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NÃO HÁ LUGAR PARA DIVORCIADAS / Moita Flores
NÃO HÁ LUGAR PARA DIVORCIADAS / Moita Flores

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Há dias assim. Seria bem melhor um homem não sair de casa. Sobretudo quando esse homem é ministro, usa calças com fecho éclair, sapato quarenta e três - embora a mulher insista que o quarenta e um é que lhe garante uma proporção harmoniosa entre a altura e o tamanho do pé - e tem uma montanha de papéis para despachar. Ainda por cima com o país em guerra. A guerra invisível contra o inimigo invisível, e o ministro da Guerra, em vez de contar balas e canhões, ali está de lapiseira em riste despachando mil requerimentos e petições. Séculos de luta entre o Estado centralista e a descentralização saldara-se por uma vitória em toda a linha por parte do primeiro contendor. Àquela hora da manhã, o ministro da Guerra, Leónidas de Távora, já autorizara o 3.° Regimento de Cavalaria a comprar cem pacotes de papel higiénico, recusando os duzentos que haviam sido solicitados, sublinhando no douto despacho que era necessário fazer poupanças e, ainda, porque, estando o país em guerra, ficava na opinião pública a impressão de que a tropa se borrava de medo. Despachara também um volumoso processo sobre uma disputa de economato em que dois oficiais se haviam envolvido numa contenda sobre a natureza do sabão que deveria lavar as tropas nos inúmeros balneários de quartel e acampamentos por esse país fora. Ainda autorizara o general Teodorico
Guedes a utilizar um helicóptero para transportar a esposa às termas por causa de uns problemas complicados de reumático que exigiam uns banhos especiais, quando o chefe de gabinete entrou a anunciar-lhe que a viúva do senhor coronel Alvuras estava à espera de ser recebida e que daí a pouco o Senhor Ministro teria de partir para Zulmirinho.
Largou a lapiseira, com um gesto de contrariedade, e perguntou: - O que é que ela quer? - Não sei. Foi o seu sogro quem pediu que o Senhor Ministro a recebesse.
Suspirou, vencido. Sempre o sogro. Uma espécie rara de sarna que, por mais que se trate, não larga. Uma nódoa teimosa que lhe surgia na camisa a propósito de tudo e de nada.
- Manda a gaja entrar. Não passava um dia que não tivesse de receber a mulher de um marido amigo do sogro ou o marido de uma mulher amiga da sogra que lhe ia pedir um favor. Uma promoçãozinha, por amor de Deus!, um lugar de assessor para o filho, pela sua rica saúde!, uma direcção de serviços, pelas alminhas!

 


 


Nem queria acreditar quando a viúva do coronel Alvuras entrou. As botas altas e a saia comprida mentiam. Escondiam, mas a racha de botões abertos descobria as pernas mais espantosas que existiam à face da Terra e a blusa justa, apertada na cintura, obrigava os seios a saltar, redondos e calibrados, na direcção do olhar de Leónidas.

Levantou-se para a cumprimentar e ficou mudo. Ainda hoje ninguém sabe se foi a dor que os sapatos quarenta e um lhe provocavam, compatíveis com a sua altura, mas em litígio com o tamanho dos pés, se foram os lábios sensuais, apoiados no olhar lascivo da mulher, que o fizeram entrar em choque. Ainda por cima desprezou a mão que o ministro lhe estendeu. Encostou-lhe os seios ao peito engravatado e beijou-o no rosto. Um beijo longo, arrastado e húmido. Quente. O ministro estremeceu. A sensualidade da mulher cortou-lhe a fonte das palavras e não admira, por isso, que nem a convidasse a sentar. Foi assim, quase
encostados, ele a sentir as pernas dela para lá da racha da saia negra, ela, mulher de muitos saberes, ouvindo-lhe o coração a matraquear o peito. E porque fora ali para pedir, pediu. Que agradecia que o Senhor Ministro a tivesse recebido, por sinal bem mais atraente ao vivo do que na televisão, e que estava ali apenas para pedir justiça. A pensão de viuvez do falecido marido, o coronel Alvuras. Que bem sabia do que se falava à boca pequena sobre a sua morte no Afeganistão ao serviço das Nações Unidas. Que não morrera por causa do rebentamento da mina anticarro, mas sim em cima de uma mocetona dos Médicos sem Fronteiras. Fora o coração que rebentara e isso não a admirava. Mesmo em Portugal, tendo em casa mulher, ainda por cima legítima, o Alvuras fora sempre um predador. Um verdadeiro oficial de operações especiais. Por isso que descansasse em paz. Morrera no seu verdadeiro e habitual campo de batalha - em cima de uma mulher. E afinal era uma mulher a principal vítima: a viúva que ali reclamava a sua pensão de viuvez. Que nem percebia a relutância do Governo. Sabia de pensões e promoções que não lembravam ao diabo. Até capitães que passaram a vida militar a roubar batatas do exército pátrio haviam sido promovidos a majores, de capitães-de-mar-e-guerra que chegaram a almirantes sem ao menos cheirar o mar. - Eu mereço esta injustiça, Senhor Ministro? A pergunta foi sussurrada, sedutora, ao ouvido, enquanto acidentalmente a mão tocava a braguilha ministerial. Era de mais para Leónidas. O cheiro a fêmea fê-lo esquecer a dor dos pés enrolados à bruta dentro dos sapatos quarenta e um. Balbuciou precipitado: - Sim, claro, tem toda a razão! Rodou o corpo e os seios gulosos acostaram ao peito. Não admira que tivesse perdido a cabeça. A mão desceu à racha da saia provocadora, a boca, demente, colou-se sem pensar aos lábios gulosos. Ela contra-atacou. Abraçou-o com violência e a língua, como se fosse um míssil enfiou-se até às goelas do ministro da Guerra, explodindo em miríades na cabeça, e a batalha começou.
Leónidas empurra-a com violência para a secretária e o despacho vai pelos ares. Ela contorce-se contra ele e o ministro passa os limites da emoção quando descobre, durante o raide para lá da racha, que a viúva não usa cuecas. Possivelmente devido à poupança por causa da falta da pensão de viuvez. O ataque não envolve a Força Aérea, apenas a Infantaria, e aqui começa a derrota do ministro. Por mais explosões que lhe saltem das pontas dos dedos das mãos em cada avanço sobre a pele da viúva, os dedos dos pés guincham de dor. O quarenta e um não é definitivamente o número do seu sapato. Procura descalçá-los, mas sem largar o corpo da oponente. Os beijos são cada vez mais frenéticos e os seios saltam os diques da camisa. Leónidas procura abocanhá-los, língua afiada, atacá-los à baioneta, mas os sapatos não saem e as dores crescem. Até parece que os dedos dos pés se levantaram em manifestação contra o conflito. Porém, a refrega é intensa. Leónidas não pode pedir tréguas naquele instante para desapertar os atacadores e colocar os sapatos fora de combate. Até porque, nesse momento, a viúva do Alvuras ataca-lhe a braguilha. Um esticão, dois esticões, e percebe-se que por ali ela não consegue entrar. O ministro que lhe saboreia as pernas percebe o movimento militar e, generoso, resolve ajudá-la. Puxa o fecho éclair. Corre um centímetro e emperra. Os pés ardem como se a progressão da infantaria fosse sobre as areias quentes do deserto. O fecho éclair desce mais um centímetro, mas, desgraçadamente, o campo estava minado. Leónidas fica com a pele do dedo entalada no engenho. Agora a braguilha não abre nem fecha, as dores saltam raivosas, os pés duplicaram o tamanho e o ministro da Guerra transpira aflito. A mulher deixa de compreender a súbita frieza do adversário e afasta-o por momentos, incrédula, olhando-o nos olhos. Ele está desvairado e geme: - Desculpe. É só um momento. Leónidas sai de cima daquele corpo de mel e, ao saltar da secretária, dedo entalado na braguilha, os pés rugem e a viúva apoia-se nos cotovelos para, espantada, apreciar o espectáculo.

Dá pulinhos e geme no meio do gabinete. Perdeu a vergonha por mostrar as fraquezas, mas o fecho éclair continua a acção demolidora, enquanto os pés berram de dor. A candidata a pensionista percebe que a batalha terminou. O ministro parece um boneco mecânico que grita, pula e puxa, e o dedo não se solta e os pés guincham, e recompõe rapidamente as vestes.

Delicada, aproxima-se: - Quer ajuda? Humilhado, vencido, desesperado com dores, geme ofegante: - Não. Vá-se embora. - E a pensão? - Eu assino isso, mas, por favor, vá-se embora. A vergonha que sente é tão grande que nem a consegue olhar. Beija-o, rápido, e sai. Curvado sobre si, dedo entalado na braguilha, os pés a estalar, Leónidas cai no momento em que entra o chefe de gabinete. la falar-lhe da agenda. - Senhor Ministro... mas... Senhor Ministro?! E Leónidas grita, transtornado. - Descalça-me os sapatos! - Perdão? - Descalça-me os sapatos que eu morro. Atarantado, o chefe de gabinete abandona a agenda e puxa os sapatos. Os pés inchados recusam-se a sair. O ministro grita. O subordinado senta-se no chão. Corajosamente, pega-lhe no sapato direito. Puxa para trás enquanto com o pé empurra o rabo do ministro para a frente. Faz saltar o primeiro. Utiliza a mesma técnica para o segundo e consegue vencer. O ministro solta um grito de alívio. Está sem fôlego e cai de costas, dedo entalado na braguilha, mas com uma sensação de alívio tão grande que, olhos fechados de prazer, cicia exausto: - Ajuda-me a desentalar o dedo da braguilha. O solícito chefe de gabinete ajoelhou junto à braguilha. Minucioso, observava como estava o dedo preso quando no gabinete entra a secretária. Ao ver o ministro deitado e o chefe de

11 gabinete a tentar desenvencilhar a braguilha, abriu a boca de espanto e saiu a correr, persignando-se como se tivesse visto o diabo. Leónidas uivou de dor quando o dedo finalmente se soltou. Escorria um fio de sangue.

- Tragam-me um penso, depressa! O chefe de gabinete saiu a correr e quase no mesmo instante entrou a correr a secretária, a transpirar curiosidade perversa, penso na mão e olho cirúrgico na braguilha do ministro descalço.

- Magoou-se, Senhor Ministro? Mas como? Mas como? Leónidas sentia-se no céu. Os pés acalmavam, meigos e angelicais. O dedo relaxava e explicou-se enquanto a secretária, agora sob o olhar atento do chefe de gabinete, cuidava do pequeno ferimento.

- Os sapatos! Os sapatos encolheram. - Encolheram? Os sapatos? - É verdade. Quando saiu a viúva do coronel Alvuras, levantei-me para os ir trocar pelos outros que tenho no armário e reparei que o fecho da braguilha estava meio aberto. Fui puxá-lo e foi isto. Não morri por milagre. Foi aqui o Queirós que me salvou.

O chefe de gabinete esboçou um sorriso incrédulo, mas a secretária, depois de ter visto os dois homens pelo chão em posições tão suspeitas, acreditou, quis acreditar de imediato, que o seu mundo interior, ordenado de forma que moral e poder coincidiam na manifestação do divino, não estava em derrocada.

- Coitadinho. Coitadinho. Dedo recuperado, Leónidas dirigiu-se ao armário e calçou os seus velhos sapatos quarenta e três, e os pés cantaram aleluias. Passou as mãos pelo cabelo e disse:

- Levem-me daí esses malditos sapatos e atirem-nos para as profundezas do inferno.

A secretária, pressurosa, pegou-lhes e saiu a correr à procura do inferno. Foi então que Léonidas caiu numa cadeira, finalmente recomposto. O chefe de gabinete aproximou-se, cauteloso.

-Sente-se melhor? - já passou. Por momentos convenci-me de que era o fim da minha vida. E o que há? - Tem uma viagem programada a Zulmirinho. - Pois é. Com esta confusão ia esquecendo isso. O Tarso já chegou? - Está junto ao carro à espera do Senhor Ministro. - Muito bem. - E quanto ao despacho? - Assinei uma série de coisas. Apanha-me os papéis que caíram. Com as dores desequilibrei-me e desmoronei a pilha de dossiers que tinha na secretária. Ia jurar que vira um sorriso irónico nos lábios do chefe de gabinete. Observou-o, desconfiado. - Não acreditas? - Por amor de Deus, Senhor Ministro, claro que acredito. - Seja como for, nem uma palavra sobre o que aqui se passou.

- Com certeza. E quanto à viúva do coronel Alvuras? Tornou a ficar desconfiado. - O que queres dizer com isso? - Nada. Se o seu sogro telefonar, o que lhe digo? - Ela quer uma pensão de viuvez. Mas mal entrou começou

a chorar com saudades do marido, por isso mandei-a embora e disse-lhe que voltasse quando estivesse mais calma. Está a sofrer muito aquela pobre senhora. - É compreensível, coitada. Ainda tão jovem. - É verdade. Bom, vou indo. Viajo incógnito para Zulmi-

rinho. Se alguém telefonar, estou em reunião por causa da guerra. - Vá descansado, Senhor Ministro. Leónidas saiu. Queirós começou a apanhar os papéis do chão com uma gargalhada a subir-lhe pelo esófago. Primeiro, surgiu como um ronco, depois explodiu tonitruante, de tal forma que

a secretária acorreu. Ficou espantada ao ver o chefe de gabinete a rebolar-se pelo chão rindo às gargalhadas. De facto, a guerra estava a dar volta à cabeça das pessoas.

Leónidas olhou para o relógio com inquietação e esfregou o cotovelo esquerdo, sinal de que se sentia mesmo inquieto. Estavam atrasados dez minutos. Embora tivessem saído cedo do ministério, àquela hora da manhã o trânsito em Lisboa frustrava qualquer boa intenção de cumprir horários. Quando era jovem, ainda simples iniciado na política, levado por entusiasmos que mais tarde lhe custaram amargos de boca, pregara promessas por comícios e campanhas eleitorais que afastavam definitivamente as intermináveis filas, quais tentáculos de polvo garrotando a cidade num torniquete de buzinas e fumos.

Leónidas tornou a verificar as horas e desabafou:

- Estamos atrasados. - Apenas meia hora, Senhor Ministro. Para ministro até estamos adiantados. Se fosse um secretário de Estado, estávamos na hora. - Como? - É como lhe digo, Excelência. O horário de ministro está uma hora atrasado em relação ao tempo do meridiano de Greenwich.

Às vezes odiava o seu assessor de imprensa. Tarso arranjava sempre explicação para tudo. Explicação e justificação. Mesmo quando tinha a certeza de que se espalhara ao comprido, o assessor encontrava uma leitura recompensadora.

- Não digas disparates, Tarso. Perco a cabeça durante um debate televisivo, mando à merda o meu adversário e tu dizes que fui bem?! Estás a gozar? Estás?

- Por quem é, Senhor Ministro. Fez muito bem em mandá-lo à merda, pois claro. - Na televisão, Tarso71

14 - É uma linguagem que as audiências compreendem. E é para as audiências que o Senhor Ministro governa. Por acaso os programas de cultura têm audiências? Sua Excelência sabe bem que não. - Não sei, juro que não sei. -Acredite, Senhor Ministro. As audiências adoram a merda, por isso adoram programas de merda e por isso foi excelente mandar o seu adversário à merda. - Seja como for. Exasperava-o nunca cometer disparates aos olhos do assessor. Às vezes chegava a admitir que era gozado. Porém, era tão grande a vassalagem de Tarso, a evidência da admiração tão absoluta que só podia ser estúpido ou génio. O trânsito descongestionava-se e o carro galgou a Ponte Vasco da Gama num ápice. Faltava uma hora para chegar a Zulmirinho, a aldeia natal de Leónidas de Távora. Acomodou-se no banco traseiro. Ao lado repousava o enorme dossier sobre a obra da ponte, mas não lhe apetecia estudá-lo. Ninguém se poderia admirar. Leónidas visitava pela primeira vez a sua aldeia na qualidade de ministro e não conseguia dominar o nervosismo que lhe fazia cócegas no estômago. - Os recortes da imprensa? - perguntou querendo afastar a irritante expectativa sobre a forma como iria ser recebido em

Zulmirinho. - Deixei-os na sua secretária, senhor ministro. - Merda! Esqueci-me do dossier. - De qualquer forma não saiu nada sobre nós. Esta fala de Tarso usando a primeira pessoa do plural signi-

ficava o Ministério da Guerra. É verdade, caro leitor. Lamento informá-lo, mas não entrou neste livro com o pé direito. O país está em guerra. Ao lado dos seus aliados, claro, e em defesa dos valores cristãos do Ocidente e de todas as conquistas que gerações de pensadores lograram alcançar, tais como passagens de modelos, reality-shows e futebol profissional lusitano. A Al-Qaeda não merecia outra coisa. Já não era apenas uma organização terrorista, mas também um quotidiano. O lugar do pecado que se instalara nas dobras de todas as coisas ruins. Até no praguejar. Em vez de «com mil demónios!», agora vociferava-se «pela AI-Qaeda», ou, no simplismo mais rigoroso que o povo tanto presa, caía-se com intenção injuriosa no «vai-te al-qaedar!» ou, mais prosaicamente, no «não me al-qaedes!». A blasfémia da blasfémia, o insulto-rei, numa palavra: a guerra.

- Seja como for, Senhor Ministro, continuamos com boa imprensa. Quanto a críticas, apenas as do costume.

Ficou em silêncio. Aquela boa imprensa custava-lhe uma fortuna. Facturas energúmenas de almoços. Mas enfim, como dizia o Isidro, seu secretário de Estado do Exército, em tempo de guerra não se limpam armas.

O motorista passou a portagem e o carro meteu por uma estrada estreita ladeada por estevas em flor. Zeca, o segurança que ia sentado ao lado do condutor, retesou os músculos do pescoço.

- É a estrada ideal para uma emboscada! - comentou para o colega em voz suficientemente alta para que o ministro escutasse.

Mas Leónidas não ligou. No fundo, no fundo, desconfiava daquela guerra invisível que até àquele dia apenas se deixara ver em dois momentos: quando ele foi nomeado ministro da Guerra e, semanas mais tarde, ao explodir um camião-cisterna cheio de combustível numa estrada secundária. Embora não houvesse vítimas, nem sinais de explosivos, tornara-se moda atribuir ao exército terrorista tudo o que não tinha explicação imediata. Até as derrotas do Sporting. O que dava lugar às mais confortáveis explicações, mas também a imbróglios difíceis de resolver. O polícia nem me deixou explicar, pá! Que era excesso de velocidade e a carta ia ser apreendida. Nem me deixou explicar, pá! Só pode ser da Al-Qaeda.

Por outro lado, os Americanos tinham conquistado definitivamente o mundo e o terrorismo tornara-se no seu mais convincente argumento, que agentes espalhados pelo mundo logo amplificavam loucos de alegria por podermos andar à trolha sem
recurso a filme de cowboys. Telefones directos para Washington:

ó chefes, larguem umas bombitas no país tal. Aquilo está infestado de al-qaedenses. E já agora na cidade tal. Há uma manifestação contra o aborto organizado por esses terroristas, de certeza absoluta. Em resumo: a Terra estava em guerra e Leónidas era um produto dessa circunstância. Ao desfazer urna curva, o motorista meteu bruscamente o pé no travão. Os pneus ganiram , o carro parou e ministro caiu. Soergueu-se apressado. -O que foi? - perguntou, no sobressalto. - Aquilo. Aquilo era um camião tombado, que deixava escorrer milhares de maçãs pelo asfalto. Dois homens procuravam afanosamente estancar a hemorragia de fruta, e Leónidas levantou os

braços desalentado. - Que merda!

Tem o Senhor Ministro toda a razão. Tarso olhou o relógio e tamborilou os dedos sobre o joelho. Se o atraso excedesse uma hora, era certo que a população começaria a impacientar-se e a recepção, que projectara luminosa,

esvair-se-ia como aquelas maçãs pela estrada fora.

O motorista hesitava ora com um olho no Zeca, ora com a orelha atenta à traseira, onde o ministro praguejava e Tarso concordava com suspiros.

Demorarão muito tempo a desimpedir a estrada? quis saber Leónidas.

- É bem possível. -São milhares de maçãs.

Mas que grande merda! O Zeca ofereceu-se. Se o Senhor Ministro entender, afasto esses tipos da estrada em menos de um minuto e que se lixem as maçãs.

Tarso recusou a proposta. - Não pode ser. Sua Excelência vem incógnito.
Remexeu-se, incomodado. O assessor tinha razão. Não avisara o presidente do Conselho da visita que ia fazer a Zulmirinho e sabia que, se o chefe soubesse, ia coçá-lo. É que Leónidas de Távora não ia fazer uma visita a amigos e familiares. Por força do bairrismo do presidente da Junta de Freguesia surgira a oportunidade de presidir à inauguração do fontanário a que o destemido autarca pusera o distinto nome de Fontanário do Leónidas. E na placa que daí a pouco deveria descerrar estava escrito: inaugurado por Sua Excelência Leónidas de Távora, ministro da Guerra e filho querido de Zulmirinho. Ainda hesitara.

- Um fontanário? Um ministro da Guerra a inaugurar um fontanário?

Mas Tarso arrumou a questão. - O fontanário é o pretexto, Senhor Ministro. A verdade é que o seu povo quer tocá-lo, vê-lo, e a sua aparição em Zorrinho...

- Zulmirinho! - emendou Leónidas. - Perdoe-me, Senhor Ministro, em Zulmirinho é o momento do grande encontro da política com o povo e a prova de que o partido cumpre as promessas que fez durante a campanha eleitoral. Prometemos a descentralização e vamos a Zulmirinho descentralizar. - Se a besta do Silva sabe que vou inaugurar o fontanário, mata-me!

- O Senhor Ministro das Obras Públicas não precisa de saber. Basta que não avisemos a comunicação social. É como se fosse uma vista à família e acabou-se! Aliás, ninguém sabe onde fica Zulmirinho.

Tarso tinha razão. Ninguém sabe onde fica Zulmirinho. A aldeia, perdida entre os cerros atulhados de matagais, desfalecia para além das escarpas da serra de Ossa, abandonada e velha, carcomida por solidões cada vez maiores e varrida pelas rugas do tempo da velhice. Havia poucas crianças em Zulmirinho. Apenas cinco e o Governo decidiu que não era natural que houvesse uma escola para cinco meninos e fechou-a. Os meninos
iam agora aprender na escola que ficava na cidade mais próxima, e todos os dias pela manhã, quando eles partiam a caminho das aulas, Zulmirinho ficava mais velha. Para além do Silva das Obras Públicas, o próprio presidente do Conselho não haveria de achar graça a esta inauguração. Logo na primeira reunião do Governo informara: - Sou eu quem decide quem faz as inaugurações. Na minha ausência, é o Silva quem decide. Não quero os meus ministros inaugurando tudo o que lhes vem à mão por causa de dois minutos de televisão. Coordenação, meus senhores, coordenação! Sentiu o estômago a embrulhar-se num novelo nervoso ao recordar estas palavras. Mas como pode um pobre ministro resistir a um fontanário que vai ficar para a posteridade com o seu nome gravado a ouro? E logo na terra que o vira nascer há quarenta e cinco anos. Desculpava assim a deslealdade para com o seu chefe e para com o Silva, que, como adiante se verá, também era seu sogro. Além de que ministro que se preza inaugura pontes, auto-estradas e supermercados gigantes. Um fontanário do qual brotava cantarolante a água que saciava sedes de gargantas crestadas pelo sol e pelo vinho não era obra pública. Tão-somente um poema! E, que se soubesse, o Silva era dado a futebol e jantaradas, mas pouco atreito a coisas do espírito. Até o ouvira desabafar satisfeito que, quanto a poesias, as quadras do Aleixo chegavam e sobravam. Portanto, que se lixasse o sogro e colega. Aquele soneto, aquele imorredoiro fontanário do Leónidas, tinha inaugurador decidido e confirmado. Tarso começava a ficar nervoso, muito embora procurasse sempre pôr um sorriso quando o ministro o interpelava. A demora já era em demasia. Ultrapassava claramente a hora politicamente correcta e, apesar do esforço dos dois homens que recolhiam maçãs, não se adivinhava o desimpedimento da estrada. O motorista alvitrou: - Se lhe déssemos uma ajuda, a coisa seria mais rápida. O Zeca, olhar glacial e mão na coronha da arma, garantiu: - Isso é o que eles querem!
- Porquê? - Acho estranho este acidente, Senhor Ministro. Leónidas arrebitou as orelhas. - Estranho? - Perdoe-me, Sua Excelência. Estamos no meio de uma serra, a estrada cortada e cercados de matagal.

- E isso quer dizer o quê? - É o local ideal para despachar um ministro da Guerra, Excelência.

- Como é? Como é que é? O suor gelado que de repente começou a escorrer pelas costas fê-lo arrepiar-se, enquanto os joelhos desataram a bater um contra o outro, atarantados de medo. Tarso alargou o nó da gravata. Não, isso não. Pagavam-lhe para vender notícias, vender ministros, inventar novidades, mas não lhe disseram que o ofício metia emboscadas e operações terroristas. Examinou os dois homens com mais atenção. Desgraçadamente ninguém ensinara ao pobre do Tarso que o medo destrói a atenção e o que viu foi o que o medo quis que ele visse. Ambos com barba hirsuta, um deles com largo chapéu a esconder-lhe o rosto, o outro quase sempre a apanhar maçãs com o rabiosque voltado para eles e a conclusão era medonha: procuravam não ser reconhecidos enquanto não chegasse o comando afegão que iria enviar pelos ares Sua Excelência o Senhor Ministro e restante assessoria.

- O Zeca é capaz de ter razão, Senhor Ministro. Pode ser uma emboscada.

- E o que fazemos? - Não sei, Doutor Tarso. Apenas cumpro ordens. Haja alguém que me dê ordens!

- Tu achas que são mesmo terroristas? Olha com atenção. - Já olhei, Excelência. Podem ser e podem não ser. - E então? - Não sei. Eh, pá! Ninguém me paga para isto, pá.
Leónidas tremia e gritou: - Então? Como o assessor não respondeu - os dentes matraqueavam uns contra os outros parecendo cascos de cavalo a galope -, o motorista alvitrou: - Ou damos meia volta e regressamos a Lisboa ou avançamos mandando as maçãs para o caraças. O que pode dar um problema. - Um problema? Ainda mais problemas? - Senhor Ministro, se os homens não forem terroristas e apenas dois camponeses vamos estragar-lhes a fruta com os pneus. O Zeca aviou mais uma dose de suspeição. - Os camponeses não escondem o rosto e olha para o tipo do chapéu. Sempre de costas a mostrar o cu ao Senhor Ministro. Só pode ser uma provocação. Tarso olhou para Leónidas. Estavam os dois brancos de medo. -Tem de dar a ordem, Senhor Ministro. - Qual ordem? - Avançamos ou não avançamos? - E se falássemos com eles? Zeca, vai perguntar-lhes se estão muito demorados. É preciso calma. Zeca, vá lá! - Eu vou, Senhor Ministro. Mas no momento em que eu sair deste carro o senhor fica sem protecção. Pode ser o momento esperado para desferir o ataque. - Estás a falar a sério? - A sério. Quer mesmo que vá falar com eles? - Não, não. Vai o Tarso. - Senhor Ministro, pela sua rica saúde, não me faça uma coisa dessas. Eu não sou capaz. Estou tão assustado que não sou capaz e acho uma injustiça morrer aqui. Tarso começou a chorar baixinho e Leónidas transpirava. Podia ser um acidente, mas bem podia ser a emboscada. O general Poeiro, que comandava as unidades antiterroristas, explicara-lhe as várias técnicas de ataque do inimigo invisível: «Criam manobras de diversão, Excelência. Uma festa, por exemplo, e

quando toda a gente está acelerada com os copos e com as garinas descascadas, lá vai bomba. O cenário pode mudar, mas vai dar sempre ao mesmo, e depois lá vai bomba. Veja o que aconteceu a semana passada em Madrid. Uma bomba debaixo da passarela para a passagem de modelos. As miúdas foram apanhadas com uma pá!»

Leónidas limpou as gotas de transpiração que lhe encharcavam o pescoço. Tinha um medo terrível de morrer e ainda por cima ser apanhado com uma pá. E devemos concordar que não tem dignidade nenhuma recolher um ministro com uma pá.

- Merda! Mas que merda! - Avançamos ou não avançamos? - Se avançarmos, lixamos a fruta aos homens. - És pago para conduzir. Por isso, cala-te! - Cada minuto que continuamos aqui parados aumenta o risco de irmos pelos ares.

- Então, como é? O senhor decide-se ou não? - Merda! Merda! Ainda não fizera três meses que fora investido no cargo de ministro da Guerra e aqui estava a sua primeira ordem de combate. E logo para salvar a própria pele.

A decisão mais prudente era voltar para Lisboa. Fazia um telefonema a pedir desculpas ao presidente da Junta e até se aliviava da preocupação de esconder ao presidente do Conselho e ao colega das Obras Públicas aquela facadinha que ia dar na política das inaugurações. Porém, a vaidade pessoal criticou-o severamente. Que estava a três quilómetros de Zulmirinho, a três miseráveis quilómetros da sua imortalidade, da lápide com o seu nome gravado, em letras de ouro, a três palmos de distância da glória e honra se ser património da história pátria. A vaidade, quando se irrita, pode levar um homem a limites insuportáveis. «Já te esqueceste, Leónidas? Quando despertaste para as coisas do amor? O Resende, o maior lavrador da freguesia, correu contigo a pontapé quando o coração te empurrou para os braços da Maria do Carmo, sua filha de estimação e teu primeiro amor. Já te esqueceste do ronco
de rancor com que te enxotou? ”Não estou a criar a minha filha para um vadio qualquer a levar para a miséria!” E o vadio está de volta, Leónidas. O vadio é ministro, manda no Resende e até manda no país. Por causa de dois miseráveis terroristas tu vais perder a vingança sonhada há mais de trinta anos?» Não tinha respostas para estas perguntas e a vaidade ganhou à sensatez. - Avançamos. - Avançamos? - Avançamos. Zeca confirmou que tinha a arma pronta a disparar, tomou conta do teatro de operações e gritou: - Baixem-se! O pânico instalou-se na traseira do carro. Tarso, encolhido no fundo, chorava e invocava a mãezinha, e o ministro atacou um padre-nosso e caiu sobre o assessor.

O motor do BMW sobressaltou-se quando o Zeca berrou: «Força!», e partiu destemido, esmagando as maçãs terroristas que se preparavam para atentar contra um dos pilares do Governo e da República: o ministro da Guerra Leónidas de Távora. Ganiu na curva, resfolegou na contracurva e o Zeca olhou para trás. Os dois suspeitos gesticulavam furiosos e o segurança riu: - Ficaram lixados porque lhe lixámos os planos. já podem levantar-se. Leónidas estava amarrotado. Por dentro e por fora. Procurou recuperar a compostura, mas outro medo chegou: - Se não eram terroristas e tiraram a matrícula do carro, vai ser um escândalo. Ainda vou acabar por ter de pagar aquelas maçãs todas. Mal sabia o ministro da Guerra que acabava de decretar uma profecia. É que, pese a insegurança que ameaçava o país, os homens eram mesmo produtores de maçãs.
Leónidas fizera a sua carreira política, sem hesitações nem recuos, no Partido Portugal Feliz. E bem se pode dizer que era um exemplo de coerência para o resto dos seus correligionários. Tudo começara no dia em que se inscreveu no partido. Alguns militantes, depois de uma noitada de colagem de cartazes, procuravam pôr em funcionamento uma velha máquina de café. Foi a grande oportunidade de Leónidas. Acabado de ser despedido do Café Central, ali para os lados das Galinheiras, soube por amigos que o Partido Portugal Feliz pagava bem as sessões de colagem de cartazes e nessa noite arrancou na companhia do Chinesinho e do Pirisca, seus amigos desde os tempos em que chegara a Lisboa fugido de Zulmirinho. E ficou satisfeito. Pagaram logo e Leónidas, guardando as notas, disse a Pirisca:

- Isto é porreiro, pá! Quando é que há mais colagens? - Não sei. Mas, se queres ter a certeza que te chamam, o ideal é inscreveres-te como militante.

- Porquê? - Porque os militantes são os primeiros a ser chamados. - Eu inscrevo-me já. Inscreveu-se e voltou ao bar da sede onde os agora camaradas revolviam as entranhas da máquina de café. A experiência profissional recolhida antes do despedimento foi uma bênção.

- Com licença. Furou o grupo de curiosos, com olho clínico examinou o moinho, observou a rigor as ligações eléctricas, descobriu a avaria, em silêncio desentupiu o tubo da água e o café começou a correr. Tornou-se o herói da noite e, quando saiu da sede do partido, não só era militante como responsável pelo bar. Leónidas ainda não sabia, mas o grande talento em reparar máquinas de café acabara de lhe abrir as portas do futuro. O talento e o Januário, o velhote que deveria considerar como seu chefe. Ainda bom de juízo, as pernas não correspondiam ao afã das noites em que reunia a comissão política, pelo que representava para Leónidas mais do que um chefe. Era o seu verdadeiro líder espiritual.
- Filho, ouve o que te digo, quando o chefe vier tomar a água com gás nunca o olhes nos olhos e sorri. Sorri com humildade. - O nosso secretário-geral só bebe água com gás? - Aqui, filho, aqui. Se depois arrotar ou se peidar, fazes de conta que não ouviste. - Ó Senhor Januário, o homem arrota e peida-se? - E manda. Vais ver, um dia chegará a presidente do Conselho. Seguiu à risca o que o velho lhe disse. Nas noites ou nos fins-de-semana em que decorriam as reuniões mais complicadas, Leónidas não abria a boca, embora não tapasse os ouvidos, e servia as caras que se habituara a ver na televisão sem que o mínimo sinal de surpresa lhe assomasse ao rosto. E a surpresa era muita. Uma tarde deserta não se conteve e desabafou com Januário. - Há uma coisa que não percebo, Senhor Januário. Um homem não é surdo e mesmo que não queira tem que ouvir. Há muitos ódios entre a nossa malta, não há? - Porquê? - Eu oiço-os a falar. Odeiam-se uns aos outros. - É verdade, graças a Deus! - respondeu o velho satisfeito. - Graças a Deus? - Filho, se tiveres ambições políticas, e é justo que as tenhas porque és militante, nunca te esqueças desta lição. Não são os teus adversários políticos os teus inimigos. São apenas adversários e até podem ser amigos. - Não estou a perceber. - Os teus inimigos estão aqui dentro. São os tipos que ocupam o lugar que tu desejas e os outros que desejam o lugar que tu tens. Nunca te esqueças, Leónidas. Não são teus adversários internos, são inimigos.

O rapaz compreendeu. O Januário acabava de dar sentido à maioria das conversas que em voz baixa cruzavam o bar.

- Não vale a pena, pá! Enquanto ele for presidente da Câmara não vale a pena.

- Vocês não me quiseram ouvir. Bem me fartei de dizer que o Ambrósio é que deveria ter encabeçado a lista. Não me quiseram ouvir e agora aí está.

- Porque o Ambrósio também não é de confiança. Faz-se muito nosso amigo, mas anda metido com o grupo do Braçal. Quem é que tu pensas que abriu as portas ao Braçal para vender as locomotivas alemãs.

- O Ambrósio? - Claro. O gajo está rico com as comissões, pá! Rico! - E agora? Vamos ficar sem construir o hotel só porque o homem não nos grama?

- Temos que ir ao Silva. Não vejo outra solução. O Silva, o ministro das Obras Públicas que tanto medo provocava ao agora ministro Leónidas, já era na altura uma das figuras mais temidas do partido. Riquíssimo, mas o que impressionava Leónidas era o porte do homem. Alto, testa larga, queixo duro, olhos azuis sem expressão, dois anéis enormes no mindinho e no anelar e um isqueiro de ouro, que colocava invariavelmente em cima do maço de tabaco quando ia ao balcão tomar café.

Quando ele entrava, as conspirações dissolviam-se, muitos dos presentes levantavam-se para sorrir e fazer vénias a que Silva respondia com um simples manear de cabeça, e o único militante a quem dirigia a palavra era ao Januário.

- Então, Januário, como vão essas pernas? - Mal, Senhor Engenheiro. A velhice resolveu roer-me os joelhos. - Pois é, pois é. E novidades? - Tudo velho, Senhor Engenheiro. - A sério? - Quer dizer, mais ou menos. O grupo do Crispim anda a preparar-se para concorrer à distrital.

- Ai, é? - Pelo menos ontem á noite estiveram aqui a beber uns copos e a fazer uma lista de possíveis apoiantes. - O grupo do Crispim...
Meneava a cabeça enquanto remexia o açúcar na xícara de café. - Diz ao Crispim que tem o meu apoio. Foi assim que Leónidas descobriu a importância do Januário. Não era barman, era o mais eficaz dos carteiros, que, entre um café e um conhaque, entregava boas notícias, dissolvia projectos num ápice, apontava soluções, previa nomeações. - Não vale a pena, Senhor Doutor. Esse lugar de administrador já está prometido. É para um amigo do Senhor Engenheiro. - Deputado? Não sei. O Senhor Engenheiro ainda não falou sobre isso.

O rapaz catrapiscou a manobra. Na noite seguinte, houve colagem de cartazes e o final foi arrematado na Portugália com imperiais e tremoços. Pirisca e Chinesinho na súcia. - O Januário? - É como te digo. É quem manda naquela geringonça. O engenheiro só fala com ele e o maralhal não pára de lhe meter cunhas para o engenheiro. - O Januário? - O Januário. - Por acaso já me tinha perguntado o que faz um paralítico atrás de um balcão. Mas pertenço às bases do partido e as bases não fazem perguntas dessas.

O Pirisca riu do Chinesinho. - As bases do partido servem para colar cartazes e berrar nos congressos.

- Não é bem assim. - Não? - Elegemos a distrital. - Não me lixes, Chinesinho. Também que se lixe. Vim para o partido por convicções. Gramo o secretário-geral. O tipo diz umas coisas.

- Mas não deixa de ser oposição.

- É por isso mesmo que gramo o gajo. Se não fosse oposição, tinha que fazer um discurso todo afinadinho, todo alinhadinho. - Estás aqui estás a dizer que não tens ambições políticas. - E não tenho. Qual é o problema? De facto não havia problema nenhum porque o Pirisca não tinha ambições políticas. Até pelo contrário. Era de um confidente assim, que amanhã não se revelasse um rival, que Leónidas precisava. Sabia onde estava a gazua que poderia abrir a porta por onde voaria. Assim soubesse continuar a servir gasosas e uísques sob os auspícios do seu amigo Januário.

As primeiras casas de Zulmirinho estavam à vista e os mastros que ladeavam a rua principal, enfeitados com bandeirinhas de papel multicolor, prenunciavam a festa. Tarso estranhou:

- Não se vê vivalma! - Estão ao pé do fontanário. É ao fundo da rua, à esquerda. Zeca sondou com o seu olhar de sonar as janelas e portas e sugeriu:

- Ou então preparam uma emboscada. Leónidas alterou-se: - És capaz de ficar calado? Se calhar dei cabo de uma carga de maçãs decentes por causa das tuas emboscadas, não vais estragar-me a festa com outro disparate.

Embora tivesse treinado bastante para afastar da sua vida qualquer réstia de emoção - sabia que era esse o dote a pagar por uma carreira política -, Leónidas estava perturbado. Como se, de repente, a memória regressasse às profundezas da sua raiz feita daquelas pedras, do casario baixo, daquela rua poeirenta onde brincara ao apanha e ao berlinde. Partira com uma fisgada um vidro daquela janela; na casa seguinte vivera o seu tio Olímpio, ferrador e ensaiador dos grupos corais, e , logo ao lado, habitava a mulher gorda e de farto bigode que vendia chupas e
rebuçados de mentol. Ainda seria viva? Até lhe pareceu reconhecer o cão que dormitava preguiçoso. Olha! Ainda existia o curral das cabras feito de lascas de xisto, encavalitadas sem ordem, onde tivera a primeira experiência sexual com a velha Zenaida. Hoje duvidava de que fosse tão velha como os seus olhos de menino a viram nesse dia. Estavam ali os outros dois amigos, levados pela mão sabidona do Dinis, o mais adulto e profundo conhecedor dos prazeres da Zenaida.

- Não custa nada. Um conto de réis e ela faz tudo. - Faz tudo, como? - Dás a nota que ela já sabe para o que é. O primeiro a servir-se vou ser eu para vocês verem como é que é. Tremeram-lhe os joelhos e arrependeu-se mil vezes de ter faltado à aula de Religião e Moral. Se não estivessem outros colegas na bicha, teria fugido a sete pés, mas o Dinis despachou-se num abrir e fechar de olhos e a mulher, deitada sobre a palha, passou um pano entre as pernas e disse: - Anda cá, filho! Leónidas aproximou-se titubeante e entregou a nota. Rindo, abriu-lhe a braguilha com uma das mãos enquanto com a outra encaminhava os dedos do rapaz pela gola da camisa ao encontro de um seio gordo, disforme. Quando lhe olhou a braguilha soltou uma gargalhada. - Já tens pelinhos. Já tens uns pelinhos. Não se lembra de muito mais. Apenas que o sovaco dela cheirava a suor velho e de um espasmo surpreendente que lhe provocou uma dor aguda abaixo do umbigo. Estava molhado. Não sabia porquê mas estava molhado. Nem respondeu à carícia final que Zenaida lhe dirigiu com medo de que a mãe descobrisse e saiu a correr. Ainda ouviu ela chamar o outro colega:

- Anda cá, filho!

Estava embriagado de recordações. Não fosse a ressaca do susto por causa das maçãs terroristas e, de certeza, aquela viagem teria o sabor do mel fresco que a avó lhe mandava comprar aos meios quartilhos à Tia Maria das Colmeias.

Teria sido mesmo uma emboscada? Precisava de falar com o seu colega das polícias. O Zeca assustava-o. Via terroristas em todo o lado e acreditava que, nos últimos três meses à frente do ministério, o seu segurança lhe provocara mais saltos ao coração do que aqueles que poderia contar durante toda a sua vida. Ou lhe mudavam o segurança ou alguém metia este na ordem. Agora arranjara aquele trinta e um com as maçãs. E se os homens não eram terroristas? É certo que desde o ataque às torres gémeas de Nova Iorque, e já haviam passado trinta anos, o mundo mudara por completo. Não se passava um ano que não explodissem meia dúzia de bombas sem hora nem destino certo. Os Americanos, que não baixavam o alerta vermelho, não se cansavam de assustar o pessoal. Está iminente o ataque! Vacinem-se que o inimigo invisível vai atacar com armas biológicas. Construam abrigos subterrâneos que a coisa vai ser com bomba nuclear. Está iminente o ataque! Comprem máscaras que isto vai a toque de gás mostarda. Por que razão não poderia ir a toque de maçãs terroristas? Este raciocínio sossegou-o. A imprevisibilidade da arma a usar pelo inimigo invisível legitimava o atropelo de rainetas quilómetros atrás.

O BMW do Estado virou à esquerda. Ao fundo a multidão rodeava o fontanário, e a banda, que pressentiu a chegada, atacou a Maria da Fonte. Estoiraram três foguetes, as cinco crianças, excitadas, agitaram bandeirinhas e o povo em geral, à falta de melhor, aplaudiu.

Tarso animou-se: - Vai ser uma visita triunfal, Senhor Ministro. Leónidas perguntou, ansioso: - A comunicação social não está, pois não? - Não, acho que não. Não vejo nem câmaras nem repórteres.
Sossegou. Ao menos o Silva não iria descobrir a pequena falcatrua e esse conforto fê-lo sorrir para a pequena multidão curiosa que agora o cercava. Uma abóbora rechonchuda dirigiu-se a ele e Tarso puxou-lhe discretamente o casaco: - O presidente da Junta, Senhor Ministro. - Senhor Ministro! Meu amigo ministro! Já pensava que não vinham! - Como está, Senhor Presidente? O trânsito atrasou-nos. - É o que dá termos os ministérios em Lisboa. Se fosse aqui o seu ministério, chegava a qualquer parte num ai. - Tem razão, Senhor Presidente, tem toda razão. Libertou-se do asfixiante abraço da abóbora e desatou a distribuir cumprimentos a eito, enquanto o rechonchudo autarca berrava vivas a Leónidas, a Zulmirinho e a Portugal exactamente na ordem que aqui se descreve.

Junto ao fontanário, um padre acolitado por um sacristão menino esperava o ministro para iniciar a cerimónia, e Tarso segurou o braço do Zeca, deixando-se ficar para trás. Como ele costumava dizer, gostava de sentir a temperatura dos entusiasmos.

- E o homem? Deixo o homem sem segurança? - Está com o seu povo, ninguém lhe vai fazer mal. - Não sei. Estão todos muito agitados. - Claro que estão agitados. É a primeira vez que vêem um ministro de carne e osso. - Pois. - Descontrai-te, Zeca. Goza o dia e deixa os terroristas em paz. - Estou inquieto com os terroristas das maçãs. - Não te preocupes. A esta hora julgam que nós já estamos a centenas de quilómetros. Enquanto os dois adjuntos de Leónidas trocavam estas palavras, palavras era o que não faltava nas bocas de Zulmirinho. - É o filho do Ti Tábuas - O marido da Zefa dos Trigais?
- O rapaz saiu ao pai. - Ao leiteiro? Dizia-se que a Zefa dos Trigais e o leiteiro... - Ná. É a cara do velho Tábuas. - É muito jeitoso. - E a gravata é linda. O meu marido não gosta de gravatas. - Ainda afogam o homem com tantos abraços. - Os políticos estão habituados. - O que é que virá este coirão fazer aqui depois de trinta anos de ausência?

- Não é só por causa do fontanário, de certeza. - Foi o baboso do presidente da Junta que inventou isto tudo por serem do mesmo partido.

- Calem-se agora. Eles vão falar. - Schiu. Pouco barulho. - Deixem os homens falar, pá! - Isto já não há respeito. Finalmente a gritaria esvaiu-se em murmúrio e depois num silêncio apenas entrecortado, de vez em quando, por um choro de criança ou por latidos de cães assustados com os estouros dos foguetes.

O presidente da Junta retirou um maço de folhas do casaco, tocou com o dedo no microfone e o microfone ganiu. Esperou que um rapaz afinasse o som e por fim começou a ler. Que era uma honra receber ali o Senhor Ministro. A sua presença era a prova de que Zulmirinho contribuíra decisivamente para a construção europeia. Dera um ministro para essa construção e gostaria de perguntar quantas mais freguesias ao redor deram um ministro, até mesmo um secretário de Estado para construir a Europa. Para além das generosas dádivas à cultura nacional. Era filho de pais zulmirinhenses o último vencedor da Grande Noite do Fado e ainda não havia muito tempo o rancho folclórico participara num programa de televisão.

Enquanto o homem soletrava o discurso, Leónidas passeava o olhar pelos rostos que se espalhavam à sua frente. Não via o Resende, o pai da Maria do Carmo, nem conseguia reconhecê-la no
meio da manifestação. Devia estar mudada. Trinta anos modificam por completo traços e perfis. Podia ser qualquer daquelas mulheres gordas que se alinhavam mesmo à sua frente. Ficou surpreendido por não conhecer ninguém. Até o terreiro onde estava o fontanário era diferente. Agora havia um café chamado Paris e a mercearia do senhor Vinhas desaparecera. No seu lugar erguia-se uma vivenda de telhados empinados e dois cães de barro, sentinelas inertes, a ladearem a porta. - Sim, Senhor Ministro. Este fontanário consagra a vossa obra, que ainda é curta mas é rica, e, se Deus quiser, será longa para que o país se alongue em progresso e desenvolvimento. Aplausos. Leónidas reparou num homem que o olhava com insistência. Tinha um boné verde puxado para a orelha e um sorriso irónico inundava-lhe a face. Desviou o olhar. - Porque este fontanário é o ninho, a pedra imortal regada pela água viçosa, a mesma água que Sua Excelência bebeu nas fontes da nossa aldeia e que regou a inteligência do pardalito ainda petiz, de ontem, que chegou à majestade de ministro, que é hoje. Não conseguia descobrir a Maria do Carmo e, de súbito, a Lucrécia veio-lhe à cabeça. Tinha de pôr definitivamente um ponto final no casamento. Já não havia mais nada para dizer ou para amar. A relação entre ambos dissolvera-se ao longo dos anos, caminhando cada um por veredas e atalhos cada vez mais distanciados e mais sozinhos. E depois a Irene cada vez exigia mais e Leónidas queria mais. - É uma obra ímpar que os nossos opositores prometeram quando eram junta e fomos nós que cumprimos.

Ribombaram aplausos e León idas acompanhou. O homem do boné continuava a olhá-lo com aquele sorriso que lhe parecia carregado ora de ironia ora de desafios e que lhe estava a provocar uma irritação crescente. Seria um cúmplice dos terroristas das maçãs? Procurou o Zeca com os olhos. Se queriam atentar contra si, ali estava empoleirado no alto do palanque improvisado exposto a uma saraivada de balas ou, até, a uma seta envenenada disparada com arco de qualquer das janelas que cercavam o
largo do fontanário. O discurso gongórico da abóbora autárquica estava a impacientá-lo e não foi capaz de evitar o suspiro de alívio quando estoiraram os gritos apoteóticos.

- Viva Zulmirinho! Viva o nosso ministro, Sua Excelência de Távora! Viva Portugal.

Ao ouvido do presidente da Junta, segredou: «Muito bem, muito bem!», e, meio escondido pela generosa pança do edil, puxou o microfone e arrancou escolhendo as palavras:

- Portugueses... caros patrícios! - e o povo estremeceu de aplausos a esta introdução.

Procurou com o olhar o homem do boné verde. Não aplaudia e o sorriso era agora intolerável. Leónidas estremeceu. Era capaz de jurar que não estava com boas intenções. Fez um esforço para colocar a voz e continuou:

- Ao longo de toda a minha carreira política, raras foram as homenagens que me calaram tão fundo. Eu lembro-me de brincar aqui, no largo do bebedouro das bestas, onde esses nobres animais vinham saciar a sede depois de um dia de labor. E hoje aqui estou, no mesmo sitio, mas no largo do fontanário do Leónidas. Uma obra que é a prova do esforço do nosso Governo pela descentralização.

As palmas interromperam o discurso. O homem do boné verde continuava a fitá-lo e agora o sorriso parecia de escárnio. Pressentia a ameaça e, nervoso, procurou esconder-se um pouco mais por detrás da barriga do presidente e preparou-se para rematar:

- A minha gratidão não tem limites. E aqui comprometo-me convosco! Não fecharei olho enquanto a Europa inteira não pronunciar a palavra Zulmirinho sem abrir a boca de espanto.

Gostou da figura de retórica e a angústia aliviou. O homem do boné verde aplaudia aquela da Europa com a boca aberta de espanto. Resolveu disparar a bombarda que trazia no arsenal das surpresas:

- É já nessa senda de progresso que ontem assinei o despacho que vai trazer para a nossa freguesia o novo paiol das Forças Armadas que o esforço de guerra nos obriga a construir com fundos perdidos da União Europeia, trazendo mais riqueza e prosperidade à querida terra que nos viu nascer! Viva Zulmirinho, viva Portugal! Para que se soubesse que o povo concordava que vivesse Zulmirinho e consequentemente vivesse Portugal, voaram chapéus, as palmas estalaram e a banda tornou a atacar a Maria da Fonte, e Leónidas, qual duque de Saldanha dos novos tempos, ergueu o queixo e agradeceu com sóbria vénia. Pegou numa tesoura que uma menina vestida de branco lhe oferecia numa almofada de carmim, cortou a fitinha que se desprendeu em duas faixas cor-de-rosa e a água escorreu no fontanário do Leónidas. Agora misturavam-se mais foguetes ao barulho geral e a «abóbora» da Junta, roxa, engasgada no colarinho apertado, berrava por Zulmirinho e pelo paiol que o seu ministro em boa hora ia levar àquela terra de paz. Emergia do mar de abraços e beijos quando olhou e pensou que a sua vida ia chegar ao fim naquele preciso instante. À sua frente a morte sorria irónica de boina verde à banda. Aquele sorriso só podia ser o ajuste final e a voz saiu-lhe num sussurro: - Perdoe-me! Por favor. A voz não era fria como pensava que era a voz da morte. - Então, não me conheces? Aliviou. Um terrorista nunca perguntaria à sua vítima: «Então, não me conheces?» Gaguejou: - Por acaso não estou a ver. - Sou o Chico. O teu primo. Representou um sorriso de afecto e coreografou um abraço tão esplêndido que duas velhas não contiveram as lágrimas. - São sangue do mesmo sangue. - O Chico é primo dele por parte de quem? - Não te reconheci. Engordaste, não foi? - Pois. E depois a falta de cabelo. - A comadre não se lembra do Isidro, que esteve emigrado em França? Sim, o Isidro que era casado com a Chica dos Trigais, irmã da Zefa, que era a mãe do Senhor Ministro. O Chico é filho.
- Pois claro. A Chica dos Trigais! Essa ainda andou de namoro com o que agora é meu cunhado. O Júlio, o irmão do meu marido, que vive lá para Lisboa e até entrou naquele concurso de sexo ao vivo. - Os teus pais como estão? - Já morreram há muito tempo. - Oh, que aborrecimento! E não me disseram nada? Não conseguiu saber, e até ficou aliviado porque não lhe disseram nada. A multidão arrastava-o para uma grande mesa que, atravessando o largo, mostrava as iguarias da terra comemorativas do fontanário do Leónidas. Sorriu ao cheiro do pão cheio de memórias antigas. Era quente e espesso, tal como aquele que a sua mãe amassava. Antegozava já a primeira trincadela quando um microfone se intrometeu:

- Senhor Ministro, para a rádio Terras de Azinho. Qual o significado político deste fontanário na estratégia do Governo?

Em pânico correu o olhar pela multidão à procura de Tarso. - Como? Qual é o nome da emissora? Perguntou para ganhar tempo. O assessor de imprensa jurara-lhe que nenhum jornalista fora informado da visita a Zulmirinho e agora, com um naco de pão caseiro à soleira do prazer, surgia uma rádio.

- Terras de Azinho, frequência cento e seis ponto nove, mais precisamente. Tarso abocanhava uma perna de peru quando viu os sinais de alerta que o ministro lançava e, estarrecido, percebeu o microfone em riste. Correu armado da perna de peru em defesa de Sua Excelência.

- Quem é? - perguntou destemido. O jovem jornalista respondeu. - Sou o Óscar, da Terras de Azinho. E o senhor? Tarso suspirou de alívio. Era uma rádio local e Leónidas aproveitou para esclarecer:

- É o meu assessor de imprensa. Ele responde-lhe ao que deseja saber.

- Mas eu queria o seu depoimento. - Desculpe-me, mas hoje sou um cidadão anónimo. Um zulmirense que veio almoçar com os patrícios. O Doutor Tarso Guimarães responde-lhe a todas as perguntas. Leónidas afastou-se e o Oscar não se fez rogado. - Doutor Tarso, como é possível que o seu ministro tenha a pouca-vergonha de trazer para a sua própria terra o paiol que todas as autarquias do país recusaram nas suas? Tarso engasgou-se no osso da pergunta: - Como? Perdão! Engasguei-me. A carne do peru é muito seca. - Pode responder à minha pergunta? - Um momento. Só um momento. - Beba este copo de água. Vai passar-lhe a tosse. - Obrigado. Pausa. - Ah! Agora já estou melhor. Engasguei-me. Não posso comer peru. - Já está em condições de responder? - Claro, claro. A pergunta era...? - Sobre o paiol aqui em Zulmirinho. - Ah, sim. Pois! O paiol. Claro! - E... Pausa. - A sua questão está mal posta. - Perdão? - Um paiol, tal como qualquer outra estrutura do Estado,

é sempre uma fonte de riqueza e de progresso. - Porquê? Desde quando um paiol é fonte de progresso? - O que está o senhor a insinuar? - Nada. Apenas a perguntar. - Há perguntas e perguntas, meu caro senhor. Este paiol não custa um euro ao país. É um financiamento externo, à borla. Diga-me agora o senhor: está o país em condições de não aceitar uma borla?
- Mas é um paiol. Esta gente pode ir toda pelos ares. - Pode e não pode. Ouviu a oposição a protestar quando o Senhor Ministro fez o anúncio? Apenas aplausos e mais aplausos.

- Porque não perceberam e... - Meu caro Óscar, meu querido colega. O senhor não sabe mas somos colegas. Esqueça o paiol, proteja a sua pequena mas simpática rádio Terras de Azinho e afaste-se de questões que são segredo de Estado. Com certeza que não é uma rádio rica e é muito desagradável ter os serviços secretos à perna.

- Os serviços secretos? Está a ameaçar-me? - Eu? - Claro. Eu tenho o direito de fazer perguntas. - Desde que não ponha em causa a segurança do Estado. Óscar não percebeu a insinuação e Tarso carregou sibilino: - Há por aí muito terrorista descontente com este paiol. Não vai querer que eu acredite que faz parte do grupo dos descontentes, pois não?

O radialista ficou a gaguejar. Uma simples pergunta e estava a um passo da lista dos terroristas e, entretanto, sem saber da conversa, ao longe, Leónidas tremia. Se o chefe soubesse que ele andava em inaugurações não autorizadas, ia levar uma coça de caixão à cova. É que o homem fizera mesmo recomendações especiais e sessões de esclarecimento para ministros e secretários de Estado. - Uma inauguração fora do timing pode deitar tudo a perder. Tudo! O chefe deleitava-se com a manobra de propaganda e fazia alarde de conhecer todas as técnicas e truques para fixar votos, angariar eleitores e, até, os momentos precisos em que podia ser impopular. Conhecimentos que albergava numa síntese sublime que Leónidas, de vez em quando, gostava de citar:

- O povo é como um animal doméstico. Precisa de pancada e de carícias! - E concluía com natural condescendência:- A verdadeira arte de governar consiste em dar-lhe as pancadas e as carícias nos momentos certos para que, em vez de morder, nos venha comer à mão! Tarso aproximou-se do ansioso ministro. - Espantei-o. O tipo não se calava com o raio do paiol. -Tinhas-me garantido que não havia jornalistas! - E não há, Senhor Ministro. O miúdo é de uma rádio local e apareceu aqui por acidente. - Se o primeiro-ministro descobre... - Leónidas teve medo de concluir a frase, o outro ia dar cabo dele. - Não vai saber. É uma emissora para campónios, que deve ser escutada por um punhado de ignorantes. - Seja como for, já não estamos aqui a fazer nada. Está feita a inauguração e a partir de agora esta gente vai embebedar-se. Onde está o Zeca?

À pergunta do ministro da Guerra, o Zeca surgiu pálido. A mão direita descansava discretamente em cima da coronha da pistola enfiada no cinto das calças. - Os terroristas das maçãs estão de guarda ao nosso carro. - Uma bomba. Puseram-lhe uma bomba! - e o coração de Léonidas tornou a disparar. - Não, Senhor Ministro. - Mas disseste que estavam ao pé do carro. - Querem falar com o dono da viatura. Ou lhes pagam as maçãs ou dizem que largam fogo ao automóvel! - Como é que é? - É verdade, Senhor Ministro. Não são terroristas. - Mas tu juraste a pés juntos que eram. - Com todo o respeito, Senhor Ministro. O que eu disse é que pareciam ser terroristas. A ordem para avançar foi dada por Sua Excelência.

Leónidas não se conteve e desatou a gritar: - Que grande merda! Mas que grande merda! Tarso ficou inquieto. O ministro estava a perder a cabeça e o

povo, que se alambazava à mesa da autarquia, dava os primeiros sinais de atenção ao assunto.

- Senhor Ministro. Oiça... Mas não ouviu. Quando a cólera lhe abrasava as entranhas, transfigurava-se e entrava em cena o antigo responsável pelo bar da sede do partido.

- Eu não tenho dinheiro para pagar a merda das maçãs. Já viram a minha vida? Mas que puta de vida a minha!

Convenhamos que Tarso tinha razão. Se o povo escutasse este discurso ditado pelo lado obscuro do ministro, por certo que não o aplaudiria com o mesmo entusiasmo que manifestara ainda há pouco junto ao fontanário. É que um ministro a blasfemar em público não é apenas uma criatura irritada. É o país que blasfema e se irrita. O povo adora um país sereno, que preze a má-língua mas não perca as estribeiras, e, sobretudo, um país que não chateie. Decidiu-se:

- Vou falar com os homens. O assessor afastou-se e o presidente da Junta aproximou-se. Perguntou a medo:

- Há problemas? - Problemas? - O Senhor Ministro afastou-se e, pela sua cara, disse para com os meu botões: Há caso. Os terroristas voltaram a atacar, não foi?

Léonidas olhou de soslaio para Zeca e, com uma ironia velada, respondeu:

- Não. Desta vez fomos nós que atacámos os terroristas. O segurança, homem de armas pouco dado a subtilezas de linguagem, decidiu complementar:

- Se os tivéssemos abatido, nada disto tinha acontecido. O presidente interessou-se: - Não os mataram? Olhou severo para Zeca e respondeu: - Não, não. Enquanto for ministro, a guerra há-de ser feita pela evangelização e não pela repressão. - Pela evangelização?

- É o caminho da salvação dos homens, meu amigo. Além de que as munições estão caras e o país está em crise. O presidente não percebeu. Alargou o nó da gravata e repetiu desorientado: - Pela evangelização? Cum catano! E o ministro rematou filosoficamente: - É isso mesmo. Cum catano! Os olhinhos reluziram no fundo das bochechas atomatadas. Arrotou, disse com licença e baixou a voz para informar: - Os tipos da defesa do ambiente estão a grasnar por causa do paiol. Dizem que, se rebenta, Zulmirinho desaparece do mapa. - São muitos? - quis saber o ministro. - Os mesmos de sempre. - Para a semana leve-mos ao gabinete. - Esta malta da ecologia está cada vez mais cara. - O nosso primeiro-ministro já sabe. Este ano aumentámos-lhe o subsídio. - E eles calam-se? - Calam-se sempre. Leve-mos ao gabinete. Tarso, sorridente, acenou-lhe de longe. Percebeu que era a hora

da partida. Cumprimentou rapidamente os presentes, acenou à multidão, que aplaudiu, e saiu. Só quando a viatura ganhou velocidade ousou perguntar: - E os tipos das maçãs? - Foram-se embora. - Embora? Sem mais nem menos. - Consegui que o dono do Café Paris me desse uma factura

em branco. - Em branco? E para quê? - Martelamos a factura, Senhor Ministro. Faz de conta que pagámos um almoço. - E quanto vai custar esse almoço martelado? - Três mil euros. Leónidas arrepiou-se.

41 - Três mil euros? Um almoço?! Mas é uma fortuna! - Por amor de Deus, Senhor Ministro. Sua Excelência deslocou-se a Zulmirinho para um encontro secreto com os oficiais dos serviços secretos dos países aliados. Não podia deixar de, pelo menos, oferecer-lhes o almoço.

- Mas isso é um disparate! - Sua Excelência tem alguma alternativa? Hesitou e deixou cair os braços como se estivesse vencido. - E o secretário-geral papa essa história? - Não tem outro remédio. O encontro era secreto não há mais informações a prestar.

- Um encontro secreto em Zulmirinho? Oh, Tarso... Não sei. - Não sou ninguém para dar lições ao Senhor Ministro. Mas a verdade é que em tempo de guerra não se explicam segredos militares nos versos das facturas.

O argumento era forte e León idas não respondeu. Depois sorriu. Tarso tinha razão. Ninguém o questionaria sobre uma reunião de tal envergadura. Que, aliás, correra com grande sucesso. Nem uma notícia nos jornais, nem um directo nas televisões, sinal da discrição da organização. É verdade. Tarso estava certo. O almoço passava sem problemas, os homens das maçãs agraciados com o cheque gorducho nem voltariam a dizer mal dele, quanto mais protestar por causa daquele incidente sem nexo. Sossegou. Lá longe, escondido nos matagais das serranias, estava, firme e altaneiro, o seu fontanário onde o nome de Leónidas de Távora, definitivamente imortalizado, velava para que não houvesse sedento com sede. Fechou os olhos e um doce e sereno torpor invadiu-o. Nesse preciso momento decidiu que não iria para casa. A Lucrécia estava cada vez mais insuportável e aquele dia memorável não admitia mais uma discussão conjugal. Iria ter com Irene, que o esperaria sôfrega de desejo. Como sempre. O fontanário voltou-lhe à memória, os discursos, a banda e a imorredoira Maria da Fonte, e, feliz, Leónidas adormeceu.

Pôs o problema ao Januário um dia que o bar estava deserto e os dois se entretinham a beber minis e a comer tremoços. -Tu queres mesmo fazer uma carreira política? - Se o Senhor Januário me ajudar. Era o único militante que o tratava por senhor e Januário gostava da delicadeza. Talvez por causa disso também gostava de Leónidas. - Não sei. - O senhor acha que não sou capaz? - Depende. - Depende? - Filho, só há duas maneiras de fazer política. Ou devido à crença nas ideias que o partido defende, mas aí não tens futuro. És ignorante, ideias poucas e convicções ainda menos. - Não diga isso, senhor Januário. - Comigo não precisas de mentir, Leónidas. Mas sempre há outro caminho. Golpaças, traições, alianças hoje com um, amanhã com outro à procura de fazer fortuna. - Pois. Lá isso. - Tu estás neste grupo. - O senhor acha? Mas porquê? Januário explicou com calma. Como já lhe dissera, havia um

grupo de homens que fazia política por convicção. Acreditavam em sistemas de ideias, eram até capazes de morrer por eles. Eram aquilo que o velho barman chamava os políticos necessários. Tão importantes no partido como um copo, um prato ou um rolo de papel higiénico. Usam-se e, quando estão usados, deitam-se fora. Mas são necessários. Se o partido tiver de os meter no lixo, precisa imediatamente de os substituir. O Leónidas não percebeu:

- Não estou a perceber. Afinal esses tipos das ideias servem para quê?

- Servem para fazer de conta. - Perdão? - Exactamente.

43 - A sério? - Filho, esquece as ideias, os tratados, os ensaios. Ignora os teóricos, os doutrinadores. Já leste os estatutos do partido?

- Por acaso não. - Também não te preocupes. Eu já fiz de um contador de anedotas ministro do Recreio e de um alcoólico ministro das Estradas. Importante é ter os contactos certos.

Leónidas estava nervoso. A disponibilidade do velho Januário para o ajudar a subir na escada partidária que leva à fama e à glória acelerava-lhe as ambições.

- Mas o que devo fazer? Devo ler alguma coisa? Sei lá, um manual de ciência política.

- Não. Não fazes nada. Não abres a boca. Apenas para sorrir quando o chefe falar contigo, para dizeres bem do chefe ou para aplaudir o chefe.

- E o Senhor Engenheiro Silva? - Aplaudires o chefe é a mesma coisa que aplaudires o Silva. Porque chefe é quem o Silva quiser. Portanto silêncio de sepulcro e irás longe. O resto deixa por minha conta.

Nessa noite, quando se encontrou com o Pirisca e o Chinesinho, não foi capaz de guardar o segredo. Abriu-se:

- O Januário diz que me ajuda a fazer carreira política. Os dois amigos desataram a rir. - E faz de ti, o quê? Deputado? - Nem penses. Pró Tábuas, no mínimo, ministro. - Vocês estão a gozar, não é? - Leónidas, ganha-me juízo nessa carola. Já tiveste uma sorte do caraças em arranjar trabalho no bar da sede do partido. Não abuses, pá!

- Ainda por cima estamos na oposição. - E depois? Não há-de ser sempre assim. - Há mais de dez anos que não tocamos na chicha. O Partido do Portugal em Pé já fez três maiorias absolutas e vais ver nas próximas eleições. Levamos outra tareia que até andamos de lado.

- Não é tanto assim. Não é tanto assim. - Vê as sondagens e depois logo me dizes se não é tanto assim. - Bom, mas quanto ao meu caso. Pirisca estava inflamado e não deixou Leónidas falar. - Quanto ao teu caso, não é caso, não é nada. Não tens hipóteses, Leónidas. A começar pelo nome. Leónidas Tábuas. Alguém vai acreditar num tipo que se chama Leónidas Tábuas? - E tens cadastro. Fugiste da tua terra por causa do gamanço, não foi? - Isso não conta. A Guarda nunca me apanhou e não houve julgamento. E no Portugal em Pé há uma quantidade de tipos que se fartam de meter a mão no saco do «caroço» e aí continuam à frente de tudo o que é para mandar. - Mas são ladrões ricos. Não é o teu caso. - Aquele, o Gustavo, o ministro da Indústria Naval faz contrabando de armas. - E é dono de um banco. Quando falta dinheiro para as obras públicas é ele quem empresta. Achas que se pode prender um homem que empresta dinheiro ao Governo para que o Governo nos governe?! És doido, pá! - Não sei. Não sei. - Comem-te vivo. Entras num mundo de tubarões e comem-te vivo.

Leónidas duvidou. Conhecia a importância do Januário. Amigo íntimo do Silva e não fora nem uma nem duas vezes que os ouvira decidir destinos. - O Senhor Engenheiro devia ficar de olho em fulano. -É bom? - É leal. Talvez não seja muito bom. Se calhar é um bocado estúpido, mas é leal. - Manda-mo ao escritório. Era coisa seca. Sem grandes rodriguinhos e, se fosse estúpido, era melhor do que ser inteligente. Desde que a lealdade estivesse provada.

45 No entanto, havia uma coisa em que os seus amigos tinham razão. O apelido de Tábuas não o ajudava. Já de si, Leónidas não era nome amigável. Remetia para universos guerreiros impantes de vitórias e coragens. Segundo Januário, atributos pouco recomendáveis para quem queria saltar detrás do balcão de um bar, mesmo que fosse do bar da sede central do partido, para os holofotes da vida pública. Por sua vez, Tábuas tresandava a plebeu e ninguém precisava de ser erudito para perceber que tudo o que cheirasse a povo seria estigma que o perseguiria até à hora de o fecharem nas tábuas do seu caixão. Precisava de um apelido que diminuísse o furor épico escondido no Leónidas, mas sem matar nenhum dos outros adjectivos. De súbito veio-lhe à cabeça o apelido de «Távora». Hesitou. Não seria demasiado pomposo? Hesitou outra vez. A sua pronúncia sugeria logo velha nobreza, passado honrado e vida pejada de aventuras e fragilidades. Porque, sendo poderosos, caíram como flor submetida aos ventos do Inverno quando o rei os mandou executar. Foi essa dimensão trágica que o decidiu. Murmurou o novo nome: Leónidas de Távora. Depois disse-o: Leónidas de Távora. Finalmente gritou-o: Leónidas de Távora!, e pressentiu que acertara em cheio. Houve qualquer coisa de divino e premonitório naquela preocupação ali mesmo resolvida. É que no dia seguinte o Januário perguntou-lhe:

- É verdade que te chamas Tábuas? - Por parte da minha mãe. - Como?

- O meu nome é Leónidas Júlio de Tábuas e Távora. Távora do lado do meu pai.

- Quer dizer que descendes dos tipos a quem o marquês de Pombal cortou o pescoço.

- Mais ou menos. Respondeu evasivo. O velho apontou o nome num guardanapo de papel.

- E o meu nome é para quê? - Pró Engenheiro Silva.

- Não será ainda cedo, Senhor Januário? - Vão começar a fazer as listas de nomes para as autarquias. As eleições são para breve. Deixa ver se te consigo enfiar num lugar decente.

Léonidas ainda não sabia, mas começou naquele guardanapo de papel uma carreira que o levaria à glória.

Esgotava-se nos braços de Irene. O corpo torneado a moreno, os seios duros, os lábios carnudos eram apenas sinais do mar onde Leónidas mergulhava como se não houvesse terra nem porto seguro naquele naufrágio voluntário e tão sem limite. De início, não passava de desejo. Era deputado e bebia com outros colegas no bar Negócios. Um antro requintado que reunia políticos, políticos reformados, jornalistas do cambão e empresários que trabalhavam com o pêlo do cão. Bebiam e conspiravam quando entrou Irene, acompanhada de Rita e de dois homens. Todas as cabeças masculinas do Negócios acompanharam, lúbricas, o andar espantoso daquela mulher esguia, de cabelos escorridos e olhar lascivo. Era Verão e o decote franco. De uma franqueza que Leónidas quase gritou o desabafo: - Mas que abençoado par de mamas. Ao que um seu colega, deputado do Portugal em Pé, ripostou: - É boa como o milho. Comia-a toda.

Durante cinco minutos, os cinco deputados transformaram-se em talhantes. Apreciavam carne. - Vejam-me aquelas pernas. - Nunca mais acabam. E as coxas? - E a puta sabe que é boa. Olhem como cruza as pernas. - As mamas! Estou doido com aquelas mamas. Quem são os gajos? - Maricas. Um deles conheço-o. É mais paneleiro que uma galinha.

- Olhem que a outra tipa também não é má. Tem um cu do caraças.

- Tens a certeza de que os gajos são maricas? - Absoluta. Aliás, estas gajas boas procuram maricas para se sentirem mais protegidas.

- Comia as duas. - Vê-se mesmo que és da maioria. Queres tudo para ti. Léonidas não prestava atenção a este debate elevado acerca dos atributos das duas mulheres. Não conseguia despregar os olhos do olhar dela. E Irene sorria-lhe, deixando escorrer os longos cabelos negros por entre os dedos.

Levantou o copo numa simulação de brinde. Ela correspondeu e beberam, parados um no outro.

Murmurou para os colegas. - Vou ter com ela. A elite intelectual do bar Negócios regressou ao debate. - Não tens cabedal para aquilo. - Ela é que te come vivo, Leónidas. - Se a gaja te der com os pés, vou lá eu e parto-a toda. - Eu vou contigo. A outra também é boa. - Vocês têm mais olhos que barriga. - Deixa-os ir. Vão levar uma corrida do cacete e vamos divertir-nos à pala da oposição.

- Quanto é que apostam? - Um jantar regado a champanhe. - Está feito. Os deputados da maioria pagaram o jantar. Desconheciam os dotes de sedutor de Leónidas e não sabiam que Irene era uma passageira da noite, apaixonada por si e por um sonho - um dia ser vedeta. Fosse do que fosse, mas queria saciar a fome do seu próprio corpo. Mostrar a sua beleza e glorificar-se nela em cada oportunidade que o mundo tivesse de a ver. A si própria se intitulava manequim, outras vezes modelo, quase sempre estudante. Tinha um currículo que, a crer nas suas palavras, era invejável. Participara numa campanha publicitária para vender

bronzeadores, depois fizera de figurante em duas novelas e, agora mais recentemente, numa outra campanha para promover uma marca de soutiens. Pois claro!, soutiens, e só de pensar naqueles seios duros que se lhe encostavam ao braço, amansados dentro da roupa íntima, León idas babava-se. E não ficavam por aqui os atributos da bela Irene. Logo a seguir, deu-lhe uma alegria: era contra o casamento e detestava as dondocas, as palavras são dela, as dondocas que andavam à procura de um marido a qualquer preço e, depois, casamento feito logo armadas em policias da fidelidade dos maridos e pondo-lhes cornos em tudo o que era hotel. - Umas putas! - arrematou e León idas engoliu em seco e acrescentou: - Pois são! A ideia de Lucrécia ser-lhe infiel espreitou-lhe à memória. Não era capaz de imaginá-la assim, mas a gula que lhe despertava Irene obrigou-o àquela primeira cumplicidade. - Pois é! E Irene carregou fundo. Como se chamava, o que fazia ele na vida e, ao saber que estava sentada ao lado de um deputado de carne e osso, autêntico, magistral!, como constantemente repetia, abriu-se. A mão pousou casualmente na mão dele.

Tão novo e já deputado. Ele bem lhe disse que já ia nos trinta e sete anos, mas Irene garantia que não e perguntava aos maricas: - Ele tem cara de quem tem trinta e sete anos? Um deles olhou-o guloso: - Não. Por acaso é um pêssego madurinho. Sorriu incomodado com o olhar lascivo do outro e assustou-se. E se alguém da multidão que estava no bar supusesse que a sua posição era a de mais uma bichona a acompanhar as miúdas? Levantou-se de um salto e sussurrou ao ouvido de Irene: - Vamos dançar? Só despertou quando pela madrugada, já corriam pelas ruas da cidade os primeiros autocarros apinhados de gente, deu consigo a descer as escadas rangentes de um prédio envelhecido que cheirava a pó e a refogados. Era a primeira vez que não ia dormir a casa. Lucrécia não deixaria o evento passar em claro e iria metralhá-lo com perguntas. Ainda por cima não telefonara a dizer que chegava tarde. Olhou o relógio. Daí a uma hora ela sairia para levar o filho ao colégio.

Decidiu adiar o embate. A Praça da Ribeira não era longe e mataria saudades dos tempos da farra com o Pirisca e o Chinesinho, que acabavam ali, no cacau, entre os pregões das vendedeiras. Estava prenho de Irene. Ela tornou a acordar a animalidade que as rotinas do casamento haviam amordaçado com o correr dos anos, e já clareava o dia, os dois transpirados da refrega, quando ela exausta se deixou cair nas almofadas:

- Deste cabo de mim. Estou exausta! Leónidas sentiu-se o melhor deputado do mundo ao ouvir o murmúrio de rendição. Embora saciado e com cãibras a tolherem-lhe as pernas, decidiu dar a estocada fanfarrona:

- Apetecia-me mais. - Não consigo. Estou morta. Ouviu Leónidas e ficou aliviado. Sentia-se todo espezinhado por dentro. Beijou-lhe um ombro.

- Amanhã, vejo-te? Desejava por todos os seus guias espirituais que ela não pudesse. Tinha apanhado uma indigestão de sexo e as pernas vergavam. - Não sei. Telefona-me. Começou a vestir a camisa quando Irene, sonolenta, perguntou: - Não dormes? - Não posso. - Já percebi. És casado. Tentou ensaiar uma explicação, mas a rapariga fez um aceno vago com uma das mãos e adormeceu imediatamente.

O cacau estava demasiado quente e não tinha o sabor dos velhos tempos. Acendeu um cigarro, aspirou com sofreguidão,
querendo espantar o sono, e decidiu que não voltaria a vê-la. Ganhara a aposta aos amigos, tivera uma noite inesquecível. Chegava. Embora tivesse casado como se conquistasse uma rainha num jogo de xadrez, com os anos aprendera a amar Lucrécia. Conhecia-lhe as forças e compreendia-lhe como ninguém as fraquezas. Era uma espécie de ventre materno no qual se abrigava de todas as tempestades e, depois de ter nascido André, aquele casamento tornara-se na única coisa mais ou menos séria que fizera na vida.

Quando encontrou a mulher, ao fim da tarde, ficou-lhe grato por não ter reagido mal. - Devia ter-te telefonado, mas pensei que a reunião fosse rápida. Depois já não o fiz para não te acordar. Estivemos a discutir o orçamento até de madrugada. - Mas está tudo bem, não está? - Por acaso está tudo mal. Vamos votar contra. - Beijou-a: - Desculpa não te ter telefonado. - Deixei-me dormir. Dei banho ao André, fui para a cama ver testes e só acordei quando ele chorou de manhã, querendo a papa. A generosidade de Lucrécia ainda reforçou mais a sua decisão. Não tornaria a ver Irene e jurava sobre o que lhe restava da honra que nunca mais seria infiel. E de consciência mais leve deixou-se cair como chumbo no sofá, num sono tão pesado que nem se recordava de a mulher o amparar carinhosamente até ao

quarto.

Ia longe esse dia no dia em que o ministro Leónidas de Távora regressava de Zulmirinho com saudades dos braços de Irene. Entre estes dois dias tinham passado oito anos. Oito anos são muitos dias a jurar que nunca mais a via e, a seguir, um impulso descontrolado, uma fome tão sem limite, transtornava-lhe a capacidade de pensar para de seguida rebentar os diques onde guardava censuras e interditos. Irene tornou-se num sol maior que lhe
inquietava todas as horas. Porque quanto mais a descobria, soltavam-se amarras, os corpos respondiam às excitações que nasciam de todas as fontes dos sentidos e, conforme Leónidas segredou a um amigo, depois de fazer sexo com ela sentia-se mais homem.

- Tu estás apaixonado, Leónidas. Riu-se do outro. Era uma garota. Dez anos mais nova do que ele. Ainda por cima maluca.

- Estás doido! - Não estou, não. Tu estás apaixonado. A ideia assustou-o. O casamento com a Lucrécia era um recanto de paz e André iluminava-lhe os dias. Não podia apaixonar-se por alguém que era um vulcão, lava e explosões de magma, mas onde não havia um ninho doce para a preguiça e para os dias vencidos, cansados, de desilusões. Com Irene tudo eram vitórias e impulsos.

- Não. E para te provar que não estou apaixonado, acabou. Não volto a ver aquela gaja.

Leónidas sabia que estava a mentir. A cabeça manifestava uma decisão verdadeira, mas o coração e o sexo, a pior das alianças que a biologia humana criou, ganhavam todas as batalhas à vontade. Submisso e vencido mas ansioso e exaltado corria célere para os braços de Irene. Como agora, no dia em que inaugurara o fontanário e anunciara o paiol em Zulmirinho.

Estranhou que ela não atendesse o telefone. Talvez tivesse saído para jantar. Olhou o relógio indeciso. Tarso fê-lo tomar a decisão:

- O Senhor Ministro vai para o Ministério, para casa ou fica noutro sitio?

Nunca referia concretamente nem Irene nem o apartamento em que ela vivia.

Inquietava-o não responder ao telefone. A curiosidade e o ciúme, Leónidas já chegara ao patamar do ciúme, decidiram por si.

- Fico por aí. Ainda é cedo para ir para casa. O motorista conhecia a resposta. Parou o carro a cinquenta metros do apartamento e perguntou:

- Espero aqui, Senhor Ministro?
- Não, não. Podem ir à vossa vida. Eu depois tomo um táxi. O Zeca não gostava destas liberdades do ministro. - Sua Excelência tem mesmo a certeza de que quer ficar sozinho? - Não te preocupes. Aqui não há terroristas. - Não sei, Senhor Ministro. Não sei. Estava farto de ouvir o abutre e despachou-o, incisivo: - Não. Desaparece da minha vista. O carro partiu e ele dirigiu-se ao apartamento que há três anos alugara para Irene. A noite caía fresca e sentiu um arrepio de frio. Espirrou. Talvez se tivesse constipado depois da soalheira em Zulmirinho. Meteu a chave á porta e chamou: - Irene! Ninguém respondeu. Olhou em volta. A sala continuava desarrumada e a porta do quarto, entreaberta, deixava ver a cama desfeita. Não se recordava de a ver alinhada durante os anos que tinha aquele apartamento. Ligou a televisão. Iam começar as notícias e serviu-se de uísque. Tinha-lhe dito que chegaria a Lisboa entre as sete e as oito da noite e que possivelmente passaria pelo apartamento para vê-la. Não devia demorar. O noticiário dava as notícias do costume. Manifestantes árabes gritando ódios em nome de Alá, com uma ou outra invocação de Maomé à mistura, sobretudo quando celebravam as vitórias contra os Americanos conseguidas em cada bandeira que puxavam fogo; os Americanos, por sua vez, deitavam bombas, agora nesta fase da guerra, já aleatoriamente. A invisibilidade do inimigo justificava um bombardeamento planetário, enquanto cá, no meio do turbilhão bélico que acelerara o movimento de rotação da Terra, na Beira Alta, o canal que estava ligado acabara de descobrir mais um menino pastor, que nunca vira o mar, que sofria de doença grave exigindo operação em Londres, cujo maior desejo era conhecer o último afamado ponta-de-lança do Benfica, que o canal ficara tão feliz com a descoberta do menino que lançara uma campanha de fundos para a operação desde que a família viesse contar todas as mazelas do inditoso lar. Leónidas comoveu-se com a história. Era o último de sete irmãos, o pai sofria dos pulmões, a mãe era um cardápio de doenças, a avó, entrevadinha, estava de cama, o avô mijava-se, e eram duas irmãs que andavam na vida e um irmão que cantava o fado, para além do menino doente que nunca vira o mar, quem sustentava a casa. Admito que o leitor chegou ao fim desta descrição da reportagem que comovia o nosso ministro um pouco deprimido. Apesar de tudo deve agradecer a Deus e sentir-se confortado porque tive o bom senso de lhe contar a tragédia em meia dúzia de linhas e salvou-se de meia hora de chagas humanas que, para além do que foi dito, meteu testemunho de vizinhos e opinião de assistente social.

Fosse como fosse, o tempo passou a correr, surpreendendo Leónidas ao perceber que eram quase nove horas. Onde estaria a Irene? Uma sensação de mal-estar instalou-se-lhe no peito. E vinha de duas fontes. Uma delas chamava-se Lucrécia, que àquela hora deveria estar a vestir o pijama ao André, calma e doce, convencida de que o marido trabalhava para a vitória da guerra invisível. A outra provocava calafrios e trazia ciúmes no ventre. Instintivamente começou à procura de sinais de outro homem na desorganização do apartamento. Só podia ser na casa de banho. Um colega dissera-lhe uma vez em gracejo, enquanto se desenrolava uma discussão qualquer no hemiciclo, que, se um homem quer apanhar a namorada com a boca na botija, não deve procurar fotografias nem outros sinais de traição. Não existem ou estão bem escondidos. Onde todas escorregam é na casa de banho. Estará lá a segunda escova de dentes, porque é tão irrisória e tão natural que ninguém se lembra de a ocultar.

O coração deu-lhe um baque. Não estavam duas mas três escovas de dentes. E foi quase enfarte quando, por entre os perfumes, descobriu um que garantia ser pour homme.

A Irene corneava-o! Estava ali a prova, aliás, as provas, e o mundo de Leónidas pareceu desabar. Queria pensar e a cabeça estava incapaz de qualquer exercício lógico que fosse para além da inevitável constatação: «Tem outro gajo!» E a vertigem do
ciúme, a dor aguda na auto-estima, para além do quebranto nas pernas, produziram um cocktail bem português, feito com fermentos das melhores tradições masculinas, saído das castas mais puras da honra periquita, do amor próprio aragonês e do marialvismo malvasia, e com toda a naturalidade produziu a decisão clássica: - Eu mato a gaja! E como o cérebro se recusava a pensar, completamente infestado dos vírus da vingança, deixou-se cair na sanita procurando, atarantado, acender um cigarro. - Eu mato esta gaja! Não fumava. Respirava pelo filtro do cigarro e veio-lhe um lamento rancoroso, onde se revia vingador e vítima e porque não havia mais nada a fazer antes de matar. Acendia cigarros uns atrás dos outros, escorriam-lhe lágrimas pelo esófago, que lhe desinfectavam as feridas no orgulho, e, qual crente junto ao Muro das Lamentações, desfiou: - Tenho uma santa em casa, uma santa!, que me atura tudo, um filho a quem roubei tempo de atenção para aturar esta tipa e ela trata-me assim? Devia estar louco cada vez que pensava em divorciar-se da santa, em abandonar a mãe do seu filho, a filha de um empresário que tanto ajudou o partido e a sua carreira, um sogro condecorado com a Ordem do Infante, por causa de uma cabra que guarda na casa de banho a escova do amante, não!, contando bem as escovas, de dois amantes, para não falar de si, que nunca tivera semelhante utensílio ali naquela casa de banho adúltera. Ainda por cima no apartamento que ele alugara para a tirar da enxovia das escadas rangentes onde vegetava antes de o conhecer. Tinha que matá-la. E matar os tipos que resfolegavam em cima daquele corpo de bronze, de curvas afinadas por torneiro de eleição.

A ideia de outro homem rebolando-se nu sobre Irene nua causou-lhe náuseas e, incapaz de continuar ali, dirigiu-se ao quarto puxando gavetas a eito, sedento de mais provas cheirando a macho, daquelas que conforme se descobrem mais a nu e frio

é o opróbrio e a humilhação. Na barafunda de bâtons, vernizes, perucas, cuecas, aquelas vermelhas oferecera-lhas ele quando se escaparam até Paris, soutiens, pílulas, pregadores, ganchos, outra vez cuecas, agora de rendinhas pretas. Pretas? Ele não lhe oferecera nem conhecia aquelas cuecas. Era prova. Fora o outro. Cabra! Haveria de matá-la. De súbito, teve um breve instante de lucidez. Ela poderia negar. Ela poderia dizer que tinha aquelas cuecas há anos. E até poderia ser mais descarada e dizer-lhe que as três escovas de dentes eram dela e o perfume pour homme também era seu. De facto, tudo lhe parecia razoável na argumentação e ele não tinha mais provas. Teria de procurar a fundo, com mais calma, ou então apanhá-la em flagrante. Era isso. O flagrante não deixaria margem para dúvidas. Escondia-se. Mas onde? O apartamento tinha apenas a cozinha para além da sala e do quarto. Na casa de banho. O biombo da banheira era um bom anteparo.

Num impulso descalçou os sapatos e meteu-se na banheira. Percebeu que tinha feito disparate. As peúgas molharam-se e colaram-se irritantemente aos pés. Ainda por cima deixara os sapatos à entrada da casa de banho. Como haveria de fazer? Sentiu-se ridículo de fato, gravata e peúgas molhadas escondido atrás do biombo da banheira. Se um jornalista fotografasse o ministro da Guerra naquela situação, seria o escândalo.

Dez horas e Irene não aparecia. Àquela hora, na sua casa, Lucrécia estaria a contar uma história de embalar a André, enlevados em ternura, enquanto Leónidas fazia esforços sobre-humanos para calçar os sapatos com as peúgas molhadas. Transpirava e atacava o segundo sapato quando Irene entrou. Ficou surpreendida:

- León idas!? - Qual é o espanto? Nunca me viste? - Disseste que ias para fora de Lisboa. Como não telefonaste desde manhã. - Liguei mais de cem vezes. Tinhas o telemóvel desligado. - Só enquanto estive no cinema com a Rita.
- Agora o gajo chama-se Rita? Foi então que compreendeu que ele estava furioso. - Mas afinal o que se passa? - Quero saber o nome do tipo com quem andas metida. E é agora mesmo! Irene assustou-se. Nunca o vira tão encolerizado, o rosto vermelho, os lábios brancos e o suor a escorrer-lhe pelo nariz. - Tu enlouqueceste? - Quem é ele, Irene? A ira de Leónidas enchia a sala. A rapariga puxou de um maço de cigarros, sobretudo queria ganhar tempo, mas ele, com um sopapo nas mãos, fez saltar o pacote para longe. - Quem é ele, Irene? Embora assustada, decidiu indignar-se. - Não há nenhum ele. O único homem que entra nesta casa és tu. - Mentirosa! És uma mentirosa! - É verdade! - Então... então... - Leónidas, momentaneamente desorientado, procurava a casa de banho -, então de quem são as escovas de dentes que tens no copo do lavatório? De quem é aquele perfume de homem que tens no meio dos teus frascos? Intrigada com o interrogatório, Irene não respondeu e dirigiu-se, decidida, à casa de banho. Ele ficou a lamuriar raivas no meio da sala. - Não me podias fazer isto. Não podias. Depois de oito anos juntos, depois de tudo o que fiz por ti, não podias. No próprio apartamento que aluguei para ti, para te tirar do buraco onde vivias. Não tinhas esse direito. Não tinhas. É por isso que eu preciso de saber quem é o gajo. Eu mato-o. Estás a ouvir? Eu mato-o!

Irene regressou à sala. Vinha pálida e era visível que controlava a ira. Pôs com violência em cima da mesa as três escovas de dentes e o perfume. O som do choque calou o ministro.

- Esta era a minha antiga escova, esta é a que uso agora e esta vinha como brinde no último dentífrico que comprei! Parou para tomar fôlego e segurar os nervos, e deu a estocada final:

- E este perfume é teu. Ofereci-to quando fizeste quarenta anos e, como não o querias levar para casa com medo de que a tua mulher desconfiasse, deixaste-o aí e esqueceste-te dele. É a importância que dás às ofertas que te faço!

Um peixe trazido para fora de água, aflito para respirar, estrebucha em contorções de aflição, e só não nos dói tanto o seu sofrimento porque é uma espécie bem distante da nossa. Os opérculos abrem e fecham à procura de água numa agitação convulsiva que se transmite à boca e se prolonga pelo corpo como se fossem esgares de um asfixiado. Infelizmente, porque já falamos da espécie animal, Leónidas estava assim. Alargou o nó da gravata, deu algumas passadas pela sala, e os sapatos encharcados com a água das peúgas fizeram schlock, schlock, schlock, aumentando a dramaticidade da situação. Nem tinha coragem para perguntar pela origem das cuecas pretas.

Era de mais para um dia apenas. Primeiro, o atentado com as maçãs, agora esta humilhação sem ponto de retorno. Irene, de braços cruzados, desafiava-o e Leónidas suspirava. Balbuciou um perdoa-me, mas saiu um resmungo e a rapariga passou ao contra-ataque.

- Eu é que te aturo há oito anos. Oito anos à espera de que venhas quando podes, quando a política e a tua mulher deixam. És ministro há três meses e vi-te quatro vezes. Quatro fins de tarde que passaste por aqui, arrastaste-me à pressa para a cama e ainda estavas com os orgasmos em meio e já te vestias a correr para fugir daqui. E falo dos teus orgasmos porque dos meus não há nada para falar. Oito anos que aturo isto! As promessas, as mentiras, as desculpas.

Leónidas conhecia a missa completa. Procurou antecipar o fim: - Já te pedi perdão, não pedi? Mas a homilia ia a meio: - Vou ao cinema com uma amiga e hoje Sua Excelência decide aparecer sem avisar e faz uma cena por causa de três escovas de dentes, como se fosse proibido ou imoral ter três escovas de dentes.
Eu não sei se o leitor acredita em milagres. Eu acredito e até o Leónidas, rapaz avesso a crenças e mediações divinas, acreditou. O seu telemóvel oficial começou a tocar naquele instante. Não era a salvação do bombardeamento que Irene dirigia, mas representava o toque do gongue para o final de um assalto. - Estou? Era Tarso. Não era interlocutor suficientemente forte para liquidar a conversa e isso contrariou-o. - Liga-me mais tarde. Agora não posso!... O quê? Leónidas estacou. Os olhos em alvo eram como o peixe asfixiado de que há bocado falámos e quase sem forças perguntou: - Em que canal? Correu para a televisão, schlock, schlock, schlock, e ligou-a sem desligar o telemóvel. Apanhou a notícia no fim mas a tempo de perceber que falavam dele, da sua visita a Zulmirinho e do paiol que ele anunciara. Tornou ao telefone.

- Estou? Ainda vi. Foi o filho da puta daquele jornalista da rádio local. Estou feito num oito. O quê? Encontramo-nos no Ministério daqui a meia hora. Eu vou já para lá.

Desligou. A camisa estava encharcada. Pressentia que tinha febre e achou que Irene foi cruel quando perguntou, carregada de ironia: - O que foi? Fizeste explodir algum paiol do inimigo? - Preciso de sair. Tenho de sair. Apalpava as algibeiras como se procurasse alguma coisa. Irritou-se. Claro que não tinha as chaves do carro. O motorista é que o levara ali. Não fazia mal. Apanharia um táxi.

- Depois falamos, tá? Já te pedi desculpa mas depois falamos. Tenho mesmo que ir.

Tentou dar-lhe um beijo mas ela esquivou-se. Resignado dirigiu-se à porta, schlock, schlock, schlock, e antes de sair argumentou: - Em vez de te zangares comigo talvez fosse melhor perceberes que, se tive esta crise de ciúmes, é porque gosto de ti.

Saiu. Foi por isso que não se apercebeu de que Irene, furiosa, atirou com uma almofada contra a porta. Deixou-se cair no sofá e os nervos puseram-na a chorar.

Entretanto, na rua, Leónidas ansiava por um táxi. Mas era meia-noite e naquela zona era raro passar algum. Foi então que descobriu que deixara a carteira no carro oficial e apeteceu-lhe chorar. Como podia explicar o ministro da Guerra, com hordas de árabes a queimar bandeiras americanas pelo mundo e com os Americanos bombardeando o planeta a eito, que estava ali, sozinho, perdido, sem segurança, sem motorista, sem carteira? Ainda por cima quando uma televisão disparara sobre si um míssil nuclear sem aviso prévio. Mentalmente calculou a distância até ao Ministério. Meia hora a andar bem. Vinte minutos a correr. Não foi a duração do percurso, mas a sua segurança, que o fez decidir saltar rua a baixo em passo de corrida. Ninguém em seu perfeito juízo acreditaria que o ministro da Guerra de uma potência aliada corria, de gravata à banda, pelas ruas desertas de Lisboa. Satisfeito com o raciocínio, arrancou veloz rua abaixo em direcção ao Ministério. Desapareceu rapidamente, mas, se alguém viesse à janela, por certo ficaria intrigado com o som que ecoava e se sumia pelas paredes dos prédios apertados: schlock, schlock, schlock, schlock.

A primeira tentativa de carreira política de Leónidas não surtiu efeito. Eleições autárquicas. Foi candidato à assembleia municipal de Lisboa, mas o seu lugar era o penúltimo da lista. Sorriu desalentado para Januário.

- Penúltimo, Senhor Januário. Isto não vai dar nada. - Não sabes o que dizes. - Não? Neste lugar nunca serei eleito. - Nem precisas. O que interessa é fazer currículo. - Currículo? - O teu nome e a tua fotografia aparecem nos cartazes. Começas a ser badalado e amanhã podes dizer que foste candidato a deputado municipal. Ninguém te vai perguntar em que lugar da lista é que te encontravas.

- Pois. - E aproveitas a campanha para ficares conhecido. Faz os possíveis para andares perto do Saraiva.

O Saraiva era o candidato a presidente da Câmara. Um militar na reserva com sangue na guelra mas altivo. A única vez que falou com Leónidas durante a campanha foi para mandá-lo buscar as chaves do carro, de que se esquecera num clube recreativo onde tinham feito uma sessão de esclarecimento. Januário tinha razão. Aquele penúltimo lugar dava-lhe direito a ter opinião e a opinião era invariavelmente: pois é!, uma fórmula mágica que o seu orientador político lhe ensinara e que resultava para todas as situações. Pois é significava tudo e não significava nada. Um ramalhete de flores entrelaçadas a encimar o bolo de noiva que desaparece à primeira fatia. Era o nada e, no entanto, era tudo.

- A nossa campanha está com pouca agressividade. O Saraiva não se aproxima do povo e assim não há votos para ninguém. - Pois é. Pois é, na sua mais profunda compreensão, é a coisa e o seu contrário.

Compromete e descompromete, absolve e condena. É a expressão que Pôncio Pilatos não pronunciou porque preferiu lavar as mãos.

- O Saraiva é brilhante. - Pois é. - O Saraiva é uma besta. - Pois é. - Mas tu concordaste que ele é brilhante. - Não, não. Eu disse pois é com o sentido oposto. Tu é que não percebeste.

É sempre um KO técnico. Não leva o adversário ao tapete e estende sempre a mão ao antagonista. Januário em tempos muito distantes fora estivador. Homem de forças puxadas e resposta afiada na ponta da língua. Metera-se, empurrado por amigos, na actividade sindical e organizara duas
greves furiosas que haviam deixado Lisboa sem pescado durante um mês. O partido percebeu-lhe a têmpera e recrutou-o. Esperava assim fazer dele soldado do pelotão de reconhecimento da guarda avançada contra a política do Governo. Mas Januário, mula velha, filho do fado vadio e especialista do vigésimo premiado, à primeira escapou-se. Trocou o sindicalismo pela actividade política e daí a responsável pelo bar da sede do partido foi uma fracção de segundo. Deu graças pela sabedoria do velho mestre.

Foi numa noite de colagem de cartazes que conheceu a Lucrécia. Ficou preso às gargalhadas da rapariga, que, com outros amigos da Juventude do Portugal Feliz, preparava um carro de propaganda. Bandeiras, altifalantes. Iam pelas ruas anunciar a boa nova que resultaria da eleição do Saraiva. Era gorducha de mais para o gosto dele. As calças de ganga realçavam-lhe as formas violentas das coxas e da barriga, mas era o riso mais cristalino do grupo de jovens. Porém, a segunda vez que olhou para ela achou-a linda. O Pirisca, que atava com vigor uma corneta ao tejadilho do carro, segredou-lhe:

- Nem te aproximes dela. É filha do Silva. Era em momentos como este que se percebia que o amigo não percebia nada de política.

- Tens a certeza? - Claro. Chama-se Lucrécia Silva e é a menina dos olhos do pai. Não te aproximes que aquilo queima.

- Pois é. Pirisca não percebeu se o amigo concordara ou não. Partiu com o carro de campanha e já não viu Leónidas a sorrir para Lucrécia. Estava no último ano da faculdade. Estudos anglo-saxónicos e queria ser professora. Lucrécia era uma mulher bonita. Ser gorda não a preocupava e amava a vida com alegria. Também gostou de Leónidas e admirou-o. Eram raros os homens que naquele tempo deixavam como ele o curso de Economia a meio para se dedicar de alma e coração à causa do partido. Ainda por cima fazendo da militância um acto franciscano - não conhecia outro universitário que se despojasse de um curso e de uma carreira promissora para ficar atrás de um balcão a servir cafés e bifanas aos companheiros do partido.

- como te chamas? - Lucrécia. - É um lindo nome. - Obrigada. E tu? - Leónidas. Leónidas de Távora. Sorriram um para o outro. Ela generosa, ele com empenho. Nessa noite dançaram toda a noite no arraial que o partido organizara para o encerramento da campanha eleitoral.

O Silva, quando soube, rabiou. Era desgosto, e grande, entregar a filha, por sinal a única, a um pirata que não tinha onde cair morto.

Lucrécia abraçou-o e o velho ficava sem forças quando ela, dengosa, o abraçava. - Ele é tão meigo, papá. Ainda por cima é uma pessoa desprendida. Abandonou tudo. A família, a universidade, por causa do partido. Não é como os outros que aparecem apenas com a preocupação de arranjar um emprego ou um cargo importante. Sorriu com bonomia. - Um poeta. Ao menos calhou-te um sonhador. - O papá depois encaminha-o. Mas é verdade. O Leónidas é um sonhador. Gosto tanto dele!

Beijou-lhe os cabelos. - Se é assim que queres. O meu único sonho é que sejas feliz. Lucrécia abraçou o pai, comovida. Enquanto se desenrolava esta conversa, Pirisca e Chinesinho perguntavam com uma estupefacção cheia de desconfianças:

- Tu engataste a filha do Silva? Trincou dois tremoços e perguntou com naturalidade: - E qual é o problema?
Os dois amigos levantaram-lhe barreiras em catadupa. O Silva ia desfazê-lo, que era um vadio sem eira nem beira, que não tinha onde cair morto, que quando o velho descobrisse o golpe mandava fuzilá-lo.

Riu, bem-disposto, e mandou vir mais três cervejas. Atirou um piropo obsceno a uma rapariga que passava, arrotou e disse:

- Vocês vão ver. Vocês vão ver. Leónidas tinha jeito para profecias. Meses depois, mal ela terminou o curso, aí estavam os dois a caminho do altar, jurando amor eterno e aceitando sem a menor dúvida que aquilo que Deus uniu o homem jamais pode separar.

Tarso já estava no ministério quando o ministro chegou. E chegou de tal modo descomposto que o assessor assustou-se:

- Aconteceu-lhe alguma coisa, Excelência? - E então? - ofegou. - Os jornais estão a fechar a edição da manhã e não param de telefonar. Duas televisões já pediram entrevistas e uma organização qualquer contra o armamento anunciou que vai marcar uma manifestação contra o paiol.

- Palhaços! Despiu o casaco e a camisa. Tinha sempre quatro ou cinco camisas de reserva no gabinete. Os pés ardiam-lhe.

- Preciso de mudar de peúgas. Tu não tens peúgas a mais no teu gabinete?

- Não, Excelência. E a esta hora está tudo fechado. - Merda! - Quer que mande um motorista a sua casa? - Não, não. Já é muito tarde. Hesitou por dois segundo e decidiu-se: - Que se lixe! Atirou as peúgas para o lixo e calçou-se de pés nus. Enquanto abotoava a camisa lavada perguntou: - O primeiro-ministro já telefonou?

- Para o gabinete ainda não. Mas ele deve ter o seu telemóvel oficial, não é verdade? O coração baqueou. - O meu telemóvel?! Onde está o meu telemóvel? Porra! Deixei-o na casa da Irene.

Ligou sem esperança. Ela sabia que não devia mexer naquele telefone.

- Não atende. Não é possível saber se tem mensagens? - Existem uns tipos doidos que sabem fazer tudo com os telemóveis, mas eu não percebo nada disso.

- Merda! Mas que grande merda! Descarregou a ira sobre Tarso. - Eu bem te disse. Aquele jornalista ia ser a nossa desgraça e tu que não, que era uma rádio local. Olha no que deu a rádio local. E agora não me vão largar por causa da porcaria do paiol.

- Mas, Senhor Ministro, eu... - Tu, nada. Estou rodeado de estafermos, de atrasados mentais. Agora é essa organização de merda a querer fazer uma manifestação. Já viram a minha vida? Mas vocês já viram a minha vida?

Leónidas tinha razão. Um dia que deveria ser de glória, o dia em que o seu nome surgia pela primeira vez gravado na pedra como testemunho para a eternidade na testa do fontanário de Zulmirinho, estava a ser escrito com as mesmas letras com que se escreve a palavra hecatombe. E depois a confusão das escovas de dentes, enfiado naquela maldita banheira, pés encharcados e o ciúme a fazer-lhe dor no peito. Convenhamos que era de mais.

Para sossegar a consciência ligou para casa. Respondeu a voz sonolenta de Lucrécia.

- Querida, desculpa ter-te acordado. - Já estava acordada. O que é que aconteceu? O primeiro-ministro ligou há cinco minutos.

Ele sabia. Ele sabia que o outro andava à sua procura e o nervosismo acelerou:

- Ligou para aí? E como é que ele estava?
- Maldisposto, como sempre. - Sim, pois, claro. Maldisposto, mas que palavras é que disse? - Não sei... foi mais ou menos assim, quero falar com o palerma do teu marido.

- Só isso? - Só, porquê? - Por nada. Ainda estou no Ministério. Devo demorar mais um bocado. Beijinhos.

Desligou. Parecia mais tranquilo. - O chefe telefonou para a minha casa. Anda à minha procura.

- E está muito irritado? - Não. Acho que não. Só me chamou palerma. Todos os ministros estavam habituados a aferir o humor do seu líder de acordo com a escala de palavrões que utilizava.

- Vou ligar-lhe. Agora era o outro que não atendia. Recostou-se cansado. - Passei o dia mais lixado de toda a minha vida. - Pois. Seja como for, tenho os jornalistas à espera e como o Senhor Ministro sabe...

Cortou-o ríspido. - Eu não sei nada. Não sei e não quero saber. Chama um motorista, que a única coisa que quero é um banho e dormir.

- E o Senhor Ministro vai para casa sem meias? - Pelo menos vou calçado. Chama-me o jornalista, desculpa, o motorista, que não faço aqui nada. Amanhã logo se vê.

Tarso hesitou. - Sua Excelência devia dar uma palavra aos jornalistas. O senhor sabe bem do que eles são capazes.

- Tarso, o motorista. Estou cansado e farto. - Com certeza. O Senhor Ministro é que sabe. O assessor saiu e Leónidas, dorido, aproveitou para estirar as pernas sobre a secretária. Não tinha tempo para nada. Nem com o sogro podia contar. Pelo contrário. Devia ser o seu pior adversário. As inaugurações estavam-lhe destinadas. A ele ou ao primeiro-ministro. Ainda por cima na noite anterior tinham jantado juntos, por isso não havia justificação alguma para não lhe ter contado da porcaria do fontanário. la ser um vendaval logo pela manhã. Os jornais pagavam por notícias destas. E depois a Irene. Lembrava-se agora da oferta da água-de-colónia. Estavam na cama a celebrar o seu quadragésimo aniversário quando ela lhe ofereceu o presente. Até gostou do cheiro, mas teve medo de que Lucrécia desconfiasse.

- Fica cá. Assim como assim, vou divorciar-me e venho viver para aqui.

Abraçaram-se num beijo profundo e apaixonado. Ainda por cima, Leónidas não mentia. Ao lado de Irene sentia-se com forças para cavalgar as nuvens e abraçar o sol. Era hoje. Não passaria de hoje. Lucrécia, este casamento não faz sentido. Estou apaixonado por outra mulher. Mas chegava a casa e André corria para ele com um abraço luminoso aos gritos: - Papá! Papá! E sabia que não seria capaz de viver sem aquele abraço e muito menos tendo o Silva como inimigo. Nem seria adversário. Directamente inimigo, que a intolerância do homem era ainda mais radical quando se tratava de proteger a filha. Chegou exausto. Apesar das preocupações, caiu na cama como um pedaço de chumbo. Um minuto depois já ressonava a bom ressonar. Entretanto, Tarso trabalhava. Telefonava para este jornal, para o outro, procurando conhecer antecipadamente as notícias que iam sair e ao mesmo tempo mover cordelinhos que amenizassem as eventuais lambadas que pudessem cair sobre o seu patrão. - Então, pá, qual é a capa? - É o teu patrão, pá. Vai com fotografia. O título é: «Governo vai construir paiol nuclear em Portugal», e em subtítulo leva: «Líder da oposição afirma que, com este projecto, o ministro da Guerra declarou guerra aos Portugueses.»

- É chato, pá! Vocês estão a ser chatos, pá! - O que é que tu queres, pá? Por acaso é mentira? - Podiam ser mais brandos. Isso é demagogia da oposição. Eh, pá, ao menos tirem essa declaração do Arsénio Fonseca. Guerra aos Portugueses?! É de mais, pá!

- É impossível. Já estamos a imprimir, pá!

- Porra, pá! Foram chatos, pá. Eu até tinha uma coisa porreira para vocês. Dava uma primeira página, pá!

- O que é, pá? - Agora também já não interessa. Vou dá-la a outro jornal que nos trate melhor, pá!

- Eh, pá, mas diz o que é, pá. - Não vale a pena, pá. Se ao menos não viesse essa boca do Arsénio Fonseca na primeira página, pá.

- Se tivesses telefonado mais cedo... Porque não telefonaste mais cedo, pá?

- Não tive tempo, pá. - E o que é que tu tens para dar à malta, pá? - Depois falamos, pá. Tchau, pá! Desligou o telefone. Estava cansado. A bronca ia ser de estoiro e, quando se tratava de jornais, sabia que sobrava para ele. Embora tivesse sido contratado como assessor, Leónidas estava convencido de que ele era o patrão da imprensa e exigia-lhe impossíveis. Tarso tinha sido um jornalista promissor. Mal saíra da faculdade, ainda estagiário, arrancara com uma mão-cheia de reportagens em que rapidamente ganhou o reconhecimento dos seus colegas. Inteligente, intuitivo, dono de uma prosa escorreita e bonita, todos lhe auguravam uma carreira fulminante. Mas deixou-se cair na tentação. Copos e dívidas para um lado, compromissos armadilhados de favores por outro, e passados anos fazia parte da legião de colegas que escreviam para quem pagasse mais. Foi assim que se tornou assessor do Governo e esta era a primeira batata quente que lhe caía nas mãos. Como se defende um paiol nuclear? Há mais de quarenta anos que o país discutia o destino dos resíduos tóxicos sem que alguém encontrasse uma

solução pacífica, e agora, por causa do esforço de guerra, a polémica dava um salto em frente e caía assim, sem mais nem menos, um paiol no prato da sopa do país. Tarso tinha razão. Os jornais não noticiavam. Ladravam contra o paiol com uma algazarra tal que acordaram Leónidas. No espaço de três minutos telefonaram os secretários de Estado da Marinha e do Exército, o primeiro-ministro e o terrível Silva. Reunião urgente para ele se explicar. Saiu de casa em choque e entrou no gabinete do chefe sem forças. Estava este sentado à secretária e o sogro no sofá. Nenhum dos dois o cumprimentou. O chefe limitou-se a empurrar os jornais.

- Já leste isto? - Já, já. - E não tens nada a dizer? Quem te autorizou a dar uma notícia destas? - Mas eu não dei. Quer dizer, há aqui um mal-entendido. Eu não queria dar. Ontem fui à minha terra. O meu tio, o homem que me criou, fez anos e eu fui lá. O povo soube que estava na aldeia um ministro de Vossa Excelência e formou-se uma manifestação espontânea de apoio ao Governo. Fui obrigado a falar. O povo estava ali e falei do paiol. Mas falei por falar. Não havia jornalistas, nada! Não percebo isto. Silva olhava preocupado através da janela. Dois porta-aviões americanos saíam do Tejo rumo ao país onde descarregariam as bombas contra o inimigo invisível. - Eles têm espiões em toda a parte. Leónidas não percebeu de quem eram os espiões. Se dos terroristas ou dos Americanos ou, até mesmo, dos jornalistas, e respondeu com a sua expressão clássica.

- Pois é. O primeiro-ministro suspirou. Tinha o tique de coçar interminavelmente a orelha enquanto pensava. - Uma coisa é certa - disse por fim. - Sem o paiol é que não vamos ficar! - Pois.

Não devemos um tostão aos Americanos. - Além de que as comissões já foram todas pagas. Falavam os dois como se Leónidas não existisse e ele ouvia o diálogo como se assistisse a um jogo de ténis.

- Trocar a dívida externa pelo paiol foi a nossa única tábua de salvação. - Não volto atrás. Gritem o que gritarem, não volto atrás. - O Arsénio Fonseca foi longe de mais. Não falaste com a oposição sobre o negócio?

- Então não falei? Esse gajo vai ter o partido financiado durante quinze anos! Quinze! Concordou com tudo. Férias pagas em estância turística nas Montanhas Rochosas pelo mesmo período de tempo. O que é que ele quer mais?

- Olha lá. E nós? - Nós temos os mesmos quinze anos de financiamento, mais dez que negociei por debaixo da mesa.

- Não foi mau. - Além de três milhões de dólares para o gajo do futebol, que não pára de chatear.

Silva dirigiu-se finalmente a Leónidas, que, atónito, sabia finalmente os termos do acordo.

- Como é que a população de Zulmirinho reagiu ao anúncio do paiol?

- Bem. Aplaudiram muito. - Isso é bom. É muito bom. - Tens a certeza? - Absoluta. Apenas três ou quatro ecologistas é que refilaram mas coisa pouca.

- Foram esses tipos que informaram a imprensa. - É uma raça danada. - E agora? - Leónidas... - Sim, senhor? - Aguentas-te à bronca? - Eu?

- Puxaste fogo ao foguete, agora precisas de apanhar a cana.

Limpou o suor da testa - Vão arrasar-me. O sogro levantou a mão. - Sabes que contas com o nosso apoio. Ah, e não te preocupes com as maçãs. Os serviços secretos pagam. - Com certeza, com certeza. A audiência estava terminada. Só percebeu a rasteira que lhe haviam pregado quando, duas horas depois, ouviu o primeiro-ministro, com a maior cara de pau e o máximo de solenidade, proclamar aos jornais que o Governo acompanhava com atenção a decisão que fora tomada pelo Senhor Ministro da Guerra. Aliás, tinha conhecimento de que o Senhor Ministro se deslocara a Zulmirinho para dar a notícia e que a população, reconhecida, inaugurara um fontanário com o seu nome, pelo que, a partir de agora, não prestaria mais declarações, devendo os senhores jornalistas, se pretendessem, pedir esclarecimentos ao titular da pasta.

Sabiam de tudo! Até do fontanário. Negociaram o paiol como entenderam, combinaram com a oposição, quase de certeza tinham discutido a lápide no fontanário com o presidente da Junta e ele, o ministro da pasta, a fazer de conta. Até os homens das maçãs afinal eram dos serviços secretos. Não passava de carne para canhão e a prova provada de que o Governo não acreditava na guerra invisível. Usavam-na para liquidar a dívida externa e para resolver os problemas de finanças dos partidos. Vistas as coisas assim, Leónidas nem era ministro. Apenas um verbo de encher, como ele próprio confessou a Lucrécia. - O teu pai não tem consideração alguma por mim. Trata-me como se eu fosse uma bosta.

- Não sejas injusto. Foi ele que fez de ti ministro. - Para fazer o que lhe apetece. Estou como os cornudos. Sou sempre o último a saber.

- Não fales nesses termos aqui em casa. Não quero que o André aprenda palavrões.

Ainda por cima, tinha de comer e calar. Nem em sua casa podia desabafar, que o filho não poderia saber como o avô era manhoso. Pegou no casaco e disse:

- Vou sair. - A esta hora? - Vou ser entrevistado na televisão por causa da merda do paiol. - Leónidas?! - Desculpa. Escapou-se-me o palavrão. - Nunca paravas em casa antes de seres ministro e agora ainda é pior. Se não for em jantares oficiais, não te vejo semanas a fio.

- Agradece ao teu pai. Ando a fazer a figura de parvo que ele preparou para mim.

E saiu. A entrevista na televisão fora arranjada por Tarso. Um jornalista amigo que não ia apertar muito e que deixaria o ministro explicar o que entendesse. Fosse como fosse, ia nervoso. Por mais amigos que fossem, estavam sempre dispostos a cortar o pescoço a uma pessoa.

Não começou mal. Que não fizera favor nenhum especial a Zulmirinho, pois que o paiol era um dever patriótico para com uma terra que tanto dera ao país, que só os profetas da desgraça é que gritavam contra aquele moderno equipamento testado em vários países da América Latina. Bastava que se dissesse que, em cinco já construídos, apenas um apresentara fugas radioactivas, além de que este, o único activo na Europa contra a guerra invisível, iria ser construído com o dobro, não!, o triplo da segurança. E foi brilhante quando o jornalista perguntou:

- Então o senhor pode garantir que a população de Zulmirinho não corre qualquer tipo de risco?

- Oiça, Zulmirinho é a minha terra natal. A terra dos meus pais, onde ainda hoje vivem os meus familiares. Eu aprendi a vida nas pedras, nos sinais daquelas ruas e daquelas praças. O senhor

72 acha que, se não tivesse a certeza absoluta na bondade do projecto, punha em causa o mais importante pedaço da minha memória? Tarso, que acompanhava a entrevista da régie, rejubilou. Fora uma tirada de génio. Saíram radiantes do estúdio. O assessor propôs que fossem beber um copo para brindar àquele triunfo, mas Leónidas adiou o festejo. Precisava de ir a casa de Irene buscar o telemóvel oficial e, ainda, tentar a reconciliação depois da confusão com as escovas de dentes. - Fica para depois. Ainda tenho umas coisas para fazer. Despediu o colaborador e deu ordens ao motorista para seguir. Estava satisfeito.

A entrevista tinha corrido de feição e, agora que estava avisado, o primeiro-ministro e o sogro iriam ver como se faz política. Podiam ser muito cultos, muito habilidosos, muito de tudo, mas faltava-lhes a vida das ruas, da vadiagem, a manha dos ratos que escapam dos perigos e se alimentam das entranhas dos caçadores. Aquilo que mais o irritava era sentir-se um otário nas mãos dos dois salafrários. Nem uma miserável comissão lhe tinha cabido em sorte. Nada. Apenas a figura de otário. O totó de serviço. Mas não perderiam pela demora.

Mandou o motorista parar. Dobrou a esquina e entrou no apartamento de Irene. Ficou surpreendida ao vê-lo. Estava nua, cabelo molhado, apenas resguardada pela toalha.

Ele perguntou, tacteando o terreno: - Posso entrar? Irene respondeu-lhe enquanto limpava o cabelo com energia. - Podes. A casa é tua. - Ontem á noite esqueci-me do telemóvel. - Está em cima da televisão. Tocou centenas de vezes. - Pois. Houve aí uns problemas. - Eu sei. Vi-te na televisão. - Ainda estás zangada comigo? - Magoaste-me.
- Desculpa. - Prometeste-me tudo e não me deste nada, Leónidas. Iria ser actriz, modelo, até apresentadora de televisão e não fui outra coisa a não ser tua amante. Nem o raio do divórcio conseguiste. Enganaste-me sempre. - Eu amo-te. - Tens um jeito muito especial de o mostrar. - Perdi a cabeça. Só a ideia de que posso ficar sem ti deixa-me transtornado.

- Embora não faças nada para que eu não parta. - Não te falta nada. Jóias, vestidos. Até um carro te ofereci. - Com o dinheiro do teu sogro. O corpo nu da rapariga estava resplandecente. Aproximou-se e afagou-lhe a coxa nua. Os sininhos do desejo desataram a tilintar ao mesmo tempo.

- Amo-te. Tenho saudades de fazer amor contigo. Ela recusou sem convicção. - Não. Leónidas abraçou-a. Mordeu-lhe o lóbulo da orelha, deixou escorrer os lábios pelo pescoço ainda molhado, enquanto as mãos experimentadas corriam pelo corpo de Irene. Voltou-se para ele de lábios abertos e olhos fechados. Leónidas beijou-lhe os lábios com força e deu-se o estrondo. A primeira coisa que lhe veio à cabeça é que a mulher lhe havia explodido nas mãos, mas, ao ver os vidros das janelas a estilhaçarem-se, gritou como ouviu num filme de acção:

- Deita-te! - e obrigou-a a mergulhar com ele para as traseiras do sofá no momento em que um outro estrondo fazia estremecer o edifício, tilintar copos e estalar janelas.

A seguir veio um silêncio tumular, inicialmente cortado por um ou outro grito e depois por vozes e gritos multiformes.

Irene estava aterrorizada. - O que foi isto? - Duas explosões. Explodiram duas bombas. - Meu Deus! É a guerra.

O barulho agora era ensurdecedor. Ouviam-se sirenes, buzinas, bandos de pessoas que corriam desvairadas. Leónidas espreitou a medo por uma janela cujos vidros tinham desaparecido. Era um corropio na rua, de gente transtornada a correr sem rumo certo no meio do engarrafamento que, entretanto, surgira, e, por debaixo da janela de onde espreitava, o motorista acenava para ele: - Excelência! Excelência! - O que foi, Ezequiel? - Puseram duas bombas no nosso carro. Duas! Ficou de tal maneira estupefacto que nem reparou na pergunta que fez: - E o carro, como é que está? - Em pó. Desfeito em pó, Senhor Ministro! Nem foi capaz de perguntar ao motorista como se tinha salvo do atentado. Sentindo vertigens, náuseas e medos de mil formas, escorregou pela parede boquiaberto. Irene gatinhou até ele. - O que foi, Leónidas? O que foi isto? - Tentaram matar-me. Em seguida desmaiou.

Bem, acho que chegou a hora de colocar o leitor no epicentro deste psicodrama que, conforme se verá, irá aumentando de dramaticidade. Em primeiro lugar, precisamos de colocar a história no espaço e no tempo. Como já se percebeu, Leónidas é ministro em Portugal. As fronteiras são mais ou menos o que são hoje, pelo que, quando esta história aconteceu, ainda continuavam a existir os Amigos de Olivença, e Olivença era, naturalmente, habitada por espanhóis que não percebiam porque é que aquele grupo de amigos lhes queria tanto mal. Quanto ao tempo, a coisa é mais complicada. Sendo certo que o romance autêntico necessita apenas da maravilha literária com páginas carregadas
de existências asfixiadas dentro de baias que as comprimem sem cessar, descrevendo angústias pungentes e muitas preocupações ontológicas, aqui, por manifesta falta de pudor, cuidámos de acomodar o leitor no seu sofá, ou na toalha de praia, e declaramos desde já o pedantismo futurista: a acção decorre trinta anos após o tempo da leitura deste livro. Significa, pois, que, se só descobrir estas páginas daqui a trinta anos, continua a não poder ler o presente, nem valerá a pena procurar identificar personagens porque a acção continuará a decorrer três décadas depois. É uma espécie de jogo sobre o futuro. E posso garantir que não tem dedo de astrólogo, nem de quiromante, nem de analista político. Tão simplesmente a acção passa-se no futuro porque não havia passado onde ela coubesse, e aqui reconheço, sem a ajuda preciosa da crítica, que esta narrativa apresenta pelo menos uma grave incongruência, além de outras perplexidades que aqui, ou nas páginas seguintes, vou fazer um enorme esforço para esclarecer. Desde já não faz sentido contar uma história que acontece no futuro usando e abusando de verbos conjugados nos diferentes pretéritos. Estava por tal motivo obrigada a farto recurso ao futuro. Por exemplo, Leónidas não inaugurou o fontanário. É óbvio que inaugurará o fontanário. Porém, tamanho rigor levantaria um obstáculo intransponível: entregaria à narrativa uma solenidade profética, irreal e, convenhamos, dificilmente credível. Bem basta a dificuldade em acreditar em personagens deste quilate. Reconheço que Camilo e Eça tiveram mais sorte. O Calisto era cultor da literatura clássica e pródigo conhecedor de genealogias. Alípio Abranhos, com todas as suas desvantagens, frequentava o Trindade e o São Carlos e sabia de cor poemas românticos. Ora ninguém consegue imaginar Leónidas possuidor de tais predicados. A política escorreu até outros patamares do conhecimento e insisto: ele adorava minis com tremoços, uma boa discussão sobre futebol e não se preocupava, de indicador espetado, limpar em público a cera dos ouvidos.

Como se vê, este tempo da política ainda não chegou mas pressente-se. Tal como os cães uivam à aproximação da trovoada.
Revisto o problema do tempo narrado, esclareçamos de uma vez por todas porque carga de água os dois principais partidos políticos desse futuro se chamam Portugal em Pé e Portugal Feliz. Fizemos referência a estes mas havia outros, embora, minoritários. Como era o caso da liga da Acção de Graças, fortemente influenciado pela Igreja Universal do Reino de Deus, o Movimento Portugal Azul, cuja génese estaria associada à defesa da terra, o Partido Hebraico-Palestino, extensão da aliança entre os dois antigos inimigos e que, devido à diáspora, tinham aparecido um pouco por toda a Europa. Ah! E ainda existia o Partido dos Telespectadores Descontentes.

Esta nova realidade resultou da crise que atingiu os partidos tradicionais. E nem se poderá dizer que o caso português seguiu o exemplo dos restantes países aliados. Aqui não houve crise ideológica, não aconteceram fragmentações assinaláveis nem muito menos perdas eleitorais clamorosas. Aliás, Portugal nunca se deu ao trabalho de se meter em grandes debates - acontecimentos que sempre antecedem os grandes cismas - , sempre se encolheu, manhoso, quando chegava a hora da discussão ideológica e, em vez de paixões, sempre teve uma propensão para o bocejo quando novos movimentos de ideias sacudiram esta velha civilização que com bonomia nos acolhe. Os partidos tradicionais fecharam. Pura e simplesmente fecharam. Não havia mais militantes. Os dois ou três mil que invariavelmente eram eleitos deputados, autarcas, ministros, directores-gerais e administradores foram envelhecendo, envelhecendo, até que aos poucos morreram. Houve um tempo que ainda se procurou resolver a crise com o recurso a independentes. Foi fatal. Os independentes alastraram e os militantes minguaram ao ponto de o último Governo da antiga ordem democrática ter no seu ministro da Educação o único militante do partido vencedor das eleições. Quando uma síncope o despachou sem apelo nem agravo, o partido do Governo achou por bem fechar as portas.

Sobre os escombros da velha democracia ergueu-se a nova realidade política onde Leónidas pontificava. Era militante do
partido Portugal em Pé e, por razões que o leitor já conheceu, ministro da Guerra com honra e proveito.

O gabinete de crise reuniu de emergência. Um atentado contra um ministro da Guerra a tanto obrigava. As televisões do mundo inteiro passaram as imagens do que restava do automóvel, um montão amalgamado de ferro carbonizado, e, pese o facto de não haver vítimas a lamentar, o presidente norte-americano deu propositadamente uma conferência de imprensa. Que aquele atentado contra o Senhor Leónidas (o nosso ministro ficou orgulhoso de o presidente americano o tratar pelo nome próprio) era um atentado contra o mundo livre, e o Senhor Leónidas, a respectiva família e o mundo em geral saberiam que os Estados Unidos continuariam a guerra contra o inimigo invisível, disponibilizando desde já o porta-aviões George Bush II para os bombardeamentos que Portugal entendesse realizar.

O primeiro-ministro presidiu ao gabinete de crise. Era o primeiro atentado a sério que acontecia em Portugal levado a efeito pela Al-Qaeda. Um momento importante na história pátria e o secretário de Estado do Exército abriu as hostilidades, declarando:

- Temos de atacar. As nossas divisões aquarteladas em Santa Margarida estão prontas a avançar.

O secretário de Estado da Marinha esclareceu: - As nossas duas fragatas estão prontas a partir. Finalmente, o secretário de Estado da Aeronáutica exclamou: - O nosso único avião de combate está em alerta vermelho. O primeiro-ministro advertiu antes que os entusiasmos subissem de tom:

- Apresentem-me qualquer plano. Mas sem avião. Não podemos perder o único que nos resta por causa de um atentado contra um automóvel. É uma resposta desproporcionada.

Concordaram e de imediato começou a discussão. Leónidas não estava presente, embora tivesse lugar cativo. Encontrava-se com

Tarso, no seu gabinete, tentando gerir a pressão da imprensa e das televisões. Era o herói do momento. Fotografias nas primeiras páginas, aberturas de jornais televisivos, pedidos de entrevistas de todos os cantos do planeta. Era a confusão total e Tarso excitado: - Temos de aproveitar esta onda. O Senhor Ministro irá longe. Leónidas não mostrava grande entusiasmo em ir muito longe. - Quem é que quererá matar-me, Tarso? - Oh, Senhor Ministro, Vossa Excelência é uma vítima da guerra invisível. O mundo inteiro sabe e até o presidente americano falou em si. - Não me lixes, Tarso. - Perdão? - Também tu acreditas nessa merda da guerra invisível? - Ela existe, senhor! - Se existe, eu não a vejo. É como Deus. Existe mas não se vê. É preciso ter fé para acreditar. E eu não tenho fé nenhuma. - Por amor de Deus, Senhor Ministro. Leónidas estava preocupado. - Alguém quer matar-me. Não sei quem é, mas alguém quer dar cabo de mim de uma vez para sempre.

Tarso estava ansioso. O pessimismo do ministro assustava-o. - A Al-Qaeda não está entre os seus suspeitos? - Mas que fixação na Al-Qaeda, Tarso?! E porque não os ecologistas e essa gente toda que se levantou contra mim por causa do paiol? E porque não o meu sogro? - O Senhor Ministro das Obras Públicas? Não! Impossível! - Se descobriu que tenho uma namorada fora do casamento, para proteger a filha é capaz de tudo.

- Não. É impossível! Completamente impossível. - A Al-Qaeda ainda é mais impossível. - Só que dava jeito. - Como? - O Senhor Ministro, se quer ter uma carreira política brilhante, tem de ter a Al-Qaeda por inimiga.

- Mas eu sou inimigo da Al-Qaeda! Leónidas estava tão assustado que não percebia e Tarso controlou a impaciência para explicar.

- Excelência, o atentado à bomba contra si coloca-o na galeria das vítimas do terrorismo invisível construída, mártir após mártir, ao longo deste século. Felizmente está vivo e isso faz do senhor um dos homens mais importantes do planeta. É a prova provada de que a Al-Qaeda não é invencível. Até o presidente americano disse o seu nome. É a primeira vez na história dos Estados Unidos que um presidente cita o nome de um português em público. Já viu a honra?

Por acaso já tinha visto. Poderia retirar dividendos políticos incalculáveis daquela confusão toda. A guerra arrastava-se há décadas sem grande sucesso. Por mais bombardeamentos que os Aliados fizessem por esse mundo fora, mesmo que às vezes se criasse a ideia de que tudo tinha terminado, de súbito explodia mais uma bomba, os Árabes saltavam outra vez para as ruas, gritando ódios em nome de Alá, e tornavam a queimar bandeiras americanas. Irritava vê-los a incendiarem bandeiras e a dançarem em torno do fogo exorcizando os ódios e, pronto!, lá voltavam os bombardeamentos em nome do mundo livre.

O chefe de gabinete entrou. - Senhor Ministro... - O que foi? - Está lá fora um polícia. Quer marcar uma entrevista com sua excelência.

Ficou surpreendido. - Um polícia? Mas o que é que eu fiz? - Acho que é por causa do atentado. Hesitou. Aquilo não lhe parecia lógico. Se o atentado contra ele fora considerado um acto de guerra, a competência era das Forças Armadas. Por que razão estaria a polícia metida nisto? Foi para resolver esta curiosidade e a seguir mandar o polícia para casa que disse ao chefe de gabinete:

- Manda-o entrar.

Saiu acompanhado de Tarso e momentos depois entrava o polícia. Chamava-se Juvenal, conforme o próprio declarou na apresentação. Tinha um ar pesado e o rosto marcado como se um cansaço enorme o dominasse. Leónidas faz-lhe logo a pergunta. Juvenal encolheu os ombros. - Não sei, Senhor Ministro. Apenas cumpro ordens do meu chefe. - Não sabe? Não sabe, como? - Não sei, pura e simplesmente. Houve um atentado á bomba contra o senhor e a minha brigada é especializada em atentados à bomba. Como o crime ocorreu em território nacional é nossa obrigação investigá-lo. - Mas não foi um crime é um acto de guerra. Respondeu-lhe com displicência. - Ah, isso é um problema político. O senhor chama-lhe o que quiser. Mas, como sou polícia, para a policia é um crime.

Não gostou do tom da resposta e retorquiu altivo: - E desde quando a polícia pensa uma coisa diferente da política? - Está no Código Penal. Quem fez o Código Penal foi a política e não a polícia. O Governo que retire de lá os atentados à bomba como crimes e eu já não o chateio.

O polícia não era tão estúpido como aparentava. Aliás, os olhinhos vivos brilhavam intensamente.

- Senhor Ministro, posso fazer-lhe umas perguntas? - Diga. Continuava sem perceber o que fazia ali a polícia quando o próprio primeiro-ministro, naquele preciso momento, presidia ao gabinete de crise para encontrar uma resposta nacional ao atentado.

- Conhece alguém que o odeie tanto ao ponto de querer matá-lo?

- Não, não. Estou farto de dar voltas à cabeça e não vejo quem. - O que é que o senhor fazia na noite do atentado naquela rua? Enervou-se. Não podia dizer a verdade e a resposta foi precipitada.

- Eu? Nada. Quer dizer, fui comprar cigarros. - Comprar cigarros, sim senhor. E chegou a comprar? - Como? - Estou a perguntar-lhe se chegou a comprar cigarros. - Sim, acho que sim. Estava junto á máquina quando se deu o estrondo.

Juvenal nem olhou para ele. Consultava um bloco de notas e depois ficou em silêncio, olhar perdido aparentemente desatento. Por fim, depois de um longo suspiro, perguntou:

- Conhece uma rapariga chamada Irene? Cambaleou. - Irene? Sim, conheço várias Irenes. A pergunta seguinte foi sibilina: - E alguma dessas várias Irenes que conhece mora na rua onde foi o atentado?

- Pois. Não sei. É possível. Não sei. - Não sabe? O Senhor Ministro não sabe? - Diga-me uma coisa, Senhor Inspector. O senhor está mesmo a investigar um atentado à bomba ou está interessado em saber as mulheres que conheço?

Guardou o bloco de notas e sorriu. - A partir deste momento não me interessa mais nada. O senhor está a fazer os possíveis para morrer. Pois que morra. Para mim é igual. Tenha um bom dia, Senhor Ministro.

Fez menção de sair e Leónidas saltou em pânico. - Espere. Eu não quero morrer. Que conversa disparatada é essa?

- Se não quer morrer, porque está a mentir? - Mentir? O senhor atreve-se a falar assim para mim? Como se chama o seu chefe?

Resolveu não responder à arrogância. Encolheu os ombros e dirigiu-se para a porta.

- O Senhor Ministro é que sabe. A verdade é que anda um maluco à solta que o quer matar. Quando quiser alguém que o ajude, sabe onde me poderá encontrar. Com a sua licença.

Saiu discreto e Leónidas, ainda a porta não fechara, já estava arrependido de o ter tratado mal. A história do paiol era muito pior do que supunha. Não só punha em risco a carreira política como era a própria vida que estava em risco. Quem, Santo Deus? E logo duas bombas. Se a primeira não explodisse, a segunda desfazia-o, caso não se tivesse esquecido do telemóvel na casa de Irene. E o polícia sabia do seu caso com ela. De súbito, veio-lhe uma pergunta à cabeça. Por que razão acontecera o atentado naquela rua? Era muito mais natural ocorrer à entrada do Ministério, perto da sua casa. Haveria alguma ligação entre Irene e as bombas? Estava cada vez mais arrependido de ter deixado o polícia partir e, depois, quantas mais perguntas lhe surgiam mais assustado ficava. Acendeu um cigarro. Aproximou-se de uma das janelas do gabinete de onde se via o Tejo. Não lhe apetecia trabalhar nem falar com a multidão de jornalistas que Tarso, exaltante de alegria, ordenava na antecâmara à espera de mais uma entrevista.

Não fora isto que sonhara ser um ministro. Enredado em intrigas políticas, com a vida ameaçada e sem jeito para descobrir quem o queria matar. Deu um salto para fora da janela quando se lembrou do assassino. Ali postado frente ao mar era um alvo fácil a partir dos telhados do Terreiro do Paço. Um tiro de precisão e pronto!, acabava-se a gloriosa carreira de Leónidas de Tábuas e Távora.

Corria as cortinas das janelas quando entrou o assessor de imprensa. Parecia uma noiva excitada em véspera de casamento.

- A CNN está aí. Imagine, Senhor Ministro. Para além da BBC e de mais quarenta televisões do mundo inteiro. Tenho pedidos de entrevistas de trezentos e vinte e dois jornalistas. É uma vitória completa. Nunca se viu coisa assim.

- Há alguma novidade do gabinete de crise? Tarso não percebeu. Que interessava o gabinete de crise quando o mundo estava ali a seus pés?

- Não, ainda não há nada. A CNN, Senhor Ministro... Interrompeu-o irritado.
- Eu quero que a CNN vá à merda e todas as televisões em geral!

- Senhor Ministro?! - Querem matar-me, Tarso! Matar, percebeste agora? - Sim, eu sei, mas não vejo qual é a relação que... - Há um filho da mãe que se quer ver livre de mim ou por causa da merda do paiol, ou por causa de outra porra política qualquer. E isto é que interessa. A CNN não me descobre o assassino, estás a perceber?

- Mas, Senhor Ministro, o senhor é um herói para o mundo inteiro. Todos os jornalistas estão aí porque o admiram. A sua projecção internacional será uma coisa nunca vista.

Noutras circunstâncias ter-lhe-ia agradado a ideia. Capa de jornal do mundo inteiro. O mártir vivo da guerra invisível contra o terrorismo. A Secretaria-Geral das Nações Unidas ali à mão de semear, o Prémio Nobel da Paz já encaixado debaixo do braço e presidentes e reis atentos ao seu conselho, venerando as suas palavras. Suspirou resignado e voltou-se para Tarso, que, suplicante, o observava.

- Não posso receber trezentos e tal jornalistas um a um. Manda-os para o anfiteatro. Faço uma declaração geral e respondo a vinte perguntas. - Vinte? Mas a CNN... - Tarso, não me irrites mais com a CNN! Quando passar esta confusão logo tratamos da CNN.

- Mas, se não houver confusão, eles não estão interessados. - E o que é que eu tenho a ver com isso? Manda-os para o auditório e desampara-me a loja. O Queirós que venha cá.

O Queirós era o chefe de gabinete. Vestia como um manequim e o cabelo reluzia.

- Senhor Ministro... - Quero saber como está a situação no gabinete de crise. Atacamos ou não atacamos?

- Continuam reunidos e nem saíram da sala para almoçar. - Eu deveria ter ido. Eu sei como acabam essas discussões. Em nada! Em nada!

Não conseguia esconder a irritação. Ninguém se preocupava com a sua vida. O gabinete de crise deveria estar a discutir a posição de Portugal após o atentado, o Tarso delirava com a alta política, mas com o seu corpo, com as suas vísceras, com o seu sangue, com a sua possível morte ninguém pensava um segundo que fosse. A não ser o polícia que correra a pontapé.

Convenhamos que Leónidas estava a exagerar. No gabinete de crise, os ânimos estavam exaltados na procura da resposta ao horrível atentado e, na melhor tradição portuguesa, a coisa começara, como já se viu, com a mobilização geral das Forças Armadas, excepção feita ao avião. Conforme os intervenientes iam baixando os respectivos níveis de adrenalina, a proporção da resposta também ia diminuindo, e àquela hora da tarde já dispersara a Marinha e do Exército restava uma companhia de comandos em situação de alerta, sendo certo que, agora, o ponto da discussão era sobre o tipo de condecoração que o Governo atribuiria a León idas. E aqui o secretário de Estado da Marinha, que não se conformava com a saída da Armada da operação de desagravo a Leónidas, gritava: - Ao menos que o condecorem com a Ordem do Infante! Ao menos que haja uma sugestão da Marinha em tudo isto. - Tem de ser uma condecoração militar. Uma Cruz de Guerra. - Ele é ministro da Guerra. A oposição ia dizer que ele se condecorou a si próprio.

- Se ao menos tivesse ficado ferido, eu não digo morto, mas ferido, merecia a Santiago e muito mais.

- Eu discordo. O Hortênsio, que era ministro das Polícias e dos Serviços Secretos, não se conteve.

- Vocês já repararam aonde é que vai esta procissão? Começámos por mobilizar tudo o que dá tiros e explode para estarmos ensarilhados com a medalha do Leónidas? - Qual é o problema? - E se nos preocupássemos em saber quem é que pôs as bombas?
- Ainda não sabes? - O mundo inteiro sabe, só o nosso ministro das Polícias é que não. - A Al-Qaeda? - Ainda perguntas? Ele ainda pergunta! - Pronto, está bem, foi a Al-Qaeda. E quem foi o tipo que pôs as bombas? Isso é que precisamos de saber.

- É doido. - O tipo não interessa para nada. O que importa é a organização.

- Lá isso... Ou bombardeamos a organização ou nada feito - Mas se ninguém sabe onde está a organização!! - Porque é invisível, burro. É por ser um inimigo invisível que esta guerra é invisível contra a invisibilidade do inimigo. Percebeste?

- Não. - Cá por mim ele ia bem com a Ordem do Infante. Uma sugestão da Marinha não ficava nada mal. Antigamente até éramos conhecidos por sermos um país de marinheiros, cos diabos. O primeiro-ministro resolveu finalmente falar. Bateu com a colher da chávena de café num copo e os gritos amainaram.

- Bom, vamos fazer assim. A sala emudeceu. As reuniões com ele terminavam sempre desta maneira. Deixava toda a gente discutir e, finalmente, rematava com um discurso incisivo. - O porta-aviões George Bush II vem aí. Fica estacionado ao largo de Cascais. A companhia de comandos fica de prevenção. O Hortênsio tem razão, é preciso descobrir que terrorista fez isto, onde está e quem é a célula que opera em Portugal, e quanto à condecoração vamos fazê-lo comendador. O tipo não tem títulos. Não é doutor, nem engenheiro, nada! Como não podemos armá-lo conde ou marquês, fazemos dele comendador. Ao menos em vez de ser o Leónidas é o senhor comendador. Da Ordem do Infante, claro.

O secretário de Estado da Marinha ficou aliviado. Poderia considerar a sua participação no conclave como uma grande vitória pessoal. O Tibério, ministro da Propaganda e um dos mais acérrimos defensores da guerra invisível, ainda questionou inconformado: - Quer dizer que não atacamos nada. - Vamos lá ver, quem é que tu queres atacar? - Eu? Sei lá. E rematou insidioso contra o Hortênsio: - Não sou o ministro dos Serviços Secretos. O outro pulou de cólera. Porém, o primeiro-ministro sorriu, levantou-se e declarou: - Meus senhores, acabou a reunião. Terminou no preciso momento em que Leónidas, pálido, em aflições para dominar o medo, declarava para um auditório que mais parecia um amontoado de jornalistas e câmaras de televisão.

- Que se desenganem os nossos inimigos. Se estas explosões serviram para parar o projecto do paiol nuclear em Zulmirinho, apenas vieram demonstrar que tínhamos razão. As bombas não servem para explodir por aí ao deus-dará. Guardadinhas no paiol é que estão bem.

Era o final da conferência de imprensa. Saiu sob uma forte chuva de aplausos.

Tarso fazia os possíveis para não desatar a saltar de alegria e, no dia seguinte, os editoriais eram unânimes. Leónidas era o maior. Só que agora, no momento em que a fama o chamava para ser um dos seus, tudo lhe parecia fútil. Era um palco conquistado com demasiada aflição para sentir o cheiro dos louros da vitória e a algazarra de pasquins e serventuários sem outro intuito que não fosse a cobiça e a ambição.

Lucrécia afagou-lhe o braço. - Estás há quase dez minutos pensativo em frente à chávena de café. Vou buscar-te outro que este arrefeceu.

Ficou só com André, que o olhava com espanto. - Quiseram matar-te, não foi? Eu vi na televisão. Sorriu nervoso - Como é que vão as aulas? Já juntas as letrinhas? - Já e faço desenhos. Finalmente riu com gosto. A porcaria da política e a obsessão por Irene não lhe tinham permitido saborear o crescimento do filho. Lucrécia entrou com o café.

- A professora diz que tem muito jeito com as mãos. Faz coisas de barro muito bonitas. Vá! Agora um beijo ao papá que amanhã tens de te levantar cedo.

André saltou da cadeira e beijou-o. - Até amanhã, papá. - Até amanhã, campeão. Daqui a pouco vou ter contigo para te contar uma história.

O miúdo saiu a correr e uma onda de tristeza toldou a expressão de Leónidas. Lucrécia baixou o tom de voz.

- Tem estado muito preocupado contigo. - Coitado dele. - O Hortênsio encheu o colégio de guarda-costas com medo que lhe aconteça alguma coisa.

- Fez bem. - E tu, como estás? - Vou resistindo. - Hoje não foste ao Ministério. - Estou cansado. Estes dias têm sido um inferno. Talvez fosse o cansaço ou aquele medo persistente que lhe roía a vontade, mas sentia-se frágil. Era como se uma ameaça difusa, mas omnipresente, lhe toldasse os movimentos e até o pensamento, sempre à espera de que o seu assassino se revelasse noutra explosão mais certeira ou num tiro cirúrgico. Esperava e esta espera para morrer era a pior das torturas, a grande maldição que o acompanhava dia e noite. Naquele momento, sentiu vontade de chorar e precipitou-se para a chávena de café. Aquela casa era o seu último esconderijo, a toca onde o medo era menor,

arredado pela doçura de Lucrécia e pelo olhar vivo de André. O único reduto seguro, a possibilidade de dar dois passos sem que esperasse ser alvejado. - Obrigado pela tua compreensão, Lucrécia. Ela encolheu os ombros e sorriu. Encostou a cabeça ao braço dele. - Às vezes tenho muitas saudades tuas. As lágrimas quiseram rebentar outra vez e puxou-a para si num abraço para que ela não se apercebesse. - Gosto muito de ti e do nosso filho. Lucrécia não respondeu, mas anichou-se ainda mais contra ele.

- É bom ter-te aqui em casa. Foi a única coisa boa que essas malditas bombas fizeram. Estás mais tempo connosco. - Acabou-se a vida de loucos que levei nos últimos anos. De agora em diante, vou diminuir o trabalho e passar mais tempo com vocês.

- Sabes que tenho saudades dos tempos em que ainda não eras deputado? Íamos para as colagens de cartazes e depois divertíamo-nos até amanhecer.

Sorriu. Mas Lucrécia não percebeu que aquele sorriso apenas escondia a recordação do enfado. Esses dias de que ela tinha saudades haviam sido dos mais penosos da sua vida. Fora nesse tempo que descobrira o peso de um sogro chamado Silva e que todos temiam.

Por fim, exclamou: - Também tenho saudades! - Amo-te. Leónidas beijou-lhe os cabelos, acariciou-lhe o rosto e fizeram amor. Há seis meses que não acontecia nada igual naquela casa.

Logo no dia a seguir ao casamento, Januário chamou-o e disse-lhe ao ouvido.

Saíste-me um belo cabrãozão! - Eu? -Começas com a conversa de que queres ir para a política, fazes-me suar as estopinhas para te meter como suplente numa lista para a Assembleia Municipal e, na curva, atacas, comes a filha do chefão e nem me convidas para o casamento!

- Não diga isso, Senhor Januário. O senhor sabe perfeitamente que quem fez os convites foi o Engenheiro. Silva.

- Saíste-me uma encomenda do cacete. - Ó Senhor Januário!?

É verdade. A miúda entrava aí com as outras amigas da Juventude e não havia cão nenhum que se atrevesse a olhar para

ela. A filha do Silva era intocável, além de que é um mostrengo, coitada!, e sais tu das barracas e fazes a tipa sem mais nem menos. É de homem!

Não gostou das bocas do velho e nesse preciso momento

deu-se a transfiguração que só revelou a Inturção de Leónidas.

- Ó Januário, voltas a falar assim da minha mulher e parto-te as trombas!

-O quê?

- É como te digo. E para que o caldo não se entorne de vez

é melhor ficarmos por aqui. Arranja outro tipo que sirva os copos que, a partir de agora, passo de taberneiro a cliente.

- Não sejas ingrato. - Não sejas tu ordinário. E saiu do interior do balcão para não mais voltar.

De igual modo teve de proceder com o Pirisca e o Chinesinho. Os dois velhos amigos foi só verem-no depois da boda, atacaram a fundo.
O Chinesinho aproveitou a boleia do Pirisca.

90 - Comigo a coisa é pior. Como sabes trabalho nos Caminhos de Ferro. Há mais de um ano que está na secção de pessoal o meu pedido de transferência de Santa Apolónia para Campolide. Vivo mesmo ao lado da estação e há vagas. Ainda não me despacharam a merda do papel. Toda a gente sabe que foi o Silva que meteu lá a nova administração da empresa. Por isso é fácil. Pôs uma cara de indignado. - Vocês não prestam. - O quê? - Como? - É o que eu disse. Vocês não prestam. Passámos anos e anos atrás de gajas, a beber cervejolas sem ninguém chatear ninguém. Agora, só porque casei, passaram de amigos a exploradores de sentimentos.

- Ó Leónidas, porra, pá! - Não é nada disso. - Não me lixem. Não me lixem. Eu já adivinhava que isto ia acontecer. Paguem as vossas cervejas que eu pago a minha. E com licença.

Voltou-lhes as costas para não mais lhes falar. Ninguém percebia esta mudança radical do Leónidas, ou então as explicações baseavam-se todas em motivos espúrios do género: - Agora é rico já não se dá com a malta. - O gajo não casou com o trambolho, mas com a fortuna dela. - Não tem sentimentos. É só ambição. Aquele que ali está era capaz de matar os pais para chegar aonde quer. Tu sabes que nem nos convidou para o casamento?

- Que grande filho da puta! Embora fosse esta a aparência do comportamento de Leónidas, ao contrário do que eles pensaram havia razões de fundo que o obrigaram a mudar de comportamento. E a razão principal chamava-se Silva.

Logo a seguir à boda, enquanto centenas de convidados se divertiam nos jardins da faustosa vivenda dos pais da noiva, o sogro chamou o genro ao escritório da residência.

Apreciava a festa através da janela quando Leónidas entrou. Sem se voltar, ordenou:

- Fecha a porta. Fechou e ficou amedrontado com a penumbra do escritório por onde se movia como um fantasma a figura imponente do Silva. - Saiu-te hoje a sorte grande. Não teve força para responder. O sogro sentou-se à secretária, puxou de um bloco de notas e recitou:

- Aos quinze anos, fugiste de casa quando a Guarda Republicana estava quase a apanhar-te. Eras tu quem vendia a droga que se consumia em Zulmirinho.

- Eu? - Cala-te. Para além disso, eras ladrão de gado. Roubaste pelo menos cinquenta ovelhas a um tal Resende, que não queria que lhe namorasses a filha.

Voltou a folha do bloco e comentou: - Este Resende é que tinha razão. Vieste para Lisboa e foram dez anos de vadiagem. Não estudaste, não tiveste nenhum emprego onde permanecesses mais de seis meses, não tens qualquer preparação académica nem profissional. O teu único passatempo é andares nos copos com uns tais Pirisca e Chinesinho, engatares umas miúdas e jogares à batota no clube recreativo do bairro onde moraste até hoje.

Leónidas estava paralisado de espanto. O velho mandara investigar a sua vida. Mas que grande ordinário! E agora?

O Silva continuou: - Agora vai ser assim. Vou arranjar-te um emprego. Já comprei a casa onde irás viver com a minha filha e, até encontrar um trabalho decente para ti, vêm almoçar e jantar aqui a casa.

Não foi capaz de dizer outra coisa a não ser sim, senhor, mas o monólogo ainda não terminara. Depois de ter exposto os direitos, o Silva passou a explicar-lhe os deveres. - Acabaram-se as farras. Acabaram-se os copos. Acabou-se a vadiagem. O marido da minha filha tem de dar exemplos sobre o que é uma família sólida. Uma família com valores e, já que não posso mandar-te para a escola, virás todos os dias a este escritório estudar. Estudar política, porque, aos trinta anos de idade e ignorante como uma pedra, não consigo meter-te em nenhuma empresa séria ocupando um lugar sério. Vais para a política. Depois se verá um lugar decente e onde não compliques a vida de ninguém. E agora vai ter com a tua mulher! Leónidas só conseguiu acenar com a cabeça afirmativamente. Ia sair do escritório quando o sogro o chamou: - Leónidas! - Sim, Senhor Engenheiro. - Nem te atrevas a pisar o risco. Esta família não aceita divórcios. Aqui, as nossas mulheres ou são solteiras ou casadas... ou viúvas!

Balbuciou qualquer coisa que nem ele próprio percebeu e saiu. Não estava à espera de que lhe apresentassem aquela factura. O plano era ao contrário. Casava, o velho babar-se-ia por existir alguém tão bondoso que lhe ficara com a filha e Leónidas, garantida a reforma, dedicaria o resto da sua vida a realizar a sua ambição mais profunda - não fazer nada! Depois tinha para si que a falta de atributos de Lucrécia era compensada com a doçura e a alegria, os traços mais distintos da sua personalidade. Quando quisesse fruta fresca e suculenta, ele sabia onde a poderia encontrar. Ah, e poderia dormir até tarde. Para Leónidas, o meio-dia era a primeira hora da madrugada e aquele casamento significava essa porta aberta para a sua melhor virtude: a preguiça. E agora o velho, em menos de dois minutos, liquidava-lhe todos os projectos.

Confortou-se a si próprio fazendo por acreditar que haveria qualquer forma de escapar à penitência e, porque não queria estragar ainda mais a festa de casamento, decidiu a solução mais

eficaz: Silva acabara de ganhar o maior ódio de estimação. Em devido tempo trataria do seu caso. Dirigiu-se a um dos empregados e fez a sua gracinha predilecta.

- Um sumo de laranja, por favor. - Simples ou com gelo? - Tempere-o com vodca para cortar o ácido da laranja. Beijou Lucrécia, tirou centenas de fotografias e declarou à mulher, pelo menos uma dúzia de vezes, que aquele era o dia mais feliz da sua vida. Ela, desfeita dos mimos, contou aos pais que o Leónidas estava nas nuvens, que não se cansava de repetir que aquele era o dia mais feliz da sua vida, e Silva, desconfiado, perguntou:

- Ele disse isso antes ou depois de ter estado comigo no escritório?

- Depois. Porquê? Também é o dia mais feliz da minha vida. E abraçou-se aos pais. O velho sorriu contente pela filha e pensou que, se calhar, tinha sido demasiado severo com o rapaz.

A lua-de-mel foi passada no Mónaco e, quando regressaram, Silva teve nova conversa com Leónidas.

- Vou meter-te no Parlamento. Deputado. - Deputado? Assim sem mais nem menos? - É o único sitio onde a tua mediocridade não é notada. Vais para as últimas filas e não abres a boca. Votas quando te mandarem votar e calas-te.

- Não sei se aceito. O amor-próprio tem destas coisas. Ir para ali só para encher, passar dias a fio calado, ia ser a mesma coisa do que ir para o deserto, estar sedento e o único viajante a cruzar-se com ele ser um vendedor de bolachas de água e sal para lhe aumentar a sede.

- Não sabes se aceitas? - Iam logo dizer que sou deputado por ser seu genro. - Não te preocupes. Eu sei como tratar disso. Embora reconhecesse a força do engenheiro, nunca imaginou que a sua capacidade de mexer cordelinhos chegasse até à mais recôndita base do partido. Era como se tivesse a omnipresença

dos deuses, que, invisíveis, manipulavam a vontade dos homens a seu belo-prazer. Como militante participou na reunião distrital para escolher os candidatos a deputados, e qual não foi o seu espanto quando duas propostas de listas, das concelhias de Lisboa e Sintra, o colocavam em segundo lugar como escolha directa das bases. E o espanto ainda foi maior quando um camarada qualquer perguntou quem era aquele Leónidas de Távora e foi o velho Januário, exactamente o Januário a quem ele ameaçara partir as trombas, o primeiro a levantar-se, apoiado ao cajado, e a defendê-lo. Que o partido era cada vez mais uma quinta explorada pela direcção e que as bases, ainda que fracas, tinham uma palavra a dizer. Que não havia melhor representante das bases e, se o povo andava sempre a gemer que queria verdadeiros representantes no Parlamento, ali estava o Leónidas. Ali estava, meus senhores. Prenhe de ambição, ignorante, bêbado, mas suficientemente lúcido para qualquer discussão sobre futebol ou televisão e, caso o obrigassem, pronto para a pancadaria de mãos limpas ou à bordoada. Melhor exemplo da porcaria de povo que tínhamos, não havia. Sucederam-se outros oradores, sempre lamentando o nojo de povo de que eram feitas aquelas bases, e acabaram por fundir-se as duas listas. Houve uma ou outra alteração de nomes e de lugares, mas Leónidas permaneceu intocável. O Portugal Feliz tornou a perder as eleições para o Portugal em Pé, mas o Partido dos Telespectadores Descontentes subiu a votação e quebrou a maioria absoluta. Por uma estranha conjugação de interesses, tinham desaparecido das televisões os real ity-shows e o povo protestara. Adivinhavam-se tempos difíceis e Leónidas percebeu que ainda não chegara a hora de afrontar o sogro. Mais valia ser deputado silencioso do que incomodar quem mandava. E Silva mandava mesmo. Até nas bases que desconhecia e desprezava.

Teria sido o sogro quem o mandara matar? Na noite anterior tivera um pesadelo. O Silva, com dentição de vampiro, o rosto da cor da morte, entrara pela janela do quarto. Está a vê-lo, mas o terror não o deixa falar. As unhas do sogro crescem como se fosse um lobo e debaixo da almofada esconde uma bomba. Leónidas quer, mas não é capaz de levantar a cabeça. Silva gargalha e voa pelo quarto, e ainda sente o estrondo da explosão para acordar num salto, transpirado, possuído por uma vertigem que mistura pânico e alegria por estar vivo. Mas agora, bem desperto, a hipótese parecia-lhe disparatada. Mesmo que tivesse descoberto o seu caso com Irene, chamava-o para lhe passar um correctivo ou despedia-o de ministro. Matá-lo seria excessivo. Porém sabia a razão do pesadelo. Pese o apoio da imprensa mundial à sua obra, a velha máxima de que santos da casa não fazem milagres aplicava-se a Leónidas na perfeição. A oposição mais radical, liderada pelo Partido dos Telespectadores Descontentes e pelo Terra Azul, tinha convocado uma grandiosa manifestação para Zulmirinho, procurando, desta forma, embargar o início das obras. A manifestação era, no seu entender, a antecâmara do motim e daí a tiros e explosões ia apenas um passo. Temia que fosse o pretexto para atentarem outra vez contra si, e esse receio convenceu-o. Explicou a situação a Lucrécia e pediu-lhe que fosse com André passar uns dias ao Algarve. O motorista levá-los-ia para o hotel do Sequeira, um amigo de confiança, enquanto ele dormiria num quartel da tropa. O seu estatuto de ministro da Guerra permitia esse privilégio. E depois havia outra coisa. O Governo cobrira-o de honrarias, até o fizera comendador, pusera um porta-aviões à entrada da barra pronto a bombardear Lisboa, mas a verdade é que quem o queria matar continuava à solta e ninguém se ralava. E essa era a causa maior da sua angústia. Havia um único homem que se dispusera a ajudá-lo, um polícia chamado Juvenal, e fora tão estúpido que o despedira do seu gabinete com desprezo. Mas precisava dele. Era a sua única esperança.

Lucrécia concordou. Desde o atentado que a vida deles se transformara num inferno. Janelas sempre fechadas, cortinas corridas fosse dia, fosse noite, um bando de seguranças a vigiar todos os passos, todos os suspiros que aconteciam naquela casa. - Tens razão. Se esse polícia nos puder ajudar, vai ter com ele. - Desculpa. Precisamos de acabar com esta angústia o mais depressa possível. - Vai. Vai ter com esse polícia. Eu parto para o Algarve e fico lá durante uma semana. Também estou preocupada por causa do André. Abraçaram-se. Lucrécia foi ajudar a governanta a preparar as malas e Leónidas telefonou para a Polícia. Juvenal dispôs-se a ir a sua casa e o ministro agradeceu.

Felizmente a manifestação estava a ser um fiasco. A televisão transmitia em directo. Um jovem de barba rala e camisola branca empunhava um megafone procurando que as duas dúzias de manifestantes gritassem a palavra de ordem. «Não queremos o paiol!» Em frente ao local destinado à concentração, apinhava-se a população de Zulmirinho, curiosa por estar ali a televisão e sem compreender porque gritavam aqueles jovens «Não queremos o paiol!» Um repórter, excitadíssimo, descrevia o que acontecia e, como não acontecia nada, entrevistou o jovem de megafone, que explicou que o povo tinha ido dizer ao Governo, ali, em Zulmirinho, que não iria aceitar nenhum paiol nuclear em Portugal. O repórter quis saber a opinião dos Zulmirinhenses e ia a dirigir-se ao público que assistia à manifestação quando, pelo auricular, ouviu indicações da régie. - Eh, pá, vou cortar a transmissão informando que houve uma falha técnica. A manifestação é uma merda, meia dúzia de gatos-pingados não dão imagens de jeito. Vê se consegues misturar a assistência com os manifestantes.

O repórter, batido nestas andanças dos directos, gritou para a assistência.

- Pessoal, desse lado não aparecem na televisão. Houve alguém que perguntou, indignado. - Mas porquê? Nós somos muitos mais do que eles.
- Porque estou assustado. Pressinto que corro perigo e estou impotente para me defender.

- Eu sei. - Preciso que me ajude. - Não sei se sou capaz. - Não me diga isso. O senhor é a minha última esperança. Apagou o cigarro e acendeu outro. - Este caso tem-me posto a cabeça às voltas. Nem consigo dormir. - Nem eu. Quem me poderá querer matar? - Com uma motivação muito próxima, não sei. Mas o senhor pode ser abatido por muita gente.

- Muita mesmo? - Tenho pelo menos uma dúzia de hipóteses. Infelizmente, não passam de hipóteses.

- Mas quem, Santo Deus? Quem? Eu acho que vou dar em doido. - O Zeca, por exemplo. - O meu segurança? - O homem é gozado pelos colegas porque vê terroristas em todo o lado. Ainda há pouco tempo aconteceu consigo uma história patética por causa de umas maçãs. Era uma maneira de repor os seus créditos, se o seu próprio ministro sofresse um atentado.

Nunca pensara no Zeca. Agora, no entanto, precisava alguns dos seus comportamentos: a tensão, os alertas contínuos para sucessivos perigos, a mão sempre na coronha da arma. Ainda por cima discutira com ele quando chegaram da visita a Zulmirinho. De súbito, exclamou:

- Eu não vejo esse gajo desde o dia do atentado. - Pois, esse é outro problema. O Zeca desapareceu. - Terá sido ele? - Não sei. É uma hipótese. Também pode ser algum dos militantes contra o paiol.

- Pois é. Sabe que é para aí que me inclino?

- Porquê? - Porque a minha vida começou a andar para trás desde o dia em que anunciei a construção desse maldito paiol.

- Pois. O polícia não parecia convicto. Quem berrava contra o paiol era um punhado de tipos que berraria por qualquer outra coisa e que, quando o paiol estivesse construído e já sem razão para esperar que não fosse avante, haveriam de se calar e, se calhar, até se ofereciam para lá trabalhar.

- O problema é o perfume. Leónidas não percebeu. - Perdão? Falou em perfume? - O senhor conhece alguma coisa de explosivos? - Não, nada. Já tinha visto armas de vários calibres nas paradas militares a que assistira como ministro da Guerra, mas as entranhas da coisa desconhecia-as por completo. Nem sabia que tinham perfume na sua constituição.

- Então é assim. A explicação é simples. O seu carro foi armadilhado com um sistema de detonação à distância. - Ai foi? - Exactamente. Quem fez explodir os engenhos estava mais ou menos a cento e cinquenta metros de distância.

Leónidas parecia espantado. Juvenal não reparou, ou fez que não reparou, e continuou a explicar.

- Quando accionou os detonadores atirou fora o instrumento que usou. É um modelo vulgar utilizado pela engenharia militar. A particularidade é que cheirava activamente a perfume de homem. O nosso laboratório fez pesquisas de perfumes e chegou à conclusão de que se trata de um perfume de homem da marca - interrompeu para folhear o bloco de notas -, da marca La Nuit Rose. Custa setenta e cinco euros o frasco mais pequeno. É caro de mais para ser usado pelo Zeca ou por esses militantes antipaiol de calças de ganga e pólos comprados na feira de Carcavelos.
Ficou em silêncio e acendeu outro cigarro. Parecia que o discurso lhe levara o que restava de fôlego. E Leónidas não conseguia fechar a boca de estupefacção. Por fim conseguiu murmurar.

- La Nuit Rose. -O nome diz-lhe alguma coisa? - Só um momento. Afastou-se em direcção ao interior da casa e Juvenal aproveitou para apreciar a sala. Tinha um ambiente agradável. Em cima da escrivaninha estavam várias fotografias do casal e do filho. Notou que o ministro, há alguns anos, era mais elegante e a esposa, uma mulher desinibida. Pese o facto de ser excessivamente gorda, ali estava de biquini na praia com o filho.

- É um dos meus perfumes! Havia surpresa na voz de Leónidas, mas Juvenal, como se fosse um tique, tornou a encolher os ombros.

- Seu e de algumas centenas de homens da sua condição. É um dos perfumes mais na moda. De homens com dinheiro, claro. Não sabia o que havia de pensar. Eram tantas pistas e tão cruzadas que, seguindo qualquer delas, ia dar a um tipo de pessoa diferente. Foi então que procurou fazer uma síntese:

- O Zeca pode ter comprado um perfume desta marca. Ele desapareceu por qualquer motivo e pode ter sido por causa do atentado.

- Pois. Só há um problema. Embora conheça muito bem as armas automáticas e seja até um bom atirador, o seu segurança não percebe nada de explosivos.

Começava a irritá-lo aquele jogo. Parecia uma corrida de touros. O polícia mostrava-lhe o capote, ele via com clareza por onde se havia de atirar e, quando lá chegava, não havia capote nem nada que pudesse apalpar. Ficou calado, quase amuado, à espera que o polícia começasse outra vez a sorte.

- Tenho para mim que foi um atentado passional. Quase que saltou no sofá. - O senhor não está a insinuar que a minha mulher... Juvenal não o deixou continuar e terminou o raciocínio.

- Pode ter sido um dos amantes da Irene! Desta vez saltou mesmo do sofá. Parecia-lhe que ouvira um sacrilégio. - Um dos amantes da Irene?! O polícia apagou o cigarro e olhou-o de soslaio. - Julgava que era o único, não? - Um dos amantes da Irene? Quantos são? - Contando consigo são três. Odiou o polícia com todas as forças. Sobretudo por causa da naturalidade com que falava, como se a vida amorosa da Irene fosse uma rotina, uma coisa tão banal que não lhe merecesse mais do que uma displicente consulta ao tão miserável bloco
de notas que folheava incessantemente. - Três amantes! - Contando consigo, claro. - Mas ela jurou-me. Ainda há pouco tempo discutimos por causa disso e ela jurou. O senhor tem a certeza?

Havia alguma censura na voz quando respondeu: - Eu não tenho necessidade de mentir, Senhor Leónidas. Agora tudo encaixava. As escovas de dentes, o atentado na

rua dela, tudo! Fora um dos amantes. Estava de vigília, viu-o entrar na casa e discretamente colocou os explosivos. O próprio motorista tinha abandonado a viatura para jantar enquanto o ministro tratava da Irene, e depois alguma coisa correu mal e as bombas explodiram antes de ele ter regressado. Estava claro. Um dos homens que partilhava Irene transtornara-se. Uma bomba cujo detonador era o ciúme. Também ele, no dia da discussão, tivera vontade de matar. Ele e ela. Agora descobria que, se quisesse exorcizar o ciúme através do sangue, teria de matá-la e matá-los. Não era mais um. Eram mais dois. O ciúme que entretanto renascera ainda mais violento fê-lo perguntar:

- E o senhor sabe quem são esses dois amantes? - Sei. Estou a investigá-los. Precisava de saber os nomes porque o ciúme alimenta-se de si próprio. Porque assenta numa verdade, ou numa mentira, que
pede mais e mais alimento, insaciável e cruel, que chupa, mastiga, rói, a auto-estima como se fosse um osso buco. É a imagem apropriada: osso buco, porque Leónidas, que fazia da misogenia um emblema clubístico, sentia-se boi. A Irene corneava-o mesmo.

- Essa gaja não tem respeito por mim. O polícia fez uma expressão de enfado. - E o senhor tem algum respeito por ela? Estava excessivamente enfartado de despeito para retirar da pergunta o sentido apropriado e rosnou:

- Também se pôs nela, não é verdade? Juvenal nem respondeu. Já testemunhara inúmeras vezes a irracionalidade do ciúme para se preocupar com o insulto.

- Mesmo assim, há coisas que não batem certas. Leónidas perdeu a cabeça. O ciúme silvava como panela de pressão e as novas dúvidas do Juvenal fizeram explodir a tampa. Voz alterada, cabelo descomposto, gritou:

- Oiça lá, o senhor veio a minha casa para me ajudar ou para gozar comigo?

Voltou-se surpreendido. - Eu? - Sim, o senhor. - Não seria melhor acalmar-se? - Eu estou calmo. - Não está nada. Ficou transtornado por saber que a Irene tem outros homens e, como sou a coisa que mexe e que fala que está mais à mão, resolveu descarregar em cima de mim.

- Porque não me diz quem são? - Porque não sei se algum deles é o criminoso. - É mentira. É claro que foi um deles ou os dois. Naquela rua, àquela hora, só podem ter sido eles e, se calhar, a mando dela. Meneou a cabeça num gesto de dúvida e, indiferente ao desvario do outro, comentou calmo:

- Era uma boa história para uma novela, mas a vida não se compadece com essas ficções.

O homem seria de pedra? Não haveria naquele corpo um bocadinho que fosse de compreensão para o seu sofrimento? Pareceu que lhe adivinhava os pensamentos quando se explicou:

- Tenho muita pena, Senhor Ministro, mas não tenho competência para lhe resolver a sua dor de corno. Nem para inventar o criminoso que lhe dá mais jeito. Se é isso que quer, vá ter com os seus amigos do Governo. Eles já lhe arranjaram um criminoso e bem forte, por sinal.

Não percebeu o chiste. - Quem? - A Al-Qaeda. - Está a gozar comigo, não está? - Não. Estou a tentar que o senhor se acalme. Não é possível falar com alguém que está transtornado pelo ciúme. O que é que o senhor quer fazer? É a vida. Além disso, não é sua mulher.

Juvenal não podia compreender como ele a amava. Como a desejava, como Irene era a totalidade das emoções. E não poderia dizer porque seria confessar a sua cobardia, a ausência de coragem para romper com o casamento, mais por receio do sogro do que por consideração para com Lucrécia. O polícia não podia entender a força daquele desejo tão carnal que não havia outra mulher que o cativasse, outro amor que se substituísse, outra paixão que pudesse destruir a paixão por ela. Chegara a roubar parte das economias de Lucrécia para pagar o apartamento de Irene. Um homem não pode descer mais baixo na escada da dignidade. Mas Irene merecia tudo. Afinal de contas, não merecia nada. Não reconhecera nem um dos actos de opróbrio a que ele se sujeitara. Nem a mesquinhez a que se deixara submeter.

- Tem razão. Acho que perdi a cabeça. Juvenal olhou-o por instantes e prosseguiu. - É uma possibilidade forte, mas pode não ter sido nenhum dos outros dois amantes da sua amante.

- E porquê?

- Se foi um deles e o queria matar, qualquer coisa aconteceu para a explosão ter ocorrido quando o senhor não estava no automóvel.

- Então... - Também pode ter sido outra situação. Alguém que não o quis matar, mas que lhe deu um sinal claro de que é capaz de o fazer. - Fez um gesto vago com a mão e acrescentou: - Se foi só um aviso, o número de suspeitos é maior.

- Por exemplo. - O seu sogro. Leónidas revolveu-se no sofá. Aquela conversa estava a desenrolar-se como se fosse um combate de boxe em que Juvenal batia e Leónidas encaixava sem conseguir retaliar com um soco que fosse.

- O meu sogro? - Sabia que foi um dos melhores peritos em minas e armadilhas do nosso Exército?

- Está a falar a sério? - Até escreveu um manual para a instrução na especialidade. - O tom de voz mudou: - Ao que sei é muito zeloso da felicidade da filha.

Este era um gancho curto que deixou Leónidas à beira do KO. A sala andava à roda e quando quis levantar-se do sofá as pernas não obedeceram.

- O meu sogro?! - Para ele era canja. Meteu os petardos de olhos fechados. Nessa noite, seguiu-o, viu-o entrar para o apartamento da sua amante, percebeu que o motorista estava fora do carro, que ainda por cima era propriedade do Estado, e toma!, fez aquilo ir pelos ares. Pronto! Estava o aviso dado: voltas a ser infiel à minha filha e da próxima os bombeiros apanham o teu corpo com uma pá.

Leónidas, lívido, exclamou: - Ele usa esse perfume La Nuit Rose. - Como vê, encaixa.

E apontou no bloco de notas a informação que o outro lhe dera. Leónidas tinha vontade de chorar. Era um pesadelo aquela conversa. Só podia ser um pesadelo. Não bastava ser o todo-poderoso do partido, não se satisfazia em dominar o país com uma palavra, com ordem breve, não lhe bastava ter legiões de homens prontos a servi-lo, um povo inteiro por sua conta que adorava lamber botas, sobretudo as suas, ainda por cima era especialista em minas e armadilhas. Logo de início fora assaltado pela suspeita de que em tudo aquilo estava a mão do Silva. Afastou a ideia com medo de que fosse verdade. E agora não tinha dúvidas: era verdade. Hesitou:

- O Senhor Inspector é capaz de prendê-lo? - Se for ele o culpado. - Claro que é o culpado. O senhor mesmo afirmou que batia tudo certo.

- Já reparou que, se fosse como quer, eu teria de prender não sei quantos suspeitos?

- Mas com os outros havia coisas que não encaixavam. - E aqui também não. - Não é verdade. - Se o seu sogro queria que o senhor se afastasse da Irene não seria suficiente ter uma conversa consigo? Tenho a certeza de que, se ele o mandasse parar, o senhor nunca mais a voltava a ver, não é verdade?

Hesitou mas era óbvio que não tinha condições para hesitar. - É verdade. - Como vê. - E agora? O que vai ser de mim? - Vai continuar a ser ministro, a bater-se na linha da frente da guerra invisível, a ganhar a vida como Deus ou o Diabo o deixarem.

Estremeceu. - O que é que o senhor quer dizer com isso? - Nada. Como já lhe expliquei, sou polícia especialista em explosivos. Não sei mais nada.

Apagou o último cigarro e levantou-se.

Se tiver alguma informação que seja útil, não hesite em telefonar-me de dia ou de noite. Com sua licença.

Apalpou a testa quando Juvenal saiu. Estava com febre e não era caso para menos. O outro viera anunciar-lhe a morte, apressá-lo para que escrevesse as suas últimas vontades e aguardasse em banho-maria o momento em que o terrorista decidisse: «Leónidas, chegou a tua hora!» E tudo terminaria em podridão, sete palmos abaixo do chão. Apostava tudo nos amantes de Irene. Porque era a hipótese que mais o magoava. Num instante arrependeu-se mil vezes de a ter conhecido, outras mil por lhe ter alugado o apartamento e queria também arrepender-se mil vezes de a desejar tanto. Descobriu então que não só não estava arrependido, como não sabia o que fazer, se ela lhe pedisse desculpa. Não. Não chegava um pedido de desculpas. Ela tinha de jurar que nunca mais queria saber dos outros. Era isso. Ela tinha de jurar. Porém, esta decisão não o confortou. Ainda há bem pouco tempo ela jurara que ele era o único homem da vida dela e mentira. Não valia a pena procurar soluções. Mesmo que tudo fosse como ele previa, continuaria a existir um rotundo e irrevogável óbice - tudo o que ele exigiria de Irene ainda agravaria mais a intenção do terrorista e a sua morte seria certa.

Passou a mão pela testa e recostou-se, vencido, no sofá. Não poderia voltar àquele apartamento e não estava em condições de deixar de pagar a renda. Enfureceria o seu matador e concluiu, com profundo desassossego, que enquanto não fosse preso o bombista teria de pagar o apartamento onde a mulher dos seus sonhos se deixava fornicar pelos dois amantes. E, como se não bastasse o pesadelo, o ciúme e a revolta deram-lhe a estocada final: por três amantes. Porque a falta de Leónidas pedia imediata substituição. Não havia mais para pensar. Começou a chorar em silêncio.

Leónidas estaria condenado a ser um obscuro parlamentar, daqueles que só aparecem nos planos gerais da Assembleia da República, obrigado ao voto de silêncio e ao desprezo dos seus pares, se não tivesse estoirado a guerra. Estoirar é um verbo forte. Digamos, pois, oficializado. Ela existia há décadas, mas em lume brando. Repetia-se sempre a mesma situação. O presidente americano em exercício dizia: «A Al-Qaeda está no país. Vamos atacar.» E logo o país tal, em vez de dizer se nos atacarem, nós respondemos, respondia: «Nós atacamos convosco. Onde é que está a gaja?» A gaja, como se percebe, era a Al-Qaeda. Os Americanos correram o mundo à procura dela. Havia militares que chegavam ao fim da carreira mais viajados do que os turistas furiosos que correm o Planeta à procura de paragens inóspitas e a coisa terminava sempre da mesma maneira. Derrubava-se o regime do país tal, mesmo que tivesse atacado do lado certo, e partia-se de armas e bagagens para outras paragens. Os guerreiros do invisível já teriam dado pelo menos três voltas ao mundo depondo governos. Alguns países já iam na terceira deposição, e largando bombas a eito, quando uma série de atentados contra casas de passe, legais e clandestinas, varreu a face da Terra. A mais antiga profissão do mundo em vias de extinção e um credo na boca de todos os aliados. A Al-Qaeda atacava um dos pilares fundadores da civilização judaico-cristã: o bordel, o antro de pecado virtuoso que a Bíblia redimiu através de Madalena. Quem estiver sem sombra de pecado que lhe atire a primeira pedra e, desde então, em vez de apedrejamento, a malta em geral passou a oferecer-lhes casacos de peles e jóias de grande pureza. Porém, a audácia do golpe e a surpresa horrorizada era também um sinal de fraqueza do inimigo. Como sabiamente afirmou o presidente americano para todo o mundo - no tempo em que viveu Leónidas, as conferências do presidente eram em directo para todo o mundo civilizado: «Os nossos inimigos estão a perder. Se protegermos os nossos prostíbulos, eles vão perder!» E, já emocionado, proclamou: «Por cada prostituta que salvamos é menos um
jovem muçulmano que se oferece para o martírio. A guerra que agora declaramos contra o inimigo invisível vai ser a salvação do mundo.» Leónidas ouviu o discurso na companhia do grupo parlamentar.

- Não estou a perceber nada disto. Vamos entrar em guerra para salvar putas?

Já tinha ouvido discursos destes mas em relação às baleias. Um colega mais entusiasta proclamou: - É inteligentíssimo. É uma guerra inteligentíssima. - Alguém me sabe explicar? Foi o Renato, deputado á beira da reforma e pastor evangélico, que deu a solução a Leónidas:

- Segundo uma crença fundamentalista, cada homem-bomba que voluntariamente se dá à morte para consumar um atentado na Terra tem no céu à sua espera setenta mulheres virgens!

- Porra! O deputado veterano à beira da reforma, embora com trinta e cinco anos, continuou:

- Já deram o peido mestre tantos homens-bomba que acabaram as virgens. Há vinte anos os teólogos reuniram-se num deserto secreto e decidiram que as mulheres não precisavam de ser virgens desde que fossem ocidentais. Setenta mulheres para cada homem-bomba. - Cum catano! - Pois é. Só que os voluntários faziam bicha e começou a escassez de mulheres no céu. Baixaram a fasquia para trinta e cinco.

- Mesmo assim é uma porrada de mulheres. - Só que os demógrafos começaram a fazer contas a nascimentos e óbitos e há mais ou menos cinco anos eram só três mulheres para cada homem-bomba e sem olhar à idade das fêmeas.

- Quer dizer que um gajo podia explodir, chegar lá acima e o São Pedro entregar-lhe três carcaças de noventa anos, desdentadas e só ossos e coiratos!?

- Exactamente. É por isso que foi este conjunto de atentados contra as casas de putas. Precisam de mulheres no céu como os nossos aviões precisam de combustível em terra.

- Quer dizer que sem mulheres no céu não há homens-bomba na terra.

- Pelos vistos. Um dos deputados mais pessimistas rosnou: - O pior é se esses teólogos fundamenta listas, devido à falta de mulheres, começam a prometer homenzinhos de pouca barba na cara. Morre uma pessoa para ficar descansado e aparece-lhe lá em cima um desses homens-bomba a querer saltar-lhe para a cueca.

Ainda que se tivessem manifestado três ou quatro risinhos nervosos na sala, a esmagadora maioria concordou que tal decisão era impensável, que os fundamentalistas islâmicos eram ferozes inimigos da homossexualidade, que não corriam esse risco.

- Isso seria pior do que a bomba atómica. - Não, não vai acontecer. O deputado resmungão refilou insatisfeito. - Nunca fiando. Em tempo de guerra não se limpam armas. Nunca fiando.

A confusão generalizou-se entre os presentes. Havia alguns mais entusiastas que até se queriam alistar nas tropas que iam proteger as miúdas e a algazarra prometia subir de tom quando a bomba caiu na sala. O primeiro-ministro do partido Portugal em Pé acabara de se demitir. Um silêncio de espanto paralisou os presentes. O Gouveia, que, esbaforido, trouxe a notícia, gritou:

- Liguem a televisão. O gajo está a falar ao país. E estava. Que reconhecia a justeza da decisão do presidente americano, que era um pensamento de estratégia militar de fino recorte procurar que o inimigo ficasse sem abastecimentos. Porém, se política e militarmente concordava com a decisão, as suas convicções religiosas não lhe permitiam estar na linha da frente de uma guerra que tinha por obrigação proteger o pecado, defender o vício, que elegia o prazer da carne como valor supremo. Por isso, demitia-se do Governo e do partido e iria informar o Senhor Presidente da República - já telefonara ao presidente americano no mesmo sentido - de que, devido à declaração do estado de guerra, não valeria a pena provocar eleições antecipadas, pois que garantiria apoio parlamentar ao maior partido da oposição, o Portugal Feliz.

O homem ainda disse mais algumas coisas, persignou-se e foi-se embora.

Na sede do partido escolhido para o esforço de guerra, houve festa rija e abraços. O presidente foi saudado como o vencedor absoluto daquela noite gloriosa e no dia seguinte começou a formação do gabinete. O agora primeiro-ministro reuniu a sós com o Silva e perguntou-lhe:

- Qual é a sua ideia, Senhor Engenheiro? - Faz-se um Governo pequeno. - Era essa a minha ideia. - Escolhe uns tipos espertos para as Finanças e para a Saúde. - Tinha pensado no Leonardo e no Evaristo. - São bons. - Estava a pensar convidar o Senhor Engenheiro para ministro de Estado.

- Não. Interessa-me as Obras Públicas. - Só? Mas o senhor... - Precisamos de acalmar aí uns patos-bravos que se julgam muito importantes porque se dedicaram ao futebol. Eu é que vou distribuir o dinheiro.

- E o seu genro? Se o senhor não quer ser ministro de Estado, eu insisto para que o seu genro entre neste Governo.

- Dá-me jeito. O tipo é um sorvedouro de dinheiro e a minha filha vai ficar contente.

- E pensou numa pasta para ele? - Dá-lhe uma dessas pastas para imbecis. Sei lá, o Desporto, a Educação.

- Para a Educação estava a pensar no Fernandes. Não é estúpido mas é um grande mentiroso. E, quanto ao Desporto, não sei se é bom futuro para a sua família.

- Não? - Com os dirigentes que temos no futebol, precisamos de um ministro igual a eles para que se entendam. Alguém que seja analfabeto, suficientemente ordinário, que goste de contar anedotas, de almoçaradas, que arrote sonoramente e putanheiro. Para além de tudo isto, é bom que se deixe corromper barato porque senão custa-nos uma fortuna!

Até o Silva se impressionou com o retrato. - Chegámos assim tão baixo? - É o piorio. - Não. Não quero ver a minha filha sofrer por ver o marido metido com essa cambada de rufias. Dá-lhe a Guerra.

- A Guerra? Mas a Guerra vai aquecer. - Não aquece nada. Vai tudo continuar na mesma. E nós temos muito a ganhar com a história do paiol que nos propuseram.

- E não dizemos nada ao Leónidas? - Para quê? É um pateta. Mete-o na Guerra que nós tratamos da coisa. Se der para o torto, que aguente. Já que quis dedicar-se à política é bom que saiba como elas doem.

Quando o encontrou em casa, avisou-o: - Arranjei-te mais umas notas por mês. Esta noite vais ser convidado para ministro da Guerra!

- Eu? Ministro? Mas eu não percebo nada disso. - Nem precisas. Vais ficar com três secretários de Estado para o Exército, Marinha e Força Aérea, encontras um assessor que te escreva os discursos em defesa da guerra invisível e, pronto!, durante os próximos três anos não me chateias nem me pedes dinheiro. Lucrécia abraçou-o. - Parabéns, meu querido! Sorriu nervoso. Era tudo tão inesperado e fora do comum. Ele, o confidente do velho Januário, empregado de balcão emérito no bar do partido, vendedor de gasosas e amendoins, companheiro de copos e coristas com Pirisca e Chinesinho,
ladrãozeco pilha-galinhas de Zulmirinho, donde saíra a pinote antes que a Guarda o prendesse, ali estava entronizado como ministro da República. Agradou-lhe a ideia. Era o exemplo vivo de que o povo não está destinado à indigência. Leónidas conseguira.

O poder de um ministro mede-se pela assessoria. Quanto mais poderoso é, maior é o número de assessores. E vice-versa. Com as poucas excepções constituídas por alguns especialistas que usam tal título, a maioria dos assessores abusa do nome. O grande batalhão é um séquito de desempregados voluntários a quem o Estado paga uma pensão de alimentos.

- Então, que fazes tu agora? Ó, pá! Sou amigo do Fernandes, o gajo foi para ministro da Educação e perguntou-me se não queria ir com ele. Eu fui. Sou assessor do Fernandes. E tu? Ó pá, eu estava aí com umas coisas em vista, mas o Ambrósio foi para o Desporto. Como sabes, eu e o Ambrósio há mais de vinte anos que somos amigos. Fui dar-lhe uma ajuda. Sou assessor.

Podem cambiar as tonalidades da conversa, mas o ventre que fecunda este exército de leais amigos que fazem o supremo sacrifício de ganhar um ordenado público em troca da sua entrega ao companheirismo é a verdadeira alma do poder. A inutilidade de fato, gravata e expressões discretas em público, para se tornarem bobos em privado. É claro para o leitor que estou a falar do tempo em que Leónidas foi ministro da Guerra e este intróito serviu para dar passagem a Tarso, que olhava desconfiado para o seu senhor.

- O Senhor Ministro está bem? - Claro que estou. Porque perguntas? - Porque há bocado observei-o a cheirar o seu chefe de gabinete e agora estava a cheirar-me.

Riu embaralhado.

- Tens razão. - Cheiro mal? - Pelo contrário. Até cheiras muito bem. - Então? Hesitou. Por fim, como se fosse fazer uma grande revelação abriu os braços e exclamou:

- Pronto. Apanhaste-me. A verdade é que os meus sogros comemoram esta semana as bodas de ouro. Preciso de comprar um perfume ao meu sogro e não sei qual hei-de escolher.

Tarso sorriu. Ficara preocupado ao vê-lo de ventas de perdigueiro farejando quem passava.

- Este é muito agradável. Chama-se La Nuit Rose. Deixou-se cair na cadeira. Embasbacado. - Também usas o La Nuit Rose? - Uso. Já conhecia? É carote, mas é bom. Bem podia ter sido Tarso. Desde que o assessorava que não havia dia nenhum que não falasse da necessidade de construir uma imagem internacional que ultrapassasse de vez a mediocridade da política caseira. «Só uma boa imagem o colocará nas altas esferas da política mundial, Senhor Ministro.» Um atentado, tal como se viu, pôs a girar à sua volta a imprensa do mundo inteiro e, se Leónidas saía prestigiado de um acontecimento desta envergadura, o seu assessor não ficaria mal. «Peter? É o Peter da CNN? Sou eu, o Tarso. O teu colega que arranjou uma entrevista com o ministro da Guerra quando a Al-Qaeda o quis mandar pelos ares.» E estes contactos, sabia-o por confidência do outro, eram fundamentais num currículo profissional. «Queres falar com alguém da televisão da Nova Zelândia? Liga para o Carl. Não sabes quem é o Carl? Porra, pá. É conhecido em todo o Pacífico. Deixa estar que eu ligo. O que é que precisas dele?» Isto era currículo, redacção frequentada por personalidade assim era mais rica. Prestigiada. «Agora temos o Tarso connosco. Não sabe quem é? Exactamente, foi assessor de um calhordas qualquer do Governo mas bateu com a porta. É bom de mais para o lugar que ocupava. O tipo até conhece o Carl da Nova Zelândia.»
Notou-lhe a palidez no rosto e repetiu a pergunta inicial: - O Senhor Ministro está mesmo bem? - Estou, estou. Esqueci-me de um assunto que preciso de falar com o ministro das Polícias. Liga-me para ele. Preciso de cinco minutos a sós, ainda hoje!

Tarso saiu intrigado. Afirmasse as vezes que quisesse que estava bem, era cada vez mais perceptível que estava mal. Grandes momentos de introspecção, de repente gritos por tudo e por nada. Ficou preocupado. Se o ministro adoecesse e tivesse de sair do Governo onde é que Tarso iria arranjar emprego?

Leónidas encontrou-se com o colega das Polícias ainda de manhã. Tomaram café juntos no Ministério do Hortênsio.

- Tudo bem contigo? - Mais ou menos. - Aquele atentado foi mesmo uma chatice. - Podes dizê-lo. Uma chatice. - Todos os dias pergunto à Polícia como vão as investigações. Vão devagar mas a andar. É o melhor detective que eles têm que está à frente do caso. Chama-se Juvenal.

- Eu sei. Já falei com ele. - Ainda bem. O que é que o Senhor Ministro da Guerra quer do meu humilde Ministério?

- Um favor especial. Um favor e um pedido. - Tu mandas. Estava perturbado, sem encontrar as palavras certas. Por fim, pigarreou e disse:

- Eu preciso que os teus serviços secretos investiguem o passado do meu assessor de imprensa.

Olhou-o surpreendido: - Do teu assessor? Aquele meio amaricado? Olha que o tipo está apaixonado por ti.

- Não gozes que o caso é sério. Preciso de saber se alguma vez esteve ligado a explosivos. Na tropa ou noutro sítio qualquer. Hortênsio ficou sério.

- Desconfias dele? - Não sei. Se calhar estou a ser injusto. Mas preciso de saber. - Fica descansado. Ainda hoje trato disso. Esse é o favor. E agora o pedido. - Bom, o pedido é mais complicado. - Entre nós não há complicações. Conhecemo-nos há tantos anos que acho que noventa por cento das cervejas que bebi foram servidas por ti. Além do mais, és genro de quem és. Podes pedir o que quiseres. - Trata-se de uma mulher. - De uma mulher? Da tua mulher? - Não. De uma mulher especial. Hortênsio começou a rir e o riso estava cheio de cumplicidades. - Leónidas, meu bom malandro. Tens uma namoradinha nova e precisas de um apartamento discreto para despachares o caso. Vieste bater à porta certa. Eu comprei um T-um para essas funções. - Não é bem isso. - Não? Forçou a tosse para aclarar a voz. - Bom, a questão é a seguinte. Há uns anos que tenho uma relação com uma certa miúda.

- E depois? Qual é o mal? - O mal é que começou por ser uma brincadeira e tornou-se numa coisa séria. Eu amo-a, estás a perceber?

- Ó diabo! - Ela é muito mais nova do que eu. Tem menos quinze anos. - É boa? - De um homem ir ás lágrimas. - Então, chega-lhe, Leónidas. - Só que tem de ser tudo feito com muita cautela. Se a minha mulher descobre, tem um desgosto do caneco e o meu sogro é capaz de me matar, se a filha sofrer.

- Lá isso é verdade.

Baixou o tom de voz e olhou em volta o gabinete antes de prosseguir:

- Eu estava na casa dela na noite do atentado. Hortênsio achou graça. - A sério? Tu sabes que achei piada à explosão ter acontecido ali. Vive na mesma rua uma amiga minha que é completamente maluca e mais puta que as galinhas.

Leónidas ficou em alerta vermelho. - Na mesma rua? E como se chama? - Lurdes, porquê? - Por nada, por nada. Por um momento passou-lhe uma ideia maluca pela cabeça, mas felizmente era falso alarme. A outra chamava-se Lurdes.

- E qual é o problema com a miúda? - Desde que fomos empossados como ministros, não tenho tido tempo para lhe dar assistência.

- Ela pirou-se. - Não. Sei que tem outro gajo. O pudor fez-lhe diminuir o número de amantes que Juvenal contabilizara, e o seu homólogo das Polícias, rapaz todo modernaço, soltou uma gargalhada.

- Qual é o teu problema, meu? Desde que haja fruta para ti. Ou estás com ciúmes? Leónidas, tu estás com ciúmes.

- Não gozes. Bom, eu não quero entalar o teu inspector que está a investigar o caso. Pareceu-me um gajo competente. Mas ele não acredita na versão oficial de que foi a Al-Qaeda que me quis matar.

- Nem eu. Disse-o no gabinete de crise onde decidimos que ias ser comendador. Cá para mim foram esses merdas que andam por aí a gritar contra o paiol.

- Por acaso também fazem parte do grupo de suspeitos. Mas o tipo que anda a comer a minha namorada clandestina também é suspeito.

Hortênsio arrebitou as orelhas. - Tu estás a falar a sério?
- Pelo menos ele suspeita. - Que grande bronca! - É como dizes. Uma grande bronca. E eu preciso de saber quem é antes que me mande desta para melhor.

- Que grande bronca! - Pois é. - Tu já viste o estoiro que vai ser na imprensa se for ele? O que vai ser de ti,

Leónidas? - Nem me fales disso que eu nem durmo só de pensar. - E a comenda?! Tu recebeste a comenda por causa da Al-Qaeda!

- Eu quero que a comenda se lixe. Não quero morrer. É um desejo legítimo, ou não é?

Embora percebesse a alhada em que o outro estava metido, foi obrigado a concordar.

- É legítimo, sim senhor. Deu alguns passos pelo gabinete. Pensativo e preocupado. - Deixa-me falar com o chefe da Polícia. Leónidas assustou-se. - Tu não lhe vais contar isto. - Nem penses. Não vou contar nada. Nem pode sonhar que tivemos esta conversa.

Agora era Leónidas que não estava a perceber. - Então... vais falar com ele para quê? - Vou dizer-lhe que me telefonaste a pedir um agente secreto para tratar de um assunto de alto melindre relacionado com a guerra invisível. Depois recebes o homem e fazes o que quiseres. Eu daí lavo as mãos. - Porque ficaste tão assustado assim de repente? - Porque, se for verdade que foi o gajo que anda a papar a tua namorada quem pôs a bomba, o escândalo vai ser tão grande que o mínimo que o Silva te vai fazer é capar-te e a seguir lixar todos os tipos que te ajudaram, e eu não quero ir para fora da carroça, que gosto muito de ser ministro. Se não for verdade
e se descobrir que um ministro mandou seguir e investigar pessoas inocentes para seu proveito, és despedido do Governo e uns anos de cadeia ninguém te tira de cima. É um escândalo ainda maior. Lembras-te do Watergate? Já foi há um século e ainda hoje se fala nisso. Põe-te a pau, Leónidas. Põe-te a pau!

Não gostou da forma como o colega fugia a sete pés, mas não havia dúvidas de que tinha razão. Leónidas trilhava caminhos cada vez mais perigosos. Mas a verdade é que a polícia trabalhava devagar e cada dia que passava, quando chegava à cama, o primeiro pensamento que lhe surgia era hoje acabei vivo. Será amanhã? Esperar a morte no próximo minuto, passar dias a fugir dela, condicionar todos os momentos a enganá-la era um pesadelo que não desejava aos seus inimigos. Ainda por cima não voltara a ver Irene. Nem a telefonar-lhe porque era claro que a Polícia suspeitava dela, o telefone estaria em escuta. E ser escutado era o pior dos riscos. Passados uns dias, uma fuga de informação voltaria a pô-lo nos jornais, agora pelas piores razões.

Mal sabia Leónidas que, no momento em que assim pensava, Juvenal, dentro daquele casaco enorme que o fazia parecer pequenino, estava sentado na borda do sofá, bloco de notas amarfanhado nas mãos, com Irene sentada à sua frente, que fumava e lhe mostrava generosamente as pernas cruzadas.

- Quer dizer que estavam aqui, neste sítio quando se deram as explosões.

Irene riu. - É verdade. Ao principio ainda julguei que tivessem sido botijas de gás. Quando era miúda rebentou uma na casa dos meus pais e foi um estrondo horrível.

Leónidas tinha razão para estar embeiçado por ela. Era realmente espantosa. As pernas longas, os lábios sensuais, os olhos lindíssimos. Pareciam que estavam sempre molhados de lágrimas. E Juvenal percebeu ao longo do interrogatório que era inteligente. Cometeu um único erro. Avaliando Juvenal pelo seu


- Quer um café? - Não, obrigado. Gostava que me respondesse a mais duas ou três perguntas e não a incomodo mais. A senhora tem três namorados, aqui pelos meus apontamentos, o Leónidas, o Gaspar e o Hortênsio. Porque é que usa um nome diferente para cada um?

Puxou as saias para os joelhos, indignada. - Isso é mentira. - Eu percebo que é um bocado incómodo, mas a menina sabe tão bem como eu que é verdade. Quer que eu lhe diga as horas e os dias em que se encontrou com cada um deles nos últimos meses?

Esbracejava com indignação, mas também num esforço enorme para afastar a conversa.

- Vocês andam a seguir-me? A Polícia anda a invadir a privacidade de uma cidadã livre num país livre? - Pois. Eu sei que é feio. Mas a menina também deve compreender que, neste ambiente de guerra, uma mulher que consegue namorar com o ministro da Guerra, o ministro das Polícias e o chefe de gabinete do primeiro-ministro não é propriamente uma cidadã vulgar. - E rematou com ironia: - Desde logo porque precisa de uma grande condição física para fazer esta vida.

Não percebeu. Irritada, apenas repetiu: - Estes tipos seguem-me! Estes tipos seguem-me porque tenho namorados. Eu não aceito isto, Senhor Inspector.

- A senhora é que sabe. Mas, se a minha opinião lhe interessa para alguma coisa, acho que devia colaborar comigo antes de ser jogada às feras.

- Eu? Porquê? - Minha senhora, esta gente que governa foi levada por um vento de loucura.
Para eles, há terroristas em todo o lado e andam doidos para bombardear seja o que for.

- O que é que eu tenho a ver com isso? Gosto de sexo, mais nada.

- E faz muito bem. Mas, minha querida, se os defensores da guerra invisível descobrem que se deita com três membros do Governo, ainda por cima um deles ligado às Polícias, o outro responsável pela Guerra e ainda o outro que está junto do primeiro-ministro, pode dizer-lhes que só faz isto porque gosta de sexo, porque eles são uns garanhões, porque está apaixonada por todos e não consegue escolher. Diga o que disser, vão acusá-la de espionagem e pelo menos trinta anos de degredo no Alasca ninguém lhe tira, e só não é condenada à morte por causa das leis especiais que protegem as mulheres da avidez dos homens-bomba.

Soltou uma gargalhada estridente e Juvenal percebeu que estava nervosa.

- Espia? Eu? - Exactamente. - O senhor é doido. Sorriu quando se lamentou. - É capaz de ter razão. É preciso ser doido para aturar o que eu aturo.

Irene estava cada vez mais inquieta. Apesar de parecer uma loucura, o polícia tinha razão. Nunca pensara que aquele jogo que a divertia pudesse tornar-se em algo tão perigoso que envolvia degredos e prisões.

- O senhor sabe que eu não sou espia. Não sou nada. Essa gente desfez todos os meus sonhos.

- Eu sei. - Ajude-me, por favor. Havia lágrimas aflitas na voz. Como se os sentidos tivessem tocado a rebate e a iminência do perigo a obrigasse a fugir para uma toca segura.

- Porque usa nomes diferentes? Para um é Irene, para outro é Lurdes e para o chefe de gabinete é Clara?

122 Limpou as lágrimas que tremelicavam nos olhos. Perdera a pose sensual e agora era uma ovelhinha transida de medo que balbuciava as palavras como balidos.

- Apenas por divertimento e para que não soubessem uns dos outros. - E porquê tanto homem? Não lhe chegava um? As perguntas eram disparatadas e apenas mereceram um encolher de ombros.

- Fui uma tonta. Acho que o meu problema foi apaixonar-me pelo meu corpo.

Juvenal ajustou os óculos, intrigado, e instintivamente apreciou-a. Era de facto uma bela mulher. Elegante e gostosa. Ao passar na rua não deveria deixar nenhum homem indiferente.

- Não estudei, nunca tive uma profissão. Julguei que o meu corpo seria suficiente para fazer carreira. Cada homem que me aparecia fazia uma promessa. - Sorriu triste. - Se o senhor soubesse as promessas que ouvi ao longo da minha vida. Eram sempre mentiras. E de repente também fiquei com vontade de mentir e comecei a usá-los. O Leónidas paga o apartamento, o Hortênsio paga as roupas e o Gaspar paga a comida, e todos me dão dinheiro para gastar. - Riu satisfeita com a estupidez deles. - E sabe o que tem mais graça? É que todos estão convencidos de que são os únicos na minha vida.

- O Leónidas já sabe a verdade. Encolheu os ombros. Era dos três o menos agradável e o mais possessivo. E também o mais mentiroso. Infelizmente era o único de quem tinha gostado.

- Tem a certeza de que nenhum dos outros sabia da existência do Leónidas?

- Absoluta. Não podiam mesmo saber. - Porquê? - Porque era eu quem telefonava ao Hortênsio e ao Gaspar. O único que tinha chave do apartamento era o Leónidas e não há cá em casa nada que lhe pertença, a não ser um frasco de perfume que eu lhe ofereci e ele deixou aí com medo da mulher.
- La Nuit Rose. Irene olhou intrigada. - Como sabe? - E aposto que ofereceu perfumes da mesma marca ao Hortênsio e ao Gaspar.

Afinal não era estúpido. O homem era uma raposa velha. Insignificante mas esperto.

- Como sabe? - repetiu. - É lógico, não é? - Tornou também ele a repetir a pergunta: - Quer dizer que tem a certeza de que nenhum deles desconfiava que você se encontrava com os outros.

- Absoluta. São muito estúpidos, não são? Não estava particularmente interessado nos jogos amorosos da rapariga. Ao longo da vida de polícia já conhecera muitas tontas como a Irene e o destino era invariavelmente o mesmo quando os peitos começavam a mirrar, quando as rugas começavam a pintar os anos pelo rosto fora. Iam ficando mais sós, cada vez mais desprezadas até que a Assistência Social tomasse conta delas ou um frasco de comprimidos as despachasse de vez. Apesar de a informação sobre o perfume ser preciosa, saía dali mais confuso. Se a rapariga tinha razão e eles nem desconfiavam uns dos outros, a tese do atentado por motivos passionais perdia alguma força. Na verdade, os tipos que protestavam contra o paiol estavam cada vez mais furiosos e bem podia um mais ressabiado ter feito aquele disparate.

Fosse como fosse não saiu muito satisfeito e, por razões que não compreendia, estava a viver um estranho desafio: quanto mais sabia, mais longe estava de saber quem era o terrorista que quisera matar, ou assustar, o ministro Leónidas.

Leónidas que, naquele preciso momento, também não estava satisfeito com as informações que o seu chefe de gabinete lhe dava sobre o desenrolar da guerra. O conflito agudizava-se e, ainda por cima, o epicentro do conflito era Lisboa. Nem queria acreditar no que ouvia:

- Dezassete americanos hospitalizados e um deles em estado grave?

124 - É verdade, Senhor Ministro. - Mas como foi possível? Nós somos aliados! - Pois somos, mas a verdade é que a nossa malta é danada para os copos.

- Para os copos? Agrediram-nos com copos? Meneou a cabeça negativamente. O Senhor Ministro não estava a perceber. Queirós contou o que lhe contara um agente dos nossos serviços secretos em funções no Cais do Sodré. A tripulação do porta-aviões George Bush II tivera direito a folga e desceu à cidade à procura de souvenirs. E cerveja. Um pelotão de reconhecimento resolveu instalar-se no Cais do Sodré, embora a nota oficial emitida pelo comando do navio informasse que o objectivo da missão era saber como Portugal estava - ponto número dois da declaração de guerra no que diz respeito ao esforço que cada país deve desenvolver para proteger as prostitutas e as mulheres em geral da fome divina dos homens-bomba inimigos. Segundo os nossos serviços secretos, terão entrado, como é habitual entre eles, rindo alto, dando palmadas vigorosas uns nos outros, dizendo yeah por tudo e por nada, prontos a encharcarem-se em cerveja e a despachar duas dúzias de miúdas a troco de dólares. Que, assim que se falou de dólares, em vez de duas dúzias de prostitutas apareceu quase toda a população feminina dos bares do Cais do Sodré, centenas delas à cata das verdinhas. A festa até ia rija com os nossos agentes secretos a fazer de chulos, mas a controlar a operação, e os chulos propriamente ditos a facturarem, satisfeitos da vida. Até porque americano não tem grande jeito para a função. Houve marujo que entrou na pensão com a miúda e nem subiu ao quarto. Um deles, foi mesmo junto à recepção. Despachou-se em trinta segundos e ainda por cima, como já estava muito bêbado, em vez de pagar os cem dólares da ordem, deu-lhe duas notas que estavam mais ou menos coladas, puxou o fecho da braguilha e satisfeito proclamou: «Yeah! Yeah!» Como se vê, toda a gente estava satisfeita. As mulheres a despachar cabritos, os chulos a cobrar e os americanos cada vez mais bêbados e a dizer «Yeah! Yeah!».
Foi então que o vinho entrou em cena. Um chulo, conhecido por Homem-Aranha, terá dito a um companheiro que responde pela alcunha de Migas:

- Os gajos estão no ponto, pá! - Tu achas? - Estão no ponto, digo-te eu. Já se serviram de miúdas, estão bêbados, aparecemos agora com as garrafas de vinho e até vão cantar o hino do Sporting.

- O vinho é marado, pá! - Primeiro damos-lhe do bom e só depois é que vai do marado. Estão tão grossos que nem vão notar.

O Migas não estava muito convencido. - Olha que pode dar para o torto. Misturas já são más. Agora com vinho marado é uma bomba.

- Que se lixe. São uns merdas. Já viste que nem sabem comer as gajas? É só yeah para aqui, yeah para ali. Migas, pregamos-lhe uma cardina de caixão à cova e abarbatamos-lhes o resto dos dólares. Estão gordos de tanta nota.

Migas decidiu-se. - Vamos a eles. O homem entrou, oferecendo as garrafas aos marines que já babavam cerveja. - Isto é que é good. Vinho of Portugal. O melhor do mundo. Yeah! - Wine! Yeah, yeah. O Homem-Aranha tinha-se aviado ali para os lados do Cartaxo. Carrascão e puxado até aos treze graus. Coisa feita mais para embebedar do que para apreciar.

Serviu os primeiros quatro generosamente em copos altos de cerveja. Provaram e ficaram deliciados.

- Good! Good! Yeah. - Yeah. Good! E o Homem-Aranha encantado. - Gostam? Bebam que há mais. É até fartar para saberem o que é a hospitalidade portuguesa. Yeah! Viva a América!
Quando estoiraram a primeira dúzia, Migas chamou a Micas e a Tilinha.

- Venham comigo. Vamos encher estas garrafas do barril. - Migas, mas do barril é vinho marado. Foi feito aqui no bar com álcool e groselha.

- E qual é o problema. Tem a cor do vinho tinto, não tem? Então é vinho tinto. Bora! Aquele sargento ali do canto tem a carteira cheia de notas.

Quando chegou a segunda leva de garrafas, já havia descontentamento nas tropas e o Homem-Aranha comandava as operações.

- Easy, calma, calmex! O wine está a chegar. Dá para todos. Quando o Migas, acolitado pela Micas e pela Tilinha, surgiu com as garrafas ouviram-se aplausos. O Homem-Aranha proclamou:

- Sirvam-se, é por conta da casa. O Migas aproximou-se do outro. - Será que não notam? - Claro que não. Já estão demasiado bêbados. Olha-me para isto. Yeah!

Os marines emborcavam copos de álcool com groselha atrás uns dos outros.

- Good! Good! - Wine. - Yeah! - Yeah! Yeah! As garrafas esvaziavam-se a olhos vistos e o Homem-Aranha confidenciou ao colega.

- Desce ao paiol e traz mais munições. - Mais? Tu matas os gajos. - Não mato nada. Estes tipos são feitos de massa de corno. À terceira dose começaram a ceder. Uns dormiam em cima das mesas, outros foram vomitar à casa de banho e adormeceram amontoados, apenas o sargento ainda resistia, embora cambaleasse. Era o mais duro dos homens, pois tinha várias guerras
em cima, do golfo Pérsico ao Pacífico. O Homem-Aranha aproximou-se e sentou-se ao seu lado. O sargento levantou o polegar e balbuciou:

- Good! Serviu-lhe o copo vazio, acendeu-lhe um cigarro e comentou: - Pois claro que é good. Nem na Califórnia há pinga desta. - Califórnia, yeah, yeah. - Vá, bebe lá, filho, que a malta quer ir buscar os dólares e está na hora de sossegar. Vocês comeram as miúdas, beberam uns baldes e nós ficamos com os dólares. Portanto, amigos, aliados e viva a guerra. Eh, pá, aquele porta-aviões em que vocês andam é grande pra cacete. Nós até já pensámos em comprar um em segunda mão. Assim uma coisa mais de mostrar a turista mas o Estado entesou há mais de trinta anos e não há trocos. Vá lá, camone. Despacha-te com a bebedeira que eu tenho de trabalhar.

- Yeah... - Vá, mais um copo por conta da casa. Este pago eu para celebrar a amizade entre portugas e américas.

O sargento desmoronava-se. Começou a dobrar-se para a frente devagar, devagar, até que caiu enrolado no chão. Tinha chegado a hora. O Homem-Aranha deu a voz de comando. - Pessoal, toca a roubar. Mas com jeitinho. Sacam as carteiras, tiram o graveto e voltam a meter a estália na algibeira. Ninguém aqui quer complicações diplomáticas.

Prostitutas e chulos atacaram os bolsos do pelotão e pode dizer-se que foi uma operação bem sucedida. Conforme dizia o Migas: «Nós é que devíamos entrar para a história e não a padeira de Aljubarrota. Roubar assim é muito mais digno do que matar espanhóis à pazada.»

Quando estava tudo aviado puseram-se a andar. Ficou o Homem-Aranha para fechar o estaminé e eis que da casa de banho surgiu a cambalear um marine com a farda vomitada e os olhos inchados.
- Wine! - Wine? Vinho? Ó filho, já acabou e, além do mais, estamos a fechar. Apareçam amanhã. Tragam dólares e verão que há wine para toda a gente.

O militar deu um murro zangado no balcão e berrou: - Wine! O Homem-Aranha não gostou do grito. É que acordou mais dois marines que a custo se levantavam do chão.

- Calma, calma. Não faças barulho que acordas os teus colegas.

Mas o álcool tinha-lhe toldado a razão. Berrou outra vez: Wine!, e, cumprindo a melhor tradição americana, pegou numa cadeira que estava mais à mão e começou a bater, partindo o que estava à volta. Copos, garrafas, frascos estilhaçados em mil. O Homem-Aranha, que não era dono do bar, com os bolsos atafulhados de dólares, resolveu dar de frosques. Chegou à rua e avisou o polícia de giro.

- Os aliados estão todos bêbados e a partir o bar. Querem mais vinho!

O polícia puxou do rádio e pediu reforços. Os reforços chegaram e entraram no bar preparados para repor a ordem. Porém estava tudo em silêncio. Afinal a cólera do marine fora o último estrebucho. Dormia pendurado do balcão. Havia copos espalhados pela sala e ouviam-se gemidos.

Um dos polícias exclamou: - Estão mortos! O chefe tomou o pulso ao sargento. - Não. É coma alcoólico. Chamem as ambulâncias. As ambulâncias partiram e o conflito terminou.

- E foi isto, Senhor Ministro. Recolheram a São José. Leónidas estava preocupado. Os americanos detestavam ter baixas em combate.

Quando acontecia, retaliavam sempre. - Será que o sargento morre? - quis saber.

129 - Não sei, Senhor Ministro. Continua nos cuidados intensivos.

Bruscamente mudou de conversa. - O seu perfume é o La Nuit Rose? Não esperava a pergunta e ficou embaraçado: - O La Nuit Rose? - Sim, pareceu-me. - Não, não. Não tenho o hábito de usar perfume. Mais tranquilo, pensou em voz alta: - Pode ser que o sargento escape. Vamos rezar para que tal aconteça.

Embora não conhecesse nenhuma oração por inteiro, recolheu-se numa prece.

Tinha de confessar. A sorte estava do seu lado. Desejado uma carreira política e ela surgira-lhe fulminante. Aos quinze anos fugia da Guarda, aos trinta, depois de uma vida de vadiagem, vendia copos na sede do partido, aos trinta e cinco era deputado e, agora, a poucos dias dos quarenta e cinco, era ministro. Porém, se a fama chegara, o proveito estava para vir. Ou dito noutras palavras, a profecia do velho Januário, entretanto falecido, não estava a realizar-se. Continuava pobre. Salvo uns trocados que ia gamando ao sogro, através da Lucrécia, podia dizer que vivia bem, mas rico, nem pensar. De facto, o grupo parlamentar dividia-se em dois blocos. O primeiro, que não passava de meia dúzia de gatos-pingados, ocupava a primeira bancada e faziam da retórica e da disputa política o seu orgasmo diário. Envolviam-se em intensas discussões doutrinárias, escreviam colunas enormes nos jornais, organizavam debates, enfim, viviam em permanente canseira, e Leónidas não percebia porquê. A maior parte deles estava mais pobre do que no dia em que entraram na política. Conforme o alertara Januário, eram os últimos românticos, convencidos de que as ideias haveriam de mudar o mundo. Esfolavam-se a estudar, liam tudo o que lhes aparecia pela frente e pensavam. Pensavam muito. Os cabelos cresciam, a cabeça inchava, os olhos chispavam porque as meninges, em aceleração máxima, não paravam de procurar soluções, novos caminhos, novos problemas. Como gostava o Silva de repetir, eram a alma do partido!, enquanto o outro grupo não passava de um bando de coirões que andava por ali para se governar. Era evidente que o sogro quando afirmava isto colocava sempre o rabo de fora, mas sabia-se (por mais medo que impusesse nos corredores há sempre murmúrios) que se hoje era o homem mais importante do país, dono de bancos, de companhias de aviação, de fábricas de automóveis, devia tudo à política e ao negócio de ocasião. Mas, enfim, era sogro e a sogro tudo se desculpa desde que vá caindo com algum. Era o caso. Caía com pouco mas caía.

Fosse como fosse, a verdade é que era um teso. Léonidas não sabia mas era um lamento que não ia durar sempre. Por enquanto, já ministro empossado, libertara-se daquela tenebrosa fila da última bancada, habitada por coirões, no dizer do Silva, vivendo do ordenadito, que mais valia aquele do que a miséria perpétua. Embora nos dias que correm não seja assim, nos tempos em que ele foi deputado havia colegas que não tinham outra profissão. Cresceram e envelheceram em São Bento, utentes de um cargo vitalício que só não era transmissível de pais para filhos por questões de pudor. Mas ele libertara-se do silêncio e a primeira noite como ministro trouxe-lhe o primeiro dissabor. A Lucrécia e a mãe organizaram um jantar de família para celebrar o facto de haver dois ministros na família, e ele, para acalmar Irene que à viva força queria ir assistir à posse, prometera jantar com ela.

- Eu juro-te. O meu primeiro jantar como ministro será contigo.

- Não acredito. Dizes isso para evitar que eu vá à cerimónia. - Por favor, Irene, aquilo é uma estucha. Toda a gente a abraçar toda a gente, um calor dos diabos e uma confusão ainda maior. Olha, eu só vou porque sou obrigado.
- Leónidas, tu prometeste-me que quando fosses ministro vinhas viver comigo!

- Ó Irene... - Tu prometeste. Que como deputado ganhavas pouco, mas era só a vida melhorar, vinhas para aqui. Separavas-te da tua mulher e vinhas para aqui.

- Irene, escuta. - Não, escuta tu! Estou farta de ser a segunda. Farta! Nem conseguia recordar as vezes que esta conversa se repetira. Nem as vezes que prometera sabendo que não poderia cumprir. Era um estranho destino aquele. Quanto mais gostava dela, maior ia sendo o mar que os separava. Ela cada vez mais descrente das promessas, Leónidas cada vez mais algemado a compromissos que não lhe deixavam cumprir nada do que prometera. Chegava a odiar Lucrécia. Passou dias, semanas, à espera de um pretexto. Só queria um pequeno pretexto que fosse para chegar a casa e dizer: «Desculpa, Lucrécia, riscaste o guarda-lamas do carro no muro do jardim e eu não aceito isto. Não consigo viver com uma mulher que risca o guarda-lamas do carro de família.»

Mas nem a porcaria de um guarda-lama ela estragava. Era a mãe ideal, a esposa dedicada, a mulher doce e culta onde não havia mácula nem crispações.

Nessa noite, Irene chorou de despeito e raiva. Um dia, um dia, ele iria saber do que ela era capaz. Pôs-se a imaginar vinganças. Algumas bem terríveis. Foi quando viu na televisão as imagens emitidas a partir do País Basco onde dois automóveis ardiam miseravelmente após a explosão de uma bomba terrorista. Sorriu cruel: uma bomba. O que tu mereces é uma bomba, Leónidas de Távora. E adormeceu imaginando o atentado.

O gabinete de Leónidas começou o dia em polvorosa e o caso não era para menos. O primeiro-ministro já telefonara duas vezes

132 e até o sogro ligou a perguntar se precisava de ajuda. Entravam generais, saíam almirantes e Leónidas continuava reunido com os secretários de Estado. Como se não fosse já grande o vendaval, encostado a um canto do secretariado do ministro, Juvenal passava despercebido.

O sargento americano tinha morrido nessa madrugada sem ter acordado do coma alcoólico com que entrara em São José. O fígado, já cansado de outras batalhas, não resistira aos obuses com que o Homem-Aranha atacara. Segundo o boletim clínico, falecera às cinco e quarenta e cinco e, conforme o relatório que o ministro tinha à sua frente, o almirante Wayne, comandante do porta-aviões George Bush II, fora notificado às seis e trinta, tendo às seis e trinta e três aquela unidade entrado em alerta vermelho. Significava este vermelho que havia luz verde para disparar. A coisa era grave. O sargento, um tal Jim qualquer coisa, era um herói, daqueles que no dia da Acção de Graças são porta-estandartes na homenagem aos mortos no cemitério de Arlington. Veterano do Afeganistão, onde, ainda soldado, ganhara a primeira Cruz de Guerra, liderara o primeiro pelotão que durante a Segunda Guerra contra o Iraque entrou em Bagdad e desfraldou a primeira bandeira americana. Foi já na qualidade de cabo que na Terceira Guerra contra a Coreia conseguira reorganizar a 150.a Companhia Aerotransportada, decepada de oficiais e subalternos, nas praias de Nam Pyu e, com o que restava de homens estropiados e famintos, destruíra por completo o 3.° Batalhão da 5.a Divisão de Infantaria coreana. Para além destes factos mais significativos, ainda distribuíra fruta no Panamá, na Colômbia, enfim, um verdadeiro Rambo dos muitos que fazem do exército americano o mais poderoso do mundo. Esta era a sua última missão de guerra, estando já indicado para uma assessoria junto do presidente americano. Morria, agora, num bar em Lisboa, em combate contra a Al-Quaeda quando à frente de uma unidade de elite desmantelou uma célula da organização terrorista, tendo na refrega, para além do sargento-herói, morrido trinta e seis guerrilheiros da Al-Quaeda e os poucos sobreviventes que restaram viram-se obrigados a refugiar-se nas montanhas, que naqueles preciso momento estavam a ser bombardeadas por F-36 a partir do porta-aviões George Bush II. As autoridades portuguesas estavam convencidas de que, durante a operação, as forças americanas teriam abatido os dois terroristas que semanas antes tentaram matar o ministro da Guerra, o senhor Leónidas de Távora. Este comunicado, emitido pelo Pentágono às seis e cinquenta e nove, foi de imediato publicado na primeira página do Washington Post.

Leónidas estava exaltado. - Mas isto é tudo mentira! Este gajo andou toda a noite nas putas e foi para o hospital perdido de bêbado.

O chefe de gabinete atreveu-se a comentar: - Pois, essa é a nossa verdade, mas de pouco serve. - Mas devia servir. É a verdade. O secretário de Estado do Exército era seu amigo de há muitos anos e disse:

- Leónidas, eles vão enviar um herói para casa. Tu não queres que o apresentem como um herói que morreu com uma carraspana. Por amor de Deus!

O da Marinha interrompeu: - O problema é que o almirante Wayne quer atacar. - Mas atacar o quê? Quem? - Não sei. Mas que vai atacar, vai. Há seis helicópteros Apache do Bush II a sobrevoarem Lisboa a baixa altitude.

- E isso quer dizer o quê? - Que procuram alvos para atacar! - Porra, porra, porra! - O Senhor Ministro tem razão. Porra! - O homem não pode atacar! - São ordens da Casa Branca. Um americano morre numa operação e é preciso bombardear. E logo este, que era um herói.

- Mas o que é que ele vai bombardear? O Cais do Sodré não pode ser. A guerra foi decretada para proteger as putas. Se arrasa
o Cais do Sodré, vai ser um fartar vilanagem para os homens-bomba que estão no céu à espera de mulheres.

O secretário de Estado do Exército era o mais belicoso. - E se nós os avisarmos de que, se atacarem, nós contra-atacamos?

- Estás doido? E como é que chegavas ao Bush II? Com duas fragatas e uni avião? - Voltou-se para o da Aeronáutica e disse: - Aliás, o que vais fazer imediatamente é telefonar para a base para que escondam o avião.

O chefe de gabinete levantou outra hipótese. - Como o sargento morreu com os copos podem bombardear as vinhas. Acabar com a produção de vinho.

- Vocês querem dar-me cabo dos nervos, é? Vivemos num país de bêbados e estão a querer dizer-me que para o ano não há vinho? Ia ser bonito, ia. Tinha por aí manifestações muito mais perigosas do que aquelas com que a garotada me anda a chatear por causa do paiol.

- O Senhor Ministro tem razão. Ia ser a revolução, o fim do regime. Enquanto houver televisão e vinho ainda temos o povo sossegado. Se falta uma destas duas coisas, é o fim.

Leónidas retomou a palavra. Decidiu aplicar o método do primeiro-ministro e no fim ele decidia.

- Vá lá. Vamos acabar com a confusão e falar à roda. Começo pela direita.

À direita estava um perito de relações estratégicas que até se mantivera calado e, nesse preciso momento, Leónidas ficou lívido. O frasco de perfume! Aquele que descobrira entre os frascos de Irene. Era ela a assassina. - Não estamos, pois, em condições de responder militarmente à capacidade de guerra de um porta-aviões até porque...

Claro! O La Nuit Rose já lho tinha oferecido com essa premeditação. As mãos encharcadas de perfume e entrega o detonador ao cúmplice: «Esconde-te! Quando o Leónidas estiver a chegar, carregas neste botão e livramo-nos desse bode para sempre.»
- A desproporção de armamento entre o porta-aviões e as forças nacionais é tal que nem tempo teríamos de sair das casernas e disparar um tiro que fosse.

Fora ela quem preparara tudo. Ela com um dos amantes ou com os dois. A conspiração tinha sido bem preparada. A chave era o perfume. Toda a gente, até a Polícia, ficaria convencida de que era obra de homem - o frasco não deixava dúvidas «pour homme» - e Irene livrava-se do chato que prometia e mentia, ficando disponível para outras aventuras.

- Se o paiol de Zulmirinho já estivesse construído, ainda poderíamos assaltá-lo, roubar os mísseis americanos e pensar numa resposta nuclear, mas na situação em que nos encontramos eles atacam e deixamos de ser país em menos de cinco minutos!

Ele sentia, pressentira-o sempre, que aquela mulher era uma fatalidade no seu destino. Uma tragédia que se anunciava muito antes de eclodir. Bastava que se pensasse na falta de respeito que mostrava por ele. E tinha sido tão estúpido que não vira logo que só poderia ser ela. A Eva que mordia a maçã outra vez. Mais uma vez.

- Numa palavra, estamos liquidados. Quem manda é o almirante Wayne e nós obedecemos.

Levantou-se precipitado e os presentes ficaram intrigados. Voltou-se para o chefe de gabinete:

- Tu e o Tarso peçam uma entrevista com carácter de urgência ao imediato do almirante e preparem a reunião que eu devo ter com o Wayne.

- E o que é que dizemos? - Sondam o terreno, desdramatizam a coisa e informam que eu vou apresentar desculpas. Caso não fiquem satisfeitos, apresento a rendição. De qualquer forma, este país já se rendeu há muito tempo. Agora tenho uma coisa para fazer. Com licença!

Saiu da sala, deixando o seu estado-maior tolhido pela surpresa da rapidez com que decidiu.

Leónidas quase ia tropeçando em Juvenal, que continuava encolhido, à espera, no secretariado.
- Ainda bem que está aqui. Ia telefonar-lhe. - Também preciso de falar com o Senhor Ministro. - Venha comigo para outra sala. Isto aqui, hoje, está em pé de guerra. Mal fechou a porta desabafou: - Senhor Inspector, eu sei que foi a Irene quem me mandou matar!

- Sabe? - Sei. Juvenal puxou logo do bloco de notas. - Porque diz que foi ela? - O perfume. Ela tem em casa o perfume La Nuit Rose. Olhou-o por instantes. Depois lentamente tornou a meter o bloco no bolso.

- O senhor não diz nada? - Eu já sabia do perfume. Perdeu a paciência. Enquanto dava grandes passadas na sala, colérico.

- É claro que foi aquela cabra! Quando comprou o perfume para me oferecer, já foi com esse objectivo. Simular indícios, fazer-me crer que o terrorista era um homem. Cabra!

- Ela comprou o perfume quando o senhor fez quarenta anos. Foi há muito tempo para que possa estabelecer a premeditação.

- Como sabe que foi há cinco anos? - Porque perguntei à Irene. A irritação cresceu ainda mais. Agora contra o polícia. - Não há nada que eu lhe conte que o senhor não saiba já. Não percebo como é que sabe tanta coisa e não sabe quem é o filho da puta que quer dar cabo de mim.

- Por acaso até sei quem é. Estacou. Alvoroçado acercou-se de Juvenal. - Já sabe? Tem a certeza? - Tenho. Não tenho é provas. - Como é que é?
- Não se preocupe. Eu vou apanhá-lo. Vim aqui por outra razão. O cadáver do Zeca está na morgue.

- Do Zeca? Do segurança? Mas como? Mataram-no? - Não. Suicidou-se. - Matou-se? O Zeca? O meu segurança? - Exactamente. Um tiro no parietal e foi-se. Deixou uma carta. O polícia queria matá-lo de ataque cardíaco, de certeza absoluta. Eram notícias atrás de notícias, cada uma mais surpreendente que a outra. - O Zeca?! E eu? Quem é que me quer matar? - O senhor já me conhece para saber que não falo sem provas. Não vale a pena perguntar que não respondo. Como lhe ia dizendo, o seu segurança deixou uma carta que... Interrompeu-o bruscamente. - Quero lá saber do Zeca e das cartas do Zeca. A única coisa que me interessa é saber quem é o terrorista que anda atrás de mim.

- Já o informei que não posso dizer. - Não sai desta sala enquanto não falar. Leónidas correu a fechar a porta à chave e, de seguida, meteu-a no bolso. De braços cruzados em posição de desafio, proclamou:

- Como vê, daqui só sai por cima do meu cadáver. - Não brinque comigo, Senhor Ministro. - Eu não estou a brincar. O senhor só sai daqui quando me disser quem é. Com provas ou sem provas, eu quero saber.

O inspector tirou os óculos e calmamente começou a limpar as lentes. Confirmou se não tinham manchas e tornou a encavalitá-los no nariz. Por fim, explicou com naturalidade.

- O senhor ou abre a porta para eu sair ou eu prendo-o por sequestro e daqui por algumas horas, se isto continuar, por cárcere privado.

Leónidas soltou uma gargalhada. - O senhor sabe que não pode prender-me. Eu tenho imunidade.

Fora do flagrante delito, Senhor Ministro. Fora do flagrante delito. Abre ou não me abre a porta?
Os ombros tombaram, a cabeça caiu vencida, pegou na chave e abriu a porta.

- Não me vai dizer quem é, pois não? - Acabou-se. Não tenho nada para dizer. Vim aqui por mera cortesia informá-lo da morte do Zeca e do conteúdo da carta. Mas o senhor é malcriado e eu não aturo gente malcriada. Com licença!

Saiu e Leónidas, completamente desorientado, deixou-se cair numa cadeira que estava ao lado da porta e ali ficou, proferindo actos de contrição atrás uns dos outros, crivado de arrependimentos, farto da vida política e procurando uma desculpa para se demitir e fugir.

Enquanto decorria esta discussão decisiva entre o polícia e o ministro, a bordo do George Bush 11 o vice-almirante Cliford Furtado, acompanhado de um estado-maior que integrava o comandante dos marines, o comandante dos esquadrões de aviões de combate, o comandante das esquadrilhas de helicópteros, o comandante da artilharia pesada, o comandante das forças anfíbias, o comandante dos pára-quedistas, o comandante da manutenção da frota aérea, o comandante das unidades de mísseis nucleares e ainda um capitão-de-fragata, que fazia de intérprete por saber falar português e marroquino, recebia o chefe de gabinete e Tarso. Se, porventura, um fotógrafo acidental, daqueles que fazem história por disparar a máquina no momento certo, estivesse presente para a flashada da ordem, aquela fotografia ilustraria como nenhum discurso o perfil dos dois países. De um a lado, alinhados, sadios, fardas aprumadas, cintilantes de medalhas, cabelo à escovinha, queixadas firmes e decididas, os representantes espartanos do mais poderoso país do mundo. Do outro lado da mesa, o chefe de gabinete presunçoso e o Tarso desgrenhado, gabardina coçada, mostrando os dentes cariados de Portugal inteiro. O poder de um lado, a pelintrice do outro. A força organizada de um lado, o conto-do-vigário do outro. A vontade de vencer de um lado, o desejo de se safar do outro.

O chefe de gabinete olhou a bateria de interlocutores e sussurrou para Tarso.
- Estamos fodidos. Tarso sorriu para os oficiais e respondeu: - Deixa-os comigo. Tirou um maço de cigarros e os cenhos carregados dos antagonistas mostraram-lhe o passo seguinte e guardou o maço. O chefe de gabinete, cada vez mais nervoso, murmurou:

- O que é que dizemos a estes caralhos? O vice-almirante Cliford Furtado respondeu-lhe em português cristalino:

- Limitem-se a dizer o que nos vêm propor. Sabia falar português. Ele sabia falar português! E o chefe de gabinete, mirrado como uma castanha, apenas tinha vontade de chorar. O vice-almirante ouvira-o a dizer os palavrões. Tarso entrou a matar. Aquilo ia ser um combate de David contra Golias. - O Senhor Almirante fala muito bem português. É esse Furtado, não é? Açoriano?!

- O meu pai. Era da Ribeira Grande, em São Miguel. Conhece? - Uma cidade lindíssima. Lindíssima! O Senhor Almirante não conhece?

- Infelizmente! Havia mágoa deveras na voz do imediato do Bush II. Tarso percebeu que estava ali a brecha por onde poderiam resolver o conflito que opusera o sargento-herói ao Homem-Aranha na célebre batalha do Cais do Sodré, que fizera fugir os terroristas para as montanhas em volta de Lisboa.

- É imperdoável. Eu vou tratar disso. Pode o Senhor Almirante estar descansado. Ainda tem familiares em São Miguel?

- Acho que sim. Uma tia que vive nas Furnas e dois primos que trabalham em Ponta Delgada.

Tarso levou as mãos aos olhos para limpar as lágrimas. - Desculpe-me, Senhor Almirante. Fiquei comovido. Vai dar-me autorização para que trate do encontro entre vocês enquanto o senhor está aqui estacionado. Estamos a duas horas de avião. O Senhor Almirante vai fazer-me o favor de dar o nome da sua
tiazinha e dos seus priminhos e em menos de vinte e quatro horas pode abraçar a sua família. Vinte e quatro horas. E com televisão, se quiser. A televisão em Portugal baba-se por histórias dessas.

A delegação americana continuava impenetrável, disciplinadamente seguindo as negociações que o seu comandante levava a efeito.

- Eu trato de tudo, Senhor Almirante. Dá-me os nomes dos seus familiares, peço para os localizarem e partimos. O senhor nunca comeu o cozido à portuguesa feito nas caldeiras das Furnas, pois não? E a lagoa do Fogo? O Senhor Almirante vai ficar extasiado quando vir a lagoa do Fogo! É o paraíso, o verdadeiro paraíso. Eu telefono para Ponta Delgada e trato de tudo. Deixe comigo. Quando comer o queijo com massa de pimentão vai cair para o lado. Sou eu quem lho diz. É só sair daqui vou tratar de tudo!

- Obrigado, Mister Tarso. Muito obrigado. Tarso tocara as cordas da alma e do coração do almirante americano. Um fado em dó maior. Percebia-se que o homem estava comovido. Porém, dominou a emoção, reencontrou o tom firme da voz e informou:

- Seja como for, estamos à espera das explicações do vosso Governo. Um sargento americano, um herói do meu país, morreu em Lisboa.

- É verdade, Senhor Almirante. Com muita pena nossa. O povo inteiro chora essa perda.

- Eu sei. Foi uma das coisas que o meu pai me ensinou. O jeito dos Portugueses para chorarem.

- Um acidente, Senhor Almirante. As vossas tropas encontraram na noite lisboeta o mais radical vírus que existe à face da Terra, o mais implacável e mais invencível. O produto mais acabado do génio português, a verdadeira quinta-essência, o ADN de Viriato que persistiu na longa duração histórica: o chulo.

- O chulo? - É um produto genético muito especial, Senhor Almirante. Praticamente existe em todo o mundo, mas em Portugal depurou-se. Tem sido objecto de teses científicas esta depuração. Uns pensam que é do clima, outros admitem que entrou em fase de aperfeiçoamento autónomo graças aos investimentos do Fundo Social Europeu.

- Não percebo, Mister Tarso. Cliford continuava majestaticamente calmo e a restante delegação hirta, à espera do sinal do seu comandante.

- Uma espécie rara, Senhor Almirante. Vive da treta. Odeia o trabalho e vive da treta. Uma língua alcoolizada, uma imaginação prodigiosa, uma capacidade excepcional para a preguiça e, apesar de profundamente ignorante, fala todas as línguas que o engenho exija e disserta sobre qualquer assunto com mais convicção do que um académico letrado.

- Está a falar dos Portugueses. - Não. Estou a falar dos portugueses refinados. O verdadeiro chulo adora mulheres, sobretudo para lhe passar a roupa e apertar dos cordões do sapatos, anseia por uma boa briga, pela-se pela intrigalhada, embebeda-se diariamente, nunca trabalha, aliás odeia quem trabalha, e é o rei da inveja. A inveja é um pecado português, sabia? É o nosso destino. O mais ordinário, o mais rasteiro dos pecados haveria logo de ser português. O chulo é o seu mais fiel intérprete. O Senhor Almirante admitirá que um país orgulhoso como os Estados Unidos não deve atacar um país infestado de chulos. Deve ter pena. O vosso sargento morreu como um herói na luta contra os chulos. Uma luta digna de Hércules. Nunca poderia vencer. Nem todo o exército americano. É uma força de tal maneira poderosa que venceu o meu país. O Senhor Almirante não pode atacar um país de chulos e julgar que recolhe dessa vitória os merecidos louros. Não há glória nenhuma numa vitória assim. Uma cambada de medíocres vestidos com pompa e circunstância. Uma virose!

Cliford coçou o queixo. Aquela confissão tão sincera sobre a sua própria natureza comovera-o. Ainda fez uma última pergunta.

- Se é essa a ideia que tem do seu país, o que acha que devemos fazer?
- Fechá-lo. - Perdão? - Fechá-lo como se fecha qualquer baú rico em memórias, mas sem proveito para construir o presente. Fechá-lo e guardá-lo como um relicário. Não temos pedaços da cruz de Cristo, mas ainda restam alguns pedaços das naus das Índias e as chuteiras do Eusébio. Afinal, as únicas coisas que nos restam dos sonhos.

Tarso tinha lágrimas nos olhos quando terminou a tirada fatal e o almirante percebeu.

- Very well. Mantém-se a promessa da viagem a São Miguel? - Com certeza, Senhor Almirante. - Obrigado por terem vindo a este navio. Amanhã daremos uma resposta ao vosso Governo.

A delegação que representava o Governo americano levantou-se e o estrondo dos tacões a bater à uma foi formidável. Ouviu-se um apito e o almirante saiu da sala ante os seus homens perfilados. Tarso e o chefe de gabinete, à falta de melhor, fizeram uma vénia e a reunião terminou.

Partiram. Quando chegaram a terra firme, Tarso soltou uma gargalhada. O chefe de gabinete censurou-o.

- Eh, pá, foste longe de mais. Eu até me senti envergonhado do que disseste sobre nós.

- Dei-lhes bem a volta, não dei? - Tu é que parecias um chulo a falar. Mais um bocadinho e tinhas convencido o homem a dar-te meia dúzia de aviões.

- Estás a ver? Não há raça mais perigosa no mundo. Nessa noite o país não dormiu. Todos os ministros de vigília à espera do veredicto americano, enquanto nas ruas o povo festejava. O Benfica recebera o Real Madrid para uma disputa internacional e despachara os espanhóis com três na pá. E, para que não houvesse amuos, o Porto fora a Munique dar duas secas no Bayern e o Sporting regressara nessa mesma noite da Grécia, onde aviara uma cabazada de cinco sem resposta ao AEK.
O primeiro-ministro observava melancólico mais uma caravana que passava agitando bandeiras clubísticas e lamentava-se para o Silva:

- Este país é isto. Estamos sob a ameaça de um bombardeamento arrasador. Há futebol e vitórias e ninguém quer saber.

- Foi sempre assim. Porque te preocupas? - Pois. - Deixa-os divertir-se com os golos. Pelo menos estão entretidos e não nos chateiam.

Aqui o Silva tinha razão. Os melhores aliados do Governo não são bons índices económicos, tais como a baixa inflação, desemprego nulo e investimento forte. Em primeiro lugar, porque só os eleitos percebem o que isso quer dizer. Aqui, para que o povo esteja contente e o nível de popularidade do Governo seja alto, é preciso que os pontas-de-lança estejam de chuteiras afinadas e, para que vivamos no paraíso, que a televisão apresente qualquer concurso com sexo ao vivo. A chuva de golos naquela noite, por ter sido contra clubes estrangeiros, dispensava sexo, desde que houvesse bebida a rodos. E se o Governo, embora preocupado com o George Bush II, pudesse descansar dos impropérios do povo, Leónidas, o infeliz Leónidas, nem nessa noite de glória futebolística se livrava da sarna popular.

Os militantes antipaiol de Zulmirinho organizaram uma vigília frente ao Ministério. Armados de tochas e guitarras passaram a noite roendo-lhe os ouvidos e ameaçaram: na semana seguinte, quando se iniciasse a construção do paiol, havia cinco ou seis a declararem que iriam imolar-se pelo fogo.

Leónidas sobressaltou-se quando lhe contaram: - E cada um deles vai querer setenta virgens no céu como os homens-bomba?

- Não, não. - Ah, bom. Estava ansioso. Embora o primeiro-ministro tivesse dado ordens para que ninguém abandonasse os respectivos ministérios, Leónidas tinha a necessidade absoluta de falar com Irene, confrontá-la com a verdade, para ele definitiva, sobre o atentado. E queria ouvir essa verdade da boca dela. Mas estava barricado. No exterior, os manifestantes antipaiol comê-lo-iam vivo se o vissem sair do Ministério. No interior, não confiava em ninguém para uma missão destas. O chefe de gabinete era com toda a certeza um chibo do sogro. Fora ele quem lho mandara e de certeza para que o informasse de todos os passos que o genro dava. Quanto a Tarso, nem pensar. Usava o La Nuit Rose e o Zeca já não existia.

Lembrou-se do motorista. Saiu do gabinete com um lacónico: - Vou retirar-me para uma sala, para reflectir. Não me incomodem, por favor.

Atravessou corredores, desceu escadarias às escuras até à garagem onde os motoristas jogavam às cartas. Quando o viram levantaram-se:

- Não se incomodem. - Chamou o seu motorista e disse-lhe: - Preciso de sair do Ministério durante uma hora. Ninguém pode saber e muito menos os manifestantes que estão lá fora.

- Como havemos de fazer, Senhor Ministro? - O senhor tem uma moto, não tem? - Tenho. Por acaso até está aqui na garagem. - Precisamos de dois fatos-de-macaco. Vamos sair daqui como se fôssemos operários.

- Há fatos-de-macaco nos balneários dos pintores que andaram a pintar o segundo andar.

- Então, vamos embora. Os manifestantes não ligaram aos dois homens que saíram do ministério com fatos-de-macaco sujos de tinta. Julgaram tratar-se de dois trabalhadores a fazer horas extraordinárias. Meteram a Campo de Ourique, a caminho da casa de Irene. Não podia demorar mais de uma hora, pois o primeiro-ministro talvez precisasse dele.

Não podia imaginar que, naquele momento, Juvenal estava febril. Ultimava pormenores do seu raciocínio e já não lhe restavam dúvidas sobre a autoria do atentado. Tornou a limpar os óculos e massajou os olhos cansados. Consultou o relógio e disse ao chefe:

- Vou dormir. Acho que o atentado contra o ministro da Guerra está resolvido.

- Queres que vá contigo? - Se quiser. - Não é todos os dias que se afronta o homem mais poderoso do país! - Tem razão. Vamos os dois. Até amanhã, chefe. - Dorme bem, Juvenal.

Leónidas meteu a chave na porta e a sala estava às escuras. Vinha luz do quarto. Irene devia estar a ler. Quando empurrou a porta ficou boquiaberto. Na cama revolta, Irene gemia e gritava debaixo de um homem nu. Roncava. O festim era tal que nem deram pela sua presença e, se o ciúme que agora explodia por baixo do espanto o picava, porque com ele Irene não gemia assim, a cólera levou-o a gritar. Não sabia o que gritar e por isso pegou na pergunta que lhe vinha à língua, embora inútil:

- Mas o que é isto? O homem, com o pulo que deu, caiu da cama, batendo com a cabeça na mesinha-de-cabeceira e torcendo um pé.

Repetiu: - Mas o que é isto? Irene foi a primeira a recompor-se. Puxou o lençol para tapar o corpo nu e retorquiu:

- O que estás a fazer aqui? Debaixo da cama levantava-se o homem. Da testa escorria sangue e, também sem encontrar palavras adequadas, repetia:

- Não é o que está a pensar. Tenha calma, não é o que está a pensar.

Foi então que se olharam. - Hortênsio! - León idas!
- Mas o que é isto? - Meu Deus. Foi o primeiro-ministro quem te mandou? Eu vou já, eu vou já. Por favor, não digas nada. Esta é a Lurdes. A tal amiga de quem te falei.

Engolia em seco, sem perceber. - Lurdes? Lurdes?! Mas é a Irene! Por instantes ficaram atónitos a olhar um para o outro. Foi nesse momento que se ouviram uns dedos a bater na porta do quarto e uma voz que perguntava:

- Clara?! E no quarto entrou Gaspar, o chefe de gabinete do primeiro-ministro.

O dia, quando começou a clarear encontrou o almirante Wayne a conferenciar com o seu imediato na coberta da ponte de comando do Bush II. Ao longe, mil luzinhas debruavam o estuário do rio e, ainda mais longe, a iluminação da ponte sugeria os seios firmes de uma mulher.

- Falou com a Casa Branca, senhor? - Falei, Cliford, falei. - E quais são as suas ordens? Suspirou, olhou outra vez a costa iluminada, e respondeu: - Não atacamos. - Acho que é uma decisão justa, senhor. - O nosso Governo acha que é um país de pobres diabos. - E com razão. - O nosso sargento vai ser recebido com honras militares. - Ainda bem. - Cliford, atenção aos nossos homens quando vão de folga. São portugueses os maiores chulos do mundo, sabia?

- A fama vem de longe, senhor. Já o me pai me falava deles. - O seu pai era português? - É verdade, senhor.
- Poor man. - E agora, senhor. Zarpamos? - Não. Aproveitamos para atacar o Norte de África. Parece que há homens-bomba entre os beduínos!

- O senhor acredita nisso? São tão pobres diabos quanto os Portugueses. Se os trocassem de terra, não se notava.

- O que é que tu queres? O porta-aviões custa caro e o nosso presidente não está disposto a gastar dinheiro em vão.

- Perdoe-me a pergunta, senhor. Acha que isto resolve alguma coisa?

Não respondeu logo. Embora ainda não aparecesse, a claridade para lá da linha de costa já anunciava o sol. Por fim, murmurou:

- É o mundo que temos, comandado pelos homens que merecemos! - respirou fundo, a voz tornou-se metálica e ordenou: - Vamos para a sala de operações preparar o ataque.

E os dois homens entraram na ponte de comando.

O primeiro-ministro convocou o conselho para abrir champanhe. Era um grande dia para o Governo e para o país. O porta-aviões continuava a garantir a defesa nacional e os marujos estavam autorizados a ir a terra. Desde que não fossem ao Cais do Sodré, claro.

Quando Leónidas entrou na sala foi recebido com uma ovação. Tinha o rosto cinzento das olheiras, visível o cansaço mas sorriu. Até o sogro lhe deu um abraço.

- Portaste-te muito bem. Parabéns. O abraço do Silva foi o sinal para que os restantes ministros o abraçassem.

- Parabéns (abraço). Muitos parabéns (abraço). Grande Leónidas, parabéns (abraço)....(abraço). Parabéns (abraço).

E assim sucessivamente até ter dado a volta à mesa. O leitor deve ter reparado que entre dois abraços coloquei pontinhos. Foi o momento em que Leónidas cumprimentou Hortênsio. Não trocaram uma palavra. Apenas o abraço protocolar.
Esta grande vitória de Leónidas, ou pelo menos a si atribuída, devia-se ao conhecimento público do envio de dois emissários ao porta-aviões e porque durante a longa noite de insónia, ao longo de três intermináveis horas, o primeiro-ministro tentara contactá-lo e a resposta invariável que lhe davam era: «O Senhor Ministro pede desculpa a Sua Excelência, mas continua noutro telefone em conversações pessoais com o Senhor Almirante Wayne. Logo que possa, ele liga.»

Na presidência do Conselho estava o chefe, o Silva, mais três ou quatro ministros. Cada vez que desligava, repetia:

- Ainda continua a falar com o almirante. Será que ele consegue? E o Silva, inquieto, ripostava: - Tem pouca tarimba. Não sei. Não sei. - O que é que a gente pode fazer? - Nada. Não é diplomaticamente correcto abrir um canal paralelo quando, por outro, estão a decorrer conversações.

- É isso. Vamos esperar e depois logo se verá o que o Leónidas conseguiu. Se nos safar desta, proponho-o para a Torre e Espada. Bem a merece.

- Tem pouca tarimba. Não sei. Não sei. E mergulhavam num torpor de impaciência queimando cigarros atrás de cigarros. Ao fim de uma hora, repetia-se a cantilena.

- Posso falar com o Senhor Ministro? É o primeiro-ministro quem fala. Sim. Sim. Muito bem, eu tento mais tarde.

- Então? - Continua de pedra e cal com o almirante. - É bom sinal, é bom sinal. Mas tem pouca tarimba. Etc, etc.

Nenhum dos utentes da presidência do Conselho de Ministros daquela noite poderia imaginar que Leónidas, em vez de estar assanhado ao telefone regateando a salvação da pátria, se encontrava encafuado num apartamento em Campo de Ourique, vestindo um fato-de-macaco sujo de tinta, em acesa altercação com Hortênsio, Gaspar e Irene, que neste momento da narrativa também se pode chamar Lurdes ou Clara.
Digamos que, de certo modo, estava a fazer diplomacia. Resolvia os mal-entendidos e trocadilhos resultantes da atribulada relação com Irene. Que naquele preciso momento, já vestida com um roupão que deixava ver as pernas até às coxas, esclarecia:

- Queria avisar-vos, antes de começarem aos gritos e a disputarem quem é o mais homem de vocês os três, de que não me insultem, nem me batam. O primeiro que se atrever a fazê-lo pode ter a certeza de que saio por essa porta fora e vou à primeira televisão que tiver mais à mão e conto a corja de porcos que vocês são.

Hortênsio, já com a ferida da testa limpa e um penso aplicado a preceito, levantou-se indignado:

- Por amor de Deus, Lurdes! A seguir o Gaspar: - Somos cavalheiros, Clara. Isto é uma conversa de cavalheiros. E finalmente Leónidas. - Tem calma, Irene. Eu só quero saber quem me quer matar. Não quero gritar nem bater em ninguém. E, antes que mais alguém comece a falar, passa para cá o perfume que me ofereceste. Se é meu, quero levá-lo antes que mais alguém se lave nele para depois me enfiar uma bomba pelo cu acima.

- Estás a ser ordinário, León idas. Assim começamos mal. - Não estou a ser ordinário porra nenhuma. Alguém me quer matar e eu não quero morrer, olha que cacete.

- Eu não fui.

- Nem eu. - E tu, Irene. Não és capaz de dizer nada? - Por acaso, em tempos apeteceu-me matar-te à bomba, a tiro, à facada. Mas depois descobri que ficava sem o calhordas que me pagava o apartamento.

- Ordinária, aturei-te oito anos! - Oito anos? Clara, tu e o Leónidas... - É uma porrada de tempo.
- Afinal há quantos anos é que comemos todos do mesmo tacho?

- Há três anos, mais ou menos, não foi, Lurdes? Tinhas acabado de chegar de Paris com o teu tio.

- Tio, o caraças! Foi comigo. - Tu foste com o Leónidas a Paris? - Comigo é que não foi a lado nenhum. Também só nos conhecemos há dois anos.

- Porque fazes isto? A rapariga soltou uma gargalhada. Encarou-os enquanto limava a aresta de uma unha.

- Porque sempre adorei homens estúpidos. São fáceis de contentar e estão sempre de carteira aberta. E vocês ainda pagaram pouco. Muito pouco - voltou-se para Leónidas. - Pagaste pouco, porque destes três ranhosos foste o único de quem gostei. Apanhaste-me na idade dos sonhos e transformaste-os em mentiras. Não fui nada do que sonhei porque os meus sonhos foram pisados, adiados, conspurcados pelas tuas promessas, pelas tuas juras de amor eterno, até filhos me prometeste e oito anos depois sobrou-me um apartamento alugado! Oito anos sem ir a um teatro, a uma porcaria de um cinema porque tinhas medo do que pudessem dizer. Transformaste-me na puta que sou hoje. E sou puta porque resisti. Porque, se fosse como Sua Excelência, o Senhor Ministro da Guerra, desejava, era um farrapo. - Irene segurava as lágrimas com raiva. Tinha para si que aqueles gajos não a veriam chorar e continuou: - Roubaste-me tudo. Até a capacidade de amar, a vontade de ser terna. É por isso que te menti sobre o meu nome, Hortênsio. Porque quando te conheci ainda pensava que podia ser outra mulher. Ou melhor dizendo, ser mulher outra vez. Mas a vida prega-nos estas partidas e descobri que não eras melhor do que o Leónidas. Comprometias-te com a mesma facilidade com que faltavas ao compromisso. É por serem tão misóginos que triunfaram como políticos, não foi? O único umbigo é o vosso. O vosso mundo, o vosso eu e eu fiquei ainda mais vazia. Igual a vocês. A única diferença entre nós é que eu reconheço que estou vazia. Não tenho nada para dar. Talvez um pedaço de raiva ou de ódio, não sei bem. Quando me encontraste, Gaspar, eu já estava desfeita. Não passavas de um tipo que me podia pagar as contas. - E voltou-se finalmente para Leónidas: - Quanto ao facto de pensares que fui eu quem te quis matar é bom que não sejas estúpido de mais. Quando o carro explodiu, estavas aqui comigo. Apalpavas-me as mamas. Mas fica a saber que tive pena de que não tivesses morrido. Era menos um verme que ficava à face da Terra. Desgraçadamente, o azelha não te fez ir pelos ares. Estúpido!

E dito isto saiu da sala. Ficaram os três com vertigens, incapazes de articular uma palavra, até que o Gaspar balbuciou:

- Bom, o primeiro-ministro está à minha espera. Vocês não deviam estar nos vossos ministérios?

Hortênsio levantou-se como se tivesse uma mola no rabo. - Meu Deus! Saí por meia hora e já é quase manhã. Se o chefe telefonou, estou feito.

Dirigiu-se à porta. Parou e voltou-se para os outros: - Pessoal, sem ressentimentos, hã? Afinal de contas estamos unidos até à morte no mesmo silêncio, não é verdade?

Os outros acenaram afirmativamente. Gaspar voltou-se para Leónidas.

- Vens? - Vou. Acho que fiz asneira da grossa. - Por causa do que a Clara disse? Não te rales que isto passa-lhe.

- Estou-me nas tintas para o que essa gaja disse. Se tivesse juízo naqueles cornos, não estava onde está. O problema é outro. É o paiol. Cada vez tenho menos dúvidas de que aquele paiol é que foi a causa do atentado.

E saíram os dois em amena cavaqueira. Quando chegou ao Ministério, Tarso com os olhos vermelhos da insónia acorreu aflito.

- Onde é que tem estado? O Senhor Primeiro-Ministro já ligou umas dez vezes para falar consigo.

152 - Nossa Senhora me valha. E o que disseste? - Que estava num outro telefone em negociações com o almirante. Já não aguento mais tempo. Precisa de lhe falar.

- E o que é que lhe digo? Eu não falei com almirante nenhum. Nem sei se vamos ser bombardeados ou não. Ele telefonou assim tantas vezes?

- É verdade. E já está impaciente. Da última vez chamou-me palerma antes de desligar.

- E agora? - Não sei. Leónidas deu uns passos pela sala. Precisava de uma solução rápida. De repente voltou-se para Tarso.

- Liga para o vice-almirante. - Agora? Ainda é de noite. - Os marujos levantam-se cedo. A propósito da promessa de o levares a São Miguel a ver a família, tira nabos da púcara para saber se somos atacados ou não.

Tarso ligou a medo. Cliford estava na sala de operações. Delicadamente agradeceu o telefonema e informou o assessor de que o passeio teria de ficar adiado por umas semanas por motivo de força maior. Quase na despedida, informou:

- Já deve saber através do seu Governo, mas o Governo do meu país decidiu não retaliar contra Portugal.

- Claro, claro. Já sabia. Foi até por isso que telefonei. Como não atacavam, pensava que tivesse mais tempo para ir até Ponta Delgada.

- 1’m so sorry. See you. Quando pousou o telefone, Leónidas, que tinha ouvido a conversa, abraçou-o e começaram os dois a dançar, chamando a atenção do secretário e restante pessoal de apoio, que ia acordando com os gritos e com a dança. O chefe de gabinete acorreu estremunhado.

- O que foi? O que foi? Tarso, imponente, exclamou: - Aqui o nosso ministro, depois de mais de três horas ao telefone com o almirante Wayne, acabou de aceitar a rendição dos Americanos. Não nos vão bombardear. Renderam-se! Renderam-se! Os gritos, os abraços, os aplausos de regozijo foram a primeira das muitas apoteoses que teve naquele dia.

Conseguiu libertar-se dos cumprimentos com dificuldade. - Deixem-me ir para o gabinete, que o nosso primeiro-ministro precisa de ser informado. Com licença, com licença.

Quando desapareceu, o chefe de gabinete perguntou incrédulo: - Renderam-se? A sério? Tarso respondeu enfático: - Completamente. Leónidas fechou à chave a porta do gabinete. Respirou fundo e mentalmente rezou uma prece. O momento que há tanto tempo esperava tinha acabado de chegar. Tornou a respirar fundo e ligou decidido para o primeiro-ministro.

- Estou? - Leónidas?! Até que enfim, pá. - Desculpe. Foram mais de três horas de negociações. - Estava farto de telefonar. E como é? Morremos ou vivemos?

- Vai-nos sair caro, mas o homem não ataca. - Tens a certeza? Não ataca mesmo? - Não, mas foi caro. Cinco milhões de euros. O almirante pediu cinco milhões de euros para não atacar.

- Cinco milhões? - Comprometi-me a levá-los pessoalmente para o banco suíço onde o homem tem a conta.

- Que se lixe o dinheiro, homem. O que interessa é que salvaste o país. Parabéns, pá! Muitos parabéns.

Desligou. Os primeiros raios de sol iluminavam Lisboa quando comunicou formalmente aos ministros presentes que Portugal estava livre de perigo. Os Americanos não iriam bombardear e continuavam a ser os velhos amigos de sempre.

Os empregados do palácio trouxeram o champanhe. Cada um dos presentes recolheu uma taça e o chefe falou às tropas:

- Quando for avô (risos) hei-de contar aos meus netos o que passámos nestes dois dias como se fosse um filme com o título
«A vontade de vencer» (vozes: muito bem, apoiado). Porque vencemos (vozes: apoiado). Estamos cansados, precisamos de ir dormir um pouco (vozes baixas: apoiado), mas permitam-me que destaque o papel do nosso ministro da Guerra (vozes: apoiado) e a coesão deste Governo numa hora tão difícil (vozes: obrigado). Todos vós, a partir de hoje, têm lugar imorredoiro na história pátria. À vossa!

Beberam. Ficaram contentes com a última tirada do chefe, muito embora Hortênsio não lhe agradasse lá muito a ideia de entrar para a história pátria com um penso na testa. O primeiro-ministro saiu e a maioria dos presentes saiu com ele. Ficaram apenas meia dúzia, entretidos com os restos do champanhe, e Leónidas, que, visivelmente abatido, estava enfiado num sofá. Hortênsio dirigiu-se a ele.

- Podemos falar? - Fala. - Eu juro-te que não sabia que a Lurdes era a Irene. Ainda te contei a história de termos amigas na mesma rua, lembras-te?

- Lembro. A Irene é só a prova de que a traição está em todo o lado.

- O que queres dizer com isso? - Nada, nada. - Eu sempre fui teu amigo, Leónidas. Juro-te que nunca mais me encontro com ela.

Leónidas respondeu contendo a irritação. - Vocês não têm vergonha? Só sabem preocupar-se com política, com gajas, com copos?

Hortênsio olhou-o surpreendido. - Há mais alguma coisa que valha a pena? - A vida, Hortênsio, a vida. Eu ando assustado, aterrado. Será que ninguém repara? Anda um criminoso à solta que quer dar cabo de mim e, em vez de alguém lhe deitar a unha, fazem de mim herói da guerra invisível, contam-me histórias sobre a gaja que comemos e brindam ao meu heroísmo. E eu só quero que apanhem o filho da puta que me quer matar. Será assim tão difícil de perceber?
- Todos os dias falo com a Polícia. Eu não me tenho descuidado. - Estou farto disto. A sério. Estou farto desta merda. O Gaspar entrou sorridente, de mão estendida para Leónidas. - Grandes notícias, pá. O chefe acabou de falar com o presidente e vão dar-te a Torre e Espada.

- Ai é? Nem calculas como fico feliz. Não se esqueçam de a pôr em cima do meu caixão quando me levarem ao cemitério.

Saiu da sala. Gaspar, perplexo, perguntou a Hortênsio: - Está zangado connosco por causa da miúda? - Não. Apenas cagado de medo. Nunca a Torre e Espada foi entregue a um medroso tão grande.

Dormiu mal. Talvez porque o corpo não estivesse habituado a dormir durante o dia, mas pesadelos desencontrados fizeram com que acordasse todo transpirado. Pelo menos ganhara cinco milhões com toda a confusão que se vivera no último dia e finalmente ia ter condições de pensar na sua vida seriamente. Precisava de tempo para pensar e de tomar um banho. O chato do Silva, encantado com a vitória sobre os Americanos, telefonou a Lucrécia para que viesse com André do Algarve jantar a Lisboa. Que era preciso comemorar o grande êxito que o marido conseguira para o país. Embora lhe desagradasse ter de aturar o Silva, a ideia do jantar não era má de todo. Ao menos reveria o André. Tinha saudades dele. E também de Lucrécia. Depois da cena macaca da noite anterior na casa de Irene, seria bom estar junto da mulher e do filho.

O leitor já percebeu que o desfecho está para breve. E eu percebi que não ia ficar muito satisfeito porque o nosso protagonista, sendo um crápula da pior espécie, vai sair daqui cheio de dinheiro, com múltiplas condecorações, com um triunfo sólido e um futuro risonho à sua frente. Confesso que dei voltas e voltas à imaginação para arranjar uma saída moral para tudo isto, castigar Leónidas e ficarmos todos satisfeitos. Foi impossível. Castigar o Leónidas seria trair a vida. Figurões do seu tamanho são a vida. São os nossos dias. Uns mais tristes, outros mais alegres, mas coloridos com Leónidas de todos os feitios. Por isso mesmo, vesti-o decentemente para o jantar de família. Vai de smoking e os sogros recebem-no como nunca. De braços abertos. O jornais já lhe chamaram o delfim do regime, os editorialistas vão mais longe, garantindo os mais optimistas que o futuro está ali, naquela cabeça dourada a esperança no sempre adiado como desejado ressurgimento nacional. Os próprios manifestantes contra o paiol tinham perdido simpatias. Não fazia sentido atacar o homem que nos salvara de uma hecatombe nacional. Os heróis aplaudem-se, não se assobiam. E o século xxi, que já se aproximava da primeira metade, tinha uma galeria empobrecida de referências gloriosas para os vindouros. Não fazia sentido atacar o Ulisses dos novos tempos.

Percebeu-se que André ficou contente por ver o pai e Lucrécia observou-o com terna atenção:

- Estás muito cansado. Acho que perdeste peso. Sorriu tímido: - Muito trabalho. Não têm sido dias fáceis. Silva fez questão de brindar. - A esta família de heróis. Nascemos para servir o país e estamos a consegui-lo. À vossa felicidade, meus queridos filhos!

Brindaram e a campainha tocou. Silva franziu o sobrolho. - Quem será a esta hora? Não convidei mais ninguém. Era o problema do Juvenal. Aparecia sempre sem ser convidado. Desta vez vinha acompanhado do chefe e, com o descaramento mais natural do mundo, exclamou:

- Espero não vir incomodá-los. Leónidas, surpreendido, perguntou-lhe: - Senhor Inspector! O que vem fazer aqui? - Prender o autor do atentado que o senhor sofreu. A cor fugiu-lhe do rosto. - O terrorista? Aqui?

157 Silva avançou para ele, encolerizado. - O senhor está louco? Ponha-se na rua. Lucrécia muito nervosa, implorou: - Não se enerve, papá. Deve haver aqui um mal-entendido. Juvenal sorriu. Um sorriso triste. Juvenal era um homem triste. - A senhora sabia que o seu pai é um dos melhores peritos em explosivos que o país tem, não é verdade?

- É, é verdade. Até publicou livros sobre isso. - Muito bem. Esta história começa aí. E nas lágrimas da Doutora Lucrécia, que vinha para esta casa chorar a indiferença e a vileza com que o marido a tratava.

- Como é que o senhor sabe isso? Andou a vigiar-nos? - Por amor de Deus, minha senhora. Mas outra razão não haveria para o seu pai ter repetido várias vezes - e consultou o bloco - aquele ordinário precisa de uma lição e só lá vai à bomba! Silva sobressaltou-se. - O senhor não tem esse direito. Eu desfaço-o, ouviu? Amanhã já não é polícia, garanto-lho eu.

- O senhor é quem manda, Senhor Ministro. Mas se é só amanhã que me vai expulsar da polícia, agora ainda me tem de ouvir até ao fim. Ou aqui ou no gabinete do meu chefe. O senhor é que escolhe.

- Saia daqui. Já. - O senhor não quer que eu saia. - Não goze com a família mais respeitável do país. Saia! - Está bem. Nós saímos. Mas é só eu passar aquela porta e vai entrar na arrecadação que tem no jardim uma brigada de minas e armadilhas para fazer uma busca, acompanhada de todos os canais da televisão.

Silva empalideceu. - O que está a dizer? - O que acabou de ouvir. Senhoras, desculpem o incómodo, com licença.

- Espere, espere.
- Afinal em que ficamos, Senhor Ministro? Fico ou vou para a rua?

Leónidas estava estupefacto com aquela luta entre os dois. Até porque o grande Silva diminuía a olhos vistos, corpo quebrado, ombros descaídos.

- Posso saber o que se passa aqui? O senhor está a insinuar que foi o meu sogro quem pôs a bomba contra mim?

- Já lá chegamos. Lucrécia começou a chorar. - Apesar de ter deixado a vida dos explosivos, o grande passatempo do seu estimado sogro é construir bombas. É um vício manipular explosivos, inventar situações, criar a mina, a granada, o petardo, que se pode aplicar a este ou àquele problema. O mundo está cheio de malucos por explosivos. Basta consultar a internet, e o seu sogro faz parte desse clube de malucos que adora brincar com explosivos.

Leónidas olhou-o pasmado. - Isto é verdade. - É verdade, mas é um passatempo sem consequências. Todos os engenhos que criei estão inanimados. Sem detonador são inócuos.

- Só que veio um detonador cá para casa. Silva reagiu. - É mentira. Isso é uma perfeita calúnia. - Eu sei que é verdade, Senhor Ministro. Estava vermelho de cólera. - É mentira! - Foi o Zeca, um dos seus homens de confiança, quem o trouxe. Deixou-o na carta que escreveu antes de se suicidar.

Silva e Leónidas exclamaram à uma: - O Zeca!? Juvenal voltou-se para Leónidas: - Todos os seus colaboradores, à excepção de Tarso, são homens de absoluta confiança do seu sogro. Foi ele quem os escolheu um a um para controlar todos os seus passos.
Leónidas voltou-se para Silva com desdém: - Canalha!

- Cometeu um único erro. Não contou com a fidelidade de Zeca. Embora fosse um simples, Zeca era um militar íntegro. Tinha como missão proteger o ministro da Guerra, mesmo que contasse ao sogro o que ele fazia, isso não implicava que não cumprisse a sua missão: defender com a vida o seu ministro. No dia anterior ao atentado recebeu desta casa um telefonema pedindo-lhe que arranjasse um detonador. E só percebeu para que servia tão estranho pedido quando no dia seguinte se deu o atentado na rua de Irene.

- É mentira! Eu não fiz telefonema nenhum. A voz de Silva era um gemido e Lucrécia, pálida, afastou-se um pouco do grupo. Tremia.

Não vale a pena negar. Hoje mesmo recebi a lista detalhada dos números para onde ligaram. E entre eles consta o do Zeca.

Leónidas perdera a compostura. Fosse como fosse o jantar estava estragado.

- Quer dizer que ele matou o Zeca? - Não. Suicidou-se. Para a sua honra de militar foi de mais ser ele próprio a fornecer a arma com que iriam matar o seu ministro. Ainda por cima, não estava lá quando a explosão aconteceu. O seu sentido da honra não suportava a vergonha. Matou-se!

Lucrécia abraçou o pai a chorar convulsivamente. - Ó papá! Perdoa-me, perdoa-me. Silva gemeu um murmúrio. - Não é verdade, isto não pode estar a acontecer. Minha querida filha.

- É um canalha! Eu tenho a fama e você o proveito. Eu era o genro vadio e você o grande senhor. Um assassino. Foi assim que construiu a sua fortuna. Matando, roubando, explodindo o que não lhe dava jeito. Miserável! Espero que apodreças na prisão.

Juvenal ergueu a mão para Leónidas, chamando-lhe a atenção.

- O senhor percebeu mal.

1tio - O quê? - Há aqui um pequeno problema. À hora que foi feito o telefonema o seu sogro não estava em casa.

- Hã? O que está a dizer? - Que foi ele quem deu a ideia, quem fabricou o engenho mas não foi ele quem fez explodir as bombas.

- Não foi? Então... só pode ter sido ele. Lucrécia com o rosto escondido entre as mãos balbuciava: - Meu Deus! Meu Deus! E Silva chorava. Era um momento tão importante na vida do país como a decisão americana de não atacar Lisboa. O grande, o majestático Silva, chorava. Juvenal olhou para Lucrécia. Soluçava agarrada ao braço do pai. Depois para a sogra de Leónidas.

- Foi um acto de grande coragem, minha senhora. Escolher os engenhos, prepará-los para explodir, armadilhar o carro e tudo isto só com a ajuda do manual que o seu marido escreveu. Só há uma coisa que não consegui compreender. Como é que a senhora sabia que naquela noite ele ia a casa da Irene?

Um sorriso surgiu no rosto da sogra. - Não sabia. Desconfiei quando o vi na televisão em directo a dar a entrevista por causa do paiol. Era o tipo de oportunidades que este miserável não desperdiçava para tornar a minha filha a mais infeliz das mulheres. Estava sozinha em casa. Peguei no carro e fui esperá-lo à porta do estúdio da televisão. Depois foi só segui-lo e esperar que ele e o motorista abandonassem o deles. Eu não queria matá-lo. Achava que o susto seria suficiente para ele não voltar à casa daquela mulher.

- E o cheiro a perfume? - A culpa foi do idiota do meu marido. Abusa desse perfume. Tudo em que toca fica empestado.

Havia um estranho silêncio na sala. Juvenal tornou a limpar os óculos e a esfregar os olhos cansados. Silva perguntou, suplicante, ao chefe:

- Vão prendê-la? - Não temos outro remédio.

161 - É o meu fim. Estou desgraçado. Lucrécia abraçou a mãe. - Mãe! Minha querida mãe!, André, que entretanto entrara na sala, olhava-os sem perceber o que estava a acontecer. Foi ao ver o filho que Leónidas teve um dos seus rasgos de génio. Gritou:

- Um momento! Voltaram-se para ele sem perceber. - Os senhores dão-me cinco minutos para falar a sós com o meu sogro? Cinco minutos, apenas!

Os dois polícias hesitaram. Por fim o chefe assentou: - Cinco minutos. E os dois saíram da sala.

Nunca ninguém soube do que falaram os dois. Ficou como o mais bem guardado dos segredos, embora não fosse coisa por aí além, já que nem precisaram dos cinco minutos.

Presumimos que foi mais ou menos assim: - A coisa é simples, ó Silva! - Que coisa? - Quanto tem em dinheiro? Imóveis não me interessam. - Porquê? - Rápido que não temos tempo. - Talvez uns quatro milhões. - Três milhões são para mim. Não quero continuar a ser ministro e vou para embaixador, cônsul ou outra merda destas no Haiti. Divorcio-me da sua filha e deixa-me ver o meu filho cada vez que vier a Portugal.

- Estás a roubar-me, é? - E não volta a tratar-me por tu. Estou a salvá-lo, grande ranhoso. Ainda não percebeu? Ah, e não fazem a porra do paiol em Zulmirinho. Como é que é? Há acordo ou vamos ver a minha santa sogra sair a caminho da cadeia?

162 Nem levantou a cabeça para responder. - Eu aceito. - Muito bem. Telefone para o banco a ordenar a transferência da massa e eu vou lá fora deitar os foguetes da festa.

Telefonou. O gerente recebeu a chamada em sentido e, quando desligou, a transferência estava feita. Leónidas confirmou e declarou: - Vamos acabar com isto. E saiu da sala ao encontro dos polícias.

Entrou batendo palmas e sorrindo: - Muito bem, muito bem! Os polícias ficaram intrigados e Juvenal perguntou: - Muito bem? - Sim, senhor. Portaram-se muito bem. O chefe atalhou desconfiado: - Não estou a perceber. - A verdade, chefe, é que não houve atentado nenhum. - O quê? - É o que está ouvindo. Fui eu quem organizou tudo para testar a eficiência da Polícia. Sobre a eficácia das Forças Armadas respondo eu. Sou o seu ministro. Mas a batermo-nos furiosamente como estamos a fazer contra o inimigo invisível, precisava de testar todo o dispositivo de segurança interna e resolvi inventar este atentado contra mim próprio. Ao menos tinha a certeza de que ninguém se aleijava. Espalhei os indícios com a ajuda do meu sogro, enquanto a minha querida sogra compunha a história. Nem calcula como nos divertimos na noite em que decidimos que ela era a terrorista. Até o suicídio do Zeca foi premeditado. Era espião. Tinha passado documentos secretos à Al-Quaeda e, para um militar que se preza, é preferível o suicídio a enfrentar um tribunal marcial por traição à pátria.

Respirou fundo, olhou divertido a assistência embasbacada e rematou:

- Portanto, os meus parabéns. Vou recomendar ao meu colega das Polícias que sejam promovidos e condecorados e agora, se nos dão licença, queremos jantar em família.

Os dois polícias sorriram. Não havia nada a fazer. Foi o chefe quem tomou a palavra:

- Com a vossa licença. Tenham um bom apetite! Saíram. Leónidas esfregou as mãos e perguntou alegremente: - Então, não vamos jantar?

Um mês depois deixava o cargo de ministro da Guerra. A opinião pública aplaudiu o desprendimento com que aquele autêntico homem de Estado desempenhara com brilho um dos mais importantes cargos públicos do país e agora aceitava - dizia-se até que fora ele quem pedira - um lugar obscuro na diplomacia portuguesa no Haiti. Rasgados elogios, um discurso comovido do sogro no Parlamento, onde sublinhou as raras virtudes pessoais e políticas do seu querido genro, um autêntico filho, o filho que nunca teve!

O povo chorou com Silva a partida do filho que nunca teve e lentamente o país voltou ao lugar e o mundo às rotinas de sempre: os muçulmanos matavam, morrendo por Alá, e os Americanos bombardeavam. Com apenas uma pequena alteração: quando bombardeavam deixavam de se chamar americanos e eram conhecidos por aliados.

Não admirou, pois, num país rico como o nosso, que, uma semana depois da partida de Leónidas, o seu motorista, de óculos escuros, bermudas e camisa às florinhas embarcasse de férias rumo ao Haiti. Se alguém soubesse, o que não era o caso, por certo lhe pediria que desse um abraço ao glorioso ex-ministro informando-o de que o país ardia com saudades dele.

Três dias depois deste facto insignificante, o avião haitiano onde Leónidas viajava num voo doméstico explodiu no ar sem
que do acidente resultassem sobreviventes. Como se despenhou numa zona muito profunda do oceano nunca foi recuperada a caixa negra, razão pela qual nunca se soube a origem da explosão. No entanto, com medo de perder turistas, especialistas haitianos puseram imediatamente de parte a hipótese de atentado. Era um avião muito velho, que ia ser enviado para a sucata no mês seguinte. Aliás, o único avião antigo da frota comercial haitiana. O corpo de Leónidas, assim como o de muitas outras vítimas, nunca foi encontrado. Para além da profundidade, aquele mar estava atulhado de tubarões famintos.

O motorista chegou a Lisboa ainda a tempo das exéquias religiosas que decorreriam nos Jerónimos durante a tarde. Dirigiu-se de imediato a casa do Silva, que o recebeu, nos jardins, de fato e gravata preta, grave. Trocaram breves palavras e foi-se embora. Também precisava de pôr uma gravata para a missa.

A sogra, impecavelmente vestida de luto, foi ao encontro do marido. Deram alguns passos de braço dado e os fotógrafos, que espreitavam do exterior, aproveitaram para bater as fotografias que haveriam de correr o mundo, mostrando o profundo pesar da família de um dos heróis do mundo civilizado.

Silva murmurou para a mulher. - Está tudo bem. As autoridades do Haiti encerraram o inquérito. Para eles foi um acidente.

Os flashs não paravam sobre o casal. Ela comentou com os lábios quase cerrados:

- Seja como for, precisas de fazer desaparecer as bombas que temos na arrecadação. Ainda podem aparecer por aí aqueles dois polícias atrevidos.

- Não aparecem, mas tens razão. Deu alguns passos e olhou o relógio: - A nossa filha está pronta? É quase hora da missa. O almirante Wayne vai estar presente.

- Vamos. A costureira fez-lhe um lindo fato de viúva!
Este pormenor fora exactamente o único erro da sorte de Leónidas. Uma vez o sogro dissera-lho, mas ele não ligou. Naquela família conservadora e tradicionalista não havia lugar para divorciadas. Apenas para solteiras, casadas e viúvas.

Silva suspirou e comentou. - Está um belo dia para celebrarmos a memória do nosso León idas.

- Vamos buscar a nossa filha. Os jornalistas já têm fotografias suficientes.

- Tens razão. Vamos buscar a nossa filha. E entraram em casa.

 

 

                                                   Francisco Moita Flores         

 

 

 

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