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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NA TOCA DO LEÃO - P.2 / Ken Folett
NA TOCA DO LEÃO - P.2 / Ken Folett

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

NA TOCA DO LEÃO

Segunda Parte

 

Fará chorou um dia inteiro quando soube que Jane e Jean-Pierre partiriam com o próximo comboio. Sentia um profundo afeto por Jane e adorava Chantal. Jane ficou satisfeita, mas embaraçada: parecia às vezes que Fará a preferia à sua própria mãe. Mas Fará dera a impressão de aceitar a idéia de que Jane iria embora e no dia seguinte voltara a ser como antes, igualmente devotada, mas não mais desolada.

A própria Jane estava nervosa com a perspectiva da viagem. Do vale ao Passo Khyber o percurso era de duzentos e cinqüenta quilômetros. Na vinda, a viagem levara quatorze dias. Jane ficara com bolhas e diarréia, além das inevitáveis dores no corpo. Agora, tinha de fazer a mesma viagem carregando uma criança de dois meses.

Haveria cavalos, mas durante uma boa parte do caminho não seria seguro montá-los, pois os comboios viajavam pelas mais íngremes e estreitas trilhas nas montanhas, muitas vezes à noite.

Ela fez uma espécie de rede de algodão para pendurar em seu pescoço e carregar Chantal assim. Jean-Pierre teria de carregar os suprimentos de que precisassem durante o dia, pois cavalos e homens - como Jane aprendera na vinda - avançavam em velocidades diferentes, os cavalos indo mais depressa que os homens nas subidas e mais devagar nas descidas. com isso, as pessoas ficavam separadas da bagagem por longos períodos.

Decidir que suprimentos levar era o problema que a absorvia naquela tarde, enquanto Jean-Pierre estava em Skabun. Teria de haver suprimentos médicos essenciais antibióticos, ataduras, morfina - que Jean-Pierre providenciaria. Precisariam levar alguma comida.

Na vinda, dispunham de rações ocidentais de muita energia, como chocolate, envelopes de sopa e bolinhos em pacote. Partindo agora, só poderiam levar o que havia no vale: arroz, frutas secas, queijo, pão duro, além de qualquer outra coisa que pudessem comprar pelo caminho. Ainda bem que não tinham de se preocupar com a alimentação de Chantal.

Havia, no entanto, outras dificuldades com a criança. As mães ali não usavam fraldas; deixavam a parte inferior do bebê descoberta e lavavam a toalha em que ele ficava. Jane achava este arranjo muito mais saudável que o sistema ocidental, mas não servia para uma viagem. Jane fizera três fraldas de toalha e improvisara, dos sacos de polietileno dos suprimentos médicos de Jean-Pierre, uma calça de plástico para Chantal. Teria de lavar uma fralda todas as noites - com água fria, é claro - e tentar secá-la até o amanhecer. Se não secasse, haveria uma de reserva; e se as duas estivessem úmidas, Chantal sofreria com assaduras. Mas nenhuma criança jamais morrera de assaduras, pensou ela. O comboio, com toda certeza, não pararia para que uma criança fosse amamentada, dormisse ou trocasse a fralda. Assim, teria de amamentar Chantal e pô-la para dormir em movimento, trocando a fralda sempre que surgisse uma oportunidade.

Sob alguns aspectos, Jane estava mais resistente do que um ano antes. A pele dos pés estava mais dura e o estômago resistente às bactérias locais mais comuns. As pernas, que tanto doeram na viagem de vinda, haviam se acostumado a andar muitos quilômetros. Mas a gravidez parecia tê-la deixado propensa a dores nas costas, e se preocupava com a perspectiva de carregar uma criança o dia inteiro. O corpo parecia já ter se recuperado do trauma do parto. Sentia que seria capaz de fazer amor, mas não o dissera a Jean-Pierre - não sabia direito por quê.

Tirara muitas fotografias ao chegar, com a câmara Polaroid. Deixaria a câmara - era barata - mas levaria a maior parte das fotografias. Contemplou-as agora, tentando decidir quais jogaria fora. Tinha fotografias da maioria dos aldeões. Ali estavam os guerrilheiros, Mohammed, Alishan, Kahmir e Matullah, fazendo poses ridiculamente heróicas e parecendo ferozes. Ali estavam as mulheres, a sensual Zahara, a velha e encarquilhada Rabia, Halima de olhos escuros, todas rindo como colegiais. Ali estavam as crianças: as três meninas de Mohammed, seu filho Mousa; os filhos de Zahara, de dois, três, quatro e cinco anos; e as quatro crianças do mula. Não podia jogar nenhuma fora: levaria todas.

Começou a arrumar as roupas numa bolsa, enquanto Fará varria o chão e Chantal dormia no quarto ao lado. Haviam descido mais cedo das cavernas, a fim de aprontar tudo. Só que não havia muita coisa para arrumar: além das fraldas de Chantal, um calção para ela e outro para Jean-Pierre, um par de meias de reserva para cada um.

Nenhum deles levaria uma muda de roupas externas. Chantal não as tinha de qualquer forma, pois vivia de xale ou nua. Para Jane e Jean-Pierre, uma calça, uma camisa, um lenço para a cabeça e uma manta tipopaííu seriam suficientes para toda a viagem, a serem provavelmente queimados num hotel em Peshawar, comemorando o retorno à civilização.

O pensamento lhe daria forças para a viagem. Lembrava-se vagamente de ter pensado que o

Dean's Hotel em Peshawar era primitivo, mas era difícil recordar qual era o problema. Seria possível que tivesse se queixado que o ar-condicionado fazia muito barulho? Mas o lugar tinha chuveiro!

- Civilização. - Fará fitou-a, com uma expressão inquisitiva, Jane sorriu e acrescentou, em dari: - Estou feliz porque Vou voltar para uma cidade grande.

- Gosto da cidade grande - disse Fará. - Já estive uma vez em Rokha. - Continuou a varrer, enquanto acrescentava, com um tom de inveja: - Meu irmão foi a Jalalabad.

- Quando ele voltará?

Mas Fará estava aturdida e embaraçada, e depois de um momento Jane compreendeu o motivo: o som de assovio e passos de homem vinham do pátio. Houve uma batida na porta e Ellis Thaler indagou:

- Tem alguém em casa?

- Entre - disse Jane.

Ele entrou, claudicando. Embora não estivesse mais interessada por ele em termos amorosos, Jane se preocupava com o seu ferimento. Ellis ficara se recuperando em

Astana. Devia ter voltado naquele dia.

- Como se sente, Ellis?

- Como um idiota - respondeu ele, com um sorriso triste. - É um lugar embaraçoso para se levar um tiro.

- Se embaraço é tudo o que sente, então já está melhor. Ele acenou com a cabeça.

- O doutor está?

- Ele foi a Skabun. Houve um terrível bombardeio lá e mandaram chamá-lo. Alguma coisa que eu possa fazer?

- Eu só queria dizer a ele que minha convalescença terminou.

- Jean-Pierre voltará ainda esta noite ou amanhã de manhã. - Jane observava Ellis atentamente: com os cabelos louros e a barba encaracolada, ele parecia um leão.

- Por que não corta os cabelos?

- Os guerrilheiros me disseram para deixá-lo crescer e não fazer a barba.

- Eles sempre recomendam isso. O objetivo é fazer com que os ocidentais não chamem tanta atenção. No seu caso, porém, o efeito é justamente o inverso.

- Sempre chamarei atenção neste país, com os cabelos compridos ou aparados.

- Tem razão.

Ocorreu a Jane que aquela era a primeira vez que se encontrava ali com Ellis sem a presença de Jean-Pierre. E haviam retomado com a maior facilidade o jeito antigo

de conversar. Era difícil lembrar como ela ficara furiosa com ele. Ellis olhava para as coisas arrumadas, curioso.

- O que está fazendo?

- Preparando-me para a viagem de volta.

- E como tenciona viajar?

- com um comboio, da mesma forma como viemos.

- Os russos capturaram muito território durante os últimos dias. Ainda não sabia?

Jane sentiu um calafrio de apreensão.

- Como assim?

- Os russos desfecharam sua ofensiva de verão. E avançaram por muitos trechos pelos quais os comboios normalmente passam.

- Está querendo dizer que a rota para o Paquistão foi fechada?

- A rota regular foi. Não é possível ir daqui ao Passo Khyber. Mas pode haver outros caminhos...

Jane viu o sonho de voltar para casa se desvanecer.

- Ninguém me contou nada! - exclamou ela, furiosa.

- Jean-Pierre não devia saber. Tenho me encontrado muito com Masud e por isso estou melhor informado.

- Tem razão - murmurou Jane, sem olhar para ele.

Talvez Jean-Pierre realmente não soubesse. Ou talvez soubesse, mas não lhe contara porque não queria voltar à Europa. Qualquer que fosse o caso, ela não aceitaria a situação. Primeiro, precisava confirmar se Ellis estava certo. E depois procuraria meios de resolver o problema.

Foi até a arca de Jean-Pierre e tirou os mapas americanos do Afeganistão. Estavam enrolados num cilindro e presos com um elástico. Impaciente, Jane arrebentou o elástico e deixou os mapas caírem no chão. Em algum lugar, no fundo de sua mente, uma voz disse: Este devia ser o único elástico num raio de cem quilômetros.

Acalme-se, disse a si mesma.

Ajoelhou-se no chão e começou a examinar os mapas. Eram numa escala bastante grande, e teve de juntar vários para abranger todo o território entre o vale e o Passo Khyber. Ellis olhou por cima de seu ombro e comentou:

- Esses mapas são excelentes. Onde foi que os conseguiram?

- Jean-Pierre trouxe de Paris.

- São melhores que os de Masud.

- Sei disso. Mohammed sempre os usa para planejar os comboios. Muito bem, mostre-me até onde os russos avançaram.

Ellis ajoelhou-se no tapete, ao seu lado, e traçou uma linha pelo mapa com o dedo. Jane sentiu um ímpeto de esperança.

- Não me parece que o Passo Khyber esteja isolado. Por que não podemos ir por aqui?

Ela traçou uma rota imaginária pelo mapa, um pouco ao norte da frente russa.

- Não sei se existe uma rota - respondeu Ellis. - Pode ser intransponível. Teriam de perguntar aos guerrilheiros. Mas há um outro problema: as informações de Masud têm pelo menos um ou dois dias, e os russos continuam a avançar. Um vale ou desfiladeiro pode estar aberto num dia e fechado no seguinte.

- Mas que droga! - Ela não seria derrotada. Inclinou-se para o mapa e examinou com toda atenção a zona da fronteira. - O Passo Khyber não é a única passagem.

- Um rio corre pela fronteira, com montanhas no lado afegão. Talvez só se possa alcançar esses outros desfiladeiros pelo sul... ou seja, através de território ocupado pelos russos.

- Não há sentido em especular. - Jane reuniu os mapas e enrolou-os. - Alguém deve saber.

- Tem razão. Ela se levantou.

- Deve haver mais de uma saída deste maldito país. Pondo os mapas debaixo do braço, ela saiu, deixando Ellis ajoelhado no tapete.

As mulheres e crianças haviam voltado das cavernas e a aldeia ressuscitara. A fumaça das fogueiras de cozinhar flutuavam por cima dos muros dos pátios. Na frente da mesquita cinco crianças sentavam em círculo, empenhadas num jogo chamado (sem qualquer razão aparente) "Melão". Era um jogo de contar histórias, em que o contador parava antes do final e a criança seguinte tinha de continuar. Jane avistou Mousa, o filho de Mohammed, sentado no círculo, usando no cinto a faca de aparência ameaçadora que o pai lhe dera depois do acidente com a mina. Mousa estava contando a história e Jane ouviu suas palavras:

- ... e o urso tentou arrancar a mão do menino com uma mordida, mas o menino pegou sua faca...

Ela seguiu para a casa de Mohammed. Talvez ele não estivesse - Jane não o via há muito tempo - mas vivia com os irmãos, na típica família afegã, que também eram guerrilheiros - todos os jovens em condições físicas eram - e assim poderiam lhe dar alguma informação.

Ela hesitou diante da casa. Pelo costume, deveria parar no pátio e falar com as mulheres, que estariam preparando a refeição noturna; depois de uma troca de cortesias, a mulher mais velha poderia entrar na casa para indagar se os homens condescenderiam em falar com Jane. Ela ouviu a voz da mãe: "Não vire um espetáculo público!"

E disse, em voz alta:

- Não enche, mamãe!

Jane entrou, ignorando as mulheres no pátio, e foi direto para a sala da frente da casa, onde os homens ficavam.

Três homens estavam ali: Kahmir Khan, o irmão de dezoito anos de Mohammed, com um rosto bonito e uma barba rala; seu cunhado Matullah; e o próprio Mohammed. Era insólito haver tantos guerrilheiros na casa. Todos a fitaram, surpresos.

- Deus esteja com você, Mohammed Khan. - Sem esperar pela resposta, Jane acrescentou: - Quando voltou?

- Hoje - respondeu ele, automaticamente.

Ela acocorou-se como os homens. Eles estavam aturdidos demais para dizer qualquer coisa. Jane abriu os mapas no chão. Os três homens se inclinaram para a frente, num reflexo, observando-os; já estavam esquecendo que Jane violara a etiqueta.

- Os russos avançaram até aqui... é isso mesmo?

Ela traçou a linha que Ellis indicara. Mohammed balançou a cabeça em concordância.

- Então a rota regular dos comboios está bloqueada.

Mohammed tornou a acenar.

- Qual é o melhor caminho para sair?

Todos pareciam em dúvida e sacudiram a cabeça. Era uma atitude normal: diante de uma dificuldade, eles gostavam de dar a impressão de que o problema era muito mais árduo. Jane achava que se comportavam assim porque seu conhecimento local era o único poder de que dispunham sobre estrangeiros como ela. Geralmente se mostrava tolerante, mas hoje não estava com paciência.

- Por que não este caminho? - indagou ela, traçando uma linha paralela à frente russa.

- Perto demais dos russos - respondeu Mohammed.

- E este?

Jane indicou uma rota mais cautelosa, acompanhando os contornos da terra.

- Não.

- Por que não?

- Aqui... - Mohammed apontou para um ponto no mapa, entre as cabeceiras de dois vales, onde Jane passara o dedo por uma cordilheira. - Não tem sela.

Uma sela era um desfiladeiro. Jane traçou um percurso mais ao norte.

- E este caminho?

- Pior ainda.

- Mas tem de haver outra saída! - Jane tinha a impressão de que eles se divertiam com a sua frustração. Resolveu dizer alguma coisa um pouco ofensiva, a fim de estimulá-los.

- Este país é uma casa com uma só porta, isolado do resto do mundo só porque não podem alcançar o Passo Khyber?

A expressão casa com uma só porta era um eufemismo para latrina.

- Claro que não - respondeu Mohammed, empertigando-se. - No verão existe a Trilha da Manteiga.

- Mostre-me.

O dedo de Mohammed traçou uma rota complexa que partia para leste do vale, passando por uma sucessão de desfiladeiros altos e leitos de rios secos, virando para o norte pelo Himalaia e cruzando a fronteira perto do desabitado Corredor Waikhan, antes de virar para sudeste, até a cidade paquistanesa de Chitral.

- É assim que o povo de Nuristan leva sua manteiga, iogurte e queijo para o mercado no Paquistão. - Ele sorriu e tocou no gorro redondo. - E é onde arrumamos os chapéus.

Jane recordou que aqueles gorros eram conhecidos como chitrali.

- Ótimo - disse ela. - Voltaremos para casa por esse caminho.

Mohammed sacudiu a cabeça.

- Não pode.

- E por que não?

Kahmir e Matullah sorriam com um ar superior. Jane ignorouos. Depois de um momento, Mohammed disse:

- O primeiro problema é a altitude. Essa rota passa acima da linha do gelo. Isso significa que a neve nunca derrete e não há água correndo, nem mesmo no verão. O segundo é o terreno. As colinas são muito íngremes e as trilhas, estreitas e traiçoeiras. É difícil encontrar o caminho. Os próprios guias locais podem se perder.

Mas o pior de todos os problemas é o povo. A região é chamada Nuristan, mas já foi conhecida como Kafiristan, porque os habitantes eram incréus e bebiam vinho. Agora são verdadeiros crentes, mas ainda roubam, trapaceiam e às vezes matam os viajantes. A rota não é boa para os europeus, impossível para as mulheres. Só os homens mais jovens e mais fortes podem percorrê-la... e mesmo assim muitos são mortos.

- Mandará comboios por esse caminho?

- Não. Vamos esperar até que a rota do sul seja reaberta. Jane estudou o rosto bonito. Compreendeu que ele não estava exagerando. Levantou-se e começou a arrumar os mapas. Sentia um desapontamento profundo. A volta estava adiada indefinidamente. A tensão da vida no vale parecia subitamente insuportável, e ela tinha vontade de chorar. Enrolou os mapas e forçou-se a ser polida.

- Passou muito tempo ausente - disse ela a Mohammed.

- Fui a Faizabad.

- Uma longa viagem. - Faizabad era uma cidade relativamente grande ao norte. A Resistência local era muito forte: o exército se amotinara e os russos nunca recuperaram o controle. - Não está cansado?

Era uma pergunta formal, da mesma forma que Como vai? no Ocidente. Mohammed deu a resposta formal:

- Ainda estou vivo.

Ela enfiou o rolo de mapas debaixo do braço e saiu. As mulheres no pátio fitaram-na apreensivas quando ela passou. Jane acenou com a cabeça para Halima, a mulher de olhos escuros de Mohammed, recebendo em resposta um meio sorriso nervoso.

Os guerrilheiros andavam fazendo muitas viagens ultimamente. Mohammed fora a Faizabad, o irmão de Fará viajara a Jalalabad... Jane recordou que uma de suas pacientes, uma mulher de Dasht-i-Rewat, comentara que o marido fora enviado a Pagman, perto de Kabul. E Yussuf Gul, o cunhado de Zahara, irmão de seu falecido marido, seguira para o Vale Logar, no outro lado de Kabul. Todos os quatro lugares eram baluartes rebeldes.

Alguma coisa estava acontecendo.

Jane esqueceu o desapontamento por um momento, enquanto tentava imaginar o que seria. Masud enviara mensageiros a muitos outros comandantes da Resistência, talvez mesmo a todos. Seria uma coincidência que isso acontecesse logo depois da chegada de Ellis ao vale? Se não fosse, o que Ellis estaria tramando? Talvez os Estados Unidos quisessem colaborar com Masud na organização de uma ofensiva conjunta. Se todos os rebeldes agissem em cooperação, poderiam conseguir alguma coisa, talvez mesmo capturar Kabul temporariamente.

Jane entrou em casa e largou os mapas na arca. Chantal ainda dormia. Fará preparava o jantar: pão, iogurte e maçãs. Jane perguntou:

- Por que seu irmão foi a Jalalabad?

- Ele foi mandado - respondeu Fará, com o ar de alguém que anuncia o óbvio.

- Quem o mandou?

- Masud.

- Para quê?

- Não sei.

Fará parecia espantada por Jane formular tal pergunta: como podia ser tão tola a ponto de pensar que um homem contaria à irmã o motivo de uma viagem?

- Ele tinha alguma coisa para fazer lá, levou uma mensagem, ou o quê?

- Não sei - repetiu Fará, começando a parecer nervosa.

- Não importa - disse Jane, sorrindo.

Entre todas as mulheres da aldeia, Fará era a que tinha menos possibilidade de saber o que estava acontecendo. E quem era a mais provável? Zahara, é claro.

Jane pegou uma toalha e seguiu para o rio.

Zahara não estava mais de luto pelo marido, embora se mostrasse muito menos exuberante do que antes.

Jane se perguntou quando ela tornaria a casar. Zahara e Ahmed formavam o único casal que Jane conhecera que parecia ser

realmente apaixonado. Contudo, Zahara era uma mulher extremamente sensual e teria dificuldade em viver sem um homem por muito tempo. O irmão mais moço de Ahmed,

Yussuf, o cantor, morava na mesma casa que Zahara e ainda era solteiro, aos dezoito anos; as mulheres da aldeia insinuavam que Yussuf poderia casar com Zahara.

Os irmãos viviam juntos ali; as irmãs eram sempre separadas. Uma jovem esposa ia viver com o marido na casa dos pais dele. Era apenas uma das maneiras pelas quais os homens do país oprimiam suas mulheres.

Jane avançou mais depressa pela trilha através dos campos. Alguns homens trabalhavam à pouca claridade do crepúsculo. A colheita estava terminando. Muito em breve seria tarde demais para seguir a Trilha da Manteiga: Mohammed explicara que era uma rota que só existia no verão.

Ela chegou à praia das mulheres. Oito ou dez se banhavam no rio ou em poças na margem. Zahara se encontrava no meio da correnteza, espadanando água, como sempre, mas sem rir nem gracejar.

Jane largou a toalha e entrou na água. Resolveu ser um pouco menos direta com Zahara do que fora com Fará. Claro que não poderia enganar Zahara, mas tentaria dar a impressão de que estava apenas comentando, não fazendo um interrogatório. Não se aproximou de Zahara imediatamente. Depois que as outras mulheres saíram da água, ela esperou mais um ou dois minutos e foi se enxugar em silêncio. Só quando Zahara e algumas outras mulheres começaram a voltar para a aldeia é que Jane falou.

- Quando Yussuf vai voltar? - perguntou ela a Zahara, em dari.

- Hoje ou amanhã. Ele foi ao Vale Logar.

- Eu já sabia. Ele foi sozinho?

- Foi... mas disse que pode trazer alguém para casa em sua companhia.

- Quem?

Zahara deu de ombros.

- Talvez uma esposa.

Jane distraiu-se por um momento. Zahara se mostrava muito fria e indiferente. Isso significava que estava preocupada: não queria que Yussuf voltasse com uma esposa.

Parecia que eram verda deiros os rumores que circulavam pela aldeia. Jane esperava que sim. Afinal, Zahara precisava de um homem.

- Não creio que ele tenha ido buscar uma esposa - comentou Jane.

- Por quê?

- Alguma coisa importante está acontecendo. Masud enviou muitos mensageiros. Não podem estar todos atrás de esposas.

Zahara continuou a tentar parecer indiferente, mas Jane percebeu que ela se sentia satisfeita. Haveria algum significado na possibilidade de Yussuf ter ido ao Vale

Logar para buscar alguém?

A noite caía quando se aproximaram da aldeia. Um canto baixo vinha da mesquita: o som estranho dos homens mais sanguinários do mundo em oração. Sempre fazia Jane se lembrar de Josef, um jovem soldado russo que sobrevivera à queda de seu helicóptero na montanha, perto de Banda. Algumas mulheres levaram-no para a casa do comerciante

- fora no inverno, antes de transferirem a clínica para a caverna - Jean-Pierre e Jane cuidaram dos ferimentos, enquanto se enviava uma mensagem a Masud, indagando o que fazer. Jane soubera da resposta de Masud na noite em que Alisham Karim entrara na sala da frente, onde Josef estava, encostara o cano do rifle em seu ouvido e puxara o gatilho. Fora mais ou menos naquela hora, e o som dos homens em oração estavam no ar enquanto Jane lavava o sangue da parede e recolhia do chão os miolos do rapaz.

As mulheres percorreram o último trecho da trilha que subia do rio e pararam diante da mesquita, concluindo as conversas, antes de seguirem para suas casas. Jane olhou para a mesquita. Os homens oravam de joelhos, levados por Abdullah, o mula. As armas, a mistura habitual de rifles antigos e submetralhadoras modernas, estavam empilhadas num canto. As orações chegavam ao fim. Enquanto os homens se levantavam, Jane constatou que havia diversos estranhos entre eles. Ela perguntou a Zahara:

- Quem são?

- Pelos turbantes, devem ser do Vale Pich e de Jalalabad - respondeu Zahara. - São pushtuns... normalmente nossos inimigos. Por que estão aqui?

Enquanto ela falava, um homem muito alto, com uma venda no olho, emergiu da multidão. Zahara acrescentou:

- Aquele deve ser Jahan Kamil... o grande inimigo de Masud.

- Mas lá está Masud, falando com ele - disse Jane, para logo acrescentar, em inglês: - Essa não!

Zahara imitou-a:

- Essa não!

Era o primeiro gracejo de Zahara depois da morte do marido. Um bom sinal: Zahara estava se recuperando.

Os homens começaram a deixar a mesquita e as mulheres seguiram apressadamente para suas casas, à exceção de Jane. Ela tinha a impressão que começava a compreender o que estava acontecendo e queria uma confirmação. Quando Mohammed saiu, ela se aproximou e lhe disse em francês:

- Esqueci de perguntar se sua viagem a Faizabad foi bem sucedida.

- Foi, sim - respondeu ele sem parar, pois não queria que seus companheiros ou os pushtuns o vissem respondendo às perguntas de uma mulher.

Jane acompanhou-o, em passos rápidos, enquanto ele se encaminhava para sua casa.

- Quer dizer que o comandante de Faizabad está aqui?

- Está.

Jane acertara em cheio: Masud convidara todos os comandantes rebeldes para um encontro.

- O que acha da idéia? - indagou ela, ainda tentando descobrir mais detalhes.

Mohammed estava pensativo e abandonou sua altivez, como sempre fazia quando se interessava pela conversa.

- Tudo depende do que Ellis fizer amanhã - disse ele. - Se conseguir impressionar como um homem de honra e ganhar o respeito de todos, acho que eles concordarão com o plano.

- E você acha que o plano dele é bom?

- Claro que será ótimo se a Resistência estiver unida e receber armas dos Estados Unidos.

Então era isso! Armas americanas para os rebeldes, com a condição de que lutassem juntos contra os russos, em vez de lutarem entre si durante a metade do tempo.

Chegaram à casa de Mohammed e Jane desviou-se com um aceno de mão. Sentia os seios intumescidos; estava na hora de amamentar Chantal. O seio direito dava a impressão

de estar mais pesado, porque na última mamada ela começara pelo esquerdo e Chantal sempre esvaziava completamente o primeiro.

Jane entrou na casa e foi para o quarto. Chantal estava nua sobre uma toalha dobrada, dentro do berço, que era na verdade uma caixa de papelão cortada ao meio. Não precisava de roupas no ar quente do verão afegão. À noite, era coberta com um lençol e mais nada. Os rebeldes e a guerra, Ellis, Mohammed e Masud, tudo recuou para segundo plano, enquanto Jane contemplava a filha. Sempre achara que bebês eram feios, mas Chantal lhe parecia a coisa mais linda do mundo. Enquanto Jane observava, Chantal remexeu-se, abriu a boca e gritou. O seio direito de Jane vazou leite no mesmo instante, em resposta, e uma trilha quente de umidade espalhouse pela blusa. Ela desabotoou a blusa e pegou Chantal.

Jean-Pierre dizia que ela devia lavar os seios com desinfetante cirúrgico antes da amamentação, mas Jane nunca o fazia, porque sabia que Chantal não apreciaria o gosto. Sentou-se num tapete, encostada na parede, e aninhou Chantal no braço direito. A menina balançava os bracinhos roliços e sacudia a cabeça de um lado para outro, procurando freneticamente, com a boca escancarada. Jane guiou-a para o mamilo. As gengivas desdentadas apertaram com força, e Chantal pôs-se a sugar. Jane estremeceu ao primeiro arranco e depois ao segundo. A terceira mamada foi mais suave. A mão pequena e roliça levantou-se e encostou no lado do seio intumescido de Jane, comprimindo-o numa carícia cega e desajeitada. Jane relaxou.

Amamentar a filha fazia com que ela se sentisse muito terna e protetora. E também, para sua surpresa, era erótico. A princípio ela se sentira culpada por ficar excitada, mas logo concluíra que não podia ser uma coisa horrível se era natural, e passara a desfrutar a sensação.

Ansiava em exibir Chantal se algum dia voltassem à Europa. A mãe de Jean-Pierre certamente lhe diria que estava fazendo tudo errado e sua própria mãe haveria de querer batizar Chantal o mais depressa possível. Mas seu pai adoraria Chantal através da bruma alcoólica, e a irmã ficaria orgulhosa e entusiasmada. Quem mais? O pai de Jean-Pierre já morrera... Uma voz soou no pátio:

- Tem alguém em casa? Era Ellis.

- Entre - gritou Jane.

Ela não sentiu necessidade de se cobrir. Ellis não era um afegão e, além do mais, já fora seu amante. Ele entrou, viu-a amamentando a filha e teve uma reação inesperada:

- Devo me retirar? Jane sacudiu a cabeça.

- Já viu meus peitos antes.

- Acho que não. Você deve tê-los mudado. Ela riu.

- A gravidez deixa as mulheres com peitos enormes. - Ela sabia que Ellis já fora casado e tinha uma filha, embora ele desse a impressão de que não mais via qualquer

das duas. Era uma das coisas de que ele não gostava de falar. - Não se lembra de quando sua mulher ficou grávida?

- Não acompanhei a gravidez. - Ele falou no tom brusco que usava quando queria encerrar um assunto. - Estava viajando.

Jane estava relaxada demais para responder no mesmo tom. E sentia pena dele. Ellis fizera a maior confusão com sua vida, embora nem tudo fosse culpa sua; e certamente fora punido por seus pecados, inclusive por ela.

- Jean-Pierre não voltou - comentou ele.

- Não.

O movimento de sugar se atenuou, enquanto o seio de Jane se esvaziava. Ela tirou gentilmente o mamilo da boca de Chantal e levantou a menina para o ombro, afagando as costas estreitas para fazê-la arrotar.

- Masud gostaria de tomar emprestados os mapas dele - explicou Ellis.

- Não há problema. Você sabe onde estão. - Chantal arrotou alto. - Boa menina...

Ela ajeitou a filha no seio esquerdo. Faminta outra vez, depois de arrotar, Chantal recomeçou a sugar. Cedendo a um súbito impulso, Jane perguntou:

- Por que não visita sua filha?

Ele tirou os mapas da arca, fechou-a, e empertigou-se.

- Eu visito... mas não com muita freqüência.

Jane ficou aturdida. Vivi com ele por quase seis meses e nunca o conheci realmente, pensou ela.

- É mesmo uma menina?

- É sim.

- Deve estar...

- Treze anos.

- Puxa!

Era praticamente uma garota crescida. Jane sentiu de repente a maior curiosidade. Por que nunca o interrogara a respeito de tudo aquilo? Talvez ela não estivesse interessada, antes de ter também uma filha.

- Onde ela vive? Ellis hesitou.

- Não precisa dizer - acrescentou Jane, entendendo a expressão dele. - Estava prestes a mentir.

- Tem razão. Mas pode compreender por que tenho de mentir a respeito?

Ela pensou por um instante.

- Tem medo de que seus inimigos possam atacá-lo por intermédio de sua filha?

- Isso mesmo.

- É um bom motivo.

- Obrigado. E obrigado também por isto.

Ele acenou com os mapas e saiu. Chantal adormecera com o mamilo de Jane na boca. Ela levantou a filha à altura do ombro. Chantal arrotou sem acordar. Era capaz de dormir em qualquer situação.

Jane gostaria que Jean-Pierre já tivesse voltado. Tinha certeza de que ele não poderia causar qualquer mal, mas ainda assim se sentiria mais tranqüila se o marido estivesse ali. Jean-Pierre não poderia fazer contato com os russos porque ela quebrara o rádio. Não havia outros meios de comunicação entre Banda e o território russo. Masud podia enviar mensageiros a pé, mas Jean-Pierre não dispunha de mensageiros; e se mandasse alguém, toda a aldeia saberia. A única coisa que ele podia fazer era ir a pé até Rokha, e não tivera tempo para isso.

Além de estar preocupada, ela detestava dormir sozinha. Não se importava na Europa, mas ali sentia-se assustada com os afegãos brutais e imprevisíveis, que julgavam ser tão normal um homem espancar a mulher quanto uma mãe bater no filho. E Jane não era uma mulher comum para eles: com suas posições liberadas, olhar direto e atitudes de desafio, era um símbolo dos prazeres sexuais proibidos. Ela não seguia as convenções do comportamento sexual, e as únicas outras mulheres assim que eles conheciam eram as prostitutas.

Quando Jean-Pierre estava ao seu lado, ela sempre estendia a mão para tocá-lo um momento antes de cair no sono. Ele sempre dormia encolhido, virado para o outro lado; mexia-se muito no sono, mas nunca se estendia para ela. O único outro homem com quem ela partilhara uma cama por um período mais prolongado fora Ellis, que tinha um comportamento oposto: ele a tocava durante a noite inteira, abraçava-a, beijava-a, às vezes meio acordado, em outras profundamente adormecido. Duas ou três vezes Ellis tentara fazer amor com ela, rudemente, enquanto dormia; Jane ria e tentava aceitá-lo, mas depois de alguns segundos ele rolava para o lado e se punha a roncar, sem se lembrar pela manhã do que fizera. Ellis era muito diferente de Jean-Pierre. Ele a tocava com uma afeição desajeitada, como uma criança brincando com seu animal de estimação; Jean-Pierre a acariciava como um violinista faria com um Stradivarius. Os dois a amaram de modos diversos, mas a traíram da mesma maneira.

Chantal gorgolejou. Estava acordada. Jane ajeitou-a em seu colo, levantando a cabeça, a fim de que pudessem se fitar. Pôs-se a conversar com a filha, dizendo sílabas que não faziam qualquer sentido, mas também palavras concretas. Chantal gostava. Depois de algum tempo, Jane esgotou a conversa fiada e se pôs a cantar. Estava no meio de Papai foi a Londres de trem quando foi interrompida por uma voz lá fora.

- Entre - gritou Jane, acrescentando depois para a filha: - Não acha que estamos recebendo visitantes a todo momento? Parece até que vivemos no Museu Nacional.

Ela puxou a blusa na frente, a fim de cobrir os seios. Mohammed entrou e perguntou em dari:

- Onde está Jean-Pierre?

- Foi a Skabun. Posso ajudar em alguma coisa?

- Quando ele voltará?

- Espero que de manhã. Quer me explicar qual é o problema ou pretende continuar a falar como um guarda de Kabul?

Mohammed sorriu. Achava sensual quando ela lhe falava desrespeitosamente, o que não era o efeito visado por Jane.

- Alishan chegou com Masud. Ele quer mais pílulas.

- Ah...

Alishan Karin era o irmão do mula e sofria de angina. Como ele não estava disposto a renunciar a suas atividades como guerrilheiro, Jean-Pierre lhe dava trinitrina para tomar imediatamente antes da batalha ou outro esforço físico.

- Vou pegar algumas pílulas.

Ela levantou-se e entregou Chantal a Mohammed. Ele pegou a criança automaticamente e depois ficou embaraçado. Jane sorriu e foi para a sala na frente. Encontrou as pílulas numa prateleira por baixo do balcão. Despejou cem cápsulas num recipiente de plástico e voltou à sala de estar. Chantal olhava fixamente para Mohammed, fascinada. Jane pegou a filha e entregou as pílulas.

- Diga a Alishan para descansar mais. Mohammed sacudiu a cabeça.

- Ele não tem medo de mim. Diga você.

Jane riu. Partindo de um afegão, o gracejo era quase feminista. Mohammed acrescentou:

- Por que Jean-Pierre foi a Skabun?

- Houve um bombardeio lá esta manhã.

- Não, não houve.

- Claro que hou...

Jane parou de falar abruptamente. Mohammed deu de ombros.

- Passei o dia inteiro lá com Masud. Você deve estar enganada.

Ela tentou manter o controle.

- É isso mesmo. Devo ter ouvido mal.

- Obrigado pelas pílulas.

Mohammed saiu. Jane sentou-se num banco. Não houvera bombardeio em Skabun. Jean-Pierre fora se encontrar com Anatoly. Não sabia como ele conseguira, mas não tinha mais qualquer dúvida.

O que ela devia fazer agora?

Se Jean-Pierre tinha conhecimento da reunião no dia seguinte e pudesse informar aos russos, então os russos poderiam atacar.

E poderiam liquidar toda a liderança da Resistência afegã em apenas um dia.

Tinha de falar com Ellis.

Envolveu Chantal com um xale - o ar estaria um pouco mais fresco agora - e saiu, encaminhando-se para a mesquita. Ellis estava no pátio com os outros homens. Estudava os mapas de JeanPierre junto com Masud, Mohammed e o homem com a venda no olho. Alguns guerrilheiros fumavam de um narguilé, outros comiam. Ficaram espantados quando ela entrou com a criança no quadril.

- Ellis... - Ele levantou os olhos. - Preciso falar com você. Pode sair?

Ele levantou-se, os dois passaram pela arcada e pararam na frente da mesquita.

- O que é? - perguntou Ellis.

- Jean-Pierre sabe dessa reunião que você promoveu com todos os líderes da Resistência?

- Sabe. Ele estava presente, tirando a bala do meu traseiro, quando Masud e eu falamos a respeito pela primeira vez. Por quê?

Jane sentiu um aperto no coração. Sua última esperança era a de que Jean-Pierre nada soubesse. Ela olhou ao redor. Não havia ninguém por perto e além do mais estavam falando em inglês.

- Tenho de lhe contar uma coisa, mas quero que me prometa que nada acontecerá a ele.

Ele fitou-a aturdido por um momento e depois exclamou:

- Oh, merda! Jean-Pierre trabalha para eles! Mas é claro! Como não adivinhei? Em Paris ele deve ter levado os homens a meu apartamento! Tem informado os russos sobre os comboios... é por isso que eles perderam tantos! O filho da puta... - Ele parou de falar bruscamente e depois acrescentou, em tom mais suave: - Deve ter sido horrível para você.

- Foi, sim.

Jane perdeu o controle, as lágrimas afloraram a seus olhos e ela começou a soluçar. Sentia-se fraca, tola e envergonhada por chorar, mas também experimentava a sensação de que um enorme peso fora removido de seus ombros. Ellis abraçou-a e a Chantal, murmurando.

- Pobre coitada...

- Foi horrível - balbuciou Jane.

- Há quanto tempo você sabe?

- Há poucas semanas.

- Não sabia quando se casou com ele?

- Não.

- Nós dois fizemos isso com você.

- É verdade.

- Apaixonou-se pelos homens errados.

- Tem razão.

Jane comprimiu o rosto contra o peito de Ellis e chorou incontrolavelmente por todas as mentiras e traições, tempo perdido e amor desperdiçado. Chantal também chorou.

Ellis apertou Jane com mais força, afagou-lhe os cabelos, até que ela parou de tremer, começou a se acalmar, e limpou o nariz em sua manga.

- Quebrei o rádio de Jean-Pierre e pensei que ele não tinha mais meios de entrar em contato com os russos. Mas hoje ele foi chamado a Skabun para cuidar dos feridos do bombardeio... só que não houve qualquer bombardeio em Skabun...

Mohammed saiu da mesquita. Ellis largou Jane, embaraçado, perguntando a Mohammed, em francês:

- O que está acontecendo?

- Eles estão discutindo. Alguns acham que é um bom plano caos ajudará a derrotar os russos. Outros perguntam por que Masud é considerado o único bom comandante e quem é Ellis Thaler para julgar os líderes afegãos. Você tem de voltar e conversar mais um pouco com eles.

- Espere um pouco - disse Ellis. - Surgiu um fato novo. Jane pensou: Oh, Deus, Mohammed vai querer matar alguém quando souber.

- Houve um vazamento.

- Como assim? - indagou Mohammed, em tom ameaçador.

Ellis hesitou, como se relutasse em contar tudo. Mas acabou! Murmurando:

- Os russos talvez saibam da conferência...

- Quem é o traidor? - perguntou Mohammed.

- Possivelmente o doutor, mas...

Mohammed virou-se para Jane.

- Há quanto tempo você sabe?

- Vai falar comigo de maneira polida ou nem quero ouvi-lo - respondeu ela, bruscamente.

- Calma, calma - interveio Ellis.

Jane não podia permitir que Mohammed mantivesse o tom acusador. E disse:

- Eu não avisei você? Mandei que mudasse a rota do comboio. Salvei sua vida. Não queira me acusar agora.

A ira de Mohammed se dissipou e ele ficou um pouco envergonhado. Ellis comentou:

- Então foi por isso que a rota mudou.

Ele olhou para Jane com uma expressão em que havia alguma admiração. Mohammed perguntou:

- Onde ele está agora?

- Não sabemos - respondeu Ellis.

- Deve ser morto se voltar.

- Não! - gritou Jane.

Ellis pôs a mão em seu ombro para contê-la e disse a Mohammed:

- Você mataria um homem que salvou as vidas de tantos de seus companheiros?

- Ele tem de enfrentar a justiça - insistiu Mohammed.

Mohammed falara se ele voltasse, e Jane compreendeu que sempre presumira que Jean-Pierre voltaria. Ele seria capaz de abandonála e à filha? Ellis estava dizendo:

- Se ele é um traidor e se conseguiu entrar em contato com os russos, então lhes falou do encontro de amanhã. Os russos vão atacar e tentar capturar Masud.

- Isso é terrível - disse Mohammed. - Masud deve partir imediatamente. A conferência terá de ser cancelada e...

- Não necessariamente - interrompeu-o Ellis. - Pense um pouco. Podemos tirar proveito da situação.

- Como?

- Para dizer a verdade, quanto mais penso a respeito, mais a situação me atrai. Talvez seja a melhor coisa que poderia nos acontecer...

 

Eles evacuaram a aldeia de Darg durante a madrugada. Os homens de Masud foram de casa em casa, acordando gentilmente os moradores e avisando que a aldeia seria atacada pelos russos naquele dia, e que deviam subir o vale até Banda, levando os seus pertences mais preciosos. Ao amanhecer havia uma fila irregular de mulheres, crianças, velhos e gado serpenteando pela estrada de terra que saía de Darg e corria pela beira do rio.

Darg tinha uma situação diferente de Banda. Em Banda, as casas se agrupavam na extremidade leste da planície, onde o vale se estreitava e o terreno era rochoso.

Em Darg, todas as casas se concentravam numa pequena prateleira entre a base do penhasco e a margem do rio. Havia uma ponte em frente à mesquita, e os campos ficavam no outro lado do rio.

Era um bom lugar para uma emboscada.

Masud desenvolvera o plano durante a noite, e agora Mohammed e Alishan tomavam as providências necessárias. Movimentavam-se com uma eficiência tranqüila, Mohammed alto, bonito e gracioso, Alishan baixo e de aparência mesquinha, ambos dando instruções em voz baixa, imitando o estilo suave de seu líder.

Ellis perguntou-se, enquanto instalava suas cargas, se os russos viriam mesmo. Jean-Pierre não voltara, e assim parecia certo que ele conseguira entrar em contato com seus chefes; e era quase inconcebível que eles pudessem resistir à tentação de capturar ou matar Masud. Mas tudo era circunstancial. E se eles não aparecessem, Ellis pareceria um tolo por fazer com que Masud preparasse uma armadilha elaborada para uma vítima inexistente. Os guerrilheiros não fariam um pacto com um idiota. Mas se os russos aparecerem, pensou Ellis, se a emboscada der certo, meu prestígio e o de Masud aumentarão a tal ponto que não haverá dificuldades em selar o acordo.

Ele fazia um esforço para não pensar em Jane. Quando a abraçara e à criança, Jane molhara sua camisa com as lágrimas, e toda a paixão por ela se reacendera. Era como lançar lenha seca numa fogueira. Ellis sentira vontade de ficar ali para sempre, os ombros estreitos de Jane tremendo sob seus braços, a cabeça dela comprimida contra seu peito. Pobre Jane. Ela era tão honesta e só tivera homens traiçoeiros.

Ele estendeu o estopim pelo rio e levou a extremidade para sua posição, uma pequena casa de madeira, à beira d'água, a cerca de duzentos metros da mesquita, correnteza acima. Prendeu um detonador no estopim, depois concluiu a montagem com um artefato de disparo simples, um cordão com uma argola para puxar.

Ellis aprovara o plano de Masud. Aprendera tudo sobre emboscada e contra-emboscada em Forte Bragg, durante um ano, entre as duas estadas na Ásia, e daria nove numa escala de dez à armadilha preparada por Masud. O ponto que faltava era porque Masud não dispunha de uma rota de saída para suas tropas caso o combate se tornasse adverso. Mas talvez Masud não considerasse isso um erro.

Por volta das nove horas estava tudo pronto, e os guerrilheiros comeram. Até isso era parte da emboscada: podiam todos ocupar suas posições em minutos, até mesmo em segundos, e a aldeia vista do ar pareceria normal, como se os aldeões tivessem corrido para se esconder dos helicópteros, deixando para trás as tigelas, tapetes

e fogueiras acesas; assim, o comandante das forças russas não teria motivos para desconfiar de uma armadilha.

Ellis comeu pão, tomou várias xícaras de chá verde, e depois acomodou-se para esperar, enquanto o sol subia pelo vale. Sempre havia muita espera. Podia lembrar que era também assim na Ásia. Naquele tempo muitas vezes estava alto, com maconha ou cocaína, e a espera parecia não ter a menor importância, porque até gostava. Era curioso, pensou ele, como perdera o interesse por tóxicos depois da guerra.

Ellis esperava que o ataque fosse desfechado naquela tarde ou na madrugada do dia seguinte. Se fosse o comandante russo, ele raciocinaria que os líderes rebeldes haviam se reunido no dia anterior e partiriam no dia seguinte; o ataque deveria ser desfechado tarde o bastante para apanhar todos os retardatários, mas não tão tarde que alguns já pudessem ter ido embora.

As armas pesadas chegaram no meio da manhã, um par de Dashokas, metralhadoras antiaéreas de 12,7mm, cada uma puxada por um guerrilheiro. Um burro seguia atrás, levando as caixas de balas chinesas capazes de perfurar as blindagens.

Masud anunciou que uma das armas seria manejada por Yussuf, o cantor, que deveria casar com Zahara, a amiga de Jane, segundo os rumores que circulavam pela aldeia; a outra estaria guarnecida por um guerrilheiro do Vale Pich, chamado Abdur, que Ellis não conhecia. Ao que se dizia, Yussuf já derrubara três helicópteros com sua Kalashnikov. Ellis se mantinha cético quanto a isso; pilotara helicópteros na Ásia e sabia que era quase impossível abater o aparelho com um rifle. Mas Yussuf explicara, sorrindo, que o segredo era se postar acima do alvo, disparando para baixo da encosta de uma montanha, uma tática que não era possível no Vietnam, porque o terreno era diferente.

Yussuf dispunha hoje de uma arma muito maior e usaria a mesma técnica. As armas foram desmontadas e levadas por dois homens pelos degraus íngremes escavados na encosta do penhasco que pairava por cima da aldeia. Os burros e a munição seguiram.

Ellis observou lá de baixo enquanto eles tornavam a montar as armas. No topo do penhasco havia uma prateleira com três ou quatro metros de largura, depois a encosta continuava a subir numa inclinação mais suave. Os guerrilheiros instalaram as armas com um intervalo de dez metros e camuflaram-nas. Os pilotos de helicóptero logo descobririam onde estavam as armas, mas teriam dificuldade para silenciá-las na posição em que se encontravam.

Quando tudo já estava pronto, Ellis voltou a seu posto, na pequena casa de madeira à beira do rio. Seus pensamentos voltaram aos anos 60. Começara a década como colegial e terminara como soldado. Fora para Berkeley em 1967 convencido de que sabia o que o futuro lhe reservava: queria ser produtor de documentários para a televisão.

Como era inteligente e criativo, como a era a Califórnia, onde qualquer um podia ser qualquer coisa desde que se empenhasse a fundo, não havia motivo que pudesse imaginar para não realizar sua ambição. Fora então engolfado pela paz e poder da flor, as marchas contra a guerra, jeans boca-de-sino e LSD. Mais uma vez, pensara

que sabia o que o futuro lhe reservava: iria mudar o mundo. Esse sonho também durara pouco e não demorara muito para ser engolfado de novo, desta vez pela brutalidade insensata do exército e o horror drogado do Vietnam. Sempre que olhava para trás, podia constatar que era nas ocasiões em que se sentia confiante e assentado que a vida o atingia com grandes mudanças.

O meio-dia passou sem almoço. Devia ser porque os guerrilheiros não tinham comida. Ellis achava difícil se acostumar à idéia de que ninguém podia almoçar quando não havia comida. Ocorreulhe que talvez fosse por isso que quase todos os guerrilheiros fumavam muito: o tabaco arrefecia o apetite.

Fazia calor mesmo na sombra. Sentou-se à entrada da casa, tentando aproveitar a pouca brisa que soprava. Podia ver os campos, o rio com sua ponte em arco, a aldeia com sua mesquita e o penhasco projetado. A maioria dos guerrilheiros estava em suas posições, que lhes proporcionava abrigo do sol, além de cobertura. Quase todos se encontravam em casas próximas do penhasco, onde os helicópteros teriam dificuldade para metralhá-los; mas, como era inevitável, alguns se encontravam em posições mais vulneráveis, perto do rio. A fachada de pedra da mesquita tinha três entradas em arco e em cada uma sentava-se um guerrilheiro, de pernas cruzadas. Faziam Ellis pensar em sentinelas em guaritas. Ele conhecia os três: lá estava Mohammed, na arcada mais distante; seu irmão Kahmir, com a barba rala, no meio; e na mais próxima Ali Ghanim, o homem feio de espinha torta com quatorze filhos, que fora ferido com Ellis na planície. Cada um tinha um Kalashnikov nos joelhos e um cigarro nos lábios.

Ellis se perguntou qual deles estaria vivo no dia seguinte.

O primeiro ensaio que ele escrevera no colégio fora sobre a expectativa da batalha em Shakespeare. Comparara dois discursos antes do combate: um inspirado, de Henry V, em que o Rei diz "Mais uma vez sob ataque, meus amigos, mais uma vez; a muralha fechemos com nossos mortos ingleses", e o solilóquio cínico de Falstaff sobre a honra, em Henry IV, "Pode a honra reparar uma perna? Não. Ou um braço? Não. A honra não tem competência médica? Não... Quem a tem? Aquele que morreu na quarta-feira."

O Ellis de dezenove anos recebera a nota máxima pelo seu primeiro e último ensaio, pois depois estivera ocupado demais a argumentar que Shakespeare e todo o curso

de inglês eram "irrelevantes".

Seu devaneio foi interrompido por uma sucessão de gritos. Não compreendia as palavras em dari, mas também não precisava: pela urgência do tom, sabia que sentinelas em colinas ao redor haviam avistado helicópteros distantes e avisado a Yussuf no alto do penhasco, que espalhara a notícia. Houve um fluxo de movimento na aldeia crestada pelo sol, enquanto os últimos guerrilheiros corriam para seus postos, abrigavam-se, verificavam suas armas, acendiam novos cigarros. Os três homens nas arcadas da mesquita fundiram-se com o interior escuro. Agora, a aldeia vista do ar parecia deserta, como normalmente acontecia durante a parte mais quente do dia, quando a maioria das pessoas descansava.

Ellis prestou atenção e ouviu o barulho ameaçador dos helicópteros s/e aproximando. Sentiu um aperto nas entranhas. Eram os nervos. Era assim que os vietcongues se sentiam, pensou ele, escondidos em sua selva úmida, quando ouviram meu helicóptero se aproximar pelas nuvens. Você colhe o que semeia, meu caro.

Afrouxou as travas de segurança no mecanismo de disparo.

Os helicópteros estavam mais perto, mas ele ainda não podia vê-los. Tentou calcular quantos eram. Não dava para determinar pelo barulho. Ellis percebeu algo pelo canto do olho e virou a cabeça para observar um guerrilheiro mergulhar no rio da margem oposta e começar a nadar em sua direção. Quando o vulto emergiu perto, Ellis constatou que era o velho Shahazai Gul, com suas cicatrizes, o irmão da parteira.lShahazai era especialista em minas. Passou correndo por Ellis e foi se abrigar numa casa.

Por algum tempo a aldeia ficou silenciosa e nada se ouvia além da pulsação assustadora das pás dos rotores. Ellis pensou: Quantos eles mandaram? O primeiro apareceu, por cima do penhasco, avançando veloz, e baixou para a aldeia. Hesitou sobre a ponte, como um gigantesco beija-flor.

Era um Mi-24, conhecido no Ocidente como Hind (os russos chamavam esses helicópteros de Corcundas, por causa das enormes turbinas instaladas sobre a cabine de passageiros).

O artilheiro sentava mais abaixo, na frente, com o piloto por trás e por cima, como crianças brincando de carregar outra nas costas; e as janelas pareciam o olho multifacetado de um inseto monstruoso. O helicóptero tinha um trem de pouso de três rodas e asas curtas e grossas, com os tubos de foguetes por baixo.

Como uns poucos guerreiros tribais esfarrapados conseguiam lutar contra tais máquinas?

Mais cinco Hinds surgiram, em rápida sucessão. Sobrevoaram a aldeia e a área ao redor, efetuando um reconhecimento, presumiu Ellis, das posições inimigas. Era uma precaução de rotina, pois os russos não tinham motivos para esperar uma resistência maior, já que estavam convencidos de que o ataque seria de surpresa.

Um segundo tipo de helicóptero se aproximou e Ellis reconheceu o Mi-8, conhecido como Hip.

Maior que o Hind, mas menos temível, podia transportar vinte ou trinta homens, e sua finalidade era o transporte de tropas, e não o ataque. O primeiro pairou sobre a aldeia, depois baixou subitamente de lado e foi pousar na plantação de cevada. Mais cinco pousaram. Um total de cento e cinquenta homens, pensou Elhs. Assim que os Hips pousavam, os soldados pulavam e deitavam no terreno, apontando as armas para a aldeia, mas sem disparar.

Para tomar a aldeia eles teriam de atravessar o rio, e para atravessar o rio teriam de tomar a ponte. Mas não sabiam disso. Estão apenas sendo cautelosos, pois esperam que o elemento surpresa lhes permita prevalecer com a maior facilidade.

Ellis preocupou-se com a possibilidade de a aldeia parecer deserta demais. A esta altura, poucos minutos depois de o primeiro helicóptero ter aparecido, haveria normalmente algumas pessoas à vista, correndo. Prestou atenção para ouvir o primeiro tiro. Não se sentia mais assustado. Concentrava-se em coisas demais para ficar com medo. Do fundo de sua mente veio um pensamento: É sempre assim depois que começa.

Ellis lembrou que Shahazai instalara minas na plantação de cevada. Por que nenhuma explodira? Um momento depois teve a resposta. Um dos soldados levantou-se – devia ser um oficial - e gritou uma ordem. Vinte ou trinta homens se ergueram e correram para a ponte. E de repente houve uma explosão ensurdecedora, ainda mais alta que o barulho dos helicópteros, depois outra e mais outra, o chão parecendo se fragmentar sob os pés dos soldados correndo. Ellis pensou: Shahazai temperou suas minas com TNT extra. Nuvens de terra marrom e cevada dourada obscureceram os homens, à exceção de um, que foi lançado bem alto no ar e caiu devagar, girando como um acrobata, até bater no solo e ficar imóvel. Enquanto os ecos morriam, surgiu outro som, um tamborilar intenso, que vinha do alto do penhasco, quando Yussuf e Abdur abriram fogo. Os russos bateram em retirada na maior confusão, enquanto os guerrilheiros na aldeia começavam a disparar seus Kalashnikovs através do rio.

A surpresa proporcionara aos guerrilheiros uma imensa vantagem inicial, mas não duraria sempre: o comandante russo reagruparia suas tropas. Mas antes que pudesse fazer qualquer coisa, ele tinha de desobstruir o acesso à ponte.

Um dos Hips na plantação de cevada explodiu, e Ellis concluiu que devia ter sido atingido por Yussuf ou Abdur. Ficou impressio nado.

A Dashoka tinha um alcance de quilômetro e meio, e os helicópteros se encontravam a menos de um quilômetro, mas era preciso ser um excelente artilheiro para destruir um aparelho àquela distância.

Os Hinds ainda estavam no ar, circulando sobre a aldeia. O comandante russo lançou-os em ação. Um deles sobrevoou o rio e metralhou o campo minado de Shahazai. Yussuf e Abdur tentaram acertá-lo, mas não conseguiram. As minas de Shahazai explodiram inofensivamente, uma depois da outra. Ellis pensou, apreensivo: Eu gostaria que

as minas tivessem derrubado mais inimigos, pois cerca de vinte em cento e cinqüenta homens não chegam a ser muita coisa. O Hind subiu, perseguido por Yussuf, mas outro baixou e tornou a metralhar o campo minado. Yussuf e Abdur despejaram uma chuva de balas em sua direção. O helicóptero subitamente deu uma guinada, e parte de uma hélice caiu. Ele mergulhou no rio. Ellis pensou: bom tiro, Yussuf! Mas o acesso à ponte estava limpo, os russos ainda contavam com mais de cem homens e dez helicópteros. Ellis concluiu, com um calafrio de medo, que os guerrilheiros poderiam perder aquela batalha.

Os russos se animaram e a maioria - Ellis calculou que oitenta ou mais homens - começou a avançar para a ponte, rastejando, disparando constantemente. Eles não podem ser tão desestimulados ou indisciplinados quanto dizem os jornais americanos, pensou Ellis, a menos que esta seja uma unidade de elite. E depois percebeu que todos os soldados pareciam ter pele branca. Não havia afegãos naquela força. Era como no Vietnam, onde os vietnamitas eram sempre mantidos fora de qualquer ação mais importante.

E de repente houve um hiato. Os russos na plantação de cevada e os guerrilheiros na aldeia trocavam tiros irregulares através do rio, os primeiros atirando mais ou menos ao acaso, os segundos comedidos com a munição. Ellis levantou os olhos. Os Hinds no ar estavam atacando Yussuf e Abdur no penhasco. O comandante russo identificara acertadamente as metralhadoras pesadas como seu alvo principal.

Enquanto um Hind se lançava contra os artilheiros no penhasco, Ellis experimentou um instante de admiração pelo piloto, por voar diretamente para as armas; ele sabia quanta coragem era necessária para isso. O aparelho desviou-se, sem que ninguém fosse atingido.

As chances eram mais ou menos iguais, pensou Ellis: era mais fácil para Yussuf mirar acuradamente, porque estava parado, enquanto o helicóptero se mantinha em movimento; mas, por outro lado, ele era um alvo mais fácil por estar parado. Ellis recordou que nos Hinds os foguetes nas asas eram disparados pelo piloto, enquanto o artilheiro operava a metralhadora no nariz. Não seria fácil para um piloto mirar com precisão naquelas circunstâncias adversas, pensou Ellis; e como as Dashokas tinham um alcance maior que a metralhadora do Hind, talvez Yussuf e Abdur contassem com uma pequena vantagem.

Espero que assim seja, pensou Ellis, pelo bem de todos nós.

Outro Hind desceu para o penhasco como um gavião se lançando sobre um coelho, mas as armas matraquearam e o aparelho acabou explodindo em pleno ar. Ellis sentiu vontade de aclamar, o que era irônico, pois conhecia muito bem o terror e o pânico mal controlado da tripulação de um helicóptero sob fogo.

Outro Hind se aproximou. Os artilheiros estavam um pouco atrasados desta vez, mas conseguiram atingir a cauda, o aparelho se descontrolou e foi se chocar contra o penhasco. Ellis pensou: Ainda podemos liquidar todos! Mas o som das metralhadoras mudara, e depois de um momento Ellis compreendeu que apenas uma estava disparando.

O outro homem fora abatido. Ellis esquadrinhou pela poeira e divisou um gorro chitrali se mexendo lá em cima. Yussuf estava vivo. Abdur fora atingido.

Os três Hinds restantes circularam e assumiram novas posições. Um deles se elevou acima da batalha: o comandante russo deve estar naquele aparelho, pensou Ellis.

Os outros dois baixaram para Yussuf num movimento de pinça. Era um movimento hábil, pensou Ellis, pois Yussuf não podia atirar nos dois ao mesmo tempo. Ellis ficou observando a aproximação. Quando Yussuf mirava um, o outro se aproximava. Ellis notou que os russos voavam com as portas abertas, exatamente como os americanos faziam no Vietnam.

Os Hinds atacaram. Um mergulhou para Yussuf e se desviou, mas foi atingido e pegou fogo; e depois o segundo se lançou sobre o alvo, todas as armas disparando. Ellis pensou: Yussuf não tem a menor chance! O segundo Hind pareceu hesitar em pleno ar. Teria sido atingido? Caiu subitamente, baixando sete ou oito metros. Quando o motor pára, dissera o instrutor na escola de vôo, seu helicóptero vai planar como um piano de cauda. O aparelho bateu na platibanda, a poucos metros de Yussuf, mas depois o motor tornou a pegar e, para espanto de Ellis, começou a subir de novo. É mais resistente que um Huey, pensou ele: os helicópteros melhoraram consideravelmente nos últimos dez anos. O artilheiro estivera disparando durante todo o tempo, mas agora havia parado. Ellis viu por que e sentiu um aperto no coração.

Uma Dashoka despencou pela beira do penhasco, no meio da camuflagem de galhos e arbustos; foi seguida quase que no mesmo instante por uma massa inerte e parda Yussuf. O corpo bateu num afloramento no meio do paredão e o gorro chitrali redondo se desprendeu. Um momento depois ele desapareceu da vista de Ellis. Quase ganhara a batalha sozinho; não haveria medalha para ele, mas sua história seria contada em torno das fogueiras de acampamento nas frias montanhas afegãs por cem anos.

Os russos haviam perdido quatro dos seis Hinds, um Hip e cerca de vinte e cinco homens; mas os guerrilheiros estavam sem as suas metralhadoras pesadas e não tinham defesa contra os dois Hinds restantes, que começaram a metralhar a aldeia. Ellis encolheu-se dentro da casa, desejando que não fosse de madeira. Era uma tática de preparação: depois de uns poucos minutos, como a um sinal, os russos na plantação de cevada levantaram e correram para a ponte.

Vai ser agora, pensou Ellis; estamos chegando ao fim, de um jeito ou de outro.

Os guerrilheiros na aldeia atiraram contra os soldados que avançavam, mas estavam inibidos pela cobertura aérea, e poucos russos caíram. Quase todos os russos estavam de pé agora, oitenta ou noventa homens, disparando às cegas para o outro lado do rio enquanto corriam. Gritavam com o maior entusiasmo, encorajados pela fragilidade da defesa. Os tiros dos guerrilheiros se tornaram um pouco mais precisos quando os russos chegaram à ponte, e vários caíram, mas não o suficiente para conter o ataque.

Segundos depois o primeiro russo cruzara o rio e mergulhava em busca de cobertura entre as casas da aldeia.

Havia cerca de sessenta homens na ponte ou perto quando Ellis puxou a alça do artefato de disparo.

A ponte antiga explodiu como um vulcão.

Ellis instalara as cargas para matar, não para uma demolição impecável. A explosão espalhou fragmentos de pedra letais, como uma rajada de uma metralhadora gigantesca, liquidando todos os homens na ponte e muitos que ainda se encontravam na plantação de cevada. Ellis encolheu-se na pequena casa, enquanto os escombros choviam sobre a aldeia. Quando tudo silenciou, tornou a olhar.

Onde antes existira a ponte, havia apenas uma pilha baixa de pedras e corpos, numa mistura macabra. Parte da mesquita e duas casas da aldeia também haviam desmoronado. E os russos batiam em retirada.

Enquanto ele observava, os vinte ou trinta homens ainda vivos correram para as portas abertas dos Hips. Ellis não os culpava por isso. Se ficassem na plantação de cevada, sem cobertura, seriam exterminados gradativamente pelos guerrilheiros, em posições superiores na aldeia; e se tentassem atravessar o rio, seriam liquidados na água, como peixes num barril.

Segundos depois, os três Hips alçaram vôo para se juntar aos dois Hinds no ar. Sem um único tiro de despedida, os helicópteros elevaram-se acima do penhasco e desapareceram.

Enquanto o barulho dos rotores se desvanecia, Ellis ouviu outro som. Depois de um momento, compreendeu que era o som de homens aclamando. Nós ganhamos, pensou ele.

É incrível, mas ganhamos. E começou a aclamar também.

 

- E para onde foram todos os guerrilheiros? - perguntou Jane.

- Eles se dispersaram - explicou Ellis. - É a técnica de Masud. Ele desaparece nas colinas antes que os russos possam recuperar o fôlego. Talvez voltem com reforços...

podem até estar em Darg neste momento... mas não encontrarão ninguém para lutar. Todos os guerrilheiros se foram, à exceção dos poucos que estão aqui.

Havia sete homens feridos na clínica de Jane. Nenhum deles morreria. Mais doze foram tratados por ferimentos menores e já haviam sido liberados. Apenas dois homens haviam morrido na batalha, mas por terrível azar um deles fora Yussuf. Zahara estaria de luto outra vez... e novamente por causa de Jean-Pierre.

Jane sentia-se deprimida, apesar da euforia de Ellis. Tenho de parar de remoer, pensou ela. Jean-Pierre foi embora e não voltará, não há sentido lamentar. Devo pensar de maneira positiva. Devo me interessar pelas vidas das outras pessoas.

- Como ficou a conferência? - ela perguntou a Ellis. - Se todos os guerrilheiros foram embora...

- Todos entraram em acordo - explicou Ellis. - Estavam tão eufóricos com o sucesso da emboscada que se dispunham a dizer sim a qualquer coisa. De certa forma, a emboscada provou o que alguns duvidavam: que Masud é um líder brilhante e que, se unindo sob o seu comando, podem conquistar grandes vitórias. Também consolidou as minhas credenciais de macho, o que ajudou muito.

- Então você conseguiu o que queria.

- É verdade. Tenho até um tratado, assinado por todos os líderes rebeldes e testemunhado pelo mula.

- Deve estar orgulhoso.

Jane inclinou-se e apertou-lhe o braço, e depois retirou a mão rapidamente. Sentia-se tão contente por tê-lo ali, impedindo que ela ficasse sozinha, que experimentava algum remorso por ter ficado com raiva dele durante tanto tempo. Mas receava que pudesse de alguma forma dar a impressão errônea de que ainda gostava dele da maneira antiga, o que seria constrangedor.

Ela se virou e correu os olhos pela caverna. As ataduras e seringas estavam nas caixas, os medicamentos em sua bolsa. Os guerrilheiros feridos estavam confortáveis em tapetes ou mantas. Passariam a noite na caverna, pois era muito difícil transportá-los para a aldeia. Tinham água e pão, e dois ou três estavam em condições de levantar e fazer um chá. Mousa, o filho maneta de Mohammed, estava acocorado na entrada da caverna, empenhado num jogo misterioso na terra com a faca que o pai lhe dera. Ficaria com os feridos e, no caso improvável de alguém precisar de cuidados médicos durante a noite, desceria correndo a encosta para chamar Jane.

Tudo estava em ordem. Ela desejou boa-noite a todos, afagou a cabeça de Mousa e saiu. Ellis foi atrás. Jane sentiu uma insinuação de frio na brisa vespertina. Era o primeiro sinal do final do verão. Levantou os olhos para os distantes cumes das montanhas do Hindu Kush, de onde viria o inverno. Os picos nevados estavam rosados pelo reflexo do sol poente. Aquele era um país lindo, um fato muito fácil de esquecer, especialmente em dias movimentados. Estou feliz por ter conhecido esta terra, pensou ela, embora me sinta ansiosa em voltar para casa.

Desceu a colina, com Ellis ao seu lado. Olhava para ele de vez em quando. O pôr-do-sol fazia com que o rosto dele parecesse bronzeado e rude. Era bem provável que ele quase não tivesse dormido na noite anterior. Ela comentou:

- Você parece cansado.

- Faz muito tempo que eu não me envolvia numa guerra de verdade. A paz deixa a gente mole.

Ele falou com indiferença. Pelo menos não se regozijava com a carnificina, ao contrário dos afegãos. Ellis contara apenas que explodira a ponte em Darg, mas um dos guerrilheiros feridos relatara os detalhes a Jane, explicando como a explosão no momento preciso mudara a sorte da batalha e descrevendo a matança com exuberância.

Havia um clima de comemoração na aldeia de Banda. Homens e mulheres conversavam em grupos, com a maior animação, em vez de se retirarem para seus pátios. As crianças brincavam ruidosos jogos de guerra emboscando russos imaginários, imitando os mais velhos. Um homem cantava em algum lugar, ao ritmo de um tambor. A perspectiva de passar a noite sozinha pareceu de repente insuportável para Jane. Num súbito impulso, ela disse a Ellis:

- Vamos tomar um chá... se não se importa que eu amamente Chantal.

- Boa idéia.

A criança estava chorando quando entraram na casa. Como sempre acontecia, o corpo de Jane reagiu no mesmo instante: um dos seios começou a vazar. Ela se apressou em dizer:

- Sente-se e Fará lhe servirá um chá.

Ela correu para o outro cômodo antes que Ellis pudesse perceber a mancha embaraçosa na blusa. Desabotoou a blusa o mais depressa possível e pegou a filha. Houve o momento habitual de pânico cego, enquanto Chantal procurava o mamilo, depois começava a sugar, dolorosamente a princípio, e logo com mais delicadeza. Jane sentiu-se constrangida em voltar ao outro cômodo. Não seja tola, disse para si mesma; você o convidou, ele aceitou, além do mais houve um tempo em que dormiam juntos quase todas as noites... Mesmo assim sentiu que corava um pouco quando passou pela porta. Ellis estudava os mapas de Jean-Pierre.

- Era uma das manobras mais hábeis que se podia conceber - comentou ele. - Jean-Pierre conhecia todas as rotas porque Mohammed sempre usava os seus mapas. – Levantou os olhos, viu a expressão de Jane e tratou de acrescentar: - Mas não vamos falar sobre isso. O que você vai fazer agora?

Ela se sentou na almofada, encostada na parede, sua posição preferida para amamentar. Ellis não parecia embaraçado pelo seio à mostra, e Jane começou a se sentir mais à vontade.

- Tenho de esperar. Assim que a rota para o Paquistão estiver aberta e os comboios recomeçarem, irei para casa. E você?

- A mesma coisa. Meu trabalho aqui terminou. Claro que o acordo precisará de supervisão, mas a Agência dispõe de homens no Paquistão que podem cuidar disso.

Fará trouxe o chá. Jane especulou qual seria a próxima missão de Ellis: tramar um golpe na Nicarágua, chantagear um diplomata soviético em Washington ou assassinar um comunista africano? Ela o interrogara sobre o Vietnam, quando eram amantes, e ele contara que todos esperavam que fugisse à convocação, mas era um filho da puta do contra e por isso fizera justamente o oposto. Jane não sabia se podia acreditar, mas mesmo que fosse verdade não explicava por que ele permanecera naquela linha de trabalho violento depois de sair do exército.

- O que vai fazer quando voltar para casa, Ellis? Continuar a maquinar meios de matar Castro?

- A Agência não pode cometer assassinatos.

- Mas comete assim mesmo.

- Há um elemento lunático que nos dá uma péssima reputação. Infelizmente, os presidentes americanos não podem resistir à tentação de se empenhar em jogos de agente secreto, e isso estimula a facção dos alucinados.

- Por que não vira as costas a todos eles e se junta à raça humana?

- A América está cheia de pessoas que acreditam que outros países, assim como o seu, têm o direito de ser livres... mas são do tipo que "viram as costas e se juntam

à raça humana". É por isso que a Agência emprega muitos psicopatas e poucos cidadãos decentes e compassivos. E quando a Agência derruba um governo estrangeiro, por capricho de algum presidente, todos perguntam como essas coisas podem acontecer. A resposta é porque eles deixaram. Meu país é uma democracia, e por isso não há ninguém a culpar, a não ser eu, quando as coisas saem erradas; e se é preciso endireitar as coisas, tenho de fazê-lo, porque é minha responsabilidade.

Jane não estava convencida.

- Diria que a maneira de reformar a KGB é aderir ao grupo?

- Não, porque a KGB em última análise não é controlada pelo povo. A Agência é.

- O controle não é tão simples assim - disse Jane. - A CIA conta mentiras ao povo. Não se pode controlá-los quando não se tem meios de saber o que eles estão fazendo.

- Mas afinal é nossa Agência e nossa responsabilidade.

- Você poderia trabalhar para acabar com ela, em vez de se juntar a ela.

- Mas precisamos de uma agência central de informações. Vivemos num mundo hostil e precisamos de informações sobre os nossos inimigos.

Jane suspirou.

- Mas pense a que isso leva. Estão planejando enviar mais e maiores armas a Masud, a fim de que ele possa matar mais pessoas e mais depressa. É o que vocês sempre acabam fazendo.

- Não é apenas para que ele possa matar mais pessoas e mais depressa - protestou Ellis. - Os afegãos lutam por sua liberdade... e lutam contra um bando de assassinos...

- Todos estão lutando por sua liberdade - interrompeu-o Jane. - A OLP, os exilados cubanos, o IRA, os brancos sul-africanos e o Exército de Gales Livre.

- Alguns estão certos, outros não.

- E a CIA conhece a diferença?

- Deve conhecer...

- Mas não conhece. Masud está lutando pela liberdade de quem?

- A liberdade de todos os afegãos.

- Não diga besteira - disse Jane com veemência. - Ele é um muçulmano fundamentalista. Se algum dia tomar o poder, sua primeira providência será reprimir as mulheres.

Nunca lhes dará o direito de voto... e quer tirar os poucos direitos que elas possuem. E como acha que ele vai tratar os adversários políticos, tendo em vista que seu herói político é o Aiatolá Komeini? Os cientistas e professores terão liberdade acadêmica? Os homens e mulheres homossexuais terão liberdade sexual? O que acontecerá com os hinduístas, budistas, ateus e protestantes?

- Acha realmente que o regime de Masud seria pior que o dos russos?

Jane pensou por um momento.

- Não sei. A única coisa de que tenho certeza é que o regime de Masud será uma tirania afegã, em vez de uma tirania russa. E não vale a pena matar pessoas para trocar um ditador estrangeiro por um ditador local.

- Os afegãos parecem pensar que vale.

- Nunca perguntaram à maioria.

- Creio que é óbvio. Seja como for, não faço normalmente esse tipo de trabalho. Em geral, atuo mais como um detetive.

Era um assunto pelo qual Jane se sentia curiosa há um ano.

- Qual era exatamente a sua missão em Paris?

- Quando espionei todos os nossos amigos? - Ellis sorriu. - Jean-Pierre nunca lhe contou?

- Ele disse que não sabia.

- Talvez não soubesse mesmo. Eu estava caçando terroristas.

- Entre nossos amigos?

- Quase sempre é onde são encontrados... no meio dos dissidentes, rebeldes e criminosos.

- Rahmi Coskun era um terrorista?

Jean-Pierre dissera que Rahmi fora preso por causa de Ellis.

- Era sim. Foi o responsável pela explosão do escritório da Turkish Airlines na Avenue Felix Faure.

- Rahmi? Como sabe?

- Ele me contou. E quando o prendi, ele estava planejando outro atentado a bomba.

- Ele também lhe contou isso?

- Pediu-me para ajudá-lo com a bomba.

- Oh Deus!

O belo Rahmi, com os olhos flamejantes e o ódio intenso ao governo de seu pobre país... Ellis ainda não acabara.

- Lembra de Pepe Gozzi? Jane franziu o rosto.

- Está falando daquele corso esquisito que tinha um RollsRoyce?

- Esse mesmo. Ele fornecia armas e explosivos para todos os loucos de Paris. Vendia a qualquer um que pudesse pagar seus preços, mas se especializara em clientes políticos.

Jane estava aturdida. Presumira que Pepe era um personagem escuso apenas por ser rico e corso, mas calculara que na pior das hipóteses ele estava envolvido em crimes corriqueiros, como contrabando ou tráfico de tóxicos. E pensar que ele vendia armas a assassinos! Jane começava a sentir que vivera num sonho, com toda a intriga e violência do mundo real ao seu redor. Sou tão ingênua assim? Ellis continuou:

- Também peguei um russo que financiara uma porção de assassinatos e seqüestros. Pepe foi interrogado e denunciou a metade dos terroristas da Europa.

- Então era isso o que você fazia durante todo o tempo em que éramos amantes... - murmurou ela com expressão sonhadora.

Podia recordar as festas, os concertos de rock, as manifestações, as discussões políticas em cafés, as intermináveis garrafas de vin rouge ordinaire nos estúdios em sótãos... Desde o rompimento entre os dois que ela presumira vagamente que Ellis escrevia pequenos relatórios sobre todos os radicais, informando quem era influente, quem era extremista, quem tinha dinheiro, quem contava com mais adeptos entre os estudantes, quem mantinha ligações com o Partido Comunista e assim por diante. Era difícil agora aceitar a idéia de que ele estava na pista de criminosos de verdade e encontrara alguns entre os seus amigos.

- Não posso acreditar - disse Jane, aturdida.

- Foi um grande triunfo, se quer saber a verdade.

- Provavelmente não deveria me contar.

- Tem razão. Mas quando menti para você no passado, arrependi-me profundamente... para dizer o mínimo.

Jane sentiu-se constrangida, sem saber o que dizer. Passou Chantal para o seio esquerdo. Percebendo o olhar de Ellis, cobriu o seio direito com a blusa. A conversa estava se tornando perigosamente pessoal, mas ela experimentava uma curiosidade intensa, queria saber mais. Podia entender agora como ele se justificava – embora não concordasse com seu raciocínio - mas ainda especulava sobre seus motivos. Se não descobrir agora, pensou ela, talvez nunca mais tenha outra oportunidade.

- Não entendo o que leva um homem a tomar a decisão de consumir sua vida fazendo esse tipo de coisa.

Ellis desviou os olhos.

- Sou bom nisso, vale a pena fazer, e o pagamento é espetacular.

- E imagino que você gostou também do plano de aposentadoria e do cardápio da cantina. Muito bem, não precisa me explicar nada, se não quiser.

Ele tornou a fitá-la nos olhos, como se tentasse ler seus pensamentos.

- Quero contar tudo - disse Ellis. - Mas você tem certeza de que quer ouvir?

- Tenho, sim. Por favor.

- O problema está relacionado com a guerra - começou Ellis, levando Jane a compreender de repente que ele estava prestes a dizer algo que jamais contaria a ninguém.

- Uma das coisas terríveis de se voar no Vietnam era o fato de ser muito difícil diferenciar os vietcongues dos civis. Sempre que proporcionávamos apoio aéreo a tropas de solo, minávamos uma trilha na selva ou declarávamos que uma zona estava sujeita a bombardeio, sabíamos que mataríamos mais mulheres, crianças e velhos do que guerrilheiros. Costumávamos dizer que eles ofereciam abrigo ao inimigo. Mas quem podia ter certeza? E quem se importava? Nós os matávamos. Éramos os terroristas então. E não estou falando de casos isolados - embora tenha testemunhado atrocidades terríveis - mas sim de nossa tática regular cotidiana. Não havia justificativa, o que era o problema maior. Fizemos todas essas coisas por uma causa que descobrimos ser feita de mentiras, corrupção e fraude. Estávamos no lado errado.

O rosto de Ellis estava contraído, como se ele sentisse dor de uma lesão interna persistente. À luz irrequieta do lampião, sua pele era amarelada e ensombreada quando acrescentou:

- Não há desculpa... não há perdão. Gentilmente, Jane estimulou-o a falar mais.

- Então por que ficou? Por que se ofereceu como voluntário para um segundo período de serviço?

- Porque na época eu não percebia tudo isso tão claramente, porque lutava por meu país e não se pode deixar uma guerra no meio, porque era um bom oficial e se voltasse para casa poderia ser substituído por algum idiota e meus homens morreriam. Claro que nenhum desses motivos é bastante convincente, e por isso em determinado momento me perguntei: "O que vai fazer?" Eu queria... não compreendi isso na ocasião, mas queria fazer alguma coisa para me redimir. Nos anos 60 teríamos chamado de viagem de culpa.

- Mas... - Ellis parecia tão inseguro e vulnerável que Jane tinha dificuldade para lhe fazer perguntas diretas. Mas como ele precisava falar e ela queria ouvir, acabou perguntando: - Mas por que assumiu esse trabalho depois?

- Eu estava no serviço de informações, quase no final, e ofereceram-me a oportunidade de continuar na mesma linha de trabalho no mundo civil. Disseram que eu poderia trabalhar como agente secreto porque conhecia o meio. Estavam a par do meu passado radical. E achei que poderia compensar algumas das coisas que fizera se caçasse terroristas. E por isso me tornei um especialista em contraterrorismo. Parece simplista quando se traduz em palavras... mas a verdade é que tenho sido bem-sucedido.

A Agência não gosta de mim porque às vezes recuso uma missão, como na ocasião em que mataram o Presidente do Chile, e os agentes não devem recusar missões. Mas fui responsável pela captura de pessoas perniciosas, e me orgulho disso.

Chantal estava dormindo. Jane ajeitou-a na caixa que era o seu berço e disse a Ellis:

- Creio que devo dizer uma coisa... parece que o julguei errado.

Ele sorriu.

- Graças a Deus que pensa assim.

Por um momento, Jane foi dominada pela nostalgia, ao pensar no tempo - fora há apenas um ano e meio? - em que ela e Ellis eram felizes e nada daquilo acontecera: não havia CIA, JeanPierre ou Afeganistão.

- Não se pode apagar nada, não é mesmo? - murmurou ela. - Tudo o que aconteceu... suas mentiras, minha raiva...

- Não, não se pode.

Ele estava sentado no banco, fitando-a, de pé à sua frente, estudando-a atentamente. Estendeu os braços, hesitou, depois pôs as mãos nos quadris de Jane, num gest que poderia ser de afeição fraternal ou algo mais. E foi então que Chantal interveio:

- Hummmmm...

Jane virou-se e contemplou-a, Ellis baixou as mãos. Chantal estava acordada, sacudindo pernas e braços no ar. Jane pegou-a no colo e ela arrotou no mesmo instante.

Jane virou-se para Ellis. Ele cruzara os braços no peito e a observava, sorrindo. Subitamente, ela não queria que Ellis fosse embora. E disse, num impulso:

- Por que não janta comigo? Mas só tenho pão e coalhada.

- Está bem.

Jane estendeu Chantal para ele.

- Vou falar com Fará.

Ellis pegou a menina, e ela saiu para o pátio. Fará estava esquentando água para o banho de Chantal. Jane verificou a temperatura com o cotovelo e constatou que estava no ponto.

- Providencie pão para duas pessoas, por favor - disse ela, em dari.

Os olhos de Fará se arregalaram e Jane compreendeu que era chocante uma mulher sozinha convidar um homem para jantar. Ora, que se danasse tudo, pensou ela. Pegou o caldeirão com a água quente e voltou a entrar na casa.

Ellis estava sentado na almofada grande, por baixo do lampião de óleo, com Chantal nos joelhos, entoando em voz baixa uma cantiga de ninar. Suas mãos grandes e peludas envolviam o corpo pequeno e rosado de Chantal. Ela o fitava, gorgulhando feliz, sacudindo os pés. Jane parou na porta, hipnotizada pela cena, e um pensamento espontâneo aflorou-lhe à mente: Ellis deveria ter sido o pai de Chantal.

Isso é verdade? perguntou a si mesma, enquanto os contemplava. É o que realmente desejo? Ellis terminou a cantiga, olhou para ela e sorriu, meio embaraçado. Jane pensou: É de fato o que eu quero.

Eles subiram a encosta da montanha à meia-noite, Jane na frente, Ellis seguindo-a com o saco de dormir debaixo do braço. Haviam dado banho em Chantal, comido o parco jantar de pão e coalhada, alimentado Chantal outra vez e a acomodado para a noite no telhado, onde estava agora profundamente adormecida, ao lado de Fará, que a protegeria com a própria vida. Ellis quisera tirar Jane da casa em que ela fora a esposa de outro homem e Jane sentira a mesma coisa, dizendo:

- Conheço um lugar para onde podemos ir.

Agora, ela deixou a trilha e levou Ellis pelo terreno íngreme e pedregoso até o seu refúgio, a platibanda oculta em que tomava banho de sol nua e passava manteiga na barriga, antes de Chantal nascer. Encontrou o lugar facilmente, ao luar. Olhou para a aldeia lá embaixo, onde as brasas das fogueiras de cozinhar ainda ardiam nos pátios e uns poucos lampiões faiscavam nas janelas sem vidro. Podia divisar os contornos de sua casa. Dentro de poucas horas, assim que o dia começasse a raiar, veria os vultos adormecidos de Chantal e Fará no telhado. E ficaria contente: era a primeira vez que se afastava de Chantal à noite.

Ela virou-se. Ellis abrira o saco de dormir e estendia-o no chão, como uma manta. Jane sentia-se constrangida e apreensiva. Já desaparecera o impulso de afeto e desejo que a dominara na casa, quando o observara entoando uma cantiga de ninar para sua filha. Todos os seus antigos sentimentos haviam ressurgido naquele instante: a vontade de tocá-lo, seu amor pela maneira como ele sorria quando se sentia inibido, a necessidade de sentir aquelas mãos grandes em sua pele, o desejo obsessivo de vê-lo nu. Ela perdera o interesse pelo sexo poucas semanas antes do nascimento de Chantal e não tornara a senti-lo até aquele momento. Mas o ânimo se dissipara, pouco a pouco, nas horas subseqüentes, enquanto adotavam as medidas práticas desajeitadas para ficarem a sós, como um casal de adolescentes tentando escapar dos pais para uma sessão de carícias.

- Venha sentar - murmurou Ellis.

Jane sentou-se ao seu lado, no saco de dormir. Os dois ficaram olhando para a aldeia quase mergulhada na escuridão total. Não estavam se tocando. Houve um momento de silêncio tenso.

- Nenhuma outra pessoa jamais esteve aqui - comentou Jane, só para dizer alguma coisa.

- Para que você usava este lugar?

- Ficava deitada ao sol, sem pensar em nada. - Mas Jane disse a si mesma: Ora, pare com isso! E acrescentou: - Não, isso não é verdade. Eu costumava me masturbar.

Ellis riu, estendeu um braço para enlaçá-la e puxou-a.

- Estou contente que você ainda não tenha aprendido a medir suas palavras.

Jane virou o rosto. Ele beijou-a na boca, gentilmente. Ele gosta de mim por meus defeitos, pensou ela: a falta de tato, o temperamento explosivo, o jeito destemperado de falar, a determinação e obstinação.

- Você não quer me mudar - murmurou ela.

- Oh, Jane, como senti saudade... - Ele fechou os olhos, quase sussurrava ao continuar: - E na maior parte do tempo nem mesmo compreendia que sentia saudade de você.

Ellis deitou-se de costas, puxando-a, de tal forma que Jane acabou se estendendo por cima. Ela beijou-o no rosto, de leve. A sensação de constrangimento se dissipava depressa. Jane pensou: Ele não tinha barba na última vez em que o beijei. Ela sentiu as mãos de Ellis se mexerem, desabotoando sua blusa. Não usava sutiã - não tinha nenhum bastante grande - os seios pareciam nus demais. Enfiou a mão por dentro da camisa de Ellis, tocando os cabelos compridos em torno do mamilo. Quase esquecera como eram os homens. Há meses que sua vida estava ocupada pelas vozes suaves e os rostos lisos de mulheres e crianças: agora, subitamente, queria sentir uma pele áspera, coxas duras, faces barbadas. Entrelaçou os dedos na barba e abriu sua boca com a ponta da língua. As mãos de Ellis encontraram seus seios intumescidos e ela experimentou uma onda de prazer... e compreendeu então o que estava para acontecer, mas não tinha forças para impedir, pois no instante mesmo em que se desvencilhava bruscamente o leite quente esguichou dos mamilos sobre as mãos de Ellis. Jane corou de vergonha e balbuciou:

- Oh, Deus... sinto muito... que coisa repulsiva... não pude evitar...

Ellis silenciou-a, encostando um dedo em seus lábios.

- Está tudo bem - murmurou ele, acariciando os seios, que se tornaram completamente molhados. - É normal. Sempre acontece. E é sensual.

Não pode ser sensual, pensou Jane. Mas ele mudou de posição e aproximou o rosto, começando a beijar os seios e a afagá-los ao mesmo tempo. Aos poucos, Jane relaxou e começou a apreciar a sensação. Experimentou outra pontada de prazer quando os seios tornaram a vazar, mas desta vez não se importou. Ellis murmurou "Ahn..." e a superfície áspera da língua tocou num mamilo sensível. Jane pensou: Se ele chupar, Vou acabar gozando.

Foi como se Ellis lesse os seus pensamentos. Fechou os lábios em torno de um mamilo comprido, puxou-o para dentro da boca e chupou, enquanto segurava o outro entre o indicador e o polegar, apertando gentilmente, no mesmo ritmo. Impotente, Jane entregouse à sensação; enquanto os seios esguichavam leite, um em sua mão, outro na boca, a sensação era tão intensa que ela estremeceu incontrolavelmente e gemeu "Ahn... ahn...", até que gozou e desabou por cima dele.

Por algum tempo, não havia nada em sua mente além do que podia sentir: o sopro quente de Ellis em seus seios molhados, a barba arranhando sua pele, o ar frio da noite em suas faces quentes, o saco de dormir de náilon e o chão duro por baixo. Depois de algum tempo, a voz sufocada de Ellis balbuciou:

- Estou sufocando.

Jane saiu de cima, indagando:

- Somos esquisitos?

- Somos. ) Ela soltou uma risadinha.

- Você já tinha feito isso antes? Ellis hesitou por um instante.

- Já.

- Como... - Jane ainda se sentia um pouco embaraçada. - Qual é o gosto?

- Quente e doce. Como leite condensado. Você gozou?

- Não notou?

- Não tive certeza. Às vezes é difícil saber com as mulheres. Jane beijou-o.

- Gozei. Um pouco, mas intenso. Um orgasmo peitoral.   !

- E eu quase gozei.

- É mesmo?

Ela passou a mão pelo corpo de Ellis. Ele usava a calça e a camisa de algodão fino que parecia um pijama, o traje comum dos afegãos. Jane pôde sentir as costelas e o quadril: Ellis perdera a camada de gordura que todos os ocidentais tinham, a não ser os mais magros. A mão encontrou o pênis, ereto, dentro da calça. Ela murmurou

"Ahn" e segurou-o, dizendo:

- É gostoso.

- Também deste lado.

Ela queria lhe proporcionar tanto prazer quanto Ellis lhe dera.

Sentou-se, desamarrou o cordão da calça, puxou-lhe o pênis para fora. Afagando-o gentilmente, inclinou-se e beijou a ponta. Um espírito de malícia a dominou e ela perguntou:

- Quantas mulheres teve desde que nos separamos?

- Continue a fazer isso e eu lhe direi.

- Está bem. - Jane recomeçou a acariciar. Ele se manteve em silêncio. Depois de um minuto, ela insistiu: - Muito bem, quantas?

- Espere um pouco, Ainda estou contando.

- Filho da puta!

Jane deu uma mordida de leve no membro.

- Ai! Não foram muitas... juro!

- O que você faz quando não tem uma mulher?

- Pode dar três palpites.

Ela não estava disposta a desistir.

- Faz com a mão?

- Ora bolas! Fico envergonhado.

- Faz, sim! - exclamou Jane, triunfante. - Em que pensa quando está fazendo?

- Acreditaria na Princesa Diana?

- Não.

- Agora estou mesmo envergonhado. Jane não podia conter a curiosidade.

- Tem de contar a verdade.

- Pam E wing.

- E quem é ela?

- Você está realmente fora do mundo. É a mulher de Bobby Ewing, em Dallas.

Jane lembrou-se do seriado de televisão e da atriz, e ficou atônita.

- Não pode estar falando sério.

- Pediu a verdade.

- Mas ela é toda de plástico!

- Estamos falando de fantasia.

- Não pode fantasiar uma mulher liberada?

- Não há lugar para a política na fantasia.

- Estou chocada. - Jane hesitou. - Como faz?

- O quê?

- O que você faz. com a mão.

- Mais ou menos o que você está fazendo agora, só que com mais força.

- Mostre como é.

- Agora não estou apenas envergonhado, mas também mortificado.

- Mostre, por favor. Sempre quis ver um homem fazer isso. Nunca antes tive coragem de pedir... e se você recusar, talvez eu nunca saiba.

Ela pegou a mão de Ellis e pôs onde estava a sua. Depois de um momento, ele começou a mover a mão, devagar. Fez vários movimentos, sem muito entusiasmo, depois suspirou,

fechou os olhos, e passou a se masturbar com todo o vigor.

- Você é tão rude! - exclamou Jane. ? Ele parou.

- Não posso fazer... a menos que você também faça.

- Negócio fechado - disse ela, ansiosamente.

Jane abaixou apressadamente a calça e a calcinha. Ajoelhou-se ao lado de Ellis e começou a se acariciar.

- Chegue mais perto - murmurou ele, a voz um pouco rouca. - Não posso vê-la.

Ellis estava deitado de costas. Jane adiantou-se, de joelhos, até ficar ao lado de sua cabeça, o luar prateando seus mamilos e os pêlos púbicos. Ele recomeçou a se masturbar, desta vez mais depressa, olhando atentamente para a mão de Jane, como se estivesse hipnotizado, enquanto ela se acariciava.

- Óh, Jane...

Ela começou a desfrutar as pontadas do prazer familiares que se irradiavam das pontas de seus dedos. Viu os quadris de Ellis começarem a subir e descer, no ritmo

de sua mão. E disse:

- Quero que você goze. Quero ver sair.

Parte de Jane estava chocada por seu comportamento, mas era sufocada pelo excitamento e desejo. Ellis gemeu. Ela fitou seu rosto. Ele estava com a boca aberta, a respiração acelerada, os olhos fixados na vagina. Ela afagou os lábios com o dedo do meio.

- Enfie o dedo - balbuciou ele. - Quero ver seu dedo entrar.

Era uma coisa que Jane não fazia normalmente, mas enfiou a ponta do dedo. Entrou suave, escorregadio. Ela enfiou tudo. Ellis ofegou; e porque ele estava tão excitado pelo que ela fazia, Jane também ficou, ainda mais. Olhou para o penis. Os quadris de Ellis se movimentavam mais depressa, enquanto ele fodia a própria mão. Jane mexia o dedo na vagina com crescente prazer. Subitamente, ele se arqueou, empinando a pelve pelo ar e gemendo, esguichando

um jato de sêmen branco. Involuntariamente, Jane gritou "Oh, Deus!", enquanto olhava, fascinada, para o pequeno buraco na ponta do pênis, de onde saiu outro jato, um terceiro e um quarto, brilhando ao luar, caindo no peito de Ellis, no braço e nos cabelos de Jane; e depois, quando ele desabou, Jane foi sacudida por espasmos de prazer, provocados por seu dedo em rápido movimento, até que tombou também, exausta.

Estendeu-se ao lado de Ellis, sobre o saco de dormir, a cabeça em sua coxa. O pau ainda estava duro. Jane inclinou-se e beijou-o. Sentiu um vestígio de sêmen salgado na ponta. E sentiu o rosto de Ellis se aninhar entre suas coxas em resposta.

Os dois ficaram quietos por algum tempo. Os únicos sons eram de suas respirações e do rio correndo no outro lado do vale. Jane olhou para as estrelas. Cintilavam intensamente, não havia nuvens. O ar noturno esfriava. Não demora muito para que tenhamos de nos meter no saco de dormir, pensou ela. Ansiava em adormecer junto

de Ellis.

- Somos estranhos? - indagou ele.

- Somos.

O pênis caíra para o lado, estava estendido sobre a barriga. Ela passou as pontas dos dedos pelos pêlos vermelho-dourados. Quase esquecera como era fazer amor com Ellis. Muito diferente de JeanPierre. Jean-Pierre gostava de muitos preparativos: óleos de banho, perfume, luz de vela, vinho, violinos. Era um amante meticuloso.

Gostava que ela se lavasse antes de fazer amor e sempre ia ao banheiro depois, assim que acabava. Jamais a tocaria durante a menstruação, certamente não chuparia seus peitos e engoliria o leite, como Ellis fizera. Mas Ellis podia fazer qualquer coisa, pensou Jane, e quanto mais anti-higiênico, melhor. Ela sorriu no escuro.

Ocorreu-lhe que nunca se convencera de que Jean-Pierre gostava de fato do sexo oral, por melhor que fosse o desempenho dele. com Ellis, não havia a menor dúvida.

O pensamento deixou-a com vontade. Abriu as coxas, convidativa. Sentiu que Ellis a beijava, seus lábios roçando os pêlos púbicos, a língua começando a sondar lascivamente entre as dobras dos lábios vaginais. Depois de um momento, ele deitou-a de costas, ajoelhou-se entre suas coxas, levantou as pernas de Jane por cima de seus ombros.

Ela sentiu-se totalmente nua, completamente aberta e vulnerável, mas mesmo assim extremamente acariciada. A língua de Ellis deslocou-se numa curva longa e lenta, começando na base da espinha - Oh, Deus, pensou Jane, estou lembrando como ele faz isso! - lambendo a fenda entre as nádegas, fazendo uma pausa para penetrar fundo na vagina e depois subindo para provocar a pele sensível onde os lábios vaginais se encontravam, com o clitoris ansioso no meio. Depois de sete ou oito lambidas longas, Jane manteve a cabeça sobre o clitoris, obrigando-o a se concentrar nisso. Ela começou a levantar e baixar os quadris, dizendo pela pressão de seus dedos nas têmporas de Ellis se devia lamber com mais vigor ou mais suave, mais alto ou mais baixo, à esquerda ou à direita. Sentiu a mão de Ellis em sua vagina, comprimindo o interior úmido, adivinhou o que ele ia fazer: um momento depois ele retirou a mão e em seguida enfiou devagar um dedo molhado por seu ânus. Jane lembrou como ficara chocada na primeira vez em que ele fizera isso e como logo aprendera a gostar.

Jean-Pierre jamais faria uma coisa assim, nem em um milhão de anos. Enquanto os músculos de seu corpo começavam a se contrair para o orgasmo, ocorreu-lhe que sentira saudade de Ellis mais do que jamais admitira; o motivo de ter continuado furiosa com ele por tanto tempo fora o fato de continuar a amá-lo. Ao reconhecer isso, um terrível peso saiu de sua mente e começou a gozar, tremendo como uma árvore num vendaval. Ellis, sabendo o que ela gostava, enfiou a língua o mais fundo possível, enquanto Jane esfregava seu sexo contra o rosto dele, freneticamente.

Parecia que se prolongaria por toda a eternidade. Cada vez que as sensações arrefeciam, ele metia o dedo ainda mais fundo no seu ânus, lambia o clitoris ou mordia os lábios vaginais, fazendo tudo recomeçar; finalmente, por pura exaustão, Jane suplicou:

- Pare, pare, não tenho mais forças, vai acabar me matando...

Ellis levantou o rosto e baixou as pernas de Jane. Ele se inclinou, apoiado nas mãos, e beijou-a na boca. Tinha o cheiro de vagina na barba. Jane permaneceu deitada de costas, cansada demais para abrir os olhos, cansada demais até para retribuir o beijo. Sentiu a mão de Ellis em sua vagina, abrindo-a, e depois o pênis entrando.

E pensou: Ele ficou duro outra vez muito depressa. E um momento depois: Oh, Deus, faz tanto tempo e é tão bom!

Ele começou a mexer, para dentro e para fora, devagar a princípio, depois mais depressa. Jane abriu os olhos. O rosto de Ellis estava por cima do seu, contemplando-a.

Ele dobrou o pescoço e olhou para o lugar em que os corpos se encontravam. Arregalou os olhos, abriu a boca, enquanto observava o membro entrando e saindo da vagina.

A cena inflamou-o tanto que desejou que Jane tambem pudesse ver.

Diminuiu o ritmo subitamente e penetrou mais fundo. Jane lembrou que ele sempre fazia isso antes do orgasmo. Ellis fitou-a nos olhos e murmurou:

- Beije-me enquanto eu gozo.

Ele baixou os lábios cheirando a vagina. Jane enfiou a língua em sua boca. Adorava quando ele gozava. Ellis arqueou as costas e levantou a cabeça, soltando um grito animal. Ela sentiu o sêmen inundá-la.

Quando acabou, ele baixou a cabeça para o ombro de Jane, roçando os lábios gentilmente sobre a pele macia de seu pescoço e sussurrando palavras que ela não pôde entender. Depois de um ou dois minutos, ele deixou escapar um suspiro profundo de satisfação, beijou-a na boca, depois ajoelhou-se e beijou-lhe os seios. E finalmente beijou a vagina. O corpo de Jane reagiu no mesmo instante, os quadris se erguendo para a vagina se comprimir contra os lábios. Sabendo que ela estava ficando outra vez com tesão, Ellis começou a chupar; e, como sempre, o pensamento de Ellis lamber sua vagina, enquanto o sêmen ainda escorria, quase levou-a à loucura. Ela gozou imediatamente, gritando o nome dele, até que o espasmo acabou.

Ellis arriou ao seu lado. Automaticamente, os dois assumiram a posição em que sempre ficavam depois de fazer amor: o braço de Ellis a envolvia, a cabeça de Jane repousava em seu ombro, a coxa se estendia por cima dos quadris dele. Ellis bocejou, ela riu. Eles se tocaram, letárgicos, Jane estendendo a mão para brincar com o pênis inerte, Ellis enfiando os dedos na vagina encharcada. Ela lambeu seu peito, sentiu o suor salgado na pele. Olhou para seu pescoço. A lua iluminava as linhas e sulcos, traindo sua idade. Ele é dez anos mais velho do que eu, pensou Jane. Talvez seja por isso que sabe trepar de maneira tão maravilhosa, porque é mais velho.

- Por que você é uma grande foda? - disse ela, em voz alta. Ellis não respondeu; estava dormindo. Ela acrescentou, um instante antes de fechar os olhos:

- Eu amo você, meu querido. Durma bem.

 

Depois de um ano no vale Jean-Pierre achou a cidade de Kabul desconcertante e assustadora. Os prédios eram enormes, os carros andavam muito depressa, havia gente demais. Tinha de tapar os ouvidos quando os imensos tanques russos passavam em comboio, ruidosamente. Tudo o agredia com o choque da novidade: prédios de apartamentos, colegiais de uniforme, lampiões na rua, elevadores, toalhas de mesa, o gosto do vinho. Depois de vinte e quatro horas, ele continuava nervoso. O que era irônico: afinal, era um parisiense!

Recebera um quarto no alojamento dos oficiais solteiros. Prometeram-lhe que teria um apartamento assim que Jane chegasse com Chantal. Enquanto isso, ele tinha a impressão de que estava vivendo num hotel ordinário. O prédio provavelmente fora um hotel antes da chegada dos russos. Se Jane viesse agora - ela deveria chegar a qualquer momento - os três teriam de se acomodar ali da melhor forma possível pelo resto da noite. Não posso me queixar, pensou Jean-Pierre; não sou um herói... ainda.

Postou-se de pé junto à janela, contemplando Kabul à noite. Durante duas horas toda a cidade estivera sem energia, presumivelmente pela ação dos equivalentes urbanos de Masud e seus guerrilheiros, mas poucos minutos depois a eletricidade voltara e havia uma tênue claridade no centro da cidade, que tinha iluminação nas ruas. Os únicos sons eram os roncos dos motores, enquanto carros, caminhões e tanques do exército russo atravessavam a cidade, seguindo apressados para seus misteriosos destinos.

O que havia de tão urgente, à meia-noite, em Kabul? Jean-Pierre prestara o serviço militar e refletiu que se o exército russo era parecido com o francês, a missão a ser realizada no meio da noite, em ritmo acelerado, devia ser algo como levar quinhentas cadeiras de um quartel para um salão no outro lado da cidade, em preparativo para um concerto que aconteceria dentro de duas semanas e provavelmente acabaria cancelado.

Ele não podia sentir o cheiro do ar noturno porque a janela estava fechada e pregada. A porta não estava trancada, mas havia um sargento russo com uma pistola no fim do corredor, perto do banheiro, sentado numa cadeira de encosto reto, a expressão impassível. Jean-Pierre tinha a impressão de que o sargento o impediria se tentasse sair.

Onde estava Jane? O ataque a Darg devia ter acabado ao cair da noite. Um helicóptero levaria poucos minutos para ir de Darg a Banda, pegar Jane e Chantal. E podia seguir de Banda a Kabul em menos de uma hora. Mas talvez a força de ataque tivesse voltado a Bagram, a base aérea perto da entrada do vale. Nesse caso, Jane seguiria para Kabul pela estrada, sem dúvida acompanhada por Anatoly.

Ela ficaria tão contente em ver o marido que perdoaria a traição, compreenderia seu ponto de vista sobre Masud, esqueceria o passado, pensou Jean-Pierre. Por um momento, ele se perguntou se isso não seria apenas o seu desejo. Concluiu que não; conhecia Jane muito bem e ela estava basicamente sob o seu controle.

E ela saberia de tudo. Apenas umas poucas pessoas partilhariam o segredo e compreenderiam a grandeza do que ele fizera: ele estava contente porque Jane seria uma delas.

Jean-Pierre torcia para que Masud tivesse sido capturado, e não morto. Se ele fosse capturado, os russos poderiam levá-lo a julgamento, a fim de que todos os rebeldes soubessem sem qualquer sombra de dúvida que seu líder estava liquidado. A morte era quase tão boa, desde que os russos tivessem se apoderado do corpo. Se não houvesse corpo ou apenas um cadáver irreconhecível, os propagandistas dos rebeldes em Peshawar alegariam que Masud ainda estava vivo. Claro que acabaria ficando patente que ele morrera, mas o impacto seria um pouco atenuado. Jean-Pierre torcia para que os russos estivessem com o corpo.

Ouviu passos no corredor. Seria Anatoly ou Jane... ou talvez os dois? Os passos pareciam masculinos. Abriu a porta e deparou com dois enormes soldados russos e um terceiro homem, pequeno, num uniforme de oficial. Certamente vinham buscá-lo para levá-lo ao lugar em que se encontravam Jane e Anatoly. Ficou desapontado. Olhou inquisitivo para o oficial, que fez um gesto com a mão. Os dois soldados passaram pela porta, bruscamente. Jean-Pierre recuou um passo, um protesto aflorando a seus lábios. Mas antes que pudesse falar, um dos soldados agarrou-o pela camisa e acertou com o punho enorme em seu rosto.

Jean-Pierre deixou escapar um uivo de dor e medo. O outro soldado chutou-o na virilha. A dor foi insuportável, e Jean-Pierre caiu de joelhos, sabendo que chegara o momento mais terrível de sua vida.

Os dois soldados levantaram-no, cada um segurando um braço, e o oficial entrou no quarto. Pela cortina de lágrimas, Jean-Pierre divisou um homem ainda jovem, baixo e corpulento, com uma deformidade que fazia um lado do rosto parecer avermelhado e inchado, o que lhe emprestava uma aparência de escárnio permanente. Sua mão enluvada empunhava um cassetete.

Durante os cinco minutos seguintes os dois soldados seguraram o corpo de Jean-Pierre, a se contorcer e tremer, enquanto o oficial batia com o cassetete de madeira, repetidamente, em seu rosto, ombros, joelhos, canelas, barriga e virilha... sempre terminando na virilha. Cada golpe era desfechado com cuidado, havia sempre uma pausa entre um e outro, a fim de que a agonia do anterior pudesse se desvanecer o suficiente para permitir a Jean-Pierre temer o seguinte, um segundo antes de ser aplicado. Cada golpe o fazia gritar de dor, cada pausa o fazia gritar na expectativa do próximo. Houve finalmente uma pausa mais prolongada e Jean-Pierre se pôs a balbuciar, sem saber se eles o entenderiam:

- Oh, por favor, não me batam mais, por favor, senhor, não me bata de novo, farei qualquer coisa, tudo o que quiser, por favor, não me bata mais, não me bata...

- Já chega! - disse uma voz em francês.

Jean-Pierre abriu os olhos e tentou ver, através do sangue que lhe escorria pelo rosto, seu salvador que dissera Já chega. Era Anatoly.

Os dois soldados deixaram Jean-Pierre deslizar para o chão, lentamente. Ele tinha a sensação de que o corpo estava em fogo. Cada movimento era uma agonia. Cada osso parecia quebrado, os colhões esmagados, o rosto completamente inchado. Abriu a boca e o sangue escorreu. Engoliu e depois balbuciou, pelos lábios arrebentados:

- Por que... por que fizeram isso?

- Você sabe por quê - respondeu Anatoly. Jean-Pierre sacudiu a cabeça de um lado para outro, devagar, e tentou evitar o mergulho para a loucura total.

- Arrisquei minha vida por vocês... dei tudo... por quê?

- Preparou-nos uma armadilha - explicou Anatoly. - E oitenta e um homens morreram hoje por sua causa.

O ataque deve ter fracassado, pensou Jean-Pierre, e estão me culpando por isso.

- Não... eu não...

- Você esperava estar a muitos quilômetros de distância quando a armadilha fosse consumada - continuou Anatoly. - Mas eu o surpreendi, obrigando-o a entrar no helicóptero e me acompanhar. E agora está aqui para receber sua punição... que será bastante dolorosa e muito prolongada.

Ele virou-se para sair.

- Não! - balbuciou Jean-Pierre. - Espere!

Anatoly voltou. Jean-Pierre fazia um tremendo esforço para pensar direito, apesar da dor.

- Eu vim aqui... arrisquei a vida... dei informações sobre os comboios... vocês atacaram os comboios... os danos que causaram foram muito maiores do que a perda de oitenta homens.... não é lógico... não é lógico... - Ele recorreu a todas as suas forças para pronunciar uma frase coerente. - Se eu tivesse conhecimento de alguma armadilha, poderia ter avisado ontem e suplicado sua compaixão.

- Então como eles souberam que atacaríamos a aldeia? - indagou Anatoly.

- Devem ter adivinhado...

- Como?

Jean-Pierre vasculhou o cérebro atordoado.

- Skabun foi bombardeada?

- Acho que não.

Então foi isso, compreendeu Jean-Pierre; alguém descobrira que não houvera bombardeio em Skabun.

- Deveriam ter bombardeado - murmurou ele. Anatoly assumiu uma expressão pensativa.

- Alguém por lá é muito bom em estabelecer ligações.

Foi Jane, pensou Jean-Pierre, odiando-a por um segundo. Anatoly acrescentou:

- Ellis Thaler possui alguma característica distintiva? Jean-Pierre sentia que estava prestes a desmaiar, mas tinha medo de que tornassem a espancá-lo.

- Tem sim - murmurou ele desesperado. - Uma cicatriz grande nas costas, no formato de uma cruz.

- Então é ele! - disse Anatoly, num quase sussurro.

- Quem?

- John Michael Raleigh, trinta e quatro anos, nascido em Nova Jersey, filho mais velho de um empreiteiro. Deixou a Universidade da Califórnia em Berkeley e tornou-se capitão dos fuzileiros americanos. É agente da CIA desde 1972. Estado civil: divorciado uma vez, com uma filha, o paradeiro da família é um segredo muito bem guardado.

- Acenou com a mão, como a descartar esses detalhes. - Não resta a menor dúvida de que foi ele quem nos preparou a armadilha em Darg hoje. É brilhante e muito perigoso.

Se eu pudesse escolher entre todos os agentes das nações imperialistas ocidentais, preferiria capturá-lo. Nos últimos dez anos ele nos causou danos irreparáveis em pelo menos três ocasiões. No ano passado, em Paris, destruiu uma rede que exigira sete ou oito anos de trabalho paciente para ser desenvolvida. E um ano antes descobriu um agente que infiltráramos no Serviço Secreto americano em 1965... um homem que poderia um dia assassinar um Presidente dos Estados Unidos. E agora... agora ele está aqui.

Jean-Pierre, ajoelhado no chão, os braços enlaçando o corpo todo doído, deixou a cabeça pender para a frente e fechou os olhos, em desespero: estivera muito além de sua capacidade, enfrentando alegremente os grandes mestres daquele jogo brutal, uma criança desprotegida na cova dos leões.

E acalentara as maiores esperanças. Trabalhando sozinho, desfecharia um golpe de que a Resistência afegã nunca mais se recuperaria. Mudaria o curso da história naquela parte do mundo. E se vingaria dos presunçosos líderes do Ocidente, enganaria e assustaria o sistema que traíra e matara seu pai. Em vez de conquistar o triunfo, no entanto, fora derrotado. Tudo lhe fora arrebatado no último momento... por Ellis. Ouviu a voz de Anatoly, como um murmúrio ao fundo:

- Podemos ter certeza de que ele conseguiu o que queria com os rebeldes. Não conhecemos os detalhes, mas as linhas gerais são suficientes: um pacto de união entre os líderes dos bandidos, em troca de armas americanas. Esse tipo de coisa pode manter a rebelião por muitos anos mais. Temos de impedir, antes que comece.

Jean-Pierre abriu os olhos e levantou a cabeça.

- Como?

- Temos de capturar esse homem antes que ele possa voltar aos Estados Unidos. Dessa maneira ninguém saberá que ele consumou o tratado, os rebeldes não receberão as armas, e todo o plano fracassará.

Jean-Pierre escutava fascinado, apesar da dor. Seria possível que ainda houvesse uma chance de desferir sua vingança?

- A captura desse homem quase compensaria a perda de Masud - continuou Anatoly, fazendo o coração de Jean-Pierre bater mais depressa, com nova esperança. - Não liquidaríamos apenas o agente mais perigoso do Ocidente. Pense um pouco: um genuíno homem da CIA capturado aqui no Afeganistão... Há três anos que a máquina de propaganda americana

vem dizendo que os bandidos afegãos são guerrilheiros pela liberdade, travando uma heróica luta de Davi-e-Golias contra o poderio da União Soviética. E agora temos a prova do que dizíamos desde o início... que Masud e os outros não passam de lacaios do imperialismo americano. Podemos levar Ellis a julgamento...

- Mas os jornais ocidentais negariam tudo - interveio JeanPierre. - A imprensa capitalista...

- Queníestá preocupado com o Ocidente? São os países não alinhados, os hesitantes do Terceiro Mundo, as nações muçulmanas em particular que queremos impressionar.

Era mesmo possível, concluiu Jean-Pierre, transformar a situação em triunfo; e ainda seria um triunfo pessoal, porque fora ele quem alertara os russos para a presença de um agente da CIA no Vale dos Cinco Leões.

- Onde se pode encontrar Ellis esta noite? - perguntou Anatoly.

- Ele está com Masud - respondeu Jean-Pierre.

Era mais fácil falar em capturar Ellis do que fazê-lo: Jean-Pierre levara um ano inteiro para conseguir estabelecer previamente o paradeiro de Masud.

- Não há motivo para que Ellis continue a acompanhar Masud - comentou Anatoly. - Ele tinha uma base?

- Tinha... estava hospedado na casa de uma família em Banda, teoricamente. Mas raramente podia ser encontrado ali.

- Mesmo assim, é o lugar óbvio para se iniciar a busca.

Tem toda razão, pensou Jean-Pierre. Se Ellis não está em Banda, alguém pode saber onde se encontra... Alguém como Jane. Se Anatoly for a Banda à procura de Ellis, pode também encontrar Jane. A dor de Jean-Pierre parecia se atenuar à medida que ele compreendia que podia se vingar do sistema, capturar Ellis, o homem que o privara de seu triunfo, e ainda recuperar Jane e Chantal.

- Irei com você a Banda? - perguntou ele. Anatoly pensou por um momento.

- Acho que sim. Conhece a aldeia e seus habitantes... pode ser útil tê-lo ali.

Jean-Pierre fez um esforço enorme para se levantar, rangendo os dentes contra a agonia na virilha.

- Quando partimos?

- Agora - respondeu Anatoly.

 

Ellis se apressava para pegar um trem e entrou em pânico, mesmo sabendo que estava sonhando. Primeiro, não conseguiu estacionar o carro - estava guiando o Honda de Gill - depois não foi capaz de encontrar o guichê de venda de passagens. Resolvendo embarcar no trem sem passagem, descobriu-se abrindo caminho por uma multidão compacta no vasto saguão da Grand Central Station. A esta altura, lembrou-se de que já tivera esse sonho antes, várias vezes, até recentemente; e nunca pegava o trem. O sonho sempre o deixava com uma sensação insuportável de que toda felicidade passara por ele, em caráter permanente. Ficou agora apavorado com a perspectiva de a mesma coisa tornar a acontecer. Empurrou as pessoas na multidão com crescente violência e finalmente alcançou o portão. Fora ali que parará, nas vezes anteriores, observando o último vagão do trem desaparecer na distância. Hoje, no entanto, o trem ainda estava na estação. Correu pela plataforma e embarcou, no exato instante em que o trem começava a andar.

Ficou tão satisfeito por pegar o trem que se sentiu quase inebriado. Foi ocupar seu lugar e não lhe pareceu absolutamente estranho que fosse num saco de dormir, junto com Jane. Além das janelas do trem o dia estava raiando sobre o Vale dos Cinco Leões.

Não houve uma divisão brusca entre o sono e a vigília. O trem foi se desvanecendo aos poucos, até que só restaram o saco de dormir, o vale, Jane e a sensação de prazer. Em algum momento, durante a curta noite, eles haviam fechado o saco e agora estavam quase colados, mal podendo se mexer. Ele podia sentir a respiração quente de Jane em seu pescoço, os seios intumescidos espremidos contra suas costelas. Os ossos de Jane o espetavam, o quadril e o joelho, o cotovelo e o pé, mas ele gostava. Lembrou que sempre dormiam colados. Quando menos não fosse

porque a cama antiga no apartamento de Jane em Paris era pequena demais para que ficassem de outra maneira. Sua própria cama era bem maior, mas mesmo assim dormiam nela colados. Jane sempre alegara que ele a incomodava durante a noite, mas Ellis nunca se lembrava pela manhã.

Fazia muito tempo que ele não dormia a noite inteira com uma mulher. Tentou recordar quem fora a última e descobriu que fora Jane: as mulheres que levava para o seu apartamento em Washington nunca ficavam para o café da manhã.

Jane fora a última e a única pessoa com quem fizera um sexo tão desinibido. Repassou mentalmente as coisas que haviam feito na noite anterior e começou a ter uma ereção. Parecia não haver limite para o número de vezes em que podia ficar duro com ela. Houvera ocasiões em Paris em que passavam o dia inteiro na cama, levantando apenas para buscar comida na geladeira ou abrir uma garrafa de vinho. Ele gozava cinco ou seis vezes, e Jane perdia a conta de seus orgasmos. Nunca se julgara um atleta sexual, e a experiência subsequente comprovara que não era, a não ser com ela. Jane libertava alguma coisa que ficava aprisionada quando estava com outras mulheres, por medo, culpa ou outro fator. Nenhuma outra jamais lhe fizera aquilo, embora uma mulher chegasse perto: uma vietnamita com quem tivera uma ligação breve e trágica em 1970.

Era evidente agora que ele jamais deixara de amar Jane. Durante o último ano realizara o seu trabalho, saíra com mulheres, visitara Petal e fora ao supermercado como um ator representando um papel, pretendendo, pelo bem da verossimilhança, que aquele era o seu verdadeiro eu, mas sabendo no fundo do coração que não era verdade.

Teria lamentado eternamente a perda de Jane se não tivesse vindo ao Afeganistão.

Parecia-lhe que muitas vezes estivera cego aos fatos mais importantes a seu respeito. Não compreendera, em 1968, que queria lutar por seu país; não compreendera que não queria casar com Gill; no Vietnam, não compreendera que era contra a guerra. Cada uma dessas revelações o surpreendera e mudara sua vida. Ele achava que a auto-ilusão não era necessariamente uma coisa ruim: não poderia sobreviver à guerra sem isso, e o que faria se nunca viesse ao Afeganistão, além de dizer a si mesmo que não queria Jane?

Será que a tenho agora?, especulou ele. Jane não dissera muito, exceto Eu amo você, meu querido, durma bem, no instante em que ele adormecia. Ellis refletiu que haviam sido as palavras mais maravilhosas que já ouvira.

- De que está sorrindo? Ele abriu os olhos e fitou-a.

- Pensei que ainda estivesse dormindo.

- Estava observando você. Parecia muito feliz.

- E era como eu me sentia.

Ellis respirou fundo o ar fresco da manhã e soergueu-se, apoiado num cotovelo, para contemplar o vale. Os campos estavam quase sem cor à claridade do amanhecer, e o céu era de um cinza-pérola. Ele já ia dizer a Jane o que o deixava tão feliz quando ouviu um zumbido. Inclinou a cabeça para escutar melhor.

- O que é? - perguntou Jane.

Ellis encostou um dedo nos lábios dela. E um momento depois Jane também ouviu. Em poucos segundos o barulho aumentou, até se tornar o som inconfundível de helicópteros se aproximando. Ellis teve o pressentimento de desastre iminente.

- Mas que merda! - exclamou ele.

O aparelho surgiu sobre suas cabeças, saindo de trás da montanha. Logo todos estavam à vista, três Hinds com seus armamentos e um enorme Hip transportando soldados.

- Ponha a cabeça dentro! - Ellis disse asperamente a Jane. O saco de dormir era pardo, mais ou menos da cor do terreno em torno: se ficassem por baixo, poderiam se tornar invisíveis para quem estivesse lá em cima. Os guerrilheiros usavam a mesma técnica para se esconder de helicópteros e aviões: cobriam-se com as mantas cor de lama, chamadas pattus, que todos carregavam.

Jane enfiou-se no saco de dormir. Havia uma aba na extremidade aberta para conter um travesseiro, embora não houvesse nenhum no momento. Se puxassem essa aba, cobririam suas cabeças. Ellis comprimiu-se contra Jane e virou-se, puxando a aba. Estavam agora praticamente invisíveis.

Ficaram deitados de barriga para baixo, Ellis parcialmente por cima de Jane, olhando para a aldeia. Os helicópteros pareciam estar descendo. Jane disse:

- Eles vão pousar aqui! Ellis respondeu bem devagar:

- Acho que vão...

Jane começou a se levantar.

- Tenho de descer...

- Não! - Ellis segurou-a pelos ombros, usando o seu peso para obrigá-la a continuar deitada. - Espere... espere mais alguns segundos para vermos o que acontece...

- Mas Chantal...

- Espere!

Ela desistiu da luta, mas Ellis continuou a segurá-la firmemente. Pessoas sonolentas sentavam-se nos telhados das casas, esfregando os olhos e contemplando aturdidas os enormes aparelhos, aproximando-se como gigantescos pássaros. Ellis localizou a casa de Jane. Divisou Fará, de pé, enrolando-se com um lençol. Ao seu lado estava o colchão pequeno em que ficava Chantal, oculta pelas cobertas.

Os helicópteros deram uma volta, cautelosos. Eles tencionam pousar aqui, pensou Ellis, mas estão receosos, depois da emboscada em Darg.

Os aldeões estavam atordoados. Alguns saíam correndo de suas casas, enquanto outros corriam para elas. Crianças e animais eram reunidos e levados para o interior das casas. Várias pessoas tentaram fugir, mas um dos Hinds voou baixo sobre as trilhas que saíam da aldeia e obrigou-as a voltar.

A cena convenceu o comandante russo de que não havia emboscada ali. O Hip que transportava os soldados e um dos três Hinds efetuaram uma descida desgraciosa e pousaram num campo. Segundos depois os soldados emergiram do Hip, saltando de sua enorme barriga como insetos.

- Não dá mais! - gritou Jane. - Tenho de descer agora!

- Ela não corre perigo. O que quer que os russos queiram, não estão atrás de crianças. Mas podem estar procurando por você.

- Preciso ficar com ela...

- Pare com o pânico! - gritou Ellis. - Se você estiver lá embaixo é que ela correrá perigo. Se você continuar aqui, sua filha estará segura. Será que não entende?

Correr para ela é a pior coisa que você poderia fazer neste momento.

- Ellis, não posso...

- Mas tem

- Oh, Deus! - Jane fechou os olhos. - Aperte-me com força.

Ele segurou-a com força pelos ombros.

Os soldados cercaram a pequena aldeia. Somente uma casa ficou fora de sua rede, a do mula, a quatrocentos ou quinhentos metros das outras, na trilha que subia pela encosta da montanha. Enquanto Ellis olhava, um homem saiu correndo da casa. Estava bastante perto para que Ellis pudesse ver a barba pintada de vermelho: era Abdullah. Três crianças de tamanhos diferentes e uma mulher carregando um bebê também deixaram a casa e subiram correndo em seu encalço.

Os russos viram-no quase que no mesmo instante. Ellis e Jane puxaram o saco de dormir ainda mais por cima de suas cabeças, enquanto um helicóptero no ar se afastava da aldeia e sobrevoava a trilha. Houve uma rajada de metralhadora e a poeira se levantou numa linha pontilhada aos pés de Abdullah. Ele estacou abruptamente, tropeçou, parecendo quase cômico, depois virou-se e correu de volta, acenando com as mãos e gritando para que a família voltasse. Ao se aproximarem da casa, outra rajada de advertência da metralhadora impediu que entrassem; depois de um momento, toda a família desceu para a aldeia.

Podiam-se ouvir tiros intermitentes em meio ao barulho dos rotores, mas os soldados pareciam estar atirando para o ar, a fim de intimidar os aldeões. Entravam nas casas e tiravam os moradores, em trajes de dormir e roupas de baixo. O Hind que cercara o mula e sua família começou agora a dar voltas pela aldeia, como se procurasse por mais extraviados.

- O que eles vão fazer? - perguntou Jane, a voz trêmula.

- Não sei.

- É uma... represália?

- Deus nos livre.

- O que é então?

Ellis sentiu vontade de dizer Porra, como posso saber?, mas limitou-se a murmurar:

- Eles podem estar fazendo outra tentativa de capturar Masud.

- Mas ele nunca fica nas proximidades do local de uma batalha.

- Os russos podem estar pensando que ele se tornou descuidado ou indolente... ou então que está ferido...

Ellis não tinha a menor idéia do que estava acontecendo, mas temia que fosse um massacre ao estilo de My-Lay.

Os aldeões eram conduzidos ao pátio da mesquita pelos soldados, que pareciam tratá-los rudemente, mas não brutalmente. De repente, Jane gritou:

- Fará!

- O que foi?

- O que ela está fazendo?

Ellis localizou o telhado da casa de Jane. Fará estava ajoelhada ao lado do pequeno colchão de Chantal, e Ellis pôde divisar uma pequena cabeça rosada. Durante a madrugada, Chantal devia ter tomado uma mamadeira, dada por Fará. Mas embora ela ainda não estivesse com fome, o barulho dos helicópteros poderia tê-la despertado.

Ellis torceu para que isso não tivesse acontecido.

Ele viu Fará ajustar uma almofada ao lado da cabeça de Chantal e depois puxar um lençol sobre o rosto da criança.

- Ela está escondendo Chantal - murmurou Jane. - A almofada suspende o lençol para deixar o ar entrar.

- É uma garota esperta.

- Eu gostaria de estar lá...

Fará amarrotou o lençol e depois estendeu outro sobre o corpo de Chantal. Ficou parada por um instante, verificando o efeito. À distância, a criança parecia exatamente uma pilha de roupa de cama abandonada às pressas. Fará aparentemente ficou satisfeita com a ilusão, pois foi até a beira do telhado e desceu os degraus para o pátio.

- Ela está deixando Chantal - balbuciou Jane.

- Sua filha está tão segura quanto seria possível nas circunstâncias...

- Eu sei, eu sei!

Fará foi empurrada para a mesquita junto com os outros. Foi uma das últimas pessoas a entrar.

- Todos os bebês estão com as mães - disse Jane. - Acho que Fará devia ter levado Chantal...

- Não devia, não. Espere um pouco e verá.

Ellis ainda não podia imaginar o que aconteceria, mas se houvesse um massacre Chantal estaria mais segura onde se encontrava agora.

Quando todos pareciam estar dentro dos muros da mesquita, os soldados recomeçaram a revistar a aldeia, disparando para o ar. Eles não tinham escassez de munição, pensou Ellis. O helicóptero que permanecera no ar voou baixo, esquadrinhou os arredores da aldeia, em círculos sempre crescentes, como se procurando alguma coisa.

Um dos soldados entrou no pátio da casa de Jane. Ellis sentiu que ela ficava rígida e murmurou em seu ouvido:

- Tudo vai acabar bem.

O soldado desapareceu no interior da casa. Ellis e Jane ficaram olhando fixamente para a porta.

O soldado saiu poucos segundos depois e subiu correndo a escada externa.

- Deus a guarde - sussurrou Jane.

Ele parou no telhado, olhou para a pilha de roupa de cama, observou os telhados próximos, tornou a concentrar sua atenção no de Jane. O colchão de Fará estava perto do soldado, o de Chantal logo depois. Ele cutucou o colchão de Fará com a ponta da bota.

Subitamente, virou-se e desceu a escada depressa. Ellis voltou a respirar e olhou para Jane. Ela estava muito pálida.

- Eu disse que tudo acabaria bem - murmurou ele. Jane começou a tremer. Ellis tornou a olhar para a mesquita.

Podia ver apenas uma parte do pátio. Os aldeões pareciam sentados em fileiras, mas havia algum movimento de um lado para outro. Tentou adivinhar o que estava acontecendo.

Os russos interrogavam os aldeões sobre Masud e seu paradeiro? Havia apenas três pessoas lá embaixo que podiam saber, três guerrilheiros que eram de Banda e que não haviam partido com Masud no dia anterior: Shahazai Gul, o homem da cicatriz; Alishan Karim, o irmão de Abdullah, o mula; e Sher Kador, o garoto das cabras. Shahazai e Alishan já estavam na casa dos quarenta anos, poderiam facilmente representar o papel de velhos assustados. Sher Kador tinha apenas quatorze anos. Todos os três poderiam alegar plausivelmente que nada sabiam de Masud. Ainda bem que Mohammed não estava ali, pois não seria fácil os russos acreditarem em sua inocência. As armas dos guerrilheiros estavam bem escondidas, em lugares onde os russos não procurariam: no telhado de uma privada, entre as folhas de uma amoreira, num buraco fundo na margem do rio.

- Olhe ali! - balbuciou Jane. - O homem que está na frente da mesquita!

Ellis olhou.

- O oficial russo de quepe?

- Esse mesmo. Sei quem ele é... já o vi antes. É Anatoly, o homem que estava na cabana de pedra com Jean-Pierre.

- O contato - murmurou Ellis.

Ele observou atentamente, tentando distinguir as feições do homem; à distância, ele parecia um tanto oriental. Como seria? Arriscara-se sozinho em território rebelde para se encontrar com Jean-Pierre, o que significava que devia ser corajoso. Com toda certeza estava agora furioso por ter levado os russos a uma armadilha em Darg.

Haveria de querer atacar o mais depressa possível, a fim de recuperar a iniciativa.

As especulações de Ellis foram abruptamente interrompidas quando outro vulto emergiu da mesquita, um homem barbado, camisa branca aberta no pescoço e calça escura, ao estilo ocidental.

- Santo Deus! - exclamou Ellis. - É Jean-Pierre!

- Oh, não! - balbuciou Jane.

- Mas o que está acontecendo?

- Pensei que nunca mais tornaria a vê-lo - disse Jane.

Ellis olhou para ela. O rosto de Jane exibia uma expressão estranha. Depois de um momento, ele compreendeu que era uma expressão de remorso.

Ellis voltou a se concentrar na cena na aldeia. Jean-Pierre falava com o oficial russo, gesticulando muito, apontando para a encosta da montanha.

- Ele está com uma postura esquisita - comentou Jane. - Acho que se machucou.

- Está apontando para nós?

- Jean-Pierre não conhece este lugar... ninguém mais conhece. Ele pode nos ver?

- Não.

- Mas nós podemos vê-lo - murmurou Jane, em dúvida.

- Acontece que ele está de pé lá embaixo, enquanto nós estamos em cima, deitados, espiando de baixo de uma manta, numa encosta escura. Ele não poderia nos avistar, mesmo que soubesse onde procurar.

- Então ele deve estar apontando para as cavernas.

- Isso mesmo.

- Deve estar dizendo aos russos para procurar lá.

- Tem razão.

- Mas isso é horrível! Como ele pode... - A voz de Jane se apagou e depois de uma pausa ela acrescentou: - Mas é o que ele vem   fazendo   desde   que chegou aqui...   traindo   as   pessoas, entregando-as aos russos.

Ellis notou que Anatoly parecia estar falando por um walkietalkie. Um momento depois um dos Hinds passou ruidosamente por cima das cabeças cobertas de Jane e Ellis para pousar, audível mas fora de visão, no alto da colina.

Jean-Pierre e Anatoly começaram a se afastar da mesquita. Jean-Pierre mancava.

- Ele está mesmo machucado - confirmou Ellis.

- O que terá acontecido?

Ellis tinha a impressão de que Jean-Pierre fora espancado, mas não o disse. Especulou sobre o que se passava na mente de Jane. Lá estava seu marido, andando com um oficial do KGB - um coronel, Ellis calculava pelo uniforme.

Aqui estava ela, numa cama improvisada, com outro homem. Jane se sentia culpada? Envergonhada? Desleal? Ou não tinha qualquer arrependimento? Odiava Jean-Pierre

ou estava apenas desapontada com o marido? Estivera apaixonada por ele: ainda restaria algum amor? Ellis perguntou:

- Como se sente em relação a ele?

Jane lançou um olhar prolongado e firme para Ellis e por um momento ele chegou a pensar que ela estava enlouquecendo. Mas a reação era apenas porque ela estava levando a pergunta muito a sério. E, finalmente, ela murmurou:

- Triste,

Jane tornou a concentrar sua atenção na aldeia. Jean-Pierre e Anatoly encaminhavam-se para sua casa, onde Chantal estava escondida, no telhado. Jane disse:

- Acho que estão à minha procura.

Sua expressão era tensa e assustada, enquanto observava atentamente os dois homens lá embaixo. Ellis tinha quase certeza de que os russos não haviam vindo até ali com tantos homens e máquinas só por causa de Jane, mas se absteve do comentário.

Jean-Pierre e Anatoly atravessaram o pátio e entraram na casa. Jane sussurrou:

- Não chore, minha filha.

Era um milagre que a criança ainda estivesse dormindo, pensou Ellis. Mas talvez não estivesse: talvez estivesse acordada e chorando, mas os gritos eram abafados pelo barulho dos helicópteros. Talvez o soldado não a tivesse ouvido porque havia um helicóptero diretamente por cima dele no momento. Talvez os ouvidos mais sensíveis

do pai captassem sons que não atraíam a atenção de um estranho desinteressado. Talvez...

Os dois homens saíram da casa.

Pararam no pátio por um instante, conversando. Jean-Pierre aproximou-se claudicando da escada de madeira que levava ao telhado. Subiu no primeiro degrau com evidente dificuldade e tornou a descer. Houve outra troca de palavras e depois o russo subiu a escada.

Ellis prendeu a respiração.

Anatoly chegou ao topo da escada e pisou no telhado. Como o soldado antes, ele olhou para as roupas de cama, observou os outws telhados, e tornou a se concentrar naquele em que estava. Como o soldado, cutucou o colchão de Fará com a ponta da bota. Depois, ajoelhou-se ao lado de Chantal.

Gentilmente, puxou o lençol.

Jane soltou um grito estrangulado, enquanto o rosto rosado de Chantal aparecia.

Se estão atrás de Jane, pensou Ellis, vão levar Chantal, pois sabem que ela se entregaria para ficar junto da filha.

Anatoly ficou olhando fixamente para a menina por vários segundos.

- Oh, Deus, não posso mais suportar, não posso... - balbuciou Jane.

Ellis apertou-a firmemente, murmurando:

- Vamos esperar para ver o que acontece.

Ele se esforçou para divisar a expressão no rosto da criança, mas a distância era muito grande.

O russo parecia estar pensando.

E, abruptamente, deu a impressão de que tomara uma decisão.

Largou o lençol, ajeitou-o em torno da criança, levantou-se e afastou-se.

Jane desatou a chorar.

Do telhado, Anatoly falou a Jean-Pierre, sacudindo a cabeça em negação. E depois desceu para o pátio.

- Por que ele fez isso? - especulou Ellis , pensando em voz alta.

O movimento da cabeça indicava que Anatoly mentira para Jean-Pierre, dizendo "Não há ninguém no telhado". A dedução era de que Jean-Pierre ia querer levar a criança, mas Anatoly não. Isso significava que Jean-Pierre queria encontrar Jane, mas o russo não estava interessado nela.

Mas então no que ele estava interessado?

Era óbvio. Anatoly estava atrás de Ellis.

- Acho que estraguei tudo - murmurou Ellis, mais para si mesmo.

Jean-Pierre queria Jane e Chantal, mas Anatoly estava à sua procura. Queria se vingar da humilhação do dia anterior; queria impedir que Ellis voltasse ao Ocidente com o tratado assinado pelos comandantes rebeldes; e queria levar Ellis a julgamento, a fim de provar ao mundo que a CIA estava por trás da rebelião afegã. Eu deveria ter pensado em tudo isso ontem, refletiu Ellis amargurado, mas estava inebriado pelo sucesso e preocupado apenas com Jane. Anatoly não podia saber que eu estava aqui - poderia me encontrar em Darg,

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Astana ou num esconderijo nas montanhas com Masud - deve ter sido um tiro no escuro. Mas quase dera certo. Anatoly possuía um bom instinto. Era um oponente formidável... e a batalha ainda não terminara.

Jane estava chorando. Ellis afagou-lhe os cabelos e soltou alguns murmúrios tranqüilizadores, enquanto observava Jean-Pierre e Anatoly voltarem aos helicópteros, que ainda estavam parados no campo, as pás dos rotores girando.

O Hind que pousara no alto da colina, perto das cavernas, alçou vôo, subindo por cima das cabeças de Jane e Ellis. Ele especulou se os sete guerrilheiros feridos que estavam na clínica na caverna teriam sido interrogados e aprisionados.

Tudo acabou muito depressa. Os soldados saíram da mesquita rapidamente e embarcaram no Hip com a mesma presteza com que haviam saltado. Jean-Pierre e Anatoly entraram num dos Hinds. Os horrendos aparelhos decolaram um a um, subindo a um ponto mais alto que a colina, e depois seguiram para o sul a toda velocidade, em linha reta.

Ellis, sabendo o que estava na mente de Jane,

disse:

- Vamos esperar mais alguns segundos até que os helicópteros estejam bem longe... não estrague tudo agora.

Ela acenou com a cabeça em aquiescência, os olhos marejados de lágrimas.

Os aldeões começaram a deixar a mesquita, parecendo apavorados. O último helicóptero afastou-se para o sul. Jane saiu do saco de dormir, vestiu a calça e desceu correndo, escorregando e tropeçando, abotoando a blusa pelo caminho. Ellis observou-a ir, sentindo que de alguma forma ela o rejeitara, sabendo que o sentimento era irracional, mas mesmo assim incapaz de ignorá-lo. Decidiu que não a seguiria, pelo menos por enquanto. Era melhor deixá-la sozinha para o reencontro com Chantal.

Ela sumiu de sua vista, além da casa do mula. Ellis observou a aldeia. Começava a voltar ao normal. Ele podia ouvir vozes alteadas em excitamento. As crianças corriam de um lado para outro, fingindo que eram helicópteros, apontando armas imaginárias, reunindo as galinhas nos pátios para serem interrogadas. Quase todos os adultos voltavam para suas casas, lentamente, parecendo intimidados.

Ellis lembrou-se dos sete guerrilheiros feridos e do garoto maneta na caverna. Resolveu verificar o que lhes acontecera. Vestiu as roupas, enrolou o saco de dormir e começou a subir pela trilha.

Pensou em Allen Winderman, com seu terno cinza e gravata listrada, comendo uma salada num restaurante de Washington e indagando: "Quais são as possibilidades de os russos pegarem nosso homem?" Mínimas respondera Ellis. Se eles não conseguem capturar Masud, por que seriam capazes de apanhar um agente secreto enviado ao encontro de Masudl. Ele sabia agora a resposta: Poderiam muito bem, graças a Jean-Pierre.

- Maldito Jean-Pierre! - exclamou Ellis, em voz alta. Ele chegou à clareira. Não havia qualquer barulho na caverna que servia como clínica. Ellis torcia para que não tivessem levado o menino Mousa, além dos guerrilheiros feridos - Mohammed ficaria inconsolável.

Ele entrou na caverna. O sol já se levantara e podia ver muito bem. Estavam todos ali, deitados, imóveis, em silêncio.

- Vocês estão bem? - perguntou Ellis, em dari. Não houve resposta, ninguém se mexeu.

- Oh, Deus! - balbuciou Ellis.

Ele se ajoelhou ao lado do guerrilheiro mais próximo e tocou no rosto barbudo. O homem estava estendido numa poça de sangue. Levara um tiro na cabeça, à queima-roupa.

Movimentando-se depressa, Ellis examinou um a um.

Estavam todos mortos.

Inclusive o menino.

 

Jane correu pela aldeia num pânico cego, empurrando as pessoas para o lado, esbarrando nos muros, tropeçando, caindo, tornando a se levantar, soluçando, ofegando e gemendo o tempo todo. "Ela deve estar bem", repetia para si mesma, como uma litania. Mas ainda assim seu cérebro insistia em indagar Por que Chantal não acordou?,

O que Anatoly fez? e Minha filha estará ferida?

Entrou cambaleando no pátio da casa do negociante, subiu a escada para o telhado de dois em dois degraus. Caiu de joelhos e puxou o lençol que cobria o pequeno colchão.

Os olhos de Chantal estavam fechados. Jane pensou: Ela está respirando? Ela está respirando? Um instante depois os olhos da menina se abriram, fitou a mãe e – pela primeira vez - sorriu.

Jane pegou-a e apertou-a com força, com a sensação de que seu coração estava prestes a estourar. Chantal chorou com o aperto súbito e Jane chorou também, dominada pela alegria e alívio porque a filha ainda estava ali, viva, quente, chorando, e também porque sorrira pela primeira vez.

Jane acalmou-se depois de algum tempo, e Chantal, sentindo a mudança, também ficou quieta. Jane embalou-a, afagando suas costas ritmadamente, beijando o topo da cabeça macia e calva. Terminou se lembrando que havia outras pessoas no mundo e se perguntou o que teria acontecido com os aldeões na mesquita, se estariam bem.

Desceu para o pátio, onde se encontrou com Fará.

Jane contemplou-a por um momento, a silenciosa e nervosa Fará, tão tímida, chocando-se com tanta facilidade: onde ela encontrara a coragem e presença de espírito para esconder Chantal sob um lençol amarrotado, enquanto os russos pousavam os helicópteros e disparavam seus rifles a poucos metros de distância?

- Você salvou minha filha - murmurou Jane.

Fará parecia apavorada, como se aquilo fosse uma acusação. Jane transferiu Chantal para o quadril esquerdo e passou o braço direito por Fará, apertando.

- Você salvou minha filha! - repetiu ela. - Obrigada! Muito obrigada!

Fará ficou radiante de prazer por um instante, e depois desatou a chorar. Jane acalmou-a, afagando suas costas, como fizera com Chantal. Assim que Fará ficou quieta, Jane indagou:

- O que aconteceu na mesquita? O que eles fizeram? Alguém foi ferido?

- Sim - respondeu Fará, atordoada.

Jane sorriu: não se podia apresentar a Fará três perguntas consecutivas e esperar uma resposta coerente.

- O que aconteceu quando vocês entraram na mesquita?

- Eles perguntaram pelo americano.

- A quem eles perguntaram?

- A todos. Mas ninguém sabia. O doutor me perguntou onde estavam você e a criança, eu respondi que não sabia. Eles pegaram então três homens: meu tio Shahazai, o mula e Alishan Karim, o irmão do mula. Perguntaram de novo a eles, mas não adiantava, porque os homens não sabiam para onde fora o americano. E por isso bateram neles.

- Eles estão muito machucados?

- Apenas levaram uma surra.

- Cuidarei deles. - Jane recordou, preocupada, que Alishan tinha um problema cardíaco. - Onde eles estão agora?

- Ainda na mesquita.

- Venha comigo.

Jane entrou na casa e Fará seguiu-a. A bolsa de enfermagem estava na sala da frente, em cima do balcão. Jane acrescentou algumas pílulas de nitroglicerina aos medicamentos regulares e tornou a sair. Enquanto se encaminhava para a mesquita, ainda segurando Chantal tensamente, ela disse a Fará:

- O que mais aconteceu?

- O doutor me perguntou onde você estava. Eu disse que não sabia. Era verdade.

- Eles machucaram você?

- Não. O doutor parecia muito zangado, mas eles não me bateram.

Jane se perguntou se Jean-Pierre ficara zangado por ter adivinhado que ela passara a noite com Ellis. Ocorreu-lhe que toda a aldeia devia estar pensando a mesma coisa. Especulou como reagiriam. Podia ser a prova final de que ela era a Prostituta da Babilônia.

Mesmo assim não a escorraçariam, pelo menos enquanto houvesse pessoas feridas para cuidar. Ela chegou à mesquita e entrou no pátio. A mulher de Abdullah viu-a, aproximou-se com um ar de importante e levou-a para o lugar em que o marido estava deitado. À primeira vista ele parecia bem, e Jane estava mais preocupada com o coração de Alishan.

Por isso deixou o mula - ignorando os protestos indignados de sua esposa - e foi examinar Alishan, que estava deitado próximo.

Ele estava muito pálido, respirava com dificuldade, uma das mãos comprimia o peito: como Jane receara, a surra provocara um ataque de angina. Ela deu-lhe um tablete, recomendando:

- Mastigue bem, não engula inteiro.

Entregou Chantal a Fará e concluiu um exame rápido de Alishan. Ele estava bastante machucado, mas não havia ossos fraturados.

- Como foi que espancaram você?

- com os rifles - respondeu ele, a voz rouca.

Jane balançou a cabeça. Ele tinha sorte: o único dano real fora a tensão, tão perigosa para o seu coração, mas Alishan já se recuperava desse problema. Ela passou iodo nos cortes e dissê-lhe que continuasse deitado ali por mais uma hora.

Voltou então a Abdullah. Ao vê-la se aproximar, no entanto, o mula acenou para que se afastasse, soltando um rugido irado. Jane sabia o que o enfurecera: ele se julgava com direito a tratamento prioritário e se sentira insultado por ela ter cuidado primeiro de Alishan. Mas ela não pediria desculpas. Já lhe dissera antes que tratava das pessoas na ordem de urgência, e não de posição. Ela virou-se Não adiantava insistir em examinar o velho idiota. E se ele estava bastante bem para gritar com ela, também haveria de sobreviver.

Ela passou para Shahazai, o velho guerreiro coberto de cicatrizes. Ele já fora examinado por sua irmã Rabia, a parteira, que estava lavando os cortes. Os unguentos de ervas de Rabia não eram tão anti-sépticos quanto deveriam, mas Jane calculou que provavelmen te fariam mais bem do que mal.

Assim, contentou-se em fazê-lo mexer os dedos das mãos e dos pés. Ele estava bem.

Tivemos sorte, pensou Jane. Os russos vieram, mas escapamos sem ferimentos mais graves. Graças a Deus. Talvez agora possamos esperar que nos deixem em paz por algum tempo... talvez até que a rota para o Passo Khyber seja reaberta...

- O doutor é um russo? - perguntou Rabia, abruptamente.

- Não. - Pela primeira vez, Jane se perguntou o que teria passado pela mente de Jean-Pierre. Se ele tivesse me encontrado, o que me diria? - Não, Rabia, ele não é um russo. Mas parece ter passado para o lado deles.

- Então é um traidor.

- Acho que sim.

Jane se perguntou agora o que estaria passando pela cabeça da velha Rabia.

- Uma cristã pode se divorciar do marido por ser um traidor? Na Europa, pensou Jane, ela pode se divorciar por muito menos.

- Pode.

- Então é por isso que você está agora casada com o americano?

Jane compreendeu como Rabia estava pensando. Passar a noite na encosta da montanha com Ellis confirmara a acusação de Abdullah de que ela era uma prostituta ocidental.

Rabia, que há muito era a mais destacada defensora de Jane na aldeia, estava planejando contestar a acusação com uma interpretação alternativa, segundo a qual ela se divorciara do traidor, nos termos de estranhas leis cristãs que os Verdadeiros Crentes desconheciam, casando logo em seguida com Ellis. Que assim seja, pensou Jane, respondendo:

- É sim... é por isso que me casei com o americano. Rabia acenou com a cabeça, satisfeita.

Jane quase sentiu que havia um fundo de verdade no epíteto do mula. Afinal, ela passara da cama de um homem para a de outro com uma rapidez indecente. Sentiu-se um pouco envergonhada, mas logo se recuperou: jamais permitira que seu comportamento fosse determinado pelas expectativas de outras pessoas. Que eles pensem o que quiserem, disse a si mesma.

Não se considerava casada com Ellis. Perguntou a si mesma: Eu me sinto divorciada de Jean-Pierre? A resposta era Não. Contudo, sentia que suas obrigações para com ele haviam acabado. Depois do que Jean-Pierre fez, pensou, não lhe devo mais coisa alguma. Deveria ser um alívio, mas na verdade sentia-se triste.

Seus devaneios foram interrompidos. Houve uma comoção à entrada da mesquita, e Jane virou-se para deparar com Ellis, que entrava carregando alguma coisa nos braços.

Quando ele chegou mais perto, Jane constatou que seu rosto era uma máscara de raiva. Num relance, ela se lembrou que já o vira assim antes: quando um motorista de táxi negligente fizera uma súbita curva em U e derrubara um rapaz de motocicleta, ferindo-o gravemente. Ellis e Jane testemunharam o acidente e chamaram a ambulância - ela não tinha qualquer conhecimento de medicina naquele tempo. Ellis repetira muitas vezes: "Foi tão desnecessário, tão desnecessário..."

Ela reconheceu o que Ellis tinha nos braços: era um menino... e a julgar pela expressão dele, o menino estava morto. Sua primeira e vergonhosa reação foi pensar:

Graças a Deus que não é minha filha. Olhando mais atentamente, descobriu que era a única criança na aldeia que às vezes parecia sua: o maneta Mousa, o menino cuja vida ela salvara. Experimentou o terrível sentimento de desapontamento e perda que ocorria quando um paciente morria depois que ela e Jean-Pierre lutavam por muito tempo e com todo o empenho para salvar sua vida. Mas aquela morte era especialmente angustiante, pois Mousa se mostrara corajoso e determinado ao enfrentar sua desvantagem física; e o pai tinha o maior orgulho dele. Por que ele?, pensou Jane, as lágrimas aflorando-lhe aos olhos. Por que ele?

Os aldeões se agruparam em torno de Ellis, mas ele olhou para Jane.

- Estão todos mortos - informou ele, em dari, a fim de que os outros pudessem entender.

Algumas mulheres começaram a chorar, enquanto Jane indagava:

- Como?

- Foram fuzilados pelos russos, um a um.

- Oh, Deus!

Na noite anterior ela dissera Nenhum deles morrerá... dos ferimentos, ela queria dizer, prevendo que haveriam de melhorar, mais depressa ou mais devagar, recuperando a plena saúde e força, sob os seus cuidados. E agora... estavam todos mortos.

- Mas por que eles mataram o menino? - gritou ela.

- Acho que ele os provocou. Jane franziu o rosto, aturdida.

Ellis mudou o corpo de posição, mostrando a mão de Mousa.

Os dedos seguravam rigidamente o cabo da faca que o pai lhe dera. Havia sangue na lâmina.

Um gemido profundo soou de repente, e Halima abriu caminho pela multidão. Pegou o corpo do filho dos braços de Ellis e arriou no chão, o menino morto nos braços, gritando seu nome. As mulheres se agruparam ao seu redor. Jane afastou-se.

Fazendo sinal a Fará para segui-la com Chantal, ela deixou a mesquita e voltou para casa, andando devagar. Poucos minutos antes ela pensara que a aldeia tivera sorte em escapar praticamente incólume. Agora, sabia que havia sete homens e um menino mortos. Não restavam lágrimas a Jane, pois já chorara demais; sentia-se apenas fraca com a angústia. Entrou na casa e sentou-se para amamentar Chantal.

- Como você tem sido paciente, minha querida - murmurou ela, enquanto ajeitava a filha no seio.

Ellis entrou um ou dois minutos depois. Inclinou-se e beijou-a. Fitou-a em silêncio por um momento e depois murmurou:

- Você parece zangada comigo. Jane compreendeu que estava mesmo.

- Os homens são sanguinários - disse ela, amargurada. - É evidente que aquele menino tentou atacar soldados russos armados com sua faca de caça... quem lhe ensinou a ser tão temerário? Quem lhe disse que sua função na vida era matar russos? Quando ele avançou para o homem com o Kalashnikov, quem era o seu modelo? Não a mãe, mas sim o pai. Foi por culpa de Mohammed que ele morreu... de Mohammed e sua.

Ellis ficou atônito.

- Por que minha?

Jane sabia que estava sendo muito dura, mas não podia se conter.

- Eles espancaram Abdullah, Alishan e Shahazai, numa tentativa de obrigá-los a revelar onde você estava. Queriam você. Era esse o objetivo da incursão.

- Sei disso. Mas por que é culpa minha que tenham atirado no menino?

- Aconteceu porque você está aqui, um lugar a que não pertence.

- É possível. Seja como for, tenho a solução para esse problema. Estou indo embora. Minha presença acarreta violência e morte, como você se apressou em ressaltar.

Se eu ficar, não só posso ser apanhado... tivemos muita sorte hoje... como também o meu frágil plano para unir as tribos contra o inimigo comum fracassará. Na verdade, é pior do que isso. Os russos me submeteriam a um julgamento público para tirar o máximo efeito de propaganda. Vejam como a CIA tenta explorar os problemas internos de um país do Terceiro Mundo. Esse tipo de coisa.

- Você é mesmo muito importante, hem? - Parecia estranho que os acontecimentos ali no Vale, entre aquele pequeno grupo de pessoas, pudessem ter tão grandes consequências globais. - Mas não pode ir embora. A rota para o Passo Khyber está bloqueada.

- Há outro caminho: a Trilha da Manteiga.

- Oh, Ellis, é muito árdua... e perigosa. - Jane pensou na escalada dos desfiladeiros muito altos, sob ventos intensos. Ele poderia se perder e congelar até a morte na neve ou ser assaltado e assassinado pelos bárbaros nuristanis. - Por favor, não faça isso.

- Pode estar certa de que eu aceitaria qualquer outra opção, se a tivesse.

Ela o perderia outra vez, ficaria sozinha. A perspectiva deixou-a desesperada. O que era surpreendente. Só passara uma noite com ele. O que esperava? Não sabia direito.

Certamente mais do que aquela separação abrupta.

- Não pensei que tornaria a perdê-lo tão cedo.

Jane passou Chantal para o outro seio. Ele ajoelhou-se à sua frente, pegou-lhe a mão.

- Você ainda não pensou bem na situação, Jane. Não lhe passou pela cabeça que Jean-Pierre a quer de volta?

Jane refletiu por um momento. Ellis tinha razão. Jean-Pierre estaria agora se sentindo humilhado e fragilizado, seus ferimentos só curariam se a tivesse de volta, em sua cama, sob seu poder.

- Mas o que ele faria comigo?

- Vai querer que você e Chantal vivam o resto de suas vidas em alguma cidadezinha mineira da Sibéria, enquanto ele espiona na Europa e as visita a cada dois ou três anos, para umas férias entre suas missões.

- O que ele poderia fazer se eu recusasse?

- Poderia obrigá-la. Ou poderia matá-la.

Jane lembrou de Jean-Pierre a esmurrá-la. E sentiu-se um pouco nauseada.

- Os russos o ajudarão a me encontrar?

- Claro.

- Mas por quê? Qual o motivo para se importarem comigo?

- Primeiro, porque devem isso a Jean-Pierre. Segundo, por que acham que você o manterá feliz.

Terceiro, porque você sabe demais. Conhece Jean-Pierre muito bem e já viu Anatoly: pode fornecer boas descrições dos dois para o computador da CIA, se conseguir voltar à Europa.

O que significava que haveria mais mortes, pensou Jane; os russos atacariam as aldeias, interrogariam pessoas, espancariam e torturariam, a fim de descobrir onde ela estava.

- Aquele oficial russo... Anatoly é seu nome. Ele viu Chantal. - Jane apertou a filha com mais força, ao recordar aqueles terríveis segundos. - Pensei que ia pegá-la.

Não entendi sua atitude. Se ele a tivesse levado, eu teria me entregado só para ficar junto de minha filha.

Ellis balançou a cabeça.

- Isso também me espantou na ocasião. Mas sou mais importante para eles do que você. Tenho a impressão de que ele chegou à conclusão de que pode querer eventualmente capturá-la, mas enquanto isso tem outro uso para você.

- Que outro uso? O que podem querer que eu faça? - Retardar-me.

- Obrigando-o a ficar aqui?

- Não. Indo comigo.

Assim que Ellis acabou de falar, Jane compreendeu que ele estava certo. Um sentimento de perdição a envolveu, como uma mortalha. Tinha de ir também, levando sua filha; não havia alternativa. Se morrermos, então morreremos, pensou ela, fatalista. Que assim seja.

- Creio que tenho uma chance maior de escapar daqui com você do que escapar da Sibéria sozinha - murmurou ela.

Ellis assentiu.

- É justamente o que eu estava querendo dizer.

- Vou começar a arrumar as coisas. - Não havia tempo a perder. - É melhor sairmos daqui amanhã de manhã, bem cedo.

Ellis sacudiu a cabeça.

- Quero sair daqui dentro de uma hora.

Jane entrou em pânico. Vinha planejando partir, mas não tão de repente; agora, sentia que não havia tempo para pensar. Desatou a correr pela pequena casa, jogando roupas, alimentos e suprimentos médicos, de maneira indiscriminada, em diversas bolsas, apavorada com a possibilidade de esquecer alguma coisa essencial, mas agitada demais para pensar direito.

Ellis percebeu o seu ânimo e deteve-a. Segurou-a pelos ombros, beijou sua testa e disse calmamente:

- Quero que me responda uma coisa. Por acaso sabe qual é a montanha mais alta da Grã-Bretanha?

Jane se perguntou se ele não teria enlouquecido, mas respondeu assim mesmo:

- O Ben Nevis. Fica na Escócia.

- Qual é a sua altura?

- Mais de mil e duzentos metros.

- Alguns dos desfiladeiros que vamos escalar têm cerca de cinco mil metros... ou seja, quatro vezes mais que a mais alta montanha da Grã-Bretanha. Embora a distância seja de apenas duzentos e cinqüenta quilômetros, levaremos pelo menos duas semanas. Portanto, pare, pense, planeje. Se levar mais de uma hora para arrumar as coisas, é uma pena... é melhor partir de qualquer maneira, mesmo sem os antibióticos.

Jane balançou a cabeça, respirou fundo e recomeçou.

Tinha dois alforjes que podiam servir como mochilas. Pôs roupas em um: fraldas de Chantal, uma muda de roupas de baixo para todos, o casaco acolchoado que Ellis comprara em Nova York, a capa de chuva forrada com pêlo e capuz que ela trouxera de Paris. Usou o outro alforje para guardar alimentos e suprimentos médicos. Não havia nenhum pacote de bolinhos, mas Jane descobrira um substituto local, um bolo feito de nozes e amoras secas, quase indigesto, mas que oferecia uma energia concentrada.

Também dispunham de muito arroz e um pedaço de queijo duro. A única lembrança que Jane levou foi a sua coleção de fotografias Polaroid dos aldeões. Também separaram os sacos de dormir, uma panela e a mochila militar de Ellis, que continha alguns explosivos e equipamento de detonação - a única arma. Ellis prendeu toda a bagagem em Maggie, a égua unidirecional.

A partida apressada foi chorosa. Jane foi abraçada por Zahara, a velha Rabia, a parteira, e até mesmo Halima, a mulher de Mohammed. A nota desagradável veio de Abdullah, que passou pouco antes de eles partirem e cuspiu no chão, tangendo a família para longe; mas poucos minutos depois sua esposa voltou, parecendo assustada, mas determinada, e colocou na mão de Jane um presente para Chantal: uma boneca de trapo primitiva, com xale e véu em miniatura.

Jane abraçou e beijou Fará, que estava inconsolável. A garota estava com treze anos, e muito em breve teria um marido para adorar.

Casaria dentro de um ou dois anos e iria morar na casa dos pais do marido. Teria oito ou dez filhos, dos quais talvez apenas a metade sobreviveria além dos cinco anos. As filhas casariam e sairiam de casa. Os filhos que não morressem na guerra casariam e trariam suas esposas para a casa. Algum dia, quando a família se tornasse muito grande, os filhos, noras e netos começariam a sair, a fim de iniciar suas próprias famílias ampliadas. Fará se tornaria então uma parteira, como a avó, Rabia. Espero que ela se lembre de algumas das lições que lhe ensinei, pensou Jane.

Ellis foi abraçado por Alishan e Shahazai, e depois partiram aos gritos de "Deus os acompanhe!" As crianças da aldeia seguiram junto com eles até a curva do rio.

Jane parou ali por um momento e olhou para trás, contemplando o pequeno amontoado de casas pardas que fora o seu lar durante um ano. Sabia que nunca mais retornaria, mas tinha o pressentimento de que, se sobrevivesse, contaria histórias de Banda a seus netos.

Foram avançando rapidamente pela margem do rio. Jane descobriu-se a aguçar os ouvidos, esperando a qualquer instante ouvir o barulho de helicópteros. Quando os russos começariam a procurá-los? Mandariam alguns helicópteros para vasculhar a região mais ou menos ao acaso ou levariam tempo para organizar uma busca realmente meticulosa?

Jane não sabia o que seria pior.

Levaram menos de uma hora para chegar a Dasht-i-Rewat, "A Planície com um Forte", uma aldeia aprazível em que os chalés com seus pátios ensombreados pontilhavam a margem norte do rio. Era ali que terminava a estrada das carroças, o caminho de terra esburacado e sinuoso, ora-você-vê-ora-você-não-vê, que passava por uma estrada no Vale dos Cinco Leões. Qualquer veículo de rodas bastante resistente para enfrentar a estrada tinha de parar ali, proporcionando à aldeia alguns negócios no comércio de cavalos. O forte mencionado no nome ficava no alto de um vale transversal e era agora uma prisão, controlada pelos guerrilheiros, com alguns soldados do governo capturados, uns poucos russos e um ou outro ladrão. Jane a visitara uma vez, a fim de tratar de um pobre nômade do deserto ocidental que fora recrutado para o exército regular, contraíra pneumonia no frio inverno de Kabul e desertara. Ele estava sendo "reeducado", antes de receber permissão para se juntar aos guerrilheiros.

Já era meio-dia, mas nenhum dos dois queria parar e comer. Esperavam chegar a Saniz, a quinze quilômetros de distância, na cabeceira do vale, ao cair da noite. Quinze quilômetros podiam não ser muita coisa em terreno plano, mas naquela paisagem o percurso poderia exigir várias horas.

O último trecho da estrada serpenteava entre as casas na margem norte. A margem sul era um penhasco de sessenta metros de altura. Ellis puxava a égua e Jane carregava Chantal, na tipóia que ela idealizara e que lhe permitia alimentar a filha sem ter que parar. A aldeia terminava num moinho de água perto da entrada do vale lateral chamado Riwat, onde ficava a prisão. Depois de passarem por esse ponto, não puderam mais andar tão depressa. O terreno começou a subir, mais ou menos suave a princípio, depois cada vez mais íngreme. Continuaram, sob o sol quente. Jane cobriu a cabeça com o pattu. Chantal estava protegida do sol pela tipóia. Ellis usava o gorro chitrali, um presente de Mohammed.

Ao chegarem ao cume do desfiladeiro, Jane notou, com alguma satisfação, que não estava sequer respirando fundo. Nunca estivera em tão boa forma física em toda a sua vida - e provavelmente nunca mais tornaria a ficar assim. Observou que Ellis não só ofegava, mas também estava suando. Ele estava em boa forma, mas não calejado por caminhar muitas horas, como acontecia com ela. Jane sentiu-se um tanto presunçosa, até lembrar que ele sofrerá dois ferimentos de bala apenas nove dias antes.

Além do desfiladeiro o caminho seguia pela encosta da montanha, muito acima do Rio dos Cinco Leões. Ali, excepcionalmente, o rio era vagaroso. Onde era profundo e sereno, a água aparecia de um verde intenso, a cor das esmeraldas que eram encontradas por todo o Dasht-i-Riwat e levadas ao Paquistão para serem vendidas. Jane ficou apavorada quando seus ouvidos supersensíveis captaram o som de aparelhos aéreos distantes: não havia onde se esconder no penhasco nu, e ela ficou invadida por um súbito desejo de pular no rio, trinta metros abaixo. Mas era apenas uma esquadrilha de jatos, muito alto para que pudessem perceber qualquer pessoa no solo.

Mesmo assim, desse momento em diante Jane passou a esquadrinhar o terreno constantemente, à procura de árvores, moitas e depressões em que pudessem se esconder.

Um demônio interior lhe dizia: Você não precisa fazer isso, pode voltar, pode se entregar, reunir-se a seu marido. Mas, de certa forma, isso parecia uma questão acadêmica, um mero problema técnico.

O caminho continuava a subir, só que agora com mais suavidade, o que lhes permitiu seguir mais depressa. Eram atrasados, a cada dois ou três quilômetros, pelos afluentes que desciam velozes de vales laterais para se juntarem ao rio principal, a trilha descendo para uma ponte de troncos ou um vau. Ellis tinha de puxar a relutante Maggie para a água, com Jane gritando e atirando-lhe pedras por trás.

Um canal de irrigação corria por toda a extensão da garganta, na encosta do penhasco, muito acima da água. O objetivo era ampliar a área cultivável na planície.

Jane especulou há quantos anos o vale dispusera de tempo, homens e paz suficiente para realizar um projeto de engenharia tão extraordinário: talvez centenas de anos.

A garganta se estreitou e o rio lá embaixo estava agora coalhado de blocos de granito. Havia cavernas nos penhascos de calcário: Jane registrou-as como possíveis esconderijos. A paisagem tornouse desolada, um vento frio soprou pelo vale, fazendo Jane estremecer por um momento, apesar do sol. O terreno rochoso e os penhascos íngremes eram apropriados aos pássaros: havia dezenas de pegas asiáticas.

A garganta finalmente desembocou em outra planície. Jane avistou a leste uma serra, com as montanhas brancas de Nuristan assomando por cima. Oh, Deus, é para lá que estamos indo!, pensou Jane, sentindo medo. Havia um pequeno agrupamento de casas pobres na planície, e Ellis comentou:

- Acho que é aqui. Bem-vinda a Saniz.

Entraram na planície, procurando por uma mesquita ou uma cabana de pedra para viajantes. Ao se aproximarem da primeira casa, um homem saiu e Jane reconheceu o rosto bonito de Mohammed. Ele ficou tão espantado quanto ela. Mas a surpresa de Jane logo foi substituída pelo horror, quando pensou que teria que lhe contar que o filho fora morto. Elhs deu-lhe tempo para pôr os pensamentos em ordem, ao perguntar, em dari:

- Por que você está aqui?

- Vim com Masud - explicou Mohammed. Jane compreendeu que aquele devia ser um dos esconderijos dos guerrilheiros, enquanto Mohammed acrescentava: - E por que vocês estão aqui?

- Estamos indo para o Paquistão.

- Por este caminho? - O rosto de Mohammed tornou-se grave. - O que aconteceu?

Jane sabia que devia assumir o fardo de contar a ele, já que o conhecia há mais tempo.

- Trazemos más notícias, meu amigo Mohammed. Os russos estiveram em Banda. Mataram sete homens e uma criança...

Ele adivinhou nesse instante o que estava para ouvir e a expressão de angústia em seu rosto deixou Jane com vontade de chorar. Ela arrematou:

- Mousa foi a criança. Mohammed controlou-se, rigidamente.

- Como meu filho morreu?

- Foi Ellis quem o encontrou - disse Jane.

Ellis informou, fazendo um esforço para encontrar em dari as palavras de que precisava:

- Ele morreu... com a faca na mão e sangue na faca. Os olhos de Mohammed se arregalaram.

- Quero saber de tudo.

Jane se encarregou de explicar, porque falava melhor a língua.

- Os russos chegaram ao amanhecer. Procuravam a Ellis e a mim. Estávamos na encosta da montanha, e por isso não nos encontraram. Espancaram Alishan, Shahazai e Abdullah, mas não os mataram. E depois descobriram a caverna. Os sete guerrilheiros feridos estavam lá, assim como Mousa de prontidão para correr até a aldeia se eles precisassem de alguma coisa durante a noite. Depois que os russos partiram, Ellis foi até a caverna. Todos os homens foram mortos, e Mousa também...

- Como? - interrompeu Mohammed. - Como o mataram? Jane olhou para Ellis, que disse "Kalashnikov", usando uma palavra que não precisava de tradução. Ele apontou para o seu coração, a fim de indicar onde a bala acertara. Jane acrescentou:

- Ele deve ter tentado defender os feridos, pois havia sangue na ponta de sua faca.

Mohammed estufou o peito de orgulho, mesmo enquanto as lágrimas lhe afloravam aos olhos.

- Ele os atacou... homens crescidos, armados com rifles... ele os atacou com sua faca! A faca que o pai lhe deu! O garoto de uma só mão está agora no paraíso dos guerreiros.

Morrer numa guerra santa era a maior honra possível para um muçulmano, lembrou-se Jane. O pequeno Mousa provavelmente se tornaria um santo menor. Ela se sentiu contente por Mohammed contar com esse conforto, mas não pôde deixar de pensar ceticamente: É assim que os homens belicosos aliviam suas consciências... falando em glória.

Ellis abraçou Mohammed solenemente, sem dizer nada.

Jane lembrou de repente de suas fotografias. Tinha várias de Mousa. Os afegãos adoravam fotos, e Mohammed ficaria na maior alegria em ter uma do filho. Ela abriu um dos alforjes no lombo de Maggie e vasculhou entre os suprimentos médicos até encontrar a caixa de papelão com as Polaroides.

Selecionou uma foto de Mousa, tirou-a e tornou a guardar a caixa no alforje. Entregou a foto a Mohammed.

Jane nunca vira um homem afegão tão comovido. Mohammed não foi capaz de falar. Por um momento, parecia que ele ia chorar. Virou-se, tentando se controlar. Quando tornou a ficar de frente, o rosto estava composto, mas molhado de lágrimas. - Venham comigo - disse ele.

Os dois seguiram-no pela pequena aldeia até a beira do rio, onde um grupo de quinze ou vinte guerrilheiros estava acocorado em torno da fogueira de cozinhar. Mohammed adiantou-se e, sem qualquer preâmbulo, começou a contar a história da morte de Mousa, com lágrimas e muitos gestos.

Jane virou-se. Já testemunhara sofrimento demais. Ela olhou ao redor, ansiosamente, especulando: Para onde correremos, se os russos aparecerem? Não havia nada além dos campos, o rio e as poucas casas. Mas Masud parecia pensar que era um lugar seguro. Talvez a aldeia fosse pequena demais para atrair a atenção do exército.

Ela não tinha mais energia para se preocupar. Sentou-se no chão, encostada numa árvore, grata pela oportunidade de descansar as pernas. Começou a alimentar a filha.

Ellis tirou a carga de Maggie e amarrou-a. A égua pôs-se a pastar na vegetação exuberante à beira do rio. Foi um dia comprido, pensou Jane; e também terrível. Quase não dormi na noite passada. Sorriu secretamente ao pensar na noite anterior.

Ellis pegou os mapas de Jean-Pierre e sentou-se ao lado de Jane, a fim de estudá-los, à claridade que se desvanecia rapidamente. Jane olhou por cima de seu ombro.

A rota planejada continuava a subir pelo Vale dos Cinco Leões até uma aldeia chamada Cornar, onde virariam para sudeste, seguindo por um vale lateral que levava ao Nuristan. Esse vale era chamado também de Cornar, assim como o primeiro desfiladeiro alto por que teriam de passar.

- Quatro mil e quinhentos metros - disse Ellis, apontando para o local no mapa. - É lá que vamos sentir frio.

Jane estremeceu.

Depois que Chantal mamou, Jane mudou a fralda e foi lavar a fralda suja no rio. Ao voltar, encontrou Ellis conversando com Masud. Acocorou-se ao lado deles.

- Você tomou a decisão certa - Masud estava dizendo.

- Tem mesmo de sair do Afeganistão, com o nosso tratado no bolso. Tudo estará perdido se os russos pegarem você.

Ellis assentiu em concordância. Jane pensou: Nunca antes vi Ellis assim - ele trata Masud com toda deferência. Masud acrescentou:

- Mas é uma viagem de extrema dificuldade. A maior parte da trilha está acima da linha do gelo. Às vezes é muito difícil encontrar o caminho na neve, e quem se perde lá por cima acaba morrendo.

Jane se perguntou para onde aquela conversa estava levando. Parecia-lhe de mau agouro que Masud estivesse se dirigindo diretamente a Ellis, e não a ela.

- Posso ajudar - explicou Masud. - Mas, como você, quero fazer um trato.

- Continue - disse Ellis.

- Eu lhe darei Mohammed como guia, a fim de levá-lo ao Nuristan e depois ao Paquistão.

O coração de Jane bateu mais forte. Mohammed como guia! Faria um mundo de diferença para a viagem.

- E o que tenho de fazer em troca? - perguntou Ellis.

- Você vai sozinho. A mulher e a filha do doutor ficam aqui. Era angustiosamente claro para Jane que teria de concordar com a proposta. Seria uma temeridade os dois tentarem efetuar a jornada sozinhos, pois provavelmente morreriam. Assim, ela podia pelo menos salvar a vida de Ellis. E Jane disse a ele:

- Você tem de aceitar.

Ellis sorriu para ela e disse a Masud:

- Isso é impossível.

Masud levantou-se, visivelmente ofendido, e voltou ao círculo de guerrilheiros. Jane murmurou:

- Oh, Ellis, acha que foi sensato?

- Não. - Ele pegou a mão de Jane. - Mas não Vou largar você tão facilmente.

Ela apertou-lhe a mão.

- Eu... eu não fiz promessas a você.

- Sei disso. Quando voltarmos à civilização, você estará livre para fazer o que bem quiser... viver com Jean-Pierre, se for isso o que preferir e se conseguir encontrá-lo.

Eu me contentarei com as duas próximas semanas, se for tudo o que me estiver reservado. De qualquer modo, talvez não vivamos tanto tempo.

Ele tinha razão. Por que se angustiar com o futuro, pensou Jane, quando provavelmente nem teriam um futuro? Masud voltou, sorrindo novamente.

- Não sou um bom negociador - disse ele. - Eu lhes darei Mohammed assim mesmo.

 

Partiram meia hora antes do amanhecer. Um a um, os helicópteros levantaram vôo da pista de concreto e desapareceram no céu noturno, além do alcance dos refletores.

O Hind que levava Jean-Pierre e Anatoly elevou-se pelo ar como um pássaro desgracioso e juntou-se ao comboio. Não demorou muito para que as luzes da base aérea se perdessem de vista, e mais uma vez Jean-Pierre e Anatoly voavam por cima das montanhas a caminho do Vale dos Cinco Leões.

Anatoly realizara um milagre. Em menos de vinte e quatro horas montara uma operação que era provavelmente a maior da história da guerra no Afeganistão - e ele estava no seu comando.

Passara a maior parte do dia anterior em contato pelo telefone com Moscou. Tivera de sacudir a sonolenta burocracia do exército soviético, explicando primeiro a seus superiores na KGB e depois a uma série de líderes militares como era importante a captura de Ellis Thaler. Jean-Pierre escutara, sem compreender as palavras, mas admirando a combinação precisa de autoridade, calma e urgência no tom de voz de Anatoly.

A autorização formal fora concedida ao final da tarde, e depois Anatoly enfrentara o desafio de pô-la em prática. A fim de obter o número de helicópteros que desejava, ele suplicara favores, cobrara antigas dívidas e espalhara ameaças e promessas, de Jalalabad a Moscou. Quando um general em Kabul se recusara a liberar os aparelhos sem uma ordem por escrito, Anatoly ligara para a KGB em Moscou e persuadira um velho amigo a dar uma olhada na ficha pessoal do general, a quem chamara em seguida, ameaçando cortar o seu suprimento de pornografia infantil da Alemanha.

Os soviéticos tinham seiscentos helicópteros no Afeganistão: por volta das três horas da madrugada, quinhentos estavam na pista em Bagram, sob o comando de Anatoly.

Jean-Pierre e Anatoly passaram a última hora debruçados sobre os mapas, decidindo para onde cada helicóptero iria e dando as ordens necessárias a diversos oficiais.

As instruções foram precisas, graças à atenção compulsiva que Anatoly dispensava aos detalhes e ao profundo conhecimento que Jean-Pierre tinha da região.

Embora Ellis e Jane não estivessem na aldeia no dia anterior quando Jean-Pierre e Anatoly foram procurá-los, era quase certo de que haviam tomado conhecimento do ataque e estariam agora escondidos. Não seriam achados em Banda. Podiam estar instalados numa mesquita em outra aldeia - os visitantes de estadia breve normalmente dormiam nas mesquitas - ou então, se achavam que as aldeias eram inseguras, podiam estar numa das pequenas cabanas de pedra para viajantes que pontilhavam os caminhos.

Podiam estar em qualquer lugar do vale ou em alguns dos muitos vales laterais.

Anatoly cobrira todas as possibilidades.

Helicópteros pousariam em cada aldeia do Vale dos Cinco Leões e em cada povoado nos vales laterais. Os pilotos sobrevoariam todas as trilhas e caminhos. Os soldados - mais de mil - tinham instruções para revistar todas as casas, procurar sob as árvores maiores, dentro das cavernas. Anatoly estava determinado a não fracassar novamente. Hoje eles encontrariam Ellis de qualquer maneira.

E Jane também.

O interior do Hind era apertado e vazio. Na cabine de passageiros só havia um banco, preso na fuselagem, em frente à porta. Jean-Pierre partilhou-o com Anatoly.

Podiam ver a cabine de vôo. O assento do piloto ficava a mais de meio metro de altura, com um degrau ao lado para o acesso. O investimento todo fora para o armamento, a velocidade e a manipulação do aparelho, nenhum para o conforto.

Jean-Pierre remoía os fatos enquanto seguiam para o norte. Ellis fingira ser seu amigo, enquanto trabalhava o tempo todo para os americanos. Usando essa amizade, arruinara o plano para capturar Masud, destruindo assim um ano de trabalho árduo. E ainda por cima, pensou Jean-Pierre, seduziu minha mulher.

Sua mente funcionava em círculos, sempre voltando à questão da sedução. Esquadrinhou a escuridão, observando as luzes dos outros helicópteros. Imaginou os dois amantes na noite anterior, deitados sobre um cobertor, à luz das estrelas, em algum campo, divertindo-se com os corpos um do outro, sussurrando palavras de carinho.

Especulou se Ellis seria bom de cama. Perguntara a Jane qual dos dois era o melhor amante, mas ela respondera que não havia melhor, apenas que eram diferentes.

Teria dito a mesma coisa a Ellis? Ou murmuraria Você é o melhor, querido?

Jean-Pierre estava começando a odiá-la também. Como ela podia voltar para um homem que era nove anos mais velho, um americano estúpido e agente da CIA?

Jean-Pierre olhou para Anatoly. O russo se mantinha imóvel, expressão impassível, como uma estátua de pedra de um mandarim chinês. Pouco dormira durante as últimas quarenta e oito horas, mas não parecia cansado, apenas obstinado. Em seus encontros durante aquele ano Anatoly se mostrara descontraído e afável, mas agora estava tenso, sem demonstrar qualquer emoção, e incansável, exigindo implacavelmente de si mesmo e dos outros. Um homem com uma serena obsessão.

Eles puderam ver os outros helicópteros quando amanheceu. Era uma visão impressionante: parecia uma vasta nuvem de abelhas gigantescas, enxameando sobre as montanhas.

O barulho devia ser ensurdecedor para quem estava no solo.

Começaram a se dividir em grupos menores ao se aproximarem do Vale dos Cinco Leões. Jean-Pierre e Anatoly estavam com o grupo que seguiria para Cornar, a aldeia mais setentrional do vale. Acompanharam o rio durante a última etapa da viagem. A manhã que clareava depressa revelava fileiras de feixes nos trigais: o bombardeio não acabara de todo com a atividade agrícola na parte superior do vale.

O sol incidia em seus olhos ao descerem para Cornar. A aldeia era um simples agrupamento de casas no alto de um penhasco, fazendo Jean-Pierre lembrar as aldeias do sul da França com uma pontada de saudade. Não seria maravilhoso voltar para casa e ouvir o francês falado direito, comer pão fresco e uma comida saborosa, entrar num táxi e ir ao cinema?!

Mudou de posição no banco duro. Naquele momento já seria maravilhoso o mero fato de sair do helicóptero. Sentia-se mais ou menos dolorido desde que fora espancado.

Mas pior do que a dor era a memória da humilhação, a maneira como gritara e chorara, e suplicara por misericórdia: cada vez que pensava a respeito, estremecia e desejava se esconder em qualquer buraco. Queria vingança por isso. Sentia que nunca poderia dormir direito enquanto não acertasse a conta.

E só havia uma maneira de satisfazê-lo. Queria ver Ellis espancado da mesma maneira, pelos mesmos soldados brutais, até chorar, gritar, suplicar por misericórdia. Mas com um refinamento extra: Jane estaria assistindo.

No meio da tarde eles se defrontaram outra vez com o fracasso. Haviam revistado a aldeia de Cornar, todos os povoados ao redor, todos os vales laterais na área, todas as casas de fazenda isoladas, na terra quase árida ao norte da aldeia. Anatoly se mantinha em constante contato pelo rádio com os comandantes dos outros grupos de busca. Também haviam revistado meticulosamente seus respectivos setores do Vale dos Cinco Leões. Encontraram depósitos de armas em algumas cavernas e casas; travaram combates com diversos grupos de homens, presumivelmente guerrilheiros, mais intensos nas colinas em torno de Saniz, mas as escaramuças só se destacaram pelas baixas russas acima do normal, em decorrência da nova eficiência dos rebeldes com explosivos; verificaram os rostos de todas as mulheres veladas e examinaram a pele de cada bebê; apesar de tudo isso, no entanto, não haviam encontrado o menor sinal de Ellis, Jane ou Chantal.

Jean-Pierre e Anatoly foram acabar num posto de venda de cavalos, numa colina por cima de Cornar. O lugar não tinha nome. Havia umas poucas casas de pedra e uma campina poeirenta, onde matungos desnutridos pastavam na relva escassa. O único habitante homem parecia ser o guardião dos cavalos, um velho descalço, usando um camisolão comprido, com um enorme capuz para afugentar as moscas. Havia também duas mulheres ainda jovens e um punhado de crianças assustadas. Era evidente que os jovens eram guerrilheiros e estavam longe, com Masud, em algum lugar. Não demoraram muito tempo para revistar o povoado. Ao terminarem, Anatoly sentou-se na terra, encostado num muro de pedra, com expressão pensativa. Jean-Pierre sentou-se ao seu lado.

No outro lado das colinas eles podiam ver o pico branco distante do Mesmer, elevando-se a cerca de seis mil metros, que nos velhos tempos atraíra tantos montanhistas da Europa. Anatoly disse:

- Veja se consegue arrumar um chá.

Jean-Pierre olhou ao redor e viu o velho de capuz espreitando ali perto.

- Faça um chá - gritou ele, em dari.

O homem afastou-se apressadamente. Um momento depois Jean-Pierre ouviu-o gritar para as mulheres e anunciou para Anatoly, em francês:

- O chá está vindo.

Os homens de Anatoly, percebendo que ficariam ali por algum tempo, desligaram os motores dos helicópteros e sentaram-se na terra ao redor, esperando pacientemente.

Anatoly olhava para a distância. O cansaço transparecia em seu rosto.

- Nós estamos com um problema - murmurou ele. Jean-Pierre achou agourenta a maneira como ele dissera nós.

Depois de uma pausa, Anatoly continuou:

- Em nossa profissão, é sensato atenuar a importância de uma missão até que se tenha certeza do sucesso, quando então se começa a exagerá-la. Não pude seguir o padrão

neste caso. A fim de garantir o uso de duzentos helicópteros e mil homens, tive de persuadir meus superiores da enorme importância de capturar Ellis Thaler. Precisei deixar bem claro os perigos a que nos expomos se ele escapar. E consegui. A raiva que eles sentirão de mim por não capturálo será agora ainda maior. E o seu futuro, como não podia deixar de ser, está ligado ao meu.

Jean-Pierre não pensara antes dessa maneira.

- O que eles vão fazer?

- Minha carreira vai empacar. Continuarei com o mesmo salário, mas perderei todos os privilégios. Não haverá mais uísque escocês, Rive Gaúche para minha mulher, férias para a família no Mar Negro, jeans e discos dos Rolling Stones para meus filhos. Mas eu poderia viver sem essas coisas. Não poderia suportar, no entanto, o tédio do tipo de trabalho que dão aos fracassados na minha profissão. Eu seria enviado para uma cidade pequena no Extremo Oriente, onde não haveria realmente qualquer trabalho de segurança para realizar. Sei como nossos homens passam seu tempo e justificam sua existência em tais lugares. É preciso se insinuar com pessoas ligeiramente descontentes, conquistar sua confiança, encorajá-las a fazer comentários críticos ao governo e ao Partido, e depois prendê-las por subversão. Um desperdício de tempo...

Ele pareceu perceber que estava divagando e parou de falar.

- E eu? - indagou Jean-Pierre. - O que vai acontecer comigo?

- Você se tornará um homem insignificante. Nunca mais trabalhará para nós. Poderão deixá-lo ficar em Moscou, porém é mais provável que o mandem de volta.

- Se Ellis escapar, nunca poderei voltar à França... eles me matariam.

- Você não cometeu nenhum crime na França.

- Nem meu pai, mas mesmo assim o mataram.

- Talvez você possa ir para algum país neutro... como Nicarágua ou Egito.

- Merda!

- Mas não vamos perder a esperança - disse Anatoly, um pouco mais animado. - As pessoas não podem desaparecer em pleno ar. Nossos fugitivos têm de estar em algum lugar.

- Se não conseguimos encontrá-los com mil homens, então não creio que possamos descobri-los com dez mil - disse JeanPierre, sombriamente.

- Não teremos mil, muito menos dez mil - respondeu Anatoly, - Daqui por diante temos de usar o cérebro e um mínimo de recursos. Todo nosso crédito foi consumido.

Vamos tentar um método diferente. Pense: alguém deve tê-los ajudado a se esconderem. O que significa que alguém sabe onde eles estão.

Jean-Pierre refletiu por um momento.

- Se eles tiveram ajuda, então foi provavelmente dos guerrilheiros... as pessoas menos prováveis de nos contarem qualquer coisa.

- Outros podem saber.

- É possível. Mas eles nos falariam?

- Nossos fugitivos devem ter alguns inimigos - insistiu Anatoly.

Jean-Pierre sacudiu a cabeça.

- Ellis não está aqui há tempo suficiente para fazer inimigos, e Jane é uma heroína... eles a tratam como Joana d"Arc. Ninguém a detesta... ei!

Lembrou-se de repente que isso não era verdade.

- O que é?

- O mula.

- Ahn...

- Por algum motivo, ela o irritou de maneira irracional. Em parte foi porque as curas de Jane eram mais eficazes do que as suas, mas não apenas isso, porque as minhas também eram e o mula nunca me detestou particularmente.

- Ele provavelmente a chamou de prostituta ocidental.

- Como adivinhou?

- Eles sempre fazem isso. Onde vive esse mula?

- Abdullah vive em Banda, numa casa a cerca de meio quilômetro da aldeia.

- E ele falaria?

- Tenho a impressão de que ele odeia Jane o bastante para entregá-la a nós - respondeu Jean-Pierre pensativo. - Mas ele não pode ser visto fazendo isso. Não podemos simplesmente pousar na aldeia e pegá-lo... todos saberiam e ele se manteria de boca fechada. Eu teria de encontrá-lo em segredo...

Jean-Pierre especulou em que perigo poderia se meter se continuasse a pensar nessa linha. Depois, lembrou-se da humilhação que sofrerá: a vingança valia qualquer risco. E acrescentou:

- Se me deixar perto da aldeia, posso ir para a casa dele e me esconder ali, esperando sua volta.

- E se ele não voltar durante o dia inteiro?

- Nesse caso, o jeito é continuar esperando.

- Precisamos dar um jeito para que ele volte logo. - Anatoly franziu o rosto. - Vamos reunir todos os aldeões na mesquita, como fizemos antes... e depois deixá-los sair. Abdullah quase que certamente voltará para sua casa.

- Mas estará sozinho?

- Hum... Podemos deixar que as mulheres saiam primeiro, com ordens para irem para suas casas. E quando os homens forem soltos vão querer verificar como estão suas mulheres. Alguém mora perto de Abdullah?

- Não.

- Então ele deve seguir pela trilha sozinho. Você sai de trás de uma moita...

- E ele me corta a garganta de orelha a orelha.

- Abdullah anda armado?

- Já conheceu um afegão que não andasse pelo menos com uma faca?

Anatoly deu de ombros.

- Você pode levar minha pistola.

Jean-Pierre ficou satisfeito e um pouco surpreso por merecer tanta confiança, embora não soubesse usar uma arma de fogo.

- Acho que pode servir como ameaça - disse ele ansiosamente. - E precisarei de algumas roupas nativas, para o caso de ser visto por outra pessoa além de Abdullah.

O que eu faria se encontrasse alguém que me conhece? Quero um lenço para cobrir o rosto ou qualquer outra coisa...

- Isso é fácil. - Anatoly gritou alguma coisa em russo e três dos soldados se levantaram de um pulo. Desapareceram entre as casas e voltaram alguns momentos depois com o velho negociante de cavalos. - Pode levar as roupas dele.

- Ótimo. O capuz esconderá meu rosto. - Jean-Pierre acrescentou para o velho, em dari: - Tire as roupas.

O velho começou a protestar, pois a nudez era vergonhosa para os afegãos. Anatoly gritou uma ordem brusca em russo, e os soldados derrubaram o homem no chão e tiraram-lhe o camisolão. Todos riram ruidosamente ao verem suas pernas magras se projetando das esfarrapadas roupas de baixo. Os soldados largaram-no e o velho se afastou correndo, as mãos cobrindo os órgãos genitais, o que provocou risadas ainda maiores.

Jean-Pierre estava nervoso demais para achar graça. Tirou a camisa e a calça de estilo europeu e vestiu o camisolão com capuz do velho.

- Você está cheirando a mijo de cavalo - comentou Anatoly.

- E por dentro o cheiro é ainda pior - informou Jean-Pierre. Embarcaram no helicóptero. Anatoly pegou os fones do piloto e falou pelo microfone longamente, em russo. Jean-Pierre sentia-se apreensivo com o que estava prestes a fazer. O que aconteceria se três guerrilheiros surgissem do alto da montanha e o surpreendessem ameaçando Abdullah com a pistola? Ele era conhecido praticamente por todas as pessoas no Vale dos Cinco Leões. A notícia de que visitara Banda com os russos devia ter se espalhado depressa. Não podia haver a menor dúvida de que a maioria das pessoas já sabia que ele era um espião. Devia ser agora o Inimigo Público Número Um. Os guerrilheiros iriam esquartejá-lo.

Talvez estejamos querendo ser espertos demais, pensou ele. Talvez fosse melhor simplesmente pousar, pegar Abdullah e espancálo até arrancar a verdade.

Não, já tentamos isso ontem e não deu certo. Esta é a melhor maneira.

Anatoly devolveu os fones ao piloto, que os ajustou e começou a esquentar o helicóptero. Enquanto esperava, Anatoly pegou sua arma e mostrou-a a Jean-Pierre.

- Esta é uma Makarov 9mm - disse ele, por cima do barulho dos rotores. Puxando uma tranca na coronha, ele tirou o pente. Continha oito balas. Anatoly tornou a pôr o pente no lugar e apontou para a trava de segurança no lado esquerdo da pistola. - Esta é a trava de segurança. Quando o ponto vermelho está coberto, a trava se encontra em posição segura. - Segurando a arma com a mão esquerda, usou a direita para puxar o cursor por cima da coronha.

- É assim que a pistola é engatilhada. - Ele soltou e o cursor voltou à posição. - Depois de atirar, dê um puxão no gatilho para tornar a engatilhar.

Anatoly entregou a arma a Jean-Pierre, quê pensou: Ele confia realmente em mim. Por um momento, um ardor de prazer dissipou o calafrio de medo.

Os helicópteros partiram. Seguiram o Rio dos Cinco Leões para sudoeste, descendo pelo vale. Jean-Pierre pensou que ele e Anatoly formavam uma boa dupla. Anatoly lembrava-lhe seu pai: um homem inteligente, determinado e corajoso, com um empenho inabalável em promover o comunismo mundial. Se tivermos sucesso aqui, refletiu Jean-Pierre, provavelmente poderemos trabalhar juntos de novo, em algum outro campo de batalha. A perspectiva deixou-o extremamente satisfeito.

Em Dasht-i-Rewat, onde começava a parte inferior do Vale dos Cinco Leões, o helicóptero virou para sudoeste, seguindo o afluente Rewat correnteza acima, na direção das colinas, a fim de se aproximar de Banda por trás da montanha. Anatoly tornou a usar os fones e o microfone, e depois gritou no ouvido de Jean-Pierre:

- Já estão todos na mesquita. Quanto tempo a mulher do mula levará para chegar em casa?

- Cinco ou dez minutos - gritou Jean-Pierre em resposta.

- Onde você quer ficar? Jean-Pierre pensou por um instante.

- Todos os aldeões já estão na mesquita?

- Já.

- Verificaram as cavernas?

Anatoly voltou a usar o rádio e perguntou. Virou-se em seguida para Jean-Pierre e informou:

- As cavernas foram revistadas.

- Ótimo. Deixe-me lá.

- Quanto tempo você levará para chegar a seu esconderijo?

- Dê-me dez minutos, depois solte as mulheres e crianças, espere mais dez minutos e solte os homens.

- Está bem.

O helicóptero desceu para a sombra da montanha. A tarde chegava ao fim, mas ainda restava cerca de uma hora antes do anoitecer. Pousaram por trás da crista, a poucos metros das cavernas. Anatoly disse a Jean-Pierre:

- Espere um pouco. Vamos verificar as cavernas outra vez.

Pela porta aberta, Jean-Pierre viu outro Hinr pousar. Seis homens saltaram e correram sobre a crista.

- Como entrarei em contato com você para descer e me pegar depois? - indagou Jean-Pierre.

- Esperaremos por você aqui.

- O que farão se alguns aldeões subirem para cá antes da minha volta?

- Atiraremos neles.

Era outra coisa que Anatoly tinha em comum com o pai de JeanPierre: os dois eram implacáveis.

O grupo de reconhecimento voltou e um dos homens acenou para informar que estava tudo vazio.

- Vá agora - disse Anatoly.

Jean-Pierre saltou do helicóptero, ainda empunhando a pistola de Anatoly. Afastou-se apressadamente das pás em movimento, com a cabeça abaixada. Olhou para trás ao chegar à crista: os dois helicópteros ainda estavam pousados.

Jean-Pierre atravessou o terreno na frente de sua antiga clínica na caverna e contemplou a aldeia lá embaixo. Podia divisar o pátio da mesquita, mas não identificava qualquer dos vultos que se encontravam ali. Era bem possível que um deles pudesse levantar os olhos no momento errado e avistá-lo - a vista dos afegãos podia ser melhor que a sua - e por isso puxou o capuz para esconder o rosto.

O coração bateu mais depressa ao se afastar da segurança dos helicópteros russos. Desceu a encosta, passando pela casa do mula. O vale parecia estranhamente quieto, apesar do barulho permanente do rio e do sussurro distante dos helicópteros. Jean-Pierre compreendeu que a diferença estava nas vozes das crianças.

Virou uma curva no caminho e constatou que estava fora da vista da casa do mula. Havia alguns arbustos à beira da trilha. Foi se agachar atrás. Estava bem escondido, mas podia divisar toda a trilha. Acomodou-se para esperar.

Refletiu sobre o que diria a Abdullah. O mula odiava as mulheres, de uma forma até histérica; poderia aproveitar esse elemento.

Uma súbita explosão de vozes altas lá embaixo, na aldeia, revelou que Anatoly dera ordens para que as mulheres e crianças fossem soltas e deixassem a mesquita. Os aldeões especulariam sobre o objetivo da manobra, mas acabariam atribuindo à notória loucura dos exércitos em qualquer lugar.

Poucos minutos depois a mulher do mula subiu pela trilha, carregando o bebê e seguida pelos três filhos mais velhos.

Jean-Pierre ficou tenso: estaria mesmo bem escondido? As crianças sairiam da trilha e se embrenhariam entre as moitas?

Seria uma humilhação - ser descoberto por crianças. Lembrou-se da arma que tinha na mão e se perguntou: Terei coragem de atirar em crianças?

A família passou, virando a curva na trilha, a caminho de sua casa.

Pouco depois, os helicópteros russos começaram a decolar do trigal: isso significava que os homens haviam sido soltos. E não demorou muito para que Abdullah subisse a encosta, ofegante, um vulto atarracado, de turbante e um casaco inglês listrado. Devia haver um vasto comércio de roupas usadas entre a Europa e o Oriente, concluíra Jean-Pierre, pois muitas pessoas ali usavam roupas que indubitavelmente haviam sido feitas em Paris e Londres e depois descartadas, talvez por terem saído de moda, muito antes de se tornarem gastas. É agora, pensou Jean-Pierre, enquanto o vulto cômico se aproximava de sua posição; este palhaço num paletó de corretor londrino pode possuir a chave do meu futuro. Levantou-se e saiu das moitas. O mula estremeceu e soltou um grito de choque. Olhou para Jean-Pierre e reconheceu-o.

- Você! - gritou ele, em dari.

O mula baixou a mão para o cinto. Jean-Pierre mostrou-lhe a pistola. Abdullah ficou apavorado.

- Não tenha medo - disse Jean-Pierre, em dari. O tremor na voz traía seu nervosismo e ele fez um esforço para controlá-lo. - Ninguém sabe que estou aqui. Sua mulher e seus filhos passaram sem me ver. Estão sãos e salvos.

Abdullah ainda estava desconfiado.

- O que você quer?

- Minha mulher é uma adúltera. - Embora estivesse deliberadamente atiçando os preconceitos do mula, a raiva de Jean-Pierre não era inteiramente simulada. – Pegou minha filha e me deixou. Foi embora com o americano, como uma prostituta.

- Sei disso.

Jean-Pierre percebeu que o mula começava a ser dominado por uma indignação virtuosa.

- Estou procurando por ela, a fim de trazê-la de volta e castigála.

Abdullah acenou com a cabeça, entusiasmado com a idéia, o rancor se insinuando em seus olhos: gostava da punição de adúlteras.

- Mas o casal depravado se escondeu. - Jean-Pierre falava devagar, com extremo cuidado: àquela altura, cada nuance contava. - Você é um homem de Deus. Diga-me onde eles estão. Ninguém jamais saberá como eu descobri, a não ser você, eu e Deus.

- Eles foram embora - respondeu Abdullah, a saliva molhando a barba pintada de vermelho.

- Para onde?

Jean-Pierre prendeu a respiração enquanto aguardava a resposta.

- Deixaram este vale.

- Mas para onde eles foram?

- Paquistão.

Paquistão? Mas do que o velho idiota estava falando?

- As rotas estão fechadas! - gritou Jean-Pierre, exasperado.

- Menos a Trilha da Manteiga.

- Mon Dieul - sussurrou Jean-Pierre, em sua língua nativa. - A Trilha da Manteiga!

Ele estava impressionado pela coragem dos dois e ao mesmo tempo amargamente desapontado, pois agora seria impossível encontrá-los.

- Levaram a criança?

- Levaram.

- Então nunca mais tornarei a ver minha filha!

- Todos vão morrer em Nuristan - comentou Abdullah, com evidente satisfação. - Uma mulher ocidental com uma criança pequena nunca sobreviverá àqueles desfiladeiros altos, e o americano morrerá tentando salvá-la. Assim Deus castiga aqueles que escapam à justiça dos homens.

Jean-Pierre compreendeu que deveria voltar ao helicóptero o mais depressa possível. E disse ao mula:

- Siga agora para sua casa.

- O tratado morrerá com eles, pois Ellis tem o papel - acrescentou Abdullah. - O que é uma boa coisa. Bem que precisamos das armas americanas, mas é perigoso fazer pactos com infiéis.

- Vá logo! - insistiu Jean-Pierre. - E se não quer que sua família me veja, obrigue todos a ficarem dentro de casa por alguns minutos.

Abdullah pareceu por um momento indignado por receber ordens, mas depois concluiu que estava do lado errado da pistola para protestar, e tratou de se afastar, apressado.

Jean-Pierre especulou se todos morreriam no Nuristan, como Abdullah previra, exultante. Não era o que ele queria. Não lhe proporcionaria vingança ou satisfação. Queria a filha de volta. Queria Jane viva e sob o seu poder.

Queria que Ellis sofresse dor e humilhação.

Deu algum tempo para Abdullah chegar em casa, depois puxou o capuz por cima da cabeça e subiu pela trilha, desconsolado. Virou o rosto para o outro lado ao passar pela casa, para o caso de alguma criança estar espiando. Anatoly o aguardava na frente das cavernas. Estendeu a mão para receber de volta a pistola e perguntou:

- E então?

Jean-Pierre devolveu a arma.

- Eles nos escaparam. Deixaram o Vale dos Cinco Leões.

- Não podem ter escapado - protestou Anatoly, irritado. - Para onde foram?

- Para o Nuristan. - Jean-Pierre apontou na direção dos helicópteros. - Não é melhor irmos embora?

- Não podemos conversar no helicóptero.

- Mas se os aldeões aparecerem,..

- Que se danem os aldeões! Pare de se comportar como um derrotado! O que eles foram fazer no Nuristan?

- Estão seguindo para o Paquistão por uma rota conhecida como Trilha da Manteiga.

- Se conhecermos a rota, podemos encontrá-los.

- Não creio. A rota tem muitas variações.

- Voaremos sobre todas.

- Não se pode acompanhar os caminhos pelo ar. Mal se consegue segui-los em terra sem um guia nativo.

- Podemos usar mapas...

- Que mapas? - disse Jean-Pierre. - Já estudei os mapas de vocês e não são melhores que os mapas americanos que eu trouxe, os mais completos disponíveis... e não mostram as trilhas e desfiladeiros. Não sabe que há regiões do mundo que nunca foram mapeadas direito? Você está agora numa delas.

- Sei disso... ou já se esqueceu que trabalho no serviço de informações? - Anatoly baixou a voz para acrescentar: - Você desanima com muita facilidade, meu amigo.

Pense um pouco. Se Ellis pode encontrar um guia nativo para mostrar-lhe a rota, então eu também posso.

Seria possível, especulou Jean-Pierre.

- Mas existe mais de um caminho.

- Vamos supor que haja dez variações. Precisamos de dez guias nativos para levar dez grupos de busca.

O entusiasmo de Jean-Pierre cresceu depressa ao compreender que ainda poderia recuperar Jane e Chantal e assistir à captura de Ellis.

- Talvez a situação não seja tão ruim assim - declarou ele, com algum entusiasmo. - E podemos fazer perguntas pelo caminho. Depois que deixarmos este fim de mundo, talvez as pessoas não sejam tão fechadas. Os nuristanis não são como esta gente.

- Muito bom - disse Anatoly, bruscamente. - Está escurecendo. Temos muito para fazer esta noite. Começamos amanhã de manhã bem cedo. Vamos embora.

 

Jane despertou assustada. Não sabia onde estava, com quem estava, se os russos a haviam capturado. Por um instante, olhou fixamente para o teto de varas trançadas, pensando: Isto é uma prisão? Depois sentou-se, bruscamente, o coração disparado. Viu Ellis em seu saco de dormir, a boca aberta, e lembrou-se: Estamos fora do vale.

Escapamos. Os russos não sabem onde estamos e não podem nos encontrar.

Tornou a se deitar e ficou esperando que o coração voltasse ao ritmo normal.

Não estavam seguindo a rota que Ellis planejara inicialmente. Em vez de irem para o norte, até Cornar, depois para leste, pelo Vale Cornar, até o Nuristan, haviam voltado para o sul de Saniz e depois foram para leste, pelo Vale Aryu. Moharnmed sugerira esse caminho porque assim sairiam muito mais depressa do Vale dos Cinco Leões, e Ellis concordara.

Haviam partido antes do amanhecer e subido durante o dia inteiro, Ellis e Jane se revezando para carregar Chantal, Moharnmed puxando Maggie. Pararam ao meio-dia

na aldeia de cabanas de barro de Aryu, comprando pão de um velho desconfiado, que tinha um cachorro que não parava de latir. A aldeia de Aryu fora o limite da civilização: depois, não havia coisa alguma por quilômetros e quilômetros, a não ser o rio coalhado de rochas e enormes montanhas nuas, cor de marfim, nos dois lados, até chegarem àquele lugar, ao final da tarde, exaustos.

Jane tornou a sentar-se. Chantal estava deitada ao seu lado, a respiração regular, emanando calor, como um saco de água quente.

Ellis estava em seu próprio saco de dormir. Poderiam ter unido os dois sacos para fazer apenas um, mas Jane receara que Ellis pudesse rolar sobre Chantal durante a noite. Assim, dormiam separados, contentando-se em ficar bem perto, estendendo as mãos para se tocarem de vez em quando. Mohammed estava no cômodo vizinho.

Jane levantou-se com todo cuidado, tentando não incomodar Chantal. Ao vestir o short e a calça, sentiu pontadas de dor nas costas e nas pernas: estava acostumada a andar, mas não o dia inteiro, subindo sempre, num terreno tão árido.

Calçou as botas, sem amarrar os cordões, e saiu. Piscou os olhos diante da claridade fria e intensa das montanhas. Estava numa campina alta, um vasto campo verde, com um riacho serpenteando de um lado a outro. Num lado da campina a montanha se erguia íngreme. Ali, na base da encosta, havia um punhado de casas primitivas e alguns cercados de gado. As casas estavam vazias, e o gado desaparecera: aquela era uma pastagem de verão, os vaqueiros haviam partido para os alojamentos de inverno.

Ainda era verão no Vale dos Cinco Leões, mas naquela altitude o outono chegava em setembro.

Jane encaminhou-se para o riacho. Ficava bastante longe das casas, e ela podia tirar as roupas sem receio de ofender Mohammed. Entrou na água. Estava muito fria.

Saiu quase que no mesmo instante, os dentes batendo de forma incontrolável.

- Ora é melhor esquecer! - exclamou ela, em voz alta.

E decidiu que ficaria suja até voltar à civilização. Tornou a se vestir - só havia uma toalha e estava reservada para Chantal - e voltou correndo para a casa, recolhendo alguns gravetos no caminho. Ajeitou-os sobre os remanescentes da fogueira da noite anterior e soprou as brasas até a lenha pegar. Estendeu as mãos enregeladas sobre as chamas, até sentir que voltavam ao normal.

Pôs no fogo uma panela com água para lavar Chantal. Enquanto esperava que esquentasse, os outros acordaram, um a um: primeiro Mohammed, que saiu para se lavar; depois Ellis, que se queixou de estar com o corpo todo dolorido; e finalmente Chantal, que exigiu ser alimentada e foi logo atendida.

Jane sentia-se estranhamente eufórica. Deveria estar preocupada, pensou ela, por levar uma criança de dois meses a um dos lugares mais inóspitos do mundo; mas, de alguma forma, a ansiedade fora sufocada pela felicidade. Por que estou feliz?, perguntou a si mesma.

A resposta saiu do fundo de sua mente: Porque estou com Ellis.

Chantal também parecia feliz, como se estivesse absorvendo o contentamento junto com o leite materno. Não conseguiram comprar comida na noite anterior, porque os vaqueiros haviam partido e não havia mais ninguém ali para vendê-la. Mas ainda dispunham de algum arroz e sal, que cozinharam - não sem dificuldade, porque naquela altitude a água levava uma eternidade para ferver. Agora, para a primeira refeição do dia, só restava um pouco de arroz frio. O que arrefeceu um pouco o ânimo de Jane.

Comeu enquanto Chantal mamava, depois lavou-a e trocou-a. A fralda de reserva, lavada no riacho no dia anterior, secara junto ao fogo, durante a noite. Jane a pôs em Chantal e levou a suja para o riacho. Depois de lavada, prenderia na bagagem, esperando que o vento e o calor do corpo da égua a secassem. O que diria sua mãe ao saber que a neta usaria uma única fralda durante o dia inteiro? Ficaria horrorizada. Mas não importava...

Ellis e Mohammed carregaram a égua e a viraram na direção correta. Aquele dia seria mais árduo do que o anterior. Teriam de atravessar a cordilheira que há séculos mantinha o Nuristan mais ou menos isolado do resto do mundo. Subiram pelo Passo Aryu, a mais de quatro mil metros de altura. Teriam de enfrentar a neve e o gelo durante boa parte do percurso. Esperavam alcançar Linar, uma aldeia no Nuristan: ficava a apenas quinze quilômetros de distância, mas só chegariam lá ao final da tarde.

O sol era intenso quando partiram, mas o ar estava frio. Jane usava meias grossas e luvas e tinha um suéter oleado por baixo do casaco forrado de pele. Carregava Chantal na tipóia entre o suéter e o casaco, os botões de cima do casaco desabotoados para deixar o ar entrar.

Saíram da campina, acompanhando o Rio Aryu correnteza acima. Logo a paisagem voltou a ser árida e inóspita. Os penhascos frios não tinham qualquer vegetação. Em determinado momento, Jane avistou, à distância, um punhado de tendas de nômades, numa encosta desolada: não sabia se devia ficar contente ou assustada pela presença de outros seres humanos nas proximidades. A única outra coisa viva que viu foi um abutre planando no vento forte.

Não havia qualquer trilha visível. Jane estava satisfeita porque Mohammed os acompanhava. A princípio ele seguiu o rio, mas sua confiança não diminuiu quando o Aryu se estreitou e foi aos poucos sumindo, e seguiu em frente sem qualquer hesitação. Jane perguntou como ele conhecia o caminho, e Mohammed explicou que o percurso era indicado por pilhas de pedras, a intervalos. Ela não as notara até que Mohammed as apontara.

Não demorou muito para que houvesse uma fina camada de neve no solo. Jane sentiu o frio nos pés, apesar das meias grossas e das botas.

Espantosamente, Chantal dormiu a maior parte do tempo. A cada duas horas eles paravam para descansar por alguns minutos, e Jane aproveitava a oportunidade para amamentá-la, estremecendo ao expor os seios sensíveis ao ar gelado. Comentou para Ellis que achava que Chantal estava se comportando muito bem, e ele murmurou:

- É incrível. Incrível...

Pararam ao meio-dia, à vista do Passo Aryu, para um descanso bem recebido de meia hora. Jane já se sentia cansada, as costas doíam. Também estava faminta e devorou o bolo de nozes e amoras que haviam reservado para o almoço.

O acesso ao Passo era assustador. Observando a íngreme escalada, Jane desanimou. Acho que ficarei sentada aqui por mais algum tempo, pensou; mas estava frio, e ela começou a tremer. Ellis notou e levantou-se.

- Vamos embora antes de acabarmos congelados - disse ele, jovialmente.

Jane pensou: Eu gostaria que você não se mostrasse tão animado. Ela levantou-se também, tendo de recorrer a toda a sua força de vontade. Ellis disse:

- Deixe-me carregar Chantal.

Jane entregou-lhe a criança, agradecida. Mohammed foi na frente, puxando a rédea de Maggie. Exausta, Jane forçou-se a acompanhá-los. Ellis seguiu na retaguarda.

A encosta era íngreme, e o solo, escorregadio com a neve. Depois de alguns minutos Jane estava mais cansada do que antes de pararem para descansar. Enquanto cambaleava em frente, ofegante, toda doída, lembrou-se do que dissera a Ellis: Imagino que tenho uma chance maior de escapar daqui com você do que escapar da Sibéria sozinha.

Talvez nem isso eu consiga, pensou ela agora. Não sabia que seria assim. E, no instante seguinte, se controlou. Claro que sabia, disse ela a si mesma; e sabe que vai ficar ainda pior, antes de melhorar. Pare com isso, criatura patética. Nesse momento ela escorregou numa pedra gelada e caiu de lado. Ellis, que vinha logo atrás, segurou-a pelo braço, ajudando-a a recuperar o equilíbrio.

Jane compreendeu que ele a vigiava com toda atenção, e experimentou um profundo impulso de amor. Ellis a tratava com um carinho que Jean-Pierre nunca tivera para com ela. Jean-Pierre teria seguido na frente, presumindo que ela o chamaria se precisasse de alguma ajuda; e se Jane se queixasse dessa atitude, perguntaria se ela queria ou não ser tratada como igual.

Estavam quase no cume. Jane inclinou-se para a frente, a fim de avançar melhor, pensando: Só mais um pouco, só mais um pouco. Sentia-se tonta. À sua frente, Maggie escorregou em algumas pedras soltas e subiu galopando os últimos metros, obrigando Mohammed a correr ao seu lado. Jane foi atrás, contando os passos. Alcançou finalmente um terreno plano. E parou. Sentia a cabeça girar. O braço de Ellis envolveu-a, e ela fechou os olhos, encostando-se nele.

- Daqui por diante será só descida o dia inteiro - murmurou ele.

Jane abriu os olhos. Nunca poderia imaginar uma paisagem tão brutal: não tinha nada além de neve, vento, montanhas e solidão, interminavelmente. Ela balbuciou:

- Mas que fim de mundo...

Contemplaram a paisagem por um momento, e depois Ellis exortou-a:

- Temos de continuar.

E continuaram. A descida era mais íngreme. Mohammed, que puxara Maggie pela rédea durante toda a subida, estava agora agarrado em sua cauda para fazê-la de freio e impedir que a égua resvalasse pela encosta escorregadia. Era difícil distinguir as pilhas de pedras de marco entre as incontáveis pedras soltas cobertas pela neve, mas Mohammed foi descendo sem a menor hesitação. Jane pensou que deveria se oferecer para levar Chantal, a fim de dar um descanso a Ellis, mas sabia que não teria condições de carregá-la.

À medida que desciam, a neve foi se tornando mais rala e depois desapareceu por completo, e a trilha tornou-se visível outra vez. Jane ouvia a todo instante um assovio estranho e acabou encontrando forças para perguntar a Mohammed o que era. Em resposta, ele usou uma palavra dari que ela não conhecia. Mohammed não conhecia a equivalente francesa. Afinal, ele apontou e Jane viu um animal pequeno, parecido com um esquilo, que fugia quando se aproximavam dele: uma marmota. Depois, ela avistou várias outras e perguntou-se o que encontrariam para comer lá em cima.

Não demorou muito para que estivessem andando ao longo de outro córrego, agora descendo. A paisagem interminável de rocha cinza e branca era entremeada de um pouco de relva resistente e alguns arbustos, nas margens do córrego; mas o vento subia pela garganta e penetrava pelas roupas de Jane como agulhas de gelo.

Assim como a subida fora se tornando inexoravelmente pior, também a descida foi ficando mais e mais fácil: a trilha era cada vez mais suave, o ar mais quente, a paisagem mais aprazível. Jane ainda se sentia exausta, mas não mais estava oprimida e angustiada. Depois de dois ou três quilômetros eles alcançaram a primeira aldeia no Nuristan. Os homens usavam suéteres grossas, sem mangas, numa surpreendente padronagem preta e branca, e falavam uma língua própria, que Mohammed mal conseguia entender. Mesmo assim, conseguiu comprar um pouco de pão com o dinheiro afegão de Ellis.

Jane ficou tentada a suplicar a Ellis que parassem ali para passar a noite, pois estava desesperadamente cansada; mas ainda restavam várias horas de claridade e haviam combinado que tentariam chegar a Linar naquele dia. Por isso, ela mordeu a língua e forçou as pernas doloridas a continuarem.

Para seu imenso alívio, os restantes sete ou oito quilômetros do percurso foram mais fáceis, e eles chegaram a Linar muito antes do anoitecer. Jane arriou no chão, por baixo de uma enorme amoreira, e ali permaneceu sentada em silêncio por algum tempo. Mohammed acendeu uma fogueira e começou a preparar um chá.

De alguma forma, Mohammed conseguiu informar aos aldeões que Jane era uma enfermeira ocidental. Mais tarde, enquanto ela amamentava e trocava a fralda de Chantal, um pequeno grupo de pacientes se reuniu, esperando a uma distância respeitosa. Jane recorreu às suas últimas reservas de energia para examiná-los. Havia as habituais feridas infeccionadas, parasitas intestinais e problemas de bronquite, porém menos crianças desnutridas do que no Vale dos Cinco Leões, presumivelmente porque a guerra não afetara tanto aquele lugar remoto e inóspito.

Em decorrência do tratamento médico inesperado, Mohammed conseguiu arrumar uma galinha, que cozinhou numa panela. Jane preferia dormir logo, mas fez um esforço para esperar que a galinha ficasse pronta, comendo-a vorazmente. A carne estava fibrosa e sem gosto, mas ela sentia mais fome que em qualquer outra ocasião anterior de sua vida.

Ellis e Jane ganharam um quarto numa das casas da aldeia. Havia um colchão para eles e um tosco berço de madeira para Chantal.

Eles juntaram os sacos de dormir e fizeram amor com uma ternura cansada. Jane gostou do calor e de se deitar quase tanto quanto do sexo. Depois, Ellis adormeceu quase que no mesmo instante. Jane permaneceu acordada por mais alguns minutos. Os músculos pareciam doer mais agora que estava relaxando. Pensou em deitar numa cama de verdade, num quarto normal, os lampiões da rua brilhando através das cortinas, portas de carro batendo lá fora, um banheiro com vaso sanitário e água quente, uma loja na esquina em que se podiam comprar algodão, fraldas descartáveis e um cheiroso xampu infantil. Escapamos dos russos, pensou ela, enquanto resvalava para o sono; talvez consigamos voltar para casa.

Jane acordou ao mesmo tempo que Ellis, sentindo a sua súbita tensão. Ele ficou rígido a seu lado por um momento, sem respirar, prestando atenção a dois cachorros latindo. Depois, saiu depressa da cama.

O quarto estava mergulhado na mais total escuridão. Jane ouviu o som de um fósforo riscado e depois uma vela foi acesa no canto. Ela olhou para Chantal: a criança dormia serenamente.

- O que é? - perguntou a Ellis.

- Não sei - sussurrou ele.

Ellis vestiu a calça, pôs as botas e o casaco e saiu. Jane também se vestiu e saiu atrás. No quarto ao lado, o luar entrando pela porta aberta iluminava quatro crianças numa cama, todos os olhos arregalados, espiando por cima do cobertor partilhado. Os pais dormiam em outro quarto. Ellis estava na porta da casa, esquadrinhando a escuridão lá fora.

Jane postou-se ao seu lado. Divisou no alto da colina, ao luar, um vulto solitário correndo na direção deles.

- Os cachorros ouviram a aproximação - murmurou Ellis.

- Mas quem será?

E de repente havia outro vulto junto com eles. Jane teve um sobressalto, antes de reconhecer Mohammed. A lâmina de uma faca faiscava em sua mão.

O vulto se aproximou. O jeito de andar parecia familiar a Jane. Mohammed soltou um grunhido súbito e baixou a faca, murmurando:

- Ali Ghanim.

Jane reconheceu agora o andar característico de Ali, que corria daquele jeito porque tinha as costas um pouco tortas.

- Mas por quê? - sussurrou ela.

Mohammed adiantou-se e acenou. Ali o viu, acenou em resposta e correu para a casa em que os três estavam. Ele e Mohammed se abraçaram. Jane esperou impaciente que Ali recuperasse o fôlego. Ele disse finalmente:

- Os russos estão atrás de vocês.

Jane sentiu um aperto no coração. Pensara que haviam escapado. O que acontecera de errado? Ali respirou fundo por mais alguns segundos e depois acrescentou:

- Masud me mandou avisar. No dia em que vocês partiram os russos vasculharam todo o Vale dos Cinco Leões, com centenas de helicópteros e milhares de soldados. Não conseguiram descobrilos e hoje mandaram expedições por todos os vales que levam ao Nuristan.

- O que ele está dizendo? - indagou Ellis.

Jane levantou a mão para fazer Ali esperar um pouco, enquanto traduzia para Ellis, que não conseguia acompanhar a fala rápida e ofegante do afegão. Ellis perguntou:

- Como eles souberam que vínhamos para o Nuristan? Poderíamos estar escondidos em qualquer lugar do vale.

Jane perguntou a Ali, que não sabia responder. Ela indagou em seguida:

- Há alguma expedição de busca neste vale?

- Há sim. Alcancei-os pouco antes do Passo Aryu. Eles devem ter chegado à última aldeia ao cair da noite.

- Oh não! - Jane experimentou profundo desespero. Traduziu para Ellis e depois acrescentou: - Como eles podem se deslocar tão mais depressa do que nós?

Ellis deu de ombros. Depois de uma pausa, ela própria respondeu à indagação:

- Porque eles não são retardados por uma mulher com uma criança de colo. Oh, merda!

Ellis comentou:

- Se eles partirem pela manhã, bem cedo, vão nos alcançar amanhã.

- O que podemos fazer?

- Partir agora.

Jane sentia um cansaço extremo e foi dominada por um ressentimento irracional contra Ellis.

- Não podemos nos esconder em algum lugar? - perguntou ela, irritada.

- Onde? - disse Ellis. - Só há uma estrada aqui. Os russos dispõem de homens suficientes para revistar todas as casas... afinal, não são muitas. Além do mais, os habitantes locais não estão necessariamente do nosso lado.

Podem facilmente informar aos russos onde estamos escondidos. Nossa única esperança é nos mantermos à frente dos perseguidores.

Jane olhou para o relógio. Eram duas horas da madrugada. Sentia-se disposta a desistir.

- Vou carregar a égua - disse Ellis. - Alimente Chantal. - Passando a falar em dari, ele acrescentou para Mohammed: - Quer preparar um chá? E arrume alguma coisa para Ali comer.

Jane voltou para o interior da casa, terminou de se vestir e amamentou Chantal. Enquanto o fazia, Ellis trouxe chá verde doce numa tigela de barro. Ela tomou tudo, agradecida.

Enquanto Chantal mamava, Jane se perguntou o quanto JeanPierre estaria envolvido naquela perseguição implacável. Sabia que ele ajudara na incursão a Banda, pois o vira lá. E seu conhecimento da região teria sido valioso quando os russos revistaram todo o Vale dos Cinco Leões. Jean-Pierre devia saber que estavam agora caçando sua mulher e a filha como cachorros atrás de ratos. Como ele tinha coragem de ajudar os russos? Seu amor devia ter se transformado em ódio pelo ressentimento e ciúme.

Chantal já mamara bastante. Como devia ser agradável, pensou Jane, não saber nada de paixão, ciúme ou traição, não ter outros sentimentos além de quente ou frio, saciada ou faminta.

- Aproveite enquanto pode, minha querida - murmurou ela. Apressando-se, Jane abotoou a blusa e pôs a suéter por cima da cabeça. Ajeitou a tipóia no pescoço, deixou Chantal bem confortável lá dentro, vestiu o capote e saiu. Ellis e Mohammed estudavam o mapa à luz de uma lanterna.

Ellis mostrou a Jane o percurso escolhido.

- Vamos seguir o Linar até o ponto em que deságua no Rio Nuristan. Seguimos o Nuristan para o norte, correnteza acima. Depois, entramos por um dos vales transversais...

Mohammed não pode dizer com certeza qual deles, até chegarmos lá... e seguimos para o Passo Kantiwar. Eu gostaria de sair do Vale Nuristan hoje... o que tornará mais difícil os russos nos seguirem, pois não saberão por onde saímos.

- A distância é muito grande? - indagou Jane.

- São apenas vinte e cinco quilômetros... mas se vai ser fácil ou difícil, dependerá do terreno.

Jane acenou com a cabeça e disse:

- Vamos embora.

Ela ficou orgulhosa por parecer mais animada do que na verdade se sentia. Eles partiram ao luar. Mohammed foi avançando num ritmo rápido, açoitando implacavelmente a égua com uma tira de couro quando ela tentava empacar. Jane tinha um pouco de dor de cabeça e uma sensação de vazio e náusea no estômago. Não chegava a sentir sono, mas uma grande tensão e um cansaço nervoso.

A trilha à noite era assustadora. Às vezes andavam pela relva escassa à beira do rio, o que não representava qualquer dificuldade, mas depois a trilha subia pela encosta da montanha, onde o solo estava coberto pela neve. Jane sentia-se então apavorada com a possibilidade de escorregar e cair para a morte, por dezenas de metros, com a filha nos braços.

Às vezes havia uma opção: a trilha se bifurcava, um caminho subindo, o outro descendo. Como não conheciam o percurso, deixavam que Mohammed adivinhasse o certo.

Na primeira vez ele escolheu o caminho de baixo e era o certo: chegaram a uma pequena praia, vadearam um ou dois palmos de água, evitando um desvio comprido. Na segunda vez, no entanto, também seguiram a margem do rio e se arrependeram: depois de cerca de um quilômetro e meio, a trilha terminava num paredão rochoso, e a única maneira de contorná-lo era a nado. Exaustos, voltaram à bifurcação e subiram pela trilha no penhasco.

Na vez seguinte tornaram a descer para a margem do rio. A trilha levou-os a uma platibanda que corria pela encosta do penhasco, cerca de trinta metros acima do rio.

A égua ficou nervosa, provavelmente porque a trilha era muito estreita. Jane também se sentiu apavorada. A luz das estrelas não era suficiente para iluminar o rio lá embaixo, e por isso a garganta parecia um abismo negro ao seu lado. Maggie parava a todo instante, e Mohammed tinha de puxar a rédea para fazê-la seguir em frente.

Quando a trilha formou uma curva cega numa projeção rochosa, Maggie recusou-se a continuar e se tornou arisca. Jane recuou, cautelosa, com receio de que a égua pudesse acertar-lhe um coice. Chantal começou a chorar, talvez por sentir a tensão do momento ou porque não voltara a dormir depois da mamada das duas horas da madrugada.

Ellis entregou Chantal a Jane e adiantou-se para ajudar Mohammed com a égua.

Ellis ofereceu-se para pegar a rédea, mas Mohammed recusou bruscamente: a tensão começava a dominá-lo. Ellis contentou-se em empurrar Maggie por trás, soltando gritos de exortação para fazê-la seguir em frente.

Jane começava a pensar que era quase engraçado quando Maggie empinou. Mohammed largou a rédea e cambaleou, tropeçando. A égua recuou para cima de Ellis e o derrubou. Felizmente Ellis caiu para a esquerda, contra a parede do penhasco. Maggie continuou a recuar, para cima de Jane, que se encontrava no lado errado da trilha, os pés na beira. Ela segurou um dos alforjes presos nos arreios, desesperada, pensando que poderia ser empurrada para o precipício.

- Sua égua estúpida! - berrou ela.

Chantal, espremida entre Jane e Maggie, também gritou. Jane foi arrastada por alguns metros, com medo de largar o alforje. Depois, resolvendo assumir o risco, largou o alforje, estendeu a mão direita e agarrou a rédea. Firmando-se, foi se postar ao lado da cabeça da égua, deu um puxão na rédea e gritou:

- Pare!

Para seu espanto, Maggie parou. Jane virou-se. Ellis e Mohammed estavam se levantando.

- Vocês estão bem? - ela perguntou, em francês.

- Mais ou menos - respondeu Ellis.

- Perdi a lanterna - informou Mohammed. Ellis comentou, em inglês:

- Só espero que os russos tenham os mesmos problemas. Jane compreendeu que eles não haviam percebido como a égua quase a empurrara para o precipício. Decidiu não contar. Entregou a rédea a Ellis e disse:

- Vamos em frente. Podemos cuidar dos ferimentos depois. - Ela passou por Ellis e acrescentou para Mohammed: - Siga na frente.

Mohammed reanimou-se depois de alguns minutos sem Maggie. Jane especulou se realmente precisavam da égua, mas concluiu que sim: havia bagagem demais para carregarem, e tudo era essencial... era até provável que devessem ter trazido mais comida.

Passaram apressados por um povoado silencioso e adormecido, apenas um punhado de casas, ao lado de uma cachoeira. Um cachorro latiu histérico numa das casas, até que alguém o silenciou com um grito. E logo estavam outra vez numa região deserta.

O céu começou a passar de preto a cinza, e as estrelas sumiram: o dia estava raiando. Jane se perguntou o que os russos estariam fazendo. Talvez os oficiais estivessem agora acordando os homens, gritando e chutando os que demoravam a sair dos sacos de dormir. Um cozinheiro faria o café, enquanto o comandante estudava o mapa.

Ou talvez tivessem se levantado mais cedo, há uma ou duas horas, enquanto ainda estava escuro, partindo em poucos minutos, marchando em fila indiana, à beira do Rio Linar; talvez já tivessem passado pela aldeia de Linar; talvez seguissem pelos caminhos certos em todas as bifurcações e se encontrassem agora apenas a dois ou três quilômetros atrás.

Jane andou um pouco mais depressa.

A platibanda se esgueirava pela encosta do penhasco e descia para a margem do rio. Não havia sinais de atividade agrícola, mas as encostas da montanha, nos dois lados, tinham uma vegetação intensa. Quando a claridade aumentou, Jane identificou as árvores como carvalhos. Apontou-os para Ellis, indagando:

- Por que não podemos nos esconder naquele bosque?

- Como um último recurso, podemos. Mas os russos logo descobririam que paramos, interrogando os aldeões e sendo informados de que não passamos. Voltariam e iniciariam uma busca meticulosa.

Jane balançou a cabeça, resignada. Estava apenas procurando um pretexto para parar.

Pouco antes do nascer do sol eles contornaram uma curva e pararam no mesmo instante: um desmoronamento enchera a garganta com terra e pedras soltas, bloqueando-a por completo.

Jane sentiu vontade de chorar. Haviam percorrido cerca de quatro quilômetros pela margem do rio e pela platibanda estreita, e voltar agora representaria oito quilômetros extras, inclusive a passagem que tanto assustara Maggie. Os três ficaram imóveis por um momento, olhando para o bloqueio.

- Podemos escalar? - indagou Jane.

- A égua não pode - respondeu Ellis.

Jane ficou furiosa com ele por enunciar o óbvio.

- Um de nós pode voltar com Maggie - disse ela impaciente. - Os outros dois podem descansar um pouco, enquanto esperam que a égua chegue aqui pelo outro lado.

- Não creio que seja sensato nos separarmos.

Jane ressentiu-se com o tom de decisão final em sua voz.

- Não presuma que os outros devam fazer o que você acha que é sensato - disse ela bruscamente.

Ellis olhou-a aturdido.

- Está bem, está bem. Mas também acho que esse monte de terra e pedra pode se deslocar se alguém tentar escalá-lo. Mais do que isso, devo dizer que não Vou tentar, não importa o que vocês dois possam decidir.

- Então não quer sequer discutir o assunto!

Furiosa, Jane virou-se e começou a voltar pela trilha, deixando aos homens a decisão de segui-la ou não. Por que será, pensou ela, que os homens assumem uma pose de mando, de quem sabe de tudo, sempre que há um problema físico ou mecânico?

Ellis não era desprovido de defeitos, refletiu ela. Pode ser um homem rude: apesar de toda a sua conversa de ser um especialista em antiterrorismo, ainda trabalhava para a CIA, provavelmente o maior grupo de terroristas do mundo. Era inegável que havia uma parte de Ellis que gostava do perigo, da violência e do embuste. Não escolha um machista romântico, refletiu ela, se quer um homem que a respeite.

Uma coisa se podia dizer a favor de Jean-Pierre: ele nunca tratava as mulheres com condescendência. Podia negligenciar, enganar ou ignorar, mas jamais era condescendente.

Talvez por ser mais jovem.

Ela passou pelo lugar onde Maggie empinara. Não esperou pelos homens: os dois podiam cuidar sozinhos da égua desta vez.

Chantal estava choramingando, mas Jane a deixou esperando. Continuou até o ponto em que parecia haver uma trilha para o topo do penhasco. Sentou-se ali, proclamando unilateralmente um descanso. Ellis e Mohammed alcançaram-na um ou dois minutos depois. Mohammed pegou um pedaço de bolo de nozes e amoras e distribuiu-o. Ellis não falou com Jane.

Depois da pausa, eles subiram para o alto da colina. Emergiram para o sol lá em cima e Jane começou a se sentir um pouco menos zangada. Não demorou muito para que Ellis passasse um braço em torno de seu corpo e murmurasse:

- Peço desculpas por ter assumido o comando.

- Obrigada - respondeu Jane, ainda tensa.

- Mas não acha que talvez você tenha reagido de maneira um pouco exagerada?

- Não duvido que foi isso mesmo. Desculpe.

- Foi mesmo. Deixe-me carregar Chantal.

Jane entregou-lhe a criança. Ao se aliviar do peso, descobriu que suas costas doíam. Chantal nunca parecera pesada, mas o fardo se fazia sentir numa distância longa.

Era a mesma coisa que carregar uma sacola de compras por quinze quilômetros.

O ar foi se tornando mais ameno enquanto o sol subia pelo céu.

Jane abriu o capote e Ellis tirou o seu. Mohammed conservou o capote militar russo, com a típica indiferença afegã a tudo que não fosse a mudança de tempo mais intensa.

Perto do meio-dia saíram da garganta estreita do Linar, entrando no largo Vale do Nuristan. Ali o caminho estava outra vez bem definido, quase tão bom quanto a trilha de carroça que corria pelo Vale dos Cinco Leões. Viraram para o norte, seguindo correnteza acima, encosta acima.

Jane sentia-se cada vez mais cansada e desanimada. Depois de se levantar às duas da madrugada, andara por dez horas - mas só haviam percorrido sete ou oito quilômetros.

Ellis queria percorrer mais dezesseis quilômetros naquele dia. Era o terceiro dia consecutivo de marcha, e Jane sabia que não poderia continuar até o anoitecer.

Até mesmo Ellis exibia uma expressão mal-humorada que Jane sabia ser um sinal de cansaço. Só Mohammed parecia incansável.

No Vale Linar não haviam encontrado ninguém fora das aldeias, mas ali havia uns poucos viajantes, quase todos usando túnicas e turbantes brancos. Os nuristanis olhavam curiosos para os dois ocidentais pálidos e exaustos, mas cumprimentavam Mohammed com um respeito cauteloso, sem dúvida por causa do Kalashnikov pendurado em seu ombro.

Enquanto subiam pela margem do Rio Nuristan, foram alcançados por um jovem de barba preta, olhos brilhantes, com dez peixes frescos espetados numa vara. Ele falou com Mohammed numa mistura de línguas, em que Jane reconheceu algum dari e algumas palavras francesas. Entenderam-se o bastante para que Mohammed comprasse três peixes.

Ellis contou o dinheiro e disse a Jane:

- Quinhentos afeganis por peixe... quanto dá isso?

- Quinhentos afeganis dão cinqüenta francos franceses... cinco libras.

- Ou seja, dez dólares. Um peixe muito caro.

Jane desejou que ele parasse de falar: já tinha a maior dificuldade para pôr um pé na frente do outro, e Ellis ainda reclamava do preço do peixe.

O jovem, que se chamava Halam, disse que pegara os peixes no Lago Mundol, mais abaixo no vale, embora provavelmente os tivesse comprado, pois não parecia um pescador.

Diminuiu seu ritmo para acompanhá-los, falando sem parar e aparentemente sem se preocupar se eles entendiam ou não.

Como o Vale dos Cinco Leões, o Nuristan era uma garganta rochosa que se alargava a intervalos de poucos quilômetros, com pequenas planícies cultivadas e plantações em terraços. A diferença mais destacada era a floresta de carvalho que cobria as encostas da montanha, como lã no lombo de uma ovelha, e que Jane achava que poderia servir de esconderijo, quando tudo o mais falhasse.

Andavam mais depressa agora. Não havia desvios inesperados na montanha, pelo que Jane sentia-se grata. Em determinado ponto a estrada estava bloqueada por um deslizamento, mas Ellis e Jane conseguiram escalá-lo e Mohammed vadeou o rio com a égua, voltando à mesma margem alguns metros adiante. Pouco depois, quando uma projeção rochosa entrava pelo rio, o caminho passava pelo paredão do penhasco numa ponte de cavaletes bastante frágil. Maggie recusou-se a enfrentá-la, e Mohammed mais uma vez resolveu o problema levando-a pela outra margem.

A esta altura, Jane estava prestes a desfalecer. Quando Mohammed voltou, ela murmurou:

- Preciso parar e descansar um pouco.

- Estamos quase em Gadwal - informou Mohammed.

- A que distância fica?

Mohammed conferenciou com Halam em dari e francês, antes de responder:

- A meia hora.

Parecia uma eternidade para Jane. Claro que posso andar por mais meia hora, disse a si mesma. Tentou pensar em outra coisa que não a dor nas costas e a vontade de deitar.

Ela avistou a aldeia quando viraram a curva seguinte.

Era uma visão surpreendente, além de bem-vinda: as casas de madeira subiam pela encosta íngreme da montanha como crianças subindo nas costas umas das outras, dando a impressão de que se a casa na base desmoronasse toda a aldeia despencaria morro abaixo na água.

Ao se aproximarem da primeira casa, Jane parou e sentou, à beira do rio. Todos os músculos de seu corpo doíam, e ela mal teve forças para receber Chantal de Ellis, que sentou-se a seu lado com uma prontidão que sugeria que ele também estava exausto. Um rosto curioso espiou da casa, e no mesmo instante Halam se pôs a falar com a mulher, presumivelmente dizendo o que sabia a respeito de Jane e Ellis. Mohammed amarrou Maggie num lugar em que ela podia pastar a relva da beira do rio e depois foi se acocorar ao lado de Ellis.

- Precisamos comprar pão e chá - disse ele.

Já temos uma boa dianteira, pois partimos de madrugada. Passaremos a noite aqui e seguiremos viagem amanhã bem cedo. Lembre-se de que nada termina antes da hora.

Tudo pode acontecer. Alguém em Moscou pode chegar à conclusão de que Anatoly ficou maluco e ordenar que a busca seja suspensa.

- Não diga bobagem - murmurou Jane, em inglês. Mas, secretamente, ela se sentia contente, contra toda a razão, por Ellis se recusar a prosseguir sozinho.

- Tenho uma sugestão alternativa - disse Mohammed. - Posso voltar e desviar os russos.

Jane sentiu o coração disparar. Seria possível? Ellis perguntou:

- Como?

- Vou me oferecer como guia e intérprete e os levarei mais para o sul do Vale do Nuristan, para longe de vocês, na direção do Lago Mundol.

Jane pensou num obstáculo e sentiu novo aperto no coração, enquanto comentava:

- Mas eles já devem ter um guia.

- Pode ser um homem de bem do Vale dos Cinco Leões que foi forçado a ajudar os russos contra a sua vontade. Nesse caso, conversarei com ele e acertarei tudo.

- E se ele não quiser ajudar? Mohammed pensou por um momento.

- Então ele não é um homem de bem que foi obrigado a ajudálos, mas sim um traidor que colabora de bom grado com o inimigo por ganho pessoal. Nesse caso, eu o matarei.

- Não quero que ninguém seja morto por minha causa - Jane apressou-se em dizer.

- Não é por sua causa - declarou Ellis, a voz áspera. - É por mim... porque me recusei a seguir sozinho.

Jane ficou calada. Ellis estava pensando em problemas práticos, e depois de uma pausa disse a Mohammed:

- Você não está vestido como um nuristani.

- Trocarei de roupa com Halam.

- Não fala direito a língua local.

- Há muitas línguas no Nuristan. Fingirei que venho de um distrito em que se usa uma língua diferente. De qualquer forma, os russos não falam nenhuma das línguas e nunca vão saber.

- O que fará com seu rifle? Mohammed pensou por um momento.

- Pode me dar sua bolsa?

- É muito pequena.

- Meu Kalashnikov é do tipo que tem a coronha dobrável.

- Claro que pode ficar com a bolsa.

Jane se perguntou se não atrairia suspeitas, mas concluiu que não: as bolsas dos afegãos eram tão estranhas e variadas quanto as roupas. De qualquer modo, Mohammed acabaria despertando suspeitas, mais cedo ou mais tarde. Ela indagou:

- O que acontecerá quando os russos finalmente compreenderem que estão no caminho errado?

- Antes que isso aconteça, fugirei durante a noite, deixando-os no meio do nada.

- É muito perigoso - murmurou Jane.

Mohammed tentou parecer heroicamente despreocupado. Como a maioria dos guerrilheiros, ele era de fato corajoso, mas também tinha uma vaidade ridícula. Ellis comentou:

- Se calcular o momento errado e desconfiarem de você antes de deixá-los, pode estar certo de que vão torturá-lo para descobrir o caminho que seguimos.

- Jamais conseguirão me capturar vivo - declarou Mohammed.

Jane acreditou nele. E Ellis acrescentou:

- Mas ficaremos sem guia.

- Arrumarei outro.

Mohammed virou-se para Halam e iniciou uma conversa rápida em várias línguas. Jane calculou que Mohammed propunha que Halam ficasse como guia. Ela não gostava de Halam - era mercenário demais para merecer confiança total - mas era obviamente um viajante, e por isso uma escolha natural. Era bem provável que a grande maioria dos habitantes locais jamais tivesse deixado seu próprio vale.

- Ele diz que conhece o caminho - informou Mohammed, voltando a falar em francês. Jane sentia uma pontada de ansiedade pelas palavras. Ele diz. Mohammed acrescentou:

- Levará vocês até Kantiwar e ali arrumará outro guia para conduzi-los pela passagem seguinte. E continuarão assim até o Paquistão. Ele cobrará cinco mil afeganis.

- Parece um preço justo - comentou Ellis. - Mas quantos outros guias teremos de contratar a esse preço, até chegarmos a Chitral?

- Talvez cinco ou seis.

Ellis sacudiu a cabeça.

- Não temos trinta mil afeganis. E ainda precisamos comprar comida.

- Poderão arrumar comida cuidando dos pacientes pelo caminho - sugeriu Mohammed. - E o caminho é mais fácil depois que chegarem ao Paquistão. Talvez não precisem de guias no final.

Ellis ainda hesitava e perguntou a Jane:

- O que você acha?

- Há uma alternativa. Você pode me deixar aqui. .

- Não. Essa alternativa não existe. Seguiremos juntos.

 

Durante todo o primeiro dia os grupos de busca não encontraram qualquer sinal de Ellis e Jane.

Jean-Pierre e Anatoly sentaram em cadeiras duras de madeira, numa sala espartana, sem janelas, na base aérea de Bagram, estudando as informações que chegavam pelo rádio. Os grupos de busca haviam partido outra vez antes do amanhecer. Eram seis no começo, um para cada um dos cinco vales laterais principais que seguiam para leste, a partir do Cinco Leões, e o sexto para seguir o Rio dos Cinco Leões para o norte, até sua nascente e além dela. Cada grupo incluía pelo menos um oficial do exército regular afegão que falava dari. Pousaram de helicópteros em seis aldeias diferentes do Vale dos Cinco Leões, e meia hora depois todos comunicaram que haviam arrumado guias locais.

- Foi bem rápido - comentou Jean-Pierre, depois que o sexto transmitiu a informação. - Como conseguiram?

- Muito simples - explicou Anatoly. - Eles pedem a alguém para servir de guia. O homem recusa. É fuzilado. Pedem a outro. Não demora muito para se conseguir um voluntário.

Um dos grupos tentou seguir a sua trilha designada pelo ar, mas a experiência fracassou. As trilhas já eram bastante difíceis de se acompanhar por terra; por ar era impossível. Além disso, nenhum dos guias jamais estivera antes num helicóptero, e eles ficaram desorientados. Assim, todos os grupos seguiram a pé, alguns requisitando cavalos para transportar a bagagem.

Jean-Pierre não esperava mais notícias pela manhã, pois os fugitivos tinham um dia inteiro de vantagem. Contudo, os soldados se deslocariam mais depressa do que Jane, ainda mais porque ela estava carregando Chantal.

Jean-Pierre sentia uma pontada de culpa cada vez que pensava em Chantal. A raiva pela mulher não se estendia à filha, mas ele tinha certeza de que a criança estava sofrendo: viajando durante o dia inteiro, atravessando desfiladeiros acima da linha da neve, açoitada pelos ventos gelados...

Ele se concentrou, como vinha acontecendo agora com freqüência, no que ocorreria se Jane morresse e Chantal sobrevivesse. Imaginou Ellis capturado, sozinho; o corpo de Jane encontrado dois ou três quilômetros antes, morta pelo frio, a criança em seus braços, ainda milagrosamente viva. Eu voltaria a Paris como um personagem trágico, romântico, pensou Jean-Pierre; um viúvo com uma filha pequena, um veterano da guerra no Afeganistão... Viraria uma celebridade! E sou perfeitamente capaz de criar uma filha. Nosso relacionamento seria mais profundo à medida que ela crescesse. Teria de contratar uma babá, é claro, mas cuidaria para que ela não ocupasse o lugar da mãe no afeto de Chantal. De jeito nenhum. Eu seria pai e mãe.

Quanto mais pensava a respeito, mais indignado ficava por Jane estar arriscando a vida de Chantal. Ela perdera todos os direitos de mãe ao levar a filha numa aventura tão louca. Ele refletiu que, com essa alegação, provavelmente conseguiria obter a custódia legal de Chantal num tribunal europeu.

Enquanto a tarde passava, Anatoly ia se tornando entediado e Jean-Pierre, tenso. Ambos estavam irritadiços. Anatoly mantinha longas conversas em russo com outros oficiais que entravam na pequena sala sem janelas, e o matraquear interminável afetava os nervos de Jean-Pierre. A princípio Anatoly traduzira todos os relatórios que os grupos de busca enviavam pelo rádio, mas agora se limitava a dizer "Nada". Jean-Pierre plotara as rotas dos grupos em diversos mapas, indicando as localizações com alfinetes de cabeça vermelha. Ao final da tarde, porém, eles seguiam trilhas por leitos secos de rios que não constavam dos mapas; e se os relatórios pelo rádio indicavam o paradeiro, Anatoly não repassava as informações. Os diversos grupos acamparam ao cair da noite sem terem encontrado qualquer sinal dos fugitivos. Haviam recebido instruções para interrogar os moradores das aldeias pelo caminho. Os aldeões afirmavam não terem visto qualquer estrangeiro. O que não era de surpreender, pois eles ainda se encontravam nos desfiladeiros dos Cinco Leões que levavam ao Nuristan. As pessoas a quem interrogavam, de um modo geral, eram leais a Masud: ajudar os russos em qualquer coisa era um ato de traição. No dia seguinte, quando os grupos de busca entrassem no Nuristan, encontrariam pessoas mais cooperativas.

Mesmo assim, Jean-Pierre sentia-se desanimado quando deixou o escritório, ao cair da noite, junto com Anatoly, atravessando a pista de concreto até a cantina. Comeram um jantar horrível, de salsicha em lata e purê de batata reidratado. Depois, Anatoly foi beber vodka com outros oficiais, deixando Jean-Pierre aos cuidados de um sargento que só falava russo. Jogaram uma partida de xadrez, mas - para desolação de Jean-Pierre - o sargento era bom demais. Jean-Pierre foi deitar cedo e ficou acordado num colchão militar duro, imaginando Jane e Ellis na cama, juntos.

Na manhã seguinte foi despertado por Anatoly, o rosto oriental exibindo um sorriso, sem qualquer sinal da irritação anterior. Jean-Pierre sentiu-se como um garoto levado que fora perdoado, apesar de não saber o que fizera de errado. Tomaram juntos um mingau na cantina. Anatoly já mantivera contato com todos os grupos de busca,

que haviam levantado acampamento e partido ao amanhecer.

- Hoje vamos descobrir sua mulher, meu amigo - garantiu Anatoly jovialmente.

Jean-Pierre sentiu um impulso renovado de otimismo. Anatoly tornou a entrar em contato pelo rádio com os grupos assim que chegaram à sala. Pediu-lhes que descrevessem o que pudessem ver ao redor, e Jean-Pierre aproveitou as descrições de riachos, lagos, depressões e ravinas para calcular onde se encontravam. Pareciam estar se deslocando devagar demais em termos de quilômetros por hora, mas subiam por um terreno difícil, e os mesmos fatores retardariam Ellis e Jane.

Cada grupo dispunha de um guia; ao chegarem a um ponto em que a trilha se bifurcava, ambos os caminhos levando ao Nuristan, recrutavam um guia adicional da aldeia mais próxima e se dividiam em dois grupos. Por volta do meio-dia o mapa de Jean-Pierre estava coberto de pontos vermelhos, como um caso de sarampo.

No meio da tarde houve uma distração inesperada: um general de óculos, numa viagem de inspeção de cinco dias pelo Afeganistão, pousou em Bagram e resolveu descobrir como Anatoly estava gastando o dinheiro dos contribuintes russos. Jean-Pierre soube disso por umas poucas palavras de Anatoly, segundos antes de o general entrar na sala, seguido por nervosos oficiais, como filhotes acompanhando a mamãe pata.

Jean-Pierre ficou fascinado pela maneira magistral como Anatoly envolveu o visitante. Ele se levantou de um pulo, parecendo dinâmico mas tranqüilo; apertou a mão do general e ofereceu-lhe uma cadeira; gritou uma série de ordens pela porta aberta; falou depressa, mas com deferência, com o general por cerca de um minuto; pediu licença e falou pelo rádio; traduziu, para Jean-Pierre, a mensagem transmitida do Nurístan; e apresentou o general a Jean-Pierre, em francês.

O general começou a fazer perguntas e Anatoly apontou para os alfinetes vermelhos no mapa de Jean-Pierre, enquanto respondia. E foi no meio de tudo isso que um dos grupos de busca chamou espontaneamente, a voz em russo do operador parecendo muito excitada. Anatoly pediu que o general se calasse no meio de uma frase para escutar.

Jean-Pierre ficou sentado na beirada da cadeira, aguardando ansiosamente pela tradução.

A voz parou de falar. Anatoly fez uma pergunta e obteve uma resposta.

- O que eles encontraram? - indagou Jean-Pierre, incapaz de se manter em silêncio por mais tempo.

Anatoly ignorou-o por um momento, falando primeiro ao general. Depois virou-se para Jean-Pierre e informou:

- Encontraram dois americanos numa aldeia chamada Atati, no Vale do Nuristan.

- Sensacional! - exclamou Jean-Pierre. - São eles!

- Acho que sim.

Jean-Pierre não podia entender a falta de entusiasmo de Anatoly.

- Mas claro que são! Seus homens não conhecem a diferença entre um americano e um inglês?

- Provavelmente não. Mas dizem que não há crianças.

- Nenhuma criança?

Jean-Pierre franziu o rosto. Como era possível? Jane teria deixado Chantal no Vale dos Cinco Leões para ser criada por Rabia, Zahara ou Fará? Parecia impossível.

Teria escondido a criança com uma família daquela aldeia, Atati, pouco antes de ser capturada pelo grupo de busca? Isso também parecia improvável: o instinto de Jane seria o de ficar com a filha nos momentos de perigo.

Chantal estaria morta?

Ele concluiu que era provavelmente um equívoco: algum erro de comunicação, interferência atmosférica no contato pelo rádio, ou mesmo um oficial obtuso que não percebera a criança.

- Não vamos conjeturar - disse ele a Anatoly. - É melhor ir até lá para verificar pessoalmente.

- Quero que você vá com o helicóptero.

- Está certo. - Jean-Pierre ficou surpreso com a posição de Anatoly. - Quer dizer que você não vai?

- Isso mesmo.

- E por que não?

- Sou necessário aqui.

Anatoly lançou um olhar rápido para o general.

- Entendo...

Sem dúvida havia um jogo de poder na burocracia militar; Anatoly receava deixar a base enquanto o general permanecesse ali, pois algum rival poderia caluniá-lo pelas costas.

Anatoly pegou o telefone na mesa e deu uma série de ordens em russo. Enquanto ele ainda falava, um ordenança entrou na sala e fez sinal a Jean-Pierre. Anatoly pôs a mão sobre o bocal e disse:

- Eles vão lhe arrumar um capote bem grosso, pois já é inverno no Nuristan. À bientôt.

Jean-Pierre saiu com o ordenança. Atravessaram a pista de concreto. Dois helicópteros esperavam, os rotores girando: um Hind com foguetes por baixo das asas curtas e um Hip maior, com vigias ao longo da fuselagem. Jean-Pierre se perguntou para que serviria o Hip, e só depois de um instante compreendeu que seria para trazer de volta o grupo de busca. Pouco antes de alcançarem os aparelhos um soldado se aproximou correndo com um capote militar e entregou-o a Jean-Pierre. Ele pendurou-o no braço e embarcou no Hind.

Decolaram no mesmo instante. Jean-Pierre sentia uma expectativa febril. Sentou no banco da cabine de passageiros, junto com meia dúzia de soldados. Seguiram para nordeste.

Ao se afastarem da base, o piloto fez um sinal para Jean-Pierre, que se adiantou e subiu no degrau para o assento, a fim de poder ouvir direito.

- Serei o seu intérprete - disse o homem, num francês hesitante.

- Obrigado. Você sabe para onde estamos indo?

- Sei sim, senhor. Temos as coordenadas e posso manter contato pelo rádio com o líder do grupo de busca.

- Ótimo.

Jean-Pierre ficou surpreso por ser tratado com tanta deferência. Parecia que adquirira um posto honorário por sua associação com um coronel da

Perguntou-se, enquanto voltava ao banco, como Jane reagiria ao vê-lo. Ficaria aliviada? Assumiria uma atitude de desafio? Ou apenas se mostraria exausta? Ellis estaria furioso e humilhado, como não podia deixar de ser. Como devo me comportar?, pensou JeanPierre. Quero que eles fiquem desesperados, mas preciso manter a dignidade.

O que devo dizer?

Tentou visualizar a cena. Ellis e Jane estariam no pátio de alguma mesquita ou sentados no chão de terra de uma cabana de pedra, vigiados por soldados com Kalashnikovs.

Provavelmente estariam com frio e fome, angustiados. Jean-Pierre se adiantaria com seu capote militar, confiante e autoritário, seguido por deferentes oficiais subalternos.

Lançaria para os dois um olhar penetrante e prolongado, e depois diria...

O que diria? Voltamos a nos encontrar parecia exageradamente melodramático. Pensaram realmente que conseguiriam escapar de nós? era retórico demais. Vocês nunca tiveram qualquer chance parecia melhor, mas ainda era um anticlimax.

A temperatura baixou depressa enquanto seguiam para as montanhas. Jean-Pierre pôs o capote e ficou de pé junto à porta aberta, olhando para fora. Lá embaixo estendia-se um vale parecido com o Cinco Leões, com um rio no meio, correndo à sombra das montanhas. Jean-Pierre adiantou-se e foi perguntar no ouvido do piloto:

- Onde estamos?

- Este lugar é conhecido como Vale Sakardara. Mais para o norte, o nome muda para Vale Nuristan. Vai nos levar até Atati.

- Quanto tempo mais?

- Vinte minutos.

Parecia uma eternidade. Controlando a impaciência com enorme esforço, Jean-Pierre voltou a sentar-se no banco, junto com os soldados. Eles estavam imóveis e silenciosos, observando-o. Pareciam ter medo dele. Talvez pensassem que era um agente da KGB.

Pois eu sou mesmo da KGB, pensou Jean-Pierre de repente.

Imaginou o que os soldados estariam pensando. Nas namoradas e esposas que os aguardavam? O lar daqueles homens seria também o seu, dali por diante. Teria um apartamento em Moscou. Perguntou-se se ainda podia ter uma vida conjugal feliz com Jane. Queria que ela e Chantal ficassem em seu apartamento, enquanto ele, como aqueles soldados, lutava a boa luta em terras estrangeiras, ansioso pelas licenças, quando voltaria para casa e tornaria a deitar com a mulher, e descobriria como a filha crescera durante sua ausência. Traí Jane e ela me traiu, refletiu Jean-Pierre; talvez possamos perdoar um ao outro, quando menos não seja por Chantal.

O que acontecera com Chantal?

Ele estava prestes a descobrir. O helicóptero começou a baixar. Estavam quase chegando. Jean-Pierre levantou-se para olhar outra vez pela porta. Desciam para uma campina onde um afluente se juntava ao rio principal. Era um lugar bonito, com umas poucas casas subindo pela encosta, sobrepondo-se ao melhor estilo nuristani.

JeanPierre lembrava-se de ter visto fotografias de aldeias assim em livros ilustrados sobre o Himalaia.

O helicóptero pousou.

Jean-Pierre saltou. No outro lado da campina, alguns soldados russos - o grupo de busca, com toda certeza - saíram da mais baixa das casas de madeira. Jean-Pierre esperou impaciente pelo piloto, seu intérprete. O homem finalmente desembarcou e Jean-Pierre gritou-lhe, enquanto começava a atravessar o campo:

- Vamos logo!

Teve de se conter para não desatar a correr. Ellis e Jane deviam estar na casa de onde os soldados haviam saído, pensou ele, encaminhando-se para lá o mais depressa que podia sem correr. Começou a sentir-se furioso: a raiva há tanto reprimida fervilhava dentro dele. Que se dane a dignidade, pensou ele; direi a esse casal abominável o que acho deles.

Quando ele chegou perto, o oficial à frente do grupo de busca começou a falar. Ignorando-o, Jean-Pierre virou-se para o piloto e disse:

- Pergunte onde eles estão.

O piloto perguntou, e o oficial apontou para a casa de madeira. Sem mais demora, Jean-Pierre passou pelos soldados.

Sua ira estava a ponto de explodir quando entrou na tosca construção de madeira. Diversos outros soldados estavam de pé num canto. Fitaram-no e depois se afastaram para lhe dar passagem.

No canto, duas pessoas estavam amarradas a um banco.

Jean-Pierre fitou-as, aturdido. Sua boca se abriu, o sangue fugiu-lhe do rosto. Ali estavam um garoto magro e de aparência anêmica, com dezoito ou dezenove anos, cabelos sujos, bigode de pontas caídas, e uma loura de peitos grandes, com flores nos cabelos.

O garoto olhou para Jean-Pierre com uma expressão aliviada e disse em inglês:

- Ei, cara, vai nos ajudar? Estamos numa merda de fazer gosto.

Jean-Pierre teve a sensação de que ia explodir. Era apenas um casal de hippies no caminho de Katmandu, uma espécie de turismo que não morrera de todo, apesar da guerra. Que desapontamento! Por que eles tinham de estar ali no momento em que o mundo inteiro procurava por um casal ocidental fugitivo?

Jean-Pierre não estava disposto a ajudar um par de degenerados viciados em tóxicos. Virou-se e saiu. O piloto entrava naquele instante. Viu a expressão de Jean-Pierre e perguntou:

- Qual é o problema?

- É o casal errado. Venha comigo. O homem seguiu Jean-Pierre.

- O casal errado? Quer dizer que não são americanos?

- São americanos, mas não as pessoas que estamos procurando.

- O que vai fazer agora?

- Vou falar com Anatoly, e preciso que você entre em contato com ele pelo rádio.

Atravessaram o campo e subiram no helicóptero. Jean-Pierre sentou-se no banco do artilheiro e pôs os headphones. Ficou batendo com o pé, impaciente, no chão de metal, enquanto o piloto falava pelo rádio em russo, interminavelmente. Por fim, ouviu a voz de Anatoly, parecendo muito distante, pontuada pela estática.

- Jean-Pierre, meu amigo, aqui é Anatoly. Onde você está?

- Em Atati. Os dois americanos que eles capturaram não são Ellis e Jane. Repito, não são Ellis e Jane. Não passam de uma dupla de garotos tolos procurando o nirvana.

Câmbio.

- Isso não me surpreende, Jean-Pierre.

- Como assim? - interrompeu Jean-Pierre, esquecendo que a comunicação era por um só canal.

- ... recebemos diversas informações de que Ellis e Jane foram vistos no Vale Linar. O grupo de busca ali ainda não efetuou contato com eles, mas está na pista, e bem perto. Câmbio.

A raiva de Jean-Pierre para com os hippies se dissipou, e um pouco de sua ansiedade voltou.

- Vale Linar... onde fica? Câmbio.

- Perto do lugar em que você se encontra agora. Segue para o Vale Nuristan a cerca de trinta quilômetros ao sul de Atati. Câmbio.

Bem perto!

- Tem certeza? Câmbio.

- O grupo de busca obteve diversas informações nas aldeias pelo caminho. As descrições combinam com Ellis e Jane. E falaram numa criança. Câmbio.

Então eram eles!

- Podemos calcular onde eles estão agora? Câmbio.

- Ainda não. Estou indo ao encontro do grupo de busca. Saberei de mais detalhes quando chegar lá. Câmbio.

- Quer dizer que não está em Bagram? O que aconteceu com seu... ahn... visitante? Câmbio.

- Ele foi embora - respondeu Anatoly em tom brusco. - Estou no ar neste momento e prestes a me encontrar com o grupo numa aldeia chamada Mundol. Fica no Vale Nuristan, abaixo do ponto em que o Rio Linar deságua no Nuristan, perto de um lago grande, também chamado Mundol. Encontre-se comigo lá. Passaremos a noite em Mundol e comandaremos pessoalmente a busca pela manhã. Câmbio.

- Estarei lá! - exclamou Jean-Pierre exultante. Lembrou-se de uma coisa. - O que vamos fazer com os hippies! Câmbio.

- Terão de ser levados a Kabul para interrogatório. Algumas pessoas ali vão lembrá-los da realidade do mundo material. Deixe-me falar com o piloto. Câmbio.

- Até Mundol. Câmbio.

Anatoly começou a falar em russo com o piloto, e Jean-Pierre tirou os fones. Perguntou-se por que Anatoly queria perder tempo interrogando um casal de hippies inofensivos.

Era evidente que aqueles dois não podiam ser espiões. E de repente lhe ocorreu que a única pessoa que realmente sabia se aqueles dois eram ou não Ellis e Jane era ele próprio. Talvez fosse possível - embora altamente improvável - que Ellis e Jane o tivessem persuadido a deixá-los partir, convencendo-o a dizer a Anatoly que o grupo de busca capturara apenas um casal de hippies.

Aquele russo era um filho da puta desconfiado.

Jean-Pierre esperou impaciente que ele encerrasse a conversa com o piloto. Parecia que o grupo de busca em Mundol estava próximo da presa. Talvez Ellis e Jane fossem capturados amanhã. Na verdade, a tentativa de fuga estava mais ou menos condenada ao fracasso desde o início; mas isso evitava que Jean-Pierre se preocupasse, e ele continuaria na agonia do suspense até que os dois estivessem com mãos e pés atados e trancafiados numa cela russa. O piloto tirou os headphones e anunciou:

- Vamos levar você a Mundol neste helicóptero. O Hip seguirá com os outros de volta à base.

- Está certo.

Poucos minutos depois eles estavam no ar, deixando os outros se retardarem o tempo necessário. Estava quase escuro, e Jean-Pierre imaginou se seria difícil encontrar a aldeia de Mundol.

A noite caiu depressa enquanto eles seguiam o rio, correnteza abaixo. A paisagem lá embaixo desapareceu na escuridão. O piloto falava constantemente pelo rádio, e Jean-Pierre calculou que estava sendo orientado por pessoas no solo, em Mundol. Dez ou quinze minutos mais tarde luzes fortes apareceram lá embaixo. Cerca de um quilômetro além a lua se refletia numa enorme massa de água. O helicóptero desceu.

Pousou num campo, perto de outro helicóptero. Um soldado à espera conduziu Jean-Pierre pela relva até a aldeia na encosta de uma colina. As silhuetas das casas estavam recortadas contra o luar. Jean-Pierre seguiu o soldado para uma das casas. Ali, sentado numa cadeira dobrável, com um enorme capote de pele de lobo, estava Anatoly. Na maior excitação.

- Jean-Pierre, meu amigo francês, estamos próximos do sucesso! - gritou ele, bem alto. Era estranho ver um homem de rosto oriental demonstrar tanta exuberância e jovialidade. - Tome um café... está misturado com vodka.

Jean-Pierre aceitou um copo de papel de uma mulher afegã que parecia estar servindo Anatoly. Sentou-se em outra cadeira dobrável, como a de Anatoly. Pareciam militares.

Se os russos estavam carregando tanto equipamento - cadeiras dobráveis, café, copos de papel, vodka - talvez não fossem capazes, no final das contas, de se deslocarem mais depressa do que Ellis e Jane. Anatoly leu seus pensamentos e comentou, com um sorriso:

- Trouxe alguns pequenos luxos no meu helicóptero. A KGB tem a sua dignidade.

Jean-Pierre não conseguiu interpretar sua expressão e não sabia se ele estava gracejando ou não. Mudou de assunto.

- Quais são as últimas notícias?

- Não resta mais qualquer dúvida de que nossos fugitivos passaram hoje pelas aldeias de Bosaydur e Linar. E em algum instante desta tarde o grupo de busca perdeu o guia, que desapareceu por completo. Provavelmente decidiu voltar para casa. - Anatoly franziu o rosto, como se incomodado por esse pequeno problema, e depois continuou: - Felizmente encontraram logo outro guia.

- Empregando a sua persuasiva técnica de recrutamento, é claro - comentou Jean-Pierre.

- Desta vez não, por mais estranho que possa parecer. Pelo que me disseram, este foi um voluntário genuíno. Está aqui, em algum lugar da aldeia.

- É mais fácil encontrar voluntários no Nuristan - disse JeanPierre. - Eles quase não estão envolvidos na guerra... e diz-se que são totalmente desprovidos de escrúpulos.

- Esse novo guia afirma ter visto os fugitivos hoje, antes de se juntar ao grupo de busca. Passaram por ele no ponto em que o Linar deságua no Nuristan. Ele os viu virarem para o sul, seguindo por este caminho.

- Isso é ótimo.

- Esta noite, quando o grupo de busca chegou a Mundol, nosso homem interrogou alguns aldeões e descobriu que dois estrangeiros com uma criança passaram por aqui esta tarde, seguindo para o sul.

- Então não resta mais qualquer dúvida - murmurou JeanPierre com evidente satisfação.

- Absolutamente nenhuma - concordou Anatoly. - Nós os pegaremos amanhã. com toda certeza.

Jean-Pierre acordou num colchão inflável - outro luxo da KGB - sobre o chão de terra da casa. O fogo apagara durante a noite, e fazia frio. A cama de Anatoly, no outro lado do quarto pequeno e escuro, estava vazia. Jean-Pierre não sabia onde os donos da casa haviam passado a noite. Depois de providenciarem comida e servirem-na,

Anatoly os mandara embora. Ele tratava todo o Afeganistão -como se fosse seu reino pessoal. E talvez fosse mesmo. Jean-Pierre sentou-se e esfregou os olhos, e só depois viu Anatoly de pé na porta, fitando-o com uma expressão especulativa.

- bom dia - disse Jean-Pierre.

- Já esteve alguma vez aqui antes? - indagou Anatoly, sem qualquer preâmbulo.

O cérebro de Jean-Pierre ainda estava um pouco enevoado pelo sono.

- Onde?

- No Nuristan - respondeu Anatoly, impaciente.

- Não.

- Estranho...

Jean-Pierre achava irritante aquele estilo de conversa enigmática ainda tão cedo.

- Por quê? - perguntou ele, o tom um pouco impertinente. - O que há de tão estranho?

- Conversei com o novo guia há poucos minutos.

- Como ele se chama?

- Mohammed, Muhammad, Mahomet, Mahmoud... um desses nomes que um milhão de outros homens tem.

- Que língua usou com um nuristani?

- Francês, russo, dari e inglês... a mistura de sempre. Ele perguntou quem chegou no segundo helicóptero ontem à noite. Respondi: um francês que pode identificar os fugitivos, ou algo parecido. Ele perguntou seu nome e eu informei. Queria que continuasse a falar até descobrir por que ele estava tão interessado. Mas o homem não fez mais perguntas. Parecia que ele conhecia você.

- É impossível.

- Também acho.

- Por que não pergunta diretamente a ele?

Não era próprio de Anatoly se mostrar tão hesitante, pensou Jean-Pierre.

- Não há sentido em fazer uma pergunta a um homem enquanto não se verificou se ele tem algum motivo para mentir.

E dizendo isso, Anatoly saiu. Jean-Pierre levantou-se. Dormira de camisa e cueca. Pôs a calça e as botas, depois ajeitou o capote sobre os ombros e deixou a casa.

Descobriu-se numa tosca varanda de madeira, com vista para o vale inteiro. Lá embaixo, o rio ziguezagueava pelos campos, largo e preguiçoso. A alguma distância para o sul ele entrava num vale comprido e estreito, margeado por montanhas. O sol ainda não surgira. Uma neblina sobre a água ocultava a outra extremidade do lago. Era uma paisagem aprazível. Jean-Pierre lembrou que aquela era a área mais fértil e populosa do Nuristan: quase todo o resto era despovoado e inóspito.

Jean-Pierre notou com satisfação que os russos haviam escavado uma latrina de campanha. O hábito afegão de usar os rios de onde tiravam a água para beber era o motivo pelo qual todos tinham vermes. Os russos vão endireitar este país depois que assumirem o controle total, refletiu Jean-Pierre.

Ele desceu para a campina, usou a latrina, lavou-se no rio e foi tomar um café com um grupo de soldados reunidos em torno de uma fogueira.

O grupo de busca estava pronto para partir. Anatoly decidira na noite anterior que orientaria a expedição dali, mantendo contato permanente com os homens pelo rádio.

Os helicópteros ficariam de prontidão para levá-lo e a Jean-Pierre assim que o grupo localizasse a presa. Enquanto Jean-Pierre tomava o café, Anatoly atravessou o campo, vindo da aldeia.

- Viu aquele maldito guia? - perguntou ele bruscamente.

- Não.

- Ele parece ter desaparecido.

Jean-Pierre franziu as sobrancelhas.

- Da mesma forma que o anterior.

- Essa gente é insuportável. Terei de perguntar aos aldeões. Venha comigo para traduzir.

- Não falo a língua deles.

- Talvez eles compreendam o seu dari.

Jean-Pierre voltou à aldeia junto com Anatoly. Ao subirem pela trilha de terra estreita entre as frágeis casas, alguém chamou Anatoly em russo. Eles pararam e olharam para um lado. Dez ou doze homens, alguns nuristanis de branco e alguns russos de uniforme, estavam reunidos numa varanda, olhando alguma coisa no chão. Recuaram para dar passagem a Anatoly e Jean-Pierre. No chão estava um homem morto.

Os aldeões falaram em tom indignado, apontando para o corpo. A garganta do homem fora cortada: o ferimento era macabro, e a cabeça pendia inerte. O sangue já coagulara, o que indicava que ele devia ter sido morto no dia anterior.

- Esse homem é Mohammed, o guia? - indagou Jean-Pierre.

- Não. - Anatoly interrogou um soldado e depois informou a Jean-Pierre: - Este é o guia anterior, o que havia desaparecido.

Jean-Pierre falou aos aldeões, bem devagar, em dari:

- O que está acontecendo?

Depois de uma pausa, um velho encarquilhado, o olho direito quase fechado, respondeu na mesma língua, em tom de acusação:

- Ele foi assassinado!

Jean-Pierre começou a interrogá-lo e pouco a pouco descobriu a história. O morto era um aldeão do Vale Linar recrutado pelos russos para servir de guia. O corpo, escondido às pressas entre arbustos, fora encontrado pelo cachorro de um pastor de cabras. A família do homem achava que ele fora assassinado pelos russos e trouxera o corpo até ali naquela manhã, numa dramática tentativa de descobrir por quê. Jean-Pierre explicou tudo a Anatoly e arrematou:

- Eles estão indignados porque acham que seus homens são os culpados.

- Indignados? - repetiu Anatoly. - Eles não sabem que está havendo uma guerra? Pessoas são mortas todos os dias... é inevitável.

- É evidente que eles não testemunham muita ação por aqui. Foram vocês que o mataram?

- Vou descobrir.

Anatoly falou com os soldados. Vários responderam ao mesmo tempo, com veemência:

- Não fomos nós que matamos esse homem. Anatoly traduziu para Jean-Pierre, que disse:

- Então quem terá sido? Os moradores locais poderiam estar assassinando nossos guias por colaborarem com o inimigo?

- Claro que não - respondeu Anatoly. - Se eles odiassem os colaboracionistas não estariam fazendo tanto rebuliço para descobrir quem matou este homem. Diga a eles que somos inocentes... trate de acalmá-los.

Jean-Pierre dirigiu-se ao velho de um olho só:

- Os estrangeiros não mataram este homem. Querem saber quem assassinou seu guia.

O velho traduziu para os outros, e os aldeões reagiram com consternação. Anatoly tinha uma expressão pensativa.

- O desaparecido Mohammed não poderia ter matado este homem para ficar com o emprego de guia?

- Estão pagando muito? - perguntou Jean-Pierre.

- Acho que não. - Anatoly perguntou a um sargento e traduziu a resposta: - Quinhentos afeganis por dia.

- É um bom salário para um afegão, mas não o suficiente para se matar um homem... embora se diga que um nuristani é capaz de assassinar qualquer um pelas sandálias, se forem novas.

- Pergunte a eles se sabem onde está Mohammed. Jean-Pierre perguntou. - Houve alguma discussão? – Quase todos os aldeões sacudiram a cabeça, mas um homem alteou a voz acima dos outros e apontou insistentemente para o norte. O velho acabou comunicando a Jean-Pierre:

- Ele deixou a aldeia esta manhã bem cedo. Abdul viu quando ele seguiu para o norte.

- Ele partiu antes ou depois de o corpo ser trazido para cá?

- Antes.

Jean-Pierre traduziu para Anatoly e acrescentou:

- Por que será que ele foi embora?

- O homem está se comportando como se fosse culpado de alguma coisa.

- Ele deve ter partido logo depois de conversar com você esta manhã. Parece até que foi embora porque eu cheguei.

Anatoly balançou a cabeça, pensativo.

- Qualquer que seja a explicação, acho que ele sabe de alguma coisa que nós ignoramos. É melhor irmos atrás dele. Não há problema se perdermos algum tempo. Podemos nos dar a esse luxo.

- Há quanto tempo conversou com ele? Anatoly olhou para o relógio.

- Há pouco mais de uma hora.

- Então ele não pode estar muito longe.

- Tem razão.

Anatoly virou-se e deu uma série de ordens. Os soldados entraram em ação no mesmo instante. Dois deles pegaram o velho caolho e o levaram para o campo. Outro correu para os helicópteros. Anatoly pegou Jean-Pierre pelo braço e foram atrás dos soldados.

- Levaremos o velho caolho para o caso de precisarmos de um intérprete - explicou Anatoly.

Os dois helicópteros já estavam ligados quando eles chegaram ao campo. Anatoly e Jean-Pierre embarcaram num deles. O velho caolho estava lá dentro, parecendo ao mesmo tempo emocionado e apavorado. Ele contará a história deste dia pelo resto de sua vida, pensou Jean-Pierre.

Poucos minutos depois eles estavam no ar. Anatoly e JeanPierre ficaram de pé junto à porta aberta, olhando para baixo. Uma trilha perfeitamente visível levava da aldeia para o topo da colina e desaparecia entre as árvores. Anatoly falou pelo rádio do piloto e depois informou a Jean-Pierre:

- Mandei alguns soldados vasculharem o bosque, para o caso de ele ter decidido se esconder ali.

O fugitivo quase que certamente fora muito além daquele ponto, pensou Jean-Pierre, mas Anatoly estava sendo cauteloso - como sempre.

Voaram seguindo o rio por cerca de um quilômetro e meio e chegaram à entrada do Linar. Teria Mohammed continuado a subir pelo vale, para o coração frio do Nuristan, ou virado para leste, pelo Vale Linar, seguindo para o Cinco Leões?

- De onde Mohammed veio? - perguntou Jean-Pierre ao velho caolho.

- Não sei. Mas ele era um tajik.

Isso significava que era mais provável que ele fosse do Vale Linar que do Nuristan. Jean-Pierre explicou isso a Anatoly, que ordenou ao piloto que virasse para a esquerda e seguisse o Linar.

Ali estava um exemplo convincente do motivo pelo qual a busca a Ellis e Jane não podia ser conduzida de helicóptero, refletiu Jean-Pierre. Mohammed tinha apenas uma hora de dianteira e era possível que já tivessem perdido sua pista. Quando os fugitivos dispunham de um dia inteiro de vantagem, como Ellis e Jane, havia muito mais percursos alternativos e lugares para se esconder.

Se havia uma trilha pelo Vale Linar, ela não era visível do ar. O piloto do helicóptero limitou-se a acompanhar o rio. As encostas eram desprovidas de vegetação, mas ainda não estavam cobertas pela neve; se o fugitivo estivesse por ali, não teria onde se esconder.

Eles o avistaram alguns minutos depois.

A túnica e o turbante branco sobressaíam claramente no terreno pardo. Ele avançava sozinho pelo topo do penhasco com o ritmo firme e incansável dos viajantes afegãos, seus pertences numa sacola pendurada ao ombro. Quando ouviu o barulho dos helicópteros, ele parou, observou-os por um instante e depois continuou a andar.

- É ele? - indagou Jean-Pierre.

- Acho que sim - respondeu Anatoly. - Vamos descobrir daqui a pouco.

Ele pegou os fones do piloto e comunicou-se com o outro helicóptero. O aparelho se adiantou, passando por cima do homem no chão, e pousou cerca de cem metros à sua frente. O homem continuou a seguir despreocupadamente em sua direção.

- Por que não pousamos também? - perguntou Jean-Pierre a Anatoly.

- Apenas por precaução.

A porta lateral do outro helicóptero foi aberta, e seis soldados desembarcaram. O homem de branco continuou a avançar, tirando a bolsa do ombro. Era comprida, como uma mochila militar, e a visão dela despertou alguma lembrança na memória de Jean-Pierre. Antes que ele pudesse definir o que era, Mohammed levantou a bolsa e apontou-a para os soldados. Jean-Pierre compreendeu nesse instante e abriu a boca para gritar uma advertência inútil.

Era como tentar gritar num sonho ou correr debaixo d'água: os acontecimentos se sucediam devagar, mas ele se movia ainda mais devagar. Antes que as palavras pudessem sair, ele viu a ponta de uma metralhadora emergir da bolsa.

O som dos tiros foi abafado pelo barulho dos helicópteros, o que deu a impressão terrível de que tudo ocorreu em silêncio total. Um dos soldados russos comprimiu a barriga com as mãos e tombou para a frente; outro levantou os braços e caiu para trás; o rosto de um terceiro explodiu em sangue e carne. Os outros três levantaram suas armas. Um morreu antes de poder puxar o gatilho, mas os outros dois descarregaram uma saraivada de balas. Enquanto Anatoly gritava "Niet! Niet! Niet! Niet!"

pelo rádio, o corpo de Mohammed foi levantado do chão e arremessado para trás, caindo depois no chão, uma massa informe de sangue. Anatoly ainda gritava pelo rádio, furioso. O helicóptero desceu depressa. Jean-Pierre descobriu-se a tremer de excitamento. A visão do combate deixara-o inebriado como se tivesse tomado cocaína, fazendo-o sentir-se como se estivesse com vontade de rir, trepar, correr ou dançar. Um pensamento aflorou-lhe à mente: Eu queria antes curar as pessoas.

O helicóptero pousou. Anatoly tirou os headphones, comentando com irritação:

- Agora nunca saberemos por que aquele guia teve a garganta cortada.

Ele saltou e Jean-Pierre o seguiu. Encaminharam-se para o afegão morto. A frente do corpo era uma massa de carne dilacerada e ensangüentada. A maior parte do rosto desaparecera, mas Anatoly declarou:

- Tenho certeza de que era mesmo o guia. O corpo é o mesmo, a cor da pele também, e posso reconhecer a bolsa. - Abaixouse e pegou a metralhadora, com todo cuidado.

- Mas por que ele estava carregando uma metralhadora?

Um pedaço de papel caiu da bolsa e flutuou para o chão. JeanPierre pegou-o e deu uma olhada. Era uma fotografia do menino Mousa.

- Oh, Deus! - exclamou ele. - Creio que estou entendendo tudo agora.

- Como assim? - indagou Anatoly. - Entendendo o quê?

- O morto é do Vale dos Cinco Leões. Um dos principais lugares-tenentes de Masud. Esta é a fotografia de seu filho Mousa. Foi tirada por Jane. Também reconheço a bolsa em que ele escondia a arma: pertencia a Ellis.

- E daí? - disse Anatoly, impaciente. - O que pode deduzir disso?

O cérebro de Jean-Pierre trabalhava acelerado, encaixando as peças mais depressa do que ele era capaz de explicá-las.

- Mohammed matou seu guia para tomar o lugar dele. Você não tinha condições de saber que ele não era o que alegava. Os nuristanis, é claro, sabiam que Mohammed não era um deles, mas não se importaram, primeiro porque não sabiam que ele fingia ser um habitante local, e segundo porque mesmo que soubessem não poderiam contar a você, porque ele também servia como seu intérprete. Na verdade, só havia uma pessoa capaz de desmascará-lo...

- Você - concluiu Anatoly. - Porque o conhecia.

- Ele estava consciente desse perigo e se mantinha atento. Foi por isso que perguntou esta manhã quem chegara ontem, depois do anoitecer. Você lhe disse meu nome.

E ele partiu imediatamente. - Jean-Pierre franziu o rosto: havia alguma coisa que não estava muito clara. - Mas por que ele permaneceu em terreno aberto? Poderia ter se escondido nos bosques ou numa caverna. Levaríamos muito mais tempo para descobri-lo. Parece que ele não esperava ser perseguido.

- Por que deveria? - disse Anatoly. - Quando o primeiro guia desapareceu, não mandamos ninguém à sua procura... simplesmente arrumamos outro guia e seguimos em frente.

Não houve investigação, não houve busca. Mas desta vez foi diferente... o que saiu errado para Mohammed é que os habitantes locais encontraram o cadáver e nos acusaram de assassinato. O que nos levou a suspeitar dele. Mesmo assim, chegamos a cogitar de esquecê-lo e seguir adiante. Ele teve muito azar.

- Ele não sabia que estava lidando com um homem tão cauteloso - comentou Jean-Pierre. - A próxima pergunta: Qual foi o seu motivo para fazer tudo isso? Por que ele se deu ao trabalho de substituir o guia anterior?

- Podemos presumir que ele queria nos levar pela direção errada. Que tudo o que ele disse era mentira. Ele não viu Ellis e Jane ontem à tarde à entrada do Vale Linar.

Eles não seguiram para o sul pelo Nuristan. Os moradores de Mundol não confirmaram que dois estrangeiros com uma criança passaram por lá ontem, seguindo para o sul... Mohammed sequer lhes perguntou. Ele sabia onde estavam os fugitivos...

- E nos levou em direção oposta! - Jean-Pierre sentia-se outra vez exultante. - O guia anterior não desapareceu pouco depois de o grupo de busca deixar a aldeia de Linar?

- Isso mesmo. Portanto, podemos presumir que as informações até esse ponto são verdadeiras... e que Ellis e Jane passaram de fato por aquela aldeia. Depois, Mohammed assumiu e nos levou para o sul.

- Porque Ellis e Jane foram para o norte! - exclamou JeanPierre, triunfante.

Anatoly balançou a cabeça, com expressão sombria.

- Mohammed ganhou para eles um dia, no máximo - comentou ele, pensativo. - E por isso sacrificou a sua vida. Será que valeu a pena?

Jean-Pierre tornou a olhar para a fotografia Polaroid de Mousa. O vento frio sacudiu-a em sua mão.

- Quer saber de uma coisa? - murmurou ele. - Acho que Mohammed responderia que sim, que valeu a pena.

Eles deixaram Gadwal na escuridão profunda antes do amanhecer, esperando se anteciparem aos russos ao partirem tão cedo. Ellis sabia como era difícil, até mesmo para o oficial mais competente, pôr em movimento um grupo de soldados antes do amanhecer: o cozinheiro tinha de preparar a comida, o intendente precisava providenciar o recolhimento de todo o equipamento, o operador de rádio precisava entrar em contato com o quartel-general, os homens deviam comer - e todas essas coisas levavam tempo. A vantagem que Ellis tinha sobre o comandante russo era o fato de só precisar carregar a égua, enquanto Jane amamentava Chantal, e depois sacudir Halam até acordá-lo.

Tinham pela frente uma longa e lenta subida pelo Vale Nuristan, por treze ou quatorze quilômetros, e depois a subida por um vale lateral. A primeira etapa, no Nuristan, não deveria ser muito difícil, refletiu Ellis, mesmo no escuro, pois havia uma estrada mais ou menos definida. Se Jane conseguisse resistir, chegariam ao vale lateral durante a tarde e o percorreriam por alguns quilômetros até o cair da noite. Seria muito mais difícil encontrá-los depois que deixassem o Vale Nuristan, pois os russos não saberiam onde procurar.

Halam seguia na frente, usando as roupas de Mohammed, inclusive o gorro chitrali. Jane andava atrás, carregando Chantal, e Ellis ia na retaguarda, puxando Maggie.

A égua estava agora levando uma bagagem a menos: Mohammed levara a mochila e Ellis não encontrara nada apropriado para substituí-la. Fora obrigado a deixar em Gadwal a maior parte de seu equipamento explosivo. Mas levava um pouco de TNT, um pedaço de Primacord, alguns detonadores e o artefato de disparo, guardados nos amplos bolsos do casaco que trouxera de Nova York.

Jane estava animada e vigorosa. O repouso desde a tarde anterior renovara as suas reservas de energia. Era uma mulher extraordinariamente resistente, e Ellis sentia-se orgulhoso dela, embora ao pensar a respeito não entendesse por que ele tinha o direito de sentir orgulho pela força de Jane.

Halam levava uma lanterna de vela que projetava três grotescas sombras nas paredes do penhasco. Ele parecia descontente. No dia anterior se desmanchara em sorrisos, aparentemente satisfeito por participar daquela aventura bizarra; mas naquela manhã se mostrava taciturno, com expressão sombria. Ellis atribuía o mau humor a terem saído muito cedo.

A trilha se esgueirava pela encosta do penhasco, contornando promontorios que se projetavam pela água; às vezes descia até a beira d'água, em outras ocasiões subia ao topo do penhasco. Pouco depois de um quilômetro a trilha simplesmente desapareceu: havia um penhasco à esquerda e o rio à direita. Halam disse que a trilha fora destruída numa tempestade e teriam de esperar até o amanhecer para encontrar um caminho.

Ellis não estava disposto a perder tempo. Tirou as botas e a calça, e entrou na água gelada. No ponto mais profundo a água ficava em sua cintura, e ele alcançou a outra margem sem o menor problema. Voltou e levou Maggie para o outro lado, e veio buscar Jane e Chantal. Halam foi o último a passar, mas o recato impediuo de se despir, mesmo no escuro. Por isso, viu-se depois obrigado a andar com a calça encharcada, o que agravava ainda mais o seu humor.

Passaram por uma aldeia no escuro, seguidos por algum tempo por uma dupla de cachorros sarnentos, que latiam a uma distância segura. Pouco depois a manhã raiou no céu a leste e Halam apagou a vela.

Tiveram de vadear o rio várias outras vezes, em lugares onde a trilha desaparecera ou estava bloqueada por algum desmoronamento. Halam acabou desistindo e enrolou a calça larga até a altura dos joelhos. Numa dessas travessias encontraram um viajante que vinha em direção oposta, um homem pequeno e esquelético, levando uma ovelha, que carregou nos braços ao atravessar o rio. Halam teve uma longa conversa com ele em alguma língua nuristani, e Ellis desconfiou, pela maneira como acenavam os braços, que falavam sobre os caminhos através das montanhas. Depois que o viajante se afastou, Ellis disse a Halam, em dari:

- Não revele às pessoas para onde estamos indo.

Halam fingiu não entender. Jane repetiu o que Ellis dissera. Ela falava com mais fluência e usou gestos e acenos de cabeça enfáticos, como os homens afegãos costumavam fazer.

- Os russos interrogarão todos os viajantes - explicou ela.

Halam pareceu entender, mas fez de novo a mesma coisa quando se encontraram com o viajante seguinte, um jovem de aparência perigosa, carregando um velho rifle Lee-Enfield.

Durante a conversa, Ellis teve a impressão de ouvir Halam dizer "Kantiwar", o nome do desfiladeiro para o qual seguiam; e um momento depois o viajante repetiu a palavra. Ellis ficou furioso: Halam estava brincando com suas vidas. Mas o mal estava feito e ele reprimiu o impulso para interferir, esperando pacientemente até retomarem a marcha. E assim que o jovem com o rifle sumiu de vista, Ellis disse:

- Avisei a você que não contasse a ninguém para onde estamos indo.

Desta vez Halam não simulou incompreensão, protestando indignado:

- Eu não falei nada!

- Falou sim - insistiu Ellis com veemência. - Daqui por diante você não vai mais falar com outros viajantes.

Halam não disse nada. Jane acrescentou:

- Você não vai mais falar com outros viajantes, está entendendo?

- Estou - murmurou Halam, relutante.

Ellis sentia que era importante mantê-lo calado. Podia imaginar por que Halam queria discutir as rotas com outras pessoas; talvez soubessem de fatores como desmoronamento, nevascas ou inundações nas montanhas, bloqueando um vale e tornando preferível outro acesso. Halam não se conscientizará de que Ellis e Jane estavam fugindo dos russos. A existência de rotas alternativas era o único fator favorável aos fugitivos, pois os russos teriam de verificar todos os percursos possíveis. Certamente se empenhariam em eliminar algumas das possibilidades interrogando pessoas, especialmente viajantes. Quanto menos informações pudessem obter dessa maneira, mais difícil e prolongada seria a busca, e maiores as chances de Ellis e Jane escaparem.

Pouco depois encontraram um mula de túnica branca, com a barba pintada de vermelho. Para frustração de Ellis, Halam puxou conversa imediatamente, da mesma forma como fizera com os dois viajantes anteriores.

Ellis hesitou apenas por um momento. Aproximou-se de Halam, agarrou-o numa chave de braço dolorosa e levou-o para longe.

Halam ainda se debateu por um instante, mas depois desistiu, porque doía. Gritou alguma coisa, mas o mula apenas olhava, boquiaberto, sem fazer nada. Olhando para trás, Ellis verificou que Jane pegara a rédea de Maggie e os seguia. Depois de uma centena de metros Ellis soltou Halam e disse:

- Se os russos me descobrirem, vão me matar. É por isso que você não deve falar com ninguém.

Halam não disse nada, mantendo uma expressão sombria. Depois de andarem mais um pouco, Jane comentou:

- Tenho a impressão que ele vai querer se vingar por isso.

- Tem razão. Mas eu precisava calá-lo de alguma forma.

- Acho apenas que poderia haver um meio melhor de controlá-lo.

Ellis reprimiu um acesso de irritação. Sentiu vontade de dizer Então por que não fez alguma coisa, sua espertinha?, mas aquele não era um momento conveniente para discutirem. Halam passou pelo viajante seguinte com um mero cumprimento formal, e Ellis pensou: Pelo menos minha técnica foi eficaz.

A princípio o progresso foi muito mais lento do que Ellis previra. O caminho sinuoso, o terreno irregular, a constante subida e os desvios seguidos significaram que no meio da manhã haviam percorrido apenas sete ou oito quilômetros em linha reta, pelo que ele calculou. Depois, no entanto, o caminho tornou-se mais fácil, passando pelos bosques muito acima do rio.

Ainda havia uma aldeia ou povoado a intervalos aproximados de um quilômetro e meio, mas agora, em vez de casas de madeira desengonçadas empilhadas nas encostas, como cadeiras desmontáveis formando uma pilha casual, as habitações tinham o formato de caixas, feitas da mesma pedra dos penhascos em cujos lados se empoleiravam de maneira precária, como ninhos de gaivotas.

Ao meio-dia eles pararam numa aldeia e Halam deu um jeito para que fossem convidados a tomar chá numa casa. Era um prédio de dois andares, o térreo aparentemente usado como depósito, igual às casas medievais inglesas de que Ellis se lembrava das aulas de história na nona série. Jane deu à mulher um vidro pequeno de medicamento rosa para os parasitas intestinais dos filhos, recebendo em troca um pão cozido em panela e um delicioso queijo de leite de cabra. Sentaram em tapete no chão de terra, em torno da fogueira aberta, com as vigas de choupo e as ripas de salgueiro do teto visíveis por cima. Não havia chaminé, e a fumaça da fogueira subia pelos caibros e acabava passando pelo telhado; era por isso, presumiu Ellis, que as casas não tinham forro.

Ele gostaria de deixar Jane descansar depois de comer, mas não podia correr o risco, pois não sabia quão perto os russos se encontravam. Ela parecia cansada, mas bem. E partir imediatamente proporcionava a vantagem adicional de impedir que Halam puxasse conversa com os aldeões.

Contudo, Ellis observou Jane atentamente, enquanto continuavam a subir pelo vale. Pediu-lhe que levasse a égua e ele pegou Chantal, calculando que carregar a criança era mais cansativo.

A cada vez que chegavam a um vale lateral, seguindo para leste, Halam parava, estudava-o com cuidado, depois sacudia a cabeça e seguia em frente. Era evidente que ele não conhecia o caminho com certeza absoluta, embora negasse com veemência quando Jane o interpelou. Era exasperante, especialmente porque Ellis estava impaciente em deixar logo o Vale Nuristan; mas consolou-se com o pensamento de que se Halam não sabia direito que vale seguir, os russos também não saberiam qual o caminho tomado pelos fugitivos.

Ele já começava a se perguntar se não teriam passado do ponto certo quando Halam tornou a parar, no ponto em que um regato impetuoso desaguava no Rio Nuristan, e anunciou que o caminho levava por aquele vale. Ele parecia disposto a fazer uma pausa para descanso, como se relutasse em deixar o terreno familiar, mas Ellis exigiu que continuassem.

Não demorou muito para que subissem por uma floresta de bétulas prateadas, o vale principal a perder-se de vista por trás. À frente podiam divisar a cordilheira que teriam de atravessar, um imenso paredão coberto de neve, ocupando um quarto do céu. Ellis não pôde deixar de pensar: Mesmo que consigamos escapar dos russos, como poderemos escalar isso? Jane tropeçou umas poucas vezes e praguejou, o que Ellis encarou como um sinal de que ela estava se cansando depressa, embora não se queixasse.

Ao crepúsculo saíram da floresta para uma paisagem nua, desolada e desabitada. Ellis concluiu que não poderiam encontrar abrigo num território assim, e por isso sugeriu que passassem a noite numa cabana de pedra que haviam encontrado cerca de meia hora antes. Jane e Halam concordaram, e eles voltaram.

Ellis insistiu para que Halam fizesse a fogueira dentro da cabana e não fora, a fim de que as chamas não fossem avistadas do ar e não houvesse uma coluna de fumaça denunciadora. A cautela foi justificada pouco depois, quando ouviram o zumbido de um helicóptero passando por cima. Isso significava, pensou Ellis, que os russos não estavam muito longe; naquela região, no entanto, uma curta distância para um helicóptero poderia representar uma jornada impossível a pé. Os russos podiam estar no outro lado de uma montanha intransponível, ou a apenas um ou dois quilômetros mais abaixo na trilha. Era uma sorte que a paisagem fosse tão desolada e a trilha muito difícil de ser distinguida do alto para que a busca por helicóptero se tornasse viável.

Ellis deu um pouco de cereal à égua. Jane amamentou e trocou a fralda de Chantal, e adormeceu quase que no mesmo instante em que acabou. Ellis acordou-a para que entrasse no saco de dormir, depois desceu para o regato com a fralda de Chantal, lavou-a e veio pô-la junto ao fogo para secar. Deitou-se ao lado de Jane por algum tempo, contemplando seu rosto à luz bruxuleante da fogueira, enquanto Halam roncava no outro lado da cabana. Ela parecia totalmente esgotada, o rosto encovado e tenso, os cabelos sujos, as faces manchadas de terra. O sono era irrequieto, Jane estremecia e fazia caretas, a boca se mexia num discurso silencioso. Ellis se perguntou por quanto tempo mais ela poderia continuar. Era o ritmo que a estava esgotando. Se pudessem avançar mais devagar, ela agüentaria bem. Se os russos desistissem ou fossem chamados para alguma grande batalha em outra parte daquele horrível país...

Ficou pensando sobre o helicóptero que ouvira. Talvez estivesse numa missão que nada tinha a ver com Ellis. Parecia improvável. Se era parte de um grupo de busca, então a tentativa de Mohammed de desviar os russos tivera um sucesso bastante limitado.

Ellis permitiu-se pensar no que aconteceria se fossem capturados. Ele seria levado a um julgamento espetacular, em que os russos provariam aos céticos países não-alinhados que os rebeldes afegãos não passavam de fantoches da CIA. O acordo entre Masud, Kamil e Azizi estaria liquidado. Não haveria armamentos americanos para os rebeldes.

Desanimada, a Resistência enfraqueceria e poderia não resistir por outro verão.

Depois do julgamento, Ellis seria interrogado pela KGB. Faria uma demonstração inicial de resistir à tortura, depois fingiria desmoronar e contaria tudo; mas só diria mentiras. Claro que eles estavam preparados para isso e o torturariam mais um pouco; e desta vez ele encenaria um colapso mais convincente, contaria uma mistura de fato e ficção que seria difícil conferir. Esperava assim sobreviver. Se isso acontecesse, seria enviado para a Sibéria.

Depois de alguns anos poderia ser trocado por um espião soviético preso nos Estados Unidos. Se não, morreria nos campos.

Lamentaria acima de tudo a separação de Jane. Encontrara-a, perdera-a, tornara a encontrá-la - um golpe de sorte que o deixava tonto ao pensar a respeito. Perdê-la pela segunda vez seria insuportável, absolutamente insuportável. Continuou a contemplá-la por longo tempo, fazendo um esforço para não dormir, com receio de que ela não mais estivesse ali quando acordasse.

Jane sonhou que estava no Hotel George V, em Peshawar, Paquistão. O George V era em Paris, claro, mas no sonho ela não percebia a contradição. Ligou para a copa e pediu um filé ao ponto, purê de batata e uma garrafa de Chateau Ausone 1971. Sentia uma fome tremenda, mas não podia lembrar por que esperara tanto para pedir a comida. Resolveu tomar um banho enquanto preparavam seu jantar. O banheiro era quente, acarpetado. Ela abriu a água na banheira e despejou alguns sais de banho, e o banheiro se encheu com o vapor perfumado. Não podia entender como se deixara ficar tão suja: era um milagre que a tivessem deixado entrar no hotel! Já estava prestes a entrar na água quente quando ouviu alguém a gritar seu nome. Devia ser o garçom, pensou; o que era irritante - teria agora de comer ainda suja ou deixar que a comida esfriasse. Sentiuse tentada a deitar na água quente e ignorar a voz - de qualquer forma, era uma grosseria o homem chamá-la de "Jane", quando deveria tratá-la por "Madame" - mas ela era muito insistente e parecia-lhe familiar. Não era o garçom, mas sim Ellis, que a sacudia pelo ombro; e com um trágico senso de desapontamento, Jane compreendeu que o George V era um sonho, e na verdade se encontrava numa fria cabana de pedra no Nuristan, a um milhão de quilômetros de um banho quente.

Ela abriu os olhos e deparou com o rosto de Ellis, que estava dizendo:

- Você tem de acordar.

Jane sentia-se quase paralisada pela letargia.

- Já é de manhã?

- Não. De madrugada.

- Que horas são?

- Uma e meia.

- Mas que merda! - Jane sentia-se irritada com ele por ter perturbado seu sono e indagou, irritada: - Por que me acordou?

- Halam foi embora.

- Foi embora? - Ela ainda estava sonolenta e confusa. - Para onde? Por quê? Vai voltar?

- Ele não me disse. Despertei para descobrir que ele sumiu.

- Acha que ele nos abandonou?

- Acho.

- Oh, Deus! Como encontraremos o caminho sem um guia? Jane tinha um pavor de pesadelo de se perder na neve com Chantal nos braços.

- Creio que a situação podia ser bem pior.

- Como assim?

- Você disse que ele iria querer nos castigar por eu o ter humilhado na presença daquele mula. Talvez nos abandonar seja vingança suficiente. É o que espero. Mas presumo que ele voltou pelo caminho por que viemos. Pode encontrar os russos. E não creio que eles precisem de muito tempo para persuadi-lo a revelar onde nos deixou exatamente.

- É demais - murmurou Jane, dominada por um sentimento de desgraça. Parecia que alguma divindade maligna estava conspirando contra eles. - Estou muito cansada. Ficarei deitada aqui, dormindo, até que os russos cheguem e me capturem.

Chantal estava se remexendo em silêncio, deslocando a cabeça de um lado para o outro. Começou então a chorar. Jane sentou e pegou-a.

- Ainda podemos escapar se partirmos agora - disse Ellis. - Carregarei a égua enquanto você amamenta Chantal.

- Está bem.

Jane levou a filha ao seio. Ellis observou por um instante, sorrindo, depois saiu para a noite. Jane refletiu que poderiam escapar facilmente se não estivessem com Chantal. Como Ellis se sentiria a respeito? Afinal, ela era filha de outro homem. Mas ele parecia não se importar. Encarava Chantal como parte de Jane. Ou escondia algum ressentimento?

Ele gostaria de ser um pai para Chantal? Jane contemplou o rostinho, e os enormes olhos azuis a contemplaram de volta. Quem poderia deixar de amar aquela garotinha desamparada?

E de repente sentiu-se completamente indecisa em relação a tudo. Não sabia o quanto amava Ellis; não sabia o que sentia por JeanPierre, o marido que a estava caçando; não podia imaginar qual era o seu dever para com a filha.

Tinha pavor da neve, das montanhas e dos russos, estava cansada, tensa e com frio há tempo demais.

Automaticamente, trocou a fralda de Chantal, usando a seca que estava ao lado da fogueira. Não se lembrava de tê-la trocado na noite anterior.Tinha a impressão de que pegara no sono logo depois de amamentar a filha. Franziu o rosto, duvidando de sua memória, e depois recordou que Ellis a despertara por um instante para que se ajeitasse no saco de dormir. Ele devia ter levado a fralda suja para o regato, lavado, torcido, e pendurado num graveto ao lado do fogo para secar. Jane começou a chorar.

Sentia-se uma tola, mas não podia parar, e continuou a aprontar Chantal com as lágrimas escorrendo pelas faces. Ellis entrou quando ela ajeitava a filha na tipóia.

- A droga da égua também não queria acordar. - Ele reparou no rosto de Jane e perguntou: - O que foi?

- Não sei por que deixei você um dia. É o melhor homem que já conheci e nunca deixei de amá-lo. Por favor, perdoe-me.

Ele abraçou-a e a Chantal.

- Basta que nunca mais faça isso.

Eles ficaram assim por algum tempo, até que Jane disse:

- Estou pronta.

- Pois então vamos embora.

Saíram e começaram a subir a encosta, pela vegetação cada vez mais escassa. Halam levara a lanterna, mas a lua ainda estava no céu e podiam ver o caminho claramente.

O ar estava tão frio que doía o respirar. Jane preocupava-se com Chantal. A menina estava mais uma vez dentro do casaco forrado de pele de Jane, e ela esperava que seu corpo aquecesse o ar que a filha respirava. Poderia fazer mal a uma criança pequena respirar um ar tão frio? Jane não tinha a menor idéia.

À frente ficava o Passo Kantiwar, a quatro mil e quinhentos metros, muito mais alto que o desfiladeiro anterior, o Aryu. Jane sabia que sentiria ainda mais frio, estaria mais cansada do que em qualquer outra ocasião anterior de sua vida, e talvez mais amedrontada também; apesar disso tudo, porém, estava animada. Sentia que resolvera alguma coisa no fundo de si mesma. Se eu viver, pensou ela, será em companhia de Ellis. E um dia desses lhe direi que foi porque ele lavou uma fralda suja.

Logo saíram das árvores e começaram a percorrer um platô que parecia uma paisagem lunar, com blocos de rocha e crateras, e manchas irregulares de neve. Seguiram uma linha de imensas pedras achatadas, como as pegadas de um gigante. Ainda estavam subindo, embora no momento o terreno fosse menos íngreme. A temperatura foi caindo, as manchas brancas aumentando, até que o solo ficou parecendo um tabuleiro de xadrez.

A energia nervosa manteve Jane em movimento durante a primeira hora, mas depois, à medida que se acostumou à marcha interminável, o cansaço voltou a dominá-la. Queria perguntar Falta muito? e Quando vamos chegar?, como fazia quando era criança, no banco traseiro do carro do pai, durante as longas viagens pela Rodésia.

Em algum ponto da encosta eles cruzaram a linha do gelo. Jane tomou conhecimento do novo perigo quando a égua escorregou, resfolegou de medo, quase caiu, e recuperou o equilíbrio. Reparou então que o luar se refletia nos blocos de rocha como se eles fossem vitrificados: pareciam diamantes, frios, duros, faiscantes. As botas de Jane tinham uma aderência maior que os cascos de Maggie, mas mesmo assim, pouco depois, ela também escorregou, e quase caiu. Desse momento em diante experimentou o pavor de cair e esmagar Chantal. Passou a avançar com extremo cuidado, os nervos tão tensos que poderiam romper.

Depois de pouco mais de duas horas chegaram ao outro lado do platô e se descobriram diante de uma trilha íngreme por uma encosta coberta de neve. Ellis seguiu na frente, puxando Maggie. Jane foi atrás, a uma distância segura, com receio de que a égua pudesse escorregar para trás. Subiram em ziguezague.

A trilha não era muito bem definida. Presumiam que passava por onde o terreno era mais baixo que as áreas próximas. Jane ansiava por um sinal mais definido de que estavam mesmo no caminho certo: os restos de uma fogueira, a carcaça de uma galinha, até mesmo uma caixa de fósforos vazia, qualquer coisa que indicasse que outros seres humanos já haviam passado por ali. Começou a pensar, de maneira obsessiva, que estavam completamente perdidos, vagueando a esmo pela neve interminável; e assim continuariam por dias e dias, até ficarem sem comida, energia e força de vontade, deitando-se então na neve, todos os três, para congelarem até a morte.

Sentia uma dor insuportável nas costas. com muita relutância, entregou Chantal a Ellis e pegou a rédea da égua, transferindo o esforço para outros músculos. Agora a maldita égua tropeçava a todo instante. Em determinado momento, escorregou numa rocha coberta de gelo e caiu. Jane teve de puxá-la implacavelmente pela rédea para fazer com que se levantasse.

Quando Maggie finalmente ficou de pé, ela viu uma mancha escura na neve, no lugar onde o corpo estivera: sangue. Examinando a égua, Jane encontrou um talho no jarrete esquerdo. O ferimento não parecia grave, e ela obrigou Maggie a continuar a andar.

Agora que estava na frente, ela tinha de decidir para que lado seguia a trilha; o pesadelo de se perder de forma irremediável tornava cada hesitação angustiante.

Havia ocasiões em que o caminho parecia se bifurcar, e ela tinha de decidir se seguiam pela esquerda ou pela direita. Em outros trechos, o terreno era mais ou menos uniforme, e ela seguia o seu instinto, até que um arremedo de trilha reaparecia. Houve uma ocasião em que afundou num monte de neve e teve de ser retirada por Ellis, com a ajuda da égua.

A trilha acabou levando-a a uma platibanda que subia pela encosta da montanha. Estavam muito alto: olhar para trás, através do platô lá embaixo, deixava-a tonta.

Será que ainda estavam muito longe do desfiladeiro?

A platibanda era íngreme, coberta de gelo, apenas alguns palmos de largura, com um precipício ao lado. Jane avançava com extremo cuidado, mas assim mesmo tropeçou várias vezes e chegou a cair de joelhos, machucando-os. O corpo todo estava tão dolorido que mal notou as novas dores. Maggie escorregava constantemente, até que Jane não mais se deu o trabalho de virar ao ouvir os cascos deslizarem, limitando-se a puxar a rédea com mais força. Gostaria de reajustar a carga, a fim de que as bolsas pesadas ficassem mais à frente, o que proporcionaria melhor estabilidade a Maggie na subida; mas não havia espaço suficiente na platibanda e ela receava não poder recomeçar se parasse.

A platibanda se estreitava e contornava uma projeção na encosta. Jane passou pelo ponto mais estreito com passos cautelosos. Apesar da cautela, no entanto - ou talvez porque estivesse tão nervosa - acabou escorregando. Por um momento angustiante pensou que cairia pela beira; mas caiu de joelhos e firmou-se com as mãos. Pelo canto do olho podia divisar, dezenas de metros abaixo, as encostas nevadas. Começou a tremer, mas controlou-se com um grande esforço.

Levantou devagar e virou-se. Largara a rédea, que agora pendia sobre o precipício. A égua estava parada, observando-a, as pernas rígidas e trêmulas, obviamente apavorada.

Quando Jane estendeu a mão para pegar a rédea, Maggie deu um passo para trás, em pânico.

- Pare! - gritou Jane. Controlando-se, acrescentou, em tom mais suave: - Não faça isso. Venha comigo. Tudo vai acabar bem.

Ellis gritou do outro lado da projeção:

- O que aconteceu?

- Fique quieto - respondeu Jane, suavemente. - Maggie está -apavorada. Não chegue perto.

Ela estava terrivelmente consciente de que Ellis carregava Chantal. Continuou a murmurar palavras tranqüilizadoras para a égua, enquanto avançava, devagar. Maggie não desviava os olhos dela, a respiração saindo como fumaça pelas narinas trêmulas. Jane estava prestes a pegar a rédea.

Maggie sacudiu a cabeça, recuou, escorregou, perdeu o equilíbrio. Quando Maggie empurrou a cabeça para trás, Jane pegou a rédea. Mas as pernas da égua não aguentaram e ela caiu para a direita. A rédea escapuliu da mão de Jane e, para seu horror indescritível, viu Maggie deslizar lentamente para o precipício e cair, relinchando de terror. Ellis apareceu.

- Pare! - gritou ele.

Jane compreendeu então que estava gritando. Fechou a boca bruscamente. Ellis ajoelhou-se e espiou pela beira, ainda segurando Chantal contra o peito, por baixo do casaco. Jane controlou sua histeria e foi se ajoelhar ao lado.

Esperava avistar o corpo da égua na neve, dezenas de metros abaixo. Mas Maggie caíra numa prateleira apenas dois ou três metros abaixo, estava estendida de lado, as patas no vazio.

- Ainda está viva! - gritou Jane. - Graças a Deus!

- E nossos suprimentos estão intactos - comentou Ellis, sem qualquer sentimento.

- Mas como podemos trazer Maggie aqui para cima? Ellis fitou-a, sem dizer nada. Jane compreendeu que não poderiam trazer a égua de volta à trilha.

- Mas não podemos deixá-la aqui para morrer no frio!

- Lamento muito - murmurou Ellis.

- Oh, Deus, é demais!

Ellis abriu o casaco e tirou Chantal. Jane pegou a filha e a acomodou dentro de seu casaco.

- Pegarei primeiro a comida - disse Ellis. Estendeu-se de barriga na beira e esticou os pés. A neve solta espalhou-se sobre a égua. Ellis baixou devagar, os pés procurando por apoio. Quando tocaram num ponto firme, ele tirou os cotovelos da beira e virou-se com extremo cuidado.

Jane observava-o, paralisada. Entre a garupa da égua e a encosta do penhasco não havia espaço suficiente para que os pés de Ellis ficassem lado a lado: ele tinha de manter um pé atrás do outro, como uma figura de pintura em parede do antigo Egito. Ele dobrou os joelhos, abaixou lentamente para uma posição agachada, e estendeu a mão para a teia de tiras de couro que seguravam a bolsa de lona das rações de emergência.

Nesse momento a égua resolveu se levantar.

Dobrou as pernas dianteiras e deu um jeito de metê-las por baixo do corpo; depois, com o contorcer familiar, parecido com uma cobra, de um cavalo levantando, ergueu a frente do corpo e tentou virar as pernas traseiras na prateleira.

Quase conseguiu.

Mas as patas traseiras escorregaram, ela perdeu o equilíbrio, e a parte de trás do corpo caiu de lado. Ellis agarrou o saco com a comida. Pouco a pouco, a égua foi deslizando, escoiceando e se debatendo. Jane estava apavorada com a possibilidade de Ellis ser atingido. Inexoravelmente, Maggie foi escorregando pela beira. Ellis puxou o saco, não mais tentando salvar a égua, mas esperando arrebentar as tiras de couro e ficar com a comida. Estava tão determinado que Jane temeu que pudesse deixar Maggie arrastá-lo para o precipício. A égua deslizou mais depressa, aproximando Ellis da beira. No último segundo ele largou o saco com um grito de frustração.

Maggie fez um barulho que parecia um grito e caiu no vazio, rolando repetidas vezes, e levando consigo toda a comida, os suprimentos médicos, o saco de dormir e a fralda de reserva de Chantal.

Jane desatou a chorar.

Poucos minutos depois Ellis subiu para a platibanda. Abraçou-a e ficou ajoelhado ao seu lado por algum tempo, enquanto Jane chorava, pela égua, os suprimentos, suas pernas doloridas, seus pés gelados. Depois levantou-se puxando-a gentilmente.

- Não podemos parar.

- Mas como vamos continuar? - indagou Jane. - Não temos nada para comer, não podemos ferver água, não temos sacos de dormir nem remédios...

- Temos um ao outro.

Ela o abraçou, muito tensa, lembrando de como ele estivera perto da beira. Se sobrevivermos, pensou Jane, se conseguirmos escapar aos russos e voltarmos à Europa, juro que nunca mais o deixarei ficar longe de minha vista.

- Você vai na frente - disse Ellis, desvencilhando-se do abraço. - Quero poder vê-la.

Ele empurrou-a delicadamente, e, como um autômato, Jane recomeçou a subir pela encosta. Pouco a pouco, seu desespero voltou. Resolveu que seu objetivo seria simplesmente continuar a andar até cair morta. Depois de algum tempo, Chantal começou a chorar. Jane ignorou-a e ela acabou parando.

Mais tarde - podiam ter sido minutos ou horas, pois ela perdera a noção do tempo - quando Jane virava uma curva, Ellis alcançou-a e deteve-a, pondo a mão em seu braço.

- Olhe - disse ele, apontando para a frente.

A trilha descia para um vasto círculo de colinas, margeado por montanhas de picos brancos. A princípio, Jane não compreendeu por que Ellis dissera Olhe, mas depois percebeu; a trilha estava descendo.

- Este é o ponto mais alto? - perguntou ela, apaticamente.

- É, sim. Estamos no Passo Kantiwar. Já passamos pela parte mais difícil desta etapa. O percurso será em descida durante os dois próximos dias, e a temperatura vai esquentar.

Jane sentou-se numa pedra gelada. Consegui, pensou ela. Consegui.

Enquanto os dois contemplavam as colinas pretas, o céu além dos picos das montanhas passou de cinza a rosado. O dia estava nascendo. Enquanto a luz se insinuava lentamente pelo céu, um pouco de esperança voltou ao coração de Jane. Para baixo, pensou ela. Vai ficar mais quente. Talvez possamos escapar.

Chantal voltou a chorar. Seu suprimento de comida não desaparecera com Maggie. Jane amamentou-a, sentada na pedra gelada, no teto do mundo, enquanto Ellis derretia neve nas mãos para que ela bebesse.

A descida para o Vale Kantiwar era uma encosta relativamente suave, mas muito gelada a princípio. Mas não era tão angustiante, agora que não tinham de se preocupar com a égua. Ellis, que não escorregara uma só vez durante a subida, carregava Chantal.

À frente, o céu da manhã tornou-se vermelho, como se o mundo além das montanhas estivesse em fogo. Os pés de Jane ainda se encontravam entorpecidos pelo frio, mas o nariz descongelara. E de repente ela descobriu que sentia uma tremenda fome. Teriam de continuar andando até encontrarem pessoas. E tudo o que tinham agora para trocar era o TNT nos bolsos de Ellis. Depois disso, teriam de contar com a tradicional hospitalidade afegã.

E também estavam sem qualquer coisa onde se deitar. Teriam de dormir com os casacos e botas. Mas Jane tinha a sensação de que poderiam resolver todos os problemas.

Até mesmo encontrar a trilha era fácil agora, pois as paredes do vale, nos dois lados, proporcionavam uma orientação permanente e limitavam a distância pela qual poderiam se desviar. Não demorou muito para que encontrassem um pequeno regato correndo ao lado do caminho: estavam de novo abaixo da linha do gelo. O terreno era bastante suave, e se ainda tivessem a égua, poderiam até montá-la.

Depois de mais duas horas, pararam para descansar à entrada de uma garganta. Jane tirou Chantal de Ellis. À frente, a descida tornava-se irregular e íngreme, mas as pedras não eram escorregadias, porque estavam abaixo da linha do gelo. A garganta era bastante estreita e podia muito bem estar bloqueada.

- Espero que não haja desmoronamentos lá embaixo - comentou Jane.

Ellis olhava para o outro lado, vale acima. Teve um súbito sobressalto e exclamou:

- Santo Deus!

- O que houve?

Jane virou-se e acompanhou seu olhar, sentindo um aperto no coração. Lá atrás, cerca de um quilômetro e meio acima, havia meia dúzia de homens de uniforme e um cavalo:

o grupo de busca. Depois de tudo isso, pensou Jane, depois de tudo o que passamos, eles acabaram nos alcançando. Sentiu-se desesperada demais até para chorar. Ellis segurou-a pelo braço e disse:

- Vamos embora, depressa!

Ele começou a descer pela garganta, puxando-a. Jane balbuciou, cansada:

- De que adianta? Eles vão nos alcançar, com toda certeza.

- Ainda nos resta uma chance.

Enquanto andavam, Ellis observava atentamente as íngremes encostas rochosas da garganta.

- Qual?

- Um desmoronamento.

- Eles encontrarão uma passagem ou darão a volta.

- Não se ficarem todos soterrados.

Ele parou num ponto em que o fundo da garganta tinha apenas alguns palmos de largura e uma parede muito íngreme e alta, murmurando:

- Aqui está perfeito.

Tirou dos bolsos um bloco de TNT, um rolo de fio escrito Prímacord, um pequeno objeto de metal mais ou menos do tamanho de uma tampa de caneta-tinteiro e algo que parecia uma seringa de metal, só que a ponta tinha uma argola de puxar, em vez de um embolo. Pôs tudo no chão.

Jane observava-o aturdida. Não se atrevia a acalentar qualquer esperança.

Ele fixou o pequeno objeto de metal numa extremidade do Primacord, prendendo-o com os dentes; depois, fixou o objeto de metal na extremidade afilada da seringa.

Entregou toda a montagem a Jane.

- Vou explicar o que você tem de fazer - disse ele. - Desça pela garganta, esticando o fio. Tente escondê-lo. Não tem importância se estendê-lo pelo regato... essa coisa queima até debaixo d'água. Quando chegar à extremidade do fio, puxe as travas de segurança, assim. - Ellis mostrou como puxar os pinos que penetravam pela seringa. - E depois fique olhando para mim. Espere até que eu acene com os braços por cima da cabeça, assim.

Ele mostrou como era e arrematou:

- E depois puxe a argola. Se tudo der certo, podemos matar todos os russos. E agora vá!

Jane seguiu as ordens como um robô, sem pensar. Desceu pela garganta, estendendo o fio. A princípio escondeu-o por trás de arbustos baixos, depois estendeu-o pelo leito do regato. Chantal dormia na tipóia, balançando gentilmente enquanto Jane andava.

Depois de um minuto ela olhou para trás. Ellis estava ajeitando o TNT numa fenda na rocha. Jane sempre acreditara que os explosivos podiam explodir espontaneamente se manipulados com brusquidão: era evidente que se tratava de um equívoco.

Ela continuou a andar, até que o fio em sua mão estava esticado. Tornou a virar-se. Ellis estava agora escalando a parede da garganta, à procura da melhor posição para observar os russos se aproximarem da armadilha.

Ela sentou-se ao lado do regato. O corpinho de Chantal repousava em seu colo. A tipóia estava frouxa, aliviando a pressão do peso das costas de Jane. As palavras de Ellis martelavam-lhe com insistência na mente: Se tudo der certo, podemos matar todos os russos. Mas daria mesmo? Todos morreriam?

E o que fariam depois os outros russos? A cabeça de Jane começou a desanuviar e ela refletiu sobre a provável seqüência de acontecimentos. Dentro de uma ou duas horas alguém notaria que o grupo não fazia contato há algum tempo e tentaria chamá-lo pelo rádio. Descobrindo ser impossível, presumiriam que o grupo se encontrava numa garganta profunda ou que seu rádio estava com defeito. Depois de mais duas horas sem contato, mandariam um helicóptero procurar pelo grupo, presumindo que o oficial no comando teria o bom senso de acender uma fogueira ou fazer qualquer outra coisa que tornasse a sua posição visível do ar. Depois que isso falhasse, os homens no quartel-general começariam a se preocupar. Em algum momento enviariam outro grupo de busca para procurar o que desaparecera. O novo grupo teria de percorrer o mesmo terreno. Não poderiam concluir a viagem naquele dia, e seria impossível procurar direito à noite. Quando encontrassem os corpos, Ellis e Jane já teriam pelo menos um dia e meio de vantagem, talvez mais. Poderia ser suficiente, pensou Jane: a esta altura, ela e Ellis já teriam passado por tantas bifurcações, vales laterais e rotas alternativas que encontrar a pista poderia ser impossível. Mas tenho minhas dúvidas, pensou ela, cansada. Talvez este seja o fim. Gostaria que os soldados se apressassem. Não posso mais agüentar a expectativa. Estou com tanto medo!

Ela podia ver Ellis claramente, engatinhando pelo topo do penhasco. Podia ver também o grupo de busca, que descia pelo vale. Mesmo à distância, eles pareciam sujos, e os ombros vergados e os pés arrastando mostravam que estavam cansados e desanimados. Ainda não a tinham avistado, pois ela se confundia com a paisagem.

Ellis agachou-se por trás de um afloramento na rocha e obserVou pelo lado os soldados que se aproximavam. Ele era visível para Jane, mas os russos não podiam vê-lo.

E ele tinha uma visão livre do lugar em que pusera os explosivos.

Os soldados chegaram à entrada da garganta e começaram a descer. Um deles, de bigode, montava o cavalo: devia ser o oficial. Outro usava um gorro chitrali. Aquele é Halam, o traidor, pensou Jane. Depois do que Jean-Pierre fizera, a traição lhe parecia um crime imperdoável. Havia outros cinco homens, todos com os cabelos curtos, quepes militares, rostos jovens e raspados. Dois homens e cinco garotos, pensou Jane.

Ela olhou para Ellis. Ele daria o sinal a qualquer momento agora. Jane sentiu o pescoço começar a doer da tensão de observá-lo.

Os soldados ainda não a tinham avistado: concentravam-se em encontrar o caminho pelo terreno rochoso. Ellis finalmente virou-se para ela e sacudiu os braços por cima da cabeça, num movimento lento, determinado.

Jane tornou a olhar para os soldados. Um deles estendeu a mão e pegou a rédea do cavalo, a fim de ajudá-lo a transpor o terreno irregular, Jane segurava o artefato com a mão esquerda, o indicador da mão direita enganchado na argola. Um puxão acenderia o estopim e detonaria o TNT, fazendo o penhasco desabar sobre os seus perseguidores.

Cinco garotos, pensou ela Ingressaram no exército porque são pobres ou tolos, talvez as duas coisas, ou então porque foram recrutados. Serviam num país frio e inóspito, onde o povo os odiava. Marchavam por um terreno montanhoso e gelado. E seriam enterrados sob um desmoronamento, as cabeças esmagadas, os pulmões sufocados pela terra, as costas quebradas, sangrando até a morte, cru agonia e terror. Cinco cartas a serem escritas a pais orgulhosos e mães preocupadas: o pesar de informar, morreu em ação, a luta histórica contra as forças da reação, ato de heroísmo, condecoração póstuma, as mais profundas condolências. As mais profundas condolências. O desdém da mãe por essas palavras sonoras, enquanto recordava como dera à luz em dor e medo, alimentara o filho nos momentos difíceis e fáceis, ensinara-o a andar, a lavar as mãos e a escrever o nome, mandara-o para a escola; como o observara crescer e crescer, até ficar quase tão alto quanto ela, depois ainda mais alto, até ficar preparado para ganhar o próprio sustento e casar com uma moça saudável, iniciar sua família, darlhe netos. O desespero da mãe ao compreender que tudo isso, as coisas que fizera, o sofrimento, trabalho e preocupação, tudo fora por nada: aquele milagre, seu filho homem, fora destruído por homens arrogantes, numa guerra estúpida e inútil. O senso de perda. O senso de perda.

Jane ouviu Eilis gritar. Levantou os olhos. Ele estava de pé, sem se importar agora que o vissem, acenando vigorosamente com os braços e berrando:

- Agora! Agora!

Com todo cuidado, ela largou o artefato de disparo no chão, ao lado do regato.

Os soldados avistaram os dois. Dois homens começaram a subir pela encosta da garganta, a caminho do lugar onde Ellis estava. Os outros cercaram Jane, apontando os rifles para ela e a criança, parecendo aturdidos e embaraçados. Ela os ignorou e ficou olhando para Ellis.

Ele desceu pelo lado da garganta. Os homens que subiam em seu encalço pararam e esperaram para ver o que ele faria. Ellis chegou ao fundo e avançou devagar na direção de Jane, parando à sua frente.

- Por quê? - disse ele. - Por que não o fez?

Porque eles são tão jovens, pensou Jane; porque são jovens e inocentes, não querem me matar. Porque seria assassinato. Mas, acima de tudo...

- Porque eles têm mães - murmurou ela.

 

Jean-Pierre abriu os olhos. O vulto corpulento de Anatoly estava agachado ao lado da cama de campanha. Por trás de Anatoly, os raios de sol entravam pela abertura da barraca. Jean-Pierre experimentou um momento de pânico, sem saber por que dormira até tão tarde ou o que perdera; e depois, num relance, recordou os acontecimentos da noite.

Ele e Anatoly estavam acampados no acesso ao Passo Kantiwar. Haviam sido despertados por volta das duas e meia da madrugada pelo capitão que comandava o grupo de busca, que por sua vez fora despertado pelo soldado de sentinela. Um jovem afegão chamado Halam aparecera no acampamento, explicara o capitão. Usando uma mistura de inglês, francês e russo, Halam informara que era o guia dos americanos fugitivos, mas os abandonara por ter sido insultado. Ao ser perguntado onde estavam os "americanos", ele se oferecera para levar os russos à cabana de pedra onde os dois fugitivos dormiam naquele momento, sem suspeitarem de nada.

Jean-Pierre quisera entrar imediatamente no helicóptero e seguir para o local. Anatoly se mostrara mais controlado.

- Temos um ditado na Mongólia: não fique de pau duro até que a puta abra as pernas. Halam pode estar mentindo. E se diz a verdade, ainda assim pode não encontrar a cabana de pedra, especialmente à noite, e do ar. E mesmo que ele encontre, é possível que Ellis e Jane já tenham partido.

- O que acha então que devemos fazer?

- Vamos enviar uma expedição... um capitão, cinco soldados e um cavalo, acompanhados por esse Halam. Podem partir agora. E nós descansaremos até eles encontrarem os fugitivos.

A cautela de Anatoly se justificara. O grupo informara pelo rádio, às três e meia da madrugada, que a cabana estava vazia. Mas a fogueira ainda estava acesa, o que significava que Halam provavelmente estava dizendo a verdade.

Anatoly e Jean-Pierre concluíram que Ellis e Jane haviam acordado durante a noite, descoberto que o guia desaparecera e resolvido fugir. Anatoly ordenara que o grupo avançado fosse atrás deles, confiando em Halam para indicar o percurso mais provável.

A esta altura Jean-Pierre fora deitar e mergulhara num sono pesado, sendo esse o motivo pelo qual não acordara ao amanhecer. Agora, ele fitou com olhos remelentos o vulto de Anatoly e perguntou:

- Que horas são?

- Oito. E já os capturamos.

O coração de Jean-Pierre disparou... e no instante seguinte ele lembrou que já se sentira assim antes e acabara decepcionado.

- Tem certeza?

- Podemos ir verificar assim que você vestir as calças.

Tudo aconteceu muito depressa. Um helicóptero de reabastecimento chegou no momento em que eles estavam prontos para partir e Anatoly achou que era mais sensato esperar alguns minutos, enquanto os tanques eram enchidos. Jean-Pierre foi obrigado a conter sua intensa impaciência por mais algum tempo.

Partiram poucos minutos depois. Jean-Pierre contemplava a paisagem pela porta aberta. Enquanto subiam pelas montanhas, ele compreendeu que era o território mais desolado e inóspito que já conhecera no Afeganistão. Jane teria mesmo atravessado aquela paisagem lunar, coberta de gelo, brutal, com uma criança nos braços? Ela deve me odiar muito, pensou Jean-Pierre, para enfrentar tudo isso a fim de escapar de mim. Descobrirá agora que foi tudo em vão. Ela é minha para sempre.

Mas Jane teria sido mesmo capturada? Ficou apavorado com a possibilidade de outro desapontamento. Quando pousasse, descobriria que os russos haviam capturado outro casal de hippies, dois montanhistas fanáticos ou mesmo um par de nômades que pareciam vagamente europeus?

Anatoly apontou para o Passo Kantiwar ao sobrevoarem-no e gritou no ouvido de Jean-Pierre, por cima do barulho dos motores e do vento:

- Parece que eles perderam o cavalo.

Jean-Pierre avistou os contornos de um cavalo morto na neve abaixo da passagem. Perguntou-se se seria Maggie. Até que esperava que fosse aquela égua teimosa.

Desceram para o Vale Kantiwar, esquadrinhando o terreno à procura do grupo avançado. Acabaram avistando fumaça: alguém acendera uma fogueira para orientá-los. Desceram num trecho plano, perto da entrada de uma garganta. Jean-Pierre observou atentamente enquanto baixavam: avistou três ou quatro homens em uniformes russos, mas não viu Jane.

O helicóptero pousou. O coração de Jean-Pierre ameaçava sair pela boca. Ele pulou para o solo, sentindo-se nauseado de tanta tensão. Anatoly pulou ao seu lado. O capitão levou-os para longe dos helicópteros, garganta abaixo.

E lá estavam eles.

Jean-Pierre sentiu-se como alguém que foi torturado e agora tem o torturador sob o seu poder. Jane estava sentada no chão, ao lado de um regato, com Chantal no colo.

Ellis estava de pé atrás dela. Os dois pareciam exaustos, derrotados, desmoralizados. JeanPierre parou e ordenou a Jane:

- Venha até aqui.

Ela levantou-se e adiantou-se. Jean-Pierre reparou que ela carregava Chantal numa espécie de tipóia pendurada do pescoço, o que lhe deixava as mãos livres. Ellis fez menção de segui-la, e Jean-Pierre disse:

- Você não.

Ellis parou. Jane postou-se diante de Jean-Pierre e fitou-o. Ele levantou a mão direita e esbofeteou-a com toda força. Foi o golpe mais gratificante que já aplicara em toda a sua vida. Jane cambaleou para trás e Jean-Pierre pensou que ela cairia; mas ela conseguiu manter o equilíbrio e fitou-o fixamente, com uma expressão de desafio, as lágrimas escorrendo pelo rosto. Por cima do ombro de Jane, Jean-Pierre viu Ellis dar um passo súbito para a frente e depois se conter. Jean-Pierre ficou um pouco desapontado: se Ellis tentasse fazer alguma coisa, os soldados o cercariam e espancariam. Não importa: ele receberá a surra que merece muito em breve.

Jean-Pierre levantou a mão para esbofetear Jane outra vez. Ela se encolheu e cobriu Chantal com os braços, num gesto protetor. Jean-Pierre mudou de idéia.

- Haverá bastante tempo para isso depois - disse ele, baixando a mão. - Bastante tempo.

Ele virou-se e voltou ao helicóptero. Jane olhou para Chantal. A menina parecia fitá-la também, desperta, mas não com fome. Jane abraçou-a, como se fosse a filha que precisasse de conforto. De certa forma, sentia-se contente por Jean-Pierre tê-la agredido, embora o rosto ainda ardesse com a dor e a humilhação. O golpe fora como a sentença inapelável num divórcio: significava que o casamento estava encerrado, finalmente, oficialmente, definitivamente, e ela não tinha mais qualquer responsabilidade.

Se ele chorasse, pedisse perdão ou suplicasse que ela não o odiasse pelo que fizera, Jane teria se sentido culpada. Mas a bofetada acabara com tudo isso. Não lhe restava mais nenhum sentimento por Jean-Pierre, nenhum amor, respeito ou mesmo compaixão. Era irônico, pensou ela, que se sentisse completamente livre de Jean-Pierre no instante mesmo em que ele a capturava.

Até aquele momento, um capitão estivera no comando, o que montava no cavalo. Mas agora quem assumiu o controle foi Anatoly, o contato de aparência oriental de Jean-Pierre.

Enquanto ele dava ordens, Jane descobriu que entendia suas palavras. Há mais de um ano que não ouvia alguém falar em russo, e a princípio soou como uma algaravia ininteligível, mas passou a compreender cada palavra depois que os ouvidos entraram em sintonia. No momento ele dizia a um soldado que prendesse as mãos de Ellis.

O soldado, aparentemente preparado para isso, tirou do bolso um par de algemas. Ellis estendeu as mãos à frente, cooperativo, e o soldado algemou-o.

Ellis parecia intimidado e abatido. Vendo-o algemado, derrotado, Jane experimentou um ímpeto de compaixão e desespero, e lágrimas afloraram a seus olhos.

O soldado indagou se deveria também algemar Jane.

- Não - respondeu Anatoly. - Ela está com a criança. Os dois foram conduzidos ao helicóptero. Ellis murmurou:

- Sinto muito. Por Jean-Pierre. Eu não podia alcançá-lo... Jane sacudiu a cabeça para indicar que não havia necessidade de desculpa, mas não foi capaz de falar.

A submissão total de Ellis deixava-a furiosa, não com ele, mas com todos os outros, por levarem-no àquela situação: Jean-Pierre, Anatoly, Halam e todos os russos.

Quase desejou ter detonado o explosivo.

Ellis embarcou no helicóptero, depois estendeu a mão para ajudá-la a subir. Jane segurou Chantal com o braço esquerdo, a fim de manter a tipóia firme, e deu-lhe a mão direita. Ele puxou-a. No momento em que ela estava mais perto, Ellis murmurou;

- Assim que decolarmos, dê um tapa em Jean-Pierre. Jane ficou chocada demais para reagir, o que provavelmente foi uma sorte. Ninguém mais parecia ter ouvido Ellis e de qualquer forma nenhum dos outros entendia muito o inglês. Ela concentrou-se em tentar parecer normal.

A cabine de passageiros era pequena e despojada, com um teto baixo que obrigava os homens a se inclinarem. Não havia mais nada além de um banco preso na fuselagem, em frente à porta. Jane sentou-se, agradecida. Podia ver a carlinga. O assento do piloto ficava a cerca de um metro do chão, com um degrau ao lado para o acesso.

O piloto ainda estava ali - a tripulação não desembarcara - os rotores girando. O barulho era muito alto.

Ellis agachou-se no chão, ao lado de Jane, entre o banco e o assento do piloto.

Anatoly embarcou, acompanhado por um soldado. Falou com o soldado, apontando para Ellis. Jane não pôde ouvir, mas era evidente, pela reação do soldado, que fora uma ordem para vigiar Ellis: o soldado tirou o rifle do ombro e empunhou-o com as duas mãos.

Jean-Pierre embarcou por último. Ficou de pé junto à porta aberta, olhando para fora, enquanto o helicóptero alçava vôo. Jane entrou em pânico. Ellis podia lhe dizer para esbofetear Jean-Pierre no momento em que decolassem, mas como se poderia fazer? JeanPierre estava agora virado para o outro lado, junto à porta aberta; se ela tentasse agredi-lo, talvez perdesse o equilíbrio e caísse do helicóptero. Ela olhou para Ellis, esperando por uma orientação. Havia uma expressão tensa no rosto dele, mas ele não a fitou.

O helicóptero subiu por dois ou três metros, e parou por um momento, depois fez uma volta, adquirindo velocidade e recomeçando a subir.

Jean-Pierre virou-se, avançou pela cabine, verificou que não tinha onde se sentar. Hesitou por um instante. Jane sabia que devia se levantar e esbofeteá-lo – embora não tivesse a menor idéia do motivo para isso - mas estava paralisada no banco, imobilizada pelo pânico. Foi nesse instante que Jean-Pierre sacudiu o polegar em sua direção, indicando que ela deveria se levantar.

E Jane explodiu.

Estava exausta e angustiada, dolorida, faminta, desesperada, e Jean-Pierre queria que se levantasse, ficasse de pé com a filha nos braços, a fim de que ele pudesse se sentar. O aceno desdenhoso com o polegar parecia resumir toda a sua crueldade, maldade e traição, deixando-a enfurecida. Ela se levantou, com Chantal balançando de seu pescoço, e avançou para Jean-Pierre, gritando:

- Filho da puta! Filho da puta!

Suas palavras se perderam no barulho dos motores e do vento, mas a expressão provavelmente chocou Jean-Pierre, porque ele deu um passo para trás, surpreso.

- Odeio você! - berrou Jane.

E ela correu para Jean-Pierre, as mãos estendidas, empurrandoo pela porta aberta.

Os russos haviam cometido um erro. Bem pequeno, mas era tudo de que Ellis dispunha, e ele estava disposto a tirar o máximo de proveito. O erro fora algemar suas mãos na frente, e não nas costas.

Ele torcera para que não o manietassem e fora por isso que não fizera coisa alguma, com um esforço sobre-humano, quando JeanPierre agredira Jane. Houvera uma possibilidade de que não o algemassem: afinal, estava desarmado e em inferioridade numérica. Mas Anatoly, ao que tudo indicava, era um homem cauteloso.

Mas, felizmente, não fora Anatoly quem lhe pusera as algemas, e sim um soldado. Os soldados sabiam que era mais fácil lidar com um prisioneiro que estivesse com as mãos manietadas na frente. Assim, havia menos possibilidade de que ele caísse e poderia entrar e sair de caminhões e helicópteros sem precisar de ajuda. Quando Ellis estendera as mãos à frente, submisso, o soldado não hesitara.

Sem ajuda, Ellis não poderia dominar três homens, especialmente quando pelo menos um deles estava armado. Suas chances numa luta direta eram inexistentes. Sua única esperança era derrubar o helicóptero.

Houve um instante em que o tempo pareceu parar, com Jane de pé junto à porta aberta, imóvel, a filha balançando de seu pescoço, olhando com uma expressão horrorizada, enquanto Jean-Pierre caía pelo espaço. Ellis pensou: Estamos a apenas quatro ou cinco metros de altura, o filho da puta deve sobreviver, o que é uma pena. E no instante seguinte Anatoly levantou-se de um pulo e agarrou os braços de Jane por trás, imobilizando-a. Agora, Anatoly e Jane estavam entre Ellis e o soldado, no outro lado da cabine.

Ellis virou-se, levantou-se para o degrau ao lado do assento do piloto, passou os braços algemados pela cabeça do homem e puxou a corrente para a carne da garganta, com toda força.

O piloto não entrou em pânico.

Mantendo os pés nos pedais e a mão esquerda na alavanca de comando, ele levantou a mão direita e agarrou os pulsos de Ellis.

Ellis experimentou um momento de pavor. Era a sua última chance e só dispunha de um ou dois segundos. O soldado na cabine teria receio a princípio de usar o rifle, com medo de acertar o piloto; e Anatoly, se estivesse armado, partilharia o temor; mas dentro de um momento um dos dois compreenderia que nada tinham a perder, já que se não atirassem em Ellis o aparelho cairia de qualquer maneira, e então assumiriam o risco.

Os ombros de Ellis foram agarrados por trás. Um vislumbre de uma manga cinza-escura revelou-lhe que era Anatoly. Na frente do helicóptero o artilheiro virou-se, viu o que estava acontecendo e começou a se levantar.

Ellis sacudiu freneticamente a corrente. A dor foi demais para o piloto, que ergueu também a outra mão e levantou-se do assento.

Assim que as mãos e os pés do piloto deixaram os controles, o helicóptero começou a balançar ao vento. Ellis estava preparado para isso e manteve o equilíbrio, encostando-se no assento do piloto; mas Anatoly, às suas costas, perdeu o equilíbrio e largou-o.

Ellis arrancou o piloto do assento e jogou-o no chão, depois se inclinou e empurrou para baixo a alavanca de comando.

O helicóptero caiu como uma pedra.

Ellis virou-se, preparando-se para o impacto.

O piloto estava no chão da cabine, a seus pés, as mãos na garganta. Anatoly caíra no meio da cabine. Jane estava agachada num canto, os braços envolvendo Chantal, num gesto protetor. O soldado também caíra, mas recuperara o equilíbrio e estava agora apoiado num joelho, levantando a arma na direção de Ellis.

E no instante em que ele puxava o gatilho as rodas do helicóptero bateram no chão.

O impacto fez Ellis cair de joelhos, mas ele estava preparado e não se desequilibrou. O soldado cambaleou para o lado, os tiros passando pela fuselagem, a um metro da cabeça de Ellis, e depois tombou para a frente, largando a arma e estendendo as mãos para amortecer a queda.

Ellis inclinou-se, pegou o Kalashnikov, segurando-o meio desajeitado com as mãos algemadas.

Foi um momento de pura alegria.

Estava reagindo. Fugira, fora capturado e humilhado, sofrerá frio, fome e medo, ficara impotente enquanto Jane era esbofeteada; mas agora, finalmente, tinha uma oportunidade de fincar pé e lutar.

Pôs o dedo no gatilho. As mãos estavam algemadas muito perto para que segurasse o Kalashnikov na posição normal, mas conseguiu sustentar o cano de forma anticonvencional, usando a mão esquerda para pegar o pente curvo que se projetava logo à frente da guarda do gatilho.

O motor do helicóptero deu um estalo e os rotores começaram a girar mais devagar. Ellis olhou para a frente do aparelho e viu o artilheiro saindo pela porta lateral do piloto. Precisava controlar a situação o mais depressa possível, antes que os russos lá fora entrassem em ação.

Ele aproximou-se de Anatoly, que estava estendido no chão, perto da porta; encostou o cano do rifle em seu peito. O soldado fitava-o com expressão apavorada.

- Saia - ordenou Ellis, com um aceno de cabeça.

O soldado compreendeu e pulou pela porta. O piloto ainda estava caído, dando a impressão de que tinha dificuldade para respirar. Ellis chutou-o para atrair sua atenção e ordenou que saísse também. O homem fez um grande esforço para ficar de pé, ainda segurando a garganta, e saiu pelo mesmo caminho. Ellis acrescentou para Jane:

- Diga a esse sujeito para sair do helicóptero e parar bem perto, de costas para mim. E depressa!

Jane gritou uma porção de palavras em russo para Anatoly. O homem levantou-se, lançou um olhar de intenso ódio para Ellis e depois saiu do helicóptero, devagar.

Ellis encostou o cano do rifle na nuca de Anatoly e disse a Jane:

- Mande ele ordenar aos outros para ficarem quietos. Jane tornou a falar e Anatoly gritou uma ordem. Ellis olhou ao redor. O piloto, o artilheiro e o soldado que estivera no helicóptero se mantinham nas proximidades. Um pouco além estava JeanPierre, sentado no chão, segurando o tornozelo: ele deve ter caído bem, pensou Ellis, não sofreu qualquer ferimento grave. Mais além estavam três soldados, o capitão, o cavalo e Halam. Ellis disse a Jane:

- Mande Anatoly desabotoar o casaco, tirar a pistola bem devagar e entregá-la a você.

Jane traduziu. Ellis comprimiu o cano do rifle com mais força na nuca de Anatoly, enquanto o russo tirava a arma do coldre e a estendia para trás.

Jane pegou-a. Ellis perguntou:

- É uma Makarov? Ótimo. Tem uma trava de segurança no lado esquerdo. Empurre até cobrir o ponto vermelho. Para disparar, puxe para trás o cursor e depois aperte o gatilho. Entendido?

- Entendido.

Jane estava pálida e trêmula, mas a boca se contraía numa expressão de determinação. Ellis acrescentou:

- Diga a ele para mandar os soldados trazerem suas armas até aqui, um a um, e jogá-las no helicóptero.

Jane traduziu e Anatoly deu a ordem.

- Aponte a pistola para cada um no momento em que se aproximar - disse Ellis para Jane.

Um a um, os soldados se adiantaram e se desfizeram de suas armas.

- Cinco garotos - murmurou Jane.

- Como?

- Havia o capitão, Halam e cinco garotos. Só estou vendo quatro agora.

- Diga a Anatoly que tem de descobrir o outro, se quer viver.

Jane gritou para Anatoly, e Ellis ficou surpreso com a veemência de sua voz. Anatoly parecia apavorado ao dar a ordem. Um momento depois o quinto soldado contornou a traseira do helicóptero e entregou o seu rifle, como os outros.

- Muito bom - murmurou Ellis a Jane. - Ele poderia estragar tudo. E agora faça todos deitarem.

No minuto seguinte todos estavam deitados no chão, os rostos virados para baixo.

- Você tem de arrebentar as algemas com um tiro - disse Ellis a Jane.

Ele baixou o rifle e estendeu os braços para a porta. Jane puxou o cursor da pistola e encostou o cano na corrente. Postaram-se de tal maneira a que a bala passasse pela porta aberta.

- Só espero que meus pulsos não fiquem quebrados - murmurou Ellis.

Jane fechou os olhos e puxou o gatilho. Ellis berrou:

- Puta merda!

Os pulsos doíam demais no começo. Logo ele percebeu que não estavam quebrados - mas a corrente estava. Ele pegou o rifle e declarou:

- Quero agora o rádio deles.

Por ordem de Anatoly, o capitão começou a desamarrar uma caixa grande do lombo do cavalo.

Ellis perguntou-se se o helicóptero tornaria a voar. O trem de pouso estava avariado e podia haver muitos outros danos por baixo; mas o motor e os principais cabos de controle ficavam em cima. Lembrou que na batalha de Darg fizera um Hind como aquele despencar por oito ou nove metros e depois tornar a decolar.

Se o outro voara, aquele também tinha de voar, pensou Ellis. Caso contrário...

Ele não sabia o que poderia fazer em caso contrário.

O capitão trouxe o rádio, colocou-o no helicóptero e afastou-se em seguida.

Ellis permitiu-se um momento de alívio. com o rádio em seu poder, os russos não poderiam fazer contato com a base. Isso significava que não receberiam reforços nem poderiam alertar ninguém para o que acontecera. Se conseguisse levantar vôo com o helicóptero, estaria a salvo da perseguição.

- Mantenha sua pistola apontada para Anatoly - disse ele rapidamente a Jane. - Vou descobrir se posso levar esta coisa para o ar.

Jane descobriu que a arma era surpreendentemente pesada. Apontando para Anatoly, manteve o braço estendido por algum tempo, mas logo teve de baixá-lo para descansar.

Ela afagou as costas de Chantal com a mão esquerda. Chantal chorara de forma intermitente durante os últimos minutos, mas agora parará.

O motor do helicóptero virou, engasgou, hesitou. Oh, por favor, pegue logo, rezou Jane. Por favor!

Ô motor pegou, as pás começaram a girar.

Jean-Pierre levantou os olhos.

Não se atreva, pensou Jane. Não se mexa!

Jean-Pierre empertigou-se no chão, fitou-a e levantou-se com evidente dificuldade.

Jane apontou a pistola para ele.

Jean-Pierre começou a avançar.

- Não me obrigue a atirar em você! - gritou ela.

Mas a voz foi abafada pelo crescente rugido do helicóptero. Anatoly devia ter visto Jean-Pierre, pois rolou no chão e sentou. Jane apontou-lhe a pistola. Ele levantou as mãos, em rendição. Jane virou a arma para Jean-Pierre, que continuava a se adiantar.

Ela sentiu o helicóptero estremecer e tentar alçar vôo.

Jean-Pierre estava perto agora. Jane podia ver seu rosto claramente. As mãos estavam estendidas, num gesto de apelo, mas havia um brilho de loucura nos olhos. Ele perdeu o juízo, pensou Jane; mas talvez já tivesse acontecido há muito tempo.

- Juro que atiro! - gritou Jane, mesmo sabendo que ele não podia ouvi-la. - Juro que atiro!

O helicóptero elevou-se do solo.

Jean-Pierre desatou a correr.

Enquanto o aparelho subia, Jean-Pierre pulou e caiu no convés. Jane torceu para que ele tornasse a cair, mas Jean-Pierre conseguiu se firmar. Fitou-a com ódio nos olhos, contraiu-se para atacá-la.

Jane fechou os olhos e puxou o gatilho.

A arma explodiu e se sacudiu em sua mão.

Ela tornou a abrir os olhos. Jean-Pierre ainda estava ali, com uma expressão de espanto. Uma mancha escura espalhava-se pelo peito do casaco. Em pânico, Jane puxou o gatilho outra vez e mais outra e mais outra. Errou os dois primeiros tiros, mas o terceiro aparentemente atingiu-o no ombro. Jean-Pierre virou e depois caiu pela porta aberta. E sumiu.

Eu o matei, pensou Jane.

A princípio, sentiu uma exultação incontrolável. Ele tentara capturá-la, queria transformá-la em escrava. Caçara-a como a um animal. Além de traí-la, também a agredira.

E agora ela o matara.

E, depois, foi dominada pelo desespero. Sentou-se no chão, soluçando. Chantal também se pôs a chorar e Jane embalou-a, enquanto choravam juntas.

Ela não soube por quanto tempo ficou assim. Acabou se levantando e se adiantou para ficar ao lado do assento do piloto.

- Você está bem? - gritou Ellis.

Ela acenou com a cabeça e tentou exibir um sorriso. Ellis também sorriu, apontou para um medidor e gritou:

- Olhe só! Os tanques estão cheios!

Jane beijou-o no rosto. Um dia lhe contaria que atirara em JeanPierre, mas não agora.

- Falta muito para a fronteira?

- Menos de uma hora. E eles não podem enviar ninguém em nosso encalço porque trouxemos o rádio.

Jane olhou pelo pára-brisa. Podia ver à frente as montanhas de picos nevados que deveria escalar. Acho que eu não conseguiria, disse para si mesma. Acho que teria

me deitado na neve e morrido.

Ellis tinha uma expressão ansiosa.

- Em que está pensando? - perguntou ela.

- Em como eu gostaria de comer um sanduíche de rosbife, alface, salada e maionese, com um pão de trigo integral.

Jane sorriu. Chantal remexeu-se e gritou. Ellis tirou uma das mãos dos controles e acariciou sua face rosada, murmurando:

- Ela está com fome.

- Vou cuidar dela lá atrás.

Jane voltou à cabine de passageiros e sentou-se no banco. Desabotoou o casaco e a blusa, e amamentou a filha enquanto o helicóptero voava para o sol nascente.

 

1983

Jane sentia-se satisfeita ao descer pelo caminho da casa numa comunidade suburbana e sentar no banco de passageiro do carro de Ellis. Fora uma tarde perfeita. As pizzas estavam ótimas, e Petal adorara Flashdance. Ellis se mostrara muito tenso ao apresentar a filha à namorada, mas Petal ficara encantada com Chantal, que estava com seis meses, e tudo fora fácil. Ellis sentia-se tão bem que sugerira, quando foram levar Petal em casa, que Jane entrasse para conhecer Gill. E Gill os convidara a entrar e brincara com Chantal. Assim, Jane conhecera sua ex-esposa, assim como a filha, numa só tarde.

Ellis - Jane não se acostumara ao fato de que seu verdadeiro nome era John e decidira chamá-lo sempre de Ellis - pôs Chantal no banco de trás e foi sentar-se ao volante, ao lado de Jane.

- O que achou? - perguntou ele, enquanto partiam.

- Você não me disse que ela era linda - comentou Jane.

- Petal é linda?

- Eu estava falando de Gill - explicou Jane, rindo.

- Tem razão, ela é mesmo linda.

- São ótimas pessoas e não merecem estar envolvidas com alguém como você.

Ela estava gracejando, mas Ellis acenou com a cabeça, uma expressão sombria. Jane inclinou-se e pôs a mão em sua coxa.

- Eu não estava falando sério.

- Mas é verdade.

Eles seguiram em silêncio por algum tempo. Já se haviam passado seis meses desde que haviam escapado do Afeganistão. De vez em quando Jane desatava a chorar, sem qualquer motivo aparente, porém não tinha mais pesadelos em que atirava em Jean-Pierre repetidamente. Só ela e Ellis sabiam o que acontecera - Ellis até mentira a seus superiores sobre a maneira como Jean-Pierre morrera - e Jane decidira que contaria a Chantal que o pai morrera na guerra no Afeganistão: só isso.

Em vez de voltar direto para a cidade, Ellis seguiu por uma série de ruas secundárias e acabou estacionando junto a um terreno baldio, à beira d'água.

- O que viemos fazer aqui? - indagou Jane. - Nos beijar?

- Se você quiser. Mas preciso conversar com você.

- Muito bem.

- Foi um dia maravilhoso.

- Foi mesmo.

- Petal esteve mais descontraída comigo hoje do que em qualquer outra ocasião anterior.

- Por quê?

- Tenho uma teoria. Foi por sua causa e de Chantal. Agora que sou parte de uma família, não represento mais uma ameaça para o seu lar e sua estabilidade. Acho que é isso.

- Creio que faz sentido. É sobre isso que você queria falar?

- Não. - Ellis hesitou. - Estou deixando a Agência. Jane balançou a cabeça.

- Fico contente - declarou ela, com veemência.

Jane esperava por algo assim. Ellis se empenhava em acertar suas contas e dívidas.

- A missão afegã está basicamente concluída - continuou ele. - O programa de treinamento de Masud está em andamento e eles já receberam a primeira remessa. Masud está tão forte que até já negociou uma trégua de inverno com os russos.

- Isso é ótimo. Sou a favor de qualquer coisa que leve a um cessar-fogo.

- Quando eu estava em Washington e você em Londres, ofereceram-me outro cargo. É uma coisa que quero fazer e ainda por cima pagam bem.

- O que é?

- Trabalhar numa nova força-tarefa presidencial contra o crime organizado.

Jane sentiu uma pontada de medo no coração.

- É perigoso?

- Não para mim. Estou muito velho agora para atuar como agente secreto. Meu trabalho será o de orientar os agentes secretos.

Jane percebeu que ele não estava sendo absolutamente sincero.

- Quero que me conte toda a verdade.

- Está bem. É muito menos perigoso do que o trabalho que eu vinha fazendo. Mas não é tão seguro quanto ser professor de jardim-de-infância.

Ela sorriu. Sabia para onde a conversa estava levando e isso a deixava feliz. Ellis acrescentou:

- E também ficarei baseado aqui em Nova York. Isso a pegou de surpresa.

- É mesmo?

- Por que está tão espantada?

- Porque me candidatei a um emprego na ONU. Aqui em Nova York.

- Você não me disse que ia fazer isso! - protestou Ellis, parecendo magoado.

- E você não me falou sobre os seus planos - declarou ela, indignada.

- Estou contando agora.

- E eu estou contando a você agora.

- Mas... você me deixaria?

- Por que temos que viver onde você trabalha? Por que não podemos viver onde eu trabalho?

- Nos meses em que estivemos separados, esqueci completamente como você é teimosa.

- Tem razão.

Houve um instante de silêncio. Depois Ellis murmurou:

- Seja como for, nós dois vamos viver em Nova York...

- Poderíamos partilhar as despesas de casa?

- Acho que sim - respondeu ele, hesitante.

Então Jane arrependeu-se de perder a calma. Ellis não era realmente desatencioso, apenas um tolo. Ela quase o perdera no Afeganistão e agora não podia ficar zangada com ele por muito tempo, porque sempre se lembraria de como ficara assustada com a possibilidade de se separarem para sempre e de como se sentira contente por terem permanecido juntos e sobrevivido.

- Está certo - disse ela, a voz mais suave. - Vamos partilhar as despesas de casa.

- Para ser franco... eu estava pensando em tornar a coisa oficial. Se você quiser.

Era justamente o que Jane estava esperando, mas ela repetiu, como se não entendesse:

- Oficial?

- Isso mesmo - balbuciou ele, contrafeito. - Pensei que poderíamos casar. Se você quiser.

Jane riu de satisfação.

- Aja da maneira certa, Ellis! Peça-me em casamento! Ele pegou sua mão.

- Jane, minha querida, eu amo você. Quer casar comigo?

- Quero! Quero! O mais depressa possível! Amanhã! Hoje!

- Obrigado.

Ela se inclinou e beijou-o.

- Também amo você.

Ficaram sentados em silêncio, de mãos dadas, contemplando o pôr-do-sol. Era estranho, pensou Jane, mas o Afeganistão parecia irreal agora, como um pesadelo, nítido, porém não mais assustador. Ela se lembrava muito bem das pessoas - Abdullah o mula, Rabia a parteira, o belo Mohammed, a sensual Zahara e a leal Fara - mas as bombas e os helicópteros, o medo e o sofrimento estavam se desvanecendo de sua memória. Sentia que aquela era a aventura real: casar e criar Chantal, tornar o mundo um lugar melhor para a filha viver.

- Vamos embora? - disse Ellis.

- Vamos. - Jane apertou-lhe a mão mais uma vez e depois soltou-a. - Temos muito que fazer.

Ele ligou o carro e seguiu para a cidade.

 

                                                                              Ken Folett

 

                      

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