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Cordelia se viu de repente oprimida por uma sensação de solidão e melancolia. Se Bernie estivesse vivo, discutiriam o caso, escondidos no mais remoto rincão de algum bar de Cambridge, isolados pelo ruído e a fumaça e o anonimato da curiosidade de seus vizinhos; falando em voz desce em seu próprio jargão particular. Estariam especulando sobre a personalidade de um jovem que dormia baixo aquela pintura amável e intelectual e que, entretanto, tinha comprado uma vulgar revista de obscenos nus. Ou a teria comprado ele em realidade? E se não, como tinha ido parar à horta da cabana? Estariam falando a respeito de um pai que mentia com respeito à última chamada Telefónica de seu filho; especulando em feliz cumplicidade sobre uma espécie sem limpar, uma fileira de terra revolta pela metade, uma taça de café sem lavar, uma entrevista do Blake meticulosamente datilografada. Estariam falando do Isabelle, que estava aterrada, e do Sophie, que era certamente sincera, e do Hugo, que certamente sabia algo a respeito da morte do Mark e que era preparado mas não tão preparado como precisava ser. Pela primeira vez desde que tinha começado o caso, Cordelia duvidou de sua capacidade para resolvê-lo por si só. Se houvesse alguém em quem pudesse confiar, alguém que devesse reforçar sua confiança... Voltou a pensar em Sophie, mas Sophie tinha sido a amante do Mark e era a irmã do Hugo. Ambos se achavam envoltos. Só dependia dela mesma, e isto, quando ficou a considerá-lo, não era diferente de como essencialmente tinha sido sempre. Ironicamente, o fato de ser consciente disso lhe infundiu consolo e uma nova esperança.
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Na esquina da rua Panton se detiveram e ele disse - vais voltar para a festa?
-Não, obrigado, Hugo; tenho trabalho que fazer.
-Vais ficar te em Cambridge?
Cordelia se perguntou a si mesmo se a pergunta era formulada por algo mais que por um interesse inspirado pela cortesia. Voltando-se de repente cautelosa, disse:
-Só por uns dias. encontrei uma pensão muito feia, mas troca, para dormir e tomar o café da manhã, perto da estação.
Hugo aceitou a mentira sem fazer comentário algum e se desejaram boa noite. Cordelia empreendeu a volta à rua Norwich. O pequeno carro estava ainda frente ao número cinqüenta e sete, mas a casa estava às escuras e silenciosa, para sublinhar sua exclusão, e as três janelas estavam fechadas como uns lúgubres olhos mortos.
Estava cansada quando retornou à cabana e estacionou o Mini ao bordo do matagal. A portinhola do horta chiou sob sua mão. A noite estava escura e Cordelia apalpou em sua bolsa procurando sua lanterna e foi seguindo a luz que esta projetava ao redor do lado da cabana e para a porta traseira. Guiada por esta luz, introduziu a chave na fechadura. Deu-lhe a volta e, cega pelo cansaço, entrou na sala de estar. A lanterna, ainda acesa, pendia frouxamente de seu mando, fazendo erráticos desenhos de luz sobre o estou acostumado a ladrilhado. Então, em um movimento involuntário, saltou para cima e iluminou plenamente o objeto que pendia do gancho central do teto. Cordelia lançou um grito e se agarrou à mesa. Era o almofadão de sua cama, o almofadão com um cordão firmemente pacote ao redor de um de seus extremos, formando uma grotesca e bulbosa cabeça, e o outro extremo metido dentro de umas calças do Mark. As pernas pendiam patéticamente plainas e vazias, uma mais baixa que a outra. Enquanto o contemplava com fascinado horror, martilleándole o coração dentro do peito, uma ligeira brisa entrou pela porta aberta e fez girar o objeto lentamente, como movido por uma mão vivente.
Deveu estar ali paralisada pelo medo e olhando com olhos extraviados o almofadão só por espaço de uns segundos, que lhe pareceram minutos, antes
de encontrar a força suficiente para agarrar uma cadeira da mesa e baixar aquela coisa. Inclusive no momento de repulsão e terror, teve a idéia de examinar o
nó. O cordão estava unido ao gancho por um simples laço e duas meias voltas. De maneira que seu segredo visitante não tinha querido repetir sua primeira tática ou
não sabia como tinha sido feito o primeiro nó. Pôs o almofadão em cima da cadeira e saiu a procurar a pistola. Em seu cansaço se esqueceu da arma, mas
nesse momento desejava a tranqüilidade que podia lhe oferecer ao ter o duro e frio metal na mão. deteve-se junto à porta traseira e escutou. O horta pareceu
encher-se de repente de ruídos, misteriosos rangidos, folhas que se moviam na ligeira brisa como suspiros humanos, movimentos precipitados e furtivos entre as matas,
o chiado de um morcego ou outro animal a alarmante proximidade. A noite parecia reter o fôlego enquanto Cordelia se encaminhava para o saúco. Esperou um
instante, escutando o pulsar de seu próprio coração, antes de encontrar o valor suficiente para voltar as costas e estender a mão para procurar, apalpando, a pistola.
Ainda estava ali. Suspirou audiblemente com alívio e em seguida se sentiu melhor. A pistola não estava carregada, mas isso logo que parecia importar. apressou-se
a voltar
à cabana, um pouco aliviada de seu terror.
Transcorreu quase uma hora antes de que se decidisse por fim a deitar-se. Acendeu a lanterna e, pistola em mão, efetuou um registro de toda a cabana. Continuando,
examinou a janela. Resultava bastante evidente a maneira em que tinha entrado o intruso. A janela não tinha fecho e era fácil de abrir empurrando desde fora.
Cordelia tirou um cilindro de cinta adesiva de sua maleta da cena do crime, cortou duas tiras muito estreitas e as pegou através do cristal e o marco de madeira.
Duvidou de se as janelas dianteiras poderiam abrir-se, mas não quis expor-se ao risco e as selou da mesma maneira. Não deteriam o intruso, mas ao menos ela
saberia à manhã seguinte que tinha entrado. Por último, depois de lavar-se na cozinha, subiu a escada e foi deitar se. A porta não tinha fechadura, mas ela
deixou-a ligeiramente aberta e pôs em equilíbrio, na parte superior, a coberta de uma caçarola. Se alguém conseguia entrar, não a pilharia por surpresa. Carregou
a pistola e a pôs sobre a mesinha de noite, recordando que tinha que haver-lhe com um assassino. Examinou o cordão. Era um cordão forte, corrente, de um metro
e meio de longitude, que evidentemente não era novo e estava gasto em um de seus extremos. sentiu-se decepcionada ao ver que não podia identificá-lo. Mas o etiquetou
cuidadosamente tal como Bernie lhe tinha ensinado, e o guardou em sua maleta da cena do crime. O mesmo fez com o papel datilografado com a passagem do Blake,
passando-o do fundo de sua bolsa aos envelopes de plástico. Estava tão cansada, que inclusive esta tarefa de rotina lhe custou um esforço de vontade. Logo voltou
a colocar
na cama o almofadão, resistindo o impulso de jogá-lo no chão e dormir sem ele. Mas, naqueles momentos, nada -nem o temor nem o desconforto- podia mantê-la
acordada. Esteve deitada só uns minutos escutando o tictac de seu relógio antes de que a fadiga a vencesse e a sumisse em um profundo sonho.
IV
O discordante falatório dos pássaros e a intensa clara luz de outro formoso dia despertaram a Cordelia cedo. Permaneceu deitada por espaço de vários minutos,
desperezándose dentro de seu saco de dormir, saboreando o aroma do campo, essa sutil e evocadora mescla de aroma de terra, erva úmida e curral de granja. lavou-se
na cozinha, tal como evidentemente o tinha feito antes Mark, de pé dentro da banheira que tinha levado do abrigo e abrindo a boca pela impressão que
causava-lhe a água fria do grifo que com ajuda de uma caçarola ia jogando sobre seu corpo nu. Na singela vida do campo havia algo que predispunha a estas
austeridades. Cordelia pensava que, em qualquer outra circunstância, não era provável que houvesse sentido o desejo de banhar-se com água fria em Londres ou desfrutado
tanto com o aroma apetitoso que despedia o bacon que se estava fritando na frigideira, ou o aroma de sua primeira taça de chá.
A cabana estava alagada pela luz do sol, santuário quente e amigável do qual podia aventurar-se a empreender o que a jornada pudesse lhe proporcionar. Em
a tranqüila paz de uma manhã do verão, a pequena sala de estar não mostrava rastros da trágica morte do Mark Callender. O gancho do teto parecia tão
inócuo como se jamais tivesse servido para seu terrível propósito. O horror do momento em que sua lanterna tinha feito aparecer a torcida sombra do almofadão balançando-se
por efeito da brisa da noite tinha então a irrealidade de um sonho. Inclusive a lembrança das precauções da noite anterior desencaixava naquela
clara luz do dia. sentia-se um pouco parva enquanto descarregava a pistola, envolvia as munições com sua roupa interior e voltava a esconder a arma no saúco,
vigiando com atenção para certificar-se de que ninguém a estava observando. depois de esfregar os pratos e tender a toalha da mesita de chá, foi ao extremo do
jardim a agarrar um ramalhete de pensamentos, prímulas e rainhas dos prados e o pôs em cima da mesa, em uma taça.
Tinha decidido que o primeiro que tinha que fazer era procurar tatu Pilbeam. Mesmo que a mulher nada tivesse que lhe contar a respeito da morte do Mark Callender
ou da razão pela que abandonou o colégio universitário, poderia lhe falar de sua infância e de sua adolescência; possivelmente melhor que ninguém, sabia qual tinha
sido seu
verdadeira natureza. preocupou-se o suficiente para assistir ao funeral e enviar uma custosa coroa de flores. Tinha ido visitar lhe colégio no dia
de seu vigésimo primeiro aniversário. Ele possivelmente se manteve em contato com ela, podia inclusive ter crédulo nela. Mark não tinha mãe, e Tatu Pilbeam pôde
ter sido, em algum sentido, uma substituta de sua mãe.
Enquanto conduzia seu carro para Cambridge, Cordelia ia pensando na tática que ia empregar. Provavelmente a senhorita Pilbeam vivia em algum lugar do
distrito e, certamente, não na cidade, posto que Hugo Tilling só a tinha visto uma vez. Pela breve descrição que Hugo fazia dela, devia ser
velha e, muito possivelmente, pobre. Era pouco provável, portanto, que tivesse viajado de longe para assistir ao funeral. Resultava evidente que não formava parte
do duelo oficial do Garfoth House, não tinha sido convidada por sir Ronald. Segundo Hugo, nenhuma das pessoas do grupo tinha falado com o resto dos assistentes
ao ato. Isto dificilmente sugeria que a senhorita Pilbeam fosse uma velha criada de confiança, quase uma pessoa da família. A maneira em que sir Ronald havia
feito caso omisso dela em tal ocasião intrigava a Cordelia, que se perguntava qual teria sido a posição da senhorita Pilbeam na família.
Se a anciã senhora vivia perto de Cambridge, provavelmente teria encarregado a coroa em uma das floriculturas da cidade. Os povos não estavam acostumados a
ter
essa classe de serviço. Tinha sido uma coroa de flores ostentosa, o que sugeria que a senhorita Pilbeam tinha estado disposta a gastar generosamente e, possivelmente
tinha ido a uma das floriculturas mais importantes. Certamente tinha ido em pessoa a encarregar a coroa. As senhoras maiores, à parte o fato de que estranha vez
utilizam o telefone, gostam de atender estes assuntos diretamente, pois suspeitam com razão, pensava Cordelia, que só o trato cara a cara e o meticuloso recitado
pelo que se necessita exatamente podem garantir o melhor serviço. Se a senhorita Pilbeam tinha chegado de seu povo em trem ou em ônibus, possivelmente tinha eleito
uma loja que se encontrasse perto do centro da cidade. Cordelia decidiu iniciar sua busca perguntando aos transeuntes se podiam lhe recomendar o nome de
uma boa floricultura.
Já tinha aprendido que Cambridge não era uma cidade idônea para o automobilista. Tirou e consultou o mapa dobradiça de seu guia e decidiu deixar o Mini no estacionamento
próximo ao Parker's Peque. Sua busca poderia levar algum tempo e o melhor seria efetuá-la a pé. Não queria expor-se a uma multa nem a que seu carro sofresse algum
dano se o deixava na rua. Consultou seu relógio. Passavam só uns minutos das nove. Era um bom momento para começar sua jornada.
A primeira hora resultou decepcionante. As pessoas às que perguntou se esforçavam por ajudá-la, mas suas idéias sobre o que constituía uma floricultura de
confiança em algum lugar perto do centro eram peculiares. Cordelia foi enviada a pequenos comerciantes de ultramarinos que vendiam, como artigo complementar,
alguns ramalhetes de flores cortadas, a um fornecedor de úteis de jardinagem que comercializava com novelo mas não com coroas, e, uma vez, ao diretor de uma
funerária. As duas floriculturas que a primeira vista pareciam possíveis nunca tinham ouvido falar da senhorita Pilbeam e não tinham subministrado coroas de flores
para o funeral do Mark Callender. um pouco cansada de tanto andar, e como começava a desanimar-se, Cordelia decidiu que toda aquela busca tinha sido ataque
estupidamente com excessivo entusiasmo. Possivelmente a senhorita Pilbeam tinha chegado do Bury St. Edmunds ou do Newmarket e tinha comprado a coroa em sua própria
cidade.
Mas a visita ao estabelecimento de pompas fúnebres não foi tempo perdido. Em resposta a sua pergunta, recomendaram-lhe o nome de uma assinatura que subministrava
"uma classe de coroas muito bonita, senhorita, realmente muito bonita". A loja se achava mais longe do centro da cidade do que Cordelia tinha esperado. Já desde
a calçada lhe pareceu que o estabelecimento cheirava a bodas ou a funerais, e quando abriu a porta, empurrando-a, saiu-lhe ao encontro uma baforada de ar quente
que lhe entupiu na garganta. Havia flores por toda parte. Grandes cubos verdes, alinhados junto às paredes, que continham açucenas, lírios e tremoceiros;
recipientes mais pequenos continham, muito apertadas, malmequeres e alhelíes dobre; havia Ramos muito apertados de casulos de rosa em caules sem espinhos, todas
as flores
idênticas em tamanho e cor, como se tivessem sido cultivadas em um tubo de ensaio. Vasos de barro de novelo interiores, decoradas com cintas de várias cores, flanqueavam
o caminho que conduzia para o mostrador, como um guarda de honra floral.
Na trastienda havia dois empregados trabalhando. Cordelia as via através da porta aberta. A mais jovem, uma lânguida e sardenta loira, era uma sorte
de ajudante de verdugo, que ia colocando rosas abertas, qual predestinadas vítimas, em cima de uma mesa, as classificando segundo o tipo e a cor. a de mais idade,
cuja categoria estava indicada por uma bata melhor ajustada a seu corpo e certo ar de autoridade, atravessava com um arame cada uma das mutiladas flores e as
ia juntando em um enorme leito de musgo em forma de coração. Cordelia apartou os olhos de semelhante horror.
Uma senhora roliça com uma blusa de cor rosa apareceu atrás do mostrador como surta de um nada. Cheirava tão forte como a loja, mas evidentemente havia
decidido que nenhum perfume floral corrente pudesse competir com o seu e tinha preferido confiar no exótico. Cheirava de modo tão intenso a pinheiro e a pó de especiarias
para preparar o molho de curry que o efeito era quase lhe anestesiem.
Cordelia recitou o discurso que trazia preparado:
-Venho de parte de sir Ronald Callender, do Garfoth House. Pergunto-me se vocês poderiam nos ajudar. Seu filho foi incinerado em três de junho e sua anciã aia
teve a amabilidade de enviar uma coroa, em realidade uma cruz de rosas vermelhas. Sir Ronald perdeu os gestos dessa senhora e tem muitíssimo interesse em lhe escrever.
Seu sobrenome é Pilbeam.
-Não acredito que realizássemos um encargo desse tipo em três de junho.
-Se fosse você tão amável de olhar em seu livro...
de repente, a jovem loira levantou os olhos de seu trabalho e disse:
-É Goddard.
-Como diz, Shirley? -disse a senhora roliça.
O nome é Goddard. O cartão da coroa punha Tatu Pilbeam, mas a compradora era um tal senhora Goddard. Outra senhora deveu perguntar de parte de sir
Ronald Callender e este foi o nome que ela deu. Olhei-a. Senhora Goddard, Lavender Cottage, Ickleton. Uma cruz de um metro vinte de comprimento em rosas vermelhas.
Seis
libras. Aí figura no livro.
-Muitíssimas obrigado -disse Cordelia, muito contente. Deu-lhes as graças às três com um sorriso e saiu rapidamente para não encetar-se em uma discussão sobre
a outra pessoa que tinha ido perguntar de parte do Garforth House. Isso deveu parecer sinto saudades, mas não tinha a menor duvida de que se entreteriam discutindo
esse assunto quando ela se partiu. Lavender Cottage, Ickleton. Foi repetindo a direção em seu interior até que se achou a prudente distancia da
loja para poder fazer uma pausa e anotá-la.
Seu cansaço parecia havê-la abandonado milagrosamente quando retornou pressurosa ao estacionamento do carro. Consultou seu mapa. Ickleton era um povo perto
do
limite do Essex, a uns quinze quilômetros de Cambridge. Não estava longe do Duxford, de modo que teria que voltar sobre seus passos. Poderia estar ali em menos de
meia hora.
Mas demorou mais do que esperava em abrir-se passo entre o tráfico de Cambridge e tinham transcorrido trinta e cinco minutos quando chegou à bela igreja
de pederneira e calhau do Ickleton, com seu esbelto chapitel; conduziu o Mini muito perto da porta da igreja. Era uma tentação jogar uma olhada ao interior,
mas Cordelia soube resistir. A senhora Goddard poderia estar naquele momento dispondo-se a agarrar o ônibus para ir a Cambridge. Foi em busca do Lavender Cottage.
Era uma pequena casa de feio tijolo vermelho que se encontrava ao final da rua High. Havia só uma estreita franja de erva entre a porta principal e
a rua e não se cheirava a lavanda nem se via rastro algum de dita planta. O trinco de ferro, em forma de cabeça de leão, caiu pesadamente, sacudindo a porta.
A resposta veio, não do Lavender Cottage, mas sim da casa do lado. Apareceu uma mulher entrada em anos, magra, quase desdentada, que levava um avental com
desenhos de rosas. Calçava sapatilhas e cobria sua cabeça com um gorro de lã adornado com uma borla. A expressão de sua cara era a de um vivo interesse nos assuntos
do mundo em geral.
-Queria você ver a senhora Goddard, se não ser indiscrição?
-Sim. você poderia me dizer onde poderia encontrá-la?
-Sem dúvida estará no cemitério. É onde está acostumado a ir quando faz uma manhã tão boa como esta.
-Agora mesmo venho da igreja e ali não vi a ninguém.
-Deus a benza senhorita! Não está na igreja! Faz muitos anos que não nos enterram ali. Seu ancião marido está onde a porão quando lhe chegar
a hora, no cemitério da rua Hinxton. você siga reto, não tem perda.
-Terei que voltar para a igreja a procurar meu carro -disse Cordelia. Era evidente que seria vigiada até que se perdesse de vista e lhe pareceu necessário explicar
por que se ia na direção oposta a que acabavam de lhe indicar. A anciã sorriu e saudou com a cabeça, e saiu para apoiar-se em sua porta e observar melhor
como ia baixando Cordelia pela rua High, movendo a cabeça como uma marionete enquanto a borla de seu gorro dançava sob a luz do sol.
Foi fácil dar com o cemitério. Cordelia estacionou o Mini em uma adequada parcela de erva onde um poste indicava o atalho que conduzia ao Duxford, e andou os
metros que a separavam das portas de ferro do cemitério. Havia uma pequena capela de pederneira com um ábside no extremo oriental e junto a ela um antigo
banco de madeira, verde pelo líquen e salpicado de excrementos de pássaro, do que se divisava todo o terreno do cemitério. Um largo caminho de grama o
atravessava e a ambos os lados estavam as tumbas, marcadas de diversas maneiras com cruzes de mármore brancas, lápides cinzas, e pequenos círculos ferrugentos que
se sobressaíam
da erva e formosos canteiros de flores que se estendiam pela terra recém cavada. Reinava uma grande paz. O terreno de inumação estava rodeado de árvores,
e suas folhas apenas se moviam no ar tranqüilo e quente. Quase não se ouvia mais que os grilos na erva e de vez em quando o som da campainha do próximo
passagem de nível de uma ferrovia e a sereia de um trem que naquele momento passava.
Só havia outra pessoa no cemitério, uma mulher entrada em anos que se achava inclinada sobre uma das tumbas. Cordelia se sentou tranqüilamente no
banco, com os braços cruzados sobre o regaço, antes de encaminhar-se silenciosamente, através do atalho de erva, para onde se encontrava a anciã. Sabia
com certeza que aquela entrevista ia ser crucial e, contudo, paradoxalmente, não tinha a menor pressa por iniciá-la. aproximou-se da mulher e, sem ser advertida
ainda, ficou um momento ao pé da tumba.
Era uma mulher baixa, vestida de negro, cujo antiquado chapéu de palha, com a asa adornada com uma alhada rede para cabelo, achava-se sujeito ao cabelo mediante
um
alfinete enorme de cabeça negra. Estava ajoelhada de costas a Cordelia, mostrando as reveste de uns deformados sapatos, dos que saíam umas pernas magras
como fortificações. Estava tirando as más ervas da tumba; seus dedos, movendo-se rapidamente sobre a erva como a língua de um réptil, foram arrancando plantitas
quase imperceptíveis. A seu lado tinha uma cajita em que de vez em quando deixava cair as ervas que arrancava.
depois de um par de minutos, durante os quais Cordelia a esteve contemplando em silêncio, fez uma pausa, satisfeita, e ficou a alisar com a mão a
superfície da grama, como querendo consolar os ossos que tinha deixado. Cordelia leu a inscrição gravada com profundidade na lápide. "À memória do Charles
Albert Goddard, algemo bienamado do Annie, que abandonou esta vida em 27 de agosto de 1962, aos 70 anos de idade. Descanse em paz". Descanse em paz, o epitáfio
mais corrente de uma geração para a qual o descanso devia parecer o último luxo, a suprema bênção.
A mulher descansou um segundo, carregando seu corpo sobre os talões, e contemplou a tumba com satisfação. Foi então quando se precaveu da presença de
Cordelia. Voltou sua enrugada cara para a jovem e disse sem curiosidade nem desconforto por sua presença:
-É uma pedra bonita, verdade?
-Sim que o é. Estava admirando a inscrição.
-Foi muito bem gravada. Custou uma dinheirama, mas valia a pena. Assim durará. A metade das inscrições que há aqui não durarão, porque são pouco profundas.
E
isso lhe tira o prazer a um cemitério. eu gosto de ler as lápides, eu gosto de saber quem eram as pessoas e quando morreram e quanto tempo viveram as mulheres
depois de ter enterrado a seus homens. Isso faz que alguém se pergunte como as arrumaram para seguir adiante e se se sentiam sozinhas. De nada serve uma lápide
se a gente não pode ler a inscrição. Naturalmente, esta lápide parece um pouco grande, agora. É porque lhes pedi que deixassem espaço para mim. "Também ao Annie,
seu
mulher, que abandonou esta vida..." e logo a data: ficará muito bonito. Já deixei o dinheiro para pagá-lo.
-Que texto tinha pensado você pôr? -perguntou Cordelia.
-OH, nenhum texto! "Descanse em paz" será suficiente para ambos. Que mais lhe vamos pedir ao Senhor, pobres de nós?
Cordelia disse:
-Aquela cruz de rosas que você enviou ao funeral do Mark Callender era muito bonita.
-Ah, viu-a você? Você não estava no funeral, verdade? Sim, fiquei muito satisfeita. Fizeram realmente um bom trabalho, pensei. Pobre moço, não teve muito
mais que isso, verdade? -Olhou a Cordelia com bondoso interesse-. De modo que conhecia você ao senhor Mark? Acaso era você sua noiva?
-Não, não o era, mas estou interessada por ele. É estranho que ele nunca falasse de você, sua antiga aia.
-Mas é que eu não fui sua aia, querida, ou, pelo menos, só fui durante um mês ou dois. Era então um bebê e eu nada significava para ele. Não, eu fui aia
de sua querida mãe.
-Mas você visitou o Mark o dia em que fez vinte e um anos, verdade?
-De modo que o contou? Eu me alegrei de voltar a lhe ver depois de todos esses anos, mas não me teria atrevido a ir ver lhe por minha conta. Não teria estado
bem, tendo presente os sentimentos de sua mãe, a fazer algo que ela me tinha pedido que fizesse quando se estava morrendo. Sabe?, não tinha visto o senhor
Mark desde fazia mais de vinte anos (é estranho, realmente, considerando que não vivíamos muito longe uns de outros), mas em seguida lhe reconheci. parecia-se muito
a
sua mãe, pobre moço.
-você poderia me falar disso? Não é por simples curiosidade; é importante para mim sabê-lo.
Apoiando-se na asa de sua cesta, a senhora Goddard ficou dificultosamente de pé. tirou-se umas fibras de erva que lhe tinham aderido à saia, apalpou
em seu bolso em busca de umas luvas cinzas de algodão e os pôs. Juntas foram baixando devagar pelo atalho.
-Diz você que é importante? Não vejo por que teria que sê-lo. Já tudo é passado. Ela está morta, pobre senhora, e ele também. Tantas esperanças e promessas
para nada. A ninguém falei que tudo isto, mas, ao fim e ao cabo, quem teria que preocupar-se com sabê-lo?
-O que lhe parece se nos sentássemos neste banco e falássemos um momento?
-Não vejo por que não. De momento, não há pressa por voltar para casa. Sabe você, querida?, eu não me casei até os cinqüenta e três anos e, entretanto, jogo
de
menos a meu marido como se nos tivéssemos amado desde meninos. A gente disse que estava louca por me casar a essa idade, mas, sabe?, eu tinha conhecido a sua mulher
durante
trinta anos, tínhamos ido juntas à escola, e também lhe conhecia ele. Se um homem for bom para uma mulher, será bom para outra. Isso foi o que eu calculei
e tive razão.
Estavam sentadas a uma ao lado da outra no banco, contemplando o tapete de erva que rodeava a tumba. Cordelia disse:
-me fale da mãe do Mark.
-Era a senhorita Bottley, Evelyn Bottley. Eu trabalhei de segunda babá para sua mãe antes de que ela nascesse. Então ainda estava só o pequeno Harry.
Morreu na guerra em seu primeiro ataque contra Alemanha. Seu pai o levou muito mal; ninguém havia para ele como Harry, tinha sido toda a ilusão de sua vida. O senhor
nunca se preocupou verdadeiramente pela senhorita Evie e isto pôde marcar uma diferença. A gente o diz, mas eu nunca o acreditei. conheci a pais que inclusive
amaram mais a um bebê, pobrecillas criaturas inocentes, como as pode culpar? Se você me perguntar isso, direi-lhe que pensar que ela tinha matado a sua mãe só
foi uma desculpa para não afeiçoar-se com a menina.
-Sim, eu sei de um pai ao que também isso lhe serve de pretexto. Mas não é culpa dela. Não podemos obrigar a uma pessoa a que nos ame só porque nós
queremos que nos amem.
-Pois é uma lástima, querida, porque, do contrário, o mundo iria muitíssimo melhor. Mas sua própria filha, isso não é natural!
-E ela amava a seu pai?
-Como não podia lhe amar? Não lhe pode exigir amor a uma criatura se não lhe dá amor. Mas ela nunca recorreu ao ardil de querer lhe agradar, de lhe pôr de
bom humor. Ele era um homem corpulento, feroz, que falava com voz estentórea, para assustar a uma criatura. Lhe teria ido melhor se tivesse tido que haver-lhe Cuando
yo entré por primera vez a su servicio, había tres jardineros. Eso fue antes de la guerra, claro. El señor Bottley trabajaba en Bradford; en el comercio de
com uma menina respondona, que não lhe tivesse tido medo.
-O que ocorreu a ela? Como conheceu sir Ronald Callender?
-Ele não era sir Ronald então, querida. OH, não! Era Ronny Callender, o filho do jardineiro. Viviam no Harrowgate, sabe? OH, que casa tão bonita tinham!
Quando eu entrei pela primeira vez a seu serviço, havia três jardineiros. Isso foi antes da guerra, claro. O senhor Bottley trabalhava no Bradford; no comércio de
a lã. Mas, bom, você me pergunta pelo Ronny Callender. Recordo-lhe bem, um moço tenaz, de aparência agradável, mas que guardava seus pensamentos para si mesmo.
Esse sim que era preparado, vá se o era! Obteve uma beca para o instituto e o fez muito bem.
-E Evelyn Bottley se apaixonou por ele?
-Pôde haver-se apaixonado, querida. Quem pode dizer o que houve entre eles quando eram jovens? Mas então veio a guerra e ele partiu. Ela queria a
toda costa fazer algo útil e a admitiram como enfermeira, embora como chegou aos exames de medicina é algo que nunca saberei. E logo voltaram a encontrar-se
em Londres, tal como se encontrava a gente durante a guerra, e a seguinte coisa que soubemos foi que se casaram.
-E deveram viver aqui, fora de Cambridge?
-Não até depois da guerra. Ao princípio ela seguiu com o de enfermeira e ele foi enviado a ultramar Teve os que os homens chamam uma boa guerra; nós
chamaríamo-lo uma má guerra, atreveria-me a dizer, todo matanças e lutas, prisões e fugas. Isto tinha que ter feito que o senhor Bottley se sentisse orgulhoso
dele e se reconciliasse com eles pelo do casamento, mas não foi assim. Acredito que ele acreditava que Ronny ia pelo dinheiro, porque dinheiro havia em quantidade,
não lhe caiba
a você duvida. Pode que tivesse razão, mas quem ia reprovar lhe algo ao moço? Minha mãe estava acostumada dizer: "Não te case por dinheiro, mas te case onde o haja".
Não há mal algum em procurar dinheiro enquanto haja também bondade e gentileza.
-E você crie que houve bondade?
-Por isso eu podia ver, nunca houve falta de bondade, e ela estava louca por ele. depois da guerra, foi a Cambridge. Ele sempre tinha querido ser um cientista
e obteve uma subvenção porque era excombatiente. Ela tinha algum dinheiro de seu pai e compraram a casa em que ele vive agora, para que pudesse viver no lar
enquanto estudava. Então as coisas não eram como agora, naturalmente. Após, fez muitas coisas. Naquele momento eram muito pobres e a senhorita Evie
as arrumava virtualmente sem a menor ajuda, só com a minha. O senhor Bottley estava acostumado a vir e ficar conosco de vez em quando. A ela, pobrecilla, o
davam medo estas visitas de seu pai. E então o senhor Callender terminou os estudos na universidade e obteve um emprego como professor. Ele queria continuar
no colégio universitário para ser professor ou algo pelo estilo, mas ali não lhe quiseram. Estava acostumado a dizer que foi porque não tinha influências, mas eu
penso que
possivelmente não fora o bastante inteligente. No Harrowgate pensávamos que era o menino mais inteligente do instituto. Mas, logo Cambridge está cheio de gente inteligente.
E então nasceu Mark?
-Sim, em 25 de abril de 1951, ao cabo de nove anos de matrimônio. Nasceu na Itália. O senhor Bottley ficou tão contente de que ela estivesse grávida que
aumentou a atribuição, e estavam acostumados a acontecer muitas férias na Toscana. Minha senhora amava a Itália, sempre a tinha amado, e penso que queria que seu
filho nascesse ali.
Do contrário, não teria ido ali de férias no último mês de seu embaraço. Eu fui visitar a um mês aproximadamente depois de que tivesse retornado, com
o bebê, e nunca vi tão feliz a uma mulher. OH, era um menino precioso!
-Mas, por que foi você a visitá-la? É que não vivia e trabalhava ali?
-Não, querida. Não vivi nem trabalhei ali durante alguns meses. Ela não estava bem nos primeiros dias de seu embaraço. Pude ver que vivia sob uma grande tensão
e era desgraçada e um dia o senhor Callender me chamou e me disse que ela estava contra mim e que tinha que partir. Eu não me teria acreditado isso, mas quando fui
a vê-la, limitou-se a estender a mão e me dizer: "Sinto muito, Tatu, mas penso que seria melhor que te partisse".
"Já sei que as mulheres grávidas têm caprichos estranhos, e o bebê era muito importante para os dois. Pensei que possivelmente mais adiante me pediria que voltasse,
e assim o fez, mas não vivia com eles. Tomei uma habitação para dormir em casa da senhora do diretor geral de correios, no povo, e estava acostumado a dedicar quatro
manhãs à semana a minha senhora e o resto a outras senhoras do povo. A coisa ia muito bem, realmente, mas quando não estava com o menino, o sentia falta de. Não
via com freqüência a minha senhora durante seu embaraço, mas uma vez nos encontramos em Cambridge. Deveu ser para o final de seu embaraço. Estava muito pesada, a
pobre, arrastando-se com dificuldade de um lado a outro. De momento, fingiu que não me tinha visto e logo o pensou melhor e cruzou a rua para ir a meu encontro.
""Vamos a Itália a semana que vem, Tatu", disse-me. "Não é maravilhoso?".
"Eu lhe disse: "Se se descuidar, querida, esse bebê será um italiano". E ela riu com satisfação. Parecia estar muito impaciente, como se não pudesse esperar
a retornar ao sol que tanto apreciava.
-E o que ocorreu depois de que teve voltado para casa?
-Faleceu ao cabo de nove meses, querida. Nunca tinha sido forte, como lhe hei dito, e agarrou a gripe. Eu ajudei a cuidá-la, e teria feito mais, mas o senhor
Callender quis cuidá-la ele mesmo. Não podia suportar a alguém mais perto dela. Só estivemos juntas uns poucos minutos antes de que morrera, e foi então
quando me pediu que entregasse seu livro de orações ao Mark o dia que fizesse vinte e um anos. Ainda a estou ouvindo: "Dáselo ao Mark quando fizer vinte e um anos,
Tatu.
Envolve-o com cuidado e llévaselo quando tiver essa idade. Não se esquecerá verdade que não?". Eu lhe disse: "Não o esquecerei, querida, bem sabe você" . Então
disse uma coisa estranha: "Se o fizer, ou se morre antes desse momento, ou se ele não compreende, não importará em realidade. Quererá dizer que Deus o quer assim".
-A que você crie que se referia?
-Quem poderia dizê-lo, querida? Era muito religiosa a senhorita Evie, muito religiosa para seu próprio bem, pensava eu em ocasiões. Eu penso que deveríamos
aceitar nossas próprias responsabilidades, resolver nosso próprios problema e não deixá-lo tudo nas mãos de Deus, como se Ele não tivesse suficiente pensando
no mundo, no estado em que se encontra. Mas isso foi o que ela disse três horas antes de morrer, e isso foi o que eu lhe prometi. Assim, quando o senhor Mark
cumpriu os vinte e um anos, informei-me do colégio em que estava e fui ver lhe.
-O que aconteceu?
-OH, juntos passamos um momento muito feliz. Sabe você? Seu pai nunca lhe tinha falado de sua mãe. Isso às vezes ocorre, quando morre uma esposa, mas opino
que
um filho deveria saber coisas de sua mãe. Não parava de me fazer perguntas, sobre coisas que eu acreditava que seu pai já lhe teria contado.
"Alegrou-se de receber o livro de orações. Poucos dias depois, veio para ver-me. Perguntou-me o nome do médico que tinha tratado a sua mãe. Disse-lhe que era
o velho doutor Gladwin. O senhor Callender e ela nunca tiveram outro médico. Eu às vezes pensava que isso era uma lástima, sendo tão frágil a senhorita Evie. O
doutor Gladwin devia ter à maturação setenta anos, e embora havia pessoas que não haveriam dito uma palavra em seu contrário, a mim pessoalmente nunca fez muita
graça. A bebida, sabe você, querida? Nunca estava realmente para confiar-se nele. Mas suponho que faz muito tempo que descansa em paz, pobre homem. De
todas maneiras, eu lhe disse o nome, ao senhor Mark e ele o apontou. depois disso tomamos chá e conversamos um pouco e se foi. Já não voltei a lhe ver mais.
-E ninguém mais tem conhecimento do livro de orações?
-Ninguém no mundo, querida. A senhorita Leaming viu o nome da floricultura em meu cartão e foi pedir lhes minha direção. Veio aqui o dia depois do funeral
para me dar as obrigado por minha assistência, mas pude ver que só era curiosidade. Se ela e sir Ronald estavam tão agradados de lombriga, o que lhes tinha impedido
de vir
a meu encontro e me estreitar a mão? Ela veio mais ou menos a sugerir que eu estava ali sem convite. Um convite a um funeral! Quem ouviu semelhante coisa?
-De modo que você nada lhe contou? -perguntou Cordelia.
-A ninguém o contei mais que a você, querida, e para falar a verdade, nunca eu gostei dessa mulher. Não estou insinuando que houvesse algo entre ela e sir Ronald,
ao
menos enquanto viveu a senhorita Evie. Nunca ouvi a menor crítica e ela vivia em um piso em Cambridge, e vivia sozinha, suponho. O senhor Callender a conheceu quando
ele ensinava ciências em uma das escolas do povo. Ela era a professora de literatura inglesa. Não foi até depois de que morrera a senhorita Evie, quando
ele montou seu próprio laboratório.
-Quer você dizer que a senhorita Leaming está graduada em Letras?
-OH, sim, querida! Não tinha estudado para secretária. Naturalmente, deixou o ensino quando começou a trabalhar para o senhor Callender.
-De modo que você abandonou Garforth House depois de que falecesse a senhora Callender? Não ficou para cuidar do menino?
-Não me pediram isso. O senhor Callender empregou a uma dessas garotas recém saídas do colégio e então, Mark, cuado era ainda só um bebê, foi enviado à
escola. Seu pai me deu a entender claramente que não queria que eu visse o menino, e, ao fim e ao cabo, um pai tem seus direitos. Eu não quis continuar vendo
ao señorito Mark sabendo que seu pai não o passava. Isso só teria sido pôr ao menino em uma falsa situação. Mas agora está morto e todos lhe perdemos.
O forense disse que se havia suicidado e pode que tivesse razão.
Cordelia disse:
-Eu não acredito que se suicidase.
-Não crie, querida? Isso está bem, por sua parte. Mas está morto, não?, de modo que, o que importa agora? Acredito que é hora de que me volte para casa. Se
não
importa-lhe, não a convido a tomar o chá, querida. Estou um pouco fatigada hoje. Mas já sabe onde pode me encontrar e se alguma vez quer voltar para ver-me, sempre
será bem recebida.
Saíram juntas do recinto do cemitério. Ao chegar às portas, separaram-se. A senhorita Goddard deu uns golpecitos a Cordelia no ombro, com o torpe
afeto que teria podido mostrar a um animal, e logo se encaminhou devagar para o povo.
Enquanto Cordelia seguia com seu carro a curva da estrada, apareceu à vista a passagem de nível. Acabava de passar um trem e se estavam levantando as barreiras.
Três veículos tinham ficado apanhados no cruzamento e o último da fila ficou em marcha em seguida, e acelerou para adiantar aos dois primeiros automóveis enquanto
avançavam lentamente dando sacudidas por cima dos trilhos. Cordelia viu que era uma caminhonete pequena de cor negra.
Mais tarde, Cordelia recordava pouca coisa da viagem de volta à cabana. Conduzia depressa, fixava sua atenção na estrada que tinha diante e tratava de dominar
sua crescente excitação concentrando-se no manejo dos pedais. Levou o Mini muito perto do sebe dianteiro, sem preocupar-se de se alguém podia vê-lo. A cabana
estava e cheirava tal e como ela a tinha deixado. Quase tinha esperado encontrá-la saqueada e desaparecido o livro de orações. Dando um suspiro de alívio, viu que
o branco lombo do livro ainda estava ali, entre as cobertas mais altas e mais escuras. Cordelia o abriu. Logo que sabia o que esperava encontrar; possivelmente uma
dedicatória,
ou uma mensagem, críptico ou plano, uma carta dobrada entre as folhas. Mas a única dedicatória que achou possivelmente não guardava a menor relação importante com
o caso. Estava escrita com uma letra trêmula, antiquada; a plumilla de aço tinha rabiscado como uma aranha seus traços sobre a página. "Para a Evelyn Mary em
o dia de sua confirmação, com o amor de sua madrinha, 5 de agosto de 1934".
Cordelia sacudiu o livro. Nenhuma parte de papel saiu voando de suas folhas. Passou as páginas rapidamente. Nada. foi sentar se na cama, desconcertada. Havia
sido absurdo imaginar que havia algo importante no legado do livro de orações? levantou-se Cordelia um prometedor edifício de conjeturas e mistério
sobre as confusas lembranças de uma anciã, lembranças de uma ação perfeitamente corrente e compreensível... de uma mãe devota e moribunda que deixava em herança
a seu filho um livro de orações? E até caso que não estivesse equivocada, por que tinha que encontrar a mensagem ainda ali? Se Mark tivesse encontrado
uma nota de sua mãe, colocada entre as folhas, bem podia havê-la destruído depois de lê-la. E se ele não a tivesse destruído, alguém mais poderia havê-lo feito.
A nota, se tinha existido, nesse momento já formava provavelmente parte do montão de cinza branca e restos carbonizados da chaminé da cabana.
Fez um esforço para sair de seu desalento. Ainda havia uma linha de investigação que seguir; tentaria localizar ao doutor Gladwin. Depois de refletir
um breve instante, pôs em sua bolsa o livro de orações. Ao olhar seu relógio viu que era quase a uma. Decidiu comer um pouco de queijo e fruta no jardim e logo
dirigir-se outra vez a Cambridge para visitar a biblioteca central e consultar a guia médica.
Ainda não tinha transcorrido uma hora quando encontrou a informação que queria. Só havia um doutor Gladwin no registro que pudesse ter atendido à senhora
Callender pois era um ancião de mais de setenta anos, vinte anos antes. Era Emlyn Thomas Gladwin, que tinha feito suas práticas como médico no hospital St. Thomas
em 1904. Cordelia anotou a direção em sua agenda: 4 Pratts Way, estrada do Ixworth, Bury St. Edmunds. A cidade do Edmunds! A que, segundo Isabelle, ela e Mark
tinham visitado em seu caminho por volta do mar.
De modo que, depois de tudo, o dia não se perdeu. Estava seguindo os passos do Mark Callender. Impaciente por consultar um mapa, foi à seção de
atlas da biblioteca. Eram as doze e quinze. Se tomava a estrada A45 diretamente através do Newmarket, poderia estar no Bury St. Edmunds em uma hora aproximadamente.
Se investia uma hora na visita ao doutor e outra na viagem de volta, poderia estar de novo na cabana antes das cinco e meia.
Conduzia através da agradável campina que rodeava Newmarket, quando advertiu que a caminhonete negra a estava seguindo. achava-se muito longe para
ver quem a conduzia, mas pensou que era Lunn e que ia sozinho. Acelerou, tratando de manter a distância entre os dois veículos, mas a caminhonete se aproximou
um pouco mais. Não havia razão, naturalmente, para que Lunn não pudesse estar conduzindo para o Newmarket por encargo de sir Ronald Callender mas o reflexo resultava
desconcertante. Cordelia decidiu procurar que Lunn a perdesse de vista. A estrada pela que estava viajando apresentava poucas curvas, e a paisagem não lhe era
fami1iar. Decidiu esperar até chegar ao Newmarket, e então aproveitaria a primeira ocasião que lhe apresentasse.
A travessia principal da cidade era um matagal de tráfico e todas as travessas pareciam estar bloqueadas. Cordelia não viu sua oportunidade até que chegou
ao segundo semáforo. A caminhonete ficou apanhada no cruzamento, a uns cinqüenta metros atrás do Mini. Ao aparecer a luz verde, Cordelia acelerou rapidamente e girou
à esquerda. Enfiou pela primeira travessia à esquerda, e logo torceu à direita. Conduzia por ruas que não lhe eram familiares; logo, passados uns cinco
minutos, deteve-se em um cruzamento e esperou. A caminhonete negra não se via. Aparentemente tinha conseguido escapar à vista do Lunn. Esperou outros cinco minutos
e então
retrocedeu devagar para a estrada principal e se uniu ao fluxo do tráfico que se dirigia para o este. Meia hora mais tarde atravessou Bury St. Edmunds e foi
baixando lentamente pela estrada do Ixwotth, procurando com os olhos Pratts Way. Encontrou-o cinqüenta metros mais à frente: era uma ruela formada por uma fileira
de
seis casitas de estuque. Deteve o carro frente ao número quatro e se lembrou da obediente e dócil Isabelle, a que lhe havia dito que conduzisse um pouco mais
lá e esperasse dentro do carro. Foi porque ao Mark pareceu que o Renault branco chamava muito a atenção? Inclusive a chegada do Mini tinha suscitado
interesse. Havia caras nas janelas superiores e tinha aparecido misteriosamente um pequeno grupo de meninos, em cachos junto à porta de uma casa vizinha e olhando-a
com grandes e inexpressivos olhos.
O número quatro pertencia a uma casa de aspecto deprimente; o jardim dianteiro estava sem carpir e a cerca apresentava brechas nos que as pranchas se
haviam podre ou tinham sido arrancadas. A pintura externa tinha saltado deixando a madeira nua e a porta principal, de cor marrom, cortou-se e estava
coberta de ampolas de pintura provocadas pelo sol. Mas Cordelia viu que as janelas inferiores brilhavam e os visillos brancos estavam limpos. A senhora
Gladwin era provavelmente uma cuidadosa dona-de-casa que se esforçava por mantê-lo tudo corretamente, mas muito velha para o trabalho pesado e muito pobre
para procurar uma ajuda. Cordelia sentiu benevolência para ela. Mas a mulher que, ao cabo de alguns minutos, abriu a porta para responder à chamada feita
com os nódulos pela jovem -o timbre estava quebrado-, foi um decepcionante antídoto a sua piedade sentimental. A compaixão se extinguiu ante aqueles olhos
duros e desconfiados, aquela boca de lábios apertados como uma armadilha, aqueles braços magros, cruzados como uma barreira de osso através de seu peito como para
repelir todo contato humano. Era difícil adivinhar sua idade. Seu cabelo, pacote na nuca em um pequeno coque, era ainda negro, mas a cara estava sulcada por profundas
rugas e os nervos e as veias ressaltavam no magro pescoço como cordões. Levava sapatilhas e uma bata de algodão de cores gritões. Cordelia disse:
-Meu nome é Cordelia Gray. Perguntava-me se poderia talvez falar com o doutor Gladwin, se estiver em casa. trata-se de uma antiga paciente.
-Está em casa, no que outro sítio poderia estar? Está no jardim. É melhor que acontecer.
A casa cheirava horrivelmente, um amálgama de extrema velhice, excrementos e comida passada, com uma capa odorífera de forte desinfetante. Cordelia entrou e
se
dirigiu diretamente para o jardim, fazendo todo o possível para não olhar o saguão nem a cozinha, porque a curiosidade podia parecer impertinente.
O doutor Gladwin estava sentado em um alta cadeira Windsor, colocada ao sol. Cordelia nunca tinha visto um homem tão ancião. Parecia levar um traje de lã,
seus pés inchados estavam embutidos em imensas sapatilhas de feltro e ainda por cima dos joelhos tinha um xale feito de ponto. Suas mãos penduravam por cima dos
braços da cadeira, como se fossem muito pesadas para as frágeis bonecas, umas mãos sardentas e quebradiças como folhas de outono, que tremiam com suave insistência.
O crânio, alto e abovedado, de que saíam umas poucas cerdas cinzas, parecia tão pequeno e vulnerável como o de um menino. Os olhos eram como duas pálidas gemas de
ovo flutuando em suas pegajosas claras veteadas de veias azuis.
Cordelia se aproximou dele e lhe chamou carinhosamente por seu nome. Não houve resposta. A jovem se ajoelhou na erva junto a seus pés e levantou os olhos para
sua cara.
-Doutor Gladwin, queria falar com você a respeito de uma paciente. Faz muito tempo. A senhora Callender. Recorda você à senhora Callender, do Garforth
House?
Tampouco houve resposta. Cordelia soube que não a haveria. Voltar a perguntar parecia inclusive um ultraje. A senhora Gladwin estava de pé a seu lado, como
se o
exibisse ante um mundo que o contemplava intrigado.
-Adiante, lhe pergunte! Tudo está em sua cabeça, sabe você? Isso é o que dizia sempre. "Não estou para registros e notas. Tudo está em minha cabeça".
Cordelia disse:
-O que aconteceu a seu arquivo médico quando deixou a prática da medicina? fez-se cargo dele outra pessoa?
-Isso é o que acabo de lhe dizer. Nunca houve arquivo algum. E de nada lhe servirá me perguntar a mim. O mesmo disse a aquele moço. O doutor se alegrou de
casar-se comigo quando necessitava uma enfermeira, mas nunca me falava de seus pacientes. OH não, querida! Gastava tudo o que ganhava em bebida, mas ainda era
capaz de falar sobre a ética médica.
A amargura que havia na voz da mulher era horrível. Cordelia não pôde sustentar com seu olhar o olhar dela. Foi então quando lhe pareceu ver que
os lábios do velho se moviam. Inclinou a cabeça e captou uma só palavra: "Frio".
-Acredito que está tratando de dizer que tem frio. Há possivelmente outro xale que lhe pudesse pôr sobre os ombros?
-Frio! Com este sol! Sempre tem frio.
-Mas possivelmente outra manta ajudaria. Quer que vá procurar a?
-lhe deixe estar, senhorita. Se quer cuidar dele, dele cuide. Já verá como desfruta você mantendo-o limpo como um bebê, lhe lavando o culo, lhe trocando
a roupa da cama todas as manhãs. Irei lhe buscar outro xale, mas ao cabo de dois minutos, o tirará. Não sabe o que quer.
-Sinto muito -disse Cordelia, não sabendo o que fazer. perguntava-se se a senhora Gladwin estava recebendo toda a ajuda disponível, se ia visitar lhes a enfermeira
do distrito, se esta tinha pedido a seu médico que tratasse de encontrar uma cama de hospital. Mas estas eram perguntas inúteis. Inclusive ela sabia o que é rechaçar
desesperadamente uma ajuda, o desespero que carece já da energia necessária inclusive para procurar alívio. Disse:
-Sinto muito; não quero seguir incomodando a nenhum dos dois.
Retrocederam de novo através da casa. Mas havia uma pergunta que Cordelia tinha por fazer. Quando chegaram à porta da rua, disse:
-Você falou que um moço que lhes tinha visitado. chamava-se Mark?
-Mark Callender. Perguntava por sua mãe. E logo, uns dez dias mais tarde, veio a nos ver o outro.
-O que outro?
-Era um perfeito cavalheiro. Entrou como se fora o amo. Não quis dizer seu nome, mas eu vi sua cara em alguma parte. Pediu ver o doutor Gladwin e eu
fiz-lhe passar. Aquele dia estávamos sentados na salita de atrás, porque soprava um pouco de ar. Subiu aonde estava o doutor e disse: "bom dia, Gladwin"
, com voz forte, como se falasse com um servente. Logo se inclinou e lhe olhou. Depois se incorporou, disse-me bom dia e se foi. Vá, que vamos fazendo populares!
Alguns mais de vocês, e terei que cobrar pelo espetáculo.
Estiveram um instante de pé junto à porta. Cordelia se perguntava se devia lhe tender a mão, mas lhe pareceu que a senhora Gladwin não desejava que partisse
ainda. de repente a mulher falou em voz alta e com um tom áspero e desagradável, olhando diante de si:
-Aquele amigo dele, o moço que veio aqui. Deixou seus gestos. Disse que não lhe importaria dever fazer companhia ao doutor um domingo se eu queria descansar;
disse que podia preparar para ambos algo para jantar. me faria ilusão ir ver minha irmã no Haverhill este domingo. lhe diga que pode vir, se quiser.
A capitulação resultava grotesca, o convite feito a contra gosto. Cordelia podia adivinhar o esforço que lhe havia flanco. Disse impulsivamente:
-Eu poderia vir no domingo, em vez dele. Tenho carro, poderia chegar mais logo.
Seria um dia perdido para sir Ronald Callender, mas não o cobraria. E até um detetive tinha realmente direito a um dia de descanso em domingo.
-Não quererá a companhia de uma garota. Terá que lhe ajudar em coisas para as que faz falta um homem. Simpatizou com aquele moço. Dava-me conta. lhe diga
que pode
vir.
Cordelia se voltou para a mulher.
-Viria, eu sei que o faria. Mas não pode. Está morto.
A senhora Gladwin não falou. Cordelia estendeu uma mão e lhe tocou a manga. Não houve resposta. Disse em voz baixa:
-Sinto muito. Agora irei.
E esteve a ponto de acrescentar: "Se nada terá que possa fazer por vocês". Mas se deteve a tempo. Nada terei que ela nem alguma outra pessoa pudesse fazer.
Voltou a cabeça para olhar uma vez, enquanto a estrada discorria para o Bury, e viu a rígida figura ainda de pé junto à porta.
Cordelia não estava segura do que a tinha decidido a parar no Bury e permanecer durante dez minutos nos jardins da Abadia. Mas sentia que não podia retornar
a Cambridge sem antes sossegar seu espírito, e a vista da erva e as flores através da porta normanda resultava irresistível. Estacionou o Mini no Angel Hill,
logo atravessou os jardins em direção à borda do rio. Ali esteve cinco minutos sentada, tomando o sol. Recordou que tinha que anotar em sua caderneta o dinheiro
que tinha gasto em gasolina e apalpou dentro da bolsa em busca da caderneta. Sua mão tirou o branco livro de orações. Estava ali, sentada tranqüilamente, pensando.
Suponhamos que ela tivesse sido a senhora Callender e tivesse querido deixar uma mensagem, uma mensagem que Mark encontrasse e pudesse passar inadvertido para outros
buscadores.
Onde o poria? A resposta parecia puerilmente singela. Certamente em algum lugar da página em que estava a coleta, o evangelho e a epístola para
o dia de São Marcos. Ele tinha nascido em 25 de abril. E lhe tinham posto o nome do santo. Rapidamente encontrou o lugar. Sob a clara luz do sol refletida
pela água do rio, viu o que, ao folhear o livro precipitadamente, tinha passado por cima. Ali frente à doce petição do Cranmer para receber a graça de
resistir o maligno influxo da falsa doutrina, havia um pequeno hieróglifo tão fracamente esboçado que a marca que tinha deixado no papel era pouco mais que
uma tiznadura. Cordelia viu que era um grupo de letras e cifras.
E M C
A
14.1.52
As três primeiras letras, naturalmente, eram as iniciais da mãe do Mark. A data devia ser de quando escreveu a mensagem. Não havia dito a senhora
Goddard que a senhora Callender tinha morrido quando seu filho contava uns nove meses? Mas, e as duas aes? A mente da Cordelia procurou rapidamente uma multidão
de
associações antes de recordar o cartão que tinha encontrado na carteira do Mark. Certamente aquelas duas letras debaixo de umas iniciais só podiam indicar
uma coisa, o grupo sangüíneo. Mark era B. Sua mãe era AA. Só existia uma razão pela que ela quereria que ele tivesse aquela informação. O passo seguinte consistia
em descobrir o grupo sangüíneo de sir Ronald Callender.
Lançou quase uma exclamação de triunfo, enquanto atravessava correndo os jardins, e voltou a conduzir o Mini para Cambridge. Não tinha pensado nas implicações
deste descobrimento e tampouco em se eram válidos seus argumentos. Mas ao menos tinha algo que fazer, ao menos tinha uma guia. Conduzia depressa, desesperada-se
por
chegar à cidade antes de que fechassem a agência de correios. Ali, parecia recordar era possível obter uma cópia da lista da Prefeitura dos médicos
locais. A entregaram. E, então, a procurar um telefone. Só sabia de uma casa em Cambridge em que teria a oportunidade de que a deixassem telefonar em
paz durante uma hora. dirigiu-se ao número 57 da rua Norwich.
Sophie e Davie estavam em casa jogando xadrez na sala de estar, a cabeça loira e a cabeça castanha quase tocando-se por cima do tabuleiro. Não mostraram
a menor surpresa quando Cordelia lhes pediu usar o telefone para fazer uma série de chamadas.
-vou pagar o, naturalmente. Farei a conta.
-Suponho que quererá a habitação para ti, não? -disse Sophie-. Terminaremos a partida no jardim Davie.
Com uma bendita falta de curiosidade se levaram o tabuleiro de xadrez com cuidado através da cozinha e o colocaram sobre a mesa do jardim. Cordelia aproximou
uma cadeira à mesa e se sentou com sua lista. Era terrivelmente larga. Não existia uma pista por onde começar, mas possivelmente o melhor seria começar por aqueles
doutores
com práticas de grupo e direções próximas ao centro da cidade. Começaria por eles, tachando seus nomes depois de cada chamada. Recordou outra pérola referida
pelo Bernie a respeito da sabedoria do delegado: "A resolução requer uma paciente persistência que chega à obstinação". Pensava nele enquanto marcava o
primeiro número. Que chefe tão insoportablemente exigente e irritante tinha que ter sido! Mas já seria com segurança velho: quarenta e cinco anos pelo menos.
Nestes momentos provavelmente já estaria um pouco gasto.
Mas uma hora de obstinação resultou infrutífera. Suas chamadas eram invariavelmente respondidas; uma vantagem de telefonar ao consultório de um cirurgião era
que o aparelho estava atendido por uma pessoa, não por uma secretária eletrônica. Mas as respostas, dadas com cortesia, com brutalidade ou em tom depressa por
uma variedade de interlocutores, dos doutores mesmos até amáveis mulheres dispostas a transmitir uma mensagem, eram as mesmas. Sir Ronald Callender não era
paciente daquele doutor. Cordelia repetia sua fórmula. "Sinto muito lhe haver incomodado. Devo ter entendido mal o nome".
Mas ao cabo de quase setenta minutos de marcar números, a sorte lhe sorriu. Respondeu a mulher do médico.
-Temo que se equivocou você. É o doutor Venables o médico da família de sir Ronald Callender.
Era estar de sorte, certamente! O doutor Venables não figurava na lista preliminar da Cordelia e para chegar a V teria demorado ao menos outra hora.
Foi percorrendo os nomes com o dedo e fez a última chamada.
Respondeu a enfermeira do doutor Venables. Cordelia pronunciou seu preparado discurso:
-Chamo de parte da senhorita Leaming do Garforth House. Sinto lhes incomodar, mas seria você tão amável de nos recordar o grupo sangüíneo de sir Ronald Callender?
Quer sabê-lo antes da Conferência do Helsinki do próximo mês.
-Um momento, por favor.
Houve uma breve espera; o rumor de passos que voltavam.
-Sir Ronald pertence ao grupo A. Eu de você o anotaria bem. Seu filho fez uma chamada fará coisa de um mês perguntando o mesmo.
-Obrigado, muitíssimas obrigado! Tomarei cuidado em fazer uma nota. -Cordelia decidiu assumir um risco e acrescentou-: É que sou nova aqui, ajudando à senhorita
Leaming, e a outra vez ela me disse que o anotasse, mas eu, estúpida de mim, esqueci-me de fazê-lo. No caso de que ela chamasse, por favor, não lhe diga que tive
que incomodá-la a você de novo.
A voz riu, indulgente com a falta de eficiência dos jovens. Ao fim e ao cabo, era pouco provável que lhe tivesse ocasionado uma grande moléstia.
-Não se preocupe, não o direi. Me alegro de que ao final tenha encontrado a alguém para que a ajudasse. Espero que todos estejam bem.
-OH, sim! Todos estão estupendamente.
Cordelia pendurou o auricular. Olhou pela janela e viu que Sophie e Davie naquele momento tinham terminado sua partida e estavam guardando de novo as peças
na caixa. Tinham terminado a tempo. Sabia a resposta que dariam a sua pergunta, mas, contudo, tinha que comprová-lo. A informação era muito importante
para confiá-la a sua vaga lembrança das leis do Mendel sobre a herança, tiradas do capítulo a respeito do sangue e a identidade do livro do Bernie sobre medicina
forense. Davie saberia. O meio mais rápido era perguntar-lhe nesse momento. Mas não podia perguntar-lhe ao Davie. Isso significaria voltar para a biblioteca pública
e teria que dar-se pressa se queria estar ali antes de que fechassem.
Mas chegou a tempo. A bibliotecária, que já se acostumou a vê-la, mostrou-se tão serviçal como sempre. Rapidamente entregou a Cordelia o livro
de consulta necessário. Cordelia comprovou o que já sabia. Um marido e uma mulher que pertençam os dois ao grupo sangüíneo A não podem engendrar um filho do grupo
B.
Cordelia estava muito cansada quando retornou à cabana. Tinham acontecido muitas coisas durante um só dia; fazia muitos descobrimentos. Parecia impossível que
menos de doze horas antes tivesse empreendido a busca de Tatu Pilbeam com apenas uma vaga esperança de que aquela mulher, se é que a encontrava, pudesse lhe proporcionar
uma pista da personalidade do Mark Callender, pudesse lhe contar algo a respeito de seus anos de formação. sentia-se alegre pelo êxito da jornada, inquieta por
a emoção, mas também exausta mentalmente para tentar desenredar o matagal de conjeturas que jazia no fundo de sua mente. De momento, os fatos apareciam
desordenados. Não havia uma estrutura clara, nenhuma teoria que explicasse de maneira imediata o mistério do nascimento do Mark, o terror do Isabelle, o segredo
conhecimento do Hugo e Sophie, o obsessivo interesse da senhora Markland pela cabana, as suspeitas quase reacias do sargento Maskell, os fatos estranhos e as
incongruências inexplicadas que rodeavam a morte do Mark.
ocupou-se em coisas da casa com a energia física que lhe infundia o cansaço mental. Esfregou o chão, acendeu fogo em cima do montão de cinzas da chaminé
se por acaso ao anoitecer fazia frio, tirou a má erva do canteiro da parte traseira, logo se fez uma omelete de cogumelos e a comeu sentada, como certamente
o fazia Mark, à singela mesa. Quão último fez foi ir procurar a pistola ao lugar onde a tinha escondida e a pôs sobre a mesinha, ao lado da cama.
Fechou com chave cuidadosamente a porta traseira e correu as cortinas da janela, e comprovou uma vez mais que os selos estavam intactos. Mas não pôs em equilíbrio
a tampa de caçarola em cima da porta. Essa noite aquela particular precaução parecia pueril e desnecessária. Acendeu a vela ao lado de sua cama e logo foi a
escolher um livro. A noite estava em calma, sem vento; a chama da vela ardia sem que um sopro de ar a fizesse vacilar Fora ainda não tinha escurecido, mas
o jardim estava silencioso, rota a paz só pelo longínquo crescendo de um carro na estrada principal ou pelo grito de um ave noturna. E então, vagamente
entrevista através do crepúsculo, divisou uma figura junto à portinhola. Era a senhorita Markland. A mulher titubeou, com a mão no fecho, como se se perguntasse
se devia entrar ou não no horta. Cordelia se deslizou para um lado, com as costas aproximada à parede. A imprecisa figura estava tão quieta que parecia que percebesse
a presença de alguém que a vigiava e se ficou paralisada como um animal ao que surpreenderam. Então, transcorridos dois minutos, afastou-se e se
perdeu entre as árvores do horta. Cordelia se relaxou, tomou um exemplar do The Warden de entre os livros do Mark e se deslizou no interior de seu saco de dormir
Meia hora depois, apagou a vela de um sopro e estirou confortavelmente seu corpo em espera do lento descida no sonho.
revolveu-se nervosa na cama nas primeiras horas do dia e despertou de repente, com os olhos imensamente abertos na penumbra. O tempo jazia suspenso;
o ar tranqüilo estava espectador, como se o dia tivesse sido pego por surpresa. Cordelia podia ouvir o tictac de seu relógio de pulso, em cima da mesinha e,
junto a ele, o curvo e reconfortante contorno da pistola, o negro cilindro de sua lanterna. Permanecia deitada, emprestando ouvido os ruídos da noite. Era
tão estranho viver naquelas horas tranqüilas, já que quase sempre transcorria o tempo dormindo ou sonhando, que um se aproximava delas como a provas e sem prática,
como uma escritura recém-nascida. Não era consciente de temor algum, somente de uma paz que o abrangia tudo, uma suave lassidão. A respiração da Cordelia enchia
a habitação, e o ar, tranqüilo e limpo, parecia respirar ao uníssono com ela.
De repente, deu-se conta do que era o que a tinha despertado. Uns visitantes se aproximavam da cabana. Subconscientemente, em alguma breve pausa de sonho
inquieto, deveu ter reconhecido o som de um automóvel. Então o chiar da portinhola, o rumor de uns pés, furtivos como um animal na maleza,
um fraco e interrompido murmúrio de vozes. Abandonou seu saco de dormir e se aproximou sigilosamente à janela. Mark não tinha tentado limpar os cristais das
janelas dianteiras; possivelmente não tinha tido tempo, possivelmente tinha celebrado que sua sujeira servisse para ocultar o interior da cabana aos olhos indiscretos.
Cordelia esfregou desesperadamente com os dedos a superfície cuja crosta de sujeira tinha ido crescendo com os anos. Mas finalmente sentiu a fria lisura do cristal.
A fricção de seus dedos produziu um som estridente como o chiado de um animal, até o ponto de pensar que este ruído podia trai-la. Através da estreita
franja de cristal limpou, olhou em direção à horta.
O Renault ficava quase oculto pelo alto sebe, mas pôde ver a parte dianteira do carro brilhando junto à portinhola e a luz dos dois faróis, que como
duas luas as gema iluminavam a vereda. Isabelle levava um objeto de vestir larga e muito ajustada; sua pálida figura tremia como uma onda contra a escuridão do
sebe. Hugo era somente uma negra sombra a seu lado. Mas então se voltou e Cordelia viu o brilho do branco peitilho de uma camisa. Os dois levavam trajes
de etiqueta. Subiam juntos e em silencio pelo atalho e trocaram umas breves palavras ante a porta de diante, logo se encaminharam para a esquina da cabana.
Cordelia agarrou rapidamente sua lanterna sem fazer ruído, e, descalça, baixou pressurosa a escada e atravessou a sala de estar para abrir a porta traseira,
que estava fechada com chave. A chave girou fácil e silenciosamente dentro da fechadura. Quase sem atrever-se a respirar, retrocedeu de novo entre as sombras,
ao pé da escada. Foi o momento oportuno. A porta se abriu deixando entrar um pouco de luz mais pálida. Ouviu a voz do Hugo:
-Um momento, vou acender um fósforo.
O fósforo iluminou um instante os dois rostos de expressão grave, os imensos e aterrados olhos do Isabelle. Logo se apagou. Ouviu a maldição murmurada por
Hugo e seguida do ruído que fez ao acender outro fósforo. Esta vez a sustentou em alto. O fósforo iluminou a mesa, o gancho do teto, mudo acusador; a vigilante
figura que se achava ao pé da escada. Hugo ficou boquiaberto; sua mão fez um movimento brusco e o fósforo se apagou. Imediatamente, Isabelle começou a
chiar.
A voz do Hugo soou aguda:
-Que demônios...
Cordelia acendeu sua lanterna e avançou uns passos.
-Sou eu, Cordelia.
Mas Isabelle nada podia ouvir. Os gritos subiram de tom com tal estridente intensidade que Cordelia quase temeu que pudessem ouvi-lo-los Markland. O som
não era humano, parecia o chiado de um animal aterrorizado. Foi interrompido pelo movimento oscilante do braço do Hugo; o som de uma bofetada; uma boca
que se abria, assombrada. Houve logo um segundo de absoluto silêncio, e depois Isabelle se desabou nos braços do Hugo, soluçando silenciosamente.
Hugo se voltou bruscamente para a Cordelia:
-por que demônios tiveste que fazê-lo?
-Fazer o que?
-Deste-lhe um terrível susto, ao estar aqui espiando. De todas maneiras, o que faz aqui?
-O mesmo poderia lhes perguntar eu a vós.
-viemos a recolher o Antonello que Isabelle emprestou ao Mark quando deveu jantar com ele e a curar-se de certa morbosa obsessão com este lugar estivemos
no baile do Pitt Clube. Pareceu-nos uma boa idéia entrar aqui em nosso caminho para casa. É evidente que foi uma idéia estúpida. Há aqui algo para
beber?
-Só uma cerveja.
-OH meu Deus, Cordelia, teria que haver algo mais forte! Ela o necessita.
-Não há algo mais forte, mas farei café. Enquanto isso, acende você o fogo.
Cordelia pôs de pé a lanterna em cima da mesa e acendeu o quinqué, e pôs baixa a mecha, logo ajudou ao Isabelle a sentar-se em uma das cadeiras que estavam
ao lado da chaminé.
A jovem tremia. Cordelia foi procurar um dos grossos jerseis do Mark e o pôs ao redor dos ombros. A lenha começou a flamejar sob as cuidadosas
mãos do Hugo. Cordelia foi à cozinha a fazer café e colocou a lanterna de lado sobre o batente da janela para que iluminasse o fogareiro de querosene.
Acendeu o mais potente dos dois queimadores e tirou da prateleira um jarro de louça marrom, os dois copos de bordo azul e uma taça para ela. Em uma segunda taça
lascada
estava o açúcar Demorou só um par de minutos em ferver meia bule de água e vertê-lo sobre os grãos de café. Podia ouvir a voz do Hugo da sala de estar,
baixa, premente, consoladora, intercalada nas respostas monosilábicas do Isabelle. Sem esperar a que fervesse o café, pô-lo na única bandeja que havia,
uma bandeja de estanho adornada com um desenho do castelo do Edimburgo, e o levou a sala de estar e o colocou na chaminé. A lenha crepitava e ardia e uma
chuva de brilhantes faíscas caiu e foi adornar com estrelas o vestido do Isabelle. Logo um tição de maior tamanho começou a arder com viva labareda.
Enquanto se inclinava para frente para remover o café, Cordelia viu um pequeno escaravelho que corria desesperadamente ao longo de um dos pequenos
troncos. Agarrou uma ramita da chaminé e a apresentou para lhe ajudar a escapar. Mas isto confundiu até mais ao escaravelho, que deu a volta, presa do pânico,
e retrocedeu correndo para a chama e finalmente foi cair dentro de uma greta da madeira. Cordelia se perguntou se o bichinho chegou a dar-se brevemente conta
de seu terrível fim. Acender um fogo com um fósforo era um ato corriqueiro capaz de causar tal agonia, tal terror.
Deu ao Isabelle e ao Hugo seus copos e tomou ela o seu. O reconfortante aroma do café recém feito se mesclou com o aroma resinoso da lenha que ardia. O fogo
projetava largas sombras no estou acostumado a ladrilhado e o quinqué iluminava brandamente seus rostos. Com segurança, pensava Cordelia, nenhum suspeito de assassinato
tinha sido interrogado em um ambiente tão confortável. Até o Isabelle tinha perdido seu temor. Já fosse pela tranqüilidade que lhe oferecia o braço do Hugo lhe rodeando
os ombros, o estímulo do café ou o calor de lar e o crepitar do fogo, parecia achar-se quase cômoda.
Cordelia disse ao Hugo:
-Há dito que Isabelle estava morbosamente obcecada com este lugar. por que teria que está-lo?
-Isabelle é muito sensível; não é tão dura como você.
Cordelia pensou para seus adentros que todas as mulheres belas eram duras -do contrário, como poderiam sobreviver?- e que as fibras do Isabelle bem poderiam
comparar-se, por sua elasticidade, com as suas. Mas nada ganharia desafiando as ilusões do Hugo. A beleza era frágil, transitiva, vulnerável. A sensibilidade
do Isabelle devia proteger-se. As duras podiam cuidar de si mesmos. Disse:
-Segundo você, ela só esteve aqui uma vez anteriormente. Sei que Mark Callender morreu neste quarto, mas não é provável que esperem que eu me cria que se sente
afligida por causa do Mark. Há algo que os dois sabem e seria melhor que me contassem isso agora. Se não o fizerem, terei que informar a sir Ronald Callender de
que
Isabelle, sua irmã e você estão de algum modo implicados na morte de seu filho e a ele corresponderá decidir se tiver que chamar ou não à polícia. Não imagino a
Isabelle enfrentada a um interrogatório, inclusive o mais suave, da polícia. E você, Hugo?
Inclusive para a Cordelia soaram estas palavras como um pequeno e pedante discurso, uma infundada acusação respaldada por uma vácua ameaça. Quase esperava que
Hugo as acolhesse entre divertido e desdenhoso. Mas ele a olhou um instante como se valorasse mais do devido a realidade do perigo. Logo disse com toda tranqüilidade:
-Você não pode aceitar minha palavra de que Mark morreu por sua própria mão e de que se chamas à polícia, isso causará minha infelicidade e tristeza a seu pai,
a
seus amigos e não servirá absolutamente da menor ajuda para ninguém?
-Não, Hugo, não posso.
-Então, se lhe contarmos o que sabemos, prometerá que não transcenderá daqui?
-Como pode ir lhes prometer que vou acreditar o que me digam?
de repente, Isabelle gritou:
-OH, diga-lhe Hugo! O que importa?
Cordelia disse:
-Acredito que devem fazê-lo. Acredito que não têm outra alternativa.
-Isso parece. Está bem. -Deixou o copo de café na chaminé e olhou para o fogo-. Disse-te que tínhamos ido (Sophie, Isabelle, Davie e eu) ao Arts Theatre
a noite em que morreu Mark, mas isto, provavelmente terá adivinhado, foi certo só em suas três quartas partes. Só ficavam três localidades quando fui à
bilheteria, de modo que as atribuímos aos três que com maior probabilidade desfrutariam com a obra. Isabelle vai ao teatro mais para ser vista que para ver e se
aborrece
com um espetáculo no que figurem menos de cinqüenta artistas, de maneira que foi a ela a que deixamos de lado. Esquecida assim por seu amante habitual, muito razoavelmente
foi procurar consolo no seguinte.
-Mark não era meu amante, Hugo -disse Isabelle, com um sorriso.
Falava sem rancor nem ressentimento. tratava-se de pôr os pontos sobre as íes.
-Sei. Mark era um romântico. Nunca levava a uma garota à cama, nem a qualquer outro lugar que eu pudesse saber, até que considerava que existia entre
eles uma adequada profundidade de comunicação pessoal, ou algo assim, segundo seu jargão. Em realidade, isso é injusto. É meu pai o que emprega essas frases terrivelmente
vazias de significado. Mas Mark coincidia nessa ideia em geral. Duvido de que pudesse gozar do sexo até estar convencido de que ele e a garota estavam apaixonados.
Havia uns preliminares necessários, como o despir-se. Suponho que com o Isabelle a relação não tinha alcançado as profundidades necessárias, não tinha obtido a
essencial conexão emocional. Era só questão de tempo, naturalmente. Por isso respeita ao Isabelle, Mark era capaz de enganar-se a si mesmo como o resto de nós.
A voz, alta e ligeiramente hesitante, soava com um cós de ciúmes.
Isabelle disse, lenta e pacientemente, como se se tratasse de uma mãe dando uma explicação a um menino voluntariamente obtuso:
-Mark nunca fez o amor comigo, Hugo.
-É o que estou dizendo. Pobre Mark! Trocou a substância pela sombra e agora não tem nem o um nem o outro.
-Mas, o que ocorreu aquela noite?
Cordelia falava com o Isabelle, mas foi Hugo quem respondeu.
-Isabelle veio de carro até aqui e chegou pouco depois das sete e meia. As cortinas estavam corridas na janela posterior, a de diante é de todas
maneiras impenetrável, mas a porta estava aberta. Entrou. Mark já estava morto. Seu corpo pendurava desse gancho com uma correia. Mas seu aspecto não era o que
tinha quando o encontrou a senhorita Markland à manhã seguinte. -Voltando-se para o Isabelle, acrescentou-. Cuéntaselo você.
A jovem titubeou um instante. Hugo se inclinou para frente e a beijou ligeiramente nos lábios.
-Anda, diga-lhe Há algumas costure desagradáveis contra as quais todo o dinheiro de papai não pode te proteger de tudo, e esta é uma delas, querida.
Isabelle voltou a cabeça e olhou com atenção por volta dos quatro rincões da estadia para convencer-se de que os três estavam realmente sozinhos. As íris de
seus olhos, de notável beleza, apareciam de cor de púrpura ante a luz do fogo. inclinou-se para a Cordelia com algo da confidencial fruição com que uma aldeã
dispõe-se a comunicar a notícia do último escândalo. Cordelia viu que o pânico a tinha abandonado. As angústias do Isabelle eram elementares, violentas mas
efêmeras, fáceis de acalmar Teria guardado o segredo enquanto Hugo lhe tivesse aconselhado que o fizesse, mas se alegrava de que lhe ordenasse desvelá-lo. Provavelmente
seu instinto lhe dizia que a história, uma vez contada, perderia o aguilhão de terror. Disse:
-Pensei que deveria ver ao Mark e possivelmente jantaríamos juntos. Mademoiselle do Congé não se encontrava bem e Hugo e Sophie se achavam no teatro e eu me
aborrecia.
Vim à porta traseira porque Mark me havia dito que a de diante não se abriria. Acreditei que podia lhe ver no horta, mas não estava ali, só a espécie na terra
e seus sapatos junto à porta. De modo que abri a porta empurrando-a. Não chamei porque acreditava que seria uma surpresa para o Mark.
Vacilou e baixou os olhos para o copo de café, fazendo-o girar entre suas mãos.
-E então? -perguntou Cordelia.
-E então lhe vi. Estava pendurado aí com o cinturão, desse gancho do teto, Cordelia, foi espantoso! Estava vestido como uma mulher, com um sustento negro
e umas calcinhas de encaixe também negras. Nada mais. E sua cara! Tinha os lábios pintados, totalmente, Cordelia, como um palhaço! Era terrível, mas também divertido.
Eu queria rir e gritar ao mesmo tempo. Não parecia Mark. Não parecia absolutamente um ser humano. E ainda por cima da mesa havia três fotografias. Umas fotografias
que
não eram bonitas, Cordelia. Fotografias de mulheres nuas.
Seus grandes olhos se cravaram nos da Cordelia, que olhava com a vista extraviada, sem compreender. Hugo disse:
-Não olhe assim, Cordelia. Foi espantoso para o Isabelle então e desagradável pensar nisso agora. Mas não é algo incomum. Acontece. É provavelmente uma
das aberrações sexuais mais inofensivas. Ele a ninguém implicava mais que a ele mesmo. E não tinha a intenção de matar-se; só teve má sorte. Imagino que a
fivela do cinturão escorregou e ele não pôde evitá-lo.
Disse Cordelia:
-Não acredito.
-Imaginei que não poderia. Mas é verdade, Cordelia. por que não te vem conosco e telefonamos ao Sophie? Ela o confirmará.
-Não necessito uma confirmação do relato do Isabelle. Já a tenho. Quero dizer que ainda não acredito que Mark se suicidase.
logo que teve falado, soube que tinha sido um engano Não devia ter revelado suas suspeitas. Mas já era muito tarde e havia algumas pergunta que
tinha que fazer. Via a cara do Hugo, seu rápido movimento de impaciência ante a obstinação dela. E então detectou uma sutil mudança em seu estado de ânimo;
era irritação, temor, contrariedade?
Cordelia falou diretamente com o Isabelle.
-Há dito que a porta estava aberta. Fixou-te na chave?
-Estava neste lado da porta. Vi-o quando saí.
-E as cortinas?
-Estavam como agora, corridas.
-E onde estava o lápis de lábios?
-Que lápis de lábios, Cordelia?
-que se utilizou para pintar os lábios ao Mark. Não estava nos bolsos de seus texanos, do contrário, a polícia o teria encontrado, assim, onde
estava? Viu-o sobre a mesa?
-Sobre a mesa não havia mais que as fotografias.
-De que cor era o lápis de lábios?
-Púrpura. Uma cor de velha. Ninguém escolheria tal cor, acredito eu.
-E a roupa interior, poderia descrevê-la?
-OH, sim! Era de M & S. A reconheci.
-Quer dizer que reconheceu aqueles objetos porque acaso eram tuas?
-OH não, Cordelia! Não eram minhas. Eu nunca levo roupa interior negra. Só quero algo branco em contato com minha pele. Mas eram da classe que estou acostumado
a comprar.
Sempre compro a roupa interior em M & S.
Cordelia refletiu sobre o fato de que Isabelle possivelmente não fosse uma das melhores clientas dos armazéns, mas nenhum outra testemunha teria sido mais confiável
assim que se refere aos detalhes, particularmente tratando-se de roupa. Inclusive naquele momento de absoluto terror e revulsión, Isabelle se tinha fixado no
tipo de objetos interiores. E se dizia que não tinha visto o lápis de lábios, então era porque o lápis de lábios não tinha estado ali para que pudesse vê-lo.
Cordelia prosseguiu dizendo, inexorável:
-Tocou algo, possivelmente o corpo do Mark, para ver se estava morto?
Isabelle estava perplexa. Ela podia desembrulhar-se com os fatos da vida, mas não com os fatos da morte.
-Eu não podia tocar ao Mark! Não toquei nada. E sabia que estava morto.
Hugo disse:
-Um cidadão respeitável, sensível e cumpridor da lei teria procurado o telefone mais próximo e chamado à Polícia. Felizmente, Isabelle não é nenhuma
destas coisas. Seu instinto lhe indicou que viesse para ver-me para mim. Esperou a que tivesse terminado a obra e então foi reunir se conosco fora do teatro. Quando
saímos, ela estava passeando acima e abaixo na outra calçada. Davie, Sophie e eu voltamos aqui com ela no Renault. Só nos detivemos brevemente na rua
Norwich para recolher a câmara fotográfica e o flash do Davie.
-por que?
-Foi minha idéia. Evidentemente não tínhamos intenção de deixar que a polícia e Ronald Callender soubessem de que maneira tinha morrido seu filho. Nossa idéia
foi
simular um suicídio. Planejamos lhe vestir com sua própria roupa, lhe limpar a cara e logo deixar que o encontrasse outro. Não pensávamos falsificar uma nota de
suicídio;
isso era um refinamento que se achava fora de nosso alcance. Recolhemos a câmara para podê-lo fotografar tal como estava. Não sabíamos que estivéssemos infringindo
alguma lei por simular um suicídio, mas deve existir uma. Nestes dias, não pode emprestar o menor serviço a seus amigos sem que resulte mal interpretado por
a polícia. Queríamos ter alguma prova da verdade se por acaso surgia alguma pega. Todos queríamos ao Mark, cada um a sua maneira, mas não o suficiente para nos expor
a ser acusados de assassinato. Entretanto, nossas intenções se viram frustradas. Alguém mais chegou aqui primeiro.
-me falem disso.
-Nada terá que contar. Dissemos às duas garotas que esperassem no carro: Isabelle, porque já havia visto suficiente, e Sophie porque Isabelle estava muito
assustada para que a deixasse sozinha. Além disso, parecia um detalhe para o Mark o manter afastada ao Sophie, impedir que lhe visse. Não te parece estranho, Cordelia,
este
interesse que alguém tem em não ferir a suscetibilidade dos mortos?
Pensando em seu pai e no Bernie, Cordelia disse:
-Possivelmente somente quando as pessoas estão mortas é quando podemos com segurança mostrar o muito que nos preocupávamos com elas. Sabemos que é muito
tarde para que eles façam algo.
-Cínico mas certo. De todas maneiras, nada havia aqui que pudéssemos fazer nós. Encontramos o corpo do Mark e esta habitação tal como o descreveu
a senhorita Markland na investigação. A porta estava aberta, as cortinas corridas. Mark estava nu, com exceção de seus texanos. Não havia fotografias
de revista sobre a mesa nem lápis de lábios em sua cara. Mas havia uma nota de suicídio na máquina de escrever e um montão de cinza na chaminé. Aparentemente,
o visitante tinha realizado um trabalho completo. Não nos entretivemos. Alguém mais, possivelmente alguém da casa, poderia voltar em qualquer momento. Então era
muito
tarde, admitamo-lo, mas parecia uma noite adequada para que a gente devesse bisbilhotar. Mark deveu ter mais visitantes aquela noite que em todo o tempo
que esteve na cabana; primeiro, Isabelle; logo, o desconhecido samaritano, depois nós.
Cordelia pensou que tinha que ter ido alguém antes que Isabelle. O assassino do Mark tinha estado ali primeiro. de repente, perguntou:
-Alguém me gastou uma estúpida brincadeira ontem à noite. Quando voltava da festa, havia um almofadão pendurado desse gancho. Fez-o você?
Se sua surpresa não era autêntica, Hugo era um ator melhor do que Cordelia tinha considerado possível.
-Claro que não o fiz eu! Eu acreditava que você vivia em Cambridge, não aqui. E por que tinha que fazê-lo?
-Para me persuadir a abandonar o caso.
-Mas teria sido uma tolice! Verdade que isso não te teria persuadido? Poderia amedrontar a algumas mulheres, mas não precisamente a ti. Nós queríamos
te convencer de que nada terei que investigar a respeito da morte do Mark. Essa classe de brincadeira não teria feito mais que te convencer de que o havia. Alguém
mais estava
tentando te assustar. O mais provável é que se tratasse da mesma pessoa que veio depois de nós.
-Sei. Alguém se arriscou pelo Mark. Ele (ou ela) não quer que eu ande farejando por aqui. Mas se teria liberado melhor de mim me contando a verdade.
-Como podia saber esta pessoa se podia confiar em ti? O que vais fazer agora, Cordelia? Voltar para a cidade?
Hugo procurava conservar em sua voz um tom de naturalidade, mas Cordelia detectou uma certa ansiedade subjacente. Respondeu:
-Espero que sim. Primeiro tenho que ver sir Ronald. E não se preocupe, já me ocorrerá o que devo lhe dizer.
A aurora tingia de rosa a parte oriental do céu e o primeiro coro de pássaros relicaba ruidosamente ao novo dia antes de que Hugo e Isabelle partissem.
levaram-se o Antonello. Cordelia viu como o levavam e sentiu certo pesar, como se um pouco do Mark estivesse abandonando a cabana. Isabelle examinou atentamente
o quadro com graves olhos de profissional antes de ficar o sob o braço. Cordelia pensou que a jovem era provavelmente o suficientemente generosa com suas posses,
tanto pessoas como quadros, com tal de que só estivessem em empréstimo e fossem devolvidas prontamente ao ser reclamadas e no mesmo estado em que se achavam
quando ela as emprestou. Observou da porta dianteira como o Renault, conduzido pelo Hugo, saía da sombra do sebe. Levantou a mão em um formal gesto de
despedida, como uma fatigada anfitriã que se despede de seus últimos convidados, logo retornou à cabana.
A sala de estar parecia vazio e frio sem eles. O fogo, apagava-se e lhe acrescentou as poucas lascas que ficavam e soprou sobre elas para avivar a chama.
moveu-se inquieta pela pequena estadia. Estava muito excitada para voltar para a cama, embora aquela noite curta e perturbada a tinha fatigado em excesso.
Mas sua mente estava atormentada por um pouco mais fundamental que a falta de sonho. Pela primeira vez era consciente de que tinha medo. O mal existia -não fazia
falta
uma educação de convento para convencer a dessa realidade- e tinha estado presente naquele quarto. Algo ali tinha sido mais forte que o vício, a dureza, a
crueldade ou a conveniência. O Mal. Cordelia não duvidava de que Mark tinha sido assassinado, mas com que diabólica inteligência o tinham feito! Se Isabelle contasse
sua história, quem não acreditaria que não tinha morrido acidentalmente, mas sim por sua própria mão? Cordelia não tinha necessidade de fazer referência a seu livro
sobre medicina
forense para saber o que lhe pareceria o caso à polícia. Como havia dito Hugo, tais casos não eram muito incomuns. Ele, como filho de um psiquiatra, teria ouvido
falar ou lido a respeito deles. Quem mais saberia? Com toda probabilidade qualquer pessoa razoavelmente sofisticada. Mas não podia ter sido Hugo. Hugo tinha
um álibi. A Cordelia lhe revolveu a mente ante a idéia de que Davie e Sophie pudessem ter participado de semelhante horror. Mas, que estranho que houvessem
ido procurar a câmara fotográfica. Inclusive a compaixão que pudessem haver sentido tinha sido superada pelo próprio interesse. Teriam sido capazes Hugo e Davie
de estar ali, sob o grotesco cadáver do Mark, discutindo tranqüilamente a distância e a exposição antes de fazer a fotografia que, em caso necessário, eles
exoneraria de culpa a gastos dele?
Entrou na cozinha para fazer chá, desejando livrar-se da maligna fascinação daquele gancho do teto. Antes quase não a tinha preocupado, nesse momento
resultava tão inoportuno como um fetiche. Parecia ter aumentado de tamanho da noite anterior, estar crescendo ainda ao levantar Cordelia os olhos compulsivamente
para ele. E a mesma sala de estar parecia haver-se encolhido; já não era um lugar de refúgio, a não ser uma cela claustrofóbica, basta e ignominiosa como uma câmara
de execução. Até o ar daquela clara amanhã estava impregnado do repugnante aroma do mal.
Enquanto esperava que fervesse a água da bule se dedicou a refletir sobre as atividades do dia. Ainda era muito logo para teorizar; estava muito
aterrorizada para pensar racionalmente em seus novos conhecimentos. O relato do Isabelle tinha complicado, não iluminado o caso. Mas ainda ficavam por descobrir
feitos importantes. Seguiria adiante com o programa que já se riscou. Esse mesmo dia iria a Londres a examinar o testamento do avô do Mark.
Mas ainda tinham que transcorrer duas horas antes de que chegasse o momento de pôr mãos à obra. Tinha decidido ir a Londres em trem e deixar o carro na
estação de Cambridge, já que isto resultaria mais rápido e mais cômodo. Era irritante ter que passar um dia na cidade, quando a medula do mistério se encontrava
de um modo tão evidente no condado de Cambridge, mas por uma vez não lhe causar pena a perspectiva de abandonar a cabana. Desconcertada e inquieta, ia sem rumo
fixo de uma habitação a outra, e começou a vagar pelo horta, ansiosa por partir. Finalmente, desesperada-se, agarrou a espécie e terminou de revolver a fileira que
Mark tinha começado. Não estava segura de que isto fosse sensato: o trabalho interrompido do Mark formava parte da prova de seu assassinato. Mas poucas pessoas,
entre
elas o sargento Maskell, tinham-no visto, e poderiam atestar, em caso necessário, e a vista do trabalho só em parte realizado e daquela espécie ainda fincada
no estou acostumado a resultava insoportablemente irritante. Quando a fileira esteve concluída, Cordelia se sentiu mais tranqüila e seguiu revolvendo a terra sem
descanso
por espaço de uma hora antes de limpar cuidadosamente a espécie e colocá-la com os outros úteis no abrigo do jardim.
Ao fim chegou o momento de ir-se. O parte meteorológico das sete tinha prognosticado tormentas com relâmpagos e trovões no sudeste do país, de modo que
ficou o traje de jaqueta, os objetos de mais abrigo que tinha levado consigo. Não o tinha usado da morte do Bernie e descobriu que a franja da cintura
ia incómodamente frouxa. Tinha perdido um pouco de peso. Depois de pensá-lo um momento, tirou da maleta da cena do crime o cinturão do Mark e o rodeou com dois
voltas ao redor de sua cintura. Não experimentou a menor repugnância ao sentir-se estreitamente rodeada pelo couro. Era impossível acreditar que algo que ele houvesse
meio doido ou poseído pudesse assustá-la ou entristecê-la. A força e pesadez do couro tão perto de sua pele resultavam, inclusive, oscuramente reconfortantes e tranqüilizadoras,
como se aquele cinturão fosse um talismã.
V
A tormenta estalou no momento mesmo em que Cordelia desembarcava do ônibus 11 frente a Somerset House. Brilhou um intenso relâmpago e, quase instantaneamente, o
trovão ressonou ensurdecedor e a jovem pôs-se a correr através do pátio interior por entre as filas de carros estacionados, através de uma cortina de água, enquanto
a chuva saltava ao redor de seus tornozelos como se as pedras do pavimento recebessem uma descarga de balas. Abriu a porta de um empurrão e se deteve um instante,
jorrando rios de água sobre a esteira e rendo ruidosamente com alívio. Uma ou duas pessoas ali pressente, olharam-na das carteiras onde estavam examinando
testamentos, enquanto uma mulher de aspecto maternal, atrás do mostrador, chamava-lhe amavelmente a atenção. Cordelia sacudiu sua jaqueta sobre o tapete e logo
pendurou-a sobre o respaldo de uma das cadeiras e tentou em vão secar o cabelo com o lenço, antes de aproximar-se do mostrador.
A mulher de aspecto maternal resultou serviçal. A requerimento da Cordelia, indicou-lhe as prateleiras de pesados volúmenes encadernados no centro da sala
e lhe explicou que os testamentos figuravam em um índice sob o sobrenome do testador e o ano em que o documento ingressou no Somerset House. Correspondia a Cordelia
procurar o número do catálogo e levar o volume ao mostrador e lhe entregariam o original e poderia consultá-lo depois do pagamento de vinte peniques.
Cordelia não sabia por onde iniciar sua busca, já que desconhecia a data da morte do George Bottley. Mas deduziu que o testamento devia ter sido
feito depois do nascimento, ou ao menos depois da concepção do Mark, posto que a este tinha sido legada uma fortuna por seu avô. Mas o senhor Bottley
tinha deixado dinheiro também a sua filha e esta parte de sua fortuna, à morte dela, tinha passado a seu marido. Era muito provável que ele tivesse morrido antes
que
ela, já que, do contrário, certamente teria feito outro testamento. Cordelia decidiu começar a procurar a partir do ano do nascimento do Mark, 1951.
Suas deduções resultaram corretas. George Albert Bottley, do Stonegate Lodge, Harrogate, havia falecido em 26 de julho de 1951, três meses e um dia depois
de redigir seu testamento. Cordelia se perguntava se sua morte tinha sido repentina ou se este era o testamento de um homem moribundo. Viu que tinha deixado um patrimônio
de três quartos de milhão de libras. Como o tinha feito?, perguntava-se Cordelia. Certamente não tudo tinha saído da lã. Levou o pesado livro ao mostrador,
o empregado anotou os detalhes de um formulário e lhe indicou o caminho do despacho da caixa. Ao cabo de uns surpreendentes poucos minutos de pagar o que a Cordelia
pareceu-lhe uma quantidade modesta, a jovem investigadora se achava sentada sob a luz de uma das carteiras de ao lado da janela com o testamento nas
mãos.
Não lhe tinha gostado do que tinha ouvido dizer a Tatu Pilbeam do George Bottley, e tampouco gostou mais quando teve lido seu testamento. Tinha temido que o
documento
fosse comprido, complicado e difícil de entender; era surpreendentemente curto, singelo e inteligível. O senhor Bottley dispunha que todos seus bens se vendessem,
"porque desejo impedir as habituais e indecorosas disputas". Deixou somas modestas a serventes que tinha empregados na época de sua morte, mas não havia a menor
menção, observou Cordelia, de seu jardineiro. Legou a metade do resto de sua fortuna a sua filha, absolutamente, "agora que demonstrou que tem pelo menos um de
os atributos normais de uma mulher". A metade restante a deixava a seu bienamado neto Mark Callender quando fizesse vinte e um anos, "em cuja data, se não ter aprendido
o valor do dinheiro, haverá pelo menos chegado a uma idade em que possa evitar ser explorado". A renda do capital foi legada a seis parentes longínquos. O testamento
criava um depósito residual; ao morrer cada beneficiário, sua parte se distribuiria entre os superviventes. O testador confiava em que este acerto promoveria em
os beneficiários um vivo interesse na saúde e sobrevivência recíprocas, lhes respirando a obter a distinção da longevidade, já que não estava a seu alcance alguma
outra distinção. Se Mark morria antes do dia em que cumpria os vinte e um anos, o depósito familiar continuaria até que os beneficiários tivessem morrido e o
capital se distribuiria então entre uma formidável lista de obras de beneficência escolhidas, por isso pôde ver Cordelia, porque eram conhecidas e tinham êxito,
mais que porque representassem algum interesse ou simpatia pessoais por parte do testador. Era como se tivesse pedido a seus advogados uma lista das obras de beneficência
de maior confiança, sem ter um verdadeiro interesse no que acontecesse a sua fortuna se sua própria descendência não vivesse para herdá-la.
Era um testamento estranho. O senhor Bottley nada tinha deixado a seu genro, embora ao parecer, não lhe preocupava a possibilidade de que a sua filha, da que
sabia
não gozava de muita saúde, muriese e deixasse sua fortuna a seu marido. Em alguns aspectos, era o testamento de um jogador, e Cordelia voltava a perguntar-se como
haveria
feito George Bottley sua fortuna. Mas, apesar da cínica falta de amabilidade de seus comentários, o testamento não era injusto nem falto de generosidade. A diferença
de alguns homens muito ricos, ele não tinha pretendido controlar sua grande fortuna mais à frente do sepulcro, obsessivamente decidido a que nem um só penique fosse
parar
a umas mãos que não gozassem de seu favor. Sua filha e seu neto tinham herdado ambos suas fortunas de uma maneira absoluta. Era impossível querer ao senhor Bottley,
mas
também era difícil não sentir respeito por ele. E as implicações deste testamento eram muito claras. Ninguém saía ganhando com a morte do Mark, exceto uma larga
lista de altamente respeitáveis instituições caridosas.
Cordelia tomou nota das principais cláusulas do testamento, mais pela insistência do Bernie em uma documentação meticulosa que por algum temor das esquecer;
pôs o recibo dos vinte peniques na página de gastos de sua caderneta; acrescentou o custo de seu barato bilhete de ida e volta a Cambridge e o do ônibus, e
devolveu o testamento ao mostrador. A tormenta tinha sido tão curta como violenta. O quente sol estava já secando as janelas e os atoleiros brilhavam no pátio
lavado pela chuva. Cordelia decidiu pôr na conta de sir Ronald só meio-dia e passar o resto de seu tempo em Londres em seu escritório. Possivelmente houvesse correspondência
que recolher. Inclusive poderia haver outro caso esperando-a.
Mas esta decisão foi um engano. O escritório parecia até mais sórdida que quando a tinha deixado e o ar cheirava a rançoso em contraste com as ruas lavadas
por
a chuva. Havia uma grosa capa de pó sobre os móveis e a mancha de sangue do tapete se obscureceu em um marrom tijolo que parecia até mais sinistro
que o vermelho claro original. Na rolha não havia mais que a fatura da luz e outra da papelaria. Bernie tinha pago caro -ou mas bem não tinha pago- o papel
de escrever não utilizado.
Cordelia preencheu um cheque para a companhia elétrica, fez um último e inútil intento de limpar o tapete. Logo fechou com chave o escritório e saiu a passear
para o Trafalgar Square. Procuraria consolo na National Gallery.
Tomou o trem de 18:16 da rua Liverpool e retornou à cabana antes das oito. Estacionou o Mini, como de costume, no esconderijo do matagal e procedeu
a dar a volta pelo flanco da cabana. Vacilou um instante, perguntando-se se devia recolher a pistola de onde a tinha escondida, mas decidiu que isto podia
esperar até mais tarde. Tinha fome e a primeira prioridade era a de procurar-se algo para comer. Tinha fechado cuidadosamente a porta traseira e tinha pego
uma fina tira de cinta adesiva através do batente da janela antes de partir aquela manhã. Se havia mais visitantes secretos, queria estar advertida.
Mas a cinta se achava ainda intacta. Apalpou no interior de sua bolsa em busca da chave, inclinou-se e a introduziu na fechadura. Nada esperava que lhe ocorresse
fora da cabana e o ataque a agarrou completamente por surpresa. Transcorreu segundo meio antes de que caísse a manta, mas nada pôde ver. O cordão ao redor
do pescoço apertava a máscara de quente lã asfixiante contra a boca e as janelas do nariz. Abriu a boca para respirar e sentiu em sua língua o contato
das fibras da lã, secas e de forte aroma. Logo uma dor aguda estalou em seu peito e já nada recordou.
O movimento de liberação foi um milagre e um horror. A manta foi apartada rapidamente de sua cabeça. Não chegou a ver seu assaltante. Houve um segundo de suave
ar lhe vivifiquem, um vislumbre tão breve que logo que pareceu existir, de uma deslumbrante parte de céu através do horta e logo sentiu que caía, caía no meio
de um necessitado assombro, para uma fria escuridão. A queda foi uma confusão de antigos pesadelos, incríveis segundos de terrores infantis rapidamente evocados.
Logo seu corpo golpeou a água. Parecia que umas mãos de gelo a arrastavam para um vórtice de horror. Instintivamente tinha fechado a boca no momento do
impacto e pugnava por subir à superfície através do que parecia uma eternidade de uma fria negrume que o abrangia tudo. Sacudiu a cabeça e, com os olhos
ardidos, olhou para cima. O negro túnel que se estendia por cima dela terminava em uma lua de luz azul. Enquanto olhava, a tampa do poço foi arrastada
como o obturador de uma câmara fotográfica. A lua se converteu em meia lua, depois em quarto minguante. Ao fim não houve mais que ochos finos frestas de luz.
Flutuando na água, procurava com os pés o fundo do poço. Não o havia. Movendo freneticamente mãos e pés procurando não deixar-se dominar pelo pânico,
apalpou a seu redor as paredes do poço em busca de um possível apoio para os pés. Não o havia. O funil de tijolos, liso e exsudando umidade, estendia-se ao redor
e por cima dela como uma tumba circular. Ao olhar para cima, os tijolos se retorciam, estendiam-se, oscilavam, como o ventre de uma monstruosa serpente.
E então sentiu uma cólera salvadora. Não se deixaria afogar, não morreria naquele horrível lugar, só e aterrada. O poço era profundo mas estreito, apenas
mediria um metro de diâmetro. Se mantinha clara a cabeça e se tomava tempo, poderia afiançar seu corpo com as pernas e os ombros contra os tijolos e ir subindo
pouco a pouco.
Ao cair, não tinha sofrido contusões nem tinha ficado atordoado ao dar seu corpo contra os tijolos. Milagrosamente, não tinha sofrido lesões. Tinha sido
uma queda limpa. Estava viva e era capaz de pensar. Sempre tinha sido uma supervivente. Essa vez também sobreviveria.
Flutuava de costas, apoiando os ombros contra as frite paredes, estendendo os braços e pondo os cotovelos nos interstícios dos tijolos para
sustentar-se melhor. depois de desprender-se dos sapatos, plantou ambos os pés contra a parede oposta. Imediatamente debaixo da superfície da água, pôde notar
que um dos tijolos estava ligeiramente desalinhado. Curvou os dedos ao redor dele. Isso lhe deu um precário mas oportuno apoio para dar começo à escalada.
Graças a isto, pôde levantar o corpo fora da água e aliviar durante um momento a tensão dos músculos das costas e das coxas.
Logo começou lentamente a subir, primeiro deslocando os pés, um detrás de outro em diminutos passos escorregadios, logo subindo o corpo dolorosamente centímetro
a centímetro. Mantinha os olhos fixos na curva oposta da parede, sem querer olhar nem abaixo nem acima, contando o avanço pela largura de cada tijolo. O
tempo transcorria. Não podia ver o relógio do Bernie, embora seu som parecia extrañamente forte, um regular e importuno metrônomo que medisse o palpitar de seu
coração e o ritmo de sua ofegante respiração. A dor nas pernas era intenso, e sentia a camisa pega a suas costas com uma efusão quente e quase confortante
que acreditou que devia ser sangue. Fez um esforço de vontade para não pensar na água, abaixo, nem nas finas frestas de luz, cada vez mais largos, vamos.
Se tinha que sobreviver, devia empregar toda sua energia para o seguinte doloroso centímetro.
Uma vez lhe escorregaram as pernas e baixou retrocedendo uns metros, até que finalmente encontrou um apoio. A queda tinha roçado suas machucada costas e a
fez choramingar com contrariedade e desalento. Fez outro esforço de vontade, e começou a subir de novo. Outra vez lhe deu uma cãibra e esteve um momento estirada,
como
em um potro de tortura, até que lhe aconteceu e pôde voltar a mover os duros músculos. de vez em quando os pés encontravam outro pequeno oco entre os
tijolos para apoiar-se e podia estirar as pernas e descansar. Era quase irresistível a tentação de permanecer muito momento nesta postura de relativa segurança
e descanso, e teve que fazer um grande esforço para prosseguir sua lenta e tortuosa escalada.
Parecia que levava horas subindo, movendo-se em uma paródia de um parto difícil e desesperado. Estava obscurecendo. Nesse momento a luz que saía do
alto do poço era mais largo mas menos intensa. dizia-se a si mesmo que a escalada não era realmente difícil. Era só a escuridão e a solidão o que fazia que
parecesse-o. Se isto tivesse sido uma carreira de obstáculos preparada, um exercício no ginásio da escola, certamente poderia havê-lo feito com bastante
facilidade. Enchia sua mente com as confortantes imagens do ginásio e a sensação de ouvir as exclamações das meninas da classe que a animavam. Irmã Perpétua
estava ali. Mas, por que não olhava a Cordelia? por que havia tornado a cabeça? Cordelia a chamou e a figura se voltou lentamente e lhe sorriu. Mas não era a
irmã. Era a senhorita Leaming, com sua pálida cara e seu sorriso sardônico sob o branco véu de monja.
E então, quando compreendia que, sem ajuda, não podia seguir avançando, viu a solução. Uns palmos por cima dela estava o último degrau de uma curta
escala de madeira fixada no último lance do poço. Ao princípio acreditou que era uma ilusão, um fantasma nascido da extenuação e o desespero. Fechou os olhos
por espaço de uns minutos; seus lábios se moveram. Logo voltou a abrir os olhos. A escala estava ainda ali, vista de um modo vago mas sólido na
luz do entardecer. Levantou impotente as mãos para ela, sabendo, enquanto o fazia, que se encontrava fora de seu alcance. Podia lhe salvar a vida e ela sabia
que não tinha forças para alcançá-la.
Foi nesse momento, sem pensamento consciente, quando se lembrou do cinturão. Sua mão desceu para sua cintura, apalpando a pesada fivela de latão. Desfez-a
e tirou de seu corpo a larga serpente de couro. Com cuidado lançou o extremo do cinturão que levava a fivela para o último degrau da escala. As três
primeiras vezes, o metal golpeou a madeira com um agudo som, mas sem cair por cima do degrau; a quarta vez, sim. Empurrou brandamente o outro extremo do cinturão
para cima e a fivela foi descendo para ela até que pôde estender a mão e agarrá-la. Sujeitou-a ao outro extremo para formar um forte laço. Então atirou
dele, primeiro suave, depois mais forte, até que a maior parte de seu corpo esteve sobre a correia. O alívio foi indescritível. apoiou-se contra os tijolos
para reunir forças para o último esforço triunfal. Então aconteceu. O degrau, podre em suas junturas, soltou-se com um áspero ruído de ruptura e se afundou em
a escuridão passando junto a ela, lhe roçando quase a cabeça. Pareceu que transcorriam minutos em vez de segundos antes de que o longínquo estalo da madeira sobre
a água ressonasse no vazio do poço.
Desabotoou o cinturão e voltou a tentá-lo. O degrau seguinte estava um palmo mais alto e o lançamento resultava mais difícil. Inclusive este pequeno esforço
era exaustivo no estado em que se encontrava Cordelia, por isso decidiu tomar-se um pouco de tempo. Cada lançamento infrutífero fazia mais difícil o seguinte.
Não contou o número de intentos, mas finalmente a fivela caiu por cima do degrau e descendeu para ela. Quando baixou serpenteando até o alcance de sua mão,
Cordelia viu que quase não podia grampear a correia. O degrau seguinte teria sido muito alto. Se este se rompia, seria o fim.
Mas o degrau agüentou. Não recordava claramente a última meia hora da escalada, mas ao final alcançou a escala e se atou fortemente aos montantes.
Por primeira vez, estava fisicamente a salvo. Enquanto a escala agüentasse, não tinha por que ter medo de cair. deixou-se relaxar em uma breve inconsciência, mas
logo as engrenagens de sua mente, que tinham estado rodando livremente, voltaram a controlar-se e Cordelia começou a pensar. Sabia que não tinha esperanças de mover
pesada-a coberta de madeira sem ajuda. Estendeu ambas as mãos e empurrou contra ela, mas não se deslocava, e a alta cúpula côncava fazia impossível que pudesse
apoiar
os ombros contra a madeira. Teria que confiar na ajuda de fora, e esta não chegaria até que fosse de dia. Poderia inclusive não chegar então, mas afastou
este pensamento de sua mente. Mais tarde ou mais cedo chegaria alguém. Podia esperar sustentar-se, maça desse modo, durante vários dias. Inclusive embora perdesse
o conhecimento, cabia a possibilidade de que fosse resgatada com vida. A senhorita Markland sabia que ela estava na cabana; suas coisas seguiam ali. A senhorita
Markland acudiria.
Pensava na maneira de chamar a atenção. Havia espaço para introduzir algo entre as pranchas de madeira, se tivesse algo suficientemente rígido para introduzir.
O bordo da fivela era possível com tal de que ela se atasse de uma maneira mais tensa. Mas devia esperar a manhã. Nesse momento nada podia fazer. relaxaria-se
e dormiria e esperaria que a salvassem.
E então o horror final estalou em sua mente. Não haveria salvação. Alguém iria ao poço, andando com pés silenciosos e furtivos sob o manto da escuridão.
Mas seria seu assassino. Tinha que voltar; formava parte de seu plano. O ataque, que naquele momento tinha parecido tão surpreendente, tão brutalmente estúpido,
não
tinha-o sido absolutamente. Estava feito com a intenção de que parecesse um acidente. Voltaria aquela noite e voltaria a retirar a tampa do poço. Então, ao
dia seguinte ou ao cabo de uns dias, a senhorita Markland passaria pelo jardim e descobriria o que tinha acontecido. Ninguém poderia provar jamais que a morte de
Cordelia não tinha sido um acidente. Recordou as palavras do sargento Maskell: "O importante não é o que um suspeita, a não ser o que alguém é capaz de provar".
Mas
esta vez, haveria sequer suspeita? Hei aqui uma jovem impulsiva, extraordinariamente curiosa, que vivia na cabana sem permissão do dono. Resultava evidente que
tinha decidido explorar o poço. Tinha quebrado o cadeado, retirado a tampa com ajuda da corda que o assassino deixaria preparada para ser descoberta, e, tentada
pela escala, tinha descendido por aqueles poucos degraus, até que o último se rompeu sob seus pés. Seus rastros e as de ninguém mais se encontrariam na escala,
se se tomavam a moléstia de olhá-lo. A cabana se achava completamente deserta; a probabilidade de que alguém visse retornar ao assassino era remota. Não podia
fazer mais que esperar até ouvir seus passos, sua pesada respiração, e o ruído da tampa ao ser retirada lentamente, para descobrir a cara do assassino.
depois da primeira sensação de terror, Cordelia esperou a morte sem esperança e sem querer lutar mais. Havia inclusive nela uma espécie de paz na resignação.
Atada como uma vítima aos montantes da escala, sumiu-se em seu instante de esquecimento e rezou para que fosse assim quando voltasse o assassino, para não ser consciente
do golpe final. Já não tinha o menor interesse em ver a cara de seu assassino. Não se humilharia rogando por sua vida, não pediria clemência a um homem que tinha
enforcado
ao Mark. Sabia que não a haveria.
Mas era consciente quando a tampa do poço começou a mover-se lentamente. A luz entrou por cima de sua cabeça inclinada. A brecha se alargou. E então
ouviu um voz, uma voz de mulher, baixa, premente e cheia de terror.
-Cordelia!
Levantou os olhos.
Ajoelhada ao bordo do poço, com seu pálido rosto imenso e que parecia flutuar desencarnado no espaço como o fantasma de um pesadelo, estava a senhorita
Markland. E os olhos que se cravavam na cara da Cordelia tinham um olhar tão extraviado pelo terror como os desta.
Dez minutos depois, Cordelia jazia desabada na cadeira, ao lado da chaminé. Doía-lhe todo o corpo e era incapaz de dominar seu violento tremor. Seu
fina camisa estava pega a suas costas ferida e cada movimento lhe resultava doloroso. A senhorita Markland tinha aceso o fogo e estava fazendo café. Cordelia
ouvia como se movia de um lado a outro na cozinha e percebia o aroma do fogão quando fez subir a chama e pouco depois o evocador aroma do café. Estas vistas
e sons familiares normalmente teriam sido tranqüilizadores e reconfortantes, mas desejava desesperadamente ficar sozinha. O assassino voltaria. Tinha que voltar
e, quando o fizesse, ela queria estar ali para lhe conhecer. A senhorita Markland levou os dois copos e pôs um deles nas mãos trêmulas da Cordelia. Logo
subiu a procurar um dos jerseis do Mark e com ele cobriu o pescoço da jovem. O terror a tinha abandonado, mas ainda se mostrava agitada. Tinha a vista extraviada
e lhe tremia todo o corpo por efeito da emoção. sentou-se diante mesmo da Cordelia e cravou nela seus vivos olhos inquisitivos.
-Como aconteceu? Deve você me contar isso -Pero, ¿por qué? ¿Quién habría venido por aquí?
Cordelia não tinha esquecido seu modo de pensar.
-Não sei -disse-. Não posso recordar o que aconteceu antes de cair à água. Certamente tinha decidido explorar o poço e perdi o equilíbrio.
-Mas E a tampa! A tampa estava em seu sítio!
-Sei. Alguém teve que voltar a colocá-la.
-Mas, por que? Quem teria vindo por aqui?
-Não sei. Mas alguém teve que havê-lo visto. Alguém teve que havê-la colocado de novo. -Logo disse em tom mais amável-. Você me salvou a vida. Como
deu-se conta do que tinha acontecido?
-Vim à cabana a ver se estava você aqui ainda. Hoje tinha vindo mais cedo, mas não havia sinais de vida de você. Havia uma corda enrolada (a
que você usou, suponho) no atalho e tropecei com ela. Então me dava conta de que a tampa não se achava em seu sítio e de que o cadeado tinha sido quebrado.
-Você me salvou a vida -voltou a dizer Cordelia-, mas, por favor, agora vá-se. Vá-se, por favor. Estou bem, seriamente.
-Mas você não está como para que a deixe sozinha! E esse homem, que voltou a colocar a tampa, poderia voltar. Eu não gosto de pensar que pessoas estranhas andem
bisbilhotando ao redor da cabana e que você esteja aqui sozinha.
-Estou perfeitamente segura. Além disso, tenho uma pistola. Só quero que me deixe em paz para descansar. Por favor, não se preocupe comigo!
Cordelia pôde detectar a nota de desespero, quase de histeria, em sua própria voz.
Mas a senhorita Markland parecia não ouvir. de repente, ajoelhou-se diante da Cordelia e começou a falar muito excitada. Sem consideração e sem compaixão, o
estava confiando a jovem seu terrível historia, uma história de seu filho, o menino de quatro anos, filho dela e de seu amante, que tinha atravessado o sebe da
cabana e tinha cansado no poço, no que encontrou a morte. Cordelia tratava de liberar-se daqueles olhos extraviados. Certamente tudo era uma fantasia. A
mulher devia estar louca. E se era certo, era horrível e inconcebível e ela não podia suportar ouvi-lo. Passado algum tempo o recordaria, recordaria cada palavra,
e pensaria no menino, em seu último terror, em seus gritos se desesperados chamando a sua mãe, a água fria e asfixiante que o arrastava para a morte. Viveria
a agonia do menino em pesadelos quando ela revivesse a sua própria. Mas não então. Através da corrente de palavras, as autoacusaciones, o terror evocado,
Cordelia reconheceu a nota de liberação. O que para ela tinha sido horror, para a senhorita Markland tinha sido alívio. Uma vida por uma vida.
de repente, Cordelia já não pôde ouvir mais. Disse violentamente:
-Sinto muito! Sinto muito! Você me salvou a vida e lhe estou agradecida. Mas não posso suportar escutar. Não a quero a você aqui. Por Deus o peço,
parta!
Toda a vida recordaria o semblante ferido da mulher, sua retirada em silêncio. Cordelia não a ouviu partir, não recordava a maneira em que a porta se fechou
brandamente. Quão único sabia era que estava sozinha. Então já não tremia, embora ainda tinha muito frio. Subiu a escada e ficou a calça texana e depois
tirou-se de ao redor do pescoço o pulôver do Mark e o pôs. Cobriria as manchas de sangue de sua camisa e o calor resultou em seguida reconfortante. movia-se
com muita rapidez. Procurou as balas, agarrou sua lanterna e saiu pela porta traseira da cabana. A pistola estava ainda onde a tinha deixado, no oco da árvore.
Carregou-a e sentiu na mão sua forma e peso familiares. Logo se escondeu entre os arbustos e esperou.
Estava muito escuro para ver a esfera de seu relógio de pulso, mas calculou que devia ter estado ali, imóvel entre as sombras, por espaço de quase
meia hora antes de que seus ouvidos percebessem o som que estava esperando. Um carro se aproximava descendendo pelo atalho. Cordelia conteve a respiração.
O som do motor alcançou um breve crescendo e logo foi extinguindo-se. O carro tinha seguido avançado sem parar. Não era corrente que um carro descesse pelo
atalho depois de ter escurecido e Cordelia se perguntou quem poderia ser. De novo esperou, e retrocedeu mais para o refúgio que lhe brindava o saúco para poder
apoiar as costas na casca do arbusto. Tinha estado agarrando com tanta força a pistola que a boneca direita lhe doía, e passou a arma à outra mão e fez
girar devagar a boneca estirando os dedos.
Outra vez à espera. Os lentos minutos transcorriam. O silêncio era só interrompido pelo deslizamento furtivo na erva de algum pequeno animal noturno
e o repentino e selvagem ulular de um mocho. E logo ouviu outra vez o som de um motor Esta vez o ruído era débil e já não se aproximava. Alguém tinha parado um
automóvel mais longe, estrada acima.
Empunhou a pistola com a mão direita, e acariciou a boca da arma com a esquerda. O coração lhe pulsava tão fortemente que lhe parecia que seu acelerado martilleo
ia delatar a. Imaginou mais que ouviu o ligeiro chiar da portinhola, mas o som de uns pés que se moviam ao redor da cabana era inconfundível e claro.
E então Cordelia pôde ver o homem, uma figura corpulenta, de largas costas, negro contra a luz. Avançou para ela e Cordelia pôde ver sua própria bolsa pendurando
de seu ombro esquerdo. Este descobrimento a desconcertou. Tinha esquecido a bolsa por completo. Mas então se dava conta de por que se deu procuração dele.
Ele tinha querido registrar seu conteúdo em busca de provas, mas era importante que, finalmente, a bolsa fora descoberta com seu cadáver dentro do poço.
Foi avançando com cuidado, nas pontas dos pés, com seus compridos e simiescos braços separados rigidamente do corpo como uma caricatura de um vaqueiro de filme
preparado
para a rodagem. Quando chegou ao bordo do poço aguardou, e a lua iluminou com sua claridade a córnea de seus olhos enquanto olhava devagar a seu redor. Logo se
inclinou e apalpou na erva em busca da corda. Cordelia a tinha deixado no sítio em que a senhorita Markland a tinha encontrado, mas algo nela, alguma
ligeira diferença, possivelmente na forma em que estava enrolada, pareceu lhe surpreender. ergueu-se com insegurança e esteve um momento com a corda oscilando em
seu
mão. Cordelia tentou controlar sua respiração. Parecia impossível que ele não a ouvisse, cheirasse nem visse, que se parecesse tanto a um animal de presa e carecesse
do
instinto apropriado para descobrir ao inimigo na escuridão. Avançou. Nesse momento estava junto ao poço. inclinou-se e fez acontecer um cabo da corda através
do aro de ferro.
Cordelia deu um passo fora da escuridão. Sustentava a pistola reta e firmemente, tal como Bernie lhe tinha ensinado. Esta vez o branco estava muito perto.
Sabia que não dispararia, mas sabia também o que era o que podia fazer que uma pessoa matasse. Disse em voz alta:
-boa noite, senhor Lunn.
Cordelia jamais soube se ele viu a pistola. Mas por espaço de um segundo inesquecível, enquanto a lua saía de umas nuvens para navegar pelo céu estrelado,
viu seu rosto claramente; viu o ódio, o desespero, a agonia e o rictus de terror. Lunn proferiu um grito, arrojou a bolsa e a corda e se precipitou através
do horta, presa de um cego pânico. Cordelia ficou a lhe perseguir, quase sem saber por que ou o que era o que esperava conseguir, resolvida tão somente a impedir
que
retornasse ao Garforth House antes que ela. e, entretanto, não disparou a pistola.
Mas ele levava vantagem. Quando Cordelia se precipitou através da portinhola viu que ele tinha estacionado a caminhonete a uns cinqüenta metros da estrada
e tinha deixado o motor em marcha. Correu em detrás dele, mas se deu conta de que era inútil fazê-lo. A única esperança que tinha de lhe alcançar era agarrar o Mini.
Foi descendo pelo atalho apalpando em sua bolsa enquanto corria. O livro de orações e sua caderneta de notas não estavam, mas seus dedos tropeçaram com as chaves
do carro. Abriu o Mini, precipitou-se em seu interior e o conduziu violentamente para a estrada. As luzes posteriores da caminhonete se encontravam a um centenar
de metros diante dela. Não sabia a que velocidade podia ir, mas duvidava de que corresse mais que o Mini. Pisou no acelerador e empreendeu a perseguição. Virou
para a esquerda, em direção à estrada secundária, e então pôde ver a caminhonete ainda diante dela. Lunn conduzia depressa e mantinha a distância.
Diante a estrada apresentava uma curva e a caminhonete se perdeu de vista durante alguns segundos. Devia estar já muito perto do lugar onde a estrada secundária
unia-se a de Cambridge.
Cordelia ouviu a colisão antes de que ela mesma chegasse ao lugar, uma foto instantânea explosão de som que sacudiu os sebes e fez tremer o pequeno carro.
As mãos da jovem agarraram fortemente o volante e o Mini deu uma sacudida e se parou. Avançou correndo pela curva e viu ante si a reluzente superfície
da estrada de Cambridge iluminada pelos faróis. viam-se formas que corriam. O caminhão, uma enorme massa retangular, obstruía como uma barricada a estrada.
A caminhonete tinha ficado esmagada sob suas rodas dianteiras como o brinquedo de um menino. Percebeu o aroma de gasolina, o guincho de uma mulher, o chiar
de uns pneumáticos ao ser freados. Cordelia se aproximou devagar ao caminhão. O condutor se achava ainda em seu sítio, olhando fixamente ante si, rígido, com uma
cara que era uma máscara de intensa concentração. A gente lhe gritava, estendendo os braços. Ele não se movia. Alguém, um homem com um pesado jaquetão de couro
e óculos, disse:
-Tem um shock. O melhor seria que o tirássemos.
Três figuras se moveram entre a Cordelia e o condutor. Os ombros se elevaram ao uníssono. produziu-se um grunhido de esforço. Levantaram o condutor, rígido
como um manequim, dobradas os joelhos, com as mãos estendidas como se ainda agarrasse o imenso volante. Os ombros se inclinaram sobre ele como um conclave secreto.
Havia outras figuras de pé ao redor da esmagada caminhonete. Cordelia se uniu ao círculo de caras anônimas. As pontas dos charutos brilhavam intensamente
e diminuíam seu fulgor como sinais luminosos, iluminando por instantes as mãos trementes, os olhos exagerados, horrorizados. Cordelia perguntou:
-Está morto?
O homem dos óculos respondeu lacônico:
-A você o que lhe parece?
ouviu-se a voz de uma moça que dizia timidamente:
-chamou alguém a uma ambulância?
-Sim. Sim. Esse indivíduo que viaja no Cortina foi a telefonar.
O grupo estava indeciso. A moça e o jovem ao que agarrava do braço começaram a retirar-se. Outro automóvel parou. Uma figura alta se abria passo entre a gente.
Cordelia ouviu uma voz que falava alto, em tom autoritário.
-Sou médico. chamou alguém a uma ambulância?
-Sim, senhor
A resposta continha um tom de deferência. fizeram-se a um lado para deixar passo ao facultativo. Este se voltou para a Cordelia, possivelmente por ser a que
estava
mais perto.
-Se você não presenciou o acidente, jovem, seria melhor que continuasse seu caminho. E outros façam o favor de manter-se apartados. Nada podem vocês
fazer. E apaguem esses cigarros!
Cordelia retrocedeu devagar para o Mini, pondo cada pé cuidadosamente diante do outro como um convalescente que tenta seus primeiros dolorosos passos.
Conduziu com muito cuidado ao redor do lugar do acidente, colocando o Mini na margem coberta de erva. ouviu-se o som de umas sereias que se aproximavam.
Ao tomar uma curva da estrada principal, seu espelho retrovisor refletiu de repente um fulgor vermelho e Cordelia ouviu uma explosão seguida de um rugido que foi
interrompido
pelo grito penetrante de uma mulher. Um muro de chamas se estendia através da estrada. A advertência do doutor tinha chegado muito tarde. A caminhonete
incendiou-se. Já não havia esperança para o Lunn; mas, ao fim e ao cabo, nunca a tinha havido.
Cordelia era consciente de que conduzia sem rumo. Os carros que passavam lhe apitavam e lhe faziam gestos com os faróis, e um motorista diminuiu a marcha e
o
gritou umas palavras encolerizado. separou-se da estrada e apagou o motor O silêncio era absoluto. Tinha as mãos úmidas e trementes. As secou com o
lenço e as pôs sobre o regaço, as sentindo como se estivessem separadas do resto de seu corpo. Apenas se deu conta de que um carro que passava foi diminuindo
a marcha e se deteve. Apareceu um rosto no guichê. A voz soava nervosa, mas horrivelmente insinuante. Pelo fôlego se conhecia que o homem havia
bebido.
-Algo vai mau, senhorita?
-Nada. Só parei para descansar.
-É uma lástima descansar sozinha, uma garota tão bonita como você.
Sua mão estava no ponteiro de relógio da porta. Cordelia apalpou em seu bolso e tirou a pistola. Aproximou-a da cara do indivíduo.
-Está carregada. Vá-se imediatamente ou disparo.
A ameaça que havia na voz soou fria inclusive a seus próprios ouvidos. Aquela cara pálida, úmida, desintegrou-se por efeito da surpresa, deixou cair a mandíbula.
O homem retrocedeu.
-Sinto muito, senhorita. Equivoquei-me. Não quis ofendê-la.
Cordelia esperou a que o homem se perdesse de vista. Então voltou a pôr em marcha o motor. Mas sabia que não podia seguir conduzindo. Apagou-o de novo.
Quebras de onda de cansaço a invadiram, uma maré irresistível, doce como uma bênção, que nem sua mente nem seu corpo extenuados tiveram a vontade de resistir. Seu
cabeça caiu para frente e a jovem ficou dormida.
VI
Cordelia dormiu profunda mas brevemente. Não sabia o que era o que a tinha despertado, se a luz cegadora de um carro que passava e que iluminou vivamente seu rosto
com os olhos fechados ou seu próprio pensamento, consciente de que o descanso devia ser racionado a uma breve meia hora, o mínimo necessário para lhe permitir fazer
o que tinha que ser feito antes de que pudesse entregar-se definitivamente ao sonho. Endireitou seu corpo, sentindo o agudo dor de seus distendidos músculos
e o prurito médio agradável do sangue seca em suas costas. O ar da noite era denso e estava carregado com o calor e os aromas do dia; inclusive a estrada,
que se estendia sinuosa ante ela, resultava atrativa iluminada pelos faróis de seu carro. Mas Cordelia estava geada de frio e seu dolorido corpo agradecia o
calor que lhe procurava o pulôver do Mark. Pela primeira vez, desde que o tinha posto por cima da cabeça, viu que era de cor verde escura. Que estranho que
não se tivesse fixado antes na cor!
Conduziu durante o resto de sua viagem como uma principiante, sentada com o corpo erguido, olhando fixamente para frente, mãos e pés tensos sobre os controles.
E ali por fim estavam as portas de ferro forjado do Garforth House. À luz dos faróis, pareciam ser muito mais altas e mais ornamentais do que ela recordava,
e estavam fechadas. Correu do Mini rezando para que não estivessem fechadas com chave. Mas o fecho de ferro, embora bastante pesado, levantou-se sob a
pressão de suas mãos. Comporta-as se abriram silenciosamente.
Não havia outros carros no atalho e Cordelia estacionou o Mini a pouca distância da casa. As janelas estavam escuras e a única luz, suave e invitadora,
brilhava através da porta principal, que estava aberta. Cordelia empunhou a pistola e sem chamar o timbre, entrou no vestíbulo. Estava mais extenuada fisicamente
que a primeira vez que tinha ido ao Garforth House, mas essa noite a via com uma nova intensidade, com os nervos sensíveis a cada detalhe. O vestíbulo se achava
totalmente deserto, ao ar espectador. Parecia como se a casa a tivesse estado esperando. Encontrou o mesmo aroma de rosas e de lavanda, mas essa noite se deu
conta de que a lavanda procedia de um enorme vaso chinês posto sobre uma mesa auxiliar. Recordou o insistente tictac de um relógio de parede, mas nesse momento
observou pela primeira vez os detalhes esculpidos na caixa do relógio, complicado-los adornos. Cordelia se encontrava de pé no meio do vestíbulo, balançando-se
ligeiramente, com a pistola logo que sustentada com sua mão direita, e olhava para o chão. O tapete era de desenho geométrico, de cores verde oliva, azul pálido
e carmesim, cada desenho configurado como a sombra de um homem ajoelhado. Parecia incitá-la a prostrar-se de joelhos. Era possivelmente um tapete oriental utilizado
para a oração?
Sentiu que a senhorita Leaming baixa silenciosamente a escada para ela, com sua larga bata vermelha vistosa ao redor dos tornozelos. A pistola foi arranco
repentina mas firmemente da mão, ao que Cordelia não opôs resistência. Sabia que a pistola se foi porque sua mão se sentiu de repente mais ligeira. Não
importava. Jamais poderia defender-se com ela, jamais mataria a uma pessoa. deu-se conta disso quando viu fugir ao Lunn, apartando-se dela aterrorizado. A senhorita
Leaming disse:
-Ninguém há aqui de quem tem você necessidade de defender-se, senhorita Gray.
Cordelia disse:
-vim a informar a sir Ronald. Onde está?
-Onde estava a última vez que veio você, em seu estudo.
Como antes, achava-se sentado a sua mesa escritório. Tinha estado ditando, e o aparelho se encontrava a sua direita. Ao ver a Cordelia, apagou o aparelho, foi
para a parede e o desligou. Voltou para a mesa e estiveram sentados um frente a outro. Sir Ronald juntou as mãos sob a luz do abajur do escritório e olhou
a Cordelia. A jovem quase proferiu um grito de horror. A cara do homem lhe recordou essas caras que se vêem grotescamente refletidas nos sujos guichês de
os trens durante a noite -cavernosas, com os ossos desencarnados, olhos afundados em órbitas insondáveis-, caras ressuscitadas de entre os mortos.
Quando sir Ronald Callender falou, sua voz era baixa, reminiscente.
-Faz meia hora que me inteirei que Chris Lunn morreu. Era o melhor ajudante de laboratório que tive. Tirei-lhe de um orfanato faz quinze anos.
Nunca conheceu seus pais. Era um moço feio, difícil, já em liberdade provisória. A escola nada tinha feito por ele. Mas Lunn era um dos melhores talentos
em ciências naturais que conheci. Se tivesse recebido a educação conveniente, teria sido tão bom como eu.
-Então, por que não lhe deu você sua oportunidade?, por que não lhe educou?
-Porque me era mais útil como auxiliar de laboratório. Hei dito que podia ter sido tão bom como eu. Isso não significa que tivesse sido o suficientemente
bom. Posso encontrar um grande número de cientistas igualmente bons. Mas não poderia ter encontrado outro ajudante de laboratório que igualasse ao Lunn. Tinha uma
mão maravilhosa com os instrumentos. -Levantou os olhos para a Cordelia, mas sem curiosidade, aparentemente sem interesse-. Você veio a informar, naturalmente.
É muito tarde, senhorita Gray, e, como você vê, estou cansado. Não pode isso esperar até manhã?
Cordelia pensou que isso era uma súplica a que ele se via obrigado a recorrer. Disse.
-Não, eu também estou cansada. Mas quero terminar este caso, esta noite, agora.
Sir Ronald agarrou um cortapapel de ébano da mesa escritório e, sem olhar a Cordelia, balançou-o sobre seu dedo indicador.
-Então, me diga, por que meu filho se suicidó? Suponho que me trará você alguma notícia, não? Desde não ser assim não tivesse irrompido aqui a estas horas.
-Seu filho não se suicidó. Foi assassinado. Foi assassinado por alguém a quem ele conhecia muito bem, alguém a quem ele não vacilou em deixar entrar na cabana,
alguém
que ia preparado. Foi estrangulado ou asfixiado e depois pendurado daquele gancho com seu próprio cinturão. Por último, seu assassino lhe pintou os lábios, vestiu-lhe
com
objetos interiores de mulher e pulverizou várias fotografias de nus sobre a mesa frente a ele. A intenção era que parecesse uma morte acidental ocorrida durante
um experimento sexual; tais casos não são de tudo incomuns.
Houve meio minuto de silêncio. Então sir Ronald disse com perfeito sangue-frio:
-E quem foi responsável por isso, senhorita Gray?
-Você. Você matou a seu filho.
-por que razão?
Parecia um examinador formulando seus inexoráveis pergunta.
-Porque você descobriu que sua mulher não era a mãe do Mark, e o dinheiro que lhe tinha sido legado a ela e a ele por seu avô procedia de uma fraude. Porque
ele não tinha a intenção de beneficiar-se desse dinheiro nem por um momento mais, nem aceitar sua herança ao cabo de quatro anos. Você tinha medo de que fizesse
público
o que sabia. E o que me diz você do Wolvington Trust? Se chegava ou seja se a verdade, seria o fim da concessão que lhes tinha prometido. O futuro de seu
laboratório estava em jogo. Você não podia permitir o luxo de correr esse risco.
-E quem você crie que voltou a lhe despir, escreveu a máquina aquela nota de suicídio e lavou as marcas de lápis de lábios de sua cara?
-Acredito que sei mas não vou dizer se o sir Ronald. Para descobrir isso é para o que você realmente me empregou, não é certo? Isso é o que você não podia
suportar desconhecer. Mas você matou ao Mark. Inclusive preparou um álibi se por acaso lhe era necessária. Você fez que Lunn lhe chamasse o colégio universitário
e se anunciasse
como seu filho. Era a única pessoa em que podia confiar absolutamente. Não acredito que você lhe dissesse a verdade. Ele era só seu ajudante de laboratório. Não
necessitava
explicações, fazia o que você lhe dizia. E inclusive se adivinhava a verdade, era seguro, não é certo? Você preparou um álibi que logo não se atreveu a utilizar,
porque não sabia a que hora tinha sido descoberto pela primeira vez o cadáver do Mark. Se alguém lhe tinha encontrado e tinha simulado aquele suicídio antes da
hora em que você pretendia ter falado com ele por telefone, seu álibi teria ficado destruída, e um álibi destruído significa condenação. De modo que você
procurou a oportunidade de falar com o Benskin e arrumar as coisas. Disse-lhe a verdade; era Lunn o que lhe tinha chamado a você. Você podia contar com que Lunn
respaldasse
sua história. Mas não importava realmente, embora falasse, verdade? Ninguém lhe acreditaria.
-Não, como tampouco lhe acreditará em você. Você está decidida a ganhar seu dinheiro, senhorita Gray. Sua explicação é engenhosa; há inclusive certo grau de
plausibilidade
a respeito de alguns detalhes. Mas você sabe, como sei eu, que nenhum agente da polícia no mundo tomaria a sério. É uma desgraça para você que não pudesse
interrogar ao Lunn. Mas Lunn, como lhe hei dito, está morto. Morreu queimado em um acidente de estrada.
-Sei, eu o vi. Ontem à noite tentou me matar. Sabia? E antes tratou de me assustar para que abandonasse o caso. Foi porque tinha começado a suspeitar a verdade?
-Se ele tentou matá-la, excedeu-se em suas instruções. Eu simplesmente lhe pedi que a vigiasse. Eu tinha contratado seus serviços em exclusiva e a tempo completo,
se o recordar; queria estar seguro de que recebia um pouco de valor. E de algum modo assim foi. Mas não deve você dar rédea solta a sua imaginação fora desta
habitação. Nem a polícia nem os tribunais simpatizam com a calúnia nem com as tolices histéricas. E que prova tem? Nenhuma. Minha mulher foi incinerada. Não
há nada, vivo ou morto, nesta terra que demonstre que Mark não era filho dele.
Cordelia disse:
-Você visitou doutor Gladwin para certificar-se de que estava muito senil para atestar contra você. Não tinha por que preocupar-se. Ele nunca suspeitou,
verdade? Você o escolheu como médico de sua mulher porque era velho e incompetente. Mas tenho em meu poder uma pequena prova. Lunn a trazia para você.
-Então você tinha que ter vigiado melhor o assunto. Nada do Lunn, exceto seus ossos, sobreviveu a aquela colisão.
-Ainda estão os objetos femininos, as calcinhas e o prendedor negro. Alguém poderia recordar quem os comprou, particularmente se aquela pessoa é um homem.
-Alguns homens compram roupa interior para suas mulheres. Mas se eu estivesse planejando um assassinato assim, não acredito que a compra dos acessórios me preocupasse.
Acaso uma atarefada cajera de umas lojas de departamentos ia recordar uma compra particular, uma compra paga à vista, um de entre muitos artigos insignificantes,
todo isso na hora de maior agitação do dia? O homem poderia inclusive ter ido disfarçado. Duvido de que ela se fixou em sua cara. Esperaria você realmente
dela que recordasse, semanas mais tarde, que identificasse a um de entre milhares de clientes e lhe identificasse com suficiente certeza para convencer a um jurado?
E se o fizesse, o que provaria isso, a menos que tivesse você a roupa em questão? Pode estar segura de uma coisa, senhorita Gray, se eu precisasse matar, faria-o
com eficiência. Não seria descoberto. Se a polícia se inteirasse de como foi encontrado meu filho, coisa que pode fazer, já que, evidentemente, alguém que não é
você
sabe, só acreditarão com maior certeza que se suicidó. A morte do Mark foi necessária e, a diferença da maioria das mortes, serve a um propósito. Os
seres humanos têm um impulso irresistível ao sacrifício de si mesmos. Morrem por qualquer razão ou por nenhuma absolutamente, por abstrações carentes de sentido
tais como patriotismo, justiça, paz; pelos ideais de outras pessoas, pelo poder de outras pessoas, por uns palmos de terra. Você, sem dúvida, daria sua vida
para salvar a um menino ou se estivesse convencida de que o sacrifício ia encontrar uma padre contra o câncer.
-É possível. Eu gosto de pensar que o faria. Mas quereria que a decisão fosse minha, não de você.
-Naturalmente. Isso lhe procuraria a necessária satisfação emocional. Mas não alteraria o fato de sua morte nem o resultado de sua morte. E não me
diga que o que eu estou fazendo aqui não vale uma só vida humana. me economize essa hipocrisia. Você não conhece e é incapaz de compreender o valor do que estou
fazendo aqui. Como pode lhe importar a morte do Mark? Você jamais ouviu falar dele até que veio ao Garfort House.
Cordelia disse:
-Importará ao Gary Webber.
-E se espera de mim que perca todo aquilo pelo que trabalhei aqui só porque Gary Webber quer ter a alguém com quem jogar squash ou falar de
história? -de repente, olhou a Cordelia fixamente aos olhos. Disse secamente-. O que lhe ocorre? encontra-se mau?
-Não, não me encontro mau. Sabia que tinha razão. Sabia que o que tinha raciocinado era certo. Mas não posso acreditá-lo. Não posso acreditar que um ser humano
possa ser
tão malvado.
-Se você for capaz de imaginá-lo, então eu sou capaz de fazê-lo. Ainda não tem descoberto isso dos seres humanos, senhorita Gray? É a chave do que poderíamos
chamar a maldade humana.
de repente Cordelia sentiu que não podia seguir suportando aquela cínica antífona e gritou em apaixonado protesto:
-Mas, do que serve fazer o mundo mais formoso se as pessoas que viverem nele não podem amá-las umas às outras?
Ao fim conseguiu lhe encolerizar.
-Amor! A palavra da que mais se abusou na linguagem. Tem algum significado que não seja a particular conotação que você queira lhe dar? O que quer
você dizer com a palavra amor? Que os seres humanos devem aprender a viver juntos com um formoso interesse pelo bem-estar recíproco? A lei obriga a isso. O
maior bem do maior número. Ao lado desta declaração básica de sentido comum, todas as outras filosofias são abstrações metafísicas. Ou acaso define você
o amor no sentido cristão de caridade? Leoa a história, senhorita Gray. Veja que horrores, a que violência, ódio e repressão levou a humanidade a religião
do amor. Mas possivelmente você prefira uma definição mais feminina, mais individual; o amor como entrega apaixonada à personalidade de outro. Entrega-a, o compromisso
pessoal intenso sempre termina em ciúmes e escravidão. O amor é mais destrutivo que o ódio. Se tiver você que dedicar a vida a algo, dedique-a a uma idéia.
-Refiro-me ao amor que sentem um pai ou uma mãe por um filho.
-O pior para os dois, possivelmente. Mas se um pai não ama, não há poder sobre a terra que possa lhe estimular ou lhe impulsione a fazê-lo. E onde não há amor,
não pode
haver obrigações do amor.
-Você podia lhe haver deixado viver! O dinheiro não era importante para ele. Ele teria compreendido as necessidades de você e teria calado.
-Seriamente? Como podia ele, ou eu, explicar seu rechaço de uma grande fortuna ao cabo de quatro anos? As pessoas que sempre estão a mercê do que chamam seu
consciência nunca são seguras. Meu filho era um pedante da retidão. Como podia eu me pôr a mim mesmo e minha obra em suas mãos?
-Você está nas minhas, sir Ronald.
-equivoca-se. Eu não estou nas mãos de ninguém. Desgraçadamente para você, essa grabadora não está funcionando. Não temos testemunhas. Você não repetirá fora
daqui uma só palavra do que se há dito nesta habitação. Se o faz terei que arruiná-la. Farei que nunca mais possa encontrar um emprego, senhorita Gray.
E o primeiro que farei será fazer quebrar este patético negócio dele. Por isso a senhorita Leaming me contou, não seria difícil. A calúnia pode resultar um
prazer muito caro. Recorde-o, se por acaso alguma vez se sentisse você tentada a falar. Recorde também isto. Prejudicará-se a você mesma; prejudicará a memória de
Mark; não me prejudicará.
Cordelia jamais soube quanto tempo a alta figura da bata vermelha tinha estado olhando e escutando na sombra da porta. Nunca soube quanto tinha ouvido a senhorita
Leaming ou em que momento se afastou sigilosamente. Mas nesse momento era consciente da sombra vermelha que se movia em silencio sobre o tapete, com os
olhos cravados na figura que estava detrás da mesa escritório, e empunhava a pistola com sua mão direita. Cordelia a observou com fascinado horror, sem respirar.
Sabia com toda exatidão o que ia acontecer. Não deveu demorar mais de três segundos, mas estes transcorreram lentos como minutos. Provavelmente houve tempo para
gritar, tempo para avisar, tempo para dar um salto para frente e lhe arrebatar a pistola. Com toda segurança houve tempo para que ele gritasse. Mas não proferiu
som algum. levantou-se pela metade de seu assento, assombrado, olhando a boca da arma com cega incredulidade. Logo voltou a cabeça para a Cordelia como em gesto
suplicante. A jovem jamais esqueceria aquele último olhar, um olhar que estava mais à frente do terror, além da esperança. Um olhar em que só havia
a simples aceitação da derrota.
Foi uma execução, poda, sem precipitação, ritualmente precisa. A bala penetrou por detrás da orelha direita. O corpo saltou no ar, com os ombros
encolhidos, logo se suavizou ante os olhos da Cordelia como se os ossos se derretessem como cera, e finalmente caiu desabado sobre a mesa. Uma coisa inerte; como
Bernie; como o pai da própria Cordelia.
A senhorita Leaming disse:
-Ele matou a meu filho.
-A seu filho?
-Naturalmente. Mark era meu filho. dele e meu. Eu acreditava que você o teria adivinhado.
Estava ali de pé com a pistola na mão, olhando com olhos sem expressão para a grama, através da aberta puertaventana. Não se ouviu o menor som.
Nada se moveu. A senhorita Leaming disse:
-Tinha razão ao dizer que ninguém podia lhe fazer nada. Não havia prova alguma.
Cordelia exclamou horrorizada:
-Então como pôde você lhe matar? Como podia estar tão segura?
Sem afrouxar a pressão de sua mão sobre a pistola, a senhorita Leaming colocou a mão no bolso de sua bata. A mão se deslocou logo para a superfície
da mesa. Um pequeno cilindro dourado rodou pela pulimentada madeira faz Cordelia, logo oscilou um instante até ficar imóvel. A senhorita Leaming disse:
O lápis de lábios era meu. Encontrei-o faz um momento no bolso de seu fraque. Não o tinha posto da última vez que jantou em Hall, a noite da
festa. Sempre foi uma urraca. Instintivamente se metia nos bolsos os pequenos objetos que encontrava.
Cordelia nunca tinha duvidado da culpabilidade de sir Ronald, mas nesse momento cada um de seus nervos exigia desesperadamente ter a certeza disso.
-Mas o lápis pôde ter sido posto ali por outra pessoa! Pôde havê-lo feito Lunn para lhe incriminar a ele.
-Lunn não matou ao Mark. Estava na cama comigo no momento em que Mark morreu. Só me deixou durante cinco minutos e isso foi fazer uma chamada Telefónica
pouco depois das oito.
-Estava você apaixonada pelo Lunn!
-Não me olhe desse modo! Só amei a um homem em minha vida e é o que acabo de matar. Fale de coisas que entenda. O amor nada tinha que ver com o que Lunn
e eu necessitávamos um do outro.
Houve um momento de silêncio. Então Cordelia disse:
-Há alguém na casa?
-Não. Os serventes estão em Londres. Ninguém trabalha até tarde no laboratório esta noite.
E Lunn estava morto.
A senhorita Leaming disse com resignação:
-Não seria melhor que chamasse você à polícia?
-Quer que o faça?
-O que importa?
-A prisão importa. Perder sua liberdade importa. E quer você realmente que a verdade chegue a fazer-se pública? Quer você que todos saibam como morreu
seu filho e quem o matou? É isso o que o próprio Mark teria querido?
-Não. Mark nunca acreditou no castigo. me diga o que tenho que fazer.
-Temos que atuar rapidamente e riscar nosso plano com muito cuidado. Temos que confiar a uma na outra e temos que ser inteligentes.
-Somo-lo. O que devemos fazer?
Cordelia tirou seu lenço de bolso e, deixando-o cair em cima da pistola, tomou a arma da mão da senhorita Leaming e a pôs sobre a mesa. Agarrou a
fina boneca da mulher e, vencendo sua resistência, empurrou a mão desta contra a palma da de sir Ronald, e apertou os rígidos mas vivos dedos contra a
mão do morto, mão branda e que não oferecia resistência.
-Podem ter ficado resíduos do disparo. Não sei realmente muito a respeito disto, mas é possível que a polícia o examine. Agora lave-as mãos e me traga
um par de luvas finas. Rápido.
A senhorita Leaming se foi dizer uma palavra. Uma vez sozinha, Cordelia baixou o olhar fazia o cientista morto. Tinha cansado com o queixo contra a parte
superior da mesa e os braços oscilando frouxos aos lados, posição estranha e de aparência incômoda que lhe dava o aspecto de estar espionando malévolamente
por cima do escritório. Cordelia não pôde lhe olhar os olhos, mas era consciente de não sentir nada, nem ódio, nem ira, nem piedade. Entre seus olhos e aquela figura
tendida, aberta de braços e pernas, parecia flutuar a sombra de uma forma alargada, com a cabeça horrivelmente torcida e os dedos dos pés patéticamente bicudos.
encaminhou-se para a puertaventana aberta e olhou ao jardim com a indiferente curiosidade de um convidado ao que se faz esperar em uma habitação estranha.
O ar era quente e muito tranqüilo. O aroma de rosas entrava em feitas ondas pela puertaventana aberta, alternativamente tão intenso que quase enjoava e logo
tão fugitivo como uma lembrança pela metade evocada.
Este curioso lapso de paz e de intemporalidad, deveu durar menos do meio minuto. Logo Cordelia começou a riscar seu plano. Pensou no caso Clandon. A memória
trouxe-lhe a imagem de si mesmo e do Bernie, sentados escarranchado sobre um tronco cansado, no bosque do Epping, e comendo seu almoço. Trouxe também a lembrança
do aroma dos tenros pãozinhos, da manteiga e o queijo, o aroma denso do bosque no verão. Bernie tinha deixado a pistola em cima da casca, entre
os dois, e lhe havia dito, murmurando as palavras por entre o pão e o queijo que tinha na boca: "Como faria você para te disparar a ti mesma detrás da orelha
direita? -Vamos, Cordelia, mostre-me isso en el que trabajé con el Comi... inspector Dalgliesh era entonces. Al final, la señora Clandon confesó". "¿Qué le ocurrió,
Bernie?". "Cadena perpetua. Probablemente
Cordelia tinha tomado a pistola em sua mão direita, com o dedo indicador ligeiramente apoiado no gatilho, e com certa dificuldade tinha estirado o braço para
atrás para colocar a boca da arma contra a base do crânio. "Assim?". "Assim não, sabe? Não o faria se estivesse acostumada a usar uma pistola. Esse foi o engano
que cometeu a senhora Clandon e que por pouco não lhe custou a forca. Disparou a seu marido detrás da orelha direita com a pistola de serviço dele e depois tentou
simular um suicídio. Mas pôs sobre o gatilho o dedo que não devia. Se ele realmente se disparou a si mesmo detrás da orelha direita, teria apertado
o gatilho com o polegar e sustenido o revólver com a palma da mão rodeando a parte posterior da culatra. Lembrança muita bem esse caso. Foi o primeiro assassinato
no que trabalhei com o Comi... inspetor Dalgliesh era então. Ao final, a senhora Clandon confessou". "O que lhe ocorreu, Bernie?". "Cadeia perpétua. Provavelmente
teria saído com homicídio casual se não tivesse tentado simular um suicídio. Ao jurado não lhe tinha feito muita graça o que tinha ouvido contar a respeito dos costumes
do maior Clandon".
Mas a senhorita Leaming não podia sair com homicídio casual a menos que contasse toda a história da morte do Mark.
Entrou de novo na habitação. Entregou um par de finas luvas de algodão a Cordelia, que disse:
-Acredito que seria melhor que você aguardasse fora. Não terá que preocupar-se com esquecer o que não veja. O que estava você fazendo quando saiu a meu encontro
no vestíbulo?
-Estava-me tomando um uísque.
-Então você teria me tornado a encontrar quando eu saía do estudo, enquanto você subia o copo a sua habitação. Tome-o agora e deixe o copo sobre a
mesa auxiliar do vestíbulo. É a classe de detalhe que a polícia está acostumada observar.
Outra vez sozinha, Cordelia agarrou a pistola. Resultava assombroso quão repulsivo encontrava aquele peso de metal inerte. Que estranho que sempre o tivesse
considerado
um brinquedo inofensivo! Esfregou-a a conscientiza com o lenço, apagando os rastros da senhorita Leaming. Logo a toqueteó. Era sua pistola. Eles esperariam encontrar
algumas de seus rastros na culatra junto com as do morto. Voltou a deixar a arma sobre a mesa escritório e ficou as luvas. Esta era a parte mais difícil.
Dirigia a pistola com cuidado e a pôs na inerte emano direita do cadáver. Apertou firmemente o dedo polegar do morto contra o gatilho, logo passou a fria
mão, sem resistência, ao redor da parte posterior da culatra. Logo lhe soltou os dedos e deixou cair a pistola. A arma foi dar no tapete, com um golpe
surdo. tirou-se as luvas, saiu ao encontro da senhorita Leaming no vestíbulo e fechou com cuidado detrás de si a porta do estudo.
-Agora seria melhor que deixasse estas luvas no sítio em que estavam. Não devemos deixá-los por aí para que os encontre a polícia.
Desapareceu só por breves segundos. Quando voltou, Cordelia lhe disse:
-Agora devemos fazer o resto como se realmente tivesse acontecido. Você me encontra quando eu saio da habitação. estive com sir Ronald uns dois minutos.
Você deixa seu copo de uísque sobre a mesa do vestíbulo e me acompanha até a porta principal. Você diz... O que diria você?
-Pagou-lhe sir Ronald?
-Não, tenho que voltar amanhã pela manhã para receber meu dinheiro. Sinto que não tenha sido um êxito. Hei-lhe dito a sir Ronald que não quero seguir com o
caso.
-Faça o que mais lhe convenha, senhorita Gray. Foi uma tolice do primeiro momento.
Nesse momento saíam pela porta principal. de repente a senhorita Leaming se voltou para a Cordelia e lhe disse com urgência e em sua voz normal:
-Há uma coisa que seria melhor que você soubesse. Fui eu quem encontrou primeiro ao Mark e simulou o suicídio. Telefonou-me cedo aquele dia e me pediu que
fosse ver lhe. Não pude ir até depois das nove, por causa do Lunn. Não queria que suspeitasse.
-Mas, quando encontrou ao Mark, não ocorreu a você pensar que havia algo estranho a respeito de sua morte? A porta não estava fechada com chave, embora as
cortinas estavam corridas. Faltava o lápis de lábios.
-Nada suspeitei até esta noite, quando estava na sombra e lhes ouvi falar com vocês. Nestes dias, abundam as sofisticações sexuais. Acreditei o que vi.
Era horroroso, mas eu sabia o que tinha que fazer. Trabalhei rapidamente, aterrada pensando que podia chegar alguém. Limpei-lhe a cara com meu lenço molhado em
água da pia da cozinha. Parecia como se o lápis de lábios nunca fora a desaparecer. Despi-lhe e lhe pus quão texanos tinha atirados sobre o respaldo
de uma cadeira. Não esperei a lhe pôr os sapatos, não parecia lhe importar. Escrever a máquina a nota foi a parte pior. Sabia que ele teria seu Blake em algum lugar
da cabana e que a passagem que escolhi poderia ser mais convincente que uma nota de suicídio corrente. O tecleteo da máquina soava excessivamente forte no meio
do silêncio; tinha medo de que alguém o ouvisse. Ele tinha estado levando uma espécie de jornal. Não havia tempo para lê-lo, mas queimei o escrito datilografado
na chaminé da sala de estar. Finalmente fiz uma confusão com a roupa e as fotografias e o traga aqui para queimá-lo no incinerador do laboratório.
-Você deixou cair uma das fotografias no jardim. E não conseguiu limpar do todo as marcas de lápis de lábios de sua cara.
-Assim foi como você o adivinhou?
Cordelia não respondeu em seguida. Passasse o que acontecesse, devia manter ao Isabelle do Lasterie se separada do caso.
-Eu não estava segura de que fosse você quem tinha estado ali primeiro, mas pensei que tinha sido você. Havia quatro coisas. Você não queria que eu investigasse
a morte do Mark; você estudou Letras em Cambridge e podia ter sabido onde encontrar aquela entrevista do Blake; você é uma perita datilógrafa e não acreditei que
a
nota tivesse sido escrita por um aficionado, a pesar do intento de fazer que parecesse obra do Mark; quando estive pela primeira vez aqui, no Garforth House, e perguntei
pela nota de suicídio, você recitou de cor toda a entrevista do Blake; à versão datilografada lhe faltavam onze palavras. Adverti-o quando visitei a delegacia de
polícia
e ali me ensinaram a nota. Isto apontava diretamente para você. Foi a prova maior que tive.
Naquele momento chegaram aonde estava o carro e se detiveram. Cordelia disse:
-Já não devemos perder mais tempo antes de chamar à polícia. Alguém pode ter ouvido o disparo.
-Não é provável. Estamos a alguma distância do povo. Ouvimo-lo agora?
-Sim, ouvimo-lo agora.
Houve uma pausa de um segundo, logo disse Cordelia:
-O que foi isso? soou como um tiro.
-Não é possível. Provavelmente foi o escapamento de um carro.
A senhorita Leaming falava como uma má atriz, suas palavras resultavam pouco convincentes. Mas as dizia, recordaria-as.
-Mas é que não passam carros. E vinha da casa.
olharam-se uma a outra, logo puseram-se a correr de novo para a casa e entraram no vestíbulo. A senhorita Leaming fez uma pausa um momento e olhou a Cordelia
à cara antes de abrir a porta do estudo. Cordelia entrou detrás dela.
A senhorita Leaming disse:
-Dispararam-lhe um tiro! vou chamar à polícia.
Cordelia disse:
-Não deveria dizer isso! Não pense algo assim! Você se aproximaria primeiro ao cadáver e logo diria: "há-se suicidado. vou chamar à polícia".
A senhorita Leaming olhou sem emoção o cadáver de seu amante, logo percorreu com os olhos a habitação. Esquecendo seu papel, perguntou:
-O que tem feito você aqui? O que tem que os rastros digitais?
-Não se preocupe. Já me ocupei que isso. Tudo que tem você que recordar é que você não sabia que eu tivesse uma pistola quando vim ao Garforth House;
não sabia que sir Ronald me tinha tirado isso. Você não viu essa pistola até esse momento. Quando eu cheguei esta noite, você me fez passar ao estudo e voltou
a me encontrar quando saía, dois minutos depois. Fomos juntas até o carro e falamos como acabamos de fazê-lo. Ouvimos o disparo. Fizemos o que acabamos de
fazer. Esqueça todo o resto que aconteceu.
Quando a interrogarem, não se embrulhe, não invente, não tenha medo de dizer que não pode recordar. E agora, chame à polícia de Cambridge.
Três minutos mais tarde, estavam as duas junto à porta aberta esperando a que chegasse a polícia. A senhorita Leaming disse:
-Não devemos falar entre nós uma vez que eles estejam aqui. E depois, não devemos nos encontrar nem mostrar o menor interesse a uma pela outra. Eles saberão
que isto não pode ser um assassinato a menos que as duas sejamos cúmplices. E por que teríamos que conspirar juntas quando só nos tínhamos encontrado uma vez, quando
nem sequer simpatizamos mutuamente?
Tinha razão, pensava Cordelia. Nem sequer simpatizavam. A ela realmente não importava se Elizabeth Leaming ia ao cárcere; mas sim lhe preocupava que pudesse
ir ao cárcere a mãe do Mark. Também lhe importava que a verdade de sua morte jamais se soubesse. A força daquela decisão a surpreendia como se fosse
irracional. A ele já não podia lhe importar e não era um moço que se preocupou muito pelo que a gente pudesse pensar dele. Mas sir Ronald tinha profanado
seu corpo depois de morto; tinha planejado fazer dele um objeto, no pior dos casos, de desprezo; no melhor deles, de piedade. Ela tinha plantado cara
a sir Ronald. Não tinha querido que muriese; não teria sido capaz ela mesma de apertar o gatilho. Mas ele estava morto e ela não podia sentir pesar nem podia ser
um instrumento de castigo para seu assassina. Era conveniente, nada mais que isso, que a senhorita Leaming não fosse castigada. Ao contemplar para aquela noite do
verão
e enquanto aguardava o som dos carros da polícia, Cordelia aceitou de uma vez por todas a enormidade e a justificação do que tinha feito e ainda estava
planejando fazer. No sucessivo, jamais ia sentir o menor indício de pesar ou de remorso.
A senhorita Leaming disse:
-Há coisas que provavelmente você quererá saber, coisas que suponho tem o direito de conhecer. Podemos nos encontrar na capela do King's College depois
de vésperas no domingo seguinte à investigação. Eu entrarei no presbitério e você estará na nave. Parecerá bastante natural que nos encontremos ali casualmente,
quer dizer, se ainda estamos em liberdade.
-Estaremo-lo -respondeu Cordelia-. Se não perdermos a serenidade, isto não pode nos sair mau.
Houve um momento de silêncio. Logo a senhorita Leaming disse:
-Vejo que demoram. Certamente já deveriam estar aqui.
-Não podem demorar muito mais.
de repente, a senhorita Leaming pôs-se a rir e disse com acritud:
-Do que temos que ter medo? Ao fim e ao cabo, só temos que tratar com homens.
assim, seguiram esperando juntas, em silêncio. Ouviram aproximá-los carros antes de que a luz dos faróis percorresse o atalho, iluminando cada um
dos calhaus, fazendo ressaltar as pequenas novelo do bordo dos canteiros, banhando com sua luz as flores azuis das glicinas, deslumbrando os olhos
das mulheres que estavam esperando. Logo as luzes se foram apagando enquanto os carros se balançavam ligeiramente ao deter-se frente à casa. Apareceram
umas formas escuras que avançavam sem pressa mas com passo firme. O vestíbulo se encheu de repente de homens altos, tranqüilos, alguns deles vestidos de patrício.
Cordelia se apartou, aproximando-se à parede, e foi a senhorita Leaming quem lhes saiu ao encontro, falou-lhes em voz baixa e lhes acompanhou até o estudo.
No vestíbulo ficaram dois homens uniformizados. Estavam falando entre si, sem fixar-se na presença da Cordelia. Seus colegas se estavam tomando seu tempo.
Certamente tinham utilizado o telefone do estudo, porque começaram a chegar mais carros e mais homens. Em primeiro lugar, o médico da polícia, identificável
por sua maleta embora não tivesse sido saudado com estas palavras:
-bom dia, doutor por aqui, por favor.
Quantas vezes teria ouvido esta frase! Dirigiu um rápido olhar de curiosidade para a Cordelia enquanto se encaminhava com rápidos pasitos ao estudo através
do vestíbulo. Era um homenzinho gordo, despenteado, de cara enrugada e aspecto mal-humorado, como um menino ao que acabam de despertar à força. Continuando
vinha um fotógrafo civil com sua câmara, trípode e toda a equipe; um perito em rastros digitais; outros dois civis que Cordelia, instruída no procedimento
pelo Bernie, supôs que eram agentes peritos em analisar a cena do crime. De modo que estavam tratando isto como uma morte suspeita. E por que não? Era-o
realmente.
O dono da casa estava morto, mas a casa mesma parecia ter cobrado vida. A Polícia falava, não em sussurros, a não ser em tom normal, crédulo, sem que
em suas vozes influíra a presença de morre. Eram profissionais que faziam seu trabalho, aprofundado nos mistérios da morte violenta; as vítimas desta
não lhes inspiravam temor algum. Tinham sido iniciados nisso. Tinham visto muitos cadáveres: corpos recolhidos nas estradas, carregados a partes nas ambulâncias,
arrastados pelo gancho de ferro e a rede das profundidades dos rios; extraídos putrefatos das vísceras da terra. Quão mesmo os médicos, eram amáveis e
condescendentes com os profanos, guardando inviolado seu terrível saber. Este corpo enquanto respirava, tinha sido mais importante que outros. Então já não era
importante, mas ainda era capaz de lhes criar problemas. Por isso tinham que ser mais meticulosos, atuar com muito mais tato. Mas, contudo, não era mais que um de
tantos
casos.
Cordelia estava sentada, sozinha, esperando. de repente se sentiu vencida pelo cansaço. Não desejava mais que apoiar a cabeça na mesa do vestíbulo e dormir.
Logo que era consciente de que a senhorita Leaming passava pelo vestíbulo em direção ao salão, de que o agente alto falava com ela enquanto passavam por ali.
Tampouco se fixava na figura baixa embutida em seu imenso pulôver de lã, sentada contra a parede. Cordelia fez um esforço para manter-se acordada. Sabia
o que tinha que dizer; tudo estava bastante claro em sua mente. Se começassem a interrogá-la e ao fim a deixassem dormir...
Não foi até que o fotógrafo e o homem dos rastros digitais tiveram terminado seu trabalho que um dos agentes veteranos foi a seu encontro. Posteriormente
jamais pôde recordar seu rosto, mas recordava sua voz, uma voz cuidadosa, não enfática, da que tinha sido excluído todo matiz de emoção. Tendeu para ela a pistola.
A arma descansava na palma de sua mão, protegida por um lenço da contaminação de sua própria mão.
-Reconhece esta arma, senhorita Gray?
Cordelia pensou que era estranho que empregasse a palavra arma. por que não dizer simplesmente pistola?
-Acredito que sim. Acredito que deve ser a minha.
-Não está você segura?
-Deve ser a minha, a menos que sir Ronald tivesse outra igual. Tirou-me isso quando vim aqui por primeira vez faz quatro ou cinco dias. Prometeu que me devolveria
isso
quando viesse amanhã a cobrar meus honorários.
-De modo que esta é só a segunda vez que está você nesta casa?
-Sim.
-encontrou-se você anteriormente com sir Ronald ou com a senhorita Leaming?
-Não. Não até que sir Ronald me mandou chamar para me encarregar deste caso.
O homem se afastou. Cordelia voltou a apoiar a cabeça na parede e descabeçou várias vezes breve sonho. Chegou outro agente. Esta vez estava acompanhado por
um homem uniformizado que ia tomando notas. Houve mais perguntas. Cordelia lhes relatou o que tinha preparado. Eles o anotaram sem fazer comentários e se foram.
Deveu ficar dormitando. Ao despertar encontrou ante si com um agente alto, uniformizado, que lhe disse:
-A senhorita Leaming está fazendo chá na cozinha, senhorita. Possivelmente gostaria de ir jogar lhe uma mão. Temos algo que fazer, sabe?
Cordelia pensou: "Agora vão levar se o cadáver". Disse:
-Não sei onde está a cozinha.
Viu como os olhos do homem cintilavam.
-OH, não sabe, senhorita? É você estranha aqui, verdade? Bem, é por aqui.
A cozinha se encontrava na parte traseira da casa. Cheirava a especiarias, azeite e molho de tomate e despertava lembranças de comidas que tinha feito na Itália
com seu pai. A senhorita Leaming estava tirando taças de um grande aparador Uma bule elétrica estava já assobiando, exalando vapor. O agente de polícia ficou
ali. De modo que não foram deixar as a sós. Cordelia disse:
-Posso ajudar em algo?
A senhorita Leaming não a olhou.
-Há umas bolachas nessa caixa. Pode você as pôr em uma bandeja. O leite está na geladeira.
Cordelia se movia como um autômato. A garrafa do leite era uma coluna geada em suas mãos, a tampa da caixa de lata de bolachas resistiu a seus dedos
e se rompeu uma unha ao querer levantá-la. Observou os detalhes da cozinha: um calendário de parede da Santa Teresa de Ávila, com a cara da Santa exageradamente
alargada e pálida como uma senhorita Leaming santificada; um asno de porcelana com dois alforjas de flores artificiais, com sua melancólica cabeça coroada com um
chapéu de palha em miniatura; uma imensa terrina azul com ovos loiros.
Havia duas bandejas. O agente de polícia tomou a maior de mãos da senhorita Leaming e se encaminhou para o vestíbulo. Cordelia lhe seguiu com a segunda
bandeja, sustentando-a em alto contra seu peito, qual uma menina a que lhe permite como um privilégio ajudar a sua mãe. Os agentes de polícia formaram um corro.
Ela agarrou uma taça e voltou para sua cadeira.
E então se ouviu o som de outro carro. Entrou uma mulher de média idade acompanhada de um chofer uniformizado. Através do neblina de seu cansaço, Cordelia
ouviu sua voz.
-Querida Eliza, isto é espantoso! Deve você vir a minha casa esta noite. Não me diga que não, insisto. Está aqui o delegado?
-Não, Marjorie, mas estes agentes foram muito amáveis.
-lhes deixe a chave. Eles fecharão a casa quando tiverem terminado. Você não pode ficar aqui só esta noite.
Houve apresentações, precipitadas consultas com os detetives nas que a voz da recém chegada era a que dominava. A senhorita Leaming subiu a escada
com seu visitante e reapareceu cinco minutos mais tarde com uma pequena mala e sua jaqueta sobre o braço. Saíram juntas, escoltadas até o carro pelo chofer
e um dos detetives. Nenhum deles dirigiu um olhar para a Cordelia.
Cinco minutos depois se aproximou o inspetor a Cordelia, com a chave na mão.
-vamos fechar com chave a casa esta noite, senhorita Gray. É hora de que você retorne. Pensa permanecer na cabana?
-Só por uns dias, se o comandante Markland me deixar.
-Parece você muito cansada. Um de meus homens a levará em seu carro. Eu gostaria de ter amanhã uma declaração sua por escrito. Pode vir à delegacia de polícia
o mais breve possível depois de tomar o café da manhã? Sabe onde está?
-Sim, sei.
Um dos carros da polícia ficou em primeiro marcha e o Mini lhe seguiu. O policial conduzia depressa, atento ao pequeno automóvel nas curvas. A cabeça
da Cordelia oscilava contra o respaldo do assento e de vez em quando era jogada contra o braço do condutor. Este ia em mangas de camisa e Cordelia notava
o agradável calor da carne através do tecido de algodão. O guichê do carro estava aberta e sentia sobre seu rosto o ar quente da noite, via
as nuvens que se deslizavam rapidamente pelo céu, as primeiras incríveis cores do dia, que tingiam o céu em sua parte oriental. A rota lhe parecia estranha
e o tempo mesmo incoerente; perguntou-se a si mesmo por que de repente se parou o carro e demorou um momento em reconhecer o alto sebe que se inclinava sobre
o atalho como uma sombra ameaçadora, a desmantelada portinhola. Já estava em casa. O condutor disse:
-É este o lugar, senhorita?
-Sim, este é. Mas normalmente deixo o Mini mais abaixo do atalho, à direita. Há um matagal onde pode você deixá-lo, junto à estrada.
-Está bem, senhorita.
desembarcou do carro para ir consultar com o outro condutor. deslocaram-se lentamente nos últimos metros da viagem. E então por fim tinha desaparecido
o carro da polícia e Cordelia ficou sozinha junto à portinhola. Fez um esforço para abri-la, empurrando para vencer a resistência das ervas, e olhou
ao redor da cabana em direção à porta traseira, caminhando como se estivesse ébria. Demorou um pouco em introduzir a chave na fechadura, mas este foi seu
último problema. Já não havia pistola que esconder; já não havia necessidade de comprovar a cinta adesiva com a que tinha selado as janelas. Lunn estava morto
e ela estava viva. Todas as noites que tinha dormido na cabana retornava a ela cansada, mas nunca tinha estado tão cansada como nesse momento. Subiu a escada
como uma sonâmbula e, muito exausta inclusive para abrir a cremalheira do saco de dormir e meter-se nele, deslizou-se debaixo do mesmo e já não soube mais.
E finalmente -a Cordelia pareceu que tinham acontecido meses, não dias, de espera- houve outra investigação. Foi tão sem pressa, tão simplesmente formal como
havia
sido a do Bernie, mas com uma diferença. Ali, em vez de um punhado de patéticos espectadores ocasionais, que se tinham deslizado ao calor dos últimos bancos
para ouvir as exéquias do Bernie, havia colegas e amigos de graves semblantes, frases proferidas em voz baixa, os sussurros preliminares dos advogados e da polícia,
um indefinível sentido das circunstâncias. Cordelia supôs que o homem do cabelo cinza que escoltava à senhorita Leaming era seu advogado. Observou a maneira
em que trabalhava, afável mas sem excessiva deferência para o policial veterano, sosegadamente solícito com seu cliente, irradiando uma confiança que todos eles
encaixavam como uma necessária mas tediosa formalidade, um ritual tão monótono como uns maitines de domingo.
A senhorita Leaming estava muito pálida. Levava o mesmo traje alfaiate cinza que tinha quando conheceu a Cordelia, mas com um pequeno chapéu negro, luvas negras
e um lenço negro atado ao pescoço. As duas mulheres não se olharam. Cordelia encontrou um assento no extremo de um banco e ali se sentou, sozinha. Um ou dois dos
policiais jovens lhe sorriu com amabilidade tranqüilizadora mas compassiva.
A senhorita Leaming declarou primeiro com uma voz baixa, mas clara. Afirmou, em vez de jurar, decisão que causou um breve desassossego em seu advogado. Mas
já não
ocasionou outro motivo algum de preocupação. Declarou que sir Ronald tinha estado muito deprimido pela morte de seu filho e, acreditava ela, acusava-se a si mesmo
por
não ter sabido que algo preocupava ao Mark. Havia-lhe dito que tinha a intenção de chamar um detetive privado, e tinha sido ela a que primeiro se entrevistou
com a senhorita Gray e a tinha levado ao Garforth House. A senhorita Leaming disse que se havia oposto à sugestão; não tinha visto nela o menor fim útil
e pensou que aquela fútil e infrutífera investigação não serviria mais que para lhe recordar a sir Ronald a tragédia. Não se tinha informado de que a senhorita Gray
possuísse uma pistola nem de que sir Ronald a tivesse tirado. Não tinha estado presente durante toda a entrevista preliminar que eles dois tinham tido. Sir
Ronald tinha acompanhado à senhorita Gray a ver a habitação de seu filho, enquanto ela, a senhorita Leaming, tinha ido procurar uma fotografia do senhor Callender
que a senhorita Gray tinha pedido.
O juiz lhe perguntou amavelmente sobre a noite em que morreu sir Ronald.
A senhorita Leaming disse que a senhorita Gray tinha chegado para dar seu primeiro relatório a pouco mais das dez e meia. Ela mesma passava pelo vestíbulo quando
apareceu a jovem. A senhorita Leaming lhe tinha indicado que era muito tarde, mas a senhorita Gray havia dito que queria abandonar o caso e voltar para a cidade.
Fazia passar à senhorita Gray ao estudo onde sir Ronald estava trabalhando. Tinham estado juntos, acreditava, menos de dois minutos. A senhorita Gray saiu então
do estudo e ela a acompanhou até seu carro; só tinham falado brevemente. A senhorita Gray disse que sir Ronald lhe tinha rogado que voltasse pela manhã a
cobrar seus honorários. Não fez menção de pistola alguma.
Só meia hora antes disso, sir Ronald tinha recebido uma chamada Telefónica da polícia para lhe dizer que seu ajudante de laboratório, Christopher Lunn,
tinha perecido em um acidente de estrada. Não lhe tinha dado à senhorita Gray a notícia referente ao Lunn antes de sua entrevista com sir Ronald; não lhe havia
ocorrido fazê-lo. A jovem entrou quase imediatamente ao estudo para ver sir Ronald. A senhorita Leaming disse que estavam juntas perto do carro conversando quando
ouviram o disparo. Ao princípio pensou que era o escapamento de um automóvel, mas logo se deu conta de que procedia da casa. As duas se precipitaram ao estudo
e acharam a sir Ronald derrubado sobre sua mesa escritório. A pistola lhe tinha cansado da mão e tinha ido parar ao chão.
Não, sir Ronald jamais lhe tinha feito pensar que pudesse estar considerando a possibilidade de suicidarse. Acreditava que lhe tinha afetado muito a morte do
senhor
Lunn, mas era difícil de afirmar. Sir Ronald não era homem que manifestasse suas emoções. Tinha estado trabalhando muito ultimamente e não parecia o mesmo desde
a morte de seu filho. Mas a senhorita Leaming jamais tinha pensado por um momento que sir Ronald fosse homem que pudesse pôr fim a sua vida.
Foi seguida pelas testemunhas da polícia, diferentes, profissionais, mas procurando dar a impressão de que nada de todo aquilo era novo para eles; o
tinham visto tudo antes e voltariam a vê-lo.
Foram seguidos pelos médicos, incluído o forense, que declarou sobre algo que o tribunal evidentemente considerava um detalhe desnecessário a efeitos de alojar
no crânio humano uma bala de cinco gramas e médio. O juiz disse:
-Já ouviu você o testemunho da polícia de que encontraram o rastro do polegar de sir Ronald Callender no gatilho da pistola e uma marca da
palma ao redor da culatra. O que deduziria você disso?
O forense pareceu ligeiramente surpreso de que lhe pedisse que deduje algo, mas disse que era evidente que sir Ronald havia sustenido a pistola com
o polegar sobre o gatilho ao apontar contra sua cabeça. O forense acreditava que este era provavelmente o meio mais cômodo, tendo em conta a posição do orifício
de entrada.
Por último, Cordelia foi chamada a declarar como testemunha e emprestou juramento. Tinha refletido um instante sobre se era próprio que o fizesse e se perguntou
a si mesmo se devia seguir o exemplo da senhorita Leaming. Havia momentos, geralmente nos domingos de Páscoa de Ressurreição em que desejava com sinceridade
ser chamada cristã; mas durante o resto do ano sabia ela muito bem o que era: uma agnóstica sem remédio, mas propenso a imprevisíveis recaídas na fé.
Entretanto, este lhe parecia um momento no que a escrupulosidad religiosa era um luxo que não podia permitir-se. As mentiras que se dispunha a proferir não seriam
mais odiosas por estar acompanhadas de um tintura de blasfêmia.
O juiz lhe deixou fazer seu relato sem interrompê-la. Cordelia se dava conta de que o tribunal se sentia intrigado por ela, mas não deixava de sentir também
simpatia. Por uma vez, seu acento de classe média, adquirido inconscientemente nos seis anos que tinha estado no convento, e que em outras pessoas freqüentemente
irritava-a tanto como sua própria voz tinha irritado a seu pai, resultou ser uma vantagem para ela. Levava seu traje de jaqueta e se comprou um lenço negro
de gaze com o que se cobriu a cabeça. Recordava que devia chamar senhoria ao juiz.
depois de que Cordelia confirmasse brevemente o relato da senhorita Leaming sobre como a tinham chamado para que se encarregasse do caso, o juiz disse:
-E agora, senhorita Gray, quererá você explicar ao tribunal o que aconteceu a noite em que morreu sir Ronald?
-Decidi, senhoria, que não queria continuar com o caso. Nada útil tinha descoberto, e não acreditava que houvesse algo que descobrir. Tinha estado vivendo na
cabana
em que Mark Callender tinha passado as últimas semanas de sua vida e tinha chegado a pensar que o que estava fazendo não estava bem, que estava cobrando dinheiro
por bisbilhotar em sua vida privada. Decidi, obedecendo a um impulso, lhe dizer a sir Ronald que queria pôr fim ao caso. Dirigi-me em meu carro ao Garforth House.
Cheguei
ali ao redor das dez e meia. Sabia que era tarde, mas estava ansiosa por retornar a Londres à manhã seguinte. Vi a senhorita Leaming atravessar o
vestíbulo e me fez acontecer diretamente ao estudo.
-Teria a bondade de lhe descrever ao tribunal como encontrou você a sir Ronald?
-Parecia cansado e distraído. Tentei lhe explicar por que queria deixar o caso, mas não estou segura de que me ouvisse. Disse que voltasse para a manhã seguinte
por meu dinheiro e lhe disse que só me tinha proposto lhe cobrar os gastos, mas que quereria minha pistola. limitou-se a mover no ar a mão em sinal de despedida
e me disse: "Amanhã pela manhã, senhorita Gray, amanhã pela manhã".
-E então você se foi?
-Sim, senhoria. A senhorita Leaming me acompanhou até o carro e quando me dispunha a partir ouvimos o disparo.
-Não viu você a pistola em posse de sir Ronald minta esteve no estudo com ele?
-Não, senhoria.
-Não lhe falou da morte do senhor Lunn nem lhe insinuou que pensasse suicidarse?
-Não, senhoria.
O juiz olhou um instante o caderno de anotação que tinha diante. Logo, sem olhar a Cordelia, disse:
-E agora, senhorita Gray, fará você o favor de lhe explicar ao tribunal como chegou a ter sir Ronald sua pistola.
Essa era a parte difícil, mas Cordelia a tinha ensaiado. A polícia de Cambridge tinha sido muito meticulosa. Faziam as mesmas perguntas uma e outra vez.
Cordelia sabia exatamente como tinha chegado sir Ronald a estar em posse da pistola. Recordava uma das lições da doutrina Dalgliesh referida por
Bernie e que em seu dia lhe tinha parecido a Cordelia um conselho mais apropriado para um delinqüente que para um detetive. "Nunca diga uma mentira desnecessária;
a
verdade tem grande autoridade. Os assassinos mais inteligentes foram apanhados, não porque dissessem uma mentira essencial, mas sim porque continuaram mentindo sobre
um detalhe
sem importância quando a verdade não podia lhes haver feito o menor dano". Disse:
-Meu sócio, o senhor Pryde, possuía a pistola, e estava muito orgulhoso dela. Quando se suicidó, eu sabia que sua intenção era que eu a tivesse. Por isso se
cortou as bonecas em vez de pegar um tiro, o qual teria sido mais rápido e mais fácil.
O juiz levantou rapidamente os olhos.
-E estava você ali quando se matou?
-Não, senhoria. Mas eu encontrei o cadáver.
Houve um murmúrio de compaixão no tribunal; Cordelia pôde perceber a preocupação que sentiam por ela.
-Sabia você que a pistola não tinha licença?
-Não, senhoria, mas acredito que suspeitava que pudesse carecer dela. Levei-a comigo neste caso porque não queria deixá-la no escritório e porque me sentia
como se estivesse acompanhada por ela. Tinha a intenção de comprovar a licença logo que retornasse. Mas não esperava ter que fazer uso da pistola.
Não pensava realmente nela como uma arma mortífera. trata-se unicamente de que este era meu primeiro caso e Bernie me tinha deixado isso e eu me sentia mais feliz
tendo-a
comigo.
-Compreendo -disse o juiz.
Cordelia pensou que provavelmente ele compreendia e o tribunal também. Não tinha dificuldade em lhe acreditar, porque ela estava dizendo a verdade, embora algo
inverossímil.
Nesse momento que ia mentir, continuariam acreditando-a.
-E agora terá você a bondade de lhe dizer ao tribunal como chegou sir Ronald a ter essa pistola?
-Foi em minha primeira visita ao Garforth House, quando sir Ronald me estava ensinando o dormitório de seu filho. Ele sabia que eu era a única proprietária
da agência
e me perguntou se não era um trabalho difícil e um pouco arriscado para uma mulher. Disse-lhe que não estava assustada, mas que tinha a pistola do Bernie. Quando
descobriu
que a levava na bolsa, fez que a entregasse. Disse que não se propunha contratar a uma pessoa que pudesse ser um perigo para outras pessoas nem para si mesmo.
Disse que não queria assumir a responsabilidade. ficou com a arma e as balas.
-E o que fez com a pistola?
Cordelia tinha pensado muito bem este ponto. Era evidente que ele não a tinha na mão, no estudo, do contrário, a senhorita Leaming o teria visto.
Lhe teria gostado de dizer que a tinha posto dentro de uma gaveta da habitação do Mark, mas não podia recordar se a mesinha de noite tinha ou não gavetas.
-Tirou-a da habitação quando saiu dela; não me disse onde a tinha levado. Só se afastou um momento e logo baixamos juntos a escada.
-E você não voltou a pôr os olhos na pistola até que a viu no chão, perto da mão de sir Ronald, quando você e a senhorita Leaming acharam
o cadáver?
-Não, senhoria.
Cordelia foi a última testemunha. O veredicto se deu em seguida, um veredicto que o tribunal evidentemente pensou que teria sido agradável ao cérebro escrupulosamente
exato e cientista de sir Ronald. O veredicto era que o falecido se tirou a vida, mas não existia prova alguma quanto ao estado de sua mente. O
juiz deu ao final a obrigatória advertência relativa ao perigo das pistolas. informou-se ao tribunal de que as pistolas podiam matar às pessoas. Se as
engenhou para chegar à conclusão de que as pistolas sem licença tendiam particularmente a este perigo. Não pronunciou a menor censura contra Cordelia pessoalmente,
embora resultava evidente que lhe custou um esforço o abster-se de fazê-lo. levantou-se e o tribunal se levantou com ele.
Quando o juiz teve abandonado o tribunal, seus membros se dividiram em pequenos grupos que falavam em voz baixa. A senhorita Leaming foi rodeada rapidamente.
Cordelia viu como lhe tremiam as mãos, recebendo pésames, escutando com grave semblante de assentimento os primeiros intentos de proposta de um ofício em memória
do falecido. Cordelia se perguntava como tinha podido temer que a senhorita Leaming despertasse suspeitas. Ela mesma ficava um pouco à parte, tinha delinqüido.
Sabia que a polícia a acusaria da posse ilegal da pistola. Não podiam deixar de fazê-lo. Certo, seria castigada ligeiramente, se é que a castigavam. Mas
durante o resto de sua vida seria a moça por cuja despreocupação e ingenuidade tinha perdido a Inglaterra um de seus cientistas mais destacados.
Como havia dito Hugo, todos os suicidas de Cambridge eram brilhantes. Mas sobre este logo que cabia a menor duvida. A morte de sir Ronald provavelmente o
elevaria à categoria de gênio.
Quase inadvertida, Cordelia saiu sozinha do tribunal e se dirigiu ao Market Hill. Hugo devia ter estado esperando-a; naquele momento lhe saiu ao encontro.
-Como foi? Eu diria que a morte parece te seguir a todas partes, verdade?
-foi muito bem. Mas bem parece que eu sigo à morte.
-Suponho que se matou, não?
-Sim. matou-se.
-E com sua pistola?
-Tal como saberá se tiver estado na sala. Não te vi.
-Não estive, tinha classe, mas a notícia circulou. Eu não gostaria que estivesse preocupada. Ronald Callender não era tão importante como alguma gente
de Cambridge se empenha em acreditar.
-Você nada sabe dele. Era um ser humano e está morto. O fato é sempre importante.
-Não o é, Cordelia, sabe? A morte é o menos importante de nós. te console com o Joseph Hall. "A morte se abate sobre nosso nascimento e nossa
berço está no sepulcro". E ele escolheu sua própria arma, sua própria hora. Estava farto de si mesmo. Muitas pessoas estavam fartas de sir Ronald.
Baixavam juntos pela passagem do St. Edward em direção ao passeio do King'S. Cordelia não estava segura de aonde foram.
Nesse momento só precisava falar, mas sua companhia tampouco lhe resultava desagradável. Perguntou:
-Onde está Isabelle?
-Isabelle está em sua casa, no Lyon. Papai se apresentou ontem inesperadamente e achou que mademoiselle não estava exatamente ganhando o que cobra. Papai decidiu
que a querida Isabelle tirava pouca partida (ou possivelmente menos de que podia) de sua educação em Cambridge, menos do que ele tinha esperado. Acredito que não
deve preocupar-se
por ela. Isabelle está agora bastante a salvo. Inclusive se a polícia decidisse que vale a pena ir a França a interrogá-la (e por que demônios teria que ir?),
de nada lhes servirá. Papai a rodeará de uma barreira de advogados. Não está de humor para agüentar neste momento a menor tolice dos ingleses.
-Por isso a ti respeita, se alguém te perguntar como morreu Mark, alguma vez lhe dirá a verdade, não é certo?
-Você que crie? Sophie, Davie e eu somos dignos de confiança. Em mim se pode confiar sempre que se trate de coisas essenciais.
Por um momento, Cordelia desejou que fosse digno de confiança em coisas menos essenciais. Perguntou:
-Está preocupado pela ausência do Isabelle?
-um pouco. A beleza é intelectualmente desconcertante; sabota o sentido comum. Eu nunca pude admitir do todo que Isabelle fora como é: uma jovem generosa,
indolente, excessivamente afetuosa e estúpida. Eu acreditava que qualquer mulher formosa como é ela tinha que ter um instinto com respeito à vida, acesso a alguma
sabedoria secreta que se encontra além da inteligência. Cada vez que abria aquela boca deliciosa, eu esperava que fosse iluminar a vida. Acredito que haveria
podido me passar a vida olhando-a e esperando o oráculo. E de quão único sabia falar era de trapos.
-Pobre Hugo.
-Nada de pobre Hugo. Não sou desgraçado. O segredo de estar contente estriba em que um não se permita querer algo que a razão lhe diz que jamais terá a
oportunidade de obter.
Cordelia pensava que era jovem, de boa posição, preparado, embora possivelmente não o suficiente, bonito; não era muito o que tinha que ambicionar em um ou
outro sentido.
Então ouviu que Hugo dizia:
-por que não fica em Cambridge uma semana ou assim e deixa que eu te ensine a cidade? Sophie te deixaria suas quarto de hóspedes.
-Não, obrigado, Hugo. Devo voltar para a cidade.
Na cidade nada havia para ela, mas com o Hugo tampouco haveria algo para ela em Cambridge. Só havia uma razão para estar ali. Permaneceria na cabana
até no domingo e até seu encontro com a senhorita Leaming. Depois, por isso a ela se referia, o caso do Mark Callender teria terminado.
As vésperas da tarde de domingo haviam meio doido a seu fim e os fiéis, que tinham escutado com respeitoso silêncio o canto de respostas, salmos e antífona por
um dos mais belos coros do mundo, ficaram de pé e uniram suas vozes com alegre abandono no hino final. Cordelia se levantou e cantou com eles. havia-se
sentado no extremo da fila, perto do biombo artisticamente esculpido. De ali podia ver o presbitério. As túnicas dos que cantavam no coro brilhavam
em escarlate e branco, os círios ardiam em fileiras dispostas simetricamente e em altos círculos de luz dourada; dois círios altos e esbeltos se levantavam cada
lado do brandamente iluminado Rubens, em cima do altar maior, que se vislumbrava como uma distante combinação de carmesim, azul e ouro. deu-se a bênção, cantou-se
impecavelmente o amém e o coro começou a desfilar saindo solenemente do presbitério. abriu-se a porta meridional e a luz do sol entrou em torrentes na capela.
Os membros do colégio universitário que tinham assistido ao ofício foram saindo atrás do reitor e dos membros da junta em animada desordem, com suas sobrepelizes
de regulamento sujas e mau colocadas em cima de uma alegre incongruência de malha de veludo cotelê e lã. O enorme órgão soprou e grunhiu como um animal que recolhesse
fôlego,
antes de emitir sua magnífica voz em uma fuga do Bach. Cordelia estava sentada tranqüilamente em sua cadeira, escutando e esperando. Nesse momento os paroquianos
descendiam
pela nave principal, pequenos grupos em claros trajes de algodão do verão falando discretamente em voz baixa, sérios jovens com seu sóbrio traje negro dos
domingos, turistas apertando em suas suas mãos ilustradas guias e levando suas chatas câmaras fotográficas, um grupo de monjas de rostos sossegados e animados.
A senhorita Leaming foi uma das últimas pessoas em sair, figura alta com um vestido cinza de linho e luvas brancas, com a cabeça descoberta, e uma jaqueta
de ponto branca arremesso descuidadamente sobre os ombros para resguardar do frio que reinava na capela. Evidentemente ia sozinha e não estava vigiada, pelo
que sua cuidadosa simulação de surpresa ao reconhecer a Cordelia foi possivelmente uma precaução desnecessária. Saíram juntas da capela.
O atalho de cascalho estava lotado de gente. Um pequeno grupo de japoneses providos de câmaras e acessórios acrescentavam seu jeringonza aos bate-papos dos
outros
indivíduos. De ali resultava invisível a chapeada corrente do CAM, mas os corpos truncados dos que foram nas bandejas se deslizavam para a longínqua
borda como bonecos em um espetáculo, levantando os braços por cima da vara e voltando-se para empurrá-la para trás como se participassem de alguma dança
ritual. A grande extensão de grama jazia ao sol sem sombra alguma, quintaesencia de verdor que coloria o perfumado ar. Um professor frágil e entrado em anos,
com toga e barrete, mancava através da erva; as mangas de sua toga se inchavam pela brisa e lhe davam o aspecto de um monstruoso corvo esforçando-se por
voar. A senhorita Leaming disse, como se Cordelia lhe tivesse pedido uma explicação:
-É um membro da junta. portanto, a sagrada grama não fica poluído por seus pés.
Passaram por diante do edifício Gibbs. Cordelia se perguntava quando começaria a falar a senhorita Leaming. Quando o fez, seu primeira pergunta resultou inesperada.
-você crie que poderá sair adiante? -Ao notar a surpresa da Cordelia, acrescentou com impaciência-. Refiro-me à agência de detetives. você crie que seria
capaz de arrumar-lhe com ela?
-Devo tentá-lo. É o único trabalho que sei fazer.
Não tinha intenção de justificar ante a senhorita Leaming seu afeto e lealdade para o Bernie; teria encontrado certa dificuldade em explicar-lhe a si mesmo.
-Seus gastos gerais são muito elevados.
Foi uma declaração feita com toda a autoridade de um veredicto.
-Quer dizer o escritório e o Mini? -perguntou Cordelia.
-Sim. Em seu trabalho não vejo como uma só pessoa possa ganhar o suficiente para cobrir gastos. Você não pode estar sentada no escritório recebendo encargos
e escrevendo cartas a máquina e ao mesmo tempo estar fora resolvendo casos. Por outro lado, suponho que não pode costear uma ajuda.
-Ainda não. estive pensando em pôr uma secretária eletrônica. Gravará os encargos, embora, naturalmente, os clientes preferem ir ao escritório e discutir
seu caso. Se posso ganhar o suficiente para viver, quaisquer honorários poderão cobrir os gastos gerais.
-Se houver honorários.
Parecia que nada terei que dizer a isso, e seguiram caminhando em silencio durante uns segundos. Então a senhorita Leaming disse:
-De todas maneiras, haverá gastos neste caso. Isto ao menos a ajudaria a você no referente à multa por posse ilegal de pistola. pus o assunto
em mãos de meus advogados. dentro de pouco deveria você receber um cheque.
-Não posso cobrar por este caso.
-Posso compreendê-lo. Tal como você indicou ao Ronald, isso entra em sua cláusula de trato justo. Falando estritamente, você a nada tem direito. Entretanto,
parece-me que resultaria menos suspeito se você cobrasse seus gastos. Consideraria razoável trinta libras?
-Perfeitamente, obrigado.
Tinham chegado ao ângulo da grama e sacado para a ponte do King'S. A senhorita Leaming disse:
-Terei que lhe estar agradecida o resto de minha vida. Isso supõe para mim uma humildade a que não estou acostumada e não estou segura de que eu goste.
-Não a sinta, então. Eu pensava no Mark, não em você.
-Eu acreditava que você possivelmente obrava ao serviço da justiça ou de uma dessas abstrações.
-Eu não pensava em uma abstração. Pensava em uma pessoa.
Tinham chegado à ponte e se apoiaram nele, uma ao lado da outra, para olhar para a clara água que discorria por debaixo do mesmo. Os atalhos que conduziam
até a ponte estiveram desertos durante uns minutos. A senhorita Leaming disse:
-Um embaraço não é difícil de simular, sabe? Só se necessita um espartilho folgado e preenchê-lo convenientemente. É humilhante para a mulher, é obvio, quase
indecoroso, ser estéril. Mas não é difícil, em particular se não estar estreitamente vigiada. Evelyn não o estava. Sempre tinha sido uma mulher tímida, reprimida.
A gente esperava dela que se mostrasse excessivamente modesta com respeito ao embaraço. Garforth House não estava cheia de amigos e parentes desses que contam
histórias de horror sobre a maternidade e que dão golpecitos amistosos no ventre. Tivemos que nos liberar daquela fastidiosa e estúpida Tatu Pilbeam, é obvio.
Ronald considerou sua marcha como um dos benefícios subsidiários do fingido embaraço. Estava cansado de que sempre lhe dirigisse como se ainda fosse Ronnie Callender,
o brilhante moço do instituto do Harrogate.
Cordelia disse:
-A senhora Goddard me disse que Mark tinha um grande parecido com sua mãe.
-Não me cabe a menor duvida. Era uma mulher tão sentimental como estúpida.
Cordelia não disse uma palavra. Transcorridos uns momentos de silêncio, a senhorita Leaming continuou dizendo:
-Eu descobri que estava grávida do Ronald aproximadamente ao mesmo tempo que um especialista londrino confirmou o que os três supúnhamos, que era extremamente
improvável que Evelyn concebesse. Eu queria ter o bebê; Ronald necessitava desesperadamente um filho varão; o pai da Evelyn estava obcecado por sua necessidade
de ter um neto e estava disposto a desprender-se de meio milhão para demonstrá-lo. Tudo foi muito fácil. Eu demiti de meu trabalho como professora e me refugiei
em
o seguro anonimato de Londres e Evelyn disse a seu pai que ao final tinha ficado grávida. Nem Ronald nem eu tínhamos consciência de estar enganando ao George Bottley.
Era um parvo arrogante, brutal e presunçoso que não podia imaginar que o mundo pudesse continuar existindo sem alguém de sua descendência que o controlasse. Inclusive
financiava seu próprio engano. Começaram a chegar os cheques para a Evelyn, cada um com uma nota que implorava que cuidasse sua saúde, consultasse aos melhores médicos
de Londres, descansasse, se tirasse férias em um lugar ensolarado. Ela sempre tinha amado a Itália, e Itália passou a formar parte do plano. Os três nos encontraríamos
em Londres cada dois meses e voaríamos juntos a Pisa. Ronald alugaria uma pequena quinta nos subúrbios de Florência e, uma vez ali, eu seria a senhora Callender
e Evlyn seria eu. Só tínhamos serventes de dia e não havia necessidade de que vissem nossos passaportes. Estavam acostumados a nossas visitas e o mesmo o
acontecia ao médico local que ia a vigiar minha saúde. Às pessoas dali lhes adulava que a senhora inglesa estivesse tão apaixonada pela Itália, que retornasse mês
depois de mês, achando-se tão próxima sua iluminação.
Cordelia perguntou:
-Mas, como pôde ela fazer isso, como podia suportar estar ali com você na casa, vendo-a com seu marido, sabendo que você ia ter um filho dele?
-Fez-o porque amava ao Ronald e não podia resignar-se a lhe perder. Não tinha tido muito êxito como mulher. Se perdia a seu marido, o que ficava? Não podia
retornar
ao lado de seu pai. Além disso, nós a tínhamos subornada. Ela ia ter a criatura. Se recusava, Ronald a abandonaria e trataria de obter o divórcio para
casar-se comigo.
-Eu teria preferido lhe deixar e ganhar a vida esfregando chãos.
-Não todo mundo tem talento para esfregar chãos e não todo mundo tem a capacidade para sentir a indignação moral que tem você. Evelyn era religiosa.
portanto, estava acostumada a enganar-se a si mesmo. convenceu-se a si mesmo de que estávamos fazendo o melhor para a criatura.
-E o pai dela, alguma vez chegou a suspeitar?
-Ele a menosprezava por ser tão pia. Sempre o tinha feito. Psicologicamente falando, não era provável que sentisse esse menosprezo por sua devoção e ao mesmo
tempo acreditasse capaz de lhe enganar. Além disso, necessitava desesperadamente aquele neto. Não teria podido conceber a idéia de que a criatura pudesse não ser
filho de
ela. E tinha o relatório de um médico. depois de nossa terceira visita a Itália, dissemo-lhe ao doutor Sartori que o pai da senhora Callender estava preocupado
pelos cuidados de sua filha. A nosso pedido, escreveu um relatório médico tranqüilizador sobre o processo do embaraço. Fomos juntos a Florência quinze dias antes
do parto e ficamos ali até que Mark veio ao mundo. Felizmente, chegou um ou dois dias antes de tempo. Tínhamos tido a precaução de atrasar a data
esperada do parto, de modo que em realidade pareceu como se Evelyn tivesse sido surpreendida inesperadamente por uma iluminação prematura. O doutor Sartori fez
o que era necessário com perfeita competência e os três retornamos com o bebê e um certidão de nascimento com o nome correto.
Cordelia disse:
-E nove meses depois a senhora Callender estava morta.
-Ele não a matou, se for isso o que está você pensando. Não era realmente o monstro que você se imagina, ao menos não o era então. Mas, em certo sentido,
nós dois a destruímos. Ela necessitava um especialista, certamente um médico melhor que aquele incompetente e parvo Gladwin. Mas os três tínhamos desesperadamente
medo de que um doutor eficiente se desse conta de que não tinha dado a luz um filho. Ela estava tão preocupada como nós. Insistia em não consultar a outro médico.
acostumou-se a amar ao menino, sabe? De modo que morreu e foi incinerada e nós creímos estar a salvo para sempre.
-Deixou ao Mark uma nota antes de morrer, nada mais que um rabiscado hieróglifo em seu livro de orações. Nele indicava o grupo sangüíneo ao que ela pertencia.
-Nós sabíamos que os grupos sangüíneos eram um perigo. Ronald tomou sangue dos três e fez as provas necessárias. Mas quando ela teve morrido, inclusive
essa preocupação terminou.
Houve um comprido silencio. Cordelia pôde ver como um pequeno grupo de turistas descia pelo atalho em direção à ponte. A senhorita Leaming disse:
-A ironia de tudo isto é que Ronald nunca amou realmente ao menino. O avô, em troca, adorava-o; nisso não havia dificuldade. Deixou a metade de sua fortuna
a Evelyn e logo passou automaticamente a seu marido. Mark teria que obter a outra metade aos vinte e cinco anos. Mas Ronald nunca se preocupou com seu filho. Descobriu
que nunca podia lhe amar e a mim não me permitiu fazê-lo. Eu lhe via crescer e ir à escola. Mas não me estava permitido lhe amar. Estava acostumado a lhe fazer intermináveis
jerseis.
Era quase uma obsessão. Os desenhos se faziam mais complicados e a lã mais grosa à medida que ia crescendo. Pobre Mark, devia pensar que estava louca, esta estranha
mulher descontente da que seu pai não podia prescindir, mas com a que não queria casar-se.
-Na cabana há um ou dois desses jerseis. O que quereria você que fizesse com eles?
-Leve-lhe e dê-lhe a alguém que os necessite. A menos que cria que eu deveria desfazê-los e voltar a fazer com a lã algo novo. Pensa você que isso
seria um gesto adequado, símbolo de esforço malogrado, compaixão, futilidade?
-Já lhes encontrarei um uso. E seus livros?
-Desfaça-se deles também. Eu não posso voltar para a cabana. Desfaça-se de tudo, se quiser.
O pequeno grupo de turistas estava muito perto, mas elas pareciam absortas em sua conversação. A senhorita Leaming tirou de seu bolso um sobre e o entregou
a Cordelia.
-Tenho escrito uma breve confissão. Nela nada há sobre o Mark, nada a respeito de como morreu nem o que você descobriu. Só é uma breve declaração de que eu
disparei
contra Ronald Callender imediatamente depois de que você abandonasse Garforth House e fiz pressão sobre você para que respaldasse meu relato. Valeria mais que a
guardasse em algum lugar seguro. Pode que um dia chegue a necessitá-la.
Cordelia viu que o sobre estava dirigido a ela. Não o abriu.
Disse:
-Agora, é muito tarde. Se lamentar o que fizemos, devia ter falado antes. O caso está fechado.
-Nada lamento. Alegra-me ter obrado como o fizemos. Mas é possível que o caso ainda não esteja terminado.
-Sim que o está! A investigação deu seu veredicto.
-Ronald tinha um grande número de amigos muito poderosos. Têm influência e, periodicamente, gostam de exercitá-la para demonstrar somente que ainda a têm.
-Mas não podem fazer que este caso volte a abrir-se! Trocar o veredicto de um juiz requer virtualmente um decreto do Parlamento.
-Eu não digo que vão tentar fazer isso. Mas podem fazer perguntas. E as fazem.
Cordelia disse de repente:
-você tem fogo?
Sem uma pergunta nenhuma protesto, a senhorita Leaming abriu sua bolsa e entregou um elegante tubo de prata. Cordelia não fumava e não estava acostumada aos
acendedores. Custou-lhe um pouco obter que surgisse a chama. Então se inclinou sobre o corrimão da ponte e prendeu fogo no ângulo do sobre.
A incandescente chama resultava invisível sob a luz, mais intensa, do sol. Tudo que pôde ver Cordelia foi uma estreita franja de trêmula luz púrpura ao
prender a chama no papel e ao ir alargando-se e crescendo os borde carbonizados. O intenso aroma de queimado foi miserável pela brisa. logo que a
chama roçou seus dedos, Cordelia deixou cair o sobre, ainda ardendo, e contemplou como se retorcia e dava voltas enquanto ia flutuando e descendendo como um pequeno
e frágil floco de neve para finalmente perder-se nas águas do CAM. Disse:
-Seu amante se suicidó. Isso é tudo que temos que recordar as duas agora e sempre.
Não voltaram a falar da morte do Ronald Callender, mas sim foram caminhando em silêncio com o passar do caminho bordeado de olmos em direção aos Backs. Em
certo momento, a senhorita Leaming olhou a Cordelia e disse em um tom de irada impaciência:
-Tem você um aspecto assombrosamente estupendo!
Cordelia supôs que este breve exabrupto era o ressentimento da pessoa de média idade ante a resistência de quão jovens tão rapidamente podiam recuperar-se
dos males físicos. Só tinha necessitado uma noite de comprimento e profundo sonho para recuperar seu viço. Inclusive sem a bênção de um banho quente, a pele machucada
de seus ombros e costas tinha ficado limpamente curada. Fisicamente, os acontecimentos dos últimos quinze dias pareciam não ter feito trinca nela. Não
estava tão segura com respeito à senhorita Leaming. O suave cabelo platino aparecia ainda impecavelmente penteado; ainda vestia com fria distinção como se fosse
importante aparecer como a competente ajudante, segura de si mesmo, de um homem famoso. Mas a pálida pele apresentava nesse momento um tintura cinza; seus olhos
apareciam
ojerosos e as incipientes enruga junto à boca e na frente se afundaram, de sorte que a cara, pela primeira vez, parecia velha e fatigada.
Passaram pela porta do King's e dobraram para a direita. Cordelia tinha encontrado um sítio e tinha estacionado o Mini a uns poucos metros de distância de
a porta; o Rover da senhorita Leaming estava um pouco mais abaixo da rua Queen'S. Deu a Cordelia um forte mas breve apertão de mãos e lhe disse adeus em
um tom tão desprovido de emoção como se fossem duas conhecidas de Cambridge que se separassem cortês mas fríamente depois de haver-se encontrado por acaso
na cerimônia de vésperas da capela. Não sorriu. Cordelia contemplou como aquela figura alta e angulosa baixava com compridos passados pelo atalho entre as árvores
em direção à porta do John'S. Não voltou a cabeça para olhar. Cordelia se perguntava quando voltariam a ver-se, se é que voltavam a ver-se alguma vez. Resultava
difícil acreditar que só se encontraram em quatro ocasiões. Nada tinham em comum com exceção de seu sexo, embora Cordelia, durante os dias que seguiram ao
assassinato do Ronald Callender, deu-se conta da força daquela lealdade feminina. Como havia dito a mesma senhorita Leaming, nem sequer simpatizavam
mutuamente. Entretanto, cada uma tinha em suas mãos a segurança da outra. Havia momentos nos que o segredo de ambas quase horrorizava a Cordelia por sua imensidão.
Mas estes momentos eram poucos e cada vez seriam menos. O tempo diminuiria indevidamente sua importância. A vida seguiria. Nenhuma das duas esqueceria do
tudo enquanto suas células cerebrais seguissem vivendo, mas Cordelia podia acreditar que chegaria um dia no que se olhariam a uma à outra em um teatro ou em um
restaurante ou se veriam automaticamente transportadas em uma escada rolante do metro e se perguntariam para seus adentros se aquilo que de repente recordavam
em seu casual encontro tinha acontecido realmente alguma vez. Nesse mesmo momento, só quatro dias depois da investigação, o assassinato do Ronald Callender
começava já a ocupar seu posto na região do passado.
Já nada terei que a retivesse na cabana. passou-se uma hora limpando obsessivamente e pondo ordem em umas habitações nas que com segurança ninguém entraria
durante semanas. Pôs água no copo de prímulas que havia em cima da mesa da sala de estar. dentro de outros três esta dias riam mortas e ninguém se daria conta,
mas era incapaz de atirar aquelas flores estando ainda vivas. Saiu ao abrigo e contemplou a garrafa de leite azedo e o guisado de boi Seu primeiro impulso
foi agarrar o um e o outro e esvaziá-lo no lavabo. Mas formavam parte das provas. Já não voltaria a necessitar aquelas provas, mas, tinham que destruir-se
completamente? Recordou a reiterada advertência do Bernie: "Nunca destrua as provas". O Comi dispunha de muitas anedotas que faziam ressaltar a importância
daquela máxima. Ao final decidiu fotografar aquelas amostras, as pondo sobre a mesa da cozinha e emprestando grande atenção à exposição e à luz. Parecia
um exercício inútil, algo ridículo, e se alegrou quando ficou feito o trabalho e pôde atirar o desagradável conteúdo da garrafa e da caçarola. Depois lavou
cuidadosamente ambos os recipientes e os deixou na cozinha.
Quão último fez foi empacotar seu saco de dormir e colocar no Mini sua equipe junto com os jerseis e os livros do Mark. Ao dobrar os objetos de grosa
lã pensou no doutor Gladwin sentado em seu jardim interior, com suas encolhidas veias indiferentes ao sol. O ancião encontraria úteis os jerseis, mas ela
não podia levar-lhe Tal gesto poderia ter sido aceito vindo do Mark, mas não dela.
Fechou a porta e deixou a chave debaixo de uma pedra. Não podia voltar a ver a senhorita Markland cara a cara e não desejava entregar a chave a algum outro
membro
da família. Esperaria até chegar a Londres, então enviaria uma breve nota à senhorita Markland para lhe dar as obrigado por sua amabilidade e lhe explicar onde
poderia encontrar a chave. Deu por última vez um passeio pelo horta. Não estava segura de que impulso a conduziu para o poço, mas chegou até ele e ficou surpreendida.
Tinham tirado as más ervas e revolto a terra ao redor do bordo, e alguém tinha plantado um círculo de pensamentos, margaridas e pequenos grupos de alhelí
e lobelia, que se erguiam aparecendo firmes em seu oco de terra regada. Era um claro oásis de cor entre as ervas que queriam invadi-lo tudo. O efeito era
bonito mas ridículo e inquietantemente estranho. Assim, arrumado desse estranho modo, o poço mesmo parecia obsceno, um peito de madeira rematado por um monstruoso
mamilo. Como podia ela ter considerado a coberta do poço uma extravagância inofensiva e ligeiramente elegante?
Cordelia se sentia dividida entre a compaixão e a repulsão. Isso tinha que ser obra da senhorita Markland. O poço, que durante anos tinha constituído para
ela um objeto de horror, remorso e irresistível fascinação, ia após a ser atendido como um relicário. Resultava algo deplorável e Cordelia haveria
preferido não havê-lo visto. de repente sentiu medo de encontrar-se com a senhorita Markland, de ver a incipiente demência em seus olhos. Quase saiu correndo do
horta,
atirou da portinhola para fechá-la, vencendo o peso das ervas, e finalmente se afastou com seu carro da cabana sem voltar-se para lhe dirigir um olhar. O
caso do Mark Callender tinha terminado.
VII
À manhã seguinte, foi ao escritório da rua Kingly às nove em ponto. O tempo caloroso, pouco natural, tinha trocado finalmente, e quando Cordelia abriu
a janela, um airecillo frio removeu as capas de pó da mesa escritório e do arquivo. Só havia uma carta. Estava dentro de um comprido sobre rígido e levava
o cabeçalho com o nome e a direção dos advogados do Ronald Callender. Era muito breve.
"Distinguida senhora: incluo-lhe um cheque por valor de trinta libras esterlinas pelos gastos que você teve na investigação que realizou a pedido do
defunto sir Ronald Callender sobre a morte de seu filho, Mark Callender. Se estiver de acordo com esta soma, agradecerei-lhe se sirva assinar e remeter o recibo
anexo".
Bem, como havia dito a senhorita Leaming, teria pelo menos para pagar parte de sua multa. Tinha dinheiro suficiente para seguir fazendo funcionar a agência
durante outro mês. Se para então não havia mais casos, sempre ficava o recurso da senhorita Feakins e outro trabalho provisório. Cordelia pensava sem entusiasmo
na Agência de secretárias Feakins. A senhorita Feakins operava, e esta era a palavra adequada, de um pequeno escritório tão esquálido como a da Cordelia, mas
que tinha uma desesperada alegria imposta sobre ela sob o aspecto de paredes multicoloridos, flores de papel e uma variedade de recipientes em forma de urna, adornos
de porcelana e um póster. O póster tinha fascinado sempre a Cordelia. Uma loira cheia de curvas, sucintamente coberta por uma breve calça e rendo histéricamente,
aparecia saltando como uma rã por cima de sua máquina de escrever, proeza que procurava realizar com a máxima exposição enquanto tinha em cada mão um punhado
de bilhetes de cinco libras. O póster dizia:
"Te converta em uma Garota Sexta-feira e te una às pessoas divertida. Todos os melhores robinsones os encontrará em nossos livros".
debaixo deste póster, a senhorita Feakins, fraca, infatigavelmente animada e engalanada como uma árvore de Natal, entrevistava a uma récua desalentada de mulheres
velhas, feias e virtualmente inempleables. Suas vacas leiteiras raramente encontravam um emprego permanente. A senhorita Feakins estava acostumado a advertir contra
os indetermináveis
perigos de aceitar um emprego fixo quase tanto como as mães vitorianas advertiam contra o sexo. Mas Cordelia a queria. A senhorita Feakins a voltaria a receber
bem, depois de lhe haver perdoado a defecção que cometeu quando passou a trabalhar com o Bernie, e teria lugar outra daquelas furtivas conversações telefônicas com
o afortunado Robinson, feitas sem tirar a vista de em cima de Cordelia, como uma madama de bordel que recomendasse seu último achado a um de seus clientes mais
exigentes. "Moça com muita classe, bem educada, gostará a você... e muito trabalhadora!". A ênfase de assombrada estranheza posto na última palavra estava
justificado. Poucas das temporárias da senhorita Feakins, atraídas pelos anúncios, esperavam seriamente ter que trabalhar. Havia outras e mais eficientes agencia,
mas somente uma senhorita Feakins. Ligada pela compaixão e uma excêntrica lealdade, Cordelia tinha poucas esperanças de escapar a aqueles vivos ojillos. Uma série
de empregos provisórios com os robinsones da senhorita Feakins poderia ser certamente seu único recurso. O ser sentenciada do delito de posse ilegal de um
arma segundo o primeiro artigo da Lei sobre Armas de Fogo de 1968 não se consideraria um antecedente penal que a privaria de por vida de exercer empregos socialmente
responsáveis e seguros no serviço civil e no governo local?
sentou-se à máquina de escrever, tendo à mão a guia Telefónica das páginas amarelas, para terminar de enviar a carta circular aos vinte últimos
advogados da lista. A carta mesma a deixou um pouco deprimida. Tinha-a redigido Bernie detrás encher uma dúzia de rascunhos preliminares e naqueles momentos
não tinha parecido muito absurda. Mas sua morte e o caso Mark Callender o tinham trocado tudo. As pomposas frases a respeito de um amplo serviço profissional,
assistência imediata em qualquer parte do país, operadores discretos e experimentados e preços moderados lhe desejaram muito pretensões ridículas, inclusive perigosas.
Não se dizia algo sobre as descrições falsas na Lei de Descrições Comerciais? Mas a promessa de preços moderados e discrição absoluta era suficientemente
válida. Era uma lástima, pensou fríamente, que não pudesse obter uma referência da senhorita Leaming. Arrumo de álibis; realização de investigações; assassinatos
eficientemente ocultos; perjúrio; tudo com nossas tarifas especiais.
O rouco som do telefone a sobressaltou. O escritório estava tão silencioso e tranqüilo, que tinha dado por sentado que ninguém chamaria. ficou olhando o
aparelho durante vários segundos, com os olhos muito abertos e repentinamente assustada, antes de estender a mão.
A voz era sossegada e segura, cortês mas não diferente. Não proferiu ameaça alguma, mas para a Cordelia cada uma das palavras soava ameaçadora.
-A senhorita Cordelia Gray? Aqui New Scotland Yard. Perguntávamo-nos se retornaria você alguma vez a seu escritório. Teria a bondade de procurar passar por
aqui algo mais tarde, hoje mesmo? Ao delegado Dalgliesh lhe agradaria ter uma entrevista com você.
Dez dias mais tarde, Cordelia foi chamada pela terceira vez a New Scotland Yard. Aquele bastión de concreto e cristal da rua Vitória lhe resultava já bastante
familiar, embora ainda entrava nele com a sensação de perder provisoriamente uma parte de sua identidade, como se deixasse o calçado à entrada de uma mesquita.
O delegado Dalgliesh tinha imposto a seu escritório pouco de sua personalidade. Quão exemplares havia na livraria de regulamento eram evidentemente livros
de texto sobre leis, cópias de regulamentos e leis do Parlamento, dicionários e livros de consulta. O único quadro era a aquarela do velho edifício sobre o
malecón, pintado do rio, um agradável estudo em cinzas e suaves ocres iluminado pelas brilhantes asas douradas do Monumento a RAF. Nesta visita, como
em ocasiões anteriores, havia um vaso de rosas sobre sua mesa, rosas de jardim de robustos caules e espinhos curvados como fortes picos, não as flores descoloridas
e sem perfume de uma floricultura do West End.
Bernie nunca lhe havia descrito; limitou-se a lhe atribuir sua própria filosofia obsessiva, antiheróica, tosca. Cordelia, aborrecida de tanto ouvir seu nome,
não o fazia pergunta. Mas o delegado que ela se imaginou era muito diferente da figura alta, austera que se levantou para lhe estreitar a mão
quando ela entrou pela primeira vez em seu escritório, e a dicotomia entre suas imaginações particulares e a realidade tinha sido desconcertante. De um modo irracional,
sentiu-se um pouco irritada contra Bernie. O Comi era velho, certamente, mais de quarenta anos, pelo menos, mas não tão velho como ela tinha esperado. Era moreno,
muito alto e desenvolvido, enquanto que ela tinha esperado que fosse loiro, baixo e rechoncho. Era sério e lhe falava como a uma pessoa adulta responsável, não de
modo
paternalista e condescendente. Sua cara era sensível sem ser débil, e lhe gostavam de suas mãos e sua voz. Parecia gentil e amável, o que não deixava de ser uma
astúcia, porque Cordelia sabia que era perigoso e cruel e se via obrigada a recordar de que modo tinha tratado ao Bernie. Em alguns momentos, durante o interrogatório,
perguntou-se realmente se era possível que fosse Adam Dalgliesh, o poeta.
Nunca tinham estado os dois sozinhos. Em cada uma de suas visitas, um policial, que foi apresentada como sargento Mannering, achou-se presente, sentada ao
lado da mesa com sua caderneta de notas. A Cordelia parecia como se conhecesse bem ao sargento Mannering, porque guardava uma grande semelhança com sua companheira
de escola Teresa Campion Hook. As duas moças teriam podido passar por irmãs. Jamais acne algum tinha marcado suas peles brilhantemente limpa; seu encaracolado
cabelo loiro com o comprimento regulamentar por cima dos pescoços de seus uniformize; ambas tinham a voz autoritária, decididamente animada mas nunca estridente;
exalavam uma inefável confiança na justiça e na lógica do universo e em quão justo era o posto que elas ocupavam no mesmo. O sargento Mannering
tinha sorrido brevemente a Cordelia quando entrou. O olhar era franco, não abertamente amistosa, já que um sorriso muito generosa poderia prejudicar o caso,
mas tampouco era de censura. Era um olhar que predispunha a Cordelia à imprudência; mas ela não queria parecer uma parva ante aquele olhar de competência.
Pelo menos tinha tido tempo, antes de sua primeira visita, para decidir quanto a sua tática. Havia pouca vantagem e muito perigo em ocultar feitos que
um homem inteligente podia facilmente descobrir por si mesmo. Confessaria, se o perguntavam, que tinha falado sobre o Mark Callender com os Tilling e seu tutor;
que tinha procurado à senhora Goddard e a tinha entrevistado; que tinha visitado doutor Gladwin. Decidiu não dizer uma palavra sobre o intento de assassinato de
que tinha sido objeto nem sobre sua visita ao Somerset House. Sabia que feitos seriam de vital importância ocultar: o assassinato do Ronald Callender; a pista no
livro de orações; a verdadeira maneira em que tinha morrido Mark. disse-se firmemente a si mesmo que não devia deixar-se induzir a falar do caso, não devia falar
de
si mesmo, de sua vida, de seu trabalho atual, de suas ambições. Recordava o que lhe havia dito Bernie: "Neste país, se a gente não quer falar, é inútil que
tente obrigá-la a isso. Felizmente para a polícia, a maioria das pessoas não são capazes de ter fechada a boca. Os inteligentes som os piores.
Só querem demonstrar quão preparados som, e uma vez que consegue lhes fazer falar do caso, inclusive discutindo-o em términos gerais, já os tem". Cordelia
procurava não esquecer o conselho que lhe tinha dado a Elizabeth Leaming: "Não se embrulhe, não invente, não tenha medo de dizer que não pode recordar".
Dalgliesh estava falando:
-pensou você em consultar a um advogado, senhorita Gray?
-Não tenho advogado.
-A Associação de Advogados pode lhe dar os nomes de alguns muito valiosos e dignos de confiança. Eu, em seu lugar, pensaria seriamente nisso.
-Mas, teria que lhe pagar, não? por que teria que necessitar um advogado, se estou dizendo a verdade?
-É quando a gente começa a dizer a verdade quando com maior freqüência sente a necessidade de um advogado.
-Mas eu sempre hei dito a verdade. por que teria que mentir?
Aquela retórica pergunta era um equívoco. Ele respondeu a ela seriamente, como se Cordelia tivesse querido realmente saber.
-Bem, poderia ser para proteger-se a você mesma (coisa que não acredito provável) ou para proteger a alguém mais. O motivo para isso poderia ser amor, temor
ou um sentido
de justiça. Não acredito que você haja conhecido a alguma pessoa deste caso o tempo suficiente para preocupar-se profundamente por ela e não acredito que você seja
muito
fácil de amedrontar. De modo que fica o motivo da justiça. Um conceito muito perigoso, senhorita Gray.
Cordelia tinha sido muito estreitamente interrogada com antecedência. A polícia de Cambridge tinha sido muito minuciosa. Mas essa era a primeira vez que estava
sendo interrogada por alguém que sabia; sabia que ela estava mentindo; sabia tudo o que terei que saber, e ela se dava desesperadamente conta disso. Teve
que obrigar-se a si mesmo a aceitar a realidade. Não era possível que ele estivesse seguro. Não tinha a menor prova legal e jamais a teria. Ninguém havia com vida
para
lhe dizer a verdade, exceto Elizabeth Leaming e ela mesma. E ela não ia dizer se a Dalgliesh podia tratar de forçar sua vontade com sua implacável lógica, sua curiosa
amabilidade, sua cortesia, sua paciência. Mas ela não falaria, e na Inglaterra não havia um meio que pudesse obrigá-la a fazê-lo.
Ao ver que não respondia, Dalgliesh disse em tom animado:
-Bem, vejamos aonde chegamos. como resultado de suas indagações, você suspeitava que Mark Callender pudesse ter sido assassinado. Você não o admitiu
ante mim, mas deixou bem claras suas suspeitas quando visitou sargento Maskell da polícia de Cambridge. A seguir procurou você à antiga aia do Mark e
inteirou-se por meio dela de algo dos primeiros anos de sua vida, do matrimônio Callender, da morte da senhora Callender. depois dessa visita, foi você
a ver o doutor Gladwin, médico de cabeceira que tinha atendido à senhora Callender antes de morrer. Mediante um singelo ardil, pôde você conhecer o grupo sangüíneo
do Ronald Callender. Esse teria sido o único ponto que lhe fez suspeitar que Mark não era o filho do matrimônio de seus pais. Então fez você o que haveria
feito eu em seu caso, visitar Somerset House para examinar o testamento do senhor George Bottley. Era compreensível. Se a gente tiver a suspeita de um assassinato,
sempre
considera quem pode sair beneficiado por isso.
De modo que tinha descoberto o do Somerset House e a chamada ao doutor Venables. Bem, era de esperar. Ele a tinha distinto com sua própria marca de inteligência.
Ela se tinha comportado como se teria comportado ele.
Não obstante, Cordelia não falou. Ele disse:
-Você nada me disse de sua queda no poço. A senhorita Markland sim o fez.
-Aquilo foi um acidente. Nada recordo a respeito disso, mas certamente decidi explorar o poço e perdi o equilíbrio. Sempre me intrigou um pouco.
-Não acredito que fosse um acidente, senhorita Gray. Você não pôde ter afastado a coberta do poço sem uma corda. A senhorita Markland tropeçou com uma, mas
estava muito bem enrolada e médio escondida na maleza. haveria-se você incomodado em desprendê-la do gancho se só tivesse estado explorando?
-Não sei. Não recordo o que ocorreu antes de cair. Minha primeira lembrança é o contato com a água. E não sei o que tem isto que ver com a morte de sir Ronald
Callender.
-Poderia ter muito que ver Se alguém tentou matá-la, e acredito que assim foi, essa pessoa podia proceder do Garforth House.
-por que?
-Porque o atentado contra sua vida se relacionava provavelmente com sua investigação da morte do Mark Callender. Você tinha chegado a ser um perigo para
alguém. Matar é um assunto grave. Aos profissionais não gosta a menos que seja absolutamente essencial, e inclusive os aficionados som menos despreocupados de
o que você supõe no referente a assassinar. Você deve ter chegado a ser uma mulher muito perigosa para alguém. Alguém voltou a colocar em seu aquela sítio
coberta, senhorita Gray. Você não caiu através de sólida madeira.
Cordelia ainda nada dizia. Houve uma pausa, então ele voltou a falar:
-A senhorita Markland me contou que depois de havê-la salvado do poço, não queria deixá-la sozinha. Mas você insistiu em que se fora. Você lhe disse que não
tinha
medo de estar sozinha na cabana porque tinha uma pistola.
Cordelia se surpreendeu de que lhe doesse tanto esta pequena traição. Entretanto, como podia censurar por isso à senhorita Markland? O delegado haveria
sabido como dirigi-la e provavelmente a persuadiu de que o falar com franqueza redundaria em interesse da própria Cordelia. Bem, ela podia pelo menos trai-la
a sua vez. E esta explicação, ao menos, teria a autoridade da verdade.
-Eu desejava me desembaraçar dela. Contou-me uma terrível historia a respeito de um filho ilegítimo dele que caiu ao poço e morreu. Eu acabava de ser salva
de
a morte Não queria ouvir aquela história, não podia suportá-la nesses momentos. Disse-lhe uma mentira a respeito da pistola só para que se fosse. Eu não lhe pedia
que
fizesse-me confidências, não estava bem. Era uma maneira de pedir ajuda, e não podia dar-lhe había tenido algo de la irrealidad de un juego formal en el que el resultado
era a la vez predecible y exento de preocupación, dado que uno de los contrincantes
-E não queria você livrar-se dela por outra razão? Não sabia você que seu assaltante teria que voltar aquela noite; que a coberta do poço tinha que voltar
a retirar-se se a morte de você tinha que parecer um acidente?
-Se tivesse pensado realmente que estava em perigo, lhe teria rogado que me levasse com ela ao Summertrees House. Não teria esperado sozinha na cabana sem
minha pistola.
-Certamente que não, senhorita Gray, acredito. Não teria esperado você sozinha na cabana aquela noite sem sua pistola.
Pela primeira vez, Cordelia se sentiu desesperadamente assustada. Aquilo não era um jogo. Nunca o tinha sido, embora em Cambridge o interrogatório da polícia
tinha tido algo da irrealidade de um jogo formal no que o resultado era de uma vez predecible e isento de preocupação, dado que um dos competidores
nem sequer sabia que estava jogando. Mas nesse momento era bem real. Se Cordelia chegava a ser vítima de um truque, chegava a ser persuadida, coagida para
dizer a verdade, iria ao cárcere. Era algo que seguiria indevidamente ao feito. Quantos anos lhe impõem como castigo a um por ajudar a encobrir um assassinato?
Tirariam-lhe a roupa. Encerrariam-lhe em uma claustrofóbica cela. Havia remissão por boa conduta, mas, como podia um ser bom no cárcere? Possivelmente a enviariam
a uma prisão aberta. Aberta. Era uma contradição nos términos. E como viveria depois? Como obteria um emprego? Que verdadeira liberdade pessoal poderia
haver jamais para quem a sociedade etiquetava como delinqüentes?
Sentia medo pela senhorita Leaming. Onde estava nesse momento? Nunca se tinha atrevido a perguntar-lhe ao Dalgliesh e o nome da senhorita Leaming apenas
mencionou-se. Estaria acaso sendo interrogada em alguma outra habitação de New Scotland Yard? até que ponto era de confiar sob pressão? Estariam planejando
acarear às duas conspiradoras? abriria-se de repente a porta e fariam entrar em uma senhorita Leaming desfazendo-se em desculpas, cheia de remorsos, fora de
sim? Não era esse o truque que estava acostumado a empregar-se, interrogar aos conspiradores por separado até que o mais fraco se rendia? E quem resultaria ser
a mais débil?
Ouvia a voz do delegado. E acreditou perceber nela certo matiz de comiseração.
-Temos alguma confirmação de que a pistola estava em posse de você aquela noite. Um automobilista nos diz que viu um carro estacionado na estrada
a uns cinco quilômetros do Garforth House e quando se parou para lhe perguntar se podia ajudar em algo, viu-se ameaçado por uma jovem com uma pistola.
Cordelia recordou aquele momento, a suavidade e o silêncio da noite do verão dominados de repente pelo fôlego quente e alcoólico daquele homem.
-Deveu ter estado bebendo. Suponho que a polícia lhe deteve posteriormente aquela noite para lhe fazer uma prova de alcoholemia e então decidiu sair
com este conto. Não sei o que espera ganhar com isso, mas não é certo. Eu não levava uma pistola. Sir Ronald me tirou a arma a primeira noite que estive no Garforth
House.
-A polícia metropolitana lhe deteve por excesso de velocidade. Acredito que pode persistir em seu relato. Foi muito preciso em sua declaração. Naturalmente,
não a há
identificado a você ainda, mas pôde descrever o carro. Ele diz que acreditou que você tinha dificuldades com seu carro e parou para ajudá-la. Você interpretou mau
seus motivos e lhe ameaçou com uma pistola.
-Eu interpretei seus motivos perfeitamente. Mas não lhe ameacei com uma pistola.
-O que disse você, senhorita Gray?
-me deixe ou o Mato.
-Sem a pistola sem dúvida era uma vã ameaça, não?
-Sempre teria sido uma vã ameaça. Mas fez que partisse.
-O que aconteceu exatamente?
-Eu tinha uma porca no porta-luvas do carro e quando apareceu a cara pelo guichê a agarrei e lhe ameacei com ela.
-Mas ninguém em seus cabais teria podido confundir uma porca com uma pistola!
Mas ele não estava em seus cabais. A única pessoa que tinha visto a pistola em posse da Cordelia aquela noite era um automobilista que não estava sóbrio.
Cordelia sabia que esta era uma pequena vitória. Tinha resistido à tentação de trocar sua história. Bernie tinha tido razão. Recordava seus conselhos; os conselhos
do delegado; essa vez quase podia ouvi-los pronunciados com sua voz profunda, ligeiramente rouca: "Se te vê tentada ao crime, te aferre a sua declaração original.
Nada
terá que impressione mais ao jurado que a congruência. Vi triunfar a defesa mais improvável simplesmente porque o acusado se atuvo a seu relato. depois de tudo,
só se trata da palavra de alguém contra a tua; com um advogado competente, isto é a metade do caminho para chegar a uma dúvida razoável".
O delegado falava de novo. Cordelia teria desejado poder concentrar-se mais no que estava dizendo. Não tinha dormido muito profundamente durante os últimos
dez dias, possivelmente isso tinha algo que ver com essa perpétua fadiga.
-Acredito que Chris Lunn fez a você uma visita a noite em que morreu. Não pude descobrir outra razão de sua presença naquela estrada. Uma das testemunhas
do acidente disse que saiu daquela estrada lateral com sua caminhonete como se todos os demônios do mundo lhe estivessem perseguindo. Alguém lhe estava perseguindo...
Você, senhorita Gray.
-Já tivemos antes esta conversação. Eu ia ver sir Ronald.
-A aquela hora? E com tanta pressa?
-Queria lhe ver urgentemente para lhe dizer que tinha decidido deixar o caso. Não podia esperar
-Mas pôde esperar, não? foi dormir no carro ao lado da estrada. Por isso transcorreu quase uma hora desde que viu o acidente até que chegou ao Garforth
House.
-Tive que parar. Estava cansada e sabia que não era seguro continuar conduzindo.
-Mas também sabia que era seguro dormir. Sabia que a pessoa da que tinha mais que temer estava morta.
Cordelia não respondeu. produziu-se um silêncio na habitação, mas lhe parecia que esse silêncio mas bem a acompanhava em vez de acusá-la. Teria desejado não
estar tão cansada. Mais que nada, teria desejado ter alguém com quem falar sobre o assassinato do Ronald Callender. Bernie não teria sido aqui da menor ajuda.
Para ele, o dilema moral que constituía a medula do crime carecia de interesse, de validez, lhe teria parecido uma obstinada confusão de feitos singelos. Podia
imaginar os comentários grosseiros e fáceis sobre as relações da Eliza Leaming com o Lunn. Mas o delegado teria compreendido. Podia imaginar-se a si mesmo falando
com ele. Recordava as palavras do Ronald Callender de que o amor era tão destrutivo como o ódio. Estaria conforme o Dalgliesh com aquela fria filosofia? Haveria
desejado poder lhe perguntar. Esse, reconheceu Cordelia, era o verdadeiro perigo que corria, não a tentação de confessar, a não ser o desejo de fazer confidências.
Sabia
ele o que ela sentia? isso acaso formava também parte de sua técnica?
Bateram na porta. Um policial de uniforme entrou e entregou uma nota ao Dalgliesh. No despacho reinou um profundo silêncio enquanto ele esteve lendo. Cordelia
fez um esforço para lhe olhar à cara. Tinha um olhar grave e inexpressivo e continuou com os olhos cravados no papel um bom momento depois de ter assimilado
a breve mensagem da nota.
Cordelia pensou que estava tomando alguma decisão. Logo Dalgliesh disse:
-Isto se refere a alguém a quem você conhece, senhorita Gray. Elizabeth Leaming morreu. matou-se faz dois dias ao sair-se seu carro da estrada da
costa, ao sul do Amalfi. Esta nota é uma confirmação de identidade.
Cordelia foi alagada por uma quebra de onda de alívio tão imensa que se sentiu fisicamente doente. Apertou o punho e sentiu que começava a brotar o suor em
sua frente.
Começou a tremer de frio. Nem por um momento lhe ocorreu que Dalgliesh pudesse estar mentindo. Sabia que era desumano e inteligente, mas sempre tinha dado
é obvio que não lhe mentiria. Disse em um sussurro:
-Posso ir a casa agora?
-Sim. Não acredito que haja motivo algum para que fique aqui, não é certo?
-Ela não matou a sir Ronald. Ele me tinha tirado a pistola. Ele agarrou a pistola...
Algo pareceu lhe haver acontecido na garganta. As palavras não queriam sair
-Isso é o que veio você me dizendo. Não acredito que tenha necessidade de incomodar-se em dizê-lo de novo.
-Quando tenho que voltar?
-Não acredito que tenha necessidade de voltar, a menos que dita que há algo que queira me dizer. Naquela conhecida frase, a você lhe pediu que ajudasse à
polícia. Você ajudou à polícia. Obrigado.
Ela tinha ganho. Estava segura e, com a morte da senhorita Leaming, aquela segurança dependia unicamente dela mesma. Não precisava voltar para aquele
horrível lugar O alívio, tão inesperado e tão incrível, era muito grande para poder ser suportado. Cordelia estalou em um pranto dramático e incontrolável.
Foi consciente de uma ligeira exclamação do sargento Mannering e de um dobrado lenço branco devotado pelo delegado. Afundou a cara no branco linho que
cheirava a limpo e deu rédea solta a sua reprimida aflição e a sua ira. Coisa estranha -tão estranha que a surpreendeu em meio de sua angústia-, sua aflição
achava-se centrada no Bernie. Levantando uma cara desfigurada pelas lágrimas e sem preocupar-se com o que pudesse pensar dela, proferiu uma última e irracional
protesto:
-E depois de havê-lo despedido, nunca quis você averiguar como foram as coisas. Nem sequer esteve você no funeral!
Dalgliesh tinha aproximado uma cadeira e se sentou ao lado da Cordelia. Deu-lhe um copo de água. O copo estava frio, mas resultava reconfortante, e a jovem
sentiu-se surpreendida ao dar-se conta de que tinha muita sede. Foi tomando a pequenos sorvos aquela água fria e lhe deu um ligeiro acesso de soluço. O soluço lhe
fez
sentir vontades de rir histéricamente, mas conseguiu dominar-se. Transcorridos uns minutos, Dalgliesh disse amavelmente:
-Sinto-o por seu amigo. Não me tinha dado conta de que seu sócio era o Bernie Pryde que uma vez trabalhou comigo. Em realidade, é até pior que isso. Havia-me
esquecido de todo o relacionado com ele. Se tiver que lhe servir de consolo, direi-lhe que este caso poderia ter terminado de um modo algo diferente, se não o tivesse
esquecido.
-Você lhe despediu. Tudo que ele queria era ser detetive e você não quis lhe dar uma oportunidade.
-Os regulamentos da polícia metropolitana sobre contratações e demissões não são tão singelas. Embora seja certo que ainda teria podido ser um policial
de não ter sido por mim. Mas não teria sido um detetive.
-Não era tão mau.
-Pois sim, era-o, sabe você? Mas estou começando a me perguntar se em realidade não lhe subestimei.
Cordelia se voltou para lhe devolver o copo e seus olhos se encontraram com os dele. sorriram-se mutuamente. A jovem teria desejado que Bernie tivesse podido
ouvir o que o delegado acabava de dizer dele.
Meia hora depois, Dalgliesh se achava sentado frente ao subcomisario chefe no despacho deste último. Não simpatizavam, mas só um deles sabia e era
aquele a quem isto não lhe importava. Dalgliesh fez seu relatório, concisamente, lógicamente, sem consultar suas notas. Era seu costume invariável. O subcomisario
chefe
tinha considerado isto pouco ortodoxo e um tanto vaidoso e nesse momento o considerava também assim. Dalgliesh terminou com estas palavras:
-Como pode você imaginar, senhor, não estou propondo confiar todo isso ao papel. Não há verdadeiras provas e, como Bernie estava acostumado a nos dizer, a idéia
é um bom
servente mas um mau amo. Deus, como podia esse homem conceber tão horríveis perogrulladas! Não deixava de ser inteligente, não carecia totalmente de bom julgamento,
mas tudo, incluídas as idéias, desfazia-se em suas mãos. Tinha uma mente como um caderno de notas de um policial. lembra-se você do caso Clandon, homicídio
por disparo de pistola? Foi em 1954, acredito.
-Deveria me lembrar?
-Não. Mas teria sido útil que o tivesse recordado eu.
-Não sei realmente do que está você falando, Adam. Mas compreendo que tem razão; você suspeita que sir Ronald matou a seu filho. Ronald Callender está morto.
Você suspeita que Chris Lunn tratou de assassinar a Cordelia Gray. Lunn está morto. Você sugere que Elizabeth Leaming matou ao Ronald Callender. Elizabeth Leaming
está morta.
-Sim, tudo está convenientemente em ordem.
-Eu sugiro que o deixemos assim. O delegado chefe teve incidentalmente uma chamada Telefónica do doutor Hugh Tilling, o psiquiatra. sente-se ofendido
porque seu filho e sua filha foram interrogados em relação com a morte do Mark Callender. Estou disposto a lhe explicar seus deveres civis ao doutor Tilling, de
seus direitos já é bem consciente, se você realmente o considerar necessário. Mas, ganhará algo voltando a ver os dois Tilling?
-Eu acredito que não.
-Ou incomodando a Sureté a respeito daquela jovem francesa que a senhorita Markland pretende que visitou o Mark na cabana?
-Penso que podemos nos economizar essa moléstia. Agora só há uma pessoa viva que conhece a verdade desses crímenes, e ela está a salvo de qualquer interrogatório
que possamos empregar. Posso me consolar com a razão. Com a maioria dos suspeitos têm um inapreciável aliado que está espreitando no fundo de sua mente para
trai-los. Mas quaisquer mentiras que ela tenha estado dizendo, está absolutamente livre de culpa.
-Pensa você que ela se engana a si mesmo acreditando que tudo é verdade?
-Eu não acredito que essa jovem se engane a si mesmo absolutamente. Cobrei-lhe afeto, mas me alegro de não ter que me voltar para enfrentar com ela. Eu não
gosto
que em um interrogatório completamente normal me faça sentir como se estivesse corrompendo aos jovens.
-De modo que podemos lhe dizer ao ministro que seu companheiro de classes morreu por sua própria mão?
-Pode você lhe dizer que estamos convencidos de que nenhum dedo vivente apertou aquele gatilho. Mas possivelmente não. Inclusive ele poderia ser capaz de dar
a isto uma
má interpretação. lhe diga que pode admitir com segurança o veredicto da investigação.
-Nos teria economizado uma grande quantidade de tempo público se ele o tivesse admitido do primeiro momento.
Os dois homens permaneceram um momento silenciosos. Logo Dalgliesh disse:
-Cordelia Gray tinha razão. Eu tinha que me haver informado do que lhe tinha acontecido ao Bernie Pryde.
-Não cabia esperar que o fizesse. Não formava parte de suas obrigações.
-Claro que não. Mas, ao fim e ao cabo, os esquecimentos mais graves de um raramente formam parte de suas obrigações. E encontro irônico e extrañamente lógico
que
Pryde se vingasse. Sejam quais forem as dificuldades com que essa criatura tropeçou em Cambridge, ela estava atuando sob a direção dele.
-está-se você voltando mais filosófico, Adam.
-Só menos obsessivo, ou possivelmente simplesmente mais velho. É bom poder sentir em ocasiões que há alguns casos que é melhor deixá-los sem resolver.
O edifício da rua Kingly tinha o mesmo aspecto, o mesmo aroma. Sempre seria assim. Mas havia uma diferença. Fora do escritório havia um homem esperando,
um homem de média idade com um apertado traje azul e uns vivos ojillos que brilhavam entre as dobras carnudas de sua cara.
-Senhorita Gray? Já estava a ponto de ir. Meu nome é Fielding. Vi sua placa quando passava por aqui por acaso, sabe?
Em seus ojillos havia um brilho de avareza e de luxúria.
-Bom, vejo que não é você exatamente o que eu esperava, não é a classe corrente de detetive privado.
-Há algo que possa fazer por você, senhor Fielding?
O homem olhou furtivamente ao redor do patamar e pareceu como se sua sordidez lhe resultasse tranqüilizadora.
-trata-se de meu amiga. Tenho motivos para suspeitar que me pega isso. Bom..., a um gosta de saber a que atenerse, não?
Cordelia introduziu a chave na fechadura.
-Compreendo, senhor Fielding. Não quererá você entrar?
P. D. James
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