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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NA SOMBRA DO PERIGO
NA SOMBRA DO PERIGO

                                                                                                                                                  

 

 

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

Capítulo 40
Apenas breves momentos depois de Butch lhe ter ligado, Jane materializou-se na varanda da cobertura de V. Enquanto a sua forma ganhava volume, o ar gelado da noite
acariciou-lhe os cabelos e fez-lhe os olhos lacrimejarem.
Ou... talvez fossem mesmo lágrimas.
Olhando através do vidro, via tudo muito mais claramente: a mesa, os cílios, os chicotes, as... outras coisas.
Quando anteriormente ali tinha ido com Vishous, aqueles adereços das suas preferências extremas tinham parecido apenas um cenário provocador e ligeiramente assustador
para o incrível sexo que eles tinham. Mas a versão dela de «brincadeira sexual» era um caniche, quando comparada com os gostos de lobisomem dele.
E agora ela tinha perfeita noção.
O que é que Butch tinha usado? Em que estado estaria o seu companheiro? Haveria muito sangue ou...
Espera. Onde estava V?
Atravessando a porta envidraçada, ela...
Não havia sangue no chão. Nem a escorrer dos utensílios. Não havia correntes suspensas do teto. Tudo estava exatamente como da primeira vez que ali tinha estado,
como se nada tivesse acontecido...
De fora do círculo de velas ouviu-se um gemido e o som rasgou-lhe o pensamento. Claro. A cama.
Enquanto penetrava no véu de escuridão, os olhos ajustaram-se e ali estava ele. Debaixo de lençóis de seda, estendido de costas, a contorcer-se de dor... ou estaria
a dormir?
- Vishous? - chamou ela suavemente.
Com um grito, ele acordou instantaneamente, com o tronco a levantar-se como uma flecha, as pálpebras a abrirem-se muito. De imediato, ela verificou que o rosto tinha
cicatrizes já a desaparecerem... e havia mais à volta dos peitorais e também no abdómen. Mas a expressão dele foi o que a impressionou mais. Ele estava aterrorizado.
Abruptamente ouviu-se um resfolegar furioso, quando ele tirou os lençóis de cima do corpo. Ao olhar para si próprio, no peito e nos ombros começou a aparecer suor,
na sua pele instalou-se um brilho súbito, mesmo na escuridão, enquanto ele tapava o sexo com as mãos... como se estivesse a proteger o que restava.
Com a cabeça baixa, respirou profundamente. Inspirar. Expirar. Inspirar. Expirar...
O padrão transformou-se em soluços.
Enrolando-se, com as mãos a esconder o trabalho de carniceiro feito há muito, muito tempo, chorou com grandes soluços de emoção, sem reservas, sem controlo. A inteligência
já não dominava o seu reino, era súbdita deste.
Nem se apercebeu de que ela estava junto a ele.
Devia ir-se embora, pensou Jane. Ele não deveria querer que ela o visse naquele estado, nem mesmo antes de tudo se desmoronar entre eles. O macho que ela conhecia
e com quem tinha acasalado não deveria querer...
É difícil dizer o que é que chamou a atenção... e, mais tarde, ela tinha matutado na razão que o levara a escolher aquele momento exato em que ela se ia desmaterializar
para olhar para ela.
Ela ficou imediatamente incapacitada. Se ele tinha ficado irritado com o que acontecera com Payne, agora iria odiá-la. Não havia maneira de voltar atrás naquela
invasão de privacidade.
- O Butch telefonou-me - balbuciou ela. - Ele achou que tu...
- Ele magoou-me... O meu pai magoou-me.
As palavras eram tão fracas e gentis que quase não se ouviam. Mas quando conseguiu ouvir, o coração dela parou.
- Porquê? - perguntou Vishous. - Porque é que ele me fez isto? Porque é que a minha mãe me fez isto? Eu nunca pedi para nascer... e não os teria escolhido se qualquer
um deles me tivesse pedido a opinião... Porquê?
As suas faces estavam molhadas de lágrimas que lhe saltavam dos olhos de diamante, uma corrente interminável de que ele não tinha consciência, ou de que não queria
saber. E ela tinha a sensação de que a corrente demoraria a parar. Uma artéria interna tinha sido perfurada e este era o sangue do seu coração, correndo para fora
dele, cobrindo-o.
- Lamento muito - gorgolejou ela. - Não sei nenhum dos porquês... mas sei que não o merecias. E... que não tens culpa.
As mãos descobriram o sexo e ele fitou-o.
Passou muito tempo até ele falar outra vez e, quando o fez, as palavras eram lentas e ponderadas... e imparáveis, como as lágrimas silenciosas.
- Quem me dera estar completo. Quem me dera ter podido dar-te crianças se as quisesses e as pudesses gerar. Quem me dera ter-te dito que me matava pensares que eu
tinha estado com mais alguém. Quem me dera ter passado o ano anterior a acordar todas as noites e dizer-te que te amo. Quem me dera ter acasalado contigo como deve
ser na noite em que voltaste para mim vinda dos mortos. Quem me dera... - O olhar cintilante dele procurou o dela. - Quem me dera ter metade da força que tu tens
e quem me dera merecer-te. E... acho que é isto.
Pois. Certo. Agora estavam os dois desfeitos.
- Lamento o que aconteceu com Payne - disse ela, num tom rouco. - Eu queria falar contigo, mas ela estava decidida. Tentei argumentar, tentei mesmo, mas, no fim,
simplesmente... não queria... não queria que fosses tu a fazê-lo. Preferia ter vivido com a terrível verdade na consciência durante uma eternidade, a fazer com que
tivesses de matar a tua irmã. Ou levá-la a magoar-se ainda mais do que já estava.
- Eu sei... agora sei.
- E, honestamente, o facto de ela se ter curado? Dá-me arrepios só de pensar que quase falhámos.
- Está tudo bem, agora. Ela está bem.
Jane limpou os olhos.
- E acho que no que toca a... - Lançou uma olhadela para a parede, decorada com uma luz amarelada que não suavizava de maneira nenhuma os bicos afiados e as implicações
ainda mais cortantes do que poderia lá estar pendurado. - No que toca a... estas coisas... sobre os teus hábitos sexuais, eu sempre me preocupei com o facto de não
ser suficiente para ti.
- Porra... não... tu és tudo para mim.
Jane colocou a mão sobre a boca para não perder completamente o controlo. Porque era precisamente o que ela precisava de ouvir.
- Nem sequer tatuei o teu nome nas minhas costas - disse V. - Achei que era uma estupidez e uma perda de tempo... mas como é que podes sentir que somos companheiros
sem isso... especialmente quando todos os machos do complexo foram marcados para a sua shellan?
Meu deus, ela nunca tinha pensado nisso.
V abanou a cabeça.
- Deste-me espaço... para poder estar com o Butch e lutar com os meus irmãos e fazer as minhas cenas na Internet. O que é que eu te dei?
- Para começar, a minha clínica. Não a poderia ter construído sem ti.
- Não é exatamente um ramo de rosas.
- Não subestimes as tuas capacidades de carpinteiro.
Ele esboçou um sorriso ao ouvir isto. E depois ficou outra vez sério.
- Posso dizer-te uma coisa que pensei todas as vezes que acordei ao teu lado?
- Por favor, diz.
Vishous, aquele que tinha sempre uma resposta para tudo, parecia ter a língua presa. Mas finalmente disse:
- És a razão que me faz sair da cama todas as noites. E és a razão que me faz querer voltar para casa todas as madrugadas. Não é a guerra. Não são os Irmãos. Nem
sequer é o Butch. És... tu.
Oh, palavras tão simples... mas o seu significado. Deus do céu, o significado.
- Deixas que eu te abrace agora? - pediu ela curtamente.
O companheiro estendeu os braços enormes.
- E se for eu a abraçar-te?
Enquanto saltava para a frente e mergulhava nele, contrapôs:
- Não tens de ser tu ou eu.
Ficou completamente sólida sem qualquer esforço, a química interna mágica entre eles a materializá-la e mantê-la ali. E quando Vishous enterrou a cabeça nos seus
cabelos e estremeceu como se tivesse corrido uma grande distância e finalmente tivesse chegado a casa... ela soube exatamente como ele se sentia.
Com a shellan a arder contra ele, V sentia-se como se tivesse sido completamente desfeito... e depois remontado.
Cristo, o que Butch tinha feito por ele. Por todos eles.
O caminho que o chui escolhera tinha sido o correto. Horrífico e terrível... mas absolutamente certo. E agora, enquanto abraçava a sua fêmea, os olhos percorriam
o espaço onde tudo acontecera. Tinha sido tudo limpo... exceto uma ou outra coisa que estava fora do sítio no chão. Uma colher e um copo praticamente vazio de um
líquido que só podia ser água.
Tinha sido tudo uma ilusão. Nada o tinha de facto rasgado. E ele era capaz de apostar que Butch tinha deixado aquelas duas coisas centradas e à vista para quando
V acordasse e olhasse em volta perceber quais tinham sido os meios que tinham conduzido àquele fim.
Em retrospetiva, parecia tudo tão estúpido... não a sessão com o chui, mas o facto de V nunca ter realmente pensado no Derramador de Sangue todos esses anos no campo
de guerra. A última vez que essa memória do passado tinha surgido, fora quando Jane estivera com ele a primeira vez, e nessa altura só tinha acontecido porque ela
o tinha visto nu e ele tinha sentido necessidade de explicar.
O meu pai não queria que eu reproduzisse.
Era basicamente tudo o que ele tinha para dizer sobre o assunto. E depois, como um corpo morto que tivesse ficado com a cara para cima em águas paradas, essa merda
tinha-se afundado outra vez, instalando-se novamente na margem arenosa do rio no mais profundo do seu ser.
AJ, ou Antes de Jane, ele só tinha tido sexo com as calças vestidas. Não por vergonha - ou pelo menos isso era o que ele dizia a ele próprio - mas simplesmente porque
não estivera interessado em entrar nesses pormenores com os machos e fêmeas anónimos que tinha fodido.
DJ? Tinha sido diferente. A nudez era mais do que normal, provavelmente porque Jane tinha mantido a cabeça fria com a revelação. E contudo, quando pensava nisso
agora, tinha-a sempre abraçado a uma certa distância, mesmo que ela estivesse aninhada nos seus braços. Quanto muito, tinha estado mais próximo de Butch - mas isso
era macho-com-macho, o que era, de algum modo, menos ameaçador do que macho-com-fêmea.
A questão relacionava-se com as Sombras da Mamã, sem dúvida. Depois de tudo o que a mahmen tinha feito, ele simplesmente não conseguia confiar nas fêmeas como confiava
nos irmãos ou no melhor amigo.
Mas Jane nunca o tinha traído. Na verdade, ela estava disposta a lutar com a sua própria consciência para o salvar do ato indescritível que a irmã lhe exigia.
- Não és a minha mãe - disse para o cabelo da shellan.
- Podes ter a certeza que não. - Jane afastou-se e fitou-o como costumava fazer. - Eu nunca teria abandonado o meu filho. Ou tratado a minha filha daquela maneira.
V inspirou profundamente e, quando soltou o oxigénio para fora dos pulmões, sentiu-se como se estivesse a expelir os mitos pelos quais se autodefinira... e a Jane...
e ao relacionamento entre ambos.
Tinha de mudar de paradigma.
Por eles. Por si próprio. Por Butch.
Cristo, a expressão no rosto do chui quando as coisas tinham acontecido tinha sido para lá de trágica.
Por isso, sim, era altura de parar de utilizar merdas exteriores para automedicar as emoções. O sexo extremo e a dor tinham parecido soluções excelentes durante
muito tempo, mas, na verdade, não passavam de uma forma de cobrir as borbulhas. A fealdade tinha continuado dentro de si.
O que ele tinha de fazer era lidar com a merda interior, para não precisar que Butch ou qualquer outra pessoa o subjugasse só para ele poder libertar-se. Assim,
estas perversões poderiam ser mesmo só para ter prazer com Jane.
Controlar as suas merdas - parecia que ele estava finalmente preparado para tentar a versão psiquiátrica do Proactiv.
Se não tivesse cuidado, ainda acabava na televisão, fitando uma câmara e dizendo: «Tudo o que é preciso é um pouco de Autoconsciência... e depois purifico-me com
a Lavagem de Autodefinição patenteada e a minha mente e as minhas emoções ficam limpinhas e a brilhar...»
Ok, agora estava a ficar com parafusos a menos, a sério.
Acariciando o cabelo macio de Jane, murmurou:
- Sobre... as coisas que tenho aqui. Se quiseres brincar, eu também vou querer... se percebes o que quero dizer. Mas, a partir de agora, é só para nos divertirmos
e só para nós os dois.
Diabos, eles tinham tido uma grande quantidade de sexo bizarro e muito bom naquele sítio, cheio de cabedal, e ele continuava a querer ter isso com ela. Tinha esperança
que ela sentisse o mesmo...
- Eu gosto do que fazemos aqui. - Ela sorriu. - Excita-me.
Bem... e não é que isto fez o membro dele pulsar?
- Eu também.
Quando lhe sorriu de volta, reconheceu o único senão da ideia. Todo este virar-uma-nova-página estava muito bem, mas como é que ele ia fazer isso? Amanhã à noite
já não se podia dar ao luxo de acordar e ser aquele que passou das marcas.
Merda, ele achava que ia descobrir uma maneira. Não ia?
Com um toque gentil, acariciou a face da shellan.
- Nunca tive uma relação antes de estar contigo. Já devia imaginar que havíamos de bater contra uma parede em alguma altura.
- Faz parte da coisa.
Pensou nos irmãos e na quantidade de vezes em que tinha havido contratempos, lutas e discussões entre esse grupo de lutadores machões. De alguma forma, tinham sempre
dado a volta ao assunto, regra geral andando à pancada uns com os outros de vez em quando. O que era uma coisa de macho.
Claramente, ele e Jane seriam iguais. Não à pancada, claro, mas em relação aos obstáculos do caminho e à sua eventual resolução. Afinal de contas, a vida era aquilo...
não um conto de fadas.
- Mas sabes o que é melhor nisto tudo? - indagou Jane, enquanto lançava os braços à volta do seu pescoço.
- Já não sinto que morri por não estares na minha vida?
- Bem, isso também. - Esticou o pescoço e beijou-o. - Duas palavras: sexo de fazer as pazes.
Ohhhhhh, siiiiiiiim. Mas...
- Espera, isso são duas palavras? Alargaste a expressão?
- Alarguei na minha cabeça. Mas acho que tanto faz.
- Não será antes apenas «fazer as pazes»?
- Também é uma possibilidade. - Pausa. - Alguma vez te disse que és o geek mais sensual que já conheci?
- Revejo-me nesse comentário. - Mergulhou a cabeça e roçou a boca contra a dela. - Mas não digas a ninguém. Tenho uma reputação de durão para manter.
- O teu segredo está seguro comigo.
V ficou sério.
- Eu estou seguro contigo.
Jane afagou-lhe o rosto.
- Não posso prometer que não vás encontrar mais obstáculos no caminho, nem que vamos estar sempre de acordo. Mas tenho uma certeza... estarás sempre seguro comigo.
Sempre.
Vishous aproximou-a e encostou a cabeça no seu pescoço. Ele assumira que não havia mais nada para explorar depois de ela ter morrido e ter voltado para ele na sua
adorável forma fantasmagórica. Mas estava enganado. O amor, apercebeu-se, era como os punhais que criava na forja. Quando surgia um novo, era lustroso e a lâmina
cintilava à luz. Segurando-o na palma da mão, dava otimismo quanto ao desempenho em ação e mal podia esperar para o experimentar. Mas as primeiras duas noites eram
geralmente estranhas, enquanto se habituava a ele e ele a si.
Com o tempo, o aço perdia o brilho da novidade e o punho ficava manchado e às vezes talvez fosse necessário tirar-lhe merda de cima. Contudo, em troca, salva-te
a vida. Uma vez habituados um ao outro, torna-se parte de ti, como uma extensão do teu próprio braço. Protege-te e dá-te uma maneira de protegeres os irmãos. Dá-te
confiança e poder para enfrentares o que quer que surja na noite e, onde quer que vás, está contigo, junto ao teu coração, sempre ali quando precisas ele.
No entanto, tens de manter a lâmina afiada. E remendar o punho de vez em quando. E verificar o peso.
Engraçado... tudo isso era evidente quanto se tratava de armas. Porque é que não se tinha apercebido que era a mesma coisa com o acasalamento?
Revirando os olhos, pensou que talvez a Hallmark estivesse disposta a estabelecer uma linha de postais do Dia dos Namorados inspirada na medievalidade, uma coisa
do tipo Sacro-Gótico-Suave. Ele seria perfeitamente adequado para fornecer material.
Com os olhos fechados e abraçado a Jane, estava quase feliz por ter perdido a cabeça, só para poderem ter chegado àquele momento.
Bem, ele teria escolhido um caminho mais fácil, se houvesse. Mas não tinha a certeza de o resultado ter sido este. Era preciso merecer.
- Tenho uma pergunta para fazer - disse ele, gentilmente.
- O que quiseres.
Afastando-se um pouco, afagou-lhe o cabelo com a mão enluvada e passou algum tempo até se decidir a perguntar o que tinha na ponta da língua.
- Deixas-me... fazer amor contigo?
* * *
Enquanto Jane fitava Vishous e sentia o corpo dele contra o seu, soube que nunca o deixaria. Nunca. E também reconheceu que, se conseguiram sobreviver à última semana,
era porque era um bom casamento - acasalamento - e nada os poderia agora deter.
- Sim - respondeu ela. - Por favor...
O seu hellren tinha-a procurado tantas vezes desde que estavam juntos. De noite e de dia; no duche e na cama; vestidos, despidos, meio vestidos; depressa e com vigor...
Nele, a sensação de limite tinha sempre feito parte da excitação. Isso e a imprevisibilidade. Ela nunca sabia o que esperar. Se ele lhe ia exigir coisas ou controlar
o seu corpo ou controlar-se para ela poder fazer com ele o que quisesse.
Contudo, ele nunca ia devagar.
Agora, afagava-lhe o cabelo, percorrendo com os dedos os caracóis e prendendo-os atrás das orelhas. E, então, os olhares cruzaram-se e as bocas juntaram-se suavemente.
Afagando e acariciando, lambeu-lhe os lábios mas, quando ela os abriu, ele não mergulhou logo como era habitual. Continuou a beijar... até ela se sentir tonta com
o sugar e arrastar de carne contra carne.
O corpo dela costumava ansiar por isto. Agora, contudo, uma sensação deliciosa percorria-a, descontraindo-a e deixando-a à vontade, despertando uma excitação pacífica
que, de certa forma, era tão profunda e perturbadora como a paixão desesperada que habitualmente sentia.
Quando ele mudou de posição, ela acompanhou-o, deitando-se completamente de costas, enquanto ele se elevava e cobria o corpo dela com o dele. Continuaram a beijar-se
e ela estava tão compenetrada nesse beijo que nem se apercebeu quando ele deslizou a mão por baixo da camisa dela. A palma quente da sua mão foi subindo, parando-lhe
nos seios... explorando e acariciando. Sem provocar, sem beliscar, sem apertar. Só o polegar a passar para trás e para a frente pelo mamilo, até ela se arquear e
gemer.
As mãos dela exploraram-lhe as costas e - ó, meu Deus, lá estava o padrão de marcas que ela conhecia. E continuaram a explorar completamente o tronco dele...
Vishous segurou-lhe os pulsos e pressionou os braços dela contra a cama.
- Não penses nisso.
- O que é que ele...
- Shh.
Continuaram a beijar-se e ela tentou lutar contra ele, mas cada um dos impulsos para se soltar mergulharam suavemente o seu cérebro em sensações.
Não valia a pena pensar mais no assunto, disse a si própria. O que quer que tivesse acontecido tinha-os ajudado chegar ali.
Era tudo o que ela precisava de saber.
A voz de Vishous ecoou no seu ouvido, profunda, cava.
- Quero tirar-te a roupa. Posso?
- Por favor. Sim... ó meu Deus, sim.
Despi-la fazia parte do prazer, o meio tão glorioso como o fim, que os levaria a estar juntos pele-contra-pele. E, de alguma forma, a revelação gradual daquilo que
já vira tantas vezes fazia com que fosse novo e especial.
Os seus seios endureceram ainda mais quando o ar frio os envolveu e ela observou-o enquanto ele a fitava. Estava lá o desejo, mas também havia muito mais... reverência,
gratidão... uma vulnerabilidade que ela tinha pressentido, mas que nunca antes tinha visto claramente.
- És tudo aquilo de que preciso - afirmou ele enquanto mergulhava nela.
As suas mãos estavam em todo o lado, na barriga, nas ancas, entre as pernas.
No seu sexo molhado.
O orgasmo que ele lhe deu foi uma onda quente que trespassou todo o seu corpo, irradiando para fora, assumindo o controlo numa nuvem divina de prazer. E, entretanto,
ele montou-a e deslizou para dentro dela. Sem repelões, apenas a continuação da onda, dentro e fora dela, enquanto o seu corpo ondulava e a ereção dele entrava e
saía.
Sem pressas, apenas um amor tranquilo.
Sem urgência, apenas todo o tempo do mundo.
Quando ele finalmente se veio, com uma última ondulação da espinha e a pulsar no interior dela, ela acompanhou-o, os dois enrolados juntos um ao outro, fundidos,
corpo... e alma.
Fazendo-a girar, trouxe-a para cima dele e ela ali ficou, cravada no peito duro e musculado, lânguida como uma brisa de verão e igualmente leve. Ela estava a flutuar
e quente e...
- Estás bem? - perguntou Vishous ao olhar para ela.
- Mais do que bem. - Procurou o rosto dele. - Sinto-me como se tivesse feito amor contigo pela primeira vez.
- Ótimo - respondeu ele. - Era essa a ideia.
Deitando a cabeça junto ao coração pulsante dele, olhou para a parede por trás da mesa. Nunca pensou vir a ficar agradecida àquele monte de «brinquedos» aterradores,
mas estava. No meio da tempestade... tinham encontrado a tranquilidade.
Antes separados... eram agora outra vez um só.
Capítulo 41
Na mansão, Qhuinn andava às voltas no seu quarto como um rato à procura de uma saída da gaiola. Com tanta merda a acontecer e Wrath obrigava-o a ficar ali.
Mas que maravilha.
Ao passar mais uma vez pela porta aberta da casa de banho, pensou que o facto de a quarentena fazer todo o sentido ainda o chateava mais. Só ele, John e Xhex é que
não tinham sofrido ferimentos até agora. Todos os outros estavam naquela multidão e já tinham sido escortanhados de uma maneira ou de outra.
Por ali era a Casa del Toca-a-Curar.
Mas porra, eles os três podiam ter saído para se vingarem.
Parando em frente às portas da varanda, olhou para o jardim bem tratado que estava à beira de começar a florir. Com as luzes apagadas no quarto, conseguia ver claramente
a piscina com a cobertura de inverno esticada por cima assemelhando-se à cinta adelgaçante maior que o mundo alguma vez vira. E as árvores ainda estavam, na sua
grande maioria, nuas. E os canteiros não eram ainda...
Blay tinha sido ferido.
... mais do que retângulos ordenados de terra castanha-escura.
- Merda.
Esfregando o cabelo agora curto, tentou lidar com a pressão que sentia no centro do peito. Segundo John, Blay tinha sido atingido na cabeça e esfaqueado na barriga.
A pancada na cabeça estava a ser monitorizada e o corte tinha sido suturado pela Doc Jane. Nenhum dos ferimentos lhe punha em risco a vida.
Estava tudo bem.
O pior é que o seu esterno não estava a aceitar essa conversa fiada. Desde que John Matthew lhe contara as novidades, aquela maldita dor tinha-se instalado, moendo-o,
confortavelmente aninhada nas suas vias respiratórias.
Não conseguia, literalmente, respirar fundo.
Que merda, se ao menos fosse um macho maduro - e, tendo em conta a forma como às vezes resolvia as coisas, era contestável, se não mesmo incorreto, considerá-lo
como tal - iria para o corredor, marchava até ao quarto de Blay e batia-lhe à porta. Espreitava para se certificar de que o ruivo ainda tinha o coração a bater e
que estava bom da cabeça... e depois ia à sua vida.
Em vez disso, tentava fingir que não estava a pensar nele, enquanto fazia um buraco na carpete.
Enquanto pensava tudo isto, continuava a andar de um lado para o outro. Ele preferia estar na sala de musculação, mas o facto de Blaylock estar aqui nesta ala era
uma amarra que o mantinha preso nas redondezas. Sem uma razão suficientemente forte para se afastar, como sair para lutar ou... digamos... a casa estar a arder,
ele era evidentemente incapaz de se libertar.
E, quando estava outra vez à frente das portas de vidro, teve um indício do porquê.
Tentou convencer a palma da sua mão a não tocar no puxador.
Não foi bem-sucedido.
A fechadura abriu-se e o ar frio embateu-lhe violentamente no rosto. Saindo para a varanda descalço e de roupão, mal se apercebeu de que o chão estava absolutamente
gelado ou que uma brisa fria lhe subia pelas pernas e lhe atingia diretamente os testículos.
Lá em cima, saía luz das portas duplas do quarto de Blay. O que era uma boa notícia pois de certeza que correriam os cortinados antes de fazerem sexo.
Por isso, provavelmente era seguro espreitar. Certo...?
Além disso, Blay estava a recuperar de um ferimento, logo não podia andar às cambalhotas ali dentro.
Decidindo-se a assumir o papel de Qhuinn Espião, manteve-se nas sombras e tentou não se sentir como um mirone enquanto caminhava em bicos de pés. Quando se aproximou
da porta, preparou-se mentalmente, espreitou e...
Respirou fundo, aliviado.
Blay estava sozinho na cama, escarranchado contra a cabeceira, com o roupão preto atado na cintura, os tornozelos cruzados, os pés com meias pretas. Tinha os olhos
fechados e as mãos repousavam sobre a barriga, como se estivesse a ser cuidadoso com as partes ainda enroladas em ligadura.
Um movimento fez com que Blay abrisse as pálpebras e olhasse na direção oposta à janela. Era Layla a sair da casa de banho e estava a andar muito lentamente. Trocaram
algumas palavras. Estava a agradecer-lhe, sem dúvida, pela alimentação que acabara de receber e ela estava a dizer-lhe que o prazer era todo dela. Não era uma surpresa
que ela aqui estivesse. Já tinha feito a ronda da casa anteriormente e Qhuinn já se tinha cruzado com ela antes da primeira refeição... ou daquilo que teria sido
a primeira refeição se alguém tivesse aparecido.
E quando ela saiu do quarto de Blay, Qhuinn esperou que Saxton entrasse. Nu. Com uma rosa vermelha nos dentes. E uma maldita caixa de chocolates.
E uma ereção que fazia com que o Monumento a Washington parecesse atarracado.
Nada.
Apenas Blay deixando cair a cabeça para trás e as suas pálpebras a fecharem-se. Parecia completamente exausto e, pela primeira vez, velho. Aquele não era um rapaz
que acabara de fazer a transição. Aquele era um macho de raça pura.
Um incrivelmente belo... macho... de raça pura.
Na sua mente, Qhuinn viu-se a si próprio a abrir a porta e entrar. Blay olharia e sentar-se-ia na cama... mas Qhuinn faria um gesto para ele se voltar a deitar enquanto
entrava.
Perguntaria pelo ferimento. E Blay abria o roupão para lhe mostrar.
Qhuinn esticaria o braço e tocaria na ligadura... e depois deixaria os dedos saírem da gaze e do adesivo para a pele quente e suave da barriga de Blay. Este ficaria
chocado, mas nesta fantasia ele não afastaria a mão... Levá-la-ia mais abaixo, para lá do ferimento, em direção às ancas e...
- Foda-se!
Qhuinn deu um salto para trás, mas era tarde de mais. Saxton tinha entrado no quarto, ido até à janela e começado a fechar as cortinas. E enquanto o fazia, tinha
visto o idiota do lado de fora na varanda armado em câmara de segurança.
Enquanto Qhuinn dava meia volta para regressar rapidamente ao seu quarto, pensava Não abras a porta... não abras a porta...
- Qhuinn?
Caçado.
Imóvel como um ladrão apanhado com um ecrã de plasma debaixo do braço, certificou-se de que o roupão estava fechado antes de se virar. Merda. Saxton estava a entrar
na varanda e o sacana também estava de roupão.
Bem, aparentemente andavam todos de roupão. Até Layla estava de robe.
Quando Qhuinn encarou o primo, apercebeu-se de que não tinha trocado com ele mais de duas palavras desde que ele se mudara para cá.
- Só queria saber como ele estava. - Não valia a pena dizer o nome - era absolutamente óbvio quem é que ele estava a espiar.
- O Blaylock agora está a dormir.
- Alimentou-se? - perguntou, mesmo sabendo a resposta.
- Sim.
Saxton fechou a porta atrás de si, sem dúvida para o frio não entrar, e Qhuinn tentou ignorar o facto de ele ter os pés e os tornozelos nus à vista. Porque a probabilidade
era que o resto também estivesse.
- Ah, desculpa incomodar-te - balbuciou Qhuinn. - Tem uma boa n...
- Podias ter batido à porta. Do lado do corredor.
Disse as palavras com um tom aristocrático que fazia Qhuinn ficar completamente tenso. Não por odiar Saxton. Simplesmente fazia-o demasiado lembrar-se da família
que tinha perdido.
- Não queria incomodar-te. Incomodá-lo. Incomodar nenhum dos dois.
Quando uma rajada de vento atingiu a varanda, o cabelo louro inacreditavelmente firme e ondulado de Saxton nem sequer ficou um bocadinho desalinhado, como se cada
cabelo, até ao folículo, estivesse tão bem composto e cuidado que não era afetado por... nada.
- Qhuinn, não interrompias nada.
Mentiroso, pensou Qhuinn.
- Chegaste primeiro, primo - murmurou Saxton. - Se querias vê-lo, ou estar com ele, deixá-los-ia a sós.
Qhuinn pestanejou. Então... tinham uma relação aberta? Mas que raio?
Ou espera... talvez ele tivesse feito um bom trabalho a convencer não só Blay, mas também Saxton, de que não estava interessado em nada de sexual com o seu melhor
amigo.
- Primo, posso falar honestamente?
Qhuinn aclarou a garganta.
- Depende do que tenhas para dizer.
- Sou amante dele e...
- Epá... - Levantou a mão para o interromper. - Isso não é da minha conta.
- ... não sou o amor da vida dele.
Qhuinn pestanejou outra vez. E então, por um segundo, foi projetado para um local onde o primo lhe fazia graciosamente uma vénia e ele era tão bom como o filho da
puta. Só que havia uma falha enorme nesta fantasia. Blay já não queria nada com ele.
Ele próprio levara a esse resultado ao longo de muitos anos.
- Entendes o que te estou a dizer, primo? - Saxton manteve um tom de voz baixo, apesar de o vento estar a uivar e a porta estar fechada. - Estás a ouvir-me?
Ok, Qhuinn não tinha antecipado ser encostado contra essa parede naquela noite... ou em qualquer outra noite. Que merda, o seu corpo estava subitamente todo a pulsar
e ele quase tinha vontade de dizer ao primo para dar de frosques e ir dar banho ao cão ou qualquer coisa do género, ou melhor ainda, para desaparecer de vez.
Só que então pensou na aparência envelhecida de Blay. Ele tinha finalmente encontrado um caminho na vida e seria um crime injusto deitar tudo isso a perder ali no
escuro.
Qhuinn abanou a cabeça.
- Não está certo.
Não para Blay.
- És um palerma.
- Não. Mas costumava ser.
- Permite-me discordar. - A mão elegante de Saxton juntou mais as lapelas do roupão. - Se me dás licença, é melhor voltar para dentro. Está muito frio aqui fora.
Bem, era mesmo uma metáfora do caraças.
- Não lhe digas nada - pediu Qhuinn secamente. - Por favor.
Saxton semicerrou os olhos.
- O teu segredo está mais do que seguro comigo. Confia em mim.
E, dizendo isto, virou-se e voltou para o quarto de Blaylock, fechando a porta no trinco e tapando a luz ao fechar os pesados cortinados.
Qhuinn coçou a cabeça outra vez.
Parte dele queria entrar por ali dentro e dizer, Mudei de ideias, primo: agora põe-te a andar daqui para fora para eu poder...
Dizer a Blay o que tinha dito a Layla.
Mas era bem possível que Blay estivesse apaixonado por Saxton, e Deus sabia que Qhuinn já tinha fodido o seu melhor amigo demasiadas vezes.
Ou não, como era o caso.
Quando eventualmente regressou ao quarto, só porque era demasiado patético estar ali fora a fitar a porcaria das cortinas, apercebeu-se de que a sua vida girava
sempre em torno de si próprio. Do que ele queria. Precisava. Tinha de ter.
O antigo Qhuinn teria entrado por aquele buraco...
Detendo-se, tentou não terminar aquela frase demasiado literalmente.
A verdade era que o ditado ridículo e lamechas estava certo: quando se ama alguém, libertamo-lo.
Já no quarto, sentou-se na cama. Olhando em volta, viu a mobília que não tinha comprado... e decorações fabulosas, mas anónimas e nada ao seu estilo. A única coisa
que lhe pertencia eram as roupas no armário, a lâmina na casa de banho e os ténis de corrida que atirara para o chão quando chegara.
Era tal e qual como em casa dos pais.
Bem, ali, verdade fosse dita, as pessoas valorizavam-no. Mas no que tocava a ter uma vida, não tinha uma realmente sua. Era o protetor de John. O soldado da Irmandade.
E...
Merda, agora que já não se abandonava ao seu vício de sexo, a lista acabava aí.
Encostando-se à cabeceira, cruzou os pés e ajeitou o roupão. A noite estendia-se com um tédio horrível onde nada acontecia, como se ele estivesse a conduzir e conduzir
e conduzir ao longo do deserto... e pela frente esperavam-no mais noites como aquela.
Meses todos iguais.
Anos.
Pensou em Layla e no conselho que lhe tinha dado. Porra, estavam os dois exatamente na mesma posição, não estavam?
Fechando os olhos, ficou aliviado quando a sua mente começou a vaguear. Mas teve a sensação de que a paz encontrada não duraria muito.
E estava certo.
Capítulo 42
No Hospital Equino de Tricounty, Manny ficou parado enquanto Glory lhe cabeceava a roupa, e ele sabia que talvez a devesse deixar. Descobriu, contudo, que era incapaz
de se separar, e a Payne também, do cavalo.
O tempo esgotava-se para a sua Glory e isso era como se o matassem. Mas não a podia deixar a definhar, mais magra e aleijada a cada dia que passava. Merecia muito
mais do que isso.
- Ama-la - comentou Payne, em voz baixa, com a mão pálida a percorrer as costas da puro-sangue e a descer-lhe até à anca.
- Pois. É verdade.
- Ela tem muita sorte.
Não. Estava a morrer e isso era uma maldição.
Pigarreou.
- Acho que temos de...
- Doutor Manello?
Manny chegou-se atrás e olhou sobre a porta da baia.
- Olá, doutor. Como está?
O veterinário se aproximou e o smoking que usava parecia tão deslocado como uma forquilha num camarote da ópera.
- Estou bem... e você parece muito bem. - O homem endireitou o laço. - Estou com este fatinho porque venho do Met. Mas tinha de aqui passar para ver como estava
a sua menina.
Manny saiu e ofereceu-lhe a mão.
- Eu também.
Ao apertarem as mãos, o veterinário olhou para o interior da baia - e ficou de olhos arregalados quando viu Payne.
- Ah... olá.
Quando Payne ofereceu ao homem o esboço de um sorriso, o bom doutor pestanejou como se o sol tivesse rasgado as nuvens, brindando-o com o seu brilho.
Ceeeeeerto, Manny estava mais do que farto de ter sacanas a mirarem-na assim.
Interpondo-se, perguntou:
- Será que a podemos pôr em alguma suspensão? Para lhe aliviar a pressão?
- Prendemo-la umas horas por dia. - Enquanto respondia, o veterinário chegou-se para o lado até que Manny se viu obrigado a segui-lo com o tronco para lhe bloquear
a visão. - Não quero correr o risco de termos problemas gastrointestinais ou respiratórios.
Farto da inclinação e querendo poupar Payne ao rumo da conversa, Manny segurou o braço do homem e chegou-o para o lado.
- Qual o próximo passo?
O veterinário esfregou os olhos, como se desse à mente um instante para se ordenar.
- Sinceramente, doutor Manello, não tenho um bom pressentimento quanto ao ponto em que nos encontramos. Aquele outro casco está a ceder, e mesmo tendo feito todos
os possíveis para o tratar, ele não está a reagir.
- Tem de haver mais qualquer coisa.
- Sinto muito, a sério.
- Quanto tempo até termos a certeza...
- Já a tenho. - O olhar do homem estava absolutamente carregado. - Foi por isso que cá vim esta noite... estava à espera de um milagre.
Pois, já eram dois.
- E se ficasse um bocado com ela - aventou o veterinário. - Demore o tempo que quiser.
Que era jargão clínico para Despeça-se.
O veterinário levou brevemente a mão ao ombro de Manny, depois virou-se e afastou-se. De saída olhou para cada baia, confirmando os pacientes e afagando um focinho
ocasional.
Um bom homem. Um indivíduo meticuloso.
Do tipo que faria tudo o que pudesse antes de apresentar o cenário com a pior das hipóteses.
Manny respirou fundo e tentou convencer-se de que Glory não era um animal de estimação. As pessoas não tinham cavalos de corrida como animais de estimação. E ela
merecia mais do que sofrer numa baia acanhada até que ele reunisse coragem suficiente para fazer o que tinha de ser feito.
Levando a mão ao peito, esfregou a cruz que tinha por baixo da roupa e sentiu um impulso súbito de ir à igreja...
Começou apenas por reparar que as sombras estavam a ficar mais escuras na parede do outro lado do corredor. E depois pensou que talvez alguém tivesse acendido as
luzes do teto.
Acabou por notar que a iluminação vinha da baia de Glory.
Mas... o que...
Deu meia volta e estacou... e depois teve de recuperar o equilíbrio.
Payne estava de joelhos na serradura macia, as mãos nas patas anteriores do cavalo, os olhos fechados, as sobrancelhas franzidas.
E o corpo brilhava-lhe com uma luz forte e bela.
Acima dela, Glory estava imóvel, mas a pelagem estremecia e os olhos reviravam-se-lhe na cabeça. Breves resfôlegos subiam-lhe pelo pescoço comprido e saíam-lhe pelas
narinas dilatadas... como se dominada por uma sensação de alívio, de dor a amainar.
As patas anteriores feridas brilhavam ao de leve.
Manny não se mexeu, não respirou, nem sequer pestanejou. Limitou-se a agarrar a cruz ainda com mais força... e a rezar para que ninguém viesse interromper aquilo.
Não teve noção de quanto tempo ali ficaram os três, mas acabou por se tornar óbvio que Payne estava a ressentir-se do esforço. O corpo começou a vibrar e a respiração
dela tornou-se irregular.
Manny entrou na baia e libertou-a de Glory, segurando-lhe o corpo frouxo contra o seu e afastando-se, para o caso de a égua se assustar ou fazer algo imprevisível.
- Payne? - Cristo...
As pálpebras dela estremeceram e abriram-se.
- Consegui... ajudá-la?
Manny afagou-lhe o cabelo enquanto olhava a poldra. Glory estava de pé, a erguer um casco e depois o outro, regressando depois ao primeiro, como se tentasse perceber
o que provocara o conforto abrupto. Depois abanou-se... e foi mordiscar o feno onde ainda não tocara.
Quando o maravilhoso som de erva seca a ser roída preencheu o silêncio, Manny olhou para Payne.
- Conseguiste - disse-lhe, num tom rouco. - Acho que conseguiste.
Os olhos dela pareceram esforçar-se por se focar.
- Não queria que a perdesses.
Assoberbado por uma gratidão para a qual não tinha palavras, Manny abraçou-a mais junto ao peito e aí a manteve durante alguns instantes. Queria continuar assim
muito mais tempo, mas ela não estava com bom aspeto e só Deus sabia quem mais se teria apercebido do espetáculo de luzes. Tinha de os tirar dali.
- Vamos até minha casa - sugeriu. - Para te poderes deitar.
Quando ela assentiu, Manny içou-a nos braços e raios o partissem se não era uma sensação perfeita. Ao fechar a baia atrás deles, olhou para Glory. O cavalo devorava
o feno como se fosse acabar o mundo.
Santa mãe... teria mesmo resultado?
- Volto amanhã - disse-lhe, antes de se afastar, animado por uma sensação incandescente de esperança.
Junto à casita do guarda, sorriu e encolheu os ombros ao segurança.
- Houve alguém a fazer turnos duplos no hospital. Está exausta.
O homem levantou-se da cadeira, como se a mera presença de Payne, mesmo inconsciente, chegasse para lhe prender a atenção.
- É melhor levá-la para casa. É preciso cuidar bem de uma mulher dessas.
Grande verdade.
- É para lá que eu vou.
Movendo-se rapidamente, chegou à receção e esperou pelo sinal do trinco para que pudesse abrir as derradeiras portas. Com um pouco de sorte, o veterinário não teria
visto nada...
- Obrigado, meu Deus - resmungou Manny ao ouvir o zumbido e aplicar a anca contra a porta.
Não demorou a chegar ao carro, embora tirar as chaves enquanto mantinha Payne ao colo tivesse sido complicado. O mesmo se passou ao abrir a porta. Mas depois lá
a sentou no banco do pendura, sempre a interrogar-se se ela estaria bem. Que raios, não tinha como entrar em contacto com ninguém do mundo dela.
Ao contornar o carro e sentar-se ao volante pensou, Que se dane, ia levá-la de volta aos vampiros...
- Posso pedir-te uma coisa? - disse ela, num tom arrastado.
- Tudo... o que...
- Posso beber-te um pouco da veia? Sinto-me... curiosamente esvaída.
Está bem, certo. Isso era uma necessidade imediata. Trancou o carro e praticamente arrancou o braço para lho dar.
Os lábios macios encontraram o interior do pulso, mas a mordida não foi rápida, quase como se ela tivesse dificuldade em reunir energias. Mesmo assim, ela lá o conseguiu
e ele saltou, com a dor aguda a trespassar-lhe o coração e a deixá-lo um pouco zonzo. Ou... talvez isso fosse o resultado de uma excitação súbita e avassaladora
que lhe percorreu não só desde os testículos ao membro, mas todo o corpo.
Com um gemido, as ancas reviraram-se-lhe no banco do Porsche e deixou a cabeça pender para trás. Cristo, era bom... o ritmo de sucção que ela iniciou era quase como
se estivesse na sua ereção, e mesmo que lhe tenha doído o início, apenas sentia o sugar como um prazer, um prazer doce pelo qual ele tinha a certeza não se importar
de morrer.
Mergulhou num estado de idílio. Pareceu-lhe estar séculos com as presas dela na sua carne. O tempo perdia o significado, tal como a realidade de se encontrarem num
parque de estacionamento, num carro com vidros transparentes.
Que se danasse o mundo.
Só eles os dois, juntos, importavam.
E isso foi antes de aqueles olhos de diamante se terem aberto e ficado nele, olhando-lhe não para o rosto, mas para o pescoço.
Vampira... pensou. Bela vampira.
Minha.
Enquanto essa ideia ganhava força na sua mente, Manny agia sem grande consciência, meneando a cabeça e oferecendo-lhe a jugular...
Não precisou de pedir duas vezes. Payne praticamente lançou-se a ele, com a mão a mergulhar-lhe no cabelo e a prender-lhe a nuca. Agarrando-o, Manny ficou imobilizado,
à mercê dela... a presa do predador que ela era. E agora que o tinha, moveu-se lentamente, com as presas a baixar-lhe até à pele e a percorrerem-lhe a altura do
pescoço, deixando-o hirto com a antecipação da perfuração e da sucção...
- Hummm! - bradou ele quando a vampira o mordeu. - Ah... sim...
As mãos dele agarraram-lhe os ombros, aproximando-a ainda mais.
- Leva tudo... leva... ai, meu Deus... ah, merda...
Algo afagou-lhe o membro. Como sabia exatamente onde tinha as mãos, só podia ser ela. Movendo-se num acesso de sofreguidão, deu-lhe tanto espaço quanto possível
para que ela se mexesse... e Payne assim fez, subindo e descendo contra a ereção tensa, com as ancas dele a ajudarem, indo no movimento contrário às carícias.
Manny arquejava e não conseguia parar de gemer. Não demorou muito para que os testículos ficassem dormentes e a ponta do membro se retesasse contra a pressão crescente.
- Estou quase a vir-me - sussurrou. - É melhor parares se não quiseres que eu...
Com essas palavras, Payne violou o cimo das calças e procurou no interior...
Manny viu a porra das estrelas. Assim que a pele dela tocou na sua, ele atingiu um orgasmo como nunca, a cabeça a saltar para trás com força, as mãos a cravarem-se
nos ombros dela, as ancas tresloucadas, aos saltos. E ela não parou de sugar, nem de bombear. Assim, tal como antes, ele acompanhou os movimentos com a libertação,
com o prazer mais intenso a cada espasmo da ereção.
Acabou demasiado depressa.
Claro que aquilo poderia ter continuado durante uma década e mesmo assim ficaria esfomeado por mais.
Quando Payne o libertou, ela recostou-se e lambeu as pontas aguçadas das presas, a língua rosada em contraste com o branco. Caramba... aquele brilho maravilhoso
voltara a surgir-lhe por baixo da pele, fazendo-a parecer um sonho.
Ah, espera, era isso que ela era, certo?
- O teu sangue é forte - comentou Payne num tom rouco, enquanto voltava a aproximar-se e lhe lambia o pescoço. - Tão forte.
- É? - resmungou ele. Mas nem tinha a certeza de ter falado. Talvez apenas o tivesse pensado.
- Sinto o poder a percorrer-me.
Nunca se interessara por SUV - essas tretas eram demasiado volumosas e conduzi-las era como pedregulhos a caírem montanha abaixo - mas o que não daria naquele momento
por um banco traseiro onde coubesse mais do que os tacos de golfe. Queria deitá-la e...
- Quero mais de ti - murmurou Payne enquanto o esfregava com o nariz.
Que raios, continuava duro como pedra, mesmo tendo acabado de...
- Quero-te na minha boca.
A cabeça de Manny atirou-se para trás e ele gemeu, com o membro a latejar como se aquilo lá em baixo estivesse a meio de uma corrida. Mas por mais que a quisesse,
não sabia se ela tinha noção daquilo em que se estaria a meter. O simples facto de pensar nos lábios dela no seu...
Antes de ter fôlego para falar já a cabeça de Payne se tinha baixado até ao colo dele, e não houve preâmbulo, sugou-o até ao fundo, mantendo-o no interior da sua
boca quente e húmida.
- Porra! Payne!
Levou-lhe as mãos aos ombros, decidido a puxá-la para trás... mas ela não estava disposta a isso. Sem quaisquer indicações sabia exatamente o que fazer, subindo
e sugando-o, antes de lhe lamber a parte debaixo da haste. E depois explorou-o com uma meticulosidade que lhe mostrou que ela estava a gostar tanto quanto ele, e
isso ainda o excitava mais.
Mas então sentiu-lhe a presas a brincarem-lhe com a cabeça.
Puxou-a para cima de imediato, prendendo-lhe a boca num beijo intenso enquanto lhe segurava o rosto e se libertava nas mãos dela. Mas isso não durou. Payne soltou-se
das mãos dele e regressou ao ponto de partida, apanhando-o a meio do orgasmo e absorvendo aquilo que o corpo dele parecia ter a rodos para ela.
Quando os espasmos terminaram, ela ergueu-se, olhou-o... e lambeu lentamente os lábios.
Manny teve então de fechar os olhos, com a ereção a latejar de tal maneira que lhe doía.
- Agora vais levar-me a tua casa - disse ela.
Não era um pedido. E o tom sugeria que ela estaria a pensar exatamente no mesmo que ele.
Portanto, isso levaria apenas a uma coisa.
Manny compôs-se interiormente e depois abriu os olhos. Ergueu a mão, tocando-lhe no rosto, e acariciou-lhe o lábio inferior com o polegar.
- Não sei se devemos, bambina - admitiu.
A mão dela apertou-lhe o membro e ele gemeu.
- Manuel... acho que é exatamente aí que temos de estar.
- Não é... uma boa ideia.
Payne recuou ainda mais e retirou a mão, com o brilho a desvanecer-se.
- Mas estás excitado. Neste momento.
A sério?
- É mesmo por isso. - Percorreu-lhe o rosto com os olhos e depois desceu-lhe até aos seios. Estava tão desesperado por ela que se sentia tentado a rasgar-lhe as
calças e a tomar-lhe a virgindade naquele carro. - Não vou conseguir conter-me, Payne. Mal o estou a fazer neste momento...
Payne ronronou de satisfação e voltou a humedecer os lábios vermelhos.
- Gosto quando te descontrolas.
Cristo, isso não ajudava nada.
- Eu... - Abanou a cabeça, pensando que era um inferno absoluto. Estar a negar isso a ambos causava-lhe uma dor profunda. - Acho que tens de fazer o que precisas
e ires-te embora. Enquanto ainda te consigo deixar ir...
O som de batidas no vidro começou por não fazer grande sentido. Estavam só os dois naquele parque de estacionamento vazio. Mas depois, o mistério solucionou-se:
- Sai do carro. E passa-me as tuas coisas.
A voz masculina fez Manny virar a cabeça para o vidro... onde encarou o cano de uma arma.
- Tu ouviste, meu. Para fora do carro ou dou-te um tiro.
Enquanto Manny devolvia Payne ao seu lugar, afastando-a de um disparo à queima-roupa, disse-lhe baixinho:
- Quando eu sair, tranca as portas. É aqui.
Levou a mão ao tabliê e indicou o botão.
- Deixa-me tratar disto. - Tinha cerca de quatrocentos dólares em dinheiro na carteira e bastantes cartões de crédito. - Fica aqui dentro.
- Manuel...
Não lhe deu hipótese de responder. Para ele, aquela arma era dona de todas as respostas e estabelecia as regras.
Pegando na carteira, demorou-se a abrir a porta, mas saiu rapidamente e ficou à espera de ouvir o fecho automático das portas.
E continuou à espera.
Desesperado por ouvir Payne a ficar tão segura quanto possível, mal se apercebeu do tipo da máscara de esqui a bradar:
- A tua carteira. E diz à gaja para sair do carro.
- Estão quatrocentos...
A carteira desapareceu.
- Diz-lhe para sair ou então vai comigo. E o relógio. Quero o relógio.
Manny olhou para o edifício. Havia janelas um pouco por todo o lado e, de certeza, que o guarda sairia ocasionalmente para verificar os arredores.
Talvez se atrasasse a entrega...
O cano da pistola foi-lhe encostado ao rosto.
- Relógio. Já.
Não era o relógio bom. Pelo amor de Deus, nunca operava com o Piaget posto. Mas fosse como fosse, o idiota podia ficar com ele. Além disso, enquanto fingia que lhe
tremiam as mãos, imaginou que isso lhe fosse dar mais...
Foi difícil perceber o que aconteceu e por que ordem.
Em retrospetiva, sabia que Payne teria de ter começado por abrir a porta dela. Mas pareceu-lhe que assim que ouviu o som terrível do lado do passageiro ela estava
já atrás do ladrão.
Outra coisa bizarra foi o facto de só depois de Manny ter praguejado é que o desgraçado pareceu aperceber-se de um terceiro elemento a entrar em campo. Mas não podia
ter sido assim, ele tê-la-ia visto a contornar o carro, certo?
Bem, fosse o que fosse que tivesse acontecido, o Máscara de Esqui acabou a saltar para a esquerda e a apontar a pistola alternadamente para Payne e para Manny.
O jogo de pingue-pongue não ia durar muito. Seguindo uma lógica terrível, Manny sabia que o tipo ia disparar contra Payne, pois ela era a mais fraca dos...
Quando o cano da arma voltou a apontar para ela, Payne... desapareceu. E não por se ter baixado, desviado, ou saído dali a correr. Ela estava ali, a ocupar espaço
num momento... e desaparecida no seguinte.
Voltou a aparecer uma fração de segundo depois e agarrou o punho do homem quando ele fazia menção de apontar a arma a Manny. Desarmá-lo foi igualmente rápido: um,
virou a arma; dois, arrancou-a da mão do filho da puta; três, atirou-a a Manny, que a apanhou.
E depois foi altura de porrada.
Payne girou o tipo, segurou-lhe a parte de trás da cabeça e bateu-lhe com o rosto no capô do Porsche. Depois de ter polido a pintura com a matraca do desgraçado,
reposicionou-o e agarrou nas calças largas do filho da mãe. Erguendo-o pelo cabelo e pelo cós das calças, ou então pelo reto, tomou balanço e atirou-o... a cerca
de dez metros.
Nem o super-homem voava assim tão bem e o ladrão foi bater na parede com a testa. O edifício não lhe deu grande resposta e, vejam só, ele também não. Aterrou de
cara num canteiro de flores e aí ficou, com os membros a ficarem desfalecidos.
Sem se contorcer. Sem gemer. Sem tentar levantar-se.
- Estás bem, Manuel?
Manny virou lentamente a cabeça na direção de Payne. Ela nem sequer estava ofegante.
- Jesus... Cristo... - murmurou ele.
Enquanto as palavras de Manuel se perderam com a brisa, Payne ocupou-se com o top e as calças largas. Depois alisou o cabelo. Parecia a única coisa que poderia fazer
pela sua aparência após a cena de violência.
Um desperdício de esforço, tentar feminizar-se. Entretanto, Manuel continuava a fitá-la.
- Não dizes mais nada? - perguntou ela em voz baixa.
- Ah... - Manuel levou a mão livre à cabeça. - Pois... deixa-me ver se ele está vivo.
Payne envolveu-se com os braços enquanto se aproximava do humano. A bem da verdade, não se preocupava com o estado em que pudesse ter deixado o assaltante. A sua
prioridade fora afastar a arma mortífera de Manuel e fora bem-sucedida na tarefa. O que acontecesse ao ladrão era irrelevante... mas era óbvio que ela não conhecia
as regras daquele mundo. Nem sabia quais as implicações do que fizera.
Manuel estava a meio caminho sobre a relva quando a «vítima» se virou com um gemido. As mãos que tinham segurado a arma dirigiram-se à máscara que lhe cobria o rosto
e empurraram a malha até à testa.
Manuel ajoelhou-se.
- Sou médico. Quantos dedos tenho levantados?
- O quê...?
- Quantos dedos?
- ...três...
Manuel pousou a mão no ombro do indivíduo.
- Não te levantes. Foi uma pancada tremenda na cabeça. Sentes formigueiro ou dormência nas pernas?
- Não. - O homem fitou Manuel. - Porque é que... estás a fazer isto?
Manuel minimizou a questão.
- Chama-se faculdade de medicina... cria a necessidade compulsiva de tratar dos doentes e dos feridos, independentemente das circunstâncias. Acho que temos de chamar
uma ambulância...
- Nem pensar!
Payne materializou-se junto deles. Compreendia as boas intenções de Manuel, mas receava que o ladrão tivesse outra arma com ele...
Assim que surgiu atrás de Manuel, o homem no chão encolheu-se em terror, erguendo os braços e tentando recuar.
Manny olhou sobre o ombro e foi quando ela percebeu que Manuel não era ingénuo. Tinha a arma apontada ao homem.
- Está tudo bem, bambina. Tenho-o...
Atabalhoadamente, o ladrão levantou-se e Manuel seguiu-o com o cano enquanto o humano cambaleava e se equilibrava contra o edifício. Era óbvio que estava a preparar-se
para correr.
- Ficamos com a arma - indicou Manuel. - Compreendes, não? E não preciso de te dizer que tens sorte em estar vivo... não se provoca a minha namorada.
Quando o humano se perdeu entre as sombras, Manuel levantou-se.
- Tenho de entregar esta arma à polícia.
Depois limitou-se a olhar para ela.
- Não há problema, Manuel. Posso tratar da minha presença com o guarda, para que nada se fique a saber. Faz o que tens a fazer.
Aquiescendo, ele pegou num pequeno aparelho de telefone, abriu-o e pressionou alguns botões. Levando-o ao ouvido, disse:
- Sim, chamo-me Manuel Manello e fui ameaçado com uma arma enquanto me encontrava no meu veículo. Estou no Hospital Tricounty...
Enquanto Manuel falava, ela olhou em volta, pensando que não queria que as coisas acabassem assim. Mas...
- Tenho de ir - disse-lhe, quando Manuel desligou. - Não posso... estar aqui se houver mais humanos. Vai complicar as coisas.
O telefone baixou lentamente para o lado do corpo.
- Pois... está bem. - Franziu o sobrolho. - Ah, olha... se a polícia está a chegar, tenho de me lembrar do que aconteceu, se não... bolas, tenho uma arma na mão
sem um motivo que lhes apresente.
Com efeito, pareciam estar encurralados. E, desta vez, sentia-se grata por uma prisão.
- Quero que te lembres de mim - disse baixinho.
- O plano não era esse.
- Eu sei.
Manuel abanou a cabeça.
- És a peça mais importante no meio de tudo isto. Por isso tens de te proteger e isso significa apagares-me a...
- Doutor Manello! Doutor Manello... o senhor está bem?
Payne olhou sobre o ombro. O primeiro macho humano que tinham visto à secretária corria pelo relvado, num estado de pânico.
- Fá-lo - insistiu Manuel. - E eu depois penso em alguma coisa...
Quando o guarda apressado chegou junto deles, Payne encarou o recém-chegado.
- Estava a fazer a ronda - explicou o homem -, e quando confirmava os gabinetes no outro lado do edifício vi-os pela janela... Corri o mais que pude!
- Estamos bem - garantiu ela ao guarda. - Mas importava-se de olhar para uma coisa?
- É claro! A polícia já foi chamada?
- Sim. - Tocou com o dedo por baixo do olho direito. - Olhe para mim, por favor.
Já estava fito no rosto dela, e a dose adicional de concentração facilitou-lhe o trabalho. Só precisou de abrir caminho pelo cérebro do homem e cobrir mentalmente
tudo o que se relacionava com ela.
Para o humano, o cirurgião chegara e partira sozinho.
Manteve o homem em transe e dirigiu-se a Manuel.
- Não tens de te preocupar. As recordações dele são de curto prazo, por isso ele vai ficar bem.
Ao longe ouviu-se um uivo agudo e urgente.
- É a polícia - indicou Manuel.
- Nesse caso vou partir.
- Como voltas a casa?
- Da mesma forma que saí do teu carro.
Esperou que ele lhe estendesse a mão... ou dissesse alguma coisa... ou... Mas ele limitou-se a ficar ali, com o ar frio e silencioso da noite entre eles.
- Vais mentir-lhes? - perguntou ele. - E dizer-lhes que me apagaste?
- Não sei.
- Bem, se precisares de voltar para o fazer, eu estou...
- Boa noite, Manuel. Por favor, fica bem.
Com essas palavras, ela levantou a mão e silenciosa e inexoravelmente, desapareceu.
Capítulo 43
No que dizia respeito a truques, este era verdadeiramente estranho.
- Então, onde é que está o teu amigo?
Karrie Ravisc, também conhecida nas ruas como Kandy, era uma puta a sério há cerca de nove meses e, por isso, já tinha visto muita merda. Mas aquilo...
O homem enorme à porta do quarto do motel falou suavemente.
- Vem aí.
Karrie deu outra passa no cigarro e pensou, Bem, pelo menos o que estava à sua frente era uma brasa. E também lhe tinha pago quinhentos e arranjado aquele quarto.
Ainda assim... havia qualquer coisa ali que não batia certo.
Pronúncia estranha. Olhos estranhos. Ideias estranhas.
Mas uma verdadeira brasa.
Enquanto esperavam, ela deitou-se em silêncio, nua na cama com todas as luzes apagadas. No entanto, não estava completamente escuro. Aquele fulano com a carteira
recheada tinha colocado uma enorme lanterna que parecia um caixote do outro lado do quarto, por cima do armário barato. O feixe de luz apontava-lhe para o corpo.
Como se ela estivesse num palco. Ou talvez como se fosse uma obra de arte.
O que não era tão estranho como alguma das coisas que já fizera. Merda, se a prostituição não te levasse a ver os homens como sacanas maldosos e doentios, nada mais
o faria. Além dos adúlteros do costume e dos que gostavam de sentir o poder, havia os fodilhões com fetiches por pés, os que gostavam que lhes batessem e outros
que gostavam que lhes mijassem em cima.
Terminando o seu White Owl, apagou a beata e pensou que aquela coisa do holofote talvez até nem fosse má ideia. Um parvalhão qualquer tinha querido comer hambúrgueres
em cima dela há duas semanas e isso tinha sido uma nojeira...
O som da fechadura fê-la dar um salto e ela percebeu que alguém tinha entrado sem dar conta. Era o som da porta a ser trancada. Por dentro.
E estava agora um segundo homem junto ao primeiro.
Ainda bem que o seu chulo estava mesmo na porta ao lado.
- Boa noite - disse ela, enquanto se estendia mecanicamente para ambos. Os seios eram falsos, mas eram uma boa imitação e a barriga era lisa, mesmo depois de ter
tido um filho, e não só estava sem pelos, como fizera depilação a laser.
Por todas estas razões ela cobrava o que cobrava.
Homem... mais um enorme, pensou ela, enquanto o segundo se aproximou e parou aos pés da cama. Na realidade, aquele cabrão era enorme. Um verdadeiro mamute. E não
por ser gordo e descuidado. Os seus ombros eram tão perfeitos que pareciam ter sido desenhados com uma régua e esquadro e, juntamente com as suas ancas estreitas,
o peito formava um triângulo perfeito. Não lhe conseguia ver o rosto, por causa da luz que vinha de trás dele, mas não tinha importância. O primeiro bacano esticou-se
na cama ao lado dela.
Merda... de repente percebeu que estava excitada. Era o tamanho deles e o perigo do escuro e dos aromas. Jesus... tinham um cheiro fantástico.
- Vira-te ao contrário - exigiu o segundo.
Meu deus, aquela voz. A mesma pronúncia estrangeira do outro que tinha preparado tudo, mas mais grave e com um toque autoritário.
- Queres mesmo ver o meu cu? - gorgolejou ela, enquanto se sentava. Passando as mãos pelos seios, levantou-os e apertou-os. - Porque a minha parte da frente é ainda
melhor.
Ao dizer isto, empurrou um seio para cima e esticou a língua para baixo, lambendo o seu próprio mamilo, enquanto olhava para um homem e para o outro sem parar.
- Vira-te para baixo.
Ok, obviamente, aquilo era uma ordem de prioridade. O homem deitado ao lado dela estava com uma tremenda ereção, mas não se mexia. E o Sr. Faz-Já era o único que
falava.
- Se é assim que queres.
Tirando as almofadas da cama, ela virou-se dando espetáculo, torcendo o tronco para que um dos peitos ainda estivesse à vista. Com a unha pintada de preto, desenhou
um círculo à volta do mamilo, enquanto arqueava as costas para baixo e espetava o traseiro para cima...
Um rugido discreto agitou o ar estagnado e tranquilo do quarto e isso foi uma indicação para ela. Abrindo as pernas, empinou as nádegas, com os dedos dos pés espetados
e arqueando novamente a espinha.
Sabia perfeitamente o que estava a mostrar aos pés da cama... e o rugido dele disse-lhe que estava a gostar do que via. Portanto, estava na altura de ir mais longe.
Olhando para ele, colocou o dedo médio na boca e chupou-o. Depois mudou de posição e levou-o até ao sexo, esfregando-se a si própria.
Não sabia se era a erva ou... merda, qualquer coisa com aqueles homens... de repente estava mesmo muito excitada. Ao ponto de desejar aquilo que estava prestes a
acontecer.
Inclinando-se sobre ela, o que dava ordens pôs as mãos na parte da frente das ancas.
- Beija-a - ordenou.
Ela estava tão preparada para aquilo, apesar de normalmente não o permitir. Virando o rosto para o outro, sentiu a sua boca ser invadida por um conjunto de lábios
suaves, exigentes... e depois uma língua entrou nela...
Ao mesmo tempo que umas grandes mãos se encaixavam na parte de cima das suas coxas e a abriam ainda mais.
E outro conjunto de mãos dirigiu-se aos seus seios.
Apesar de ser uma profissional, a sua mente foi de viagem, levando consigo as coisas que habitualmente a preocupavam enquanto fazia o que fazia, fazendo desaparecer
coisas como, onde estavam os preservativos? Quais eram as regras básicas?
Cinto. Fecho. E depois o som de calças a deslizar e o resfolegar do colchão ao cair-lhe alguma coisa pesada em cima.
Imaginou, vagamente, se o pénis que tinha sido libertado seria tão grande como o resto do homem atrás dela. E se era, pensou, diabos, ela era bem capaz de equacionar
a ideia de lhes oferecer uma segunda volta de borla. Partindo do princípio de que se aguentavam tanto tempo...
Uma ponta arredondada entrou dentro dela, enquanto mãos a levantavam pelas ancas e a deixavam de gatas. Meu deus, ele era enorme... Ela preparou-se para sentir a
fricção, à medida que uma palma da mão lhe percorria a espinha e dedos penetravam no seu cabelo curto. Ele ia puxar-lhe a cabeça para trás, mas ela não se importava.
Só queria mais dele dentro dela...
Mas ele não ficou violento, nem sequer avançou imediatamente. Pelo contrário, massajou-a como se gostasse do toque da sua pele, levando-lhe as mãos aos ombros e
depois deslizando-as até aos seios... e depois descendo mais ainda até ao sexo molhado. E quando a penetrou completamente, foi com um deslizar suave, dando-lhe até
um segundo para se habituar ao diâmetro e ao comprimento.
Depois colou as palmas das mãos nas ancas e avançou com o ato. Mesmo quando o amigo se esgueirou para debaixo dela para sugar os seios pendurados.
Com a velocidade a intensificar-se, os mamilos andavam para a frente e para trás a bater na boca do que estava por baixo dela ao ritmo das estocadas das ancas que
lhe batiam no rabo uma e outra vez. Mais depressa. Com mais força. Mais depressa...
- Fode-me - ganiu ela. - Oh, porra, sim...
Abruptamente, o que estava deitado no colchão mudou de posição e reposicionou-a, enchendo-lhe a boca com o maior pénis que ela alguma vez tinha engolido.
Ela teve mesmo um orgasmo.
Se isto continuasse assim, seria ela a dar-lhes uma gorjeta.
Um segundo depois, o homem por trás saiu de dentro dela e sentiu salpicos quentes nas costas. Mas ainda não tinha acabado. Voltou à carga um momento depois, tão
encorpado e rígido como da primeira vez que a penetrara.
Aquele que ela estava a chupar gemia e depois foram separados, quando ele lhe levantou a cabeça. Veio-se nas suas mamas, com jatos quentes a decorarem-lhe o peito,
espalhando um pouco mais daquele aroma fantástico, ao mesmo tempo que o outro voltava a sair dela e a ejacular-lhe nas costas.
E depois o mundo deu meia volta e ela viu-se deitada de costas, com o homem da carteira a assumir a posição de comando sobre ela e a preencher-lhe o sexo, ficando
igualmente apertada.
Foi ela que procurou o amigo silencioso e autoritário, trazendo o pénis dele para a boca, tirando-o do papel de espetador para dentro dela outra vez.
Era tão grande que teve de esticar o queixo para ele caber e sabia deliciosamente, como nada que provara antes. Chupava-o enquanto o outro a tomava a sério. Abandonou-se
às sensações de ser preenchida, ou invadida por pénis duros e selvagens que lhe abanavam todo o corpo.
No seu delírio, tentou ver o homem a quem estava a lamber, mas ele conseguia sempre, de alguma forma, manter-se de costas para a luz e isso tornava tudo ainda mais
erótico. Como se estivesse a chupar uma sombra viva. Merda, ao contrário do outro, ele não soltava agora nenhum som e nem sequer estava a arfar. Mas estava a gostar,
a sério, entrando na sua boca e saindo e depois voltando a entrar. Pelo menos até saltar cá para fora e colocar a palma da mão sobre a ereção. Juntando os seios,
ela deu-lhe uma ótima plataforma para ele se vir e, Deus do céu, apesar de ela ser copa AA, ele cobriu-a.
Até o peito ficar peganhento, escorregadio e a pingar.
Quando voltou a concentrar-se, tinha os joelhos junto às orelhas e o que tinha o dinheiro estava a preparar-se para atacar outra vez da melhor maneira possível.
E o patrão estava outra vez nos seus lábios, pressionando, querendo mais. O que ela lhe daria com todo o gosto.
Fitando-os enquanto se moviam em uníssono, ela sentiu um medo percorrê-la. Dobrada por baixo deles, ela tinha a sensação que a podiam partir ao meio se lhes apetecesse.
Mas não a magoaram.
E continuaram uma e outra vez, os dois trocando de lugares sem parar. Era óbvio que já tinham feito aquilo muitas vezes e, meu Deus, ela estava a satisfazê-los à
grande.
Finalmente estava terminado.
Nenhum deles disse nada. Nem a ela, nem um ao outro. Era estranho, porque a maioria do sexo a três em que ela participara acabava com os idiotas a darem mais cinco
uns aos outros. Estes dois não. Guardaram os pénis e... bem, não é que as carteiras voltaram a aparecer?
Enquanto estavam ali por cima dela, ela passou a mão pela boca, pelo pescoço e pelos seios. Estava coberta em tantos sítios que já perdera a conta, e adorava, era
suavizante aquilo que tinham deixado na sua pele. Estava a brincar com o sémen porque queria, não para benefício deles.
- Queremos dar-te mais quinhentos - disse o primeiro em voz baixa.
- Para quê? - aquele gorgolejar satisfeito era mesmo ela?
- Vai saber bem, prometo.
- É perverso?
- Muito.
Ela riu-se e ondulou as ancas.
- Então digo que sim.
Quando o homem sacou das notas, parecia haver muitas outras naquele maço e, se ele fosse, talvez, outra pessoa, era capaz de ter avisado o chulo e de ter dito ao
Mack para o intercetar no parque de estacionamento. Mas, no entanto, não ia fazer isso. Em parte por causa do sexo incrível. Mas mais ainda porque achava que era
provável que aqueles tipos dessem uma tareia a quem se metesse com eles.
- O que querem que faça? - perguntou, enquanto apertava o dinheiro no punho.
- Abre as pernas.
Ela não hesitou, os joelhos a afastarem-se para longe.
E eles não hesitaram, inclinando-se ambos sobre a vulva molhada.
Deus do céu, iam chupá-la? Só de pensar nisso os olhos rolaram para trás e ela gemeu...
- Ai!
Ela começou a levantar-se, mas eles forçaram-na a ficar deitada no colchão.
As lambidelas subtis que se seguiram deixaram-na quase inconsciente. Mas, contudo, não eram no seu sexo. Mesmo a meio do corpo, de ambos os lados, na articulação
onde as coxas se ligam ao tronco.
Um chupar rítmico... como se a embalasse.
Karrie suspirou e abandonou-se ao que sentia. Teve uma sensação chocante de que eles se estavam a alimentar dela, de alguma forma, mas era espetacular especialmente
quando alguma coisa entrou dentro dela. Talvez fossem dedos... provavelmente.
Sim, definitivamente.
Quatro dedos preenchiam-na e duas mãos separadas começaram a entrar e sair alternadamente, enquanto as duas bocas chupavam a sua carne.
Ela veio-se outra vez.
E outra vez.
E outra.
Depois de só Deus sabe quanto tempo, acariciaram-na várias vezes, nos lugares onde tinham estado a chupar e não onde as mãos tinham estado.
E depois retiraram tudo, bocas, dedos, corpos.
Endireitaram-se os dois.
- Olha para mim - disse o líder.
As pálpebras estavam tão pesadas que teve de fazer força para poder obedecer. E quando o fez, sentiu uma dor ardente nas frontes. Contudo, não durou muito tempo
e a seguir... sentia-se a flutuar.
Foi por isso que não prestou muita atenção ao grito distante e abafado que veio da porta ao lado pouco depois, não do quarto em que estava o Mack, mas o do outro
lado.
Bum! Pum. Bum...
Karrie começou nessa altura a adormecer, morta para o mundo, o dinheiro colado à palma da mão quando aquilo que estava molhado secou.
Não estava preocupada com nada. De facto, sentia-se fantástica.
Diabos... com quem é que tinha estado...?
* * *
Quando Xcor saiu do quarto de hotel da prostituta com Throe imediatamente atrás dele, fechou a porta e olhou para a esquerda e para a direita. As instalações que
o soldado tinha escolhido para aquela diversão carnal ficavam nos arredores da cidade. Degradado e a desfazer-se em alguns pontos, o edifício térreo tinha sido dividido
em caixas que pareciam guarda-louças, com o escritório na ponta mais à esquerda. Tinha preferido o quarto mais longínquo na ponta oposta para garantir a privacidade,
mas o melhor que conseguira fora o quarto ao lado.
Não obstante, na verdade, quais eram as hipóteses de estarem todos ocupados? Dificilmente estaria ali mais alguém.
Perscrutando os lugares de estacionamento à sua frente, viu um Mercedes preto que tentava desesperadamente parecer mais novo do que aquilo que era... e um todo-o-terreno
com cobertura. Os outros dois carros estavam mais longe, junto ao escritório.
Isto era perfeito para o tipo de propósito que tinha servido. Escondido. Povoado por pessoas que não queriam ninguém a intrometer-se no que ali faziam e dispostas
a tratar os outros com igual cortesia. E a iluminação exterior era fraca. Só uma em cada seis lâmpadas, por cima das portas, é que estavam a funcionar. Que raios,
a luz mais próxima da sua cabeça tinha sido destruída. Por isso, estava tudo difuso e escuro.
Ele e o seu bando de bastardos teriam de encontrar fêmeas da sua raça para satisfazer as suas necessidades de sangue a longo prazo, mas a seu tempo isso aconteceria.
Até lá? Contentar-se-iam com mulheres como a que ele e Throe tinham acabado de foder e fá-lo-iam naquele local deserto.
Throe falou calmamente.
- Satisfeito?
- Sim, ela não era nada má.
- Fico feliz...
Um aroma no ar fez com que ambos virassem as cabeças para a porta do último quarto. Quando Xcor inspirou profundamente para confirmar aquilo de que tinha sentido,
um leve aroma, o cheiro a sangue humano fresco foi uma surpresa desagradável.
Contrariamente à expressão no rosto de Throe, que demonstrava não estar nada surpreendido.
- Nem penses nisso - rosnou Xcor. - Throe. Foda-se.
O guerreiro estava a dirigir-se à porta com uma expressão turbulenta. A sua agressividade tinha sido inflamada porque era sangue feminino que estava a ser derramado.
A fertilidade era evidente no ar.
- Não temos tempo para isto - disparou Xcor.
Em jeito de resposta, Throe deu um pontapé na porta e abriu-a.
Enquanto Xcor praguejava, apenas brevemente considerou desmaterializar-se da cena. Tudo o que era necessário para curar o impulso era olhar lá para dentro. A ridícula
façanha heroica de Throe tinha exposto uma confusão. Literalmente.
Uma fêmea humana estava amarrada à cama, com alguma coisa enfiada na boca. Estava quase morta e demasiado perto da sepultura para ser salva. O sangue dela estava
por todo o lado, nas paredes ao seu lado, escorrendo para o chão, ensopando o colchão. Os utensílios de quem quer que fosse que tinha feito aquilo estavam na mesa-de-cabeceira:
duas facas, fita adesiva, tesouras... e meia dúzia de pequenos frascos transparentes com um líquido incolor e tampas ao lado.
Havia coisas a flutuar nos...
Ouviu-se um estrondo vindo da casa de banho. Como se uma bandeira ou vidro de janela tivesse sido aberto e fechado.
Quando Throe começou a correr para o interior, Xcor adiantou-se e agarrou o outro macho pelo braço. Em dois tempos, Xcor soltou a pulseira de aço que mantinha no
cinto das armas e prendeu-a no pulso robusto do seu soldado. Arrastando-o com o seu peso, volteou-o no ar como a uma bola presa a uma corrente. Ouviu-se uma batida
seca na parede mais distante, quando o reboco barato parou o pêndulo de vampiro.
- Deixa-me.
Xcor puxou-o para perto de si.
- Isto não é da tua conta.
Throe puxou o braço atrás e deu um murro na parede, desfazendo mais um bocado do reboco velho.
- Ai isso é que é. Solta-me!
Xcor deu uma palmada na parte de trás do pescoço do macho.
- Não é. O teu. Mundo!
Nesta altura lutaram, atirando-se um ao outro e derrubando coisas, fazendo mais barulho do que deviam. E estavam prestes a cair na carpete ensanguentada, quando
um homem humano sem pescoço e com óculos escuros do tamanho de vidros de janela deslizou para o corredor. Deu uma olhadela à cama, outra a Xcor e Throe, e depois
resmungou, cobrindo os olhos com os braços enquanto fugia agachado.
Um segundo depois, a porta do quarto onde tinham estado abriu-se e fechou-se... depois abriu-se e fechou-se outra vez. Ouviu-se o som de saltos altos a bater no
chão, depressa e descoordenados, e ouviu-se um clomp, clomp de pessoas a entrarem num carro.
Um motor rugiu e o Mercedes arrancou, saindo do parque de estacionamento, sem dúvida com a prostituta e o dinheiro lá dentro.
E aquela partida apressada confirmava aquilo que Xcor assumira sobre a clientela daqui.
- Ouve-me - disse a Throe. - Ouve-me, minha grande besta... isto não é problema nosso. Mas se ficares aqui, vais torná-lo nosso...
- O assassino fugiu!
- E nós também vamos fugir.
Os olhos pálidos de Throe centraram-se na cama e a máscara de fúria dissipou-se por breves momentos. Por baixo dela havia uma expressão que chegou mesmo a deter
a agressividade de Xcor. Tanta dor, meu Deus, tanta dor.
- Ela não é a tua irmã - sussurrou Xcor. - Anda comigo.
- Não posso...deixá-la... - Uns olhos enormes vidrados cruzaram-se com os seus. - Não podes pedir-me isso.
Xcor deu uma volta, mantendo o soldado preso. Tinha de haver alguma coisa do assassino, alguma coisa que pudessem...
Xcor arrastou o guerreiro para a casa de banho e ficou sombriamente satisfeito ao observar a janela por cima da sanita. O único painel grosso de vidro fosco estava
intacto, mas havia um rasto de sangue brilhante na borda da armação de metal.
Exatamente o resquício de que precisavam.
Xcor alcançou a janela e passou dois dedos pela extremidade que tinha rasgado a carne humana.
O sangue colou-se aos seus dedos.
- Abre - ordenou.
Throe abriu a boca e chupou os dedos, fechando os olhos para se concentrar, enquanto se começavam a ouvir sirenes distantes na noite.
- Temos de ir agora - disse Xcor. - Vem comigo e eu dou-te autorização para caçares o homem. Concordas? Acena. - Quando Throe assentiu, ele decidiu que precisava
de mais. - Jura.
Throe fez uma vénia, curvando o tronco.
- Juro.
Soltou a pulseira... e ambos desapareceram como por magia, exatamente quando os rotativos azuis anunciavam a chegada da polícia humana.
Xcor não costumava ser compassivo em nenhuma situação. Mas mesmo que fosse, não teria concedido nenhuma compaixão àquele profanador humano que era agora o alvo de
Throe... e em breve seria caçado.
Capítulo 44
-Doutor Manello?
Ao ouvir o seu nome, Manny voltou à realidade e percebeu que, de facto, ainda estava em Tricounty, no jardim da entrada. Era bastante irónico que o segurança tivesse
sofrido um ataque à sua mente e, mesmo assim, era ele que recebia as atenções.
- Ah...sim, desculpe. O que disse?
- Está bem?
- Não, não estou.
- Bem, foi atacado... nem consigo acreditar em como lidou com isso. Num minuto ele estava em cima de si... no minuto seguinte tinha a arma e ele estava a... voar.
Claro que se livraria disso.
- Sim. É isso. Exatamente.
Os polícias apareceram dois segundos depois e seguiu-se uma torrente de perguntas e respostas. E foi espetacular. O segurança nunca referiu Payne. Era como se ela
nunca ali tivesse estado.
Não devia ficar surpreendido, tendo em conta o que Manny já tinha passado não só com ela, mas também com Jane. Mas mesmo assim estava admirado.
Havia tanta coisa que ele não percebia. Como Payne tinha desaparecido como por magia à sua frente. Como não restava nada dela, pelo menos que o segurança pudesse
ver, apesar de se lembrar perfeitamente de Manny. Como ela se tinha mantido tão calma e controlada numa situação fatal.
Na realidade, esta última parte tinha sido muito erótica. A maneira como ela o tinha triturado era fantasticamente excitante. Manny não tinha a certeza do que isso
dizia sobre ele, mas era assim.
E ela iria mentir, pensou. Diria ao pessoal dela que a mente dele tinha sido apagada. Diria que tinha tratado de tudo.
Payne encontrara a solução perfeita. Ele tinha a sua mente, ela tinha as suas pernas e ninguém sabia nada em contrário, nem o seu irmão, nem os da sua laia.
Sim, estava tudo tratado. Tudo o que tinha de fazer agora era passar o resto da vida ansiando por uma fêmea que nunca devia ter conhecido. Uma merda que não custa
nada.
Uma hora depois, entrou no seu Porsche e regressou a Caldwell. Conduzindo sozinho, o carro não só parecia vazio, como parecia um deserto e deu consigo a subir e
descer os vidros. Não era a mesma coisa.
Ela não sabia onde ele vivia, pensou. Mas isso não importava, pois não? Ela não voltaria.
Meu Deus, era difícil escolher o que teria custado mais. Um adeus longo e demorado, em que ele a olhava nos olhos e mordia a língua para evitar falar de mais? Ou
aquela merda rápida, do tipo arrancar-o-penso?
As duas eram uma porcaria.
No Commodore, desceu ao subterrâneo, estacionou no seu lugar e saiu do carro. Foi para o elevador. Subiu ao apartamento. Entrou. Fechou a porta.
Quando o telemóvel tocou, enfiou a mão no bolso para o tirar e, quando viu o número, praguejou. Goldberg, do centro médico.
Atendeu sem entusiasmo.
- Olá.
- Atendeste? - disse o homem aliviado. - Como estás?
Pois. Não queria entrar por ali.
- Estou bem. - Após uma pausa, disse - E tu?
- Estou bem. As coisas têm estado... - Hospital. Hospital. Hospital hospital, hospitalh ospit alhosp. Ital hospit alhospital...
Entrou por um ouvido e saiu pelo outro. No entanto, Manny não se apressou. Foi para a bancada da cozinha, tirou o Lag e sentiu-se como se tivesse levado uma pancada
na cabeça ao ver o pouco que restava na garrafa. Inclinando-se para o armário, retirou uma garrafa de Jack que estava lá para trás há tanto tempo que tinha pó na
tampa.
Pouco depois, desligou o telefone e concentrou-se na bebida. Primeiro o Lag. Depois o Jack. E depois seguiram as duas garrafas de vinho que estavam no frigorífico.
E o que restava de um pacote de seis Corona que tinha sido deixado na despensa e não estava fresco.
Contudo, o seu cérebro não deu pela diferença entre o álcool aquecido e a bebida fresquinha.
Feitas as contas, o festival de ingestão de álcool demorou uma hora. Talvez mais. E foi muito eficiente. Quando pegou na última cerveja e se dirigiu para o quarto,
andava como se estivesse na ponte da Enterprise, abanando para a esquerda e para a direita... e depois recuando. E, apesar de ver perfeitamente à luz ambiente da
cidade, tropeçou em tudo. Devido a algum milagre inconveniente, a sua mobília tinha ganhado vida e estava determinada a meter-se no seu caminho... tudo, desde as
cadeiras estofadas de pele até...
- Foda-se.
... à mesa de centro.
E o facto de agora estar a esfregar a canela enquanto andava era como adicionar uns patins em linha à festa.
Quando chegou ao quarto, bebeu um enorme gole da Corona para celebrar e progrediu para o banho aos tropeções. Água a correr. Roupas despidas. Entrar na banheira.
Não valia a pena esperar pela água quente, não sentia nada, fosse como fosse, e o objetivo era esse.
Não se deu ao trabalho de se secar. Foi simplesmente para a cama com água a escorrer do corpo e, ao sentar-se, bebeu o resto da cerveja. Então... uma imensidão de
nada. O seu alcoolómetro estava a subir assustadoramente alto, mas ainda não tinha atingido o ponto crítico e acabado com ele.
Consciência era, contudo, um termo relativo. Apesar de se poder argumentar que estava acordado, estava completamente desligado, e não só pelo exagero de álcool no
sangue. Ele estava sem energia no interior, de uma maneira muito estranha.
Deixando-se cair no colchão, pensou que, agora que a situação com Payne se tinha resolvido, era altura de andar com a vida para a frente ou, pelo menos, tentar na
manhã seguinte, quando a ressaca o acordasse. A sua mente estava ótima, por isso não havia razões para não voltar ao trabalho e para não tratar de separar, definitivamente,
aquele interlúdio lixado do resto da sua vida normal.
Fitando o teto, ficou aliviado quando a visão se tornou nublada.
Até se aperceber que estava a chorar.
- Mariconço de merda.
Limpando os olhos, estava positiva e absolutamente decidido a não seguir aquele caminho. Mas seguiu... e ficou lá. Meu Deus, já sentia a falta dela ao ponto da agonia.
- Mas que... diabo!
Subitamente levantou a cabeça e o pénis começou a inchar. Olhando pelas portas deslizantes de vidro da varanda, perscrutou a noite com um desespero que o fez sentir
como se as loucuras mentais tivessem voltado.
Payne...
Payne...?
Esforçou-se por se levantar da cama, mas o corpo recusava-se a obedecer, como se o cérebro estivesse a falar uma língua que os braços e as pernas não conseguissem
traduzir. E depois a bebedeira venceu, pressionando Ctrl-Alt-Del e desligando o programa.
Não obstante, o sistema não reiniciou.
Depois de as pálpebras se fecharem, apagou, por muito que lutasse contra a maré.
Lá fora na varanda, Payne estava parada no vento gelado, com o cabelo a esvoaçar, o corpo todo em pele de galinha por causa do frio.
Desaparecera da vista de Manuel, mas não o tinha abandonado.
Apesar de ele ter demostrado ser capaz de tomar conta de si próprio, Payne não estava disposta a confiar a sua vida nem a ninguém nem a nada. Concomitantemente,
tinha-se envolvido em mhis e ficado no jardim do hospital veterinário, observando-o a falar com a polícia e com o segurança. E depois, quando ele fora para o carro,
seguira-o, desmaterializando-se de um sítio para outro, seguindo o seu rasto graças à pequena quantidade do seu sangue que ele lambera.
A sua viagem para casa tinha culminado nas profundezas de uma cidade mais pequena do que aquela que ela vira do carro, mas ainda assim impressionante, com os edifícios
altos, as estradas pavimentadas e as pontes altas belíssimas que passavam sobre um largo rio. Caldwell era, de facto, linda à noite.
Quem lhe dera que ali estivesse por outra razão, que não uma despedida invisível.
Quando Manuel tinha virado para uma espécie de garagem subterrânea, ela tinha-o libertado. Já tinha alcançado o objetivo, que era ele chegar ao seu destino em segurança,
por isso sabia que tinha de partir.
Todavia, infelizmente, ela tinha-se demorado na rua, escondida no mhis, vendo os carros a passar e os peões a atravessar as esquinas. Passara uma hora. E depois
passou mais tempo. E ela não se conseguia ir embora.
Cedendo aos desejos do seu coração, ela tinha subido, subido, subido... elevando-se até onde Manuel estava, tomando forma na varanda da sua casa... e encontrando-o
a meio caminho de deixar a cozinha para a sala. Claramente a andar torto, estava sempre a ir contra a mobília, embora não fosse certamente por as luzes estarem apagadas.
Era a bebida que tinha nas mãos, sem dúvida.
Ou, mais exatamente, toda a bebida que consumira além daquela.
No quarto, não tinha propriamente despido as roupas, mas sim saltado para fora delas e depois ido para o chuveiro. Quando voltou a surgir a pingar, ela teve vontade
de gritar. Era tão difícil compreender que só tinha passado um dia desde que tinha, pela primeira vez, testemunhado a sua nudez. Apesar de ela sentir, realmente,
que podia procurar no tempo e alcançar esses momentos frenéticos em que estavam à beira de... não apenas um presente, mas um futuro.
Agora já não.
Ao chegar à cama, sentou-se... e depois colapsou no colchão.
Quando ele limpou os olhos, ela ficou completamente devastada. E a vontade de ir ter com ele era tão grande...
- Payne.
Com um uivo, ela virou-se. Ao fundo da varanda, parado na brisa... estava o seu gémeo. E, no instante mesmo em que pousou os olhos em Vishous, soube que alguma coisa
nele tinha mudado. Sim, o seu rosto já estava a sarar dos ferimentos que lhe causara o espelho, mas não era isso que tinha mudado. Ele estava diferente interiormente.
A tensão, a raiva e a frieza assustadora desapareceram.
Enquanto o vento fustigava o seu cabelo, ela tentou compor-se, eliminando as lágrimas que se alojavam em volta dos olhos.
- Como é que soubeste... que eu estava...
Com a mão enluvada, ele apontou para cima.
- Tenho aqui um apartamento. No topo do edifício. A Jane e eu estávamos de saída quando senti a tua presença aqui em baixo.
Devia ter percebido. Tal como ela conseguia sentir o mhis dele... ele podia sentir e encontrar o dela.
Ela desejava que ele tivesse continuado para onde ia. A última coisa de que precisava era de outra cena de «autoridade» da figura masculina dizendo-lhe o que fazer.
Além disso, o rei já tinha decretado a lei. O decreto de Wrath não precisava propriamente da aprovação de gente como o irmão.
Levantou a mão para o travar antes de ele dizer alguma coisa sobre Manuel.
- Não quero que me digas o que o rei já me disse. Estava mesmo de saída.
- A mente dele foi apagada?
Ela levantou o queixo.
- Não, não foi. Ele levou-me a passear e houve um... incidente...
A rosnadela que o irmão soltou soou mais alto do que o vento.
- O que é que ele te...
- Não foi ele. Credo, podes parar de... o odiar? - Enquanto massajava as frontes, perguntou-se se alguma vez explodira mesmo a cabeça a alguém ou se toda a gente
na Terra se sentia assim de vez em quando. - Fomos atacados por um humano e ao desarmá-lo...
- Ao humano?
- Sim - enquanto o desarmava, magoei-o e chamaram a polícia...
- Desarmaste um humano?
Payne fitou o gémeo.
- Quando retiras a arma a alguém, é isso que se diz, não é?
Vishous semicerrou os olhos.
- Sim, é.
- Não podia apagar as memórias de Manuel, porque se não ele não conseguiria responder ao interrogatório da polícia. E estou aqui... porque queria certificar-me de
que chegava bem a casa.
No silêncio que se instalou, ela apercebeu-se de que se tinha encostado a um canto. Ao ter de proteger Manuel, ela tinha acabado de provar o ponto de vista do irmão
de que o macho que ela queria não podia tomar conta dela. Oh, mas o que é que interessava. Tendo em conta que estava preparada para obedecer ao rei, não havia, fosse
como fosse, nenhum futuro para ela e Manuel.
Quando Vishous ia abrir a boca, ela gemeu e cobriu as orelhas com as mãos.
- Se tens uma réstia de compaixão, deixa-me fazer o luto sozinha. Não aguento ouvir todas as razões que levam a que me tenha de separar dele... já as sei de cor.
Por favor. Vai-te embora.
Fechando os olhos, virou-se e rezou à mãe dos céus para ele fazer o que ela pedia...
A mão no seu ombro era pesada e quente.
- Payne. Payne, olha para mim.
Sem nenhuma energia de sobra para lutar, ela deixou cair os braços e olhou para os seus olhos sombrios.
- Responde-me a uma coisa - disse o gémeo.
- O quê?
- Amas o sac... a ele. Ama-lo?
Payne olhou para trás, através do vidro, para o humano na cama.
- Sim. Estou apaixonada por ele. E se tentares dissuadir-me com o facto de ainda não ter vivido o suficiente para julgar, eu digo-te... vai à merda. Não preciso
de conhecer o mundo para perceber o desejo do meu coração.
Fez-se silêncio.
- O que disse Wrath?
- O mesmo que tu dirias. Que tenho de limpar da mente dele a minha memória e nunca, nunca mais o ver.
Como o irmão não disse mais nada, ela abanou a cabeça.
- Porque é que ainda aqui estás, Vishous? Estás a pensar no que hás de dizer para eu ir para casa? Deixa-me poupar-te ao esforço... quando chegar a madrugada, eu
vou... e cumprirei as leis, mas não por ser bom para ti ou para o rei ou para mim. É por ser mais seguro para ele... não precisa de inimigos como tu e a Irmandade
a torturá-lo só porque eu sinto aquilo que sinto. Por isso, será tudo como desejas. Só que - e aqui, ela iluminou-se - não vou apagar-lhe a memória. A mente dele
é demasiado valiosa para se perder... e não aguenta mais limpezas. Mantê-lo-ei seguro nunca mais voltando, mas não o vou condenar a uma vida de demência. Não vai
acontecer. Não fez outra coisa a não ser ajudar-me. Merece mais do que ser usado e deitado fora.
Payne voltou a olhar para o vidro.
Depois de um longo silêncio, ela assumiu que o gémeo se fora embora. Por isso, quase deu um grito quando ele lhe apareceu à frente e bloqueou a imagem de Manuel.
- Ainda aqui estás? - resmungou.
- Eu trato disto por ti.
Payne encolheu-se e depois rosnou.
- Nem te atrevas a pensar em matá-lo...
- Com Wrath. Eu trato disto. Eu... - Vishous passou a mão pelo cabelo. - Eu arranjo uma maneira de poderes ficar com ele.
Payne pestanejou. E depois sentiu a boca a ficar aberta.
- O que foi... O que foi que disseste?
- Conheço Wrath há muitos anos. E, tecnicamente, de acordo com as Leis Antigas, eu sou o chefe da nossa pequena e feliz família. Vou ter com ele e digo-lhe que aprovo
esta... união e que acho que devia ser permitido que visses o sac... o homem... o Manello. - Aclarou a garganta. - Wrath preocupa-se muito com a segurança, e com
mhis à volta do complexo... o Manello não conseguiria encontrar-nos mesmo que quisesse. Além disso, é uma hipocrisia negar-te o que outros Irmãos têm feito de vez
em quando. Que raios, o Darius teve um filho com uma mulher humana... e o Wrath está agora casado, com uma criança. Facto comprovado... se tivesses tentado separar
o nosso rei da sua Beth quando ele a conheceu? Ele teria matado qualquer um que sequer o sugerisse. A Mary do Rhage? A mesma merda. E devia... ser o mesmo para ti.
Até falo com a mahmen, se tiver de ser.
Payne pousou a mão sobre o coração.
- Não... compreendo porque é que... farias isto?
Ele olhou por cima do ombro, fitando o humano que ela amava.
- És minha irmã. E é a ele que tu queres. - Encolheu os ombros. - E... bem, também me apaixonei por uma humana. Apaixonei-me pela minha Jane uma hora depois de a
ter conhecido... e... sim. Sem ela, não tenho nada. Se o que sentes pelo Manello for metade do que sinto pela minha shellan, a tua vida nunca ficará completa sem
ele...
Payne atirou-se ao irmão num abraço. Quase o derrubou.
- Oh, meu irmão...!
Os braços dele rodearam-na e apertaram-na.
- Desculpa ter sido tão idiota.
- Foste... - Ela procurou outra palavra. - Sim, foste um idiota.
Ele riu-se, o som a roncar pelo peito acima.
- Vês, podemos concordar com alguma coisa.
Enquanto o apertava ainda mais, disse:
- Obrigada... Obrigada...
Após um momento, ele afastou-se.
- Deixa-me primeiro falar com Wrath, antes de ires ter com o Manello, okay? Quero tratar de tudo antes... e sim, agora vou já para casa. A Jane está a fazer rondas
e a Irmandade está de folga, por isso devo conseguir falar com o rei. - Fez uma pausa. - Só quero uma coisa em troca.
- O quê? Qualquer coisa. É só dizeres.
- Se vais ficar aqui até de madrugada, vai para dentro. Está um frio de rachar aqui fora, a sério. - Deu um passo atrás. - Vai lá... vai ver com o teu... macho...
Esfregou os olhos e ela teve a sensação de que ele se estava a lembrar de quando a apanhara no duche com o curandeiro.
- Eu volto... ah, liga... Tens telefone? Toma, fica com... merda, não o tenho.
- Está tudo bem, meu irmão. Eu regresso de madrugada.
- Ótimo, sim... nessa altura já terei notícias.
Ela olhou-o fixamente.
- Amo-te.
Agora ele sorria. Um grande sorriso, sem reservas. Esticando o braço, acariciou-lhe o rosto.
- Também te amo, mana. Agora vai lá para dentro e aquece-te.
- Vou fazer isso. - Esticou-se e deu-lhe um beijo na face. - Vou fazer isso!
Acenando-lhe, desmaterializou-se através do vidro. Oh, como o interior estava quente em comparação com a varanda... ou talvez fosse a onda de alegria que se espalhara
nela. Fosse o que fosse, fez uma pirueta apoiada só num pé e depois foi até à cama.
Manuel não estava apenas adormecido, estava totalmente inconsciente, mas ela não se importava. Saltando para a cama pôs um braço à volta dele e instantaneamente
ele gemeu e virou-se para ela, puxando-a para si, abraçando-a. Quando os corpos se fundiram e ela sentiu na anca a sua ereção, olhou rapidamente para a varanda.
Não valia a pena abusar da sorte com Vishous, mas tudo bem, ele já lá não estava.
Sorrindo na escuridão, ela descontraiu-se e acariciou o ombro do macho. Isto ia tudo correr bem e a chave tinha sido a lógica inabalável que Vishous tinha exposto
detalhadamente. De facto, o argumento era tão evidente, que ela nem acreditava que não tivesse pensado nisso antes.
Wrath podia não gostar, no entanto, concordaria porque os factos eram os factos e ele era um governante justo, que já tinha dado muitas vezes provas que não era
escravo dos costumes antigos.
Enquanto se aconchegava, sabia que não havia maneira de adormecer, correndo o risco de ser queimada pelo sol. Ela própria estava incandescente, ali deitada na cama
ao lado de Manuel, brilhando com tanta intensidade que projetava sombras no quarto.
Nada de dormir.
Ela só queria gozar o que estava a sentir.
Para sempre.
Capítulo 45
Vishous chegou a casa num abrir e fechar de olhos, e depois de dar conta da sua presença a Jane na clínica dirigiu-se à mansão através do túnel subterrâneo. Ao sair
para o átrio, só ouviu um reverberante absolutamente-nada, ficando desconfortável com o silêncio.
Estava tudo tão calmo.
É claro que, regra geral, isso seria assim por serem duas da manhã e os Irmãos estarem em campo. No entanto, naquela noite estavam todos recolhidos, provavelmente
a fazer sexo, a recuperar do sexo, ou a meio de o repetir.
Sinto-me como se tivesse feito amor contigo pela primeira vez.
Ao recordar a voz de Jane, nem sabia se havia de rir ou de dar um pontapé no seu próprio traseiro. Fosse como fosse, ele iniciara naquela noite um admirável mundo
novo, não que soubesse ao certo o que isso significava, mas estava disposto a tal. Absolutamente disposto.
Subindo a escadaria, dirigiu-se ao escritório de Wrath, enquanto procurava em todos os bolsos que... não tinha. Continuava com a maldita bata vestida. Com as manchas
de sangue. E sem cigarros.
- Que merda.
- Meu senhor? Necessita de algo?
Ao parar no cimo das escadas, olhou para Fritz, que limpava o balaústre, e quase beijou a matraca do mordomo.
- Estou sem tabaco. Mortalhas...
O velho doggen ofereceu um sorriso tão rasgado que as rugas no rosto o fizeram parecer um shar-pei.
- Tenho uma reserva na copa. Volto já... vai encontrar-se com o rei?
- Vou.
- Levar-lhos-ei lá... a par de um roupão, talvez?
A segunda parte foi proferida com toda a delicadeza.
- Porra, obrigado, Fritz. Salvaste-me a vida.
- Não, o senhor é que salva. - Fez uma vénia. - O senhor e a Irmandade salvam-nos todas as noites.
Fritz apressou-se a descer a escada, com um passo mais enérgico do que seria de esperar. Claro que não havia nada de que gostasse mais do que ser prestável. O que
era fantástico.
Certo. Ao trabalho.
Sentindo-se miserável na bata, V dirigiu-se às portas fechadas do escritório de Wrath, cerrou o punho e bateu.
A voz do rei fez-se ouvir do outro lado dos painéis grossos de madeira:
- Entra.
V obedeceu.
- Sou eu.
- Então, irmão?
No outro lado da sala de tons amaricados, Wrath estava na secretária imensa, sentado no trono do pai. No chão a seu lado, deitado numa cama Orvis vermelha personalizada,
George ergueu a cabeça loura e arrebitou as orelhas perfeitamente triangulares. O golden retriever bateu a cauda à laia de cumprimento, mas não deixou o dono.
O rei e o cão-guia nunca se separavam. E não era só porque Wrath precisasse de ajuda.
- Então, V? - Wrath recostou-se na cadeira entalhada, deixando pender a mão para afagar a cabeça do animal. - O teu cheiro é interessante.
- Ah é? - V sentou-se à frente do rei, assentando as mãos nas coxas e apertando para se tentar distrair da ânsia por nicotina.
- Deixaste a porta aberta.
- O Fritz vai trazer-me tabaco.
- Não vais fumar ao pé do meu cão.
Porra.
- Ah... - Esquecera-se da nova regra... e pedir que George fosse dar uma volta não era opção, afinal de contas Wrath podia ter perdido a visão, mas o sacana continuava
a ser mortífero e V já tivera a sua dose de S e M nessa noite, muito obrigado.
Fritz entrou no momento em que as sobrancelhas negras do rei se esconderam atrás dos óculos que lhe contornavam a cabeça.
- O seu tabaco, meu senhor - anunciou alegremente o mordomo.
- Obrigado, meu caro. - V aceitou as mortalhas e a bolsa... e o isqueiro que o doggen tivera o discernimento de providenciar. A par do roupão.
A porta fechou-se.
V olhou para o cão. A grande cabeça de George estava agora pousada entre as patas, com os ternurentos olhos castanhos parecendo lamentar a proibição do fumo. Chegou
mesmo a abanar ao de leve a ponta da cauda.
Vishous acariciou a bolsa do delicioso tabaco turco, num gesto desgraçadamente patético.
- Importas-te que enrole uns quantos?
- Se ouço a pedra do isqueiro vais ao chão.
- Entendido. - V alinhou o material na secretária. - Vim falar sobre a Payne.
- Como está a tua irmã?
- Ela está ... espetacular. - Abriu a bolsa, inalou e teve de reprimir o mmmm. - Resultou... não sei bem como, mas ela já anda por aí. De pé, como nova.
O rei chegou-se à frente.
- Não... me digas. A sério?
- Mesmo.
- É um milagre.
Ao que parecia, chamado Manuel Manello.
- Podemos dizer que sim.
- Pois isso é uma notícia do caraças. Queres arranjar-lhe um quarto aqui? O Fritz pode...
- É um bocadinho mais complicado do que isso.
Quando as sobrancelhas voltaram a desaparecer atrás dos óculos, V pensou, meu, mesmo sendo o rei completamente cego, parecia concentrar-se como sempre. O que nos
fazia sentir como se tivéssemos uma mira apontada à cabeça.
V começou a dispor os quadrados de papel branco.
- É aquele cirurgião humano.
- Ah... foda-se! - Wrath ergueu os óculos escuros para a testa e esfregou os olhos. - Não me lixes a dizer que eles se juntaram.
V permaneceu em silêncio, agarrando na bolsa e ocupando-se a espalhar tabaco.
- Estou à espera que me digas que me enganei. - Wrath deixou os óculos regressarem ao seu lugar. - Continuo à espera.
- Ela está apaixonada por ele.
- E não te importas com isso?
- É claro que me importo. Mas ela podia até sair com um Irmão e o desgraçado não ser bom o suficiente para ela. - Pegou num dos papéis carregados e começou a enrolar.
- Portanto... se ela o quer, digo que seja.
- V... sei o que estás a pensar e não o posso permitir.
Vishous parou enquanto lambia o papel e pensou em trazer Beth para a conversa. Claro que o rei parecia estar já a desenvolver uma dor de cabeça.
- Uma porra é que não podes permitir. O Rhage e a Mary...
- O Rhage foi espancado, lembras-te? Por um motivo. Além disso, as coisas estão a mudar, Vishous. A guerra está a aquecer, a Sociedade dos Minguantes anda a recrutar
como a merda... e ainda por cima temos a porra das metades que ontem encontraste na baixa.
Raios partam, pensou V. Aqueles matadores chacinados...
- E ainda por cima apareceu isto. - Sem olhar, Wrath levou a mão à esquerda e ergueu uma página em braile. - É a cópia de uma carta que foi enviada por e-mail ao
que resta das Famílias Fundadoras. O Xcor mudou de pouso com os rapazes dele... razão pela qual encontraste os minguantes naquele estado.
- Grande... porra. Eu sabia que tinha de ser ele.
- Ele está a armar-nos uma ratoeira.
V ficou hirto.
- Porquê?
A expressão de Wrath foi um verdadeiro acorda.
- Houve quem perdesse ramos inteiros da família. Fugiram de suas casas, mas querem regressar. Entretanto, as coisas em Caldwell estão a ficar cada vez mais perigosas.
Neste momento não podemos tomar nada como garantido.
Ou seja, ele não partia do princípio de que o seu trono estava seguro. Pouco importava a cadeira onde, por acaso, estava sentado.
- Portanto, não é que eu não entenda a situação da Payne - explicou Wrath. - Mas temos de fazer um círculo com as carroças e protegermo-nos. Não é uma boa altura
para acrescentarmos a complicação de ter aqui um humano.
O silêncio instalou-se por momentos.
Enquanto V pensava nos seus argumentos pegou em mais uma mortalha, enrolou-a, lambeu a borda, torceu.
- Ontem à noite ele ajudou a minha Jane. Quando os Irmãos e eu cá chegámos depois dos confrontos no beco, o Manello foi mais do que eficaz. É um cirurgião espetacular...
e eu bem o sei. Ele operou-me. Não é, de todo, inútil. - V olhou para o outro lado da secretária. - Se a guerra se intensificar, dava-nos jeito mais um par de mãos
operatórias aqui na clínica.
Wrath praguejou em inglês. E depois na Língua Antiga.
- Vishous...
- A Jane é espantosa, mas ela é só uma. E o Manello tem competências técnicas que a ela lhe faltam.
Wrath voltou a levantar os óculos e a esfregar os olhos. Com força.
- Estás a dizer-me que esse tipo vai querer passar o resto da vida, dia e noite, nesta casa? É pedir muito.
- E eu peço-lhe.
- Não gosto disto.
Um silêncio loooongo. O que mostrou a V que estava a abrir caminho. Claro que sabia que não devia forçar.
- Pensava que querias matar o desgraçado - resmungou Wrath. Como se esse fosse um objetivo preferível.
De repente, a imagem de Manello de joelhos à frente de Payne lançou-se pela mente de V, até ele ficar com vontade de pegar numa caneta e arrancar os próprios olhos
fora.
- Ainda quero - admitiu, num tom sombrio. - Mas... é ele que ela quer, a sério. O que é que eu posso fazer?
Outro silêncio loooongo, durante o qual produziu uma boa pilha de cigarros.
Por fim, Wrath passou a mão pelo nunca mais acabar de cabelo preto.
- Se ela se quiser encontrar com o humano fora daqui, o problema não é meu.
Vishous abriu a boca, pronto a argumentar, mas depois reconsiderou. Era melhor do que uma nega direta, e ninguém sabia o que o futuro reservava. Se mesmo depois
do Pesadelo do Duche V era capaz de evoluir para um ponto em que Manello permanecia acima da terra e a respirar, tudo poderia acontecer.
- É justo. - Fechou a bolsa. - O que vamos fazer quanto ao Xcor?
- Esperamos que o Conselho convoque uma reunião... algo que, não tenho dúvidas, vai acontecer nas próximas noites. A glymera vai engolir esta merda e nessa altura
ficamos com sérios problemas. - O rei prosseguiu, num tom seco: - Por oposição aos problemitas que temos agora.
- Queres que a Irmandade se junte para uma reunião?
- Não. Dá-lhes o resto da noite de folga. Isto não vai a lado nenhum.
V levantou-se, vestiu o roupão e juntou o material para fazer cigarros.
- Obrigado por isto. Tu sabes, por causa da Payne.
- Não é um favor.
- Já é uma mensagem de esperança para lhe levar.
Vishous estava a meio caminho da porta quando Wrath disse:
- Ela vai querer lutar.
V deu meia volta.
- Desculpa?
- A tua irmã. - Wrath pousou os cotovelos em cima da papelada e chegou-se à frente, com uma expressão grave no rosto cruel. - Tens de te preparar para quando ela
te pedir para ir combater.
Que raios, não.
- Não estou a ouvir isso.
- Mas vais ouvir. Já combati com ela, e é tão mortífera como tu e eu. Se julgas que ela se vai contentar a andar por esta casa nos próximos seiscentos anos, não
deves estar bom da cabeça. Mais tarde ou mais cedo, é o que ela vai querer.
Vishous abriu a boca e depois fechou-a.
Bem, estivera nas nuvens a apreciar a boa vida durante cerca de... vinte e nove minutos.
- Não me digas que o permitias.
- A Xhex luta.
- Ela é súbdita do Rehvenge. Não é tua. - As sobrancelhas de Wrath desapareceram pela terceira vez. - São padrões diferentes.
- Primeiro, todos os que se encontram debaixo deste teto são meus súbditos. E segundo, as coisas não ficam diferentes só por ela ser tua irmã.
- É claro - Que. Ficam. - que não.
- Uh-huh. Pois.
Vishous pigarreou.
- Estás mesmo a pensar deixá-la...
- Já viste como eu fiquei depois dos nossos duelos, não foi? Não lhe dei qualquer vantagem, Vishous. Aquela fêmea sabe o que está a fazer.
- Mas ela é... - Minha irmã. - Não a podes mandar lá para fora.
- Neste momento, preciso de tantos guerreiros quanto possível.
Vishous enfiou um cigarro entre os lábios.
- Acho que é melhor ir-me embora.
- Sim.
Assim que saiu e fechou a porta, acendeu o isqueiro de ouro que Fritz lhe trouxera e inspirou profundamente.
Enquanto pensava no que fazer a seguir, imaginou que poderia dar um salto ao Commodore e dar a boa nova à irmã, mas receava a cena perante a qual poderia vir a materializar-se.
Além disso, tinha até à alvorada para se convencer de que ter Payne em campo não era uma ideia tresloucada.
A par de tudo isso, tinha de falar com mais alguém.
Descendo a escadaria, atravessou o átrio e chegou ao vestíbulo. Lá fora, caminhou rapidamente pelo pátio empedrado e entrou no Fosso pela robusta porta principal.
A familiaridade dos divãs, do ecrã de plasma e da mesa de matraquilhos acalmou-o.
Ver a garrafa vazia de Lag em cima da mesa de apoio? Nem por isso.
- Butch?
Não teve resposta. Dirigiu-se então ao quarto do chui. A porta estava aberta e lá dentro... não havia nada, além do enorme roupeiro de Butch e de uma cama vazia
e revolta.
- Estou aqui.
V deu meia volta e espreitou para o seu quarto. As luzes estavam apagadas, mas as lâmpadas do corredor garantiam-lhe luz suficiente.
Butch estava sentado no extremo da cama, de costas para a porta, a cabeça baixa e os ombros largos curvados.
Vishous entrou e fechou a porta. Nem Jane nem Marissa iam aparecer. Estavam ambas ocupadas com os seus trabalhos. Mas Fritz e a sua equipa deviam passar por ali,
e o mordomo, louvado fosse, nem sequer batia a uma porta fechada. Já lá vivia há tempo suficiente.
- Então - disse V nas trevas.
- Então.
V avançou, contornando os pés da cama e servindo-se da parede para se orientar. Baixou o traseiro sobre o colchão e sentou-se ao lado do melhor amigo.
- Tu e a Jane estão bem? - perguntou o chui.
- Sim. Está tudo bem. - Que grande eufemismo. - Ela chegou mais ou menos quando acordei.
- Eu liguei-lhe.
- Imaginei. - Vishous virou a cabeça e olhou-o, embora isso pouco importasse naquele negrume. - Obrigado por aquilo...
- Sinto muito - gemeu Butch. - Meu Deus, sinto tanto...
A exalação arrastada que se seguiu foi um soluço mal disfarçado.
Apesar de não ver, V estendeu o braço e envolveu o chui. Aproximando o macho do peito, assentou a cabeça sobre a do amigo.
- Está tudo bem - disse, num tom rouco. - Está tudo bem. A sério... Fizeste o mais acertado...
De alguma forma, acabou por virar o macho, ficando com os baços em volta do chui.
Sem saber porquê, pensou na primeira noite que tinham passado juntos. Fora há um milhão e meio de anos, na antiga mansão urbana de Darius. Duas camas lado a lado
lá em cima. Butch perguntara sobre as tatuagens. V dissera-lhe que não se metesse onde não era chamado.
E ali estavam outra vez no escuro. Tendo em conta tudo o que acontecera desde então, era quase inacreditável que alguma vez tivessem sido aqueles dois machos que
estabeleceram uma ligação devido aos Sox.
- Não me peças para voltar a fazer aquilo nos próximos tempos - alertou o chui.
- Combinado.
- Claro que se precisares... vem ter comigo.
V esteve prestes a dizer qualquer coisa na linha de Nunca mais, mas isso era uma treta. Ele e o chui já tinham passado bastantes vezes por esse lado psiquiátrico
de V e, embora ele estivesse a virar a página, nunca se sabia.
Por isso limitou-se a repetir o voto que fizera a si próprio com Jane. A partir de agora, ia deixar as coisas saírem. Mesmo que isso o deixasse desconfortável a
ponto de gritar, era melhor do que a estratégia do acumular. Também era mais saudável.
- Espero que não seja preciso - murmurou. - Mas obrigado, meu.
- Mais uma coisa.
- O quê?
- Acho que agora já namoramos. - Quando V soltou uma gargalhada, o chui encolheu os ombros. - Então? Despi-te. Usaste um espartilho. E nem me lembres do banho de
esponja a seguir.
- Cabrão.
- Sempre.
Quando as gargalhadas se desvaneceram, V fechou os olhos e desligou brevemente o cérebro. Com o peito imenso do melhor amigo contra o seu, e a consciência de que
ele e Jane estavam outra vez bem, o seu mundo completava-se.
Agora, se conseguisse afastar a irmã das ruas e dos becos durante a noite... a vida seria perfeita.
Capítulo 46
Quando José se dirigiu ao Monroe Motel & Suítes, tornou-se óbvio que a única coisa nova em torno do sítio era a fita amarela que acabara de ser passada à volta do
perímetro. Tudo o resto estava murcho e em mau estado, incluindo os carros estacionados junto ao escritório.
Passando pelo alinhamento de polícias, chegou ao último quarto e estacionou o carro à paisana na diagonal em relação aos outros veículos da polícia de Caldwell.
Ao deixar o carro em ponto morto olhou para o outro banco.
- Estás bem para isto?
Veck já estava prestes a abrir a porta.
- Podes crer.
Quando saíram, os outros agentes aproximaram-se e Veck foi cercado por muitas palmadas nas costas. No departamento, as pessoas consideravam-no um herói devido ao
Incidente Paparazzi, e essa lista não se viu de todo reduzida por ele ignorar sempre os incentivos.
Mantendo-se tranquilo, limitou-se a puxar as calças e a sacar de um cigarro. Depois de o acender e de inspirar, falou enquanto exalava.
- Como estão as coisas?
José deixou o rapaz a informar-se e passou por baixo da fita. A porta arrombada da cena do crime fora encostada e abriu-a com o ombro.
- Porra - praguejou entredentes.
O ar estava carregado com o cheiro de sangue fresco... e de formaldeído.
Naquele momento, o flash da fotógrafa disparou e o corpo da vítima foi iluminado na cama, bem como os frascos de espécimes em cima da mesa-de-cabeceira. E as facas.
Fechou brevemente os olhos.
- Detetive?
José olhou sobre o ombro para Veck.
- Sim?
- Temos o registo da carrinha. Illinois. O dono é um tal de David Kroner. Não foi dada como roubada, e imagina só: o Kroner é um branco de trinta e três anos...
solteiro... de bai... grande porra. - As informações debitadas por Veck foram atalhadas ao parar junto à cama. - Jesus.
O flash voltou a disparar e ouviu-se um gemido eletrónico enquanto a máquina recuperava do esforço.
José olhou para o legista.
- Há quanto tempo é que ela está morta?
- Não muito. Ainda está quente. Dou-lhe uma hora mais aproximada quando acabar.
- Obrigado. - José acercou-se da secretária reles e serviu-se de uma caneta para afastar uma aliança de ouro fina, um par de brincos brilhantes e uma pulseira cor-de-rosa
e preta.
A tatuagem recortada da pela da vítima e depositada no frasco ao lado dela também era cor-de-rosa e preta. Provavelmente eram as suas cores preferidas.
Ou tinham sido.
Continuou a vaguear pelo quarto, em busca de coisas deslocadas, a confirmar os cestos de papéis, a espreitar a casa de banho.
Era óbvio que alguém interrompera o divertimento do assassino. Alguém ouvira ou vira qualquer coisa e tinha arrombado a porta, provocando uma fuga apressada pela
janela das traseiras por cima da sanita.
A chamada do 112 fora feita por um homem que se recusara a identificar-se. Dissera apenas que estava um cadáver no último quarto e nada mais. Não fora o assassino
deles. Esses sacanas só paravam se a isso fossem obrigados e não deixavam ficar o tipo de troféus que se viam em cima da mesa-de-cabeceira e da secretária.
- Para onde é que foste depois disto? - interrogou-se José. - Para onde é que fugiste...
Havia cães a farejar na mata lá atrás, mas José tinha a sensação de que isso não daria em nada. A meros cento e cinquenta metros do motel ficava um rio baixo o suficiente
para atravessar. A caminho dali, ele e Veck tinham passado sobre a pequena ponte que o atravessava.
- Ele está a mudar de estratégia - aventou Veck. Quando José se virou, o jovem levou as mãos às ancas e abanou a cabeça. - É a primeira vez que o faz num sítio assim
tão público. O trabalho dele é muito sujo... e potencialmente barulhento. Depois do que já fez, teríamos encontrado mais cenas como esta.
- Concordo.
- O David Kroner é a nossa resposta.
José encolheu os ombros.
- Talvez. Ou pode ser mais um corpo prestes a ser encontrado.
- Ninguém o deu como desaparecido.
- Disseste que era solteiro, certo? Talvez more sozinho. Quem ia dar por falta dele?
No entanto, mesmo enquanto abria buracos na teoria, José fez as suas próprias contas e chegou a uma conclusão semelhante. Era raro que alguém desaparecesse sem que
ninguém desse conta, família, amigos, colegas de trabalho, senhorio... Não era impossível, mas era pouco provável.
A questão era, para onde iria o assassino em seguida? Se o sacana seguisse o mais comum, seria provável que entrasse numa fase de exagero na patologia. Até então,
as vítimas apareciam com meses de intervalo, mas agora tinham encontrado duas numa semana.
Se partisse desse princípio, sabia que as ações cuidadosas que até então tinham ocultado o assassino iriam por água abaixo, com os padrões que seguia a desaparecerem
face a um impulso frenético. A boa notícia era que o desleixo o tornaria mais fácil de apanhar. A má notícia era que a situação poderia piorar antes de melhorar.
Veck acercou-se.
- Vou ver a carrinha. Queres estar presente?
- Sim.
Lá fora, o ar não cheirava a cobre e a químicos, e José respirou fundo enquanto Veck calçava as luvas e deitava mãos à obra. Como seria de esperar, o veículo estava
trancado, mas isso não o deteve. Pegou numa barra e abriu a porta do condutor como se já estivesse habituado a arrombar carros.
- Chiça - resmungou, ao recuar.
Não demorou muito para que o fedor chegasse a José, que tossiu para a mão. Mais formaldeído, mas também o fedor adocicado de coisas mortas.
- Não é na cabina. - Veck percorreu os bancos com a lanterna. - Na caixa.
As portas duplas tinham um cadeado, mas Veck foi à mala do carro à paisana e regressou com uma serra a pilhas.
Ouviu-se um gemido intenso... um ping!... e Veck entrou.
- Ah... porra...
José abanou a cabeça enquanto contornava o veículo para saber contra o que o parceiro praguejara.
O feixe da lanterna de Veck iluminava uma coleção de pequenos frascos com coisas a flutuar ou no fundo de um líquido transparente. Os recipientes estavam guardados
num sistema de prateleiras feitas por medida, montado do lado esquerdo. O lado direito estava reservado às ferramentas: facas e cordas, fita adesiva castanha, martelos,
escopros, lâminas, bisturis, afastadores.
Olá, David Kroner. Era extremamente improvável que o assassino tivesse montado tudo aquilo na carrinha de outra pessoa e quase apostava que os troféus naqueles frascos
encaixavam na perfeição nos buracos deixados na pele das vítimas.
A grande esperança seria que os cães-polícias lhe identificassem o rasto na mata.
Caso contrário, iriam perder outra mulher. José estava disposto a apostar a casa.
- Vou entrar em contacto com o FBI - disse. - Eles têm de vir ver isto.
Veck perscrutou o interior.
- Vou dar uma mãozinha aos rapazes da equipa forense. Gostava de levar este veículo para a sede o mais depressa possível, para que se possa identificar tudo devidamente.
José assentiu, pegou no telemóvel e pressionou a tecla de acesso rápido. Quando começou a chamar percebeu que, depois de falar com os federais, teria de ligar à
mulher. Nunca chegaria a casa a horas do pequeno-almoço.
Nem pensar.
Capítulo 47
-O sol! Ó, meu Deus! Depressa, é melhor...
Manny acordou em pleno ar. Era óbvio que saltara da cama, levando o edredão e várias almofadas consigo, e aterraram todos ao mesmo tempo, os pés, a coberta e o quarteto
de retângulos macios.
A luz do Sol entrava pelas janelas, enchendo-lhe o quarto com uma iluminação brilhante.
O cérebro dizia-lhe que Payne estava ali. Ela estava ali.
Olhando freneticamente à volta, correu para a casa de banho. Vazia. Percorreu o resto do apartamento. Vazio.
Esfregando o cabelo, voltou à cama... e depois apercebeu-se, santa mãe, ainda tinha as recordações todas. Dela. De Jane. Do Peras Odioso. Da operação e... daquele
duche maravilhoso. E de Glory.
Mas que raios...
Baixou-se, apanhou uma almofada e levou-a ao nariz. Sim, ela tinha mesmo estado deitada ao lado dele. Mas por que lá teria ido? E se assim fosse, por que não lhe
teria apagado a memória?
Dirigindo-se ao corredor, pegou no telemóvel e... Mas não lhe podia ligar. Não sabia o número.
Ali se deixou ficar por um instante e depois lembrou-se de que combinara encontrar-se com Goldberg dali a menos de uma hora.
Constrangido, e bizarramente em pânico sem qualquer motivo aparente, vestiu o equipamento de corrida e foi até ao elevador. No ginásio cumprimentou com acenos de
cabeça os outros indivíduos que malhavam ferro ou faziam abdominais e dirigiu-se à passadeira que costumava usar.
Esquecera-se do malfadado iPod, mas tinha a mente em tal alvoroço que silêncio era coisa que não havia entre as orelhas. Ao entrar no ritmo, tentou recordar-se do
que acontecera depois de tomar duche na véspera... mas não se lembrou de nada. Contudo, não estava com dor de cabeça, o que parecia sugerir que o buraco negro em
que se encontrava era algo natural, cortesia do álcool.
Ao longo do treino teve de acelerar a máquina algumas vezes. De certeza que um palerma teria andado a mexer na coisa e o tapete estava lento. E quando chegou aos
dez quilómetros apercebeu-se de que não estava de ressaca. Claro que a intensidade com que a mente lhe fervilhava fazia com que estivesse demasiado distraído para
se preocupar com as dores.
Quando desceu da passadeira, cerca de quinze minutos depois, precisava de uma toalha e dirigiu-se ao monte junto à saída. Um dos indivíduos dos pesos chegou ao mesmo
tempo, mas recuou, num gesto de deferência.
- Você primeiro, meu - estendendo a mão.
- Obrigado.
Enquanto Manny se limpava e dirigia à porta, fez uma breve pausa quando se apercebeu de que ninguém se mexia. Todos os que ali se encontravam tinham interrompido
o que faziam e fitavam-no. Uma olhadela rápida para baixo deixou-o com a certeza de que não sofria de uma perturbação de roupa. Mas que raios?
No elevador esticou as pernas e os braços e pensou, Cristo, podia correr mais quinze... vinte quilómetros sem problemas. E, apesar do álcool, pelos vistos tinha
tido uma noite de sono reconfortante, pois sentia-se desperto e cheio de energia. Mas era assim que funcionavam as endorfinas. Mesmo quando se estava a cair aos
bocados, a excitação da corrida era melhor do que cafeína... ou do que a sobriedade.
Não tinha dúvidas de que acabaria por se ir abaixo, mas logo se preocuparia com isso, quando a exaustão chegasse.
Meia hora depois entrou na Starbucks da Everett onde ele e Goldberg se tinham conhecido há anos, embora, na altura, o pequeno café ainda não tivesse sido adquirido
pela cadeia. O tipo fora aluno da Columbia e estava a concorrer ao internato no St. Francis, e Manny pertencia à equipa de recrutamento que fora reunida para o contratar.
Já na altura Goldberg era uma estrela e Manny quisera criar o melhor departamento do país.
Olhou à volta quando se pôs na fila para pedir um venti latte. O sítio estava a abarrotar, mas Goldberg já lhes conseguira uma mesa à janela. Isso não era uma surpresa.
Aquele cirurgião chegava sempre adiantado às reuniões. De certeza que já lá estaria há pelo menos quinze, vinte minutos. Mas não estava à procura de Manny. Fitava
o copo de papel, como se tentasse mexer psiquicamente o cappuccino.
Ah... ele trazia uma mensagem.
- Manuel? - chamou o rapaz ao balcão.
Manny aceitou o copo, contornou e ziguezagueou por entre os viciados em cafeína, os expositores de canecas e o quadro triangular que anunciava as promoções.
- Então? - cumprimentou ele quando se sentou à frente de Goldberg.
O outro cirurgião ergueu o olhar. E teve de olhar duas vezes.
- Ah... olá.
Manny bebeu um gole do café e recostou-se na cadeira, com as barras curvas das costas a pressionarem-lhe a coluna.
- Como tens andado?
- Eu estou... bem. Cristo, estás com um aspeto fantástico.
Manny esfregou o queixo com barba de véspera. Mas que grande mentira. Não se dera ao trabalho de se barbear e vestia uma camisola polar e calças de ganga. Não era
de todo os preparos de um garanhão.
- Deixemos as amabilidades. - Manny deu mais um gole no latte. - O que tens para me dizer?
Os olhos de Goldberg saltaram em todas as direções. Até que Manny teve pena dele.
- Querem que eu meta férias, não é?
Goldberg pigarreou.
- A direção do hospital acha que seria o melhor para... todos.
- Pediram-te para assumires a chefia, certo?
Mais um tossicar.
- Ah...
Manny pousou o copo.
- Não faz mal. Sem problema. Fico satisfeito... vai correr tudo bem.
- Sinto muito... - Goldberg abanou a cabeça. - Eu... isto parece tudo tão pouco ético. Mas... podes sempre voltar, sabes, depois. Além disso, o descanso fez-te bem.
Quer dizer, tu estás...
- Fantástico - disse Manny, num tom seco. - Uh-huh.
Era o que se dizia sempre às pessoas por quem se sentia pena.
Tomaram os cafés em silêncio e Manny interrogava-se se o outro estaria a pensar o mesmo que ele. Cristo, a volta que as coisas tinham dado. Quando se conheceram
ali, Goldberg estava tão nervoso como agora, só que por motivos bem diferentes. E quem diria que Manny viria a ser dispensado. Na altura só queria chegar ao topo
e nada o iria deter. E assim fora.
O que fez com que a sua reação ao pedido da direção fosse uma surpresa. Na verdade, não estava muito preocupado. Sentia-se... de certa forma desligado, como se isso
estivesse a acontecer a alguém que conhecera em tempos, mas que desde há muito se afastara. Pois, era importante, mas... que se danasse.
- Bem... - O toque do seu telefone interrompeu-o. E a dica quanto ao que realmente lhe interessava foi a pressa para tirar o aparelho, quase como se a camisola tivesse
pegado fogo.
Mas não era Payne, era o veterinário.
- Tenho de atender - disse a Goldberg. - Dois segundos. Sim, doutor, como está... - Manny franziu o cenho. - A sério. Uh-huh. Pois... pois... uhhuh... - Um sorriso
lento começou a crescer-lhe no rosto e dominou-lhe a expressão, até de certeza parecer radiante como um holofote. - Pois. É isso mesmo, não é? Parece a porra de
um milagre.
Quando desligou o telefone olhou para o outro lado da mesa. As sobrancelhas de Goldberg tinham-lhe chegado ao topo da testa.
- Boas notícias. Sobre o meu cavalo.
E o par de sobrancelhas subiu ainda mais.
- Não sabia que tinhas um cavalo.
- Chama-se Glory. É um puro-sangue.
- Ah. Uau.
- Dedico-me às corridas.
- Não sabia.
- Pois.
E as informações pessoais ficaram-se por aí, o que deu a entender a Manny o quanto falavam sobre o trabalho. No hospital, ele e Goldberg passavam horas a falar sobre
pacientes, questões de pessoal e sobre a gestão do departamento. De resto não tinham grande coisa a dizer um ao outro.
Mesmo assim, estava sentado à frente de um bom homem... alguém que provavelmente seria o próximo chefe de cirurgia do St. Francis. É claro que os diretores fariam
um concurso a nível nacional, mas Goldberg seria escolhido, pois os outros cirurgiões, que se assustavam com facilidade e gostavam de estabilidade, conheciam-no
e confiavam nele. E faziam bem. Goldberg era brilhante a nível técnico na sala de operações, proficiente a nível administrativo e muito mais calmo do que Manny alguma
vez fora.
- Vais fazer um excelente trabalho - garantiu Manny.
- O quê... ah. É só temporariamente, até que tu...tu sabes, até que voltes.
Ele parecia mesmo acreditar nisso, o que atestava a sua excelente índole.
- Pois.
Manny mexeu-se na cadeira e, quando voltou a cruzar as pernas, olhou à volta e viu três raparigas do outro lado. Deviam ter cerca de dezoito anos e, assim que cruzaram
os olhares, elas riram-se e falaram entre si, como se fingissem que não o tinham estado a mirar.
Voltando a sentir-se como no ginásio, confirmou o seu estado. Não. Continuava absolutamente sem estar nu. Mas que raio...
Quando ergueu o olhar, uma delas levantara-se e aproximara-se.
- Olá. A minha amiga acha que és giro.
Aaa...
- Ah, obrigado.
- Este é o telefone dela...
- Ah, não... não. - Pegou no papel que ela lhe depositara na mesa e obrigou-a a aceitá-lo de volta. - Fico lisonjeado, mas...
- Ela tem dezoito anos...
- E eu quarenta e cinco.
Com essas palavras, a rapariga ficou de boca aberta.
- Não posso.
- Sim. Podes. - Passou a mão pelo cabelo, interrogando-se quando entrara na Gossip Girl ou qualquer coisa do género. - E tenho namorada.
- Ah. - A jovem sorriu. - Isso é porreiro... mas, tipo, podias ter dito. Não era preciso mentir a dizeres que eras um cota.
Dito isso afastou-se e quando se sentou ouviu-se um gemido coletivo. E depois ele recebeu algumas piscadelas de olho.
Manny olhou para Goldberg.
- Miúdas. Quer dizer, sinceramente.
- Aaa. Pois.
Certo, estava na altura de acabar com aquele embaraço. Olhando pela janela, Manny começou a planear a saída...
No vidro viu o reflexo do seu rosto. Os mesmos malares altos. O mesmo queixo marcado. A mesma combinação de lábios e nariz. O mesmo cabelo preto. Mas havia qualquer
coisa de diferente.
Aproximando-se, pensou... os olhos estavam...
- Olha - disse calmamente. - Vou à casa de banho. Guardas-me o café antes de irmos embora?
- É claro. - Goldberg sorriu, aliviado, como se estivesse satisfeito por ter tantos planos de saída e um emprego. - Demora o tempo que quiseres.
Manny levantou-se e dirigiu-se à única casa de banho unissexo. Depois de bater sem resposta, abriu a porta e acendeu a luz. Quando se trancou e a ventoinha no teto
começou a funcionar, aproximou-se do espelho e leu o aviso «Os Funcionários Devem Lavar as Mãos».
A luz encontrava-se diretamente por cima do lavatório à frente do qual estava. Assim sendo, ele devia estar com um aspeto de merda, de olhos encovados pela exaustão,
com olheiras mais escuras que o breu e a pele da cor de uma torrada mal passada.
Não foi isso que o espelho lhe mostrou. Mesmo com a péssima luz fluorescente que o iluminava, parecia dez anos mais novo do que aquilo de que se lembrava. Irradiava
saúde, como se alguém tivesse photoshopado uma versão antiga da cabeça naquele corpo atual.
Recuando, estendeu os braços para o lado e agachou-se, dando à anca a oportunidade de berrar. Ou as coxas, que ele esforçara ao máximo há menos de uma hora. Ou as
costas.
Nada de dor. Nada de rigidez.
O corpo estava ansioso por trabalhar.
Pensou naquilo que o veterinário lhe dissera ao telefone, a voz do homem confusa e entusiasmada ao mesmo tempo: Ela regenerou o osso e o casco sarou espontaneamente.
É como se a lesão nunca tivesse acontecido.
Santo... Deus. E se Payne tivesse exercido a magia dela sobre ele? Enquanto estiveram juntos? E se ela lhe tivesse sarado o corpo a nível de tempo, sem que nenhum
desse por isso... fazendo o relógio biológico recuar não só meses, mas uma década ou mais?
Manny agarrou a cruz que trazia ao pescoço.
Quando alguém bateu à porta, Manny puxou o autoclismo na sanita vazia e depois abriu a torneira, para que não parecesse ter estado a fazer alguma coisa duvidosa.
Ao sair, estonteado, acenou com a cabeça para a mulher anafada que pretendia entrar e regressou para junto de Goldberg.
Sentou-se e limpou as palmas suadas às calças.
- Preciso de um favor - disse ao antigo colega. - É uma coisa que não pediria a mais ninguém...
- Diz. Qualquer coisa. Depois de tudo o que fizeste por mim...
- Quero que me faças uma avaliação física. E também uns exames.
Goldberg assentiu de imediato.
- Não ia dizê-lo, mas acho que é uma excelente ideia. As dores de cabeça...o esquecimento. Tens de saber se há algum... problema. - Ficou-se por aí, como se não
quisesse nem discutir nem tornar-se mórbido. - Embora, e isto é verdade... nunca te tenha visto com tão bom aspeto.
Manny acabou o café e levantou-se, com a sensação de urgência que o impelia sem nada ter a ver com a cafeína.
- Vamos embora. Se tiveres tempo agora, claro.
Goldberg não se demorou.
- Para ti, tenho sempre tempo.
Capítulo 48
De vez em quando, a morte de Qhuinn voltava ao pensamento dele. Acontecia em sonhos. Nas raras ocasiões em que ele estava quieto e calado. E às vezes para lhe lixar
a cabeça por puro gozo.
Ele procurava sempre evitar a colagem de imagens, cheiros e sons como se fossem a peste, mas apesar de ter solicitado ao seu tribunal interior o seu banimento, os
advogados adversários estavam a ser uns cabrões e a opor-se... portanto, aquela merda volta e meia regressava.
Deitado na cama, aquele pedaço de paisagem mental que não era nem estar a dormir nem desperto funcionava como uma linha aberta para aquela noite horrível lhe telefonar
e, quem diria, ela marcava o número, as memórias faziam soar a campainha e, de algum modo, forçavam-no a atender.
O seu próprio irmão fizera parte da guarda de honra que tinha aparecido para o espancar e os cretinos vestidos de preto seguiram-no pela berma quando ele veio embora
da mansão familiar pela última vez. Tudo o que possuía trazia consigo, e não fazia ideia para onde se podia dirigir. O seu pai tinha-o corrido de casa e ele tinha
sido riscado da árvore genealógica, portanto... era assim. Sem raízes. Sem rumo.
E tudo por causa dos seus olhos diferentes.
A guarda de honra supostamente só tinha por missão espancá-lo pela sua ofensa à linhagem. Não o deveriam matar. Só que as merdas tinham-se descontrolado e, numa
reviravolta inesperada, o irmão dele tinha tentado impedi-lo.
Qhuinn realmente recordava essa parte. A voz do irmão a dizer aos outros que parassem.
Mas tinha sido já demasiado tarde, e Qhuinn tinha flutuado para longe não só da dor, como também da própria terra... apenas para dar por si num mar de nevoeiro branco
que se abriu para revelar uma porta. Sem que ninguém lhe dissesse, ele tinha percebido que era a entrada para o Vápido e compreendeu também que, assim que a abrisse,
ele estava feito.
Coisa que lhe parecera uma ótima ideia na altura. Nada a perder, e tudo isso...
E ainda assim, ele vacilara no último instante. Por uma razão que não se conseguia lembrar.
Foi uma coisa estranhíssima... apesar de toda aquela noite estar gravada na sua mente, aquela era a única parte de que ele não se conseguia lembrar por mais que
tentasse.
Mas recordava-se de regressar ao seu próprio corpo. Ao recuperar a consciência, Blay tinha estado a fazer-lhe a reanimação cardiorrespiratória, e olha lá se aquele
não era um boca-a-boca de acordar os mortos...
A pancada que lhe soou na porta acordou-o de uma vez e ele sacudiu as almofadas, fazendo acender as luzes para ter a certeza de saber onde estava.
Isso mesmo. No seu quarto. Sozinho.
Mas não por muito mais tempo.
Os seus olhos ajustaram-se lentamente, apontaram para a porta, e ele soube quem estava do lado de lá. Conseguia sentir o aroma delicado a pairar, e soube por que
motivo Layla tinha vindo. Porra, talvez tivesse sido por isso que ele não tinha conseguido dormir em condições. Esperava ser acordado por ela a qualquer momento.
- Entra - disse-lhe num tom suave.
A Escolhida entrou sem ruído, e virou-se para ele, parecendo de rastos. Desgastada. Um deserto.
- Senhor...
- Podes chamar-me Qhuinn, sabes. Quer dizer, por favor, chama mesmo.
- Obrigada. - Ela fez uma vénia e pareceu debater-se para se endireitar. - Estive a pensar se poderia usufruir mais uma vez da tua oferta generosa para... te tomar
uma veia. Com efeito, estou... vazia e incapaz de regressar ao Santuário.
Quando o seu olhar se cruzou com os olhos verdes dela, algo se infiltrou bem fundo na sua mente, uma espécie de... perceção que ganhou raízes e rebentos de quase-que-entendi,
estou-quase-lá.
Olhos verdes. Verdes como uvas e jade e rebentos de primavera.
- Por que razão me olhas desse modo? - perguntou ela, apertando com mais força as lapelas das vestes.
Olhos verdes... num rosto que era...
A Escolhida espreitou novamente para a porta.
- Talvez... eu deva ir-me embora...
- Desculpa. - Sacudindo-se, ele certificou-se de que os lençóis o cobriam pela cintura e fez-lhe sinal para se aproximar. - Acabei de acordar... não ligues.
- Tens a certeza?
- Absoluta, anda cá. Amigos, lembras-te? - Estendeu a mão, e quando ela ficou ao seu alcance, pegou na dela e fê-la sentar-se.
- Senhor? Ainda estás a olhar para mim.
Qhuinn perscrutou o rosto dela e depois passou para o corpo. Olhos verdes...
Mas que raio tinham os olhos? Não é que ele nunca os tivesse visto antes.
Olhos verdes...
Conteve um palavrão. Cristo, isto era como ter uma canção na cabeça e lembrar-se de tudo menos da letra.
- Senhor?
- Qhuinn. Di-lo, por favor.
- Qhuinn.
Ele esboçou um sorriso.
- Toma, tira o que precisares.
Ao erguer o pulso, pensou, Meu, ela estava tão magra, ao debruçar-se e abrir a boca. As presas dela eram compridas e muito brancas, mas delicadas. Nada como as dele.
E o toque dela era gentil e feminino como tudo nela.
Coisa que o seu lado tradicionalista achou adequadíssimo.
Enquanto ela se alimentava, ele olhou para o cabelo loiro que estava arranjado num entrançado complexo, e para os ombros descobertos, e para as mãos bonitas.
Olhos verdes.
- Cristo. - Quando ela fez menção de parar, ele colocou a mão por trás do pescoço dela e manteve-a no seu pulso. - Está tudo bem. Tive uma cãibra no pé.
Mais verdadeiro seria dizer no cérebro.
Frustrado, ele ergueu a cabeça e, em vez de bater com ela na parede, esfregou os olhos. Quando os focou novamente, estava a olhar para a porta...
... Layla tinha acabado de entrar.
De imediato, ele voltou a deixar-se arrastar pelo sonho. Mas não pela pancada nem pelo seu irmão. Ele viu-se postado à entrada do Vápido... de pé em frente a painéis
brancos... com a mão erguida, quase a tocar na maçaneta.
A realidade esticou-se, puxou e derreteu-se como caramelo até ele não saber se estava acordado ou a dormir... ou morto.
O remoinho começou a formar-se no centro da porta, como qualquer que fosse o material de que era feita se tivesse liquefeito numa consistência leitosa. E do centro
daquela espécie de tornado surgiu uma imagem e veio aproximando-se, mais como se fosse um som do que algo palpável.
Era o rosto de uma jovem fêmea.
Uma jovem fêmea com cabelo loiro e traços refinados... e olhos verde-pálidos.
Ela olhava-o fixamente, cativando o seu olhar como se se tivesse apropriado de todo o seu rosto com as mãozinhas bonitas.
E então ela piscou os olhos. E eles mudaram de cor.
Um ficou verde, e o outro azul. Tal como os dele.
- Senhor!
A princípio ele ficou tremendamente confuso, imaginando o que teria levado a fêmea a chamar-lhe aquilo. Como é que ela sabia quem ele era?
- Qhuinn! Deixa-me fechar-te a ferida!
Ele pestanejou. E descobriu que se tinha atirado contra a cabeceira da cama, e ao fazê-lo, tinha arrancado da sua carne as presas de Layla e estava a sangrar para
o lençol.
- Deixa-me...
Ele afastou a Escolhida e colocou a própria boca na ferida. Enquanto cuidava de si, não conseguia tirar os olhos de Layla.
Era demasiaaaaado fácil sobrepor as feições daquela fêmea jovem no rosto de Layla e encontrar algo muito mais profundo do que semelhança.
Com o coração aos pulos, ele tentou lembrar-se que nunca lhe tinha dado para aquilo da presciência. Ao contrário de V, ele não conseguia ver o futuro.
Layla mexeu-se lentamente para sair da cama, como se não o quisesse assustar.
- Queres que eu vá chamar a Jane? Ou talvez seja melhor eu ir embora.
Qhuinn abriu a boca... e descobriu que não lhe saía nada.
Uau. Ele nunca tinha tido um acidente de carro, mas imaginou que o nó na garganta que sentiu naquele momento fosse provavelmente igual ao de um condutor que visse
outro carro ignorar um Stop e avançar para a sua porta. Triangulava a sua direção e velocidade contra as suas próprias, e concluía que o impacto estava iminente.
Ainda que ele não conseguisse imaginar um mundo em que engravidasse Layla.
- Vi o futuro - disse ele, à distância.
Layla levou as mãos à garganta como se estivesse a sufocar.
- Não é bom?
- Não é... possível. De todo.
Quando enfiou o rosto nas mãos, tudo o que conseguiu ver na escuridão foi aquela cara... aquela que era em parte a de Layla e em parte a sua.
Ó Deus... protege-os aos dois. Protege-os... todos.
- Senhor?! Estás a assustar-me.
Bem, com isso já eram dois.
Só que não podia ser. Ou podia?
- É melhor eu ir - disse ela com brusquidão. - Agradeço a tua dádiva.
Ele fez sinal com a cabeça, sem poder olhar para ela.
- Não tens de quê.
Quando a porta bateu, pouco depois, ele sentiu um arrepio, um medo gelado que lhe assaltou os ossos... e daí partiu para a sua alma.
Bem vistas as coisas, era irónico, pensou. Os seus pais nunca tinham querido que ele se reproduzisse, e quem diria... a ideia de emprenhar Layla com uma filha defeituosa,
ou pior, de passar os seus olhos fodidos a uma miúda inocente, fê-lo agarrar-se ao voto de celibato como nunca antes.
E, na verdade, ele deveria estar contente. De todos os destinos que poderia ter antevisto, este era cem por cento evitável, não era?
Ele simplesmente nunca iria foder com Layla.
Jamais.
Portanto, tudo não passava de uma impossibilidade. Ponto, parágrafo.
Capítulo 49
Manny regressou ao seu apartamento por volta das seis da manhã. Tudo indicava que tinha passado oito horas no hospital a ser incomodado e pressionado por várias
pessoas que conhecia melhor que a própria família.
Os resultados estavam na sua caixa de correio eletrónico porque tinha enviado automaticamente cópias de tudo o que estava na sua conta do hospital para a sua conta
pessoal. Não que houvesse razões para abrir os anexos. Ele sabia os comentários de cor. Sabia os resultados de cor. Todas as radiografias e TAC de cor.
Atirando as chaves para a bancada da cozinha, abriu o frigorífico e desejou que houvesse sumo de laranja fresco. Mas em vez disso, havia... pacotes de molho de soja
de um restaurante chinês de comida para fora ao fundo da rua... um frasco de ketchup... e uma marmita redonda com uma espécie de restos de um jantar de negócios
a que tinha ido há duas semanas.
Que se lixe. Não tinha assim tanta fome.
Inquieto e sem conseguir estar parado, avaliou a luz no céu. O sol ainda demorava a desaparecer a ocidente.
No entanto, não teria de esperar muito.
Payne regressaria para ele depois do sol se pôr. Sentia-o nos ossos. Ainda não sabia bem porque é que ela passara a noite com ele ou porque é que as suas memórias
permaneciam, mas tinha de pensar na hipótese de Payne tratar disso quando ali chegasse.
A caminho da casa de banho, o seu primeiro impulso foi apanhar as almofadas do chão e colocá-las no sítio. Depois alisou o edredão... e estava pronto para começar
a fazer as malas. Começou a tirar roupa da cómoda e a atirá-la para cima da cama revolta.
Não havia razão alguma para voltar para St. Francis. Tinha apresentado a demissão a meio dos exames.
Não havia razão para ficar em Caldwell. O melhor seria sair da cidade.
Não fazia ideia para onde iria, mas não era preciso um destino para se ir embora de um sítio.
Meias. Boxers. Polos. Calças de ganga. Calças de caqui.
A vantagem de ter um guarda-roupa que consistia acima de tudo em fardas fornecidas pelo hospital era não ter muito para arrumar. E Deus sabia que ele tinha muitos
sacos de ginásio.
Tirou da última gaveta da cómoda as únicas duas camisolas que tinha...
A moldura por baixo delas estava virada para baixo, com o suporte encostado pacificamente ao fundo.
Manny levantou o objeto. Não precisou de o virar para saber quem estava na fotografia. Tinha memorizado o rosto do homem há muitos, muitos anos.
E ainda assim foi um choque virar a moldura e ver a imagem do pai.
Um filho da mãe bonito. Muito, muito bonito. Cabelo escuro, tal como o de Manny. Olhos profundos, iguais aos de Manny.
E era até onde ele estava disposto a ir com a nostalgia. Como sempre, quando se tratava do pai, empurrava tudo para um canto na sua mente e andava para a frente
com a sua vida.
Esta noite isso significava que a moldura ia para cima do edredão e estava resolvido...
A batidela no vidro chegava demasiado cedo para ser ela, pensou.
Mas quando olhou para o relógio percebeu que a tarefa de preparar a mala tinha durado uma boa hora.
Olhando por cima do ombro, o coração bateu acelerou loucamente ao ver Payne do outro lado do vidro. Tinha entrançado o cabelo e tinha um vestido longo apertado na
cintura e estava... de cortar a respiração.
Foi até à varanda, abriu a porta deslizante e o ar frio da noite bateu-lhe na cara, obrigando-o a concentrar-se.
Com um sorriso de orelha a orelha, Payne não chegou bem a entrar, mas antes atirou-se para os seus braços, o corpo sólido contra o seu, os braços muito apertados
à volta do pescoço.
Deixou-se ficar abraçado a ela por instantes... pela última vez. E depois, apesar de não o querer, pousou-a no chão aproveitando a desculpa de fechar as portas para
evitar a rajada de vento para se afastar dela.
Quando a olhou de novo, a alegria no seu rosto tinha desaparecido e ela enrolava os braços à volta de si própria.
- Imaginei que voltasses - disse, rouco.
- Eu... Eu tinha boas notícias. - Payne olhou para a linha de sacos desportivos em cima da cama. - O que estás a fazer?
- Tenho de me ir embora daqui.
Enquanto ela fechou brevemente os olhos, quase o destruiu não ir até ela e confortá-la. Mas já era suficientemente difícil. Tocar-lhe outra vez ia desfazê-lo em
bocados.
- Fui ao médico hoje - disse ele. - Passei toda a tarde no hospital.
Ela ficou lívida.
- Estás doente?
- Não exatamente. - Andou para a frente e para trás até que parou em frente à cómoda e empurrou para dentro a última gaveta. - Na verdade, longe disso... Parece
que partes do meu corpo se regeneraram.
Colocou as mãos na anca.
- Durante anos tive uma artrite na anca, causada por lesões desportivas... sempre soube que eventualmente teria de ser substituída. Mas aquilo que mostram as radiografias
que fiz hoje? Está em perfeitas condições. Não há vestígios da artrite, nem inflamação. Está tão boa como quando tinha dezoito anos.
Quando ela abriu a boca, ele achou que o melhor era dizer-lhe já tudo. Puxando a manga da camisola, passou a mão pelo antebraço.
- Há duas décadas que tenho sardas por causa de queimaduras solares... agora desapareceram. - Baixou-se e levantou a perna das calças. - As microfraturas da tíbia
que me aparecem de vez em quando? Desapareceram. E isto apesar de eu ter corrido cerca de dez quilómetros esta manhã sem sequer pensar nisso... em menos de quarenta
e cinco minutos. As minhas análises não mostram qualquer indício de colesterol, têm valores hepáticos perfeitos, ferro e plaquetas na quantidade necessária exata.
Bateu com os dedos nas frontes.
- E há algum tempo que estou nos limites para usar óculos para ler, tendo de afastar as ementas e as revistas para conseguir... mas agora já não preciso. Consigo
ler as letrinhas pequenas a um palmo do nariz. E, acredite-se ou não, tudo isto é apenas o começo.
Nem valia a pena falar nos pés de galinha à volta dos olhos e nos cabelos brancos nas têmporas que tinham sido substituídos por castanhos-escuros e nos joelhos que
já não estavam lesionados.
- E tu achas... - Payne pousou uma mão na garganta. - Que é por causa de mim?
- Sei que é. Que mais podia ser?
Payne começou a abanar a cabeça.
- Não compreendo, porque é que isto não é uma bênção. A juventude eterna sempre foi procurada por todas as raças...
- Não é natural. - Ao dizer isto, ela estremeceu, mas ele tinha de continuar. - Sou médico, Payne. Sei tudo sobre o envelhecimento normal do corpo humano e o tratamento
de ferimentos. Isto... - Fez um gesto com a mão que percorreu o corpo - ...não está certo.
- É regeneração...
- Mas, onde para? Vou transformar-me no Benjamin Button e recuar até à infância?
- Isso seria impossível - contrapôs ela. - Já estive exposta à luz mais tempo do que tu e não reverti para um estado mais jovem.
- Okay, tudo bem, vamos assumir que isso não acontece... e todas as outras pessoas na minha vida? - Não que se tratasse de uma longa lista, mas ainda assim. - A
minha mãe vai ver-me assim e pensar que fiz cirurgia plástica... e daqui a dez anos? Ela só tem setenta... acredita em mim, quando chegar aos oitenta ou noventa,
vai perceber que o filho não está a envelhecer. Ou tenho de desistir dela?
Manny começou a andar outra vez e, ao puxar o cabelo, era capaz de jurar que estava mais resistente.
- Perdi o emprego hoje por causa do que aconteceu quando me apagaram as memórias. Durante essa semana, estive longe de ti, estava todo baralhado, não sabia se era
noite ou dia e era tudo o que tinham para lidar com a coisa, porque não lhes podia explicar o que realmente tinha acontecido. - Virou-se de novo para ela. - Aquilo
que me preocupa é que este é o único corpo que tenho, a única mente, a única... o que quer que seja. Vocês vampiros lixaram-me a cabeça e quase fiquei louco... e
quais são as consequências de tudo isto? Eu só sei a causa... A magnitude do efeito? Não faço ideia e isso aterroriza-me por uma maldita boa razão.
Payne colocou a ponta da trança em cima do ombro e acariciou-a enquanto baixava os olhos.
- Peço... desculpa.
- A culpa não é tua, Payne - gemeu ele, levantando as mãos ao céu. - E eu não quero culpar-te disto tudo, mas...
- A culpa é minha. Eu sou a causa.
- Payne ...
Quando se aproximou, ela levantou as mãos e afastou-se.
- Não, não te aproximes de mim.
- Payne...
- Tens razão. - Ela parou ao embater na porta envidraçada que tinha atravessado para entrar. - Sou perigosa e destrutiva.
Manny esfregou a cruz por dentro da camisa. Apesar do que tinha dito, naquele momento queria retirar tudo e, de algum modo, fazer com que tudo ficasse bem entre
eles.
- É um dom, Payne. - Afinal de contas, ele e o cavalo tinham mostrado os benefícios da exposição a curto prazo. - Vai ajudar-te e à tua família e ao teu povo. Diabo,
com o que consegues fazer, vais deixar a Jane sem trabalho.
- De facto.
- Payne... olha para mim. - Quando os olhos dela eventualmente encontraram os dele, teve vontade de chorar. - Eu...
Mas não conseguia acabar a frase... A verdade era que a amava. Completamente e para sempre. Contudo, desconfiava que essa era a maldição de tudo isto para ambos.
Ele nunca conseguiria esquecê-la e nunca haveria mais ninguém para ele.
Erguendo os ombros, preparou-se.
- Tenho uma coisa a pedir.
- E o que poderá ser? - lançou ela secamente.
- Não me apagues a memória. Não vou contar nada a ninguém sobre ti ou a tua raça... juro pela minha mãe. Simplesmente... deixa-me como estou quando te fores embora.
Sem a minha mente, tenho menos do que nada.
* * *
Payne estava radiante desde que deixara o complexo. O irmão tinha partilhado com ela as incríveis novidades assim que tinha regressado antes de madrugada e ela passara
todo o dia indecisa entre pairar numa nuvem e ficar impaciente com quão devagar o tempo estava a passar.
Depois tinha vindo.
Era difícil que tivesse o coração a transbordar de alegria apenas há dez minutos.
Não era, no entanto, difícil de compreender a posição de Manuel. E ficou surpreendida por nenhum dos dois ter antecipado as implicações maiores dos seus... poderes
de cura. Ou lá o que era.
Claro que o afetaria.
Olhando para Manuel, não conseguiu suportar a tensão que via nele. Estava honesta e verdadeiramente ansioso com o que sobraria se ela tirasse as memórias do tempo
que tinham estado juntos do alcance da sua consciência. E porque estaria? Perdeu o emprego que amava por causa dela. Tinha o corpo e a mente em perigo por causa
dela.
Pelas Parcas, ela nunca devia ter-se aproximado dele.
E era exatamente por causa disto que não gostavam da mistura com humanos.
- Não te preocupes - disse ela suavemente. - Não vou comprometer a tua mente. Já fiz o bastante.
Enquanto ele respirava de alívio, ela sentiu as lágrimas a apertarem-lhe a garganta. Fitou-a por um momento.
- Obrigado.
Ela fez uma pequena vénia e, ao endireitar-se, ficou chocada ao ver os seus magníficos olhos de mogno a cintilarem.
- Quero lembrar-me de ti, Payne... de tudo sobre ti. - Aquele olhar triste e nostálgico percorreu-lhe o rosto. - De como te senti e do teu sabor. Do som da tua gargalhada...
ofegante. Do tempo que passei ao teu lado... - A voz falhou-lhe e ele recuperou aclarando a garganta. - Preciso que essas memórias durem a minha vida inteira.
As lágrimas começaram a cair e escorrer pelo rosto dela e o coração começou a bater-lhe com força.
- Vou sentir a tua falta, bambina. Todos os dias. Sempre.
Quando ele estendeu os braços, ela aninhou-se neles e perdeu completamente a compostura. Soluçando contra a camisa dele, estava aninhada no seu corpo sólido e forte
e apertava-o com tanta força como ele a apertava a ela.
E então ambos quebraram o abraço ao mesmo tempo, como se fossem um só coração. E ela achou que eram.
Na verdade, havia uma parte dela que queria lutar e discutir e fazer com que ele visse o outro lado, outra possibilidade. Mas não tinha a certeza se existia um outro
lado. Também ela não conseguia prever o futuro, da mesma maneira que não podia prever as repercussões do que tinha mudado nele, tal como ele.
Não havia mais nada para dizer. Este fim imprevisto que chegara era uma pancada que não podia ser atenuada por conversa, toque, nem, desconfiava, pelo tempo.
- Tenho de ir agora - disse ela, afastando-se.
- Deixa-me abrir-te a porta...
Enquanto se desmaterializava da casa dele para fora, apercebeu-se de que aquelas eram as últimas palavras que ele lhe diria.
Era a despedida.
Manny ficou a olhar fixamente para o espaço que a sua mulher tinha acabado de ocupar. Já não havia mais nada dela. Tinha desaparecido como por magia, como um feixe
de luz que tivesse sido cortado.
De vez.
O impulso imediato foi ir até ao armário do hall de entrada, tirar de lá o taco de basebol e partir a casa toda. Partir todos os espelhos, vidros, louça, tudo...
atirar a pouca mobília que tinha pela varanda. Depois disso... se calhar levava o Porsche até à autoestrada do norte, andava a mais de cento e vinte e planeava uma
rota que terminasse nos apoios de uma ponte.
Neste cenário não havia cinto de segurança, obviamente.
Não obstante, afinal, acabou por ficar sentado na cama ao lado dos sacos desportivos e enfiar a cabeça nas mãos. Não era fraco para soluçar daquela maneira como
se estivesse num funeral. De modo algum. Deslizou para os ténis de corrida.
Macho. Realmente muito macho.
No entanto, a forma como se apresentava à plateia do seu apartamento vazio era tão importante como o seu orgulho, corpo, membro... tudo o resto.
A perda estava a dar cabo dele.
E ia transportar aquela dor consigo para o resto da sua vida natural.
Que irónico. O nome dela tinha-lhe parecido inicialmente muito estranho. Agora, parecia bastante adequado.
Capítulo 50
Payne não regressou à mansão. Não tinha qualquer interesse em ver quem lá morava. Nem ao rei, que tinha decidido a seu favor. E certamente que não queria ver todos
os casais felizes, sortudos e abençoados que viviam debaixo do teto real.
Por isso, em vez de ir para norte, materializou-se nas margens do canal que corria ao lado dos altos edifícios envidraçados da baixa. A brisa era mais gentil ao
nível do chão e transportava o som cantante de ondas a bater nas margens empedradas do rio. Como pano de fundo, o zumbido dos veículos a superarem as curvas e contracurvas
suaves das pontes e desaparecendo nas margens longínquas. Aqueles sons faziam-na sentir mais claramente a profundidade e a amplitude da paisagem.
Rodeada de humanos, estava completamente sozinha.
Contudo, era isto que ela tinha pedido. Era esta a liberdade que tão profundamente desejara e procurara com ânsia.
No Santuário, nada tinha mudado. Mas também nada tinha corrido mal.
Contudo, ainda assim, escolheria sempre aquela difícil provação ao isolamento entorpecedor anterior.
Ó Manuel ...
- Olá, querida.
Payne olhou por cima do ombro. Um macho humano estava a aproximar-se dela, tendo obviamente saído de trás de um dos apoios da ponte. Estava a acenar e cheirava a
camadas sobre camadas de suor fermentado e sujidade.
Sem se dar sequer ao trabalho de o cumprimentar, Payne desmaterializou-se para uma zona mais abaixo da margem do rio. Não havia motivo para lhe apagar a memória.
Era pouco provável que se lembrasse sequer que a tinha visto. Estava, sem dúvida, sob o efeito de diversas drogas alucinogénias.
Fitando a superfície ondulada do rio, não se sentia atraída pelas profundezas escuras. Não ia magoar-se a si própria por causa disto. Não se tratava de nenhuma prisão
para se encerrar lá dentro e, além disso, já chegava de escolher sempre a via cobarde. Firmando os pés na terra, cruzou os braços e ficou simplesmente a existir
naquele lugar, ignorando o tempo a escorrer pela peneira da realidade, enquanto as estrelas rodopiavam sobre a sua cabeça, mudando de posição...
A princípio, o cheiro chegou-lhe ao nariz discretamente, imiscuindo-se entre uma mistura de terra fresca, pedra molhada e poluição urbana. Por isso, ao início, não
registou o odor como nada específico.
Não obstante, rapidamente o seu cérebro acordou ao reconhecer o aroma.
Com um formigamento de instinto, a cabeça virou-se sozinha, dando meia volta no alto da espinha. Os ombros seguiram-se... depois as ancas.
O odor rançoso era o inimigo.
Um minguante.
Ao começar a correr ligeiramente, sentiu no sangue uma agressividade que não era apenas causada pela dor que sentia no coração e pela frustração daquilo que o destino
lhe reservara. Ao aproximar-se do cheiro, sentia-se animada por uma herança profunda de violência e proteção. Os membros, a mão da afaga e as presas a aguçarem-se.
Transformada pelo instinto mortal, já não era macho nem fêmea, nem Escolhida, nem filha ou irmã. Enquanto evitava ou enfrentava becos e ruas, era um soldado.
Virou para um beco e, ao fundo, viu dois matadores, cujo cheiro a tinha trazido desde o rio até ali. Juntos, estavam inclinados por cima de um objeto que ela identificou
como um telefone, eram novos recrutas, com cabelo escuro e corpos cheios de tiques.
Não olharam para cima quando ela parou. O que lhe deu tempo de pegar num disco metálico prateado com Ford gravado. Era uma arma excelente que podia ser usada para
bloquear ou para atirar.
Momentos depois, o vento começou a levantar e envolveu-lhe o vestido, retirando-o do seu corpo, e o movimento deve ter chamado a atenção deles, porque se viraram.
Apareceram facas. E também um par de sorrisos que lhe fizeram arder o sangue.
Idiotas, pensou. A pensarem que, por ser uma fêmea, não daria qualquer luta.
Aproximaram-se dela com uma passada tão lenta, que ela não viu razão nenhuma para os interromper. De facto, ela iria saborear a surpresa que eles teriam e à qual,
em última análise, não sobreviveriam.
- O que fazes aqui, menininha? - perguntou o maior dos dois. - Tão sozinha.
Estou prestes a abrir-te a garganta com o que tenho atrás das costas. Depois disso, parto-te as duas pernas, não porque tenha de o fazer, mas porque me diverte o
som. E depois localizo alguma coisa de metal para te enfiar na caixa torácica vazia e te mandar para o teu criador. Ou talvez te deixe a contorcer de dor no chão.
Payne manteve-se silenciosa. Em vez de falar, distribuiu igualmente o peso pelos dois pés bem assentes no chão e agachou-se. Nenhum dos minguantes pareceu notar
a mudança de posição. Estavam demasiado ocupados a caminhar para ela e a pavonearem-se. E nem sequer se separaram ou a flanquearam. Nem veio um atacá-la pela frente,
para o outro a poder atacar por trás.
Continuaram mesmo à sua frente... onde podia alcançá-los.
Enfim, aquilo não passaria de um ótimo aquecimento. A menos que aparecessem outros que soubessem lutar como deve ser e a divertissem...
Xcor sentia a agitação que indicava uma mudança nos bastardos.
Ao caminharem em formação pelas ruas da baixa de Caldwell, a energia atrás dele era um batucar de agressividade. Contundente. Renovada. Mais forte do que tinha sido
uma década antes.
De facto, mudar-se para aqui tinha sido a melhor decisão que tinha tomado. E não só por ele e Throe terem tido ótimo sexo e tomado uma bebida na noite anterior.
Os machos eram punhais retirados à pressa da forja, os instintos assassinos renovados e cintilando à luz da Lua na cidade. Não admira que não tivessem havido matadores
no País Antigo. Estavam todos aqui, a Sociedade dos Minguantes centrando os seus esforços...
A cabeça de Xcor virou-se para todos os lados e desacelerou.
O odor no ar fez com que as presas se alongassem e o corpo vibrasse com poder.
Não era necessário indicar a mudança de direção. Os bastardos estavam a acompanhá-lo, perscrutando a ameaça doce e doentia que se encontrava nas asas das rajadas
noturnas.
Ao virarem a esquina e deslizarem pela reta, rezou por mais. Uma dúzia. Uma centena. Duas centenas. Queria ficar coberto com sangue do inimigo, banhando-se no óleo
negro que lhes animava as carnes...
Na entrada do beco, os pés não pararam, mas cimentaram-se no chão.
Entre um pestanejar e outro, o passado desenrolou-se à sua frente, eliminando a distância entre os meses, anos e séculos de disputas e tornando disponível no presente
toda essa experiência.
No centro do beco, uma fêmea com um vestido branco comprido e ondulante estava a lutar com dois minguantes. Mantinha-os à distância com pontapés e murros, volteando
e saltando tão depressa que tinha de esperar que chegassem de novo até ela.
Com as suas competências superiores de luta, estava apenas a brincar com eles. E tinha a clara impressão de que eles não se apercebiam do quanto ela estava a poupá-los.
Fatal. Ela era mortífera e estava à espera para atacar.
E Xcor soube exatamente quem ela era.
- Ela é... - A garganta de Xcor abafou as restantes palavras.
Ter procurado durante séculos e ser-lhe negado aquele alvo... apenas para dar com ele, numa noite por acaso, numa cidade aleatória para lá do vasto oceano... era
o destino a manifestar-se.
Estava escrito que se encontrariam novamente.
Ali. Naquela noite.
- Ela é a assassina do meu pai. - Retirou a gadanha da bainha. - É a assassina do meu próprio sangue...
Alguém lhe agarrou na mão e travou-lhe o braço.
- Aqui não.
O facto de não ser o sofredor Throe foi a única razão que o fez parar. Era Zypher.
- Capturamo-la e levamo-la para casa. - O guerreiro riu-se sombriamente, o tom erótico aprofundando-se na sua voz. - Já te aliviaste, mas há outros entre nós que
necessitam daquilo que tiveste ontem à noite. Depois disso? Depois podes ensinar-lhe as repercussões dos atos vingativos.
Zypher era, de entre todos, o que mais provavelmente planearia algo assim. E, apesar de a ideia de a chacinar ali mesmo ser muito apelativa, Xcor tinha esperado
demasiado tempo para não saborear a derrota dela.
Tantos anos.
Anos de mais... até ter desistido da esperança de alguma vez a encontrar, apenas os sonhos mantendo viva a memória daquilo que o tinha definido e lhe tinha dado
a posição que assumia na vida.
Sim, pensou. Seria adequado fazer isto à maneira do Derramador de Sangue. Sem tornar as coisas simples para a fêmea.
Xcor voltou a arrumar a gadanha, enquanto a assassina atacava decentemente os matadores. Sem aviso, saltou em frente e investiu contra o peito de um, baixando-se
sob os braços flácidos e empurrando-o contra o edifício. Foi tudo tão rápido que o segundo minguante ficou demasiado surpreendido - e não tinha treino suficiente
- para salvar o amigo.
Mesmo que o número dois tivesse sido um lutador mais próximo das capacidades dela, não teria qualquer hipótese. Praticamente no mesmo momento em que atacou, a fêmea
fez girar por trás dela o tampão da jante e atacou o matador no pescoço, fazendo um corte profundo e desencorajando-o rapidamente da tarefa de se atirar a ela. Quando
o óleo preto começou a esguichar e os joelhos dele tremeram, ela terminou o matador que tinha encostado aos tijolos esmurrando-o duas vezes na cara e uma na maçã-de-adão.
Depois elevou o corpo dele no ar e atirou-o contra a perna dobrada.
A espinha a partir fez um som muito alto.
Enquanto este expirava, virou-se para enfrentar os que estavam a vê-la a lutar. O que não era surpresa nenhuma. Alguém com as suas capacidades ter-se-ia imediatamente
apercebido de que existiam ali outros.
Meneando a cabeça para um dos lados, não ficou alarmada. Mas também por que haveria de ficar? Estavam nas sombras e eram claramente da sua espécie. Até Xcor se revelar,
ela não faria ideia do perigo que corria.
- Boa noite, fêmea - disse ele, em tom baixo, da escuridão.
- Quem está aí? - quis saber ela.
É agora, pensou, avançando para um foco de luz...
- Não estamos sozinhos - murmurou Throe abruptamente.
Xcor parou a investida, os olhos a semicerrarem-se para os sete matadores que tinham aparecido ao fundo do beco.
De facto. Estavam muito acompanhados.
Mais tarde, Xcor acabou por acreditar que a única razão do sucesso na captura da fêmea tinha sido a chegada daqueles novos minguantes. O avanço dos inimigos exigiu
que olhasse para eles e lhes desse atenção. Mas antes de se poder desmaterializar para outra posição, Xcor estava sobre ela.
Apesar do batimento acelerado do seu coração, a vingança dava-lhe força para dispersar as moléculas, mesmo quando ela se virou para enfrentar o esquadrão que se
aproximava. Prendeu a pulseira de aço no pulso dela rápida e certeiramente e, enquanto ela andava à volta com fúria estampada no rosto, ele lembrou-se da incineração
a que ela forçara o seu progenitor.
O que o salvou foi um tiro de um dos minguantes.
O disparo não tinha importância, mas a sua consequência trazia um benefício espetacular. Mesmo quando ela estava a levantar a mão livre para a pousar nele, a sua
perna descaiu e ela caiu no chão, não havendo dúvidas de que a bala acertara em algum ponto vital. E, naquele momento de fraqueza, Xcor dominou-a. Só tinha uma oportunidade
de a controlar. Se não tivesse aproveitado, não tinha a certeza de ter conseguido fazê-lo.
Fechando a outra pulseira no pulso livre dela, agarrou-lhe na trança e enrolou-a à volta do pescoço. Puxando o cabelo com força, cortou-lhe o ar, mesmo quando os
seus guerreiros avançavam de armas em riste.
Oh, como ela lutava. Tão valente. Tão poderosa.
Não passava de uma fêmea... mas talvez fosse um pouco mais do que isso. Era quase tão forte como ele e essa não era a sua única vantagem. Mesmo aprisionada e à beira
da asfixia, os olhos pálidos continuavam fixos nos dele, até ele sentir que ela podia invadir-lhe a mente e apoderar-se dos seus pensamentos.
Mas ele não se deixaria assombrar. Enquanto os sons da batalha rebentavam no beco, ele enfrentou o olhar fixo da assassina do seu progenitor, à medida que os seus
braços iam apertando cada vez mais o laço à volta do pescoço.
Debatendo-se para respirar, ela engasgou-se e contorceu-se, os lábios a moverem-se.
Aproximando o ouvido, ele queria saber o que ela tinha a...
- ... porquê...?
Xcor encolheu-se quando ela deixou de lutar e os formidáveis olhos se reviraram.
Querida Virgem Escrivã, ela nem sabia quem ele era.
Capítulo 51
No que dizia respeito a antros masculinos, V sempre pensara que a sala de bilhar na mansão da Irmandade tinha tudo. Ecrã gigante com som surround. Divãs com estofo
suficiente para serem considerados camas. Lareira para aquecer e para aquela treta atraente das brasas. Bar com todas as bebidas concebíveis, refrigerantes, cocktails,
chá, café, cerveja... tudo.
E uma mesa de bilhar, claro.
A única coisa «má» acabava por ser uma benesse. A máquina de pipocas fora uma aquisição recente, e um tipo bizarro de campo de batalha. Rhage adorava brincar com
a coisa, mas sempre que o fazia, Fritz ficava nervoso e queria parte da ação. Fosse como fosse, era divertido. Os cestinhos de verga ficavam cheios e depois era
a vez do elemento do par que ainda não tivesse funcionado com a máquina.
Enquanto esperava pela sua jogada na mesa de bilhar, Vishous pegou num quadrado de giz azul e esfregou a ponta do taco. Butch baixou-se sobre o feltro verde e apontou
enquanto se ouvia «Aston Martin Music», de Rick Ross.
- Sete no canto - disse o chui.
- Vais enfiá-la, não vais? - V pousou o giz e abanou a cabeça ao ouvir-se a pancada, o rolar e a queda da bola. - Sacana.
Butch olhou-o, com um «toma» na expressão.
- Sou mesmo bom. Desculpa lá, palerma.
O chui deu um gole no Lag e foi assumir nova posição do outro lado da mesa. Enquanto observava o jogo, o sorriso de malandro estava no sítio certo, revelando-lhe
a coroa de porcelana ligeiramente torta.
V ficara de olho no macho. Depois de terem passado horas juntos, tinham-se separado com embaraço e tomado duche independentes. Felizmente, a água quente reanimara-os
e quando voltaram a encontrar-se, na cozinha do Fosso, tudo voltara ao normal.
E as coisas continuaram assim.
Não que não se sentisse tentado a perguntar-lhe se continuava tudo bem. Tipo, a cada cinco minutos. Era como se tivessem travado uma batalha juntos, e exibissem
as fraturas e as nódoas negras que o provavam. Mas V gostava de ver o que se estava a passar à sua frente, o melhor amigo a dar-lhe uma tareia no bilhar.
- E acabou-se o jogo - anunciou o chui quando a bola oito descreveu uma curva e entrou.
- Venceste-me.
- Pois. - Butch ofereceu um sorriso rasgado e ergueu o copo. - Queres a desforra.
- Podes crer.
O cheiro de manteiga derretida e os estalidos dos grãos de milho aos saltos anunciaram a chegada de Rhage ou talvez de Fritz? Não, era Hollywood que estava junto
à máquina com a sua Mary.
V inclinou-se para poder olhar pela arcada, para o outro lado do átrio até à sala de jantar, onde o mordomo e a sua equipa preparavam a última refeição.
- Meu, o Rhage está a brincar com o fogo - comentou Butch enquanto começava a recolher as bolas.
- Dou trinta segundos para que o Fritz... Aí vem ele.
- Vou fingir que não estou aqui.
V deu um gole no seu Goose.
- Eu também.
Enquanto se ocupavam a recolher as bolas, Fritz chegou a correr pelo átrio, qual míssil guiado por calor.
- Tem cuidado, Hollywood, certo? - resmungou V quando Rhage se aproximou com um cesto de pipocas fresquinhas.
- É bom para ele. Precisa de exercício... Fritz! Como estás, camarada?
Enquanto Butch e V reviravam os olhos, Rehv entrou com Ehlena por baixo do braço envolto em marta. O cabrão de crista estava encasacado, como sempre, e apoiava-se
na bengala, mas ostentava o sorriso eterno de macho acasalado, e a shellan dele estava radiante a seu lado.
- Rapazes - disse.
Foram cumprimentados por vários resmungos e Z e Bella chegaram com Nalla, seguidos por Phury e Cormia. Wrath e Beth ainda deveriam estar no escritório, provavelmente
a analisar papelada ou, talvez, a deixar George brevemente ao cimo das escadas, para terem um pouco de privacidade.
Quando John e Xhex desceram com Blay e Saxton, os únicos em falta eram Qhuinn e Tohrment, que deveriam estar no ginásio, e Marissa, que se encontrava na Casa Segura.
Bem, esses três e a Jane dele, que estava na clínica, a reabastecer os suprimentos que tinham sido utilizados na outra noite.
Ah, claro e a sua gémea que, de certeza, estava a... «oh, simzar»... com aquele cirurgião dela.
Com todos os recém-chegados, o som de vozes multiplicou-se e explodiu, à medida que se serviam bebidas, se passava o bebé e se recolhiam mancheias de pipocas. Entretanto,
Rhage e Fritz abriam um carregamento novo de milho. E alguém mudava de canais na televisão, possivelmente Rehv, que nunca estava satisfeito com o que pudesse estar
a dar. E outra pessoa avivava o lume.
- Ei. Continuas bem? - perguntou Butch em voz baixa.
V mascarou o sobressalto tirando um cigarro enrolado do bolso das calças de cabedal. O chui falara tão baixo que mais ninguém o teria ouvido, o que era bom. Sim,
ele estava a tentar abandonar as merdas do secretismo, mas não queria que mais ninguém soubesse até que ponto ele e Butch tinham chegado. Isso era privado.
Acendeu o cigarro e inspirou.
- Sim. Estou mesmo, a sério. - Depois olhou para os olhos cor de avelã do melhor amigo. - E... tu?
- Sim. Eu também.
- Boa.
- Boa.
Ena pá, vejam só aquilo com os relacionamentos. Se continuasse assim, ainda ganhava uma estrela dourada para pôr na caderneta.
Uma batida com os nós dos dedos depois, Butch regressou ao jogo, fazendo pontaria com o taco enquanto V se deleitava com a satisfação das relações pessoais, qual
profissional da coisa.
Bebia mais um gole do copo de Goose quando os olhos se dirigiram à entrada em arco da sala.
Jane hesitou ao espreitar para o interior, com a bata branca a abrir-se quando se inclinou, como se o procurasse.
Quando os olhos se cruzaram, ela esboçou um sorriso. E depois este tornou-se rasgado.
O primeiro impulso de V foi ocultar o seu próprio sorriso atrás do Goose, mas depois deteve-se. Nova ordem mundial.
Vá lá, sorri, cabrão, pensou.
Jane acenou brevemente e manteve-se tranquila, que era o que costumavam fazer quando em público. Virando-se, ela dirigiu-se ao bar para tomar algo.
- Espera aí, chui - murmurou V, pousando a sua bebida e apoiando o taco à mesa.
Sentindo-se como um miúdo de quinze anos, prendeu o cigarro entre os dentes e apertou o cinto nas calças de cabedal. Um rápido alisar do cabelo e estava... bem,
tão pronto quanto possível.
Aproximou-se de Jane por trás no momento em que ela começara a conversar com Mary e quando a sua shellan deu meia volta para o cumprimentar, pareceu um tanto ou
quanto surpreendida por ele se ter dirigido a ela.
- Olá, V... Como estás...
Vishous aproximou-se ainda mais, encostando os corpos, e depois envolveu-lhe a cintura com os braços. Segurando-a com uma mostra de posse, inclinou-a lentamente
para trás até que ela lhe agarrou os ombros e o cabelo lhe descaiu do rosto.
Quando ela arquejou, V disse exatamente aquilo em que estava a pensar:
- Tive saudades tuas.
E com essas palavras, levou a boca à dela e beijou-a profundamente, descendo uma mão até à anca e enfiando-lhe a língua na boca, e continuou, continuou, continuou...
Tinha a vaga noção de que a sala ficara em silêncio e de que tudo com batimento cardíaco o fitava e à sua parceira. Pouco importava. Era aquilo que queria fazer
e iria fazê-lo à frente de todos e até do cão do rei, segundo se viria a revelar.
Pois Wrath e Beth tinham acabado de chegar do átrio.
Quando Vishous endireitou lentamente a shellan, os gritos e os assobios fizeram-se ouvir e alguém atirou pipocas como se fossem confetes.
- Assim é que é - declarou Hollywood. E atirou mais pipocas.
Vishous pigarreou.
- Tenho um anúncio a fazer.
Certo. Muito bem, havia muitos olhos focados no par. Mas ia engolir a vontade de se calar.
Apertando a afogueada e enrubescida Jane a seu lado, disse alto e bom som:
- Vamos acasalar. Como deve ser. E espero que todos estejam presentes e... Pois, é isso.
Silêncio. De. Morte.
Wrath soltou a barra da coleira de George e começou a bater palmas. Lenta e sonoramente.
- Já não era sem tempo, porra.
Os irmãos dele e suas shellans e todos os convidados da mansão imitaram-no. Os guerreiros deram início a um cântico que deitou a casa abaixo com as suas vozes a
vibrar pelo ar.
Ao olhar para Jane, ela parecia radiante. Só lhe faltava brilhar.
- Talvez devesse ter perguntado primeiro - murmurou ele.
- Não. - Jane beijou-o. - Isto é perfeito.
Vishous começou a rir. Meu, se aquilo era viver em voz alta, nunca mais voltaria ao silêncio. Os irmãos apoiavam-no, a sua shellan estava feliz e... está bem, dispensava
as pipocas no cabelo, mas que se danasse.
Minutos depois, Fritz trouxe taças de champanhe e começou a ouvir-se outro tipo de estampido, com rolhas a voar enquanto o grupo falava ainda mais alto do que antes.
Quando alguém lhe enfiou um copo na mitene, murmurou ao ouvido de Jane:
- O champanhe deixa-me excitado.
- A sério?
Baixando a mão pela anca dela... e mais baixo... puxou-a contra a súbita ereção.
- Já conheces a casa de banho do átrio?
- Creio que já fomos apresentad... Vishous!
O macho parou de lhe mordiscar o pescoço, mas continuou a rebolar as ancas contra as dela. Era um pouco indecente, mas nada que os outros casais não fizessem de
tempos a tempos.
- Sim? - disse ele, num tom arrastado. Quando ela pareceu sem fala, sugou-lhe o lábio e murmurou: - Se bem te lembras, estávamos a falar sobre a casa de banho. Se
calhar podia voltar a apresentá-las. Não sei se te apercebeste, mas aquela bancada do lavatório tem andado a chorar por ti.
- E tu fazes alguns dos teus melhores trabalhos em lavatórios.
V percorreu-lhe o pescoço com uma presa.
- É verdade.
Quando a ereção começou a latejar, pegou na mão da fêmea...
O relógio de sala ao canto começou a bater as horas e V contou as badaladas. O que o fez recuar um pouco e confirmar o seu próprio relógio, embora não precisasse
porque o da sala dava as horas certas há dois séculos.
Quatro da manhã? Mas onde é que estava Payne?
Quando o impulso de ir ao Commodore e trazer a irmã se manifestou com força, teve de se recordar de que embora a alvorada se aproximasse rapidamente, ela ainda teria
uma hora. E tendo em conta o que ele e Jane estavam prestes a fazer à porta fechada, não a podia censurar por querer aproveitar cada segundo que tinha com o seu
macho, mesmo que definitiva e absolutamente não fosse por aí.
- Está tudo bem? - perguntou Jane.
Voltando ao programa da noite, V baixou a cabeça.
- Vai estar assim que te levar para aquela bancada.
Ele e Jane passaram quarenta e cinco minutos fechados nos lavabos.
Quando saíram, todos continuavam na sala de bilhar. A música estava mais alta e «I’m Not a Human Being», de Lil Wayne, ecoava até ao teto do átrio. Os doggen ocupavam-se
com acepipes finos em travessas de prata e Rhage tinha um círculo à sua volta a rir-se das piadas que contava.
Por um momento pareceu-lhe os velhos tempos.
Mas não viu a irmã no meio da multidão. E ninguém lhe foi dizer que ela tinha ido para o quarto de hóspedes que andava a usar.
- Já volto - disse a Jane. Com um beijo rápido, V deixou a festa, percorreu o átrio e entrou na sala de jantar vazia. Contornando a mesa, completamente posta mas
muito vazia, tirou o telemóvel do bolso e marcou o número que lhe dera.
Ninguém atendeu.
Voltou a tentar. Nada. Terceira tentativa? Ninguém... atendeu aquela porra.
Praguejando, marcou o número de Manello e arrepiou-se, tentando não pensar no que poderia estar a interromper. Provavelmente teriam fechado os cortinados e perdido
a noção do tempo. E os telefones tinham a mania de se perder no meio dos lençóis, pensou, com um esgar.
Trim... trim... trim...
- Atende, porra...
- Estou?
Manello parecia mal. Mal como em tiro. Mal como em moribundo.
- Onde está a minha irmã? - Porque o cirurgião não atenderia assim se a sua irmã estivesse na cama dele.
A pausa que se seguiu também não era bom sinal.
- Não sei. Ela saiu daqui há horas.
- Horas?!
- O que se passa?
- Cristo... - V desligou e voltou a marcar o número da irmã. E mais uma vez.
Virando a cabeça, olhou para o átrio e para a porta do vestíbulo.
Com um gemido discreto, as portadas de aço que protegiam a casa do sol começaram a descer.
Vá lá, Payne... vem para casa. Já.
Já...
O toque gentil de Jane trouxe-o de volta à realidade.
- Está tudo bem? - perguntou.
A primeira reação de V foi encobrir tudo com um comentário sobre a imitação de Rhage de Steve-O a ser projetado dentro de uma casa de banho portátil. Em vez disso,
obrigou-se a ser sincero com a companheira.
- A Payne... pode ter desaparecido. - Quando ela arquejou e levantou a outra mão, a vontade de V foi sair dali. Mas manteve-se firme no tapete oriental. - Ela saiu
da casa do Manello há horas... há horas! E agora estou a rezar a uma mãe que desprezo para que ela entre por aquela porta.
Jane não disse mais nada. Em vez disso, posicionou-se de maneira a ver a entrada pelo vestíbulo e esperou com ele.
Ao dar-lhe a mão, V apercebeu-se de que era um alívio não estar sozinho enquanto a festa decorria do outro lado... e a irmã ainda não tinha chegado a casa.
A visão que tivera dela no cavalo preto a toda a brida regressou-lhe no silêncio da sala de jantar. O cabelo preto dela voava-lhe atrás do corpo e a crina do garanhão
agitava-se também, com o par a galope... sabe Deus para onde.
Uma alegoria? interrogou-se. Ou apenas o desejo sentido pelo irmão de que ela fosse, por fim, livre...?
Quando o sol nasceu oficialmente, vinte e dois minutos depois, Jane e V continuavam ali juntos, a fitar uma porta que nunca se abriu.
Manny estava de cabeça perdida, absolutamente perdida, enquanto dava voltas ao apartamento. Tencionara sair de casa pouco depois de Payne, mas perdera a energia
e passara o resto da noite a fitar... a noite.
Demasiado vazio.
Estava demasiado esvaído para se mexer.
Quando o telefone tocou a seu lado, confirmou o número e reviveu por breves instantes. Número privado. Tinha de ser ela.
E, como a sua mente passara as últimas horas a rever tudo o que ela dissera, precisara de um instante para se concentrar depois de tantas voltas em vão. Na altura,
o discurso que debitara parecera racional, razoável e inteligente... até ficar a olhar para um futuro que era profundamente vazio.
Atendera o telefonema sem esperar uma voz masculina do outro lado. E muito menos o irmão dela.
E ainda menos ter o sacana a ficar surpreendido quando soube que Payne não estava no apartamento.
Enquanto Manny andava às voltas fitava o telefone, desejando que ele voltasse a tocar... desejando que aquela merda disparasse e que fosse Payne a dizer-lhe que
estava bem. Ou o irmão. Alguém.
Fosse quem fosse.
Pelo amor de Deus, até podia ser o Al Roker a telefonar-lhe e a dizer que ela estava bem.
Mas a alvorada chegou com demasiada celeridade e o telefone manteve-se excessivamente silencioso. E, como qualquer derrotado, foi à lista de chamadas e tentou responder
ao telefonema do «número privado». Quando só recebeu o sinal de chamada, teve vontade de atirar o telemóvel para o outro lado da sala, mas talvez não fosse boa ideia.
A impotência era terrível. Esmagadora.
Queria sair e... que merda, encontrar Payne se ela estivesse perdida. Ou levá-la para casa se estivesse sozinha. Ou...
O telefone tocou. Número privado.
- Foda-se, ainda bem - exclamou ao atender. - Payne...
- Não.
Manny fechou os olhos. O irmão dela parecia de rastos.
- Onde é que ela está?
- Não sabemos. E aqui não podemos fazer nada... ficámos fechados cá dentro. - O tipo exalou como se estivesse a fumar alguma coisa. - O que é que aconteceu antes
de ela sair daí? Pensei que ela fosse passar a noite contigo. Não há problema se vocês os dois... tu sabes... mas porque é que ela saiu tão cedo?
- Disse-lhe que as coisas não iam resultar.
Um silêncio longo.
- Mas o que é que tinhas na merda da cabeça?
Tornou-se óbvio que, se o sol não brilhasse lá fora, o cabrão estaria a bater à porta de Manny para dar cabo de um canastro italiano.
- Pensava que fosses ficar satisfeito com isso.
- Ah sim, claro... parte aí o coração da minha irmã. Parece-me uma bela ideia. - Outra exalação, como se soprasse fumo. - Ela está apaixonada por ti, meu idiota.
Ora se isso não o deixava sem saber o que dizer. Mas voltou ao assunto premente.
- Escuta, nós...
Nesse momento era suposto explicar os resultados dos exames físicos, como se sentia assoberbado e admitir que não sabia quais seriam as repercussões. Mas o problema
era que, desde que Payne partira, ele apercebera-se de que por mais sincero que tudo isso fosse, havia algo ainda mais fundamental a corroer-lhe o íntimo. Ele estava
a ser um fraco. A separação resumia-se ao facto de ele estar a borrar-se de medo por se ter apaixonado por uma mulher... uma fêmea... fosse o que fosse. Pois, havia
um sem fim de tretas metafísicas que ele não compreendia, nem era capaz de explicar, blá, blá, blá. Mas no fundo, o que se passava era que ele amava tanto Payne
que já não se reconhecia, e isso era o mais assustador.
Acobardara-se quando tivera oportunidade.
Mas isso acabara.
- Estamos apaixonados - declarou com toda a clareza.
E maldito fosse, devia ter tido tomates para lho dizer. E para a abraçar. E para a manter.
- Por isso repito, o que é que tinhas na merda da cabeça?
- Boa pergunta.
- Cristo.
- Escuta, como é que posso ajudar... Posso sair durante o dia e não há nada que eu não faça para a recuperar. Nada. - Alimentado pela obsessão, foi buscar as chaves.
- Se ela não está contigo, para onde iria. E aquele sítio... o Santuário?
- A Cormia e o Phury foram lá. Nada.
- Então... - Detestava pensar naquilo. - E os vossos inimigos? Onde é que eles ficam durante o dia... Eu vou lá.
Pragas. Mais soprar. Pausa. Depois um clique e uma inalação, como se o tipo estivesse a acender outro cigarro.
- Sabes, não devias fumar - ouviu-se Manny a dizer.
- Os vampiros não têm cancro.
- A sério?
- Sim. Certo, as coisas são assim. Não conhecemos uma morada específica da Sociedade dos Minguantes. Os matadores costumam misturar-se com a população humana em
pequenos grupos, pelo que é quase impossível encontrá-los sem provocar distúrbios graves. A única coisa... Vai aos becos na baixa ribeirinha. Ela pode ter encontrado
minguantes... vais procurar indícios de uma luta. Fica uma espécie de óleo preto por todo o lado. Como se fosse óleo de motor. E vai ter um cheiro adocicado... como
se fosse uma mistura de animal morto e talco. É bastante característico. Vamos começar por aí.
- Tenho de poder entrar em contacto contigo. Tens de me dar o teu número.
- Envio-te um sms com ele. Tens alguma arma?
- Sim, tenho. - Manny estava já a tirar a quarenta do armário. Passara toda a sua vida adulta na cidade e, às vezes, havia porcaria pelo que aprendera a usar uma
arma há cerca de vinte anos.
- Diz-me que é maior do que uma nove milímetros.
- É.
- Arranja uma faca. Precisas de uma lâmina de inox.
- Entendido. - Dirigiu-se à cozinha e pegou na maior e mais afiada Henckels que tinha. - Mais alguma coisa?
- Um lança-chamas. Matracas. Estrelas de arremesso. Uma Uzi. Queres que continue?
Se pelo menos dispusesse desse tipo de arsenal.
- Eu vou buscá-la, vampiro. Ouve bem o que te estou a dizer... eu vou buscá-la. - Pegou na carteira e estava a dirigir-se à porta quando o terror o imobilizou. -
Quantos são eles? Os vossos inimigos.
- Não têm fim.
- São... machos?
Pausa.
- Costumavam ser. Antes de serem transformados eram humanos.
Um som escapou-se da boca de Manny... algo que ele tinha a certeza nunca produzira antes.
- Não, ela safa-se com o combate corpo a corpo - disse o irmão num tom átono. - É forte.
- Não era nisso que estava a pensar. - Teve de esfregar os olhos. - Ela é virgem.
- Ainda...? - perguntou o vampiro, passado um instante.
- Sim. Não era correto que eu... lhe tirasse isso.
Cristo, pensar que poderia ser magoada...
Nem para consigo foi capaz de acabar a frase.
Regressando à ação, saiu de casa e chamou o elevador. Enquanto esperava, apercebeu-se de que já há algum tempo que só tinha silêncio do outro lado da linha.
- Estou? Estás aí?
- Sim. - Debitou a voz do gémeo dela. - Sim, estou aqui.
A ligação continuou ativa quando Manny entrou no elevador e pressionou G. A viagem até ao carro decorreu sem que nenhum dos dois dissesse nada.
- Eles são impotentes - resmungou finalmente o gémeo de Payne, quando Manny estava a entrar no Porsche. - Não podem fazer sexo.
Pois, isso não o ajudava a sentir-se melhor. E pelo tom da voz do irmão, o tipo pensava o mesmo.
- Eu ligo-te - disse Manny.
- Faz isso, meu. Acho bem que faças isso.
Capítulo 52
Quando Payne recuperou a consciência, não abriu os olhos. Não havia motivo para revelar que estava ciente do que a cercava.
A sensação corporal informou-a da situação em que se encontrava. Estava de pé, de pulsos agrilhoados e puxados para os lados, com as costas contra uma parede de
pedra húmida. Tinha os tornozelos igualmente cingidos e afastados, e a cabeça tombara para a frente numa posição muito desconfortável.
Quando inspirava sentia o cheiro a terra almiscarada e as vozes de machos chegavam-lhe vindas da esquerda.
Vozes muito graves. Com um tom excitado, como se tivessem tomado posse de uma mais-valia.
Ela.
Enquanto reunia as forças, não duvidava quanto ao que lhe iriam fazer. Em breve. E enquanto se recompunha evitava pensar no seu Manuel... de como, caso aqueles machos
levassem a deles avante, a maculariam vezes sem conta antes de a assassinarem, tomando aquilo que, por direito, deveria ter sido do seu curandeiro...
Mas não podia nem iria pensar nele. Esse pensamento seria um fosso negro que a sugaria, a encurralaria e a deixaria indefesa.
Em vez disso procurou as meadas da memória, cruzando as imagens do rosto dos seus raptores com aquilo que vira nas taças do Santuário.
Porquê? interrogou-se. Não fazia ideia por que motivo o macho do lábio arruinado a atacara com tanto ódio...
- Sei que estás desperta. - A voz era impossivelmente baixa, tinha um sotaque carregado e encontrava-se ao lado do seu ouvido. - A tua respiração mudou de ritmo.
Erguendo as pálpebras a par da cabeça, desviou o olhar na direção do soldado. Estava nas sombras a seu lado, pelo que não o pôde ver claramente.
De repente, as outras vozes silenciaram-se e sentiu muitos olhares em si.
Era assim que se sentiam as presas.
- Magoa-me que não te lembres de mim, fêmea. - Com essas palavras aproximou uma vela do rosto. - Penso em ti desde a primeira vez que nos vimos. Há dois séculos.
Payne semicerrou os olhos. Cabelo preto. Olhos azuis-escuros cruéis. E um lábio leporino com que obviamente nascera.
- Lembra-te de mim. - Não era uma questão, mas uma exigência. - Lembra-te de mim.
E então ocorreu-lhe. A pequena aldeia no limite de um vale arborizado. Onde ela matara o pai. Era um dos soldados do Derramador de Sangue. Não havia dúvida de que
todos eles seriam.
Ah, era definitivamente uma presa, pensou. E pretendiam magoá-la antes de a matarem por vingança por lhes ter retirado o líder.
- Lembra-te de mim.
- És um soldado do Derramador de Sangue.
- Não - bradou ele, aproximando o rosto. - Sou mais do que isso.
Quando Payne franziu o cenho, o macho recuou e descreveu um círculo apertado, os punhos cerrados, a vela a escorrer cera para cima da mão fechada.
Quando voltou à frente dela, estava controlado. Por pouco.
- Sou filho dele. Filho dele. Roubaste-me o meu pai...
- Impossível.
- ...injustamente... O quê?
- É impossível seres filho dele - disse Payne alto e bom som no silêncio atrapalhado que se seguiu.
Quando as palavras foram apreendidas, a fúria cega que lhe surgiu no rosto era a mais pura definição de ódio e a mão tremia-lhe quando a levantou acima do ombro.
Esbofeteou-a com tanta força que Payne viu estrelas.
Quando endireitou a cabeça e lhe susteve o olhar, Payne decidiu que não iria tolerar aquilo. Nem a crença errada. Nem o grupo de machos que a miravam. Nem a ignorância
criminosa.
Payne olhou o captor nos olhos.
- O Derramador de Sangue só foi progenitor de um macho...
- O Irmão Vishous, da Irmandade da Adaga Negra. - As gargalhadas duras ecoaram. - Ouvi bastantes histórias sobre as perversões dele...
- O meu irmão não é um pervertido!
Nesse momento, Payne perdeu o controlo, dominada pela fúria que tinha consigo na noite em que matara o pai. Vishous era do seu sangue e o seu salvador por tudo o
que fizera por ela. Não ia permitir que o desrespeitassem, mesmo que a defesa lhe custasse a vida.
No espaço de duas batidas de coração, foi consumida por uma energia interior que iluminou com uma luz branca brilhante a adega onde se encontravam.
As algemas dissolveram-se, caindo com estrépito na terra compactada.
O macho à sua frente saltou para trás, assumindo uma posição de combate, enquanto os outros procuravam armas. Mas ela não ia atacar... pelo menos fisicamente.
- Ouve-me - declarou ela. - Nasci da Virgem Escrivã. Pertenço ao Santuário das Escolhidas. Por isso, quando te digo que o Derramador de Sangue, o meu pai, não deu
origem a mais nenhum macho, isso é um facto.
- Que não é verdadeiro - murmurou o macho. - E tu... Não podes ter nascido da Mãe da raça. Ninguém nasceu dela...
Payne ergueu os braços luminosos.
- Sou o que sou. Nega-o por tua conta e risco.
A tez do macho perdeu a pouca cor que tinha e seguiu-se um compasso tenso e demorado, com armas convencionais apontadas na direção de Payne e ela a brilhar com a
fúria sagrada.
O soldado principal abandonou a pose de combate, com as mãos a penderem-lhe ao lado do corpo e as coxas a endireitarem-se.
- Não pode ser - tartamudeou. - Nada disso pode ser...
Macho idiota, pensou ela.
Erguendo o queixo, declarou:
- Sou a nascida do Derramador de Sangue e da Virgem Escrivã. E digo-te agora - avançou na direção dele - que matei o meu pai e não o teu.
Erguendo a mão, puxou-a atrás e esbofeteou-o.
- E não insultes o meu sangue.
Quando a fêmea lhe bateu, a cabeça de Xcor foi atirada com tanta força para o lado que quase deslocou o ombro numa tentativa de manter a mona presa à coluna. O sangue
encheu-lhe de imediato a boca, cuspindo-o antes de se endireitar.
Por sua fé, a fêmea que tinha à sua frente era majestosa na sua fúria e decisão. Quase tão alta como ele, fitava-o diretamente nos olhos, de pés firmes, as mãos
cerradas em punhos que estava preparada a usar contra ele e o seu bando de bastardos.
Não se tratava de uma fêmea vulgar. E não só pela forma como dissolvera as grilhetas.
Com efeito, quando os olhares se cruzaram, ela recordava-o o pai. Ela tinha a vontade férrea do Derramador de Sangue, não só no rosto, nos olhos ou no corpo. Tinha-a
na alma.
Com efeito, tinha noção de que poderiam cair todos sobre ela, e a fêmea combatê-los-ia até ao último fôlego.
Deus sabia que ela batia como um guerreiro, não como uma fêmea de pulsos fracos.
Mas...
- Ele era meu pai. Ele próprio mo disse.
- Era um mentiroso. - E nem pestanejou. Não baixou o olhar ou o queixo. - Contemplei inúmeras filhas bastardas nas taças de visão. Mas só houve um único filho, o
meu gémeo.
Xcor não estava preparado para ouvir aquilo, muito menos à frente dos seus machos.
Relanceou-os. Até Throe se armara e todos os rostos denotavam uma fúria impaciente. Com um mero sinal cairiam sobre ela, mesmo que os incinerasse a todos.
- Deixem-nos - ordenou.
Sem grande surpresa, foi Zypher quem começou a argumentar.
- Deixa-nos segurá-la enquanto tu...
- Deixem-nos.
Seguiu-se um momento de imobilidade, após o que Xcor bradou:
- Deixem-nos!
Num abrir e fechar de olhos, todos desapareceram pela escadaria de acesso à casa escurecida lá em cima. Depois a porta fechou-se e ouviram-se os passos no piso superior,
enquanto davam voltas, quais animais enjaulados.
Xcor voltou a concentrar-se na fêmea.
E durante muito tempo limitou-se a fitá-la.
- Procurei-te durante séculos.
- Não estive na Terra. Até agora.
Permaneceu hirta, enquanto ele a confrontava em privado. Absolutamente hirta. E quando lhe perscrutou o rosto, Xcor sentiu o gelo do seu coração a mover-se.
- Porque... o mataste? - indagou, num tom rouco.
A fêmea pestanejou lentamente, como se não quisesse demonstrar vulnerabilidade e precisasse de um instante para garantir que não a revelava.
- Porque ele magoou o meu gémeo. Ele... torturou o meu irmão, e por isso teve de morrer.
Então, talvez as lendas tivessem um fundo de verdade, pensou Xcor.
Com efeito, à semelhança da maioria dos soldados, há muito que conhecia a história que contava que o Derramador de Sangue exigira que o filho fosse imobilizado no
chão e tatuado... e depois castrado. A narrativa dizia que a lesão fora apenas parcial. Dizia-se que Vishous queimara com magia as amarras que o prendiam e depois
fugira para a noite, antes que o ato fosse completado.
Xcor olhou para as grilhetas que tinham caído dos pulsos da fêmea... queimadas.
Erguendo as mãos, olhou para a sua carne. Que nunca brilhara.
- Ele disse-me que eu nasci de uma fêmea que o procurara em troca de sangue. Disse-me... que ela não me quis por causa do meu... - Tocou no lábio superior deformado,
deixando a frase por concluir. - Ele aceitou-me e... ensinou-me a lutar. A seu lado.
Xcor tinha uma vaga noção de que a sua voz estava rouca, mas não se preocupou com isso. Sentia-se como se olhasse para um espelho e visse um reflexo seu que não
reconhecia.
- Disse-me que era filho dele... e teve-me como a um filho. Depois da morte assumi o lugar dele, tal como fazem os filhos.
A fêmea avaliou-o e depois abanou a cabeça.
- E eu digo-te que ele mentiu. Olha-me nos olhos. Sabes que te digo a verdade que há muito, muito tempo deverias ter ouvido. - A voz reduziu-se a um murmúrio. -
Conheço bem a traição do sangue. Conheço bem a dor que sentes agora. Não é justo o fardo que carregas. Mas peço-te, não baseies uma vingança numa ficção. Pois serei
obrigada a matar-te... e se não for eu, o meu gémeo vai caçar-te com a Irmandade, e vai fazer-te suplicar pela morte.
Xcor analisou-se e viu algo que desprezava, mas que não podia ignorar. Não tinha memória da cabra que o parira, mas conhecia bem a história de como ela o expulsara
da sala de partos devido à sua fealdade.
Quisera ser reivindicado. E o Derramador de Sangue assim o fizera. A malformação física nunca fora relevante para aquele macho. Apenas se preocupara com as capacidades
que Xcor tinha em abundância: velocidade, resistência, agilidade, poder... e uma concentração mortífera.
Xcor sempre partira do princípio de que recebera isso do lado do pai.
- Ele deu-me um nome - ouviu-se a dizer. - A minha mãe recusou-se a fazê-lo. Mas o Derramador de Sangue... deu-me nome.
- Lamento muito.
O mais estranho em tudo aquilo? Acreditava nela. Antes pronta a combater até à morte, ela agora parecia entristecida.
Xcor afastou-se dela e andou em círculos.
Se não era o filho do Derramador de Sangue, quem era ele? E ainda lideraria os seus machos? Ainda o seguiriam em batalha?
- Olho para o futuro e vejo... nada - resmungou.
- Também sei como é isso.
Parou e encarou a fêmea. Cruzara os braços sobre os seios e não o olhava, mas sim para a parede à frente dela. Naquelas feições viu o mesmo vazio que sentia no próprio
peito.
Erguendo os ombros, dirigiu-se a ela.
- Não tenho qualquer questão a resolver contigo. As ações dirigidas contra o meu - pausa - contra o Derramador de Sangue... foram levadas a cabo pelas tuas razões
válidas.
Com efeito, tinham sido orientadas pela mesma lealdade de sangue e pelo mesmo espírito de vingança que animara a sua busca por ela.
Num gesto digno de um guerreiro, ela curvou-se pela cintura, aceitando as palavras dele e limpando o ar entre os dois.
- Sou livre de partir?
- Sim... mas é dia. - Quando ela olhou em volta para os beliches e enxergas, como se imaginasse os machos que a queriam, ele declarou: - Nenhum mal te será feito
aqui. Sou o líder e eu... - Bem, ele fora o líder. - Passaremos o dia lá em cima para que tenhas privacidade. Tens comida e bebida naquela mesa.
Xcor fez as ofertas de privacidade e provisão sem pensar nas questões de dignidade que envolviam as Escolhidas. Mas aquela fêmea era... merecedora do seu respeito.
Se alguém entendia a importância da vingança contra um insulto feito à família, era ele. E o Derramador de Sangue infligira danos permanentes ao irmão dela.
- Pelo cair da noite - indicou - levar-te-emos daqui vendada, pois não deves saber onde nos encontramos. Mas serás libertada ilesa.
Virando-lhe as costas, dirigiu-se ao único catre sem parte de cima. Mesmo sentindo-se um idiota, esticou o cobertor grosseiro. Não havia almofada, pelo que se baixou
e apanhou uma pilha das suas camisas lavadas.
- É onde eu durmo... podes usá-lo para descansar. E para que não receies pela tua segurança ou virtude, está uma arma de cada lado, no chão. Mas não te preocupes.
Chegarás ao pôr-do-sol em segurança.
Não fez qualquer voto pela sua honra pois, a bem da verdade, não a possuía. E não olhou para trás quando se dirigiu às escadas.
- Qual é o teu nome? - perguntou ela.
- Não o sabes já, Escolhida?
- Não sei tudo.
- Pois. - Levou a mão ao balaústre grosseiro. - Eu também não. Bom dia, Escolhida.
Ao subir as escadas, sentia-se como se tivesse envelhecido séculos desde que carregara o corpo inanimado e quente da fêmea para o subterrâneo.
Ao abrir a robusta porta de madeira, não fazia ideia do que o esperava. Após o anúncio do seu estatuto, os machos poderiam ter-se reunido e decidido expulsá-lo...
Ali estavam todos, num semicírculo, com Throe e Zypher nos extremos do grupo. Tinham armas nas mãos e os rostos ostentavam expressões sombrias... e esperavam que
ele dissesse alguma coisa.
Fechou a porta e encostou-se a ela. Não era cobarde, para fugir deles ou do que acontecera lá em baixo, e não via qualquer utilidade em justificar o que fora revelado
com palavras cuidadosas, ou com pausas.
- A fêmea disse a verdade. Não tenho uma ligação de sangue com aquele que julgava ser meu progenitor. O que me dizem?
Não proferiram qualquer palavra. Não trocaram olhares. E não houve hesitação.
Ajoelharam-se em uníssono, chegando ao soalho e curvando as cabeças. Foi Throe quem falou.
- Estamos eternamente às tuas ordens.
Ao ouvir a resposta, Xcor pigarreou. E outra vez. E ainda mais uma vez. Na Língua Antiga declarou:
- Nenhum líder alguma vez contemplou costas mais fortes e mais leais do que as reunidas perante mim.
Throe ergueu o olhar.
- Não foi a memória do teu pai que servimos ao longo de tantos anos.
Ouviu-se um ulular de concordância, muito mais significativo do que qualquer voto que pudesse ter sido feito com uma linguagem floreada. Logo depois o soalho de
madeira a seus pés foi trespassado por adagas, os punhos seguros pelas mãos de soldados que eram e sempre seriam seus para comandar.
E teria deixado as coisas ficarem por aí, mas os seus planos a longo prazo exigiam uma revelação e uma nova confirmação.
- O meu objetivo não se limita a combater ao lado da Irmandade - disse em voz baixa, para que a fêmea lá em baixo nada ouvisse. - A minha ambição é uma sentença
de morte caso seja descoberta por outros. Compreendem o que estou a dizer?
- O rei - murmurou alguém.
- Sim. - Xcor fitou os olhos de cada um. - O rei.
Nenhum deles desviou o olhar, nem se levantou. Eram uma unidade sólida de músculos, força e determinação mortífera.
- Se isso alterar a decisão de qualquer um de vós - quis saber -, dir-me-ão agora e partirão ao cair da noite para não mais voltar, sem risco de pena de morte.
Throe quebrou fileiras baixando a cabeça. Mas não passou daí. Não se levantou, nem se afastou dali, nem mais ninguém o fez.
- Bom - disse Xcor.
- E quanto à fêmea? - indagou Zypher com um sorriso sombrio.
Xcor abanou a cabeça.
- Nem pensar. Ela não merece qualquer castigo.
O macho ergueu as sobrancelhas.
- Ótimo. Então posso recompensá-la.
Pelo amor de Deus, era demasiado parecido com o maldito Lhenihan.
- Não. Não lhe vais tocar. Ela é uma Escolhida. - Isso prendeu-lhes a atenção, mas Xcor não revelaria mais. Já estava farto de os ouvir. - E vamos dormir aqui.
- Mas que raios?! - Zypher levantou-se e os outros imitaram-no. - Se me dizes que ela é proibida, deixo-a em paz, tal como farão os outros. Porque é que...
- Porque é isso que eu ordeno.
Para marcar a sua posição, Xcor sentou-se à frente da porta, de costas contra os painéis. Em campo confiava a vida aos seus soldados, mas lá em baixo estava uma
fêmea bela e poderosa, e aquele grupo era constituído por sacanas excitados, sempre com cio.
Para chegar a ela teriam de passar por ele.
Afinal de contas, ele era um bastardo, mas ainda tinha os seus códigos, e ela merecia a proteção de que provavelmente não precisava pelo favor que lhe fizera.
Matar o Derramador de Sangue?
Afinal de contas tinha sido um favor prestado a Xcor.
Pois isso significava que não teria de ser ele próprio a acabar com o desgraçado.
Capítulo 53
Manny estava ao volante do seu carro, as mãos a apertar com força, os olhos fitos na estrada à sua frente, quando fez uma curva apertada... e foi dar com o tipo
de cena exata que Vishous descrevera.
Já não era sem tempo, porra. Só precisara de cerca de três horas às voltas em quarteirão atrás de quarteirão atrás de merda de quarteirão até dar com aquilo.
Mas sim, era aquilo que procurava. À luz das dez da manhã que brilhava entre os edifícios, uma nojeira oleosa cintilava no alcatrão, nas paredes de tijolo, no contentor
do lixo e nas janelas tapadas com rede metálica.
Deixou o carro em ponto morto e pisou o travão.
Assim que abriu a porta, encolheu-se.
- Grande merda...
O fedor era indescritível. Devia ser assim tão mau porque lhe entrava diretamente pelo nariz e desligava-lhe o cérebro.
Mas reconheceu-o. O tipo com o boné dos Sox tresandava a isso na noite em que Manny operara os vampiros.
Pegou no telefone, marcou o número supersecreto de Vishous e pressionou OK. Mal chegou a tocar e o gémeo de Payne atendeu.
- Já encontrei - disse Manny. - É exatamente o que disseste... meu, que cheiro. Pois. Sim. Certo. Já te ligo.
Ao desligar, parte dele estava a ir-se abaixo, pensando na possibilidade de Payne se poder ter envolvido no que fora claramente um banho de sangue. Mas manteve-se
firme enquanto procurava alguma coisa, qualquer coisa que lhe pudesse dizer o que acontecera...
- Manny?
- Porra! - Quando deu meia volta agarrou a cruz, ou talvez o coração, para que não lhe saltasse pelo esterno. - Jane?
A forma etérea da antiga chefe de traumatologia solidificou-se à frente dos olhos.
- Olá.
A primeira coisa em que ele pensou foi, Ai, meu Deus, o sol... o que era prova de quanto a sua vida mudara.
- Espera! Não tens problemas com a luz do dia...
- Pois não. - Estendeu a mão e acalmou-o. - Vim ajudar... o V disse-me onde estavas.
Manny agarrou-lhe brevemente o ombro.
- Estou... muito contente por te ver.
Jane abraçou-o rapidamente.
- Vamos encontrá-la. Garanto.
Pois, mas em que estado iriam encontrá-la?
Vasculharam juntos o beco, percorrendo tanto as sombras como as zonas iluminadas. Graças a Deus ainda era cedo e aquela zona da cidade era deserta, pois não se encontrava
em condições de lidar com a complicação que seria ter pessoas - especialmente polícias - a aparecerem.
Durante a meia hora que se seguiu, ele e Jane analisaram cada centímetro quadrado do beco, mas só encontraram os restos de uso de drogas, algum lixo e uma série
de preservativos que não pretendia ver com grande atenção.
- Nada - resmungou. - Absolutamente nada.
Pois. Certo. Ia ter de continuar a andar, a vasculhar, a rezar...
O som de algo a estremecer fê-lo virar a cabeça e depois atraiu-o para junto do contentor.
- Está qualquer coisa a fazer barulho aqui - alertou, ao ajoelhar-se. Claro que com a sorte dele, não deveria ser mais do que uma ratazana a tomar o pequeno-almoço.
Jane aproximou-se quando ele estendeu a mão por baixo do contentor de lixo.
- Acho... acho que é um telefone - resmungou enquanto se esticava e tateava com a ponta dos dedos, na esperança de alcançar a coisa. - Apanhei-o.
Recuando, descobriu que, sim, era um telemóvel rachado regulado para vibrar, o que explicava o ruído. Infelizmente, quem estivesse a ligar foi transferido para o
voice mail no momento em que tentava atender.
- Meu, está cheio de uma porcaria oleosa. - Limpou a mão no canto do contentor - o que era revelador. - E o telefone está protegido com palavra-passe.
- Temos de o levar ao V... ele consegue aceder a qualquer coisa.
Manny levantou-se e olhou para ela.
- Não sei se lá poderei entrar. - Tentou entregar-lhe o telefone. - Toma. Leva-o tu e eu vou ver se encontro outras cenas como esta.
Embora, a bem da verdade, parecesse que já tinha percorrido toda a baixa.
- Não preferes saber o que se passa em primeira mão?
- Sim, mas...
- E se o V encontrar alguma coisa, não preferes sair para tratar do assunto com o equipamento adequado?
- Claro, mas...
- Nunca ouviste falar em fazer qualquer coisa e depois pedir desculpas? - Quando ele ergueu uma sobrancelha, Jane encolheu os ombros. - Foi assim que passei anos
a lidar contigo no hospital.
Manny agarrou o telemóvel com mais força.
- Estás a falar a sério?
- Eu levo-te ao complexo, e se alguém tiver algum problema, eu trato do assunto. E posso sugerir que passemos pela tua casa primeiro para ires buscar o que precisas
para passar algum tempo fora?
Manny abanou lentamente a cabeça.
- Se ela não aparecer...
- Não. Não dizemos «não». - Os olhos de Jane estavam fitos nos dele. - Quando ela vier para casa, demore o que demorar, vais lá estar. O V disse que tinhas deixado
o trabalho... porque a Payne lhe contou. E depois podemos falar sobre isso...
- Não há nada a falar. A direção do St. Francis praticamente pediu-me que me despedisse.
Jane engoliu em seco.
- Ó, meu Deus... Manny...
Cristo, ele nem acreditou no que lhe saiu à boca:
- Não faz mal, Jane. Desde que ela regresse bem... só isso me interessa.
Jane fez sinal com a cabeça na direção do carro.
- Então porque é que ainda estamos a falar?
Muito bem visto.
Correram para o Porsche, puseram os cintos e arrancaram, com Jane ao volante.
Enquanto ela acelerava a caminho do Commodore, ele transformara-se com o sentido de objetivo. Estragara as coisas com a sua mulher uma vez. Isso não voltaria a acontecer.
Jane parou à frente do arranha-céus enquanto ele correu até ao átrio, subiu no elevador e entrou em casa. Rapidamente pegou no computador portátil, no carregador
do telemóvel...
O cofre.
Correndo para o roupeiro no quarto, introduziu o código e destrancou a pequena porta. Com as mãos rápidas e a mente firme, tirou a certidão de nascimento, sete mil
dólares em dinheiro, dois relógios Piaget de ouro e o passaporte. Pegando num saco ao acaso, enfiou tudo lá dentro, a par do computador e do carregador. Depois foi
buscar mais dois sacos que praticamente vomitavam roupas e saiu a correr do apartamento.
Enquanto aguardava pelo elevador, deu-se conta de que estava a deixar a vida para trás. De vez. Quer ficasse ou não com Payne, não voltaria ali... e não se tratava
só da morada física.
Assim que entregara as chaves a Jane pela segunda vez, virara uma esquina numa tempestade de neve metafórica. Não fazia ideia do que estava à frente, mas não ia
voltar atrás, e por ele tudo bem.
Chegado à rua, atirou as coisas para a bagageira e para o banco traseiro.
- Vamos embora.
Cerca de trinta e cinco minutos depois, Manny regressava aos terrenos incertos da montanha dos vampiros.
Olhando para o telemóvel quase destruído que tinha na mão, rezou para que aquela potencial ligação entre ele e Payne os voltasse a unir e para que tivesse uma oportunidade
com aquilo que desperdiçara...
- Grande... porra... - Lá à frente, a surgir da estranha neblina, agigantava-se uma enorme rocha, grande como o monte Rushmore. - Aquilo é... uma porra de uma casa.
Mausoléu seria outro termo.
- Os Irmãos levam a segurança muito a sério. - Jane parou o carro à frente de uma escadaria digna de uma catedral.
- Ou isso - resmungou ele -, ou os sogros de alguém são donos de uma pedreira.
Saíram juntos e antes de pegar nos sacos, Manny observou a paisagem. O muro que se perdia de vista em ambas as direções tinha uns bons seis metros de altura, e havia
câmaras espalhadas pelo exterior, bem como rolos de arame farpado no cimo. A mansão em si era enorme, espraiando-se em todas as direções, parecendo ter três pisos.
E quem falara em fortaleza? Todas as janelas estavam cobertas com placas de metal e as portas eram duplas. Parecia que seria preciso um tanque para as atravessar.
Havia uma série de carros no pátio, alguns dos quais, em outras circunstâncias, o teriam atraído profundamente, e uma outra casa muito mais pequena feita da mesma
pedra que o castelo. A fonte ao centro estava seca, mas ele imaginava os sons apaziguadores que faria quando a água estivesse a jorrar.
- Por aqui - indicou Jane ao abrir a mala do carro e tirar um dos sacos.
- Eu levo isso. - Manny pegou no que ela tirara, bem como nos outros dois. - As senhoras primeiro.
Jane telefonara ao homem dela a caminho dali, pelo que Manny imaginava que o povo de Payne não o mataria assim que lhe pusessem a vista em cima, mas não havia como
ter a certeza.
Ainda bem que, naquele momento, ele se estava borrifando para si próprio.
Na entrada, Jane tocou à campainha e ouviu-se uma tranca a abrir-se. Entrando com ela, Manny deu consigo num vestíbulo sem janelas que o fez pensar numa prisão...
uma prisão muito elegante e cara, com painéis de madeira entalhada e o cheiro a limão no ar.
Nunca sairiam dali, a menos que alguém os deixasse.
Jane falou para uma câmara.
- Somos nós. Estamos...
O segundo conjunto de portas abriu-se de imediato e Manny teve de pestanejar várias vezes perante o que lhe foi dado a ver. O átrio brilhante e garrido do outro
lado não era de todo o que esperara. Majestoso e com todas as cores do arco-íris, era tudo o que o exterior fortificado não era. E Cristo, parecia que tinha sido
usado todo o tipo de mármore decorativo possível... e olhem só para todo o cristal e talha dourada.
Entrou e viu o fresco no teto dois andares lá em cima... e uma escadaria que fazia com que a do E Tudo o Vento Levou parecesse um escadote.
Quando a porta se fechou atrás de si, o irmão de Payne saiu do que parecia ser uma sala de bilhar, com o Red Sox a seu lado. Quando o vampiro avançou, todo ele era
ação, prendendo o cigarro enrolado entre as presas e puxando as calças de cabedal.
Parando à frente de Manny, os dois machos entreolharam-se... até se pensar se as coisas chegariam ao fim mesmo antes de começarem, com Manny a ser transformado em
refeição.
Mas o vampiro estendeu a mão.
Claro... o telemóvel.
Manny largou os sacos e tirou o BlackBerry do bolso do casaco.
- Toma... foi isto...
O tipo aceitou o que lhe foi oferecido, mas nem olhou para o aparelho. Limitou-se a passá-lo para a mão livre e voltou a estender a palma.
O gesto era tão simples... o seu significado muito, muito profundo.
Manny apertou a sua mão à dele, e nenhum dos dois disse nada. Não havia necessidade, pois a comunicação estabelecida era clara. Estava a ser apresentado e respeitado
por ambos os lados.
Quando largaram as mãos, Manny disse:
- O telefone?
O vampiro acedeu ao aparelho numa questão de segundos.
- Cristo... és rápido - murmurou Manny.
- Não. Foi o que eu lhe dei. Estava a ligar-lhe de hora a hora. O GPS foi... se não tinha-te dado a morada de onde o encontraste.
- Porra. - Manny esfregou o rosto. - Não havia lá mais nada. A Jane e eu vasculhámos o sítio... e já tinha passado horas a conduzir pela baixa. E agora?
- Esperamos. Não podemos fazer mais nada enquanto houver sol. Mas assim que escurecer, a Irmandade vai sair daqui com fogo nos pés. Não te preocupes, vamos encontrá-la...
- Eu também vou - atalhou Manny. - Só para que se sabia.
Quando o gémeo de Payne começou a abanar a cabeça, Manny interrompeu quaisquer protestos, fossem eles razoáveis ou não.
- Sinto muito. Pode ser a tua irmã que anda perdida... mas é a minha mulher. E isso significa que vou fazer parte disto.
Terminado o discurso, o macho do boné de basebol tirou o chapéu e esfregou o cabelo.
- Louvado seja Deus...
Manny estacou, perdendo o resto que foi dito pelo tipo.
Aquele rosto... aquele maldito rosto.
Aquele... santa mãe... rosto.
Manny estivera errado quanto ao sítio de onde conhecia o tipo.
- O que foi? - indagou o Red Sox.
Manny tinha a vaga noção de que o irmão de Payne estava a franzir o sobrolho e de que Jane parecia preocupada. Mas estava concentrado no outro homem. Perscrutou
aqueles olhos cor de avelã, aquela boca e aquele queixo, em busca de algo que não batesse certo, algo deslocado... algo que desmentisse o que ele estava a ver.
A única coisa ligeiramente desenquadrada era o nariz, mas isso porque teria sido partido pelo menos uma vez.
A verdade estava nos ossos.
E a ligação não era o hospital, nem sequer a Catedral de St. Patrick porque, já que pensava nisso, tinha mesmo visto aquele homem, macho... vampiro, fosse o que
fosse... na igreja.
- Mas que raios? - resmungou Butch, olhando para Vishous.
À laia de explicação, Manny baixou-se e vasculhou os sacos. Enquanto procurava o que não trouxera intencionalmente, teve a certeza de que o iria encontrar. O destino
alinhara os dominós com demasiada perfeição para que aquele momento não acontecesse.
E sim, lá estava.
Quando Manny se endireitou, as mãos tremiam-lhe tanto que o suporte batia nas costas da moldura.
Já que perdera a voz, nada mais tinha a fazer do que virar o vidro para mostrar àqueles três a fotografia a preto e branco.
Que era a cópia exata do macho chamado Butch.
- Este é o meu pai - disse Manny, num tom rouco.
A expressão do tipo era de um choque profundo, e as mãos dele começaram igualmente a tremer quando as estendeu e segurou, com todo o cuidado, na velha fotografia.
Nem se deu ao trabalho de negar nada. Não tinha como.
O irmão de Payne exalou uma nuvem de fumo de cheiro maravilhoso.
- Grande cena.
Bem, era um resumo perfeito.
Manny olhou para Jane e depois fitou o homem que bem podia ser um meio-irmão.
- Reconhece-lo?
Quando o tipo abanou lentamente a cabeça, Manny olhou para o gémeo de Payne.
- Os humanos e os vampiros podem...
- Sim.
Quando voltou a mirar o rosto que não devia ser assim tão familiar, pensou, Cruzes, como podia ser.
- Quer dizer que és...
- Mestiço? - completou o macho. - Sim. A minha mãe era humana.
- Grande porra - murmurou Manny.
Capítulo 54
Ao segurar a imagem de um homem que era indiscutivelmente idêntico a si, Butch pensou, bizarramente, nos sinais amarelos das autoestradas.
Os que diziam coisas como gelo na ponte... ou queda de pedras... ou o temporário máquinas em manobras quando nos aproximávamos de uma zona de perigo. Que raios,
até os que tinham a silhueta de um veado a saltar, ou uma grande seta preta a apontar para a esquerda ou para a direita.
Naquele momento, ali no átrio, teria agradecido qualquer pré-aviso de que a sua vida estava prestes a descarrilar por completo.
Claro que um choque frontal não era algo que se planeasse.
Desviou a atenção da fotografia e fitou os olhos do cirurgião humano. Eram castanho-escuros, da cor de um bom porto. Mas a forma... como podia não ter identificado
a semelhança com os seus?
- Tens a certeza - ouviu-se a perguntar. - Este é o teu pai?
Mas já sabia a resposta antes de o tipo assentir.
- Quem... como... - Pois, grande jornalista que ele daria. - O que...
Ora aí estava. Bastava juntar onde e quando e tínhamos uma notícia do caraças.
O problema era que, depois de ter acasalado com Marissa e de ter passado pela transição, encontrara finalmente paz com quem era e com o que fazia na vida. Por outro
lado, no mundo humano sempre estivera afastado de todos, avançando paralelamente, mas sem nunca se cruzar com a mãe, as irmãs e os irmãos.
E com o pai, claro.
Ou pelo menos com o homem que lhe tinham dito ser o seu pai.
Partira do princípio de que, com o seu lar e parceira ali, deixara de precisar de assimilar e chegara a uma reconciliação pacífica com muito do que fora doloroso.
Mas agora era como que voltar à merda.
O humano falou com gravidade.
- Ele chamava-se Robert Bluff. Era cirurgião no Presbiteriano de Columbia, em Nova Iorque, onde a minha mãe trabalhava como enfermeira...
- A minha mãe era enfermeira. - Butch sentia a boca seca. - Mas não nesse hospital.
- Ela exerceu em muitos sítios... até... em Boston.
Seguiu-se um longo silêncio, durante o qual Butch considerou a hipótese de uma eventual infidelidade por parte da mãe.
- Alguém precisa de uma bebida, certo? - interveio V.
- Lag...
- Lagavulin...
Butch e o cirurgião calaram-se enquanto Vishous revirava os olhos.
- Por que será que isto não me surpreende?
Quando o irmão se dirigiu ao bar na sala de bilhar, Manello disse:
- Nunca o cheguei a conhece-lo. Devo tê-lo visto, tipo... uma vez? Sinceramente, já nem me lembro.
V armou-se em comissário de bordo e chegou com a bebida para os dois.
Quando Butch bebeu um gole, Manello fez o mesmo e depois abanou a cabeça.
- Sabes, nunca gostei desta merda até que...
- O quê?
- Vocês me começaram a foder a cabeça. Costumava gostar de Jack. Mas no ano passado... tudo mudou.
Butch aquiesceu, mesmo sem estar a acompanhar a conversa. Meu, não conseguia deixar de olhar para a fotografia, e pouco depois apercebeu-se de que, de uma forma
estranha, tudo aquilo era um alívio. A regressão ancestral provara que ele era aparentado de Wrath, mas ele nunca soubera, nem quisera realmente saber, ao certo
como. E agora ali estava. À sua frente.
Cristo, era como se sempre tivesse sofrido de uma doença e finalmente alguém lhe dava um nome.
Tens Outro-pai-ite. Ou seria Bastard-oma?
Fazia sentido. Sempre imaginara que o pai o odiava, e talvez fosse esse o motivo. Embora fosse quase impossível imaginar a sua casta e religiosa mãe a descarrilar,
aquela fotografia contava a história de pelo menos uma noite com outra pessoa.
O primeiro instinto foi que tinha de falar com a mãe e pedir-lhe pormenores... bem, alguns pormenores.
Mas como poderia isso resultar? A demência afastara-a da realidade e agora estava tão distante que mal o reconhecia quando ele a visitava, a única razão para a poder
visitar de todo. E não poderia perguntar às irmãs ou aos irmãos. Eles tinham-no rejeitado há muito, quando desaparecera, e era pouco provável que eles soubessem
mais alguma coisa.
- Ele ainda está vivo? - perguntou Butch.
- Não tenho a certeza. Costumava pensar que ele estava enterrado no Cemitério de Pine Grove. Agora? Quem sabe?
- Eu posso descobrir. - Quando V falou, Butch e Manny olharam ao mesmo tempo para o irmão. - Basta dizerem e eu encontro-o... quer esteja no mundo vampiro ou no
humano.
- Encontrar quem?
A voz grave chegou vinda do cimo das escadas, e todos olharam enquanto as palavras reverberavam pelo átrio. Wrath estava no patamar do primeiro andar com George
a seu lado. O humor do rei era fácil de identificar, mesmo tendo os olhos ocultos por aqueles óculos. Estava com um estado de espírito mortífero.
Claro que era difícil de imaginar se isso se devia ou não ao humano no átrio, pois Deus sabia que o tipo tinha mil coisas em que pensar.
Vishous tomou a palavra, o que foi uma boa opção. Butch perdera a voz e, como era óbvio, Manello também.
- Parece que este belo cirurgião pode ser teu familiar, meu senhor.
Quando Manello recuou, Butch pensou, Santa mãe.
Mais lenha para a fogueira.
Manny esfregou as frontes enquanto o tremendo vampiro de cabelo preto pela cintura descia as escadas, com o cão amarelado a parecer indicar o caminho. O sacana parecia
ser o dono do sítio e, tendo em conta a treta do «meu senhor», era provável que fosse.
- Será que ouvi bem, V? - perguntou o macho.
- Sim. Ouviste.
Eeeeeeee isso resolvia outra questão pois Manny começava igualmente a questionar a sua própria audição.
- Este é o nosso rei - anunciou Vishous. - Wrath, filho de Wrath. Este é o Manello. Doutor Manny Manello. Acho que ainda não tinham sido apresentados formalmente.
- És o que pertence a Payne.
Aí não houve hesitação. A sua resposta também não tardou:
- Sim. Sou eu.
O ronco grave que saiu da boca cruel era parte gargalhada, parte praga.
- E achas que estamos relacionados de que maneira?
V pigarreou e interveio.
- Há uma semelhança física extraordinária entre o pai do Manny e o Butch. Quer dizer... porra, é como estar a ver uma fotografia do meu amigo.
As sobrancelhas escuras desapareceram atrás dos óculos. Depois a expressão atenuou-se.
- Escusado será dizer que não posso fazer essa avaliação.
Ah, então era cego. Isso explicava o cão.
- Podemos fazer-lhe uma regressão ancestral - sugeriu Vishous.
- Isso - apoiou Butch. - Vamos...
- Calma aí, isso não o pode matar? - interveio Jane.
- Esperem lá. - Manny recuou um passo de mãos erguidas. - Esperem lá um bocado. Regressão quê?!
Vishous soprou fumo.
- É um processo através do qual eu entro em ti e vejo quanto do nosso sangue te corre nas veias.
- Mas pode matar-me? - Porra, ter Jane a abanar a cabeça não inspirava nenhuma confiança.
- É a única maneira de ter a certeza. Se fores meio-sangue, não podemos ir para o laboratório e fazer-te uma análise ao sangue. Os meios-sangues são diferentes.
Manny olhou à volta para todos eles. O rei, Vishous, Jane... e o tipo que podia ser um meio-irmão. Cristo, talvez fosse por isso que se sentia tão diferente em relação
a Payne. Assim que a vira foi como... se uma parte dele tivesse despertado.
Talvez também explicasse o seu mau feitio.
E depois de uma vida inteira a questionar-se quanto ao seu pai e às suas raízes, pensou... agora podia saber a verdade.
Mas quando eles lhe retribuíram o olhar, lembrou-se de ter ido ao hospital na semana anterior julgando que era de dia, mas descobrir que era de noite. E depois ocorreu-lhe
o que se passara com Payne e com as alterações no seu corpo.
- Sabem que mais? - disse. - Acho que vou dispensar.
Quando Jane aquiesceu, como se concordasse com ele, teve a certeza de estar a tomar a decisão correta.
Além disso, estavam a desviar-se do verdadeiro problema.
- Seja como for, a Payne vai voltar - declarou. - E não vou deixar que me apontem uma arma à cabeça antes de a voltar a ver... mesmo que isso seja a diferença entre
pertencer a este mundo ou não. Sei quem é o meu pai... e neste momento estou a olhar para o reflexo dele à minha frente. Não preciso de ir mais longe... a menos
que a Payne não concorde.
Cristo... a mãe, pensou de repente. Teria ela sabido?
Quando Vishous cruzou os braços sobre o peito, Manny preparou-se para uma discussão.
- Gosto do teu traseiro - disse, em vez disso. - A sério que gosto.
Tendo em conta aquilo a que o sacana tinha assistido não há muito tempo, isso surgiu como uma surpresa. Mas por ele tudo bem.
- Certo, estamos de acordo. Se a minha mulher quiser... eu faço-o. Caso contrário, estou bem assim.
- É justo - declarou Wrath.
Nesse momento instalou-se o silêncio. Mas também, o que poderia ser dito? A realidade sobre o paradeiro de Payne - e a sua ausência - pesava sobre todos.
Manny nunca se sentira tão impotente na vida.
- Com licença - escusou-se o meio-irmão -, mas preciso de outra bebida.
Quando Butch se afastou para a sala adjacente, Manny observou-o a desaparecer por uma arcada toda trabalhada.
- Sabes que mais, concordo com a sugestão.
- A minha casa é tua - disse o rei, num tom sombrio. - O bar fica por ali.
Reprimindo o estranho impulso para fazer uma vénia, Manny limitou-se a assentir.
- Obrigado, meu. - Quando lhe foram apresentados os nós dos dedos, Manny bateu-lhe e acenou com a cabeça a Jane e ao marido.
A sala onde entrou parecia a melhor suíte de hospitalidade que já vira. Cristo, até tinha máquina de pipocas.
- Mais Lag? - resmungou o tipo do outro lado.
Manny virou-se e deu consigo a observar um bar do caraças.
- Sim. Obrigado.
Trouxe o copo e entregou-o ao homem. E, quando o som de uísque a chapinhar pareceu alto como um grito, dirigiu-se a um sistema de som que poderia ser perfeitamente
usado no Madison Square Garden.
Pressionando os botões ouviu uma mistura de... gangsta rap.
Com outro botão chegou ao sintonizador de alta definição, em busca da estação de heavy metal. Respirou fundo quando «Dead Memories», dos Slipknot, se começou a fazer
ouvir.
Noite. Estava só à espera do anoitecer.
- Toma - disse o chui, entregando-lhe a bebida. Fazendo um esgar, acenou com a cabeça para uma das colunas. - Gostas dessa merda?
- Sim.
- Ora aí está uma diferença entre nós.
O gémeo de Payne espreitou para a sala.
- Mas que raios é esse barulho? - Era como se alguém tivesse começado a falar em línguas estranhas. Ou talvez tivesse posto a tocar Justin Bieber.
Manny limitou-se a abanar a cabeça.
- É música.
- Só porque tu o dizes.
Manny revirou os olhos e retirou-se para uma zona muito escura e perigosa da sua mente. A constatação de que não havia nada que pudesse fazer pela sua mulher naquele
momento deixava-o com vontade de magoar qualquer coisa. E o facto de parecer ter algo de vampiro dentro dele não era exatamente o tipo de revelação de que precisava
num dia como aquele.
Cristo, sentia-se péssimo.
- Alguém joga bilhar? - perguntou, meio dormente.
- Podes crer.
- Claro.
Jane avançou e deu-lhe um breve abraço.
- Conta comigo.
Parecia que não era o único desesperado por uma distração.
Capítulo 55
Sentada em algo almofadado com as mãos no regaço, Payne deduziu que se encontrava num carro, pois a subtil sensação de vibração era semelhante à que sentira quando
viajara ao lado de Manuel no seu Porsche. Contudo, não tinha como confirmar visualmente tal dedução, pois tal como anunciado pelo soldado do Derramador de Sangue,
ela estava vendada. Mas o cheiro do macho responsável estava a seu lado; embora ele estivesse parado, pelo que teria de ser outro a conduzir o veículo.
Nada lhe acontecera nas horas entre o confronto e aquela viagem. Ela passara o tempo diurno sentada na cama do líder, com os joelhos contra o peito, ambas as armas
a seu lado sobre o cobertor grosseiro. Mas ninguém a incomodara, pelo que passado algum tempo deixou de ficar atenta a cada som vindo lá de cima e conseguiu descontrair-se
um pouco.
Em breve, os pensamentos sobre Manuel dominavam-lhe o grosso da atenção, e reviveu as cenas do tempo, excessivamente curto, que tinham passado juntos, até que o
coração lhe doeu com a agonia. Quando deu por isso, o líder regressou e perguntou-lhe se desejaria um repasto antes de partirem.
Não, ela não quisera comer.
Depois, ele vendara-a com um pano branco imaculado, tão limpo e adorável que ela se interrogara quanto à sua origem. E depois segurara-lhe o cotovelo com firmeza,
levando-a pelas escadas por onde antes a transportara.
Era difícil saber ao certo quanto tempo passara no carro. Vinte minutos? Talvez meia hora?
- Aqui - acabou o líder por dizer.
À sua ordem, o veículo onde seguiam abrandou e depois parou. Uma porta foi aberta. Quando o ar puro e frio entrou, o cotovelo dela foi mais uma vez agarrado e ela
foi equilibrada ao sair. A porta fechou-se e ouviu-se uma pancada, como se um punho tivesse batido numa parte do veículo.
Os pneus a girar lançaram-lhe terra para a roupa.
Ficou sozinha com o líder.
Embora ele estivesse em silêncio, sentiu-o a mover-se atrás dela, e depois o tecido à volta da cabeça foi afrouxado. Quando foi retirado, ela susteve a respiração.
- Pensei que a seres libertada, deveria ser com uma vista digna dos teus olhos claros.
Lá em baixo revelava-se toda a cidade de Caldwell, com as luzes cintilantes e o trânsito denso a criar um repasto glorioso para a sua visão. Com efeito, encontravam-se
na crista de uma pequena montanha, com a cidade a espraiar-se verdadeiramente a seus pés junto às margens do rio.
- Isto é lindo - murmurou, olhando para o guerreiro.
Afastado, ele mostrou-se distante ao ponto de estar quase escondido, com a malformação oculta nas sombras para onde recuara.
- Que tenhas uma boa viagem, Escolhida.
- E tu... ainda não sei o teu nome.
- É verdade. - Esboçou uma vénia. - Boa noite.
E com isso desapareceu, desmaterializando-se.
Passado um instante, Payne voltou a dirigir-se para a vista e interrogou-se onde estaria Manuel naquela cidade. Teria de ser no aglomerado de construções altaneiras,
pelo que segundo a localização da ponte seria... ali.
Sim, ali.
Erguendo a mão, desenhou um círculo invisível em torno da alta construção de ferro e aço onde seguramente ele vivia.
Quando o peito a oprimiu e ela ficou ofegante, demorou-se mais um instante e depois desmaterializou-se para norte e leste, a caminho do complexo da Irmandade. A
viagem não tinha qualquer entusiasmo, sendo apenas uma obrigação, para informar o gémeo de que se encontrava viva e ilesa.
Quando ganhou forma nos degraus de pedra da vasta mansão, aproximou-se das portas duplas com um estranho temor. Sentia-se grata por estar de volta a uma espécie
de lar, mas a ausência do seu macho eliminava qualquer prazer que poderia ter tido com as ligações que voltariam a estabelecer-se em breve.
Depois de tocar à campainha, a porta do vestíbulo abriu-se de imediato e pôde sair da noite...
A segunda porta interior foi aberta ainda mais rapidamente pelo mordomo sorridente.
- Minha senhora! - gritou.
Ao entrar no átrio que tanto a encantara quando o vira pela primeira vez há dias, vislumbrou brevemente o seu gémeo chocado a saltar para a arcada de acesso à sala
de bilhar.
Mas esse breve momento foi tudo o que viu.
Uma grande força afastou Vishous com tanta violência que ele literalmente voou, largando o copo que segurava e espalhando pelo ar a bebida nele contida.
Manuel irrompeu pelo átrio, o corpo a avançar rapidamente, a expressão no rosto a um tempo de incredulidade, terror e alívio.
Mas não fazia sentido que estivesse a correr na direção dela, não fazia sentido que estivesse ali na...
Antes de conseguir concluir o pensamento ele tinha-a nos braços, e, pelas Parcas, o cheiro era o mesmo, a especiaria escura que lhe era única a inundar-lhe os sentidos.
E os ombros eram tão largos quanto se recordava. E a cintura tão estreita. E o abraço tão poderoso e maravilhoso.
O corpo forte dele estremeceu quando a abraçou com força, por um instante, e depois recuou, como se receasse estar a magoá-la.
Os olhos dele estavam frenéticos.
- Estás bem? O que posso fazer por ti? Precisas de um médico? Estás ferida... estou a fazer demasiadas perguntas... desculpa. Cristo... o que aconteceu? Onde estiveste?
Porra, tenho de parar...
Enquanto reencontro amoroso, talvez aquelas não fossem as palavras românticas que algumas fêmeas gostariam de ouvir, mas para ela representavam tudo no mundo.
- Por que estás aqui? - murmurou ela, levando-lhe as mãos ao rosto.
- Porque te amo.
De certa forma, isso não explicava nada... mas dizia-lhe tudo o que precisava de saber.
De repente, ela afastou as mãos.
- Mas e aquilo que fiz ao teu corpo...
- Não me importo. Nós damos a volta... havemos de o resolver... mas eu estava errado quanto a nós dois. Fui um fraco... um cobarde, e estava errado, e sinto tanto.
Merda. - Abanou a cabeça. - Tenho de deixar de praguejar. Oh, meu Deus, a tua roupa...
Payne olhou para baixo e viu o sangue preto dos minguantes que matara, a par da mancha vermelha do seu próprio sangue.
- Estou inteira e estou bem - garantiu, com toda a clareza. - E eu amo-te...
Interrompendo-a, beijou-a com solenidade nos lábios.
- Diz isso outra vez. Por favor.
- Eu amo-te.
Quando ele gemeu e voltou a envolve-la com os braços, Payne sentiu uma grande onda de calor e de gratidão no peito, e deixou que a emoção a apertasse contra ele.
E, enquanto se abraçavam, olhou sobre o ombro do seu macho. O irmão estava com a shellan dele a seu lado.
Cruzando o olhar com o do gémeo, viu todas as questões e receios naquele olhar.
- Não estou ferida - disse ao seu macho e ao seu gémeo.
- O que aconteceu? - perguntou Manuel contra o cabelo dela. - Encontrei o teu telefone partido.
- Estavas à minha procura?
- É claro que estava. - Recuou. - O teu irmão ligou-me ao nascer do sol.
Foi de imediato cercada pelo seu povo, como se um gongo tivesse soado, convocando para o átrio todos os machos e fêmeas da casa. Sem dúvida que teriam sido ali levados
pela agitação da sua chegada, mantendo-se à margem por sinal de respeito.
Tornava-se óbvio que havia mais do que duas mentes descansadas.
E isso fê-la sentir-se parte da família.
- Estava junto ao rio - disse alto o suficiente para que todos a ouvissem - quando senti o cheiro do inimigo. Atraída até eles cruzei os becos e deparei-me com dois
minguantes. - Sentiu Manuel ficar hirto, e viu o irmão fazer o mesmo. - Foi bom lutar...
Com essas palavras hesitou. Mas o rei aquiesceu. E o mesmo fez uma fêmea poderosa de cabelo curto, como se também ela combatesse na guerra e tivesse noção tanto
da necessidade como da satisfação. Os Irmãos, contudo, pareciam obviamente desconfortáveis.
Prosseguiu.
- Chegou então junto a mim um grupo de machos... de costas fortes, bem armados, com efeito, um esquadrão de guerreiros. O líder era muito alto, com olhos escuros,
cabelo escuro e um... - levou a mão à boca - defeito no lábio superior.
Começavam agora as pragas e, ao ouvi-las, desejou ter usado mais do que o fizera as taças de visão no Outro Lado. Era óbvio que o macho que descrevera não lhes era
desconhecido, e não era bem-vindo à narrativa.
- Ele prendeu-me... - Ouviu-se então não um, mas dois rosnidos, o do seu gémeo e o de Manuel. E, ao acalmar o macho tão perto dela, olhou para o irmão. - Acreditava
erroneamente que eu fizera desabar uma calamidade sobre a linhagem dele. Acreditava ser filho do Derramador de Sangue... e fora testemunha da noite em que levei
a morte ao nosso progenitor. Com efeito, ele passara séculos procurando-me para exercer a sua vingança.
Nesse momento calou-se, apercebendo-se de que acabara de admitir ter cometido parricídio. Mas ninguém pareceu chocado... o que dizia muito, não só acerca do tipo
de machos e fêmeas que ali se encontravam, mas também sobre o bastardo que fora seu pai.
- Esclareci o guerreiro quanto ao erro segundo o qual agia. - Omitiu o facto de ele a ter agredido, e ficou satisfeita por o hematoma no rosto ter desaparecido.
De alguma forma, sabia que ninguém precisava de ter conhecimento disso. - E ele acreditou em mim. Não me magoou... com efeito, protegeu-me dos machos dele, cedendo-me
a sua cama...
Manuel arreganhou os dentes como se tivesse presas... e isso deixou-a excitada.
- Sozinha, dormi sozinha. Ele manteve todos os subalternos com ele, lá em cima. - Voltou a acalmar Manuel pelo menos até se aperceber que ele estava excitado, tal
como aconteceria com qualquer macho disposto a marcar a sua fêmea. Que situação tão erótica. - Ah... ele vendou-me e levou-me a uma elevação panorâmica com vista
para a cidade. Depois libertou-me. E foi tudo.
Wrath tomou a palavra.
- Ele levou-te contra tua vontade.
- Ele acreditava ter motivo. Pensava que eu tinha matado o pai dele. E assim que ficou esclarecido estava preparado para me libertar, mas era de dia, pelo que não
podia ir para lado nenhum. Teria telefonado, mas perdera o meu telefone e eles não pareciam ter nenhum, pois não vi qualquer aparelho. Na verdade, estavam a viver
à moda antiga, de forma comunal e modesta, numa sala subterrânea iluminada por velas.
- Fazes ideia onde estão? - perguntou-lhe o gémeo.
- Não sei. Estava inconsciente quando eles... - Um brado de alerta fez-se ouvir de tantas gargantas que ela abanou a cabeça. - Fui alvejada por um minguante...
- Mas que raios...
- Foste o quê?!
- Uma arma...
- Alvejada com uma...
- ...ferida?!
Mmm. Talvez isso não tivesse sido uma boa ideia.
Enquanto os Irmãos falavam uns sobre os outros, Manuel pegou-lhe ao colo e ergueu-a, o rosto uma máscara de fúria cega.
- Acabou-se. Já está tudo dito. Vou examinar-te. - Olhou para o irmão dela. - Para onde a posso levar?
- Lá para cima. Vira à direita. Passas três portas e há um quarto de hóspedes. Vou mandar comida e diz-me se precisares de material clínico.
- Entendido.
Com isso, o macho dela dirigiu-se às escadas, consigo nos braços.
Ainda bem que ela já concluíra a história. Tendo em conta o ângulo do queixo de Manuel, seria preciso algum tempo antes de voltar a falar sobre o que lhe acontecera.
A menos que o quisesse ver furioso.
Com efeito, no estado em que ele se encontrava agora, parecia que quele soldado teria muito o que recear, caso os dois alguma vez se encontrassem.
- Estou tão satisfeita por te ver - disse ela, num tom rouco. - Só pensava em ti quando estava...
Manuel fechou brevemente os olhos, como se sofresse.
- Eles não te magoaram?
- Não. - E foi então que percebeu o que o preocupava.
Levando-lhe a mão ao rosto, disse:
- Ele não me tocou. Nenhum deles o fez.
O arrepio que percorreu o corpo forte que a transportava foi tão grande que ele quase tropeçou. Mas o macho dela recuperou depressa... e prosseguiu o seu caminho.
Enquanto Vishous observava o humano a levar a sua irmã escadaria acima, percebeu que estava a testemunhar o desenrolar do futuro. Aqueles dois iam resolver as coisas
e o cirurgião com gostos musicais altamente discutíveis faria parte da vida dela... e da de V... para todo o sempre.
De repente, a mente dele recuou doze meses, com o rebobinar a deter-se quando chegou ao ponto da narrativa em que entrara no gabinete do cirurgião para apagar as
memórias do tempo passado por V em St. Francis.
Irmão.
Ouvira a palavra irmão na sua cabeça.
Na altura não fazia a mais pequena ideia do que isso poderia significar. Porque, então, como poderia isso alguma vez acontecer?
Mas ali estava, mais uma vez a realidade exibia uma das suas visões.
Embora, a bem da verdade, a palavra devesse ser cunhado.
Mas depois olhou para Butch. O melhor amigo também fitava o tipo.
Porra, talvez irmão se adequasse. O que era bom. Manello era o tipo de indivíduo com quem não nos importávamos de nos relacionarmos.
Quase como se o rei lhe tivesse lido os pensamentos, Wrath anunciou:
- O cirurgião pode ficar. O tempo que quiser. E pode ter contacto com qualquer família humana que tenha... se quiser. Enquanto meu familiar, é bem-vindo à minha
casa sem quaisquer restrições.
Ouviu-se um ronco de aprovação. Como sempre, no que dizia respeito à Irmandade, os segredos nunca eram secretos durante muito tempo, por isso já todos saberiam da
ligação Manello/Butch/Wrath. Que raios, todos tinham visto a fotografia. Especialmente V.
Embora V tivesse feito mais do que isso. O nome «Robert Bluff» acabara por se revelar uma identidade falsa... E o macho tinha de ser meio-sangue. Se assim não fosse,
nunca poderia ter trabalhado em qualquer hospital durante o dia. A questão era o que poderia saber quanto ao seu lado vampiro e se ainda estava vivo.
Quando Jane encostou a cabeça ao seu peito, envolveu-a ainda mais com os braços. E depois olhou para Wrath.
- O Xcor, certo?
- Pois - assentiu o rei. - Um avistamento confirmado. E não será a última vez que teremos notícias dele. Isto foi só o princípio.
Grande verdade, pensou V. A chegada daquele bando de bastardos não era uma boa notícia para ninguém, mas acima de tudo não o era para Wrath.
- Cavalheiros - disse o rei - e minhas senhoras, a primeira refeição está a arrefecer.
O que foi a deixa para que todos se dirigissem à sala de jantar e comessem o que fora deliberadamente ignorado até então.
Com Payne segura e em casa, o apetite voltava a ter rédea livre... embora Deus soubesse que não ia pensar naquilo que o cirurgião e a irmã de certeza estariam prestes
a fazer.
Quando gemeu, Jane apertou-lhe a cintura com mais força.
- Estás bem?
Olhou para a sua shellan.
- Acho que a minha irmã não tem idade para sexo.
- V, ela tem a mesma idade do que tu.
Vishous franziu o sobrolho por um instante. Teria? Ou será que ele nascera primeiro?
Pois, só teria essa resposta num sítio.
Que raios, nem sequer pensara na mãe durante toda aquela situação. E agora que pensava... não tinha qualquer vontade ou interesse em aparecer por lá e anunciar que
Payne estava muito bem.
Não. Se a Virgem Escrivã quisesse acompanhar o que os «filhos» estavam a fazer podia usar aquelas taças de visão fakakta de que tanto gostava.
Beijou a sua shellan.
- Não quero saber o que diz o calendário, nem a ordem de nascimento. Aquela é a minha irmãzinha e nunca vai ter idade suficiente para... «ah, sim».
Jane riu-se e voltou a aninhar-se por baixo do braço dele.
- És um macho muito doce.
- Ná.
- És.
Levando-a para a sala de jantar e até à mesa, puxou-lhe educadamente a cadeira e depois sentou-se à sua esquerda, para que ela ficasse junto à sua mão da adaga.
Enquanto as conversas se elevavam, as pessoas atacavam as travessas e a sua Jane se ria de algo que Rhage dissera, Vishous olhou e viu Butch e Marissa a trocarem
sorrisos e de mão dada.
Sabes que mais, pensou... naquele momento, a vida estava muito boa.
Estava mesmo.
Capítulo 56
Lá em cima, Manny fechou a porta com o pé atrás dele e da sua mulher, e depois levou-a para a cama do tamanho de um campo de futebol.
Não havia motivo para se trancar. Só um idiota os incomodaria.
O brilho que entrava pelas janelas já sem portadas garantia-lhe luz suficiente para ver, e maldito fosse se não gostava do que tinha à sua frente: a mulher dele,
são e salva, deitada na... Bem, certo, aquela não era a cama deles, mas garantidamente ia transformá-la nisso antes do amanhecer.
Sentando-se ao lado dela, tentou discretamente ocultar a ereção massiva que tinha desde que a vira entrar à porta. E embora houvesse muito o que dizer, só conseguia
fitá-la.
Mas rapidamente o cirurgião nele assumiu o controlo.
- Foste ferida? - As mãos adoráveis dela baixaram até às vestes, e quanto mais a bainha suba, mais as pálpebras dela desciam.
- Acho que vais descobrir que estou sarada. Foi apenas superficial... aqui em cima.
Manny engoliu em seco. Porra... sim, ela estava bem. A pele no cimo da coxa estava lisa como porcelana.
- Mas talvez me devesses examinar com mais atenção - sugeriu ela, num tom arrastado.
Manny entreabriu os lábios e sentiu os pulmões a contraírem-se.
- De certeza que estás bem? E eles não... te magoaram.
Nunca ultrapassaria isso.
Payne sentou-se e fitou-lhe os olhos.
- O que sempre te esteve destinado continua à tua espera.
Manny fechou brevemente os olhos. Depois não quis que ela ficasse com uma má impressão.
- Não que me importasse se não fosses... quer dizer, isto não é uma questão de propriedade... - Que raios, parecia que naquela noite não era capaz de falar. - Mas
não era capaz de aguentar se te magoassem.
O sorriso dela fê-lo sentir-se grato por ter um colchão debaixo do rabo, pois se estivesse de pé, ela tê-lo-ia derrubado.
- Desculpa por ontem à noite - lamentou-se ele. - Cometi um erro...
Payne levou-lhe a mão à boca.
- Estamos aqui agora. Nada mais me importa.
- E preciso de te dizer uma coisa.
- Vais deixar-me?
- Nunca.
- Ótimo. Então vamos unir-nos primeiro, e depois falamos. - Endireitando-se ainda mais, Payne substituiu os dedos pela boca e beijou-o profunda e demoradamente.
- Mmmm... sim, muito melhor do que o discurso, creio eu.
- Tens a certeza de que queres... - Não conseguiu avançar mais, pois a língua dela privou-o de pensamentos.
Gemendo, subiu para a cama, sustendo-se acima dela. E depois, fitando-lhe os olhos, baixou lentamente o corpo sobre o dela... sendo o último contacto a ereção dele
entre as pernas dela.
- Se te beijar agora não há volta. - Bolas, tinha a voz tão gutural que praticamente lhe rosnava. Mas estava a ser sincero. Estava a ser levado por outra força.
Não se tratava de sexo, embora a mecânica do ato estivesse envolvida. Ao tomar-lhe a virgindade, estaria a marcá-la de uma forma que não compreendia, mas que não
questionava.
- Quero-te assim - disse ela. - Há séculos que espero por aquilo que só tu me podes dar.
Minha, pensou Manny.
Antes de a voltar a beijar, chegou-se ao lado e soltou-lhe o cabelo da trança. Espalhando as ondas escuras sobre a colcha de cetim, percorreu-as com os dedos.
Depois encostou as ancas ao íntimo dela, empurrando e recuando, e repetindo o movimento... enquanto a mão lhe subia até ao peito e lhe agarrava o tecido frágil das
vestes.
Sinceramente estava chocado com o que queria fazer.
- Desejo estar nua perante ti - ordenou ela. - Fá-lo, Manuel.
A maldita túnica não teve hipótese. Erguendo-se, pegou nas lapelas e abriu-a ao meio, rasgando o material e expondo-lhe os seios aos seus olhos quentes e ao ar frio.
Em resposta, ela arqueou-se e gemeu e isso foi a gota de água. Dirigiu-se aos mamilos entumecidos com a boca e ao íntimo dela com as mãos. Estava todo nela, levando-a
ao orgasmo sugando-a e esfregando-a com cuidado, e quando a libertação rápida e desesperada chegou, ele engoliu-lhe o grito.
Queria dar-lhe mais - e pretendia fazê-lo - mas o seu corpo não ia esperar. Levou as mãos às calças, soltando o cinto e baixando o fecho para soltar o membro.
Ela estava pronta, molhada, aberta e ansiosa, tendo em conta a forma como as pernas o esfregavam.
- Eu vou devagar - disse contra a boca de Payne.
- Não receio a dor. Não contigo.
Bolas, portanto talvez naquilo fossem fisicamente como as mulheres humanas. O que queria dizer que a primeira vez não seria fácil para aquela fêmea.
- Shhh - murmurou ela. - Não te preocupes. Toma-me.
Baixando a mão, posicionou-se e... que porra... quase se veio. Ela estava quente e molhada e...
Ela moveu-se tão depressa que não a poderia impedir, mesmo que quisesse. As mãos dela baixaram e agarraram-lhe o traseiro, com as unhas a cravarem-se na sua carne
e depois...
Payne ergueu as ancas ao mesmo tempo que o puxava, e ele entrou até ao fundo, com a penetração total e absolutamente completa. Com ele a gemer, Payne ficou rígida
e silvou com a estocada, o que era profundamente injusto, pois ela sabia tão bem. Mas ele não ia mexer-se, pelo menos até que ela recuperasse da invasão.
E depois lembrou-se.
Levando-lhe a mão à nuca, aproximou-lhe os lábios do pescoço.
- Toma-me.
O som que ela fez levou-o ao orgasmo no interior dela. Era demasiado excitante para se conter. E enquanto o membro latejava, as presas de Payne enterraram-se na
sua veia.
O sexo tornou-se alucinado. Payne moveu-se contra ele, com o íntimo apertado a sugá-lo enquanto ele se vinha mais uma vez... e depois foi a vez de o macho começar
a bombear as ancas com força. O sugar e o ritmo alucinado arrebatou-os de tal maneira que tiveram noção que pela manhã se ressentiriam. Aquilo não tinha nada de
civilizado. Eram macho e fêmea, reduzidos ao cerne mais primitivo.
E era o melhor que alguma vez sentira.
Capítulo 57
Thomas DelVecchio sabia exatamente para onde o assassino iria a seguir.
Não tinha qualquer dúvida. Com o detetive de la Cruz na sede, a trabalhar com os rapazes em teorias e indícios, todas bastante úteis, Veck sabia para onde ir.
Ao aproximar-se do parque de estacionamento do Monroe Motel & Suítes com as luzes desligadas e a moto desengatada, pensou que talvez fosse boa ideia ligar a de la
Cruz e dizer-lhe onde se encontrava.
Mas acabou por deixar o telefone no bolso.
Parando a BMW nas árvores, à direita do parque de estacionamento, empurrou o descanso e pendurou o capacete no guiador. Tinha a arma no coldre por baixo da axila
e disse para consigo que aí ficaria se alguém aparecesse.
Em grande medida acreditava nessa mentira.
Claro que a horrível verdade era que se sentia animado por algo adormecido desde há muito, muito tempo. De la Cruz tinha razão em receá-lo como parceiro e estava
correto em questionar onde acabavam os pecados do pai e começavam os do filho.
Pois Veck era um pecador. E entrara para a polícia para tentar expulsar isso de si.
Mas talvez fosse melhor exorcizar essa treta pois, às vezes, sentia como se tivesse um demónio dentro de si, a sério.
Mesmo assim, não estava ali para matar ninguém. Estava ali para deter um assassino antes que o desgraçado voltasse ao trabalho.
A sério.
Ao aproximar-se do motel, Veck manteve-se entre as sombras das árvores e concentrou-se no quarto onde a última rapariga tinha sido encontrada. Estava tudo tal como
a polícia de Caldwell deixara. Ainda havia fita de limitação num triângulo à volta da porta e da porção de passeio à frente. A ombreira também apresentava um selo,
o qual teoricamente só poderia ser quebrado em situações oficiais. Não havia luz no interior do quarto, nem cá fora, no corredor. Não se via ninguém.
Atrás de um tronco grosso, serviu-se das mãos enluvadas para puxar o gorro de lã para mais perto da camisola de gola alta preta.
Era tão bom a ficar imóvel que praticamente desapareceu. Era também muito bom a canalizar a energia para uma calma ubíqua que conservava os recursos, ao mesmo tempo
que o deixava em alerta.
A presa ia aparecer. Aquele louco assassino perdera todos os troféus. A coleção estava nas mãos das autoridades e os agentes forenses esforçavam-se por o ligar a
vários homicídios por resolver um pouco por todo o país. Mas o desgraçado não voltaria ali para tentar recuperar tudo, ou pelo menos parte do que deixara. O re-gresso
teria como objetivo lamentar a perda do que se esforçara tanto por conseguir.
Seria imprudente da parte dele? É claro, mas isso fazia parte do ciclo de excessos. O assassino não estaria a raciocinar devidamente, e as perdas tê-lo-iam deixado
desesperado. E Veck ia esperar durante as próximas noites, até que o indivíduo surgisse.
O tempo passou e ele esperou, esperou e esperou... era tão paciente como qualquer caçador. Embora tivesse pensado que aquilo poderia revelar-se desastroso, estando
ali sozinho. Com uma faca presa na cintura. E aquela maldita arma...
Um ramo a partir-se atraiu-lhe os olhos para a direita, mas não a cabeça. Não se mexeu nem alterou a respiração, nem sequer estremeceu.
E lá estava. Um homem surpreendentemente magro a atravessar, com cuidado, os arbustos folhosos da mata. Enquanto se aproximava do lado do motel, a expressão no rosto
do homem era quase religiosa. Mas não foi apenas isso que o identificou como sendo o assassino. Tinha as roupas cobertas de sangue seco, e os sapatos também. Estava
a coxear, como se tivesse sofrido uma lesão na perna, e o rosto apresentava riscos de unhas.
Apanhei-te, pensou Veck.
E agora que fitava o assassino... a mão baixou-lhe até às ancas e contornaram-nas até às costas. Até à faca.
Não mudou de rumo, mesmo enquanto dizia para consigo para deixar a arma onde estava e pegar nas algemas. Sempre tivera duas pessoas dentro dele, duas metades na
mesma pele e, em momentos como aquele, sentia-se como se estivesse a observar-se a agir, quase como se fosse o passageiro de um táxi, sendo que o destino, qualquer
que fosse, não resultaria dos seus atos.
Começou a aproximar-se do homem, acompanhando-o em silêncio, qual sombra, encurtando a distância até ficar a mero metro e meio do sacana. A faca chegara à mão de
Veck e não queria que ela lá estivesse, mas era demasiado tarde para a voltar a guardar. Demasiado tarde para recuar. Demasiado tarde para dar ouvidos à voz que
lhe dizia que aquilo era um crime que o deixaria na prisão. O outro lado assumira o controlo e ele estava perdido nele, à beira de matar...
O terceiro homem surgiu vindo de nenhures.
Um homem imenso vestido de cabedal saltou para o caminho do assassino, bloqueando-lhe o avanço. E, quando David Kroner recuou, alarmado, um silvo percorreu o ar.
Cruzes, aquilo não parecera humano. E... aquilo eram... presas?
Mas que raios...
O ataque foi tão brutal que, com o primeiro golpe contra o pescoço do assassino em série, a cabeça quase lhe saltou. E não parou por aí, com sangue a saltar para
tão longe que salpicou as calças, a camisola de gola alta e o gorro pretos de Veck.
Mas não estava a ser usada faca, nem adaga.
Dentes. O cabrão estava a desfazê-lo com os dentes.
Veck tentou recuar, mas bateu numa árvore e o impacto atirou-o ao chão muuuuuito mais perto do que deveria. E devia ter corrido para a moto, ou simplesmente fugido,
mas sentia-se arrebatado pela violência... e pela convicção de que o que estava a ver não era, de todo, humano.
Quando acabou, o monstro deixou cair os restos massacrados do assassino... e depois olhou para Veck.
- Grande... porra... - murmurou Veck.
O rosto tinha uma estrutura óssea bastante humana, mas as presas não batiam certo, nem tampouco a dimensão e o olhar vingativo. Cristo, tinha sangue a escorrer-lhe
da boca.
- Olha-me nos olhos - disse uma voz de sotaque carregado.
Um gorgolejo fez-se ouvir do que restava do assassino. Mas Veck não olhou. Estava fito num par de olhos espantosos... tão azuis... a brilhar....
- Merda... - deixou escapar, com uma dor de cabeça lancinante a eliminar tudo o que via ou ouvia. Tombando de lado, a dor obrigou-o a assumir uma posição fetal e
assim ficou.
Plim.
Por que estava no chão?
Plim.
Sentia o cheiro de sangue. Mas porquê?
Plim. Plim.
Levantou a cabeça com um gemido e...
- Porra!
Pôs-se de pé em choque e fitou a confusão ensanguentada à sua frente.
- Ah... porra - praguejou. Tinha-o feito. Finalmente matara alguém...
Mas depois olhou para a faca que tinha na mão. Nada de sangue. Nem na lâmina. Nem nas mãos. Só salpicos na roupa.
Olhou à sua volta, sem o mais leve indício do que poderia ter acontecido. Lembrava-se de ter ali chegado... de ter estacionado a moto... e de seguir o homem que
jazia agora moribundo.
Se fosse brutalmente sincero para consigo, ele tivera a intenção de matar. Sempre. Mas tendo e conta os indícios físicos? Não fora ele.
O problema era que tudo o resto era um buraco negro.
Um gemido do assassino em sério fê-lo virar a cabeça para a direita. O homem tentava alcançá-lo. Suplicava-lhe ajuda em silêncio enquanto se esvaía. Como poderia
ainda estar vivo?
Com as mãos a tremer, Veck pegou no telemóvel e ligou para o 112.
- Sim, detetive DelVecchio, Homicídios. Preciso de uma ambulância junto ao Monroe Motel & Suítes já.
Depois de o pedido ter sido registado e de os médicos estarem a caminho, tirou o blusão, enrolou-o e ajoelhou-se ao lado do homem. Pressionando o blusão contra os
ferimentos no pescoço dele, rezou para que o cabrão sobrevivesse. E depois teve de se interrogar se isso seria bom.
- Não te matei - disse. - Pois não?
Cristo... o que acontecera ali?
Capítulo 58
-Ele veio ver-te.
A partir do ponto de vista de Blaylock, na cama, Saxton, filho de Tyme, mostrava-lhe o seu melhor lado. E não, não era o traseiro. O macho estava a barbear-se ao
espelho e tinha o perfil perfeito banhado pela luz suave.
Cristo, ele era um belo macho.
A muitos níveis, aquele amante a quem se ligara era tudo o que podia desejar.
- Quem? - perguntou Blay, baixinho.
Os olhos que procuraram os dele escorriam incredulidade.
- Ah. - Para se esquivar a mais conversa, Blay olhou para o edredão que tinha puxado até ao peito despido. Estava nu por baixo do lençol de cetim. Tal como Saxton
estivera, antes de ter vestido o roupão.
- Ele queria saber se estavas bem - prosseguiu Sax.
Uma vez que ah já tinha sido usado como resposta, Blay apimentou-a com:
- A sério?
- Foi no terraço. Não quis entrar, para não nos incomodar.
Engraçado, quando estivera prestes a desmaiar, depois de lhe terem suturado a barriga, interrogara-se vagamente o que poderia Saxton estar a fazer lá fora. Mas na
altura sentia tantas dores que não fora capaz de pensar em praticamente nada.
Agora, no entanto, sentia um entusiasmo terrível a percorrê-lo.
Louvada fosse a Virgem Escrivã, há muito tempo que não sentia aquele formigueiro familiar, embora o tempo que passara não tivesse diminuído a sensação. E o impulso
que se seguiu, de perguntar o que fora dito, não era algo que pudesse fazer. Para começar, seria uma falta de respeito para com Saxton. Além disso, era inútil.
Ainda bem que dispunha de bastantes munições com que se calar. Bastava-lhe pensar em Qhuinn a chegar a casa há cerca de uma semana, de cabelo revolto, o cheiro abafado
pelo perfume de outro homem, a pose afetada pela satisfação que tivera.
Pensar que Blay se atirara ao macho não uma, mas duas vezes e fora rejeitado? Nem conseguia pensar nisso.
- Não queres saber o que ele disse? - murmurou Saxton ao passar com a lâmina afiada pelo pescoço, evitando habilmente a marca da dentada que Blay lhe dera há meia
hora.
Blay fechou os olhos e interrogou-se se alguma vez seria capaz de fugir à realidade de que Qhuinn foderia tudo o que se mexia menos ele.
- Não? - indagou Saxton.
Quando a cama estremeceu, Blay abriu os olhos. Saxton sentara-se à beira do colchão, estando o macho a limpar o queixo e as faces com uma toalha vermelho-sangue.
- Não? - repetiu.
- Posso fazer-te uma pergunta? - disse Blay. - E neste momento não seria boa ideia usares a tua personalidade encantadora e sarcástica.
O rosto maravilhoso de Saxton assumiu de imediato uma expressão grave.
- Força.
Blay alisou o edredão sobre o peito. Várias vezes.
- Eu... agrado-te?
Pelo canto do olho viu Saxton estremecer e quase morreu com o embaraço.
- Na cama, queres tu dizer? - quis Sax saber.
Blay franziu os lábios ao aquiescer, e pensou em avançar alguma explicação, mas a boca revelou-se-lhe demasiado seca.
- Mas por que haverias tu de perguntar isso? - comentou Saxton.
Bem, porque teria de haver qualquer coisa de errado consigo.
Blay abanou a cabeça.
- Não sei.
Saxton dobrou a toalha e pousou-a a seu lado. Depois estendeu o braço sobre as ancas de Blay e aproximou-se até ficarem cara a cara.
- Sim. - E levou a boca ao pescoço do companheiro, sugando. - Sempre.
Blay passou com a mão pela nuca do macho, encontrando o macio cabelo encaracolado na base do pescoço.
- Graças a Deus.
A familiaridade do corpo sobre o seu não era novidade, e parecia-lhe correto. Era bom. Conhecia cada curva e recanto do peito, das ancas e das coxas de Saxton. Conhecia
os pontos de pressão e sabia onde morder, sabia exatamente onde agarrar, como rebolar e revirar-se para que Saxton se viesse com força.
Por isso, sim, talvez não precisasse de perguntar.
Mas Qhuinn... tudo sobre esse macho o deixava em carne viva. E, mesmo depois de ter aprendido a ligar-se no exterior, a ferida continuava tão má e profunda como
no momento em que fora feita, altura em que se tornou óbvio que o único macho que queria acima de qualquer outro nunca estaria com ele.
Saxton recostou-se.
- O Qhuinn não é capaz de lidar com aquilo que sente por ti.
Blay soltou uma gargalhada rouca.
- Não falemos sobre ele.
- Porquê? - Saxton estendeu a mão e passou com o polegar pelo lábio inferior de Blay. - Está sempre aqui connosco, quer queiramos quer não.
Blay pensou em mentir, mas desistiu.
- Desculpa.
- Não faz mal... sei onde me meti. - A mão livre de Saxton meteu-se por baixo do edredão. - E sei o que quero.
Blay gemeu quando aquela mão esfregou o que se tornou de imediato uma ereção imensa. E, quando as ancas se levantaram e ele abriu as pernas para Saxton, susteve
os olhos do amante e sugou-lhe o polegar.
Era muito melhor do que entrar na montanha-russa Qhuinn. Sabia-o e gostava disso. Ali estava seguro. Ali não sairia magoado.
E ali encontrara uma ligação sexual profunda.
O olhar de Saxton era a um tempo quente e sério quando largou o que encontrara, destapou o corpo de Blay e desapertou o laço do seu roupão.
Aquilo era muito bom, pensou Blay. Aquilo era correto...
Quando a boca do amante lhe encontrou a clavícula, Blay fechou os olhos. Mas quando se começou a perder nas sensações, o que viu não foi Saxton.
- Espera, para... - Sentou-se e arrastou o outro macho com ele.
- Não faz mal - disse Saxton baixinho. - Sei o que se passa entre nós.
O coração de Blay cedeu um pouco. Mas Saxton limitou-se a abanar a cabeça e devolveu os lábios ao peito de Blay.
Nunca tinham falado acerca de amor e isso deixou bem claro que nunca o fariam, pois Saxton tinha toda a razão. Blay continuava apaixonado por Qhuinn. E provavelmente
sempre assim seria.
- Porquê? - perguntou ao amante.
- Porque te quero enquanto te tiver.
- Não vou a lado nenhum.
Saxton limitou-se a abanar a cabeça contra os abdominais retesados que mordiscava.
- Deixa de pensar, Blaylock. Começa a sentir.
Quando aquela boca talentosa chegou ao fundo, Blay inspirou com um sibilo e decidiu seguir o conselho. Pois essa era a única maneira de sobreviver.
Tinha a impressão de que seria uma questão de tempo até que Qhuinn anunciasse que ele e Layla iriam acasalar.
Não sabia porquê, apenas sabia. Havia semanas que os dois se encontravam e a Escolhida voltara a estar lá na véspera. Sentira-lhe o cheiro e o sangue no quarto ao
lado.
E embora tal convicção pudesse ser apenas um exercício mental para se deprimir, sentia que era muito mais do que isso. Era como se a neblina que, regra geral, obscurecia
os dias, meses e anos vindouros se tivesse tornado insuportavelmente ténue e as sombras do destino estivessem a revelar-se-lhe.
Uma questão de tempo.
Cristo, isso seria como quem o mataria.
- Ainda bem que aqui estás - gemeu.
- Eu também - retribuiu-lhe o amante em torno da ereção dele. - Eu também.
Capítulo 59
Na noite seguinte, Payne dava voltas na frente da mansão da Irmandade, indo da sala de jantar até ao átrio e à sala de bilhar e de volta. Uma e outra vez.
O macho dela saíra da casa a meio da tarde para «tratar de umas coisas». E, embora se tivesse recusado a dizer-lhe o quê, ela apreciara o sorriso malandro que ele
lhe oferecera ao aconchegá-la na cama que tinham usado na totalidade durante a noite, saindo logo depois.
Depois disso, Payne não dormira. De todo.
Havia muito que a deixava feliz.
E surpreendida.
Fazendo uma pausa à frente das portas de correr que davam acesso ao pátio, pensou na fotografia que ele lhe mostrara. Era por demais óbvio que tinha uma relação
de sangue com Butch e, logo, com o rei. Mas nem Manuel nem ela estavam interessados em arriscar uma regressão. Não, nesse ponto, ela concordava plenamente com ele.
Tinham-se um ao outro e, tendo em conta o que já tinham ultrapassado, não havia motivo para arriscar um mau resultado.
Além disso, a informação não alteraria nada. O rei abrira as portas de sua casa ao macho dela, mesmo sem uma declaração formal de relação sanguínea, e Manuel poderia
manter o contacto com a mãe humana. Mais ainda, ficara decidido que ele trabalharia ali, com a Doc Jane, mas também com Havers. Afinal de contas, a raça precisava
de mais bons médicos, e Manuel era superlativo.
E quanto a ela? Sairia para lutar. Nem Manuel nem o irmão estavam propriamente entusiasmados com os riscos que ela iria correr, mas não a impediriam. Com efeito,
depois de ter falado longamente com Manuel, ele parecera aceitar que isso fazia parte dela. Só fizera questão que ela usasse as melhores armas possíveis e o irmão
insistira em certificar-se disso.
Pelas Parcas, aqueles dois pareciam estar a entender-se. Quem o poderia ter previsto?
Deslocando-se até à janela seguinte, perscrutou a escuridão, em busca de faróis.
Onde estaria ele? Onde estaria ele...
Manuel também iria falar com a Doc Jane sobre as mudanças físicas por que ele passara, mudanças essas que, tendo em conta a forma como Payne brilhava sempre que
faziam amor, seria provável que continuassem. Ela iria monitorizar o corpo e ver o que acontecia, e ambos rezavam para que ela apenas o estivesse a manter saudável
e eternamente jovem. Apenas o tempo o diria.
Praguejando, deu meia volta, cruzou o átrio... e entrou na sala de jantar.
Junto à terceira janela, olhou para os céus. Não pretendia visitar a mãe. Teria sido maravilhoso partilhar o seu amor com que a trouxera ao mundo. Mas o progenitor
estava morto, e a sua mahmen? Não confiava na Virgem Escrivã, receando que a voltasse a aprisionar. Manuel era um meio-sangue. Não era de todo um elemento de raça
pura que a mãe aprovasse...
O par de olhos brilhantes que subiam a elevação onde o complexo se erguia deixaram-lhe o coração a bater descompassado. E depois ouviu a música, um ritmo forte que
atravessava o vidro.
Payne saiu a correr da sala de jantar e percorreu rapidamente o mosaico. Momentos depois tinha saído pelo vestíbulo para as trevas...
Ao fundo dos degraus estacou.
Manuel não chegara sozinho. Atrás do Porsche estava um qualquer tipo de veículo imenso... um grande veículo em duas partes.
O macho deixou o volante do seu carro.
- Olá - cumprimentou ele.
Ostentava um sorriso rasgado quando chegou junto a ela, lhe levou as mãos às ancas e a aproximou do peito.
- Tive saudades tuas - murmurou-lhe contra os lábios.
- Eu também. - Ela sorria igualmente. - Mas... o que é que trouxeste?
O mordomo idoso saiu do outro veículo.
- Meu senhor, devo...
- Obrigado, Fritz, mas eu agora trato do resto.
O mordomo fez uma vénia baixa.
- Foi um prazer ter sido útil.
- És do melhor, meu.
O doggen estava radiante quando regressou alegremente à casa. E depois, o macho dela dirigiu-se-lhe.
- Fica aqui.
Franziu o cenho ao ouvir pancadas secas no interior da caixa grande.
- É claro.
Depois de voltar a beijá-la, Manuel desapareceu atrás do veículo.
Abriram-se portas. Mais pancadas. Gemidos e o som de algo a correr, seguido por um bater ritmado. E depois...
O relinchar disse-lhe o que ela não se atrevera a esperar. E depois a bela poldra de Manuel recuou por uma rampa e foi-lhe trazida.
Payne levou as mãos à boca enquanto nos olhos se formavam lágrimas. A égua avançava cheia de graciosidade, com a pelagem a brilhar com a luz emanada da casa, mais
uma vez com toda a sua força e vitalidade.
- Mas... porque é que ela está aqui? - indagou Payne num tom rouco.
- Os humanos oferecem algo às noivas como prova do seu amor. - Manuel ostentou um sorriso rasgado. - Pensei que a Glory fosse melhor do que qualquer diamante que
eu te pudesse comprar. É mais importante para mim... e espero que para ti também.
Não tendo resposta, estendeu-lhe a tira de cabedal que estava presa à brida do cavalo.
- Estou a dar-ta.
Como se fosse a sua deixa, Glory soltou um relincho e empinou-se, como se concordasse com a troca de posse.
Payne limpou os olhos e atirou-se a Manuel, beijando-o profundamente.
- Não tenho palavras.
E depois aceitou as rédeas, enquanto Manuel se ufanava.
Respirando fundo, ela...
Antes de ter consciência do movimento, Payne saltou no ar, montando Glory como se o par estivesse junto há anos e não há minutos.
E o cavalo não precisou de incentivo, de autorização, de nada... Glory saltou em frente, firmando os cascos nos seixos e partindo a galope.
Payne entrelaçou os dedos na crina preta comprida e equilibrou-se perfeitamente sobre as costas possantes onde se sentava. Quando o vento lhe bateu no rosto, riu-se
com pura exultação ao partirem alegres e livres. Sim... sim! Mil vezes sim!
Partir na noite.
Ter a liberdade de se mover.
Ter amor à sua espera.
Era mais do que estar viva. Aquilo era viver.
De pé, junto ao reboque, Manny observou as suas meninas a partirem juntas, perdido de felicidade. Faziam um par perfeito, ambas unas e fortes, e rasgando a noite
a um galope que a maior parte dos carros teria dificuldade em acompanhar.
Certo. Talvez tivesse derramado uma lágrima ou duas. Mas que raios. Aquela noite era incrível para...
- Eu vi a cena.
- Cristo... - Agarrou na cruz e deu meia volta. - Andas sempre a tentar matar as pessoas do coração?
O irmão de Payne não respondeu, ou talvez não o conseguisse fazer. O vampiro tinha os olhos fitos na irmã e no cavalo a galope, e parecia tão comovido como Manny.
- Mas pensei que fosse um garanhão. - Vishous abanou a cabeça. - Mas sim, foi isto que eu vi... ela montada num puro-sangue preto, o cabelo a voar com a brisa. Mas
não pensava que fosse o futuro...
Manny virou-se outra vez para as suas meninas, que se encontravam ao fundo do muro e começavam a descrever uma curva larga para regressarem à casa.
- Amo-a tanto - ouviu-se Manny a dizer. - É o meu coração que ali vai. Aquela é a minha mulher.
- Verdade.
Com a ligação profunda estabelecida entre os dois, Manny sentia-se em muitos aspetos como se estivesse em casa, e não queria pensar muito, receando que tais bênçãos
se desvanecessem.
Momentos depois, olhou para o lado.
- Importas-te que te faça uma pergunta.
- Força.
- O que é que me fizeste à merda do carro?
- O quê, estás a falar da música?
- Para onde é que foi a minha...
- Merda? - Olhos da cor de diamante cruzaram-se com os dele. - Se vais morar aqui, vais começar a ouvir aquilo que eu ouço, certo?
Manny abanou a cabeça.
- Deves estar a brincar comigo.
- Estás a dizer que não gostaste da batida?
- Pois. - Depois de tossicar, Manny cedeu. - Está bem, não eram péssimas de todo.
A gargalhada foi um bocadinho triunfante de mais.
- E sabia.
- Então e o que era?
- E agora, o gajo quer nomes. - O vampiro pegou num cigarro e acendeu-o. - Deixa ver... «Cinderella Man», do Eminem. «I Am Not a Human», do Lil Wayne. O Tupac...
A lista prosseguiu, e Manny foi ouvindo enquanto observava a sua mulher a cavalgar e afagava o peso do cruxifixo de ouro.
Ele e Payne estavam juntos... ia com Butch à igreja, à meia-noite... e Vishous não o esfaqueara. E, se bem se lembrava, o gémeo de Payne conduzia aquele Escalade
preto ali, e isso significava que a vingança seria uma carrada de Black Veil Bride, Bullet for My Valentine e Avenged Sevenfold a ser transferida para o sistema
de som do SUV.
Só pensar nisso já o deixava a sorrir.
Bem feitas as contas?
Sentia-se como se tivesse ganhado a lotaria. Em cada um dos cinquenta estados. Ao mesmo tempo.
Era essa a sorte de todos eles.

 

Glossário
ahmo (n.) - Termo respeitoso usado por alguém sexualmente submisso para se referir ao seu dominador.
ahstrux nohtrum (n.) - Guarda privado com licença para matar nomeado para o cargo pelo Rei.
caminhante (n.) - Indivíduo que morreu e regressou ao mundo dos vivos vindo do Vápido. São fortemente respeitados e reverenciados pelos seus feitos.
chrih (n.) - Símbolo de morte honrada na Língua Antiga.
comhpetição (n.) - Conflito entre dois machos que lutam pelo direito de ser o macho de uma determinada fêmea.
Dhunhd (n. próp.) - Inferno.
Dhuplo exhilado (n. próp.) - Gémeo maligno ou amaldicionado, aquele que nasceu em segundo lugar.
doggen (n.) - Membro da classe servil no mundo dos vampiros. Os doggens têm tradições antigas e conservadoras em relação ao serviço dos superiores, cumprindo regras
formais de roupagem e comportamento. São capazes de sair durante o dia, mas envelhecem relativamente depressa. A sua esperança de vida é de cerca de quinhentos anos.
ehros (n.) - Uma Escolhida, treinada nas artes sexuais.
Escolhidas (n.) - Vampiras que foram criadas para servir a Virgem Escrivã. São consideradas membros da aristocracia, embora tenham uma inclinação mais espiritual
do que temporal. Têm pouca ou nenhuma relação com os machos, mas podem acasalar com guerreiros, sob indicação da Virgem Escrivã, para propagarem a sua classe. Têm
a capacidade de fazer prognósticos. No passado eram usadas para servir as necessidades de sangue de membros da Irmandade sem parceira, mas a prática foi abandonada
pelos Irmãos.
Escravo de sangue (n.) - Vampiro macho ou fêmea subjugado para servir as necessidades de sangue de outro vampiro. A prática da manutenção de escravos de sangue foi
recentemente proibida.
ghuardião (n.) - Guarda de um indivíduo. Existem vários graus de guardiões, sendo o mais poderoso o de uma fêmea em isolamento.
glymera (n.) - O núcleo social da aristocracia, aproximadamente equivalente ao existente em Inglaterra no período da Regência (1811-1820).
hellren (n.) - Vampiro macho que foi acasalado com uma fêmea. Os machos podem tomar mais do que uma fêmea como parceira.
instruthor (n. próp.) - Palavra usada entre machos, a qual denota respeito e afeto mútuos. Traduzido livremente como «querido amigo».
Irmandade da Adaga Negra (n. próp.) - Guerreiros vampiros altamente treinados, que protegem a sua espécie contra a Sociedade dos Minguantes. Em resultado das práticas
de reprodução seletivas do próprio grupo, os Irmãos possuem uma enorme força física e mental, bem como capacidades inatas de cura rápida. Não são parentes entre
si, na sua maioria, e são admitidos na Irmandade por nomeação dos Irmãos. Agressivos, confiantes e reservados por natureza, existem à parte dos civis, tendo pouco
contacto com os membros de outras classes, exceto quando têm de se alimentar. São personagens de lenda e alvo de vénia dentro do mundo dos vampiros. Só podem ser
mortos por um ferimento muito grave, ou seja, um tiro ou uma facada no coração, ou algo semelhante.
isohlamento (n.) - Estatuto conferido pelo Rei a uma fêmea da aristocracia como resultado de uma petição por parte da sua família. A fêmea fica sob a direção de
um ghuardião, normalmente o macho mais velho da casa. Este fica com o direito legal de determinar todos os aspetos da vida da fêmea, restringindo, consoante a sua
vontade, todas as interações que ela tenha com o mundo.
leelan (n.) - Um termo de afeto, que pode ser livremente traduzido por «amada».
lewlhen (n.) - Dádiva.
Lhenihan (n. próp.) - Besta mítica afamada pelas proezas sexuais.
Em calão moderno refere-se a um macho de dimensão e resistência
sexuais preternaturais.
lidher (n.) - Uma pessoa com poder e influência.
Lys (n.) - Instrumento de tortura usado para remover os olhos.
mahmen (n.) - Mãe. Usado como designação ou como termo afetuoso.
mhis (n.) - O mascarar de um determinado ambiente físico; a criação de um campo de ilusão.
minguante (n.) - Humano desprovido de alma que caça vampiros para os exterminar como membro da Sociedade dos Minguantes. Para serem mortos os minguantes têm de ser
trespassados pelo coração; de resto, não têm idade. Não bebem nem comem e são impotentes. Com o tempo, o cabelo, a pele e as íris perdem a pigmentação, até que ficam
loiros, pálidos e de olhos incolores. Cheiram a pó de talco. Convocados para a sociedade por Ómega, guardam consigo um vaso de cerâmica onde o seu coração foi depositado
quando removido.
nalla (f.) ou nallum (m.) - Termo carinhoso que significa «amada/o».
newling (n.) - Uma virgem.
Ómega (n. próp.) - Figura malévola e mística que destinou os vampiros à extinção por causa do rancor contra a Virgem Escrivã.Existe num domínio não-temporal e tem
vastos poderes, exceto o poder da criação.
Período de necessidade (n.) - Tempo de fertilidade de uma vampira. Normalmente tem a duração de dois dias e é acompanhado de um intenso apetite sexual. Ocorre, mais
ou menos, cinco anos após a transição da fêmea, e uma só vez, uma década mais tarde. Todos os machos respondem, nalgum grau, se estiverem próximos de uma fêmea em
necessidade. Poderá ser um tempo de perigo, com conflitos e lutas entre os machos competidores, especialmente se a fêmea não tiver parceiro.
Primeira Família (n. próp.) - O Rei e a rainha dos vampiros e respetivos filhos.
princeps (n.) - Nível mais alto da aristocracia dos vampiros, apenas superado pelos membros da Primeira Família ou as Escolhidas da Virgem Escrivã. Têm de herdar
o título, o qual não pode ser conferido a ninguém.
prohtector (n.) - O equivalente a um padrinho ou madrinha de um indivíduo.
pyrocant (n.) - Refere-se a uma fraqueza crítica num indivíduo. A fraqueza pode ser interna, como um vício, ou externa, como um amante.
rahlman (n.) - Salvador.
ryto (n.) - Modo ritual de repor a honra, concedido por aquele que ofendeu. Caso aceite, o ofendido escolhe a arma e atinge o ofensor, que se lhe entrega sem defesa.
sehnhor (n.) - Termo indicador de respeito usado por alguém sexualmente dominado quando se refere do dominante.
shellan (n.) - Vampira que foi acasalada com um macho. Geralmente, as fêmeas não tomam mais do que um parceiro, devido à natureza altamente territorial dos machos
acasalados.
Sociedade dos Minguantes (n. próp.) - Ordem de matadores, convocada por Ómega com o propósito de erradicar a espécie dos vampiros.
sympath (n.) - Espécie dentro da raça dos vampiros com a capacidade e o desejo de manipular as emoções de outras pessoas (para obter uma troca de energia), entre
outras características. Historicamente têm sido discriminados e, durante certas eras, foram caçados por vampiros. Estão quase extintos.
transição (n.) - Momento crítico da vida de um vampiro, em que ele ou ela se transformam em adulto. A partir desse momento, terão de beber o sangue de alguém do
sexo oposto para sobreviverem e são incapazes de suportar a luz do Sol. Ocorre, em geral, entre os vinte e os trinta anos. Alguns vampiros não sobrevivem às suas
transições, em particular os machos. Antes das transições, os vampiros são fisicamente fracos, sexualmente inativos e incapazes de se desmaterializarem.
tremehndo (adj.) - Termo que se refere à potência do órgão sexual de um macho. A tradução literal é algo semelhante a «digno de entrar numa fêmea».
Tumba (n. próp.) - Jazigo sagrado da Irmandade da Adaga Negra. Usado como lugar de culto, bem como de armazém dos vasos dos minguantes. As cerimónias cumpridas naquele
lugar incluem induções, funerais e ações disciplinares aplicadas a Irmãos. Ninguém pode ali entrar, exceto os membros da Irmandade, a Virgem Escrivã ou os candidatos
à indução.
Vampiro (n.) - Membro de uma espécie separada da do Homo sapiens. Os vampiros têm de beber o sangue de alguém do sexo oposto para sobreviverem. O sangue humano mantê-los-á
vivos, embora a força não dure muito tempo. Após às suas transições, que ocorrem entre os vinte e os trinta anos de idade, são incapazes de sair para a luz do Sol
e têm de se alimentar com regularidade mordendo veias. Os vampiros não podem converter humanos através de uma dentada, ou da transferência de sangue, embora sejam
capazes, em casos raros, de acasalar com membros de outra espécie. Os vampiros podem desmaterializar-se conforme queiram, embora precisem de se acalmar e se concentrar
para o conseguir, não podendo carregar consigo nada que seja pesado. São capazes de roubar a memória a humanos, desde que essa memória seja de curta duração. Alguns
vampiros são capazes de ler a mente. A esperança de vida é superior a mil anos e, em alguns casos, ainda mais longa.
Vápido (n. próp.) - Domínio não-temporal onde os mortos se reúnem com os seus amados e passam a eternidade.
vinhgança (n.) - Ato de retribuição mortal, tipicamente levado a cabo por um macho para vingar a sua amada.
Virgem Escrivã (n. próp.) - Força mística que é conselheira do Rei, simultaneamente depositária dos arquivos e dispensadora de privilégios. Existe num domínio não-temporal
e tem vastos poderes. Teve a capacidade de um ato de criação singular, poder que usou para trazer os vampiros à existência.

Capítulo 40
Apenas breves momentos depois de Butch lhe ter ligado, Jane materializou-se na varanda da cobertura de V. Enquanto a sua forma ganhava volume, o ar gelado da noite
acariciou-lhe os cabelos e fez-lhe os olhos lacrimejarem.
Ou... talvez fossem mesmo lágrimas.
Olhando através do vidro, via tudo muito mais claramente: a mesa, os cílios, os chicotes, as... outras coisas.
Quando anteriormente ali tinha ido com Vishous, aqueles adereços das suas preferências extremas tinham parecido apenas um cenário provocador e ligeiramente assustador
para o incrível sexo que eles tinham. Mas a versão dela de «brincadeira sexual» era um caniche, quando comparada com os gostos de lobisomem dele.
E agora ela tinha perfeita noção.
O que é que Butch tinha usado? Em que estado estaria o seu companheiro? Haveria muito sangue ou...
Espera. Onde estava V?
Atravessando a porta envidraçada, ela...
Não havia sangue no chão. Nem a escorrer dos utensílios. Não havia correntes suspensas do teto. Tudo estava exatamente como da primeira vez que ali tinha estado,
como se nada tivesse acontecido...
De fora do círculo de velas ouviu-se um gemido e o som rasgou-lhe o pensamento. Claro. A cama.
Enquanto penetrava no véu de escuridão, os olhos ajustaram-se e ali estava ele. Debaixo de lençóis de seda, estendido de costas, a contorcer-se de dor... ou estaria
a dormir?
- Vishous? - chamou ela suavemente.
Com um grito, ele acordou instantaneamente, com o tronco a levantar-se como uma flecha, as pálpebras a abrirem-se muito. De imediato, ela verificou que o rosto tinha
cicatrizes já a desaparecerem... e havia mais à volta dos peitorais e também no abdómen. Mas a expressão dele foi o que a impressionou mais. Ele estava aterrorizado.
Abruptamente ouviu-se um resfolegar furioso, quando ele tirou os lençóis de cima do corpo. Ao olhar para si próprio, no peito e nos ombros começou a aparecer suor,
na sua pele instalou-se um brilho súbito, mesmo na escuridão, enquanto ele tapava o sexo com as mãos... como se estivesse a proteger o que restava.
Com a cabeça baixa, respirou profundamente. Inspirar. Expirar. Inspirar. Expirar...
O padrão transformou-se em soluços.
Enrolando-se, com as mãos a esconder o trabalho de carniceiro feito há muito, muito tempo, chorou com grandes soluços de emoção, sem reservas, sem controlo. A inteligência
já não dominava o seu reino, era súbdita deste.
Nem se apercebeu de que ela estava junto a ele.
Devia ir-se embora, pensou Jane. Ele não deveria querer que ela o visse naquele estado, nem mesmo antes de tudo se desmoronar entre eles. O macho que ela conhecia
e com quem tinha acasalado não deveria querer...
É difícil dizer o que é que chamou a atenção... e, mais tarde, ela tinha matutado na razão que o levara a escolher aquele momento exato em que ela se ia desmaterializar
para olhar para ela.
Ela ficou imediatamente incapacitada. Se ele tinha ficado irritado com o que acontecera com Payne, agora iria odiá-la. Não havia maneira de voltar atrás naquela
invasão de privacidade.
- O Butch telefonou-me - balbuciou ela. - Ele achou que tu...
- Ele magoou-me... O meu pai magoou-me.
As palavras eram tão fracas e gentis que quase não se ouviam. Mas quando conseguiu ouvir, o coração dela parou.
- Porquê? - perguntou Vishous. - Porque é que ele me fez isto? Porque é que a minha mãe me fez isto? Eu nunca pedi para nascer... e não os teria escolhido se qualquer
um deles me tivesse pedido a opinião... Porquê?
As suas faces estavam molhadas de lágrimas que lhe saltavam dos olhos de diamante, uma corrente interminável de que ele não tinha consciência, ou de que não queria
saber. E ela tinha a sensação de que a corrente demoraria a parar. Uma artéria interna tinha sido perfurada e este era o sangue do seu coração, correndo para fora
dele, cobrindo-o.
- Lamento muito - gorgolejou ela. - Não sei nenhum dos porquês... mas sei que não o merecias. E... que não tens culpa.
As mãos descobriram o sexo e ele fitou-o.
Passou muito tempo até ele falar outra vez e, quando o fez, as palavras eram lentas e ponderadas... e imparáveis, como as lágrimas silenciosas.
- Quem me dera estar completo. Quem me dera ter podido dar-te crianças se as quisesses e as pudesses gerar. Quem me dera ter-te dito que me matava pensares que eu
tinha estado com mais alguém. Quem me dera ter passado o ano anterior a acordar todas as noites e dizer-te que te amo. Quem me dera ter acasalado contigo como deve
ser na noite em que voltaste para mim vinda dos mortos. Quem me dera... - O olhar cintilante dele procurou o dela. - Quem me dera ter metade da força que tu tens
e quem me dera merecer-te. E... acho que é isto.
Pois. Certo. Agora estavam os dois desfeitos.
- Lamento o que aconteceu com Payne - disse ela, num tom rouco. - Eu queria falar contigo, mas ela estava decidida. Tentei argumentar, tentei mesmo, mas, no fim,
simplesmente... não queria... não queria que fosses tu a fazê-lo. Preferia ter vivido com a terrível verdade na consciência durante uma eternidade, a fazer com que
tivesses de matar a tua irmã. Ou levá-la a magoar-se ainda mais do que já estava.
- Eu sei... agora sei.
- E, honestamente, o facto de ela se ter curado? Dá-me arrepios só de pensar que quase falhámos.
- Está tudo bem, agora. Ela está bem.
Jane limpou os olhos.
- E acho que no que toca a... - Lançou uma olhadela para a parede, decorada com uma luz amarelada que não suavizava de maneira nenhuma os bicos afiados e as implicações
ainda mais cortantes do que poderia lá estar pendurado. - No que toca a... estas coisas... sobre os teus hábitos sexuais, eu sempre me preocupei com o facto de não
ser suficiente para ti.
- Porra... não... tu és tudo para mim.
Jane colocou a mão sobre a boca para não perder completamente o controlo. Porque era precisamente o que ela precisava de ouvir.
- Nem sequer tatuei o teu nome nas minhas costas - disse V. - Achei que era uma estupidez e uma perda de tempo... mas como é que podes sentir que somos companheiros
sem isso... especialmente quando todos os machos do complexo foram marcados para a sua shellan?
Meu deus, ela nunca tinha pensado nisso.
V abanou a cabeça.
- Deste-me espaço... para poder estar com o Butch e lutar com os meus irmãos e fazer as minhas cenas na Internet. O que é que eu te dei?
- Para começar, a minha clínica. Não a poderia ter construído sem ti.
- Não é exatamente um ramo de rosas.
- Não subestimes as tuas capacidades de carpinteiro.
Ele esboçou um sorriso ao ouvir isto. E depois ficou outra vez sério.
- Posso dizer-te uma coisa que pensei todas as vezes que acordei ao teu lado?
- Por favor, diz.
Vishous, aquele que tinha sempre uma resposta para tudo, parecia ter a língua presa. Mas finalmente disse:
- És a razão que me faz sair da cama todas as noites. E és a razão que me faz querer voltar para casa todas as madrugadas. Não é a guerra. Não são os Irmãos. Nem
sequer é o Butch. És... tu.
Oh, palavras tão simples... mas o seu significado. Deus do céu, o significado.
- Deixas que eu te abrace agora? - pediu ela curtamente.
O companheiro estendeu os braços enormes.
- E se for eu a abraçar-te?
Enquanto saltava para a frente e mergulhava nele, contrapôs:
- Não tens de ser tu ou eu.
Ficou completamente sólida sem qualquer esforço, a química interna mágica entre eles a materializá-la e mantê-la ali. E quando Vishous enterrou a cabeça nos seus
cabelos e estremeceu como se tivesse corrido uma grande distância e finalmente tivesse chegado a casa... ela soube exatamente como ele se sentia.
Com a shellan a arder contra ele, V sentia-se como se tivesse sido completamente desfeito... e depois remontado.
Cristo, o que Butch tinha feito por ele. Por todos eles.
O caminho que o chui escolhera tinha sido o correto. Horrífico e terrível... mas absolutamente certo. E agora, enquanto abraçava a sua fêmea, os olhos percorriam
o espaço onde tudo acontecera. Tinha sido tudo limpo... exceto uma ou outra coisa que estava fora do sítio no chão. Uma colher e um copo praticamente vazio de um
líquido que só podia ser água.
Tinha sido tudo uma ilusão. Nada o tinha de facto rasgado. E ele era capaz de apostar que Butch tinha deixado aquelas duas coisas centradas e à vista para quando
V acordasse e olhasse em volta perceber quais tinham sido os meios que tinham conduzido àquele fim.
Em retrospetiva, parecia tudo tão estúpido... não a sessão com o chui, mas o facto de V nunca ter realmente pensado no Derramador de Sangue todos esses anos no campo
de guerra. A última vez que essa memória do passado tinha surgido, fora quando Jane estivera com ele a primeira vez, e nessa altura só tinha acontecido porque ela
o tinha visto nu e ele tinha sentido necessidade de explicar.
O meu pai não queria que eu reproduzisse.
Era basicamente tudo o que ele tinha para dizer sobre o assunto. E depois, como um corpo morto que tivesse ficado com a cara para cima em águas paradas, essa merda
tinha-se afundado outra vez, instalando-se novamente na margem arenosa do rio no mais profundo do seu ser.
AJ, ou Antes de Jane, ele só tinha tido sexo com as calças vestidas. Não por vergonha - ou pelo menos isso era o que ele dizia a ele próprio - mas simplesmente porque
não estivera interessado em entrar nesses pormenores com os machos e fêmeas anónimos que tinha fodido.
DJ? Tinha sido diferente. A nudez era mais do que normal, provavelmente porque Jane tinha mantido a cabeça fria com a revelação. E contudo, quando pensava nisso
agora, tinha-a sempre abraçado a uma certa distância, mesmo que ela estivesse aninhada nos seus braços. Quanto muito, tinha estado mais próximo de Butch - mas isso
era macho-com-macho, o que era, de algum modo, menos ameaçador do que macho-com-fêmea.
A questão relacionava-se com as Sombras da Mamã, sem dúvida. Depois de tudo o que a mahmen tinha feito, ele simplesmente não conseguia confiar nas fêmeas como confiava
nos irmãos ou no melhor amigo.
Mas Jane nunca o tinha traído. Na verdade, ela estava disposta a lutar com a sua própria consciência para o salvar do ato indescritível que a irmã lhe exigia.
- Não és a minha mãe - disse para o cabelo da shellan.
- Podes ter a certeza que não. - Jane afastou-se e fitou-o como costumava fazer. - Eu nunca teria abandonado o meu filho. Ou tratado a minha filha daquela maneira.
V inspirou profundamente e, quando soltou o oxigénio para fora dos pulmões, sentiu-se como se estivesse a expelir os mitos pelos quais se autodefinira... e a Jane...
e ao relacionamento entre ambos.
Tinha de mudar de paradigma.
Por eles. Por si próprio. Por Butch.
Cristo, a expressão no rosto do chui quando as coisas tinham acontecido tinha sido para lá de trágica.
Por isso, sim, era altura de parar de utilizar merdas exteriores para automedicar as emoções. O sexo extremo e a dor tinham parecido soluções excelentes durante
muito tempo, mas, na verdade, não passavam de uma forma de cobrir as borbulhas. A fealdade tinha continuado dentro de si.
O que ele tinha de fazer era lidar com a merda interior, para não precisar que Butch ou qualquer outra pessoa o subjugasse só para ele poder libertar-se. Assim,
estas perversões poderiam ser mesmo só para ter prazer com Jane.
Controlar as suas merdas - parecia que ele estava finalmente preparado para tentar a versão psiquiátrica do Proactiv.
Se não tivesse cuidado, ainda acabava na televisão, fitando uma câmara e dizendo: «Tudo o que é preciso é um pouco de Autoconsciência... e depois purifico-me com
a Lavagem de Autodefinição patenteada e a minha mente e as minhas emoções ficam limpinhas e a brilhar...»
Ok, agora estava a ficar com parafusos a menos, a sério.
Acariciando o cabelo macio de Jane, murmurou:
- Sobre... as coisas que tenho aqui. Se quiseres brincar, eu também vou querer... se percebes o que quero dizer. Mas, a partir de agora, é só para nos divertirmos
e só para nós os dois.
Diabos, eles tinham tido uma grande quantidade de sexo bizarro e muito bom naquele sítio, cheio de cabedal, e ele continuava a querer ter isso com ela. Tinha esperança
que ela sentisse o mesmo...
- Eu gosto do que fazemos aqui. - Ela sorriu. - Excita-me.
Bem... e não é que isto fez o membro dele pulsar?
- Eu também.
Quando lhe sorriu de volta, reconheceu o único senão da ideia. Todo este virar-uma-nova-página estava muito bem, mas como é que ele ia fazer isso? Amanhã à noite
já não se podia dar ao luxo de acordar e ser aquele que passou das marcas.
Merda, ele achava que ia descobrir uma maneira. Não ia?
Com um toque gentil, acariciou a face da shellan.
- Nunca tive uma relação antes de estar contigo. Já devia imaginar que havíamos de bater contra uma parede em alguma altura.
- Faz parte da coisa.
Pensou nos irmãos e na quantidade de vezes em que tinha havido contratempos, lutas e discussões entre esse grupo de lutadores machões. De alguma forma, tinham sempre
dado a volta ao assunto, regra geral andando à pancada uns com os outros de vez em quando. O que era uma coisa de macho.
Claramente, ele e Jane seriam iguais. Não à pancada, claro, mas em relação aos obstáculos do caminho e à sua eventual resolução. Afinal de contas, a vida era aquilo...
não um conto de fadas.
- Mas sabes o que é melhor nisto tudo? - indagou Jane, enquanto lançava os braços à volta do seu pescoço.
- Já não sinto que morri por não estares na minha vida?
- Bem, isso também. - Esticou o pescoço e beijou-o. - Duas palavras: sexo de fazer as pazes.
Ohhhhhh, siiiiiiiim. Mas...
- Espera, isso são duas palavras? Alargaste a expressão?
- Alarguei na minha cabeça. Mas acho que tanto faz.
- Não será antes apenas «fazer as pazes»?
- Também é uma possibilidade. - Pausa. - Alguma vez te disse que és o geek mais sensual que já conheci?
- Revejo-me nesse comentário. - Mergulhou a cabeça e roçou a boca contra a dela. - Mas não digas a ninguém. Tenho uma reputação de durão para manter.
- O teu segredo está seguro comigo.
V ficou sério.
- Eu estou seguro contigo.
Jane afagou-lhe o rosto.
- Não posso prometer que não vás encontrar mais obstáculos no caminho, nem que vamos estar sempre de acordo. Mas tenho uma certeza... estarás sempre seguro comigo.
Sempre.
Vishous aproximou-a e encostou a cabeça no seu pescoço. Ele assumira que não havia mais nada para explorar depois de ela ter morrido e ter voltado para ele na sua
adorável forma fantasmagórica. Mas estava enganado. O amor, apercebeu-se, era como os punhais que criava na forja. Quando surgia um novo, era lustroso e a lâmina
cintilava à luz. Segurando-o na palma da mão, dava otimismo quanto ao desempenho em ação e mal podia esperar para o experimentar. Mas as primeiras duas noites eram
geralmente estranhas, enquanto se habituava a ele e ele a si.
Com o tempo, o aço perdia o brilho da novidade e o punho ficava manchado e às vezes talvez fosse necessário tirar-lhe merda de cima. Contudo, em troca, salva-te
a vida. Uma vez habituados um ao outro, torna-se parte de ti, como uma extensão do teu próprio braço. Protege-te e dá-te uma maneira de protegeres os irmãos. Dá-te
confiança e poder para enfrentares o que quer que surja na noite e, onde quer que vás, está contigo, junto ao teu coração, sempre ali quando precisas ele.
No entanto, tens de manter a lâmina afiada. E remendar o punho de vez em quando. E verificar o peso.
Engraçado... tudo isso era evidente quanto se tratava de armas. Porque é que não se tinha apercebido que era a mesma coisa com o acasalamento?
Revirando os olhos, pensou que talvez a Hallmark estivesse disposta a estabelecer uma linha de postais do Dia dos Namorados inspirada na medievalidade, uma coisa
do tipo Sacro-Gótico-Suave. Ele seria perfeitamente adequado para fornecer material.
Com os olhos fechados e abraçado a Jane, estava quase feliz por ter perdido a cabeça, só para poderem ter chegado àquele momento.
Bem, ele teria escolhido um caminho mais fácil, se houvesse. Mas não tinha a certeza de o resultado ter sido este. Era preciso merecer.
- Tenho uma pergunta para fazer - disse ele, gentilmente.
- O que quiseres.
Afastando-se um pouco, afagou-lhe o cabelo com a mão enluvada e passou algum tempo até se decidir a perguntar o que tinha na ponta da língua.
- Deixas-me... fazer amor contigo?
* * *
Enquanto Jane fitava Vishous e sentia o corpo dele contra o seu, soube que nunca o deixaria. Nunca. E também reconheceu que, se conseguiram sobreviver à última semana,
era porque era um bom casamento - acasalamento - e nada os poderia agora deter.
- Sim - respondeu ela. - Por favor...
O seu hellren tinha-a procurado tantas vezes desde que estavam juntos. De noite e de dia; no duche e na cama; vestidos, despidos, meio vestidos; depressa e com vigor...
Nele, a sensação de limite tinha sempre feito parte da excitação. Isso e a imprevisibilidade. Ela nunca sabia o que esperar. Se ele lhe ia exigir coisas ou controlar
o seu corpo ou controlar-se para ela poder fazer com ele o que quisesse.
Contudo, ele nunca ia devagar.
Agora, afagava-lhe o cabelo, percorrendo com os dedos os caracóis e prendendo-os atrás das orelhas. E, então, os olhares cruzaram-se e as bocas juntaram-se suavemente.
Afagando e acariciando, lambeu-lhe os lábios mas, quando ela os abriu, ele não mergulhou logo como era habitual. Continuou a beijar... até ela se sentir tonta com
o sugar e arrastar de carne contra carne.
O corpo dela costumava ansiar por isto. Agora, contudo, uma sensação deliciosa percorria-a, descontraindo-a e deixando-a à vontade, despertando uma excitação pacífica
que, de certa forma, era tão profunda e perturbadora como a paixão desesperada que habitualmente sentia.
Quando ele mudou de posição, ela acompanhou-o, deitando-se completamente de costas, enquanto ele se elevava e cobria o corpo dela com o dele. Continuaram a beijar-se
e ela estava tão compenetrada nesse beijo que nem se apercebeu quando ele deslizou a mão por baixo da camisa dela. A palma quente da sua mão foi subindo, parando-lhe
nos seios... explorando e acariciando. Sem provocar, sem beliscar, sem apertar. Só o polegar a passar para trás e para a frente pelo mamilo, até ela se arquear e
gemer.
As mãos dela exploraram-lhe as costas e - ó, meu Deus, lá estava o padrão de marcas que ela conhecia. E continuaram a explorar completamente o tronco dele...
Vishous segurou-lhe os pulsos e pressionou os braços dela contra a cama.
- Não penses nisso.
- O que é que ele...
- Shh.
Continuaram a beijar-se e ela tentou lutar contra ele, mas cada um dos impulsos para se soltar mergulharam suavemente o seu cérebro em sensações.
Não valia a pena pensar mais no assunto, disse a si própria. O que quer que tivesse acontecido tinha-os ajudado chegar ali.
Era tudo o que ela precisava de saber.
A voz de Vishous ecoou no seu ouvido, profunda, cava.
- Quero tirar-te a roupa. Posso?
- Por favor. Sim... ó meu Deus, sim.
Despi-la fazia parte do prazer, o meio tão glorioso como o fim, que os levaria a estar juntos pele-contra-pele. E, de alguma forma, a revelação gradual daquilo que
já vira tantas vezes fazia com que fosse novo e especial.
Os seus seios endureceram ainda mais quando o ar frio os envolveu e ela observou-o enquanto ele a fitava. Estava lá o desejo, mas também havia muito mais... reverência,
gratidão... uma vulnerabilidade que ela tinha pressentido, mas que nunca antes tinha visto claramente.
- És tudo aquilo de que preciso - afirmou ele enquanto mergulhava nela.
As suas mãos estavam em todo o lado, na barriga, nas ancas, entre as pernas.
No seu sexo molhado.
O orgasmo que ele lhe deu foi uma onda quente que trespassou todo o seu corpo, irradiando para fora, assumindo o controlo numa nuvem divina de prazer. E, entretanto,
ele montou-a e deslizou para dentro dela. Sem repelões, apenas a continuação da onda, dentro e fora dela, enquanto o seu corpo ondulava e a ereção dele entrava e
saía.
Sem pressas, apenas um amor tranquilo.
Sem urgência, apenas todo o tempo do mundo.
Quando ele finalmente se veio, com uma última ondulação da espinha e a pulsar no interior dela, ela acompanhou-o, os dois enrolados juntos um ao outro, fundidos,
corpo... e alma.
Fazendo-a girar, trouxe-a para cima dele e ela ali ficou, cravada no peito duro e musculado, lânguida como uma brisa de verão e igualmente leve. Ela estava a flutuar
e quente e...
- Estás bem? - perguntou Vishous ao olhar para ela.
- Mais do que bem. - Procurou o rosto dele. - Sinto-me como se tivesse feito amor contigo pela primeira vez.
- Ótimo - respondeu ele. - Era essa a ideia.
Deitando a cabeça junto ao coração pulsante dele, olhou para a parede por trás da mesa. Nunca pensou vir a ficar agradecida àquele monte de «brinquedos» aterradores,
mas estava. No meio da tempestade... tinham encontrado a tranquilidade.
Antes separados... eram agora outra vez um só.
Capítulo 41
Na mansão, Qhuinn andava às voltas no seu quarto como um rato à procura de uma saída da gaiola. Com tanta merda a acontecer e Wrath obrigava-o a ficar ali.
Mas que maravilha.
Ao passar mais uma vez pela porta aberta da casa de banho, pensou que o facto de a quarentena fazer todo o sentido ainda o chateava mais. Só ele, John e Xhex é que
não tinham sofrido ferimentos até agora. Todos os outros estavam naquela multidão e já tinham sido escortanhados de uma maneira ou de outra.
Por ali era a Casa del Toca-a-Curar.
Mas porra, eles os três podiam ter saído para se vingarem.
Parando em frente às portas da varanda, olhou para o jardim bem tratado que estava à beira de começar a florir. Com as luzes apagadas no quarto, conseguia ver claramente
a piscina com a cobertura de inverno esticada por cima assemelhando-se à cinta adelgaçante maior que o mundo alguma vez vira. E as árvores ainda estavam, na sua
grande maioria, nuas. E os canteiros não eram ainda...
Blay tinha sido ferido.
... mais do que retângulos ordenados de terra castanha-escura.
- Merda.
Esfregando o cabelo agora curto, tentou lidar com a pressão que sentia no centro do peito. Segundo John, Blay tinha sido atingido na cabeça e esfaqueado na barriga.
A pancada na cabeça estava a ser monitorizada e o corte tinha sido suturado pela Doc Jane. Nenhum dos ferimentos lhe punha em risco a vida.
Estava tudo bem.
O pior é que o seu esterno não estava a aceitar essa conversa fiada. Desde que John Matthew lhe contara as novidades, aquela maldita dor tinha-se instalado, moendo-o,
confortavelmente aninhada nas suas vias respiratórias.
Não conseguia, literalmente, respirar fundo.
Que merda, se ao menos fosse um macho maduro - e, tendo em conta a forma como às vezes resolvia as coisas, era contestável, se não mesmo incorreto, considerá-lo
como tal - iria para o corredor, marchava até ao quarto de Blay e batia-lhe à porta. Espreitava para se certificar de que o ruivo ainda tinha o coração a bater e
que estava bom da cabeça... e depois ia à sua vida.
Em vez disso, tentava fingir que não estava a pensar nele, enquanto fazia um buraco na carpete.
Enquanto pensava tudo isto, continuava a andar de um lado para o outro. Ele preferia estar na sala de musculação, mas o facto de Blaylock estar aqui nesta ala era
uma amarra que o mantinha preso nas redondezas. Sem uma razão suficientemente forte para se afastar, como sair para lutar ou... digamos... a casa estar a arder,
ele era evidentemente incapaz de se libertar.
E, quando estava outra vez à frente das portas de vidro, teve um indício do porquê.
Tentou convencer a palma da sua mão a não tocar no puxador.
Não foi bem-sucedido.
A fechadura abriu-se e o ar frio embateu-lhe violentamente no rosto. Saindo para a varanda descalço e de roupão, mal se apercebeu de que o chão estava absolutamente
gelado ou que uma brisa fria lhe subia pelas pernas e lhe atingia diretamente os testículos.
Lá em cima, saía luz das portas duplas do quarto de Blay. O que era uma boa notícia pois de certeza que correriam os cortinados antes de fazerem sexo.
Por isso, provavelmente era seguro espreitar. Certo...?
Além disso, Blay estava a recuperar de um ferimento, logo não podia andar às cambalhotas ali dentro.
Decidindo-se a assumir o papel de Qhuinn Espião, manteve-se nas sombras e tentou não se sentir como um mirone enquanto caminhava em bicos de pés. Quando se aproximou
da porta, preparou-se mentalmente, espreitou e...
Respirou fundo, aliviado.
Blay estava sozinho na cama, escarranchado contra a cabeceira, com o roupão preto atado na cintura, os tornozelos cruzados, os pés com meias pretas. Tinha os olhos
fechados e as mãos repousavam sobre a barriga, como se estivesse a ser cuidadoso com as partes ainda enroladas em ligadura.
Um movimento fez com que Blay abrisse as pálpebras e olhasse na direção oposta à janela. Era Layla a sair da casa de banho e estava a andar muito lentamente. Trocaram
algumas palavras. Estava a agradecer-lhe, sem dúvida, pela alimentação que acabara de receber e ela estava a dizer-lhe que o prazer era todo dela. Não era uma surpresa
que ela aqui estivesse. Já tinha feito a ronda da casa anteriormente e Qhuinn já se tinha cruzado com ela antes da primeira refeição... ou daquilo que teria sido
a primeira refeição se alguém tivesse aparecido.
E quando ela saiu do quarto de Blay, Qhuinn esperou que Saxton entrasse. Nu. Com uma rosa vermelha nos dentes. E uma maldita caixa de chocolates.
E uma ereção que fazia com que o Monumento a Washington parecesse atarracado.
Nada.
Apenas Blay deixando cair a cabeça para trás e as suas pálpebras a fecharem-se. Parecia completamente exausto e, pela primeira vez, velho. Aquele não era um rapaz
que acabara de fazer a transição. Aquele era um macho de raça pura.
Um incrivelmente belo... macho... de raça pura.
Na sua mente, Qhuinn viu-se a si próprio a abrir a porta e entrar. Blay olharia e sentar-se-ia na cama... mas Qhuinn faria um gesto para ele se voltar a deitar enquanto
entrava.
Perguntaria pelo ferimento. E Blay abria o roupão para lhe mostrar.
Qhuinn esticaria o braço e tocaria na ligadura... e depois deixaria os dedos saírem da gaze e do adesivo para a pele quente e suave da barriga de Blay. Este ficaria
chocado, mas nesta fantasia ele não afastaria a mão... Levá-la-ia mais abaixo, para lá do ferimento, em direção às ancas e...
- Foda-se!
Qhuinn deu um salto para trás, mas era tarde de mais. Saxton tinha entrado no quarto, ido até à janela e começado a fechar as cortinas. E enquanto o fazia, tinha
visto o idiota do lado de fora na varanda armado em câmara de segurança.
Enquanto Qhuinn dava meia volta para regressar rapidamente ao seu quarto, pensava Não abras a porta... não abras a porta...
- Qhuinn?
Caçado.
Imóvel como um ladrão apanhado com um ecrã de plasma debaixo do braço, certificou-se de que o roupão estava fechado antes de se virar. Merda. Saxton estava a entrar
na varanda e o sacana também estava de roupão.
Bem, aparentemente andavam todos de roupão. Até Layla estava de robe.
Quando Qhuinn encarou o primo, apercebeu-se de que não tinha trocado com ele mais de duas palavras desde que ele se mudara para cá.
- Só queria saber como ele estava. - Não valia a pena dizer o nome - era absolutamente óbvio quem é que ele estava a espiar.
- O Blaylock agora está a dormir.
- Alimentou-se? - perguntou, mesmo sabendo a resposta.
- Sim.
Saxton fechou a porta atrás de si, sem dúvida para o frio não entrar, e Qhuinn tentou ignorar o facto de ele ter os pés e os tornozelos nus à vista. Porque a probabilidade
era que o resto também estivesse.
- Ah, desculpa incomodar-te - balbuciou Qhuinn. - Tem uma boa n...
- Podias ter batido à porta. Do lado do corredor.
Disse as palavras com um tom aristocrático que fazia Qhuinn ficar completamente tenso. Não por odiar Saxton. Simplesmente fazia-o demasiado lembrar-se da família
que tinha perdido.
- Não queria incomodar-te. Incomodá-lo. Incomodar nenhum dos dois.
Quando uma rajada de vento atingiu a varanda, o cabelo louro inacreditavelmente firme e ondulado de Saxton nem sequer ficou um bocadinho desalinhado, como se cada
cabelo, até ao folículo, estivesse tão bem composto e cuidado que não era afetado por... nada.
- Qhuinn, não interrompias nada.
Mentiroso, pensou Qhuinn.
- Chegaste primeiro, primo - murmurou Saxton. - Se querias vê-lo, ou estar com ele, deixá-los-ia a sós.
Qhuinn pestanejou. Então... tinham uma relação aberta? Mas que raio?
Ou espera... talvez ele tivesse feito um bom trabalho a convencer não só Blay, mas também Saxton, de que não estava interessado em nada de sexual com o seu melhor
amigo.
- Primo, posso falar honestamente?
Qhuinn aclarou a garganta.
- Depende do que tenhas para dizer.
- Sou amante dele e...
- Epá... - Levantou a mão para o interromper. - Isso não é da minha conta.
- ... não sou o amor da vida dele.
Qhuinn pestanejou outra vez. E então, por um segundo, foi projetado para um local onde o primo lhe fazia graciosamente uma vénia e ele era tão bom como o filho da
puta. Só que havia uma falha enorme nesta fantasia. Blay já não queria nada com ele.
Ele próprio levara a esse resultado ao longo de muitos anos.
- Entendes o que te estou a dizer, primo? - Saxton manteve um tom de voz baixo, apesar de o vento estar a uivar e a porta estar fechada. - Estás a ouvir-me?
Ok, Qhuinn não tinha antecipado ser encostado contra essa parede naquela noite... ou em qualquer outra noite. Que merda, o seu corpo estava subitamente todo a pulsar
e ele quase tinha vontade de dizer ao primo para dar de frosques e ir dar banho ao cão ou qualquer coisa do género, ou melhor ainda, para desaparecer de vez.
Só que então pensou na aparência envelhecida de Blay. Ele tinha finalmente encontrado um caminho na vida e seria um crime injusto deitar tudo isso a perder ali no
escuro.
Qhuinn abanou a cabeça.
- Não está certo.
Não para Blay.
- És um palerma.
- Não. Mas costumava ser.
- Permite-me discordar. - A mão elegante de Saxton juntou mais as lapelas do roupão. - Se me dás licença, é melhor voltar para dentro. Está muito frio aqui fora.
Bem, era mesmo uma metáfora do caraças.
- Não lhe digas nada - pediu Qhuinn secamente. - Por favor.
Saxton semicerrou os olhos.
- O teu segredo está mais do que seguro comigo. Confia em mim.
E, dizendo isto, virou-se e voltou para o quarto de Blaylock, fechando a porta no trinco e tapando a luz ao fechar os pesados cortinados.
Qhuinn coçou a cabeça outra vez.
Parte dele queria entrar por ali dentro e dizer, Mudei de ideias, primo: agora põe-te a andar daqui para fora para eu poder...
Dizer a Blay o que tinha dito a Layla.
Mas era bem possível que Blay estivesse apaixonado por Saxton, e Deus sabia que Qhuinn já tinha fodido o seu melhor amigo demasiadas vezes.
Ou não, como era o caso.
Quando eventualmente regressou ao quarto, só porque era demasiado patético estar ali fora a fitar a porcaria das cortinas, apercebeu-se de que a sua vida girava
sempre em torno de si próprio. Do que ele queria. Precisava. Tinha de ter.
O antigo Qhuinn teria entrado por aquele buraco...
Detendo-se, tentou não terminar aquela frase demasiado literalmente.
A verdade era que o ditado ridículo e lamechas estava certo: quando se ama alguém, libertamo-lo.
Já no quarto, sentou-se na cama. Olhando em volta, viu a mobília que não tinha comprado... e decorações fabulosas, mas anónimas e nada ao seu estilo. A única coisa
que lhe pertencia eram as roupas no armário, a lâmina na casa de banho e os ténis de corrida que atirara para o chão quando chegara.
Era tal e qual como em casa dos pais.
Bem, ali, verdade fosse dita, as pessoas valorizavam-no. Mas no que tocava a ter uma vida, não tinha uma realmente sua. Era o protetor de John. O soldado da Irmandade.
E...
Merda, agora que já não se abandonava ao seu vício de sexo, a lista acabava aí.
Encostando-se à cabeceira, cruzou os pés e ajeitou o roupão. A noite estendia-se com um tédio horrível onde nada acontecia, como se ele estivesse a conduzir e conduzir
e conduzir ao longo do deserto... e pela frente esperavam-no mais noites como aquela.
Meses todos iguais.
Anos.
Pensou em Layla e no conselho que lhe tinha dado. Porra, estavam os dois exatamente na mesma posição, não estavam?
Fechando os olhos, ficou aliviado quando a sua mente começou a vaguear. Mas teve a sensação de que a paz encontrada não duraria muito.
E estava certo.
Capítulo 42
No Hospital Equino de Tricounty, Manny ficou parado enquanto Glory lhe cabeceava a roupa, e ele sabia que talvez a devesse deixar. Descobriu, contudo, que era incapaz
de se separar, e a Payne também, do cavalo.
O tempo esgotava-se para a sua Glory e isso era como se o matassem. Mas não a podia deixar a definhar, mais magra e aleijada a cada dia que passava. Merecia muito
mais do que isso.
- Ama-la - comentou Payne, em voz baixa, com a mão pálida a percorrer as costas da puro-sangue e a descer-lhe até à anca.
- Pois. É verdade.
- Ela tem muita sorte.
Não. Estava a morrer e isso era uma maldição.
Pigarreou.
- Acho que temos de...
- Doutor Manello?
Manny chegou-se atrás e olhou sobre a porta da baia.
- Olá, doutor. Como está?
O veterinário se aproximou e o smoking que usava parecia tão deslocado como uma forquilha num camarote da ópera.
- Estou bem... e você parece muito bem. - O homem endireitou o laço. - Estou com este fatinho porque venho do Met. Mas tinha de aqui passar para ver como estava
a sua menina.
Manny saiu e ofereceu-lhe a mão.
- Eu também.
Ao apertarem as mãos, o veterinário olhou para o interior da baia - e ficou de olhos arregalados quando viu Payne.
- Ah... olá.
Quando Payne ofereceu ao homem o esboço de um sorriso, o bom doutor pestanejou como se o sol tivesse rasgado as nuvens, brindando-o com o seu brilho.
Ceeeeeerto, Manny estava mais do que farto de ter sacanas a mirarem-na assim.
Interpondo-se, perguntou:
- Será que a podemos pôr em alguma suspensão? Para lhe aliviar a pressão?
- Prendemo-la umas horas por dia. - Enquanto respondia, o veterinário chegou-se para o lado até que Manny se viu obrigado a segui-lo com o tronco para lhe bloquear
a visão. - Não quero correr o risco de termos problemas gastrointestinais ou respiratórios.
Farto da inclinação e querendo poupar Payne ao rumo da conversa, Manny segurou o braço do homem e chegou-o para o lado.
- Qual o próximo passo?
O veterinário esfregou os olhos, como se desse à mente um instante para se ordenar.
- Sinceramente, doutor Manello, não tenho um bom pressentimento quanto ao ponto em que nos encontramos. Aquele outro casco está a ceder, e mesmo tendo feito todos
os possíveis para o tratar, ele não está a reagir.
- Tem de haver mais qualquer coisa.
- Sinto muito, a sério.
- Quanto tempo até termos a certeza...
- Já a tenho. - O olhar do homem estava absolutamente carregado. - Foi por isso que cá vim esta noite... estava à espera de um milagre.
Pois, já eram dois.
- E se ficasse um bocado com ela - aventou o veterinário. - Demore o tempo que quiser.
Que era jargão clínico para Despeça-se.
O veterinário levou brevemente a mão ao ombro de Manny, depois virou-se e afastou-se. De saída olhou para cada baia, confirmando os pacientes e afagando um focinho
ocasional.
Um bom homem. Um indivíduo meticuloso.
Do tipo que faria tudo o que pudesse antes de apresentar o cenário com a pior das hipóteses.
Manny respirou fundo e tentou convencer-se de que Glory não era um animal de estimação. As pessoas não tinham cavalos de corrida como animais de estimação. E ela
merecia mais do que sofrer numa baia acanhada até que ele reunisse coragem suficiente para fazer o que tinha de ser feito.
Levando a mão ao peito, esfregou a cruz que tinha por baixo da roupa e sentiu um impulso súbito de ir à igreja...
Começou apenas por reparar que as sombras estavam a ficar mais escuras na parede do outro lado do corredor. E depois pensou que talvez alguém tivesse acendido as
luzes do teto.
Acabou por notar que a iluminação vinha da baia de Glory.
Mas... o que...
Deu meia volta e estacou... e depois teve de recuperar o equilíbrio.
Payne estava de joelhos na serradura macia, as mãos nas patas anteriores do cavalo, os olhos fechados, as sobrancelhas franzidas.
E o corpo brilhava-lhe com uma luz forte e bela.
Acima dela, Glory estava imóvel, mas a pelagem estremecia e os olhos reviravam-se-lhe na cabeça. Breves resfôlegos subiam-lhe pelo pescoço comprido e saíam-lhe pelas
narinas dilatadas... como se dominada por uma sensação de alívio, de dor a amainar.
As patas anteriores feridas brilhavam ao de leve.
Manny não se mexeu, não respirou, nem sequer pestanejou. Limitou-se a agarrar a cruz ainda com mais força... e a rezar para que ninguém viesse interromper aquilo.
Não teve noção de quanto tempo ali ficaram os três, mas acabou por se tornar óbvio que Payne estava a ressentir-se do esforço. O corpo começou a vibrar e a respiração
dela tornou-se irregular.
Manny entrou na baia e libertou-a de Glory, segurando-lhe o corpo frouxo contra o seu e afastando-se, para o caso de a égua se assustar ou fazer algo imprevisível.
- Payne? - Cristo...
As pálpebras dela estremeceram e abriram-se.
- Consegui... ajudá-la?
Manny afagou-lhe o cabelo enquanto olhava a poldra. Glory estava de pé, a erguer um casco e depois o outro, regressando depois ao primeiro, como se tentasse perceber
o que provocara o conforto abrupto. Depois abanou-se... e foi mordiscar o feno onde ainda não tocara.
Quando o maravilhoso som de erva seca a ser roída preencheu o silêncio, Manny olhou para Payne.
- Conseguiste - disse-lhe, num tom rouco. - Acho que conseguiste.
Os olhos dela pareceram esforçar-se por se focar.
- Não queria que a perdesses.
Assoberbado por uma gratidão para a qual não tinha palavras, Manny abraçou-a mais junto ao peito e aí a manteve durante alguns instantes. Queria continuar assim
muito mais tempo, mas ela não estava com bom aspeto e só Deus sabia quem mais se teria apercebido do espetáculo de luzes. Tinha de os tirar dali.
- Vamos até minha casa - sugeriu. - Para te poderes deitar.
Quando ela assentiu, Manny içou-a nos braços e raios o partissem se não era uma sensação perfeita. Ao fechar a baia atrás deles, olhou para Glory. O cavalo devorava
o feno como se fosse acabar o mundo.
Santa mãe... teria mesmo resultado?
- Volto amanhã - disse-lhe, antes de se afastar, animado por uma sensação incandescente de esperança.
Junto à casita do guarda, sorriu e encolheu os ombros ao segurança.
- Houve alguém a fazer turnos duplos no hospital. Está exausta.
O homem levantou-se da cadeira, como se a mera presença de Payne, mesmo inconsciente, chegasse para lhe prender a atenção.
- É melhor levá-la para casa. É preciso cuidar bem de uma mulher dessas.
Grande verdade.
- É para lá que eu vou.
Movendo-se rapidamente, chegou à receção e esperou pelo sinal do trinco para que pudesse abrir as derradeiras portas. Com um pouco de sorte, o veterinário não teria
visto nada...
- Obrigado, meu Deus - resmungou Manny ao ouvir o zumbido e aplicar a anca contra a porta.
Não demorou a chegar ao carro, embora tirar as chaves enquanto mantinha Payne ao colo tivesse sido complicado. O mesmo se passou ao abrir a porta. Mas depois lá
a sentou no banco do pendura, sempre a interrogar-se se ela estaria bem. Que raios, não tinha como entrar em contacto com ninguém do mundo dela.
Ao contornar o carro e sentar-se ao volante pensou, Que se dane, ia levá-la de volta aos vampiros...
- Posso pedir-te uma coisa? - disse ela, num tom arrastado.
- Tudo... o que...
- Posso beber-te um pouco da veia? Sinto-me... curiosamente esvaída.
Está bem, certo. Isso era uma necessidade imediata. Trancou o carro e praticamente arrancou o braço para lho dar.
Os lábios macios encontraram o interior do pulso, mas a mordida não foi rápida, quase como se ela tivesse dificuldade em reunir energias. Mesmo assim, ela lá o conseguiu
e ele saltou, com a dor aguda a trespassar-lhe o coração e a deixá-lo um pouco zonzo. Ou... talvez isso fosse o resultado de uma excitação súbita e avassaladora
que lhe percorreu não só desde os testículos ao membro, mas todo o corpo.
Com um gemido, as ancas reviraram-se-lhe no banco do Porsche e deixou a cabeça pender para trás. Cristo, era bom... o ritmo de sucção que ela iniciou era quase como
se estivesse na sua ereção, e mesmo que lhe tenha doído o início, apenas sentia o sugar como um prazer, um prazer doce pelo qual ele tinha a certeza não se importar
de morrer.
Mergulhou num estado de idílio. Pareceu-lhe estar séculos com as presas dela na sua carne. O tempo perdia o significado, tal como a realidade de se encontrarem num
parque de estacionamento, num carro com vidros transparentes.
Que se danasse o mundo.
Só eles os dois, juntos, importavam.
E isso foi antes de aqueles olhos de diamante se terem aberto e ficado nele, olhando-lhe não para o rosto, mas para o pescoço.
Vampira... pensou. Bela vampira.
Minha.
Enquanto essa ideia ganhava força na sua mente, Manny agia sem grande consciência, meneando a cabeça e oferecendo-lhe a jugular...
Não precisou de pedir duas vezes. Payne praticamente lançou-se a ele, com a mão a mergulhar-lhe no cabelo e a prender-lhe a nuca. Agarrando-o, Manny ficou imobilizado,
à mercê dela... a presa do predador que ela era. E agora que o tinha, moveu-se lentamente, com as presas a baixar-lhe até à pele e a percorrerem-lhe a altura do
pescoço, deixando-o hirto com a antecipação da perfuração e da sucção...
- Hummm! - bradou ele quando a vampira o mordeu. - Ah... sim...
As mãos dele agarraram-lhe os ombros, aproximando-a ainda mais.
- Leva tudo... leva... ai, meu Deus... ah, merda...
Algo afagou-lhe o membro. Como sabia exatamente onde tinha as mãos, só podia ser ela. Movendo-se num acesso de sofreguidão, deu-lhe tanto espaço quanto possível
para que ela se mexesse... e Payne assim fez, subindo e descendo contra a ereção tensa, com as ancas dele a ajudarem, indo no movimento contrário às carícias.
Manny arquejava e não conseguia parar de gemer. Não demorou muito para que os testículos ficassem dormentes e a ponta do membro se retesasse contra a pressão crescente.
- Estou quase a vir-me - sussurrou. - É melhor parares se não quiseres que eu...
Com essas palavras, Payne violou o cimo das calças e procurou no interior...
Manny viu a porra das estrelas. Assim que a pele dela tocou na sua, ele atingiu um orgasmo como nunca, a cabeça a saltar para trás com força, as mãos a cravarem-se
nos ombros dela, as ancas tresloucadas, aos saltos. E ela não parou de sugar, nem de bombear. Assim, tal como antes, ele acompanhou os movimentos com a libertação,
com o prazer mais intenso a cada espasmo da ereção.
Acabou demasiado depressa.
Claro que aquilo poderia ter continuado durante uma década e mesmo assim ficaria esfomeado por mais.
Quando Payne o libertou, ela recostou-se e lambeu as pontas aguçadas das presas, a língua rosada em contraste com o branco. Caramba... aquele brilho maravilhoso
voltara a surgir-lhe por baixo da pele, fazendo-a parecer um sonho.
Ah, espera, era isso que ela era, certo?
- O teu sangue é forte - comentou Payne num tom rouco, enquanto voltava a aproximar-se e lhe lambia o pescoço. - Tão forte.
- É? - resmungou ele. Mas nem tinha a certeza de ter falado. Talvez apenas o tivesse pensado.
- Sinto o poder a percorrer-me.
Nunca se interessara por SUV - essas tretas eram demasiado volumosas e conduzi-las era como pedregulhos a caírem montanha abaixo - mas o que não daria naquele momento
por um banco traseiro onde coubesse mais do que os tacos de golfe. Queria deitá-la e...
- Quero mais de ti - murmurou Payne enquanto o esfregava com o nariz.
Que raios, continuava duro como pedra, mesmo tendo acabado de...
- Quero-te na minha boca.
A cabeça de Manny atirou-se para trás e ele gemeu, com o membro a latejar como se aquilo lá em baixo estivesse a meio de uma corrida. Mas por mais que a quisesse,
não sabia se ela tinha noção daquilo em que se estaria a meter. O simples facto de pensar nos lábios dela no seu...
Antes de ter fôlego para falar já a cabeça de Payne se tinha baixado até ao colo dele, e não houve preâmbulo, sugou-o até ao fundo, mantendo-o no interior da sua
boca quente e húmida.
- Porra! Payne!
Levou-lhe as mãos aos ombros, decidido a puxá-la para trás... mas ela não estava disposta a isso. Sem quaisquer indicações sabia exatamente o que fazer, subindo
e sugando-o, antes de lhe lamber a parte debaixo da haste. E depois explorou-o com uma meticulosidade que lhe mostrou que ela estava a gostar tanto quanto ele, e
isso ainda o excitava mais.
Mas então sentiu-lhe a presas a brincarem-lhe com a cabeça.
Puxou-a para cima de imediato, prendendo-lhe a boca num beijo intenso enquanto lhe segurava o rosto e se libertava nas mãos dela. Mas isso não durou. Payne soltou-se
das mãos dele e regressou ao ponto de partida, apanhando-o a meio do orgasmo e absorvendo aquilo que o corpo dele parecia ter a rodos para ela.
Quando os espasmos terminaram, ela ergueu-se, olhou-o... e lambeu lentamente os lábios.
Manny teve então de fechar os olhos, com a ereção a latejar de tal maneira que lhe doía.
- Agora vais levar-me a tua casa - disse ela.
Não era um pedido. E o tom sugeria que ela estaria a pensar exatamente no mesmo que ele.
Portanto, isso levaria apenas a uma coisa.
Manny compôs-se interiormente e depois abriu os olhos. Ergueu a mão, tocando-lhe no rosto, e acariciou-lhe o lábio inferior com o polegar.
- Não sei se devemos, bambina - admitiu.
A mão dela apertou-lhe o membro e ele gemeu.
- Manuel... acho que é exatamente aí que temos de estar.
- Não é... uma boa ideia.
Payne recuou ainda mais e retirou a mão, com o brilho a desvanecer-se.
- Mas estás excitado. Neste momento.
A sério?
- É mesmo por isso. - Percorreu-lhe o rosto com os olhos e depois desceu-lhe até aos seios. Estava tão desesperado por ela que se sentia tentado a rasgar-lhe as
calças e a tomar-lhe a virgindade naquele carro. - Não vou conseguir conter-me, Payne. Mal o estou a fazer neste momento...
Payne ronronou de satisfação e voltou a humedecer os lábios vermelhos.
- Gosto quando te descontrolas.
Cristo, isso não ajudava nada.
- Eu... - Abanou a cabeça, pensando que era um inferno absoluto. Estar a negar isso a ambos causava-lhe uma dor profunda. - Acho que tens de fazer o que precisas
e ires-te embora. Enquanto ainda te consigo deixar ir...
O som de batidas no vidro começou por não fazer grande sentido. Estavam só os dois naquele parque de estacionamento vazio. Mas depois, o mistério solucionou-se:
- Sai do carro. E passa-me as tuas coisas.
A voz masculina fez Manny virar a cabeça para o vidro... onde encarou o cano de uma arma.
- Tu ouviste, meu. Para fora do carro ou dou-te um tiro.
Enquanto Manny devolvia Payne ao seu lugar, afastando-a de um disparo à queima-roupa, disse-lhe baixinho:
- Quando eu sair, tranca as portas. É aqui.
Levou a mão ao tabliê e indicou o botão.
- Deixa-me tratar disto. - Tinha cerca de quatrocentos dólares em dinheiro na carteira e bastantes cartões de crédito. - Fica aqui dentro.
- Manuel...
Não lhe deu hipótese de responder. Para ele, aquela arma era dona de todas as respostas e estabelecia as regras.
Pegando na carteira, demorou-se a abrir a porta, mas saiu rapidamente e ficou à espera de ouvir o fecho automático das portas.
E continuou à espera.
Desesperado por ouvir Payne a ficar tão segura quanto possível, mal se apercebeu do tipo da máscara de esqui a bradar:
- A tua carteira. E diz à gaja para sair do carro.
- Estão quatrocentos...
A carteira desapareceu.
- Diz-lhe para sair ou então vai comigo. E o relógio. Quero o relógio.
Manny olhou para o edifício. Havia janelas um pouco por todo o lado e, de certeza, que o guarda sairia ocasionalmente para verificar os arredores.
Talvez se atrasasse a entrega...
O cano da pistola foi-lhe encostado ao rosto.
- Relógio. Já.
Não era o relógio bom. Pelo amor de Deus, nunca operava com o Piaget posto. Mas fosse como fosse, o idiota podia ficar com ele. Além disso, enquanto fingia que lhe
tremiam as mãos, imaginou que isso lhe fosse dar mais...
Foi difícil perceber o que aconteceu e por que ordem.
Em retrospetiva, sabia que Payne teria de ter começado por abrir a porta dela. Mas pareceu-lhe que assim que ouviu o som terrível do lado do passageiro ela estava
já atrás do ladrão.
Outra coisa bizarra foi o facto de só depois de Manny ter praguejado é que o desgraçado pareceu aperceber-se de um terceiro elemento a entrar em campo. Mas não podia
ter sido assim, ele tê-la-ia visto a contornar o carro, certo?
Bem, fosse o que fosse que tivesse acontecido, o Máscara de Esqui acabou a saltar para a esquerda e a apontar a pistola alternadamente para Payne e para Manny.
O jogo de pingue-pongue não ia durar muito. Seguindo uma lógica terrível, Manny sabia que o tipo ia disparar contra Payne, pois ela era a mais fraca dos...
Quando o cano da arma voltou a apontar para ela, Payne... desapareceu. E não por se ter baixado, desviado, ou saído dali a correr. Ela estava ali, a ocupar espaço
num momento... e desaparecida no seguinte.
Voltou a aparecer uma fração de segundo depois e agarrou o punho do homem quando ele fazia menção de apontar a arma a Manny. Desarmá-lo foi igualmente rápido: um,
virou a arma; dois, arrancou-a da mão do filho da puta; três, atirou-a a Manny, que a apanhou.
E depois foi altura de porrada.
Payne girou o tipo, segurou-lhe a parte de trás da cabeça e bateu-lhe com o rosto no capô do Porsche. Depois de ter polido a pintura com a matraca do desgraçado,
reposicionou-o e agarrou nas calças largas do filho da mãe. Erguendo-o pelo cabelo e pelo cós das calças, ou então pelo reto, tomou balanço e atirou-o... a cerca
de dez metros.
Nem o super-homem voava assim tão bem e o ladrão foi bater na parede com a testa. O edifício não lhe deu grande resposta e, vejam só, ele também não. Aterrou de
cara num canteiro de flores e aí ficou, com os membros a ficarem desfalecidos.
Sem se contorcer. Sem gemer. Sem tentar levantar-se.
- Estás bem, Manuel?
Manny virou lentamente a cabeça na direção de Payne. Ela nem sequer estava ofegante.
- Jesus... Cristo... - murmurou ele.
Enquanto as palavras de Manuel se perderam com a brisa, Payne ocupou-se com o top e as calças largas. Depois alisou o cabelo. Parecia a única coisa que poderia fazer
pela sua aparência após a cena de violência.
Um desperdício de esforço, tentar feminizar-se. Entretanto, Manuel continuava a fitá-la.
- Não dizes mais nada? - perguntou ela em voz baixa.
- Ah... - Manuel levou a mão livre à cabeça. - Pois... deixa-me ver se ele está vivo.
Payne envolveu-se com os braços enquanto se aproximava do humano. A bem da verdade, não se preocupava com o estado em que pudesse ter deixado o assaltante. A sua
prioridade fora afastar a arma mortífera de Manuel e fora bem-sucedida na tarefa. O que acontecesse ao ladrão era irrelevante... mas era óbvio que ela não conhecia
as regras daquele mundo. Nem sabia quais as implicações do que fizera.
Manuel estava a meio caminho sobre a relva quando a «vítima» se virou com um gemido. As mãos que tinham segurado a arma dirigiram-se à máscara que lhe cobria o rosto
e empurraram a malha até à testa.
Manuel ajoelhou-se.
- Sou médico. Quantos dedos tenho levantados?
- O quê...?
- Quantos dedos?
- ...três...
Manuel pousou a mão no ombro do indivíduo.
- Não te levantes. Foi uma pancada tremenda na cabeça. Sentes formigueiro ou dormência nas pernas?
- Não. - O homem fitou Manuel. - Porque é que... estás a fazer isto?
Manuel minimizou a questão.
- Chama-se faculdade de medicina... cria a necessidade compulsiva de tratar dos doentes e dos feridos, independentemente das circunstâncias. Acho que temos de chamar
uma ambulância...
- Nem pensar!
Payne materializou-se junto deles. Compreendia as boas intenções de Manuel, mas receava que o ladrão tivesse outra arma com ele...
Assim que surgiu atrás de Manuel, o homem no chão encolheu-se em terror, erguendo os braços e tentando recuar.
Manny olhou sobre o ombro e foi quando ela percebeu que Manuel não era ingénuo. Tinha a arma apontada ao homem.
- Está tudo bem, bambina. Tenho-o...
Atabalhoadamente, o ladrão levantou-se e Manuel seguiu-o com o cano enquanto o humano cambaleava e se equilibrava contra o edifício. Era óbvio que estava a preparar-se
para correr.
- Ficamos com a arma - indicou Manuel. - Compreendes, não? E não preciso de te dizer que tens sorte em estar vivo... não se provoca a minha namorada.
Quando o humano se perdeu entre as sombras, Manuel levantou-se.
- Tenho de entregar esta arma à polícia.
Depois limitou-se a olhar para ela.
- Não há problema, Manuel. Posso tratar da minha presença com o guarda, para que nada se fique a saber. Faz o que tens a fazer.
Aquiescendo, ele pegou num pequeno aparelho de telefone, abriu-o e pressionou alguns botões. Levando-o ao ouvido, disse:
- Sim, chamo-me Manuel Manello e fui ameaçado com uma arma enquanto me encontrava no meu veículo. Estou no Hospital Tricounty...
Enquanto Manuel falava, ela olhou em volta, pensando que não queria que as coisas acabassem assim. Mas...
- Tenho de ir - disse-lhe, quando Manuel desligou. - Não posso... estar aqui se houver mais humanos. Vai complicar as coisas.
O telefone baixou lentamente para o lado do corpo.
- Pois... está bem. - Franziu o sobrolho. - Ah, olha... se a polícia está a chegar, tenho de me lembrar do que aconteceu, se não... bolas, tenho uma arma na mão
sem um motivo que lhes apresente.
Com efeito, pareciam estar encurralados. E, desta vez, sentia-se grata por uma prisão.
- Quero que te lembres de mim - disse baixinho.
- O plano não era esse.
- Eu sei.
Manuel abanou a cabeça.
- És a peça mais importante no meio de tudo isto. Por isso tens de te proteger e isso significa apagares-me a...
- Doutor Manello! Doutor Manello... o senhor está bem?
Payne olhou sobre o ombro. O primeiro macho humano que tinham visto à secretária corria pelo relvado, num estado de pânico.
- Fá-lo - insistiu Manuel. - E eu depois penso em alguma coisa...
Quando o guarda apressado chegou junto deles, Payne encarou o recém-chegado.
- Estava a fazer a ronda - explicou o homem -, e quando confirmava os gabinetes no outro lado do edifício vi-os pela janela... Corri o mais que pude!
- Estamos bem - garantiu ela ao guarda. - Mas importava-se de olhar para uma coisa?
- É claro! A polícia já foi chamada?
- Sim. - Tocou com o dedo por baixo do olho direito. - Olhe para mim, por favor.
Já estava fito no rosto dela, e a dose adicional de concentração facilitou-lhe o trabalho. Só precisou de abrir caminho pelo cérebro do homem e cobrir mentalmente
tudo o que se relacionava com ela.
Para o humano, o cirurgião chegara e partira sozinho.
Manteve o homem em transe e dirigiu-se a Manuel.
- Não tens de te preocupar. As recordações dele são de curto prazo, por isso ele vai ficar bem.
Ao longe ouviu-se um uivo agudo e urgente.
- É a polícia - indicou Manuel.
- Nesse caso vou partir.
- Como voltas a casa?
- Da mesma forma que saí do teu carro.
Esperou que ele lhe estendesse a mão... ou dissesse alguma coisa... ou... Mas ele limitou-se a ficar ali, com o ar frio e silencioso da noite entre eles.
- Vais mentir-lhes? - perguntou ele. - E dizer-lhes que me apagaste?
- Não sei.
- Bem, se precisares de voltar para o fazer, eu estou...
- Boa noite, Manuel. Por favor, fica bem.
Com essas palavras, ela levantou a mão e silenciosa e inexoravelmente, desapareceu.
Capítulo 43
No que dizia respeito a truques, este era verdadeiramente estranho.
- Então, onde é que está o teu amigo?
Karrie Ravisc, também conhecida nas ruas como Kandy, era uma puta a sério há cerca de nove meses e, por isso, já tinha visto muita merda. Mas aquilo...
O homem enorme à porta do quarto do motel falou suavemente.
- Vem aí.
Karrie deu outra passa no cigarro e pensou, Bem, pelo menos o que estava à sua frente era uma brasa. E também lhe tinha pago quinhentos e arranjado aquele quarto.
Ainda assim... havia qualquer coisa ali que não batia certo.
Pronúncia estranha. Olhos estranhos. Ideias estranhas.
Mas uma verdadeira brasa.
Enquanto esperavam, ela deitou-se em silêncio, nua na cama com todas as luzes apagadas. No entanto, não estava completamente escuro. Aquele fulano com a carteira
recheada tinha colocado uma enorme lanterna que parecia um caixote do outro lado do quarto, por cima do armário barato. O feixe de luz apontava-lhe para o corpo.
Como se ela estivesse num palco. Ou talvez como se fosse uma obra de arte.
O que não era tão estranho como alguma das coisas que já fizera. Merda, se a prostituição não te levasse a ver os homens como sacanas maldosos e doentios, nada mais
o faria. Além dos adúlteros do costume e dos que gostavam de sentir o poder, havia os fodilhões com fetiches por pés, os que gostavam que lhes batessem e outros
que gostavam que lhes mijassem em cima.
Terminando o seu White Owl, apagou a beata e pensou que aquela coisa do holofote talvez até nem fosse má ideia. Um parvalhão qualquer tinha querido comer hambúrgueres
em cima dela há duas semanas e isso tinha sido uma nojeira...
O som da fechadura fê-la dar um salto e ela percebeu que alguém tinha entrado sem dar conta. Era o som da porta a ser trancada. Por dentro.
E estava agora um segundo homem junto ao primeiro.
Ainda bem que o seu chulo estava mesmo na porta ao lado.
- Boa noite - disse ela, enquanto se estendia mecanicamente para ambos. Os seios eram falsos, mas eram uma boa imitação e a barriga era lisa, mesmo depois de ter
tido um filho, e não só estava sem pelos, como fizera depilação a laser.
Por todas estas razões ela cobrava o que cobrava.
Homem... mais um enorme, pensou ela, enquanto o segundo se aproximou e parou aos pés da cama. Na realidade, aquele cabrão era enorme. Um verdadeiro mamute. E não
por ser gordo e descuidado. Os seus ombros eram tão perfeitos que pareciam ter sido desenhados com uma régua e esquadro e, juntamente com as suas ancas estreitas,
o peito formava um triângulo perfeito. Não lhe conseguia ver o rosto, por causa da luz que vinha de trás dele, mas não tinha importância. O primeiro bacano esticou-se
na cama ao lado dela.
Merda... de repente percebeu que estava excitada. Era o tamanho deles e o perigo do escuro e dos aromas. Jesus... tinham um cheiro fantástico.
- Vira-te ao contrário - exigiu o segundo.
Meu deus, aquela voz. A mesma pronúncia estrangeira do outro que tinha preparado tudo, mas mais grave e com um toque autoritário.
- Queres mesmo ver o meu cu? - gorgolejou ela, enquanto se sentava. Passando as mãos pelos seios, levantou-os e apertou-os. - Porque a minha parte da frente é ainda
melhor.
Ao dizer isto, empurrou um seio para cima e esticou a língua para baixo, lambendo o seu próprio mamilo, enquanto olhava para um homem e para o outro sem parar.
- Vira-te para baixo.
Ok, obviamente, aquilo era uma ordem de prioridade. O homem deitado ao lado dela estava com uma tremenda ereção, mas não se mexia. E o Sr. Faz-Já era o único que
falava.
- Se é assim que queres.
Tirando as almofadas da cama, ela virou-se dando espetáculo, torcendo o tronco para que um dos peitos ainda estivesse à vista. Com a unha pintada de preto, desenhou
um círculo à volta do mamilo, enquanto arqueava as costas para baixo e espetava o traseiro para cima...
Um rugido discreto agitou o ar estagnado e tranquilo do quarto e isso foi uma indicação para ela. Abrindo as pernas, empinou as nádegas, com os dedos dos pés espetados
e arqueando novamente a espinha.
Sabia perfeitamente o que estava a mostrar aos pés da cama... e o rugido dele disse-lhe que estava a gostar do que via. Portanto, estava na altura de ir mais longe.
Olhando para ele, colocou o dedo médio na boca e chupou-o. Depois mudou de posição e levou-o até ao sexo, esfregando-se a si própria.
Não sabia se era a erva ou... merda, qualquer coisa com aqueles homens... de repente estava mesmo muito excitada. Ao ponto de desejar aquilo que estava prestes a
acontecer.
Inclinando-se sobre ela, o que dava ordens pôs as mãos na parte da frente das ancas.
- Beija-a - ordenou.
Ela estava tão preparada para aquilo, apesar de normalmente não o permitir. Virando o rosto para o outro, sentiu a sua boca ser invadida por um conjunto de lábios
suaves, exigentes... e depois uma língua entrou nela...
Ao mesmo tempo que umas grandes mãos se encaixavam na parte de cima das suas coxas e a abriam ainda mais.
E outro conjunto de mãos dirigiu-se aos seus seios.
Apesar de ser uma profissional, a sua mente foi de viagem, levando consigo as coisas que habitualmente a preocupavam enquanto fazia o que fazia, fazendo desaparecer
coisas como, onde estavam os preservativos? Quais eram as regras básicas?
Cinto. Fecho. E depois o som de calças a deslizar e o resfolegar do colchão ao cair-lhe alguma coisa pesada em cima.
Imaginou, vagamente, se o pénis que tinha sido libertado seria tão grande como o resto do homem atrás dela. E se era, pensou, diabos, ela era bem capaz de equacionar
a ideia de lhes oferecer uma segunda volta de borla. Partindo do princípio de que se aguentavam tanto tempo...
Uma ponta arredondada entrou dentro dela, enquanto mãos a levantavam pelas ancas e a deixavam de gatas. Meu deus, ele era enorme... Ela preparou-se para sentir a
fricção, à medida que uma palma da mão lhe percorria a espinha e dedos penetravam no seu cabelo curto. Ele ia puxar-lhe a cabeça para trás, mas ela não se importava.
Só queria mais dele dentro dela...
Mas ele não ficou violento, nem sequer avançou imediatamente. Pelo contrário, massajou-a como se gostasse do toque da sua pele, levando-lhe as mãos aos ombros e
depois deslizando-as até aos seios... e depois descendo mais ainda até ao sexo molhado. E quando a penetrou completamente, foi com um deslizar suave, dando-lhe até
um segundo para se habituar ao diâmetro e ao comprimento.
Depois colou as palmas das mãos nas ancas e avançou com o ato. Mesmo quando o amigo se esgueirou para debaixo dela para sugar os seios pendurados.
Com a velocidade a intensificar-se, os mamilos andavam para a frente e para trás a bater na boca do que estava por baixo dela ao ritmo das estocadas das ancas que
lhe batiam no rabo uma e outra vez. Mais depressa. Com mais força. Mais depressa...
- Fode-me - ganiu ela. - Oh, porra, sim...
Abruptamente, o que estava deitado no colchão mudou de posição e reposicionou-a, enchendo-lhe a boca com o maior pénis que ela alguma vez tinha engolido.
Ela teve mesmo um orgasmo.
Se isto continuasse assim, seria ela a dar-lhes uma gorjeta.
Um segundo depois, o homem por trás saiu de dentro dela e sentiu salpicos quentes nas costas. Mas ainda não tinha acabado. Voltou à carga um momento depois, tão
encorpado e rígido como da primeira vez que a penetrara.
Aquele que ela estava a chupar gemia e depois foram separados, quando ele lhe levantou a cabeça. Veio-se nas suas mamas, com jatos quentes a decorarem-lhe o peito,
espalhando um pouco mais daquele aroma fantástico, ao mesmo tempo que o outro voltava a sair dela e a ejacular-lhe nas costas.
E depois o mundo deu meia volta e ela viu-se deitada de costas, com o homem da carteira a assumir a posição de comando sobre ela e a preencher-lhe o sexo, ficando
igualmente apertada.
Foi ela que procurou o amigo silencioso e autoritário, trazendo o pénis dele para a boca, tirando-o do papel de espetador para dentro dela outra vez.
Era tão grande que teve de esticar o queixo para ele caber e sabia deliciosamente, como nada que provara antes. Chupava-o enquanto o outro a tomava a sério. Abandonou-se
às sensações de ser preenchida, ou invadida por pénis duros e selvagens que lhe abanavam todo o corpo.
No seu delírio, tentou ver o homem a quem estava a lamber, mas ele conseguia sempre, de alguma forma, manter-se de costas para a luz e isso tornava tudo ainda mais
erótico. Como se estivesse a chupar uma sombra viva. Merda, ao contrário do outro, ele não soltava agora nenhum som e nem sequer estava a arfar. Mas estava a gostar,
a sério, entrando na sua boca e saindo e depois voltando a entrar. Pelo menos até saltar cá para fora e colocar a palma da mão sobre a ereção. Juntando os seios,
ela deu-lhe uma ótima plataforma para ele se vir e, Deus do céu, apesar de ela ser copa AA, ele cobriu-a.
Até o peito ficar peganhento, escorregadio e a pingar.
Quando voltou a concentrar-se, tinha os joelhos junto às orelhas e o que tinha o dinheiro estava a preparar-se para atacar outra vez da melhor maneira possível.
E o patrão estava outra vez nos seus lábios, pressionando, querendo mais. O que ela lhe daria com todo o gosto.
Fitando-os enquanto se moviam em uníssono, ela sentiu um medo percorrê-la. Dobrada por baixo deles, ela tinha a sensação que a podiam partir ao meio se lhes apetecesse.
Mas não a magoaram.
E continuaram uma e outra vez, os dois trocando de lugares sem parar. Era óbvio que já tinham feito aquilo muitas vezes e, meu Deus, ela estava a satisfazê-los à
grande.
Finalmente estava terminado.
Nenhum deles disse nada. Nem a ela, nem um ao outro. Era estranho, porque a maioria do sexo a três em que ela participara acabava com os idiotas a darem mais cinco
uns aos outros. Estes dois não. Guardaram os pénis e... bem, não é que as carteiras voltaram a aparecer?
Enquanto estavam ali por cima dela, ela passou a mão pela boca, pelo pescoço e pelos seios. Estava coberta em tantos sítios que já perdera a conta, e adorava, era
suavizante aquilo que tinham deixado na sua pele. Estava a brincar com o sémen porque queria, não para benefício deles.
- Queremos dar-te mais quinhentos - disse o primeiro em voz baixa.
- Para quê? - aquele gorgolejar satisfeito era mesmo ela?
- Vai saber bem, prometo.
- É perverso?
- Muito.
Ela riu-se e ondulou as ancas.
- Então digo que sim.
Quando o homem sacou das notas, parecia haver muitas outras naquele maço e, se ele fosse, talvez, outra pessoa, era capaz de ter avisado o chulo e de ter dito ao
Mack para o intercetar no parque de estacionamento. Mas, no entanto, não ia fazer isso. Em parte por causa do sexo incrível. Mas mais ainda porque achava que era
provável que aqueles tipos dessem uma tareia a quem se metesse com eles.
- O que querem que faça? - perguntou, enquanto apertava o dinheiro no punho.
- Abre as pernas.
Ela não hesitou, os joelhos a afastarem-se para longe.
E eles não hesitaram, inclinando-se ambos sobre a vulva molhada.
Deus do céu, iam chupá-la? Só de pensar nisso os olhos rolaram para trás e ela gemeu...
- Ai!
Ela começou a levantar-se, mas eles forçaram-na a ficar deitada no colchão.
As lambidelas subtis que se seguiram deixaram-na quase inconsciente. Mas, contudo, não eram no seu sexo. Mesmo a meio do corpo, de ambos os lados, na articulação
onde as coxas se ligam ao tronco.
Um chupar rítmico... como se a embalasse.
Karrie suspirou e abandonou-se ao que sentia. Teve uma sensação chocante de que eles se estavam a alimentar dela, de alguma forma, mas era espetacular especialmente
quando alguma coisa entrou dentro dela. Talvez fossem dedos... provavelmente.
Sim, definitivamente.
Quatro dedos preenchiam-na e duas mãos separadas começaram a entrar e sair alternadamente, enquanto as duas bocas chupavam a sua carne.
Ela veio-se outra vez.
E outra vez.
E outra.
Depois de só Deus sabe quanto tempo, acariciaram-na várias vezes, nos lugares onde tinham estado a chupar e não onde as mãos tinham estado.
E depois retiraram tudo, bocas, dedos, corpos.
Endireitaram-se os dois.
- Olha para mim - disse o líder.
As pálpebras estavam tão pesadas que teve de fazer força para poder obedecer. E quando o fez, sentiu uma dor ardente nas frontes. Contudo, não durou muito tempo
e a seguir... sentia-se a flutuar.
Foi por isso que não prestou muita atenção ao grito distante e abafado que veio da porta ao lado pouco depois, não do quarto em que estava o Mack, mas o do outro
lado.
Bum! Pum. Bum...
Karrie começou nessa altura a adormecer, morta para o mundo, o dinheiro colado à palma da mão quando aquilo que estava molhado secou.
Não estava preocupada com nada. De facto, sentia-se fantástica.
Diabos... com quem é que tinha estado...?
* * *
Quando Xcor saiu do quarto de hotel da prostituta com Throe imediatamente atrás dele, fechou a porta e olhou para a esquerda e para a direita. As instalações que
o soldado tinha escolhido para aquela diversão carnal ficavam nos arredores da cidade. Degradado e a desfazer-se em alguns pontos, o edifício térreo tinha sido dividido
em caixas que pareciam guarda-louças, com o escritório na ponta mais à esquerda. Tinha preferido o quarto mais longínquo na ponta oposta para garantir a privacidade,
mas o melhor que conseguira fora o quarto ao lado.
Não obstante, na verdade, quais eram as hipóteses de estarem todos ocupados? Dificilmente estaria ali mais alguém.
Perscrutando os lugares de estacionamento à sua frente, viu um Mercedes preto que tentava desesperadamente parecer mais novo do que aquilo que era... e um todo-o-terreno
com cobertura. Os outros dois carros estavam mais longe, junto ao escritório.
Isto era perfeito para o tipo de propósito que tinha servido. Escondido. Povoado por pessoas que não queriam ninguém a intrometer-se no que ali faziam e dispostas
a tratar os outros com igual cortesia. E a iluminação exterior era fraca. Só uma em cada seis lâmpadas, por cima das portas, é que estavam a funcionar. Que raios,
a luz mais próxima da sua cabeça tinha sido destruída. Por isso, estava tudo difuso e escuro.
Ele e o seu bando de bastardos teriam de encontrar fêmeas da sua raça para satisfazer as suas necessidades de sangue a longo prazo, mas a seu tempo isso aconteceria.
Até lá? Contentar-se-iam com mulheres como a que ele e Throe tinham acabado de foder e fá-lo-iam naquele local deserto.
Throe falou calmamente.
- Satisfeito?
- Sim, ela não era nada má.
- Fico feliz...
Um aroma no ar fez com que ambos virassem as cabeças para a porta do último quarto. Quando Xcor inspirou profundamente para confirmar aquilo de que tinha sentido,
um leve aroma, o cheiro a sangue humano fresco foi uma surpresa desagradável.
Contrariamente à expressão no rosto de Throe, que demonstrava não estar nada surpreendido.
- Nem penses nisso - rosnou Xcor. - Throe. Foda-se.
O guerreiro estava a dirigir-se à porta com uma expressão turbulenta. A sua agressividade tinha sido inflamada porque era sangue feminino que estava a ser derramado.
A fertilidade era evidente no ar.
- Não temos tempo para isto - disparou Xcor.
Em jeito de resposta, Throe deu um pontapé na porta e abriu-a.
Enquanto Xcor praguejava, apenas brevemente considerou desmaterializar-se da cena. Tudo o que era necessário para curar o impulso era olhar lá para dentro. A ridícula
façanha heroica de Throe tinha exposto uma confusão. Literalmente.
Uma fêmea humana estava amarrada à cama, com alguma coisa enfiada na boca. Estava quase morta e demasiado perto da sepultura para ser salva. O sangue dela estava
por todo o lado, nas paredes ao seu lado, escorrendo para o chão, ensopando o colchão. Os utensílios de quem quer que fosse que tinha feito aquilo estavam na mesa-de-cabeceira:
duas facas, fita adesiva, tesouras... e meia dúzia de pequenos frascos transparentes com um líquido incolor e tampas ao lado.
Havia coisas a flutuar nos...
Ouviu-se um estrondo vindo da casa de banho. Como se uma bandeira ou vidro de janela tivesse sido aberto e fechado.
Quando Throe começou a correr para o interior, Xcor adiantou-se e agarrou o outro macho pelo braço. Em dois tempos, Xcor soltou a pulseira de aço que mantinha no
cinto das armas e prendeu-a no pulso robusto do seu soldado. Arrastando-o com o seu peso, volteou-o no ar como a uma bola presa a uma corrente. Ouviu-se uma batida
seca na parede mais distante, quando o reboco barato parou o pêndulo de vampiro.
- Deixa-me.
Xcor puxou-o para perto de si.
- Isto não é da tua conta.
Throe puxou o braço atrás e deu um murro na parede, desfazendo mais um bocado do reboco velho.
- Ai isso é que é. Solta-me!
Xcor deu uma palmada na parte de trás do pescoço do macho.
- Não é. O teu. Mundo!
Nesta altura lutaram, atirando-se um ao outro e derrubando coisas, fazendo mais barulho do que deviam. E estavam prestes a cair na carpete ensanguentada, quando
um homem humano sem pescoço e com óculos escuros do tamanho de vidros de janela deslizou para o corredor. Deu uma olhadela à cama, outra a Xcor e Throe, e depois
resmungou, cobrindo os olhos com os braços enquanto fugia agachado.
Um segundo depois, a porta do quarto onde tinham estado abriu-se e fechou-se... depois abriu-se e fechou-se outra vez. Ouviu-se o som de saltos altos a bater no
chão, depressa e descoordenados, e ouviu-se um clomp, clomp de pessoas a entrarem num carro.
Um motor rugiu e o Mercedes arrancou, saindo do parque de estacionamento, sem dúvida com a prostituta e o dinheiro lá dentro.
E aquela partida apressada confirmava aquilo que Xcor assumira sobre a clientela daqui.
- Ouve-me - disse a Throe. - Ouve-me, minha grande besta... isto não é problema nosso. Mas se ficares aqui, vais torná-lo nosso...
- O assassino fugiu!
- E nós também vamos fugir.
Os olhos pálidos de Throe centraram-se na cama e a máscara de fúria dissipou-se por breves momentos. Por baixo dela havia uma expressão que chegou mesmo a deter
a agressividade de Xcor. Tanta dor, meu Deus, tanta dor.
- Ela não é a tua irmã - sussurrou Xcor. - Anda comigo.
- Não posso...deixá-la... - Uns olhos enormes vidrados cruzaram-se com os seus. - Não podes pedir-me isso.
Xcor deu uma volta, mantendo o soldado preso. Tinha de haver alguma coisa do assassino, alguma coisa que pudessem...
Xcor arrastou o guerreiro para a casa de banho e ficou sombriamente satisfeito ao observar a janela por cima da sanita. O único painel grosso de vidro fosco estava
intacto, mas havia um rasto de sangue brilhante na borda da armação de metal.
Exatamente o resquício de que precisavam.
Xcor alcançou a janela e passou dois dedos pela extremidade que tinha rasgado a carne humana.
O sangue colou-se aos seus dedos.
- Abre - ordenou.
Throe abriu a boca e chupou os dedos, fechando os olhos para se concentrar, enquanto se começavam a ouvir sirenes distantes na noite.
- Temos de ir agora - disse Xcor. - Vem comigo e eu dou-te autorização para caçares o homem. Concordas? Acena. - Quando Throe assentiu, ele decidiu que precisava
de mais. - Jura.
Throe fez uma vénia, curvando o tronco.
- Juro.
Soltou a pulseira... e ambos desapareceram como por magia, exatamente quando os rotativos azuis anunciavam a chegada da polícia humana.
Xcor não costumava ser compassivo em nenhuma situação. Mas mesmo que fosse, não teria concedido nenhuma compaixão àquele profanador humano que era agora o alvo de
Throe... e em breve seria caçado.
Capítulo 44
-Doutor Manello?
Ao ouvir o seu nome, Manny voltou à realidade e percebeu que, de facto, ainda estava em Tricounty, no jardim da entrada. Era bastante irónico que o segurança tivesse
sofrido um ataque à sua mente e, mesmo assim, era ele que recebia as atenções.
- Ah...sim, desculpe. O que disse?
- Está bem?
- Não, não estou.
- Bem, foi atacado... nem consigo acreditar em como lidou com isso. Num minuto ele estava em cima de si... no minuto seguinte tinha a arma e ele estava a... voar.
Claro que se livraria disso.
- Sim. É isso. Exatamente.
Os polícias apareceram dois segundos depois e seguiu-se uma torrente de perguntas e respostas. E foi espetacular. O segurança nunca referiu Payne. Era como se ela
nunca ali tivesse estado.
Não devia ficar surpreendido, tendo em conta o que Manny já tinha passado não só com ela, mas também com Jane. Mas mesmo assim estava admirado.
Havia tanta coisa que ele não percebia. Como Payne tinha desaparecido como por magia à sua frente. Como não restava nada dela, pelo menos que o segurança pudesse
ver, apesar de se lembrar perfeitamente de Manny. Como ela se tinha mantido tão calma e controlada numa situação fatal.
Na realidade, esta última parte tinha sido muito erótica. A maneira como ela o tinha triturado era fantasticamente excitante. Manny não tinha a certeza do que isso
dizia sobre ele, mas era assim.
E ela iria mentir, pensou. Diria ao pessoal dela que a mente dele tinha sido apagada. Diria que tinha tratado de tudo.
Payne encontrara a solução perfeita. Ele tinha a sua mente, ela tinha as suas pernas e ninguém sabia nada em contrário, nem o seu irmão, nem os da sua laia.
Sim, estava tudo tratado. Tudo o que tinha de fazer agora era passar o resto da vida ansiando por uma fêmea que nunca devia ter conhecido. Uma merda que não custa
nada.
Uma hora depois, entrou no seu Porsche e regressou a Caldwell. Conduzindo sozinho, o carro não só parecia vazio, como parecia um deserto e deu consigo a subir e
descer os vidros. Não era a mesma coisa.
Ela não sabia onde ele vivia, pensou. Mas isso não importava, pois não? Ela não voltaria.
Meu Deus, era difícil escolher o que teria custado mais. Um adeus longo e demorado, em que ele a olhava nos olhos e mordia a língua para evitar falar de mais? Ou
aquela merda rápida, do tipo arrancar-o-penso?
As duas eram uma porcaria.
No Commodore, desceu ao subterrâneo, estacionou no seu lugar e saiu do carro. Foi para o elevador. Subiu ao apartamento. Entrou. Fechou a porta.
Quando o telemóvel tocou, enfiou a mão no bolso para o tirar e, quando viu o número, praguejou. Goldberg, do centro médico.
Atendeu sem entusiasmo.
- Olá.
- Atendeste? - disse o homem aliviado. - Como estás?
Pois. Não queria entrar por ali.
- Estou bem. - Após uma pausa, disse - E tu?
- Estou bem. As coisas têm estado... - Hospital. Hospital. Hospital hospital, hospitalh ospit alhosp. Ital hospit alhospital...
Entrou por um ouvido e saiu pelo outro. No entanto, Manny não se apressou. Foi para a bancada da cozinha, tirou o Lag e sentiu-se como se tivesse levado uma pancada
na cabeça ao ver o pouco que restava na garrafa. Inclinando-se para o armário, retirou uma garrafa de Jack que estava lá para trás há tanto tempo que tinha pó na
tampa.
Pouco depois, desligou o telefone e concentrou-se na bebida. Primeiro o Lag. Depois o Jack. E depois seguiram as duas garrafas de vinho que estavam no frigorífico.
E o que restava de um pacote de seis Corona que tinha sido deixado na despensa e não estava fresco.
Contudo, o seu cérebro não deu pela diferença entre o álcool aquecido e a bebida fresquinha.
Feitas as contas, o festival de ingestão de álcool demorou uma hora. Talvez mais. E foi muito eficiente. Quando pegou na última cerveja e se dirigiu para o quarto,
andava como se estivesse na ponte da Enterprise, abanando para a esquerda e para a direita... e depois recuando. E, apesar de ver perfeitamente à luz ambiente da
cidade, tropeçou em tudo. Devido a algum milagre inconveniente, a sua mobília tinha ganhado vida e estava determinada a meter-se no seu caminho... tudo, desde as
cadeiras estofadas de pele até...
- Foda-se.
... à mesa de centro.
E o facto de agora estar a esfregar a canela enquanto andava era como adicionar uns patins em linha à festa.
Quando chegou ao quarto, bebeu um enorme gole da Corona para celebrar e progrediu para o banho aos tropeções. Água a correr. Roupas despidas. Entrar na banheira.
Não valia a pena esperar pela água quente, não sentia nada, fosse como fosse, e o objetivo era esse.
Não se deu ao trabalho de se secar. Foi simplesmente para a cama com água a escorrer do corpo e, ao sentar-se, bebeu o resto da cerveja. Então... uma imensidão de
nada. O seu alcoolómetro estava a subir assustadoramente alto, mas ainda não tinha atingido o ponto crítico e acabado com ele.
Consciência era, contudo, um termo relativo. Apesar de se poder argumentar que estava acordado, estava completamente desligado, e não só pelo exagero de álcool no
sangue. Ele estava sem energia no interior, de uma maneira muito estranha.
Deixando-se cair no colchão, pensou que, agora que a situação com Payne se tinha resolvido, era altura de andar com a vida para a frente ou, pelo menos, tentar na
manhã seguinte, quando a ressaca o acordasse. A sua mente estava ótima, por isso não havia razões para não voltar ao trabalho e para não tratar de separar, definitivamente,
aquele interlúdio lixado do resto da sua vida normal.
Fitando o teto, ficou aliviado quando a visão se tornou nublada.
Até se aperceber que estava a chorar.
- Mariconço de merda.
Limpando os olhos, estava positiva e absolutamente decidido a não seguir aquele caminho. Mas seguiu... e ficou lá. Meu Deus, já sentia a falta dela ao ponto da agonia.
- Mas que... diabo!
Subitamente levantou a cabeça e o pénis começou a inchar. Olhando pelas portas deslizantes de vidro da varanda, perscrutou a noite com um desespero que o fez sentir
como se as loucuras mentais tivessem voltado.
Payne...
Payne...?
Esforçou-se por se levantar da cama, mas o corpo recusava-se a obedecer, como se o cérebro estivesse a falar uma língua que os braços e as pernas não conseguissem
traduzir. E depois a bebedeira venceu, pressionando Ctrl-Alt-Del e desligando o programa.
Não obstante, o sistema não reiniciou.
Depois de as pálpebras se fecharem, apagou, por muito que lutasse contra a maré.
Lá fora na varanda, Payne estava parada no vento gelado, com o cabelo a esvoaçar, o corpo todo em pele de galinha por causa do frio.
Desaparecera da vista de Manuel, mas não o tinha abandonado.
Apesar de ele ter demostrado ser capaz de tomar conta de si próprio, Payne não estava disposta a confiar a sua vida nem a ninguém nem a nada. Concomitantemente,
tinha-se envolvido em mhis e ficado no jardim do hospital veterinário, observando-o a falar com a polícia e com o segurança. E depois, quando ele fora para o carro,
seguira-o, desmaterializando-se de um sítio para outro, seguindo o seu rasto graças à pequena quantidade do seu sangue que ele lambera.
A sua viagem para casa tinha culminado nas profundezas de uma cidade mais pequena do que aquela que ela vira do carro, mas ainda assim impressionante, com os edifícios
altos, as estradas pavimentadas e as pontes altas belíssimas que passavam sobre um largo rio. Caldwell era, de facto, linda à noite.
Quem lhe dera que ali estivesse por outra razão, que não uma despedida invisível.
Quando Manuel tinha virado para uma espécie de garagem subterrânea, ela tinha-o libertado. Já tinha alcançado o objetivo, que era ele chegar ao seu destino em segurança,
por isso sabia que tinha de partir.
Todavia, infelizmente, ela tinha-se demorado na rua, escondida no mhis, vendo os carros a passar e os peões a atravessar as esquinas. Passara uma hora. E depois
passou mais tempo. E ela não se conseguia ir embora.
Cedendo aos desejos do seu coração, ela tinha subido, subido, subido... elevando-se até onde Manuel estava, tomando forma na varanda da sua casa... e encontrando-o
a meio caminho de deixar a cozinha para a sala. Claramente a andar torto, estava sempre a ir contra a mobília, embora não fosse certamente por as luzes estarem apagadas.
Era a bebida que tinha nas mãos, sem dúvida.
Ou, mais exatamente, toda a bebida que consumira além daquela.
No quarto, não tinha propriamente despido as roupas, mas sim saltado para fora delas e depois ido para o chuveiro. Quando voltou a surgir a pingar, ela teve vontade
de gritar. Era tão difícil compreender que só tinha passado um dia desde que tinha, pela primeira vez, testemunhado a sua nudez. Apesar de ela sentir, realmente,
que podia procurar no tempo e alcançar esses momentos frenéticos em que estavam à beira de... não apenas um presente, mas um futuro.
Agora já não.
Ao chegar à cama, sentou-se... e depois colapsou no colchão.
Quando ele limpou os olhos, ela ficou completamente devastada. E a vontade de ir ter com ele era tão grande...
- Payne.
Com um uivo, ela virou-se. Ao fundo da varanda, parado na brisa... estava o seu gémeo. E, no instante mesmo em que pousou os olhos em Vishous, soube que alguma coisa
nele tinha mudado. Sim, o seu rosto já estava a sarar dos ferimentos que lhe causara o espelho, mas não era isso que tinha mudado. Ele estava diferente interiormente.
A tensão, a raiva e a frieza assustadora desapareceram.
Enquanto o vento fustigava o seu cabelo, ela tentou compor-se, eliminando as lágrimas que se alojavam em volta dos olhos.
- Como é que soubeste... que eu estava...
Com a mão enluvada, ele apontou para cima.
- Tenho aqui um apartamento. No topo do edifício. A Jane e eu estávamos de saída quando senti a tua presença aqui em baixo.
Devia ter percebido. Tal como ela conseguia sentir o mhis dele... ele podia sentir e encontrar o dela.
Ela desejava que ele tivesse continuado para onde ia. A última coisa de que precisava era de outra cena de «autoridade» da figura masculina dizendo-lhe o que fazer.
Além disso, o rei já tinha decretado a lei. O decreto de Wrath não precisava propriamente da aprovação de gente como o irmão.
Levantou a mão para o travar antes de ele dizer alguma coisa sobre Manuel.
- Não quero que me digas o que o rei já me disse. Estava mesmo de saída.
- A mente dele foi apagada?
Ela levantou o queixo.
- Não, não foi. Ele levou-me a passear e houve um... incidente...
A rosnadela que o irmão soltou soou mais alto do que o vento.
- O que é que ele te...
- Não foi ele. Credo, podes parar de... o odiar? - Enquanto massajava as frontes, perguntou-se se alguma vez explodira mesmo a cabeça a alguém ou se toda a gente
na Terra se sentia assim de vez em quando. - Fomos atacados por um humano e ao desarmá-lo...
- Ao humano?
- Sim - enquanto o desarmava, magoei-o e chamaram a polícia...
- Desarmaste um humano?
Payne fitou o gémeo.
- Quando retiras a arma a alguém, é isso que se diz, não é?
Vishous semicerrou os olhos.
- Sim, é.
- Não podia apagar as memórias de Manuel, porque se não ele não conseguiria responder ao interrogatório da polícia. E estou aqui... porque queria certificar-me de
que chegava bem a casa.
No silêncio que se instalou, ela apercebeu-se de que se tinha encostado a um canto. Ao ter de proteger Manuel, ela tinha acabado de provar o ponto de vista do irmão
de que o macho que ela queria não podia tomar conta dela. Oh, mas o que é que interessava. Tendo em conta que estava preparada para obedecer ao rei, não havia, fosse
como fosse, nenhum futuro para ela e Manuel.
Quando Vishous ia abrir a boca, ela gemeu e cobriu as orelhas com as mãos.
- Se tens uma réstia de compaixão, deixa-me fazer o luto sozinha. Não aguento ouvir todas as razões que levam a que me tenha de separar dele... já as sei de cor.
Por favor. Vai-te embora.
Fechando os olhos, virou-se e rezou à mãe dos céus para ele fazer o que ela pedia...
A mão no seu ombro era pesada e quente.
- Payne. Payne, olha para mim.
Sem nenhuma energia de sobra para lutar, ela deixou cair os braços e olhou para os seus olhos sombrios.
- Responde-me a uma coisa - disse o gémeo.
- O quê?
- Amas o sac... a ele. Ama-lo?
Payne olhou para trás, através do vidro, para o humano na cama.
- Sim. Estou apaixonada por ele. E se tentares dissuadir-me com o facto de ainda não ter vivido o suficiente para julgar, eu digo-te... vai à merda. Não preciso
de conhecer o mundo para perceber o desejo do meu coração.
Fez-se silêncio.
- O que disse Wrath?
- O mesmo que tu dirias. Que tenho de limpar da mente dele a minha memória e nunca, nunca mais o ver.
Como o irmão não disse mais nada, ela abanou a cabeça.
- Porque é que ainda aqui estás, Vishous? Estás a pensar no que hás de dizer para eu ir para casa? Deixa-me poupar-te ao esforço... quando chegar a madrugada, eu
vou... e cumprirei as leis, mas não por ser bom para ti ou para o rei ou para mim. É por ser mais seguro para ele... não precisa de inimigos como tu e a Irmandade
a torturá-lo só porque eu sinto aquilo que sinto. Por isso, será tudo como desejas. Só que - e aqui, ela iluminou-se - não vou apagar-lhe a memória. A mente dele
é demasiado valiosa para se perder... e não aguenta mais limpezas. Mantê-lo-ei seguro nunca mais voltando, mas não o vou condenar a uma vida de demência. Não vai
acontecer. Não fez outra coisa a não ser ajudar-me. Merece mais do que ser usado e deitado fora.
Payne voltou a olhar para o vidro.
Depois de um longo silêncio, ela assumiu que o gémeo se fora embora. Por isso, quase deu um grito quando ele lhe apareceu à frente e bloqueou a imagem de Manuel.
- Ainda aqui estás? - resmungou.
- Eu trato disto por ti.
Payne encolheu-se e depois rosnou.
- Nem te atrevas a pensar em matá-lo...
- Com Wrath. Eu trato disto. Eu... - Vishous passou a mão pelo cabelo. - Eu arranjo uma maneira de poderes ficar com ele.
Payne pestanejou. E depois sentiu a boca a ficar aberta.
- O que foi... O que foi que disseste?
- Conheço Wrath há muitos anos. E, tecnicamente, de acordo com as Leis Antigas, eu sou o chefe da nossa pequena e feliz família. Vou ter com ele e digo-lhe que aprovo
esta... união e que acho que devia ser permitido que visses o sac... o homem... o Manello. - Aclarou a garganta. - Wrath preocupa-se muito com a segurança, e com
mhis à volta do complexo... o Manello não conseguiria encontrar-nos mesmo que quisesse. Além disso, é uma hipocrisia negar-te o que outros Irmãos têm feito de vez
em quando. Que raios, o Darius teve um filho com uma mulher humana... e o Wrath está agora casado, com uma criança. Facto comprovado... se tivesses tentado separar
o nosso rei da sua Beth quando ele a conheceu? Ele teria matado qualquer um que sequer o sugerisse. A Mary do Rhage? A mesma merda. E devia... ser o mesmo para ti.
Até falo com a mahmen, se tiver de ser.
Payne pousou a mão sobre o coração.
- Não... compreendo porque é que... farias isto?
Ele olhou por cima do ombro, fitando o humano que ela amava.
- És minha irmã. E é a ele que tu queres. - Encolheu os ombros. - E... bem, também me apaixonei por uma humana. Apaixonei-me pela minha Jane uma hora depois de a
ter conhecido... e... sim. Sem ela, não tenho nada. Se o que sentes pelo Manello for metade do que sinto pela minha shellan, a tua vida nunca ficará completa sem
ele...
Payne atirou-se ao irmão num abraço. Quase o derrubou.
- Oh, meu irmão...!
Os braços dele rodearam-na e apertaram-na.
- Desculpa ter sido tão idiota.
- Foste... - Ela procurou outra palavra. - Sim, foste um idiota.
Ele riu-se, o som a roncar pelo peito acima.
- Vês, podemos concordar com alguma coisa.
Enquanto o apertava ainda mais, disse:
- Obrigada... Obrigada...
Após um momento, ele afastou-se.
- Deixa-me primeiro falar com Wrath, antes de ires ter com o Manello, okay? Quero tratar de tudo antes... e sim, agora vou já para casa. A Jane está a fazer rondas
e a Irmandade está de folga, por isso devo conseguir falar com o rei. - Fez uma pausa. - Só quero uma coisa em troca.
- O quê? Qualquer coisa. É só dizeres.
- Se vais ficar aqui até de madrugada, vai para dentro. Está um frio de rachar aqui fora, a sério. - Deu um passo atrás. - Vai lá... vai ver com o teu... macho...
Esfregou os olhos e ela teve a sensação de que ele se estava a lembrar de quando a apanhara no duche com o curandeiro.
- Eu volto... ah, liga... Tens telefone? Toma, fica com... merda, não o tenho.
- Está tudo bem, meu irmão. Eu regresso de madrugada.
- Ótimo, sim... nessa altura já terei notícias.
Ela olhou-o fixamente.
- Amo-te.
Agora ele sorria. Um grande sorriso, sem reservas. Esticando o braço, acariciou-lhe o rosto.
- Também te amo, mana. Agora vai lá para dentro e aquece-te.
- Vou fazer isso. - Esticou-se e deu-lhe um beijo na face. - Vou fazer isso!
Acenando-lhe, desmaterializou-se através do vidro. Oh, como o interior estava quente em comparação com a varanda... ou talvez fosse a onda de alegria que se espalhara
nela. Fosse o que fosse, fez uma pirueta apoiada só num pé e depois foi até à cama.
Manuel não estava apenas adormecido, estava totalmente inconsciente, mas ela não se importava. Saltando para a cama pôs um braço à volta dele e instantaneamente
ele gemeu e virou-se para ela, puxando-a para si, abraçando-a. Quando os corpos se fundiram e ela sentiu na anca a sua ereção, olhou rapidamente para a varanda.
Não valia a pena abusar da sorte com Vishous, mas tudo bem, ele já lá não estava.
Sorrindo na escuridão, ela descontraiu-se e acariciou o ombro do macho. Isto ia tudo correr bem e a chave tinha sido a lógica inabalável que Vishous tinha exposto
detalhadamente. De facto, o argumento era tão evidente, que ela nem acreditava que não tivesse pensado nisso antes.
Wrath podia não gostar, no entanto, concordaria porque os factos eram os factos e ele era um governante justo, que já tinha dado muitas vezes provas que não era
escravo dos costumes antigos.
Enquanto se aconchegava, sabia que não havia maneira de adormecer, correndo o risco de ser queimada pelo sol. Ela própria estava incandescente, ali deitada na cama
ao lado de Manuel, brilhando com tanta intensidade que projetava sombras no quarto.
Nada de dormir.
Ela só queria gozar o que estava a sentir.
Para sempre.
Capítulo 45
Vishous chegou a casa num abrir e fechar de olhos, e depois de dar conta da sua presença a Jane na clínica dirigiu-se à mansão através do túnel subterrâneo. Ao sair
para o átrio, só ouviu um reverberante absolutamente-nada, ficando desconfortável com o silêncio.
Estava tudo tão calmo.
É claro que, regra geral, isso seria assim por serem duas da manhã e os Irmãos estarem em campo. No entanto, naquela noite estavam todos recolhidos, provavelmente
a fazer sexo, a recuperar do sexo, ou a meio de o repetir.
Sinto-me como se tivesse feito amor contigo pela primeira vez.
Ao recordar a voz de Jane, nem sabia se havia de rir ou de dar um pontapé no seu próprio traseiro. Fosse como fosse, ele iniciara naquela noite um admirável mundo
novo, não que soubesse ao certo o que isso significava, mas estava disposto a tal. Absolutamente disposto.
Subindo a escadaria, dirigiu-se ao escritório de Wrath, enquanto procurava em todos os bolsos que... não tinha. Continuava com a maldita bata vestida. Com as manchas
de sangue. E sem cigarros.
- Que merda.
- Meu senhor? Necessita de algo?
Ao parar no cimo das escadas, olhou para Fritz, que limpava o balaústre, e quase beijou a matraca do mordomo.
- Estou sem tabaco. Mortalhas...
O velho doggen ofereceu um sorriso tão rasgado que as rugas no rosto o fizeram parecer um shar-pei.
- Tenho uma reserva na copa. Volto já... vai encontrar-se com o rei?
- Vou.
- Levar-lhos-ei lá... a par de um roupão, talvez?
A segunda parte foi proferida com toda a delicadeza.
- Porra, obrigado, Fritz. Salvaste-me a vida.
- Não, o senhor é que salva. - Fez uma vénia. - O senhor e a Irmandade salvam-nos todas as noites.
Fritz apressou-se a descer a escada, com um passo mais enérgico do que seria de esperar. Claro que não havia nada de que gostasse mais do que ser prestável. O que
era fantástico.
Certo. Ao trabalho.
Sentindo-se miserável na bata, V dirigiu-se às portas fechadas do escritório de Wrath, cerrou o punho e bateu.
A voz do rei fez-se ouvir do outro lado dos painéis grossos de madeira:
- Entra.
V obedeceu.
- Sou eu.
- Então, irmão?
No outro lado da sala de tons amaricados, Wrath estava na secretária imensa, sentado no trono do pai. No chão a seu lado, deitado numa cama Orvis vermelha personalizada,
George ergueu a cabeça loura e arrebitou as orelhas perfeitamente triangulares. O golden retriever bateu a cauda à laia de cumprimento, mas não deixou o dono.
O rei e o cão-guia nunca se separavam. E não era só porque Wrath precisasse de ajuda.
- Então, V? - Wrath recostou-se na cadeira entalhada, deixando pender a mão para afagar a cabeça do animal. - O teu cheiro é interessante.
- Ah é? - V sentou-se à frente do rei, assentando as mãos nas coxas e apertando para se tentar distrair da ânsia por nicotina.
- Deixaste a porta aberta.
- O Fritz vai trazer-me tabaco.
- Não vais fumar ao pé do meu cão.
Porra.
- Ah... - Esquecera-se da nova regra... e pedir que George fosse dar uma volta não era opção, afinal de contas Wrath podia ter perdido a visão, mas o sacana continuava
a ser mortífero e V já tivera a sua dose de S e M nessa noite, muito obrigado.
Fritz entrou no momento em que as sobrancelhas negras do rei se esconderam atrás dos óculos que lhe contornavam a cabeça.
- O seu tabaco, meu senhor - anunciou alegremente o mordomo.
- Obrigado, meu caro. - V aceitou as mortalhas e a bolsa... e o isqueiro que o doggen tivera o discernimento de providenciar. A par do roupão.
A porta fechou-se.
V olhou para o cão. A grande cabeça de George estava agora pousada entre as patas, com os ternurentos olhos castanhos parecendo lamentar a proibição do fumo. Chegou
mesmo a abanar ao de leve a ponta da cauda.
Vishous acariciou a bolsa do delicioso tabaco turco, num gesto desgraçadamente patético.
- Importas-te que enrole uns quantos?
- Se ouço a pedra do isqueiro vais ao chão.
- Entendido. - V alinhou o material na secretária. - Vim falar sobre a Payne.
- Como está a tua irmã?
- Ela está ... espetacular. - Abriu a bolsa, inalou e teve de reprimir o mmmm. - Resultou... não sei bem como, mas ela já anda por aí. De pé, como nova.
O rei chegou-se à frente.
- Não... me digas. A sério?
- Mesmo.
- É um milagre.
Ao que parecia, chamado Manuel Manello.
- Podemos dizer que sim.
- Pois isso é uma notícia do caraças. Queres arranjar-lhe um quarto aqui? O Fritz pode...
- É um bocadinho mais complicado do que isso.
Quando as sobrancelhas voltaram a desaparecer atrás dos óculos, V pensou, meu, mesmo sendo o rei completamente cego, parecia concentrar-se como sempre. O que nos
fazia sentir como se tivéssemos uma mira apontada à cabeça.
V começou a dispor os quadrados de papel branco.
- É aquele cirurgião humano.
- Ah... foda-se! - Wrath ergueu os óculos escuros para a testa e esfregou os olhos. - Não me lixes a dizer que eles se juntaram.
V permaneceu em silêncio, agarrando na bolsa e ocupando-se a espalhar tabaco.
- Estou à espera que me digas que me enganei. - Wrath deixou os óculos regressarem ao seu lugar. - Continuo à espera.
- Ela está apaixonada por ele.
- E não te importas com isso?
- É claro que me importo. Mas ela podia até sair com um Irmão e o desgraçado não ser bom o suficiente para ela. - Pegou num dos papéis carregados e começou a enrolar.
- Portanto... se ela o quer, digo que seja.
- V... sei o que estás a pensar e não o posso permitir.
Vishous parou enquanto lambia o papel e pensou em trazer Beth para a conversa. Claro que o rei parecia estar já a desenvolver uma dor de cabeça.
- Uma porra é que não podes permitir. O Rhage e a Mary...
- O Rhage foi espancado, lembras-te? Por um motivo. Além disso, as coisas estão a mudar, Vishous. A guerra está a aquecer, a Sociedade dos Minguantes anda a recrutar
como a merda... e ainda por cima temos a porra das metades que ontem encontraste na baixa.
Raios partam, pensou V. Aqueles matadores chacinados...
- E ainda por cima apareceu isto. - Sem olhar, Wrath levou a mão à esquerda e ergueu uma página em braile. - É a cópia de uma carta que foi enviada por e-mail ao
que resta das Famílias Fundadoras. O Xcor mudou de pouso com os rapazes dele... razão pela qual encontraste os minguantes naquele estado.
- Grande... porra. Eu sabia que tinha de ser ele.
- Ele está a armar-nos uma ratoeira.
V ficou hirto.
- Porquê?
A expressão de Wrath foi um verdadeiro acorda.
- Houve quem perdesse ramos inteiros da família. Fugiram de suas casas, mas querem regressar. Entretanto, as coisas em Caldwell estão a ficar cada vez mais perigosas.
Neste momento não podemos tomar nada como garantido.
Ou seja, ele não partia do princípio de que o seu trono estava seguro. Pouco importava a cadeira onde, por acaso, estava sentado.
- Portanto, não é que eu não entenda a situação da Payne - explicou Wrath. - Mas temos de fazer um círculo com as carroças e protegermo-nos. Não é uma boa altura
para acrescentarmos a complicação de ter aqui um humano.
O silêncio instalou-se por momentos.
Enquanto V pensava nos seus argumentos pegou em mais uma mortalha, enrolou-a, lambeu a borda, torceu.
- Ontem à noite ele ajudou a minha Jane. Quando os Irmãos e eu cá chegámos depois dos confrontos no beco, o Manello foi mais do que eficaz. É um cirurgião espetacular...
e eu bem o sei. Ele operou-me. Não é, de todo, inútil. - V olhou para o outro lado da secretária. - Se a guerra se intensificar, dava-nos jeito mais um par de mãos
operatórias aqui na clínica.
Wrath praguejou em inglês. E depois na Língua Antiga.
- Vishous...
- A Jane é espantosa, mas ela é só uma. E o Manello tem competências técnicas que a ela lhe faltam.
Wrath voltou a levantar os óculos e a esfregar os olhos. Com força.
- Estás a dizer-me que esse tipo vai querer passar o resto da vida, dia e noite, nesta casa? É pedir muito.
- E eu peço-lhe.
- Não gosto disto.
Um silêncio loooongo. O que mostrou a V que estava a abrir caminho. Claro que sabia que não devia forçar.
- Pensava que querias matar o desgraçado - resmungou Wrath. Como se esse fosse um objetivo preferível.
De repente, a imagem de Manello de joelhos à frente de Payne lançou-se pela mente de V, até ele ficar com vontade de pegar numa caneta e arrancar os próprios olhos
fora.
- Ainda quero - admitiu, num tom sombrio. - Mas... é ele que ela quer, a sério. O que é que eu posso fazer?
Outro silêncio loooongo, durante o qual produziu uma boa pilha de cigarros.
Por fim, Wrath passou a mão pelo nunca mais acabar de cabelo preto.
- Se ela se quiser encontrar com o humano fora daqui, o problema não é meu.
Vishous abriu a boca, pronto a argumentar, mas depois reconsiderou. Era melhor do que uma nega direta, e ninguém sabia o que o futuro reservava. Se mesmo depois
do Pesadelo do Duche V era capaz de evoluir para um ponto em que Manello permanecia acima da terra e a respirar, tudo poderia acontecer.
- É justo. - Fechou a bolsa. - O que vamos fazer quanto ao Xcor?
- Esperamos que o Conselho convoque uma reunião... algo que, não tenho dúvidas, vai acontecer nas próximas noites. A glymera vai engolir esta merda e nessa altura
ficamos com sérios problemas. - O rei prosseguiu, num tom seco: - Por oposição aos problemitas que temos agora.
- Queres que a Irmandade se junte para uma reunião?
- Não. Dá-lhes o resto da noite de folga. Isto não vai a lado nenhum.
V levantou-se, vestiu o roupão e juntou o material para fazer cigarros.
- Obrigado por isto. Tu sabes, por causa da Payne.
- Não é um favor.
- Já é uma mensagem de esperança para lhe levar.
Vishous estava a meio caminho da porta quando Wrath disse:
- Ela vai querer lutar.
V deu meia volta.
- Desculpa?
- A tua irmã. - Wrath pousou os cotovelos em cima da papelada e chegou-se à frente, com uma expressão grave no rosto cruel. - Tens de te preparar para quando ela
te pedir para ir combater.
Que raios, não.
- Não estou a ouvir isso.
- Mas vais ouvir. Já combati com ela, e é tão mortífera como tu e eu. Se julgas que ela se vai contentar a andar por esta casa nos próximos seiscentos anos, não
deves estar bom da cabeça. Mais tarde ou mais cedo, é o que ela vai querer.
Vishous abriu a boca e depois fechou-a.
Bem, estivera nas nuvens a apreciar a boa vida durante cerca de... vinte e nove minutos.
- Não me digas que o permitias.
- A Xhex luta.
- Ela é súbdita do Rehvenge. Não é tua. - As sobrancelhas de Wrath desapareceram pela terceira vez. - São padrões diferentes.
- Primeiro, todos os que se encontram debaixo deste teto são meus súbditos. E segundo, as coisas não ficam diferentes só por ela ser tua irmã.
- É claro - Que. Ficam. - que não.
- Uh-huh. Pois.
Vishous pigarreou.
- Estás mesmo a pensar deixá-la...
- Já viste como eu fiquei depois dos nossos duelos, não foi? Não lhe dei qualquer vantagem, Vishous. Aquela fêmea sabe o que está a fazer.
- Mas ela é... - Minha irmã. - Não a podes mandar lá para fora.
- Neste momento, preciso de tantos guerreiros quanto possível.
Vishous enfiou um cigarro entre os lábios.
- Acho que é melhor ir-me embora.
- Sim.
Assim que saiu e fechou a porta, acendeu o isqueiro de ouro que Fritz lhe trouxera e inspirou profundamente.
Enquanto pensava no que fazer a seguir, imaginou que poderia dar um salto ao Commodore e dar a boa nova à irmã, mas receava a cena perante a qual poderia vir a materializar-se.
Além disso, tinha até à alvorada para se convencer de que ter Payne em campo não era uma ideia tresloucada.
A par de tudo isso, tinha de falar com mais alguém.
Descendo a escadaria, atravessou o átrio e chegou ao vestíbulo. Lá fora, caminhou rapidamente pelo pátio empedrado e entrou no Fosso pela robusta porta principal.
A familiaridade dos divãs, do ecrã de plasma e da mesa de matraquilhos acalmou-o.
Ver a garrafa vazia de Lag em cima da mesa de apoio? Nem por isso.
- Butch?
Não teve resposta. Dirigiu-se então ao quarto do chui. A porta estava aberta e lá dentro... não havia nada, além do enorme roupeiro de Butch e de uma cama vazia
e revolta.
- Estou aqui.
V deu meia volta e espreitou para o seu quarto. As luzes estavam apagadas, mas as lâmpadas do corredor garantiam-lhe luz suficiente.
Butch estava sentado no extremo da cama, de costas para a porta, a cabeça baixa e os ombros largos curvados.
Vishous entrou e fechou a porta. Nem Jane nem Marissa iam aparecer. Estavam ambas ocupadas com os seus trabalhos. Mas Fritz e a sua equipa deviam passar por ali,
e o mordomo, louvado fosse, nem sequer batia a uma porta fechada. Já lá vivia há tempo suficiente.
- Então - disse V nas trevas.
- Então.
V avançou, contornando os pés da cama e servindo-se da parede para se orientar. Baixou o traseiro sobre o colchão e sentou-se ao lado do melhor amigo.
- Tu e a Jane estão bem? - perguntou o chui.
- Sim. Está tudo bem. - Que grande eufemismo. - Ela chegou mais ou menos quando acordei.
- Eu liguei-lhe.
- Imaginei. - Vishous virou a cabeça e olhou-o, embora isso pouco importasse naquele negrume. - Obrigado por aquilo...
- Sinto muito - gemeu Butch. - Meu Deus, sinto tanto...
A exalação arrastada que se seguiu foi um soluço mal disfarçado.
Apesar de não ver, V estendeu o braço e envolveu o chui. Aproximando o macho do peito, assentou a cabeça sobre a do amigo.
- Está tudo bem - disse, num tom rouco. - Está tudo bem. A sério... Fizeste o mais acertado...
De alguma forma, acabou por virar o macho, ficando com os baços em volta do chui.
Sem saber porquê, pensou na primeira noite que tinham passado juntos. Fora há um milhão e meio de anos, na antiga mansão urbana de Darius. Duas camas lado a lado
lá em cima. Butch perguntara sobre as tatuagens. V dissera-lhe que não se metesse onde não era chamado.
E ali estavam outra vez no escuro. Tendo em conta tudo o que acontecera desde então, era quase inacreditável que alguma vez tivessem sido aqueles dois machos que
estabeleceram uma ligação devido aos Sox.
- Não me peças para voltar a fazer aquilo nos próximos tempos - alertou o chui.
- Combinado.
- Claro que se precisares... vem ter comigo.
V esteve prestes a dizer qualquer coisa na linha de Nunca mais, mas isso era uma treta. Ele e o chui já tinham passado bastantes vezes por esse lado psiquiátrico
de V e, embora ele estivesse a virar a página, nunca se sabia.
Por isso limitou-se a repetir o voto que fizera a si próprio com Jane. A partir de agora, ia deixar as coisas saírem. Mesmo que isso o deixasse desconfortável a
ponto de gritar, era melhor do que a estratégia do acumular. Também era mais saudável.
- Espero que não seja preciso - murmurou. - Mas obrigado, meu.
- Mais uma coisa.
- O quê?
- Acho que agora já namoramos. - Quando V soltou uma gargalhada, o chui encolheu os ombros. - Então? Despi-te. Usaste um espartilho. E nem me lembres do banho de
esponja a seguir.
- Cabrão.
- Sempre.
Quando as gargalhadas se desvaneceram, V fechou os olhos e desligou brevemente o cérebro. Com o peito imenso do melhor amigo contra o seu, e a consciência de que
ele e Jane estavam outra vez bem, o seu mundo completava-se.
Agora, se conseguisse afastar a irmã das ruas e dos becos durante a noite... a vida seria perfeita.
Capítulo 46
Quando José se dirigiu ao Monroe Motel & Suítes, tornou-se óbvio que a única coisa nova em torno do sítio era a fita amarela que acabara de ser passada à volta do
perímetro. Tudo o resto estava murcho e em mau estado, incluindo os carros estacionados junto ao escritório.
Passando pelo alinhamento de polícias, chegou ao último quarto e estacionou o carro à paisana na diagonal em relação aos outros veículos da polícia de Caldwell.
Ao deixar o carro em ponto morto olhou para o outro banco.
- Estás bem para isto?
Veck já estava prestes a abrir a porta.
- Podes crer.
Quando saíram, os outros agentes aproximaram-se e Veck foi cercado por muitas palmadas nas costas. No departamento, as pessoas consideravam-no um herói devido ao
Incidente Paparazzi, e essa lista não se viu de todo reduzida por ele ignorar sempre os incentivos.
Mantendo-se tranquilo, limitou-se a puxar as calças e a sacar de um cigarro. Depois de o acender e de inspirar, falou enquanto exalava.
- Como estão as coisas?
José deixou o rapaz a informar-se e passou por baixo da fita. A porta arrombada da cena do crime fora encostada e abriu-a com o ombro.
- Porra - praguejou entredentes.
O ar estava carregado com o cheiro de sangue fresco... e de formaldeído.
Naquele momento, o flash da fotógrafa disparou e o corpo da vítima foi iluminado na cama, bem como os frascos de espécimes em cima da mesa-de-cabeceira. E as facas.
Fechou brevemente os olhos.
- Detetive?
José olhou sobre o ombro para Veck.
- Sim?
- Temos o registo da carrinha. Illinois. O dono é um tal de David Kroner. Não foi dada como roubada, e imagina só: o Kroner é um branco de trinta e três anos...
solteiro... de bai... grande porra. - As informações debitadas por Veck foram atalhadas ao parar junto à cama. - Jesus.
O flash voltou a disparar e ouviu-se um gemido eletrónico enquanto a máquina recuperava do esforço.
José olhou para o legista.
- Há quanto tempo é que ela está morta?
- Não muito. Ainda está quente. Dou-lhe uma hora mais aproximada quando acabar.
- Obrigado. - José acercou-se da secretária reles e serviu-se de uma caneta para afastar uma aliança de ouro fina, um par de brincos brilhantes e uma pulseira cor-de-rosa
e preta.
A tatuagem recortada da pela da vítima e depositada no frasco ao lado dela também era cor-de-rosa e preta. Provavelmente eram as suas cores preferidas.
Ou tinham sido.
Continuou a vaguear pelo quarto, em busca de coisas deslocadas, a confirmar os cestos de papéis, a espreitar a casa de banho.
Era óbvio que alguém interrompera o divertimento do assassino. Alguém ouvira ou vira qualquer coisa e tinha arrombado a porta, provocando uma fuga apressada pela
janela das traseiras por cima da sanita.
A chamada do 112 fora feita por um homem que se recusara a identificar-se. Dissera apenas que estava um cadáver no último quarto e nada mais. Não fora o assassino
deles. Esses sacanas só paravam se a isso fossem obrigados e não deixavam ficar o tipo de troféus que se viam em cima da mesa-de-cabeceira e da secretária.
- Para onde é que foste depois disto? - interrogou-se José. - Para onde é que fugiste...
Havia cães a farejar na mata lá atrás, mas José tinha a sensação de que isso não daria em nada. A meros cento e cinquenta metros do motel ficava um rio baixo o suficiente
para atravessar. A caminho dali, ele e Veck tinham passado sobre a pequena ponte que o atravessava.
- Ele está a mudar de estratégia - aventou Veck. Quando José se virou, o jovem levou as mãos às ancas e abanou a cabeça. - É a primeira vez que o faz num sítio assim
tão público. O trabalho dele é muito sujo... e potencialmente barulhento. Depois do que já fez, teríamos encontrado mais cenas como esta.
- Concordo.
- O David Kroner é a nossa resposta.
José encolheu os ombros.
- Talvez. Ou pode ser mais um corpo prestes a ser encontrado.
- Ninguém o deu como desaparecido.
- Disseste que era solteiro, certo? Talvez more sozinho. Quem ia dar por falta dele?
No entanto, mesmo enquanto abria buracos na teoria, José fez as suas próprias contas e chegou a uma conclusão semelhante. Era raro que alguém desaparecesse sem que
ninguém desse conta, família, amigos, colegas de trabalho, senhorio... Não era impossível, mas era pouco provável.
A questão era, para onde iria o assassino em seguida? Se o sacana seguisse o mais comum, seria provável que entrasse numa fase de exagero na patologia. Até então,
as vítimas apareciam com meses de intervalo, mas agora tinham encontrado duas numa semana.
Se partisse desse princípio, sabia que as ações cuidadosas que até então tinham ocultado o assassino iriam por água abaixo, com os padrões que seguia a desaparecerem
face a um impulso frenético. A boa notícia era que o desleixo o tornaria mais fácil de apanhar. A má notícia era que a situação poderia piorar antes de melhorar.
Veck acercou-se.
- Vou ver a carrinha. Queres estar presente?
- Sim.
Lá fora, o ar não cheirava a cobre e a químicos, e José respirou fundo enquanto Veck calçava as luvas e deitava mãos à obra. Como seria de esperar, o veículo estava
trancado, mas isso não o deteve. Pegou numa barra e abriu a porta do condutor como se já estivesse habituado a arrombar carros.
- Chiça - resmungou, ao recuar.
Não demorou muito para que o fedor chegasse a José, que tossiu para a mão. Mais formaldeído, mas também o fedor adocicado de coisas mortas.
- Não é na cabina. - Veck percorreu os bancos com a lanterna. - Na caixa.
As portas duplas tinham um cadeado, mas Veck foi à mala do carro à paisana e regressou com uma serra a pilhas.
Ouviu-se um gemido intenso... um ping!... e Veck entrou.
- Ah... porra...
José abanou a cabeça enquanto contornava o veículo para saber contra o que o parceiro praguejara.
O feixe da lanterna de Veck iluminava uma coleção de pequenos frascos com coisas a flutuar ou no fundo de um líquido transparente. Os recipientes estavam guardados
num sistema de prateleiras feitas por medida, montado do lado esquerdo. O lado direito estava reservado às ferramentas: facas e cordas, fita adesiva castanha, martelos,
escopros, lâminas, bisturis, afastadores.
Olá, David Kroner. Era extremamente improvável que o assassino tivesse montado tudo aquilo na carrinha de outra pessoa e quase apostava que os troféus naqueles frascos
encaixavam na perfeição nos buracos deixados na pele das vítimas.
A grande esperança seria que os cães-polícias lhe identificassem o rasto na mata.
Caso contrário, iriam perder outra mulher. José estava disposto a apostar a casa.
- Vou entrar em contacto com o FBI - disse. - Eles têm de vir ver isto.
Veck perscrutou o interior.
- Vou dar uma mãozinha aos rapazes da equipa forense. Gostava de levar este veículo para a sede o mais depressa possível, para que se possa identificar tudo devidamente.
José assentiu, pegou no telemóvel e pressionou a tecla de acesso rápido. Quando começou a chamar percebeu que, depois de falar com os federais, teria de ligar à
mulher. Nunca chegaria a casa a horas do pequeno-almoço.
Nem pensar.
Capítulo 47
-O sol! Ó, meu Deus! Depressa, é melhor...
Manny acordou em pleno ar. Era óbvio que saltara da cama, levando o edredão e várias almofadas consigo, e aterraram todos ao mesmo tempo, os pés, a coberta e o quarteto
de retângulos macios.
A luz do Sol entrava pelas janelas, enchendo-lhe o quarto com uma iluminação brilhante.
O cérebro dizia-lhe que Payne estava ali. Ela estava ali.
Olhando freneticamente à volta, correu para a casa de banho. Vazia. Percorreu o resto do apartamento. Vazio.
Esfregando o cabelo, voltou à cama... e depois apercebeu-se, santa mãe, ainda tinha as recordações todas. Dela. De Jane. Do Peras Odioso. Da operação e... daquele
duche maravilhoso. E de Glory.
Mas que raios...
Baixou-se, apanhou uma almofada e levou-a ao nariz. Sim, ela tinha mesmo estado deitada ao lado dele. Mas por que lá teria ido? E se assim fosse, por que não lhe
teria apagado a memória?
Dirigindo-se ao corredor, pegou no telemóvel e... Mas não lhe podia ligar. Não sabia o número.
Ali se deixou ficar por um instante e depois lembrou-se de que combinara encontrar-se com Goldberg dali a menos de uma hora.
Constrangido, e bizarramente em pânico sem qualquer motivo aparente, vestiu o equipamento de corrida e foi até ao elevador. No ginásio cumprimentou com acenos de
cabeça os outros indivíduos que malhavam ferro ou faziam abdominais e dirigiu-se à passadeira que costumava usar.
Esquecera-se do malfadado iPod, mas tinha a mente em tal alvoroço que silêncio era coisa que não havia entre as orelhas. Ao entrar no ritmo, tentou recordar-se do
que acontecera depois de tomar duche na véspera... mas não se lembrou de nada. Contudo, não estava com dor de cabeça, o que parecia sugerir que o buraco negro em
que se encontrava era algo natural, cortesia do álcool.
Ao longo do treino teve de acelerar a máquina algumas vezes. De certeza que um palerma teria andado a mexer na coisa e o tapete estava lento. E quando chegou aos
dez quilómetros apercebeu-se de que não estava de ressaca. Claro que a intensidade com que a mente lhe fervilhava fazia com que estivesse demasiado distraído para
se preocupar com as dores.
Quando desceu da passadeira, cerca de quinze minutos depois, precisava de uma toalha e dirigiu-se ao monte junto à saída. Um dos indivíduos dos pesos chegou ao mesmo
tempo, mas recuou, num gesto de deferência.
- Você primeiro, meu - estendendo a mão.
- Obrigado.
Enquanto Manny se limpava e dirigia à porta, fez uma breve pausa quando se apercebeu de que ninguém se mexia. Todos os que ali se encontravam tinham interrompido
o que faziam e fitavam-no. Uma olhadela rápida para baixo deixou-o com a certeza de que não sofria de uma perturbação de roupa. Mas que raios?
No elevador esticou as pernas e os braços e pensou, Cristo, podia correr mais quinze... vinte quilómetros sem problemas. E, apesar do álcool, pelos vistos tinha
tido uma noite de sono reconfortante, pois sentia-se desperto e cheio de energia. Mas era assim que funcionavam as endorfinas. Mesmo quando se estava a cair aos
bocados, a excitação da corrida era melhor do que cafeína... ou do que a sobriedade.
Não tinha dúvidas de que acabaria por se ir abaixo, mas logo se preocuparia com isso, quando a exaustão chegasse.
Meia hora depois entrou na Starbucks da Everett onde ele e Goldberg se tinham conhecido há anos, embora, na altura, o pequeno café ainda não tivesse sido adquirido
pela cadeia. O tipo fora aluno da Columbia e estava a concorrer ao internato no St. Francis, e Manny pertencia à equipa de recrutamento que fora reunida para o contratar.
Já na altura Goldberg era uma estrela e Manny quisera criar o melhor departamento do país.
Olhou à volta quando se pôs na fila para pedir um venti latte. O sítio estava a abarrotar, mas Goldberg já lhes conseguira uma mesa à janela. Isso não era uma surpresa.
Aquele cirurgião chegava sempre adiantado às reuniões. De certeza que já lá estaria há pelo menos quinze, vinte minutos. Mas não estava à procura de Manny. Fitava
o copo de papel, como se tentasse mexer psiquicamente o cappuccino.
Ah... ele trazia uma mensagem.
- Manuel? - chamou o rapaz ao balcão.
Manny aceitou o copo, contornou e ziguezagueou por entre os viciados em cafeína, os expositores de canecas e o quadro triangular que anunciava as promoções.
- Então? - cumprimentou ele quando se sentou à frente de Goldberg.
O outro cirurgião ergueu o olhar. E teve de olhar duas vezes.
- Ah... olá.
Manny bebeu um gole do café e recostou-se na cadeira, com as barras curvas das costas a pressionarem-lhe a coluna.
- Como tens andado?
- Eu estou... bem. Cristo, estás com um aspeto fantástico.
Manny esfregou o queixo com barba de véspera. Mas que grande mentira. Não se dera ao trabalho de se barbear e vestia uma camisola polar e calças de ganga. Não era
de todo os preparos de um garanhão.
- Deixemos as amabilidades. - Manny deu mais um gole no latte. - O que tens para me dizer?
Os olhos de Goldberg saltaram em todas as direções. Até que Manny teve pena dele.
- Querem que eu meta férias, não é?
Goldberg pigarreou.
- A direção do hospital acha que seria o melhor para... todos.
- Pediram-te para assumires a chefia, certo?
Mais um tossicar.
- Ah...
Manny pousou o copo.
- Não faz mal. Sem problema. Fico satisfeito... vai correr tudo bem.
- Sinto muito... - Goldberg abanou a cabeça. - Eu... isto parece tudo tão pouco ético. Mas... podes sempre voltar, sabes, depois. Além disso, o descanso fez-te bem.
Quer dizer, tu estás...
- Fantástico - disse Manny, num tom seco. - Uh-huh.
Era o que se dizia sempre às pessoas por quem se sentia pena.
Tomaram os cafés em silêncio e Manny interrogava-se se o outro estaria a pensar o mesmo que ele. Cristo, a volta que as coisas tinham dado. Quando se conheceram
ali, Goldberg estava tão nervoso como agora, só que por motivos bem diferentes. E quem diria que Manny viria a ser dispensado. Na altura só queria chegar ao topo
e nada o iria deter. E assim fora.
O que fez com que a sua reação ao pedido da direção fosse uma surpresa. Na verdade, não estava muito preocupado. Sentia-se... de certa forma desligado, como se isso
estivesse a acontecer a alguém que conhecera em tempos, mas que desde há muito se afastara. Pois, era importante, mas... que se danasse.
- Bem... - O toque do seu telefone interrompeu-o. E a dica quanto ao que realmente lhe interessava foi a pressa para tirar o aparelho, quase como se a camisola tivesse
pegado fogo.
Mas não era Payne, era o veterinário.
- Tenho de atender - disse a Goldberg. - Dois segundos. Sim, doutor, como está... - Manny franziu o cenho. - A sério. Uh-huh. Pois... pois... uhhuh... - Um sorriso
lento começou a crescer-lhe no rosto e dominou-lhe a expressão, até de certeza parecer radiante como um holofote. - Pois. É isso mesmo, não é? Parece a porra de
um milagre.
Quando desligou o telefone olhou para o outro lado da mesa. As sobrancelhas de Goldberg tinham-lhe chegado ao topo da testa.
- Boas notícias. Sobre o meu cavalo.
E o par de sobrancelhas subiu ainda mais.
- Não sabia que tinhas um cavalo.
- Chama-se Glory. É um puro-sangue.
- Ah. Uau.
- Dedico-me às corridas.
- Não sabia.
- Pois.
E as informações pessoais ficaram-se por aí, o que deu a entender a Manny o quanto falavam sobre o trabalho. No hospital, ele e Goldberg passavam horas a falar sobre
pacientes, questões de pessoal e sobre a gestão do departamento. De resto não tinham grande coisa a dizer um ao outro.
Mesmo assim, estava sentado à frente de um bom homem... alguém que provavelmente seria o próximo chefe de cirurgia do St. Francis. É claro que os diretores fariam
um concurso a nível nacional, mas Goldberg seria escolhido, pois os outros cirurgiões, que se assustavam com facilidade e gostavam de estabilidade, conheciam-no
e confiavam nele. E faziam bem. Goldberg era brilhante a nível técnico na sala de operações, proficiente a nível administrativo e muito mais calmo do que Manny alguma
vez fora.
- Vais fazer um excelente trabalho - garantiu Manny.
- O quê... ah. É só temporariamente, até que tu...tu sabes, até que voltes.
Ele parecia mesmo acreditar nisso, o que atestava a sua excelente índole.
- Pois.
Manny mexeu-se na cadeira e, quando voltou a cruzar as pernas, olhou à volta e viu três raparigas do outro lado. Deviam ter cerca de dezoito anos e, assim que cruzaram
os olhares, elas riram-se e falaram entre si, como se fingissem que não o tinham estado a mirar.
Voltando a sentir-se como no ginásio, confirmou o seu estado. Não. Continuava absolutamente sem estar nu. Mas que raio...
Quando ergueu o olhar, uma delas levantara-se e aproximara-se.
- Olá. A minha amiga acha que és giro.
Aaa...
- Ah, obrigado.
- Este é o telefone dela...
- Ah, não... não. - Pegou no papel que ela lhe depositara na mesa e obrigou-a a aceitá-lo de volta. - Fico lisonjeado, mas...
- Ela tem dezoito anos...
- E eu quarenta e cinco.
Com essas palavras, a rapariga ficou de boca aberta.
- Não posso.
- Sim. Podes. - Passou a mão pelo cabelo, interrogando-se quando entrara na Gossip Girl ou qualquer coisa do género. - E tenho namorada.
- Ah. - A jovem sorriu. - Isso é porreiro... mas, tipo, podias ter dito. Não era preciso mentir a dizeres que eras um cota.
Dito isso afastou-se e quando se sentou ouviu-se um gemido coletivo. E depois ele recebeu algumas piscadelas de olho.
Manny olhou para Goldberg.
- Miúdas. Quer dizer, sinceramente.
- Aaa. Pois.
Certo, estava na altura de acabar com aquele embaraço. Olhando pela janela, Manny começou a planear a saída...
No vidro viu o reflexo do seu rosto. Os mesmos malares altos. O mesmo queixo marcado. A mesma combinação de lábios e nariz. O mesmo cabelo preto. Mas havia qualquer
coisa de diferente.
Aproximando-se, pensou... os olhos estavam...
- Olha - disse calmamente. - Vou à casa de banho. Guardas-me o café antes de irmos embora?
- É claro. - Goldberg sorriu, aliviado, como se estivesse satisfeito por ter tantos planos de saída e um emprego. - Demora o tempo que quiseres.
Manny levantou-se e dirigiu-se à única casa de banho unissexo. Depois de bater sem resposta, abriu a porta e acendeu a luz. Quando se trancou e a ventoinha no teto
começou a funcionar, aproximou-se do espelho e leu o aviso «Os Funcionários Devem Lavar as Mãos».
A luz encontrava-se diretamente por cima do lavatório à frente do qual estava. Assim sendo, ele devia estar com um aspeto de merda, de olhos encovados pela exaustão,
com olheiras mais escuras que o breu e a pele da cor de uma torrada mal passada.
Não foi isso que o espelho lhe mostrou. Mesmo com a péssima luz fluorescente que o iluminava, parecia dez anos mais novo do que aquilo de que se lembrava. Irradiava
saúde, como se alguém tivesse photoshopado uma versão antiga da cabeça naquele corpo atual.
Recuando, estendeu os braços para o lado e agachou-se, dando à anca a oportunidade de berrar. Ou as coxas, que ele esforçara ao máximo há menos de uma hora. Ou as
costas.
Nada de dor. Nada de rigidez.
O corpo estava ansioso por trabalhar.
Pensou naquilo que o veterinário lhe dissera ao telefone, a voz do homem confusa e entusiasmada ao mesmo tempo: Ela regenerou o osso e o casco sarou espontaneamente.
É como se a lesão nunca tivesse acontecido.
Santo... Deus. E se Payne tivesse exercido a magia dela sobre ele? Enquanto estiveram juntos? E se ela lhe tivesse sarado o corpo a nível de tempo, sem que nenhum
desse por isso... fazendo o relógio biológico recuar não só meses, mas uma década ou mais?
Manny agarrou a cruz que trazia ao pescoço.
Quando alguém bateu à porta, Manny puxou o autoclismo na sanita vazia e depois abriu a torneira, para que não parecesse ter estado a fazer alguma coisa duvidosa.
Ao sair, estonteado, acenou com a cabeça para a mulher anafada que pretendia entrar e regressou para junto de Goldberg.
Sentou-se e limpou as palmas suadas às calças.
- Preciso de um favor - disse ao antigo colega. - É uma coisa que não pediria a mais ninguém...
- Diz. Qualquer coisa. Depois de tudo o que fizeste por mim...
- Quero que me faças uma avaliação física. E também uns exames.
Goldberg assentiu de imediato.
- Não ia dizê-lo, mas acho que é uma excelente ideia. As dores de cabeça...o esquecimento. Tens de saber se há algum... problema. - Ficou-se por aí, como se não
quisesse nem discutir nem tornar-se mórbido. - Embora, e isto é verdade... nunca te tenha visto com tão bom aspeto.
Manny acabou o café e levantou-se, com a sensação de urgência que o impelia sem nada ter a ver com a cafeína.
- Vamos embora. Se tiveres tempo agora, claro.
Goldberg não se demorou.
- Para ti, tenho sempre tempo.
Capítulo 48
De vez em quando, a morte de Qhuinn voltava ao pensamento dele. Acontecia em sonhos. Nas raras ocasiões em que ele estava quieto e calado. E às vezes para lhe lixar
a cabeça por puro gozo.
Ele procurava sempre evitar a colagem de imagens, cheiros e sons como se fossem a peste, mas apesar de ter solicitado ao seu tribunal interior o seu banimento, os
advogados adversários estavam a ser uns cabrões e a opor-se... portanto, aquela merda volta e meia regressava.
Deitado na cama, aquele pedaço de paisagem mental que não era nem estar a dormir nem desperto funcionava como uma linha aberta para aquela noite horrível lhe telefonar
e, quem diria, ela marcava o número, as memórias faziam soar a campainha e, de algum modo, forçavam-no a atender.
O seu próprio irmão fizera parte da guarda de honra que tinha aparecido para o espancar e os cretinos vestidos de preto seguiram-no pela berma quando ele veio embora
da mansão familiar pela última vez. Tudo o que possuía trazia consigo, e não fazia ideia para onde se podia dirigir. O seu pai tinha-o corrido de casa e ele tinha
sido riscado da árvore genealógica, portanto... era assim. Sem raízes. Sem rumo.
E tudo por causa dos seus olhos diferentes.
A guarda de honra supostamente só tinha por missão espancá-lo pela sua ofensa à linhagem. Não o deveriam matar. Só que as merdas tinham-se descontrolado e, numa
reviravolta inesperada, o irmão dele tinha tentado impedi-lo.
Qhuinn realmente recordava essa parte. A voz do irmão a dizer aos outros que parassem.
Mas tinha sido já demasiado tarde, e Qhuinn tinha flutuado para longe não só da dor, como também da própria terra... apenas para dar por si num mar de nevoeiro branco
que se abriu para revelar uma porta. Sem que ninguém lhe dissesse, ele tinha percebido que era a entrada para o Vápido e compreendeu também que, assim que a abrisse,
ele estava feito.
Coisa que lhe parecera uma ótima ideia na altura. Nada a perder, e tudo isso...
E ainda assim, ele vacilara no último instante. Por uma razão que não se conseguia lembrar.
Foi uma coisa estranhíssima... apesar de toda aquela noite estar gravada na sua mente, aquela era a única parte de que ele não se conseguia lembrar por mais que
tentasse.
Mas recordava-se de regressar ao seu próprio corpo. Ao recuperar a consciência, Blay tinha estado a fazer-lhe a reanimação cardiorrespiratória, e olha lá se aquele
não era um boca-a-boca de acordar os mortos...
A pancada que lhe soou na porta acordou-o de uma vez e ele sacudiu as almofadas, fazendo acender as luzes para ter a certeza de saber onde estava.
Isso mesmo. No seu quarto. Sozinho.
Mas não por muito mais tempo.
Os seus olhos ajustaram-se lentamente, apontaram para a porta, e ele soube quem estava do lado de lá. Conseguia sentir o aroma delicado a pairar, e soube por que
motivo Layla tinha vindo. Porra, talvez tivesse sido por isso que ele não tinha conseguido dormir em condições. Esperava ser acordado por ela a qualquer momento.
- Entra - disse-lhe num tom suave.
A Escolhida entrou sem ruído, e virou-se para ele, parecendo de rastos. Desgastada. Um deserto.
- Senhor...
- Podes chamar-me Qhuinn, sabes. Quer dizer, por favor, chama mesmo.
- Obrigada. - Ela fez uma vénia e pareceu debater-se para se endireitar. - Estive a pensar se poderia usufruir mais uma vez da tua oferta generosa para... te tomar
uma veia. Com efeito, estou... vazia e incapaz de regressar ao Santuário.
Quando o seu olhar se cruzou com os olhos verdes dela, algo se infiltrou bem fundo na sua mente, uma espécie de... perceção que ganhou raízes e rebentos de quase-que-entendi,
estou-quase-lá.
Olhos verdes. Verdes como uvas e jade e rebentos de primavera.
- Por que razão me olhas desse modo? - perguntou ela, apertando com mais força as lapelas das vestes.
Olhos verdes... num rosto que era...
A Escolhida espreitou novamente para a porta.
- Talvez... eu deva ir-me embora...
- Desculpa. - Sacudindo-se, ele certificou-se de que os lençóis o cobriam pela cintura e fez-lhe sinal para se aproximar. - Acabei de acordar... não ligues.
- Tens a certeza?
- Absoluta, anda cá. Amigos, lembras-te? - Estendeu a mão, e quando ela ficou ao seu alcance, pegou na dela e fê-la sentar-se.
- Senhor? Ainda estás a olhar para mim.
Qhuinn perscrutou o rosto dela e depois passou para o corpo. Olhos verdes...
Mas que raio tinham os olhos? Não é que ele nunca os tivesse visto antes.
Olhos verdes...
Conteve um palavrão. Cristo, isto era como ter uma canção na cabeça e lembrar-se de tudo menos da letra.
- Senhor?
- Qhuinn. Di-lo, por favor.
- Qhuinn.
Ele esboçou um sorriso.
- Toma, tira o que precisares.
Ao erguer o pulso, pensou, Meu, ela estava tão magra, ao debruçar-se e abrir a boca. As presas dela eram compridas e muito brancas, mas delicadas. Nada como as dele.
E o toque dela era gentil e feminino como tudo nela.
Coisa que o seu lado tradicionalista achou adequadíssimo.
Enquanto ela se alimentava, ele olhou para o cabelo loiro que estava arranjado num entrançado complexo, e para os ombros descobertos, e para as mãos bonitas.
Olhos verdes.
- Cristo. - Quando ela fez menção de parar, ele colocou a mão por trás do pescoço dela e manteve-a no seu pulso. - Está tudo bem. Tive uma cãibra no pé.
Mais verdadeiro seria dizer no cérebro.
Frustrado, ele ergueu a cabeça e, em vez de bater com ela na parede, esfregou os olhos. Quando os focou novamente, estava a olhar para a porta...
... Layla tinha acabado de entrar.
De imediato, ele voltou a deixar-se arrastar pelo sonho. Mas não pela pancada nem pelo seu irmão. Ele viu-se postado à entrada do Vápido... de pé em frente a painéis
brancos... com a mão erguida, quase a tocar na maçaneta.
A realidade esticou-se, puxou e derreteu-se como caramelo até ele não saber se estava acordado ou a dormir... ou morto.
O remoinho começou a formar-se no centro da porta, como qualquer que fosse o material de que era feita se tivesse liquefeito numa consistência leitosa. E do centro
daquela espécie de tornado surgiu uma imagem e veio aproximando-se, mais como se fosse um som do que algo palpável.
Era o rosto de uma jovem fêmea.
Uma jovem fêmea com cabelo loiro e traços refinados... e olhos verde-pálidos.
Ela olhava-o fixamente, cativando o seu olhar como se se tivesse apropriado de todo o seu rosto com as mãozinhas bonitas.
E então ela piscou os olhos. E eles mudaram de cor.
Um ficou verde, e o outro azul. Tal como os dele.
- Senhor!
A princípio ele ficou tremendamente confuso, imaginando o que teria levado a fêmea a chamar-lhe aquilo. Como é que ela sabia quem ele era?
- Qhuinn! Deixa-me fechar-te a ferida!
Ele pestanejou. E descobriu que se tinha atirado contra a cabeceira da cama, e ao fazê-lo, tinha arrancado da sua carne as presas de Layla e estava a sangrar para
o lençol.
- Deixa-me...
Ele afastou a Escolhida e colocou a própria boca na ferida. Enquanto cuidava de si, não conseguia tirar os olhos de Layla.
Era demasiaaaaado fácil sobrepor as feições daquela fêmea jovem no rosto de Layla e encontrar algo muito mais profundo do que semelhança.
Com o coração aos pulos, ele tentou lembrar-se que nunca lhe tinha dado para aquilo da presciência. Ao contrário de V, ele não conseguia ver o futuro.
Layla mexeu-se lentamente para sair da cama, como se não o quisesse assustar.
- Queres que eu vá chamar a Jane? Ou talvez seja melhor eu ir embora.
Qhuinn abriu a boca... e descobriu que não lhe saía nada.
Uau. Ele nunca tinha tido um acidente de carro, mas imaginou que o nó na garganta que sentiu naquele momento fosse provavelmente igual ao de um condutor que visse
outro carro ignorar um Stop e avançar para a sua porta. Triangulava a sua direção e velocidade contra as suas próprias, e concluía que o impacto estava iminente.
Ainda que ele não conseguisse imaginar um mundo em que engravidasse Layla.
- Vi o futuro - disse ele, à distância.
Layla levou as mãos à garganta como se estivesse a sufocar.
- Não é bom?
- Não é... possível. De todo.
Quando enfiou o rosto nas mãos, tudo o que conseguiu ver na escuridão foi aquela cara... aquela que era em parte a de Layla e em parte a sua.
Ó Deus... protege-os aos dois. Protege-os... todos.
- Senhor?! Estás a assustar-me.
Bem, com isso já eram dois.
Só que não podia ser. Ou podia?
- É melhor eu ir - disse ela com brusquidão. - Agradeço a tua dádiva.
Ele fez sinal com a cabeça, sem poder olhar para ela.
- Não tens de quê.
Quando a porta bateu, pouco depois, ele sentiu um arrepio, um medo gelado que lhe assaltou os ossos... e daí partiu para a sua alma.
Bem vistas as coisas, era irónico, pensou. Os seus pais nunca tinham querido que ele se reproduzisse, e quem diria... a ideia de emprenhar Layla com uma filha defeituosa,
ou pior, de passar os seus olhos fodidos a uma miúda inocente, fê-lo agarrar-se ao voto de celibato como nunca antes.
E, na verdade, ele deveria estar contente. De todos os destinos que poderia ter antevisto, este era cem por cento evitável, não era?
Ele simplesmente nunca iria foder com Layla.
Jamais.
Portanto, tudo não passava de uma impossibilidade. Ponto, parágrafo.
Capítulo 49
Manny regressou ao seu apartamento por volta das seis da manhã. Tudo indicava que tinha passado oito horas no hospital a ser incomodado e pressionado por várias
pessoas que conhecia melhor que a própria família.
Os resultados estavam na sua caixa de correio eletrónico porque tinha enviado automaticamente cópias de tudo o que estava na sua conta do hospital para a sua conta
pessoal. Não que houvesse razões para abrir os anexos. Ele sabia os comentários de cor. Sabia os resultados de cor. Todas as radiografias e TAC de cor.
Atirando as chaves para a bancada da cozinha, abriu o frigorífico e desejou que houvesse sumo de laranja fresco. Mas em vez disso, havia... pacotes de molho de soja
de um restaurante chinês de comida para fora ao fundo da rua... um frasco de ketchup... e uma marmita redonda com uma espécie de restos de um jantar de negócios
a que tinha ido há duas semanas.
Que se lixe. Não tinha assim tanta fome.
Inquieto e sem conseguir estar parado, avaliou a luz no céu. O sol ainda demorava a desaparecer a ocidente.
No entanto, não teria de esperar muito.
Payne regressaria para ele depois do sol se pôr. Sentia-o nos ossos. Ainda não sabia bem porque é que ela passara a noite com ele ou porque é que as suas memórias
permaneciam, mas tinha de pensar na hipótese de Payne tratar disso quando ali chegasse.
A caminho da casa de banho, o seu primeiro impulso foi apanhar as almofadas do chão e colocá-las no sítio. Depois alisou o edredão... e estava pronto para começar
a fazer as malas. Começou a tirar roupa da cómoda e a atirá-la para cima da cama revolta.
Não havia razão alguma para voltar para St. Francis. Tinha apresentado a demissão a meio dos exames.
Não havia razão para ficar em Caldwell. O melhor seria sair da cidade.
Não fazia ideia para onde iria, mas não era preciso um destino para se ir embora de um sítio.
Meias. Boxers. Polos. Calças de ganga. Calças de caqui.
A vantagem de ter um guarda-roupa que consistia acima de tudo em fardas fornecidas pelo hospital era não ter muito para arrumar. E Deus sabia que ele tinha muitos
sacos de ginásio.
Tirou da última gaveta da cómoda as únicas duas camisolas que tinha...
A moldura por baixo delas estava virada para baixo, com o suporte encostado pacificamente ao fundo.
Manny levantou o objeto. Não precisou de o virar para saber quem estava na fotografia. Tinha memorizado o rosto do homem há muitos, muitos anos.
E ainda assim foi um choque virar a moldura e ver a imagem do pai.
Um filho da mãe bonito. Muito, muito bonito. Cabelo escuro, tal como o de Manny. Olhos profundos, iguais aos de Manny.
E era até onde ele estava disposto a ir com a nostalgia. Como sempre, quando se tratava do pai, empurrava tudo para um canto na sua mente e andava para a frente
com a sua vida.
Esta noite isso significava que a moldura ia para cima do edredão e estava resolvido...
A batidela no vidro chegava demasiado cedo para ser ela, pensou.
Mas quando olhou para o relógio percebeu que a tarefa de preparar a mala tinha durado uma boa hora.
Olhando por cima do ombro, o coração bateu acelerou loucamente ao ver Payne do outro lado do vidro. Tinha entrançado o cabelo e tinha um vestido longo apertado na
cintura e estava... de cortar a respiração.
Foi até à varanda, abriu a porta deslizante e o ar frio da noite bateu-lhe na cara, obrigando-o a concentrar-se.
Com um sorriso de orelha a orelha, Payne não chegou bem a entrar, mas antes atirou-se para os seus braços, o corpo sólido contra o seu, os braços muito apertados
à volta do pescoço.
Deixou-se ficar abraçado a ela por instantes... pela última vez. E depois, apesar de não o querer, pousou-a no chão aproveitando a desculpa de fechar as portas para
evitar a rajada de vento para se afastar dela.
Quando a olhou de novo, a alegria no seu rosto tinha desaparecido e ela enrolava os braços à volta de si própria.
- Imaginei que voltasses - disse, rouco.
- Eu... Eu tinha boas notícias. - Payne olhou para a linha de sacos desportivos em cima da cama. - O que estás a fazer?
- Tenho de me ir embora daqui.
Enquanto ela fechou brevemente os olhos, quase o destruiu não ir até ela e confortá-la. Mas já era suficientemente difícil. Tocar-lhe outra vez ia desfazê-lo em
bocados.
- Fui ao médico hoje - disse ele. - Passei toda a tarde no hospital.
Ela ficou lívida.
- Estás doente?
- Não exatamente. - Andou para a frente e para trás até que parou em frente à cómoda e empurrou para dentro a última gaveta. - Na verdade, longe disso... Parece
que partes do meu corpo se regeneraram.
Colocou as mãos na anca.
- Durante anos tive uma artrite na anca, causada por lesões desportivas... sempre soube que eventualmente teria de ser substituída. Mas aquilo que mostram as radiografias
que fiz hoje? Está em perfeitas condições. Não há vestígios da artrite, nem inflamação. Está tão boa como quando tinha dezoito anos.
Quando ela abriu a boca, ele achou que o melhor era dizer-lhe já tudo. Puxando a manga da camisola, passou a mão pelo antebraço.
- Há duas décadas que tenho sardas por causa de queimaduras solares... agora desapareceram. - Baixou-se e levantou a perna das calças. - As microfraturas da tíbia
que me aparecem de vez em quando? Desapareceram. E isto apesar de eu ter corrido cerca de dez quilómetros esta manhã sem sequer pensar nisso... em menos de quarenta
e cinco minutos. As minhas análises não mostram qualquer indício de colesterol, têm valores hepáticos perfeitos, ferro e plaquetas na quantidade necessária exata.
Bateu com os dedos nas frontes.
- E há algum tempo que estou nos limites para usar óculos para ler, tendo de afastar as ementas e as revistas para conseguir... mas agora já não preciso. Consigo
ler as letrinhas pequenas a um palmo do nariz. E, acredite-se ou não, tudo isto é apenas o começo.
Nem valia a pena falar nos pés de galinha à volta dos olhos e nos cabelos brancos nas têmporas que tinham sido substituídos por castanhos-escuros e nos joelhos que
já não estavam lesionados.
- E tu achas... - Payne pousou uma mão na garganta. - Que é por causa de mim?
- Sei que é. Que mais podia ser?
Payne começou a abanar a cabeça.
- Não compreendo, porque é que isto não é uma bênção. A juventude eterna sempre foi procurada por todas as raças...
- Não é natural. - Ao dizer isto, ela estremeceu, mas ele tinha de continuar. - Sou médico, Payne. Sei tudo sobre o envelhecimento normal do corpo humano e o tratamento
de ferimentos. Isto... - Fez um gesto com a mão que percorreu o corpo - ...não está certo.
- É regeneração...
- Mas, onde para? Vou transformar-me no Benjamin Button e recuar até à infância?
- Isso seria impossível - contrapôs ela. - Já estive exposta à luz mais tempo do que tu e não reverti para um estado mais jovem.
- Okay, tudo bem, vamos assumir que isso não acontece... e todas as outras pessoas na minha vida? - Não que se tratasse de uma longa lista, mas ainda assim. - A
minha mãe vai ver-me assim e pensar que fiz cirurgia plástica... e daqui a dez anos? Ela só tem setenta... acredita em mim, quando chegar aos oitenta ou noventa,
vai perceber que o filho não está a envelhecer. Ou tenho de desistir dela?
Manny começou a andar outra vez e, ao puxar o cabelo, era capaz de jurar que estava mais resistente.
- Perdi o emprego hoje por causa do que aconteceu quando me apagaram as memórias. Durante essa semana, estive longe de ti, estava todo baralhado, não sabia se era
noite ou dia e era tudo o que tinham para lidar com a coisa, porque não lhes podia explicar o que realmente tinha acontecido. - Virou-se de novo para ela. - Aquilo
que me preocupa é que este é o único corpo que tenho, a única mente, a única... o que quer que seja. Vocês vampiros lixaram-me a cabeça e quase fiquei louco... e
quais são as consequências de tudo isto? Eu só sei a causa... A magnitude do efeito? Não faço ideia e isso aterroriza-me por uma maldita boa razão.
Payne colocou a ponta da trança em cima do ombro e acariciou-a enquanto baixava os olhos.
- Peço... desculpa.
- A culpa não é tua, Payne - gemeu ele, levantando as mãos ao céu. - E eu não quero culpar-te disto tudo, mas...
- A culpa é minha. Eu sou a causa.
- Payne ...
Quando se aproximou, ela levantou as mãos e afastou-se.
- Não, não te aproximes de mim.
- Payne...
- Tens razão. - Ela parou ao embater na porta envidraçada que tinha atravessado para entrar. - Sou perigosa e destrutiva.
Manny esfregou a cruz por dentro da camisa. Apesar do que tinha dito, naquele momento queria retirar tudo e, de algum modo, fazer com que tudo ficasse bem entre
eles.
- É um dom, Payne. - Afinal de contas, ele e o cavalo tinham mostrado os benefícios da exposição a curto prazo. - Vai ajudar-te e à tua família e ao teu povo. Diabo,
com o que consegues fazer, vais deixar a Jane sem trabalho.
- De facto.
- Payne... olha para mim. - Quando os olhos dela eventualmente encontraram os dele, teve vontade de chorar. - Eu...
Mas não conseguia acabar a frase... A verdade era que a amava. Completamente e para sempre. Contudo, desconfiava que essa era a maldição de tudo isto para ambos.
Ele nunca conseguiria esquecê-la e nunca haveria mais ninguém para ele.
Erguendo os ombros, preparou-se.
- Tenho uma coisa a pedir.
- E o que poderá ser? - lançou ela secamente.
- Não me apagues a memória. Não vou contar nada a ninguém sobre ti ou a tua raça... juro pela minha mãe. Simplesmente... deixa-me como estou quando te fores embora.
Sem a minha mente, tenho menos do que nada.
* * *
Payne estava radiante desde que deixara o complexo. O irmão tinha partilhado com ela as incríveis novidades assim que tinha regressado antes de madrugada e ela passara
todo o dia indecisa entre pairar numa nuvem e ficar impaciente com quão devagar o tempo estava a passar.
Depois tinha vindo.
Era difícil que tivesse o coração a transbordar de alegria apenas há dez minutos.
Não era, no entanto, difícil de compreender a posição de Manuel. E ficou surpreendida por nenhum dos dois ter antecipado as implicações maiores dos seus... poderes
de cura. Ou lá o que era.
Claro que o afetaria.
Olhando para Manuel, não conseguiu suportar a tensão que via nele. Estava honesta e verdadeiramente ansioso com o que sobraria se ela tirasse as memórias do tempo
que tinham estado juntos do alcance da sua consciência. E porque estaria? Perdeu o emprego que amava por causa dela. Tinha o corpo e a mente em perigo por causa
dela.
Pelas Parcas, ela nunca devia ter-se aproximado dele.
E era exatamente por causa disto que não gostavam da mistura com humanos.
- Não te preocupes - disse ela suavemente. - Não vou comprometer a tua mente. Já fiz o bastante.
Enquanto ele respirava de alívio, ela sentiu as lágrimas a apertarem-lhe a garganta. Fitou-a por um momento.
- Obrigado.
Ela fez uma pequena vénia e, ao endireitar-se, ficou chocada ao ver os seus magníficos olhos de mogno a cintilarem.
- Quero lembrar-me de ti, Payne... de tudo sobre ti. - Aquele olhar triste e nostálgico percorreu-lhe o rosto. - De como te senti e do teu sabor. Do som da tua gargalhada...
ofegante. Do tempo que passei ao teu lado... - A voz falhou-lhe e ele recuperou aclarando a garganta. - Preciso que essas memórias durem a minha vida inteira.
As lágrimas começaram a cair e escorrer pelo rosto dela e o coração começou a bater-lhe com força.
- Vou sentir a tua falta, bambina. Todos os dias. Sempre.
Quando ele estendeu os braços, ela aninhou-se neles e perdeu completamente a compostura. Soluçando contra a camisa dele, estava aninhada no seu corpo sólido e forte
e apertava-o com tanta força como ele a apertava a ela.
E então ambos quebraram o abraço ao mesmo tempo, como se fossem um só coração. E ela achou que eram.
Na verdade, havia uma parte dela que queria lutar e discutir e fazer com que ele visse o outro lado, outra possibilidade. Mas não tinha a certeza se existia um outro
lado. Também ela não conseguia prever o futuro, da mesma maneira que não podia prever as repercussões do que tinha mudado nele, tal como ele.
Não havia mais nada para dizer. Este fim imprevisto que chegara era uma pancada que não podia ser atenuada por conversa, toque, nem, desconfiava, pelo tempo.
- Tenho de ir agora - disse ela, afastando-se.
- Deixa-me abrir-te a porta...
Enquanto se desmaterializava da casa dele para fora, apercebeu-se de que aquelas eram as últimas palavras que ele lhe diria.
Era a despedida.
Manny ficou a olhar fixamente para o espaço que a sua mulher tinha acabado de ocupar. Já não havia mais nada dela. Tinha desaparecido como por magia, como um feixe
de luz que tivesse sido cortado.
De vez.
O impulso imediato foi ir até ao armário do hall de entrada, tirar de lá o taco de basebol e partir a casa toda. Partir todos os espelhos, vidros, louça, tudo...
atirar a pouca mobília que tinha pela varanda. Depois disso... se calhar levava o Porsche até à autoestrada do norte, andava a mais de cento e vinte e planeava uma
rota que terminasse nos apoios de uma ponte.
Neste cenário não havia cinto de segurança, obviamente.
Não obstante, afinal, acabou por ficar sentado na cama ao lado dos sacos desportivos e enfiar a cabeça nas mãos. Não era fraco para soluçar daquela maneira como
se estivesse num funeral. De modo algum. Deslizou para os ténis de corrida.
Macho. Realmente muito macho.
No entanto, a forma como se apresentava à plateia do seu apartamento vazio era tão importante como o seu orgulho, corpo, membro... tudo o resto.
A perda estava a dar cabo dele.
E ia transportar aquela dor consigo para o resto da sua vida natural.
Que irónico. O nome dela tinha-lhe parecido inicialmente muito estranho. Agora, parecia bastante adequado.
Capítulo 50
Payne não regressou à mansão. Não tinha qualquer interesse em ver quem lá morava. Nem ao rei, que tinha decidido a seu favor. E certamente que não queria ver todos
os casais felizes, sortudos e abençoados que viviam debaixo do teto real.
Por isso, em vez de ir para norte, materializou-se nas margens do canal que corria ao lado dos altos edifícios envidraçados da baixa. A brisa era mais gentil ao
nível do chão e transportava o som cantante de ondas a bater nas margens empedradas do rio. Como pano de fundo, o zumbido dos veículos a superarem as curvas e contracurvas
suaves das pontes e desaparecendo nas margens longínquas. Aqueles sons faziam-na sentir mais claramente a profundidade e a amplitude da paisagem.
Rodeada de humanos, estava completamente sozinha.
Contudo, era isto que ela tinha pedido. Era esta a liberdade que tão profundamente desejara e procurara com ânsia.
No Santuário, nada tinha mudado. Mas também nada tinha corrido mal.
Contudo, ainda assim, escolheria sempre aquela difícil provação ao isolamento entorpecedor anterior.
Ó Manuel ...
- Olá, querida.
Payne olhou por cima do ombro. Um macho humano estava a aproximar-se dela, tendo obviamente saído de trás de um dos apoios da ponte. Estava a acenar e cheirava a
camadas sobre camadas de suor fermentado e sujidade.
Sem se dar sequer ao trabalho de o cumprimentar, Payne desmaterializou-se para uma zona mais abaixo da margem do rio. Não havia motivo para lhe apagar a memória.
Era pouco provável que se lembrasse sequer que a tinha visto. Estava, sem dúvida, sob o efeito de diversas drogas alucinogénias.
Fitando a superfície ondulada do rio, não se sentia atraída pelas profundezas escuras. Não ia magoar-se a si própria por causa disto. Não se tratava de nenhuma prisão
para se encerrar lá dentro e, além disso, já chegava de escolher sempre a via cobarde. Firmando os pés na terra, cruzou os braços e ficou simplesmente a existir
naquele lugar, ignorando o tempo a escorrer pela peneira da realidade, enquanto as estrelas rodopiavam sobre a sua cabeça, mudando de posição...
A princípio, o cheiro chegou-lhe ao nariz discretamente, imiscuindo-se entre uma mistura de terra fresca, pedra molhada e poluição urbana. Por isso, ao início, não
registou o odor como nada específico.
Não obstante, rapidamente o seu cérebro acordou ao reconhecer o aroma.
Com um formigamento de instinto, a cabeça virou-se sozinha, dando meia volta no alto da espinha. Os ombros seguiram-se... depois as ancas.
O odor rançoso era o inimigo.
Um minguante.
Ao começar a correr ligeiramente, sentiu no sangue uma agressividade que não era apenas causada pela dor que sentia no coração e pela frustração daquilo que o destino
lhe reservara. Ao aproximar-se do cheiro, sentia-se animada por uma herança profunda de violência e proteção. Os membros, a mão da afaga e as presas a aguçarem-se.
Transformada pelo instinto mortal, já não era macho nem fêmea, nem Escolhida, nem filha ou irmã. Enquanto evitava ou enfrentava becos e ruas, era um soldado.
Virou para um beco e, ao fundo, viu dois matadores, cujo cheiro a tinha trazido desde o rio até ali. Juntos, estavam inclinados por cima de um objeto que ela identificou
como um telefone, eram novos recrutas, com cabelo escuro e corpos cheios de tiques.
Não olharam para cima quando ela parou. O que lhe deu tempo de pegar num disco metálico prateado com Ford gravado. Era uma arma excelente que podia ser usada para
bloquear ou para atirar.
Momentos depois, o vento começou a levantar e envolveu-lhe o vestido, retirando-o do seu corpo, e o movimento deve ter chamado a atenção deles, porque se viraram.
Apareceram facas. E também um par de sorrisos que lhe fizeram arder o sangue.
Idiotas, pensou. A pensarem que, por ser uma fêmea, não daria qualquer luta.
Aproximaram-se dela com uma passada tão lenta, que ela não viu razão nenhuma para os interromper. De facto, ela iria saborear a surpresa que eles teriam e à qual,
em última análise, não sobreviveriam.
- O que fazes aqui, menininha? - perguntou o maior dos dois. - Tão sozinha.
Estou prestes a abrir-te a garganta com o que tenho atrás das costas. Depois disso, parto-te as duas pernas, não porque tenha de o fazer, mas porque me diverte o
som. E depois localizo alguma coisa de metal para te enfiar na caixa torácica vazia e te mandar para o teu criador. Ou talvez te deixe a contorcer de dor no chão.
Payne manteve-se silenciosa. Em vez de falar, distribuiu igualmente o peso pelos dois pés bem assentes no chão e agachou-se. Nenhum dos minguantes pareceu notar
a mudança de posição. Estavam demasiado ocupados a caminhar para ela e a pavonearem-se. E nem sequer se separaram ou a flanquearam. Nem veio um atacá-la pela frente,
para o outro a poder atacar por trás.
Continuaram mesmo à sua frente... onde podia alcançá-los.
Enfim, aquilo não passaria de um ótimo aquecimento. A menos que aparecessem outros que soubessem lutar como deve ser e a divertissem...
Xcor sentia a agitação que indicava uma mudança nos bastardos.
Ao caminharem em formação pelas ruas da baixa de Caldwell, a energia atrás dele era um batucar de agressividade. Contundente. Renovada. Mais forte do que tinha sido
uma década antes.
De facto, mudar-se para aqui tinha sido a melhor decisão que tinha tomado. E não só por ele e Throe terem tido ótimo sexo e tomado uma bebida na noite anterior.
Os machos eram punhais retirados à pressa da forja, os instintos assassinos renovados e cintilando à luz da Lua na cidade. Não admira que não tivessem havido matadores
no País Antigo. Estavam todos aqui, a Sociedade dos Minguantes centrando os seus esforços...
A cabeça de Xcor virou-se para todos os lados e desacelerou.
O odor no ar fez com que as presas se alongassem e o corpo vibrasse com poder.
Não era necessário indicar a mudança de direção. Os bastardos estavam a acompanhá-lo, perscrutando a ameaça doce e doentia que se encontrava nas asas das rajadas
noturnas.
Ao virarem a esquina e deslizarem pela reta, rezou por mais. Uma dúzia. Uma centena. Duas centenas. Queria ficar coberto com sangue do inimigo, banhando-se no óleo
negro que lhes animava as carnes...
Na entrada do beco, os pés não pararam, mas cimentaram-se no chão.
Entre um pestanejar e outro, o passado desenrolou-se à sua frente, eliminando a distância entre os meses, anos e séculos de disputas e tornando disponível no presente
toda essa experiência.
No centro do beco, uma fêmea com um vestido branco comprido e ondulante estava a lutar com dois minguantes. Mantinha-os à distância com pontapés e murros, volteando
e saltando tão depressa que tinha de esperar que chegassem de novo até ela.
Com as suas competências superiores de luta, estava apenas a brincar com eles. E tinha a clara impressão de que eles não se apercebiam do quanto ela estava a poupá-los.
Fatal. Ela era mortífera e estava à espera para atacar.
E Xcor soube exatamente quem ela era.
- Ela é... - A garganta de Xcor abafou as restantes palavras.
Ter procurado durante séculos e ser-lhe negado aquele alvo... apenas para dar com ele, numa noite por acaso, numa cidade aleatória para lá do vasto oceano... era
o destino a manifestar-se.
Estava escrito que se encontrariam novamente.
Ali. Naquela noite.
- Ela é a assassina do meu pai. - Retirou a gadanha da bainha. - É a assassina do meu próprio sangue...
Alguém lhe agarrou na mão e travou-lhe o braço.
- Aqui não.
O facto de não ser o sofredor Throe foi a única razão que o fez parar. Era Zypher.
- Capturamo-la e levamo-la para casa. - O guerreiro riu-se sombriamente, o tom erótico aprofundando-se na sua voz. - Já te aliviaste, mas há outros entre nós que
necessitam daquilo que tiveste ontem à noite. Depois disso? Depois podes ensinar-lhe as repercussões dos atos vingativos.
Zypher era, de entre todos, o que mais provavelmente planearia algo assim. E, apesar de a ideia de a chacinar ali mesmo ser muito apelativa, Xcor tinha esperado
demasiado tempo para não saborear a derrota dela.
Tantos anos.
Anos de mais... até ter desistido da esperança de alguma vez a encontrar, apenas os sonhos mantendo viva a memória daquilo que o tinha definido e lhe tinha dado
a posição que assumia na vida.
Sim, pensou. Seria adequado fazer isto à maneira do Derramador de Sangue. Sem tornar as coisas simples para a fêmea.
Xcor voltou a arrumar a gadanha, enquanto a assassina atacava decentemente os matadores. Sem aviso, saltou em frente e investiu contra o peito de um, baixando-se
sob os braços flácidos e empurrando-o contra o edifício. Foi tudo tão rápido que o segundo minguante ficou demasiado surpreendido - e não tinha treino suficiente
- para salvar o amigo.
Mesmo que o número dois tivesse sido um lutador mais próximo das capacidades dela, não teria qualquer hipótese. Praticamente no mesmo momento em que atacou, a fêmea
fez girar por trás dela o tampão da jante e atacou o matador no pescoço, fazendo um corte profundo e desencorajando-o rapidamente da tarefa de se atirar a ela. Quando
o óleo preto começou a esguichar e os joelhos dele tremeram, ela terminou o matador que tinha encostado aos tijolos esmurrando-o duas vezes na cara e uma na maçã-de-adão.
Depois elevou o corpo dele no ar e atirou-o contra a perna dobrada.
A espinha a partir fez um som muito alto.
Enquanto este expirava, virou-se para enfrentar os que estavam a vê-la a lutar. O que não era surpresa nenhuma. Alguém com as suas capacidades ter-se-ia imediatamente
apercebido de que existiam ali outros.
Meneando a cabeça para um dos lados, não ficou alarmada. Mas também por que haveria de ficar? Estavam nas sombras e eram claramente da sua espécie. Até Xcor se revelar,
ela não faria ideia do perigo que corria.
- Boa noite, fêmea - disse ele, em tom baixo, da escuridão.
- Quem está aí? - quis saber ela.
É agora, pensou, avançando para um foco de luz...
- Não estamos sozinhos - murmurou Throe abruptamente.
Xcor parou a investida, os olhos a semicerrarem-se para os sete matadores que tinham aparecido ao fundo do beco.
De facto. Estavam muito acompanhados.
Mais tarde, Xcor acabou por acreditar que a única razão do sucesso na captura da fêmea tinha sido a chegada daqueles novos minguantes. O avanço dos inimigos exigiu
que olhasse para eles e lhes desse atenção. Mas antes de se poder desmaterializar para outra posição, Xcor estava sobre ela.
Apesar do batimento acelerado do seu coração, a vingança dava-lhe força para dispersar as moléculas, mesmo quando ela se virou para enfrentar o esquadrão que se
aproximava. Prendeu a pulseira de aço no pulso dela rápida e certeiramente e, enquanto ela andava à volta com fúria estampada no rosto, ele lembrou-se da incineração
a que ela forçara o seu progenitor.
O que o salvou foi um tiro de um dos minguantes.
O disparo não tinha importância, mas a sua consequência trazia um benefício espetacular. Mesmo quando ela estava a levantar a mão livre para a pousar nele, a sua
perna descaiu e ela caiu no chão, não havendo dúvidas de que a bala acertara em algum ponto vital. E, naquele momento de fraqueza, Xcor dominou-a. Só tinha uma oportunidade
de a controlar. Se não tivesse aproveitado, não tinha a certeza de ter conseguido fazê-lo.
Fechando a outra pulseira no pulso livre dela, agarrou-lhe na trança e enrolou-a à volta do pescoço. Puxando o cabelo com força, cortou-lhe o ar, mesmo quando os
seus guerreiros avançavam de armas em riste.
Oh, como ela lutava. Tão valente. Tão poderosa.
Não passava de uma fêmea... mas talvez fosse um pouco mais do que isso. Era quase tão forte como ele e essa não era a sua única vantagem. Mesmo aprisionada e à beira
da asfixia, os olhos pálidos continuavam fixos nos dele, até ele sentir que ela podia invadir-lhe a mente e apoderar-se dos seus pensamentos.
Mas ele não se deixaria assombrar. Enquanto os sons da batalha rebentavam no beco, ele enfrentou o olhar fixo da assassina do seu progenitor, à medida que os seus
braços iam apertando cada vez mais o laço à volta do pescoço.
Debatendo-se para respirar, ela engasgou-se e contorceu-se, os lábios a moverem-se.
Aproximando o ouvido, ele queria saber o que ela tinha a...
- ... porquê...?
Xcor encolheu-se quando ela deixou de lutar e os formidáveis olhos se reviraram.
Querida Virgem Escrivã, ela nem sabia quem ele era.
Capítulo 51
No que dizia respeito a antros masculinos, V sempre pensara que a sala de bilhar na mansão da Irmandade tinha tudo. Ecrã gigante com som surround. Divãs com estofo
suficiente para serem considerados camas. Lareira para aquecer e para aquela treta atraente das brasas. Bar com todas as bebidas concebíveis, refrigerantes, cocktails,
chá, café, cerveja... tudo.
E uma mesa de bilhar, claro.
A única coisa «má» acabava por ser uma benesse. A máquina de pipocas fora uma aquisição recente, e um tipo bizarro de campo de batalha. Rhage adorava brincar com
a coisa, mas sempre que o fazia, Fritz ficava nervoso e queria parte da ação. Fosse como fosse, era divertido. Os cestinhos de verga ficavam cheios e depois era
a vez do elemento do par que ainda não tivesse funcionado com a máquina.
Enquanto esperava pela sua jogada na mesa de bilhar, Vishous pegou num quadrado de giz azul e esfregou a ponta do taco. Butch baixou-se sobre o feltro verde e apontou
enquanto se ouvia «Aston Martin Music», de Rick Ross.
- Sete no canto - disse o chui.
- Vais enfiá-la, não vais? - V pousou o giz e abanou a cabeça ao ouvir-se a pancada, o rolar e a queda da bola. - Sacana.
Butch olhou-o, com um «toma» na expressão.
- Sou mesmo bom. Desculpa lá, palerma.
O chui deu um gole no Lag e foi assumir nova posição do outro lado da mesa. Enquanto observava o jogo, o sorriso de malandro estava no sítio certo, revelando-lhe
a coroa de porcelana ligeiramente torta.
V ficara de olho no macho. Depois de terem passado horas juntos, tinham-se separado com embaraço e tomado duche independentes. Felizmente, a água quente reanimara-os
e quando voltaram a encontrar-se, na cozinha do Fosso, tudo voltara ao normal.
E as coisas continuaram assim.
Não que não se sentisse tentado a perguntar-lhe se continuava tudo bem. Tipo, a cada cinco minutos. Era como se tivessem travado uma batalha juntos, e exibissem
as fraturas e as nódoas negras que o provavam. Mas V gostava de ver o que se estava a passar à sua frente, o melhor amigo a dar-lhe uma tareia no bilhar.
- E acabou-se o jogo - anunciou o chui quando a bola oito descreveu uma curva e entrou.
- Venceste-me.
- Pois. - Butch ofereceu um sorriso rasgado e ergueu o copo. - Queres a desforra.
- Podes crer.
O cheiro de manteiga derretida e os estalidos dos grãos de milho aos saltos anunciaram a chegada de Rhage ou talvez de Fritz? Não, era Hollywood que estava junto
à máquina com a sua Mary.
V inclinou-se para poder olhar pela arcada, para o outro lado do átrio até à sala de jantar, onde o mordomo e a sua equipa preparavam a última refeição.
- Meu, o Rhage está a brincar com o fogo - comentou Butch enquanto começava a recolher as bolas.
- Dou trinta segundos para que o Fritz... Aí vem ele.
- Vou fingir que não estou aqui.
V deu um gole no seu Goose.
- Eu também.
Enquanto se ocupavam a recolher as bolas, Fritz chegou a correr pelo átrio, qual míssil guiado por calor.
- Tem cuidado, Hollywood, certo? - resmungou V quando Rhage se aproximou com um cesto de pipocas fresquinhas.
- É bom para ele. Precisa de exercício... Fritz! Como estás, camarada?
Enquanto Butch e V reviravam os olhos, Rehv entrou com Ehlena por baixo do braço envolto em marta. O cabrão de crista estava encasacado, como sempre, e apoiava-se
na bengala, mas ostentava o sorriso eterno de macho acasalado, e a shellan dele estava radiante a seu lado.
- Rapazes - disse.
Foram cumprimentados por vários resmungos e Z e Bella chegaram com Nalla, seguidos por Phury e Cormia. Wrath e Beth ainda deveriam estar no escritório, provavelmente
a analisar papelada ou, talvez, a deixar George brevemente ao cimo das escadas, para terem um pouco de privacidade.
Quando John e Xhex desceram com Blay e Saxton, os únicos em falta eram Qhuinn e Tohrment, que deveriam estar no ginásio, e Marissa, que se encontrava na Casa Segura.
Bem, esses três e a Jane dele, que estava na clínica, a reabastecer os suprimentos que tinham sido utilizados na outra noite.
Ah, claro e a sua gémea que, de certeza, estava a... «oh, simzar»... com aquele cirurgião dela.
Com todos os recém-chegados, o som de vozes multiplicou-se e explodiu, à medida que se serviam bebidas, se passava o bebé e se recolhiam mancheias de pipocas. Entretanto,
Rhage e Fritz abriam um carregamento novo de milho. E alguém mudava de canais na televisão, possivelmente Rehv, que nunca estava satisfeito com o que pudesse estar
a dar. E outra pessoa avivava o lume.
- Ei. Continuas bem? - perguntou Butch em voz baixa.
V mascarou o sobressalto tirando um cigarro enrolado do bolso das calças de cabedal. O chui falara tão baixo que mais ninguém o teria ouvido, o que era bom. Sim,
ele estava a tentar abandonar as merdas do secretismo, mas não queria que mais ninguém soubesse até que ponto ele e Butch tinham chegado. Isso era privado.
Acendeu o cigarro e inspirou.
- Sim. Estou mesmo, a sério. - Depois olhou para os olhos cor de avelã do melhor amigo. - E... tu?
- Sim. Eu também.
- Boa.
- Boa.
Ena pá, vejam só aquilo com os relacionamentos. Se continuasse assim, ainda ganhava uma estrela dourada para pôr na caderneta.
Uma batida com os nós dos dedos depois, Butch regressou ao jogo, fazendo pontaria com o taco enquanto V se deleitava com a satisfação das relações pessoais, qual
profissional da coisa.
Bebia mais um gole do copo de Goose quando os olhos se dirigiram à entrada em arco da sala.
Jane hesitou ao espreitar para o interior, com a bata branca a abrir-se quando se inclinou, como se o procurasse.
Quando os olhos se cruzaram, ela esboçou um sorriso. E depois este tornou-se rasgado.
O primeiro impulso de V foi ocultar o seu próprio sorriso atrás do Goose, mas depois deteve-se. Nova ordem mundial.
Vá lá, sorri, cabrão, pensou.
Jane acenou brevemente e manteve-se tranquila, que era o que costumavam fazer quando em público. Virando-se, ela dirigiu-se ao bar para tomar algo.
- Espera aí, chui - murmurou V, pousando a sua bebida e apoiando o taco à mesa.
Sentindo-se como um miúdo de quinze anos, prendeu o cigarro entre os dentes e apertou o cinto nas calças de cabedal. Um rápido alisar do cabelo e estava... bem,
tão pronto quanto possível.
Aproximou-se de Jane por trás no momento em que ela começara a conversar com Mary e quando a sua shellan deu meia volta para o cumprimentar, pareceu um tanto ou
quanto surpreendida por ele se ter dirigido a ela.
- Olá, V... Como estás...
Vishous aproximou-se ainda mais, encostando os corpos, e depois envolveu-lhe a cintura com os braços. Segurando-a com uma mostra de posse, inclinou-a lentamente
para trás até que ela lhe agarrou os ombros e o cabelo lhe descaiu do rosto.
Quando ela arquejou, V disse exatamente aquilo em que estava a pensar:
- Tive saudades tuas.
E com essas palavras, levou a boca à dela e beijou-a profundamente, descendo uma mão até à anca e enfiando-lhe a língua na boca, e continuou, continuou, continuou...
Tinha a vaga noção de que a sala ficara em silêncio e de que tudo com batimento cardíaco o fitava e à sua parceira. Pouco importava. Era aquilo que queria fazer
e iria fazê-lo à frente de todos e até do cão do rei, segundo se viria a revelar.
Pois Wrath e Beth tinham acabado de chegar do átrio.
Quando Vishous endireitou lentamente a shellan, os gritos e os assobios fizeram-se ouvir e alguém atirou pipocas como se fossem confetes.
- Assim é que é - declarou Hollywood. E atirou mais pipocas.
Vishous pigarreou.
- Tenho um anúncio a fazer.
Certo. Muito bem, havia muitos olhos focados no par. Mas ia engolir a vontade de se calar.
Apertando a afogueada e enrubescida Jane a seu lado, disse alto e bom som:
- Vamos acasalar. Como deve ser. E espero que todos estejam presentes e... Pois, é isso.
Silêncio. De. Morte.
Wrath soltou a barra da coleira de George e começou a bater palmas. Lenta e sonoramente.
- Já não era sem tempo, porra.
Os irmãos dele e suas shellans e todos os convidados da mansão imitaram-no. Os guerreiros deram início a um cântico que deitou a casa abaixo com as suas vozes a
vibrar pelo ar.
Ao olhar para Jane, ela parecia radiante. Só lhe faltava brilhar.
- Talvez devesse ter perguntado primeiro - murmurou ele.
- Não. - Jane beijou-o. - Isto é perfeito.
Vishous começou a rir. Meu, se aquilo era viver em voz alta, nunca mais voltaria ao silêncio. Os irmãos apoiavam-no, a sua shellan estava feliz e... está bem, dispensava
as pipocas no cabelo, mas que se danasse.
Minutos depois, Fritz trouxe taças de champanhe e começou a ouvir-se outro tipo de estampido, com rolhas a voar enquanto o grupo falava ainda mais alto do que antes.
Quando alguém lhe enfiou um copo na mitene, murmurou ao ouvido de Jane:
- O champanhe deixa-me excitado.
- A sério?
Baixando a mão pela anca dela... e mais baixo... puxou-a contra a súbita ereção.
- Já conheces a casa de banho do átrio?
- Creio que já fomos apresentad... Vishous!
O macho parou de lhe mordiscar o pescoço, mas continuou a rebolar as ancas contra as dela. Era um pouco indecente, mas nada que os outros casais não fizessem de
tempos a tempos.
- Sim? - disse ele, num tom arrastado. Quando ela pareceu sem fala, sugou-lhe o lábio e murmurou: - Se bem te lembras, estávamos a falar sobre a casa de banho. Se
calhar podia voltar a apresentá-las. Não sei se te apercebeste, mas aquela bancada do lavatório tem andado a chorar por ti.
- E tu fazes alguns dos teus melhores trabalhos em lavatórios.
V percorreu-lhe o pescoço com uma presa.
- É verdade.
Quando a ereção começou a latejar, pegou na mão da fêmea...
O relógio de sala ao canto começou a bater as horas e V contou as badaladas. O que o fez recuar um pouco e confirmar o seu próprio relógio, embora não precisasse
porque o da sala dava as horas certas há dois séculos.
Quatro da manhã? Mas onde é que estava Payne?
Quando o impulso de ir ao Commodore e trazer a irmã se manifestou com força, teve de se recordar de que embora a alvorada se aproximasse rapidamente, ela ainda teria
uma hora. E tendo em conta o que ele e Jane estavam prestes a fazer à porta fechada, não a podia censurar por querer aproveitar cada segundo que tinha com o seu
macho, mesmo que definitiva e absolutamente não fosse por aí.
- Está tudo bem? - perguntou Jane.
Voltando ao programa da noite, V baixou a cabeça.
- Vai estar assim que te levar para aquela bancada.
Ele e Jane passaram quarenta e cinco minutos fechados nos lavabos.
Quando saíram, todos continuavam na sala de bilhar. A música estava mais alta e «I’m Not a Human Being», de Lil Wayne, ecoava até ao teto do átrio. Os doggen ocupavam-se
com acepipes finos em travessas de prata e Rhage tinha um círculo à sua volta a rir-se das piadas que contava.
Por um momento pareceu-lhe os velhos tempos.
Mas não viu a irmã no meio da multidão. E ninguém lhe foi dizer que ela tinha ido para o quarto de hóspedes que andava a usar.
- Já volto - disse a Jane. Com um beijo rápido, V deixou a festa, percorreu o átrio e entrou na sala de jantar vazia. Contornando a mesa, completamente posta mas
muito vazia, tirou o telemóvel do bolso e marcou o número que lhe dera.
Ninguém atendeu.
Voltou a tentar. Nada. Terceira tentativa? Ninguém... atendeu aquela porra.
Praguejando, marcou o número de Manello e arrepiou-se, tentando não pensar no que poderia estar a interromper. Provavelmente teriam fechado os cortinados e perdido
a noção do tempo. E os telefones tinham a mania de se perder no meio dos lençóis, pensou, com um esgar.
Trim... trim... trim...
- Atende, porra...
- Estou?
Manello parecia mal. Mal como em tiro. Mal como em moribundo.
- Onde está a minha irmã? - Porque o cirurgião não atenderia assim se a sua irmã estivesse na cama dele.
A pausa que se seguiu também não era bom sinal.
- Não sei. Ela saiu daqui há horas.
- Horas?!
- O que se passa?
- Cristo... - V desligou e voltou a marcar o número da irmã. E mais uma vez.
Virando a cabeça, olhou para o átrio e para a porta do vestíbulo.
Com um gemido discreto, as portadas de aço que protegiam a casa do sol começaram a descer.
Vá lá, Payne... vem para casa. Já.
Já...
O toque gentil de Jane trouxe-o de volta à realidade.
- Está tudo bem? - perguntou.
A primeira reação de V foi encobrir tudo com um comentário sobre a imitação de Rhage de Steve-O a ser projetado dentro de uma casa de banho portátil. Em vez disso,
obrigou-se a ser sincero com a companheira.
- A Payne... pode ter desaparecido. - Quando ela arquejou e levantou a outra mão, a vontade de V foi sair dali. Mas manteve-se firme no tapete oriental. - Ela saiu
da casa do Manello há horas... há horas! E agora estou a rezar a uma mãe que desprezo para que ela entre por aquela porta.
Jane não disse mais nada. Em vez disso, posicionou-se de maneira a ver a entrada pelo vestíbulo e esperou com ele.
Ao dar-lhe a mão, V apercebeu-se de que era um alívio não estar sozinho enquanto a festa decorria do outro lado... e a irmã ainda não tinha chegado a casa.
A visão que tivera dela no cavalo preto a toda a brida regressou-lhe no silêncio da sala de jantar. O cabelo preto dela voava-lhe atrás do corpo e a crina do garanhão
agitava-se também, com o par a galope... sabe Deus para onde.
Uma alegoria? interrogou-se. Ou apenas o desejo sentido pelo irmão de que ela fosse, por fim, livre...?
Quando o sol nasceu oficialmente, vinte e dois minutos depois, Jane e V continuavam ali juntos, a fitar uma porta que nunca se abriu.
Manny estava de cabeça perdida, absolutamente perdida, enquanto dava voltas ao apartamento. Tencionara sair de casa pouco depois de Payne, mas perdera a energia
e passara o resto da noite a fitar... a noite.
Demasiado vazio.
Estava demasiado esvaído para se mexer.
Quando o telefone tocou a seu lado, confirmou o número e reviveu por breves instantes. Número privado. Tinha de ser ela.
E, como a sua mente passara as últimas horas a rever tudo o que ela dissera, precisara de um instante para se concentrar depois de tantas voltas em vão. Na altura,
o discurso que debitara parecera racional, razoável e inteligente... até ficar a olhar para um futuro que era profundamente vazio.
Atendera o telefonema sem esperar uma voz masculina do outro lado. E muito menos o irmão dela.
E ainda menos ter o sacana a ficar surpreendido quando soube que Payne não estava no apartamento.
Enquanto Manny andava às voltas fitava o telefone, desejando que ele voltasse a tocar... desejando que aquela merda disparasse e que fosse Payne a dizer-lhe que
estava bem. Ou o irmão. Alguém.
Fosse quem fosse.
Pelo amor de Deus, até podia ser o Al Roker a telefonar-lhe e a dizer que ela estava bem.
Mas a alvorada chegou com demasiada celeridade e o telefone manteve-se excessivamente silencioso. E, como qualquer derrotado, foi à lista de chamadas e tentou responder
ao telefonema do «número privado». Quando só recebeu o sinal de chamada, teve vontade de atirar o telemóvel para o outro lado da sala, mas talvez não fosse boa ideia.
A impotência era terrível. Esmagadora.
Queria sair e... que merda, encontrar Payne se ela estivesse perdida. Ou levá-la para casa se estivesse sozinha. Ou...
O telefone tocou. Número privado.
- Foda-se, ainda bem - exclamou ao atender. - Payne...
- Não.
Manny fechou os olhos. O irmão dela parecia de rastos.
- Onde é que ela está?
- Não sabemos. E aqui não podemos fazer nada... ficámos fechados cá dentro. - O tipo exalou como se estivesse a fumar alguma coisa. - O que é que aconteceu antes
de ela sair daí? Pensei que ela fosse passar a noite contigo. Não há problema se vocês os dois... tu sabes... mas porque é que ela saiu tão cedo?
- Disse-lhe que as coisas não iam resultar.
Um silêncio longo.
- Mas o que é que tinhas na merda da cabeça?
Tornou-se óbvio que, se o sol não brilhasse lá fora, o cabrão estaria a bater à porta de Manny para dar cabo de um canastro italiano.
- Pensava que fosses ficar satisfeito com isso.
- Ah sim, claro... parte aí o coração da minha irmã. Parece-me uma bela ideia. - Outra exalação, como se soprasse fumo. - Ela está apaixonada por ti, meu idiota.
Ora se isso não o deixava sem saber o que dizer. Mas voltou ao assunto premente.
- Escuta, nós...
Nesse momento era suposto explicar os resultados dos exames físicos, como se sentia assoberbado e admitir que não sabia quais seriam as repercussões. Mas o problema
era que, desde que Payne partira, ele apercebera-se de que por mais sincero que tudo isso fosse, havia algo ainda mais fundamental a corroer-lhe o íntimo. Ele estava
a ser um fraco. A separação resumia-se ao facto de ele estar a borrar-se de medo por se ter apaixonado por uma mulher... uma fêmea... fosse o que fosse. Pois, havia
um sem fim de tretas metafísicas que ele não compreendia, nem era capaz de explicar, blá, blá, blá. Mas no fundo, o que se passava era que ele amava tanto Payne
que já não se reconhecia, e isso era o mais assustador.
Acobardara-se quando tivera oportunidade.
Mas isso acabara.
- Estamos apaixonados - declarou com toda a clareza.
E maldito fosse, devia ter tido tomates para lho dizer. E para a abraçar. E para a manter.
- Por isso repito, o que é que tinhas na merda da cabeça?
- Boa pergunta.
- Cristo.
- Escuta, como é que posso ajudar... Posso sair durante o dia e não há nada que eu não faça para a recuperar. Nada. - Alimentado pela obsessão, foi buscar as chaves.
- Se ela não está contigo, para onde iria. E aquele sítio... o Santuário?
- A Cormia e o Phury foram lá. Nada.
- Então... - Detestava pensar naquilo. - E os vossos inimigos? Onde é que eles ficam durante o dia... Eu vou lá.
Pragas. Mais soprar. Pausa. Depois um clique e uma inalação, como se o tipo estivesse a acender outro cigarro.
- Sabes, não devias fumar - ouviu-se Manny a dizer.
- Os vampiros não têm cancro.
- A sério?
- Sim. Certo, as coisas são assim. Não conhecemos uma morada específica da Sociedade dos Minguantes. Os matadores costumam misturar-se com a população humana em
pequenos grupos, pelo que é quase impossível encontrá-los sem provocar distúrbios graves. A única coisa... Vai aos becos na baixa ribeirinha. Ela pode ter encontrado
minguantes... vais procurar indícios de uma luta. Fica uma espécie de óleo preto por todo o lado. Como se fosse óleo de motor. E vai ter um cheiro adocicado... como
se fosse uma mistura de animal morto e talco. É bastante característico. Vamos começar por aí.
- Tenho de poder entrar em contacto contigo. Tens de me dar o teu número.
- Envio-te um sms com ele. Tens alguma arma?
- Sim, tenho. - Manny estava já a tirar a quarenta do armário. Passara toda a sua vida adulta na cidade e, às vezes, havia porcaria pelo que aprendera a usar uma
arma há cerca de vinte anos.
- Diz-me que é maior do que uma nove milímetros.
- É.
- Arranja uma faca. Precisas de uma lâmina de inox.
- Entendido. - Dirigiu-se à cozinha e pegou na maior e mais afiada Henckels que tinha. - Mais alguma coisa?
- Um lança-chamas. Matracas. Estrelas de arremesso. Uma Uzi. Queres que continue?
Se pelo menos dispusesse desse tipo de arsenal.
- Eu vou buscá-la, vampiro. Ouve bem o que te estou a dizer... eu vou buscá-la. - Pegou na carteira e estava a dirigir-se à porta quando o terror o imobilizou. -
Quantos são eles? Os vossos inimigos.
- Não têm fim.
- São... machos?
Pausa.
- Costumavam ser. Antes de serem transformados eram humanos.
Um som escapou-se da boca de Manny... algo que ele tinha a certeza nunca produzira antes.
- Não, ela safa-se com o combate corpo a corpo - disse o irmão num tom átono. - É forte.
- Não era nisso que estava a pensar. - Teve de esfregar os olhos. - Ela é virgem.
- Ainda...? - perguntou o vampiro, passado um instante.
- Sim. Não era correto que eu... lhe tirasse isso.
Cristo, pensar que poderia ser magoada...
Nem para consigo foi capaz de acabar a frase.
Regressando à ação, saiu de casa e chamou o elevador. Enquanto esperava, apercebeu-se de que já há algum tempo que só tinha silêncio do outro lado da linha.
- Estou? Estás aí?
- Sim. - Debitou a voz do gémeo dela. - Sim, estou aqui.
A ligação continuou ativa quando Manny entrou no elevador e pressionou G. A viagem até ao carro decorreu sem que nenhum dos dois dissesse nada.
- Eles são impotentes - resmungou finalmente o gémeo de Payne, quando Manny estava a entrar no Porsche. - Não podem fazer sexo.
Pois, isso não o ajudava a sentir-se melhor. E pelo tom da voz do irmão, o tipo pensava o mesmo.
- Eu ligo-te - disse Manny.
- Faz isso, meu. Acho bem que faças isso.
Capítulo 52
Quando Payne recuperou a consciência, não abriu os olhos. Não havia motivo para revelar que estava ciente do que a cercava.
A sensação corporal informou-a da situação em que se encontrava. Estava de pé, de pulsos agrilhoados e puxados para os lados, com as costas contra uma parede de
pedra húmida. Tinha os tornozelos igualmente cingidos e afastados, e a cabeça tombara para a frente numa posição muito desconfortável.
Quando inspirava sentia o cheiro a terra almiscarada e as vozes de machos chegavam-lhe vindas da esquerda.
Vozes muito graves. Com um tom excitado, como se tivessem tomado posse de uma mais-valia.
Ela.
Enquanto reunia as forças, não duvidava quanto ao que lhe iriam fazer. Em breve. E enquanto se recompunha evitava pensar no seu Manuel... de como, caso aqueles machos
levassem a deles avante, a maculariam vezes sem conta antes de a assassinarem, tomando aquilo que, por direito, deveria ter sido do seu curandeiro...
Mas não podia nem iria pensar nele. Esse pensamento seria um fosso negro que a sugaria, a encurralaria e a deixaria indefesa.
Em vez disso procurou as meadas da memória, cruzando as imagens do rosto dos seus raptores com aquilo que vira nas taças do Santuário.
Porquê? interrogou-se. Não fazia ideia por que motivo o macho do lábio arruinado a atacara com tanto ódio...
- Sei que estás desperta. - A voz era impossivelmente baixa, tinha um sotaque carregado e encontrava-se ao lado do seu ouvido. - A tua respiração mudou de ritmo.
Erguendo as pálpebras a par da cabeça, desviou o olhar na direção do soldado. Estava nas sombras a seu lado, pelo que não o pôde ver claramente.
De repente, as outras vozes silenciaram-se e sentiu muitos olhares em si.
Era assim que se sentiam as presas.
- Magoa-me que não te lembres de mim, fêmea. - Com essas palavras aproximou uma vela do rosto. - Penso em ti desde a primeira vez que nos vimos. Há dois séculos.
Payne semicerrou os olhos. Cabelo preto. Olhos azuis-escuros cruéis. E um lábio leporino com que obviamente nascera.
- Lembra-te de mim. - Não era uma questão, mas uma exigência. - Lembra-te de mim.
E então ocorreu-lhe. A pequena aldeia no limite de um vale arborizado. Onde ela matara o pai. Era um dos soldados do Derramador de Sangue. Não havia dúvida de que
todos eles seriam.
Ah, era definitivamente uma presa, pensou. E pretendiam magoá-la antes de a matarem por vingança por lhes ter retirado o líder.
- Lembra-te de mim.
- És um soldado do Derramador de Sangue.
- Não - bradou ele, aproximando o rosto. - Sou mais do que isso.
Quando Payne franziu o cenho, o macho recuou e descreveu um círculo apertado, os punhos cerrados, a vela a escorrer cera para cima da mão fechada.
Quando voltou à frente dela, estava controlado. Por pouco.
- Sou filho dele. Filho dele. Roubaste-me o meu pai...
- Impossível.
- ...injustamente... O quê?
- É impossível seres filho dele - disse Payne alto e bom som no silêncio atrapalhado que se seguiu.
Quando as palavras foram apreendidas, a fúria cega que lhe surgiu no rosto era a mais pura definição de ódio e a mão tremia-lhe quando a levantou acima do ombro.
Esbofeteou-a com tanta força que Payne viu estrelas.
Quando endireitou a cabeça e lhe susteve o olhar, Payne decidiu que não iria tolerar aquilo. Nem a crença errada. Nem o grupo de machos que a miravam. Nem a ignorância
criminosa.
Payne olhou o captor nos olhos.
- O Derramador de Sangue só foi progenitor de um macho...
- O Irmão Vishous, da Irmandade da Adaga Negra. - As gargalhadas duras ecoaram. - Ouvi bastantes histórias sobre as perversões dele...
- O meu irmão não é um pervertido!
Nesse momento, Payne perdeu o controlo, dominada pela fúria que tinha consigo na noite em que matara o pai. Vishous era do seu sangue e o seu salvador por tudo o
que fizera por ela. Não ia permitir que o desrespeitassem, mesmo que a defesa lhe custasse a vida.
No espaço de duas batidas de coração, foi consumida por uma energia interior que iluminou com uma luz branca brilhante a adega onde se encontravam.
As algemas dissolveram-se, caindo com estrépito na terra compactada.
O macho à sua frente saltou para trás, assumindo uma posição de combate, enquanto os outros procuravam armas. Mas ela não ia atacar... pelo menos fisicamente.
- Ouve-me - declarou ela. - Nasci da Virgem Escrivã. Pertenço ao Santuário das Escolhidas. Por isso, quando te digo que o Derramador de Sangue, o meu pai, não deu
origem a mais nenhum macho, isso é um facto.
- Que não é verdadeiro - murmurou o macho. - E tu... Não podes ter nascido da Mãe da raça. Ninguém nasceu dela...
Payne ergueu os braços luminosos.
- Sou o que sou. Nega-o por tua conta e risco.
A tez do macho perdeu a pouca cor que tinha e seguiu-se um compasso tenso e demorado, com armas convencionais apontadas na direção de Payne e ela a brilhar com a
fúria sagrada.
O soldado principal abandonou a pose de combate, com as mãos a penderem-lhe ao lado do corpo e as coxas a endireitarem-se.
- Não pode ser - tartamudeou. - Nada disso pode ser...
Macho idiota, pensou ela.
Erguendo o queixo, declarou:
- Sou a nascida do Derramador de Sangue e da Virgem Escrivã. E digo-te agora - avançou na direção dele - que matei o meu pai e não o teu.
Erguendo a mão, puxou-a atrás e esbofeteou-o.
- E não insultes o meu sangue.
Quando a fêmea lhe bateu, a cabeça de Xcor foi atirada com tanta força para o lado que quase deslocou o ombro numa tentativa de manter a mona presa à coluna. O sangue
encheu-lhe de imediato a boca, cuspindo-o antes de se endireitar.
Por sua fé, a fêmea que tinha à sua frente era majestosa na sua fúria e decisão. Quase tão alta como ele, fitava-o diretamente nos olhos, de pés firmes, as mãos
cerradas em punhos que estava preparada a usar contra ele e o seu bando de bastardos.
Não se tratava de uma fêmea vulgar. E não só pela forma como dissolvera as grilhetas.
Com efeito, quando os olhares se cruzaram, ela recordava-o o pai. Ela tinha a vontade férrea do Derramador de Sangue, não só no rosto, nos olhos ou no corpo. Tinha-a
na alma.
Com efeito, tinha noção de que poderiam cair todos sobre ela, e a fêmea combatê-los-ia até ao último fôlego.
Deus sabia que ela batia como um guerreiro, não como uma fêmea de pulsos fracos.
Mas...
- Ele era meu pai. Ele próprio mo disse.
- Era um mentiroso. - E nem pestanejou. Não baixou o olhar ou o queixo. - Contemplei inúmeras filhas bastardas nas taças de visão. Mas só houve um único filho, o
meu gémeo.
Xcor não estava preparado para ouvir aquilo, muito menos à frente dos seus machos.
Relanceou-os. Até Throe se armara e todos os rostos denotavam uma fúria impaciente. Com um mero sinal cairiam sobre ela, mesmo que os incinerasse a todos.
- Deixem-nos - ordenou.
Sem grande surpresa, foi Zypher quem começou a argumentar.
- Deixa-nos segurá-la enquanto tu...
- Deixem-nos.
Seguiu-se um momento de imobilidade, após o que Xcor bradou:
- Deixem-nos!
Num abrir e fechar de olhos, todos desapareceram pela escadaria de acesso à casa escurecida lá em cima. Depois a porta fechou-se e ouviram-se os passos no piso superior,
enquanto davam voltas, quais animais enjaulados.
Xcor voltou a concentrar-se na fêmea.
E durante muito tempo limitou-se a fitá-la.
- Procurei-te durante séculos.
- Não estive na Terra. Até agora.
Permaneceu hirta, enquanto ele a confrontava em privado. Absolutamente hirta. E quando lhe perscrutou o rosto, Xcor sentiu o gelo do seu coração a mover-se.
- Porque... o mataste? - indagou, num tom rouco.
A fêmea pestanejou lentamente, como se não quisesse demonstrar vulnerabilidade e precisasse de um instante para garantir que não a revelava.
- Porque ele magoou o meu gémeo. Ele... torturou o meu irmão, e por isso teve de morrer.
Então, talvez as lendas tivessem um fundo de verdade, pensou Xcor.
Com efeito, à semelhança da maioria dos soldados, há muito que conhecia a história que contava que o Derramador de Sangue exigira que o filho fosse imobilizado no
chão e tatuado... e depois castrado. A narrativa dizia que a lesão fora apenas parcial. Dizia-se que Vishous queimara com magia as amarras que o prendiam e depois
fugira para a noite, antes que o ato fosse completado.
Xcor olhou para as grilhetas que tinham caído dos pulsos da fêmea... queimadas.
Erguendo as mãos, olhou para a sua carne. Que nunca brilhara.
- Ele disse-me que eu nasci de uma fêmea que o procurara em troca de sangue. Disse-me... que ela não me quis por causa do meu... - Tocou no lábio superior deformado,
deixando a frase por concluir. - Ele aceitou-me e... ensinou-me a lutar. A seu lado.
Xcor tinha uma vaga noção de que a sua voz estava rouca, mas não se preocupou com isso. Sentia-se como se olhasse para um espelho e visse um reflexo seu que não
reconhecia.
- Disse-me que era filho dele... e teve-me como a um filho. Depois da morte assumi o lugar dele, tal como fazem os filhos.
A fêmea avaliou-o e depois abanou a cabeça.
- E eu digo-te que ele mentiu. Olha-me nos olhos. Sabes que te digo a verdade que há muito, muito tempo deverias ter ouvido. - A voz reduziu-se a um murmúrio. -
Conheço bem a traição do sangue. Conheço bem a dor que sentes agora. Não é justo o fardo que carregas. Mas peço-te, não baseies uma vingança numa ficção. Pois serei
obrigada a matar-te... e se não for eu, o meu gémeo vai caçar-te com a Irmandade, e vai fazer-te suplicar pela morte.
Xcor analisou-se e viu algo que desprezava, mas que não podia ignorar. Não tinha memória da cabra que o parira, mas conhecia bem a história de como ela o expulsara
da sala de partos devido à sua fealdade.
Quisera ser reivindicado. E o Derramador de Sangue assim o fizera. A malformação física nunca fora relevante para aquele macho. Apenas se preocupara com as capacidades
que Xcor tinha em abundância: velocidade, resistência, agilidade, poder... e uma concentração mortífera.
Xcor sempre partira do princípio de que recebera isso do lado do pai.
- Ele deu-me um nome - ouviu-se a dizer. - A minha mãe recusou-se a fazê-lo. Mas o Derramador de Sangue... deu-me nome.
- Lamento muito.
O mais estranho em tudo aquilo? Acreditava nela. Antes pronta a combater até à morte, ela agora parecia entristecida.
Xcor afastou-se dela e andou em círculos.
Se não era o filho do Derramador de Sangue, quem era ele? E ainda lideraria os seus machos? Ainda o seguiriam em batalha?
- Olho para o futuro e vejo... nada - resmungou.
- Também sei como é isso.
Parou e encarou a fêmea. Cruzara os braços sobre os seios e não o olhava, mas sim para a parede à frente dela. Naquelas feições viu o mesmo vazio que sentia no próprio
peito.
Erguendo os ombros, dirigiu-se a ela.
- Não tenho qualquer questão a resolver contigo. As ações dirigidas contra o meu - pausa - contra o Derramador de Sangue... foram levadas a cabo pelas tuas razões
válidas.
Com efeito, tinham sido orientadas pela mesma lealdade de sangue e pelo mesmo espírito de vingança que animara a sua busca por ela.
Num gesto digno de um guerreiro, ela curvou-se pela cintura, aceitando as palavras dele e limpando o ar entre os dois.
- Sou livre de partir?
- Sim... mas é dia. - Quando ela olhou em volta para os beliches e enxergas, como se imaginasse os machos que a queriam, ele declarou: - Nenhum mal te será feito
aqui. Sou o líder e eu... - Bem, ele fora o líder. - Passaremos o dia lá em cima para que tenhas privacidade. Tens comida e bebida naquela mesa.
Xcor fez as ofertas de privacidade e provisão sem pensar nas questões de dignidade que envolviam as Escolhidas. Mas aquela fêmea era... merecedora do seu respeito.
Se alguém entendia a importância da vingança contra um insulto feito à família, era ele. E o Derramador de Sangue infligira danos permanentes ao irmão dela.
- Pelo cair da noite - indicou - levar-te-emos daqui vendada, pois não deves saber onde nos encontramos. Mas serás libertada ilesa.
Virando-lhe as costas, dirigiu-se ao único catre sem parte de cima. Mesmo sentindo-se um idiota, esticou o cobertor grosseiro. Não havia almofada, pelo que se baixou
e apanhou uma pilha das suas camisas lavadas.
- É onde eu durmo... podes usá-lo para descansar. E para que não receies pela tua segurança ou virtude, está uma arma de cada lado, no chão. Mas não te preocupes.
Chegarás ao pôr-do-sol em segurança.
Não fez qualquer voto pela sua honra pois, a bem da verdade, não a possuía. E não olhou para trás quando se dirigiu às escadas.
- Qual é o teu nome? - perguntou ela.
- Não o sabes já, Escolhida?
- Não sei tudo.
- Pois. - Levou a mão ao balaústre grosseiro. - Eu também não. Bom dia, Escolhida.
Ao subir as escadas, sentia-se como se tivesse envelhecido séculos desde que carregara o corpo inanimado e quente da fêmea para o subterrâneo.
Ao abrir a robusta porta de madeira, não fazia ideia do que o esperava. Após o anúncio do seu estatuto, os machos poderiam ter-se reunido e decidido expulsá-lo...
Ali estavam todos, num semicírculo, com Throe e Zypher nos extremos do grupo. Tinham armas nas mãos e os rostos ostentavam expressões sombrias... e esperavam que
ele dissesse alguma coisa.
Fechou a porta e encostou-se a ela. Não era cobarde, para fugir deles ou do que acontecera lá em baixo, e não via qualquer utilidade em justificar o que fora revelado
com palavras cuidadosas, ou com pausas.
- A fêmea disse a verdade. Não tenho uma ligação de sangue com aquele que julgava ser meu progenitor. O que me dizem?
Não proferiram qualquer palavra. Não trocaram olhares. E não houve hesitação.
Ajoelharam-se em uníssono, chegando ao soalho e curvando as cabeças. Foi Throe quem falou.
- Estamos eternamente às tuas ordens.
Ao ouvir a resposta, Xcor pigarreou. E outra vez. E ainda mais uma vez. Na Língua Antiga declarou:
- Nenhum líder alguma vez contemplou costas mais fortes e mais leais do que as reunidas perante mim.
Throe ergueu o olhar.
- Não foi a memória do teu pai que servimos ao longo de tantos anos.
Ouviu-se um ulular de concordância, muito mais significativo do que qualquer voto que pudesse ter sido feito com uma linguagem floreada. Logo depois o soalho de
madeira a seus pés foi trespassado por adagas, os punhos seguros pelas mãos de soldados que eram e sempre seriam seus para comandar.
E teria deixado as coisas ficarem por aí, mas os seus planos a longo prazo exigiam uma revelação e uma nova confirmação.
- O meu objetivo não se limita a combater ao lado da Irmandade - disse em voz baixa, para que a fêmea lá em baixo nada ouvisse. - A minha ambição é uma sentença
de morte caso seja descoberta por outros. Compreendem o que estou a dizer?
- O rei - murmurou alguém.
- Sim. - Xcor fitou os olhos de cada um. - O rei.
Nenhum deles desviou o olhar, nem se levantou. Eram uma unidade sólida de músculos, força e determinação mortífera.
- Se isso alterar a decisão de qualquer um de vós - quis saber -, dir-me-ão agora e partirão ao cair da noite para não mais voltar, sem risco de pena de morte.
Throe quebrou fileiras baixando a cabeça. Mas não passou daí. Não se levantou, nem se afastou dali, nem mais ninguém o fez.
- Bom - disse Xcor.
- E quanto à fêmea? - indagou Zypher com um sorriso sombrio.
Xcor abanou a cabeça.
- Nem pensar. Ela não merece qualquer castigo.
O macho ergueu as sobrancelhas.
- Ótimo. Então posso recompensá-la.
Pelo amor de Deus, era demasiado parecido com o maldito Lhenihan.
- Não. Não lhe vais tocar. Ela é uma Escolhida. - Isso prendeu-lhes a atenção, mas Xcor não revelaria mais. Já estava farto de os ouvir. - E vamos dormir aqui.
- Mas que raios?! - Zypher levantou-se e os outros imitaram-no. - Se me dizes que ela é proibida, deixo-a em paz, tal como farão os outros. Porque é que...
- Porque é isso que eu ordeno.
Para marcar a sua posição, Xcor sentou-se à frente da porta, de costas contra os painéis. Em campo confiava a vida aos seus soldados, mas lá em baixo estava uma
fêmea bela e poderosa, e aquele grupo era constituído por sacanas excitados, sempre com cio.
Para chegar a ela teriam de passar por ele.
Afinal de contas, ele era um bastardo, mas ainda tinha os seus códigos, e ela merecia a proteção de que provavelmente não precisava pelo favor que lhe fizera.
Matar o Derramador de Sangue?
Afinal de contas tinha sido um favor prestado a Xcor.
Pois isso significava que não teria de ser ele próprio a acabar com o desgraçado.
Capítulo 53
Manny estava ao volante do seu carro, as mãos a apertar com força, os olhos fitos na estrada à sua frente, quando fez uma curva apertada... e foi dar com o tipo
de cena exata que Vishous descrevera.
Já não era sem tempo, porra. Só precisara de cerca de três horas às voltas em quarteirão atrás de quarteirão atrás de merda de quarteirão até dar com aquilo.
Mas sim, era aquilo que procurava. À luz das dez da manhã que brilhava entre os edifícios, uma nojeira oleosa cintilava no alcatrão, nas paredes de tijolo, no contentor
do lixo e nas janelas tapadas com rede metálica.
Deixou o carro em ponto morto e pisou o travão.
Assim que abriu a porta, encolheu-se.
- Grande merda...
O fedor era indescritível. Devia ser assim tão mau porque lhe entrava diretamente pelo nariz e desligava-lhe o cérebro.
Mas reconheceu-o. O tipo com o boné dos Sox tresandava a isso na noite em que Manny operara os vampiros.
Pegou no telefone, marcou o número supersecreto de Vishous e pressionou OK. Mal chegou a tocar e o gémeo de Payne atendeu.
- Já encontrei - disse Manny. - É exatamente o que disseste... meu, que cheiro. Pois. Sim. Certo. Já te ligo.
Ao desligar, parte dele estava a ir-se abaixo, pensando na possibilidade de Payne se poder ter envolvido no que fora claramente um banho de sangue. Mas manteve-se
firme enquanto procurava alguma coisa, qualquer coisa que lhe pudesse dizer o que acontecera...
- Manny?
- Porra! - Quando deu meia volta agarrou a cruz, ou talvez o coração, para que não lhe saltasse pelo esterno. - Jane?
A forma etérea da antiga chefe de traumatologia solidificou-se à frente dos olhos.
- Olá.
A primeira coisa em que ele pensou foi, Ai, meu Deus, o sol... o que era prova de quanto a sua vida mudara.
- Espera! Não tens problemas com a luz do dia...
- Pois não. - Estendeu a mão e acalmou-o. - Vim ajudar... o V disse-me onde estavas.
Manny agarrou-lhe brevemente o ombro.
- Estou... muito contente por te ver.
Jane abraçou-o rapidamente.
- Vamos encontrá-la. Garanto.
Pois, mas em que estado iriam encontrá-la?
Vasculharam juntos o beco, percorrendo tanto as sombras como as zonas iluminadas. Graças a Deus ainda era cedo e aquela zona da cidade era deserta, pois não se encontrava
em condições de lidar com a complicação que seria ter pessoas - especialmente polícias - a aparecerem.
Durante a meia hora que se seguiu, ele e Jane analisaram cada centímetro quadrado do beco, mas só encontraram os restos de uso de drogas, algum lixo e uma série
de preservativos que não pretendia ver com grande atenção.
- Nada - resmungou. - Absolutamente nada.
Pois. Certo. Ia ter de continuar a andar, a vasculhar, a rezar...
O som de algo a estremecer fê-lo virar a cabeça e depois atraiu-o para junto do contentor.
- Está qualquer coisa a fazer barulho aqui - alertou, ao ajoelhar-se. Claro que com a sorte dele, não deveria ser mais do que uma ratazana a tomar o pequeno-almoço.
Jane aproximou-se quando ele estendeu a mão por baixo do contentor de lixo.
- Acho... acho que é um telefone - resmungou enquanto se esticava e tateava com a ponta dos dedos, na esperança de alcançar a coisa. - Apanhei-o.
Recuando, descobriu que, sim, era um telemóvel rachado regulado para vibrar, o que explicava o ruído. Infelizmente, quem estivesse a ligar foi transferido para o
voice mail no momento em que tentava atender.
- Meu, está cheio de uma porcaria oleosa. - Limpou a mão no canto do contentor - o que era revelador. - E o telefone está protegido com palavra-passe.
- Temos de o levar ao V... ele consegue aceder a qualquer coisa.
Manny levantou-se e olhou para ela.
- Não sei se lá poderei entrar. - Tentou entregar-lhe o telefone. - Toma. Leva-o tu e eu vou ver se encontro outras cenas como esta.
Embora, a bem da verdade, parecesse que já tinha percorrido toda a baixa.
- Não preferes saber o que se passa em primeira mão?
- Sim, mas...
- E se o V encontrar alguma coisa, não preferes sair para tratar do assunto com o equipamento adequado?
- Claro, mas...
- Nunca ouviste falar em fazer qualquer coisa e depois pedir desculpas? - Quando ele ergueu uma sobrancelha, Jane encolheu os ombros. - Foi assim que passei anos
a lidar contigo no hospital.
Manny agarrou o telemóvel com mais força.
- Estás a falar a sério?
- Eu levo-te ao complexo, e se alguém tiver algum problema, eu trato do assunto. E posso sugerir que passemos pela tua casa primeiro para ires buscar o que precisas
para passar algum tempo fora?
Manny abanou lentamente a cabeça.
- Se ela não aparecer...
- Não. Não dizemos «não». - Os olhos de Jane estavam fitos nos dele. - Quando ela vier para casa, demore o que demorar, vais lá estar. O V disse que tinhas deixado
o trabalho... porque a Payne lhe contou. E depois podemos falar sobre isso...
- Não há nada a falar. A direção do St. Francis praticamente pediu-me que me despedisse.
Jane engoliu em seco.
- Ó, meu Deus... Manny...
Cristo, ele nem acreditou no que lhe saiu à boca:
- Não faz mal, Jane. Desde que ela regresse bem... só isso me interessa.
Jane fez sinal com a cabeça na direção do carro.
- Então porque é que ainda estamos a falar?
Muito bem visto.
Correram para o Porsche, puseram os cintos e arrancaram, com Jane ao volante.
Enquanto ela acelerava a caminho do Commodore, ele transformara-se com o sentido de objetivo. Estragara as coisas com a sua mulher uma vez. Isso não voltaria a acontecer.
Jane parou à frente do arranha-céus enquanto ele correu até ao átrio, subiu no elevador e entrou em casa. Rapidamente pegou no computador portátil, no carregador
do telemóvel...
O cofre.
Correndo para o roupeiro no quarto, introduziu o código e destrancou a pequena porta. Com as mãos rápidas e a mente firme, tirou a certidão de nascimento, sete mil
dólares em dinheiro, dois relógios Piaget de ouro e o passaporte. Pegando num saco ao acaso, enfiou tudo lá dentro, a par do computador e do carregador. Depois foi
buscar mais dois sacos que praticamente vomitavam roupas e saiu a correr do apartamento.
Enquanto aguardava pelo elevador, deu-se conta de que estava a deixar a vida para trás. De vez. Quer ficasse ou não com Payne, não voltaria ali... e não se tratava
só da morada física.
Assim que entregara as chaves a Jane pela segunda vez, virara uma esquina numa tempestade de neve metafórica. Não fazia ideia do que estava à frente, mas não ia
voltar atrás, e por ele tudo bem.
Chegado à rua, atirou as coisas para a bagageira e para o banco traseiro.
- Vamos embora.
Cerca de trinta e cinco minutos depois, Manny regressava aos terrenos incertos da montanha dos vampiros.
Olhando para o telemóvel quase destruído que tinha na mão, rezou para que aquela potencial ligação entre ele e Payne os voltasse a unir e para que tivesse uma oportunidade
com aquilo que desperdiçara...
- Grande... porra... - Lá à frente, a surgir da estranha neblina, agigantava-se uma enorme rocha, grande como o monte Rushmore. - Aquilo é... uma porra de uma casa.
Mausoléu seria outro termo.
- Os Irmãos levam a segurança muito a sério. - Jane parou o carro à frente de uma escadaria digna de uma catedral.
- Ou isso - resmungou ele -, ou os sogros de alguém são donos de uma pedreira.
Saíram juntos e antes de pegar nos sacos, Manny observou a paisagem. O muro que se perdia de vista em ambas as direções tinha uns bons seis metros de altura, e havia
câmaras espalhadas pelo exterior, bem como rolos de arame farpado no cimo. A mansão em si era enorme, espraiando-se em todas as direções, parecendo ter três pisos.
E quem falara em fortaleza? Todas as janelas estavam cobertas com placas de metal e as portas eram duplas. Parecia que seria preciso um tanque para as atravessar.
Havia uma série de carros no pátio, alguns dos quais, em outras circunstâncias, o teriam atraído profundamente, e uma outra casa muito mais pequena feita da mesma
pedra que o castelo. A fonte ao centro estava seca, mas ele imaginava os sons apaziguadores que faria quando a água estivesse a jorrar.
- Por aqui - indicou Jane ao abrir a mala do carro e tirar um dos sacos.
- Eu levo isso. - Manny pegou no que ela tirara, bem como nos outros dois. - As senhoras primeiro.
Jane telefonara ao homem dela a caminho dali, pelo que Manny imaginava que o povo de Payne não o mataria assim que lhe pusessem a vista em cima, mas não havia como
ter a certeza.
Ainda bem que, naquele momento, ele se estava borrifando para si próprio.
Na entrada, Jane tocou à campainha e ouviu-se uma tranca a abrir-se. Entrando com ela, Manny deu consigo num vestíbulo sem janelas que o fez pensar numa prisão...
uma prisão muito elegante e cara, com painéis de madeira entalhada e o cheiro a limão no ar.
Nunca sairiam dali, a menos que alguém os deixasse.
Jane falou para uma câmara.
- Somos nós. Estamos...
O segundo conjunto de portas abriu-se de imediato e Manny teve de pestanejar várias vezes perante o que lhe foi dado a ver. O átrio brilhante e garrido do outro
lado não era de todo o que esperara. Majestoso e com todas as cores do arco-íris, era tudo o que o exterior fortificado não era. E Cristo, parecia que tinha sido
usado todo o tipo de mármore decorativo possível... e olhem só para todo o cristal e talha dourada.
Entrou e viu o fresco no teto dois andares lá em cima... e uma escadaria que fazia com que a do E Tudo o Vento Levou parecesse um escadote.
Quando a porta se fechou atrás de si, o irmão de Payne saiu do que parecia ser uma sala de bilhar, com o Red Sox a seu lado. Quando o vampiro avançou, todo ele era
ação, prendendo o cigarro enrolado entre as presas e puxando as calças de cabedal.
Parando à frente de Manny, os dois machos entreolharam-se... até se pensar se as coisas chegariam ao fim mesmo antes de começarem, com Manny a ser transformado em
refeição.
Mas o vampiro estendeu a mão.
Claro... o telemóvel.
Manny largou os sacos e tirou o BlackBerry do bolso do casaco.
- Toma... foi isto...
O tipo aceitou o que lhe foi oferecido, mas nem olhou para o aparelho. Limitou-se a passá-lo para a mão livre e voltou a estender a palma.
O gesto era tão simples... o seu significado muito, muito profundo.
Manny apertou a sua mão à dele, e nenhum dos dois disse nada. Não havia necessidade, pois a comunicação estabelecida era clara. Estava a ser apresentado e respeitado
por ambos os lados.
Quando largaram as mãos, Manny disse:
- O telefone?
O vampiro acedeu ao aparelho numa questão de segundos.
- Cristo... és rápido - murmurou Manny.
- Não. Foi o que eu lhe dei. Estava a ligar-lhe de hora a hora. O GPS foi... se não tinha-te dado a morada de onde o encontraste.
- Porra. - Manny esfregou o rosto. - Não havia lá mais nada. A Jane e eu vasculhámos o sítio... e já tinha passado horas a conduzir pela baixa. E agora?
- Esperamos. Não podemos fazer mais nada enquanto houver sol. Mas assim que escurecer, a Irmandade vai sair daqui com fogo nos pés. Não te preocupes, vamos encontrá-la...
- Eu também vou - atalhou Manny. - Só para que se sabia.
Quando o gémeo de Payne começou a abanar a cabeça, Manny interrompeu quaisquer protestos, fossem eles razoáveis ou não.
- Sinto muito. Pode ser a tua irmã que anda perdida... mas é a minha mulher. E isso significa que vou fazer parte disto.
Terminado o discurso, o macho do boné de basebol tirou o chapéu e esfregou o cabelo.
- Louvado seja Deus...
Manny estacou, perdendo o resto que foi dito pelo tipo.
Aquele rosto... aquele maldito rosto.
Aquele... santa mãe... rosto.
Manny estivera errado quanto ao sítio de onde conhecia o tipo.
- O que foi? - indagou o Red Sox.
Manny tinha a vaga noção de que o irmão de Payne estava a franzir o sobrolho e de que Jane parecia preocupada. Mas estava concentrado no outro homem. Perscrutou
aqueles olhos cor de avelã, aquela boca e aquele queixo, em busca de algo que não batesse certo, algo deslocado... algo que desmentisse o que ele estava a ver.
A única coisa ligeiramente desenquadrada era o nariz, mas isso porque teria sido partido pelo menos uma vez.
A verdade estava nos ossos.
E a ligação não era o hospital, nem sequer a Catedral de St. Patrick porque, já que pensava nisso, tinha mesmo visto aquele homem, macho... vampiro, fosse o que
fosse... na igreja.
- Mas que raios? - resmungou Butch, olhando para Vishous.
À laia de explicação, Manny baixou-se e vasculhou os sacos. Enquanto procurava o que não trouxera intencionalmente, teve a certeza de que o iria encontrar. O destino
alinhara os dominós com demasiada perfeição para que aquele momento não acontecesse.
E sim, lá estava.
Quando Manny se endireitou, as mãos tremiam-lhe tanto que o suporte batia nas costas da moldura.
Já que perdera a voz, nada mais tinha a fazer do que virar o vidro para mostrar àqueles três a fotografia a preto e branco.
Que era a cópia exata do macho chamado Butch.
- Este é o meu pai - disse Manny, num tom rouco.
A expressão do tipo era de um choque profundo, e as mãos dele começaram igualmente a tremer quando as estendeu e segurou, com todo o cuidado, na velha fotografia.
Nem se deu ao trabalho de negar nada. Não tinha como.
O irmão de Payne exalou uma nuvem de fumo de cheiro maravilhoso.
- Grande cena.
Bem, era um resumo perfeito.
Manny olhou para Jane e depois fitou o homem que bem podia ser um meio-irmão.
- Reconhece-lo?
Quando o tipo abanou lentamente a cabeça, Manny olhou para o gémeo de Payne.
- Os humanos e os vampiros podem...
- Sim.
Quando voltou a mirar o rosto que não devia ser assim tão familiar, pensou, Cruzes, como podia ser.
- Quer dizer que és...
- Mestiço? - completou o macho. - Sim. A minha mãe era humana.
- Grande porra - murmurou Manny.
Capítulo 54
Ao segurar a imagem de um homem que era indiscutivelmente idêntico a si, Butch pensou, bizarramente, nos sinais amarelos das autoestradas.
Os que diziam coisas como gelo na ponte... ou queda de pedras... ou o temporário máquinas em manobras quando nos aproximávamos de uma zona de perigo. Que raios,
até os que tinham a silhueta de um veado a saltar, ou uma grande seta preta a apontar para a esquerda ou para a direita.
Naquele momento, ali no átrio, teria agradecido qualquer pré-aviso de que a sua vida estava prestes a descarrilar por completo.
Claro que um choque frontal não era algo que se planeasse.
Desviou a atenção da fotografia e fitou os olhos do cirurgião humano. Eram castanho-escuros, da cor de um bom porto. Mas a forma... como podia não ter identificado
a semelhança com os seus?
- Tens a certeza - ouviu-se a perguntar. - Este é o teu pai?
Mas já sabia a resposta antes de o tipo assentir.
- Quem... como... - Pois, grande jornalista que ele daria. - O que...
Ora aí estava. Bastava juntar onde e quando e tínhamos uma notícia do caraças.
O problema era que, depois de ter acasalado com Marissa e de ter passado pela transição, encontrara finalmente paz com quem era e com o que fazia na vida. Por outro
lado, no mundo humano sempre estivera afastado de todos, avançando paralelamente, mas sem nunca se cruzar com a mãe, as irmãs e os irmãos.
E com o pai, claro.
Ou pelo menos com o homem que lhe tinham dito ser o seu pai.
Partira do princípio de que, com o seu lar e parceira ali, deixara de precisar de assimilar e chegara a uma reconciliação pacífica com muito do que fora doloroso.
Mas agora era como que voltar à merda.
O humano falou com gravidade.
- Ele chamava-se Robert Bluff. Era cirurgião no Presbiteriano de Columbia, em Nova Iorque, onde a minha mãe trabalhava como enfermeira...
- A minha mãe era enfermeira. - Butch sentia a boca seca. - Mas não nesse hospital.
- Ela exerceu em muitos sítios... até... em Boston.
Seguiu-se um longo silêncio, durante o qual Butch considerou a hipótese de uma eventual infidelidade por parte da mãe.
- Alguém precisa de uma bebida, certo? - interveio V.
- Lag...
- Lagavulin...
Butch e o cirurgião calaram-se enquanto Vishous revirava os olhos.
- Por que será que isto não me surpreende?
Quando o irmão se dirigiu ao bar na sala de bilhar, Manello disse:
- Nunca o cheguei a conhece-lo. Devo tê-lo visto, tipo... uma vez? Sinceramente, já nem me lembro.
V armou-se em comissário de bordo e chegou com a bebida para os dois.
Quando Butch bebeu um gole, Manello fez o mesmo e depois abanou a cabeça.
- Sabes, nunca gostei desta merda até que...
- O quê?
- Vocês me começaram a foder a cabeça. Costumava gostar de Jack. Mas no ano passado... tudo mudou.
Butch aquiesceu, mesmo sem estar a acompanhar a conversa. Meu, não conseguia deixar de olhar para a fotografia, e pouco depois apercebeu-se de que, de uma forma
estranha, tudo aquilo era um alívio. A regressão ancestral provara que ele era aparentado de Wrath, mas ele nunca soubera, nem quisera realmente saber, ao certo
como. E agora ali estava. À sua frente.
Cristo, era como se sempre tivesse sofrido de uma doença e finalmente alguém lhe dava um nome.
Tens Outro-pai-ite. Ou seria Bastard-oma?
Fazia sentido. Sempre imaginara que o pai o odiava, e talvez fosse esse o motivo. Embora fosse quase impossível imaginar a sua casta e religiosa mãe a descarrilar,
aquela fotografia contava a história de pelo menos uma noite com outra pessoa.
O primeiro instinto foi que tinha de falar com a mãe e pedir-lhe pormenores... bem, alguns pormenores.
Mas como poderia isso resultar? A demência afastara-a da realidade e agora estava tão distante que mal o reconhecia quando ele a visitava, a única razão para a poder
visitar de todo. E não poderia perguntar às irmãs ou aos irmãos. Eles tinham-no rejeitado há muito, quando desaparecera, e era pouco provável que eles soubessem
mais alguma coisa.
- Ele ainda está vivo? - perguntou Butch.
- Não tenho a certeza. Costumava pensar que ele estava enterrado no Cemitério de Pine Grove. Agora? Quem sabe?
- Eu posso descobrir. - Quando V falou, Butch e Manny olharam ao mesmo tempo para o irmão. - Basta dizerem e eu encontro-o... quer esteja no mundo vampiro ou no
humano.
- Encontrar quem?
A voz grave chegou vinda do cimo das escadas, e todos olharam enquanto as palavras reverberavam pelo átrio. Wrath estava no patamar do primeiro andar com George
a seu lado. O humor do rei era fácil de identificar, mesmo tendo os olhos ocultos por aqueles óculos. Estava com um estado de espírito mortífero.
Claro que era difícil de imaginar se isso se devia ou não ao humano no átrio, pois Deus sabia que o tipo tinha mil coisas em que pensar.
Vishous tomou a palavra, o que foi uma boa opção. Butch perdera a voz e, como era óbvio, Manello também.
- Parece que este belo cirurgião pode ser teu familiar, meu senhor.
Quando Manello recuou, Butch pensou, Santa mãe.
Mais lenha para a fogueira.
Manny esfregou as frontes enquanto o tremendo vampiro de cabelo preto pela cintura descia as escadas, com o cão amarelado a parecer indicar o caminho. O sacana parecia
ser o dono do sítio e, tendo em conta a treta do «meu senhor», era provável que fosse.
- Será que ouvi bem, V? - perguntou o macho.
- Sim. Ouviste.
Eeeeeeee isso resolvia outra questão pois Manny começava igualmente a questionar a sua própria audição.
- Este é o nosso rei - anunciou Vishous. - Wrath, filho de Wrath. Este é o Manello. Doutor Manny Manello. Acho que ainda não tinham sido apresentados formalmente.
- És o que pertence a Payne.
Aí não houve hesitação. A sua resposta também não tardou:
- Sim. Sou eu.
O ronco grave que saiu da boca cruel era parte gargalhada, parte praga.
- E achas que estamos relacionados de que maneira?
V pigarreou e interveio.
- Há uma semelhança física extraordinária entre o pai do Manny e o Butch. Quer dizer... porra, é como estar a ver uma fotografia do meu amigo.
As sobrancelhas escuras desapareceram atrás dos óculos. Depois a expressão atenuou-se.
- Escusado será dizer que não posso fazer essa avaliação.
Ah, então era cego. Isso explicava o cão.
- Podemos fazer-lhe uma regressão ancestral - sugeriu Vishous.
- Isso - apoiou Butch. - Vamos...
- Calma aí, isso não o pode matar? - interveio Jane.
- Esperem lá. - Manny recuou um passo de mãos erguidas. - Esperem lá um bocado. Regressão quê?!
Vishous soprou fumo.
- É um processo através do qual eu entro em ti e vejo quanto do nosso sangue te corre nas veias.
- Mas pode matar-me? - Porra, ter Jane a abanar a cabeça não inspirava nenhuma confiança.
- É a única maneira de ter a certeza. Se fores meio-sangue, não podemos ir para o laboratório e fazer-te uma análise ao sangue. Os meios-sangues são diferentes.
Manny olhou à volta para todos eles. O rei, Vishous, Jane... e o tipo que podia ser um meio-irmão. Cristo, talvez fosse por isso que se sentia tão diferente em relação
a Payne. Assim que a vira foi como... se uma parte dele tivesse despertado.
Talvez também explicasse o seu mau feitio.
E depois de uma vida inteira a questionar-se quanto ao seu pai e às suas raízes, pensou... agora podia saber a verdade.
Mas quando eles lhe retribuíram o olhar, lembrou-se de ter ido ao hospital na semana anterior julgando que era de dia, mas descobrir que era de noite. E depois ocorreu-lhe
o que se passara com Payne e com as alterações no seu corpo.
- Sabem que mais? - disse. - Acho que vou dispensar.
Quando Jane aquiesceu, como se concordasse com ele, teve a certeza de estar a tomar a decisão correta.
Além disso, estavam a desviar-se do verdadeiro problema.
- Seja como for, a Payne vai voltar - declarou. - E não vou deixar que me apontem uma arma à cabeça antes de a voltar a ver... mesmo que isso seja a diferença entre
pertencer a este mundo ou não. Sei quem é o meu pai... e neste momento estou a olhar para o reflexo dele à minha frente. Não preciso de ir mais longe... a menos
que a Payne não concorde.
Cristo... a mãe, pensou de repente. Teria ela sabido?
Quando Vishous cruzou os braços sobre o peito, Manny preparou-se para uma discussão.
- Gosto do teu traseiro - disse, em vez disso. - A sério que gosto.
Tendo em conta aquilo a que o sacana tinha assistido não há muito tempo, isso surgiu como uma surpresa. Mas por ele tudo bem.
- Certo, estamos de acordo. Se a minha mulher quiser... eu faço-o. Caso contrário, estou bem assim.
- É justo - declarou Wrath.
Nesse momento instalou-se o silêncio. Mas também, o que poderia ser dito? A realidade sobre o paradeiro de Payne - e a sua ausência - pesava sobre todos.
Manny nunca se sentira tão impotente na vida.
- Com licença - escusou-se o meio-irmão -, mas preciso de outra bebida.
Quando Butch se afastou para a sala adjacente, Manny observou-o a desaparecer por uma arcada toda trabalhada.
- Sabes que mais, concordo com a sugestão.
- A minha casa é tua - disse o rei, num tom sombrio. - O bar fica por ali.
Reprimindo o estranho impulso para fazer uma vénia, Manny limitou-se a assentir.
- Obrigado, meu. - Quando lhe foram apresentados os nós dos dedos, Manny bateu-lhe e acenou com a cabeça a Jane e ao marido.
A sala onde entrou parecia a melhor suíte de hospitalidade que já vira. Cristo, até tinha máquina de pipocas.
- Mais Lag? - resmungou o tipo do outro lado.
Manny virou-se e deu consigo a observar um bar do caraças.
- Sim. Obrigado.
Trouxe o copo e entregou-o ao homem. E, quando o som de uísque a chapinhar pareceu alto como um grito, dirigiu-se a um sistema de som que poderia ser perfeitamente
usado no Madison Square Garden.
Pressionando os botões ouviu uma mistura de... gangsta rap.
Com outro botão chegou ao sintonizador de alta definição, em busca da estação de heavy metal. Respirou fundo quando «Dead Memories», dos Slipknot, se começou a fazer
ouvir.
Noite. Estava só à espera do anoitecer.
- Toma - disse o chui, entregando-lhe a bebida. Fazendo um esgar, acenou com a cabeça para uma das colunas. - Gostas dessa merda?
- Sim.
- Ora aí está uma diferença entre nós.
O gémeo de Payne espreitou para a sala.
- Mas que raios é esse barulho? - Era como se alguém tivesse começado a falar em línguas estranhas. Ou talvez tivesse posto a tocar Justin Bieber.
Manny limitou-se a abanar a cabeça.
- É música.
- Só porque tu o dizes.
Manny revirou os olhos e retirou-se para uma zona muito escura e perigosa da sua mente. A constatação de que não havia nada que pudesse fazer pela sua mulher naquele
momento deixava-o com vontade de magoar qualquer coisa. E o facto de parecer ter algo de vampiro dentro dele não era exatamente o tipo de revelação de que precisava
num dia como aquele.
Cristo, sentia-se péssimo.
- Alguém joga bilhar? - perguntou, meio dormente.
- Podes crer.
- Claro.
Jane avançou e deu-lhe um breve abraço.
- Conta comigo.
Parecia que não era o único desesperado por uma distração.
Capítulo 55
Sentada em algo almofadado com as mãos no regaço, Payne deduziu que se encontrava num carro, pois a subtil sensação de vibração era semelhante à que sentira quando
viajara ao lado de Manuel no seu Porsche. Contudo, não tinha como confirmar visualmente tal dedução, pois tal como anunciado pelo soldado do Derramador de Sangue,
ela estava vendada. Mas o cheiro do macho responsável estava a seu lado; embora ele estivesse parado, pelo que teria de ser outro a conduzir o veículo.
Nada lhe acontecera nas horas entre o confronto e aquela viagem. Ela passara o tempo diurno sentada na cama do líder, com os joelhos contra o peito, ambas as armas
a seu lado sobre o cobertor grosseiro. Mas ninguém a incomodara, pelo que passado algum tempo deixou de ficar atenta a cada som vindo lá de cima e conseguiu descontrair-se
um pouco.
Em breve, os pensamentos sobre Manuel dominavam-lhe o grosso da atenção, e reviveu as cenas do tempo, excessivamente curto, que tinham passado juntos, até que o
coração lhe doeu com a agonia. Quando deu por isso, o líder regressou e perguntou-lhe se desejaria um repasto antes de partirem.
Não, ela não quisera comer.
Depois, ele vendara-a com um pano branco imaculado, tão limpo e adorável que ela se interrogara quanto à sua origem. E depois segurara-lhe o cotovelo com firmeza,
levando-a pelas escadas por onde antes a transportara.
Era difícil saber ao certo quanto tempo passara no carro. Vinte minutos? Talvez meia hora?
- Aqui - acabou o líder por dizer.
À sua ordem, o veículo onde seguiam abrandou e depois parou. Uma porta foi aberta. Quando o ar puro e frio entrou, o cotovelo dela foi mais uma vez agarrado e ela
foi equilibrada ao sair. A porta fechou-se e ouviu-se uma pancada, como se um punho tivesse batido numa parte do veículo.
Os pneus a girar lançaram-lhe terra para a roupa.
Ficou sozinha com o líder.
Embora ele estivesse em silêncio, sentiu-o a mover-se atrás dela, e depois o tecido à volta da cabeça foi afrouxado. Quando foi retirado, ela susteve a respiração.
- Pensei que a seres libertada, deveria ser com uma vista digna dos teus olhos claros.
Lá em baixo revelava-se toda a cidade de Caldwell, com as luzes cintilantes e o trânsito denso a criar um repasto glorioso para a sua visão. Com efeito, encontravam-se
na crista de uma pequena montanha, com a cidade a espraiar-se verdadeiramente a seus pés junto às margens do rio.
- Isto é lindo - murmurou, olhando para o guerreiro.
Afastado, ele mostrou-se distante ao ponto de estar quase escondido, com a malformação oculta nas sombras para onde recuara.
- Que tenhas uma boa viagem, Escolhida.
- E tu... ainda não sei o teu nome.
- É verdade. - Esboçou uma vénia. - Boa noite.
E com isso desapareceu, desmaterializando-se.
Passado um instante, Payne voltou a dirigir-se para a vista e interrogou-se onde estaria Manuel naquela cidade. Teria de ser no aglomerado de construções altaneiras,
pelo que segundo a localização da ponte seria... ali.
Sim, ali.
Erguendo a mão, desenhou um círculo invisível em torno da alta construção de ferro e aço onde seguramente ele vivia.
Quando o peito a oprimiu e ela ficou ofegante, demorou-se mais um instante e depois desmaterializou-se para norte e leste, a caminho do complexo da Irmandade. A
viagem não tinha qualquer entusiasmo, sendo apenas uma obrigação, para informar o gémeo de que se encontrava viva e ilesa.
Quando ganhou forma nos degraus de pedra da vasta mansão, aproximou-se das portas duplas com um estranho temor. Sentia-se grata por estar de volta a uma espécie
de lar, mas a ausência do seu macho eliminava qualquer prazer que poderia ter tido com as ligações que voltariam a estabelecer-se em breve.
Depois de tocar à campainha, a porta do vestíbulo abriu-se de imediato e pôde sair da noite...
A segunda porta interior foi aberta ainda mais rapidamente pelo mordomo sorridente.
- Minha senhora! - gritou.
Ao entrar no átrio que tanto a encantara quando o vira pela primeira vez há dias, vislumbrou brevemente o seu gémeo chocado a saltar para a arcada de acesso à sala
de bilhar.
Mas esse breve momento foi tudo o que viu.
Uma grande força afastou Vishous com tanta violência que ele literalmente voou, largando o copo que segurava e espalhando pelo ar a bebida nele contida.
Manuel irrompeu pelo átrio, o corpo a avançar rapidamente, a expressão no rosto a um tempo de incredulidade, terror e alívio.
Mas não fazia sentido que estivesse a correr na direção dela, não fazia sentido que estivesse ali na...
Antes de conseguir concluir o pensamento ele tinha-a nos braços, e, pelas Parcas, o cheiro era o mesmo, a especiaria escura que lhe era única a inundar-lhe os sentidos.
E os ombros eram tão largos quanto se recordava. E a cintura tão estreita. E o abraço tão poderoso e maravilhoso.
O corpo forte dele estremeceu quando a abraçou com força, por um instante, e depois recuou, como se receasse estar a magoá-la.
Os olhos dele estavam frenéticos.
- Estás bem? O que posso fazer por ti? Precisas de um médico? Estás ferida... estou a fazer demasiadas perguntas... desculpa. Cristo... o que aconteceu? Onde estiveste?
Porra, tenho de parar...
Enquanto reencontro amoroso, talvez aquelas não fossem as palavras românticas que algumas fêmeas gostariam de ouvir, mas para ela representavam tudo no mundo.
- Por que estás aqui? - murmurou ela, levando-lhe as mãos ao rosto.
- Porque te amo.
De certa forma, isso não explicava nada... mas dizia-lhe tudo o que precisava de saber.
De repente, ela afastou as mãos.
- Mas e aquilo que fiz ao teu corpo...
- Não me importo. Nós damos a volta... havemos de o resolver... mas eu estava errado quanto a nós dois. Fui um fraco... um cobarde, e estava errado, e sinto tanto.
Merda. - Abanou a cabeça. - Tenho de deixar de praguejar. Oh, meu Deus, a tua roupa...
Payne olhou para baixo e viu o sangue preto dos minguantes que matara, a par da mancha vermelha do seu próprio sangue.
- Estou inteira e estou bem - garantiu, com toda a clareza. - E eu amo-te...
Interrompendo-a, beijou-a com solenidade nos lábios.
- Diz isso outra vez. Por favor.
- Eu amo-te.
Quando ele gemeu e voltou a envolve-la com os braços, Payne sentiu uma grande onda de calor e de gratidão no peito, e deixou que a emoção a apertasse contra ele.
E, enquanto se abraçavam, olhou sobre o ombro do seu macho. O irmão estava com a shellan dele a seu lado.
Cruzando o olhar com o do gémeo, viu todas as questões e receios naquele olhar.
- Não estou ferida - disse ao seu macho e ao seu gémeo.
- O que aconteceu? - perguntou Manuel contra o cabelo dela. - Encontrei o teu telefone partido.
- Estavas à minha procura?
- É claro que estava. - Recuou. - O teu irmão ligou-me ao nascer do sol.
Foi de imediato cercada pelo seu povo, como se um gongo tivesse soado, convocando para o átrio todos os machos e fêmeas da casa. Sem dúvida que teriam sido ali levados
pela agitação da sua chegada, mantendo-se à margem por sinal de respeito.
Tornava-se óbvio que havia mais do que duas mentes descansadas.
E isso fê-la sentir-se parte da família.
- Estava junto ao rio - disse alto o suficiente para que todos a ouvissem - quando senti o cheiro do inimigo. Atraída até eles cruzei os becos e deparei-me com dois
minguantes. - Sentiu Manuel ficar hirto, e viu o irmão fazer o mesmo. - Foi bom lutar...
Com essas palavras hesitou. Mas o rei aquiesceu. E o mesmo fez uma fêmea poderosa de cabelo curto, como se também ela combatesse na guerra e tivesse noção tanto
da necessidade como da satisfação. Os Irmãos, contudo, pareciam obviamente desconfortáveis.
Prosseguiu.
- Chegou então junto a mim um grupo de machos... de costas fortes, bem armados, com efeito, um esquadrão de guerreiros. O líder era muito alto, com olhos escuros,
cabelo escuro e um... - levou a mão à boca - defeito no lábio superior.
Começavam agora as pragas e, ao ouvi-las, desejou ter usado mais do que o fizera as taças de visão no Outro Lado. Era óbvio que o macho que descrevera não lhes era
desconhecido, e não era bem-vindo à narrativa.
- Ele prendeu-me... - Ouviu-se então não um, mas dois rosnidos, o do seu gémeo e o de Manuel. E, ao acalmar o macho tão perto dela, olhou para o irmão. - Acreditava
erroneamente que eu fizera desabar uma calamidade sobre a linhagem dele. Acreditava ser filho do Derramador de Sangue... e fora testemunha da noite em que levei
a morte ao nosso progenitor. Com efeito, ele passara séculos procurando-me para exercer a sua vingança.
Nesse momento calou-se, apercebendo-se de que acabara de admitir ter cometido parricídio. Mas ninguém pareceu chocado... o que dizia muito, não só acerca do tipo
de machos e fêmeas que ali se encontravam, mas também sobre o bastardo que fora seu pai.
- Esclareci o guerreiro quanto ao erro segundo o qual agia. - Omitiu o facto de ele a ter agredido, e ficou satisfeita por o hematoma no rosto ter desaparecido.
De alguma forma, sabia que ninguém precisava de ter conhecimento disso. - E ele acreditou em mim. Não me magoou... com efeito, protegeu-me dos machos dele, cedendo-me
a sua cama...
Manuel arreganhou os dentes como se tivesse presas... e isso deixou-a excitada.
- Sozinha, dormi sozinha. Ele manteve todos os subalternos com ele, lá em cima. - Voltou a acalmar Manuel pelo menos até se aperceber que ele estava excitado, tal
como aconteceria com qualquer macho disposto a marcar a sua fêmea. Que situação tão erótica. - Ah... ele vendou-me e levou-me a uma elevação panorâmica com vista
para a cidade. Depois libertou-me. E foi tudo.
Wrath tomou a palavra.
- Ele levou-te contra tua vontade.
- Ele acreditava ter motivo. Pensava que eu tinha matado o pai dele. E assim que ficou esclarecido estava preparado para me libertar, mas era de dia, pelo que não
podia ir para lado nenhum. Teria telefonado, mas perdera o meu telefone e eles não pareciam ter nenhum, pois não vi qualquer aparelho. Na verdade, estavam a viver
à moda antiga, de forma comunal e modesta, numa sala subterrânea iluminada por velas.
- Fazes ideia onde estão? - perguntou-lhe o gémeo.
- Não sei. Estava inconsciente quando eles... - Um brado de alerta fez-se ouvir de tantas gargantas que ela abanou a cabeça. - Fui alvejada por um minguante...
- Mas que raios...
- Foste o quê?!
- Uma arma...
- Alvejada com uma...
- ...ferida?!
Mmm. Talvez isso não tivesse sido uma boa ideia.
Enquanto os Irmãos falavam uns sobre os outros, Manuel pegou-lhe ao colo e ergueu-a, o rosto uma máscara de fúria cega.
- Acabou-se. Já está tudo dito. Vou examinar-te. - Olhou para o irmão dela. - Para onde a posso levar?
- Lá para cima. Vira à direita. Passas três portas e há um quarto de hóspedes. Vou mandar comida e diz-me se precisares de material clínico.
- Entendido.
Com isso, o macho dela dirigiu-se às escadas, consigo nos braços.
Ainda bem que ela já concluíra a história. Tendo em conta o ângulo do queixo de Manuel, seria preciso algum tempo antes de voltar a falar sobre o que lhe acontecera.
A menos que o quisesse ver furioso.
Com efeito, no estado em que ele se encontrava agora, parecia que quele soldado teria muito o que recear, caso os dois alguma vez se encontrassem.
- Estou tão satisfeita por te ver - disse ela, num tom rouco. - Só pensava em ti quando estava...
Manuel fechou brevemente os olhos, como se sofresse.
- Eles não te magoaram?
- Não. - E foi então que percebeu o que o preocupava.
Levando-lhe a mão ao rosto, disse:
- Ele não me tocou. Nenhum deles o fez.
O arrepio que percorreu o corpo forte que a transportava foi tão grande que ele quase tropeçou. Mas o macho dela recuperou depressa... e prosseguiu o seu caminho.
Enquanto Vishous observava o humano a levar a sua irmã escadaria acima, percebeu que estava a testemunhar o desenrolar do futuro. Aqueles dois iam resolver as coisas
e o cirurgião com gostos musicais altamente discutíveis faria parte da vida dela... e da de V... para todo o sempre.
De repente, a mente dele recuou doze meses, com o rebobinar a deter-se quando chegou ao ponto da narrativa em que entrara no gabinete do cirurgião para apagar as
memórias do tempo passado por V em St. Francis.
Irmão.
Ouvira a palavra irmão na sua cabeça.
Na altura não fazia a mais pequena ideia do que isso poderia significar. Porque, então, como poderia isso alguma vez acontecer?
Mas ali estava, mais uma vez a realidade exibia uma das suas visões.
Embora, a bem da verdade, a palavra devesse ser cunhado.
Mas depois olhou para Butch. O melhor amigo também fitava o tipo.
Porra, talvez irmão se adequasse. O que era bom. Manello era o tipo de indivíduo com quem não nos importávamos de nos relacionarmos.
Quase como se o rei lhe tivesse lido os pensamentos, Wrath anunciou:
- O cirurgião pode ficar. O tempo que quiser. E pode ter contacto com qualquer família humana que tenha... se quiser. Enquanto meu familiar, é bem-vindo à minha
casa sem quaisquer restrições.
Ouviu-se um ronco de aprovação. Como sempre, no que dizia respeito à Irmandade, os segredos nunca eram secretos durante muito tempo, por isso já todos saberiam da
ligação Manello/Butch/Wrath. Que raios, todos tinham visto a fotografia. Especialmente V.
Embora V tivesse feito mais do que isso. O nome «Robert Bluff» acabara por se revelar uma identidade falsa... E o macho tinha de ser meio-sangue. Se assim não fosse,
nunca poderia ter trabalhado em qualquer hospital durante o dia. A questão era o que poderia saber quanto ao seu lado vampiro e se ainda estava vivo.
Quando Jane encostou a cabeça ao seu peito, envolveu-a ainda mais com os braços. E depois olhou para Wrath.
- O Xcor, certo?
- Pois - assentiu o rei. - Um avistamento confirmado. E não será a última vez que teremos notícias dele. Isto foi só o princípio.
Grande verdade, pensou V. A chegada daquele bando de bastardos não era uma boa notícia para ninguém, mas acima de tudo não o era para Wrath.
- Cavalheiros - disse o rei - e minhas senhoras, a primeira refeição está a arrefecer.
O que foi a deixa para que todos se dirigissem à sala de jantar e comessem o que fora deliberadamente ignorado até então.
Com Payne segura e em casa, o apetite voltava a ter rédea livre... embora Deus soubesse que não ia pensar naquilo que o cirurgião e a irmã de certeza estariam prestes
a fazer.
Quando gemeu, Jane apertou-lhe a cintura com mais força.
- Estás bem?
Olhou para a sua shellan.
- Acho que a minha irmã não tem idade para sexo.
- V, ela tem a mesma idade do que tu.
Vishous franziu o sobrolho por um instante. Teria? Ou será que ele nascera primeiro?
Pois, só teria essa resposta num sítio.
Que raios, nem sequer pensara na mãe durante toda aquela situação. E agora que pensava... não tinha qualquer vontade ou interesse em aparecer por lá e anunciar que
Payne estava muito bem.
Não. Se a Virgem Escrivã quisesse acompanhar o que os «filhos» estavam a fazer podia usar aquelas taças de visão fakakta de que tanto gostava.
Beijou a sua shellan.
- Não quero saber o que diz o calendário, nem a ordem de nascimento. Aquela é a minha irmãzinha e nunca vai ter idade suficiente para... «ah, sim».
Jane riu-se e voltou a aninhar-se por baixo do braço dele.
- És um macho muito doce.
- Ná.
- És.
Levando-a para a sala de jantar e até à mesa, puxou-lhe educadamente a cadeira e depois sentou-se à sua esquerda, para que ela ficasse junto à sua mão da adaga.
Enquanto as conversas se elevavam, as pessoas atacavam as travessas e a sua Jane se ria de algo que Rhage dissera, Vishous olhou e viu Butch e Marissa a trocarem
sorrisos e de mão dada.
Sabes que mais, pensou... naquele momento, a vida estava muito boa.
Estava mesmo.
Capítulo 56
Lá em cima, Manny fechou a porta com o pé atrás dele e da sua mulher, e depois levou-a para a cama do tamanho de um campo de futebol.
Não havia motivo para se trancar. Só um idiota os incomodaria.
O brilho que entrava pelas janelas já sem portadas garantia-lhe luz suficiente para ver, e maldito fosse se não gostava do que tinha à sua frente: a mulher dele,
são e salva, deitada na... Bem, certo, aquela não era a cama deles, mas garantidamente ia transformá-la nisso antes do amanhecer.
Sentando-se ao lado dela, tentou discretamente ocultar a ereção massiva que tinha desde que a vira entrar à porta. E embora houvesse muito o que dizer, só conseguia
fitá-la.
Mas rapidamente o cirurgião nele assumiu o controlo.
- Foste ferida? - As mãos adoráveis dela baixaram até às vestes, e quanto mais a bainha suba, mais as pálpebras dela desciam.
- Acho que vais descobrir que estou sarada. Foi apenas superficial... aqui em cima.
Manny engoliu em seco. Porra... sim, ela estava bem. A pele no cimo da coxa estava lisa como porcelana.
- Mas talvez me devesses examinar com mais atenção - sugeriu ela, num tom arrastado.
Manny entreabriu os lábios e sentiu os pulmões a contraírem-se.
- De certeza que estás bem? E eles não... te magoaram.
Nunca ultrapassaria isso.
Payne sentou-se e fitou-lhe os olhos.
- O que sempre te esteve destinado continua à tua espera.
Manny fechou brevemente os olhos. Depois não quis que ela ficasse com uma má impressão.
- Não que me importasse se não fosses... quer dizer, isto não é uma questão de propriedade... - Que raios, parecia que naquela noite não era capaz de falar. - Mas
não era capaz de aguentar se te magoassem.
O sorriso dela fê-lo sentir-se grato por ter um colchão debaixo do rabo, pois se estivesse de pé, ela tê-lo-ia derrubado.
- Desculpa por ontem à noite - lamentou-se ele. - Cometi um erro...
Payne levou-lhe a mão à boca.
- Estamos aqui agora. Nada mais me importa.
- E preciso de te dizer uma coisa.
- Vais deixar-me?
- Nunca.
- Ótimo. Então vamos unir-nos primeiro, e depois falamos. - Endireitando-se ainda mais, Payne substituiu os dedos pela boca e beijou-o profunda e demoradamente.
- Mmmm... sim, muito melhor do que o discurso, creio eu.
- Tens a certeza de que queres... - Não conseguiu avançar mais, pois a língua dela privou-o de pensamentos.
Gemendo, subiu para a cama, sustendo-se acima dela. E depois, fitando-lhe os olhos, baixou lentamente o corpo sobre o dela... sendo o último contacto a ereção dele
entre as pernas dela.
- Se te beijar agora não há volta. - Bolas, tinha a voz tão gutural que praticamente lhe rosnava. Mas estava a ser sincero. Estava a ser levado por outra força.
Não se tratava de sexo, embora a mecânica do ato estivesse envolvida. Ao tomar-lhe a virgindade, estaria a marcá-la de uma forma que não compreendia, mas que não
questionava.
- Quero-te assim - disse ela. - Há séculos que espero por aquilo que só tu me podes dar.
Minha, pensou Manny.
Antes de a voltar a beijar, chegou-se ao lado e soltou-lhe o cabelo da trança. Espalhando as ondas escuras sobre a colcha de cetim, percorreu-as com os dedos.
Depois encostou as ancas ao íntimo dela, empurrando e recuando, e repetindo o movimento... enquanto a mão lhe subia até ao peito e lhe agarrava o tecido frágil das
vestes.
Sinceramente estava chocado com o que queria fazer.
- Desejo estar nua perante ti - ordenou ela. - Fá-lo, Manuel.
A maldita túnica não teve hipótese. Erguendo-se, pegou nas lapelas e abriu-a ao meio, rasgando o material e expondo-lhe os seios aos seus olhos quentes e ao ar frio.
Em resposta, ela arqueou-se e gemeu e isso foi a gota de água. Dirigiu-se aos mamilos entumecidos com a boca e ao íntimo dela com as mãos. Estava todo nela, levando-a
ao orgasmo sugando-a e esfregando-a com cuidado, e quando a libertação rápida e desesperada chegou, ele engoliu-lhe o grito.
Queria dar-lhe mais - e pretendia fazê-lo - mas o seu corpo não ia esperar. Levou as mãos às calças, soltando o cinto e baixando o fecho para soltar o membro.
Ela estava pronta, molhada, aberta e ansiosa, tendo em conta a forma como as pernas o esfregavam.
- Eu vou devagar - disse contra a boca de Payne.
- Não receio a dor. Não contigo.
Bolas, portanto talvez naquilo fossem fisicamente como as mulheres humanas. O que queria dizer que a primeira vez não seria fácil para aquela fêmea.
- Shhh - murmurou ela. - Não te preocupes. Toma-me.
Baixando a mão, posicionou-se e... que porra... quase se veio. Ela estava quente e molhada e...
Ela moveu-se tão depressa que não a poderia impedir, mesmo que quisesse. As mãos dela baixaram e agarraram-lhe o traseiro, com as unhas a cravarem-se na sua carne
e depois...
Payne ergueu as ancas ao mesmo tempo que o puxava, e ele entrou até ao fundo, com a penetração total e absolutamente completa. Com ele a gemer, Payne ficou rígida
e silvou com a estocada, o que era profundamente injusto, pois ela sabia tão bem. Mas ele não ia mexer-se, pelo menos até que ela recuperasse da invasão.
E depois lembrou-se.
Levando-lhe a mão à nuca, aproximou-lhe os lábios do pescoço.
- Toma-me.
O som que ela fez levou-o ao orgasmo no interior dela. Era demasiado excitante para se conter. E enquanto o membro latejava, as presas de Payne enterraram-se na
sua veia.
O sexo tornou-se alucinado. Payne moveu-se contra ele, com o íntimo apertado a sugá-lo enquanto ele se vinha mais uma vez... e depois foi a vez de o macho começar
a bombear as ancas com força. O sugar e o ritmo alucinado arrebatou-os de tal maneira que tiveram noção que pela manhã se ressentiriam. Aquilo não tinha nada de
civilizado. Eram macho e fêmea, reduzidos ao cerne mais primitivo.
E era o melhor que alguma vez sentira.
Capítulo 57
Thomas DelVecchio sabia exatamente para onde o assassino iria a seguir.
Não tinha qualquer dúvida. Com o detetive de la Cruz na sede, a trabalhar com os rapazes em teorias e indícios, todas bastante úteis, Veck sabia para onde ir.
Ao aproximar-se do parque de estacionamento do Monroe Motel & Suítes com as luzes desligadas e a moto desengatada, pensou que talvez fosse boa ideia ligar a de la
Cruz e dizer-lhe onde se encontrava.
Mas acabou por deixar o telefone no bolso.
Parando a BMW nas árvores, à direita do parque de estacionamento, empurrou o descanso e pendurou o capacete no guiador. Tinha a arma no coldre por baixo da axila
e disse para consigo que aí ficaria se alguém aparecesse.
Em grande medida acreditava nessa mentira.
Claro que a horrível verdade era que se sentia animado por algo adormecido desde há muito, muito tempo. De la Cruz tinha razão em receá-lo como parceiro e estava
correto em questionar onde acabavam os pecados do pai e começavam os do filho.
Pois Veck era um pecador. E entrara para a polícia para tentar expulsar isso de si.
Mas talvez fosse melhor exorcizar essa treta pois, às vezes, sentia como se tivesse um demónio dentro de si, a sério.
Mesmo assim, não estava ali para matar ninguém. Estava ali para deter um assassino antes que o desgraçado voltasse ao trabalho.
A sério.
Ao aproximar-se do motel, Veck manteve-se entre as sombras das árvores e concentrou-se no quarto onde a última rapariga tinha sido encontrada. Estava tudo tal como
a polícia de Caldwell deixara. Ainda havia fita de limitação num triângulo à volta da porta e da porção de passeio à frente. A ombreira também apresentava um selo,
o qual teoricamente só poderia ser quebrado em situações oficiais. Não havia luz no interior do quarto, nem cá fora, no corredor. Não se via ninguém.
Atrás de um tronco grosso, serviu-se das mãos enluvadas para puxar o gorro de lã para mais perto da camisola de gola alta preta.
Era tão bom a ficar imóvel que praticamente desapareceu. Era também muito bom a canalizar a energia para uma calma ubíqua que conservava os recursos, ao mesmo tempo
que o deixava em alerta.
A presa ia aparecer. Aquele louco assassino perdera todos os troféus. A coleção estava nas mãos das autoridades e os agentes forenses esforçavam-se por o ligar a
vários homicídios por resolver um pouco por todo o país. Mas o desgraçado não voltaria ali para tentar recuperar tudo, ou pelo menos parte do que deixara. O re-gresso
teria como objetivo lamentar a perda do que se esforçara tanto por conseguir.
Seria imprudente da parte dele? É claro, mas isso fazia parte do ciclo de excessos. O assassino não estaria a raciocinar devidamente, e as perdas tê-lo-iam deixado
desesperado. E Veck ia esperar durante as próximas noites, até que o indivíduo surgisse.
O tempo passou e ele esperou, esperou e esperou... era tão paciente como qualquer caçador. Embora tivesse pensado que aquilo poderia revelar-se desastroso, estando
ali sozinho. Com uma faca presa na cintura. E aquela maldita arma...
Um ramo a partir-se atraiu-lhe os olhos para a direita, mas não a cabeça. Não se mexeu nem alterou a respiração, nem sequer estremeceu.
E lá estava. Um homem surpreendentemente magro a atravessar, com cuidado, os arbustos folhosos da mata. Enquanto se aproximava do lado do motel, a expressão no rosto
do homem era quase religiosa. Mas não foi apenas isso que o identificou como sendo o assassino. Tinha as roupas cobertas de sangue seco, e os sapatos também. Estava
a coxear, como se tivesse sofrido uma lesão na perna, e o rosto apresentava riscos de unhas.
Apanhei-te, pensou Veck.
E agora que fitava o assassino... a mão baixou-lhe até às ancas e contornaram-nas até às costas. Até à faca.
Não mudou de rumo, mesmo enquanto dizia para consigo para deixar a arma onde estava e pegar nas algemas. Sempre tivera duas pessoas dentro dele, duas metades na
mesma pele e, em momentos como aquele, sentia-se como se estivesse a observar-se a agir, quase como se fosse o passageiro de um táxi, sendo que o destino, qualquer
que fosse, não resultaria dos seus atos.
Começou a aproximar-se do homem, acompanhando-o em silêncio, qual sombra, encurtando a distância até ficar a mero metro e meio do sacana. A faca chegara à mão de
Veck e não queria que ela lá estivesse, mas era demasiado tarde para a voltar a guardar. Demasiado tarde para recuar. Demasiado tarde para dar ouvidos à voz que
lhe dizia que aquilo era um crime que o deixaria na prisão. O outro lado assumira o controlo e ele estava perdido nele, à beira de matar...
O terceiro homem surgiu vindo de nenhures.
Um homem imenso vestido de cabedal saltou para o caminho do assassino, bloqueando-lhe o avanço. E, quando David Kroner recuou, alarmado, um silvo percorreu o ar.
Cruzes, aquilo não parecera humano. E... aquilo eram... presas?
Mas que raios...
O ataque foi tão brutal que, com o primeiro golpe contra o pescoço do assassino em série, a cabeça quase lhe saltou. E não parou por aí, com sangue a saltar para
tão longe que salpicou as calças, a camisola de gola alta e o gorro pretos de Veck.
Mas não estava a ser usada faca, nem adaga.
Dentes. O cabrão estava a desfazê-lo com os dentes.
Veck tentou recuar, mas bateu numa árvore e o impacto atirou-o ao chão muuuuuito mais perto do que deveria. E devia ter corrido para a moto, ou simplesmente fugido,
mas sentia-se arrebatado pela violência... e pela convicção de que o que estava a ver não era, de todo, humano.
Quando acabou, o monstro deixou cair os restos massacrados do assassino... e depois olhou para Veck.
- Grande... porra... - murmurou Veck.
O rosto tinha uma estrutura óssea bastante humana, mas as presas não batiam certo, nem tampouco a dimensão e o olhar vingativo. Cristo, tinha sangue a escorrer-lhe
da boca.
- Olha-me nos olhos - disse uma voz de sotaque carregado.
Um gorgolejo fez-se ouvir do que restava do assassino. Mas Veck não olhou. Estava fito num par de olhos espantosos... tão azuis... a brilhar....
- Merda... - deixou escapar, com uma dor de cabeça lancinante a eliminar tudo o que via ou ouvia. Tombando de lado, a dor obrigou-o a assumir uma posição fetal e
assim ficou.
Plim.
Por que estava no chão?
Plim.
Sentia o cheiro de sangue. Mas porquê?
Plim. Plim.
Levantou a cabeça com um gemido e...
- Porra!
Pôs-se de pé em choque e fitou a confusão ensanguentada à sua frente.
- Ah... porra - praguejou. Tinha-o feito. Finalmente matara alguém...
Mas depois olhou para a faca que tinha na mão. Nada de sangue. Nem na lâmina. Nem nas mãos. Só salpicos na roupa.
Olhou à sua volta, sem o mais leve indício do que poderia ter acontecido. Lembrava-se de ter ali chegado... de ter estacionado a moto... e de seguir o homem que
jazia agora moribundo.
Se fosse brutalmente sincero para consigo, ele tivera a intenção de matar. Sempre. Mas tendo e conta os indícios físicos? Não fora ele.
O problema era que tudo o resto era um buraco negro.
Um gemido do assassino em sério fê-lo virar a cabeça para a direita. O homem tentava alcançá-lo. Suplicava-lhe ajuda em silêncio enquanto se esvaía. Como poderia
ainda estar vivo?
Com as mãos a tremer, Veck pegou no telemóvel e ligou para o 112.
- Sim, detetive DelVecchio, Homicídios. Preciso de uma ambulância junto ao Monroe Motel & Suítes já.
Depois de o pedido ter sido registado e de os médicos estarem a caminho, tirou o blusão, enrolou-o e ajoelhou-se ao lado do homem. Pressionando o blusão contra os
ferimentos no pescoço dele, rezou para que o cabrão sobrevivesse. E depois teve de se interrogar se isso seria bom.
- Não te matei - disse. - Pois não?
Cristo... o que acontecera ali?
Capítulo 58
-Ele veio ver-te.
A partir do ponto de vista de Blaylock, na cama, Saxton, filho de Tyme, mostrava-lhe o seu melhor lado. E não, não era o traseiro. O macho estava a barbear-se ao
espelho e tinha o perfil perfeito banhado pela luz suave.
Cristo, ele era um belo macho.
A muitos níveis, aquele amante a quem se ligara era tudo o que podia desejar.
- Quem? - perguntou Blay, baixinho.
Os olhos que procuraram os dele escorriam incredulidade.
- Ah. - Para se esquivar a mais conversa, Blay olhou para o edredão que tinha puxado até ao peito despido. Estava nu por baixo do lençol de cetim. Tal como Saxton
estivera, antes de ter vestido o roupão.
- Ele queria saber se estavas bem - prosseguiu Sax.
Uma vez que ah já tinha sido usado como resposta, Blay apimentou-a com:
- A sério?
- Foi no terraço. Não quis entrar, para não nos incomodar.
Engraçado, quando estivera prestes a desmaiar, depois de lhe terem suturado a barriga, interrogara-se vagamente o que poderia Saxton estar a fazer lá fora. Mas na
altura sentia tantas dores que não fora capaz de pensar em praticamente nada.
Agora, no entanto, sentia um entusiasmo terrível a percorrê-lo.
Louvada fosse a Virgem Escrivã, há muito tempo que não sentia aquele formigueiro familiar, embora o tempo que passara não tivesse diminuído a sensação. E o impulso
que se seguiu, de perguntar o que fora dito, não era algo que pudesse fazer. Para começar, seria uma falta de respeito para com Saxton. Além disso, era inútil.
Ainda bem que dispunha de bastantes munições com que se calar. Bastava-lhe pensar em Qhuinn a chegar a casa há cerca de uma semana, de cabelo revolto, o cheiro abafado
pelo perfume de outro homem, a pose afetada pela satisfação que tivera.
Pensar que Blay se atirara ao macho não uma, mas duas vezes e fora rejeitado? Nem conseguia pensar nisso.
- Não queres saber o que ele disse? - murmurou Saxton ao passar com a lâmina afiada pelo pescoço, evitando habilmente a marca da dentada que Blay lhe dera há meia
hora.
Blay fechou os olhos e interrogou-se se alguma vez seria capaz de fugir à realidade de que Qhuinn foderia tudo o que se mexia menos ele.
- Não? - indagou Saxton.
Quando a cama estremeceu, Blay abriu os olhos. Saxton sentara-se à beira do colchão, estando o macho a limpar o queixo e as faces com uma toalha vermelho-sangue.
- Não? - repetiu.
- Posso fazer-te uma pergunta? - disse Blay. - E neste momento não seria boa ideia usares a tua personalidade encantadora e sarcástica.
O rosto maravilhoso de Saxton assumiu de imediato uma expressão grave.
- Força.
Blay alisou o edredão sobre o peito. Várias vezes.
- Eu... agrado-te?
Pelo canto do olho viu Saxton estremecer e quase morreu com o embaraço.
- Na cama, queres tu dizer? - quis Sax saber.
Blay franziu os lábios ao aquiescer, e pensou em avançar alguma explicação, mas a boca revelou-se-lhe demasiado seca.
- Mas por que haverias tu de perguntar isso? - comentou Saxton.
Bem, porque teria de haver qualquer coisa de errado consigo.
Blay abanou a cabeça.
- Não sei.
Saxton dobrou a toalha e pousou-a a seu lado. Depois estendeu o braço sobre as ancas de Blay e aproximou-se até ficarem cara a cara.
- Sim. - E levou a boca ao pescoço do companheiro, sugando. - Sempre.
Blay passou com a mão pela nuca do macho, encontrando o macio cabelo encaracolado na base do pescoço.
- Graças a Deus.
A familiaridade do corpo sobre o seu não era novidade, e parecia-lhe correto. Era bom. Conhecia cada curva e recanto do peito, das ancas e das coxas de Saxton. Conhecia
os pontos de pressão e sabia onde morder, sabia exatamente onde agarrar, como rebolar e revirar-se para que Saxton se viesse com força.
Por isso, sim, talvez não precisasse de perguntar.
Mas Qhuinn... tudo sobre esse macho o deixava em carne viva. E, mesmo depois de ter aprendido a ligar-se no exterior, a ferida continuava tão má e profunda como
no momento em que fora feita, altura em que se tornou óbvio que o único macho que queria acima de qualquer outro nunca estaria com ele.
Saxton recostou-se.
- O Qhuinn não é capaz de lidar com aquilo que sente por ti.
Blay soltou uma gargalhada rouca.
- Não falemos sobre ele.
- Porquê? - Saxton estendeu a mão e passou com o polegar pelo lábio inferior de Blay. - Está sempre aqui connosco, quer queiramos quer não.
Blay pensou em mentir, mas desistiu.
- Desculpa.
- Não faz mal... sei onde me meti. - A mão livre de Saxton meteu-se por baixo do edredão. - E sei o que quero.
Blay gemeu quando aquela mão esfregou o que se tornou de imediato uma ereção imensa. E, quando as ancas se levantaram e ele abriu as pernas para Saxton, susteve
os olhos do amante e sugou-lhe o polegar.
Era muito melhor do que entrar na montanha-russa Qhuinn. Sabia-o e gostava disso. Ali estava seguro. Ali não sairia magoado.
E ali encontrara uma ligação sexual profunda.
O olhar de Saxton era a um tempo quente e sério quando largou o que encontrara, destapou o corpo de Blay e desapertou o laço do seu roupão.
Aquilo era muito bom, pensou Blay. Aquilo era correto...
Quando a boca do amante lhe encontrou a clavícula, Blay fechou os olhos. Mas quando se começou a perder nas sensações, o que viu não foi Saxton.
- Espera, para... - Sentou-se e arrastou o outro macho com ele.
- Não faz mal - disse Saxton baixinho. - Sei o que se passa entre nós.
O coração de Blay cedeu um pouco. Mas Saxton limitou-se a abanar a cabeça e devolveu os lábios ao peito de Blay.
Nunca tinham falado acerca de amor e isso deixou bem claro que nunca o fariam, pois Saxton tinha toda a razão. Blay continuava apaixonado por Qhuinn. E provavelmente
sempre assim seria.
- Porquê? - perguntou ao amante.
- Porque te quero enquanto te tiver.
- Não vou a lado nenhum.
Saxton limitou-se a abanar a cabeça contra os abdominais retesados que mordiscava.
- Deixa de pensar, Blaylock. Começa a sentir.
Quando aquela boca talentosa chegou ao fundo, Blay inspirou com um sibilo e decidiu seguir o conselho. Pois essa era a única maneira de sobreviver.
Tinha a impressão de que seria uma questão de tempo até que Qhuinn anunciasse que ele e Layla iriam acasalar.
Não sabia porquê, apenas sabia. Havia semanas que os dois se encontravam e a Escolhida voltara a estar lá na véspera. Sentira-lhe o cheiro e o sangue no quarto ao
lado.
E embora tal convicção pudesse ser apenas um exercício mental para se deprimir, sentia que era muito mais do que isso. Era como se a neblina que, regra geral, obscurecia
os dias, meses e anos vindouros se tivesse tornado insuportavelmente ténue e as sombras do destino estivessem a revelar-se-lhe.
Uma questão de tempo.
Cristo, isso seria como quem o mataria.
- Ainda bem que aqui estás - gemeu.
- Eu também - retribuiu-lhe o amante em torno da ereção dele. - Eu também.
Capítulo 59
Na noite seguinte, Payne dava voltas na frente da mansão da Irmandade, indo da sala de jantar até ao átrio e à sala de bilhar e de volta. Uma e outra vez.
O macho dela saíra da casa a meio da tarde para «tratar de umas coisas». E, embora se tivesse recusado a dizer-lhe o quê, ela apreciara o sorriso malandro que ele
lhe oferecera ao aconchegá-la na cama que tinham usado na totalidade durante a noite, saindo logo depois.
Depois disso, Payne não dormira. De todo.
Havia muito que a deixava feliz.
E surpreendida.
Fazendo uma pausa à frente das portas de correr que davam acesso ao pátio, pensou na fotografia que ele lhe mostrara. Era por demais óbvio que tinha uma relação
de sangue com Butch e, logo, com o rei. Mas nem Manuel nem ela estavam interessados em arriscar uma regressão. Não, nesse ponto, ela concordava plenamente com ele.
Tinham-se um ao outro e, tendo em conta o que já tinham ultrapassado, não havia motivo para arriscar um mau resultado.
Além disso, a informação não alteraria nada. O rei abrira as portas de sua casa ao macho dela, mesmo sem uma declaração formal de relação sanguínea, e Manuel poderia
manter o contacto com a mãe humana. Mais ainda, ficara decidido que ele trabalharia ali, com a Doc Jane, mas também com Havers. Afinal de contas, a raça precisava
de mais bons médicos, e Manuel era superlativo.
E quanto a ela? Sairia para lutar. Nem Manuel nem o irmão estavam propriamente entusiasmados com os riscos que ela iria correr, mas não a impediriam. Com efeito,
depois de ter falado longamente com Manuel, ele parecera aceitar que isso fazia parte dela. Só fizera questão que ela usasse as melhores armas possíveis e o irmão
insistira em certificar-se disso.
Pelas Parcas, aqueles dois pareciam estar a entender-se. Quem o poderia ter previsto?
Deslocando-se até à janela seguinte, perscrutou a escuridão, em busca de faróis.
Onde estaria ele? Onde estaria ele...
Manuel também iria falar com a Doc Jane sobre as mudanças físicas por que ele passara, mudanças essas que, tendo em conta a forma como Payne brilhava sempre que
faziam amor, seria provável que continuassem. Ela iria monitorizar o corpo e ver o que acontecia, e ambos rezavam para que ela apenas o estivesse a manter saudável
e eternamente jovem. Apenas o tempo o diria.
Praguejando, deu meia volta, cruzou o átrio... e entrou na sala de jantar.
Junto à terceira janela, olhou para os céus. Não pretendia visitar a mãe. Teria sido maravilhoso partilhar o seu amor com que a trouxera ao mundo. Mas o progenitor
estava morto, e a sua mahmen? Não confiava na Virgem Escrivã, receando que a voltasse a aprisionar. Manuel era um meio-sangue. Não era de todo um elemento de raça
pura que a mãe aprovasse...
O par de olhos brilhantes que subiam a elevação onde o complexo se erguia deixaram-lhe o coração a bater descompassado. E depois ouviu a música, um ritmo forte que
atravessava o vidro.
Payne saiu a correr da sala de jantar e percorreu rapidamente o mosaico. Momentos depois tinha saído pelo vestíbulo para as trevas...
Ao fundo dos degraus estacou.
Manuel não chegara sozinho. Atrás do Porsche estava um qualquer tipo de veículo imenso... um grande veículo em duas partes.
O macho deixou o volante do seu carro.
- Olá - cumprimentou ele.
Ostentava um sorriso rasgado quando chegou junto a ela, lhe levou as mãos às ancas e a aproximou do peito.
- Tive saudades tuas - murmurou-lhe contra os lábios.
- Eu também. - Ela sorria igualmente. - Mas... o que é que trouxeste?
O mordomo idoso saiu do outro veículo.
- Meu senhor, devo...
- Obrigado, Fritz, mas eu agora trato do resto.
O mordomo fez uma vénia baixa.
- Foi um prazer ter sido útil.
- És do melhor, meu.
O doggen estava radiante quando regressou alegremente à casa. E depois, o macho dela dirigiu-se-lhe.
- Fica aqui.
Franziu o cenho ao ouvir pancadas secas no interior da caixa grande.
- É claro.
Depois de voltar a beijá-la, Manuel desapareceu atrás do veículo.
Abriram-se portas. Mais pancadas. Gemidos e o som de algo a correr, seguido por um bater ritmado. E depois...
O relinchar disse-lhe o que ela não se atrevera a esperar. E depois a bela poldra de Manuel recuou por uma rampa e foi-lhe trazida.
Payne levou as mãos à boca enquanto nos olhos se formavam lágrimas. A égua avançava cheia de graciosidade, com a pelagem a brilhar com a luz emanada da casa, mais
uma vez com toda a sua força e vitalidade.
- Mas... porque é que ela está aqui? - indagou Payne num tom rouco.
- Os humanos oferecem algo às noivas como prova do seu amor. - Manuel ostentou um sorriso rasgado. - Pensei que a Glory fosse melhor do que qualquer diamante que
eu te pudesse comprar. É mais importante para mim... e espero que para ti também.
Não tendo resposta, estendeu-lhe a tira de cabedal que estava presa à brida do cavalo.
- Estou a dar-ta.
Como se fosse a sua deixa, Glory soltou um relincho e empinou-se, como se concordasse com a troca de posse.
Payne limpou os olhos e atirou-se a Manuel, beijando-o profundamente.
- Não tenho palavras.
E depois aceitou as rédeas, enquanto Manuel se ufanava.
Respirando fundo, ela...
Antes de ter consciência do movimento, Payne saltou no ar, montando Glory como se o par estivesse junto há anos e não há minutos.
E o cavalo não precisou de incentivo, de autorização, de nada... Glory saltou em frente, firmando os cascos nos seixos e partindo a galope.
Payne entrelaçou os dedos na crina preta comprida e equilibrou-se perfeitamente sobre as costas possantes onde se sentava. Quando o vento lhe bateu no rosto, riu-se
com pura exultação ao partirem alegres e livres. Sim... sim! Mil vezes sim!
Partir na noite.
Ter a liberdade de se mover.
Ter amor à sua espera.
Era mais do que estar viva. Aquilo era viver.
De pé, junto ao reboque, Manny observou as suas meninas a partirem juntas, perdido de felicidade. Faziam um par perfeito, ambas unas e fortes, e rasgando a noite
a um galope que a maior parte dos carros teria dificuldade em acompanhar.
Certo. Talvez tivesse derramado uma lágrima ou duas. Mas que raios. Aquela noite era incrível para...
- Eu vi a cena.
- Cristo... - Agarrou na cruz e deu meia volta. - Andas sempre a tentar matar as pessoas do coração?
O irmão de Payne não respondeu, ou talvez não o conseguisse fazer. O vampiro tinha os olhos fitos na irmã e no cavalo a galope, e parecia tão comovido como Manny.
- Mas pensei que fosse um garanhão. - Vishous abanou a cabeça. - Mas sim, foi isto que eu vi... ela montada num puro-sangue preto, o cabelo a voar com a brisa. Mas
não pensava que fosse o futuro...
Manny virou-se outra vez para as suas meninas, que se encontravam ao fundo do muro e começavam a descrever uma curva larga para regressarem à casa.
- Amo-a tanto - ouviu-se Manny a dizer. - É o meu coração que ali vai. Aquela é a minha mulher.
- Verdade.
Com a ligação profunda estabelecida entre os dois, Manny sentia-se em muitos aspetos como se estivesse em casa, e não queria pensar muito, receando que tais bênçãos
se desvanecessem.
Momentos depois, olhou para o lado.
- Importas-te que te faça uma pergunta.
- Força.
- O que é que me fizeste à merda do carro?
- O quê, estás a falar da música?
- Para onde é que foi a minha...
- Merda? - Olhos da cor de diamante cruzaram-se com os dele. - Se vais morar aqui, vais começar a ouvir aquilo que eu ouço, certo?
Manny abanou a cabeça.
- Deves estar a brincar comigo.
- Estás a dizer que não gostaste da batida?
- Pois. - Depois de tossicar, Manny cedeu. - Está bem, não eram péssimas de todo.
A gargalhada foi um bocadinho triunfante de mais.
- E sabia.
- Então e o que era?
- E agora, o gajo quer nomes. - O vampiro pegou num cigarro e acendeu-o. - Deixa ver... «Cinderella Man», do Eminem. «I Am Not a Human», do Lil Wayne. O Tupac...
A lista prosseguiu, e Manny foi ouvindo enquanto observava a sua mulher a cavalgar e afagava o peso do cruxifixo de ouro.
Ele e Payne estavam juntos... ia com Butch à igreja, à meia-noite... e Vishous não o esfaqueara. E, se bem se lembrava, o gémeo de Payne conduzia aquele Escalade
preto ali, e isso significava que a vingança seria uma carrada de Black Veil Bride, Bullet for My Valentine e Avenged Sevenfold a ser transferida para o sistema
de som do SUV.
Só pensar nisso já o deixava a sorrir.
Bem feitas as contas?
Sentia-se como se tivesse ganhado a lotaria. Em cada um dos cinquenta estados. Ao mesmo tempo.
Era essa a sorte de todos eles.

 

Glossário
ahmo (n.) - Termo respeitoso usado por alguém sexualmente submisso para se referir ao seu dominador.
ahstrux nohtrum (n.) - Guarda privado com licença para matar nomeado para o cargo pelo Rei.
caminhante (n.) - Indivíduo que morreu e regressou ao mundo dos vivos vindo do Vápido. São fortemente respeitados e reverenciados pelos seus feitos.
chrih (n.) - Símbolo de morte honrada na Língua Antiga.
comhpetição (n.) - Conflito entre dois machos que lutam pelo direito de ser o macho de uma determinada fêmea.
Dhunhd (n. próp.) - Inferno.
Dhuplo exhilado (n. próp.) - Gémeo maligno ou amaldicionado, aquele que nasceu em segundo lugar.
doggen (n.) - Membro da classe servil no mundo dos vampiros. Os doggens têm tradições antigas e conservadoras em relação ao serviço dos superiores, cumprindo regras
formais de roupagem e comportamento. São capazes de sair durante o dia, mas envelhecem relativamente depressa. A sua esperança de vida é de cerca de quinhentos anos.
ehros (n.) - Uma Escolhida, treinada nas artes sexuais.
Escolhidas (n.) - Vampiras que foram criadas para servir a Virgem Escrivã. São consideradas membros da aristocracia, embora tenham uma inclinação mais espiritual
do que temporal. Têm pouca ou nenhuma relação com os machos, mas podem acasalar com guerreiros, sob indicação da Virgem Escrivã, para propagarem a sua classe. Têm
a capacidade de fazer prognósticos. No passado eram usadas para servir as necessidades de sangue de membros da Irmandade sem parceira, mas a prática foi abandonada
pelos Irmãos.
Escravo de sangue (n.) - Vampiro macho ou fêmea subjugado para servir as necessidades de sangue de outro vampiro. A prática da manutenção de escravos de sangue foi
recentemente proibida.
ghuardião (n.) - Guarda de um indivíduo. Existem vários graus de guardiões, sendo o mais poderoso o de uma fêmea em isolamento.
glymera (n.) - O núcleo social da aristocracia, aproximadamente equivalente ao existente em Inglaterra no período da Regência (1811-1820).
hellren (n.) - Vampiro macho que foi acasalado com uma fêmea. Os machos podem tomar mais do que uma fêmea como parceira.
instruthor (n. próp.) - Palavra usada entre machos, a qual denota respeito e afeto mútuos. Traduzido livremente como «querido amigo».
Irmandade da Adaga Negra (n. próp.) - Guerreiros vampiros altamente treinados, que protegem a sua espécie contra a Sociedade dos Minguantes. Em resultado das práticas
de reprodução seletivas do próprio grupo, os Irmãos possuem uma enorme força física e mental, bem como capacidades inatas de cura rápida. Não são parentes entre
si, na sua maioria, e são admitidos na Irmandade por nomeação dos Irmãos. Agressivos, confiantes e reservados por natureza, existem à parte dos civis, tendo pouco
contacto com os membros de outras classes, exceto quando têm de se alimentar. São personagens de lenda e alvo de vénia dentro do mundo dos vampiros. Só podem ser
mortos por um ferimento muito grave, ou seja, um tiro ou uma facada no coração, ou algo semelhante.
isohlamento (n.) - Estatuto conferido pelo Rei a uma fêmea da aristocracia como resultado de uma petição por parte da sua família. A fêmea fica sob a direção de
um ghuardião, normalmente o macho mais velho da casa. Este fica com o direito legal de determinar todos os aspetos da vida da fêmea, restringindo, consoante a sua
vontade, todas as interações que ela tenha com o mundo.
leelan (n.) - Um termo de afeto, que pode ser livremente traduzido por «amada».
lewlhen (n.) - Dádiva.
Lhenihan (n. próp.) - Besta mítica afamada pelas proezas sexuais.
Em calão moderno refere-se a um macho de dimensão e resistência
sexuais preternaturais.
lidher (n.) - Uma pessoa com poder e influência.
Lys (n.) - Instrumento de tortura usado para remover os olhos.
mahmen (n.) - Mãe. Usado como designação ou como termo afetuoso.
mhis (n.) - O mascarar de um determinado ambiente físico; a criação de um campo de ilusão.
minguante (n.) - Humano desprovido de alma que caça vampiros para os exterminar como membro da Sociedade dos Minguantes. Para serem mortos os minguantes têm de ser
trespassados pelo coração; de resto, não têm idade. Não bebem nem comem e são impotentes. Com o tempo, o cabelo, a pele e as íris perdem a pigmentação, até que ficam
loiros, pálidos e de olhos incolores. Cheiram a pó de talco. Convocados para a sociedade por Ómega, guardam consigo um vaso de cerâmica onde o seu coração foi depositado
quando removido.
nalla (f.) ou nallum (m.) - Termo carinhoso que significa «amada/o».
newling (n.) - Uma virgem.
Ómega (n. próp.) - Figura malévola e mística que destinou os vampiros à extinção por causa do rancor contra a Virgem Escrivã.Existe num domínio não-temporal e tem
vastos poderes, exceto o poder da criação.
Período de necessidade (n.) - Tempo de fertilidade de uma vampira. Normalmente tem a duração de dois dias e é acompanhado de um intenso apetite sexual. Ocorre, mais
ou menos, cinco anos após a transição da fêmea, e uma só vez, uma década mais tarde. Todos os machos respondem, nalgum grau, se estiverem próximos de uma fêmea em
necessidade. Poderá ser um tempo de perigo, com conflitos e lutas entre os machos competidores, especialmente se a fêmea não tiver parceiro.
Primeira Família (n. próp.) - O Rei e a rainha dos vampiros e respetivos filhos.
princeps (n.) - Nível mais alto da aristocracia dos vampiros, apenas superado pelos membros da Primeira Família ou as Escolhidas da Virgem Escrivã. Têm de herdar
o título, o qual não pode ser conferido a ninguém.
prohtector (n.) - O equivalente a um padrinho ou madrinha de um indivíduo.
pyrocant (n.) - Refere-se a uma fraqueza crítica num indivíduo. A fraqueza pode ser interna, como um vício, ou externa, como um amante.
rahlman (n.) - Salvador.
ryto (n.) - Modo ritual de repor a honra, concedido por aquele que ofendeu. Caso aceite, o ofendido escolhe a arma e atinge o ofensor, que se lhe entrega sem defesa.
sehnhor (n.) - Termo indicador de respeito usado por alguém sexualmente dominado quando se refere do dominante.
shellan (n.) - Vampira que foi acasalada com um macho. Geralmente, as fêmeas não tomam mais do que um parceiro, devido à natureza altamente territorial dos machos
acasalados.
Sociedade dos Minguantes (n. próp.) - Ordem de matadores, convocada por Ómega com o propósito de erradicar a espécie dos vampiros.
sympath (n.) - Espécie dentro da raça dos vampiros com a capacidade e o desejo de manipular as emoções de outras pessoas (para obter uma troca de energia), entre
outras características. Historicamente têm sido discriminados e, durante certas eras, foram caçados por vampiros. Estão quase extintos.
transição (n.) - Momento crítico da vida de um vampiro, em que ele ou ela se transformam em adulto. A partir desse momento, terão de beber o sangue de alguém do
sexo oposto para sobreviverem e são incapazes de suportar a luz do Sol. Ocorre, em geral, entre os vinte e os trinta anos. Alguns vampiros não sobrevivem às suas
transições, em particular os machos. Antes das transições, os vampiros são fisicamente fracos, sexualmente inativos e incapazes de se desmaterializarem.
tremehndo (adj.) - Termo que se refere à potência do órgão sexual de um macho. A tradução literal é algo semelhante a «digno de entrar numa fêmea».
Tumba (n. próp.) - Jazigo sagrado da Irmandade da Adaga Negra. Usado como lugar de culto, bem como de armazém dos vasos dos minguantes. As cerimónias cumpridas naquele
lugar incluem induções, funerais e ações disciplinares aplicadas a Irmãos. Ninguém pode ali entrar, exceto os membros da Irmandade, a Virgem Escrivã ou os candidatos
à indução.
Vampiro (n.) - Membro de uma espécie separada da do Homo sapiens. Os vampiros têm de beber o sangue de alguém do sexo oposto para sobreviverem. O sangue humano mantê-los-á
vivos, embora a força não dure muito tempo. Após às suas transições, que ocorrem entre os vinte e os trinta anos de idade, são incapazes de sair para a luz do Sol
e têm de se alimentar com regularidade mordendo veias. Os vampiros não podem converter humanos através de uma dentada, ou da transferência de sangue, embora sejam
capazes, em casos raros, de acasalar com membros de outra espécie. Os vampiros podem desmaterializar-se conforme queiram, embora precisem de se acalmar e se concentrar
para o conseguir, não podendo carregar consigo nada que seja pesado. São capazes de roubar a memória a humanos, desde que essa memória seja de curta duração. Alguns
vampiros são capazes de ler a mente. A esperança de vida é superior a mil anos e, em alguns casos, ainda mais longa.
Vápido (n. próp.) - Domínio não-temporal onde os mortos se reúnem com os seus amados e passam a eternidade.
vinhgança (n.) - Ato de retribuição mortal, tipicamente levado a cabo por um macho para vingar a sua amada.
Virgem Escrivã (n. próp.) - Força mística que é conselheira do Rei, simultaneamente depositária dos arquivos e dispensadora de privilégios. Existe num domínio não-temporal
e tem vastos poderes. Teve a capacidade de um ato de criação singular, poder que usou para trazer os vampiros à existência.

Capítulo 40
Apenas breves momentos depois de Butch lhe ter ligado, Jane materializou-se na varanda da cobertura de V. Enquanto a sua forma ganhava volume, o ar gelado da noite
acariciou-lhe os cabelos e fez-lhe os olhos lacrimejarem.
Ou... talvez fossem mesmo lágrimas.
Olhando através do vidro, via tudo muito mais claramente: a mesa, os cílios, os chicotes, as... outras coisas.
Quando anteriormente ali tinha ido com Vishous, aqueles adereços das suas preferências extremas tinham parecido apenas um cenário provocador e ligeiramente assustador
para o incrível sexo que eles tinham. Mas a versão dela de «brincadeira sexual» era um caniche, quando comparada com os gostos de lobisomem dele.
E agora ela tinha perfeita noção.
O que é que Butch tinha usado? Em que estado estaria o seu companheiro? Haveria muito sangue ou...
Espera. Onde estava V?
Atravessando a porta envidraçada, ela...
Não havia sangue no chão. Nem a escorrer dos utensílios. Não havia correntes suspensas do teto. Tudo estava exatamente como da primeira vez que ali tinha estado,
como se nada tivesse acontecido...
De fora do círculo de velas ouviu-se um gemido e o som rasgou-lhe o pensamento. Claro. A cama.
Enquanto penetrava no véu de escuridão, os olhos ajustaram-se e ali estava ele. Debaixo de lençóis de seda, estendido de costas, a contorcer-se de dor... ou estaria
a dormir?
- Vishous? - chamou ela suavemente.
Com um grito, ele acordou instantaneamente, com o tronco a levantar-se como uma flecha, as pálpebras a abrirem-se muito. De imediato, ela verificou que o rosto tinha
cicatrizes já a desaparecerem... e havia mais à volta dos peitorais e também no abdómen. Mas a expressão dele foi o que a impressionou mais. Ele estava aterrorizado.
Abruptamente ouviu-se um resfolegar furioso, quando ele tirou os lençóis de cima do corpo. Ao olhar para si próprio, no peito e nos ombros começou a aparecer suor,
na sua pele instalou-se um brilho súbito, mesmo na escuridão, enquanto ele tapava o sexo com as mãos... como se estivesse a proteger o que restava.
Com a cabeça baixa, respirou profundamente. Inspirar. Expirar. Inspirar. Expirar...
O padrão transformou-se em soluços.
Enrolando-se, com as mãos a esconder o trabalho de carniceiro feito há muito, muito tempo, chorou com grandes soluços de emoção, sem reservas, sem controlo. A inteligência
já não dominava o seu reino, era súbdita deste.
Nem se apercebeu de que ela estava junto a ele.
Devia ir-se embora, pensou Jane. Ele não deveria querer que ela o visse naquele estado, nem mesmo antes de tudo se desmoronar entre eles. O macho que ela conhecia
e com quem tinha acasalado não deveria querer...
É difícil dizer o que é que chamou a atenção... e, mais tarde, ela tinha matutado na razão que o levara a escolher aquele momento exato em que ela se ia desmaterializar
para olhar para ela.
Ela ficou imediatamente incapacitada. Se ele tinha ficado irritado com o que acontecera com Payne, agora iria odiá-la. Não havia maneira de voltar atrás naquela
invasão de privacidade.
- O Butch telefonou-me - balbuciou ela. - Ele achou que tu...
- Ele magoou-me... O meu pai magoou-me.
As palavras eram tão fracas e gentis que quase não se ouviam. Mas quando conseguiu ouvir, o coração dela parou.
- Porquê? - perguntou Vishous. - Porque é que ele me fez isto? Porque é que a minha mãe me fez isto? Eu nunca pedi para nascer... e não os teria escolhido se qualquer
um deles me tivesse pedido a opinião... Porquê?
As suas faces estavam molhadas de lágrimas que lhe saltavam dos olhos de diamante, uma corrente interminável de que ele não tinha consciência, ou de que não queria
saber. E ela tinha a sensação de que a corrente demoraria a parar. Uma artéria interna tinha sido perfurada e este era o sangue do seu coração, correndo para fora
dele, cobrindo-o.
- Lamento muito - gorgolejou ela. - Não sei nenhum dos porquês... mas sei que não o merecias. E... que não tens culpa.
As mãos descobriram o sexo e ele fitou-o.
Passou muito tempo até ele falar outra vez e, quando o fez, as palavras eram lentas e ponderadas... e imparáveis, como as lágrimas silenciosas.
- Quem me dera estar completo. Quem me dera ter podido dar-te crianças se as quisesses e as pudesses gerar. Quem me dera ter-te dito que me matava pensares que eu
tinha estado com mais alguém. Quem me dera ter passado o ano anterior a acordar todas as noites e dizer-te que te amo. Quem me dera ter acasalado contigo como deve
ser na noite em que voltaste para mim vinda dos mortos. Quem me dera... - O olhar cintilante dele procurou o dela. - Quem me dera ter metade da força que tu tens
e quem me dera merecer-te. E... acho que é isto.
Pois. Certo. Agora estavam os dois desfeitos.
- Lamento o que aconteceu com Payne - disse ela, num tom rouco. - Eu queria falar contigo, mas ela estava decidida. Tentei argumentar, tentei mesmo, mas, no fim,
simplesmente... não queria... não queria que fosses tu a fazê-lo. Preferia ter vivido com a terrível verdade na consciência durante uma eternidade, a fazer com que
tivesses de matar a tua irmã. Ou levá-la a magoar-se ainda mais do que já estava.
- Eu sei... agora sei.
- E, honestamente, o facto de ela se ter curado? Dá-me arrepios só de pensar que quase falhámos.
- Está tudo bem, agora. Ela está bem.
Jane limpou os olhos.
- E acho que no que toca a... - Lançou uma olhadela para a parede, decorada com uma luz amarelada que não suavizava de maneira nenhuma os bicos afiados e as implicações
ainda mais cortantes do que poderia lá estar pendurado. - No que toca a... estas coisas... sobre os teus hábitos sexuais, eu sempre me preocupei com o facto de não
ser suficiente para ti.
- Porra... não... tu és tudo para mim.
Jane colocou a mão sobre a boca para não perder completamente o controlo. Porque era precisamente o que ela precisava de ouvir.
- Nem sequer tatuei o teu nome nas minhas costas - disse V. - Achei que era uma estupidez e uma perda de tempo... mas como é que podes sentir que somos companheiros
sem isso... especialmente quando todos os machos do complexo foram marcados para a sua shellan?
Meu deus, ela nunca tinha pensado nisso.
V abanou a cabeça.
- Deste-me espaço... para poder estar com o Butch e lutar com os meus irmãos e fazer as minhas cenas na Internet. O que é que eu te dei?
- Para começar, a minha clínica. Não a poderia ter construído sem ti.
- Não é exatamente um ramo de rosas.
- Não subestimes as tuas capacidades de carpinteiro.
Ele esboçou um sorriso ao ouvir isto. E depois ficou outra vez sério.
- Posso dizer-te uma coisa que pensei todas as vezes que acordei ao teu lado?
- Por favor, diz.
Vishous, aquele que tinha sempre uma resposta para tudo, parecia ter a língua presa. Mas finalmente disse:
- És a razão que me faz sair da cama todas as noites. E és a razão que me faz querer voltar para casa todas as madrugadas. Não é a guerra. Não são os Irmãos. Nem
sequer é o Butch. És... tu.
Oh, palavras tão simples... mas o seu significado. Deus do céu, o significado.
- Deixas que eu te abrace agora? - pediu ela curtamente.
O companheiro estendeu os braços enormes.
- E se for eu a abraçar-te?
Enquanto saltava para a frente e mergulhava nele, contrapôs:
- Não tens de ser tu ou eu.
Ficou completamente sólida sem qualquer esforço, a química interna mágica entre eles a materializá-la e mantê-la ali. E quando Vishous enterrou a cabeça nos seus
cabelos e estremeceu como se tivesse corrido uma grande distância e finalmente tivesse chegado a casa... ela soube exatamente como ele se sentia.
Com a shellan a arder contra ele, V sentia-se como se tivesse sido completamente desfeito... e depois remontado.
Cristo, o que Butch tinha feito por ele. Por todos eles.
O caminho que o chui escolhera tinha sido o correto. Horrífico e terrível... mas absolutamente certo. E agora, enquanto abraçava a sua fêmea, os olhos percorriam
o espaço onde tudo acontecera. Tinha sido tudo limpo... exceto uma ou outra coisa que estava fora do sítio no chão. Uma colher e um copo praticamente vazio de um
líquido que só podia ser água.
Tinha sido tudo uma ilusão. Nada o tinha de facto rasgado. E ele era capaz de apostar que Butch tinha deixado aquelas duas coisas centradas e à vista para quando
V acordasse e olhasse em volta perceber quais tinham sido os meios que tinham conduzido àquele fim.
Em retrospetiva, parecia tudo tão estúpido... não a sessão com o chui, mas o facto de V nunca ter realmente pensado no Derramador de Sangue todos esses anos no campo
de guerra. A última vez que essa memória do passado tinha surgido, fora quando Jane estivera com ele a primeira vez, e nessa altura só tinha acontecido porque ela
o tinha visto nu e ele tinha sentido necessidade de explicar.
O meu pai não queria que eu reproduzisse.
Era basicamente tudo o que ele tinha para dizer sobre o assunto. E depois, como um corpo morto que tivesse ficado com a cara para cima em águas paradas, essa merda
tinha-se afundado outra vez, instalando-se novamente na margem arenosa do rio no mais profundo do seu ser.
AJ, ou Antes de Jane, ele só tinha tido sexo com as calças vestidas. Não por vergonha - ou pelo menos isso era o que ele dizia a ele próprio - mas simplesmente porque
não estivera interessado em entrar nesses pormenores com os machos e fêmeas anónimos que tinha fodido.
DJ? Tinha sido diferente. A nudez era mais do que normal, provavelmente porque Jane tinha mantido a cabeça fria com a revelação. E contudo, quando pensava nisso
agora, tinha-a sempre abraçado a uma certa distância, mesmo que ela estivesse aninhada nos seus braços. Quanto muito, tinha estado mais próximo de Butch - mas isso
era macho-com-macho, o que era, de algum modo, menos ameaçador do que macho-com-fêmea.
A questão relacionava-se com as Sombras da Mamã, sem dúvida. Depois de tudo o que a mahmen tinha feito, ele simplesmente não conseguia confiar nas fêmeas como confiava
nos irmãos ou no melhor amigo.
Mas Jane nunca o tinha traído. Na verdade, ela estava disposta a lutar com a sua própria consciência para o salvar do ato indescritível que a irmã lhe exigia.
- Não és a minha mãe - disse para o cabelo da shellan.
- Podes ter a certeza que não. - Jane afastou-se e fitou-o como costumava fazer. - Eu nunca teria abandonado o meu filho. Ou tratado a minha filha daquela maneira.
V inspirou profundamente e, quando soltou o oxigénio para fora dos pulmões, sentiu-se como se estivesse a expelir os mitos pelos quais se autodefinira... e a Jane...
e ao relacionamento entre ambos.
Tinha de mudar de paradigma.
Por eles. Por si próprio. Por Butch.
Cristo, a expressão no rosto do chui quando as coisas tinham acontecido tinha sido para lá de trágica.
Por isso, sim, era altura de parar de utilizar merdas exteriores para automedicar as emoções. O sexo extremo e a dor tinham parecido soluções excelentes durante
muito tempo, mas, na verdade, não passavam de uma forma de cobrir as borbulhas. A fealdade tinha continuado dentro de si.
O que ele tinha de fazer era lidar com a merda interior, para não precisar que Butch ou qualquer outra pessoa o subjugasse só para ele poder libertar-se. Assim,
estas perversões poderiam ser mesmo só para ter prazer com Jane.
Controlar as suas merdas - parecia que ele estava finalmente preparado para tentar a versão psiquiátrica do Proactiv.
Se não tivesse cuidado, ainda acabava na televisão, fitando uma câmara e dizendo: «Tudo o que é preciso é um pouco de Autoconsciência... e depois purifico-me com
a Lavagem de Autodefinição patenteada e a minha mente e as minhas emoções ficam limpinhas e a brilhar...»
Ok, agora estava a ficar com parafusos a menos, a sério.
Acariciando o cabelo macio de Jane, murmurou:
- Sobre... as coisas que tenho aqui. Se quiseres brincar, eu também vou querer... se percebes o que quero dizer. Mas, a partir de agora, é só para nos divertirmos
e só para nós os dois.
Diabos, eles tinham tido uma grande quantidade de sexo bizarro e muito bom naquele sítio, cheio de cabedal, e ele continuava a querer ter isso com ela. Tinha esperança
que ela sentisse o mesmo...
- Eu gosto do que fazemos aqui. - Ela sorriu. - Excita-me.
Bem... e não é que isto fez o membro dele pulsar?
- Eu também.
Quando lhe sorriu de volta, reconheceu o único senão da ideia. Todo este virar-uma-nova-página estava muito bem, mas como é que ele ia fazer isso? Amanhã à noite
já não se podia dar ao luxo de acordar e ser aquele que passou das marcas.
Merda, ele achava que ia descobrir uma maneira. Não ia?
Com um toque gentil, acariciou a face da shellan.
- Nunca tive uma relação antes de estar contigo. Já devia imaginar que havíamos de bater contra uma parede em alguma altura.
- Faz parte da coisa.
Pensou nos irmãos e na quantidade de vezes em que tinha havido contratempos, lutas e discussões entre esse grupo de lutadores machões. De alguma forma, tinham sempre
dado a volta ao assunto, regra geral andando à pancada uns com os outros de vez em quando. O que era uma coisa de macho.
Claramente, ele e Jane seriam iguais. Não à pancada, claro, mas em relação aos obstáculos do caminho e à sua eventual resolução. Afinal de contas, a vida era aquilo...
não um conto de fadas.
- Mas sabes o que é melhor nisto tudo? - indagou Jane, enquanto lançava os braços à volta do seu pescoço.
- Já não sinto que morri por não estares na minha vida?
- Bem, isso também. - Esticou o pescoço e beijou-o. - Duas palavras: sexo de fazer as pazes.
Ohhhhhh, siiiiiiiim. Mas...
- Espera, isso são duas palavras? Alargaste a expressão?
- Alarguei na minha cabeça. Mas acho que tanto faz.
- Não será antes apenas «fazer as pazes»?
- Também é uma possibilidade. - Pausa. - Alguma vez te disse que és o geek mais sensual que já conheci?
- Revejo-me nesse comentário. - Mergulhou a cabeça e roçou a boca contra a dela. - Mas não digas a ninguém. Tenho uma reputação de durão para manter.
- O teu segredo está seguro comigo.
V ficou sério.
- Eu estou seguro contigo.
Jane afagou-lhe o rosto.
- Não posso prometer que não vás encontrar mais obstáculos no caminho, nem que vamos estar sempre de acordo. Mas tenho uma certeza... estarás sempre seguro comigo.
Sempre.
Vishous aproximou-a e encostou a cabeça no seu pescoço. Ele assumira que não havia mais nada para explorar depois de ela ter morrido e ter voltado para ele na sua
adorável forma fantasmagórica. Mas estava enganado. O amor, apercebeu-se, era como os punhais que criava na forja. Quando surgia um novo, era lustroso e a lâmina
cintilava à luz. Segurando-o na palma da mão, dava otimismo quanto ao desempenho em ação e mal podia esperar para o experimentar. Mas as primeiras duas noites eram
geralmente estranhas, enquanto se habituava a ele e ele a si.
Com o tempo, o aço perdia o brilho da novidade e o punho ficava manchado e às vezes talvez fosse necessário tirar-lhe merda de cima. Contudo, em troca, salva-te
a vida. Uma vez habituados um ao outro, torna-se parte de ti, como uma extensão do teu próprio braço. Protege-te e dá-te uma maneira de protegeres os irmãos. Dá-te
confiança e poder para enfrentares o que quer que surja na noite e, onde quer que vás, está contigo, junto ao teu coração, sempre ali quando precisas ele.
No entanto, tens de manter a lâmina afiada. E remendar o punho de vez em quando. E verificar o peso.
Engraçado... tudo isso era evidente quanto se tratava de armas. Porque é que não se tinha apercebido que era a mesma coisa com o acasalamento?
Revirando os olhos, pensou que talvez a Hallmark estivesse disposta a estabelecer uma linha de postais do Dia dos Namorados inspirada na medievalidade, uma coisa
do tipo Sacro-Gótico-Suave. Ele seria perfeitamente adequado para fornecer material.
Com os olhos fechados e abraçado a Jane, estava quase feliz por ter perdido a cabeça, só para poderem ter chegado àquele momento.
Bem, ele teria escolhido um caminho mais fácil, se houvesse. Mas não tinha a certeza de o resultado ter sido este. Era preciso merecer.
- Tenho uma pergunta para fazer - disse ele, gentilmente.
- O que quiseres.
Afastando-se um pouco, afagou-lhe o cabelo com a mão enluvada e passou algum tempo até se decidir a perguntar o que tinha na ponta da língua.
- Deixas-me... fazer amor contigo?
* * *
Enquanto Jane fitava Vishous e sentia o corpo dele contra o seu, soube que nunca o deixaria. Nunca. E também reconheceu que, se conseguiram sobreviver à última semana,
era porque era um bom casamento - acasalamento - e nada os poderia agora deter.
- Sim - respondeu ela. - Por favor...
O seu hellren tinha-a procurado tantas vezes desde que estavam juntos. De noite e de dia; no duche e na cama; vestidos, despidos, meio vestidos; depressa e com vigor...
Nele, a sensação de limite tinha sempre feito parte da excitação. Isso e a imprevisibilidade. Ela nunca sabia o que esperar. Se ele lhe ia exigir coisas ou controlar
o seu corpo ou controlar-se para ela poder fazer com ele o que quisesse.
Contudo, ele nunca ia devagar.
Agora, afagava-lhe o cabelo, percorrendo com os dedos os caracóis e prendendo-os atrás das orelhas. E, então, os olhares cruzaram-se e as bocas juntaram-se suavemente.
Afagando e acariciando, lambeu-lhe os lábios mas, quando ela os abriu, ele não mergulhou logo como era habitual. Continuou a beijar... até ela se sentir tonta com
o sugar e arrastar de carne contra carne.
O corpo dela costumava ansiar por isto. Agora, contudo, uma sensação deliciosa percorria-a, descontraindo-a e deixando-a à vontade, despertando uma excitação pacífica
que, de certa forma, era tão profunda e perturbadora como a paixão desesperada que habitualmente sentia.
Quando ele mudou de posição, ela acompanhou-o, deitando-se completamente de costas, enquanto ele se elevava e cobria o corpo dela com o dele. Continuaram a beijar-se
e ela estava tão compenetrada nesse beijo que nem se apercebeu quando ele deslizou a mão por baixo da camisa dela. A palma quente da sua mão foi subindo, parando-lhe
nos seios... explorando e acariciando. Sem provocar, sem beliscar, sem apertar. Só o polegar a passar para trás e para a frente pelo mamilo, até ela se arquear e
gemer.
As mãos dela exploraram-lhe as costas e - ó, meu Deus, lá estava o padrão de marcas que ela conhecia. E continuaram a explorar completamente o tronco dele...
Vishous segurou-lhe os pulsos e pressionou os braços dela contra a cama.
- Não penses nisso.
- O que é que ele...
- Shh.
Continuaram a beijar-se e ela tentou lutar contra ele, mas cada um dos impulsos para se soltar mergulharam suavemente o seu cérebro em sensações.
Não valia a pena pensar mais no assunto, disse a si própria. O que quer que tivesse acontecido tinha-os ajudado chegar ali.
Era tudo o que ela precisava de saber.
A voz de Vishous ecoou no seu ouvido, profunda, cava.
- Quero tirar-te a roupa. Posso?
- Por favor. Sim... ó meu Deus, sim.
Despi-la fazia parte do prazer, o meio tão glorioso como o fim, que os levaria a estar juntos pele-contra-pele. E, de alguma forma, a revelação gradual daquilo que
já vira tantas vezes fazia com que fosse novo e especial.
Os seus seios endureceram ainda mais quando o ar frio os envolveu e ela observou-o enquanto ele a fitava. Estava lá o desejo, mas também havia muito mais... reverência,
gratidão... uma vulnerabilidade que ela tinha pressentido, mas que nunca antes tinha visto claramente.
- És tudo aquilo de que preciso - afirmou ele enquanto mergulhava nela.
As suas mãos estavam em todo o lado, na barriga, nas ancas, entre as pernas.
No seu sexo molhado.
O orgasmo que ele lhe deu foi uma onda quente que trespassou todo o seu corpo, irradiando para fora, assumindo o controlo numa nuvem divina de prazer. E, entretanto,
ele montou-a e deslizou para dentro dela. Sem repelões, apenas a continuação da onda, dentro e fora dela, enquanto o seu corpo ondulava e a ereção dele entrava e
saía.
Sem pressas, apenas um amor tranquilo.
Sem urgência, apenas todo o tempo do mundo.
Quando ele finalmente se veio, com uma última ondulação da espinha e a pulsar no interior dela, ela acompanhou-o, os dois enrolados juntos um ao outro, fundidos,
corpo... e alma.
Fazendo-a girar, trouxe-a para cima dele e ela ali ficou, cravada no peito duro e musculado, lânguida como uma brisa de verão e igualmente leve. Ela estava a flutuar
e quente e...
- Estás bem? - perguntou Vishous ao olhar para ela.
- Mais do que bem. - Procurou o rosto dele. - Sinto-me como se tivesse feito amor contigo pela primeira vez.
- Ótimo - respondeu ele. - Era essa a ideia.
Deitando a cabeça junto ao coração pulsante dele, olhou para a parede por trás da mesa. Nunca pensou vir a ficar agradecida àquele monte de «brinquedos» aterradores,
mas estava. No meio da tempestade... tinham encontrado a tranquilidade.
Antes separados... eram agora outra vez um só.
Capítulo 41
Na mansão, Qhuinn andava às voltas no seu quarto como um rato à procura de uma saída da gaiola. Com tanta merda a acontecer e Wrath obrigava-o a ficar ali.
Mas que maravilha.
Ao passar mais uma vez pela porta aberta da casa de banho, pensou que o facto de a quarentena fazer todo o sentido ainda o chateava mais. Só ele, John e Xhex é que
não tinham sofrido ferimentos até agora. Todos os outros estavam naquela multidão e já tinham sido escortanhados de uma maneira ou de outra.
Por ali era a Casa del Toca-a-Curar.
Mas porra, eles os três podiam ter saído para se vingarem.
Parando em frente às portas da varanda, olhou para o jardim bem tratado que estava à beira de começar a florir. Com as luzes apagadas no quarto, conseguia ver claramente
a piscina com a cobertura de inverno esticada por cima assemelhando-se à cinta adelgaçante maior que o mundo alguma vez vira. E as árvores ainda estavam, na sua
grande maioria, nuas. E os canteiros não eram ainda...
Blay tinha sido ferido.
... mais do que retângulos ordenados de terra castanha-escura.
- Merda.
Esfregando o cabelo agora curto, tentou lidar com a pressão que sentia no centro do peito. Segundo John, Blay tinha sido atingido na cabeça e esfaqueado na barriga.
A pancada na cabeça estava a ser monitorizada e o corte tinha sido suturado pela Doc Jane. Nenhum dos ferimentos lhe punha em risco a vida.
Estava tudo bem.
O pior é que o seu esterno não estava a aceitar essa conversa fiada. Desde que John Matthew lhe contara as novidades, aquela maldita dor tinha-se instalado, moendo-o,
confortavelmente aninhada nas suas vias respiratórias.
Não conseguia, literalmente, respirar fundo.
Que merda, se ao menos fosse um macho maduro - e, tendo em conta a forma como às vezes resolvia as coisas, era contestável, se não mesmo incorreto, considerá-lo
como tal - iria para o corredor, marchava até ao quarto de Blay e batia-lhe à porta. Espreitava para se certificar de que o ruivo ainda tinha o coração a bater e
que estava bom da cabeça... e depois ia à sua vida.
Em vez disso, tentava fingir que não estava a pensar nele, enquanto fazia um buraco na carpete.
Enquanto pensava tudo isto, continuava a andar de um lado para o outro. Ele preferia estar na sala de musculação, mas o facto de Blaylock estar aqui nesta ala era
uma amarra que o mantinha preso nas redondezas. Sem uma razão suficientemente forte para se afastar, como sair para lutar ou... digamos... a casa estar a arder,
ele era evidentemente incapaz de se libertar.
E, quando estava outra vez à frente das portas de vidro, teve um indício do porquê.
Tentou convencer a palma da sua mão a não tocar no puxador.
Não foi bem-sucedido.
A fechadura abriu-se e o ar frio embateu-lhe violentamente no rosto. Saindo para a varanda descalço e de roupão, mal se apercebeu de que o chão estava absolutamente
gelado ou que uma brisa fria lhe subia pelas pernas e lhe atingia diretamente os testículos.
Lá em cima, saía luz das portas duplas do quarto de Blay. O que era uma boa notícia pois de certeza que correriam os cortinados antes de fazerem sexo.
Por isso, provavelmente era seguro espreitar. Certo...?
Além disso, Blay estava a recuperar de um ferimento, logo não podia andar às cambalhotas ali dentro.
Decidindo-se a assumir o papel de Qhuinn Espião, manteve-se nas sombras e tentou não se sentir como um mirone enquanto caminhava em bicos de pés. Quando se aproximou
da porta, preparou-se mentalmente, espreitou e...
Respirou fundo, aliviado.
Blay estava sozinho na cama, escarranchado contra a cabeceira, com o roupão preto atado na cintura, os tornozelos cruzados, os pés com meias pretas. Tinha os olhos
fechados e as mãos repousavam sobre a barriga, como se estivesse a ser cuidadoso com as partes ainda enroladas em ligadura.
Um movimento fez com que Blay abrisse as pálpebras e olhasse na direção oposta à janela. Era Layla a sair da casa de banho e estava a andar muito lentamente. Trocaram
algumas palavras. Estava a agradecer-lhe, sem dúvida, pela alimentação que acabara de receber e ela estava a dizer-lhe que o prazer era todo dela. Não era uma surpresa
que ela aqui estivesse. Já tinha feito a ronda da casa anteriormente e Qhuinn já se tinha cruzado com ela antes da primeira refeição... ou daquilo que teria sido
a primeira refeição se alguém tivesse aparecido.
E quando ela saiu do quarto de Blay, Qhuinn esperou que Saxton entrasse. Nu. Com uma rosa vermelha nos dentes. E uma maldita caixa de chocolates.
E uma ereção que fazia com que o Monumento a Washington parecesse atarracado.
Nada.
Apenas Blay deixando cair a cabeça para trás e as suas pálpebras a fecharem-se. Parecia completamente exausto e, pela primeira vez, velho. Aquele não era um rapaz
que acabara de fazer a transição. Aquele era um macho de raça pura.
Um incrivelmente belo... macho... de raça pura.
Na sua mente, Qhuinn viu-se a si próprio a abrir a porta e entrar. Blay olharia e sentar-se-ia na cama... mas Qhuinn faria um gesto para ele se voltar a deitar enquanto
entrava.
Perguntaria pelo ferimento. E Blay abria o roupão para lhe mostrar.
Qhuinn esticaria o braço e tocaria na ligadura... e depois deixaria os dedos saírem da gaze e do adesivo para a pele quente e suave da barriga de Blay. Este ficaria
chocado, mas nesta fantasia ele não afastaria a mão... Levá-la-ia mais abaixo, para lá do ferimento, em direção às ancas e...
- Foda-se!
Qhuinn deu um salto para trás, mas era tarde de mais. Saxton tinha entrado no quarto, ido até à janela e começado a fechar as cortinas. E enquanto o fazia, tinha
visto o idiota do lado de fora na varanda armado em câmara de segurança.
Enquanto Qhuinn dava meia volta para regressar rapidamente ao seu quarto, pensava Não abras a porta... não abras a porta...
- Qhuinn?
Caçado.
Imóvel como um ladrão apanhado com um ecrã de plasma debaixo do braço, certificou-se de que o roupão estava fechado antes de se virar. Merda. Saxton estava a entrar
na varanda e o sacana também estava de roupão.
Bem, aparentemente andavam todos de roupão. Até Layla estava de robe.
Quando Qhuinn encarou o primo, apercebeu-se de que não tinha trocado com ele mais de duas palavras desde que ele se mudara para cá.
- Só queria saber como ele estava. - Não valia a pena dizer o nome - era absolutamente óbvio quem é que ele estava a espiar.
- O Blaylock agora está a dormir.
- Alimentou-se? - perguntou, mesmo sabendo a resposta.
- Sim.
Saxton fechou a porta atrás de si, sem dúvida para o frio não entrar, e Qhuinn tentou ignorar o facto de ele ter os pés e os tornozelos nus à vista. Porque a probabilidade
era que o resto também estivesse.
- Ah, desculpa incomodar-te - balbuciou Qhuinn. - Tem uma boa n...
- Podias ter batido à porta. Do lado do corredor.
Disse as palavras com um tom aristocrático que fazia Qhuinn ficar completamente tenso. Não por odiar Saxton. Simplesmente fazia-o demasiado lembrar-se da família
que tinha perdido.
- Não queria incomodar-te. Incomodá-lo. Incomodar nenhum dos dois.
Quando uma rajada de vento atingiu a varanda, o cabelo louro inacreditavelmente firme e ondulado de Saxton nem sequer ficou um bocadinho desalinhado, como se cada
cabelo, até ao folículo, estivesse tão bem composto e cuidado que não era afetado por... nada.
- Qhuinn, não interrompias nada.
Mentiroso, pensou Qhuinn.
- Chegaste primeiro, primo - murmurou Saxton. - Se querias vê-lo, ou estar com ele, deixá-los-ia a sós.
Qhuinn pestanejou. Então... tinham uma relação aberta? Mas que raio?
Ou espera... talvez ele tivesse feito um bom trabalho a convencer não só Blay, mas também Saxton, de que não estava interessado em nada de sexual com o seu melhor
amigo.
- Primo, posso falar honestamente?
Qhuinn aclarou a garganta.
- Depende do que tenhas para dizer.
- Sou amante dele e...
- Epá... - Levantou a mão para o interromper. - Isso não é da minha conta.
- ... não sou o amor da vida dele.
Qhuinn pestanejou outra vez. E então, por um segundo, foi projetado para um local onde o primo lhe fazia graciosamente uma vénia e ele era tão bom como o filho da
puta. Só que havia uma falha enorme nesta fantasia. Blay já não queria nada com ele.
Ele próprio levara a esse resultado ao longo de muitos anos.
- Entendes o que te estou a dizer, primo? - Saxton manteve um tom de voz baixo, apesar de o vento estar a uivar e a porta estar fechada. - Estás a ouvir-me?
Ok, Qhuinn não tinha antecipado ser encostado contra essa parede naquela noite... ou em qualquer outra noite. Que merda, o seu corpo estava subitamente todo a pulsar
e ele quase tinha vontade de dizer ao primo para dar de frosques e ir dar banho ao cão ou qualquer coisa do género, ou melhor ainda, para desaparecer de vez.
Só que então pensou na aparência envelhecida de Blay. Ele tinha finalmente encontrado um caminho na vida e seria um crime injusto deitar tudo isso a perder ali no
escuro.
Qhuinn abanou a cabeça.
- Não está certo.
Não para Blay.
- És um palerma.
- Não. Mas costumava ser.
- Permite-me discordar. - A mão elegante de Saxton juntou mais as lapelas do roupão. - Se me dás licença, é melhor voltar para dentro. Está muito frio aqui fora.
Bem, era mesmo uma metáfora do caraças.
- Não lhe digas nada - pediu Qhuinn secamente. - Por favor.
Saxton semicerrou os olhos.
- O teu segredo está mais do que seguro comigo. Confia em mim.
E, dizendo isto, virou-se e voltou para o quarto de Blaylock, fechando a porta no trinco e tapando a luz ao fechar os pesados cortinados.
Qhuinn coçou a cabeça outra vez.
Parte dele queria entrar por ali dentro e dizer, Mudei de ideias, primo: agora põe-te a andar daqui para fora para eu poder...
Dizer a Blay o que tinha dito a Layla.
Mas era bem possível que Blay estivesse apaixonado por Saxton, e Deus sabia que Qhuinn já tinha fodido o seu melhor amigo demasiadas vezes.
Ou não, como era o caso.
Quando eventualmente regressou ao quarto, só porque era demasiado patético estar ali fora a fitar a porcaria das cortinas, apercebeu-se de que a sua vida girava
sempre em torno de si próprio. Do que ele queria. Precisava. Tinha de ter.
O antigo Qhuinn teria entrado por aquele buraco...
Detendo-se, tentou não terminar aquela frase demasiado literalmente.
A verdade era que o ditado ridículo e lamechas estava certo: quando se ama alguém, libertamo-lo.
Já no quarto, sentou-se na cama. Olhando em volta, viu a mobília que não tinha comprado... e decorações fabulosas, mas anónimas e nada ao seu estilo. A única coisa
que lhe pertencia eram as roupas no armário, a lâmina na casa de banho e os ténis de corrida que atirara para o chão quando chegara.
Era tal e qual como em casa dos pais.
Bem, ali, verdade fosse dita, as pessoas valorizavam-no. Mas no que tocava a ter uma vida, não tinha uma realmente sua. Era o protetor de John. O soldado da Irmandade.
E...
Merda, agora que já não se abandonava ao seu vício de sexo, a lista acabava aí.
Encostando-se à cabeceira, cruzou os pés e ajeitou o roupão. A noite estendia-se com um tédio horrível onde nada acontecia, como se ele estivesse a conduzir e conduzir
e conduzir ao longo do deserto... e pela frente esperavam-no mais noites como aquela.
Meses todos iguais.
Anos.
Pensou em Layla e no conselho que lhe tinha dado. Porra, estavam os dois exatamente na mesma posição, não estavam?
Fechando os olhos, ficou aliviado quando a sua mente começou a vaguear. Mas teve a sensação de que a paz encontrada não duraria muito.
E estava certo.
Capítulo 42
No Hospital Equino de Tricounty, Manny ficou parado enquanto Glory lhe cabeceava a roupa, e ele sabia que talvez a devesse deixar. Descobriu, contudo, que era incapaz
de se separar, e a Payne também, do cavalo.
O tempo esgotava-se para a sua Glory e isso era como se o matassem. Mas não a podia deixar a definhar, mais magra e aleijada a cada dia que passava. Merecia muito
mais do que isso.
- Ama-la - comentou Payne, em voz baixa, com a mão pálida a percorrer as costas da puro-sangue e a descer-lhe até à anca.
- Pois. É verdade.
- Ela tem muita sorte.
Não. Estava a morrer e isso era uma maldição.
Pigarreou.
- Acho que temos de...
- Doutor Manello?
Manny chegou-se atrás e olhou sobre a porta da baia.
- Olá, doutor. Como está?
O veterinário se aproximou e o smoking que usava parecia tão deslocado como uma forquilha num camarote da ópera.
- Estou bem... e você parece muito bem. - O homem endireitou o laço. - Estou com este fatinho porque venho do Met. Mas tinha de aqui passar para ver como estava
a sua menina.
Manny saiu e ofereceu-lhe a mão.
- Eu também.
Ao apertarem as mãos, o veterinário olhou para o interior da baia - e ficou de olhos arregalados quando viu Payne.
- Ah... olá.
Quando Payne ofereceu ao homem o esboço de um sorriso, o bom doutor pestanejou como se o sol tivesse rasgado as nuvens, brindando-o com o seu brilho.
Ceeeeeerto, Manny estava mais do que farto de ter sacanas a mirarem-na assim.
Interpondo-se, perguntou:
- Será que a podemos pôr em alguma suspensão? Para lhe aliviar a pressão?
- Prendemo-la umas horas por dia. - Enquanto respondia, o veterinário chegou-se para o lado até que Manny se viu obrigado a segui-lo com o tronco para lhe bloquear
a visão. - Não quero correr o risco de termos problemas gastrointestinais ou respiratórios.
Farto da inclinação e querendo poupar Payne ao rumo da conversa, Manny segurou o braço do homem e chegou-o para o lado.
- Qual o próximo passo?
O veterinário esfregou os olhos, como se desse à mente um instante para se ordenar.
- Sinceramente, doutor Manello, não tenho um bom pressentimento quanto ao ponto em que nos encontramos. Aquele outro casco está a ceder, e mesmo tendo feito todos
os possíveis para o tratar, ele não está a reagir.
- Tem de haver mais qualquer coisa.
- Sinto muito, a sério.
- Quanto tempo até termos a certeza...
- Já a tenho. - O olhar do homem estava absolutamente carregado. - Foi por isso que cá vim esta noite... estava à espera de um milagre.
Pois, já eram dois.
- E se ficasse um bocado com ela - aventou o veterinário. - Demore o tempo que quiser.
Que era jargão clínico para Despeça-se.
O veterinário levou brevemente a mão ao ombro de Manny, depois virou-se e afastou-se. De saída olhou para cada baia, confirmando os pacientes e afagando um focinho
ocasional.
Um bom homem. Um indivíduo meticuloso.
Do tipo que faria tudo o que pudesse antes de apresentar o cenário com a pior das hipóteses.
Manny respirou fundo e tentou convencer-se de que Glory não era um animal de estimação. As pessoas não tinham cavalos de corrida como animais de estimação. E ela
merecia mais do que sofrer numa baia acanhada até que ele reunisse coragem suficiente para fazer o que tinha de ser feito.
Levando a mão ao peito, esfregou a cruz que tinha por baixo da roupa e sentiu um impulso súbito de ir à igreja...
Começou apenas por reparar que as sombras estavam a ficar mais escuras na parede do outro lado do corredor. E depois pensou que talvez alguém tivesse acendido as
luzes do teto.
Acabou por notar que a iluminação vinha da baia de Glory.
Mas... o que...
Deu meia volta e estacou... e depois teve de recuperar o equilíbrio.
Payne estava de joelhos na serradura macia, as mãos nas patas anteriores do cavalo, os olhos fechados, as sobrancelhas franzidas.
E o corpo brilhava-lhe com uma luz forte e bela.
Acima dela, Glory estava imóvel, mas a pelagem estremecia e os olhos reviravam-se-lhe na cabeça. Breves resfôlegos subiam-lhe pelo pescoço comprido e saíam-lhe pelas
narinas dilatadas... como se dominada por uma sensação de alívio, de dor a amainar.
As patas anteriores feridas brilhavam ao de leve.
Manny não se mexeu, não respirou, nem sequer pestanejou. Limitou-se a agarrar a cruz ainda com mais força... e a rezar para que ninguém viesse interromper aquilo.
Não teve noção de quanto tempo ali ficaram os três, mas acabou por se tornar óbvio que Payne estava a ressentir-se do esforço. O corpo começou a vibrar e a respiração
dela tornou-se irregular.
Manny entrou na baia e libertou-a de Glory, segurando-lhe o corpo frouxo contra o seu e afastando-se, para o caso de a égua se assustar ou fazer algo imprevisível.
- Payne? - Cristo...
As pálpebras dela estremeceram e abriram-se.
- Consegui... ajudá-la?
Manny afagou-lhe o cabelo enquanto olhava a poldra. Glory estava de pé, a erguer um casco e depois o outro, regressando depois ao primeiro, como se tentasse perceber
o que provocara o conforto abrupto. Depois abanou-se... e foi mordiscar o feno onde ainda não tocara.
Quando o maravilhoso som de erva seca a ser roída preencheu o silêncio, Manny olhou para Payne.
- Conseguiste - disse-lhe, num tom rouco. - Acho que conseguiste.
Os olhos dela pareceram esforçar-se por se focar.
- Não queria que a perdesses.
Assoberbado por uma gratidão para a qual não tinha palavras, Manny abraçou-a mais junto ao peito e aí a manteve durante alguns instantes. Queria continuar assim
muito mais tempo, mas ela não estava com bom aspeto e só Deus sabia quem mais se teria apercebido do espetáculo de luzes. Tinha de os tirar dali.
- Vamos até minha casa - sugeriu. - Para te poderes deitar.
Quando ela assentiu, Manny içou-a nos braços e raios o partissem se não era uma sensação perfeita. Ao fechar a baia atrás deles, olhou para Glory. O cavalo devorava
o feno como se fosse acabar o mundo.
Santa mãe... teria mesmo resultado?
- Volto amanhã - disse-lhe, antes de se afastar, animado por uma sensação incandescente de esperança.
Junto à casita do guarda, sorriu e encolheu os ombros ao segurança.
- Houve alguém a fazer turnos duplos no hospital. Está exausta.
O homem levantou-se da cadeira, como se a mera presença de Payne, mesmo inconsciente, chegasse para lhe prender a atenção.
- É melhor levá-la para casa. É preciso cuidar bem de uma mulher dessas.
Grande verdade.
- É para lá que eu vou.
Movendo-se rapidamente, chegou à receção e esperou pelo sinal do trinco para que pudesse abrir as derradeiras portas. Com um pouco de sorte, o veterinário não teria
visto nada...
- Obrigado, meu Deus - resmungou Manny ao ouvir o zumbido e aplicar a anca contra a porta.
Não demorou a chegar ao carro, embora tirar as chaves enquanto mantinha Payne ao colo tivesse sido complicado. O mesmo se passou ao abrir a porta. Mas depois lá
a sentou no banco do pendura, sempre a interrogar-se se ela estaria bem. Que raios, não tinha como entrar em contacto com ninguém do mundo dela.
Ao contornar o carro e sentar-se ao volante pensou, Que se dane, ia levá-la de volta aos vampiros...
- Posso pedir-te uma coisa? - disse ela, num tom arrastado.
- Tudo... o que...
- Posso beber-te um pouco da veia? Sinto-me... curiosamente esvaída.
Está bem, certo. Isso era uma necessidade imediata. Trancou o carro e praticamente arrancou o braço para lho dar.
Os lábios macios encontraram o interior do pulso, mas a mordida não foi rápida, quase como se ela tivesse dificuldade em reunir energias. Mesmo assim, ela lá o conseguiu
e ele saltou, com a dor aguda a trespassar-lhe o coração e a deixá-lo um pouco zonzo. Ou... talvez isso fosse o resultado de uma excitação súbita e avassaladora
que lhe percorreu não só desde os testículos ao membro, mas todo o corpo.
Com um gemido, as ancas reviraram-se-lhe no banco do Porsche e deixou a cabeça pender para trás. Cristo, era bom... o ritmo de sucção que ela iniciou era quase como
se estivesse na sua ereção, e mesmo que lhe tenha doído o início, apenas sentia o sugar como um prazer, um prazer doce pelo qual ele tinha a certeza não se importar
de morrer.
Mergulhou num estado de idílio. Pareceu-lhe estar séculos com as presas dela na sua carne. O tempo perdia o significado, tal como a realidade de se encontrarem num
parque de estacionamento, num carro com vidros transparentes.
Que se danasse o mundo.
Só eles os dois, juntos, importavam.
E isso foi antes de aqueles olhos de diamante se terem aberto e ficado nele, olhando-lhe não para o rosto, mas para o pescoço.
Vampira... pensou. Bela vampira.
Minha.
Enquanto essa ideia ganhava força na sua mente, Manny agia sem grande consciência, meneando a cabeça e oferecendo-lhe a jugular...
Não precisou de pedir duas vezes. Payne praticamente lançou-se a ele, com a mão a mergulhar-lhe no cabelo e a prender-lhe a nuca. Agarrando-o, Manny ficou imobilizado,
à mercê dela... a presa do predador que ela era. E agora que o tinha, moveu-se lentamente, com as presas a baixar-lhe até à pele e a percorrerem-lhe a altura do
pescoço, deixando-o hirto com a antecipação da perfuração e da sucção...
- Hummm! - bradou ele quando a vampira o mordeu. - Ah... sim...
As mãos dele agarraram-lhe os ombros, aproximando-a ainda mais.
- Leva tudo... leva... ai, meu Deus... ah, merda...
Algo afagou-lhe o membro. Como sabia exatamente onde tinha as mãos, só podia ser ela. Movendo-se num acesso de sofreguidão, deu-lhe tanto espaço quanto possível
para que ela se mexesse... e Payne assim fez, subindo e descendo contra a ereção tensa, com as ancas dele a ajudarem, indo no movimento contrário às carícias.
Manny arquejava e não conseguia parar de gemer. Não demorou muito para que os testículos ficassem dormentes e a ponta do membro se retesasse contra a pressão crescente.
- Estou quase a vir-me - sussurrou. - É melhor parares se não quiseres que eu...
Com essas palavras, Payne violou o cimo das calças e procurou no interior...
Manny viu a porra das estrelas. Assim que a pele dela tocou na sua, ele atingiu um orgasmo como nunca, a cabeça a saltar para trás com força, as mãos a cravarem-se
nos ombros dela, as ancas tresloucadas, aos saltos. E ela não parou de sugar, nem de bombear. Assim, tal como antes, ele acompanhou os movimentos com a libertação,
com o prazer mais intenso a cada espasmo da ereção.
Acabou demasiado depressa.
Claro que aquilo poderia ter continuado durante uma década e mesmo assim ficaria esfomeado por mais.
Quando Payne o libertou, ela recostou-se e lambeu as pontas aguçadas das presas, a língua rosada em contraste com o branco. Caramba... aquele brilho maravilhoso
voltara a surgir-lhe por baixo da pele, fazendo-a parecer um sonho.
Ah, espera, era isso que ela era, certo?
- O teu sangue é forte - comentou Payne num tom rouco, enquanto voltava a aproximar-se e lhe lambia o pescoço. - Tão forte.
- É? - resmungou ele. Mas nem tinha a certeza de ter falado. Talvez apenas o tivesse pensado.
- Sinto o poder a percorrer-me.
Nunca se interessara por SUV - essas tretas eram demasiado volumosas e conduzi-las era como pedregulhos a caírem montanha abaixo - mas o que não daria naquele momento
por um banco traseiro onde coubesse mais do que os tacos de golfe. Queria deitá-la e...
- Quero mais de ti - murmurou Payne enquanto o esfregava com o nariz.
Que raios, continuava duro como pedra, mesmo tendo acabado de...
- Quero-te na minha boca.
A cabeça de Manny atirou-se para trás e ele gemeu, com o membro a latejar como se aquilo lá em baixo estivesse a meio de uma corrida. Mas por mais que a quisesse,
não sabia se ela tinha noção daquilo em que se estaria a meter. O simples facto de pensar nos lábios dela no seu...
Antes de ter fôlego para falar já a cabeça de Payne se tinha baixado até ao colo dele, e não houve preâmbulo, sugou-o até ao fundo, mantendo-o no interior da sua
boca quente e húmida.
- Porra! Payne!
Levou-lhe as mãos aos ombros, decidido a puxá-la para trás... mas ela não estava disposta a isso. Sem quaisquer indicações sabia exatamente o que fazer, subindo
e sugando-o, antes de lhe lamber a parte debaixo da haste. E depois explorou-o com uma meticulosidade que lhe mostrou que ela estava a gostar tanto quanto ele, e
isso ainda o excitava mais.
Mas então sentiu-lhe a presas a brincarem-lhe com a cabeça.
Puxou-a para cima de imediato, prendendo-lhe a boca num beijo intenso enquanto lhe segurava o rosto e se libertava nas mãos dela. Mas isso não durou. Payne soltou-se
das mãos dele e regressou ao ponto de partida, apanhando-o a meio do orgasmo e absorvendo aquilo que o corpo dele parecia ter a rodos para ela.
Quando os espasmos terminaram, ela ergueu-se, olhou-o... e lambeu lentamente os lábios.
Manny teve então de fechar os olhos, com a ereção a latejar de tal maneira que lhe doía.
- Agora vais levar-me a tua casa - disse ela.
Não era um pedido. E o tom sugeria que ela estaria a pensar exatamente no mesmo que ele.
Portanto, isso levaria apenas a uma coisa.
Manny compôs-se interiormente e depois abriu os olhos. Ergueu a mão, tocando-lhe no rosto, e acariciou-lhe o lábio inferior com o polegar.
- Não sei se devemos, bambina - admitiu.
A mão dela apertou-lhe o membro e ele gemeu.
- Manuel... acho que é exatamente aí que temos de estar.
- Não é... uma boa ideia.
Payne recuou ainda mais e retirou a mão, com o brilho a desvanecer-se.
- Mas estás excitado. Neste momento.
A sério?
- É mesmo por isso. - Percorreu-lhe o rosto com os olhos e depois desceu-lhe até aos seios. Estava tão desesperado por ela que se sentia tentado a rasgar-lhe as
calças e a tomar-lhe a virgindade naquele carro. - Não vou conseguir conter-me, Payne. Mal o estou a fazer neste momento...
Payne ronronou de satisfação e voltou a humedecer os lábios vermelhos.
- Gosto quando te descontrolas.
Cristo, isso não ajudava nada.
- Eu... - Abanou a cabeça, pensando que era um inferno absoluto. Estar a negar isso a ambos causava-lhe uma dor profunda. - Acho que tens de fazer o que precisas
e ires-te embora. Enquanto ainda te consigo deixar ir...
O som de batidas no vidro começou por não fazer grande sentido. Estavam só os dois naquele parque de estacionamento vazio. Mas depois, o mistério solucionou-se:
- Sai do carro. E passa-me as tuas coisas.
A voz masculina fez Manny virar a cabeça para o vidro... onde encarou o cano de uma arma.
- Tu ouviste, meu. Para fora do carro ou dou-te um tiro.
Enquanto Manny devolvia Payne ao seu lugar, afastando-a de um disparo à queima-roupa, disse-lhe baixinho:
- Quando eu sair, tranca as portas. É aqui.
Levou a mão ao tabliê e indicou o botão.
- Deixa-me tratar disto. - Tinha cerca de quatrocentos dólares em dinheiro na carteira e bastantes cartões de crédito. - Fica aqui dentro.
- Manuel...
Não lhe deu hipótese de responder. Para ele, aquela arma era dona de todas as respostas e estabelecia as regras.
Pegando na carteira, demorou-se a abrir a porta, mas saiu rapidamente e ficou à espera de ouvir o fecho automático das portas.
E continuou à espera.
Desesperado por ouvir Payne a ficar tão segura quanto possível, mal se apercebeu do tipo da máscara de esqui a bradar:
- A tua carteira. E diz à gaja para sair do carro.
- Estão quatrocentos...
A carteira desapareceu.
- Diz-lhe para sair ou então vai comigo. E o relógio. Quero o relógio.
Manny olhou para o edifício. Havia janelas um pouco por todo o lado e, de certeza, que o guarda sairia ocasionalmente para verificar os arredores.
Talvez se atrasasse a entrega...
O cano da pistola foi-lhe encostado ao rosto.
- Relógio. Já.
Não era o relógio bom. Pelo amor de Deus, nunca operava com o Piaget posto. Mas fosse como fosse, o idiota podia ficar com ele. Além disso, enquanto fingia que lhe
tremiam as mãos, imaginou que isso lhe fosse dar mais...
Foi difícil perceber o que aconteceu e por que ordem.
Em retrospetiva, sabia que Payne teria de ter começado por abrir a porta dela. Mas pareceu-lhe que assim que ouviu o som terrível do lado do passageiro ela estava
já atrás do ladrão.
Outra coisa bizarra foi o facto de só depois de Manny ter praguejado é que o desgraçado pareceu aperceber-se de um terceiro elemento a entrar em campo. Mas não podia
ter sido assim, ele tê-la-ia visto a contornar o carro, certo?
Bem, fosse o que fosse que tivesse acontecido, o Máscara de Esqui acabou a saltar para a esquerda e a apontar a pistola alternadamente para Payne e para Manny.
O jogo de pingue-pongue não ia durar muito. Seguindo uma lógica terrível, Manny sabia que o tipo ia disparar contra Payne, pois ela era a mais fraca dos...
Quando o cano da arma voltou a apontar para ela, Payne... desapareceu. E não por se ter baixado, desviado, ou saído dali a correr. Ela estava ali, a ocupar espaço
num momento... e desaparecida no seguinte.
Voltou a aparecer uma fração de segundo depois e agarrou o punho do homem quando ele fazia menção de apontar a arma a Manny. Desarmá-lo foi igualmente rápido: um,
virou a arma; dois, arrancou-a da mão do filho da puta; três, atirou-a a Manny, que a apanhou.
E depois foi altura de porrada.
Payne girou o tipo, segurou-lhe a parte de trás da cabeça e bateu-lhe com o rosto no capô do Porsche. Depois de ter polido a pintura com a matraca do desgraçado,
reposicionou-o e agarrou nas calças largas do filho da mãe. Erguendo-o pelo cabelo e pelo cós das calças, ou então pelo reto, tomou balanço e atirou-o... a cerca
de dez metros.
Nem o super-homem voava assim tão bem e o ladrão foi bater na parede com a testa. O edifício não lhe deu grande resposta e, vejam só, ele também não. Aterrou de
cara num canteiro de flores e aí ficou, com os membros a ficarem desfalecidos.
Sem se contorcer. Sem gemer. Sem tentar levantar-se.
- Estás bem, Manuel?
Manny virou lentamente a cabeça na direção de Payne. Ela nem sequer estava ofegante.
- Jesus... Cristo... - murmurou ele.
Enquanto as palavras de Manuel se perderam com a brisa, Payne ocupou-se com o top e as calças largas. Depois alisou o cabelo. Parecia a única coisa que poderia fazer
pela sua aparência após a cena de violência.
Um desperdício de esforço, tentar feminizar-se. Entretanto, Manuel continuava a fitá-la.
- Não dizes mais nada? - perguntou ela em voz baixa.
- Ah... - Manuel levou a mão livre à cabeça. - Pois... deixa-me ver se ele está vivo.
Payne envolveu-se com os braços enquanto se aproximava do humano. A bem da verdade, não se preocupava com o estado em que pudesse ter deixado o assaltante. A sua
prioridade fora afastar a arma mortífera de Manuel e fora bem-sucedida na tarefa. O que acontecesse ao ladrão era irrelevante... mas era óbvio que ela não conhecia
as regras daquele mundo. Nem sabia quais as implicações do que fizera.
Manuel estava a meio caminho sobre a relva quando a «vítima» se virou com um gemido. As mãos que tinham segurado a arma dirigiram-se à máscara que lhe cobria o rosto
e empurraram a malha até à testa.
Manuel ajoelhou-se.
- Sou médico. Quantos dedos tenho levantados?
- O quê...?
- Quantos dedos?
- ...três...
Manuel pousou a mão no ombro do indivíduo.
- Não te levantes. Foi uma pancada tremenda na cabeça. Sentes formigueiro ou dormência nas pernas?
- Não. - O homem fitou Manuel. - Porque é que... estás a fazer isto?
Manuel minimizou a questão.
- Chama-se faculdade de medicina... cria a necessidade compulsiva de tratar dos doentes e dos feridos, independentemente das circunstâncias. Acho que temos de chamar
uma ambulância...
- Nem pensar!
Payne materializou-se junto deles. Compreendia as boas intenções de Manuel, mas receava que o ladrão tivesse outra arma com ele...
Assim que surgiu atrás de Manuel, o homem no chão encolheu-se em terror, erguendo os braços e tentando recuar.
Manny olhou sobre o ombro e foi quando ela percebeu que Manuel não era ingénuo. Tinha a arma apontada ao homem.
- Está tudo bem, bambina. Tenho-o...
Atabalhoadamente, o ladrão levantou-se e Manuel seguiu-o com o cano enquanto o humano cambaleava e se equilibrava contra o edifício. Era óbvio que estava a preparar-se
para correr.
- Ficamos com a arma - indicou Manuel. - Compreendes, não? E não preciso de te dizer que tens sorte em estar vivo... não se provoca a minha namorada.
Quando o humano se perdeu entre as sombras, Manuel levantou-se.
- Tenho de entregar esta arma à polícia.
Depois limitou-se a olhar para ela.
- Não há problema, Manuel. Posso tratar da minha presença com o guarda, para que nada se fique a saber. Faz o que tens a fazer.
Aquiescendo, ele pegou num pequeno aparelho de telefone, abriu-o e pressionou alguns botões. Levando-o ao ouvido, disse:
- Sim, chamo-me Manuel Manello e fui ameaçado com uma arma enquanto me encontrava no meu veículo. Estou no Hospital Tricounty...
Enquanto Manuel falava, ela olhou em volta, pensando que não queria que as coisas acabassem assim. Mas...
- Tenho de ir - disse-lhe, quando Manuel desligou. - Não posso... estar aqui se houver mais humanos. Vai complicar as coisas.
O telefone baixou lentamente para o lado do corpo.
- Pois... está bem. - Franziu o sobrolho. - Ah, olha... se a polícia está a chegar, tenho de me lembrar do que aconteceu, se não... bolas, tenho uma arma na mão
sem um motivo que lhes apresente.
Com efeito, pareciam estar encurralados. E, desta vez, sentia-se grata por uma prisão.
- Quero que te lembres de mim - disse baixinho.
- O plano não era esse.
- Eu sei.
Manuel abanou a cabeça.
- És a peça mais importante no meio de tudo isto. Por isso tens de te proteger e isso significa apagares-me a...
- Doutor Manello! Doutor Manello... o senhor está bem?
Payne olhou sobre o ombro. O primeiro macho humano que tinham visto à secretária corria pelo relvado, num estado de pânico.
- Fá-lo - insistiu Manuel. - E eu depois penso em alguma coisa...
Quando o guarda apressado chegou junto deles, Payne encarou o recém-chegado.
- Estava a fazer a ronda - explicou o homem -, e quando confirmava os gabinetes no outro lado do edifício vi-os pela janela... Corri o mais que pude!
- Estamos bem - garantiu ela ao guarda. - Mas importava-se de olhar para uma coisa?
- É claro! A polícia já foi chamada?
- Sim. - Tocou com o dedo por baixo do olho direito. - Olhe para mim, por favor.
Já estava fito no rosto dela, e a dose adicional de concentração facilitou-lhe o trabalho. Só precisou de abrir caminho pelo cérebro do homem e cobrir mentalmente
tudo o que se relacionava com ela.
Para o humano, o cirurgião chegara e partira sozinho.
Manteve o homem em transe e dirigiu-se a Manuel.
- Não tens de te preocupar. As recordações dele são de curto prazo, por isso ele vai ficar bem.
Ao longe ouviu-se um uivo agudo e urgente.
- É a polícia - indicou Manuel.
- Nesse caso vou partir.
- Como voltas a casa?
- Da mesma forma que saí do teu carro.
Esperou que ele lhe estendesse a mão... ou dissesse alguma coisa... ou... Mas ele limitou-se a ficar ali, com o ar frio e silencioso da noite entre eles.
- Vais mentir-lhes? - perguntou ele. - E dizer-lhes que me apagaste?
- Não sei.
- Bem, se precisares de voltar para o fazer, eu estou...
- Boa noite, Manuel. Por favor, fica bem.
Com essas palavras, ela levantou a mão e silenciosa e inexoravelmente, desapareceu.
Capítulo 43
No que dizia respeito a truques, este era verdadeiramente estranho.
- Então, onde é que está o teu amigo?
Karrie Ravisc, também conhecida nas ruas como Kandy, era uma puta a sério há cerca de nove meses e, por isso, já tinha visto muita merda. Mas aquilo...
O homem enorme à porta do quarto do motel falou suavemente.
- Vem aí.
Karrie deu outra passa no cigarro e pensou, Bem, pelo menos o que estava à sua frente era uma brasa. E também lhe tinha pago quinhentos e arranjado aquele quarto.
Ainda assim... havia qualquer coisa ali que não batia certo.
Pronúncia estranha. Olhos estranhos. Ideias estranhas.
Mas uma verdadeira brasa.
Enquanto esperavam, ela deitou-se em silêncio, nua na cama com todas as luzes apagadas. No entanto, não estava completamente escuro. Aquele fulano com a carteira
recheada tinha colocado uma enorme lanterna que parecia um caixote do outro lado do quarto, por cima do armário barato. O feixe de luz apontava-lhe para o corpo.
Como se ela estivesse num palco. Ou talvez como se fosse uma obra de arte.
O que não era tão estranho como alguma das coisas que já fizera. Merda, se a prostituição não te levasse a ver os homens como sacanas maldosos e doentios, nada mais
o faria. Além dos adúlteros do costume e dos que gostavam de sentir o poder, havia os fodilhões com fetiches por pés, os que gostavam que lhes batessem e outros
que gostavam que lhes mijassem em cima.
Terminando o seu White Owl, apagou a beata e pensou que aquela coisa do holofote talvez até nem fosse má ideia. Um parvalhão qualquer tinha querido comer hambúrgueres
em cima dela há duas semanas e isso tinha sido uma nojeira...
O som da fechadura fê-la dar um salto e ela percebeu que alguém tinha entrado sem dar conta. Era o som da porta a ser trancada. Por dentro.
E estava agora um segundo homem junto ao primeiro.
Ainda bem que o seu chulo estava mesmo na porta ao lado.
- Boa noite - disse ela, enquanto se estendia mecanicamente para ambos. Os seios eram falsos, mas eram uma boa imitação e a barriga era lisa, mesmo depois de ter
tido um filho, e não só estava sem pelos, como fizera depilação a laser.
Por todas estas razões ela cobrava o que cobrava.
Homem... mais um enorme, pensou ela, enquanto o segundo se aproximou e parou aos pés da cama. Na realidade, aquele cabrão era enorme. Um verdadeiro mamute. E não
por ser gordo e descuidado. Os seus ombros eram tão perfeitos que pareciam ter sido desenhados com uma régua e esquadro e, juntamente com as suas ancas estreitas,
o peito formava um triângulo perfeito. Não lhe conseguia ver o rosto, por causa da luz que vinha de trás dele, mas não tinha importância. O primeiro bacano esticou-se
na cama ao lado dela.
Merda... de repente percebeu que estava excitada. Era o tamanho deles e o perigo do escuro e dos aromas. Jesus... tinham um cheiro fantástico.
- Vira-te ao contrário - exigiu o segundo.
Meu deus, aquela voz. A mesma pronúncia estrangeira do outro que tinha preparado tudo, mas mais grave e com um toque autoritário.
- Queres mesmo ver o meu cu? - gorgolejou ela, enquanto se sentava. Passando as mãos pelos seios, levantou-os e apertou-os. - Porque a minha parte da frente é ainda
melhor.
Ao dizer isto, empurrou um seio para cima e esticou a língua para baixo, lambendo o seu próprio mamilo, enquanto olhava para um homem e para o outro sem parar.
- Vira-te para baixo.
Ok, obviamente, aquilo era uma ordem de prioridade. O homem deitado ao lado dela estava com uma tremenda ereção, mas não se mexia. E o Sr. Faz-Já era o único que
falava.
- Se é assim que queres.
Tirando as almofadas da cama, ela virou-se dando espetáculo, torcendo o tronco para que um dos peitos ainda estivesse à vista. Com a unha pintada de preto, desenhou
um círculo à volta do mamilo, enquanto arqueava as costas para baixo e espetava o traseiro para cima...
Um rugido discreto agitou o ar estagnado e tranquilo do quarto e isso foi uma indicação para ela. Abrindo as pernas, empinou as nádegas, com os dedos dos pés espetados
e arqueando novamente a espinha.
Sabia perfeitamente o que estava a mostrar aos pés da cama... e o rugido dele disse-lhe que estava a gostar do que via. Portanto, estava na altura de ir mais longe.
Olhando para ele, colocou o dedo médio na boca e chupou-o. Depois mudou de posição e levou-o até ao sexo, esfregando-se a si própria.
Não sabia se era a erva ou... merda, qualquer coisa com aqueles homens... de repente estava mesmo muito excitada. Ao ponto de desejar aquilo que estava prestes a
acontecer.
Inclinando-se sobre ela, o que dava ordens pôs as mãos na parte da frente das ancas.
- Beija-a - ordenou.
Ela estava tão preparada para aquilo, apesar de normalmente não o permitir. Virando o rosto para o outro, sentiu a sua boca ser invadida por um conjunto de lábios
suaves, exigentes... e depois uma língua entrou nela...
Ao mesmo tempo que umas grandes mãos se encaixavam na parte de cima das suas coxas e a abriam ainda mais.
E outro conjunto de mãos dirigiu-se aos seus seios.
Apesar de ser uma profissional, a sua mente foi de viagem, levando consigo as coisas que habitualmente a preocupavam enquanto fazia o que fazia, fazendo desaparecer
coisas como, onde estavam os preservativos? Quais eram as regras básicas?
Cinto. Fecho. E depois o som de calças a deslizar e o resfolegar do colchão ao cair-lhe alguma coisa pesada em cima.
Imaginou, vagamente, se o pénis que tinha sido libertado seria tão grande como o resto do homem atrás dela. E se era, pensou, diabos, ela era bem capaz de equacionar
a ideia de lhes oferecer uma segunda volta de borla. Partindo do princípio de que se aguentavam tanto tempo...
Uma ponta arredondada entrou dentro dela, enquanto mãos a levantavam pelas ancas e a deixavam de gatas. Meu deus, ele era enorme... Ela preparou-se para sentir a
fricção, à medida que uma palma da mão lhe percorria a espinha e dedos penetravam no seu cabelo curto. Ele ia puxar-lhe a cabeça para trás, mas ela não se importava.
Só queria mais dele dentro dela...
Mas ele não ficou violento, nem sequer avançou imediatamente. Pelo contrário, massajou-a como se gostasse do toque da sua pele, levando-lhe as mãos aos ombros e
depois deslizando-as até aos seios... e depois descendo mais ainda até ao sexo molhado. E quando a penetrou completamente, foi com um deslizar suave, dando-lhe até
um segundo para se habituar ao diâmetro e ao comprimento.
Depois colou as palmas das mãos nas ancas e avançou com o ato. Mesmo quando o amigo se esgueirou para debaixo dela para sugar os seios pendurados.
Com a velocidade a intensificar-se, os mamilos andavam para a frente e para trás a bater na boca do que estava por baixo dela ao ritmo das estocadas das ancas que
lhe batiam no rabo uma e outra vez. Mais depressa. Com mais força. Mais depressa...
- Fode-me - ganiu ela. - Oh, porra, sim...
Abruptamente, o que estava deitado no colchão mudou de posição e reposicionou-a, enchendo-lhe a boca com o maior pénis que ela alguma vez tinha engolido.
Ela teve mesmo um orgasmo.
Se isto continuasse assim, seria ela a dar-lhes uma gorjeta.
Um segundo depois, o homem por trás saiu de dentro dela e sentiu salpicos quentes nas costas. Mas ainda não tinha acabado. Voltou à carga um momento depois, tão
encorpado e rígido como da primeira vez que a penetrara.
Aquele que ela estava a chupar gemia e depois foram separados, quando ele lhe levantou a cabeça. Veio-se nas suas mamas, com jatos quentes a decorarem-lhe o peito,
espalhando um pouco mais daquele aroma fantástico, ao mesmo tempo que o outro voltava a sair dela e a ejacular-lhe nas costas.
E depois o mundo deu meia volta e ela viu-se deitada de costas, com o homem da carteira a assumir a posição de comando sobre ela e a preencher-lhe o sexo, ficando
igualmente apertada.
Foi ela que procurou o amigo silencioso e autoritário, trazendo o pénis dele para a boca, tirando-o do papel de espetador para dentro dela outra vez.
Era tão grande que teve de esticar o queixo para ele caber e sabia deliciosamente, como nada que provara antes. Chupava-o enquanto o outro a tomava a sério. Abandonou-se
às sensações de ser preenchida, ou invadida por pénis duros e selvagens que lhe abanavam todo o corpo.
No seu delírio, tentou ver o homem a quem estava a lamber, mas ele conseguia sempre, de alguma forma, manter-se de costas para a luz e isso tornava tudo ainda mais
erótico. Como se estivesse a chupar uma sombra viva. Merda, ao contrário do outro, ele não soltava agora nenhum som e nem sequer estava a arfar. Mas estava a gostar,
a sério, entrando na sua boca e saindo e depois voltando a entrar. Pelo menos até saltar cá para fora e colocar a palma da mão sobre a ereção. Juntando os seios,
ela deu-lhe uma ótima plataforma para ele se vir e, Deus do céu, apesar de ela ser copa AA, ele cobriu-a.
Até o peito ficar peganhento, escorregadio e a pingar.
Quando voltou a concentrar-se, tinha os joelhos junto às orelhas e o que tinha o dinheiro estava a preparar-se para atacar outra vez da melhor maneira possível.
E o patrão estava outra vez nos seus lábios, pressionando, querendo mais. O que ela lhe daria com todo o gosto.
Fitando-os enquanto se moviam em uníssono, ela sentiu um medo percorrê-la. Dobrada por baixo deles, ela tinha a sensação que a podiam partir ao meio se lhes apetecesse.
Mas não a magoaram.
E continuaram uma e outra vez, os dois trocando de lugares sem parar. Era óbvio que já tinham feito aquilo muitas vezes e, meu Deus, ela estava a satisfazê-los à
grande.
Finalmente estava terminado.
Nenhum deles disse nada. Nem a ela, nem um ao outro. Era estranho, porque a maioria do sexo a três em que ela participara acabava com os idiotas a darem mais cinco
uns aos outros. Estes dois não. Guardaram os pénis e... bem, não é que as carteiras voltaram a aparecer?
Enquanto estavam ali por cima dela, ela passou a mão pela boca, pelo pescoço e pelos seios. Estava coberta em tantos sítios que já perdera a conta, e adorava, era
suavizante aquilo que tinham deixado na sua pele. Estava a brincar com o sémen porque queria, não para benefício deles.
- Queremos dar-te mais quinhentos - disse o primeiro em voz baixa.
- Para quê? - aquele gorgolejar satisfeito era mesmo ela?
- Vai saber bem, prometo.
- É perverso?
- Muito.
Ela riu-se e ondulou as ancas.
- Então digo que sim.
Quando o homem sacou das notas, parecia haver muitas outras naquele maço e, se ele fosse, talvez, outra pessoa, era capaz de ter avisado o chulo e de ter dito ao
Mack para o intercetar no parque de estacionamento. Mas, no entanto, não ia fazer isso. Em parte por causa do sexo incrível. Mas mais ainda porque achava que era
provável que aqueles tipos dessem uma tareia a quem se metesse com eles.
- O que querem que faça? - perguntou, enquanto apertava o dinheiro no punho.
- Abre as pernas.
Ela não hesitou, os joelhos a afastarem-se para longe.
E eles não hesitaram, inclinando-se ambos sobre a vulva molhada.
Deus do céu, iam chupá-la? Só de pensar nisso os olhos rolaram para trás e ela gemeu...
- Ai!
Ela começou a levantar-se, mas eles forçaram-na a ficar deitada no colchão.
As lambidelas subtis que se seguiram deixaram-na quase inconsciente. Mas, contudo, não eram no seu sexo. Mesmo a meio do corpo, de ambos os lados, na articulação
onde as coxas se ligam ao tronco.
Um chupar rítmico... como se a embalasse.
Karrie suspirou e abandonou-se ao que sentia. Teve uma sensação chocante de que eles se estavam a alimentar dela, de alguma forma, mas era espetacular especialmente
quando alguma coisa entrou dentro dela. Talvez fossem dedos... provavelmente.
Sim, definitivamente.
Quatro dedos preenchiam-na e duas mãos separadas começaram a entrar e sair alternadamente, enquanto as duas bocas chupavam a sua carne.
Ela veio-se outra vez.
E outra vez.
E outra.
Depois de só Deus sabe quanto tempo, acariciaram-na várias vezes, nos lugares onde tinham estado a chupar e não onde as mãos tinham estado.
E depois retiraram tudo, bocas, dedos, corpos.
Endireitaram-se os dois.
- Olha para mim - disse o líder.
As pálpebras estavam tão pesadas que teve de fazer força para poder obedecer. E quando o fez, sentiu uma dor ardente nas frontes. Contudo, não durou muito tempo
e a seguir... sentia-se a flutuar.
Foi por isso que não prestou muita atenção ao grito distante e abafado que veio da porta ao lado pouco depois, não do quarto em que estava o Mack, mas o do outro
lado.
Bum! Pum. Bum...
Karrie começou nessa altura a adormecer, morta para o mundo, o dinheiro colado à palma da mão quando aquilo que estava molhado secou.
Não estava preocupada com nada. De facto, sentia-se fantástica.
Diabos... com quem é que tinha estado...?
* * *
Quando Xcor saiu do quarto de hotel da prostituta com Throe imediatamente atrás dele, fechou a porta e olhou para a esquerda e para a direita. As instalações que
o soldado tinha escolhido para aquela diversão carnal ficavam nos arredores da cidade. Degradado e a desfazer-se em alguns pontos, o edifício térreo tinha sido dividido
em caixas que pareciam guarda-louças, com o escritório na ponta mais à esquerda. Tinha preferido o quarto mais longínquo na ponta oposta para garantir a privacidade,
mas o melhor que conseguira fora o quarto ao lado.
Não obstante, na verdade, quais eram as hipóteses de estarem todos ocupados? Dificilmente estaria ali mais alguém.
Perscrutando os lugares de estacionamento à sua frente, viu um Mercedes preto que tentava desesperadamente parecer mais novo do que aquilo que era... e um todo-o-terreno
com cobertura. Os outros dois carros estavam mais longe, junto ao escritório.
Isto era perfeito para o tipo de propósito que tinha servido. Escondido. Povoado por pessoas que não queriam ninguém a intrometer-se no que ali faziam e dispostas
a tratar os outros com igual cortesia. E a iluminação exterior era fraca. Só uma em cada seis lâmpadas, por cima das portas, é que estavam a funcionar. Que raios,
a luz mais próxima da sua cabeça tinha sido destruída. Por isso, estava tudo difuso e escuro.
Ele e o seu bando de bastardos teriam de encontrar fêmeas da sua raça para satisfazer as suas necessidades de sangue a longo prazo, mas a seu tempo isso aconteceria.
Até lá? Contentar-se-iam com mulheres como a que ele e Throe tinham acabado de foder e fá-lo-iam naquele local deserto.
Throe falou calmamente.
- Satisfeito?
- Sim, ela não era nada má.
- Fico feliz...
Um aroma no ar fez com que ambos virassem as cabeças para a porta do último quarto. Quando Xcor inspirou profundamente para confirmar aquilo de que tinha sentido,
um leve aroma, o cheiro a sangue humano fresco foi uma surpresa desagradável.
Contrariamente à expressão no rosto de Throe, que demonstrava não estar nada surpreendido.
- Nem penses nisso - rosnou Xcor. - Throe. Foda-se.
O guerreiro estava a dirigir-se à porta com uma expressão turbulenta. A sua agressividade tinha sido inflamada porque era sangue feminino que estava a ser derramado.
A fertilidade era evidente no ar.
- Não temos tempo para isto - disparou Xcor.
Em jeito de resposta, Throe deu um pontapé na porta e abriu-a.
Enquanto Xcor praguejava, apenas brevemente considerou desmaterializar-se da cena. Tudo o que era necessário para curar o impulso era olhar lá para dentro. A ridícula
façanha heroica de Throe tinha exposto uma confusão. Literalmente.
Uma fêmea humana estava amarrada à cama, com alguma coisa enfiada na boca. Estava quase morta e demasiado perto da sepultura para ser salva. O sangue dela estava
por todo o lado, nas paredes ao seu lado, escorrendo para o chão, ensopando o colchão. Os utensílios de quem quer que fosse que tinha feito aquilo estavam na mesa-de-cabeceira:
duas facas, fita adesiva, tesouras... e meia dúzia de pequenos frascos transparentes com um líquido incolor e tampas ao lado.
Havia coisas a flutuar nos...
Ouviu-se um estrondo vindo da casa de banho. Como se uma bandeira ou vidro de janela tivesse sido aberto e fechado.
Quando Throe começou a correr para o interior, Xcor adiantou-se e agarrou o outro macho pelo braço. Em dois tempos, Xcor soltou a pulseira de aço que mantinha no
cinto das armas e prendeu-a no pulso robusto do seu soldado. Arrastando-o com o seu peso, volteou-o no ar como a uma bola presa a uma corrente. Ouviu-se uma batida
seca na parede mais distante, quando o reboco barato parou o pêndulo de vampiro.
- Deixa-me.
Xcor puxou-o para perto de si.
- Isto não é da tua conta.
Throe puxou o braço atrás e deu um murro na parede, desfazendo mais um bocado do reboco velho.
- Ai isso é que é. Solta-me!
Xcor deu uma palmada na parte de trás do pescoço do macho.
- Não é. O teu. Mundo!
Nesta altura lutaram, atirando-se um ao outro e derrubando coisas, fazendo mais barulho do que deviam. E estavam prestes a cair na carpete ensanguentada, quando
um homem humano sem pescoço e com óculos escuros do tamanho de vidros de janela deslizou para o corredor. Deu uma olhadela à cama, outra a Xcor e Throe, e depois
resmungou, cobrindo os olhos com os braços enquanto fugia agachado.
Um segundo depois, a porta do quarto onde tinham estado abriu-se e fechou-se... depois abriu-se e fechou-se outra vez. Ouviu-se o som de saltos altos a bater no
chão, depressa e descoordenados, e ouviu-se um clomp, clomp de pessoas a entrarem num carro.
Um motor rugiu e o Mercedes arrancou, saindo do parque de estacionamento, sem dúvida com a prostituta e o dinheiro lá dentro.
E aquela partida apressada confirmava aquilo que Xcor assumira sobre a clientela daqui.
- Ouve-me - disse a Throe. - Ouve-me, minha grande besta... isto não é problema nosso. Mas se ficares aqui, vais torná-lo nosso...
- O assassino fugiu!
- E nós também vamos fugir.
Os olhos pálidos de Throe centraram-se na cama e a máscara de fúria dissipou-se por breves momentos. Por baixo dela havia uma expressão que chegou mesmo a deter
a agressividade de Xcor. Tanta dor, meu Deus, tanta dor.
- Ela não é a tua irmã - sussurrou Xcor. - Anda comigo.
- Não posso...deixá-la... - Uns olhos enormes vidrados cruzaram-se com os seus. - Não podes pedir-me isso.
Xcor deu uma volta, mantendo o soldado preso. Tinha de haver alguma coisa do assassino, alguma coisa que pudessem...
Xcor arrastou o guerreiro para a casa de banho e ficou sombriamente satisfeito ao observar a janela por cima da sanita. O único painel grosso de vidro fosco estava
intacto, mas havia um rasto de sangue brilhante na borda da armação de metal.
Exatamente o resquício de que precisavam.
Xcor alcançou a janela e passou dois dedos pela extremidade que tinha rasgado a carne humana.
O sangue colou-se aos seus dedos.
- Abre - ordenou.
Throe abriu a boca e chupou os dedos, fechando os olhos para se concentrar, enquanto se começavam a ouvir sirenes distantes na noite.
- Temos de ir agora - disse Xcor. - Vem comigo e eu dou-te autorização para caçares o homem. Concordas? Acena. - Quando Throe assentiu, ele decidiu que precisava
de mais. - Jura.
Throe fez uma vénia, curvando o tronco.
- Juro.
Soltou a pulseira... e ambos desapareceram como por magia, exatamente quando os rotativos azuis anunciavam a chegada da polícia humana.
Xcor não costumava ser compassivo em nenhuma situação. Mas mesmo que fosse, não teria concedido nenhuma compaixão àquele profanador humano que era agora o alvo de
Throe... e em breve seria caçado.
Capítulo 44
-Doutor Manello?
Ao ouvir o seu nome, Manny voltou à realidade e percebeu que, de facto, ainda estava em Tricounty, no jardim da entrada. Era bastante irónico que o segurança tivesse
sofrido um ataque à sua mente e, mesmo assim, era ele que recebia as atenções.
- Ah...sim, desculpe. O que disse?
- Está bem?
- Não, não estou.
- Bem, foi atacado... nem consigo acreditar em como lidou com isso. Num minuto ele estava em cima de si... no minuto seguinte tinha a arma e ele estava a... voar.
Claro que se livraria disso.
- Sim. É isso. Exatamente.
Os polícias apareceram dois segundos depois e seguiu-se uma torrente de perguntas e respostas. E foi espetacular. O segurança nunca referiu Payne. Era como se ela
nunca ali tivesse estado.
Não devia ficar surpreendido, tendo em conta o que Manny já tinha passado não só com ela, mas também com Jane. Mas mesmo assim estava admirado.
Havia tanta coisa que ele não percebia. Como Payne tinha desaparecido como por magia à sua frente. Como não restava nada dela, pelo menos que o segurança pudesse
ver, apesar de se lembrar perfeitamente de Manny. Como ela se tinha mantido tão calma e controlada numa situação fatal.
Na realidade, esta última parte tinha sido muito erótica. A maneira como ela o tinha triturado era fantasticamente excitante. Manny não tinha a certeza do que isso
dizia sobre ele, mas era assim.
E ela iria mentir, pensou. Diria ao pessoal dela que a mente dele tinha sido apagada. Diria que tinha tratado de tudo.
Payne encontrara a solução perfeita. Ele tinha a sua mente, ela tinha as suas pernas e ninguém sabia nada em contrário, nem o seu irmão, nem os da sua laia.
Sim, estava tudo tratado. Tudo o que tinha de fazer agora era passar o resto da vida ansiando por uma fêmea que nunca devia ter conhecido. Uma merda que não custa
nada.
Uma hora depois, entrou no seu Porsche e regressou a Caldwell. Conduzindo sozinho, o carro não só parecia vazio, como parecia um deserto e deu consigo a subir e
descer os vidros. Não era a mesma coisa.
Ela não sabia onde ele vivia, pensou. Mas isso não importava, pois não? Ela não voltaria.
Meu Deus, era difícil escolher o que teria custado mais. Um adeus longo e demorado, em que ele a olhava nos olhos e mordia a língua para evitar falar de mais? Ou
aquela merda rápida, do tipo arrancar-o-penso?
As duas eram uma porcaria.
No Commodore, desceu ao subterrâneo, estacionou no seu lugar e saiu do carro. Foi para o elevador. Subiu ao apartamento. Entrou. Fechou a porta.
Quando o telemóvel tocou, enfiou a mão no bolso para o tirar e, quando viu o número, praguejou. Goldberg, do centro médico.
Atendeu sem entusiasmo.
- Olá.
- Atendeste? - disse o homem aliviado. - Como estás?
Pois. Não queria entrar por ali.
- Estou bem. - Após uma pausa, disse - E tu?
- Estou bem. As coisas têm estado... - Hospital. Hospital. Hospital hospital, hospitalh ospit alhosp. Ital hospit alhospital...
Entrou por um ouvido e saiu pelo outro. No entanto, Manny não se apressou. Foi para a bancada da cozinha, tirou o Lag e sentiu-se como se tivesse levado uma pancada
na cabeça ao ver o pouco que restava na garrafa. Inclinando-se para o armário, retirou uma garrafa de Jack que estava lá para trás há tanto tempo que tinha pó na
tampa.
Pouco depois, desligou o telefone e concentrou-se na bebida. Primeiro o Lag. Depois o Jack. E depois seguiram as duas garrafas de vinho que estavam no frigorífico.
E o que restava de um pacote de seis Corona que tinha sido deixado na despensa e não estava fresco.
Contudo, o seu cérebro não deu pela diferença entre o álcool aquecido e a bebida fresquinha.
Feitas as contas, o festival de ingestão de álcool demorou uma hora. Talvez mais. E foi muito eficiente. Quando pegou na última cerveja e se dirigiu para o quarto,
andava como se estivesse na ponte da Enterprise, abanando para a esquerda e para a direita... e depois recuando. E, apesar de ver perfeitamente à luz ambiente da
cidade, tropeçou em tudo. Devido a algum milagre inconveniente, a sua mobília tinha ganhado vida e estava determinada a meter-se no seu caminho... tudo, desde as
cadeiras estofadas de pele até...
- Foda-se.
... à mesa de centro.
E o facto de agora estar a esfregar a canela enquanto andava era como adicionar uns patins em linha à festa.
Quando chegou ao quarto, bebeu um enorme gole da Corona para celebrar e progrediu para o banho aos tropeções. Água a correr. Roupas despidas. Entrar na banheira.
Não valia a pena esperar pela água quente, não sentia nada, fosse como fosse, e o objetivo era esse.
Não se deu ao trabalho de se secar. Foi simplesmente para a cama com água a escorrer do corpo e, ao sentar-se, bebeu o resto da cerveja. Então... uma imensidão de
nada. O seu alcoolómetro estava a subir assustadoramente alto, mas ainda não tinha atingido o ponto crítico e acabado com ele.
Consciência era, contudo, um termo relativo. Apesar de se poder argumentar que estava acordado, estava completamente desligado, e não só pelo exagero de álcool no
sangue. Ele estava sem energia no interior, de uma maneira muito estranha.
Deixando-se cair no colchão, pensou que, agora que a situação com Payne se tinha resolvido, era altura de andar com a vida para a frente ou, pelo menos, tentar na
manhã seguinte, quando a ressaca o acordasse. A sua mente estava ótima, por isso não havia razões para não voltar ao trabalho e para não tratar de separar, definitivamente,
aquele interlúdio lixado do resto da sua vida normal.
Fitando o teto, ficou aliviado quando a visão se tornou nublada.
Até se aperceber que estava a chorar.
- Mariconço de merda.
Limpando os olhos, estava positiva e absolutamente decidido a não seguir aquele caminho. Mas seguiu... e ficou lá. Meu Deus, já sentia a falta dela ao ponto da agonia.
- Mas que... diabo!
Subitamente levantou a cabeça e o pénis começou a inchar. Olhando pelas portas deslizantes de vidro da varanda, perscrutou a noite com um desespero que o fez sentir
como se as loucuras mentais tivessem voltado.
Payne...
Payne...?
Esforçou-se por se levantar da cama, mas o corpo recusava-se a obedecer, como se o cérebro estivesse a falar uma língua que os braços e as pernas não conseguissem
traduzir. E depois a bebedeira venceu, pressionando Ctrl-Alt-Del e desligando o programa.
Não obstante, o sistema não reiniciou.
Depois de as pálpebras se fecharem, apagou, por muito que lutasse contra a maré.
Lá fora na varanda, Payne estava parada no vento gelado, com o cabelo a esvoaçar, o corpo todo em pele de galinha por causa do frio.
Desaparecera da vista de Manuel, mas não o tinha abandonado.
Apesar de ele ter demostrado ser capaz de tomar conta de si próprio, Payne não estava disposta a confiar a sua vida nem a ninguém nem a nada. Concomitantemente,
tinha-se envolvido em mhis e ficado no jardim do hospital veterinário, observando-o a falar com a polícia e com o segurança. E depois, quando ele fora para o carro,
seguira-o, desmaterializando-se de um sítio para outro, seguindo o seu rasto graças à pequena quantidade do seu sangue que ele lambera.
A sua viagem para casa tinha culminado nas profundezas de uma cidade mais pequena do que aquela que ela vira do carro, mas ainda assim impressionante, com os edifícios
altos, as estradas pavimentadas e as pontes altas belíssimas que passavam sobre um largo rio. Caldwell era, de facto, linda à noite.
Quem lhe dera que ali estivesse por outra razão, que não uma despedida invisível.
Quando Manuel tinha virado para uma espécie de garagem subterrânea, ela tinha-o libertado. Já tinha alcançado o objetivo, que era ele chegar ao seu destino em segurança,
por isso sabia que tinha de partir.
Todavia, infelizmente, ela tinha-se demorado na rua, escondida no mhis, vendo os carros a passar e os peões a atravessar as esquinas. Passara uma hora. E depois
passou mais tempo. E ela não se conseguia ir embora.
Cedendo aos desejos do seu coração, ela tinha subido, subido, subido... elevando-se até onde Manuel estava, tomando forma na varanda da sua casa... e encontrando-o
a meio caminho de deixar a cozinha para a sala. Claramente a andar torto, estava sempre a ir contra a mobília, embora não fosse certamente por as luzes estarem apagadas.
Era a bebida que tinha nas mãos, sem dúvida.
Ou, mais exatamente, toda a bebida que consumira além daquela.
No quarto, não tinha propriamente despido as roupas, mas sim saltado para fora delas e depois ido para o chuveiro. Quando voltou a surgir a pingar, ela teve vontade
de gritar. Era tão difícil compreender que só tinha passado um dia desde que tinha, pela primeira vez, testemunhado a sua nudez. Apesar de ela sentir, realmente,
que podia procurar no tempo e alcançar esses momentos frenéticos em que estavam à beira de... não apenas um presente, mas um futuro.
Agora já não.
Ao chegar à cama, sentou-se... e depois colapsou no colchão.
Quando ele limpou os olhos, ela ficou completamente devastada. E a vontade de ir ter com ele era tão grande...
- Payne.
Com um uivo, ela virou-se. Ao fundo da varanda, parado na brisa... estava o seu gémeo. E, no instante mesmo em que pousou os olhos em Vishous, soube que alguma coisa
nele tinha mudado. Sim, o seu rosto já estava a sarar dos ferimentos que lhe causara o espelho, mas não era isso que tinha mudado. Ele estava diferente interiormente.
A tensão, a raiva e a frieza assustadora desapareceram.
Enquanto o vento fustigava o seu cabelo, ela tentou compor-se, eliminando as lágrimas que se alojavam em volta dos olhos.
- Como é que soubeste... que eu estava...
Com a mão enluvada, ele apontou para cima.
- Tenho aqui um apartamento. No topo do edifício. A Jane e eu estávamos de saída quando senti a tua presença aqui em baixo.
Devia ter percebido. Tal como ela conseguia sentir o mhis dele... ele podia sentir e encontrar o dela.
Ela desejava que ele tivesse continuado para onde ia. A última coisa de que precisava era de outra cena de «autoridade» da figura masculina dizendo-lhe o que fazer.
Além disso, o rei já tinha decretado a lei. O decreto de Wrath não precisava propriamente da aprovação de gente como o irmão.
Levantou a mão para o travar antes de ele dizer alguma coisa sobre Manuel.
- Não quero que me digas o que o rei já me disse. Estava mesmo de saída.
- A mente dele foi apagada?
Ela levantou o queixo.
- Não, não foi. Ele levou-me a passear e houve um... incidente...
A rosnadela que o irmão soltou soou mais alto do que o vento.
- O que é que ele te...
- Não foi ele. Credo, podes parar de... o odiar? - Enquanto massajava as frontes, perguntou-se se alguma vez explodira mesmo a cabeça a alguém ou se toda a gente
na Terra se sentia assim de vez em quando. - Fomos atacados por um humano e ao desarmá-lo...
- Ao humano?
- Sim - enquanto o desarmava, magoei-o e chamaram a polícia...
- Desarmaste um humano?
Payne fitou o gémeo.
- Quando retiras a arma a alguém, é isso que se diz, não é?
Vishous semicerrou os olhos.
- Sim, é.
- Não podia apagar as memórias de Manuel, porque se não ele não conseguiria responder ao interrogatório da polícia. E estou aqui... porque queria certificar-me de
que chegava bem a casa.
No silêncio que se instalou, ela apercebeu-se de que se tinha encostado a um canto. Ao ter de proteger Manuel, ela tinha acabado de provar o ponto de vista do irmão
de que o macho que ela queria não podia tomar conta dela. Oh, mas o que é que interessava. Tendo em conta que estava preparada para obedecer ao rei, não havia, fosse
como fosse, nenhum futuro para ela e Manuel.
Quando Vishous ia abrir a boca, ela gemeu e cobriu as orelhas com as mãos.
- Se tens uma réstia de compaixão, deixa-me fazer o luto sozinha. Não aguento ouvir todas as razões que levam a que me tenha de separar dele... já as sei de cor.
Por favor. Vai-te embora.
Fechando os olhos, virou-se e rezou à mãe dos céus para ele fazer o que ela pedia...
A mão no seu ombro era pesada e quente.
- Payne. Payne, olha para mim.
Sem nenhuma energia de sobra para lutar, ela deixou cair os braços e olhou para os seus olhos sombrios.
- Responde-me a uma coisa - disse o gémeo.
- O quê?
- Amas o sac... a ele. Ama-lo?
Payne olhou para trás, através do vidro, para o humano na cama.
- Sim. Estou apaixonada por ele. E se tentares dissuadir-me com o facto de ainda não ter vivido o suficiente para julgar, eu digo-te... vai à merda. Não preciso
de conhecer o mundo para perceber o desejo do meu coração.
Fez-se silêncio.
- O que disse Wrath?
- O mesmo que tu dirias. Que tenho de limpar da mente dele a minha memória e nunca, nunca mais o ver.
Como o irmão não disse mais nada, ela abanou a cabeça.
- Porque é que ainda aqui estás, Vishous? Estás a pensar no que hás de dizer para eu ir para casa? Deixa-me poupar-te ao esforço... quando chegar a madrugada, eu
vou... e cumprirei as leis, mas não por ser bom para ti ou para o rei ou para mim. É por ser mais seguro para ele... não precisa de inimigos como tu e a Irmandade
a torturá-lo só porque eu sinto aquilo que sinto. Por isso, será tudo como desejas. Só que - e aqui, ela iluminou-se - não vou apagar-lhe a memória. A mente dele
é demasiado valiosa para se perder... e não aguenta mais limpezas. Mantê-lo-ei seguro nunca mais voltando, mas não o vou condenar a uma vida de demência. Não vai
acontecer. Não fez outra coisa a não ser ajudar-me. Merece mais do que ser usado e deitado fora.
Payne voltou a olhar para o vidro.
Depois de um longo silêncio, ela assumiu que o gémeo se fora embora. Por isso, quase deu um grito quando ele lhe apareceu à frente e bloqueou a imagem de Manuel.
- Ainda aqui estás? - resmungou.
- Eu trato disto por ti.
Payne encolheu-se e depois rosnou.
- Nem te atrevas a pensar em matá-lo...
- Com Wrath. Eu trato disto. Eu... - Vishous passou a mão pelo cabelo. - Eu arranjo uma maneira de poderes ficar com ele.
Payne pestanejou. E depois sentiu a boca a ficar aberta.
- O que foi... O que foi que disseste?
- Conheço Wrath há muitos anos. E, tecnicamente, de acordo com as Leis Antigas, eu sou o chefe da nossa pequena e feliz família. Vou ter com ele e digo-lhe que aprovo
esta... união e que acho que devia ser permitido que visses o sac... o homem... o Manello. - Aclarou a garganta. - Wrath preocupa-se muito com a segurança, e com
mhis à volta do complexo... o Manello não conseguiria encontrar-nos mesmo que quisesse. Além disso, é uma hipocrisia negar-te o que outros Irmãos têm feito de vez
em quando. Que raios, o Darius teve um filho com uma mulher humana... e o Wrath está agora casado, com uma criança. Facto comprovado... se tivesses tentado separar
o nosso rei da sua Beth quando ele a conheceu? Ele teria matado qualquer um que sequer o sugerisse. A Mary do Rhage? A mesma merda. E devia... ser o mesmo para ti.
Até falo com a mahmen, se tiver de ser.
Payne pousou a mão sobre o coração.
- Não... compreendo porque é que... farias isto?
Ele olhou por cima do ombro, fitando o humano que ela amava.
- És minha irmã. E é a ele que tu queres. - Encolheu os ombros. - E... bem, também me apaixonei por uma humana. Apaixonei-me pela minha Jane uma hora depois de a
ter conhecido... e... sim. Sem ela, não tenho nada. Se o que sentes pelo Manello for metade do que sinto pela minha shellan, a tua vida nunca ficará completa sem
ele...
Payne atirou-se ao irmão num abraço. Quase o derrubou.
- Oh, meu irmão...!
Os braços dele rodearam-na e apertaram-na.
- Desculpa ter sido tão idiota.
- Foste... - Ela procurou outra palavra. - Sim, foste um idiota.
Ele riu-se, o som a roncar pelo peito acima.
- Vês, podemos concordar com alguma coisa.
Enquanto o apertava ainda mais, disse:
- Obrigada... Obrigada...
Após um momento, ele afastou-se.
- Deixa-me primeiro falar com Wrath, antes de ires ter com o Manello, okay? Quero tratar de tudo antes... e sim, agora vou já para casa. A Jane está a fazer rondas
e a Irmandade está de folga, por isso devo conseguir falar com o rei. - Fez uma pausa. - Só quero uma coisa em troca.
- O quê? Qualquer coisa. É só dizeres.
- Se vais ficar aqui até de madrugada, vai para dentro. Está um frio de rachar aqui fora, a sério. - Deu um passo atrás. - Vai lá... vai ver com o teu... macho...
Esfregou os olhos e ela teve a sensação de que ele se estava a lembrar de quando a apanhara no duche com o curandeiro.
- Eu volto... ah, liga... Tens telefone? Toma, fica com... merda, não o tenho.
- Está tudo bem, meu irmão. Eu regresso de madrugada.
- Ótimo, sim... nessa altura já terei notícias.
Ela olhou-o fixamente.
- Amo-te.
Agora ele sorria. Um grande sorriso, sem reservas. Esticando o braço, acariciou-lhe o rosto.
- Também te amo, mana. Agora vai lá para dentro e aquece-te.
- Vou fazer isso. - Esticou-se e deu-lhe um beijo na face. - Vou fazer isso!
Acenando-lhe, desmaterializou-se através do vidro. Oh, como o interior estava quente em comparação com a varanda... ou talvez fosse a onda de alegria que se espalhara
nela. Fosse o que fosse, fez uma pirueta apoiada só num pé e depois foi até à cama.
Manuel não estava apenas adormecido, estava totalmente inconsciente, mas ela não se importava. Saltando para a cama pôs um braço à volta dele e instantaneamente
ele gemeu e virou-se para ela, puxando-a para si, abraçando-a. Quando os corpos se fundiram e ela sentiu na anca a sua ereção, olhou rapidamente para a varanda.
Não valia a pena abusar da sorte com Vishous, mas tudo bem, ele já lá não estava.
Sorrindo na escuridão, ela descontraiu-se e acariciou o ombro do macho. Isto ia tudo correr bem e a chave tinha sido a lógica inabalável que Vishous tinha exposto
detalhadamente. De facto, o argumento era tão evidente, que ela nem acreditava que não tivesse pensado nisso antes.
Wrath podia não gostar, no entanto, concordaria porque os factos eram os factos e ele era um governante justo, que já tinha dado muitas vezes provas que não era
escravo dos costumes antigos.
Enquanto se aconchegava, sabia que não havia maneira de adormecer, correndo o risco de ser queimada pelo sol. Ela própria estava incandescente, ali deitada na cama
ao lado de Manuel, brilhando com tanta intensidade que projetava sombras no quarto.
Nada de dormir.
Ela só queria gozar o que estava a sentir.
Para sempre.
Capítulo 45
Vishous chegou a casa num abrir e fechar de olhos, e depois de dar conta da sua presença a Jane na clínica dirigiu-se à mansão através do túnel subterrâneo. Ao sair
para o átrio, só ouviu um reverberante absolutamente-nada, ficando desconfortável com o silêncio.
Estava tudo tão calmo.
É claro que, regra geral, isso seria assim por serem duas da manhã e os Irmãos estarem em campo. No entanto, naquela noite estavam todos recolhidos, provavelmente
a fazer sexo, a recuperar do sexo, ou a meio de o repetir.
Sinto-me como se tivesse feito amor contigo pela primeira vez.
Ao recordar a voz de Jane, nem sabia se havia de rir ou de dar um pontapé no seu próprio traseiro. Fosse como fosse, ele iniciara naquela noite um admirável mundo
novo, não que soubesse ao certo o que isso significava, mas estava disposto a tal. Absolutamente disposto.
Subindo a escadaria, dirigiu-se ao escritório de Wrath, enquanto procurava em todos os bolsos que... não tinha. Continuava com a maldita bata vestida. Com as manchas
de sangue. E sem cigarros.
- Que merda.
- Meu senhor? Necessita de algo?
Ao parar no cimo das escadas, olhou para Fritz, que limpava o balaústre, e quase beijou a matraca do mordomo.
- Estou sem tabaco. Mortalhas...
O velho doggen ofereceu um sorriso tão rasgado que as rugas no rosto o fizeram parecer um shar-pei.
- Tenho uma reserva na copa. Volto já... vai encontrar-se com o rei?
- Vou.
- Levar-lhos-ei lá... a par de um roupão, talvez?
A segunda parte foi proferida com toda a delicadeza.
- Porra, obrigado, Fritz. Salvaste-me a vida.
- Não, o senhor é que salva. - Fez uma vénia. - O senhor e a Irmandade salvam-nos todas as noites.
Fritz apressou-se a descer a escada, com um passo mais enérgico do que seria de esperar. Claro que não havia nada de que gostasse mais do que ser prestável. O que
era fantástico.
Certo. Ao trabalho.
Sentindo-se miserável na bata, V dirigiu-se às portas fechadas do escritório de Wrath, cerrou o punho e bateu.
A voz do rei fez-se ouvir do outro lado dos painéis grossos de madeira:
- Entra.
V obedeceu.
- Sou eu.
- Então, irmão?
No outro lado da sala de tons amaricados, Wrath estava na secretária imensa, sentado no trono do pai. No chão a seu lado, deitado numa cama Orvis vermelha personalizada,
George ergueu a cabeça loura e arrebitou as orelhas perfeitamente triangulares. O golden retriever bateu a cauda à laia de cumprimento, mas não deixou o dono.
O rei e o cão-guia nunca se separavam. E não era só porque Wrath precisasse de ajuda.
- Então, V? - Wrath recostou-se na cadeira entalhada, deixando pender a mão para afagar a cabeça do animal. - O teu cheiro é interessante.
- Ah é? - V sentou-se à frente do rei, assentando as mãos nas coxas e apertando para se tentar distrair da ânsia por nicotina.
- Deixaste a porta aberta.
- O Fritz vai trazer-me tabaco.
- Não vais fumar ao pé do meu cão.
Porra.
- Ah... - Esquecera-se da nova regra... e pedir que George fosse dar uma volta não era opção, afinal de contas Wrath podia ter perdido a visão, mas o sacana continuava
a ser mortífero e V já tivera a sua dose de S e M nessa noite, muito obrigado.
Fritz entrou no momento em que as sobrancelhas negras do rei se esconderam atrás dos óculos que lhe contornavam a cabeça.
- O seu tabaco, meu senhor - anunciou alegremente o mordomo.
- Obrigado, meu caro. - V aceitou as mortalhas e a bolsa... e o isqueiro que o doggen tivera o discernimento de providenciar. A par do roupão.
A porta fechou-se.
V olhou para o cão. A grande cabeça de George estava agora pousada entre as patas, com os ternurentos olhos castanhos parecendo lamentar a proibição do fumo. Chegou
mesmo a abanar ao de leve a ponta da cauda.
Vishous acariciou a bolsa do delicioso tabaco turco, num gesto desgraçadamente patético.
- Importas-te que enrole uns quantos?
- Se ouço a pedra do isqueiro vais ao chão.
- Entendido. - V alinhou o material na secretária. - Vim falar sobre a Payne.
- Como está a tua irmã?
- Ela está ... espetacular. - Abriu a bolsa, inalou e teve de reprimir o mmmm. - Resultou... não sei bem como, mas ela já anda por aí. De pé, como nova.
O rei chegou-se à frente.
- Não... me digas. A sério?
- Mesmo.
- É um milagre.
Ao que parecia, chamado Manuel Manello.
- Podemos dizer que sim.
- Pois isso é uma notícia do caraças. Queres arranjar-lhe um quarto aqui? O Fritz pode...
- É um bocadinho mais complicado do que isso.
Quando as sobrancelhas voltaram a desaparecer atrás dos óculos, V pensou, meu, mesmo sendo o rei completamente cego, parecia concentrar-se como sempre. O que nos
fazia sentir como se tivéssemos uma mira apontada à cabeça.
V começou a dispor os quadrados de papel branco.
- É aquele cirurgião humano.
- Ah... foda-se! - Wrath ergueu os óculos escuros para a testa e esfregou os olhos. - Não me lixes a dizer que eles se juntaram.
V permaneceu em silêncio, agarrando na bolsa e ocupando-se a espalhar tabaco.
- Estou à espera que me digas que me enganei. - Wrath deixou os óculos regressarem ao seu lugar. - Continuo à espera.
- Ela está apaixonada por ele.
- E não te importas com isso?
- É claro que me importo. Mas ela podia até sair com um Irmão e o desgraçado não ser bom o suficiente para ela. - Pegou num dos papéis carregados e começou a enrolar.
- Portanto... se ela o quer, digo que seja.
- V... sei o que estás a pensar e não o posso permitir.
Vishous parou enquanto lambia o papel e pensou em trazer Beth para a conversa. Claro que o rei parecia estar já a desenvolver uma dor de cabeça.
- Uma porra é que não podes permitir. O Rhage e a Mary...
- O Rhage foi espancado, lembras-te? Por um motivo. Além disso, as coisas estão a mudar, Vishous. A guerra está a aquecer, a Sociedade dos Minguantes anda a recrutar
como a merda... e ainda por cima temos a porra das metades que ontem encontraste na baixa.
Raios partam, pensou V. Aqueles matadores chacinados...
- E ainda por cima apareceu isto. - Sem olhar, Wrath levou a mão à esquerda e ergueu uma página em braile. - É a cópia de uma carta que foi enviada por e-mail ao
que resta das Famílias Fundadoras. O Xcor mudou de pouso com os rapazes dele... razão pela qual encontraste os minguantes naquele estado.
- Grande... porra. Eu sabia que tinha de ser ele.
- Ele está a armar-nos uma ratoeira.
V ficou hirto.
- Porquê?
A expressão de Wrath foi um verdadeiro acorda.
- Houve quem perdesse ramos inteiros da família. Fugiram de suas casas, mas querem regressar. Entretanto, as coisas em Caldwell estão a ficar cada vez mais perigosas.
Neste momento não podemos tomar nada como garantido.
Ou seja, ele não partia do princípio de que o seu trono estava seguro. Pouco importava a cadeira onde, por acaso, estava sentado.
- Portanto, não é que eu não entenda a situação da Payne - explicou Wrath. - Mas temos de fazer um círculo com as carroças e protegermo-nos. Não é uma boa altura
para acrescentarmos a complicação de ter aqui um humano.
O silêncio instalou-se por momentos.
Enquanto V pensava nos seus argumentos pegou em mais uma mortalha, enrolou-a, lambeu a borda, torceu.
- Ontem à noite ele ajudou a minha Jane. Quando os Irmãos e eu cá chegámos depois dos confrontos no beco, o Manello foi mais do que eficaz. É um cirurgião espetacular...
e eu bem o sei. Ele operou-me. Não é, de todo, inútil. - V olhou para o outro lado da secretária. - Se a guerra se intensificar, dava-nos jeito mais um par de mãos
operatórias aqui na clínica.
Wrath praguejou em inglês. E depois na Língua Antiga.
- Vishous...
- A Jane é espantosa, mas ela é só uma. E o Manello tem competências técnicas que a ela lhe faltam.
Wrath voltou a levantar os óculos e a esfregar os olhos. Com força.
- Estás a dizer-me que esse tipo vai querer passar o resto da vida, dia e noite, nesta casa? É pedir muito.
- E eu peço-lhe.
- Não gosto disto.
Um silêncio loooongo. O que mostrou a V que estava a abrir caminho. Claro que sabia que não devia forçar.
- Pensava que querias matar o desgraçado - resmungou Wrath. Como se esse fosse um objetivo preferível.
De repente, a imagem de Manello de joelhos à frente de Payne lançou-se pela mente de V, até ele ficar com vontade de pegar numa caneta e arrancar os próprios olhos
fora.
- Ainda quero - admitiu, num tom sombrio. - Mas... é ele que ela quer, a sério. O que é que eu posso fazer?
Outro silêncio loooongo, durante o qual produziu uma boa pilha de cigarros.
Por fim, Wrath passou a mão pelo nunca mais acabar de cabelo preto.
- Se ela se quiser encontrar com o humano fora daqui, o problema não é meu.
Vishous abriu a boca, pronto a argumentar, mas depois reconsiderou. Era melhor do que uma nega direta, e ninguém sabia o que o futuro reservava. Se mesmo depois
do Pesadelo do Duche V era capaz de evoluir para um ponto em que Manello permanecia acima da terra e a respirar, tudo poderia acontecer.
- É justo. - Fechou a bolsa. - O que vamos fazer quanto ao Xcor?
- Esperamos que o Conselho convoque uma reunião... algo que, não tenho dúvidas, vai acontecer nas próximas noites. A glymera vai engolir esta merda e nessa altura
ficamos com sérios problemas. - O rei prosseguiu, num tom seco: - Por oposição aos problemitas que temos agora.
- Queres que a Irmandade se junte para uma reunião?
- Não. Dá-lhes o resto da noite de folga. Isto não vai a lado nenhum.
V levantou-se, vestiu o roupão e juntou o material para fazer cigarros.
- Obrigado por isto. Tu sabes, por causa da Payne.
- Não é um favor.
- Já é uma mensagem de esperança para lhe levar.
Vishous estava a meio caminho da porta quando Wrath disse:
- Ela vai querer lutar.
V deu meia volta.
- Desculpa?
- A tua irmã. - Wrath pousou os cotovelos em cima da papelada e chegou-se à frente, com uma expressão grave no rosto cruel. - Tens de te preparar para quando ela
te pedir para ir combater.
Que raios, não.
- Não estou a ouvir isso.
- Mas vais ouvir. Já combati com ela, e é tão mortífera como tu e eu. Se julgas que ela se vai contentar a andar por esta casa nos próximos seiscentos anos, não
deves estar bom da cabeça. Mais tarde ou mais cedo, é o que ela vai querer.
Vishous abriu a boca e depois fechou-a.
Bem, estivera nas nuvens a apreciar a boa vida durante cerca de... vinte e nove minutos.
- Não me digas que o permitias.
- A Xhex luta.
- Ela é súbdita do Rehvenge. Não é tua. - As sobrancelhas de Wrath desapareceram pela terceira vez. - São padrões diferentes.
- Primeiro, todos os que se encontram debaixo deste teto são meus súbditos. E segundo, as coisas não ficam diferentes só por ela ser tua irmã.
- É claro - Que. Ficam. - que não.
- Uh-huh. Pois.
Vishous pigarreou.
- Estás mesmo a pensar deixá-la...
- Já viste como eu fiquei depois dos nossos duelos, não foi? Não lhe dei qualquer vantagem, Vishous. Aquela fêmea sabe o que está a fazer.
- Mas ela é... - Minha irmã. - Não a podes mandar lá para fora.
- Neste momento, preciso de tantos guerreiros quanto possível.
Vishous enfiou um cigarro entre os lábios.
- Acho que é melhor ir-me embora.
- Sim.
Assim que saiu e fechou a porta, acendeu o isqueiro de ouro que Fritz lhe trouxera e inspirou profundamente.
Enquanto pensava no que fazer a seguir, imaginou que poderia dar um salto ao Commodore e dar a boa nova à irmã, mas receava a cena perante a qual poderia vir a materializar-se.
Além disso, tinha até à alvorada para se convencer de que ter Payne em campo não era uma ideia tresloucada.
A par de tudo isso, tinha de falar com mais alguém.
Descendo a escadaria, atravessou o átrio e chegou ao vestíbulo. Lá fora, caminhou rapidamente pelo pátio empedrado e entrou no Fosso pela robusta porta principal.
A familiaridade dos divãs, do ecrã de plasma e da mesa de matraquilhos acalmou-o.
Ver a garrafa vazia de Lag em cima da mesa de apoio? Nem por isso.
- Butch?
Não teve resposta. Dirigiu-se então ao quarto do chui. A porta estava aberta e lá dentro... não havia nada, além do enorme roupeiro de Butch e de uma cama vazia
e revolta.
- Estou aqui.
V deu meia volta e espreitou para o seu quarto. As luzes estavam apagadas, mas as lâmpadas do corredor garantiam-lhe luz suficiente.
Butch estava sentado no extremo da cama, de costas para a porta, a cabeça baixa e os ombros largos curvados.
Vishous entrou e fechou a porta. Nem Jane nem Marissa iam aparecer. Estavam ambas ocupadas com os seus trabalhos. Mas Fritz e a sua equipa deviam passar por ali,
e o mordomo, louvado fosse, nem sequer batia a uma porta fechada. Já lá vivia há tempo suficiente.
- Então - disse V nas trevas.
- Então.
V avançou, contornando os pés da cama e servindo-se da parede para se orientar. Baixou o traseiro sobre o colchão e sentou-se ao lado do melhor amigo.
- Tu e a Jane estão bem? - perguntou o chui.
- Sim. Está tudo bem. - Que grande eufemismo. - Ela chegou mais ou menos quando acordei.
- Eu liguei-lhe.
- Imaginei. - Vishous virou a cabeça e olhou-o, embora isso pouco importasse naquele negrume. - Obrigado por aquilo...
- Sinto muito - gemeu Butch. - Meu Deus, sinto tanto...
A exalação arrastada que se seguiu foi um soluço mal disfarçado.
Apesar de não ver, V estendeu o braço e envolveu o chui. Aproximando o macho do peito, assentou a cabeça sobre a do amigo.
- Está tudo bem - disse, num tom rouco. - Está tudo bem. A sério... Fizeste o mais acertado...
De alguma forma, acabou por virar o macho, ficando com os baços em volta do chui.
Sem saber porquê, pensou na primeira noite que tinham passado juntos. Fora há um milhão e meio de anos, na antiga mansão urbana de Darius. Duas camas lado a lado
lá em cima. Butch perguntara sobre as tatuagens. V dissera-lhe que não se metesse onde não era chamado.
E ali estavam outra vez no escuro. Tendo em conta tudo o que acontecera desde então, era quase inacreditável que alguma vez tivessem sido aqueles dois machos que
estabeleceram uma ligação devido aos Sox.
- Não me peças para voltar a fazer aquilo nos próximos tempos - alertou o chui.
- Combinado.
- Claro que se precisares... vem ter comigo.
V esteve prestes a dizer qualquer coisa na linha de Nunca mais, mas isso era uma treta. Ele e o chui já tinham passado bastantes vezes por esse lado psiquiátrico
de V e, embora ele estivesse a virar a página, nunca se sabia.
Por isso limitou-se a repetir o voto que fizera a si próprio com Jane. A partir de agora, ia deixar as coisas saírem. Mesmo que isso o deixasse desconfortável a
ponto de gritar, era melhor do que a estratégia do acumular. Também era mais saudável.
- Espero que não seja preciso - murmurou. - Mas obrigado, meu.
- Mais uma coisa.
- O quê?
- Acho que agora já namoramos. - Quando V soltou uma gargalhada, o chui encolheu os ombros. - Então? Despi-te. Usaste um espartilho. E nem me lembres do banho de
esponja a seguir.
- Cabrão.
- Sempre.
Quando as gargalhadas se desvaneceram, V fechou os olhos e desligou brevemente o cérebro. Com o peito imenso do melhor amigo contra o seu, e a consciência de que
ele e Jane estavam outra vez bem, o seu mundo completava-se.
Agora, se conseguisse afastar a irmã das ruas e dos becos durante a noite... a vida seria perfeita.
Capítulo 46
Quando José se dirigiu ao Monroe Motel & Suítes, tornou-se óbvio que a única coisa nova em torno do sítio era a fita amarela que acabara de ser passada à volta do
perímetro. Tudo o resto estava murcho e em mau estado, incluindo os carros estacionados junto ao escritório.
Passando pelo alinhamento de polícias, chegou ao último quarto e estacionou o carro à paisana na diagonal em relação aos outros veículos da polícia de Caldwell.
Ao deixar o carro em ponto morto olhou para o outro banco.
- Estás bem para isto?
Veck já estava prestes a abrir a porta.
- Podes crer.
Quando saíram, os outros agentes aproximaram-se e Veck foi cercado por muitas palmadas nas costas. No departamento, as pessoas consideravam-no um herói devido ao
Incidente Paparazzi, e essa lista não se viu de todo reduzida por ele ignorar sempre os incentivos.
Mantendo-se tranquilo, limitou-se a puxar as calças e a sacar de um cigarro. Depois de o acender e de inspirar, falou enquanto exalava.
- Como estão as coisas?
José deixou o rapaz a informar-se e passou por baixo da fita. A porta arrombada da cena do crime fora encostada e abriu-a com o ombro.
- Porra - praguejou entredentes.
O ar estava carregado com o cheiro de sangue fresco... e de formaldeído.
Naquele momento, o flash da fotógrafa disparou e o corpo da vítima foi iluminado na cama, bem como os frascos de espécimes em cima da mesa-de-cabeceira. E as facas.
Fechou brevemente os olhos.
- Detetive?
José olhou sobre o ombro para Veck.
- Sim?
- Temos o registo da carrinha. Illinois. O dono é um tal de David Kroner. Não foi dada como roubada, e imagina só: o Kroner é um branco de trinta e três anos...
solteiro... de bai... grande porra. - As informações debitadas por Veck foram atalhadas ao parar junto à cama. - Jesus.
O flash voltou a disparar e ouviu-se um gemido eletrónico enquanto a máquina recuperava do esforço.
José olhou para o legista.
- Há quanto tempo é que ela está morta?
- Não muito. Ainda está quente. Dou-lhe uma hora mais aproximada quando acabar.
- Obrigado. - José acercou-se da secretária reles e serviu-se de uma caneta para afastar uma aliança de ouro fina, um par de brincos brilhantes e uma pulseira cor-de-rosa
e preta.
A tatuagem recortada da pela da vítima e depositada no frasco ao lado dela também era cor-de-rosa e preta. Provavelmente eram as suas cores preferidas.
Ou tinham sido.
Continuou a vaguear pelo quarto, em busca de coisas deslocadas, a confirmar os cestos de papéis, a espreitar a casa de banho.
Era óbvio que alguém interrompera o divertimento do assassino. Alguém ouvira ou vira qualquer coisa e tinha arrombado a porta, provocando uma fuga apressada pela
janela das traseiras por cima da sanita.
A chamada do 112 fora feita por um homem que se recusara a identificar-se. Dissera apenas que estava um cadáver no último quarto e nada mais. Não fora o assassino
deles. Esses sacanas só paravam se a isso fossem obrigados e não deixavam ficar o tipo de troféus que se viam em cima da mesa-de-cabeceira e da secretária.
- Para onde é que foste depois disto? - interrogou-se José. - Para onde é que fugiste...
Havia cães a farejar na mata lá atrás, mas José tinha a sensação de que isso não daria em nada. A meros cento e cinquenta metros do motel ficava um rio baixo o suficiente
para atravessar. A caminho dali, ele e Veck tinham passado sobre a pequena ponte que o atravessava.
- Ele está a mudar de estratégia - aventou Veck. Quando José se virou, o jovem levou as mãos às ancas e abanou a cabeça. - É a primeira vez que o faz num sítio assim
tão público. O trabalho dele é muito sujo... e potencialmente barulhento. Depois do que já fez, teríamos encontrado mais cenas como esta.
- Concordo.
- O David Kroner é a nossa resposta.
José encolheu os ombros.
- Talvez. Ou pode ser mais um corpo prestes a ser encontrado.
- Ninguém o deu como desaparecido.
- Disseste que era solteiro, certo? Talvez more sozinho. Quem ia dar por falta dele?
No entanto, mesmo enquanto abria buracos na teoria, José fez as suas próprias contas e chegou a uma conclusão semelhante. Era raro que alguém desaparecesse sem que
ninguém desse conta, família, amigos, colegas de trabalho, senhorio... Não era impossível, mas era pouco provável.
A questão era, para onde iria o assassino em seguida? Se o sacana seguisse o mais comum, seria provável que entrasse numa fase de exagero na patologia. Até então,
as vítimas apareciam com meses de intervalo, mas agora tinham encontrado duas numa semana.
Se partisse desse princípio, sabia que as ações cuidadosas que até então tinham ocultado o assassino iriam por água abaixo, com os padrões que seguia a desaparecerem
face a um impulso frenético. A boa notícia era que o desleixo o tornaria mais fácil de apanhar. A má notícia era que a situação poderia piorar antes de melhorar.
Veck acercou-se.
- Vou ver a carrinha. Queres estar presente?
- Sim.
Lá fora, o ar não cheirava a cobre e a químicos, e José respirou fundo enquanto Veck calçava as luvas e deitava mãos à obra. Como seria de esperar, o veículo estava
trancado, mas isso não o deteve. Pegou numa barra e abriu a porta do condutor como se já estivesse habituado a arrombar carros.
- Chiça - resmungou, ao recuar.
Não demorou muito para que o fedor chegasse a José, que tossiu para a mão. Mais formaldeído, mas também o fedor adocicado de coisas mortas.
- Não é na cabina. - Veck percorreu os bancos com a lanterna. - Na caixa.
As portas duplas tinham um cadeado, mas Veck foi à mala do carro à paisana e regressou com uma serra a pilhas.
Ouviu-se um gemido intenso... um ping!... e Veck entrou.
- Ah... porra...
José abanou a cabeça enquanto contornava o veículo para saber contra o que o parceiro praguejara.
O feixe da lanterna de Veck iluminava uma coleção de pequenos frascos com coisas a flutuar ou no fundo de um líquido transparente. Os recipientes estavam guardados
num sistema de prateleiras feitas por medida, montado do lado esquerdo. O lado direito estava reservado às ferramentas: facas e cordas, fita adesiva castanha, martelos,
escopros, lâminas, bisturis, afastadores.
Olá, David Kroner. Era extremamente improvável que o assassino tivesse montado tudo aquilo na carrinha de outra pessoa e quase apostava que os troféus naqueles frascos
encaixavam na perfeição nos buracos deixados na pele das vítimas.
A grande esperança seria que os cães-polícias lhe identificassem o rasto na mata.
Caso contrário, iriam perder outra mulher. José estava disposto a apostar a casa.
- Vou entrar em contacto com o FBI - disse. - Eles têm de vir ver isto.
Veck perscrutou o interior.
- Vou dar uma mãozinha aos rapazes da equipa forense. Gostava de levar este veículo para a sede o mais depressa possível, para que se possa identificar tudo devidamente.
José assentiu, pegou no telemóvel e pressionou a tecla de acesso rápido. Quando começou a chamar percebeu que, depois de falar com os federais, teria de ligar à
mulher. Nunca chegaria a casa a horas do pequeno-almoço.
Nem pensar.
Capítulo 47
-O sol! Ó, meu Deus! Depressa, é melhor...
Manny acordou em pleno ar. Era óbvio que saltara da cama, levando o edredão e várias almofadas consigo, e aterraram todos ao mesmo tempo, os pés, a coberta e o quarteto
de retângulos macios.
A luz do Sol entrava pelas janelas, enchendo-lhe o quarto com uma iluminação brilhante.
O cérebro dizia-lhe que Payne estava ali. Ela estava ali.
Olhando freneticamente à volta, correu para a casa de banho. Vazia. Percorreu o resto do apartamento. Vazio.
Esfregando o cabelo, voltou à cama... e depois apercebeu-se, santa mãe, ainda tinha as recordações todas. Dela. De Jane. Do Peras Odioso. Da operação e... daquele
duche maravilhoso. E de Glory.
Mas que raios...
Baixou-se, apanhou uma almofada e levou-a ao nariz. Sim, ela tinha mesmo estado deitada ao lado dele. Mas por que lá teria ido? E se assim fosse, por que não lhe
teria apagado a memória?
Dirigindo-se ao corredor, pegou no telemóvel e... Mas não lhe podia ligar. Não sabia o número.
Ali se deixou ficar por um instante e depois lembrou-se de que combinara encontrar-se com Goldberg dali a menos de uma hora.
Constrangido, e bizarramente em pânico sem qualquer motivo aparente, vestiu o equipamento de corrida e foi até ao elevador. No ginásio cumprimentou com acenos de
cabeça os outros indivíduos que malhavam ferro ou faziam abdominais e dirigiu-se à passadeira que costumava usar.
Esquecera-se do malfadado iPod, mas tinha a mente em tal alvoroço que silêncio era coisa que não havia entre as orelhas. Ao entrar no ritmo, tentou recordar-se do
que acontecera depois de tomar duche na véspera... mas não se lembrou de nada. Contudo, não estava com dor de cabeça, o que parecia sugerir que o buraco negro em
que se encontrava era algo natural, cortesia do álcool.
Ao longo do treino teve de acelerar a máquina algumas vezes. De certeza que um palerma teria andado a mexer na coisa e o tapete estava lento. E quando chegou aos
dez quilómetros apercebeu-se de que não estava de ressaca. Claro que a intensidade com que a mente lhe fervilhava fazia com que estivesse demasiado distraído para
se preocupar com as dores.
Quando desceu da passadeira, cerca de quinze minutos depois, precisava de uma toalha e dirigiu-se ao monte junto à saída. Um dos indivíduos dos pesos chegou ao mesmo
tempo, mas recuou, num gesto de deferência.
- Você primeiro, meu - estendendo a mão.
- Obrigado.
Enquanto Manny se limpava e dirigia à porta, fez uma breve pausa quando se apercebeu de que ninguém se mexia. Todos os que ali se encontravam tinham interrompido
o que faziam e fitavam-no. Uma olhadela rápida para baixo deixou-o com a certeza de que não sofria de uma perturbação de roupa. Mas que raios?
No elevador esticou as pernas e os braços e pensou, Cristo, podia correr mais quinze... vinte quilómetros sem problemas. E, apesar do álcool, pelos vistos tinha
tido uma noite de sono reconfortante, pois sentia-se desperto e cheio de energia. Mas era assim que funcionavam as endorfinas. Mesmo quando se estava a cair aos
bocados, a excitação da corrida era melhor do que cafeína... ou do que a sobriedade.
Não tinha dúvidas de que acabaria por se ir abaixo, mas logo se preocuparia com isso, quando a exaustão chegasse.
Meia hora depois entrou na Starbucks da Everett onde ele e Goldberg se tinham conhecido há anos, embora, na altura, o pequeno café ainda não tivesse sido adquirido
pela cadeia. O tipo fora aluno da Columbia e estava a concorrer ao internato no St. Francis, e Manny pertencia à equipa de recrutamento que fora reunida para o contratar.
Já na altura Goldberg era uma estrela e Manny quisera criar o melhor departamento do país.
Olhou à volta quando se pôs na fila para pedir um venti latte. O sítio estava a abarrotar, mas Goldberg já lhes conseguira uma mesa à janela. Isso não era uma surpresa.
Aquele cirurgião chegava sempre adiantado às reuniões. De certeza que já lá estaria há pelo menos quinze, vinte minutos. Mas não estava à procura de Manny. Fitava
o copo de papel, como se tentasse mexer psiquicamente o cappuccino.
Ah... ele trazia uma mensagem.
- Manuel? - chamou o rapaz ao balcão.
Manny aceitou o copo, contornou e ziguezagueou por entre os viciados em cafeína, os expositores de canecas e o quadro triangular que anunciava as promoções.
- Então? - cumprimentou ele quando se sentou à frente de Goldberg.
O outro cirurgião ergueu o olhar. E teve de olhar duas vezes.
- Ah... olá.
Manny bebeu um gole do café e recostou-se na cadeira, com as barras curvas das costas a pressionarem-lhe a coluna.
- Como tens andado?
- Eu estou... bem. Cristo, estás com um aspeto fantástico.
Manny esfregou o queixo com barba de véspera. Mas que grande mentira. Não se dera ao trabalho de se barbear e vestia uma camisola polar e calças de ganga. Não era
de todo os preparos de um garanhão.
- Deixemos as amabilidades. - Manny deu mais um gole no latte. - O que tens para me dizer?
Os olhos de Goldberg saltaram em todas as direções. Até que Manny teve pena dele.
- Querem que eu meta férias, não é?
Goldberg pigarreou.
- A direção do hospital acha que seria o melhor para... todos.
- Pediram-te para assumires a chefia, certo?
Mais um tossicar.
- Ah...
Manny pousou o copo.
- Não faz mal. Sem problema. Fico satisfeito... vai correr tudo bem.
- Sinto muito... - Goldberg abanou a cabeça. - Eu... isto parece tudo tão pouco ético. Mas... podes sempre voltar, sabes, depois. Além disso, o descanso fez-te bem.
Quer dizer, tu estás...
- Fantástico - disse Manny, num tom seco. - Uh-huh.
Era o que se dizia sempre às pessoas por quem se sentia pena.
Tomaram os cafés em silêncio e Manny interrogava-se se o outro estaria a pensar o mesmo que ele. Cristo, a volta que as coisas tinham dado. Quando se conheceram
ali, Goldberg estava tão nervoso como agora, só que por motivos bem diferentes. E quem diria que Manny viria a ser dispensado. Na altura só queria chegar ao topo
e nada o iria deter. E assim fora.
O que fez com que a sua reação ao pedido da direção fosse uma surpresa. Na verdade, não estava muito preocupado. Sentia-se... de certa forma desligado, como se isso
estivesse a acontecer a alguém que conhecera em tempos, mas que desde há muito se afastara. Pois, era importante, mas... que se danasse.
- Bem... - O toque do seu telefone interrompeu-o. E a dica quanto ao que realmente lhe interessava foi a pressa para tirar o aparelho, quase como se a camisola tivesse
pegado fogo.
Mas não era Payne, era o veterinário.
- Tenho de atender - disse a Goldberg. - Dois segundos. Sim, doutor, como está... - Manny franziu o cenho. - A sério. Uh-huh. Pois... pois... uhhuh... - Um sorriso
lento começou a crescer-lhe no rosto e dominou-lhe a expressão, até de certeza parecer radiante como um holofote. - Pois. É isso mesmo, não é? Parece a porra de
um milagre.
Quando desligou o telefone olhou para o outro lado da mesa. As sobrancelhas de Goldberg tinham-lhe chegado ao topo da testa.
- Boas notícias. Sobre o meu cavalo.
E o par de sobrancelhas subiu ainda mais.
- Não sabia que tinhas um cavalo.
- Chama-se Glory. É um puro-sangue.
- Ah. Uau.
- Dedico-me às corridas.
- Não sabia.
- Pois.
E as informações pessoais ficaram-se por aí, o que deu a entender a Manny o quanto falavam sobre o trabalho. No hospital, ele e Goldberg passavam horas a falar sobre
pacientes, questões de pessoal e sobre a gestão do departamento. De resto não tinham grande coisa a dizer um ao outro.
Mesmo assim, estava sentado à frente de um bom homem... alguém que provavelmente seria o próximo chefe de cirurgia do St. Francis. É claro que os diretores fariam
um concurso a nível nacional, mas Goldberg seria escolhido, pois os outros cirurgiões, que se assustavam com facilidade e gostavam de estabilidade, conheciam-no
e confiavam nele. E faziam bem. Goldberg era brilhante a nível técnico na sala de operações, proficiente a nível administrativo e muito mais calmo do que Manny alguma
vez fora.
- Vais fazer um excelente trabalho - garantiu Manny.
- O quê... ah. É só temporariamente, até que tu...tu sabes, até que voltes.
Ele parecia mesmo acreditar nisso, o que atestava a sua excelente índole.
- Pois.
Manny mexeu-se na cadeira e, quando voltou a cruzar as pernas, olhou à volta e viu três raparigas do outro lado. Deviam ter cerca de dezoito anos e, assim que cruzaram
os olhares, elas riram-se e falaram entre si, como se fingissem que não o tinham estado a mirar.
Voltando a sentir-se como no ginásio, confirmou o seu estado. Não. Continuava absolutamente sem estar nu. Mas que raio...
Quando ergueu o olhar, uma delas levantara-se e aproximara-se.
- Olá. A minha amiga acha que és giro.
Aaa...
- Ah, obrigado.
- Este é o telefone dela...
- Ah, não... não. - Pegou no papel que ela lhe depositara na mesa e obrigou-a a aceitá-lo de volta. - Fico lisonjeado, mas...
- Ela tem dezoito anos...
- E eu quarenta e cinco.
Com essas palavras, a rapariga ficou de boca aberta.
- Não posso.
- Sim. Podes. - Passou a mão pelo cabelo, interrogando-se quando entrara na Gossip Girl ou qualquer coisa do género. - E tenho namorada.
- Ah. - A jovem sorriu. - Isso é porreiro... mas, tipo, podias ter dito. Não era preciso mentir a dizeres que eras um cota.
Dito isso afastou-se e quando se sentou ouviu-se um gemido coletivo. E depois ele recebeu algumas piscadelas de olho.
Manny olhou para Goldberg.
- Miúdas. Quer dizer, sinceramente.
- Aaa. Pois.
Certo, estava na altura de acabar com aquele embaraço. Olhando pela janela, Manny começou a planear a saída...
No vidro viu o reflexo do seu rosto. Os mesmos malares altos. O mesmo queixo marcado. A mesma combinação de lábios e nariz. O mesmo cabelo preto. Mas havia qualquer
coisa de diferente.
Aproximando-se, pensou... os olhos estavam...
- Olha - disse calmamente. - Vou à casa de banho. Guardas-me o café antes de irmos embora?
- É claro. - Goldberg sorriu, aliviado, como se estivesse satisfeito por ter tantos planos de saída e um emprego. - Demora o tempo que quiseres.
Manny levantou-se e dirigiu-se à única casa de banho unissexo. Depois de bater sem resposta, abriu a porta e acendeu a luz. Quando se trancou e a ventoinha no teto
começou a funcionar, aproximou-se do espelho e leu o aviso «Os Funcionários Devem Lavar as Mãos».
A luz encontrava-se diretamente por cima do lavatório à frente do qual estava. Assim sendo, ele devia estar com um aspeto de merda, de olhos encovados pela exaustão,
com olheiras mais escuras que o breu e a pele da cor de uma torrada mal passada.
Não foi isso que o espelho lhe mostrou. Mesmo com a péssima luz fluorescente que o iluminava, parecia dez anos mais novo do que aquilo de que se lembrava. Irradiava
saúde, como se alguém tivesse photoshopado uma versão antiga da cabeça naquele corpo atual.
Recuando, estendeu os braços para o lado e agachou-se, dando à anca a oportunidade de berrar. Ou as coxas, que ele esforçara ao máximo há menos de uma hora. Ou as
costas.
Nada de dor. Nada de rigidez.
O corpo estava ansioso por trabalhar.
Pensou naquilo que o veterinário lhe dissera ao telefone, a voz do homem confusa e entusiasmada ao mesmo tempo: Ela regenerou o osso e o casco sarou espontaneamente.
É como se a lesão nunca tivesse acontecido.
Santo... Deus. E se Payne tivesse exercido a magia dela sobre ele? Enquanto estiveram juntos? E se ela lhe tivesse sarado o corpo a nível de tempo, sem que nenhum
desse por isso... fazendo o relógio biológico recuar não só meses, mas uma década ou mais?
Manny agarrou a cruz que trazia ao pescoço.
Quando alguém bateu à porta, Manny puxou o autoclismo na sanita vazia e depois abriu a torneira, para que não parecesse ter estado a fazer alguma coisa duvidosa.
Ao sair, estonteado, acenou com a cabeça para a mulher anafada que pretendia entrar e regressou para junto de Goldberg.
Sentou-se e limpou as palmas suadas às calças.
- Preciso de um favor - disse ao antigo colega. - É uma coisa que não pediria a mais ninguém...
- Diz. Qualquer coisa. Depois de tudo o que fizeste por mim...
- Quero que me faças uma avaliação física. E também uns exames.
Goldberg assentiu de imediato.
- Não ia dizê-lo, mas acho que é uma excelente ideia. As dores de cabeça...o esquecimento. Tens de saber se há algum... problema. - Ficou-se por aí, como se não
quisesse nem discutir nem tornar-se mórbido. - Embora, e isto é verdade... nunca te tenha visto com tão bom aspeto.
Manny acabou o café e levantou-se, com a sensação de urgência que o impelia sem nada ter a ver com a cafeína.
- Vamos embora. Se tiveres tempo agora, claro.
Goldberg não se demorou.
- Para ti, tenho sempre tempo.
Capítulo 48
De vez em quando, a morte de Qhuinn voltava ao pensamento dele. Acontecia em sonhos. Nas raras ocasiões em que ele estava quieto e calado. E às vezes para lhe lixar
a cabeça por puro gozo.
Ele procurava sempre evitar a colagem de imagens, cheiros e sons como se fossem a peste, mas apesar de ter solicitado ao seu tribunal interior o seu banimento, os
advogados adversários estavam a ser uns cabrões e a opor-se... portanto, aquela merda volta e meia regressava.
Deitado na cama, aquele pedaço de paisagem mental que não era nem estar a dormir nem desperto funcionava como uma linha aberta para aquela noite horrível lhe telefonar
e, quem diria, ela marcava o número, as memórias faziam soar a campainha e, de algum modo, forçavam-no a atender.
O seu próprio irmão fizera parte da guarda de honra que tinha aparecido para o espancar e os cretinos vestidos de preto seguiram-no pela berma quando ele veio embora
da mansão familiar pela última vez. Tudo o que possuía trazia consigo, e não fazia ideia para onde se podia dirigir. O seu pai tinha-o corrido de casa e ele tinha
sido riscado da árvore genealógica, portanto... era assim. Sem raízes. Sem rumo.
E tudo por causa dos seus olhos diferentes.
A guarda de honra supostamente só tinha por missão espancá-lo pela sua ofensa à linhagem. Não o deveriam matar. Só que as merdas tinham-se descontrolado e, numa
reviravolta inesperada, o irmão dele tinha tentado impedi-lo.
Qhuinn realmente recordava essa parte. A voz do irmão a dizer aos outros que parassem.
Mas tinha sido já demasiado tarde, e Qhuinn tinha flutuado para longe não só da dor, como também da própria terra... apenas para dar por si num mar de nevoeiro branco
que se abriu para revelar uma porta. Sem que ninguém lhe dissesse, ele tinha percebido que era a entrada para o Vápido e compreendeu também que, assim que a abrisse,
ele estava feito.
Coisa que lhe parecera uma ótima ideia na altura. Nada a perder, e tudo isso...
E ainda assim, ele vacilara no último instante. Por uma razão que não se conseguia lembrar.
Foi uma coisa estranhíssima... apesar de toda aquela noite estar gravada na sua mente, aquela era a única parte de que ele não se conseguia lembrar por mais que
tentasse.
Mas recordava-se de regressar ao seu próprio corpo. Ao recuperar a consciência, Blay tinha estado a fazer-lhe a reanimação cardiorrespiratória, e olha lá se aquele
não era um boca-a-boca de acordar os mortos...
A pancada que lhe soou na porta acordou-o de uma vez e ele sacudiu as almofadas, fazendo acender as luzes para ter a certeza de saber onde estava.
Isso mesmo. No seu quarto. Sozinho.
Mas não por muito mais tempo.
Os seus olhos ajustaram-se lentamente, apontaram para a porta, e ele soube quem estava do lado de lá. Conseguia sentir o aroma delicado a pairar, e soube por que
motivo Layla tinha vindo. Porra, talvez tivesse sido por isso que ele não tinha conseguido dormir em condições. Esperava ser acordado por ela a qualquer momento.
- Entra - disse-lhe num tom suave.
A Escolhida entrou sem ruído, e virou-se para ele, parecendo de rastos. Desgastada. Um deserto.
- Senhor...
- Podes chamar-me Qhuinn, sabes. Quer dizer, por favor, chama mesmo.
- Obrigada. - Ela fez uma vénia e pareceu debater-se para se endireitar. - Estive a pensar se poderia usufruir mais uma vez da tua oferta generosa para... te tomar
uma veia. Com efeito, estou... vazia e incapaz de regressar ao Santuário.
Quando o seu olhar se cruzou com os olhos verdes dela, algo se infiltrou bem fundo na sua mente, uma espécie de... perceção que ganhou raízes e rebentos de quase-que-entendi,
estou-quase-lá.
Olhos verdes. Verdes como uvas e jade e rebentos de primavera.
- Por que razão me olhas desse modo? - perguntou ela, apertando com mais força as lapelas das vestes.
Olhos verdes... num rosto que era...
A Escolhida espreitou novamente para a porta.
- Talvez... eu deva ir-me embora...
- Desculpa. - Sacudindo-se, ele certificou-se de que os lençóis o cobriam pela cintura e fez-lhe sinal para se aproximar. - Acabei de acordar... não ligues.
- Tens a certeza?
- Absoluta, anda cá. Amigos, lembras-te? - Estendeu a mão, e quando ela ficou ao seu alcance, pegou na dela e fê-la sentar-se.
- Senhor? Ainda estás a olhar para mim.
Qhuinn perscrutou o rosto dela e depois passou para o corpo. Olhos verdes...
Mas que raio tinham os olhos? Não é que ele nunca os tivesse visto antes.
Olhos verdes...
Conteve um palavrão. Cristo, isto era como ter uma canção na cabeça e lembrar-se de tudo menos da letra.
- Senhor?
- Qhuinn. Di-lo, por favor.
- Qhuinn.
Ele esboçou um sorriso.
- Toma, tira o que precisares.
Ao erguer o pulso, pensou, Meu, ela estava tão magra, ao debruçar-se e abrir a boca. As presas dela eram compridas e muito brancas, mas delicadas. Nada como as dele.
E o toque dela era gentil e feminino como tudo nela.
Coisa que o seu lado tradicionalista achou adequadíssimo.
Enquanto ela se alimentava, ele olhou para o cabelo loiro que estava arranjado num entrançado complexo, e para os ombros descobertos, e para as mãos bonitas.
Olhos verdes.
- Cristo. - Quando ela fez menção de parar, ele colocou a mão por trás do pescoço dela e manteve-a no seu pulso. - Está tudo bem. Tive uma cãibra no pé.
Mais verdadeiro seria dizer no cérebro.
Frustrado, ele ergueu a cabeça e, em vez de bater com ela na parede, esfregou os olhos. Quando os focou novamente, estava a olhar para a porta...
... Layla tinha acabado de entrar.
De imediato, ele voltou a deixar-se arrastar pelo sonho. Mas não pela pancada nem pelo seu irmão. Ele viu-se postado à entrada do Vápido... de pé em frente a painéis
brancos... com a mão erguida, quase a tocar na maçaneta.
A realidade esticou-se, puxou e derreteu-se como caramelo até ele não saber se estava acordado ou a dormir... ou morto.
O remoinho começou a formar-se no centro da porta, como qualquer que fosse o material de que era feita se tivesse liquefeito numa consistência leitosa. E do centro
daquela espécie de tornado surgiu uma imagem e veio aproximando-se, mais como se fosse um som do que algo palpável.
Era o rosto de uma jovem fêmea.
Uma jovem fêmea com cabelo loiro e traços refinados... e olhos verde-pálidos.
Ela olhava-o fixamente, cativando o seu olhar como se se tivesse apropriado de todo o seu rosto com as mãozinhas bonitas.
E então ela piscou os olhos. E eles mudaram de cor.
Um ficou verde, e o outro azul. Tal como os dele.
- Senhor!
A princípio ele ficou tremendamente confuso, imaginando o que teria levado a fêmea a chamar-lhe aquilo. Como é que ela sabia quem ele era?
- Qhuinn! Deixa-me fechar-te a ferida!
Ele pestanejou. E descobriu que se tinha atirado contra a cabeceira da cama, e ao fazê-lo, tinha arrancado da sua carne as presas de Layla e estava a sangrar para
o lençol.
- Deixa-me...
Ele afastou a Escolhida e colocou a própria boca na ferida. Enquanto cuidava de si, não conseguia tirar os olhos de Layla.
Era demasiaaaaado fácil sobrepor as feições daquela fêmea jovem no rosto de Layla e encontrar algo muito mais profundo do que semelhança.
Com o coração aos pulos, ele tentou lembrar-se que nunca lhe tinha dado para aquilo da presciência. Ao contrário de V, ele não conseguia ver o futuro.
Layla mexeu-se lentamente para sair da cama, como se não o quisesse assustar.
- Queres que eu vá chamar a Jane? Ou talvez seja melhor eu ir embora.
Qhuinn abriu a boca... e descobriu que não lhe saía nada.
Uau. Ele nunca tinha tido um acidente de carro, mas imaginou que o nó na garganta que sentiu naquele momento fosse provavelmente igual ao de um condutor que visse
outro carro ignorar um Stop e avançar para a sua porta. Triangulava a sua direção e velocidade contra as suas próprias, e concluía que o impacto estava iminente.
Ainda que ele não conseguisse imaginar um mundo em que engravidasse Layla.
- Vi o futuro - disse ele, à distância.
Layla levou as mãos à garganta como se estivesse a sufocar.
- Não é bom?
- Não é... possível. De todo.
Quando enfiou o rosto nas mãos, tudo o que conseguiu ver na escuridão foi aquela cara... aquela que era em parte a de Layla e em parte a sua.
Ó Deus... protege-os aos dois. Protege-os... todos.
- Senhor?! Estás a assustar-me.
Bem, com isso já eram dois.
Só que não podia ser. Ou podia?
- É melhor eu ir - disse ela com brusquidão. - Agradeço a tua dádiva.
Ele fez sinal com a cabeça, sem poder olhar para ela.
- Não tens de quê.
Quando a porta bateu, pouco depois, ele sentiu um arrepio, um medo gelado que lhe assaltou os ossos... e daí partiu para a sua alma.
Bem vistas as coisas, era irónico, pensou. Os seus pais nunca tinham querido que ele se reproduzisse, e quem diria... a ideia de emprenhar Layla com uma filha defeituosa,
ou pior, de passar os seus olhos fodidos a uma miúda inocente, fê-lo agarrar-se ao voto de celibato como nunca antes.
E, na verdade, ele deveria estar contente. De todos os destinos que poderia ter antevisto, este era cem por cento evitável, não era?
Ele simplesmente nunca iria foder com Layla.
Jamais.
Portanto, tudo não passava de uma impossibilidade. Ponto, parágrafo.
Capítulo 49
Manny regressou ao seu apartamento por volta das seis da manhã. Tudo indicava que tinha passado oito horas no hospital a ser incomodado e pressionado por várias
pessoas que conhecia melhor que a própria família.
Os resultados estavam na sua caixa de correio eletrónico porque tinha enviado automaticamente cópias de tudo o que estava na sua conta do hospital para a sua conta
pessoal. Não que houvesse razões para abrir os anexos. Ele sabia os comentários de cor. Sabia os resultados de cor. Todas as radiografias e TAC de cor.
Atirando as chaves para a bancada da cozinha, abriu o frigorífico e desejou que houvesse sumo de laranja fresco. Mas em vez disso, havia... pacotes de molho de soja
de um restaurante chinês de comida para fora ao fundo da rua... um frasco de ketchup... e uma marmita redonda com uma espécie de restos de um jantar de negócios
a que tinha ido há duas semanas.
Que se lixe. Não tinha assim tanta fome.
Inquieto e sem conseguir estar parado, avaliou a luz no céu. O sol ainda demorava a desaparecer a ocidente.
No entanto, não teria de esperar muito.
Payne regressaria para ele depois do sol se pôr. Sentia-o nos ossos. Ainda não sabia bem porque é que ela passara a noite com ele ou porque é que as suas memórias
permaneciam, mas tinha de pensar na hipótese de Payne tratar disso quando ali chegasse.
A caminho da casa de banho, o seu primeiro impulso foi apanhar as almofadas do chão e colocá-las no sítio. Depois alisou o edredão... e estava pronto para começar
a fazer as malas. Começou a tirar roupa da cómoda e a atirá-la para cima da cama revolta.
Não havia razão alguma para voltar para St. Francis. Tinha apresentado a demissão a meio dos exames.
Não havia razão para ficar em Caldwell. O melhor seria sair da cidade.
Não fazia ideia para onde iria, mas não era preciso um destino para se ir embora de um sítio.
Meias. Boxers. Polos. Calças de ganga. Calças de caqui.
A vantagem de ter um guarda-roupa que consistia acima de tudo em fardas fornecidas pelo hospital era não ter muito para arrumar. E Deus sabia que ele tinha muitos
sacos de ginásio.
Tirou da última gaveta da cómoda as únicas duas camisolas que tinha...
A moldura por baixo delas estava virada para baixo, com o suporte encostado pacificamente ao fundo.
Manny levantou o objeto. Não precisou de o virar para saber quem estava na fotografia. Tinha memorizado o rosto do homem há muitos, muitos anos.
E ainda assim foi um choque virar a moldura e ver a imagem do pai.
Um filho da mãe bonito. Muito, muito bonito. Cabelo escuro, tal como o de Manny. Olhos profundos, iguais aos de Manny.
E era até onde ele estava disposto a ir com a nostalgia. Como sempre, quando se tratava do pai, empurrava tudo para um canto na sua mente e andava para a frente
com a sua vida.
Esta noite isso significava que a moldura ia para cima do edredão e estava resolvido...
A batidela no vidro chegava demasiado cedo para ser ela, pensou.
Mas quando olhou para o relógio percebeu que a tarefa de preparar a mala tinha durado uma boa hora.
Olhando por cima do ombro, o coração bateu acelerou loucamente ao ver Payne do outro lado do vidro. Tinha entrançado o cabelo e tinha um vestido longo apertado na
cintura e estava... de cortar a respiração.
Foi até à varanda, abriu a porta deslizante e o ar frio da noite bateu-lhe na cara, obrigando-o a concentrar-se.
Com um sorriso de orelha a orelha, Payne não chegou bem a entrar, mas antes atirou-se para os seus braços, o corpo sólido contra o seu, os braços muito apertados
à volta do pescoço.
Deixou-se ficar abraçado a ela por instantes... pela última vez. E depois, apesar de não o querer, pousou-a no chão aproveitando a desculpa de fechar as portas para
evitar a rajada de vento para se afastar dela.
Quando a olhou de novo, a alegria no seu rosto tinha desaparecido e ela enrolava os braços à volta de si própria.
- Imaginei que voltasses - disse, rouco.
- Eu... Eu tinha boas notícias. - Payne olhou para a linha de sacos desportivos em cima da cama. - O que estás a fazer?
- Tenho de me ir embora daqui.
Enquanto ela fechou brevemente os olhos, quase o destruiu não ir até ela e confortá-la. Mas já era suficientemente difícil. Tocar-lhe outra vez ia desfazê-lo em
bocados.
- Fui ao médico hoje - disse ele. - Passei toda a tarde no hospital.
Ela ficou lívida.
- Estás doente?
- Não exatamente. - Andou para a frente e para trás até que parou em frente à cómoda e empurrou para dentro a última gaveta. - Na verdade, longe disso... Parece
que partes do meu corpo se regeneraram.
Colocou as mãos na anca.
- Durante anos tive uma artrite na anca, causada por lesões desportivas... sempre soube que eventualmente teria de ser substituída. Mas aquilo que mostram as radiografias
que fiz hoje? Está em perfeitas condições. Não há vestígios da artrite, nem inflamação. Está tão boa como quando tinha dezoito anos.
Quando ela abriu a boca, ele achou que o melhor era dizer-lhe já tudo. Puxando a manga da camisola, passou a mão pelo antebraço.
- Há duas décadas que tenho sardas por causa de queimaduras solares... agora desapareceram. - Baixou-se e levantou a perna das calças. - As microfraturas da tíbia
que me aparecem de vez em quando? Desapareceram. E isto apesar de eu ter corrido cerca de dez quilómetros esta manhã sem sequer pensar nisso... em menos de quarenta
e cinco minutos. As minhas análises não mostram qualquer indício de colesterol, têm valores hepáticos perfeitos, ferro e plaquetas na quantidade necessária exata.
Bateu com os dedos nas frontes.
- E há algum tempo que estou nos limites para usar óculos para ler, tendo de afastar as ementas e as revistas para conseguir... mas agora já não preciso. Consigo
ler as letrinhas pequenas a um palmo do nariz. E, acredite-se ou não, tudo isto é apenas o começo.
Nem valia a pena falar nos pés de galinha à volta dos olhos e nos cabelos brancos nas têmporas que tinham sido substituídos por castanhos-escuros e nos joelhos que
já não estavam lesionados.
- E tu achas... - Payne pousou uma mão na garganta. - Que é por causa de mim?
- Sei que é. Que mais podia ser?
Payne começou a abanar a cabeça.
- Não compreendo, porque é que isto não é uma bênção. A juventude eterna sempre foi procurada por todas as raças...
- Não é natural. - Ao dizer isto, ela estremeceu, mas ele tinha de continuar. - Sou médico, Payne. Sei tudo sobre o envelhecimento normal do corpo humano e o tratamento
de ferimentos. Isto... - Fez um gesto com a mão que percorreu o corpo - ...não está certo.
- É regeneração...
- Mas, onde para? Vou transformar-me no Benjamin Button e recuar até à infância?
- Isso seria impossível - contrapôs ela. - Já estive exposta à luz mais tempo do que tu e não reverti para um estado mais jovem.
- Okay, tudo bem, vamos assumir que isso não acontece... e todas as outras pessoas na minha vida? - Não que se tratasse de uma longa lista, mas ainda assim. - A
minha mãe vai ver-me assim e pensar que fiz cirurgia plástica... e daqui a dez anos? Ela só tem setenta... acredita em mim, quando chegar aos oitenta ou noventa,
vai perceber que o filho não está a envelhecer. Ou tenho de desistir dela?
Manny começou a andar outra vez e, ao puxar o cabelo, era capaz de jurar que estava mais resistente.
- Perdi o emprego hoje por causa do que aconteceu quando me apagaram as memórias. Durante essa semana, estive longe de ti, estava todo baralhado, não sabia se era
noite ou dia e era tudo o que tinham para lidar com a coisa, porque não lhes podia explicar o que realmente tinha acontecido. - Virou-se de novo para ela. - Aquilo
que me preocupa é que este é o único corpo que tenho, a única mente, a única... o que quer que seja. Vocês vampiros lixaram-me a cabeça e quase fiquei louco... e
quais são as consequências de tudo isto? Eu só sei a causa... A magnitude do efeito? Não faço ideia e isso aterroriza-me por uma maldita boa razão.
Payne colocou a ponta da trança em cima do ombro e acariciou-a enquanto baixava os olhos.
- Peço... desculpa.
- A culpa não é tua, Payne - gemeu ele, levantando as mãos ao céu. - E eu não quero culpar-te disto tudo, mas...
- A culpa é minha. Eu sou a causa.
- Payne ...
Quando se aproximou, ela levantou as mãos e afastou-se.
- Não, não te aproximes de mim.
- Payne...
- Tens razão. - Ela parou ao embater na porta envidraçada que tinha atravessado para entrar. - Sou perigosa e destrutiva.
Manny esfregou a cruz por dentro da camisa. Apesar do que tinha dito, naquele momento queria retirar tudo e, de algum modo, fazer com que tudo ficasse bem entre
eles.
- É um dom, Payne. - Afinal de contas, ele e o cavalo tinham mostrado os benefícios da exposição a curto prazo. - Vai ajudar-te e à tua família e ao teu povo. Diabo,
com o que consegues fazer, vais deixar a Jane sem trabalho.
- De facto.
- Payne... olha para mim. - Quando os olhos dela eventualmente encontraram os dele, teve vontade de chorar. - Eu...
Mas não conseguia acabar a frase... A verdade era que a amava. Completamente e para sempre. Contudo, desconfiava que essa era a maldição de tudo isto para ambos.
Ele nunca conseguiria esquecê-la e nunca haveria mais ninguém para ele.
Erguendo os ombros, preparou-se.
- Tenho uma coisa a pedir.
- E o que poderá ser? - lançou ela secamente.
- Não me apagues a memória. Não vou contar nada a ninguém sobre ti ou a tua raça... juro pela minha mãe. Simplesmente... deixa-me como estou quando te fores embora.
Sem a minha mente, tenho menos do que nada.
* * *
Payne estava radiante desde que deixara o complexo. O irmão tinha partilhado com ela as incríveis novidades assim que tinha regressado antes de madrugada e ela passara
todo o dia indecisa entre pairar numa nuvem e ficar impaciente com quão devagar o tempo estava a passar.
Depois tinha vindo.
Era difícil que tivesse o coração a transbordar de alegria apenas há dez minutos.
Não era, no entanto, difícil de compreender a posição de Manuel. E ficou surpreendida por nenhum dos dois ter antecipado as implicações maiores dos seus... poderes
de cura. Ou lá o que era.
Claro que o afetaria.
Olhando para Manuel, não conseguiu suportar a tensão que via nele. Estava honesta e verdadeiramente ansioso com o que sobraria se ela tirasse as memórias do tempo
que tinham estado juntos do alcance da sua consciência. E porque estaria? Perdeu o emprego que amava por causa dela. Tinha o corpo e a mente em perigo por causa
dela.
Pelas Parcas, ela nunca devia ter-se aproximado dele.
E era exatamente por causa disto que não gostavam da mistura com humanos.
- Não te preocupes - disse ela suavemente. - Não vou comprometer a tua mente. Já fiz o bastante.
Enquanto ele respirava de alívio, ela sentiu as lágrimas a apertarem-lhe a garganta. Fitou-a por um momento.
- Obrigado.
Ela fez uma pequena vénia e, ao endireitar-se, ficou chocada ao ver os seus magníficos olhos de mogno a cintilarem.
- Quero lembrar-me de ti, Payne... de tudo sobre ti. - Aquele olhar triste e nostálgico percorreu-lhe o rosto. - De como te senti e do teu sabor. Do som da tua gargalhada...
ofegante. Do tempo que passei ao teu lado... - A voz falhou-lhe e ele recuperou aclarando a garganta. - Preciso que essas memórias durem a minha vida inteira.
As lágrimas começaram a cair e escorrer pelo rosto dela e o coração começou a bater-lhe com força.
- Vou sentir a tua falta, bambina. Todos os dias. Sempre.
Quando ele estendeu os braços, ela aninhou-se neles e perdeu completamente a compostura. Soluçando contra a camisa dele, estava aninhada no seu corpo sólido e forte
e apertava-o com tanta força como ele a apertava a ela.
E então ambos quebraram o abraço ao mesmo tempo, como se fossem um só coração. E ela achou que eram.
Na verdade, havia uma parte dela que queria lutar e discutir e fazer com que ele visse o outro lado, outra possibilidade. Mas não tinha a certeza se existia um outro
lado. Também ela não conseguia prever o futuro, da mesma maneira que não podia prever as repercussões do que tinha mudado nele, tal como ele.
Não havia mais nada para dizer. Este fim imprevisto que chegara era uma pancada que não podia ser atenuada por conversa, toque, nem, desconfiava, pelo tempo.
- Tenho de ir agora - disse ela, afastando-se.
- Deixa-me abrir-te a porta...
Enquanto se desmaterializava da casa dele para fora, apercebeu-se de que aquelas eram as últimas palavras que ele lhe diria.
Era a despedida.
Manny ficou a olhar fixamente para o espaço que a sua mulher tinha acabado de ocupar. Já não havia mais nada dela. Tinha desaparecido como por magia, como um feixe
de luz que tivesse sido cortado.
De vez.
O impulso imediato foi ir até ao armário do hall de entrada, tirar de lá o taco de basebol e partir a casa toda. Partir todos os espelhos, vidros, louça, tudo...
atirar a pouca mobília que tinha pela varanda. Depois disso... se calhar levava o Porsche até à autoestrada do norte, andava a mais de cento e vinte e planeava uma
rota que terminasse nos apoios de uma ponte.
Neste cenário não havia cinto de segurança, obviamente.
Não obstante, afinal, acabou por ficar sentado na cama ao lado dos sacos desportivos e enfiar a cabeça nas mãos. Não era fraco para soluçar daquela maneira como
se estivesse num funeral. De modo algum. Deslizou para os ténis de corrida.
Macho. Realmente muito macho.
No entanto, a forma como se apresentava à plateia do seu apartamento vazio era tão importante como o seu orgulho, corpo, membro... tudo o resto.
A perda estava a dar cabo dele.
E ia transportar aquela dor consigo para o resto da sua vida natural.
Que irónico. O nome dela tinha-lhe parecido inicialmente muito estranho. Agora, parecia bastante adequado.
Capítulo 50
Payne não regressou à mansão. Não tinha qualquer interesse em ver quem lá morava. Nem ao rei, que tinha decidido a seu favor. E certamente que não queria ver todos
os casais felizes, sortudos e abençoados que viviam debaixo do teto real.
Por isso, em vez de ir para norte, materializou-se nas margens do canal que corria ao lado dos altos edifícios envidraçados da baixa. A brisa era mais gentil ao
nível do chão e transportava o som cantante de ondas a bater nas margens empedradas do rio. Como pano de fundo, o zumbido dos veículos a superarem as curvas e contracurvas
suaves das pontes e desaparecendo nas margens longínquas. Aqueles sons faziam-na sentir mais claramente a profundidade e a amplitude da paisagem.
Rodeada de humanos, estava completamente sozinha.
Contudo, era isto que ela tinha pedido. Era esta a liberdade que tão profundamente desejara e procurara com ânsia.
No Santuário, nada tinha mudado. Mas também nada tinha corrido mal.
Contudo, ainda assim, escolheria sempre aquela difícil provação ao isolamento entorpecedor anterior.
Ó Manuel ...
- Olá, querida.
Payne olhou por cima do ombro. Um macho humano estava a aproximar-se dela, tendo obviamente saído de trás de um dos apoios da ponte. Estava a acenar e cheirava a
camadas sobre camadas de suor fermentado e sujidade.
Sem se dar sequer ao trabalho de o cumprimentar, Payne desmaterializou-se para uma zona mais abaixo da margem do rio. Não havia motivo para lhe apagar a memória.
Era pouco provável que se lembrasse sequer que a tinha visto. Estava, sem dúvida, sob o efeito de diversas drogas alucinogénias.
Fitando a superfície ondulada do rio, não se sentia atraída pelas profundezas escuras. Não ia magoar-se a si própria por causa disto. Não se tratava de nenhuma prisão
para se encerrar lá dentro e, além disso, já chegava de escolher sempre a via cobarde. Firmando os pés na terra, cruzou os braços e ficou simplesmente a existir
naquele lugar, ignorando o tempo a escorrer pela peneira da realidade, enquanto as estrelas rodopiavam sobre a sua cabeça, mudando de posição...
A princípio, o cheiro chegou-lhe ao nariz discretamente, imiscuindo-se entre uma mistura de terra fresca, pedra molhada e poluição urbana. Por isso, ao início, não
registou o odor como nada específico.
Não obstante, rapidamente o seu cérebro acordou ao reconhecer o aroma.
Com um formigamento de instinto, a cabeça virou-se sozinha, dando meia volta no alto da espinha. Os ombros seguiram-se... depois as ancas.
O odor rançoso era o inimigo.
Um minguante.
Ao começar a correr ligeiramente, sentiu no sangue uma agressividade que não era apenas causada pela dor que sentia no coração e pela frustração daquilo que o destino
lhe reservara. Ao aproximar-se do cheiro, sentia-se animada por uma herança profunda de violência e proteção. Os membros, a mão da afaga e as presas a aguçarem-se.
Transformada pelo instinto mortal, já não era macho nem fêmea, nem Escolhida, nem filha ou irmã. Enquanto evitava ou enfrentava becos e ruas, era um soldado.
Virou para um beco e, ao fundo, viu dois matadores, cujo cheiro a tinha trazido desde o rio até ali. Juntos, estavam inclinados por cima de um objeto que ela identificou
como um telefone, eram novos recrutas, com cabelo escuro e corpos cheios de tiques.
Não olharam para cima quando ela parou. O que lhe deu tempo de pegar num disco metálico prateado com Ford gravado. Era uma arma excelente que podia ser usada para
bloquear ou para atirar.
Momentos depois, o vento começou a levantar e envolveu-lhe o vestido, retirando-o do seu corpo, e o movimento deve ter chamado a atenção deles, porque se viraram.
Apareceram facas. E também um par de sorrisos que lhe fizeram arder o sangue.
Idiotas, pensou. A pensarem que, por ser uma fêmea, não daria qualquer luta.
Aproximaram-se dela com uma passada tão lenta, que ela não viu razão nenhuma para os interromper. De facto, ela iria saborear a surpresa que eles teriam e à qual,
em última análise, não sobreviveriam.
- O que fazes aqui, menininha? - perguntou o maior dos dois. - Tão sozinha.
Estou prestes a abrir-te a garganta com o que tenho atrás das costas. Depois disso, parto-te as duas pernas, não porque tenha de o fazer, mas porque me diverte o
som. E depois localizo alguma coisa de metal para te enfiar na caixa torácica vazia e te mandar para o teu criador. Ou talvez te deixe a contorcer de dor no chão.
Payne manteve-se silenciosa. Em vez de falar, distribuiu igualmente o peso pelos dois pés bem assentes no chão e agachou-se. Nenhum dos minguantes pareceu notar
a mudança de posição. Estavam demasiado ocupados a caminhar para ela e a pavonearem-se. E nem sequer se separaram ou a flanquearam. Nem veio um atacá-la pela frente,
para o outro a poder atacar por trás.
Continuaram mesmo à sua frente... onde podia alcançá-los.
Enfim, aquilo não passaria de um ótimo aquecimento. A menos que aparecessem outros que soubessem lutar como deve ser e a divertissem...
Xcor sentia a agitação que indicava uma mudança nos bastardos.
Ao caminharem em formação pelas ruas da baixa de Caldwell, a energia atrás dele era um batucar de agressividade. Contundente. Renovada. Mais forte do que tinha sido
uma década antes.
De facto, mudar-se para aqui tinha sido a melhor decisão que tinha tomado. E não só por ele e Throe terem tido ótimo sexo e tomado uma bebida na noite anterior.
Os machos eram punhais retirados à pressa da forja, os instintos assassinos renovados e cintilando à luz da Lua na cidade. Não admira que não tivessem havido matadores
no País Antigo. Estavam todos aqui, a Sociedade dos Minguantes centrando os seus esforços...
A cabeça de Xcor virou-se para todos os lados e desacelerou.
O odor no ar fez com que as presas se alongassem e o corpo vibrasse com poder.
Não era necessário indicar a mudança de direção. Os bastardos estavam a acompanhá-lo, perscrutando a ameaça doce e doentia que se encontrava nas asas das rajadas
noturnas.
Ao virarem a esquina e deslizarem pela reta, rezou por mais. Uma dúzia. Uma centena. Duas centenas. Queria ficar coberto com sangue do inimigo, banhando-se no óleo
negro que lhes animava as carnes...
Na entrada do beco, os pés não pararam, mas cimentaram-se no chão.
Entre um pestanejar e outro, o passado desenrolou-se à sua frente, eliminando a distância entre os meses, anos e séculos de disputas e tornando disponível no presente
toda essa experiência.
No centro do beco, uma fêmea com um vestido branco comprido e ondulante estava a lutar com dois minguantes. Mantinha-os à distância com pontapés e murros, volteando
e saltando tão depressa que tinha de esperar que chegassem de novo até ela.
Com as suas competências superiores de luta, estava apenas a brincar com eles. E tinha a clara impressão de que eles não se apercebiam do quanto ela estava a poupá-los.
Fatal. Ela era mortífera e estava à espera para atacar.
E Xcor soube exatamente quem ela era.
- Ela é... - A garganta de Xcor abafou as restantes palavras.
Ter procurado durante séculos e ser-lhe negado aquele alvo... apenas para dar com ele, numa noite por acaso, numa cidade aleatória para lá do vasto oceano... era
o destino a manifestar-se.
Estava escrito que se encontrariam novamente.
Ali. Naquela noite.
- Ela é a assassina do meu pai. - Retirou a gadanha da bainha. - É a assassina do meu próprio sangue...
Alguém lhe agarrou na mão e travou-lhe o braço.
- Aqui não.
O facto de não ser o sofredor Throe foi a única razão que o fez parar. Era Zypher.
- Capturamo-la e levamo-la para casa. - O guerreiro riu-se sombriamente, o tom erótico aprofundando-se na sua voz. - Já te aliviaste, mas há outros entre nós que
necessitam daquilo que tiveste ontem à noite. Depois disso? Depois podes ensinar-lhe as repercussões dos atos vingativos.
Zypher era, de entre todos, o que mais provavelmente planearia algo assim. E, apesar de a ideia de a chacinar ali mesmo ser muito apelativa, Xcor tinha esperado
demasiado tempo para não saborear a derrota dela.
Tantos anos.
Anos de mais... até ter desistido da esperança de alguma vez a encontrar, apenas os sonhos mantendo viva a memória daquilo que o tinha definido e lhe tinha dado
a posição que assumia na vida.
Sim, pensou. Seria adequado fazer isto à maneira do Derramador de Sangue. Sem tornar as coisas simples para a fêmea.
Xcor voltou a arrumar a gadanha, enquanto a assassina atacava decentemente os matadores. Sem aviso, saltou em frente e investiu contra o peito de um, baixando-se
sob os braços flácidos e empurrando-o contra o edifício. Foi tudo tão rápido que o segundo minguante ficou demasiado surpreendido - e não tinha treino suficiente
- para salvar o amigo.
Mesmo que o número dois tivesse sido um lutador mais próximo das capacidades dela, não teria qualquer hipótese. Praticamente no mesmo momento em que atacou, a fêmea
fez girar por trás dela o tampão da jante e atacou o matador no pescoço, fazendo um corte profundo e desencorajando-o rapidamente da tarefa de se atirar a ela. Quando
o óleo preto começou a esguichar e os joelhos dele tremeram, ela terminou o matador que tinha encostado aos tijolos esmurrando-o duas vezes na cara e uma na maçã-de-adão.
Depois elevou o corpo dele no ar e atirou-o contra a perna dobrada.
A espinha a partir fez um som muito alto.
Enquanto este expirava, virou-se para enfrentar os que estavam a vê-la a lutar. O que não era surpresa nenhuma. Alguém com as suas capacidades ter-se-ia imediatamente
apercebido de que existiam ali outros.
Meneando a cabeça para um dos lados, não ficou alarmada. Mas também por que haveria de ficar? Estavam nas sombras e eram claramente da sua espécie. Até Xcor se revelar,
ela não faria ideia do perigo que corria.
- Boa noite, fêmea - disse ele, em tom baixo, da escuridão.
- Quem está aí? - quis saber ela.
É agora, pensou, avançando para um foco de luz...
- Não estamos sozinhos - murmurou Throe abruptamente.
Xcor parou a investida, os olhos a semicerrarem-se para os sete matadores que tinham aparecido ao fundo do beco.
De facto. Estavam muito acompanhados.
Mais tarde, Xcor acabou por acreditar que a única razão do sucesso na captura da fêmea tinha sido a chegada daqueles novos minguantes. O avanço dos inimigos exigiu
que olhasse para eles e lhes desse atenção. Mas antes de se poder desmaterializar para outra posição, Xcor estava sobre ela.
Apesar do batimento acelerado do seu coração, a vingança dava-lhe força para dispersar as moléculas, mesmo quando ela se virou para enfrentar o esquadrão que se
aproximava. Prendeu a pulseira de aço no pulso dela rápida e certeiramente e, enquanto ela andava à volta com fúria estampada no rosto, ele lembrou-se da incineração
a que ela forçara o seu progenitor.
O que o salvou foi um tiro de um dos minguantes.
O disparo não tinha importância, mas a sua consequência trazia um benefício espetacular. Mesmo quando ela estava a levantar a mão livre para a pousar nele, a sua
perna descaiu e ela caiu no chão, não havendo dúvidas de que a bala acertara em algum ponto vital. E, naquele momento de fraqueza, Xcor dominou-a. Só tinha uma oportunidade
de a controlar. Se não tivesse aproveitado, não tinha a certeza de ter conseguido fazê-lo.
Fechando a outra pulseira no pulso livre dela, agarrou-lhe na trança e enrolou-a à volta do pescoço. Puxando o cabelo com força, cortou-lhe o ar, mesmo quando os
seus guerreiros avançavam de armas em riste.
Oh, como ela lutava. Tão valente. Tão poderosa.
Não passava de uma fêmea... mas talvez fosse um pouco mais do que isso. Era quase tão forte como ele e essa não era a sua única vantagem. Mesmo aprisionada e à beira
da asfixia, os olhos pálidos continuavam fixos nos dele, até ele sentir que ela podia invadir-lhe a mente e apoderar-se dos seus pensamentos.
Mas ele não se deixaria assombrar. Enquanto os sons da batalha rebentavam no beco, ele enfrentou o olhar fixo da assassina do seu progenitor, à medida que os seus
braços iam apertando cada vez mais o laço à volta do pescoço.
Debatendo-se para respirar, ela engasgou-se e contorceu-se, os lábios a moverem-se.
Aproximando o ouvido, ele queria saber o que ela tinha a...
- ... porquê...?
Xcor encolheu-se quando ela deixou de lutar e os formidáveis olhos se reviraram.
Querida Virgem Escrivã, ela nem sabia quem ele era.
Capítulo 51
No que dizia respeito a antros masculinos, V sempre pensara que a sala de bilhar na mansão da Irmandade tinha tudo. Ecrã gigante com som surround. Divãs com estofo
suficiente para serem considerados camas. Lareira para aquecer e para aquela treta atraente das brasas. Bar com todas as bebidas concebíveis, refrigerantes, cocktails,
chá, café, cerveja... tudo.
E uma mesa de bilhar, claro.
A única coisa «má» acabava por ser uma benesse. A máquina de pipocas fora uma aquisição recente, e um tipo bizarro de campo de batalha. Rhage adorava brincar com
a coisa, mas sempre que o fazia, Fritz ficava nervoso e queria parte da ação. Fosse como fosse, era divertido. Os cestinhos de verga ficavam cheios e depois era
a vez do elemento do par que ainda não tivesse funcionado com a máquina.
Enquanto esperava pela sua jogada na mesa de bilhar, Vishous pegou num quadrado de giz azul e esfregou a ponta do taco. Butch baixou-se sobre o feltro verde e apontou
enquanto se ouvia «Aston Martin Music», de Rick Ross.
- Sete no canto - disse o chui.
- Vais enfiá-la, não vais? - V pousou o giz e abanou a cabeça ao ouvir-se a pancada, o rolar e a queda da bola. - Sacana.
Butch olhou-o, com um «toma» na expressão.
- Sou mesmo bom. Desculpa lá, palerma.
O chui deu um gole no Lag e foi assumir nova posição do outro lado da mesa. Enquanto observava o jogo, o sorriso de malandro estava no sítio certo, revelando-lhe
a coroa de porcelana ligeiramente torta.
V ficara de olho no macho. Depois de terem passado horas juntos, tinham-se separado com embaraço e tomado duche independentes. Felizmente, a água quente reanimara-os
e quando voltaram a encontrar-se, na cozinha do Fosso, tudo voltara ao normal.
E as coisas continuaram assim.
Não que não se sentisse tentado a perguntar-lhe se continuava tudo bem. Tipo, a cada cinco minutos. Era como se tivessem travado uma batalha juntos, e exibissem
as fraturas e as nódoas negras que o provavam. Mas V gostava de ver o que se estava a passar à sua frente, o melhor amigo a dar-lhe uma tareia no bilhar.
- E acabou-se o jogo - anunciou o chui quando a bola oito descreveu uma curva e entrou.
- Venceste-me.
- Pois. - Butch ofereceu um sorriso rasgado e ergueu o copo. - Queres a desforra.
- Podes crer.
O cheiro de manteiga derretida e os estalidos dos grãos de milho aos saltos anunciaram a chegada de Rhage ou talvez de Fritz? Não, era Hollywood que estava junto
à máquina com a sua Mary.
V inclinou-se para poder olhar pela arcada, para o outro lado do átrio até à sala de jantar, onde o mordomo e a sua equipa preparavam a última refeição.
- Meu, o Rhage está a brincar com o fogo - comentou Butch enquanto começava a recolher as bolas.
- Dou trinta segundos para que o Fritz... Aí vem ele.
- Vou fingir que não estou aqui.
V deu um gole no seu Goose.
- Eu também.
Enquanto se ocupavam a recolher as bolas, Fritz chegou a correr pelo átrio, qual míssil guiado por calor.
- Tem cuidado, Hollywood, certo? - resmungou V quando Rhage se aproximou com um cesto de pipocas fresquinhas.
- É bom para ele. Precisa de exercício... Fritz! Como estás, camarada?
Enquanto Butch e V reviravam os olhos, Rehv entrou com Ehlena por baixo do braço envolto em marta. O cabrão de crista estava encasacado, como sempre, e apoiava-se
na bengala, mas ostentava o sorriso eterno de macho acasalado, e a shellan dele estava radiante a seu lado.
- Rapazes - disse.
Foram cumprimentados por vários resmungos e Z e Bella chegaram com Nalla, seguidos por Phury e Cormia. Wrath e Beth ainda deveriam estar no escritório, provavelmente
a analisar papelada ou, talvez, a deixar George brevemente ao cimo das escadas, para terem um pouco de privacidade.
Quando John e Xhex desceram com Blay e Saxton, os únicos em falta eram Qhuinn e Tohrment, que deveriam estar no ginásio, e Marissa, que se encontrava na Casa Segura.
Bem, esses três e a Jane dele, que estava na clínica, a reabastecer os suprimentos que tinham sido utilizados na outra noite.
Ah, claro e a sua gémea que, de certeza, estava a... «oh, simzar»... com aquele cirurgião dela.
Com todos os recém-chegados, o som de vozes multiplicou-se e explodiu, à medida que se serviam bebidas, se passava o bebé e se recolhiam mancheias de pipocas. Entretanto,
Rhage e Fritz abriam um carregamento novo de milho. E alguém mudava de canais na televisão, possivelmente Rehv, que nunca estava satisfeito com o que pudesse estar
a dar. E outra pessoa avivava o lume.
- Ei. Continuas bem? - perguntou Butch em voz baixa.
V mascarou o sobressalto tirando um cigarro enrolado do bolso das calças de cabedal. O chui falara tão baixo que mais ninguém o teria ouvido, o que era bom. Sim,
ele estava a tentar abandonar as merdas do secretismo, mas não queria que mais ninguém soubesse até que ponto ele e Butch tinham chegado. Isso era privado.
Acendeu o cigarro e inspirou.
- Sim. Estou mesmo, a sério. - Depois olhou para os olhos cor de avelã do melhor amigo. - E... tu?
- Sim. Eu também.
- Boa.
- Boa.
Ena pá, vejam só aquilo com os relacionamentos. Se continuasse assim, ainda ganhava uma estrela dourada para pôr na caderneta.
Uma batida com os nós dos dedos depois, Butch regressou ao jogo, fazendo pontaria com o taco enquanto V se deleitava com a satisfação das relações pessoais, qual
profissional da coisa.
Bebia mais um gole do copo de Goose quando os olhos se dirigiram à entrada em arco da sala.
Jane hesitou ao espreitar para o interior, com a bata branca a abrir-se quando se inclinou, como se o procurasse.
Quando os olhos se cruzaram, ela esboçou um sorriso. E depois este tornou-se rasgado.
O primeiro impulso de V foi ocultar o seu próprio sorriso atrás do Goose, mas depois deteve-se. Nova ordem mundial.
Vá lá, sorri, cabrão, pensou.
Jane acenou brevemente e manteve-se tranquila, que era o que costumavam fazer quando em público. Virando-se, ela dirigiu-se ao bar para tomar algo.
- Espera aí, chui - murmurou V, pousando a sua bebida e apoiando o taco à mesa.
Sentindo-se como um miúdo de quinze anos, prendeu o cigarro entre os dentes e apertou o cinto nas calças de cabedal. Um rápido alisar do cabelo e estava... bem,
tão pronto quanto possível.
Aproximou-se de Jane por trás no momento em que ela começara a conversar com Mary e quando a sua shellan deu meia volta para o cumprimentar, pareceu um tanto ou
quanto surpreendida por ele se ter dirigido a ela.
- Olá, V... Como estás...
Vishous aproximou-se ainda mais, encostando os corpos, e depois envolveu-lhe a cintura com os braços. Segurando-a com uma mostra de posse, inclinou-a lentamente
para trás até que ela lhe agarrou os ombros e o cabelo lhe descaiu do rosto.
Quando ela arquejou, V disse exatamente aquilo em que estava a pensar:
- Tive saudades tuas.
E com essas palavras, levou a boca à dela e beijou-a profundamente, descendo uma mão até à anca e enfiando-lhe a língua na boca, e continuou, continuou, continuou...
Tinha a vaga noção de que a sala ficara em silêncio e de que tudo com batimento cardíaco o fitava e à sua parceira. Pouco importava. Era aquilo que queria fazer
e iria fazê-lo à frente de todos e até do cão do rei, segundo se viria a revelar.
Pois Wrath e Beth tinham acabado de chegar do átrio.
Quando Vishous endireitou lentamente a shellan, os gritos e os assobios fizeram-se ouvir e alguém atirou pipocas como se fossem confetes.
- Assim é que é - declarou Hollywood. E atirou mais pipocas.
Vishous pigarreou.
- Tenho um anúncio a fazer.
Certo. Muito bem, havia muitos olhos focados no par. Mas ia engolir a vontade de se calar.
Apertando a afogueada e enrubescida Jane a seu lado, disse alto e bom som:
- Vamos acasalar. Como deve ser. E espero que todos estejam presentes e... Pois, é isso.
Silêncio. De. Morte.
Wrath soltou a barra da coleira de George e começou a bater palmas. Lenta e sonoramente.
- Já não era sem tempo, porra.
Os irmãos dele e suas shellans e todos os convidados da mansão imitaram-no. Os guerreiros deram início a um cântico que deitou a casa abaixo com as suas vozes a
vibrar pelo ar.
Ao olhar para Jane, ela parecia radiante. Só lhe faltava brilhar.
- Talvez devesse ter perguntado primeiro - murmurou ele.
- Não. - Jane beijou-o. - Isto é perfeito.
Vishous começou a rir. Meu, se aquilo era viver em voz alta, nunca mais voltaria ao silêncio. Os irmãos apoiavam-no, a sua shellan estava feliz e... está bem, dispensava
as pipocas no cabelo, mas que se danasse.
Minutos depois, Fritz trouxe taças de champanhe e começou a ouvir-se outro tipo de estampido, com rolhas a voar enquanto o grupo falava ainda mais alto do que antes.
Quando alguém lhe enfiou um copo na mitene, murmurou ao ouvido de Jane:
- O champanhe deixa-me excitado.
- A sério?
Baixando a mão pela anca dela... e mais baixo... puxou-a contra a súbita ereção.
- Já conheces a casa de banho do átrio?
- Creio que já fomos apresentad... Vishous!
O macho parou de lhe mordiscar o pescoço, mas continuou a rebolar as ancas contra as dela. Era um pouco indecente, mas nada que os outros casais não fizessem de
tempos a tempos.
- Sim? - disse ele, num tom arrastado. Quando ela pareceu sem fala, sugou-lhe o lábio e murmurou: - Se bem te lembras, estávamos a falar sobre a casa de banho. Se
calhar podia voltar a apresentá-las. Não sei se te apercebeste, mas aquela bancada do lavatório tem andado a chorar por ti.
- E tu fazes alguns dos teus melhores trabalhos em lavatórios.
V percorreu-lhe o pescoço com uma presa.
- É verdade.
Quando a ereção começou a latejar, pegou na mão da fêmea...
O relógio de sala ao canto começou a bater as horas e V contou as badaladas. O que o fez recuar um pouco e confirmar o seu próprio relógio, embora não precisasse
porque o da sala dava as horas certas há dois séculos.
Quatro da manhã? Mas onde é que estava Payne?
Quando o impulso de ir ao Commodore e trazer a irmã se manifestou com força, teve de se recordar de que embora a alvorada se aproximasse rapidamente, ela ainda teria
uma hora. E tendo em conta o que ele e Jane estavam prestes a fazer à porta fechada, não a podia censurar por querer aproveitar cada segundo que tinha com o seu
macho, mesmo que definitiva e absolutamente não fosse por aí.
- Está tudo bem? - perguntou Jane.
Voltando ao programa da noite, V baixou a cabeça.
- Vai estar assim que te levar para aquela bancada.
Ele e Jane passaram quarenta e cinco minutos fechados nos lavabos.
Quando saíram, todos continuavam na sala de bilhar. A música estava mais alta e «I’m Not a Human Being», de Lil Wayne, ecoava até ao teto do átrio. Os doggen ocupavam-se
com acepipes finos em travessas de prata e Rhage tinha um círculo à sua volta a rir-se das piadas que contava.
Por um momento pareceu-lhe os velhos tempos.
Mas não viu a irmã no meio da multidão. E ninguém lhe foi dizer que ela tinha ido para o quarto de hóspedes que andava a usar.
- Já volto - disse a Jane. Com um beijo rápido, V deixou a festa, percorreu o átrio e entrou na sala de jantar vazia. Contornando a mesa, completamente posta mas
muito vazia, tirou o telemóvel do bolso e marcou o número que lhe dera.
Ninguém atendeu.
Voltou a tentar. Nada. Terceira tentativa? Ninguém... atendeu aquela porra.
Praguejando, marcou o número de Manello e arrepiou-se, tentando não pensar no que poderia estar a interromper. Provavelmente teriam fechado os cortinados e perdido
a noção do tempo. E os telefones tinham a mania de se perder no meio dos lençóis, pensou, com um esgar.
Trim... trim... trim...
- Atende, porra...
- Estou?
Manello parecia mal. Mal como em tiro. Mal como em moribundo.
- Onde está a minha irmã? - Porque o cirurgião não atenderia assim se a sua irmã estivesse na cama dele.
A pausa que se seguiu também não era bom sinal.
- Não sei. Ela saiu daqui há horas.
- Horas?!
- O que se passa?
- Cristo... - V desligou e voltou a marcar o número da irmã. E mais uma vez.
Virando a cabeça, olhou para o átrio e para a porta do vestíbulo.
Com um gemido discreto, as portadas de aço que protegiam a casa do sol começaram a descer.
Vá lá, Payne... vem para casa. Já.
Já...
O toque gentil de Jane trouxe-o de volta à realidade.
- Está tudo bem? - perguntou.
A primeira reação de V foi encobrir tudo com um comentário sobre a imitação de Rhage de Steve-O a ser projetado dentro de uma casa de banho portátil. Em vez disso,
obrigou-se a ser sincero com a companheira.
- A Payne... pode ter desaparecido. - Quando ela arquejou e levantou a outra mão, a vontade de V foi sair dali. Mas manteve-se firme no tapete oriental. - Ela saiu
da casa do Manello há horas... há horas! E agora estou a rezar a uma mãe que desprezo para que ela entre por aquela porta.
Jane não disse mais nada. Em vez disso, posicionou-se de maneira a ver a entrada pelo vestíbulo e esperou com ele.
Ao dar-lhe a mão, V apercebeu-se de que era um alívio não estar sozinho enquanto a festa decorria do outro lado... e a irmã ainda não tinha chegado a casa.
A visão que tivera dela no cavalo preto a toda a brida regressou-lhe no silêncio da sala de jantar. O cabelo preto dela voava-lhe atrás do corpo e a crina do garanhão
agitava-se também, com o par a galope... sabe Deus para onde.
Uma alegoria? interrogou-se. Ou apenas o desejo sentido pelo irmão de que ela fosse, por fim, livre...?
Quando o sol nasceu oficialmente, vinte e dois minutos depois, Jane e V continuavam ali juntos, a fitar uma porta que nunca se abriu.
Manny estava de cabeça perdida, absolutamente perdida, enquanto dava voltas ao apartamento. Tencionara sair de casa pouco depois de Payne, mas perdera a energia
e passara o resto da noite a fitar... a noite.
Demasiado vazio.
Estava demasiado esvaído para se mexer.
Quando o telefone tocou a seu lado, confirmou o número e reviveu por breves instantes. Número privado. Tinha de ser ela.
E, como a sua mente passara as últimas horas a rever tudo o que ela dissera, precisara de um instante para se concentrar depois de tantas voltas em vão. Na altura,
o discurso que debitara parecera racional, razoável e inteligente... até ficar a olhar para um futuro que era profundamente vazio.
Atendera o telefonema sem esperar uma voz masculina do outro lado. E muito menos o irmão dela.
E ainda menos ter o sacana a ficar surpreendido quando soube que Payne não estava no apartamento.
Enquanto Manny andava às voltas fitava o telefone, desejando que ele voltasse a tocar... desejando que aquela merda disparasse e que fosse Payne a dizer-lhe que
estava bem. Ou o irmão. Alguém.
Fosse quem fosse.
Pelo amor de Deus, até podia ser o Al Roker a telefonar-lhe e a dizer que ela estava bem.
Mas a alvorada chegou com demasiada celeridade e o telefone manteve-se excessivamente silencioso. E, como qualquer derrotado, foi à lista de chamadas e tentou responder
ao telefonema do «número privado». Quando só recebeu o sinal de chamada, teve vontade de atirar o telemóvel para o outro lado da sala, mas talvez não fosse boa ideia.
A impotência era terrível. Esmagadora.
Queria sair e... que merda, encontrar Payne se ela estivesse perdida. Ou levá-la para casa se estivesse sozinha. Ou...
O telefone tocou. Número privado.
- Foda-se, ainda bem - exclamou ao atender. - Payne...
- Não.
Manny fechou os olhos. O irmão dela parecia de rastos.
- Onde é que ela está?
- Não sabemos. E aqui não podemos fazer nada... ficámos fechados cá dentro. - O tipo exalou como se estivesse a fumar alguma coisa. - O que é que aconteceu antes
de ela sair daí? Pensei que ela fosse passar a noite contigo. Não há problema se vocês os dois... tu sabes... mas porque é que ela saiu tão cedo?
- Disse-lhe que as coisas não iam resultar.
Um silêncio longo.
- Mas o que é que tinhas na merda da cabeça?
Tornou-se óbvio que, se o sol não brilhasse lá fora, o cabrão estaria a bater à porta de Manny para dar cabo de um canastro italiano.
- Pensava que fosses ficar satisfeito com isso.
- Ah sim, claro... parte aí o coração da minha irmã. Parece-me uma bela ideia. - Outra exalação, como se soprasse fumo. - Ela está apaixonada por ti, meu idiota.
Ora se isso não o deixava sem saber o que dizer. Mas voltou ao assunto premente.
- Escuta, nós...
Nesse momento era suposto explicar os resultados dos exames físicos, como se sentia assoberbado e admitir que não sabia quais seriam as repercussões. Mas o problema
era que, desde que Payne partira, ele apercebera-se de que por mais sincero que tudo isso fosse, havia algo ainda mais fundamental a corroer-lhe o íntimo. Ele estava
a ser um fraco. A separação resumia-se ao facto de ele estar a borrar-se de medo por se ter apaixonado por uma mulher... uma fêmea... fosse o que fosse. Pois, havia
um sem fim de tretas metafísicas que ele não compreendia, nem era capaz de explicar, blá, blá, blá. Mas no fundo, o que se passava era que ele amava tanto Payne
que já não se reconhecia, e isso era o mais assustador.
Acobardara-se quando tivera oportunidade.
Mas isso acabara.
- Estamos apaixonados - declarou com toda a clareza.
E maldito fosse, devia ter tido tomates para lho dizer. E para a abraçar. E para a manter.
- Por isso repito, o que é que tinhas na merda da cabeça?
- Boa pergunta.
- Cristo.
- Escuta, como é que posso ajudar... Posso sair durante o dia e não há nada que eu não faça para a recuperar. Nada. - Alimentado pela obsessão, foi buscar as chaves.
- Se ela não está contigo, para onde iria. E aquele sítio... o Santuário?
- A Cormia e o Phury foram lá. Nada.
- Então... - Detestava pensar naquilo. - E os vossos inimigos? Onde é que eles ficam durante o dia... Eu vou lá.
Pragas. Mais soprar. Pausa. Depois um clique e uma inalação, como se o tipo estivesse a acender outro cigarro.
- Sabes, não devias fumar - ouviu-se Manny a dizer.
- Os vampiros não têm cancro.
- A sério?
- Sim. Certo, as coisas são assim. Não conhecemos uma morada específica da Sociedade dos Minguantes. Os matadores costumam misturar-se com a população humana em
pequenos grupos, pelo que é quase impossível encontrá-los sem provocar distúrbios graves. A única coisa... Vai aos becos na baixa ribeirinha. Ela pode ter encontrado
minguantes... vais procurar indícios de uma luta. Fica uma espécie de óleo preto por todo o lado. Como se fosse óleo de motor. E vai ter um cheiro adocicado... como
se fosse uma mistura de animal morto e talco. É bastante característico. Vamos começar por aí.
- Tenho de poder entrar em contacto contigo. Tens de me dar o teu número.
- Envio-te um sms com ele. Tens alguma arma?
- Sim, tenho. - Manny estava já a tirar a quarenta do armário. Passara toda a sua vida adulta na cidade e, às vezes, havia porcaria pelo que aprendera a usar uma
arma há cerca de vinte anos.
- Diz-me que é maior do que uma nove milímetros.
- É.
- Arranja uma faca. Precisas de uma lâmina de inox.
- Entendido. - Dirigiu-se à cozinha e pegou na maior e mais afiada Henckels que tinha. - Mais alguma coisa?
- Um lança-chamas. Matracas. Estrelas de arremesso. Uma Uzi. Queres que continue?
Se pelo menos dispusesse desse tipo de arsenal.
- Eu vou buscá-la, vampiro. Ouve bem o que te estou a dizer... eu vou buscá-la. - Pegou na carteira e estava a dirigir-se à porta quando o terror o imobilizou. -
Quantos são eles? Os vossos inimigos.
- Não têm fim.
- São... machos?
Pausa.
- Costumavam ser. Antes de serem transformados eram humanos.
Um som escapou-se da boca de Manny... algo que ele tinha a certeza nunca produzira antes.
- Não, ela safa-se com o combate corpo a corpo - disse o irmão num tom átono. - É forte.
- Não era nisso que estava a pensar. - Teve de esfregar os olhos. - Ela é virgem.
- Ainda...? - perguntou o vampiro, passado um instante.
- Sim. Não era correto que eu... lhe tirasse isso.
Cristo, pensar que poderia ser magoada...
Nem para consigo foi capaz de acabar a frase.
Regressando à ação, saiu de casa e chamou o elevador. Enquanto esperava, apercebeu-se de que já há algum tempo que só tinha silêncio do outro lado da linha.
- Estou? Estás aí?
- Sim. - Debitou a voz do gémeo dela. - Sim, estou aqui.
A ligação continuou ativa quando Manny entrou no elevador e pressionou G. A viagem até ao carro decorreu sem que nenhum dos dois dissesse nada.
- Eles são impotentes - resmungou finalmente o gémeo de Payne, quando Manny estava a entrar no Porsche. - Não podem fazer sexo.
Pois, isso não o ajudava a sentir-se melhor. E pelo tom da voz do irmão, o tipo pensava o mesmo.
- Eu ligo-te - disse Manny.
- Faz isso, meu. Acho bem que faças isso.
Capítulo 52
Quando Payne recuperou a consciência, não abriu os olhos. Não havia motivo para revelar que estava ciente do que a cercava.
A sensação corporal informou-a da situação em que se encontrava. Estava de pé, de pulsos agrilhoados e puxados para os lados, com as costas contra uma parede de
pedra húmida. Tinha os tornozelos igualmente cingidos e afastados, e a cabeça tombara para a frente numa posição muito desconfortável.
Quando inspirava sentia o cheiro a terra almiscarada e as vozes de machos chegavam-lhe vindas da esquerda.
Vozes muito graves. Com um tom excitado, como se tivessem tomado posse de uma mais-valia.
Ela.
Enquanto reunia as forças, não duvidava quanto ao que lhe iriam fazer. Em breve. E enquanto se recompunha evitava pensar no seu Manuel... de como, caso aqueles machos
levassem a deles avante, a maculariam vezes sem conta antes de a assassinarem, tomando aquilo que, por direito, deveria ter sido do seu curandeiro...
Mas não podia nem iria pensar nele. Esse pensamento seria um fosso negro que a sugaria, a encurralaria e a deixaria indefesa.
Em vez disso procurou as meadas da memória, cruzando as imagens do rosto dos seus raptores com aquilo que vira nas taças do Santuário.
Porquê? interrogou-se. Não fazia ideia por que motivo o macho do lábio arruinado a atacara com tanto ódio...
- Sei que estás desperta. - A voz era impossivelmente baixa, tinha um sotaque carregado e encontrava-se ao lado do seu ouvido. - A tua respiração mudou de ritmo.
Erguendo as pálpebras a par da cabeça, desviou o olhar na direção do soldado. Estava nas sombras a seu lado, pelo que não o pôde ver claramente.
De repente, as outras vozes silenciaram-se e sentiu muitos olhares em si.
Era assim que se sentiam as presas.
- Magoa-me que não te lembres de mim, fêmea. - Com essas palavras aproximou uma vela do rosto. - Penso em ti desde a primeira vez que nos vimos. Há dois séculos.
Payne semicerrou os olhos. Cabelo preto. Olhos azuis-escuros cruéis. E um lábio leporino com que obviamente nascera.
- Lembra-te de mim. - Não era uma questão, mas uma exigência. - Lembra-te de mim.
E então ocorreu-lhe. A pequena aldeia no limite de um vale arborizado. Onde ela matara o pai. Era um dos soldados do Derramador de Sangue. Não havia dúvida de que
todos eles seriam.
Ah, era definitivamente uma presa, pensou. E pretendiam magoá-la antes de a matarem por vingança por lhes ter retirado o líder.
- Lembra-te de mim.
- És um soldado do Derramador de Sangue.
- Não - bradou ele, aproximando o rosto. - Sou mais do que isso.
Quando Payne franziu o cenho, o macho recuou e descreveu um círculo apertado, os punhos cerrados, a vela a escorrer cera para cima da mão fechada.
Quando voltou à frente dela, estava controlado. Por pouco.
- Sou filho dele. Filho dele. Roubaste-me o meu pai...
- Impossível.
- ...injustamente... O quê?
- É impossível seres filho dele - disse Payne alto e bom som no silêncio atrapalhado que se seguiu.
Quando as palavras foram apreendidas, a fúria cega que lhe surgiu no rosto era a mais pura definição de ódio e a mão tremia-lhe quando a levantou acima do ombro.
Esbofeteou-a com tanta força que Payne viu estrelas.
Quando endireitou a cabeça e lhe susteve o olhar, Payne decidiu que não iria tolerar aquilo. Nem a crença errada. Nem o grupo de machos que a miravam. Nem a ignorância
criminosa.
Payne olhou o captor nos olhos.
- O Derramador de Sangue só foi progenitor de um macho...
- O Irmão Vishous, da Irmandade da Adaga Negra. - As gargalhadas duras ecoaram. - Ouvi bastantes histórias sobre as perversões dele...
- O meu irmão não é um pervertido!
Nesse momento, Payne perdeu o controlo, dominada pela fúria que tinha consigo na noite em que matara o pai. Vishous era do seu sangue e o seu salvador por tudo o
que fizera por ela. Não ia permitir que o desrespeitassem, mesmo que a defesa lhe custasse a vida.
No espaço de duas batidas de coração, foi consumida por uma energia interior que iluminou com uma luz branca brilhante a adega onde se encontravam.
As algemas dissolveram-se, caindo com estrépito na terra compactada.
O macho à sua frente saltou para trás, assumindo uma posição de combate, enquanto os outros procuravam armas. Mas ela não ia atacar... pelo menos fisicamente.
- Ouve-me - declarou ela. - Nasci da Virgem Escrivã. Pertenço ao Santuário das Escolhidas. Por isso, quando te digo que o Derramador de Sangue, o meu pai, não deu
origem a mais nenhum macho, isso é um facto.
- Que não é verdadeiro - murmurou o macho. - E tu... Não podes ter nascido da Mãe da raça. Ninguém nasceu dela...
Payne ergueu os braços luminosos.
- Sou o que sou. Nega-o por tua conta e risco.
A tez do macho perdeu a pouca cor que tinha e seguiu-se um compasso tenso e demorado, com armas convencionais apontadas na direção de Payne e ela a brilhar com a
fúria sagrada.
O soldado principal abandonou a pose de combate, com as mãos a penderem-lhe ao lado do corpo e as coxas a endireitarem-se.
- Não pode ser - tartamudeou. - Nada disso pode ser...
Macho idiota, pensou ela.
Erguendo o queixo, declarou:
- Sou a nascida do Derramador de Sangue e da Virgem Escrivã. E digo-te agora - avançou na direção dele - que matei o meu pai e não o teu.
Erguendo a mão, puxou-a atrás e esbofeteou-o.
- E não insultes o meu sangue.
Quando a fêmea lhe bateu, a cabeça de Xcor foi atirada com tanta força para o lado que quase deslocou o ombro numa tentativa de manter a mona presa à coluna. O sangue
encheu-lhe de imediato a boca, cuspindo-o antes de se endireitar.
Por sua fé, a fêmea que tinha à sua frente era majestosa na sua fúria e decisão. Quase tão alta como ele, fitava-o diretamente nos olhos, de pés firmes, as mãos
cerradas em punhos que estava preparada a usar contra ele e o seu bando de bastardos.
Não se tratava de uma fêmea vulgar. E não só pela forma como dissolvera as grilhetas.
Com efeito, quando os olhares se cruzaram, ela recordava-o o pai. Ela tinha a vontade férrea do Derramador de Sangue, não só no rosto, nos olhos ou no corpo. Tinha-a
na alma.
Com efeito, tinha noção de que poderiam cair todos sobre ela, e a fêmea combatê-los-ia até ao último fôlego.
Deus sabia que ela batia como um guerreiro, não como uma fêmea de pulsos fracos.
Mas...
- Ele era meu pai. Ele próprio mo disse.
- Era um mentiroso. - E nem pestanejou. Não baixou o olhar ou o queixo. - Contemplei inúmeras filhas bastardas nas taças de visão. Mas só houve um único filho, o
meu gémeo.
Xcor não estava preparado para ouvir aquilo, muito menos à frente dos seus machos.
Relanceou-os. Até Throe se armara e todos os rostos denotavam uma fúria impaciente. Com um mero sinal cairiam sobre ela, mesmo que os incinerasse a todos.
- Deixem-nos - ordenou.
Sem grande surpresa, foi Zypher quem começou a argumentar.
- Deixa-nos segurá-la enquanto tu...
- Deixem-nos.
Seguiu-se um momento de imobilidade, após o que Xcor bradou:
- Deixem-nos!
Num abrir e fechar de olhos, todos desapareceram pela escadaria de acesso à casa escurecida lá em cima. Depois a porta fechou-se e ouviram-se os passos no piso superior,
enquanto davam voltas, quais animais enjaulados.
Xcor voltou a concentrar-se na fêmea.
E durante muito tempo limitou-se a fitá-la.
- Procurei-te durante séculos.
- Não estive na Terra. Até agora.
Permaneceu hirta, enquanto ele a confrontava em privado. Absolutamente hirta. E quando lhe perscrutou o rosto, Xcor sentiu o gelo do seu coração a mover-se.
- Porque... o mataste? - indagou, num tom rouco.
A fêmea pestanejou lentamente, como se não quisesse demonstrar vulnerabilidade e precisasse de um instante para garantir que não a revelava.
- Porque ele magoou o meu gémeo. Ele... torturou o meu irmão, e por isso teve de morrer.
Então, talvez as lendas tivessem um fundo de verdade, pensou Xcor.
Com efeito, à semelhança da maioria dos soldados, há muito que conhecia a história que contava que o Derramador de Sangue exigira que o filho fosse imobilizado no
chão e tatuado... e depois castrado. A narrativa dizia que a lesão fora apenas parcial. Dizia-se que Vishous queimara com magia as amarras que o prendiam e depois
fugira para a noite, antes que o ato fosse completado.
Xcor olhou para as grilhetas que tinham caído dos pulsos da fêmea... queimadas.
Erguendo as mãos, olhou para a sua carne. Que nunca brilhara.
- Ele disse-me que eu nasci de uma fêmea que o procurara em troca de sangue. Disse-me... que ela não me quis por causa do meu... - Tocou no lábio superior deformado,
deixando a frase por concluir. - Ele aceitou-me e... ensinou-me a lutar. A seu lado.
Xcor tinha uma vaga noção de que a sua voz estava rouca, mas não se preocupou com isso. Sentia-se como se olhasse para um espelho e visse um reflexo seu que não
reconhecia.
- Disse-me que era filho dele... e teve-me como a um filho. Depois da morte assumi o lugar dele, tal como fazem os filhos.
A fêmea avaliou-o e depois abanou a cabeça.
- E eu digo-te que ele mentiu. Olha-me nos olhos. Sabes que te digo a verdade que há muito, muito tempo deverias ter ouvido. - A voz reduziu-se a um murmúrio. -
Conheço bem a traição do sangue. Conheço bem a dor que sentes agora. Não é justo o fardo que carregas. Mas peço-te, não baseies uma vingança numa ficção. Pois serei
obrigada a matar-te... e se não for eu, o meu gémeo vai caçar-te com a Irmandade, e vai fazer-te suplicar pela morte.
Xcor analisou-se e viu algo que desprezava, mas que não podia ignorar. Não tinha memória da cabra que o parira, mas conhecia bem a história de como ela o expulsara
da sala de partos devido à sua fealdade.
Quisera ser reivindicado. E o Derramador de Sangue assim o fizera. A malformação física nunca fora relevante para aquele macho. Apenas se preocupara com as capacidades
que Xcor tinha em abundância: velocidade, resistência, agilidade, poder... e uma concentração mortífera.
Xcor sempre partira do princípio de que recebera isso do lado do pai.
- Ele deu-me um nome - ouviu-se a dizer. - A minha mãe recusou-se a fazê-lo. Mas o Derramador de Sangue... deu-me nome.
- Lamento muito.
O mais estranho em tudo aquilo? Acreditava nela. Antes pronta a combater até à morte, ela agora parecia entristecida.
Xcor afastou-se dela e andou em círculos.
Se não era o filho do Derramador de Sangue, quem era ele? E ainda lideraria os seus machos? Ainda o seguiriam em batalha?
- Olho para o futuro e vejo... nada - resmungou.
- Também sei como é isso.
Parou e encarou a fêmea. Cruzara os braços sobre os seios e não o olhava, mas sim para a parede à frente dela. Naquelas feições viu o mesmo vazio que sentia no próprio
peito.
Erguendo os ombros, dirigiu-se a ela.
- Não tenho qualquer questão a resolver contigo. As ações dirigidas contra o meu - pausa - contra o Derramador de Sangue... foram levadas a cabo pelas tuas razões
válidas.
Com efeito, tinham sido orientadas pela mesma lealdade de sangue e pelo mesmo espírito de vingança que animara a sua busca por ela.
Num gesto digno de um guerreiro, ela curvou-se pela cintura, aceitando as palavras dele e limpando o ar entre os dois.
- Sou livre de partir?
- Sim... mas é dia. - Quando ela olhou em volta para os beliches e enxergas, como se imaginasse os machos que a queriam, ele declarou: - Nenhum mal te será feito
aqui. Sou o líder e eu... - Bem, ele fora o líder. - Passaremos o dia lá em cima para que tenhas privacidade. Tens comida e bebida naquela mesa.
Xcor fez as ofertas de privacidade e provisão sem pensar nas questões de dignidade que envolviam as Escolhidas. Mas aquela fêmea era... merecedora do seu respeito.
Se alguém entendia a importância da vingança contra um insulto feito à família, era ele. E o Derramador de Sangue infligira danos permanentes ao irmão dela.
- Pelo cair da noite - indicou - levar-te-emos daqui vendada, pois não deves saber onde nos encontramos. Mas serás libertada ilesa.
Virando-lhe as costas, dirigiu-se ao único catre sem parte de cima. Mesmo sentindo-se um idiota, esticou o cobertor grosseiro. Não havia almofada, pelo que se baixou
e apanhou uma pilha das suas camisas lavadas.
- É onde eu durmo... podes usá-lo para descansar. E para que não receies pela tua segurança ou virtude, está uma arma de cada lado, no chão. Mas não te preocupes.
Chegarás ao pôr-do-sol em segurança.
Não fez qualquer voto pela sua honra pois, a bem da verdade, não a possuía. E não olhou para trás quando se dirigiu às escadas.
- Qual é o teu nome? - perguntou ela.
- Não o sabes já, Escolhida?
- Não sei tudo.
- Pois. - Levou a mão ao balaústre grosseiro. - Eu também não. Bom dia, Escolhida.
Ao subir as escadas, sentia-se como se tivesse envelhecido séculos desde que carregara o corpo inanimado e quente da fêmea para o subterrâneo.
Ao abrir a robusta porta de madeira, não fazia ideia do que o esperava. Após o anúncio do seu estatuto, os machos poderiam ter-se reunido e decidido expulsá-lo...
Ali estavam todos, num semicírculo, com Throe e Zypher nos extremos do grupo. Tinham armas nas mãos e os rostos ostentavam expressões sombrias... e esperavam que
ele dissesse alguma coisa.
Fechou a porta e encostou-se a ela. Não era cobarde, para fugir deles ou do que acontecera lá em baixo, e não via qualquer utilidade em justificar o que fora revelado
com palavras cuidadosas, ou com pausas.
- A fêmea disse a verdade. Não tenho uma ligação de sangue com aquele que julgava ser meu progenitor. O que me dizem?
Não proferiram qualquer palavra. Não trocaram olhares. E não houve hesitação.
Ajoelharam-se em uníssono, chegando ao soalho e curvando as cabeças. Foi Throe quem falou.
- Estamos eternamente às tuas ordens.
Ao ouvir a resposta, Xcor pigarreou. E outra vez. E ainda mais uma vez. Na Língua Antiga declarou:
- Nenhum líder alguma vez contemplou costas mais fortes e mais leais do que as reunidas perante mim.
Throe ergueu o olhar.
- Não foi a memória do teu pai que servimos ao longo de tantos anos.
Ouviu-se um ulular de concordância, muito mais significativo do que qualquer voto que pudesse ter sido feito com uma linguagem floreada. Logo depois o soalho de
madeira a seus pés foi trespassado por adagas, os punhos seguros pelas mãos de soldados que eram e sempre seriam seus para comandar.
E teria deixado as coisas ficarem por aí, mas os seus planos a longo prazo exigiam uma revelação e uma nova confirmação.
- O meu objetivo não se limita a combater ao lado da Irmandade - disse em voz baixa, para que a fêmea lá em baixo nada ouvisse. - A minha ambição é uma sentença
de morte caso seja descoberta por outros. Compreendem o que estou a dizer?
- O rei - murmurou alguém.
- Sim. - Xcor fitou os olhos de cada um. - O rei.
Nenhum deles desviou o olhar, nem se levantou. Eram uma unidade sólida de músculos, força e determinação mortífera.
- Se isso alterar a decisão de qualquer um de vós - quis saber -, dir-me-ão agora e partirão ao cair da noite para não mais voltar, sem risco de pena de morte.
Throe quebrou fileiras baixando a cabeça. Mas não passou daí. Não se levantou, nem se afastou dali, nem mais ninguém o fez.
- Bom - disse Xcor.
- E quanto à fêmea? - indagou Zypher com um sorriso sombrio.
Xcor abanou a cabeça.
- Nem pensar. Ela não merece qualquer castigo.
O macho ergueu as sobrancelhas.
- Ótimo. Então posso recompensá-la.
Pelo amor de Deus, era demasiado parecido com o maldito Lhenihan.
- Não. Não lhe vais tocar. Ela é uma Escolhida. - Isso prendeu-lhes a atenção, mas Xcor não revelaria mais. Já estava farto de os ouvir. - E vamos dormir aqui.
- Mas que raios?! - Zypher levantou-se e os outros imitaram-no. - Se me dizes que ela é proibida, deixo-a em paz, tal como farão os outros. Porque é que...
- Porque é isso que eu ordeno.
Para marcar a sua posição, Xcor sentou-se à frente da porta, de costas contra os painéis. Em campo confiava a vida aos seus soldados, mas lá em baixo estava uma
fêmea bela e poderosa, e aquele grupo era constituído por sacanas excitados, sempre com cio.
Para chegar a ela teriam de passar por ele.
Afinal de contas, ele era um bastardo, mas ainda tinha os seus códigos, e ela merecia a proteção de que provavelmente não precisava pelo favor que lhe fizera.
Matar o Derramador de Sangue?
Afinal de contas tinha sido um favor prestado a Xcor.
Pois isso significava que não teria de ser ele próprio a acabar com o desgraçado.
Capítulo 53
Manny estava ao volante do seu carro, as mãos a apertar com força, os olhos fitos na estrada à sua frente, quando fez uma curva apertada... e foi dar com o tipo
de cena exata que Vishous descrevera.
Já não era sem tempo, porra. Só precisara de cerca de três horas às voltas em quarteirão atrás de quarteirão atrás de merda de quarteirão até dar com aquilo.
Mas sim, era aquilo que procurava. À luz das dez da manhã que brilhava entre os edifícios, uma nojeira oleosa cintilava no alcatrão, nas paredes de tijolo, no contentor
do lixo e nas janelas tapadas com rede metálica.
Deixou o carro em ponto morto e pisou o travão.
Assim que abriu a porta, encolheu-se.
- Grande merda...
O fedor era indescritível. Devia ser assim tão mau porque lhe entrava diretamente pelo nariz e desligava-lhe o cérebro.
Mas reconheceu-o. O tipo com o boné dos Sox tresandava a isso na noite em que Manny operara os vampiros.
Pegou no telefone, marcou o número supersecreto de Vishous e pressionou OK. Mal chegou a tocar e o gémeo de Payne atendeu.
- Já encontrei - disse Manny. - É exatamente o que disseste... meu, que cheiro. Pois. Sim. Certo. Já te ligo.
Ao desligar, parte dele estava a ir-se abaixo, pensando na possibilidade de Payne se poder ter envolvido no que fora claramente um banho de sangue. Mas manteve-se
firme enquanto procurava alguma coisa, qualquer coisa que lhe pudesse dizer o que acontecera...
- Manny?
- Porra! - Quando deu meia volta agarrou a cruz, ou talvez o coração, para que não lhe saltasse pelo esterno. - Jane?
A forma etérea da antiga chefe de traumatologia solidificou-se à frente dos olhos.
- Olá.
A primeira coisa em que ele pensou foi, Ai, meu Deus, o sol... o que era prova de quanto a sua vida mudara.
- Espera! Não tens problemas com a luz do dia...
- Pois não. - Estendeu a mão e acalmou-o. - Vim ajudar... o V disse-me onde estavas.
Manny agarrou-lhe brevemente o ombro.
- Estou... muito contente por te ver.
Jane abraçou-o rapidamente.
- Vamos encontrá-la. Garanto.
Pois, mas em que estado iriam encontrá-la?
Vasculharam juntos o beco, percorrendo tanto as sombras como as zonas iluminadas. Graças a Deus ainda era cedo e aquela zona da cidade era deserta, pois não se encontrava
em condições de lidar com a complicação que seria ter pessoas - especialmente polícias - a aparecerem.
Durante a meia hora que se seguiu, ele e Jane analisaram cada centímetro quadrado do beco, mas só encontraram os restos de uso de drogas, algum lixo e uma série
de preservativos que não pretendia ver com grande atenção.
- Nada - resmungou. - Absolutamente nada.
Pois. Certo. Ia ter de continuar a andar, a vasculhar, a rezar...
O som de algo a estremecer fê-lo virar a cabeça e depois atraiu-o para junto do contentor.
- Está qualquer coisa a fazer barulho aqui - alertou, ao ajoelhar-se. Claro que com a sorte dele, não deveria ser mais do que uma ratazana a tomar o pequeno-almoço.
Jane aproximou-se quando ele estendeu a mão por baixo do contentor de lixo.
- Acho... acho que é um telefone - resmungou enquanto se esticava e tateava com a ponta dos dedos, na esperança de alcançar a coisa. - Apanhei-o.
Recuando, descobriu que, sim, era um telemóvel rachado regulado para vibrar, o que explicava o ruído. Infelizmente, quem estivesse a ligar foi transferido para o
voice mail no momento em que tentava atender.
- Meu, está cheio de uma porcaria oleosa. - Limpou a mão no canto do contentor - o que era revelador. - E o telefone está protegido com palavra-passe.
- Temos de o levar ao V... ele consegue aceder a qualquer coisa.
Manny levantou-se e olhou para ela.
- Não sei se lá poderei entrar. - Tentou entregar-lhe o telefone. - Toma. Leva-o tu e eu vou ver se encontro outras cenas como esta.
Embora, a bem da verdade, parecesse que já tinha percorrido toda a baixa.
- Não preferes saber o que se passa em primeira mão?
- Sim, mas...
- E se o V encontrar alguma coisa, não preferes sair para tratar do assunto com o equipamento adequado?
- Claro, mas...
- Nunca ouviste falar em fazer qualquer coisa e depois pedir desculpas? - Quando ele ergueu uma sobrancelha, Jane encolheu os ombros. - Foi assim que passei anos
a lidar contigo no hospital.
Manny agarrou o telemóvel com mais força.
- Estás a falar a sério?
- Eu levo-te ao complexo, e se alguém tiver algum problema, eu trato do assunto. E posso sugerir que passemos pela tua casa primeiro para ires buscar o que precisas
para passar algum tempo fora?
Manny abanou lentamente a cabeça.
- Se ela não aparecer...
- Não. Não dizemos «não». - Os olhos de Jane estavam fitos nos dele. - Quando ela vier para casa, demore o que demorar, vais lá estar. O V disse que tinhas deixado
o trabalho... porque a Payne lhe contou. E depois podemos falar sobre isso...
- Não há nada a falar. A direção do St. Francis praticamente pediu-me que me despedisse.
Jane engoliu em seco.
- Ó, meu Deus... Manny...
Cristo, ele nem acreditou no que lhe saiu à boca:
- Não faz mal, Jane. Desde que ela regresse bem... só isso me interessa.
Jane fez sinal com a cabeça na direção do carro.
- Então porque é que ainda estamos a falar?
Muito bem visto.
Correram para o Porsche, puseram os cintos e arrancaram, com Jane ao volante.
Enquanto ela acelerava a caminho do Commodore, ele transformara-se com o sentido de objetivo. Estragara as coisas com a sua mulher uma vez. Isso não voltaria a acontecer.
Jane parou à frente do arranha-céus enquanto ele correu até ao átrio, subiu no elevador e entrou em casa. Rapidamente pegou no computador portátil, no carregador
do telemóvel...
O cofre.
Correndo para o roupeiro no quarto, introduziu o código e destrancou a pequena porta. Com as mãos rápidas e a mente firme, tirou a certidão de nascimento, sete mil
dólares em dinheiro, dois relógios Piaget de ouro e o passaporte. Pegando num saco ao acaso, enfiou tudo lá dentro, a par do computador e do carregador. Depois foi
buscar mais dois sacos que praticamente vomitavam roupas e saiu a correr do apartamento.
Enquanto aguardava pelo elevador, deu-se conta de que estava a deixar a vida para trás. De vez. Quer ficasse ou não com Payne, não voltaria ali... e não se tratava
só da morada física.
Assim que entregara as chaves a Jane pela segunda vez, virara uma esquina numa tempestade de neve metafórica. Não fazia ideia do que estava à frente, mas não ia
voltar atrás, e por ele tudo bem.
Chegado à rua, atirou as coisas para a bagageira e para o banco traseiro.
- Vamos embora.
Cerca de trinta e cinco minutos depois, Manny regressava aos terrenos incertos da montanha dos vampiros.
Olhando para o telemóvel quase destruído que tinha na mão, rezou para que aquela potencial ligação entre ele e Payne os voltasse a unir e para que tivesse uma oportunidade
com aquilo que desperdiçara...
- Grande... porra... - Lá à frente, a surgir da estranha neblina, agigantava-se uma enorme rocha, grande como o monte Rushmore. - Aquilo é... uma porra de uma casa.
Mausoléu seria outro termo.
- Os Irmãos levam a segurança muito a sério. - Jane parou o carro à frente de uma escadaria digna de uma catedral.
- Ou isso - resmungou ele -, ou os sogros de alguém são donos de uma pedreira.
Saíram juntos e antes de pegar nos sacos, Manny observou a paisagem. O muro que se perdia de vista em ambas as direções tinha uns bons seis metros de altura, e havia
câmaras espalhadas pelo exterior, bem como rolos de arame farpado no cimo. A mansão em si era enorme, espraiando-se em todas as direções, parecendo ter três pisos.
E quem falara em fortaleza? Todas as janelas estavam cobertas com placas de metal e as portas eram duplas. Parecia que seria preciso um tanque para as atravessar.
Havia uma série de carros no pátio, alguns dos quais, em outras circunstâncias, o teriam atraído profundamente, e uma outra casa muito mais pequena feita da mesma
pedra que o castelo. A fonte ao centro estava seca, mas ele imaginava os sons apaziguadores que faria quando a água estivesse a jorrar.
- Por aqui - indicou Jane ao abrir a mala do carro e tirar um dos sacos.
- Eu levo isso. - Manny pegou no que ela tirara, bem como nos outros dois. - As senhoras primeiro.
Jane telefonara ao homem dela a caminho dali, pelo que Manny imaginava que o povo de Payne não o mataria assim que lhe pusessem a vista em cima, mas não havia como
ter a certeza.
Ainda bem que, naquele momento, ele se estava borrifando para si próprio.
Na entrada, Jane tocou à campainha e ouviu-se uma tranca a abrir-se. Entrando com ela, Manny deu consigo num vestíbulo sem janelas que o fez pensar numa prisão...
uma prisão muito elegante e cara, com painéis de madeira entalhada e o cheiro a limão no ar.
Nunca sairiam dali, a menos que alguém os deixasse.
Jane falou para uma câmara.
- Somos nós. Estamos...
O segundo conjunto de portas abriu-se de imediato e Manny teve de pestanejar várias vezes perante o que lhe foi dado a ver. O átrio brilhante e garrido do outro
lado não era de todo o que esperara. Majestoso e com todas as cores do arco-íris, era tudo o que o exterior fortificado não era. E Cristo, parecia que tinha sido
usado todo o tipo de mármore decorativo possível... e olhem só para todo o cristal e talha dourada.
Entrou e viu o fresco no teto dois andares lá em cima... e uma escadaria que fazia com que a do E Tudo o Vento Levou parecesse um escadote.
Quando a porta se fechou atrás de si, o irmão de Payne saiu do que parecia ser uma sala de bilhar, com o Red Sox a seu lado. Quando o vampiro avançou, todo ele era
ação, prendendo o cigarro enrolado entre as presas e puxando as calças de cabedal.
Parando à frente de Manny, os dois machos entreolharam-se... até se pensar se as coisas chegariam ao fim mesmo antes de começarem, com Manny a ser transformado em
refeição.
Mas o vampiro estendeu a mão.
Claro... o telemóvel.
Manny largou os sacos e tirou o BlackBerry do bolso do casaco.
- Toma... foi isto...
O tipo aceitou o que lhe foi oferecido, mas nem olhou para o aparelho. Limitou-se a passá-lo para a mão livre e voltou a estender a palma.
O gesto era tão simples... o seu significado muito, muito profundo.
Manny apertou a sua mão à dele, e nenhum dos dois disse nada. Não havia necessidade, pois a comunicação estabelecida era clara. Estava a ser apresentado e respeitado
por ambos os lados.
Quando largaram as mãos, Manny disse:
- O telefone?
O vampiro acedeu ao aparelho numa questão de segundos.
- Cristo... és rápido - murmurou Manny.
- Não. Foi o que eu lhe dei. Estava a ligar-lhe de hora a hora. O GPS foi... se não tinha-te dado a morada de onde o encontraste.
- Porra. - Manny esfregou o rosto. - Não havia lá mais nada. A Jane e eu vasculhámos o sítio... e já tinha passado horas a conduzir pela baixa. E agora?
- Esperamos. Não podemos fazer mais nada enquanto houver sol. Mas assim que escurecer, a Irmandade vai sair daqui com fogo nos pés. Não te preocupes, vamos encontrá-la...
- Eu também vou - atalhou Manny. - Só para que se sabia.
Quando o gémeo de Payne começou a abanar a cabeça, Manny interrompeu quaisquer protestos, fossem eles razoáveis ou não.
- Sinto muito. Pode ser a tua irmã que anda perdida... mas é a minha mulher. E isso significa que vou fazer parte disto.
Terminado o discurso, o macho do boné de basebol tirou o chapéu e esfregou o cabelo.
- Louvado seja Deus...
Manny estacou, perdendo o resto que foi dito pelo tipo.
Aquele rosto... aquele maldito rosto.
Aquele... santa mãe... rosto.
Manny estivera errado quanto ao sítio de onde conhecia o tipo.
- O que foi? - indagou o Red Sox.
Manny tinha a vaga noção de que o irmão de Payne estava a franzir o sobrolho e de que Jane parecia preocupada. Mas estava concentrado no outro homem. Perscrutou
aqueles olhos cor de avelã, aquela boca e aquele queixo, em busca de algo que não batesse certo, algo deslocado... algo que desmentisse o que ele estava a ver.
A única coisa ligeiramente desenquadrada era o nariz, mas isso porque teria sido partido pelo menos uma vez.
A verdade estava nos ossos.
E a ligação não era o hospital, nem sequer a Catedral de St. Patrick porque, já que pensava nisso, tinha mesmo visto aquele homem, macho... vampiro, fosse o que
fosse... na igreja.
- Mas que raios? - resmungou Butch, olhando para Vishous.
À laia de explicação, Manny baixou-se e vasculhou os sacos. Enquanto procurava o que não trouxera intencionalmente, teve a certeza de que o iria encontrar. O destino
alinhara os dominós com demasiada perfeição para que aquele momento não acontecesse.
E sim, lá estava.
Quando Manny se endireitou, as mãos tremiam-lhe tanto que o suporte batia nas costas da moldura.
Já que perdera a voz, nada mais tinha a fazer do que virar o vidro para mostrar àqueles três a fotografia a preto e branco.
Que era a cópia exata do macho chamado Butch.
- Este é o meu pai - disse Manny, num tom rouco.
A expressão do tipo era de um choque profundo, e as mãos dele começaram igualmente a tremer quando as estendeu e segurou, com todo o cuidado, na velha fotografia.
Nem se deu ao trabalho de negar nada. Não tinha como.
O irmão de Payne exalou uma nuvem de fumo de cheiro maravilhoso.
- Grande cena.
Bem, era um resumo perfeito.
Manny olhou para Jane e depois fitou o homem que bem podia ser um meio-irmão.
- Reconhece-lo?
Quando o tipo abanou lentamente a cabeça, Manny olhou para o gémeo de Payne.
- Os humanos e os vampiros podem...
- Sim.
Quando voltou a mirar o rosto que não devia ser assim tão familiar, pensou, Cruzes, como podia ser.
- Quer dizer que és...
- Mestiço? - completou o macho. - Sim. A minha mãe era humana.
- Grande porra - murmurou Manny.
Capítulo 54
Ao segurar a imagem de um homem que era indiscutivelmente idêntico a si, Butch pensou, bizarramente, nos sinais amarelos das autoestradas.
Os que diziam coisas como gelo na ponte... ou queda de pedras... ou o temporário máquinas em manobras quando nos aproximávamos de uma zona de perigo. Que raios,
até os que tinham a silhueta de um veado a saltar, ou uma grande seta preta a apontar para a esquerda ou para a direita.
Naquele momento, ali no átrio, teria agradecido qualquer pré-aviso de que a sua vida estava prestes a descarrilar por completo.
Claro que um choque frontal não era algo que se planeasse.
Desviou a atenção da fotografia e fitou os olhos do cirurgião humano. Eram castanho-escuros, da cor de um bom porto. Mas a forma... como podia não ter identificado
a semelhança com os seus?
- Tens a certeza - ouviu-se a perguntar. - Este é o teu pai?
Mas já sabia a resposta antes de o tipo assentir.
- Quem... como... - Pois, grande jornalista que ele daria. - O que...
Ora aí estava. Bastava juntar onde e quando e tínhamos uma notícia do caraças.
O problema era que, depois de ter acasalado com Marissa e de ter passado pela transição, encontrara finalmente paz com quem era e com o que fazia na vida. Por outro
lado, no mundo humano sempre estivera afastado de todos, avançando paralelamente, mas sem nunca se cruzar com a mãe, as irmãs e os irmãos.
E com o pai, claro.
Ou pelo menos com o homem que lhe tinham dito ser o seu pai.
Partira do princípio de que, com o seu lar e parceira ali, deixara de precisar de assimilar e chegara a uma reconciliação pacífica com muito do que fora doloroso.
Mas agora era como que voltar à merda.
O humano falou com gravidade.
- Ele chamava-se Robert Bluff. Era cirurgião no Presbiteriano de Columbia, em Nova Iorque, onde a minha mãe trabalhava como enfermeira...
- A minha mãe era enfermeira. - Butch sentia a boca seca. - Mas não nesse hospital.
- Ela exerceu em muitos sítios... até... em Boston.
Seguiu-se um longo silêncio, durante o qual Butch considerou a hipótese de uma eventual infidelidade por parte da mãe.
- Alguém precisa de uma bebida, certo? - interveio V.
- Lag...
- Lagavulin...
Butch e o cirurgião calaram-se enquanto Vishous revirava os olhos.
- Por que será que isto não me surpreende?
Quando o irmão se dirigiu ao bar na sala de bilhar, Manello disse:
- Nunca o cheguei a conhece-lo. Devo tê-lo visto, tipo... uma vez? Sinceramente, já nem me lembro.
V armou-se em comissário de bordo e chegou com a bebida para os dois.
Quando Butch bebeu um gole, Manello fez o mesmo e depois abanou a cabeça.
- Sabes, nunca gostei desta merda até que...
- O quê?
- Vocês me começaram a foder a cabeça. Costumava gostar de Jack. Mas no ano passado... tudo mudou.
Butch aquiesceu, mesmo sem estar a acompanhar a conversa. Meu, não conseguia deixar de olhar para a fotografia, e pouco depois apercebeu-se de que, de uma forma
estranha, tudo aquilo era um alívio. A regressão ancestral provara que ele era aparentado de Wrath, mas ele nunca soubera, nem quisera realmente saber, ao certo
como. E agora ali estava. À sua frente.
Cristo, era como se sempre tivesse sofrido de uma doença e finalmente alguém lhe dava um nome.
Tens Outro-pai-ite. Ou seria Bastard-oma?
Fazia sentido. Sempre imaginara que o pai o odiava, e talvez fosse esse o motivo. Embora fosse quase impossível imaginar a sua casta e religiosa mãe a descarrilar,
aquela fotografia contava a história de pelo menos uma noite com outra pessoa.
O primeiro instinto foi que tinha de falar com a mãe e pedir-lhe pormenores... bem, alguns pormenores.
Mas como poderia isso resultar? A demência afastara-a da realidade e agora estava tão distante que mal o reconhecia quando ele a visitava, a única razão para a poder
visitar de todo. E não poderia perguntar às irmãs ou aos irmãos. Eles tinham-no rejeitado há muito, quando desaparecera, e era pouco provável que eles soubessem
mais alguma coisa.
- Ele ainda está vivo? - perguntou Butch.
- Não tenho a certeza. Costumava pensar que ele estava enterrado no Cemitério de Pine Grove. Agora? Quem sabe?
- Eu posso descobrir. - Quando V falou, Butch e Manny olharam ao mesmo tempo para o irmão. - Basta dizerem e eu encontro-o... quer esteja no mundo vampiro ou no
humano.
- Encontrar quem?
A voz grave chegou vinda do cimo das escadas, e todos olharam enquanto as palavras reverberavam pelo átrio. Wrath estava no patamar do primeiro andar com George
a seu lado. O humor do rei era fácil de identificar, mesmo tendo os olhos ocultos por aqueles óculos. Estava com um estado de espírito mortífero.
Claro que era difícil de imaginar se isso se devia ou não ao humano no átrio, pois Deus sabia que o tipo tinha mil coisas em que pensar.
Vishous tomou a palavra, o que foi uma boa opção. Butch perdera a voz e, como era óbvio, Manello também.
- Parece que este belo cirurgião pode ser teu familiar, meu senhor.
Quando Manello recuou, Butch pensou, Santa mãe.
Mais lenha para a fogueira.
Manny esfregou as frontes enquanto o tremendo vampiro de cabelo preto pela cintura descia as escadas, com o cão amarelado a parecer indicar o caminho. O sacana parecia
ser o dono do sítio e, tendo em conta a treta do «meu senhor», era provável que fosse.
- Será que ouvi bem, V? - perguntou o macho.
- Sim. Ouviste.
Eeeeeeee isso resolvia outra questão pois Manny começava igualmente a questionar a sua própria audição.
- Este é o nosso rei - anunciou Vishous. - Wrath, filho de Wrath. Este é o Manello. Doutor Manny Manello. Acho que ainda não tinham sido apresentados formalmente.
- És o que pertence a Payne.
Aí não houve hesitação. A sua resposta também não tardou:
- Sim. Sou eu.
O ronco grave que saiu da boca cruel era parte gargalhada, parte praga.
- E achas que estamos relacionados de que maneira?
V pigarreou e interveio.
- Há uma semelhança física extraordinária entre o pai do Manny e o Butch. Quer dizer... porra, é como estar a ver uma fotografia do meu amigo.
As sobrancelhas escuras desapareceram atrás dos óculos. Depois a expressão atenuou-se.
- Escusado será dizer que não posso fazer essa avaliação.
Ah, então era cego. Isso explicava o cão.
- Podemos fazer-lhe uma regressão ancestral - sugeriu Vishous.
- Isso - apoiou Butch. - Vamos...
- Calma aí, isso não o pode matar? - interveio Jane.
- Esperem lá. - Manny recuou um passo de mãos erguidas. - Esperem lá um bocado. Regressão quê?!
Vishous soprou fumo.
- É um processo através do qual eu entro em ti e vejo quanto do nosso sangue te corre nas veias.
- Mas pode matar-me? - Porra, ter Jane a abanar a cabeça não inspirava nenhuma confiança.
- É a única maneira de ter a certeza. Se fores meio-sangue, não podemos ir para o laboratório e fazer-te uma análise ao sangue. Os meios-sangues são diferentes.
Manny olhou à volta para todos eles. O rei, Vishous, Jane... e o tipo que podia ser um meio-irmão. Cristo, talvez fosse por isso que se sentia tão diferente em relação
a Payne. Assim que a vira foi como... se uma parte dele tivesse despertado.
Talvez também explicasse o seu mau feitio.
E depois de uma vida inteira a questionar-se quanto ao seu pai e às suas raízes, pensou... agora podia saber a verdade.
Mas quando eles lhe retribuíram o olhar, lembrou-se de ter ido ao hospital na semana anterior julgando que era de dia, mas descobrir que era de noite. E depois ocorreu-lhe
o que se passara com Payne e com as alterações no seu corpo.
- Sabem que mais? - disse. - Acho que vou dispensar.
Quando Jane aquiesceu, como se concordasse com ele, teve a certeza de estar a tomar a decisão correta.
Além disso, estavam a desviar-se do verdadeiro problema.
- Seja como for, a Payne vai voltar - declarou. - E não vou deixar que me apontem uma arma à cabeça antes de a voltar a ver... mesmo que isso seja a diferença entre
pertencer a este mundo ou não. Sei quem é o meu pai... e neste momento estou a olhar para o reflexo dele à minha frente. Não preciso de ir mais longe... a menos
que a Payne não concorde.
Cristo... a mãe, pensou de repente. Teria ela sabido?
Quando Vishous cruzou os braços sobre o peito, Manny preparou-se para uma discussão.
- Gosto do teu traseiro - disse, em vez disso. - A sério que gosto.
Tendo em conta aquilo a que o sacana tinha assistido não há muito tempo, isso surgiu como uma surpresa. Mas por ele tudo bem.
- Certo, estamos de acordo. Se a minha mulher quiser... eu faço-o. Caso contrário, estou bem assim.
- É justo - declarou Wrath.
Nesse momento instalou-se o silêncio. Mas também, o que poderia ser dito? A realidade sobre o paradeiro de Payne - e a sua ausência - pesava sobre todos.
Manny nunca se sentira tão impotente na vida.
- Com licença - escusou-se o meio-irmão -, mas preciso de outra bebida.
Quando Butch se afastou para a sala adjacente, Manny observou-o a desaparecer por uma arcada toda trabalhada.
- Sabes que mais, concordo com a sugestão.
- A minha casa é tua - disse o rei, num tom sombrio. - O bar fica por ali.
Reprimindo o estranho impulso para fazer uma vénia, Manny limitou-se a assentir.
- Obrigado, meu. - Quando lhe foram apresentados os nós dos dedos, Manny bateu-lhe e acenou com a cabeça a Jane e ao marido.
A sala onde entrou parecia a melhor suíte de hospitalidade que já vira. Cristo, até tinha máquina de pipocas.
- Mais Lag? - resmungou o tipo do outro lado.
Manny virou-se e deu consigo a observar um bar do caraças.
- Sim. Obrigado.
Trouxe o copo e entregou-o ao homem. E, quando o som de uísque a chapinhar pareceu alto como um grito, dirigiu-se a um sistema de som que poderia ser perfeitamente
usado no Madison Square Garden.
Pressionando os botões ouviu uma mistura de... gangsta rap.
Com outro botão chegou ao sintonizador de alta definição, em busca da estação de heavy metal. Respirou fundo quando «Dead Memories», dos Slipknot, se começou a fazer
ouvir.
Noite. Estava só à espera do anoitecer.
- Toma - disse o chui, entregando-lhe a bebida. Fazendo um esgar, acenou com a cabeça para uma das colunas. - Gostas dessa merda?
- Sim.
- Ora aí está uma diferença entre nós.
O gémeo de Payne espreitou para a sala.
- Mas que raios é esse barulho? - Era como se alguém tivesse começado a falar em línguas estranhas. Ou talvez tivesse posto a tocar Justin Bieber.
Manny limitou-se a abanar a cabeça.
- É música.
- Só porque tu o dizes.
Manny revirou os olhos e retirou-se para uma zona muito escura e perigosa da sua mente. A constatação de que não havia nada que pudesse fazer pela sua mulher naquele
momento deixava-o com vontade de magoar qualquer coisa. E o facto de parecer ter algo de vampiro dentro dele não era exatamente o tipo de revelação de que precisava
num dia como aquele.
Cristo, sentia-se péssimo.
- Alguém joga bilhar? - perguntou, meio dormente.
- Podes crer.
- Claro.
Jane avançou e deu-lhe um breve abraço.
- Conta comigo.
Parecia que não era o único desesperado por uma distração.
Capítulo 55
Sentada em algo almofadado com as mãos no regaço, Payne deduziu que se encontrava num carro, pois a subtil sensação de vibração era semelhante à que sentira quando
viajara ao lado de Manuel no seu Porsche. Contudo, não tinha como confirmar visualmente tal dedução, pois tal como anunciado pelo soldado do Derramador de Sangue,
ela estava vendada. Mas o cheiro do macho responsável estava a seu lado; embora ele estivesse parado, pelo que teria de ser outro a conduzir o veículo.
Nada lhe acontecera nas horas entre o confronto e aquela viagem. Ela passara o tempo diurno sentada na cama do líder, com os joelhos contra o peito, ambas as armas
a seu lado sobre o cobertor grosseiro. Mas ninguém a incomodara, pelo que passado algum tempo deixou de ficar atenta a cada som vindo lá de cima e conseguiu descontrair-se
um pouco.
Em breve, os pensamentos sobre Manuel dominavam-lhe o grosso da atenção, e reviveu as cenas do tempo, excessivamente curto, que tinham passado juntos, até que o
coração lhe doeu com a agonia. Quando deu por isso, o líder regressou e perguntou-lhe se desejaria um repasto antes de partirem.
Não, ela não quisera comer.
Depois, ele vendara-a com um pano branco imaculado, tão limpo e adorável que ela se interrogara quanto à sua origem. E depois segurara-lhe o cotovelo com firmeza,
levando-a pelas escadas por onde antes a transportara.
Era difícil saber ao certo quanto tempo passara no carro. Vinte minutos? Talvez meia hora?
- Aqui - acabou o líder por dizer.
À sua ordem, o veículo onde seguiam abrandou e depois parou. Uma porta foi aberta. Quando o ar puro e frio entrou, o cotovelo dela foi mais uma vez agarrado e ela
foi equilibrada ao sair. A porta fechou-se e ouviu-se uma pancada, como se um punho tivesse batido numa parte do veículo.
Os pneus a girar lançaram-lhe terra para a roupa.
Ficou sozinha com o líder.
Embora ele estivesse em silêncio, sentiu-o a mover-se atrás dela, e depois o tecido à volta da cabeça foi afrouxado. Quando foi retirado, ela susteve a respiração.
- Pensei que a seres libertada, deveria ser com uma vista digna dos teus olhos claros.
Lá em baixo revelava-se toda a cidade de Caldwell, com as luzes cintilantes e o trânsito denso a criar um repasto glorioso para a sua visão. Com efeito, encontravam-se
na crista de uma pequena montanha, com a cidade a espraiar-se verdadeiramente a seus pés junto às margens do rio.
- Isto é lindo - murmurou, olhando para o guerreiro.
Afastado, ele mostrou-se distante ao ponto de estar quase escondido, com a malformação oculta nas sombras para onde recuara.
- Que tenhas uma boa viagem, Escolhida.
- E tu... ainda não sei o teu nome.
- É verdade. - Esboçou uma vénia. - Boa noite.
E com isso desapareceu, desmaterializando-se.
Passado um instante, Payne voltou a dirigir-se para a vista e interrogou-se onde estaria Manuel naquela cidade. Teria de ser no aglomerado de construções altaneiras,
pelo que segundo a localização da ponte seria... ali.
Sim, ali.
Erguendo a mão, desenhou um círculo invisível em torno da alta construção de ferro e aço onde seguramente ele vivia.
Quando o peito a oprimiu e ela ficou ofegante, demorou-se mais um instante e depois desmaterializou-se para norte e leste, a caminho do complexo da Irmandade. A
viagem não tinha qualquer entusiasmo, sendo apenas uma obrigação, para informar o gémeo de que se encontrava viva e ilesa.
Quando ganhou forma nos degraus de pedra da vasta mansão, aproximou-se das portas duplas com um estranho temor. Sentia-se grata por estar de volta a uma espécie
de lar, mas a ausência do seu macho eliminava qualquer prazer que poderia ter tido com as ligações que voltariam a estabelecer-se em breve.
Depois de tocar à campainha, a porta do vestíbulo abriu-se de imediato e pôde sair da noite...
A segunda porta interior foi aberta ainda mais rapidamente pelo mordomo sorridente.
- Minha senhora! - gritou.
Ao entrar no átrio que tanto a encantara quando o vira pela primeira vez há dias, vislumbrou brevemente o seu gémeo chocado a saltar para a arcada de acesso à sala
de bilhar.
Mas esse breve momento foi tudo o que viu.
Uma grande força afastou Vishous com tanta violência que ele literalmente voou, largando o copo que segurava e espalhando pelo ar a bebida nele contida.
Manuel irrompeu pelo átrio, o corpo a avançar rapidamente, a expressão no rosto a um tempo de incredulidade, terror e alívio.
Mas não fazia sentido que estivesse a correr na direção dela, não fazia sentido que estivesse ali na...
Antes de conseguir concluir o pensamento ele tinha-a nos braços, e, pelas Parcas, o cheiro era o mesmo, a especiaria escura que lhe era única a inundar-lhe os sentidos.
E os ombros eram tão largos quanto se recordava. E a cintura tão estreita. E o abraço tão poderoso e maravilhoso.
O corpo forte dele estremeceu quando a abraçou com força, por um instante, e depois recuou, como se receasse estar a magoá-la.
Os olhos dele estavam frenéticos.
- Estás bem? O que posso fazer por ti? Precisas de um médico? Estás ferida... estou a fazer demasiadas perguntas... desculpa. Cristo... o que aconteceu? Onde estiveste?
Porra, tenho de parar...
Enquanto reencontro amoroso, talvez aquelas não fossem as palavras românticas que algumas fêmeas gostariam de ouvir, mas para ela representavam tudo no mundo.
- Por que estás aqui? - murmurou ela, levando-lhe as mãos ao rosto.
- Porque te amo.
De certa forma, isso não explicava nada... mas dizia-lhe tudo o que precisava de saber.
De repente, ela afastou as mãos.
- Mas e aquilo que fiz ao teu corpo...
- Não me importo. Nós damos a volta... havemos de o resolver... mas eu estava errado quanto a nós dois. Fui um fraco... um cobarde, e estava errado, e sinto tanto.
Merda. - Abanou a cabeça. - Tenho de deixar de praguejar. Oh, meu Deus, a tua roupa...
Payne olhou para baixo e viu o sangue preto dos minguantes que matara, a par da mancha vermelha do seu próprio sangue.
- Estou inteira e estou bem - garantiu, com toda a clareza. - E eu amo-te...
Interrompendo-a, beijou-a com solenidade nos lábios.
- Diz isso outra vez. Por favor.
- Eu amo-te.
Quando ele gemeu e voltou a envolve-la com os braços, Payne sentiu uma grande onda de calor e de gratidão no peito, e deixou que a emoção a apertasse contra ele.
E, enquanto se abraçavam, olhou sobre o ombro do seu macho. O irmão estava com a shellan dele a seu lado.
Cruzando o olhar com o do gémeo, viu todas as questões e receios naquele olhar.
- Não estou ferida - disse ao seu macho e ao seu gémeo.
- O que aconteceu? - perguntou Manuel contra o cabelo dela. - Encontrei o teu telefone partido.
- Estavas à minha procura?
- É claro que estava. - Recuou. - O teu irmão ligou-me ao nascer do sol.
Foi de imediato cercada pelo seu povo, como se um gongo tivesse soado, convocando para o átrio todos os machos e fêmeas da casa. Sem dúvida que teriam sido ali levados
pela agitação da sua chegada, mantendo-se à margem por sinal de respeito.
Tornava-se óbvio que havia mais do que duas mentes descansadas.
E isso fê-la sentir-se parte da família.
- Estava junto ao rio - disse alto o suficiente para que todos a ouvissem - quando senti o cheiro do inimigo. Atraída até eles cruzei os becos e deparei-me com dois
minguantes. - Sentiu Manuel ficar hirto, e viu o irmão fazer o mesmo. - Foi bom lutar...
Com essas palavras hesitou. Mas o rei aquiesceu. E o mesmo fez uma fêmea poderosa de cabelo curto, como se também ela combatesse na guerra e tivesse noção tanto
da necessidade como da satisfação. Os Irmãos, contudo, pareciam obviamente desconfortáveis.
Prosseguiu.
- Chegou então junto a mim um grupo de machos... de costas fortes, bem armados, com efeito, um esquadrão de guerreiros. O líder era muito alto, com olhos escuros,
cabelo escuro e um... - levou a mão à boca - defeito no lábio superior.
Começavam agora as pragas e, ao ouvi-las, desejou ter usado mais do que o fizera as taças de visão no Outro Lado. Era óbvio que o macho que descrevera não lhes era
desconhecido, e não era bem-vindo à narrativa.
- Ele prendeu-me... - Ouviu-se então não um, mas dois rosnidos, o do seu gémeo e o de Manuel. E, ao acalmar o macho tão perto dela, olhou para o irmão. - Acreditava
erroneamente que eu fizera desabar uma calamidade sobre a linhagem dele. Acreditava ser filho do Derramador de Sangue... e fora testemunha da noite em que levei
a morte ao nosso progenitor. Com efeito, ele passara séculos procurando-me para exercer a sua vingança.
Nesse momento calou-se, apercebendo-se de que acabara de admitir ter cometido parricídio. Mas ninguém pareceu chocado... o que dizia muito, não só acerca do tipo
de machos e fêmeas que ali se encontravam, mas também sobre o bastardo que fora seu pai.
- Esclareci o guerreiro quanto ao erro segundo o qual agia. - Omitiu o facto de ele a ter agredido, e ficou satisfeita por o hematoma no rosto ter desaparecido.
De alguma forma, sabia que ninguém precisava de ter conhecimento disso. - E ele acreditou em mim. Não me magoou... com efeito, protegeu-me dos machos dele, cedendo-me
a sua cama...
Manuel arreganhou os dentes como se tivesse presas... e isso deixou-a excitada.
- Sozinha, dormi sozinha. Ele manteve todos os subalternos com ele, lá em cima. - Voltou a acalmar Manuel pelo menos até se aperceber que ele estava excitado, tal
como aconteceria com qualquer macho disposto a marcar a sua fêmea. Que situação tão erótica. - Ah... ele vendou-me e levou-me a uma elevação panorâmica com vista
para a cidade. Depois libertou-me. E foi tudo.
Wrath tomou a palavra.
- Ele levou-te contra tua vontade.
- Ele acreditava ter motivo. Pensava que eu tinha matado o pai dele. E assim que ficou esclarecido estava preparado para me libertar, mas era de dia, pelo que não
podia ir para lado nenhum. Teria telefonado, mas perdera o meu telefone e eles não pareciam ter nenhum, pois não vi qualquer aparelho. Na verdade, estavam a viver
à moda antiga, de forma comunal e modesta, numa sala subterrânea iluminada por velas.
- Fazes ideia onde estão? - perguntou-lhe o gémeo.
- Não sei. Estava inconsciente quando eles... - Um brado de alerta fez-se ouvir de tantas gargantas que ela abanou a cabeça. - Fui alvejada por um minguante...
- Mas que raios...
- Foste o quê?!
- Uma arma...
- Alvejada com uma...
- ...ferida?!
Mmm. Talvez isso não tivesse sido uma boa ideia.
Enquanto os Irmãos falavam uns sobre os outros, Manuel pegou-lhe ao colo e ergueu-a, o rosto uma máscara de fúria cega.
- Acabou-se. Já está tudo dito. Vou examinar-te. - Olhou para o irmão dela. - Para onde a posso levar?
- Lá para cima. Vira à direita. Passas três portas e há um quarto de hóspedes. Vou mandar comida e diz-me se precisares de material clínico.
- Entendido.
Com isso, o macho dela dirigiu-se às escadas, consigo nos braços.
Ainda bem que ela já concluíra a história. Tendo em conta o ângulo do queixo de Manuel, seria preciso algum tempo antes de voltar a falar sobre o que lhe acontecera.
A menos que o quisesse ver furioso.
Com efeito, no estado em que ele se encontrava agora, parecia que quele soldado teria muito o que recear, caso os dois alguma vez se encontrassem.
- Estou tão satisfeita por te ver - disse ela, num tom rouco. - Só pensava em ti quando estava...
Manuel fechou brevemente os olhos, como se sofresse.
- Eles não te magoaram?
- Não. - E foi então que percebeu o que o preocupava.
Levando-lhe a mão ao rosto, disse:
- Ele não me tocou. Nenhum deles o fez.
O arrepio que percorreu o corpo forte que a transportava foi tão grande que ele quase tropeçou. Mas o macho dela recuperou depressa... e prosseguiu o seu caminho.
Enquanto Vishous observava o humano a levar a sua irmã escadaria acima, percebeu que estava a testemunhar o desenrolar do futuro. Aqueles dois iam resolver as coisas
e o cirurgião com gostos musicais altamente discutíveis faria parte da vida dela... e da de V... para todo o sempre.
De repente, a mente dele recuou doze meses, com o rebobinar a deter-se quando chegou ao ponto da narrativa em que entrara no gabinete do cirurgião para apagar as
memórias do tempo passado por V em St. Francis.
Irmão.
Ouvira a palavra irmão na sua cabeça.
Na altura não fazia a mais pequena ideia do que isso poderia significar. Porque, então, como poderia isso alguma vez acontecer?
Mas ali estava, mais uma vez a realidade exibia uma das suas visões.
Embora, a bem da verdade, a palavra devesse ser cunhado.
Mas depois olhou para Butch. O melhor amigo também fitava o tipo.
Porra, talvez irmão se adequasse. O que era bom. Manello era o tipo de indivíduo com quem não nos importávamos de nos relacionarmos.
Quase como se o rei lhe tivesse lido os pensamentos, Wrath anunciou:
- O cirurgião pode ficar. O tempo que quiser. E pode ter contacto com qualquer família humana que tenha... se quiser. Enquanto meu familiar, é bem-vindo à minha
casa sem quaisquer restrições.
Ouviu-se um ronco de aprovação. Como sempre, no que dizia respeito à Irmandade, os segredos nunca eram secretos durante muito tempo, por isso já todos saberiam da
ligação Manello/Butch/Wrath. Que raios, todos tinham visto a fotografia. Especialmente V.
Embora V tivesse feito mais do que isso. O nome «Robert Bluff» acabara por se revelar uma identidade falsa... E o macho tinha de ser meio-sangue. Se assim não fosse,
nunca poderia ter trabalhado em qualquer hospital durante o dia. A questão era o que poderia saber quanto ao seu lado vampiro e se ainda estava vivo.
Quando Jane encostou a cabeça ao seu peito, envolveu-a ainda mais com os braços. E depois olhou para Wrath.
- O Xcor, certo?
- Pois - assentiu o rei. - Um avistamento confirmado. E não será a última vez que teremos notícias dele. Isto foi só o princípio.
Grande verdade, pensou V. A chegada daquele bando de bastardos não era uma boa notícia para ninguém, mas acima de tudo não o era para Wrath.
- Cavalheiros - disse o rei - e minhas senhoras, a primeira refeição está a arrefecer.
O que foi a deixa para que todos se dirigissem à sala de jantar e comessem o que fora deliberadamente ignorado até então.
Com Payne segura e em casa, o apetite voltava a ter rédea livre... embora Deus soubesse que não ia pensar naquilo que o cirurgião e a irmã de certeza estariam prestes
a fazer.
Quando gemeu, Jane apertou-lhe a cintura com mais força.
- Estás bem?
Olhou para a sua shellan.
- Acho que a minha irmã não tem idade para sexo.
- V, ela tem a mesma idade do que tu.
Vishous franziu o sobrolho por um instante. Teria? Ou será que ele nascera primeiro?
Pois, só teria essa resposta num sítio.
Que raios, nem sequer pensara na mãe durante toda aquela situação. E agora que pensava... não tinha qualquer vontade ou interesse em aparecer por lá e anunciar que
Payne estava muito bem.
Não. Se a Virgem Escrivã quisesse acompanhar o que os «filhos» estavam a fazer podia usar aquelas taças de visão fakakta de que tanto gostava.
Beijou a sua shellan.
- Não quero saber o que diz o calendário, nem a ordem de nascimento. Aquela é a minha irmãzinha e nunca vai ter idade suficiente para... «ah, sim».
Jane riu-se e voltou a aninhar-se por baixo do braço dele.
- És um macho muito doce.
- Ná.
- És.
Levando-a para a sala de jantar e até à mesa, puxou-lhe educadamente a cadeira e depois sentou-se à sua esquerda, para que ela ficasse junto à sua mão da adaga.
Enquanto as conversas se elevavam, as pessoas atacavam as travessas e a sua Jane se ria de algo que Rhage dissera, Vishous olhou e viu Butch e Marissa a trocarem
sorrisos e de mão dada.
Sabes que mais, pensou... naquele momento, a vida estava muito boa.
Estava mesmo.
Capítulo 56
Lá em cima, Manny fechou a porta com o pé atrás dele e da sua mulher, e depois levou-a para a cama do tamanho de um campo de futebol.
Não havia motivo para se trancar. Só um idiota os incomodaria.
O brilho que entrava pelas janelas já sem portadas garantia-lhe luz suficiente para ver, e maldito fosse se não gostava do que tinha à sua frente: a mulher dele,
são e salva, deitada na... Bem, certo, aquela não era a cama deles, mas garantidamente ia transformá-la nisso antes do amanhecer.
Sentando-se ao lado dela, tentou discretamente ocultar a ereção massiva que tinha desde que a vira entrar à porta. E embora houvesse muito o que dizer, só conseguia
fitá-la.
Mas rapidamente o cirurgião nele assumiu o controlo.
- Foste ferida? - As mãos adoráveis dela baixaram até às vestes, e quanto mais a bainha suba, mais as pálpebras dela desciam.
- Acho que vais descobrir que estou sarada. Foi apenas superficial... aqui em cima.
Manny engoliu em seco. Porra... sim, ela estava bem. A pele no cimo da coxa estava lisa como porcelana.
- Mas talvez me devesses examinar com mais atenção - sugeriu ela, num tom arrastado.
Manny entreabriu os lábios e sentiu os pulmões a contraírem-se.
- De certeza que estás bem? E eles não... te magoaram.
Nunca ultrapassaria isso.
Payne sentou-se e fitou-lhe os olhos.
- O que sempre te esteve destinado continua à tua espera.
Manny fechou brevemente os olhos. Depois não quis que ela ficasse com uma má impressão.
- Não que me importasse se não fosses... quer dizer, isto não é uma questão de propriedade... - Que raios, parecia que naquela noite não era capaz de falar. - Mas
não era capaz de aguentar se te magoassem.
O sorriso dela fê-lo sentir-se grato por ter um colchão debaixo do rabo, pois se estivesse de pé, ela tê-lo-ia derrubado.
- Desculpa por ontem à noite - lamentou-se ele. - Cometi um erro...
Payne levou-lhe a mão à boca.
- Estamos aqui agora. Nada mais me importa.
- E preciso de te dizer uma coisa.
- Vais deixar-me?
- Nunca.
- Ótimo. Então vamos unir-nos primeiro, e depois falamos. - Endireitando-se ainda mais, Payne substituiu os dedos pela boca e beijou-o profunda e demoradamente.
- Mmmm... sim, muito melhor do que o discurso, creio eu.
- Tens a certeza de que queres... - Não conseguiu avançar mais, pois a língua dela privou-o de pensamentos.
Gemendo, subiu para a cama, sustendo-se acima dela. E depois, fitando-lhe os olhos, baixou lentamente o corpo sobre o dela... sendo o último contacto a ereção dele
entre as pernas dela.
- Se te beijar agora não há volta. - Bolas, tinha a voz tão gutural que praticamente lhe rosnava. Mas estava a ser sincero. Estava a ser levado por outra força.
Não se tratava de sexo, embora a mecânica do ato estivesse envolvida. Ao tomar-lhe a virgindade, estaria a marcá-la de uma forma que não compreendia, mas que não
questionava.
- Quero-te assim - disse ela. - Há séculos que espero por aquilo que só tu me podes dar.
Minha, pensou Manny.
Antes de a voltar a beijar, chegou-se ao lado e soltou-lhe o cabelo da trança. Espalhando as ondas escuras sobre a colcha de cetim, percorreu-as com os dedos.
Depois encostou as ancas ao íntimo dela, empurrando e recuando, e repetindo o movimento... enquanto a mão lhe subia até ao peito e lhe agarrava o tecido frágil das
vestes.
Sinceramente estava chocado com o que queria fazer.
- Desejo estar nua perante ti - ordenou ela. - Fá-lo, Manuel.
A maldita túnica não teve hipótese. Erguendo-se, pegou nas lapelas e abriu-a ao meio, rasgando o material e expondo-lhe os seios aos seus olhos quentes e ao ar frio.
Em resposta, ela arqueou-se e gemeu e isso foi a gota de água. Dirigiu-se aos mamilos entumecidos com a boca e ao íntimo dela com as mãos. Estava todo nela, levando-a
ao orgasmo sugando-a e esfregando-a com cuidado, e quando a libertação rápida e desesperada chegou, ele engoliu-lhe o grito.
Queria dar-lhe mais - e pretendia fazê-lo - mas o seu corpo não ia esperar. Levou as mãos às calças, soltando o cinto e baixando o fecho para soltar o membro.
Ela estava pronta, molhada, aberta e ansiosa, tendo em conta a forma como as pernas o esfregavam.
- Eu vou devagar - disse contra a boca de Payne.
- Não receio a dor. Não contigo.
Bolas, portanto talvez naquilo fossem fisicamente como as mulheres humanas. O que queria dizer que a primeira vez não seria fácil para aquela fêmea.
- Shhh - murmurou ela. - Não te preocupes. Toma-me.
Baixando a mão, posicionou-se e... que porra... quase se veio. Ela estava quente e molhada e...
Ela moveu-se tão depressa que não a poderia impedir, mesmo que quisesse. As mãos dela baixaram e agarraram-lhe o traseiro, com as unhas a cravarem-se na sua carne
e depois...
Payne ergueu as ancas ao mesmo tempo que o puxava, e ele entrou até ao fundo, com a penetração total e absolutamente completa. Com ele a gemer, Payne ficou rígida
e silvou com a estocada, o que era profundamente injusto, pois ela sabia tão bem. Mas ele não ia mexer-se, pelo menos até que ela recuperasse da invasão.
E depois lembrou-se.
Levando-lhe a mão à nuca, aproximou-lhe os lábios do pescoço.
- Toma-me.
O som que ela fez levou-o ao orgasmo no interior dela. Era demasiado excitante para se conter. E enquanto o membro latejava, as presas de Payne enterraram-se na
sua veia.
O sexo tornou-se alucinado. Payne moveu-se contra ele, com o íntimo apertado a sugá-lo enquanto ele se vinha mais uma vez... e depois foi a vez de o macho começar
a bombear as ancas com força. O sugar e o ritmo alucinado arrebatou-os de tal maneira que tiveram noção que pela manhã se ressentiriam. Aquilo não tinha nada de
civilizado. Eram macho e fêmea, reduzidos ao cerne mais primitivo.
E era o melhor que alguma vez sentira.
Capítulo 57
Thomas DelVecchio sabia exatamente para onde o assassino iria a seguir.
Não tinha qualquer dúvida. Com o detetive de la Cruz na sede, a trabalhar com os rapazes em teorias e indícios, todas bastante úteis, Veck sabia para onde ir.
Ao aproximar-se do parque de estacionamento do Monroe Motel & Suítes com as luzes desligadas e a moto desengatada, pensou que talvez fosse boa ideia ligar a de la
Cruz e dizer-lhe onde se encontrava.
Mas acabou por deixar o telefone no bolso.
Parando a BMW nas árvores, à direita do parque de estacionamento, empurrou o descanso e pendurou o capacete no guiador. Tinha a arma no coldre por baixo da axila
e disse para consigo que aí ficaria se alguém aparecesse.
Em grande medida acreditava nessa mentira.
Claro que a horrível verdade era que se sentia animado por algo adormecido desde há muito, muito tempo. De la Cruz tinha razão em receá-lo como parceiro e estava
correto em questionar onde acabavam os pecados do pai e começavam os do filho.
Pois Veck era um pecador. E entrara para a polícia para tentar expulsar isso de si.
Mas talvez fosse melhor exorcizar essa treta pois, às vezes, sentia como se tivesse um demónio dentro de si, a sério.
Mesmo assim, não estava ali para matar ninguém. Estava ali para deter um assassino antes que o desgraçado voltasse ao trabalho.
A sério.
Ao aproximar-se do motel, Veck manteve-se entre as sombras das árvores e concentrou-se no quarto onde a última rapariga tinha sido encontrada. Estava tudo tal como
a polícia de Caldwell deixara. Ainda havia fita de limitação num triângulo à volta da porta e da porção de passeio à frente. A ombreira também apresentava um selo,
o qual teoricamente só poderia ser quebrado em situações oficiais. Não havia luz no interior do quarto, nem cá fora, no corredor. Não se via ninguém.
Atrás de um tronco grosso, serviu-se das mãos enluvadas para puxar o gorro de lã para mais perto da camisola de gola alta preta.
Era tão bom a ficar imóvel que praticamente desapareceu. Era também muito bom a canalizar a energia para uma calma ubíqua que conservava os recursos, ao mesmo tempo
que o deixava em alerta.
A presa ia aparecer. Aquele louco assassino perdera todos os troféus. A coleção estava nas mãos das autoridades e os agentes forenses esforçavam-se por o ligar a
vários homicídios por resolver um pouco por todo o país. Mas o desgraçado não voltaria ali para tentar recuperar tudo, ou pelo menos parte do que deixara. O re-gresso
teria como objetivo lamentar a perda do que se esforçara tanto por conseguir.
Seria imprudente da parte dele? É claro, mas isso fazia parte do ciclo de excessos. O assassino não estaria a raciocinar devidamente, e as perdas tê-lo-iam deixado
desesperado. E Veck ia esperar durante as próximas noites, até que o indivíduo surgisse.
O tempo passou e ele esperou, esperou e esperou... era tão paciente como qualquer caçador. Embora tivesse pensado que aquilo poderia revelar-se desastroso, estando
ali sozinho. Com uma faca presa na cintura. E aquela maldita arma...
Um ramo a partir-se atraiu-lhe os olhos para a direita, mas não a cabeça. Não se mexeu nem alterou a respiração, nem sequer estremeceu.
E lá estava. Um homem surpreendentemente magro a atravessar, com cuidado, os arbustos folhosos da mata. Enquanto se aproximava do lado do motel, a expressão no rosto
do homem era quase religiosa. Mas não foi apenas isso que o identificou como sendo o assassino. Tinha as roupas cobertas de sangue seco, e os sapatos também. Estava
a coxear, como se tivesse sofrido uma lesão na perna, e o rosto apresentava riscos de unhas.
Apanhei-te, pensou Veck.
E agora que fitava o assassino... a mão baixou-lhe até às ancas e contornaram-nas até às costas. Até à faca.
Não mudou de rumo, mesmo enquanto dizia para consigo para deixar a arma onde estava e pegar nas algemas. Sempre tivera duas pessoas dentro dele, duas metades na
mesma pele e, em momentos como aquele, sentia-se como se estivesse a observar-se a agir, quase como se fosse o passageiro de um táxi, sendo que o destino, qualquer
que fosse, não resultaria dos seus atos.
Começou a aproximar-se do homem, acompanhando-o em silêncio, qual sombra, encurtando a distância até ficar a mero metro e meio do sacana. A faca chegara à mão de
Veck e não queria que ela lá estivesse, mas era demasiado tarde para a voltar a guardar. Demasiado tarde para recuar. Demasiado tarde para dar ouvidos à voz que
lhe dizia que aquilo era um crime que o deixaria na prisão. O outro lado assumira o controlo e ele estava perdido nele, à beira de matar...
O terceiro homem surgiu vindo de nenhures.
Um homem imenso vestido de cabedal saltou para o caminho do assassino, bloqueando-lhe o avanço. E, quando David Kroner recuou, alarmado, um silvo percorreu o ar.
Cruzes, aquilo não parecera humano. E... aquilo eram... presas?
Mas que raios...
O ataque foi tão brutal que, com o primeiro golpe contra o pescoço do assassino em série, a cabeça quase lhe saltou. E não parou por aí, com sangue a saltar para
tão longe que salpicou as calças, a camisola de gola alta e o gorro pretos de Veck.
Mas não estava a ser usada faca, nem adaga.
Dentes. O cabrão estava a desfazê-lo com os dentes.
Veck tentou recuar, mas bateu numa árvore e o impacto atirou-o ao chão muuuuuito mais perto do que deveria. E devia ter corrido para a moto, ou simplesmente fugido,
mas sentia-se arrebatado pela violência... e pela convicção de que o que estava a ver não era, de todo, humano.
Quando acabou, o monstro deixou cair os restos massacrados do assassino... e depois olhou para Veck.
- Grande... porra... - murmurou Veck.
O rosto tinha uma estrutura óssea bastante humana, mas as presas não batiam certo, nem tampouco a dimensão e o olhar vingativo. Cristo, tinha sangue a escorrer-lhe
da boca.
- Olha-me nos olhos - disse uma voz de sotaque carregado.
Um gorgolejo fez-se ouvir do que restava do assassino. Mas Veck não olhou. Estava fito num par de olhos espantosos... tão azuis... a brilhar....
- Merda... - deixou escapar, com uma dor de cabeça lancinante a eliminar tudo o que via ou ouvia. Tombando de lado, a dor obrigou-o a assumir uma posição fetal e
assim ficou.
Plim.
Por que estava no chão?
Plim.
Sentia o cheiro de sangue. Mas porquê?
Plim. Plim.
Levantou a cabeça com um gemido e...
- Porra!
Pôs-se de pé em choque e fitou a confusão ensanguentada à sua frente.
- Ah... porra - praguejou. Tinha-o feito. Finalmente matara alguém...
Mas depois olhou para a faca que tinha na mão. Nada de sangue. Nem na lâmina. Nem nas mãos. Só salpicos na roupa.
Olhou à sua volta, sem o mais leve indício do que poderia ter acontecido. Lembrava-se de ter ali chegado... de ter estacionado a moto... e de seguir o homem que
jazia agora moribundo.
Se fosse brutalmente sincero para consigo, ele tivera a intenção de matar. Sempre. Mas tendo e conta os indícios físicos? Não fora ele.
O problema era que tudo o resto era um buraco negro.
Um gemido do assassino em sério fê-lo virar a cabeça para a direita. O homem tentava alcançá-lo. Suplicava-lhe ajuda em silêncio enquanto se esvaía. Como poderia
ainda estar vivo?
Com as mãos a tremer, Veck pegou no telemóvel e ligou para o 112.
- Sim, detetive DelVecchio, Homicídios. Preciso de uma ambulância junto ao Monroe Motel & Suítes já.
Depois de o pedido ter sido registado e de os médicos estarem a caminho, tirou o blusão, enrolou-o e ajoelhou-se ao lado do homem. Pressionando o blusão contra os
ferimentos no pescoço dele, rezou para que o cabrão sobrevivesse. E depois teve de se interrogar se isso seria bom.
- Não te matei - disse. - Pois não?
Cristo... o que acontecera ali?
Capítulo 58
-Ele veio ver-te.
A partir do ponto de vista de Blaylock, na cama, Saxton, filho de Tyme, mostrava-lhe o seu melhor lado. E não, não era o traseiro. O macho estava a barbear-se ao
espelho e tinha o perfil perfeito banhado pela luz suave.
Cristo, ele era um belo macho.
A muitos níveis, aquele amante a quem se ligara era tudo o que podia desejar.
- Quem? - perguntou Blay, baixinho.
Os olhos que procuraram os dele escorriam incredulidade.
- Ah. - Para se esquivar a mais conversa, Blay olhou para o edredão que tinha puxado até ao peito despido. Estava nu por baixo do lençol de cetim. Tal como Saxton
estivera, antes de ter vestido o roupão.
- Ele queria saber se estavas bem - prosseguiu Sax.
Uma vez que ah já tinha sido usado como resposta, Blay apimentou-a com:
- A sério?
- Foi no terraço. Não quis entrar, para não nos incomodar.
Engraçado, quando estivera prestes a desmaiar, depois de lhe terem suturado a barriga, interrogara-se vagamente o que poderia Saxton estar a fazer lá fora. Mas na
altura sentia tantas dores que não fora capaz de pensar em praticamente nada.
Agora, no entanto, sentia um entusiasmo terrível a percorrê-lo.
Louvada fosse a Virgem Escrivã, há muito tempo que não sentia aquele formigueiro familiar, embora o tempo que passara não tivesse diminuído a sensação. E o impulso
que se seguiu, de perguntar o que fora dito, não era algo que pudesse fazer. Para começar, seria uma falta de respeito para com Saxton. Além disso, era inútil.
Ainda bem que dispunha de bastantes munições com que se calar. Bastava-lhe pensar em Qhuinn a chegar a casa há cerca de uma semana, de cabelo revolto, o cheiro abafado
pelo perfume de outro homem, a pose afetada pela satisfação que tivera.
Pensar que Blay se atirara ao macho não uma, mas duas vezes e fora rejeitado? Nem conseguia pensar nisso.
- Não queres saber o que ele disse? - murmurou Saxton ao passar com a lâmina afiada pelo pescoço, evitando habilmente a marca da dentada que Blay lhe dera há meia
hora.
Blay fechou os olhos e interrogou-se se alguma vez seria capaz de fugir à realidade de que Qhuinn foderia tudo o que se mexia menos ele.
- Não? - indagou Saxton.
Quando a cama estremeceu, Blay abriu os olhos. Saxton sentara-se à beira do colchão, estando o macho a limpar o queixo e as faces com uma toalha vermelho-sangue.
- Não? - repetiu.
- Posso fazer-te uma pergunta? - disse Blay. - E neste momento não seria boa ideia usares a tua personalidade encantadora e sarcástica.
O rosto maravilhoso de Saxton assumiu de imediato uma expressão grave.
- Força.
Blay alisou o edredão sobre o peito. Várias vezes.
- Eu... agrado-te?
Pelo canto do olho viu Saxton estremecer e quase morreu com o embaraço.
- Na cama, queres tu dizer? - quis Sax saber.
Blay franziu os lábios ao aquiescer, e pensou em avançar alguma explicação, mas a boca revelou-se-lhe demasiado seca.
- Mas por que haverias tu de perguntar isso? - comentou Saxton.
Bem, porque teria de haver qualquer coisa de errado consigo.
Blay abanou a cabeça.
- Não sei.
Saxton dobrou a toalha e pousou-a a seu lado. Depois estendeu o braço sobre as ancas de Blay e aproximou-se até ficarem cara a cara.
- Sim. - E levou a boca ao pescoço do companheiro, sugando. - Sempre.
Blay passou com a mão pela nuca do macho, encontrando o macio cabelo encaracolado na base do pescoço.
- Graças a Deus.
A familiaridade do corpo sobre o seu não era novidade, e parecia-lhe correto. Era bom. Conhecia cada curva e recanto do peito, das ancas e das coxas de Saxton. Conhecia
os pontos de pressão e sabia onde morder, sabia exatamente onde agarrar, como rebolar e revirar-se para que Saxton se viesse com força.
Por isso, sim, talvez não precisasse de perguntar.
Mas Qhuinn... tudo sobre esse macho o deixava em carne viva. E, mesmo depois de ter aprendido a ligar-se no exterior, a ferida continuava tão má e profunda como
no momento em que fora feita, altura em que se tornou óbvio que o único macho que queria acima de qualquer outro nunca estaria com ele.
Saxton recostou-se.
- O Qhuinn não é capaz de lidar com aquilo que sente por ti.
Blay soltou uma gargalhada rouca.
- Não falemos sobre ele.
- Porquê? - Saxton estendeu a mão e passou com o polegar pelo lábio inferior de Blay. - Está sempre aqui connosco, quer queiramos quer não.
Blay pensou em mentir, mas desistiu.
- Desculpa.
- Não faz mal... sei onde me meti. - A mão livre de Saxton meteu-se por baixo do edredão. - E sei o que quero.
Blay gemeu quando aquela mão esfregou o que se tornou de imediato uma ereção imensa. E, quando as ancas se levantaram e ele abriu as pernas para Saxton, susteve
os olhos do amante e sugou-lhe o polegar.
Era muito melhor do que entrar na montanha-russa Qhuinn. Sabia-o e gostava disso. Ali estava seguro. Ali não sairia magoado.
E ali encontrara uma ligação sexual profunda.
O olhar de Saxton era a um tempo quente e sério quando largou o que encontrara, destapou o corpo de Blay e desapertou o laço do seu roupão.
Aquilo era muito bom, pensou Blay. Aquilo era correto...
Quando a boca do amante lhe encontrou a clavícula, Blay fechou os olhos. Mas quando se começou a perder nas sensações, o que viu não foi Saxton.
- Espera, para... - Sentou-se e arrastou o outro macho com ele.
- Não faz mal - disse Saxton baixinho. - Sei o que se passa entre nós.
O coração de Blay cedeu um pouco. Mas Saxton limitou-se a abanar a cabeça e devolveu os lábios ao peito de Blay.
Nunca tinham falado acerca de amor e isso deixou bem claro que nunca o fariam, pois Saxton tinha toda a razão. Blay continuava apaixonado por Qhuinn. E provavelmente
sempre assim seria.
- Porquê? - perguntou ao amante.
- Porque te quero enquanto te tiver.
- Não vou a lado nenhum.
Saxton limitou-se a abanar a cabeça contra os abdominais retesados que mordiscava.
- Deixa de pensar, Blaylock. Começa a sentir.
Quando aquela boca talentosa chegou ao fundo, Blay inspirou com um sibilo e decidiu seguir o conselho. Pois essa era a única maneira de sobreviver.
Tinha a impressão de que seria uma questão de tempo até que Qhuinn anunciasse que ele e Layla iriam acasalar.
Não sabia porquê, apenas sabia. Havia semanas que os dois se encontravam e a Escolhida voltara a estar lá na véspera. Sentira-lhe o cheiro e o sangue no quarto ao
lado.
E embora tal convicção pudesse ser apenas um exercício mental para se deprimir, sentia que era muito mais do que isso. Era como se a neblina que, regra geral, obscurecia
os dias, meses e anos vindouros se tivesse tornado insuportavelmente ténue e as sombras do destino estivessem a revelar-se-lhe.
Uma questão de tempo.
Cristo, isso seria como quem o mataria.
- Ainda bem que aqui estás - gemeu.
- Eu também - retribuiu-lhe o amante em torno da ereção dele. - Eu também.
Capítulo 59
Na noite seguinte, Payne dava voltas na frente da mansão da Irmandade, indo da sala de jantar até ao átrio e à sala de bilhar e de volta. Uma e outra vez.
O macho dela saíra da casa a meio da tarde para «tratar de umas coisas». E, embora se tivesse recusado a dizer-lhe o quê, ela apreciara o sorriso malandro que ele
lhe oferecera ao aconchegá-la na cama que tinham usado na totalidade durante a noite, saindo logo depois.
Depois disso, Payne não dormira. De todo.
Havia muito que a deixava feliz.
E surpreendida.
Fazendo uma pausa à frente das portas de correr que davam acesso ao pátio, pensou na fotografia que ele lhe mostrara. Era por demais óbvio que tinha uma relação
de sangue com Butch e, logo, com o rei. Mas nem Manuel nem ela estavam interessados em arriscar uma regressão. Não, nesse ponto, ela concordava plenamente com ele.
Tinham-se um ao outro e, tendo em conta o que já tinham ultrapassado, não havia motivo para arriscar um mau resultado.
Além disso, a informação não alteraria nada. O rei abrira as portas de sua casa ao macho dela, mesmo sem uma declaração formal de relação sanguínea, e Manuel poderia
manter o contacto com a mãe humana. Mais ainda, ficara decidido que ele trabalharia ali, com a Doc Jane, mas também com Havers. Afinal de contas, a raça precisava
de mais bons médicos, e Manuel era superlativo.
E quanto a ela? Sairia para lutar. Nem Manuel nem o irmão estavam propriamente entusiasmados com os riscos que ela iria correr, mas não a impediriam. Com efeito,
depois de ter falado longamente com Manuel, ele parecera aceitar que isso fazia parte dela. Só fizera questão que ela usasse as melhores armas possíveis e o irmão
insistira em certificar-se disso.
Pelas Parcas, aqueles dois pareciam estar a entender-se. Quem o poderia ter previsto?
Deslocando-se até à janela seguinte, perscrutou a escuridão, em busca de faróis.
Onde estaria ele? Onde estaria ele...
Manuel também iria falar com a Doc Jane sobre as mudanças físicas por que ele passara, mudanças essas que, tendo em conta a forma como Payne brilhava sempre que
faziam amor, seria provável que continuassem. Ela iria monitorizar o corpo e ver o que acontecia, e ambos rezavam para que ela apenas o estivesse a manter saudável
e eternamente jovem. Apenas o tempo o diria.
Praguejando, deu meia volta, cruzou o átrio... e entrou na sala de jantar.
Junto à terceira janela, olhou para os céus. Não pretendia visitar a mãe. Teria sido maravilhoso partilhar o seu amor com que a trouxera ao mundo. Mas o progenitor
estava morto, e a sua mahmen? Não confiava na Virgem Escrivã, receando que a voltasse a aprisionar. Manuel era um meio-sangue. Não era de todo um elemento de raça
pura que a mãe aprovasse...
O par de olhos brilhantes que subiam a elevação onde o complexo se erguia deixaram-lhe o coração a bater descompassado. E depois ouviu a música, um ritmo forte que
atravessava o vidro.
Payne saiu a correr da sala de jantar e percorreu rapidamente o mosaico. Momentos depois tinha saído pelo vestíbulo para as trevas...
Ao fundo dos degraus estacou.
Manuel não chegara sozinho. Atrás do Porsche estava um qualquer tipo de veículo imenso... um grande veículo em duas partes.
O macho deixou o volante do seu carro.
- Olá - cumprimentou ele.
Ostentava um sorriso rasgado quando chegou junto a ela, lhe levou as mãos às ancas e a aproximou do peito.
- Tive saudades tuas - murmurou-lhe contra os lábios.
- Eu também. - Ela sorria igualmente. - Mas... o que é que trouxeste?
O mordomo idoso saiu do outro veículo.
- Meu senhor, devo...
- Obrigado, Fritz, mas eu agora trato do resto.
O mordomo fez uma vénia baixa.
- Foi um prazer ter sido útil.
- És do melhor, meu.
O doggen estava radiante quando regressou alegremente à casa. E depois, o macho dela dirigiu-se-lhe.
- Fica aqui.
Franziu o cenho ao ouvir pancadas secas no interior da caixa grande.
- É claro.
Depois de voltar a beijá-la, Manuel desapareceu atrás do veículo.
Abriram-se portas. Mais pancadas. Gemidos e o som de algo a correr, seguido por um bater ritmado. E depois...
O relinchar disse-lhe o que ela não se atrevera a esperar. E depois a bela poldra de Manuel recuou por uma rampa e foi-lhe trazida.
Payne levou as mãos à boca enquanto nos olhos se formavam lágrimas. A égua avançava cheia de graciosidade, com a pelagem a brilhar com a luz emanada da casa, mais
uma vez com toda a sua força e vitalidade.
- Mas... porque é que ela está aqui? - indagou Payne num tom rouco.
- Os humanos oferecem algo às noivas como prova do seu amor. - Manuel ostentou um sorriso rasgado. - Pensei que a Glory fosse melhor do que qualquer diamante que
eu te pudesse comprar. É mais importante para mim... e espero que para ti também.
Não tendo resposta, estendeu-lhe a tira de cabedal que estava presa à brida do cavalo.
- Estou a dar-ta.
Como se fosse a sua deixa, Glory soltou um relincho e empinou-se, como se concordasse com a troca de posse.
Payne limpou os olhos e atirou-se a Manuel, beijando-o profundamente.
- Não tenho palavras.
E depois aceitou as rédeas, enquanto Manuel se ufanava.
Respirando fundo, ela...
Antes de ter consciência do movimento, Payne saltou no ar, montando Glory como se o par estivesse junto há anos e não há minutos.
E o cavalo não precisou de incentivo, de autorização, de nada... Glory saltou em frente, firmando os cascos nos seixos e partindo a galope.
Payne entrelaçou os dedos na crina preta comprida e equilibrou-se perfeitamente sobre as costas possantes onde se sentava. Quando o vento lhe bateu no rosto, riu-se
com pura exultação ao partirem alegres e livres. Sim... sim! Mil vezes sim!
Partir na noite.
Ter a liberdade de se mover.
Ter amor à sua espera.
Era mais do que estar viva. Aquilo era viver.
De pé, junto ao reboque, Manny observou as suas meninas a partirem juntas, perdido de felicidade. Faziam um par perfeito, ambas unas e fortes, e rasgando a noite
a um galope que a maior parte dos carros teria dificuldade em acompanhar.
Certo. Talvez tivesse derramado uma lágrima ou duas. Mas que raios. Aquela noite era incrível para...
- Eu vi a cena.
- Cristo... - Agarrou na cruz e deu meia volta. - Andas sempre a tentar matar as pessoas do coração?
O irmão de Payne não respondeu, ou talvez não o conseguisse fazer. O vampiro tinha os olhos fitos na irmã e no cavalo a galope, e parecia tão comovido como Manny.
- Mas pensei que fosse um garanhão. - Vishous abanou a cabeça. - Mas sim, foi isto que eu vi... ela montada num puro-sangue preto, o cabelo a voar com a brisa. Mas
não pensava que fosse o futuro...
Manny virou-se outra vez para as suas meninas, que se encontravam ao fundo do muro e começavam a descrever uma curva larga para regressarem à casa.
- Amo-a tanto - ouviu-se Manny a dizer. - É o meu coração que ali vai. Aquela é a minha mulher.
- Verdade.
Com a ligação profunda estabelecida entre os dois, Manny sentia-se em muitos aspetos como se estivesse em casa, e não queria pensar muito, receando que tais bênçãos
se desvanecessem.
Momentos depois, olhou para o lado.
- Importas-te que te faça uma pergunta.
- Força.
- O que é que me fizeste à merda do carro?
- O quê, estás a falar da música?
- Para onde é que foi a minha...
- Merda? - Olhos da cor de diamante cruzaram-se com os dele. - Se vais morar aqui, vais começar a ouvir aquilo que eu ouço, certo?
Manny abanou a cabeça.
- Deves estar a brincar comigo.
- Estás a dizer que não gostaste da batida?
- Pois. - Depois de tossicar, Manny cedeu. - Está bem, não eram péssimas de todo.
A gargalhada foi um bocadinho triunfante de mais.
- E sabia.
- Então e o que era?
- E agora, o gajo quer nomes. - O vampiro pegou num cigarro e acendeu-o. - Deixa ver... «Cinderella Man», do Eminem. «I Am Not a Human», do Lil Wayne. O Tupac...
A lista prosseguiu, e Manny foi ouvindo enquanto observava a sua mulher a cavalgar e afagava o peso do cruxifixo de ouro.
Ele e Payne estavam juntos... ia com Butch à igreja, à meia-noite... e Vishous não o esfaqueara. E, se bem se lembrava, o gémeo de Payne conduzia aquele Escalade
preto ali, e isso significava que a vingança seria uma carrada de Black Veil Bride, Bullet for My Valentine e Avenged Sevenfold a ser transferida para o sistema
de som do SUV.
Só pensar nisso já o deixava a sorrir.
Bem feitas as contas?
Sentia-se como se tivesse ganhado a lotaria. Em cada um dos cinquenta estados. Ao mesmo tempo.
Era essa a sorte de todos eles.

 

Glossário
ahmo (n.) - Termo respeitoso usado por alguém sexualmente submisso para se referir ao seu dominador.
ahstrux nohtrum (n.) - Guarda privado com licença para matar nomeado para o cargo pelo Rei.
caminhante (n.) - Indivíduo que morreu e regressou ao mundo dos vivos vindo do Vápido. São fortemente respeitados e reverenciados pelos seus feitos.
chrih (n.) - Símbolo de morte honrada na Língua Antiga.
comhpetição (n.) - Conflito entre dois machos que lutam pelo direito de ser o macho de uma determinada fêmea.
Dhunhd (n. próp.) - Inferno.
Dhuplo exhilado (n. próp.) - Gémeo maligno ou amaldicionado, aquele que nasceu em segundo lugar.
doggen (n.) - Membro da classe servil no mundo dos vampiros. Os doggens têm tradições antigas e conservadoras em relação ao serviço dos superiores, cumprindo regras
formais de roupagem e comportamento. São capazes de sair durante o dia, mas envelhecem relativamente depressa. A sua esperança de vida é de cerca de quinhentos anos.
ehros (n.) - Uma Escolhida, treinada nas artes sexuais.
Escolhidas (n.) - Vampiras que foram criadas para servir a Virgem Escrivã. São consideradas membros da aristocracia, embora tenham uma inclinação mais espiritual
do que temporal. Têm pouca ou nenhuma relação com os machos, mas podem acasalar com guerreiros, sob indicação da Virgem Escrivã, para propagarem a sua classe. Têm
a capacidade de fazer prognósticos. No passado eram usadas para servir as necessidades de sangue de membros da Irmandade sem parceira, mas a prática foi abandonada
pelos Irmãos.
Escravo de sangue (n.) - Vampiro macho ou fêmea subjugado para servir as necessidades de sangue de outro vampiro. A prática da manutenção de escravos de sangue foi
recentemente proibida.
ghuardião (n.) - Guarda de um indivíduo. Existem vários graus de guardiões, sendo o mais poderoso o de uma fêmea em isolamento.
glymera (n.) - O núcleo social da aristocracia, aproximadamente equivalente ao existente em Inglaterra no período da Regência (1811-1820).
hellren (n.) - Vampiro macho que foi acasalado com uma fêmea. Os machos podem tomar mais do que uma fêmea como parceira.
instruthor (n. próp.) - Palavra usada entre machos, a qual denota respeito e afeto mútuos. Traduzido livremente como «querido amigo».
Irmandade da Adaga Negra (n. próp.) - Guerreiros vampiros altamente treinados, que protegem a sua espécie contra a Sociedade dos Minguantes. Em resultado das práticas
de reprodução seletivas do próprio grupo, os Irmãos possuem uma enorme força física e mental, bem como capacidades inatas de cura rápida. Não são parentes entre
si, na sua maioria, e são admitidos na Irmandade por nomeação dos Irmãos. Agressivos, confiantes e reservados por natureza, existem à parte dos civis, tendo pouco
contacto com os membros de outras classes, exceto quando têm de se alimentar. São personagens de lenda e alvo de vénia dentro do mundo dos vampiros. Só podem ser
mortos por um ferimento muito grave, ou seja, um tiro ou uma facada no coração, ou algo semelhante.
isohlamento (n.) - Estatuto conferido pelo Rei a uma fêmea da aristocracia como resultado de uma petição por parte da sua família. A fêmea fica sob a direção de
um ghuardião, normalmente o macho mais velho da casa. Este fica com o direito legal de determinar todos os aspetos da vida da fêmea, restringindo, consoante a sua
vontade, todas as interações que ela tenha com o mundo.
leelan (n.) - Um termo de afeto, que pode ser livremente traduzido por «amada».
lewlhen (n.) - Dádiva.
Lhenihan (n. próp.) - Besta mítica afamada pelas proezas sexuais.
Em calão moderno refere-se a um macho de dimensão e resistência
sexuais preternaturais.
lidher (n.) - Uma pessoa com poder e influência.
Lys (n.) - Instrumento de tortura usado para remover os olhos.
mahmen (n.) - Mãe. Usado como designação ou como termo afetuoso.
mhis (n.) - O mascarar de um determinado ambiente físico; a criação de um campo de ilusão.
minguante (n.) - Humano desprovido de alma que caça vampiros para os exterminar como membro da Sociedade dos Minguantes. Para serem mortos os minguantes têm de ser
trespassados pelo coração; de resto, não têm idade. Não bebem nem comem e são impotentes. Com o tempo, o cabelo, a pele e as íris perdem a pigmentação, até que ficam
loiros, pálidos e de olhos incolores. Cheiram a pó de talco. Convocados para a sociedade por Ómega, guardam consigo um vaso de cerâmica onde o seu coração foi depositado
quando removido.
nalla (f.) ou nallum (m.) - Termo carinhoso que significa «amada/o».
newling (n.) - Uma virgem.
Ómega (n. próp.) - Figura malévola e mística que destinou os vampiros à extinção por causa do rancor contra a Virgem Escrivã.Existe num domínio não-temporal e tem
vastos poderes, exceto o poder da criação.
Período de necessidade (n.) - Tempo de fertilidade de uma vampira. Normalmente tem a duração de dois dias e é acompanhado de um intenso apetite sexual. Ocorre, mais
ou menos, cinco anos após a transição da fêmea, e uma só vez, uma década mais tarde. Todos os machos respondem, nalgum grau, se estiverem próximos de uma fêmea em
necessidade. Poderá ser um tempo de perigo, com conflitos e lutas entre os machos competidores, especialmente se a fêmea não tiver parceiro.
Primeira Família (n. próp.) - O Rei e a rainha dos vampiros e respetivos filhos.
princeps (n.) - Nível mais alto da aristocracia dos vampiros, apenas superado pelos membros da Primeira Família ou as Escolhidas da Virgem Escrivã. Têm de herdar
o título, o qual não pode ser conferido a ninguém.
prohtector (n.) - O equivalente a um padrinho ou madrinha de um indivíduo.
pyrocant (n.) - Refere-se a uma fraqueza crítica num indivíduo. A fraqueza pode ser interna, como um vício, ou externa, como um amante.
rahlman (n.) - Salvador.
ryto (n.) - Modo ritual de repor a honra, concedido por aquele que ofendeu. Caso aceite, o ofendido escolhe a arma e atinge o ofensor, que se lhe entrega sem defesa.
sehnhor (n.) - Termo indicador de respeito usado por alguém sexualmente dominado quando se refere do dominante.
shellan (n.) - Vampira que foi acasalada com um macho. Geralmente, as fêmeas não tomam mais do que um parceiro, devido à natureza altamente territorial dos machos
acasalados.
Sociedade dos Minguantes (n. próp.) - Ordem de matadores, convocada por Ómega com o propósito de erradicar a espécie dos vampiros.
sympath (n.) - Espécie dentro da raça dos vampiros com a capacidade e o desejo de manipular as emoções de outras pessoas (para obter uma troca de energia), entre
outras características. Historicamente têm sido discriminados e, durante certas eras, foram caçados por vampiros. Estão quase extintos.
transição (n.) - Momento crítico da vida de um vampiro, em que ele ou ela se transformam em adulto. A partir desse momento, terão de beber o sangue de alguém do
sexo oposto para sobreviverem e são incapazes de suportar a luz do Sol. Ocorre, em geral, entre os vinte e os trinta anos. Alguns vampiros não sobrevivem às suas
transições, em particular os machos. Antes das transições, os vampiros são fisicamente fracos, sexualmente inativos e incapazes de se desmaterializarem.
tremehndo (adj.) - Termo que se refere à potência do órgão sexual de um macho. A tradução literal é algo semelhante a «digno de entrar numa fêmea».
Tumba (n. próp.) - Jazigo sagrado da Irmandade da Adaga Negra. Usado como lugar de culto, bem como de armazém dos vasos dos minguantes. As cerimónias cumpridas naquele
lugar incluem induções, funerais e ações disciplinares aplicadas a Irmãos. Ninguém pode ali entrar, exceto os membros da Irmandade, a Virgem Escrivã ou os candidatos
à indução.
Vampiro (n.) - Membro de uma espécie separada da do Homo sapiens. Os vampiros têm de beber o sangue de alguém do sexo oposto para sobreviverem. O sangue humano mantê-los-á
vivos, embora a força não dure muito tempo. Após às suas transições, que ocorrem entre os vinte e os trinta anos de idade, são incapazes de sair para a luz do Sol
e têm de se alimentar com regularidade mordendo veias. Os vampiros não podem converter humanos através de uma dentada, ou da transferência de sangue, embora sejam
capazes, em casos raros, de acasalar com membros de outra espécie. Os vampiros podem desmaterializar-se conforme queiram, embora precisem de se acalmar e se concentrar
para o conseguir, não podendo carregar consigo nada que seja pesado. São capazes de roubar a memória a humanos, desde que essa memória seja de curta duração. Alguns
vampiros são capazes de ler a mente. A esperança de vida é superior a mil anos e, em alguns casos, ainda mais longa.
Vápido (n. próp.) - Domínio não-temporal onde os mortos se reúnem com os seus amados e passam a eternidade.
vinhgança (n.) - Ato de retribuição mortal, tipicamente levado a cabo por um macho para vingar a sua amada.
Virgem Escrivã (n. próp.) - Força mística que é conselheira do Rei, simultaneamente depositária dos arquivos e dispensadora de privilégios. Existe num domínio não-temporal
e tem vastos poderes. Teve a capacidade de um ato de criação singular, poder que usou para trazer os vampiros à existência.

Capítulo 40
Apenas breves momentos depois de Butch lhe ter ligado, Jane materializou-se na varanda da cobertura de V. Enquanto a sua forma ganhava volume, o ar gelado da noite
acariciou-lhe os cabelos e fez-lhe os olhos lacrimejarem.
Ou... talvez fossem mesmo lágrimas.
Olhando através do vidro, via tudo muito mais claramente: a mesa, os cílios, os chicotes, as... outras coisas.
Quando anteriormente ali tinha ido com Vishous, aqueles adereços das suas preferências extremas tinham parecido apenas um cenário provocador e ligeiramente assustador
para o incrível sexo que eles tinham. Mas a versão dela de «brincadeira sexual» era um caniche, quando comparada com os gostos de lobisomem dele.
E agora ela tinha perfeita noção.
O que é que Butch tinha usado? Em que estado estaria o seu companheiro? Haveria muito sangue ou...
Espera. Onde estava V?
Atravessando a porta envidraçada, ela...
Não havia sangue no chão. Nem a escorrer dos utensílios. Não havia correntes suspensas do teto. Tudo estava exatamente como da primeira vez que ali tinha estado,
como se nada tivesse acontecido...
De fora do círculo de velas ouviu-se um gemido e o som rasgou-lhe o pensamento. Claro. A cama.
Enquanto penetrava no véu de escuridão, os olhos ajustaram-se e ali estava ele. Debaixo de lençóis de seda, estendido de costas, a contorcer-se de dor... ou estaria
a dormir?
- Vishous? - chamou ela suavemente.
Com um grito, ele acordou instantaneamente, com o tronco a levantar-se como uma flecha, as pálpebras a abrirem-se muito. De imediato, ela verificou que o rosto tinha
cicatrizes já a desaparecerem... e havia mais à volta dos peitorais e também no abdómen. Mas a expressão dele foi o que a impressionou mais. Ele estava aterrorizado.
Abruptamente ouviu-se um resfolegar furioso, quando ele tirou os lençóis de cima do corpo. Ao olhar para si próprio, no peito e nos ombros começou a aparecer suor,
na sua pele instalou-se um brilho súbito, mesmo na escuridão, enquanto ele tapava o sexo com as mãos... como se estivesse a proteger o que restava.
Com a cabeça baixa, respirou profundamente. Inspirar. Expirar. Inspirar. Expirar...
O padrão transformou-se em soluços.
Enrolando-se, com as mãos a esconder o trabalho de carniceiro feito há muito, muito tempo, chorou com grandes soluços de emoção, sem reservas, sem controlo. A inteligência
já não dominava o seu reino, era súbdita deste.
Nem se apercebeu de que ela estava junto a ele.
Devia ir-se embora, pensou Jane. Ele não deveria querer que ela o visse naquele estado, nem mesmo antes de tudo se desmoronar entre eles. O macho que ela conhecia
e com quem tinha acasalado não deveria querer...
É difícil dizer o que é que chamou a atenção... e, mais tarde, ela tinha matutado na razão que o levara a escolher aquele momento exato em que ela se ia desmaterializar
para olhar para ela.
Ela ficou imediatamente incapacitada. Se ele tinha ficado irritado com o que acontecera com Payne, agora iria odiá-la. Não havia maneira de voltar atrás naquela
invasão de privacidade.
- O Butch telefonou-me - balbuciou ela. - Ele achou que tu...
- Ele magoou-me... O meu pai magoou-me.
As palavras eram tão fracas e gentis que quase não se ouviam. Mas quando conseguiu ouvir, o coração dela parou.
- Porquê? - perguntou Vishous. - Porque é que ele me fez isto? Porque é que a minha mãe me fez isto? Eu nunca pedi para nascer... e não os teria escolhido se qualquer
um deles me tivesse pedido a opinião... Porquê?
As suas faces estavam molhadas de lágrimas que lhe saltavam dos olhos de diamante, uma corrente interminável de que ele não tinha consciência, ou de que não queria
saber. E ela tinha a sensação de que a corrente demoraria a parar. Uma artéria interna tinha sido perfurada e este era o sangue do seu coração, correndo para fora
dele, cobrindo-o.
- Lamento muito - gorgolejou ela. - Não sei nenhum dos porquês... mas sei que não o merecias. E... que não tens culpa.
As mãos descobriram o sexo e ele fitou-o.
Passou muito tempo até ele falar outra vez e, quando o fez, as palavras eram lentas e ponderadas... e imparáveis, como as lágrimas silenciosas.
- Quem me dera estar completo. Quem me dera ter podido dar-te crianças se as quisesses e as pudesses gerar. Quem me dera ter-te dito que me matava pensares que eu
tinha estado com mais alguém. Quem me dera ter passado o ano anterior a acordar todas as noites e dizer-te que te amo. Quem me dera ter acasalado contigo como deve
ser na noite em que voltaste para mim vinda dos mortos. Quem me dera... - O olhar cintilante dele procurou o dela. - Quem me dera ter metade da força que tu tens
e quem me dera merecer-te. E... acho que é isto.
Pois. Certo. Agora estavam os dois desfeitos.
- Lamento o que aconteceu com Payne - disse ela, num tom rouco. - Eu queria falar contigo, mas ela estava decidida. Tentei argumentar, tentei mesmo, mas, no fim,
simplesmente... não queria... não queria que fosses tu a fazê-lo. Preferia ter vivido com a terrível verdade na consciência durante uma eternidade, a fazer com que
tivesses de matar a tua irmã. Ou levá-la a magoar-se ainda mais do que já estava.
- Eu sei... agora sei.
- E, honestamente, o facto de ela se ter curado? Dá-me arrepios só de pensar que quase falhámos.
- Está tudo bem, agora. Ela está bem.
Jane limpou os olhos.
- E acho que no que toca a... - Lançou uma olhadela para a parede, decorada com uma luz amarelada que não suavizava de maneira nenhuma os bicos afiados e as implicações
ainda mais cortantes do que poderia lá estar pendurado. - No que toca a... estas coisas... sobre os teus hábitos sexuais, eu sempre me preocupei com o facto de não
ser suficiente para ti.
- Porra... não... tu és tudo para mim.
Jane colocou a mão sobre a boca para não perder completamente o controlo. Porque era precisamente o que ela precisava de ouvir.
- Nem sequer tatuei o teu nome nas minhas costas - disse V. - Achei que era uma estupidez e uma perda de tempo... mas como é que podes sentir que somos companheiros
sem isso... especialmente quando todos os machos do complexo foram marcados para a sua shellan?
Meu deus, ela nunca tinha pensado nisso.
V abanou a cabeça.
- Deste-me espaço... para poder estar com o Butch e lutar com os meus irmãos e fazer as minhas cenas na Internet. O que é que eu te dei?
- Para começar, a minha clínica. Não a poderia ter construído sem ti.
- Não é exatamente um ramo de rosas.
- Não subestimes as tuas capacidades de carpinteiro.
Ele esboçou um sorriso ao ouvir isto. E depois ficou outra vez sério.
- Posso dizer-te uma coisa que pensei todas as vezes que acordei ao teu lado?
- Por favor, diz.
Vishous, aquele que tinha sempre uma resposta para tudo, parecia ter a língua presa. Mas finalmente disse:
- És a razão que me faz sair da cama todas as noites. E és a razão que me faz querer voltar para casa todas as madrugadas. Não é a guerra. Não são os Irmãos. Nem
sequer é o Butch. És... tu.
Oh, palavras tão simples... mas o seu significado. Deus do céu, o significado.
- Deixas que eu te abrace agora? - pediu ela curtamente.
O companheiro estendeu os braços enormes.
- E se for eu a abraçar-te?
Enquanto saltava para a frente e mergulhava nele, contrapôs:
- Não tens de ser tu ou eu.
Ficou completamente sólida sem qualquer esforço, a química interna mágica entre eles a materializá-la e mantê-la ali. E quando Vishous enterrou a cabeça nos seus
cabelos e estremeceu como se tivesse corrido uma grande distância e finalmente tivesse chegado a casa... ela soube exatamente como ele se sentia.
Com a shellan a arder contra ele, V sentia-se como se tivesse sido completamente desfeito... e depois remontado.
Cristo, o que Butch tinha feito por ele. Por todos eles.
O caminho que o chui escolhera tinha sido o correto. Horrífico e terrível... mas absolutamente certo. E agora, enquanto abraçava a sua fêmea, os olhos percorriam
o espaço onde tudo acontecera. Tinha sido tudo limpo... exceto uma ou outra coisa que estava fora do sítio no chão. Uma colher e um copo praticamente vazio de um
líquido que só podia ser água.
Tinha sido tudo uma ilusão. Nada o tinha de facto rasgado. E ele era capaz de apostar que Butch tinha deixado aquelas duas coisas centradas e à vista para quando
V acordasse e olhasse em volta perceber quais tinham sido os meios que tinham conduzido àquele fim.
Em retrospetiva, parecia tudo tão estúpido... não a sessão com o chui, mas o facto de V nunca ter realmente pensado no Derramador de Sangue todos esses anos no campo
de guerra. A última vez que essa memória do passado tinha surgido, fora quando Jane estivera com ele a primeira vez, e nessa altura só tinha acontecido porque ela
o tinha visto nu e ele tinha sentido necessidade de explicar.
O meu pai não queria que eu reproduzisse.
Era basicamente tudo o que ele tinha para dizer sobre o assunto. E depois, como um corpo morto que tivesse ficado com a cara para cima em águas paradas, essa merda
tinha-se afundado outra vez, instalando-se novamente na margem arenosa do rio no mais profundo do seu ser.
AJ, ou Antes de Jane, ele só tinha tido sexo com as calças vestidas. Não por vergonha - ou pelo menos isso era o que ele dizia a ele próprio - mas simplesmente porque
não estivera interessado em entrar nesses pormenores com os machos e fêmeas anónimos que tinha fodido.
DJ? Tinha sido diferente. A nudez era mais do que normal, provavelmente porque Jane tinha mantido a cabeça fria com a revelação. E contudo, quando pensava nisso
agora, tinha-a sempre abraçado a uma certa distância, mesmo que ela estivesse aninhada nos seus braços. Quanto muito, tinha estado mais próximo de Butch - mas isso
era macho-com-macho, o que era, de algum modo, menos ameaçador do que macho-com-fêmea.
A questão relacionava-se com as Sombras da Mamã, sem dúvida. Depois de tudo o que a mahmen tinha feito, ele simplesmente não conseguia confiar nas fêmeas como confiava
nos irmãos ou no melhor amigo.
Mas Jane nunca o tinha traído. Na verdade, ela estava disposta a lutar com a sua própria consciência para o salvar do ato indescritível que a irmã lhe exigia.
- Não és a minha mãe - disse para o cabelo da shellan.
- Podes ter a certeza que não. - Jane afastou-se e fitou-o como costumava fazer. - Eu nunca teria abandonado o meu filho. Ou tratado a minha filha daquela maneira.
V inspirou profundamente e, quando soltou o oxigénio para fora dos pulmões, sentiu-se como se estivesse a expelir os mitos pelos quais se autodefinira... e a Jane...
e ao relacionamento entre ambos.
Tinha de mudar de paradigma.
Por eles. Por si próprio. Por Butch.
Cristo, a expressão no rosto do chui quando as coisas tinham acontecido tinha sido para lá de trágica.
Por isso, sim, era altura de parar de utilizar merdas exteriores para automedicar as emoções. O sexo extremo e a dor tinham parecido soluções excelentes durante
muito tempo, mas, na verdade, não passavam de uma forma de cobrir as borbulhas. A fealdade tinha continuado dentro de si.
O que ele tinha de fazer era lidar com a merda interior, para não precisar que Butch ou qualquer outra pessoa o subjugasse só para ele poder libertar-se. Assim,
estas perversões poderiam ser mesmo só para ter prazer com Jane.
Controlar as suas merdas - parecia que ele estava finalmente preparado para tentar a versão psiquiátrica do Proactiv.
Se não tivesse cuidado, ainda acabava na televisão, fitando uma câmara e dizendo: «Tudo o que é preciso é um pouco de Autoconsciência... e depois purifico-me com
a Lavagem de Autodefinição patenteada e a minha mente e as minhas emoções ficam limpinhas e a brilhar...»
Ok, agora estava a ficar com parafusos a menos, a sério.
Acariciando o cabelo macio de Jane, murmurou:
- Sobre... as coisas que tenho aqui. Se quiseres brincar, eu também vou querer... se percebes o que quero dizer. Mas, a partir de agora, é só para nos divertirmos
e só para nós os dois.
Diabos, eles tinham tido uma grande quantidade de sexo bizarro e muito bom naquele sítio, cheio de cabedal, e ele continuava a querer ter isso com ela. Tinha esperança
que ela sentisse o mesmo...
- Eu gosto do que fazemos aqui. - Ela sorriu. - Excita-me.
Bem... e não é que isto fez o membro dele pulsar?
- Eu também.
Quando lhe sorriu de volta, reconheceu o único senão da ideia. Todo este virar-uma-nova-página estava muito bem, mas como é que ele ia fazer isso? Amanhã à noite
já não se podia dar ao luxo de acordar e ser aquele que passou das marcas.
Merda, ele achava que ia descobrir uma maneira. Não ia?
Com um toque gentil, acariciou a face da shellan.
- Nunca tive uma relação antes de estar contigo. Já devia imaginar que havíamos de bater contra uma parede em alguma altura.
- Faz parte da coisa.
Pensou nos irmãos e na quantidade de vezes em que tinha havido contratempos, lutas e discussões entre esse grupo de lutadores machões. De alguma forma, tinham sempre
dado a volta ao assunto, regra geral andando à pancada uns com os outros de vez em quando. O que era uma coisa de macho.
Claramente, ele e Jane seriam iguais. Não à pancada, claro, mas em relação aos obstáculos do caminho e à sua eventual resolução. Afinal de contas, a vida era aquilo...
não um conto de fadas.
- Mas sabes o que é melhor nisto tudo? - indagou Jane, enquanto lançava os braços à volta do seu pescoço.
- Já não sinto que morri por não estares na minha vida?
- Bem, isso também. - Esticou o pescoço e beijou-o. - Duas palavras: sexo de fazer as pazes.
Ohhhhhh, siiiiiiiim. Mas...
- Espera, isso são duas palavras? Alargaste a expressão?
- Alarguei na minha cabeça. Mas acho que tanto faz.
- Não será antes apenas «fazer as pazes»?
- Também é uma possibilidade. - Pausa. - Alguma vez te disse que és o geek mais sensual que já conheci?
- Revejo-me nesse comentário. - Mergulhou a cabeça e roçou a boca contra a dela. - Mas não digas a ninguém. Tenho uma reputação de durão para manter.
- O teu segredo está seguro comigo.
V ficou sério.
- Eu estou seguro contigo.
Jane afagou-lhe o rosto.
- Não posso prometer que não vás encontrar mais obstáculos no caminho, nem que vamos estar sempre de acordo. Mas tenho uma certeza... estarás sempre seguro comigo.
Sempre.
Vishous aproximou-a e encostou a cabeça no seu pescoço. Ele assumira que não havia mais nada para explorar depois de ela ter morrido e ter voltado para ele na sua
adorável forma fantasmagórica. Mas estava enganado. O amor, apercebeu-se, era como os punhais que criava na forja. Quando surgia um novo, era lustroso e a lâmina
cintilava à luz. Segurando-o na palma da mão, dava otimismo quanto ao desempenho em ação e mal podia esperar para o experimentar. Mas as primeiras duas noites eram
geralmente estranhas, enquanto se habituava a ele e ele a si.
Com o tempo, o aço perdia o brilho da novidade e o punho ficava manchado e às vezes talvez fosse necessário tirar-lhe merda de cima. Contudo, em troca, salva-te
a vida. Uma vez habituados um ao outro, torna-se parte de ti, como uma extensão do teu próprio braço. Protege-te e dá-te uma maneira de protegeres os irmãos. Dá-te
confiança e poder para enfrentares o que quer que surja na noite e, onde quer que vás, está contigo, junto ao teu coração, sempre ali quando precisas ele.
No entanto, tens de manter a lâmina afiada. E remendar o punho de vez em quando. E verificar o peso.
Engraçado... tudo isso era evidente quanto se tratava de armas. Porque é que não se tinha apercebido que era a mesma coisa com o acasalamento?
Revirando os olhos, pensou que talvez a Hallmark estivesse disposta a estabelecer uma linha de postais do Dia dos Namorados inspirada na medievalidade, uma coisa
do tipo Sacro-Gótico-Suave. Ele seria perfeitamente adequado para fornecer material.
Com os olhos fechados e abraçado a Jane, estava quase feliz por ter perdido a cabeça, só para poderem ter chegado àquele momento.
Bem, ele teria escolhido um caminho mais fácil, se houvesse. Mas não tinha a certeza de o resultado ter sido este. Era preciso merecer.
- Tenho uma pergunta para fazer - disse ele, gentilmente.
- O que quiseres.
Afastando-se um pouco, afagou-lhe o cabelo com a mão enluvada e passou algum tempo até se decidir a perguntar o que tinha na ponta da língua.
- Deixas-me... fazer amor contigo?
* * *
Enquanto Jane fitava Vishous e sentia o corpo dele contra o seu, soube que nunca o deixaria. Nunca. E também reconheceu que, se conseguiram sobreviver à última semana,
era porque era um bom casamento - acasalamento - e nada os poderia agora deter.
- Sim - respondeu ela. - Por favor...
O seu hellren tinha-a procurado tantas vezes desde que estavam juntos. De noite e de dia; no duche e na cama; vestidos, despidos, meio vestidos; depressa e com vigor...
Nele, a sensação de limite tinha sempre feito parte da excitação. Isso e a imprevisibilidade. Ela nunca sabia o que esperar. Se ele lhe ia exigir coisas ou controlar
o seu corpo ou controlar-se para ela poder fazer com ele o que quisesse.
Contudo, ele nunca ia devagar.
Agora, afagava-lhe o cabelo, percorrendo com os dedos os caracóis e prendendo-os atrás das orelhas. E, então, os olhares cruzaram-se e as bocas juntaram-se suavemente.
Afagando e acariciando, lambeu-lhe os lábios mas, quando ela os abriu, ele não mergulhou logo como era habitual. Continuou a beijar... até ela se sentir tonta com
o sugar e arrastar de carne contra carne.
O corpo dela costumava ansiar por isto. Agora, contudo, uma sensação deliciosa percorria-a, descontraindo-a e deixando-a à vontade, despertando uma excitação pacífica
que, de certa forma, era tão profunda e perturbadora como a paixão desesperada que habitualmente sentia.
Quando ele mudou de posição, ela acompanhou-o, deitando-se completamente de costas, enquanto ele se elevava e cobria o corpo dela com o dele. Continuaram a beijar-se
e ela estava tão compenetrada nesse beijo que nem se apercebeu quando ele deslizou a mão por baixo da camisa dela. A palma quente da sua mão foi subindo, parando-lhe
nos seios... explorando e acariciando. Sem provocar, sem beliscar, sem apertar. Só o polegar a passar para trás e para a frente pelo mamilo, até ela se arquear e
gemer.
As mãos dela exploraram-lhe as costas e - ó, meu Deus, lá estava o padrão de marcas que ela conhecia. E continuaram a explorar completamente o tronco dele...
Vishous segurou-lhe os pulsos e pressionou os braços dela contra a cama.
- Não penses nisso.
- O que é que ele...
- Shh.
Continuaram a beijar-se e ela tentou lutar contra ele, mas cada um dos impulsos para se soltar mergulharam suavemente o seu cérebro em sensações.
Não valia a pena pensar mais no assunto, disse a si própria. O que quer que tivesse acontecido tinha-os ajudado chegar ali.
Era tudo o que ela precisava de saber.
A voz de Vishous ecoou no seu ouvido, profunda, cava.
- Quero tirar-te a roupa. Posso?
- Por favor. Sim... ó meu Deus, sim.
Despi-la fazia parte do prazer, o meio tão glorioso como o fim, que os levaria a estar juntos pele-contra-pele. E, de alguma forma, a revelação gradual daquilo que
já vira tantas vezes fazia com que fosse novo e especial.
Os seus seios endureceram ainda mais quando o ar frio os envolveu e ela observou-o enquanto ele a fitava. Estava lá o desejo, mas também havia muito mais... reverência,
gratidão... uma vulnerabilidade que ela tinha pressentido, mas que nunca antes tinha visto claramente.
- És tudo aquilo de que preciso - afirmou ele enquanto mergulhava nela.
As suas mãos estavam em todo o lado, na barriga, nas ancas, entre as pernas.
No seu sexo molhado.
O orgasmo que ele lhe deu foi uma onda quente que trespassou todo o seu corpo, irradiando para fora, assumindo o controlo numa nuvem divina de prazer. E, entretanto,
ele montou-a e deslizou para dentro dela. Sem repelões, apenas a continuação da onda, dentro e fora dela, enquanto o seu corpo ondulava e a ereção dele entrava e
saía.
Sem pressas, apenas um amor tranquilo.
Sem urgência, apenas todo o tempo do mundo.
Quando ele finalmente se veio, com uma última ondulação da espinha e a pulsar no interior dela, ela acompanhou-o, os dois enrolados juntos um ao outro, fundidos,
corpo... e alma.
Fazendo-a girar, trouxe-a para cima dele e ela ali ficou, cravada no peito duro e musculado, lânguida como uma brisa de verão e igualmente leve. Ela estava a flutuar
e quente e...
- Estás bem? - perguntou Vishous ao olhar para ela.
- Mais do que bem. - Procurou o rosto dele. - Sinto-me como se tivesse feito amor contigo pela primeira vez.
- Ótimo - respondeu ele. - Era essa a ideia.
Deitando a cabeça junto ao coração pulsante dele, olhou para a parede por trás da mesa. Nunca pensou vir a ficar agradecida àquele monte de «brinquedos» aterradores,
mas estava. No meio da tempestade... tinham encontrado a tranquilidade.
Antes separados... eram agora outra vez um só.
Capítulo 41
Na mansão, Qhuinn andava às voltas no seu quarto como um rato à procura de uma saída da gaiola. Com tanta merda a acontecer e Wrath obrigava-o a ficar ali.
Mas que maravilha.
Ao passar mais uma vez pela porta aberta da casa de banho, pensou que o facto de a quarentena fazer todo o sentido ainda o chateava mais. Só ele, John e Xhex é que
não tinham sofrido ferimentos até agora. Todos os outros estavam naquela multidão e já tinham sido escortanhados de uma maneira ou de outra.
Por ali era a Casa del Toca-a-Curar.
Mas porra, eles os três podiam ter saído para se vingarem.
Parando em frente às portas da varanda, olhou para o jardim bem tratado que estava à beira de começar a florir. Com as luzes apagadas no quarto, conseguia ver claramente
a piscina com a cobertura de inverno esticada por cima assemelhando-se à cinta adelgaçante maior que o mundo alguma vez vira. E as árvores ainda estavam, na sua
grande maioria, nuas. E os canteiros não eram ainda...
Blay tinha sido ferido.
... mais do que retângulos ordenados de terra castanha-escura.
- Merda.
Esfregando o cabelo agora curto, tentou lidar com a pressão que sentia no centro do peito. Segundo John, Blay tinha sido atingido na cabeça e esfaqueado na barriga.
A pancada na cabeça estava a ser monitorizada e o corte tinha sido suturado pela Doc Jane. Nenhum dos ferimentos lhe punha em risco a vida.
Estava tudo bem.
O pior é que o seu esterno não estava a aceitar essa conversa fiada. Desde que John Matthew lhe contara as novidades, aquela maldita dor tinha-se instalado, moendo-o,
confortavelmente aninhada nas suas vias respiratórias.
Não conseguia, literalmente, respirar fundo.
Que merda, se ao menos fosse um macho maduro - e, tendo em conta a forma como às vezes resolvia as coisas, era contestável, se não mesmo incorreto, considerá-lo
como tal - iria para o corredor, marchava até ao quarto de Blay e batia-lhe à porta. Espreitava para se certificar de que o ruivo ainda tinha o coração a bater e
que estava bom da cabeça... e depois ia à sua vida.
Em vez disso, tentava fingir que não estava a pensar nele, enquanto fazia um buraco na carpete.
Enquanto pensava tudo isto, continuava a andar de um lado para o outro. Ele preferia estar na sala de musculação, mas o facto de Blaylock estar aqui nesta ala era
uma amarra que o mantinha preso nas redondezas. Sem uma razão suficientemente forte para se afastar, como sair para lutar ou... digamos... a casa estar a arder,
ele era evidentemente incapaz de se libertar.
E, quando estava outra vez à frente das portas de vidro, teve um indício do porquê.
Tentou convencer a palma da sua mão a não tocar no puxador.
Não foi bem-sucedido.
A fechadura abriu-se e o ar frio embateu-lhe violentamente no rosto. Saindo para a varanda descalço e de roupão, mal se apercebeu de que o chão estava absolutamente
gelado ou que uma brisa fria lhe subia pelas pernas e lhe atingia diretamente os testículos.
Lá em cima, saía luz das portas duplas do quarto de Blay. O que era uma boa notícia pois de certeza que correriam os cortinados antes de fazerem sexo.
Por isso, provavelmente era seguro espreitar. Certo...?
Além disso, Blay estava a recuperar de um ferimento, logo não podia andar às cambalhotas ali dentro.
Decidindo-se a assumir o papel de Qhuinn Espião, manteve-se nas sombras e tentou não se sentir como um mirone enquanto caminhava em bicos de pés. Quando se aproximou
da porta, preparou-se mentalmente, espreitou e...
Respirou fundo, aliviado.
Blay estava sozinho na cama, escarranchado contra a cabeceira, com o roupão preto atado na cintura, os tornozelos cruzados, os pés com meias pretas. Tinha os olhos
fechados e as mãos repousavam sobre a barriga, como se estivesse a ser cuidadoso com as partes ainda enroladas em ligadura.
Um movimento fez com que Blay abrisse as pálpebras e olhasse na direção oposta à janela. Era Layla a sair da casa de banho e estava a andar muito lentamente. Trocaram
algumas palavras. Estava a agradecer-lhe, sem dúvida, pela alimentação que acabara de receber e ela estava a dizer-lhe que o prazer era todo dela. Não era uma surpresa
que ela aqui estivesse. Já tinha feito a ronda da casa anteriormente e Qhuinn já se tinha cruzado com ela antes da primeira refeição... ou daquilo que teria sido
a primeira refeição se alguém tivesse aparecido.
E quando ela saiu do quarto de Blay, Qhuinn esperou que Saxton entrasse. Nu. Com uma rosa vermelha nos dentes. E uma maldita caixa de chocolates.
E uma ereção que fazia com que o Monumento a Washington parecesse atarracado.
Nada.
Apenas Blay deixando cair a cabeça para trás e as suas pálpebras a fecharem-se. Parecia completamente exausto e, pela primeira vez, velho. Aquele não era um rapaz
que acabara de fazer a transição. Aquele era um macho de raça pura.
Um incrivelmente belo... macho... de raça pura.
Na sua mente, Qhuinn viu-se a si próprio a abrir a porta e entrar. Blay olharia e sentar-se-ia na cama... mas Qhuinn faria um gesto para ele se voltar a deitar enquanto
entrava.
Perguntaria pelo ferimento. E Blay abria o roupão para lhe mostrar.
Qhuinn esticaria o braço e tocaria na ligadura... e depois deixaria os dedos saírem da gaze e do adesivo para a pele quente e suave da barriga de Blay. Este ficaria
chocado, mas nesta fantasia ele não afastaria a mão... Levá-la-ia mais abaixo, para lá do ferimento, em direção às ancas e...
- Foda-se!
Qhuinn deu um salto para trás, mas era tarde de mais. Saxton tinha entrado no quarto, ido até à janela e começado a fechar as cortinas. E enquanto o fazia, tinha
visto o idiota do lado de fora na varanda armado em câmara de segurança.
Enquanto Qhuinn dava meia volta para regressar rapidamente ao seu quarto, pensava Não abras a porta... não abras a porta...
- Qhuinn?
Caçado.
Imóvel como um ladrão apanhado com um ecrã de plasma debaixo do braço, certificou-se de que o roupão estava fechado antes de se virar. Merda. Saxton estava a entrar
na varanda e o sacana também estava de roupão.
Bem, aparentemente andavam todos de roupão. Até Layla estava de robe.
Quando Qhuinn encarou o primo, apercebeu-se de que não tinha trocado com ele mais de duas palavras desde que ele se mudara para cá.
- Só queria saber como ele estava. - Não valia a pena dizer o nome - era absolutamente óbvio quem é que ele estava a espiar.
- O Blaylock agora está a dormir.
- Alimentou-se? - perguntou, mesmo sabendo a resposta.
- Sim.
Saxton fechou a porta atrás de si, sem dúvida para o frio não entrar, e Qhuinn tentou ignorar o facto de ele ter os pés e os tornozelos nus à vista. Porque a probabilidade
era que o resto também estivesse.
- Ah, desculpa incomodar-te - balbuciou Qhuinn. - Tem uma boa n...
- Podias ter batido à porta. Do lado do corredor.
Disse as palavras com um tom aristocrático que fazia Qhuinn ficar completamente tenso. Não por odiar Saxton. Simplesmente fazia-o demasiado lembrar-se da família
que tinha perdido.
- Não queria incomodar-te. Incomodá-lo. Incomodar nenhum dos dois.
Quando uma rajada de vento atingiu a varanda, o cabelo louro inacreditavelmente firme e ondulado de Saxton nem sequer ficou um bocadinho desalinhado, como se cada
cabelo, até ao folículo, estivesse tão bem composto e cuidado que não era afetado por... nada.
- Qhuinn, não interrompias nada.
Mentiroso, pensou Qhuinn.
- Chegaste primeiro, primo - murmurou Saxton. - Se querias vê-lo, ou estar com ele, deixá-los-ia a sós.
Qhuinn pestanejou. Então... tinham uma relação aberta? Mas que raio?
Ou espera... talvez ele tivesse feito um bom trabalho a convencer não só Blay, mas também Saxton, de que não estava interessado em nada de sexual com o seu melhor
amigo.
- Primo, posso falar honestamente?
Qhuinn aclarou a garganta.
- Depende do que tenhas para dizer.
- Sou amante dele e...
- Epá... - Levantou a mão para o interromper. - Isso não é da minha conta.
- ... não sou o amor da vida dele.
Qhuinn pestanejou outra vez. E então, por um segundo, foi projetado para um local onde o primo lhe fazia graciosamente uma vénia e ele era tão bom como o filho da
puta. Só que havia uma falha enorme nesta fantasia. Blay já não queria nada com ele.
Ele próprio levara a esse resultado ao longo de muitos anos.
- Entendes o que te estou a dizer, primo? - Saxton manteve um tom de voz baixo, apesar de o vento estar a uivar e a porta estar fechada. - Estás a ouvir-me?
Ok, Qhuinn não tinha antecipado ser encostado contra essa parede naquela noite... ou em qualquer outra noite. Que merda, o seu corpo estava subitamente todo a pulsar
e ele quase tinha vontade de dizer ao primo para dar de frosques e ir dar banho ao cão ou qualquer coisa do género, ou melhor ainda, para desaparecer de vez.
Só que então pensou na aparência envelhecida de Blay. Ele tinha finalmente encontrado um caminho na vida e seria um crime injusto deitar tudo isso a perder ali no
escuro.
Qhuinn abanou a cabeça.
- Não está certo.
Não para Blay.
- És um palerma.
- Não. Mas costumava ser.
- Permite-me discordar. - A mão elegante de Saxton juntou mais as lapelas do roupão. - Se me dás licença, é melhor voltar para dentro. Está muito frio aqui fora.
Bem, era mesmo uma metáfora do caraças.
- Não lhe digas nada - pediu Qhuinn secamente. - Por favor.
Saxton semicerrou os olhos.
- O teu segredo está mais do que seguro comigo. Confia em mim.
E, dizendo isto, virou-se e voltou para o quarto de Blaylock, fechando a porta no trinco e tapando a luz ao fechar os pesados cortinados.
Qhuinn coçou a cabeça outra vez.
Parte dele queria entrar por ali dentro e dizer, Mudei de ideias, primo: agora põe-te a andar daqui para fora para eu poder...
Dizer a Blay o que tinha dito a Layla.
Mas era bem possível que Blay estivesse apaixonado por Saxton, e Deus sabia que Qhuinn já tinha fodido o seu melhor amigo demasiadas vezes.
Ou não, como era o caso.
Quando eventualmente regressou ao quarto, só porque era demasiado patético estar ali fora a fitar a porcaria das cortinas, apercebeu-se de que a sua vida girava
sempre em torno de si próprio. Do que ele queria. Precisava. Tinha de ter.
O antigo Qhuinn teria entrado por aquele buraco...
Detendo-se, tentou não terminar aquela frase demasiado literalmente.
A verdade era que o ditado ridículo e lamechas estava certo: quando se ama alguém, libertamo-lo.
Já no quarto, sentou-se na cama. Olhando em volta, viu a mobília que não tinha comprado... e decorações fabulosas, mas anónimas e nada ao seu estilo. A única coisa
que lhe pertencia eram as roupas no armário, a lâmina na casa de banho e os ténis de corrida que atirara para o chão quando chegara.
Era tal e qual como em casa dos pais.
Bem, ali, verdade fosse dita, as pessoas valorizavam-no. Mas no que tocava a ter uma vida, não tinha uma realmente sua. Era o protetor de John. O soldado da Irmandade.
E...
Merda, agora que já não se abandonava ao seu vício de sexo, a lista acabava aí.
Encostando-se à cabeceira, cruzou os pés e ajeitou o roupão. A noite estendia-se com um tédio horrível onde nada acontecia, como se ele estivesse a conduzir e conduzir
e conduzir ao longo do deserto... e pela frente esperavam-no mais noites como aquela.
Meses todos iguais.
Anos.
Pensou em Layla e no conselho que lhe tinha dado. Porra, estavam os dois exatamente na mesma posição, não estavam?
Fechando os olhos, ficou aliviado quando a sua mente começou a vaguear. Mas teve a sensação de que a paz encontrada não duraria muito.
E estava certo.
Capítulo 42
No Hospital Equino de Tricounty, Manny ficou parado enquanto Glory lhe cabeceava a roupa, e ele sabia que talvez a devesse deixar. Descobriu, contudo, que era incapaz
de se separar, e a Payne também, do cavalo.
O tempo esgotava-se para a sua Glory e isso era como se o matassem. Mas não a podia deixar a definhar, mais magra e aleijada a cada dia que passava. Merecia muito
mais do que isso.
- Ama-la - comentou Payne, em voz baixa, com a mão pálida a percorrer as costas da puro-sangue e a descer-lhe até à anca.
- Pois. É verdade.
- Ela tem muita sorte.
Não. Estava a morrer e isso era uma maldição.
Pigarreou.
- Acho que temos de...
- Doutor Manello?
Manny chegou-se atrás e olhou sobre a porta da baia.
- Olá, doutor. Como está?
O veterinário se aproximou e o smoking que usava parecia tão deslocado como uma forquilha num camarote da ópera.
- Estou bem... e você parece muito bem. - O homem endireitou o laço. - Estou com este fatinho porque venho do Met. Mas tinha de aqui passar para ver como estava
a sua menina.
Manny saiu e ofereceu-lhe a mão.
- Eu também.
Ao apertarem as mãos, o veterinário olhou para o interior da baia - e ficou de olhos arregalados quando viu Payne.
- Ah... olá.
Quando Payne ofereceu ao homem o esboço de um sorriso, o bom doutor pestanejou como se o sol tivesse rasgado as nuvens, brindando-o com o seu brilho.
Ceeeeeerto, Manny estava mais do que farto de ter sacanas a mirarem-na assim.
Interpondo-se, perguntou:
- Será que a podemos pôr em alguma suspensão? Para lhe aliviar a pressão?
- Prendemo-la umas horas por dia. - Enquanto respondia, o veterinário chegou-se para o lado até que Manny se viu obrigado a segui-lo com o tronco para lhe bloquear
a visão. - Não quero correr o risco de termos problemas gastrointestinais ou respiratórios.
Farto da inclinação e querendo poupar Payne ao rumo da conversa, Manny segurou o braço do homem e chegou-o para o lado.
- Qual o próximo passo?
O veterinário esfregou os olhos, como se desse à mente um instante para se ordenar.
- Sinceramente, doutor Manello, não tenho um bom pressentimento quanto ao ponto em que nos encontramos. Aquele outro casco está a ceder, e mesmo tendo feito todos
os possíveis para o tratar, ele não está a reagir.
- Tem de haver mais qualquer coisa.
- Sinto muito, a sério.
- Quanto tempo até termos a certeza...
- Já a tenho. - O olhar do homem estava absolutamente carregado. - Foi por isso que cá vim esta noite... estava à espera de um milagre.
Pois, já eram dois.
- E se ficasse um bocado com ela - aventou o veterinário. - Demore o tempo que quiser.
Que era jargão clínico para Despeça-se.
O veterinário levou brevemente a mão ao ombro de Manny, depois virou-se e afastou-se. De saída olhou para cada baia, confirmando os pacientes e afagando um focinho
ocasional.
Um bom homem. Um indivíduo meticuloso.
Do tipo que faria tudo o que pudesse antes de apresentar o cenário com a pior das hipóteses.
Manny respirou fundo e tentou convencer-se de que Glory não era um animal de estimação. As pessoas não tinham cavalos de corrida como animais de estimação. E ela
merecia mais do que sofrer numa baia acanhada até que ele reunisse coragem suficiente para fazer o que tinha de ser feito.
Levando a mão ao peito, esfregou a cruz que tinha por baixo da roupa e sentiu um impulso súbito de ir à igreja...
Começou apenas por reparar que as sombras estavam a ficar mais escuras na parede do outro lado do corredor. E depois pensou que talvez alguém tivesse acendido as
luzes do teto.
Acabou por notar que a iluminação vinha da baia de Glory.
Mas... o que...
Deu meia volta e estacou... e depois teve de recuperar o equilíbrio.
Payne estava de joelhos na serradura macia, as mãos nas patas anteriores do cavalo, os olhos fechados, as sobrancelhas franzidas.
E o corpo brilhava-lhe com uma luz forte e bela.
Acima dela, Glory estava imóvel, mas a pelagem estremecia e os olhos reviravam-se-lhe na cabeça. Breves resfôlegos subiam-lhe pelo pescoço comprido e saíam-lhe pelas
narinas dilatadas... como se dominada por uma sensação de alívio, de dor a amainar.
As patas anteriores feridas brilhavam ao de leve.
Manny não se mexeu, não respirou, nem sequer pestanejou. Limitou-se a agarrar a cruz ainda com mais força... e a rezar para que ninguém viesse interromper aquilo.
Não teve noção de quanto tempo ali ficaram os três, mas acabou por se tornar óbvio que Payne estava a ressentir-se do esforço. O corpo começou a vibrar e a respiração
dela tornou-se irregular.
Manny entrou na baia e libertou-a de Glory, segurando-lhe o corpo frouxo contra o seu e afastando-se, para o caso de a égua se assustar ou fazer algo imprevisível.
- Payne? - Cristo...
As pálpebras dela estremeceram e abriram-se.
- Consegui... ajudá-la?
Manny afagou-lhe o cabelo enquanto olhava a poldra. Glory estava de pé, a erguer um casco e depois o outro, regressando depois ao primeiro, como se tentasse perceber
o que provocara o conforto abrupto. Depois abanou-se... e foi mordiscar o feno onde ainda não tocara.
Quando o maravilhoso som de erva seca a ser roída preencheu o silêncio, Manny olhou para Payne.
- Conseguiste - disse-lhe, num tom rouco. - Acho que conseguiste.
Os olhos dela pareceram esforçar-se por se focar.
- Não queria que a perdesses.
Assoberbado por uma gratidão para a qual não tinha palavras, Manny abraçou-a mais junto ao peito e aí a manteve durante alguns instantes. Queria continuar assim
muito mais tempo, mas ela não estava com bom aspeto e só Deus sabia quem mais se teria apercebido do espetáculo de luzes. Tinha de os tirar dali.
- Vamos até minha casa - sugeriu. - Para te poderes deitar.
Quando ela assentiu, Manny içou-a nos braços e raios o partissem se não era uma sensação perfeita. Ao fechar a baia atrás deles, olhou para Glory. O cavalo devorava
o feno como se fosse acabar o mundo.
Santa mãe... teria mesmo resultado?
- Volto amanhã - disse-lhe, antes de se afastar, animado por uma sensação incandescente de esperança.
Junto à casita do guarda, sorriu e encolheu os ombros ao segurança.
- Houve alguém a fazer turnos duplos no hospital. Está exausta.
O homem levantou-se da cadeira, como se a mera presença de Payne, mesmo inconsciente, chegasse para lhe prender a atenção.
- É melhor levá-la para casa. É preciso cuidar bem de uma mulher dessas.
Grande verdade.
- É para lá que eu vou.
Movendo-se rapidamente, chegou à receção e esperou pelo sinal do trinco para que pudesse abrir as derradeiras portas. Com um pouco de sorte, o veterinário não teria
visto nada...
- Obrigado, meu Deus - resmungou Manny ao ouvir o zumbido e aplicar a anca contra a porta.
Não demorou a chegar ao carro, embora tirar as chaves enquanto mantinha Payne ao colo tivesse sido complicado. O mesmo se passou ao abrir a porta. Mas depois lá
a sentou no banco do pendura, sempre a interrogar-se se ela estaria bem. Que raios, não tinha como entrar em contacto com ninguém do mundo dela.
Ao contornar o carro e sentar-se ao volante pensou, Que se dane, ia levá-la de volta aos vampiros...
- Posso pedir-te uma coisa? - disse ela, num tom arrastado.
- Tudo... o que...
- Posso beber-te um pouco da veia? Sinto-me... curiosamente esvaída.
Está bem, certo. Isso era uma necessidade imediata. Trancou o carro e praticamente arrancou o braço para lho dar.
Os lábios macios encontraram o interior do pulso, mas a mordida não foi rápida, quase como se ela tivesse dificuldade em reunir energias. Mesmo assim, ela lá o conseguiu
e ele saltou, com a dor aguda a trespassar-lhe o coração e a deixá-lo um pouco zonzo. Ou... talvez isso fosse o resultado de uma excitação súbita e avassaladora
que lhe percorreu não só desde os testículos ao membro, mas todo o corpo.
Com um gemido, as ancas reviraram-se-lhe no banco do Porsche e deixou a cabeça pender para trás. Cristo, era bom... o ritmo de sucção que ela iniciou era quase como
se estivesse na sua ereção, e mesmo que lhe tenha doído o início, apenas sentia o sugar como um prazer, um prazer doce pelo qual ele tinha a certeza não se importar
de morrer.
Mergulhou num estado de idílio. Pareceu-lhe estar séculos com as presas dela na sua carne. O tempo perdia o significado, tal como a realidade de se encontrarem num
parque de estacionamento, num carro com vidros transparentes.
Que se danasse o mundo.
Só eles os dois, juntos, importavam.
E isso foi antes de aqueles olhos de diamante se terem aberto e ficado nele, olhando-lhe não para o rosto, mas para o pescoço.
Vampira... pensou. Bela vampira.
Minha.
Enquanto essa ideia ganhava força na sua mente, Manny agia sem grande consciência, meneando a cabeça e oferecendo-lhe a jugular...
Não precisou de pedir duas vezes. Payne praticamente lançou-se a ele, com a mão a mergulhar-lhe no cabelo e a prender-lhe a nuca. Agarrando-o, Manny ficou imobilizado,
à mercê dela... a presa do predador que ela era. E agora que o tinha, moveu-se lentamente, com as presas a baixar-lhe até à pele e a percorrerem-lhe a altura do
pescoço, deixando-o hirto com a antecipação da perfuração e da sucção...
- Hummm! - bradou ele quando a vampira o mordeu. - Ah... sim...
As mãos dele agarraram-lhe os ombros, aproximando-a ainda mais.
- Leva tudo... leva... ai, meu Deus... ah, merda...
Algo afagou-lhe o membro. Como sabia exatamente onde tinha as mãos, só podia ser ela. Movendo-se num acesso de sofreguidão, deu-lhe tanto espaço quanto possível
para que ela se mexesse... e Payne assim fez, subindo e descendo contra a ereção tensa, com as ancas dele a ajudarem, indo no movimento contrário às carícias.
Manny arquejava e não conseguia parar de gemer. Não demorou muito para que os testículos ficassem dormentes e a ponta do membro se retesasse contra a pressão crescente.
- Estou quase a vir-me - sussurrou. - É melhor parares se não quiseres que eu...
Com essas palavras, Payne violou o cimo das calças e procurou no interior...
Manny viu a porra das estrelas. Assim que a pele dela tocou na sua, ele atingiu um orgasmo como nunca, a cabeça a saltar para trás com força, as mãos a cravarem-se
nos ombros dela, as ancas tresloucadas, aos saltos. E ela não parou de sugar, nem de bombear. Assim, tal como antes, ele acompanhou os movimentos com a libertação,
com o prazer mais intenso a cada espasmo da ereção.
Acabou demasiado depressa.
Claro que aquilo poderia ter continuado durante uma década e mesmo assim ficaria esfomeado por mais.
Quando Payne o libertou, ela recostou-se e lambeu as pontas aguçadas das presas, a língua rosada em contraste com o branco. Caramba... aquele brilho maravilhoso
voltara a surgir-lhe por baixo da pele, fazendo-a parecer um sonho.
Ah, espera, era isso que ela era, certo?
- O teu sangue é forte - comentou Payne num tom rouco, enquanto voltava a aproximar-se e lhe lambia o pescoço. - Tão forte.
- É? - resmungou ele. Mas nem tinha a certeza de ter falado. Talvez apenas o tivesse pensado.
- Sinto o poder a percorrer-me.
Nunca se interessara por SUV - essas tretas eram demasiado volumosas e conduzi-las era como pedregulhos a caírem montanha abaixo - mas o que não daria naquele momento
por um banco traseiro onde coubesse mais do que os tacos de golfe. Queria deitá-la e...
- Quero mais de ti - murmurou Payne enquanto o esfregava com o nariz.
Que raios, continuava duro como pedra, mesmo tendo acabado de...
- Quero-te na minha boca.
A cabeça de Manny atirou-se para trás e ele gemeu, com o membro a latejar como se aquilo lá em baixo estivesse a meio de uma corrida. Mas por mais que a quisesse,
não sabia se ela tinha noção daquilo em que se estaria a meter. O simples facto de pensar nos lábios dela no seu...
Antes de ter fôlego para falar já a cabeça de Payne se tinha baixado até ao colo dele, e não houve preâmbulo, sugou-o até ao fundo, mantendo-o no interior da sua
boca quente e húmida.
- Porra! Payne!
Levou-lhe as mãos aos ombros, decidido a puxá-la para trás... mas ela não estava disposta a isso. Sem quaisquer indicações sabia exatamente o que fazer, subindo
e sugando-o, antes de lhe lamber a parte debaixo da haste. E depois explorou-o com uma meticulosidade que lhe mostrou que ela estava a gostar tanto quanto ele, e
isso ainda o excitava mais.
Mas então sentiu-lhe a presas a brincarem-lhe com a cabeça.
Puxou-a para cima de imediato, prendendo-lhe a boca num beijo intenso enquanto lhe segurava o rosto e se libertava nas mãos dela. Mas isso não durou. Payne soltou-se
das mãos dele e regressou ao ponto de partida, apanhando-o a meio do orgasmo e absorvendo aquilo que o corpo dele parecia ter a rodos para ela.
Quando os espasmos terminaram, ela ergueu-se, olhou-o... e lambeu lentamente os lábios.
Manny teve então de fechar os olhos, com a ereção a latejar de tal maneira que lhe doía.
- Agora vais levar-me a tua casa - disse ela.
Não era um pedido. E o tom sugeria que ela estaria a pensar exatamente no mesmo que ele.
Portanto, isso levaria apenas a uma coisa.
Manny compôs-se interiormente e depois abriu os olhos. Ergueu a mão, tocando-lhe no rosto, e acariciou-lhe o lábio inferior com o polegar.
- Não sei se devemos, bambina - admitiu.
A mão dela apertou-lhe o membro e ele gemeu.
- Manuel... acho que é exatamente aí que temos de estar.
- Não é... uma boa ideia.
Payne recuou ainda mais e retirou a mão, com o brilho a desvanecer-se.
- Mas estás excitado. Neste momento.
A sério?
- É mesmo por isso. - Percorreu-lhe o rosto com os olhos e depois desceu-lhe até aos seios. Estava tão desesperado por ela que se sentia tentado a rasgar-lhe as
calças e a tomar-lhe a virgindade naquele carro. - Não vou conseguir conter-me, Payne. Mal o estou a fazer neste momento...
Payne ronronou de satisfação e voltou a humedecer os lábios vermelhos.
- Gosto quando te descontrolas.
Cristo, isso não ajudava nada.
- Eu... - Abanou a cabeça, pensando que era um inferno absoluto. Estar a negar isso a ambos causava-lhe uma dor profunda. - Acho que tens de fazer o que precisas
e ires-te embora. Enquanto ainda te consigo deixar ir...
O som de batidas no vidro começou por não fazer grande sentido. Estavam só os dois naquele parque de estacionamento vazio. Mas depois, o mistério solucionou-se:
- Sai do carro. E passa-me as tuas coisas.
A voz masculina fez Manny virar a cabeça para o vidro... onde encarou o cano de uma arma.
- Tu ouviste, meu. Para fora do carro ou dou-te um tiro.
Enquanto Manny devolvia Payne ao seu lugar, afastando-a de um disparo à queima-roupa, disse-lhe baixinho:
- Quando eu sair, tranca as portas. É aqui.
Levou a mão ao tabliê e indicou o botão.
- Deixa-me tratar disto. - Tinha cerca de quatrocentos dólares em dinheiro na carteira e bastantes cartões de crédito. - Fica aqui dentro.
- Manuel...
Não lhe deu hipótese de responder. Para ele, aquela arma era dona de todas as respostas e estabelecia as regras.
Pegando na carteira, demorou-se a abrir a porta, mas saiu rapidamente e ficou à espera de ouvir o fecho automático das portas.
E continuou à espera.
Desesperado por ouvir Payne a ficar tão segura quanto possível, mal se apercebeu do tipo da máscara de esqui a bradar:
- A tua carteira. E diz à gaja para sair do carro.
- Estão quatrocentos...
A carteira desapareceu.
- Diz-lhe para sair ou então vai comigo. E o relógio. Quero o relógio.
Manny olhou para o edifício. Havia janelas um pouco por todo o lado e, de certeza, que o guarda sairia ocasionalmente para verificar os arredores.
Talvez se atrasasse a entrega...
O cano da pistola foi-lhe encostado ao rosto.
- Relógio. Já.
Não era o relógio bom. Pelo amor de Deus, nunca operava com o Piaget posto. Mas fosse como fosse, o idiota podia ficar com ele. Além disso, enquanto fingia que lhe
tremiam as mãos, imaginou que isso lhe fosse dar mais...
Foi difícil perceber o que aconteceu e por que ordem.
Em retrospetiva, sabia que Payne teria de ter começado por abrir a porta dela. Mas pareceu-lhe que assim que ouviu o som terrível do lado do passageiro ela estava
já atrás do ladrão.
Outra coisa bizarra foi o facto de só depois de Manny ter praguejado é que o desgraçado pareceu aperceber-se de um terceiro elemento a entrar em campo. Mas não podia
ter sido assim, ele tê-la-ia visto a contornar o carro, certo?
Bem, fosse o que fosse que tivesse acontecido, o Máscara de Esqui acabou a saltar para a esquerda e a apontar a pistola alternadamente para Payne e para Manny.
O jogo de pingue-pongue não ia durar muito. Seguindo uma lógica terrível, Manny sabia que o tipo ia disparar contra Payne, pois ela era a mais fraca dos...
Quando o cano da arma voltou a apontar para ela, Payne... desapareceu. E não por se ter baixado, desviado, ou saído dali a correr. Ela estava ali, a ocupar espaço
num momento... e desaparecida no seguinte.
Voltou a aparecer uma fração de segundo depois e agarrou o punho do homem quando ele fazia menção de apontar a arma a Manny. Desarmá-lo foi igualmente rápido: um,
virou a arma; dois, arrancou-a da mão do filho da puta; três, atirou-a a Manny, que a apanhou.
E depois foi altura de porrada.
Payne girou o tipo, segurou-lhe a parte de trás da cabeça e bateu-lhe com o rosto no capô do Porsche. Depois de ter polido a pintura com a matraca do desgraçado,
reposicionou-o e agarrou nas calças largas do filho da mãe. Erguendo-o pelo cabelo e pelo cós das calças, ou então pelo reto, tomou balanço e atirou-o... a cerca
de dez metros.
Nem o super-homem voava assim tão bem e o ladrão foi bater na parede com a testa. O edifício não lhe deu grande resposta e, vejam só, ele também não. Aterrou de
cara num canteiro de flores e aí ficou, com os membros a ficarem desfalecidos.
Sem se contorcer. Sem gemer. Sem tentar levantar-se.
- Estás bem, Manuel?
Manny virou lentamente a cabeça na direção de Payne. Ela nem sequer estava ofegante.
- Jesus... Cristo... - murmurou ele.
Enquanto as palavras de Manuel se perderam com a brisa, Payne ocupou-se com o top e as calças largas. Depois alisou o cabelo. Parecia a única coisa que poderia fazer
pela sua aparência após a cena de violência.
Um desperdício de esforço, tentar feminizar-se. Entretanto, Manuel continuava a fitá-la.
- Não dizes mais nada? - perguntou ela em voz baixa.
- Ah... - Manuel levou a mão livre à cabeça. - Pois... deixa-me ver se ele está vivo.
Payne envolveu-se com os braços enquanto se aproximava do humano. A bem da verdade, não se preocupava com o estado em que pudesse ter deixado o assaltante. A sua
prioridade fora afastar a arma mortífera de Manuel e fora bem-sucedida na tarefa. O que acontecesse ao ladrão era irrelevante... mas era óbvio que ela não conhecia
as regras daquele mundo. Nem sabia quais as implicações do que fizera.
Manuel estava a meio caminho sobre a relva quando a «vítima» se virou com um gemido. As mãos que tinham segurado a arma dirigiram-se à máscara que lhe cobria o rosto
e empurraram a malha até à testa.
Manuel ajoelhou-se.
- Sou médico. Quantos dedos tenho levantados?
- O quê...?
- Quantos dedos?
- ...três...
Manuel pousou a mão no ombro do indivíduo.
- Não te levantes. Foi uma pancada tremenda na cabeça. Sentes formigueiro ou dormência nas pernas?
- Não. - O homem fitou Manuel. - Porque é que... estás a fazer isto?
Manuel minimizou a questão.
- Chama-se faculdade de medicina... cria a necessidade compulsiva de tratar dos doentes e dos feridos, independentemente das circunstâncias. Acho que temos de chamar
uma ambulância...
- Nem pensar!
Payne materializou-se junto deles. Compreendia as boas intenções de Manuel, mas receava que o ladrão tivesse outra arma com ele...
Assim que surgiu atrás de Manuel, o homem no chão encolheu-se em terror, erguendo os braços e tentando recuar.
Manny olhou sobre o ombro e foi quando ela percebeu que Manuel não era ingénuo. Tinha a arma apontada ao homem.
- Está tudo bem, bambina. Tenho-o...
Atabalhoadamente, o ladrão levantou-se e Manuel seguiu-o com o cano enquanto o humano cambaleava e se equilibrava contra o edifício. Era óbvio que estava a preparar-se
para correr.
- Ficamos com a arma - indicou Manuel. - Compreendes, não? E não preciso de te dizer que tens sorte em estar vivo... não se provoca a minha namorada.
Quando o humano se perdeu entre as sombras, Manuel levantou-se.
- Tenho de entregar esta arma à polícia.
Depois limitou-se a olhar para ela.
- Não há problema, Manuel. Posso tratar da minha presença com o guarda, para que nada se fique a saber. Faz o que tens a fazer.
Aquiescendo, ele pegou num pequeno aparelho de telefone, abriu-o e pressionou alguns botões. Levando-o ao ouvido, disse:
- Sim, chamo-me Manuel Manello e fui ameaçado com uma arma enquanto me encontrava no meu veículo. Estou no Hospital Tricounty...
Enquanto Manuel falava, ela olhou em volta, pensando que não queria que as coisas acabassem assim. Mas...
- Tenho de ir - disse-lhe, quando Manuel desligou. - Não posso... estar aqui se houver mais humanos. Vai complicar as coisas.
O telefone baixou lentamente para o lado do corpo.
- Pois... está bem. - Franziu o sobrolho. - Ah, olha... se a polícia está a chegar, tenho de me lembrar do que aconteceu, se não... bolas, tenho uma arma na mão
sem um motivo que lhes apresente.
Com efeito, pareciam estar encurralados. E, desta vez, sentia-se grata por uma prisão.
- Quero que te lembres de mim - disse baixinho.
- O plano não era esse.
- Eu sei.
Manuel abanou a cabeça.
- És a peça mais importante no meio de tudo isto. Por isso tens de te proteger e isso significa apagares-me a...
- Doutor Manello! Doutor Manello... o senhor está bem?
Payne olhou sobre o ombro. O primeiro macho humano que tinham visto à secretária corria pelo relvado, num estado de pânico.
- Fá-lo - insistiu Manuel. - E eu depois penso em alguma coisa...
Quando o guarda apressado chegou junto deles, Payne encarou o recém-chegado.
- Estava a fazer a ronda - explicou o homem -, e quando confirmava os gabinetes no outro lado do edifício vi-os pela janela... Corri o mais que pude!
- Estamos bem - garantiu ela ao guarda. - Mas importava-se de olhar para uma coisa?
- É claro! A polícia já foi chamada?
- Sim. - Tocou com o dedo por baixo do olho direito. - Olhe para mim, por favor.
Já estava fito no rosto dela, e a dose adicional de concentração facilitou-lhe o trabalho. Só precisou de abrir caminho pelo cérebro do homem e cobrir mentalmente
tudo o que se relacionava com ela.
Para o humano, o cirurgião chegara e partira sozinho.
Manteve o homem em transe e dirigiu-se a Manuel.
- Não tens de te preocupar. As recordações dele são de curto prazo, por isso ele vai ficar bem.
Ao longe ouviu-se um uivo agudo e urgente.
- É a polícia - indicou Manuel.
- Nesse caso vou partir.
- Como voltas a casa?
- Da mesma forma que saí do teu carro.
Esperou que ele lhe estendesse a mão... ou dissesse alguma coisa... ou... Mas ele limitou-se a ficar ali, com o ar frio e silencioso da noite entre eles.
- Vais mentir-lhes? - perguntou ele. - E dizer-lhes que me apagaste?
- Não sei.
- Bem, se precisares de voltar para o fazer, eu estou...
- Boa noite, Manuel. Por favor, fica bem.
Com essas palavras, ela levantou a mão e silenciosa e inexoravelmente, desapareceu.
Capítulo 43
No que dizia respeito a truques, este era verdadeiramente estranho.
- Então, onde é que está o teu amigo?
Karrie Ravisc, também conhecida nas ruas como Kandy, era uma puta a sério há cerca de nove meses e, por isso, já tinha visto muita merda. Mas aquilo...
O homem enorme à porta do quarto do motel falou suavemente.
- Vem aí.
Karrie deu outra passa no cigarro e pensou, Bem, pelo menos o que estava à sua frente era uma brasa. E também lhe tinha pago quinhentos e arranjado aquele quarto.
Ainda assim... havia qualquer coisa ali que não batia certo.
Pronúncia estranha. Olhos estranhos. Ideias estranhas.
Mas uma verdadeira brasa.
Enquanto esperavam, ela deitou-se em silêncio, nua na cama com todas as luzes apagadas. No entanto, não estava completamente escuro. Aquele fulano com a carteira
recheada tinha colocado uma enorme lanterna que parecia um caixote do outro lado do quarto, por cima do armário barato. O feixe de luz apontava-lhe para o corpo.
Como se ela estivesse num palco. Ou talvez como se fosse uma obra de arte.
O que não era tão estranho como alguma das coisas que já fizera. Merda, se a prostituição não te levasse a ver os homens como sacanas maldosos e doentios, nada mais
o faria. Além dos adúlteros do costume e dos que gostavam de sentir o poder, havia os fodilhões com fetiches por pés, os que gostavam que lhes batessem e outros
que gostavam que lhes mijassem em cima.
Terminando o seu White Owl, apagou a beata e pensou que aquela coisa do holofote talvez até nem fosse má ideia. Um parvalhão qualquer tinha querido comer hambúrgueres
em cima dela há duas semanas e isso tinha sido uma nojeira...
O som da fechadura fê-la dar um salto e ela percebeu que alguém tinha entrado sem dar conta. Era o som da porta a ser trancada. Por dentro.
E estava agora um segundo homem junto ao primeiro.
Ainda bem que o seu chulo estava mesmo na porta ao lado.
- Boa noite - disse ela, enquanto se estendia mecanicamente para ambos. Os seios eram falsos, mas eram uma boa imitação e a barriga era lisa, mesmo depois de ter
tido um filho, e não só estava sem pelos, como fizera depilação a laser.
Por todas estas razões ela cobrava o que cobrava.
Homem... mais um enorme, pensou ela, enquanto o segundo se aproximou e parou aos pés da cama. Na realidade, aquele cabrão era enorme. Um verdadeiro mamute. E não
por ser gordo e descuidado. Os seus ombros eram tão perfeitos que pareciam ter sido desenhados com uma régua e esquadro e, juntamente com as suas ancas estreitas,
o peito formava um triângulo perfeito. Não lhe conseguia ver o rosto, por causa da luz que vinha de trás dele, mas não tinha importância. O primeiro bacano esticou-se
na cama ao lado dela.
Merda... de repente percebeu que estava excitada. Era o tamanho deles e o perigo do escuro e dos aromas. Jesus... tinham um cheiro fantástico.
- Vira-te ao contrário - exigiu o segundo.
Meu deus, aquela voz. A mesma pronúncia estrangeira do outro que tinha preparado tudo, mas mais grave e com um toque autoritário.
- Queres mesmo ver o meu cu? - gorgolejou ela, enquanto se sentava. Passando as mãos pelos seios, levantou-os e apertou-os. - Porque a minha parte da frente é ainda
melhor.
Ao dizer isto, empurrou um seio para cima e esticou a língua para baixo, lambendo o seu próprio mamilo, enquanto olhava para um homem e para o outro sem parar.
- Vira-te para baixo.
Ok, obviamente, aquilo era uma ordem de prioridade. O homem deitado ao lado dela estava com uma tremenda ereção, mas não se mexia. E o Sr. Faz-Já era o único que
falava.
- Se é assim que queres.
Tirando as almofadas da cama, ela virou-se dando espetáculo, torcendo o tronco para que um dos peitos ainda estivesse à vista. Com a unha pintada de preto, desenhou
um círculo à volta do mamilo, enquanto arqueava as costas para baixo e espetava o traseiro para cima...
Um rugido discreto agitou o ar estagnado e tranquilo do quarto e isso foi uma indicação para ela. Abrindo as pernas, empinou as nádegas, com os dedos dos pés espetados
e arqueando novamente a espinha.
Sabia perfeitamente o que estava a mostrar aos pés da cama... e o rugido dele disse-lhe que estava a gostar do que via. Portanto, estava na altura de ir mais longe.
Olhando para ele, colocou o dedo médio na boca e chupou-o. Depois mudou de posição e levou-o até ao sexo, esfregando-se a si própria.
Não sabia se era a erva ou... merda, qualquer coisa com aqueles homens... de repente estava mesmo muito excitada. Ao ponto de desejar aquilo que estava prestes a
acontecer.
Inclinando-se sobre ela, o que dava ordens pôs as mãos na parte da frente das ancas.
- Beija-a - ordenou.
Ela estava tão preparada para aquilo, apesar de normalmente não o permitir. Virando o rosto para o outro, sentiu a sua boca ser invadida por um conjunto de lábios
suaves, exigentes... e depois uma língua entrou nela...
Ao mesmo tempo que umas grandes mãos se encaixavam na parte de cima das suas coxas e a abriam ainda mais.
E outro conjunto de mãos dirigiu-se aos seus seios.
Apesar de ser uma profissional, a sua mente foi de viagem, levando consigo as coisas que habitualmente a preocupavam enquanto fazia o que fazia, fazendo desaparecer
coisas como, onde estavam os preservativos? Quais eram as regras básicas?
Cinto. Fecho. E depois o som de calças a deslizar e o resfolegar do colchão ao cair-lhe alguma coisa pesada em cima.
Imaginou, vagamente, se o pénis que tinha sido libertado seria tão grande como o resto do homem atrás dela. E se era, pensou, diabos, ela era bem capaz de equacionar
a ideia de lhes oferecer uma segunda volta de borla. Partindo do princípio de que se aguentavam tanto tempo...
Uma ponta arredondada entrou dentro dela, enquanto mãos a levantavam pelas ancas e a deixavam de gatas. Meu deus, ele era enorme... Ela preparou-se para sentir a
fricção, à medida que uma palma da mão lhe percorria a espinha e dedos penetravam no seu cabelo curto. Ele ia puxar-lhe a cabeça para trás, mas ela não se importava.
Só queria mais dele dentro dela...
Mas ele não ficou violento, nem sequer avançou imediatamente. Pelo contrário, massajou-a como se gostasse do toque da sua pele, levando-lhe as mãos aos ombros e
depois deslizando-as até aos seios... e depois descendo mais ainda até ao sexo molhado. E quando a penetrou completamente, foi com um deslizar suave, dando-lhe até
um segundo para se habituar ao diâmetro e ao comprimento.
Depois colou as palmas das mãos nas ancas e avançou com o ato. Mesmo quando o amigo se esgueirou para debaixo dela para sugar os seios pendurados.
Com a velocidade a intensificar-se, os mamilos andavam para a frente e para trás a bater na boca do que estava por baixo dela ao ritmo das estocadas das ancas que
lhe batiam no rabo uma e outra vez. Mais depressa. Com mais força. Mais depressa...
- Fode-me - ganiu ela. - Oh, porra, sim...
Abruptamente, o que estava deitado no colchão mudou de posição e reposicionou-a, enchendo-lhe a boca com o maior pénis que ela alguma vez tinha engolido.
Ela teve mesmo um orgasmo.
Se isto continuasse assim, seria ela a dar-lhes uma gorjeta.
Um segundo depois, o homem por trás saiu de dentro dela e sentiu salpicos quentes nas costas. Mas ainda não tinha acabado. Voltou à carga um momento depois, tão
encorpado e rígido como da primeira vez que a penetrara.
Aquele que ela estava a chupar gemia e depois foram separados, quando ele lhe levantou a cabeça. Veio-se nas suas mamas, com jatos quentes a decorarem-lhe o peito,
espalhando um pouco mais daquele aroma fantástico, ao mesmo tempo que o outro voltava a sair dela e a ejacular-lhe nas costas.
E depois o mundo deu meia volta e ela viu-se deitada de costas, com o homem da carteira a assumir a posição de comando sobre ela e a preencher-lhe o sexo, ficando
igualmente apertada.
Foi ela que procurou o amigo silencioso e autoritário, trazendo o pénis dele para a boca, tirando-o do papel de espetador para dentro dela outra vez.
Era tão grande que teve de esticar o queixo para ele caber e sabia deliciosamente, como nada que provara antes. Chupava-o enquanto o outro a tomava a sério. Abandonou-se
às sensações de ser preenchida, ou invadida por pénis duros e selvagens que lhe abanavam todo o corpo.
No seu delírio, tentou ver o homem a quem estava a lamber, mas ele conseguia sempre, de alguma forma, manter-se de costas para a luz e isso tornava tudo ainda mais
erótico. Como se estivesse a chupar uma sombra viva. Merda, ao contrário do outro, ele não soltava agora nenhum som e nem sequer estava a arfar. Mas estava a gostar,
a sério, entrando na sua boca e saindo e depois voltando a entrar. Pelo menos até saltar cá para fora e colocar a palma da mão sobre a ereção. Juntando os seios,
ela deu-lhe uma ótima plataforma para ele se vir e, Deus do céu, apesar de ela ser copa AA, ele cobriu-a.
Até o peito ficar peganhento, escorregadio e a pingar.
Quando voltou a concentrar-se, tinha os joelhos junto às orelhas e o que tinha o dinheiro estava a preparar-se para atacar outra vez da melhor maneira possível.
E o patrão estava outra vez nos seus lábios, pressionando, querendo mais. O que ela lhe daria com todo o gosto.
Fitando-os enquanto se moviam em uníssono, ela sentiu um medo percorrê-la. Dobrada por baixo deles, ela tinha a sensação que a podiam partir ao meio se lhes apetecesse.
Mas não a magoaram.
E continuaram uma e outra vez, os dois trocando de lugares sem parar. Era óbvio que já tinham feito aquilo muitas vezes e, meu Deus, ela estava a satisfazê-los à
grande.
Finalmente estava terminado.
Nenhum deles disse nada. Nem a ela, nem um ao outro. Era estranho, porque a maioria do sexo a três em que ela participara acabava com os idiotas a darem mais cinco
uns aos outros. Estes dois não. Guardaram os pénis e... bem, não é que as carteiras voltaram a aparecer?
Enquanto estavam ali por cima dela, ela passou a mão pela boca, pelo pescoço e pelos seios. Estava coberta em tantos sítios que já perdera a conta, e adorava, era
suavizante aquilo que tinham deixado na sua pele. Estava a brincar com o sémen porque queria, não para benefício deles.
- Queremos dar-te mais quinhentos - disse o primeiro em voz baixa.
- Para quê? - aquele gorgolejar satisfeito era mesmo ela?
- Vai saber bem, prometo.
- É perverso?
- Muito.
Ela riu-se e ondulou as ancas.
- Então digo que sim.
Quando o homem sacou das notas, parecia haver muitas outras naquele maço e, se ele fosse, talvez, outra pessoa, era capaz de ter avisado o chulo e de ter dito ao
Mack para o intercetar no parque de estacionamento. Mas, no entanto, não ia fazer isso. Em parte por causa do sexo incrível. Mas mais ainda porque achava que era
provável que aqueles tipos dessem uma tareia a quem se metesse com eles.
- O que querem que faça? - perguntou, enquanto apertava o dinheiro no punho.
- Abre as pernas.
Ela não hesitou, os joelhos a afastarem-se para longe.
E eles não hesitaram, inclinando-se ambos sobre a vulva molhada.
Deus do céu, iam chupá-la? Só de pensar nisso os olhos rolaram para trás e ela gemeu...
- Ai!
Ela começou a levantar-se, mas eles forçaram-na a ficar deitada no colchão.
As lambidelas subtis que se seguiram deixaram-na quase inconsciente. Mas, contudo, não eram no seu sexo. Mesmo a meio do corpo, de ambos os lados, na articulação
onde as coxas se ligam ao tronco.
Um chupar rítmico... como se a embalasse.
Karrie suspirou e abandonou-se ao que sentia. Teve uma sensação chocante de que eles se estavam a alimentar dela, de alguma forma, mas era espetacular especialmente
quando alguma coisa entrou dentro dela. Talvez fossem dedos... provavelmente.
Sim, definitivamente.
Quatro dedos preenchiam-na e duas mãos separadas começaram a entrar e sair alternadamente, enquanto as duas bocas chupavam a sua carne.
Ela veio-se outra vez.
E outra vez.
E outra.
Depois de só Deus sabe quanto tempo, acariciaram-na várias vezes, nos lugares onde tinham estado a chupar e não onde as mãos tinham estado.
E depois retiraram tudo, bocas, dedos, corpos.
Endireitaram-se os dois.
- Olha para mim - disse o líder.
As pálpebras estavam tão pesadas que teve de fazer força para poder obedecer. E quando o fez, sentiu uma dor ardente nas frontes. Contudo, não durou muito tempo
e a seguir... sentia-se a flutuar.
Foi por isso que não prestou muita atenção ao grito distante e abafado que veio da porta ao lado pouco depois, não do quarto em que estava o Mack, mas o do outro
lado.
Bum! Pum. Bum...
Karrie começou nessa altura a adormecer, morta para o mundo, o dinheiro colado à palma da mão quando aquilo que estava molhado secou.
Não estava preocupada com nada. De facto, sentia-se fantástica.
Diabos... com quem é que tinha estado...?
* * *
Quando Xcor saiu do quarto de hotel da prostituta com Throe imediatamente atrás dele, fechou a porta e olhou para a esquerda e para a direita. As instalações que
o soldado tinha escolhido para aquela diversão carnal ficavam nos arredores da cidade. Degradado e a desfazer-se em alguns pontos, o edifício térreo tinha sido dividido
em caixas que pareciam guarda-louças, com o escritório na ponta mais à esquerda. Tinha preferido o quarto mais longínquo na ponta oposta para garantir a privacidade,
mas o melhor que conseguira fora o quarto ao lado.
Não obstante, na verdade, quais eram as hipóteses de estarem todos ocupados? Dificilmente estaria ali mais alguém.
Perscrutando os lugares de estacionamento à sua frente, viu um Mercedes preto que tentava desesperadamente parecer mais novo do que aquilo que era... e um todo-o-terreno
com cobertura. Os outros dois carros estavam mais longe, junto ao escritório.
Isto era perfeito para o tipo de propósito que tinha servido. Escondido. Povoado por pessoas que não queriam ninguém a intrometer-se no que ali faziam e dispostas
a tratar os outros com igual cortesia. E a iluminação exterior era fraca. Só uma em cada seis lâmpadas, por cima das portas, é que estavam a funcionar. Que raios,
a luz mais próxima da sua cabeça tinha sido destruída. Por isso, estava tudo difuso e escuro.
Ele e o seu bando de bastardos teriam de encontrar fêmeas da sua raça para satisfazer as suas necessidades de sangue a longo prazo, mas a seu tempo isso aconteceria.
Até lá? Contentar-se-iam com mulheres como a que ele e Throe tinham acabado de foder e fá-lo-iam naquele local deserto.
Throe falou calmamente.
- Satisfeito?
- Sim, ela não era nada má.
- Fico feliz...
Um aroma no ar fez com que ambos virassem as cabeças para a porta do último quarto. Quando Xcor inspirou profundamente para confirmar aquilo de que tinha sentido,
um leve aroma, o cheiro a sangue humano fresco foi uma surpresa desagradável.
Contrariamente à expressão no rosto de Throe, que demonstrava não estar nada surpreendido.
- Nem penses nisso - rosnou Xcor. - Throe. Foda-se.
O guerreiro estava a dirigir-se à porta com uma expressão turbulenta. A sua agressividade tinha sido inflamada porque era sangue feminino que estava a ser derramado.
A fertilidade era evidente no ar.
- Não temos tempo para isto - disparou Xcor.
Em jeito de resposta, Throe deu um pontapé na porta e abriu-a.
Enquanto Xcor praguejava, apenas brevemente considerou desmaterializar-se da cena. Tudo o que era necessário para curar o impulso era olhar lá para dentro. A ridícula
façanha heroica de Throe tinha exposto uma confusão. Literalmente.
Uma fêmea humana estava amarrada à cama, com alguma coisa enfiada na boca. Estava quase morta e demasiado perto da sepultura para ser salva. O sangue dela estava
por todo o lado, nas paredes ao seu lado, escorrendo para o chão, ensopando o colchão. Os utensílios de quem quer que fosse que tinha feito aquilo estavam na mesa-de-cabeceira:
duas facas, fita adesiva, tesouras... e meia dúzia de pequenos frascos transparentes com um líquido incolor e tampas ao lado.
Havia coisas a flutuar nos...
Ouviu-se um estrondo vindo da casa de banho. Como se uma bandeira ou vidro de janela tivesse sido aberto e fechado.
Quando Throe começou a correr para o interior, Xcor adiantou-se e agarrou o outro macho pelo braço. Em dois tempos, Xcor soltou a pulseira de aço que mantinha no
cinto das armas e prendeu-a no pulso robusto do seu soldado. Arrastando-o com o seu peso, volteou-o no ar como a uma bola presa a uma corrente. Ouviu-se uma batida
seca na parede mais distante, quando o reboco barato parou o pêndulo de vampiro.
- Deixa-me.
Xcor puxou-o para perto de si.
- Isto não é da tua conta.
Throe puxou o braço atrás e deu um murro na parede, desfazendo mais um bocado do reboco velho.
- Ai isso é que é. Solta-me!
Xcor deu uma palmada na parte de trás do pescoço do macho.
- Não é. O teu. Mundo!
Nesta altura lutaram, atirando-se um ao outro e derrubando coisas, fazendo mais barulho do que deviam. E estavam prestes a cair na carpete ensanguentada, quando
um homem humano sem pescoço e com óculos escuros do tamanho de vidros de janela deslizou para o corredor. Deu uma olhadela à cama, outra a Xcor e Throe, e depois
resmungou, cobrindo os olhos com os braços enquanto fugia agachado.
Um segundo depois, a porta do quarto onde tinham estado abriu-se e fechou-se... depois abriu-se e fechou-se outra vez. Ouviu-se o som de saltos altos a bater no
chão, depressa e descoordenados, e ouviu-se um clomp, clomp de pessoas a entrarem num carro.
Um motor rugiu e o Mercedes arrancou, saindo do parque de estacionamento, sem dúvida com a prostituta e o dinheiro lá dentro.
E aquela partida apressada confirmava aquilo que Xcor assumira sobre a clientela daqui.
- Ouve-me - disse a Throe. - Ouve-me, minha grande besta... isto não é problema nosso. Mas se ficares aqui, vais torná-lo nosso...
- O assassino fugiu!
- E nós também vamos fugir.
Os olhos pálidos de Throe centraram-se na cama e a máscara de fúria dissipou-se por breves momentos. Por baixo dela havia uma expressão que chegou mesmo a deter
a agressividade de Xcor. Tanta dor, meu Deus, tanta dor.
- Ela não é a tua irmã - sussurrou Xcor. - Anda comigo.
- Não posso...deixá-la... - Uns olhos enormes vidrados cruzaram-se com os seus. - Não podes pedir-me isso.
Xcor deu uma volta, mantendo o soldado preso. Tinha de haver alguma coisa do assassino, alguma coisa que pudessem...
Xcor arrastou o guerreiro para a casa de banho e ficou sombriamente satisfeito ao observar a janela por cima da sanita. O único painel grosso de vidro fosco estava
intacto, mas havia um rasto de sangue brilhante na borda da armação de metal.
Exatamente o resquício de que precisavam.
Xcor alcançou a janela e passou dois dedos pela extremidade que tinha rasgado a carne humana.
O sangue colou-se aos seus dedos.
- Abre - ordenou.
Throe abriu a boca e chupou os dedos, fechando os olhos para se concentrar, enquanto se começavam a ouvir sirenes distantes na noite.
- Temos de ir agora - disse Xcor. - Vem comigo e eu dou-te autorização para caçares o homem. Concordas? Acena. - Quando Throe assentiu, ele decidiu que precisava
de mais. - Jura.
Throe fez uma vénia, curvando o tronco.
- Juro.
Soltou a pulseira... e ambos desapareceram como por magia, exatamente quando os rotativos azuis anunciavam a chegada da polícia humana.
Xcor não costumava ser compassivo em nenhuma situação. Mas mesmo que fosse, não teria concedido nenhuma compaixão àquele profanador humano que era agora o alvo de
Throe... e em breve seria caçado.
Capítulo 44
-Doutor Manello?
Ao ouvir o seu nome, Manny voltou à realidade e percebeu que, de facto, ainda estava em Tricounty, no jardim da entrada. Era bastante irónico que o segurança tivesse
sofrido um ataque à sua mente e, mesmo assim, era ele que recebia as atenções.
- Ah...sim, desculpe. O que disse?
- Está bem?
- Não, não estou.
- Bem, foi atacado... nem consigo acreditar em como lidou com isso. Num minuto ele estava em cima de si... no minuto seguinte tinha a arma e ele estava a... voar.
Claro que se livraria disso.
- Sim. É isso. Exatamente.
Os polícias apareceram dois segundos depois e seguiu-se uma torrente de perguntas e respostas. E foi espetacular. O segurança nunca referiu Payne. Era como se ela
nunca ali tivesse estado.
Não devia ficar surpreendido, tendo em conta o que Manny já tinha passado não só com ela, mas também com Jane. Mas mesmo assim estava admirado.
Havia tanta coisa que ele não percebia. Como Payne tinha desaparecido como por magia à sua frente. Como não restava nada dela, pelo menos que o segurança pudesse
ver, apesar de se lembrar perfeitamente de Manny. Como ela se tinha mantido tão calma e controlada numa situação fatal.
Na realidade, esta última parte tinha sido muito erótica. A maneira como ela o tinha triturado era fantasticamente excitante. Manny não tinha a certeza do que isso
dizia sobre ele, mas era assim.
E ela iria mentir, pensou. Diria ao pessoal dela que a mente dele tinha sido apagada. Diria que tinha tratado de tudo.
Payne encontrara a solução perfeita. Ele tinha a sua mente, ela tinha as suas pernas e ninguém sabia nada em contrário, nem o seu irmão, nem os da sua laia.
Sim, estava tudo tratado. Tudo o que tinha de fazer agora era passar o resto da vida ansiando por uma fêmea que nunca devia ter conhecido. Uma merda que não custa
nada.
Uma hora depois, entrou no seu Porsche e regressou a Caldwell. Conduzindo sozinho, o carro não só parecia vazio, como parecia um deserto e deu consigo a subir e
descer os vidros. Não era a mesma coisa.
Ela não sabia onde ele vivia, pensou. Mas isso não importava, pois não? Ela não voltaria.
Meu Deus, era difícil escolher o que teria custado mais. Um adeus longo e demorado, em que ele a olhava nos olhos e mordia a língua para evitar falar de mais? Ou
aquela merda rápida, do tipo arrancar-o-penso?
As duas eram uma porcaria.
No Commodore, desceu ao subterrâneo, estacionou no seu lugar e saiu do carro. Foi para o elevador. Subiu ao apartamento. Entrou. Fechou a porta.
Quando o telemóvel tocou, enfiou a mão no bolso para o tirar e, quando viu o número, praguejou. Goldberg, do centro médico.
Atendeu sem entusiasmo.
- Olá.
- Atendeste? - disse o homem aliviado. - Como estás?
Pois. Não queria entrar por ali.
- Estou bem. - Após uma pausa, disse - E tu?
- Estou bem. As coisas têm estado... - Hospital. Hospital. Hospital hospital, hospitalh ospit alhosp. Ital hospit alhospital...
Entrou por um ouvido e saiu pelo outro. No entanto, Manny não se apressou. Foi para a bancada da cozinha, tirou o Lag e sentiu-se como se tivesse levado uma pancada
na cabeça ao ver o pouco que restava na garrafa. Inclinando-se para o armário, retirou uma garrafa de Jack que estava lá para trás há tanto tempo que tinha pó na
tampa.
Pouco depois, desligou o telefone e concentrou-se na bebida. Primeiro o Lag. Depois o Jack. E depois seguiram as duas garrafas de vinho que estavam no frigorífico.
E o que restava de um pacote de seis Corona que tinha sido deixado na despensa e não estava fresco.
Contudo, o seu cérebro não deu pela diferença entre o álcool aquecido e a bebida fresquinha.
Feitas as contas, o festival de ingestão de álcool demorou uma hora. Talvez mais. E foi muito eficiente. Quando pegou na última cerveja e se dirigiu para o quarto,
andava como se estivesse na ponte da Enterprise, abanando para a esquerda e para a direita... e depois recuando. E, apesar de ver perfeitamente à luz ambiente da
cidade, tropeçou em tudo. Devido a algum milagre inconveniente, a sua mobília tinha ganhado vida e estava determinada a meter-se no seu caminho... tudo, desde as
cadeiras estofadas de pele até...
- Foda-se.
... à mesa de centro.
E o facto de agora estar a esfregar a canela enquanto andava era como adicionar uns patins em linha à festa.
Quando chegou ao quarto, bebeu um enorme gole da Corona para celebrar e progrediu para o banho aos tropeções. Água a correr. Roupas despidas. Entrar na banheira.
Não valia a pena esperar pela água quente, não sentia nada, fosse como fosse, e o objetivo era esse.
Não se deu ao trabalho de se secar. Foi simplesmente para a cama com água a escorrer do corpo e, ao sentar-se, bebeu o resto da cerveja. Então... uma imensidão de
nada. O seu alcoolómetro estava a subir assustadoramente alto, mas ainda não tinha atingido o ponto crítico e acabado com ele.
Consciência era, contudo, um termo relativo. Apesar de se poder argumentar que estava acordado, estava completamente desligado, e não só pelo exagero de álcool no
sangue. Ele estava sem energia no interior, de uma maneira muito estranha.
Deixando-se cair no colchão, pensou que, agora que a situação com Payne se tinha resolvido, era altura de andar com a vida para a frente ou, pelo menos, tentar na
manhã seguinte, quando a ressaca o acordasse. A sua mente estava ótima, por isso não havia razões para não voltar ao trabalho e para não tratar de separar, definitivamente,
aquele interlúdio lixado do resto da sua vida normal.
Fitando o teto, ficou aliviado quando a visão se tornou nublada.
Até se aperceber que estava a chorar.
- Mariconço de merda.
Limpando os olhos, estava positiva e absolutamente decidido a não seguir aquele caminho. Mas seguiu... e ficou lá. Meu Deus, já sentia a falta dela ao ponto da agonia.
- Mas que... diabo!
Subitamente levantou a cabeça e o pénis começou a inchar. Olhando pelas portas deslizantes de vidro da varanda, perscrutou a noite com um desespero que o fez sentir
como se as loucuras mentais tivessem voltado.
Payne...
Payne...?
Esforçou-se por se levantar da cama, mas o corpo recusava-se a obedecer, como se o cérebro estivesse a falar uma língua que os braços e as pernas não conseguissem
traduzir. E depois a bebedeira venceu, pressionando Ctrl-Alt-Del e desligando o programa.
Não obstante, o sistema não reiniciou.
Depois de as pálpebras se fecharem, apagou, por muito que lutasse contra a maré.
Lá fora na varanda, Payne estava parada no vento gelado, com o cabelo a esvoaçar, o corpo todo em pele de galinha por causa do frio.
Desaparecera da vista de Manuel, mas não o tinha abandonado.
Apesar de ele ter demostrado ser capaz de tomar conta de si próprio, Payne não estava disposta a confiar a sua vida nem a ninguém nem a nada. Concomitantemente,
tinha-se envolvido em mhis e ficado no jardim do hospital veterinário, observando-o a falar com a polícia e com o segurança. E depois, quando ele fora para o carro,
seguira-o, desmaterializando-se de um sítio para outro, seguindo o seu rasto graças à pequena quantidade do seu sangue que ele lambera.
A sua viagem para casa tinha culminado nas profundezas de uma cidade mais pequena do que aquela que ela vira do carro, mas ainda assim impressionante, com os edifícios
altos, as estradas pavimentadas e as pontes altas belíssimas que passavam sobre um largo rio. Caldwell era, de facto, linda à noite.
Quem lhe dera que ali estivesse por outra razão, que não uma despedida invisível.
Quando Manuel tinha virado para uma espécie de garagem subterrânea, ela tinha-o libertado. Já tinha alcançado o objetivo, que era ele chegar ao seu destino em segurança,
por isso sabia que tinha de partir.
Todavia, infelizmente, ela tinha-se demorado na rua, escondida no mhis, vendo os carros a passar e os peões a atravessar as esquinas. Passara uma hora. E depois
passou mais tempo. E ela não se conseguia ir embora.
Cedendo aos desejos do seu coração, ela tinha subido, subido, subido... elevando-se até onde Manuel estava, tomando forma na varanda da sua casa... e encontrando-o
a meio caminho de deixar a cozinha para a sala. Claramente a andar torto, estava sempre a ir contra a mobília, embora não fosse certamente por as luzes estarem apagadas.
Era a bebida que tinha nas mãos, sem dúvida.
Ou, mais exatamente, toda a bebida que consumira além daquela.
No quarto, não tinha propriamente despido as roupas, mas sim saltado para fora delas e depois ido para o chuveiro. Quando voltou a surgir a pingar, ela teve vontade
de gritar. Era tão difícil compreender que só tinha passado um dia desde que tinha, pela primeira vez, testemunhado a sua nudez. Apesar de ela sentir, realmente,
que podia procurar no tempo e alcançar esses momentos frenéticos em que estavam à beira de... não apenas um presente, mas um futuro.
Agora já não.
Ao chegar à cama, sentou-se... e depois colapsou no colchão.
Quando ele limpou os olhos, ela ficou completamente devastada. E a vontade de ir ter com ele era tão grande...
- Payne.
Com um uivo, ela virou-se. Ao fundo da varanda, parado na brisa... estava o seu gémeo. E, no instante mesmo em que pousou os olhos em Vishous, soube que alguma coisa
nele tinha mudado. Sim, o seu rosto já estava a sarar dos ferimentos que lhe causara o espelho, mas não era isso que tinha mudado. Ele estava diferente interiormente.
A tensão, a raiva e a frieza assustadora desapareceram.
Enquanto o vento fustigava o seu cabelo, ela tentou compor-se, eliminando as lágrimas que se alojavam em volta dos olhos.
- Como é que soubeste... que eu estava...
Com a mão enluvada, ele apontou para cima.
- Tenho aqui um apartamento. No topo do edifício. A Jane e eu estávamos de saída quando senti a tua presença aqui em baixo.
Devia ter percebido. Tal como ela conseguia sentir o mhis dele... ele podia sentir e encontrar o dela.
Ela desejava que ele tivesse continuado para onde ia. A última coisa de que precisava era de outra cena de «autoridade» da figura masculina dizendo-lhe o que fazer.
Além disso, o rei já tinha decretado a lei. O decreto de Wrath não precisava propriamente da aprovação de gente como o irmão.
Levantou a mão para o travar antes de ele dizer alguma coisa sobre Manuel.
- Não quero que me digas o que o rei já me disse. Estava mesmo de saída.
- A mente dele foi apagada?
Ela levantou o queixo.
- Não, não foi. Ele levou-me a passear e houve um... incidente...
A rosnadela que o irmão soltou soou mais alto do que o vento.
- O que é que ele te...
- Não foi ele. Credo, podes parar de... o odiar? - Enquanto massajava as frontes, perguntou-se se alguma vez explodira mesmo a cabeça a alguém ou se toda a gente
na Terra se sentia assim de vez em quando. - Fomos atacados por um humano e ao desarmá-lo...
- Ao humano?
- Sim - enquanto o desarmava, magoei-o e chamaram a polícia...
- Desarmaste um humano?
Payne fitou o gémeo.
- Quando retiras a arma a alguém, é isso que se diz, não é?
Vishous semicerrou os olhos.
- Sim, é.
- Não podia apagar as memórias de Manuel, porque se não ele não conseguiria responder ao interrogatório da polícia. E estou aqui... porque queria certificar-me de
que chegava bem a casa.
No silêncio que se instalou, ela apercebeu-se de que se tinha encostado a um canto. Ao ter de proteger Manuel, ela tinha acabado de provar o ponto de vista do irmão
de que o macho que ela queria não podia tomar conta dela. Oh, mas o que é que interessava. Tendo em conta que estava preparada para obedecer ao rei, não havia, fosse
como fosse, nenhum futuro para ela e Manuel.
Quando Vishous ia abrir a boca, ela gemeu e cobriu as orelhas com as mãos.
- Se tens uma réstia de compaixão, deixa-me fazer o luto sozinha. Não aguento ouvir todas as razões que levam a que me tenha de separar dele... já as sei de cor.
Por favor. Vai-te embora.
Fechando os olhos, virou-se e rezou à mãe dos céus para ele fazer o que ela pedia...
A mão no seu ombro era pesada e quente.
- Payne. Payne, olha para mim.
Sem nenhuma energia de sobra para lutar, ela deixou cair os braços e olhou para os seus olhos sombrios.
- Responde-me a uma coisa - disse o gémeo.
- O quê?
- Amas o sac... a ele. Ama-lo?
Payne olhou para trás, através do vidro, para o humano na cama.
- Sim. Estou apaixonada por ele. E se tentares dissuadir-me com o facto de ainda não ter vivido o suficiente para julgar, eu digo-te... vai à merda. Não preciso
de conhecer o mundo para perceber o desejo do meu coração.
Fez-se silêncio.
- O que disse Wrath?
- O mesmo que tu dirias. Que tenho de limpar da mente dele a minha memória e nunca, nunca mais o ver.
Como o irmão não disse mais nada, ela abanou a cabeça.
- Porque é que ainda aqui estás, Vishous? Estás a pensar no que hás de dizer para eu ir para casa? Deixa-me poupar-te ao esforço... quando chegar a madrugada, eu
vou... e cumprirei as leis, mas não por ser bom para ti ou para o rei ou para mim. É por ser mais seguro para ele... não precisa de inimigos como tu e a Irmandade
a torturá-lo só porque eu sinto aquilo que sinto. Por isso, será tudo como desejas. Só que - e aqui, ela iluminou-se - não vou apagar-lhe a memória. A mente dele
é demasiado valiosa para se perder... e não aguenta mais limpezas. Mantê-lo-ei seguro nunca mais voltando, mas não o vou condenar a uma vida de demência. Não vai
acontecer. Não fez outra coisa a não ser ajudar-me. Merece mais do que ser usado e deitado fora.
Payne voltou a olhar para o vidro.
Depois de um longo silêncio, ela assumiu que o gémeo se fora embora. Por isso, quase deu um grito quando ele lhe apareceu à frente e bloqueou a imagem de Manuel.
- Ainda aqui estás? - resmungou.
- Eu trato disto por ti.
Payne encolheu-se e depois rosnou.
- Nem te atrevas a pensar em matá-lo...
- Com Wrath. Eu trato disto. Eu... - Vishous passou a mão pelo cabelo. - Eu arranjo uma maneira de poderes ficar com ele.
Payne pestanejou. E depois sentiu a boca a ficar aberta.
- O que foi... O que foi que disseste?
- Conheço Wrath há muitos anos. E, tecnicamente, de acordo com as Leis Antigas, eu sou o chefe da nossa pequena e feliz família. Vou ter com ele e digo-lhe que aprovo
esta... união e que acho que devia ser permitido que visses o sac... o homem... o Manello. - Aclarou a garganta. - Wrath preocupa-se muito com a segurança, e com
mhis à volta do complexo... o Manello não conseguiria encontrar-nos mesmo que quisesse. Além disso, é uma hipocrisia negar-te o que outros Irmãos têm feito de vez
em quando. Que raios, o Darius teve um filho com uma mulher humana... e o Wrath está agora casado, com uma criança. Facto comprovado... se tivesses tentado separar
o nosso rei da sua Beth quando ele a conheceu? Ele teria matado qualquer um que sequer o sugerisse. A Mary do Rhage? A mesma merda. E devia... ser o mesmo para ti.
Até falo com a mahmen, se tiver de ser.
Payne pousou a mão sobre o coração.
- Não... compreendo porque é que... farias isto?
Ele olhou por cima do ombro, fitando o humano que ela amava.
- És minha irmã. E é a ele que tu queres. - Encolheu os ombros. - E... bem, também me apaixonei por uma humana. Apaixonei-me pela minha Jane uma hora depois de a
ter conhecido... e... sim. Sem ela, não tenho nada. Se o que sentes pelo Manello for metade do que sinto pela minha shellan, a tua vida nunca ficará completa sem
ele...
Payne atirou-se ao irmão num abraço. Quase o derrubou.
- Oh, meu irmão...!
Os braços dele rodearam-na e apertaram-na.
- Desculpa ter sido tão idiota.
- Foste... - Ela procurou outra palavra. - Sim, foste um idiota.
Ele riu-se, o som a roncar pelo peito acima.
- Vês, podemos concordar com alguma coisa.
Enquanto o apertava ainda mais, disse:
- Obrigada... Obrigada...
Após um momento, ele afastou-se.
- Deixa-me primeiro falar com Wrath, antes de ires ter com o Manello, okay? Quero tratar de tudo antes... e sim, agora vou já para casa. A Jane está a fazer rondas
e a Irmandade está de folga, por isso devo conseguir falar com o rei. - Fez uma pausa. - Só quero uma coisa em troca.
- O quê? Qualquer coisa. É só dizeres.
- Se vais ficar aqui até de madrugada, vai para dentro. Está um frio de rachar aqui fora, a sério. - Deu um passo atrás. - Vai lá... vai ver com o teu... macho...
Esfregou os olhos e ela teve a sensação de que ele se estava a lembrar de quando a apanhara no duche com o curandeiro.
- Eu volto... ah, liga... Tens telefone? Toma, fica com... merda, não o tenho.
- Está tudo bem, meu irmão. Eu regresso de madrugada.
- Ótimo, sim... nessa altura já terei notícias.
Ela olhou-o fixamente.
- Amo-te.
Agora ele sorria. Um grande sorriso, sem reservas. Esticando o braço, acariciou-lhe o rosto.
- Também te amo, mana. Agora vai lá para dentro e aquece-te.
- Vou fazer isso. - Esticou-se e deu-lhe um beijo na face. - Vou fazer isso!
Acenando-lhe, desmaterializou-se através do vidro. Oh, como o interior estava quente em comparação com a varanda... ou talvez fosse a onda de alegria que se espalhara
nela. Fosse o que fosse, fez uma pirueta apoiada só num pé e depois foi até à cama.
Manuel não estava apenas adormecido, estava totalmente inconsciente, mas ela não se importava. Saltando para a cama pôs um braço à volta dele e instantaneamente
ele gemeu e virou-se para ela, puxando-a para si, abraçando-a. Quando os corpos se fundiram e ela sentiu na anca a sua ereção, olhou rapidamente para a varanda.
Não valia a pena abusar da sorte com Vishous, mas tudo bem, ele já lá não estava.
Sorrindo na escuridão, ela descontraiu-se e acariciou o ombro do macho. Isto ia tudo correr bem e a chave tinha sido a lógica inabalável que Vishous tinha exposto
detalhadamente. De facto, o argumento era tão evidente, que ela nem acreditava que não tivesse pensado nisso antes.
Wrath podia não gostar, no entanto, concordaria porque os factos eram os factos e ele era um governante justo, que já tinha dado muitas vezes provas que não era
escravo dos costumes antigos.
Enquanto se aconchegava, sabia que não havia maneira de adormecer, correndo o risco de ser queimada pelo sol. Ela própria estava incandescente, ali deitada na cama
ao lado de Manuel, brilhando com tanta intensidade que projetava sombras no quarto.
Nada de dormir.
Ela só queria gozar o que estava a sentir.
Para sempre.
Capítulo 45
Vishous chegou a casa num abrir e fechar de olhos, e depois de dar conta da sua presença a Jane na clínica dirigiu-se à mansão através do túnel subterrâneo. Ao sair
para o átrio, só ouviu um reverberante absolutamente-nada, ficando desconfortável com o silêncio.
Estava tudo tão calmo.
É claro que, regra geral, isso seria assim por serem duas da manhã e os Irmãos estarem em campo. No entanto, naquela noite estavam todos recolhidos, provavelmente
a fazer sexo, a recuperar do sexo, ou a meio de o repetir.
Sinto-me como se tivesse feito amor contigo pela primeira vez.
Ao recordar a voz de Jane, nem sabia se havia de rir ou de dar um pontapé no seu próprio traseiro. Fosse como fosse, ele iniciara naquela noite um admirável mundo
novo, não que soubesse ao certo o que isso significava, mas estava disposto a tal. Absolutamente disposto.
Subindo a escadaria, dirigiu-se ao escritório de Wrath, enquanto procurava em todos os bolsos que... não tinha. Continuava com a maldita bata vestida. Com as manchas
de sangue. E sem cigarros.
- Que merda.
- Meu senhor? Necessita de algo?
Ao parar no cimo das escadas, olhou para Fritz, que limpava o balaústre, e quase beijou a matraca do mordomo.
- Estou sem tabaco. Mortalhas...
O velho doggen ofereceu um sorriso tão rasgado que as rugas no rosto o fizeram parecer um shar-pei.
- Tenho uma reserva na copa. Volto já... vai encontrar-se com o rei?
- Vou.
- Levar-lhos-ei lá... a par de um roupão, talvez?
A segunda parte foi proferida com toda a delicadeza.
- Porra, obrigado, Fritz. Salvaste-me a vida.
- Não, o senhor é que salva. - Fez uma vénia. - O senhor e a Irmandade salvam-nos todas as noites.
Fritz apressou-se a descer a escada, com um passo mais enérgico do que seria de esperar. Claro que não havia nada de que gostasse mais do que ser prestável. O que
era fantástico.
Certo. Ao trabalho.
Sentindo-se miserável na bata, V dirigiu-se às portas fechadas do escritório de Wrath, cerrou o punho e bateu.
A voz do rei fez-se ouvir do outro lado dos painéis grossos de madeira:
- Entra.
V obedeceu.
- Sou eu.
- Então, irmão?
No outro lado da sala de tons amaricados, Wrath estava na secretária imensa, sentado no trono do pai. No chão a seu lado, deitado numa cama Orvis vermelha personalizada,
George ergueu a cabeça loura e arrebitou as orelhas perfeitamente triangulares. O golden retriever bateu a cauda à laia de cumprimento, mas não deixou o dono.
O rei e o cão-guia nunca se separavam. E não era só porque Wrath precisasse de ajuda.
- Então, V? - Wrath recostou-se na cadeira entalhada, deixando pender a mão para afagar a cabeça do animal. - O teu cheiro é interessante.
- Ah é? - V sentou-se à frente do rei, assentando as mãos nas coxas e apertando para se tentar distrair da ânsia por nicotina.
- Deixaste a porta aberta.
- O Fritz vai trazer-me tabaco.
- Não vais fumar ao pé do meu cão.
Porra.
- Ah... - Esquecera-se da nova regra... e pedir que George fosse dar uma volta não era opção, afinal de contas Wrath podia ter perdido a visão, mas o sacana continuava
a ser mortífero e V já tivera a sua dose de S e M nessa noite, muito obrigado.
Fritz entrou no momento em que as sobrancelhas negras do rei se esconderam atrás dos óculos que lhe contornavam a cabeça.
- O seu tabaco, meu senhor - anunciou alegremente o mordomo.
- Obrigado, meu caro. - V aceitou as mortalhas e a bolsa... e o isqueiro que o doggen tivera o discernimento de providenciar. A par do roupão.
A porta fechou-se.
V olhou para o cão. A grande cabeça de George estava agora pousada entre as patas, com os ternurentos olhos castanhos parecendo lamentar a proibição do fumo. Chegou
mesmo a abanar ao de leve a ponta da cauda.
Vishous acariciou a bolsa do delicioso tabaco turco, num gesto desgraçadamente patético.
- Importas-te que enrole uns quantos?
- Se ouço a pedra do isqueiro vais ao chão.
- Entendido. - V alinhou o material na secretária. - Vim falar sobre a Payne.
- Como está a tua irmã?
- Ela está ... espetacular. - Abriu a bolsa, inalou e teve de reprimir o mmmm. - Resultou... não sei bem como, mas ela já anda por aí. De pé, como nova.
O rei chegou-se à frente.
- Não... me digas. A sério?
- Mesmo.
- É um milagre.
Ao que parecia, chamado Manuel Manello.
- Podemos dizer que sim.
- Pois isso é uma notícia do caraças. Queres arranjar-lhe um quarto aqui? O Fritz pode...
- É um bocadinho mais complicado do que isso.
Quando as sobrancelhas voltaram a desaparecer atrás dos óculos, V pensou, meu, mesmo sendo o rei completamente cego, parecia concentrar-se como sempre. O que nos
fazia sentir como se tivéssemos uma mira apontada à cabeça.
V começou a dispor os quadrados de papel branco.
- É aquele cirurgião humano.
- Ah... foda-se! - Wrath ergueu os óculos escuros para a testa e esfregou os olhos. - Não me lixes a dizer que eles se juntaram.
V permaneceu em silêncio, agarrando na bolsa e ocupando-se a espalhar tabaco.
- Estou à espera que me digas que me enganei. - Wrath deixou os óculos regressarem ao seu lugar. - Continuo à espera.
- Ela está apaixonada por ele.
- E não te importas com isso?
- É claro que me importo. Mas ela podia até sair com um Irmão e o desgraçado não ser bom o suficiente para ela. - Pegou num dos papéis carregados e começou a enrolar.
- Portanto... se ela o quer, digo que seja.
- V... sei o que estás a pensar e não o posso permitir.
Vishous parou enquanto lambia o papel e pensou em trazer Beth para a conversa. Claro que o rei parecia estar já a desenvolver uma dor de cabeça.
- Uma porra é que não podes permitir. O Rhage e a Mary...
- O Rhage foi espancado, lembras-te? Por um motivo. Além disso, as coisas estão a mudar, Vishous. A guerra está a aquecer, a Sociedade dos Minguantes anda a recrutar
como a merda... e ainda por cima temos a porra das metades que ontem encontraste na baixa.
Raios partam, pensou V. Aqueles matadores chacinados...
- E ainda por cima apareceu isto. - Sem olhar, Wrath levou a mão à esquerda e ergueu uma página em braile. - É a cópia de uma carta que foi enviada por e-mail ao
que resta das Famílias Fundadoras. O Xcor mudou de pouso com os rapazes dele... razão pela qual encontraste os minguantes naquele estado.
- Grande... porra. Eu sabia que tinha de ser ele.
- Ele está a armar-nos uma ratoeira.
V ficou hirto.
- Porquê?
A expressão de Wrath foi um verdadeiro acorda.
- Houve quem perdesse ramos inteiros da família. Fugiram de suas casas, mas querem regressar. Entretanto, as coisas em Caldwell estão a ficar cada vez mais perigosas.
Neste momento não podemos tomar nada como garantido.
Ou seja, ele não partia do princípio de que o seu trono estava seguro. Pouco importava a cadeira onde, por acaso, estava sentado.
- Portanto, não é que eu não entenda a situação da Payne - explicou Wrath. - Mas temos de fazer um círculo com as carroças e protegermo-nos. Não é uma boa altura
para acrescentarmos a complicação de ter aqui um humano.
O silêncio instalou-se por momentos.
Enquanto V pensava nos seus argumentos pegou em mais uma mortalha, enrolou-a, lambeu a borda, torceu.
- Ontem à noite ele ajudou a minha Jane. Quando os Irmãos e eu cá chegámos depois dos confrontos no beco, o Manello foi mais do que eficaz. É um cirurgião espetacular...
e eu bem o sei. Ele operou-me. Não é, de todo, inútil. - V olhou para o outro lado da secretária. - Se a guerra se intensificar, dava-nos jeito mais um par de mãos
operatórias aqui na clínica.
Wrath praguejou em inglês. E depois na Língua Antiga.
- Vishous...
- A Jane é espantosa, mas ela é só uma. E o Manello tem competências técnicas que a ela lhe faltam.
Wrath voltou a levantar os óculos e a esfregar os olhos. Com força.
- Estás a dizer-me que esse tipo vai querer passar o resto da vida, dia e noite, nesta casa? É pedir muito.
- E eu peço-lhe.
- Não gosto disto.
Um silêncio loooongo. O que mostrou a V que estava a abrir caminho. Claro que sabia que não devia forçar.
- Pensava que querias matar o desgraçado - resmungou Wrath. Como se esse fosse um objetivo preferível.
De repente, a imagem de Manello de joelhos à frente de Payne lançou-se pela mente de V, até ele ficar com vontade de pegar numa caneta e arrancar os próprios olhos
fora.
- Ainda quero - admitiu, num tom sombrio. - Mas... é ele que ela quer, a sério. O que é que eu posso fazer?
Outro silêncio loooongo, durante o qual produziu uma boa pilha de cigarros.
Por fim, Wrath passou a mão pelo nunca mais acabar de cabelo preto.
- Se ela se quiser encontrar com o humano fora daqui, o problema não é meu.
Vishous abriu a boca, pronto a argumentar, mas depois reconsiderou. Era melhor do que uma nega direta, e ninguém sabia o que o futuro reservava. Se mesmo depois
do Pesadelo do Duche V era capaz de evoluir para um ponto em que Manello permanecia acima da terra e a respirar, tudo poderia acontecer.
- É justo. - Fechou a bolsa. - O que vamos fazer quanto ao Xcor?
- Esperamos que o Conselho convoque uma reunião... algo que, não tenho dúvidas, vai acontecer nas próximas noites. A glymera vai engolir esta merda e nessa altura
ficamos com sérios problemas. - O rei prosseguiu, num tom seco: - Por oposição aos problemitas que temos agora.
- Queres que a Irmandade se junte para uma reunião?
- Não. Dá-lhes o resto da noite de folga. Isto não vai a lado nenhum.
V levantou-se, vestiu o roupão e juntou o material para fazer cigarros.
- Obrigado por isto. Tu sabes, por causa da Payne.
- Não é um favor.
- Já é uma mensagem de esperança para lhe levar.
Vishous estava a meio caminho da porta quando Wrath disse:
- Ela vai querer lutar.
V deu meia volta.
- Desculpa?
- A tua irmã. - Wrath pousou os cotovelos em cima da papelada e chegou-se à frente, com uma expressão grave no rosto cruel. - Tens de te preparar para quando ela
te pedir para ir combater.
Que raios, não.
- Não estou a ouvir isso.
- Mas vais ouvir. Já combati com ela, e é tão mortífera como tu e eu. Se julgas que ela se vai contentar a andar por esta casa nos próximos seiscentos anos, não
deves estar bom da cabeça. Mais tarde ou mais cedo, é o que ela vai querer.
Vishous abriu a boca e depois fechou-a.
Bem, estivera nas nuvens a apreciar a boa vida durante cerca de... vinte e nove minutos.
- Não me digas que o permitias.
- A Xhex luta.
- Ela é súbdita do Rehvenge. Não é tua. - As sobrancelhas de Wrath desapareceram pela terceira vez. - São padrões diferentes.
- Primeiro, todos os que se encontram debaixo deste teto são meus súbditos. E segundo, as coisas não ficam diferentes só por ela ser tua irmã.
- É claro - Que. Ficam. - que não.
- Uh-huh. Pois.
Vishous pigarreou.
- Estás mesmo a pensar deixá-la...
- Já viste como eu fiquei depois dos nossos duelos, não foi? Não lhe dei qualquer vantagem, Vishous. Aquela fêmea sabe o que está a fazer.
- Mas ela é... - Minha irmã. - Não a podes mandar lá para fora.
- Neste momento, preciso de tantos guerreiros quanto possível.
Vishous enfiou um cigarro entre os lábios.
- Acho que é melhor ir-me embora.
- Sim.
Assim que saiu e fechou a porta, acendeu o isqueiro de ouro que Fritz lhe trouxera e inspirou profundamente.
Enquanto pensava no que fazer a seguir, imaginou que poderia dar um salto ao Commodore e dar a boa nova à irmã, mas receava a cena perante a qual poderia vir a materializar-se.
Além disso, tinha até à alvorada para se convencer de que ter Payne em campo não era uma ideia tresloucada.
A par de tudo isso, tinha de falar com mais alguém.
Descendo a escadaria, atravessou o átrio e chegou ao vestíbulo. Lá fora, caminhou rapidamente pelo pátio empedrado e entrou no Fosso pela robusta porta principal.
A familiaridade dos divãs, do ecrã de plasma e da mesa de matraquilhos acalmou-o.
Ver a garrafa vazia de Lag em cima da mesa de apoio? Nem por isso.
- Butch?
Não teve resposta. Dirigiu-se então ao quarto do chui. A porta estava aberta e lá dentro... não havia nada, além do enorme roupeiro de Butch e de uma cama vazia
e revolta.
- Estou aqui.
V deu meia volta e espreitou para o seu quarto. As luzes estavam apagadas, mas as lâmpadas do corredor garantiam-lhe luz suficiente.
Butch estava sentado no extremo da cama, de costas para a porta, a cabeça baixa e os ombros largos curvados.
Vishous entrou e fechou a porta. Nem Jane nem Marissa iam aparecer. Estavam ambas ocupadas com os seus trabalhos. Mas Fritz e a sua equipa deviam passar por ali,
e o mordomo, louvado fosse, nem sequer batia a uma porta fechada. Já lá vivia há tempo suficiente.
- Então - disse V nas trevas.
- Então.
V avançou, contornando os pés da cama e servindo-se da parede para se orientar. Baixou o traseiro sobre o colchão e sentou-se ao lado do melhor amigo.
- Tu e a Jane estão bem? - perguntou o chui.
- Sim. Está tudo bem. - Que grande eufemismo. - Ela chegou mais ou menos quando acordei.
- Eu liguei-lhe.
- Imaginei. - Vishous virou a cabeça e olhou-o, embora isso pouco importasse naquele negrume. - Obrigado por aquilo...
- Sinto muito - gemeu Butch. - Meu Deus, sinto tanto...
A exalação arrastada que se seguiu foi um soluço mal disfarçado.
Apesar de não ver, V estendeu o braço e envolveu o chui. Aproximando o macho do peito, assentou a cabeça sobre a do amigo.
- Está tudo bem - disse, num tom rouco. - Está tudo bem. A sério... Fizeste o mais acertado...
De alguma forma, acabou por virar o macho, ficando com os baços em volta do chui.
Sem saber porquê, pensou na primeira noite que tinham passado juntos. Fora há um milhão e meio de anos, na antiga mansão urbana de Darius. Duas camas lado a lado
lá em cima. Butch perguntara sobre as tatuagens. V dissera-lhe que não se metesse onde não era chamado.
E ali estavam outra vez no escuro. Tendo em conta tudo o que acontecera desde então, era quase inacreditável que alguma vez tivessem sido aqueles dois machos que
estabeleceram uma ligação devido aos Sox.
- Não me peças para voltar a fazer aquilo nos próximos tempos - alertou o chui.
- Combinado.
- Claro que se precisares... vem ter comigo.
V esteve prestes a dizer qualquer coisa na linha de Nunca mais, mas isso era uma treta. Ele e o chui já tinham passado bastantes vezes por esse lado psiquiátrico
de V e, embora ele estivesse a virar a página, nunca se sabia.
Por isso limitou-se a repetir o voto que fizera a si próprio com Jane. A partir de agora, ia deixar as coisas saírem. Mesmo que isso o deixasse desconfortável a
ponto de gritar, era melhor do que a estratégia do acumular. Também era mais saudável.
- Espero que não seja preciso - murmurou. - Mas obrigado, meu.
- Mais uma coisa.
- O quê?
- Acho que agora já namoramos. - Quando V soltou uma gargalhada, o chui encolheu os ombros. - Então? Despi-te. Usaste um espartilho. E nem me lembres do banho de
esponja a seguir.
- Cabrão.
- Sempre.
Quando as gargalhadas se desvaneceram, V fechou os olhos e desligou brevemente o cérebro. Com o peito imenso do melhor amigo contra o seu, e a consciência de que
ele e Jane estavam outra vez bem, o seu mundo completava-se.
Agora, se conseguisse afastar a irmã das ruas e dos becos durante a noite... a vida seria perfeita.
Capítulo 46
Quando José se dirigiu ao Monroe Motel & Suítes, tornou-se óbvio que a única coisa nova em torno do sítio era a fita amarela que acabara de ser passada à volta do
perímetro. Tudo o resto estava murcho e em mau estado, incluindo os carros estacionados junto ao escritório.
Passando pelo alinhamento de polícias, chegou ao último quarto e estacionou o carro à paisana na diagonal em relação aos outros veículos da polícia de Caldwell.
Ao deixar o carro em ponto morto olhou para o outro banco.
- Estás bem para isto?
Veck já estava prestes a abrir a porta.
- Podes crer.
Quando saíram, os outros agentes aproximaram-se e Veck foi cercado por muitas palmadas nas costas. No departamento, as pessoas consideravam-no um herói devido ao
Incidente Paparazzi, e essa lista não se viu de todo reduzida por ele ignorar sempre os incentivos.
Mantendo-se tranquilo, limitou-se a puxar as calças e a sacar de um cigarro. Depois de o acender e de inspirar, falou enquanto exalava.
- Como estão as coisas?
José deixou o rapaz a informar-se e passou por baixo da fita. A porta arrombada da cena do crime fora encostada e abriu-a com o ombro.
- Porra - praguejou entredentes.
O ar estava carregado com o cheiro de sangue fresco... e de formaldeído.
Naquele momento, o flash da fotógrafa disparou e o corpo da vítima foi iluminado na cama, bem como os frascos de espécimes em cima da mesa-de-cabeceira. E as facas.
Fechou brevemente os olhos.
- Detetive?
José olhou sobre o ombro para Veck.
- Sim?
- Temos o registo da carrinha. Illinois. O dono é um tal de David Kroner. Não foi dada como roubada, e imagina só: o Kroner é um branco de trinta e três anos...
solteiro... de bai... grande porra. - As informações debitadas por Veck foram atalhadas ao parar junto à cama. - Jesus.
O flash voltou a disparar e ouviu-se um gemido eletrónico enquanto a máquina recuperava do esforço.
José olhou para o legista.
- Há quanto tempo é que ela está morta?
- Não muito. Ainda está quente. Dou-lhe uma hora mais aproximada quando acabar.
- Obrigado. - José acercou-se da secretária reles e serviu-se de uma caneta para afastar uma aliança de ouro fina, um par de brincos brilhantes e uma pulseira cor-de-rosa
e preta.
A tatuagem recortada da pela da vítima e depositada no frasco ao lado dela também era cor-de-rosa e preta. Provavelmente eram as suas cores preferidas.
Ou tinham sido.
Continuou a vaguear pelo quarto, em busca de coisas deslocadas, a confirmar os cestos de papéis, a espreitar a casa de banho.
Era óbvio que alguém interrompera o divertimento do assassino. Alguém ouvira ou vira qualquer coisa e tinha arrombado a porta, provocando uma fuga apressada pela
janela das traseiras por cima da sanita.
A chamada do 112 fora feita por um homem que se recusara a identificar-se. Dissera apenas que estava um cadáver no último quarto e nada mais. Não fora o assassino
deles. Esses sacanas só paravam se a isso fossem obrigados e não deixavam ficar o tipo de troféus que se viam em cima da mesa-de-cabeceira e da secretária.
- Para onde é que foste depois disto? - interrogou-se José. - Para onde é que fugiste...
Havia cães a farejar na mata lá atrás, mas José tinha a sensação de que isso não daria em nada. A meros cento e cinquenta metros do motel ficava um rio baixo o suficiente
para atravessar. A caminho dali, ele e Veck tinham passado sobre a pequena ponte que o atravessava.
- Ele está a mudar de estratégia - aventou Veck. Quando José se virou, o jovem levou as mãos às ancas e abanou a cabeça. - É a primeira vez que o faz num sítio assim
tão público. O trabalho dele é muito sujo... e potencialmente barulhento. Depois do que já fez, teríamos encontrado mais cenas como esta.
- Concordo.
- O David Kroner é a nossa resposta.
José encolheu os ombros.
- Talvez. Ou pode ser mais um corpo prestes a ser encontrado.
- Ninguém o deu como desaparecido.
- Disseste que era solteiro, certo? Talvez more sozinho. Quem ia dar por falta dele?
No entanto, mesmo enquanto abria buracos na teoria, José fez as suas próprias contas e chegou a uma conclusão semelhante. Era raro que alguém desaparecesse sem que
ninguém desse conta, família, amigos, colegas de trabalho, senhorio... Não era impossível, mas era pouco provável.
A questão era, para onde iria o assassino em seguida? Se o sacana seguisse o mais comum, seria provável que entrasse numa fase de exagero na patologia. Até então,
as vítimas apareciam com meses de intervalo, mas agora tinham encontrado duas numa semana.
Se partisse desse princípio, sabia que as ações cuidadosas que até então tinham ocultado o assassino iriam por água abaixo, com os padrões que seguia a desaparecerem
face a um impulso frenético. A boa notícia era que o desleixo o tornaria mais fácil de apanhar. A má notícia era que a situação poderia piorar antes de melhorar.
Veck acercou-se.
- Vou ver a carrinha. Queres estar presente?
- Sim.
Lá fora, o ar não cheirava a cobre e a químicos, e José respirou fundo enquanto Veck calçava as luvas e deitava mãos à obra. Como seria de esperar, o veículo estava
trancado, mas isso não o deteve. Pegou numa barra e abriu a porta do condutor como se já estivesse habituado a arrombar carros.
- Chiça - resmungou, ao recuar.
Não demorou muito para que o fedor chegasse a José, que tossiu para a mão. Mais formaldeído, mas também o fedor adocicado de coisas mortas.
- Não é na cabina. - Veck percorreu os bancos com a lanterna. - Na caixa.
As portas duplas tinham um cadeado, mas Veck foi à mala do carro à paisana e regressou com uma serra a pilhas.
Ouviu-se um gemido intenso... um ping!... e Veck entrou.
- Ah... porra...
José abanou a cabeça enquanto contornava o veículo para saber contra o que o parceiro praguejara.
O feixe da lanterna de Veck iluminava uma coleção de pequenos frascos com coisas a flutuar ou no fundo de um líquido transparente. Os recipientes estavam guardados
num sistema de prateleiras feitas por medida, montado do lado esquerdo. O lado direito estava reservado às ferramentas: facas e cordas, fita adesiva castanha, martelos,
escopros, lâminas, bisturis, afastadores.
Olá, David Kroner. Era extremamente improvável que o assassino tivesse montado tudo aquilo na carrinha de outra pessoa e quase apostava que os troféus naqueles frascos
encaixavam na perfeição nos buracos deixados na pele das vítimas.
A grande esperança seria que os cães-polícias lhe identificassem o rasto na mata.
Caso contrário, iriam perder outra mulher. José estava disposto a apostar a casa.
- Vou entrar em contacto com o FBI - disse. - Eles têm de vir ver isto.
Veck perscrutou o interior.
- Vou dar uma mãozinha aos rapazes da equipa forense. Gostava de levar este veículo para a sede o mais depressa possível, para que se possa identificar tudo devidamente.
José assentiu, pegou no telemóvel e pressionou a tecla de acesso rápido. Quando começou a chamar percebeu que, depois de falar com os federais, teria de ligar à
mulher. Nunca chegaria a casa a horas do pequeno-almoço.
Nem pensar.
Capítulo 47
-O sol! Ó, meu Deus! Depressa, é melhor...
Manny acordou em pleno ar. Era óbvio que saltara da cama, levando o edredão e várias almofadas consigo, e aterraram todos ao mesmo tempo, os pés, a coberta e o quarteto
de retângulos macios.
A luz do Sol entrava pelas janelas, enchendo-lhe o quarto com uma iluminação brilhante.
O cérebro dizia-lhe que Payne estava ali. Ela estava ali.
Olhando freneticamente à volta, correu para a casa de banho. Vazia. Percorreu o resto do apartamento. Vazio.
Esfregando o cabelo, voltou à cama... e depois apercebeu-se, santa mãe, ainda tinha as recordações todas. Dela. De Jane. Do Peras Odioso. Da operação e... daquele
duche maravilhoso. E de Glory.
Mas que raios...
Baixou-se, apanhou uma almofada e levou-a ao nariz. Sim, ela tinha mesmo estado deitada ao lado dele. Mas por que lá teria ido? E se assim fosse, por que não lhe
teria apagado a memória?
Dirigindo-se ao corredor, pegou no telemóvel e... Mas não lhe podia ligar. Não sabia o número.
Ali se deixou ficar por um instante e depois lembrou-se de que combinara encontrar-se com Goldberg dali a menos de uma hora.
Constrangido, e bizarramente em pânico sem qualquer motivo aparente, vestiu o equipamento de corrida e foi até ao elevador. No ginásio cumprimentou com acenos de
cabeça os outros indivíduos que malhavam ferro ou faziam abdominais e dirigiu-se à passadeira que costumava usar.
Esquecera-se do malfadado iPod, mas tinha a mente em tal alvoroço que silêncio era coisa que não havia entre as orelhas. Ao entrar no ritmo, tentou recordar-se do
que acontecera depois de tomar duche na véspera... mas não se lembrou de nada. Contudo, não estava com dor de cabeça, o que parecia sugerir que o buraco negro em
que se encontrava era algo natural, cortesia do álcool.
Ao longo do treino teve de acelerar a máquina algumas vezes. De certeza que um palerma teria andado a mexer na coisa e o tapete estava lento. E quando chegou aos
dez quilómetros apercebeu-se de que não estava de ressaca. Claro que a intensidade com que a mente lhe fervilhava fazia com que estivesse demasiado distraído para
se preocupar com as dores.
Quando desceu da passadeira, cerca de quinze minutos depois, precisava de uma toalha e dirigiu-se ao monte junto à saída. Um dos indivíduos dos pesos chegou ao mesmo
tempo, mas recuou, num gesto de deferência.
- Você primeiro, meu - estendendo a mão.
- Obrigado.
Enquanto Manny se limpava e dirigia à porta, fez uma breve pausa quando se apercebeu de que ninguém se mexia. Todos os que ali se encontravam tinham interrompido
o que faziam e fitavam-no. Uma olhadela rápida para baixo deixou-o com a certeza de que não sofria de uma perturbação de roupa. Mas que raios?
No elevador esticou as pernas e os braços e pensou, Cristo, podia correr mais quinze... vinte quilómetros sem problemas. E, apesar do álcool, pelos vistos tinha
tido uma noite de sono reconfortante, pois sentia-se desperto e cheio de energia. Mas era assim que funcionavam as endorfinas. Mesmo quando se estava a cair aos
bocados, a excitação da corrida era melhor do que cafeína... ou do que a sobriedade.
Não tinha dúvidas de que acabaria por se ir abaixo, mas logo se preocuparia com isso, quando a exaustão chegasse.
Meia hora depois entrou na Starbucks da Everett onde ele e Goldberg se tinham conhecido há anos, embora, na altura, o pequeno café ainda não tivesse sido adquirido
pela cadeia. O tipo fora aluno da Columbia e estava a concorrer ao internato no St. Francis, e Manny pertencia à equipa de recrutamento que fora reunida para o contratar.
Já na altura Goldberg era uma estrela e Manny quisera criar o melhor departamento do país.
Olhou à volta quando se pôs na fila para pedir um venti latte. O sítio estava a abarrotar, mas Goldberg já lhes conseguira uma mesa à janela. Isso não era uma surpresa.
Aquele cirurgião chegava sempre adiantado às reuniões. De certeza que já lá estaria há pelo menos quinze, vinte minutos. Mas não estava à procura de Manny. Fitava
o copo de papel, como se tentasse mexer psiquicamente o cappuccino.
Ah... ele trazia uma mensagem.
- Manuel? - chamou o rapaz ao balcão.
Manny aceitou o copo, contornou e ziguezagueou por entre os viciados em cafeína, os expositores de canecas e o quadro triangular que anunciava as promoções.
- Então? - cumprimentou ele quando se sentou à frente de Goldberg.
O outro cirurgião ergueu o olhar. E teve de olhar duas vezes.
- Ah... olá.
Manny bebeu um gole do café e recostou-se na cadeira, com as barras curvas das costas a pressionarem-lhe a coluna.
- Como tens andado?
- Eu estou... bem. Cristo, estás com um aspeto fantástico.
Manny esfregou o queixo com barba de véspera. Mas que grande mentira. Não se dera ao trabalho de se barbear e vestia uma camisola polar e calças de ganga. Não era
de todo os preparos de um garanhão.
- Deixemos as amabilidades. - Manny deu mais um gole no latte. - O que tens para me dizer?
Os olhos de Goldberg saltaram em todas as direções. Até que Manny teve pena dele.
- Querem que eu meta férias, não é?
Goldberg pigarreou.
- A direção do hospital acha que seria o melhor para... todos.
- Pediram-te para assumires a chefia, certo?
Mais um tossicar.
- Ah...
Manny pousou o copo.
- Não faz mal. Sem problema. Fico satisfeito... vai correr tudo bem.
- Sinto muito... - Goldberg abanou a cabeça. - Eu... isto parece tudo tão pouco ético. Mas... podes sempre voltar, sabes, depois. Além disso, o descanso fez-te bem.
Quer dizer, tu estás...
- Fantástico - disse Manny, num tom seco. - Uh-huh.
Era o que se dizia sempre às pessoas por quem se sentia pena.
Tomaram os cafés em silêncio e Manny interrogava-se se o outro estaria a pensar o mesmo que ele. Cristo, a volta que as coisas tinham dado. Quando se conheceram
ali, Goldberg estava tão nervoso como agora, só que por motivos bem diferentes. E quem diria que Manny viria a ser dispensado. Na altura só queria chegar ao topo
e nada o iria deter. E assim fora.
O que fez com que a sua reação ao pedido da direção fosse uma surpresa. Na verdade, não estava muito preocupado. Sentia-se... de certa forma desligado, como se isso
estivesse a acontecer a alguém que conhecera em tempos, mas que desde há muito se afastara. Pois, era importante, mas... que se danasse.
- Bem... - O toque do seu telefone interrompeu-o. E a dica quanto ao que realmente lhe interessava foi a pressa para tirar o aparelho, quase como se a camisola tivesse
pegado fogo.
Mas não era Payne, era o veterinário.
- Tenho de atender - disse a Goldberg. - Dois segundos. Sim, doutor, como está... - Manny franziu o cenho. - A sério. Uh-huh. Pois... pois... uhhuh... - Um sorriso
lento começou a crescer-lhe no rosto e dominou-lhe a expressão, até de certeza parecer radiante como um holofote. - Pois. É isso mesmo, não é? Parece a porra de
um milagre.
Quando desligou o telefone olhou para o outro lado da mesa. As sobrancelhas de Goldberg tinham-lhe chegado ao topo da testa.
- Boas notícias. Sobre o meu cavalo.
E o par de sobrancelhas subiu ainda mais.
- Não sabia que tinhas um cavalo.
- Chama-se Glory. É um puro-sangue.
- Ah. Uau.
- Dedico-me às corridas.
- Não sabia.
- Pois.
E as informações pessoais ficaram-se por aí, o que deu a entender a Manny o quanto falavam sobre o trabalho. No hospital, ele e Goldberg passavam horas a falar sobre
pacientes, questões de pessoal e sobre a gestão do departamento. De resto não tinham grande coisa a dizer um ao outro.
Mesmo assim, estava sentado à frente de um bom homem... alguém que provavelmente seria o próximo chefe de cirurgia do St. Francis. É claro que os diretores fariam
um concurso a nível nacional, mas Goldberg seria escolhido, pois os outros cirurgiões, que se assustavam com facilidade e gostavam de estabilidade, conheciam-no
e confiavam nele. E faziam bem. Goldberg era brilhante a nível técnico na sala de operações, proficiente a nível administrativo e muito mais calmo do que Manny alguma
vez fora.
- Vais fazer um excelente trabalho - garantiu Manny.
- O quê... ah. É só temporariamente, até que tu...tu sabes, até que voltes.
Ele parecia mesmo acreditar nisso, o que atestava a sua excelente índole.
- Pois.
Manny mexeu-se na cadeira e, quando voltou a cruzar as pernas, olhou à volta e viu três raparigas do outro lado. Deviam ter cerca de dezoito anos e, assim que cruzaram
os olhares, elas riram-se e falaram entre si, como se fingissem que não o tinham estado a mirar.
Voltando a sentir-se como no ginásio, confirmou o seu estado. Não. Continuava absolutamente sem estar nu. Mas que raio...
Quando ergueu o olhar, uma delas levantara-se e aproximara-se.
- Olá. A minha amiga acha que és giro.
Aaa...
- Ah, obrigado.
- Este é o telefone dela...
- Ah, não... não. - Pegou no papel que ela lhe depositara na mesa e obrigou-a a aceitá-lo de volta. - Fico lisonjeado, mas...
- Ela tem dezoito anos...
- E eu quarenta e cinco.
Com essas palavras, a rapariga ficou de boca aberta.
- Não posso.
- Sim. Podes. - Passou a mão pelo cabelo, interrogando-se quando entrara na Gossip Girl ou qualquer coisa do género. - E tenho namorada.
- Ah. - A jovem sorriu. - Isso é porreiro... mas, tipo, podias ter dito. Não era preciso mentir a dizeres que eras um cota.
Dito isso afastou-se e quando se sentou ouviu-se um gemido coletivo. E depois ele recebeu algumas piscadelas de olho.
Manny olhou para Goldberg.
- Miúdas. Quer dizer, sinceramente.
- Aaa. Pois.
Certo, estava na altura de acabar com aquele embaraço. Olhando pela janela, Manny começou a planear a saída...
No vidro viu o reflexo do seu rosto. Os mesmos malares altos. O mesmo queixo marcado. A mesma combinação de lábios e nariz. O mesmo cabelo preto. Mas havia qualquer
coisa de diferente.
Aproximando-se, pensou... os olhos estavam...
- Olha - disse calmamente. - Vou à casa de banho. Guardas-me o café antes de irmos embora?
- É claro. - Goldberg sorriu, aliviado, como se estivesse satisfeito por ter tantos planos de saída e um emprego. - Demora o tempo que quiseres.
Manny levantou-se e dirigiu-se à única casa de banho unissexo. Depois de bater sem resposta, abriu a porta e acendeu a luz. Quando se trancou e a ventoinha no teto
começou a funcionar, aproximou-se do espelho e leu o aviso «Os Funcionários Devem Lavar as Mãos».
A luz encontrava-se diretamente por cima do lavatório à frente do qual estava. Assim sendo, ele devia estar com um aspeto de merda, de olhos encovados pela exaustão,
com olheiras mais escuras que o breu e a pele da cor de uma torrada mal passada.
Não foi isso que o espelho lhe mostrou. Mesmo com a péssima luz fluorescente que o iluminava, parecia dez anos mais novo do que aquilo de que se lembrava. Irradiava
saúde, como se alguém tivesse photoshopado uma versão antiga da cabeça naquele corpo atual.
Recuando, estendeu os braços para o lado e agachou-se, dando à anca a oportunidade de berrar. Ou as coxas, que ele esforçara ao máximo há menos de uma hora. Ou as
costas.
Nada de dor. Nada de rigidez.
O corpo estava ansioso por trabalhar.
Pensou naquilo que o veterinário lhe dissera ao telefone, a voz do homem confusa e entusiasmada ao mesmo tempo: Ela regenerou o osso e o casco sarou espontaneamente.
É como se a lesão nunca tivesse acontecido.
Santo... Deus. E se Payne tivesse exercido a magia dela sobre ele? Enquanto estiveram juntos? E se ela lhe tivesse sarado o corpo a nível de tempo, sem que nenhum
desse por isso... fazendo o relógio biológico recuar não só meses, mas uma década ou mais?
Manny agarrou a cruz que trazia ao pescoço.
Quando alguém bateu à porta, Manny puxou o autoclismo na sanita vazia e depois abriu a torneira, para que não parecesse ter estado a fazer alguma coisa duvidosa.
Ao sair, estonteado, acenou com a cabeça para a mulher anafada que pretendia entrar e regressou para junto de Goldberg.
Sentou-se e limpou as palmas suadas às calças.
- Preciso de um favor - disse ao antigo colega. - É uma coisa que não pediria a mais ninguém...
- Diz. Qualquer coisa. Depois de tudo o que fizeste por mim...
- Quero que me faças uma avaliação física. E também uns exames.
Goldberg assentiu de imediato.
- Não ia dizê-lo, mas acho que é uma excelente ideia. As dores de cabeça...o esquecimento. Tens de saber se há algum... problema. - Ficou-se por aí, como se não
quisesse nem discutir nem tornar-se mórbido. - Embora, e isto é verdade... nunca te tenha visto com tão bom aspeto.
Manny acabou o café e levantou-se, com a sensação de urgência que o impelia sem nada ter a ver com a cafeína.
- Vamos embora. Se tiveres tempo agora, claro.
Goldberg não se demorou.
- Para ti, tenho sempre tempo.
Capítulo 48
De vez em quando, a morte de Qhuinn voltava ao pensamento dele. Acontecia em sonhos. Nas raras ocasiões em que ele estava quieto e calado. E às vezes para lhe lixar
a cabeça por puro gozo.
Ele procurava sempre evitar a colagem de imagens, cheiros e sons como se fossem a peste, mas apesar de ter solicitado ao seu tribunal interior o seu banimento, os
advogados adversários estavam a ser uns cabrões e a opor-se... portanto, aquela merda volta e meia regressava.
Deitado na cama, aquele pedaço de paisagem mental que não era nem estar a dormir nem desperto funcionava como uma linha aberta para aquela noite horrível lhe telefonar
e, quem diria, ela marcava o número, as memórias faziam soar a campainha e, de algum modo, forçavam-no a atender.
O seu próprio irmão fizera parte da guarda de honra que tinha aparecido para o espancar e os cretinos vestidos de preto seguiram-no pela berma quando ele veio embora
da mansão familiar pela última vez. Tudo o que possuía trazia consigo, e não fazia ideia para onde se podia dirigir. O seu pai tinha-o corrido de casa e ele tinha
sido riscado da árvore genealógica, portanto... era assim. Sem raízes. Sem rumo.
E tudo por causa dos seus olhos diferentes.
A guarda de honra supostamente só tinha por missão espancá-lo pela sua ofensa à linhagem. Não o deveriam matar. Só que as merdas tinham-se descontrolado e, numa
reviravolta inesperada, o irmão dele tinha tentado impedi-lo.
Qhuinn realmente recordava essa parte. A voz do irmão a dizer aos outros que parassem.
Mas tinha sido já demasiado tarde, e Qhuinn tinha flutuado para longe não só da dor, como também da própria terra... apenas para dar por si num mar de nevoeiro branco
que se abriu para revelar uma porta. Sem que ninguém lhe dissesse, ele tinha percebido que era a entrada para o Vápido e compreendeu também que, assim que a abrisse,
ele estava feito.
Coisa que lhe parecera uma ótima ideia na altura. Nada a perder, e tudo isso...
E ainda assim, ele vacilara no último instante. Por uma razão que não se conseguia lembrar.
Foi uma coisa estranhíssima... apesar de toda aquela noite estar gravada na sua mente, aquela era a única parte de que ele não se conseguia lembrar por mais que
tentasse.
Mas recordava-se de regressar ao seu próprio corpo. Ao recuperar a consciência, Blay tinha estado a fazer-lhe a reanimação cardiorrespiratória, e olha lá se aquele
não era um boca-a-boca de acordar os mortos...
A pancada que lhe soou na porta acordou-o de uma vez e ele sacudiu as almofadas, fazendo acender as luzes para ter a certeza de saber onde estava.
Isso mesmo. No seu quarto. Sozinho.
Mas não por muito mais tempo.
Os seus olhos ajustaram-se lentamente, apontaram para a porta, e ele soube quem estava do lado de lá. Conseguia sentir o aroma delicado a pairar, e soube por que
motivo Layla tinha vindo. Porra, talvez tivesse sido por isso que ele não tinha conseguido dormir em condições. Esperava ser acordado por ela a qualquer momento.
- Entra - disse-lhe num tom suave.
A Escolhida entrou sem ruído, e virou-se para ele, parecendo de rastos. Desgastada. Um deserto.
- Senhor...
- Podes chamar-me Qhuinn, sabes. Quer dizer, por favor, chama mesmo.
- Obrigada. - Ela fez uma vénia e pareceu debater-se para se endireitar. - Estive a pensar se poderia usufruir mais uma vez da tua oferta generosa para... te tomar
uma veia. Com efeito, estou... vazia e incapaz de regressar ao Santuário.
Quando o seu olhar se cruzou com os olhos verdes dela, algo se infiltrou bem fundo na sua mente, uma espécie de... perceção que ganhou raízes e rebentos de quase-que-entendi,
estou-quase-lá.
Olhos verdes. Verdes como uvas e jade e rebentos de primavera.
- Por que razão me olhas desse modo? - perguntou ela, apertando com mais força as lapelas das vestes.
Olhos verdes... num rosto que era...
A Escolhida espreitou novamente para a porta.
- Talvez... eu deva ir-me embora...
- Desculpa. - Sacudindo-se, ele certificou-se de que os lençóis o cobriam pela cintura e fez-lhe sinal para se aproximar. - Acabei de acordar... não ligues.
- Tens a certeza?
- Absoluta, anda cá. Amigos, lembras-te? - Estendeu a mão, e quando ela ficou ao seu alcance, pegou na dela e fê-la sentar-se.
- Senhor? Ainda estás a olhar para mim.
Qhuinn perscrutou o rosto dela e depois passou para o corpo. Olhos verdes...
Mas que raio tinham os olhos? Não é que ele nunca os tivesse visto antes.
Olhos verdes...
Conteve um palavrão. Cristo, isto era como ter uma canção na cabeça e lembrar-se de tudo menos da letra.
- Senhor?
- Qhuinn. Di-lo, por favor.
- Qhuinn.
Ele esboçou um sorriso.
- Toma, tira o que precisares.
Ao erguer o pulso, pensou, Meu, ela estava tão magra, ao debruçar-se e abrir a boca. As presas dela eram compridas e muito brancas, mas delicadas. Nada como as dele.
E o toque dela era gentil e feminino como tudo nela.
Coisa que o seu lado tradicionalista achou adequadíssimo.
Enquanto ela se alimentava, ele olhou para o cabelo loiro que estava arranjado num entrançado complexo, e para os ombros descobertos, e para as mãos bonitas.
Olhos verdes.
- Cristo. - Quando ela fez menção de parar, ele colocou a mão por trás do pescoço dela e manteve-a no seu pulso. - Está tudo bem. Tive uma cãibra no pé.
Mais verdadeiro seria dizer no cérebro.
Frustrado, ele ergueu a cabeça e, em vez de bater com ela na parede, esfregou os olhos. Quando os focou novamente, estava a olhar para a porta...
... Layla tinha acabado de entrar.
De imediato, ele voltou a deixar-se arrastar pelo sonho. Mas não pela pancada nem pelo seu irmão. Ele viu-se postado à entrada do Vápido... de pé em frente a painéis
brancos... com a mão erguida, quase a tocar na maçaneta.
A realidade esticou-se, puxou e derreteu-se como caramelo até ele não saber se estava acordado ou a dormir... ou morto.
O remoinho começou a formar-se no centro da porta, como qualquer que fosse o material de que era feita se tivesse liquefeito numa consistência leitosa. E do centro
daquela espécie de tornado surgiu uma imagem e veio aproximando-se, mais como se fosse um som do que algo palpável.
Era o rosto de uma jovem fêmea.
Uma jovem fêmea com cabelo loiro e traços refinados... e olhos verde-pálidos.
Ela olhava-o fixamente, cativando o seu olhar como se se tivesse apropriado de todo o seu rosto com as mãozinhas bonitas.
E então ela piscou os olhos. E eles mudaram de cor.
Um ficou verde, e o outro azul. Tal como os dele.
- Senhor!
A princípio ele ficou tremendamente confuso, imaginando o que teria levado a fêmea a chamar-lhe aquilo. Como é que ela sabia quem ele era?
- Qhuinn! Deixa-me fechar-te a ferida!
Ele pestanejou. E descobriu que se tinha atirado contra a cabeceira da cama, e ao fazê-lo, tinha arrancado da sua carne as presas de Layla e estava a sangrar para
o lençol.
- Deixa-me...
Ele afastou a Escolhida e colocou a própria boca na ferida. Enquanto cuidava de si, não conseguia tirar os olhos de Layla.
Era demasiaaaaado fácil sobrepor as feições daquela fêmea jovem no rosto de Layla e encontrar algo muito mais profundo do que semelhança.
Com o coração aos pulos, ele tentou lembrar-se que nunca lhe tinha dado para aquilo da presciência. Ao contrário de V, ele não conseguia ver o futuro.
Layla mexeu-se lentamente para sair da cama, como se não o quisesse assustar.
- Queres que eu vá chamar a Jane? Ou talvez seja melhor eu ir embora.
Qhuinn abriu a boca... e descobriu que não lhe saía nada.
Uau. Ele nunca tinha tido um acidente de carro, mas imaginou que o nó na garganta que sentiu naquele momento fosse provavelmente igual ao de um condutor que visse
outro carro ignorar um Stop e avançar para a sua porta. Triangulava a sua direção e velocidade contra as suas próprias, e concluía que o impacto estava iminente.
Ainda que ele não conseguisse imaginar um mundo em que engravidasse Layla.
- Vi o futuro - disse ele, à distância.
Layla levou as mãos à garganta como se estivesse a sufocar.
- Não é bom?
- Não é... possível. De todo.
Quando enfiou o rosto nas mãos, tudo o que conseguiu ver na escuridão foi aquela cara... aquela que era em parte a de Layla e em parte a sua.
Ó Deus... protege-os aos dois. Protege-os... todos.
- Senhor?! Estás a assustar-me.
Bem, com isso já eram dois.
Só que não podia ser. Ou podia?
- É melhor eu ir - disse ela com brusquidão. - Agradeço a tua dádiva.
Ele fez sinal com a cabeça, sem poder olhar para ela.
- Não tens de quê.
Quando a porta bateu, pouco depois, ele sentiu um arrepio, um medo gelado que lhe assaltou os ossos... e daí partiu para a sua alma.
Bem vistas as coisas, era irónico, pensou. Os seus pais nunca tinham querido que ele se reproduzisse, e quem diria... a ideia de emprenhar Layla com uma filha defeituosa,
ou pior, de passar os seus olhos fodidos a uma miúda inocente, fê-lo agarrar-se ao voto de celibato como nunca antes.
E, na verdade, ele deveria estar contente. De todos os destinos que poderia ter antevisto, este era cem por cento evitável, não era?
Ele simplesmente nunca iria foder com Layla.
Jamais.
Portanto, tudo não passava de uma impossibilidade. Ponto, parágrafo.
Capítulo 49
Manny regressou ao seu apartamento por volta das seis da manhã. Tudo indicava que tinha passado oito horas no hospital a ser incomodado e pressionado por várias
pessoas que conhecia melhor que a própria família.
Os resultados estavam na sua caixa de correio eletrónico porque tinha enviado automaticamente cópias de tudo o que estava na sua conta do hospital para a sua conta
pessoal. Não que houvesse razões para abrir os anexos. Ele sabia os comentários de cor. Sabia os resultados de cor. Todas as radiografias e TAC de cor.
Atirando as chaves para a bancada da cozinha, abriu o frigorífico e desejou que houvesse sumo de laranja fresco. Mas em vez disso, havia... pacotes de molho de soja
de um restaurante chinês de comida para fora ao fundo da rua... um frasco de ketchup... e uma marmita redonda com uma espécie de restos de um jantar de negócios
a que tinha ido há duas semanas.
Que se lixe. Não tinha assim tanta fome.
Inquieto e sem conseguir estar parado, avaliou a luz no céu. O sol ainda demorava a desaparecer a ocidente.
No entanto, não teria de esperar muito.
Payne regressaria para ele depois do sol se pôr. Sentia-o nos ossos. Ainda não sabia bem porque é que ela passara a noite com ele ou porque é que as suas memórias
permaneciam, mas tinha de pensar na hipótese de Payne tratar disso quando ali chegasse.
A caminho da casa de banho, o seu primeiro impulso foi apanhar as almofadas do chão e colocá-las no sítio. Depois alisou o edredão... e estava pronto para começar
a fazer as malas. Começou a tirar roupa da cómoda e a atirá-la para cima da cama revolta.
Não havia razão alguma para voltar para St. Francis. Tinha apresentado a demissão a meio dos exames.
Não havia razão para ficar em Caldwell. O melhor seria sair da cidade.
Não fazia ideia para onde iria, mas não era preciso um destino para se ir embora de um sítio.
Meias. Boxers. Polos. Calças de ganga. Calças de caqui.
A vantagem de ter um guarda-roupa que consistia acima de tudo em fardas fornecidas pelo hospital era não ter muito para arrumar. E Deus sabia que ele tinha muitos
sacos de ginásio.
Tirou da última gaveta da cómoda as únicas duas camisolas que tinha...
A moldura por baixo delas estava virada para baixo, com o suporte encostado pacificamente ao fundo.
Manny levantou o objeto. Não precisou de o virar para saber quem estava na fotografia. Tinha memorizado o rosto do homem há muitos, muitos anos.
E ainda assim foi um choque virar a moldura e ver a imagem do pai.
Um filho da mãe bonito. Muito, muito bonito. Cabelo escuro, tal como o de Manny. Olhos profundos, iguais aos de Manny.
E era até onde ele estava disposto a ir com a nostalgia. Como sempre, quando se tratava do pai, empurrava tudo para um canto na sua mente e andava para a frente
com a sua vida.
Esta noite isso significava que a moldura ia para cima do edredão e estava resolvido...
A batidela no vidro chegava demasiado cedo para ser ela, pensou.
Mas quando olhou para o relógio percebeu que a tarefa de preparar a mala tinha durado uma boa hora.
Olhando por cima do ombro, o coração bateu acelerou loucamente ao ver Payne do outro lado do vidro. Tinha entrançado o cabelo e tinha um vestido longo apertado na
cintura e estava... de cortar a respiração.
Foi até à varanda, abriu a porta deslizante e o ar frio da noite bateu-lhe na cara, obrigando-o a concentrar-se.
Com um sorriso de orelha a orelha, Payne não chegou bem a entrar, mas antes atirou-se para os seus braços, o corpo sólido contra o seu, os braços muito apertados
à volta do pescoço.
Deixou-se ficar abraçado a ela por instantes... pela última vez. E depois, apesar de não o querer, pousou-a no chão aproveitando a desculpa de fechar as portas para
evitar a rajada de vento para se afastar dela.
Quando a olhou de novo, a alegria no seu rosto tinha desaparecido e ela enrolava os braços à volta de si própria.
- Imaginei que voltasses - disse, rouco.
- Eu... Eu tinha boas notícias. - Payne olhou para a linha de sacos desportivos em cima da cama. - O que estás a fazer?
- Tenho de me ir embora daqui.
Enquanto ela fechou brevemente os olhos, quase o destruiu não ir até ela e confortá-la. Mas já era suficientemente difícil. Tocar-lhe outra vez ia desfazê-lo em
bocados.
- Fui ao médico hoje - disse ele. - Passei toda a tarde no hospital.
Ela ficou lívida.
- Estás doente?
- Não exatamente. - Andou para a frente e para trás até que parou em frente à cómoda e empurrou para dentro a última gaveta. - Na verdade, longe disso... Parece
que partes do meu corpo se regeneraram.
Colocou as mãos na anca.
- Durante anos tive uma artrite na anca, causada por lesões desportivas... sempre soube que eventualmente teria de ser substituída. Mas aquilo que mostram as radiografias
que fiz hoje? Está em perfeitas condições. Não há vestígios da artrite, nem inflamação. Está tão boa como quando tinha dezoito anos.
Quando ela abriu a boca, ele achou que o melhor era dizer-lhe já tudo. Puxando a manga da camisola, passou a mão pelo antebraço.
- Há duas décadas que tenho sardas por causa de queimaduras solares... agora desapareceram. - Baixou-se e levantou a perna das calças. - As microfraturas da tíbia
que me aparecem de vez em quando? Desapareceram. E isto apesar de eu ter corrido cerca de dez quilómetros esta manhã sem sequer pensar nisso... em menos de quarenta
e cinco minutos. As minhas análises não mostram qualquer indício de colesterol, têm valores hepáticos perfeitos, ferro e plaquetas na quantidade necessária exata.
Bateu com os dedos nas frontes.
- E há algum tempo que estou nos limites para usar óculos para ler, tendo de afastar as ementas e as revistas para conseguir... mas agora já não preciso. Consigo
ler as letrinhas pequenas a um palmo do nariz. E, acredite-se ou não, tudo isto é apenas o começo.
Nem valia a pena falar nos pés de galinha à volta dos olhos e nos cabelos brancos nas têmporas que tinham sido substituídos por castanhos-escuros e nos joelhos que
já não estavam lesionados.
- E tu achas... - Payne pousou uma mão na garganta. - Que é por causa de mim?
- Sei que é. Que mais podia ser?
Payne começou a abanar a cabeça.
- Não compreendo, porque é que isto não é uma bênção. A juventude eterna sempre foi procurada por todas as raças...
- Não é natural. - Ao dizer isto, ela estremeceu, mas ele tinha de continuar. - Sou médico, Payne. Sei tudo sobre o envelhecimento normal do corpo humano e o tratamento
de ferimentos. Isto... - Fez um gesto com a mão que percorreu o corpo - ...não está certo.
- É regeneração...
- Mas, onde para? Vou transformar-me no Benjamin Button e recuar até à infância?
- Isso seria impossível - contrapôs ela. - Já estive exposta à luz mais tempo do que tu e não reverti para um estado mais jovem.
- Okay, tudo bem, vamos assumir que isso não acontece... e todas as outras pessoas na minha vida? - Não que se tratasse de uma longa lista, mas ainda assim. - A
minha mãe vai ver-me assim e pensar que fiz cirurgia plástica... e daqui a dez anos? Ela só tem setenta... acredita em mim, quando chegar aos oitenta ou noventa,
vai perceber que o filho não está a envelhecer. Ou tenho de desistir dela?
Manny começou a andar outra vez e, ao puxar o cabelo, era capaz de jurar que estava mais resistente.
- Perdi o emprego hoje por causa do que aconteceu quando me apagaram as memórias. Durante essa semana, estive longe de ti, estava todo baralhado, não sabia se era
noite ou dia e era tudo o que tinham para lidar com a coisa, porque não lhes podia explicar o que realmente tinha acontecido. - Virou-se de novo para ela. - Aquilo
que me preocupa é que este é o único corpo que tenho, a única mente, a única... o que quer que seja. Vocês vampiros lixaram-me a cabeça e quase fiquei louco... e
quais são as consequências de tudo isto? Eu só sei a causa... A magnitude do efeito? Não faço ideia e isso aterroriza-me por uma maldita boa razão.
Payne colocou a ponta da trança em cima do ombro e acariciou-a enquanto baixava os olhos.
- Peço... desculpa.
- A culpa não é tua, Payne - gemeu ele, levantando as mãos ao céu. - E eu não quero culpar-te disto tudo, mas...
- A culpa é minha. Eu sou a causa.
- Payne ...
Quando se aproximou, ela levantou as mãos e afastou-se.
- Não, não te aproximes de mim.
- Payne...
- Tens razão. - Ela parou ao embater na porta envidraçada que tinha atravessado para entrar. - Sou perigosa e destrutiva.
Manny esfregou a cruz por dentro da camisa. Apesar do que tinha dito, naquele momento queria retirar tudo e, de algum modo, fazer com que tudo ficasse bem entre
eles.
- É um dom, Payne. - Afinal de contas, ele e o cavalo tinham mostrado os benefícios da exposição a curto prazo. - Vai ajudar-te e à tua família e ao teu povo. Diabo,
com o que consegues fazer, vais deixar a Jane sem trabalho.
- De facto.
- Payne... olha para mim. - Quando os olhos dela eventualmente encontraram os dele, teve vontade de chorar. - Eu...
Mas não conseguia acabar a frase... A verdade era que a amava. Completamente e para sempre. Contudo, desconfiava que essa era a maldição de tudo isto para ambos.
Ele nunca conseguiria esquecê-la e nunca haveria mais ninguém para ele.
Erguendo os ombros, preparou-se.
- Tenho uma coisa a pedir.
- E o que poderá ser? - lançou ela secamente.
- Não me apagues a memória. Não vou contar nada a ninguém sobre ti ou a tua raça... juro pela minha mãe. Simplesmente... deixa-me como estou quando te fores embora.
Sem a minha mente, tenho menos do que nada.
* * *
Payne estava radiante desde que deixara o complexo. O irmão tinha partilhado com ela as incríveis novidades assim que tinha regressado antes de madrugada e ela passara
todo o dia indecisa entre pairar numa nuvem e ficar impaciente com quão devagar o tempo estava a passar.
Depois tinha vindo.
Era difícil que tivesse o coração a transbordar de alegria apenas há dez minutos.
Não era, no entanto, difícil de compreender a posição de Manuel. E ficou surpreendida por nenhum dos dois ter antecipado as implicações maiores dos seus... poderes
de cura. Ou lá o que era.
Claro que o afetaria.
Olhando para Manuel, não conseguiu suportar a tensão que via nele. Estava honesta e verdadeiramente ansioso com o que sobraria se ela tirasse as memórias do tempo
que tinham estado juntos do alcance da sua consciência. E porque estaria? Perdeu o emprego que amava por causa dela. Tinha o corpo e a mente em perigo por causa
dela.
Pelas Parcas, ela nunca devia ter-se aproximado dele.
E era exatamente por causa disto que não gostavam da mistura com humanos.
- Não te preocupes - disse ela suavemente. - Não vou comprometer a tua mente. Já fiz o bastante.
Enquanto ele respirava de alívio, ela sentiu as lágrimas a apertarem-lhe a garganta. Fitou-a por um momento.
- Obrigado.
Ela fez uma pequena vénia e, ao endireitar-se, ficou chocada ao ver os seus magníficos olhos de mogno a cintilarem.
- Quero lembrar-me de ti, Payne... de tudo sobre ti. - Aquele olhar triste e nostálgico percorreu-lhe o rosto. - De como te senti e do teu sabor. Do som da tua gargalhada...
ofegante. Do tempo que passei ao teu lado... - A voz falhou-lhe e ele recuperou aclarando a garganta. - Preciso que essas memórias durem a minha vida inteira.
As lágrimas começaram a cair e escorrer pelo rosto dela e o coração começou a bater-lhe com força.
- Vou sentir a tua falta, bambina. Todos os dias. Sempre.
Quando ele estendeu os braços, ela aninhou-se neles e perdeu completamente a compostura. Soluçando contra a camisa dele, estava aninhada no seu corpo sólido e forte
e apertava-o com tanta força como ele a apertava a ela.
E então ambos quebraram o abraço ao mesmo tempo, como se fossem um só coração. E ela achou que eram.
Na verdade, havia uma parte dela que queria lutar e discutir e fazer com que ele visse o outro lado, outra possibilidade. Mas não tinha a certeza se existia um outro
lado. Também ela não conseguia prever o futuro, da mesma maneira que não podia prever as repercussões do que tinha mudado nele, tal como ele.
Não havia mais nada para dizer. Este fim imprevisto que chegara era uma pancada que não podia ser atenuada por conversa, toque, nem, desconfiava, pelo tempo.
- Tenho de ir agora - disse ela, afastando-se.
- Deixa-me abrir-te a porta...
Enquanto se desmaterializava da casa dele para fora, apercebeu-se de que aquelas eram as últimas palavras que ele lhe diria.
Era a despedida.
Manny ficou a olhar fixamente para o espaço que a sua mulher tinha acabado de ocupar. Já não havia mais nada dela. Tinha desaparecido como por magia, como um feixe
de luz que tivesse sido cortado.
De vez.
O impulso imediato foi ir até ao armário do hall de entrada, tirar de lá o taco de basebol e partir a casa toda. Partir todos os espelhos, vidros, louça, tudo...
atirar a pouca mobília que tinha pela varanda. Depois disso... se calhar levava o Porsche até à autoestrada do norte, andava a mais de cento e vinte e planeava uma
rota que terminasse nos apoios de uma ponte.
Neste cenário não havia cinto de segurança, obviamente.
Não obstante, afinal, acabou por ficar sentado na cama ao lado dos sacos desportivos e enfiar a cabeça nas mãos. Não era fraco para soluçar daquela maneira como
se estivesse num funeral. De modo algum. Deslizou para os ténis de corrida.
Macho. Realmente muito macho.
No entanto, a forma como se apresentava à plateia do seu apartamento vazio era tão importante como o seu orgulho, corpo, membro... tudo o resto.
A perda estava a dar cabo dele.
E ia transportar aquela dor consigo para o resto da sua vida natural.
Que irónico. O nome dela tinha-lhe parecido inicialmente muito estranho. Agora, parecia bastante adequado.
Capítulo 50
Payne não regressou à mansão. Não tinha qualquer interesse em ver quem lá morava. Nem ao rei, que tinha decidido a seu favor. E certamente que não queria ver todos
os casais felizes, sortudos e abençoados que viviam debaixo do teto real.
Por isso, em vez de ir para norte, materializou-se nas margens do canal que corria ao lado dos altos edifícios envidraçados da baixa. A brisa era mais gentil ao
nível do chão e transportava o som cantante de ondas a bater nas margens empedradas do rio. Como pano de fundo, o zumbido dos veículos a superarem as curvas e contracurvas
suaves das pontes e desaparecendo nas margens longínquas. Aqueles sons faziam-na sentir mais claramente a profundidade e a amplitude da paisagem.
Rodeada de humanos, estava completamente sozinha.
Contudo, era isto que ela tinha pedido. Era esta a liberdade que tão profundamente desejara e procurara com ânsia.
No Santuário, nada tinha mudado. Mas também nada tinha corrido mal.
Contudo, ainda assim, escolheria sempre aquela difícil provação ao isolamento entorpecedor anterior.
Ó Manuel ...
- Olá, querida.
Payne olhou por cima do ombro. Um macho humano estava a aproximar-se dela, tendo obviamente saído de trás de um dos apoios da ponte. Estava a acenar e cheirava a
camadas sobre camadas de suor fermentado e sujidade.
Sem se dar sequer ao trabalho de o cumprimentar, Payne desmaterializou-se para uma zona mais abaixo da margem do rio. Não havia motivo para lhe apagar a memória.
Era pouco provável que se lembrasse sequer que a tinha visto. Estava, sem dúvida, sob o efeito de diversas drogas alucinogénias.
Fitando a superfície ondulada do rio, não se sentia atraída pelas profundezas escuras. Não ia magoar-se a si própria por causa disto. Não se tratava de nenhuma prisão
para se encerrar lá dentro e, além disso, já chegava de escolher sempre a via cobarde. Firmando os pés na terra, cruzou os braços e ficou simplesmente a existir
naquele lugar, ignorando o tempo a escorrer pela peneira da realidade, enquanto as estrelas rodopiavam sobre a sua cabeça, mudando de posição...
A princípio, o cheiro chegou-lhe ao nariz discretamente, imiscuindo-se entre uma mistura de terra fresca, pedra molhada e poluição urbana. Por isso, ao início, não
registou o odor como nada específico.
Não obstante, rapidamente o seu cérebro acordou ao reconhecer o aroma.
Com um formigamento de instinto, a cabeça virou-se sozinha, dando meia volta no alto da espinha. Os ombros seguiram-se... depois as ancas.
O odor rançoso era o inimigo.
Um minguante.
Ao começar a correr ligeiramente, sentiu no sangue uma agressividade que não era apenas causada pela dor que sentia no coração e pela frustração daquilo que o destino
lhe reservara. Ao aproximar-se do cheiro, sentia-se animada por uma herança profunda de violência e proteção. Os membros, a mão da afaga e as presas a aguçarem-se.
Transformada pelo instinto mortal, já não era macho nem fêmea, nem Escolhida, nem filha ou irmã. Enquanto evitava ou enfrentava becos e ruas, era um soldado.
Virou para um beco e, ao fundo, viu dois matadores, cujo cheiro a tinha trazido desde o rio até ali. Juntos, estavam inclinados por cima de um objeto que ela identificou
como um telefone, eram novos recrutas, com cabelo escuro e corpos cheios de tiques.
Não olharam para cima quando ela parou. O que lhe deu tempo de pegar num disco metálico prateado com Ford gravado. Era uma arma excelente que podia ser usada para
bloquear ou para atirar.
Momentos depois, o vento começou a levantar e envolveu-lhe o vestido, retirando-o do seu corpo, e o movimento deve ter chamado a atenção deles, porque se viraram.
Apareceram facas. E também um par de sorrisos que lhe fizeram arder o sangue.
Idiotas, pensou. A pensarem que, por ser uma fêmea, não daria qualquer luta.
Aproximaram-se dela com uma passada tão lenta, que ela não viu razão nenhuma para os interromper. De facto, ela iria saborear a surpresa que eles teriam e à qual,
em última análise, não sobreviveriam.
- O que fazes aqui, menininha? - perguntou o maior dos dois. - Tão sozinha.
Estou prestes a abrir-te a garganta com o que tenho atrás das costas. Depois disso, parto-te as duas pernas, não porque tenha de o fazer, mas porque me diverte o
som. E depois localizo alguma coisa de metal para te enfiar na caixa torácica vazia e te mandar para o teu criador. Ou talvez te deixe a contorcer de dor no chão.
Payne manteve-se silenciosa. Em vez de falar, distribuiu igualmente o peso pelos dois pés bem assentes no chão e agachou-se. Nenhum dos minguantes pareceu notar
a mudança de posição. Estavam demasiado ocupados a caminhar para ela e a pavonearem-se. E nem sequer se separaram ou a flanquearam. Nem veio um atacá-la pela frente,
para o outro a poder atacar por trás.
Continuaram mesmo à sua frente... onde podia alcançá-los.
Enfim, aquilo não passaria de um ótimo aquecimento. A menos que aparecessem outros que soubessem lutar como deve ser e a divertissem...
Xcor sentia a agitação que indicava uma mudança nos bastardos.
Ao caminharem em formação pelas ruas da baixa de Caldwell, a energia atrás dele era um batucar de agressividade. Contundente. Renovada. Mais forte do que tinha sido
uma década antes.
De facto, mudar-se para aqui tinha sido a melhor decisão que tinha tomado. E não só por ele e Throe terem tido ótimo sexo e tomado uma bebida na noite anterior.
Os machos eram punhais retirados à pressa da forja, os instintos assassinos renovados e cintilando à luz da Lua na cidade. Não admira que não tivessem havido matadores
no País Antigo. Estavam todos aqui, a Sociedade dos Minguantes centrando os seus esforços...
A cabeça de Xcor virou-se para todos os lados e desacelerou.
O odor no ar fez com que as presas se alongassem e o corpo vibrasse com poder.
Não era necessário indicar a mudança de direção. Os bastardos estavam a acompanhá-lo, perscrutando a ameaça doce e doentia que se encontrava nas asas das rajadas
noturnas.
Ao virarem a esquina e deslizarem pela reta, rezou por mais. Uma dúzia. Uma centena. Duas centenas. Queria ficar coberto com sangue do inimigo, banhando-se no óleo
negro que lhes animava as carnes...
Na entrada do beco, os pés não pararam, mas cimentaram-se no chão.
Entre um pestanejar e outro, o passado desenrolou-se à sua frente, eliminando a distância entre os meses, anos e séculos de disputas e tornando disponível no presente
toda essa experiência.
No centro do beco, uma fêmea com um vestido branco comprido e ondulante estava a lutar com dois minguantes. Mantinha-os à distância com pontapés e murros, volteando
e saltando tão depressa que tinha de esperar que chegassem de novo até ela.
Com as suas competências superiores de luta, estava apenas a brincar com eles. E tinha a clara impressão de que eles não se apercebiam do quanto ela estava a poupá-los.
Fatal. Ela era mortífera e estava à espera para atacar.
E Xcor soube exatamente quem ela era.
- Ela é... - A garganta de Xcor abafou as restantes palavras.
Ter procurado durante séculos e ser-lhe negado aquele alvo... apenas para dar com ele, numa noite por acaso, numa cidade aleatória para lá do vasto oceano... era
o destino a manifestar-se.
Estava escrito que se encontrariam novamente.
Ali. Naquela noite.
- Ela é a assassina do meu pai. - Retirou a gadanha da bainha. - É a assassina do meu próprio sangue...
Alguém lhe agarrou na mão e travou-lhe o braço.
- Aqui não.
O facto de não ser o sofredor Throe foi a única razão que o fez parar. Era Zypher.
- Capturamo-la e levamo-la para casa. - O guerreiro riu-se sombriamente, o tom erótico aprofundando-se na sua voz. - Já te aliviaste, mas há outros entre nós que
necessitam daquilo que tiveste ontem à noite. Depois disso? Depois podes ensinar-lhe as repercussões dos atos vingativos.
Zypher era, de entre todos, o que mais provavelmente planearia algo assim. E, apesar de a ideia de a chacinar ali mesmo ser muito apelativa, Xcor tinha esperado
demasiado tempo para não saborear a derrota dela.
Tantos anos.
Anos de mais... até ter desistido da esperança de alguma vez a encontrar, apenas os sonhos mantendo viva a memória daquilo que o tinha definido e lhe tinha dado
a posição que assumia na vida.
Sim, pensou. Seria adequado fazer isto à maneira do Derramador de Sangue. Sem tornar as coisas simples para a fêmea.
Xcor voltou a arrumar a gadanha, enquanto a assassina atacava decentemente os matadores. Sem aviso, saltou em frente e investiu contra o peito de um, baixando-se
sob os braços flácidos e empurrando-o contra o edifício. Foi tudo tão rápido que o segundo minguante ficou demasiado surpreendido - e não tinha treino suficiente
- para salvar o amigo.
Mesmo que o número dois tivesse sido um lutador mais próximo das capacidades dela, não teria qualquer hipótese. Praticamente no mesmo momento em que atacou, a fêmea
fez girar por trás dela o tampão da jante e atacou o matador no pescoço, fazendo um corte profundo e desencorajando-o rapidamente da tarefa de se atirar a ela. Quando
o óleo preto começou a esguichar e os joelhos dele tremeram, ela terminou o matador que tinha encostado aos tijolos esmurrando-o duas vezes na cara e uma na maçã-de-adão.
Depois elevou o corpo dele no ar e atirou-o contra a perna dobrada.
A espinha a partir fez um som muito alto.
Enquanto este expirava, virou-se para enfrentar os que estavam a vê-la a lutar. O que não era surpresa nenhuma. Alguém com as suas capacidades ter-se-ia imediatamente
apercebido de que existiam ali outros.
Meneando a cabeça para um dos lados, não ficou alarmada. Mas também por que haveria de ficar? Estavam nas sombras e eram claramente da sua espécie. Até Xcor se revelar,
ela não faria ideia do perigo que corria.
- Boa noite, fêmea - disse ele, em tom baixo, da escuridão.
- Quem está aí? - quis saber ela.
É agora, pensou, avançando para um foco de luz...
- Não estamos sozinhos - murmurou Throe abruptamente.
Xcor parou a investida, os olhos a semicerrarem-se para os sete matadores que tinham aparecido ao fundo do beco.
De facto. Estavam muito acompanhados.
Mais tarde, Xcor acabou por acreditar que a única razão do sucesso na captura da fêmea tinha sido a chegada daqueles novos minguantes. O avanço dos inimigos exigiu
que olhasse para eles e lhes desse atenção. Mas antes de se poder desmaterializar para outra posição, Xcor estava sobre ela.
Apesar do batimento acelerado do seu coração, a vingança dava-lhe força para dispersar as moléculas, mesmo quando ela se virou para enfrentar o esquadrão que se
aproximava. Prendeu a pulseira de aço no pulso dela rápida e certeiramente e, enquanto ela andava à volta com fúria estampada no rosto, ele lembrou-se da incineração
a que ela forçara o seu progenitor.
O que o salvou foi um tiro de um dos minguantes.
O disparo não tinha importância, mas a sua consequência trazia um benefício espetacular. Mesmo quando ela estava a levantar a mão livre para a pousar nele, a sua
perna descaiu e ela caiu no chão, não havendo dúvidas de que a bala acertara em algum ponto vital. E, naquele momento de fraqueza, Xcor dominou-a. Só tinha uma oportunidade
de a controlar. Se não tivesse aproveitado, não tinha a certeza de ter conseguido fazê-lo.
Fechando a outra pulseira no pulso livre dela, agarrou-lhe na trança e enrolou-a à volta do pescoço. Puxando o cabelo com força, cortou-lhe o ar, mesmo quando os
seus guerreiros avançavam de armas em riste.
Oh, como ela lutava. Tão valente. Tão poderosa.
Não passava de uma fêmea... mas talvez fosse um pouco mais do que isso. Era quase tão forte como ele e essa não era a sua única vantagem. Mesmo aprisionada e à beira
da asfixia, os olhos pálidos continuavam fixos nos dele, até ele sentir que ela podia invadir-lhe a mente e apoderar-se dos seus pensamentos.
Mas ele não se deixaria assombrar. Enquanto os sons da batalha rebentavam no beco, ele enfrentou o olhar fixo da assassina do seu progenitor, à medida que os seus
braços iam apertando cada vez mais o laço à volta do pescoço.
Debatendo-se para respirar, ela engasgou-se e contorceu-se, os lábios a moverem-se.
Aproximando o ouvido, ele queria saber o que ela tinha a...
- ... porquê...?
Xcor encolheu-se quando ela deixou de lutar e os formidáveis olhos se reviraram.
Querida Virgem Escrivã, ela nem sabia quem ele era.
Capítulo 51
No que dizia respeito a antros masculinos, V sempre pensara que a sala de bilhar na mansão da Irmandade tinha tudo. Ecrã gigante com som surround. Divãs com estofo
suficiente para serem considerados camas. Lareira para aquecer e para aquela treta atraente das brasas. Bar com todas as bebidas concebíveis, refrigerantes, cocktails,
chá, café, cerveja... tudo.
E uma mesa de bilhar, claro.
A única coisa «má» acabava por ser uma benesse. A máquina de pipocas fora uma aquisição recente, e um tipo bizarro de campo de batalha. Rhage adorava brincar com
a coisa, mas sempre que o fazia, Fritz ficava nervoso e queria parte da ação. Fosse como fosse, era divertido. Os cestinhos de verga ficavam cheios e depois era
a vez do elemento do par que ainda não tivesse funcionado com a máquina.
Enquanto esperava pela sua jogada na mesa de bilhar, Vishous pegou num quadrado de giz azul e esfregou a ponta do taco. Butch baixou-se sobre o feltro verde e apontou
enquanto se ouvia «Aston Martin Music», de Rick Ross.
- Sete no canto - disse o chui.
- Vais enfiá-la, não vais? - V pousou o giz e abanou a cabeça ao ouvir-se a pancada, o rolar e a queda da bola. - Sacana.
Butch olhou-o, com um «toma» na expressão.
- Sou mesmo bom. Desculpa lá, palerma.
O chui deu um gole no Lag e foi assumir nova posição do outro lado da mesa. Enquanto observava o jogo, o sorriso de malandro estava no sítio certo, revelando-lhe
a coroa de porcelana ligeiramente torta.
V ficara de olho no macho. Depois de terem passado horas juntos, tinham-se separado com embaraço e tomado duche independentes. Felizmente, a água quente reanimara-os
e quando voltaram a encontrar-se, na cozinha do Fosso, tudo voltara ao normal.
E as coisas continuaram assim.
Não que não se sentisse tentado a perguntar-lhe se continuava tudo bem. Tipo, a cada cinco minutos. Era como se tivessem travado uma batalha juntos, e exibissem
as fraturas e as nódoas negras que o provavam. Mas V gostava de ver o que se estava a passar à sua frente, o melhor amigo a dar-lhe uma tareia no bilhar.
- E acabou-se o jogo - anunciou o chui quando a bola oito descreveu uma curva e entrou.
- Venceste-me.
- Pois. - Butch ofereceu um sorriso rasgado e ergueu o copo. - Queres a desforra.
- Podes crer.
O cheiro de manteiga derretida e os estalidos dos grãos de milho aos saltos anunciaram a chegada de Rhage ou talvez de Fritz? Não, era Hollywood que estava junto
à máquina com a sua Mary.
V inclinou-se para poder olhar pela arcada, para o outro lado do átrio até à sala de jantar, onde o mordomo e a sua equipa preparavam a última refeição.
- Meu, o Rhage está a brincar com o fogo - comentou Butch enquanto começava a recolher as bolas.
- Dou trinta segundos para que o Fritz... Aí vem ele.
- Vou fingir que não estou aqui.
V deu um gole no seu Goose.
- Eu também.
Enquanto se ocupavam a recolher as bolas, Fritz chegou a correr pelo átrio, qual míssil guiado por calor.
- Tem cuidado, Hollywood, certo? - resmungou V quando Rhage se aproximou com um cesto de pipocas fresquinhas.
- É bom para ele. Precisa de exercício... Fritz! Como estás, camarada?
Enquanto Butch e V reviravam os olhos, Rehv entrou com Ehlena por baixo do braço envolto em marta. O cabrão de crista estava encasacado, como sempre, e apoiava-se
na bengala, mas ostentava o sorriso eterno de macho acasalado, e a shellan dele estava radiante a seu lado.
- Rapazes - disse.
Foram cumprimentados por vários resmungos e Z e Bella chegaram com Nalla, seguidos por Phury e Cormia. Wrath e Beth ainda deveriam estar no escritório, provavelmente
a analisar papelada ou, talvez, a deixar George brevemente ao cimo das escadas, para terem um pouco de privacidade.
Quando John e Xhex desceram com Blay e Saxton, os únicos em falta eram Qhuinn e Tohrment, que deveriam estar no ginásio, e Marissa, que se encontrava na Casa Segura.
Bem, esses três e a Jane dele, que estava na clínica, a reabastecer os suprimentos que tinham sido utilizados na outra noite.
Ah, claro e a sua gémea que, de certeza, estava a... «oh, simzar»... com aquele cirurgião dela.
Com todos os recém-chegados, o som de vozes multiplicou-se e explodiu, à medida que se serviam bebidas, se passava o bebé e se recolhiam mancheias de pipocas. Entretanto,
Rhage e Fritz abriam um carregamento novo de milho. E alguém mudava de canais na televisão, possivelmente Rehv, que nunca estava satisfeito com o que pudesse estar
a dar. E outra pessoa avivava o lume.
- Ei. Continuas bem? - perguntou Butch em voz baixa.
V mascarou o sobressalto tirando um cigarro enrolado do bolso das calças de cabedal. O chui falara tão baixo que mais ninguém o teria ouvido, o que era bom. Sim,
ele estava a tentar abandonar as merdas do secretismo, mas não queria que mais ninguém soubesse até que ponto ele e Butch tinham chegado. Isso era privado.
Acendeu o cigarro e inspirou.
- Sim. Estou mesmo, a sério. - Depois olhou para os olhos cor de avelã do melhor amigo. - E... tu?
- Sim. Eu também.
- Boa.
- Boa.
Ena pá, vejam só aquilo com os relacionamentos. Se continuasse assim, ainda ganhava uma estrela dourada para pôr na caderneta.
Uma batida com os nós dos dedos depois, Butch regressou ao jogo, fazendo pontaria com o taco enquanto V se deleitava com a satisfação das relações pessoais, qual
profissional da coisa.
Bebia mais um gole do copo de Goose quando os olhos se dirigiram à entrada em arco da sala.
Jane hesitou ao espreitar para o interior, com a bata branca a abrir-se quando se inclinou, como se o procurasse.
Quando os olhos se cruzaram, ela esboçou um sorriso. E depois este tornou-se rasgado.
O primeiro impulso de V foi ocultar o seu próprio sorriso atrás do Goose, mas depois deteve-se. Nova ordem mundial.
Vá lá, sorri, cabrão, pensou.
Jane acenou brevemente e manteve-se tranquila, que era o que costumavam fazer quando em público. Virando-se, ela dirigiu-se ao bar para tomar algo.
- Espera aí, chui - murmurou V, pousando a sua bebida e apoiando o taco à mesa.
Sentindo-se como um miúdo de quinze anos, prendeu o cigarro entre os dentes e apertou o cinto nas calças de cabedal. Um rápido alisar do cabelo e estava... bem,
tão pronto quanto possível.
Aproximou-se de Jane por trás no momento em que ela começara a conversar com Mary e quando a sua shellan deu meia volta para o cumprimentar, pareceu um tanto ou
quanto surpreendida por ele se ter dirigido a ela.
- Olá, V... Como estás...
Vishous aproximou-se ainda mais, encostando os corpos, e depois envolveu-lhe a cintura com os braços. Segurando-a com uma mostra de posse, inclinou-a lentamente
para trás até que ela lhe agarrou os ombros e o cabelo lhe descaiu do rosto.
Quando ela arquejou, V disse exatamente aquilo em que estava a pensar:
- Tive saudades tuas.
E com essas palavras, levou a boca à dela e beijou-a profundamente, descendo uma mão até à anca e enfiando-lhe a língua na boca, e continuou, continuou, continuou...
Tinha a vaga noção de que a sala ficara em silêncio e de que tudo com batimento cardíaco o fitava e à sua parceira. Pouco importava. Era aquilo que queria fazer
e iria fazê-lo à frente de todos e até do cão do rei, segundo se viria a revelar.
Pois Wrath e Beth tinham acabado de chegar do átrio.
Quando Vishous endireitou lentamente a shellan, os gritos e os assobios fizeram-se ouvir e alguém atirou pipocas como se fossem confetes.
- Assim é que é - declarou Hollywood. E atirou mais pipocas.
Vishous pigarreou.
- Tenho um anúncio a fazer.
Certo. Muito bem, havia muitos olhos focados no par. Mas ia engolir a vontade de se calar.
Apertando a afogueada e enrubescida Jane a seu lado, disse alto e bom som:
- Vamos acasalar. Como deve ser. E espero que todos estejam presentes e... Pois, é isso.
Silêncio. De. Morte.
Wrath soltou a barra da coleira de George e começou a bater palmas. Lenta e sonoramente.
- Já não era sem tempo, porra.
Os irmãos dele e suas shellans e todos os convidados da mansão imitaram-no. Os guerreiros deram início a um cântico que deitou a casa abaixo com as suas vozes a
vibrar pelo ar.
Ao olhar para Jane, ela parecia radiante. Só lhe faltava brilhar.
- Talvez devesse ter perguntado primeiro - murmurou ele.
- Não. - Jane beijou-o. - Isto é perfeito.
Vishous começou a rir. Meu, se aquilo era viver em voz alta, nunca mais voltaria ao silêncio. Os irmãos apoiavam-no, a sua shellan estava feliz e... está bem, dispensava
as pipocas no cabelo, mas que se danasse.
Minutos depois, Fritz trouxe taças de champanhe e começou a ouvir-se outro tipo de estampido, com rolhas a voar enquanto o grupo falava ainda mais alto do que antes.
Quando alguém lhe enfiou um copo na mitene, murmurou ao ouvido de Jane:
- O champanhe deixa-me excitado.
- A sério?
Baixando a mão pela anca dela... e mais baixo... puxou-a contra a súbita ereção.
- Já conheces a casa de banho do átrio?
- Creio que já fomos apresentad... Vishous!
O macho parou de lhe mordiscar o pescoço, mas continuou a rebolar as ancas contra as dela. Era um pouco indecente, mas nada que os outros casais não fizessem de
tempos a tempos.
- Sim? - disse ele, num tom arrastado. Quando ela pareceu sem fala, sugou-lhe o lábio e murmurou: - Se bem te lembras, estávamos a falar sobre a casa de banho. Se
calhar podia voltar a apresentá-las. Não sei se te apercebeste, mas aquela bancada do lavatório tem andado a chorar por ti.
- E tu fazes alguns dos teus melhores trabalhos em lavatórios.
V percorreu-lhe o pescoço com uma presa.
- É verdade.
Quando a ereção começou a latejar, pegou na mão da fêmea...
O relógio de sala ao canto começou a bater as horas e V contou as badaladas. O que o fez recuar um pouco e confirmar o seu próprio relógio, embora não precisasse
porque o da sala dava as horas certas há dois séculos.
Quatro da manhã? Mas onde é que estava Payne?
Quando o impulso de ir ao Commodore e trazer a irmã se manifestou com força, teve de se recordar de que embora a alvorada se aproximasse rapidamente, ela ainda teria
uma hora. E tendo em conta o que ele e Jane estavam prestes a fazer à porta fechada, não a podia censurar por querer aproveitar cada segundo que tinha com o seu
macho, mesmo que definitiva e absolutamente não fosse por aí.
- Está tudo bem? - perguntou Jane.
Voltando ao programa da noite, V baixou a cabeça.
- Vai estar assim que te levar para aquela bancada.
Ele e Jane passaram quarenta e cinco minutos fechados nos lavabos.
Quando saíram, todos continuavam na sala de bilhar. A música estava mais alta e «I’m Not a Human Being», de Lil Wayne, ecoava até ao teto do átrio. Os doggen ocupavam-se
com acepipes finos em travessas de prata e Rhage tinha um círculo à sua volta a rir-se das piadas que contava.
Por um momento pareceu-lhe os velhos tempos.
Mas não viu a irmã no meio da multidão. E ninguém lhe foi dizer que ela tinha ido para o quarto de hóspedes que andava a usar.
- Já volto - disse a Jane. Com um beijo rápido, V deixou a festa, percorreu o átrio e entrou na sala de jantar vazia. Contornando a mesa, completamente posta mas
muito vazia, tirou o telemóvel do bolso e marcou o número que lhe dera.
Ninguém atendeu.
Voltou a tentar. Nada. Terceira tentativa? Ninguém... atendeu aquela porra.
Praguejando, marcou o número de Manello e arrepiou-se, tentando não pensar no que poderia estar a interromper. Provavelmente teriam fechado os cortinados e perdido
a noção do tempo. E os telefones tinham a mania de se perder no meio dos lençóis, pensou, com um esgar.
Trim... trim... trim...
- Atende, porra...
- Estou?
Manello parecia mal. Mal como em tiro. Mal como em moribundo.
- Onde está a minha irmã? - Porque o cirurgião não atenderia assim se a sua irmã estivesse na cama dele.
A pausa que se seguiu também não era bom sinal.
- Não sei. Ela saiu daqui há horas.
- Horas?!
- O que se passa?
- Cristo... - V desligou e voltou a marcar o número da irmã. E mais uma vez.
Virando a cabeça, olhou para o átrio e para a porta do vestíbulo.
Com um gemido discreto, as portadas de aço que protegiam a casa do sol começaram a descer.
Vá lá, Payne... vem para casa. Já.
Já...
O toque gentil de Jane trouxe-o de volta à realidade.
- Está tudo bem? - perguntou.
A primeira reação de V foi encobrir tudo com um comentário sobre a imitação de Rhage de Steve-O a ser projetado dentro de uma casa de banho portátil. Em vez disso,
obrigou-se a ser sincero com a companheira.
- A Payne... pode ter desaparecido. - Quando ela arquejou e levantou a outra mão, a vontade de V foi sair dali. Mas manteve-se firme no tapete oriental. - Ela saiu
da casa do Manello há horas... há horas! E agora estou a rezar a uma mãe que desprezo para que ela entre por aquela porta.
Jane não disse mais nada. Em vez disso, posicionou-se de maneira a ver a entrada pelo vestíbulo e esperou com ele.
Ao dar-lhe a mão, V apercebeu-se de que era um alívio não estar sozinho enquanto a festa decorria do outro lado... e a irmã ainda não tinha chegado a casa.
A visão que tivera dela no cavalo preto a toda a brida regressou-lhe no silêncio da sala de jantar. O cabelo preto dela voava-lhe atrás do corpo e a crina do garanhão
agitava-se também, com o par a galope... sabe Deus para onde.
Uma alegoria? interrogou-se. Ou apenas o desejo sentido pelo irmão de que ela fosse, por fim, livre...?
Quando o sol nasceu oficialmente, vinte e dois minutos depois, Jane e V continuavam ali juntos, a fitar uma porta que nunca se abriu.
Manny estava de cabeça perdida, absolutamente perdida, enquanto dava voltas ao apartamento. Tencionara sair de casa pouco depois de Payne, mas perdera a energia
e passara o resto da noite a fitar... a noite.
Demasiado vazio.
Estava demasiado esvaído para se mexer.
Quando o telefone tocou a seu lado, confirmou o número e reviveu por breves instantes. Número privado. Tinha de ser ela.
E, como a sua mente passara as últimas horas a rever tudo o que ela dissera, precisara de um instante para se concentrar depois de tantas voltas em vão. Na altura,
o discurso que debitara parecera racional, razoável e inteligente... até ficar a olhar para um futuro que era profundamente vazio.
Atendera o telefonema sem esperar uma voz masculina do outro lado. E muito menos o irmão dela.
E ainda menos ter o sacana a ficar surpreendido quando soube que Payne não estava no apartamento.
Enquanto Manny andava às voltas fitava o telefone, desejando que ele voltasse a tocar... desejando que aquela merda disparasse e que fosse Payne a dizer-lhe que
estava bem. Ou o irmão. Alguém.
Fosse quem fosse.
Pelo amor de Deus, até podia ser o Al Roker a telefonar-lhe e a dizer que ela estava bem.
Mas a alvorada chegou com demasiada celeridade e o telefone manteve-se excessivamente silencioso. E, como qualquer derrotado, foi à lista de chamadas e tentou responder
ao telefonema do «número privado». Quando só recebeu o sinal de chamada, teve vontade de atirar o telemóvel para o outro lado da sala, mas talvez não fosse boa ideia.
A impotência era terrível. Esmagadora.
Queria sair e... que merda, encontrar Payne se ela estivesse perdida. Ou levá-la para casa se estivesse sozinha. Ou...
O telefone tocou. Número privado.
- Foda-se, ainda bem - exclamou ao atender. - Payne...
- Não.
Manny fechou os olhos. O irmão dela parecia de rastos.
- Onde é que ela está?
- Não sabemos. E aqui não podemos fazer nada... ficámos fechados cá dentro. - O tipo exalou como se estivesse a fumar alguma coisa. - O que é que aconteceu antes
de ela sair daí? Pensei que ela fosse passar a noite contigo. Não há problema se vocês os dois... tu sabes... mas porque é que ela saiu tão cedo?
- Disse-lhe que as coisas não iam resultar.
Um silêncio longo.
- Mas o que é que tinhas na merda da cabeça?
Tornou-se óbvio que, se o sol não brilhasse lá fora, o cabrão estaria a bater à porta de Manny para dar cabo de um canastro italiano.
- Pensava que fosses ficar satisfeito com isso.
- Ah sim, claro... parte aí o coração da minha irmã. Parece-me uma bela ideia. - Outra exalação, como se soprasse fumo. - Ela está apaixonada por ti, meu idiota.
Ora se isso não o deixava sem saber o que dizer. Mas voltou ao assunto premente.
- Escuta, nós...
Nesse momento era suposto explicar os resultados dos exames físicos, como se sentia assoberbado e admitir que não sabia quais seriam as repercussões. Mas o problema
era que, desde que Payne partira, ele apercebera-se de que por mais sincero que tudo isso fosse, havia algo ainda mais fundamental a corroer-lhe o íntimo. Ele estava
a ser um fraco. A separação resumia-se ao facto de ele estar a borrar-se de medo por se ter apaixonado por uma mulher... uma fêmea... fosse o que fosse. Pois, havia
um sem fim de tretas metafísicas que ele não compreendia, nem era capaz de explicar, blá, blá, blá. Mas no fundo, o que se passava era que ele amava tanto Payne
que já não se reconhecia, e isso era o mais assustador.
Acobardara-se quando tivera oportunidade.
Mas isso acabara.
- Estamos apaixonados - declarou com toda a clareza.
E maldito fosse, devia ter tido tomates para lho dizer. E para a abraçar. E para a manter.
- Por isso repito, o que é que tinhas na merda da cabeça?
- Boa pergunta.
- Cristo.
- Escuta, como é que posso ajudar... Posso sair durante o dia e não há nada que eu não faça para a recuperar. Nada. - Alimentado pela obsessão, foi buscar as chaves.
- Se ela não está contigo, para onde iria. E aquele sítio... o Santuário?
- A Cormia e o Phury foram lá. Nada.
- Então... - Detestava pensar naquilo. - E os vossos inimigos? Onde é que eles ficam durante o dia... Eu vou lá.
Pragas. Mais soprar. Pausa. Depois um clique e uma inalação, como se o tipo estivesse a acender outro cigarro.
- Sabes, não devias fumar - ouviu-se Manny a dizer.
- Os vampiros não têm cancro.
- A sério?
- Sim. Certo, as coisas são assim. Não conhecemos uma morada específica da Sociedade dos Minguantes. Os matadores costumam misturar-se com a população humana em
pequenos grupos, pelo que é quase impossível encontrá-los sem provocar distúrbios graves. A única coisa... Vai aos becos na baixa ribeirinha. Ela pode ter encontrado
minguantes... vais procurar indícios de uma luta. Fica uma espécie de óleo preto por todo o lado. Como se fosse óleo de motor. E vai ter um cheiro adocicado... como
se fosse uma mistura de animal morto e talco. É bastante característico. Vamos começar por aí.
- Tenho de poder entrar em contacto contigo. Tens de me dar o teu número.
- Envio-te um sms com ele. Tens alguma arma?
- Sim, tenho. - Manny estava já a tirar a quarenta do armário. Passara toda a sua vida adulta na cidade e, às vezes, havia porcaria pelo que aprendera a usar uma
arma há cerca de vinte anos.
- Diz-me que é maior do que uma nove milímetros.
- É.
- Arranja uma faca. Precisas de uma lâmina de inox.
- Entendido. - Dirigiu-se à cozinha e pegou na maior e mais afiada Henckels que tinha. - Mais alguma coisa?
- Um lança-chamas. Matracas. Estrelas de arremesso. Uma Uzi. Queres que continue?
Se pelo menos dispusesse desse tipo de arsenal.
- Eu vou buscá-la, vampiro. Ouve bem o que te estou a dizer... eu vou buscá-la. - Pegou na carteira e estava a dirigir-se à porta quando o terror o imobilizou. -
Quantos são eles? Os vossos inimigos.
- Não têm fim.
- São... machos?
Pausa.
- Costumavam ser. Antes de serem transformados eram humanos.
Um som escapou-se da boca de Manny... algo que ele tinha a certeza nunca produzira antes.
- Não, ela safa-se com o combate corpo a corpo - disse o irmão num tom átono. - É forte.
- Não era nisso que estava a pensar. - Teve de esfregar os olhos. - Ela é virgem.
- Ainda...? - perguntou o vampiro, passado um instante.
- Sim. Não era correto que eu... lhe tirasse isso.
Cristo, pensar que poderia ser magoada...
Nem para consigo foi capaz de acabar a frase.
Regressando à ação, saiu de casa e chamou o elevador. Enquanto esperava, apercebeu-se de que já há algum tempo que só tinha silêncio do outro lado da linha.
- Estou? Estás aí?
- Sim. - Debitou a voz do gémeo dela. - Sim, estou aqui.
A ligação continuou ativa quando Manny entrou no elevador e pressionou G. A viagem até ao carro decorreu sem que nenhum dos dois dissesse nada.
- Eles são impotentes - resmungou finalmente o gémeo de Payne, quando Manny estava a entrar no Porsche. - Não podem fazer sexo.
Pois, isso não o ajudava a sentir-se melhor. E pelo tom da voz do irmão, o tipo pensava o mesmo.
- Eu ligo-te - disse Manny.
- Faz isso, meu. Acho bem que faças isso.
Capítulo 52
Quando Payne recuperou a consciência, não abriu os olhos. Não havia motivo para revelar que estava ciente do que a cercava.
A sensação corporal informou-a da situação em que se encontrava. Estava de pé, de pulsos agrilhoados e puxados para os lados, com as costas contra uma parede de
pedra húmida. Tinha os tornozelos igualmente cingidos e afastados, e a cabeça tombara para a frente numa posição muito desconfortável.
Quando inspirava sentia o cheiro a terra almiscarada e as vozes de machos chegavam-lhe vindas da esquerda.
Vozes muito graves. Com um tom excitado, como se tivessem tomado posse de uma mais-valia.
Ela.
Enquanto reunia as forças, não duvidava quanto ao que lhe iriam fazer. Em breve. E enquanto se recompunha evitava pensar no seu Manuel... de como, caso aqueles machos
levassem a deles avante, a maculariam vezes sem conta antes de a assassinarem, tomando aquilo que, por direito, deveria ter sido do seu curandeiro...
Mas não podia nem iria pensar nele. Esse pensamento seria um fosso negro que a sugaria, a encurralaria e a deixaria indefesa.
Em vez disso procurou as meadas da memória, cruzando as imagens do rosto dos seus raptores com aquilo que vira nas taças do Santuário.
Porquê? interrogou-se. Não fazia ideia por que motivo o macho do lábio arruinado a atacara com tanto ódio...
- Sei que estás desperta. - A voz era impossivelmente baixa, tinha um sotaque carregado e encontrava-se ao lado do seu ouvido. - A tua respiração mudou de ritmo.
Erguendo as pálpebras a par da cabeça, desviou o olhar na direção do soldado. Estava nas sombras a seu lado, pelo que não o pôde ver claramente.
De repente, as outras vozes silenciaram-se e sentiu muitos olhares em si.
Era assim que se sentiam as presas.
- Magoa-me que não te lembres de mim, fêmea. - Com essas palavras aproximou uma vela do rosto. - Penso em ti desde a primeira vez que nos vimos. Há dois séculos.
Payne semicerrou os olhos. Cabelo preto. Olhos azuis-escuros cruéis. E um lábio leporino com que obviamente nascera.
- Lembra-te de mim. - Não era uma questão, mas uma exigência. - Lembra-te de mim.
E então ocorreu-lhe. A pequena aldeia no limite de um vale arborizado. Onde ela matara o pai. Era um dos soldados do Derramador de Sangue. Não havia dúvida de que
todos eles seriam.
Ah, era definitivamente uma presa, pensou. E pretendiam magoá-la antes de a matarem por vingança por lhes ter retirado o líder.
- Lembra-te de mim.
- És um soldado do Derramador de Sangue.
- Não - bradou ele, aproximando o rosto. - Sou mais do que isso.
Quando Payne franziu o cenho, o macho recuou e descreveu um círculo apertado, os punhos cerrados, a vela a escorrer cera para cima da mão fechada.
Quando voltou à frente dela, estava controlado. Por pouco.
- Sou filho dele. Filho dele. Roubaste-me o meu pai...
- Impossível.
- ...injustamente... O quê?
- É impossível seres filho dele - disse Payne alto e bom som no silêncio atrapalhado que se seguiu.
Quando as palavras foram apreendidas, a fúria cega que lhe surgiu no rosto era a mais pura definição de ódio e a mão tremia-lhe quando a levantou acima do ombro.
Esbofeteou-a com tanta força que Payne viu estrelas.
Quando endireitou a cabeça e lhe susteve o olhar, Payne decidiu que não iria tolerar aquilo. Nem a crença errada. Nem o grupo de machos que a miravam. Nem a ignorância
criminosa.
Payne olhou o captor nos olhos.
- O Derramador de Sangue só foi progenitor de um macho...
- O Irmão Vishous, da Irmandade da Adaga Negra. - As gargalhadas duras ecoaram. - Ouvi bastantes histórias sobre as perversões dele...
- O meu irmão não é um pervertido!
Nesse momento, Payne perdeu o controlo, dominada pela fúria que tinha consigo na noite em que matara o pai. Vishous era do seu sangue e o seu salvador por tudo o
que fizera por ela. Não ia permitir que o desrespeitassem, mesmo que a defesa lhe custasse a vida.
No espaço de duas batidas de coração, foi consumida por uma energia interior que iluminou com uma luz branca brilhante a adega onde se encontravam.
As algemas dissolveram-se, caindo com estrépito na terra compactada.
O macho à sua frente saltou para trás, assumindo uma posição de combate, enquanto os outros procuravam armas. Mas ela não ia atacar... pelo menos fisicamente.
- Ouve-me - declarou ela. - Nasci da Virgem Escrivã. Pertenço ao Santuário das Escolhidas. Por isso, quando te digo que o Derramador de Sangue, o meu pai, não deu
origem a mais nenhum macho, isso é um facto.
- Que não é verdadeiro - murmurou o macho. - E tu... Não podes ter nascido da Mãe da raça. Ninguém nasceu dela...
Payne ergueu os braços luminosos.
- Sou o que sou. Nega-o por tua conta e risco.
A tez do macho perdeu a pouca cor que tinha e seguiu-se um compasso tenso e demorado, com armas convencionais apontadas na direção de Payne e ela a brilhar com a
fúria sagrada.
O soldado principal abandonou a pose de combate, com as mãos a penderem-lhe ao lado do corpo e as coxas a endireitarem-se.
- Não pode ser - tartamudeou. - Nada disso pode ser...
Macho idiota, pensou ela.
Erguendo o queixo, declarou:
- Sou a nascida do Derramador de Sangue e da Virgem Escrivã. E digo-te agora - avançou na direção dele - que matei o meu pai e não o teu.
Erguendo a mão, puxou-a atrás e esbofeteou-o.
- E não insultes o meu sangue.
Quando a fêmea lhe bateu, a cabeça de Xcor foi atirada com tanta força para o lado que quase deslocou o ombro numa tentativa de manter a mona presa à coluna. O sangue
encheu-lhe de imediato a boca, cuspindo-o antes de se endireitar.
Por sua fé, a fêmea que tinha à sua frente era majestosa na sua fúria e decisão. Quase tão alta como ele, fitava-o diretamente nos olhos, de pés firmes, as mãos
cerradas em punhos que estava preparada a usar contra ele e o seu bando de bastardos.
Não se tratava de uma fêmea vulgar. E não só pela forma como dissolvera as grilhetas.
Com efeito, quando os olhares se cruzaram, ela recordava-o o pai. Ela tinha a vontade férrea do Derramador de Sangue, não só no rosto, nos olhos ou no corpo. Tinha-a
na alma.
Com efeito, tinha noção de que poderiam cair todos sobre ela, e a fêmea combatê-los-ia até ao último fôlego.
Deus sabia que ela batia como um guerreiro, não como uma fêmea de pulsos fracos.
Mas...
- Ele era meu pai. Ele próprio mo disse.
- Era um mentiroso. - E nem pestanejou. Não baixou o olhar ou o queixo. - Contemplei inúmeras filhas bastardas nas taças de visão. Mas só houve um único filho, o
meu gémeo.
Xcor não estava preparado para ouvir aquilo, muito menos à frente dos seus machos.
Relanceou-os. Até Throe se armara e todos os rostos denotavam uma fúria impaciente. Com um mero sinal cairiam sobre ela, mesmo que os incinerasse a todos.
- Deixem-nos - ordenou.
Sem grande surpresa, foi Zypher quem começou a argumentar.
- Deixa-nos segurá-la enquanto tu...
- Deixem-nos.
Seguiu-se um momento de imobilidade, após o que Xcor bradou:
- Deixem-nos!
Num abrir e fechar de olhos, todos desapareceram pela escadaria de acesso à casa escurecida lá em cima. Depois a porta fechou-se e ouviram-se os passos no piso superior,
enquanto davam voltas, quais animais enjaulados.
Xcor voltou a concentrar-se na fêmea.
E durante muito tempo limitou-se a fitá-la.
- Procurei-te durante séculos.
- Não estive na Terra. Até agora.
Permaneceu hirta, enquanto ele a confrontava em privado. Absolutamente hirta. E quando lhe perscrutou o rosto, Xcor sentiu o gelo do seu coração a mover-se.
- Porque... o mataste? - indagou, num tom rouco.
A fêmea pestanejou lentamente, como se não quisesse demonstrar vulnerabilidade e precisasse de um instante para garantir que não a revelava.
- Porque ele magoou o meu gémeo. Ele... torturou o meu irmão, e por isso teve de morrer.
Então, talvez as lendas tivessem um fundo de verdade, pensou Xcor.
Com efeito, à semelhança da maioria dos soldados, há muito que conhecia a história que contava que o Derramador de Sangue exigira que o filho fosse imobilizado no
chão e tatuado... e depois castrado. A narrativa dizia que a lesão fora apenas parcial. Dizia-se que Vishous queimara com magia as amarras que o prendiam e depois
fugira para a noite, antes que o ato fosse completado.
Xcor olhou para as grilhetas que tinham caído dos pulsos da fêmea... queimadas.
Erguendo as mãos, olhou para a sua carne. Que nunca brilhara.
- Ele disse-me que eu nasci de uma fêmea que o procurara em troca de sangue. Disse-me... que ela não me quis por causa do meu... - Tocou no lábio superior deformado,
deixando a frase por concluir. - Ele aceitou-me e... ensinou-me a lutar. A seu lado.
Xcor tinha uma vaga noção de que a sua voz estava rouca, mas não se preocupou com isso. Sentia-se como se olhasse para um espelho e visse um reflexo seu que não
reconhecia.
- Disse-me que era filho dele... e teve-me como a um filho. Depois da morte assumi o lugar dele, tal como fazem os filhos.
A fêmea avaliou-o e depois abanou a cabeça.
- E eu digo-te que ele mentiu. Olha-me nos olhos. Sabes que te digo a verdade que há muito, muito tempo deverias ter ouvido. - A voz reduziu-se a um murmúrio. -
Conheço bem a traição do sangue. Conheço bem a dor que sentes agora. Não é justo o fardo que carregas. Mas peço-te, não baseies uma vingança numa ficção. Pois serei
obrigada a matar-te... e se não for eu, o meu gémeo vai caçar-te com a Irmandade, e vai fazer-te suplicar pela morte.
Xcor analisou-se e viu algo que desprezava, mas que não podia ignorar. Não tinha memória da cabra que o parira, mas conhecia bem a história de como ela o expulsara
da sala de partos devido à sua fealdade.
Quisera ser reivindicado. E o Derramador de Sangue assim o fizera. A malformação física nunca fora relevante para aquele macho. Apenas se preocupara com as capacidades
que Xcor tinha em abundância: velocidade, resistência, agilidade, poder... e uma concentração mortífera.
Xcor sempre partira do princípio de que recebera isso do lado do pai.
- Ele deu-me um nome - ouviu-se a dizer. - A minha mãe recusou-se a fazê-lo. Mas o Derramador de Sangue... deu-me nome.
- Lamento muito.
O mais estranho em tudo aquilo? Acreditava nela. Antes pronta a combater até à morte, ela agora parecia entristecida.
Xcor afastou-se dela e andou em círculos.
Se não era o filho do Derramador de Sangue, quem era ele? E ainda lideraria os seus machos? Ainda o seguiriam em batalha?
- Olho para o futuro e vejo... nada - resmungou.
- Também sei como é isso.
Parou e encarou a fêmea. Cruzara os braços sobre os seios e não o olhava, mas sim para a parede à frente dela. Naquelas feições viu o mesmo vazio que sentia no próprio
peito.
Erguendo os ombros, dirigiu-se a ela.
- Não tenho qualquer questão a resolver contigo. As ações dirigidas contra o meu - pausa - contra o Derramador de Sangue... foram levadas a cabo pelas tuas razões
válidas.
Com efeito, tinham sido orientadas pela mesma lealdade de sangue e pelo mesmo espírito de vingança que animara a sua busca por ela.
Num gesto digno de um guerreiro, ela curvou-se pela cintura, aceitando as palavras dele e limpando o ar entre os dois.
- Sou livre de partir?
- Sim... mas é dia. - Quando ela olhou em volta para os beliches e enxergas, como se imaginasse os machos que a queriam, ele declarou: - Nenhum mal te será feito
aqui. Sou o líder e eu... - Bem, ele fora o líder. - Passaremos o dia lá em cima para que tenhas privacidade. Tens comida e bebida naquela mesa.
Xcor fez as ofertas de privacidade e provisão sem pensar nas questões de dignidade que envolviam as Escolhidas. Mas aquela fêmea era... merecedora do seu respeito.
Se alguém entendia a importância da vingança contra um insulto feito à família, era ele. E o Derramador de Sangue infligira danos permanentes ao irmão dela.
- Pelo cair da noite - indicou - levar-te-emos daqui vendada, pois não deves saber onde nos encontramos. Mas serás libertada ilesa.
Virando-lhe as costas, dirigiu-se ao único catre sem parte de cima. Mesmo sentindo-se um idiota, esticou o cobertor grosseiro. Não havia almofada, pelo que se baixou
e apanhou uma pilha das suas camisas lavadas.
- É onde eu durmo... podes usá-lo para descansar. E para que não receies pela tua segurança ou virtude, está uma arma de cada lado, no chão. Mas não te preocupes.
Chegarás ao pôr-do-sol em segurança.
Não fez qualquer voto pela sua honra pois, a bem da verdade, não a possuía. E não olhou para trás quando se dirigiu às escadas.
- Qual é o teu nome? - perguntou ela.
- Não o sabes já, Escolhida?
- Não sei tudo.
- Pois. - Levou a mão ao balaústre grosseiro. - Eu também não. Bom dia, Escolhida.
Ao subir as escadas, sentia-se como se tivesse envelhecido séculos desde que carregara o corpo inanimado e quente da fêmea para o subterrâneo.
Ao abrir a robusta porta de madeira, não fazia ideia do que o esperava. Após o anúncio do seu estatuto, os machos poderiam ter-se reunido e decidido expulsá-lo...
Ali estavam todos, num semicírculo, com Throe e Zypher nos extremos do grupo. Tinham armas nas mãos e os rostos ostentavam expressões sombrias... e esperavam que
ele dissesse alguma coisa.
Fechou a porta e encostou-se a ela. Não era cobarde, para fugir deles ou do que acontecera lá em baixo, e não via qualquer utilidade em justificar o que fora revelado
com palavras cuidadosas, ou com pausas.
- A fêmea disse a verdade. Não tenho uma ligação de sangue com aquele que julgava ser meu progenitor. O que me dizem?
Não proferiram qualquer palavra. Não trocaram olhares. E não houve hesitação.
Ajoelharam-se em uníssono, chegando ao soalho e curvando as cabeças. Foi Throe quem falou.
- Estamos eternamente às tuas ordens.
Ao ouvir a resposta, Xcor pigarreou. E outra vez. E ainda mais uma vez. Na Língua Antiga declarou:
- Nenhum líder alguma vez contemplou costas mais fortes e mais leais do que as reunidas perante mim.
Throe ergueu o olhar.
- Não foi a memória do teu pai que servimos ao longo de tantos anos.
Ouviu-se um ulular de concordância, muito mais significativo do que qualquer voto que pudesse ter sido feito com uma linguagem floreada. Logo depois o soalho de
madeira a seus pés foi trespassado por adagas, os punhos seguros pelas mãos de soldados que eram e sempre seriam seus para comandar.
E teria deixado as coisas ficarem por aí, mas os seus planos a longo prazo exigiam uma revelação e uma nova confirmação.
- O meu objetivo não se limita a combater ao lado da Irmandade - disse em voz baixa, para que a fêmea lá em baixo nada ouvisse. - A minha ambição é uma sentença
de morte caso seja descoberta por outros. Compreendem o que estou a dizer?
- O rei - murmurou alguém.
- Sim. - Xcor fitou os olhos de cada um. - O rei.
Nenhum deles desviou o olhar, nem se levantou. Eram uma unidade sólida de músculos, força e determinação mortífera.
- Se isso alterar a decisão de qualquer um de vós - quis saber -, dir-me-ão agora e partirão ao cair da noite para não mais voltar, sem risco de pena de morte.
Throe quebrou fileiras baixando a cabeça. Mas não passou daí. Não se levantou, nem se afastou dali, nem mais ninguém o fez.
- Bom - disse Xcor.
- E quanto à fêmea? - indagou Zypher com um sorriso sombrio.
Xcor abanou a cabeça.
- Nem pensar. Ela não merece qualquer castigo.
O macho ergueu as sobrancelhas.
- Ótimo. Então posso recompensá-la.
Pelo amor de Deus, era demasiado parecido com o maldito Lhenihan.
- Não. Não lhe vais tocar. Ela é uma Escolhida. - Isso prendeu-lhes a atenção, mas Xcor não revelaria mais. Já estava farto de os ouvir. - E vamos dormir aqui.
- Mas que raios?! - Zypher levantou-se e os outros imitaram-no. - Se me dizes que ela é proibida, deixo-a em paz, tal como farão os outros. Porque é que...
- Porque é isso que eu ordeno.
Para marcar a sua posição, Xcor sentou-se à frente da porta, de costas contra os painéis. Em campo confiava a vida aos seus soldados, mas lá em baixo estava uma
fêmea bela e poderosa, e aquele grupo era constituído por sacanas excitados, sempre com cio.
Para chegar a ela teriam de passar por ele.
Afinal de contas, ele era um bastardo, mas ainda tinha os seus códigos, e ela merecia a proteção de que provavelmente não precisava pelo favor que lhe fizera.
Matar o Derramador de Sangue?
Afinal de contas tinha sido um favor prestado a Xcor.
Pois isso significava que não teria de ser ele próprio a acabar com o desgraçado.
Capítulo 53
Manny estava ao volante do seu carro, as mãos a apertar com força, os olhos fitos na estrada à sua frente, quando fez uma curva apertada... e foi dar com o tipo
de cena exata que Vishous descrevera.
Já não era sem tempo, porra. Só precisara de cerca de três horas às voltas em quarteirão atrás de quarteirão atrás de merda de quarteirão até dar com aquilo.
Mas sim, era aquilo que procurava. À luz das dez da manhã que brilhava entre os edifícios, uma nojeira oleosa cintilava no alcatrão, nas paredes de tijolo, no contentor
do lixo e nas janelas tapadas com rede metálica.
Deixou o carro em ponto morto e pisou o travão.
Assim que abriu a porta, encolheu-se.
- Grande merda...
O fedor era indescritível. Devia ser assim tão mau porque lhe entrava diretamente pelo nariz e desligava-lhe o cérebro.
Mas reconheceu-o. O tipo com o boné dos Sox tresandava a isso na noite em que Manny operara os vampiros.
Pegou no telefone, marcou o número supersecreto de Vishous e pressionou OK. Mal chegou a tocar e o gémeo de Payne atendeu.
- Já encontrei - disse Manny. - É exatamente o que disseste... meu, que cheiro. Pois. Sim. Certo. Já te ligo.
Ao desligar, parte dele estava a ir-se abaixo, pensando na possibilidade de Payne se poder ter envolvido no que fora claramente um banho de sangue. Mas manteve-se
firme enquanto procurava alguma coisa, qualquer coisa que lhe pudesse dizer o que acontecera...
- Manny?
- Porra! - Quando deu meia volta agarrou a cruz, ou talvez o coração, para que não lhe saltasse pelo esterno. - Jane?
A forma etérea da antiga chefe de traumatologia solidificou-se à frente dos olhos.
- Olá.
A primeira coisa em que ele pensou foi, Ai, meu Deus, o sol... o que era prova de quanto a sua vida mudara.
- Espera! Não tens problemas com a luz do dia...
- Pois não. - Estendeu a mão e acalmou-o. - Vim ajudar... o V disse-me onde estavas.
Manny agarrou-lhe brevemente o ombro.
- Estou... muito contente por te ver.
Jane abraçou-o rapidamente.
- Vamos encontrá-la. Garanto.
Pois, mas em que estado iriam encontrá-la?
Vasculharam juntos o beco, percorrendo tanto as sombras como as zonas iluminadas. Graças a Deus ainda era cedo e aquela zona da cidade era deserta, pois não se encontrava
em condições de lidar com a complicação que seria ter pessoas - especialmente polícias - a aparecerem.
Durante a meia hora que se seguiu, ele e Jane analisaram cada centímetro quadrado do beco, mas só encontraram os restos de uso de drogas, algum lixo e uma série
de preservativos que não pretendia ver com grande atenção.
- Nada - resmungou. - Absolutamente nada.
Pois. Certo. Ia ter de continuar a andar, a vasculhar, a rezar...
O som de algo a estremecer fê-lo virar a cabeça e depois atraiu-o para junto do contentor.
- Está qualquer coisa a fazer barulho aqui - alertou, ao ajoelhar-se. Claro que com a sorte dele, não deveria ser mais do que uma ratazana a tomar o pequeno-almoço.
Jane aproximou-se quando ele estendeu a mão por baixo do contentor de lixo.
- Acho... acho que é um telefone - resmungou enquanto se esticava e tateava com a ponta dos dedos, na esperança de alcançar a coisa. - Apanhei-o.
Recuando, descobriu que, sim, era um telemóvel rachado regulado para vibrar, o que explicava o ruído. Infelizmente, quem estivesse a ligar foi transferido para o
voice mail no momento em que tentava atender.
- Meu, está cheio de uma porcaria oleosa. - Limpou a mão no canto do contentor - o que era revelador. - E o telefone está protegido com palavra-passe.
- Temos de o levar ao V... ele consegue aceder a qualquer coisa.
Manny levantou-se e olhou para ela.
- Não sei se lá poderei entrar. - Tentou entregar-lhe o telefone. - Toma. Leva-o tu e eu vou ver se encontro outras cenas como esta.
Embora, a bem da verdade, parecesse que já tinha percorrido toda a baixa.
- Não preferes saber o que se passa em primeira mão?
- Sim, mas...
- E se o V encontrar alguma coisa, não preferes sair para tratar do assunto com o equipamento adequado?
- Claro, mas...
- Nunca ouviste falar em fazer qualquer coisa e depois pedir desculpas? - Quando ele ergueu uma sobrancelha, Jane encolheu os ombros. - Foi assim que passei anos
a lidar contigo no hospital.
Manny agarrou o telemóvel com mais força.
- Estás a falar a sério?
- Eu levo-te ao complexo, e se alguém tiver algum problema, eu trato do assunto. E posso sugerir que passemos pela tua casa primeiro para ires buscar o que precisas
para passar algum tempo fora?
Manny abanou lentamente a cabeça.
- Se ela não aparecer...
- Não. Não dizemos «não». - Os olhos de Jane estavam fitos nos dele. - Quando ela vier para casa, demore o que demorar, vais lá estar. O V disse que tinhas deixado
o trabalho... porque a Payne lhe contou. E depois podemos falar sobre isso...
- Não há nada a falar. A direção do St. Francis praticamente pediu-me que me despedisse.
Jane engoliu em seco.
- Ó, meu Deus... Manny...
Cristo, ele nem acreditou no que lhe saiu à boca:
- Não faz mal, Jane. Desde que ela regresse bem... só isso me interessa.
Jane fez sinal com a cabeça na direção do carro.
- Então porque é que ainda estamos a falar?
Muito bem visto.
Correram para o Porsche, puseram os cintos e arrancaram, com Jane ao volante.
Enquanto ela acelerava a caminho do Commodore, ele transformara-se com o sentido de objetivo. Estragara as coisas com a sua mulher uma vez. Isso não voltaria a acontecer.
Jane parou à frente do arranha-céus enquanto ele correu até ao átrio, subiu no elevador e entrou em casa. Rapidamente pegou no computador portátil, no carregador
do telemóvel...
O cofre.
Correndo para o roupeiro no quarto, introduziu o código e destrancou a pequena porta. Com as mãos rápidas e a mente firme, tirou a certidão de nascimento, sete mil
dólares em dinheiro, dois relógios Piaget de ouro e o passaporte. Pegando num saco ao acaso, enfiou tudo lá dentro, a par do computador e do carregador. Depois foi
buscar mais dois sacos que praticamente vomitavam roupas e saiu a correr do apartamento.
Enquanto aguardava pelo elevador, deu-se conta de que estava a deixar a vida para trás. De vez. Quer ficasse ou não com Payne, não voltaria ali... e não se tratava
só da morada física.
Assim que entregara as chaves a Jane pela segunda vez, virara uma esquina numa tempestade de neve metafórica. Não fazia ideia do que estava à frente, mas não ia
voltar atrás, e por ele tudo bem.
Chegado à rua, atirou as coisas para a bagageira e para o banco traseiro.
- Vamos embora.
Cerca de trinta e cinco minutos depois, Manny regressava aos terrenos incertos da montanha dos vampiros.
Olhando para o telemóvel quase destruído que tinha na mão, rezou para que aquela potencial ligação entre ele e Payne os voltasse a unir e para que tivesse uma oportunidade
com aquilo que desperdiçara...
- Grande... porra... - Lá à frente, a surgir da estranha neblina, agigantava-se uma enorme rocha, grande como o monte Rushmore. - Aquilo é... uma porra de uma casa.
Mausoléu seria outro termo.
- Os Irmãos levam a segurança muito a sério. - Jane parou o carro à frente de uma escadaria digna de uma catedral.
- Ou isso - resmungou ele -, ou os sogros de alguém são donos de uma pedreira.
Saíram juntos e antes de pegar nos sacos, Manny observou a paisagem. O muro que se perdia de vista em ambas as direções tinha uns bons seis metros de altura, e havia
câmaras espalhadas pelo exterior, bem como rolos de arame farpado no cimo. A mansão em si era enorme, espraiando-se em todas as direções, parecendo ter três pisos.
E quem falara em fortaleza? Todas as janelas estavam cobertas com placas de metal e as portas eram duplas. Parecia que seria preciso um tanque para as atravessar.
Havia uma série de carros no pátio, alguns dos quais, em outras circunstâncias, o teriam atraído profundamente, e uma outra casa muito mais pequena feita da mesma
pedra que o castelo. A fonte ao centro estava seca, mas ele imaginava os sons apaziguadores que faria quando a água estivesse a jorrar.
- Por aqui - indicou Jane ao abrir a mala do carro e tirar um dos sacos.
- Eu levo isso. - Manny pegou no que ela tirara, bem como nos outros dois. - As senhoras primeiro.
Jane telefonara ao homem dela a caminho dali, pelo que Manny imaginava que o povo de Payne não o mataria assim que lhe pusessem a vista em cima, mas não havia como
ter a certeza.
Ainda bem que, naquele momento, ele se estava borrifando para si próprio.
Na entrada, Jane tocou à campainha e ouviu-se uma tranca a abrir-se. Entrando com ela, Manny deu consigo num vestíbulo sem janelas que o fez pensar numa prisão...
uma prisão muito elegante e cara, com painéis de madeira entalhada e o cheiro a limão no ar.
Nunca sairiam dali, a menos que alguém os deixasse.
Jane falou para uma câmara.
- Somos nós. Estamos...
O segundo conjunto de portas abriu-se de imediato e Manny teve de pestanejar várias vezes perante o que lhe foi dado a ver. O átrio brilhante e garrido do outro
lado não era de todo o que esperara. Majestoso e com todas as cores do arco-íris, era tudo o que o exterior fortificado não era. E Cristo, parecia que tinha sido
usado todo o tipo de mármore decorativo possível... e olhem só para todo o cristal e talha dourada.
Entrou e viu o fresco no teto dois andares lá em cima... e uma escadaria que fazia com que a do E Tudo o Vento Levou parecesse um escadote.
Quando a porta se fechou atrás de si, o irmão de Payne saiu do que parecia ser uma sala de bilhar, com o Red Sox a seu lado. Quando o vampiro avançou, todo ele era
ação, prendendo o cigarro enrolado entre as presas e puxando as calças de cabedal.
Parando à frente de Manny, os dois machos entreolharam-se... até se pensar se as coisas chegariam ao fim mesmo antes de começarem, com Manny a ser transformado em
refeição.
Mas o vampiro estendeu a mão.
Claro... o telemóvel.
Manny largou os sacos e tirou o BlackBerry do bolso do casaco.
- Toma... foi isto...
O tipo aceitou o que lhe foi oferecido, mas nem olhou para o aparelho. Limitou-se a passá-lo para a mão livre e voltou a estender a palma.
O gesto era tão simples... o seu significado muito, muito profundo.
Manny apertou a sua mão à dele, e nenhum dos dois disse nada. Não havia necessidade, pois a comunicação estabelecida era clara. Estava a ser apresentado e respeitado
por ambos os lados.
Quando largaram as mãos, Manny disse:
- O telefone?
O vampiro acedeu ao aparelho numa questão de segundos.
- Cristo... és rápido - murmurou Manny.
- Não. Foi o que eu lhe dei. Estava a ligar-lhe de hora a hora. O GPS foi... se não tinha-te dado a morada de onde o encontraste.
- Porra. - Manny esfregou o rosto. - Não havia lá mais nada. A Jane e eu vasculhámos o sítio... e já tinha passado horas a conduzir pela baixa. E agora?
- Esperamos. Não podemos fazer mais nada enquanto houver sol. Mas assim que escurecer, a Irmandade vai sair daqui com fogo nos pés. Não te preocupes, vamos encontrá-la...
- Eu também vou - atalhou Manny. - Só para que se sabia.
Quando o gémeo de Payne começou a abanar a cabeça, Manny interrompeu quaisquer protestos, fossem eles razoáveis ou não.
- Sinto muito. Pode ser a tua irmã que anda perdida... mas é a minha mulher. E isso significa que vou fazer parte disto.
Terminado o discurso, o macho do boné de basebol tirou o chapéu e esfregou o cabelo.
- Louvado seja Deus...
Manny estacou, perdendo o resto que foi dito pelo tipo.
Aquele rosto... aquele maldito rosto.
Aquele... santa mãe... rosto.
Manny estivera errado quanto ao sítio de onde conhecia o tipo.
- O que foi? - indagou o Red Sox.
Manny tinha a vaga noção de que o irmão de Payne estava a franzir o sobrolho e de que Jane parecia preocupada. Mas estava concentrado no outro homem. Perscrutou
aqueles olhos cor de avelã, aquela boca e aquele queixo, em busca de algo que não batesse certo, algo deslocado... algo que desmentisse o que ele estava a ver.
A única coisa ligeiramente desenquadrada era o nariz, mas isso porque teria sido partido pelo menos uma vez.
A verdade estava nos ossos.
E a ligação não era o hospital, nem sequer a Catedral de St. Patrick porque, já que pensava nisso, tinha mesmo visto aquele homem, macho... vampiro, fosse o que
fosse... na igreja.
- Mas que raios? - resmungou Butch, olhando para Vishous.
À laia de explicação, Manny baixou-se e vasculhou os sacos. Enquanto procurava o que não trouxera intencionalmente, teve a certeza de que o iria encontrar. O destino
alinhara os dominós com demasiada perfeição para que aquele momento não acontecesse.
E sim, lá estava.
Quando Manny se endireitou, as mãos tremiam-lhe tanto que o suporte batia nas costas da moldura.
Já que perdera a voz, nada mais tinha a fazer do que virar o vidro para mostrar àqueles três a fotografia a preto e branco.
Que era a cópia exata do macho chamado Butch.
- Este é o meu pai - disse Manny, num tom rouco.
A expressão do tipo era de um choque profundo, e as mãos dele começaram igualmente a tremer quando as estendeu e segurou, com todo o cuidado, na velha fotografia.
Nem se deu ao trabalho de negar nada. Não tinha como.
O irmão de Payne exalou uma nuvem de fumo de cheiro maravilhoso.
- Grande cena.
Bem, era um resumo perfeito.
Manny olhou para Jane e depois fitou o homem que bem podia ser um meio-irmão.
- Reconhece-lo?
Quando o tipo abanou lentamente a cabeça, Manny olhou para o gémeo de Payne.
- Os humanos e os vampiros podem...
- Sim.
Quando voltou a mirar o rosto que não devia ser assim tão familiar, pensou, Cruzes, como podia ser.
- Quer dizer que és...
- Mestiço? - completou o macho. - Sim. A minha mãe era humana.
- Grande porra - murmurou Manny.
Capítulo 54
Ao segurar a imagem de um homem que era indiscutivelmente idêntico a si, Butch pensou, bizarramente, nos sinais amarelos das autoestradas.
Os que diziam coisas como gelo na ponte... ou queda de pedras... ou o temporário máquinas em manobras quando nos aproximávamos de uma zona de perigo. Que raios,
até os que tinham a silhueta de um veado a saltar, ou uma grande seta preta a apontar para a esquerda ou para a direita.
Naquele momento, ali no átrio, teria agradecido qualquer pré-aviso de que a sua vida estava prestes a descarrilar por completo.
Claro que um choque frontal não era algo que se planeasse.
Desviou a atenção da fotografia e fitou os olhos do cirurgião humano. Eram castanho-escuros, da cor de um bom porto. Mas a forma... como podia não ter identificado
a semelhança com os seus?
- Tens a certeza - ouviu-se a perguntar. - Este é o teu pai?
Mas já sabia a resposta antes de o tipo assentir.
- Quem... como... - Pois, grande jornalista que ele daria. - O que...
Ora aí estava. Bastava juntar onde e quando e tínhamos uma notícia do caraças.
O problema era que, depois de ter acasalado com Marissa e de ter passado pela transição, encontrara finalmente paz com quem era e com o que fazia na vida. Por outro
lado, no mundo humano sempre estivera afastado de todos, avançando paralelamente, mas sem nunca se cruzar com a mãe, as irmãs e os irmãos.
E com o pai, claro.
Ou pelo menos com o homem que lhe tinham dito ser o seu pai.
Partira do princípio de que, com o seu lar e parceira ali, deixara de precisar de assimilar e chegara a uma reconciliação pacífica com muito do que fora doloroso.
Mas agora era como que voltar à merda.
O humano falou com gravidade.
- Ele chamava-se Robert Bluff. Era cirurgião no Presbiteriano de Columbia, em Nova Iorque, onde a minha mãe trabalhava como enfermeira...
- A minha mãe era enfermeira. - Butch sentia a boca seca. - Mas não nesse hospital.
- Ela exerceu em muitos sítios... até... em Boston.
Seguiu-se um longo silêncio, durante o qual Butch considerou a hipótese de uma eventual infidelidade por parte da mãe.
- Alguém precisa de uma bebida, certo? - interveio V.
- Lag...
- Lagavulin...
Butch e o cirurgião calaram-se enquanto Vishous revirava os olhos.
- Por que será que isto não me surpreende?
Quando o irmão se dirigiu ao bar na sala de bilhar, Manello disse:
- Nunca o cheguei a conhece-lo. Devo tê-lo visto, tipo... uma vez? Sinceramente, já nem me lembro.
V armou-se em comissário de bordo e chegou com a bebida para os dois.
Quando Butch bebeu um gole, Manello fez o mesmo e depois abanou a cabeça.
- Sabes, nunca gostei desta merda até que...
- O quê?
- Vocês me começaram a foder a cabeça. Costumava gostar de Jack. Mas no ano passado... tudo mudou.
Butch aquiesceu, mesmo sem estar a acompanhar a conversa. Meu, não conseguia deixar de olhar para a fotografia, e pouco depois apercebeu-se de que, de uma forma
estranha, tudo aquilo era um alívio. A regressão ancestral provara que ele era aparentado de Wrath, mas ele nunca soubera, nem quisera realmente saber, ao certo
como. E agora ali estava. À sua frente.
Cristo, era como se sempre tivesse sofrido de uma doença e finalmente alguém lhe dava um nome.
Tens Outro-pai-ite. Ou seria Bastard-oma?
Fazia sentido. Sempre imaginara que o pai o odiava, e talvez fosse esse o motivo. Embora fosse quase impossível imaginar a sua casta e religiosa mãe a descarrilar,
aquela fotografia contava a história de pelo menos uma noite com outra pessoa.
O primeiro instinto foi que tinha de falar com a mãe e pedir-lhe pormenores... bem, alguns pormenores.
Mas como poderia isso resultar? A demência afastara-a da realidade e agora estava tão distante que mal o reconhecia quando ele a visitava, a única razão para a poder
visitar de todo. E não poderia perguntar às irmãs ou aos irmãos. Eles tinham-no rejeitado há muito, quando desaparecera, e era pouco provável que eles soubessem
mais alguma coisa.
- Ele ainda está vivo? - perguntou Butch.
- Não tenho a certeza. Costumava pensar que ele estava enterrado no Cemitério de Pine Grove. Agora? Quem sabe?
- Eu posso descobrir. - Quando V falou, Butch e Manny olharam ao mesmo tempo para o irmão. - Basta dizerem e eu encontro-o... quer esteja no mundo vampiro ou no
humano.
- Encontrar quem?
A voz grave chegou vinda do cimo das escadas, e todos olharam enquanto as palavras reverberavam pelo átrio. Wrath estava no patamar do primeiro andar com George
a seu lado. O humor do rei era fácil de identificar, mesmo tendo os olhos ocultos por aqueles óculos. Estava com um estado de espírito mortífero.
Claro que era difícil de imaginar se isso se devia ou não ao humano no átrio, pois Deus sabia que o tipo tinha mil coisas em que pensar.
Vishous tomou a palavra, o que foi uma boa opção. Butch perdera a voz e, como era óbvio, Manello também.
- Parece que este belo cirurgião pode ser teu familiar, meu senhor.
Quando Manello recuou, Butch pensou, Santa mãe.
Mais lenha para a fogueira.
Manny esfregou as frontes enquanto o tremendo vampiro de cabelo preto pela cintura descia as escadas, com o cão amarelado a parecer indicar o caminho. O sacana parecia
ser o dono do sítio e, tendo em conta a treta do «meu senhor», era provável que fosse.
- Será que ouvi bem, V? - perguntou o macho.
- Sim. Ouviste.
Eeeeeeee isso resolvia outra questão pois Manny começava igualmente a questionar a sua própria audição.
- Este é o nosso rei - anunciou Vishous. - Wrath, filho de Wrath. Este é o Manello. Doutor Manny Manello. Acho que ainda não tinham sido apresentados formalmente.
- És o que pertence a Payne.
Aí não houve hesitação. A sua resposta também não tardou:
- Sim. Sou eu.
O ronco grave que saiu da boca cruel era parte gargalhada, parte praga.
- E achas que estamos relacionados de que maneira?
V pigarreou e interveio.
- Há uma semelhança física extraordinária entre o pai do Manny e o Butch. Quer dizer... porra, é como estar a ver uma fotografia do meu amigo.
As sobrancelhas escuras desapareceram atrás dos óculos. Depois a expressão atenuou-se.
- Escusado será dizer que não posso fazer essa avaliação.
Ah, então era cego. Isso explicava o cão.
- Podemos fazer-lhe uma regressão ancestral - sugeriu Vishous.
- Isso - apoiou Butch. - Vamos...
- Calma aí, isso não o pode matar? - interveio Jane.
- Esperem lá. - Manny recuou um passo de mãos erguidas. - Esperem lá um bocado. Regressão quê?!
Vishous soprou fumo.
- É um processo através do qual eu entro em ti e vejo quanto do nosso sangue te corre nas veias.
- Mas pode matar-me? - Porra, ter Jane a abanar a cabeça não inspirava nenhuma confiança.
- É a única maneira de ter a certeza. Se fores meio-sangue, não podemos ir para o laboratório e fazer-te uma análise ao sangue. Os meios-sangues são diferentes.
Manny olhou à volta para todos eles. O rei, Vishous, Jane... e o tipo que podia ser um meio-irmão. Cristo, talvez fosse por isso que se sentia tão diferente em relação
a Payne. Assim que a vira foi como... se uma parte dele tivesse despertado.
Talvez também explicasse o seu mau feitio.
E depois de uma vida inteira a questionar-se quanto ao seu pai e às suas raízes, pensou... agora podia saber a verdade.
Mas quando eles lhe retribuíram o olhar, lembrou-se de ter ido ao hospital na semana anterior julgando que era de dia, mas descobrir que era de noite. E depois ocorreu-lhe
o que se passara com Payne e com as alterações no seu corpo.
- Sabem que mais? - disse. - Acho que vou dispensar.
Quando Jane aquiesceu, como se concordasse com ele, teve a certeza de estar a tomar a decisão correta.
Além disso, estavam a desviar-se do verdadeiro problema.
- Seja como for, a Payne vai voltar - declarou. - E não vou deixar que me apontem uma arma à cabeça antes de a voltar a ver... mesmo que isso seja a diferença entre
pertencer a este mundo ou não. Sei quem é o meu pai... e neste momento estou a olhar para o reflexo dele à minha frente. Não preciso de ir mais longe... a menos
que a Payne não concorde.
Cristo... a mãe, pensou de repente. Teria ela sabido?
Quando Vishous cruzou os braços sobre o peito, Manny preparou-se para uma discussão.
- Gosto do teu traseiro - disse, em vez disso. - A sério que gosto.
Tendo em conta aquilo a que o sacana tinha assistido não há muito tempo, isso surgiu como uma surpresa. Mas por ele tudo bem.
- Certo, estamos de acordo. Se a minha mulher quiser... eu faço-o. Caso contrário, estou bem assim.
- É justo - declarou Wrath.
Nesse momento instalou-se o silêncio. Mas também, o que poderia ser dito? A realidade sobre o paradeiro de Payne - e a sua ausência - pesava sobre todos.
Manny nunca se sentira tão impotente na vida.
- Com licença - escusou-se o meio-irmão -, mas preciso de outra bebida.
Quando Butch se afastou para a sala adjacente, Manny observou-o a desaparecer por uma arcada toda trabalhada.
- Sabes que mais, concordo com a sugestão.
- A minha casa é tua - disse o rei, num tom sombrio. - O bar fica por ali.
Reprimindo o estranho impulso para fazer uma vénia, Manny limitou-se a assentir.
- Obrigado, meu. - Quando lhe foram apresentados os nós dos dedos, Manny bateu-lhe e acenou com a cabeça a Jane e ao marido.
A sala onde entrou parecia a melhor suíte de hospitalidade que já vira. Cristo, até tinha máquina de pipocas.
- Mais Lag? - resmungou o tipo do outro lado.
Manny virou-se e deu consigo a observar um bar do caraças.
- Sim. Obrigado.
Trouxe o copo e entregou-o ao homem. E, quando o som de uísque a chapinhar pareceu alto como um grito, dirigiu-se a um sistema de som que poderia ser perfeitamente
usado no Madison Square Garden.
Pressionando os botões ouviu uma mistura de... gangsta rap.
Com outro botão chegou ao sintonizador de alta definição, em busca da estação de heavy metal. Respirou fundo quando «Dead Memories», dos Slipknot, se começou a fazer
ouvir.
Noite. Estava só à espera do anoitecer.
- Toma - disse o chui, entregando-lhe a bebida. Fazendo um esgar, acenou com a cabeça para uma das colunas. - Gostas dessa merda?
- Sim.
- Ora aí está uma diferença entre nós.
O gémeo de Payne espreitou para a sala.
- Mas que raios é esse barulho? - Era como se alguém tivesse começado a falar em línguas estranhas. Ou talvez tivesse posto a tocar Justin Bieber.
Manny limitou-se a abanar a cabeça.
- É música.
- Só porque tu o dizes.
Manny revirou os olhos e retirou-se para uma zona muito escura e perigosa da sua mente. A constatação de que não havia nada que pudesse fazer pela sua mulher naquele
momento deixava-o com vontade de magoar qualquer coisa. E o facto de parecer ter algo de vampiro dentro dele não era exatamente o tipo de revelação de que precisava
num dia como aquele.
Cristo, sentia-se péssimo.
- Alguém joga bilhar? - perguntou, meio dormente.
- Podes crer.
- Claro.
Jane avançou e deu-lhe um breve abraço.
- Conta comigo.
Parecia que não era o único desesperado por uma distração.
Capítulo 55
Sentada em algo almofadado com as mãos no regaço, Payne deduziu que se encontrava num carro, pois a subtil sensação de vibração era semelhante à que sentira quando
viajara ao lado de Manuel no seu Porsche. Contudo, não tinha como confirmar visualmente tal dedução, pois tal como anunciado pelo soldado do Derramador de Sangue,
ela estava vendada. Mas o cheiro do macho responsável estava a seu lado; embora ele estivesse parado, pelo que teria de ser outro a conduzir o veículo.
Nada lhe acontecera nas horas entre o confronto e aquela viagem. Ela passara o tempo diurno sentada na cama do líder, com os joelhos contra o peito, ambas as armas
a seu lado sobre o cobertor grosseiro. Mas ninguém a incomodara, pelo que passado algum tempo deixou de ficar atenta a cada som vindo lá de cima e conseguiu descontrair-se
um pouco.
Em breve, os pensamentos sobre Manuel dominavam-lhe o grosso da atenção, e reviveu as cenas do tempo, excessivamente curto, que tinham passado juntos, até que o
coração lhe doeu com a agonia. Quando deu por isso, o líder regressou e perguntou-lhe se desejaria um repasto antes de partirem.
Não, ela não quisera comer.
Depois, ele vendara-a com um pano branco imaculado, tão limpo e adorável que ela se interrogara quanto à sua origem. E depois segurara-lhe o cotovelo com firmeza,
levando-a pelas escadas por onde antes a transportara.
Era difícil saber ao certo quanto tempo passara no carro. Vinte minutos? Talvez meia hora?
- Aqui - acabou o líder por dizer.
À sua ordem, o veículo onde seguiam abrandou e depois parou. Uma porta foi aberta. Quando o ar puro e frio entrou, o cotovelo dela foi mais uma vez agarrado e ela
foi equilibrada ao sair. A porta fechou-se e ouviu-se uma pancada, como se um punho tivesse batido numa parte do veículo.
Os pneus a girar lançaram-lhe terra para a roupa.
Ficou sozinha com o líder.
Embora ele estivesse em silêncio, sentiu-o a mover-se atrás dela, e depois o tecido à volta da cabeça foi afrouxado. Quando foi retirado, ela susteve a respiração.
- Pensei que a seres libertada, deveria ser com uma vista digna dos teus olhos claros.
Lá em baixo revelava-se toda a cidade de Caldwell, com as luzes cintilantes e o trânsito denso a criar um repasto glorioso para a sua visão. Com efeito, encontravam-se
na crista de uma pequena montanha, com a cidade a espraiar-se verdadeiramente a seus pés junto às margens do rio.
- Isto é lindo - murmurou, olhando para o guerreiro.
Afastado, ele mostrou-se distante ao ponto de estar quase escondido, com a malformação oculta nas sombras para onde recuara.
- Que tenhas uma boa viagem, Escolhida.
- E tu... ainda não sei o teu nome.
- É verdade. - Esboçou uma vénia. - Boa noite.
E com isso desapareceu, desmaterializando-se.
Passado um instante, Payne voltou a dirigir-se para a vista e interrogou-se onde estaria Manuel naquela cidade. Teria de ser no aglomerado de construções altaneiras,
pelo que segundo a localização da ponte seria... ali.
Sim, ali.
Erguendo a mão, desenhou um círculo invisível em torno da alta construção de ferro e aço onde seguramente ele vivia.
Quando o peito a oprimiu e ela ficou ofegante, demorou-se mais um instante e depois desmaterializou-se para norte e leste, a caminho do complexo da Irmandade. A
viagem não tinha qualquer entusiasmo, sendo apenas uma obrigação, para informar o gémeo de que se encontrava viva e ilesa.
Quando ganhou forma nos degraus de pedra da vasta mansão, aproximou-se das portas duplas com um estranho temor. Sentia-se grata por estar de volta a uma espécie
de lar, mas a ausência do seu macho eliminava qualquer prazer que poderia ter tido com as ligações que voltariam a estabelecer-se em breve.
Depois de tocar à campainha, a porta do vestíbulo abriu-se de imediato e pôde sair da noite...
A segunda porta interior foi aberta ainda mais rapidamente pelo mordomo sorridente.
- Minha senhora! - gritou.
Ao entrar no átrio que tanto a encantara quando o vira pela primeira vez há dias, vislumbrou brevemente o seu gémeo chocado a saltar para a arcada de acesso à sala
de bilhar.
Mas esse breve momento foi tudo o que viu.
Uma grande força afastou Vishous com tanta violência que ele literalmente voou, largando o copo que segurava e espalhando pelo ar a bebida nele contida.
Manuel irrompeu pelo átrio, o corpo a avançar rapidamente, a expressão no rosto a um tempo de incredulidade, terror e alívio.
Mas não fazia sentido que estivesse a correr na direção dela, não fazia sentido que estivesse ali na...
Antes de conseguir concluir o pensamento ele tinha-a nos braços, e, pelas Parcas, o cheiro era o mesmo, a especiaria escura que lhe era única a inundar-lhe os sentidos.
E os ombros eram tão largos quanto se recordava. E a cintura tão estreita. E o abraço tão poderoso e maravilhoso.
O corpo forte dele estremeceu quando a abraçou com força, por um instante, e depois recuou, como se receasse estar a magoá-la.
Os olhos dele estavam frenéticos.
- Estás bem? O que posso fazer por ti? Precisas de um médico? Estás ferida... estou a fazer demasiadas perguntas... desculpa. Cristo... o que aconteceu? Onde estiveste?
Porra, tenho de parar...
Enquanto reencontro amoroso, talvez aquelas não fossem as palavras românticas que algumas fêmeas gostariam de ouvir, mas para ela representavam tudo no mundo.
- Por que estás aqui? - murmurou ela, levando-lhe as mãos ao rosto.
- Porque te amo.
De certa forma, isso não explicava nada... mas dizia-lhe tudo o que precisava de saber.
De repente, ela afastou as mãos.
- Mas e aquilo que fiz ao teu corpo...
- Não me importo. Nós damos a volta... havemos de o resolver... mas eu estava errado quanto a nós dois. Fui um fraco... um cobarde, e estava errado, e sinto tanto.
Merda. - Abanou a cabeça. - Tenho de deixar de praguejar. Oh, meu Deus, a tua roupa...
Payne olhou para baixo e viu o sangue preto dos minguantes que matara, a par da mancha vermelha do seu próprio sangue.
- Estou inteira e estou bem - garantiu, com toda a clareza. - E eu amo-te...
Interrompendo-a, beijou-a com solenidade nos lábios.
- Diz isso outra vez. Por favor.
- Eu amo-te.
Quando ele gemeu e voltou a envolve-la com os braços, Payne sentiu uma grande onda de calor e de gratidão no peito, e deixou que a emoção a apertasse contra ele.
E, enquanto se abraçavam, olhou sobre o ombro do seu macho. O irmão estava com a shellan dele a seu lado.
Cruzando o olhar com o do gémeo, viu todas as questões e receios naquele olhar.
- Não estou ferida - disse ao seu macho e ao seu gémeo.
- O que aconteceu? - perguntou Manuel contra o cabelo dela. - Encontrei o teu telefone partido.
- Estavas à minha procura?
- É claro que estava. - Recuou. - O teu irmão ligou-me ao nascer do sol.
Foi de imediato cercada pelo seu povo, como se um gongo tivesse soado, convocando para o átrio todos os machos e fêmeas da casa. Sem dúvida que teriam sido ali levados
pela agitação da sua chegada, mantendo-se à margem por sinal de respeito.
Tornava-se óbvio que havia mais do que duas mentes descansadas.
E isso fê-la sentir-se parte da família.
- Estava junto ao rio - disse alto o suficiente para que todos a ouvissem - quando senti o cheiro do inimigo. Atraída até eles cruzei os becos e deparei-me com dois
minguantes. - Sentiu Manuel ficar hirto, e viu o irmão fazer o mesmo. - Foi bom lutar...
Com essas palavras hesitou. Mas o rei aquiesceu. E o mesmo fez uma fêmea poderosa de cabelo curto, como se também ela combatesse na guerra e tivesse noção tanto
da necessidade como da satisfação. Os Irmãos, contudo, pareciam obviamente desconfortáveis.
Prosseguiu.
- Chegou então junto a mim um grupo de machos... de costas fortes, bem armados, com efeito, um esquadrão de guerreiros. O líder era muito alto, com olhos escuros,
cabelo escuro e um... - levou a mão à boca - defeito no lábio superior.
Começavam agora as pragas e, ao ouvi-las, desejou ter usado mais do que o fizera as taças de visão no Outro Lado. Era óbvio que o macho que descrevera não lhes era
desconhecido, e não era bem-vindo à narrativa.
- Ele prendeu-me... - Ouviu-se então não um, mas dois rosnidos, o do seu gémeo e o de Manuel. E, ao acalmar o macho tão perto dela, olhou para o irmão. - Acreditava
erroneamente que eu fizera desabar uma calamidade sobre a linhagem dele. Acreditava ser filho do Derramador de Sangue... e fora testemunha da noite em que levei
a morte ao nosso progenitor. Com efeito, ele passara séculos procurando-me para exercer a sua vingança.
Nesse momento calou-se, apercebendo-se de que acabara de admitir ter cometido parricídio. Mas ninguém pareceu chocado... o que dizia muito, não só acerca do tipo
de machos e fêmeas que ali se encontravam, mas também sobre o bastardo que fora seu pai.
- Esclareci o guerreiro quanto ao erro segundo o qual agia. - Omitiu o facto de ele a ter agredido, e ficou satisfeita por o hematoma no rosto ter desaparecido.
De alguma forma, sabia que ninguém precisava de ter conhecimento disso. - E ele acreditou em mim. Não me magoou... com efeito, protegeu-me dos machos dele, cedendo-me
a sua cama...
Manuel arreganhou os dentes como se tivesse presas... e isso deixou-a excitada.
- Sozinha, dormi sozinha. Ele manteve todos os subalternos com ele, lá em cima. - Voltou a acalmar Manuel pelo menos até se aperceber que ele estava excitado, tal
como aconteceria com qualquer macho disposto a marcar a sua fêmea. Que situação tão erótica. - Ah... ele vendou-me e levou-me a uma elevação panorâmica com vista
para a cidade. Depois libertou-me. E foi tudo.
Wrath tomou a palavra.
- Ele levou-te contra tua vontade.
- Ele acreditava ter motivo. Pensava que eu tinha matado o pai dele. E assim que ficou esclarecido estava preparado para me libertar, mas era de dia, pelo que não
podia ir para lado nenhum. Teria telefonado, mas perdera o meu telefone e eles não pareciam ter nenhum, pois não vi qualquer aparelho. Na verdade, estavam a viver
à moda antiga, de forma comunal e modesta, numa sala subterrânea iluminada por velas.
- Fazes ideia onde estão? - perguntou-lhe o gémeo.
- Não sei. Estava inconsciente quando eles... - Um brado de alerta fez-se ouvir de tantas gargantas que ela abanou a cabeça. - Fui alvejada por um minguante...
- Mas que raios...
- Foste o quê?!
- Uma arma...
- Alvejada com uma...
- ...ferida?!
Mmm. Talvez isso não tivesse sido uma boa ideia.
Enquanto os Irmãos falavam uns sobre os outros, Manuel pegou-lhe ao colo e ergueu-a, o rosto uma máscara de fúria cega.
- Acabou-se. Já está tudo dito. Vou examinar-te. - Olhou para o irmão dela. - Para onde a posso levar?
- Lá para cima. Vira à direita. Passas três portas e há um quarto de hóspedes. Vou mandar comida e diz-me se precisares de material clínico.
- Entendido.
Com isso, o macho dela dirigiu-se às escadas, consigo nos braços.
Ainda bem que ela já concluíra a história. Tendo em conta o ângulo do queixo de Manuel, seria preciso algum tempo antes de voltar a falar sobre o que lhe acontecera.
A menos que o quisesse ver furioso.
Com efeito, no estado em que ele se encontrava agora, parecia que quele soldado teria muito o que recear, caso os dois alguma vez se encontrassem.
- Estou tão satisfeita por te ver - disse ela, num tom rouco. - Só pensava em ti quando estava...
Manuel fechou brevemente os olhos, como se sofresse.
- Eles não te magoaram?
- Não. - E foi então que percebeu o que o preocupava.
Levando-lhe a mão ao rosto, disse:
- Ele não me tocou. Nenhum deles o fez.
O arrepio que percorreu o corpo forte que a transportava foi tão grande que ele quase tropeçou. Mas o macho dela recuperou depressa... e prosseguiu o seu caminho.
Enquanto Vishous observava o humano a levar a sua irmã escadaria acima, percebeu que estava a testemunhar o desenrolar do futuro. Aqueles dois iam resolver as coisas
e o cirurgião com gostos musicais altamente discutíveis faria parte da vida dela... e da de V... para todo o sempre.
De repente, a mente dele recuou doze meses, com o rebobinar a deter-se quando chegou ao ponto da narrativa em que entrara no gabinete do cirurgião para apagar as
memórias do tempo passado por V em St. Francis.
Irmão.
Ouvira a palavra irmão na sua cabeça.
Na altura não fazia a mais pequena ideia do que isso poderia significar. Porque, então, como poderia isso alguma vez acontecer?
Mas ali estava, mais uma vez a realidade exibia uma das suas visões.
Embora, a bem da verdade, a palavra devesse ser cunhado.
Mas depois olhou para Butch. O melhor amigo também fitava o tipo.
Porra, talvez irmão se adequasse. O que era bom. Manello era o tipo de indivíduo com quem não nos importávamos de nos relacionarmos.
Quase como se o rei lhe tivesse lido os pensamentos, Wrath anunciou:
- O cirurgião pode ficar. O tempo que quiser. E pode ter contacto com qualquer família humana que tenha... se quiser. Enquanto meu familiar, é bem-vindo à minha
casa sem quaisquer restrições.
Ouviu-se um ronco de aprovação. Como sempre, no que dizia respeito à Irmandade, os segredos nunca eram secretos durante muito tempo, por isso já todos saberiam da
ligação Manello/Butch/Wrath. Que raios, todos tinham visto a fotografia. Especialmente V.
Embora V tivesse feito mais do que isso. O nome «Robert Bluff» acabara por se revelar uma identidade falsa... E o macho tinha de ser meio-sangue. Se assim não fosse,
nunca poderia ter trabalhado em qualquer hospital durante o dia. A questão era o que poderia saber quanto ao seu lado vampiro e se ainda estava vivo.
Quando Jane encostou a cabeça ao seu peito, envolveu-a ainda mais com os braços. E depois olhou para Wrath.
- O Xcor, certo?
- Pois - assentiu o rei. - Um avistamento confirmado. E não será a última vez que teremos notícias dele. Isto foi só o princípio.
Grande verdade, pensou V. A chegada daquele bando de bastardos não era uma boa notícia para ninguém, mas acima de tudo não o era para Wrath.
- Cavalheiros - disse o rei - e minhas senhoras, a primeira refeição está a arrefecer.
O que foi a deixa para que todos se dirigissem à sala de jantar e comessem o que fora deliberadamente ignorado até então.
Com Payne segura e em casa, o apetite voltava a ter rédea livre... embora Deus soubesse que não ia pensar naquilo que o cirurgião e a irmã de certeza estariam prestes
a fazer.
Quando gemeu, Jane apertou-lhe a cintura com mais força.
- Estás bem?
Olhou para a sua shellan.
- Acho que a minha irmã não tem idade para sexo.
- V, ela tem a mesma idade do que tu.
Vishous franziu o sobrolho por um instante. Teria? Ou será que ele nascera primeiro?
Pois, só teria essa resposta num sítio.
Que raios, nem sequer pensara na mãe durante toda aquela situação. E agora que pensava... não tinha qualquer vontade ou interesse em aparecer por lá e anunciar que
Payne estava muito bem.
Não. Se a Virgem Escrivã quisesse acompanhar o que os «filhos» estavam a fazer podia usar aquelas taças de visão fakakta de que tanto gostava.
Beijou a sua shellan.
- Não quero saber o que diz o calendário, nem a ordem de nascimento. Aquela é a minha irmãzinha e nunca vai ter idade suficiente para... «ah, sim».
Jane riu-se e voltou a aninhar-se por baixo do braço dele.
- És um macho muito doce.
- Ná.
- És.
Levando-a para a sala de jantar e até à mesa, puxou-lhe educadamente a cadeira e depois sentou-se à sua esquerda, para que ela ficasse junto à sua mão da adaga.
Enquanto as conversas se elevavam, as pessoas atacavam as travessas e a sua Jane se ria de algo que Rhage dissera, Vishous olhou e viu Butch e Marissa a trocarem
sorrisos e de mão dada.
Sabes que mais, pensou... naquele momento, a vida estava muito boa.
Estava mesmo.
Capítulo 56
Lá em cima, Manny fechou a porta com o pé atrás dele e da sua mulher, e depois levou-a para a cama do tamanho de um campo de futebol.
Não havia motivo para se trancar. Só um idiota os incomodaria.
O brilho que entrava pelas janelas já sem portadas garantia-lhe luz suficiente para ver, e maldito fosse se não gostava do que tinha à sua frente: a mulher dele,
são e salva, deitada na... Bem, certo, aquela não era a cama deles, mas garantidamente ia transformá-la nisso antes do amanhecer.
Sentando-se ao lado dela, tentou discretamente ocultar a ereção massiva que tinha desde que a vira entrar à porta. E embora houvesse muito o que dizer, só conseguia
fitá-la.
Mas rapidamente o cirurgião nele assumiu o controlo.
- Foste ferida? - As mãos adoráveis dela baixaram até às vestes, e quanto mais a bainha suba, mais as pálpebras dela desciam.
- Acho que vais descobrir que estou sarada. Foi apenas superficial... aqui em cima.
Manny engoliu em seco. Porra... sim, ela estava bem. A pele no cimo da coxa estava lisa como porcelana.
- Mas talvez me devesses examinar com mais atenção - sugeriu ela, num tom arrastado.
Manny entreabriu os lábios e sentiu os pulmões a contraírem-se.
- De certeza que estás bem? E eles não... te magoaram.
Nunca ultrapassaria isso.
Payne sentou-se e fitou-lhe os olhos.
- O que sempre te esteve destinado continua à tua espera.
Manny fechou brevemente os olhos. Depois não quis que ela ficasse com uma má impressão.
- Não que me importasse se não fosses... quer dizer, isto não é uma questão de propriedade... - Que raios, parecia que naquela noite não era capaz de falar. - Mas
não era capaz de aguentar se te magoassem.
O sorriso dela fê-lo sentir-se grato por ter um colchão debaixo do rabo, pois se estivesse de pé, ela tê-lo-ia derrubado.
- Desculpa por ontem à noite - lamentou-se ele. - Cometi um erro...
Payne levou-lhe a mão à boca.
- Estamos aqui agora. Nada mais me importa.
- E preciso de te dizer uma coisa.
- Vais deixar-me?
- Nunca.
- Ótimo. Então vamos unir-nos primeiro, e depois falamos. - Endireitando-se ainda mais, Payne substituiu os dedos pela boca e beijou-o profunda e demoradamente.
- Mmmm... sim, muito melhor do que o discurso, creio eu.
- Tens a certeza de que queres... - Não conseguiu avançar mais, pois a língua dela privou-o de pensamentos.
Gemendo, subiu para a cama, sustendo-se acima dela. E depois, fitando-lhe os olhos, baixou lentamente o corpo sobre o dela... sendo o último contacto a ereção dele
entre as pernas dela.
- Se te beijar agora não há volta. - Bolas, tinha a voz tão gutural que praticamente lhe rosnava. Mas estava a ser sincero. Estava a ser levado por outra força.
Não se tratava de sexo, embora a mecânica do ato estivesse envolvida. Ao tomar-lhe a virgindade, estaria a marcá-la de uma forma que não compreendia, mas que não
questionava.
- Quero-te assim - disse ela. - Há séculos que espero por aquilo que só tu me podes dar.
Minha, pensou Manny.
Antes de a voltar a beijar, chegou-se ao lado e soltou-lhe o cabelo da trança. Espalhando as ondas escuras sobre a colcha de cetim, percorreu-as com os dedos.
Depois encostou as ancas ao íntimo dela, empurrando e recuando, e repetindo o movimento... enquanto a mão lhe subia até ao peito e lhe agarrava o tecido frágil das
vestes.
Sinceramente estava chocado com o que queria fazer.
- Desejo estar nua perante ti - ordenou ela. - Fá-lo, Manuel.
A maldita túnica não teve hipótese. Erguendo-se, pegou nas lapelas e abriu-a ao meio, rasgando o material e expondo-lhe os seios aos seus olhos quentes e ao ar frio.
Em resposta, ela arqueou-se e gemeu e isso foi a gota de água. Dirigiu-se aos mamilos entumecidos com a boca e ao íntimo dela com as mãos. Estava todo nela, levando-a
ao orgasmo sugando-a e esfregando-a com cuidado, e quando a libertação rápida e desesperada chegou, ele engoliu-lhe o grito.
Queria dar-lhe mais - e pretendia fazê-lo - mas o seu corpo não ia esperar. Levou as mãos às calças, soltando o cinto e baixando o fecho para soltar o membro.
Ela estava pronta, molhada, aberta e ansiosa, tendo em conta a forma como as pernas o esfregavam.
- Eu vou devagar - disse contra a boca de Payne.
- Não receio a dor. Não contigo.
Bolas, portanto talvez naquilo fossem fisicamente como as mulheres humanas. O que queria dizer que a primeira vez não seria fácil para aquela fêmea.
- Shhh - murmurou ela. - Não te preocupes. Toma-me.
Baixando a mão, posicionou-se e... que porra... quase se veio. Ela estava quente e molhada e...
Ela moveu-se tão depressa que não a poderia impedir, mesmo que quisesse. As mãos dela baixaram e agarraram-lhe o traseiro, com as unhas a cravarem-se na sua carne
e depois...
Payne ergueu as ancas ao mesmo tempo que o puxava, e ele entrou até ao fundo, com a penetração total e absolutamente completa. Com ele a gemer, Payne ficou rígida
e silvou com a estocada, o que era profundamente injusto, pois ela sabia tão bem. Mas ele não ia mexer-se, pelo menos até que ela recuperasse da invasão.
E depois lembrou-se.
Levando-lhe a mão à nuca, aproximou-lhe os lábios do pescoço.
- Toma-me.
O som que ela fez levou-o ao orgasmo no interior dela. Era demasiado excitante para se conter. E enquanto o membro latejava, as presas de Payne enterraram-se na
sua veia.
O sexo tornou-se alucinado. Payne moveu-se contra ele, com o íntimo apertado a sugá-lo enquanto ele se vinha mais uma vez... e depois foi a vez de o macho começar
a bombear as ancas com força. O sugar e o ritmo alucinado arrebatou-os de tal maneira que tiveram noção que pela manhã se ressentiriam. Aquilo não tinha nada de
civilizado. Eram macho e fêmea, reduzidos ao cerne mais primitivo.
E era o melhor que alguma vez sentira.
Capítulo 57
Thomas DelVecchio sabia exatamente para onde o assassino iria a seguir.
Não tinha qualquer dúvida. Com o detetive de la Cruz na sede, a trabalhar com os rapazes em teorias e indícios, todas bastante úteis, Veck sabia para onde ir.
Ao aproximar-se do parque de estacionamento do Monroe Motel & Suítes com as luzes desligadas e a moto desengatada, pensou que talvez fosse boa ideia ligar a de la
Cruz e dizer-lhe onde se encontrava.
Mas acabou por deixar o telefone no bolso.
Parando a BMW nas árvores, à direita do parque de estacionamento, empurrou o descanso e pendurou o capacete no guiador. Tinha a arma no coldre por baixo da axila
e disse para consigo que aí ficaria se alguém aparecesse.
Em grande medida acreditava nessa mentira.
Claro que a horrível verdade era que se sentia animado por algo adormecido desde há muito, muito tempo. De la Cruz tinha razão em receá-lo como parceiro e estava
correto em questionar onde acabavam os pecados do pai e começavam os do filho.
Pois Veck era um pecador. E entrara para a polícia para tentar expulsar isso de si.
Mas talvez fosse melhor exorcizar essa treta pois, às vezes, sentia como se tivesse um demónio dentro de si, a sério.
Mesmo assim, não estava ali para matar ninguém. Estava ali para deter um assassino antes que o desgraçado voltasse ao trabalho.
A sério.
Ao aproximar-se do motel, Veck manteve-se entre as sombras das árvores e concentrou-se no quarto onde a última rapariga tinha sido encontrada. Estava tudo tal como
a polícia de Caldwell deixara. Ainda havia fita de limitação num triângulo à volta da porta e da porção de passeio à frente. A ombreira também apresentava um selo,
o qual teoricamente só poderia ser quebrado em situações oficiais. Não havia luz no interior do quarto, nem cá fora, no corredor. Não se via ninguém.
Atrás de um tronco grosso, serviu-se das mãos enluvadas para puxar o gorro de lã para mais perto da camisola de gola alta preta.
Era tão bom a ficar imóvel que praticamente desapareceu. Era também muito bom a canalizar a energia para uma calma ubíqua que conservava os recursos, ao mesmo tempo
que o deixava em alerta.
A presa ia aparecer. Aquele louco assassino perdera todos os troféus. A coleção estava nas mãos das autoridades e os agentes forenses esforçavam-se por o ligar a
vários homicídios por resolver um pouco por todo o país. Mas o desgraçado não voltaria ali para tentar recuperar tudo, ou pelo menos parte do que deixara. O re-gresso
teria como objetivo lamentar a perda do que se esforçara tanto por conseguir.
Seria imprudente da parte dele? É claro, mas isso fazia parte do ciclo de excessos. O assassino não estaria a raciocinar devidamente, e as perdas tê-lo-iam deixado
desesperado. E Veck ia esperar durante as próximas noites, até que o indivíduo surgisse.
O tempo passou e ele esperou, esperou e esperou... era tão paciente como qualquer caçador. Embora tivesse pensado que aquilo poderia revelar-se desastroso, estando
ali sozinho. Com uma faca presa na cintura. E aquela maldita arma...
Um ramo a partir-se atraiu-lhe os olhos para a direita, mas não a cabeça. Não se mexeu nem alterou a respiração, nem sequer estremeceu.
E lá estava. Um homem surpreendentemente magro a atravessar, com cuidado, os arbustos folhosos da mata. Enquanto se aproximava do lado do motel, a expressão no rosto
do homem era quase religiosa. Mas não foi apenas isso que o identificou como sendo o assassino. Tinha as roupas cobertas de sangue seco, e os sapatos também. Estava
a coxear, como se tivesse sofrido uma lesão na perna, e o rosto apresentava riscos de unhas.
Apanhei-te, pensou Veck.
E agora que fitava o assassino... a mão baixou-lhe até às ancas e contornaram-nas até às costas. Até à faca.
Não mudou de rumo, mesmo enquanto dizia para consigo para deixar a arma onde estava e pegar nas algemas. Sempre tivera duas pessoas dentro dele, duas metades na
mesma pele e, em momentos como aquele, sentia-se como se estivesse a observar-se a agir, quase como se fosse o passageiro de um táxi, sendo que o destino, qualquer
que fosse, não resultaria dos seus atos.
Começou a aproximar-se do homem, acompanhando-o em silêncio, qual sombra, encurtando a distância até ficar a mero metro e meio do sacana. A faca chegara à mão de
Veck e não queria que ela lá estivesse, mas era demasiado tarde para a voltar a guardar. Demasiado tarde para recuar. Demasiado tarde para dar ouvidos à voz que
lhe dizia que aquilo era um crime que o deixaria na prisão. O outro lado assumira o controlo e ele estava perdido nele, à beira de matar...
O terceiro homem surgiu vindo de nenhures.
Um homem imenso vestido de cabedal saltou para o caminho do assassino, bloqueando-lhe o avanço. E, quando David Kroner recuou, alarmado, um silvo percorreu o ar.
Cruzes, aquilo não parecera humano. E... aquilo eram... presas?
Mas que raios...
O ataque foi tão brutal que, com o primeiro golpe contra o pescoço do assassino em série, a cabeça quase lhe saltou. E não parou por aí, com sangue a saltar para
tão longe que salpicou as calças, a camisola de gola alta e o gorro pretos de Veck.
Mas não estava a ser usada faca, nem adaga.
Dentes. O cabrão estava a desfazê-lo com os dentes.
Veck tentou recuar, mas bateu numa árvore e o impacto atirou-o ao chão muuuuuito mais perto do que deveria. E devia ter corrido para a moto, ou simplesmente fugido,
mas sentia-se arrebatado pela violência... e pela convicção de que o que estava a ver não era, de todo, humano.
Quando acabou, o monstro deixou cair os restos massacrados do assassino... e depois olhou para Veck.
- Grande... porra... - murmurou Veck.
O rosto tinha uma estrutura óssea bastante humana, mas as presas não batiam certo, nem tampouco a dimensão e o olhar vingativo. Cristo, tinha sangue a escorrer-lhe
da boca.
- Olha-me nos olhos - disse uma voz de sotaque carregado.
Um gorgolejo fez-se ouvir do que restava do assassino. Mas Veck não olhou. Estava fito num par de olhos espantosos... tão azuis... a brilhar....
- Merda... - deixou escapar, com uma dor de cabeça lancinante a eliminar tudo o que via ou ouvia. Tombando de lado, a dor obrigou-o a assumir uma posição fetal e
assim ficou.
Plim.
Por que estava no chão?
Plim.
Sentia o cheiro de sangue. Mas porquê?
Plim. Plim.
Levantou a cabeça com um gemido e...
- Porra!
Pôs-se de pé em choque e fitou a confusão ensanguentada à sua frente.
- Ah... porra - praguejou. Tinha-o feito. Finalmente matara alguém...
Mas depois olhou para a faca que tinha na mão. Nada de sangue. Nem na lâmina. Nem nas mãos. Só salpicos na roupa.
Olhou à sua volta, sem o mais leve indício do que poderia ter acontecido. Lembrava-se de ter ali chegado... de ter estacionado a moto... e de seguir o homem que
jazia agora moribundo.
Se fosse brutalmente sincero para consigo, ele tivera a intenção de matar. Sempre. Mas tendo e conta os indícios físicos? Não fora ele.
O problema era que tudo o resto era um buraco negro.
Um gemido do assassino em sério fê-lo virar a cabeça para a direita. O homem tentava alcançá-lo. Suplicava-lhe ajuda em silêncio enquanto se esvaía. Como poderia
ainda estar vivo?
Com as mãos a tremer, Veck pegou no telemóvel e ligou para o 112.
- Sim, detetive DelVecchio, Homicídios. Preciso de uma ambulância junto ao Monroe Motel & Suítes já.
Depois de o pedido ter sido registado e de os médicos estarem a caminho, tirou o blusão, enrolou-o e ajoelhou-se ao lado do homem. Pressionando o blusão contra os
ferimentos no pescoço dele, rezou para que o cabrão sobrevivesse. E depois teve de se interrogar se isso seria bom.
- Não te matei - disse. - Pois não?
Cristo... o que acontecera ali?
Capítulo 58
-Ele veio ver-te.
A partir do ponto de vista de Blaylock, na cama, Saxton, filho de Tyme, mostrava-lhe o seu melhor lado. E não, não era o traseiro. O macho estava a barbear-se ao
espelho e tinha o perfil perfeito banhado pela luz suave.
Cristo, ele era um belo macho.
A muitos níveis, aquele amante a quem se ligara era tudo o que podia desejar.
- Quem? - perguntou Blay, baixinho.
Os olhos que procuraram os dele escorriam incredulidade.
- Ah. - Para se esquivar a mais conversa, Blay olhou para o edredão que tinha puxado até ao peito despido. Estava nu por baixo do lençol de cetim. Tal como Saxton
estivera, antes de ter vestido o roupão.
- Ele queria saber se estavas bem - prosseguiu Sax.
Uma vez que ah já tinha sido usado como resposta, Blay apimentou-a com:
- A sério?
- Foi no terraço. Não quis entrar, para não nos incomodar.
Engraçado, quando estivera prestes a desmaiar, depois de lhe terem suturado a barriga, interrogara-se vagamente o que poderia Saxton estar a fazer lá fora. Mas na
altura sentia tantas dores que não fora capaz de pensar em praticamente nada.
Agora, no entanto, sentia um entusiasmo terrível a percorrê-lo.
Louvada fosse a Virgem Escrivã, há muito tempo que não sentia aquele formigueiro familiar, embora o tempo que passara não tivesse diminuído a sensação. E o impulso
que se seguiu, de perguntar o que fora dito, não era algo que pudesse fazer. Para começar, seria uma falta de respeito para com Saxton. Além disso, era inútil.
Ainda bem que dispunha de bastantes munições com que se calar. Bastava-lhe pensar em Qhuinn a chegar a casa há cerca de uma semana, de cabelo revolto, o cheiro abafado
pelo perfume de outro homem, a pose afetada pela satisfação que tivera.
Pensar que Blay se atirara ao macho não uma, mas duas vezes e fora rejeitado? Nem conseguia pensar nisso.
- Não queres saber o que ele disse? - murmurou Saxton ao passar com a lâmina afiada pelo pescoço, evitando habilmente a marca da dentada que Blay lhe dera há meia
hora.
Blay fechou os olhos e interrogou-se se alguma vez seria capaz de fugir à realidade de que Qhuinn foderia tudo o que se mexia menos ele.
- Não? - indagou Saxton.
Quando a cama estremeceu, Blay abriu os olhos. Saxton sentara-se à beira do colchão, estando o macho a limpar o queixo e as faces com uma toalha vermelho-sangue.
- Não? - repetiu.
- Posso fazer-te uma pergunta? - disse Blay. - E neste momento não seria boa ideia usares a tua personalidade encantadora e sarcástica.
O rosto maravilhoso de Saxton assumiu de imediato uma expressão grave.
- Força.
Blay alisou o edredão sobre o peito. Várias vezes.
- Eu... agrado-te?
Pelo canto do olho viu Saxton estremecer e quase morreu com o embaraço.
- Na cama, queres tu dizer? - quis Sax saber.
Blay franziu os lábios ao aquiescer, e pensou em avançar alguma explicação, mas a boca revelou-se-lhe demasiado seca.
- Mas por que haverias tu de perguntar isso? - comentou Saxton.
Bem, porque teria de haver qualquer coisa de errado consigo.
Blay abanou a cabeça.
- Não sei.
Saxton dobrou a toalha e pousou-a a seu lado. Depois estendeu o braço sobre as ancas de Blay e aproximou-se até ficarem cara a cara.
- Sim. - E levou a boca ao pescoço do companheiro, sugando. - Sempre.
Blay passou com a mão pela nuca do macho, encontrando o macio cabelo encaracolado na base do pescoço.
- Graças a Deus.
A familiaridade do corpo sobre o seu não era novidade, e parecia-lhe correto. Era bom. Conhecia cada curva e recanto do peito, das ancas e das coxas de Saxton. Conhecia
os pontos de pressão e sabia onde morder, sabia exatamente onde agarrar, como rebolar e revirar-se para que Saxton se viesse com força.
Por isso, sim, talvez não precisasse de perguntar.
Mas Qhuinn... tudo sobre esse macho o deixava em carne viva. E, mesmo depois de ter aprendido a ligar-se no exterior, a ferida continuava tão má e profunda como
no momento em que fora feita, altura em que se tornou óbvio que o único macho que queria acima de qualquer outro nunca estaria com ele.
Saxton recostou-se.
- O Qhuinn não é capaz de lidar com aquilo que sente por ti.
Blay soltou uma gargalhada rouca.
- Não falemos sobre ele.
- Porquê? - Saxton estendeu a mão e passou com o polegar pelo lábio inferior de Blay. - Está sempre aqui connosco, quer queiramos quer não.
Blay pensou em mentir, mas desistiu.
- Desculpa.
- Não faz mal... sei onde me meti. - A mão livre de Saxton meteu-se por baixo do edredão. - E sei o que quero.
Blay gemeu quando aquela mão esfregou o que se tornou de imediato uma ereção imensa. E, quando as ancas se levantaram e ele abriu as pernas para Saxton, susteve
os olhos do amante e sugou-lhe o polegar.
Era muito melhor do que entrar na montanha-russa Qhuinn. Sabia-o e gostava disso. Ali estava seguro. Ali não sairia magoado.
E ali encontrara uma ligação sexual profunda.
O olhar de Saxton era a um tempo quente e sério quando largou o que encontrara, destapou o corpo de Blay e desapertou o laço do seu roupão.
Aquilo era muito bom, pensou Blay. Aquilo era correto...
Quando a boca do amante lhe encontrou a clavícula, Blay fechou os olhos. Mas quando se começou a perder nas sensações, o que viu não foi Saxton.
- Espera, para... - Sentou-se e arrastou o outro macho com ele.
- Não faz mal - disse Saxton baixinho. - Sei o que se passa entre nós.
O coração de Blay cedeu um pouco. Mas Saxton limitou-se a abanar a cabeça e devolveu os lábios ao peito de Blay.
Nunca tinham falado acerca de amor e isso deixou bem claro que nunca o fariam, pois Saxton tinha toda a razão. Blay continuava apaixonado por Qhuinn. E provavelmente
sempre assim seria.
- Porquê? - perguntou ao amante.
- Porque te quero enquanto te tiver.
- Não vou a lado nenhum.
Saxton limitou-se a abanar a cabeça contra os abdominais retesados que mordiscava.
- Deixa de pensar, Blaylock. Começa a sentir.
Quando aquela boca talentosa chegou ao fundo, Blay inspirou com um sibilo e decidiu seguir o conselho. Pois essa era a única maneira de sobreviver.
Tinha a impressão de que seria uma questão de tempo até que Qhuinn anunciasse que ele e Layla iriam acasalar.
Não sabia porquê, apenas sabia. Havia semanas que os dois se encontravam e a Escolhida voltara a estar lá na véspera. Sentira-lhe o cheiro e o sangue no quarto ao
lado.
E embora tal convicção pudesse ser apenas um exercício mental para se deprimir, sentia que era muito mais do que isso. Era como se a neblina que, regra geral, obscurecia
os dias, meses e anos vindouros se tivesse tornado insuportavelmente ténue e as sombras do destino estivessem a revelar-se-lhe.
Uma questão de tempo.
Cristo, isso seria como quem o mataria.
- Ainda bem que aqui estás - gemeu.
- Eu também - retribuiu-lhe o amante em torno da ereção dele. - Eu também.
Capítulo 59
Na noite seguinte, Payne dava voltas na frente da mansão da Irmandade, indo da sala de jantar até ao átrio e à sala de bilhar e de volta. Uma e outra vez.
O macho dela saíra da casa a meio da tarde para «tratar de umas coisas». E, embora se tivesse recusado a dizer-lhe o quê, ela apreciara o sorriso malandro que ele
lhe oferecera ao aconchegá-la na cama que tinham usado na totalidade durante a noite, saindo logo depois.
Depois disso, Payne não dormira. De todo.
Havia muito que a deixava feliz.
E surpreendida.
Fazendo uma pausa à frente das portas de correr que davam acesso ao pátio, pensou na fotografia que ele lhe mostrara. Era por demais óbvio que tinha uma relação
de sangue com Butch e, logo, com o rei. Mas nem Manuel nem ela estavam interessados em arriscar uma regressão. Não, nesse ponto, ela concordava plenamente com ele.
Tinham-se um ao outro e, tendo em conta o que já tinham ultrapassado, não havia motivo para arriscar um mau resultado.
Além disso, a informação não alteraria nada. O rei abrira as portas de sua casa ao macho dela, mesmo sem uma declaração formal de relação sanguínea, e Manuel poderia
manter o contacto com a mãe humana. Mais ainda, ficara decidido que ele trabalharia ali, com a Doc Jane, mas também com Havers. Afinal de contas, a raça precisava
de mais bons médicos, e Manuel era superlativo.
E quanto a ela? Sairia para lutar. Nem Manuel nem o irmão estavam propriamente entusiasmados com os riscos que ela iria correr, mas não a impediriam. Com efeito,
depois de ter falado longamente com Manuel, ele parecera aceitar que isso fazia parte dela. Só fizera questão que ela usasse as melhores armas possíveis e o irmão
insistira em certificar-se disso.
Pelas Parcas, aqueles dois pareciam estar a entender-se. Quem o poderia ter previsto?
Deslocando-se até à janela seguinte, perscrutou a escuridão, em busca de faróis.
Onde estaria ele? Onde estaria ele...
Manuel também iria falar com a Doc Jane sobre as mudanças físicas por que ele passara, mudanças essas que, tendo em conta a forma como Payne brilhava sempre que
faziam amor, seria provável que continuassem. Ela iria monitorizar o corpo e ver o que acontecia, e ambos rezavam para que ela apenas o estivesse a manter saudável
e eternamente jovem. Apenas o tempo o diria.
Praguejando, deu meia volta, cruzou o átrio... e entrou na sala de jantar.
Junto à terceira janela, olhou para os céus. Não pretendia visitar a mãe. Teria sido maravilhoso partilhar o seu amor com que a trouxera ao mundo. Mas o progenitor
estava morto, e a sua mahmen? Não confiava na Virgem Escrivã, receando que a voltasse a aprisionar. Manuel era um meio-sangue. Não era de todo um elemento de raça
pura que a mãe aprovasse...
O par de olhos brilhantes que subiam a elevação onde o complexo se erguia deixaram-lhe o coração a bater descompassado. E depois ouviu a música, um ritmo forte que
atravessava o vidro.
Payne saiu a correr da sala de jantar e percorreu rapidamente o mosaico. Momentos depois tinha saído pelo vestíbulo para as trevas...
Ao fundo dos degraus estacou.
Manuel não chegara sozinho. Atrás do Porsche estava um qualquer tipo de veículo imenso... um grande veículo em duas partes.
O macho deixou o volante do seu carro.
- Olá - cumprimentou ele.
Ostentava um sorriso rasgado quando chegou junto a ela, lhe levou as mãos às ancas e a aproximou do peito.
- Tive saudades tuas - murmurou-lhe contra os lábios.
- Eu também. - Ela sorria igualmente. - Mas... o que é que trouxeste?
O mordomo idoso saiu do outro veículo.
- Meu senhor, devo...
- Obrigado, Fritz, mas eu agora trato do resto.
O mordomo fez uma vénia baixa.
- Foi um prazer ter sido útil.
- És do melhor, meu.
O doggen estava radiante quando regressou alegremente à casa. E depois, o macho dela dirigiu-se-lhe.
- Fica aqui.
Franziu o cenho ao ouvir pancadas secas no interior da caixa grande.
- É claro.
Depois de voltar a beijá-la, Manuel desapareceu atrás do veículo.
Abriram-se portas. Mais pancadas. Gemidos e o som de algo a correr, seguido por um bater ritmado. E depois...
O relinchar disse-lhe o que ela não se atrevera a esperar. E depois a bela poldra de Manuel recuou por uma rampa e foi-lhe trazida.
Payne levou as mãos à boca enquanto nos olhos se formavam lágrimas. A égua avançava cheia de graciosidade, com a pelagem a brilhar com a luz emanada da casa, mais
uma vez com toda a sua força e vitalidade.
- Mas... porque é que ela está aqui? - indagou Payne num tom rouco.
- Os humanos oferecem algo às noivas como prova do seu amor. - Manuel ostentou um sorriso rasgado. - Pensei que a Glory fosse melhor do que qualquer diamante que
eu te pudesse comprar. É mais importante para mim... e espero que para ti também.
Não tendo resposta, estendeu-lhe a tira de cabedal que estava presa à brida do cavalo.
- Estou a dar-ta.
Como se fosse a sua deixa, Glory soltou um relincho e empinou-se, como se concordasse com a troca de posse.
Payne limpou os olhos e atirou-se a Manuel, beijando-o profundamente.
- Não tenho palavras.
E depois aceitou as rédeas, enquanto Manuel se ufanava.
Respirando fundo, ela...
Antes de ter consciência do movimento, Payne saltou no ar, montando Glory como se o par estivesse junto há anos e não há minutos.
E o cavalo não precisou de incentivo, de autorização, de nada... Glory saltou em frente, firmando os cascos nos seixos e partindo a galope.
Payne entrelaçou os dedos na crina preta comprida e equilibrou-se perfeitamente sobre as costas possantes onde se sentava. Quando o vento lhe bateu no rosto, riu-se
com pura exultação ao partirem alegres e livres. Sim... sim! Mil vezes sim!
Partir na noite.
Ter a liberdade de se mover.
Ter amor à sua espera.
Era mais do que estar viva. Aquilo era viver.
De pé, junto ao reboque, Manny observou as suas meninas a partirem juntas, perdido de felicidade. Faziam um par perfeito, ambas unas e fortes, e rasgando a noite
a um galope que a maior parte dos carros teria dificuldade em acompanhar.
Certo. Talvez tivesse derramado uma lágrima ou duas. Mas que raios. Aquela noite era incrível para...
- Eu vi a cena.
- Cristo... - Agarrou na cruz e deu meia volta. - Andas sempre a tentar matar as pessoas do coração?
O irmão de Payne não respondeu, ou talvez não o conseguisse fazer. O vampiro tinha os olhos fitos na irmã e no cavalo a galope, e parecia tão comovido como Manny.
- Mas pensei que fosse um garanhão. - Vishous abanou a cabeça. - Mas sim, foi isto que eu vi... ela montada num puro-sangue preto, o cabelo a voar com a brisa. Mas
não pensava que fosse o futuro...
Manny virou-se outra vez para as suas meninas, que se encontravam ao fundo do muro e começavam a descrever uma curva larga para regressarem à casa.
- Amo-a tanto - ouviu-se Manny a dizer. - É o meu coração que ali vai. Aquela é a minha mulher.
- Verdade.
Com a ligação profunda estabelecida entre os dois, Manny sentia-se em muitos aspetos como se estivesse em casa, e não queria pensar muito, receando que tais bênçãos
se desvanecessem.
Momentos depois, olhou para o lado.
- Importas-te que te faça uma pergunta.
- Força.
- O que é que me fizeste à merda do carro?
- O quê, estás a falar da música?
- Para onde é que foi a minha...
- Merda? - Olhos da cor de diamante cruzaram-se com os dele. - Se vais morar aqui, vais começar a ouvir aquilo que eu ouço, certo?
Manny abanou a cabeça.
- Deves estar a brincar comigo.
- Estás a dizer que não gostaste da batida?
- Pois. - Depois de tossicar, Manny cedeu. - Está bem, não eram péssimas de todo.
A gargalhada foi um bocadinho triunfante de mais.
- E sabia.
- Então e o que era?
- E agora, o gajo quer nomes. - O vampiro pegou num cigarro e acendeu-o. - Deixa ver... «Cinderella Man», do Eminem. «I Am Not a Human», do Lil Wayne. O Tupac...
A lista prosseguiu, e Manny foi ouvindo enquanto observava a sua mulher a cavalgar e afagava o peso do cruxifixo de ouro.
Ele e Payne estavam juntos... ia com Butch à igreja, à meia-noite... e Vishous não o esfaqueara. E, se bem se lembrava, o gémeo de Payne conduzia aquele Escalade
preto ali, e isso significava que a vingança seria uma carrada de Black Veil Bride, Bullet for My Valentine e Avenged Sevenfold a ser transferida para o sistema
de som do SUV.
Só pensar nisso já o deixava a sorrir.
Bem feitas as contas?
Sentia-se como se tivesse ganhado a lotaria. Em cada um dos cinquenta estados. Ao mesmo tempo.
Era essa a sorte de todos eles.

 

Glossário
ahmo (n.) - Termo respeitoso usado por alguém sexualmente submisso para se referir ao seu dominador.
ahstrux nohtrum (n.) - Guarda privado com licença para matar nomeado para o cargo pelo Rei.
caminhante (n.) - Indivíduo que morreu e regressou ao mundo dos vivos vindo do Vápido. São fortemente respeitados e reverenciados pelos seus feitos.
chrih (n.) - Símbolo de morte honrada na Língua Antiga.
comhpetição (n.) - Conflito entre dois machos que lutam pelo direito de ser o macho de uma determinada fêmea.
Dhunhd (n. próp.) - Inferno.
Dhuplo exhilado (n. próp.) - Gémeo maligno ou amaldicionado, aquele que nasceu em segundo lugar.
doggen (n.) - Membro da classe servil no mundo dos vampiros. Os doggens têm tradições antigas e conservadoras em relação ao serviço dos superiores, cumprindo regras
formais de roupagem e comportamento. São capazes de sair durante o dia, mas envelhecem relativamente depressa. A sua esperança de vida é de cerca de quinhentos anos.
ehros (n.) - Uma Escolhida, treinada nas artes sexuais.
Escolhidas (n.) - Vampiras que foram criadas para servir a Virgem Escrivã. São consideradas membros da aristocracia, embora tenham uma inclinação mais espiritual
do que temporal. Têm pouca ou nenhuma relação com os machos, mas podem acasalar com guerreiros, sob indicação da Virgem Escrivã, para propagarem a sua classe. Têm
a capacidade de fazer prognósticos. No passado eram usadas para servir as necessidades de sangue de membros da Irmandade sem parceira, mas a prática foi abandonada
pelos Irmãos.
Escravo de sangue (n.) - Vampiro macho ou fêmea subjugado para servir as necessidades de sangue de outro vampiro. A prática da manutenção de escravos de sangue foi
recentemente proibida.
ghuardião (n.) - Guarda de um indivíduo. Existem vários graus de guardiões, sendo o mais poderoso o de uma fêmea em isolamento.
glymera (n.) - O núcleo social da aristocracia, aproximadamente equivalente ao existente em Inglaterra no período da Regência (1811-1820).
hellren (n.) - Vampiro macho que foi acasalado com uma fêmea. Os machos podem tomar mais do que uma fêmea como parceira.
instruthor (n. próp.) - Palavra usada entre machos, a qual denota respeito e afeto mútuos. Traduzido livremente como «querido amigo».
Irmandade da Adaga Negra (n. próp.) - Guerreiros vampiros altamente treinados, que protegem a sua espécie contra a Sociedade dos Minguantes. Em resultado das práticas
de reprodução seletivas do próprio grupo, os Irmãos possuem uma enorme força física e mental, bem como capacidades inatas de cura rápida. Não são parentes entre
si, na sua maioria, e são admitidos na Irmandade por nomeação dos Irmãos. Agressivos, confiantes e reservados por natureza, existem à parte dos civis, tendo pouco
contacto com os membros de outras classes, exceto quando têm de se alimentar. São personagens de lenda e alvo de vénia dentro do mundo dos vampiros. Só podem ser
mortos por um ferimento muito grave, ou seja, um tiro ou uma facada no coração, ou algo semelhante.
isohlamento (n.) - Estatuto conferido pelo Rei a uma fêmea da aristocracia como resultado de uma petição por parte da sua família. A fêmea fica sob a direção de
um ghuardião, normalmente o macho mais velho da casa. Este fica com o direito legal de determinar todos os aspetos da vida da fêmea, restringindo, consoante a sua
vontade, todas as interações que ela tenha com o mundo.
leelan (n.) - Um termo de afeto, que pode ser livremente traduzido por «amada».
lewlhen (n.) - Dádiva.
Lhenihan (n. próp.) - Besta mítica afamada pelas proezas sexuais.
Em calão moderno refere-se a um macho de dimensão e resistência
sexuais preternaturais.
lidher (n.) - Uma pessoa com poder e influência.
Lys (n.) - Instrumento de tortura usado para remover os olhos.
mahmen (n.) - Mãe. Usado como designação ou como termo afetuoso.
mhis (n.) - O mascarar de um determinado ambiente físico; a criação de um campo de ilusão.
minguante (n.) - Humano desprovido de alma que caça vampiros para os exterminar como membro da Sociedade dos Minguantes. Para serem mortos os minguantes têm de ser
trespassados pelo coração; de resto, não têm idade. Não bebem nem comem e são impotentes. Com o tempo, o cabelo, a pele e as íris perdem a pigmentação, até que ficam
loiros, pálidos e de olhos incolores. Cheiram a pó de talco. Convocados para a sociedade por Ómega, guardam consigo um vaso de cerâmica onde o seu coração foi depositado
quando removido.
nalla (f.) ou nallum (m.) - Termo carinhoso que significa «amada/o».
newling (n.) - Uma virgem.
Ómega (n. próp.) - Figura malévola e mística que destinou os vampiros à extinção por causa do rancor contra a Virgem Escrivã.Existe num domínio não-temporal e tem
vastos poderes, exceto o poder da criação.
Período de necessidade (n.) - Tempo de fertilidade de uma vampira. Normalmente tem a duração de dois dias e é acompanhado de um intenso apetite sexual. Ocorre, mais
ou menos, cinco anos após a transição da fêmea, e uma só vez, uma década mais tarde. Todos os machos respondem, nalgum grau, se estiverem próximos de uma fêmea em
necessidade. Poderá ser um tempo de perigo, com conflitos e lutas entre os machos competidores, especialmente se a fêmea não tiver parceiro.
Primeira Família (n. próp.) - O Rei e a rainha dos vampiros e respetivos filhos.
princeps (n.) - Nível mais alto da aristocracia dos vampiros, apenas superado pelos membros da Primeira Família ou as Escolhidas da Virgem Escrivã. Têm de herdar
o título, o qual não pode ser conferido a ninguém.
prohtector (n.) - O equivalente a um padrinho ou madrinha de um indivíduo.
pyrocant (n.) - Refere-se a uma fraqueza crítica num indivíduo. A fraqueza pode ser interna, como um vício, ou externa, como um amante.
rahlman (n.) - Salvador.
ryto (n.) - Modo ritual de repor a honra, concedido por aquele que ofendeu. Caso aceite, o ofendido escolhe a arma e atinge o ofensor, que se lhe entrega sem defesa.
sehnhor (n.) - Termo indicador de respeito usado por alguém sexualmente dominado quando se refere do dominante.
shellan (n.) - Vampira que foi acasalada com um macho. Geralmente, as fêmeas não tomam mais do que um parceiro, devido à natureza altamente territorial dos machos
acasalados.
Sociedade dos Minguantes (n. próp.) - Ordem de matadores, convocada por Ómega com o propósito de erradicar a espécie dos vampiros.
sympath (n.) - Espécie dentro da raça dos vampiros com a capacidade e o desejo de manipular as emoções de outras pessoas (para obter uma troca de energia), entre
outras características. Historicamente têm sido discriminados e, durante certas eras, foram caçados por vampiros. Estão quase extintos.
transição (n.) - Momento crítico da vida de um vampiro, em que ele ou ela se transformam em adulto. A partir desse momento, terão de beber o sangue de alguém do
sexo oposto para sobreviverem e são incapazes de suportar a luz do Sol. Ocorre, em geral, entre os vinte e os trinta anos. Alguns vampiros não sobrevivem às suas
transições, em particular os machos. Antes das transições, os vampiros são fisicamente fracos, sexualmente inativos e incapazes de se desmaterializarem.
tremehndo (adj.) - Termo que se refere à potência do órgão sexual de um macho. A tradução literal é algo semelhante a «digno de entrar numa fêmea».
Tumba (n. próp.) - Jazigo sagrado da Irmandade da Adaga Negra. Usado como lugar de culto, bem como de armazém dos vasos dos minguantes. As cerimónias cumpridas naquele
lugar incluem induções, funerais e ações disciplinares aplicadas a Irmãos. Ninguém pode ali entrar, exceto os membros da Irmandade, a Virgem Escrivã ou os candidatos
à indução.
Vampiro (n.) - Membro de uma espécie separada da do Homo sapiens. Os vampiros têm de beber o sangue de alguém do sexo oposto para sobreviverem. O sangue humano mantê-los-á
vivos, embora a força não dure muito tempo. Após às suas transições, que ocorrem entre os vinte e os trinta anos de idade, são incapazes de sair para a luz do Sol
e têm de se alimentar com regularidade mordendo veias. Os vampiros não podem converter humanos através de uma dentada, ou da transferência de sangue, embora sejam
capazes, em casos raros, de acasalar com membros de outra espécie. Os vampiros podem desmaterializar-se conforme queiram, embora precisem de se acalmar e se concentrar
para o conseguir, não podendo carregar consigo nada que seja pesado. São capazes de roubar a memória a humanos, desde que essa memória seja de curta duração. Alguns
vampiros são capazes de ler a mente. A esperança de vida é superior a mil anos e, em alguns casos, ainda mais longa.
Vápido (n. próp.) - Domínio não-temporal onde os mortos se reúnem com os seus amados e passam a eternidade.
vinhgança (n.) - Ato de retribuição mortal, tipicamente levado a cabo por um macho para vingar a sua amada.
Virgem Escrivã (n. próp.) - Força mística que é conselheira do Rei, simultaneamente depositária dos arquivos e dispensadora de privilégios. Existe num domínio não-temporal
e tem vastos poderes. Teve a capacidade de um ato de criação singular, poder que usou para trazer os vampiros à existência.

Capítulo 40
Apenas breves momentos depois de Butch lhe ter ligado, Jane materializou-se na varanda da cobertura de V. Enquanto a sua forma ganhava volume, o ar gelado da noite
acariciou-lhe os cabelos e fez-lhe os olhos lacrimejarem.
Ou... talvez fossem mesmo lágrimas.
Olhando através do vidro, via tudo muito mais claramente: a mesa, os cílios, os chicotes, as... outras coisas.
Quando anteriormente ali tinha ido com Vishous, aqueles adereços das suas preferências extremas tinham parecido apenas um cenário provocador e ligeiramente assustador
para o incrível sexo que eles tinham. Mas a versão dela de «brincadeira sexual» era um caniche, quando comparada com os gostos de lobisomem dele.
E agora ela tinha perfeita noção.
O que é que Butch tinha usado? Em que estado estaria o seu companheiro? Haveria muito sangue ou...
Espera. Onde estava V?
Atravessando a porta envidraçada, ela...
Não havia sangue no chão. Nem a escorrer dos utensílios. Não havia correntes suspensas do teto. Tudo estava exatamente como da primeira vez que ali tinha estado,
como se nada tivesse acontecido...
De fora do círculo de velas ouviu-se um gemido e o som rasgou-lhe o pensamento. Claro. A cama.
Enquanto penetrava no véu de escuridão, os olhos ajustaram-se e ali estava ele. Debaixo de lençóis de seda, estendido de costas, a contorcer-se de dor... ou estaria
a dormir?
- Vishous? - chamou ela suavemente.
Com um grito, ele acordou instantaneamente, com o tronco a levantar-se como uma flecha, as pálpebras a abrirem-se muito. De imediato, ela verificou que o rosto tinha
cicatrizes já a desaparecerem... e havia mais à volta dos peitorais e também no abdómen. Mas a expressão dele foi o que a impressionou mais. Ele estava aterrorizado.
Abruptamente ouviu-se um resfolegar furioso, quando ele tirou os lençóis de cima do corpo. Ao olhar para si próprio, no peito e nos ombros começou a aparecer suor,
na sua pele instalou-se um brilho súbito, mesmo na escuridão, enquanto ele tapava o sexo com as mãos... como se estivesse a proteger o que restava.
Com a cabeça baixa, respirou profundamente. Inspirar. Expirar. Inspirar. Expirar...
O padrão transformou-se em soluços.
Enrolando-se, com as mãos a esconder o trabalho de carniceiro feito há muito, muito tempo, chorou com grandes soluços de emoção, sem reservas, sem controlo. A inteligência
já não dominava o seu reino, era súbdita deste.
Nem se apercebeu de que ela estava junto a ele.
Devia ir-se embora, pensou Jane. Ele não deveria querer que ela o visse naquele estado, nem mesmo antes de tudo se desmoronar entre eles. O macho que ela conhecia
e com quem tinha acasalado não deveria querer...
É difícil dizer o que é que chamou a atenção... e, mais tarde, ela tinha matutado na razão que o levara a escolher aquele momento exato em que ela se ia desmaterializar
para olhar para ela.
Ela ficou imediatamente incapacitada. Se ele tinha ficado irritado com o que acontecera com Payne, agora iria odiá-la. Não havia maneira de voltar atrás naquela
invasão de privacidade.
- O Butch telefonou-me - balbuciou ela. - Ele achou que tu...
- Ele magoou-me... O meu pai magoou-me.
As palavras eram tão fracas e gentis que quase não se ouviam. Mas quando conseguiu ouvir, o coração dela parou.
- Porquê? - perguntou Vishous. - Porque é que ele me fez isto? Porque é que a minha mãe me fez isto? Eu nunca pedi para nascer... e não os teria escolhido se qualquer
um deles me tivesse pedido a opinião... Porquê?
As suas faces estavam molhadas de lágrimas que lhe saltavam dos olhos de diamante, uma corrente interminável de que ele não tinha consciência, ou de que não queria
saber. E ela tinha a sensação de que a corrente demoraria a parar. Uma artéria interna tinha sido perfurada e este era o sangue do seu coração, correndo para fora
dele, cobrindo-o.
- Lamento muito - gorgolejou ela. - Não sei nenhum dos porquês... mas sei que não o merecias. E... que não tens culpa.
As mãos descobriram o sexo e ele fitou-o.
Passou muito tempo até ele falar outra vez e, quando o fez, as palavras eram lentas e ponderadas... e imparáveis, como as lágrimas silenciosas.
- Quem me dera estar completo. Quem me dera ter podido dar-te crianças se as quisesses e as pudesses gerar. Quem me dera ter-te dito que me matava pensares que eu
tinha estado com mais alguém. Quem me dera ter passado o ano anterior a acordar todas as noites e dizer-te que te amo. Quem me dera ter acasalado contigo como deve
ser na noite em que voltaste para mim vinda dos mortos. Quem me dera... - O olhar cintilante dele procurou o dela. - Quem me dera ter metade da força que tu tens
e quem me dera merecer-te. E... acho que é isto.
Pois. Certo. Agora estavam os dois desfeitos.
- Lamento o que aconteceu com Payne - disse ela, num tom rouco. - Eu queria falar contigo, mas ela estava decidida. Tentei argumentar, tentei mesmo, mas, no fim,
simplesmente... não queria... não queria que fosses tu a fazê-lo. Preferia ter vivido com a terrível verdade na consciência durante uma eternidade, a fazer com que
tivesses de matar a tua irmã. Ou levá-la a magoar-se ainda mais do que já estava.
- Eu sei... agora sei.
- E, honestamente, o facto de ela se ter curado? Dá-me arrepios só de pensar que quase falhámos.
- Está tudo bem, agora. Ela está bem.
Jane limpou os olhos.
- E acho que no que toca a... - Lançou uma olhadela para a parede, decorada com uma luz amarelada que não suavizava de maneira nenhuma os bicos afiados e as implicações
ainda mais cortantes do que poderia lá estar pendurado. - No que toca a... estas coisas... sobre os teus hábitos sexuais, eu sempre me preocupei com o facto de não
ser suficiente para ti.
- Porra... não... tu és tudo para mim.
Jane colocou a mão sobre a boca para não perder completamente o controlo. Porque era precisamente o que ela precisava de ouvir.
- Nem sequer tatuei o teu nome nas minhas costas - disse V. - Achei que era uma estupidez e uma perda de tempo... mas como é que podes sentir que somos companheiros
sem isso... especialmente quando todos os machos do complexo foram marcados para a sua shellan?
Meu deus, ela nunca tinha pensado nisso.
V abanou a cabeça.
- Deste-me espaço... para poder estar com o Butch e lutar com os meus irmãos e fazer as minhas cenas na Internet. O que é que eu te dei?
- Para começar, a minha clínica. Não a poderia ter construído sem ti.
- Não é exatamente um ramo de rosas.
- Não subestimes as tuas capacidades de carpinteiro.
Ele esboçou um sorriso ao ouvir isto. E depois ficou outra vez sério.
- Posso dizer-te uma coisa que pensei todas as vezes que acordei ao teu lado?
- Por favor, diz.
Vishous, aquele que tinha sempre uma resposta para tudo, parecia ter a língua presa. Mas finalmente disse:
- És a razão que me faz sair da cama todas as noites. E és a razão que me faz querer voltar para casa todas as madrugadas. Não é a guerra. Não são os Irmãos. Nem
sequer é o Butch. És... tu.
Oh, palavras tão simples... mas o seu significado. Deus do céu, o significado.
- Deixas que eu te abrace agora? - pediu ela curtamente.
O companheiro estendeu os braços enormes.
- E se for eu a abraçar-te?
Enquanto saltava para a frente e mergulhava nele, contrapôs:
- Não tens de ser tu ou eu.
Ficou completamente sólida sem qualquer esforço, a química interna mágica entre eles a materializá-la e mantê-la ali. E quando Vishous enterrou a cabeça nos seus
cabelos e estremeceu como se tivesse corrido uma grande distância e finalmente tivesse chegado a casa... ela soube exatamente como ele se sentia.
Com a shellan a arder contra ele, V sentia-se como se tivesse sido completamente desfeito... e depois remontado.
Cristo, o que Butch tinha feito por ele. Por todos eles.
O caminho que o chui escolhera tinha sido o correto. Horrífico e terrível... mas absolutamente certo. E agora, enquanto abraçava a sua fêmea, os olhos percorriam
o espaço onde tudo acontecera. Tinha sido tudo limpo... exceto uma ou outra coisa que estava fora do sítio no chão. Uma colher e um copo praticamente vazio de um
líquido que só podia ser água.
Tinha sido tudo uma ilusão. Nada o tinha de facto rasgado. E ele era capaz de apostar que Butch tinha deixado aquelas duas coisas centradas e à vista para quando
V acordasse e olhasse em volta perceber quais tinham sido os meios que tinham conduzido àquele fim.
Em retrospetiva, parecia tudo tão estúpido... não a sessão com o chui, mas o facto de V nunca ter realmente pensado no Derramador de Sangue todos esses anos no campo
de guerra. A última vez que essa memória do passado tinha surgido, fora quando Jane estivera com ele a primeira vez, e nessa altura só tinha acontecido porque ela
o tinha visto nu e ele tinha sentido necessidade de explicar.
O meu pai não queria que eu reproduzisse.
Era basicamente tudo o que ele tinha para dizer sobre o assunto. E depois, como um corpo morto que tivesse ficado com a cara para cima em águas paradas, essa merda
tinha-se afundado outra vez, instalando-se novamente na margem arenosa do rio no mais profundo do seu ser.
AJ, ou Antes de Jane, ele só tinha tido sexo com as calças vestidas. Não por vergonha - ou pelo menos isso era o que ele dizia a ele próprio - mas simplesmente porque
não estivera interessado em entrar nesses pormenores com os machos e fêmeas anónimos que tinha fodido.
DJ? Tinha sido diferente. A nudez era mais do que normal, provavelmente porque Jane tinha mantido a cabeça fria com a revelação. E contudo, quando pensava nisso
agora, tinha-a sempre abraçado a uma certa distância, mesmo que ela estivesse aninhada nos seus braços. Quanto muito, tinha estado mais próximo de Butch - mas isso
era macho-com-macho, o que era, de algum modo, menos ameaçador do que macho-com-fêmea.
A questão relacionava-se com as Sombras da Mamã, sem dúvida. Depois de tudo o que a mahmen tinha feito, ele simplesmente não conseguia confiar nas fêmeas como confiava
nos irmãos ou no melhor amigo.
Mas Jane nunca o tinha traído. Na verdade, ela estava disposta a lutar com a sua própria consciência para o salvar do ato indescritível que a irmã lhe exigia.
- Não és a minha mãe - disse para o cabelo da shellan.
- Podes ter a certeza que não. - Jane afastou-se e fitou-o como costumava fazer. - Eu nunca teria abandonado o meu filho. Ou tratado a minha filha daquela maneira.
V inspirou profundamente e, quando soltou o oxigénio para fora dos pulmões, sentiu-se como se estivesse a expelir os mitos pelos quais se autodefinira... e a Jane...
e ao relacionamento entre ambos.
Tinha de mudar de paradigma.
Por eles. Por si próprio. Por Butch.
Cristo, a expressão no rosto do chui quando as coisas tinham acontecido tinha sido para lá de trágica.
Por isso, sim, era altura de parar de utilizar merdas exteriores para automedicar as emoções. O sexo extremo e a dor tinham parecido soluções excelentes durante
muito tempo, mas, na verdade, não passavam de uma forma de cobrir as borbulhas. A fealdade tinha continuado dentro de si.
O que ele tinha de fazer era lidar com a merda interior, para não precisar que Butch ou qualquer outra pessoa o subjugasse só para ele poder libertar-se. Assim,
estas perversões poderiam ser mesmo só para ter prazer com Jane.
Controlar as suas merdas - parecia que ele estava finalmente preparado para tentar a versão psiquiátrica do Proactiv.
Se não tivesse cuidado, ainda acabava na televisão, fitando uma câmara e dizendo: «Tudo o que é preciso é um pouco de Autoconsciência... e depois purifico-me com
a Lavagem de Autodefinição patenteada e a minha mente e as minhas emoções ficam limpinhas e a brilhar...»
Ok, agora estava a ficar com parafusos a menos, a sério.
Acariciando o cabelo macio de Jane, murmurou:
- Sobre... as coisas que tenho aqui. Se quiseres brincar, eu também vou querer... se percebes o que quero dizer. Mas, a partir de agora, é só para nos divertirmos
e só para nós os dois.
Diabos, eles tinham tido uma grande quantidade de sexo bizarro e muito bom naquele sítio, cheio de cabedal, e ele continuava a querer ter isso com ela. Tinha esperança
que ela sentisse o mesmo...
- Eu gosto do que fazemos aqui. - Ela sorriu. - Excita-me.
Bem... e não é que isto fez o membro dele pulsar?
- Eu também.
Quando lhe sorriu de volta, reconheceu o único senão da ideia. Todo este virar-uma-nova-página estava muito bem, mas como é que ele ia fazer isso? Amanhã à noite
já não se podia dar ao luxo de acordar e ser aquele que passou das marcas.
Merda, ele achava que ia descobrir uma maneira. Não ia?
Com um toque gentil, acariciou a face da shellan.
- Nunca tive uma relação antes de estar contigo. Já devia imaginar que havíamos de bater contra uma parede em alguma altura.
- Faz parte da coisa.
Pensou nos irmãos e na quantidade de vezes em que tinha havido contratempos, lutas e discussões entre esse grupo de lutadores machões. De alguma forma, tinham sempre
dado a volta ao assunto, regra geral andando à pancada uns com os outros de vez em quando. O que era uma coisa de macho.
Claramente, ele e Jane seriam iguais. Não à pancada, claro, mas em relação aos obstáculos do caminho e à sua eventual resolução. Afinal de contas, a vida era aquilo...
não um conto de fadas.
- Mas sabes o que é melhor nisto tudo? - indagou Jane, enquanto lançava os braços à volta do seu pescoço.
- Já não sinto que morri por não estares na minha vida?
- Bem, isso também. - Esticou o pescoço e beijou-o. - Duas palavras: sexo de fazer as pazes.
Ohhhhhh, siiiiiiiim. Mas...
- Espera, isso são duas palavras? Alargaste a expressão?
- Alarguei na minha cabeça. Mas acho que tanto faz.
- Não será antes apenas «fazer as pazes»?
- Também é uma possibilidade. - Pausa. - Alguma vez te disse que és o geek mais sensual que já conheci?
- Revejo-me nesse comentário. - Mergulhou a cabeça e roçou a boca contra a dela. - Mas não digas a ninguém. Tenho uma reputação de durão para manter.
- O teu segredo está seguro comigo.
V ficou sério.
- Eu estou seguro contigo.
Jane afagou-lhe o rosto.
- Não posso prometer que não vás encontrar mais obstáculos no caminho, nem que vamos estar sempre de acordo. Mas tenho uma certeza... estarás sempre seguro comigo.
Sempre.
Vishous aproximou-a e encostou a cabeça no seu pescoço. Ele assumira que não havia mais nada para explorar depois de ela ter morrido e ter voltado para ele na sua
adorável forma fantasmagórica. Mas estava enganado. O amor, apercebeu-se, era como os punhais que criava na forja. Quando surgia um novo, era lustroso e a lâmina
cintilava à luz. Segurando-o na palma da mão, dava otimismo quanto ao desempenho em ação e mal podia esperar para o experimentar. Mas as primeiras duas noites eram
geralmente estranhas, enquanto se habituava a ele e ele a si.
Com o tempo, o aço perdia o brilho da novidade e o punho ficava manchado e às vezes talvez fosse necessário tirar-lhe merda de cima. Contudo, em troca, salva-te
a vida. Uma vez habituados um ao outro, torna-se parte de ti, como uma extensão do teu próprio braço. Protege-te e dá-te uma maneira de protegeres os irmãos. Dá-te
confiança e poder para enfrentares o que quer que surja na noite e, onde quer que vás, está contigo, junto ao teu coração, sempre ali quando precisas ele.
No entanto, tens de manter a lâmina afiada. E remendar o punho de vez em quando. E verificar o peso.
Engraçado... tudo isso era evidente quanto se tratava de armas. Porque é que não se tinha apercebido que era a mesma coisa com o acasalamento?
Revirando os olhos, pensou que talvez a Hallmark estivesse disposta a estabelecer uma linha de postais do Dia dos Namorados inspirada na medievalidade, uma coisa
do tipo Sacro-Gótico-Suave. Ele seria perfeitamente adequado para fornecer material.
Com os olhos fechados e abraçado a Jane, estava quase feliz por ter perdido a cabeça, só para poderem ter chegado àquele momento.
Bem, ele teria escolhido um caminho mais fácil, se houvesse. Mas não tinha a certeza de o resultado ter sido este. Era preciso merecer.
- Tenho uma pergunta para fazer - disse ele, gentilmente.
- O que quiseres.
Afastando-se um pouco, afagou-lhe o cabelo com a mão enluvada e passou algum tempo até se decidir a perguntar o que tinha na ponta da língua.
- Deixas-me... fazer amor contigo?
* * *
Enquanto Jane fitava Vishous e sentia o corpo dele contra o seu, soube que nunca o deixaria. Nunca. E também reconheceu que, se conseguiram sobreviver à última semana,
era porque era um bom casamento - acasalamento - e nada os poderia agora deter.
- Sim - respondeu ela. - Por favor...
O seu hellren tinha-a procurado tantas vezes desde que estavam juntos. De noite e de dia; no duche e na cama; vestidos, despidos, meio vestidos; depressa e com vigor...
Nele, a sensação de limite tinha sempre feito parte da excitação. Isso e a imprevisibilidade. Ela nunca sabia o que esperar. Se ele lhe ia exigir coisas ou controlar
o seu corpo ou controlar-se para ela poder fazer com ele o que quisesse.
Contudo, ele nunca ia devagar.
Agora, afagava-lhe o cabelo, percorrendo com os dedos os caracóis e prendendo-os atrás das orelhas. E, então, os olhares cruzaram-se e as bocas juntaram-se suavemente.
Afagando e acariciando, lambeu-lhe os lábios mas, quando ela os abriu, ele não mergulhou logo como era habitual. Continuou a beijar... até ela se sentir tonta com
o sugar e arrastar de carne contra carne.
O corpo dela costumava ansiar por isto. Agora, contudo, uma sensação deliciosa percorria-a, descontraindo-a e deixando-a à vontade, despertando uma excitação pacífica
que, de certa forma, era tão profunda e perturbadora como a paixão desesperada que habitualmente sentia.
Quando ele mudou de posição, ela acompanhou-o, deitando-se completamente de costas, enquanto ele se elevava e cobria o corpo dela com o dele. Continuaram a beijar-se
e ela estava tão compenetrada nesse beijo que nem se apercebeu quando ele deslizou a mão por baixo da camisa dela. A palma quente da sua mão foi subindo, parando-lhe
nos seios... explorando e acariciando. Sem provocar, sem beliscar, sem apertar. Só o polegar a passar para trás e para a frente pelo mamilo, até ela se arquear e
gemer.
As mãos dela exploraram-lhe as costas e - ó, meu Deus, lá estava o padrão de marcas que ela conhecia. E continuaram a explorar completamente o tronco dele...
Vishous segurou-lhe os pulsos e pressionou os braços dela contra a cama.
- Não penses nisso.
- O que é que ele...
- Shh.
Continuaram a beijar-se e ela tentou lutar contra ele, mas cada um dos impulsos para se soltar mergulharam suavemente o seu cérebro em sensações.
Não valia a pena pensar mais no assunto, disse a si própria. O que quer que tivesse acontecido tinha-os ajudado chegar ali.
Era tudo o que ela precisava de saber.
A voz de Vishous ecoou no seu ouvido, profunda, cava.
- Quero tirar-te a roupa. Posso?
- Por favor. Sim... ó meu Deus, sim.
Despi-la fazia parte do prazer, o meio tão glorioso como o fim, que os levaria a estar juntos pele-contra-pele. E, de alguma forma, a revelação gradual daquilo que
já vira tantas vezes fazia com que fosse novo e especial.
Os seus seios endureceram ainda mais quando o ar frio os envolveu e ela observou-o enquanto ele a fitava. Estava lá o desejo, mas também havia muito mais... reverência,
gratidão... uma vulnerabilidade que ela tinha pressentido, mas que nunca antes tinha visto claramente.
- És tudo aquilo de que preciso - afirmou ele enquanto mergulhava nela.
As suas mãos estavam em todo o lado, na barriga, nas ancas, entre as pernas.
No seu sexo molhado.
O orgasmo que ele lhe deu foi uma onda quente que trespassou todo o seu corpo, irradiando para fora, assumindo o controlo numa nuvem divina de prazer. E, entretanto,
ele montou-a e deslizou para dentro dela. Sem repelões, apenas a continuação da onda, dentro e fora dela, enquanto o seu corpo ondulava e a ereção dele entrava e
saía.
Sem pressas, apenas um amor tranquilo.
Sem urgência, apenas todo o tempo do mundo.
Quando ele finalmente se veio, com uma última ondulação da espinha e a pulsar no interior dela, ela acompanhou-o, os dois enrolados juntos um ao outro, fundidos,
corpo... e alma.
Fazendo-a girar, trouxe-a para cima dele e ela ali ficou, cravada no peito duro e musculado, lânguida como uma brisa de verão e igualmente leve. Ela estava a flutuar
e quente e...
- Estás bem? - perguntou Vishous ao olhar para ela.
- Mais do que bem. - Procurou o rosto dele. - Sinto-me como se tivesse feito amor contigo pela primeira vez.
- Ótimo - respondeu ele. - Era essa a ideia.
Deitando a cabeça junto ao coração pulsante dele, olhou para a parede por trás da mesa. Nunca pensou vir a ficar agradecida àquele monte de «brinquedos» aterradores,
mas estava. No meio da tempestade... tinham encontrado a tranquilidade.
Antes separados... eram agora outra vez um só.
Capítulo 41
Na mansão, Qhuinn andava às voltas no seu quarto como um rato à procura de uma saída da gaiola. Com tanta merda a acontecer e Wrath obrigava-o a ficar ali.
Mas que maravilha.
Ao passar mais uma vez pela porta aberta da casa de banho, pensou que o facto de a quarentena fazer todo o sentido ainda o chateava mais. Só ele, John e Xhex é que
não tinham sofrido ferimentos até agora. Todos os outros estavam naquela multidão e já tinham sido escortanhados de uma maneira ou de outra.
Por ali era a Casa del Toca-a-Curar.
Mas porra, eles os três podiam ter saído para se vingarem.
Parando em frente às portas da varanda, olhou para o jardim bem tratado que estava à beira de começar a florir. Com as luzes apagadas no quarto, conseguia ver claramente
a piscina com a cobertura de inverno esticada por cima assemelhando-se à cinta adelgaçante maior que o mundo alguma vez vira. E as árvores ainda estavam, na sua
grande maioria, nuas. E os canteiros não eram ainda...
Blay tinha sido ferido.
... mais do que retângulos ordenados de terra castanha-escura.
- Merda.
Esfregando o cabelo agora curto, tentou lidar com a pressão que sentia no centro do peito. Segundo John, Blay tinha sido atingido na cabeça e esfaqueado na barriga.
A pancada na cabeça estava a ser monitorizada e o corte tinha sido suturado pela Doc Jane. Nenhum dos ferimentos lhe punha em risco a vida.
Estava tudo bem.
O pior é que o seu esterno não estava a aceitar essa conversa fiada. Desde que John Matthew lhe contara as novidades, aquela maldita dor tinha-se instalado, moendo-o,
confortavelmente aninhada nas suas vias respiratórias.
Não conseguia, literalmente, respirar fundo.
Que merda, se ao menos fosse um macho maduro - e, tendo em conta a forma como às vezes resolvia as coisas, era contestável, se não mesmo incorreto, considerá-lo
como tal - iria para o corredor, marchava até ao quarto de Blay e batia-lhe à porta. Espreitava para se certificar de que o ruivo ainda tinha o coração a bater e
que estava bom da cabeça... e depois ia à sua vida.
Em vez disso, tentava fingir que não estava a pensar nele, enquanto fazia um buraco na carpete.
Enquanto pensava tudo isto, continuava a andar de um lado para o outro. Ele preferia estar na sala de musculação, mas o facto de Blaylock estar aqui nesta ala era
uma amarra que o mantinha preso nas redondezas. Sem uma razão suficientemente forte para se afastar, como sair para lutar ou... digamos... a casa estar a arder,
ele era evidentemente incapaz de se libertar.
E, quando estava outra vez à frente das portas de vidro, teve um indício do porquê.
Tentou convencer a palma da sua mão a não tocar no puxador.
Não foi bem-sucedido.
A fechadura abriu-se e o ar frio embateu-lhe violentamente no rosto. Saindo para a varanda descalço e de roupão, mal se apercebeu de que o chão estava absolutamente
gelado ou que uma brisa fria lhe subia pelas pernas e lhe atingia diretamente os testículos.
Lá em cima, saía luz das portas duplas do quarto de Blay. O que era uma boa notícia pois de certeza que correriam os cortinados antes de fazerem sexo.
Por isso, provavelmente era seguro espreitar. Certo...?
Além disso, Blay estava a recuperar de um ferimento, logo não podia andar às cambalhotas ali dentro.
Decidindo-se a assumir o papel de Qhuinn Espião, manteve-se nas sombras e tentou não se sentir como um mirone enquanto caminhava em bicos de pés. Quando se aproximou
da porta, preparou-se mentalmente, espreitou e...
Respirou fundo, aliviado.
Blay estava sozinho na cama, escarranchado contra a cabeceira, com o roupão preto atado na cintura, os tornozelos cruzados, os pés com meias pretas. Tinha os olhos
fechados e as mãos repousavam sobre a barriga, como se estivesse a ser cuidadoso com as partes ainda enroladas em ligadura.
Um movimento fez com que Blay abrisse as pálpebras e olhasse na direção oposta à janela. Era Layla a sair da casa de banho e estava a andar muito lentamente. Trocaram
algumas palavras. Estava a agradecer-lhe, sem dúvida, pela alimentação que acabara de receber e ela estava a dizer-lhe que o prazer era todo dela. Não era uma surpresa
que ela aqui estivesse. Já tinha feito a ronda da casa anteriormente e Qhuinn já se tinha cruzado com ela antes da primeira refeição... ou daquilo que teria sido
a primeira refeição se alguém tivesse aparecido.
E quando ela saiu do quarto de Blay, Qhuinn esperou que Saxton entrasse. Nu. Com uma rosa vermelha nos dentes. E uma maldita caixa de chocolates.
E uma ereção que fazia com que o Monumento a Washington parecesse atarracado.
Nada.
Apenas Blay deixando cair a cabeça para trás e as suas pálpebras a fecharem-se. Parecia completamente exausto e, pela primeira vez, velho. Aquele não era um rapaz
que acabara de fazer a transição. Aquele era um macho de raça pura.
Um incrivelmente belo... macho... de raça pura.
Na sua mente, Qhuinn viu-se a si próprio a abrir a porta e entrar. Blay olharia e sentar-se-ia na cama... mas Qhuinn faria um gesto para ele se voltar a deitar enquanto
entrava.
Perguntaria pelo ferimento. E Blay abria o roupão para lhe mostrar.
Qhuinn esticaria o braço e tocaria na ligadura... e depois deixaria os dedos saírem da gaze e do adesivo para a pele quente e suave da barriga de Blay. Este ficaria
chocado, mas nesta fantasia ele não afastaria a mão... Levá-la-ia mais abaixo, para lá do ferimento, em direção às ancas e...
- Foda-se!
Qhuinn deu um salto para trás, mas era tarde de mais. Saxton tinha entrado no quarto, ido até à janela e começado a fechar as cortinas. E enquanto o fazia, tinha
visto o idiota do lado de fora na varanda armado em câmara de segurança.
Enquanto Qhuinn dava meia volta para regressar rapidamente ao seu quarto, pensava Não abras a porta... não abras a porta...
- Qhuinn?
Caçado.
Imóvel como um ladrão apanhado com um ecrã de plasma debaixo do braço, certificou-se de que o roupão estava fechado antes de se virar. Merda. Saxton estava a entrar
na varanda e o sacana também estava de roupão.
Bem, aparentemente andavam todos de roupão. Até Layla estava de robe.
Quando Qhuinn encarou o primo, apercebeu-se de que não tinha trocado com ele mais de duas palavras desde que ele se mudara para cá.
- Só queria saber como ele estava. - Não valia a pena dizer o nome - era absolutamente óbvio quem é que ele estava a espiar.
- O Blaylock agora está a dormir.
- Alimentou-se? - perguntou, mesmo sabendo a resposta.
- Sim.
Saxton fechou a porta atrás de si, sem dúvida para o frio não entrar, e Qhuinn tentou ignorar o facto de ele ter os pés e os tornozelos nus à vista. Porque a probabilidade
era que o resto também estivesse.
- Ah, desculpa incomodar-te - balbuciou Qhuinn. - Tem uma boa n...
- Podias ter batido à porta. Do lado do corredor.
Disse as palavras com um tom aristocrático que fazia Qhuinn ficar completamente tenso. Não por odiar Saxton. Simplesmente fazia-o demasiado lembrar-se da família
que tinha perdido.
- Não queria incomodar-te. Incomodá-lo. Incomodar nenhum dos dois.
Quando uma rajada de vento atingiu a varanda, o cabelo louro inacreditavelmente firme e ondulado de Saxton nem sequer ficou um bocadinho desalinhado, como se cada
cabelo, até ao folículo, estivesse tão bem composto e cuidado que não era afetado por... nada.
- Qhuinn, não interrompias nada.
Mentiroso, pensou Qhuinn.
- Chegaste primeiro, primo - murmurou Saxton. - Se querias vê-lo, ou estar com ele, deixá-los-ia a sós.
Qhuinn pestanejou. Então... tinham uma relação aberta? Mas que raio?
Ou espera... talvez ele tivesse feito um bom trabalho a convencer não só Blay, mas também Saxton, de que não estava interessado em nada de sexual com o seu melhor
amigo.
- Primo, posso falar honestamente?
Qhuinn aclarou a garganta.
- Depende do que tenhas para dizer.
- Sou amante dele e...
- Epá... - Levantou a mão para o interromper. - Isso não é da minha conta.
- ... não sou o amor da vida dele.
Qhuinn pestanejou outra vez. E então, por um segundo, foi projetado para um local onde o primo lhe fazia graciosamente uma vénia e ele era tão bom como o filho da
puta. Só que havia uma falha enorme nesta fantasia. Blay já não queria nada com ele.
Ele próprio levara a esse resultado ao longo de muitos anos.
- Entendes o que te estou a dizer, primo? - Saxton manteve um tom de voz baixo, apesar de o vento estar a uivar e a porta estar fechada. - Estás a ouvir-me?
Ok, Qhuinn não tinha antecipado ser encostado contra essa parede naquela noite... ou em qualquer outra noite. Que merda, o seu corpo estava subitamente todo a pulsar
e ele quase tinha vontade de dizer ao primo para dar de frosques e ir dar banho ao cão ou qualquer coisa do género, ou melhor ainda, para desaparecer de vez.
Só que então pensou na aparência envelhecida de Blay. Ele tinha finalmente encontrado um caminho na vida e seria um crime injusto deitar tudo isso a perder ali no
escuro.
Qhuinn abanou a cabeça.
- Não está certo.
Não para Blay.
- És um palerma.
- Não. Mas costumava ser.
- Permite-me discordar. - A mão elegante de Saxton juntou mais as lapelas do roupão. - Se me dás licença, é melhor voltar para dentro. Está muito frio aqui fora.
Bem, era mesmo uma metáfora do caraças.
- Não lhe digas nada - pediu Qhuinn secamente. - Por favor.
Saxton semicerrou os olhos.
- O teu segredo está mais do que seguro comigo. Confia em mim.
E, dizendo isto, virou-se e voltou para o quarto de Blaylock, fechando a porta no trinco e tapando a luz ao fechar os pesados cortinados.
Qhuinn coçou a cabeça outra vez.
Parte dele queria entrar por ali dentro e dizer, Mudei de ideias, primo: agora põe-te a andar daqui para fora para eu poder...
Dizer a Blay o que tinha dito a Layla.
Mas era bem possível que Blay estivesse apaixonado por Saxton, e Deus sabia que Qhuinn já tinha fodido o seu melhor amigo demasiadas vezes.
Ou não, como era o caso.
Quando eventualmente regressou ao quarto, só porque era demasiado patético estar ali fora a fitar a porcaria das cortinas, apercebeu-se de que a sua vida girava
sempre em torno de si próprio. Do que ele queria. Precisava. Tinha de ter.
O antigo Qhuinn teria entrado por aquele buraco...
Detendo-se, tentou não terminar aquela frase demasiado literalmente.
A verdade era que o ditado ridículo e lamechas estava certo: quando se ama alguém, libertamo-lo.
Já no quarto, sentou-se na cama. Olhando em volta, viu a mobília que não tinha comprado... e decorações fabulosas, mas anónimas e nada ao seu estilo. A única coisa
que lhe pertencia eram as roupas no armário, a lâmina na casa de banho e os ténis de corrida que atirara para o chão quando chegara.
Era tal e qual como em casa dos pais.
Bem, ali, verdade fosse dita, as pessoas valorizavam-no. Mas no que tocava a ter uma vida, não tinha uma realmente sua. Era o protetor de John. O soldado da Irmandade.
E...
Merda, agora que já não se abandonava ao seu vício de sexo, a lista acabava aí.
Encostando-se à cabeceira, cruzou os pés e ajeitou o roupão. A noite estendia-se com um tédio horrível onde nada acontecia, como se ele estivesse a conduzir e conduzir
e conduzir ao longo do deserto... e pela frente esperavam-no mais noites como aquela.
Meses todos iguais.
Anos.
Pensou em Layla e no conselho que lhe tinha dado. Porra, estavam os dois exatamente na mesma posição, não estavam?
Fechando os olhos, ficou aliviado quando a sua mente começou a vaguear. Mas teve a sensação de que a paz encontrada não duraria muito.
E estava certo.
Capítulo 42
No Hospital Equino de Tricounty, Manny ficou parado enquanto Glory lhe cabeceava a roupa, e ele sabia que talvez a devesse deixar. Descobriu, contudo, que era incapaz
de se separar, e a Payne também, do cavalo.
O tempo esgotava-se para a sua Glory e isso era como se o matassem. Mas não a podia deixar a definhar, mais magra e aleijada a cada dia que passava. Merecia muito
mais do que isso.
- Ama-la - comentou Payne, em voz baixa, com a mão pálida a percorrer as costas da puro-sangue e a descer-lhe até à anca.
- Pois. É verdade.
- Ela tem muita sorte.
Não. Estava a morrer e isso era uma maldição.
Pigarreou.
- Acho que temos de...
- Doutor Manello?
Manny chegou-se atrás e olhou sobre a porta da baia.
- Olá, doutor. Como está?
O veterinário se aproximou e o smoking que usava parecia tão deslocado como uma forquilha num camarote da ópera.
- Estou bem... e você parece muito bem. - O homem endireitou o laço. - Estou com este fatinho porque venho do Met. Mas tinha de aqui passar para ver como estava
a sua menina.
Manny saiu e ofereceu-lhe a mão.
- Eu também.
Ao apertarem as mãos, o veterinário olhou para o interior da baia - e ficou de olhos arregalados quando viu Payne.
- Ah... olá.
Quando Payne ofereceu ao homem o esboço de um sorriso, o bom doutor pestanejou como se o sol tivesse rasgado as nuvens, brindando-o com o seu brilho.
Ceeeeeerto, Manny estava mais do que farto de ter sacanas a mirarem-na assim.
Interpondo-se, perguntou:
- Será que a podemos pôr em alguma suspensão? Para lhe aliviar a pressão?
- Prendemo-la umas horas por dia. - Enquanto respondia, o veterinário chegou-se para o lado até que Manny se viu obrigado a segui-lo com o tronco para lhe bloquear
a visão. - Não quero correr o risco de termos problemas gastrointestinais ou respiratórios.
Farto da inclinação e querendo poupar Payne ao rumo da conversa, Manny segurou o braço do homem e chegou-o para o lado.
- Qual o próximo passo?
O veterinário esfregou os olhos, como se desse à mente um instante para se ordenar.
- Sinceramente, doutor Manello, não tenho um bom pressentimento quanto ao ponto em que nos encontramos. Aquele outro casco está a ceder, e mesmo tendo feito todos
os possíveis para o tratar, ele não está a reagir.
- Tem de haver mais qualquer coisa.
- Sinto muito, a sério.
- Quanto tempo até termos a certeza...
- Já a tenho. - O olhar do homem estava absolutamente carregado. - Foi por isso que cá vim esta noite... estava à espera de um milagre.
Pois, já eram dois.
- E se ficasse um bocado com ela - aventou o veterinário. - Demore o tempo que quiser.
Que era jargão clínico para Despeça-se.
O veterinário levou brevemente a mão ao ombro de Manny, depois virou-se e afastou-se. De saída olhou para cada baia, confirmando os pacientes e afagando um focinho
ocasional.
Um bom homem. Um indivíduo meticuloso.
Do tipo que faria tudo o que pudesse antes de apresentar o cenário com a pior das hipóteses.
Manny respirou fundo e tentou convencer-se de que Glory não era um animal de estimação. As pessoas não tinham cavalos de corrida como animais de estimação. E ela
merecia mais do que sofrer numa baia acanhada até que ele reunisse coragem suficiente para fazer o que tinha de ser feito.
Levando a mão ao peito, esfregou a cruz que tinha por baixo da roupa e sentiu um impulso súbito de ir à igreja...
Começou apenas por reparar que as sombras estavam a ficar mais escuras na parede do outro lado do corredor. E depois pensou que talvez alguém tivesse acendido as
luzes do teto.
Acabou por notar que a iluminação vinha da baia de Glory.
Mas... o que...
Deu meia volta e estacou... e depois teve de recuperar o equilíbrio.
Payne estava de joelhos na serradura macia, as mãos nas patas anteriores do cavalo, os olhos fechados, as sobrancelhas franzidas.
E o corpo brilhava-lhe com uma luz forte e bela.
Acima dela, Glory estava imóvel, mas a pelagem estremecia e os olhos reviravam-se-lhe na cabeça. Breves resfôlegos subiam-lhe pelo pescoço comprido e saíam-lhe pelas
narinas dilatadas... como se dominada por uma sensação de alívio, de dor a amainar.
As patas anteriores feridas brilhavam ao de leve.
Manny não se mexeu, não respirou, nem sequer pestanejou. Limitou-se a agarrar a cruz ainda com mais força... e a rezar para que ninguém viesse interromper aquilo.
Não teve noção de quanto tempo ali ficaram os três, mas acabou por se tornar óbvio que Payne estava a ressentir-se do esforço. O corpo começou a vibrar e a respiração
dela tornou-se irregular.
Manny entrou na baia e libertou-a de Glory, segurando-lhe o corpo frouxo contra o seu e afastando-se, para o caso de a égua se assustar ou fazer algo imprevisível.
- Payne? - Cristo...
As pálpebras dela estremeceram e abriram-se.
- Consegui... ajudá-la?
Manny afagou-lhe o cabelo enquanto olhava a poldra. Glory estava de pé, a erguer um casco e depois o outro, regressando depois ao primeiro, como se tentasse perceber
o que provocara o conforto abrupto. Depois abanou-se... e foi mordiscar o feno onde ainda não tocara.
Quando o maravilhoso som de erva seca a ser roída preencheu o silêncio, Manny olhou para Payne.
- Conseguiste - disse-lhe, num tom rouco. - Acho que conseguiste.
Os olhos dela pareceram esforçar-se por se focar.
- Não queria que a perdesses.
Assoberbado por uma gratidão para a qual não tinha palavras, Manny abraçou-a mais junto ao peito e aí a manteve durante alguns instantes. Queria continuar assim
muito mais tempo, mas ela não estava com bom aspeto e só Deus sabia quem mais se teria apercebido do espetáculo de luzes. Tinha de os tirar dali.
- Vamos até minha casa - sugeriu. - Para te poderes deitar.
Quando ela assentiu, Manny içou-a nos braços e raios o partissem se não era uma sensação perfeita. Ao fechar a baia atrás deles, olhou para Glory. O cavalo devorava
o feno como se fosse acabar o mundo.
Santa mãe... teria mesmo resultado?
- Volto amanhã - disse-lhe, antes de se afastar, animado por uma sensação incandescente de esperança.
Junto à casita do guarda, sorriu e encolheu os ombros ao segurança.
- Houve alguém a fazer turnos duplos no hospital. Está exausta.
O homem levantou-se da cadeira, como se a mera presença de Payne, mesmo inconsciente, chegasse para lhe prender a atenção.
- É melhor levá-la para casa. É preciso cuidar bem de uma mulher dessas.
Grande verdade.
- É para lá que eu vou.
Movendo-se rapidamente, chegou à receção e esperou pelo sinal do trinco para que pudesse abrir as derradeiras portas. Com um pouco de sorte, o veterinário não teria
visto nada...
- Obrigado, meu Deus - resmungou Manny ao ouvir o zumbido e aplicar a anca contra a porta.
Não demorou a chegar ao carro, embora tirar as chaves enquanto mantinha Payne ao colo tivesse sido complicado. O mesmo se passou ao abrir a porta. Mas depois lá
a sentou no banco do pendura, sempre a interrogar-se se ela estaria bem. Que raios, não tinha como entrar em contacto com ninguém do mundo dela.
Ao contornar o carro e sentar-se ao volante pensou, Que se dane, ia levá-la de volta aos vampiros...
- Posso pedir-te uma coisa? - disse ela, num tom arrastado.
- Tudo... o que...
- Posso beber-te um pouco da veia? Sinto-me... curiosamente esvaída.
Está bem, certo. Isso era uma necessidade imediata. Trancou o carro e praticamente arrancou o braço para lho dar.
Os lábios macios encontraram o interior do pulso, mas a mordida não foi rápida, quase como se ela tivesse dificuldade em reunir energias. Mesmo assim, ela lá o conseguiu
e ele saltou, com a dor aguda a trespassar-lhe o coração e a deixá-lo um pouco zonzo. Ou... talvez isso fosse o resultado de uma excitação súbita e avassaladora
que lhe percorreu não só desde os testículos ao membro, mas todo o corpo.
Com um gemido, as ancas reviraram-se-lhe no banco do Porsche e deixou a cabeça pender para trás. Cristo, era bom... o ritmo de sucção que ela iniciou era quase como
se estivesse na sua ereção, e mesmo que lhe tenha doído o início, apenas sentia o sugar como um prazer, um prazer doce pelo qual ele tinha a certeza não se importar
de morrer.
Mergulhou num estado de idílio. Pareceu-lhe estar séculos com as presas dela na sua carne. O tempo perdia o significado, tal como a realidade de se encontrarem num
parque de estacionamento, num carro com vidros transparentes.
Que se danasse o mundo.
Só eles os dois, juntos, importavam.
E isso foi antes de aqueles olhos de diamante se terem aberto e ficado nele, olhando-lhe não para o rosto, mas para o pescoço.
Vampira... pensou. Bela vampira.
Minha.
Enquanto essa ideia ganhava força na sua mente, Manny agia sem grande consciência, meneando a cabeça e oferecendo-lhe a jugular...
Não precisou de pedir duas vezes. Payne praticamente lançou-se a ele, com a mão a mergulhar-lhe no cabelo e a prender-lhe a nuca. Agarrando-o, Manny ficou imobilizado,
à mercê dela... a presa do predador que ela era. E agora que o tinha, moveu-se lentamente, com as presas a baixar-lhe até à pele e a percorrerem-lhe a altura do
pescoço, deixando-o hirto com a antecipação da perfuração e da sucção...
- Hummm! - bradou ele quando a vampira o mordeu. - Ah... sim...
As mãos dele agarraram-lhe os ombros, aproximando-a ainda mais.
- Leva tudo... leva... ai, meu Deus... ah, merda...
Algo afagou-lhe o membro. Como sabia exatamente onde tinha as mãos, só podia ser ela. Movendo-se num acesso de sofreguidão, deu-lhe tanto espaço quanto possível
para que ela se mexesse... e Payne assim fez, subindo e descendo contra a ereção tensa, com as ancas dele a ajudarem, indo no movimento contrário às carícias.
Manny arquejava e não conseguia parar de gemer. Não demorou muito para que os testículos ficassem dormentes e a ponta do membro se retesasse contra a pressão crescente.
- Estou quase a vir-me - sussurrou. - É melhor parares se não quiseres que eu...
Com essas palavras, Payne violou o cimo das calças e procurou no interior...
Manny viu a porra das estrelas. Assim que a pele dela tocou na sua, ele atingiu um orgasmo como nunca, a cabeça a saltar para trás com força, as mãos a cravarem-se
nos ombros dela, as ancas tresloucadas, aos saltos. E ela não parou de sugar, nem de bombear. Assim, tal como antes, ele acompanhou os movimentos com a libertação,
com o prazer mais intenso a cada espasmo da ereção.
Acabou demasiado depressa.
Claro que aquilo poderia ter continuado durante uma década e mesmo assim ficaria esfomeado por mais.
Quando Payne o libertou, ela recostou-se e lambeu as pontas aguçadas das presas, a língua rosada em contraste com o branco. Caramba... aquele brilho maravilhoso
voltara a surgir-lhe por baixo da pele, fazendo-a parecer um sonho.
Ah, espera, era isso que ela era, certo?
- O teu sangue é forte - comentou Payne num tom rouco, enquanto voltava a aproximar-se e lhe lambia o pescoço. - Tão forte.
- É? - resmungou ele. Mas nem tinha a certeza de ter falado. Talvez apenas o tivesse pensado.
- Sinto o poder a percorrer-me.
Nunca se interessara por SUV - essas tretas eram demasiado volumosas e conduzi-las era como pedregulhos a caírem montanha abaixo - mas o que não daria naquele momento
por um banco traseiro onde coubesse mais do que os tacos de golfe. Queria deitá-la e...
- Quero mais de ti - murmurou Payne enquanto o esfregava com o nariz.
Que raios, continuava duro como pedra, mesmo tendo acabado de...
- Quero-te na minha boca.
A cabeça de Manny atirou-se para trás e ele gemeu, com o membro a latejar como se aquilo lá em baixo estivesse a meio de uma corrida. Mas por mais que a quisesse,
não sabia se ela tinha noção daquilo em que se estaria a meter. O simples facto de pensar nos lábios dela no seu...
Antes de ter fôlego para falar já a cabeça de Payne se tinha baixado até ao colo dele, e não houve preâmbulo, sugou-o até ao fundo, mantendo-o no interior da sua
boca quente e húmida.
- Porra! Payne!
Levou-lhe as mãos aos ombros, decidido a puxá-la para trás... mas ela não estava disposta a isso. Sem quaisquer indicações sabia exatamente o que fazer, subindo
e sugando-o, antes de lhe lamber a parte debaixo da haste. E depois explorou-o com uma meticulosidade que lhe mostrou que ela estava a gostar tanto quanto ele, e
isso ainda o excitava mais.
Mas então sentiu-lhe a presas a brincarem-lhe com a cabeça.
Puxou-a para cima de imediato, prendendo-lhe a boca num beijo intenso enquanto lhe segurava o rosto e se libertava nas mãos dela. Mas isso não durou. Payne soltou-se
das mãos dele e regressou ao ponto de partida, apanhando-o a meio do orgasmo e absorvendo aquilo que o corpo dele parecia ter a rodos para ela.
Quando os espasmos terminaram, ela ergueu-se, olhou-o... e lambeu lentamente os lábios.
Manny teve então de fechar os olhos, com a ereção a latejar de tal maneira que lhe doía.
- Agora vais levar-me a tua casa - disse ela.
Não era um pedido. E o tom sugeria que ela estaria a pensar exatamente no mesmo que ele.
Portanto, isso levaria apenas a uma coisa.
Manny compôs-se interiormente e depois abriu os olhos. Ergueu a mão, tocando-lhe no rosto, e acariciou-lhe o lábio inferior com o polegar.
- Não sei se devemos, bambina - admitiu.
A mão dela apertou-lhe o membro e ele gemeu.
- Manuel... acho que é exatamente aí que temos de estar.
- Não é... uma boa ideia.
Payne recuou ainda mais e retirou a mão, com o brilho a desvanecer-se.
- Mas estás excitado. Neste momento.
A sério?
- É mesmo por isso. - Percorreu-lhe o rosto com os olhos e depois desceu-lhe até aos seios. Estava tão desesperado por ela que se sentia tentado a rasgar-lhe as
calças e a tomar-lhe a virgindade naquele carro. - Não vou conseguir conter-me, Payne. Mal o estou a fazer neste momento...
Payne ronronou de satisfação e voltou a humedecer os lábios vermelhos.
- Gosto quando te descontrolas.
Cristo, isso não ajudava nada.
- Eu... - Abanou a cabeça, pensando que era um inferno absoluto. Estar a negar isso a ambos causava-lhe uma dor profunda. - Acho que tens de fazer o que precisas
e ires-te embora. Enquanto ainda te consigo deixar ir...
O som de batidas no vidro começou por não fazer grande sentido. Estavam só os dois naquele parque de estacionamento vazio. Mas depois, o mistério solucionou-se:
- Sai do carro. E passa-me as tuas coisas.
A voz masculina fez Manny virar a cabeça para o vidro... onde encarou o cano de uma arma.
- Tu ouviste, meu. Para fora do carro ou dou-te um tiro.
Enquanto Manny devolvia Payne ao seu lugar, afastando-a de um disparo à queima-roupa, disse-lhe baixinho:
- Quando eu sair, tranca as portas. É aqui.
Levou a mão ao tabliê e indicou o botão.
- Deixa-me tratar disto. - Tinha cerca de quatrocentos dólares em dinheiro na carteira e bastantes cartões de crédito. - Fica aqui dentro.
- Manuel...
Não lhe deu hipótese de responder. Para ele, aquela arma era dona de todas as respostas e estabelecia as regras.
Pegando na carteira, demorou-se a abrir a porta, mas saiu rapidamente e ficou à espera de ouvir o fecho automático das portas.
E continuou à espera.
Desesperado por ouvir Payne a ficar tão segura quanto possível, mal se apercebeu do tipo da máscara de esqui a bradar:
- A tua carteira. E diz à gaja para sair do carro.
- Estão quatrocentos...
A carteira desapareceu.
- Diz-lhe para sair ou então vai comigo. E o relógio. Quero o relógio.
Manny olhou para o edifício. Havia janelas um pouco por todo o lado e, de certeza, que o guarda sairia ocasionalmente para verificar os arredores.
Talvez se atrasasse a entrega...
O cano da pistola foi-lhe encostado ao rosto.
- Relógio. Já.
Não era o relógio bom. Pelo amor de Deus, nunca operava com o Piaget posto. Mas fosse como fosse, o idiota podia ficar com ele. Além disso, enquanto fingia que lhe
tremiam as mãos, imaginou que isso lhe fosse dar mais...
Foi difícil perceber o que aconteceu e por que ordem.
Em retrospetiva, sabia que Payne teria de ter começado por abrir a porta dela. Mas pareceu-lhe que assim que ouviu o som terrível do lado do passageiro ela estava
já atrás do ladrão.
Outra coisa bizarra foi o facto de só depois de Manny ter praguejado é que o desgraçado pareceu aperceber-se de um terceiro elemento a entrar em campo. Mas não podia
ter sido assim, ele tê-la-ia visto a contornar o carro, certo?
Bem, fosse o que fosse que tivesse acontecido, o Máscara de Esqui acabou a saltar para a esquerda e a apontar a pistola alternadamente para Payne e para Manny.
O jogo de pingue-pongue não ia durar muito. Seguindo uma lógica terrível, Manny sabia que o tipo ia disparar contra Payne, pois ela era a mais fraca dos...
Quando o cano da arma voltou a apontar para ela, Payne... desapareceu. E não por se ter baixado, desviado, ou saído dali a correr. Ela estava ali, a ocupar espaço
num momento... e desaparecida no seguinte.
Voltou a aparecer uma fração de segundo depois e agarrou o punho do homem quando ele fazia menção de apontar a arma a Manny. Desarmá-lo foi igualmente rápido: um,
virou a arma; dois, arrancou-a da mão do filho da puta; três, atirou-a a Manny, que a apanhou.
E depois foi altura de porrada.
Payne girou o tipo, segurou-lhe a parte de trás da cabeça e bateu-lhe com o rosto no capô do Porsche. Depois de ter polido a pintura com a matraca do desgraçado,
reposicionou-o e agarrou nas calças largas do filho da mãe. Erguendo-o pelo cabelo e pelo cós das calças, ou então pelo reto, tomou balanço e atirou-o... a cerca
de dez metros.
Nem o super-homem voava assim tão bem e o ladrão foi bater na parede com a testa. O edifício não lhe deu grande resposta e, vejam só, ele também não. Aterrou de
cara num canteiro de flores e aí ficou, com os membros a ficarem desfalecidos.
Sem se contorcer. Sem gemer. Sem tentar levantar-se.
- Estás bem, Manuel?
Manny virou lentamente a cabeça na direção de Payne. Ela nem sequer estava ofegante.
- Jesus... Cristo... - murmurou ele.
Enquanto as palavras de Manuel se perderam com a brisa, Payne ocupou-se com o top e as calças largas. Depois alisou o cabelo. Parecia a única coisa que poderia fazer
pela sua aparência após a cena de violência.
Um desperdício de esforço, tentar feminizar-se. Entretanto, Manuel continuava a fitá-la.
- Não dizes mais nada? - perguntou ela em voz baixa.
- Ah... - Manuel levou a mão livre à cabeça. - Pois... deixa-me ver se ele está vivo.
Payne envolveu-se com os braços enquanto se aproximava do humano. A bem da verdade, não se preocupava com o estado em que pudesse ter deixado o assaltante. A sua
prioridade fora afastar a arma mortífera de Manuel e fora bem-sucedida na tarefa. O que acontecesse ao ladrão era irrelevante... mas era óbvio que ela não conhecia
as regras daquele mundo. Nem sabia quais as implicações do que fizera.
Manuel estava a meio caminho sobre a relva quando a «vítima» se virou com um gemido. As mãos que tinham segurado a arma dirigiram-se à máscara que lhe cobria o rosto
e empurraram a malha até à testa.
Manuel ajoelhou-se.
- Sou médico. Quantos dedos tenho levantados?
- O quê...?
- Quantos dedos?
- ...três...
Manuel pousou a mão no ombro do indivíduo.
- Não te levantes. Foi uma pancada tremenda na cabeça. Sentes formigueiro ou dormência nas pernas?
- Não. - O homem fitou Manuel. - Porque é que... estás a fazer isto?
Manuel minimizou a questão.
- Chama-se faculdade de medicina... cria a necessidade compulsiva de tratar dos doentes e dos feridos, independentemente das circunstâncias. Acho que temos de chamar
uma ambulância...
- Nem pensar!
Payne materializou-se junto deles. Compreendia as boas intenções de Manuel, mas receava que o ladrão tivesse outra arma com ele...
Assim que surgiu atrás de Manuel, o homem no chão encolheu-se em terror, erguendo os braços e tentando recuar.
Manny olhou sobre o ombro e foi quando ela percebeu que Manuel não era ingénuo. Tinha a arma apontada ao homem.
- Está tudo bem, bambina. Tenho-o...
Atabalhoadamente, o ladrão levantou-se e Manuel seguiu-o com o cano enquanto o humano cambaleava e se equilibrava contra o edifício. Era óbvio que estava a preparar-se
para correr.
- Ficamos com a arma - indicou Manuel. - Compreendes, não? E não preciso de te dizer que tens sorte em estar vivo... não se provoca a minha namorada.
Quando o humano se perdeu entre as sombras, Manuel levantou-se.
- Tenho de entregar esta arma à polícia.
Depois limitou-se a olhar para ela.
- Não há problema, Manuel. Posso tratar da minha presença com o guarda, para que nada se fique a saber. Faz o que tens a fazer.
Aquiescendo, ele pegou num pequeno aparelho de telefone, abriu-o e pressionou alguns botões. Levando-o ao ouvido, disse:
- Sim, chamo-me Manuel Manello e fui ameaçado com uma arma enquanto me encontrava no meu veículo. Estou no Hospital Tricounty...
Enquanto Manuel falava, ela olhou em volta, pensando que não queria que as coisas acabassem assim. Mas...
- Tenho de ir - disse-lhe, quando Manuel desligou. - Não posso... estar aqui se houver mais humanos. Vai complicar as coisas.
O telefone baixou lentamente para o lado do corpo.
- Pois... está bem. - Franziu o sobrolho. - Ah, olha... se a polícia está a chegar, tenho de me lembrar do que aconteceu, se não... bolas, tenho uma arma na mão
sem um motivo que lhes apresente.
Com efeito, pareciam estar encurralados. E, desta vez, sentia-se grata por uma prisão.
- Quero que te lembres de mim - disse baixinho.
- O plano não era esse.
- Eu sei.
Manuel abanou a cabeça.
- És a peça mais importante no meio de tudo isto. Por isso tens de te proteger e isso significa apagares-me a...
- Doutor Manello! Doutor Manello... o senhor está bem?
Payne olhou sobre o ombro. O primeiro macho humano que tinham visto à secretária corria pelo relvado, num estado de pânico.
- Fá-lo - insistiu Manuel. - E eu depois penso em alguma coisa...
Quando o guarda apressado chegou junto deles, Payne encarou o recém-chegado.
- Estava a fazer a ronda - explicou o homem -, e quando confirmava os gabinetes no outro lado do edifício vi-os pela janela... Corri o mais que pude!
- Estamos bem - garantiu ela ao guarda. - Mas importava-se de olhar para uma coisa?
- É claro! A polícia já foi chamada?
- Sim. - Tocou com o dedo por baixo do olho direito. - Olhe para mim, por favor.
Já estava fito no rosto dela, e a dose adicional de concentração facilitou-lhe o trabalho. Só precisou de abrir caminho pelo cérebro do homem e cobrir mentalmente
tudo o que se relacionava com ela.
Para o humano, o cirurgião chegara e partira sozinho.
Manteve o homem em transe e dirigiu-se a Manuel.
- Não tens de te preocupar. As recordações dele são de curto prazo, por isso ele vai ficar bem.
Ao longe ouviu-se um uivo agudo e urgente.
- É a polícia - indicou Manuel.
- Nesse caso vou partir.
- Como voltas a casa?
- Da mesma forma que saí do teu carro.
Esperou que ele lhe estendesse a mão... ou dissesse alguma coisa... ou... Mas ele limitou-se a ficar ali, com o ar frio e silencioso da noite entre eles.
- Vais mentir-lhes? - perguntou ele. - E dizer-lhes que me apagaste?
- Não sei.
- Bem, se precisares de voltar para o fazer, eu estou...
- Boa noite, Manuel. Por favor, fica bem.
Com essas palavras, ela levantou a mão e silenciosa e inexoravelmente, desapareceu.
Capítulo 43
No que dizia respeito a truques, este era verdadeiramente estranho.
- Então, onde é que está o teu amigo?
Karrie Ravisc, também conhecida nas ruas como Kandy, era uma puta a sério há cerca de nove meses e, por isso, já tinha visto muita merda. Mas aquilo...
O homem enorme à porta do quarto do motel falou suavemente.
- Vem aí.
Karrie deu outra passa no cigarro e pensou, Bem, pelo menos o que estava à sua frente era uma brasa. E também lhe tinha pago quinhentos e arranjado aquele quarto.
Ainda assim... havia qualquer coisa ali que não batia certo.
Pronúncia estranha. Olhos estranhos. Ideias estranhas.
Mas uma verdadeira brasa.
Enquanto esperavam, ela deitou-se em silêncio, nua na cama com todas as luzes apagadas. No entanto, não estava completamente escuro. Aquele fulano com a carteira
recheada tinha colocado uma enorme lanterna que parecia um caixote do outro lado do quarto, por cima do armário barato. O feixe de luz apontava-lhe para o corpo.
Como se ela estivesse num palco. Ou talvez como se fosse uma obra de arte.
O que não era tão estranho como alguma das coisas que já fizera. Merda, se a prostituição não te levasse a ver os homens como sacanas maldosos e doentios, nada mais
o faria. Além dos adúlteros do costume e dos que gostavam de sentir o poder, havia os fodilhões com fetiches por pés, os que gostavam que lhes batessem e outros
que gostavam que lhes mijassem em cima.
Terminando o seu White Owl, apagou a beata e pensou que aquela coisa do holofote talvez até nem fosse má ideia. Um parvalhão qualquer tinha querido comer hambúrgueres
em cima dela há duas semanas e isso tinha sido uma nojeira...
O som da fechadura fê-la dar um salto e ela percebeu que alguém tinha entrado sem dar conta. Era o som da porta a ser trancada. Por dentro.
E estava agora um segundo homem junto ao primeiro.
Ainda bem que o seu chulo estava mesmo na porta ao lado.
- Boa noite - disse ela, enquanto se estendia mecanicamente para ambos. Os seios eram falsos, mas eram uma boa imitação e a barriga era lisa, mesmo depois de ter
tido um filho, e não só estava sem pelos, como fizera depilação a laser.
Por todas estas razões ela cobrava o que cobrava.
Homem... mais um enorme, pensou ela, enquanto o segundo se aproximou e parou aos pés da cama. Na realidade, aquele cabrão era enorme. Um verdadeiro mamute. E não
por ser gordo e descuidado. Os seus ombros eram tão perfeitos que pareciam ter sido desenhados com uma régua e esquadro e, juntamente com as suas ancas estreitas,
o peito formava um triângulo perfeito. Não lhe conseguia ver o rosto, por causa da luz que vinha de trás dele, mas não tinha importância. O primeiro bacano esticou-se
na cama ao lado dela.
Merda... de repente percebeu que estava excitada. Era o tamanho deles e o perigo do escuro e dos aromas. Jesus... tinham um cheiro fantástico.
- Vira-te ao contrário - exigiu o segundo.
Meu deus, aquela voz. A mesma pronúncia estrangeira do outro que tinha preparado tudo, mas mais grave e com um toque autoritário.
- Queres mesmo ver o meu cu? - gorgolejou ela, enquanto se sentava. Passando as mãos pelos seios, levantou-os e apertou-os. - Porque a minha parte da frente é ainda
melhor.
Ao dizer isto, empurrou um seio para cima e esticou a língua para baixo, lambendo o seu próprio mamilo, enquanto olhava para um homem e para o outro sem parar.
- Vira-te para baixo.
Ok, obviamente, aquilo era uma ordem de prioridade. O homem deitado ao lado dela estava com uma tremenda ereção, mas não se mexia. E o Sr. Faz-Já era o único que
falava.
- Se é assim que queres.
Tirando as almofadas da cama, ela virou-se dando espetáculo, torcendo o tronco para que um dos peitos ainda estivesse à vista. Com a unha pintada de preto, desenhou
um círculo à volta do mamilo, enquanto arqueava as costas para baixo e espetava o traseiro para cima...
Um rugido discreto agitou o ar estagnado e tranquilo do quarto e isso foi uma indicação para ela. Abrindo as pernas, empinou as nádegas, com os dedos dos pés espetados
e arqueando novamente a espinha.
Sabia perfeitamente o que estava a mostrar aos pés da cama... e o rugido dele disse-lhe que estava a gostar do que via. Portanto, estava na altura de ir mais longe.
Olhando para ele, colocou o dedo médio na boca e chupou-o. Depois mudou de posição e levou-o até ao sexo, esfregando-se a si própria.
Não sabia se era a erva ou... merda, qualquer coisa com aqueles homens... de repente estava mesmo muito excitada. Ao ponto de desejar aquilo que estava prestes a
acontecer.
Inclinando-se sobre ela, o que dava ordens pôs as mãos na parte da frente das ancas.
- Beija-a - ordenou.
Ela estava tão preparada para aquilo, apesar de normalmente não o permitir. Virando o rosto para o outro, sentiu a sua boca ser invadida por um conjunto de lábios
suaves, exigentes... e depois uma língua entrou nela...
Ao mesmo tempo que umas grandes mãos se encaixavam na parte de cima das suas coxas e a abriam ainda mais.
E outro conjunto de mãos dirigiu-se aos seus seios.
Apesar de ser uma profissional, a sua mente foi de viagem, levando consigo as coisas que habitualmente a preocupavam enquanto fazia o que fazia, fazendo desaparecer
coisas como, onde estavam os preservativos? Quais eram as regras básicas?
Cinto. Fecho. E depois o som de calças a deslizar e o resfolegar do colchão ao cair-lhe alguma coisa pesada em cima.
Imaginou, vagamente, se o pénis que tinha sido libertado seria tão grande como o resto do homem atrás dela. E se era, pensou, diabos, ela era bem capaz de equacionar
a ideia de lhes oferecer uma segunda volta de borla. Partindo do princípio de que se aguentavam tanto tempo...
Uma ponta arredondada entrou dentro dela, enquanto mãos a levantavam pelas ancas e a deixavam de gatas. Meu deus, ele era enorme... Ela preparou-se para sentir a
fricção, à medida que uma palma da mão lhe percorria a espinha e dedos penetravam no seu cabelo curto. Ele ia puxar-lhe a cabeça para trás, mas ela não se importava.
Só queria mais dele dentro dela...
Mas ele não ficou violento, nem sequer avançou imediatamente. Pelo contrário, massajou-a como se gostasse do toque da sua pele, levando-lhe as mãos aos ombros e
depois deslizando-as até aos seios... e depois descendo mais ainda até ao sexo molhado. E quando a penetrou completamente, foi com um deslizar suave, dando-lhe até
um segundo para se habituar ao diâmetro e ao comprimento.
Depois colou as palmas das mãos nas ancas e avançou com o ato. Mesmo quando o amigo se esgueirou para debaixo dela para sugar os seios pendurados.
Com a velocidade a intensificar-se, os mamilos andavam para a frente e para trás a bater na boca do que estava por baixo dela ao ritmo das estocadas das ancas que
lhe batiam no rabo uma e outra vez. Mais depressa. Com mais força. Mais depressa...
- Fode-me - ganiu ela. - Oh, porra, sim...
Abruptamente, o que estava deitado no colchão mudou de posição e reposicionou-a, enchendo-lhe a boca com o maior pénis que ela alguma vez tinha engolido.
Ela teve mesmo um orgasmo.
Se isto continuasse assim, seria ela a dar-lhes uma gorjeta.
Um segundo depois, o homem por trás saiu de dentro dela e sentiu salpicos quentes nas costas. Mas ainda não tinha acabado. Voltou à carga um momento depois, tão
encorpado e rígido como da primeira vez que a penetrara.
Aquele que ela estava a chupar gemia e depois foram separados, quando ele lhe levantou a cabeça. Veio-se nas suas mamas, com jatos quentes a decorarem-lhe o peito,
espalhando um pouco mais daquele aroma fantástico, ao mesmo tempo que o outro voltava a sair dela e a ejacular-lhe nas costas.
E depois o mundo deu meia volta e ela viu-se deitada de costas, com o homem da carteira a assumir a posição de comando sobre ela e a preencher-lhe o sexo, ficando
igualmente apertada.
Foi ela que procurou o amigo silencioso e autoritário, trazendo o pénis dele para a boca, tirando-o do papel de espetador para dentro dela outra vez.
Era tão grande que teve de esticar o queixo para ele caber e sabia deliciosamente, como nada que provara antes. Chupava-o enquanto o outro a tomava a sério. Abandonou-se
às sensações de ser preenchida, ou invadida por pénis duros e selvagens que lhe abanavam todo o corpo.
No seu delírio, tentou ver o homem a quem estava a lamber, mas ele conseguia sempre, de alguma forma, manter-se de costas para a luz e isso tornava tudo ainda mais
erótico. Como se estivesse a chupar uma sombra viva. Merda, ao contrário do outro, ele não soltava agora nenhum som e nem sequer estava a arfar. Mas estava a gostar,
a sério, entrando na sua boca e saindo e depois voltando a entrar. Pelo menos até saltar cá para fora e colocar a palma da mão sobre a ereção. Juntando os seios,
ela deu-lhe uma ótima plataforma para ele se vir e, Deus do céu, apesar de ela ser copa AA, ele cobriu-a.
Até o peito ficar peganhento, escorregadio e a pingar.
Quando voltou a concentrar-se, tinha os joelhos junto às orelhas e o que tinha o dinheiro estava a preparar-se para atacar outra vez da melhor maneira possível.
E o patrão estava outra vez nos seus lábios, pressionando, querendo mais. O que ela lhe daria com todo o gosto.
Fitando-os enquanto se moviam em uníssono, ela sentiu um medo percorrê-la. Dobrada por baixo deles, ela tinha a sensação que a podiam partir ao meio se lhes apetecesse.
Mas não a magoaram.
E continuaram uma e outra vez, os dois trocando de lugares sem parar. Era óbvio que já tinham feito aquilo muitas vezes e, meu Deus, ela estava a satisfazê-los à
grande.
Finalmente estava terminado.
Nenhum deles disse nada. Nem a ela, nem um ao outro. Era estranho, porque a maioria do sexo a três em que ela participara acabava com os idiotas a darem mais cinco
uns aos outros. Estes dois não. Guardaram os pénis e... bem, não é que as carteiras voltaram a aparecer?
Enquanto estavam ali por cima dela, ela passou a mão pela boca, pelo pescoço e pelos seios. Estava coberta em tantos sítios que já perdera a conta, e adorava, era
suavizante aquilo que tinham deixado na sua pele. Estava a brincar com o sémen porque queria, não para benefício deles.
- Queremos dar-te mais quinhentos - disse o primeiro em voz baixa.
- Para quê? - aquele gorgolejar satisfeito era mesmo ela?
- Vai saber bem, prometo.
- É perverso?
- Muito.
Ela riu-se e ondulou as ancas.
- Então digo que sim.
Quando o homem sacou das notas, parecia haver muitas outras naquele maço e, se ele fosse, talvez, outra pessoa, era capaz de ter avisado o chulo e de ter dito ao
Mack para o intercetar no parque de estacionamento. Mas, no entanto, não ia fazer isso. Em parte por causa do sexo incrível. Mas mais ainda porque achava que era
provável que aqueles tipos dessem uma tareia a quem se metesse com eles.
- O que querem que faça? - perguntou, enquanto apertava o dinheiro no punho.
- Abre as pernas.
Ela não hesitou, os joelhos a afastarem-se para longe.
E eles não hesitaram, inclinando-se ambos sobre a vulva molhada.
Deus do céu, iam chupá-la? Só de pensar nisso os olhos rolaram para trás e ela gemeu...
- Ai!
Ela começou a levantar-se, mas eles forçaram-na a ficar deitada no colchão.
As lambidelas subtis que se seguiram deixaram-na quase inconsciente. Mas, contudo, não eram no seu sexo. Mesmo a meio do corpo, de ambos os lados, na articulação
onde as coxas se ligam ao tronco.
Um chupar rítmico... como se a embalasse.
Karrie suspirou e abandonou-se ao que sentia. Teve uma sensação chocante de que eles se estavam a alimentar dela, de alguma forma, mas era espetacular especialmente
quando alguma coisa entrou dentro dela. Talvez fossem dedos... provavelmente.
Sim, definitivamente.
Quatro dedos preenchiam-na e duas mãos separadas começaram a entrar e sair alternadamente, enquanto as duas bocas chupavam a sua carne.
Ela veio-se outra vez.
E outra vez.
E outra.
Depois de só Deus sabe quanto tempo, acariciaram-na várias vezes, nos lugares onde tinham estado a chupar e não onde as mãos tinham estado.
E depois retiraram tudo, bocas, dedos, corpos.
Endireitaram-se os dois.
- Olha para mim - disse o líder.
As pálpebras estavam tão pesadas que teve de fazer força para poder obedecer. E quando o fez, sentiu uma dor ardente nas frontes. Contudo, não durou muito tempo
e a seguir... sentia-se a flutuar.
Foi por isso que não prestou muita atenção ao grito distante e abafado que veio da porta ao lado pouco depois, não do quarto em que estava o Mack, mas o do outro
lado.
Bum! Pum. Bum...
Karrie começou nessa altura a adormecer, morta para o mundo, o dinheiro colado à palma da mão quando aquilo que estava molhado secou.
Não estava preocupada com nada. De facto, sentia-se fantástica.
Diabos... com quem é que tinha estado...?
* * *
Quando Xcor saiu do quarto de hotel da prostituta com Throe imediatamente atrás dele, fechou a porta e olhou para a esquerda e para a direita. As instalações que
o soldado tinha escolhido para aquela diversão carnal ficavam nos arredores da cidade. Degradado e a desfazer-se em alguns pontos, o edifício térreo tinha sido dividido
em caixas que pareciam guarda-louças, com o escritório na ponta mais à esquerda. Tinha preferido o quarto mais longínquo na ponta oposta para garantir a privacidade,
mas o melhor que conseguira fora o quarto ao lado.
Não obstante, na verdade, quais eram as hipóteses de estarem todos ocupados? Dificilmente estaria ali mais alguém.
Perscrutando os lugares de estacionamento à sua frente, viu um Mercedes preto que tentava desesperadamente parecer mais novo do que aquilo que era... e um todo-o-terreno
com cobertura. Os outros dois carros estavam mais longe, junto ao escritório.
Isto era perfeito para o tipo de propósito que tinha servido. Escondido. Povoado por pessoas que não queriam ninguém a intrometer-se no que ali faziam e dispostas
a tratar os outros com igual cortesia. E a iluminação exterior era fraca. Só uma em cada seis lâmpadas, por cima das portas, é que estavam a funcionar. Que raios,
a luz mais próxima da sua cabeça tinha sido destruída. Por isso, estava tudo difuso e escuro.
Ele e o seu bando de bastardos teriam de encontrar fêmeas da sua raça para satisfazer as suas necessidades de sangue a longo prazo, mas a seu tempo isso aconteceria.
Até lá? Contentar-se-iam com mulheres como a que ele e Throe tinham acabado de foder e fá-lo-iam naquele local deserto.
Throe falou calmamente.
- Satisfeito?
- Sim, ela não era nada má.
- Fico feliz...
Um aroma no ar fez com que ambos virassem as cabeças para a porta do último quarto. Quando Xcor inspirou profundamente para confirmar aquilo de que tinha sentido,
um leve aroma, o cheiro a sangue humano fresco foi uma surpresa desagradável.
Contrariamente à expressão no rosto de Throe, que demonstrava não estar nada surpreendido.
- Nem penses nisso - rosnou Xcor. - Throe. Foda-se.
O guerreiro estava a dirigir-se à porta com uma expressão turbulenta. A sua agressividade tinha sido inflamada porque era sangue feminino que estava a ser derramado.
A fertilidade era evidente no ar.
- Não temos tempo para isto - disparou Xcor.
Em jeito de resposta, Throe deu um pontapé na porta e abriu-a.
Enquanto Xcor praguejava, apenas brevemente considerou desmaterializar-se da cena. Tudo o que era necessário para curar o impulso era olhar lá para dentro. A ridícula
façanha heroica de Throe tinha exposto uma confusão. Literalmente.
Uma fêmea humana estava amarrada à cama, com alguma coisa enfiada na boca. Estava quase morta e demasiado perto da sepultura para ser salva. O sangue dela estava
por todo o lado, nas paredes ao seu lado, escorrendo para o chão, ensopando o colchão. Os utensílios de quem quer que fosse que tinha feito aquilo estavam na mesa-de-cabeceira:
duas facas, fita adesiva, tesouras... e meia dúzia de pequenos frascos transparentes com um líquido incolor e tampas ao lado.
Havia coisas a flutuar nos...
Ouviu-se um estrondo vindo da casa de banho. Como se uma bandeira ou vidro de janela tivesse sido aberto e fechado.
Quando Throe começou a correr para o interior, Xcor adiantou-se e agarrou o outro macho pelo braço. Em dois tempos, Xcor soltou a pulseira de aço que mantinha no
cinto das armas e prendeu-a no pulso robusto do seu soldado. Arrastando-o com o seu peso, volteou-o no ar como a uma bola presa a uma corrente. Ouviu-se uma batida
seca na parede mais distante, quando o reboco barato parou o pêndulo de vampiro.
- Deixa-me.
Xcor puxou-o para perto de si.
- Isto não é da tua conta.
Throe puxou o braço atrás e deu um murro na parede, desfazendo mais um bocado do reboco velho.
- Ai isso é que é. Solta-me!
Xcor deu uma palmada na parte de trás do pescoço do macho.
- Não é. O teu. Mundo!
Nesta altura lutaram, atirando-se um ao outro e derrubando coisas, fazendo mais barulho do que deviam. E estavam prestes a cair na carpete ensanguentada, quando
um homem humano sem pescoço e com óculos escuros do tamanho de vidros de janela deslizou para o corredor. Deu uma olhadela à cama, outra a Xcor e Throe, e depois
resmungou, cobrindo os olhos com os braços enquanto fugia agachado.
Um segundo depois, a porta do quarto onde tinham estado abriu-se e fechou-se... depois abriu-se e fechou-se outra vez. Ouviu-se o som de saltos altos a bater no
chão, depressa e descoordenados, e ouviu-se um clomp, clomp de pessoas a entrarem num carro.
Um motor rugiu e o Mercedes arrancou, saindo do parque de estacionamento, sem dúvida com a prostituta e o dinheiro lá dentro.
E aquela partida apressada confirmava aquilo que Xcor assumira sobre a clientela daqui.
- Ouve-me - disse a Throe. - Ouve-me, minha grande besta... isto não é problema nosso. Mas se ficares aqui, vais torná-lo nosso...
- O assassino fugiu!
- E nós também vamos fugir.
Os olhos pálidos de Throe centraram-se na cama e a máscara de fúria dissipou-se por breves momentos. Por baixo dela havia uma expressão que chegou mesmo a deter
a agressividade de Xcor. Tanta dor, meu Deus, tanta dor.
- Ela não é a tua irmã - sussurrou Xcor. - Anda comigo.
- Não posso...deixá-la... - Uns olhos enormes vidrados cruzaram-se com os seus. - Não podes pedir-me isso.
Xcor deu uma volta, mantendo o soldado preso. Tinha de haver alguma coisa do assassino, alguma coisa que pudessem...
Xcor arrastou o guerreiro para a casa de banho e ficou sombriamente satisfeito ao observar a janela por cima da sanita. O único painel grosso de vidro fosco estava
intacto, mas havia um rasto de sangue brilhante na borda da armação de metal.
Exatamente o resquício de que precisavam.
Xcor alcançou a janela e passou dois dedos pela extremidade que tinha rasgado a carne humana.
O sangue colou-se aos seus dedos.
- Abre - ordenou.
Throe abriu a boca e chupou os dedos, fechando os olhos para se concentrar, enquanto se começavam a ouvir sirenes distantes na noite.
- Temos de ir agora - disse Xcor. - Vem comigo e eu dou-te autorização para caçares o homem. Concordas? Acena. - Quando Throe assentiu, ele decidiu que precisava
de mais. - Jura.
Throe fez uma vénia, curvando o tronco.
- Juro.
Soltou a pulseira... e ambos desapareceram como por magia, exatamente quando os rotativos azuis anunciavam a chegada da polícia humana.
Xcor não costumava ser compassivo em nenhuma situação. Mas mesmo que fosse, não teria concedido nenhuma compaixão àquele profanador humano que era agora o alvo de
Throe... e em breve seria caçado.
Capítulo 44
-Doutor Manello?
Ao ouvir o seu nome, Manny voltou à realidade e percebeu que, de facto, ainda estava em Tricounty, no jardim da entrada. Era bastante irónico que o segurança tivesse
sofrido um ataque à sua mente e, mesmo assim, era ele que recebia as atenções.
- Ah...sim, desculpe. O que disse?
- Está bem?
- Não, não estou.
- Bem, foi atacado... nem consigo acreditar em como lidou com isso. Num minuto ele estava em cima de si... no minuto seguinte tinha a arma e ele estava a... voar.
Claro que se livraria disso.
- Sim. É isso. Exatamente.
Os polícias apareceram dois segundos depois e seguiu-se uma torrente de perguntas e respostas. E foi espetacular. O segurança nunca referiu Payne. Era como se ela
nunca ali tivesse estado.
Não devia ficar surpreendido, tendo em conta o que Manny já tinha passado não só com ela, mas também com Jane. Mas mesmo assim estava admirado.
Havia tanta coisa que ele não percebia. Como Payne tinha desaparecido como por magia à sua frente. Como não restava nada dela, pelo menos que o segurança pudesse
ver, apesar de se lembrar perfeitamente de Manny. Como ela se tinha mantido tão calma e controlada numa situação fatal.
Na realidade, esta última parte tinha sido muito erótica. A maneira como ela o tinha triturado era fantasticamente excitante. Manny não tinha a certeza do que isso
dizia sobre ele, mas era assim.
E ela iria mentir, pensou. Diria ao pessoal dela que a mente dele tinha sido apagada. Diria que tinha tratado de tudo.
Payne encontrara a solução perfeita. Ele tinha a sua mente, ela tinha as suas pernas e ninguém sabia nada em contrário, nem o seu irmão, nem os da sua laia.
Sim, estava tudo tratado. Tudo o que tinha de fazer agora era passar o resto da vida ansiando por uma fêmea que nunca devia ter conhecido. Uma merda que não custa
nada.
Uma hora depois, entrou no seu Porsche e regressou a Caldwell. Conduzindo sozinho, o carro não só parecia vazio, como parecia um deserto e deu consigo a subir e
descer os vidros. Não era a mesma coisa.
Ela não sabia onde ele vivia, pensou. Mas isso não importava, pois não? Ela não voltaria.
Meu Deus, era difícil escolher o que teria custado mais. Um adeus longo e demorado, em que ele a olhava nos olhos e mordia a língua para evitar falar de mais? Ou
aquela merda rápida, do tipo arrancar-o-penso?
As duas eram uma porcaria.
No Commodore, desceu ao subterrâneo, estacionou no seu lugar e saiu do carro. Foi para o elevador. Subiu ao apartamento. Entrou. Fechou a porta.
Quando o telemóvel tocou, enfiou a mão no bolso para o tirar e, quando viu o número, praguejou. Goldberg, do centro médico.
Atendeu sem entusiasmo.
- Olá.
- Atendeste? - disse o homem aliviado. - Como estás?
Pois. Não queria entrar por ali.
- Estou bem. - Após uma pausa, disse - E tu?
- Estou bem. As coisas têm estado... - Hospital. Hospital. Hospital hospital, hospitalh ospit alhosp. Ital hospit alhospital...
Entrou por um ouvido e saiu pelo outro. No entanto, Manny não se apressou. Foi para a bancada da cozinha, tirou o Lag e sentiu-se como se tivesse levado uma pancada
na cabeça ao ver o pouco que restava na garrafa. Inclinando-se para o armário, retirou uma garrafa de Jack que estava lá para trás há tanto tempo que tinha pó na
tampa.
Pouco depois, desligou o telefone e concentrou-se na bebida. Primeiro o Lag. Depois o Jack. E depois seguiram as duas garrafas de vinho que estavam no frigorífico.
E o que restava de um pacote de seis Corona que tinha sido deixado na despensa e não estava fresco.
Contudo, o seu cérebro não deu pela diferença entre o álcool aquecido e a bebida fresquinha.
Feitas as contas, o festival de ingestão de álcool demorou uma hora. Talvez mais. E foi muito eficiente. Quando pegou na última cerveja e se dirigiu para o quarto,
andava como se estivesse na ponte da Enterprise, abanando para a esquerda e para a direita... e depois recuando. E, apesar de ver perfeitamente à luz ambiente da
cidade, tropeçou em tudo. Devido a algum milagre inconveniente, a sua mobília tinha ganhado vida e estava determinada a meter-se no seu caminho... tudo, desde as
cadeiras estofadas de pele até...
- Foda-se.
... à mesa de centro.
E o facto de agora estar a esfregar a canela enquanto andava era como adicionar uns patins em linha à festa.
Quando chegou ao quarto, bebeu um enorme gole da Corona para celebrar e progrediu para o banho aos tropeções. Água a correr. Roupas despidas. Entrar na banheira.
Não valia a pena esperar pela água quente, não sentia nada, fosse como fosse, e o objetivo era esse.
Não se deu ao trabalho de se secar. Foi simplesmente para a cama com água a escorrer do corpo e, ao sentar-se, bebeu o resto da cerveja. Então... uma imensidão de
nada. O seu alcoolómetro estava a subir assustadoramente alto, mas ainda não tinha atingido o ponto crítico e acabado com ele.
Consciência era, contudo, um termo relativo. Apesar de se poder argumentar que estava acordado, estava completamente desligado, e não só pelo exagero de álcool no
sangue. Ele estava sem energia no interior, de uma maneira muito estranha.
Deixando-se cair no colchão, pensou que, agora que a situação com Payne se tinha resolvido, era altura de andar com a vida para a frente ou, pelo menos, tentar na
manhã seguinte, quando a ressaca o acordasse. A sua mente estava ótima, por isso não havia razões para não voltar ao trabalho e para não tratar de separar, definitivamente,
aquele interlúdio lixado do resto da sua vida normal.
Fitando o teto, ficou aliviado quando a visão se tornou nublada.
Até se aperceber que estava a chorar.
- Mariconço de merda.
Limpando os olhos, estava positiva e absolutamente decidido a não seguir aquele caminho. Mas seguiu... e ficou lá. Meu Deus, já sentia a falta dela ao ponto da agonia.
- Mas que... diabo!
Subitamente levantou a cabeça e o pénis começou a inchar. Olhando pelas portas deslizantes de vidro da varanda, perscrutou a noite com um desespero que o fez sentir
como se as loucuras mentais tivessem voltado.
Payne...
Payne...?
Esforçou-se por se levantar da cama, mas o corpo recusava-se a obedecer, como se o cérebro estivesse a falar uma língua que os braços e as pernas não conseguissem
traduzir. E depois a bebedeira venceu, pressionando Ctrl-Alt-Del e desligando o programa.
Não obstante, o sistema não reiniciou.
Depois de as pálpebras se fecharem, apagou, por muito que lutasse contra a maré.
Lá fora na varanda, Payne estava parada no vento gelado, com o cabelo a esvoaçar, o corpo todo em pele de galinha por causa do frio.
Desaparecera da vista de Manuel, mas não o tinha abandonado.
Apesar de ele ter demostrado ser capaz de tomar conta de si próprio, Payne não estava disposta a confiar a sua vida nem a ninguém nem a nada. Concomitantemente,
tinha-se envolvido em mhis e ficado no jardim do hospital veterinário, observando-o a falar com a polícia e com o segurança. E depois, quando ele fora para o carro,
seguira-o, desmaterializando-se de um sítio para outro, seguindo o seu rasto graças à pequena quantidade do seu sangue que ele lambera.
A sua viagem para casa tinha culminado nas profundezas de uma cidade mais pequena do que aquela que ela vira do carro, mas ainda assim impressionante, com os edifícios
altos, as estradas pavimentadas e as pontes altas belíssimas que passavam sobre um largo rio. Caldwell era, de facto, linda à noite.
Quem lhe dera que ali estivesse por outra razão, que não uma despedida invisível.
Quando Manuel tinha virado para uma espécie de garagem subterrânea, ela tinha-o libertado. Já tinha alcançado o objetivo, que era ele chegar ao seu destino em segurança,
por isso sabia que tinha de partir.
Todavia, infelizmente, ela tinha-se demorado na rua, escondida no mhis, vendo os carros a passar e os peões a atravessar as esquinas. Passara uma hora. E depois
passou mais tempo. E ela não se conseguia ir embora.
Cedendo aos desejos do seu coração, ela tinha subido, subido, subido... elevando-se até onde Manuel estava, tomando forma na varanda da sua casa... e encontrando-o
a meio caminho de deixar a cozinha para a sala. Claramente a andar torto, estava sempre a ir contra a mobília, embora não fosse certamente por as luzes estarem apagadas.
Era a bebida que tinha nas mãos, sem dúvida.
Ou, mais exatamente, toda a bebida que consumira além daquela.
No quarto, não tinha propriamente despido as roupas, mas sim saltado para fora delas e depois ido para o chuveiro. Quando voltou a surgir a pingar, ela teve vontade
de gritar. Era tão difícil compreender que só tinha passado um dia desde que tinha, pela primeira vez, testemunhado a sua nudez. Apesar de ela sentir, realmente,
que podia procurar no tempo e alcançar esses momentos frenéticos em que estavam à beira de... não apenas um presente, mas um futuro.
Agora já não.
Ao chegar à cama, sentou-se... e depois colapsou no colchão.
Quando ele limpou os olhos, ela ficou completamente devastada. E a vontade de ir ter com ele era tão grande...
- Payne.
Com um uivo, ela virou-se. Ao fundo da varanda, parado na brisa... estava o seu gémeo. E, no instante mesmo em que pousou os olhos em Vishous, soube que alguma coisa
nele tinha mudado. Sim, o seu rosto já estava a sarar dos ferimentos que lhe causara o espelho, mas não era isso que tinha mudado. Ele estava diferente interiormente.
A tensão, a raiva e a frieza assustadora desapareceram.
Enquanto o vento fustigava o seu cabelo, ela tentou compor-se, eliminando as lágrimas que se alojavam em volta dos olhos.
- Como é que soubeste... que eu estava...
Com a mão enluvada, ele apontou para cima.
- Tenho aqui um apartamento. No topo do edifício. A Jane e eu estávamos de saída quando senti a tua presença aqui em baixo.
Devia ter percebido. Tal como ela conseguia sentir o mhis dele... ele podia sentir e encontrar o dela.
Ela desejava que ele tivesse continuado para onde ia. A última coisa de que precisava era de outra cena de «autoridade» da figura masculina dizendo-lhe o que fazer.
Além disso, o rei já tinha decretado a lei. O decreto de Wrath não precisava propriamente da aprovação de gente como o irmão.
Levantou a mão para o travar antes de ele dizer alguma coisa sobre Manuel.
- Não quero que me digas o que o rei já me disse. Estava mesmo de saída.
- A mente dele foi apagada?
Ela levantou o queixo.
- Não, não foi. Ele levou-me a passear e houve um... incidente...
A rosnadela que o irmão soltou soou mais alto do que o vento.
- O que é que ele te...
- Não foi ele. Credo, podes parar de... o odiar? - Enquanto massajava as frontes, perguntou-se se alguma vez explodira mesmo a cabeça a alguém ou se toda a gente
na Terra se sentia assim de vez em quando. - Fomos atacados por um humano e ao desarmá-lo...
- Ao humano?
- Sim - enquanto o desarmava, magoei-o e chamaram a polícia...
- Desarmaste um humano?
Payne fitou o gémeo.
- Quando retiras a arma a alguém, é isso que se diz, não é?
Vishous semicerrou os olhos.
- Sim, é.
- Não podia apagar as memórias de Manuel, porque se não ele não conseguiria responder ao interrogatório da polícia. E estou aqui... porque queria certificar-me de
que chegava bem a casa.
No silêncio que se instalou, ela apercebeu-se de que se tinha encostado a um canto. Ao ter de proteger Manuel, ela tinha acabado de provar o ponto de vista do irmão
de que o macho que ela queria não podia tomar conta dela. Oh, mas o que é que interessava. Tendo em conta que estava preparada para obedecer ao rei, não havia, fosse
como fosse, nenhum futuro para ela e Manuel.
Quando Vishous ia abrir a boca, ela gemeu e cobriu as orelhas com as mãos.
- Se tens uma réstia de compaixão, deixa-me fazer o luto sozinha. Não aguento ouvir todas as razões que levam a que me tenha de separar dele... já as sei de cor.
Por favor. Vai-te embora.
Fechando os olhos, virou-se e rezou à mãe dos céus para ele fazer o que ela pedia...
A mão no seu ombro era pesada e quente.
- Payne. Payne, olha para mim.
Sem nenhuma energia de sobra para lutar, ela deixou cair os braços e olhou para os seus olhos sombrios.
- Responde-me a uma coisa - disse o gémeo.
- O quê?
- Amas o sac... a ele. Ama-lo?
Payne olhou para trás, através do vidro, para o humano na cama.
- Sim. Estou apaixonada por ele. E se tentares dissuadir-me com o facto de ainda não ter vivido o suficiente para julgar, eu digo-te... vai à merda. Não preciso
de conhecer o mundo para perceber o desejo do meu coração.
Fez-se silêncio.
- O que disse Wrath?
- O mesmo que tu dirias. Que tenho de limpar da mente dele a minha memória e nunca, nunca mais o ver.
Como o irmão não disse mais nada, ela abanou a cabeça.
- Porque é que ainda aqui estás, Vishous? Estás a pensar no que hás de dizer para eu ir para casa? Deixa-me poupar-te ao esforço... quando chegar a madrugada, eu
vou... e cumprirei as leis, mas não por ser bom para ti ou para o rei ou para mim. É por ser mais seguro para ele... não precisa de inimigos como tu e a Irmandade
a torturá-lo só porque eu sinto aquilo que sinto. Por isso, será tudo como desejas. Só que - e aqui, ela iluminou-se - não vou apagar-lhe a memória. A mente dele
é demasiado valiosa para se perder... e não aguenta mais limpezas. Mantê-lo-ei seguro nunca mais voltando, mas não o vou condenar a uma vida de demência. Não vai
acontecer. Não fez outra coisa a não ser ajudar-me. Merece mais do que ser usado e deitado fora.
Payne voltou a olhar para o vidro.
Depois de um longo silêncio, ela assumiu que o gémeo se fora embora. Por isso, quase deu um grito quando ele lhe apareceu à frente e bloqueou a imagem de Manuel.
- Ainda aqui estás? - resmungou.
- Eu trato disto por ti.
Payne encolheu-se e depois rosnou.
- Nem te atrevas a pensar em matá-lo...
- Com Wrath. Eu trato disto. Eu... - Vishous passou a mão pelo cabelo. - Eu arranjo uma maneira de poderes ficar com ele.
Payne pestanejou. E depois sentiu a boca a ficar aberta.
- O que foi... O que foi que disseste?
- Conheço Wrath há muitos anos. E, tecnicamente, de acordo com as Leis Antigas, eu sou o chefe da nossa pequena e feliz família. Vou ter com ele e digo-lhe que aprovo
esta... união e que acho que devia ser permitido que visses o sac... o homem... o Manello. - Aclarou a garganta. - Wrath preocupa-se muito com a segurança, e com
mhis à volta do complexo... o Manello não conseguiria encontrar-nos mesmo que quisesse. Além disso, é uma hipocrisia negar-te o que outros Irmãos têm feito de vez
em quando. Que raios, o Darius teve um filho com uma mulher humana... e o Wrath está agora casado, com uma criança. Facto comprovado... se tivesses tentado separar
o nosso rei da sua Beth quando ele a conheceu? Ele teria matado qualquer um que sequer o sugerisse. A Mary do Rhage? A mesma merda. E devia... ser o mesmo para ti.
Até falo com a mahmen, se tiver de ser.
Payne pousou a mão sobre o coração.
- Não... compreendo porque é que... farias isto?
Ele olhou por cima do ombro, fitando o humano que ela amava.
- És minha irmã. E é a ele que tu queres. - Encolheu os ombros. - E... bem, também me apaixonei por uma humana. Apaixonei-me pela minha Jane uma hora depois de a
ter conhecido... e... sim. Sem ela, não tenho nada. Se o que sentes pelo Manello for metade do que sinto pela minha shellan, a tua vida nunca ficará completa sem
ele...
Payne atirou-se ao irmão num abraço. Quase o derrubou.
- Oh, meu irmão...!
Os braços dele rodearam-na e apertaram-na.
- Desculpa ter sido tão idiota.
- Foste... - Ela procurou outra palavra. - Sim, foste um idiota.
Ele riu-se, o som a roncar pelo peito acima.
- Vês, podemos concordar com alguma coisa.
Enquanto o apertava ainda mais, disse:
- Obrigada... Obrigada...
Após um momento, ele afastou-se.
- Deixa-me primeiro falar com Wrath, antes de ires ter com o Manello, okay? Quero tratar de tudo antes... e sim, agora vou já para casa. A Jane está a fazer rondas
e a Irmandade está de folga, por isso devo conseguir falar com o rei. - Fez uma pausa. - Só quero uma coisa em troca.
- O quê? Qualquer coisa. É só dizeres.
- Se vais ficar aqui até de madrugada, vai para dentro. Está um frio de rachar aqui fora, a sério. - Deu um passo atrás. - Vai lá... vai ver com o teu... macho...
Esfregou os olhos e ela teve a sensação de que ele se estava a lembrar de quando a apanhara no duche com o curandeiro.
- Eu volto... ah, liga... Tens telefone? Toma, fica com... merda, não o tenho.
- Está tudo bem, meu irmão. Eu regresso de madrugada.
- Ótimo, sim... nessa altura já terei notícias.
Ela olhou-o fixamente.
- Amo-te.
Agora ele sorria. Um grande sorriso, sem reservas. Esticando o braço, acariciou-lhe o rosto.
- Também te amo, mana. Agora vai lá para dentro e aquece-te.
- Vou fazer isso. - Esticou-se e deu-lhe um beijo na face. - Vou fazer isso!
Acenando-lhe, desmaterializou-se através do vidro. Oh, como o interior estava quente em comparação com a varanda... ou talvez fosse a onda de alegria que se espalhara
nela. Fosse o que fosse, fez uma pirueta apoiada só num pé e depois foi até à cama.
Manuel não estava apenas adormecido, estava totalmente inconsciente, mas ela não se importava. Saltando para a cama pôs um braço à volta dele e instantaneamente
ele gemeu e virou-se para ela, puxando-a para si, abraçando-a. Quando os corpos se fundiram e ela sentiu na anca a sua ereção, olhou rapidamente para a varanda.
Não valia a pena abusar da sorte com Vishous, mas tudo bem, ele já lá não estava.
Sorrindo na escuridão, ela descontraiu-se e acariciou o ombro do macho. Isto ia tudo correr bem e a chave tinha sido a lógica inabalável que Vishous tinha exposto
detalhadamente. De facto, o argumento era tão evidente, que ela nem acreditava que não tivesse pensado nisso antes.
Wrath podia não gostar, no entanto, concordaria porque os factos eram os factos e ele era um governante justo, que já tinha dado muitas vezes provas que não era
escravo dos costumes antigos.
Enquanto se aconchegava, sabia que não havia maneira de adormecer, correndo o risco de ser queimada pelo sol. Ela própria estava incandescente, ali deitada na cama
ao lado de Manuel, brilhando com tanta intensidade que projetava sombras no quarto.
Nada de dormir.
Ela só queria gozar o que estava a sentir.
Para sempre.
Capítulo 45
Vishous chegou a casa num abrir e fechar de olhos, e depois de dar conta da sua presença a Jane na clínica dirigiu-se à mansão através do túnel subterrâneo. Ao sair
para o átrio, só ouviu um reverberante absolutamente-nada, ficando desconfortável com o silêncio.
Estava tudo tão calmo.
É claro que, regra geral, isso seria assim por serem duas da manhã e os Irmãos estarem em campo. No entanto, naquela noite estavam todos recolhidos, provavelmente
a fazer sexo, a recuperar do sexo, ou a meio de o repetir.
Sinto-me como se tivesse feito amor contigo pela primeira vez.
Ao recordar a voz de Jane, nem sabia se havia de rir ou de dar um pontapé no seu próprio traseiro. Fosse como fosse, ele iniciara naquela noite um admirável mundo
novo, não que soubesse ao certo o que isso significava, mas estava disposto a tal. Absolutamente disposto.
Subindo a escadaria, dirigiu-se ao escritório de Wrath, enquanto procurava em todos os bolsos que... não tinha. Continuava com a maldita bata vestida. Com as manchas
de sangue. E sem cigarros.
- Que merda.
- Meu senhor? Necessita de algo?
Ao parar no cimo das escadas, olhou para Fritz, que limpava o balaústre, e quase beijou a matraca do mordomo.
- Estou sem tabaco. Mortalhas...
O velho doggen ofereceu um sorriso tão rasgado que as rugas no rosto o fizeram parecer um shar-pei.
- Tenho uma reserva na copa. Volto já... vai encontrar-se com o rei?
- Vou.
- Levar-lhos-ei lá... a par de um roupão, talvez?
A segunda parte foi proferida com toda a delicadeza.
- Porra, obrigado, Fritz. Salvaste-me a vida.
- Não, o senhor é que salva. - Fez uma vénia. - O senhor e a Irmandade salvam-nos todas as noites.
Fritz apressou-se a descer a escada, com um passo mais enérgico do que seria de esperar. Claro que não havia nada de que gostasse mais do que ser prestável. O que
era fantástico.
Certo. Ao trabalho.
Sentindo-se miserável na bata, V dirigiu-se às portas fechadas do escritório de Wrath, cerrou o punho e bateu.
A voz do rei fez-se ouvir do outro lado dos painéis grossos de madeira:
- Entra.
V obedeceu.
- Sou eu.
- Então, irmão?
No outro lado da sala de tons amaricados, Wrath estava na secretária imensa, sentado no trono do pai. No chão a seu lado, deitado numa cama Orvis vermelha personalizada,
George ergueu a cabeça loura e arrebitou as orelhas perfeitamente triangulares. O golden retriever bateu a cauda à laia de cumprimento, mas não deixou o dono.
O rei e o cão-guia nunca se separavam. E não era só porque Wrath precisasse de ajuda.
- Então, V? - Wrath recostou-se na cadeira entalhada, deixando pender a mão para afagar a cabeça do animal. - O teu cheiro é interessante.
- Ah é? - V sentou-se à frente do rei, assentando as mãos nas coxas e apertando para se tentar distrair da ânsia por nicotina.
- Deixaste a porta aberta.
- O Fritz vai trazer-me tabaco.
- Não vais fumar ao pé do meu cão.
Porra.
- Ah... - Esquecera-se da nova regra... e pedir que George fosse dar uma volta não era opção, afinal de contas Wrath podia ter perdido a visão, mas o sacana continuava
a ser mortífero e V já tivera a sua dose de S e M nessa noite, muito obrigado.
Fritz entrou no momento em que as sobrancelhas negras do rei se esconderam atrás dos óculos que lhe contornavam a cabeça.
- O seu tabaco, meu senhor - anunciou alegremente o mordomo.
- Obrigado, meu caro. - V aceitou as mortalhas e a bolsa... e o isqueiro que o doggen tivera o discernimento de providenciar. A par do roupão.
A porta fechou-se.
V olhou para o cão. A grande cabeça de George estava agora pousada entre as patas, com os ternurentos olhos castanhos parecendo lamentar a proibição do fumo. Chegou
mesmo a abanar ao de leve a ponta da cauda.
Vishous acariciou a bolsa do delicioso tabaco turco, num gesto desgraçadamente patético.
- Importas-te que enrole uns quantos?
- Se ouço a pedra do isqueiro vais ao chão.
- Entendido. - V alinhou o material na secretária. - Vim falar sobre a Payne.
- Como está a tua irmã?
- Ela está ... espetacular. - Abriu a bolsa, inalou e teve de reprimir o mmmm. - Resultou... não sei bem como, mas ela já anda por aí. De pé, como nova.
O rei chegou-se à frente.
- Não... me digas. A sério?
- Mesmo.
- É um milagre.
Ao que parecia, chamado Manuel Manello.
- Podemos dizer que sim.
- Pois isso é uma notícia do caraças. Queres arranjar-lhe um quarto aqui? O Fritz pode...
- É um bocadinho mais complicado do que isso.
Quando as sobrancelhas voltaram a desaparecer atrás dos óculos, V pensou, meu, mesmo sendo o rei completamente cego, parecia concentrar-se como sempre. O que nos
fazia sentir como se tivéssemos uma mira apontada à cabeça.
V começou a dispor os quadrados de papel branco.
- É aquele cirurgião humano.
- Ah... foda-se! - Wrath ergueu os óculos escuros para a testa e esfregou os olhos. - Não me lixes a dizer que eles se juntaram.
V permaneceu em silêncio, agarrando na bolsa e ocupando-se a espalhar tabaco.
- Estou à espera que me digas que me enganei. - Wrath deixou os óculos regressarem ao seu lugar. - Continuo à espera.
- Ela está apaixonada por ele.
- E não te importas com isso?
- É claro que me importo. Mas ela podia até sair com um Irmão e o desgraçado não ser bom o suficiente para ela. - Pegou num dos papéis carregados e começou a enrolar.
- Portanto... se ela o quer, digo que seja.
- V... sei o que estás a pensar e não o posso permitir.
Vishous parou enquanto lambia o papel e pensou em trazer Beth para a conversa. Claro que o rei parecia estar já a desenvolver uma dor de cabeça.
- Uma porra é que não podes permitir. O Rhage e a Mary...
- O Rhage foi espancado, lembras-te? Por um motivo. Além disso, as coisas estão a mudar, Vishous. A guerra está a aquecer, a Sociedade dos Minguantes anda a recrutar
como a merda... e ainda por cima temos a porra das metades que ontem encontraste na baixa.
Raios partam, pensou V. Aqueles matadores chacinados...
- E ainda por cima apareceu isto. - Sem olhar, Wrath levou a mão à esquerda e ergueu uma página em braile. - É a cópia de uma carta que foi enviada por e-mail ao
que resta das Famílias Fundadoras. O Xcor mudou de pouso com os rapazes dele... razão pela qual encontraste os minguantes naquele estado.
- Grande... porra. Eu sabia que tinha de ser ele.
- Ele está a armar-nos uma ratoeira.
V ficou hirto.
- Porquê?
A expressão de Wrath foi um verdadeiro acorda.
- Houve quem perdesse ramos inteiros da família. Fugiram de suas casas, mas querem regressar. Entretanto, as coisas em Caldwell estão a ficar cada vez mais perigosas.
Neste momento não podemos tomar nada como garantido.
Ou seja, ele não partia do princípio de que o seu trono estava seguro. Pouco importava a cadeira onde, por acaso, estava sentado.
- Portanto, não é que eu não entenda a situação da Payne - explicou Wrath. - Mas temos de fazer um círculo com as carroças e protegermo-nos. Não é uma boa altura
para acrescentarmos a complicação de ter aqui um humano.
O silêncio instalou-se por momentos.
Enquanto V pensava nos seus argumentos pegou em mais uma mortalha, enrolou-a, lambeu a borda, torceu.
- Ontem à noite ele ajudou a minha Jane. Quando os Irmãos e eu cá chegámos depois dos confrontos no beco, o Manello foi mais do que eficaz. É um cirurgião espetacular...
e eu bem o sei. Ele operou-me. Não é, de todo, inútil. - V olhou para o outro lado da secretária. - Se a guerra se intensificar, dava-nos jeito mais um par de mãos
operatórias aqui na clínica.
Wrath praguejou em inglês. E depois na Língua Antiga.
- Vishous...
- A Jane é espantosa, mas ela é só uma. E o Manello tem competências técnicas que a ela lhe faltam.
Wrath voltou a levantar os óculos e a esfregar os olhos. Com força.
- Estás a dizer-me que esse tipo vai querer passar o resto da vida, dia e noite, nesta casa? É pedir muito.
- E eu peço-lhe.
- Não gosto disto.
Um silêncio loooongo. O que mostrou a V que estava a abrir caminho. Claro que sabia que não devia forçar.
- Pensava que querias matar o desgraçado - resmungou Wrath. Como se esse fosse um objetivo preferível.
De repente, a imagem de Manello de joelhos à frente de Payne lançou-se pela mente de V, até ele ficar com vontade de pegar numa caneta e arrancar os próprios olhos
fora.
- Ainda quero - admitiu, num tom sombrio. - Mas... é ele que ela quer, a sério. O que é que eu posso fazer?
Outro silêncio loooongo, durante o qual produziu uma boa pilha de cigarros.
Por fim, Wrath passou a mão pelo nunca mais acabar de cabelo preto.
- Se ela se quiser encontrar com o humano fora daqui, o problema não é meu.
Vishous abriu a boca, pronto a argumentar, mas depois reconsiderou. Era melhor do que uma nega direta, e ninguém sabia o que o futuro reservava. Se mesmo depois
do Pesadelo do Duche V era capaz de evoluir para um ponto em que Manello permanecia acima da terra e a respirar, tudo poderia acontecer.
- É justo. - Fechou a bolsa. - O que vamos fazer quanto ao Xcor?
- Esperamos que o Conselho convoque uma reunião... algo que, não tenho dúvidas, vai acontecer nas próximas noites. A glymera vai engolir esta merda e nessa altura
ficamos com sérios problemas. - O rei prosseguiu, num tom seco: - Por oposição aos problemitas que temos agora.
- Queres que a Irmandade se junte para uma reunião?
- Não. Dá-lhes o resto da noite de folga. Isto não vai a lado nenhum.
V levantou-se, vestiu o roupão e juntou o material para fazer cigarros.
- Obrigado por isto. Tu sabes, por causa da Payne.
- Não é um favor.
- Já é uma mensagem de esperança para lhe levar.
Vishous estava a meio caminho da porta quando Wrath disse:
- Ela vai querer lutar.
V deu meia volta.
- Desculpa?
- A tua irmã. - Wrath pousou os cotovelos em cima da papelada e chegou-se à frente, com uma expressão grave no rosto cruel. - Tens de te preparar para quando ela
te pedir para ir combater.
Que raios, não.
- Não estou a ouvir isso.
- Mas vais ouvir. Já combati com ela, e é tão mortífera como tu e eu. Se julgas que ela se vai contentar a andar por esta casa nos próximos seiscentos anos, não
deves estar bom da cabeça. Mais tarde ou mais cedo, é o que ela vai querer.
Vishous abriu a boca e depois fechou-a.
Bem, estivera nas nuvens a apreciar a boa vida durante cerca de... vinte e nove minutos.
- Não me digas que o permitias.
- A Xhex luta.
- Ela é súbdita do Rehvenge. Não é tua. - As sobrancelhas de Wrath desapareceram pela terceira vez. - São padrões diferentes.
- Primeiro, todos os que se encontram debaixo deste teto são meus súbditos. E segundo, as coisas não ficam diferentes só por ela ser tua irmã.
- É claro - Que. Ficam. - que não.
- Uh-huh. Pois.
Vishous pigarreou.
- Estás mesmo a pensar deixá-la...
- Já viste como eu fiquei depois dos nossos duelos, não foi? Não lhe dei qualquer vantagem, Vishous. Aquela fêmea sabe o que está a fazer.
- Mas ela é... - Minha irmã. - Não a podes mandar lá para fora.
- Neste momento, preciso de tantos guerreiros quanto possível.
Vishous enfiou um cigarro entre os lábios.
- Acho que é melhor ir-me embora.
- Sim.
Assim que saiu e fechou a porta, acendeu o isqueiro de ouro que Fritz lhe trouxera e inspirou profundamente.
Enquanto pensava no que fazer a seguir, imaginou que poderia dar um salto ao Commodore e dar a boa nova à irmã, mas receava a cena perante a qual poderia vir a materializar-se.
Além disso, tinha até à alvorada para se convencer de que ter Payne em campo não era uma ideia tresloucada.
A par de tudo isso, tinha de falar com mais alguém.
Descendo a escadaria, atravessou o átrio e chegou ao vestíbulo. Lá fora, caminhou rapidamente pelo pátio empedrado e entrou no Fosso pela robusta porta principal.
A familiaridade dos divãs, do ecrã de plasma e da mesa de matraquilhos acalmou-o.
Ver a garrafa vazia de Lag em cima da mesa de apoio? Nem por isso.
- Butch?
Não teve resposta. Dirigiu-se então ao quarto do chui. A porta estava aberta e lá dentro... não havia nada, além do enorme roupeiro de Butch e de uma cama vazia
e revolta.
- Estou aqui.
V deu meia volta e espreitou para o seu quarto. As luzes estavam apagadas, mas as lâmpadas do corredor garantiam-lhe luz suficiente.
Butch estava sentado no extremo da cama, de costas para a porta, a cabeça baixa e os ombros largos curvados.
Vishous entrou e fechou a porta. Nem Jane nem Marissa iam aparecer. Estavam ambas ocupadas com os seus trabalhos. Mas Fritz e a sua equipa deviam passar por ali,
e o mordomo, louvado fosse, nem sequer batia a uma porta fechada. Já lá vivia há tempo suficiente.
- Então - disse V nas trevas.
- Então.
V avançou, contornando os pés da cama e servindo-se da parede para se orientar. Baixou o traseiro sobre o colchão e sentou-se ao lado do melhor amigo.
- Tu e a Jane estão bem? - perguntou o chui.
- Sim. Está tudo bem. - Que grande eufemismo. - Ela chegou mais ou menos quando acordei.
- Eu liguei-lhe.
- Imaginei. - Vishous virou a cabeça e olhou-o, embora isso pouco importasse naquele negrume. - Obrigado por aquilo...
- Sinto muito - gemeu Butch. - Meu Deus, sinto tanto...
A exalação arrastada que se seguiu foi um soluço mal disfarçado.
Apesar de não ver, V estendeu o braço e envolveu o chui. Aproximando o macho do peito, assentou a cabeça sobre a do amigo.
- Está tudo bem - disse, num tom rouco. - Está tudo bem. A sério... Fizeste o mais acertado...
De alguma forma, acabou por virar o macho, ficando com os baços em volta do chui.
Sem saber porquê, pensou na primeira noite que tinham passado juntos. Fora há um milhão e meio de anos, na antiga mansão urbana de Darius. Duas camas lado a lado
lá em cima. Butch perguntara sobre as tatuagens. V dissera-lhe que não se metesse onde não era chamado.
E ali estavam outra vez no escuro. Tendo em conta tudo o que acontecera desde então, era quase inacreditável que alguma vez tivessem sido aqueles dois machos que
estabeleceram uma ligação devido aos Sox.
- Não me peças para voltar a fazer aquilo nos próximos tempos - alertou o chui.
- Combinado.
- Claro que se precisares... vem ter comigo.
V esteve prestes a dizer qualquer coisa na linha de Nunca mais, mas isso era uma treta. Ele e o chui já tinham passado bastantes vezes por esse lado psiquiátrico
de V e, embora ele estivesse a virar a página, nunca se sabia.
Por isso limitou-se a repetir o voto que fizera a si próprio com Jane. A partir de agora, ia deixar as coisas saírem. Mesmo que isso o deixasse desconfortável a
ponto de gritar, era melhor do que a estratégia do acumular. Também era mais saudável.
- Espero que não seja preciso - murmurou. - Mas obrigado, meu.
- Mais uma coisa.
- O quê?
- Acho que agora já namoramos. - Quando V soltou uma gargalhada, o chui encolheu os ombros. - Então? Despi-te. Usaste um espartilho. E nem me lembres do banho de
esponja a seguir.
- Cabrão.
- Sempre.
Quando as gargalhadas se desvaneceram, V fechou os olhos e desligou brevemente o cérebro. Com o peito imenso do melhor amigo contra o seu, e a consciência de que
ele e Jane estavam outra vez bem, o seu mundo completava-se.
Agora, se conseguisse afastar a irmã das ruas e dos becos durante a noite... a vida seria perfeita.
Capítulo 46
Quando José se dirigiu ao Monroe Motel & Suítes, tornou-se óbvio que a única coisa nova em torno do sítio era a fita amarela que acabara de ser passada à volta do
perímetro. Tudo o resto estava murcho e em mau estado, incluindo os carros estacionados junto ao escritório.
Passando pelo alinhamento de polícias, chegou ao último quarto e estacionou o carro à paisana na diagonal em relação aos outros veículos da polícia de Caldwell.
Ao deixar o carro em ponto morto olhou para o outro banco.
- Estás bem para isto?
Veck já estava prestes a abrir a porta.
- Podes crer.
Quando saíram, os outros agentes aproximaram-se e Veck foi cercado por muitas palmadas nas costas. No departamento, as pessoas consideravam-no um herói devido ao
Incidente Paparazzi, e essa lista não se viu de todo reduzida por ele ignorar sempre os incentivos.
Mantendo-se tranquilo, limitou-se a puxar as calças e a sacar de um cigarro. Depois de o acender e de inspirar, falou enquanto exalava.
- Como estão as coisas?
José deixou o rapaz a informar-se e passou por baixo da fita. A porta arrombada da cena do crime fora encostada e abriu-a com o ombro.
- Porra - praguejou entredentes.
O ar estava carregado com o cheiro de sangue fresco... e de formaldeído.
Naquele momento, o flash da fotógrafa disparou e o corpo da vítima foi iluminado na cama, bem como os frascos de espécimes em cima da mesa-de-cabeceira. E as facas.
Fechou brevemente os olhos.
- Detetive?
José olhou sobre o ombro para Veck.
- Sim?
- Temos o registo da carrinha. Illinois. O dono é um tal de David Kroner. Não foi dada como roubada, e imagina só: o Kroner é um branco de trinta e três anos...
solteiro... de bai... grande porra. - As informações debitadas por Veck foram atalhadas ao parar junto à cama. - Jesus.
O flash voltou a disparar e ouviu-se um gemido eletrónico enquanto a máquina recuperava do esforço.
José olhou para o legista.
- Há quanto tempo é que ela está morta?
- Não muito. Ainda está quente. Dou-lhe uma hora mais aproximada quando acabar.
- Obrigado. - José acercou-se da secretária reles e serviu-se de uma caneta para afastar uma aliança de ouro fina, um par de brincos brilhantes e uma pulseira cor-de-rosa
e preta.
A tatuagem recortada da pela da vítima e depositada no frasco ao lado dela também era cor-de-rosa e preta. Provavelmente eram as suas cores preferidas.
Ou tinham sido.
Continuou a vaguear pelo quarto, em busca de coisas deslocadas, a confirmar os cestos de papéis, a espreitar a casa de banho.
Era óbvio que alguém interrompera o divertimento do assassino. Alguém ouvira ou vira qualquer coisa e tinha arrombado a porta, provocando uma fuga apressada pela
janela das traseiras por cima da sanita.
A chamada do 112 fora feita por um homem que se recusara a identificar-se. Dissera apenas que estava um cadáver no último quarto e nada mais. Não fora o assassino
deles. Esses sacanas só paravam se a isso fossem obrigados e não deixavam ficar o tipo de troféus que se viam em cima da mesa-de-cabeceira e da secretária.
- Para onde é que foste depois disto? - interrogou-se José. - Para onde é que fugiste...
Havia cães a farejar na mata lá atrás, mas José tinha a sensação de que isso não daria em nada. A meros cento e cinquenta metros do motel ficava um rio baixo o suficiente
para atravessar. A caminho dali, ele e Veck tinham passado sobre a pequena ponte que o atravessava.
- Ele está a mudar de estratégia - aventou Veck. Quando José se virou, o jovem levou as mãos às ancas e abanou a cabeça. - É a primeira vez que o faz num sítio assim
tão público. O trabalho dele é muito sujo... e potencialmente barulhento. Depois do que já fez, teríamos encontrado mais cenas como esta.
- Concordo.
- O David Kroner é a nossa resposta.
José encolheu os ombros.
- Talvez. Ou pode ser mais um corpo prestes a ser encontrado.
- Ninguém o deu como desaparecido.
- Disseste que era solteiro, certo? Talvez more sozinho. Quem ia dar por falta dele?
No entanto, mesmo enquanto abria buracos na teoria, José fez as suas próprias contas e chegou a uma conclusão semelhante. Era raro que alguém desaparecesse sem que
ninguém desse conta, família, amigos, colegas de trabalho, senhorio... Não era impossível, mas era pouco provável.
A questão era, para onde iria o assassino em seguida? Se o sacana seguisse o mais comum, seria provável que entrasse numa fase de exagero na patologia. Até então,
as vítimas apareciam com meses de intervalo, mas agora tinham encontrado duas numa semana.
Se partisse desse princípio, sabia que as ações cuidadosas que até então tinham ocultado o assassino iriam por água abaixo, com os padrões que seguia a desaparecerem
face a um impulso frenético. A boa notícia era que o desleixo o tornaria mais fácil de apanhar. A má notícia era que a situação poderia piorar antes de melhorar.
Veck acercou-se.
- Vou ver a carrinha. Queres estar presente?
- Sim.
Lá fora, o ar não cheirava a cobre e a químicos, e José respirou fundo enquanto Veck calçava as luvas e deitava mãos à obra. Como seria de esperar, o veículo estava
trancado, mas isso não o deteve. Pegou numa barra e abriu a porta do condutor como se já estivesse habituado a arrombar carros.
- Chiça - resmungou, ao recuar.
Não demorou muito para que o fedor chegasse a José, que tossiu para a mão. Mais formaldeído, mas também o fedor adocicado de coisas mortas.
- Não é na cabina. - Veck percorreu os bancos com a lanterna. - Na caixa.
As portas duplas tinham um cadeado, mas Veck foi à mala do carro à paisana e regressou com uma serra a pilhas.
Ouviu-se um gemido intenso... um ping!... e Veck entrou.
- Ah... porra...
José abanou a cabeça enquanto contornava o veículo para saber contra o que o parceiro praguejara.
O feixe da lanterna de Veck iluminava uma coleção de pequenos frascos com coisas a flutuar ou no fundo de um líquido transparente. Os recipientes estavam guardados
num sistema de prateleiras feitas por medida, montado do lado esquerdo. O lado direito estava reservado às ferramentas: facas e cordas, fita adesiva castanha, martelos,
escopros, lâminas, bisturis, afastadores.
Olá, David Kroner. Era extremamente improvável que o assassino tivesse montado tudo aquilo na carrinha de outra pessoa e quase apostava que os troféus naqueles frascos
encaixavam na perfeição nos buracos deixados na pele das vítimas.
A grande esperança seria que os cães-polícias lhe identificassem o rasto na mata.
Caso contrário, iriam perder outra mulher. José estava disposto a apostar a casa.
- Vou entrar em contacto com o FBI - disse. - Eles têm de vir ver isto.
Veck perscrutou o interior.
- Vou dar uma mãozinha aos rapazes da equipa forense. Gostava de levar este veículo para a sede o mais depressa possível, para que se possa identificar tudo devidamente.
José assentiu, pegou no telemóvel e pressionou a tecla de acesso rápido. Quando começou a chamar percebeu que, depois de falar com os federais, teria de ligar à
mulher. Nunca chegaria a casa a horas do pequeno-almoço.
Nem pensar.
Capítulo 47
-O sol! Ó, meu Deus! Depressa, é melhor...
Manny acordou em pleno ar. Era óbvio que saltara da cama, levando o edredão e várias almofadas consigo, e aterraram todos ao mesmo tempo, os pés, a coberta e o quarteto
de retângulos macios.
A luz do Sol entrava pelas janelas, enchendo-lhe o quarto com uma iluminação brilhante.
O cérebro dizia-lhe que Payne estava ali. Ela estava ali.
Olhando freneticamente à volta, correu para a casa de banho. Vazia. Percorreu o resto do apartamento. Vazio.
Esfregando o cabelo, voltou à cama... e depois apercebeu-se, santa mãe, ainda tinha as recordações todas. Dela. De Jane. Do Peras Odioso. Da operação e... daquele
duche maravilhoso. E de Glory.
Mas que raios...
Baixou-se, apanhou uma almofada e levou-a ao nariz. Sim, ela tinha mesmo estado deitada ao lado dele. Mas por que lá teria ido? E se assim fosse, por que não lhe
teria apagado a memória?
Dirigindo-se ao corredor, pegou no telemóvel e... Mas não lhe podia ligar. Não sabia o número.
Ali se deixou ficar por um instante e depois lembrou-se de que combinara encontrar-se com Goldberg dali a menos de uma hora.
Constrangido, e bizarramente em pânico sem qualquer motivo aparente, vestiu o equipamento de corrida e foi até ao elevador. No ginásio cumprimentou com acenos de
cabeça os outros indivíduos que malhavam ferro ou faziam abdominais e dirigiu-se à passadeira que costumava usar.
Esquecera-se do malfadado iPod, mas tinha a mente em tal alvoroço que silêncio era coisa que não havia entre as orelhas. Ao entrar no ritmo, tentou recordar-se do
que acontecera depois de tomar duche na véspera... mas não se lembrou de nada. Contudo, não estava com dor de cabeça, o que parecia sugerir que o buraco negro em
que se encontrava era algo natural, cortesia do álcool.
Ao longo do treino teve de acelerar a máquina algumas vezes. De certeza que um palerma teria andado a mexer na coisa e o tapete estava lento. E quando chegou aos
dez quilómetros apercebeu-se de que não estava de ressaca. Claro que a intensidade com que a mente lhe fervilhava fazia com que estivesse demasiado distraído para
se preocupar com as dores.
Quando desceu da passadeira, cerca de quinze minutos depois, precisava de uma toalha e dirigiu-se ao monte junto à saída. Um dos indivíduos dos pesos chegou ao mesmo
tempo, mas recuou, num gesto de deferência.
- Você primeiro, meu - estendendo a mão.
- Obrigado.
Enquanto Manny se limpava e dirigia à porta, fez uma breve pausa quando se apercebeu de que ninguém se mexia. Todos os que ali se encontravam tinham interrompido
o que faziam e fitavam-no. Uma olhadela rápida para baixo deixou-o com a certeza de que não sofria de uma perturbação de roupa. Mas que raios?
No elevador esticou as pernas e os braços e pensou, Cristo, podia correr mais quinze... vinte quilómetros sem problemas. E, apesar do álcool, pelos vistos tinha
tido uma noite de sono reconfortante, pois sentia-se desperto e cheio de energia. Mas era assim que funcionavam as endorfinas. Mesmo quando se estava a cair aos
bocados, a excitação da corrida era melhor do que cafeína... ou do que a sobriedade.
Não tinha dúvidas de que acabaria por se ir abaixo, mas logo se preocuparia com isso, quando a exaustão chegasse.
Meia hora depois entrou na Starbucks da Everett onde ele e Goldberg se tinham conhecido há anos, embora, na altura, o pequeno café ainda não tivesse sido adquirido
pela cadeia. O tipo fora aluno da Columbia e estava a concorrer ao internato no St. Francis, e Manny pertencia à equipa de recrutamento que fora reunida para o contratar.
Já na altura Goldberg era uma estrela e Manny quisera criar o melhor departamento do país.
Olhou à volta quando se pôs na fila para pedir um venti latte. O sítio estava a abarrotar, mas Goldberg já lhes conseguira uma mesa à janela. Isso não era uma surpresa.
Aquele cirurgião chegava sempre adiantado às reuniões. De certeza que já lá estaria há pelo menos quinze, vinte minutos. Mas não estava à procura de Manny. Fitava
o copo de papel, como se tentasse mexer psiquicamente o cappuccino.
Ah... ele trazia uma mensagem.
- Manuel? - chamou o rapaz ao balcão.
Manny aceitou o copo, contornou e ziguezagueou por entre os viciados em cafeína, os expositores de canecas e o quadro triangular que anunciava as promoções.
- Então? - cumprimentou ele quando se sentou à frente de Goldberg.
O outro cirurgião ergueu o olhar. E teve de olhar duas vezes.
- Ah... olá.
Manny bebeu um gole do café e recostou-se na cadeira, com as barras curvas das costas a pressionarem-lhe a coluna.
- Como tens andado?
- Eu estou... bem. Cristo, estás com um aspeto fantástico.
Manny esfregou o queixo com barba de véspera. Mas que grande mentira. Não se dera ao trabalho de se barbear e vestia uma camisola polar e calças de ganga. Não era
de todo os preparos de um garanhão.
- Deixemos as amabilidades. - Manny deu mais um gole no latte. - O que tens para me dizer?
Os olhos de Goldberg saltaram em todas as direções. Até que Manny teve pena dele.
- Querem que eu meta férias, não é?
Goldberg pigarreou.
- A direção do hospital acha que seria o melhor para... todos.
- Pediram-te para assumires a chefia, certo?
Mais um tossicar.
- Ah...
Manny pousou o copo.
- Não faz mal. Sem problema. Fico satisfeito... vai correr tudo bem.
- Sinto muito... - Goldberg abanou a cabeça. - Eu... isto parece tudo tão pouco ético. Mas... podes sempre voltar, sabes, depois. Além disso, o descanso fez-te bem.
Quer dizer, tu estás...
- Fantástico - disse Manny, num tom seco. - Uh-huh.
Era o que se dizia sempre às pessoas por quem se sentia pena.
Tomaram os cafés em silêncio e Manny interrogava-se se o outro estaria a pensar o mesmo que ele. Cristo, a volta que as coisas tinham dado. Quando se conheceram
ali, Goldberg estava tão nervoso como agora, só que por motivos bem diferentes. E quem diria que Manny viria a ser dispensado. Na altura só queria chegar ao topo
e nada o iria deter. E assim fora.
O que fez com que a sua reação ao pedido da direção fosse uma surpresa. Na verdade, não estava muito preocupado. Sentia-se... de certa forma desligado, como se isso
estivesse a acontecer a alguém que conhecera em tempos, mas que desde há muito se afastara. Pois, era importante, mas... que se danasse.
- Bem... - O toque do seu telefone interrompeu-o. E a dica quanto ao que realmente lhe interessava foi a pressa para tirar o aparelho, quase como se a camisola tivesse
pegado fogo.
Mas não era Payne, era o veterinário.
- Tenho de atender - disse a Goldberg. - Dois segundos. Sim, doutor, como está... - Manny franziu o cenho. - A sério. Uh-huh. Pois... pois... uhhuh... - Um sorriso
lento começou a crescer-lhe no rosto e dominou-lhe a expressão, até de certeza parecer radiante como um holofote. - Pois. É isso mesmo, não é? Parece a porra de
um milagre.
Quando desligou o telefone olhou para o outro lado da mesa. As sobrancelhas de Goldberg tinham-lhe chegado ao topo da testa.
- Boas notícias. Sobre o meu cavalo.
E o par de sobrancelhas subiu ainda mais.
- Não sabia que tinhas um cavalo.
- Chama-se Glory. É um puro-sangue.
- Ah. Uau.
- Dedico-me às corridas.
- Não sabia.
- Pois.
E as informações pessoais ficaram-se por aí, o que deu a entender a Manny o quanto falavam sobre o trabalho. No hospital, ele e Goldberg passavam horas a falar sobre
pacientes, questões de pessoal e sobre a gestão do departamento. De resto não tinham grande coisa a dizer um ao outro.
Mesmo assim, estava sentado à frente de um bom homem... alguém que provavelmente seria o próximo chefe de cirurgia do St. Francis. É claro que os diretores fariam
um concurso a nível nacional, mas Goldberg seria escolhido, pois os outros cirurgiões, que se assustavam com facilidade e gostavam de estabilidade, conheciam-no
e confiavam nele. E faziam bem. Goldberg era brilhante a nível técnico na sala de operações, proficiente a nível administrativo e muito mais calmo do que Manny alguma
vez fora.
- Vais fazer um excelente trabalho - garantiu Manny.
- O quê... ah. É só temporariamente, até que tu...tu sabes, até que voltes.
Ele parecia mesmo acreditar nisso, o que atestava a sua excelente índole.
- Pois.
Manny mexeu-se na cadeira e, quando voltou a cruzar as pernas, olhou à volta e viu três raparigas do outro lado. Deviam ter cerca de dezoito anos e, assim que cruzaram
os olhares, elas riram-se e falaram entre si, como se fingissem que não o tinham estado a mirar.
Voltando a sentir-se como no ginásio, confirmou o seu estado. Não. Continuava absolutamente sem estar nu. Mas que raio...
Quando ergueu o olhar, uma delas levantara-se e aproximara-se.
- Olá. A minha amiga acha que és giro.
Aaa...
- Ah, obrigado.
- Este é o telefone dela...
- Ah, não... não. - Pegou no papel que ela lhe depositara na mesa e obrigou-a a aceitá-lo de volta. - Fico lisonjeado, mas...
- Ela tem dezoito anos...
- E eu quarenta e cinco.
Com essas palavras, a rapariga ficou de boca aberta.
- Não posso.
- Sim. Podes. - Passou a mão pelo cabelo, interrogando-se quando entrara na Gossip Girl ou qualquer coisa do género. - E tenho namorada.
- Ah. - A jovem sorriu. - Isso é porreiro... mas, tipo, podias ter dito. Não era preciso mentir a dizeres que eras um cota.
Dito isso afastou-se e quando se sentou ouviu-se um gemido coletivo. E depois ele recebeu algumas piscadelas de olho.
Manny olhou para Goldberg.
- Miúdas. Quer dizer, sinceramente.
- Aaa. Pois.
Certo, estava na altura de acabar com aquele embaraço. Olhando pela janela, Manny começou a planear a saída...
No vidro viu o reflexo do seu rosto. Os mesmos malares altos. O mesmo queixo marcado. A mesma combinação de lábios e nariz. O mesmo cabelo preto. Mas havia qualquer
coisa de diferente.
Aproximando-se, pensou... os olhos estavam...
- Olha - disse calmamente. - Vou à casa de banho. Guardas-me o café antes de irmos embora?
- É claro. - Goldberg sorriu, aliviado, como se estivesse satisfeito por ter tantos planos de saída e um emprego. - Demora o tempo que quiseres.
Manny levantou-se e dirigiu-se à única casa de banho unissexo. Depois de bater sem resposta, abriu a porta e acendeu a luz. Quando se trancou e a ventoinha no teto
começou a funcionar, aproximou-se do espelho e leu o aviso «Os Funcionários Devem Lavar as Mãos».
A luz encontrava-se diretamente por cima do lavatório à frente do qual estava. Assim sendo, ele devia estar com um aspeto de merda, de olhos encovados pela exaustão,
com olheiras mais escuras que o breu e a pele da cor de uma torrada mal passada.
Não foi isso que o espelho lhe mostrou. Mesmo com a péssima luz fluorescente que o iluminava, parecia dez anos mais novo do que aquilo de que se lembrava. Irradiava
saúde, como se alguém tivesse photoshopado uma versão antiga da cabeça naquele corpo atual.
Recuando, estendeu os braços para o lado e agachou-se, dando à anca a oportunidade de berrar. Ou as coxas, que ele esforçara ao máximo há menos de uma hora. Ou as
costas.
Nada de dor. Nada de rigidez.
O corpo estava ansioso por trabalhar.
Pensou naquilo que o veterinário lhe dissera ao telefone, a voz do homem confusa e entusiasmada ao mesmo tempo: Ela regenerou o osso e o casco sarou espontaneamente.
É como se a lesão nunca tivesse acontecido.
Santo... Deus. E se Payne tivesse exercido a magia dela sobre ele? Enquanto estiveram juntos? E se ela lhe tivesse sarado o corpo a nível de tempo, sem que nenhum
desse por isso... fazendo o relógio biológico recuar não só meses, mas uma década ou mais?
Manny agarrou a cruz que trazia ao pescoço.
Quando alguém bateu à porta, Manny puxou o autoclismo na sanita vazia e depois abriu a torneira, para que não parecesse ter estado a fazer alguma coisa duvidosa.
Ao sair, estonteado, acenou com a cabeça para a mulher anafada que pretendia entrar e regressou para junto de Goldberg.
Sentou-se e limpou as palmas suadas às calças.
- Preciso de um favor - disse ao antigo colega. - É uma coisa que não pediria a mais ninguém...
- Diz. Qualquer coisa. Depois de tudo o que fizeste por mim...
- Quero que me faças uma avaliação física. E também uns exames.
Goldberg assentiu de imediato.
- Não ia dizê-lo, mas acho que é uma excelente ideia. As dores de cabeça...o esquecimento. Tens de saber se há algum... problema. - Ficou-se por aí, como se não
quisesse nem discutir nem tornar-se mórbido. - Embora, e isto é verdade... nunca te tenha visto com tão bom aspeto.
Manny acabou o café e levantou-se, com a sensação de urgência que o impelia sem nada ter a ver com a cafeína.
- Vamos embora. Se tiveres tempo agora, claro.
Goldberg não se demorou.
- Para ti, tenho sempre tempo.
Capítulo 48
De vez em quando, a morte de Qhuinn voltava ao pensamento dele. Acontecia em sonhos. Nas raras ocasiões em que ele estava quieto e calado. E às vezes para lhe lixar
a cabeça por puro gozo.
Ele procurava sempre evitar a colagem de imagens, cheiros e sons como se fossem a peste, mas apesar de ter solicitado ao seu tribunal interior o seu banimento, os
advogados adversários estavam a ser uns cabrões e a opor-se... portanto, aquela merda volta e meia regressava.
Deitado na cama, aquele pedaço de paisagem mental que não era nem estar a dormir nem desperto funcionava como uma linha aberta para aquela noite horrível lhe telefonar
e, quem diria, ela marcava o número, as memórias faziam soar a campainha e, de algum modo, forçavam-no a atender.
O seu próprio irmão fizera parte da guarda de honra que tinha aparecido para o espancar e os cretinos vestidos de preto seguiram-no pela berma quando ele veio embora
da mansão familiar pela última vez. Tudo o que possuía trazia consigo, e não fazia ideia para onde se podia dirigir. O seu pai tinha-o corrido de casa e ele tinha
sido riscado da árvore genealógica, portanto... era assim. Sem raízes. Sem rumo.
E tudo por causa dos seus olhos diferentes.
A guarda de honra supostamente só tinha por missão espancá-lo pela sua ofensa à linhagem. Não o deveriam matar. Só que as merdas tinham-se descontrolado e, numa
reviravolta inesperada, o irmão dele tinha tentado impedi-lo.
Qhuinn realmente recordava essa parte. A voz do irmão a dizer aos outros que parassem.
Mas tinha sido já demasiado tarde, e Qhuinn tinha flutuado para longe não só da dor, como também da própria terra... apenas para dar por si num mar de nevoeiro branco
que se abriu para revelar uma porta. Sem que ninguém lhe dissesse, ele tinha percebido que era a entrada para o Vápido e compreendeu também que, assim que a abrisse,
ele estava feito.
Coisa que lhe parecera uma ótima ideia na altura. Nada a perder, e tudo isso...
E ainda assim, ele vacilara no último instante. Por uma razão que não se conseguia lembrar.
Foi uma coisa estranhíssima... apesar de toda aquela noite estar gravada na sua mente, aquela era a única parte de que ele não se conseguia lembrar por mais que
tentasse.
Mas recordava-se de regressar ao seu próprio corpo. Ao recuperar a consciência, Blay tinha estado a fazer-lhe a reanimação cardiorrespiratória, e olha lá se aquele
não era um boca-a-boca de acordar os mortos...
A pancada que lhe soou na porta acordou-o de uma vez e ele sacudiu as almofadas, fazendo acender as luzes para ter a certeza de saber onde estava.
Isso mesmo. No seu quarto. Sozinho.
Mas não por muito mais tempo.
Os seus olhos ajustaram-se lentamente, apontaram para a porta, e ele soube quem estava do lado de lá. Conseguia sentir o aroma delicado a pairar, e soube por que
motivo Layla tinha vindo. Porra, talvez tivesse sido por isso que ele não tinha conseguido dormir em condições. Esperava ser acordado por ela a qualquer momento.
- Entra - disse-lhe num tom suave.
A Escolhida entrou sem ruído, e virou-se para ele, parecendo de rastos. Desgastada. Um deserto.
- Senhor...
- Podes chamar-me Qhuinn, sabes. Quer dizer, por favor, chama mesmo.
- Obrigada. - Ela fez uma vénia e pareceu debater-se para se endireitar. - Estive a pensar se poderia usufruir mais uma vez da tua oferta generosa para... te tomar
uma veia. Com efeito, estou... vazia e incapaz de regressar ao Santuário.
Quando o seu olhar se cruzou com os olhos verdes dela, algo se infiltrou bem fundo na sua mente, uma espécie de... perceção que ganhou raízes e rebentos de quase-que-entendi,
estou-quase-lá.
Olhos verdes. Verdes como uvas e jade e rebentos de primavera.
- Por que razão me olhas desse modo? - perguntou ela, apertando com mais força as lapelas das vestes.
Olhos verdes... num rosto que era...
A Escolhida espreitou novamente para a porta.
- Talvez... eu deva ir-me embora...
- Desculpa. - Sacudindo-se, ele certificou-se de que os lençóis o cobriam pela cintura e fez-lhe sinal para se aproximar. - Acabei de acordar... não ligues.
- Tens a certeza?
- Absoluta, anda cá. Amigos, lembras-te? - Estendeu a mão, e quando ela ficou ao seu alcance, pegou na dela e fê-la sentar-se.
- Senhor? Ainda estás a olhar para mim.
Qhuinn perscrutou o rosto dela e depois passou para o corpo. Olhos verdes...
Mas que raio tinham os olhos? Não é que ele nunca os tivesse visto antes.
Olhos verdes...
Conteve um palavrão. Cristo, isto era como ter uma canção na cabeça e lembrar-se de tudo menos da letra.
- Senhor?
- Qhuinn. Di-lo, por favor.
- Qhuinn.
Ele esboçou um sorriso.
- Toma, tira o que precisares.
Ao erguer o pulso, pensou, Meu, ela estava tão magra, ao debruçar-se e abrir a boca. As presas dela eram compridas e muito brancas, mas delicadas. Nada como as dele.
E o toque dela era gentil e feminino como tudo nela.
Coisa que o seu lado tradicionalista achou adequadíssimo.
Enquanto ela se alimentava, ele olhou para o cabelo loiro que estava arranjado num entrançado complexo, e para os ombros descobertos, e para as mãos bonitas.
Olhos verdes.
- Cristo. - Quando ela fez menção de parar, ele colocou a mão por trás do pescoço dela e manteve-a no seu pulso. - Está tudo bem. Tive uma cãibra no pé.
Mais verdadeiro seria dizer no cérebro.
Frustrado, ele ergueu a cabeça e, em vez de bater com ela na parede, esfregou os olhos. Quando os focou novamente, estava a olhar para a porta...
... Layla tinha acabado de entrar.
De imediato, ele voltou a deixar-se arrastar pelo sonho. Mas não pela pancada nem pelo seu irmão. Ele viu-se postado à entrada do Vápido... de pé em frente a painéis
brancos... com a mão erguida, quase a tocar na maçaneta.
A realidade esticou-se, puxou e derreteu-se como caramelo até ele não saber se estava acordado ou a dormir... ou morto.
O remoinho começou a formar-se no centro da porta, como qualquer que fosse o material de que era feita se tivesse liquefeito numa consistência leitosa. E do centro
daquela espécie de tornado surgiu uma imagem e veio aproximando-se, mais como se fosse um som do que algo palpável.
Era o rosto de uma jovem fêmea.
Uma jovem fêmea com cabelo loiro e traços refinados... e olhos verde-pálidos.
Ela olhava-o fixamente, cativando o seu olhar como se se tivesse apropriado de todo o seu rosto com as mãozinhas bonitas.
E então ela piscou os olhos. E eles mudaram de cor.
Um ficou verde, e o outro azul. Tal como os dele.
- Senhor!
A princípio ele ficou tremendamente confuso, imaginando o que teria levado a fêmea a chamar-lhe aquilo. Como é que ela sabia quem ele era?
- Qhuinn! Deixa-me fechar-te a ferida!
Ele pestanejou. E descobriu que se tinha atirado contra a cabeceira da cama, e ao fazê-lo, tinha arrancado da sua carne as presas de Layla e estava a sangrar para
o lençol.
- Deixa-me...
Ele afastou a Escolhida e colocou a própria boca na ferida. Enquanto cuidava de si, não conseguia tirar os olhos de Layla.
Era demasiaaaaado fácil sobrepor as feições daquela fêmea jovem no rosto de Layla e encontrar algo muito mais profundo do que semelhança.
Com o coração aos pulos, ele tentou lembrar-se que nunca lhe tinha dado para aquilo da presciência. Ao contrário de V, ele não conseguia ver o futuro.
Layla mexeu-se lentamente para sair da cama, como se não o quisesse assustar.
- Queres que eu vá chamar a Jane? Ou talvez seja melhor eu ir embora.
Qhuinn abriu a boca... e descobriu que não lhe saía nada.
Uau. Ele nunca tinha tido um acidente de carro, mas imaginou que o nó na garganta que sentiu naquele momento fosse provavelmente igual ao de um condutor que visse
outro carro ignorar um Stop e avançar para a sua porta. Triangulava a sua direção e velocidade contra as suas próprias, e concluía que o impacto estava iminente.
Ainda que ele não conseguisse imaginar um mundo em que engravidasse Layla.
- Vi o futuro - disse ele, à distância.
Layla levou as mãos à garganta como se estivesse a sufocar.
- Não é bom?
- Não é... possível. De todo.
Quando enfiou o rosto nas mãos, tudo o que conseguiu ver na escuridão foi aquela cara... aquela que era em parte a de Layla e em parte a sua.
Ó Deus... protege-os aos dois. Protege-os... todos.
- Senhor?! Estás a assustar-me.
Bem, com isso já eram dois.
Só que não podia ser. Ou podia?
- É melhor eu ir - disse ela com brusquidão. - Agradeço a tua dádiva.
Ele fez sinal com a cabeça, sem poder olhar para ela.
- Não tens de quê.
Quando a porta bateu, pouco depois, ele sentiu um arrepio, um medo gelado que lhe assaltou os ossos... e daí partiu para a sua alma.
Bem vistas as coisas, era irónico, pensou. Os seus pais nunca tinham querido que ele se reproduzisse, e quem diria... a ideia de emprenhar Layla com uma filha defeituosa,
ou pior, de passar os seus olhos fodidos a uma miúda inocente, fê-lo agarrar-se ao voto de celibato como nunca antes.
E, na verdade, ele deveria estar contente. De todos os destinos que poderia ter antevisto, este era cem por cento evitável, não era?
Ele simplesmente nunca iria foder com Layla.
Jamais.
Portanto, tudo não passava de uma impossibilidade. Ponto, parágrafo.
Capítulo 49
Manny regressou ao seu apartamento por volta das seis da manhã. Tudo indicava que tinha passado oito horas no hospital a ser incomodado e pressionado por várias
pessoas que conhecia melhor que a própria família.
Os resultados estavam na sua caixa de correio eletrónico porque tinha enviado automaticamente cópias de tudo o que estava na sua conta do hospital para a sua conta
pessoal. Não que houvesse razões para abrir os anexos. Ele sabia os comentários de cor. Sabia os resultados de cor. Todas as radiografias e TAC de cor.
Atirando as chaves para a bancada da cozinha, abriu o frigorífico e desejou que houvesse sumo de laranja fresco. Mas em vez disso, havia... pacotes de molho de soja
de um restaurante chinês de comida para fora ao fundo da rua... um frasco de ketchup... e uma marmita redonda com uma espécie de restos de um jantar de negócios
a que tinha ido há duas semanas.
Que se lixe. Não tinha assim tanta fome.
Inquieto e sem conseguir estar parado, avaliou a luz no céu. O sol ainda demorava a desaparecer a ocidente.
No entanto, não teria de esperar muito.
Payne regressaria para ele depois do sol se pôr. Sentia-o nos ossos. Ainda não sabia bem porque é que ela passara a noite com ele ou porque é que as suas memórias
permaneciam, mas tinha de pensar na hipótese de Payne tratar disso quando ali chegasse.
A caminho da casa de banho, o seu primeiro impulso foi apanhar as almofadas do chão e colocá-las no sítio. Depois alisou o edredão... e estava pronto para começar
a fazer as malas. Começou a tirar roupa da cómoda e a atirá-la para cima da cama revolta.
Não havia razão alguma para voltar para St. Francis. Tinha apresentado a demissão a meio dos exames.
Não havia razão para ficar em Caldwell. O melhor seria sair da cidade.
Não fazia ideia para onde iria, mas não era preciso um destino para se ir embora de um sítio.
Meias. Boxers. Polos. Calças de ganga. Calças de caqui.
A vantagem de ter um guarda-roupa que consistia acima de tudo em fardas fornecidas pelo hospital era não ter muito para arrumar. E Deus sabia que ele tinha muitos
sacos de ginásio.
Tirou da última gaveta da cómoda as únicas duas camisolas que tinha...
A moldura por baixo delas estava virada para baixo, com o suporte encostado pacificamente ao fundo.
Manny levantou o objeto. Não precisou de o virar para saber quem estava na fotografia. Tinha memorizado o rosto do homem há muitos, muitos anos.
E ainda assim foi um choque virar a moldura e ver a imagem do pai.
Um filho da mãe bonito. Muito, muito bonito. Cabelo escuro, tal como o de Manny. Olhos profundos, iguais aos de Manny.
E era até onde ele estava disposto a ir com a nostalgia. Como sempre, quando se tratava do pai, empurrava tudo para um canto na sua mente e andava para a frente
com a sua vida.
Esta noite isso significava que a moldura ia para cima do edredão e estava resolvido...
A batidela no vidro chegava demasiado cedo para ser ela, pensou.
Mas quando olhou para o relógio percebeu que a tarefa de preparar a mala tinha durado uma boa hora.
Olhando por cima do ombro, o coração bateu acelerou loucamente ao ver Payne do outro lado do vidro. Tinha entrançado o cabelo e tinha um vestido longo apertado na
cintura e estava... de cortar a respiração.
Foi até à varanda, abriu a porta deslizante e o ar frio da noite bateu-lhe na cara, obrigando-o a concentrar-se.
Com um sorriso de orelha a orelha, Payne não chegou bem a entrar, mas antes atirou-se para os seus braços, o corpo sólido contra o seu, os braços muito apertados
à volta do pescoço.
Deixou-se ficar abraçado a ela por instantes... pela última vez. E depois, apesar de não o querer, pousou-a no chão aproveitando a desculpa de fechar as portas para
evitar a rajada de vento para se afastar dela.
Quando a olhou de novo, a alegria no seu rosto tinha desaparecido e ela enrolava os braços à volta de si própria.
- Imaginei que voltasses - disse, rouco.
- Eu... Eu tinha boas notícias. - Payne olhou para a linha de sacos desportivos em cima da cama. - O que estás a fazer?
- Tenho de me ir embora daqui.
Enquanto ela fechou brevemente os olhos, quase o destruiu não ir até ela e confortá-la. Mas já era suficientemente difícil. Tocar-lhe outra vez ia desfazê-lo em
bocados.
- Fui ao médico hoje - disse ele. - Passei toda a tarde no hospital.
Ela ficou lívida.
- Estás doente?
- Não exatamente. - Andou para a frente e para trás até que parou em frente à cómoda e empurrou para dentro a última gaveta. - Na verdade, longe disso... Parece
que partes do meu corpo se regeneraram.
Colocou as mãos na anca.
- Durante anos tive uma artrite na anca, causada por lesões desportivas... sempre soube que eventualmente teria de ser substituída. Mas aquilo que mostram as radiografias
que fiz hoje? Está em perfeitas condições. Não há vestígios da artrite, nem inflamação. Está tão boa como quando tinha dezoito anos.
Quando ela abriu a boca, ele achou que o melhor era dizer-lhe já tudo. Puxando a manga da camisola, passou a mão pelo antebraço.
- Há duas décadas que tenho sardas por causa de queimaduras solares... agora desapareceram. - Baixou-se e levantou a perna das calças. - As microfraturas da tíbia
que me aparecem de vez em quando? Desapareceram. E isto apesar de eu ter corrido cerca de dez quilómetros esta manhã sem sequer pensar nisso... em menos de quarenta
e cinco minutos. As minhas análises não mostram qualquer indício de colesterol, têm valores hepáticos perfeitos, ferro e plaquetas na quantidade necessária exata.
Bateu com os dedos nas frontes.
- E há algum tempo que estou nos limites para usar óculos para ler, tendo de afastar as ementas e as revistas para conseguir... mas agora já não preciso. Consigo
ler as letrinhas pequenas a um palmo do nariz. E, acredite-se ou não, tudo isto é apenas o começo.
Nem valia a pena falar nos pés de galinha à volta dos olhos e nos cabelos brancos nas têmporas que tinham sido substituídos por castanhos-escuros e nos joelhos que
já não estavam lesionados.
- E tu achas... - Payne pousou uma mão na garganta. - Que é por causa de mim?
- Sei que é. Que mais podia ser?
Payne começou a abanar a cabeça.
- Não compreendo, porque é que isto não é uma bênção. A juventude eterna sempre foi procurada por todas as raças...
- Não é natural. - Ao dizer isto, ela estremeceu, mas ele tinha de continuar. - Sou médico, Payne. Sei tudo sobre o envelhecimento normal do corpo humano e o tratamento
de ferimentos. Isto... - Fez um gesto com a mão que percorreu o corpo - ...não está certo.
- É regeneração...
- Mas, onde para? Vou transformar-me no Benjamin Button e recuar até à infância?
- Isso seria impossível - contrapôs ela. - Já estive exposta à luz mais tempo do que tu e não reverti para um estado mais jovem.
- Okay, tudo bem, vamos assumir que isso não acontece... e todas as outras pessoas na minha vida? - Não que se tratasse de uma longa lista, mas ainda assim. - A
minha mãe vai ver-me assim e pensar que fiz cirurgia plástica... e daqui a dez anos? Ela só tem setenta... acredita em mim, quando chegar aos oitenta ou noventa,
vai perceber que o filho não está a envelhecer. Ou tenho de desistir dela?
Manny começou a andar outra vez e, ao puxar o cabelo, era capaz de jurar que estava mais resistente.
- Perdi o emprego hoje por causa do que aconteceu quando me apagaram as memórias. Durante essa semana, estive longe de ti, estava todo baralhado, não sabia se era
noite ou dia e era tudo o que tinham para lidar com a coisa, porque não lhes podia explicar o que realmente tinha acontecido. - Virou-se de novo para ela. - Aquilo
que me preocupa é que este é o único corpo que tenho, a única mente, a única... o que quer que seja. Vocês vampiros lixaram-me a cabeça e quase fiquei louco... e
quais são as consequências de tudo isto? Eu só sei a causa... A magnitude do efeito? Não faço ideia e isso aterroriza-me por uma maldita boa razão.
Payne colocou a ponta da trança em cima do ombro e acariciou-a enquanto baixava os olhos.
- Peço... desculpa.
- A culpa não é tua, Payne - gemeu ele, levantando as mãos ao céu. - E eu não quero culpar-te disto tudo, mas...
- A culpa é minha. Eu sou a causa.
- Payne ...
Quando se aproximou, ela levantou as mãos e afastou-se.
- Não, não te aproximes de mim.
- Payne...
- Tens razão. - Ela parou ao embater na porta envidraçada que tinha atravessado para entrar. - Sou perigosa e destrutiva.
Manny esfregou a cruz por dentro da camisa. Apesar do que tinha dito, naquele momento queria retirar tudo e, de algum modo, fazer com que tudo ficasse bem entre
eles.
- É um dom, Payne. - Afinal de contas, ele e o cavalo tinham mostrado os benefícios da exposição a curto prazo. - Vai ajudar-te e à tua família e ao teu povo. Diabo,
com o que consegues fazer, vais deixar a Jane sem trabalho.
- De facto.
- Payne... olha para mim. - Quando os olhos dela eventualmente encontraram os dele, teve vontade de chorar. - Eu...
Mas não conseguia acabar a frase... A verdade era que a amava. Completamente e para sempre. Contudo, desconfiava que essa era a maldição de tudo isto para ambos.
Ele nunca conseguiria esquecê-la e nunca haveria mais ninguém para ele.
Erguendo os ombros, preparou-se.
- Tenho uma coisa a pedir.
- E o que poderá ser? - lançou ela secamente.
- Não me apagues a memória. Não vou contar nada a ninguém sobre ti ou a tua raça... juro pela minha mãe. Simplesmente... deixa-me como estou quando te fores embora.
Sem a minha mente, tenho menos do que nada.
* * *
Payne estava radiante desde que deixara o complexo. O irmão tinha partilhado com ela as incríveis novidades assim que tinha regressado antes de madrugada e ela passara
todo o dia indecisa entre pairar numa nuvem e ficar impaciente com quão devagar o tempo estava a passar.
Depois tinha vindo.
Era difícil que tivesse o coração a transbordar de alegria apenas há dez minutos.
Não era, no entanto, difícil de compreender a posição de Manuel. E ficou surpreendida por nenhum dos dois ter antecipado as implicações maiores dos seus... poderes
de cura. Ou lá o que era.
Claro que o afetaria.
Olhando para Manuel, não conseguiu suportar a tensão que via nele. Estava honesta e verdadeiramente ansioso com o que sobraria se ela tirasse as memórias do tempo
que tinham estado juntos do alcance da sua consciência. E porque estaria? Perdeu o emprego que amava por causa dela. Tinha o corpo e a mente em perigo por causa
dela.
Pelas Parcas, ela nunca devia ter-se aproximado dele.
E era exatamente por causa disto que não gostavam da mistura com humanos.
- Não te preocupes - disse ela suavemente. - Não vou comprometer a tua mente. Já fiz o bastante.
Enquanto ele respirava de alívio, ela sentiu as lágrimas a apertarem-lhe a garganta. Fitou-a por um momento.
- Obrigado.
Ela fez uma pequena vénia e, ao endireitar-se, ficou chocada ao ver os seus magníficos olhos de mogno a cintilarem.
- Quero lembrar-me de ti, Payne... de tudo sobre ti. - Aquele olhar triste e nostálgico percorreu-lhe o rosto. - De como te senti e do teu sabor. Do som da tua gargalhada...
ofegante. Do tempo que passei ao teu lado... - A voz falhou-lhe e ele recuperou aclarando a garganta. - Preciso que essas memórias durem a minha vida inteira.
As lágrimas começaram a cair e escorrer pelo rosto dela e o coração começou a bater-lhe com força.
- Vou sentir a tua falta, bambina. Todos os dias. Sempre.
Quando ele estendeu os braços, ela aninhou-se neles e perdeu completamente a compostura. Soluçando contra a camisa dele, estava aninhada no seu corpo sólido e forte
e apertava-o com tanta força como ele a apertava a ela.
E então ambos quebraram o abraço ao mesmo tempo, como se fossem um só coração. E ela achou que eram.
Na verdade, havia uma parte dela que queria lutar e discutir e fazer com que ele visse o outro lado, outra possibilidade. Mas não tinha a certeza se existia um outro
lado. Também ela não conseguia prever o futuro, da mesma maneira que não podia prever as repercussões do que tinha mudado nele, tal como ele.
Não havia mais nada para dizer. Este fim imprevisto que chegara era uma pancada que não podia ser atenuada por conversa, toque, nem, desconfiava, pelo tempo.
- Tenho de ir agora - disse ela, afastando-se.
- Deixa-me abrir-te a porta...
Enquanto se desmaterializava da casa dele para fora, apercebeu-se de que aquelas eram as últimas palavras que ele lhe diria.
Era a despedida.
Manny ficou a olhar fixamente para o espaço que a sua mulher tinha acabado de ocupar. Já não havia mais nada dela. Tinha desaparecido como por magia, como um feixe
de luz que tivesse sido cortado.
De vez.
O impulso imediato foi ir até ao armário do hall de entrada, tirar de lá o taco de basebol e partir a casa toda. Partir todos os espelhos, vidros, louça, tudo...
atirar a pouca mobília que tinha pela varanda. Depois disso... se calhar levava o Porsche até à autoestrada do norte, andava a mais de cento e vinte e planeava uma
rota que terminasse nos apoios de uma ponte.
Neste cenário não havia cinto de segurança, obviamente.
Não obstante, afinal, acabou por ficar sentado na cama ao lado dos sacos desportivos e enfiar a cabeça nas mãos. Não era fraco para soluçar daquela maneira como
se estivesse num funeral. De modo algum. Deslizou para os ténis de corrida.
Macho. Realmente muito macho.
No entanto, a forma como se apresentava à plateia do seu apartamento vazio era tão importante como o seu orgulho, corpo, membro... tudo o resto.
A perda estava a dar cabo dele.
E ia transportar aquela dor consigo para o resto da sua vida natural.
Que irónico. O nome dela tinha-lhe parecido inicialmente muito estranho. Agora, parecia bastante adequado.
Capítulo 50
Payne não regressou à mansão. Não tinha qualquer interesse em ver quem lá morava. Nem ao rei, que tinha decidido a seu favor. E certamente que não queria ver todos
os casais felizes, sortudos e abençoados que viviam debaixo do teto real.
Por isso, em vez de ir para norte, materializou-se nas margens do canal que corria ao lado dos altos edifícios envidraçados da baixa. A brisa era mais gentil ao
nível do chão e transportava o som cantante de ondas a bater nas margens empedradas do rio. Como pano de fundo, o zumbido dos veículos a superarem as curvas e contracurvas
suaves das pontes e desaparecendo nas margens longínquas. Aqueles sons faziam-na sentir mais claramente a profundidade e a amplitude da paisagem.
Rodeada de humanos, estava completamente sozinha.
Contudo, era isto que ela tinha pedido. Era esta a liberdade que tão profundamente desejara e procurara com ânsia.
No Santuário, nada tinha mudado. Mas também nada tinha corrido mal.
Contudo, ainda assim, escolheria sempre aquela difícil provação ao isolamento entorpecedor anterior.
Ó Manuel ...
- Olá, querida.
Payne olhou por cima do ombro. Um macho humano estava a aproximar-se dela, tendo obviamente saído de trás de um dos apoios da ponte. Estava a acenar e cheirava a
camadas sobre camadas de suor fermentado e sujidade.
Sem se dar sequer ao trabalho de o cumprimentar, Payne desmaterializou-se para uma zona mais abaixo da margem do rio. Não havia motivo para lhe apagar a memória.
Era pouco provável que se lembrasse sequer que a tinha visto. Estava, sem dúvida, sob o efeito de diversas drogas alucinogénias.
Fitando a superfície ondulada do rio, não se sentia atraída pelas profundezas escuras. Não ia magoar-se a si própria por causa disto. Não se tratava de nenhuma prisão
para se encerrar lá dentro e, além disso, já chegava de escolher sempre a via cobarde. Firmando os pés na terra, cruzou os braços e ficou simplesmente a existir
naquele lugar, ignorando o tempo a escorrer pela peneira da realidade, enquanto as estrelas rodopiavam sobre a sua cabeça, mudando de posição...
A princípio, o cheiro chegou-lhe ao nariz discretamente, imiscuindo-se entre uma mistura de terra fresca, pedra molhada e poluição urbana. Por isso, ao início, não
registou o odor como nada específico.
Não obstante, rapidamente o seu cérebro acordou ao reconhecer o aroma.
Com um formigamento de instinto, a cabeça virou-se sozinha, dando meia volta no alto da espinha. Os ombros seguiram-se... depois as ancas.
O odor rançoso era o inimigo.
Um minguante.
Ao começar a correr ligeiramente, sentiu no sangue uma agressividade que não era apenas causada pela dor que sentia no coração e pela frustração daquilo que o destino
lhe reservara. Ao aproximar-se do cheiro, sentia-se animada por uma herança profunda de violência e proteção. Os membros, a mão da afaga e as presas a aguçarem-se.
Transformada pelo instinto mortal, já não era macho nem fêmea, nem Escolhida, nem filha ou irmã. Enquanto evitava ou enfrentava becos e ruas, era um soldado.
Virou para um beco e, ao fundo, viu dois matadores, cujo cheiro a tinha trazido desde o rio até ali. Juntos, estavam inclinados por cima de um objeto que ela identificou
como um telefone, eram novos recrutas, com cabelo escuro e corpos cheios de tiques.
Não olharam para cima quando ela parou. O que lhe deu tempo de pegar num disco metálico prateado com Ford gravado. Era uma arma excelente que podia ser usada para
bloquear ou para atirar.
Momentos depois, o vento começou a levantar e envolveu-lhe o vestido, retirando-o do seu corpo, e o movimento deve ter chamado a atenção deles, porque se viraram.
Apareceram facas. E também um par de sorrisos que lhe fizeram arder o sangue.
Idiotas, pensou. A pensarem que, por ser uma fêmea, não daria qualquer luta.
Aproximaram-se dela com uma passada tão lenta, que ela não viu razão nenhuma para os interromper. De facto, ela iria saborear a surpresa que eles teriam e à qual,
em última análise, não sobreviveriam.
- O que fazes aqui, menininha? - perguntou o maior dos dois. - Tão sozinha.
Estou prestes a abrir-te a garganta com o que tenho atrás das costas. Depois disso, parto-te as duas pernas, não porque tenha de o fazer, mas porque me diverte o
som. E depois localizo alguma coisa de metal para te enfiar na caixa torácica vazia e te mandar para o teu criador. Ou talvez te deixe a contorcer de dor no chão.
Payne manteve-se silenciosa. Em vez de falar, distribuiu igualmente o peso pelos dois pés bem assentes no chão e agachou-se. Nenhum dos minguantes pareceu notar
a mudança de posição. Estavam demasiado ocupados a caminhar para ela e a pavonearem-se. E nem sequer se separaram ou a flanquearam. Nem veio um atacá-la pela frente,
para o outro a poder atacar por trás.
Continuaram mesmo à sua frente... onde podia alcançá-los.
Enfim, aquilo não passaria de um ótimo aquecimento. A menos que aparecessem outros que soubessem lutar como deve ser e a divertissem...
Xcor sentia a agitação que indicava uma mudança nos bastardos.
Ao caminharem em formação pelas ruas da baixa de Caldwell, a energia atrás dele era um batucar de agressividade. Contundente. Renovada. Mais forte do que tinha sido
uma década antes.
De facto, mudar-se para aqui tinha sido a melhor decisão que tinha tomado. E não só por ele e Throe terem tido ótimo sexo e tomado uma bebida na noite anterior.
Os machos eram punhais retirados à pressa da forja, os instintos assassinos renovados e cintilando à luz da Lua na cidade. Não admira que não tivessem havido matadores
no País Antigo. Estavam todos aqui, a Sociedade dos Minguantes centrando os seus esforços...
A cabeça de Xcor virou-se para todos os lados e desacelerou.
O odor no ar fez com que as presas se alongassem e o corpo vibrasse com poder.
Não era necessário indicar a mudança de direção. Os bastardos estavam a acompanhá-lo, perscrutando a ameaça doce e doentia que se encontrava nas asas das rajadas
noturnas.
Ao virarem a esquina e deslizarem pela reta, rezou por mais. Uma dúzia. Uma centena. Duas centenas. Queria ficar coberto com sangue do inimigo, banhando-se no óleo
negro que lhes animava as carnes...
Na entrada do beco, os pés não pararam, mas cimentaram-se no chão.
Entre um pestanejar e outro, o passado desenrolou-se à sua frente, eliminando a distância entre os meses, anos e séculos de disputas e tornando disponível no presente
toda essa experiência.
No centro do beco, uma fêmea com um vestido branco comprido e ondulante estava a lutar com dois minguantes. Mantinha-os à distância com pontapés e murros, volteando
e saltando tão depressa que tinha de esperar que chegassem de novo até ela.
Com as suas competências superiores de luta, estava apenas a brincar com eles. E tinha a clara impressão de que eles não se apercebiam do quanto ela estava a poupá-los.
Fatal. Ela era mortífera e estava à espera para atacar.
E Xcor soube exatamente quem ela era.
- Ela é... - A garganta de Xcor abafou as restantes palavras.
Ter procurado durante séculos e ser-lhe negado aquele alvo... apenas para dar com ele, numa noite por acaso, numa cidade aleatória para lá do vasto oceano... era
o destino a manifestar-se.
Estava escrito que se encontrariam novamente.
Ali. Naquela noite.
- Ela é a assassina do meu pai. - Retirou a gadanha da bainha. - É a assassina do meu próprio sangue...
Alguém lhe agarrou na mão e travou-lhe o braço.
- Aqui não.
O facto de não ser o sofredor Throe foi a única razão que o fez parar. Era Zypher.
- Capturamo-la e levamo-la para casa. - O guerreiro riu-se sombriamente, o tom erótico aprofundando-se na sua voz. - Já te aliviaste, mas há outros entre nós que
necessitam daquilo que tiveste ontem à noite. Depois disso? Depois podes ensinar-lhe as repercussões dos atos vingativos.
Zypher era, de entre todos, o que mais provavelmente planearia algo assim. E, apesar de a ideia de a chacinar ali mesmo ser muito apelativa, Xcor tinha esperado
demasiado tempo para não saborear a derrota dela.
Tantos anos.
Anos de mais... até ter desistido da esperança de alguma vez a encontrar, apenas os sonhos mantendo viva a memória daquilo que o tinha definido e lhe tinha dado
a posição que assumia na vida.
Sim, pensou. Seria adequado fazer isto à maneira do Derramador de Sangue. Sem tornar as coisas simples para a fêmea.
Xcor voltou a arrumar a gadanha, enquanto a assassina atacava decentemente os matadores. Sem aviso, saltou em frente e investiu contra o peito de um, baixando-se
sob os braços flácidos e empurrando-o contra o edifício. Foi tudo tão rápido que o segundo minguante ficou demasiado surpreendido - e não tinha treino suficiente
- para salvar o amigo.
Mesmo que o número dois tivesse sido um lutador mais próximo das capacidades dela, não teria qualquer hipótese. Praticamente no mesmo momento em que atacou, a fêmea
fez girar por trás dela o tampão da jante e atacou o matador no pescoço, fazendo um corte profundo e desencorajando-o rapidamente da tarefa de se atirar a ela. Quando
o óleo preto começou a esguichar e os joelhos dele tremeram, ela terminou o matador que tinha encostado aos tijolos esmurrando-o duas vezes na cara e uma na maçã-de-adão.
Depois elevou o corpo dele no ar e atirou-o contra a perna dobrada.
A espinha a partir fez um som muito alto.
Enquanto este expirava, virou-se para enfrentar os que estavam a vê-la a lutar. O que não era surpresa nenhuma. Alguém com as suas capacidades ter-se-ia imediatamente
apercebido de que existiam ali outros.
Meneando a cabeça para um dos lados, não ficou alarmada. Mas também por que haveria de ficar? Estavam nas sombras e eram claramente da sua espécie. Até Xcor se revelar,
ela não faria ideia do perigo que corria.
- Boa noite, fêmea - disse ele, em tom baixo, da escuridão.
- Quem está aí? - quis saber ela.
É agora, pensou, avançando para um foco de luz...
- Não estamos sozinhos - murmurou Throe abruptamente.
Xcor parou a investida, os olhos a semicerrarem-se para os sete matadores que tinham aparecido ao fundo do beco.
De facto. Estavam muito acompanhados.
Mais tarde, Xcor acabou por acreditar que a única razão do sucesso na captura da fêmea tinha sido a chegada daqueles novos minguantes. O avanço dos inimigos exigiu
que olhasse para eles e lhes desse atenção. Mas antes de se poder desmaterializar para outra posição, Xcor estava sobre ela.
Apesar do batimento acelerado do seu coração, a vingança dava-lhe força para dispersar as moléculas, mesmo quando ela se virou para enfrentar o esquadrão que se
aproximava. Prendeu a pulseira de aço no pulso dela rápida e certeiramente e, enquanto ela andava à volta com fúria estampada no rosto, ele lembrou-se da incineração
a que ela forçara o seu progenitor.
O que o salvou foi um tiro de um dos minguantes.
O disparo não tinha importância, mas a sua consequência trazia um benefício espetacular. Mesmo quando ela estava a levantar a mão livre para a pousar nele, a sua
perna descaiu e ela caiu no chão, não havendo dúvidas de que a bala acertara em algum ponto vital. E, naquele momento de fraqueza, Xcor dominou-a. Só tinha uma oportunidade
de a controlar. Se não tivesse aproveitado, não tinha a certeza de ter conseguido fazê-lo.
Fechando a outra pulseira no pulso livre dela, agarrou-lhe na trança e enrolou-a à volta do pescoço. Puxando o cabelo com força, cortou-lhe o ar, mesmo quando os
seus guerreiros avançavam de armas em riste.
Oh, como ela lutava. Tão valente. Tão poderosa.
Não passava de uma fêmea... mas talvez fosse um pouco mais do que isso. Era quase tão forte como ele e essa não era a sua única vantagem. Mesmo aprisionada e à beira
da asfixia, os olhos pálidos continuavam fixos nos dele, até ele sentir que ela podia invadir-lhe a mente e apoderar-se dos seus pensamentos.
Mas ele não se deixaria assombrar. Enquanto os sons da batalha rebentavam no beco, ele enfrentou o olhar fixo da assassina do seu progenitor, à medida que os seus
braços iam apertando cada vez mais o laço à volta do pescoço.
Debatendo-se para respirar, ela engasgou-se e contorceu-se, os lábios a moverem-se.
Aproximando o ouvido, ele queria saber o que ela tinha a...
- ... porquê...?
Xcor encolheu-se quando ela deixou de lutar e os formidáveis olhos se reviraram.
Querida Virgem Escrivã, ela nem sabia quem ele era.
Capítulo 51
No que dizia respeito a antros masculinos, V sempre pensara que a sala de bilhar na mansão da Irmandade tinha tudo. Ecrã gigante com som surround. Divãs com estofo
suficiente para serem considerados camas. Lareira para aquecer e para aquela treta atraente das brasas. Bar com todas as bebidas concebíveis, refrigerantes, cocktails,
chá, café, cerveja... tudo.
E uma mesa de bilhar, claro.
A única coisa «má» acabava por ser uma benesse. A máquina de pipocas fora uma aquisição recente, e um tipo bizarro de campo de batalha. Rhage adorava brincar com
a coisa, mas sempre que o fazia, Fritz ficava nervoso e queria parte da ação. Fosse como fosse, era divertido. Os cestinhos de verga ficavam cheios e depois era
a vez do elemento do par que ainda não tivesse funcionado com a máquina.
Enquanto esperava pela sua jogada na mesa de bilhar, Vishous pegou num quadrado de giz azul e esfregou a ponta do taco. Butch baixou-se sobre o feltro verde e apontou
enquanto se ouvia «Aston Martin Music», de Rick Ross.
- Sete no canto - disse o chui.
- Vais enfiá-la, não vais? - V pousou o giz e abanou a cabeça ao ouvir-se a pancada, o rolar e a queda da bola. - Sacana.
Butch olhou-o, com um «toma» na expressão.
- Sou mesmo bom. Desculpa lá, palerma.
O chui deu um gole no Lag e foi assumir nova posição do outro lado da mesa. Enquanto observava o jogo, o sorriso de malandro estava no sítio certo, revelando-lhe
a coroa de porcelana ligeiramente torta.
V ficara de olho no macho. Depois de terem passado horas juntos, tinham-se separado com embaraço e tomado duche independentes. Felizmente, a água quente reanimara-os
e quando voltaram a encontrar-se, na cozinha do Fosso, tudo voltara ao normal.
E as coisas continuaram assim.
Não que não se sentisse tentado a perguntar-lhe se continuava tudo bem. Tipo, a cada cinco minutos. Era como se tivessem travado uma batalha juntos, e exibissem
as fraturas e as nódoas negras que o provavam. Mas V gostava de ver o que se estava a passar à sua frente, o melhor amigo a dar-lhe uma tareia no bilhar.
- E acabou-se o jogo - anunciou o chui quando a bola oito descreveu uma curva e entrou.
- Venceste-me.
- Pois. - Butch ofereceu um sorriso rasgado e ergueu o copo. - Queres a desforra.
- Podes crer.
O cheiro de manteiga derretida e os estalidos dos grãos de milho aos saltos anunciaram a chegada de Rhage ou talvez de Fritz? Não, era Hollywood que estava junto
à máquina com a sua Mary.
V inclinou-se para poder olhar pela arcada, para o outro lado do átrio até à sala de jantar, onde o mordomo e a sua equipa preparavam a última refeição.
- Meu, o Rhage está a brincar com o fogo - comentou Butch enquanto começava a recolher as bolas.
- Dou trinta segundos para que o Fritz... Aí vem ele.
- Vou fingir que não estou aqui.
V deu um gole no seu Goose.
- Eu também.
Enquanto se ocupavam a recolher as bolas, Fritz chegou a correr pelo átrio, qual míssil guiado por calor.
- Tem cuidado, Hollywood, certo? - resmungou V quando Rhage se aproximou com um cesto de pipocas fresquinhas.
- É bom para ele. Precisa de exercício... Fritz! Como estás, camarada?
Enquanto Butch e V reviravam os olhos, Rehv entrou com Ehlena por baixo do braço envolto em marta. O cabrão de crista estava encasacado, como sempre, e apoiava-se
na bengala, mas ostentava o sorriso eterno de macho acasalado, e a shellan dele estava radiante a seu lado.
- Rapazes - disse.
Foram cumprimentados por vários resmungos e Z e Bella chegaram com Nalla, seguidos por Phury e Cormia. Wrath e Beth ainda deveriam estar no escritório, provavelmente
a analisar papelada ou, talvez, a deixar George brevemente ao cimo das escadas, para terem um pouco de privacidade.
Quando John e Xhex desceram com Blay e Saxton, os únicos em falta eram Qhuinn e Tohrment, que deveriam estar no ginásio, e Marissa, que se encontrava na Casa Segura.
Bem, esses três e a Jane dele, que estava na clínica, a reabastecer os suprimentos que tinham sido utilizados na outra noite.
Ah, claro e a sua gémea que, de certeza, estava a... «oh, simzar»... com aquele cirurgião dela.
Com todos os recém-chegados, o som de vozes multiplicou-se e explodiu, à medida que se serviam bebidas, se passava o bebé e se recolhiam mancheias de pipocas. Entretanto,
Rhage e Fritz abriam um carregamento novo de milho. E alguém mudava de canais na televisão, possivelmente Rehv, que nunca estava satisfeito com o que pudesse estar
a dar. E outra pessoa avivava o lume.
- Ei. Continuas bem? - perguntou Butch em voz baixa.
V mascarou o sobressalto tirando um cigarro enrolado do bolso das calças de cabedal. O chui falara tão baixo que mais ninguém o teria ouvido, o que era bom. Sim,
ele estava a tentar abandonar as merdas do secretismo, mas não queria que mais ninguém soubesse até que ponto ele e Butch tinham chegado. Isso era privado.
Acendeu o cigarro e inspirou.
- Sim. Estou mesmo, a sério. - Depois olhou para os olhos cor de avelã do melhor amigo. - E... tu?
- Sim. Eu também.
- Boa.
- Boa.
Ena pá, vejam só aquilo com os relacionamentos. Se continuasse assim, ainda ganhava uma estrela dourada para pôr na caderneta.
Uma batida com os nós dos dedos depois, Butch regressou ao jogo, fazendo pontaria com o taco enquanto V se deleitava com a satisfação das relações pessoais, qual
profissional da coisa.
Bebia mais um gole do copo de Goose quando os olhos se dirigiram à entrada em arco da sala.
Jane hesitou ao espreitar para o interior, com a bata branca a abrir-se quando se inclinou, como se o procurasse.
Quando os olhos se cruzaram, ela esboçou um sorriso. E depois este tornou-se rasgado.
O primeiro impulso de V foi ocultar o seu próprio sorriso atrás do Goose, mas depois deteve-se. Nova ordem mundial.
Vá lá, sorri, cabrão, pensou.
Jane acenou brevemente e manteve-se tranquila, que era o que costumavam fazer quando em público. Virando-se, ela dirigiu-se ao bar para tomar algo.
- Espera aí, chui - murmurou V, pousando a sua bebida e apoiando o taco à mesa.
Sentindo-se como um miúdo de quinze anos, prendeu o cigarro entre os dentes e apertou o cinto nas calças de cabedal. Um rápido alisar do cabelo e estava... bem,
tão pronto quanto possível.
Aproximou-se de Jane por trás no momento em que ela começara a conversar com Mary e quando a sua shellan deu meia volta para o cumprimentar, pareceu um tanto ou
quanto surpreendida por ele se ter dirigido a ela.
- Olá, V... Como estás...
Vishous aproximou-se ainda mais, encostando os corpos, e depois envolveu-lhe a cintura com os braços. Segurando-a com uma mostra de posse, inclinou-a lentamente
para trás até que ela lhe agarrou os ombros e o cabelo lhe descaiu do rosto.
Quando ela arquejou, V disse exatamente aquilo em que estava a pensar:
- Tive saudades tuas.
E com essas palavras, levou a boca à dela e beijou-a profundamente, descendo uma mão até à anca e enfiando-lhe a língua na boca, e continuou, continuou, continuou...
Tinha a vaga noção de que a sala ficara em silêncio e de que tudo com batimento cardíaco o fitava e à sua parceira. Pouco importava. Era aquilo que queria fazer
e iria fazê-lo à frente de todos e até do cão do rei, segundo se viria a revelar.
Pois Wrath e Beth tinham acabado de chegar do átrio.
Quando Vishous endireitou lentamente a shellan, os gritos e os assobios fizeram-se ouvir e alguém atirou pipocas como se fossem confetes.
- Assim é que é - declarou Hollywood. E atirou mais pipocas.
Vishous pigarreou.
- Tenho um anúncio a fazer.
Certo. Muito bem, havia muitos olhos focados no par. Mas ia engolir a vontade de se calar.
Apertando a afogueada e enrubescida Jane a seu lado, disse alto e bom som:
- Vamos acasalar. Como deve ser. E espero que todos estejam presentes e... Pois, é isso.
Silêncio. De. Morte.
Wrath soltou a barra da coleira de George e começou a bater palmas. Lenta e sonoramente.
- Já não era sem tempo, porra.
Os irmãos dele e suas shellans e todos os convidados da mansão imitaram-no. Os guerreiros deram início a um cântico que deitou a casa abaixo com as suas vozes a
vibrar pelo ar.
Ao olhar para Jane, ela parecia radiante. Só lhe faltava brilhar.
- Talvez devesse ter perguntado primeiro - murmurou ele.
- Não. - Jane beijou-o. - Isto é perfeito.
Vishous começou a rir. Meu, se aquilo era viver em voz alta, nunca mais voltaria ao silêncio. Os irmãos apoiavam-no, a sua shellan estava feliz e... está bem, dispensava
as pipocas no cabelo, mas que se danasse.
Minutos depois, Fritz trouxe taças de champanhe e começou a ouvir-se outro tipo de estampido, com rolhas a voar enquanto o grupo falava ainda mais alto do que antes.
Quando alguém lhe enfiou um copo na mitene, murmurou ao ouvido de Jane:
- O champanhe deixa-me excitado.
- A sério?
Baixando a mão pela anca dela... e mais baixo... puxou-a contra a súbita ereção.
- Já conheces a casa de banho do átrio?
- Creio que já fomos apresentad... Vishous!
O macho parou de lhe mordiscar o pescoço, mas continuou a rebolar as ancas contra as dela. Era um pouco indecente, mas nada que os outros casais não fizessem de
tempos a tempos.
- Sim? - disse ele, num tom arrastado. Quando ela pareceu sem fala, sugou-lhe o lábio e murmurou: - Se bem te lembras, estávamos a falar sobre a casa de banho. Se
calhar podia voltar a apresentá-las. Não sei se te apercebeste, mas aquela bancada do lavatório tem andado a chorar por ti.
- E tu fazes alguns dos teus melhores trabalhos em lavatórios.
V percorreu-lhe o pescoço com uma presa.
- É verdade.
Quando a ereção começou a latejar, pegou na mão da fêmea...
O relógio de sala ao canto começou a bater as horas e V contou as badaladas. O que o fez recuar um pouco e confirmar o seu próprio relógio, embora não precisasse
porque o da sala dava as horas certas há dois séculos.
Quatro da manhã? Mas onde é que estava Payne?
Quando o impulso de ir ao Commodore e trazer a irmã se manifestou com força, teve de se recordar de que embora a alvorada se aproximasse rapidamente, ela ainda teria
uma hora. E tendo em conta o que ele e Jane estavam prestes a fazer à porta fechada, não a podia censurar por querer aproveitar cada segundo que tinha com o seu
macho, mesmo que definitiva e absolutamente não fosse por aí.
- Está tudo bem? - perguntou Jane.
Voltando ao programa da noite, V baixou a cabeça.
- Vai estar assim que te levar para aquela bancada.
Ele e Jane passaram quarenta e cinco minutos fechados nos lavabos.
Quando saíram, todos continuavam na sala de bilhar. A música estava mais alta e «I’m Not a Human Being», de Lil Wayne, ecoava até ao teto do átrio. Os doggen ocupavam-se
com acepipes finos em travessas de prata e Rhage tinha um círculo à sua volta a rir-se das piadas que contava.
Por um momento pareceu-lhe os velhos tempos.
Mas não viu a irmã no meio da multidão. E ninguém lhe foi dizer que ela tinha ido para o quarto de hóspedes que andava a usar.
- Já volto - disse a Jane. Com um beijo rápido, V deixou a festa, percorreu o átrio e entrou na sala de jantar vazia. Contornando a mesa, completamente posta mas
muito vazia, tirou o telemóvel do bolso e marcou o número que lhe dera.
Ninguém atendeu.
Voltou a tentar. Nada. Terceira tentativa? Ninguém... atendeu aquela porra.
Praguejando, marcou o número de Manello e arrepiou-se, tentando não pensar no que poderia estar a interromper. Provavelmente teriam fechado os cortinados e perdido
a noção do tempo. E os telefones tinham a mania de se perder no meio dos lençóis, pensou, com um esgar.
Trim... trim... trim...
- Atende, porra...
- Estou?
Manello parecia mal. Mal como em tiro. Mal como em moribundo.
- Onde está a minha irmã? - Porque o cirurgião não atenderia assim se a sua irmã estivesse na cama dele.
A pausa que se seguiu também não era bom sinal.
- Não sei. Ela saiu daqui há horas.
- Horas?!
- O que se passa?
- Cristo... - V desligou e voltou a marcar o número da irmã. E mais uma vez.
Virando a cabeça, olhou para o átrio e para a porta do vestíbulo.
Com um gemido discreto, as portadas de aço que protegiam a casa do sol começaram a descer.
Vá lá, Payne... vem para casa. Já.
Já...
O toque gentil de Jane trouxe-o de volta à realidade.
- Está tudo bem? - perguntou.
A primeira reação de V foi encobrir tudo com um comentário sobre a imitação de Rhage de Steve-O a ser projetado dentro de uma casa de banho portátil. Em vez disso,
obrigou-se a ser sincero com a companheira.
- A Payne... pode ter desaparecido. - Quando ela arquejou e levantou a outra mão, a vontade de V foi sair dali. Mas manteve-se firme no tapete oriental. - Ela saiu
da casa do Manello há horas... há horas! E agora estou a rezar a uma mãe que desprezo para que ela entre por aquela porta.
Jane não disse mais nada. Em vez disso, posicionou-se de maneira a ver a entrada pelo vestíbulo e esperou com ele.
Ao dar-lhe a mão, V apercebeu-se de que era um alívio não estar sozinho enquanto a festa decorria do outro lado... e a irmã ainda não tinha chegado a casa.
A visão que tivera dela no cavalo preto a toda a brida regressou-lhe no silêncio da sala de jantar. O cabelo preto dela voava-lhe atrás do corpo e a crina do garanhão
agitava-se também, com o par a galope... sabe Deus para onde.
Uma alegoria? interrogou-se. Ou apenas o desejo sentido pelo irmão de que ela fosse, por fim, livre...?
Quando o sol nasceu oficialmente, vinte e dois minutos depois, Jane e V continuavam ali juntos, a fitar uma porta que nunca se abriu.
Manny estava de cabeça perdida, absolutamente perdida, enquanto dava voltas ao apartamento. Tencionara sair de casa pouco depois de Payne, mas perdera a energia
e passara o resto da noite a fitar... a noite.
Demasiado vazio.
Estava demasiado esvaído para se mexer.
Quando o telefone tocou a seu lado, confirmou o número e reviveu por breves instantes. Número privado. Tinha de ser ela.
E, como a sua mente passara as últimas horas a rever tudo o que ela dissera, precisara de um instante para se concentrar depois de tantas voltas em vão. Na altura,
o discurso que debitara parecera racional, razoável e inteligente... até ficar a olhar para um futuro que era profundamente vazio.
Atendera o telefonema sem esperar uma voz masculina do outro lado. E muito menos o irmão dela.
E ainda menos ter o sacana a ficar surpreendido quando soube que Payne não estava no apartamento.
Enquanto Manny andava às voltas fitava o telefone, desejando que ele voltasse a tocar... desejando que aquela merda disparasse e que fosse Payne a dizer-lhe que
estava bem. Ou o irmão. Alguém.
Fosse quem fosse.
Pelo amor de Deus, até podia ser o Al Roker a telefonar-lhe e a dizer que ela estava bem.
Mas a alvorada chegou com demasiada celeridade e o telefone manteve-se excessivamente silencioso. E, como qualquer derrotado, foi à lista de chamadas e tentou responder
ao telefonema do «número privado». Quando só recebeu o sinal de chamada, teve vontade de atirar o telemóvel para o outro lado da sala, mas talvez não fosse boa ideia.
A impotência era terrível. Esmagadora.
Queria sair e... que merda, encontrar Payne se ela estivesse perdida. Ou levá-la para casa se estivesse sozinha. Ou...
O telefone tocou. Número privado.
- Foda-se, ainda bem - exclamou ao atender. - Payne...
- Não.
Manny fechou os olhos. O irmão dela parecia de rastos.
- Onde é que ela está?
- Não sabemos. E aqui não podemos fazer nada... ficámos fechados cá dentro. - O tipo exalou como se estivesse a fumar alguma coisa. - O que é que aconteceu antes
de ela sair daí? Pensei que ela fosse passar a noite contigo. Não há problema se vocês os dois... tu sabes... mas porque é que ela saiu tão cedo?
- Disse-lhe que as coisas não iam resultar.
Um silêncio longo.
- Mas o que é que tinhas na merda da cabeça?
Tornou-se óbvio que, se o sol não brilhasse lá fora, o cabrão estaria a bater à porta de Manny para dar cabo de um canastro italiano.
- Pensava que fosses ficar satisfeito com isso.
- Ah sim, claro... parte aí o coração da minha irmã. Parece-me uma bela ideia. - Outra exalação, como se soprasse fumo. - Ela está apaixonada por ti, meu idiota.
Ora se isso não o deixava sem saber o que dizer. Mas voltou ao assunto premente.
- Escuta, nós...
Nesse momento era suposto explicar os resultados dos exames físicos, como se sentia assoberbado e admitir que não sabia quais seriam as repercussões. Mas o problema
era que, desde que Payne partira, ele apercebera-se de que por mais sincero que tudo isso fosse, havia algo ainda mais fundamental a corroer-lhe o íntimo. Ele estava
a ser um fraco. A separação resumia-se ao facto de ele estar a borrar-se de medo por se ter apaixonado por uma mulher... uma fêmea... fosse o que fosse. Pois, havia
um sem fim de tretas metafísicas que ele não compreendia, nem era capaz de explicar, blá, blá, blá. Mas no fundo, o que se passava era que ele amava tanto Payne
que já não se reconhecia, e isso era o mais assustador.
Acobardara-se quando tivera oportunidade.
Mas isso acabara.
- Estamos apaixonados - declarou com toda a clareza.
E maldito fosse, devia ter tido tomates para lho dizer. E para a abraçar. E para a manter.
- Por isso repito, o que é que tinhas na merda da cabeça?
- Boa pergunta.
- Cristo.
- Escuta, como é que posso ajudar... Posso sair durante o dia e não há nada que eu não faça para a recuperar. Nada. - Alimentado pela obsessão, foi buscar as chaves.
- Se ela não está contigo, para onde iria. E aquele sítio... o Santuário?
- A Cormia e o Phury foram lá. Nada.
- Então... - Detestava pensar naquilo. - E os vossos inimigos? Onde é que eles ficam durante o dia... Eu vou lá.
Pragas. Mais soprar. Pausa. Depois um clique e uma inalação, como se o tipo estivesse a acender outro cigarro.
- Sabes, não devias fumar - ouviu-se Manny a dizer.
- Os vampiros não têm cancro.
- A sério?
- Sim. Certo, as coisas são assim. Não conhecemos uma morada específica da Sociedade dos Minguantes. Os matadores costumam misturar-se com a população humana em
pequenos grupos, pelo que é quase impossível encontrá-los sem provocar distúrbios graves. A única coisa... Vai aos becos na baixa ribeirinha. Ela pode ter encontrado
minguantes... vais procurar indícios de uma luta. Fica uma espécie de óleo preto por todo o lado. Como se fosse óleo de motor. E vai ter um cheiro adocicado... como
se fosse uma mistura de animal morto e talco. É bastante característico. Vamos começar por aí.
- Tenho de poder entrar em contacto contigo. Tens de me dar o teu número.
- Envio-te um sms com ele. Tens alguma arma?
- Sim, tenho. - Manny estava já a tirar a quarenta do armário. Passara toda a sua vida adulta na cidade e, às vezes, havia porcaria pelo que aprendera a usar uma
arma há cerca de vinte anos.
- Diz-me que é maior do que uma nove milímetros.
- É.
- Arranja uma faca. Precisas de uma lâmina de inox.
- Entendido. - Dirigiu-se à cozinha e pegou na maior e mais afiada Henckels que tinha. - Mais alguma coisa?
- Um lança-chamas. Matracas. Estrelas de arremesso. Uma Uzi. Queres que continue?
Se pelo menos dispusesse desse tipo de arsenal.
- Eu vou buscá-la, vampiro. Ouve bem o que te estou a dizer... eu vou buscá-la. - Pegou na carteira e estava a dirigir-se à porta quando o terror o imobilizou. -
Quantos são eles? Os vossos inimigos.
- Não têm fim.
- São... machos?
Pausa.
- Costumavam ser. Antes de serem transformados eram humanos.
Um som escapou-se da boca de Manny... algo que ele tinha a certeza nunca produzira antes.
- Não, ela safa-se com o combate corpo a corpo - disse o irmão num tom átono. - É forte.
- Não era nisso que estava a pensar. - Teve de esfregar os olhos. - Ela é virgem.
- Ainda...? - perguntou o vampiro, passado um instante.
- Sim. Não era correto que eu... lhe tirasse isso.
Cristo, pensar que poderia ser magoada...
Nem para consigo foi capaz de acabar a frase.
Regressando à ação, saiu de casa e chamou o elevador. Enquanto esperava, apercebeu-se de que já há algum tempo que só tinha silêncio do outro lado da linha.
- Estou? Estás aí?
- Sim. - Debitou a voz do gémeo dela. - Sim, estou aqui.
A ligação continuou ativa quando Manny entrou no elevador e pressionou G. A viagem até ao carro decorreu sem que nenhum dos dois dissesse nada.
- Eles são impotentes - resmungou finalmente o gémeo de Payne, quando Manny estava a entrar no Porsche. - Não podem fazer sexo.
Pois, isso não o ajudava a sentir-se melhor. E pelo tom da voz do irmão, o tipo pensava o mesmo.
- Eu ligo-te - disse Manny.
- Faz isso, meu. Acho bem que faças isso.
Capítulo 52
Quando Payne recuperou a consciência, não abriu os olhos. Não havia motivo para revelar que estava ciente do que a cercava.
A sensação corporal informou-a da situação em que se encontrava. Estava de pé, de pulsos agrilhoados e puxados para os lados, com as costas contra uma parede de
pedra húmida. Tinha os tornozelos igualmente cingidos e afastados, e a cabeça tombara para a frente numa posição muito desconfortável.
Quando inspirava sentia o cheiro a terra almiscarada e as vozes de machos chegavam-lhe vindas da esquerda.
Vozes muito graves. Com um tom excitado, como se tivessem tomado posse de uma mais-valia.
Ela.
Enquanto reunia as forças, não duvidava quanto ao que lhe iriam fazer. Em breve. E enquanto se recompunha evitava pensar no seu Manuel... de como, caso aqueles machos
levassem a deles avante, a maculariam vezes sem conta antes de a assassinarem, tomando aquilo que, por direito, deveria ter sido do seu curandeiro...
Mas não podia nem iria pensar nele. Esse pensamento seria um fosso negro que a sugaria, a encurralaria e a deixaria indefesa.
Em vez disso procurou as meadas da memória, cruzando as imagens do rosto dos seus raptores com aquilo que vira nas taças do Santuário.
Porquê? interrogou-se. Não fazia ideia por que motivo o macho do lábio arruinado a atacara com tanto ódio...
- Sei que estás desperta. - A voz era impossivelmente baixa, tinha um sotaque carregado e encontrava-se ao lado do seu ouvido. - A tua respiração mudou de ritmo.
Erguendo as pálpebras a par da cabeça, desviou o olhar na direção do soldado. Estava nas sombras a seu lado, pelo que não o pôde ver claramente.
De repente, as outras vozes silenciaram-se e sentiu muitos olhares em si.
Era assim que se sentiam as presas.
- Magoa-me que não te lembres de mim, fêmea. - Com essas palavras aproximou uma vela do rosto. - Penso em ti desde a primeira vez que nos vimos. Há dois séculos.
Payne semicerrou os olhos. Cabelo preto. Olhos azuis-escuros cruéis. E um lábio leporino com que obviamente nascera.
- Lembra-te de mim. - Não era uma questão, mas uma exigência. - Lembra-te de mim.
E então ocorreu-lhe. A pequena aldeia no limite de um vale arborizado. Onde ela matara o pai. Era um dos soldados do Derramador de Sangue. Não havia dúvida de que
todos eles seriam.
Ah, era definitivamente uma presa, pensou. E pretendiam magoá-la antes de a matarem por vingança por lhes ter retirado o líder.
- Lembra-te de mim.
- És um soldado do Derramador de Sangue.
- Não - bradou ele, aproximando o rosto. - Sou mais do que isso.
Quando Payne franziu o cenho, o macho recuou e descreveu um círculo apertado, os punhos cerrados, a vela a escorrer cera para cima da mão fechada.
Quando voltou à frente dela, estava controlado. Por pouco.
- Sou filho dele. Filho dele. Roubaste-me o meu pai...
- Impossível.
- ...injustamente... O quê?
- É impossível seres filho dele - disse Payne alto e bom som no silêncio atrapalhado que se seguiu.
Quando as palavras foram apreendidas, a fúria cega que lhe surgiu no rosto era a mais pura definição de ódio e a mão tremia-lhe quando a levantou acima do ombro.
Esbofeteou-a com tanta força que Payne viu estrelas.
Quando endireitou a cabeça e lhe susteve o olhar, Payne decidiu que não iria tolerar aquilo. Nem a crença errada. Nem o grupo de machos que a miravam. Nem a ignorância
criminosa.
Payne olhou o captor nos olhos.
- O Derramador de Sangue só foi progenitor de um macho...
- O Irmão Vishous, da Irmandade da Adaga Negra. - As gargalhadas duras ecoaram. - Ouvi bastantes histórias sobre as perversões dele...
- O meu irmão não é um pervertido!
Nesse momento, Payne perdeu o controlo, dominada pela fúria que tinha consigo na noite em que matara o pai. Vishous era do seu sangue e o seu salvador por tudo o
que fizera por ela. Não ia permitir que o desrespeitassem, mesmo que a defesa lhe custasse a vida.
No espaço de duas batidas de coração, foi consumida por uma energia interior que iluminou com uma luz branca brilhante a adega onde se encontravam.
As algemas dissolveram-se, caindo com estrépito na terra compactada.
O macho à sua frente saltou para trás, assumindo uma posição de combate, enquanto os outros procuravam armas. Mas ela não ia atacar... pelo menos fisicamente.
- Ouve-me - declarou ela. - Nasci da Virgem Escrivã. Pertenço ao Santuário das Escolhidas. Por isso, quando te digo que o Derramador de Sangue, o meu pai, não deu
origem a mais nenhum macho, isso é um facto.
- Que não é verdadeiro - murmurou o macho. - E tu... Não podes ter nascido da Mãe da raça. Ninguém nasceu dela...
Payne ergueu os braços luminosos.
- Sou o que sou. Nega-o por tua conta e risco.
A tez do macho perdeu a pouca cor que tinha e seguiu-se um compasso tenso e demorado, com armas convencionais apontadas na direção de Payne e ela a brilhar com a
fúria sagrada.
O soldado principal abandonou a pose de combate, com as mãos a penderem-lhe ao lado do corpo e as coxas a endireitarem-se.
- Não pode ser - tartamudeou. - Nada disso pode ser...
Macho idiota, pensou ela.
Erguendo o queixo, declarou:
- Sou a nascida do Derramador de Sangue e da Virgem Escrivã. E digo-te agora - avançou na direção dele - que matei o meu pai e não o teu.
Erguendo a mão, puxou-a atrás e esbofeteou-o.
- E não insultes o meu sangue.
Quando a fêmea lhe bateu, a cabeça de Xcor foi atirada com tanta força para o lado que quase deslocou o ombro numa tentativa de manter a mona presa à coluna. O sangue
encheu-lhe de imediato a boca, cuspindo-o antes de se endireitar.
Por sua fé, a fêmea que tinha à sua frente era majestosa na sua fúria e decisão. Quase tão alta como ele, fitava-o diretamente nos olhos, de pés firmes, as mãos
cerradas em punhos que estava preparada a usar contra ele e o seu bando de bastardos.
Não se tratava de uma fêmea vulgar. E não só pela forma como dissolvera as grilhetas.
Com efeito, quando os olhares se cruzaram, ela recordava-o o pai. Ela tinha a vontade férrea do Derramador de Sangue, não só no rosto, nos olhos ou no corpo. Tinha-a
na alma.
Com efeito, tinha noção de que poderiam cair todos sobre ela, e a fêmea combatê-los-ia até ao último fôlego.
Deus sabia que ela batia como um guerreiro, não como uma fêmea de pulsos fracos.
Mas...
- Ele era meu pai. Ele próprio mo disse.
- Era um mentiroso. - E nem pestanejou. Não baixou o olhar ou o queixo. - Contemplei inúmeras filhas bastardas nas taças de visão. Mas só houve um único filho, o
meu gémeo.
Xcor não estava preparado para ouvir aquilo, muito menos à frente dos seus machos.
Relanceou-os. Até Throe se armara e todos os rostos denotavam uma fúria impaciente. Com um mero sinal cairiam sobre ela, mesmo que os incinerasse a todos.
- Deixem-nos - ordenou.
Sem grande surpresa, foi Zypher quem começou a argumentar.
- Deixa-nos segurá-la enquanto tu...
- Deixem-nos.
Seguiu-se um momento de imobilidade, após o que Xcor bradou:
- Deixem-nos!
Num abrir e fechar de olhos, todos desapareceram pela escadaria de acesso à casa escurecida lá em cima. Depois a porta fechou-se e ouviram-se os passos no piso superior,
enquanto davam voltas, quais animais enjaulados.
Xcor voltou a concentrar-se na fêmea.
E durante muito tempo limitou-se a fitá-la.
- Procurei-te durante séculos.
- Não estive na Terra. Até agora.
Permaneceu hirta, enquanto ele a confrontava em privado. Absolutamente hirta. E quando lhe perscrutou o rosto, Xcor sentiu o gelo do seu coração a mover-se.
- Porque... o mataste? - indagou, num tom rouco.
A fêmea pestanejou lentamente, como se não quisesse demonstrar vulnerabilidade e precisasse de um instante para garantir que não a revelava.
- Porque ele magoou o meu gémeo. Ele... torturou o meu irmão, e por isso teve de morrer.
Então, talvez as lendas tivessem um fundo de verdade, pensou Xcor.
Com efeito, à semelhança da maioria dos soldados, há muito que conhecia a história que contava que o Derramador de Sangue exigira que o filho fosse imobilizado no
chão e tatuado... e depois castrado. A narrativa dizia que a lesão fora apenas parcial. Dizia-se que Vishous queimara com magia as amarras que o prendiam e depois
fugira para a noite, antes que o ato fosse completado.
Xcor olhou para as grilhetas que tinham caído dos pulsos da fêmea... queimadas.
Erguendo as mãos, olhou para a sua carne. Que nunca brilhara.
- Ele disse-me que eu nasci de uma fêmea que o procurara em troca de sangue. Disse-me... que ela não me quis por causa do meu... - Tocou no lábio superior deformado,
deixando a frase por concluir. - Ele aceitou-me e... ensinou-me a lutar. A seu lado.
Xcor tinha uma vaga noção de que a sua voz estava rouca, mas não se preocupou com isso. Sentia-se como se olhasse para um espelho e visse um reflexo seu que não
reconhecia.
- Disse-me que era filho dele... e teve-me como a um filho. Depois da morte assumi o lugar dele, tal como fazem os filhos.
A fêmea avaliou-o e depois abanou a cabeça.
- E eu digo-te que ele mentiu. Olha-me nos olhos. Sabes que te digo a verdade que há muito, muito tempo deverias ter ouvido. - A voz reduziu-se a um murmúrio. -
Conheço bem a traição do sangue. Conheço bem a dor que sentes agora. Não é justo o fardo que carregas. Mas peço-te, não baseies uma vingança numa ficção. Pois serei
obrigada a matar-te... e se não for eu, o meu gémeo vai caçar-te com a Irmandade, e vai fazer-te suplicar pela morte.
Xcor analisou-se e viu algo que desprezava, mas que não podia ignorar. Não tinha memória da cabra que o parira, mas conhecia bem a história de como ela o expulsara
da sala de partos devido à sua fealdade.
Quisera ser reivindicado. E o Derramador de Sangue assim o fizera. A malformação física nunca fora relevante para aquele macho. Apenas se preocupara com as capacidades
que Xcor tinha em abundância: velocidade, resistência, agilidade, poder... e uma concentração mortífera.
Xcor sempre partira do princípio de que recebera isso do lado do pai.
- Ele deu-me um nome - ouviu-se a dizer. - A minha mãe recusou-se a fazê-lo. Mas o Derramador de Sangue... deu-me nome.
- Lamento muito.
O mais estranho em tudo aquilo? Acreditava nela. Antes pronta a combater até à morte, ela agora parecia entristecida.
Xcor afastou-se dela e andou em círculos.
Se não era o filho do Derramador de Sangue, quem era ele? E ainda lideraria os seus machos? Ainda o seguiriam em batalha?
- Olho para o futuro e vejo... nada - resmungou.
- Também sei como é isso.
Parou e encarou a fêmea. Cruzara os braços sobre os seios e não o olhava, mas sim para a parede à frente dela. Naquelas feições viu o mesmo vazio que sentia no próprio
peito.
Erguendo os ombros, dirigiu-se a ela.
- Não tenho qualquer questão a resolver contigo. As ações dirigidas contra o meu - pausa - contra o Derramador de Sangue... foram levadas a cabo pelas tuas razões
válidas.
Com efeito, tinham sido orientadas pela mesma lealdade de sangue e pelo mesmo espírito de vingança que animara a sua busca por ela.
Num gesto digno de um guerreiro, ela curvou-se pela cintura, aceitando as palavras dele e limpando o ar entre os dois.
- Sou livre de partir?
- Sim... mas é dia. - Quando ela olhou em volta para os beliches e enxergas, como se imaginasse os machos que a queriam, ele declarou: - Nenhum mal te será feito
aqui. Sou o líder e eu... - Bem, ele fora o líder. - Passaremos o dia lá em cima para que tenhas privacidade. Tens comida e bebida naquela mesa.
Xcor fez as ofertas de privacidade e provisão sem pensar nas questões de dignidade que envolviam as Escolhidas. Mas aquela fêmea era... merecedora do seu respeito.
Se alguém entendia a importância da vingança contra um insulto feito à família, era ele. E o Derramador de Sangue infligira danos permanentes ao irmão dela.
- Pelo cair da noite - indicou - levar-te-emos daqui vendada, pois não deves saber onde nos encontramos. Mas serás libertada ilesa.
Virando-lhe as costas, dirigiu-se ao único catre sem parte de cima. Mesmo sentindo-se um idiota, esticou o cobertor grosseiro. Não havia almofada, pelo que se baixou
e apanhou uma pilha das suas camisas lavadas.
- É onde eu durmo... podes usá-lo para descansar. E para que não receies pela tua segurança ou virtude, está uma arma de cada lado, no chão. Mas não te preocupes.
Chegarás ao pôr-do-sol em segurança.
Não fez qualquer voto pela sua honra pois, a bem da verdade, não a possuía. E não olhou para trás quando se dirigiu às escadas.
- Qual é o teu nome? - perguntou ela.
- Não o sabes já, Escolhida?
- Não sei tudo.
- Pois. - Levou a mão ao balaústre grosseiro. - Eu também não. Bom dia, Escolhida.
Ao subir as escadas, sentia-se como se tivesse envelhecido séculos desde que carregara o corpo inanimado e quente da fêmea para o subterrâneo.
Ao abrir a robusta porta de madeira, não fazia ideia do que o esperava. Após o anúncio do seu estatuto, os machos poderiam ter-se reunido e decidido expulsá-lo...
Ali estavam todos, num semicírculo, com Throe e Zypher nos extremos do grupo. Tinham armas nas mãos e os rostos ostentavam expressões sombrias... e esperavam que
ele dissesse alguma coisa.
Fechou a porta e encostou-se a ela. Não era cobarde, para fugir deles ou do que acontecera lá em baixo, e não via qualquer utilidade em justificar o que fora revelado
com palavras cuidadosas, ou com pausas.
- A fêmea disse a verdade. Não tenho uma ligação de sangue com aquele que julgava ser meu progenitor. O que me dizem?
Não proferiram qualquer palavra. Não trocaram olhares. E não houve hesitação.
Ajoelharam-se em uníssono, chegando ao soalho e curvando as cabeças. Foi Throe quem falou.
- Estamos eternamente às tuas ordens.
Ao ouvir a resposta, Xcor pigarreou. E outra vez. E ainda mais uma vez. Na Língua Antiga declarou:
- Nenhum líder alguma vez contemplou costas mais fortes e mais leais do que as reunidas perante mim.
Throe ergueu o olhar.
- Não foi a memória do teu pai que servimos ao longo de tantos anos.
Ouviu-se um ulular de concordância, muito mais significativo do que qualquer voto que pudesse ter sido feito com uma linguagem floreada. Logo depois o soalho de
madeira a seus pés foi trespassado por adagas, os punhos seguros pelas mãos de soldados que eram e sempre seriam seus para comandar.
E teria deixado as coisas ficarem por aí, mas os seus planos a longo prazo exigiam uma revelação e uma nova confirmação.
- O meu objetivo não se limita a combater ao lado da Irmandade - disse em voz baixa, para que a fêmea lá em baixo nada ouvisse. - A minha ambição é uma sentença
de morte caso seja descoberta por outros. Compreendem o que estou a dizer?
- O rei - murmurou alguém.
- Sim. - Xcor fitou os olhos de cada um. - O rei.
Nenhum deles desviou o olhar, nem se levantou. Eram uma unidade sólida de músculos, força e determinação mortífera.
- Se isso alterar a decisão de qualquer um de vós - quis saber -, dir-me-ão agora e partirão ao cair da noite para não mais voltar, sem risco de pena de morte.
Throe quebrou fileiras baixando a cabeça. Mas não passou daí. Não se levantou, nem se afastou dali, nem mais ninguém o fez.
- Bom - disse Xcor.
- E quanto à fêmea? - indagou Zypher com um sorriso sombrio.
Xcor abanou a cabeça.
- Nem pensar. Ela não merece qualquer castigo.
O macho ergueu as sobrancelhas.
- Ótimo. Então posso recompensá-la.
Pelo amor de Deus, era demasiado parecido com o maldito Lhenihan.
- Não. Não lhe vais tocar. Ela é uma Escolhida. - Isso prendeu-lhes a atenção, mas Xcor não revelaria mais. Já estava farto de os ouvir. - E vamos dormir aqui.
- Mas que raios?! - Zypher levantou-se e os outros imitaram-no. - Se me dizes que ela é proibida, deixo-a em paz, tal como farão os outros. Porque é que...
- Porque é isso que eu ordeno.
Para marcar a sua posição, Xcor sentou-se à frente da porta, de costas contra os painéis. Em campo confiava a vida aos seus soldados, mas lá em baixo estava uma
fêmea bela e poderosa, e aquele grupo era constituído por sacanas excitados, sempre com cio.
Para chegar a ela teriam de passar por ele.
Afinal de contas, ele era um bastardo, mas ainda tinha os seus códigos, e ela merecia a proteção de que provavelmente não precisava pelo favor que lhe fizera.
Matar o Derramador de Sangue?
Afinal de contas tinha sido um favor prestado a Xcor.
Pois isso significava que não teria de ser ele próprio a acabar com o desgraçado.
Capítulo 53
Manny estava ao volante do seu carro, as mãos a apertar com força, os olhos fitos na estrada à sua frente, quando fez uma curva apertada... e foi dar com o tipo
de cena exata que Vishous descrevera.
Já não era sem tempo, porra. Só precisara de cerca de três horas às voltas em quarteirão atrás de quarteirão atrás de merda de quarteirão até dar com aquilo.
Mas sim, era aquilo que procurava. À luz das dez da manhã que brilhava entre os edifícios, uma nojeira oleosa cintilava no alcatrão, nas paredes de tijolo, no contentor
do lixo e nas janelas tapadas com rede metálica.
Deixou o carro em ponto morto e pisou o travão.
Assim que abriu a porta, encolheu-se.
- Grande merda...
O fedor era indescritível. Devia ser assim tão mau porque lhe entrava diretamente pelo nariz e desligava-lhe o cérebro.
Mas reconheceu-o. O tipo com o boné dos Sox tresandava a isso na noite em que Manny operara os vampiros.
Pegou no telefone, marcou o número supersecreto de Vishous e pressionou OK. Mal chegou a tocar e o gémeo de Payne atendeu.
- Já encontrei - disse Manny. - É exatamente o que disseste... meu, que cheiro. Pois. Sim. Certo. Já te ligo.
Ao desligar, parte dele estava a ir-se abaixo, pensando na possibilidade de Payne se poder ter envolvido no que fora claramente um banho de sangue. Mas manteve-se
firme enquanto procurava alguma coisa, qualquer coisa que lhe pudesse dizer o que acontecera...
- Manny?
- Porra! - Quando deu meia volta agarrou a cruz, ou talvez o coração, para que não lhe saltasse pelo esterno. - Jane?
A forma etérea da antiga chefe de traumatologia solidificou-se à frente dos olhos.
- Olá.
A primeira coisa em que ele pensou foi, Ai, meu Deus, o sol... o que era prova de quanto a sua vida mudara.
- Espera! Não tens problemas com a luz do dia...
- Pois não. - Estendeu a mão e acalmou-o. - Vim ajudar... o V disse-me onde estavas.
Manny agarrou-lhe brevemente o ombro.
- Estou... muito contente por te ver.
Jane abraçou-o rapidamente.
- Vamos encontrá-la. Garanto.
Pois, mas em que estado iriam encontrá-la?
Vasculharam juntos o beco, percorrendo tanto as sombras como as zonas iluminadas. Graças a Deus ainda era cedo e aquela zona da cidade era deserta, pois não se encontrava
em condições de lidar com a complicação que seria ter pessoas - especialmente polícias - a aparecerem.
Durante a meia hora que se seguiu, ele e Jane analisaram cada centímetro quadrado do beco, mas só encontraram os restos de uso de drogas, algum lixo e uma série
de preservativos que não pretendia ver com grande atenção.
- Nada - resmungou. - Absolutamente nada.
Pois. Certo. Ia ter de continuar a andar, a vasculhar, a rezar...
O som de algo a estremecer fê-lo virar a cabeça e depois atraiu-o para junto do contentor.
- Está qualquer coisa a fazer barulho aqui - alertou, ao ajoelhar-se. Claro que com a sorte dele, não deveria ser mais do que uma ratazana a tomar o pequeno-almoço.
Jane aproximou-se quando ele estendeu a mão por baixo do contentor de lixo.
- Acho... acho que é um telefone - resmungou enquanto se esticava e tateava com a ponta dos dedos, na esperança de alcançar a coisa. - Apanhei-o.
Recuando, descobriu que, sim, era um telemóvel rachado regulado para vibrar, o que explicava o ruído. Infelizmente, quem estivesse a ligar foi transferido para o
voice mail no momento em que tentava atender.
- Meu, está cheio de uma porcaria oleosa. - Limpou a mão no canto do contentor - o que era revelador. - E o telefone está protegido com palavra-passe.
- Temos de o levar ao V... ele consegue aceder a qualquer coisa.
Manny levantou-se e olhou para ela.
- Não sei se lá poderei entrar. - Tentou entregar-lhe o telefone. - Toma. Leva-o tu e eu vou ver se encontro outras cenas como esta.
Embora, a bem da verdade, parecesse que já tinha percorrido toda a baixa.
- Não preferes saber o que se passa em primeira mão?
- Sim, mas...
- E se o V encontrar alguma coisa, não preferes sair para tratar do assunto com o equipamento adequado?
- Claro, mas...
- Nunca ouviste falar em fazer qualquer coisa e depois pedir desculpas? - Quando ele ergueu uma sobrancelha, Jane encolheu os ombros. - Foi assim que passei anos
a lidar contigo no hospital.
Manny agarrou o telemóvel com mais força.
- Estás a falar a sério?
- Eu levo-te ao complexo, e se alguém tiver algum problema, eu trato do assunto. E posso sugerir que passemos pela tua casa primeiro para ires buscar o que precisas
para passar algum tempo fora?
Manny abanou lentamente a cabeça.
- Se ela não aparecer...
- Não. Não dizemos «não». - Os olhos de Jane estavam fitos nos dele. - Quando ela vier para casa, demore o que demorar, vais lá estar. O V disse que tinhas deixado
o trabalho... porque a Payne lhe contou. E depois podemos falar sobre isso...
- Não há nada a falar. A direção do St. Francis praticamente pediu-me que me despedisse.
Jane engoliu em seco.
- Ó, meu Deus... Manny...
Cristo, ele nem acreditou no que lhe saiu à boca:
- Não faz mal, Jane. Desde que ela regresse bem... só isso me interessa.
Jane fez sinal com a cabeça na direção do carro.
- Então porque é que ainda estamos a falar?
Muito bem visto.
Correram para o Porsche, puseram os cintos e arrancaram, com Jane ao volante.
Enquanto ela acelerava a caminho do Commodore, ele transformara-se com o sentido de objetivo. Estragara as coisas com a sua mulher uma vez. Isso não voltaria a acontecer.
Jane parou à frente do arranha-céus enquanto ele correu até ao átrio, subiu no elevador e entrou em casa. Rapidamente pegou no computador portátil, no carregador
do telemóvel...
O cofre.
Correndo para o roupeiro no quarto, introduziu o código e destrancou a pequena porta. Com as mãos rápidas e a mente firme, tirou a certidão de nascimento, sete mil
dólares em dinheiro, dois relógios Piaget de ouro e o passaporte. Pegando num saco ao acaso, enfiou tudo lá dentro, a par do computador e do carregador. Depois foi
buscar mais dois sacos que praticamente vomitavam roupas e saiu a correr do apartamento.
Enquanto aguardava pelo elevador, deu-se conta de que estava a deixar a vida para trás. De vez. Quer ficasse ou não com Payne, não voltaria ali... e não se tratava
só da morada física.
Assim que entregara as chaves a Jane pela segunda vez, virara uma esquina numa tempestade de neve metafórica. Não fazia ideia do que estava à frente, mas não ia
voltar atrás, e por ele tudo bem.
Chegado à rua, atirou as coisas para a bagageira e para o banco traseiro.
- Vamos embora.
Cerca de trinta e cinco minutos depois, Manny regressava aos terrenos incertos da montanha dos vampiros.
Olhando para o telemóvel quase destruído que tinha na mão, rezou para que aquela potencial ligação entre ele e Payne os voltasse a unir e para que tivesse uma oportunidade
com aquilo que desperdiçara...
- Grande... porra... - Lá à frente, a surgir da estranha neblina, agigantava-se uma enorme rocha, grande como o monte Rushmore. - Aquilo é... uma porra de uma casa.
Mausoléu seria outro termo.
- Os Irmãos levam a segurança muito a sério. - Jane parou o carro à frente de uma escadaria digna de uma catedral.
- Ou isso - resmungou ele -, ou os sogros de alguém são donos de uma pedreira.
Saíram juntos e antes de pegar nos sacos, Manny observou a paisagem. O muro que se perdia de vista em ambas as direções tinha uns bons seis metros de altura, e havia
câmaras espalhadas pelo exterior, bem como rolos de arame farpado no cimo. A mansão em si era enorme, espraiando-se em todas as direções, parecendo ter três pisos.
E quem falara em fortaleza? Todas as janelas estavam cobertas com placas de metal e as portas eram duplas. Parecia que seria preciso um tanque para as atravessar.
Havia uma série de carros no pátio, alguns dos quais, em outras circunstâncias, o teriam atraído profundamente, e uma outra casa muito mais pequena feita da mesma
pedra que o castelo. A fonte ao centro estava seca, mas ele imaginava os sons apaziguadores que faria quando a água estivesse a jorrar.
- Por aqui - indicou Jane ao abrir a mala do carro e tirar um dos sacos.
- Eu levo isso. - Manny pegou no que ela tirara, bem como nos outros dois. - As senhoras primeiro.
Jane telefonara ao homem dela a caminho dali, pelo que Manny imaginava que o povo de Payne não o mataria assim que lhe pusessem a vista em cima, mas não havia como
ter a certeza.
Ainda bem que, naquele momento, ele se estava borrifando para si próprio.
Na entrada, Jane tocou à campainha e ouviu-se uma tranca a abrir-se. Entrando com ela, Manny deu consigo num vestíbulo sem janelas que o fez pensar numa prisão...
uma prisão muito elegante e cara, com painéis de madeira entalhada e o cheiro a limão no ar.
Nunca sairiam dali, a menos que alguém os deixasse.
Jane falou para uma câmara.
- Somos nós. Estamos...
O segundo conjunto de portas abriu-se de imediato e Manny teve de pestanejar várias vezes perante o que lhe foi dado a ver. O átrio brilhante e garrido do outro
lado não era de todo o que esperara. Majestoso e com todas as cores do arco-íris, era tudo o que o exterior fortificado não era. E Cristo, parecia que tinha sido
usado todo o tipo de mármore decorativo possível... e olhem só para todo o cristal e talha dourada.
Entrou e viu o fresco no teto dois andares lá em cima... e uma escadaria que fazia com que a do E Tudo o Vento Levou parecesse um escadote.
Quando a porta se fechou atrás de si, o irmão de Payne saiu do que parecia ser uma sala de bilhar, com o Red Sox a seu lado. Quando o vampiro avançou, todo ele era
ação, prendendo o cigarro enrolado entre as presas e puxando as calças de cabedal.
Parando à frente de Manny, os dois machos entreolharam-se... até se pensar se as coisas chegariam ao fim mesmo antes de começarem, com Manny a ser transformado em
refeição.
Mas o vampiro estendeu a mão.
Claro... o telemóvel.
Manny largou os sacos e tirou o BlackBerry do bolso do casaco.
- Toma... foi isto...
O tipo aceitou o que lhe foi oferecido, mas nem olhou para o aparelho. Limitou-se a passá-lo para a mão livre e voltou a estender a palma.
O gesto era tão simples... o seu significado muito, muito profundo.
Manny apertou a sua mão à dele, e nenhum dos dois disse nada. Não havia necessidade, pois a comunicação estabelecida era clara. Estava a ser apresentado e respeitado
por ambos os lados.
Quando largaram as mãos, Manny disse:
- O telefone?
O vampiro acedeu ao aparelho numa questão de segundos.
- Cristo... és rápido - murmurou Manny.
- Não. Foi o que eu lhe dei. Estava a ligar-lhe de hora a hora. O GPS foi... se não tinha-te dado a morada de onde o encontraste.
- Porra. - Manny esfregou o rosto. - Não havia lá mais nada. A Jane e eu vasculhámos o sítio... e já tinha passado horas a conduzir pela baixa. E agora?
- Esperamos. Não podemos fazer mais nada enquanto houver sol. Mas assim que escurecer, a Irmandade vai sair daqui com fogo nos pés. Não te preocupes, vamos encontrá-la...
- Eu também vou - atalhou Manny. - Só para que se sabia.
Quando o gémeo de Payne começou a abanar a cabeça, Manny interrompeu quaisquer protestos, fossem eles razoáveis ou não.
- Sinto muito. Pode ser a tua irmã que anda perdida... mas é a minha mulher. E isso significa que vou fazer parte disto.
Terminado o discurso, o macho do boné de basebol tirou o chapéu e esfregou o cabelo.
- Louvado seja Deus...
Manny estacou, perdendo o resto que foi dito pelo tipo.
Aquele rosto... aquele maldito rosto.
Aquele... santa mãe... rosto.
Manny estivera errado quanto ao sítio de onde conhecia o tipo.
- O que foi? - indagou o Red Sox.
Manny tinha a vaga noção de que o irmão de Payne estava a franzir o sobrolho e de que Jane parecia preocupada. Mas estava concentrado no outro homem. Perscrutou
aqueles olhos cor de avelã, aquela boca e aquele queixo, em busca de algo que não batesse certo, algo deslocado... algo que desmentisse o que ele estava a ver.
A única coisa ligeiramente desenquadrada era o nariz, mas isso porque teria sido partido pelo menos uma vez.
A verdade estava nos ossos.
E a ligação não era o hospital, nem sequer a Catedral de St. Patrick porque, já que pensava nisso, tinha mesmo visto aquele homem, macho... vampiro, fosse o que
fosse... na igreja.
- Mas que raios? - resmungou Butch, olhando para Vishous.
À laia de explicação, Manny baixou-se e vasculhou os sacos. Enquanto procurava o que não trouxera intencionalmente, teve a certeza de que o iria encontrar. O destino
alinhara os dominós com demasiada perfeição para que aquele momento não acontecesse.
E sim, lá estava.
Quando Manny se endireitou, as mãos tremiam-lhe tanto que o suporte batia nas costas da moldura.
Já que perdera a voz, nada mais tinha a fazer do que virar o vidro para mostrar àqueles três a fotografia a preto e branco.
Que era a cópia exata do macho chamado Butch.
- Este é o meu pai - disse Manny, num tom rouco.
A expressão do tipo era de um choque profundo, e as mãos dele começaram igualmente a tremer quando as estendeu e segurou, com todo o cuidado, na velha fotografia.
Nem se deu ao trabalho de negar nada. Não tinha como.
O irmão de Payne exalou uma nuvem de fumo de cheiro maravilhoso.
- Grande cena.
Bem, era um resumo perfeito.
Manny olhou para Jane e depois fitou o homem que bem podia ser um meio-irmão.
- Reconhece-lo?
Quando o tipo abanou lentamente a cabeça, Manny olhou para o gémeo de Payne.
- Os humanos e os vampiros podem...
- Sim.
Quando voltou a mirar o rosto que não devia ser assim tão familiar, pensou, Cruzes, como podia ser.
- Quer dizer que és...
- Mestiço? - completou o macho. - Sim. A minha mãe era humana.
- Grande porra - murmurou Manny.
Capítulo 54
Ao segurar a imagem de um homem que era indiscutivelmente idêntico a si, Butch pensou, bizarramente, nos sinais amarelos das autoestradas.
Os que diziam coisas como gelo na ponte... ou queda de pedras... ou o temporário máquinas em manobras quando nos aproximávamos de uma zona de perigo. Que raios,
até os que tinham a silhueta de um veado a saltar, ou uma grande seta preta a apontar para a esquerda ou para a direita.
Naquele momento, ali no átrio, teria agradecido qualquer pré-aviso de que a sua vida estava prestes a descarrilar por completo.
Claro que um choque frontal não era algo que se planeasse.
Desviou a atenção da fotografia e fitou os olhos do cirurgião humano. Eram castanho-escuros, da cor de um bom porto. Mas a forma... como podia não ter identificado
a semelhança com os seus?
- Tens a certeza - ouviu-se a perguntar. - Este é o teu pai?
Mas já sabia a resposta antes de o tipo assentir.
- Quem... como... - Pois, grande jornalista que ele daria. - O que...
Ora aí estava. Bastava juntar onde e quando e tínhamos uma notícia do caraças.
O problema era que, depois de ter acasalado com Marissa e de ter passado pela transição, encontrara finalmente paz com quem era e com o que fazia na vida. Por outro
lado, no mundo humano sempre estivera afastado de todos, avançando paralelamente, mas sem nunca se cruzar com a mãe, as irmãs e os irmãos.
E com o pai, claro.
Ou pelo menos com o homem que lhe tinham dito ser o seu pai.
Partira do princípio de que, com o seu lar e parceira ali, deixara de precisar de assimilar e chegara a uma reconciliação pacífica com muito do que fora doloroso.
Mas agora era como que voltar à merda.
O humano falou com gravidade.
- Ele chamava-se Robert Bluff. Era cirurgião no Presbiteriano de Columbia, em Nova Iorque, onde a minha mãe trabalhava como enfermeira...
- A minha mãe era enfermeira. - Butch sentia a boca seca. - Mas não nesse hospital.
- Ela exerceu em muitos sítios... até... em Boston.
Seguiu-se um longo silêncio, durante o qual Butch considerou a hipótese de uma eventual infidelidade por parte da mãe.
- Alguém precisa de uma bebida, certo? - interveio V.
- Lag...
- Lagavulin...
Butch e o cirurgião calaram-se enquanto Vishous revirava os olhos.
- Por que será que isto não me surpreende?
Quando o irmão se dirigiu ao bar na sala de bilhar, Manello disse:
- Nunca o cheguei a conhece-lo. Devo tê-lo visto, tipo... uma vez? Sinceramente, já nem me lembro.
V armou-se em comissário de bordo e chegou com a bebida para os dois.
Quando Butch bebeu um gole, Manello fez o mesmo e depois abanou a cabeça.
- Sabes, nunca gostei desta merda até que...
- O quê?
- Vocês me começaram a foder a cabeça. Costumava gostar de Jack. Mas no ano passado... tudo mudou.
Butch aquiesceu, mesmo sem estar a acompanhar a conversa. Meu, não conseguia deixar de olhar para a fotografia, e pouco depois apercebeu-se de que, de uma forma
estranha, tudo aquilo era um alívio. A regressão ancestral provara que ele era aparentado de Wrath, mas ele nunca soubera, nem quisera realmente saber, ao certo
como. E agora ali estava. À sua frente.
Cristo, era como se sempre tivesse sofrido de uma doença e finalmente alguém lhe dava um nome.
Tens Outro-pai-ite. Ou seria Bastard-oma?
Fazia sentido. Sempre imaginara que o pai o odiava, e talvez fosse esse o motivo. Embora fosse quase impossível imaginar a sua casta e religiosa mãe a descarrilar,
aquela fotografia contava a história de pelo menos uma noite com outra pessoa.
O primeiro instinto foi que tinha de falar com a mãe e pedir-lhe pormenores... bem, alguns pormenores.
Mas como poderia isso resultar? A demência afastara-a da realidade e agora estava tão distante que mal o reconhecia quando ele a visitava, a única razão para a poder
visitar de todo. E não poderia perguntar às irmãs ou aos irmãos. Eles tinham-no rejeitado há muito, quando desaparecera, e era pouco provável que eles soubessem
mais alguma coisa.
- Ele ainda está vivo? - perguntou Butch.
- Não tenho a certeza. Costumava pensar que ele estava enterrado no Cemitério de Pine Grove. Agora? Quem sabe?
- Eu posso descobrir. - Quando V falou, Butch e Manny olharam ao mesmo tempo para o irmão. - Basta dizerem e eu encontro-o... quer esteja no mundo vampiro ou no
humano.
- Encontrar quem?
A voz grave chegou vinda do cimo das escadas, e todos olharam enquanto as palavras reverberavam pelo átrio. Wrath estava no patamar do primeiro andar com George
a seu lado. O humor do rei era fácil de identificar, mesmo tendo os olhos ocultos por aqueles óculos. Estava com um estado de espírito mortífero.
Claro que era difícil de imaginar se isso se devia ou não ao humano no átrio, pois Deus sabia que o tipo tinha mil coisas em que pensar.
Vishous tomou a palavra, o que foi uma boa opção. Butch perdera a voz e, como era óbvio, Manello também.
- Parece que este belo cirurgião pode ser teu familiar, meu senhor.
Quando Manello recuou, Butch pensou, Santa mãe.
Mais lenha para a fogueira.
Manny esfregou as frontes enquanto o tremendo vampiro de cabelo preto pela cintura descia as escadas, com o cão amarelado a parecer indicar o caminho. O sacana parecia
ser o dono do sítio e, tendo em conta a treta do «meu senhor», era provável que fosse.
- Será que ouvi bem, V? - perguntou o macho.
- Sim. Ouviste.
Eeeeeeee isso resolvia outra questão pois Manny começava igualmente a questionar a sua própria audição.
- Este é o nosso rei - anunciou Vishous. - Wrath, filho de Wrath. Este é o Manello. Doutor Manny Manello. Acho que ainda não tinham sido apresentados formalmente.
- És o que pertence a Payne.
Aí não houve hesitação. A sua resposta também não tardou:
- Sim. Sou eu.
O ronco grave que saiu da boca cruel era parte gargalhada, parte praga.
- E achas que estamos relacionados de que maneira?
V pigarreou e interveio.
- Há uma semelhança física extraordinária entre o pai do Manny e o Butch. Quer dizer... porra, é como estar a ver uma fotografia do meu amigo.
As sobrancelhas escuras desapareceram atrás dos óculos. Depois a expressão atenuou-se.
- Escusado será dizer que não posso fazer essa avaliação.
Ah, então era cego. Isso explicava o cão.
- Podemos fazer-lhe uma regressão ancestral - sugeriu Vishous.
- Isso - apoiou Butch. - Vamos...
- Calma aí, isso não o pode matar? - interveio Jane.
- Esperem lá. - Manny recuou um passo de mãos erguidas. - Esperem lá um bocado. Regressão quê?!
Vishous soprou fumo.
- É um processo através do qual eu entro em ti e vejo quanto do nosso sangue te corre nas veias.
- Mas pode matar-me? - Porra, ter Jane a abanar a cabeça não inspirava nenhuma confiança.
- É a única maneira de ter a certeza. Se fores meio-sangue, não podemos ir para o laboratório e fazer-te uma análise ao sangue. Os meios-sangues são diferentes.
Manny olhou à volta para todos eles. O rei, Vishous, Jane... e o tipo que podia ser um meio-irmão. Cristo, talvez fosse por isso que se sentia tão diferente em relação
a Payne. Assim que a vira foi como... se uma parte dele tivesse despertado.
Talvez também explicasse o seu mau feitio.
E depois de uma vida inteira a questionar-se quanto ao seu pai e às suas raízes, pensou... agora podia saber a verdade.
Mas quando eles lhe retribuíram o olhar, lembrou-se de ter ido ao hospital na semana anterior julgando que era de dia, mas descobrir que era de noite. E depois ocorreu-lhe
o que se passara com Payne e com as alterações no seu corpo.
- Sabem que mais? - disse. - Acho que vou dispensar.
Quando Jane aquiesceu, como se concordasse com ele, teve a certeza de estar a tomar a decisão correta.
Além disso, estavam a desviar-se do verdadeiro problema.
- Seja como for, a Payne vai voltar - declarou. - E não vou deixar que me apontem uma arma à cabeça antes de a voltar a ver... mesmo que isso seja a diferença entre
pertencer a este mundo ou não. Sei quem é o meu pai... e neste momento estou a olhar para o reflexo dele à minha frente. Não preciso de ir mais longe... a menos
que a Payne não concorde.
Cristo... a mãe, pensou de repente. Teria ela sabido?
Quando Vishous cruzou os braços sobre o peito, Manny preparou-se para uma discussão.
- Gosto do teu traseiro - disse, em vez disso. - A sério que gosto.
Tendo em conta aquilo a que o sacana tinha assistido não há muito tempo, isso surgiu como uma surpresa. Mas por ele tudo bem.
- Certo, estamos de acordo. Se a minha mulher quiser... eu faço-o. Caso contrário, estou bem assim.
- É justo - declarou Wrath.
Nesse momento instalou-se o silêncio. Mas também, o que poderia ser dito? A realidade sobre o paradeiro de Payne - e a sua ausência - pesava sobre todos.
Manny nunca se sentira tão impotente na vida.
- Com licença - escusou-se o meio-irmão -, mas preciso de outra bebida.
Quando Butch se afastou para a sala adjacente, Manny observou-o a desaparecer por uma arcada toda trabalhada.
- Sabes que mais, concordo com a sugestão.
- A minha casa é tua - disse o rei, num tom sombrio. - O bar fica por ali.
Reprimindo o estranho impulso para fazer uma vénia, Manny limitou-se a assentir.
- Obrigado, meu. - Quando lhe foram apresentados os nós dos dedos, Manny bateu-lhe e acenou com a cabeça a Jane e ao marido.
A sala onde entrou parecia a melhor suíte de hospitalidade que já vira. Cristo, até tinha máquina de pipocas.
- Mais Lag? - resmungou o tipo do outro lado.
Manny virou-se e deu consigo a observar um bar do caraças.
- Sim. Obrigado.
Trouxe o copo e entregou-o ao homem. E, quando o som de uísque a chapinhar pareceu alto como um grito, dirigiu-se a um sistema de som que poderia ser perfeitamente
usado no Madison Square Garden.
Pressionando os botões ouviu uma mistura de... gangsta rap.
Com outro botão chegou ao sintonizador de alta definição, em busca da estação de heavy metal. Respirou fundo quando «Dead Memories», dos Slipknot, se começou a fazer
ouvir.
Noite. Estava só à espera do anoitecer.
- Toma - disse o chui, entregando-lhe a bebida. Fazendo um esgar, acenou com a cabeça para uma das colunas. - Gostas dessa merda?
- Sim.
- Ora aí está uma diferença entre nós.
O gémeo de Payne espreitou para a sala.
- Mas que raios é esse barulho? - Era como se alguém tivesse começado a falar em línguas estranhas. Ou talvez tivesse posto a tocar Justin Bieber.
Manny limitou-se a abanar a cabeça.
- É música.
- Só porque tu o dizes.
Manny revirou os olhos e retirou-se para uma zona muito escura e perigosa da sua mente. A constatação de que não havia nada que pudesse fazer pela sua mulher naquele
momento deixava-o com vontade de magoar qualquer coisa. E o facto de parecer ter algo de vampiro dentro dele não era exatamente o tipo de revelação de que precisava
num dia como aquele.
Cristo, sentia-se péssimo.
- Alguém joga bilhar? - perguntou, meio dormente.
- Podes crer.
- Claro.
Jane avançou e deu-lhe um breve abraço.
- Conta comigo.
Parecia que não era o único desesperado por uma distração.
Capítulo 55
Sentada em algo almofadado com as mãos no regaço, Payne deduziu que se encontrava num carro, pois a subtil sensação de vibração era semelhante à que sentira quando
viajara ao lado de Manuel no seu Porsche. Contudo, não tinha como confirmar visualmente tal dedução, pois tal como anunciado pelo soldado do Derramador de Sangue,
ela estava vendada. Mas o cheiro do macho responsável estava a seu lado; embora ele estivesse parado, pelo que teria de ser outro a conduzir o veículo.
Nada lhe acontecera nas horas entre o confronto e aquela viagem. Ela passara o tempo diurno sentada na cama do líder, com os joelhos contra o peito, ambas as armas
a seu lado sobre o cobertor grosseiro. Mas ninguém a incomodara, pelo que passado algum tempo deixou de ficar atenta a cada som vindo lá de cima e conseguiu descontrair-se
um pouco.
Em breve, os pensamentos sobre Manuel dominavam-lhe o grosso da atenção, e reviveu as cenas do tempo, excessivamente curto, que tinham passado juntos, até que o
coração lhe doeu com a agonia. Quando deu por isso, o líder regressou e perguntou-lhe se desejaria um repasto antes de partirem.
Não, ela não quisera comer.
Depois, ele vendara-a com um pano branco imaculado, tão limpo e adorável que ela se interrogara quanto à sua origem. E depois segurara-lhe o cotovelo com firmeza,
levando-a pelas escadas por onde antes a transportara.
Era difícil saber ao certo quanto tempo passara no carro. Vinte minutos? Talvez meia hora?
- Aqui - acabou o líder por dizer.
À sua ordem, o veículo onde seguiam abrandou e depois parou. Uma porta foi aberta. Quando o ar puro e frio entrou, o cotovelo dela foi mais uma vez agarrado e ela
foi equilibrada ao sair. A porta fechou-se e ouviu-se uma pancada, como se um punho tivesse batido numa parte do veículo.
Os pneus a girar lançaram-lhe terra para a roupa.
Ficou sozinha com o líder.
Embora ele estivesse em silêncio, sentiu-o a mover-se atrás dela, e depois o tecido à volta da cabeça foi afrouxado. Quando foi retirado, ela susteve a respiração.
- Pensei que a seres libertada, deveria ser com uma vista digna dos teus olhos claros.
Lá em baixo revelava-se toda a cidade de Caldwell, com as luzes cintilantes e o trânsito denso a criar um repasto glorioso para a sua visão. Com efeito, encontravam-se
na crista de uma pequena montanha, com a cidade a espraiar-se verdadeiramente a seus pés junto às margens do rio.
- Isto é lindo - murmurou, olhando para o guerreiro.
Afastado, ele mostrou-se distante ao ponto de estar quase escondido, com a malformação oculta nas sombras para onde recuara.
- Que tenhas uma boa viagem, Escolhida.
- E tu... ainda não sei o teu nome.
- É verdade. - Esboçou uma vénia. - Boa noite.
E com isso desapareceu, desmaterializando-se.
Passado um instante, Payne voltou a dirigir-se para a vista e interrogou-se onde estaria Manuel naquela cidade. Teria de ser no aglomerado de construções altaneiras,
pelo que segundo a localização da ponte seria... ali.
Sim, ali.
Erguendo a mão, desenhou um círculo invisível em torno da alta construção de ferro e aço onde seguramente ele vivia.
Quando o peito a oprimiu e ela ficou ofegante, demorou-se mais um instante e depois desmaterializou-se para norte e leste, a caminho do complexo da Irmandade. A
viagem não tinha qualquer entusiasmo, sendo apenas uma obrigação, para informar o gémeo de que se encontrava viva e ilesa.
Quando ganhou forma nos degraus de pedra da vasta mansão, aproximou-se das portas duplas com um estranho temor. Sentia-se grata por estar de volta a uma espécie
de lar, mas a ausência do seu macho eliminava qualquer prazer que poderia ter tido com as ligações que voltariam a estabelecer-se em breve.
Depois de tocar à campainha, a porta do vestíbulo abriu-se de imediato e pôde sair da noite...
A segunda porta interior foi aberta ainda mais rapidamente pelo mordomo sorridente.
- Minha senhora! - gritou.
Ao entrar no átrio que tanto a encantara quando o vira pela primeira vez há dias, vislumbrou brevemente o seu gémeo chocado a saltar para a arcada de acesso à sala
de bilhar.
Mas esse breve momento foi tudo o que viu.
Uma grande força afastou Vishous com tanta violência que ele literalmente voou, largando o copo que segurava e espalhando pelo ar a bebida nele contida.
Manuel irrompeu pelo átrio, o corpo a avançar rapidamente, a expressão no rosto a um tempo de incredulidade, terror e alívio.
Mas não fazia sentido que estivesse a correr na direção dela, não fazia sentido que estivesse ali na...
Antes de conseguir concluir o pensamento ele tinha-a nos braços, e, pelas Parcas, o cheiro era o mesmo, a especiaria escura que lhe era única a inundar-lhe os sentidos.
E os ombros eram tão largos quanto se recordava. E a cintura tão estreita. E o abraço tão poderoso e maravilhoso.
O corpo forte dele estremeceu quando a abraçou com força, por um instante, e depois recuou, como se receasse estar a magoá-la.
Os olhos dele estavam frenéticos.
- Estás bem? O que posso fazer por ti? Precisas de um médico? Estás ferida... estou a fazer demasiadas perguntas... desculpa. Cristo... o que aconteceu? Onde estiveste?
Porra, tenho de parar...
Enquanto reencontro amoroso, talvez aquelas não fossem as palavras românticas que algumas fêmeas gostariam de ouvir, mas para ela representavam tudo no mundo.
- Por que estás aqui? - murmurou ela, levando-lhe as mãos ao rosto.
- Porque te amo.
De certa forma, isso não explicava nada... mas dizia-lhe tudo o que precisava de saber.
De repente, ela afastou as mãos.
- Mas e aquilo que fiz ao teu corpo...
- Não me importo. Nós damos a volta... havemos de o resolver... mas eu estava errado quanto a nós dois. Fui um fraco... um cobarde, e estava errado, e sinto tanto.
Merda. - Abanou a cabeça. - Tenho de deixar de praguejar. Oh, meu Deus, a tua roupa...
Payne olhou para baixo e viu o sangue preto dos minguantes que matara, a par da mancha vermelha do seu próprio sangue.
- Estou inteira e estou bem - garantiu, com toda a clareza. - E eu amo-te...
Interrompendo-a, beijou-a com solenidade nos lábios.
- Diz isso outra vez. Por favor.
- Eu amo-te.
Quando ele gemeu e voltou a envolve-la com os braços, Payne sentiu uma grande onda de calor e de gratidão no peito, e deixou que a emoção a apertasse contra ele.
E, enquanto se abraçavam, olhou sobre o ombro do seu macho. O irmão estava com a shellan dele a seu lado.
Cruzando o olhar com o do gémeo, viu todas as questões e receios naquele olhar.
- Não estou ferida - disse ao seu macho e ao seu gémeo.
- O que aconteceu? - perguntou Manuel contra o cabelo dela. - Encontrei o teu telefone partido.
- Estavas à minha procura?
- É claro que estava. - Recuou. - O teu irmão ligou-me ao nascer do sol.
Foi de imediato cercada pelo seu povo, como se um gongo tivesse soado, convocando para o átrio todos os machos e fêmeas da casa. Sem dúvida que teriam sido ali levados
pela agitação da sua chegada, mantendo-se à margem por sinal de respeito.
Tornava-se óbvio que havia mais do que duas mentes descansadas.
E isso fê-la sentir-se parte da família.
- Estava junto ao rio - disse alto o suficiente para que todos a ouvissem - quando senti o cheiro do inimigo. Atraída até eles cruzei os becos e deparei-me com dois
minguantes. - Sentiu Manuel ficar hirto, e viu o irmão fazer o mesmo. - Foi bom lutar...
Com essas palavras hesitou. Mas o rei aquiesceu. E o mesmo fez uma fêmea poderosa de cabelo curto, como se também ela combatesse na guerra e tivesse noção tanto
da necessidade como da satisfação. Os Irmãos, contudo, pareciam obviamente desconfortáveis.
Prosseguiu.
- Chegou então junto a mim um grupo de machos... de costas fortes, bem armados, com efeito, um esquadrão de guerreiros. O líder era muito alto, com olhos escuros,
cabelo escuro e um... - levou a mão à boca - defeito no lábio superior.
Começavam agora as pragas e, ao ouvi-las, desejou ter usado mais do que o fizera as taças de visão no Outro Lado. Era óbvio que o macho que descrevera não lhes era
desconhecido, e não era bem-vindo à narrativa.
- Ele prendeu-me... - Ouviu-se então não um, mas dois rosnidos, o do seu gémeo e o de Manuel. E, ao acalmar o macho tão perto dela, olhou para o irmão. - Acreditava
erroneamente que eu fizera desabar uma calamidade sobre a linhagem dele. Acreditava ser filho do Derramador de Sangue... e fora testemunha da noite em que levei
a morte ao nosso progenitor. Com efeito, ele passara séculos procurando-me para exercer a sua vingança.
Nesse momento calou-se, apercebendo-se de que acabara de admitir ter cometido parricídio. Mas ninguém pareceu chocado... o que dizia muito, não só acerca do tipo
de machos e fêmeas que ali se encontravam, mas também sobre o bastardo que fora seu pai.
- Esclareci o guerreiro quanto ao erro segundo o qual agia. - Omitiu o facto de ele a ter agredido, e ficou satisfeita por o hematoma no rosto ter desaparecido.
De alguma forma, sabia que ninguém precisava de ter conhecimento disso. - E ele acreditou em mim. Não me magoou... com efeito, protegeu-me dos machos dele, cedendo-me
a sua cama...
Manuel arreganhou os dentes como se tivesse presas... e isso deixou-a excitada.
- Sozinha, dormi sozinha. Ele manteve todos os subalternos com ele, lá em cima. - Voltou a acalmar Manuel pelo menos até se aperceber que ele estava excitado, tal
como aconteceria com qualquer macho disposto a marcar a sua fêmea. Que situação tão erótica. - Ah... ele vendou-me e levou-me a uma elevação panorâmica com vista
para a cidade. Depois libertou-me. E foi tudo.
Wrath tomou a palavra.
- Ele levou-te contra tua vontade.
- Ele acreditava ter motivo. Pensava que eu tinha matado o pai dele. E assim que ficou esclarecido estava preparado para me libertar, mas era de dia, pelo que não
podia ir para lado nenhum. Teria telefonado, mas perdera o meu telefone e eles não pareciam ter nenhum, pois não vi qualquer aparelho. Na verdade, estavam a viver
à moda antiga, de forma comunal e modesta, numa sala subterrânea iluminada por velas.
- Fazes ideia onde estão? - perguntou-lhe o gémeo.
- Não sei. Estava inconsciente quando eles... - Um brado de alerta fez-se ouvir de tantas gargantas que ela abanou a cabeça. - Fui alvejada por um minguante...
- Mas que raios...
- Foste o quê?!
- Uma arma...
- Alvejada com uma...
- ...ferida?!
Mmm. Talvez isso não tivesse sido uma boa ideia.
Enquanto os Irmãos falavam uns sobre os outros, Manuel pegou-lhe ao colo e ergueu-a, o rosto uma máscara de fúria cega.
- Acabou-se. Já está tudo dito. Vou examinar-te. - Olhou para o irmão dela. - Para onde a posso levar?
- Lá para cima. Vira à direita. Passas três portas e há um quarto de hóspedes. Vou mandar comida e diz-me se precisares de material clínico.
- Entendido.
Com isso, o macho dela dirigiu-se às escadas, consigo nos braços.
Ainda bem que ela já concluíra a história. Tendo em conta o ângulo do queixo de Manuel, seria preciso algum tempo antes de voltar a falar sobre o que lhe acontecera.
A menos que o quisesse ver furioso.
Com efeito, no estado em que ele se encontrava agora, parecia que quele soldado teria muito o que recear, caso os dois alguma vez se encontrassem.
- Estou tão satisfeita por te ver - disse ela, num tom rouco. - Só pensava em ti quando estava...
Manuel fechou brevemente os olhos, como se sofresse.
- Eles não te magoaram?
- Não. - E foi então que percebeu o que o preocupava.
Levando-lhe a mão ao rosto, disse:
- Ele não me tocou. Nenhum deles o fez.
O arrepio que percorreu o corpo forte que a transportava foi tão grande que ele quase tropeçou. Mas o macho dela recuperou depressa... e prosseguiu o seu caminho.
Enquanto Vishous observava o humano a levar a sua irmã escadaria acima, percebeu que estava a testemunhar o desenrolar do futuro. Aqueles dois iam resolver as coisas
e o cirurgião com gostos musicais altamente discutíveis faria parte da vida dela... e da de V... para todo o sempre.
De repente, a mente dele recuou doze meses, com o rebobinar a deter-se quando chegou ao ponto da narrativa em que entrara no gabinete do cirurgião para apagar as
memórias do tempo passado por V em St. Francis.
Irmão.
Ouvira a palavra irmão na sua cabeça.
Na altura não fazia a mais pequena ideia do que isso poderia significar. Porque, então, como poderia isso alguma vez acontecer?
Mas ali estava, mais uma vez a realidade exibia uma das suas visões.
Embora, a bem da verdade, a palavra devesse ser cunhado.
Mas depois olhou para Butch. O melhor amigo também fitava o tipo.
Porra, talvez irmão se adequasse. O que era bom. Manello era o tipo de indivíduo com quem não nos importávamos de nos relacionarmos.
Quase como se o rei lhe tivesse lido os pensamentos, Wrath anunciou:
- O cirurgião pode ficar. O tempo que quiser. E pode ter contacto com qualquer família humana que tenha... se quiser. Enquanto meu familiar, é bem-vindo à minha
casa sem quaisquer restrições.
Ouviu-se um ronco de aprovação. Como sempre, no que dizia respeito à Irmandade, os segredos nunca eram secretos durante muito tempo, por isso já todos saberiam da
ligação Manello/Butch/Wrath. Que raios, todos tinham visto a fotografia. Especialmente V.
Embora V tivesse feito mais do que isso. O nome «Robert Bluff» acabara por se revelar uma identidade falsa... E o macho tinha de ser meio-sangue. Se assim não fosse,
nunca poderia ter trabalhado em qualquer hospital durante o dia. A questão era o que poderia saber quanto ao seu lado vampiro e se ainda estava vivo.
Quando Jane encostou a cabeça ao seu peito, envolveu-a ainda mais com os braços. E depois olhou para Wrath.
- O Xcor, certo?
- Pois - assentiu o rei. - Um avistamento confirmado. E não será a última vez que teremos notícias dele. Isto foi só o princípio.
Grande verdade, pensou V. A chegada daquele bando de bastardos não era uma boa notícia para ninguém, mas acima de tudo não o era para Wrath.
- Cavalheiros - disse o rei - e minhas senhoras, a primeira refeição está a arrefecer.
O que foi a deixa para que todos se dirigissem à sala de jantar e comessem o que fora deliberadamente ignorado até então.
Com Payne segura e em casa, o apetite voltava a ter rédea livre... embora Deus soubesse que não ia pensar naquilo que o cirurgião e a irmã de certeza estariam prestes
a fazer.
Quando gemeu, Jane apertou-lhe a cintura com mais força.
- Estás bem?
Olhou para a sua shellan.
- Acho que a minha irmã não tem idade para sexo.
- V, ela tem a mesma idade do que tu.
Vishous franziu o sobrolho por um instante. Teria? Ou será que ele nascera primeiro?
Pois, só teria essa resposta num sítio.
Que raios, nem sequer pensara na mãe durante toda aquela situação. E agora que pensava... não tinha qualquer vontade ou interesse em aparecer por lá e anunciar que
Payne estava muito bem.
Não. Se a Virgem Escrivã quisesse acompanhar o que os «filhos» estavam a fazer podia usar aquelas taças de visão fakakta de que tanto gostava.
Beijou a sua shellan.
- Não quero saber o que diz o calendário, nem a ordem de nascimento. Aquela é a minha irmãzinha e nunca vai ter idade suficiente para... «ah, sim».
Jane riu-se e voltou a aninhar-se por baixo do braço dele.
- És um macho muito doce.
- Ná.
- És.
Levando-a para a sala de jantar e até à mesa, puxou-lhe educadamente a cadeira e depois sentou-se à sua esquerda, para que ela ficasse junto à sua mão da adaga.
Enquanto as conversas se elevavam, as pessoas atacavam as travessas e a sua Jane se ria de algo que Rhage dissera, Vishous olhou e viu Butch e Marissa a trocarem
sorrisos e de mão dada.
Sabes que mais, pensou... naquele momento, a vida estava muito boa.
Estava mesmo.
Capítulo 56
Lá em cima, Manny fechou a porta com o pé atrás dele e da sua mulher, e depois levou-a para a cama do tamanho de um campo de futebol.
Não havia motivo para se trancar. Só um idiota os incomodaria.
O brilho que entrava pelas janelas já sem portadas garantia-lhe luz suficiente para ver, e maldito fosse se não gostava do que tinha à sua frente: a mulher dele,
são e salva, deitada na... Bem, certo, aquela não era a cama deles, mas garantidamente ia transformá-la nisso antes do amanhecer.
Sentando-se ao lado dela, tentou discretamente ocultar a ereção massiva que tinha desde que a vira entrar à porta. E embora houvesse muito o que dizer, só conseguia
fitá-la.
Mas rapidamente o cirurgião nele assumiu o controlo.
- Foste ferida? - As mãos adoráveis dela baixaram até às vestes, e quanto mais a bainha suba, mais as pálpebras dela desciam.
- Acho que vais descobrir que estou sarada. Foi apenas superficial... aqui em cima.
Manny engoliu em seco. Porra... sim, ela estava bem. A pele no cimo da coxa estava lisa como porcelana.
- Mas talvez me devesses examinar com mais atenção - sugeriu ela, num tom arrastado.
Manny entreabriu os lábios e sentiu os pulmões a contraírem-se.
- De certeza que estás bem? E eles não... te magoaram.
Nunca ultrapassaria isso.
Payne sentou-se e fitou-lhe os olhos.
- O que sempre te esteve destinado continua à tua espera.
Manny fechou brevemente os olhos. Depois não quis que ela ficasse com uma má impressão.
- Não que me importasse se não fosses... quer dizer, isto não é uma questão de propriedade... - Que raios, parecia que naquela noite não era capaz de falar. - Mas
não era capaz de aguentar se te magoassem.
O sorriso dela fê-lo sentir-se grato por ter um colchão debaixo do rabo, pois se estivesse de pé, ela tê-lo-ia derrubado.
- Desculpa por ontem à noite - lamentou-se ele. - Cometi um erro...
Payne levou-lhe a mão à boca.
- Estamos aqui agora. Nada mais me importa.
- E preciso de te dizer uma coisa.
- Vais deixar-me?
- Nunca.
- Ótimo. Então vamos unir-nos primeiro, e depois falamos. - Endireitando-se ainda mais, Payne substituiu os dedos pela boca e beijou-o profunda e demoradamente.
- Mmmm... sim, muito melhor do que o discurso, creio eu.
- Tens a certeza de que queres... - Não conseguiu avançar mais, pois a língua dela privou-o de pensamentos.
Gemendo, subiu para a cama, sustendo-se acima dela. E depois, fitando-lhe os olhos, baixou lentamente o corpo sobre o dela... sendo o último contacto a ereção dele
entre as pernas dela.
- Se te beijar agora não há volta. - Bolas, tinha a voz tão gutural que praticamente lhe rosnava. Mas estava a ser sincero. Estava a ser levado por outra força.
Não se tratava de sexo, embora a mecânica do ato estivesse envolvida. Ao tomar-lhe a virgindade, estaria a marcá-la de uma forma que não compreendia, mas que não
questionava.
- Quero-te assim - disse ela. - Há séculos que espero por aquilo que só tu me podes dar.
Minha, pensou Manny.
Antes de a voltar a beijar, chegou-se ao lado e soltou-lhe o cabelo da trança. Espalhando as ondas escuras sobre a colcha de cetim, percorreu-as com os dedos.
Depois encostou as ancas ao íntimo dela, empurrando e recuando, e repetindo o movimento... enquanto a mão lhe subia até ao peito e lhe agarrava o tecido frágil das
vestes.
Sinceramente estava chocado com o que queria fazer.
- Desejo estar nua perante ti - ordenou ela. - Fá-lo, Manuel.
A maldita túnica não teve hipótese. Erguendo-se, pegou nas lapelas e abriu-a ao meio, rasgando o material e expondo-lhe os seios aos seus olhos quentes e ao ar frio.
Em resposta, ela arqueou-se e gemeu e isso foi a gota de água. Dirigiu-se aos mamilos entumecidos com a boca e ao íntimo dela com as mãos. Estava todo nela, levando-a
ao orgasmo sugando-a e esfregando-a com cuidado, e quando a libertação rápida e desesperada chegou, ele engoliu-lhe o grito.
Queria dar-lhe mais - e pretendia fazê-lo - mas o seu corpo não ia esperar. Levou as mãos às calças, soltando o cinto e baixando o fecho para soltar o membro.
Ela estava pronta, molhada, aberta e ansiosa, tendo em conta a forma como as pernas o esfregavam.
- Eu vou devagar - disse contra a boca de Payne.
- Não receio a dor. Não contigo.
Bolas, portanto talvez naquilo fossem fisicamente como as mulheres humanas. O que queria dizer que a primeira vez não seria fácil para aquela fêmea.
- Shhh - murmurou ela. - Não te preocupes. Toma-me.
Baixando a mão, posicionou-se e... que porra... quase se veio. Ela estava quente e molhada e...
Ela moveu-se tão depressa que não a poderia impedir, mesmo que quisesse. As mãos dela baixaram e agarraram-lhe o traseiro, com as unhas a cravarem-se na sua carne
e depois...
Payne ergueu as ancas ao mesmo tempo que o puxava, e ele entrou até ao fundo, com a penetração total e absolutamente completa. Com ele a gemer, Payne ficou rígida
e silvou com a estocada, o que era profundamente injusto, pois ela sabia tão bem. Mas ele não ia mexer-se, pelo menos até que ela recuperasse da invasão.
E depois lembrou-se.
Levando-lhe a mão à nuca, aproximou-lhe os lábios do pescoço.
- Toma-me.
O som que ela fez levou-o ao orgasmo no interior dela. Era demasiado excitante para se conter. E enquanto o membro latejava, as presas de Payne enterraram-se na
sua veia.
O sexo tornou-se alucinado. Payne moveu-se contra ele, com o íntimo apertado a sugá-lo enquanto ele se vinha mais uma vez... e depois foi a vez de o macho começar
a bombear as ancas com força. O sugar e o ritmo alucinado arrebatou-os de tal maneira que tiveram noção que pela manhã se ressentiriam. Aquilo não tinha nada de
civilizado. Eram macho e fêmea, reduzidos ao cerne mais primitivo.
E era o melhor que alguma vez sentira.
Capítulo 57
Thomas DelVecchio sabia exatamente para onde o assassino iria a seguir.
Não tinha qualquer dúvida. Com o detetive de la Cruz na sede, a trabalhar com os rapazes em teorias e indícios, todas bastante úteis, Veck sabia para onde ir.
Ao aproximar-se do parque de estacionamento do Monroe Motel & Suítes com as luzes desligadas e a moto desengatada, pensou que talvez fosse boa ideia ligar a de la
Cruz e dizer-lhe onde se encontrava.
Mas acabou por deixar o telefone no bolso.
Parando a BMW nas árvores, à direita do parque de estacionamento, empurrou o descanso e pendurou o capacete no guiador. Tinha a arma no coldre por baixo da axila
e disse para consigo que aí ficaria se alguém aparecesse.
Em grande medida acreditava nessa mentira.
Claro que a horrível verdade era que se sentia animado por algo adormecido desde há muito, muito tempo. De la Cruz tinha razão em receá-lo como parceiro e estava
correto em questionar onde acabavam os pecados do pai e começavam os do filho.
Pois Veck era um pecador. E entrara para a polícia para tentar expulsar isso de si.
Mas talvez fosse melhor exorcizar essa treta pois, às vezes, sentia como se tivesse um demónio dentro de si, a sério.
Mesmo assim, não estava ali para matar ninguém. Estava ali para deter um assassino antes que o desgraçado voltasse ao trabalho.
A sério.
Ao aproximar-se do motel, Veck manteve-se entre as sombras das árvores e concentrou-se no quarto onde a última rapariga tinha sido encontrada. Estava tudo tal como
a polícia de Caldwell deixara. Ainda havia fita de limitação num triângulo à volta da porta e da porção de passeio à frente. A ombreira também apresentava um selo,
o qual teoricamente só poderia ser quebrado em situações oficiais. Não havia luz no interior do quarto, nem cá fora, no corredor. Não se via ninguém.
Atrás de um tronco grosso, serviu-se das mãos enluvadas para puxar o gorro de lã para mais perto da camisola de gola alta preta.
Era tão bom a ficar imóvel que praticamente desapareceu. Era também muito bom a canalizar a energia para uma calma ubíqua que conservava os recursos, ao mesmo tempo
que o deixava em alerta.
A presa ia aparecer. Aquele louco assassino perdera todos os troféus. A coleção estava nas mãos das autoridades e os agentes forenses esforçavam-se por o ligar a
vários homicídios por resolver um pouco por todo o país. Mas o desgraçado não voltaria ali para tentar recuperar tudo, ou pelo menos parte do que deixara. O re-gresso
teria como objetivo lamentar a perda do que se esforçara tanto por conseguir.
Seria imprudente da parte dele? É claro, mas isso fazia parte do ciclo de excessos. O assassino não estaria a raciocinar devidamente, e as perdas tê-lo-iam deixado
desesperado. E Veck ia esperar durante as próximas noites, até que o indivíduo surgisse.
O tempo passou e ele esperou, esperou e esperou... era tão paciente como qualquer caçador. Embora tivesse pensado que aquilo poderia revelar-se desastroso, estando
ali sozinho. Com uma faca presa na cintura. E aquela maldita arma...
Um ramo a partir-se atraiu-lhe os olhos para a direita, mas não a cabeça. Não se mexeu nem alterou a respiração, nem sequer estremeceu.
E lá estava. Um homem surpreendentemente magro a atravessar, com cuidado, os arbustos folhosos da mata. Enquanto se aproximava do lado do motel, a expressão no rosto
do homem era quase religiosa. Mas não foi apenas isso que o identificou como sendo o assassino. Tinha as roupas cobertas de sangue seco, e os sapatos também. Estava
a coxear, como se tivesse sofrido uma lesão na perna, e o rosto apresentava riscos de unhas.
Apanhei-te, pensou Veck.
E agora que fitava o assassino... a mão baixou-lhe até às ancas e contornaram-nas até às costas. Até à faca.
Não mudou de rumo, mesmo enquanto dizia para consigo para deixar a arma onde estava e pegar nas algemas. Sempre tivera duas pessoas dentro dele, duas metades na
mesma pele e, em momentos como aquele, sentia-se como se estivesse a observar-se a agir, quase como se fosse o passageiro de um táxi, sendo que o destino, qualquer
que fosse, não resultaria dos seus atos.
Começou a aproximar-se do homem, acompanhando-o em silêncio, qual sombra, encurtando a distância até ficar a mero metro e meio do sacana. A faca chegara à mão de
Veck e não queria que ela lá estivesse, mas era demasiado tarde para a voltar a guardar. Demasiado tarde para recuar. Demasiado tarde para dar ouvidos à voz que
lhe dizia que aquilo era um crime que o deixaria na prisão. O outro lado assumira o controlo e ele estava perdido nele, à beira de matar...
O terceiro homem surgiu vindo de nenhures.
Um homem imenso vestido de cabedal saltou para o caminho do assassino, bloqueando-lhe o avanço. E, quando David Kroner recuou, alarmado, um silvo percorreu o ar.
Cruzes, aquilo não parecera humano. E... aquilo eram... presas?
Mas que raios...
O ataque foi tão brutal que, com o primeiro golpe contra o pescoço do assassino em série, a cabeça quase lhe saltou. E não parou por aí, com sangue a saltar para
tão longe que salpicou as calças, a camisola de gola alta e o gorro pretos de Veck.
Mas não estava a ser usada faca, nem adaga.
Dentes. O cabrão estava a desfazê-lo com os dentes.
Veck tentou recuar, mas bateu numa árvore e o impacto atirou-o ao chão muuuuuito mais perto do que deveria. E devia ter corrido para a moto, ou simplesmente fugido,
mas sentia-se arrebatado pela violência... e pela convicção de que o que estava a ver não era, de todo, humano.
Quando acabou, o monstro deixou cair os restos massacrados do assassino... e depois olhou para Veck.
- Grande... porra... - murmurou Veck.
O rosto tinha uma estrutura óssea bastante humana, mas as presas não batiam certo, nem tampouco a dimensão e o olhar vingativo. Cristo, tinha sangue a escorrer-lhe
da boca.
- Olha-me nos olhos - disse uma voz de sotaque carregado.
Um gorgolejo fez-se ouvir do que restava do assassino. Mas Veck não olhou. Estava fito num par de olhos espantosos... tão azuis... a brilhar....
- Merda... - deixou escapar, com uma dor de cabeça lancinante a eliminar tudo o que via ou ouvia. Tombando de lado, a dor obrigou-o a assumir uma posição fetal e
assim ficou.
Plim.
Por que estava no chão?
Plim.
Sentia o cheiro de sangue. Mas porquê?
Plim. Plim.
Levantou a cabeça com um gemido e...
- Porra!
Pôs-se de pé em choque e fitou a confusão ensanguentada à sua frente.
- Ah... porra - praguejou. Tinha-o feito. Finalmente matara alguém...
Mas depois olhou para a faca que tinha na mão. Nada de sangue. Nem na lâmina. Nem nas mãos. Só salpicos na roupa.
Olhou à sua volta, sem o mais leve indício do que poderia ter acontecido. Lembrava-se de ter ali chegado... de ter estacionado a moto... e de seguir o homem que
jazia agora moribundo.
Se fosse brutalmente sincero para consigo, ele tivera a intenção de matar. Sempre. Mas tendo e conta os indícios físicos? Não fora ele.
O problema era que tudo o resto era um buraco negro.
Um gemido do assassino em sério fê-lo virar a cabeça para a direita. O homem tentava alcançá-lo. Suplicava-lhe ajuda em silêncio enquanto se esvaía. Como poderia
ainda estar vivo?
Com as mãos a tremer, Veck pegou no telemóvel e ligou para o 112.
- Sim, detetive DelVecchio, Homicídios. Preciso de uma ambulância junto ao Monroe Motel & Suítes já.
Depois de o pedido ter sido registado e de os médicos estarem a caminho, tirou o blusão, enrolou-o e ajoelhou-se ao lado do homem. Pressionando o blusão contra os
ferimentos no pescoço dele, rezou para que o cabrão sobrevivesse. E depois teve de se interrogar se isso seria bom.
- Não te matei - disse. - Pois não?
Cristo... o que acontecera ali?
Capítulo 58
-Ele veio ver-te.
A partir do ponto de vista de Blaylock, na cama, Saxton, filho de Tyme, mostrava-lhe o seu melhor lado. E não, não era o traseiro. O macho estava a barbear-se ao
espelho e tinha o perfil perfeito banhado pela luz suave.
Cristo, ele era um belo macho.
A muitos níveis, aquele amante a quem se ligara era tudo o que podia desejar.
- Quem? - perguntou Blay, baixinho.
Os olhos que procuraram os dele escorriam incredulidade.
- Ah. - Para se esquivar a mais conversa, Blay olhou para o edredão que tinha puxado até ao peito despido. Estava nu por baixo do lençol de cetim. Tal como Saxton
estivera, antes de ter vestido o roupão.
- Ele queria saber se estavas bem - prosseguiu Sax.
Uma vez que ah já tinha sido usado como resposta, Blay apimentou-a com:
- A sério?
- Foi no terraço. Não quis entrar, para não nos incomodar.
Engraçado, quando estivera prestes a desmaiar, depois de lhe terem suturado a barriga, interrogara-se vagamente o que poderia Saxton estar a fazer lá fora. Mas na
altura sentia tantas dores que não fora capaz de pensar em praticamente nada.
Agora, no entanto, sentia um entusiasmo terrível a percorrê-lo.
Louvada fosse a Virgem Escrivã, há muito tempo que não sentia aquele formigueiro familiar, embora o tempo que passara não tivesse diminuído a sensação. E o impulso
que se seguiu, de perguntar o que fora dito, não era algo que pudesse fazer. Para começar, seria uma falta de respeito para com Saxton. Além disso, era inútil.
Ainda bem que dispunha de bastantes munições com que se calar. Bastava-lhe pensar em Qhuinn a chegar a casa há cerca de uma semana, de cabelo revolto, o cheiro abafado
pelo perfume de outro homem, a pose afetada pela satisfação que tivera.
Pensar que Blay se atirara ao macho não uma, mas duas vezes e fora rejeitado? Nem conseguia pensar nisso.
- Não queres saber o que ele disse? - murmurou Saxton ao passar com a lâmina afiada pelo pescoço, evitando habilmente a marca da dentada que Blay lhe dera há meia
hora.
Blay fechou os olhos e interrogou-se se alguma vez seria capaz de fugir à realidade de que Qhuinn foderia tudo o que se mexia menos ele.
- Não? - indagou Saxton.
Quando a cama estremeceu, Blay abriu os olhos. Saxton sentara-se à beira do colchão, estando o macho a limpar o queixo e as faces com uma toalha vermelho-sangue.
- Não? - repetiu.
- Posso fazer-te uma pergunta? - disse Blay. - E neste momento não seria boa ideia usares a tua personalidade encantadora e sarcástica.
O rosto maravilhoso de Saxton assumiu de imediato uma expressão grave.
- Força.
Blay alisou o edredão sobre o peito. Várias vezes.
- Eu... agrado-te?
Pelo canto do olho viu Saxton estremecer e quase morreu com o embaraço.
- Na cama, queres tu dizer? - quis Sax saber.
Blay franziu os lábios ao aquiescer, e pensou em avançar alguma explicação, mas a boca revelou-se-lhe demasiado seca.
- Mas por que haverias tu de perguntar isso? - comentou Saxton.
Bem, porque teria de haver qualquer coisa de errado consigo.
Blay abanou a cabeça.
- Não sei.
Saxton dobrou a toalha e pousou-a a seu lado. Depois estendeu o braço sobre as ancas de Blay e aproximou-se até ficarem cara a cara.
- Sim. - E levou a boca ao pescoço do companheiro, sugando. - Sempre.
Blay passou com a mão pela nuca do macho, encontrando o macio cabelo encaracolado na base do pescoço.
- Graças a Deus.
A familiaridade do corpo sobre o seu não era novidade, e parecia-lhe correto. Era bom. Conhecia cada curva e recanto do peito, das ancas e das coxas de Saxton. Conhecia
os pontos de pressão e sabia onde morder, sabia exatamente onde agarrar, como rebolar e revirar-se para que Saxton se viesse com força.
Por isso, sim, talvez não precisasse de perguntar.
Mas Qhuinn... tudo sobre esse macho o deixava em carne viva. E, mesmo depois de ter aprendido a ligar-se no exterior, a ferida continuava tão má e profunda como
no momento em que fora feita, altura em que se tornou óbvio que o único macho que queria acima de qualquer outro nunca estaria com ele.
Saxton recostou-se.
- O Qhuinn não é capaz de lidar com aquilo que sente por ti.
Blay soltou uma gargalhada rouca.
- Não falemos sobre ele.
- Porquê? - Saxton estendeu a mão e passou com o polegar pelo lábio inferior de Blay. - Está sempre aqui connosco, quer queiramos quer não.
Blay pensou em mentir, mas desistiu.
- Desculpa.
- Não faz mal... sei onde me meti. - A mão livre de Saxton meteu-se por baixo do edredão. - E sei o que quero.
Blay gemeu quando aquela mão esfregou o que se tornou de imediato uma ereção imensa. E, quando as ancas se levantaram e ele abriu as pernas para Saxton, susteve
os olhos do amante e sugou-lhe o polegar.
Era muito melhor do que entrar na montanha-russa Qhuinn. Sabia-o e gostava disso. Ali estava seguro. Ali não sairia magoado.
E ali encontrara uma ligação sexual profunda.
O olhar de Saxton era a um tempo quente e sério quando largou o que encontrara, destapou o corpo de Blay e desapertou o laço do seu roupão.
Aquilo era muito bom, pensou Blay. Aquilo era correto...
Quando a boca do amante lhe encontrou a clavícula, Blay fechou os olhos. Mas quando se começou a perder nas sensações, o que viu não foi Saxton.
- Espera, para... - Sentou-se e arrastou o outro macho com ele.
- Não faz mal - disse Saxton baixinho. - Sei o que se passa entre nós.
O coração de Blay cedeu um pouco. Mas Saxton limitou-se a abanar a cabeça e devolveu os lábios ao peito de Blay.
Nunca tinham falado acerca de amor e isso deixou bem claro que nunca o fariam, pois Saxton tinha toda a razão. Blay continuava apaixonado por Qhuinn. E provavelmente
sempre assim seria.
- Porquê? - perguntou ao amante.
- Porque te quero enquanto te tiver.
- Não vou a lado nenhum.
Saxton limitou-se a abanar a cabeça contra os abdominais retesados que mordiscava.
- Deixa de pensar, Blaylock. Começa a sentir.
Quando aquela boca talentosa chegou ao fundo, Blay inspirou com um sibilo e decidiu seguir o conselho. Pois essa era a única maneira de sobreviver.
Tinha a impressão de que seria uma questão de tempo até que Qhuinn anunciasse que ele e Layla iriam acasalar.
Não sabia porquê, apenas sabia. Havia semanas que os dois se encontravam e a Escolhida voltara a estar lá na véspera. Sentira-lhe o cheiro e o sangue no quarto ao
lado.
E embora tal convicção pudesse ser apenas um exercício mental para se deprimir, sentia que era muito mais do que isso. Era como se a neblina que, regra geral, obscurecia
os dias, meses e anos vindouros se tivesse tornado insuportavelmente ténue e as sombras do destino estivessem a revelar-se-lhe.
Uma questão de tempo.
Cristo, isso seria como quem o mataria.
- Ainda bem que aqui estás - gemeu.
- Eu também - retribuiu-lhe o amante em torno da ereção dele. - Eu também.
Capítulo 59
Na noite seguinte, Payne dava voltas na frente da mansão da Irmandade, indo da sala de jantar até ao átrio e à sala de bilhar e de volta. Uma e outra vez.
O macho dela saíra da casa a meio da tarde para «tratar de umas coisas». E, embora se tivesse recusado a dizer-lhe o quê, ela apreciara o sorriso malandro que ele
lhe oferecera ao aconchegá-la na cama que tinham usado na totalidade durante a noite, saindo logo depois.
Depois disso, Payne não dormira. De todo.
Havia muito que a deixava feliz.
E surpreendida.
Fazendo uma pausa à frente das portas de correr que davam acesso ao pátio, pensou na fotografia que ele lhe mostrara. Era por demais óbvio que tinha uma relação
de sangue com Butch e, logo, com o rei. Mas nem Manuel nem ela estavam interessados em arriscar uma regressão. Não, nesse ponto, ela concordava plenamente com ele.
Tinham-se um ao outro e, tendo em conta o que já tinham ultrapassado, não havia motivo para arriscar um mau resultado.
Além disso, a informação não alteraria nada. O rei abrira as portas de sua casa ao macho dela, mesmo sem uma declaração formal de relação sanguínea, e Manuel poderia
manter o contacto com a mãe humana. Mais ainda, ficara decidido que ele trabalharia ali, com a Doc Jane, mas também com Havers. Afinal de contas, a raça precisava
de mais bons médicos, e Manuel era superlativo.
E quanto a ela? Sairia para lutar. Nem Manuel nem o irmão estavam propriamente entusiasmados com os riscos que ela iria correr, mas não a impediriam. Com efeito,
depois de ter falado longamente com Manuel, ele parecera aceitar que isso fazia parte dela. Só fizera questão que ela usasse as melhores armas possíveis e o irmão
insistira em certificar-se disso.
Pelas Parcas, aqueles dois pareciam estar a entender-se. Quem o poderia ter previsto?
Deslocando-se até à janela seguinte, perscrutou a escuridão, em busca de faróis.
Onde estaria ele? Onde estaria ele...
Manuel também iria falar com a Doc Jane sobre as mudanças físicas por que ele passara, mudanças essas que, tendo em conta a forma como Payne brilhava sempre que
faziam amor, seria provável que continuassem. Ela iria monitorizar o corpo e ver o que acontecia, e ambos rezavam para que ela apenas o estivesse a manter saudável
e eternamente jovem. Apenas o tempo o diria.
Praguejando, deu meia volta, cruzou o átrio... e entrou na sala de jantar.
Junto à terceira janela, olhou para os céus. Não pretendia visitar a mãe. Teria sido maravilhoso partilhar o seu amor com que a trouxera ao mundo. Mas o progenitor
estava morto, e a sua mahmen? Não confiava na Virgem Escrivã, receando que a voltasse a aprisionar. Manuel era um meio-sangue. Não era de todo um elemento de raça
pura que a mãe aprovasse...
O par de olhos brilhantes que subiam a elevação onde o complexo se erguia deixaram-lhe o coração a bater descompassado. E depois ouviu a música, um ritmo forte que
atravessava o vidro.
Payne saiu a correr da sala de jantar e percorreu rapidamente o mosaico. Momentos depois tinha saído pelo vestíbulo para as trevas...
Ao fundo dos degraus estacou.
Manuel não chegara sozinho. Atrás do Porsche estava um qualquer tipo de veículo imenso... um grande veículo em duas partes.
O macho deixou o volante do seu carro.
- Olá - cumprimentou ele.
Ostentava um sorriso rasgado quando chegou junto a ela, lhe levou as mãos às ancas e a aproximou do peito.
- Tive saudades tuas - murmurou-lhe contra os lábios.
- Eu também. - Ela sorria igualmente. - Mas... o que é que trouxeste?
O mordomo idoso saiu do outro veículo.
- Meu senhor, devo...
- Obrigado, Fritz, mas eu agora trato do resto.
O mordomo fez uma vénia baixa.
- Foi um prazer ter sido útil.
- És do melhor, meu.
O doggen estava radiante quando regressou alegremente à casa. E depois, o macho dela dirigiu-se-lhe.
- Fica aqui.
Franziu o cenho ao ouvir pancadas secas no interior da caixa grande.
- É claro.
Depois de voltar a beijá-la, Manuel desapareceu atrás do veículo.
Abriram-se portas. Mais pancadas. Gemidos e o som de algo a correr, seguido por um bater ritmado. E depois...
O relinchar disse-lhe o que ela não se atrevera a esperar. E depois a bela poldra de Manuel recuou por uma rampa e foi-lhe trazida.
Payne levou as mãos à boca enquanto nos olhos se formavam lágrimas. A égua avançava cheia de graciosidade, com a pelagem a brilhar com a luz emanada da casa, mais
uma vez com toda a sua força e vitalidade.
- Mas... porque é que ela está aqui? - indagou Payne num tom rouco.
- Os humanos oferecem algo às noivas como prova do seu amor. - Manuel ostentou um sorriso rasgado. - Pensei que a Glory fosse melhor do que qualquer diamante que
eu te pudesse comprar. É mais importante para mim... e espero que para ti também.
Não tendo resposta, estendeu-lhe a tira de cabedal que estava presa à brida do cavalo.
- Estou a dar-ta.
Como se fosse a sua deixa, Glory soltou um relincho e empinou-se, como se concordasse com a troca de posse.
Payne limpou os olhos e atirou-se a Manuel, beijando-o profundamente.
- Não tenho palavras.
E depois aceitou as rédeas, enquanto Manuel se ufanava.
Respirando fundo, ela...
Antes de ter consciência do movimento, Payne saltou no ar, montando Glory como se o par estivesse junto há anos e não há minutos.
E o cavalo não precisou de incentivo, de autorização, de nada... Glory saltou em frente, firmando os cascos nos seixos e partindo a galope.
Payne entrelaçou os dedos na crina preta comprida e equilibrou-se perfeitamente sobre as costas possantes onde se sentava. Quando o vento lhe bateu no rosto, riu-se
com pura exultação ao partirem alegres e livres. Sim... sim! Mil vezes sim!
Partir na noite.
Ter a liberdade de se mover.
Ter amor à sua espera.
Era mais do que estar viva. Aquilo era viver.
De pé, junto ao reboque, Manny observou as suas meninas a partirem juntas, perdido de felicidade. Faziam um par perfeito, ambas unas e fortes, e rasgando a noite
a um galope que a maior parte dos carros teria dificuldade em acompanhar.
Certo. Talvez tivesse derramado uma lágrima ou duas. Mas que raios. Aquela noite era incrível para...
- Eu vi a cena.
- Cristo... - Agarrou na cruz e deu meia volta. - Andas sempre a tentar matar as pessoas do coração?
O irmão de Payne não respondeu, ou talvez não o conseguisse fazer. O vampiro tinha os olhos fitos na irmã e no cavalo a galope, e parecia tão comovido como Manny.
- Mas pensei que fosse um garanhão. - Vishous abanou a cabeça. - Mas sim, foi isto que eu vi... ela montada num puro-sangue preto, o cabelo a voar com a brisa. Mas
não pensava que fosse o futuro...
Manny virou-se outra vez para as suas meninas, que se encontravam ao fundo do muro e começavam a descrever uma curva larga para regressarem à casa.
- Amo-a tanto - ouviu-se Manny a dizer. - É o meu coração que ali vai. Aquela é a minha mulher.
- Verdade.
Com a ligação profunda estabelecida entre os dois, Manny sentia-se em muitos aspetos como se estivesse em casa, e não queria pensar muito, receando que tais bênçãos
se desvanecessem.
Momentos depois, olhou para o lado.
- Importas-te que te faça uma pergunta.
- Força.
- O que é que me fizeste à merda do carro?
- O quê, estás a falar da música?
- Para onde é que foi a minha...
- Merda? - Olhos da cor de diamante cruzaram-se com os dele. - Se vais morar aqui, vais começar a ouvir aquilo que eu ouço, certo?
Manny abanou a cabeça.
- Deves estar a brincar comigo.
- Estás a dizer que não gostaste da batida?
- Pois. - Depois de tossicar, Manny cedeu. - Está bem, não eram péssimas de todo.
A gargalhada foi um bocadinho triunfante de mais.
- E sabia.
- Então e o que era?
- E agora, o gajo quer nomes. - O vampiro pegou num cigarro e acendeu-o. - Deixa ver... «Cinderella Man», do Eminem. «I Am Not a Human», do Lil Wayne. O Tupac...
A lista prosseguiu, e Manny foi ouvindo enquanto observava a sua mulher a cavalgar e afagava o peso do cruxifixo de ouro.
Ele e Payne estavam juntos... ia com Butch à igreja, à meia-noite... e Vishous não o esfaqueara. E, se bem se lembrava, o gémeo de Payne conduzia aquele Escalade
preto ali, e isso significava que a vingança seria uma carrada de Black Veil Bride, Bullet for My Valentine e Avenged Sevenfold a ser transferida para o sistema
de som do SUV.
Só pensar nisso já o deixava a sorrir.
Bem feitas as contas?
Sentia-se como se tivesse ganhado a lotaria. Em cada um dos cinquenta estados. Ao mesmo tempo.
Era essa a sorte de todos eles.

 

Glossário
ahmo (n.) - Termo respeitoso usado por alguém sexualmente submisso para se referir ao seu dominador.
ahstrux nohtrum (n.) - Guarda privado com licença para matar nomeado para o cargo pelo Rei.
caminhante (n.) - Indivíduo que morreu e regressou ao mundo dos vivos vindo do Vápido. São fortemente respeitados e reverenciados pelos seus feitos.
chrih (n.) - Símbolo de morte honrada na Língua Antiga.
comhpetição (n.) - Conflito entre dois machos que lutam pelo direito de ser o macho de uma determinada fêmea.
Dhunhd (n. próp.) - Inferno.
Dhuplo exhilado (n. próp.) - Gémeo maligno ou amaldicionado, aquele que nasceu em segundo lugar.
doggen (n.) - Membro da classe servil no mundo dos vampiros. Os doggens têm tradições antigas e conservadoras em relação ao serviço dos superiores, cumprindo regras
formais de roupagem e comportamento. São capazes de sair durante o dia, mas envelhecem relativamente depressa. A sua esperança de vida é de cerca de quinhentos anos.
ehros (n.) - Uma Escolhida, treinada nas artes sexuais.
Escolhidas (n.) - Vampiras que foram criadas para servir a Virgem Escrivã. São consideradas membros da aristocracia, embora tenham uma inclinação mais espiritual
do que temporal. Têm pouca ou nenhuma relação com os machos, mas podem acasalar com guerreiros, sob indicação da Virgem Escrivã, para propagarem a sua classe. Têm
a capacidade de fazer prognósticos. No passado eram usadas para servir as necessidades de sangue de membros da Irmandade sem parceira, mas a prática foi abandonada
pelos Irmãos.
Escravo de sangue (n.) - Vampiro macho ou fêmea subjugado para servir as necessidades de sangue de outro vampiro. A prática da manutenção de escravos de sangue foi
recentemente proibida.
ghuardião (n.) - Guarda de um indivíduo. Existem vários graus de guardiões, sendo o mais poderoso o de uma fêmea em isolamento.
glymera (n.) - O núcleo social da aristocracia, aproximadamente equivalente ao existente em Inglaterra no período da Regência (1811-1820).
hellren (n.) - Vampiro macho que foi acasalado com uma fêmea. Os machos podem tomar mais do que uma fêmea como parceira.
instruthor (n. próp.) - Palavra usada entre machos, a qual denota respeito e afeto mútuos. Traduzido livremente como «querido amigo».
Irmandade da Adaga Negra (n. próp.) - Guerreiros vampiros altamente treinados, que protegem a sua espécie contra a Sociedade dos Minguantes. Em resultado das práticas
de reprodução seletivas do próprio grupo, os Irmãos possuem uma enorme força física e mental, bem como capacidades inatas de cura rápida. Não são parentes entre
si, na sua maioria, e são admitidos na Irmandade por nomeação dos Irmãos. Agressivos, confiantes e reservados por natureza, existem à parte dos civis, tendo pouco
contacto com os membros de outras classes, exceto quando têm de se alimentar. São personagens de lenda e alvo de vénia dentro do mundo dos vampiros. Só podem ser
mortos por um ferimento muito grave, ou seja, um tiro ou uma facada no coração, ou algo semelhante.
isohlamento (n.) - Estatuto conferido pelo Rei a uma fêmea da aristocracia como resultado de uma petição por parte da sua família. A fêmea fica sob a direção de
um ghuardião, normalmente o macho mais velho da casa. Este fica com o direito legal de determinar todos os aspetos da vida da fêmea, restringindo, consoante a sua
vontade, todas as interações que ela tenha com o mundo.
leelan (n.) - Um termo de afeto, que pode ser livremente traduzido por «amada».
lewlhen (n.) - Dádiva.
Lhenihan (n. próp.) - Besta mítica afamada pelas proezas sexuais.
Em calão moderno refere-se a um macho de dimensão e resistência
sexuais preternaturais.
lidher (n.) - Uma pessoa com poder e influência.
Lys (n.) - Instrumento de tortura usado para remover os olhos.
mahmen (n.) - Mãe. Usado como designação ou como termo afetuoso.
mhis (n.) - O mascarar de um determinado ambiente físico; a criação de um campo de ilusão.
minguante (n.) - Humano desprovido de alma que caça vampiros para os exterminar como membro da Sociedade dos Minguantes. Para serem mortos os minguantes têm de ser
trespassados pelo coração; de resto, não têm idade. Não bebem nem comem e são impotentes. Com o tempo, o cabelo, a pele e as íris perdem a pigmentação, até que ficam
loiros, pálidos e de olhos incolores. Cheiram a pó de talco. Convocados para a sociedade por Ómega, guardam consigo um vaso de cerâmica onde o seu coração foi depositado
quando removido.
nalla (f.) ou nallum (m.) - Termo carinhoso que significa «amada/o».
newling (n.) - Uma virgem.
Ómega (n. próp.) - Figura malévola e mística que destinou os vampiros à extinção por causa do rancor contra a Virgem Escrivã.Existe num domínio não-temporal e tem
vastos poderes, exceto o poder da criação.
Período de necessidade (n.) - Tempo de fertilidade de uma vampira. Normalmente tem a duração de dois dias e é acompanhado de um intenso apetite sexual. Ocorre, mais
ou menos, cinco anos após a transição da fêmea, e uma só vez, uma década mais tarde. Todos os machos respondem, nalgum grau, se estiverem próximos de uma fêmea em
necessidade. Poderá ser um tempo de perigo, com conflitos e lutas entre os machos competidores, especialmente se a fêmea não tiver parceiro.
Primeira Família (n. próp.) - O Rei e a rainha dos vampiros e respetivos filhos.
princeps (n.) - Nível mais alto da aristocracia dos vampiros, apenas superado pelos membros da Primeira Família ou as Escolhidas da Virgem Escrivã. Têm de herdar
o título, o qual não pode ser conferido a ninguém.
prohtector (n.) - O equivalente a um padrinho ou madrinha de um indivíduo.
pyrocant (n.) - Refere-se a uma fraqueza crítica num indivíduo. A fraqueza pode ser interna, como um vício, ou externa, como um amante.
rahlman (n.) - Salvador.
ryto (n.) - Modo ritual de repor a honra, concedido por aquele que ofendeu. Caso aceite, o ofendido escolhe a arma e atinge o ofensor, que se lhe entrega sem defesa.
sehnhor (n.) - Termo indicador de respeito usado por alguém sexualmente dominado quando se refere do dominante.
shellan (n.) - Vampira que foi acasalada com um macho. Geralmente, as fêmeas não tomam mais do que um parceiro, devido à natureza altamente territorial dos machos
acasalados.
Sociedade dos Minguantes (n. próp.) - Ordem de matadores, convocada por Ómega com o propósito de erradicar a espécie dos vampiros.
sympath (n.) - Espécie dentro da raça dos vampiros com a capacidade e o desejo de manipular as emoções de outras pessoas (para obter uma troca de energia), entre
outras características. Historicamente têm sido discriminados e, durante certas eras, foram caçados por vampiros. Estão quase extintos.
transição (n.) - Momento crítico da vida de um vampiro, em que ele ou ela se transformam em adulto. A partir desse momento, terão de beber o sangue de alguém do
sexo oposto para sobreviverem e são incapazes de suportar a luz do Sol. Ocorre, em geral, entre os vinte e os trinta anos. Alguns vampiros não sobrevivem às suas
transições, em particular os machos. Antes das transições, os vampiros são fisicamente fracos, sexualmente inativos e incapazes de se desmaterializarem.
tremehndo (adj.) - Termo que se refere à potência do órgão sexual de um macho. A tradução literal é algo semelhante a «digno de entrar numa fêmea».
Tumba (n. próp.) - Jazigo sagrado da Irmandade da Adaga Negra. Usado como lugar de culto, bem como de armazém dos vasos dos minguantes. As cerimónias cumpridas naquele
lugar incluem induções, funerais e ações disciplinares aplicadas a Irmãos. Ninguém pode ali entrar, exceto os membros da Irmandade, a Virgem Escrivã ou os candidatos
à indução.
Vampiro (n.) - Membro de uma espécie separada da do Homo sapiens. Os vampiros têm de beber o sangue de alguém do sexo oposto para sobreviverem. O sangue humano mantê-los-á
vivos, embora a força não dure muito tempo. Após às suas transições, que ocorrem entre os vinte e os trinta anos de idade, são incapazes de sair para a luz do Sol
e têm de se alimentar com regularidade mordendo veias. Os vampiros não podem converter humanos através de uma dentada, ou da transferência de sangue, embora sejam
capazes, em casos raros, de acasalar com membros de outra espécie. Os vampiros podem desmaterializar-se conforme queiram, embora precisem de se acalmar e se concentrar
para o conseguir, não podendo carregar consigo nada que seja pesado. São capazes de roubar a memória a humanos, desde que essa memória seja de curta duração. Alguns
vampiros são capazes de ler a mente. A esperança de vida é superior a mil anos e, em alguns casos, ainda mais longa.
Vápido (n. próp.) - Domínio não-temporal onde os mortos se reúnem com os seus amados e passam a eternidade.
vinhgança (n.) - Ato de retribuição mortal, tipicamente levado a cabo por um macho para vingar a sua amada.
Virgem Escrivã (n. próp.) - Força mística que é conselheira do Rei, simultaneamente depositária dos arquivos e dispensadora de privilégios. Existe num domínio não-temporal
e tem vastos poderes. Teve a capacidade de um ato de criação singular, poder que usou para trazer os vampiros à existência.

Capítulo 40
Apenas breves momentos depois de Butch lhe ter ligado, Jane materializou-se na varanda da cobertura de V. Enquanto a sua forma ganhava volume, o ar gelado da noite
acariciou-lhe os cabelos e fez-lhe os olhos lacrimejarem.
Ou... talvez fossem mesmo lágrimas.
Olhando através do vidro, via tudo muito mais claramente: a mesa, os cílios, os chicotes, as... outras coisas.
Quando anteriormente ali tinha ido com Vishous, aqueles adereços das suas preferências extremas tinham parecido apenas um cenário provocador e ligeiramente assustador
para o incrível sexo que eles tinham. Mas a versão dela de «brincadeira sexual» era um caniche, quando comparada com os gostos de lobisomem dele.
E agora ela tinha perfeita noção.
O que é que Butch tinha usado? Em que estado estaria o seu companheiro? Haveria muito sangue ou...
Espera. Onde estava V?
Atravessando a porta envidraçada, ela...
Não havia sangue no chão. Nem a escorrer dos utensílios. Não havia correntes suspensas do teto. Tudo estava exatamente como da primeira vez que ali tinha estado,
como se nada tivesse acontecido...
De fora do círculo de velas ouviu-se um gemido e o som rasgou-lhe o pensamento. Claro. A cama.
Enquanto penetrava no véu de escuridão, os olhos ajustaram-se e ali estava ele. Debaixo de lençóis de seda, estendido de costas, a contorcer-se de dor... ou estaria
a dormir?
- Vishous? - chamou ela suavemente.
Com um grito, ele acordou instantaneamente, com o tronco a levantar-se como uma flecha, as pálpebras a abrirem-se muito. De imediato, ela verificou que o rosto tinha
cicatrizes já a desaparecerem... e havia mais à volta dos peitorais e também no abdómen. Mas a expressão dele foi o que a impressionou mais. Ele estava aterrorizado.
Abruptamente ouviu-se um resfolegar furioso, quando ele tirou os lençóis de cima do corpo. Ao olhar para si próprio, no peito e nos ombros começou a aparecer suor,
na sua pele instalou-se um brilho súbito, mesmo na escuridão, enquanto ele tapava o sexo com as mãos... como se estivesse a proteger o que restava.
Com a cabeça baixa, respirou profundamente. Inspirar. Expirar. Inspirar. Expirar...
O padrão transformou-se em soluços.
Enrolando-se, com as mãos a esconder o trabalho de carniceiro feito há muito, muito tempo, chorou com grandes soluços de emoção, sem reservas, sem controlo. A inteligência
já não dominava o seu reino, era súbdita deste.
Nem se apercebeu de que ela estava junto a ele.
Devia ir-se embora, pensou Jane. Ele não deveria querer que ela o visse naquele estado, nem mesmo antes de tudo se desmoronar entre eles. O macho que ela conhecia
e com quem tinha acasalado não deveria querer...
É difícil dizer o que é que chamou a atenção... e, mais tarde, ela tinha matutado na razão que o levara a escolher aquele momento exato em que ela se ia desmaterializar
para olhar para ela.
Ela ficou imediatamente incapacitada. Se ele tinha ficado irritado com o que acontecera com Payne, agora iria odiá-la. Não havia maneira de voltar atrás naquela
invasão de privacidade.
- O Butch telefonou-me - balbuciou ela. - Ele achou que tu...
- Ele magoou-me... O meu pai magoou-me.
As palavras eram tão fracas e gentis que quase não se ouviam. Mas quando conseguiu ouvir, o coração dela parou.
- Porquê? - perguntou Vishous. - Porque é que ele me fez isto? Porque é que a minha mãe me fez isto? Eu nunca pedi para nascer... e não os teria escolhido se qualquer
um deles me tivesse pedido a opinião... Porquê?
As suas faces estavam molhadas de lágrimas que lhe saltavam dos olhos de diamante, uma corrente interminável de que ele não tinha consciência, ou de que não queria
saber. E ela tinha a sensação de que a corrente demoraria a parar. Uma artéria interna tinha sido perfurada e este era o sangue do seu coração, correndo para fora
dele, cobrindo-o.
- Lamento muito - gorgolejou ela. - Não sei nenhum dos porquês... mas sei que não o merecias. E... que não tens culpa.
As mãos descobriram o sexo e ele fitou-o.
Passou muito tempo até ele falar outra vez e, quando o fez, as palavras eram lentas e ponderadas... e imparáveis, como as lágrimas silenciosas.
- Quem me dera estar completo. Quem me dera ter podido dar-te crianças se as quisesses e as pudesses gerar. Quem me dera ter-te dito que me matava pensares que eu
tinha estado com mais alguém. Quem me dera ter passado o ano anterior a acordar todas as noites e dizer-te que te amo. Quem me dera ter acasalado contigo como deve
ser na noite em que voltaste para mim vinda dos mortos. Quem me dera... - O olhar cintilante dele procurou o dela. - Quem me dera ter metade da força que tu tens
e quem me dera merecer-te. E... acho que é isto.
Pois. Certo. Agora estavam os dois desfeitos.
- Lamento o que aconteceu com Payne - disse ela, num tom rouco. - Eu queria falar contigo, mas ela estava decidida. Tentei argumentar, tentei mesmo, mas, no fim,
simplesmente... não queria... não queria que fosses tu a fazê-lo. Preferia ter vivido com a terrível verdade na consciência durante uma eternidade, a fazer com que
tivesses de matar a tua irmã. Ou levá-la a magoar-se ainda mais do que já estava.
- Eu sei... agora sei.
- E, honestamente, o facto de ela se ter curado? Dá-me arrepios só de pensar que quase falhámos.
- Está tudo bem, agora. Ela está bem.
Jane limpou os olhos.
- E acho que no que toca a... - Lançou uma olhadela para a parede, decorada com uma luz amarelada que não suavizava de maneira nenhuma os bicos afiados e as implicações
ainda mais cortantes do que poderia lá estar pendurado. - No que toca a... estas coisas... sobre os teus hábitos sexuais, eu sempre me preocupei com o facto de não
ser suficiente para ti.
- Porra... não... tu és tudo para mim.
Jane colocou a mão sobre a boca para não perder completamente o controlo. Porque era precisamente o que ela precisava de ouvir.
- Nem sequer tatuei o teu nome nas minhas costas - disse V. - Achei que era uma estupidez e uma perda de tempo... mas como é que podes sentir que somos companheiros
sem isso... especialmente quando todos os machos do complexo foram marcados para a sua shellan?
Meu deus, ela nunca tinha pensado nisso.
V abanou a cabeça.
- Deste-me espaço... para poder estar com o Butch e lutar com os meus irmãos e fazer as minhas cenas na Internet. O que é que eu te dei?
- Para começar, a minha clínica. Não a poderia ter construído sem ti.
- Não é exatamente um ramo de rosas.
- Não subestimes as tuas capacidades de carpinteiro.
Ele esboçou um sorriso ao ouvir isto. E depois ficou outra vez sério.
- Posso dizer-te uma coisa que pensei todas as vezes que acordei ao teu lado?
- Por favor, diz.
Vishous, aquele que tinha sempre uma resposta para tudo, parecia ter a língua presa. Mas finalmente disse:
- És a razão que me faz sair da cama todas as noites. E és a razão que me faz querer voltar para casa todas as madrugadas. Não é a guerra. Não são os Irmãos. Nem
sequer é o Butch. És... tu.
Oh, palavras tão simples... mas o seu significado. Deus do céu, o significado.
- Deixas que eu te abrace agora? - pediu ela curtamente.
O companheiro estendeu os braços enormes.
- E se for eu a abraçar-te?
Enquanto saltava para a frente e mergulhava nele, contrapôs:
- Não tens de ser tu ou eu.
Ficou completamente sólida sem qualquer esforço, a química interna mágica entre eles a materializá-la e mantê-la ali. E quando Vishous enterrou a cabeça nos seus
cabelos e estremeceu como se tivesse corrido uma grande distância e finalmente tivesse chegado a casa... ela soube exatamente como ele se sentia.
Com a shellan a arder contra ele, V sentia-se como se tivesse sido completamente desfeito... e depois remontado.
Cristo, o que Butch tinha feito por ele. Por todos eles.
O caminho que o chui escolhera tinha sido o correto. Horrífico e terrível... mas absolutamente certo. E agora, enquanto abraçava a sua fêmea, os olhos percorriam
o espaço onde tudo acontecera. Tinha sido tudo limpo... exceto uma ou outra coisa que estava fora do sítio no chão. Uma colher e um copo praticamente vazio de um
líquido que só podia ser água.
Tinha sido tudo uma ilusão. Nada o tinha de facto rasgado. E ele era capaz de apostar que Butch tinha deixado aquelas duas coisas centradas e à vista para quando
V acordasse e olhasse em volta perceber quais tinham sido os meios que tinham conduzido àquele fim.
Em retrospetiva, parecia tudo tão estúpido... não a sessão com o chui, mas o facto de V nunca ter realmente pensado no Derramador de Sangue todos esses anos no campo
de guerra. A última vez que essa memória do passado tinha surgido, fora quando Jane estivera com ele a primeira vez, e nessa altura só tinha acontecido porque ela
o tinha visto nu e ele tinha sentido necessidade de explicar.
O meu pai não queria que eu reproduzisse.
Era basicamente tudo o que ele tinha para dizer sobre o assunto. E depois, como um corpo morto que tivesse ficado com a cara para cima em águas paradas, essa merda
tinha-se afundado outra vez, instalando-se novamente na margem arenosa do rio no mais profundo do seu ser.
AJ, ou Antes de Jane, ele só tinha tido sexo com as calças vestidas. Não por vergonha - ou pelo menos isso era o que ele dizia a ele próprio - mas simplesmente porque
não estivera interessado em entrar nesses pormenores com os machos e fêmeas anónimos que tinha fodido.
DJ? Tinha sido diferente. A nudez era mais do que normal, provavelmente porque Jane tinha mantido a cabeça fria com a revelação. E contudo, quando pensava nisso
agora, tinha-a sempre abraçado a uma certa distância, mesmo que ela estivesse aninhada nos seus braços. Quanto muito, tinha estado mais próximo de Butch - mas isso
era macho-com-macho, o que era, de algum modo, menos ameaçador do que macho-com-fêmea.
A questão relacionava-se com as Sombras da Mamã, sem dúvida. Depois de tudo o que a mahmen tinha feito, ele simplesmente não conseguia confiar nas fêmeas como confiava
nos irmãos ou no melhor amigo.
Mas Jane nunca o tinha traído. Na verdade, ela estava disposta a lutar com a sua própria consciência para o salvar do ato indescritível que a irmã lhe exigia.
- Não és a minha mãe - disse para o cabelo da shellan.
- Podes ter a certeza que não. - Jane afastou-se e fitou-o como costumava fazer. - Eu nunca teria abandonado o meu filho. Ou tratado a minha filha daquela maneira.
V inspirou profundamente e, quando soltou o oxigénio para fora dos pulmões, sentiu-se como se estivesse a expelir os mitos pelos quais se autodefinira... e a Jane...
e ao relacionamento entre ambos.
Tinha de mudar de paradigma.
Por eles. Por si próprio. Por Butch.
Cristo, a expressão no rosto do chui quando as coisas tinham acontecido tinha sido para lá de trágica.
Por isso, sim, era altura de parar de utilizar merdas exteriores para automedicar as emoções. O sexo extremo e a dor tinham parecido soluções excelentes durante
muito tempo, mas, na verdade, não passavam de uma forma de cobrir as borbulhas. A fealdade tinha continuado dentro de si.
O que ele tinha de fazer era lidar com a merda interior, para não precisar que Butch ou qualquer outra pessoa o subjugasse só para ele poder libertar-se. Assim,
estas perversões poderiam ser mesmo só para ter prazer com Jane.
Controlar as suas merdas - parecia que ele estava finalmente preparado para tentar a versão psiquiátrica do Proactiv.
Se não tivesse cuidado, ainda acabava na televisão, fitando uma câmara e dizendo: «Tudo o que é preciso é um pouco de Autoconsciência... e depois purifico-me com
a Lavagem de Autodefinição patenteada e a minha mente e as minhas emoções ficam limpinhas e a brilhar...»
Ok, agora estava a ficar com parafusos a menos, a sério.
Acariciando o cabelo macio de Jane, murmurou:
- Sobre... as coisas que tenho aqui. Se quiseres brincar, eu também vou querer... se percebes o que quero dizer. Mas, a partir de agora, é só para nos divertirmos
e só para nós os dois.
Diabos, eles tinham tido uma grande quantidade de sexo bizarro e muito bom naquele sítio, cheio de cabedal, e ele continuava a querer ter isso com ela. Tinha esperança
que ela sentisse o mesmo...
- Eu gosto do que fazemos aqui. - Ela sorriu. - Excita-me.
Bem... e não é que isto fez o membro dele pulsar?
- Eu também.
Quando lhe sorriu de volta, reconheceu o único senão da ideia. Todo este virar-uma-nova-página estava muito bem, mas como é que ele ia fazer isso? Amanhã à noite
já não se podia dar ao luxo de acordar e ser aquele que passou das marcas.
Merda, ele achava que ia descobrir uma maneira. Não ia?
Com um toque gentil, acariciou a face da shellan.
- Nunca tive uma relação antes de estar contigo. Já devia imaginar que havíamos de bater contra uma parede em alguma altura.
- Faz parte da coisa.
Pensou nos irmãos e na quantidade de vezes em que tinha havido contratempos, lutas e discussões entre esse grupo de lutadores machões. De alguma forma, tinham sempre
dado a volta ao assunto, regra geral andando à pancada uns com os outros de vez em quando. O que era uma coisa de macho.
Claramente, ele e Jane seriam iguais. Não à pancada, claro, mas em relação aos obstáculos do caminho e à sua eventual resolução. Afinal de contas, a vida era aquilo...
não um conto de fadas.
- Mas sabes o que é melhor nisto tudo? - indagou Jane, enquanto lançava os braços à volta do seu pescoço.
- Já não sinto que morri por não estares na minha vida?
- Bem, isso também. - Esticou o pescoço e beijou-o. - Duas palavras: sexo de fazer as pazes.
Ohhhhhh, siiiiiiiim. Mas...
- Espera, isso são duas palavras? Alargaste a expressão?
- Alarguei na minha cabeça. Mas acho que tanto faz.
- Não será antes apenas «fazer as pazes»?
- Também é uma possibilidade. - Pausa. - Alguma vez te disse que és o geek mais sensual que já conheci?
- Revejo-me nesse comentário. - Mergulhou a cabeça e roçou a boca contra a dela. - Mas não digas a ninguém. Tenho uma reputação de durão para manter.
- O teu segredo está seguro comigo.
V ficou sério.
- Eu estou seguro contigo.
Jane afagou-lhe o rosto.
- Não posso prometer que não vás encontrar mais obstáculos no caminho, nem que vamos estar sempre de acordo. Mas tenho uma certeza... estarás sempre seguro comigo.
Sempre.
Vishous aproximou-a e encostou a cabeça no seu pescoço. Ele assumira que não havia mais nada para explorar depois de ela ter morrido e ter voltado para ele na sua
adorável forma fantasmagórica. Mas estava enganado. O amor, apercebeu-se, era como os punhais que criava na forja. Quando surgia um novo, era lustroso e a lâmina
cintilava à luz. Segurando-o na palma da mão, dava otimismo quanto ao desempenho em ação e mal podia esperar para o experimentar. Mas as primeiras duas noites eram
geralmente estranhas, enquanto se habituava a ele e ele a si.
Com o tempo, o aço perdia o brilho da novidade e o punho ficava manchado e às vezes talvez fosse necessário tirar-lhe merda de cima. Contudo, em troca, salva-te
a vida. Uma vez habituados um ao outro, torna-se parte de ti, como uma extensão do teu próprio braço. Protege-te e dá-te uma maneira de protegeres os irmãos. Dá-te
confiança e poder para enfrentares o que quer que surja na noite e, onde quer que vás, está contigo, junto ao teu coração, sempre ali quando precisas ele.
No entanto, tens de manter a lâmina afiada. E remendar o punho de vez em quando. E verificar o peso.
Engraçado... tudo isso era evidente quanto se tratava de armas. Porque é que não se tinha apercebido que era a mesma coisa com o acasalamento?
Revirando os olhos, pensou que talvez a Hallmark estivesse disposta a estabelecer uma linha de postais do Dia dos Namorados inspirada na medievalidade, uma coisa
do tipo Sacro-Gótico-Suave. Ele seria perfeitamente adequado para fornecer material.
Com os olhos fechados e abraçado a Jane, estava quase feliz por ter perdido a cabeça, só para poderem ter chegado àquele momento.
Bem, ele teria escolhido um caminho mais fácil, se houvesse. Mas não tinha a certeza de o resultado ter sido este. Era preciso merecer.
- Tenho uma pergunta para fazer - disse ele, gentilmente.
- O que quiseres.
Afastando-se um pouco, afagou-lhe o cabelo com a mão enluvada e passou algum tempo até se decidir a perguntar o que tinha na ponta da língua.
- Deixas-me... fazer amor contigo?
* * *
Enquanto Jane fitava Vishous e sentia o corpo dele contra o seu, soube que nunca o deixaria. Nunca. E também reconheceu que, se conseguiram sobreviver à última semana,
era porque era um bom casamento - acasalamento - e nada os poderia agora deter.
- Sim - respondeu ela. - Por favor...
O seu hellren tinha-a procurado tantas vezes desde que estavam juntos. De noite e de dia; no duche e na cama; vestidos, despidos, meio vestidos; depressa e com vigor...
Nele, a sensação de limite tinha sempre feito parte da excitação. Isso e a imprevisibilidade. Ela nunca sabia o que esperar. Se ele lhe ia exigir coisas ou controlar
o seu corpo ou controlar-se para ela poder fazer com ele o que quisesse.
Contudo, ele nunca ia devagar.
Agora, afagava-lhe o cabelo, percorrendo com os dedos os caracóis e prendendo-os atrás das orelhas. E, então, os olhares cruzaram-se e as bocas juntaram-se suavemente.
Afagando e acariciando, lambeu-lhe os lábios mas, quando ela os abriu, ele não mergulhou logo como era habitual. Continuou a beijar... até ela se sentir tonta com
o sugar e arrastar de carne contra carne.
O corpo dela costumava ansiar por isto. Agora, contudo, uma sensação deliciosa percorria-a, descontraindo-a e deixando-a à vontade, despertando uma excitação pacífica
que, de certa forma, era tão profunda e perturbadora como a paixão desesperada que habitualmente sentia.
Quando ele mudou de posição, ela acompanhou-o, deitando-se completamente de costas, enquanto ele se elevava e cobria o corpo dela com o dele. Continuaram a beijar-se
e ela estava tão compenetrada nesse beijo que nem se apercebeu quando ele deslizou a mão por baixo da camisa dela. A palma quente da sua mão foi subindo, parando-lhe
nos seios... explorando e acariciando. Sem provocar, sem beliscar, sem apertar. Só o polegar a passar para trás e para a frente pelo mamilo, até ela se arquear e
gemer.
As mãos dela exploraram-lhe as costas e - ó, meu Deus, lá estava o padrão de marcas que ela conhecia. E continuaram a explorar completamente o tronco dele...
Vishous segurou-lhe os pulsos e pressionou os braços dela contra a cama.
- Não penses nisso.
- O que é que ele...
- Shh.
Continuaram a beijar-se e ela tentou lutar contra ele, mas cada um dos impulsos para se soltar mergulharam suavemente o seu cérebro em sensações.
Não valia a pena pensar mais no assunto, disse a si própria. O que quer que tivesse acontecido tinha-os ajudado chegar ali.
Era tudo o que ela precisava de saber.
A voz de Vishous ecoou no seu ouvido, profunda, cava.
- Quero tirar-te a roupa. Posso?
- Por favor. Sim... ó meu Deus, sim.
Despi-la fazia parte do prazer, o meio tão glorioso como o fim, que os levaria a estar juntos pele-contra-pele. E, de alguma forma, a revelação gradual daquilo que
já vira tantas vezes fazia com que fosse novo e especial.
Os seus seios endureceram ainda mais quando o ar frio os envolveu e ela observou-o enquanto ele a fitava. Estava lá o desejo, mas também havia muito mais... reverência,
gratidão... uma vulnerabilidade que ela tinha pressentido, mas que nunca antes tinha visto claramente.
- És tudo aquilo de que preciso - afirmou ele enquanto mergulhava nela.
As suas mãos estavam em todo o lado, na barriga, nas ancas, entre as pernas.
No seu sexo molhado.
O orgasmo que ele lhe deu foi uma onda quente que trespassou todo o seu corpo, irradiando para fora, assumindo o controlo numa nuvem divina de prazer. E, entretanto,
ele montou-a e deslizou para dentro dela. Sem repelões, apenas a continuação da onda, dentro e fora dela, enquanto o seu corpo ondulava e a ereção dele entrava e
saía.
Sem pressas, apenas um amor tranquilo.
Sem urgência, apenas todo o tempo do mundo.
Quando ele finalmente se veio, com uma última ondulação da espinha e a pulsar no interior dela, ela acompanhou-o, os dois enrolados juntos um ao outro, fundidos,
corpo... e alma.
Fazendo-a girar, trouxe-a para cima dele e ela ali ficou, cravada no peito duro e musculado, lânguida como uma brisa de verão e igualmente leve. Ela estava a flutuar
e quente e...
- Estás bem? - perguntou Vishous ao olhar para ela.
- Mais do que bem. - Procurou o rosto dele. - Sinto-me como se tivesse feito amor contigo pela primeira vez.
- Ótimo - respondeu ele. - Era essa a ideia.
Deitando a cabeça junto ao coração pulsante dele, olhou para a parede por trás da mesa. Nunca pensou vir a ficar agradecida àquele monte de «brinquedos» aterradores,
mas estava. No meio da tempestade... tinham encontrado a tranquilidade.
Antes separados... eram agora outra vez um só.
Capítulo 41
Na mansão, Qhuinn andava às voltas no seu quarto como um rato à procura de uma saída da gaiola. Com tanta merda a acontecer e Wrath obrigava-o a ficar ali.
Mas que maravilha.
Ao passar mais uma vez pela porta aberta da casa de banho, pensou que o facto de a quarentena fazer todo o sentido ainda o chateava mais. Só ele, John e Xhex é que
não tinham sofrido ferimentos até agora. Todos os outros estavam naquela multidão e já tinham sido escortanhados de uma maneira ou de outra.
Por ali era a Casa del Toca-a-Curar.
Mas porra, eles os três podiam ter saído para se vingarem.
Parando em frente às portas da varanda, olhou para o jardim bem tratado que estava à beira de começar a florir. Com as luzes apagadas no quarto, conseguia ver claramente
a piscina com a cobertura de inverno esticada por cima assemelhando-se à cinta adelgaçante maior que o mundo alguma vez vira. E as árvores ainda estavam, na sua
grande maioria, nuas. E os canteiros não eram ainda...
Blay tinha sido ferido.
... mais do que retângulos ordenados de terra castanha-escura.
- Merda.
Esfregando o cabelo agora curto, tentou lidar com a pressão que sentia no centro do peito. Segundo John, Blay tinha sido atingido na cabeça e esfaqueado na barriga.
A pancada na cabeça estava a ser monitorizada e o corte tinha sido suturado pela Doc Jane. Nenhum dos ferimentos lhe punha em risco a vida.
Estava tudo bem.
O pior é que o seu esterno não estava a aceitar essa conversa fiada. Desde que John Matthew lhe contara as novidades, aquela maldita dor tinha-se instalado, moendo-o,
confortavelmente aninhada nas suas vias respiratórias.
Não conseguia, literalmente, respirar fundo.
Que merda, se ao menos fosse um macho maduro - e, tendo em conta a forma como às vezes resolvia as coisas, era contestável, se não mesmo incorreto, considerá-lo
como tal - iria para o corredor, marchava até ao quarto de Blay e batia-lhe à porta. Espreitava para se certificar de que o ruivo ainda tinha o coração a bater e
que estava bom da cabeça... e depois ia à sua vida.
Em vez disso, tentava fingir que não estava a pensar nele, enquanto fazia um buraco na carpete.
Enquanto pensava tudo isto, continuava a andar de um lado para o outro. Ele preferia estar na sala de musculação, mas o facto de Blaylock estar aqui nesta ala era
uma amarra que o mantinha preso nas redondezas. Sem uma razão suficientemente forte para se afastar, como sair para lutar ou... digamos... a casa estar a arder,
ele era evidentemente incapaz de se libertar.
E, quando estava outra vez à frente das portas de vidro, teve um indício do porquê.
Tentou convencer a palma da sua mão a não tocar no puxador.
Não foi bem-sucedido.
A fechadura abriu-se e o ar frio embateu-lhe violentamente no rosto. Saindo para a varanda descalço e de roupão, mal se apercebeu de que o chão estava absolutamente
gelado ou que uma brisa fria lhe subia pelas pernas e lhe atingia diretamente os testículos.
Lá em cima, saía luz das portas duplas do quarto de Blay. O que era uma boa notícia pois de certeza que correriam os cortinados antes de fazerem sexo.
Por isso, provavelmente era seguro espreitar. Certo...?
Além disso, Blay estava a recuperar de um ferimento, logo não podia andar às cambalhotas ali dentro.
Decidindo-se a assumir o papel de Qhuinn Espião, manteve-se nas sombras e tentou não se sentir como um mirone enquanto caminhava em bicos de pés. Quando se aproximou
da porta, preparou-se mentalmente, espreitou e...
Respirou fundo, aliviado.
Blay estava sozinho na cama, escarranchado contra a cabeceira, com o roupão preto atado na cintura, os tornozelos cruzados, os pés com meias pretas. Tinha os olhos
fechados e as mãos repousavam sobre a barriga, como se estivesse a ser cuidadoso com as partes ainda enroladas em ligadura.
Um movimento fez com que Blay abrisse as pálpebras e olhasse na direção oposta à janela. Era Layla a sair da casa de banho e estava a andar muito lentamente. Trocaram
algumas palavras. Estava a agradecer-lhe, sem dúvida, pela alimentação que acabara de receber e ela estava a dizer-lhe que o prazer era todo dela. Não era uma surpresa
que ela aqui estivesse. Já tinha feito a ronda da casa anteriormente e Qhuinn já se tinha cruzado com ela antes da primeira refeição... ou daquilo que teria sido
a primeira refeição se alguém tivesse aparecido.
E quando ela saiu do quarto de Blay, Qhuinn esperou que Saxton entrasse. Nu. Com uma rosa vermelha nos dentes. E uma maldita caixa de chocolates.
E uma ereção que fazia com que o Monumento a Washington parecesse atarracado.
Nada.
Apenas Blay deixando cair a cabeça para trás e as suas pálpebras a fecharem-se. Parecia completamente exausto e, pela primeira vez, velho. Aquele não era um rapaz
que acabara de fazer a transição. Aquele era um macho de raça pura.
Um incrivelmente belo... macho... de raça pura.
Na sua mente, Qhuinn viu-se a si próprio a abrir a porta e entrar. Blay olharia e sentar-se-ia na cama... mas Qhuinn faria um gesto para ele se voltar a deitar enquanto
entrava.
Perguntaria pelo ferimento. E Blay abria o roupão para lhe mostrar.
Qhuinn esticaria o braço e tocaria na ligadura... e depois deixaria os dedos saírem da gaze e do adesivo para a pele quente e suave da barriga de Blay. Este ficaria
chocado, mas nesta fantasia ele não afastaria a mão... Levá-la-ia mais abaixo, para lá do ferimento, em direção às ancas e...
- Foda-se!
Qhuinn deu um salto para trás, mas era tarde de mais. Saxton tinha entrado no quarto, ido até à janela e começado a fechar as cortinas. E enquanto o fazia, tinha
visto o idiota do lado de fora na varanda armado em câmara de segurança.
Enquanto Qhuinn dava meia volta para regressar rapidamente ao seu quarto, pensava Não abras a porta... não abras a porta...
- Qhuinn?
Caçado.
Imóvel como um ladrão apanhado com um ecrã de plasma debaixo do braço, certificou-se de que o roupão estava fechado antes de se virar. Merda. Saxton estava a entrar
na varanda e o sacana também estava de roupão.
Bem, aparentemente andavam todos de roupão. Até Layla estava de robe.
Quando Qhuinn encarou o primo, apercebeu-se de que não tinha trocado com ele mais de duas palavras desde que ele se mudara para cá.
- Só queria saber como ele estava. - Não valia a pena dizer o nome - era absolutamente óbvio quem é que ele estava a espiar.
- O Blaylock agora está a dormir.
- Alimentou-se? - perguntou, mesmo sabendo a resposta.
- Sim.
Saxton fechou a porta atrás de si, sem dúvida para o frio não entrar, e Qhuinn tentou ignorar o facto de ele ter os pés e os tornozelos nus à vista. Porque a probabilidade
era que o resto também estivesse.
- Ah, desculpa incomodar-te - balbuciou Qhuinn. - Tem uma boa n...
- Podias ter batido à porta. Do lado do corredor.
Disse as palavras com um tom aristocrático que fazia Qhuinn ficar completamente tenso. Não por odiar Saxton. Simplesmente fazia-o demasiado lembrar-se da família
que tinha perdido.
- Não queria incomodar-te. Incomodá-lo. Incomodar nenhum dos dois.
Quando uma rajada de vento atingiu a varanda, o cabelo louro inacreditavelmente firme e ondulado de Saxton nem sequer ficou um bocadinho desalinhado, como se cada
cabelo, até ao folículo, estivesse tão bem composto e cuidado que não era afetado por... nada.
- Qhuinn, não interrompias nada.
Mentiroso, pensou Qhuinn.
- Chegaste primeiro, primo - murmurou Saxton. - Se querias vê-lo, ou estar com ele, deixá-los-ia a sós.
Qhuinn pestanejou. Então... tinham uma relação aberta? Mas que raio?
Ou espera... talvez ele tivesse feito um bom trabalho a convencer não só Blay, mas também Saxton, de que não estava interessado em nada de sexual com o seu melhor
amigo.
- Primo, posso falar honestamente?
Qhuinn aclarou a garganta.
- Depende do que tenhas para dizer.
- Sou amante dele e...
- Epá... - Levantou a mão para o interromper. - Isso não é da minha conta.
- ... não sou o amor da vida dele.
Qhuinn pestanejou outra vez. E então, por um segundo, foi projetado para um local onde o primo lhe fazia graciosamente uma vénia e ele era tão bom como o filho da
puta. Só que havia uma falha enorme nesta fantasia. Blay já não queria nada com ele.
Ele próprio levara a esse resultado ao longo de muitos anos.
- Entendes o que te estou a dizer, primo? - Saxton manteve um tom de voz baixo, apesar de o vento estar a uivar e a porta estar fechada. - Estás a ouvir-me?
Ok, Qhuinn não tinha antecipado ser encostado contra essa parede naquela noite... ou em qualquer outra noite. Que merda, o seu corpo estava subitamente todo a pulsar
e ele quase tinha vontade de dizer ao primo para dar de frosques e ir dar banho ao cão ou qualquer coisa do género, ou melhor ainda, para desaparecer de vez.
Só que então pensou na aparência envelhecida de Blay. Ele tinha finalmente encontrado um caminho na vida e seria um crime injusto deitar tudo isso a perder ali no
escuro.
Qhuinn abanou a cabeça.
- Não está certo.
Não para Blay.
- És um palerma.
- Não. Mas costumava ser.
- Permite-me discordar. - A mão elegante de Saxton juntou mais as lapelas do roupão. - Se me dás licença, é melhor voltar para dentro. Está muito frio aqui fora.
Bem, era mesmo uma metáfora do caraças.
- Não lhe digas nada - pediu Qhuinn secamente. - Por favor.
Saxton semicerrou os olhos.
- O teu segredo está mais do que seguro comigo. Confia em mim.
E, dizendo isto, virou-se e voltou para o quarto de Blaylock, fechando a porta no trinco e tapando a luz ao fechar os pesados cortinados.
Qhuinn coçou a cabeça outra vez.
Parte dele queria entrar por ali dentro e dizer, Mudei de ideias, primo: agora põe-te a andar daqui para fora para eu poder...
Dizer a Blay o que tinha dito a Layla.
Mas era bem possível que Blay estivesse apaixonado por Saxton, e Deus sabia que Qhuinn já tinha fodido o seu melhor amigo demasiadas vezes.
Ou não, como era o caso.
Quando eventualmente regressou ao quarto, só porque era demasiado patético estar ali fora a fitar a porcaria das cortinas, apercebeu-se de que a sua vida girava
sempre em torno de si próprio. Do que ele queria. Precisava. Tinha de ter.
O antigo Qhuinn teria entrado por aquele buraco...
Detendo-se, tentou não terminar aquela frase demasiado literalmente.
A verdade era que o ditado ridículo e lamechas estava certo: quando se ama alguém, libertamo-lo.
Já no quarto, sentou-se na cama. Olhando em volta, viu a mobília que não tinha comprado... e decorações fabulosas, mas anónimas e nada ao seu estilo. A única coisa
que lhe pertencia eram as roupas no armário, a lâmina na casa de banho e os ténis de corrida que atirara para o chão quando chegara.
Era tal e qual como em casa dos pais.
Bem, ali, verdade fosse dita, as pessoas valorizavam-no. Mas no que tocava a ter uma vida, não tinha uma realmente sua. Era o protetor de John. O soldado da Irmandade.
E...
Merda, agora que já não se abandonava ao seu vício de sexo, a lista acabava aí.
Encostando-se à cabeceira, cruzou os pés e ajeitou o roupão. A noite estendia-se com um tédio horrível onde nada acontecia, como se ele estivesse a conduzir e conduzir
e conduzir ao longo do deserto... e pela frente esperavam-no mais noites como aquela.
Meses todos iguais.
Anos.
Pensou em Layla e no conselho que lhe tinha dado. Porra, estavam os dois exatamente na mesma posição, não estavam?
Fechando os olhos, ficou aliviado quando a sua mente começou a vaguear. Mas teve a sensação de que a paz encontrada não duraria muito.
E estava certo.
Capítulo 42
No Hospital Equino de Tricounty, Manny ficou parado enquanto Glory lhe cabeceava a roupa, e ele sabia que talvez a devesse deixar. Descobriu, contudo, que era incapaz
de se separar, e a Payne também, do cavalo.
O tempo esgotava-se para a sua Glory e isso era como se o matassem. Mas não a podia deixar a definhar, mais magra e aleijada a cada dia que passava. Merecia muito
mais do que isso.
- Ama-la - comentou Payne, em voz baixa, com a mão pálida a percorrer as costas da puro-sangue e a descer-lhe até à anca.
- Pois. É verdade.
- Ela tem muita sorte.
Não. Estava a morrer e isso era uma maldição.
Pigarreou.
- Acho que temos de...
- Doutor Manello?
Manny chegou-se atrás e olhou sobre a porta da baia.
- Olá, doutor. Como está?
O veterinário se aproximou e o smoking que usava parecia tão deslocado como uma forquilha num camarote da ópera.
- Estou bem... e você parece muito bem. - O homem endireitou o laço. - Estou com este fatinho porque venho do Met. Mas tinha de aqui passar para ver como estava
a sua menina.
Manny saiu e ofereceu-lhe a mão.
- Eu também.
Ao apertarem as mãos, o veterinário olhou para o interior da baia - e ficou de olhos arregalados quando viu Payne.
- Ah... olá.
Quando Payne ofereceu ao homem o esboço de um sorriso, o bom doutor pestanejou como se o sol tivesse rasgado as nuvens, brindando-o com o seu brilho.
Ceeeeeerto, Manny estava mais do que farto de ter sacanas a mirarem-na assim.
Interpondo-se, perguntou:
- Será que a podemos pôr em alguma suspensão? Para lhe aliviar a pressão?
- Prendemo-la umas horas por dia. - Enquanto respondia, o veterinário chegou-se para o lado até que Manny se viu obrigado a segui-lo com o tronco para lhe bloquear
a visão. - Não quero correr o risco de termos problemas gastrointestinais ou respiratórios.
Farto da inclinação e querendo poupar Payne ao rumo da conversa, Manny segurou o braço do homem e chegou-o para o lado.
- Qual o próximo passo?
O veterinário esfregou os olhos, como se desse à mente um instante para se ordenar.
- Sinceramente, doutor Manello, não tenho um bom pressentimento quanto ao ponto em que nos encontramos. Aquele outro casco está a ceder, e mesmo tendo feito todos
os possíveis para o tratar, ele não está a reagir.
- Tem de haver mais qualquer coisa.
- Sinto muito, a sério.
- Quanto tempo até termos a certeza...
- Já a tenho. - O olhar do homem estava absolutamente carregado. - Foi por isso que cá vim esta noite... estava à espera de um milagre.
Pois, já eram dois.
- E se ficasse um bocado com ela - aventou o veterinário. - Demore o tempo que quiser.
Que era jargão clínico para Despeça-se.
O veterinário levou brevemente a mão ao ombro de Manny, depois virou-se e afastou-se. De saída olhou para cada baia, confirmando os pacientes e afagando um focinho
ocasional.
Um bom homem. Um indivíduo meticuloso.
Do tipo que faria tudo o que pudesse antes de apresentar o cenário com a pior das hipóteses.
Manny respirou fundo e tentou convencer-se de que Glory não era um animal de estimação. As pessoas não tinham cavalos de corrida como animais de estimação. E ela
merecia mais do que sofrer numa baia acanhada até que ele reunisse coragem suficiente para fazer o que tinha de ser feito.
Levando a mão ao peito, esfregou a cruz que tinha por baixo da roupa e sentiu um impulso súbito de ir à igreja...
Começou apenas por reparar que as sombras estavam a ficar mais escuras na parede do outro lado do corredor. E depois pensou que talvez alguém tivesse acendido as
luzes do teto.
Acabou por notar que a iluminação vinha da baia de Glory.
Mas... o que...
Deu meia volta e estacou... e depois teve de recuperar o equilíbrio.
Payne estava de joelhos na serradura macia, as mãos nas patas anteriores do cavalo, os olhos fechados, as sobrancelhas franzidas.
E o corpo brilhava-lhe com uma luz forte e bela.
Acima dela, Glory estava imóvel, mas a pelagem estremecia e os olhos reviravam-se-lhe na cabeça. Breves resfôlegos subiam-lhe pelo pescoço comprido e saíam-lhe pelas
narinas dilatadas... como se dominada por uma sensação de alívio, de dor a amainar.
As patas anteriores feridas brilhavam ao de leve.
Manny não se mexeu, não respirou, nem sequer pestanejou. Limitou-se a agarrar a cruz ainda com mais força... e a rezar para que ninguém viesse interromper aquilo.
Não teve noção de quanto tempo ali ficaram os três, mas acabou por se tornar óbvio que Payne estava a ressentir-se do esforço. O corpo começou a vibrar e a respiração
dela tornou-se irregular.
Manny entrou na baia e libertou-a de Glory, segurando-lhe o corpo frouxo contra o seu e afastando-se, para o caso de a égua se assustar ou fazer algo imprevisível.
- Payne? - Cristo...
As pálpebras dela estremeceram e abriram-se.
- Consegui... ajudá-la?
Manny afagou-lhe o cabelo enquanto olhava a poldra. Glory estava de pé, a erguer um casco e depois o outro, regressando depois ao primeiro, como se tentasse perceber
o que provocara o conforto abrupto. Depois abanou-se... e foi mordiscar o feno onde ainda não tocara.
Quando o maravilhoso som de erva seca a ser roída preencheu o silêncio, Manny olhou para Payne.
- Conseguiste - disse-lhe, num tom rouco. - Acho que conseguiste.
Os olhos dela pareceram esforçar-se por se focar.
- Não queria que a perdesses.
Assoberbado por uma gratidão para a qual não tinha palavras, Manny abraçou-a mais junto ao peito e aí a manteve durante alguns instantes. Queria continuar assim
muito mais tempo, mas ela não estava com bom aspeto e só Deus sabia quem mais se teria apercebido do espetáculo de luzes. Tinha de os tirar dali.
- Vamos até minha casa - sugeriu. - Para te poderes deitar.
Quando ela assentiu, Manny içou-a nos braços e raios o partissem se não era uma sensação perfeita. Ao fechar a baia atrás deles, olhou para Glory. O cavalo devorava
o feno como se fosse acabar o mundo.
Santa mãe... teria mesmo resultado?
- Volto amanhã - disse-lhe, antes de se afastar, animado por uma sensação incandescente de esperança.
Junto à casita do guarda, sorriu e encolheu os ombros ao segurança.
- Houve alguém a fazer turnos duplos no hospital. Está exausta.
O homem levantou-se da cadeira, como se a mera presença de Payne, mesmo inconsciente, chegasse para lhe prender a atenção.
- É melhor levá-la para casa. É preciso cuidar bem de uma mulher dessas.
Grande verdade.
- É para lá que eu vou.
Movendo-se rapidamente, chegou à receção e esperou pelo sinal do trinco para que pudesse abrir as derradeiras portas. Com um pouco de sorte, o veterinário não teria
visto nada...
- Obrigado, meu Deus - resmungou Manny ao ouvir o zumbido e aplicar a anca contra a porta.
Não demorou a chegar ao carro, embora tirar as chaves enquanto mantinha Payne ao colo tivesse sido complicado. O mesmo se passou ao abrir a porta. Mas depois lá
a sentou no banco do pendura, sempre a interrogar-se se ela estaria bem. Que raios, não tinha como entrar em contacto com ninguém do mundo dela.
Ao contornar o carro e sentar-se ao volante pensou, Que se dane, ia levá-la de volta aos vampiros...
- Posso pedir-te uma coisa? - disse ela, num tom arrastado.
- Tudo... o que...
- Posso beber-te um pouco da veia? Sinto-me... curiosamente esvaída.
Está bem, certo. Isso era uma necessidade imediata. Trancou o carro e praticamente arrancou o braço para lho dar.
Os lábios macios encontraram o interior do pulso, mas a mordida não foi rápida, quase como se ela tivesse dificuldade em reunir energias. Mesmo assim, ela lá o conseguiu
e ele saltou, com a dor aguda a trespassar-lhe o coração e a deixá-lo um pouco zonzo. Ou... talvez isso fosse o resultado de uma excitação súbita e avassaladora
que lhe percorreu não só desde os testículos ao membro, mas todo o corpo.
Com um gemido, as ancas reviraram-se-lhe no banco do Porsche e deixou a cabeça pender para trás. Cristo, era bom... o ritmo de sucção que ela iniciou era quase como
se estivesse na sua ereção, e mesmo que lhe tenha doído o início, apenas sentia o sugar como um prazer, um prazer doce pelo qual ele tinha a certeza não se importar
de morrer.
Mergulhou num estado de idílio. Pareceu-lhe estar séculos com as presas dela na sua carne. O tempo perdia o significado, tal como a realidade de se encontrarem num
parque de estacionamento, num carro com vidros transparentes.
Que se danasse o mundo.
Só eles os dois, juntos, importavam.
E isso foi antes de aqueles olhos de diamante se terem aberto e ficado nele, olhando-lhe não para o rosto, mas para o pescoço.
Vampira... pensou. Bela vampira.
Minha.
Enquanto essa ideia ganhava força na sua mente, Manny agia sem grande consciência, meneando a cabeça e oferecendo-lhe a jugular...
Não precisou de pedir duas vezes. Payne praticamente lançou-se a ele, com a mão a mergulhar-lhe no cabelo e a prender-lhe a nuca. Agarrando-o, Manny ficou imobilizado,
à mercê dela... a presa do predador que ela era. E agora que o tinha, moveu-se lentamente, com as presas a baixar-lhe até à pele e a percorrerem-lhe a altura do
pescoço, deixando-o hirto com a antecipação da perfuração e da sucção...
- Hummm! - bradou ele quando a vampira o mordeu. - Ah... sim...
As mãos dele agarraram-lhe os ombros, aproximando-a ainda mais.
- Leva tudo... leva... ai, meu Deus... ah, merda...
Algo afagou-lhe o membro. Como sabia exatamente onde tinha as mãos, só podia ser ela. Movendo-se num acesso de sofreguidão, deu-lhe tanto espaço quanto possível
para que ela se mexesse... e Payne assim fez, subindo e descendo contra a ereção tensa, com as ancas dele a ajudarem, indo no movimento contrário às carícias.
Manny arquejava e não conseguia parar de gemer. Não demorou muito para que os testículos ficassem dormentes e a ponta do membro se retesasse contra a pressão crescente.
- Estou quase a vir-me - sussurrou. - É melhor parares se não quiseres que eu...
Com essas palavras, Payne violou o cimo das calças e procurou no interior...
Manny viu a porra das estrelas. Assim que a pele dela tocou na sua, ele atingiu um orgasmo como nunca, a cabeça a saltar para trás com força, as mãos a cravarem-se
nos ombros dela, as ancas tresloucadas, aos saltos. E ela não parou de sugar, nem de bombear. Assim, tal como antes, ele acompanhou os movimentos com a libertação,
com o prazer mais intenso a cada espasmo da ereção.
Acabou demasiado depressa.
Claro que aquilo poderia ter continuado durante uma década e mesmo assim ficaria esfomeado por mais.
Quando Payne o libertou, ela recostou-se e lambeu as pontas aguçadas das presas, a língua rosada em contraste com o branco. Caramba... aquele brilho maravilhoso
voltara a surgir-lhe por baixo da pele, fazendo-a parecer um sonho.
Ah, espera, era isso que ela era, certo?
- O teu sangue é forte - comentou Payne num tom rouco, enquanto voltava a aproximar-se e lhe lambia o pescoço. - Tão forte.
- É? - resmungou ele. Mas nem tinha a certeza de ter falado. Talvez apenas o tivesse pensado.
- Sinto o poder a percorrer-me.
Nunca se interessara por SUV - essas tretas eram demasiado volumosas e conduzi-las era como pedregulhos a caírem montanha abaixo - mas o que não daria naquele momento
por um banco traseiro onde coubesse mais do que os tacos de golfe. Queria deitá-la e...
- Quero mais de ti - murmurou Payne enquanto o esfregava com o nariz.
Que raios, continuava duro como pedra, mesmo tendo acabado de...
- Quero-te na minha boca.
A cabeça de Manny atirou-se para trás e ele gemeu, com o membro a latejar como se aquilo lá em baixo estivesse a meio de uma corrida. Mas por mais que a quisesse,
não sabia se ela tinha noção daquilo em que se estaria a meter. O simples facto de pensar nos lábios dela no seu...
Antes de ter fôlego para falar já a cabeça de Payne se tinha baixado até ao colo dele, e não houve preâmbulo, sugou-o até ao fundo, mantendo-o no interior da sua
boca quente e húmida.
- Porra! Payne!
Levou-lhe as mãos aos ombros, decidido a puxá-la para trás... mas ela não estava disposta a isso. Sem quaisquer indicações sabia exatamente o que fazer, subindo
e sugando-o, antes de lhe lamber a parte debaixo da haste. E depois explorou-o com uma meticulosidade que lhe mostrou que ela estava a gostar tanto quanto ele, e
isso ainda o excitava mais.
Mas então sentiu-lhe a presas a brincarem-lhe com a cabeça.
Puxou-a para cima de imediato, prendendo-lhe a boca num beijo intenso enquanto lhe segurava o rosto e se libertava nas mãos dela. Mas isso não durou. Payne soltou-se
das mãos dele e regressou ao ponto de partida, apanhando-o a meio do orgasmo e absorvendo aquilo que o corpo dele parecia ter a rodos para ela.
Quando os espasmos terminaram, ela ergueu-se, olhou-o... e lambeu lentamente os lábios.
Manny teve então de fechar os olhos, com a ereção a latejar de tal maneira que lhe doía.
- Agora vais levar-me a tua casa - disse ela.
Não era um pedido. E o tom sugeria que ela estaria a pensar exatamente no mesmo que ele.
Portanto, isso levaria apenas a uma coisa.
Manny compôs-se interiormente e depois abriu os olhos. Ergueu a mão, tocando-lhe no rosto, e acariciou-lhe o lábio inferior com o polegar.
- Não sei se devemos, bambina - admitiu.
A mão dela apertou-lhe o membro e ele gemeu.
- Manuel... acho que é exatamente aí que temos de estar.
- Não é... uma boa ideia.
Payne recuou ainda mais e retirou a mão, com o brilho a desvanecer-se.
- Mas estás excitado. Neste momento.
A sério?
- É mesmo por isso. - Percorreu-lhe o rosto com os olhos e depois desceu-lhe até aos seios. Estava tão desesperado por ela que se sentia tentado a rasgar-lhe as
calças e a tomar-lhe a virgindade naquele carro. - Não vou conseguir conter-me, Payne. Mal o estou a fazer neste momento...
Payne ronronou de satisfação e voltou a humedecer os lábios vermelhos.
- Gosto quando te descontrolas.
Cristo, isso não ajudava nada.
- Eu... - Abanou a cabeça, pensando que era um inferno absoluto. Estar a negar isso a ambos causava-lhe uma dor profunda. - Acho que tens de fazer o que precisas
e ires-te embora. Enquanto ainda te consigo deixar ir...
O som de batidas no vidro começou por não fazer grande sentido. Estavam só os dois naquele parque de estacionamento vazio. Mas depois, o mistério solucionou-se:
- Sai do carro. E passa-me as tuas coisas.
A voz masculina fez Manny virar a cabeça para o vidro... onde encarou o cano de uma arma.
- Tu ouviste, meu. Para fora do carro ou dou-te um tiro.
Enquanto Manny devolvia Payne ao seu lugar, afastando-a de um disparo à queima-roupa, disse-lhe baixinho:
- Quando eu sair, tranca as portas. É aqui.
Levou a mão ao tabliê e indicou o botão.
- Deixa-me tratar disto. - Tinha cerca de quatrocentos dólares em dinheiro na carteira e bastantes cartões de crédito. - Fica aqui dentro.
- Manuel...
Não lhe deu hipótese de responder. Para ele, aquela arma era dona de todas as respostas e estabelecia as regras.
Pegando na carteira, demorou-se a abrir a porta, mas saiu rapidamente e ficou à espera de ouvir o fecho automático das portas.
E continuou à espera.
Desesperado por ouvir Payne a ficar tão segura quanto possível, mal se apercebeu do tipo da máscara de esqui a bradar:
- A tua carteira. E diz à gaja para sair do carro.
- Estão quatrocentos...
A carteira desapareceu.
- Diz-lhe para sair ou então vai comigo. E o relógio. Quero o relógio.
Manny olhou para o edifício. Havia janelas um pouco por todo o lado e, de certeza, que o guarda sairia ocasionalmente para verificar os arredores.
Talvez se atrasasse a entrega...
O cano da pistola foi-lhe encostado ao rosto.
- Relógio. Já.
Não era o relógio bom. Pelo amor de Deus, nunca operava com o Piaget posto. Mas fosse como fosse, o idiota podia ficar com ele. Além disso, enquanto fingia que lhe
tremiam as mãos, imaginou que isso lhe fosse dar mais...
Foi difícil perceber o que aconteceu e por que ordem.
Em retrospetiva, sabia que Payne teria de ter começado por abrir a porta dela. Mas pareceu-lhe que assim que ouviu o som terrível do lado do passageiro ela estava
já atrás do ladrão.
Outra coisa bizarra foi o facto de só depois de Manny ter praguejado é que o desgraçado pareceu aperceber-se de um terceiro elemento a entrar em campo. Mas não podia
ter sido assim, ele tê-la-ia visto a contornar o carro, certo?
Bem, fosse o que fosse que tivesse acontecido, o Máscara de Esqui acabou a saltar para a esquerda e a apontar a pistola alternadamente para Payne e para Manny.
O jogo de pingue-pongue não ia durar muito. Seguindo uma lógica terrível, Manny sabia que o tipo ia disparar contra Payne, pois ela era a mais fraca dos...
Quando o cano da arma voltou a apontar para ela, Payne... desapareceu. E não por se ter baixado, desviado, ou saído dali a correr. Ela estava ali, a ocupar espaço
num momento... e desaparecida no seguinte.
Voltou a aparecer uma fração de segundo depois e agarrou o punho do homem quando ele fazia menção de apontar a arma a Manny. Desarmá-lo foi igualmente rápido: um,
virou a arma; dois, arrancou-a da mão do filho da puta; três, atirou-a a Manny, que a apanhou.
E depois foi altura de porrada.
Payne girou o tipo, segurou-lhe a parte de trás da cabeça e bateu-lhe com o rosto no capô do Porsche. Depois de ter polido a pintura com a matraca do desgraçado,
reposicionou-o e agarrou nas calças largas do filho da mãe. Erguendo-o pelo cabelo e pelo cós das calças, ou então pelo reto, tomou balanço e atirou-o... a cerca
de dez metros.
Nem o super-homem voava assim tão bem e o ladrão foi bater na parede com a testa. O edifício não lhe deu grande resposta e, vejam só, ele também não. Aterrou de
cara num canteiro de flores e aí ficou, com os membros a ficarem desfalecidos.
Sem se contorcer. Sem gemer. Sem tentar levantar-se.
- Estás bem, Manuel?
Manny virou lentamente a cabeça na direção de Payne. Ela nem sequer estava ofegante.
- Jesus... Cristo... - murmurou ele.
Enquanto as palavras de Manuel se perderam com a brisa, Payne ocupou-se com o top e as calças largas. Depois alisou o cabelo. Parecia a única coisa que poderia fazer
pela sua aparência após a cena de violência.
Um desperdício de esforço, tentar feminizar-se. Entretanto, Manuel continuava a fitá-la.
- Não dizes mais nada? - perguntou ela em voz baixa.
- Ah... - Manuel levou a mão livre à cabeça. - Pois... deixa-me ver se ele está vivo.
Payne envolveu-se com os braços enquanto se aproximava do humano. A bem da verdade, não se preocupava com o estado em que pudesse ter deixado o assaltante. A sua
prioridade fora afastar a arma mortífera de Manuel e fora bem-sucedida na tarefa. O que acontecesse ao ladrão era irrelevante... mas era óbvio que ela não conhecia
as regras daquele mundo. Nem sabia quais as implicações do que fizera.
Manuel estava a meio caminho sobre a relva quando a «vítima» se virou com um gemido. As mãos que tinham segurado a arma dirigiram-se à máscara que lhe cobria o rosto
e empurraram a malha até à testa.
Manuel ajoelhou-se.
- Sou médico. Quantos dedos tenho levantados?
- O quê...?
- Quantos dedos?
- ...três...
Manuel pousou a mão no ombro do indivíduo.
- Não te levantes. Foi uma pancada tremenda na cabeça. Sentes formigueiro ou dormência nas pernas?
- Não. - O homem fitou Manuel. - Porque é que... estás a fazer isto?
Manuel minimizou a questão.
- Chama-se faculdade de medicina... cria a necessidade compulsiva de tratar dos doentes e dos feridos, independentemente das circunstâncias. Acho que temos de chamar
uma ambulância...
- Nem pensar!
Payne materializou-se junto deles. Compreendia as boas intenções de Manuel, mas receava que o ladrão tivesse outra arma com ele...
Assim que surgiu atrás de Manuel, o homem no chão encolheu-se em terror, erguendo os braços e tentando recuar.
Manny olhou sobre o ombro e foi quando ela percebeu que Manuel não era ingénuo. Tinha a arma apontada ao homem.
- Está tudo bem, bambina. Tenho-o...
Atabalhoadamente, o ladrão levantou-se e Manuel seguiu-o com o cano enquanto o humano cambaleava e se equilibrava contra o edifício. Era óbvio que estava a preparar-se
para correr.
- Ficamos com a arma - indicou Manuel. - Compreendes, não? E não preciso de te dizer que tens sorte em estar vivo... não se provoca a minha namorada.
Quando o humano se perdeu entre as sombras, Manuel levantou-se.
- Tenho de entregar esta arma à polícia.
Depois limitou-se a olhar para ela.
- Não há problema, Manuel. Posso tratar da minha presença com o guarda, para que nada se fique a saber. Faz o que tens a fazer.
Aquiescendo, ele pegou num pequeno aparelho de telefone, abriu-o e pressionou alguns botões. Levando-o ao ouvido, disse:
- Sim, chamo-me Manuel Manello e fui ameaçado com uma arma enquanto me encontrava no meu veículo. Estou no Hospital Tricounty...
Enquanto Manuel falava, ela olhou em volta, pensando que não queria que as coisas acabassem assim. Mas...
- Tenho de ir - disse-lhe, quando Manuel desligou. - Não posso... estar aqui se houver mais humanos. Vai complicar as coisas.
O telefone baixou lentamente para o lado do corpo.
- Pois... está bem. - Franziu o sobrolho. - Ah, olha... se a polícia está a chegar, tenho de me lembrar do que aconteceu, se não... bolas, tenho uma arma na mão
sem um motivo que lhes apresente.
Com efeito, pareciam estar encurralados. E, desta vez, sentia-se grata por uma prisão.
- Quero que te lembres de mim - disse baixinho.
- O plano não era esse.
- Eu sei.
Manuel abanou a cabeça.
- És a peça mais importante no meio de tudo isto. Por isso tens de te proteger e isso significa apagares-me a...
- Doutor Manello! Doutor Manello... o senhor está bem?
Payne olhou sobre o ombro. O primeiro macho humano que tinham visto à secretária corria pelo relvado, num estado de pânico.
- Fá-lo - insistiu Manuel. - E eu depois penso em alguma coisa...
Quando o guarda apressado chegou junto deles, Payne encarou o recém-chegado.
- Estava a fazer a ronda - explicou o homem -, e quando confirmava os gabinetes no outro lado do edifício vi-os pela janela... Corri o mais que pude!
- Estamos bem - garantiu ela ao guarda. - Mas importava-se de olhar para uma coisa?
- É claro! A polícia já foi chamada?
- Sim. - Tocou com o dedo por baixo do olho direito. - Olhe para mim, por favor.
Já estava fito no rosto dela, e a dose adicional de concentração facilitou-lhe o trabalho. Só precisou de abrir caminho pelo cérebro do homem e cobrir mentalmente
tudo o que se relacionava com ela.
Para o humano, o cirurgião chegara e partira sozinho.
Manteve o homem em transe e dirigiu-se a Manuel.
- Não tens de te preocupar. As recordações dele são de curto prazo, por isso ele vai ficar bem.
Ao longe ouviu-se um uivo agudo e urgente.
- É a polícia - indicou Manuel.
- Nesse caso vou partir.
- Como voltas a casa?
- Da mesma forma que saí do teu carro.
Esperou que ele lhe estendesse a mão... ou dissesse alguma coisa... ou... Mas ele limitou-se a ficar ali, com o ar frio e silencioso da noite entre eles.
- Vais mentir-lhes? - perguntou ele. - E dizer-lhes que me apagaste?
- Não sei.
- Bem, se precisares de voltar para o fazer, eu estou...
- Boa noite, Manuel. Por favor, fica bem.
Com essas palavras, ela levantou a mão e silenciosa e inexoravelmente, desapareceu.
Capítulo 43
No que dizia respeito a truques, este era verdadeiramente estranho.
- Então, onde é que está o teu amigo?
Karrie Ravisc, também conhecida nas ruas como Kandy, era uma puta a sério há cerca de nove meses e, por isso, já tinha visto muita merda. Mas aquilo...
O homem enorme à porta do quarto do motel falou suavemente.
- Vem aí.
Karrie deu outra passa no cigarro e pensou, Bem, pelo menos o que estava à sua frente era uma brasa. E também lhe tinha pago quinhentos e arranjado aquele quarto.
Ainda assim... havia qualquer coisa ali que não batia certo.
Pronúncia estranha. Olhos estranhos. Ideias estranhas.
Mas uma verdadeira brasa.
Enquanto esperavam, ela deitou-se em silêncio, nua na cama com todas as luzes apagadas. No entanto, não estava completamente escuro. Aquele fulano com a carteira
recheada tinha colocado uma enorme lanterna que parecia um caixote do outro lado do quarto, por cima do armário barato. O feixe de luz apontava-lhe para o corpo.
Como se ela estivesse num palco. Ou talvez como se fosse uma obra de arte.
O que não era tão estranho como alguma das coisas que já fizera. Merda, se a prostituição não te levasse a ver os homens como sacanas maldosos e doentios, nada mais
o faria. Além dos adúlteros do costume e dos que gostavam de sentir o poder, havia os fodilhões com fetiches por pés, os que gostavam que lhes batessem e outros
que gostavam que lhes mijassem em cima.
Terminando o seu White Owl, apagou a beata e pensou que aquela coisa do holofote talvez até nem fosse má ideia. Um parvalhão qualquer tinha querido comer hambúrgueres
em cima dela há duas semanas e isso tinha sido uma nojeira...
O som da fechadura fê-la dar um salto e ela percebeu que alguém tinha entrado sem dar conta. Era o som da porta a ser trancada. Por dentro.
E estava agora um segundo homem junto ao primeiro.
Ainda bem que o seu chulo estava mesmo na porta ao lado.
- Boa noite - disse ela, enquanto se estendia mecanicamente para ambos. Os seios eram falsos, mas eram uma boa imitação e a barriga era lisa, mesmo depois de ter
tido um filho, e não só estava sem pelos, como fizera depilação a laser.
Por todas estas razões ela cobrava o que cobrava.
Homem... mais um enorme, pensou ela, enquanto o segundo se aproximou e parou aos pés da cama. Na realidade, aquele cabrão era enorme. Um verdadeiro mamute. E não
por ser gordo e descuidado. Os seus ombros eram tão perfeitos que pareciam ter sido desenhados com uma régua e esquadro e, juntamente com as suas ancas estreitas,
o peito formava um triângulo perfeito. Não lhe conseguia ver o rosto, por causa da luz que vinha de trás dele, mas não tinha importância. O primeiro bacano esticou-se
na cama ao lado dela.
Merda... de repente percebeu que estava excitada. Era o tamanho deles e o perigo do escuro e dos aromas. Jesus... tinham um cheiro fantástico.
- Vira-te ao contrário - exigiu o segundo.
Meu deus, aquela voz. A mesma pronúncia estrangeira do outro que tinha preparado tudo, mas mais grave e com um toque autoritário.
- Queres mesmo ver o meu cu? - gorgolejou ela, enquanto se sentava. Passando as mãos pelos seios, levantou-os e apertou-os. - Porque a minha parte da frente é ainda
melhor.
Ao dizer isto, empurrou um seio para cima e esticou a língua para baixo, lambendo o seu próprio mamilo, enquanto olhava para um homem e para o outro sem parar.
- Vira-te para baixo.
Ok, obviamente, aquilo era uma ordem de prioridade. O homem deitado ao lado dela estava com uma tremenda ereção, mas não se mexia. E o Sr. Faz-Já era o único que
falava.
- Se é assim que queres.
Tirando as almofadas da cama, ela virou-se dando espetáculo, torcendo o tronco para que um dos peitos ainda estivesse à vista. Com a unha pintada de preto, desenhou
um círculo à volta do mamilo, enquanto arqueava as costas para baixo e espetava o traseiro para cima...
Um rugido discreto agitou o ar estagnado e tranquilo do quarto e isso foi uma indicação para ela. Abrindo as pernas, empinou as nádegas, com os dedos dos pés espetados
e arqueando novamente a espinha.
Sabia perfeitamente o que estava a mostrar aos pés da cama... e o rugido dele disse-lhe que estava a gostar do que via. Portanto, estava na altura de ir mais longe.
Olhando para ele, colocou o dedo médio na boca e chupou-o. Depois mudou de posição e levou-o até ao sexo, esfregando-se a si própria.
Não sabia se era a erva ou... merda, qualquer coisa com aqueles homens... de repente estava mesmo muito excitada. Ao ponto de desejar aquilo que estava prestes a
acontecer.
Inclinando-se sobre ela, o que dava ordens pôs as mãos na parte da frente das ancas.
- Beija-a - ordenou.
Ela estava tão preparada para aquilo, apesar de normalmente não o permitir. Virando o rosto para o outro, sentiu a sua boca ser invadida por um conjunto de lábios
suaves, exigentes... e depois uma língua entrou nela...
Ao mesmo tempo que umas grandes mãos se encaixavam na parte de cima das suas coxas e a abriam ainda mais.
E outro conjunto de mãos dirigiu-se aos seus seios.
Apesar de ser uma profissional, a sua mente foi de viagem, levando consigo as coisas que habitualmente a preocupavam enquanto fazia o que fazia, fazendo desaparecer
coisas como, onde estavam os preservativos? Quais eram as regras básicas?
Cinto. Fecho. E depois o som de calças a deslizar e o resfolegar do colchão ao cair-lhe alguma coisa pesada em cima.
Imaginou, vagamente, se o pénis que tinha sido libertado seria tão grande como o resto do homem atrás dela. E se era, pensou, diabos, ela era bem capaz de equacionar
a ideia de lhes oferecer uma segunda volta de borla. Partindo do princípio de que se aguentavam tanto tempo...
Uma ponta arredondada entrou dentro dela, enquanto mãos a levantavam pelas ancas e a deixavam de gatas. Meu deus, ele era enorme... Ela preparou-se para sentir a
fricção, à medida que uma palma da mão lhe percorria a espinha e dedos penetravam no seu cabelo curto. Ele ia puxar-lhe a cabeça para trás, mas ela não se importava.
Só queria mais dele dentro dela...
Mas ele não ficou violento, nem sequer avançou imediatamente. Pelo contrário, massajou-a como se gostasse do toque da sua pele, levando-lhe as mãos aos ombros e
depois deslizando-as até aos seios... e depois descendo mais ainda até ao sexo molhado. E quando a penetrou completamente, foi com um deslizar suave, dando-lhe até
um segundo para se habituar ao diâmetro e ao comprimento.
Depois colou as palmas das mãos nas ancas e avançou com o ato. Mesmo quando o amigo se esgueirou para debaixo dela para sugar os seios pendurados.
Com a velocidade a intensificar-se, os mamilos andavam para a frente e para trás a bater na boca do que estava por baixo dela ao ritmo das estocadas das ancas que
lhe batiam no rabo uma e outra vez. Mais depressa. Com mais força. Mais depressa...
- Fode-me - ganiu ela. - Oh, porra, sim...
Abruptamente, o que estava deitado no colchão mudou de posição e reposicionou-a, enchendo-lhe a boca com o maior pénis que ela alguma vez tinha engolido.
Ela teve mesmo um orgasmo.
Se isto continuasse assim, seria ela a dar-lhes uma gorjeta.
Um segundo depois, o homem por trás saiu de dentro dela e sentiu salpicos quentes nas costas. Mas ainda não tinha acabado. Voltou à carga um momento depois, tão
encorpado e rígido como da primeira vez que a penetrara.
Aquele que ela estava a chupar gemia e depois foram separados, quando ele lhe levantou a cabeça. Veio-se nas suas mamas, com jatos quentes a decorarem-lhe o peito,
espalhando um pouco mais daquele aroma fantástico, ao mesmo tempo que o outro voltava a sair dela e a ejacular-lhe nas costas.
E depois o mundo deu meia volta e ela viu-se deitada de costas, com o homem da carteira a assumir a posição de comando sobre ela e a preencher-lhe o sexo, ficando
igualmente apertada.
Foi ela que procurou o amigo silencioso e autoritário, trazendo o pénis dele para a boca, tirando-o do papel de espetador para dentro dela outra vez.
Era tão grande que teve de esticar o queixo para ele caber e sabia deliciosamente, como nada que provara antes. Chupava-o enquanto o outro a tomava a sério. Abandonou-se
às sensações de ser preenchida, ou invadida por pénis duros e selvagens que lhe abanavam todo o corpo.
No seu delírio, tentou ver o homem a quem estava a lamber, mas ele conseguia sempre, de alguma forma, manter-se de costas para a luz e isso tornava tudo ainda mais
erótico. Como se estivesse a chupar uma sombra viva. Merda, ao contrário do outro, ele não soltava agora nenhum som e nem sequer estava a arfar. Mas estava a gostar,
a sério, entrando na sua boca e saindo e depois voltando a entrar. Pelo menos até saltar cá para fora e colocar a palma da mão sobre a ereção. Juntando os seios,
ela deu-lhe uma ótima plataforma para ele se vir e, Deus do céu, apesar de ela ser copa AA, ele cobriu-a.
Até o peito ficar peganhento, escorregadio e a pingar.
Quando voltou a concentrar-se, tinha os joelhos junto às orelhas e o que tinha o dinheiro estava a preparar-se para atacar outra vez da melhor maneira possível.
E o patrão estava outra vez nos seus lábios, pressionando, querendo mais. O que ela lhe daria com todo o gosto.
Fitando-os enquanto se moviam em uníssono, ela sentiu um medo percorrê-la. Dobrada por baixo deles, ela tinha a sensação que a podiam partir ao meio se lhes apetecesse.
Mas não a magoaram.
E continuaram uma e outra vez, os dois trocando de lugares sem parar. Era óbvio que já tinham feito aquilo muitas vezes e, meu Deus, ela estava a satisfazê-los à
grande.
Finalmente estava terminado.
Nenhum deles disse nada. Nem a ela, nem um ao outro. Era estranho, porque a maioria do sexo a três em que ela participara acabava com os idiotas a darem mais cinco
uns aos outros. Estes dois não. Guardaram os pénis e... bem, não é que as carteiras voltaram a aparecer?
Enquanto estavam ali por cima dela, ela passou a mão pela boca, pelo pescoço e pelos seios. Estava coberta em tantos sítios que já perdera a conta, e adorava, era
suavizante aquilo que tinham deixado na sua pele. Estava a brincar com o sémen porque queria, não para benefício deles.
- Queremos dar-te mais quinhentos - disse o primeiro em voz baixa.
- Para quê? - aquele gorgolejar satisfeito era mesmo ela?
- Vai saber bem, prometo.
- É perverso?
- Muito.
Ela riu-se e ondulou as ancas.
- Então digo que sim.
Quando o homem sacou das notas, parecia haver muitas outras naquele maço e, se ele fosse, talvez, outra pessoa, era capaz de ter avisado o chulo e de ter dito ao
Mack para o intercetar no parque de estacionamento. Mas, no entanto, não ia fazer isso. Em parte por causa do sexo incrível. Mas mais ainda porque achava que era
provável que aqueles tipos dessem uma tareia a quem se metesse com eles.
- O que querem que faça? - perguntou, enquanto apertava o dinheiro no punho.
- Abre as pernas.
Ela não hesitou, os joelhos a afastarem-se para longe.
E eles não hesitaram, inclinando-se ambos sobre a vulva molhada.
Deus do céu, iam chupá-la? Só de pensar nisso os olhos rolaram para trás e ela gemeu...
- Ai!
Ela começou a levantar-se, mas eles forçaram-na a ficar deitada no colchão.
As lambidelas subtis que se seguiram deixaram-na quase inconsciente. Mas, contudo, não eram no seu sexo. Mesmo a meio do corpo, de ambos os lados, na articulação
onde as coxas se ligam ao tronco.
Um chupar rítmico... como se a embalasse.
Karrie suspirou e abandonou-se ao que sentia. Teve uma sensação chocante de que eles se estavam a alimentar dela, de alguma forma, mas era espetacular especialmente
quando alguma coisa entrou dentro dela. Talvez fossem dedos... provavelmente.
Sim, definitivamente.
Quatro dedos preenchiam-na e duas mãos separadas começaram a entrar e sair alternadamente, enquanto as duas bocas chupavam a sua carne.
Ela veio-se outra vez.
E outra vez.
E outra.
Depois de só Deus sabe quanto tempo, acariciaram-na várias vezes, nos lugares onde tinham estado a chupar e não onde as mãos tinham estado.
E depois retiraram tudo, bocas, dedos, corpos.
Endireitaram-se os dois.
- Olha para mim - disse o líder.
As pálpebras estavam tão pesadas que teve de fazer força para poder obedecer. E quando o fez, sentiu uma dor ardente nas frontes. Contudo, não durou muito tempo
e a seguir... sentia-se a flutuar.
Foi por isso que não prestou muita atenção ao grito distante e abafado que veio da porta ao lado pouco depois, não do quarto em que estava o Mack, mas o do outro
lado.
Bum! Pum. Bum...
Karrie começou nessa altura a adormecer, morta para o mundo, o dinheiro colado à palma da mão quando aquilo que estava molhado secou.
Não estava preocupada com nada. De facto, sentia-se fantástica.
Diabos... com quem é que tinha estado...?
* * *
Quando Xcor saiu do quarto de hotel da prostituta com Throe imediatamente atrás dele, fechou a porta e olhou para a esquerda e para a direita. As instalações que
o soldado tinha escolhido para aquela diversão carnal ficavam nos arredores da cidade. Degradado e a desfazer-se em alguns pontos, o edifício térreo tinha sido dividido
em caixas que pareciam guarda-louças, com o escritório na ponta mais à esquerda. Tinha preferido o quarto mais longínquo na ponta oposta para garantir a privacidade,
mas o melhor que conseguira fora o quarto ao lado.
Não obstante, na verdade, quais eram as hipóteses de estarem todos ocupados? Dificilmente estaria ali mais alguém.
Perscrutando os lugares de estacionamento à sua frente, viu um Mercedes preto que tentava desesperadamente parecer mais novo do que aquilo que era... e um todo-o-terreno
com cobertura. Os outros dois carros estavam mais longe, junto ao escritório.
Isto era perfeito para o tipo de propósito que tinha servido. Escondido. Povoado por pessoas que não queriam ninguém a intrometer-se no que ali faziam e dispostas
a tratar os outros com igual cortesia. E a iluminação exterior era fraca. Só uma em cada seis lâmpadas, por cima das portas, é que estavam a funcionar. Que raios,
a luz mais próxima da sua cabeça tinha sido destruída. Por isso, estava tudo difuso e escuro.
Ele e o seu bando de bastardos teriam de encontrar fêmeas da sua raça para satisfazer as suas necessidades de sangue a longo prazo, mas a seu tempo isso aconteceria.
Até lá? Contentar-se-iam com mulheres como a que ele e Throe tinham acabado de foder e fá-lo-iam naquele local deserto.
Throe falou calmamente.
- Satisfeito?
- Sim, ela não era nada má.
- Fico feliz...
Um aroma no ar fez com que ambos virassem as cabeças para a porta do último quarto. Quando Xcor inspirou profundamente para confirmar aquilo de que tinha sentido,
um leve aroma, o cheiro a sangue humano fresco foi uma surpresa desagradável.
Contrariamente à expressão no rosto de Throe, que demonstrava não estar nada surpreendido.
- Nem penses nisso - rosnou Xcor. - Throe. Foda-se.
O guerreiro estava a dirigir-se à porta com uma expressão turbulenta. A sua agressividade tinha sido inflamada porque era sangue feminino que estava a ser derramado.
A fertilidade era evidente no ar.
- Não temos tempo para isto - disparou Xcor.
Em jeito de resposta, Throe deu um pontapé na porta e abriu-a.
Enquanto Xcor praguejava, apenas brevemente considerou desmaterializar-se da cena. Tudo o que era necessário para curar o impulso era olhar lá para dentro. A ridícula
façanha heroica de Throe tinha exposto uma confusão. Literalmente.
Uma fêmea humana estava amarrada à cama, com alguma coisa enfiada na boca. Estava quase morta e demasiado perto da sepultura para ser salva. O sangue dela estava
por todo o lado, nas paredes ao seu lado, escorrendo para o chão, ensopando o colchão. Os utensílios de quem quer que fosse que tinha feito aquilo estavam na mesa-de-cabeceira:
duas facas, fita adesiva, tesouras... e meia dúzia de pequenos frascos transparentes com um líquido incolor e tampas ao lado.
Havia coisas a flutuar nos...
Ouviu-se um estrondo vindo da casa de banho. Como se uma bandeira ou vidro de janela tivesse sido aberto e fechado.
Quando Throe começou a correr para o interior, Xcor adiantou-se e agarrou o outro macho pelo braço. Em dois tempos, Xcor soltou a pulseira de aço que mantinha no
cinto das armas e prendeu-a no pulso robusto do seu soldado. Arrastando-o com o seu peso, volteou-o no ar como a uma bola presa a uma corrente. Ouviu-se uma batida
seca na parede mais distante, quando o reboco barato parou o pêndulo de vampiro.
- Deixa-me.
Xcor puxou-o para perto de si.
- Isto não é da tua conta.
Throe puxou o braço atrás e deu um murro na parede, desfazendo mais um bocado do reboco velho.
- Ai isso é que é. Solta-me!
Xcor deu uma palmada na parte de trás do pescoço do macho.
- Não é. O teu. Mundo!
Nesta altura lutaram, atirando-se um ao outro e derrubando coisas, fazendo mais barulho do que deviam. E estavam prestes a cair na carpete ensanguentada, quando
um homem humano sem pescoço e com óculos escuros do tamanho de vidros de janela deslizou para o corredor. Deu uma olhadela à cama, outra a Xcor e Throe, e depois
resmungou, cobrindo os olhos com os braços enquanto fugia agachado.
Um segundo depois, a porta do quarto onde tinham estado abriu-se e fechou-se... depois abriu-se e fechou-se outra vez. Ouviu-se o som de saltos altos a bater no
chão, depressa e descoordenados, e ouviu-se um clomp, clomp de pessoas a entrarem num carro.
Um motor rugiu e o Mercedes arrancou, saindo do parque de estacionamento, sem dúvida com a prostituta e o dinheiro lá dentro.
E aquela partida apressada confirmava aquilo que Xcor assumira sobre a clientela daqui.
- Ouve-me - disse a Throe. - Ouve-me, minha grande besta... isto não é problema nosso. Mas se ficares aqui, vais torná-lo nosso...
- O assassino fugiu!
- E nós também vamos fugir.
Os olhos pálidos de Throe centraram-se na cama e a máscara de fúria dissipou-se por breves momentos. Por baixo dela havia uma expressão que chegou mesmo a deter
a agressividade de Xcor. Tanta dor, meu Deus, tanta dor.
- Ela não é a tua irmã - sussurrou Xcor. - Anda comigo.
- Não posso...deixá-la... - Uns olhos enormes vidrados cruzaram-se com os seus. - Não podes pedir-me isso.
Xcor deu uma volta, mantendo o soldado preso. Tinha de haver alguma coisa do assassino, alguma coisa que pudessem...
Xcor arrastou o guerreiro para a casa de banho e ficou sombriamente satisfeito ao observar a janela por cima da sanita. O único painel grosso de vidro fosco estava
intacto, mas havia um rasto de sangue brilhante na borda da armação de metal.
Exatamente o resquício de que precisavam.
Xcor alcançou a janela e passou dois dedos pela extremidade que tinha rasgado a carne humana.
O sangue colou-se aos seus dedos.
- Abre - ordenou.
Throe abriu a boca e chupou os dedos, fechando os olhos para se concentrar, enquanto se começavam a ouvir sirenes distantes na noite.
- Temos de ir agora - disse Xcor. - Vem comigo e eu dou-te autorização para caçares o homem. Concordas? Acena. - Quando Throe assentiu, ele decidiu que precisava
de mais. - Jura.
Throe fez uma vénia, curvando o tronco.
- Juro.
Soltou a pulseira... e ambos desapareceram como por magia, exatamente quando os rotativos azuis anunciavam a chegada da polícia humana.
Xcor não costumava ser compassivo em nenhuma situação. Mas mesmo que fosse, não teria concedido nenhuma compaixão àquele profanador humano que era agora o alvo de
Throe... e em breve seria caçado.
Capítulo 44
-Doutor Manello?
Ao ouvir o seu nome, Manny voltou à realidade e percebeu que, de facto, ainda estava em Tricounty, no jardim da entrada. Era bastante irónico que o segurança tivesse
sofrido um ataque à sua mente e, mesmo assim, era ele que recebia as atenções.
- Ah...sim, desculpe. O que disse?
- Está bem?
- Não, não estou.
- Bem, foi atacado... nem consigo acreditar em como lidou com isso. Num minuto ele estava em cima de si... no minuto seguinte tinha a arma e ele estava a... voar.
Claro que se livraria disso.
- Sim. É isso. Exatamente.
Os polícias apareceram dois segundos depois e seguiu-se uma torrente de perguntas e respostas. E foi espetacular. O segurança nunca referiu Payne. Era como se ela
nunca ali tivesse estado.
Não devia ficar surpreendido, tendo em conta o que Manny já tinha passado não só com ela, mas também com Jane. Mas mesmo assim estava admirado.
Havia tanta coisa que ele não percebia. Como Payne tinha desaparecido como por magia à sua frente. Como não restava nada dela, pelo menos que o segurança pudesse
ver, apesar de se lembrar perfeitamente de Manny. Como ela se tinha mantido tão calma e controlada numa situação fatal.
Na realidade, esta última parte tinha sido muito erótica. A maneira como ela o tinha triturado era fantasticamente excitante. Manny não tinha a certeza do que isso
dizia sobre ele, mas era assim.
E ela iria mentir, pensou. Diria ao pessoal dela que a mente dele tinha sido apagada. Diria que tinha tratado de tudo.
Payne encontrara a solução perfeita. Ele tinha a sua mente, ela tinha as suas pernas e ninguém sabia nada em contrário, nem o seu irmão, nem os da sua laia.
Sim, estava tudo tratado. Tudo o que tinha de fazer agora era passar o resto da vida ansiando por uma fêmea que nunca devia ter conhecido. Uma merda que não custa
nada.
Uma hora depois, entrou no seu Porsche e regressou a Caldwell. Conduzindo sozinho, o carro não só parecia vazio, como parecia um deserto e deu consigo a subir e
descer os vidros. Não era a mesma coisa.
Ela não sabia onde ele vivia, pensou. Mas isso não importava, pois não? Ela não voltaria.
Meu Deus, era difícil escolher o que teria custado mais. Um adeus longo e demorado, em que ele a olhava nos olhos e mordia a língua para evitar falar de mais? Ou
aquela merda rápida, do tipo arrancar-o-penso?
As duas eram uma porcaria.
No Commodore, desceu ao subterrâneo, estacionou no seu lugar e saiu do carro. Foi para o elevador. Subiu ao apartamento. Entrou. Fechou a porta.
Quando o telemóvel tocou, enfiou a mão no bolso para o tirar e, quando viu o número, praguejou. Goldberg, do centro médico.
Atendeu sem entusiasmo.
- Olá.
- Atendeste? - disse o homem aliviado. - Como estás?
Pois. Não queria entrar por ali.
- Estou bem. - Após uma pausa, disse - E tu?
- Estou bem. As coisas têm estado... - Hospital. Hospital. Hospital hospital, hospitalh ospit alhosp. Ital hospit alhospital...
Entrou por um ouvido e saiu pelo outro. No entanto, Manny não se apressou. Foi para a bancada da cozinha, tirou o Lag e sentiu-se como se tivesse levado uma pancada
na cabeça ao ver o pouco que restava na garrafa. Inclinando-se para o armário, retirou uma garrafa de Jack que estava lá para trás há tanto tempo que tinha pó na
tampa.
Pouco depois, desligou o telefone e concentrou-se na bebida. Primeiro o Lag. Depois o Jack. E depois seguiram as duas garrafas de vinho que estavam no frigorífico.
E o que restava de um pacote de seis Corona que tinha sido deixado na despensa e não estava fresco.
Contudo, o seu cérebro não deu pela diferença entre o álcool aquecido e a bebida fresquinha.
Feitas as contas, o festival de ingestão de álcool demorou uma hora. Talvez mais. E foi muito eficiente. Quando pegou na última cerveja e se dirigiu para o quarto,
andava como se estivesse na ponte da Enterprise, abanando para a esquerda e para a direita... e depois recuando. E, apesar de ver perfeitamente à luz ambiente da
cidade, tropeçou em tudo. Devido a algum milagre inconveniente, a sua mobília tinha ganhado vida e estava determinada a meter-se no seu caminho... tudo, desde as
cadeiras estofadas de pele até...
- Foda-se.
... à mesa de centro.
E o facto de agora estar a esfregar a canela enquanto andava era como adicionar uns patins em linha à festa.
Quando chegou ao quarto, bebeu um enorme gole da Corona para celebrar e progrediu para o banho aos tropeções. Água a correr. Roupas despidas. Entrar na banheira.
Não valia a pena esperar pela água quente, não sentia nada, fosse como fosse, e o objetivo era esse.
Não se deu ao trabalho de se secar. Foi simplesmente para a cama com água a escorrer do corpo e, ao sentar-se, bebeu o resto da cerveja. Então... uma imensidão de
nada. O seu alcoolómetro estava a subir assustadoramente alto, mas ainda não tinha atingido o ponto crítico e acabado com ele.
Consciência era, contudo, um termo relativo. Apesar de se poder argumentar que estava acordado, estava completamente desligado, e não só pelo exagero de álcool no
sangue. Ele estava sem energia no interior, de uma maneira muito estranha.
Deixando-se cair no colchão, pensou que, agora que a situação com Payne se tinha resolvido, era altura de andar com a vida para a frente ou, pelo menos, tentar na
manhã seguinte, quando a ressaca o acordasse. A sua mente estava ótima, por isso não havia razões para não voltar ao trabalho e para não tratar de separar, definitivamente,
aquele interlúdio lixado do resto da sua vida normal.
Fitando o teto, ficou aliviado quando a visão se tornou nublada.
Até se aperceber que estava a chorar.
- Mariconço de merda.
Limpando os olhos, estava positiva e absolutamente decidido a não seguir aquele caminho. Mas seguiu... e ficou lá. Meu Deus, já sentia a falta dela ao ponto da agonia.
- Mas que... diabo!
Subitamente levantou a cabeça e o pénis começou a inchar. Olhando pelas portas deslizantes de vidro da varanda, perscrutou a noite com um desespero que o fez sentir
como se as loucuras mentais tivessem voltado.
Payne...
Payne...?
Esforçou-se por se levantar da cama, mas o corpo recusava-se a obedecer, como se o cérebro estivesse a falar uma língua que os braços e as pernas não conseguissem
traduzir. E depois a bebedeira venceu, pressionando Ctrl-Alt-Del e desligando o programa.
Não obstante, o sistema não reiniciou.
Depois de as pálpebras se fecharem, apagou, por muito que lutasse contra a maré.
Lá fora na varanda, Payne estava parada no vento gelado, com o cabelo a esvoaçar, o corpo todo em pele de galinha por causa do frio.
Desaparecera da vista de Manuel, mas não o tinha abandonado.
Apesar de ele ter demostrado ser capaz de tomar conta de si próprio, Payne não estava disposta a confiar a sua vida nem a ninguém nem a nada. Concomitantemente,
tinha-se envolvido em mhis e ficado no jardim do hospital veterinário, observando-o a falar com a polícia e com o segurança. E depois, quando ele fora para o carro,
seguira-o, desmaterializando-se de um sítio para outro, seguindo o seu rasto graças à pequena quantidade do seu sangue que ele lambera.
A sua viagem para casa tinha culminado nas profundezas de uma cidade mais pequena do que aquela que ela vira do carro, mas ainda assim impressionante, com os edifícios
altos, as estradas pavimentadas e as pontes altas belíssimas que passavam sobre um largo rio. Caldwell era, de facto, linda à noite.
Quem lhe dera que ali estivesse por outra razão, que não uma despedida invisível.
Quando Manuel tinha virado para uma espécie de garagem subterrânea, ela tinha-o libertado. Já tinha alcançado o objetivo, que era ele chegar ao seu destino em segurança,
por isso sabia que tinha de partir.
Todavia, infelizmente, ela tinha-se demorado na rua, escondida no mhis, vendo os carros a passar e os peões a atravessar as esquinas. Passara uma hora. E depois
passou mais tempo. E ela não se conseguia ir embora.
Cedendo aos desejos do seu coração, ela tinha subido, subido, subido... elevando-se até onde Manuel estava, tomando forma na varanda da sua casa... e encontrando-o
a meio caminho de deixar a cozinha para a sala. Claramente a andar torto, estava sempre a ir contra a mobília, embora não fosse certamente por as luzes estarem apagadas.
Era a bebida que tinha nas mãos, sem dúvida.
Ou, mais exatamente, toda a bebida que consumira além daquela.
No quarto, não tinha propriamente despido as roupas, mas sim saltado para fora delas e depois ido para o chuveiro. Quando voltou a surgir a pingar, ela teve vontade
de gritar. Era tão difícil compreender que só tinha passado um dia desde que tinha, pela primeira vez, testemunhado a sua nudez. Apesar de ela sentir, realmente,
que podia procurar no tempo e alcançar esses momentos frenéticos em que estavam à beira de... não apenas um presente, mas um futuro.
Agora já não.
Ao chegar à cama, sentou-se... e depois colapsou no colchão.
Quando ele limpou os olhos, ela ficou completamente devastada. E a vontade de ir ter com ele era tão grande...
- Payne.
Com um uivo, ela virou-se. Ao fundo da varanda, parado na brisa... estava o seu gémeo. E, no instante mesmo em que pousou os olhos em Vishous, soube que alguma coisa
nele tinha mudado. Sim, o seu rosto já estava a sarar dos ferimentos que lhe causara o espelho, mas não era isso que tinha mudado. Ele estava diferente interiormente.
A tensão, a raiva e a frieza assustadora desapareceram.
Enquanto o vento fustigava o seu cabelo, ela tentou compor-se, eliminando as lágrimas que se alojavam em volta dos olhos.
- Como é que soubeste... que eu estava...
Com a mão enluvada, ele apontou para cima.
- Tenho aqui um apartamento. No topo do edifício. A Jane e eu estávamos de saída quando senti a tua presença aqui em baixo.
Devia ter percebido. Tal como ela conseguia sentir o mhis dele... ele podia sentir e encontrar o dela.
Ela desejava que ele tivesse continuado para onde ia. A última coisa de que precisava era de outra cena de «autoridade» da figura masculina dizendo-lhe o que fazer.
Além disso, o rei já tinha decretado a lei. O decreto de Wrath não precisava propriamente da aprovação de gente como o irmão.
Levantou a mão para o travar antes de ele dizer alguma coisa sobre Manuel.
- Não quero que me digas o que o rei já me disse. Estava mesmo de saída.
- A mente dele foi apagada?
Ela levantou o queixo.
- Não, não foi. Ele levou-me a passear e houve um... incidente...
A rosnadela que o irmão soltou soou mais alto do que o vento.
- O que é que ele te...
- Não foi ele. Credo, podes parar de... o odiar? - Enquanto massajava as frontes, perguntou-se se alguma vez explodira mesmo a cabeça a alguém ou se toda a gente
na Terra se sentia assim de vez em quando. - Fomos atacados por um humano e ao desarmá-lo...
- Ao humano?
- Sim - enquanto o desarmava, magoei-o e chamaram a polícia...
- Desarmaste um humano?
Payne fitou o gémeo.
- Quando retiras a arma a alguém, é isso que se diz, não é?
Vishous semicerrou os olhos.
- Sim, é.
- Não podia apagar as memórias de Manuel, porque se não ele não conseguiria responder ao interrogatório da polícia. E estou aqui... porque queria certificar-me de
que chegava bem a casa.
No silêncio que se instalou, ela apercebeu-se de que se tinha encostado a um canto. Ao ter de proteger Manuel, ela tinha acabado de provar o ponto de vista do irmão
de que o macho que ela queria não podia tomar conta dela. Oh, mas o que é que interessava. Tendo em conta que estava preparada para obedecer ao rei, não havia, fosse
como fosse, nenhum futuro para ela e Manuel.
Quando Vishous ia abrir a boca, ela gemeu e cobriu as orelhas com as mãos.
- Se tens uma réstia de compaixão, deixa-me fazer o luto sozinha. Não aguento ouvir todas as razões que levam a que me tenha de separar dele... já as sei de cor.
Por favor. Vai-te embora.
Fechando os olhos, virou-se e rezou à mãe dos céus para ele fazer o que ela pedia...
A mão no seu ombro era pesada e quente.
- Payne. Payne, olha para mim.
Sem nenhuma energia de sobra para lutar, ela deixou cair os braços e olhou para os seus olhos sombrios.
- Responde-me a uma coisa - disse o gémeo.
- O quê?
- Amas o sac... a ele. Ama-lo?
Payne olhou para trás, através do vidro, para o humano na cama.
- Sim. Estou apaixonada por ele. E se tentares dissuadir-me com o facto de ainda não ter vivido o suficiente para julgar, eu digo-te... vai à merda. Não preciso
de conhecer o mundo para perceber o desejo do meu coração.
Fez-se silêncio.
- O que disse Wrath?
- O mesmo que tu dirias. Que tenho de limpar da mente dele a minha memória e nunca, nunca mais o ver.
Como o irmão não disse mais nada, ela abanou a cabeça.
- Porque é que ainda aqui estás, Vishous? Estás a pensar no que hás de dizer para eu ir para casa? Deixa-me poupar-te ao esforço... quando chegar a madrugada, eu
vou... e cumprirei as leis, mas não por ser bom para ti ou para o rei ou para mim. É por ser mais seguro para ele... não precisa de inimigos como tu e a Irmandade
a torturá-lo só porque eu sinto aquilo que sinto. Por isso, será tudo como desejas. Só que - e aqui, ela iluminou-se - não vou apagar-lhe a memória. A mente dele
é demasiado valiosa para se perder... e não aguenta mais limpezas. Mantê-lo-ei seguro nunca mais voltando, mas não o vou condenar a uma vida de demência. Não vai
acontecer. Não fez outra coisa a não ser ajudar-me. Merece mais do que ser usado e deitado fora.
Payne voltou a olhar para o vidro.
Depois de um longo silêncio, ela assumiu que o gémeo se fora embora. Por isso, quase deu um grito quando ele lhe apareceu à frente e bloqueou a imagem de Manuel.
- Ainda aqui estás? - resmungou.
- Eu trato disto por ti.
Payne encolheu-se e depois rosnou.
- Nem te atrevas a pensar em matá-lo...
- Com Wrath. Eu trato disto. Eu... - Vishous passou a mão pelo cabelo. - Eu arranjo uma maneira de poderes ficar com ele.
Payne pestanejou. E depois sentiu a boca a ficar aberta.
- O que foi... O que foi que disseste?
- Conheço Wrath há muitos anos. E, tecnicamente, de acordo com as Leis Antigas, eu sou o chefe da nossa pequena e feliz família. Vou ter com ele e digo-lhe que aprovo
esta... união e que acho que devia ser permitido que visses o sac... o homem... o Manello. - Aclarou a garganta. - Wrath preocupa-se muito com a segurança, e com
mhis à volta do complexo... o Manello não conseguiria encontrar-nos mesmo que quisesse. Além disso, é uma hipocrisia negar-te o que outros Irmãos têm feito de vez
em quando. Que raios, o Darius teve um filho com uma mulher humana... e o Wrath está agora casado, com uma criança. Facto comprovado... se tivesses tentado separar
o nosso rei da sua Beth quando ele a conheceu? Ele teria matado qualquer um que sequer o sugerisse. A Mary do Rhage? A mesma merda. E devia... ser o mesmo para ti.
Até falo com a mahmen, se tiver de ser.
Payne pousou a mão sobre o coração.
- Não... compreendo porque é que... farias isto?
Ele olhou por cima do ombro, fitando o humano que ela amava.
- És minha irmã. E é a ele que tu queres. - Encolheu os ombros. - E... bem, também me apaixonei por uma humana. Apaixonei-me pela minha Jane uma hora depois de a
ter conhecido... e... sim. Sem ela, não tenho nada. Se o que sentes pelo Manello for metade do que sinto pela minha shellan, a tua vida nunca ficará completa sem
ele...
Payne atirou-se ao irmão num abraço. Quase o derrubou.
- Oh, meu irmão...!
Os braços dele rodearam-na e apertaram-na.
- Desculpa ter sido tão idiota.
- Foste... - Ela procurou outra palavra. - Sim, foste um idiota.
Ele riu-se, o som a roncar pelo peito acima.
- Vês, podemos concordar com alguma coisa.
Enquanto o apertava ainda mais, disse:
- Obrigada... Obrigada...
Após um momento, ele afastou-se.
- Deixa-me primeiro falar com Wrath, antes de ires ter com o Manello, okay? Quero tratar de tudo antes... e sim, agora vou já para casa. A Jane está a fazer rondas
e a Irmandade está de folga, por isso devo conseguir falar com o rei. - Fez uma pausa. - Só quero uma coisa em troca.
- O quê? Qualquer coisa. É só dizeres.
- Se vais ficar aqui até de madrugada, vai para dentro. Está um frio de rachar aqui fora, a sério. - Deu um passo atrás. - Vai lá... vai ver com o teu... macho...
Esfregou os olhos e ela teve a sensação de que ele se estava a lembrar de quando a apanhara no duche com o curandeiro.
- Eu volto... ah, liga... Tens telefone? Toma, fica com... merda, não o tenho.
- Está tudo bem, meu irmão. Eu regresso de madrugada.
- Ótimo, sim... nessa altura já terei notícias.
Ela olhou-o fixamente.
- Amo-te.
Agora ele sorria. Um grande sorriso, sem reservas. Esticando o braço, acariciou-lhe o rosto.
- Também te amo, mana. Agora vai lá para dentro e aquece-te.
- Vou fazer isso. - Esticou-se e deu-lhe um beijo na face. - Vou fazer isso!
Acenando-lhe, desmaterializou-se através do vidro. Oh, como o interior estava quente em comparação com a varanda... ou talvez fosse a onda de alegria que se espalhara
nela. Fosse o que fosse, fez uma pirueta apoiada só num pé e depois foi até à cama.
Manuel não estava apenas adormecido, estava totalmente inconsciente, mas ela não se importava. Saltando para a cama pôs um braço à volta dele e instantaneamente
ele gemeu e virou-se para ela, puxando-a para si, abraçando-a. Quando os corpos se fundiram e ela sentiu na anca a sua ereção, olhou rapidamente para a varanda.
Não valia a pena abusar da sorte com Vishous, mas tudo bem, ele já lá não estava.
Sorrindo na escuridão, ela descontraiu-se e acariciou o ombro do macho. Isto ia tudo correr bem e a chave tinha sido a lógica inabalável que Vishous tinha exposto
detalhadamente. De facto, o argumento era tão evidente, que ela nem acreditava que não tivesse pensado nisso antes.
Wrath podia não gostar, no entanto, concordaria porque os factos eram os factos e ele era um governante justo, que já tinha dado muitas vezes provas que não era
escravo dos costumes antigos.
Enquanto se aconchegava, sabia que não havia maneira de adormecer, correndo o risco de ser queimada pelo sol. Ela própria estava incandescente, ali deitada na cama
ao lado de Manuel, brilhando com tanta intensidade que projetava sombras no quarto.
Nada de dormir.
Ela só queria gozar o que estava a sentir.
Para sempre.
Capítulo 45
Vishous chegou a casa num abrir e fechar de olhos, e depois de dar conta da sua presença a Jane na clínica dirigiu-se à mansão através do túnel subterrâneo. Ao sair
para o átrio, só ouviu um reverberante absolutamente-nada, ficando desconfortável com o silêncio.
Estava tudo tão calmo.
É claro que, regra geral, isso seria assim por serem duas da manhã e os Irmãos estarem em campo. No entanto, naquela noite estavam todos recolhidos, provavelmente
a fazer sexo, a recuperar do sexo, ou a meio de o repetir.
Sinto-me como se tivesse feito amor contigo pela primeira vez.
Ao recordar a voz de Jane, nem sabia se havia de rir ou de dar um pontapé no seu próprio traseiro. Fosse como fosse, ele iniciara naquela noite um admirável mundo
novo, não que soubesse ao certo o que isso significava, mas estava disposto a tal. Absolutamente disposto.
Subindo a escadaria, dirigiu-se ao escritório de Wrath, enquanto procurava em todos os bolsos que... não tinha. Continuava com a maldita bata vestida. Com as manchas
de sangue. E sem cigarros.
- Que merda.
- Meu senhor? Necessita de algo?
Ao parar no cimo das escadas, olhou para Fritz, que limpava o balaústre, e quase beijou a matraca do mordomo.
- Estou sem tabaco. Mortalhas...
O velho doggen ofereceu um sorriso tão rasgado que as rugas no rosto o fizeram parecer um shar-pei.
- Tenho uma reserva na copa. Volto já... vai encontrar-se com o rei?
- Vou.
- Levar-lhos-ei lá... a par de um roupão, talvez?
A segunda parte foi proferida com toda a delicadeza.
- Porra, obrigado, Fritz. Salvaste-me a vida.
- Não, o senhor é que salva. - Fez uma vénia. - O senhor e a Irmandade salvam-nos todas as noites.
Fritz apressou-se a descer a escada, com um passo mais enérgico do que seria de esperar. Claro que não havia nada de que gostasse mais do que ser prestável. O que
era fantástico.
Certo. Ao trabalho.
Sentindo-se miserável na bata, V dirigiu-se às portas fechadas do escritório de Wrath, cerrou o punho e bateu.
A voz do rei fez-se ouvir do outro lado dos painéis grossos de madeira:
- Entra.
V obedeceu.
- Sou eu.
- Então, irmão?
No outro lado da sala de tons amaricados, Wrath estava na secretária imensa, sentado no trono do pai. No chão a seu lado, deitado numa cama Orvis vermelha personalizada,
George ergueu a cabeça loura e arrebitou as orelhas perfeitamente triangulares. O golden retriever bateu a cauda à laia de cumprimento, mas não deixou o dono.
O rei e o cão-guia nunca se separavam. E não era só porque Wrath precisasse de ajuda.
- Então, V? - Wrath recostou-se na cadeira entalhada, deixando pender a mão para afagar a cabeça do animal. - O teu cheiro é interessante.
- Ah é? - V sentou-se à frente do rei, assentando as mãos nas coxas e apertando para se tentar distrair da ânsia por nicotina.
- Deixaste a porta aberta.
- O Fritz vai trazer-me tabaco.
- Não vais fumar ao pé do meu cão.
Porra.
- Ah... - Esquecera-se da nova regra... e pedir que George fosse dar uma volta não era opção, afinal de contas Wrath podia ter perdido a visão, mas o sacana continuava
a ser mortífero e V já tivera a sua dose de S e M nessa noite, muito obrigado.
Fritz entrou no momento em que as sobrancelhas negras do rei se esconderam atrás dos óculos que lhe contornavam a cabeça.
- O seu tabaco, meu senhor - anunciou alegremente o mordomo.
- Obrigado, meu caro. - V aceitou as mortalhas e a bolsa... e o isqueiro que o doggen tivera o discernimento de providenciar. A par do roupão.
A porta fechou-se.
V olhou para o cão. A grande cabeça de George estava agora pousada entre as patas, com os ternurentos olhos castanhos parecendo lamentar a proibição do fumo. Chegou
mesmo a abanar ao de leve a ponta da cauda.
Vishous acariciou a bolsa do delicioso tabaco turco, num gesto desgraçadamente patético.
- Importas-te que enrole uns quantos?
- Se ouço a pedra do isqueiro vais ao chão.
- Entendido. - V alinhou o material na secretária. - Vim falar sobre a Payne.
- Como está a tua irmã?
- Ela está ... espetacular. - Abriu a bolsa, inalou e teve de reprimir o mmmm. - Resultou... não sei bem como, mas ela já anda por aí. De pé, como nova.
O rei chegou-se à frente.
- Não... me digas. A sério?
- Mesmo.
- É um milagre.
Ao que parecia, chamado Manuel Manello.
- Podemos dizer que sim.
- Pois isso é uma notícia do caraças. Queres arranjar-lhe um quarto aqui? O Fritz pode...
- É um bocadinho mais complicado do que isso.
Quando as sobrancelhas voltaram a desaparecer atrás dos óculos, V pensou, meu, mesmo sendo o rei completamente cego, parecia concentrar-se como sempre. O que nos
fazia sentir como se tivéssemos uma mira apontada à cabeça.
V começou a dispor os quadrados de papel branco.
- É aquele cirurgião humano.
- Ah... foda-se! - Wrath ergueu os óculos escuros para a testa e esfregou os olhos. - Não me lixes a dizer que eles se juntaram.
V permaneceu em silêncio, agarrando na bolsa e ocupando-se a espalhar tabaco.
- Estou à espera que me digas que me enganei. - Wrath deixou os óculos regressarem ao seu lugar. - Continuo à espera.
- Ela está apaixonada por ele.
- E não te importas com isso?
- É claro que me importo. Mas ela podia até sair com um Irmão e o desgraçado não ser bom o suficiente para ela. - Pegou num dos papéis carregados e começou a enrolar.
- Portanto... se ela o quer, digo que seja.
- V... sei o que estás a pensar e não o posso permitir.
Vishous parou enquanto lambia o papel e pensou em trazer Beth para a conversa. Claro que o rei parecia estar já a desenvolver uma dor de cabeça.
- Uma porra é que não podes permitir. O Rhage e a Mary...
- O Rhage foi espancado, lembras-te? Por um motivo. Além disso, as coisas estão a mudar, Vishous. A guerra está a aquecer, a Sociedade dos Minguantes anda a recrutar
como a merda... e ainda por cima temos a porra das metades que ontem encontraste na baixa.
Raios partam, pensou V. Aqueles matadores chacinados...
- E ainda por cima apareceu isto. - Sem olhar, Wrath levou a mão à esquerda e ergueu uma página em braile. - É a cópia de uma carta que foi enviada por e-mail ao
que resta das Famílias Fundadoras. O Xcor mudou de pouso com os rapazes dele... razão pela qual encontraste os minguantes naquele estado.
- Grande... porra. Eu sabia que tinha de ser ele.
- Ele está a armar-nos uma ratoeira.
V ficou hirto.
- Porquê?
A expressão de Wrath foi um verdadeiro acorda.
- Houve quem perdesse ramos inteiros da família. Fugiram de suas casas, mas querem regressar. Entretanto, as coisas em Caldwell estão a ficar cada vez mais perigosas.
Neste momento não podemos tomar nada como garantido.
Ou seja, ele não partia do princípio de que o seu trono estava seguro. Pouco importava a cadeira onde, por acaso, estava sentado.
- Portanto, não é que eu não entenda a situação da Payne - explicou Wrath. - Mas temos de fazer um círculo com as carroças e protegermo-nos. Não é uma boa altura
para acrescentarmos a complicação de ter aqui um humano.
O silêncio instalou-se por momentos.
Enquanto V pensava nos seus argumentos pegou em mais uma mortalha, enrolou-a, lambeu a borda, torceu.
- Ontem à noite ele ajudou a minha Jane. Quando os Irmãos e eu cá chegámos depois dos confrontos no beco, o Manello foi mais do que eficaz. É um cirurgião espetacular...
e eu bem o sei. Ele operou-me. Não é, de todo, inútil. - V olhou para o outro lado da secretária. - Se a guerra se intensificar, dava-nos jeito mais um par de mãos
operatórias aqui na clínica.
Wrath praguejou em inglês. E depois na Língua Antiga.
- Vishous...
- A Jane é espantosa, mas ela é só uma. E o Manello tem competências técnicas que a ela lhe faltam.
Wrath voltou a levantar os óculos e a esfregar os olhos. Com força.
- Estás a dizer-me que esse tipo vai querer passar o resto da vida, dia e noite, nesta casa? É pedir muito.
- E eu peço-lhe.
- Não gosto disto.
Um silêncio loooongo. O que mostrou a V que estava a abrir caminho. Claro que sabia que não devia forçar.
- Pensava que querias matar o desgraçado - resmungou Wrath. Como se esse fosse um objetivo preferível.
De repente, a imagem de Manello de joelhos à frente de Payne lançou-se pela mente de V, até ele ficar com vontade de pegar numa caneta e arrancar os próprios olhos
fora.
- Ainda quero - admitiu, num tom sombrio. - Mas... é ele que ela quer, a sério. O que é que eu posso fazer?
Outro silêncio loooongo, durante o qual produziu uma boa pilha de cigarros.
Por fim, Wrath passou a mão pelo nunca mais acabar de cabelo preto.
- Se ela se quiser encontrar com o humano fora daqui, o problema não é meu.
Vishous abriu a boca, pronto a argumentar, mas depois reconsiderou. Era melhor do que uma nega direta, e ninguém sabia o que o futuro reservava. Se mesmo depois
do Pesadelo do Duche V era capaz de evoluir para um ponto em que Manello permanecia acima da terra e a respirar, tudo poderia acontecer.
- É justo. - Fechou a bolsa. - O que vamos fazer quanto ao Xcor?
- Esperamos que o Conselho convoque uma reunião... algo que, não tenho dúvidas, vai acontecer nas próximas noites. A glymera vai engolir esta merda e nessa altura
ficamos com sérios problemas. - O rei prosseguiu, num tom seco: - Por oposição aos problemitas que temos agora.
- Queres que a Irmandade se junte para uma reunião?
- Não. Dá-lhes o resto da noite de folga. Isto não vai a lado nenhum.
V levantou-se, vestiu o roupão e juntou o material para fazer cigarros.
- Obrigado por isto. Tu sabes, por causa da Payne.
- Não é um favor.
- Já é uma mensagem de esperança para lhe levar.
Vishous estava a meio caminho da porta quando Wrath disse:
- Ela vai querer lutar.
V deu meia volta.
- Desculpa?
- A tua irmã. - Wrath pousou os cotovelos em cima da papelada e chegou-se à frente, com uma expressão grave no rosto cruel. - Tens de te preparar para quando ela
te pedir para ir combater.
Que raios, não.
- Não estou a ouvir isso.
- Mas vais ouvir. Já combati com ela, e é tão mortífera como tu e eu. Se julgas que ela se vai contentar a andar por esta casa nos próximos seiscentos anos, não
deves estar bom da cabeça. Mais tarde ou mais cedo, é o que ela vai querer.
Vishous abriu a boca e depois fechou-a.
Bem, estivera nas nuvens a apreciar a boa vida durante cerca de... vinte e nove minutos.
- Não me digas que o permitias.
- A Xhex luta.
- Ela é súbdita do Rehvenge. Não é tua. - As sobrancelhas de Wrath desapareceram pela terceira vez. - São padrões diferentes.
- Primeiro, todos os que se encontram debaixo deste teto são meus súbditos. E segundo, as coisas não ficam diferentes só por ela ser tua irmã.
- É claro - Que. Ficam. - que não.
- Uh-huh. Pois.
Vishous pigarreou.
- Estás mesmo a pensar deixá-la...
- Já viste como eu fiquei depois dos nossos duelos, não foi? Não lhe dei qualquer vantagem, Vishous. Aquela fêmea sabe o que está a fazer.
- Mas ela é... - Minha irmã. - Não a podes mandar lá para fora.
- Neste momento, preciso de tantos guerreiros quanto possível.
Vishous enfiou um cigarro entre os lábios.
- Acho que é melhor ir-me embora.
- Sim.
Assim que saiu e fechou a porta, acendeu o isqueiro de ouro que Fritz lhe trouxera e inspirou profundamente.
Enquanto pensava no que fazer a seguir, imaginou que poderia dar um salto ao Commodore e dar a boa nova à irmã, mas receava a cena perante a qual poderia vir a materializar-se.
Além disso, tinha até à alvorada para se convencer de que ter Payne em campo não era uma ideia tresloucada.
A par de tudo isso, tinha de falar com mais alguém.
Descendo a escadaria, atravessou o átrio e chegou ao vestíbulo. Lá fora, caminhou rapidamente pelo pátio empedrado e entrou no Fosso pela robusta porta principal.
A familiaridade dos divãs, do ecrã de plasma e da mesa de matraquilhos acalmou-o.
Ver a garrafa vazia de Lag em cima da mesa de apoio? Nem por isso.
- Butch?
Não teve resposta. Dirigiu-se então ao quarto do chui. A porta estava aberta e lá dentro... não havia nada, além do enorme roupeiro de Butch e de uma cama vazia
e revolta.
- Estou aqui.
V deu meia volta e espreitou para o seu quarto. As luzes estavam apagadas, mas as lâmpadas do corredor garantiam-lhe luz suficiente.
Butch estava sentado no extremo da cama, de costas para a porta, a cabeça baixa e os ombros largos curvados.
Vishous entrou e fechou a porta. Nem Jane nem Marissa iam aparecer. Estavam ambas ocupadas com os seus trabalhos. Mas Fritz e a sua equipa deviam passar por ali,
e o mordomo, louvado fosse, nem sequer batia a uma porta fechada. Já lá vivia há tempo suficiente.
- Então - disse V nas trevas.
- Então.
V avançou, contornando os pés da cama e servindo-se da parede para se orientar. Baixou o traseiro sobre o colchão e sentou-se ao lado do melhor amigo.
- Tu e a Jane estão bem? - perguntou o chui.
- Sim. Está tudo bem. - Que grande eufemismo. - Ela chegou mais ou menos quando acordei.
- Eu liguei-lhe.
- Imaginei. - Vishous virou a cabeça e olhou-o, embora isso pouco importasse naquele negrume. - Obrigado por aquilo...
- Sinto muito - gemeu Butch. - Meu Deus, sinto tanto...
A exalação arrastada que se seguiu foi um soluço mal disfarçado.
Apesar de não ver, V estendeu o braço e envolveu o chui. Aproximando o macho do peito, assentou a cabeça sobre a do amigo.
- Está tudo bem - disse, num tom rouco. - Está tudo bem. A sério... Fizeste o mais acertado...
De alguma forma, acabou por virar o macho, ficando com os baços em volta do chui.
Sem saber porquê, pensou na primeira noite que tinham passado juntos. Fora há um milhão e meio de anos, na antiga mansão urbana de Darius. Duas camas lado a lado
lá em cima. Butch perguntara sobre as tatuagens. V dissera-lhe que não se metesse onde não era chamado.
E ali estavam outra vez no escuro. Tendo em conta tudo o que acontecera desde então, era quase inacreditável que alguma vez tivessem sido aqueles dois machos que
estabeleceram uma ligação devido aos Sox.
- Não me peças para voltar a fazer aquilo nos próximos tempos - alertou o chui.
- Combinado.
- Claro que se precisares... vem ter comigo.
V esteve prestes a dizer qualquer coisa na linha de Nunca mais, mas isso era uma treta. Ele e o chui já tinham passado bastantes vezes por esse lado psiquiátrico
de V e, embora ele estivesse a virar a página, nunca se sabia.
Por isso limitou-se a repetir o voto que fizera a si próprio com Jane. A partir de agora, ia deixar as coisas saírem. Mesmo que isso o deixasse desconfortável a
ponto de gritar, era melhor do que a estratégia do acumular. Também era mais saudável.
- Espero que não seja preciso - murmurou. - Mas obrigado, meu.
- Mais uma coisa.
- O quê?
- Acho que agora já namoramos. - Quando V soltou uma gargalhada, o chui encolheu os ombros. - Então? Despi-te. Usaste um espartilho. E nem me lembres do banho de
esponja a seguir.
- Cabrão.
- Sempre.
Quando as gargalhadas se desvaneceram, V fechou os olhos e desligou brevemente o cérebro. Com o peito imenso do melhor amigo contra o seu, e a consciência de que
ele e Jane estavam outra vez bem, o seu mundo completava-se.
Agora, se conseguisse afastar a irmã das ruas e dos becos durante a noite... a vida seria perfeita.
Capítulo 46
Quando José se dirigiu ao Monroe Motel & Suítes, tornou-se óbvio que a única coisa nova em torno do sítio era a fita amarela que acabara de ser passada à volta do
perímetro. Tudo o resto estava murcho e em mau estado, incluindo os carros estacionados junto ao escritório.
Passando pelo alinhamento de polícias, chegou ao último quarto e estacionou o carro à paisana na diagonal em relação aos outros veículos da polícia de Caldwell.
Ao deixar o carro em ponto morto olhou para o outro banco.
- Estás bem para isto?
Veck já estava prestes a abrir a porta.
- Podes crer.
Quando saíram, os outros agentes aproximaram-se e Veck foi cercado por muitas palmadas nas costas. No departamento, as pessoas consideravam-no um herói devido ao
Incidente Paparazzi, e essa lista não se viu de todo reduzida por ele ignorar sempre os incentivos.
Mantendo-se tranquilo, limitou-se a puxar as calças e a sacar de um cigarro. Depois de o acender e de inspirar, falou enquanto exalava.
- Como estão as coisas?
José deixou o rapaz a informar-se e passou por baixo da fita. A porta arrombada da cena do crime fora encostada e abriu-a com o ombro.
- Porra - praguejou entredentes.
O ar estava carregado com o cheiro de sangue fresco... e de formaldeído.
Naquele momento, o flash da fotógrafa disparou e o corpo da vítima foi iluminado na cama, bem como os frascos de espécimes em cima da mesa-de-cabeceira. E as facas.
Fechou brevemente os olhos.
- Detetive?
José olhou sobre o ombro para Veck.
- Sim?
- Temos o registo da carrinha. Illinois. O dono é um tal de David Kroner. Não foi dada como roubada, e imagina só: o Kroner é um branco de trinta e três anos...
solteiro... de bai... grande porra. - As informações debitadas por Veck foram atalhadas ao parar junto à cama. - Jesus.
O flash voltou a disparar e ouviu-se um gemido eletrónico enquanto a máquina recuperava do esforço.
José olhou para o legista.
- Há quanto tempo é que ela está morta?
- Não muito. Ainda está quente. Dou-lhe uma hora mais aproximada quando acabar.
- Obrigado. - José acercou-se da secretária reles e serviu-se de uma caneta para afastar uma aliança de ouro fina, um par de brincos brilhantes e uma pulseira cor-de-rosa
e preta.
A tatuagem recortada da pela da vítima e depositada no frasco ao lado dela também era cor-de-rosa e preta. Provavelmente eram as suas cores preferidas.
Ou tinham sido.
Continuou a vaguear pelo quarto, em busca de coisas deslocadas, a confirmar os cestos de papéis, a espreitar a casa de banho.
Era óbvio que alguém interrompera o divertimento do assassino. Alguém ouvira ou vira qualquer coisa e tinha arrombado a porta, provocando uma fuga apressada pela
janela das traseiras por cima da sanita.
A chamada do 112 fora feita por um homem que se recusara a identificar-se. Dissera apenas que estava um cadáver no último quarto e nada mais. Não fora o assassino
deles. Esses sacanas só paravam se a isso fossem obrigados e não deixavam ficar o tipo de troféus que se viam em cima da mesa-de-cabeceira e da secretária.
- Para onde é que foste depois disto? - interrogou-se José. - Para onde é que fugiste...
Havia cães a farejar na mata lá atrás, mas José tinha a sensação de que isso não daria em nada. A meros cento e cinquenta metros do motel ficava um rio baixo o suficiente
para atravessar. A caminho dali, ele e Veck tinham passado sobre a pequena ponte que o atravessava.
- Ele está a mudar de estratégia - aventou Veck. Quando José se virou, o jovem levou as mãos às ancas e abanou a cabeça. - É a primeira vez que o faz num sítio assim
tão público. O trabalho dele é muito sujo... e potencialmente barulhento. Depois do que já fez, teríamos encontrado mais cenas como esta.
- Concordo.
- O David Kroner é a nossa resposta.
José encolheu os ombros.
- Talvez. Ou pode ser mais um corpo prestes a ser encontrado.
- Ninguém o deu como desaparecido.
- Disseste que era solteiro, certo? Talvez more sozinho. Quem ia dar por falta dele?
No entanto, mesmo enquanto abria buracos na teoria, José fez as suas próprias contas e chegou a uma conclusão semelhante. Era raro que alguém desaparecesse sem que
ninguém desse conta, família, amigos, colegas de trabalho, senhorio... Não era impossível, mas era pouco provável.
A questão era, para onde iria o assassino em seguida? Se o sacana seguisse o mais comum, seria provável que entrasse numa fase de exagero na patologia. Até então,
as vítimas apareciam com meses de intervalo, mas agora tinham encontrado duas numa semana.
Se partisse desse princípio, sabia que as ações cuidadosas que até então tinham ocultado o assassino iriam por água abaixo, com os padrões que seguia a desaparecerem
face a um impulso frenético. A boa notícia era que o desleixo o tornaria mais fácil de apanhar. A má notícia era que a situação poderia piorar antes de melhorar.
Veck acercou-se.
- Vou ver a carrinha. Queres estar presente?
- Sim.
Lá fora, o ar não cheirava a cobre e a químicos, e José respirou fundo enquanto Veck calçava as luvas e deitava mãos à obra. Como seria de esperar, o veículo estava
trancado, mas isso não o deteve. Pegou numa barra e abriu a porta do condutor como se já estivesse habituado a arrombar carros.
- Chiça - resmungou, ao recuar.
Não demorou muito para que o fedor chegasse a José, que tossiu para a mão. Mais formaldeído, mas também o fedor adocicado de coisas mortas.
- Não é na cabina. - Veck percorreu os bancos com a lanterna. - Na caixa.
As portas duplas tinham um cadeado, mas Veck foi à mala do carro à paisana e regressou com uma serra a pilhas.
Ouviu-se um gemido intenso... um ping!... e Veck entrou.
- Ah... porra...
José abanou a cabeça enquanto contornava o veículo para saber contra o que o parceiro praguejara.
O feixe da lanterna de Veck iluminava uma coleção de pequenos frascos com coisas a flutuar ou no fundo de um líquido transparente. Os recipientes estavam guardados
num sistema de prateleiras feitas por medida, montado do lado esquerdo. O lado direito estava reservado às ferramentas: facas e cordas, fita adesiva castanha, martelos,
escopros, lâminas, bisturis, afastadores.
Olá, David Kroner. Era extremamente improvável que o assassino tivesse montado tudo aquilo na carrinha de outra pessoa e quase apostava que os troféus naqueles frascos
encaixavam na perfeição nos buracos deixados na pele das vítimas.
A grande esperança seria que os cães-polícias lhe identificassem o rasto na mata.
Caso contrário, iriam perder outra mulher. José estava disposto a apostar a casa.
- Vou entrar em contacto com o FBI - disse. - Eles têm de vir ver isto.
Veck perscrutou o interior.
- Vou dar uma mãozinha aos rapazes da equipa forense. Gostava de levar este veículo para a sede o mais depressa possível, para que se possa identificar tudo devidamente.
José assentiu, pegou no telemóvel e pressionou a tecla de acesso rápido. Quando começou a chamar percebeu que, depois de falar com os federais, teria de ligar à
mulher. Nunca chegaria a casa a horas do pequeno-almoço.
Nem pensar.
Capítulo 47
-O sol! Ó, meu Deus! Depressa, é melhor...
Manny acordou em pleno ar. Era óbvio que saltara da cama, levando o edredão e várias almofadas consigo, e aterraram todos ao mesmo tempo, os pés, a coberta e o quarteto
de retângulos macios.
A luz do Sol entrava pelas janelas, enchendo-lhe o quarto com uma iluminação brilhante.
O cérebro dizia-lhe que Payne estava ali. Ela estava ali.
Olhando freneticamente à volta, correu para a casa de banho. Vazia. Percorreu o resto do apartamento. Vazio.
Esfregando o cabelo, voltou à cama... e depois apercebeu-se, santa mãe, ainda tinha as recordações todas. Dela. De Jane. Do Peras Odioso. Da operação e... daquele
duche maravilhoso. E de Glory.
Mas que raios...
Baixou-se, apanhou uma almofada e levou-a ao nariz. Sim, ela tinha mesmo estado deitada ao lado dele. Mas por que lá teria ido? E se assim fosse, por que não lhe
teria apagado a memória?
Dirigindo-se ao corredor, pegou no telemóvel e... Mas não lhe podia ligar. Não sabia o número.
Ali se deixou ficar por um instante e depois lembrou-se de que combinara encontrar-se com Goldberg dali a menos de uma hora.
Constrangido, e bizarramente em pânico sem qualquer motivo aparente, vestiu o equipamento de corrida e foi até ao elevador. No ginásio cumprimentou com acenos de
cabeça os outros indivíduos que malhavam ferro ou faziam abdominais e dirigiu-se à passadeira que costumava usar.
Esquecera-se do malfadado iPod, mas tinha a mente em tal alvoroço que silêncio era coisa que não havia entre as orelhas. Ao entrar no ritmo, tentou recordar-se do
que acontecera depois de tomar duche na véspera... mas não se lembrou de nada. Contudo, não estava com dor de cabeça, o que parecia sugerir que o buraco negro em
que se encontrava era algo natural, cortesia do álcool.
Ao longo do treino teve de acelerar a máquina algumas vezes. De certeza que um palerma teria andado a mexer na coisa e o tapete estava lento. E quando chegou aos
dez quilómetros apercebeu-se de que não estava de ressaca. Claro que a intensidade com que a mente lhe fervilhava fazia com que estivesse demasiado distraído para
se preocupar com as dores.
Quando desceu da passadeira, cerca de quinze minutos depois, precisava de uma toalha e dirigiu-se ao monte junto à saída. Um dos indivíduos dos pesos chegou ao mesmo
tempo, mas recuou, num gesto de deferência.
- Você primeiro, meu - estendendo a mão.
- Obrigado.
Enquanto Manny se limpava e dirigia à porta, fez uma breve pausa quando se apercebeu de que ninguém se mexia. Todos os que ali se encontravam tinham interrompido
o que faziam e fitavam-no. Uma olhadela rápida para baixo deixou-o com a certeza de que não sofria de uma perturbação de roupa. Mas que raios?
No elevador esticou as pernas e os braços e pensou, Cristo, podia correr mais quinze... vinte quilómetros sem problemas. E, apesar do álcool, pelos vistos tinha
tido uma noite de sono reconfortante, pois sentia-se desperto e cheio de energia. Mas era assim que funcionavam as endorfinas. Mesmo quando se estava a cair aos
bocados, a excitação da corrida era melhor do que cafeína... ou do que a sobriedade.
Não tinha dúvidas de que acabaria por se ir abaixo, mas logo se preocuparia com isso, quando a exaustão chegasse.
Meia hora depois entrou na Starbucks da Everett onde ele e Goldberg se tinham conhecido há anos, embora, na altura, o pequeno café ainda não tivesse sido adquirido
pela cadeia. O tipo fora aluno da Columbia e estava a concorrer ao internato no St. Francis, e Manny pertencia à equipa de recrutamento que fora reunida para o contratar.
Já na altura Goldberg era uma estrela e Manny quisera criar o melhor departamento do país.
Olhou à volta quando se pôs na fila para pedir um venti latte. O sítio estava a abarrotar, mas Goldberg já lhes conseguira uma mesa à janela. Isso não era uma surpresa.
Aquele cirurgião chegava sempre adiantado às reuniões. De certeza que já lá estaria há pelo menos quinze, vinte minutos. Mas não estava à procura de Manny. Fitava
o copo de papel, como se tentasse mexer psiquicamente o cappuccino.
Ah... ele trazia uma mensagem.
- Manuel? - chamou o rapaz ao balcão.
Manny aceitou o copo, contornou e ziguezagueou por entre os viciados em cafeína, os expositores de canecas e o quadro triangular que anunciava as promoções.
- Então? - cumprimentou ele quando se sentou à frente de Goldberg.
O outro cirurgião ergueu o olhar. E teve de olhar duas vezes.
- Ah... olá.
Manny bebeu um gole do café e recostou-se na cadeira, com as barras curvas das costas a pressionarem-lhe a coluna.
- Como tens andado?
- Eu estou... bem. Cristo, estás com um aspeto fantástico.
Manny esfregou o queixo com barba de véspera. Mas que grande mentira. Não se dera ao trabalho de se barbear e vestia uma camisola polar e calças de ganga. Não era
de todo os preparos de um garanhão.
- Deixemos as amabilidades. - Manny deu mais um gole no latte. - O que tens para me dizer?
Os olhos de Goldberg saltaram em todas as direções. Até que Manny teve pena dele.
- Querem que eu meta férias, não é?
Goldberg pigarreou.
- A direção do hospital acha que seria o melhor para... todos.
- Pediram-te para assumires a chefia, certo?
Mais um tossicar.
- Ah...
Manny pousou o copo.
- Não faz mal. Sem problema. Fico satisfeito... vai correr tudo bem.
- Sinto muito... - Goldberg abanou a cabeça. - Eu... isto parece tudo tão pouco ético. Mas... podes sempre voltar, sabes, depois. Além disso, o descanso fez-te bem.
Quer dizer, tu estás...
- Fantástico - disse Manny, num tom seco. - Uh-huh.
Era o que se dizia sempre às pessoas por quem se sentia pena.
Tomaram os cafés em silêncio e Manny interrogava-se se o outro estaria a pensar o mesmo que ele. Cristo, a volta que as coisas tinham dado. Quando se conheceram
ali, Goldberg estava tão nervoso como agora, só que por motivos bem diferentes. E quem diria que Manny viria a ser dispensado. Na altura só queria chegar ao topo
e nada o iria deter. E assim fora.
O que fez com que a sua reação ao pedido da direção fosse uma surpresa. Na verdade, não estava muito preocupado. Sentia-se... de certa forma desligado, como se isso
estivesse a acontecer a alguém que conhecera em tempos, mas que desde há muito se afastara. Pois, era importante, mas... que se danasse.
- Bem... - O toque do seu telefone interrompeu-o. E a dica quanto ao que realmente lhe interessava foi a pressa para tirar o aparelho, quase como se a camisola tivesse
pegado fogo.
Mas não era Payne, era o veterinário.
- Tenho de atender - disse a Goldberg. - Dois segundos. Sim, doutor, como está... - Manny franziu o cenho. - A sério. Uh-huh. Pois... pois... uhhuh... - Um sorriso
lento começou a crescer-lhe no rosto e dominou-lhe a expressão, até de certeza parecer radiante como um holofote. - Pois. É isso mesmo, não é? Parece a porra de
um milagre.
Quando desligou o telefone olhou para o outro lado da mesa. As sobrancelhas de Goldberg tinham-lhe chegado ao topo da testa.
- Boas notícias. Sobre o meu cavalo.
E o par de sobrancelhas subiu ainda mais.
- Não sabia que tinhas um cavalo.
- Chama-se Glory. É um puro-sangue.
- Ah. Uau.
- Dedico-me às corridas.
- Não sabia.
- Pois.
E as informações pessoais ficaram-se por aí, o que deu a entender a Manny o quanto falavam sobre o trabalho. No hospital, ele e Goldberg passavam horas a falar sobre
pacientes, questões de pessoal e sobre a gestão do departamento. De resto não tinham grande coisa a dizer um ao outro.
Mesmo assim, estava sentado à frente de um bom homem... alguém que provavelmente seria o próximo chefe de cirurgia do St. Francis. É claro que os diretores fariam
um concurso a nível nacional, mas Goldberg seria escolhido, pois os outros cirurgiões, que se assustavam com facilidade e gostavam de estabilidade, conheciam-no
e confiavam nele. E faziam bem. Goldberg era brilhante a nível técnico na sala de operações, proficiente a nível administrativo e muito mais calmo do que Manny alguma
vez fora.
- Vais fazer um excelente trabalho - garantiu Manny.
- O quê... ah. É só temporariamente, até que tu...tu sabes, até que voltes.
Ele parecia mesmo acreditar nisso, o que atestava a sua excelente índole.
- Pois.
Manny mexeu-se na cadeira e, quando voltou a cruzar as pernas, olhou à volta e viu três raparigas do outro lado. Deviam ter cerca de dezoito anos e, assim que cruzaram
os olhares, elas riram-se e falaram entre si, como se fingissem que não o tinham estado a mirar.
Voltando a sentir-se como no ginásio, confirmou o seu estado. Não. Continuava absolutamente sem estar nu. Mas que raio...
Quando ergueu o olhar, uma delas levantara-se e aproximara-se.
- Olá. A minha amiga acha que és giro.
Aaa...
- Ah, obrigado.
- Este é o telefone dela...
- Ah, não... não. - Pegou no papel que ela lhe depositara na mesa e obrigou-a a aceitá-lo de volta. - Fico lisonjeado, mas...
- Ela tem dezoito anos...
- E eu quarenta e cinco.
Com essas palavras, a rapariga ficou de boca aberta.
- Não posso.
- Sim. Podes. - Passou a mão pelo cabelo, interrogando-se quando entrara na Gossip Girl ou qualquer coisa do género. - E tenho namorada.
- Ah. - A jovem sorriu. - Isso é porreiro... mas, tipo, podias ter dito. Não era preciso mentir a dizeres que eras um cota.
Dito isso afastou-se e quando se sentou ouviu-se um gemido coletivo. E depois ele recebeu algumas piscadelas de olho.
Manny olhou para Goldberg.
- Miúdas. Quer dizer, sinceramente.
- Aaa. Pois.
Certo, estava na altura de acabar com aquele embaraço. Olhando pela janela, Manny começou a planear a saída...
No vidro viu o reflexo do seu rosto. Os mesmos malares altos. O mesmo queixo marcado. A mesma combinação de lábios e nariz. O mesmo cabelo preto. Mas havia qualquer
coisa de diferente.
Aproximando-se, pensou... os olhos estavam...
- Olha - disse calmamente. - Vou à casa de banho. Guardas-me o café antes de irmos embora?
- É claro. - Goldberg sorriu, aliviado, como se estivesse satisfeito por ter tantos planos de saída e um emprego. - Demora o tempo que quiseres.
Manny levantou-se e dirigiu-se à única casa de banho unissexo. Depois de bater sem resposta, abriu a porta e acendeu a luz. Quando se trancou e a ventoinha no teto
começou a funcionar, aproximou-se do espelho e leu o aviso «Os Funcionários Devem Lavar as Mãos».
A luz encontrava-se diretamente por cima do lavatório à frente do qual estava. Assim sendo, ele devia estar com um aspeto de merda, de olhos encovados pela exaustão,
com olheiras mais escuras que o breu e a pele da cor de uma torrada mal passada.
Não foi isso que o espelho lhe mostrou. Mesmo com a péssima luz fluorescente que o iluminava, parecia dez anos mais novo do que aquilo de que se lembrava. Irradiava
saúde, como se alguém tivesse photoshopado uma versão antiga da cabeça naquele corpo atual.
Recuando, estendeu os braços para o lado e agachou-se, dando à anca a oportunidade de berrar. Ou as coxas, que ele esforçara ao máximo há menos de uma hora. Ou as
costas.
Nada de dor. Nada de rigidez.
O corpo estava ansioso por trabalhar.
Pensou naquilo que o veterinário lhe dissera ao telefone, a voz do homem confusa e entusiasmada ao mesmo tempo: Ela regenerou o osso e o casco sarou espontaneamente.
É como se a lesão nunca tivesse acontecido.
Santo... Deus. E se Payne tivesse exercido a magia dela sobre ele? Enquanto estiveram juntos? E se ela lhe tivesse sarado o corpo a nível de tempo, sem que nenhum
desse por isso... fazendo o relógio biológico recuar não só meses, mas uma década ou mais?
Manny agarrou a cruz que trazia ao pescoço.
Quando alguém bateu à porta, Manny puxou o autoclismo na sanita vazia e depois abriu a torneira, para que não parecesse ter estado a fazer alguma coisa duvidosa.
Ao sair, estonteado, acenou com a cabeça para a mulher anafada que pretendia entrar e regressou para junto de Goldberg.
Sentou-se e limpou as palmas suadas às calças.
- Preciso de um favor - disse ao antigo colega. - É uma coisa que não pediria a mais ninguém...
- Diz. Qualquer coisa. Depois de tudo o que fizeste por mim...
- Quero que me faças uma avaliação física. E também uns exames.
Goldberg assentiu de imediato.
- Não ia dizê-lo, mas acho que é uma excelente ideia. As dores de cabeça...o esquecimento. Tens de saber se há algum... problema. - Ficou-se por aí, como se não
quisesse nem discutir nem tornar-se mórbido. - Embora, e isto é verdade... nunca te tenha visto com tão bom aspeto.
Manny acabou o café e levantou-se, com a sensação de urgência que o impelia sem nada ter a ver com a cafeína.
- Vamos embora. Se tiveres tempo agora, claro.
Goldberg não se demorou.
- Para ti, tenho sempre tempo.
Capítulo 48
De vez em quando, a morte de Qhuinn voltava ao pensamento dele. Acontecia em sonhos. Nas raras ocasiões em que ele estava quieto e calado. E às vezes para lhe lixar
a cabeça por puro gozo.
Ele procurava sempre evitar a colagem de imagens, cheiros e sons como se fossem a peste, mas apesar de ter solicitado ao seu tribunal interior o seu banimento, os
advogados adversários estavam a ser uns cabrões e a opor-se... portanto, aquela merda volta e meia regressava.
Deitado na cama, aquele pedaço de paisagem mental que não era nem estar a dormir nem desperto funcionava como uma linha aberta para aquela noite horrível lhe telefonar
e, quem diria, ela marcava o número, as memórias faziam soar a campainha e, de algum modo, forçavam-no a atender.
O seu próprio irmão fizera parte da guarda de honra que tinha aparecido para o espancar e os cretinos vestidos de preto seguiram-no pela berma quando ele veio embora
da mansão familiar pela última vez. Tudo o que possuía trazia consigo, e não fazia ideia para onde se podia dirigir. O seu pai tinha-o corrido de casa e ele tinha
sido riscado da árvore genealógica, portanto... era assim. Sem raízes. Sem rumo.
E tudo por causa dos seus olhos diferentes.
A guarda de honra supostamente só tinha por missão espancá-lo pela sua ofensa à linhagem. Não o deveriam matar. Só que as merdas tinham-se descontrolado e, numa
reviravolta inesperada, o irmão dele tinha tentado impedi-lo.
Qhuinn realmente recordava essa parte. A voz do irmão a dizer aos outros que parassem.
Mas tinha sido já demasiado tarde, e Qhuinn tinha flutuado para longe não só da dor, como também da própria terra... apenas para dar por si num mar de nevoeiro branco
que se abriu para revelar uma porta. Sem que ninguém lhe dissesse, ele tinha percebido que era a entrada para o Vápido e compreendeu também que, assim que a abrisse,
ele estava feito.
Coisa que lhe parecera uma ótima ideia na altura. Nada a perder, e tudo isso...
E ainda assim, ele vacilara no último instante. Por uma razão que não se conseguia lembrar.
Foi uma coisa estranhíssima... apesar de toda aquela noite estar gravada na sua mente, aquela era a única parte de que ele não se conseguia lembrar por mais que
tentasse.
Mas recordava-se de regressar ao seu próprio corpo. Ao recuperar a consciência, Blay tinha estado a fazer-lhe a reanimação cardiorrespiratória, e olha lá se aquele
não era um boca-a-boca de acordar os mortos...
A pancada que lhe soou na porta acordou-o de uma vez e ele sacudiu as almofadas, fazendo acender as luzes para ter a certeza de saber onde estava.
Isso mesmo. No seu quarto. Sozinho.
Mas não por muito mais tempo.
Os seus olhos ajustaram-se lentamente, apontaram para a porta, e ele soube quem estava do lado de lá. Conseguia sentir o aroma delicado a pairar, e soube por que
motivo Layla tinha vindo. Porra, talvez tivesse sido por isso que ele não tinha conseguido dormir em condições. Esperava ser acordado por ela a qualquer momento.
- Entra - disse-lhe num tom suave.
A Escolhida entrou sem ruído, e virou-se para ele, parecendo de rastos. Desgastada. Um deserto.
- Senhor...
- Podes chamar-me Qhuinn, sabes. Quer dizer, por favor, chama mesmo.
- Obrigada. - Ela fez uma vénia e pareceu debater-se para se endireitar. - Estive a pensar se poderia usufruir mais uma vez da tua oferta generosa para... te tomar
uma veia. Com efeito, estou... vazia e incapaz de regressar ao Santuário.
Quando o seu olhar se cruzou com os olhos verdes dela, algo se infiltrou bem fundo na sua mente, uma espécie de... perceção que ganhou raízes e rebentos de quase-que-entendi,
estou-quase-lá.
Olhos verdes. Verdes como uvas e jade e rebentos de primavera.
- Por que razão me olhas desse modo? - perguntou ela, apertando com mais força as lapelas das vestes.
Olhos verdes... num rosto que era...
A Escolhida espreitou novamente para a porta.
- Talvez... eu deva ir-me embora...
- Desculpa. - Sacudindo-se, ele certificou-se de que os lençóis o cobriam pela cintura e fez-lhe sinal para se aproximar. - Acabei de acordar... não ligues.
- Tens a certeza?
- Absoluta, anda cá. Amigos, lembras-te? - Estendeu a mão, e quando ela ficou ao seu alcance, pegou na dela e fê-la sentar-se.
- Senhor? Ainda estás a olhar para mim.
Qhuinn perscrutou o rosto dela e depois passou para o corpo. Olhos verdes...
Mas que raio tinham os olhos? Não é que ele nunca os tivesse visto antes.
Olhos verdes...
Conteve um palavrão. Cristo, isto era como ter uma canção na cabeça e lembrar-se de tudo menos da letra.
- Senhor?
- Qhuinn. Di-lo, por favor.
- Qhuinn.
Ele esboçou um sorriso.
- Toma, tira o que precisares.
Ao erguer o pulso, pensou, Meu, ela estava tão magra, ao debruçar-se e abrir a boca. As presas dela eram compridas e muito brancas, mas delicadas. Nada como as dele.
E o toque dela era gentil e feminino como tudo nela.
Coisa que o seu lado tradicionalista achou adequadíssimo.
Enquanto ela se alimentava, ele olhou para o cabelo loiro que estava arranjado num entrançado complexo, e para os ombros descobertos, e para as mãos bonitas.
Olhos verdes.
- Cristo. - Quando ela fez menção de parar, ele colocou a mão por trás do pescoço dela e manteve-a no seu pulso. - Está tudo bem. Tive uma cãibra no pé.
Mais verdadeiro seria dizer no cérebro.
Frustrado, ele ergueu a cabeça e, em vez de bater com ela na parede, esfregou os olhos. Quando os focou novamente, estava a olhar para a porta...
... Layla tinha acabado de entrar.
De imediato, ele voltou a deixar-se arrastar pelo sonho. Mas não pela pancada nem pelo seu irmão. Ele viu-se postado à entrada do Vápido... de pé em frente a painéis
brancos... com a mão erguida, quase a tocar na maçaneta.
A realidade esticou-se, puxou e derreteu-se como caramelo até ele não saber se estava acordado ou a dormir... ou morto.
O remoinho começou a formar-se no centro da porta, como qualquer que fosse o material de que era feita se tivesse liquefeito numa consistência leitosa. E do centro
daquela espécie de tornado surgiu uma imagem e veio aproximando-se, mais como se fosse um som do que algo palpável.
Era o rosto de uma jovem fêmea.
Uma jovem fêmea com cabelo loiro e traços refinados... e olhos verde-pálidos.
Ela olhava-o fixamente, cativando o seu olhar como se se tivesse apropriado de todo o seu rosto com as mãozinhas bonitas.
E então ela piscou os olhos. E eles mudaram de cor.
Um ficou verde, e o outro azul. Tal como os dele.
- Senhor!
A princípio ele ficou tremendamente confuso, imaginando o que teria levado a fêmea a chamar-lhe aquilo. Como é que ela sabia quem ele era?
- Qhuinn! Deixa-me fechar-te a ferida!
Ele pestanejou. E descobriu que se tinha atirado contra a cabeceira da cama, e ao fazê-lo, tinha arrancado da sua carne as presas de Layla e estava a sangrar para
o lençol.
- Deixa-me...
Ele afastou a Escolhida e colocou a própria boca na ferida. Enquanto cuidava de si, não conseguia tirar os olhos de Layla.
Era demasiaaaaado fácil sobrepor as feições daquela fêmea jovem no rosto de Layla e encontrar algo muito mais profundo do que semelhança.
Com o coração aos pulos, ele tentou lembrar-se que nunca lhe tinha dado para aquilo da presciência. Ao contrário de V, ele não conseguia ver o futuro.
Layla mexeu-se lentamente para sair da cama, como se não o quisesse assustar.
- Queres que eu vá chamar a Jane? Ou talvez seja melhor eu ir embora.
Qhuinn abriu a boca... e descobriu que não lhe saía nada.
Uau. Ele nunca tinha tido um acidente de carro, mas imaginou que o nó na garganta que sentiu naquele momento fosse provavelmente igual ao de um condutor que visse
outro carro ignorar um Stop e avançar para a sua porta. Triangulava a sua direção e velocidade contra as suas próprias, e concluía que o impacto estava iminente.
Ainda que ele não conseguisse imaginar um mundo em que engravidasse Layla.
- Vi o futuro - disse ele, à distância.
Layla levou as mãos à garganta como se estivesse a sufocar.
- Não é bom?
- Não é... possível. De todo.
Quando enfiou o rosto nas mãos, tudo o que conseguiu ver na escuridão foi aquela cara... aquela que era em parte a de Layla e em parte a sua.
Ó Deus... protege-os aos dois. Protege-os... todos.
- Senhor?! Estás a assustar-me.
Bem, com isso já eram dois.
Só que não podia ser. Ou podia?
- É melhor eu ir - disse ela com brusquidão. - Agradeço a tua dádiva.
Ele fez sinal com a cabeça, sem poder olhar para ela.
- Não tens de quê.
Quando a porta bateu, pouco depois, ele sentiu um arrepio, um medo gelado que lhe assaltou os ossos... e daí partiu para a sua alma.
Bem vistas as coisas, era irónico, pensou. Os seus pais nunca tinham querido que ele se reproduzisse, e quem diria... a ideia de emprenhar Layla com uma filha defeituosa,
ou pior, de passar os seus olhos fodidos a uma miúda inocente, fê-lo agarrar-se ao voto de celibato como nunca antes.
E, na verdade, ele deveria estar contente. De todos os destinos que poderia ter antevisto, este era cem por cento evitável, não era?
Ele simplesmente nunca iria foder com Layla.
Jamais.
Portanto, tudo não passava de uma impossibilidade. Ponto, parágrafo.
Capítulo 49
Manny regressou ao seu apartamento por volta das seis da manhã. Tudo indicava que tinha passado oito horas no hospital a ser incomodado e pressionado por várias
pessoas que conhecia melhor que a própria família.
Os resultados estavam na sua caixa de correio eletrónico porque tinha enviado automaticamente cópias de tudo o que estava na sua conta do hospital para a sua conta
pessoal. Não que houvesse razões para abrir os anexos. Ele sabia os comentários de cor. Sabia os resultados de cor. Todas as radiografias e TAC de cor.
Atirando as chaves para a bancada da cozinha, abriu o frigorífico e desejou que houvesse sumo de laranja fresco. Mas em vez disso, havia... pacotes de molho de soja
de um restaurante chinês de comida para fora ao fundo da rua... um frasco de ketchup... e uma marmita redonda com uma espécie de restos de um jantar de negócios
a que tinha ido há duas semanas.
Que se lixe. Não tinha assim tanta fome.
Inquieto e sem conseguir estar parado, avaliou a luz no céu. O sol ainda demorava a desaparecer a ocidente.
No entanto, não teria de esperar muito.
Payne regressaria para ele depois do sol se pôr. Sentia-o nos ossos. Ainda não sabia bem porque é que ela passara a noite com ele ou porque é que as suas memórias
permaneciam, mas tinha de pensar na hipótese de Payne tratar disso quando ali chegasse.
A caminho da casa de banho, o seu primeiro impulso foi apanhar as almofadas do chão e colocá-las no sítio. Depois alisou o edredão... e estava pronto para começar
a fazer as malas. Começou a tirar roupa da cómoda e a atirá-la para cima da cama revolta.
Não havia razão alguma para voltar para St. Francis. Tinha apresentado a demissão a meio dos exames.
Não havia razão para ficar em Caldwell. O melhor seria sair da cidade.
Não fazia ideia para onde iria, mas não era preciso um destino para se ir embora de um sítio.
Meias. Boxers. Polos. Calças de ganga. Calças de caqui.
A vantagem de ter um guarda-roupa que consistia acima de tudo em fardas fornecidas pelo hospital era não ter muito para arrumar. E Deus sabia que ele tinha muitos
sacos de ginásio.
Tirou da última gaveta da cómoda as únicas duas camisolas que tinha...
A moldura por baixo delas estava virada para baixo, com o suporte encostado pacificamente ao fundo.
Manny levantou o objeto. Não precisou de o virar para saber quem estava na fotografia. Tinha memorizado o rosto do homem há muitos, muitos anos.
E ainda assim foi um choque virar a moldura e ver a imagem do pai.
Um filho da mãe bonito. Muito, muito bonito. Cabelo escuro, tal como o de Manny. Olhos profundos, iguais aos de Manny.
E era até onde ele estava disposto a ir com a nostalgia. Como sempre, quando se tratava do pai, empurrava tudo para um canto na sua mente e andava para a frente
com a sua vida.
Esta noite isso significava que a moldura ia para cima do edredão e estava resolvido...
A batidela no vidro chegava demasiado cedo para ser ela, pensou.
Mas quando olhou para o relógio percebeu que a tarefa de preparar a mala tinha durado uma boa hora.
Olhando por cima do ombro, o coração bateu acelerou loucamente ao ver Payne do outro lado do vidro. Tinha entrançado o cabelo e tinha um vestido longo apertado na
cintura e estava... de cortar a respiração.
Foi até à varanda, abriu a porta deslizante e o ar frio da noite bateu-lhe na cara, obrigando-o a concentrar-se.
Com um sorriso de orelha a orelha, Payne não chegou bem a entrar, mas antes atirou-se para os seus braços, o corpo sólido contra o seu, os braços muito apertados
à volta do pescoço.
Deixou-se ficar abraçado a ela por instantes... pela última vez. E depois, apesar de não o querer, pousou-a no chão aproveitando a desculpa de fechar as portas para
evitar a rajada de vento para se afastar dela.
Quando a olhou de novo, a alegria no seu rosto tinha desaparecido e ela enrolava os braços à volta de si própria.
- Imaginei que voltasses - disse, rouco.
- Eu... Eu tinha boas notícias. - Payne olhou para a linha de sacos desportivos em cima da cama. - O que estás a fazer?
- Tenho de me ir embora daqui.
Enquanto ela fechou brevemente os olhos, quase o destruiu não ir até ela e confortá-la. Mas já era suficientemente difícil. Tocar-lhe outra vez ia desfazê-lo em
bocados.
- Fui ao médico hoje - disse ele. - Passei toda a tarde no hospital.
Ela ficou lívida.
- Estás doente?
- Não exatamente. - Andou para a frente e para trás até que parou em frente à cómoda e empurrou para dentro a última gaveta. - Na verdade, longe disso... Parece
que partes do meu corpo se regeneraram.
Colocou as mãos na anca.
- Durante anos tive uma artrite na anca, causada por lesões desportivas... sempre soube que eventualmente teria de ser substituída. Mas aquilo que mostram as radiografias
que fiz hoje? Está em perfeitas condições. Não há vestígios da artrite, nem inflamação. Está tão boa como quando tinha dezoito anos.
Quando ela abriu a boca, ele achou que o melhor era dizer-lhe já tudo. Puxando a manga da camisola, passou a mão pelo antebraço.
- Há duas décadas que tenho sardas por causa de queimaduras solares... agora desapareceram. - Baixou-se e levantou a perna das calças. - As microfraturas da tíbia
que me aparecem de vez em quando? Desapareceram. E isto apesar de eu ter corrido cerca de dez quilómetros esta manhã sem sequer pensar nisso... em menos de quarenta
e cinco minutos. As minhas análises não mostram qualquer indício de colesterol, têm valores hepáticos perfeitos, ferro e plaquetas na quantidade necessária exata.
Bateu com os dedos nas frontes.
- E há algum tempo que estou nos limites para usar óculos para ler, tendo de afastar as ementas e as revistas para conseguir... mas agora já não preciso. Consigo
ler as letrinhas pequenas a um palmo do nariz. E, acredite-se ou não, tudo isto é apenas o começo.
Nem valia a pena falar nos pés de galinha à volta dos olhos e nos cabelos brancos nas têmporas que tinham sido substituídos por castanhos-escuros e nos joelhos que
já não estavam lesionados.
- E tu achas... - Payne pousou uma mão na garganta. - Que é por causa de mim?
- Sei que é. Que mais podia ser?
Payne começou a abanar a cabeça.
- Não compreendo, porque é que isto não é uma bênção. A juventude eterna sempre foi procurada por todas as raças...
- Não é natural. - Ao dizer isto, ela estremeceu, mas ele tinha de continuar. - Sou médico, Payne. Sei tudo sobre o envelhecimento normal do corpo humano e o tratamento
de ferimentos. Isto... - Fez um gesto com a mão que percorreu o corpo - ...não está certo.
- É regeneração...
- Mas, onde para? Vou transformar-me no Benjamin Button e recuar até à infância?
- Isso seria impossível - contrapôs ela. - Já estive exposta à luz mais tempo do que tu e não reverti para um estado mais jovem.
- Okay, tudo bem, vamos assumir que isso não acontece... e todas as outras pessoas na minha vida? - Não que se tratasse de uma longa lista, mas ainda assim. - A
minha mãe vai ver-me assim e pensar que fiz cirurgia plástica... e daqui a dez anos? Ela só tem setenta... acredita em mim, quando chegar aos oitenta ou noventa,
vai perceber que o filho não está a envelhecer. Ou tenho de desistir dela?
Manny começou a andar outra vez e, ao puxar o cabelo, era capaz de jurar que estava mais resistente.
- Perdi o emprego hoje por causa do que aconteceu quando me apagaram as memórias. Durante essa semana, estive longe de ti, estava todo baralhado, não sabia se era
noite ou dia e era tudo o que tinham para lidar com a coisa, porque não lhes podia explicar o que realmente tinha acontecido. - Virou-se de novo para ela. - Aquilo
que me preocupa é que este é o único corpo que tenho, a única mente, a única... o que quer que seja. Vocês vampiros lixaram-me a cabeça e quase fiquei louco... e
quais são as consequências de tudo isto? Eu só sei a causa... A magnitude do efeito? Não faço ideia e isso aterroriza-me por uma maldita boa razão.
Payne colocou a ponta da trança em cima do ombro e acariciou-a enquanto baixava os olhos.
- Peço... desculpa.
- A culpa não é tua, Payne - gemeu ele, levantando as mãos ao céu. - E eu não quero culpar-te disto tudo, mas...
- A culpa é minha. Eu sou a causa.
- Payne ...
Quando se aproximou, ela levantou as mãos e afastou-se.
- Não, não te aproximes de mim.
- Payne...
- Tens razão. - Ela parou ao embater na porta envidraçada que tinha atravessado para entrar. - Sou perigosa e destrutiva.
Manny esfregou a cruz por dentro da camisa. Apesar do que tinha dito, naquele momento queria retirar tudo e, de algum modo, fazer com que tudo ficasse bem entre
eles.
- É um dom, Payne. - Afinal de contas, ele e o cavalo tinham mostrado os benefícios da exposição a curto prazo. - Vai ajudar-te e à tua família e ao teu povo. Diabo,
com o que consegues fazer, vais deixar a Jane sem trabalho.
- De facto.
- Payne... olha para mim. - Quando os olhos dela eventualmente encontraram os dele, teve vontade de chorar. - Eu...
Mas não conseguia acabar a frase... A verdade era que a amava. Completamente e para sempre. Contudo, desconfiava que essa era a maldição de tudo isto para ambos.
Ele nunca conseguiria esquecê-la e nunca haveria mais ninguém para ele.
Erguendo os ombros, preparou-se.
- Tenho uma coisa a pedir.
- E o que poderá ser? - lançou ela secamente.
- Não me apagues a memória. Não vou contar nada a ninguém sobre ti ou a tua raça... juro pela minha mãe. Simplesmente... deixa-me como estou quando te fores embora.
Sem a minha mente, tenho menos do que nada.
* * *
Payne estava radiante desde que deixara o complexo. O irmão tinha partilhado com ela as incríveis novidades assim que tinha regressado antes de madrugada e ela passara
todo o dia indecisa entre pairar numa nuvem e ficar impaciente com quão devagar o tempo estava a passar.
Depois tinha vindo.
Era difícil que tivesse o coração a transbordar de alegria apenas há dez minutos.
Não era, no entanto, difícil de compreender a posição de Manuel. E ficou surpreendida por nenhum dos dois ter antecipado as implicações maiores dos seus... poderes
de cura. Ou lá o que era.
Claro que o afetaria.
Olhando para Manuel, não conseguiu suportar a tensão que via nele. Estava honesta e verdadeiramente ansioso com o que sobraria se ela tirasse as memórias do tempo
que tinham estado juntos do alcance da sua consciência. E porque estaria? Perdeu o emprego que amava por causa dela. Tinha o corpo e a mente em perigo por causa
dela.
Pelas Parcas, ela nunca devia ter-se aproximado dele.
E era exatamente por causa disto que não gostavam da mistura com humanos.
- Não te preocupes - disse ela suavemente. - Não vou comprometer a tua mente. Já fiz o bastante.
Enquanto ele respirava de alívio, ela sentiu as lágrimas a apertarem-lhe a garganta. Fitou-a por um momento.
- Obrigado.
Ela fez uma pequena vénia e, ao endireitar-se, ficou chocada ao ver os seus magníficos olhos de mogno a cintilarem.
- Quero lembrar-me de ti, Payne... de tudo sobre ti. - Aquele olhar triste e nostálgico percorreu-lhe o rosto. - De como te senti e do teu sabor. Do som da tua gargalhada...
ofegante. Do tempo que passei ao teu lado... - A voz falhou-lhe e ele recuperou aclarando a garganta. - Preciso que essas memórias durem a minha vida inteira.
As lágrimas começaram a cair e escorrer pelo rosto dela e o coração começou a bater-lhe com força.
- Vou sentir a tua falta, bambina. Todos os dias. Sempre.
Quando ele estendeu os braços, ela aninhou-se neles e perdeu completamente a compostura. Soluçando contra a camisa dele, estava aninhada no seu corpo sólido e forte
e apertava-o com tanta força como ele a apertava a ela.
E então ambos quebraram o abraço ao mesmo tempo, como se fossem um só coração. E ela achou que eram.
Na verdade, havia uma parte dela que queria lutar e discutir e fazer com que ele visse o outro lado, outra possibilidade. Mas não tinha a certeza se existia um outro
lado. Também ela não conseguia prever o futuro, da mesma maneira que não podia prever as repercussões do que tinha mudado nele, tal como ele.
Não havia mais nada para dizer. Este fim imprevisto que chegara era uma pancada que não podia ser atenuada por conversa, toque, nem, desconfiava, pelo tempo.
- Tenho de ir agora - disse ela, afastando-se.
- Deixa-me abrir-te a porta...
Enquanto se desmaterializava da casa dele para fora, apercebeu-se de que aquelas eram as últimas palavras que ele lhe diria.
Era a despedida.
Manny ficou a olhar fixamente para o espaço que a sua mulher tinha acabado de ocupar. Já não havia mais nada dela. Tinha desaparecido como por magia, como um feixe
de luz que tivesse sido cortado.
De vez.
O impulso imediato foi ir até ao armário do hall de entrada, tirar de lá o taco de basebol e partir a casa toda. Partir todos os espelhos, vidros, louça, tudo...
atirar a pouca mobília que tinha pela varanda. Depois disso... se calhar levava o Porsche até à autoestrada do norte, andava a mais de cento e vinte e planeava uma
rota que terminasse nos apoios de uma ponte.
Neste cenário não havia cinto de segurança, obviamente.
Não obstante, afinal, acabou por ficar sentado na cama ao lado dos sacos desportivos e enfiar a cabeça nas mãos. Não era fraco para soluçar daquela maneira como
se estivesse num funeral. De modo algum. Deslizou para os ténis de corrida.
Macho. Realmente muito macho.
No entanto, a forma como se apresentava à plateia do seu apartamento vazio era tão importante como o seu orgulho, corpo, membro... tudo o resto.
A perda estava a dar cabo dele.
E ia transportar aquela dor consigo para o resto da sua vida natural.
Que irónico. O nome dela tinha-lhe parecido inicialmente muito estranho. Agora, parecia bastante adequado.
Capítulo 50
Payne não regressou à mansão. Não tinha qualquer interesse em ver quem lá morava. Nem ao rei, que tinha decidido a seu favor. E certamente que não queria ver todos
os casais felizes, sortudos e abençoados que viviam debaixo do teto real.
Por isso, em vez de ir para norte, materializou-se nas margens do canal que corria ao lado dos altos edifícios envidraçados da baixa. A brisa era mais gentil ao
nível do chão e transportava o som cantante de ondas a bater nas margens empedradas do rio. Como pano de fundo, o zumbido dos veículos a superarem as curvas e contracurvas
suaves das pontes e desaparecendo nas margens longínquas. Aqueles sons faziam-na sentir mais claramente a profundidade e a amplitude da paisagem.
Rodeada de humanos, estava completamente sozinha.
Contudo, era isto que ela tinha pedido. Era esta a liberdade que tão profundamente desejara e procurara com ânsia.
No Santuário, nada tinha mudado. Mas também nada tinha corrido mal.
Contudo, ainda assim, escolheria sempre aquela difícil provação ao isolamento entorpecedor anterior.
Ó Manuel ...
- Olá, querida.
Payne olhou por cima do ombro. Um macho humano estava a aproximar-se dela, tendo obviamente saído de trás de um dos apoios da ponte. Estava a acenar e cheirava a
camadas sobre camadas de suor fermentado e sujidade.
Sem se dar sequer ao trabalho de o cumprimentar, Payne desmaterializou-se para uma zona mais abaixo da margem do rio. Não havia motivo para lhe apagar a memória.
Era pouco provável que se lembrasse sequer que a tinha visto. Estava, sem dúvida, sob o efeito de diversas drogas alucinogénias.
Fitando a superfície ondulada do rio, não se sentia atraída pelas profundezas escuras. Não ia magoar-se a si própria por causa disto. Não se tratava de nenhuma prisão
para se encerrar lá dentro e, além disso, já chegava de escolher sempre a via cobarde. Firmando os pés na terra, cruzou os braços e ficou simplesmente a existir
naquele lugar, ignorando o tempo a escorrer pela peneira da realidade, enquanto as estrelas rodopiavam sobre a sua cabeça, mudando de posição...
A princípio, o cheiro chegou-lhe ao nariz discretamente, imiscuindo-se entre uma mistura de terra fresca, pedra molhada e poluição urbana. Por isso, ao início, não
registou o odor como nada específico.
Não obstante, rapidamente o seu cérebro acordou ao reconhecer o aroma.
Com um formigamento de instinto, a cabeça virou-se sozinha, dando meia volta no alto da espinha. Os ombros seguiram-se... depois as ancas.
O odor rançoso era o inimigo.
Um minguante.
Ao começar a correr ligeiramente, sentiu no sangue uma agressividade que não era apenas causada pela dor que sentia no coração e pela frustração daquilo que o destino
lhe reservara. Ao aproximar-se do cheiro, sentia-se animada por uma herança profunda de violência e proteção. Os membros, a mão da afaga e as presas a aguçarem-se.
Transformada pelo instinto mortal, já não era macho nem fêmea, nem Escolhida, nem filha ou irmã. Enquanto evitava ou enfrentava becos e ruas, era um soldado.
Virou para um beco e, ao fundo, viu dois matadores, cujo cheiro a tinha trazido desde o rio até ali. Juntos, estavam inclinados por cima de um objeto que ela identificou
como um telefone, eram novos recrutas, com cabelo escuro e corpos cheios de tiques.
Não olharam para cima quando ela parou. O que lhe deu tempo de pegar num disco metálico prateado com Ford gravado. Era uma arma excelente que podia ser usada para
bloquear ou para atirar.
Momentos depois, o vento começou a levantar e envolveu-lhe o vestido, retirando-o do seu corpo, e o movimento deve ter chamado a atenção deles, porque se viraram.
Apareceram facas. E também um par de sorrisos que lhe fizeram arder o sangue.
Idiotas, pensou. A pensarem que, por ser uma fêmea, não daria qualquer luta.
Aproximaram-se dela com uma passada tão lenta, que ela não viu razão nenhuma para os interromper. De facto, ela iria saborear a surpresa que eles teriam e à qual,
em última análise, não sobreviveriam.
- O que fazes aqui, menininha? - perguntou o maior dos dois. - Tão sozinha.
Estou prestes a abrir-te a garganta com o que tenho atrás das costas. Depois disso, parto-te as duas pernas, não porque tenha de o fazer, mas porque me diverte o
som. E depois localizo alguma coisa de metal para te enfiar na caixa torácica vazia e te mandar para o teu criador. Ou talvez te deixe a contorcer de dor no chão.
Payne manteve-se silenciosa. Em vez de falar, distribuiu igualmente o peso pelos dois pés bem assentes no chão e agachou-se. Nenhum dos minguantes pareceu notar
a mudança de posição. Estavam demasiado ocupados a caminhar para ela e a pavonearem-se. E nem sequer se separaram ou a flanquearam. Nem veio um atacá-la pela frente,
para o outro a poder atacar por trás.
Continuaram mesmo à sua frente... onde podia alcançá-los.
Enfim, aquilo não passaria de um ótimo aquecimento. A menos que aparecessem outros que soubessem lutar como deve ser e a divertissem...
Xcor sentia a agitação que indicava uma mudança nos bastardos.
Ao caminharem em formação pelas ruas da baixa de Caldwell, a energia atrás dele era um batucar de agressividade. Contundente. Renovada. Mais forte do que tinha sido
uma década antes.
De facto, mudar-se para aqui tinha sido a melhor decisão que tinha tomado. E não só por ele e Throe terem tido ótimo sexo e tomado uma bebida na noite anterior.
Os machos eram punhais retirados à pressa da forja, os instintos assassinos renovados e cintilando à luz da Lua na cidade. Não admira que não tivessem havido matadores
no País Antigo. Estavam todos aqui, a Sociedade dos Minguantes centrando os seus esforços...
A cabeça de Xcor virou-se para todos os lados e desacelerou.
O odor no ar fez com que as presas se alongassem e o corpo vibrasse com poder.
Não era necessário indicar a mudança de direção. Os bastardos estavam a acompanhá-lo, perscrutando a ameaça doce e doentia que se encontrava nas asas das rajadas
noturnas.
Ao virarem a esquina e deslizarem pela reta, rezou por mais. Uma dúzia. Uma centena. Duas centenas. Queria ficar coberto com sangue do inimigo, banhando-se no óleo
negro que lhes animava as carnes...
Na entrada do beco, os pés não pararam, mas cimentaram-se no chão.
Entre um pestanejar e outro, o passado desenrolou-se à sua frente, eliminando a distância entre os meses, anos e séculos de disputas e tornando disponível no presente
toda essa experiência.
No centro do beco, uma fêmea com um vestido branco comprido e ondulante estava a lutar com dois minguantes. Mantinha-os à distância com pontapés e murros, volteando
e saltando tão depressa que tinha de esperar que chegassem de novo até ela.
Com as suas competências superiores de luta, estava apenas a brincar com eles. E tinha a clara impressão de que eles não se apercebiam do quanto ela estava a poupá-los.
Fatal. Ela era mortífera e estava à espera para atacar.
E Xcor soube exatamente quem ela era.
- Ela é... - A garganta de Xcor abafou as restantes palavras.
Ter procurado durante séculos e ser-lhe negado aquele alvo... apenas para dar com ele, numa noite por acaso, numa cidade aleatória para lá do vasto oceano... era
o destino a manifestar-se.
Estava escrito que se encontrariam novamente.
Ali. Naquela noite.
- Ela é a assassina do meu pai. - Retirou a gadanha da bainha. - É a assassina do meu próprio sangue...
Alguém lhe agarrou na mão e travou-lhe o braço.
- Aqui não.
O facto de não ser o sofredor Throe foi a única razão que o fez parar. Era Zypher.
- Capturamo-la e levamo-la para casa. - O guerreiro riu-se sombriamente, o tom erótico aprofundando-se na sua voz. - Já te aliviaste, mas há outros entre nós que
necessitam daquilo que tiveste ontem à noite. Depois disso? Depois podes ensinar-lhe as repercussões dos atos vingativos.
Zypher era, de entre todos, o que mais provavelmente planearia algo assim. E, apesar de a ideia de a chacinar ali mesmo ser muito apelativa, Xcor tinha esperado
demasiado tempo para não saborear a derrota dela.
Tantos anos.
Anos de mais... até ter desistido da esperança de alguma vez a encontrar, apenas os sonhos mantendo viva a memória daquilo que o tinha definido e lhe tinha dado
a posição que assumia na vida.
Sim, pensou. Seria adequado fazer isto à maneira do Derramador de Sangue. Sem tornar as coisas simples para a fêmea.
Xcor voltou a arrumar a gadanha, enquanto a assassina atacava decentemente os matadores. Sem aviso, saltou em frente e investiu contra o peito de um, baixando-se
sob os braços flácidos e empurrando-o contra o edifício. Foi tudo tão rápido que o segundo minguante ficou demasiado surpreendido - e não tinha treino suficiente
- para salvar o amigo.
Mesmo que o número dois tivesse sido um lutador mais próximo das capacidades dela, não teria qualquer hipótese. Praticamente no mesmo momento em que atacou, a fêmea
fez girar por trás dela o tampão da jante e atacou o matador no pescoço, fazendo um corte profundo e desencorajando-o rapidamente da tarefa de se atirar a ela. Quando
o óleo preto começou a esguichar e os joelhos dele tremeram, ela terminou o matador que tinha encostado aos tijolos esmurrando-o duas vezes na cara e uma na maçã-de-adão.
Depois elevou o corpo dele no ar e atirou-o contra a perna dobrada.
A espinha a partir fez um som muito alto.
Enquanto este expirava, virou-se para enfrentar os que estavam a vê-la a lutar. O que não era surpresa nenhuma. Alguém com as suas capacidades ter-se-ia imediatamente
apercebido de que existiam ali outros.
Meneando a cabeça para um dos lados, não ficou alarmada. Mas também por que haveria de ficar? Estavam nas sombras e eram claramente da sua espécie. Até Xcor se revelar,
ela não faria ideia do perigo que corria.
- Boa noite, fêmea - disse ele, em tom baixo, da escuridão.
- Quem está aí? - quis saber ela.
É agora, pensou, avançando para um foco de luz...
- Não estamos sozinhos - murmurou Throe abruptamente.
Xcor parou a investida, os olhos a semicerrarem-se para os sete matadores que tinham aparecido ao fundo do beco.
De facto. Estavam muito acompanhados.
Mais tarde, Xcor acabou por acreditar que a única razão do sucesso na captura da fêmea tinha sido a chegada daqueles novos minguantes. O avanço dos inimigos exigiu
que olhasse para eles e lhes desse atenção. Mas antes de se poder desmaterializar para outra posição, Xcor estava sobre ela.
Apesar do batimento acelerado do seu coração, a vingança dava-lhe força para dispersar as moléculas, mesmo quando ela se virou para enfrentar o esquadrão que se
aproximava. Prendeu a pulseira de aço no pulso dela rápida e certeiramente e, enquanto ela andava à volta com fúria estampada no rosto, ele lembrou-se da incineração
a que ela forçara o seu progenitor.
O que o salvou foi um tiro de um dos minguantes.
O disparo não tinha importância, mas a sua consequência trazia um benefício espetacular. Mesmo quando ela estava a levantar a mão livre para a pousar nele, a sua
perna descaiu e ela caiu no chão, não havendo dúvidas de que a bala acertara em algum ponto vital. E, naquele momento de fraqueza, Xcor dominou-a. Só tinha uma oportunidade
de a controlar. Se não tivesse aproveitado, não tinha a certeza de ter conseguido fazê-lo.
Fechando a outra pulseira no pulso livre dela, agarrou-lhe na trança e enrolou-a à volta do pescoço. Puxando o cabelo com força, cortou-lhe o ar, mesmo quando os
seus guerreiros avançavam de armas em riste.
Oh, como ela lutava. Tão valente. Tão poderosa.
Não passava de uma fêmea... mas talvez fosse um pouco mais do que isso. Era quase tão forte como ele e essa não era a sua única vantagem. Mesmo aprisionada e à beira
da asfixia, os olhos pálidos continuavam fixos nos dele, até ele sentir que ela podia invadir-lhe a mente e apoderar-se dos seus pensamentos.
Mas ele não se deixaria assombrar. Enquanto os sons da batalha rebentavam no beco, ele enfrentou o olhar fixo da assassina do seu progenitor, à medida que os seus
braços iam apertando cada vez mais o laço à volta do pescoço.
Debatendo-se para respirar, ela engasgou-se e contorceu-se, os lábios a moverem-se.
Aproximando o ouvido, ele queria saber o que ela tinha a...
- ... porquê...?
Xcor encolheu-se quando ela deixou de lutar e os formidáveis olhos se reviraram.
Querida Virgem Escrivã, ela nem sabia quem ele era.
Capítulo 51
No que dizia respeito a antros masculinos, V sempre pensara que a sala de bilhar na mansão da Irmandade tinha tudo. Ecrã gigante com som surround. Divãs com estofo
suficiente para serem considerados camas. Lareira para aquecer e para aquela treta atraente das brasas. Bar com todas as bebidas concebíveis, refrigerantes, cocktails,
chá, café, cerveja... tudo.
E uma mesa de bilhar, claro.
A única coisa «má» acabava por ser uma benesse. A máquina de pipocas fora uma aquisição recente, e um tipo bizarro de campo de batalha. Rhage adorava brincar com
a coisa, mas sempre que o fazia, Fritz ficava nervoso e queria parte da ação. Fosse como fosse, era divertido. Os cestinhos de verga ficavam cheios e depois era
a vez do elemento do par que ainda não tivesse funcionado com a máquina.
Enquanto esperava pela sua jogada na mesa de bilhar, Vishous pegou num quadrado de giz azul e esfregou a ponta do taco. Butch baixou-se sobre o feltro verde e apontou
enquanto se ouvia «Aston Martin Music», de Rick Ross.
- Sete no canto - disse o chui.
- Vais enfiá-la, não vais? - V pousou o giz e abanou a cabeça ao ouvir-se a pancada, o rolar e a queda da bola. - Sacana.
Butch olhou-o, com um «toma» na expressão.
- Sou mesmo bom. Desculpa lá, palerma.
O chui deu um gole no Lag e foi assumir nova posição do outro lado da mesa. Enquanto observava o jogo, o sorriso de malandro estava no sítio certo, revelando-lhe
a coroa de porcelana ligeiramente torta.
V ficara de olho no macho. Depois de terem passado horas juntos, tinham-se separado com embaraço e tomado duche independentes. Felizmente, a água quente reanimara-os
e quando voltaram a encontrar-se, na cozinha do Fosso, tudo voltara ao normal.
E as coisas continuaram assim.
Não que não se sentisse tentado a perguntar-lhe se continuava tudo bem. Tipo, a cada cinco minutos. Era como se tivessem travado uma batalha juntos, e exibissem
as fraturas e as nódoas negras que o provavam. Mas V gostava de ver o que se estava a passar à sua frente, o melhor amigo a dar-lhe uma tareia no bilhar.
- E acabou-se o jogo - anunciou o chui quando a bola oito descreveu uma curva e entrou.
- Venceste-me.
- Pois. - Butch ofereceu um sorriso rasgado e ergueu o copo. - Queres a desforra.
- Podes crer.
O cheiro de manteiga derretida e os estalidos dos grãos de milho aos saltos anunciaram a chegada de Rhage ou talvez de Fritz? Não, era Hollywood que estava junto
à máquina com a sua Mary.
V inclinou-se para poder olhar pela arcada, para o outro lado do átrio até à sala de jantar, onde o mordomo e a sua equipa preparavam a última refeição.
- Meu, o Rhage está a brincar com o fogo - comentou Butch enquanto começava a recolher as bolas.
- Dou trinta segundos para que o Fritz... Aí vem ele.
- Vou fingir que não estou aqui.
V deu um gole no seu Goose.
- Eu também.
Enquanto se ocupavam a recolher as bolas, Fritz chegou a correr pelo átrio, qual míssil guiado por calor.
- Tem cuidado, Hollywood, certo? - resmungou V quando Rhage se aproximou com um cesto de pipocas fresquinhas.
- É bom para ele. Precisa de exercício... Fritz! Como estás, camarada?
Enquanto Butch e V reviravam os olhos, Rehv entrou com Ehlena por baixo do braço envolto em marta. O cabrão de crista estava encasacado, como sempre, e apoiava-se
na bengala, mas ostentava o sorriso eterno de macho acasalado, e a shellan dele estava radiante a seu lado.
- Rapazes - disse.
Foram cumprimentados por vários resmungos e Z e Bella chegaram com Nalla, seguidos por Phury e Cormia. Wrath e Beth ainda deveriam estar no escritório, provavelmente
a analisar papelada ou, talvez, a deixar George brevemente ao cimo das escadas, para terem um pouco de privacidade.
Quando John e Xhex desceram com Blay e Saxton, os únicos em falta eram Qhuinn e Tohrment, que deveriam estar no ginásio, e Marissa, que se encontrava na Casa Segura.
Bem, esses três e a Jane dele, que estava na clínica, a reabastecer os suprimentos que tinham sido utilizados na outra noite.
Ah, claro e a sua gémea que, de certeza, estava a... «oh, simzar»... com aquele cirurgião dela.
Com todos os recém-chegados, o som de vozes multiplicou-se e explodiu, à medida que se serviam bebidas, se passava o bebé e se recolhiam mancheias de pipocas. Entretanto,
Rhage e Fritz abriam um carregamento novo de milho. E alguém mudava de canais na televisão, possivelmente Rehv, que nunca estava satisfeito com o que pudesse estar
a dar. E outra pessoa avivava o lume.
- Ei. Continuas bem? - perguntou Butch em voz baixa.
V mascarou o sobressalto tirando um cigarro enrolado do bolso das calças de cabedal. O chui falara tão baixo que mais ninguém o teria ouvido, o que era bom. Sim,
ele estava a tentar abandonar as merdas do secretismo, mas não queria que mais ninguém soubesse até que ponto ele e Butch tinham chegado. Isso era privado.
Acendeu o cigarro e inspirou.
- Sim. Estou mesmo, a sério. - Depois olhou para os olhos cor de avelã do melhor amigo. - E... tu?
- Sim. Eu também.
- Boa.
- Boa.
Ena pá, vejam só aquilo com os relacionamentos. Se continuasse assim, ainda ganhava uma estrela dourada para pôr na caderneta.
Uma batida com os nós dos dedos depois, Butch regressou ao jogo, fazendo pontaria com o taco enquanto V se deleitava com a satisfação das relações pessoais, qual
profissional da coisa.
Bebia mais um gole do copo de Goose quando os olhos se dirigiram à entrada em arco da sala.
Jane hesitou ao espreitar para o interior, com a bata branca a abrir-se quando se inclinou, como se o procurasse.
Quando os olhos se cruzaram, ela esboçou um sorriso. E depois este tornou-se rasgado.
O primeiro impulso de V foi ocultar o seu próprio sorriso atrás do Goose, mas depois deteve-se. Nova ordem mundial.
Vá lá, sorri, cabrão, pensou.
Jane acenou brevemente e manteve-se tranquila, que era o que costumavam fazer quando em público. Virando-se, ela dirigiu-se ao bar para tomar algo.
- Espera aí, chui - murmurou V, pousando a sua bebida e apoiando o taco à mesa.
Sentindo-se como um miúdo de quinze anos, prendeu o cigarro entre os dentes e apertou o cinto nas calças de cabedal. Um rápido alisar do cabelo e estava... bem,
tão pronto quanto possível.
Aproximou-se de Jane por trás no momento em que ela começara a conversar com Mary e quando a sua shellan deu meia volta para o cumprimentar, pareceu um tanto ou
quanto surpreendida por ele se ter dirigido a ela.
- Olá, V... Como estás...
Vishous aproximou-se ainda mais, encostando os corpos, e depois envolveu-lhe a cintura com os braços. Segurando-a com uma mostra de posse, inclinou-a lentamente
para trás até que ela lhe agarrou os ombros e o cabelo lhe descaiu do rosto.
Quando ela arquejou, V disse exatamente aquilo em que estava a pensar:
- Tive saudades tuas.
E com essas palavras, levou a boca à dela e beijou-a profundamente, descendo uma mão até à anca e enfiando-lhe a língua na boca, e continuou, continuou, continuou...
Tinha a vaga noção de que a sala ficara em silêncio e de que tudo com batimento cardíaco o fitava e à sua parceira. Pouco importava. Era aquilo que queria fazer
e iria fazê-lo à frente de todos e até do cão do rei, segundo se viria a revelar.
Pois Wrath e Beth tinham acabado de chegar do átrio.
Quando Vishous endireitou lentamente a shellan, os gritos e os assobios fizeram-se ouvir e alguém atirou pipocas como se fossem confetes.
- Assim é que é - declarou Hollywood. E atirou mais pipocas.
Vishous pigarreou.
- Tenho um anúncio a fazer.
Certo. Muito bem, havia muitos olhos focados no par. Mas ia engolir a vontade de se calar.
Apertando a afogueada e enrubescida Jane a seu lado, disse alto e bom som:
- Vamos acasalar. Como deve ser. E espero que todos estejam presentes e... Pois, é isso.
Silêncio. De. Morte.
Wrath soltou a barra da coleira de George e começou a bater palmas. Lenta e sonoramente.
- Já não era sem tempo, porra.
Os irmãos dele e suas shellans e todos os convidados da mansão imitaram-no. Os guerreiros deram início a um cântico que deitou a casa abaixo com as suas vozes a
vibrar pelo ar.
Ao olhar para Jane, ela parecia radiante. Só lhe faltava brilhar.
- Talvez devesse ter perguntado primeiro - murmurou ele.
- Não. - Jane beijou-o. - Isto é perfeito.
Vishous começou a rir. Meu, se aquilo era viver em voz alta, nunca mais voltaria ao silêncio. Os irmãos apoiavam-no, a sua shellan estava feliz e... está bem, dispensava
as pipocas no cabelo, mas que se danasse.
Minutos depois, Fritz trouxe taças de champanhe e começou a ouvir-se outro tipo de estampido, com rolhas a voar enquanto o grupo falava ainda mais alto do que antes.
Quando alguém lhe enfiou um copo na mitene, murmurou ao ouvido de Jane:
- O champanhe deixa-me excitado.
- A sério?
Baixando a mão pela anca dela... e mais baixo... puxou-a contra a súbita ereção.
- Já conheces a casa de banho do átrio?
- Creio que já fomos apresentad... Vishous!
O macho parou de lhe mordiscar o pescoço, mas continuou a rebolar as ancas contra as dela. Era um pouco indecente, mas nada que os outros casais não fizessem de
tempos a tempos.
- Sim? - disse ele, num tom arrastado. Quando ela pareceu sem fala, sugou-lhe o lábio e murmurou: - Se bem te lembras, estávamos a falar sobre a casa de banho. Se
calhar podia voltar a apresentá-las. Não sei se te apercebeste, mas aquela bancada do lavatório tem andado a chorar por ti.
- E tu fazes alguns dos teus melhores trabalhos em lavatórios.
V percorreu-lhe o pescoço com uma presa.
- É verdade.
Quando a ereção começou a latejar, pegou na mão da fêmea...
O relógio de sala ao canto começou a bater as horas e V contou as badaladas. O que o fez recuar um pouco e confirmar o seu próprio relógio, embora não precisasse
porque o da sala dava as horas certas há dois séculos.
Quatro da manhã? Mas onde é que estava Payne?
Quando o impulso de ir ao Commodore e trazer a irmã se manifestou com força, teve de se recordar de que embora a alvorada se aproximasse rapidamente, ela ainda teria
uma hora. E tendo em conta o que ele e Jane estavam prestes a fazer à porta fechada, não a podia censurar por querer aproveitar cada segundo que tinha com o seu
macho, mesmo que definitiva e absolutamente não fosse por aí.
- Está tudo bem? - perguntou Jane.
Voltando ao programa da noite, V baixou a cabeça.
- Vai estar assim que te levar para aquela bancada.
Ele e Jane passaram quarenta e cinco minutos fechados nos lavabos.
Quando saíram, todos continuavam na sala de bilhar. A música estava mais alta e «I’m Not a Human Being», de Lil Wayne, ecoava até ao teto do átrio. Os doggen ocupavam-se
com acepipes finos em travessas de prata e Rhage tinha um círculo à sua volta a rir-se das piadas que contava.
Por um momento pareceu-lhe os velhos tempos.
Mas não viu a irmã no meio da multidão. E ninguém lhe foi dizer que ela tinha ido para o quarto de hóspedes que andava a usar.
- Já volto - disse a Jane. Com um beijo rápido, V deixou a festa, percorreu o átrio e entrou na sala de jantar vazia. Contornando a mesa, completamente posta mas
muito vazia, tirou o telemóvel do bolso e marcou o número que lhe dera.
Ninguém atendeu.
Voltou a tentar. Nada. Terceira tentativa? Ninguém... atendeu aquela porra.
Praguejando, marcou o número de Manello e arrepiou-se, tentando não pensar no que poderia estar a interromper. Provavelmente teriam fechado os cortinados e perdido
a noção do tempo. E os telefones tinham a mania de se perder no meio dos lençóis, pensou, com um esgar.
Trim... trim... trim...
- Atende, porra...
- Estou?
Manello parecia mal. Mal como em tiro. Mal como em moribundo.
- Onde está a minha irmã? - Porque o cirurgião não atenderia assim se a sua irmã estivesse na cama dele.
A pausa que se seguiu também não era bom sinal.
- Não sei. Ela saiu daqui há horas.
- Horas?!
- O que se passa?
- Cristo... - V desligou e voltou a marcar o número da irmã. E mais uma vez.
Virando a cabeça, olhou para o átrio e para a porta do vestíbulo.
Com um gemido discreto, as portadas de aço que protegiam a casa do sol começaram a descer.
Vá lá, Payne... vem para casa. Já.
Já...
O toque gentil de Jane trouxe-o de volta à realidade.
- Está tudo bem? - perguntou.
A primeira reação de V foi encobrir tudo com um comentário sobre a imitação de Rhage de Steve-O a ser projetado dentro de uma casa de banho portátil. Em vez disso,
obrigou-se a ser sincero com a companheira.
- A Payne... pode ter desaparecido. - Quando ela arquejou e levantou a outra mão, a vontade de V foi sair dali. Mas manteve-se firme no tapete oriental. - Ela saiu
da casa do Manello há horas... há horas! E agora estou a rezar a uma mãe que desprezo para que ela entre por aquela porta.
Jane não disse mais nada. Em vez disso, posicionou-se de maneira a ver a entrada pelo vestíbulo e esperou com ele.
Ao dar-lhe a mão, V apercebeu-se de que era um alívio não estar sozinho enquanto a festa decorria do outro lado... e a irmã ainda não tinha chegado a casa.
A visão que tivera dela no cavalo preto a toda a brida regressou-lhe no silêncio da sala de jantar. O cabelo preto dela voava-lhe atrás do corpo e a crina do garanhão
agitava-se também, com o par a galope... sabe Deus para onde.
Uma alegoria? interrogou-se. Ou apenas o desejo sentido pelo irmão de que ela fosse, por fim, livre...?
Quando o sol nasceu oficialmente, vinte e dois minutos depois, Jane e V continuavam ali juntos, a fitar uma porta que nunca se abriu.
Manny estava de cabeça perdida, absolutamente perdida, enquanto dava voltas ao apartamento. Tencionara sair de casa pouco depois de Payne, mas perdera a energia
e passara o resto da noite a fitar... a noite.
Demasiado vazio.
Estava demasiado esvaído para se mexer.
Quando o telefone tocou a seu lado, confirmou o número e reviveu por breves instantes. Número privado. Tinha de ser ela.
E, como a sua mente passara as últimas horas a rever tudo o que ela dissera, precisara de um instante para se concentrar depois de tantas voltas em vão. Na altura,
o discurso que debitara parecera racional, razoável e inteligente... até ficar a olhar para um futuro que era profundamente vazio.
Atendera o telefonema sem esperar uma voz masculina do outro lado. E muito menos o irmão dela.
E ainda menos ter o sacana a ficar surpreendido quando soube que Payne não estava no apartamento.
Enquanto Manny andava às voltas fitava o telefone, desejando que ele voltasse a tocar... desejando que aquela merda disparasse e que fosse Payne a dizer-lhe que
estava bem. Ou o irmão. Alguém.
Fosse quem fosse.
Pelo amor de Deus, até podia ser o Al Roker a telefonar-lhe e a dizer que ela estava bem.
Mas a alvorada chegou com demasiada celeridade e o telefone manteve-se excessivamente silencioso. E, como qualquer derrotado, foi à lista de chamadas e tentou responder
ao telefonema do «número privado». Quando só recebeu o sinal de chamada, teve vontade de atirar o telemóvel para o outro lado da sala, mas talvez não fosse boa ideia.
A impotência era terrível. Esmagadora.
Queria sair e... que merda, encontrar Payne se ela estivesse perdida. Ou levá-la para casa se estivesse sozinha. Ou...
O telefone tocou. Número privado.
- Foda-se, ainda bem - exclamou ao atender. - Payne...
- Não.
Manny fechou os olhos. O irmão dela parecia de rastos.
- Onde é que ela está?
- Não sabemos. E aqui não podemos fazer nada... ficámos fechados cá dentro. - O tipo exalou como se estivesse a fumar alguma coisa. - O que é que aconteceu antes
de ela sair daí? Pensei que ela fosse passar a noite contigo. Não há problema se vocês os dois... tu sabes... mas porque é que ela saiu tão cedo?
- Disse-lhe que as coisas não iam resultar.
Um silêncio longo.
- Mas o que é que tinhas na merda da cabeça?
Tornou-se óbvio que, se o sol não brilhasse lá fora, o cabrão estaria a bater à porta de Manny para dar cabo de um canastro italiano.
- Pensava que fosses ficar satisfeito com isso.
- Ah sim, claro... parte aí o coração da minha irmã. Parece-me uma bela ideia. - Outra exalação, como se soprasse fumo. - Ela está apaixonada por ti, meu idiota.
Ora se isso não o deixava sem saber o que dizer. Mas voltou ao assunto premente.
- Escuta, nós...
Nesse momento era suposto explicar os resultados dos exames físicos, como se sentia assoberbado e admitir que não sabia quais seriam as repercussões. Mas o problema
era que, desde que Payne partira, ele apercebera-se de que por mais sincero que tudo isso fosse, havia algo ainda mais fundamental a corroer-lhe o íntimo. Ele estava
a ser um fraco. A separação resumia-se ao facto de ele estar a borrar-se de medo por se ter apaixonado por uma mulher... uma fêmea... fosse o que fosse. Pois, havia
um sem fim de tretas metafísicas que ele não compreendia, nem era capaz de explicar, blá, blá, blá. Mas no fundo, o que se passava era que ele amava tanto Payne
que já não se reconhecia, e isso era o mais assustador.
Acobardara-se quando tivera oportunidade.
Mas isso acabara.
- Estamos apaixonados - declarou com toda a clareza.
E maldito fosse, devia ter tido tomates para lho dizer. E para a abraçar. E para a manter.
- Por isso repito, o que é que tinhas na merda da cabeça?
- Boa pergunta.
- Cristo.
- Escuta, como é que posso ajudar... Posso sair durante o dia e não há nada que eu não faça para a recuperar. Nada. - Alimentado pela obsessão, foi buscar as chaves.
- Se ela não está contigo, para onde iria. E aquele sítio... o Santuário?
- A Cormia e o Phury foram lá. Nada.
- Então... - Detestava pensar naquilo. - E os vossos inimigos? Onde é que eles ficam durante o dia... Eu vou lá.
Pragas. Mais soprar. Pausa. Depois um clique e uma inalação, como se o tipo estivesse a acender outro cigarro.
- Sabes, não devias fumar - ouviu-se Manny a dizer.
- Os vampiros não têm cancro.
- A sério?
- Sim. Certo, as coisas são assim. Não conhecemos uma morada específica da Sociedade dos Minguantes. Os matadores costumam misturar-se com a população humana em
pequenos grupos, pelo que é quase impossível encontrá-los sem provocar distúrbios graves. A única coisa... Vai aos becos na baixa ribeirinha. Ela pode ter encontrado
minguantes... vais procurar indícios de uma luta. Fica uma espécie de óleo preto por todo o lado. Como se fosse óleo de motor. E vai ter um cheiro adocicado... como
se fosse uma mistura de animal morto e talco. É bastante característico. Vamos começar por aí.
- Tenho de poder entrar em contacto contigo. Tens de me dar o teu número.
- Envio-te um sms com ele. Tens alguma arma?
- Sim, tenho. - Manny estava já a tirar a quarenta do armário. Passara toda a sua vida adulta na cidade e, às vezes, havia porcaria pelo que aprendera a usar uma
arma há cerca de vinte anos.
- Diz-me que é maior do que uma nove milímetros.
- É.
- Arranja uma faca. Precisas de uma lâmina de inox.
- Entendido. - Dirigiu-se à cozinha e pegou na maior e mais afiada Henckels que tinha. - Mais alguma coisa?
- Um lança-chamas. Matracas. Estrelas de arremesso. Uma Uzi. Queres que continue?
Se pelo menos dispusesse desse tipo de arsenal.
- Eu vou buscá-la, vampiro. Ouve bem o que te estou a dizer... eu vou buscá-la. - Pegou na carteira e estava a dirigir-se à porta quando o terror o imobilizou. -
Quantos são eles? Os vossos inimigos.
- Não têm fim.
- São... machos?
Pausa.
- Costumavam ser. Antes de serem transformados eram humanos.
Um som escapou-se da boca de Manny... algo que ele tinha a certeza nunca produzira antes.
- Não, ela safa-se com o combate corpo a corpo - disse o irmão num tom átono. - É forte.
- Não era nisso que estava a pensar. - Teve de esfregar os olhos. - Ela é virgem.
- Ainda...? - perguntou o vampiro, passado um instante.
- Sim. Não era correto que eu... lhe tirasse isso.
Cristo, pensar que poderia ser magoada...
Nem para consigo foi capaz de acabar a frase.
Regressando à ação, saiu de casa e chamou o elevador. Enquanto esperava, apercebeu-se de que já há algum tempo que só tinha silêncio do outro lado da linha.
- Estou? Estás aí?
- Sim. - Debitou a voz do gémeo dela. - Sim, estou aqui.
A ligação continuou ativa quando Manny entrou no elevador e pressionou G. A viagem até ao carro decorreu sem que nenhum dos dois dissesse nada.
- Eles são impotentes - resmungou finalmente o gémeo de Payne, quando Manny estava a entrar no Porsche. - Não podem fazer sexo.
Pois, isso não o ajudava a sentir-se melhor. E pelo tom da voz do irmão, o tipo pensava o mesmo.
- Eu ligo-te - disse Manny.
- Faz isso, meu. Acho bem que faças isso.
Capítulo 52
Quando Payne recuperou a consciência, não abriu os olhos. Não havia motivo para revelar que estava ciente do que a cercava.
A sensação corporal informou-a da situação em que se encontrava. Estava de pé, de pulsos agrilhoados e puxados para os lados, com as costas contra uma parede de
pedra húmida. Tinha os tornozelos igualmente cingidos e afastados, e a cabeça tombara para a frente numa posição muito desconfortável.
Quando inspirava sentia o cheiro a terra almiscarada e as vozes de machos chegavam-lhe vindas da esquerda.
Vozes muito graves. Com um tom excitado, como se tivessem tomado posse de uma mais-valia.
Ela.
Enquanto reunia as forças, não duvidava quanto ao que lhe iriam fazer. Em breve. E enquanto se recompunha evitava pensar no seu Manuel... de como, caso aqueles machos
levassem a deles avante, a maculariam vezes sem conta antes de a assassinarem, tomando aquilo que, por direito, deveria ter sido do seu curandeiro...
Mas não podia nem iria pensar nele. Esse pensamento seria um fosso negro que a sugaria, a encurralaria e a deixaria indefesa.
Em vez disso procurou as meadas da memória, cruzando as imagens do rosto dos seus raptores com aquilo que vira nas taças do Santuário.
Porquê? interrogou-se. Não fazia ideia por que motivo o macho do lábio arruinado a atacara com tanto ódio...
- Sei que estás desperta. - A voz era impossivelmente baixa, tinha um sotaque carregado e encontrava-se ao lado do seu ouvido. - A tua respiração mudou de ritmo.
Erguendo as pálpebras a par da cabeça, desviou o olhar na direção do soldado. Estava nas sombras a seu lado, pelo que não o pôde ver claramente.
De repente, as outras vozes silenciaram-se e sentiu muitos olhares em si.
Era assim que se sentiam as presas.
- Magoa-me que não te lembres de mim, fêmea. - Com essas palavras aproximou uma vela do rosto. - Penso em ti desde a primeira vez que nos vimos. Há dois séculos.
Payne semicerrou os olhos. Cabelo preto. Olhos azuis-escuros cruéis. E um lábio leporino com que obviamente nascera.
- Lembra-te de mim. - Não era uma questão, mas uma exigência. - Lembra-te de mim.
E então ocorreu-lhe. A pequena aldeia no limite de um vale arborizado. Onde ela matara o pai. Era um dos soldados do Derramador de Sangue. Não havia dúvida de que
todos eles seriam.
Ah, era definitivamente uma presa, pensou. E pretendiam magoá-la antes de a matarem por vingança por lhes ter retirado o líder.
- Lembra-te de mim.
- És um soldado do Derramador de Sangue.
- Não - bradou ele, aproximando o rosto. - Sou mais do que isso.
Quando Payne franziu o cenho, o macho recuou e descreveu um círculo apertado, os punhos cerrados, a vela a escorrer cera para cima da mão fechada.
Quando voltou à frente dela, estava controlado. Por pouco.
- Sou filho dele. Filho dele. Roubaste-me o meu pai...
- Impossível.
- ...injustamente... O quê?
- É impossível seres filho dele - disse Payne alto e bom som no silêncio atrapalhado que se seguiu.
Quando as palavras foram apreendidas, a fúria cega que lhe surgiu no rosto era a mais pura definição de ódio e a mão tremia-lhe quando a levantou acima do ombro.
Esbofeteou-a com tanta força que Payne viu estrelas.
Quando endireitou a cabeça e lhe susteve o olhar, Payne decidiu que não iria tolerar aquilo. Nem a crença errada. Nem o grupo de machos que a miravam. Nem a ignorância
criminosa.
Payne olhou o captor nos olhos.
- O Derramador de Sangue só foi progenitor de um macho...
- O Irmão Vishous, da Irmandade da Adaga Negra. - As gargalhadas duras ecoaram. - Ouvi bastantes histórias sobre as perversões dele...
- O meu irmão não é um pervertido!
Nesse momento, Payne perdeu o controlo, dominada pela fúria que tinha consigo na noite em que matara o pai. Vishous era do seu sangue e o seu salvador por tudo o
que fizera por ela. Não ia permitir que o desrespeitassem, mesmo que a defesa lhe custasse a vida.
No espaço de duas batidas de coração, foi consumida por uma energia interior que iluminou com uma luz branca brilhante a adega onde se encontravam.
As algemas dissolveram-se, caindo com estrépito na terra compactada.
O macho à sua frente saltou para trás, assumindo uma posição de combate, enquanto os outros procuravam armas. Mas ela não ia atacar... pelo menos fisicamente.
- Ouve-me - declarou ela. - Nasci da Virgem Escrivã. Pertenço ao Santuário das Escolhidas. Por isso, quando te digo que o Derramador de Sangue, o meu pai, não deu
origem a mais nenhum macho, isso é um facto.
- Que não é verdadeiro - murmurou o macho. - E tu... Não podes ter nascido da Mãe da raça. Ninguém nasceu dela...
Payne ergueu os braços luminosos.
- Sou o que sou. Nega-o por tua conta e risco.
A tez do macho perdeu a pouca cor que tinha e seguiu-se um compasso tenso e demorado, com armas convencionais apontadas na direção de Payne e ela a brilhar com a
fúria sagrada.
O soldado principal abandonou a pose de combate, com as mãos a penderem-lhe ao lado do corpo e as coxas a endireitarem-se.
- Não pode ser - tartamudeou. - Nada disso pode ser...
Macho idiota, pensou ela.
Erguendo o queixo, declarou:
- Sou a nascida do Derramador de Sangue e da Virgem Escrivã. E digo-te agora - avançou na direção dele - que matei o meu pai e não o teu.
Erguendo a mão, puxou-a atrás e esbofeteou-o.
- E não insultes o meu sangue.
Quando a fêmea lhe bateu, a cabeça de Xcor foi atirada com tanta força para o lado que quase deslocou o ombro numa tentativa de manter a mona presa à coluna. O sangue
encheu-lhe de imediato a boca, cuspindo-o antes de se endireitar.
Por sua fé, a fêmea que tinha à sua frente era majestosa na sua fúria e decisão. Quase tão alta como ele, fitava-o diretamente nos olhos, de pés firmes, as mãos
cerradas em punhos que estava preparada a usar contra ele e o seu bando de bastardos.
Não se tratava de uma fêmea vulgar. E não só pela forma como dissolvera as grilhetas.
Com efeito, quando os olhares se cruzaram, ela recordava-o o pai. Ela tinha a vontade férrea do Derramador de Sangue, não só no rosto, nos olhos ou no corpo. Tinha-a
na alma.
Com efeito, tinha noção de que poderiam cair todos sobre ela, e a fêmea combatê-los-ia até ao último fôlego.
Deus sabia que ela batia como um guerreiro, não como uma fêmea de pulsos fracos.
Mas...
- Ele era meu pai. Ele próprio mo disse.
- Era um mentiroso. - E nem pestanejou. Não baixou o olhar ou o queixo. - Contemplei inúmeras filhas bastardas nas taças de visão. Mas só houve um único filho, o
meu gémeo.
Xcor não estava preparado para ouvir aquilo, muito menos à frente dos seus machos.
Relanceou-os. Até Throe se armara e todos os rostos denotavam uma fúria impaciente. Com um mero sinal cairiam sobre ela, mesmo que os incinerasse a todos.
- Deixem-nos - ordenou.
Sem grande surpresa, foi Zypher quem começou a argumentar.
- Deixa-nos segurá-la enquanto tu...
- Deixem-nos.
Seguiu-se um momento de imobilidade, após o que Xcor bradou:
- Deixem-nos!
Num abrir e fechar de olhos, todos desapareceram pela escadaria de acesso à casa escurecida lá em cima. Depois a porta fechou-se e ouviram-se os passos no piso superior,
enquanto davam voltas, quais animais enjaulados.
Xcor voltou a concentrar-se na fêmea.
E durante muito tempo limitou-se a fitá-la.
- Procurei-te durante séculos.
- Não estive na Terra. Até agora.
Permaneceu hirta, enquanto ele a confrontava em privado. Absolutamente hirta. E quando lhe perscrutou o rosto, Xcor sentiu o gelo do seu coração a mover-se.
- Porque... o mataste? - indagou, num tom rouco.
A fêmea pestanejou lentamente, como se não quisesse demonstrar vulnerabilidade e precisasse de um instante para garantir que não a revelava.
- Porque ele magoou o meu gémeo. Ele... torturou o meu irmão, e por isso teve de morrer.
Então, talvez as lendas tivessem um fundo de verdade, pensou Xcor.
Com efeito, à semelhança da maioria dos soldados, há muito que conhecia a história que contava que o Derramador de Sangue exigira que o filho fosse imobilizado no
chão e tatuado... e depois castrado. A narrativa dizia que a lesão fora apenas parcial. Dizia-se que Vishous queimara com magia as amarras que o prendiam e depois
fugira para a noite, antes que o ato fosse completado.
Xcor olhou para as grilhetas que tinham caído dos pulsos da fêmea... queimadas.
Erguendo as mãos, olhou para a sua carne. Que nunca brilhara.
- Ele disse-me que eu nasci de uma fêmea que o procurara em troca de sangue. Disse-me... que ela não me quis por causa do meu... - Tocou no lábio superior deformado,
deixando a frase por concluir. - Ele aceitou-me e... ensinou-me a lutar. A seu lado.
Xcor tinha uma vaga noção de que a sua voz estava rouca, mas não se preocupou com isso. Sentia-se como se olhasse para um espelho e visse um reflexo seu que não
reconhecia.
- Disse-me que era filho dele... e teve-me como a um filho. Depois da morte assumi o lugar dele, tal como fazem os filhos.
A fêmea avaliou-o e depois abanou a cabeça.
- E eu digo-te que ele mentiu. Olha-me nos olhos. Sabes que te digo a verdade que há muito, muito tempo deverias ter ouvido. - A voz reduziu-se a um murmúrio. -
Conheço bem a traição do sangue. Conheço bem a dor que sentes agora. Não é justo o fardo que carregas. Mas peço-te, não baseies uma vingança numa ficção. Pois serei
obrigada a matar-te... e se não for eu, o meu gémeo vai caçar-te com a Irmandade, e vai fazer-te suplicar pela morte.
Xcor analisou-se e viu algo que desprezava, mas que não podia ignorar. Não tinha memória da cabra que o parira, mas conhecia bem a história de como ela o expulsara
da sala de partos devido à sua fealdade.
Quisera ser reivindicado. E o Derramador de Sangue assim o fizera. A malformação física nunca fora relevante para aquele macho. Apenas se preocupara com as capacidades
que Xcor tinha em abundância: velocidade, resistência, agilidade, poder... e uma concentração mortífera.
Xcor sempre partira do princípio de que recebera isso do lado do pai.
- Ele deu-me um nome - ouviu-se a dizer. - A minha mãe recusou-se a fazê-lo. Mas o Derramador de Sangue... deu-me nome.
- Lamento muito.
O mais estranho em tudo aquilo? Acreditava nela. Antes pronta a combater até à morte, ela agora parecia entristecida.
Xcor afastou-se dela e andou em círculos.
Se não era o filho do Derramador de Sangue, quem era ele? E ainda lideraria os seus machos? Ainda o seguiriam em batalha?
- Olho para o futuro e vejo... nada - resmungou.
- Também sei como é isso.
Parou e encarou a fêmea. Cruzara os braços sobre os seios e não o olhava, mas sim para a parede à frente dela. Naquelas feições viu o mesmo vazio que sentia no próprio
peito.
Erguendo os ombros, dirigiu-se a ela.
- Não tenho qualquer questão a resolver contigo. As ações dirigidas contra o meu - pausa - contra o Derramador de Sangue... foram levadas a cabo pelas tuas razões
válidas.
Com efeito, tinham sido orientadas pela mesma lealdade de sangue e pelo mesmo espírito de vingança que animara a sua busca por ela.
Num gesto digno de um guerreiro, ela curvou-se pela cintura, aceitando as palavras dele e limpando o ar entre os dois.
- Sou livre de partir?
- Sim... mas é dia. - Quando ela olhou em volta para os beliches e enxergas, como se imaginasse os machos que a queriam, ele declarou: - Nenhum mal te será feito
aqui. Sou o líder e eu... - Bem, ele fora o líder. - Passaremos o dia lá em cima para que tenhas privacidade. Tens comida e bebida naquela mesa.
Xcor fez as ofertas de privacidade e provisão sem pensar nas questões de dignidade que envolviam as Escolhidas. Mas aquela fêmea era... merecedora do seu respeito.
Se alguém entendia a importância da vingança contra um insulto feito à família, era ele. E o Derramador de Sangue infligira danos permanentes ao irmão dela.
- Pelo cair da noite - indicou - levar-te-emos daqui vendada, pois não deves saber onde nos encontramos. Mas serás libertada ilesa.
Virando-lhe as costas, dirigiu-se ao único catre sem parte de cima. Mesmo sentindo-se um idiota, esticou o cobertor grosseiro. Não havia almofada, pelo que se baixou
e apanhou uma pilha das suas camisas lavadas.
- É onde eu durmo... podes usá-lo para descansar. E para que não receies pela tua segurança ou virtude, está uma arma de cada lado, no chão. Mas não te preocupes.
Chegarás ao pôr-do-sol em segurança.
Não fez qualquer voto pela sua honra pois, a bem da verdade, não a possuía. E não olhou para trás quando se dirigiu às escadas.
- Qual é o teu nome? - perguntou ela.
- Não o sabes já, Escolhida?
- Não sei tudo.
- Pois. - Levou a mão ao balaústre grosseiro. - Eu também não. Bom dia, Escolhida.
Ao subir as escadas, sentia-se como se tivesse envelhecido séculos desde que carregara o corpo inanimado e quente da fêmea para o subterrâneo.
Ao abrir a robusta porta de madeira, não fazia ideia do que o esperava. Após o anúncio do seu estatuto, os machos poderiam ter-se reunido e decidido expulsá-lo...
Ali estavam todos, num semicírculo, com Throe e Zypher nos extremos do grupo. Tinham armas nas mãos e os rostos ostentavam expressões sombrias... e esperavam que
ele dissesse alguma coisa.
Fechou a porta e encostou-se a ela. Não era cobarde, para fugir deles ou do que acontecera lá em baixo, e não via qualquer utilidade em justificar o que fora revelado
com palavras cuidadosas, ou com pausas.
- A fêmea disse a verdade. Não tenho uma ligação de sangue com aquele que julgava ser meu progenitor. O que me dizem?
Não proferiram qualquer palavra. Não trocaram olhares. E não houve hesitação.
Ajoelharam-se em uníssono, chegando ao soalho e curvando as cabeças. Foi Throe quem falou.
- Estamos eternamente às tuas ordens.
Ao ouvir a resposta, Xcor pigarreou. E outra vez. E ainda mais uma vez. Na Língua Antiga declarou:
- Nenhum líder alguma vez contemplou costas mais fortes e mais leais do que as reunidas perante mim.
Throe ergueu o olhar.
- Não foi a memória do teu pai que servimos ao longo de tantos anos.
Ouviu-se um ulular de concordância, muito mais significativo do que qualquer voto que pudesse ter sido feito com uma linguagem floreada. Logo depois o soalho de
madeira a seus pés foi trespassado por adagas, os punhos seguros pelas mãos de soldados que eram e sempre seriam seus para comandar.
E teria deixado as coisas ficarem por aí, mas os seus planos a longo prazo exigiam uma revelação e uma nova confirmação.
- O meu objetivo não se limita a combater ao lado da Irmandade - disse em voz baixa, para que a fêmea lá em baixo nada ouvisse. - A minha ambição é uma sentença
de morte caso seja descoberta por outros. Compreendem o que estou a dizer?
- O rei - murmurou alguém.
- Sim. - Xcor fitou os olhos de cada um. - O rei.
Nenhum deles desviou o olhar, nem se levantou. Eram uma unidade sólida de músculos, força e determinação mortífera.
- Se isso alterar a decisão de qualquer um de vós - quis saber -, dir-me-ão agora e partirão ao cair da noite para não mais voltar, sem risco de pena de morte.
Throe quebrou fileiras baixando a cabeça. Mas não passou daí. Não se levantou, nem se afastou dali, nem mais ninguém o fez.
- Bom - disse Xcor.
- E quanto à fêmea? - indagou Zypher com um sorriso sombrio.
Xcor abanou a cabeça.
- Nem pensar. Ela não merece qualquer castigo.
O macho ergueu as sobrancelhas.
- Ótimo. Então posso recompensá-la.
Pelo amor de Deus, era demasiado parecido com o maldito Lhenihan.
- Não. Não lhe vais tocar. Ela é uma Escolhida. - Isso prendeu-lhes a atenção, mas Xcor não revelaria mais. Já estava farto de os ouvir. - E vamos dormir aqui.
- Mas que raios?! - Zypher levantou-se e os outros imitaram-no. - Se me dizes que ela é proibida, deixo-a em paz, tal como farão os outros. Porque é que...
- Porque é isso que eu ordeno.
Para marcar a sua posição, Xcor sentou-se à frente da porta, de costas contra os painéis. Em campo confiava a vida aos seus soldados, mas lá em baixo estava uma
fêmea bela e poderosa, e aquele grupo era constituído por sacanas excitados, sempre com cio.
Para chegar a ela teriam de passar por ele.
Afinal de contas, ele era um bastardo, mas ainda tinha os seus códigos, e ela merecia a proteção de que provavelmente não precisava pelo favor que lhe fizera.
Matar o Derramador de Sangue?
Afinal de contas tinha sido um favor prestado a Xcor.
Pois isso significava que não teria de ser ele próprio a acabar com o desgraçado.
Capítulo 53
Manny estava ao volante do seu carro, as mãos a apertar com força, os olhos fitos na estrada à sua frente, quando fez uma curva apertada... e foi dar com o tipo
de cena exata que Vishous descrevera.
Já não era sem tempo, porra. Só precisara de cerca de três horas às voltas em quarteirão atrás de quarteirão atrás de merda de quarteirão até dar com aquilo.
Mas sim, era aquilo que procurava. À luz das dez da manhã que brilhava entre os edifícios, uma nojeira oleosa cintilava no alcatrão, nas paredes de tijolo, no contentor
do lixo e nas janelas tapadas com rede metálica.
Deixou o carro em ponto morto e pisou o travão.
Assim que abriu a porta, encolheu-se.
- Grande merda...
O fedor era indescritível. Devia ser assim tão mau porque lhe entrava diretamente pelo nariz e desligava-lhe o cérebro.
Mas reconheceu-o. O tipo com o boné dos Sox tresandava a isso na noite em que Manny operara os vampiros.
Pegou no telefone, marcou o número supersecreto de Vishous e pressionou OK. Mal chegou a tocar e o gémeo de Payne atendeu.
- Já encontrei - disse Manny. - É exatamente o que disseste... meu, que cheiro. Pois. Sim. Certo. Já te ligo.
Ao desligar, parte dele estava a ir-se abaixo, pensando na possibilidade de Payne se poder ter envolvido no que fora claramente um banho de sangue. Mas manteve-se
firme enquanto procurava alguma coisa, qualquer coisa que lhe pudesse dizer o que acontecera...
- Manny?
- Porra! - Quando deu meia volta agarrou a cruz, ou talvez o coração, para que não lhe saltasse pelo esterno. - Jane?
A forma etérea da antiga chefe de traumatologia solidificou-se à frente dos olhos.
- Olá.
A primeira coisa em que ele pensou foi, Ai, meu Deus, o sol... o que era prova de quanto a sua vida mudara.
- Espera! Não tens problemas com a luz do dia...
- Pois não. - Estendeu a mão e acalmou-o. - Vim ajudar... o V disse-me onde estavas.
Manny agarrou-lhe brevemente o ombro.
- Estou... muito contente por te ver.
Jane abraçou-o rapidamente.
- Vamos encontrá-la. Garanto.
Pois, mas em que estado iriam encontrá-la?
Vasculharam juntos o beco, percorrendo tanto as sombras como as zonas iluminadas. Graças a Deus ainda era cedo e aquela zona da cidade era deserta, pois não se encontrava
em condições de lidar com a complicação que seria ter pessoas - especialmente polícias - a aparecerem.
Durante a meia hora que se seguiu, ele e Jane analisaram cada centímetro quadrado do beco, mas só encontraram os restos de uso de drogas, algum lixo e uma série
de preservativos que não pretendia ver com grande atenção.
- Nada - resmungou. - Absolutamente nada.
Pois. Certo. Ia ter de continuar a andar, a vasculhar, a rezar...
O som de algo a estremecer fê-lo virar a cabeça e depois atraiu-o para junto do contentor.
- Está qualquer coisa a fazer barulho aqui - alertou, ao ajoelhar-se. Claro que com a sorte dele, não deveria ser mais do que uma ratazana a tomar o pequeno-almoço.
Jane aproximou-se quando ele estendeu a mão por baixo do contentor de lixo.
- Acho... acho que é um telefone - resmungou enquanto se esticava e tateava com a ponta dos dedos, na esperança de alcançar a coisa. - Apanhei-o.
Recuando, descobriu que, sim, era um telemóvel rachado regulado para vibrar, o que explicava o ruído. Infelizmente, quem estivesse a ligar foi transferido para o
voice mail no momento em que tentava atender.
- Meu, está cheio de uma porcaria oleosa. - Limpou a mão no canto do contentor - o que era revelador. - E o telefone está protegido com palavra-passe.
- Temos de o levar ao V... ele consegue aceder a qualquer coisa.
Manny levantou-se e olhou para ela.
- Não sei se lá poderei entrar. - Tentou entregar-lhe o telefone. - Toma. Leva-o tu e eu vou ver se encontro outras cenas como esta.
Embora, a bem da verdade, parecesse que já tinha percorrido toda a baixa.
- Não preferes saber o que se passa em primeira mão?
- Sim, mas...
- E se o V encontrar alguma coisa, não preferes sair para tratar do assunto com o equipamento adequado?
- Claro, mas...
- Nunca ouviste falar em fazer qualquer coisa e depois pedir desculpas? - Quando ele ergueu uma sobrancelha, Jane encolheu os ombros. - Foi assim que passei anos
a lidar contigo no hospital.
Manny agarrou o telemóvel com mais força.
- Estás a falar a sério?
- Eu levo-te ao complexo, e se alguém tiver algum problema, eu trato do assunto. E posso sugerir que passemos pela tua casa primeiro para ires buscar o que precisas
para passar algum tempo fora?
Manny abanou lentamente a cabeça.
- Se ela não aparecer...
- Não. Não dizemos «não». - Os olhos de Jane estavam fitos nos dele. - Quando ela vier para casa, demore o que demorar, vais lá estar. O V disse que tinhas deixado
o trabalho... porque a Payne lhe contou. E depois podemos falar sobre isso...
- Não há nada a falar. A direção do St. Francis praticamente pediu-me que me despedisse.
Jane engoliu em seco.
- Ó, meu Deus... Manny...
Cristo, ele nem acreditou no que lhe saiu à boca:
- Não faz mal, Jane. Desde que ela regresse bem... só isso me interessa.
Jane fez sinal com a cabeça na direção do carro.
- Então porque é que ainda estamos a falar?
Muito bem visto.
Correram para o Porsche, puseram os cintos e arrancaram, com Jane ao volante.
Enquanto ela acelerava a caminho do Commodore, ele transformara-se com o sentido de objetivo. Estragara as coisas com a sua mulher uma vez. Isso não voltaria a acontecer.
Jane parou à frente do arranha-céus enquanto ele correu até ao átrio, subiu no elevador e entrou em casa. Rapidamente pegou no computador portátil, no carregador
do telemóvel...
O cofre.
Correndo para o roupeiro no quarto, introduziu o código e destrancou a pequena porta. Com as mãos rápidas e a mente firme, tirou a certidão de nascimento, sete mil
dólares em dinheiro, dois relógios Piaget de ouro e o passaporte. Pegando num saco ao acaso, enfiou tudo lá dentro, a par do computador e do carregador. Depois foi
buscar mais dois sacos que praticamente vomitavam roupas e saiu a correr do apartamento.
Enquanto aguardava pelo elevador, deu-se conta de que estava a deixar a vida para trás. De vez. Quer ficasse ou não com Payne, não voltaria ali... e não se tratava
só da morada física.
Assim que entregara as chaves a Jane pela segunda vez, virara uma esquina numa tempestade de neve metafórica. Não fazia ideia do que estava à frente, mas não ia
voltar atrás, e por ele tudo bem.
Chegado à rua, atirou as coisas para a bagageira e para o banco traseiro.
- Vamos embora.
Cerca de trinta e cinco minutos depois, Manny regressava aos terrenos incertos da montanha dos vampiros.
Olhando para o telemóvel quase destruído que tinha na mão, rezou para que aquela potencial ligação entre ele e Payne os voltasse a unir e para que tivesse uma oportunidade
com aquilo que desperdiçara...
- Grande... porra... - Lá à frente, a surgir da estranha neblina, agigantava-se uma enorme rocha, grande como o monte Rushmore. - Aquilo é... uma porra de uma casa.
Mausoléu seria outro termo.
- Os Irmãos levam a segurança muito a sério. - Jane parou o carro à frente de uma escadaria digna de uma catedral.
- Ou isso - resmungou ele -, ou os sogros de alguém são donos de uma pedreira.
Saíram juntos e antes de pegar nos sacos, Manny observou a paisagem. O muro que se perdia de vista em ambas as direções tinha uns bons seis metros de altura, e havia
câmaras espalhadas pelo exterior, bem como rolos de arame farpado no cimo. A mansão em si era enorme, espraiando-se em todas as direções, parecendo ter três pisos.
E quem falara em fortaleza? Todas as janelas estavam cobertas com placas de metal e as portas eram duplas. Parecia que seria preciso um tanque para as atravessar.
Havia uma série de carros no pátio, alguns dos quais, em outras circunstâncias, o teriam atraído profundamente, e uma outra casa muito mais pequena feita da mesma
pedra que o castelo. A fonte ao centro estava seca, mas ele imaginava os sons apaziguadores que faria quando a água estivesse a jorrar.
- Por aqui - indicou Jane ao abrir a mala do carro e tirar um dos sacos.
- Eu levo isso. - Manny pegou no que ela tirara, bem como nos outros dois. - As senhoras primeiro.
Jane telefonara ao homem dela a caminho dali, pelo que Manny imaginava que o povo de Payne não o mataria assim que lhe pusessem a vista em cima, mas não havia como
ter a certeza.
Ainda bem que, naquele momento, ele se estava borrifando para si próprio.
Na entrada, Jane tocou à campainha e ouviu-se uma tranca a abrir-se. Entrando com ela, Manny deu consigo num vestíbulo sem janelas que o fez pensar numa prisão...
uma prisão muito elegante e cara, com painéis de madeira entalhada e o cheiro a limão no ar.
Nunca sairiam dali, a menos que alguém os deixasse.
Jane falou para uma câmara.
- Somos nós. Estamos...
O segundo conjunto de portas abriu-se de imediato e Manny teve de pestanejar várias vezes perante o que lhe foi dado a ver. O átrio brilhante e garrido do outro
lado não era de todo o que esperara. Majestoso e com todas as cores do arco-íris, era tudo o que o exterior fortificado não era. E Cristo, parecia que tinha sido
usado todo o tipo de mármore decorativo possível... e olhem só para todo o cristal e talha dourada.
Entrou e viu o fresco no teto dois andares lá em cima... e uma escadaria que fazia com que a do E Tudo o Vento Levou parecesse um escadote.
Quando a porta se fechou atrás de si, o irmão de Payne saiu do que parecia ser uma sala de bilhar, com o Red Sox a seu lado. Quando o vampiro avançou, todo ele era
ação, prendendo o cigarro enrolado entre as presas e puxando as calças de cabedal.
Parando à frente de Manny, os dois machos entreolharam-se... até se pensar se as coisas chegariam ao fim mesmo antes de começarem, com Manny a ser transformado em
refeição.
Mas o vampiro estendeu a mão.
Claro... o telemóvel.
Manny largou os sacos e tirou o BlackBerry do bolso do casaco.
- Toma... foi isto...
O tipo aceitou o que lhe foi oferecido, mas nem olhou para o aparelho. Limitou-se a passá-lo para a mão livre e voltou a estender a palma.
O gesto era tão simples... o seu significado muito, muito profundo.
Manny apertou a sua mão à dele, e nenhum dos dois disse nada. Não havia necessidade, pois a comunicação estabelecida era clara. Estava a ser apresentado e respeitado
por ambos os lados.
Quando largaram as mãos, Manny disse:
- O telefone?
O vampiro acedeu ao aparelho numa questão de segundos.
- Cristo... és rápido - murmurou Manny.
- Não. Foi o que eu lhe dei. Estava a ligar-lhe de hora a hora. O GPS foi... se não tinha-te dado a morada de onde o encontraste.
- Porra. - Manny esfregou o rosto. - Não havia lá mais nada. A Jane e eu vasculhámos o sítio... e já tinha passado horas a conduzir pela baixa. E agora?
- Esperamos. Não podemos fazer mais nada enquanto houver sol. Mas assim que escurecer, a Irmandade vai sair daqui com fogo nos pés. Não te preocupes, vamos encontrá-la...
- Eu também vou - atalhou Manny. - Só para que se sabia.
Quando o gémeo de Payne começou a abanar a cabeça, Manny interrompeu quaisquer protestos, fossem eles razoáveis ou não.
- Sinto muito. Pode ser a tua irmã que anda perdida... mas é a minha mulher. E isso significa que vou fazer parte disto.
Terminado o discurso, o macho do boné de basebol tirou o chapéu e esfregou o cabelo.
- Louvado seja Deus...
Manny estacou, perdendo o resto que foi dito pelo tipo.
Aquele rosto... aquele maldito rosto.
Aquele... santa mãe... rosto.
Manny estivera errado quanto ao sítio de onde conhecia o tipo.
- O que foi? - indagou o Red Sox.
Manny tinha a vaga noção de que o irmão de Payne estava a franzir o sobrolho e de que Jane parecia preocupada. Mas estava concentrado no outro homem. Perscrutou
aqueles olhos cor de avelã, aquela boca e aquele queixo, em busca de algo que não batesse certo, algo deslocado... algo que desmentisse o que ele estava a ver.
A única coisa ligeiramente desenquadrada era o nariz, mas isso porque teria sido partido pelo menos uma vez.
A verdade estava nos ossos.
E a ligação não era o hospital, nem sequer a Catedral de St. Patrick porque, já que pensava nisso, tinha mesmo visto aquele homem, macho... vampiro, fosse o que
fosse... na igreja.
- Mas que raios? - resmungou Butch, olhando para Vishous.
À laia de explicação, Manny baixou-se e vasculhou os sacos. Enquanto procurava o que não trouxera intencionalmente, teve a certeza de que o iria encontrar. O destino
alinhara os dominós com demasiada perfeição para que aquele momento não acontecesse.
E sim, lá estava.
Quando Manny se endireitou, as mãos tremiam-lhe tanto que o suporte batia nas costas da moldura.
Já que perdera a voz, nada mais tinha a fazer do que virar o vidro para mostrar àqueles três a fotografia a preto e branco.
Que era a cópia exata do macho chamado Butch.
- Este é o meu pai - disse Manny, num tom rouco.
A expressão do tipo era de um choque profundo, e as mãos dele começaram igualmente a tremer quando as estendeu e segurou, com todo o cuidado, na velha fotografia.
Nem se deu ao trabalho de negar nada. Não tinha como.
O irmão de Payne exalou uma nuvem de fumo de cheiro maravilhoso.
- Grande cena.
Bem, era um resumo perfeito.
Manny olhou para Jane e depois fitou o homem que bem podia ser um meio-irmão.
- Reconhece-lo?
Quando o tipo abanou lentamente a cabeça, Manny olhou para o gémeo de Payne.
- Os humanos e os vampiros podem...
- Sim.
Quando voltou a mirar o rosto que não devia ser assim tão familiar, pensou, Cruzes, como podia ser.
- Quer dizer que és...
- Mestiço? - completou o macho. - Sim. A minha mãe era humana.
- Grande porra - murmurou Manny.
Capítulo 54
Ao segurar a imagem de um homem que era indiscutivelmente idêntico a si, Butch pensou, bizarramente, nos sinais amarelos das autoestradas.
Os que diziam coisas como gelo na ponte... ou queda de pedras... ou o temporário máquinas em manobras quando nos aproximávamos de uma zona de perigo. Que raios,
até os que tinham a silhueta de um veado a saltar, ou uma grande seta preta a apontar para a esquerda ou para a direita.
Naquele momento, ali no átrio, teria agradecido qualquer pré-aviso de que a sua vida estava prestes a descarrilar por completo.
Claro que um choque frontal não era algo que se planeasse.
Desviou a atenção da fotografia e fitou os olhos do cirurgião humano. Eram castanho-escuros, da cor de um bom porto. Mas a forma... como podia não ter identificado
a semelhança com os seus?
- Tens a certeza - ouviu-se a perguntar. - Este é o teu pai?
Mas já sabia a resposta antes de o tipo assentir.
- Quem... como... - Pois, grande jornalista que ele daria. - O que...
Ora aí estava. Bastava juntar onde e quando e tínhamos uma notícia do caraças.
O problema era que, depois de ter acasalado com Marissa e de ter passado pela transição, encontrara finalmente paz com quem era e com o que fazia na vida. Por outro
lado, no mundo humano sempre estivera afastado de todos, avançando paralelamente, mas sem nunca se cruzar com a mãe, as irmãs e os irmãos.
E com o pai, claro.
Ou pelo menos com o homem que lhe tinham dito ser o seu pai.
Partira do princípio de que, com o seu lar e parceira ali, deixara de precisar de assimilar e chegara a uma reconciliação pacífica com muito do que fora doloroso.
Mas agora era como que voltar à merda.
O humano falou com gravidade.
- Ele chamava-se Robert Bluff. Era cirurgião no Presbiteriano de Columbia, em Nova Iorque, onde a minha mãe trabalhava como enfermeira...
- A minha mãe era enfermeira. - Butch sentia a boca seca. - Mas não nesse hospital.
- Ela exerceu em muitos sítios... até... em Boston.
Seguiu-se um longo silêncio, durante o qual Butch considerou a hipótese de uma eventual infidelidade por parte da mãe.
- Alguém precisa de uma bebida, certo? - interveio V.
- Lag...
- Lagavulin...
Butch e o cirurgião calaram-se enquanto Vishous revirava os olhos.
- Por que será que isto não me surpreende?
Quando o irmão se dirigiu ao bar na sala de bilhar, Manello disse:
- Nunca o cheguei a conhece-lo. Devo tê-lo visto, tipo... uma vez? Sinceramente, já nem me lembro.
V armou-se em comissário de bordo e chegou com a bebida para os dois.
Quando Butch bebeu um gole, Manello fez o mesmo e depois abanou a cabeça.
- Sabes, nunca gostei desta merda até que...
- O quê?
- Vocês me começaram a foder a cabeça. Costumava gostar de Jack. Mas no ano passado... tudo mudou.
Butch aquiesceu, mesmo sem estar a acompanhar a conversa. Meu, não conseguia deixar de olhar para a fotografia, e pouco depois apercebeu-se de que, de uma forma
estranha, tudo aquilo era um alívio. A regressão ancestral provara que ele era aparentado de Wrath, mas ele nunca soubera, nem quisera realmente saber, ao certo
como. E agora ali estava. À sua frente.
Cristo, era como se sempre tivesse sofrido de uma doença e finalmente alguém lhe dava um nome.
Tens Outro-pai-ite. Ou seria Bastard-oma?
Fazia sentido. Sempre imaginara que o pai o odiava, e talvez fosse esse o motivo. Embora fosse quase impossível imaginar a sua casta e religiosa mãe a descarrilar,
aquela fotografia contava a história de pelo menos uma noite com outra pessoa.
O primeiro instinto foi que tinha de falar com a mãe e pedir-lhe pormenores... bem, alguns pormenores.
Mas como poderia isso resultar? A demência afastara-a da realidade e agora estava tão distante que mal o reconhecia quando ele a visitava, a única razão para a poder
visitar de todo. E não poderia perguntar às irmãs ou aos irmãos. Eles tinham-no rejeitado há muito, quando desaparecera, e era pouco provável que eles soubessem
mais alguma coisa.
- Ele ainda está vivo? - perguntou Butch.
- Não tenho a certeza. Costumava pensar que ele estava enterrado no Cemitério de Pine Grove. Agora? Quem sabe?
- Eu posso descobrir. - Quando V falou, Butch e Manny olharam ao mesmo tempo para o irmão. - Basta dizerem e eu encontro-o... quer esteja no mundo vampiro ou no
humano.
- Encontrar quem?
A voz grave chegou vinda do cimo das escadas, e todos olharam enquanto as palavras reverberavam pelo átrio. Wrath estava no patamar do primeiro andar com George
a seu lado. O humor do rei era fácil de identificar, mesmo tendo os olhos ocultos por aqueles óculos. Estava com um estado de espírito mortífero.
Claro que era difícil de imaginar se isso se devia ou não ao humano no átrio, pois Deus sabia que o tipo tinha mil coisas em que pensar.
Vishous tomou a palavra, o que foi uma boa opção. Butch perdera a voz e, como era óbvio, Manello também.
- Parece que este belo cirurgião pode ser teu familiar, meu senhor.
Quando Manello recuou, Butch pensou, Santa mãe.
Mais lenha para a fogueira.
Manny esfregou as frontes enquanto o tremendo vampiro de cabelo preto pela cintura descia as escadas, com o cão amarelado a parecer indicar o caminho. O sacana parecia
ser o dono do sítio e, tendo em conta a treta do «meu senhor», era provável que fosse.
- Será que ouvi bem, V? - perguntou o macho.
- Sim. Ouviste.
Eeeeeeee isso resolvia outra questão pois Manny começava igualmente a questionar a sua própria audição.
- Este é o nosso rei - anunciou Vishous. - Wrath, filho de Wrath. Este é o Manello. Doutor Manny Manello. Acho que ainda não tinham sido apresentados formalmente.
- És o que pertence a Payne.
Aí não houve hesitação. A sua resposta também não tardou:
- Sim. Sou eu.
O ronco grave que saiu da boca cruel era parte gargalhada, parte praga.
- E achas que estamos relacionados de que maneira?
V pigarreou e interveio.
- Há uma semelhança física extraordinária entre o pai do Manny e o Butch. Quer dizer... porra, é como estar a ver uma fotografia do meu amigo.
As sobrancelhas escuras desapareceram atrás dos óculos. Depois a expressão atenuou-se.
- Escusado será dizer que não posso fazer essa avaliação.
Ah, então era cego. Isso explicava o cão.
- Podemos fazer-lhe uma regressão ancestral - sugeriu Vishous.
- Isso - apoiou Butch. - Vamos...
- Calma aí, isso não o pode matar? - interveio Jane.
- Esperem lá. - Manny recuou um passo de mãos erguidas. - Esperem lá um bocado. Regressão quê?!
Vishous soprou fumo.
- É um processo através do qual eu entro em ti e vejo quanto do nosso sangue te corre nas veias.
- Mas pode matar-me? - Porra, ter Jane a abanar a cabeça não inspirava nenhuma confiança.
- É a única maneira de ter a certeza. Se fores meio-sangue, não podemos ir para o laboratório e fazer-te uma análise ao sangue. Os meios-sangues são diferentes.
Manny olhou à volta para todos eles. O rei, Vishous, Jane... e o tipo que podia ser um meio-irmão. Cristo, talvez fosse por isso que se sentia tão diferente em relação
a Payne. Assim que a vira foi como... se uma parte dele tivesse despertado.
Talvez também explicasse o seu mau feitio.
E depois de uma vida inteira a questionar-se quanto ao seu pai e às suas raízes, pensou... agora podia saber a verdade.
Mas quando eles lhe retribuíram o olhar, lembrou-se de ter ido ao hospital na semana anterior julgando que era de dia, mas descobrir que era de noite. E depois ocorreu-lhe
o que se passara com Payne e com as alterações no seu corpo.
- Sabem que mais? - disse. - Acho que vou dispensar.
Quando Jane aquiesceu, como se concordasse com ele, teve a certeza de estar a tomar a decisão correta.
Além disso, estavam a desviar-se do verdadeiro problema.
- Seja como for, a Payne vai voltar - declarou. - E não vou deixar que me apontem uma arma à cabeça antes de a voltar a ver... mesmo que isso seja a diferença entre
pertencer a este mundo ou não. Sei quem é o meu pai... e neste momento estou a olhar para o reflexo dele à minha frente. Não preciso de ir mais longe... a menos
que a Payne não concorde.
Cristo... a mãe, pensou de repente. Teria ela sabido?
Quando Vishous cruzou os braços sobre o peito, Manny preparou-se para uma discussão.
- Gosto do teu traseiro - disse, em vez disso. - A sério que gosto.
Tendo em conta aquilo a que o sacana tinha assistido não há muito tempo, isso surgiu como uma surpresa. Mas por ele tudo bem.
- Certo, estamos de acordo. Se a minha mulher quiser... eu faço-o. Caso contrário, estou bem assim.
- É justo - declarou Wrath.
Nesse momento instalou-se o silêncio. Mas também, o que poderia ser dito? A realidade sobre o paradeiro de Payne - e a sua ausência - pesava sobre todos.
Manny nunca se sentira tão impotente na vida.
- Com licença - escusou-se o meio-irmão -, mas preciso de outra bebida.
Quando Butch se afastou para a sala adjacente, Manny observou-o a desaparecer por uma arcada toda trabalhada.
- Sabes que mais, concordo com a sugestão.
- A minha casa é tua - disse o rei, num tom sombrio. - O bar fica por ali.
Reprimindo o estranho impulso para fazer uma vénia, Manny limitou-se a assentir.
- Obrigado, meu. - Quando lhe foram apresentados os nós dos dedos, Manny bateu-lhe e acenou com a cabeça a Jane e ao marido.
A sala onde entrou parecia a melhor suíte de hospitalidade que já vira. Cristo, até tinha máquina de pipocas.
- Mais Lag? - resmungou o tipo do outro lado.
Manny virou-se e deu consigo a observar um bar do caraças.
- Sim. Obrigado.
Trouxe o copo e entregou-o ao homem. E, quando o som de uísque a chapinhar pareceu alto como um grito, dirigiu-se a um sistema de som que poderia ser perfeitamente
usado no Madison Square Garden.
Pressionando os botões ouviu uma mistura de... gangsta rap.
Com outro botão chegou ao sintonizador de alta definição, em busca da estação de heavy metal. Respirou fundo quando «Dead Memories», dos Slipknot, se começou a fazer
ouvir.
Noite. Estava só à espera do anoitecer.
- Toma - disse o chui, entregando-lhe a bebida. Fazendo um esgar, acenou com a cabeça para uma das colunas. - Gostas dessa merda?
- Sim.
- Ora aí está uma diferença entre nós.
O gémeo de Payne espreitou para a sala.
- Mas que raios é esse barulho? - Era como se alguém tivesse começado a falar em línguas estranhas. Ou talvez tivesse posto a tocar Justin Bieber.
Manny limitou-se a abanar a cabeça.
- É música.
- Só porque tu o dizes.
Manny revirou os olhos e retirou-se para uma zona muito escura e perigosa da sua mente. A constatação de que não havia nada que pudesse fazer pela sua mulher naquele
momento deixava-o com vontade de magoar qualquer coisa. E o facto de parecer ter algo de vampiro dentro dele não era exatamente o tipo de revelação de que precisava
num dia como aquele.
Cristo, sentia-se péssimo.
- Alguém joga bilhar? - perguntou, meio dormente.
- Podes crer.
- Claro.
Jane avançou e deu-lhe um breve abraço.
- Conta comigo.
Parecia que não era o único desesperado por uma distração.
Capítulo 55
Sentada em algo almofadado com as mãos no regaço, Payne deduziu que se encontrava num carro, pois a subtil sensação de vibração era semelhante à que sentira quando
viajara ao lado de Manuel no seu Porsche. Contudo, não tinha como confirmar visualmente tal dedução, pois tal como anunciado pelo soldado do Derramador de Sangue,
ela estava vendada. Mas o cheiro do macho responsável estava a seu lado; embora ele estivesse parado, pelo que teria de ser outro a conduzir o veículo.
Nada lhe acontecera nas horas entre o confronto e aquela viagem. Ela passara o tempo diurno sentada na cama do líder, com os joelhos contra o peito, ambas as armas
a seu lado sobre o cobertor grosseiro. Mas ninguém a incomodara, pelo que passado algum tempo deixou de ficar atenta a cada som vindo lá de cima e conseguiu descontrair-se
um pouco.
Em breve, os pensamentos sobre Manuel dominavam-lhe o grosso da atenção, e reviveu as cenas do tempo, excessivamente curto, que tinham passado juntos, até que o
coração lhe doeu com a agonia. Quando deu por isso, o líder regressou e perguntou-lhe se desejaria um repasto antes de partirem.
Não, ela não quisera comer.
Depois, ele vendara-a com um pano branco imaculado, tão limpo e adorável que ela se interrogara quanto à sua origem. E depois segurara-lhe o cotovelo com firmeza,
levando-a pelas escadas por onde antes a transportara.
Era difícil saber ao certo quanto tempo passara no carro. Vinte minutos? Talvez meia hora?
- Aqui - acabou o líder por dizer.
À sua ordem, o veículo onde seguiam abrandou e depois parou. Uma porta foi aberta. Quando o ar puro e frio entrou, o cotovelo dela foi mais uma vez agarrado e ela
foi equilibrada ao sair. A porta fechou-se e ouviu-se uma pancada, como se um punho tivesse batido numa parte do veículo.
Os pneus a girar lançaram-lhe terra para a roupa.
Ficou sozinha com o líder.
Embora ele estivesse em silêncio, sentiu-o a mover-se atrás dela, e depois o tecido à volta da cabeça foi afrouxado. Quando foi retirado, ela susteve a respiração.
- Pensei que a seres libertada, deveria ser com uma vista digna dos teus olhos claros.
Lá em baixo revelava-se toda a cidade de Caldwell, com as luzes cintilantes e o trânsito denso a criar um repasto glorioso para a sua visão. Com efeito, encontravam-se
na crista de uma pequena montanha, com a cidade a espraiar-se verdadeiramente a seus pés junto às margens do rio.
- Isto é lindo - murmurou, olhando para o guerreiro.
Afastado, ele mostrou-se distante ao ponto de estar quase escondido, com a malformação oculta nas sombras para onde recuara.
- Que tenhas uma boa viagem, Escolhida.
- E tu... ainda não sei o teu nome.
- É verdade. - Esboçou uma vénia. - Boa noite.
E com isso desapareceu, desmaterializando-se.
Passado um instante, Payne voltou a dirigir-se para a vista e interrogou-se onde estaria Manuel naquela cidade. Teria de ser no aglomerado de construções altaneiras,
pelo que segundo a localização da ponte seria... ali.
Sim, ali.
Erguendo a mão, desenhou um círculo invisível em torno da alta construção de ferro e aço onde seguramente ele vivia.
Quando o peito a oprimiu e ela ficou ofegante, demorou-se mais um instante e depois desmaterializou-se para norte e leste, a caminho do complexo da Irmandade. A
viagem não tinha qualquer entusiasmo, sendo apenas uma obrigação, para informar o gémeo de que se encontrava viva e ilesa.
Quando ganhou forma nos degraus de pedra da vasta mansão, aproximou-se das portas duplas com um estranho temor. Sentia-se grata por estar de volta a uma espécie
de lar, mas a ausência do seu macho eliminava qualquer prazer que poderia ter tido com as ligações que voltariam a estabelecer-se em breve.
Depois de tocar à campainha, a porta do vestíbulo abriu-se de imediato e pôde sair da noite...
A segunda porta interior foi aberta ainda mais rapidamente pelo mordomo sorridente.
- Minha senhora! - gritou.
Ao entrar no átrio que tanto a encantara quando o vira pela primeira vez há dias, vislumbrou brevemente o seu gémeo chocado a saltar para a arcada de acesso à sala
de bilhar.
Mas esse breve momento foi tudo o que viu.
Uma grande força afastou Vishous com tanta violência que ele literalmente voou, largando o copo que segurava e espalhando pelo ar a bebida nele contida.
Manuel irrompeu pelo átrio, o corpo a avançar rapidamente, a expressão no rosto a um tempo de incredulidade, terror e alívio.
Mas não fazia sentido que estivesse a correr na direção dela, não fazia sentido que estivesse ali na...
Antes de conseguir concluir o pensamento ele tinha-a nos braços, e, pelas Parcas, o cheiro era o mesmo, a especiaria escura que lhe era única a inundar-lhe os sentidos.
E os ombros eram tão largos quanto se recordava. E a cintura tão estreita. E o abraço tão poderoso e maravilhoso.
O corpo forte dele estremeceu quando a abraçou com força, por um instante, e depois recuou, como se receasse estar a magoá-la.
Os olhos dele estavam frenéticos.
- Estás bem? O que posso fazer por ti? Precisas de um médico? Estás ferida... estou a fazer demasiadas perguntas... desculpa. Cristo... o que aconteceu? Onde estiveste?
Porra, tenho de parar...
Enquanto reencontro amoroso, talvez aquelas não fossem as palavras românticas que algumas fêmeas gostariam de ouvir, mas para ela representavam tudo no mundo.
- Por que estás aqui? - murmurou ela, levando-lhe as mãos ao rosto.
- Porque te amo.
De certa forma, isso não explicava nada... mas dizia-lhe tudo o que precisava de saber.
De repente, ela afastou as mãos.
- Mas e aquilo que fiz ao teu corpo...
- Não me importo. Nós damos a volta... havemos de o resolver... mas eu estava errado quanto a nós dois. Fui um fraco... um cobarde, e estava errado, e sinto tanto.
Merda. - Abanou a cabeça. - Tenho de deixar de praguejar. Oh, meu Deus, a tua roupa...
Payne olhou para baixo e viu o sangue preto dos minguantes que matara, a par da mancha vermelha do seu próprio sangue.
- Estou inteira e estou bem - garantiu, com toda a clareza. - E eu amo-te...
Interrompendo-a, beijou-a com solenidade nos lábios.
- Diz isso outra vez. Por favor.
- Eu amo-te.
Quando ele gemeu e voltou a envolve-la com os braços, Payne sentiu uma grande onda de calor e de gratidão no peito, e deixou que a emoção a apertasse contra ele.
E, enquanto se abraçavam, olhou sobre o ombro do seu macho. O irmão estava com a shellan dele a seu lado.
Cruzando o olhar com o do gémeo, viu todas as questões e receios naquele olhar.
- Não estou ferida - disse ao seu macho e ao seu gémeo.
- O que aconteceu? - perguntou Manuel contra o cabelo dela. - Encontrei o teu telefone partido.
- Estavas à minha procura?
- É claro que estava. - Recuou. - O teu irmão ligou-me ao nascer do sol.
Foi de imediato cercada pelo seu povo, como se um gongo tivesse soado, convocando para o átrio todos os machos e fêmeas da casa. Sem dúvida que teriam sido ali levados
pela agitação da sua chegada, mantendo-se à margem por sinal de respeito.
Tornava-se óbvio que havia mais do que duas mentes descansadas.
E isso fê-la sentir-se parte da família.
- Estava junto ao rio - disse alto o suficiente para que todos a ouvissem - quando senti o cheiro do inimigo. Atraída até eles cruzei os becos e deparei-me com dois
minguantes. - Sentiu Manuel ficar hirto, e viu o irmão fazer o mesmo. - Foi bom lutar...
Com essas palavras hesitou. Mas o rei aquiesceu. E o mesmo fez uma fêmea poderosa de cabelo curto, como se também ela combatesse na guerra e tivesse noção tanto
da necessidade como da satisfação. Os Irmãos, contudo, pareciam obviamente desconfortáveis.
Prosseguiu.
- Chegou então junto a mim um grupo de machos... de costas fortes, bem armados, com efeito, um esquadrão de guerreiros. O líder era muito alto, com olhos escuros,
cabelo escuro e um... - levou a mão à boca - defeito no lábio superior.
Começavam agora as pragas e, ao ouvi-las, desejou ter usado mais do que o fizera as taças de visão no Outro Lado. Era óbvio que o macho que descrevera não lhes era
desconhecido, e não era bem-vindo à narrativa.
- Ele prendeu-me... - Ouviu-se então não um, mas dois rosnidos, o do seu gémeo e o de Manuel. E, ao acalmar o macho tão perto dela, olhou para o irmão. - Acreditava
erroneamente que eu fizera desabar uma calamidade sobre a linhagem dele. Acreditava ser filho do Derramador de Sangue... e fora testemunha da noite em que levei
a morte ao nosso progenitor. Com efeito, ele passara séculos procurando-me para exercer a sua vingança.
Nesse momento calou-se, apercebendo-se de que acabara de admitir ter cometido parricídio. Mas ninguém pareceu chocado... o que dizia muito, não só acerca do tipo
de machos e fêmeas que ali se encontravam, mas também sobre o bastardo que fora seu pai.
- Esclareci o guerreiro quanto ao erro segundo o qual agia. - Omitiu o facto de ele a ter agredido, e ficou satisfeita por o hematoma no rosto ter desaparecido.
De alguma forma, sabia que ninguém precisava de ter conhecimento disso. - E ele acreditou em mim. Não me magoou... com efeito, protegeu-me dos machos dele, cedendo-me
a sua cama...
Manuel arreganhou os dentes como se tivesse presas... e isso deixou-a excitada.
- Sozinha, dormi sozinha. Ele manteve todos os subalternos com ele, lá em cima. - Voltou a acalmar Manuel pelo menos até se aperceber que ele estava excitado, tal
como aconteceria com qualquer macho disposto a marcar a sua fêmea. Que situação tão erótica. - Ah... ele vendou-me e levou-me a uma elevação panorâmica com vista
para a cidade. Depois libertou-me. E foi tudo.
Wrath tomou a palavra.
- Ele levou-te contra tua vontade.
- Ele acreditava ter motivo. Pensava que eu tinha matado o pai dele. E assim que ficou esclarecido estava preparado para me libertar, mas era de dia, pelo que não
podia ir para lado nenhum. Teria telefonado, mas perdera o meu telefone e eles não pareciam ter nenhum, pois não vi qualquer aparelho. Na verdade, estavam a viver
à moda antiga, de forma comunal e modesta, numa sala subterrânea iluminada por velas.
- Fazes ideia onde estão? - perguntou-lhe o gémeo.
- Não sei. Estava inconsciente quando eles... - Um brado de alerta fez-se ouvir de tantas gargantas que ela abanou a cabeça. - Fui alvejada por um minguante...
- Mas que raios...
- Foste o quê?!
- Uma arma...
- Alvejada com uma...
- ...ferida?!
Mmm. Talvez isso não tivesse sido uma boa ideia.
Enquanto os Irmãos falavam uns sobre os outros, Manuel pegou-lhe ao colo e ergueu-a, o rosto uma máscara de fúria cega.
- Acabou-se. Já está tudo dito. Vou examinar-te. - Olhou para o irmão dela. - Para onde a posso levar?
- Lá para cima. Vira à direita. Passas três portas e há um quarto de hóspedes. Vou mandar comida e diz-me se precisares de material clínico.
- Entendido.
Com isso, o macho dela dirigiu-se às escadas, consigo nos braços.
Ainda bem que ela já concluíra a história. Tendo em conta o ângulo do queixo de Manuel, seria preciso algum tempo antes de voltar a falar sobre o que lhe acontecera.
A menos que o quisesse ver furioso.
Com efeito, no estado em que ele se encontrava agora, parecia que quele soldado teria muito o que recear, caso os dois alguma vez se encontrassem.
- Estou tão satisfeita por te ver - disse ela, num tom rouco. - Só pensava em ti quando estava...
Manuel fechou brevemente os olhos, como se sofresse.
- Eles não te magoaram?
- Não. - E foi então que percebeu o que o preocupava.
Levando-lhe a mão ao rosto, disse:
- Ele não me tocou. Nenhum deles o fez.
O arrepio que percorreu o corpo forte que a transportava foi tão grande que ele quase tropeçou. Mas o macho dela recuperou depressa... e prosseguiu o seu caminho.
Enquanto Vishous observava o humano a levar a sua irmã escadaria acima, percebeu que estava a testemunhar o desenrolar do futuro. Aqueles dois iam resolver as coisas
e o cirurgião com gostos musicais altamente discutíveis faria parte da vida dela... e da de V... para todo o sempre.
De repente, a mente dele recuou doze meses, com o rebobinar a deter-se quando chegou ao ponto da narrativa em que entrara no gabinete do cirurgião para apagar as
memórias do tempo passado por V em St. Francis.
Irmão.
Ouvira a palavra irmão na sua cabeça.
Na altura não fazia a mais pequena ideia do que isso poderia significar. Porque, então, como poderia isso alguma vez acontecer?
Mas ali estava, mais uma vez a realidade exibia uma das suas visões.
Embora, a bem da verdade, a palavra devesse ser cunhado.
Mas depois olhou para Butch. O melhor amigo também fitava o tipo.
Porra, talvez irmão se adequasse. O que era bom. Manello era o tipo de indivíduo com quem não nos importávamos de nos relacionarmos.
Quase como se o rei lhe tivesse lido os pensamentos, Wrath anunciou:
- O cirurgião pode ficar. O tempo que quiser. E pode ter contacto com qualquer família humana que tenha... se quiser. Enquanto meu familiar, é bem-vindo à minha
casa sem quaisquer restrições.
Ouviu-se um ronco de aprovação. Como sempre, no que dizia respeito à Irmandade, os segredos nunca eram secretos durante muito tempo, por isso já todos saberiam da
ligação Manello/Butch/Wrath. Que raios, todos tinham visto a fotografia. Especialmente V.
Embora V tivesse feito mais do que isso. O nome «Robert Bluff» acabara por se revelar uma identidade falsa... E o macho tinha de ser meio-sangue. Se assim não fosse,
nunca poderia ter trabalhado em qualquer hospital durante o dia. A questão era o que poderia saber quanto ao seu lado vampiro e se ainda estava vivo.
Quando Jane encostou a cabeça ao seu peito, envolveu-a ainda mais com os braços. E depois olhou para Wrath.
- O Xcor, certo?
- Pois - assentiu o rei. - Um avistamento confirmado. E não será a última vez que teremos notícias dele. Isto foi só o princípio.
Grande verdade, pensou V. A chegada daquele bando de bastardos não era uma boa notícia para ninguém, mas acima de tudo não o era para Wrath.
- Cavalheiros - disse o rei - e minhas senhoras, a primeira refeição está a arrefecer.
O que foi a deixa para que todos se dirigissem à sala de jantar e comessem o que fora deliberadamente ignorado até então.
Com Payne segura e em casa, o apetite voltava a ter rédea livre... embora Deus soubesse que não ia pensar naquilo que o cirurgião e a irmã de certeza estariam prestes
a fazer.
Quando gemeu, Jane apertou-lhe a cintura com mais força.
- Estás bem?
Olhou para a sua shellan.
- Acho que a minha irmã não tem idade para sexo.
- V, ela tem a mesma idade do que tu.
Vishous franziu o sobrolho por um instante. Teria? Ou será que ele nascera primeiro?
Pois, só teria essa resposta num sítio.
Que raios, nem sequer pensara na mãe durante toda aquela situação. E agora que pensava... não tinha qualquer vontade ou interesse em aparecer por lá e anunciar que
Payne estava muito bem.
Não. Se a Virgem Escrivã quisesse acompanhar o que os «filhos» estavam a fazer podia usar aquelas taças de visão fakakta de que tanto gostava.
Beijou a sua shellan.
- Não quero saber o que diz o calendário, nem a ordem de nascimento. Aquela é a minha irmãzinha e nunca vai ter idade suficiente para... «ah, sim».
Jane riu-se e voltou a aninhar-se por baixo do braço dele.
- És um macho muito doce.
- Ná.
- És.
Levando-a para a sala de jantar e até à mesa, puxou-lhe educadamente a cadeira e depois sentou-se à sua esquerda, para que ela ficasse junto à sua mão da adaga.
Enquanto as conversas se elevavam, as pessoas atacavam as travessas e a sua Jane se ria de algo que Rhage dissera, Vishous olhou e viu Butch e Marissa a trocarem
sorrisos e de mão dada.
Sabes que mais, pensou... naquele momento, a vida estava muito boa.
Estava mesmo.
Capítulo 56
Lá em cima, Manny fechou a porta com o pé atrás dele e da sua mulher, e depois levou-a para a cama do tamanho de um campo de futebol.
Não havia motivo para se trancar. Só um idiota os incomodaria.
O brilho que entrava pelas janelas já sem portadas garantia-lhe luz suficiente para ver, e maldito fosse se não gostava do que tinha à sua frente: a mulher dele,
são e salva, deitada na... Bem, certo, aquela não era a cama deles, mas garantidamente ia transformá-la nisso antes do amanhecer.
Sentando-se ao lado dela, tentou discretamente ocultar a ereção massiva que tinha desde que a vira entrar à porta. E embora houvesse muito o que dizer, só conseguia
fitá-la.
Mas rapidamente o cirurgião nele assumiu o controlo.
- Foste ferida? - As mãos adoráveis dela baixaram até às vestes, e quanto mais a bainha suba, mais as pálpebras dela desciam.
- Acho que vais descobrir que estou sarada. Foi apenas superficial... aqui em cima.
Manny engoliu em seco. Porra... sim, ela estava bem. A pele no cimo da coxa estava lisa como porcelana.
- Mas talvez me devesses examinar com mais atenção - sugeriu ela, num tom arrastado.
Manny entreabriu os lábios e sentiu os pulmões a contraírem-se.
- De certeza que estás bem? E eles não... te magoaram.
Nunca ultrapassaria isso.
Payne sentou-se e fitou-lhe os olhos.
- O que sempre te esteve destinado continua à tua espera.
Manny fechou brevemente os olhos. Depois não quis que ela ficasse com uma má impressão.
- Não que me importasse se não fosses... quer dizer, isto não é uma questão de propriedade... - Que raios, parecia que naquela noite não era capaz de falar. - Mas
não era capaz de aguentar se te magoassem.
O sorriso dela fê-lo sentir-se grato por ter um colchão debaixo do rabo, pois se estivesse de pé, ela tê-lo-ia derrubado.
- Desculpa por ontem à noite - lamentou-se ele. - Cometi um erro...
Payne levou-lhe a mão à boca.
- Estamos aqui agora. Nada mais me importa.
- E preciso de te dizer uma coisa.
- Vais deixar-me?
- Nunca.
- Ótimo. Então vamos unir-nos primeiro, e depois falamos. - Endireitando-se ainda mais, Payne substituiu os dedos pela boca e beijou-o profunda e demoradamente.
- Mmmm... sim, muito melhor do que o discurso, creio eu.
- Tens a certeza de que queres... - Não conseguiu avançar mais, pois a língua dela privou-o de pensamentos.
Gemendo, subiu para a cama, sustendo-se acima dela. E depois, fitando-lhe os olhos, baixou lentamente o corpo sobre o dela... sendo o último contacto a ereção dele
entre as pernas dela.
- Se te beijar agora não há volta. - Bolas, tinha a voz tão gutural que praticamente lhe rosnava. Mas estava a ser sincero. Estava a ser levado por outra força.
Não se tratava de sexo, embora a mecânica do ato estivesse envolvida. Ao tomar-lhe a virgindade, estaria a marcá-la de uma forma que não compreendia, mas que não
questionava.
- Quero-te assim - disse ela. - Há séculos que espero por aquilo que só tu me podes dar.
Minha, pensou Manny.
Antes de a voltar a beijar, chegou-se ao lado e soltou-lhe o cabelo da trança. Espalhando as ondas escuras sobre a colcha de cetim, percorreu-as com os dedos.
Depois encostou as ancas ao íntimo dela, empurrando e recuando, e repetindo o movimento... enquanto a mão lhe subia até ao peito e lhe agarrava o tecido frágil das
vestes.
Sinceramente estava chocado com o que queria fazer.
- Desejo estar nua perante ti - ordenou ela. - Fá-lo, Manuel.
A maldita túnica não teve hipótese. Erguendo-se, pegou nas lapelas e abriu-a ao meio, rasgando o material e expondo-lhe os seios aos seus olhos quentes e ao ar frio.
Em resposta, ela arqueou-se e gemeu e isso foi a gota de água. Dirigiu-se aos mamilos entumecidos com a boca e ao íntimo dela com as mãos. Estava todo nela, levando-a
ao orgasmo sugando-a e esfregando-a com cuidado, e quando a libertação rápida e desesperada chegou, ele engoliu-lhe o grito.
Queria dar-lhe mais - e pretendia fazê-lo - mas o seu corpo não ia esperar. Levou as mãos às calças, soltando o cinto e baixando o fecho para soltar o membro.
Ela estava pronta, molhada, aberta e ansiosa, tendo em conta a forma como as pernas o esfregavam.
- Eu vou devagar - disse contra a boca de Payne.
- Não receio a dor. Não contigo.
Bolas, portanto talvez naquilo fossem fisicamente como as mulheres humanas. O que queria dizer que a primeira vez não seria fácil para aquela fêmea.
- Shhh - murmurou ela. - Não te preocupes. Toma-me.
Baixando a mão, posicionou-se e... que porra... quase se veio. Ela estava quente e molhada e...
Ela moveu-se tão depressa que não a poderia impedir, mesmo que quisesse. As mãos dela baixaram e agarraram-lhe o traseiro, com as unhas a cravarem-se na sua carne
e depois...
Payne ergueu as ancas ao mesmo tempo que o puxava, e ele entrou até ao fundo, com a penetração total e absolutamente completa. Com ele a gemer, Payne ficou rígida
e silvou com a estocada, o que era profundamente injusto, pois ela sabia tão bem. Mas ele não ia mexer-se, pelo menos até que ela recuperasse da invasão.
E depois lembrou-se.
Levando-lhe a mão à nuca, aproximou-lhe os lábios do pescoço.
- Toma-me.
O som que ela fez levou-o ao orgasmo no interior dela. Era demasiado excitante para se conter. E enquanto o membro latejava, as presas de Payne enterraram-se na
sua veia.
O sexo tornou-se alucinado. Payne moveu-se contra ele, com o íntimo apertado a sugá-lo enquanto ele se vinha mais uma vez... e depois foi a vez de o macho começar
a bombear as ancas com força. O sugar e o ritmo alucinado arrebatou-os de tal maneira que tiveram noção que pela manhã se ressentiriam. Aquilo não tinha nada de
civilizado. Eram macho e fêmea, reduzidos ao cerne mais primitivo.
E era o melhor que alguma vez sentira.
Capítulo 57
Thomas DelVecchio sabia exatamente para onde o assassino iria a seguir.
Não tinha qualquer dúvida. Com o detetive de la Cruz na sede, a trabalhar com os rapazes em teorias e indícios, todas bastante úteis, Veck sabia para onde ir.
Ao aproximar-se do parque de estacionamento do Monroe Motel & Suítes com as luzes desligadas e a moto desengatada, pensou que talvez fosse boa ideia ligar a de la
Cruz e dizer-lhe onde se encontrava.
Mas acabou por deixar o telefone no bolso.
Parando a BMW nas árvores, à direita do parque de estacionamento, empurrou o descanso e pendurou o capacete no guiador. Tinha a arma no coldre por baixo da axila
e disse para consigo que aí ficaria se alguém aparecesse.
Em grande medida acreditava nessa mentira.
Claro que a horrível verdade era que se sentia animado por algo adormecido desde há muito, muito tempo. De la Cruz tinha razão em receá-lo como parceiro e estava
correto em questionar onde acabavam os pecados do pai e começavam os do filho.
Pois Veck era um pecador. E entrara para a polícia para tentar expulsar isso de si.
Mas talvez fosse melhor exorcizar essa treta pois, às vezes, sentia como se tivesse um demónio dentro de si, a sério.
Mesmo assim, não estava ali para matar ninguém. Estava ali para deter um assassino antes que o desgraçado voltasse ao trabalho.
A sério.
Ao aproximar-se do motel, Veck manteve-se entre as sombras das árvores e concentrou-se no quarto onde a última rapariga tinha sido encontrada. Estava tudo tal como
a polícia de Caldwell deixara. Ainda havia fita de limitação num triângulo à volta da porta e da porção de passeio à frente. A ombreira também apresentava um selo,
o qual teoricamente só poderia ser quebrado em situações oficiais. Não havia luz no interior do quarto, nem cá fora, no corredor. Não se via ninguém.
Atrás de um tronco grosso, serviu-se das mãos enluvadas para puxar o gorro de lã para mais perto da camisola de gola alta preta.
Era tão bom a ficar imóvel que praticamente desapareceu. Era também muito bom a canalizar a energia para uma calma ubíqua que conservava os recursos, ao mesmo tempo
que o deixava em alerta.
A presa ia aparecer. Aquele louco assassino perdera todos os troféus. A coleção estava nas mãos das autoridades e os agentes forenses esforçavam-se por o ligar a
vários homicídios por resolver um pouco por todo o país. Mas o desgraçado não voltaria ali para tentar recuperar tudo, ou pelo menos parte do que deixara. O re-gresso
teria como objetivo lamentar a perda do que se esforçara tanto por conseguir.
Seria imprudente da parte dele? É claro, mas isso fazia parte do ciclo de excessos. O assassino não estaria a raciocinar devidamente, e as perdas tê-lo-iam deixado
desesperado. E Veck ia esperar durante as próximas noites, até que o indivíduo surgisse.
O tempo passou e ele esperou, esperou e esperou... era tão paciente como qualquer caçador. Embora tivesse pensado que aquilo poderia revelar-se desastroso, estando
ali sozinho. Com uma faca presa na cintura. E aquela maldita arma...
Um ramo a partir-se atraiu-lhe os olhos para a direita, mas não a cabeça. Não se mexeu nem alterou a respiração, nem sequer estremeceu.
E lá estava. Um homem surpreendentemente magro a atravessar, com cuidado, os arbustos folhosos da mata. Enquanto se aproximava do lado do motel, a expressão no rosto
do homem era quase religiosa. Mas não foi apenas isso que o identificou como sendo o assassino. Tinha as roupas cobertas de sangue seco, e os sapatos também. Estava
a coxear, como se tivesse sofrido uma lesão na perna, e o rosto apresentava riscos de unhas.
Apanhei-te, pensou Veck.
E agora que fitava o assassino... a mão baixou-lhe até às ancas e contornaram-nas até às costas. Até à faca.
Não mudou de rumo, mesmo enquanto dizia para consigo para deixar a arma onde estava e pegar nas algemas. Sempre tivera duas pessoas dentro dele, duas metades na
mesma pele e, em momentos como aquele, sentia-se como se estivesse a observar-se a agir, quase como se fosse o passageiro de um táxi, sendo que o destino, qualquer
que fosse, não resultaria dos seus atos.
Começou a aproximar-se do homem, acompanhando-o em silêncio, qual sombra, encurtando a distância até ficar a mero metro e meio do sacana. A faca chegara à mão de
Veck e não queria que ela lá estivesse, mas era demasiado tarde para a voltar a guardar. Demasiado tarde para recuar. Demasiado tarde para dar ouvidos à voz que
lhe dizia que aquilo era um crime que o deixaria na prisão. O outro lado assumira o controlo e ele estava perdido nele, à beira de matar...
O terceiro homem surgiu vindo de nenhures.
Um homem imenso vestido de cabedal saltou para o caminho do assassino, bloqueando-lhe o avanço. E, quando David Kroner recuou, alarmado, um silvo percorreu o ar.
Cruzes, aquilo não parecera humano. E... aquilo eram... presas?
Mas que raios...
O ataque foi tão brutal que, com o primeiro golpe contra o pescoço do assassino em série, a cabeça quase lhe saltou. E não parou por aí, com sangue a saltar para
tão longe que salpicou as calças, a camisola de gola alta e o gorro pretos de Veck.
Mas não estava a ser usada faca, nem adaga.
Dentes. O cabrão estava a desfazê-lo com os dentes.
Veck tentou recuar, mas bateu numa árvore e o impacto atirou-o ao chão muuuuuito mais perto do que deveria. E devia ter corrido para a moto, ou simplesmente fugido,
mas sentia-se arrebatado pela violência... e pela convicção de que o que estava a ver não era, de todo, humano.
Quando acabou, o monstro deixou cair os restos massacrados do assassino... e depois olhou para Veck.
- Grande... porra... - murmurou Veck.
O rosto tinha uma estrutura óssea bastante humana, mas as presas não batiam certo, nem tampouco a dimensão e o olhar vingativo. Cristo, tinha sangue a escorrer-lhe
da boca.
- Olha-me nos olhos - disse uma voz de sotaque carregado.
Um gorgolejo fez-se ouvir do que restava do assassino. Mas Veck não olhou. Estava fito num par de olhos espantosos... tão azuis... a brilhar....
- Merda... - deixou escapar, com uma dor de cabeça lancinante a eliminar tudo o que via ou ouvia. Tombando de lado, a dor obrigou-o a assumir uma posição fetal e
assim ficou.
Plim.
Por que estava no chão?
Plim.
Sentia o cheiro de sangue. Mas porquê?
Plim. Plim.
Levantou a cabeça com um gemido e...
- Porra!
Pôs-se de pé em choque e fitou a confusão ensanguentada à sua frente.
- Ah... porra - praguejou. Tinha-o feito. Finalmente matara alguém...
Mas depois olhou para a faca que tinha na mão. Nada de sangue. Nem na lâmina. Nem nas mãos. Só salpicos na roupa.
Olhou à sua volta, sem o mais leve indício do que poderia ter acontecido. Lembrava-se de ter ali chegado... de ter estacionado a moto... e de seguir o homem que
jazia agora moribundo.
Se fosse brutalmente sincero para consigo, ele tivera a intenção de matar. Sempre. Mas tendo e conta os indícios físicos? Não fora ele.
O problema era que tudo o resto era um buraco negro.
Um gemido do assassino em sério fê-lo virar a cabeça para a direita. O homem tentava alcançá-lo. Suplicava-lhe ajuda em silêncio enquanto se esvaía. Como poderia
ainda estar vivo?
Com as mãos a tremer, Veck pegou no telemóvel e ligou para o 112.
- Sim, detetive DelVecchio, Homicídios. Preciso de uma ambulância junto ao Monroe Motel & Suítes já.
Depois de o pedido ter sido registado e de os médicos estarem a caminho, tirou o blusão, enrolou-o e ajoelhou-se ao lado do homem. Pressionando o blusão contra os
ferimentos no pescoço dele, rezou para que o cabrão sobrevivesse. E depois teve de se interrogar se isso seria bom.
- Não te matei - disse. - Pois não?
Cristo... o que acontecera ali?
Capítulo 58
-Ele veio ver-te.
A partir do ponto de vista de Blaylock, na cama, Saxton, filho de Tyme, mostrava-lhe o seu melhor lado. E não, não era o traseiro. O macho estava a barbear-se ao
espelho e tinha o perfil perfeito banhado pela luz suave.
Cristo, ele era um belo macho.
A muitos níveis, aquele amante a quem se ligara era tudo o que podia desejar.
- Quem? - perguntou Blay, baixinho.
Os olhos que procuraram os dele escorriam incredulidade.
- Ah. - Para se esquivar a mais conversa, Blay olhou para o edredão que tinha puxado até ao peito despido. Estava nu por baixo do lençol de cetim. Tal como Saxton
estivera, antes de ter vestido o roupão.
- Ele queria saber se estavas bem - prosseguiu Sax.
Uma vez que ah já tinha sido usado como resposta, Blay apimentou-a com:
- A sério?
- Foi no terraço. Não quis entrar, para não nos incomodar.
Engraçado, quando estivera prestes a desmaiar, depois de lhe terem suturado a barriga, interrogara-se vagamente o que poderia Saxton estar a fazer lá fora. Mas na
altura sentia tantas dores que não fora capaz de pensar em praticamente nada.
Agora, no entanto, sentia um entusiasmo terrível a percorrê-lo.
Louvada fosse a Virgem Escrivã, há muito tempo que não sentia aquele formigueiro familiar, embora o tempo que passara não tivesse diminuído a sensação. E o impulso
que se seguiu, de perguntar o que fora dito, não era algo que pudesse fazer. Para começar, seria uma falta de respeito para com Saxton. Além disso, era inútil.
Ainda bem que dispunha de bastantes munições com que se calar. Bastava-lhe pensar em Qhuinn a chegar a casa há cerca de uma semana, de cabelo revolto, o cheiro abafado
pelo perfume de outro homem, a pose afetada pela satisfação que tivera.
Pensar que Blay se atirara ao macho não uma, mas duas vezes e fora rejeitado? Nem conseguia pensar nisso.
- Não queres saber o que ele disse? - murmurou Saxton ao passar com a lâmina afiada pelo pescoço, evitando habilmente a marca da dentada que Blay lhe dera há meia
hora.
Blay fechou os olhos e interrogou-se se alguma vez seria capaz de fugir à realidade de que Qhuinn foderia tudo o que se mexia menos ele.
- Não? - indagou Saxton.
Quando a cama estremeceu, Blay abriu os olhos. Saxton sentara-se à beira do colchão, estando o macho a limpar o queixo e as faces com uma toalha vermelho-sangue.
- Não? - repetiu.
- Posso fazer-te uma pergunta? - disse Blay. - E neste momento não seria boa ideia usares a tua personalidade encantadora e sarcástica.
O rosto maravilhoso de Saxton assumiu de imediato uma expressão grave.
- Força.
Blay alisou o edredão sobre o peito. Várias vezes.
- Eu... agrado-te?
Pelo canto do olho viu Saxton estremecer e quase morreu com o embaraço.
- Na cama, queres tu dizer? - quis Sax saber.
Blay franziu os lábios ao aquiescer, e pensou em avançar alguma explicação, mas a boca revelou-se-lhe demasiado seca.
- Mas por que haverias tu de perguntar isso? - comentou Saxton.
Bem, porque teria de haver qualquer coisa de errado consigo.
Blay abanou a cabeça.
- Não sei.
Saxton dobrou a toalha e pousou-a a seu lado. Depois estendeu o braço sobre as ancas de Blay e aproximou-se até ficarem cara a cara.
- Sim. - E levou a boca ao pescoço do companheiro, sugando. - Sempre.
Blay passou com a mão pela nuca do macho, encontrando o macio cabelo encaracolado na base do pescoço.
- Graças a Deus.
A familiaridade do corpo sobre o seu não era novidade, e parecia-lhe correto. Era bom. Conhecia cada curva e recanto do peito, das ancas e das coxas de Saxton. Conhecia
os pontos de pressão e sabia onde morder, sabia exatamente onde agarrar, como rebolar e revirar-se para que Saxton se viesse com força.
Por isso, sim, talvez não precisasse de perguntar.
Mas Qhuinn... tudo sobre esse macho o deixava em carne viva. E, mesmo depois de ter aprendido a ligar-se no exterior, a ferida continuava tão má e profunda como
no momento em que fora feita, altura em que se tornou óbvio que o único macho que queria acima de qualquer outro nunca estaria com ele.
Saxton recostou-se.
- O Qhuinn não é capaz de lidar com aquilo que sente por ti.
Blay soltou uma gargalhada rouca.
- Não falemos sobre ele.
- Porquê? - Saxton estendeu a mão e passou com o polegar pelo lábio inferior de Blay. - Está sempre aqui connosco, quer queiramos quer não.
Blay pensou em mentir, mas desistiu.
- Desculpa.
- Não faz mal... sei onde me meti. - A mão livre de Saxton meteu-se por baixo do edredão. - E sei o que quero.
Blay gemeu quando aquela mão esfregou o que se tornou de imediato uma ereção imensa. E, quando as ancas se levantaram e ele abriu as pernas para Saxton, susteve
os olhos do amante e sugou-lhe o polegar.
Era muito melhor do que entrar na montanha-russa Qhuinn. Sabia-o e gostava disso. Ali estava seguro. Ali não sairia magoado.
E ali encontrara uma ligação sexual profunda.
O olhar de Saxton era a um tempo quente e sério quando largou o que encontrara, destapou o corpo de Blay e desapertou o laço do seu roupão.
Aquilo era muito bom, pensou Blay. Aquilo era correto...
Quando a boca do amante lhe encontrou a clavícula, Blay fechou os olhos. Mas quando se começou a perder nas sensações, o que viu não foi Saxton.
- Espera, para... - Sentou-se e arrastou o outro macho com ele.
- Não faz mal - disse Saxton baixinho. - Sei o que se passa entre nós.
O coração de Blay cedeu um pouco. Mas Saxton limitou-se a abanar a cabeça e devolveu os lábios ao peito de Blay.
Nunca tinham falado acerca de amor e isso deixou bem claro que nunca o fariam, pois Saxton tinha toda a razão. Blay continuava apaixonado por Qhuinn. E provavelmente
sempre assim seria.
- Porquê? - perguntou ao amante.
- Porque te quero enquanto te tiver.
- Não vou a lado nenhum.
Saxton limitou-se a abanar a cabeça contra os abdominais retesados que mordiscava.
- Deixa de pensar, Blaylock. Começa a sentir.
Quando aquela boca talentosa chegou ao fundo, Blay inspirou com um sibilo e decidiu seguir o conselho. Pois essa era a única maneira de sobreviver.
Tinha a impressão de que seria uma questão de tempo até que Qhuinn anunciasse que ele e Layla iriam acasalar.
Não sabia porquê, apenas sabia. Havia semanas que os dois se encontravam e a Escolhida voltara a estar lá na véspera. Sentira-lhe o cheiro e o sangue no quarto ao
lado.
E embora tal convicção pudesse ser apenas um exercício mental para se deprimir, sentia que era muito mais do que isso. Era como se a neblina que, regra geral, obscurecia
os dias, meses e anos vindouros se tivesse tornado insuportavelmente ténue e as sombras do destino estivessem a revelar-se-lhe.
Uma questão de tempo.
Cristo, isso seria como quem o mataria.
- Ainda bem que aqui estás - gemeu.
- Eu também - retribuiu-lhe o amante em torno da ereção dele. - Eu também.
Capítulo 59
Na noite seguinte, Payne dava voltas na frente da mansão da Irmandade, indo da sala de jantar até ao átrio e à sala de bilhar e de volta. Uma e outra vez.
O macho dela saíra da casa a meio da tarde para «tratar de umas coisas». E, embora se tivesse recusado a dizer-lhe o quê, ela apreciara o sorriso malandro que ele
lhe oferecera ao aconchegá-la na cama que tinham usado na totalidade durante a noite, saindo logo depois.
Depois disso, Payne não dormira. De todo.
Havia muito que a deixava feliz.
E surpreendida.
Fazendo uma pausa à frente das portas de correr que davam acesso ao pátio, pensou na fotografia que ele lhe mostrara. Era por demais óbvio que tinha uma relação
de sangue com Butch e, logo, com o rei. Mas nem Manuel nem ela estavam interessados em arriscar uma regressão. Não, nesse ponto, ela concordava plenamente com ele.
Tinham-se um ao outro e, tendo em conta o que já tinham ultrapassado, não havia motivo para arriscar um mau resultado.
Além disso, a informação não alteraria nada. O rei abrira as portas de sua casa ao macho dela, mesmo sem uma declaração formal de relação sanguínea, e Manuel poderia
manter o contacto com a mãe humana. Mais ainda, ficara decidido que ele trabalharia ali, com a Doc Jane, mas também com Havers. Afinal de contas, a raça precisava
de mais bons médicos, e Manuel era superlativo.
E quanto a ela? Sairia para lutar. Nem Manuel nem o irmão estavam propriamente entusiasmados com os riscos que ela iria correr, mas não a impediriam. Com efeito,
depois de ter falado longamente com Manuel, ele parecera aceitar que isso fazia parte dela. Só fizera questão que ela usasse as melhores armas possíveis e o irmão
insistira em certificar-se disso.
Pelas Parcas, aqueles dois pareciam estar a entender-se. Quem o poderia ter previsto?
Deslocando-se até à janela seguinte, perscrutou a escuridão, em busca de faróis.
Onde estaria ele? Onde estaria ele...
Manuel também iria falar com a Doc Jane sobre as mudanças físicas por que ele passara, mudanças essas que, tendo em conta a forma como Payne brilhava sempre que
faziam amor, seria provável que continuassem. Ela iria monitorizar o corpo e ver o que acontecia, e ambos rezavam para que ela apenas o estivesse a manter saudável
e eternamente jovem. Apenas o tempo o diria.
Praguejando, deu meia volta, cruzou o átrio... e entrou na sala de jantar.
Junto à terceira janela, olhou para os céus. Não pretendia visitar a mãe. Teria sido maravilhoso partilhar o seu amor com que a trouxera ao mundo. Mas o progenitor
estava morto, e a sua mahmen? Não confiava na Virgem Escrivã, receando que a voltasse a aprisionar. Manuel era um meio-sangue. Não era de todo um elemento de raça
pura que a mãe aprovasse...
O par de olhos brilhantes que subiam a elevação onde o complexo se erguia deixaram-lhe o coração a bater descompassado. E depois ouviu a música, um ritmo forte que
atravessava o vidro.
Payne saiu a correr da sala de jantar e percorreu rapidamente o mosaico. Momentos depois tinha saído pelo vestíbulo para as trevas...
Ao fundo dos degraus estacou.
Manuel não chegara sozinho. Atrás do Porsche estava um qualquer tipo de veículo imenso... um grande veículo em duas partes.
O macho deixou o volante do seu carro.
- Olá - cumprimentou ele.
Ostentava um sorriso rasgado quando chegou junto a ela, lhe levou as mãos às ancas e a aproximou do peito.
- Tive saudades tuas - murmurou-lhe contra os lábios.
- Eu também. - Ela sorria igualmente. - Mas... o que é que trouxeste?
O mordomo idoso saiu do outro veículo.
- Meu senhor, devo...
- Obrigado, Fritz, mas eu agora trato do resto.
O mordomo fez uma vénia baixa.
- Foi um prazer ter sido útil.
- És do melhor, meu.
O doggen estava radiante quando regressou alegremente à casa. E depois, o macho dela dirigiu-se-lhe.
- Fica aqui.
Franziu o cenho ao ouvir pancadas secas no interior da caixa grande.
- É claro.
Depois de voltar a beijá-la, Manuel desapareceu atrás do veículo.
Abriram-se portas. Mais pancadas. Gemidos e o som de algo a correr, seguido por um bater ritmado. E depois...
O relinchar disse-lhe o que ela não se atrevera a esperar. E depois a bela poldra de Manuel recuou por uma rampa e foi-lhe trazida.
Payne levou as mãos à boca enquanto nos olhos se formavam lágrimas. A égua avançava cheia de graciosidade, com a pelagem a brilhar com a luz emanada da casa, mais
uma vez com toda a sua força e vitalidade.
- Mas... porque é que ela está aqui? - indagou Payne num tom rouco.
- Os humanos oferecem algo às noivas como prova do seu amor. - Manuel ostentou um sorriso rasgado. - Pensei que a Glory fosse melhor do que qualquer diamante que
eu te pudesse comprar. É mais importante para mim... e espero que para ti também.
Não tendo resposta, estendeu-lhe a tira de cabedal que estava presa à brida do cavalo.
- Estou a dar-ta.
Como se fosse a sua deixa, Glory soltou um relincho e empinou-se, como se concordasse com a troca de posse.
Payne limpou os olhos e atirou-se a Manuel, beijando-o profundamente.
- Não tenho palavras.
E depois aceitou as rédeas, enquanto Manuel se ufanava.
Respirando fundo, ela...
Antes de ter consciência do movimento, Payne saltou no ar, montando Glory como se o par estivesse junto há anos e não há minutos.
E o cavalo não precisou de incentivo, de autorização, de nada... Glory saltou em frente, firmando os cascos nos seixos e partindo a galope.
Payne entrelaçou os dedos na crina preta comprida e equilibrou-se perfeitamente sobre as costas possantes onde se sentava. Quando o vento lhe bateu no rosto, riu-se
com pura exultação ao partirem alegres e livres. Sim... sim! Mil vezes sim!
Partir na noite.
Ter a liberdade de se mover.
Ter amor à sua espera.
Era mais do que estar viva. Aquilo era viver.
De pé, junto ao reboque, Manny observou as suas meninas a partirem juntas, perdido de felicidade. Faziam um par perfeito, ambas unas e fortes, e rasgando a noite
a um galope que a maior parte dos carros teria dificuldade em acompanhar.
Certo. Talvez tivesse derramado uma lágrima ou duas. Mas que raios. Aquela noite era incrível para...
- Eu vi a cena.
- Cristo... - Agarrou na cruz e deu meia volta. - Andas sempre a tentar matar as pessoas do coração?
O irmão de Payne não respondeu, ou talvez não o conseguisse fazer. O vampiro tinha os olhos fitos na irmã e no cavalo a galope, e parecia tão comovido como Manny.
- Mas pensei que fosse um garanhão. - Vishous abanou a cabeça. - Mas sim, foi isto que eu vi... ela montada num puro-sangue preto, o cabelo a voar com a brisa. Mas
não pensava que fosse o futuro...
Manny virou-se outra vez para as suas meninas, que se encontravam ao fundo do muro e começavam a descrever uma curva larga para regressarem à casa.
- Amo-a tanto - ouviu-se Manny a dizer. - É o meu coração que ali vai. Aquela é a minha mulher.
- Verdade.
Com a ligação profunda estabelecida entre os dois, Manny sentia-se em muitos aspetos como se estivesse em casa, e não queria pensar muito, receando que tais bênçãos
se desvanecessem.
Momentos depois, olhou para o lado.
- Importas-te que te faça uma pergunta.
- Força.
- O que é que me fizeste à merda do carro?
- O quê, estás a falar da música?
- Para onde é que foi a minha...
- Merda? - Olhos da cor de diamante cruzaram-se com os dele. - Se vais morar aqui, vais começar a ouvir aquilo que eu ouço, certo?
Manny abanou a cabeça.
- Deves estar a brincar comigo.
- Estás a dizer que não gostaste da batida?
- Pois. - Depois de tossicar, Manny cedeu. - Está bem, não eram péssimas de todo.
A gargalhada foi um bocadinho triunfante de mais.
- E sabia.
- Então e o que era?
- E agora, o gajo quer nomes. - O vampiro pegou num cigarro e acendeu-o. - Deixa ver... «Cinderella Man», do Eminem. «I Am Not a Human», do Lil Wayne. O Tupac...
A lista prosseguiu, e Manny foi ouvindo enquanto observava a sua mulher a cavalgar e afagava o peso do cruxifixo de ouro.
Ele e Payne estavam juntos... ia com Butch à igreja, à meia-noite... e Vishous não o esfaqueara. E, se bem se lembrava, o gémeo de Payne conduzia aquele Escalade
preto ali, e isso significava que a vingança seria uma carrada de Black Veil Bride, Bullet for My Valentine e Avenged Sevenfold a ser transferida para o sistema
de som do SUV.
Só pensar nisso já o deixava a sorrir.
Bem feitas as contas?
Sentia-se como se tivesse ganhado a lotaria. Em cada um dos cinquenta estados. Ao mesmo tempo.
Era essa a sorte de todos eles.

 

Glossário
ahmo (n.) - Termo respeitoso usado por alguém sexualmente submisso para se referir ao seu dominador.
ahstrux nohtrum (n.) - Guarda privado com licença para matar nomeado para o cargo pelo Rei.
caminhante (n.) - Indivíduo que morreu e regressou ao mundo dos vivos vindo do Vápido. São fortemente respeitados e reverenciados pelos seus feitos.
chrih (n.) - Símbolo de morte honrada na Língua Antiga.
comhpetição (n.) - Conflito entre dois machos que lutam pelo direito de ser o macho de uma determinada fêmea.
Dhunhd (n. próp.) - Inferno.
Dhuplo exhilado (n. próp.) - Gémeo maligno ou amaldicionado, aquele que nasceu em segundo lugar.
doggen (n.) - Membro da classe servil no mundo dos vampiros. Os doggens têm tradições antigas e conservadoras em relação ao serviço dos superiores, cumprindo regras
formais de roupagem e comportamento. São capazes de sair durante o dia, mas envelhecem relativamente depressa. A sua esperança de vida é de cerca de quinhentos anos.
ehros (n.) - Uma Escolhida, treinada nas artes sexuais.
Escolhidas (n.) - Vampiras que foram criadas para servir a Virgem Escrivã. São consideradas membros da aristocracia, embora tenham uma inclinação mais espiritual
do que temporal. Têm pouca ou nenhuma relação com os machos, mas podem acasalar com guerreiros, sob indicação da Virgem Escrivã, para propagarem a sua classe. Têm
a capacidade de fazer prognósticos. No passado eram usadas para servir as necessidades de sangue de membros da Irmandade sem parceira, mas a prática foi abandonada
pelos Irmãos.
Escravo de sangue (n.) - Vampiro macho ou fêmea subjugado para servir as necessidades de sangue de outro vampiro. A prática da manutenção de escravos de sangue foi
recentemente proibida.
ghuardião (n.) - Guarda de um indivíduo. Existem vários graus de guardiões, sendo o mais poderoso o de uma fêmea em isolamento.
glymera (n.) - O núcleo social da aristocracia, aproximadamente equivalente ao existente em Inglaterra no período da Regência (1811-1820).
hellren (n.) - Vampiro macho que foi acasalado com uma fêmea. Os machos podem tomar mais do que uma fêmea como parceira.
instruthor (n. próp.) - Palavra usada entre machos, a qual denota respeito e afeto mútuos. Traduzido livremente como «querido amigo».
Irmandade da Adaga Negra (n. próp.) - Guerreiros vampiros altamente treinados, que protegem a sua espécie contra a Sociedade dos Minguantes. Em resultado das práticas
de reprodução seletivas do próprio grupo, os Irmãos possuem uma enorme força física e mental, bem como capacidades inatas de cura rápida. Não são parentes entre
si, na sua maioria, e são admitidos na Irmandade por nomeação dos Irmãos. Agressivos, confiantes e reservados por natureza, existem à parte dos civis, tendo pouco
contacto com os membros de outras classes, exceto quando têm de se alimentar. São personagens de lenda e alvo de vénia dentro do mundo dos vampiros. Só podem ser
mortos por um ferimento muito grave, ou seja, um tiro ou uma facada no coração, ou algo semelhante.
isohlamento (n.) - Estatuto conferido pelo Rei a uma fêmea da aristocracia como resultado de uma petição por parte da sua família. A fêmea fica sob a direção de
um ghuardião, normalmente o macho mais velho da casa. Este fica com o direito legal de determinar todos os aspetos da vida da fêmea, restringindo, consoante a sua
vontade, todas as interações que ela tenha com o mundo.
leelan (n.) - Um termo de afeto, que pode ser livremente traduzido por «amada».
lewlhen (n.) - Dádiva.
Lhenihan (n. próp.) - Besta mítica afamada pelas proezas sexuais.
Em calão moderno refere-se a um macho de dimensão e resistência
sexuais preternaturais.
lidher (n.) - Uma pessoa com poder e influência.
Lys (n.) - Instrumento de tortura usado para remover os olhos.
mahmen (n.) - Mãe. Usado como designação ou como termo afetuoso.
mhis (n.) - O mascarar de um determinado ambiente físico; a criação de um campo de ilusão.
minguante (n.) - Humano desprovido de alma que caça vampiros para os exterminar como membro da Sociedade dos Minguantes. Para serem mortos os minguantes têm de ser
trespassados pelo coração; de resto, não têm idade. Não bebem nem comem e são impotentes. Com o tempo, o cabelo, a pele e as íris perdem a pigmentação, até que ficam
loiros, pálidos e de olhos incolores. Cheiram a pó de talco. Convocados para a sociedade por Ómega, guardam consigo um vaso de cerâmica onde o seu coração foi depositado
quando removido.
nalla (f.) ou nallum (m.) - Termo carinhoso que significa «amada/o».
newling (n.) - Uma virgem.
Ómega (n. próp.) - Figura malévola e mística que destinou os vampiros à extinção por causa do rancor contra a Virgem Escrivã.Existe num domínio não-temporal e tem
vastos poderes, exceto o poder da criação.
Período de necessidade (n.) - Tempo de fertilidade de uma vampira. Normalmente tem a duração de dois dias e é acompanhado de um intenso apetite sexual. Ocorre, mais
ou menos, cinco anos após a transição da fêmea, e uma só vez, uma década mais tarde. Todos os machos respondem, nalgum grau, se estiverem próximos de uma fêmea em
necessidade. Poderá ser um tempo de perigo, com conflitos e lutas entre os machos competidores, especialmente se a fêmea não tiver parceiro.
Primeira Família (n. próp.) - O Rei e a rainha dos vampiros e respetivos filhos.
princeps (n.) - Nível mais alto da aristocracia dos vampiros, apenas superado pelos membros da Primeira Família ou as Escolhidas da Virgem Escrivã. Têm de herdar
o título, o qual não pode ser conferido a ninguém.
prohtector (n.) - O equivalente a um padrinho ou madrinha de um indivíduo.
pyrocant (n.) - Refere-se a uma fraqueza crítica num indivíduo. A fraqueza pode ser interna, como um vício, ou externa, como um amante.
rahlman (n.) - Salvador.
ryto (n.) - Modo ritual de repor a honra, concedido por aquele que ofendeu. Caso aceite, o ofendido escolhe a arma e atinge o ofensor, que se lhe entrega sem defesa.
sehnhor (n.) - Termo indicador de respeito usado por alguém sexualmente dominado quando se refere do dominante.
shellan (n.) - Vampira que foi acasalada com um macho. Geralmente, as fêmeas não tomam mais do que um parceiro, devido à natureza altamente territorial dos machos
acasalados.
Sociedade dos Minguantes (n. próp.) - Ordem de matadores, convocada por Ómega com o propósito de erradicar a espécie dos vampiros.
sympath (n.) - Espécie dentro da raça dos vampiros com a capacidade e o desejo de manipular as emoções de outras pessoas (para obter uma troca de energia), entre
outras características. Historicamente têm sido discriminados e, durante certas eras, foram caçados por vampiros. Estão quase extintos.
transição (n.) - Momento crítico da vida de um vampiro, em que ele ou ela se transformam em adulto. A partir desse momento, terão de beber o sangue de alguém do
sexo oposto para sobreviverem e são incapazes de suportar a luz do Sol. Ocorre, em geral, entre os vinte e os trinta anos. Alguns vampiros não sobrevivem às suas
transições, em particular os machos. Antes das transições, os vampiros são fisicamente fracos, sexualmente inativos e incapazes de se desmaterializarem.
tremehndo (adj.) - Termo que se refere à potência do órgão sexual de um macho. A tradução literal é algo semelhante a «digno de entrar numa fêmea».
Tumba (n. próp.) - Jazigo sagrado da Irmandade da Adaga Negra. Usado como lugar de culto, bem como de armazém dos vasos dos minguantes. As cerimónias cumpridas naquele
lugar incluem induções, funerais e ações disciplinares aplicadas a Irmãos. Ninguém pode ali entrar, exceto os membros da Irmandade, a Virgem Escrivã ou os candidatos
à indução.
Vampiro (n.) - Membro de uma espécie separada da do Homo sapiens. Os vampiros têm de beber o sangue de alguém do sexo oposto para sobreviverem. O sangue humano mantê-los-á
vivos, embora a força não dure muito tempo. Após às suas transições, que ocorrem entre os vinte e os trinta anos de idade, são incapazes de sair para a luz do Sol
e têm de se alimentar com regularidade mordendo veias. Os vampiros não podem converter humanos através de uma dentada, ou da transferência de sangue, embora sejam
capazes, em casos raros, de acasalar com membros de outra espécie. Os vampiros podem desmaterializar-se conforme queiram, embora precisem de se acalmar e se concentrar
para o conseguir, não podendo carregar consigo nada que seja pesado. São capazes de roubar a memória a humanos, desde que essa memória seja de curta duração. Alguns
vampiros são capazes de ler a mente. A esperança de vida é superior a mil anos e, em alguns casos, ainda mais longa.
Vápido (n. próp.) - Domínio não-temporal onde os mortos se reúnem com os seus amados e passam a eternidade.
vinhgança (n.) - Ato de retribuição mortal, tipicamente levado a cabo por um macho para vingar a sua amada.
Virgem Escrivã (n. próp.) - Força mística que é conselheira do Rei, simultaneamente depositária dos arquivos e dispensadora de privilégios. Existe num domínio não-temporal
e tem vastos poderes. Teve a capacidade de um ato de criação singular, poder que usou para trazer os vampiros à existência.

 

                                                                  J. R. Ward

 

 

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