começou a gerar mosquitos e a malária atacou-os. Começaram a morrer e logo os mais velhos se reuniram e decidiram mudar-se para um local mais saudável que pudesse ser defendido com barcos, e onde os Visigodos e os Lonbardos e outros bandidos não pudessem chegar, porque estes bandidos não tinham poder naval. Os rapazes de Torcello eram todos bons marinheiros. Meteram as pedras das suas casas em barcas iguais às que vimos há pouco e construíram Veneza.

Parou.

- Estou a aborrecer-te, Jackson?

- Não, meu coronel. Eu não tinha a mínima ideia de quem teriam sido os pioneiros de Veneza.

- Foram os rapazes de Torcello. Eram rijos mas tinham muito gosto para a arquitectura. Eram naturais de uma pequena região costeira chamada Caorle. Mas arrasaram atrás deles toda a gente das cidades e das herdades quando os Visigodos os expulsaram. Foi um rapaz de Torcello, ao combater em Alexandria, quem descobriu o corpo de São Marcos e o fez passar debaixo de uma carga de carne de porco, o que impediu que os infiéis, por causa dos seus costumes, o descobrissem. Este rapaz trouxe os restos do santo para Veneza e por isso São Marcos é o patrono da cidade e o povo construiu-lhe uma catedral. Mas nessa altura eles negociavam tanto com o Oriente que até a arquitectura é demasiadamente bizantina para o meu gosto.

Nunca voltaram a construir nada mais belo do que ao princípio, em Torcello. Ali está Torcello.

E de facto estava.

- A praça de São Marcos é aquela onde há muitos pombos e uma grande catedral que parece um palácio daqueles que há no cinema, não é verdade, meu Coronel?

- É sim, Jackson. Se esse é o aspecto que tu lhe achas, então acertaste. Agora olha para lá de Torcello e vê o belo campanile que tem uma história quase tão completa como a torre inclinada de Pisa. Burano é uma pequena ilha muito populosa, onde as mulheres fazem rendas maravilhosas e os homens fazem meninos e trabalham o dia inteiro nas fábricas de vidro daquela ilha que tu vês, com outro campanile, e que é Murano. Fazem coisas maravilhosas de vidro para os ricos de todo o mundo e depois voltam para casa no vaporetto e fazem meninos. Isto não quer dizer que todos passem sempre a noite inteira com as mulheres. À noite também caçam patos com grandes espingardas, nas margens dos pântanos da lagoa que estás a ver. Se há luar, ouvem-se os tiros durante toda a noite.

Fez uma pausa.

- Agora quando se olha para Murano já se vê Veneza. É a vizinha cidade. Ainda te podia mostrar muitas outras coisas mas é melhor irmo-nos embora. Olha mais uma vez. É aqui que tu podes ver como tudo aconteceu, mas mais ninguém costuma fazer isto.

- É um belo espectáculo. Obrigado, meu Coronel.

- OK. - disse o Coronel. - Vamos embora.

 

Mas continuou a olhar e tudo era tão maravilhoso e comovia-o tanto, como quando tinha dezoito anos e vira aquilo pela primeira vez, sem nada compreender, sabendo apenas que era belo e mais nada. Naquele ano o inverno fora muito frio e para lá da planície, as montanhas estavam brancas, cobertas de neve. Os austríacos tentaram romper no ângulo onde o Sile e o velho leito do Piave eram as únicas linhas de defesa.

Se conseguirmos manter o velho leito do Piave ainda fica o Sile enquanto as primeiras linhas aguentarem. Atrás do Sile nada mais havia além da planície nua e de uma boa rede de estradas que leva às planuras de Veneto e da Lombardia, e os Austríacos atacavam e voltavam a atacar durante todo o inverno, tentando atingir esta bela estrada por onde eles agora corriam e que segue directamente até Veneza. Naquele inverno, o Coronel, que ainda era apenas tenente num exército estrangeiro - o que depois, no seu próprio exército, o tornou ligeiramente suspeito e não trouxe proveito algum à sua carreira -, esteve sempre doente da garganta devido ao muito tempo que esteve dentro de água. Ninguém conseguia secar-se e por isso o melhor era deixar-se molhar rapidamente e ficar molhado.

Os ataques austríacos eram mal coordenados, mas eram constantes e exasperadores; primeiro vinha o bombardeamento de artilharia pesada que se supunha pôr-nos fora de combate e quando cessava, trocávamos as posições e contávamos os homens. Mas não havia tempo para cuidar dos feridos, visto saber-se que o ataque vinha logo a seguir e depois começávamos a matar os homens que se arrastavam nos pântanos, mantendo as espingardas fora de água e aproximando-se tão lentamente quanto pode um homem mergulhado na água até à cintura.

Se não suspendiam o bombardeamento mal o haviam começado, o Coronel, que então ainda era tenente, pensava muitas vezes que já não sabia o que poderia fazer. Mas eles suspendiam-no sempre e alongavam o tiro sobre o ataque. Seguiam os livros.

Se perdíamos o velho Piave e ficávamos no Sile, eles recuavam para a segunda e terceira linhas; embora essas linhas fossem praticamente insustentá-veis, eles aproximavam todos os canhões e atacavam continuamente para ver se conseguiam abrir uma brecha. Mas graças a Deus que alguns patetas contro-lavam as operações, pensava o Coronel.

Por todo o inverno, doente da garganta, tinha morto homens que se aproximavam com as bombas fixadas num arnês preso aos ombros, e com pesadas mochilas de couro e capacetes que pareciam baldes. Eram o inimigo.

Mas nunca os odiara; nem podia sentir nada por eles. Comandava, com uma velha meia que tinha embebido em terebentina enrolada ao pescoço, e detinha os ataques com o fogo das espingardas e com as metralhadoras que ainda existiam ou que, depois do bombardeamento, ainda estavam em condições. Ensinou os seus homens a disparar de facto, o que é uma habilidade rara nas tropas continentais, e também os ensinou a olhar de frente para o inimigo que se aproximava, e como havia sempre um momento em que o tiro era livre, tornaram-se bons atiradores.

Mas era sempre preciso contar e recontar rapidamente após cada bombar-deamento para saber quantos atiradores restavam. Foi ferido três vezes naquele inverno, mas foram ferimentos leves; pequenas feridas na carne sem quebrar nenhum osso e ele ficara muito confiante na sua imortalidade pessoal, pois sabia perfeitamente que podia ser morto durante os bombardeamentos de artilharia pesada que antecediam os ataques. Por fim acabou por ser ferido com gravidade. Nenhum dos outros lhe causou o que este primeiro grande ferimento lhe fez. Suponho que isto é a perda da imortalidade, pensou ele. Bem, de certo modo, é uma coisa grande que se perde.

Esta terra significava muito para ele, mais do que supunha ou do que seria capaz de dizer e agora ali estava sentado no carro, satisfeito por saber que dentro de meia hora estaria em Veneza. Tomou dois comprimidos de hexanitrato de manitol; desde que se habituara a cuspir, em 1918, podia tomá-los sem água. Perguntou:

- Então como vai isso, Jackson?

- Belo, meu Coronel.

- Mete pela estrada da esquerda quando chegarmos à bifurcação para Mestre. Poderemos ver os barcos no canal e safamo-nos ao tráfego.

- Sim, meu Coronel - disse o condutor. - O senhor avisa-me quando chegarmos à bifurcação?

- Com certeza - disse o Coronel.

Aproximavam-se rapidamente de Mestre e já era como quando se ia pela primeira vez a New Iork, nos velhos tempos, e tudo parecia resplandecente, branco e belo. Estamos a chegar à nossa cidade, pensou ele. Cristo, que linda cidade!

Voltaram para a esquerda e seguiram ao longo do canal a que atracavam barcos de pesca, e o Coronel olhou-os, e o coração bateu-lhe com alegria por causa das redes castanhas, dos cestos de verga, e das linhas asseadas e belas dos barcos. Não é por serem pitorescos. Para o diabo o pitoresco! O que eles são é apenas bonitos.

Ultrapassaram a branca linha de barcos no vagoroso canal que traz a água do Brenta, e ele pensou na longa estirada do Brenta onde havia grandes villas com relvados e jardins, plátanos e ciprestes. Gostava de ser enterrado ali, pensou. Conheço muito bem aquele sítio. Mas não acredito que consiga fixá-lo na memória. Sei de pessoas que podiam deixar sepultar-me na sua terra. Hei-de falar disso a Alberto. É capaz de achar a coisa muito mórbida.

Durante muito tempo andara a pensar em todos os sítios bonitos onde gostaria de ser sepultado e quais as regiões a que gostaria de pertencer. A parte mal cheirosa e putrefacta não dura muito, pensou, e de qualquer modo somos uma espécie de estrume e até os ossos acabarão por ter alguma utilidade. Gostava de ser sepultado à beira dos campos, mas à vista da velha casa graciosa e das grandes e altas árvores. Não acho que fosse coisa que os pudesse aborrecer. Faria parte do chão onde as crianças brincam à tardinha e onde, talvez de manhã, costumam treinar-se nos saltos a cavalo e os cascos ressoariam sobre a turfa, e no lago as trutas saltariam sempre que houvesse vestígios de uma mosca.

Iam agora na estrada de Mestre para Veneza, junto às feias fábricas de Breda que podiam existir em Hammond, Indiana.

- O que é que fabricam aqui, meu coronel? – perguntou Jackson.

- A companhia fabrica locomotivas em Milão - disse o Coronel. - Aqui fazem de tudo um pouco no campo metalúrgico.

Agora o aspecto de Veneza era miserável, e ele nunca gostara desta estrada a não ser por se poupar muito tempo e por se poder ver as bóias nos canais.

- Esta cidade tem vida própria - disse a Jackson. – Foi antigamente a rainha dos mares, e as pessoas daqui são muito duras e dão menos importância às coisas boas de quaisquer outras que possamos encontrar. É uma cidade ainda mais dura do que Cheyenne, se por acaso conheces Cheyenne, mas as pessoas são muito delicadas.

- Eu nunca diria que Cheyenne é uma cidade dura, meu Coronel.

- Bem, então ainda é uma cidade mais dura que Casper.

- Acha que essa também é dura, meu Coronel?

- É uma cidade de petróleo. É uma bela cidade.

- Mas não acho que seja dura, meu Coronel, ou que alguma vez o tenha sido.

- OK, Jackson. Talvez nós estejamos a falar de coisas diferentes. Ou talvez para nós a palavra tenha significados diferentes. Mas esta cidade de Veneza, onde toda a gente é delicada e tem bons modos, é tão dura como Cooke City, em Montana, no dia do Old Timers Fish Fry.

- A ideia que eu tenho duma cidade dura, é Menphis.

- Não tanto como Chicago. Menphis só se torna dura para os negros. Chicago é-o tanto para os do norte como para os do sul e para ela não há este nem oeste. Mas as pessoas não são delicadas. Neste país, se queres conhecer uma cidade dura onde se come maravilhosamente, vai a Bolonha.

- Nunca lá estive.

- Bem. Ali está a garagem Fiat onde vamos deixar o carro - disse o Coronel. - Podes deixar a chave no escritório. Aqui ninguém rouba. Eu vou ao bar enquanto arrumas o carro. Eles têm cá homens para levar as malas.

- Acha bem deixar a espingarda na mala, meu Coronel?

- Com certeza. Aqui ninguém rouba. Já te disse isso.

- Eu queria apenas tomar certas precauções pelas coisas que lhe pertencem, meu Coronel.

- És uma alma tão nobre que às vezes até cheiras mal – disse o Coronel. - Tira a cera dos ouvidos e ouve bem o que te digo.

- Eu ouvi, meu Coronel. - disse Jackson. O Coronel contemplou-o com olhos rancorosos.

“Que grande estafermo que ele é, pensou Jackson, e contudo, como também sabe ser bom!”

- Tira a minha mala e a tua, arruma o carro aqui e verifica o óleo, a água e os pneus - disse o Coronel e atravessou o cimento riscado de óleo e borracha, à entrada do bar.

 

No bar, na primeira mesa, estava um ricaço milanês do após-guerra, gordo e pesado como só os milaneses podem ser, acompanhado pela amante luxuosa e extremamente desejável. Bebiam negronis, uma mistura de vermutes doces e água sódica, e o coronel pensou em quantos impostos o homem teve de evitar

para comprar aquela rapariga insinuante no seu casaco de martas e o convertível que ele vira, guiado pelo chaufeur, ao longo da rampa comprida e serpeante. O par olhou-o com maus modos e ele saudou-os ligeiramente e disse em italiano:

- Tenho muita pena de estar de uniforme. Mas é um uniforme. Não é um fato de passeio.

Depois voltou-lhes as costas, sem esperar pelo efeito do reparo e caminhou para o bar. Do bar pode-se prestar atenção à bagagem, tal como os dois pescecani faziam.

Provavelmente é um Commendatore, pensou. Ela é um bom pedaço. mesmo muito bonita. Gostava de saber como é que tudo seria se tivesse dinheiro para comprar coisas daquelas e pô-las dentro de casacos de marta? Satisfaço-me com o que tenho, pensou, e eles que se enforquem.

O barman apertou-lhe a mão. Este barman era anarquista mas não se importava que o Coronel fosse Coronel. Ficava deliciado e orgulhoso como se os anarquistas também tivessem coronéis, e, em certos aspectos, durante os meses em que se tinham conhecido, parecia sentir-se como se tivesse inventado, ou pelo menos «construído» o Coronel, tão feliz quanto poderia estar se tivesse participado na construção de um campanile, ou mesmo da velha igreja de Torcello.

O barman ouvira a conversa, ou melhor, a sentença do Coronel junto à mesa do milanês, e ficara muito satisfeito.

Já pedira Gin Gordon e Gampari ao criado silencioso e disse:

- Como vão as coisas em Trieste?

- Tal e qual como deve imaginar.

- Nem sequer imagino.

- Então não se esforce, - disse o Coronel - e nada perderá com isso.

- Se fosse Coronel, era coisa que não me interessava.

- Pois eu nunca me interesso.

- Vai ficar saturado como se tivesse bebido uma dose de sal - disse o criado.

- Não diga nada ao Ilustre Pacciardi - disse o Coronel.

Isto era uma brincadeira entre ele e o barman porque o Ilustre Pacciardi era Ministro da Defesa da República Italiana. Tinha a mesma idade que o Coronel, combatera muito bem na Primeira Grande-Guerra e também na Espanha, como Comandante de Batalhão, onde o Coronel o conhecera quando por lá andava, como observador. A seriedade com que o Ilustre Pacciardi aceitara o posto de Ministro da Defesa de um país sem defesa, constituía uma espécie de laço de união entre o Coronel e o barman. Ambos eram pessoas muito práticas e a visão do Ilustre Pacciardi a defender a República Italiana estimulava-lhes o espírito.

- Isto aqui é uma pândega - disse o Coronel - e não me importo nada com isso.

- Temos de mecanizar o Ilustre Pacciardi - disse o barman - e fornecer-lhe a bomba atómica.

- Tenho três mil ali na mala do carro - disse o Coronel.

- O novo modelo com cabo e tudo. Mas não podemos deixá-lo desarmado. Vamos abastecê-lo com botulina e antrazes.

- Não podemos abandonar o Ilustre Pacciardi - disse o barman. - É melhor viver um dia como leão do que cem anos como carneiro.

- É melhor morrer em pé do que de joelhos - disse o Coronel. - Embora em muitos lugares seja melhor deitarmo-nos no chão a toda a pressa se quisermos ficar vivos.

- Coronel, não diga coisas subversivas!

- Torcemos-lhes o pescoço com as nossas mãos - disse o Coronel. - Um milhão de homens serão armados numa única noite.

- E de quem são as armas? - perguntou o barman.

- Isso são coisas que se resolvem - disse o Coronel. – Isto é apenas uma fase do Grande Plano.

Naquele momento o condutor surgiu à entrada. O Coronel reparou que durante todo o tempo em que estivera a conversar com o barman, o condutor não observara a porta e ficou aborrecido, como sempre ficava com qualquer falta de vigilância ou de segurança.

- Que demónio tens estado a vigiar, Jackson? Toma uma bebida.

- Não meu Coronel, muito obrigado.

Grande estafermo, pensou o Coronel. Mas é melhor deixá-lo tranquilo, corrigiu em seguida.

- É só mais um minuto - disse o Coronel. - Estive a tentar aprender italiano aqui com o meu amigo. - Voltou-se para olhar para os açambarcadores de Milão, mas já tinham saído.

Estou a ficar lento, pensou. Qualquer dia ainda alguém me apanha. Talvez mesmo o Ilustre Pacciardi, pensou.

- Quanto devo? - perguntou ao barman.

O barman respondeu e ficou-se a olhá-lo com olhos espertos de italiano que agora já não eram alegres, embora as linhas da alegria estivessem claramente vincadas desde os cantos dos olhos. Espero que tudo lhe esteja a correr bem, pensou o barman. Queira Deus, ou quem quer que seja, que tudo lhe esteja a correr bem.

- Adeus, meu Coronel - disse ele.

- Ciao - disse o Coronel. - Jackson, vamos pela rampa até à saída e depois ao sítio onde as lanchas estão atracadas. As envernizadas. Há aí um carregador que leva as duas malas. É preciso deixá-los levá-las visto que eles têm essa concessão.

- Sim, meu Coronel - disse Jackson.

Saíram ambos do bar sem olhar para trás.

No imbarcadero, o Coronel gratificou o homem que levara as duas malas e depois procurou com a vista um barqueiro conhecido.

Não reconheceu o homem da lancha que apareceu, mas o barqueiro disse:

- Bom dia, meu Coronel. Sou o primeiro a chegar.

- Quanto levas até ao Gritti?

- O senhor sabe tão bem como eu, meu Coronel. Não faço preços de pechincha; temos uma tarifa fixa.

- Qual é a tarifa?

- Três mil e quinhentas.

- Podíamos ir no vaporetto por sessenta.

- E nada o impede de ir - disse o barqueiro que era um homem de rosto vermelho mas prazenteiro. - Eles não o levam ao Gritti, mas param no imbarcadero próximo do Harry's, e o senhor pode telefonar para o Gritti a pedir que lhe venham buscar as bagagens.

E o que é que eu comprava com as três mil e quinhentas liras? E este barqueiro é um bom velhote!

- Podes mandar lá aquele homem? - apontou para um velho destroçado que tinha as mais estranhas profissões e fazia recados nas docas, sempre pronto com um auxílio desnecessário a pegar no braço do passageiro que descia ou entrava, sempre pronto a ajudar quando ninguém necessitava de ajuda, sempre a tirar o velho chapéu de feltro quando fazia uma vénia depois da ajuda desnecessária.

- Ele leva-o até ao vaporetto. Há um de vinte em vinte minutos.

- Para o inferno com o vaporetto - disse o Coronel.

- Leva-nos ao Gritti.

- Con piacere - disse o barqueiro.

O Coronel e Jackson desceram para a lancha que parecia um barco de corrida. Estava radiosamente envernizada, bem conservada e munida com transformado, um motor Fiat que cumprira o seu dever no carro de um médico da aldeia, e que fora comprado num cemitério de automóveis, num desses cemitérios de elefantes mecânicos, a única coisa certa que no nosso mundo sempre encontramos perto de qualquer grande centro de população, e que depois fora restaurado e adaptado para iniciar uma nova vida nos canais da cidade.

- Como é que vai o motor? - perguntou o Coronel. Podia ouvir o trepidar idêntico ao de um blindado, excepto que os ruídos eram mais fracos devido à falta de força.

- Assim, assim - disse o barqueiro. Agitou a mão que tinha livre num meneio vago.

- Devias arranjar o modelo mais pequeno da Universal. É o melhor e o mais leve motor marítimo que conheço.

- É verdade - disse o barqueiro. - Há uma quantidade de coisas que eu devia arranjar.

- Pode ser que o ano te corra bem.

- É sempre possível. Dezenas de pescecani vêm de Milão para jogar no Lido. Mas ninguém anda duas vezes nesta coisa. Como barco, é bom. É um barco agradável e bem construído. Está claro que não é tão bonito como uma gôndola. Mas precisa dum motor.

- Talvez te possa arranjar um motor de jeep. Um que já esteja condenado e depois podias repará-lo.

- Não me diga coisas dessas - disse o barqueiro. – Coisas dessas não acontecem. Nem quero pensar nisso.

- Podes ir pensando - disse o Coronel. - Estou a falar a sério.

- Parece.

- Com certeza. Não garanto nada. Vou ver o que se pode fazer. Quantos filhos tens tu?

- Seis. Dois rapazes e quatro raparigas.

- Demónio, não devias ter acreditado no Regime. Nada menos que seis!

- Eu nunca acreditei no Regime.

- Não precisas de me dizer essas coisas - disse o Coronel. – É muito natural que tenhas acreditado no Regime. Supões que sou daqueles que acusam um homem por causa disso, depois de termos vencido?

Iam agora na zona mais feia do canal, entre a Piazzale Roma e Ca' Foscari, embora nenhum destes locais fosse feio, como o Coronel pensava.

Nem todas as coisas podem ser palácios e igrejas. Certamente nada disto é feio. Olhou para a direita, para estibordo, pensou. Estou a navegar. Era um comprido edifício, longo e agradável e junto dele havia uma trattoria.

Tenho de viver aqui. Com a reforma podia muito bem fazê-lo. No Gritti. Um quarto numa casa daquelas, a ver os barcos e as marés. De manhã podia ler, passear pela cidade antes do almoço, e ir à Academia, ver Tintorettos, ou à Scuola San Rocco ou almoçar em casas de pasto baratas atrás do mercado; ou talvez a mulher que tratasse da casa pudesse cozinhar à tarde.

Acho que seria melhor almoçar fora e passear um pouco. Uma boa cidade para passear. Desconfio que provavelmente é a melhor. Nunca passeei aqui que não me divertisse. Podia ficar a conhecê-la bem, pensou.

É uma cidade estranha e confusa e passear de um lado para o outro é melhor do que resolver quebra-cabeças. Uma das poucas coisas a nosso favor é que nunca a destruímos, e um favor deles é o facto de respeitarem isso.

Cristo, amo-a, disse ele, e estou tão satisfeito por a ter defendido quando era ainda garoto, com conhecimentos de linguagem insuficientes para comandar, e de nunca a ter visto a não ser naquele dia claro de Inverno, quando me dirigi à retaguarda para tratar um ferimento leve e a vi, erguendo-se do mar. Merda, pensou ele, nós conduzimo-nos muito bem naquele Inverno.

Quem me dera poder combater outra vez, pensou. Sabendo o que sei e possuindo o que agora temos. Mas eles também haviam de ter essas coisas e o problema essencial seria o mesmo, excluída a vantagem para quem tem o domínio aéreo.

Durante todo este tempo estivera a observar as linhas do barco belamente envernizado, com frisos delicados de latão e todos os frisos bem polidos a cortarem a água, e a ver os pequenos problemas de tráfego.

Passaram sob a ponte branca e sob a inacabada ponte de madeira. Depois deixaram à direita a ponte vermelha e passaram debaixo da primeira grande ponte. Em seguida vinha a ponte de ferro negro no canal que dá para o Rio Nuovo e passaram junto dos dois postes presos por cadeias um ao outro, mas sem se tocarem. Viu como a corrente passava por eles e como as cadeias tinham gasto a madeira desde o dia em que as vira pela primeira vez. Isto é para nós, pensou. É o nosso monumento. E quantos monumentos nossos não há nos canais desta cidade?

Depois seguiram lentamente até à lanterna, à direita da entrada do Grande Canal, onde o motor iniciou uma agonia metálica que produziu um ligeiro aumento de velocidade. Agora, junto da Academia, por onde seguiam, passava a curta distância um barco movido a óleo, pesadamente carregado de madeira cortada em cepos para queimar nas lareiras das casas húmidas da Cidade do Mar.

- Aquilo é madeira de faia, não é? - perguntou o Coronel ao barqueiro.

- Faia ou outra madeira mais barata de cujo nome não me recordo agora.

- A faia é para as lareiras o que o carvão de antracite é para os fogões. Onde é que cortam aquela faia?

- Não sou da montanha. Mas parece-me que vem das proximidades de Bassano, no outro lado do Grappa. Fui ao Grappa ver o sítio onde o meu irmão está enterrado. Foi uma excursão que fizeram a Bassano e nós fomos ao grande ossário. Mas voltámos por Feltre. Pude ver que a região tinha boa madeira na zona que se estende da montanha até ao vale. Viemos pela estrada militar e andavam por ali a derrubar muitas árvores.

- Em que ano é que o teu irmão foi morto no Grappa?

- Em 1918. Era patriota e ficou todo entusiasmado com os discursos de D'Annunzio e por isso ofereceu-se antes da sua classe ser chamada. Nunca chegámos a conhecê-lo bem, pois foi-se muito novo.

- Quantos eram na tua família?

- Éramos seis. Perdemos dois em Isonzo, um em Bainsizza e um no Garso. Depois, no Grappa, perdemos este irmão de que lhe falei e só fiquei eu.

- Hei-de arranjar-te o raio do jeep completo, - disse o Coronel. - Vamos deixar de ser mórbidos e vejamos todos estes sítios onde vivem os meus amigos.

Subiam agora o Grande Canal e era fácil ver os sítios onde os amigos viviam.

- Esta é a casa da condessa Dandolo - disse o Coronel.

Não disse, mas pensou que ela tinha mais de oitenta anos e era tão jovial como uma rapariga, e não tinha medo de morrer. Pinta o cabelo de vermelho e fica-lhe muito bem. É uma grande companheira e uma mulher admirável.

O seu Palazzo era agradável, afastado do canal, com um jardim à frente do cais particular onde tantas gôndolas haviam atracado em épocas tão diferentes, trazendo pessoas sinceras, alegres, tristes e desiludidas. A maioria chegara sempre alegre porque ia encontrar a condessa Dandolo.

Agora, subindo o Canal contra o vento frio das montanhas, com as casas claras e nítidas como num dia de Inverno, que, afinal, era mesmo de Inverno, admiravam a velha magia da cidade e a sua beleza. Mas, para o Coronel, tudo estava condicionado à recordação das muitas pessoas conhecidas que viviam nos palazios; ou, se já não viviam lá, havia a preocupação de descobrir qual o uso que os diferentes locais teriam agora.

Ali é a casa da mãe do Alvarito, pensou ele, mas nada disse.

Nunca vive ali muito tempo; está quase sempre fora, numa casa de campo próximo de Treviso, onde têm árvores. Está cansada de não ver árvores em Veneza. Perdeu um bom marido e agora já nada lhe interessa, além da eficiência.

Mas houve tempo em que a família alugou a casa a George Gordon, Lord Byron, e hoje nunca dormem na cama de Byron ou na outra, dois pisos abaixo, onde ele costumava deitar-se com a mulher do gondoleiro. Não são sagradas nem são relíquias. São apenas camas de reserva que por muitos motivos nunca mais foram usadas, ou possivelmente para respeitar Lord Byron, que sempre foi muito amado nesta cidade apesar dos erros que cometeu. Temos de ser uns rapazes às direitas nesta cidade, para sermos amados pensou o Coronel. Nunca ligaram importância a Robert Browning, ou à sr.a Browning, ou ao seu cão. Nunca conseguiram ser venesianos embora ele tenha dito muito bem da cidade. E o que é um rapaz às direitas, pensou ele. Diz-se isso tantas vezes que devíamos ser capazes de o definir. Suponho que é um homem que faz o seu papel e depois se retira. Ou apenas um homem que retira o seu papel. E não estou a pensar no teatro, pensou. Adorável, como só o teatro pode ser.

E lá está, pensou ele, ao ver agora a pequena villa junto à água, feia como qualquer edifício que se pode ver do barco do Havre para Cherbourg, ou nos arredores de Paris quando nos dirigimos para a cidade. Estava infestada de árvores mal tratadas e não era de modo algum um daqueles lugares onde se gostaria de viver. Ali vivera ele.

Adoravam-no pelo seu talento e porque era mau e valente. Judeu sem nada, fustigou o país com o seu génio e com a sua retórica. Como carácter era do mais miserável que já conheci. Mas o homem com quem eu o comparo nunca pôs gravetos no braseiro e foi para a guerra, pensou o Coronel, e Gabriele d'Annunzio (tive sempre curiosidade em saber qual seria o seu verdadeiro nome, pensou ele, porque ninguém se chama d'Annunzio numa terra de gente prática e talvez não fosse judeu; também que diferença faz que fosse ou não fosse?), saltou de arma para arma, do mesmo modo que saltava para os braços de mulheres diferentes.

Todas as armas em que d'Annunzio serviu eram agradáveis e as missões de que se encarregou eram fáceis e rápidas, excepto o caso da Infantaria. Recordava-se de como d'Annunzio perdera um olho num desastre, quando voava como observador sobre Trieste ou Pola e como depois usava sempre uma pala e as pessoas que nada sabiam, porque nessa época nada se sabia, pensavam que tinha sido atingido em Veliki ou San Michele, ou em qualquer outro local para lá do Garso, onde todos morreram, ou que se saiba, ficaram estropiados. Mas d'Annunzio era o único que fazia gestos heróicos com as coisas dos outros. Um soldado de Infantaria sabe coisas estranhas, pensou; talvez as mais estranhas. Ele, Gabriele, voava mas não era aviador. Estava na Infantaria mas não era soldado de Infantaria e tinha sempre as mesmas aparências.

E o Coronel lembrava-se de quando tinha comandado um pelotão de tropas de assalto, num desses invernos intermináveis em que chove sempre; ou, pelo menos, recordava-se de quando havia paradas ou discursos às tropas, e d'Annunzio, com o olho cego coberto por uma pala, o rosto branco, branco como o ventre de uma solha que alguém vira no mercado encobrindo-lhe a parte castanha e que parece morta há trinta horas, gritava: Morire non è basta. E o Coronel, que então era tenente, pensava: “Que outro esterco querem eles de nós?” Mas seguira o discurso e no fim, quando o Tenente-Coronel d'Annunzio, escritor e herói nacional, assegurando que devemos ter heróis - e o Coronel não acreditava em heróis -, pediu um minuto de silêncio pelos mortos gloriosos, perfilou-se respeitosamente. Mas o seu pelotão, que não tinha seguido o discurso, porque ainda não se utilizavam altifalantes, e que por isso não conseguira ouvir o orador, respondeu, numa só voz, ao pedido de silêncio pelos mortos gloriosos, com um sólido e estridente, “Evviva d'Annunzio”.

Já anteriormente tinham ouvido discursos de d'Annunzio depois de vitórias e antes de derrotas, e sabiam o que deveriam fazer se o orador fizesse alguma pausa.

O Coronel, que era então Tenente, e que amava o seu pelotão, juntou-se-lhe e gritou com voz de comando «Evviva d'Annunzio”, assim absolvendo todos os que não tinham ouvido o discurso, oração ou arenga, e tentando partilhar as culpas com as fracas possibilidades que um tenente tem para tentar qualquer coisa, excepto quando não resiste numa posição indefensável, ou dirige com inteligência o seu quinhão no ataque.

Mas agora ultrapassava a casa onde o nosso homem vivera com a sua grande, triste e raras vezes amada actriz, e pensou nas mãos maravilhosas que ela tinha, no rosto tão expressivo que não era belo mas que poderia oferecer todo o amor, glória, encanto e tristeza, e no modo como a curva do seu antebraço podia despedaçar um coração. E pensou: Cristo, estão ambos mortos e nem sequer sei onde qualquer deles foi sepultado. Mas espero que se tenham divertido muito naquela casa.

- Jackson - disse ele -, aquela villa, à esquerda, pertenceu a Gabriele d'Annunzio que foi um grande escritor.

- Sim, meu Coronel - disse Jackson. - Estou satisfeito por saber isso. Nunca tinha ouvido falar dele.

- Eu indico-te o que ele escreveu se por acaso quiseres lê-lo - disse o Coronel. - Há traduções inglesas muito boas.

- Obrigado, meu Coronel - disse Jackson. - Gostava de lê-lo quando tivesse tempo. É uma casa muito agradável. Que nome disse que era?

- D'Annunzio - disse o Coronel. - Escritor.

E acrescentou para si próprio, não querendo confundir Jackson nem tornar-se difícil para com o homem, como já o fora várias vezes naquele dia, escritor, poeta, herói nacional, propagandista da dialéctica do Fascismo, egotista macabro, aviador, comandante de um dos primeiros torpedeiros rápidos de ataque, Tenente-Coronel de Infantaria sem saber comandar uma companhia, nem sequer um pelotão, o grande, amado escritor do Nocturno que todos nós respeitamos e desprezamos.

Mais para a frente havia um cruzamento de gôndolas em Santa Maria del Giglio e, a seguir, a doca de madeira do Gritti.

- Aquele é o hotel onde vamos ficar, Jackson.

O Coronel indicou o pequeno e agradável palácio pintado de cor-de-rosa, com três andares, confinando-se no Canal. Fora uma dependência do Grande Hotel, mas agora era um hotel independente e muito bom. Provavelmente era o melhor, para quem não desejasse ser adulado, ou inquieto, ou tratado com servilismo, numa cidade de grandes hotéis, e o Coronel amava-o.

- Parece-me esplêndido, meu Coronel - disse Jackson.

- É esplêndido - disse o Coronel.

O barco chegou heroicamente ao pontão da doca. Cada movimento que faz, pensou o Coronel, é um triunfo de valentia do velho motor. Agora já não temos cavalos de batalha, como o velho Traveller ou o Lysette de Marbot que em Eylau combateu pessoalmente. Temos a valentia das engrenagens gastas que recusam estoirar, a cabeça do cilindro que não rebenta, embora tenha todo o direito de o fazer, e tudo o resto.

- Chegámos à doca, meu Coronel - disse Jackson.

- Onde diabo havíamos de chegar, homem? Salta lá para fora enquanto faço contas com este cavalheiro.

Voltou-se para o barqueiro e disse:

- São três mil e quinhentas, não é verdade?

- Sim, meu Coronel.

- Não me esqueço do motor de jeep. Toma lá e compra aveia para os teus cavalos.

O porteiro, que estava a receber as malas que Jackson lhe entregava, ouviu isto e riu.

- Nenhum veterinário lhe trataria do cavalo.

- Ainda anda - disse o barqueiro.

- Mas já não ganha corridas - disse o porteiro. – Como passa, meu Coronel?

- Não podia estar melhor - disse o Coronel. - Como estão todos os membros da Ordem?

- Todos os membros estão bem.

- Bom - disse o Coronel. - Vou já ter com o Grande Mestre.

- Não o façamos esperar, Jackson - disse o Coronel. – vai até à recepção com este senhor e diz-lhe para me inscreverem no registo. Arranje um quarto para o sargento - disse ao porteiro. - Só cá ficamos esta noite.

- O Barão Alvarito esteve cá à sua procura.

- Encontro-o de certeza no Harry's.

- Muito bem, meu Coronel.

- Onde está o Gran Maestro?

- Vou já procurá-lo.

- Diga-lhe que estou no bar.

 

O bar ficava mesmo em frente do vestíbulo do Gritti, embora «vestíbulo», pensava o Coronel, não fosse o termo adequado para descrever aquela entrada graciosa. Não foi Giotto quem descreveu um círculo, pensou ele? Não, na matemática é que se faz isso. A anedota de que sempre se recordava e de que mais gostava acerca desse pintor, era: «Foi fácil», disse Giotto quando desenhou o círculo perfeito. Quem é que disse uma coisa dessas e onde é que disse?

- Boa tarde, senhor Conselheiro Particular - disse ao barman que não era membro da ordem mas que ele não desejava ofender. - Em que posso servi-lo?

- Bebendo, meu Coronel.

O coronel olhou as águas do Grande Canal pelas janelas do bar. Podia ver o grande poste negro onde se amarravam as gôndolas e a última claridade da tarde de inverno que se reflectia na água encrespada pelo vento. Na margem em frente estava o velho Palácio, e uma barca, negra, negra e larga, vinha subindo o Canal, o costado grosseiro fendendo a água com dificuldade, embora tivesse o vento de feição.

- Dá-me um Martini seco - disse o Coronel. - Seco.

Naquele momento o Grande Mestre entrou na sala. Vestia a indumentária normal de chefe de criados. Era tão elegante quanto um homem pode ser de dentro para fora, de modo que o seu sorriso brotava do coração, ou de qualquer ponto no centro do corpo, e subia com franqueza à superfície, que é o rosto. Tinha um rosto delicado e nariz recto e comprido que indicava a proveniência de Veneto: os olhos eram alegres, serenos e verdadeiros, e o cabelo honrada-mente branco, pois era dois anos mais velho que o Coronel.

Avançava sorrindo com bondade, e contudo com um certo ar de conspi-ração, visto que ambos partilhavam muitos segredos, e estendia a mão, que era grande, longa, forte, com dedos que pareciam espátulas; vinha, porém, com muita compostura, tanta quanta lhe era necessária, e o Coronel estendeu-lhe a mão que já duas vezes fora atingida por tiros e que, por isso, estava ligeira-mente deformada. Assim se estabeleceu contacto entre dois velhos habitantes do Veneto, ambos homens e irmãos na irmandade da raça humana, o único clube a que ambos pertenciam, e também no amor que dedicavam à velha terra que tanto combatera mas que sempre triunfara na derrota, e que ambos tinham defendido quando eram jovens.

O seu aperto de mãos foi suficientemente longo para que ambos sentissem com firmeza o prazer do encontro e depois o Maitre d'Hotel disse:

- Meu Coronel.

O Coronel disse:

- Gran Maestro.

Depois o Coronel pediu ao Gran Maestro que o acompanhasse numa bebida, mas o Maitre d'Hotel disse que estava de serviço. Era não só impossível mas até proibido.

- Estupidamente proibido - disse o Coronel.

- É certo - disse o Gran Maestro. - Mas devemos conformar-nos com o vosso dever e aqui os regulamentos são razoáveis e todos nós devemos conformar-nos: eu, especialmente, por uma questão de preceito.

- Não é sem razão que és o Gran Maestro - disse o Coronel.

- Dá-me um pequeno Carpano punto e mezzo - disse o Gran Maestro ao barman, que ainda não pertencia à ordem por razões inqualificáveis e mal definidas. - Para beber à saúde da ordine.

Assim, violando ordens, o princípio do preceito e o exemplo do comando, o Coronel e o Gran Maestro engoliram uma rápida bebida. Não estavam com pressa, nem o Gran Maestro estava aborrecido. Simplesmente, foram rápidos a bebê-la.

- Agora discutamos assuntos da Ordem - disse o Coronel. - Estamos na câmara secreta?

- Estamos - disse o Gran Maestro. - Ou declaro-a como tal.

- Continua - disse o Coronel.

A ordem, que era uma organização puramente fictícia, tinha sido fundada durante uma série de conversas entre o Gran Maestro e o Coronel. O seu nome era El Ordine Militar Nobile y Espirituoso de los Caballeros de Brusadelli. O Coronel e o chef de criados falavam espanhol, que era a melhor língua para fundar ordens, e usaram-na para baptizar esta, que recebeu o seu nome depois de um notável multi-milionário de Milão, para fugir ao fisco, no decorrer de uma disputa sobre a propriedade, ter acusado a jovem esposa, pública e legalmente por meio de um processo, de o ter impedido dos seus deveres por causa de extraordinárias exigências sexuais.

- Gran Maestro - disse o Coronel. - Tens tido notícias do nosso respeitável Chefe?

- Tem uma palavra. Há alguns dias que não fala.

- Deve estar a pensar em alguma.

- Deve estar.

- Talvez esteja a tramar novos feitos ainda mais vergonhosos.

- Talvez. Não me tem dito nem uma palavra.

- Mas podemos confiar dele.

- Até à morte. - disse o Gran Maestro. - Depois de morrer fica a assar no inferno e nós veneraremos a sua memória.

- Giorgio - disse o Coronel: - Dá outro Carpano ao Gran Maestro.

- Se assim ordena... - disse o Gran Maestro. - Eu só posso obedecer.

Bateram os copos.

- Jackson - chamou o Coronel. - Estás numa cidade, rapaz. Podes comer aqui. Só te quero ver amanhã às onze no vestíbulo, a menos que te metas em sarilhos. Tens dinheiro?

- Sim, meu Coronel - disse Jackson e pensou, o velho filho de uma cabra é mesmo tão desaparafusado como dizem. Pelo menos podia ter-me chamado em vez de gritar.

- Não quero ver-te - disse o Coronel.

Jackson entrara na sala e estava em frente dele com aspecto de quem presta atenção.

- Estou cansado de te ver, porque tu estás sempre preocupado e nunca te divertes. Por amor de Deus, diverte-te!

- Sim, meu Coronel.

- Compreendeste o que eu disse?

- Sim, meu Coronel.

- Repete.

- Ronald Jackson, T 5, Número de Série 100 678, apresentar-se-á no vestíbulo do Hotel Gritti amanhã às onze horas. Não sei a data, meu Coronel, mas devo desaparecer da vista do Coronel e divertir-me. Ou - acrescentou, - fazer todas as tentativas para atingir esse objectivo.

- Desculpa, Jackson - disse o Coronel. - Sou uma pessoa muito aborrecida.

- Peço desculpa de não concordar com o Coronel – disse Jackson.

- Obrigado, Jackson - disse o Coronel. - Talvez não seja. Espero que tenhas razão. Agora desaparece. Tens aqui um quarto, ou deves ter, e podes jantar aqui. Diverte-te.

- Sim, meu Coronel, - disse Jackson.

Quando saiu, o Gran Maestro disse ao Coronel:

- O que tem o rapaz? É um desses americanos tristes?

- Sim - disse o Coronel. - E por Jesus Cristo, que agora há muitos. Tristes, virtuosos, super-alimentados e sem treino. Se não têm treino a culpa é minha. Mas também há alguns dos bons.

- Acha que fariam o Grappa, Pasubio e o Basso Piave como nós fizemos?

- Os bons, sim. Talvez melhor. Mas bem sabes que no nosso exército eles nem disparam para se ferirem a si próprios.

- Jesus - disse o Gran Maestro. Ele e o Coronel lembravam-se dos bons que decidiam não morrer, sem sequer pensarem que aquele que morre numa quinta-feira não é obrigado a morrer na sexta; bem se lembravam de como um soldado enrolava a perna de um camarada com grevas, para que não ficassem queimaduras de pólvora, e se afastava depois o suficiente para disparar e atingir a barriga da perna sem quebrar o osso, fazendo fogo em seguida por duas vezes, sobre o parapeito, para disfarçar o tiro. Haviam partilhado o conhecimento destes factos e era por essa razão, e por um verdadeiro e sadio ódio a todos os que tiravam proveitos da guerra, que fundaram a Ordem.

Ambos sabiam, pois amavam-se e respeitavam-se mutuamente, como os pobres rapazes que não queriam morrer, partilhavam uma caixa de fósforos cheia de pus de blenorragia para produzir a infecção que os salvaria do próximo ataque assassino.

Sabiam também que outros rapazes punham grandes moedas de dez cêntimos debaixo dos sovacos para produzirem icterícia. E também sabiam que os rapazes ricos, em diferentes cidades injectavam parafina sob as rótulas para não irem para a guerra.

Sabiam como o alho podia ser usado para produzir certos efeitos que impedem o homem de tomar parte num ataque, e conheciam todos ou quase todos os outros truques, porque um tinha sido sargento e o outro tenente de infantaria e haviam combatido nos três pontos-chave, Pasubio, Grappa e o Piave, onde tudo isso fazia sentido.

Tinham combatido também mais cedo, nas estúpidas carnificinas do Isonzo e do Carso. Ambos tinham vergonha de quem as havia ordenado, e só pensavam nelas como coisas vergonhosas e estúpidas que deviam ser esquecidas. O Coronel recordava-as tecnicamente, como qualquer coisa de onde há muito que aprender. Assim haviam fundado a Ordem de Brusadelli; nobre, militar e religiosa, e eram apenas cinco membros.

- Quais são as novidades da Ordem? - perguntou o Coronel ao Gran Maestro.

- Erigimos o cozinheiro do Magnificent ao grau de Comendador. Comporta-se como um homem que já fez por três vezes cinquenta anos. Aceitei este relatório sem confirmação. Ele nunca mentiu.

- Não. Nunca mentiu. Mas esse é um tópico em que devemos ser muito cautelosos.

- Acreditei nele. Pareceu-me muito arruinado.

- Recordo-me dele quando ainda era rapaz e lhe chamávamos o grande cereja.

- Anchio.

- Há planos concretos para a Ordem durante o Inverno?

- Não há nenhuns, Comandante Supremo.

- Achas que devemos prestar homenagem ao Ilustre Pacciardi?

- Como quiser.

- Condescendamos nisso - disse o Coronel. Pensou durante uns momentos e pediu outro Martini seco.

- Achas que podemos organizar uma homenagem ou uma manifestação em lugares históricos como San Marco, ou a velha igreja de Torcello em honra do nosso Grande Patrono, Brusadelli, o Respeitável?

- Duvido que neste momento as autoridades religiosas consintam.

- Abandonemos então todas as ideias de manifestações públicas neste inverno e trabalhemos apenas nos nossos quadros, para bem da Ordem.

- Parece-me que é o mais ajuizado - disse o Gran Maestro.

- Vamos reagrupar-nos.

- E tu, como vais?

- Medonho - disse o Gran Maestro. - Tenho a tensão muito baixa, úlceras, e devo dinheiro.

- És feliz?

- Sempre - disse o Gran Maestro. - Gosto muito da minha profissão e tenho conhecido aqui gente extraordinária e interessante e também muitos belgas. Este ano é o que há em vez de gafanhotos. Antigamente eram os alemães. Foi deles que César disse “e os mais valentes são os belgas”. Mas não são os mais bem vestidos. Não concorda?

- Vi alguns muito bem vestidos em Bruxelas - disse o Coronel. - Uma capital bem alimentada e alegre. Ganham, perdem ou retiram. Nunca os vi combater embora toda a gente diga que combatem.

- Devíamos ter combatido na Flandres nos velhos tempos.

- Nós não nascemos nos velhos tempos - disse o Coronel. - Por isso automaticamente não poderíamos ter combatido nessa altura.

- Quem me dera ter combatido com os Condottieri quando tudo o que se tinha de fazer era pensar numa coisa e realizá-la. O Senhor pensava e eu cumpria as suas ordens.

- Tínhamos de tomar uma série de cidades para que respeitassem o nosso pensamento.

- Podíamos saqueá-las se as defendessem - disse o Gran Maestro. - Que cidades tomaria?

- Esta não - disse o Coronel. - Tomaria Vicenza, Bergamo e Verona. Sem ser necessariamente por esta ordem.

- Ainda tínhamos de tomar mais duas.

- Bem sei - disse o Coronel. Era de novo general e sentia-se feliz. - Parece-me que ultrapassava Brescia. Cairia sob o seu próprio peso.

- E como vai o senhor, Comandante Supremo? - perguntou o Gran Maestro, pois esta conquista de tantas cidades arrancara-o dos seus abismos.

Sentia-se tranquilo na sua pequena casa de Treviso, junto ao rápido rio debaixo das velhas muralhas. O joio flutuava na corrente e os peixes escondiam-se sob as ervas e saltavam aos insectos que ao crepúsculo pairavam sobre a água. Sentia-se também tranquilo em todas as operações que não envolvessem mais que uma campainha e compreendia-as tão bem como compreendia o serviço correcto de uma pequena sala de jantar ou mesmo de uma grande sala de jantar.

Mas quando o Coronel foi nomeado oficial general, como já anteriormente havia sido, e pensou em termos que estavam tão longe dele quanto o cálculo pode estar de um homem que sabe apenas aritmética, já ele não se sentia tranquilo e o contacto entre ambos tornou-se difícil, e ele desejava que o Coronel voltasse às coisas que ambos conheciam como quando um era tenente e o outro sargento.

- O que faríamos de Mantova? - perguntou o Coronel.

- Não sei, meu Coronel. Não sei quem é o inimigo, nem que forças o inimigo tem, nem quais as de que dispomos.

- Pensei que tinhas dito que éramos Condottieri. Tínhamos o nosso quartel general aqui ou em Padova.

- Meu Coronel - disse o Gran Maestro, sem se sentir de modo algum diminuído. - Nada sei sobre os Condottieri. Nem sequer sei como é que eles combatiam. Apenas disse que nesses tempos gostaria de combater sob as suas ordens.

- Já não há tempos desses - disse o coronel e a conversação ficou por ali.

Co's demónios, parece que nunca há conversa possível, pensou o coronel. O diabo que te leve, disse de si para si. Deixa-te disso e torna-te humano que já tens metade de cem anos.

- Toma outro Carpano - disse ao Gran Maestro.

- Meu Coronel, permite-me que eu recuse por causa das úlceras?

- Sim, sim, está claro. Rapaz! Afinal o teu nome? Giorgio? Outro Martini seco. Secco, molto secco e dopio.

Conversa quebrada, pensou. Conversar não é o meu ofício. O meu ofício é matar homens armados. As conversas também deviam ser armadas se as quisesse quebrar. Mas nós matámos muitas coisas que também não estavam armadas. Está bem, sensaborão, retrata-te.

- Gran Maestro - disse ele. - Ainda és Gran Maestro e fornicaste os Condottieri.

- Esses foram fornicados há muitos anos, Comandante Supremo.

- É verdade - disse o Coronel.

Mas a conversa falhara.

- Encontro-me contigo ao jantar - disse o Coronel, - que há?

- Temos tudo que desejar, e eu arranjo o que não tivermos.

- Têm espargos frescos?

- O senhor sabe que nestes meses não há espargos. Só vêm em Abril, de Bossano.

- Então arranja qualquer coisa que se coma - disse o Coronel.

- Quantas pessoas são? - perguntou o Maitre d’Hotel.

- Duas, - respondeu o Coronel. - A que horas fecham o bistro?

- Serviremos às horas que quiser, meu Coronel.

- Vou tentar chegar a horas decentes - disse o Coronel. - Adeus Gran Maestro - disse sorrindo e estendeu a mão defeituosa ao Gran Maestro.

- Adeus, Comandante Supremo - disse o Gran Maestro e de novo surgiu o entendimento, quase completo.

Mas não estava completo e o Coronel sabia-o e pensou: por que é que sou sempre um estupor e não posso suspender este assunto das armas e ser um homem amável como sempre desejei ser?

Tento sempre ser justo, mas acabo por ser brusco e brutal e isto não é por ter de me defender da prosápia dos superiores e da prosápia do mundo. Seria muito melhor se tivesse menos sangue de javali durante o pouco tempo que ainda me resta. Vamos tentar esta noite, pensou. E depois pensou; com quem e onde? Que Deus me ajude a não ser mau.

- Giorgio - disse ao barman, que tinha o rosto branco como um leproso mas sem altos nem brilho.

Giorgio não gostava muito do Coronel ou talvez fosse apenas do Piemonte e não prestasse grande atenção a ninguém, o que é explicável nas pessoas frias de uma província da fronteira. Os fronteiriços em nada confiam e o Coronel sabia isto e também nada esperava deles.

- Giorgio - disse ao pálido barman. - Põe isso na minha conta, por favor.

Saiu, caminhando como sempre caminhava, com uma confiança levemente exagerada mesmo quando não era necessária, e, segundo o seu plano sempre renovado de ser amável, decente e bom, gratificou o porteiro, que era amigo, o sub-director que falava swhaili e fora prisioneiro de guerra no Kenya e que era um homem novo, encantador, cheio de espírito, elegante, talvez ainda sem pertencer à Ordem, mas cheio de experiência.

- E o cavalaire officiale que dirige o hotel? - perguntou.

- Não está cá - disse o sub-director. - Por hoje, naturalmente - acrescentou.

- Dê-lhe os meus cumprimentos - disse o Coronel. - Diga a alguém que me indique o quarto.

- É o quarto do costume. Ainda o quer?

- Sim. E o sargento?

- Está bem entregue.

- Bem, - disse o Coronel.

O Coronel dirigiu-se para o quarto acompanhado pelo rapaz que levava a mala.

- Por aqui, meu Coronel - disse o rapaz quando o elevador estacou com uma certa brusquidão hidráulica, no último andar.

- Não sabes mexer num elevador com cuidado? - disse o Coronel.

- Não, meu Coronel - disse o rapaz. - A corrente não é estável.

 

O Coronel não respondeu e seguiu o rapaz pelo corredor. Era um corredor comprido, largo e de tectos altos e havia um grande intervalo entre as portas dos quartos no lado que deitava para o Canal Grande. Como fora um palácio, era natural que todos os quartos tivessem uma vista excelente, excepto os que tinham sido feitos para os criados.

Ao Coronel o caminho pareceu longo, embora fosse curto e quando apareceu o criado que cuidava do quarto, um homem baixo e escuro com um olho de vidro a brilhar na órbita esquerda, incapaz de sorrir enquanto, com dificuldade, rodava a chave na fechadura, o Coronel desejou por tudo que a porta se abrisse rapidamente.

- Abre isso - disse ele.

- Sim, meu Coronel - respondeu o criado - Mas o senhor sabe como são estas fechaduras.

Sim, eu sei, pensou o Coronel. Mas quem me dera que ele a abrisse logo.

- Como vai a tua família? - disse ao criado que tinha escancarado a porta de modo que o Coronel, entrando, estava já dentro do quarto, com um armário alto e bem fornecido de espelhos, duas boas camas, um grande lustre e o belo panorama das águas do Grande Canal batidas pelo vento, que se descortinava para lá das janelas ainda fechadas.

O canal era agora cinzento como o aço à luz mortiça do inverno e o Coronel disse:

- Arnaldo, abre as janelas.

- Há muito vento, meu Coronel, e o quarto está mal aquecido por causa da falta de energia eléctrica.

- Por causa da falta de chuvas - disse o Coronel - Abre as janelas. Todas.

- Como quiser, meu Coronel.

O criado abriu as janelas e o vento norte entrou no quarto.

- Faz-me o favor de telefonares para o escritório e pede este número.

O criado fez a chamada enquanto o Coronel estava na casa de banho.

- A condessa não está em casa, meu Coronel - disse o criado.

- Mas supõem que a pode encontrar no Harry's.

- Não há nada que se não encontre no Harry's.

- Sim, meu Coronel. Excepto, talvez, a felicidade.

- Também se encontra a felicidade - asseverou-lhe o Coronel

- A felicidade como sabes, é um festim que nunca termina.

- Também tenho essa impressão - disse o criado -, Trouxe Campari e uma garrafa de Gin Gordon. Quer que lhe prepare um Campari com gin e soda?

- És um bom rapaz - disse o Coronel. - Donde os trouxeste? Do bar?

- Não. Comprei-os enquanto o senhor esteve fora e por isso não precisa de gastar dinheiro no bar. O bar é muito careiro.

- Concordo - disse o Coronel -, Mas não devias ter gasto o teu dinheiro desse modo.

- Foi uma oportunidade. O Gin custou três mil e duzentas liras e é legítimo. O Campari custou oitocentas.

- És mesmo um bom rapaz - disse-lhe o Coronel. - Que tal eram os patos?

- A minha mulher ainda fala deles. Nunca tínhamos comido patos bravos, pois são muito caros e estão fora das nossas possibilidades. Mas um dos vizinhos ensinou-a a prepará-los e depois ajudou-nos a comê-los. Nunca pensei que existisse coisa tão boa. Quando se mete o dente em comidas dessas é uma delícia inacreditável.

- Também acho. Não há coisa melhor do que um desses patos gordos. Sabes que eles voam sobre os grandes campos de trigo do Danúbio e voltam sempre pelos mesmos sítios até que os apanhamos?

- Não sei nada de caça desportiva - disse o criado. – Fomos sempre gente pobre.

- Mas há muita gente sem dinheiro que caça no Veneto.

- Sim. É verdade. Até se ouvem os tiros à noite. Mas nós ainda éramos mais pobres que esses. Éramos mais pobres do que tudo o que o meu Coronel pode pensar.

- Parece-me que mesmo assim posso ajuizar.

- Talvez - disse o criado -, A minha mulher ainda ficou com as penas e pediu-me para lhe agradecer muito.

- Se tivermos sorte depois de amanhã, apanharemos muitos. Patos grandes com cabeça verde. Diz à tua mulher que se tivermos sorte haverá muitos patos, gordos como os porcos que se comem na Rússia, e com belas penas.

- O que é que pensa dos Russos, se não é indiscrição, meu Coronel?

- São os nossos inimigos em potência. Como soldado estou pronto a combatê-los. Mas gosto muito deles e nunca encontrei povo melhor.

- Nunca tive a sorte de os encontrar.

- Deixa lá, rapaz, que ainda terás essa sorte. A menos que o Ilustre Pacciardi consiga detê-los na linha do Piave, que é um rio sem água. Chuparam-lhe a água com os projectos hidro-eléctricos. Talvez o Ilustre Pacciardi queira combater aí. Mas não julgo que possa combater durante muito tempo.

- Não conheço o Ilustre Pacciardi.

- Conheço-o eu - disse o Coronel.

- Agora pede que telefonem para o Harry's a ver se a Condessa já lá está. Se não estiver, que telefonem outra vez para casa dela.

O Coronel tomou a bebida que Arnaldo, o criado do olho de vidro, lhe preparara. Não lhe apetecia, mas sabia que se não a tomasse seria incorrecto para o criado.

Mas tomou-a com a velha truculência de javali com que tomara tudo na vida, e dirigiu-se, movendo-se como um gato, embora fosse já um gato velho, para a janela aberta e olhou para o Grande Canal que se tornara tão cinzento como se Degas o tivesse pintado num dos seus dias mais cinzentos.

- Muito obrigado pela bebida - disse o Coronel, e Arnaldo, que falava ao telefone, acenou e sorriu com o olho de vidro.   Quem me dera que ele não tivesse de usar aquele olho de vidro, pensou o Coronel. Só gosto das pessoas que tenham combatido ou ficado mutiladas, pensou. As outras pessoas são excelentes e gostamos delas e somos bons amigos; mas só sentimos verdadeira ternura e amor pelos que estiveram lá e receberam o castigo que todos os que lá ficam muito tempo sempre recebem. Sou um piegas, pensou, engolindo a bebida sem vontade, e amo qualquer filho de uma cadela que tenha sido valentemente ferido, como todos são quando por lá andam muito tempo.

Sim, disse o seu outro lado bom. Tu ama-los.

Era preferível que eu não amasse ninguém, pensou o Coronel. Era preferível que me divertisse.

É alegria, disse-lhe o seu lado bom, não podes ter alegria se não amares.

Bem. Amo mais que qualquer filho da maior das galdérias, disse o Coronel, mas não em voz alta.

Em voz alta disse:

- Para onde estás tu a falar, Arnaldo?

- Cipriani ainda não veio - disse o criado -, Esperam-no de um momento para o outro e estou a manter a ligação para o caso dele chegar.

- Procedimento dispendioso - disse o Coronel -, Diz-me quem é que está e não percamos tempo. Quero saber exactamente quem está cá.

Arnaldo falava cautelosamente pelo bocal do telefone.

Cobriu o bocal com a mão e disse:

- Estou a falar com o Ettore. Ele diz que o Barão Alvarito não está. Ettore diz que o Conde Andrea está lá e bêbedo, mas não tão bêbedo que não possa fazer-lhe companhia. O grupo de senhoras que vai lá todas as tardes já chegou, e também uma princesa grega que o senhor conhece e várias pessoas que não conhece. Há também rebotalho do Consulado Americano que tem estado lá desde o meio-dia.

- Diz-lhe para me telefonar quando o rebotalho se for embora.

Arnaldo falou novamente pelo telefone e depois voltou-se para o Coronel que admirava a catedral de Dogana.

- Ettore diz que vai tentar correr com eles, mas receia que Cipriani não goste.

- Diz-lhe para não correr com eles. Não têm trabalho hoje à tarde e por isso não há razão para não se embebedarem como qualquer outro homem. O que eu não quero é vê-los.

- Ettore diz que volta a telefonar. Pediu-me para lhe dizer que as posições cairão sob o próprio peso.

- Agradece-lhe o telefonema da minha parte - disse o Coronel.

Observava uma gôndola a lutar contra o vento no Canal e pensou: nada de americanos bêbedos. São maçadores. Nesta cidade também são. São maçadores especialmente nesta cidade. Sei muito bem que isto aqui é frio, que os seus ordenados não são grande coisa, e que o combustível custa caro. Admiro muito as suas esposas pelos esforços que fazem em transportar keokuk para Veneza e os seus filhos que já falam italiano como rapazes de Veneza. Mas hoje, nada de fotografias instantâneas, Jack! Hoje vamos evitar fotografias instantâneas, confidências de bar, bebidas indesejáveis e as fastidiosas angústias dos serviços consulares.

- Hoje nada de segundos, terceiros ou quartos vice-cônsules, Arnaldo.

- Há pessoas muito agradáveis no Consulado.

- Sim - disse o Coronel - Tinham um diabo dum cônsul muito simpático, em 1918. Toda a gente gostava dele. Hei-de tentar lembrar-me do nome dele.

- O senhor vai sempre buscar coisas muito lá para trás, meu Coronel.

- Vou tanto lá para trás que até já não tenho piada.

- Recorda-se de tudo dos velhos tempos?

- Tudo - disse o Coronel. - Carrol, era como o homem se chamava.

- Ouvi falar dele.

- Tu ainda não tinhas nascido.

- Acha que é necessário ter nascido nessa época para conhecer as coisas que aconteceram na cidade, meu Coronel?

- Tens razão. Diz-me cá, toda a gente sabe sempre o que acontece nesta cidade?

- Nem todos. Mas quase todos - disse o criado -, Apesar de tudo, lençóis são sempre lençóis e alguém tem de os mudar e outros de os lavar. Naturalmente não me refiro aos lençóis de um hotel como este.

- Já passei belos tempos na vida sem lençóis.

- Com certeza. Mas os gondoleiros, que quanto a mim são da melhor gente que há, falam destas coisas entre eles.

- De certo.

- Depois há os padres. Enquanto não violam o segredo da confissão, também falam destas coisas entre eles.

- Assim se espera.

- As governantas dos padres também falam.

- Estão no seu direito.

- Depois, os criados - disse Arnaldo -, As pessoas conversam à mesa como se os criados fossem surdos. O criado, segundo a ética, nunca tenta ouvir uma conversa. Mas às vezes não pode deixar de ouvir. Naturalmente nós também temos as nossas conversas. Cá neste hotel, nunca. E ainda podia continuar.

- Suponho que já é suficiente.

- Para não mencionar os cabeleireiros e barbeiros.

- E quais são as novidades do Rialto?

- Pode saber tudo no Harry's, excepto a parte que lhe cabe.

- Então também lá estou metido?

- Tudo se sabe.

- Bem. É uma bela história.

- Há pessoas que não compreendem a sua parte no Torcello.

- Diabos me levem se algumas vezes também percebo.

- Que idade tem, meu Coronel, se não é indiscrição?

- Cinquenta mais um. Por que é que não perguntaste ao porteiro? Preenchi lá um papel para a questura.

- Queria ouvi-lo de si e felicitá-lo.

- Não sei porquê.

- Deixe-me, no entanto, felicitá-lo de qualquer modo.

- Não posso aceitar um cumprimento desses.

- O senhor é muito estimado nesta cidade.

- Obrigado. Isso é que é um grande cumprimento.

Naquele momento o telefone tocou.

- Eu atendo - disse o Coronel e Ettore ouviu dizer: “Quem fala?” - Coronel Cantwell.

- As posições caíram, meu Coronel.

- Para que direcção seguiram?

- Em direcção à Piazza.

- Bom, vou já para aí.

- Quer uma mesa?

- Ao canto - disse o Coronel e desligou.

- Vou até ao Harry's.

- Boa caçada, meu Coronel.

- Depois de amanhã, antes do nascer do sol, vou caçar patos aos pântanos, num bote.

- Vai estar frio!

- Também julgo - disse o Coronel e vestiu a gabardina, mirando depois o rosto no longo espelho enquanto punha o boné.

- Que rosto tão feio! - disse para o espelho. - Já alguma vez viste uma cara tão feia?

- Sim - disse Arnaldo -, A minha. Vejo-a todas as manhãs quando faço a barba.

- Temos ambos de nos barbear às escuras - disse o Coronel e saiu.

 

Quando o Coronel Cantwell transpôs a porta do Gritti Palace Hotel brilhavam os últimos raios de sol daquele dia. Havia sol no lado oposto da Praça mas os gondoleiros preferiam proteger-se do vento frio encostando-se às paredes do Gritti, do que ficar ao sol no lado da praça batida pelo vento.

Após ter visto isto, o Coronel dobrou à direita e dirigiu-se pela praça até à rua pavimentada. Antes da esquina, parou por um momento e olhou para a igreja de Santa Maria del Giglio.

Que edifício fino e compacto, e no entanto tão airoso pensou. Nunca tinha reparado como uma igreja pode parecer-se com um P47. Tenho de descobrir quem a construiu, e quando. Quem me dera gastar a vida a passear por esta cidade. Toda a vida, pensou. Que fascínio! Vamos rapaz, disse para si próprio. Nunca um cavalo chamado Morbido conseguiu ganhar uma corrida. Além disso, não me sinto mau tipo, pensou, enquanto admirava as montras das várias lojas por onde passava, a charcuterie com queijos Parmesão e presuntos de San Daniele, salsichas alla cacciatora, garrafas de uísque, do bom, e de Gin Gordon verdadeiro, o cuteleiro, uma loja de antiguidades com algumas peças boas e velhos mapas e gravuras, um restaurante de segunda categoria disfarçado como se fosse de primeira, e depois meteu pela ponte que atravessa um estreito canal e para onde se subia por uma pequena escada. Lembro-me de quando tudo começou e de como pensei que as árvores estavam cheias de gafanhotos.

Não queria perguntar ao jovem Lowry, mas perguntei.

E ele respondeu. Não, General, não ouvi grilos nem gafanhotos. Além dos ruídos vulgares, a noite está perfeitamente tranquila.

Depois, quando subia, sentiu as dores agudas do costume, e ao descer, no outro lado, viu duas raparigas adoráveis. Eram belas e vinham em cabelo, pobremente vestidas mas com gosto; falavam alto e o vento desmanchava-lhes o cabelo enquanto subiam as escadas com as suas longas e velozes pernas de venezianas, e o Coronel disse para si próprio, é melhor deixar de admirar as montras nesta rua e meter pela outra ponte; dois quarteirões adiante, volta-se à direita e segue-se depois em frente até ao Harry's.

Assim fez, sentindo de novo as dores quando passava pela ponte, mas continuando sempre a andar com as velhas passadas e só de relance olhando as pessoas por que cruzava. Há muito oxigénio no ar, pensou, e fazendo face ao vento, respirou fundo.

Depois, estava já a abrir a porta do bar do Harry's e quando, lá dentro, a fechou, sentiu-se tranquilo e seguro.

No bar, um homem alto, com um rosto devastado de grandes olhos azuis, infantis e alegres, e corpo longo e vasto como o de um búfalo, disse:

- Meu velho e depravado Coronel!

- Meu perverso Andrea.

Abraçaram-se e o Coronel sentiu o áspero tecido do elegante casaco de Andrea que, pelo menos, já devia ter entrado no vigésimo ano de uso.

- Estás com bom aspecto, Andrea - disse o Coronel.

Era mentira e ambos o sabiam.

- Estou - disse Andrea, retribuindo a mentira -, Nunca me senti melhor. Tu também estás com muito bom aspecto.

- Obrigado, Andrea. Patifes saudáveis como nós hão-de ficar para herdar o mundo.

- Boa ideia. Devo dizer que, por estes dias, não me importava de herdar qualquer coisa.

- Não há que recear. Hás-de herdar uns bons cinco pés de terra.

- Seis de comprimento por seis de largura - disse Andrea -, Velho perverso! Então ainda moirejas na vie millitaire?

- Não moirejo muito - disse o Coronel -, Vim cá abaixo para caçar em San Relojo.

- Eu sei. Mas não comeces a contar anedotas em espanhol. Alvarito andou à tua procura. Pediu-me que te dissesse que ainda voltava cá.

- Belo. A tua mulher e os filhos, vão bem?

- Com certeza e pediram-me que te desse saudades se te visse. Estão em Roma. Aí vem a tua rapariga. Ou uma das tuas raparigas.

Era tão alto que podia olhar para a rua quase negra, mas esta rapariga podia ser reconhecida mesmo que estivesse mais escuro do que já estava.

- Diz-lhe para nos acompanhar numa bebida antes de a levares para a mesa do canto. Não é uma rapariga maravilhosa.

- É mesmo.

Ela entrou na sala faiscando de juventude e de beleza que o vento realçara desordenando-lhe os cabelos. Tinha uma pele pálida, ligeiramente azeitonada, um perfil que podia despedaçar o coração a qualquer homem, e o cabelo negro, de uma tecitura viva, caía-lhe sobre os ombros.

- Olá, meu amor - disse o Coronel.

- Oh, olá - disse ela -, Pensei já não te encontrar. Desculpa-me por chegar tão tarde.

A voz era baixa e falava inglês com precaução.

- Ciao, Andrea - disse -, Como estão a Emília e as crianças?

- Provavelmente estão na mesma como quando te respondi a essa pergunta ao meio-dia.

- Desculpa-me - disse ela e corou -, Estou tão excitada que até digo coisas erradas. Que devo dizer então? Divertiste-te aqui toda a tarde?

- Sim - disse Andrea. - Com o meu velho amigo e o mais severo dos críticos.

- Quem é?

- Uísque e água.

- Quando pensa em arreliar-me, arrelia-me mesmo - disse ele ao Coronel. - Mas tu não queres arreliar-me, não é verdade?

- Leva-o para aquela mesa do canto e conversa com ele. Vocês os dois já me cansaram.

- Nunca me canso de falar contigo - disse o Coronel. – Mas acho que é uma boa ideia. Vamos sentar-nos e tomar uma bebida, Renata?

- Gostava muito se Andrea não ficasse zangado.

- Nunca me zango.

- Queres tomar uma bebida connosco, Andrea?

- Não - disse Andrea. - Vão para a vossa mesa. Já estou farto de a ver desocupada.

- Adeus, Caro. Obrigado pela bebida que não tomámos.

- Ciao, Ricardo - disse Andrea e foi tudo.

Voltou-lhes as costas e olhou para o espelho que há sempre atrás dos bares para que se saiba quando já se bebeu o suficiente, e decidiu que não gostava do espectáculo.

- Ettore - disse ele. - Põe essa porcaria na minha conta.

Saiu depois de lhe terem vestido cuidadosamente o sobretudo e de ter gratificado o homem que o trouxe exactamente com o que devia ser gratificado. Na mesa do canto, Renata disse:

- Achas que o magoámos?

- Não. Ele ama-te e gosta de mim.

- Andrea é tão bom! E tu és tão bom!

- Criado! - chamou o Coronel; depois perguntou. – Também queres um Martini seco?

- Sim - disse ela.

- Dois Martinis muito secos - disse o Coronel. - Montgomerys. Cinquenta para um.

O criado, que tinha estado no deserto, sorriu e afastou-se e o Coronel encarou Renata.

- És uma rapariga excelente - disse. - Também és muito bela e adorável e eu amo-te.

- Estás sempre a dizer coisas que não compreendo, mas gosto de ouvir-te.

- Que idade tens?

- Quase dezanove. Porquê?

- E não percebes o que eu digo?

- Não. Porque é que havia de perceber? Os americanos dizem sempre essas coisas antes de se irem embora. Parece que lhes faz falta. Mas eu amo-te muito, de qualquer modo.

- Vamos divertir-nos - disse o Coronel. - Não pensemos em coisa alguma.

- É isso que eu quero. A esta hora do dia não consigo pensar muito bem.

- Cá estão as bebidas - disse o Coronel. - Lembra-te que eu não quero que digas chin-chin.

- Ainda me recordo disso. Nunca digo chin-chin nem bota abaixo.

- Vamos apenas erguer os copos e, se quiseres, podemos tocá-los.

- Quero, sim - disse ela.

Os Martinis estavam gelados e eram Montgomerys verdadeiros e depois de terem tocado os copos, sentiram-nos arder alegremente por todo o corpo.

- E que tens feito por cá? - perguntou o Coronel.

- Nada. Ainda estou à espera de ir para a escola.

- Para onde?

- Só Deus sabe. Onde possa aprender inglês.

- Volta a cabeça e levanta o queixo só uma vez, para eu ver.

- Não estás a fazer troça?

- Não. Não estou a fazer troça.

Ela voltou a cabeça e ergueu o queixo, sem vaidade nem coquetismo, e o Coronel sentiu o coração revoltar-se dentro dele, como se um animal, a dormir, tivesse rebolado na toca e, deliciosamente, assustasse outro animal que próximo também dormia.

- Oh tu, - disse ele. - Gostarias de fazer de Virgem Maria?

- Era um sacrilégio.

- Sim - disse ele. - Também acho e retiro a sugestão.

- Ricardo - disse ela. - Não, não posso dizer!

- Diz.

- Não.

O Coronel pensou, vou ordenar-te que digas. E ela disse:

- Por favor nunca mais me olhes assim.

- Desculpa - disse o Coronel. - Insinuei-me inconscientemente na minha profissão.

- Se fôssemos qualquer coisa como casados, seguirias a tua profissão em casa?

- Não. Juro-te. Nunca a segui em casa. Nem no meu coração.

- Com ninguém?

- Com ninguém do teu sexo.

- Não gosto dessa palavra sexo. Soa como se estivesses a seguir a tua profissão.

- Vou atirar essa maldita profissão pela janela, para o Canal Grande.

- Vês! - Disse ela. - Vês como já estás a segui-la!

- Bom - disse ele. - Eu amo-te e a minha profissão pode ir-se embora gentilmente.

- Deixa-me agarrar a tua mão - disse ela. - Está bem.

- Podes pô-la sobre a mesa.

- Obrigado - disse o Coronel.

- Não digas isso, por favor - disse ela. - Queria senti-la porque durante a semana passada, todas as noites, ou acho que todas as noites, sonhei com isso, e foi um sonho muito confuso e sonhei que era a mão de Deus.

- Isso é mau. Não devias fazer isso.

- Bem sei. Mas o sonho foi assim.

- Não estás a gozar, pois não?

- Não percebo o que queres dizer, e por favor não te rias de mim quando te digo uma verdade. Sonhei mesmo o que disse.

- O que fazia a mão?

- Nada. Ou talvez nada disto seja verdadeiro. Mas era quase sempre uma mão.

- Era igual a esta? - perguntou o Coronel, olhando com desgosto a mão deformada e recordando-se das duas ocasiões que a tinham feito assim.

- Não era igual: era essa. Posso tocar-lhe com os dedos se por acaso não dói?

- Não dói. Onde dói é na cabeça, nas pernas e nos pés. Não acredito que haja sensações nessa mão.

- Não gosto de olhar para ela. Não achas que a podíamos esquecer?

- Com certeza. Mas não é preciso sonhar com ela.

- Não. Tenho outros sonhos.

- Sim. Posso imaginar. Mas ultimamente tenho sonhado com esta mão. Agora que já lhe toquei cuidadosamente, podemos falar de coisas divertidas, se quiseres. Que há para aí de engraçado que se possa falar?

- Vamos olhar para as pessoas e discutir sobre elas.

- Isso é adorável - disse ela. - E não o faremos com malícia.

- Apenas com a melhor das finuras. Tua e minha.

- Bom - disse o Coronel. - Criado, Ancora due Martini.

Não quis pedir Montgomerys em voz alta porque estavam dois ingleses na mesa ao lado.

Os homens podiam ter sido feridos, pensou o Coronel, embora, a julgar pelo seu aspecto, fosse pouco provável. Mas Deus me ajude a evitar a brutalidade. E contempla os olhos de Renata, pensou. São possivelmente a coisa mais bela entre todas as suas belezas, com as mais longas pestanas que já vi e além disso ela não os usa para outra coisa que não seja olhar-nos honestamente e a direito. Que maravilhosa rapariga! E que faço eu aqui? É uma coisa perversa. Ela é o teu último, verdadeiro e único amor, pensou, e isso não é mau. É apenas infeliz. Não, pensou ele, é feliz como os diabos e tu também és feliz.

Estavam sentados numa pequena mesa ao canto da sala, e à direita, numa mesa maior, estavam quatro mulheres. Uma das mulheres estava de luto, um luto tão teatral que fez lembrar ao Coronel a Lady Diana Manners desempe-nhando o papel de freira em O Milagre, de Max Reinhart. Esta mulher tinha um rosto atractivo, gordo, naturalmente alegre e o luto era incongruente.

Na mesa havia outra mulher que tinha o cabelo três vezes mais branco do que o cabelo pode ser, pensou o Coronel. Também tinha um rosto agradável. Os rostos das outras duas mulheres nada despertavam no Coronel.

- São lésbicas? - perguntou à rapariga.

- Não sei - disse ela. - São pessoas agradáveis.

- Eu diria que são lésbicas. Mas talvez sejam apenas boas amigas. Ou talvez sejam ambas as coisas. Não tenho nada com isso e não estou a criticar.

- Quando és gentil és bom.

- Achas que a palavra cavalheiro deriva de um homem que é gentil?

- Não sei - disse a rapariga e correu os dedos levemente pela mão coberta de cicatrizes. - Mas amo-te quando és gentil.

- Farei tudo para ser gentil - disse o Coronel. - Quem achas que é aquele filho de uma cadela na mesa atrás de nós?

- Não consegues ser gentil por muito tempo - disse a rapariga. - Vamos perguntar ao Ettore.

Olharam para o homem da terceira mesa. Tinha um rosto estranho, semelhante ao focinho desapontado de uma doninha ou de um furão. Parecia tão bexigoso e tão manchado como as montanhas da lua vistas através de um telescópio barato e, pensou o Coronel, lembraria o rosto de Goebbels, se, por acaso, Herr Goebbels tivesse estado alguma vez num avião incendiado e não tivesse conseguido fugir antes que o fogo o atingisse.

Sobre este rosto que incessantemente espreitava para a esquerda e para a direita, como se, por acaso, a resposta às suas mudas perguntas pudesse ser encontrada em olhadelas bem dirigidas, havia cabelo negro que parecia não ter qualquer ligação com a raça humana. Parecia que o homem fora escalpelizado e depois haviam-lhe colocado o cabelo novamente. Muito interessante, pensou o Coronel. Será um compatriota? Sim, deve ser.

Um fio de cuspo escorria-lhe dos cantos da boca enquanto falava com a elegante e idosa senhora que estava com ele. Parece-me com a «mãe de fulano» que aparece na revista Diário das Donas de Casa, pensou o Coronel. O Diário das Donas de Casa era um dos magazines que se recebiam regularmente no Clube dos Oficiais em Trieste, e o Coronel folheava-o sempre que chegava algum número. um magazine maravilhoso, pensou, pois combina sexologia com belos petiscos. Faz-me ter fome de ambas as coisas.

Mas quem será este tipo? Parece a caricatura de um americano passado duas vezes por um picador de carne e frito depois, em azeite. Não estou a ser gentil, pensou.

Ettore, com o seu rosto esquálido, e sempre disposto a gracejos e a desrespeitos constantes, aproximou-se e o Coronel disse:

- Quem é aquele tipo espirituoso?

Ettore abanou a cabeça.

O homem era baixo e moreno, com cabelo lustroso que não condizia com o seu estranho rosto. Parecia, pensou o Coronel, que não mudara de cabelo embora tivesse crescido. Contudo, era um rosto maravilhoso, pensou o Coronel. Parece uma daquelas colinas próximo de Verdun. Não acho que pudesse ser Goebbels porque se alguma vez teve aquele rosto foi só nos últimos dias quando todos representavam o Crepúsculo dos Deuses. Yomm-Süsser Tod (1), pensou. Bem, certamente, no fim, todos eles conseguiram um bom pedaço de Doce Morte.

- Não deseja uma boa sanduíche de Doce Morte, não é verdade, Miss Renata?

- Não me parece - disse a rapariga -, embora ame Bach e tenha a certeza que Cipriani seria capaz de fazer uma.

- Não estava a dizer mal de Bach - disse o Coronel.

- Bem sei.

- Demónio - disse o Coronel. - Bach foi praticamente um beligerante. Tal como tu.

- Suponho que não é preciso falarmos contra mim.

- Filha - disse o Coronel. - Quando aprenderás que às vezes troço de ti apenas porque te amo?

- Agora - disse ela. - Já aprendi. Mas tu sabes que troçar muito não tem graça.

- Bom. Também já aprendi.

- Quantas vezes por semana pensas em mim?

- Todos os dias.

- Não. Diz-me a verdade.

- Todos os dias. Sinceramente.

- Achas que isso é mau?

- Não sei - disse o Coronel -, é uma das coisas que nunca hei-de saber.

- Espero que não seja. Nem acho como poderia ser.

- Bem, agora já sabes.

- Sim - disse a rapariga. - Agora sei. Agora sei para sempre. É assim que se diz?

- Agora sei, já chega - disse o Coronel. - Ettore, aquele tipo com cara de inspirado e a senhora que está com ele não vivem no Gritti?

- Não - disse Ettore. - Vive aqui ao lado, mas algumas vezes vai comer ao Gritti.

- Bom - disse o Coronel. - Seria óptimo voltar a vê-lo se por acaso alguma vez me sentisse amargurado. Quem é a senhora? Mulher dele? Mãe? Filha?

- Oiça - disse Ettore. - Nada sabemos dele em Veneza. Não suscitou amor, ódio, aversão ou suspeita. Quer realmente saber alguma coisa acerca dele? Posso perguntar a Cipriani.

- Vamos omiti-lo - disse a rapariga. - É assim que tu dizes?

- Vamos omiti-lo - disse o Coronel.

- Temos tão pouco tempo, Ricardo. É mesmo perder tempo.

- Estava a admirá-lo como se fosse um desenho de Goya. Os rostos também são quadros.

- Olha para mim e eu olho para ti. Por favor, deixa o homem. Não veio aqui fazer mal a ninguém.

- Vou admirar o teu rosto mas tu não olhes para mim.

- Não - disse ela. - Não é justo. Tenho de me lembrar de ti durante toda a semana.

- E eu, que faço? - perguntou-lhe o Coronel.

Ettore aproximou-se, incapaz de evitar a conspiração e, tendo-se informado rapidamente, como só os venesianos conseguem, disse:

- O meu colega que trabalha no hotel onde está o homem diz que ele costuma beber muito e que depois escreve durante a noite.

- Deve ser uma leitura maravilhosa.

- Deve ser - disse Ettore. - Mas não era esse o método de Dante.

- Dante foi outro vieux con - disse o Coronel. - Quero dizer como homem. Não como escritor.

- Concordo - disse Ettore. - Acho que não encontrará ninguém fora das portas de Florença que tenha estudado a vida de Dante que não concorde.

- Risque Florença - disse o Coronel.

- Uma manobra difícil - disse Ettore. - Já muitos a tentaram mas só poucos tiveram êxito. Porque é que não gosta de Florença, meu Coronel?

- É uma coisa muito complicada para explicar. Era lá o depósito do meu regimento, quando era rapaz.

- Compreendo. Também tenho motivos para não gostar dela. Conhece uma boa cidade?

- Sim - disse o Coronel. - Esta. Uma parte de Milão e Bolonha. E Bergamo.

- Cipriani tem uma grande reserva de vodka para o caso de os russos virem - disse Ettore, que gostava das piadas duras.

- Hão-de trazer o seu próprio vodka, e de graça.

- Continuo a acreditar que Cipriani está preparado para eles.

- Então é o único homem que está preparado - disse o Coronel. - Diz-lhe para não aceitar cheques do Banco de Odessa a oficiais subalternos, e obrigado pelas informações acerca do meu compatriota. Não quero roubar-te mais tempo.

Ettore afastou-se e a rapariga voltou-se para ele, olhou-o nos seus velhos olhos de aço e com ambas as mãos tomou-lhe a mão estropiada e disse-lhe:

- Foste muito gentil.

- E tu ainda és mais bonita e eu amo-te.

- De qualquer modo é bom ouvir isso.

- Que vamos fazer acerca do jantar?

- Tenho de telefonar para casa, saber se posso sair.

- Porque estás triste agora?

- Estou?

- Sim.

- Não estou, não. Estou mais feliz do que nunca. Verdade. Por favor, acredita-me, Ricardo. Mas gostarias de ser uma rapariga de dezanove anos apaixonada por um homem com mais de cinquenta que tu sabias que vai morrer?

- Pões as coisas com alguma rudeza - disse o Coronel. – Mas és linda quando o dizes.

- Nunca choro - disse a rapariga. - Nunca. Jurei que não havia de chorar. Mas agora vou chorar.

- Não chores - disse o Coronel. - Agora sou gentil e o diabo leve tudo o resto.

- Diz outra vez que me amas.

- Amo-te e amo-te e amo-te.

- Farás tudo para não morrer?

- Sim.

- O que é que disse o médico?

- Assim, assim.

- Não estás pior?

- Não - mentiu ele.

- Então vamos tomar outro Martini - disse a rapariga. - Sabes que nunca bebo Martinis senão contigo.

- Bem sei. Mas gostas muito de os beber.

- Não devias tomar o remédio?

- Sim - disse o Coronel. - Devo tomar o remédio.

- Posso dar-to?

- Sim - disse o Coronel. - Podes dar-mo.

Continuaram sentados à mesa do canto e algumas pessoas entravam e outras saíam. O Coronel sentia-se um pouco aturdido pelos efeitos do remédio. É sempre assim, pensou. Para o inferno com ele.

Viu que a rapariga estava a observá-lo e sorriu-se para ela. Era um velho sorriso que já usava há cinquenta anos desde que sorrira pela primeira vez, e era ainda tão sadio como a espingarda Pardey do avô. Tenho a impressão que é o meu irmão mais velho quem ficou com ela. Bem, sabia atirar melhor do que eu, e por isso merece-a.

- Ouve, filha - disse ele -, não tenhas pena de mim.

- Não tenho. Não tenho mesmo nada. Amo-te apenas.

- E isso não é uma ocupação muito interessante, não é verdade. - Ele disse oficio, porque ambos falavam espanhol, quando estavam fatigados do francês ou quando não queriam falar inglês diante de outras pessoas. O espanhol é uma língua dura, pensou o Coronel, algumas vezes ainda mais dura do que uma maçaroca. Mas pode-se dizer com ela tudo quanto pretendemos e torná-la subtil.

- Amar-me - repetiu ele, - es un oficio bastanta malo.

- Sim. Mas é o único que eu tenho.

- Já não escreves poesia?

- Era poesia de rapariga. Tal como pintura de rapariga. Numa certa idade toda a gente tem talento.

Em que idade é que se envelhece neste país, pensou o Coronel. Nunca se é velho em Veneza, mas cresce-se muito depressa. Eu próprio cresci depressa no Veneto, e nunca fui tão velho como quando tinha vinte e um anos.

- Como está a tua mãe? - perguntou com delicadeza.

- Está muito bem. Não recebe e quase não vê ninguém por causa dos seus desgostos.

- Achas que se importava que tivéssemos um filho?

- Não sei. Ela é muito inteligente, como sabes. Mas eu teria de casar com alguém, suponho. coisa que não quero.

- Podíamos casar.

- Não - disse ela. - Já pensei nisso e acho que não devemos casar. É outra das minhas decisões, como a de não chorar.

- Talvez tomes decisões erradas. Sabe Cristo quantas tomei e quantos homens morreram de cada vez que errei.

- Acho, talvez, que exageras. Não acredito que tenhas tomado decisões erradas.

- Não muitas - disse o Coronel. - Mas bastantes. Três são muitas na minha profissão, e eu fiz três.

- Gostava de saber o que foram.

- Aborrecer-te-iam - disse-lhe o Coronel. - Fazem-me deitar o inferno cá para fora quando me recordo delas.

- Que poderão fazer a alguém que esteja à parte?

- E eu, estou à parte?

- Não. Tu és o meu verdadeiro amor. O meu último, único e verdadeiro amor.

- Tomaste-as cedo ou tarde? As decisões.

- Cedo. No meio. E tarde.

- Queres dizer-me? Gostava de partilhar as tuas tristezas.

- O diabo que as leve - disse o Coronel. - Já estão feitas e bem pagas. Tu é que não podes pagar por elas.

- Não me podes falar disso?

- Não - disse o Coronel. E foi o fim da conversa.

- Vamos divertir-nos.

- Vamos - disse o Coronel. - Com a nossa e única vida.

- Talvez haja outras. Outras vidas.

- Não acho - disse o Coronel. - Volta a cabeça de lado, beleza.

- Assim?

- Assim - disse o Coronel. - Exactamente assim.

Assim, pensou o Coronel, cá chegamos ao último assalto e eu nem sequer sei o número do assalto. Só amei três mulheres e por três vezes as perdi.

Perdeste-as do mesmo modo que perdeste um batalhão: por erros de cálculo; ordens impossíveis de cumprir em condições impossíveis. E também por causa da brutalidade.

Perdi três batalhões na minha vida e três mulheres e agora tenho uma quarta, e mais bela, e onde diabo vai tudo acabar?

Diga-me, General, e, acidentalmente, enquanto discutimos o assunto, e é uma discussão franca da situação, de modo nenhum um Conselho de Guerra, como tantas vezes me disse general, onde está a sua Cavalaria?

Assim pensei, disse de si para si. O Comandante não sabe onde está a cavalaria, e a cavalaria não está completamente apta a enfrentar a situação, nem a realizar a sua missão, e eles, alguns deles, bastantes, hão-de fazer estrume, como sempre fizeram em todas as guerras, desde que eles, a Cavalaria, possuiu grandes cavalos.

- Beleza - disse ele. - Ma très chère e bien aimée. Sou muito estúpido e estou triste.

- Para mim nunca és estúpido, e eu amo-te e só queria que pudéssemos estar contentes hoje.

- Havemos de estar, co's diabos - disse o Coronel. – Sabes de qualquer coisa em particular com que pudéssemos estar contentes?

- Podíamos estar contentes connosco, e com a cidade. Já estivemos contentes muitas vezes.

- Sim - concordou o Coronel. - Eu já estive.

- Não achas que podíamos estar uma vez mais?

- Com certeza. Claro. Porque não?

- Vês aquele rapaz com uma onda no cabelo, que é natural, mas que ele só compõe um pouco, habilidosamente, para se tornar mais elegante?

- Vejo - disse o Coronel.

- Um bom pintor, mas tem dentes postiços à frente porque era um pedacinho pédéraste e outros pédérastes atacaram-no certa noite de lua cheia, no Lido.

- Que idade tens tu?

- Vou fazer dezanove anos.

- Como sabes tudo isso?

- São os Gondoliere que me contam. O rapaz é um bom pintor. Agora não há bons pintores. Mas que coisa, com dentes postiços aos vinte e cinco anos!

- Amo-te muito - disse o Coronel.

- Também te amo muito. Signifique o que significar em americano. Também te amo em italiano, apesar de todos os meus conceitos e todos os meus desejos.

- Não devemos desejar muito - disse o Coronel -, porque estamos sempre sujeitos a obter tudo.

- Concordo - disse ela. - Mas gostava de ter aquilo que por agora desejo.

Nenhum deles disse qualquer coisa e depois a rapariga disse:

- Aquele rapaz que já é um homem, claro, vai com todas as mulheres para disfarçar o que é, e pintou o meu retrato. Podes ficar com ele, se quiseres.

- Obrigado - disse o Coronel. - Gostaria imenso.

- Muito romântico. O meu cabelo ficou duas vezes mais comprido do que já alguma vez foi e estou como se estivesse a erguer-me do mar sem ter molhado a cabeça. claro que a gente quando sai da água trás o cabelo escorrido e embaraçado nas pontas. Tem quase o aspecto de um rato quase morto. Mas o pai pagou bastante pelo retrato e embora não seja eu verdadeiramente, tem o aspecto que tu gostarias que eu tivesse.

- Também penso em ti quando sais da água.

- Está claro. É muito feio. Mas tu podias ficar com este retrato como recordação.

- E a tua mãe, não se importaria?

- A mãe não se importa. Acho que até ficaria contente por se ver livre dele. Temos retratos melhores em casa.

- Amo-te muito e à tua mãe também.

- Tenho de lhe dizer isso - disse a rapariga.

- Achas que aquele safado bexigoso é mesmo escritor?

- Sim. Se Ettore diz que é. Gosta de brincar, mas nunca mente. Ricardo, o duc é um safado? Diz-me a verdade.

- É um pouco difícil de explicar. Mas acho que quer dizer um homem que nunca trabalhou a sério na sua profissão (ofício), mas é um indivíduo cheio de presunções.

- Tenho de aprender a usar o termo com exactidão.

- Não o uses - disse o Coronel.

Depois o Coronel perguntou:

- Quando é que me trazes o retrato?

- Hoje à noite, se quiseres. Farei com que o embrulhem e tiro-o de casa. Onde é que o vais pendurar?

- No quartel.

- E não farão comentários ou dirão mal de mim?

- Não. Com certeza que não. Eu digo-lhes que o retrato é da minha filha.

- Já tiveste uma filha?

- Não. Mas sempre desejei ter.

- Posso ser tua filha e tudo o mais ao mesmo tempo.

- Isso seria incesto.

- Não acho que fosse uma coisa muito terrível numa cidade tão velha como esta e que já viu tantas coisas.

- Ouve- Filha.

- Bom - disse ela. - Isso é bonito. Gostei.

- Óptimo - disse o Coronel e a voz tornou-se-lhe um pouco mais espessa. - Também gostei.

- Vês agora porque é que te amo?

- Olha, Filha. Onde vamos nós jantar?

- Onde tu queiras.

- Queres ir ao Gritti?

- Com certeza.

- Então telefona para casa e pede autorização.

- Não. Já decidi não pedir autorização, mas enviar um recado a dizer onde janto. Assim eles não ficarão aflitos.

- Mas queres mesmo ir ao Gritti?

- Quero. É um belo restaurante e é onde tu vives e todos podem olhar para nós.

- Quando é que te transformastes tanto?

- Fui sempre assim. Nunca me importei com o que as pessoas possam pensar, Nem nunca fiz coisas de que me pudesse envergonhar, a não ser as mentiras quando era pequena.

- Quem me dera que fôssemos casados e tivéssemos cinco filhos - disse o Coronel.

- Quem me dera a mim, também - disse a rapariga. – Para mandá-los para os cinco cantos do mundo.

- Há cinco cantos no mundo?

- Não sei - disse ela. - Mas quando falei neles parecia mesmo que havia. E agora estamos a divertir-nos, não estamos?

- Sim, Filha - disse o Coronel.

- Diz isso outra vez. Apenas como o disseste.

- Sim, Filha.

- Oh - disse ela. - As pessoas devem ser muito complicadas. Posso segurar a tua mão?

- É muito feia e eu não gosto de olhar para ela.

- Não sabes nada acerca da tua mão.

- Isso é questão de opinião - disse ele. - Eu diria estás enganada, Filha.

- Talvez esteja enganada. Mas nós estamos contentes e o que era mau desapareceu.

- Foi-se embora do mesmo modo que a névoa desaparece dos buracos do terreno irregular, quando surge o sol - disse o Coronel. - E tu és o sol.

- Também quero ser a lua.

- E és - disse-lhe o Coronel. - E também podes ser qualquer planeta que tu queiras e eu dar-te-ei a localização exacta do planeta. Cristo, Filha, podes ser uma constelação, se quiseres. Só que isso é um avião.

- Serei a lua. Ela também tem muitos problemas.

- Sim. As suas mágoas aparecem regularmente. Mas enche sempre antes de desaparecer.

- Às vezes parece-me tão triste vista do canal que nem posso suportar.

- Ela anda às voltas há muito tempo - disse o Coronel:

- Achas que podemos beber outro Montgomery? - perguntou a rapariga e o Coronel reparou que os britânicos já tinham saído. Não reparara em nada a não ser no rosto da rapariga. É assim que hei-de ser morto, pensou. Por outro lado é uma forma de concentração, suponho. Mas é um descuido dos diabos.

- Sim - disse ele. - Porque não?

- Fazem-me sentir bem - disse a rapariga.

- Também têm um certo efeito em mim; é do modo como Cipriani os prepara.

- Cipriani é muito inteligente.

- mais do que isso. É hábil.

- Ainda virá a ser dono de Veneza inteira.

- Nem toda - objectou o Coronel. - Nunca será teu dono.

- Não - disse ela. - Nem mais ninguém, se tu me quiseres.

- Desejo-te, Filha. Mas não quero ser teu dono:

- Eu sei - disse a rapariga. - E essa é outra das razões por que te amo.

- Vamos chamar Ettore e pedir-lhe que telefone para tua casa. Podes falar-lhes no retrato.

- Tens razão. Se queres o retrato hoje à noite, tenho de dizer ao mordomo para o embrulhar. Também quero falar à mãe e dizer-lhe onde vamos jantar e, se queres, pedir-lhe autorização.

- Não - disse o Coronel. - Ettore, dois Montgomerys, super Montgomerys, com azeitonas que não sejam muito grandes, e, por favor, telefona para casa desta senhora e diz-lhe, quando já tiveres feito a ligação. E tudo isto o mais rapidamente possível.

- Sim, meu Coronel.

- Agora, Filha, vamos continuar a divertirmo-nos:

- Já continuámos, quando falaste - disse ela.

 

(1) «Tem doce Morte» (N. do T)

 

Passeavam agora ao longo da rua que vai até ao Gritti.

O vento soprava-lhes nas costas e atirava o cabelo da rapariga para a frente. O vento dividia-lhe o cabelo ao meio e espalhava-o depois no rosto. Olhavam as montras e a rapariga parou em frente de uma joalharia iluminada.

Havia muitas peças de joalharia antiga na montra e eles pararam e admiraram-nas, apontando as melhores um ao outro, soltando as mãos quando assim faziam.

- Há aí alguma coisa que tu queiras? Posso comprá-la de manhã. Cipriani empresta-me o dinheiro.

- Não - disse ela. - Não quero nada, mas reparo agora que nunca me deste presentes.

- Tu és mais rica do que eu. Só te posso trazer coisas insignificantes do quartel e oferecer-te bebidas e jantares.

- E levares-me nas gôndolas a sítios lindos.

- Nunca pensei que quisesses presentes de jóias.

- Não quero. Referi-me apenas ao facto de dar, e depois olha-se para os presentes e pensa-se neles quando passam de moda.

- Estou a aprender - disse o Coronel. - Mas que te poderia comprar com o meu soldo que se igualasse às tuas esmeraldas?

- Mas não vês que eu herdei-as. Vieram da minha avó e ela recebeu-as da mãe que por sua vez também as herdou. Achas que é a mesma coisa quando usamos jóias que pertenceram a pessoas que já morreram?

- Nunca pensei nisso.

- Pode-se ter jóias quando se gosta de jóias. Para mim são qualquer coisa parecida com um vestido parisiense. Não gostas de andar com o teu uniforme, pois não?

- Não.

- Não gostas de usar espada, pois não?

- Não, não gosto.

- Não és um soldado que goste dessas coisas nem eu uma rapariga que goste de jóias - disse a rapariga.

- E és capaz de decisões rápidas e adoráveis. Gostava que ficasses com as esmeraldas e podias metê-las no bolso como se fossem um amuleto e senti-las lá sempre que estivesses só.

- Nunca ponho as mãos nos bolsos quando trabalho. Normalmente ando com um bengalim ou aponto as coisas com um lápis.

- Mas podias meter as mãos nos bolsos de vez em quando e sentir as esmeraldas.

- Quando trabalho nunca me sinto só. Tenho de pensar muito para me sentir só.

- Mas agora não estás a trabalhar.

- Não. Estou apenas a preparar o melhor processo de me retirar.

- Vou dar-tas, de qualquer modo. Tenho a certeza que a mamã há-de compreender. Nem preciso de lhe dizer. Ela não vigia as minhas coisas. E estou certa que a criada nada lhe diz.

- Não acho que as deva aceitar.

- Deves sim, para me dares prazer.

- Tenho a impressão que não era honrado da minha parte.

- Isso é como não saberes se ainda és virgem. O que fizeres para agradar a alguém que amas, é sempre uma coisa honrada.

- Bem - disse o Coronel. - Fico com elas, haja o que houver.

- Agora diz obrigado - disse a rapariga metendo-lhas no bolso com tanta habilidade como um ladrão de jóias.

- Trouxe-as comigo porque andei a pensar nisto durante toda a semana e já me decidira.

- Julgava que tinhas pegado na minha mão.

- Não sejas grosseiro, Ricardo. E não deves ser estúpido. É com a tua mão que hás-de tocar-lhes. Não tinhas pensado nisso?

- Não. Fui estúpido. O que é que gostas naquela montra?

- Gosto daquele preto com rosto de ébano e com o turbante feito de diamantes baratos com um rubi no cimo.

Gostava de o usar a fazer de alfinete. Toda a gente os usava outrora nesta cidade e os rostos dos criados de confiança eram assim. Há muito tempo que o ambiciono mas gostava que fosses tu a dar-mo.

- De manhã envio-to.

- Não. Dá-mo quando almoçarmos antes de partires.

- Está bem - disse o Coronel.

- Agora temos de nos apressar ou chegaremos muito tarde ao jantar.

Começaram a andar, de braço dado, e quando subiram a primeira ponte o vento fustigou-os.

Quando novamente as dores o assaltaram, o Coronel disse para si próprio, ao diabo com isso.

- Ricardo - disse a rapariga. - Põe a mão no bolso para me agradares e apalpa as esmeraldas.

O Coronel meteu a mão no bolso.

- São maravilhosas - disse ele.

 

Entraram na luz e no calor do vestíbulo, vindos do vento e do frio, pela porta principal do Gritti Palace Hotel.

- Boa noite, Condessa - disse o porteiro. - Boa noite, meu Coronel. Deve estar frio lá fora.

- Está - disse o Coronel e não acrescentou nenhuma das suas frases obscenas acerca do frio ou da força do vento que normalmente teria empregado para mútuo prazer de ambos, sempre que a sós falava com o porteiro.

Quando seguiam pelo comprido hall que vai dar às escadas e ao elevador, passando, à direita, pela entrada do bar e pela porta que dá para o Canal Grande e para a entrada da sala de jantar, o Gran Maestro saiu do bar.

Vestia um casaco branco, comprido, e sorriu-se para eles e disse:

- Boa noite, Condessa. Boa noite, meu Coronel.

- Gran Maestro - disse o Coronel.

O Gran Maestro sorriu-se e, ainda curvado respeitosamente, disse:

- Servimos o jantar no bar. Agora no Inverno não há ninguém por cá e a sala de jantar é muito grande. Reservei a sua mesa. Temos uma bela lagosta se quiser começar por aí.

- Fresca de verdade?

- Eu mesmo a vi de manhã quando veio do mercado. Estava viva, era verde escura e pouco amistosa.

- Queres lagosta, Filha, para começar o jantar?

O Coronel empregava a palavra Filha conscientemente e o Gran Maestro e a rapariga também repararam nela. Mas tinha significados diferentes para cada um deles.

- Reservei-a para si no caso de aparecerem alguns pescecani. É a época de virem jogar no Lido. Não estou a tentar vender-lha.

- Quero lagosta - disse a rapariga. - Fria, com mayonnaise. Mayonnaise bastante espessa. - Disse isto em italiano.

- Não é muito caro? - disse ela ao Coronel, com seriedade.

- Ay hija mia - disse o Coronel.

- Mete a mão no bolso - disse ela.

- Farei com que não seja muito cara - disse o Gran Maestro. - Ou então compro-a. Posso comprá-la com o teu ordenado de uma semana.

- Vendido a crédito (1) - disse o Coronel, pois fora assim a designação em código da ordem para ocupar Trieste - Só me custa o salário de um dia.

- Mete a mão no bolso e sentes-te logo rico - disse a rapariga.

O Gran Maestro pensou que isto era um gracejo secreto e afastou-se em silêncio. Estava satisfeito com a rapariga, que admirava e respeitava, e estava satisfeito com o seu Coronel.

- Sou rico - disse o Coronel. - Mas se continuas a troçar, devolvo-tas, ponho-as em cima da mesa, em público.

Era a sua vez de fazer troça; lançava-se no contra-ataque sem sequer pensar.

- Não, não farás isso - disse ela. - Porque tu já gostas delas.

- Sou capaz de agarrar em todas as coisas de que gosto e atirá-las do mais alto dos penedos sem esperar para ouvir o estrondo.

- Não, não és capaz - disse a rapariga. - Não me atirarias de nenhum penhasco.

- Não - concordou o Coronel. - E perdoa-me por ter dito estas coisas.

- Não disseste coisas muito más e eu de qualquer modo não acreditei - disse a rapariga. - E agora, tenho de ir ao toilette das senhoras para me pentear e pôr-me apresentável ou posso ir ao teu quarto?

- O que é que preferes?

- Ir ao teu quarto e ver como vives e como é isto por aqui.

- E o que dirão no hotel?

- Tudo se vem a saber em Veneza. Mas também se sabe quem é a minha família e que eu sou uma rapariga honesta. Também se sabe quem tu és e quem eu sou. Temos algum crédito para gastar.

- Bom - disse o Coronel. - Subimos as escadas ou vamos no elevador?

- Vamos no elevador - disse ela, e ele percebeu a modificação no tom da sua voz. - Podes chamar o groom ou podemos ir sozinhos.

- Vamos sozinhos - disse o Coronel. - Há muito tempo que estou habituado a elevadores.

Foi uma boa ascensão com um ligeiro solavanco e uma rectificação no fim, e o Coronel pensou: habituado, hem? Tens de te habituar outra vez.

O corredor agora não era simplesmente belo, mas excitante, e meter a chave na fechadura não foi uma coisa vulgar, mas um rito.

- Cá estamos - disse a rapariga. - Mas está demasiadamente frio com as janelas abertas.

- Vou fechá-las.

- Não, por favor. Deixa-as abertas, se preferes.

O Coronel beijou-a e sentiu o seu corpo maravillioso, esbelto e flexível, bem proporcionado de encontro ao dele, que era seco e perfeito, mas já muito gasto, e enquanto a beijava não pensou em nada.

Beijaram-se durante muito tempo, apertados num abraço, beijando-se de verdade ao frio, junto das janelas abertas que davam para o Canal Grande.

- Oh - disse ela. E depois, repetiu. - Oh!

- Não devemos nada - disse o Coronel. - Mesmo nada.

- Queres casar comigo e ter os cinco filhos?

- Quero! Quero!

- Beija-me outra vez e magoa-me com os botões do teu uniforme mas não tanto como agora.

Continuaram em pé, a beijar-se.

- Tenho um desapontamento para ti, Ricardo - disse ela. - Tenho sempre desapontamentos em todas as coisas.

Ela disse-o num tom categórico e o Coronel recebeu-o como se fosse uma mensagem de um de três batalhões, quando o comandante do batalhão fala a verdade nua e crua e anuncia o pior.

- Tens a certeza?

- Sim.

- Minha pobre Filha - disse ele.

Agora nada havia de tenebroso na palavra e ela era a sua verdadeira Filha, e ele tinha pena dela e amava-a.

- Não importa - disse ele. - Penteia-te, pinta os lábios e vamos comer um bom jantar.

- Diz-me outra vez que me amas muito e aperta-me bem contra ti.

- Amo-te - disse o Coronel formalmente.

Depois segredou-lhe ao ouvido tão gentilmente quanto podia, segredou como quando o inimigo está a quinze pés de distância e se é ainda um jovem tenente no comando de uma patrulha.

- Amo-te meu único amor, meu único, grande e último e verdadeiro amor.

- Bom - disse ela, e beijou-o com tanta força que ele podia sentir o doce correr do sangue dentro dos seus lábios.

E também gosto disto, pensou.

- Agora vou-me pentear e pintar os lábios e já podes olhar para mim outra vez.

- Queres que feche as janelas?

- Não - disse ela. - Podemos ficar ao frio.

- A quem é que tu amas?

- A ti - disse ela. - Não temos estado muito felizes, não achas?

- Não sei - disse o Coronel. - Vamos, penteia-te.

O Coronel dirigiu-se para a casa de banho para se   preparar, A casa de banho era a única parte desapontadora do quarto. Devido ao facto de o Gritti ter sido um palácio, não existiam locais apropriados para as casas de banho quando foi construído, e, mais tarde, quando foram acrescentadas, construíram-nas no fundo dos corredores e quem desejasse utilizá-las tinha de pedir com antecedência que lhe trouxessem água quente e toalhas.

Esta casa de banho fora construída arbitrariamente num canto do quarto e era uma casa de banho de defesa em vez de o ser de ataque, pensou o Coronel. Lavando-se foi forçado a ver-se no espelho para apagar os sinais de batôn.

O Coronel mirou o rosto. Parece que foi talhado em madeira por um lenhador indiferente, pensou.

Olhou os vários vergões e rugas que tinham surgido antes da intervenção da cirurgia plástica, e os finos traços das excelentes operações plásticas que sofrera após os ferimentos na cabeça e que só os iniciados podiam perceber.

Bem, isto é tudo quanto posso oferecer como gueule ou façade, pensou. É um raio de uma pobre oferta. O que lhe vale é estar crestada e isso apaga um pouco a fealdade. Mas, meu Deus, que homem tão feio!

Não reparou no velho brilho de aço nos seus olhos, nem nas finas mas longas e risonhas rugas nos cantos dos olhos, nem reparou que o nariz quebrado era semelhante ao dos gladiadores das velhas estátuas. Nem sequer olhou a boca de linhas agradáveis, que sabia ser implacável. O diabo que te leve, disse para o espelho. Miserável estupor. Vamo-nos juntar às senhores?

Saiu da casa de banho e entrou no quarto, e sentiu-se tão jovem como quando comandara o primeiro ataque. Tudo quanto não prestava ficara na casa de banho. Como sempre, pensou. Foi para isso que se fizeram as casas de banho.

Où sont les neiges d'antan? Où sont les neiges d'autrefois? Dans le pissoir toute la chose comme ça.

A rapariga, que se chamava Renata, abrira as portas do armário. As portas tinham espelhos por dentro e ela penteava-se. Não se penteava por vaidade, nem para agradar ao Coronel. Penteava-se com dificuldade e sem cerimónia e, visto que o cabelo era pesado e solto como o de uma aldeã, ou como o das beldades da grande nobreza, resistia ao pente.

- O vento emaranhou-o - disse ela. - Ainda me amas?

- Sim - disse o Coronel. - Posso ajudar-te?

- Não. Tenho-me penteado sempre sozinha.

- Podias dar-me indicações e eu ajudava-te.

- Não. As ondas são todas para os nossos cinco filhos e para descansares a cabeça neles.

- Estava apenas a pensar no teu rosto - disse o Coronel.

- Mas agradeço-te por me teres chamado a atenção. Estou outra vez em falta.

- Sou muito atrevida.

- Não - disse o Coronel. - Na América fazem essas coisas com arame e esponja de borracha como as que se usam nos assentos dos tanques. Nunca se sabe se é verdadeiro, a não ser que se seja tão mau como eu.

- Aqui não se faz disso - disse ela e, com o pente apartou o cabelo para a frente de modo que ficou um pouco abaixo da linha das faces, e inclinando-se para trás, deixou-o pender sobre os ombros.

- Gostas dele elegante?

- Não está muito elegante mas é maravilhoso.

- Posso enrolá-lo como se usa se gostas de elegância. Mas não sei pôr ganchos e acho tudo isso uma patetice.

A voz dela era tão maravilhosa que lhe recordava Pablo Casals a tocar violoncelo e isso fazia-o sentir-se como quando se julga que já não podemos suportar um ferimento. Mas pode-se sempre suportar tudo, pensou.

- Amo-te tal como és - disse o Coronel. - E és a mais bela mulher que já conheci ou vi, mesmo nas pinturas dos grandes mestres.

- Não sei porque é que não mandaram o retrato.

- É bom ter o retrato - disse o Coronel, e agora era de novo General, sem o saber. - Mas é como esfolar um cavalo morto.

- Por favor, não fales assim - disse a rapariga. - Acho que esta noite não devemos ser assim.

- Escapei-me outra vez para o calão do meu sale métier.

- Não - disse ela. - Aperta-me nos teus braços. Com gentileza. Por favor. Não é um ofício feio. o mais antigo e o melhor embora haja pessoas sem merecimento que o praticam.

Ele apertou-a tanto quanto podia sem a magoar e ela disse:

- Não queria que fosses advogado ou padre. Nem que vendesses coisas. Nem que fosses um grande sucesso. Gosto da tua profissão e amo-te. Diz-me segredos ao ouvido, se queres.

O Coronel segredou, mantendo-a bem junto a si, com o coração despedaçado, num sussurro que era tão audível como o silvo de um cão que se ouve mesmo junto ao ouvido.

- Amo-te, meu diabo. E também és a minha Filha. E não me interessa mais nada porque a lua é a nossa mãe e o nosso pai. E agora vamos jantar.

Segredou isto tão baixo que não seria audível se ela não o amasse.

- Sim - disse a rapariga. - Sim. Mas beija-me primeiro.

 

(1) Sold to trust - conforme o original. (N. do T)

 

Estavam sentados à mesa, no canto ao fundo do bar onde o Coronel sentia ambos os flancos cobertos, e se apoiava solidamente contra o canto da sala. O Gran Maestro sabia tudo acerca disto, dado que fora um excelente sargento numa boa unidade de infantaria, num regimento de primeira ordem, e nunca sentaria o Coronel no meio de uma sala para o obrigar a tomar uma estúpida posição de defesa.

- A lagosta - disse o Gran Maestro.

A lagosta era imponente. Tinha o dobro do tamanho normal, e após cozida, desaparecera-lhe o aspecto pouco amistoso, de modo que agora parecia um monumento à própria morte, com olhos salientes e longas e delicadas antenas que pareciam servir para saber o que os olhos, mais estúpidos, não lhe podiam revelar.

Parece-se um pouco com Georgie Patton, pensou o Coronel. Mas provavelmente, quando foi afastada do serviço, nunca chorou.

- Acha que é dura? - perguntou a rapariga em italiano.

- Não - assegurou o Gran Maestro, ainda curvado com a lagosta. - Com certeza que não é dura. apenas grande. Conhecem o género.

- Está bem - disse o Coronel. - Serve-a.

- E que desejam para beber?

- O que é que queres, Filha?

- O que tu quiseres.

- Capri Bianco - disse o Coronel. - Secco e gelado.

- Já está pronto - disse o Gran Maestro.

- Vamo-nos divertir - disse a rapariga. - Vamo-nos divertir, sem tristezas. Não achas que é uma lagosta imponente?

- Sim. - respondeu o Coronel. - E oxalá que seja tenra.

- Há-de ser - disse-lhe a rapariga. - O Gran Maestro não mente. Não é maravilhoso existir gente que não mente?

- Muito maravilhoso e bastante raro - disse o Coronel. - Estava agora mesmo a pensar num homem chamado Georgie Patton que possivelmente nunca disse uma verdade em toda a vida.

- Já mentiste?

- Menti quatro vezes. Mas em cada uma delas estava muito cansado. Isto não é uma desculpa - acrescentou.

- Menti muito quando era pequena Mas quase sempre era para inventar histórias. Ou espero que assim tenha sido. Nunca menti em meu próprio proveito.

- Eu já - disse o Coronel. - Quatro vezes.

- Terias sido general se não tivesses mentido?

- Se tivesse mentido como os outros mentem, teria sido general de três estrelas.

- Serias mais feliz se fosses general de três estrelas?

- Não - disse o Coronel. - Não seria.

- Mete a mão no bolso e diz-me como te sentes.

O Coronel meteu a mão no bolso.

- Maravilhosamente - disse ele. - Mas tenho de tas devolver.

- Não. Por favor, não.

- Não falemos nisso agora.

A lagosta foi servida naquele momento.

Era tenra, com a peculiar graça escorregadia daquele músculo forte que é a cauda e as patas eram excelentes; nem muito gorda, nem muito magra.

- As lagostas enchem com a lua - disse o Coronel à rapariga. - Quando a lua não está cheia não prestam para comer.

- Não sabia isso.

- Parece-me que talvez seja assim porque quando a lua está cheia elas podem comer durante toda a noite. Ou porque a lua cheia lhes traz alimentos.

- Vêm da costa da Dalmácia, não vêm?

- Sim - disse o Coronel. - a vossa costa mais rica em peixe. Talvez eu deva dizer a nossa costa mais rica.

- Diz - disse a rapariga. - Não sabes como as coisas que se dizem são importantes.

- E ainda são mais importantes quando se escrevem num papel.

- Não - disse a rapariga. - Não concordo. O papel nada significa quando as coisas não saem do coração.

- E se não se tem coração ou o coração não presta?

- Tu tens coração e o teu coração é bom.

Quem me dera poder trocá-lo por outro, pensou o Coronel. Não percebo porque é que entre todos os músculos há-de ser este que falhará. Mas não disse isto em voz alta e meteu a mão no bolso.

- São maravilhosas - disse ele. - E tu estás maravilhosa.

- Obrigado - disse ela. - Lembrar-me-ei disso durante toda a semana.

- Só precisas olhar-te ao espelho.

- O espelho aborrece-me - disse ela. - Pôr batôn nos lábios e mexer os lábios de modo que o batôn se espalhe regularmente, ou pentear o cabelo, não é vida para uma mulher, nem mesmo para uma rapariga solitária que ama alguém. Quando se quer a lua e muitas estrelas e viver com um homem e ter cinco filhos, olhar-se ao espelho é de mulher, não é uma coisa muito excitante.

- Então vamos casar imediatamente.

- Não - disse ele.

- Tenho de me decidir acerca disso como decidi acerca das outras coisas. Tenho a semana inteira para me decidir.

- Também tomo muitas decisões - disse-lhe o Coronel. - Mas sou muito vulnerável. Não falemos disso. É muito agradável, mas acho preferível descobrirmos o que o Gran Maestro tem para o jantar. Bebe o teu vinho. Ainda não lhe tocaste.

- Vou bebê-lo agora - disse o Coronel. Provou-o, e era um vinho pálido e frio como os vinhos da Grécia, sem ser resinoso e o seu corpo era cheio e adorável como o de Renata.

- É parecido contigo.

- Sim. Eu sei. Foi por isso que te pedi que o provasses.

- Estou a prová-lo - disse o Coronel. - Agora vou beber um copo cheio.

- És um bom homem.

- Obrigado - disse o Coronel. - Lembrar-me-ei disso durante toda a semana e tentarei ser bom.

Depois disse:

- Gran Maestro.

Quando o Gran Maestro se aproximou, feliz, com ar de conspirador e esquecido das suas úlceras, o Coronel perguntou-lhe:

- Que comida há aí digna do nosso paladar?

- Não estou certo do que há - disse o Gran Maestro. – Mas vou investigar. O seu compatriota está além à distância de ouvido. Não se quis sentar no canto.

- Bom - disse o Coronel. - Vamos oferecer-lhe assunto para escrever.

- Ele escreve todas as noites. Ouvi dizer a um dos meus colegas do hotel.

- Bom - disse o Coronel. - Isso mostra que é engenhoso mesmo que o seu talento pouco valha.

- Todos nós somos engenhosos - disse o Gran Maestro. – De modos diferentes.

- Vou escolher o que há para o jantar.

- Então escolhe com cuidado.

- Sou engenhoso.

- E também és muito astuto.

O Gran Maestro afastou-se e a rapariga disse: - um homem adorável e eu amo-o porque ele gosta de ti.

- Somos bons amigos - disse o Coronel. - Espero que ele tenha um bom bife para ti.

- Há bife muito bom - disse o Gran Maestro reaparecendo.

- para ti, Filha. Estou farto de os comer na messe. Queres o bife mal passado?

- Pouco passado, por favor.

- Al sangue - disse o Coronel -, como dizia John sempre que se dirigia em francês ao criado. Crudo, bleu, ou apenas mal passado.

- Mal passado - disse o Gran Maestro. - E o senhor, meu Coronel?

- Escalopes com Marsala e couve-flor guisada com manteiga. E alcachofras, se as houver. O que é que queres, Filha?

- Puré de batata e salada.

- Olha que estás na idade em que se cresce.

- Sim. Mas não devo crescer em direcções erradas.

- Julgo que isso é controlável - disse o Coronel. – Que dizes a um fiasco de Valpolicella?

- Não temos fiascos. Este hotel é bom. Só há garrafas.

- Esqueci-me - disse o Coronel. - Lembras-te de quando o Valpolicella só custava trinta cêntimos o litro?

- E quando atirávamos os fiascos vazios aos guardas das estações ao passarmos nos comboios militares?

- E quando atirávamos fora todas as granadas que encontrávamos e as estoirávamos na encosta que dava para o Grappa?

- E eles pensavam que era um bombardeamento quando viam as explosões, e ninguém se barbeava, e usávamos o fiamme nere sobre o casaco cinzento com uma camisola cinzenta?

- E eu, que bebia grappa e nem sequer sentia o gosto?

- Éramos gente dura - disse o Coronel.

- Éramos duros - disse o Gran Maestro. - Também éramos maus e o senhor era o pior de todos.

- Sim - disse o Coronel. - Também acho que éramos tipos maus. Perdoa-nos isto, sim, Filha?

- Não tem nenhum retrato deles, não é verdade?

- Não. Só havia retratos com o senhor d'Annunzio no meio. Também a maioria modificou-se muito.

- Excepto nós - disse o Gran Maestro. - Agora tenho de ver como vai o bife.

O Coronel, que se sentia tenente de novo, metido num camião, o rosto tão coberto de poeira que só os olhos metálicos brilhavam, e estavam raiados de sangue e doridos, continuou sentado, a pensar.

Os três pontos-chaves, pensou. O massiço do Grappa com Assalone e Pertica e a colina cujo nome não me recordo. Foi aí que me fiz homem, pensou, e todas as noites acordava a suar, sonhando que nunca seria capaz de os tirar dos camiões. É óbvio que eles nunca deviam ter saído.

- Que raio de coisa!

- No nosso exército - disse à rapariga -, os Generais nunca combateram. É bastante estranho, mas os chefes não gostam dos que combateram.

- Mas os Generais combatem mesmo?

- Oh, sim. Quando são capitães e tenentes. Depois, excepto nas retiradas, é uma coisa muito estúpida.

- Combateste muito? Sei que combateste. Mas conta-me.

- Combati o suficiente para ser dado por doido pelos grandes pensadores.

- Conta-me.

- Quando era rapaz, combati contra Erwin Rommel a meio caminho da Cortina do Grappa, onde parámos. Ele era capitão nessa altura e eu era mais ou menos tenente.

- Conheceste-o?

- Não. Só no fim da guerra quando pudemos falar tranquilamente. Era uma pessoa delicada e eu gostava dele. Costumávamos fazer ski, juntos.

- Foste amigo de muitos alemães?

- De muitos. Principalmente de Ernst Udet.

- Mas eles não tinham razão.

- Claro. Mas já houve alguém que a tivesse?

- Nunca pude gostar deles nem ser tão tolerante como tu, desde que mataram o meu pai, queimaram a nossa villa no Brenta e desde que vi um oficial alemão a matar pombos com uma metralhadora, na Piazza San Marco.

- Compreendo - disse o Coronel. - Mas, por favor, Filha tenta compreender também a minha atitude. Quando já matámos muita gente podemos permitir-nos ser amáveis.

- Quantos mataste tu?

- Cento e vinte e dois, de certeza. Não incluí os possíveis.

- Não tiveste remorsos?

- Nunca.

- Nem maus sonhos?

- Nem maus sonhos. Mas às vezes tenho sonhos estranhos. Sonhos de combate, quase sempre, ou do tempo que se segue ao combate. E sonhos estranhos acerca de certos locais. Não sei se sabes que vivemos à mercê dos acidentes terrenos. E o terreno é o que fica na parte sonhadora do espírito.

- Nunca sonhas comigo?

- Tento. Mas não posso.

- Talvez o retrato ajude.

- Assim espero - disse o Coronel. - Não te esqueças de me recordar que te devolva as pedras.

- Por favor, não sejas cruel.

- Tenho pequenas necessidades de honra nas mesmas proporções em que nos amamos. Não se pode ter uma sem a outra.

- Mas podias dar-me os privilégios.

- E tu tem-los - disse o Coronel. - As esmeraldas estão no meu bolso.

O Gran Maestro veio então com o bife, os escalopes e os vegetais. Trouxe-os um rapaz de cabeça luzidia que não acreditava em coisa alguma mas que tentava ser um bom criado. Era membro da Ordem. O Gran Maestro servia habilmente, respeitando tanto a comida como quem a devia comer.

- Agora, comam - disse ele.

- Abre esse Valpolicella - disse ao rapaz que tinha olhos de sabujo.

- Então o que há sobre esse indivíduo? - perguntou-lhe o Coronel, referindo-se ao seu compatriota sentado a mastigar a refeição, enquanto a mulher idosa que o acompanhava comia com certa graça suburbana.

- O senhor é que me devia dizer e não eu a si.

- Nunca o tinha visto antes - disse o Coronel -, enquanto come parece que nunca fala.

- Condescende comigo. Às vezes fala um péssimo italiano. Anda por toda a parte com o Baedeker mas não tem gosto nem para a comida, nem para o vinho. A mulher é bonita. Tenho a impressão que é tia dele. Mas ainda não tive informações certas.

- Parece-se com qualquer coisa de que nunca se necessita.

- Falou de nós?

- Perguntou-me quem eram. Já conhecia o nome da Condessa pois visitara alguns palácios que pertenceram à família. Ficou impressionado com o nome da Senhora, que eu lhe dei só para o impressionar.

- Acha que ele vai pôr-nos num livro?

- Tenho a certeza. Põe tudo nos livros.

- Já devíamos estar num livro - disse o Coronel. - Importas-te, Filha?

- Claro que não - disse a rapariga. - Mas gostava que fosse Dante a escrevê-lo.

- Dante não anda por estas paragens.

- Não podes falar da guerra? - perguntou a rapariga.

- Qualquer coisa que eu possa saber?

- Com certeza. Tudo quanto queiras.

- Como era o General Eisenhower?

- Estritamente Liga Epworth. Provavelmente isto é injusto. Complicado por outras influências. Um excelente político. General político. Muito capaz.

- E os outros chefes?

- Não falemos deles. Já falaram muito deles próprios nas suas memórias. Encontram-se todos numa espécie de Clube de Rotários de que nunca se ouviu falar. Nesse clube todos os sócios têm os nomes gravados nos botões e fica-se logo categorizado quando os tratamos pelos nomes próprios. Mas nunca combateram. Nunca.

- Então não havia dos bons?

- Sim, muitos. Bradley, o mestre escola, e muitos outros. Por exemplo, Lightning Joe. Muito bom.

- Quem era ele?

- Comandava o Sétimo Corpo quando por lá andei. Muito esperto. Rápido. Seguro. Agora é chefe de Estado-maior.

- Mas o que pensas dos grandes chefes de que se falava sempre, como os Generais Montgomery e Patton?

- Não interessam, Filha. Morty era um indivíduo que precisava de uma proporção de quinze para um para se mover. E depois movia-se tarde demais.

- Sempre supus que foi um grande General!

- Mas não foi - disse o Coronel. - E o pior é que ele sabia-o. Vi-o, certa vez, entrar num hotel, despir o uniforme e vestir um fato de campanha só para animar a populaça.

- Não gostas dele?

- Não. Simplesmente acho que é um General Britânico. Signifique isso o que significar. E nunca uses esse termo.

- Mas ele bateu o General Rommel!

- Sim. E não achas que qualquer outro o teria conseguido? E quem é que não ganha com quinze contra um? Quando combatemos aqui, quando éramos rapazes, o Gran Maestro e eu, ganhámos durante um ano inteiro com três ou quatro contra um, e ganhámos sempre. É por isso que podemos troçar disto tudo, sem sermos solenes. Nesse ano tivemos qualquer coisa como cento e quarenta mil mortes. É por isso que podemos falar alegremente e sem pompas.

- É uma ciência muito triste; se é ciência - disse a rapariga. - Odeio os monumentos às guerras, embora os respeite.

- Também não gosto deles. Nem do processo que levou à sua construção. Já viste o fim de uma guerra?

- Não. Mas gostaria de saber como é.

- É melhor não saberes - disse o Coronel. - Come o teu bife antes que arrefeça e perdoa-me por ter falado destas coisas.

- Odeio a guerra mas amo-a.

- Tenho a impressão que partilhamos as mesmas emoções - disse o Coronel. - Mas em que estará a pensar o meu desgraçado compatriota?

- Acerca do seu novo livro, ou acerca do que se diz no Baedeker.

- Vamos sair numa gôndola, ao vento, depois do jantar?

- Seria adorável.

- Devemos dizer ao desgraçado que vamos sair? Acho que sofre tanto do coração e da alma, como da curiosidade.

- Nada lhe diremos - disse a rapariga. - O Gran Maestro pode fornecer-lhe todas as informações que quisermos.

Depois mastigou solidamente o bife e disse:

- Achas ser verdade que os homens fazem os seus próprios rostos depois dos cinquenta anos?

- Espero que não seja. Porque eu não queria ter o rosto que tenho.

- Tu! - disse ela. - Oh, tu!

- O bife, é bom? - perguntou o Coronel.

- Maravilhoso. E os escalopes, como são?

- Muito tenros, e o molho não está nada doce. Gostas dos vegetais?

- A couve-flor é dura; parece aipo.

- Devíamos ter pedido aipo. Mas não deve haver, se não o Gran Maestro tinha-o trazido.

- Tens gostado do jantar? Imagina se pudéssemos comer sempre juntos.

- Já o sugeri.

- Não falemos disso.

- Está bem - disse o Coronel. - Também já tomei uma decisão. Vou abandonar o exército e viver nesta cidade com a minha reforma.

- Isso é maravilhoso. Como é que ficas vestido à civil?   Já me viste vestido à civil.

- Eu sei, querido. Disse isto por brincadeira. Tu também gostas de brincar às vezes.

- Ficarei muito bem. Isto é, se houver por aí um alfaiate que saiba cortar um fato.

- Aqui não há, mas há em Roma. Podemos ir juntos a Roma comprar os fatos?

- Sim. Ficaremos a viver fora da cidade, em Viterbo, e só lá iremos para as provas e para jantar. Depois, à noite, regressamos.

- Veremos gente de cinema e falaremos com eles, e até tomaremos uma bebida?

- Vê-los-emos aos milhares.

- Vê-los-emos a casarem-se pela segunda ou terceira vez e depois a serem abençoados pelo Papa?

- Se gostas desse género de coisas.

- Não - disse a rapariga. - E é por isso que não posso casar contigo.

- Estou a ver - disse o Coronel. - Obrigado.

- Mas amar-te-ei tanto tempo quanto vivermos e mesmo depois, signifique isto o que significar, e tu e eu sabemos muito bem o que significa.

- Não acho que possas amar muito depois de morreres – disse o Coronel.

Começou a comer a alcachofra, tirando-lhe as folhas, uma de cada vez, e mergulhando-as no espesso molho de sauce vinaigrette.

- Não sei se posso ou não - disse a rapariga. - Mas vou tentar. Não te sentes melhor por seres amado?

- Sim - disse o Coronel. - Sinto-me como se estivesse numa colina demasiadamente rochosa para escavar, feita de rochas sólidas, mas sem saliências nem fendas e, de súbito, em vez de estar ali desprotegido, ficar com uma couraça. Couraçado e sem os oitenta e oito.

- Devias contar isso ao nosso amigo escritor, mas com as crateras da lua para que ele pudesse escrever esta noite.

- Devia era dizê-lo a Dante, se ainda fosse vivo - disse o Coronel, subitamente irado como o mar quando rebenta uma procela. - Dir-lhe-ia se seria transferido ou promovido, se tivesse um carro blindado em tais circunstâncias.

Naquele momento o barão Alvarito entrou na sala. Procurava-os, mas como era um bom caçador, viu-os imediatamente. Aproximou-se da mesa e beijou a mão de Renata, dizendo: “Ciao, Renata”. Era quase alto, elegantemente vestido com traje citadino, e era o homem mais tímido que o Coronel conhecia. Não era tímido por ignorância, nem por se sentir pouco à vontade, nem por qualquer outro defeito. Era basicamente tímido como certos animais, como o Bongo que nunca se vê na selva e que tem de ser caçado com cães.

- Meu Coronel - disse ele.

Sorriu-se como só os verdadeiramente tímidos podem sorrir.

Não era o sorriso fácil do confiante, nem o rápido e vibrante dos precoces. Não tinha qualquer relação com o sorriso venenoso e intensamente utilitário do cortesão ou do político. Era o sorriso estranho e raro que se ergue do abismo profundo e escuro, mais fundo do que um poço, fundo como uma funda mina que há dentro de todos nós.

- Só me posso demorar um minuto. Vim para lhe dizer que o tempo está óptimo para a caçada. Os patos estão a chegar do norte. Há patos enormes. Como você gosta. – sorriu de novo.

- Sente-se, Alvarito. Faça favor.

- Não - disse o Barão Alvarito. - Podemos encontrar-nos na Garage às duas e meia, se quiser. Trouxe o seu carro?

- Sim.

- Óptimo. Se partirmos a essa hora temos tempo para ver os patos à tardinha.

- Explêndido - disse o Coronel.

- Então, Ciao, Renata. Adeus, meu Coronel. Até às duas e meia.

- Conhecemo-nos desde crianças - disse a rapariga. - Mas ele é quase três anos mais velho. Nasceu tarde.

- Sim. Eu sei. É um bom amigo.

- Achas que o teu compatriota já o descobriu no Baedeker?

- Não sei - disse o Coronel. - Gran Maestro - perguntou – o meu ilustre compatriota já descobriu o Barone no Baedeker?

- Certamente, meu Coronel. Ainda não o vi puxar pelo Baedeker durante o almoço.

- Agora ouve. Acho que o Valpolicella é melhor quando é novo. Não é um gran vin e por isso engarrafá-lo e guardá-lo durante anos faz juntar depósito. Concordas?

- Concordo.

- Então, que havemos de fazer?

- Meu Coronel, o senhor sabe que num grande Hotel o vinho tem de custar dinheiro. Mas nós temos sempre alguns fiascos do bom. O senhor dirá que se vieram das propriedades da Condessa Renata são uma prenda. Depois posso abrir-lhe alguns. Deste modo teremos melhor vinho e faremos bastantes economias. Vou explicar isto ao gerente, se quiser. boa pessoa.

- Explica-lhe isso - disse o Coronel. - Ele também não é homem que beba rótulos.

- Concordo.

- Entretanto pode-se ir bebendo deste. É muito bom.

- É - disse o Coronel. - Mas não é Chambertin.

- O que é que costumávamos beber?

- Qualquer coisa - disse o Coronel. - Mas agora procuro coisas perfeitas. Ou melhor, não procuro perfeições absolutas, mas pelo menos coisas perfeitas pelo preço com que as pago.

- E eu também - disse o Gran Maestro. - Mas é sempre em vão.

- Que deseja para acabar o jantar?

- Queijo - disse o Coronel. - Que queres tu, Filha?

A rapariga ficara calada e um pouco distraída desde que vira Alvarito. Alguma coisa lhe corria pelo espírito, e ela tinha um excelente espírito. Mas, momentaneamente, alheara-se.

- Queijo - disse ela.

- Que queijo?

- Trá-los todos e nós escolheremos - disse o Coronel.

O Gran Maestro saiu e o Coronel disse:

- Que tens, Filha?

- Nada. Nunca nada. Sempre nada.

- Podes deixar-te disso. Não temos tempo para esses luxos.

- Não. Concordo. Devemo-nos devotar ao queijo.

- Tenho que o tomar como se fosse uma maçaroca?

- Não, - disse ela, sem compreender o coloquialismo, mas compreendo exactamente o que significava, pois fora ela quem levara àquele pensamento. - Mete a mão no bolso.

- Bem - disse o Coronel. - Assim farei.

E pôs primeiro a mão direita no bolso e apalpou o que lá estava, com as pontas dos dedos, depois com os dedos todos e depois com a palma da mão, a mão estropiada.

- Desculpa - disse ela. - E agora dediquemo-nos ao queijo com alegria.

- Excelente - disse o Coronel. - Que queijo terá ele?

- Vamos falar da última guerra - disse a rapariga. – Depois passear numa gôndola, ao vento.

- Não foi muito interessante - disse o Coronel. - para nós, claro, estas coisas são sempre interessantes. Mas somente três, ou talvez quatro fases me interessaram realmente.

- Porquê?

- Combatíamos um inimigo batido cujas comunicações tinham sido cortadas. Destruímos muitas divisões no papel, mas eram divisões fantasmas. Não eram verdadeiras. Foram destruídas pela nossa aviação táctica antes de entrar em combate. Também não foi difícil na Normandia, devido ao terreno, quando fizemos uma brecha para a passagem dos blindados de Georgie Patton e a deixámos aberta em ambos os lados.

- Como é que fazem uma brecha para a passagem dos blindados? Conta-me!

- Primeiro, combate-se até se tomar uma cidade que controle todas as estradas principais. Podemos chamar-lhe St. Lo. Depois é preciso abrir-se as estradas, tomando vilas e aldeias. O inimigo tem uma linha principal de resistência, mas não pode trazer as suas divisões ao contra-ataque porque os bombardeiros apanham-nas nas estradas. Isto aborrece-te? A mim aborrece-me como o diabo.

- Não me aborrece. Nunca tinha ouvido isso assim tão compreensível.

- Obrigado - disse o Coronel. - Tens a certeza que queres ouvir mais coisas acerca desta triste ciência?

- Por favor - disse ela. - Amo-te e gostava de partilhar tudo contigo.

- Ninguém pode partilhar este ofício - disse-lhe o Coronel. - Eu estou apenas a dizer-te como funciona. Posso inserir anedotas para o tornar interessante, ou plausível.

- Insere as que quiseres, por favor.

- A Tomada de Paris não custou nada - disse o Coronel. – Foi apenas uma experiência emocional. Não foi uma operação militar. Matámos um grande número de dactilógrafos e a guarda que os Alemães sempre deixam atrás para cobrir as retiradas. Suponho que eles pensaram que já não iam precisar de muitos amanuenses e por isso deixaram-nos como soldados.

- Não foi grande coisa, pois não?

- Os soldados de Leclerc, outro safado de terceira ou quarta categoria, cuja morte celebrei com um copo de Perrier-Jouet Brut 1942, disparou uma série de tiros para fingir uma certa importância e porque nós lhe tínhamos dado armas. Mas não foi coisa importante.

- Tomaste parte na tomada de Paris?

- Sim - disse o Coronel. - Penso que o posso dizer com toda a razão.

- Não ficaste impressionado? Apesar de tudo, era Paris e nem todos a têm tomado.

- Os próprios franceses já a haviam tomado quatro dias antes. Mas o grande plano do que chamávamos SHAEF, Supremo quartel General das Forças Expedicionárias Aliadas, que incluía todos os políticos militares da retaguarda e que usavam o distintivo da vergonha com a forma de qualquer coisa chamejante, enquanto nós felizmente, usávamos, por distintivo, um trevo de quatro folhas, era um plano mestre para o cerco da cidade. Assim, não a teríamos tomado com tanta simplicidade. Também tínhamos de esperar pela possível chegada do General ou Marechal de Campo Bernard Law Montgomery que até era incapaz de fechar a brecha em Falaise e que achou o trajecto muito penoso não conseguindo chegar a horas.

- Vocês devem ter sentido a falta dele - disse a rapariga.

- Oh!, sentimos - disse o Coronel.

- Mas não houve em tudo isso algo de nobre ou realmente feliz?

- Com certeza - disse-lhe o Coronel. - Combatemos desde Bas Meudon, e depois até à Porta de Saint Cloud através de ruas que eu conhecia e amava e tivemos poucos mortos e fizemos o menor dano possível. Na Étoile aprisionei o criado de Elsa Maxwell. Foi uma operação muito complicada. Fora denunciado como espião japonês. Uma coisa nova. Alegou-se que havia morto alguns parisienses. Enviámos três homens ao telhado onde se refugiara. Era indo-chinês.

- Começo a compreender. Mas é desalentador.

- É sempre desalentador como o diabo. Mas supõe-se que nestes assuntos nunca se deve ter coração.

- Achas que no tempo dos Grandes Capitães também foi assim?

- Tenho a certeza que ainda foi pior.

- Mas tu feriste-te na mão com honra?

- Sim. Com muita honra. Numa colina rochosa e sem abrigo.

- Por favor, deixa-me apertá-la - disse ela.

- Toma cuidado, especialmente na palma - disse o Coronel. - Está gretada e às vezes ainda se fende.

- Deves escrever - disse a rapariga. - Estou a dizê-lo sinceramente. Só assim as pessoas ficariam a saber essas coisas.

- Não - retorquiu o Coronel. - Não tenho talento para isso e sei demais. Quase todos os mentirosos escrevem coisas mais convincentes do que quem esteve lá.

- Mas já houve soldados que escreveram.

- Sim. Maurice de Saxe. Frederico o Grande. O sr. Tsun Su.

- Mas eu refiro-me a soldados da nossa época.

- Empregas a palavra nossa com facilidade. Em qualquer caso, gosto disso.

- Não é verdade que muitos soldados modernos também escreveram?

- Muitos. Mas tu já os lestes?

- Não. Li os clássicos e leio as revistas ilustradas que falam de escândalos. E também leio as tuas cartas.

- Queima-as - disse o Coronel. - Não prestam.

- Por favor. Não sejas rude.

- Não sou. Que posso eu contar-te que não te aborreça?

- Fala-me de quando foste general.

- Ah, isso! - disse ele e pediu ao Gran Maestro que lhe trouxesse champanhe. Era Roederer Brut'42 e ele amava-o.

- Quando se é general vive-se num reboque e o chefe do Estado-maior também vive num reboque e bebe-se whisky verdadeiro quando mais ninguém o bebe. Os G's vivem no Posto de Comando. Eu explicava-te, o que são os G's mas aborrecer-te-ia. Dir-te-ia o que são os G1, G2, G3, G4, G5, e no outro lado há sempre o kraut-6. Mas aborrecer-te-ia. Por sua vez tens um mapa coberto com material plástico e nele tens três regimentos, cada um com três batalhões. Está tudo marcado a lápis de cor.

- Também há linhas de demarcação para que os batalhões ao moverem-se não colidam uns com os outros. Cada batalhão tem cinco companhias. Deviam ser todos bons, mas uns são bons e outros não são. Há também a artilharia divisional e um batalhão de carros de combate e muitas secções de apoio. Vive-se dentro de coordenadas.

Fez uma pausa enquanto o Gran Maestro servia o Roederer Brut - Do Corpo de Exército - traduziu por cuerpo d'Armata. - dizem-nos o que devemos fazer e depois nós decidimos como será. Ditamos as ordens ou, na maioria dos casos, damo-las pelo telefone. Iludimos as pessoas que respeitamos fazendo-as executar coisas que sabemos serem impossíveis, mas que nos ordenaram. Tem de se pensar muito, deitar muito tarde e levantar muito cedo.

- E para me ajudares a escrever essas coisas? Nem sequer.

- Não - disse o Coronel. - Os rapazes com sensibilidade que conservaram todas as impressões válidas do seu dia de batalha, ou dos seus três dias de batalha, ou mesmo quatro, escrevem livros. Podem ser bons livros, mas tornam-se estúpidos se nós também lá estivemos. Os outros escrevem para ganhar dinheiro com uma guerra onde nunca lutaram. São esses que fogem sempre para transmitir as notícias. As notícias são sempre exactas. Mas tratam de fugir depressa. Os escritores profissionais, cujas profissões os impediram de lutar, escrevem acerca de combates que jamais compreendem, como se tivessem estado lá. Nem sei a que raio de pecados estamos sujeitos.

- Até um medroso capitão de marinha que não sabia comandar uma barcaça, escreveu um livro acerca da parte íntima da Grande Batalha. Tarde ou cedo, todos escrevem o seu livro. Até nós podíamos escrever um dos bons. Mas eu não escrevo, Filha.

Fez sinal ao Gran Maestro que enchesse os copos.

- Gran Maestro - disse ele. - Gostas de combater?

- Não.

- Mas nós não combatemos?

- Sim. Demasiadamente.

- E como vai a tua saúde?

- Esplêndida, se não fossem as úlceras e péssimas condições cardíacas.

- Não - disse o Coronel, e sentiu o coração bater-lhe com mais força. - Só me falaste das úlceras.

- Bem, agora já sabe - disse o Gran Maestro e não acabou a frase mas abriu o rosto com o melhor e mais claro dos sorrisos, sólido como o sol quando nasce.

- Quantas vezes?

O Gran Maestro ergueu dois dedos como quem faz uma oferta num leilão onde tem crédito, e toda a oferta ficou no aceno.

- Vou à tua frente - disse o Coronel. - Mas não sejamos macabros. Pergunta a Donna Renata se ela deseja mais vinho.

- Não me disseste que tinhas tido mais ataques - disse a rapariga. - Devias dizer-me.

- Não houve nada desde a última vez que estivemos juntos.

- Achas que te posso ajudar? Se assim é, vou simplesmente viver contigo e cuido de ti.

- É apenas um músculo - disse o Coronel. - Com a diferença de ser o músculo principal. Trabalha tão perfeitamente como um Roler Oyester Perpétuo. O diabo é que não o podemos enviar ao representante do Roler quando começa a falhar. Quando pára, já não sabemos as horas. Morremos.

- Por favor, não fales disso.

- Foste tu que me pediste para falar - disse o Coronel.

- E o nosso escritor com rosto de caricatura? Não tem disso?

- Claro que não - disse-lhe o Coronel. - Se é um escritor medíocre há-de viver eternamente.

- Mas tu não és escritor. Como sabes isso?

- Não - disse o Coronel. - Graças a Deus. Mas já li alguns livros. Há muito tempo para ler se formos solteiros. Talvez não haja tanto como na marinha mercante. Mas há muito. Posso distinguir um escritor de outro e digo-te que o escritor medíocre tem sempre vida longa. Só a longevidade é que o mantém.

- Podias contar-me histórias para deixarmos de falar nestas coisas que só me afligem.

- Posso contar-te centenas de histórias. Todas verdadeiras.

- Conta-me apenas uma. Depois acabamos o vinho e vamos passear numa gôndola.

- Achas que conseguirás estar quente lá fora?

- Oh, tenho a certeza.

- Não sei o que te hei-de contar - disse o Coronel.

- As coisas da guerra aborrecem as pessoas que não as praticaram. Excepto as histórias dos mentirosos.

- Gostava de saber mais coisas acerca da tomada de Paris.

- Porquê? Porque disse que te parecias com Marie Antonietta quando foi levada numa carroça?

- Não. Isso, para mim, foi um cumprimento, pois sei que acertas nos perfis das pessoas. Mas nunca estive numa carroça e gostava de ouvir coisas acerca de Paris. Quando se ama alguém, e esse alguém é o nosso herói, gostamos de ouvir coisas acerca dos lugares onde esteve.

- Volta a cabeça, por favor - disse o Coronel -, e eu contar-te-ei tudo. Gran Maestro, há mais alguma coisa dentro daquela maldita garrafa?

- Não - respondeu o Gran Maestro.

- Então traz-nos outra.

- Já tenho uma no gelo.

- Bom. Serve-a. Agora, Filha, vamos partir da coluna do General Leclerc em Glamart. Eles foram para Montrouge e para a Porta de Orleans e nós fomos directamente para Bas Meudon e assegurámos a ponte da Porta de Saint Cloud. Isto é muito técnico e aborrece-te, não é verdade?

- Não.

- Seria melhor com um mapa.

- Continua.

- Assegurámos a ponte e estabelecemos uma testa na outra margem do rio e atirámos os Alemães que haviam defendido a ponte, mortos e vivos, para o Sena. - Parou. - Foi uma defesa tola. Deviam tê-la dinamitado. Atirámos os alemães para o Sena. Tenho a impressão que eram quase todos amanuenses.

- Continua.

- Na manhã seguinte fomos informados que os alemães mantinham pontos fortificados em vários locais e artilharia no Monte Valérien, e muitos carros de combate atulhavam as ruas. Parte disto era verdade. Fomos também avisados de que não devíamos entrar com muita rapidez, pois era o General Leclerc quem devia tomar a cidade. Segui as ordens e entrei o mais lentamente que pude.

- Como é que se faz isso?

- Suspende-se o ataque durante duas horas e bebe-se o champagne que, por toda a parte, patriotas, colaboradores ou entusiastas nos oferecem.

- Mas não houve nada de grandioso, como vem nos livros?

- Claro que houve. A própria cidade. Os habitantes estavam muito contentes. Velhos generais andavam pelas ruas exibindo os seus uniformes todos traçados. Nós também estávamos contentes por não termos de combater.

- E não tiveram mesmo de combater?

- Só três vezes. Mas nunca foi a sério.

- Mas isso foi tudo o que fizeram para tomar uma cidade tão grande?

- Filha, nós entrámos doze vezes em luta, desde Rambouillet até tomarmos a cidade. Mas só dois desses combates merecem ser descritos. Os combates de Teussus le Noble e de Le Buc. O resto foi como a necessária guarnição de uma iguaria. De facto não precisei de lutar a não ser nesses dois locais.

- Conta-me coisas verdadeiras acerca do combate.

- Diz-me que me amas.

- Amo-te - disse a rapariga. - Podes publicar no Gazzetino, se quiseres. Amo o teu corpo duro e gordo, e os teus olhos estranhos que me assustam quando se tornam maus. Amo a tua mão e todos os outros ferimentos no teu corpo.

- É melhor tentar dizer-te coisas belas - disse o Coronel. - A primeira que te posso dizer é que te amo.

- Porque é que não compras alguns vidros bons? - perguntou a rapariga, subitamente. - Pedíamos juntos a Murano.

- Não percebo nada de vidros.

- Eu ensinava-te. Serias corajoso.

- Levamos uma vida muito nómada para termos vidros bons.

- Mas quando te retirares e viveres aqui. nessa altura compramos alguns.

- Quem me dera que fosse já.

- Também eu, mas amanhã vou caçar patos e esta noite é esta noite.

- Também posso ir à caça?

- Só se Alvarito te pedir.

- Posso fazer com que ele me convide.

- Tenho as minhas dúvidas.

- Não é delicado duvidar do que diz a tua Filha quando ela já é suficientemente crescida para não mentir.

- Está bem, Filha. Retiro a dúvida.

- Obrigado. Mas não vou, pois seria incómoda. Fico em Veneza e vou à missa com a Mãe e com a minha tia, e a minha tia-avó e depois visito os meus pobres. Sou filha única e tenho certos deveres.

- Ando sempre com curiosidade de saber o que tu fazes.

- Também tenho de lavar o cabelo e ir à manicure e à pedicure.

- Não podes fazer tudo isso porque a caçada é no domingo.

- Então farei tudo na segunda-feira. No domingo leio todas as revistas ilustradas incluindo as escandalosas.

- Talvez haja retratos de Miss Bergman. Ainda queres ser como ela?

- Já não quero - disse a rapariga. - Quero ser como sou, apenas bastante melhor e quero que tu me ames.

- E também - disse ela subitamente e sem pretensões -, quero ser como tu. Posso ser um bocadinho como tu esta noite?

- Com certeza - disse o Coronel. - Em que cidade estamos nós, entretanto?

- Veneza - disse ela. - A melhor das cidades.

- Concordo. E agradeço-te por não me pedires que te conte mais episódios da guerra.

- Oh! Tu tens de mos contar mais tarde.

- Tens? - disse o Coronel, e a crueldade e a resolução brilharam nos seus olhos estranhos, tão resolutos como quando a boca do canhão de um carro blindado aponta para nós.

- Disseste tens, Filha?

- Disse. Mas não foi com ess sentido. Ou se não o devia ter dito, desculpa-me. Eu queria dizer: se não te importas podes-me contar episódios verdadeiros mais tarde? E explicar-me coisas que eu não compreendo?

- Podes usar o tens, se quiseres, Filha. Ao diabo com isso.

Sorriu-se, e os olhos estavam já bondosos como sempre, não demasiadamente bondosos, bem o sabia. Nada lhe restava agora senão tentar ser amável para com o seu último, verdadeiro e único amor.

- É que não me importo mesmo, Filha. Acredita-me Por favor. Li muitas coisas acerca do gosto de comandar e quando tinha a tua idade, divertia-me razoavelmente praticando o comando.

- Mas eu não quero mandar em ti - disse a rapariga.

Apesar de ter decidido não chorar tinha os olhos húmidos.

- Só quero servir-te.

- Eu sei. Mas também queres mandar. Não há nada de mal nisso. Todas as pessoas como nós são assim.

- Obrigada pelo como nós.

- Não me custou dizê-lo, - disse o Coronel. acrescentou.

- Filha.

Naquele momento o porteiro aproximou-se da mesa e disse:

- Desculpe-me, meu Coronel. Está um homem lá fora. Penso que é um criado seu, minha Senhora, com um grande embrulho que diz que é para o Coronel. Ponho-o no armazém ou mando-lho para o quarto?

- Para o quarto - disse o Coronel.

- Um momento - disse a rapariga. - Não podemos dar-lhe uma vista de olhos aqui? Não incomodamos outras pessoas, não é verdade?

- Desembrulha-o e trá-lo cá.

- Muito bem.

- Depois podes levá-lo com grande cuidado para o quarto e embrulhá-lo muito bem para eu o levar amanhã ao meio-dia.

- Muito bem, meu Coronel.

- Estás excitado por poderes vê-lo? - perguntou a rapariga.

- Muito - disse o Coronel. - Gran Maestro, traz-me mais Roederer, e por favor coloca uma cadeira de modo que possamos ver um retrato. Somos devotos de arte pictórica.

- Já não há mais Roederer no gelo - disse o Gran Maestro. - Mas se desejar Perrier-Jouet.

- Trá-lo - disse o Coronel e acrescentou. - se fazes favor.

- Não falo como Georgie Patton, - disse o Coronel à rapariga. - Nem preciso. E além disso Patton já morreu.

- Pobre homem.

- Sim, Pobre homem em toda a vida. Contudo, tinha muito dinheiro e muitos blindados.

- Não gostas dos blindados?

- Não. Não gosto. Especialmente das pessoas que andam dentro deles. O blindado transforma os homens em fanfarrões, o que é primeiro passo para a cobardia; para a verdadeira cobardia. A claustrofobia complica um pouco as coisas.

Depois olhou para ela e sorriu, e arrependeu-se de a afastar do que sentia, do mesmo modo que nos arrependemos de levar um nadador inexperiente de uma praia baixa para a água profunda; e tentou tranquilizá-la.

- Perdoa-me, Filha. Digo muitas coisas injustas. Mas são mais verdadeiras do que o que poderás ler nas memórias dos Generais. Quando um homem consegue uma estrela, ou mais, tem tanta dificuldade em atingir a verdade como os nossos antepassados tinham em alcance O Santo Graal.

- Mas tu foste oficial-general.

- Não fui durante muito tempo - disse o Coronel.

- Agora os capitães - disse o General -, sabem a verdade exacta e são eles que a podem contar. Se não souberem são despromovidos.

- Despromovias-me se eu mentisse?

- Tudo dependeria da mentira.

- Não mentirei. Não quero ser despromovida. Essa palavra tem um som horrível.

- E é horrível - disse o Coronel. - E ordena-se-lhes que se vão embora e escrevam o que deveriam ter feito em onze cópias e assina-se cada uma delas.

- Despromoveste muitos?

- Bastantes.

O porteiro entrou com o retrato metido na grande moldura, tal como um navio a navegar com pano a mais.

- Traz cá, duas cadeiras - disse o Coronel ao segundo criado -, e põe-nas aqui. Vê bem se a tela não raspa nas cadeiras. E segura-a para que não caia.

Depois disse à rapariga:

- Temos de mudar aquela moldura.

- Eu sei - disse ela. - Nunca foi do meu agrado. Levo-a sem moldura e para a semana que vem escolhemos outra. Agora olha. Não olhes para a moldura. Olha para o que o retrato diz, ou não diz, de mim.

Era um belo retrato; nem frio, nem snob, nem estilizado nem moderno. Era o género de retrato que gostaríamos que Tintoretto pintasse se ainda estivesse vivo e se não estivesse poderia ser Velásquez. Mas não era do género que qualquer deles costumava pintar. Era simplesmente um retrato esplêndido, como ainda algumas vezes os retratos pintados conseguem ser nos nossos dias.

- Maravilhoso - disse o Coronel. - É verdadeiramente maravilhoso.

O porteiro e o segundo criado seguravam-no e olhavam-no dos cantos. O Gran Maestro admirava-o de frente.

O americano, duas mesas abaixo, mirava-o com olhos de jornalista, tentando adivinhar quem o pintara. A parte de trás da tela estava voltada para os outros hóspedes.

- É maravilhoso - disse o Coronel. - Mas não podes dar-mo.

- Já to dei - disse a rapariga. - Tenho a certeza que o meu cabelo não estava tão comprido.

- Provavelmente estava.

- Posso deixá-lo crescer assim, se quiseres.

- Tenta - disse o Coronel. - Tu, grande beleza. Amo-te muito. A ti e a ti retratada na tela.

- Diz aos criados, se quiseres. Tenho a certeza que não ficarão escandalizados.

- Levem a tela para o meu quarto - disse o Coronel ao porteiro. - Muito obrigado por o terem trazido. Se o preço for razoável, vou comprá-lo.

- O preço é razoável - disse-lhe a rapariga. - Achas que devíamos levá-lo mais para baixo e fazer uma exibição privada para o teu compatriota? O Gran Maestro podia dar-lhe o endereço do pintor e ele visitava o estúdio.

- É um retrato muito bonito - disse o Gran Maestro. – Mas deve ser levado para o quarto. Nunca se deve permitir que Roederer ou Perrier Jouet façam conversa acerca destes assuntos.

- Leva-o para o quarto, se fazes favor.

- Disseste o se fazes favor sem nenhuma pausa.

- Obrigado - disse o Coronel. - Estou muito comovido com o retrato e não sou inteiramente responsável pelo que digo.

- Vamos deixar de ser responsáveis.

- Concordo - disse o Coronel. - O Gran Maestro é de facto muito responsável. Sempre foi.

- Não - disse a rapariga. - Parece-me que não é responsabilidade o que há nele, mas malícia. Como sabes, todos nós temos malícia, de um modo ou de outro, nesta cidade. Acho que ele talvez não quisesse que o homem, mesmo jornalisticamente, parecesse feliz.

- Seja a felicidade o que for.

- Aprendi esta frase contigo, e tu voltas a aprendê-la comigo.

- Assim é a vida - disse o Coronel. - O que se ganha em Boston, perde-se em Chicago.

- Não percebo bem.

- É difícil de explicar - disse o Coronel. Depois, prosseguiu: - Não. Claro que não é. A minha profissão é esclarecer as coisas. Para o diabo com o que é difícil de explicar. É como no «foot-ball» profissional, calcio: o que se ganha em Milão, perde-se em Torino.

- Não me interesso pelo «foot-ball».

- Nem eu - disse o Coronel. - Especialmente, não me interesso pelos jogos entre o Exército e a Marinha, ou quando os grandes falam em termos de «foot-ball americano» para que os outros percebam do que se fala.

- Parece-me que nos vamos divertir hoje à noite. Mesmo sob quaisquer circunstâncias.

- Vamos levar esta garrafa para a gôndola?

- Sim - disse a rapariga. - Mas com copos grandes. Vou dizer ao Gran Maestro. Vistamos os casacos e vamos.

- Bom. É só tomar o remédio e depois vamos.

- Quem me dera que fosse eu a tomar o remédio.

- Estou bem contente por não seres tu a tomá-lo - disse o Coronel. - Vamos apanhar a nossa gôndola ou chamamos uma qualquer no cais?

- Arrisquemo-nos e chamemos uma no cais. O que é que temos a perder?

- Parece-me que nada. Nada, provavelmente.

 

Saíram para o imbarcadero pela porta lateral do hotel e o vento fustigou-os. As luzes do hotel brilhavam no negrume da gôndola e tornavam a água verde. É tão bela como um bom cavalo ou como um barco de corridas, pensou o Coronel. Por que é que antes nunca vi bem uma gôndola? Que mão ou vista concebeu tão negra simetria? (1)

- Onde vamos? - perguntou a rapariga.

O cabelo da rapariga, visto à luz que se filtrava pela porta e pela janela do hotel - pois ela estava parada, em pé, no centro da doca, perto da gôndola - era atirado para trás, pela força do vento e assim ela lembrava uma figura esculpida na proa de um navio. E em tudo o resto também, pensou o Coronel.

- Vamos até ao parque - disse o Coronel. - Ou vamos pelo Bois, com a capota descida. Ele que nos leve a Armenonville.

- Iremos a Paris?

- Com certeza - disse o Coronel. - Diz-lhe que nos leve, num passeio de uma hora, aonde for mais fácil ir. Não quero levá-lo para o vento.

- Com este vento a maré está cheia - disse a rapariga.

- Em certos lugares não poderá passar debaixo das pontes. Posso dizer-lhe onde queremos ir?

- Claro, Filha.

- Põe esse balde de gelo na gôndola - disse o Coronel ao segundo criado que os acompanhara.

- O Gran Maestro pediu-me que lhe dissesse, logo que o senhor embarcasse, que esta garrafa é um presente dele.

- Agradece-lhe muito mas diz-lhe que não deve fazer isso.

- É preferível irmos durante algum tempo contra o vento - disse a rapariga. - Eu depois sei onde devemos ir.

- O Gran Maestro manda isto - disse o segundo criado.

Era um velho cobertor das Forças Armadas Americanas. Renata falava com o gondoliere, os cabelos desmanchados pelo vento. O gondoliere vestia uma pesada camisola azul da marinha e estava de cabeça descoberta.

- Agradece-lhe - disse o Coronel.

Meteu uma nota na mão do segundo criado. O segundo criado devolveu-a.

- Já nos gratificou. Nem o senhor, nem eu, nem o Gran Maestro estamos a morrer de fome.

- E então a moglie e os bambini?

- Não tenho disso. Os vossos bombardeiros médios esmagaram a nossa casa em Treviso.

- Oh, que tristeza!

- Não precisa ficar triste - disse o segundo criado. – O senhor era da infantaria, como eu.

- Mas permite-me que eu fique triste.

- Com certeza - disse o segundo criado. - Mas que raio de diferença faz? Esteja satisfeito, meu Coronel, esteja alegre my Lady.

Desceram para a gôndola, e como sempre, havia a mesma magia do casco leve, e a súbita oscilação quando se entra nele, e depois o balanço na escura intimidade do barco, e um segundo balanço quando o gondoliere começa a remar, fazendo-a pender ligeiramente para um dos bordos de modo a poder controlá-la melhor.

- Agora - disse a rapariga. - estamos em casa, e eu amo-te. Beija-me com todo o teu amor.

O Coronel apertou-a de encontro a si, a cabeça dela ligeiramente caída para trás, e beijou-a até que nada ficou do beijo além do desespero.

- Amo-te.

- Signifique o que significar - interrompeu ela.

- Amo-te e sei o que isso significa. O quadro é belo. Mas não há palavras que te descrevam.

- Arrisca? - disse ela. - Que descuidada e desgrenhada?

- Não.

- A última destas palavras aprendi-a com a minha criada. Quer dizer que não nos penteamos bem. Descuidada quer dizer que não nos escovamos cem vezes à noite.

- Vou correr as mãos pelo teu cabelo e fazê-lo ainda mais desgrenhado.

- A tua mão estropiada?

- Sim.

- Para isso estamos mal sentados. Troca de lugar.

- Bom. Isso é o que se chama uma ordem simples dita em linguagem simples e facilmente compreensível.

Era engraçado mover-se no barco, tentando não perturbar o balanço da gôndola, mas não podendo evitar uma oscilação cuidadosa.

- Agora - disse ela. - Mas aperta-me bem com o outro braço.

- Sabes perfeitamente o que queres, não é verdade?

- E sei, essa palavra Não é uma coisa feminina. Também aprendi-a com a minha criada.

- Não - disse ele. - É uma coisa adorável. Puxa o cobertor e sente este vento.

- O vento das montanhas.

- Sim. E para lá das montanhas vem de qualquer outro lado.

O Coronel ouvia o rumor das ondas e sentia o vento fustigá-lo e a rude familiaridade do cobertor, e depois sentia o corpo morno da rapariga com os seios erguidos que a sua mão esquerda tocava levemente. Depois correu a mão direita duas vezes pelo cabelo dela, e mais uma vez, e beijou-a e tudo era pior que o desespero.

- Por favor - disse ela, quase tapada pelo cobertor. - Deixa-me beijar-te agora.

- Não - disse ele. - Outra vez eu.

O vento estava muito frio e queimava as faces, mas sob o cobertor não havia vento nem nada; apenas a sua mão estropiada que procurava uma ilha no grande rio, com grandes margens.

- Cá está - disse a rapariga.

Ele beijou-a e procurou de novo a ilha, encontrando-a e perdendo-a, e encontrando-a, depois, para sempre. Para sempre e para nunca, pensou, para sempre e para nunca mais.

- Querida - disse ele. - Minha querida. Por favor.

- Não. Aperta-me apenas.

O Coronel nada disse porque assistia, ou fazia acto de presença, ao único mistério em que acreditava além da valentia ocasional dos homens.

- Não te mexas - disse a rapariga.

O Coronel, deitado debaixo do cobertor, ao vento, prosseguiu, sabendo que só se retém aquilo que se faz por uma mulher, além do que se faz pela pátria, apesar do que se lê em contrário.

- Por favor, querido - disse a rapariga. - Parece-me que não posso mais.

- Não penses. Não penses em coisa alguma.

- Não estou a pensar.

- Não penses.

- Oh, não falemos.

- Está tudo bem?

- Tu sabes.

- Tens a certeza.

- Oh, não falemos, por favor.

Sim, pensou ele. Sempre e sempre por favor.

Ela nada disse, nem ele tão-pouco, e quando o grande pássaro voou pela janela da gôndola, e se perdeu no escuro nenhum deles falou. Ele ergueu ligeiramente a cabeça da rapariga com o braço são e com o outro segurou a borda da gôndola.

- Por favor, põe-na onde deve ser - disse ela. - A tua mão.

- Achas que nós...

- Não. Aperta-me apenas e tenta amar-me de verdade.

- Amo-te de verdade - disse ele, e naquele momento a gôndola voltou à esquerda, quase de súbito, e o vento bateu-lhes pela direita, e ele disse, vendo com os velhos olhos os contornos do Palácio, e observando-o. - Chegaste, Filha.

- Mas ainda é cedo. Não sabes como uma mulher se sente?

- Não. Só sei o que tu me dizes.

- Obrigado pelo tu. Mas não sabes mesmo?

- Não. Nunca perguntei. Suponho.

- Supõe agora - disse ela. - E espera até termos passado a segunda ponte.

- Bebe um copo disto - disse o Coronel, procurando o balde de gelo com a garrafa e tirando a rolha da garrafa, que o Gran Maestro já desrolhara e substituíra por uma rolha vulgar.

- Isto faz-te bem, Filha. Faz bem a todas as nossas doenças, e a todas as tristezas e indecisões.

- Não tenho nada disso - falando gramaticalmente como lhe haviam ensinado. - Sou apenas mulher, ou rapariga, ou o que quer que seja, a fazer o que não se deve fazer. Mas vamos fazê-lo outra vez, agora que estou a chegar a casa.

- Onde está a ilha agora, e onde está o rio?

- Descobre. Sou apenas uma terra desconhecida.

- Não muito desconhecida - disse o Coronel.

- Não sejas rude - disse a rapariga. - E por favor, ataca com gentileza e da mesma maneira que já atacaste.

- Não é um ataque - disse o Coronel. - É qualquer coisa mais.

- Seja o que for, seja o que for, enquanto ainda aqui estou.

- Sim - disse o Coronel. - Sim, se queres, se assim queres.

- Por favor, sim.

Ela falava como um gato, embora os gatos não saibam falar, pensou o Coronel. Mas depois deixou de pensar, e não pensou durante muito tempo.

A gôndola ia agora por um canal secundário. Quando voltara do Canal Grande o vento abalara-a tanto que o gondoliere teve de empregar todo o seu peso como lastro, e o Coronel e a rapariga também se enroscaram, debaixo do cobertor, enquanto o vento entrava furiosamente pelas dobras do cobertor.

Não falaram durante muito tempo e o Coronel reparou que a gôndola só por escassas polegadas passava por baixo da última ponte.

- Como estás, Filha?

- Estou bem.

- Amas-me?

- Não faças perguntas tolas.

- A maré está alta e só conseguimos passar aquela ponte.

- Parece-me que sei onde vamos. Nasci aqui.

- Já me enganei na minha própria cidade - disse o Coronel. - Nascer não é tudo.

- É muito - disse a rapariga. - Tu bem sabes. Aperta-me bastante para que possamos pertencer um ao outro.

- Podemos tentar - disse o Coronel - Poderia eu ser tu?

- Isso é muito complicado. Mas podemos tentar.

- Eu sou tu - disse ela. - E acabei de tomar a cidade de Paris.

- Jesus, Filha - disse ele. - Arranjaste uma série de problemas. O próximo acontecimento será uma parada da vigésima oitava divisão.

- Não me importo.

- Importo-me eu.

- Eles não eram bons?

- Eram. E tinham também bons comandantes. Mas eram da Guarda Nacional. O que se chama divisão T. S. É o Capelão quem confere o distintivo T. S.

- Não percebo nada disso.

- São coisas difíceis de explicar - disse o Coronel.

- Conta-me coisas verdadeiras sobre Paris. Também Gosto de Paris, e quando penso que a conquistaste, é como se estivesse nesta gôndola com o Marechal Ney.

- O que não seria coisa boa - disse o Coronel. - Nem mesmo depois de ter combatido nas batalhas da retaguarda ao regressar daquela grande cidade russa. Costumava combater dez, doze, quinze vezes por dia. Talvez mais. Depois não conseguia reconhecer as pessoas. Por favor, não entres em gôndolas com ele.

- Foi sempre um dos meus grandes heróis.

- Sim. E meu, também. Até Quatre Bras. Talvez não fosse Quatre Bras. Estou a ficar bolorento. Dá-se-lhe o título genérico de Waterloo.

- E ele aí, foi mau?

- Medonho - disse-lhe o Coronel. - Não interessa. Combateu demais na retaguarda, quando retiraram de Moscovo.

- Mas chamavam-lhe o bravo dos bravos.

- Não te podes fiar nisso. Pode-se sê-lo e ser também o mais esperto dos espertos. É preciso muito estofo.

- Fala-me de Paris. Já não podemos amar mais.

- Não sei. Quem disse isso?

- Digo eu porque te amo.

- Está bem. Disseste-o e amas-me. Isso chega. Ao diabo com o resto.

- Achas que podíamos amarmo-nos mais um pouco se não te magoasse?

- Magoar-me? - disse o Coronel. - E quando é que alguma vez me magoei?

 

(1) Alusão aos 2º e 3º versos da 1ª quadra do poema «Tiger» de William Blake. (N. do T)

 

- Por favor, não sejas mau - disse ela, puxando o cobertor sobre ambos. - Bebe um copo disto comigo. Sabes que ficaste magoado.

- Exactamente - disse o Coronel. - Vamos esquecer tudo.

- Está bem - disse ela. - Aprendi essa palavra, ou melhor, essas duas palavras contigo. Esqueçamos tudo.

- Porque é que gostas da minha mão? - perguntou o Coronel, colocando-a onde devia.

- Não te finjas estúpido, e não pensemos em nada, em nada, em nada.

- Sou estúpido - disse o Coronel. - Mas não pensarei em nada, nem no irmão do nada, que é «coisa alguma».

- Sê bom e carinhoso, por favor.

- E serei. E vou-te dizer um segredo militar. Altamente Secreto (1), que equivale ao muito Secreto britânico. Amo-te.

- É maravilhoso - disse ela. - E dizes isso maravilhosamente.

- Sou maravilhoso - disse o Coronel, e perscrutou a ponte que se aproximava e viu que havia espaço. - É a primeira coisa que se nota em mim.

- Emprego sempre palavras impróprias - disse a rapariga. - Por favor, ama-me, apenas. Quem me dera ser eu a amar-te.

- Tu amas-me.

- Sim, amo - disse ela. - Com todo o meu coração.

Iam agora arrastados pelo vento e sentiam-se ambos fatigados.

- Pensas que...

- Não penso - disse a rapariga.

- Bem, tenta pensar.

- Bebe um copo disto.

- Porque não? É muito bom.

E era. Ainda havia gelo no balde, e o vinho estava frio e claro.

- Posso ficar no Gritti?

- Não.

- Porquê?

- Não era decente. Para eles. Nem para ti. Para o diabo comigo.

- Então tenho de ir para casa.

- Sim - disse o Coronel. - É a suposição mais lógica.

- Isso é o modo mais horrível de dizer uma coisa triste. Nem sequer podemos fingir?

- Não. Vou levar-te a casa e tu dormirás bem e amanhã encontrar-nos-emos onde e quando quiseres.

- Posso telefonar para o Gritti?

- Com certeza. Estarei já acordado. Telefonarás quando acordares?

- Sim. Mas porque acordas sempre tão cedo?

- um hábito de profissão.

- Oh, quem me dera que tu não tivesses essa profissão, e não tivesses de morrer.

- Quem me dera a mim, também - disse o Coronel. - Mas vou abandonar a profissão.

- Sim - disse ela, sonolenta e confortavelmente. – Depois vamos a Roma comprar fatos.

- E viveremos sempre felizes.

- Cala-te - disse ela. - Por favor, cala-te: Sabes que prometi não chorar.

- Estás a chorar, agora - disse o Coronel. - Que diabo tens tu a perder com uma resolução dessas?

- Leva-me a casa.

- Era isso o que ia fazer - disse-lhe o Coronel.

- Mas primeiro sê amável.

- E serei.

Depois de terem, ou melhor de o Coronel ter pago ao gondoliere que era desconhecido, (mas que sabia tudo) sólido, são, respeitoso e digno de confiança, atravessaram a Piazzetta e depois a grande praça, fria e varrida pelo vento, que ressaltava dura e velha sob os seus passos. Andavam bem juntos um ao outro na sua tristeza e felicidade.

- Foi aqui que o alemão matou os pombos - disse a rapariga.

- Nós, provavelmente, matá-mo-lo - disse o Coronel. – Ou matámos o irmão dele. ou talvez o tenhamos enforcado. Não sei, não estou Certo...

- Amas-me ainda junto destas pedras velhas e frias, batidas pela água?

- Sim. Precisava de estender aqui um colchão e provar-to.

- Isso ainda seria mais bárbaro do que matar os pombos.

- Eu sou bárbaro - disse o Coronel.

- Nem sempre.

- Obrigado pelo nem sempre.

- Voltemos aqui.

- Bem sei. Quando é que vão demolir aquele Cine Palace e construir uma catedral a Valer? Aquilo é o que o T. 5 Jackson prefere.

- Quando alguém trouxer outra vez São Marcos de Alexandria disfarçado numa carga de carne de porco.

- Isso foi um rapaz de Torcello.

- Tu és um rapaz de Torcello.

- Sim. Sou um rapaz de Basso Piave, e do Grappa, mesmo aqui junto de Pertica. Também sou de Pasubio, se, por acaso, sabes o que isso significa. Era pior viver ali do que combater em qualquer outra parte. No pelotão costumavam partilhar o gonococus que tinham trazido de Schio numa caixa de fósforos. Costumavam fazê-lo para poderem abandonar Pasubio, que era intolerável.

- Mas tu ficaste.

- Com certeza - disse o Coronel. - Sou sempre o último a sair da festa, fiesta, quero dizer, não me refiro a coisas políticas. O convidado verdadeiramente impopular.

- Vamos?

- Pensava que já te tinhas decidido.

- Tinha. Mas quando falaste em hóspede impopular suspendi a decisão.

- Continua a mantê-la.

- Posso suspender uma decisão.

- Eu sei. Podes suspender o que quiseres. Mas, Filha, algumas vezes é bom não suspender as coisas. Isso é para os estúpidos. Algumas vezes é bom acabar com tudo rapidamente.

- Acabo rapidamente, se quiseres.

- Não. Acho que a decisão era boa.

- Mas até amanhã não vai muito tempo?

- Tudo depende da sorte que se tem ou não se tem.

- Hei-de dormir tranquilamente.

- Sim - disse o Coronel. - Na tua idade, se não dormisses bem, seria melhor que te enforcassem.

- Oh, por favor!

- Desculpa - disse ele. - Queria dizer fuzilar.

- Estamos perto de casa e agora, se quisesses, podias ser amável.

- Sou tão amável que até cheiro mal. Deixa que os outros sejam amáveis.

Estavam em frente do palácio e ele lá estava, o palácio. Nada havia a fazer além de puxar o cordão da sineta ou meter a chave na fechadura. Perder-me-ia nesta casa Pensou o Coronel, e nunca me perdi em toda a vida.

- Dá-me as boas noites com um beijo, por favor.

O Coronel beijou-a e amava-a tanto que quase não podia suportar. Depois ela foi-se embora e o Coronel ficou só, no pavimento gasto, com o vento que ainda soprava do norte e com as sombras que surgiam à escassa luz. Regressou a casa, a pé.

Só os turistas e os amantes passeiam em gôndolas, pensou. Além disso, só se utilizam para atravessar os canais quando não há pontes. Devia ir ao Harry's, provavelmente ou a qualquer outro sítio. Mas acho que vou para casa.

 

(1) To Secret (N do T)

 

E era a casa, de facto, se assim se pode chamar a um quarto de hotel. O pijama estava estendido sobre a cama. Junto ao candeeiro, sobre a mesa de cabeceira, estava uma garrafa de Valpolicella, e perto da cama, uma garrafa de água mineral dentro de um balde com gelo e um copo sobre uma bandeja de prata. O retrato fora desencaixilhado e estava colocado sobre duas cadeiras de modo a poder ver-se da cama.

A edição parisiense do New York Herald Tribune jazia sobre a cama ao lado das três almofadas. Usava sempre as almofadas, e Arnaldo conhecia os seus hábitos, e o frasco extra de remédio, não o que ele trazia sempre no bolso, estava também junto do candeeiro. As portas do armário, que interiormente eram guarnecidas com espelhos, estavam abertas de tal modo que poderia ver o retrato de lado. As pantufas estavam junto da cama.

Vou comprá-lo, disse o Coronel de si para si, visto que não estava ninguém no quarto além do quadro.

Abriu a garrafa de Valpolicella que já fora desrolhada e depois novamente rolhada com todo o cuidado e precisão, e encheu o copo que era muito melhor do que os usados nos hotéis.

- Em tua honra, Filha - disse ele. - A ti, beleza. Sabes que, entre outras coisas, cheiras sempre bem? Cheiras sempre bem, quer quando o vento sopra, ou debaixo de um cobertor ou quando beijas, em despedida. Sabes o que ninguém sabe, e não usas perfume.

Ela olhou-o do retrato e nada disse.

- Ao diabo com isto - disse ele. - Não me vou pôr a falar com um retrato.

Que julgas tu que não corre bem, hoje?, pensou.

Eu, possivelmente. Bem, vou tentar ser ajuizado amanhã, todo o dia; vou começar logo ao nascer do sol.

- Filha - disse ele, e agora falava com ela e não com o retrato. - Acredita que te amo e que quero ser delicado e bom. E, por favor, fica sempre comigo.

O retrato ficou na mesma.

O Coronel tirou as esmeraldas do bolso e olhou-as, sentindo-as deslizar da sua mão estropiada para a mão sã, frias e contudo cálidas, como se tivessem vida, e todas as jóias verdadeiras têm vida.

Devia metê-las num sobrescrito e fechá-las à chave, pensou. Mas que melhor segurança lhes poderei dar do que a minha própria segurança? Tenho de tas devolver depressa, Filha.

No entanto, isto tem graça. E não valem mais do que um quarto de milhão. É o que conseguiria ganhar em quatrocentos anos. Tenho de conferir esta soma.

Meteu as jóias no bolso do pijama e pôs um lenço sobre elas. Depois abotoou o bolso. A primeira grande coisa que se aprende, pensou é ter botões e abas em todos os bolsos. Parece-me que aprendi isto bem cedo.

As pedras transmitiam-lhe uma sensação agradável. Eram duras e quentes de encontro ao seu duro e velho peito quente, e ele reparou no modo como o vento soprava, olhou o retrato, encheu outro copo de Valpolicella e depois começou a ler a edição parisiense do New York Herald Tribune.

Devia tomar as pílulas, pensou. Mas ao diabo com as pílulas.

Afinal tomou-as mesmo, e continuou a ler o New York Herald Tribune. Lia Red Smith e gostava sinceramente dele.

 

O Coronel acordou antes do nascer do sol e reparou que ninguém dormia ao seu lado.

O vento soprava ainda e o Coronel dirigiu-se às janelas abertas para examinar o tempo. No nascente, lá para o Grande Canal, ainda não havia luz mas os seus olhos podiam ver a água revolta. Vai estar uma maré levada dos diabos, pensou. Provavelmente inundará a praça. É uma coisa que tem sempre certa graça. Excepto para os pombos.

Dirigiu-se para a casa de banho, levando consigo o Herald Tribune e Red Smith, bem como um copo de Valpolicella. Raios, ficarei bem contente quando o Gran Maestro arranjar fiacos dos grandes, pensou. Este vinho no fim, fica cheio de borra.

Sentou-se com o jornal, pensando nos acontecimentos do dia.

Primeiro, a chamada telefónica. Mas podia ser ainda muito cedo e ela devia estar a dormir. Os novos dormem até tarde, pensou, e as belezas ainda dormem até mais tarde. Com certeza, que ela não telefonaria tão cedo, e as lojas só abrem às nove ou um pouco depois. é Diabo, pensou, ainda tenho as malditas pedras! Como é que alguém consegue fazer uma coisa destas?

Sabes como é que se faz, disse de si para si, lendo os títulos no jornal. Tu também já puseste as coisas no seu devido lugar algumas vezes. Nem é morbidez nem parvoíce. Ela apenas quis pôr as coisas nos seus devidos lugares. E ainda bem que tudo se passou comigo, pensou.

E é a única coisa boa que há em mim, considerou. Bem, eu sou eu, praza a Deus. Para bem ou para mal. Como é que se pode estar sentado na retrete, como todas as manhãs te tens sentado ao longo da vida, com isto no bolso?

Não falava com alguém em especial, a não ser talvez com a posteridade.

Quantas vezes te sentaste nas latrinas com os outros? Isso é que é o pior. Isso e fazer a barba. Ou, então quando queremos estar sós e não pensar e agarramos num cobertor e já lá estão dois atiradores, ou um rapaz a dormir.

Há tanta possibilidade de se estar só no exército, como numa casa comercial: Nunca reparei bem numa casa comercial mas suponho que as dirigem do mesmo modo. Também era capaz de dirigir uma, pensou.

Depois os empregados chefes, nomeava-os Embaixadores e os que não tivessem préstimo seriam Comandantes de Corpos ou comandantes de distritos militares, disse para si próprio. É muito cedo e ainda não cumpriste os teus deveres. E o que se faria às mulheres deles, perguntou. Ou comprava-se-lhes chapéus novos ou fuzilavam-se, disse. Faz tudo parte do mesmo sistema.

Olhou-se no espelho que se descobria na porta semiaberta. O espelho só lhe revelou um escasso ângulo. É um tiro de desvio e não me apanharam convenientemente, pensou. Oh, rapaz, disse, és um velhaco cansado e velho.

Agora tens de te barbear e olhar para o espelho. Depois vais cortar o cabelo. Nesta cidade é fácil. És Coronel de Infantaria, rapaz. Não podes ter o aspecto de Joana d'Arc nem do General George Armstrong Custer. Esse belo cavaleiro. Deve ser agradável ser-se assim, ter uma esposa adorável, e areia em vez de miolos. Mas deve ter pensado que errara a profissão quando todos eles acabaram naquela colina sobre o Little Big Horn, com os garranos correndo em roda, na poeira, e as silvas esmagadas pelos cavalos do inimigo, e sem mais nada para o resto da vida além do velho e adorável cheiro da pólvora negra, e os seus próprios soldados a matarem-se uns aos outros, com medo do que os índios lhes poderiam fazer.

O seu corpo estava indescritivelmente mutilado, escrevem aqui no New York Herald Tribune. E foi naquela colina   onde cometeu um erro fatal; por fim e para sempre. Pobre cavaleiro, pensou. O fim de todos os seus sonhos. a única coisa boa que têm os soldados de Infantaria. Nunca têm sonhos, excepto sonhos maus, Bem, disse, acabemos aqui, e dentro em breve já haverá bastante luz e eu poderei ver o retrato. Diabos me levem se o devolvo. Vou ficar com ele.

- Oh, Cristo, disse o Coronel, quem me dera poder vê-la muito bem como é ela a dormir, disse de si para si. Maravilhosa. Dorme como se não tivesse ido para a cama. Como se estivesse apenas a descansar. Oxalá que Sim, a descansar, pensou. Oxalá que esteja a descansar, visto como eu a amo, e como não lhe quero fazer mal.

 

Quando o dia começou a clarear, o Coronel pôde ver o retrato. Provavelmente viu-o tão depressa quanto um homem civilizado que tem de ler e assinar documentos em que não acredita, pode ver um objecto logo que esse objecto se torna visível. Sim, disse para consigo próprio; sim, disse ele, tenho olhos que ainda detêm uma percepção rápida e outrora também os meus Ruffians mantiveram ambição. Levei sempre até onde podiam apanhar boas coisas, E dos duzentos e cinquenta que eram, só três vivem ainda e esses estão vivos para implorar o fim.

Isto é de Shakespeare, disse ele ao retrato. O vencedor e indisputável campeão.

Alguém o há-de vencer por seu turno. Mas eu prefiro venerá-lo. Já leste o Rei Lear, Filha? O sr. Gene Tunney já leu, e ele foi o campeão do mundo. Mas eu também li.

Os soldados interessam-se pelo sr. Shakespeare, embora pareça impossível. Escreve como soldado.

Tens alguma coisa a alegar em tua defesa, além de atirares a cabeça para trás?, perguntou ao retrato, queres tu Shakespeare? Que mais.

Não precisas defender-te. Descansa e deixa tudo como está. Nada disto é bom. A tua defesa e a minha não são coisas boas. quem te pediu para fugires e te enforcares desse modo?

Ninguém, disse de si para si e para o retrato. E eu muito menos.

Deixou pender a mão sã e viu que a criada deixara uma segunda garrafa de Valpolicella no sítio onde estivera a outra.

Se amamos uma terra, devemos admiti-lo, pensou o Coronel. Pois claro, admite isso, rapaz.

Amei três e perdi-as três vezes. Dá um pouco de crédito. Ganhaste duas. Retomaste duas, corrigiu.

E retomaremos a outra, General Franco Gordo, no seu palanque de atirador, com conselhos do médico e patos amansados e um anteparo de cavalaria moura, de cada vez que dispara.

Sim, disse ele brandamente à rapariga que o olhava agora mais claramente na luz do sol que despontava. Retomá-las-emos e eles serão todos dependurados de cabeça para baixo às portas das estações de abastecimento de gasolina. Já te avisaram, acrescentou.

- Retrato - disse ele -, porque diabo não te metes na cama comigo em vez de estares à distância de oito sólidos edifícios de pedra? Ou talvez mais. Não sou pior do que já fui.

- Retrato - disse ele à rapariga e ao retrato, e à rapariga outra vez: mas não havia rapariga e o retrato era o que era.

- Retrato, levanta esse adorado queixo para que mais facilmente possas despedaçar o meu coração.

É um presente maravilhoso, pensou o Coronel.

- Sabes fazer manobra? - perguntou ao retrato. - Bem e depressa?

O retrato nada disse e o Coronel respondeu, tu bem sabes que ela sabe fazer manobra. E há-de manobrar para ti, no melhor dia da tua vida, e manter-se-á no combate enquanto tu, discretamente, te safarás.

- Retrato - disse ele. - Filho ou filha, ou único amor meu, ou o que quer que seja; bem sabes o que é retrato.

O retrato, como sempre, não respondeu. Mas o Coronel que era de novo General, de manhã cedo a única hora do dia que conhecia tão verdadeiramente como o Valpolicella, sabia como se tivesse lido três vezes o seu Wassermann que nada havia de safado no retrato e arrependeu-se de lhe ter falado com rudeza.

- Hoje serei o melhor dos homens que já alguma vez conheceste. E podes dizer isso ao teu chefe.

O retrato, como era hábito, guardou silêncio.

Provavelmente ela ia falar com o General, pois ele agora é um soldado de cavalaria. Tinha duas estrelas e todos o cumprimentavam, batendo-lhe afavelmente nos ombros e mostravam a lista branca que fora pintada no vermelho indeciso da chapa na frente do seu jeep. Nunca usara carros de comando, nem carros semi-blindados e protegidos com sacos de areia.

- O diabo que te leve, retrato - disse ele. - Ou pede o distintivo T. S. ao capelão universal de todos nós, com religiões combinadas. Tens de te habituar a isso.

- O diabo que te leve - disse o retrato, sem falar. - Soldado reles.

- Sim - disse o Coronel, pois já era Coronel outra vez e renunciara ao posto de General.

- Amo-te muito, retrato. Mas não te zangues comigo. Amo-te muito porque és belo. Mas ainda amo mais a rapariga, mil vezes mais, ouviste?

Não houve qualquer sinal de que tivesse ouvido, e isso cansou-o.

- Estás numa posição fixa, retrato - disse ele. Com ou sem moldura. Vou começar a manobrar.

O retrato continuava tão silencioso como desde que o porteiro o trouxera para a sala, e, ajudado pelo segundo criado, o mostrara ao Coronel e à rapariga.

O Coronel olhou-o e viu que era uma coisa indefesa, agora que a luz era boa, ou quase boa.

Viu, também, que era o retrato do seu único e verdadeiro amor e disse:

- Desculpa-me todas as coisas estúpidas que eu digo. Nunca quis ser brutal. E se dormíssemos ambos um pouco, com tranquilidade, e depois, quem sabe, talvez a tua dona me telefone?

Talvez telefone, pensou.

 

O groom do hotel meteu o Gazzettino por baixo da porta e o Coronel apanhou-o, silenciosamente, logo que o jornal passou pela fresta.

Quase sempre recebia-o das mãos do groom. Não apreciava o groom desde que, certo dia o encontrara a remexer na sua mala, quando ele, o Coronel, voltara a entrar no quarto depois de ter saído e ter estado lá fora, presumivelmente durante algum tempo. Foi obrigado a regressar ao quarto para buscar o frasco de remédio de que se esquecera e o groom estava a remexer-lhe a mala.

- Não condizes com este hotel - dissera o Coronel. - Mas de qualquer modo não és digno da tua cidade.

O homem do colete às riscas com cara de fascista ficou calado e o Coronel disse:

- Vamos, rapaz, acaba de ver isso. Não trago segredos militares misturados com os meus objectos pessoais.

Desde então nunca mais houve amizade entre ambos e o Coronel gostava de receber o jornal das mãos do groom; silenciosamente, e quando o ouvia ou via esboçar um movimento debaixo da porta.

- OK, hoje ganhaste, meu safado - disse ele no melhor dialecto de Veneza de que era capaz àquela hora. - Vai-te enforcar.

Mas eles nunca se enforcam, pensou. Só podem continuar a meter jornais por debaixo das portas das outras pessoas, que nem sequer os odeiam. Deve ser uma coisa difícil, ser-se ex-fascista. Talvez não seja ex-fascista. Quem poderá adivinhar?

Não posso odiar os fascistas, pensou. Não os Xrauts, não obstante ser soldado.

- Ouve, retrato - disse ele. - Devo odiar os Xrauts só porque os matamos? Devo odiá-los como soldados e seres humanos? Parece ser uma solução demasiadamente fácil para mim!

Bem, retrato. Esqueçamos tudo. Esqueçamos tudo. Não és ainda bastante crescido para saberes coisas destas. És dois anos mais novo do que a rapariga que retrataste e ela é mais nova e mais velha que o inferno que por sua vez é um sítio muito velho.

- Ouve retrato - disse ele, e dizendo-o, ficou a saber que até à hora da morte teria sempre com quem falar de manhã cedo, quando acordasse.

- Como dizia, retrato. Para o inferno com tudo isto. Também é coisa velha demais para ti. Há coisas que nunca te digo, o que talvez seja bom para mim. O que achas tu que me fará bem, retrato?

- Que se passa, retrato? - perguntou. - Estás com fome? Eu estou!

Tocou a campainha para que o criado lhe trouxesse o pequeno almoço.

Agora já sabia que não haveria telefonema algum durante muitas horas, embora a luz fosse tão boa que até se podia ver a ondulação no Canal Grande, colorida e sólida, puxada pelo vento e a maré tão alta que cobria os degraus do cais do Palácio mesmo em frente do seu quarto.

Os novos dormem bem, pensou. E merecem.

- Porque será que temos de envelhecer? - perguntou ao criado do olho de vidro que entrara com o menu.

- Não sei, meu Coronel. Suponho que é um processo natural.

- Sim; também me parece. Ovos estrelados. Chá e torradas.

- Não deseja qualquer coisa americana?

- O diabo leve as coisas americanas excepto eu. O Gran Maestro já se levantou?

- Está a vazar o Valpolicello para fiascos de dois litros e já tenho aqui uma garrafa.

- Quem me dera poder dar um regimento ao Gran Maestro - disse o Coronel.

- Suponho que ele não queria nenhum regimento.

- Não - disse o Coronel. - Nem eu.

 

O Coronel tomou o pequeno almoço como o de um lutador que tivesse sido rudemente sovado e como descansar durante mais cinco segundos.

- Retrato - disse ele. - Deves descansar, esta é a única coisa mais difícil para ti. É o que se chama o elemento estático da pintura. Tu sabes, retrato, que os quadros, ou melhor, as pinturas, não se podem mover. Algumas movem-se. Mas não são muitas.

- Quem me dera que a tua dona estivesse aqui. Como é que uma rapariga pode gostar de mim, e ser tão jovem e tão bela?

Na nossa terra, se uma rapariga é mesmo bonita, é com certeza do Texas e com um pouco de sorte sabe dizer em que mês estamos. E também sabe contar.

“Ensinam-lhes a contar, a manter sempre as pernas juntas e a pentear o cabelo para cima, com ganchos. Para mal dos teus pecados, se tens alguns, ainda hás-de dormir numa cama com uma rapariga que penteia o cabelo para cima com ganchos, para estar bonita no outro dia. Mas esta noite não. Hoje à noite nunca estariam bonitas. Amanhã, quando fizermos a competição.

“A rapariga que tu és, Renata, está a dormir agora sem ter penteado o cabelo com ganchos. Está a dormir com o cabelo espalhado nas almofadas e o cabelo, para ela, não passa de um aborrecimento sedoso e negro, e quase sempre esquece-se de o pentear, a não ser que a criada a ensine.

“Vejo-a na rua com as belas pernas compridas, e o vento a fazer tudo quanto quer do cabelo, e os seios verdadeiros debaixo da camisola, e depois vejo as noites no Texas e as raparigas de grandes cabeleiras sustentadas por objectos metálicos.

- Oh, não me prendas com ganchos, minha querida - disse ele ao retrato -, e eu vou tentar moldar o teu cabelo com dollars redondos e pesados, de prata, ou com os outros.

Não devo ser grosseiro, pensou.

Depois disse ao retrato, pois não conseguia vislumbrar a rapariga no seu espírito.

- És tão bela até mais não poderes ser. Mas Renata já tem mais dois anos do que tu. Tens só dezassete anos.

E porque não poderei tê-la, e acariciá-la, e nunca mais ser rude, nem mau, e ter os cinco filhos que irão para os cinco cantos do mundo; e onde são os cinco cantos do mundo? Não sei. Suponho que só ganhamos as cartas que jogamos. Não gostarias de voltar a jogar o mesmo jogo, heim, jogador?

Não. Só jogaram contigo uma única vez, e depois tu apanhaste-os e fizeste o que te apeteceu. Posso fazer deles o que quero, disse ele ao retrato, mas o retrato não se deixou impressionar.

- Retrato - disse ele. - Se não queres perder a tua feminilidade, é melhor olhares para outro lado. Vou tom ar um banho e barbear-me, coisas que nunca terás de fazer, e vestir o meu uniforme e passear por esta cidade embora seja ainda muito cedo.

Ergueu-se da cama, sem se apoiar na perna estropiada que lhe doía sempre. Passou pelo retrato e olhou-o fugazmente, olhando-se depois no espelho. Despira o pijama e viu-se ao espelho com um olhar crítico.

- Estás gasto e velho - disse para o espelho. O retrato pertencia já ao passado. Do presente era agora o espelho. O ventre está grande, disse, sem falar. O tronco óptimo, excepto no sítio onde está o coração. Somos como somos para o melhor ou para o pior, ou para qualquer outra coisa, qualquer outra coisa medonha.

Tens metade de cem anos, meu patife. Agora vai tomar banho e esfrega-te bem e depois veste o teu uniforme. Hoje é um novo dia.

 

O Coronel parou na recepção, mas o porteiro ainda lá não estava. Estava só o empregado da noite.

- Podes guardar-me uma coisa no cofre?

- Não, meu Coronel. Ninguém pode abrir o cofre a não ser o gerente ou o porteiro. Mas eu guardo-lhe o que quiser.

- Obrigado. Não vale a pena -, e meteu o sobrescrito do Gritti no bolso interior do dólman, a ele próprio endereçado e com as esmeraldas lá dentro.

- Aqui não há crimes verdadeiros - disse o empregado da noite.

Fora uma noite muito longa e o empregado sentia-se contente por poder falar.

- Nem nunca houve, meu Coronel. Só há divergências de opinião e de política.

- E o que há, na política? - perguntou o Coronel, pois também se sentia só.

- O que sempre há a esperar da política.

- Compreendo. E como vai o vosso partido?

- Acho que vai bem. Talvez não vá tão bem como no ano passado. Mas mesmo assim não vai mal. Fomos derrotados e agora temos de esperar algum tempo.

- Trabalhas na política?

- Nem por isso. Sou mais político de coração do que de cabeça. Também acredito nela com a cabeça, mas tenho poucos conhecimentos do assunto.

- Quando tiveres alguns perderás o coração.

- Talvez não. Também há política no exército?

- Muita - disse o Coronel. - Mas não é o que julgas.

- Bom, então é melhor não discutirmos. Não me quero imiscuir.

- Fui eu quem fez a primeira pergunta, a pergunta inicial. Foi só para falar. Não foi uma interrogação.

- Também penso que não foi. O senhor não tem cara de Inquisitor, meu Coronel, e eu sei tudo acerca da Ordem, embora não seja membro dela.

- Podes ser membro material. Vou falar nisso ao Gran Maestro.

- Somos da mesma cidade mas de bairros diferentes.

- É uma bela cidade.

- Meu Coronel, tenho tão-poucos conhecimentos políticos que até acredito que um homem honrado é mesmo um homem honrado.

- Oh, isso é uma coisa que se ultrapassa - assegurou-lhe o Coronel. - Não te aflijas, rapaz. O vosso partido é ainda muito novo; é natural que façam alguns erros.

- Por favor, não fale assim, meu Coronel.

- Foi apenas uma brincadeira matinal.

- Diga-me, meu Coronel, o que é que pensa de Tito?

- Penso muitas coisas. Mas é um dos meus vizinhos e acho melhor não falar dos vizinhos.

- Gostava de aprender.

- Então aprende do modo que mais custa. Não conheces pessoas que nunca respondem a essas perguntas?

- Esperava que respondessem.

- Mas não respondem - disse o Coronel. - Pelo menos na minha posição, nunca respondem. Tudo o que te posso dizer é que o sr. Tito tem muitos problemas.

- Bem, agora já fico a saber alguma coisa - disse o empregado da noite que, de facto, era ainda um garoto. - A tal informação é sim - disse o Coronel. - Eu não diria que seja uma pérola de grande preço. Agora, bom dia, pois tenho de dar um passeio para aliviar o fígado.

- Bom dia, meu Coronel. Fa brutto, temo.

- Brutissimo - disse o Coronel e, apertando o cinto da gabardina, ajustando os ombros e as abas, saiu para o vento.

 

O Coronel tomou a gôndola de dez centesimi que atravessava o Canal, pagando com a nota normalmente suja, e misturando-se com a multidão dos condenados a levantarem-se cedo.

Olhou para o Gritti e viu as janelas do seu quarto ainda abertas. Não havia perspectivas de chuva; apenas o mesmo vento furioso, vento frio das monta-nhas. Todos os que seguiam na gôndola pareciam ter frio e o Coronel pensou, quem me dera poder dar gabardinas a toda a gente. Deus sabe, e todos os oficiais que as usam também sabem, que as gabardinas não são à prova de água, e quem será que ganha dinheiro com elas?

Com uma Burberry ninguém se molha. Mas, se calhar algum espertalhão tem agora o filho a estudar em Grotton   ou talvez em Canterbury, onde estudam os filhos dos grandes contratadores, apenas porque as nossas gabardinas metem água.

E o que poderemos dizer das gabardinas, minha besta!

A gôndola atracou entre duas estacas na outra margem do Canal e o Coronel observou as pessoas vestidas de negro que saíam do veículo pintado de negro. Mas é mesmo um veículo?, pensou. Os veículos não devem ter rodas ou serem rebocados?

Ninguém daria um centavo pelos teus pensamentos, pensou o Coronel. Nem esta manhã. Mas já valeram bastante dinheiro.

Penetrou na parte mais longínqua da cidade, a parte que enfrenta o Adriático e que ele preferia. Seguia por uma rua muito estreita para não ser obrigado a contar o número de ruas que dão para o norte ou para o sul, e que ele atravessava, nem contar as pontes e depois ter de se orientar para alcançar o mercado sem meter por becos sem saída.

É um jogo como qualquer outro, um jogo como o Ganfield duplo ou qualquer jogo solitário, de cartas. Mas dava ao jogador a vantagem de se poder movimentar enquanto o jogava e de poder admirar as casas, os panoramas de importância secundária, as lojas e as trattorias e os velhos palácios da cidade de Veneza, e era um jogo excelente.

É uma espécie de solitaire ambulante e o que se ganha é felicidade da vista e do coração. Se conseguimos alcançar o mercado, neste lado da cidade, sem nos desorientarmos, ganhamos o jogo. Mas não se pode facilitar nem contar.

No outro lado da cidade, o jogo consistia em sair do Gritti e alcançar o Rialto pelo Fondamente Nuove sem fazer um único erro.

Depois podia-se trepar à ponte, atravessá-la e descer para o mercado. O Coronel gostava muito do mercado. Era o ponto da cidade onde ia em primeiro lugar.

Naquele momento ouviu dois rapazes falando acerca dele. Soube que eram jovens por causa do timbre das vozes, e não olhou para trás, Mas ouviu com atenção e esperou por uma curva para os ver.

Vão a caminho do trabalho, concluiu. Talvez sejam ex-fascistas ou talvez sejam outra coisa qualquer, ou talvez estejam apenas a falar de ocasião. Mas agora estão a pôr o assunto de um modo muito pessoal. Já não falam só dos Americanos, mas de mim, de mim próprio, do meu cabelo grisalho, do ligeiro coxear, das botas de combate (as pessoas daquela espécie não gostam do aspecto prático das botas de combate. Gostam de botas que soem no asfalto e tenham grande brilho de polimento).

Acham que o meu uniforme não tem graça. Agora querem saber o que andarei a fazer na rua a estas horas, e estão plenamente certos que já não posso fazer amor.

Subitamente, o Coronel virou à esquerda na primeira esquina, vendo o que tinha pela frente e a distância exacta e quando os dois rapazes dobraram a esquina que era formada pelo ábside da igreja de Frari, já não havia sinais do Coronel. Estava escondido no ângulo morto atrás do ábside da velha igreja e quando passaram, o Coronel ouvindo-os aproximar-se pelo som da conversa, deu um passo em frente, com ambas as mãos enfiadas no bolso da gabardina e voltou-se para eles com ambas as mãos enfiadas nos bolsos da gabardina.

Os dois rapazes pararam, e o Coronel olhou-os no rosto e sorriu com o seu velho, gasto e mortal sorriso. Depois olhou para os pés de ambos, como sempre se olha para os pés de tais pessoas, pois usam sempre sapatos muito justos e quando lhos tiramos ficam-se a ver os dedos achatados. O Coronel escarrou no chão e nada disse.

Os dois - eram a primeira das coisas que pensara -, olharam para ele com ódio e com algo mais. Depois afastaram-se como pássaros dos pântanos, cami-nhando com longas passadas de cegonha, pensou o Coronel, e com qualquer coisa do voo das galinholas e olhando para trás com ódio, esperando que a distância fosse suficientemente grande para dizerem a última palavra.

Que pena não serem dez contra um, pensou o Coronel. Talvez tivessem lutado. E se fossem derrotados, não os amaldiçoaria.

Mas os modos deles não foram decentes para um homem com a minha idade. E também não é inteligente pensar que um Coronel com cinquenta anos não sabe italiano. Nem era inteligente pensar que um velho soldado de infantaria não seria capaz de lutar logo de manhã contra o simples número de dois para um.

Seria odioso lutar numa cidade cujo povo eu amo. Devia evitar isso. Mas esses dois jovens sem educação não teriam visto a espécie de animal com quem estavam a tratar? Não sabem porque é que coxeio? Nem conhecem qualquer dos outros sinais que os combatentes exibem com tanta certeza como as mãos de um pescador, que nos dizem que ele é pescador por causa da aspereza das cordas?

É verdade que só me viram as costas, o cu, as pernas e as botas. Pensar-se-ia que falaram por causa do andar. Talvez nunca mais o voltem a fazer. Mas quando tive oportunidade de os olhar, e pensei, Agarra nesses dois e enforca-os, acredito que eles compreenderam. Compreenderam inteiramente.

De qualquer modo, quanto vale a vida de um homem? Dez mil dólares, se o seguro for pago no nosso exército. E que diabo tem isto a ver com o assunto? Oh, sim, era no que eu pensava antes de surgirem esses dois safados: quanto dinheiro poupei eu ao governo enquanto pessoas como Benny Meyers iam enriquecendo!

Sim, disse ele, e quanto não lhe fizeste perder no Ghateau, daquela vez à frente de 10 G's. Bem, de facto nunca ninguém compreendeu isto, excepto eu. Agora, já não há razão para lhes contar. O General comandante algumas vezes define as coisas como Acasos da Guerra. No exército todos sabem que essas coisas acontecem.

Fizeste uma enorme conta no carniceiro, e és herói.

Cristo, não gosto nada de contas excessivas no carniceiro, pensou. Mas ordens são ordens e tu tiveste de as cumprir. Os erros é que não são bons companheiros do sono. Mas porque demónios é que se dorme com eles? É coisa que nunca foi saudável. Mas às vezes eles metem-se na cama. Metem-se na cama e ficam lá connosco.

Alegra-te, rapaz. Lembra-te que tinhas muito dinheiro no bolso quando topaste com aqueles dois figurões. E se perdesses, podiam-te roubar. Já não podes lutar com as mãos, e não trazias qualquer arma.

Por isso não estejas triste, rapaz, ou homem, ou Coronel ou General. Estamos perto do mercado e fizeste o caminho quase sem reparar.

E não reparar nas coisas é mau, acrescentou.

 

Ele amava o mercado. Grande parte do mercado era um recinto fechado e apinhado de gente nas várias ruas laterais, e era tão concentrado que se tornava difícil não acotovelar as pessoas, intencionalmente, e de cada vez que se parava para olhar, para comprar, ou para admirar, formava-se um ilot de résistance contra o fluxo de ataque dos compradores matinais.

O Coronel gostava de estudar os queijos espalhados ou empilhados e as grandes salsicharias. As pessoas julgam que a mortadella é uma salsicha, pensou.

Depois disse à mulher que estava na tenda:

- Deixe-me provar um pouco dessa salsicha, se faz favor. Só uma tira.

Ela cortou com ferocidade e com amor uma fina fatia, fina como uma folha de papel e quando o Coronel a provou, sentiu o gosto verdadeiro, ligeiramente fumado, da carne dos porcos alimentados com bolota da montanha.

- Levo um quarto de quilo.

Os almoços do Barone, durante as caçadas, tinham qualquer coisa de espartano, e o Coronel respeitava-os, pois sabia que quando se caça não se deve comer muito. Sentia, porém, que com estas salsichas melhoraria o almoço e poderia partilhá-las com o barqueiro e com o apanhador. Poderia dar uma fatia a Bobby, o cão de caça, que ficaria todo molhado, embora cheio de entusiasmo, mas sempre a tremer de frio.

- É a melhor salsicha que aqui têm? - perguntou à mulher. - Não tem aí nada que não esteja à vista, reservado para os melhores fregueses?

- É a melhor salsicha. Há muitas outras espécies, como sabe. Mas esta é a melhor.

- Então dê-me um oitavo de quilo de salsicha que seja bem cheia, mas mal curada.

- Tenho salsicha dessa - disse ela. - É da nova mas tal e qual como deseja.

A salsicha era para Bobby.

Mas na Itália, onde o pior crime é ser-se considerado louco e onde há muita gente com fome, ninguém deve dizer que comprou salsicha para dar a um cão. Pode-se dar salsicha a um cão diante de um homem que trabalha para seu próprio sustento e sabe o que um cão sofre dentro de água quando o tempo está frio. Mas não se compra salsicha para dar aos cães, a menos que se seja louco ou milionário de antes ou do após-guerra.

O Coronel pagou as salsichas já embrulhadas e continuou a passear pelo mercado aspirando o perfume do café torrado e admirando os montes de gordura na secção dos talhos, como se estivesse a apreciar os pintores holandeses, cujos nomes ninguém recorda, e que pintaram detalhadamente tudo quanto se caça ou é comestível.

Um mercado é a coisa mais parecida com um bom museu como o Prado ou como a Academia, pensou o Coronel.

Deu uma curta passada e chegou ao mercado de peixe.

No mercado, espalhados no chão de pedra, ou nos cestos, ou em caixas com pegas de corda, estavam as pesadas e esverdeadas lagostas com tons rosados que pressagiavam a morte próxima na água a ferver. Foram todas apanhadas à traição, pensou o Coronel, e têm patas cavilhadas.

Também havia grande número de solhas pequenas, atuns pequenos e bonitos. Estes últimos, pensou o Coronel pareciam muito dignos na morte com os olhos salientes dos peixes oceânicos.

Não foram feitos para serem apanhados, a não ser por causa da sua voracidade. As pobres solhas vivem nas águas baixas, para alimentarem o homem. Mas estes, os bonitos, vivem em grandes bandos nas águas azuis e viajam por todos os oceanos e por todos os mares.

Um níquel pelos teus pensamentos, pensou. Vejamos que mais há.

Havia muitas enguias vivas mas já pouco confiantes na sua condição de enguias. Havia também finos lagostins que poderiam fazer um scampi brochetto para assar na grelha espetados num estoque que podia ser usado em Brooklyn como quebra-gelo. Havia camarão de meio tamanho, cinzento e opalescente, esperando, por sua vez, a água a ferver e a imortalidade, e as carcaças chupadas flutuariam facilmente no praia-mar, no Canal Grande.

O rápido camarão, pensou o Coronel, com tentáculos mais compridos que os bigodes daquele velho almirante japonês, vem até aqui para morrer em nosso benefício. Oh, camarão cristão, pensou, mestre da retirada, com o teu maravilhoso serviço de espionagem na ponta das antenas, porque é que não te ensinaram que as redes e as luzes são perigosas?

Deve ter havido algum engano, pensou.

Agora admirava os diferentes e pequenos crustáceos, as ostras de cascas aceradas como navalhas que só se devem comer cruas quando se está bem vacinado contra o tifo e todos os pequenos e deleitáveis animais.

Passou por eles, parando para perguntar a um vendedor de onde eram as ostras. Eram de um bom local, sem canos de esgoto, e o Coronel pediu que lhe abrissem seis. Bebeu o molho e cortou a ostra bem junto à casca com a faca afiada que o homem lhe emprestou. O homem emprestou-lhe a faca porque sabia, por experiência, que o Coronel cortaria mais junto à casca do que lhe haviam ensinado.

O Coronel pagou por elas uma quantia muito superior à que recebiam os homens que apanhavam as ostras, e pensou, agora tenho de ver a corrente e os peixes no canal, e regressar ao hotel.

 

O Coronel entrou no vestíbulo do Hotel Gritti Palace.

Pagara aos gondolieri e agora, dentro do hotel, não havia vento.

Foram precisos dois homens para trazerem a gôndola para o Canal Grande. Tinham trabalhado valentemente e ele pagara-lhes o que mereciam e ainda lhes dera mais.

- Há chamadas para mim? - perguntou ao porteiro que estava agora na recepção.

O porteiro era eficiente, rápido, miúdo de cara, inteligente e delicado, mas sem subserviência. Usava, sem ostentação, as duas chaves cruzadas na lapela do uniforme azul. Era porteiro. Um posto muito próximo do de Capitão, pensou o Coronel. Um oficial e não um Gentleman. Nos velhos dias faria-o primeiro sargento; o único óbice É que está sempre a lidar com os latões.

- My lady telefonou duas vezes - disse o porteiro em inglês. Ou no que se deve chamar a essa língua que todos falamos, pensou o Coronel. Que seja, inglês. Foi o que nos deixaram. Devemos permitir-lhes que conservem o nome da língua. Provavelmente Cripps racioná-la-á em breve.

- Ligue-me já para casa dela, se faz favor - disse ao porteiro.

O porteiro começou a marcar os números no disco.

- Pode falar dali, meu Coronel - disse ele. - Já fiz a ligação.

- É rápido.

- Além, meu Coronel - disse o porteiro.

Dentro da cabina o Coronel levantou o auscultador e disse, automaticamente:

- Fala o Coronel Cantwell.

- Telefonei duas vezes, Ricardo - disse a rapariga. – Mas disseram-me que tinhas saído. Onde foste?

- Fui ao mercado. Como estás, querida?

- A esta hora ninguém se mete nesta linha. Sou o teu amor. Quem quer que seja.

- Só podes ser tu. Dormiste bem?

- Foi como se andasse de ski no escuro. Não era bem andar de ski mas era mesmo no escuro.

- Assim é que deve ser. Porque é que te levantaste tão cedo? Assustaste o porteiro.

- Se por acaso não é coisa pouco feminina, quando é que nos podemos encontrar e onde?

- Onde e quando quiseres.

- Ainda tens as esmeraldas? E Miss Retrato, ajudou-te?

- Sim, para ambas as perguntas. As pedras estão no bolso interior, bem abotoado. Miss Retrato e eu estivemos a falar à noite e de manhã, e ajudou muito.

- Amas o retrato mais do que a mim?

- Ainda não sou anormal. Talvez seja ostentação minha dizer isto. Mas o retrato é adorável.

- Onde é que nos encontramos?

- Queres tomar o pequeno almoço no Florian, no lado direito da praça? A praça deve estar inundada e será engraçado observar.

- Estarei lá dentro de vinte minutos, se quiseres.

- Quero - disse o Coronel, e desligou.

Ao sair da cabina telefónica, subitamente sentiu-se mal como se o diabo o tivesse encerrado numa gaiola de ferro, construída como um pulmão de aço, e caminhou, lívido até à secretária do porteiro e disse em italiano.

- Domenico, Ico, podes-me arranjar um copo de água, por favor?

O porteiro correu a buscar o copo de água e ele encostou-se à secretária para descansar. Descansou pouco e sem ilusões. Depois o porteiro voltou com o copo de água e ele tomou quatro comprimidos do tipo de que normalmente só se toma dois, e continuou a descansar tão levemente como só os falcões descansam.

- Domenico - disse ele.

- Sim, meu Coronel.

- Tenho uma coisa que quero que metas no cofre.

Pode ser levantado por mim pessoalmente, ou por escrito, ou pela pessoa a quem acabaste de telefonar. Queres que te escreva isso?

- Não. Não é necessário.

- E tu, rapaz? Tu não és imortal, não é verdade?

- Justamente - disse o porteiro. - Mas eu escrevo isso. E depois mando ao gerente e ao escriturário.

- São ambos boas pessoas - concordou o Coronel.

- Não se quer sentar, meu Coronel?

- Não. Quem é que se senta nos hotéis excepto homens e mulheres? Tu sentas-te?

- Não.

- Posso descansar em pé, ou contra uma árvore. Os meus conterrâneos sentam-se, ou deitam-se, ou caem. Dão-se-lhes uns diminuidores de energias para acabarem com as lamúrias.

Falava bastante para recobrar rapidamente a confiança.

- Mas dão-lhes mesmo diminuidores de energias?

- Pois claro. Têm qualquer coisa que impede as erecções. É como a bomba atómica, só com a diferença de actuar na retaguarda.

- Nem posso acreditar.

- Temos os mais terríveis segredos militares que por ventura a mulher de um general já disse a outra. O diminuidor de energias é o menos importante. Qualquer dia atiramos botulismo sobre Veneza, de cinquenta e seis mil pés de altura. Não há nada contra isso - explicou o Coronel. - Eles dão-vos antrazes e vocês dão-lhes botulismo.

- Mas isso é horrível.

- É pior que horrível - assegurou o Coronel. - E não é secreto. Já foi tudo publicado. E enquanto acontece, podes ouvir Margaret, se o teu aparelho for bom, a cantar o Star Spangled Banner. Tenho a impressão que se podia arranjar tudo. Não direi que a voz seja boa. Nem no nosso tempo se ouvem boas vozes. Mas agora faz-se tudo com truques. O rádio pode mesmo fazer as vozes. E o Star Spangled Banner é à prova de loucos quase até ao fim.

- Acha que eles deitam essa coisa aqui?

- Não. Nunca hão-de ter necessidade.

O Coronel, que agora era general de quatro estrelas, na sua ira, agonia e necessidade de estar confiante, mas temporariamente tranquilizado com a absorção dos comprimidos, disse, “Ciao, Domenico”, e saiu do Gritti.

Pareceu que levou doze minutos e meio a alcançar o local onde o seu verdadeiro amor chegaria, talvez um pouco mais tarde. Caminhou cuidadosa-mente, à velocidade com que devia caminhar. As pontes eram sempre as mesmas.

 

O seu verdadeiro amor estava sentado à mesa à hora exacta em que disse que chegaria. Estava bela como sempre à luz violenta da manhã que se espelhava na praça inundada e disse:

- Oh, Ricardo! Sentes-te bem? Por favor, diz-me?

- Claro que estou - disse o Coronel. - Tu, beleza!

- Foste a todos os nossos lugares favoritos no mercado?

- Apenas a alguns. Não fui ao sítio onde estão os patos selvagens.

- Obrigado.

- Não tens de quê - disse o Coronel. - Nunca vou lá quando não estás comigo.

- Não achas que eu devia ir à caçada?

- Não. Tenho a certeza que não. Alvarito ter-te-ia pedido se quisesse que tu fosses.

- Talvez não me tenha pedido exactamente porque queria que eu fosse.

- Isso é verdade - disse o Coronel, e ponderou o facto durante dois segundos. - Que desejas para o pequeno almoço.

- O pequeno almoço aqui não presta e não gosto da praça quando está inundada. Fica triste e os pombos não têm onde poisar. Só tem graça no fim, quando as crianças brincam. Vamos tomar o pequeno almoço ao Gritti?

- Queres?

- Sim.

- Bem. Vamos tomar o pequeno almoço lá. Eu já tomei o meu.

- Já?

- Bebi café e comi uns pães quentes. Estás com muita fome?

- Muita - disse ela, com sinceridade.

- Vamos fazer todas as honras ao pequeno almoço - disse o Coronel. - Nunca mais quererás ouvir falar em pequenos almoços.

Enquanto caminhavam, com o vento a bater-lhes nas costas e o cabelo dela drapejando melhor do que qualquer flâmula, ela perguntou-lhe, apertando-se a ele:

- Ainda me amas à luz fria e forte da manhã? Está mesmo fria e áspera, não está?

- Amo-te e está muito frio.

- Amei-te toda a noite enquanto fazia ski no escuro.

- Como é que fazes isso?

- As corridas são as mesmas com a diferença de estar escuro e a neve também ser escura em vez de haver luz. Mas faz-se o ski na mesma: controlado e tudo.

- Fizeste ski toda a noite? Foram muitas corridas?

- Não. Depois dormi bem e acordei contente. Estavas comigo e dormias como uma criança.

- Não estava contigo e nem sequer dormia.

- Estás comigo agora - disse ela e apertou-se de encontro a ele.

- E estamos a chegar.

- Sim.

- Já te disse que te amo?

- Disseste. Mas diz outra vez.

- Amo-te - disse ele. - Aceita, o que te digo formalmente e de frente.

- Aceito como quiseres desde que seja verdade.

- Essa é a atitude mais séria - disse ele. - Tu, boa e valente rapariga! Atira o cabelo para o lado quando chegarmos ao cimo desta ponte e deixa que o vento o projecte obliquamente.

Fez uma concessão empregando a palavra obliquamente em vez de outro termo mais correcto.

- É fácil - disse ela. - Gostas?

Ele olhou e viu-lhe o perfil e a maravilhosa cor da manhã, o peito erguido sob a camisola negra e os olhos no vento, e disse:

- Sim. Gosto.

- Estou contente - disse ela.

- Ok.

 

No Gritti o Gran Maestro sentou-se à mesa que ficava junto da janela que deitava para o Canal Grande. Não havia mais ninguém na sala.

O Gran Maestro estava satisfeito com a manhã. Considerava as úlceras e o coração dia após dia. Quando não lhe doíam, nada mais lhe doía.

- O seu colega compatriota toma o pequeno almoço na cama, - disse. - devem vir alguns belgas - confidenciou ao Coronel. - Os mais valentes eram os belgas - citou. - Há um casal de pescecani que veio donde o senhor sabe. Mas estão exaustos e acho que comerão no quarto, como porcos.

- Um excelente relatório da situação - disse o Coronel. – O nosso problema, Gran Maestro, é que eu já comi no meu quarto como fez o meu compatriota e como os pescecani farão. Mas esta senhora...

- Jovem - interrompeu o Gran Maestro sorrindo-se com todo o rosto. Sentia-se muito bem, visto que o dia era completamente novo.

- Esta jovem senhora quer um pequeno almoço para acabar de vez com os pequenos almoços.

- Compreendo - disse o Gran Maestro e olhou para Renata.

E o coração rolou-lhe no peito como os porcos-marinhos fazem no mar. É um movimento lindo e só raras pessoas podem senti-lo e fazê-lo.

- Que queres tu, Filha? - perguntou o Coronel, admirando a sua beleza escura e sem retoques matinais.

- Tudo.

- E podes dar-me algumas sugestões?

- Chá em vez de café e tudo o mais que o Gran Maestro salvou dos naufrágios.

- Não guardo salvados dos naufrágios, Filha - disse o Gran Maestro.

- Só eu é que posso chamar-lhe Filha.

- Disse isto com honestidade - disse o Gran Maestro. - Podemos fazer ou fabricar rognons assados na grelha com cogumelos cultivados por pessoas que eu conheço. Ou criados em sótãos húmidos. Pode também ser uma omeleta com trufas descobertas por porcos de boa família. Ou pode ser presunto real do Canadá que talvez seja mesmo do Canadá.

- Onde quer que isso seja - disse a rapariga, contente e sem ilusões.

- Onde quer que isso seja - disse o Coronel, sério. - E eu sei muito bem onde é.

- Parece-me que agora podíamos acabar com as brincadeiras e tomarmos o pequeno almoço.

- Se falar assim não é coisa pouco feminina, também acho. O meu pequeno almoço é uma garrafa de Valpolicella.

- E mais nada?

- Traz-me uma ração do suposto presunto do Canadá - disse o Coronel.

Olhou para a rapariga, visto que agora já estavam sós, e disse:

- Como estás, minha querida?

- Cheia de fome, parece-me. Mas agradeço-te por teres sido bom durante tanto tempo.

- Foi fácil - disse-lhe o Coronel em italiano.

 

Continuavam sentados à mesa e observavam os efeitos da tempestuosa luz da manhã sobre o Canal. O cinzento transformara-se em amarelado com o sol e as ondas rebentavam contra a maré que crescia.

- A mãe diz que não pode viver aqui muito tempo porque não há árvores - disse a rapariga- por isso que ela vai para o campo.

- É por isso que toda a gente vai para o campo - disse o Coronel. - podíamos plantar algumas árvores se encontrássemos um sítio com um jardim grande.

- Gosto dos choupos e dos plátanos da Lombardia mas ainda sou pouco educada nessas coisas.

- Também gosto deles, e dos ciprestes e dos castanheiros. O castanheiro real e o vulgar. Mas nunca verás árvores até irmos para a América. Espera até veres um pinheiro branco.

- Vê-lo-emos quando fizermos a grande viagem e pararmos em todas as estações de serviço ou estações de conforto, ou como lhes chamam?

- Alojamentos e campos de turismo - disse o Coronel. - Pararemos aí; mas não para passar a noite.

- Gostava tanto de irmos a rolar até uma estação de conforto e pedir para encherem o depósito e verificarem o óleo, Mac, como se vê nos livros americanos e nos filmes.

- Isso é uma estação de serviço.

- Então o que é uma estação de conforto?

- Sabes, é onde a gente vai.

- Oh! - disse a rapariga e corou. - Desculpa. Gosto tanto de aprender americano. Mas suponho que hei-de sempre dizer coisas bárbaras tal como vocês dizem às vezes em italiano.

- É uma língua fácil. Quanto mais se caminha para o oeste mais fácil se torna.

O Gran Maestro trouxe o pequeno almoço, e o odor, embora não se espalhasse pela sala devido às tampas de prata que cobriam as travessas, chegou até eles, o odor do presunto e dos rins grelhados, de mistura com o odor pesado dos cogumelos assados na grelha.

- Tem um aspecto delicioso - disse a rapariga. – Muito obrigada, Gran Maestro. Posso falar americano? - disse ela ao Coronel. Estendeu a mão ao Gran Maestro, rápida e leve, de modo que parecia um espadim a arremessar-se, e disse: - Aperta aqui, Pai. Esta paparoca é excelente.

O Gran Maestro disse:

- Obrigado, my lady.

- Devia dizer comezaina em vez de paparoca? - perguntou a rapariga ao Coronel.

- As duas palavras significam o mesmo.

- E falava-se assim no Oeste quando eras rapaz? Que achas tu do pequeno almoço?

- O pequeno almoço era servido, ou oferecido, pelo cozinheiro. Costumava dizer - Vamos a isto, seus malandros, ou então atiro tudo fora.

Tenho de aprender isso. Quando tivermos o Embaixador Britânico para jantar, mais a estúpida da mulher, ensinarei o criado que anuncia o jantar, a dizer: Vamos a isto, seus malandros, ou então atiro tudo fora.

- De qualquer modo seria uma experiência interessante - disse o Coronel.

- Diz-me alguma coisa que eu possa dizer ao teu colega americano verdadeiro se ele vier aí. Segredo-lhe ao ouvido como se estivesse a marcar um rendez-vous à moda antiga.

- Depende do aspecto que ele tiver. Se estiver desanimado, podes-lhe segredar assim: Ouve cá Mac. Andaste a armar em teso, não andaste?

- É maravilhoso - disse ela e repetiu a frase num tom de voz que ouvira a Ida Lupino. - posso dizer isso ao Gran Maestro?

- Com certeza. Porque não? Gran Maestro!

O Gran Maestro aproximou-se e curvou-se aguardando.

- Ouve cá, Mac. andaste a armar em teso, não?

- Andei mesmo - disse o Gran Maestro. - Obrigado por pôr as coisas com tanta exactidão.

- Se o meu compatriota vier e tu lhe quiseres falar depois de ele ter comido, segreda-lhe apenas ao ouvido: Limpa o ovo dos queixos, Mack, endireita-te e põe-te a mexer.

- Não me esqueço e vou praticar em casa.

- E que vamos fazer agora?

- Podemos ir ao teu quarto e admirar o quadro para ver se tem algum valor, se é bom, à luz do dia?

- Sim - disse o Coronel.

 

Em cima o quarto estava já arrumado e o Coronel que vislumbrara a hipótese de grande desordem, ficou satisfeito.

- Põe-te junto dele - disse o Coronel. E depois lembrou-se de acrescentar -, se fazes favor.

Ela colocou-se junto do retrato e ele admirou-o de onde já o admirara na noite passada.

- Não há comparação, claro - disse ele. - Não me refiro a semelhanças. As semelhanças são excelentes.

- E era possível haver comparação? - perguntou a rapariga, e lançou a cabeça para trás e ficou ali com a mesma camisola negra que tinha no retrato.

- Claro que não. Mas na noite passada e hoje ao nascer do dia, falei com o retrato como se fosses tu.

- Foi muita delicadeza tua e isso mostra que te fui útil.

Estavam agora deitados sobre a cama e a rapariga disse-lhe:

- Nunca fechas as janelas?

- Não. E tu?

- Só quando chove.

- Somos muito parecidos, não achas?

- Não sei. Nunca tivemos grandes oportunidades de provar.

- Nunca tivemos uma boa oportunidade. Mas já foram suficientes para eu saber.

- E quando soubeste, que demónio ganhaste tu? - perguntou o Coronel.

- Não sei. Suponho que alguma coisa melhor do que já existe.

- Com certeza. Havemos de experimentar isso. Não acredito em objectivos limitados, embora algumas vezes sejamos forçados a admiti-los.

- Qual é a coisa que mais te entristece?

- As ordens das outras pessoas - disse ele. - E a ti?

- Tu.

- Não quero entristecer ninguém. Já fui um triste desgraçado muitas vezes. Mas nunca fiz entristecer ninguém.

- Bem, agora entristeces-me a mim.

- Está bem - disse ele. - Aceitemos as coisas assim.

- És bom em aceitares as coisas assim. Esta manhã estás muito amável. E eu estou tão envergonhada com tudo isto. Aperta-me muito, por favor, e não falemos nem pensemos em como tudo poderia ter sido diferente.

- Filha, essa é uma das coisas que eu sei fazer bem.

- Sabes fazer muitas, muitas. Não digas isso.

- Pronto - disse o Coronel. - Sei avançar e retirar e que mais?

- Sabes coisas acerca dos quadros, de livros e da vida.

- Isso é fácil. Olha para os quadros sem preconceitos, lê os livros com o espírito tão aberto como tu tens o teu, e vive a vida.

- Não dispas o dolman, por favor.

- Está bem.

- Quando digo por favor, fazes tudo o que te peço.

- Já fiz algumas coisas sem o por favor.

- Mas não muitas.

- Não - disse o Coronel. - Por favor é uma linda frase.

- Por favor, por favor, por favor.

- Per piacere. Significa por prazer. Gostava de falar sempre italiano.

- Podíamos falar no escuro. Contudo há coisas que soam melhor em inglês.

- Amo-te, meu último, verdadeiro e único amor - disse ela. - Quando os lilazes florescem no jardim. E sair do berço que embala eternamente. E vamos a isto, seus malandros, ou então atiro tudo fora. Não queres dizer estas coisas noutra língua, pois não, Ricardo?

- Não.

- Beija-me outra vez por favor.

- Não é necessário o por favor.

- Eu própria tenho de acabar com um por favor desnecessário. A única coisa boa que há em tu estares para morrer é essa, de não me poderes deixar.

- Isso é um pouco rude - disse o Coronel. - A tua linda boca tem que tomar um pouco de cuidado com essas coisas.

- Fico rude quando tu ficas - disse ela. - Não quererias que eu fosse completamente ao contrário?

- Não queria que tu fosses diferente do que és, e eu amo-te a sério, e para sempre.

- Às vezes sabes dizer coisas muito bonitas. O que é que se passou contigo e com a tua mulher, se se pode saber?

- Era uma mulher muito ambiciosa e eu estava quase sempre fora de casa.

- Queres dizer que ela saía por ambição enquanto tu só saías por dever.

- Sim - disse o Coronel e recordou-se com tanto azedume quanto podia. - Era mais ambiciosa do que Napoleão com o talento médio do certificado da Universidade.

- Seja isso o que for - disse a rapariga. - Mas não falemos acerca dela. Desculpa-me ter feito a pergunta. Ela devia estar triste por não viver contigo.

- Não. Tem muita presunção para se sentir triste e casou-se comigo para progredir nos círculos militares e estabelecer contactos proveitosos para o que considerava a sua profissão, a sua arte. Era jornalista.

- Os jornalistas são terríveis.

- Concordo.

- Mas nunca deverias ter casado com uma jornalista que não quisesse abandonar a profissão.

- Já te disse que fiz vários erros.

- Falemos de outras coisas.

- Sim.

- Mas isso foi terrível. Como pudeste fazer uma coisa dessas?

- Não sei. Podia contar-te detalhadamente, mas o melhor é saltarmos por cima de tudo.

- Esqueçamos isto. Mas nunca supus que fosse tão horrível. Agora não eras capaz de voltar a fazer uma coisa dessas, pois não?

- Prometo-te, minha querida.

- Mas nunca mais lhe escreveste?

- Claro que não.

- Não lhe falaste no nosso caso, pois ela era capaz de escrever nos jornais?

- Não. Uma vez contei-lhe umas coisas e ela escreveu um artigo. Mas foi noutro país e além disso o estupor já morreu.

- Morreu mesmo?

- Está mais morta que Phoebus, o Fenício. Mas ainda não sabe nada.

- O que é que fazias se fôssemos juntos a atravessar a Piazza e a visses?

- Olhava-a de frente para lhe mostrar que está morta.

- Agradeço-te muito - disse a rapariga. - Sabes que a existência de outra mulher, uma mulher que ficou na memória, é uma coisa terrível para uma rapariga sem experiência.

- Não há qualquer outra mulher - disse-lhe o Coronel, e os seus olhos estavam duros. - Nem há mulher nenhuma na memória.

- Agradeço-te muito - disse a rapariga. - Quando olho para ti acredito que seja verdade. Mas, por favor, nunca me olhes assim nem nunca penses isso de mim.

- Vamos abatê-la e pendurá-la numa árvore? - disse o Coronel, anteci-pando-se.

- Não. Vamos esquecê-la.

- Está esquecida - disse o Coronel.

E, coisa estranha, estava mesmo. Era estranho porque durante algum tempo ela estivera ali na sala e quase causara pânico, o que é uma das coisas mais estranhas que existem, pensou o Coronel. Ele sabia muito acerca do pânico.

Mas agora ela já desaparecera, para sempre; fora cauterizada; esconjurada e com as onze cópias da sua despromoção, entre as quais estava incluído o acto formal do divórcio, em triplicado, autenticado pelo notário.

- Já a esqueci - disse o Coronel. Era verdade.

- Estou muito contente - disse a rapariga. - Não sei porque é que a deixaram entrar no hotel.

- Éramos muito parecidos - disse o Coronel. - É melhor não levarmos a brincadeira longe demais.

- Podes enforcá-la, se quiseres, pois é por culpa dela que não podemos casar.

- Já a esqueci - disse-lhe o Coronel. - Talvez algum dia ela se olhe bem ao espelho e se enforque.

- Agora que ela já saiu da sala, não devemos amaldiçoá-la. Mas, como boa veneziana, gostava que ela estivesse morta.

- E eu também - disse o Coronel. - Mas visto que não está vamos esquecê-la.

- Esquecê-la para sempre - disse a rapariga. - Espero que a dicção seja correcta. Ou em Espanhol, para sempre (1).

- Para sempre - disse o Coronel.

 

(1) - Em Espanhol, no original. (N. do T)

 

Estavam deitados sobre a cama, juntos, e não falavam e o Coronel sentia bater o coração da rapariga. É fácil sentir bater um coração sob uma camisola negra que alguém da família tricotou, e o longo cabelo dela caía-lhe sobre o braço são. Não é muito pesado, pensou ele, é mesmo mais leve do que tudo o que conheço. Estava deitada, tranquila e bela, e fosse o que fosse que neles existisse estava em estreita comunicação. Beijou-a na boca, com gentileza e desejo, e depois ficaram estáticos, subitamente, como se as comunicações fossem perfeitas.

- Ricardo - disse ela. - Tenho pena de certas coisas.

- Nunca tenhas pena - disse o Coronel. - Os desastres nunca se discutem, Filha.

- Diz outra vez.

- Filha.

- Conta-me coisas alegres de que me possa recordar durante a semana e alguns episódios da guerra para a minha educação.

- Esqueçamo-nos da guerra.

- Não. Preciso de saber por causa da minha educação.

- E eu também - disse o Coronel. - Mas nada de manobras. No nosso exército, certa vez, um oficial general obteve o plano das manobras por meio de trapacice. Antecipou-se a todos os movimentos do inimigo e portou-se com tanto brilho que foi promovido e passou à frente de muitos oficiais bons. Foi por causa dessas e doutras que já fomos derrotados. Por causa disso e da eficácia dos fins de semana.

- Estamos num fim de semana.

- Bem sei - disse o Coronel. - Ainda sei contar até sete.

- Mas não há nada que te agrade?

- Não. É que eu tenho metade de cem anos e aprendi muito.

- Conta-me coisas de Paris, pois eu gosto de pensar em ti e em Paris.

- Filha, porque é que não deixas de pensar em Paris?

- Mas já estive em Paris, e quero voltar lá outra vez e quero saber. É a cidade mais bela do mundo, a seguir à nossa, e quero saber coisas verdadeiras para levar comigo.

- Iremos juntos e quando lá estivermos eu conto-te.

- Obrigado. Mas conta-me só um pedacinho para esta semana.

- Leclerc era um grande safado e parece-me que já te expliquei. Valente, arrogante e extremamente ambicioso. Já morreu, como te disse.

- Sim, tu disseste-me.

- Diz-se que não devemos falar mal dos mortos. Mas eu acho que é a melhor ocasião para dizer a verdade. Nunca disse nada de um morto que não lhe dissesse cara a cara.

- Não falemos nele. Já o despromovi do meu espírito.

- Que queres então? Coisas pitorescas?

- Sim, por favor. Tenho o gosto estragado pelas revistas ilustradas. Mas hei-de ler Dante quando te fores embora. Irei à missa. Já é bastante.

- Vai também ao Harry's antes do almoço.

- Irei - disse ela. - Mas conta-me coisas pitorescas.

- Não achas que era melhor irmos dormir?

- Como podes querer dormir quando já tens tão pouco tempo Sentes? - disse ela e meteu-lhe o rosto debaixo do queixo até obrigá-lo a afastar a cabeça.

- Está bem. Eu conto.

- Primeiro dá-me a tua mão. Tê-la-ei sempre quando estiver a ler Dante e fizer as outras coisas.

- Dante era um tipo execrável. Mais presunçoso que Leclerc.

- Eu sei. Mas não era execrável a escrever.

- Não. Leclerc também sabia combater. Excelentemente.

- Agora, conta-me.

Tinha a cabeça sobre o peito do Coronel e ele disse:

- Porque é que não queres que tire o dólman?

- Gosto de sentir os botões. Faz mal?

- Quantas pessoas é que combateram na tua família?

- Toda a gente - disse ela. - Sempre. Também eram mercadores e alguns deles foram Doges da cidade como sabes.

- Mas todos eles combateram?

- Todos - disse ela -, pelo menos todos os que conheço.

- OK - disse o Coronel. - Vou contar-te coisas que queres saber.

- Só coisas pitorescas. Melhores ou piores do que o que se lê nas revistas ilustradas.

- Domenica del Corrier ou Tribuna Illustrata?

- Pior, se for possível.

- Dá-me um beijo, primeiro.

Ela beijou-o com delicadeza, violentamente e depois com desespero e o Coronel não podia pensar em combates nem em incidentes estranhos ou pitorescos. Só podia pensar nela, e no modo como a vida se aproxima da morte quando se cai em êxtase. E que demónio de coisa é o êxtase e qual é o posto do êxtase e o seu número de série? E que bom é sentir a camisola negra. E quem fez toda a brandura e delícia e estranho orgulho e sacrifício e sabedoria de uma criança? Sim, podia ter tido o êxtase e contudo, cada vez se aproxima mais a irmã do sono, a morte.

A morte é uma espécie de segredo, pensou. Chega em pequenos fragmentos e quase não se dá por eles. Algumas vezes chega de um modo atroz. Pode vir na água por ferver, ou num mosquiteiro que ninguém correu, ou pode chegar com o grande estampido quente e branco que nos acompanha na vida. Vem nos pequenos estalidos que precedem o estrondo da arma automática. Pode chegar com a trajectória fumegante da granada ou com a queda crepitante do morto:

Já a vi chegar, soltando-se de uma bomba e caindo com aquela estranha curva. Chega com o choque metálico de um veículo ou com a simples falta de tracção numa estrada escorregadia.

Bem sei que apanha a maioria das pessoas na cama, como se fosse a antítese do amor. Vivi com a morte toda a minha vida e a minha profissão é distribuí-la. Mas que posso eu contar a esta rapariga, hoje, numa manhã ventosa, no Gritti Palace Hotel?

- Que gostavas tu de saber, Filha? - perguntou-lhe.

- Tudo.

- Está bem - disse o Coronel. - Então ouve.

 

Estavam deitados na cama dura e agradável, feita de fresco, com as pernas encostadas, e a cabeça dela repousava sobre o peito do Coronel e o cabelo espalhava-se pelo seu velho e duro pescoço. E ele contou-lhe:

- Desembarcámos sem grande oposição: A verdadeira oposição foi na outra praia. Depois tivemos de estabelecer ligação com os pára-quedistas e tomar algumas Vilas e só depois atacámos Cherbourg, Isto foi difícil e teve de ser feito rapidamente e as ordens eram dadas por um general chamado Lightning Joe de que nunca ouviste falar. O General...

- Vamos, continua. Já falaste antes de Lightning Joe.

- Depois de Cherbourg tivemos o que quisemos. Eu não tirei nada a não ser um compasso de Almirante porque nessa altura tinha um barquito na Baía de Chesapeake. Mas todos nós apanhámos o Martell da Wehrmacht e algumas pessoas conseguiram cinco ou seis milhões de francos franceses impressos na Alemanha. Foram bons até há cerca de um ano; e nessa altura estavam a cinquenta o dólar e os que souberam mandá-los para casa por intermédio dos Esses ou dos G's, têm hoje um tractor em vez de uma simples mula.

“Nunca roubei nada excepto o compasso porque sempre pensei que na guerra, roubar sem necessidade dá azar, Mas bebi o cognac e costumava fazer correcções com o compasso, quando tinha tempo. O compasso era o meu único amigo. Tínhamos mais arame em fio do que galdérias no Texas.

- Conta-me essas coisas mas não sejas rude. Não sei o que é que essa palavra significa e não quero saber.

- O Texas é um grande estado - disse o Coronel. - Foi por isso que eu usei essa palavra e a sua população feminina é como um címbalo. Não se pode dizer mais galdérias que no Wyoming porque lá há menos que trinta mil, talvez, demónios, vá lá cinquenta, e porque havia muito arame, e nós estávamos sempre a enrolá-lo e a desenrolá-lo, e a enrolá-lo outra vez.

- Continua.

- Vamos passar à frente, até ao ataque - disse o Coronel. - Se te aborrecer, diz-me.

- Não.

- Então fizemos um ataque imundo - disse o Coronel, e agora voltara-se para ela e não conferenciava; confessava-se.

- No primeiro dia vieram muitos aviões e deitaram ornamentos para as árvores de Natal e confundiram o radar do inimigo e suspenderam o ataque. Estávamos prontos para o ataque mas suspenderam-no. Com certa razão, suponho. Gosto tanto dos generais como gosto de porcos.

- Conta-me tudo mas não sejas mau.

- As condições não eram propícias - disse o Coronel. - Assim, no segundo dia estávamos prontos, tal como os nossos primos britânicos, que não puderam abrir caminho, quando começaram a surgir os grandes aviões.

“Estavam ainda a descolar dos campos onde viviam nesse grande aeródromo relvado a que chamam Inglaterra, quando vimos os primeiros.

“Brilhantes, resplandecentes, e belos porque tinham sido raspados e pintados para a invasão, ou talvez não tenham sido. A minha memória é pouco exacta acerca desse pormenor.

“De qualquer modo, Filha, podia-se ver toda a linha que formavam voando para oriente até onde a vista podia alcançar. Era como um grande comboio. Voavam alto no céu e nunca os vi tão belos. Disse ao meu S 2 que podíamos chamar-lhes o Valhalla Expresso. Não estás cansada?

- Não. Consigo ver o Valhalla Expresso. Nunca vimos tantos aviões. Mas vimos alguns. Muitas vezes.

- Estávamos a duas mil jardas do ponto donde deveríamos lançar o ataque. Sabes o que são duas mil jardas numa guerra quando estamos para lançar um ataque?

- Não. Como é que podia saber?

- Depois a guarda avançada do Valhalla Expresso lançou nuvens de fumo colorido e regressou a casa. Este fumo foi lançado cuidadosamente e mostrava com nitidez o alvo, isto é, as posições do Kraut. Eram boas posições e talvez tivesse sido impossível desalojá-lo sem qualquer coisa de poderoso e pitoresco como iríamos experimentar.

Depois, Filha, as secções seguintes do Valhalla Expresso despejaram tudo o que há no mundo sobre os Krauts e nos sítios onde viviam e se esforçavam para nos deter. Parecia que a terra entrara em erupção e os prisioneiros que apanhámos tremiam como homens atacados de malária. Eram rapazes rijos da Sexta Divisão de Paraquedistas, mas tremiam como varas verdes e não conseguiam controlar-se.

“Pode-se calcular que foi um explêndido bombardeamento. Era mesmo o que precisávamos. Fazê-los tremer com medo da justiça e da força.

“Depois, Filha, para não te aborrecer, o vento mudou de direcção e o fumo começou a cair sobre nós. Os bombardeiros pesados atacavam sobre a linha de fumo e a linha de fumo agora estava sobre nós. Por isso bombardea-ram-nos tal como haviam bombardeado os Krauts. Primeiro foram os pesados e nem havia necessidade de nos apoquentarmos com aquele inferno de dia. Então para que o ataque fosse mesmo bom e não ficasse mais gente dum lado do que no outro, vieram os médios e bombardearam o que ainda restava. Depois fizemos o ataque logo que o Valhalla Expresso voltou para casa, espalhando-se na sua beleza e majestade desde aquela parte da França por sobre toda a Inglaterra”.

Se um homem tiver consciência, pensou o Coronel, algumas vezes deve pensar no poder aéreo.

- Dá-me um copo desse Valpolicella - disse o Coronel, e lembrou-se de acrescentar -, se fazes favor. - Desculpa - disse ele. - Põe-te à vontade, meu cãozinho bom, por favor. Foste tu quem me pediu que contasse estas coisas.

- Não sou o teu cãozinho bom. Isso deve ser outra pessoa qualquer.

- Correcto. Tu só és o meu último, verdadeiro e único amor. Está correcto, agora? Mas foste tu quem me pediu que contasse estas coisas.

- Por favor, conta - disse a rapariga. - Gostava de ser o teu cãozinho bom, se soubesse como é. Mas sou apenas uma rapariga desta cidade que te ama.

- Operaremos com isso? - disse o Coronel. - E eu amo-te. Provavelmente apanhei esta frase nas Filipinas.

- Provavelmente - disse a rapariga. - Mas preferia ser a tua verdadeira rapariga.

- E és - disse o Coronel. - Completa, com pegas para agarrar e com uma bandeira no cimo.

- Por favor, não sejas rude - disse ela. - Por favor, ama-me e conta-me tudo mas sem te magoares.

- Contar-te-ei a verdade - disse ele. - Com tanta verdade quanta for possível, doa a quem doer. É melhor ouvires, se tens curiosidade em saber, do que leres em algum livro com capas cheias de afectação.

- Por favor, não sejas rude. Conta-me apenas a verdade e agarra-me bem e conta-me a verdade até te veres livre dela; se puder ser.

- Não preciso ver-me livre dela - disse ele. - A não ser no caso de terem usado tacticamente bombardeiros pesados.

Nada tenho contra eles desde que os usem como deve ser, mesmo que nos matem. Mas para apoio no solo dêem-me homens como Pete Quesada.

- Por favor!

- Se alguma vez quiserem ajustar contas com um homem batido como eu, só um tipo desses é que pode dar apoio no solo.

- Tu não és um homem batido, seja o que isso for.

- Dá-me dois comprimidos desse frasco, se fazes favor, e enche-me o copo de Valpolicella que te esqueceste de encher; e eu conto-te o resto.

- Não é preciso. Não precisas de me contar e eu sei que isso não te faz bem. Especialmente essa coisa do Valhalla Expresso. Não sou inquisidora, ou como se chama à mulher do inquisidor. Vamo-nos deitar sossegados e olhar pela janela a ver o que acontece no nosso Canal Grande.

- Talvez seja melhor. E, de qualquer modo, quem é que se interessa pela guerra?

- Tu e eu, talvez - disse ela, e acariciou-lhe a cabeça. - Aqui estão os dois comprimidos do frasco quadrado. Aqui está o copo de vinho. Hei-de mandar-te vinho melhor das nossas propriedades. Vamos dormir um pouco. Por favor, sê bom rapaz e deixemo-nos ficar aqui juntos, amando-nos. Por favor, põe aqui a tua mão.

- A boa ou a má?

- A má - disse a rapariga. - A que eu amo e na qual tenho de pensar durante a semana. Não posso ficar com ela como tu ficas com as esmeraldas.

- Estão no cofre - disse o Coronel. - Em teu nome - acrescentou.

- Vamos dormir e não falemos de coisas materiais e de tristezas.

- O diabo leve as tristezas - disse o Coronel, com os olhos cerrados e a cabeça apoiada levemente sobre a camisola negra que era a sua pátria. Devemos possuir sempre uma pátria qualquer, pensou. Esta é a minha pátria.

- Porque é que não és Presidente? - disse a rapariga, - Podias ser um óptimo presidente.

- Eu, Presidente? Servi na Guarda Nacional de Montana quando tinha dezasseis anos. Mas nunca usei laço e não sou, nem nunca fui retroseiro infeliz. Não tenho qualidades para a presidência. Nem sequer podia chefiar a oposição embora não tivesse de me sentar sobre listas telefónicas para me tirarem o retrato. Também não sou general sem experiência de combate. Demónios, nem nunca estive no SHAEF. Possivelmente também não podia ser um velho homem de estado. Ainda não sou suficientemente velho para isso. Agora somos governados pela borra.

Somos governados pelo que se encontra no fundo dos copos de cerveja onde as galdérias deitaram as pontas de cigarro, num bar que ainda não foi limpo e onde um pianista amador bate as teclas no piano.

- Não percebo porque o meu americano é muito incompleto. Mas parece horrível. Não te preocupes com isso. Preocupa-te contigo.

- Sabes o que é um retroseiro infeliz?

- Não.

- Não é uma coisa vergonhosa. Há muitos na minha terra, Há pelo menos um em cada cidade. Não, Filha sou apenas um soldado e isso é a coisa mais reles que há no mundo. Passa-se a vida à procura de Arlington, se eles mandarem o corpo. A família pode optar.

- Arlington é bonito?

- Não sei - disse o Coronel. - Nunca lá fui sepultado.

- Onde é que gostavas de ser enterrado?

- Lá em cima, nas colinas - disse o Coronel, tomando uma decisão rápida. - Em qualquer sítio nas terras altas onde vencemos.

- Acho que devias ser sepultado no Grappa.

- Num ângulo esquecido de um prado coberto de crateras de bombas e no verão o gado pastaria sobre mim.

- Há gado lá?

- Claro. Há sempre gado nos sítios onde a erva cresce no verão, e as raparigas das casas mais altas, das bem construídas - casas e raparigas bem construídas - que resistem à neve no inverno, armam as ratoeiras às raposas depois de terem recolhido o gado.

- E tu não queres Arlington ou Père Lachaise ou qualquer dos nossos cemitérios?

- Os vossos são miseráveis ossários.

- Eu sei que o cemitério é a coisa com menos valia na vila. Na cidade, quero dizer. Aprendi contigo a chamar vilas às cidades. Mas farei com que vás para onde queres ir e irei contigo, se o desejares.

- Não desejo, não. É a única coisa que fazemos sozinhos. Como ir para a casa de banho.

- Por favor, não fales assim.

- Gostava de te ter sempre junto de mim. Mas é uma coisa muito egoísta e feia.

Fez uma pausa e pensou a sério e disse:

- Não. Vamo-nos casar e ter cinco filhos e poremos a todos o nome de Ricardo.

- Coração-de-leão - disse a rapariga, aceitando a situação sem sequer relancear e jogando como quem deita todas as cartas depois de ter contado cuidadosamente.

- Coração-azedo - disse o Coronel. - O crítico mais injusto que fala sempre mal de toda a gente.

- Não digas essas coisas - disse a rapariga. - E lembra-te que é sempre de ti que falas pior. Mas aperta-me tanto quanto puderes e não pensemos.

Ele apertou-a tanto quanto podia e tentou não pensar.

 

O Coronel e a rapariga estavam tranquilamente deitados sobre a cama e o Coronel tentava não pensar em coisa alguma; tal como fizera tantas vezes em tantos lugares. Mas agora já não prestava. Não dava resultado porque já era demasiadamente tarde.

Não eram Othelo e Desdémona, graças a Deus, embora a cidade fosse a mesma e a rapariga certamente mais bela que a personagem de Shakespeare e o Coronel tivesse combatido tanto como o gárrulo mouro.

São óptimos soldados, pensou. Os malditos mouros. Mas quantos é que matámos nos nossos dias? Acho que matámos mais que uma geração inteira se contarmos as campanhas finais contra Abdel Krim. E tínhamos de os matar a um e um. Ninguém conseguiu matá-los em massa, como matámos Krauts antes de descobrirem Einheit.

- Filha - disse ele. - Queres mesmo que te conte para ficares a saber, se eu não for violento ao contar?

- Gostava muito que me contasses. Depois já poderemos partilhar.

- Uma fatia muito fina para partilhar - disse o Coronel. - Fica toda para ti, Filha. E são apenas as coisas principais. Nunca compreenderias as campanhas em detalhe; outras pessoas compreenderiam. Rommel, por exemplo. Mas em França omitem-no sempre e além disso nós destruímos-lhe as comunicações. As duas forças tácticas aéreas destruíram-lhe as comunicações; a nossa e a R. A. F. Mas gostaria de falar com ele acerca de certas coisas. Gostava de falar com ele e com Ernst Udet.

- Conta-me o que quiseres e bebe este copo de Valpolicella, ou então não contes, se te faz mal. Ou não contes mesmo.

- Ao princípio era Coronel substituto - explicou o Coronel cuidadosa-mente. - São Coronéis sem funções distribuídos aos Comandantes de Divisão para substituírem os que foram ser mortos ou licenciados. Morto, quase nenhum é, mas muitos são licenciados. Os bons são todos promovidos. São promovidos muito depressa quando a coisa começa a mover-se como se fosse uma floresta de fogo.

- Continua, por favor. Queres tomar o remédio?

- O diabo leve o remédio - disse o Coronel. - E o diabo leve o SHAEF.

- Já me explicaste isso - disse a rapariga.

- Oxalá tu fosses um soldado com a tua boa cabeça e essa bela memória.

- Gostava de ser soldado se combatesse sob o teu comando.

- Nunca combatas sob o meu comando - disse o Coronel. – Não tenho sorte. Napoleão gostava dos soldados com sorte e tinha razão.

- Nós já tivemos sorte.

- Sim - disse o Coronel. - Boa e má.

- Mas foi tudo sorte.

- Claro - disse o Coronel. - Mas não se pode combater fiado na sorte. É apenas uma coisa que faz falta. Os que combatem fiados na sorte são todos mortos gloriosos como a cavalaria de Napoleão.

- Porque é que odeias a cavalaria? Quase todos os bons rapazes que conheço estiveram em três regimentos de cavalaria, ou na marinha.

- Não odeio nada, Filha - disse o Coronel, e bebeu um gole do vinho leve e vermelho que era tão amistoso como a casa do nosso irmão, se, por acaso, estamos em boas relações com o nosso irmão. - Apenas tenho pontos de vista, a que cheguei após considerações cuidadosas e avalio bem as suas possibilidades.

- Mas a cavalaria não é boa?

- Não presta para nada - disse o Coronel. Depois, lembrando-se que devia ser amável, acrescentou. - Pelo menos na nossa época.

- Tenho uma desilusão todos os dias.

- Não. Temos uma nova e bela ilusão todos os dias. Mas pode-se cortar tudo o que é falso na ilusão, como se pode cortar com uma navalha afiada.

- Por favor; nunca me cortes.

- Não és cortável.

- Não me queres beijar e apertar-me bem, e olharemos para o Canal Grande onde a luz é agora tão bela, e depois contar-me-ás mais coisas?

Enquanto olhavam para o Canal Grande onde a luz era, de facto, maravilhosa, o Coronel prosseguiu:

- Fiquei com um regimento porque o General Comandante licenciou um rapaz que eu conhecia. desde os meus dezoito anos. Já não era rapaz, claro. O regimento era demais para ele e foi o género de regimento que sempre desejei até que o perdi - Acrescentou. - Cumprindo ordens, está visto.

- Como é que se perde um regimento?

- Quando se quer tomar uma posição e tudo o que se deve fazer é enviar parlamentários e eles conversam e saem cá para fora se formos justos. Os profissionais são muito inteligentes e estes Krauts eram todos profissionais; os fanáticos não. Mas o telefone toca e fala alguém do Corpo que por sua vez recebeu ordens do Exército ou do Grupo de Exércitos. ou talvez mesmo do SHAEF, porque leram o nome da cidade num jornal, possivelmente enviado por um correspondente, e a ordem é para tomar a cidade de assalto. importante porque vem nos jornais. É preciso tomá-la.

“Ao avançar, uma companhia cai logo morta. Perde-se uma companhia inteira e destróem-se três outras. Os carros de combate ficam desfeitos quase tão depressa quanto se podem mover e podem mover-se rapidamente.

“Atingem um, dois, três, quatro, cinco.

“Três homens dos cinco que lá estão dentro, saem a correr como corredores de corta-mato que se perderam numa competição em que um lado é Minnesota e o outro Beloit, Wisconsin.

“Aborreço-te?

- Não. Só não compreendo as alusões locais. Mas se quiseres podes explicar-me. Continua, por favor.

- Entramos na cidade e um safado qualquer todo elegante encarrega-nos de uma missão aérea. Esta missão podia ter sido ordenada, mas nunca cancelada. Deixemos a todos os benefícios da dúvida. Estou apenas a contar-te as coisas de um modo geral. É melhor não especificar e, aliás, um civil nunca compreenderia. Nem mesmo tu.

“Esta missão aérea não tem qualquer efeito, Filha. Porque talvez não pudéssemos ficar na cidade pois há pouca gente lá e, por agora, o nosso trabalho é arrancá-la do cascalho; ou deixá-la enterrada no cascalho. Acerca disso há duas escolas diferentes de pensamento. Assim, tomamo-la de assalto. E eles querem repetir isto.

“Foi tudo confirmado por algum político de uniforme que nunca matou ninguém, excepto por meio de ordens ditas pelo telefone, ou escritas no papel, ou que nem sequer foi ferido. Imagina-o como se fosse o nosso próximo Presidente, se quiseres. Imagina-o como entenderes. Mas não deixes de o imaginar, a ele e aos seus homens, todo o grande quartel-general, tão longe na retaguarda que a melhor maneira de comunicar com eles é expedir pombos-correios. É claro que com a enorme segurança pessoal que detém, provavelmente a sua artilharia antiaérea abateria os pombos. Se, por acaso, conseguissem acertar-lhes.

“Assim, repetimos a coisa. Depois digo-te como foi.

O Coronel olhou para o jogo que a luz fazia no tecto. Em parte vinha reflectida do Canal. Fazia movimentos estranhos mas nítidos, modificando-se constantemente, tal como se modificam as correntes onde há trutas, mas permanecendo, embora modificando-se à medida que o sol se movia.

Depois olhou para a sua grande beleza, com aquela estranha e escura face de criança crescida que lhe despedaçava o coração e que ele deixaria antes das treze horas e trinta e cinco (estava previsto) e disse:

- Não falemos mais da guerra, Filha.

- Por favor - disse ela. - Por favor. Depois lembro-me durante toda a semana.

- Isso é um adágio. Isto é, uma frase que se usa na prisão.

- Tu não sabes como uma semana pode ser longa quando se tem dezanove anos.

- Já soube várias vezes como uma hora pode ser longa - disse o Coronel. - E até te podia dizer como dois minutos e meio podem ser muito longos.

- Por favor, conta-me.

- Bem, estive dois dias em Paris entre o combate de Schnee-Eifel e este de que acabei de te falar, e devido à minha amizade com duas ou três pessoas tive o privilégio de assistir a uma espécie de reunião, onde só as pessoas de confiança podiam ir, e o General Walter Bedell Smith explicou-nos que a operação mais tarde conhecida por combate da Floresta de Hurtgen seria uma coisa fácil. De facto não foi bem na Floresta de Hurtgen. A Floresta foi apenas um pequeno sector. Foi em Stadtswald e foi aí que o Alto Comando Alemão se decidiu a combater depois de Aachen ter sido tomada e da estrada para a Alemanha ter caído. Espero que não esteja a aborrecer-te.

- Nunca me aborreces. Nada me aborrece acerca de combates, excepto as mentiras.

- És uma rapariga estranha.

- Sim - disse ela. - Já sei isso há muito tempo.

- Gostarias de combater?

- Não sei se seria capaz. Mas talvez pudesse se me ensinasses.

- Nunca te ensinarei. Só te posso contar episódios.

- Histórias tristes sobre a morte dos reis.

- Não: Um correspondente qualquer cristianizou-as. Sabe Deus como eu odeio essa palavra e o modo como a têm usado. Leitores de livros cómicos. São todos de qualquer parte. A maioria não tem força de vontade. Nem todos. Mas todos liam um jornal chamado The Stars and Stripes e tínhamos de incluir lá a nossa unidade ou então não éramos bem sucedidos, como comandantes. Eu quase fui mal sucedido. Tentei apreciar os correspondentes e havia alguns bons, nesta reunião. Não nomearei nenhum porque poderia omitir algum dos bons e seria injusto. Havia alguns bons de que não me recordo. O resto eram uns embosteiros, fala-baratos que afirmavam estar feridos quando um pedaço de metal lhes tocava, indivíduos que usavam o distintivo púrpura devido a acidentes de jeep, cobardes, mentirosos ladrões e palradores de telefone. Alguns que tinham morrido faltaram à reunião. Também tinham os seus mortos. Uma grande percentagem. Mas nenhum dos mortos estava presente. Também havia mulheres vistosamente uniformizadas.

- Como é que conseguiste casar com uma jornalista?

- Por erro, como já te expliquei.

- Continua.

- Havia mais mapas na sala do que Nosso Senhor poderia ter lido no melhor dos seus dias - continuou o Coronel. - Havia o quadro Grande, o Qua-dro Semi-Grande e o Quadro Super-Grande. Toda a gente fingia compreendê-los, e em especial os rapazes com os ponteiros, uma espécie de tacos de bilhar semicortados pelo cu, que eles usavam para explicar.

- Não digas palavras feias. Nem sequer sei o que quer dizer semicortado pelo cu.

- Encurtado, ou abreviado de um modo eficiente - explicou o Coronel. - Ou deficiente como instrumento, ou como carácter. É uma palavra velha. Talvez a encontrasses em sânscrito.

- Por favor, conta.

- Para quê? Porque é que devo ajudar a perpetuar a ignomínia com a minha própria boca?

- Eu escrevo se quiseres. Sei escrever com sinceridade tudo quanto oiço ou penso. claro que faria erros.

- És uma rapariga feliz se sabes escrever com sinceridade tudo quanto ouves ou pensas. Mas nunca escrevas nada disto, nem uma palavra.

Resumiu:

- A sala está cheia de correspondentes vestidos segundo o gosto pessoal. Uns são cínicos e outros são extremamente arrebatados.

Para guiar o rebanho que formam, e para manejar os ponteiros, há um grupo de portadores de pistolas. Chamamos portadores de pistolas aos homens que não combatem, disfarçados com um uniforme, ou pode-se mesmo dizer, trajo de passeio e que ficam cheios de emoção de cada vez que a arma lhes bate contra as coxas. Incidentalmente, Filha, a arma - não a velha pistola, a verdadeira pistola - já fez perder mais gente em combate do que provavelmente qualquer outra arma no mundo. Não queiras que te dêem nenhuma, a não ser para estoirar os miolos a alguém, no Harry's Bar.

- Nunca quis matar ninguém; a não ser talvez, Andrea.

- Se quiseres acertar em Andrea, aponta-lhe com o cano, mas não lhe dês com a coronha. A coronha é uma arma lenta, e falha, e se acerta fica-se com as mãos sujas de sangue quando se deita a pistola fora. Mas, por favor, nunca acertes em Andrea porque ele é meu amigo. Também não acho que seja fácil acertar-lhe.

- Não. Também acho. Conta-me mais coisas acerca da reunião ou da assembleia. Julgo que agora já era capaz de reconhecer um portador de pistola. Mas gostava que me contasses mais coisas.

- Bem, os portadores de pistolas, todos orgulhosos de ostentarem as pistolas, esperavam a chegada do grande General que ia explicar a operação.

“Os correspondentes murmuravam ou mostravam-se excitados e os homens do serviço secreto ou estavam mal dispostos ou contentes. Estavam todos sentados em cadeiras de molas como se aguardassem uma conferência Chautauqua. Perdoa-me estes termos locais mas nós somos um povo local.

“O General entra. Não é um portador de pistolas mas sim um homem de negócios; político excelente do tipo executivo. O exército, naquele momento, é o maior negócio do mundo. Agarra no ponteiro semicortado pelo cu e mostra-nos, com total convicção, e sem preâmbulos, exactamente como vai ser o ataque, as razões porque o fazemos e a facilidade com que será feito. Não há problemas.

- Continua - disse a rapariga. - Deixa-me encher-te o copo e tu, por favor, vê os desenhos da luz no tecto.

- Enche-o e eu olharei para a luz no tecto e continuarei.

- Este caixeiro-viajante de alta pressão, e não digo isto por desrespeito, mas por admirar os seus talentos, ou o seu talento, também nos disse tudo com que poderíamos contar. Nada faltaria. A organização chamada SHAEF estava então estabelecida numa vila chamada Versailles, perto de Paris. Atacaríamos para oriente a uma distância de trezentos e oitenta quilómetros do ponto onde estavam estabelecidos.

“Um exército pode ser muito grande, mas também podiam estar um pouco mais perto. Finalmente estabeleceram-se em Rheims, que estava a duzentos e quarenta quilómetros da linha de fogo. Mas isso foi muitos meses depois.

“Compreendo que os grandes centros executivos devem estar afastados das zonas de trabalho. Compreendo tudo o que diz respeito às dimensões de um exército e aos restantes problemas. Até compreendo a logística que não é difícil. Mas nunca ninguém na história comandou daquela distância.

- Fala-me da cidade.

- Contar-te-ei tudo - disse o Coronel. - Mas não quero desiludir-te.

- Nunca me desiludes. Somos de uma velha cidade e sempre tivemos combatentes. Respeitamo-los mais que todos os outros e espero que compreendas isto também. Sabemos que os soldados são gente difícil. Normalmente causam muitos aborrecimentos às mulheres.

- E eu, aborreço-te?

- Que achas? - perguntou a rapariga.

- Aborreço-me a mim próprio, Filha.

- Não acho, Ricardo; nunca farias uma coisa qualquer se te aborrecesse. Não me mintas, querido, quando já temos tão pouco tempo.

- Não minto.

- Não vês que tens de me contar essas coisas para te veres livre da tua amargura?

- Eu conto-tas.

- Não sabes que eu quero que morras com a graça de uma morte feliz? Oh, estou a confundir tudo. Não deixes que eu confunda tudo.

- Não deixarei, Filha.

- Conta-me mais coisas, por favor, e sê tão implacável quanto quiseres.

 

- Ouve, Filha - disse o Coronel. - Vamos acabar com referências ao glamour e ao latão, mesmo do Kansas, onde todas as laranjeiras amargas cresce mais alto do que ao longo das estradas. Dá um fruto que ninguém pode comer e é puramente do Kansas Ninguém, a não ser os homens do Kansas, têm alguma coisa a ver com ele; excepto nós, que combatemos, talvez. Laranjas azedas. Comíamo-las todos os dias - acrescentou: - Chamávamos-lhes a ração K. Não era má. As rações C eram más. Em dez uma calhava boa.

“Assim, combatíamos. É estúpido, mas não deixa de ser informativo. É assim que se deve falar quando alguém está interessado - do que duvido.

“É qualquer coisa como isto, 1300 Vermelho S-3. O Branco salta por seu turno. O Vermelho disse que estava à espera para seguir o Branco. 1305 (isto é, cinco minutos depois da uma da tarde, se ainda te lembras, Filha) o Azul S-3 (espero que saibas o que é um S-3) diz: informem-nos quando entrarem em acção. O Vermelho diz que estava à espera para seguir o Branco.

“Podes ver como tudo é fácil - disse o Coronel à rapariga.

“Não há ninguém que não consiga fazer isto tudo antes do pequeno almoço.

- Nem todos podem ser soldados de infantaria - disse-lhe a rapariga com brandura. - Respeito-os mais do que qualquer outra coisa, além dos aviadores honestos. Continua, por favor, enquanto cuido de ti.

- Os bons aviadores são mesmo muito bons e como tal devem ser respeitados - disse o Coronel.

Olhou os efeitos da luz no tecto e ficou completamente desesperado ao lembrar-se da perda dos seus batalhões e das perdas individuais. Nunca esperara ter um regimento tão bom. Não fora ele quem o fizera. Herdara-o. Mas, durante algum tempo, fora a sua maior alegria. Agora quase todos os homens estavam mortos e os restantes seriamente feridos. No ventre, na cabeça, nos pés e nas mãos, no pescoço, nas nádegas, no peito e noutros sítios. Todos ferimentos graves apanharam os soldados em locais do corpo onde nunca deveriam ser feridos em campo aberto. E todos os feridos ficaram feridos para toda a vida.

- Era um bom regimento - disse ele. - Pode-se dizer que era um belo regimento, até que o destruí seguindo ordens que me tinham dado.

- Mas porque é que lhes obedeceste se sabias mais do que eles?

- No nosso exército obedece-se como um cão - explicou o Coronel. - Julga-se sempre que tivemos bons mestres.

- Que espécie de mestres tiveste tu?

- Só tive dois mestres bons. Quando alcancei um certo nível de comando conheci boa gente, mas só dois eram de facto bons.

- É por isso que agora não és General? Gostaria muito que fosses General.

- Também eu - disse o Coronel. - Mas não com a intensidade com que tu gostarias.

- Tenta dormir, por favor, para me seres agradável.

- Sim - disse o Coronel.

- Repara. Pensei que se dormisses podias livrar-te da tua angústia, só porque dormias.

- Sim. Agradeço-te muito - disse ele.

Nada havia a fazer, cavalheiros. Tudo o que um homem tem de fazer é cumprir as ordens.

 

- Dormiste bem durante algum tempo - disse-lhe gentilmente a rapariga. - Queres alguma coisa?

- Nada - disse o Coronel. - Obrigado.

Depois tornou-se mau e disse:

- Filha, podia dormir de cabeça para baixo, na cadeira eléctrica com as ceroulas rotas e o cabelo tosquiado. Durmo quando e como quero.

- Eu não consigo ser assim - disse, sonolentamente, a rapariga. - Só durmo quando tenho sono.

- És linda - disse o Coronel. - E dormes melhor do que ninguém.

- Tenho muito orgulho nisso - disse a rapariga, cheia de sono. - É uma das coisas que só eu faço.

- Então faz agora.

- Não. Fala-me baixo e gentilmente e põe a tua mão doente sobre a minha.

- O diabo leve a minha mão doente - disse o Coronel.

- Desde quando é que ela é assim tão doente?

- É má - disse a rapariga. - Pior do que tu jamais soubeste. Por favor, fala-me de combates mas sem seres brutal.

- Uma tarefa fácil - disse o Coronel. - Vou omitir as horas. Havia muitas nuvens e o local era o g80 342 Qual é a situação? Estamos a pulverizar o inimigo com artilharia e morteiros. S-g avisa que S-6 quer que o Vermelho actue com 1700. S-6 quer que se utilize toda a artilharia. O Branco diz que estão em má situação. S-6 informa que a Companhia A vai estabelecer contacto com a Companhia B.

“A Companhia B foi neutralizada pela acção do inimigo e decidiu manter-se nas posições. S-6 não actua tão bem. Nada disto é oficial. Quer mais artilharia mas não há mais artilharia.

“Para que queres saber de combates? Sinceramente, eu não sei. Quem quer hoje saber de combates verdadeiros? Mas está bem, Filha, e mais tarde também acrescentarei os sons e os cheiros e contarei anedotas sobre quem foi morto e quando e onde, se quiseres.

- Só quero saber o que me contares.

- Vou-te contar como foi - disse o Coronel. - e o General Walter Bedell Smith ainda hoje não sabe como foi. Talvez eu esteja enganado como já estive tantas vezes.

- Estou contente por não termos de o conhecer, nem a ele nem aos outros - disse a rapariga.

- Neste lado do inferno não teremos de os conhecer - assegurou-lhe o Coronel. - E eu tenho um vigia a guardar as portas do inferno para que não entrem lá tipos como ele.

- Falas como se fosses Dante - disse a rapariga sonolentamente.

- Sou o sr. Dante - disse ele - Por agora.

E durante algum tempo foi Dante e desenhou todos os círculos. Eram tão injustos como os de Dante, mas desenhou-os todos.

 

- Vou omitir os detalhes visto que estás cheia de sono - disse o Coronel. Observou de novo o estranho jogo da luz no tecto. Depois olhou para a rapariga que era mais bela do que qualquer das raparigas que ele já vira.

Vira-as chegar e partir, e elas andam depressa, sempre que andam, mais depressa do que tudo o resto além das moscas. Vão mais depressa da beleza até ao cangalheiro do que qualquer outro animal. Mas parece-me que esta rapariga há-de manter-se. As belezas escuras duram mais tempo, e aliás, olha para a estrutura óssea daquele rosto. Esta rapariga tem uma bela ascendência sanguínea e pode manter-se bela eternamente. A maioria das nossas belezas descendem de fabricantes de soda e não conhecem o último nome do avô, a menos, talvez que seja Schultz. Ou Schlitz, pensou.

Esta atitude é errada, disse de si para si, pois não queria exprimir tais sentimentos à rapariga que, de qualquer modo, não os apreciaria, e esta agora a dormir como só os gatos sabem dormir.

- Dorme, meu amor, eu conto-te tudo o que se passou.

A rapariga dormia, agarrando ainda a mão estropiada do Coronel - que ele desprezava - e podia sentir-lhe a respiração, a respiração dos jovens quando dormem.

O Coronel contou-lhe tudo, mas não falou.

Assim depois de ter o alto privilégio de ouvir o General Walter Bedell Smith explicar a facilidade do ataque, atacámos mesmo. Havia a divisão Big Red Onc que acreditava na sua própria publicidade. Havia a Nona, que era melhor do que a nossa. E havia a nossa que sempre fizera tudo como lhe haviam dito que fizesse.

Não tínhamos tempo para ler livros cómicos, e praticamente não tínhamos tempo para nada, pois começávamos sempre a manobrar antes do nascer do sol. Isto é difícil e tem de se abandonar o Grande Quadro e ser uma divisão a sério.

Usávamos um trevo de quatro folhas que para os outros nada significa, mas nós amávamo-lo. E sempre que o vejo revoltam-se-me as entranhas. Algumas pessoas julgavam que era uma folha de hera. Mas não; era um trevo de quatro folhas disfarçado de hera.

As ordens consistiam em atacar com a Divisão Big Red Onc, a Primeira Divisão de Infantaria do Exército dos Estados Unidos, como eles, e o seu Calypso, faziam lembrar a toda a gente. Era um bom tipo. E esse era o seu ofício.

E ficávamos saturados com o cheiro a bosta de cavalo, a menos que se goste do aroma. Eu nunca gostei, embora, quando era criança, gostasse de passear sobre o estrume: Mas a bosta de cavalo aborrece-me. Aborrece-me rapidamente e posso detectá-la a mais de mil jardas de distância.

Assim atacámos os três em linha, exactamente como os alemães queriam que atacássemos. Não falemos mais do General Walter Bedell Smith. Não foi ele o vilão. Apenas fez promessas e explicou o ataque. Presumo que não há vilões numa democracia. Estava apenas enganado.

Os sinais de identificação tinham sido removidos até ao escalão da retaguarda a fim de que o Kraut não soubesse que éramos nós, três divisões que ele conhecia tão bem quem ia atacar. Atacaríamos os três em linha sem quaisquer reservas Nem sequer tentarei explicar-te o que isso significa, Filha. Mas não é nada bom. E o local onde íamos atacar, que eu observei cuidadosamente, ia ser Passchendaele com árvores a despontarem. Falo muito. Mas também penso muito.

A pobre e ensanguentada vigésima oitava, que estava à nossa direita, atolara-se num lamaçal e por isso tínhamos as informações bem exactas do que seriam as condições de combate nesses bosques. Acho que as podemos descrever como pouco favoráveis.

Depois informaram-nos de que devíamos sacrificar um regimento antes do início do ataque. Isso significa que o inimigo, pelo menos, apanha um prisioneiro, o que faz com que tenha sido uma grande parvoíce encobrir os sinais de identificação das Divisões. E ficarão à nossa espera.

Estarão à espera dos soldados com o velho trevo de quatro folhas com que vão marchar direitinhos para o inferno e ficar lá durante cento e cinco dias. Os números, está visto, nada significam para os civis. Nem para os tipos do SHAEF que nunca vimos nestes bosques. Incidentalmente - ao nível SHAEF estas ocorrências são sempre incidentais - todo regimento foi destruído. Ninguém teve culpa; especialmente o homem que o comandava não teve culpa. Era um homem com quem eu gostaria de passar metade da eternidade no inferno e talvez ainda passe.

Seria estranho se, em vez de irmos para o inferno com o que sempre contámos, fôssemos parar a um desses sítios dos Krauts, como o Valhalla e não conseguíssemos travar relações com os habitantes. Mas talvez arranjássemos uma mesa, ao canto, com Rommel e Udet, e a coisa seria mais ou menos como um hotel para desportos de inverno.

Bem, de qualquer modo o regimento foi reorganizado, como sempre são os regimentos americanos, pelo sistema que ferve cá dentro, ou de substituições. É uma coisa que ferve cá dentro, ou destila, pensar que tínhamos de ficar ali até sermos feridos gravemente ou mortos, ou endoidecermos e irmos para a secção oito. Mas acho que é uma coisa lógica e tão boa como qualquer outra, dadas as dificuldades de transporte. Contudo, há sempre um certo número de indivíduos que não foram mortos e que sabem muito bem como é a cantiga e nenhum desses indivíduos gostava do aspecto dos bosques.

Pode-se descobrir qual era a atitude deles por meio desta frase: “Não me chateies, Mack”.

E visto que durante quase vinte e oito anos eu fora um desses indivíduos que não tinham sido mortos, podia compreender a sua atitude. Mas eram solda-dos e por isso a grande maioria morreu nesses bosques ou quando tomámos as três cidades que pareciam muito inocentes mas que eram autênticas fortalezas. Tinham sido construídas apenas para nos tentarem mas delas nada sabíamos. Para continuar a empregar os termos estúpidos da minha profissão, isto pode ou não pode ter sido uma falta dos serviços de informação.

- Tenho muita pena do regimento - disse a rapariga. Acordara e falara imediatamente.

- Sim - disse o Coronel. - Eu também. Vamos beber à sua memória. E depois vais dormir, Filha. A guerra já acabou e está esquecida.

Por favor, não penses que sou um indivíduo com preconceitos, disse ele sem pensar. O seu verdadeiro amor estava de novo a dormir. Dormia de maneira diferente do que dormia a sua secretária. Não gostava de recordar o modo como ela dormia. E queria esquecer. Não dormia bem, pensou. Nada que se parecesse com esta rapariga que dorme como se estivesse acordada e viva. Dorme bem, por favor.

Porque demónio estás tu a criticar as secretárias?, pensou ele. Que miserável profissão tentaste, apenas para falhares?

Queria ser, e fui, Oficial-General do Exército dos Estados Unidos. Falhei e por isso digo mal de toda a gente que não falhou.

Mas o seu acto de contrição não durou muito e disse para consigo próprio “Excepto os espertalhões, os cinco ou dez ou vinte por cento que nunca combateram nem comandaram”.

Mataram alguns homens da academia de Gettysburg. Foi a maior das matanças, quando em ambos os lados havia uma certa oposição.

Não sejas desumano. O General McNair foi morto por engano no dia do Valhalla Expresso. Deixa de ser desumano. Morreu muita gente da Academia e as Estatísticas provam-no.

Como poderei lembrar-me que não sou desumano?

Sê o mais desumano que quiseres. E conta tudo à rapariga, mas em silêncio, pois ela dorme adoravelmente. Disse adoravelmente apenas para si próprio visto que o seu pensamento raramente obedecia às regras gramaticais.

 

Dorme tranquila, meu grande amor, e quando acordares já tudo terá acabado e eu brincarei contigo por quereres aprender coisas sobre o triste métier da guerra e iremos comprar o negro, ou mouro, esculpido em ébano com um belo rosto e turbante cravejado. Depois espetá-lo-ás na lapela, e iremos ao Harry's beber qualquer coisa e descobrir qual dos nossos amigos já estará levantado.

Almoçaremos no Harry's ou voltaremos ao Hotel e eu farei as malas. Despedir-nos-emos e eu e Jackson entraremos no motoscafo e direi coisas alegres ao Gran Maestro e acenarei a todos os outros membros da Ordem. E, pelo modo como me sinto, aposto dez contra um, ou dois contra trinta, em como nunca mais nos veremos.

Diabo, disse ele para ninguém em especial e, certamente, em voz baixa, já me senti assim antes de muitos combates e quase sempre nesta época do ano e sempre quando saía de Paris. Provavelmente não tem importância.

E, de resto, quem mais se interessará a não ser eu, o Gran Maestro e esta rapariga?, isto é, ao nível de comando?

Eu próprio pouco me interesso. Mas fui treinado e adaptei-me a não ter interesse por coisa alguma: é como uma definição de prostituta. Uma mulher que não, etc, etc. Mas não vamos interessar-nos por este rapaz, tenente, capitão, major, coronel, general, senhor. Vamos pô-lo no seu lugar, mais uma vez, e o diabo que o leve, mais a sua cara feia que o velho Hieronymus Bosch deve ter pintado. Mas podes embainhar a tua foice, velha irmã morte, se por acaso tens uma bainha para a guardar. Ou, acrescentou, pensando em Hurtgen, podes desembainhá-la e espetá-la no cu.

Foi em Passchendaele, com árvores a nascerem, disse para ninguém em especial a não ser para a luz maravilhosa que bailava no tecto. Olhou para a rapariga, para ver se ela dormia bem, de modo que os seus pensamentos não a magoassem.

Depois olhou para o retrato e pensou, tenho-a em duas posições, deitada de lado e olhando-me de frente. Sou um felizardo e nada me devia entristecer.

 

Logo no primeiro dia perdemos os comandantes dos três batalhões. Um foi morto nos primeiros vinte minutos e os outros dois um pouco mais tarde. Isto é apenas estatística para os jornais. Mas os bons comandantes de batalhão não crescem: em árvores; nem sequer nas árvores de Natal que eram, basicamente, as árvores daquele bosque. Não sei quantas vezes perdemos comandantes de compa, Mas posso informar-me.

Nem se fazem nem crescem tão depressa como um batatal. Conseguimos uma série de substituições, mas lembro-me de ter pensado que seria mais simples e mais eficiente abatê-los no sítio onde tinham sido feridos do que tentar trazê-los para a retaguarda e sepultá-los. Isso ocupava muitos homens, gastava muita gasolina e outros tantos homens para os sepultar: ora esses podiam continuar a combater e a serem mortos, por sua vez.

Havia neve, ou qualquer coisa parecida, chuva ou nevoeiro e as estradas tinham sido minadas, em alguns trechos com catorze ou mais minas e assim os veículos estoiravam quando tentavam safar-se do lamaçal; estávamos sempre a perder veículos e, como é óbvio, as pessoas que seguiam neles.

Além de bombardearem tudo com morteiros e de terem todas as brechas guarnecidas com o fogo das metralhadoras e das armas automáticas, tinham preparado as coisas de modo que quando pensávamos que os tínhamos iludido íamos cair no meio deles. E depois usavam artilharia pesada e, pelo menos, um canhão montado sobre carris.

Era um local onde se tornava quase impossível sobreviver mesmo que a única coisa que se fizesse fosse estar presente. E nós atacávamos sempre, todos os dias.

Não pensemos mais nisto. O diabo que o leve. Mas há duas coisas em que quero pensar para me ver livre delas. Uma era uma maldita colina que tínhamos de atravessar para alcançarmos Grosshau.

Um pouco antes desta colina, que estava sob o fogo dos oitenta e oito, havia uma zona morta onde eles podiam atingir-nos com obuses, com fogo de flagelação, ou, pela direita, com morteiros. Quando conseguimos limpá-la descobrimos que também tinham bons postos de observação para os morteiros.

Mas este local era relativamente tranquilo, e não estou a mentir, nem ninguém mentirá. Não se pode intrujar os que estiveram em Hurtgen, e se mentirmos eles ficam logo a saber no mesmo minuto em que abrirmos a boca, sejamos coronéis ou não.

Encontrámos um camião e o condutor, com o rosto cinzento que já se tornara vulgar, disse: “Meu Coronel, lá para a frente está um GI morto, no meio da estrada e de todas as vezes que vem um veículo, passa-lhe por cima e tenho a certeza que isso causa má impressão nas tropas”.

- Vamos tirá-lo da estrada.

E assim tirámo-lo da estrada.

Posso lembrar-me de como nos sentíamos ao levantá-lo e de como ele estava achatado e que estranho isso era.

Depois há outra coisa de que me recordo. Tínhamos lançado fósforo branco sobre a cidade antes de a conquistarmos. Foi a primeira vez que vi um cão alemão a comer um soldado alemão, assado. Depois vi também um gato.

Era um gato esfomeado, mas mesmo assim era bonito. Não podias pensar que um gato pudesse comer um bom soldado alemão, não é verdade, filha? Ou um bom cão alemão a comer o rabo de um bom soldado alemão que tinha sido assado pelo fósforo. Quantas coisas destas poderíamos contar? E o que é que adiantaríamos? Podíamos contar milhares, contudo não impediríamos a guerra. As pessoas diriam que já não lutamos contra os Krauts e além disso o gato não comeu o meu irmão Gordon, porque ele estava no Pacífico. Talvez os caranguejos tenham comido o Gordon. Ou talvez se tenha liquefeito.

Em Hurtgen os mortos gelavam; e estava tanto frio que gelavam com as faces rosadas. Era muito estranho. No verão eram todos cinzentos e amarelos como bonecos de cera.

Mas logo que chegou o inverno ficaram com as faces rosadas.

Os verdadeiros soldados nunca dizem a ninguém o aspecto que os mortos têm, disse ele ao retrato. Estou chateado com tudo isto. Mas que dizes tu daquela companhia, onde todos foram mortos? Que dizes, soldado profissional.

Morreram, disse ele. E estou vivo e Acompanhas-me num copo de Valpolicela.

A que horas achas que te devo acordar, rapariga? O que achas de ir à joalharia. E já estou a pensar nas coisas alegres de que falaremos.

Que é uma coisa alegre, retrato? Deves saber. És mais esperto que eu, embora não estejas no mundo há tanto tempo como eu.

Bem, rapariga de tela, disse-lhe o Coronel sem falar alto, vamos esquecer tudo e dentro de onze minutos acordo a rapariga e iremos à cidade, e estaremos alegres, deixando-te aqui para que te embrulhem.

Quis ser rude. Estava apenas a brincar. Não quero Não ser rude porque agora vou viver contigo. Pelo menos assim espero, acrescentou, e bebeu um copo de vinho.

 

Estava um dia brilhante e frio, e eles tinham parado junto da montra da joalharia e estudavam as duas pequenas cabeças de negros e os torsos que tinham sido esculpidos em ébano e adornados com pedras matizadas. São ambas boas, pensou o Coronel.

- De qual gostas mais, Filha?

- Gosto mais do que está à direita. Não achas que tem um rosto mais bonito?

- Ambos têm rostos bonitos. Mas acho que seria melhor tê-lo ao teu serviço, se estivéssemos nos velhos tempos.

- Bom. Tomá-lo-emos ao meu serviço. Vamos entrar e ver. Tenho de saber o preço.

- Entro eu.

- Não, deixa-me saber o preço. Levam-me menos, a mim, do que levarão a ti. No fim de contas és um americano rico.

- Et toi, Rimbaud?

- Farias um Verlaine horroroso - disse-lhe a rapariga. - Fingiremos que somos outras pessoas famosas.

- Entrai, Majestade, e compremos a jóia.

- Também não serias um bom Luís XVI.

- Subiria contigo ao cadafalso e ainda seria capaz de escarrar para o chão.

- Esqueçamos as desgraças alheias e o cadafalso, compremos o pretinho e depois vamos ter com Cipriani e fingir de gente célebre.

Dentro da loja admiraram ambas as cabeças e ela perguntou o preço e depois houve uma conversa rápida e o preço desceu muito. Mas mesmo assim ainda custava mais dinheiro do que todo o dinheiro que o Coronel tinha.

- Vou ter com Cipriani e peço-lhe dinheiro.

- Não - disse a rapariga. Depois, disse ao caixeiro: - Ponha a jóia numa caixa e envie-a a Cipriani e diga-lhe que o Coronel pediu que a pagasse e a guardasse.

- Exactamente - disse o caixeiro.

Saíram para a luz do sol e para o vento persistente.

- A propósito - disse o Coronel. - As tuas esmeraldas estão no cofre do Gritti, em teu nome.

- As tuas esmeraldas, diz antes.

- Não - disse-lhe ele, sem ser rude, mas para a obrigar a compreender. - Há coisas que não podemos fazer. E tu sabes que há. Não podes casar comigo, embora eu não concorde.

- Muito bem - disse a rapariga. - Compreendo. Mas não podias ficar com elas como se fossem amuletos?

- Não. Não podia. Têm muito valor.

- Mas o retrato tem valor.

- É diferente.

- Sim - concordou ela. - Também acho. Começo a compreender.

- Aceitaria um cavalo, se mo desses, e se eu fosse pobre e novo e gostasse de montar. Mas não podia aceitar um automóvel.

- Compreendo muito bem. Onde poderemos ir agora mesmo, para me beijares?

- A este beco se não conheces ninguém que viva aqui.

- Não me interessa quem viva aí. Quero que me apertes com força e me beijes.

Meteram pelo beco e caminharam até ao fim da pequena rua.

- Oh, Ricardo - disse ela. - Oh, meu querido.

- Amo-te.

- Por favor, ama-me.

- Amo-te.

O vento desmanchara-lhe o cabelo e ele beijou-a sentindo o cabelo sedoso dela batendo-lhe no rosto.

Depois, subitamente, ela afastou-se, olhou-o e disse:

- Acho que é melhor irmos para o Harry's.

- Também acho. Queres brincar às personagens célebres?

- Sim - disse ela. - Vamos fingir que tu és tu e eu sou eu.

- Vamos a isso - disse o Coronel.

 

Não havia ninguém no Harry's a não ser alguns bebedores matinais que o Coronel não conhecia e dois homens que negociavam nas traseiras do bar.

Havia horas em que o Harry's se enchia de pessoas conhecidas com a mesma regularidade com que a maré chega ao Monte St. Michel. Excepto, pensou o Coronel, as horas das marés mudam todos os dias com a lua, e as horas, no Harry's, são como o meridiano de Greenwich ou como o padrão de metro em Paris, ou como as boas opiniões que os militares franceses têm de si próprios.

- Conheces algum destes bebedores matinais? - perguntou à rapariga.

- Não. Não sou bebedora matinal e por isso nunca os encontrei.

- Serão arrebatados quando a maré chegar.

- Não. Ir-se-ão embora, logo que a maré chegar, por sua própria resolução.

- Não te importas de ficar em Veneza quando a season já passou?

- Achas que tenho de ser snob só porque descendo de uma velha família? Somos os únicos que não devemos ser snobs. Os snobs são os que tu alcunhas de safados ou as pessoas que têm dinheiro fresco. Já viste muito dinheiro fresco?

- Sim - disse o Coronel. - Vi-o em Kansas City quando costumava vir de Forte Riley para jogar o polo no Country Club.

- Era tão mau como aqui?

- Não, era quase agradável. Eu, pelo menos, gostava, e aquela zona de Kansas City é muito bela.

- É mesmo? Quem me dera podermos ir lá. Também há campos de turismo? Desses onde vamos ficar?

- Com certeza. Mas nós ficaremos no Hotel Muelhebach que tem as maiores camas do mundo e fingiremos que somos milionários velhos.

- E onde deixaremos o Cadillac?

- Agora temos um Cadillac?

- Sim. A menos que queiras levar o grande Buick Roadmaster com condução Dynaflow. Andei com ele por toda a Europa. Estava na última Vogue que me enviaste.

- É melhor usarmos um de cada vez - disse o Coronel. - O que decidirmos levar ficará na garage junto do Muelhebach.

- O Muelhebach é muito luxuoso?

- Maravilhoso. Amá-lo-ás. Quando sairmos da cidade iremos para o norte, para St. Jo e tomaremos uma bebida no bar de Roubidoux, talvez duas bebidas, e depois atravessamos o rio e vamos para o oeste. Podes guiar e podemos revezar-nos.

- O que é isso?

- Conduzir por turnos.

- Já estou a conduzir.

- Vamos evitar a parte feia e meter por Chimney Rock; seguimos até Scotts Bluff e Torrington e depois começarás a ver o panorama.

- Tenho mapas das estradas e guias que indicam os sítios onde se come bem, e o guia A. A. A. dos campos de turismo e dos hotéis.

- Dedicas-te muito a isso?

- Dedico-me à noite com o que tu me envias. Qual será o nosso destino?

- Missouri. Compraremos o carro em Kansas City. Até Kansas City vamos de avião, lembras-te? Ou podemos ir de comboio.

- Julgava que íamos de avião até Albuquerque.

- Isso foi de outra vez.

- À tardinha paramos nas melhores estalagens que vêm no guia A. A. A. e eu preparo-te as bebidas que quiseres, enquanto lês os jornais, a Life, o Time e a Newsweek e eu leio a última Vogue e o Harpers Bazaar.

- Sim. Mas regressamos a Veneza.

- Com certeza. No nosso carro, de linha italiana e do melhor que houver. Vimos directamente de Génova.

- E não queres passar a noite em qualquer parte?

- Porquê? O que queremos é chegar a casa, à nossa própria casa.

- E onde será a nossa casa?

- Podemos decidir em qualquer ocasião. Há sempre muitas casas aqui em Veneza. Gostavas de viver no campo?

- Sim - disse o Coronel. - Porque não?

- Podíamos ver as árvores quando acordássemos. Que espécie de árvores veremos nós durante a viagem?

- Quase sempre pinheiros, algodoeiros ao longo dos vales e faias. Espera até veres as faias tornarem-se amarelas no Outono.

- Já estou à espera. Onde ficaremos em Wyoming?

- Vamos primeiro a Sheridan e depois decidiremos.

- E Sheridan, é bonito?

- É maravilhoso. Vamos de carro até ao Wagon-Box Fight e depois eu explico-te. A seguir, a caminho de Billings, iremos ao sítio onde mataram aquele louco do George Armstrong Custer e poderás ver os lugares onde todos morreram e eu explico-te o combate.

- Será maravilhoso. A que é que Sheridan se assemelha, a Mantova, Verona ou Vicenza?

- A nenhuma. Está situada junto das montanhas, quase como Schio!

- É como a Gortina?

- Não. A Gortina fica num vale, nas montanhas. Sheridan fica junto das montanhas. Não são colinas. São altas e erguem-se na planície. Pode-se ver o Clouds Peak.

- E o carro, subirá bem?

- Está descansada que há-de subir. Mas será preferível não ter condução hidromática.

- Dispenso-a - disse a rapariga. Depois conteve-se para não chorar. - Como dispenso tudo o mais.

- Que queres beber? - disse o Coronel. - Ainda nem sequer pedimos.

- Não quero beber nada.

- Dois Martinis secos - disse o Coronel ao criado -, e um copo de água gelada.

Meteu a mão no bolso, desenroscou a tampa do frasco de remédio e tirou dois grandes comprimidos. Com eles na mão esquerda, enroscou a tampa do frasco. Não era tarefa para um homem com a mão direita estropiada.

- Eu disse que não queria beber.

- Bem sei, Filha. Mas pensei que talvez precisasses de uma bebida. Mas não és obrigada a beber. Ou bebo-a eu. Por favor - disse ele. - Não queria ser brusco.

- Ainda não perguntámos se a cabeça do preto já chegou.

- Não. Porque eu não quero falar nisso enquanto Cipriani não chega, para lhe pagar.

- Tem de ser assim tão rígido?

- Comigo é sempre rígido - disse o Coronel. - Desculpa, Filha.

- Diz Filha três vezes seguidas.

- Hija, figlia, Daughter..

- Não sei - disse ela -, mas acho que devíamos sair. Gosto muito que nos vejam juntos, mas hoje não quero ver ninguém.

- A caixa com o preto está em cima da máquina registadora.

- Eu sei. Já a vi.

O criado aproximou-se com as duas bebidas e os copos embaciados pelo gelo e também trouxe um copo com água.

- Dê-me aquele embrulho que veio em meu nome e está em cima da máquina registadora - disse-lhe o Coronel. - Diga a Cipriani que depois lhe mando um cheque.

Tomou outra decisão rápida.

- Queres a tua bebida, Filha?

- Sim. Se não te importas que mude de opinião.

Beberam, após saudarem, batendo levemente com os copos, tão levemente que o contacto foi quase imperceptível.

- Tinhas razão - disse ela, sentindo a calidez da bebida e o desaparecimento momentâneo da angústia.

- Também tinhas razão - disse ele, e apertou os dois comprimidos na palma da mão.

Pensou que tomá-los com água seria estragar o paladar.

Assim, quando a rapariga voltou a cabeça para observar um bebedor matinal que saía do bar, engoliu-os com o Martini.

- Vamos, Filha?

- Sim. Ainda bem.

- Criado - disse o Coronel. - Quanto devo por estas bebidas? E não se esqueça de dizer a Cipriani, que depois mando-lhe um cheque.

 

Almoçaram no Gritti e a rapariga desembrulhara o pequeno negro com rosto de ébano e pregara-o no ombro esquerdo. Tinha quase três polegadas de comprimento e era uma coisa bela se por acaso é coisa de que se goste. E quem não gosta é estúpido, pensou o Coronel.

Mas não sejas bruto, nem mesmo quando pensas disse de si para si. Tens de ser bom até lhe dizeres adeus. Adeus!, que palavra!, pensou.

Parece um slogan do dia de São Valentim.

Adeus e bonne chance e hasta la vista. Nós só dizíamos merde e ficávamo-nos por aí. Farewell, pensou, é uma bela palavra. Soa bem, pensou. Adeus, um bom adeus, é coisa que se pode levar para onde formos.

- Filha - disse ele. - Há quanto tempo é que não te digo que te amo?

- Desde que nos sentámos à mesa.

- Mas digo-te agora.

Ela penteara o cabelo com paciência quando haviam chegado ao hotel e fora ao toilette das senhoras. Não gostava dessas salas.

Pusera batôn nos lábios, pintando a boca do modo que ele mais gostava e disse para consigo própria, enquanto pintava a boca correctamente: “Não penses. Não penses. Sobretudo não fiques triste por ele se ir embora”.

- Estás linda.

- Obrigada. Gostava de ser bela para ti, se pudesse, e se fosse bela...

- O italiano é uma língua bela.

- Sim. O sr. Dante também pensava assim.

- Gran Maestro - disse o Coronel. - O que há por aí que se coma, neste Wirtschaft?

O Gran Maestro estivera a observar, sem afectação e sem inveja.

- Queres carne ou peixe?

- Hoje é sábado - disse o Coronel. - Como não é obrigatório comer peixe, vou comer peixe.

- Há linguado - disse o Gran Maestro. - Que deseja, my Lady?

- O que decidir. O Gran Maestro sabe mais acerca de comidas do que eu, e eu gosto de tudo.

- Decide-te, Filha.

- Não. Gosto de deixar essas coisas a quem sabe mais do que eu. Tenho o apetite das escolas internas.

- Seria surpresa - disse o Gran Maestro com o seu rosto amável e as sobrancelhas cinzentas sobre os olhos ligeiramente encovados, o rosto feliz do soldado velho que ainda consegue estar vivo e gosta de estar vivo.

- Há novidades da Ordem? - perguntou o Coronel.

- O nosso chefe está atrapalhado. Confiscaram-lhe todos os bens. Ou por outra, intervieram.

- Espero que não seja coisa grave.

- Confiamos no Chefe. Já se livrou de tempestades piores.

- Ao nosso Chefe - disse o Coronel.

Ergueu o copo que enchera com verdadeiro Valpolicella.

- Bebe à saúde do Chefe, Filha.

- Não posso beber à saúde desse porco - disse a rapariga. - Além disso não pertenço à Ordem.

- Já é membro da Ordem, my Lady - disse o Gran Maestro. - Por mérito di guerra.

- Bem, então bebo à saúde do chefe - disse ela. - Mas pertenço de facto à Ordem?

- Sim - disse o Gran Maestro. - Ainda não recebi os seus pergaminhos mas vou designá-la Secretária Superior Honorária. O meu Coronel revelar-lhe-á os segredos da Ordem. Se faz favor, meu Coronel.

- Eu revelo - disse o Coronel. - O meu compatriota não anda por aí?

- Saiu com a senhora dele, a Miss Baedeker.

- OK - disse o Coronel. - Vou revelar os segredos. Há apenas um grande segredo que deves ficar a saber. Corrige-me, Gran Maestro, se eu me enganar.

- Comece a revelar - disse o Gran Maestro.

- Vou começar - disse o Coronel. - Ouve cuidadosamente, Filha. Este é o Segredo Supremo. Ouve. O amor é amor, e a alegria é alegria. Mas só há tranquilidade quando o peixe de ouro morre.

- Foi revelado - disse o Gran Maestro.

- Tenho muito orgulho e estou muito contente por ser membro da Ordem - disse a rapariga. - Num certo sentido é uma Ordem muito rígida.

- E é mesmo - disse o Coronel. - Agora, Gran Maestro, que vamos nós almoçar? Sem mistérios?

- Primeiro, enchillada de caranguejo, como se come nesta cidade, mas fria. Servida nas cascas. Depois, linguado para o meu Coronel e para a Senhora um assado. Que vegetais desejam?

- O que houver - disse o Coronel.

O Gran Maestro afastou-se e o Coronel olhou para a rapariga e depois para o Canal Grande, e viu a dança mágica da luz no fundo do bar que fora habilmente transformado em sala de jantar.

- Já te disse, Filha, que te amo?

- Há muito tempo que não me dizias. Mas eu amo-te.

- O que é que acontece a duas pessoas que se amam?

- Suponho que alcançam o que querem e são mais felizes do que as outras. Depois, uma delas fica no vácuo.

- Não quero ser rude - disse o Coronel. - Podia dar-te uma resposta rude. Mas nunca queiras ficar no vácuo.

- Vou tentar - disse a rapariga. - Tenho tentado desde que acordei. Tenho tentado desde que nos conhecemos.

- Continua a tentar, Filha - disse o Coronel.

Depois o Coronel, tendo dado as suas ordens ao Gran Maestro que reaparecera, disse:

- Uma garrafa de vino secco do Vesúvio para acompanhar os linguados. Temos o Valpolicella para as outras coisas.

- Não posso beber o vinho do Vesúvio com o assado? - perguntou a rapariga.

- Renata! Filha - disse o Coronel -, com certeza. Podes fazer o que quiseres.

- Gosto de beber os vinhos que tu bebes.

- Um bom vinho branco é sempre bom com um assado, quando se tem a tua idade - disse-lhe o Coronel.

- Quem me dera que não houvesse diferença de idades.

- Eu, por mim, gosto das diferenças de idade - disse o Coronel. - Excepto - acrescentou... Mas não prosseguiu e disse: - Sejamos fraiche et rose comme au jour de bataille.

- Quem disse isso?

- Não tenho a mínima ideia. Apanhei esta frase quando tirei um curso no Collège des Maréchaux. Um título muito pretensioso. Mas tirei o curso. Mas o que sei melhor foi o que aprendi com os Krauts, estudando-os e lutando contra eles. São os melhores soldados do mundo. Mas acabam sempre por ser ultrapassados.

- Vamos ser como disseste que devíamos ser, e por favor, diz-me que me amas.

- Amo-te - disse ele. - É nisso que te podes basear. Sinceramente.

- Hoje é sábado - disse ela. - E quando é o próximo sábado?

- O próximo sábado é uma data móvel, Filha. Procura alguém que me possa dizer o que é o próximo sábado.

- Podias tu, se quisesses.

- Vou perguntar ao Gran Maestro, talvez ele saiba. Gran Maestro, quando é o próximo sábado?

- À Pâques ou à la Trinité - disse o Gran Maestro.

- Porque é que não há um bom odor da cozinha para nos dar uma alegria certa?

- Porque o vento sopra na direcção oposta.

- Sim, disse o Coronel. O vento sopa na direcção oposta e que feliz que eu teria sido se sempre tivesse tido esta rapariga em vez da mulher a quem dou uma pensão e que nem sequer pôde ter filhos. Mas quem é que pode criticar pneus desta natureza? Só critico Goodrich ou Firestone ou General.

Sossega, disse para consigo próprio. E ama esta rapariga.

Ela ali estava, junto dele, desejando ser amada, se por acaso ele lhe pudesse dar algum amor.

Tranquilizou-se como sempre se tranquilizava logo que olhava para ela e disse:

- Como vais, querida, com esse cabelo que lembra as penas de um corvo e esse rosto que faz despedaçar os corações?

- Vou bem.

- Gran Maestro - disse o Coronel. - Arranja uns cheiros a qualquer coisa nessa tua cozinha, mesmo que o vento não esteja de feição.

 

O groom telefonara sob as ordens do porteiro e o barco a motor era o mesmo onde já tinham viajado.

Jackson estava já no barco com a bagagem e o retrato que fora solidamente empacotado. O vento soprava ainda de rijo.

O Coronel pagara a conta e dera as gorjetas. Os empregados do hotel haviam posto a bagagem e o retrato no barco e certificaram-se se Jackson estava bem sentado.

Depois retiraram-se.

- Bem, Filha - disse o Coronel.

- Posso ir contigo até à garagem?

- Na garagem ainda será pior.

- Por favor, deixa-me ir até à garagem.

- Está bem - disse o Coronel. - Entra.

Não falaram e o vento soprava pela popa, mas com a velocidade que o velho e calamitoso motor conseguia atingir parecia mesmo que não havia vento.

No cais, onde Jackson entregava a bagagem a um carregador, e ele próprio cuidava do retrato, o Coronel disse:

- Queres despedir-te aqui?

- Tem que ser aqui?

- Não.

- Posso ir ao bar da garagem enquanto tiram o carro?

- Ainda será pior.

- Não me importo.

- Leva isso para a garagem e pede a alguém que olhe pelas coisas enquanto tiras o carro - disse o Coronel a Jackson. - Afasta as espingardas e põe a bagagem de modo a ficar o máximo espaço livre no assento de trás.

- Sim, meu Coronel - disse Jackson.

- Então eu também vou?

- Não - disse-lhe o Coronel.

- Porquê?

- Bem sabes. Não foste convidada.

- Por favor, não sejas mau.

- Por amor de Deus, Filha, se soubesses como me custa não o ser. É fácil quando somos maus. Deixa-me pagar a este pobre homem e vamo-nos sentar no banco debaixo da árvore.

Pagou ao dono do barco e disse-lhe que não se esquecia do jeep. Também lhe disse para não contar muito com ele, mas talvez fosse possível arranjá-lo.

- É um motor usado. Mas será melhor do que esse moinho de café que aí tens.

Subiram os gastos degraus de pedra, atravessaram o cascalho e sentaram-se num banco debaixo das árvores.

As árvores eram negras; o vento fustigava-as e não tinham folhas. As folhas haviam caído cedo naquele ano e há muito que o vento as varrera dali.

Aproximou-se um homem a vender postais ilustrados e o Coronel disse-lhe:

- Raspa-te, filho. Não precisamos de ti.

A rapariga chorava por fim, embora tivesse decidido nunca chorar.

- Olha, Filha - disse o Coronel. - Nada há a dizer. Não instalaram dispositivos anti-choque no veículo onde viemos.

- Já acabei - disse ela. - Não sou histérica.

- Não queria dizer isso - disse o Coronel. - Queria dizer que és a mais bela rapariga que porventura já viveu no mundo. Em qualquer época. Em qualquer lugar.

- Mesmo que fosse verdade, que diferença fazia?

- Mas é verdade - disse o Coronel.

- E então?

- Então levantemo-nos, beijemo-nos e adeus.

- O que é isso, adeus?

- Não sei - disse o Coronel. - Tenho a impressão que é uma das coisas que toda a gente tem de descobrir por si.

- Tentarei descobrir.

- Torna tudo tão fácil quanto puderes, Filha.

- Sim - disse a rapariga. - No veículo com dispositivos anti-choque.

- Desde o princípio que pareces que vais para o cadafalso.

- Não podes fazer nada amavelmente?

- Suponho que não. Mas tenho tentado.

- Continua a tentar, por favor. É tudo quanto nos resta.

- Continuarei a tentar.

Depois abraçaram-se e beijaram-se com sinceridade e o Coronel levou a rapariga pelo cascalho até aos degraus de pedra.

- Deves tomar um barco bom. Não vás nesse velho barco a motor.

- Prefiro ir neste velho barco a motor, se não te importas.

- Importar-me? - disse o Coronel. - Nunca me importo. Dou ordens e obedeço a ordens. Não me importo. Adeus minha querida, meu belo amor.

- Adeus - disse ela.

 

Estava dentro do barril de carvalho afundado que costumam usar no Veneto para ocultar o atirador das peças que tenta caçar e que neste caso eram os patos.

Fora um belo passeio com os rapazes que certa vez conhecera na garagem, e uma esplêndida noite com boa comida feita na cozinha ao ar livre. Três caçadores iam sentados no assento de trás, quando se dirigiram para o local da caçada. Os que não mentiam tinham-se dado ao luxo de alguns exageros e os mentirosos nunca conseguiram florescer.

Um mentiroso a florescer, pensara o Coronel, é uma coisa tão bela como uma cerejeira ou uma macieira coberta de flores. Quem é capaz de desencorajar um mentiroso, pensou, a menos que nos ofereça coordenadas para isso?

O Coronel coleccionara mentirosos durante toda a vida, do mesmo modo que algumas pessoas coleccionam selos. Não os classificava a não ser momentaneamente, nem os guardava no cofre. Gozava, apenas, ouvindo-os mentir, excepto quando incluíam assuntos de serviço. Na noite passada tinha ouvido muitas mentiras depois de terem atravessado o Grappa, e o Coronel divertira-se.

Havia fumo na sala devido ao lume de carvão de lenha; não, era mesmo um lume de lenha, pensou. De qualquer modo, os mentirosos gostam mais de mentir quando há fumo na sala, ou depois do sol posto.

Por duas vezes ele próprio quisera mentir, mas conseguira manter-se e apenas exagerara. Pelo menos assim espero, pensou.

E agora a lagoa estava gelada, o que ia estragar tudo. Mas não estragou.

Um som de patos soou subitamente de qualquer parte, projectando-se num mergulho que nenhum outro conseguiria fazer e o Coronel ouviu o ruído da sua trajectória e atirou e matou o pato. Caiu no gelo, batendo tão rijamente no gelo quanto um pato pode bater. Antes que se apanhasse, o Coronel matou-lhe a companheira que fugia rápida, de pescoço esticado.

Caiu junto do pato.

Isto é um assassínio, pensou o Coronel. E o que não o será, hoje em dia? Mas, rapaz, ainda sabes atirar...

Qual rapaz, pensou. Velho cansado. Mas olha como eles chegam.

Eram patos americanos e vinham fazendo um sussurro que parecia coagulado. Então o pato traiçoeiro que estava no gelo começou a falar com eles.

Deixa-os voltar, disse o Coronel para consigo próprio. Baixa a cabeça e nem sequer movas os olhos. Estão a aproximar-se.

Aproximaram-se atraídos pela voz traiçoeira.

Asas prepararam-se para descer. Depois viram que apenas havia gelo e ergueram-se de novo.

O caçador, que agora não era Coronel, mas apenas um homem com uma espingarda, levantou-se dentro do barril e alvejou dois. Caíram no gelo como se fossem patos grandes.

De uma família, dois é bastante, disse o Coronel.

Ou será uma tribo?

O Coronel ouviu um tiro atrás dele, num sítio onde sabia que não estava mais nenhum barril e voltou a cabeça para olhar através da lagoa gelada até à distante linha da costa.

Um bando de patos que voavam baixo, cintilava no céu, e à medida que subia pareciam fixados nas caudas.

Viu cair um e depois ouviu outro tiro.

Era o maldito barqueiro quem atirava aos patos que deviam ser para o Coronel.

Como pode ele fazer uma coisa destas?, pensou o Coronel.

O homem tinha uma espingarda para atirar aos patos que escapassem para sítios onde os cães não os pudessem ir buscar. Para ele, atirar aos patos que pertenciam ao Coronel era, em termos de caça, uma das piores coisas que um homem pode fazer a outro homem.

O barqueiro estava demasiadamente longe para ouvir um grito. Por isso o Coronel visou-o e disparou duas vezes.

A distância era grande, para que as cargas o atingissem, pensou, mas pelo menos fica a saber que eu sei o que ele está a fazer. Para que demónio é tudo isto? Numa caçada como esta, para que é tudo isto? É a caçada mais bem organizada em que já estive, e tenho-me divertido a caçar como nunca me divertira. Que diabo terá aquele filho de uma cabra?

Sabia que era mau enfurecer-se. Tomou duas pílulas e empurrou-as com um trago de Gordon pois não havia água.

Sabia que o gin também lhe fazia mal e pensou, tudo me faz mal excepto descansar e exercícios leves. OK, descansa e faz exercício leve. Achas que isto é exercício leve?

Tu, beleza, disse para consigo próprio. Quem me dera que estivesses aqui e pudéssemos sentir os nossos ombros a tocarem-se. Tentaria acertar nos patos que voam alto e tentaria pôr um dentro do barril sem te magoar. Tentaria apanhar um igual a este, disse ouvindo as asas no céu. Ergueu-se, voltou-se, viu o único pato de pescoço comprido, asas movendo-se rápidas em direcção ao mar. Viu-o esguio e nítido no céu com as montanhas tristes. Apanhou-o, cobriu-o com a mira e deitou-se para trás tanto quanto podia.

O pato caiu no gelo, mesmo junto do perímetro do barril e quebrou o gelo ao cair. Era o gelo que fora quebrado quando haviam espalhado as negaças e voltara a solidificar levemente. O pato que servia de isca olhou para ele e mexeu os pés.

- Nunca o tinha visto - disse o Coronel ao pato. – Nem acredito que o tenhas visto chegar. Talvez. Mas nada disseste.

O pato caíra de cabeça para baixo e ficara com a cabeça debaixo do gelo. Mas o Coronel podia ver as belas penas de inverno, no peito e nas asas.

Gostava de lhe dar um manto feito de penas como os velhos mexicanos costumam fazer para ornamentarem os seus deuses. Mas suponho que estes patos têm de ir para o mercado e aliás, ninguém saberia tirar-lhes a pele e curti-la. Mas seria bonito com penas de patos abertas nas costas e enfeites na frente com duas listas longitudinais feitas com penas de cerceta a partir de cada seio. Seria um momento espantoso. Tenho a certeza de que ela gostaria.

Quem me dera que viesse agora, pensou o Coronel.

Podem vir alguns patos; tenho de estar pronto para os receber. Mas nada apareceu e ele voltou a pensar.

Não se ouviam tiros nos outros barris e só ocasionalmente um ou outro tiro nas bandas do mar.

Com luz, as aves podiam ver o gelo e já não se aproximavam; iam antes para o mar largo onde podiam beber água. Por isso já não havia caçada e ele pensava sem intenção, tentando descobrir como tudo acontecera. Sabia que não merecia o que lhe acontecera, como se sentira traído e assim vivia, embora sempre procurasse compreender.

Certa vez foram dois marinheiros, quando à noite passeava com a rapariga. Assobiaram à rapariga e o Coronel pensou que era uma coisa sem importância e o melhor era afastar-se.

Mas havia qualquer coisa que não estava certa. Sentiu antes de descobrir. Depois descobriu, pois parara debaixo de uma luz para que pudessem ver o distintivo que usava sobre os ombros e se afastassem para o outro passeio.

Em cada ombro usava uma pequena águia com as asas abertas. Estavam bordadas a fio de prata no casaco que vestia. Não eram uma coisa muito distinta e há muito tempo que as ostentava. Mas eram visíveis.

Os dois marinheiros assobiaram novamente.

- Deixa-te ficar aqui junto à parede se queres ver - disse o Coronel à rapariga. - Ou então não olhes.

- Eles são muito fortes e jovens.

- Não serão fortes por muito tempo - prometeu-lhe o Coronel.

O Coronel dirigiu-se aos assobiadores.

- Onde está a vossa licença?

- Como é que posso saber? - disse o mais alto dos dois.

- O que eu quero é ver a dama.

- Pessoas como vocês não têm nomes e números de série?

- Como é que posso saber? - disse um.

O outro disse:

- Eu, se tivesse, não dizia a um palerma de um Coronel.

Oh, rapaz, pensou o Coronel antes de lhe bater. Marinheiro, conheces bem todos os teus direitos.

Desfechou-lhe um murro pela esquerda e bateu-lhe três vezes quando o marinheiro começou a cair.

O outro, o primeiro assobiador, portou-se bem para um homem que tinha estado a beber, mas o Coronel deu-lhe uma cotovelada na boca e depois, debaixo do queixo, desfechou-lhe um golpe com a direita. Entretanto, deu uma olhadela ao segundo assobiador e viu que estava desmaiado.

Depois esmurrou-o com a esquerda. A seguir enfiou uma direita no corpo que se aproximava. Voltou a aplicar a esquerda e caminhou para a rapariga, porque não queria ouvir o ruído da cabeça do marinheiro ao embater no chão.

Olhou para o primeiro e viu que dormia pacificamente de queixo para baixo com o sangue a escorrer-lhe da boca. Mas tinha a cor normal, notou o Coronel.

- Bem, lá se vai a minha carreira - disse à rapariga. - Fosse o que isso fosse. Mas aqueles dois divertiram-se a valer.

- E tu, como estás? - perguntou a rapariga.

- Estou bem. Viste?

- Sim.

- Amanhã, vão-me doer as mãos - disse, distraído. - Mas acho que podemos seguir. Vamos devagar.

- Por favor, vamos devagar.

- Não era isso o que eu queria dizer. Só pretendia que não tivéssemos pressa em sair daqui.

- Iremos tão devagar quanto duas pessoas podem andar!

E assim caminharam.

- Queres tentar uma experiência?

- Com certeza.

- Vamos andar de tal modo que até as nossas pernas pareçam perigosas.

- Vou tentar. Mas parece-me que não sei.

- Bem, caminhemos apenas.

- Mas eles não te acertaram?

- Só um murro atrás da orelha. O segundo, quando se atirou.

- O combate é assim?

- Quando se tem sorte.

- E quando não se tem sorte?

- Dobramos os joelhos. Para a frente ou para trás.

- Ainda gostas de mim depois de teres lutado?

- Amo-te ainda mais do que antes, se for possível.

- Não pode ser possível? Seria bom. Amo-te mais desde que te vi combater. Vou bastante devagar?

- Caminhas como uma corça na floresta, e às vezes como um lobo, ou um velho coiote quando não tem pressa.

- Tenho a certeza de que não queria ser um coiote velho.

- Espera até veres um - disse o Coronel. - Depois quererás. Caminhas como as grandes aves de rapina, quando caminhas ligeiramente. E não és uma ave de rapina.

- Afianço-te que não sou.

- Anda um pouco para a frente para que eu veja.

Ela andou um pouco para a frente e o Coronel disse:

- Caminhas como um campeão antes de ser campeão. Se fosses cavalo comprava-te, nem que tivesse de pedir o dinheiro emprestado a vinte por cento de juro.

- Não precisas de me comprar.

- Eu sei. Não era isso que discutíamos. Discutamos o teu modo de andar.

- Diz-me - disse ela. - Que acontecerá àqueles homens? Essa é uma das coisas que eu não sei acerca de combates. Não devia ter ficado ali e importar-me com eles?

- Nunca - disse-lhe o Coronel. - Lembra-te disto nunca. Espero que tenham ficado bastante magoados. Podem apodrecer. Causaram o acidente. Nem há hipóteses de responsabilidade civil. Estamos salvaguardados. Posso dizer-te uma coisa acerca de combates, Renata?

- Diz-me, por favor.

- Se alguma vez combateres, então trata de ganhar. Só isso é que conta. Tudo o resto é repolho, como dizia o meu velho amigo Dr. Rommel.

- Gostavas mesmo de Rommel?

- Muito.

- Mas ele era teu inimigo.

- Algumas vezes amo mais os inimigos do que os amigos. E, não sei se sabes, a Marinha ganha sempre todos os seus combates. Aprendi isso num local chamado o Edifício do Pentágono, quando ainda me permitiam entrar nesse edifício pela porta da frente. Se quiseres, podemos ir a correr até lá abaixo, ou ir depressa, e pomos a questão àqueles dois.

- Sinceramente, Ricardo, por uma noite já chega de lutas.

- Para mim também, para te ser franco - disse o Coronel. Mas disse em italiano e começou por Anche io. - Vamos até ao Harry's beber qualquer coisa e depois levo-te a casa.

- Não feriste a tua mão doente?

- Não - explicou ele -, porque só atirei à cabeça uma vez. Das outras vezes atirei ao corpo.

- Deixas-me apertá-la?

- Se apertares suavemente.

- Mas está muito inchada!

- Não quebrei nenhum osso e o inchaço passa.

- Amas-me?

- Sim. Amo-te com as minhas mãos razoavelmente inchadas e com todo o meu coração.

 

Foi assim, e talvez não fosse naquele dia, que se deu o milagre. Nunca se sabe, pensou. Houve um grande milagre e ele não o compreendeu conscientemente. E pensou, meu grande safado, nem soubeste opor-te.

Estava cada vez mais frio, com o gelo a condensar-se e o pato que servia de isca nem sequer olhava para o céu. Trocara a traição pela segurança.

Estupor, pensou o Coronel. É uma injustiça. a tua profissão. Mas porque é que uma pata é melhor isca do que um pato? Devias saber, pensou. E mesmo assim, não é verdade. E o que é a verdade? Os patos agora atraem melhor. Não penses em Renata. Não penses em Renata porque não te faz bem, rapaz. Até pode fazer-te mal. E disseste-lhe adeus. E que adeus foi aquele! Completo com carreta mortuária. E ela devia ter vindo contigo na maldita carreta. Que ideia cruel, pensou. Amar e partir. Até pode ferir as pessoas.

E quem te consentiu conheceres uma rapariga daquelas?

Ninguém, respondeu. Foi Andrea quem ma apresentou.

Mas como pôde ela amar um triste pobre diabo como tu?

Não sei, pensou. Sinceramente, não sei.

Não sabia, entre outras coisas, que a rapariga amava-o porque nunca acordara triste numa única manhã; atacasse ou não atacasse. Experimentara a angústia e a tristeza. Mas de manhã nunca estava triste.

Já não há homens assim, e a rapariga, embora fosse muito nova, quando encontrava um deles sabia distingui-lo.

Agora deve estar em casa, a dormir, pensou o Coronel. É aí que deve estar e não numa maldita barrica afundada com disfarces gelados em cima.

Mas quem me dera que ela estivesse aqui, se este abrigo fosse duplo, a olhar para o ocidente, no caso de vir algum pato. Como seria bom se ela estivesse bem quente! Talvez eu consiga um desses verdadeiros casacos de abafo que ninguém vende. O género dos que forneceram por engano à Força Aérea.

Podia descobrir como é que são forrados e depois fazia um com penas de pato, pensou. Arranjava um bom alfaiate para o cortar e podíamos fazê-lo reforçado, sem algibeira à direita, e punha-se um reforço de camurça para amortecer o coice da espingarda.

Vou arranjá-lo, disse para consigo próprio. Vou arranjá-lo ou então apanho um a qualquer tipo e mando cortá-lo para ela. Gostava de lhe dar uma boa Purdey 12, não muito leve, ou um par de espingardas Boss. Deve ter armas dignas dela.

Um par de Purdeys servia, pensou.

Naquele momento ouviu o leve sussurro das asas batendo rápidas no céu e olhou para cima. As aves voavam muito alto. Olhou-as, apenas. Mas iam tão altas que certamente viam o barril e viam-no a ele lá dentro e as negaças e o pato que servia de isca, que também as via e que grasnava a plenos pulmões na sua lealdade traiçoeira.

Os patos continuaram o voo a caminho do mar.

Nunca lhe dei nada, como ela disse. Só a cabeça do mouro. Mas não tem significado especial. Ela escolheu-o e eu comprei-o. Não é assim que se dá um presente.

O que eu gostava de lhe dar era segurança, coisa que já não existe; todo o meu amor, que nada vale; todos os meus bens, que praticamente não existem, a não ser as duas espingardas, os meus uniformes, as medalhas e as citações e alguns livros. E a reforma de Coronel.

Deixo-te todos os meus bens na terra, pensou. E ela deu-me amor, jóias valiosas, que eu devolvi, e um quadro. Bem, posso devolver o quadro quando quiser. Podia dar-lhe o meu anel do V. M. I, pensou, mas onde diabo o teria perdido?

Ela não desejaria um D. S. C, nem as duas estrelas de prata, nem as medalhas do seu próprio país. Nem as da França. Nem as da Bélgica. Nem as fingidas. Seria mórbido.

É melhor dar-lhe o meu amor. Mas como poderei enviar-lho? E como é que se pode mantê-lo fresco? Não o podem embalar numa pedra de gelo.

Talvez possam. Tenho de saber. E como é que vou arranjar o motor do jeep para aquele velho?

Descobre, pensou. Descobrir coisas tem sido o teu ofício. Descobrir coisas enquanto disparavam sobre ti, pensou. Quem me dera que aquele patife, que esteve a atirar aos patos, tivesse uma carabina e eu tivesse uma carabina. Havíamos de saber qual dos dois conseguia inventar coisas. Mesmo dentro de um barril afundado num pântano onde não se pode manobrar. Tinha de me vir buscar.

Pára com isso disse de si para si, e pensa na rapariga.

Já não queres matar mais ninguém.

Para quem julgas tu que estás a falar?, disse para consigo próprio. Vais tornar-te um bom cristão? Podias tentar honestamente. Ela gostaria mais de ti. Ou não gostaria? Não sei, disse com franqueza. Juro por Cristo que não sei.

Talvez no fim da vida sejas um bom Cristão. Sim, disse ele, talvez. Quem quer apostar?

- Queres apostar? - perguntou á pata que servia de isca. Mas ela olhava o céu e começara a sua tagarelice.

Voam muito alto e não fazem círculos. Olham para baixo e continuam a voar para o mar alto.

Devem andar por lá a boiar, pensou o Coronel. Provavelmente algum atirador está a tentar apanhá-los. Com este vento estão quase sobre a margem e alguém tentará acertar-lhes. Bem, quando disparar, talvez alguns se desviem para aqui. Mas com todo este gelo é melhor ir-me embora em vez de ficar aqui a gelar.

Já matei bastantes e atirei tão bem ou melhor do que sei atirar. Melhor, pensou. Ninguém consegue atirar melhor do que tu, excepto, talvez, Alvarito mas ele é um garoto e atira mais depressa. Mas mataste menos patos do que muitos dos piores atiradores.

Sim, bem sei. Sei tudo isso e sei porquê, e hoje já não damos importância aos números e deitámos os livros fora, lembras-te?

Lembrava-se de como, por algum milagre de sorte estivera com o seu melhor amigo, em acção, nas Ardenas.

Era ao cair da noite numa zona de terras altas com estradas arenosas e as árvores eram carvalhos e pinheiros. Os sulcos dos tanques e dos veículos do inimigo eram claramente visíveis na areia molhada.

No dia anterior chovera, mas agora o tempo desanuviara e a visibilidade era boa e podia-se ver bem por todo o campo cheio de colinas e ele e o amigo olhavam com binóculos, como se estivessem a caçar.

O Coronel, que nessa época era General, e comandante assistente de divisão, conhecia individualmente os rastos de cada veículo que perseguiam. Também conhecia, pelos traços, quando os veículos evitavam as minas e qual o número aproximado de minas que os esperava. Também calculara o ponto onde tinham de combater antes de alcançarem a linha Siegfried. Tinha a certeza de que nunca combateriam em qualquer desses dois locais, mas deixava-se levar para onde o atraíam.

- Fomos longe demais para pessoas do nosso posto, George - disse ele ao seu melhor amigo.

- Para lá do que é permitido, General.

- OK - dissera o Coronel. - Agora deitemos o livro fora e vamos descansar.

- Concordo plenamente General. Porque fui eu quem escreveu o livro - disse o seu melhor amigo. - Mas suponha que eles deixaram aqui alguma coisa?

Apontou o local que logicamente devia ser defendido.

- Não deixaram nada aqui - dissera o Coronel. - Ficaram sem material, nem sequer para um combate de tiro sem importância.

- Todos têm razão até errarem - disse o seu melhor amigo e acrescentou: - General.

- Tenho a certeza - disse o Coronel.

Tinha também razão, embora ao obter esse conhecimento exacto não tivesse obedecido completamente ao espírito da Convenção de Genebra que, segundo se diz, deve governar as operações militares.

- Vamos descansar - disse o seu melhor amigo.

- Nada nos impede e eu garanto que eles não param em qualquer desses dois locais. E não soube isto por meio de nenhum Kraut. Tirei tudo da minha cabeça.

Olhou a região mais uma vez e ouviu o vento nas árvores e aspirou o cheiro da relva que pisavam, olhou mais uma vez para os trilhos na areia húmida e isso foi o fim daquela história.

Ela gostaria disto?, pensou. Não. Eleva-me demasiadamente. Gostava que alguém lhe contasse. George não pode. É o único que saberia contar-lhe, mas não pode.

Estou certo que não pode.

Tive razão em noventa e cinco por cento das vezes e isso é uma média excelente numa coisa tão simples como a guerra. Mas esses cinco por cento, quando não se tem razão, também são qualquer coisa.

Nunca te contarei isto, Filha. apenas um pequeno murmúrio que se ouve no meu coração. Meu desgraçado coração. Esse raio de coração que não pôde aguentar o ritmo da marcha.

Talvez possa aguentar, pensou, e tomou dois comprimidos com um trago de gin e olhou a planície de gelo acinzentado.

Vou chamar aquele maldito, apanhar a caça e marchar para a casa da quinta, ou cabana, como acho que lhe devo chamar. A caçada acabou.

 

O Coronel fez sinal ao barqueiro levantando-se na barrica afundada e disparando dois tiros para o ar e depois acenando-lhe com a mão.

O barco aproximou-se lentamente, quebrando o gelo, e o homem apanhou os disfarces de mato, agarrou a pata e meteu-a no saco e, ajudado pelo cão que escorregava no gelo, apanhou os patos mortos. O mau humor do barqueiro parecia ter desaparecido e fora substituído por uma sólida boa-disposição.

- O senhor apanhou poucos - disse ele ao Coronel.

- Com a tua ajuda.

Foi tudo quanto disseram e o barqueiro colocou os patos cuidadosamente, de peito para cima, no fundo do barco e o Coronel pôs as espingardas, a caixa de cartuchos e o banco de atirador no barco.

O Coronel entrou no barco e o barqueiro desengatou uma protecção de pano, parecida com um avental, que se prendia no interior da barrica para segurar os cartuchos. Depois entrou no barco e começaram o seu lento e laborioso regresso através do gelo em direcção ao canal. O Coronel trabalhou tanto com o remo como havia trabalhado antes. Mas agora, com o sol a brilhar e as montanhas, ao norte, cobertas de neve, e a linha da margem que marcava o canal em frente deles, trabalhavam ambos bem coordenados.

Depois chegaram ao canal, quebrando o último gelo; o barco subitamente começou a navegar e o Coronel entregou o grande remo ao barqueiro e sentou-se. Estava a transpirar.

O cão, que tremia junto dos pés do Coronel, correu até à borda do barco, lançou-se à água e nadou até à margem do Canal. Sacudindo a água do pêlo esbranquiçado, meteu-se pelas junças e o Coronel observava a sua corrida até casa pelo modo como as junças se agitavam. O cão não recebera a salsicha prometida.

O Coronel sentindo-se a transpirar, embora soubesse que estava protegido do frio pelo casaco de campanha, tomou dois comprimidos com um gole de gin que bebeu do frasco.

O frasco era chato e de prata com uma coberta de cabedal. Debaixo da coberta de cabedal, que estava gasta e manchada, havia uma placa com a inscrição. Ao Ricardo, da Renata, com muito amor. Ninguém vira jamais aquela inscrição além da rapariga, o Coronel e o homem que a gravara. Não fora gravada na loja onde a haviam comprado.

Foi no princípio, pensou o Coronel. Agora, que interessa?

Na tampa do frasco estava gravada a inscrição Da R. ao R. C.

O Coronel ofereceu o frasco ao barqueiro que o olhou e disse:

- O que é?

- Grappa inglesa.

- Vou experimentar.

Bebeu um gole, o género de gole que os paisanos tomam quando bebem de um frasco.

- Obrigado.

- Fizeste uma boa caçada?

- Matei quatro patos. O cão apanhou três que tinham sido atingidos por outras pessoas.

- Porque é que disparaste?

- Desculpe-me por tê-lo feito. Disparei porque estava zangado.

Eu próprio já fiz isso algumas vezes, pensou o Coronel, e não lhe perguntes o motivo da zanga.

- É pena que não tenham voado melhor.

- É sempre assim - disse o Coronel.

O Coronel observava os movimentos que o cão fazia na erva e nas junças. Viu-o estacar de súbito e ficar parado. Depois saltou. Foi um salto bastante largo e um mergulho para a frente.

- Apanhou um pato estropiado - disse ao barqueiro.

- Bobby - chamou o barqueiro. - Traz cá, traz cá.

As junças moveram-se e o cão apareceu com um pato na boca. O pescoço cinzento e branco e a cabeça verde moviam-se para baixo e para cima como se fosse uma cobra. Era um movimento já sem esperanças.

O barqueiro aproou à praia.

- Eu apanho-o - disse o Coronel. - Bobby.

Apanhou o pato da boca do cão e sentiu-o intacto e são, o coração a bater e os olhos desesperados de animal capturado.

Olhou-o cuidadosamente, gentilmente como se fosse um cavalo.

- Está apenas ferido numa asa - disse ele. - Guardamo-lo para isca ou para o soltarmos na Primavera. Toma, e mete-o no saco com a pata.

O barqueiro pegou-lhe cuidadosamente e meteu-o no saco. O Coronel ouviu a pata a falar com ele. Ou, talvez esteja a protestar, pensou. Não compreendia falácias de pato dentro de um saco.

- Bebe um gole disto - disse ao barqueiro. - Está um tremendo.

O barqueiro agarrou no frasco e bebeu outro grande gole.

- Obrigado - disse.

 

No cais, diante da casa de pedra junto da margem do canal, estavam muitos patos deitados no chão, em filas.

Estavam em grupos, e os números dos patos eram diferentes em todos. Eram pelotões, sem companhias, pensou o Coronel e eu quase não consegui um esquadrão.

O condutor da caçada estava em pé, com as suas botas altas, casaco curto e chapéu de feltro atirado para trás, e lançou um olhar avaliador aos patos que estavam nos barcos, à medida que se aproximavam da praia.

- Estava tudo gelado no meu posto - disse o Coronel.

- Já suspeitava - disse o condutor da caçada. - Desculpe, mas pensávamos que era o melhor posto.

- Quem é que matou mais?

- O Barone matou quarenta e dois. Havia lá uma pequena corrente. Provavelmente não ouviu os tiros porque estava contra o vento.

- Onde estão os outros?

- Já partiram, excepto o Barone que está à sua espera. O seu chauffeur está a dormir.

- Deve estar - disse o Coronel.

- Põe esses por ordem - disse o condutor da caçada ao barqueiro que também era caçador. - Quero registá-los no livro de caça.

- No saco está um pato de cabeça verde que só foi atingido numa asa.

- Bem. Cuidarei dele.

- Vou lá dentro falar com o Barone. Até logo.

- Aqueça-se - disse o condutor da caçada. - Esteve um dia horrível, meu Coronel.

O Coronel começou a andar em direcção à porta da casa.

- Até logo - disse ele ao barqueiro.

- Até logo, meu Coronel - disse o barqueiro.

Alvarito, o Barone, estava em pé, diante do fogo, no meio da sala. Sorriu-se timidamente e disse em voz baixa:

- Que pena não ter tido uma caçada melhor.

- Ficámos completamente gelados. Mas diverti-me bastante.

- Está com frio?

- Nem por isso.

- Podemos comer qualquer coisa.

- Obrigado. Não tenho fome. Já comeram?

- Sim. Os outros foram-se embora no meu carro. Pode dar-me uma boleia para Latisana? Aí já arranjo transporte.

- Com certeza.

- Que pena ter gelado. As perspectivas eram boas.

- Deve haver um mar de patos lá fora.

- Sim. Mas não ficam muito tempo porque não têm comida. Devem seguir para o sul esta noite.

- Irão todos?

- Todos excepto os patos locais que se alimentam aqui.

Ficarão até haver água sem gelar.

- Estou aborrecido por causa da caçada.

- E estou aborrecido por o ter obrigado a vir de tão longe por causa de tão poucos patos.

- Gosto sempre de caçar - disse o Coronel. - E gosto de Veneza.

O Barone Alvarito estendeu as mãos para o fogo.

- Sim - disse ele. - Todos nós amamos Veneza. Talvez o senhor goste mais dela do que ninguém.

O Coronel nada disse além de:

- Gosto de Veneza, como sabe.

- Sim. Eu sei - disse o Barone. Depois disse - Temos de acordar o seu chauffeur.

- E ele, comeu?

- Comeu e dormiu. Também leu livros ilustrados que trouxe consigo.

- Livros cómicos - disse o Coronel.

- Devia aprender a lê-los - disse o Barone. Sorriu-se timidamente. - Pode arranjar-me alguns em Trieste?

- Os que quiser - disse-lhe o Coronel. - Do super-homem ao improvável. Leia alguns. Oiça, Alvarito, que é que se passa com o homem que levou o meu barco? Parecia que me odiava. E bastante.

- Foi por causa do casaco de combate. Os uniformes aliados enfurecem-no.

- Diga, diga.

- Quando os marroquinos chegaram aqui violaram-lhe a mulher e a filha.

- Acho que é melhor beber qualquer coisa - disse o Coronel.

- Há uma garrafa de Grappa sobre aquela mesa.

 

Deixaram o Barone numa villa com grandes portões, uma álea de saibro e uma casa que tivera a sorte de não ter sido bombardeada pois ficava a mais de seis milhas de qualquer objectivo militar.

O Coronel despedira-se e Alvarito dissera-lhe que se quisesse poderia vir caçar todos os fins de semana.

- Não quer entrar?

- Não. Tenho de regressar a Trieste. Dirá a Renata que a amo?

- Com certeza. É o retrato dela que leva ali no carro?

- Dir-lhe-ei que o senhor caçou muito bem e que o retrato ia em boas condições.

- E também que a amo.

- E também que a ama.

- Ciao, Alvarito e muito obrigado.

- Ciao, meu Coronel. Se se pode dizer ciao a um Coronel.

- Não me considere Coronel.

- É muito difícil. Adeus, meu Coronel.

- No caso de algum imprevisto poderia dizer a Renata que fosse buscar o retrato ao Gritti?

- Sim, meu Coronel.

- Parece-me que é tudo.

- Adeus, meu Coronel.

 

Seguiam agora pela estrada e caía o crepúsculo.

- Volta para a esquerda - disse o Coronel.

- Mas esta não é a estrada para Trieste, meu Coronel – disse Jackson.

- O diabo leve a estrada para Trieste. Ordenei-te que voltasses à esquerda. Achas que só há uma estrada para Trieste?

- Não, meu Coronel. Estava apenas a avisar o meu Coronel.

- Nunca me avises e até dizer-te alguma coisa em contrário não me fales sem que eu te peça.

- Sim, meu Coronel.

- Desculpa, Jackson. O que eu queria dizer é que sei para onde vou e que quero pensar.

- Sim, meu Coronel.

Seguiam pela velha estrada que conhecia tão bem e o Coronel pensou, bem, mandei quatro patos como prometera ao criado do Gritti. A caçada não foi suficiente apenas para a mulher do criado. Mas os patos são grandes e gordos e darão bastante comida. Esqueci-me de dar a salsicha ao Bobby.

Já não havia tempo para escrever umas linhas a Renata. E que lhe diria numas linhas que já não tivéssemos dito?

Meteu a mão no bolso e encontrou uma folha de papel e um lápis. Acendeu a luz, e com a mão estropiada, escreveu uma curta mensagem em letras de imprensa.

- Mete isso no bolso, Jackson, e se for necessário lê as instruções. Se acontecer o que se descreve aí, actua como se fosse uma ordem.

- Sim, meu Coronel - disse Jackson e agarrou a folha de papel e meteu-a na algibeira superior do dolman.

Agora, cuidado, disse o Coronel de si para si. Tudo o que de futuro acontecer só te diz respeito e isso é um luxo.

Já não tens qualquer utilidade para o Exército dos Estados Unidos. É coisa que está esclarecida.

Disseste adeus à tua rapariga e ela disse-te adeus. É simples.

Atiraste bem e Alvarito compreende. Foi como foi.

Então porque diabos estás preocupado, rapaz? Espero que não sejas o género de safado que se preocupa com o que lhe acontecerá quando já nada há a fazer. Esperemos que não.

Naquele momento sentiu-se mal como sabia que se sentiria desde que haviam recolhido os disfarces.

Três ataques são mais do que suficientes, pensou, e já tive quatro. Fui sempre um malandro com sorte.

Sentiu-se mal outra vez, e pior.

- Jackson - disse ele. - Sabes o que é que o General Thomas J. Jackson disse, certa vez? Quando morreu. Decorei isso. Mas não me posso responsabilizar que seja assim mesmo, claro. Mas foi isto o que constou: “Ordenem a A. P. Hill que se prepare para a acção” -, depois delirou e a seguir disse: “Não. Vamos atravessar o rio para a outra margem e descansaremos entre as árvores”.

- Isso é muito interessante, meu Coronel - disse Jackson. - Deve ter sido mesmo de Stonewall Jackson, meu Coronel.

O Coronel começou a falar mas, pela terceira vez, sentiu-se mal e de tal modo que viu que ia morrer.

- Jackson - disse o Coronel. - Pára na berma da estrada e acende os faróis de estacionamento. Conheces o caminho para Trieste?

- Sim, meu Coronel. Tenho o mapa.

- Bom. Então vou para o assento traseiro deste grande e danado carro de luxo.

Foi a última coisa que o Coronel disse. Mas sentou-se no banco traseiro e fechou a porta. Fechou-a cuidadosamente.

Pouco depois Jackson conduziu o carro junto á berma, com os máximos acesos, procurando um local onde pudesse virar. Encontrou um e virou cuidadosamente. Quando seguia pela direita da estrada, dirigindo-se para o sul; para a grande auto-estrada que o levaria a Trieste, e que ele conhecia, acendeu a luz interior, tirou a mensagem do bolso e leu:

 

NO CASO DE MORRER, O RETRATO E AS DUAS ESPINGARDAS QUE SE ENCONTRAM NESTE CARRO DEVEM SER ENTREGUES NO HOTEL GRITTI, EM VENEZA, ONDE PODEM SER LEVANTADAS POR QUEM DE DIREITO.

    ASSINADO RICHARD CANTWELL, COL, INFANTARIA, E. U. A.

 

- Entregá-los-ão com certeza. Pelos canais - pensou Jackson, e embraiou o carro.

 

                                                                                Ernest Hemíngway  

 

                      

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