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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NÃO MATEM AS FLORES 3 / J. M. Simmel
NÃO MATEM AS FLORES 3 / J. M. Simmel

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

NÃO MATEM AS FLORES

Livro III

 

 

O urso tinha a metade do tamanho de Patty.

Era de pelúcia marrom-clara, e o focinho marrom-escuro, com grandes olhos de vidro preto. Um urso alegre. E tão macio que todas as crianças o acariciavam. O urso foi o grande sucesso da festa de aniversário de Patty.

Ela recebera muitos presentes de nós adultos, mas isto na noite anterior e em casa, pois havia crianças pobres que talvez ficassem tristes ao ver as belas coisas que Patty ganhara, se­gundo ela mesma dissera. Na sua tarde de aniversário, 6 de novembro, tínhamos convidado todas as crianças que freqüen­tavam a livraria.

Nós adultos enfeitamos o subsolo de noite com guirlandas e balões coloridos. Era a primeira vez que uma criança feste­java o seu aniversário na livraria, e Walter Hernin trouxera montes de bolos e pirulitos e limonada, e também do Lar de Crianças Deficientes vieram três convidados em cadeira de rodas, trazendo os parabéns dos colegas doentes. Quase todas as crianças fizeram pequenos presentes para Patty, e todas estavam tão excitadas quanto a aniversariante. Primeiro ti­nham-na felicitado e dado os presentes, e logo começaram a comer e beber. Quem não queria limonada podia tomar cho­colate, que preparávamos no fogão elétrico no Cat’s Corner.

Os adultos que vieram à livraria naquele dia observaram espantados o subsolo cheio de crianças felizes, e uma ex­pressão de alegria e tranqüilidade aparecia em seus rostos, belos ou feios.

Dois de nós tínhamos de estar sempre lá em cima na loja, enquanto os outros cuidavam da festa de aniversário. Uma criança em cadeira de rodas não tinha braços, mas Ali, o pequeno turco, lhe dava comida e bebida com o maior cui­dado. E Félix, o pequeno judeu, andava por ali com uma máquina fotográfica bem simples, tirando retratos. Langenau fazia o mesmo com uma câmera bem mais complicada. Foto­grafava feito louco. Nunca o vira tão animado. Quando lhe disse isso, ele me encarou, sério, fez que sim e continuou fotografando, e eu não sabia o que havia com ele, pois há alguns dias vinha se portando um pouco estranhamente co­migo. Andréia também notara, e eu perguntara a Langenau se sem querer o aborrecera com alguma coisa, mas ele disse: “Aborrecer? Mas como, sr. Kent?” E continuara esquisito, muitas vezes me olhando de soslaio, não de modo inamistoso, mas como se pensasse em algum problema.

— Deixe-o em paz — dissera Andréia. — Conheço-o há muito tempo. É um gigante com um coração de passarinho. Sua mulher morreu há treze anos. Desde então, teve duas amigas. É uma pessoa ótima, mas estranho.

E as palavras dela não conseguiram me tranqüilizar.

Langenau trazia aliás novamente dois grandes esparadrapos na cara: há dois dias andara com alguns rapazes turcos e suas namoradas pela cidade, à noite, tentando levar seis ami­gos a discotecas. Os donos ou os leões-de-chácara de todas tinham sido muito reservados, dizendo que não podiam entrar estrangeiros, as casas eram só para sócios, ou davam outras desculpas. E um dos leões-de-chácara dera dois socos num dos jovens turcos que queria entrar ali a todo custo, e foi assim que tudo começou, meus caros, como diz Kipling, foi assim que tudo começou.

Fora uma briga bastante violenta, alguns alemães aju­dando Langenau, pois os turcos se negavam a participar da briga. Tinham medo de que fossem dizer que haviam provo­cado. Fiquei pensando, talvez Langenau estivesse com dores e por isso andasse tão quieto, mas vi que brincava com as crian­ças, ria, e continuei sem saber o que havia com ele.

Como também vendêssemos discos, tínhamos um toca-discos simples na livraria, e quando pusemos alegres canções infantis, as crianças acompanharam entusiasmadas; também Langenau, Robert Stark, e Andréia, só eu não, porque não consigo acertar um tom. E mais uma vez vi um Langenau divertido, que ficou sério assim que olhou para mim, e não pude explicar o que havia com ele. Patty pensara até nos coelhos — agora eram onze — e no hamster, que receberam folhas muito bonitas e saladas e cereais especialmente esco­lhidos.

Quando a agitação principal diminuíra e as crianças esta­vam um pouco cansadas de correr, cantar, comer e beber, Wal­ter Hernin sentou-se numa poltrona ao lado de Patty e disse:

— Querem que lhes conte uma história?

Todos queriam e Hernin disse:

— Então escutem.

E passou o braço nos ombros de Patty, que estava sentada no seu colo. Usava um vestido azul-escuro com gola branca e cinto branco, e abraçava o grande urso. — Ainda tenho uma surpresa de aniversário para você, Pattyzinha.

— Mais uma? — perguntou ela, encantada, fitando-o boquiaberta, mostrando a falta de um dente superior na frente.

— Sim — disse Hernin. — Você e eu vamos fazer juntos uma grande viagem.

As outras crianças emudeceram. Estavam sentadas no chão, espantadas. Félix e Langenau continuavam fotografando sem parar.

— Uma grande viagem? Vovô, que ótimo! Quando?

— Falei com sua professora — disse Hernin. — Como você é tão boa aluna, poderá ir alguns dias antes das férias de Natal, e depois ainda terá uns dias livres. Já tenho o visto...

— O quê? — perguntou Ali.

— A permissão para visitar esse país — explicou Hernin. — É outro país e a gente precisa de licença. — Já a consegui, para Patty e para mim. Vamos no dia dez de dezembro.

— Mas para onde, vovô?

O rosto dele suavizou-se.

— Para o lugar de onde vim — disse ele. — Onde nasci há sessenta e cinco anos.

— Não sei onde você nasceu — disse Patty, que até se esquecera de acariciar o Teddy, tão excitada estava.

— Nunca lhe contei. — A voz de Hernin estava um pou­co triste. — Nasci num povoado, crianças, tão pequeno que não se encontra em nenhum mapa. Imaginem só como é pe­queno!

— E como se chama? — perguntou Félix.

— Chama-se Águas Perdidas — disse Walter Hernin.

— Como nos contos de fadas — disse Patty. — Nome triste, Águas Perdidas, vovô... Mas... todos os contos de fadas bonitos... não são sempre um pouco tristes, tio Peter?

— Sim — respondi.

Estava sentado na larga escada, tomando meu uísque de­vagar. Andréia, sentada ao meu lado, pôs a mão sobre a mi­nha e sorriu para mim. Também tinha um copo na mão, com laranjada.

— Todas as belas histórias verdadeiras também são um pouco tristes — disse Hernin. — Águas Perdidas, sim senho­res, assim se chama o povoado. Fica na Silésia, no centro do país dos Sudetos, no antigo condado de Glatz.

— Glatz? — disse Langenau. — Então agora isso fica na Polônia.

— Por isso precisei do visto — disse Hernin. Todas as crianças estavam outra vez agitadas, falando ao mesmo tem­po, perguntando se era a Polônia para onde tinham mandado os pacotes, e Hernin disse que era isso mesmo, o que natural­mente foi uma sensação.

— Águas Perdidas — disse Hernin a Langenau. — Tam­bém ainda não tinha ouvido o nome, hein?

Langenau fez que não.

— Está vendo? — disse Hernin. Acariciava Patty e o urso. — Passei lá a minha infância. Em Águas Perdidas vi­viam e trabalhavam sapateiros, polidores de cristal, e peque­nos camponeses... como meu pai. As pessoas lá eram muito amáveis e todas pobres. E sempre desejei rever meu lar. Ago­ra, no Natal, esse desejo vai se realizar.

— Que bom! — exclamou Patty.

— A aldeia fica num vale — disse Hernin. — Mas não é um vale qualquer, não mesmo! Por onde se ande, saltam fontes da terra nos prados.

— Fontes, o que é isso? — perguntou uma criança de cadeira de rodas, com colete de aço.

— A água sai do chão num jorro fino, como um pequeno chafariz. Sabe o que é um chafariz, não?

— Claro, ué — disse a criança de colete.

— Em Águas Perdidas há milhares desses pequenos cha­farizes — disse Hernin. — Estão sempre se renovando, há centenas de anos.

— Milhares de chafarizes — repetiu a criança, comovida. — Nos prados, nos caminhos, é assim?

— Isso mesmo — disse Hernin. — Um verdadeiro mila­gre. Pois sabem, a água é muito especial, as pessoas a chama­vam de “Poço Azedo”, e muitas doenças desaparecem quando a gente a bebe. É uma água curativa.

— Você também bebeu, vovô? — perguntou Patty.

— Todos os dias, queridinha. Sabe, até hoje, como no meu tempo, as crianças ainda vão por aí com a mochila da escola e canecas de lata, ou quando são muito pequenas, só com canecas de lata. Não há nenhum outro povoado no mun­do com tantas crianças carregando canecas de lata. Eles en­chem as canecas de água das fontes e levam para os pais. Todas as pessoas bebem essa água, e existe uma canção, acho que até ainda me lembro... — E com voz fina e trêmula o velho cantou:

— Na montanha nevada corre a fonte gelada. E quem dela beber, nunca há de envelhecer.

Tudo ficou muito quieto no grande aposento.

— Sim — disse Hernin —, é como está na Bíblia: “Eles andam como quem sonha, e as fontes se abrem a seus pés.”

— Eles andam como quem sonha — repetiu Patty.

— Bem, crianças — disse Hernin —, sabem, em 1939, há muito tempo, quando vocês nem tinham nascido, a Alema­nha começou uma grande guerra, e atacou outros países, e muitos milhões de pessoas foram mortas.

— Eu sei, foi Hitler, não foi? — disse Patty. — Ouvi falar disso na escola. O professor disse que estávamos envol­vidos numa grande guerra, e que no começo tivemos muitas vitórias, depois os outros ficaram mais fortes e destruíram a Alemanha, e muitas pessoas tiveram de deixar suas casas e foram expulsas. Nosso professor também não tinha nascido ainda. Mas seus pais foram expulsos de casa, não sei onde era. Você também foi expulso, vovô?

— Não, eu não — disser Hernin. — Tive de me tornar soldado, fui tirado da Universidade, mas meus pais foram expulsos em 1945, e vieram para Hamburgo. Você não os co­nheceu, morreram antes de você nascer.

— Você foi soldado? — perguntou Ali.

— Sim — disse Hernin laconicamente. — E agora, aten­ção! Três anos antes de sua expulsão, quando meus pais e todo mundo de Águas Perdidas e centenas de milhares de outras pessoas tiveram de sair para as estradas, chegou um homem de Breslau. Isso é uma grande cidade, bonita, que naquele tempo pertencia à Alemanha. Esse homem era muito conhecido, um pintor, sabem, pintava quadros em igrejas.

— Vocês tinham igreja em Águas Perdidas? — pergun­tou Patty.

— E muito bonita — disse Hernin. — E no teto dessa igreja o famoso pintor pintou todos os moradores da aldeia, com seus cachorros e gatos, vacas e cavalos e porcos. Vejam, tenho um retrato dessa pintura. — Tirou de um envelope uma fotografia colorida, e quando as crianças se acotovelaram em redor dele, disse: — Calma, calma! O retrato vai passar por todos para que possam vê-lo.

Vi muitas pessoas na foto, e muitos animais. Os jovens usavam aventais de trabalho, e botas, as mulheres, lenços na cabeça, e ao lado de velhos e animais viam-se crianças. Bem juntos, em várias filas, estavam à beira de uma superfície azul que representava o céu, o que se via pelas nuvens brancas, e no meio do céu, no alto, rodeado de raios de luz via-se uma cruz.

— Ah, mas ele era mesmo um pintor muito bom — disse Patty. — Que quadro bonito! E como fez isso, quero dizer, lá em cima, no teto? Teve de parar numa escada e virar tanto a cabeça. E não caiu!

O retrato passou de uma criança para outra, e todas o observaram muito sérias.

— Não era escada, era um andaime — disse Hernin. — E o pintor ficou ali deitado de costas cinco semanas, bem perto do teto, cabeça recostada para trás. Tinha de trabalhar assim, e por isso no fim sua cabeça doía muito e ele não pôde mais dormir de costas.

— Bonitos estão os bichos — disse uma criança perto de mim. — Ele fez os bichos mais bonitos que as pessoas. Quero dizer, as pessoas estão bem feitas, mas acho os bichos me­lhores.

— O que é que vocês eram? Evangélicos como nós dois? — perguntou Patty.

— Sim, éramos todos evangélicos — disse Hernin.

— E as galinhas e cachorros e gatos e porcos, também? — perguntou ela rindo.

— Todos, sim — disse Hernin. — Por favor, me dêem um pouco o retrato. Estão vendo — disse ele, apontando com o dedo —, aqui está meu pai, e a mulher ao lado dele é minha mãe.

Patty recomeçou a rir.

— Ah, mas seu pai era gorducho!

Todas as outras crianças também riram.

— Naquele tempo ele ainda era gordo, sim — disse Her­nin. — Mais tarde, depois das grandes tempestades de neve nas estradas, e da grande fome, e do grande frio, ele ficou magro, e nunca mais engordou. Minha mãe estava com nosso gato nos braços.

— Sim, um gato ruivo, mas que bonito! — disse uma criança.

— Essa é Minka. Já estava velha e morreu antes de meus pais terem que partir.

— Mas só há homens bem moços e bem velhos no quadro — disse Ali com ar crítico. — Onde estão os de verdade?

— Estavam todos servindo como soldados — disse Hernin. — Como eu. Eu estava na Rússia.

— Os outros homens de verdade também estavam todos na Rússia? — perguntou uma criança.

— Muitos. E muitos em outros países. Atacamos muitos países.

— Tio Walter! — disse Félix baixinho, parado ao lado de Hernin, e balançou a cabeça.

— A Rússia é muito grande, não é? — indagou uma menininha.

— Incrivelmente grande.

— E por que seus pais foram expulsos? — perguntou um menino.

— Primeiro, nós expulsamos outros e simplesmente pega­mos seus países ou partes deles — disse Hernin. — Depois foi o contrário. Não importa o que seu professor diga, Patty, não esqueçam nunca, todos vocês, o que lhes digo agora, pensem agora que digo a verdade: nós é que começamos aquela gran­de guerra, e tornamos tantas pessoas infelizes. Fomos nós, os alemães. Por isso mais tarde nós fomos muito infelizes. O que foi, Félix?

— Tio Walter, pare com isso — disse Félix.

— Com o quê?

— Você sabe — disse Félix baixinho. — Não fale sobre isso. Muitos vão contar isso a seus pais, e eles vão ficar zan­gados.

— Pois que fiquem — disse Hernin. — É a verdade.

Patty perguntou: — Como você conseguiu esse retrato, vovô?

— Você sabe que sempre escrevo para aquele amigo po­lonês, não é? Bom, ele me mandou o retrato. Ele mora em Águas Perdidas.

— Então vamos vê-lo.

— Claro que sim, Patty! É uma pessoa muito amável e mora na casa onde nós um dia moramos. Por sorte ele sabe alemão. Primeiro escrevi simplesmente para Águas Perdidas pedindo uma foto da igreja, porque depois da guerra nunca voltei à minha velha cidade natal, e nunca vi esse quadro de verdade. Bom, então se apresentou aquele homem bondoso que agora vive na nossa casa com sua família; ele se chama Korczak.

— E agora só tem poloneses em Águas Perdidas? — perguntou uma criança.

— Sim — disse Hernin.

— E eles também estão mal como os outros poloneses?

— Receio que sim.

— Mas então vocês vão ter de levar muita coisa de co­mer! — exclamou Ali.

— Vamos, sim. Vamos mandar antes um pacote bem grande, pois seria muito pesado para se carregar.

— Como são os poloneses? — perguntou uma criança bem pequena.

— Gente como nós. Nossa pátria se chama Alemanha, e por isso somos alemães, e a pátria deles se chama Polônia, por isso se chamam poloneses.

— Entendi — disse a criancinha.

— Foi esse país, Polônia, que atacamos e destruímos pri­meiro — disse Hernin.

— Tio Walter, por favor, pare com isso — disse Félix.

— Fique quieto! A Polônia tinha fronteiras com a Ale­manha, e uma parte da Alemanha se tornou polonesa quando perdemos a guerra. Essas pessoas polonesas foram mandadas embora de suas aldeias, e postas em antigas aldeias alemãs, para viverem e trabalharem lá. E o bom sr. Korczak me escre­veu que agora há poloneses nos bancos da igreja em que um dia meu pai, minha mãe, eu e todos os nossos amigos esti­vemos sentados.

— Bom, claro — disse Ali. — Agora é igreja deles.

— Os primeiros poloneses que se sentaram debaixo do quadro, escreveu o sr. Korczak, que é camponês como meu pai, ficaram comovidos com as muitas pessoas sorridentes que estavam ali em cima, no teto, e julgaram que fossem santos.

Algumas crianças riram.

— Sim, é engraçado. A explicação, sabem, é que os polo­neses são gente muito religiosa. Religiosa, corajosa e pobre. — Olhou em torno e disse: — Vocês todos são muito jovens e talvez não entendam, mas sempre que olho esse retrato, penso que as pessoas, todos os seres humanos, estão ligados entre si de maneira misteriosa — também vivos e mortos, pois muitas pessoas nessa pintura do teto da igreja morreram, como meus pais. E a maior parte dos poloneses que foram depois de 1945 para Águas Perdidas também já morreram. Seus filhos agora se sentam na igreja, e os filhos de seus filhos vão para a escola com canecas de lata colhendo água das fontes...

— Elas ainda jorram? — perguntou Patty.

— Sim, Patty, meu amigo escreveu que sim. Nós dois acreditamos que as fontes jorrarão eternamente. Estão vendo, assim as pessoas de Águas Perdidas estão ligadas entre si, as pintadas no teto da igreja que foram expulsas antes de 36, dispersas aos quatro ventos, que decaíram ou morreram, ou vivem em algum lugar da terra, e os poloneses que naquela vez arrancamos de seu lar, e que chegaram, bem estranhos, em Águas Perdidas... todos estão ligados, vivos e mortos.

— E você acha que estamos assim ligados a todas as pessoas do mundo? — perguntou Patty.

— Sim, queridinha — disse ele.

— Também com meu paizinho e minha mãezinha?

— Também com eles, claro.

— Quantos anos faz que eles sofreram o acidente de carro, vovô? Nunca me lembro.

— Quatro anos, Patty. Você tinha quatro, e só lhe restou eu. Há quatro anos só você me sobrou de nossa família, e eu para você. Mas estamos e estaremos ligados com todos os nossos queridos, seus pais, minha mulher, meus pais, enquan­to um de nós pensar no outro...

— Sim — disse Langenau —, também acredito nisso.

— Quando eu morrer você vai pensar em mim, Patty — disse Hernin —, e um dia, mais tarde, vai falar de mim a seus filhos, e assim, estão vendo, ninguém morre de verdade. Alguma coisa de todas as pessoas permanece na Terra. A figura da pessoa desaparece, mas tudo o que ela teve de bom, de melhor, continua no mundo. Por isso,, na verdade cada pessoa é um mundo inteiro.

— Não entendo isso — disse Patty. — Mas acredito em você, vovô, e estou muito contente porque tudo de bom de meu paizinho e minha mãezinha continua existindo comigo na Terra. — Apertou-se contra ele, e ergueu os olhos para ele. — E fico especialmente feliz porque ainda tenho você, vovô, e que logo vamos fazer juntos essa viagem para Águas Per­didas.

No momento seguinte ouviu-se um grito.

— Socorro! Sr. Langenau, socorro!

Todos corremos escada acima, assustados, para a loja, na qual entrava correndo um rapaz, com macacão azul de operá­rio, sangrando muito por uma ferida na testa. O sangue corria pelo seu rosto e pingava na roupa. O rapaz arquejava. Encos­tou-se em uma prateleira de livros. Depois as pernas não o sustentaram mais, e ele foi caindo lentamente.

As crianças gritaram de susto. Nós adultos saltamos para a frente. Eu conhecia o rapaz, que trabalhava numa marcena­ria próxima e era amigo de Langenau; este correu para junto dele.

— O que foi, Öskan?

O rapaz sentia dores, e gemia. O sangue agora pingava no chão.

— Eles entraram na oficina... Bateram em mim... me ajude... eles vão me matar a pauladas... — Agora também Stark, Hernin e eu tínhamos corrido escada acima.

— Mas por quê? — perguntou Hernin.

— Faz uns dias andamos por aí... queríamos entrar nu­ma discoteca... Eles nos botaram na rua, em todas elas... o sr. Langenau estava junto... minha namorada alemã também... Um dos leões-de-chácara contou para eles...

— Eles quem?

— Eles têm aí uma associação...

A porta abriu-se num arranco e dois rapazes de blue jeans entraram correndo, com paus na mão.

— Saia daí, seu porco!

— Seu porco covarde!

— Langenau, porco turco!

Com uma força que ninguém lhe atribuiria, Hernin deu um soco no rosto e na barriga do primeiro dos dois; o rapaz ficou verde e cambaleou. Hernin bateu de novo, abriu a porta da livraria e deu um pontapé no rapaz, que voou para a rua. Antes que eu pudesse ajudar, Langenau já abatera o segundo, que voou atrás do amigo.

Mas agora vi pelo menos uma dúzia de rapazes e homens mais velhos parados diante da livraria. A maior parte com paus. Pareciam decididos a atacar nossa loja.

Berravam e praguejavam, depois gritavam chamando o jovem turco Öskan, que vomitava quieto no chão, apertando a mão no estômago. Obviamente tinham-no ferido ali.

— Öskan!

— Öskan, seu turco puto!

— Venha cá, seu porco, vou acabar com você!

— Um momento — disse Hernin, e antes que alguém pudesse impedir, correra para fora, onde os homens ficaram tão atônitos que olharam imóveis o que ele fazia. O antigo professor universitário de cabelos brancos correu até o seu táxi, estacionado a poucos metros da loja, saltou dentro, ligou o motor e deu uma ré. O carro disparou com rodas guinchando sobre a beira da calçada e parou exatamente diante da livraria. Tudo isso foi muito depressa, mais do que posso es­crever aqui. Acho que Hernin teria atropelado qualquer um que não abrisse caminho, e pensei na época em que libertava condenados à morte pelos nazistas. Fazia muito tempo, mas ele ainda era o mesmo homem. Voltou ofegante. Escorrega­ra para o outro assento, e abrira uma fresta da porta, não dava para abrir mais, tão perto da casa estava o táxi.

— Pronto — disse ele —, agora ninguém pode entrar. Senão vai acabar havendo pânico, todas essas crianças!

— Você está louco — disse Langenau —, eles podiam tê-lo matado.

— Sim, mas não o fizeram — disse Hernin, sorrindo amarelo, com dentes apertados. Algumas crianças começaram a chorar. Andréia tentava acalmá-las. Ouviu-se um estouro, como de tiro de pistola. A grande vitrine quebrou-se, os gros­sos cacos de vidro caíram com ruído sobre os livros. Uma pesada pedra destroçara a vitrine. Uma tocha ardente voou pela abertura, e depois uma garrafa de cerveja. Quando esta caiu, houve uma explosão, e as labaredas subiram. Os livros da vitrina estavam em chamas. Devia ter gasolina na garrafa, e saltara para todos os lados. Também dentro da livraria al­guns livros pegaram fogo. Agora, as crianças entraram em pânico.

Robert Stark chegou correndo com um extintor de incên­dio e conseguiu facilmente apagar o fogo da loja. Mas na vitrine não. Tínhamos um segundo extintor de espuma, no corredor para o Cat’s Corner. Corri, arranquei-o da parede e tentei ajudar Stark a apagar o fogo na vitrine. Havia muita fumaça, que o vento levava para dentro da loja, e cheiro de gasolina e produtos químicos. Meus olhos começaram a lacri­mejar, e as crianças gritavam como loucas no subsolo.

As janelas do táxi que obstruía a entrada quebraram-se com uma saraivada de pedras. Ouvíamos os estouros e ruídos de vidro e depois Langenau telefonando para a polícia aos gritos no Cat’s Corner. O rapaz chamado Öskan conseguira levantar-se e limpava o vômito com um pano molhado. Vi que pegara um balde com água, mas ainda sujava tudo de sangue. Tive­mos mais sucesso com o segundo extintor. As labaredas mor­reram devagar, mas a fumaça acre nos deixava meio cegos. Corri para o Cat’s Corner e peguei em um armário alguns panos de limpeza, que pus debaixo da água. Os homens corre­ram com panos molhados para a frente, a fim de apagar com­pletamente o fogo. Öskan também correu, deixando um horrí­vel rastro de sangue.

A fumaça era intensa e perigosa, pois descia ao subsolo, e as crianças começaram a tossir convulsivamente, choramingando de medo. Entreguei a Andréia, que veio ao meu encon­tro na escada, um balde com água limpa para as crianças mergulharem os lenços e segurarem diante da boca.

A fumaça me impedia de ver lá fora. Eu só ouvia gritos, e ritmadamente o mesmo chamado: Langenau, turco porco! Langenau, turco porco!

Todos os inimigos dele pareciam ter-se reunido ali na rua. Comecei a me sentir mal engolindo tanta fumaça. Tive náu­seas, sufoquei, e cambaleei pelo corredor, para trás, a fim de abrir a porta do pátio. Assim pelo menos haverá vento, pensei. No mesmo instante em que destranquei a porta e a escancarei, levei um pontapé no baixo-ventre, e mal consegui escapar a um golpe de sarrafo na cabeça. Não podia ver direito, mas uma porção daqueles sujeitos estavam no pátio, e iam arrom­bar a porta. E eu, idiota, lhes facilitara o trabalho. Enquanto três ou quatro se atiravam sobre mim — não só com punhos mas barras de ferro, correntes de bicicleta e soqueiras, Lange­nau e os outros chegaram correndo, e no pátio se desencadeou uma briga incrível. Havia três homens em cima de mim, surrando-me violentamente, e eu devolvia os golpes como podia, mas caía a toda hora, e eles pateavam em cima de mim, dando-me pontapés nos flancos, na cabeça e nas costas. Quan­do me levantava, via Langenau, Hernin, Stark e o jovem turco chamado Öskan, sangrando muito, todos se defendendo brava­mente, mas não tínhamos chance contra aquela maioria. Vi que Hernin pegara um sarrafo comprido e batia freneticamente em círculo. Um sujeito e tanto, meu amigo Walter Hernin.

As pessoas que moravam na casa estavam debruçadas nas janelas que davam para o pátio e gritavam. Havia muita confu­são, e sangue, e por fim peguei o sujeito que me machucara mais. Abati-o, mas estava tão furioso que continuei batendo nele quando já estava deitado no chão sujo. Depois levei um golpe na cabeça. Tudo ficou escuro, e quieto, e perdi a noção das coisas.

 

Abri os olhos e fechei-os logo, pois tudo ao meu redor estava branco, de um branco ofuscante, e meus olhos doíam. Gemi.

— Gato — ouvi a voz de Andréia —, meu pobre Gato. Doendo muito?

Descobri que estava numa cama e abri os olhos uma se­gunda vez. Doeu novamente, muito, mas eu queria ver An­dréia, e vi. Estava sentada numa cadeira junto de minha cama, e parecia pálida, muito pálida e cansada. Com fundas olheiras escuras.

— Esquilinha — disse eu, com dificuldade. Minha língua estava inchada e seca. Havia cheiro de remédios no ar. Tudo realmente de um branco extraordinário. Eu ainda não via di­reito, pelos véus e nevoeiros, minha cabeça parecia um balão sob uma pressão imensa, mas não sentia dores, e disse:

— Estou no hospital, Esquilinha?

Era uma pergunta boba, mas eu não conseguia pensar com clareza.

— Sim — disse ela.

Agora eu a via direito, e logo me senti melhor.

— O que há comigo?

— Cortes — disse ela. — Um na testa, outro no ombro, e tiveram de dar pontos. O Apre está aqui, dois quartos adiante. Tem hematomas graves, um bem embaixo do olho. Öskan teve comoção cerebral, alguns amigos estão com ele. Langenau está no andar de baixo, ele só precisa ser bem examinado e fazer radiografias, para ver se não tem ferimentos internos, depois pode ir para casa. Se não tiver nada. — Acariciou minha mão, debruçou-se e me beijou. Mas doeu muito, e gemi outra vez, e ela disse, assustada: — Desculpe!

— Me beije outra vez — disse eu.

— Não, vai doer.

— Não dói nada. Me beije, Esquilinha! Vamos!

Ela beijou minha mão, e disse:

— Na boca não, na boca não, Gato, seus lábios estão machucados. Sou uma idiota por não ter pensado nisso.

— Que horas são?

— Duas e meia.

— Duas e meia de quê?

— Da madrugada. Eles me deixaram ficar aqui espe­rando que você acordasse.

— Duas e meia da madrugada — disse eu. — Tão tarde?

— Levou muito tempo até chegarem as ambulâncias e vocês serem medicados. Você e Robert Stark foram para a cirurgia, e eu sentada na porta rezando que tudo desse certo e você não tivesse nada de grave. Rezei muito. Você não tem nada de grave, Gato. O médico disse que todos vocês tiveram uma sorte incrível, podiam ter-lhes quebrado a cabeça e os ossos com aquelas correntes e paus, sem falar em ferimentos internos.

— Mas o que aconteceu com aqueles porcos?

— Três deles também estão aqui.

— Nós os apanhamos, hein? Alegro-me muito, de todo o coração — disse eu. — Aqueles porcos! Por que só três? Por que só três, Esquilinha?

— Porque era gente demais para você. Esses três, o Hernin deixou maduros para o hospital. Pense só, Gato, Hernin, um homem de idade.

— Não é homem de idade — disse eu. — É um lutador de primeira.

— Sim, ele foi extraordinário — disse ela —, todos vocês foram. Verdade, Gato, estou orgulhosa de vocês, especialmen­te de você. E a polícia prendeu quatro dos sujeitos.

— Muito bem — disse eu. — Gatos gostam de ouvir isso. Os porcos! Mas por que não prenderam todos?

— Os outros fugiram antes que a polícia chegasse.

— Claro — disse eu. — Como de costume. E logo vão libertar aqueles quatro, acredite, conheço a coisa.

— Vão soltá-los mas haverá um processo — disse An­dréia. — Dei queixa, também em nome de vocês. Ferimentos corporais, invasão de domicílio, incêndio... uma porção de coisas.

— Minha Esquilinha esperta. As crianças tiveram muito medo?

— Sim, mas está tudo bem agora.

— Também tive muito medo — disse eu. — Medo de que aquele sujeito com a soqueira me matasse. Sei que ele teria gostado disso.

— Bom, ao menos esse está no hospital — disse ela —, aquele grandão com espinhas.

— Como sabe disso?

— Uma enfermeira me disse. Está louco de dor.

— Maravilha! Maravilha! Vem, vamos brincar um pouco, Esquilinha!

— Santo Deus, você ficou maluco?

— Venha, por favor! Eu queria tanto. Agora, logo.

— Impossível, você acaba de acordar da anestesia, espere que logo vai sentir as dores.

— Não.

— O que não?

— Não quero esperar as dores. Quero brincar antes. Pre­ciso, por favor, Esquilinha!

— Você perdeu o juízo, Gato!

— Sim, sim, sim — disse eu. — Claro que perdi o juízo. Você deixa um homem louco, minha doce Esquilinha. Venha! Não precisa tirar a roupa, só a calcinha. E eu fico deitado de costas.

— Mas isto é um hospital. A qualquer momento pode entrar alguém, Gato. Tenha juízo, por favor!

— Duas e meia da manhã, ninguém entra no quarto a essa hora — retruquei. — Se você me ama, virá brincar comi­go. Vem?

— Não — disse ela.

— Você não me ama — disse eu. — Eu sabia.

— Seu bobinho.

E de repente perdi a consciência outra vez.

 

— O senhor tem algum indício, ainda que mínimo, para acreditar que maître Duhamel esteja entre os mortos? — per­guntou o pequeno comissário Robert Rolland. Sentara-se diante do Dr. Ernst Englert, do Instituto Médico-Legal, na Sensengasse, metido em seu terno amassado e meio sujo. Ao lado dele, sentava-se um homem jovem e grandão, de óculos. O inspetor Wallner, da Delegacia de Segurança de Viena, tinha a tarefa de auxiliar aquele francês quieto e tímido em suas investigações. Os dois homens, tão diferentes, tinham simpatizado um com o outro desde o começo.

O Dr. Englert, um homem de certa idade, magro, de olhos azuis e cabelos grisalhos, balançou a cabeça.

— Não — disse ele —, não encontrei o menor sinal, co­missário.

Falavam alemão, Rolland com um leve sotaque.

— Por indício também me refiro a objetos que possam ter pertencido a maître Duhamel: canetas, agenda, abotoa­duras...

— Nada. Todos os objetos encontrados foram identifi­cados pelos parentes das outras vítimas — acrescentou En­glert.

Lá fora matraqueavam brocas elétricas num ruído ensur­decedor. Estavam reformando parte do Instituto. Ali estavam sempre em reformas. O Instituto era velho e pequeno demais. Havia muita poeira no ar, um brando céu de outono entrava pelas grandes janelas, iluminando incontáveis grãozinhos de poeira.

— Madame Duhamel não tentou identificar o marido en­tre as vítimas? — Rolland falava num tom sempre igual, sem modulação, calmo e baixo. Seu rosto oval com boca grande e testa alta estava inexpressivo. Os olhos de cor indefinida ti­nham uma expressão de paciência ilimitada.

— Não, ela se recusou. Mandou seu conhecido, aquele monsieur...

— Perrier.

— Sim, o jovem Perrier.

— Talvez ele não conhecesse todas as coisas de maître Duhamel.

— É possível — disse Englert. — Mas não ficou um só objeto que não fosse identificado por algum parente. Por isso, não existe nada que tenha pertencido a maître Duhamel.

— Acha possível que alguma coisa tenha sido roubada?

Englert deu de ombros. Não estava chocado.

— Isso sempre é possível. A polícia imediatamente pôs barreiras e trancou tudo lá no aeroporto, e afastou as pessoas. Mas, naturalmente, com aquela confusão... O senhor acha possível?

— Acho tudo possível — disse Rolland.

— Tudo o que pertencia às vítimas foi posto em lugar seguro, senhor comissário — disse Englert. — Teria de ter sido roubado então especialmente o que pertencia a uma determi­nada pessoa, da qual não encontramos sinal. Acha isso pos­sível?

— Sim — disse Rolland. — Acho possível, mas muito im­provável. Obrigado, Professor.

— Lá em Schwechat também não puderam lhe adiantar mais nada, não?

— Não. — Rolland fitou os sapatos. — Lá também não há nenhum indício.

— Quer dizer que maître Duhamel ainda está vivo? Com outro nome, outra aparência, documentos falsos? E é sua ta­refa encontrá-lo? Não o invejo. Ele pode estar em qualquer lugar do mundo todo, comissário.

— Naturalmente, doutor — disse Rolland e sorriu. — Mas eu apenas comecei minhas investigações.

— Eu o admiro — disse Englert.

— Não — disse Rolland. — Não fale assim, por favor! É apenas a minha profissão. E se a gente tem dinheiro bastante, e dá um passo depois do outro...

— Meu Deus! — disse Englert enquanto as brocas elé­tricas retumbavam. — Um passo depois do outro...

Robert Rolland encarou-o e novamente havia no seu rosto aquele leve sorriso.

— Também um caminho de mil quilômetros se começa com um passo — disse mansamente.

 

— A vitrine estará arrumada amanhã, meu querido — disse Andréia. Era a noite do dia após o assalto. Todo o meu corpo doía terrivelmente, e eu me sentia fraco. Estava deitado quieto na cama, e Andréia acariciava minha mão. — Coloca­ram imediatamente uma vidraça nova, esta noite tudo será arrumado por dentro... a firma com os modulados prontos. Langenau está na livraria, teve alta esta tarde. Nada de feri­mentos internos, graças a Deus! Só está horrivelmente deprimi­do. Nunca o vi assim. Mal fala. Não come nada. Eu lhe disse que ele tem alma de passarinho. E é tão religioso. Acho que simplesmente não pode entender que haja gente que o odeie tanto, só porque ajuda os turcos.

— Ele podia ter subido para me dar bom-dia depois de receber alta — disse eu. — Seria amável da parte dele.

— Ora, Gato — disse Andréia —, não o leve a mal. Está tão infeliz. Por pouco não chora. Está se controlando muito. A polícia esteve aqui?

— Dois agentes da delegacia criminal. Fizeram o re­gistro.

— Sim, na livraria também, e com o Apre. Meu pobre, querido Gato. Hoje não tem vontade de brincar, hein?

— Não, Esquilinha, hoje não. Nunca pensei nisso.

— O quê?

— Que um dia não tivesse vontade de brincar com você. — Praguejei. — Por quanto tempo ainda tenho de ficar aqui?

— Não seja impaciente, Gato. Você ficou muito machu­cado. Amanhã vai estar bem melhor, com certeza. O pior está aquele pobre rapaz, o Öskan. Robert Stark também vai levar tempo para ficar novo. — De repente deu uma risada.

— O que há de tão engraçado?

— Ora, Gato, aconteceu uma coisa incrível, talvez isso até o alegre um pouco.

— O que foi?

— Nosso Apre se apaixonou.

— Não — disse eu, atônito.

— Sim — disse ela. — Até por cima das orelhas. Uma coisa como você nunca viu, Gato!

Tive de rir, e rir doía.

— Ai! — disse eu. — O nosso tímido pesquisador de opinião? Nosso especialista em angústia? Nosso pequeno Nostradamus? Santo Moisés! Como é o nome dela?

— Bernadette.

— A enfermeira Bernadette?

— Sim, a enfermeira da noite. Linda.

— Deus do Céu! — disse eu. — Cabelos negros, olhos negros, corpo lindo... poderia ser artista de cinema. Sabe Deus o que anda fazendo num hospital.

— Você a conhece?

— Claro — respondi.

— Escute, como... — começou Andréia e se interrom­peu. — Ah, ela também cuida de você. Mas como a observou direito, não?

— Teria gostado, mas não deu — disse eu.

— Por que não?

— Estava tão apressada. Só me trouxe os remédios da noite e sumiu. Agora sei por que não voltou quando toquei a sineta.

— Você tocou? — Os olhos de Andréia se estreitaram.

— Sim, eu já disse.

— Por que a chamou, meu querido?

— Porque não conseguia dormir e queria um remédio.

— Só por isso?

— Só por isso, e não me olhe assim por favor! Não agüento. Amo você, minha Esquila querida, e se não me amar mais, minha vida está perdida. O que me diz?

— De quê?

— Meu poema de amor. Classudo, não?

— Muito. Então essa Bernadette até relaxou o trabalho. Essa me agrada.

— Ela não relaxou nada...

— Você ainda a está protegendo?

— ...mas veio outra enfermeira da noite e me deu o re­médio. São duas, sabe. Uma tão bonita, outra horrorosa. E agora, fale do nosso Apre.

— Bom, estive com ele há pouco. Não dá nem para falar com ele, está delirando. Triste, triste o que as mulheres con­seguem fazer de vocês homens. Ele sonha que a grande felici­dade é ter ficado tão machucado e ter sido trazido para cá. Ou nunca teria conhecido Bernadette. Você tinha de ver o nosso Apre, Gato! Hematomas graves debaixo dos olhos, tudo in­chado, e ele mal pode abrir os olhos.

— Bom, mas parece que isso foi o suficiente.

— Deus é que sabe — disse Andréia. — Bernadette, Bernadette. Ele não diz uma só frase sensata. Tem um pouco de febre. De excitação, claro.

— Fantástico. O que aconteceu? Quero dizer, com exce­ção de mim, os caras vêm a essa enfermaria atrás de Ber­nadette.

— Com exceção de você, Gato, sim. Trata-se de algo superficial, sabe. Um relacionamento altamente espiritual. Nosso Apre também não pôde dormir, tocou a sineta — antes de você! — e Bernadette tinha tempo, eles ficaram conver­sando. E aí foi que aconteceu. Às duas e trinta e quatro da manhã, diz o Apre. Essa hora lhe é sagrada. Aí ele reconheceu que encanto é Bernadette. Quando ela lhe lia Bossuet em voz alta.

— Quem?

— Jacques Bénigne Bossuet, clássico francês — começou a recitar Andréia. — Teólogo e grande orador, nascido em Dijon, 27 de setembro de 1627...

— Pare com isso!

— ...falecido em Paris, 12 de abril de 1704.

— Esquilinha!

— Só não me diga que não conhece Bossuet! O famoso clássico francês Jacques Bénigne Bossuet, filho de advogado do tribunal de Dijon, de maior importância na história do ponto de vista da doutrina cristã e na defesa do absolutismo como admirador de Luís XIV...

— Esquilinha!

— Nem idéia, hein?

— Claro que sei a respeito de Bossuet. Isso faz parte da cultura geral. Por sorte ainda há gente com cultura geral.

— E um Grande Brockhaus de vinte e quatro volumes — disse Andréia. — Sei muito mais do que você. Quer que lhe explique por que a correspondência de Bossuet com Leibniz e o Abade Molanus, de Loccum, sobre a união das igrejas, não teve resultado? Porque Bossuet...

— Esquilinha?

— Gato?

— Beije o seu Gato. Na bochecha.

Ela fez o que eu pedia.

— E agora pare com essa conversa fiada!

— Porque Bossuet...

— Esquilinha — disse eu —, mais uma palavra e, tão certo como tenho duas feridas costuradas, eu a deito na cama e arranco a calcinha.

— Seria difícil para você, meu querido. Estou sem cal­cinha.

— O quê...?

— Sim. Achei que você ia querer brincar hoje. Era uma pequena surpresa. Mas você está se sentindo tão mal. Bom, então não. Pois nosso Apre e Bernadette dialogaram sobre esse Bossuet no meio da noite, às duas e meia, e depois Ber­nadette leu um pouco do Sermon sur l’ambition, de Bossuet, para o Apre — admito que era a tradução alemã, Sobre a ambição, e depois apaixonaram-se um pelo outro. Não é ma­ravilhoso, Gato? Um amor tão grande! Sempre choro quando ouço falar num grande amor. Só que não tenho lenço aqui. Ei, eu disse que não tenho lenço.

— Ouvi. Nem eu.

— O que está fazendo?

— Tocando a sineta, você já viu.

— Sim, eu vi. Bernadette só dá remédios de noite. A outra enfermeira também.

— Quero um médico.

— Para quê?

— Quero ir ver o Apre. Ele ficou louco. Um de nós dois ficou maluco, quero descobrir quem.

— E o que tem o médico com isso?

— Preciso de licença para visitar o Apre.

— Mas você nem ao menos consegue andar.

— O que quer dizer “nem ao menos”, Esquila?

— Bom, eu tinha pensado que nós hoje podíamos real­mente... mais tarde, claro... mas você tem tanta dor em toda parte...

— Quero uma cadeira de rodas — disse eu. — Você tem certeza de que está aqui comigo, Esquilinha, e de que me contou a história desse velho padreco francês?

— Certeza absoluta, por quê?

— Não sei, quem sabe eu fiquei maluco. Pode ser, não?

 

— É tudo exatamente como sua senhora lhe disse, sr. Kent — disse Robert Stark. Nosso Apre estava deitado na cama olhando radiante para Andréia e para mim. Eu mal podia olhar para ele. Seus olhos estavam realmente tão incha­dos que não passavam de estreitas fendas, sob as quais haviam prendido curativos brancos e macios. Seu rosto tinha todas as cores do arco-íris; ele estava indescritível depois daquela briga. Exatamente o rosto pelo qual uma jovem bonita como Bernadette teria de se apaixonar na hora, pensei. E depois pensei, você certamente está com o mesmo aspecto, se não pior ainda. Nós dois simplesmente temos sorte com mulheres.

— Bernadette é maravilhosa — disse Stark, balbucian­do, devia ser dos remédios contra dor, aquela fala confusa, que eu também tinha. — Maravilhosa mesmo. O senhor vai ver lo­go, ela sempre me traz os remédios por último, aí tem mais tem­po. Toda a noite. A outra enfermeira é ótima, sempre a substi­tui, e podemos ficar conversando. Meu Deus, sr. Kent, que sor­te eu ter levado tanto pau e acabar aqui. Uma providência, não se pode dizer diferente. Nunca acreditei nisso, Bernadette também não, mas é preciso, não é? — Sorriu de novo e fi­camos sentados, os três, esperando por Bernadette.

Ela chegou um quarto de hora depois e não ficou nada embaraçada. Riu, deu-nos a mão, disse que sim, era verdade, entendiam-se fantasticamente, estavam muito felizes e seriam mais felizes ainda quando ele estivesse bom e pudesse se mexer. Uma mocinha moderna, uma jovem moderna que lia Bossuet. Disse que seu pai tinha uma editora pequena mas muito boa, de obras espirituais. Isso naturalmente explicava tudo...

— Adoro os filósofos franceses — disse Bernadette. — São tão claros e lógicos, ao contrário da maioria dos alemães. Com exceção de Lessing, a esse eu também adoro.

— Eu não disse que ela é maravilhosa, sr. Kent? — per­guntou Robert Stark com a língua pesada. — Bernadette, por favor, leia aos meus amigos aquela passagem... você sabe qual... para que entendam por que nós dois veneramos Bossuet. Eu não conhecia esse texto sobre a ambição. Aí a gente vê como é inculto.

— Com prazer — disse Bernadette, jogando para trás seus longos cabelos negros. — Mas na verdade eu teria de passar primeiro por toda a enfermaria e ver se todos rece­beram seus remédios.

— A Elsie fará isso — disse Stark. — Pedi a ela. Aliás, ela faz tudo. Só quando surge alguma complicação ela chama você, Bernadette. — Tirou da gaveta da cabeceira um livro que deu a Bernadette. — Ela o deixa comigo durante o dia — explicou. — Para eu ficar tranqüilo, certo de que vai con­tinuar lendo para mim.

Bernadette pegou o livro e sentou-se numa banqueta. Seu avental branco abriu-se um pouco; ela tinha pernas lon­gas. Naturalmente não era tão bela quanto Andréia, mas quase.

— Prestem atenção, sr. e sra. Kent — disse o Apre. — O que vão ouvir foi escrito há trezentos anos. Trezentos anos! Por favor, querida Bernadette.

A enfermeira de cabelos negros leu:

— “Esse nobre conceito de poder é muito distante da­quele que fazem dele os poderes mundanos. Pois como faz parte da natureza humana ser mais receptiva para o mal do que para o bem, também os grandes acreditam que seu poder se manifesta mais pelas ruínas do que pelas boas ações. Daí as guerras, as matanças, daí as orgulhosas empresas desses ban­doleiros a quem concedemos o nome de ‘conquistadores’. Esses heróis, esses vencedores, com todas as suas glórias, estão na Terra apenas para perturbar a paz com sua ambição des­medida. Foi Deus quem no-los mandou em Sua ira. Suas vitórias espalham tristeza e desespero entre viúvas e órfãos; eles se alegram com o extermínio dos povos e com a devas­tação geral, e assim fazem brilhar sobre nós o seu poder.”

Bernadette ergueu os olhos e fitou Robert Stark, sor­rindo.

— Não é grande? — perguntou o Apre. — Isso não po­deria ter sido escrito hoje?

— Sim — respondi.

— É por isso que leio Bossuet — disse Bernadette, os olhos negros brilhando.

— E esta noite vai ler mais, não é? — perguntou Stark.

Ela fez que sim, e o rosto pisado dele expressou a mais absoluta felicidade.

Andréia pegou minha mão.

— Desejamos toda a felicidade do mundo aos dois — disse. — Não é, Gato?

— Sim, toda a felicidade.

 

O pequeno e delicado comissário Robert Rolland disse:

— Estou certo pressupondo que não pode me revelar o que tinha de falar tão urgentemente com maître Duhamel?

Daniel Mann era um homem atarracado, beirando os cin­qüenta. Sua sala de trabalho no grande escritório no Graben, 1º Distrito de Viena, era mobiliada com móveis antigos.

— Tem razão, comissário — disse o Dr. Mann. Fumava um Virgínia, charuto típico da Áustria, muito comprido e fino.

— Mas é certo que na noite de dezesseis de junho tele­fonou a Paris e lhe disse que ele tinha de vir imediatamente a Viena. E a seu pedido insistente ele então voou pela Euro-Air, avião das vinte e duas e quarenta e cinco de Orly. Com isso quero dizer: está certo que o senhor foi motivo da vinda dele a Viena?

— Claro. — O Dr. Mann chupou o seu Virgínia. — Quero dizer, até agora eu estava certo. Teoricamente ele pode ter tido outros motivos. Naturalmente. Mas é apenas uma hipótese muito, muito remota.

— Certamente — disse Rolland baixinho. — Não duvido que o senhor pense que maître Duhamel veio a Viena exclusi­vamente por sua causa. E muito provavelmente foi assim. Mas infelizmente preciso contar com todas as hipóteses, Dr. Mann, também as mais improváveis.

— O doutor entende — disse o companheiro constante de Rolland em Viena, o robusto inspetor Wallner, ajeitando os óculos.

— Claro que entendo — disse o advogado. — E para resumir, caro comissário: depois daquele telefonema nunca mais tive a menor notícia de meu amigo Duhamel. Ele não compareceu ao encontro noturno que marcáramos aqui. Natu­ralmente fiquei muito preocupado. Então minha mulher me telefonou de manhã — trabalhei a noite toda — e me disse que o aparelho explodira. Ouvi as terríveis notícias no rádio. Naturalmente telefonei logo para a Polícia. Meu amigo não estava entre os feridos. Até hoje, até esta hora, vivi na firme convicção de que meu pobre amigo Charles Duhamel morrera no atentado, tão mutilado que não pudera ser identificado. Fui com minha esposa à cerimônia fúnebre dos não-identificáveis. Éramos muito amigos de Charles, não de sua mulher. Considero absurdo procurarem por ele... desculpe, comissário, não queria ofendê-lo.

— Não estou ofendido — disse calmamente o pequeno comissário malvestido, e sorriu. — Essa busca deve lhe pa­recer de fato absurda, doutor. Mas acontece que é minha tarefa.

— O senhor realmente acha que Charles ainda está vivo?

— Não acho nada, doutor. — O que Rolland acabava de dizer, dizia com freqüência. Era a frase que mais usava. — Talvez maître Duhamel tenha morrido depois da queda do avião, não sei. Só sei que não estava nem entre os mortos nem entre os feridos. Nem entre os não-identificáveis. Até esse pon­to eu cheguei. Agora tenho de ver como prossigo. Por isso qualquer ajuda me é bem-vinda. Se como velho amigo dele o senhor não quer ajudar, embora talvez possa, entenderei per­feitamente, e não ficarei zangado com o senhor. — Rolland comprimiu as pontas dos finos dedos umas contra as outras e olhou os sapatos empoeirados.

— Como poderei ajudá-lo? — perguntou o Dr. Mann. O aposento estava cheio da fumaça azulada do charuto.

— Bem, poderia talvez me dizer se seu amigo tinha ou­tros conhecidos em Viena — disse Rolland, e isso soou quase humilde. Silêncio depois das palavras. — Muito bem — disse Rolland, indiferente, e sorriu outra vez. — Então preciso ten­tar descobrir isso de outro modo. Naturalmente vou descobrir. É só uma questão de tempo. E tenho muito tempo, ilimitada­mente.

— É isso — disse o Dr. Mann, que deixara apagar o Virgínia e fazia cara de quem sente um gosto ruim na boca.

— O que significa “é isso?” — perguntou Rolland.

— É isso, o senhor tem todo o tempo do mundo. Vai descobrir, mesmo se eu não lhe disser. E muito depressa até. Logo eu, como advogado, devo saber disso. E o senhor iria pensar que lhe menti se lhe disser agora que ele não tinha mais conhecidos em Viena. Não farei isso. Sim, o pobre Char­les tinha um bom velho conhecido aqui, até muito bom, a quem defendeu em Paris há oito anos e conseguiu absolver por inocência comprovada.

— Ah, meu Deus — disse o inspetor Wallner. — Esse!

 

Vou ter alta na terça, Esquilinha!

Eu estava sentado na cama rindo quando ela veio ao meu encontro. E me beijou.

— Já me disseram, Gato.

Alguma coisa acontecera, senti isso imediatamente.

— O que foi, Esquilinha?

Ela sentou-se numa cadeira ao lado da cama e me olhou desamparada.

— Langenau vai embora — disse.

— O quê?

— Langenau vai embora — ela repetiu, e alisou o lençol num movimento sem sentido.

— O que quer dizer “embora”? Para onde?

— Para casa, no Tirol. Ele me disse essa noite, há uma hora talvez. Estou me sentindo mal, Gato.

— Um momento — disse eu. — Vamos devagar! E não fique nervosa, Esquila. Isso não é tão simples assim; Lange­nau não pode simplesmente ir embora, ele tem um contrato com você, é seu empregado. Trabalhou nessa livraria vinte e quatro anos, e agora quer ir embora, assim de repente?

— Ele disse que quer fazer isso há algum tempo, mas agora tem de ir. Lamenta muito e vai deixar um substituto de primeira, antes de nos deixar, já tem alguém em vista. Mas se gostarmos do substituto, Langenau quer ir embora o mais depressa possível, e pede que não insistamos no aviso prévio.

— Não entendo, Esquilinha. Ele sempre esteve contente conosco.

— Foi o que eu lhe disse. Pensei que éramos uma espécie de pequena família. Construímos juntos essa livraria. Sempre fomos unidos e nos ajudamos uns aos outros. Falei-lhe tudo isso, e ele reconheceu, mas agora quer ir embora. Seu amigo chega nos próximos dias e vai se apresentar. Trabalhou numa livraria de Munique, uma grande, que foi vendida, e ele não se dá bem com os novos donos.

— Mas por que, Esquilinha, por que Langenau quer ir embora?

— Saudades da pátria.

— Ora! — Fiquei furioso, — Por decênios esteve em Hamburgo, e tem aqui seus amigos, e de repente tem sauda­des! Ridículo.

Ela me encarou tristemente.

— Não fique zangado comigo porque Langenau quer ir embora, não tenho culpa disso.

Beijei-a.

— Perdão, Esquilinha, só fiquei confuso e assustado. O que faremos sem ele? É a alma do negócio, quer dizer, natu­ralmente você é, mas quero dizer...

— Sei o que você quer dizer — disse ela baixinho. — Será uma catástrofe Langenau ir embora. E ele vai, é certo. Não faz sentido tentar detê-lo. Ele já disse isso.

— Sim, mas deve ter acontecido algo que não nos con­tou, algo pessoal.

— Sabe, esse ataque na livraria e essa nova onda de ódio por causa dos amigos turcos o abalaram muito, creio.

— Ele lhe disse isso?

— Não diretamente. Disse que não gosta mais daqui, que não quer mais viver nem trabalhar aqui. Acho que não agüen­ta mais essa atmosfera.

— De repente? — perguntei. — Um sujeito como Lan­genau? Quanta coisa ele já agüentou, quanto ódio, e só dava de ombros e continuava lutando por seus amigos! Não, Esqui­linha, ele não é o tipo que de repente não agüenta mais. Deve haver outra coisa por trás disso, algo bem diferente.

— Mas o quê? Eu disse que não acreditava nisso de sau­dades, mas não adiantou, ele insiste. Esteve longe tanto tem­po, e agora que está ficando mais velho tem saudades de Innsbruck, cada vez mais, disse ele... e está firmemente deci­dido a voltar. Não faz sentido discutir com ele, Gato, sempre diz a mesma coisa: que, por favor, quer ir embora.

— Na terça saio daqui — disse eu. — Então vou falar com ele, Esquilinha, e pode deixar, descobrirei o verdadeiro motivo. E se o descobrir, conseguirei que Langenau não volte a Innsbruck. Por que me olha assim?

— Ele andava tão esquisito com você ultimamente, Gato — disse Andréia. — No começo você estranhou e ficou triste. Sempre perguntou se o ofendera, talvez sem querer, ou coisa assim, e ele sempre respondia, mas qual nada, sr. Kent!

— Sim — disse eu. — Como foi que isso não me ocorreu logo! Devo ter levado uma boas pauladas. Espero que não tenham quebrado nada. Você tem razão, Esquilinha. Ele andava muito esquisito ultimamente. Mas Deus sabe que não fiz nada! Sempre nos entendemos muito bem. Ele não pode estar zangado comigo.

— Na verdade eu nem quis falar nisso — disse ela. — Para você não se assustar ou pensar que tenha culpa... nesse estado. Lamento ter falado nisso.

— Não lamente — disse eu. — Obrigado por me ter lembrado. Não há motivo para Langenau se portar assim, nenhum motivo, de eu ter feito ou dito alguma coisa, ainda que ele fale cem vezes em saudades de casa.

— Sim, mas o que faremos, Gato?

— Vou falar com ele — respondi. — Sozinho. Hei de descobrir a verdade.

 

De repente o tempo ficara péssimo. Choveu no domingo dia 8, e choveu segunda-feira. No hospital já estava tudo mui­to aquecido, mas lá fora assobiava uma tempestade gelada. Da minha janela via-se um pátio com árvores antigas. Ainda tinham muitas folhas coloridas quando eu viera, mas nos úl­timos dias a tempestade arrancara quase todas. O pátio estava coberto delas, e a ventania as fazia redemoinhar. Nunca ficava bem claro nesses dias, por toda parte a luz elétrica tinha de estar acesa. A tempestade traiçoeira vinha em tufões súbitos, sacudindo caixilhos de janelas e calhas. Muitos pacientes se sentiam mal, muitos tinham tosse, resfriado ou gripe. Entre eles o nosso apaixonado Apre, com mais de trinta e nove de febre. Apesar disso estava num esplêndido bom humor, por­que a folga da enfermeira Bernadette caía naquele fim de semana e ela podia ficar com ele e tratá-lo. Ficava sentada horas a fio na sua cama, como Andréia na minha, e nos tele­fonávamos. Não fomos até Robert Stark; teríamos perturbado sua felicidade e não queríamos nos contagiar.

Não sei por que sempre nos deixam no hospital os fins de semana e só dão alta nas segundas. Talvez tenham medo de que o paciente sofra uma recaída, parecem ter experiências com os perigos dos fins de semana.

Aqueles dois dias escuros e tempestuosos foram duros de suportar. Deixaram-me terrivelmente nervoso. Tive de pensar constantemente em Langenau e em seu estranho comporta­mento. Andréia estava muito valente e contava histórias de sua vida, histórias engraçadas para me alegrar, e porque a amava, eu ria alto. Mas estava muito deprimido e nada alegre. Nem mesmo tinha disposição para brincar com ela, e isso mostrava como eu estava abatido. Poucos visitantes vinham ao hospital com aquele tempo, e só o mínimo de médicos e enfermeiras estava lá. Teríamos podido fazer amor sem sermos pertur­bados à noite, mas eu contagiara Andréia com meus pensa­mentos negros, e também ela estava abalada quando foi para casa no domingo. A tempestade uivava, a chuva batia na vi­draça, e na segunda Stark me telefonou ainda num entusias­mo louco e apaixonado, pois Bernadette continuava lendo para ele Sobre a ambição de Bossuet. Havia a toda hora um trecho especial que Bernadette tinha de ler para nós, e An­dréia, que estivera outra vez o dia todo sentada junto de mi­nha cama, estava com o fone no ouvido. Os dois há muito se tratavam por “você”, e certamente Bernadette não ficava o tempo todo lendo textos do grande filósofo e orador francês.

Naturalmente cada vez dizíamos que o trecho era extraor­dinário, pois isso deixava o Apre desmedidamente feliz.

— Ouvindo esses dois, a gente se sente realmente um casal velhíssimo — disse Andréia certa vez.

— Bobagem, Esquilinha — disse eu. — Ainda somos tão jovens quanto eles; é esse tempo de fim-de-mundo que per­turba nossas almas sensíveis.

— Não — disse ela. — É Langenau, você sabe disso.

— Sim — concordei. — É só Langenau.

Estava realmente um tempo horrível. Eu tinha uma tele­visão no quarto, mas o programa do fim de semana era into­lerável. Só ligávamos as notícias, e estas nos abalavam ainda mais. O locutor só falava de guerra, desgraça e catástrofes naturais. Depois de um noticiário desses na noite de segunda-feira, meu telefone tocou, e Stark estava no aparelho outra vez. Acabara de saber que tinha de ficar mais uns dias, até seus hematomas desincharem, e considerava isso uma sorte imensa.

— Bernadette trocou com a outra enfermeira e vai fazer serviço noturno outra vez. Vai trazer as Orações fúnebres, de Bossuet, e ler para mim. Mas talvez eu já possa ler para ela. Não conheço as Orações fúnebres e sempre me considerei um homem culto.

— Nunca ouvi falar em Orações fúnebres.

— Mas Bernadette! — exclamou ele. — Não é maravi­lhosa?

— Muito — disse eu, e Andréia sorriu para mim. Agora pelo menos o Apre ajudava a nos divertir. — Uma mocinha fabulosa, digo-lhe isso, Robert!

— Ela ouviu — disse ele. — Está com o fone no ouvido. Sua mulher também, não?

— Sim.

— Ora — disse ele, depois de ter respirado fundo. — Esse tempo não é maravilhoso para gente como nós?

— Não podia ser melhor — disse eu.

— E a febre deixa a gente tão maravilhosamente abatido — disse ele. — Diabos, nunca na minha vida fui tão feliz. — E começou a espirrar. Depois da quinta espirrada, desliguei. Andréia e eu nos entreolhamos e rimos alto. O Apre salvara a situação.

Andréia perguntou ao médico de plantão se podia passar a noite comigo, e ele não fez objeções. Ainda era muito moço, e estávamos certos de que sua namorada também vinha visi­tá-lo. Mandou trazer uma segunda cama, o que só fez por boa educação. Sabia muito bem que ela era inútil. Mas agora nosso humor melhorou depressa, e rimos e falamos bobagens, e o telefone tocou de novo; era o Apre:

— Ouvimos dizer que sua esposa vai passar a noite aí. Bernadette também. O que acha disso, sr. Kent?

— Congratulações!

— Ela manda dizer que falou com a enfermeira que vai chegar aí agora para só aparecer quando o senhor chamar!

— Rapaz, rapaz — disse eu —, que hospital este!

— Quando nos surrarem outra vez juntos — disse ele —, viremos correndo para cá!

A enfermeira da noite — uma mulherzinha miúda com óculos de aro niquelado — bateu logo depois à porta. Era muito séria e digna, e desejou boa-noite. Bom, e foi o que tivemos. A chuva e o vento pioravam cada vez mais, mas nem ligávamos, só ouvimos isso de passagem, quando estávamos deitados lado a lado na minha cama.

— Essa é a maior invenção do mundo — disse Andréia.

— Sim, e a coisa mais louca é que cada um descobre isso por si.

— Você descansou muito nesses dias, Gato, descansou muito mesmo — disse Andréia apertando com força o corpo no meu. — Ah, Gato, Gato, sem você eu não poderia mais viver nem uma hora. E não só por isso. Meu Deus, este é mesmo um hospital e tanto!

De repente ela saltou nua da minha cama para a outra, e ficou se rebolando lá feito doida.

— Esquilinha!

— Sim, já vou. Preciso amassar os lençóis como se tivesse dormido aqui. Amanhã esqueço e o que as enfermeiras vão pensar?

— Elas que pensem o que quiserem. Você é casada co­migo, tem o direito soberano de dormir na minha cama.

Ela largou a sua rebolação imediatamente, sentou-se e disse:

— Tem razão. Que tolice, me dar esse trabalho!

— Você tem seios lindos — disse eu.

— Estou indo — disse ela. — Estou voltando, meu Gato amado!

Mais tarde, quando estávamos de novo deitados lado a lado, ela disse:

— Você acha que Bernadette leu muitas Orações fúne­bres para o nosso Apre?

— Nem meia página — disse eu. — Uma moça ótima, realmente, mas não é intelectualizada demais... não acha?

— Nem ele — disse Andréia. — Além do mais, posso tranqüilizar você: na cama ela certamente vai esquecer essas Orações fúnebres. Vai ser mais pela ressurreição, e tão normal quanto você e eu.

— Você quer dizer...

— Gato!

— Hum?

— Não me olhe assim com esse ar depravado!

— De repente me sinto terrivelmente depravado.

— Maravilha, maravilha, Gato amado. Então vamos ser depravados, desmedidamente depravados!

 

Na terça, 10 de novembro, ainda chovia e ventava muito.

Deixei o hospital ao meio-dia, depois de me despedir do nosso Apre, prometendo visitá-lo. Andréia estava comigo, e prometeu a mesma coisa. Levou-me de carro para casa, tomei banho e mudei de roupa. A livraria estava outra vez arrumada, nada mais lembrava o ataque, o incêndio e a briga. As crian­ças me saudaram ruidosamente, alegres, e também na loja era preciso deixar a luz acesa durante o dia. Poucos fregueses apareciam, por causa do mau tempo, e eu brincava com as crianças. Depois me sentei no Cat’s Corner e tomei um pouco de uísque. Langenau estava muito cortês mas evitava falar comigo. Por fim perguntei se podia visitá-lo à noite e conver­sar sobre tudo.

Ele me encarou novamente com aquele jeito estranho e disse:

— Claro, sr. Kent. Quando pretende ir?

— Bem, talvez às nove, depois do jantar.

— Muito bem — disse ele, pegou uma pilha de livros e foi para o depósito nos fundos.

Portanto, naquela noite fui com o Mercedes ao Kaiser-Friedrich-Ufer, no Canal Isebek, onde morava Langenau. O tempo estava horrível. O vento uivava em volta do carro, a chuva tamborilava no teto. Estacionei perto da casa e atra­vessei correndo a rua para a porta do edifício, que já estava trancada. Premi a campainha três vezes, e do porteiro eletrô­nico soou, abafada, a voz de Langenau:

— Quem é?

— Peter Kent.

— Já vou, sr. Kent.

Alguns minutos depois a porta abriu-se de dentro, e o imenso tirolês apareceu diante de mim. Usava calças de veludo bege e pulôver azul. Deu-me a mão rapidamente. No caminho do elevador — ele morava no terceiro andar —, encontramos um homem idoso de uniforme cinza. Era o sr. Reining, da segurança, que cuidava daquele edifício de escritórios à noite. Andréia e eu tínhamos visitado Langenau algumas vezes e conhecíamos o sr. Reining. Cumprimentei-o, e o magro guar­da com manchas vermelhas nas faces praguejou contra a tem­pestade e a chuva, pois sofria de reumatismo e aquele tempo lhe fazia muito mal.

— Sinto cada um dos meus ossos — disse, amargurado. — Cada osso me dói, é um nojo. Desejo que tenham uma boa noite, senhores.

Subimos de elevador para o apartamento de Langenau, decorado rusticamente. A maior parte dos móveis era de bela madeira trabalhada; diante das janelas havia cortinas curtas de linho vermelho-escuro, como se usa nas casas dos campo­neses. Langenau criara ali um pedaço da sua pátria. Eu co­nhecia todo o apartamento, porque ele o mostrara, a mim e a Andréia, em nossa primeira visita. Havia um crucifixo em cada peça. Uma imensa mesa na sala estava coberta de livros e papéis; outra mesa menor ficava no recanto em que nos sen­távamos. Nos bancos havia almofadas chatas, também de linho vermelho-escuro, e por cima da mesa pendia um grande lampião de latão, com pantalha de pergaminho laranja.

Ao lado da parede com livros havia uma armação de madeira com as armas de Langenau. Quando estivera ali pela primeira vez eu soube que Langenau colecionava armas, e ficara um tanto espantado. Como eu entendesse muito pouco disso, ele me explicou detidamente cada peça. Naquele su­porte havia apenas uma dúzia de armas especialmente valio­sas; as outras ficavam num segundo aposento. Uma pequena prateleira servia para expor muitas pistolas, novas e antigas. As armas brilhavam na luz: Langenau sempre polia seus te­souros. Havia uma espingarda do século 17, outra do século 18, e uma carabina de percussão do século 19.

Vi uma pistola standard da Wehrmacht alemã, modelo 08, calibre 9 mm, uma arma violentíssima.

— Ora — disse eu, retirando-a da prateleira. — Esta o senhor ainda não tinha da última vez que estive aqui.

— Cuidado — disse ele. — O pente está cheio. Está carregada.

— Mas travada — disse eu, e pesei-a na palma da mão. — Onde a conseguiu?

— O senhor sabe que tenho meu fornecedor.

Langenau já nos falara desse fornecedor, que sempre pro­curava belas armas antigas nos vales remotos de sua pátria. Era um amigo de juventude, cirurgião, trabalhava numa clí­nica universitária de Innsbruck, e vinha à Alemanha do Norte com freqüência para congressos e reuniões, e sempre visitava Langenau. Esse amigo era grande amante da natureza, um alpinista, que realmente conhecia o Tirol. Sabia onde os cam­poneses ainda tinham armas dos séculos passados, e também as colecionava. Muitas espingardas e outras armas eram perse­guidas até durante um ano, e quando conseguia negociar o achado com o camponês, mandava consertar a rara peça e deixá-la em pleno funcionamento. Ainda havia em Innsbruck e redondezas alguns armeiros que entendiam disso, mas eram muito velhos e cheios de manias. Langenau nos dissera que em breve acabaria a possibilidade de colecionar armas.

— Foi seu amigo quem trouxe esse canhão? — perguntei.

— Sim. Ele deu uma conferência aqui há quatro sema­nas. Uma Zero-Oito. Nada de excepcional, mas mesmo assim é especial, por isso a comprei. Veja!

Ele encontrara um cano numa gaveta; tirou a pistola da minha mão e aparafusou o cano no cano da arma. — Um silenciador — disse. — Isso, está firme. — E devolveu-me a arma. — Não fica muito mais pesada, não?

— Silenciadores são proibidos por lei — disse eu.

— Pois foi por isso que quis a arma. Algo que se conse­gue muito raramente, porque silenciadores são proibidos. Não é bonito? — Ele sorriu, pela primeira vez em semanas sorriu para mim, e pensei que era mesmo um sujeito esquisito, aque­le urso barbudo com suas prateleiras de espingardas e pistolas, e o grande crucifixo por cima. Ele disse: — Venha, vamos nos sentar.

Sentamo-nos diante da mesa escovada, no canto. Havia copos e uma grande garrafa de vinho tinto, e vi novamente a prateleira com longos cachimbos antigos, de que eu logo gos­tara. Havia entre elas peças belíssimas.

— Grauvernatsch — disse Langenau, e levantou a garra­fa. — O senhor gosta muito desse vinho do sul do Tirol, não é? — Encheu os copos e brindamos. — Está suficientemente quente? — perguntou ele.

— No ponto — disse eu, e olhei-o enquanto ele enchia cuidadosamente um dos longos cachimbos com tabaco de uma bolsinha e o acendia. Recostou-se para trás, soprou no ar a fumaça aromática, e agora voltei a ouvir lá fora os uivos da tempestade e as bátegas da chuva. De resto a casa estava um silêncio de morte; além de nós dois, só o sr. Reining, da segurança, estava lá, fazendo sua ronda e amaldiçoando o tempo, seu reumatismo e suas dores. Os escritórios e consul­tórios médicos ficavam vazios à noite.

— Bem — disse eu, para entrar no assunto. — Sr. Lan­genau, não está mais gostando daqui. Quer ir embora. Quer ir para casa.

— Isso mesmo — disse ele.

— Ficamos muito tristes com isso, o senhor sabe.

Ele não respondeu.

— Por favor, fique, sr. Langenau!

— Não — disse ele. — Não posso.

— Mas por que não? Realmente por causa desses imun­dos neonazistas? Não posso acreditar. Como brigou no passa­do com esses cafajestes! Como sempre foi corajoso! E agora? Agora quer abandonar seus amigos estrangeiros? Sr. Lange­nau, vou lhe dizer uma coisa: não acredito que aqueles sujeitos sejam o motivo da sua decisão.

— E não são — disse ele, largando o cachimbo e olhando para mim. Seus olhos estavam úmidos, os lábios tremiam. Depois disse:

— O verdadeiro motivo é que simplesmente não posso continuar vivendo com um assassino impenitente, monsieur Duhamel.

 

Acho que agora viu tudo, comissário — disse Emanuel Eisenbeiss, e ergueu outra vez a porta corrediça diante do armário cheio de formulários. A fechadura trancou-se. Tudo brilhava muito alvo na casa do Caminho da Utopia, no Schafberg em Viena.

— Fantástico — disse o pequeno comissário Robert Rolland. — Simplesmente fantástico! — Encarou Eisenbeiss. — Estou impressionadíssimo. Embora tenha ouvido falar tanto nesse museu, a realidade supera tudo. Naturalmente acompa­nhei com muita atenção o seu processo aquela vez. Para mim, o senhor é uma figura legendária há decênios, e agora tenho a sorte de estar à sua frente, falar com o senhor. Só nos conhe­cemos há algumas horas, mas o senhor foi tão amável de vir comigo e o sr. Wallner até aqui. Tive oportunidade de obser­vá-lo. Como fala, como escuta, como sorri, o que diz e o que não diz. Sr. Eisenbeiss, lidei com muitas pessoas incomuns na minha vida. Permita dizer que nenhuma delas me impressio­nou tanto quanto o senhor.

— Pelo amor de Deus, pare com isso, comissário! — disse Eisenbeiss. Estava muito embaraçado. — Vamos subir?

— Vamos — disse Rolland. Quando subiram a escada, Eisenbeiss, elegantemente vestido como sempre, com um cravo na lapela, viu que os saltos dos sapatos do comissário, que ia à sua frente, estavam gastos de um lado. Dois fios pendiam da bainha de suas calças. Na altura das coxas o tecido estava lustroso. Que tipo, esse comissário Rolland!

Na sala da mansão em estilo art nouveau havia um bar.

— Toma conhaque? Tenho um velho Napoleon excelen­te, comissário. — Eisenbeiss sorria.

— Magnífico — disse Rolland.

— O senhor também?

— Sim, por favor — disse Wallner.

Eisenbeiss tirou grandes copos de conhaque do bar, e um pequeno aquecedor a álcool, cujo pavio acendeu. Aqueceu cui­dadosamente os cálices antes de pôr neles o conhaque.

— Ao sucesso de sua investigação — disse ele. Beberam. A chuva batia nas vidraças, a tempestade assobiava ao redor da casa. O tempo também era ruim em Viena naquela noite de 10 de novembro. Eisenbeiss ligara a calefação assim que tinham chegado. Agora, serviu mais conhaque. O pequeno comissário tinha as mãos cruzadas nos joelhos.

— Minha investigação, sim... — disse ele como se esti­vesse envergonhado. — Sei que não faz muito sentido interro­gá-lo, sr. Eisenbeiss; preferia mesmo não o fazer, e conversar com o senhor sobre o seu antigo mundo. Mas tenho uma missão, não é mesmo?

— Não precisa se desculpar por me perguntar sobre Charles Duhamel. Entendo seus sentimentos. Posso imaginar realmente muito bem a sua situação, comissário. Sempre pude imaginar muito bem... o outro lado.

— Sim — disse Rolland —, esse foi o motivo de todos os seus sucessos.

— Acho que somos bem parecidos — disse Eisenbeiss. — Os seus sucessos vieram da mesma maneira, como vejo agora, comissário. Mais um golinho? Mas sim! Dê-me o seu cáli­ce! O senhor também, inspetor. — Aqueceu novamente os copos. Um cão uivou na noite.

— Charles Duhamel. Um bom amigo, admirado e vene­rado, comissário. — Rolland concordou com a cabeça. — Sua morte horrorosa me abalou profundamente. Mais do que pre­tendo mostrar. Eu me controlo muito.

— Vejo isso, sr. Eisenbeiss — disse Rolland com rosto inexpressivo. Havia duas manchas amarelas na sua gravata puída.

— O senhor está procurando o pobre Charles, comissá­rio — prosseguiu Eisenbeiss, concentrado na pequena cerimô­nia com a chama da espiriteira e os cálices bojudos. — Sus­peita que ele ainda viva.

Rolland encarou-o mudamente.

— O senhor anda por aí, indagando. Tantas perguntas. Esse Eisenbeiss, esse falsário. Eisenbeiss, você falsificou do­cumentos para o seu velho amigo Charles Duhamel? O senhor tem de fazer a pergunta, comissário! Por favor! Santé! Está hesitando, pois é um homem de inteligência superior. Já viveu muita coisa, sabe o que esse Eisenbeiss vai responder, se o senhor perguntar. É até penoso interrogá-lo.

— Sim — disse Rolland —, muito penoso.

— O senhor não está só convencido de que Duhamel ainda vive, mas de que Eisenbeiss sabe onde se encontra o seu admirado amigo. Depois do atentado a bomba no aparelho da Euro-Air, Duhamel veio procurar Eisenbeiss, em sua opinião, sr. comissário. — O homem alto recostava-se no encosto de sua cadeira, e suspirou. — Eisenbeiss esteve aqui com Duha­mel, preparou belos documentos para ele lá embaixo no “Mu­seu” para que Charles Duhamel começasse uma nova vida. — Bebeu. — E Eisenbeiss vai lhe contar tudo isso agora, comis­sário, e também lhe dirá como se chama Duhamel agora, qual sua aparência e onde mora, não é verdade?

— O sr. Eisenbeiss naturalmente jamais faria isso — disse Rolland, em voz baixa como sempre. — Trair o venerado Duhamel. O homem que o defendeu com tamanho sucesso. O homem a quem agradece não ter ido para a prisão. Imagino que eu fosse o sr. Eisenbeiss, essa personalidade grande e única, imagino que Charles Duhamel fosse meu velho amigo... O senhor entende que estou triste, sr. Eisenbeiss?

— E o senhor entende a minha dor, sr. comissário — disse Eisenbeiss. — Porque está enganado. Duhamel não está vivo. Ele não me procurou para pedir documentos falsos. O pobre Charles está morto. Vamos brindar à sua felicidade, onde quer que ele esteja. — Eisenbeiss e Rolland beberam, Wallner não.

— Bom — disse ele, grosseiramente —, agora vamos pa­rar com essa besteira, Eisenbeiss. Chega de teatro.

— Inspetor, realmente não sei como devo entender essas palavras. Mas o senhor é meu convidado, e estamos falando de um morto.

Wallner balançou a cabeçorra.

— Não se trata de um morto. Seu velho amigo está bem vivo. Olhe, Eisenbeiss, já sabemos que você lhe falsificou um passaporte e todo o resto. Claro que fez uns papéis falsos para o seu amigo quando ele o procurou.

Eisenbeiss balançou a cabeça:

— Não faça isso, está pecando contra um morto.

— Por que então não foi à cerimônia fúnebre, Eisen­beiss? Eu estive lá — disse Wallner. Estive até no enterro deles, e você não. Por que não, Eisenbeiss? Seu venerado e velho amigo... e você nem lhe rendeu a última homenagem?

— Não consegui, inspetor. Simplesmente não podia, foi mais forte do que eu.

— Sim — disse Rolland —, posso entender isso... se me imagino em seu papel, sr. Eisenbeiss.

— Obrigado, comissário. O inspetor não consegue. Pe­na...

— Você não teve tempo — disse Wallner, imperturbável. — Dê-me mais um gole. Mas deixe de lado essa merda de aquecimento. Você estava ocupado. Tinha de preparar os pa­péis falsos, pois Charles tinha pressa. Estávamos fazendo uma caçada aos terroristas naquela ocasião, muitas barreiras de controle, ele precisava dos documentos falsos, seu bom velho amigo.

— O senhor tem a lista exata do meu “museu”, inspetor. Veja lá se falta algum impresso ou formulário.

— E todos sabemos que você tem um depósito escondido, Eisenbeiss. Naturalmente logo substituiu o que ficou faltando. Sabe que sempre fomos muito generosos com você, Eisenbeiss? Extraordinariamente generosos. Devo dizer: negligentemente generosos? Claro que isso pode mudar depressa...

— Não tenho consciência de nenhuma atividade que me­reça punição, inspetor. E tenho o melhor advogado do país, que tem uma pequena fraqueza: a vaidade. Os jornalistas importantes de todos os grandes jornais são amigos dele. A opi­nião pública sempre reage muito fortemente quando a polícia malbarata sua posição para... digamos... acusar, ameaçar uma pessoa injustamente, querer forçar um depoimento que seria falso... fazer a tentativa... naturalmente insensata, de... digamos... chantageá-lo? Como é isso na França, comissário? A opinião pública também fica tão irritada?

— Exatamente — disse Rolland com tristeza.

— Quem falou em chantagem? — perguntou Wallner espantado. — Pedimos um pouco de colaboração, Eisenbeiss, nada mais. Um pouco de colaboração. Com que nome pre­parou os documentos dele?

— Meu Deus — disse Eisenbeiss, encarando Wallner perplexo. — Chama isso um pouco de colaboração? — Fitou Rolland: — Comissário!

— Realmente, inspetor — disse este. — Isso não se faz. Perdoe ao meu colega, sr. Eisenbeiss, por favor.

— Pois bem, vou perdoar — disse Eisenbeiss.

— Olhe aqui, Eisenbeiss — berrou Wallner de repente. — Se acha que pode rir de mim, está enganado. Cago para esse seu bom advogado! Cago para a imprensa! Comigo você não pode, Eisenbeiss, acredite! — Calou-se, respirando pesa­damente, e mordeu os lábios.

— Agora o senhor destruiu o pequeníssimo pedacinho de esperança que eu ainda tinha, inspetor — disse Rolland.

— Lamento — disse Wallner.

Ninguém respondeu,

— Lamento, sr. Eisenbeiss — disse Wallner, esforçando-se por falar alemão culto*.

* As falas do inspetor Wallner eram sempre em dialeto, irreproduzível em português.

— Ouvi, Wallner — disse Eisenbeiss.

 

— Sr. Langenau...

— Monsieur Duhamel?

— O senhor ficou louco?

— Eu preferia estar louco — disse ele.

Estávamos sentados um diante do outro, de repente fa­lando quase num sussurro. A chuva batia nas vidraças, a tem­pestade as sacudia, mas estava tudo quieto no grande edifício, muito quieto.

— Por que me chama de monsieur Duhamel e de crimi­noso impenitente?

— Porque o senhor se chama Charles Duhamel, matou um homem, e não se arrepende disso.

Depois nos olhamos nos olhos, e ele sustentou o olhar mais tempo do que eu. Tive de desviar os olhos.

— Mas que história maluca é essa? — perguntei.

— É a verdade, monsieur Duhamel — disse ele, quase chorando. — Quer ouvir a verdade? Minha verdade?

Concordei balançando debilmente a cabeça. Sentia-me tão mal que não teria podido levantar e ir embora, pois teria caído no chão. E me segurava na pesada mesa de madeira.

— Lamento muito, muito, quero dizer isso primeiro — disse ele, sempre baixinho.

— Que consolo — disse eu. — E agora, conte a sua verdade.

— Lembra-se do dia vinte e um de setembro, monsieur Duhamel? — Passou a mão na testa. — Claro que se lembra. Nesse dia o senhor disse a mim e ao Apre que no dia vinte e dois de manhã ia para Frankfurt, ao encontro de sua es­posa, naquele tempo ainda Srta. Rosner, e voltaria à noite com ela. Foi assim, não? — Largou o cachimbo e levantou-se, começando a andar de um lado para o outro.

— Foi assim — disse eu. — E daí?

— E naquela noite um desses sujeitos atirou em mim. Aqui, no Canal Isebek. Eu tinha estado com alguns amigos turcos. Voltei para casa por volta das nove e meia. A rua é muito deserta à noite, o senhor sabe. Bem, quando desci do carro o sujeito disparou, e só errou por uns centímetros. A bala entrou num carro estacionado.

— Santo Deus — disse eu.

— Levei um susto danado, mas tive a boa idéia de me atirar no chão, como se tivesse sido atingido. Fiquei deitado imóvel. O sujeito chegou perto para ver se eu estava morto, e quando se abaixou, eu o agarrei e joguei no chão. Foi uma briga terrível, e dei azar.

— Que quer dizer com “dei azar”? — Eu me ouvia falar como a uma pessoa estranha. Tudo era como se acontecesse com outra pessoa, um estranho, não eu.

— Quero dizer que ele escapou. Me deu um pontapé horrível nas costas, e doeu muito. Caí na rua outra vez, e ele saiu correndo. Subi para meu apartamento e chamei a polícia, que mandou um carro-patrulha. Os dois policiais da taverna vieram, lembra-se?

— Sim.

— Foi uma encenação daquelas, holofotes e fotografias e barreiras na rua. Demorou algum tempo, depois encontraram o buraco de bala no carro, e procuraram no registro do carro o nome de seu proprietário, um homem aqui da redondeza. E o tiraram da cama. Ele teve de abrir o carro, porque precisavam da bala, e a encontraram no painel, onde tinha se alojado. Os homens da balística fizeram outra grande encenação, consta­tando distâncias e ângulos de tiro.

— Que distâncias?

— Ora, do lado do canal o chão é macio, não?

— Sim.

— Eles naturalmente encontraram muitas pegadas, mas também uma que levava para trás de um caminhão até onde eu me deixara cair, e depois se afastava outra vez... na direção para onde o sujeito fugira. E tiraram belos moldes das pega­das em gesso; tiveram muito trabalho. Por fim acabaram tudo e sumiram. O sr. Reining aliás sofreu muito, e eu lhe pedi que não falasse com o senhor a respeito.

— O sr. Reining?

— O homem da segurança, que vimos há pouco. O do reumatismo.

— Ah sim, claro, ele. — Esquecera completamente o sr. Reining. — Por que pediu que não falasse comigo?

— Deixe-me continuar, vai entender. — Andava de um lado para outro, para lá e para cá, para lá e para cá. — Não dormi naquela noite. Tive um pequeno choque, e depois havia aquela história com o senhor.

— Como, comigo?

— Logo que cheguei em casa telefonei para o senhor, por volta das onze e meia. Ninguém atendeu. Tentei muitas vezes, e nada. O senhor não atendia. Não estava em casa.

— Como pode saber disso?

— Eu sei. Quer que continue contando, em seqüência?

— Claro — disse eu, depois me lembrei de uma coisa:

— Por que telefonou para mim? Para me contar que tinham atirado no senhor?

— Não. Porque estava com medo pelo senhor.

— Medo? Por quê?

— O sujeito que me surrara tinha arquejado: “Agora vocês dois cachorros vão levar o que merecem!” Eu queria avisar o senhor logo, mas no nervosismo tinha esquecido; de­pois me lembrei. Talvez os sujeitos estivessem, naquela noite, tentando matá-lo também. Isso me deixou bem desnorteado. O senhor não respondia ao chamado do telefone, portanto não estava em casa; podiam estar à sua espreita na rua, e levá-lo para uma armadilha. Talvez já tivesse lhe acontecido alguma coisa. Telefonei para a polícia e perguntei se tinham recebido aviso de outro ataque; disseram que não. Então telefonei-lhe outra vez.

— Não ouvi nada. Fui dormir cedo nessa noite, tomei um comprimido porque estava nervoso com a história do pai de Andréia doente.

— Não é verdade. — Ele parou diante de mim.

— Ora, por favor...

Ele balançava a cabeça de um lado para o outro, impla­cável como um anjo vingador. E disse: — O senhor não estava em casa. Sabe tão bem quanto eu.

— E como sabe disso tão bem?

— Já vou lhe dizer. — Ele retomara a sua andança. — Eu estava acordado na cama tentando a toda hora telefonar-lhe. Agora já não acreditava mais que fora atraído para uma armadilha, nem que estivesse dormindo.

— Então no que acreditou?

— Que me mentira sobre o vôo a Frankfurt.

Meus dentes de repente começaram a doer.

— Mas por quê? — perguntei. — Por que eu lhe menti­ria, sr. Langenau?

— Bom — disse ele —, eu também me perguntava isso. Por que mentira para mim? O que fazia naquela noite? Isso se tornou idéia fixa, monsieur Duhamel. Eu lhe disse, estava em estado de choque. Não podia dormir, telefonava-lhe a toda hora, agora para controlar se estava em casa. Perdão! Eu estava totalmente confuso. Não preciso dizer que ninguém atendeu, e de manhã fiz algo ainda pior.

— O quê?

— Fui à agência de viagens na Alsterdorfer Strasse. Mera suspeita. O senhor mora nessa rua, a agência fica perto de sua casa. Eu disse que o senhor era meu amigo, e que eu estava à sua procura. Descrevi sua aparência, perguntei em que avião tinha reservado passagem para Frankfurt. Uma jovem ao lado do homem a quem eu interrogava intrometeu-se e disse que ainda se lembrava do senhor, mas que não tinha comprado passagem para Frankfurt, e sim passagem de trem para Paris, partindo daqui às 21h40min e chegando a Paris às 7h40min. — Parou novamente diante de mim e pôs a mão em meu ombro. Sua voz tremia. — Foi uma infâmia de minha parte, lamento muito. Deus do céu, como sinto. O que fui fazer com isso!

— Como? Acaso foi à polícia...

Ele tirou a mão do meu ombro.

— Não, não disse nada a ninguém. Tive vergonha de estar bisbilhotando, muita vergonha. Decidi ser especialmente amável com o senhor quando nos encontrássemos de novo, e fui, lembra-se?

— Sim, lembro — respondi; esvaziei o copo e enchi-o outra vez. Esvaziei então o copo cheio, e mais uma vez o enchi.

— Disse a mim mesmo que afinal o senhor simplesmente tivera alguma coisa pessoal a resolver em Paris, e que não era da conta de ninguém, muito menos da minha. Por isso tam­bém não lhe contei que haviam atirado em mim, para não o inquietar. Com isso a história poderia ter terminado. Mas infelizmente não terminou. Dois dias depois da sua volta, vi Hernin colocando em sua pasta, secretamente, algumas pági­nas de jornal. O senhor desapareceu com elas debaixo da camisa, meteu-se no banheiro e ficou lá algum tempo, e depois colocou as páginas discretamente de volta na pasta. Nos dias seguintes, prestei atenção, e aconteceu a mesma coisa. Então tive de fazer algo na cidade, talvez se lembre. Eu vira que se tratava de jornais estrangeiros. Onde se comprava? Na estação, na banca de jornais internacionais. Pense o que quiser de mim, monsieur Duhamel, mas à noite fui à estação. Algum tempo depois chegou Hernin. Vi claramente que jornais de Paris ele comprava, e quando ele se foi comprei os mesmos. Eu já disse, pense o que quiser de mim. Eu simplesmente tinha de saber a verdade. Tinha um pressentimento terrível. Bem, e quando li os jornais aqui em casa, vi que meu pressentimento terrível tinha fundamento. — Parou junto à mesa e também esvaziou avidamente seu copo; encheu-o outra vez e bebeu novamente até o fim. Depois continuou andando para lá e para cá. — A partir de então, todos os dias depois de fechar a loja e levá-lo para casa, eu ainda ia à estação e comprava jornais franceses. E li tudo sobre o assassinato de Jean Balmoral, e também a entrevista com madame Duhamel, que está certa de que seu marido ainda vive. Sua mulher tem razão, monsieur Duhamel!

— Não me chame sempre de monsieur Duhamel! — gri­tei. — Não sou Duhamel! O senhor está louco.

Ele me encarou, e mais uma vez tive de desviar o olhar.

— Não sei o que Hernin tem a ver com esse crime — disse Langenau, retomando sua caminhada. — Ele é seu ami­go. Penso que o senhor lhe disse a verdade, e ele lhe comprava os jornais pois o senhor não podia ir à estação por causa de sua esposa, de todos nós. Um amigo de verdade, esse Hernin. Também sou seu amigo, monsieur Duhamel. Não ria! Mas não posso mais viver ao seu lado.

Ergui meu copo mas larguei-o. Não se embebede agora, de jeito nenhum, pensei. Eu já bebera demais. Estava na imi­nência de contar toda a verdade a Langenau... quero dizer, aquilo que ele ainda não sabia da verdade.

— Balmoral era um canalha sujo — disse eu, respirando pesadamente.

— Ele era um ser humano — disse Langenau. Estávamos agora parados frente a frente no meio da sala, perto da prate­leira de armas. Diante de nós o grande crucifixo na parede. — Ninguém tem o direito de matar outra pessoa — disse Lange­nau. — Por que não procura a polícia, monsieur Duhamel? Esperei e esperei por isso... em vão.

— Polícia?

— Sim.

— Nem penso nisso.

— Mas tem de ir à polícia!

— Nunca!

— Sim! Sim!

Meu olhar errava pela sala, pela prateleira de armas, fixando-se na grande pistola da Wehrmacht com o silenciador. Fiquei cada vez mais desnorteado. O vinho, todo aquele vinho, eu não devia ter bebido tanto.

Eu ainda fitava a pistola quando ele disse:

— Quer me matar também? Como a Balmoral? A oca­sião é boa. A casa está deserta. Quer me matar, monsieur Duhamel?

Todo o meu corpo tremia.

Fiquei imóvel.

A pistola. Seu cano brilhava azul e frio na luz.

— O senhor já matou uma pessoa — disse Langenau; a voz vinha de longe. — Uma pessoa que se tornara perigosa para o senhor. Simplesmente a assassinou. Isso naturalmente é um método. Parece ser o seu, quando se sente ameaçado por alguém. Quer cometer um segundo crime, monsieur Duha­mel? Quer pegar a pistola e me matar, e eliminar...

— Pare com isso! — gritei. — Pare com isso! — Camba­leei para trás, afastando-me da prateleira de armas, caí numa poltrona, e tapei o rosto com as mãos, que também tremiam. — Pare com isso! — sussurrei. — Pare!

— Não posso — disse ele, quase amável. — O senhor tem de procurar a polícia. Se o assassinado era realmente uma pessoa má, isso será levado em consideração a seu favor.

Minhas mãos caíram. Eu arquejava. De repente havia lágrimas correndo pelas minhas faces.

— Num caso de assassinato? — berrei. — Nem o senhor acredita nisso! O que espera de mim? Quem é o senhor? Deus?

— O senhor tem de procurar a polícia, sr. Kent — disse ele, e aproximou-se. Inesperadamente dissera Kent!

— E se eu não procurar a polícia? E se não for? Então o senhor irá, não é? O senhor vai dizer, Kent é Duhamel, e Duhamel matou Balmoral. Vai fazer isso, não vai?

Ele disse:

— O senhor nem sabe o que está dizendo. Deus me fez reconhecer tudo isso para que o convencesse a se apresentar. — E corriam mais e mais lágrimas pelo meu rosto. Lágrimas de impotência. — Eu lhe darei tempo — disse ele com aquele seu sotaque seco e gutural —, pois realmente o estimo. Gosta­ria de ser seu amigo como Hernin.

Meu olhar novamente se prendeu na grande pistola.

Ele o percebeu outra vez.

— Então prefere matar outra vez a entregar-se, monsieur Duhamel?

Desviei meu olhar depressa. Por que ele tinha aquelas malditas armas expostas, por quê?

— Não... — arquejei. — Não! Não quero matar... Não fale assim... O que está fazendo comigo, Langenau, o que está fazendo comigo?

— Quero fazer com que se entregue à polícia.

— Nunca! — gritei. — Nunca na vida irei à polícia!

— Suplico-lhe que vá e faça uma confissão — disse ele. — Estou rezando por isso há muito tempo. E continuarei re­zando. Também pelo senhor, sr. Kent.

— Não vou! Não vou!

— Ah, vai — disse ele. Aquele homem. Aquele homem. Eu o encarava, àquele homem bom e religioso, e ele disse: — Não tem nada a recear de minha parte. Jamais o denunciarei, pois estou certo de que vai confessar tudo. — Adiantou-se e colocou uma mão em meu ombro. — Mas também entende por que tenho de me afastar do senhor, não é? Agora me entende, monsieur Duhamel?

— Sim — disse eu. — Sim, sr. Langenau, eu o entendo.

— Vá para casa — disse ele. — Eu o levarei até embaixo.

Segui-o mecanicamente. Havia um silêncio mortal no ves­tíbulo. O elevador chegou depois que ele apertou o botão, e descemos. Ele abriu a porta, deu-me a mão:

— Perdoe-me, sr. Kent — disse. — Não posso fazer ou­tra coisa. Compreende?

E eu repeti: — Sim, compreendo.

— Vou rezar pelo senhor — disse ele ainda. Depois a porta se fechou e ouvi-o passar a chave por dentro. Fiquei ali parado longo tempo, sem me mexer. A chuva varria meu ros­to, a tempestade repuxava meu sobretudo, mas eu não sentia nada. Por fim atravessei a rua lentamente até o Mercedes e me sentei na direção. Fiquei olhando a escuridão e pensando no que Langenau afinal fizera.

Por fim ele traçara uma cruz sobre minha testa.

 

Eu não podia ir para casa, para junto de Andréia. Estava nervoso demais. Ela não podia me ver assim. Ninguém podia.

Liguei o motor e parti sem destino, só para rodar. Es­perava que dirigir o carro me ajudasse. Eu tinha de me concentrar na rua, não podia pensar ininterruptamente nas palavras de Langenau.

As ruas estavam desertas, a tempestade repuxava violen­tamente os lampiões, os limpadores do pára-brisa moviam-se loucamente, a chuvarada batia no teto. Estação Central. Ele disse que não ia me denunciar. Disse a verdade? Mentiu? Já me denunciou? Isso foi apenas parte de um plano? Um plano da polícia? Estarão atrás de mim? Para ver o que farei agora? Como vou reagir? Eu não queria pensar, mas tinha de pensar. Alameda Adenauer. Borgfelder Strasse. Ainda em direção da auto-estrada.

E se ele disse a verdade, se nunca me denunciar, nunca me trair? Então estarei seguro. Estarei realmente? Se ele ficar doente, com febre alta, e em seu delírio começar a falar tudo, sem querer? O que acontecerá? Posso ficar seguro en­quanto Langenau viver? Sim, posso? A tempestade balançava o carro, eu tinha de segurar o volante com firmeza. Onde estava? Horner Landstrasse. Prossegui como um autômato.

O que estava fazendo ali? Por que fora até lá? As casas agora eram mais baixas, os lampiões mais raros. Atrás das valetas apareceram arbustos tortos, negros, sinistros. Passei por pequenas aldeias. Os nomes brilhavam amarelados na claridade dos meus faróis, através de véus de chuva. Havia marcos indicadores: BILLSTEDT, MOORFLEET, OSTSTEINBECK. De repente eu sabia onde estava indo: para Reinbeck, Reinbeck, o pequeno povoado que Andréia e eu amávamos tanto. Desde que ela tinha o carro novo, estivéramos ali algumas vezes... com o Mercedes, não o trem. Tínhamos seguido por aquela estrada. Meu inconsciente. Se eu não podia ir ter com Andréia, ia para Reinbeck, Reinbeck. A tempestade estava enlouquecida, a chuva fazia um ruído terrí­vel no teto do carro. Abri uma fresta na janela lateral, e ime­diatamente senti o cheiro de águas paradas e turfa. Ali havia pântanos. E se eu não fosse à polícia? Se não me entregasse? Não me arrependia de nada. Nunca me arrependeria. Jamais iria à polícia me confessar. Langenau permitiria isso? Até onde ia a sua paciência? Era um crente implacável e encarniçado. E se o seu Deus lhe ordenasse que fizesse o que eu não fizera? Ti­vesse eu aproveitado a ocasião... pensei, e estremeci horrori­zado. Será que realmente não tinha mais consciência?

De súbito vi à direita montes de telhas, sacos de cimento, pesadas máquinas de construção, gigantescos guindastes, lon­gas fachadas de cinco, seis andares, com andaimes à frente, edifícios em construção. Quem estava construindo aquilo? Cooperativas habitacionais? Exército? Seria uma cidade-dormitório? Casernas? As grandes construções passaram; logo cheguei a Reinbeck.

Também ali não vi ninguém. Todas as janelas escuras, só na estação ainda havia luz. Lá estava o grande Mühlenteich, negro. Parei. Não podia continuar dirigindo a esmo daquele jeito. Lá, atrás da estação, sempre parávamos o carro, e des­cíamos a pé até a nossa ravina, que certamente estaria inun­dada com aquele tempo. Deitei a cabeça no volante. O que fazer? Confiar nas palavras de Langenau? Não fora uma ameaça? O senhor precisa se entregar, precisa se entregar. Uma ameaça cristã.

Liguei o motor novamente.

O carro não saiu do lugar. Os pneus de trás derrapavam na areia molhada junto do lago. Praguejei, tentei balançar o carro manobrando para a frente e a ré. Nada. Ainda havia luz na estação. Alguém me ajudaria? Logo afastei a idéia. Não queria que ninguém me visse naquele estado. Desci. A chuva e o vento me atacaram com tanta força que fui jogado contra a porta do carro. Arranquei galhos dos arbustos próximos, tirei um tapete de dentro do carro e um cobertor velho do bagageiro, e pus tudo no chão diante das rodas traseiras. Estava ensopado e imundo. Em seguida sentei-me de novo na direção. Bom Deus, faz com que esse maldito carro ande! Bom Deus... eram esses os momentos em que eu rezava. Ou quando tinha um ataque, por exemplo. Nojento! Tinha nojo de mim mesmo. Falava alto, xingava a mim mesmo, tinha pena de mim, e praguejava, e rezava. Devagar, com muita cautela, pisei no acelerador. O carro tremeu... tremeu... e avançou.

Voltei todo o longo trajeto. Vai dar certo, vai dar certo. Você não deve deixar que isso o enlouqueça. Até agora tudo foi bem. Eu ainda falava alto comigo mesmo, mas estava mais calmo. Calmo e abatido. Era a tempestade. Dormir, eu queria dormir. Não, primeiro ainda tinha de falar com Andréia, que esperava. Olhei o relógio do painel, meia-noite e meia. Meia-noite e meia! Eu estava fora de casa há horas. Certamente ela se preocupava. Já teria telefonado a Langenau para saber quando eu saíra. Eu não podia dizer nada dessa viagem a Reinbeck, ou ela desconfiaria. Por que não fora logo para casa? Mais uma vez, tinha de mentir para ela. E tinha de correr.

Um carro com os faróis altos acesos veio ao meu encon­tro, em disparada. Os faróis me cegaram, o sujeito dirigia do meu lado da estrada! Virei o volante num arranco, o Merce­des derrapou para a esquerda e bateu com estrondo num obstáculo. O outro carro passou à minha direita em disparada, tão perto que pude ver o rosto magro e pálido do mo­torista. O que era aquilo? Um louco? Alguém que queria me matar? Assustado, comecei a praguejar outra vez. Desci do carro. Eu entrara com o carro no andaime diante de uma fachada das construções. O pára-lama esquerdo estava amas­sado, a parte esquerda do pára-choque dobrada. Era só o que me faltava! Enfiei-me outra vez atrás do volante, os olhos cheios de lágrimas de ódio e fraqueza. Coloquei o carro em ré e pisei no acelerador. Nesse instante parte do andaime desmo­ronou à minha frente, com madeiras e canos de aço caindo em confusão. Engrenei outra vez, e saí disparado o mais de­pressa possível, era preciso sair dali, sair dali!

 

Gato!

Ela veio ao meu encontro depressa no corredor, o rosto branco. E me abraçou com força.

— Desculpe, Esquilinha... demorei tanto... E ainda por cima me perdi na cidade...

Uma poça d’água formava-se embaixo de mim. Os sapa­tos, pernas das calças, estavam encharcados, cheios de areia e sujeira.

— Mas como você está!

— Um porco veio na minha direção, tive de desviar o carro numa construção, e bati no andaime. O pára-choque e o pára-lama ficaram um pouco amassados.

— Tire a roupa, Gato, depressa! Venha, vou ajudar. Al­gum bêbado?

— Não sei, talvez. Talvez um doido. — Não disse que podia ser de propósito.

— Onde?

— Na cidade. Eu me perdi...

— Sim, você já disse. Pobre Gato... depois me conta tudo, agora tire essas roupas molhadas...

Depois sentei-me na água fumegante da banheira; An­dréia me trouxera um copo de uísque quente, que bebi de um gole. Loucura, meu bem, loucura: de repente eu estava feliz, tão feliz. E tão otimista. Tudo daria certo, tudo. Andréia estava sentada em uma banqueta ao lado da banheira. Contei-lhe que não conseguira fazer Langenau mudar de idéia.

— Falei com ele horas a fio... supliquei... implorei... Nada. Ele quer voltar para casa, em Innsbruck. Está cheio da Alemanha, dos fascistas, que o perseguem por causa de seus amigos turcos... Sabe que um desses cachorros atirou nele?

— Não! — Andréia assustou-se.

Eu também. O que tinha lhe contado? Na noite em que isso acontecera Langenau tentara em vão falar comigo ao tele­fone. De manhã descobrira que eu tinha ido a Paris. Tudo começara assim. Se ele contasse isso a Andréia... Não, não faria isso. Não diria a ninguém. Ele só dissera a mim. Não diria a mais ninguém. De repente eu estava certo disso. Todos os meus pensamentos loucos lá fora, no pântano... estavam esquecidos.

— Quando atiraram nele?

— Faz algum tempo. De noite, quando ia para casa. Tive de prometer que não lhe diria nada, para que você não tivesse medo. Portanto, não demonstre que sabe!

— Não, Gato, claro que não... Meu Deus, esses bandi­dos... Agora posso entender Langenau... E ainda por cima o ataque à livraria...

— Não é por medo que ele vai embora... ele não tem medo... nunca teve. Está indo embora porque tem nojo... Tu­do isso o enoja demais, disse ele... E posso entendê-lo, Esqui-linha... Por isso não consegui fazer com que mudasse de idéia... Que argumentos eu tinha? Nenhum! Acaso podia lhe prometer que as coisas melhorariam com esses cachorros? Não. Vai piorar, tudo vai piorar. E nós três sabemos disso.

— Sim — disse Andréia. — Esse ódio aos estrangeiros aumenta, já li sobre isso. Até a SPD agora quer ser mais dura com os estrangeiros, porque tem medo de perder as eleições. O que também é uma maldade...

— Sim, mas é assim... As coisas estão assim aqui... E Langenau quase pagou com a vida por isso... um sujeito tão bom...

— E tão ligado a nós... — Como eu mentia fácil, sem esforço, sem remorsos! — Ele disse que gosta mesmo de nós... — E dissera mesmo, mas em que circunstâncias! — Por fim desisti, não podemos detê-lo, Andréia. Ele vai nos conseguir um bom substituto, como prometeu.

— Seja quem for, não será Langenau.

— Não, claro que não. Mas não conseguiremos mais do que isso.

— Quer mais um uísque quente?

— Sim, por favor.

Enquanto ela saíra do banheiro, refleti numa coisa, e quando ela voltou de copo cheio, eu disse:

— Obrigado, Esquilinha. Preste atenção. Uma ninharia comparada a outras coisas, mas mesmo assim: Langenau e eu bebemos vinho. O vinho e o nervosismo me subiram à cabeça, eu estava bêbado quando me perdi na cidade, por isso não chamei a polícia depois que esse maluco quase me matou. Pois eles fariam testes de sangue e veriam que eu estava embria­gado. E eu estava tão embriagado, Esquilinha, que nem ao menos conseguia encontrar o lugar onde acontecera.

— Santo Deus, Gato, o que você anda fazendo? Estou me sentindo mal!

— Eu estava tão confuso depois dessa conversa, você não pode entender isso?

— Claro que posso.

— Estava chovendo tanto, a chuva lava tudo, todos os rastros. Se me perguntarem direi que alguém bateu no meu carro enquanto eu estava estacionado, enquanto eu estava com Langenau, e que só notei mais tarde.

— Você tem de avisar a polícia, é seu dever.

Agora eu estava bêbado, e nesse estado achava tudo bo­nito.

— Sim, meu dever — disse eu, rindo. — E a gente tem de cumprir o seu dever. Não vai adiantar de nada, mas vou à polícia, porque é dever, minha Esquilinha amada.

— Vem, vamos dormir agora — disse Andréia acarician­do meu ombro. — Entendo Langenau muito bem, mas estou triste.

Ela me ajudou a sair da banheira e a me enxugar; está­vamos os dois muito cansados, e dormimos profundamente.

Quando chegamos à livraria de manhã, Langenau não estava. Telefonei mas ele não atendeu. Esperamos até o co­meço da tarde; eu telefonava para Langenau seguidamente, mas ninguém atendia. E Langenau não veio. Sumira.

 

Às 14h30min telefonei para a Delegacia de Polícia na Sedanstrasse. Ficava perto da casa de Langenau. Eu disse que não conseguíamos encontrá-lo e que estava preocupado.

O funcionário no telefone foi muito amável.

— Quando viu o sr. Langenau pela última vez, sr. Kent?

— Esta noite. Convidou-me para ir à casa dele.

— Santo Deus, e agora, algumas horas depois, já quer apresentar queixa na polícia, de que ele está desaparecido?

— Sim.

— Só depois de quarenta e oito horas, sr. Kent, só depois de quarenta e oito horas, antes não. Senão, aonde iríamos parar?

— O senhor conhece o sr. Langenau? Quero dizer, sabe a respeito dele? Sabe que tentaram matá-lo? Sabe que recente­mente nós dois fomos surrados a ponto de irmos para o hos­pital?

Eu estava telefonando do Cat’s Corner. Andréia estava no subsolo com as crianças; Robert Stark cuidava das vendas.

— Ah... — A voz do agente ficou mais alta. — Claro que sei de tudo. O senhor tem razão, nesse caso é diferente...

— Além disso, esta noite, quando estava com o sr. Langenau, alguém bateu com o carro no meu carro estacionado. Onde posso dar queixa disso?

— Aqui mesmo. Um momento... — ouvi-o falar com ou­tro funcionário.

— Sr. Kent?

— Sim?

— Importar-se-ia de vir até aqui? Agora, já?

— Vou, sim.

— Traga seu carro, para darmos uma olhada.

— Tudo bem — disse eu.

Agora estava inquieto, muito inquieto outra vez. Onde andava Langenau? O que acontecera? Eu tinha de ser caute­loso e me cuidar muito, muito. Sentia que algo tinha aconte­cido. Algo grave.

Fui ao subsolo, disse a Andréia que tinha de ir à polícia.

— Eles levaram a sério, é?

— Sim, Esquilinha. Também vou dar queixa dessa histó­ria do carro. Não esqueça do que lhe disse.

— Não, Gato. Santo Deus, estou com medo...

Enquanto falávamos baixinho, as crianças saltavam ao nosso redor. Patty me acompanhou até a rua, mancando ao meu lado até o Mercedes. O tempo melhorara. A pesada chu­va da noite lavara do carro a lama do Mühlenteich em Reinbeck, onde eu ficara atolado.

Sentei-me atrás do volante e abracei Patty.

— Bom, e agora volte para a tia Andréia, sim?

— Sim. — Ficou parada, olhando para mim.

— O que foi?

— Sabe o que eu acho?

— O que você acha, Patty?

— Acho que o tio Conrad está morto.

 

Vários policiais trabalhavam na delegacia. Os dois que eu conhecia da briga na taverna esperavam por mim. Desta vez apresentaram-se. Um se chamava Sattler, o outro Lentz.

— Também registramos a ocorrência quando alguém ati­rou no sr. Langenau no dia 22 de setembro — disse Sattler. — Venha, sr. Kent, aqui ao lado há um escritório onde pode­mos conversar.

Fomos a uma sala quieta onde havia só uma mesa grande e várias cadeiras. Depois de nos sentarmos, Sattler começou:

— Foi correto de sua parte nos telefonar, sr. Kent. O sr. Langenau é uma pessoa que corre muito perigo. Vamos iniciar as buscas imediatamente, sem esperar quarenta e oito horas. O senhor estava com ele na noite passada?

— Sim. Precisávamos falar sobre um assunto com calma.

— Posso perguntar qual?

— O sr. Langenau quer nos deixar. Ele disse à minha mulher quando eu ainda estava no hospital, o senhor sabe...

— Sabemos — disse Lentz. — Por que queria deixá-los? Houve alguma discussão, uma briga? Os senhores eram ami­gos, ao que me consta.

— E ainda somos. Ele não queria nos deixar só a nós, mas à Alemanha. Queria voltar para Innsbruck.

— Depois de todos esses anos?

— Depois de todos esses anos. Minha mulher e eu acha­mos que está farto dessas perseguições dos neonazistas. E ain­da nem sabíamos nada do atentado. Ele só me disse isso esta noite, durante nossa conversa.

— O quê? Não lhe contara nada?

— Nem uma palavra.

— Inacreditável.

— Bem, os senhores também não nos contaram nada!

— Bem, achávamos que os senhores sabiam.

— E também não li nada no jornal.

— Foi de propósito. Censura de informações. Por desejo da Polícia Criminal. Acharam melhor — disse Sattler.

— Bem, de qualquer modo eu só soube esta noite, pelo próprio Langenau. Então a suspeita que minha mulher e eu tínhamos era correta. Ele simplesmente ficou farto, e quer ir embora. Não agüenta mais essa atmosfera de terror. Tentei dissuadi-lo, mas não havia o que fazer. Falamos longamente, pode imaginar o que representa para nós um homem como Langenau, sem falar em nossa amizade. — Os dois con­cordaram com a cabeça. — Nunca mais encontraremos um livreiro assim. E agora sumiu de repente. Estou muito preo­cupado com ele!

Sattler disse:

— Devemos pedir-lhe desculpas. Naquela vez no verão, na taverna, eu disse que esses brigões eram apenas uma mino­ria sem importância. No entanto, mal se passa um dia sem ataques a estrangeiros. Três foram assassinados desde então, lojas de estrangeiros foram destruídas, mal se podem contar as brigas. Em tão pouco tempo, isso se tornou um movimento de massas. Coisa séria.

— A que horas foi ver Langenau ontem? — perguntou Lentz tirando sua agenda do bolso. — Precisamos de alguns dados.

— Por volta das nove. A porta do edifício estava fechada. Toquei a campainha, ele desceu e abriu.

— O senhor viu alguém? Quero dizer, alguém que notou isso? Estou pensando no seu carro.

— Não — disse eu. — Ninguém. Chovia a cântaros, e ainda aquela tempestade, não é? Não, não vi ninguém. — Nisso, lembrei-me. — Para ser mais exato não vi ninguém na rua, mas no edifício encontramos aquele homem da segu­rança, o senhor...

— Reining — disse Lentz. — Otto Reining.

— O senhor o conhece?

— Daquela tentativa de morte. Ele estava de serviço, e nós o interrogamos rapidamente. Então, esse o senhor en­controu?

— Sim. Depois subimos no elevador para o apartamento de Langenau e fiquei lá; foi uma conversa longa. Fiquei até meia-noite. Pouco depois da meia-noite.

— Tanto assim?

— Eu disse que tentei de tudo para dissuadi-lo.

— Sim, correto, sr. Kent, correto. Mas mesmo assim... três horas. Mas entendemos, entendemos perfeitamente. Os senhores beberam alguma coisa, durante essa longa conversa?

Cuidado, agora! Naturalmente eles mandariam arrombar o apartamento de Langenau, se já não tinham estado lá, e talvez os copos e a garrafa ainda estivessem na mesa. Certa­mente estavam lá, se Langenau não os guardara.

— Vinho tinto — disse eu. — Langenau bebeu muito, estava muito nervoso... Os senhores precisam compreender, ele realmente sofre por ter de sair daqui. Por outro lado, está com os nervos em farrapos por causa desses constantes ata­ques.

— Um homenzarrão daqueles — disse Lentz.

— Esses muitas vezes são sensíveis — disse seu colega. — Mas ele não estava embriagado, estava?

— Nem sinal. Ele agüenta um bocado. O senhor mesmo disse, um homenzarrão daqueles.

— Ele o levou até embaixo?

— Claro. Tinha de abrir a porta.

— Acaso o senhor viu novamente o sr. Reining?

— Não. Por quê? Não acredita em mim?

— Rotina. Pura rotina. E não falaram se ele não iria mais à livraria e viajaria imediatamente?

— Nada disso. Ele só iria embora quando tivesse encon­trado um bom substituto.

— Então, despedida bem normal, até o dia seguinte.

— Absolutamente normal.

— E aí o senhor descobriu que tinham batido no seu carro.

— Não — disse eu. — Ainda não. Estava um tempo horrível, tratei de me meter logo atrás do volante.

— Claro — disse Lentz. — E foi para casa.

— Não logo — disse eu. — Primeiro fiquei algum tempo sentado no carro, pensando na partida de Langenau. Gosto muito dele, e minha mulher também. E ele gosta de nós. É recíproco. Eu estava tão firmemente convencido de que o faria mudar de idéia, que me senti muito deprimido.

— Posso imaginar — disse Lentz. — Mas afinal o senhor naturalmente foi para casa.

— Eu... eu estava confuso, senhores, muito confuso. Não sei se podem imaginar...

— Claro, claro — disse Lentz.

— Era como se tivesse levado uma paulada. Rodei um pouco pela cidade.

— Para se acalmar — disse Lentz.

— Sim — disse eu.

— Para onde foi? — perguntou Sattler.

— Por aí. Para a Estação Central, Alameda Adenauer, Borgfelder Strasse, um longo trecho. Depois virei e fui direto para casa.

— E quando desceu descobriu os estragos no seu carro?

— Sim — respondi. — Antes de minha visita a Langenau o carro estava inteiro, não bati em ninguém, portanto deve ter acontecido enquanto o carro estava estacionado diante da casa de Langenau.

— Parece lógico — disse Lentz. — Onde está o carro agora?

— Lá fora — disse eu.

— Então vamos dar uma olhada — disse Lentz.

Saímos para a rua. Não chovia mais, apenas soprava um vento frio, e nuvens negras singravam baixo no céu. Os dois policiais observaram os estragos no Mercedes.

— Ouça, sr. Kent, havia muitos carros estacionados lá aquela noite?

— Não, poucos. É um edifício de escritórios. O pessoal que trabalha lá vai para casa de noite.

— Sr. Kent, o senhor se oporia se quiséssemos dar uma olhada mais detida nos arranhões? — perguntou Lentz.

Eu me sentia cada vez mais inquieto.

— Não — disse eu. — Claro que não.

— Talvez encontremos pistas aproveitáveis. Temos um laboratório excelente. — Boa essa! Mas agora eu não podia mais recuar. — Vai tudo bem depressa, amanhã o senhor já terá o carro. E poderia agora ir conosco até o Kaiser-Friedrich-Ufer e nos mostrar onde estava estacionado o carro?

— Naturalmente.

— Muito bem. Espere um momento, já vamos. Só preci­so telefonar depressa para o comissário Hübner.

— Quem é ele?

— Polícia Criminal. Naturalmente logo virão junto, quan­do começar a busca ao sr. Langenau. Têm de olhar o aparta­mento, recolher pistas, interrogar testemunhas, coisas assim. Aí não é mais o nosso campo, é a Criminal que assume. E os colegas do serviço de identificação podem dar uma olhada no local onde seu carro esteve parado.

— Mas com a chuva desta noite...

— Mesmo assim. Nem uma chuva daquelas lava tudo. O pessoal certamente ainda vai encontrar um monte de pistas.

 

O delegado de Polícia Criminal Eugen Petermann traba­lhava na Delegacia de Polícia de Viena, em Hietzing. Nas paredes de seu escritório havia desenhos coloridos de peixes raros. Todos os quadros tinham o mesmo formato, em finas molduras douradas. Petermann, pescador apaixonado, os en­contrara em um antiquário. Esbelto, próximo dos sessenta anos, o delegado parecia mais jovem do que era. Tinha olhos penetrantes, muito claros, e um rosto fino e inteligente.

— Vai demorar alguns minutos — disse ele, pousou o fone e observou o mais baixo dos seus dois visitantes.

— Agradeço-lhe realmente muito, delegado — disse o pe­queno comissário Rolland. Trajava um terno azul. Desde que estava em Viena, usara um marrom. O azul não parecia muito melhor do que o marrom. — Veja — prosseguiu Rolland —, es­tivemos com o sr. Emanuel Eisenbeiss. Naturalmente um gran­de homem. Não conseguimos tirar-lhe uma palavra. O que terá feito depois que saímos? Deve ter telefonado para sua velha amiga, madame Klosters. O sr. Wallner me contou dessa amizade, e também me disse que madame tem um esta­belecimento aqui na Maxingstrasse onde o sr. Eisenbeiss even­tualmente hospeda pessoas que estão em... ahn... dificuldades.

— Isso mesmo, comissário — disse Petermann.

— Teria sido absolutamente insensato visitar madame Klosters e perguntar se no dia depois do atentado ao avião, na noite de 16 de junho, maître Duhamel fora seu hóspede. O sr. Wallner está convencido de que ela o hospedou. Mas também está igualmente convencido de que jamais admitiria isso. Não posso esperar dela mais do que o que consegui com o sr. Ei­senbeiss. Portanto, tomei a liberdade de telefonar para o se­nhor. Uma minúscula chance, delegado. Os senhores tiveram aqui, aquela vez, uma caça aos terroristas; hotéis, pensões e estalagens foram examinados... quero dizer, os hóspedes. Tal­vez a casa de madame Klosters também tenha sido exami­nada, não é? O sr. Wallner acha que não. Não entendo por quê.

Petermann sorriu, sem o menor sinal de embaraço.

— Mas meu caro comissário! É a mesma coisa em todas as cidades.

— Que belos desenhos tem aí na parede, delegado. O que é a mesma coisa em todas as grandes cidades?

— A polícia precisa de ajuda, de informantes.

— Ah, sim. Ah, então madame Klosters... ajuda?

— Muito — disse Petermann. — Nós nos damos muito bem.

— Por isso eu disse que não acredito que tenhamos exa­minado o bordel daquela vez — disse o inspetor Wallner. — Agora entende, não é, comissário? Eu não quis me adiantar ao delegado.

O telefone tocou.

Petermann, que usava um elegante terno Steire, atendeu e escutou por algum tempo uma voz que se ouvia francamente, mas sem entender o que dizia. E tomava notas.

— Obrigado, Kalmar — disse por fim, e desligou nova­mente. Encarou Rolland. — Bem, de fato não verificamos na Klosters.

— Está vendo! — disse Wallner.

— É preciso tentar de tudo, inspetor. — Rolland sorriu amável e pacientemente ao seu colega austríaco.

— Espere, ainda não terminei — disse Petermann. — Uma história maluca. O pessoal de plantão achou uma ano­tação relativa à Klosters. Às vinte e uma horas e dezessete minutos do 17 de junho, um médico telefonou da casa dela. Um certo Dr. Mehl. Um hóspede da Klosters sofrera um ata­que cardíaco.

— Ataque cardíaco? — disse Wallner, nervoso.

— O que tem isso de especial?

— Maître Duhamel é cardíaco, delegado — disse Rol­land calmamente. — Angina pectoris.

— Ora, vejam só — disse o delegado. Seu casaco tinha botões de osso de cervo, muito bonitos. — Ora, um hóspede tem um ataque de coração, bastante grave. Tanto que a sra. Klosters chamou o Dr. Mehl. E agora vem a coisa: o hóspede (seja quem for, talvez até maître Duhamel) sr. delegado, esse homem, que deve ter estado muito confuso, mal podendo res­pirar, proibiu ao Dr. Mehl de tocar nele. Sabe que entre nós num caso desses um médico fica impotente, comissário. — Robert Rolland fez que sim. Estava novamente com as mãos cru­zadas nos joelhos. Jamais mostrava qualquer emoção. — O Dr. Mehl teve medo e telefonou para o nosso plantão dizendo que era um caso bem grave, e que além disso o homem estava muito confuso, e pediu que o médico da polícia seguisse para lá imediatamente. Este pode tratar dos doentes em casos pa­recidos.

— Entre nós — disse Rolland admirando os botões de osso de cervo do delegado — vão sempre dois agentes da polí­cia criminal junto.

— Aqui também — disse o delegado, contente. — Pois bem, eles foram logo de radiopatrulha para a Maxingstrasse...

— E quando chegaram o homem tinha sumido — disse Rolland.

— Como sabe disso?

— Ele tinha sumido?

— Sim, mas como sabe?

— Eu estava me colocando no papel dele, delegado. Ou ele era um dos terroristas — o que não creio — ou era maître Duhamel. Nos dois casos tinha de sumir antes da chegada da polícia, ainda que lhe custasse a vida.

— Ele realmente fora embora. — Petermann encarava Rolland com respeito. Aquele sujeitinho relaxado e baixote, e tão esperto. Esses franceses! Ele disse: — Nas anotações do plantão vê-se que os agentes interrogaram madame Klosters perguntando onde estava o sujeito, e ela disse que ele fugira.

— Naturalmente — disse Rolland, e olhou seus sapatos, sujos como de costume.

— Também perguntaram logo o nome dele, mas a Klos­ters disse que não sabia.

— Naturalmente — repetiu Rolland.

— O homem chegou, e vupte, teve o seu ataque. Natural­mente a Klosters nunca o vira antes. E ficou muito triste por não poder nos ajudar.

— Naturalmente ficou muito triste — disse Rolland. — Deve ter sido horrível para ela não poder ajudar. E também não conseguiu descrever direito o homem, porque estava nervosa demais, não é?

— Não, isso ela não se atreveu a dizer — retrucou Peter­mann. — Descreveu o homem, era muito alto, nariz grande, testa alta, cabelo bem curto, óculos escuros, terno azul, gravata azul, camisa branca.

Petermann ergueu os olhos de suas anotações.

— O senhor me descreveu o seu sr. Duhamel muito dife­rente, e nos retratos que me mostrou também parece bem di­ferente; mas isso apenas confirma que era ele. Teve de mudar de aparência, o mais possível. Tirar a barba e o cabelo com­prido, colocar óculos... Não pôde diminuir de tamanho, nariz grande sempre é nariz grande, testa alta também. Comissário, era ele. O que acha?

— Não acho nada — respondeu Rolland. — Há muitos homens grandes, narigudos e de testa alta.

— Sim, mas ele fugiu! A central de táxis deu a descrição dele pelo rádio a todos os motoristas. Depois apresentou-se um tal Rudi Pummerer, dizendo que apanhou um homem com essa aparência e jeito muito doente aqui em Hietzing. Na praça da Igreja, e o levou ao Westbahnhof. — O delegado con­sultou novamente suas anotações. — Depois disso demos o alar­ma no Westbahnhof — duzentos homens passaram o pente em tudo, gare, plataforma, restaurantes, trens. Policiais embarca­ram nas estações mais próximas nos trens que já haviam par­tido. Pensamos, quem sabe, enfim uma pista quente dos ter­roristas, não é?

Rolland balançou a cabeça.

— Nada! — disse o delegado. — Não encontramos por­caria nenhuma. O cara sumiu como por encanto.

— Deve ter tomado um segundo táxi indo em outra di­reção — disse Rolland, olhando as unhas.

— Pois acredito com certeza que era o nosso homem — disse o inspetor Wallner. — Posso jurar. Azar de merda que tivemos.

— Não se pode ter sorte sempre — disse o pequeno co­missário Robert Rolland.

 

Naturalmente diante da casa de Langenau, no lugar onde eu estacionara na noite passada, havia um carro agora, e Sattler e Lentz, os dois policiais, tiveram primeiro de encontrar o dono (que estava com um advogado) e pedir que tirasse o carro dali. Depois os homens da identificação começaram a trabalhar. O comissário Hübner também estava lá. Até aqui estou lhe contando muita coisa sobre policiais e trabalho po­licial, meu bem, mas é assim que a história ocorreu, em Vie­na, Hamburgo e outros lugares. Os agentes criminais man­daram arrombar a casa de Langenau, mas o serralheiro preci­sou de algum tempo, porque ainda havia um trinco de segu­rança na porta. Havia luz acesa no corredor e na sala, e as cortinas curtas, de linho vermelho-escuro, estavam fechadas como à noite. Na mesa ainda estavam a garrafa de vinho quase vazia e os dois copos nos quais Langenau e eu bebêramos. Ao lado, o longo cachimbo. Por um momento esteve tudo muito quieto. Depois Hübner fez um sinal de cabeça aos pe­ritos para que dessem início ao exame, e os homens nos segui­ram com câmeras e maletas.

Hübner disse:

— Esperemos até eles terminarem, ou vamos estragar to­das as pistas. — Ele tinha um rosto largo e gordo, muito simpá­tico, e cabelo vermelho. Hübner tinha cabelos cor de fogo, e pensei onde mais uma moça que fosse com ele para a cama pela primeira vez os veria.

Os dois policiais, Hübner e eu descemos outra vez com o elevador e vimos os homens da Identificação examinando o lugar agora vazio, à procura de uma lasquinha de tinta, um diminuto caquinho de lata. Ficamos na rua e esperamos cerca de meia hora, sem que os dois homens encontrassem o menor grão de poeira, o que não era de admirar, pois naquele local nada acontecera com meu carro.

— Impossível — disse Sattler. Seu colega Lentz abrira a boca para responder, mas mudou de idéia e fechou-a de novo.

— É, aqui não tem nada — disse um dos homens da Identificação.

— Pois então dêem uma olhada no carro do sr. Kent — disse Hübner, e os dois foram embora.

Enquanto isso o lugar ficou cheio de curiosos, pois a notí­cia do desaparecimento de Langenau se espalhara pelo edifí­cio. Pegamos novamente o elevador para o apartamento, onde os especialistas tinham concluído seu trabalho — quatro ho­mens que faziam esses trabalhos há tanto tempo que poderiam fazê-los até dormindo.

— E daí? — perguntou Hübner a um deles.

O homem levou-o para um lado e falaram baixinho. Eu não entendia nada. Algum tempo depois Hübner voltou e me disse que havia várias impressões digitais na casa, bem como sinais de quatro pares de sapatos molhados e sujos, entre eles dois muito grandes.

— Se ao menos tivesse chovido esta noite! — disse o comissário ruivo. — Mas tivemos um tempo pavoroso dias a fio. Tudo rastros de sapatos masculinos. O sr. Langenau não tinha arrumadeira?

— Não — respondi. — Ele mesmo limpava tudo.

— Tem certeza?

— Tenho certeza.

— Mas ele recebia muitas visitas... de seus amigos turcos.

— Quando havia desordem ou coisas para lavar e limpar, seus amigos ajudavam. Ele me contou isso certa vez.

— Por que lhe contou isso?

— Santo Deus, ele me contou como acontece quando seus amigos o visitam — disse eu. — Os peritos haviam afastado as cortinas e aberto uma das janelas, para entrar ar fresco, e a luz estava apagada.

— Não são esses os sapatos que o senhor usou esta noite?

— Não — disse eu. — Só um par das pegadas grandes é certamente meu, e o outro do sr. Langenau. Ele tem pés ainda maiores do que os meus.

Podemos pegar os sapatos que usou esta noite para comparar — disse o ruivo Hübner. — Faça a gentileza de entregá-los a nós. Mas e o sr. Langenau? Ele ainda está com seus sapatos, ou não?

— O que quer dizer isso? — perguntei.

— Tudo bem — disse Hübner. Ele estava esquisito. Eu limpara muito bem naquela manhã os sapatos que usara à noite. Tinha muita areia de Reinbeck grudada neles.

Os especialistas tiraram minhas impressões digitais, desculpando-se com exagerada cortesia. Depois Hübner disse:

— Olhe em volta, sr. Kent. O senhor disse que só esteve na sala com Langenau. Olhe em volta na sala. Alguma coisa chama sua atenção? Alguma coisa mudou de ontem para hoje? Algo faltando?

Eu já olhara em volta e pensara concentradamente no que devia responder quando Hübner me perguntasse isso. Eu não tinha escolha.

— Nada mudou, mas falta uma pistola na prateleira — respondi.

— Que pistola era essa?

Eu lhe disse, e ele respondeu:

— Com silenciador? O sr. Langenau vai ter problemas. Não só por isso, mas toda a coleção. Ele vai... — Hübner interrompeu-se. — Ou não.

— O que significa isso?

— Tudo bem — disse ele novamente. — Como foi que notou logo que faltava a Zero-Oito, sr. Kent?

Contei-lhe o motivo.

— Então, se ele a apresentou tão minuciosamente, o se­nhor deve tê-la pegado na mão.

— Sim — disse eu.

Depois ficamos calados. Os agentes que estavam na sala também.

— Naturalmente que minhas impressões digitais estão nela — disse eu afinal, mas ninguém comentou nada, e eu disse: — Quero dizer, naturalmente...

— Sim, sim — disse Hübner. — Tudo bem, sr. Kent.

Depois procuraram o silenciador e não o encontraram.

Os agentes tinham vistoriado todo o apartamento. Um deles veio até Hübner e disse:

— Parece que não falta nada. Quero dizer, nada do que faltaria se por exemplo o sr. Langenau tivesse feito uma mala para viajar. Nenhuma desarrumação nos armários. Há um so­bretudo azul no vestíbulo, ainda molhado de chuva.

— O sr. Langenau tinha mais um sobretudo? — pergun­tou Hübner.

— Não sei — disse eu. — Acho que não. Sempre o vi com o azul. Nem ao menos vestiu uma capa quando saiu de casa, se essa está aí.

— E a Zero-Oito sumiu — disse Hübner.

— Nada indica que tenha viajado — disse o agente. — Uma ordem incrível no apartamento, esse cara deve ter uma arrumadeira e tanto.

— Ele não tem nenhuma — disse eu.

— O quê?

— Estou lhe dizendo, não tem nenhuma. Ele mesmo lim­pava tudo. Era o seu orgulho, um apartamento limpo.

— Coisa de louco — disse o homem que procurava pis­tas. — Um tipo eremita?

— De modo algum — disse eu. — Tinha montes de...

— ...amigos turcos — disse Hübner, balançando a ca­beça tristemente. — Se tinha tanto orgulho do apartamento limpo, decerto não teria tolerado pegadas de sapatos sujos no assoalho. Teria limpado tudo imediatamente, não acha, sr. Kent?

— Certamente — disse eu.

— Isso significa que as pegadas que encontramos são provavelmente todas da noite passada — disse Hübner. — Obviamente o sr. Langenau recebeu outras visitas.

— Acha que talvez esses neonazistas... mas como foi que entraram? — perguntei.

— Podem ter sido seus amigos turcos.

— Estive aqui até meia-noite, sr. comissário. Acha possí­vel que seus amigos ainda o tenham visitado depois da meia-noite?

— Podem ter estado antes.

— Mas até as seis ele esteve na livraria. Não chegou em casa antes das seis e meia.

— E quando foi que o senhor chegou?

— Por volta das nove.

— Então, pelo menos duas horas e meia de tempo.

— Mas ele não me disse nada sobre uma visita.

— Tudo bem — disse Hübner.

De repente, fez-se um grande silêncio. Nenhum dos ho­mens no apartamento limpo e arrumado disse algo. Fiquei com medo.

 

Naquela noite o ruivo comissário Hübner veio nos visitar, um homem pesadão e triste. Estávamos sentados no quarto da cadeira de balanço e do quadro memento-mori. Hübner já estivera na livraria antes de fecharmos, e dera uma olhada em tudo. Era um agente criminal singular. Jogara pingue-pongue com as crianças e lera para elas um conto de Mark Twain. Depois contemplara longamente o cartaz na escada onde estava escrito:

POR FAVOR, NÃO MATEM AS FLORES!

À noitinha, quando os pais vieram pegar as crianças, Patty e Hernin ficaram mais um pouco, e ela me disse:

— Você disse ao comissário?

— O quê?

— O que eu te disse de manhã.

— Não.

— Por que não?

Antes que eu pudesse responder, Hübner perguntou:

— O que foi que você disse?

— Que acho que o tio Conrad está morto.

— Patty, por que pensa isso? — quis saber Hernin.

— Eu também queria saber — disse o comissário. — Então, Patty?

— Faz alguns dias veio um homem à livraria. Eu estava ajudando o sr. Stark a desembrulhar livros. Quando fiquei sozinha por um momento o homem me deu um envelope e disse que eu o entregasse ao sr. Langenau. Foi o que fiz, e tio Conrad abriu o envelope e havia um papel, e lá estava escrito o nome dele, o sobrenome, e debaixo desenhado um caixão.

De repente todos falávamos ao mesmo tempo:

— Por que não me contou nada, Patty?

— Sim, nem a mim?

— O que é que você estava pensando?

Patty respondeu:

— Levei um susto enorme, mas o tio Conrad riu e disse que alguém tinha feito uma piada de mau gosto, e tive de lhe dar minha palavra de honra de que não contaria nada a vocês para que não se assustassem, pois o tio Conrad disse que a carta era pura bobagem.

— Pensei que você fosse mais esperta, Patty — disse Hernin.

— O que quer dizer esperta, se dei minha palavra de honra, vovô? Uma palavra de honra tem de ser mantida... ou não?

— Claro. Desculpe — disse Hernin.

— O que foi que o tio Conrad fez com o papel e o enve­lope? — perguntou o comissário Hübner.

— Meteu no bolso — disse Patty. Estava ofendida. — Eu já estava com medo, acreditem, mas não podia falar com nin­guém. E agora o tio Conrad sumiu, e de tarde, quando o tio Peter foi para a polícia, eu lhe disse que achava que tio Con­rad estava morto.

— E o que foi que o tio Peter respondeu? — perguntou Hübner.

Patty me encarou, infeliz, e ficou quieta.

— Fiz-lhe uma pergunta — disse Hübner.

Patty continuou calada, olhando para mim.

— Não respondi nada — disse eu. — Fui à polícia. O senhor sabe disso, comissário.

— Por que não respondeu à criança? — perguntou Hüb­ner.

— O que poderia responder? Minha mulher e eu esperá­vamos o sr. Langenau desde a manhã. Telefonei para ele vá­rias vezes. Depois avisei à polícia. Eu estava muito preo­cupado, comissário. Minha mulher também. Tínhamos um mau pressentimento...

— Tudo bem — disse ele, e passou a mão pelo cabelo de fogo.

— Você não me falou nessa carta, Patty — disse eu.

— Mas eu tinha dado minha palavra de honra, tio Peter. Agora ela não vale mais, não é?

— Não, Patty — disse Hernin —, não vale mais. — Olhou-me rapidamente, e eu teria gostado muito de conversar com ele, mas naquela noite seria impossível.

Então fomos para casa com o comissário, e nos sentamos juntos na sala da cadeira de balanço, e Hübner contou que era divorciado e vivia sozinho, como Langenau, e que gostava de crianças, e que seu escritor predileto era Simenon. Mas só gostava dos seus romances psicológicos, não suportava roman­ces policiais.

Falou e falou, bebendo sempre mais um copo de uísque comigo. Andréia tomava suco, e pensei que ele certamente suspeitava de que eu matara Langenau e queria me embriagar para descobrir alguma coisa. Talvez fosse apenas um homem solitário, que não suportava estar sempre sozinho quando não estava de serviço. E contou-nos dos progressos da investigação.

— Suas digitais estavam na mesa, num copo e na garra­fa, e em muitos lugares da sala, e da porta de entrada. O senhor naturalmente pegou uma porção de coisas lá, sr. Kent.

— Naturalmente.

— Tudo bem. Examinamos todos os amigos do sr. Lan­genau, e todas as impressões digitais que tiramos deles tam­bém foram encontradas em algum lugar do apartamento. E depois há as dele... devem ser dele, pois estão por toda parte. Sabe o que é pior?

— O quê?

— Conseguimos identificar todas as digitais, todas. Não há nenhuma que não saibamos a quem pertence. Com os sapatos é diferente, não pudemos identificar todos. Choveu tanto na noite passada, não é? — disse ele a Andréia —, e os rastros no apartamento estão todos sujos. — Olhou-me outra vez. — Os sapatos que pôs à nossa disposição, e que usou esta noite, combinam com algumas impressões. As outras, muito grandes, são sem dúvida de Langenau. Restam dois pares para os quais não encontramos sapatos adequados entre os amigos dele. Por­tanto, dois homens que não conhecemos estiveram com ele. Mas teriam de ter deixado digitais que não pudéssemos identi­ficar, ou não? E conseguimos identificar todas.

— Se usaram luvas... — comecei.

— Sim — disse ele. — Luvas, isso é grave.

— Acha que esses dois desconhecidos o assaltaram?

— Não sei. Falei com o sr. Reining, o homem da segu­rança. Saúde, sr. Kent.

— Saúde — disse eu, e esvaziamos nossos copos.

— Quer mais um pouco? — perguntei.

— Nunca digo não, sr. Kent, nunca digo não.

Portanto, voltei a encher os copos. Tomávamos o uísque puro, só com gelo.

— À sua saúde, senhora. Bom, então esse sr. Reining tem de fazer sua ronda à noite toda e sempre passa pelo edifício, não é? Nós lhe perguntamos, muito minuciosamente. Não, disse o sr. Reining ele não viu ninguém mais ir visitar o sr. Lange­nau. Só o senhor, sr. Kent. Ele não viu o sr. Langenau abrir a porta para ninguém além do senhor. Não viu ninguém mais no elevador, só o senhor.

— O edifício é muito grande — disse eu. — Se Reining faz sua ronda, muitas vezes fica bem longe da entrada e do ele­vador.

— Correto — disse Hübner.

— Ele também não me viu sair, não é?

— Tudo bem — disse Hübner. — Tudo bem.

— O que significa agora esse “tudo bem”?

— Significa que o senhor tem razão. Podem ter entrado pessoas na casa, até com chave própria, sem que Langenau tivesse de abrir ou que o sr. Reining notasse algo: antes ou depois de sua visita. Foi um acaso o sr. Reining o ver. O serviço dele começa às oito, o sr. Langenau pode ter recebido visitas uma hora e meia antes. A partir das seis e meia ele estava em casa, segundo o senhor.

— Suponho apenas. Não sei.

— Tudo bem. — Hübner revirava o copo na mão. — Ele passou pelo menos duas vezes pelo apartamento do sr. Lange­nau, aquele sr. Reining, e ouviu vozes muito altas. Uma che­gava a gritar, disse ele. A sua voz, sr. Kent. O senhor gritou?

— Sim.

— Por quê?

— O sr. Langenau quer nos deixar e voltar a Innsbruck porque...

— Sim, sim, sim, tudo bem. O senhor nos disse.

— Fiquei muito nervoso. Tentei por todos os meios dis­suadi-lo, e gritei. Estava tão nervoso que gritei.

— Estava embriagado?

— Não.

— Ora, uma garrafa de dois litros. Quase vazia.

— Eu agüento um bocado, comissário.

— Sim, estou vendo.

— Além disso, Langenau bebeu muito.

— Estava bêbado?

— Nem sinal.

— Ele também agüenta um bocado — disse Hübner. — O senhor agüenta, eu agüento, todos nós agüentamos um bo­cado. O senhor não matou Langenau e o escondeu, sr. Kent?

— O senhor ficou louco! — gritei.

— Então, o senhor grita. Não admira que o sr. Reining o tenha ouvido. Não fiz uma pergunta, foi uma constatação. O senhor não vai matar um homem que é seu amigo, a quem o senhor quer dissuadir de ir embora. Também não é pergunta, é uma constatação.

— Comissário — disse Andréia —, acha que meu marido e eu estamos lhe escondendo alguma coisa?

— Tudo bem — disse ele. — Tudo bem. — Olhava o quadro. — Lembrai-vos da morte — disse ele. — Pensa muito na morte, sr. Kent?

— Não — disse eu.

— Mas eu sim — disse Andréia. — Comprei o quadro e olho muitas vezes para ele, comissário.

— Por quê?

— Para não me esquecer que tenho de morrer — disse ela.

— O senhor tem uma esposa muito inteligente, sr. Kent. Muito bonita e inteligente.

— Eu sei.

— À sua saúde, sra. Kent.

— À sua, comissário, embora só com suco de laranja.

— Vamos beber mais um copo? — perguntei.

— Nunca digo não, sr. Kent.

Tomamos mais alguns copos. Esvaziamos a garrafa, e metade de outra. O comissário ruivo nos contou de sua mu­lher, de quem se divorciara, e a quem ainda amava, embora ela sempre o tivesse traído, e disse que um homem com a pro­fissão dele simplesmente não devia se casar. Depois me fez novamente perguntas sobre Langenau. Acho que era mesmo terrivelmente solitário, e era uma dessas noites em que ele simplesmente não podia ficar sozinho.

 

O comissário Robert Rolland alugara um pequeno quarto na pequena pensão na Alster Strasse. A pensão ficava numa casa velha, e o quarto de Rolland era desconfortável, com móveis baratos. Tudo o que podia ver era uma parede. Rol­land gostava desse tipo de quartos. Com seus honorários du­rante as investigações teria podido morar em bons hotéis, mas preferia aquele tipo de hospedarias, onde havia apenas dois lavabos e um banheiro por andar, uma pia no quarto... e onde o café da manhã era servido em um grande refeitório comum, desolado.

Era um fim de tarde de meados de novembro; Rolland acendera o abajur com uma lâmpada fraca, pois já estava es­curo. Na mesa diante dele havia um pequeno tabuleiro de xa­drez de viagem. Em mangas de camisa, ele jogava há duas ho­ras contra si mesmo, e acabara de constatar que podia fazer xeque-mate nos braços em três lances, quando de repente se le­vantou, foi até a cama com lençóis desbotados e pegou o fone do antigo aparelho que estava na cabeceira. Esperou um pouco; depois uma voz mal-humorada de mulher atendeu.

— Que foi?

— Por favor, ligue-me com... — Rolland disse um núme­ro de telefone.

— Fique na linha!

Ele esperou novamente.

Depois ouviu uma voz masculina:

— Secretaria de Segurança, boa-noite.

— Boa-noite. O inspetor Wallner está? Aqui é o comissá­rio Rolland.

— Um momento, comissário.

Rolland sentou-se na cama.

Nisso Wallner atendeu.

— Sim, comissário, o que há?

— Sr. Wallner, lembrei-me de uma coisa. Talvez nos aju­de a prosseguir.

— Em Paris, em todas as casas como a de madame Klosters, temos mocinhas que trabalham para a polícia. Deve ser assim em Viena.

Longo silêncio.

— Sr. Wallner!

— Sim.

— O que foi?

— Sou um imbecil.

— Por quê?

— Porque não pensei nisso. Claro que em Viena é como em Paris. Em cada um desses bordéis chiques temos nossa espiã. Realmente sou um idiota!

— Pare com isso! Tente falar com a mocinha da sra. Klosters. Talvez possamos nos encontrar com ela, hoje ou amanhã. Ficarei no meu quarto; por favor telefone logo.

— Logo, comissário. Santo Deus, sou um burro!

A ligação interrompeu-se.

Rolland ficou sentado imóvel na beira da cama, olhando a parede preta. Meia hora depois seu telefone tocou, e uma voz feminina rosnou:

— Ligação para o senhor!

Estalido no telefone, e depois era Wallner outra vez:

— Encontrei-a, comissário. Não trabalha mais na Klos­ters. Chama-se Cilly Zanderl. Nome de guerra, Simone. Bri­gou com a Klosters e saiu. Agora trabalha em Döbling, Rua Peter Jordan. Casa mais fina ainda.

— Ela ainda é sua espiã?

— Sim.

— E que tal nosso encontro?

— Tudo certo. Ela só começa a trabalhar às oito e meia. Agora são seis e meia. Por volta das sete ela nos espera no Café Parsifal, um velho café no Primeiro Distrito. Sozinho vai ser difícil o senhor achar. Pegue um táxi; também irei logo.

— Certo — disse Rolland. Largou o fone no gancho, vestiu o casaco e o sobretudo, e saiu de seu desolado quarto. Lá embaixo na esquina havia um ponto de táxis. Meia hora depois Rolland entrava no Café Parsifal. Um restaurante ao seu gosto: antiqüíssimo, grandes espelhos quase baços, mesas de mármores manchadas e rachadas, iluminação fraca, ar abafado. Todos os garçons usavam fraques manchados e lustrosos. Havia alguns homens sentados em cantos, conver­sando, outros liam jornais. Estava muito quieto no Café Parsifal. Rolland logo encontrou o robusto inspetor Wallner, sen­tado num nicho de janela, afastado, que acenou para ele. Diante de Wallner sentava-se a moça mais linda que Rolland jamais vira. Seu longo cabelo vermelho brilhava. Tinha olhos verdes e rosto muito claro.

Wallner levantou-se e apresentou os dois.

— Comissário Rolland, srta. Simone.

— Cilly Zanderl — disse a moça. Um casaco de marta preta estava no encosto da cadeira atrás dela. Rolland era especialista em perfumes: Cilly Zanderl usava “Opium”, cons­tatou ele; sentou-se e pediu café.

— Eu já disse à moça do que se trata — disse o gordo Wallner.

— Sim, vi o homem a quem procura, comissário — disse Simone. — Lembro-me bem dele. Aconteceu uma coisa muito desagradável comigo naquela vez. Eu tinha então um amigo fixo, um major-general, um velho caduco. Sempre que ele chegava eu tinha de botar um tschako* na cabeça e descer nua a grande escada marchando, fazendo continência e cantando: “Somos do Regimento de Infantaria tal e tal, batalhão número quatro”. E o pau dele ficava em pé na hora. Desculpe. Quero dizer, ele ficava excitado com isso. Bom, então tocaram a campainha e era na hora dele, e pensei, ele está chegando. Peguei meu tschako, tirei calcinha e sutiã, saí marchando e cantando... e no vestíbulo estava um homem totalmente desco­nhecido. Realmente desagradável, não é?

* Capacete com plumas. (N. da T.)

 

— Desagradável — disse Rolland pacientemente. Sabia que tinha de deixar Simone contar tudo à sua maneira.

— Como era o jeito dele? — perguntou Wallner.

— Muito grande. Narigudo. Logo vi. Testa alta, cabelo castanho curto, óculos de aro escuro. Intelectual. Muito sim­pático. Eu teria preferido ele como amigo do que aquele velho besta. Bom, negócios são negócios. Parece mentira, ainda o vejo na minha frente. Podia desenhar a cara dele.

— Vai fazer isso para nós, srta. Simone — disse Rolland.

— O senhor é mesmo da polícia?

— Sim, por quê?

— Parece tão simpático. Não digo por mal. Parece mes­mo simpático.

— Eu sei — disse Rolland sorrindo, — Diga-nos quando terá tempo, e então venha à Secretaria de Segurança, e um técnico vai trabalhar num retrato falado até a senhora dizer sim, ele era bem assim.

— Posso todos os dias até as oito e meia. O senhor só tem de me avisar. E naturalmente alguém precisa me levar de carro ao pátio da Secretaria, e me trazer de novo... como sempre.

— Claro — disse Wallner.

— Bom, a velha, a Klosters, me viu descer as escadas marchando, e gritou comigo para que sumisse no meu quarto. Não falou uma palavra com o homem desconhecido. Bom, eu subi a escada para o meu quarto, abri a porta e fechei-a com ruído, mas por fora; depois me esgueirei atrás de uma pilastra para escutar o que a velha falava com o cara. E ela logo disse o nome dele. Acho que certamente nunca o vira antes, nem o conhecia. Bom, e naturalmente ouvi quando ela disse o nome dele.

— Como era o nome? — perguntou Rolland amavelmente.

— Peter Kent — disse Simone.

— Peter Kent?

— Isso mesmo. Não precisa me olhar assim, comissário, eu boto a mão no fogo.

— Como é que se lembra tão bem do nome, srta. Simo­ne? — perguntou Rolland.

— Muito simples. Só fumo duas marcas de cigarros. Pe­ter Stuyvesant, e Kent. Com filtro, é claro. Então, Peter de Stuyvesant, e Kent de Kent. Logo que ouvi o nome pensei, é fácil de lembrar. Entende: só fumo duas marcas de cigarros: Peter...

— Nós entendemos, srta. Simone — disse Rolland pacientemente.

— E por que não nos avisou disso imediatamente aquela vez? — perguntou Wallner.

— Eu não tinha idéia de que o cara tinha tido um ataque e fugido e tudo. Ou teria telefonado na hora, inspetor, o senhor me conhece. Sou de confiança ou não sou?

— Sempre foi de confiança.

— Então. Mas não percebi nada de toda a confusão; nesse meio-tempo meu major-general chegou, e eu estava ocupada com o velho besta. Com ele a coisa só funcionava se eu tocasse música militar no toca-discos, eu tinha um álbum cheio. Isso faz barulho! E ele sempre levava tanto tempo, um senhor de idade. Quando consegui sair do quarto outra vez, tudo tinha passado, e a velha deve ter dito para as outras moças que calassem o bico. Ninguém disse uma palavra. Hoje ouvi falar disso pela primeira vez. O inspetor me disse enquan­to estávamos esperando o senhor, comissário.

— Peter Kent! — Wallner encarou Rolland, radiante. — Temos o nome!

Rolland concordou em silêncio. Um garçom de fraque manchado lhe trouxe o café.

 

— Então ele sabia de tudo — disse Hernin, com seus cabelos brancos.

— Sim, ele me confirmou tudo — disse eu. — Mas não tenho culpa no seu desaparecimento, Walter. Nenhuma. Ele ainda me disse que eu não tinha nada a recear de sua parte, que jamais iria me denunciar à polícia. Eu mesmo teria de fazer isso. Estava convencido de que eu me entregaria.

— Não sabia de tudo. E por isso queria ir embora. Por­que você é um assassino impenitente. Lembra-se? Uma vez eu lhe disse que você jamais poderia esquecer o que fizera, e você me contradisse. Eu lhe disse que entendo você perfeitamente, mas que um homem que matou outro destrói um mundo inteiro. Por isso, eu disse, você jamais esquecerá o que fez. Ainda se lembra? Estávamos passeando na frente da livraria. Hernin e eu falávamos em voz baixa no Cat’s Corner. Eram quinze para as seis da tarde, e a maior parte dos pais estava apanhando seus filhos. Andréia e Robert Stark falavam com fregueses, e estava sossegado no Cat’s Corner. Contara tudo a Hernin naquela tarde de 16 de novembro de 1981.

— Ele ainda me acompanhou no elevador e abriu a porta do edifício para mim — continuei. — Depois acon­teceu uma coisa bem louca: disse que rezaria por mim, e fez um sinal da cruz em minha testa. Você pode imaginar como me senti, Walter?

— Entendo tudo — disse ele. — Inclusive que você tenha ido a Reinbeck, bem típico, o passeio que faz tão seguidamen­te com Andréia. Entendo: naturalmente também entendo que você não tenha contado a ela sobre esse trajeto.

Langenau estava desaparecido há seis dias. Não dava si­nal de vida. O comissário Hübner e seus agentes tinham fa­lado comigo mais algumas vezes, mas obviamente não tinham a menor pista. O Mercedes fora consertado na oficina. Os peritos do laboratório policial recusavam-se a crer que outro carro tivesse batido no meu.

— Nem o menor sinal de pintura ou metal de outro carro — disse Hübner. — Nem no Mercedes nem no estabeleci­mento diante da casa de Langenau. É simplesmente impossí­vel.

Respondi:

— Considere naquela chuva louca!

Ele respondeu:

— Estamos considerando, mas mesmo a chuva mais in­crível do mundo não poderia lavar todos os sinais. Os pedaci­nhos de tinta e metal teriam ficado grudados no Mercedes, quase gravados nele. E também teriam encontrado alguma coisa no asfalto. Sabe o que descobrimos em seu carro?

— O quê?

— Os peritos encontraram pedacinhos de ferro.

— Pensei que não tinham encontrado nada.

 — Não eram pedaços da lataria de outro carro.

— De que então?

— De um martelo pesado, por exemplo — disse Hübner.

— O quê?

— Sim, sr. Kent. Alguém bateu com um pesadíssimo martelo ou coisa assim no pára-choque e no pára-lama es­querdo de seu carro: com toda a força. Deve ter sido um homem fortíssimo.

— Acredita nisso?

— Julgamos provável. Outro carro não foi, isso já está definido. Os pedacinhos de ferro realmente poderiam ser de um grande martelo, segundo exames de laboratório.

Quando contei isso a Hernin no Cat’s Corner, ele disse:

— Para você tanto faz se eles acreditam que foi um mar­telo, desde que aceitem que o Mercedes estava todo o tempo só estacionado diante da casa de Langenau. Se não houver outras pistas, vão desenvolver suas grandes teorias; conheço isso do tempo da guerra. Eles que o façam. O principal é que deixem você fora da jogada. É melhor que se preocupem com esses grupos agressivos dos radicais de direita.

— Receio que tenha acontecido algo sério com Lange­nau. Temo que Patty tenha razão.

— Acha que o mataram?

— Acho, sim. Estou convencido disso.

— Horrível.

— Eles já tentaram. E o ameaçaram muitas vezes. Acre­dite, o pobre Langenau está morto. Com tiros, pauladas, sei eu. Mas fizeram isso com muita esperteza, esses cachorros imundos. Espero que não sejam espertos demais para a polí­cia.

— Que fim para um homem daquele!

— Estou certo de que ele jamais teria traído você.

— Certamente não. Apenas teria ido embora. Nós o te­ríamos perdido.

— Bem, agora o perdemos para sempre.

Andréia espiou para dentro da salinha.

— Desculpem se estou incomodando, mas a livraria está cheia de clientes, Peter. Você pode vir?

— Claro — respondi; fiz um sinal de cabeça para Hernin e fui vender livros. Um senhor idoso me pediu:

— Eu queria Não somos apenas deste mundo.

O novo livro de Ditfurth — disse eu. — No momento não temos nenhum exemplar, tudo vendido, mas já encomen­damos mais. Pode voltar amanhã?

— Vi um exemplar na vitrine — disse ele.

— Não.

— Sim, venha comigo, vou mostrar onde está.

E já estava saindo para a rua. Fui atrás dele, que se colocou ao meu lado e apontou com o dedo para um livro na vitrine.

— Eisenbeiss — disse o senhor idoso, que usava um Homburg — deixou o senhor nervoso muitas vezes durante o processo porque cantarolava, verdade?

— Verdade — disse eu, olhando-o perplexo.

— Ele lhe manda lembranças. A polícia francesa está procurando pelo senhor. Um certo comissário Rolland. Esteve com seu colega vienense na presença de Eisenbeiss. Nem fo­ram à sra. Klosters; provavelmente encontraram a espiã an­tes, e perceberam que ela não sabia de nada.

— Que espiã?

— Ele disse que havia uma espiã da polícia entre as mo­ças da sra. Klosters.

— Diabos!

Transeuntes passavam e nos empurravam:

— Eu lhe digo, a espiã da sra. Klosters não sabia de nada. Lembra-se de uma moça muito linda, de cabelo ruivo, que desceu a escada marchando totalmente nua quando o senhor esperava no vestíbulo?

— Sim — disse eu. — Com um capacete de plumas. Cantando.

— Isso. Chamava-se Simone, e era a espiã. Por sorte a sra. Klosters sabia disso, e mandou Simone para o quarto. Só quando a moça sumira ela o chamou pelo nome. Simone não pode ter ouvido nada.

— É verdade — disse eu aliviado. — Ela bateu a porta atrás de si, lembro-me disso.

— Está vendo. E Simone também não viu nada do que aconteceu depois. Não, não, a busca vai se esgotar em Viena. Pode viver em paz, o sr. Eisenbeiss manda-lhe dizer isso. E mais uma coisa... A sra. Kratchowil, viúva do alfaiate...

— Sim?

— Está quase curada psiquicamente.

— Não!

— Sim. Um milagre. O sr. Eisenbeiss encontrou um asilo muito bom para ela, que aprendeu a fazer sozinha uma porção de coisas.

— Que bom — disse eu. — Bom velho Eisenbeiss!

— Portanto, nada de medo! Eles nunca o encontrarão. — O homem com o Homburg voltou para a livraria à minha frente. — Agora venda-me outro livro de Ditfurth, para não chamarmos atenção.

 

Paris, quarta-feira, 18 de novembro de 1981.

Minha mansão na Alameda Pilatre de Rozier, cerca de 16h30min.

O telefone tocou no quarto de Paul Perrier. O jovem ami­go de Yvonne, com longos cílios negros e sedosos, que acabava de lixar as unhas com uma pequena lima, ergueu o fone e ouviu a voz do criado:

— Ligação para o senhor, monsieur.

Estalido na linha.

— Alô! — disse Paul, resignado. — Está pronta? Mas dessa vez foi rápido, chérie. Vou sair logo, Yvonne.

— Está sozinho? — perguntou uma voz masculina.

— Sim, por quê? Quem é o senhor?

— Essa conversa pode ser escutada em alguma extensão?

— Não.

— Certeza?

— Claro. Mas me diga...

— Um momento, por favor.

Então Paul escutou uma voz de mulher:

— Paul, é Ilse.

— Não conheço nenhuma Ilse.

— De Auteuil. Hipódromo. Estávamos sentados lado a lado.

— Ah! Ilse! — Perrier ergueu a voz. — Onde está?

— Orly. Aeroporto. Meu marido está trabalhando em Paris. Temos um avião particular. Learstar. Achei que podia vir junto e dar uma olhada em você. Depois do escândalo no Hipódromo o nome de sua velha apareceu em todos os jornais. Bastou pegar uma lista telefônica. Quem falou com você foi um dos nossos dois pilotos, eu não quis falar logo. Você está sozinho?

— Sim!

— E a velha?

— No dentista. — Perrier praguejou.

— O que foi, Fodedor?

— O jeito que ela me trata. Nojento. Sou o motorista dela. Primeiro tive de levá-la à casa de uma amiga, depois ao dentis­ta, e agora tenho de apanhá-la outra vez no dentista. É só o que ainda faço, levá-la por aí e esperar.

— E trepar com ela — disse Ilse.

Paul Perrier praguejou outra vez:

— Merda de vida, acredite.

— Santo Deus, então estou telefonando no momento cer­to! Por que não foi me procurar ainda? Eu esperei, e esperei. Diabos, já estou toda excitada outra vez. Sua voz me basta. Então, fim, você vem logo conosco.

— O quê?

— Para Munique. Meu marido sabe de tudo. Não se importa. Nunca se importou. Ele se serve de outro jeito. Seremos uma pequena família feliz. Ah, Paul, preciso tanto de você. Fico louca só de pensar no seu troço. Meu marido tem um escritório grande aqui na cidade. Um motorista vai buscar você em vinte minutos.

— Mas posso pegar um táxi. — Perrier estava confuso, era tudo depressa demais.

— Não, não, um dos nossos motoristas irá aí. Podemos ter confiança nele. Espere diante da casa, e não esqueça o seu passaporte! Estou no aeroporto, no bar azul...

— Eu quero realmente sair daqui, Ilse, mas...

— Mas o quê? Cagaço da velha? Medo de que ela fique brava com o seu menininho se ele não a apanhar no dentista?

Perrier jogou a lixa de unhas contra a parede.

— Pare com isso! Vou o mais depressa que puder.

De repente sentia-se maravilhosamente bem.

— Ótimo! Não me comece a fazer malas. Não precisa trazer nada, nada. Vamos comprar tudo para você em Muni­que, eu vou comprar tudo. Segundo o meu gosto. Do jeito que a velha te vestia, todo mundo podia ver de cem metros o que você era. Entendeu? Você não vai trazer nada!

Não...

— Nem escova de dentes. Temos uma casa enorme em Grünwald, em Munique. Você vai morar no quarto ao lado do meu. Está tudo combinado. Em compensação, meu marido poderá fazer o que quiser com o seu Freddy. Freddy é a sua nova conquista, os dois vão viajar esta noite para Capri. Te­remos a casa só para nós. Sabe o que vou fazer com você? — Ela disse o que faria, e Pierre teve uma reação intensa. — Que tal acha disso? — perguntou Ilse. — O que dizem das alemãs é verdade, elas fazem isso como ninguém. Então, você vem imediatamente a Orly.

— Merde — disse Perrier. — Estou cagando para tudo aqui. Vou indo, Ilse, já vou indo.

— E nem imagina como! Até logo, Fodedor. — Desligou. Perrier desligou e ajeitou o nó da gravata. Ajuda do céu, pensou. Deus, não posso mais nem ver Yvonne. Nem ouvir sua voz. Estou quase cometendo suicídio. Essa cabra maldita e histérica. Agora ainda por cima começou a beber. Natural­mente estou indo para um futuro desconhecido, mas essa Ilse está tão louca por mim... E um Learstar... Comparado com isso, aqui é tudo uma pobreza. O meu rabo está me dizendo que faça isso, e meu rabo sempre teve mais inteligência do que minha cabeça.

Poucos minutos depois Paul Perrier, de sobretudo, saiu do pequeno palácio do Parque. Emile Rachet, que trabalhava há muito ali como zelador, jardineiro e operário, recolhia fo­lhas murchas com o ancinho e as queimava num canto do parque.

— Vai apanhar madame, monsieur? — Usava seu ma­cacão azul de trabalho.

— Não — Perrier pigarreou. — Eu mesmo estou espe­rando alguém que vem me apanhar. Tenho algo urgente a resolver.

— Mas madame...

— Lamento, ela terá de pegar um táxi. Já avisei o criado. — E também vou ficar livre do meu Lamborghini, pensou ele. Qual nada, Ilse vai me comprar um novo, que loucura, como ela está doida por mim. Até isso acabou com Yvonne, por isso ela se porta desse jeito desavergonhado. Está realmente na hora de me mandar.

Um Cadillac preto parou diante do portão de entrada. Perrier cumprimentou Rachet com a cabeça.

— Então, até depois, Emile!

— Até depois, monsieur. — Rachet viu um rapaz de terno azul, camisa branca e gravata azul sair do Cadillac, abrir a porta traseira direita para Perrier, que acenou mais uma vez. Emile também ergueu a mão. O jovem sentou-se outra vez na direção, o Cadillac disparou quase sem ruído e logo desapareceu. Emile coçou a nuca. Depois voltou a juntar folhas murchas.

 

Sábado, 21 de novembro de 1981.

— De Viena? O senhor vem de Viena? — As mãos de Yvonne esvoaçavam como pequenos pássaros. Usava um traje caseiro, amplo, de seda vermelha, com mangas muito largas. Os pés estavam metidos em sandálias de seda vermelha. Esta­va com todas as suas jóias de rubis: colar, brincos, bracelete e anéis, e usava muita maquilagem. Assim se recostava numa pesada poltrona de couro diante da lareira acesa no salão.

— Direto de Viena, madame — disse o pequeno comissá­rio Rolland, sentado à frente dela. — O Secretário de Estado Nardonne me telefonou e pediu que a procurasse imediata­mente, pois recentemente deu queixa contra seu marido na polícia, dizendo que assassinara monsieur Perrier...

— Sim... sim... — As mãos voavam, as jóias rebrilhavam, a cinza do cigarro na longa piteira dourada caiu no tapete. Yvonne falava com voz singularmente arrastada: — Então agora estão me levando a sério, é? Estão acreditando em mim, é? Era preciso que acontecesse mais isso para acre­ditarem finalmente em mim?

— Madame, a senhora sabe muito bem que há semanas estou procurando seu marido.

Sobre a mesa havia dois copos, um balde com gelo e uma garrafa de uísque.

— Para mim não, obrigado — disse Rolland.

— Mas para mim sim! — Encheu o copo, colocou peda­ços de gelo, e bebeu avidamente. Suas mãos e lábios tremiam, constatou Rolland. Belo tremor de bebedeira, pensou ele. Essa dama deve beber um bocado... e há bastante tempo. Além disso, pela maneira de falar deve estar tomando Valium ou coisa parecida.

— Estou tão grata por afinal estar agindo. O melhor homem do país. Não há outro melhor. E por fim, por fim alguém que acredita quando digo que Charles, esse demônio, está vivo. O senhor acredita, não é?

— Estou inclinado a isso. Com toda a cautela, natural­mente.

— O senhor está procurando por ele, seguindo sua pista, presumindo que vive.

— Digamos que suponho que ele possa estar vivo. — O pequeno comissário pensou: Se você, com seu dinheiro e sua bebedeira, soubesse o que eu sei! Que seu marido vive real­mente. Que sabemos como se chama agora, e qual sua aparên­cia. Que o Ministério da Justiça francês se dirigiu ao Escri­tório Central da Interpol em Viena, pedindo que procure seu marido na Áustria. Que a Interpol de Viena, depois de exami­nar o caso, pediu colaboração da Interpol de Berna e da Dele­gacia Criminal Federal da Alemanha em Wiesbaden, para cobrirem todo o território de língua alemã. Se você soubesse que há muito em cada delegacia policial há volantes de busca ao seu marido, por toda a parte da Alemanha, Áustria, França e Suíça. Se soubesse que em quatro países as autoridades poli­ciais estão caçando seu marido, sua delatora repulsiva e bê­bada. Se soubesse! Teria um ataque de nervos de felicidade, e gritaria isso aos guinchos nos mais esnobes salões parisienses. Não se sabe do que você seria capaz, em seu estado. Nunca se sabe do que as pessoas são capazes. Por isso nunca dou a ninguém informações sobre o andamento de minhas investi­gações... só aos meus superiores.

Rolland informara tudo isso por telefone ao Secretário Nardonne, depois de ter conseguido da callgirl Cilly Zanderl, Simone, no Café Parsifal, o meu novo nome e aparência. Nar­donne não parava de elogiá-lo:

— Pare com isso, monsieur! Apenas tive sorte. Agora é preciso dirigir-se o mais depressa possível à polícia em Viena, através do Secretariado Geral da Interpol, pedindo a busca. Ficarei aqui para ver o que acontece.

Mas ele não ficara em Viena. Na manhã de 21 de novem­bro, Nardonne telefonara para a horrenda pensãozinha na Alster Strasse, dizendo a Rolland que Paul Perrier estava su­mido desde 18 de novembro e não aparecera mais. Yvonne dirigira-se mais uma vez por telefone ao Ministro da Justiça, fazendo uma cena daquelas. O Ministro pedira a Nardonne que chamasse o comissário Rolland de volta a Paris para acal­mar madame Duhamel, pois ela ameaçava novamente com uma entrevista coletiva à imprensa internacional. E agora Rol­land estava sentado diante da embriagada Yvonne, ouvindo pacientemente a sua história.

— Ele ainda me levou ao meu dentista, monsieur le comissaire, o Dr. Pivat. Um gênio, um gênio. Tenho pivôs aqui na frente, em cima, não se nota, tão bem ele faz. Havia algo a ajeitar em um deles, e o Dr. Pivat tem mãos abençoadas. É como se nos acariciasse. Quando surge a mera possibilidade de doer um pouquinho, ele nos dá um anestésico. — Essa palavra quase a matou. — Sabe que já adormeci duas vezes na cadeira dele durante o tratamento? Um uísque agora? Não? — Mas encheu o copo novamente, um copo grande. Bebeu um gole enorme e acendeu um cigarro no toco do outro. — O Dr. Pivat...

Rolland pigarreou.

— Ah, sim, vamos ao assunto. Estava combinado que o pequeno Paul me apanharia quando eu estivesse pronta. Espe­raria o meu telefonema. Odeio táxis. Bem, telefonei e o criado me disse que monsieur Perrier não estava. Fiquei perplexa. Onde estaria ele? Tinha recebido um telefonema e saíra, disse Vítor, Vítor é o criado. — Rolland ouvia pacientemente. — Saíra de carro. Vítor sabia disso. Não vira monsieur Perrier sair. Só o jardineiro Emile, aquele idiota, o viu sair. Ele me odeia, sempre me odiou, embora eu fosse boa com ele, embora ele possa fazer o que quer nesta casa. — Rolland já falara com Emile, logo ao chegar. Sabia o que Emile tinha a dizer, mas ouviu tudo outra vez de Yvonne. Não havia pessoa mais pa­ciente do que aquele pequeno comissário Rolland. — Emile estava no jardim. Ainda viu monsieur Perrier e perguntou se ele ia me apanhar no dentista. — Cinzas no tapete, outro grande gole. — Não, disse monsieur Perrier, ele tinha um compromisso urgente. E vieram apanhá-lo num Cadillac pre­to, o motorista lhe abriu a porta, disse aquele porco do Emile. Desde então Paul está sumido. Eu lhe digo, monsieur le comissaire, meu marido, aquela besta humana, atraiu Paul para uma armadilha. Meu amado Paul está morto! — A última frase foi um grito. Depois bebeu de novo. As jóias tilintavam em seus pulsos. Estava tragicômica, com o rosto exagerada­mente pintado, onde as cores já começavam a se desfazer.

— São suposições, madame — disse Rolland. — Natural­mente — acrescentou rápido —, a senhora pode ter razão, mas não temos provas da culpa de seu marido. Isso nós dois sabemos muito bem.

— Foi ele — disse Yvonne. — Foi ele.

— Provas — disse Rolland. — Provas.

— Paul não levou nada, nem uma camisa, nem uma abotoadura. Nada. Quero dizer, se ele tivesse de viajar de repente, teria levado uma mala com as coisas mais necessárias, não é? E me teria deixado um aviso. Telefonaria para o consultório do Dr. Pivat, teria dito algo ao criado. Nada, nada, nada. Emile, aquele idiota, disse que ele saiu de sobretudo, e Emile foi burro demais para anotar a placa do carro.

— Ele me disse que estava coberta de lama, e impossível de ler.

— Pretexto. Ou de propósito.

— Como?

— Foi suja de lama de propósito. — Bebeu outra vez, e arrotou alto. — Para que não se pudessem ver os números. — O cigarro caiu da piteira, mas Yvonne não notou. Rolland pegou o cigarro e jogou-o na lareira.

— O meu Paul... — dizia Yvonne. — O meu amado Paul... morto... a próxima vítima... E agora Charles tem só uma ainda... eu.

— Madame, contrate um guarda-costas. Haverá sempre um homem para sua proteção, e nada lhe acontecerá. Quanto a monsieur Perrier... Não faltou dinheiro?

— Paul não tinha dinheiro.

— Estou falando no seu dinheiro, madame.

— Não falta nada. Nem jóias, se quer saber. Isso é su­jeira, monsieur le comissaire, Paul me amava como eu a ele. Não era um gigolô. Além disso, guardo minhas jóias, valores, tudo, em um cofre, e ele naturalmente não conhecia o segredo.

— Realmente um grande amor — disse Rolland, e acres­centou: — Já li muito sobre isso.

Yvonne era imune à ironia.

— Ah, e que amor, monsieur! — disse ela. Grande gole. — Que amor maravilhoso! E Charles sabia disso, aquele de­mônio. Por isso me tirou Paul, a coisa mais querida que eu tinha. Quis matar Paul primeiro, depois a mim, para eu sofrer mais... Guarda-costas... proteção... agora? Nem sei se ainda quero viver, tudo perdeu o sentido. O homem que me proteger vai dormir na casa?

— Claro. Provavelmente serão três, trabalhando em tur­nos.

— Homens jovens?

— Jovens, sim.

— Só pergunto porque tenho um efeito inacreditável so­bre homens jovens. Espero que nenhum deles se torne insis­tente.

— Fique tranqüila, os homens não arriscariam a perder seu emprego.

— Quero dizer, entendo os jovens. Veja Paul! Estava lou­co por mim... louco... Naturalmente sou muito excitante, sei disso... qualquer mocinha gostaria de ter o meu corpo... só os seios... — Sua voz se ergueu. — Embora Madeleine, essa puta, tenha afirmado que não eram naturais... Pode imaginar isso, monsieur. Aquela porca disse textualmente em socieda­de, depois me contaram tudo: “Essa? Ora, tem tetas de borra­cha.” — Yvonne saltou da cadeira como um raio, e como um raio deixou cair o robe de seda vermelha. Estava completa­mente nua, e bateu com o punho nos seios.

— Olhe aqui — disse ela. — Acha que isto é borracha?

Nesse instante caiu no tapete, e rolou para um lado. Quando Rolland a pegou nos braços, já estava roncando. Le­vou-a para o quarto de dormir, que ela lhe mostrara ao che­gar. Mostrara-lhe o palácio inteiro.

Rolland deitou Yvonne na cama e cobriu-a. Ela dormia profundamente, a respiração cheirando a álcool e fumo.

Rolland voltou ao grande salão e tocou a sineta. Apare­ceu um criado:

— Monsieur?

— Você é Vítor?

— Sim, monsieur.

— Madame não se sentiu bem. — Notou o olhar do cria­do para a garrafa de uísque. Madame parecia não se sentir bem com freqüência. — Ela foi para a cama e está dormindo. Por favor, cuide para que não seja perturbada.

— Está certo, monsieur.

— Eu gostaria de falar novamente com o jardineiro.

— Vou chamá-lo, monsieur.

— Não é preciso, vou até lá. Ele mora na mansarda sobre a garagem?

— Sim, monsieur.

— Diga, Vítor. Faz muito tempo que madame bebe tan­to?

— Não, monsieur. Só desde aquela história no Hipódro­mo de Auteuil. Quando aquele homem bateu no ombro dela e disse “Vou te pegar”, ou coisa assim. Ela bebe de medo de que o marido ainda esteja vivo e a queira matar. Muitos dias chora horas a fio. Naturalmente vem um médico que receita calmantes. Mas calmantes com álcool... Não preciso dizer mais nada. Monsieur le comissaire, por favor, perdoe a minha impertinência: o senhor acha que maître Duhamel está vivo mes­mo e matou monsieur Perrier?

— Não acho nada — disse o pequeno comissário Robert Rolland.

 

Atravessou lentamente o parque outonal, onde já anoite­cia. Viu os canteiros cuidadosamente revolvidos, o gramado limpo. Parou, respirou fundo o ar denso, perfumado pela fu­maça das folhas queimadas. Rolland chegou à garagem. Uma escada de ferro externa levava à moradia de Emile Rachet. O comissário subiu os degraus íngremes, bateu na porta, e ouviu uma voz:

— Quem é?

— Comissário Rolland. Posso lhe falar mais uma vez, monsieur?

A porta abriu-se. O jardineiro grandão estava um pouco curvado. Usava chinelos e um casaco azul. No braço, tinha um grande gato cor de âmbar, que encarou Rolland com olhos estreitados.

— Entre, monsieur — disse Emile sorrindo amavelmente. Deu um passo para o lado, e Rolland contemplou os velhos móveis com que Emile decorara sua mansarda no estilo da virada do século. Muito veludo e toalhinhas de crochê em mesinhas. A mansarda constava de uma sala, um quarto de dormir, uma cozinha e um banheiro. Na cozinha havia frigideiras penduradas nas paredes de azulejos. No banheiro um grande boiler para água quente. Tudo antiquado mas muito limpo. Havia uma prateleira cheia de livros. Rolland leu al­guns títulos, quase tudo livros sobre cultivo de hortaliças. Ao lado de uma grande poltrona bergère havia um livro aberto numa mesinha, que Emile provavelmente estava lendo. Cultivo de Cogumelos, dizia a capa.

— Sente-se, monsieur — disse Emile, e fez o gato desli­zar para um sofá. — Por favor, debaixo da lâmpada. — Era um abajur com uma pantalha grande em forma de sino, de tecido escuro. Rolland sentou-se numa confortável poltrona, perto da janela. Pelo parque via as luzes do palácio e da rua.

— É bonito aqui, monsieur Rachet.

— Acha, monsieur? Também gosto daqui. É como na nossa casa, uma aldeia perto de Angoulême. Ainda são móveis dos meus pais. Quer beber alguma coisa?

— Não, obrigado.

— Um gole só?

— Não, realmente não. Sente-se aqui comigo, monsieur Rachet.

— Rachet, não. Emile. Sou o velho Emile.

— Muito bem. Você está aqui há muito tempo, não é, Emile?

— Ah, sim, monsieur. Faz dezoito, quase dezenove anos. Muito tempo. O bom maître Duhamel me empregou. O se­nhor não o conheceu. Era um homem maravilhoso. “Emile”, dizia ele, “trabalhe como você mesmo quiser, tenho confiança em você. E vai ficar aqui o tempo que quiser. Se um dia ficar velho e não conseguir mais trabalhar, pare. Mas só quando você quiser. Ninguém vai lhe dar ordens, entendido? Nem minha mulher.” Esta me odiou desde o começo.

— Por que, Emile?

— Porque o patrão gostava muito de mim. Porque nos entendíamos tão bem. Ela não suportava isso. Nem que ele tivesse amigos. Espantou todos daqui. Por fim ele ficou sozi­nho, com exceção do pobre maître Balmoral. Um homem tão fino, e sozinho, o meu bom patrão. Ele conversava muitas vezes comigo, eu o venerava como a um santo, monsieur.

— Acha que ele está morto?

— Morto? Meu Deus, claro que está morto.

— Madame insiste em que está vivo.

O rosto amável de Emile desfez-se numa careta de ódio.

— Madame, essa... — Mas mordeu os lábios.

— O que queria dizer, Emile?

— Nada, monsieur le comissaire, desculpe.

O gato cor de âmbar saltou no colo de Rolland e ronronou quando ele começou- a acariciá-lo.

— Depois do desaparecimento de maître Duhamel, você teve discussões com madame?

— Tenho discussões com madame desde que estou aqui. Depois da morte de monsieur naturalmente ela tentou me aborrecer muito mais. É uma pessoa muito má.

Silêncio. Só o gato ronronava.

Sim, pensou Rolland, esse homem simples disse correta­mente. Ela é uma pessoa má.

— Eu teria ido embora naquela vez, quando aconteceu aquilo com a minha pequena horta. Eu queria ir embora de verdade, monsieur, se não gostasse tanto do parque, das árvo­res e das flores. E da minha casa aqui em cima.

— Que história foi essa com a sua horta?

— Quando comecei a trabalhar aqui, o bom monsieur me deu de presente um pedacinho de terra lá no fim do par­que, e disse: “Emile, você vem do campo e precisa de um pedacinho de terra. Isso aqui é seu, faça aqui o que quiser.” — Silêncio outra vez, o gato ronronava alto, muitas luzes cintilavam lá fora entre as árvores. — Bem, primeiro plantei feijões, monsieur — disse Emile, e um pequeno sorriso feliz de recordação passou por seu rosto enrugado. — Depois verdu­ras, tomates... para a cozinha da casa e para mim. Eu mesmo cozinho. Aquele pedacinho de terra era a coisa que mais ama­va na vida. — Contemplou as grandes mãos calosas.

— E o que aconteceu?

— Quando monsieur morreu, a velha bruxa... desculpe se falo assim, mas é uma velha bruxa muito miserável... sem­pre dizia que eu tinha de arrasar meu pedacinho de terra e semear grama. Não fiz isso até que um dia ela me ameaçou com o advogado. Isso do pedacinho de terra não estava escrito no contrato que eu tinha com o bom patrão. Ela disse que se até a noite eu não tivesse arrasado a minha horta, ia procurar o advogado, e eu provavelmente seria posto na rua. — Emile deu um fundo suspiro. — Então, com medo, arranquei todas as verduras e plantas e revirei toda a terra e semeei grama. Desde então não tenho mais nem um pedaço de terra meu. — Olhou para Rolland. — Isso é grave para mim, monsieur. Pode me entender?

Rolland balançou a cabeça afirmativamente.

— Não conheço ninguém em Paris, monsieur — disse Emile. — Não tenho amigos nem parentes aqui. Continuo sendo um camponês. O pedaço de terra era para mim a nossa aldeia em Angoulême, meu lar. Entende isso?

Rolland balançou novamente a cabeça em silêncio.

— E destruí tudo, com medo que o advogado me pusesse na rua. Tenho muito medo de advogados.

— Mas não tinha de maître Duhamel.

Emile ficou radiante:

— Eu o amava... Meu Deus, como amava o patrão!

— E odiava madame.

— Sim, odiava madame.

— E lhe desejava todo o mal, não é? Doença, morte, tudo.

— Tudo, monsieur, tudo. Era tão má comigo... e eu não podia me defender.

— Você pensou...

— Pensei... — disse Emile, tão inocente como uma criança.

— Até que lhe veio aquela idéia.

— Sim, a idéia. Uma boa idéia.

— De como podia se vingar de toda aquela maldade. Uma vez, quando madame e monsieur Perrier não estavam, você foi ao palácio e pegou um terno de maître Duhamel. Você tem o mesmo tamanho dele. E camisas, sapatos, meias, gra­vatas.

— Só uma — disse Emile. — E só duas camisas, mon­sieur le comissaire. Era um terno muito usado. E eu pre­cisava dele.

— Não estou censurando você, Emile. Na cidade você comprou uma peruca castanha de cabelo comprido e uma barba para colar na cara. E assim se transformou em maître Duhamel, não foi?

— Para assustar a velha bruxa. Eu queria matá-la de susto. Eu tinha cultivado uns tomates tão bonitos...

— Foi você quem se aproximou de madame Duhamel na frente do Tour d’Argent e disse: “Vou te pegar, queridinha, vou te pegar”. Não foi?

— Sim, fui eu. Eu sabia que depois do teatro ela ia ao Tour d’Argent com o cara dela. Só precisei esperar.

— E lá fora, no Hipódromo de Auteuil, nos guichês, na­quela confusão, também foi você, não foi, Emile?

— Fui eu sim, monsieur. Da primeira vez ela não morreu de susto, e pensei que talvez na segunda eu teria mais sorte. Mas não tenho sorte, monsieur, não tenho. Me diga, a gente tem de ser muito ruim para obrigar um camponês a destruir a sua horta, não é?

Rolland concordou com a cabeça.

— Ela também era muito má com maître Duhamel, mui­to má às vezes. A gente a ouvia gritar e berrar. — Rolland pensou na mulher que dormia na mansão, totalmente bêbada. — E quando monsieur foi a Viena, naquela noite em que voou para a morte, eu ainda falei com ele enquanto ele esperava o táxi. Ele tivera outra cena com a mulher, e chorou, chorou mesmo. Depois, quando me disseram que ele tinha morrido, me senti completamente abandonado, e comecei a odiar mais ainda a bruxa. Uma pessoa tão boa morreu, e uma tão ruim vivendo? Isso não está certo, monsieur. Está? Me diga.

— Emile — disse Rolland baixinho —, onde escondeu aquelas coisas?

— Não escondi. Estão ali no baú.

— Posso vê-las?

— Claro, monsieur. — Emile levantou-se, foi com Rol­land até um velho baú de camponês e abriu-o. O comissário viu terno, sapatos, roupas de baixo e uma caixa de papelão com uma peruca castanha e longa, uma barba e um pedaço de massa de colar, cor da pele.

— O que é isto aqui, Emile?

— Plástico para aumentar o meu nariz, monsieur. O po­bre maître Duhamel tinha um nariz grande.

Rolland contemplou o baú por longo tempo.

— Naturalmente isso tem de desaparecer, Emile — disse ele por fim. — Bem depressa. Enterre! Queime! Jogue no rio, com uma pedra pesada. Mas longe daqui.

— Não vai me denunciar? — disse Emile.

— Não.

— Mas o senhor tem de...

— Denunciar você? Por quê? Eu tinha uma suspeita que estava errada. Então por que denunciar? — Rolland virou o rosto. — Meus pais também eram camponeses. Morávamos numa aldeia em Limoges. E quando eu era pequeno, tinha meu pedaço de terra atrás da casa. Quantas coisas plantei ali, morangos e ervilhas, rabanetes. — Sua voz estava quase inau­dível, tão baixinho falava ao acrescentar: — Foi o melhor tempo da minha vida.

 

Quando Langenau estava sumido há duas semanas e ain­da não havia sinal dele, Andréia, o Apre e eu nos sentamos certa noite no Cat’s Corner depois de fechar a livraria, e An­dréia disse:

— Não adianta. Temos de colocar um anúncio nos classi­ficados e procurar um livreiro ou pelo menos uma ajuda. Não podemos mais sozinhos, e agora vem o Natal.

Estávamos muito deprimidos quando redigimos o anún­cio; recebemos muitas cartas em resposta. Alguns candidatos escreviam que estavam desempregados, dois escreveram que tinham perdido os empregos porque as livrarias onde traba­lhavam haviam sido vendidas.

Os desempregados eram homens e mulheres de mais ida­de, amáveis, mas não serviam para a nossa livraria porque não sabiam lidar direito com crianças. Lamentamos recusá-los.

Por fim sobraram dois candidatos: Hans Crohn e Clemens Raven. Estavam no começo dos quarenta anos, os dois davam uma impressão muito boa, e tinham excelentes referências. Gostamos especialmente de Raven desde o começo. Era um homem magro, de cara alegre e cabelo preto um pouco des­grenhado. Gostava de rir e logo brincou com as crianças: Crohn era mais reservado, mas também muito simpático. O comissário ruivo, Hübner, nosso hóspede constante, passava às vezes horas na livraria. Olhava as crianças ou se sentava no Cat’s Corner, bebendo meu uísque e pensando. De vez em quando me fazia perguntas sobre Langenau. Era realmente um homem muito triste e solitário. No curso das semanas ficamos amigos, ele, Andréia e eu. Também estava ali sentado na tarde em que Raven brincou com as crianças pela primeira vez. Muita risada e gritaria no subsolo. Quando entrei no Cat’s Corner para pegar uma pasta, Hübner me disse:

— O nome dele é Clemens Raven?

— Sim — respondi.

— A livraria onde trabalhava ficava ao lado do mercado de frutas do Sul, numa estação terminal de ônibus? — Disse o número da linha.

— Sim — disse eu. — Por quê? Conhece?

Hübner riu.

— Tudo bem. Conheço todo mundo. Também Raven. Lidamos com ele. Não eu, mas colegas da delegacia do bairro.

— Ele fez alguma coisa?

— Sim — disse Hübner. — Seu chefe tinha de pagar um aluguel incrível por aquele ponto excelente. Parada final de ônibus! As pessoas simplesmente caíam livraria adentro. Mas isso não bastava. Mais tarde me interessei pela história. No seu ramo, o movimento está diminuindo, não é? Mas não no de frutas do Sul, boas e caras. Essas as pessoas devoram como antigamente. E essa loja queria se expandir. O dono queria adquirir o espaço da livraria. Aceitava qualquer aluguel do dono da casa, sim, até estimulava os aumentos. Sem nenhum escrúpulo. Até que acabou expulsando dali o livreiro.

— Então Raven deu um soco no focinho do vendedor de frutas — disse eu.

— Ainda não — disse Hübner, Do subsolo vinha a grita­ria alegre das crianças. Raven parecia estar dando um espetá­culo de teatro completo. — Que pensamentos violentos o se­nhor sempre tem, sr. Kent! E que uísque excelente. — Voltou a encher o copo.

— Chivas, enquanto não houver nada melhor — disse eu, e também preparei um para mim.

— Não, nada de violências, sr. Kent. Nessa livraria apa­reciam muitas crianças a caminho da escola ou de casa. Ali perto há um enorme conjunto residencial, sabe. Com lojas próprias e um cinema e uma praça para as crianças. — Sus­pirou. — Praça de brinquedos para crianças.

— Sim, sim — disse eu. — Saúde.

— Saúde! — disse Hübner. — Uma praça dessas existe para as crianças brincarem, não? Mas lá era diferente.

— Como?

— Lá moravam montes de pessoas idosas e pequenos funcionários e mulheres solitárias, e a lei suprema desse con­junto era PAZ. Todos queriam ter sua paz. No meio da grande cidade. Se um cachorro latia, já havia uma queixa na delega­cia. Agora imagine as pobres crianças, que naturalmente que­riam brincar na praça de brinquedos. Não havia muitos ca­sais jovens no conjunto residencial, mas os que havia tinham filhos. Bom, e assim a delegacia recebeu uma queixa contra ruído. De dar nojo. As crianças têm de poder brincar. E eram umas crianças muito boazinhas. Não faziam desordem, apenas se divertiam como agora as suas crianças lá no subsolo. Isso bastava. Havia brigas nesse conjunto o tempo todo. Muitas vezes as crianças recebiam bofetadas de inquilinos do conjun­to, e os pais brigavam com os que tinham batido nas crianças. Um dia, lembro ainda, as crianças fizeram uma manifestação. Carregavam cartazes de papelão em varas, onde tinham escri­to: SOMOS CRIANÇAS — QUEREMOS BRINCAR! — Hübner suspirou e bebeu. — Pensa que ajudou? Ajudou uma ova!

— Como é que sabe tão bem? — perguntei. — Era a delegacia de lá que cuidava disso.

— Tudo bem, tudo bem — disse ele. — A história se espalhou entre os colegas e muitos de nós a ouvimos.

— E como continuou?

— Bem, um dia apareceram umas crianças na livraria do sr. Raven e perguntaram se ele não podia ajudar. Tinham con­fiança ilimitada nele. E ele ajudou.

— Como?

— Posso visitar o senhor esta noite depois do jantar? Estou de folga outra vez. E aí conto o resto. Tenho de apanhar uma coisa para isso — disse Hübner, e passou a mão pelo cabelo vermelho.

À noite estava de novo sentado na minha sala memento-mori, de que gostava tanto. Eu contara tudo a Andréia, e agora ele tirou do bolso um papel que desdobrou, dizendo:

— Quando as crianças tinham saído, o sr. Raven refletiu bastante, sentou-se e escreveu numa velha máquina de escre­ver a seguinte história. — Hübner recostou-se para trás, pigar­reou e começou: — “Elas tinham brincado a tarde toda. Ti­nha havido muitos aborrecimentos. Os velhos insistiam em ter sossego, as crianças queriam brincar. Às sete da noite estava tudo tão quieto na praça como durante a longa manhã quando as crianças estavam na escola. Um mundo silencioso, sem crianças. Lentamente a noite baixou sobre telhados e envolveu todas as casas num doce nevoeiro. Uma janela escureceu após a outra, e não havia estrela no céu; dois cachorros conver­savam latindo.

“De repente as pessoas nas suas camas ouviram sussurros e ruídos e passinhos de crianças. Depois muitas, muitas vozes jo­vens falando, e podiam entender o que diziam.” — Hübner, outra vez diante de um copo de uísque, bebeu generosamente. — “E diziam isto: Somos crianças que não podem brincar. Guerra, bombas, fuga, exílio e doenças nos mataram. Somos as crianças que não nasceram. Dormimos sem cama, chora­mos sem som, somos crianças silenciosas. Estamos atrás das crianças que riem e queríamos brincar com elas. Quando à noite andamos pelas ruas, ninguém pode nos contar tão nume­rosas somos...”

— Meu Deus — disse Andréia, apertando-se a mim.

— “As pessoas nas casas tremeram, puxaram os coberto­res e ficaram aliviadas quando os passos de crianças se perde­ram” — leu o comissário. — “Finalmente as crianças mortas tinham passado.”

“Na manhã seguinte as pessoas se levantaram e ficaram à escuta. Quando chegou o meio-dia apareceram na porta e quando as crianças vieram da escola para fazer as lições e brincar, ficaram muito felizes vendo que eram crianças de verdade, vivas, que na noite passada tinham dormido profun­damente sem saberem nada sobre as crianças-fantasmas.”

“As pessoas pensaram em suas próprias vidas, em tudo o que tinham sofrido e suportado, e em tudo o que aquelas crianças que agora brincavam também teriam de suportar. E olharam para as crianças, sorrindo.”

O comissário baixou as folhas.

— Foi o sr. Raven quem escreveu isso? — perguntou An­dréia baixinho.

— Sim. E tirou muitas cópias e bem cedo de manhã, quando as portas já estavam abertas, foi de um apartamento a outro no conjunto e jogou uma cópia em cada caixa de correio. — Hübner bebeu mais.

— E daí? — perguntei.

— Daí, tudo acabou bem. Nada de queixas na polícia nem tapas. As crianças puderam brincar na praça, e ninguém se aborreceu, pois todos tinham lido a pequena história do sr. Raven. Uma história bonita, não é?

— Linda — disse Andréia.

— Pois bem. Os policiais do bairro ficaram preocupados quando não vieram mais queixas e um deles foi ao conjunto residencial perguntar o que havia. Então lhe mostraram cópias da história de Raven, e o policial perguntou se podia ficar com uma de lembrança, e lhe deram uma, é esta. Eu disse que tinha de apanhar uma coisa antes de contar o fim da história. Pedi uma cópia emprestada.

— Gato?

— Esquilinha?

— Você tem a carta do sr. Raven. Tem número de tele­fone?

— Você quer lhe telefonar agora, no meio da noite?

— Quero lhe dizer que o lugar é dele... se você concorda. Acho que não encontraremos outro melhor. O que acham?

Achamos que ela tinha razão; então ela discou o número, esperou um bocado, até ele atender. Então ela disse:

— Sr. Raven, eu o acordei, desculpe. É Andréia Kent. Queria só lhe dizer: decidimos ficar com o senhor. Quando pode começar?... Logo? Que maravilha! Então até amanhã. E durma bem! — Largou o fone. — Não é um Langenau, não é, mas quase. Quase. O que está acontecendo aqui, afinal? Será que uma pobre mulher sedenta não consegue uma garrafinha de cerveja, ou vocês decidiram beber seu uísque sozinhos?

 

Certamente, meu bem, algo deve ter-lhe parecido muito enigmático. O pequeno comissário Robert Rolland conseguira a minha pista. Conhecia o meu nome falso, a minha nova apa­rência. Na França, Suíça, Áustria e Alemanha já tinham des­crições minhas para a busca. Naturalmente também no posto de serviço do comissário Hübner havia um desses volantes de busca. Forçosamente ele os conhecia. E também a mim. Por que não fazia nada? Poucos minutos depois de receber o volante ele podia me ter feito prisioneiro. Entretanto, tinha passado dias, semanas. O comissário Hübner não fazia nada. Nem qualquer outro agente fez alguma coisa. A busca por mim, que podia ter acabado há muito, estava ainda se realizando como se a polícia de Hamburgo não conhecesse o meu atual ende­reço, como se Hübner não me visitasse a toda hora, conver­sasse comigo e bebesse meu uísque. Isso, meu bem, deve lhe parecer muito misterioso. Uma situação improvável e fantás­tica, tanto mais improvável e mais fantástica à medida que mais se pensa nela.

Devo lembrar a você que eu então não tinha a menor idéia dessa busca. Ao contrário: aquele homem de confiança de Eisenbeiss, que viera à livraria e pedira o novo livro de Ditfurth, me dissera que a polícia francesa me procurara em Viena mas jamais me acharia, e que por isso eu podia viver em paz. E eu confiava em Eisenbeiss. Portanto, vivia em paz — exceto pelos meus graves receios quanto ao destino de Langenau.

Já lhe disse, meu bem: muitos acontecimentos que não testemunhei mais tarde me foram contados por outros. Mais tarde, meu bem, mais tarde. Por isso eu estava totalmente ignorante de tudo, naquele momento em que devia fugir em pânico ou me entregar, diante da minha desesperançada si­tuação. Totalmente ignorante de tudo. O motivo por que ain­da não me tinham prendido só lhe será dito agora, meu bem, a quem estou contando minha história em ordem lógica. Hoje, depois que sei de tudo o que aconteceu, não me parece enig­mática. O enigma da razão de não me terem há muito pren­dido como Charles Duhamel, meu bem, só se apresenta a você, a quem conto a minha história ordenadamente. Hoje, que sei de tudo o que aconteceu, não me parece absolutamente misterioso o comissário Hübner não me ter prendido, a mim, o homem procurado em quatro países, o homem que começara nova vida com o nome de Peter Kent. Até me parece perfei­tamente compreensível e lógico que a polícia não fizesse nada para me perturbar ou inquietar. Era desaconselhável. Teria sido contra o bom senso.

E quando chegar a hora de lhe contar o motivo de eu ter Permanecido impune naquele tempo, você vai entender tudo, meu bem.

Paciência, por favor. Paciência.

 

— Bem, agora vem uma pergunta difícil, meus queridos — disse Clemens Raven. Estava acomodado numa banqueta vermelha, as crianças sentadas ao redor dele, quase sem respi­rar de tão excitadas diante do novo jogo que Raven, parecendo tão jovem, lhes ensinava. — Vamos jogar “Lotinha Dupla”. Bom, na “Lotinha Dupla” existem dois “gêmeos astrológi­cos”. Primeiro: quem sabe me dizer o que são “gêmeos astro­lógicos”?

Félix Rosen ergueu a mão. Logo depois, levantou-se um dos agarradores de aço de Marili, a menininha sem mãos.

— Sinto muito, Marili — disse Raven. Seu cabelo preto e revolto brilhava na luz dos lustres do teto. — Quem levanta a mão primeiro pode jogar. É a regra, você conhece.

— Claro — disse Marili, um pouco triste.

— A gente pode transferir o direito de jogar, tio Cle­mens? — perguntou Félix.

— Sim, isso pode — disse o nosso novo livreiro. Andréia, o Apre e eu estávamos lá em cima na livraria, observando. Era segunda-feira, 7 de dezembro de 1981. Estávamos todos en­cantados com Raven. As crianças o amavam, ele era um exce­lente vendedor, e em pouco tempo se adaptara perfeitamente na loja.

— Se é permitido —, disse Félix —, transfiro meu direito a Marili.

As crianças bateram palmas, e Félix fez uma mesura.

— É um prazer — disse ele. — Além disso, já tenho um monte de botões.

Como todas as crianças, ele tinha uma caixa de papelão nos joelhos, com vários botões, talvez uma dúzia. Raven tinha ao seu lado uma caixa grande, com muitos botões. Quem erguesse a mão primeiro e desse a resposta certa ganhava um botão. Quem no fim do jogo tivesse mais botões, podia esco­lher um livro. Havia um segundo prêmio, um livro de bolso, e um prêmio de consolação. Raven anunciara que esse jogo se realizaria uma vez por mês.

— Então, Marili — disse ele. — O que são “gêmeos astrológicos”?

A menininha respondeu gravemente:

— Dizem que há pessoas que se parecem perfeitamente uma com a outra. Mas não são parentes. Só vieram ao mundo exatamente na mesma fração de segundo.

— Bravo — disse Raven. — Certo, Marili.

As crianças aplaudiram novamente, e nós também. Marili estava radiante.

— O jogo vai ficar cada vez mais difícil — disse Raven sacudindo a grande caixa cheia de botões. — Como se chama no “Lotinha Dupla” a pessoa que fala dos gêmeos astrológi­cos, hein?

Dessa vez Marili erguera a mão primeiro.

— A sra. Muthesius. É a diretora da colônia de férias de Seebühl, no Bühlsee — disse ela, com as faces vermelhas de ex­citação.

Mais aplausos.

— Muito bem, Marili! — Raven riu, depois ficou sério. — Muito bem, agora a pergunta principal. A sra. Muthesius fala de dois desses gêmeos, mas o que diz?

Mais uma vez o agarrador de Marili se levantou primeiro.

— Ela conta que o alfaiate londrino Rei Eduardo VII... — Marili notou que se atrapalhara, e parou.

— Mais uma vez, Marili — disse Raven. — Não tenha pressa! Não se trata de rapidez, mas de correção na resposta. E ganhará um botão.

— Sim, tio Clemens — disse Marili. — Ela conta que um alfaiate londrino e o rei inglês Eduardo VII eram gêmeos as­trológicos.

— Hurra! — gritou Félix, e as crianças aplaudiram feito doidas.

— Marili, você está cada vez melhor — disse Raven. — O botão é quase seu. Estão vendo como é importante ler livros atentamente? O alfaiate e o rei então eram parecidos a ponto de poderem ser confundidos. E por que eram tão parecidos, Marili?

— Especialmente porque usavam barbicha. O rei man­dou levar o alfaiate ao palácio e conversou longamente com ele, e viram que realmente tinham nascido no mesmo segundo.

— E como prossegue a história?

— O alfaiate mandou raspar a barba por vontade do rei — disse Marili, ofegante. Júbilo geral, quando Raven fez des­lizar um botão para o agarrador de aço de Marili, que o colocou junto dos outros na caixa. Estava felicíssima.

— Esse Raven não é maravilhoso? — perguntou Andréia.

— Bernadette diz que um cara desses podia se empregar na hora na enfermaria de crianças no hospital — disse o apai­xonado Apre. Sempre que deixava seu serviço, a bela Berna­dette vinha apanhar Robert na livraria. Por isso conhecia Ra­ven, com quem também já a tínhamos convidado para nossa casa. Olhei o relógio. Andréia tinha que fazer sua visita men­sal ao Dr. Kahler às nove e meia.

— Venha — disse eu —, temos de ir, Esquilinha.

— Vocês dois vão dar conta de tudo? — perguntou ela.

— Lógico, sra. Kent — disse Robert Stark.

Acenamos para Raven e para as crianças e nos despedi­mos. Era um dia muito frio. Agora eu sempre dirigia com muito cuidado quando Andréia estava no carro. Embora ela estivesse no começo do sexto mês de sua gravidez, seu corpo estava esbelto como sempre. O bebê por vezes se mexia, há semanas, e Andréia sempre ficava pálida de excitação, dizendo: “Gato, ele está batendo na porta.” Agora sempre tinha desejos, e queria pepinos azedos e nata batida, ou atum e chocolate. Uma vez acordei, às três e meia da manhã, e Andréia estava parada no meio do quarto com um vidro de azeitonas na mão. Comia uma atrás da outra, bem depressa, cuspindo as semen­tes na tampa do vidro. Seu rosto estava ainda mais bonito, e o Apre disse que Bernadette lhe dissera ser por causa do bebê.

Estacionamos na Bellealliancestrasse, onde morava o Dr. Kahler.

— Olhe ali, Gato — disse Andréia. — Tanta gente ali na frente. Aconteceu alguma coisa.

— É, parece que sim.

— Santo Deus — disse ela. — Mas é a casa do Dr. Kah­ler! Gato!

— Calma, Esquilinha, por favor, não fique nervosa.

Descemos do carro e seguimos o resto do trajeto a pé. Diante da casa na qual Kahler morava e tinha seu consultório, havia muitos curiosos e também dois carros da radiopatrulha, um Mercedes preto e um grande carro fechado. As pessoas estavam muito caladas. Quando chegamos, dois homens de avental cinzento acabavam de sair da porta. Carregavam uma caixa de zinco fechada, que meteram no carro grande. Dois outros trouxeram outra caixa de zinco fechada, e a puseram ao lado da primeira. O grande carro fechado partiu. Vi um policial que falava com as pessoas.

— Adiante! ... Aqui não há nada para ver... Por favor, adiante! Vão embora!... Tenham juízo, por favor!... A senhora também, madame... Senhor... — Ele falara comigo e com Andréia.

Eu disse:

— Temos hora marcada.

— Com quem?

— Dr. Kahler.

O policial balançou a cabeça.

— O que foi? — perguntei.

— O doutor se matou — disse o policial.

 

Cheguei às oito em ponto — disse a gorda enfermeira Agnes, do consultório, sempre tão amável conosco. — Tenho a chave da casa. Sempre venho às oito e preparo tudo; às oito e meia começam as consultas. A arrumadeira só chega às nove, porque não tem nada com o consultório, é outra que limpa lá quando encerra o expediente. — Limpou com o lenço os olhos vermelhos e inchados. Vi que o corpo todo tremia.

Estávamos sentados sozinhos na sala de espera vazia. Já eram quase onze horas, e os agentes da polícia finalmente tinham ido embora. Também as outras mulheres que o Dr. Kahler mandara vir naquela manhã. Agora havia um papel preso na porta lá fora, dizendo: FECHADO POR MOTIVO DE MORTE. A enfermeira Agnes desligara a campainha e o telefone.

Estava meio escuro na grande sala de espera, e a enfer­meira Agnes fizera um café forte, do qual bebera muito. Mas não era por isso que tremia. Ela trabalhara quinze anos para o Dr. Kahler, era por isso. Primeiro nem conseguia falar corren­temente, e não a queríamos deixar sozinha naquele estado. Depois do café seu estado melhorara, e agora ela conseguia falar bastante bem.

— ...e o doutor sempre estava no consultório quando eu chegava. Mas hoje o consultório estava vazio, e tudo silencioso no apartamento. Logo tive um mau pressentimento, meu Deus, aquele silêncio, entendem, esse silêncio horrível.

Tomou mais café e derramou um pouco porque sua mão tremia demais. Apoiou-a na outra, mas não adiantava muito. Despejou mais café ainda, que pingou no seu avental branco.

— Chamei alto pelo doutor. Nada de resposta. Então entrei no seu quarto de dormir e ele estava deitado na cama... morto. Corri ao quarto de sua mulher, ao lado... e ela também estava deitada na cama, morta. Foi um susto tão horrível, pensei que ia desmaiar.

— Pobre Agnes — disse Andréia.

— Então me lembrei que tinha visto um grande envelope na mesa de cabeceira do doutor, e voltei correndo ao seu quarto e abri o envelope apoiado no abajur. Havia uma por­ção de papéis e documentos, e uma carta escrita a mão, na letra bonita dele. Ah, meu Deus...

Só algum tempo depois ela conseguiu falar outra vez.

— Ainda me lembro muito bem do que a carta dizia, não palavra por palavra, mas o sentido. Era uma carta que não se dirigia a ninguém. Começava assim, eu, Dr. Otto Kahler, decidi sair desta vida com minha mulher Helga. Ela não sabe de nada. Vou empregar um veneno de efeito rápido, muito forte. Minha mulher não sofrerá, nem eu. Não há outra saída para mim. E não posso deixar minha amada esposa neste mundo miserável.

— Mas por quê? — perguntou Andréia. — Por que, Agnes? Ele tinha planos tão bonitos, o doutor. Queria ir com a esposa para os Estados Unidos e viver lá muitos anos felizes. E contou a mim e ao meu marido do apartamento que tinham comprado na Flórida. Disse que nós também devíamos ir para os Estados Unidos. Estava tão entusiasmado!

— Sim, a Flórida — disse a enfermeira, respirando fun­do. — Pois tudo está ligado com isso, sra. Kent.

— Como?

— Esperem que eu vou contar. Os policiais conseguiram reconstruir toda a história por causa das provas que levaram junto, e como fizeram tantas perguntas entendi tudo muito bem.

A enfermeira Agnes enxugou os olhos e começou a contar.

— Bom, então, escreveu o doutor, para que tudo ficasse claro e não houvesse suspeitas, ele queria dizer por que não podia mais viver. Escreveu que estava convencido de que aqui na Alemanha tudo iria desmoronar, e ele queria ir embora. En­tão foi com sua mulher a uma dessas grandes imobiliárias que anunciam no jornal e lá lhe mostraram coisas lindas dos Es­tados Unidos. Com um grupo de outros interessados, levaram-nos de avião a Miami para poderem ver o local. Como ele sabia que há tantos picaretas nesses negócios com Estados Unidos, procurou uma firma muito séria, que tem bom nome há quase cem anos, a...

— ...a firma Langstrom, na Grosse Bleiche — disse eu, e agora eram as minhas mãos que tremiam.

— Sim — disse Agnes espantada —, a Agência Langstrom. Mas como sabe disso, sr. Kent?

— E na Langstrom ele foi atendido por um sr. Schönhaus — disse eu.

— Schönhaus, sim, isso mesmo!

— Santo Deus, Gato! — disse Andréia.

— Não entendo mais nada — disse a enfermeira Agnes. — Como é que sabe do sr. Schönhaus e de Langstrom e tudo?

— Também estivemos lá porque o doutor falava muito da Flórida — disse Andréia. — E falamos com o sr. Schönhaus, Agnes. Por isso meu marido logo imaginou que fosse. A firma Langstrom é das mais antigas e sólidas daqui.

— Sim, o pobre doutor também pensava assim.

— Como? Não são sérios?

— Não são sérios? — disse a enfermeira Agnes. — Não são sérios? Eles são criminosos! Assassinos! Mataram o pobre doutor e sua mulher. — Proferira as últimas palavras aos gritos.

— Ele escreveu isso na carta? — perguntou Andréia.

— Não, sou eu que digo isso, porque é verdade. E a polícia também vai dizer isso. Então depois que estiveram em Miami e olharam tudo, o lugar e os projetos, ficaram sosse­gados e fizeram um contrato com o sr. Schönhaus, e pagaram a entrada, para que ele a desse a uma firma construtora ame­ricana. E foi o que fez. E o doutor e sua mulher estavam muito felizes. Tudo custara muito dinheiro, das economias, certamente tudo o que o doutor conseguira economizar. Ele era previdente, por isso levariam uma boa vida na América.

— E o que aconteceu?

— Primeiro nada, durante alguns meses — disse Agnes. — Depois chegou uma carta do sr. Schönhaus pedindo que o doutor o procurasse. E quando ele chegou lá, o sr. Schönhaus disse que sentia muitíssimo, mas que tinha más notícias. Os policiais constataram que todo o projeto devia ser financiado quarenta por cento com dinheiro dos investidores e sessenta por cento com hipoteca de um banco americano. Mas com a inflação terrível nos Estados Unidos, que elevava depressa os custos da construção, e juros absurdos pela hipoteca, os cál­culos iniciais já não estavam corretos. Os adiantamentos dos compradores não eram mais suficientes, e os bancos ameri­canos não queriam aumentar o prazo de hipoteca.

— Gato — disse Andréia. — Gato, está ouvindo isso?

Eu não disse nada, sentindo uma raiva inaudita crescer em mim. Minhas mãos ainda tremiam. Cerrei os punhos.

— O sr. Schönhaus disse que faltavam vinte por cento do financiamento, que os compradores teriam que dar, senão todo o projeto correria perigo. Nessa ocasião o sr. Schönhaus também disse ao doutor que não tinha qualquer culpa. Nin­guém podia responsabilizá-lo pelo encarecimento. Nem pelos altos juros. Aliás, não se pode responsabilizar o sr. Schönhaus por coisa alguma. No contrato feito com ele consta apenas que devia entregar fielmente o dinheiro à construtora americana, nada mais.

— Sujeito de merda — disse eu.

— Mas e Langstrom, Gato! Langstrom! — Andréia sa­cudia a cabeça. — Uma firma tão séria, como pode ser isso?

— Também não entendo — disse eu.

— O que mais a polícia descobriu, enfermeira?

— O doutor e os outros investidores conseguiram juntar com dificuldade os vinte por cento que faltavam, e deram mais dinheiro ao sr. Schönhaus. Foi muito duro para o doutor. Ele teve de hipotecar o consultório.

— Deve ter sido pouco antes da noite em que nos pareceu tão preocupado e nos falou de sua futura ida aos Estados Unidos e da Flórida — disse eu. — Prossiga, Agnes!

— Sim... — Ela passou de novo a mão nos olhos verme­lhos e inchados. — Por algum tempo aparentemente tudo se acalmou. Depois veio uma carta que o sr. Schönhaus escreveu há duas semanas. Chamando o doutor. O sr. Schönhaus es­tava totalmente desesperado, porque...

— ...o cálculo não estava certo mais uma vez — com­pletei.

— Exatamente. Pela inflação e o aumento de custos da construção, tudo encarecera tanto que era preciso sem falta dar mais dez por cento, ou tudo iria pelos ares, pois o banco dos Estados Unidos simplesmente voltara a pedir dinheiro. Ou retiraria a hipoteca. Pobre doutor! Ele não pôde mais mandar dinheiro, porque não tinha mais nenhum. E assim há três dias o sr. Schönhaus lhe disse que ele não receberia o apartamento, que já estava em fase de construção. O doutor viu que o dinheiro já pago fora perdido. O sr. Schönhaus lamentou mui­to. Então o doutor perdeu o controle, só pensava ainda na Flórida, Flórida, segurança, paz e o apartamento. E tinha dívidas, todas as suas economias se tinham ido. Estava com sessenta e nove anos, gasto e esgotado, e nunca mais iria com sua mulher para a América. Ele não resistiu a essa idéia, nem sua pobre mulher. Estavam completamente desesperados. Controlavam-se incrivelmente, ninguém notava como era grave a sua situação, nem mesmo eu — disse a gorda enfermeira Agnes. — Na carta o doutor pedia perdão a todas as pacien­tes, porque as estava abandonando. Escreveu que simples­mente não podia mais prosseguir. E deu nome e endereço de um colega, um médico muito bom, que conheço, chama-se Dr. Wegner, e o doutor pediu que dessem a esse colega a mesma confiança que tinham dado a ele... — Agnes ergueu os olhos. — O bom doutor e sua querida esposa! Duas pessoas tão boas. Uma vida tão dura, depois um fim desses. Não existe mais justiça no mundo, sra. Kent. Não existe mais justiça.

E começou a chorar novamente.

 

— Santo Deus! — disse o comissário Hübner. — Foi com Langstrom que aconteceu isso a seu médico? Langstrom?

Estava em nossa casa, como de hábito. Desta vez está­vamos na sala; diante de Hübner e de mim, copos de uísque cheios. Andréia bebia cerveja. Tornara-se habitual o comissário beber em nossa casa; entre nós se estabelecera uma ligação singular.

— Sim — confirmei —, Langstrom. Até onde sei, é uma das firmas mais conceituadas que existe.

— Era — disse Hübner.

— Como? — perguntou Andréia.

— Quero dizer, cara senhora, que os herdeiros de Langs­trom venderam a firma há um ano e meio... a firma com todas as instalações e o bom nome também.

— Gato! — exclamou Andréia, assustada.

— Venderam para quem? — perguntei, perturbado.

— A um grupo de corretores pouco sérios. Por que me olham desse jeito?

— Porque por um fio nós também quase compramos um apartamento de Langstrom nos Estados Unidos.

— Sorte não terem feito isso — disse Hübner. — Ou lhes teria provavelmente acontecido algo semelhante ao que acon­teceu com o pobre Dr. Kahler, que Deus o tenha. Langstrom está fazendo negócios desse tipo o tempo todo, com os novos donos e o bom nome antigo, porque as pessoas acham que podem confiar nesse nome. Os senhores também confiaram, não é?

— E como — disse eu, apertando a mão de Andréia. Ela me encarou, muda, balançando a cabeça.

— É uma profissão dos diabos — disse o comissário. — A tentação de ser desonesto é muito grande. E é fácil para essas pessoas lograr os outros. Pela sua posição, e maneira de realizar os contratos, nunca podem ser atingidos, presos... um emprego maravilhoso esse, que negocia com o medo!

— Negocia com o medo — repeti. — Claro, pode se ne­gociar com o medo. Negócios gigantescos com um medo gi­gantesco.

— Isso mesmo.

— Sim, mas em quem então ainda vai se confiar, se Lan­gstrom não é mais Langstrom? — perguntou Andréia.

— Ora, ainda há muitos corretores decentes. É preciso informar-se no sindicato dos corretores. O senhor fez isso, sr. Kent? Não. Langstrom era um nome mágico, e lhe bastou. Infelizmente, basta para muita gente. Mas não vai continuar sempre assim. Contudo, até que se espalhe que tipo de negó­cios dúbios fazem os novos donos da Langstrom, muitas pes­soas ainda vão perder seu dinheiro. — Olhou para a garrafa de uísque. — Ainda tem algum?

Enchi o copo dele. Que tipo, esse comissário Hübner.

— Vou lhe explicar direitinho como cagam esses correto­res desonestos — disse ele. — OK? Tudo bem. Primeiro um desses sujeitos lhe tira dez por cento adiantados, quando o se­nhor se decidiu a comprar. Isso é a primeira facada. Importan­te: nos Estados Unidos não existem registros de imóveis. Por­tanto, o senhor tem apenas o dever de adquirir nos Estados Unidos um terreno, uma casa, uma fazenda, um laranjal, uma sociedade num poço de petróleo. Sim, sim, sim, lá tem disso também... Num empreendimento tão grande como um condo­mínio com supermercado, ele naturalmente não conseguirá todo o dinheiro vivo. Então trabalha como no caso do Dr. Kahler: quarenta por cento da soma vêm de investidores ale­mães, sessenta por cento o banco americano dá como hipoteca.

— Por causa dos belos olhos azuis do corretor? — pergun­tei.

— Bom, claro que não. A construção traz valorização da terra. O supermercado e os apartamentos que não são vendi­dos mas alugados trazem lucros. Com isso se paga a hipoteca. Bem plausível, não?

— Sim — disse eu.

Ele bebeu e enxugou os lábios.

— Agora, a facada seguinte. Alguém tem que construir essa coisa gigantesca, não é? Uma companhia americana, tudo bem, sim. Mas se os senhores tivessem de cuidar dessa construção, aqui na Europa, não teriam mais tempo para nada. Por isso, seu corretor alemão lhe diz que existe uma antiga firma, muito conceituada, especializada em adminis­tração de construções desses conjuntos residenciais e comer­ciais combinados. O melhor é fazer um contrato com essa firma. Eles garantem que tudo correrá bem e que os senhores não terão de se incomodar com nada! Isso em troca de uma comissão. Comissão, entendem? Já será a segunda comissão, portanto, a segunda facada de um corretor esperto.

— Como? — perguntei.

— Bem, porque essa antiga firma americana também per­tence a ele, ou pelo menos ele tem parte nela — disse An­dréia.

— Meus respeitos, senhora! — Hübner alegrou-se. — De­via ser agente criminal!

— Está ouvindo, Gato!

Hübner disse:

— O corretor também tem a administração da constru­ção no bolso, e com isso duas comissões. Mas agora vem a grande facada. A hipoteca tem que ser paga.

— Com os aluguéis — completei.

— Isso mesmo. Mas quem garante que tudo será alugado, que os aluguéis serão pagos e que não será o senhor o respon­sável pela hipoteca? Quem, hein?

— Mais uma antiga firma especializada — disse Andréia. — Que também pertence a ele, ou pelo menos parte.

— Bravo — disse Hübner. — Saúde, senhora! Acertou na mosca. Naturalmente, em troca de uma comissão; de al­guma forma ela tem de ganhar, não? Essa firma lhe garante por três anos que os aluguéis servirão para pagamento da hipo­teca. Que me dizem agora? Não é maravilhoso? Não se paga com prazer mais uma comissão para poder dormir sossegado? Pois mesmo que a firma não conseguisse alugar tudo, os se­nhores não terão nada com isso. Terão toda a garantia por três anos.

— Mas isso é uma sacanagem!

— Claro que é, especialmente se os três anos passam e os apartamentos continuam vazios, e os juros continuam e a hi­poteca tem de ser paga. Então cada um dos investidores tem de largar dinheiro até ir à falência. O que são três anos diante de hipotecas tão altas? Nada, uma bostinha. Tudo bem. Mais um, mas por favor sem gelo. Muito obrigado! Realmente, Chivas é o melhor uísque. São apenas alguns dos truques sujos que esses caras sempre usam. E ainda há muitos outros. Por exemplo, essa história com elevação dos preços de construção, dos juros de hipoteca que sobem astronomicamente. E o di­nheiro que o cliente tem de pagar para não perder tudo o que já deu. Foi o que aconteceu com o Dr. Kahler. Na segunda vez ele não conseguiu mais dinheiro, e com isso foi eliminado. Não se assustem, seu apartamento será ocupado... mas por outra pessoa, é claro. No momento em que Kahler e muitos outros que não puderam mais acompanhar ficaram de fora, os apartamentos naturalmente foram oferecidos a outros interessados. E o carrossel continua. Como eu disse: a grande maioria dos corretores imobiliários é decente. Mas nessa onda de medo de hoje, há muitos bandidos na profissão.

— Diabos — disse eu. — E essa gente anda por aí livre, e não se pode fazer nada!

— Isso mesmo — disse o comissário Hübner; bebeu, olhou o copo e acrescentou baixinho: — O medo é a raiz de todas as forças más.

 

O Dr. Klaus Wegner tinha seu consultório e moradia na Werderstrasse, perto da estação da Rádio Norddeutsches Rundfunk. Poucos dias depois do suicídio do Dr. Kahler, acompanhei Andréia pela primeira vez àquele médico que Kahler, em sua carta de despedida, recomendara como seu sucessor.

O Dr. Wegner era um homem de seus cinqüenta anos, calmo, amável e otimista, tipo comum de se encontrar entre médicos de senhoras. Era grande, cabelo louro, olhos cinzen­tos, rosto fino, testa alta, lábios cheios e mãos esguias mas muito fortes. Era amigo de Kahler.

— Se minha mulher e eu tivéssemos tido idéia da situa­ção grave de Otto... Talvez eu tivesse podido ajudar... Mas ele não revelava nada... nem para suas pacientes, não?

— Isso mesmo — disse Andréia. — Jamais notei coisa alguma.

— Ele se consumia por dentro de desespero — disse Wegner. — Muito ruim, isso. Um médico maravilhoso, um ser humano maravilhoso. Fico muito honrado por ele me ter reco­mendado, mas é também uma grande responsabilidade. Terei de ser sempre tão bom quanto possível para ser um sucessor digno. Também para a senhora não deve ser fácil confiar-se de repente a um novo médico, sra. Kent.

— Mas, não... — começou Andréia, e ele a interrompeu.

— Sim, sim, não é fácil, sei disso. Para a senhora e todas as outras clientes desse meu venerado amigo. Todas o co­nheciam tão bem! E agora, ter uma pessoa estranha no lugar dele, com a qual terá de falar sobre suas coisas mais privadas e íntimas. — Suspirou. — A maioria das pacientes do Dr. Kahler veio me procurar... e viam-se nitidamente suas dúvidas e receios. Muitas provavelmente não voltarão...

— Eu voltarei, doutor — disse Andréia. — Tenho con­fiança no senhor, e confiava quando ainda nem o conhecia. O Dr. Kahler jamais me teria recomendado outro médico senão o melhor que conhecesse.

O Dr. Wegner ficou vermelho de alegria e embaraço. Fiquei muito orgulhoso de Andréia.

— Não seja impaciente agora — disse ela. — Muitas das pacientes do Dr. Kahler o conheciam há muitos anos, e natu­ralmente agora estão inquietas ou inibidas. Mas o senhor con­quistará a plena confiança delas, como o Dr. Kahler fez, se tiver paciência e imaginar-se no lugar de todas elas.

— Agradeço-lhe, senhora — disse o Dr. Wegner —, não sabe o quanto suas palavras me ajudam. Espero não a decep­cionar; o exame mostrou que tudo está na mais perfeita ordem. Agora serei eu em lugar do Dr. Kahler a ajudar seu bebê a vir ao mundo. Será um bebê perfeito, com parto perfeito.

— Fazemos tudo para que seja fácil — disse eu.

— Posso imaginar — disse ele.

— Estamos aqui para um exame, Gato, não para nos vangloriarmos.

— Mas quem está se vangloriando, Esquilinha? Para mim, é uma alegria!

— Vocês são o casal mais simpático que conheço — disse o Dr. Wegner.

— O senhor também é fabuloso — disse Andréia.

O Dr. Wegner voltou a ficar vermelho. Corava com faci­lidade. Isso contribuía muito para o seu charme. Ele olhou para mim.

— Ainda nem sinal do sr. Langenau? — perguntou.

— Não — respondi. — Mas como? Conhece-o?

O Dr. Wegner fez que sim:

— Somos amigos.

— São...

— Sim, amigos.

— Mas nem sabíamos de nada — disse Andréia. — E eu pensava que conhecíamos bem Langenau.

— Talvez ele não os quisesse assustar sem motivo — disse Wegner.

— Assustar sem motivo? O que quer dizer isso? — per­guntei.

— Ele veio há três anos... três e meio, com uma jovem... sua namorada... por uma ninharia. Foi realmente uma ninha­ria... Bem, os dois voltaram e ficamos amigos. Um sujeito muito bom. A moça também era muito simpática. Separaram-se logo depois, acho que suas relações femininas nunca dura­vam muito.

— Sim — disse Andréia. — Mas o senhor continuou amigo dele?

— Sim. Ele coleciona armas antigas, não é? Bem, eu também faço isso. Assim começou a amizade. E tornou-se profunda pelo nosso ódio comum a esses malditos neonazistas. No ano passado Conrad andou trabalhando em Munique, e esteve presente no grande atentado na Oktoberfest.

— Santo Deus — disse Andréia... — Disso também não sabemos nada.

— Eu disse que ele não os queria assustar — disse o médico. — Conrad esteve metido bem no meio daquela enorme e terrível porcaria.

A 26 de setembro de 1980, às 22h18min, na Theresienwiese em Munique, onde àquela hora havia umas duzentas mil pessoas, explodiu uma bomba que causou um horrendo banho de sangue. Treze pessoas foram despedaçadas, duzentas e três feridas. Membros espalhados por um trecho enorme: cabeças, braços e pernas. Por um erro na instalação do relógio, a bom­ba explodiu cedo e matou o terrorista, Gundolf Wilfried Köhler, de apenas vinte e um anos. Suas estreitas relações com as ligas neonazistas de ultradireitistas puderam ser comprovadas sem dificuldade.

Ao contrário dos grupos radicais de esquerda, escandalosamente, nenhuma dessas organizações fascistas que começa­vam a se difundir com uma imensa rede internacional era proibida. Ao contrário do que acontece com atentados terro­ristas de esquerda, em breve esse atentado da direita já nem era mais comentado por todos os meios de comunicação, de modo que parecia que algo estava sendo propositadamente abafado. Até aquele dia, em dezembro de 1981, em que eu falava com Andréia e Dr. Wegner sobre o sinistro assassinato, ele ainda não havia sido esclarecido.

Wegner prosseguiu:

— Os senhores certamente ficaram muito indignados com isso, como muitas outras pessoas, pois aparentemente as autoridades varreram esse crime para baixo do tapete.

— Sim — disse Andréia.

— Injustiça — disse o médico. — Desde o primeiro mi­nuto trabalha-se febrilmente na tentativa de esclarecer o aten­tado. Por determinados motivos, com muita discrição e sem informar a opinião pública antes da solução. Sei disso através de Conrad.

— Ele lhe disse?

— Sim.

— Mas como é que ele sabia...

— O senhor o conheceu, sr. Kent. Conhecia suas posi­ções. Era um antifascista encarniçado, portanto também con­tra qualquer racismo. Daí sua amizade com os turcos. Ele sem dúvida não vive mais. Foi assassinado, com toda certeza. Digo isso com grande amargura. Mas ele não foi morto por favore­cer tanto os estrangeiros, e sim porque ele e seus amigos desde o começo ajudaram a polícia a lançar luz nas trevas em torno desse atentado, esse crime na Theresienwiese. Por suas muitas ligações, Conrad era um dos homens mais importantes na tentativa de elucidação desse crime. Parece ter encontrado uma ótima pista, por isso teve de morrer. Estou convencido disso...

 

— Também estou convencido disso, agora que você me contou — disse Walter Hernin. Estava sentado comigo no Cat’s Corner. — Um assassinato, com todos os seus riscos, só por causa da simpatia de Langenau com estrangeiros? Sempre duvidei disso. Mas se ele realmente encontrou algo que possa esclarecer ou ajudar a esclarecer o crime da Oktoberfest, então ele representava uma ameaça para esses criminosos da direita radical. Pobre Langenau... — Hernin olhava fixo para um ponto no vazio.

Quinze minutos antes ele viera com Patty para se despedir de nós. No fim da tarde daquele dia de dezembro, quando nevava intensamente em Hamburgo, partiria o trem expresso que levaria Hernin e Patty para Berlim Ocidental. Lá passa­riam a noite, e na outra manhã iriam do aeroporto de Berlim Oriental, Schönfeld, voariam a Breslau, e depois pegariam outro trem. Teriam de fazer mais duas baldeações antes de chegarem a Águas Perdidas, a aldeia tão pequena que não aparecia no mapa.

Patty estava no subsolo despedindo-se das crianças. Ou­víamos seus gritos e risos excitados. As crianças também estavam impressionadíssimas pelas histórias de Hernin sobre a aldeia de Águas Perdidas, onde as fontes saltavam como chafa­rizes nos prados e veredas e campos lavrados.

— Estou tão nervoso quanto Patty — disse meu amigo Hernin. — É um momento muito importante na minha vida. por tanto tempo desejei fazer essa viagem, agora por fim che­gou a hora. Acho que tudo o que realmente desejamos acaba acontecendo, é preciso ter paciência e aguardar o momento certo.

— Vamos sentir muito a sua falta — disse eu.

— Nós também de vocês, Peter. — Ele passou a mão nos olhos. — Em janeiro estaremos de volta. E quantas coisas teremos para contar, meu Deus! E naturalmente escreveremos logo. Talvez até possamos telefonar. De qualquer modo tenta­remos tudo.

Patty e Andréia entraram na sala. Patty parecia muito feliz. Trazia debaixo do braço o grande urso que eu lhe dera de aniversário. O urso também viajaria para Águas Perdidas.

— Veja aqui, vovô, Félix me deu isso.

No pescoço dela via-se uma fina corrente com um trevo de quatro folhas bem pequeno, esmaltado de verde. — Isso é para proteger e dar sorte — disse Félix.

Diante da livraria estava um dos táxis de Hernin, com a bagagem. O motorista esperava; Patty e Hernin estavam com grossas roupas de inverno, pois o amigo de Hernin, o cam­ponês Korczak, escrevera que em Águas Perdidas estava muito frio.

— Já temos de ir, vovô?

— Ainda temos um pouco de tempo — disse Hernin. — Sentem-se, por favor. Há um velho costume muito bonito na Rússia. Estive lá como soldado. Os camponeses o chamam de “o minuto”. — Ah, pensei, então não é só Eisenbeiss com sua mãe russa que conhece o ritual.

— Não falaremos — disse Hernin —; vamos apenas rezar uns pelos outros por um minuto, ou pensar uns nos outros, e desejar com toda a força que aos viajantes e aos que ficam não aconteça nada de mal, e que nos reencontremos com saúde e felizes.

Depois disso fez-se silêncio. Patty cruzara as mãozinhas em torno do grande urso, e seus lábios se moviam silenciosa­mente. Hernin estava de olhos fechados. Podíamos ouvir as crianças rindo no subsolo, e lá na frente Raven e o Apre falavam com clientes. Depois Hernin abriu novamente os olhos. Estavam úmidos. Todos nos abraçamos e nos beijamos, e Hernin e Patty vestiram seus casacões quentes. Depois de se despedirem também de Robert Stark e Clemens Raven, o ve­lho e a criança nos deixaram. Não podíamos sair com eles para a rua, porque lá fora começava uma tempestade de neve que fazia redemoinhar os flocos. Por isso Andréia e eu ficamos parados na porta de entrada, e através do vidro olhamos Her­nin e Patty indo para o táxi. Patty mancava como sempre, e pensei no que Hernin me sussurrara no ouvido por fim:

— Veja, ela quase não manca mais. Está andando nor­malmente outra vez, não é uma maravilha?

O velho e a criança viraram-se mais uma vez junto do táxi, ergueram os braços e acenaram, e também acenamos. Depois que os dois embarcaram, o motorista ligou o motor e acendeu os faróis. O Mercedes afastou-se deslizando, é logo desapareceu na tempestade de neve e no trânsito do fim de tarde.

Voltamos ao Cat’s Corner, Andréia esquecera seus óculos lá. Na mesa havia uma folha de papel com algo escrito na letra infantil de Patty.

— Ela pôs isso aqui na última hora — disse Andréia.

Patty escrevera no papel a exclamação do pequeno Tim na história de Natal de Charles Dickens:

DEUS NOS ABENÇOE A TODOS E A CADA UM DE NÓS EM PARTICULAR!

Isso foi na tarde de 11 de dezembro de 1981, sexta-feira.

No domingo, 13 de dezembro de 1981, às 3h da manhã, o primeiro-ministro e chefe das forças de combate polonesas, General Jaruzelski, e seus colegas mandaram desencadear uma ação noturna com a senha “Canário”: os militares toma­vam o poder no país.

 

Os Estados Unidos tinham sido informados com antece­dência do golpe iminente, como se soube pouco mais tarde em Bonn. O ministro do Exterior dos Estados Unidos, Haig, até se mostrou “animado” pela pálida afirmação de oficiais polo­neses de que as reformas da Polônia continuariam. A cum­plicidade das duas superpotências funcionou. Também funcio­nara antes — na construção do Muro de Berlim por exemplo, no Afeganistão, na entrada das tropas do Pacto de Varsóvia na Tchecoslováquia.

O primeiro objetivo era desfazer o “Solidariedade”. Lech Walesa e todos os líderes foram presos, além de milhares de membros. Os soldados tiraram a maior parte deles das camas. Parecia inconcebível que os líderes do “Solidariedade” fossem tão desinformados, pois nas últimas semanas o conflito com o Partido, agora convocado para apoiar os militares, se tinha aguçado ainda mais.

Foi baixada uma proibição para se sair do país. Soldados em uniforme de combate e gorros de pele andavam em todas as ruas, praças e edifícios públicos importantes. Diante do Parlamento em Varsóvia, na rádio, no aeroporto, e mesmo nas pontes do Vístula, postavam-se tanques. Telégrafo, telefone e telex para o exterior e interior foram cortados, a fronteira fe­chada. Viajantes suecos foram os primeiros a dar essas notí­cias sobre o país agora isolado.

Depois disso, dizia-se, militares haviam levado quarenta mil pessoas para um campo de concentração. Varsóvia estava isolada por tanques de guerra. Apesar da ameaça de pena de morte para grevistas, houve greves em massa na capital, em Kattowitz, em Danzig, na Alta Silésia e muitos outros lugares. Os militares atiravam. Morreram os primeiros trabalhadores. Centenas de feridos foram levados para os hospitais. As greves continuavam.

De baioneta calada e pistolas automáticas, os soldados vigiavam as barreiras de saída. Oficiais ocuparam os lugares de chefia nas fábricas e indústrias-chaves. Oficiais censura­vam os dois únicos jornais que ainda podiam ser publicados: o do Partido e o dos militares. Escolas e Universidades tiveram de fechar, locutores da televisão estatal tiveram de vestir unifor­mes.

Mais ainda: a situação econômica da Polônia há muito era catastrófica. Agora, o abastecimento falia completamente. As pessoas passavam fome. Passavam frio. Estava um frio gelado, e nevava dia e noite, também em muitos outros países, como a Alemanha.

A Europa tinha medo mais uma vez. Quanto tempo po­deriam as tropas soviéticas contemplar quietas aquele drama? Quando entrariam tropas russas na Polônia, por que os milita­res do General Jaruzelski não conseguiam impor a paz, uma paz de cemitério, no país? Viria então a grande guerra? O medo baixava como neve sobre toda a Europa.

O presidente americano proferia as piores ameaças a Moscou, exigindo punições econômicas contra a Polônia — como se as pessoas que sentiam fome e frio sob uma ditadura militar já não estivessem bastante castigadas com isso. (Reagan bloqueou os fornecimentos de alimento à Polônia, mas vendeu vinte e três milhões de toneladas de cereais aos sovié­ticos para não prejudicar seus próprios produtores.)

— Nossa pátria está à beira do abismo — disse o General Ministro Jaruzelski no primeiro dia depois do anúncio da lei marcial, na televisão, e justificou o estado de exceção como o último meio pacífico de salvar pelo menos parte das reformas sem que os soviéticos tivessem de intervir. Entretanto, essa tentativa de salvamento já se manifestava em ações tipo Ges­tapo, em violências em massa, e uma “normalização” segundo o modelo stalinista.

O Cardeal Primaz Glemp, o mais alto dignitário da Igreja no país, não negou que o governo interrompera o diálogo com os cidadãos, mas também disse: “Por isso pedirei — ainda que tenha de ser de joelhos e descalço — que nenhum polonês combata outro polonês. Operários, meus irmãos, não entre­gueis vossas cabeças, pois cabeças cortadas não valem muito. Cada cabeça, cada mão, porém, serão valiosas para a recons­trução que se seguirá depois desse estado de exceção.”

O Primaz Glemp suplicou em vão. Os operários continua­ram com as greves. Os soldados continuaram atirando. Polo­neses matavam poloneses.

O general não conseguiu pacificar o país.

Estou escrevendo estas linhas na terça-feira, 5 de outubro de 1982.

Muita coisa aconteceu depois disso que ocorreu na Polô­nia aquela ocasião, em dezembro de 1981. A Argentina e a Grã-Bretanha entraram em guerra pelas Ilhas Falklands, subi­tamente declarada propriedade nacional pela junta militar ar­gentina e ocupadas por soldados argentinos. Nos Estados Uni­dos apareceram mais de trezentos chamados Fear-Books, Li­vros do Medo. Sob a direção de Edward Kennedy e muitas outras personalidades famosas, surgiu um movimento pacifista americano protestando contra a política do governo e fazendo parecer insignificante tudo o que até então se fizera em re­lação a isso na Europa. No Líbano desencadeara-se uma guerra terrível entre Israel e Palestina. Os que mais sofriam eram na maioria civis, velhos, mulheres e crianças. Beirute foi destruída por ataques aéreos maciços dos israelenses. Milhares de pessoas morreram. Nos campos de refugiados palestinos de Sabra e Chatila, a oeste da cidade, as chamadas milícias cristãs realizaram um massacre bestial, vitimando mais de mil e quinhentas pessoas indefesas. No Golfo Pérsico a guerra entre Irã e Iraque voltava a ganhar nova intensidade. Dezenas de milhares foram mortos. E a República Federal da Alema­nha começou há poucos dias, a 1º de outubro de 1982, um novo governo.

O famoso psicólogo Bruno Bettelheim disse: “O ser hu­mano não pode se preocupar com tantas coisas ao mesmo tempo, por isso um medo facilmente substitui o outro.”

Isso quase soaria cínico. Os grandes e poderosos deste mundo são cínicos. Cínicos, e desprezam a humanidade. Quem ainda pensa no Afeganistão, e em El Salvador?

O que fizemos nós europeus aquela vez, naquele inverno polonês, quando nevava tanto? Muitos países europeus conti­nuavam dando crédito de bilhões à Polônia, financeiramente falida. Organizações assistenciais enviaram grandes quantida­des de víveres, remédios e carvão. Por toda parte na Europa reuniam-se centenas de milhares de pessoas protestando con­tra a violência e a favor da Polônia. Com isso, acalmamos totalmente nossa consciência. Tínhamos feito o que podíamos. E os russos, diziam muitos de nós, estavam numa situação muito difícil. Uma intervenção como outrora na Hungria ou na Tchecoslováquia ou no Afeganistão era algo que os russos não podiam mais se permitir, diante da posição americana. Também teriam, com isso, perdido definitivamente qualquer simpatia do último comunista europeu. Assim nos habituamos depressa a conviver com o nosso novo medo.

As pessoas se acostumam a tudo, sim, tudo. Os grandes e poderosos deste mundo sabem disso. Basta esperar um pouco até que as pessoas se habituem ao novo medo, ou se resignem a uma nova situação de medo. Às vezes demora um pouqui­nho, depois se pode continuar com o sistema. É apenas uma questão de tempo. Desse modo, por fim as pessoas até se conformarão totalmente com a idéia de que, infelizmente, tem de irromper uma guerra atômica, pois não há outra solução cor­reta para todos os imensos conflitos. Assim pensam os grandes e poderosos deste mundo.

 

No tempo de Advento trabalhamos duro o dia inteiro, e à noite estávamos todos mortos de cansaço. Quando por fim fechávamos a livraria, Andréia, Robert Stark, e seu grande amor, a linda enfermeira Bernadette, que sempre o apanhava antes ou depois do seu serviço, nosso fabuloso novo livreiro Clemens Raven e eu, ainda nos sentávamos no Cat’s Corner para descansarmos das atribulações do dia. Tomávamos um uísque, fumávamos um cigarro, nos alegrávamos pelo bom movimento do dia, e ouvíamos as últimas notícias.

Foi na segunda-feira, 21 de dezembro de 1981, que sou­bemos pelo rádio que a resistência ao regime militar na Polô­nia endurecia cada vez mais. Mil e trezentos camaradas ha­viam se encerrado nas minas de Zemovit, em Kattowita, de­pois de terem mandado pelos ares a torre de extração. A se­gunda entrada para a mina estava minada, para o caso de intervenção militar. Também se anunciava resistência cada vez maior na costa leste da Polônia. O número de mortos subira para mais de duzentos, os feridos eram mais de mil.

Desliguei o rádio, pois notei que Andréia estava pálida. Tudo aquilo a atingia muito, e ela andava muito infeliz naque­les dias. Pensava em Hernin e Patty, que estavam na Polônia e não davam qualquer notícia.

Nessa noite Clemens Raven disse:

— Sra. Kent, a senhora tem trabalhado demais todos os dias...

— Mas todos temos feito isso — interrompeu Andréia. Estava com os grandes óculos, e debaixo dos olhos havia olhei­ras de cansaço e dor. Embora eu tenha escrito que as pessoas se acostumam com tudo, Andréia era daquelas em que isso funciona muito devagar, ou nunca. Ela não se conformava com o que estava acontecendo na Polônia. Olhando para ela, pensei que jamais se resignaria, e fiquei a um tempo feliz e preocupado.

— Sim, claro — disse o Apre. — Todos trabalhamos duro. Mas não vamos ter bebê. É a senhora que vai ter o bebê. Por isso preparamos uma surpresa de Natal para a senhora.

— Surpresa de Natal? Para mim?

— E para seu marido, os senhores estão juntos — disse Raven. — Depois dos feriados a livraria vai ficar meio parada, até meados de janeiro, é sempre assim. E o sr. Stark e eu podemos muito bem fazer o balanço. Bem, então preparamos tudo. — Raven olhava Andréia, radiante.

— Prepararam o quê?

— Em Graubünden, na Suíça, existe um hotel maravi­lhoso — disse Raven. — Em Valbella, junto a Lenzerheide. Fica perto de Chur. Conhecidos meus estiveram lá há meio ano. Bem, o hotel é realmente fabuloso: piscina, sauna, tudo o que se pode imaginar. Fica num vale entre altas montanhas, comida excelente, quartos com todo conforto, donos muito amáveis, empregados idem. Ao redor, só paz, florestas e neve, neve, neve. Caminhos planos para passear. A senhora devia passear bastante, sra. Kent. O ar é magnífico. Vai dormir como nunca na vida. Vai descansar como nunca. Chama-se Posthotel Valbella. Tomamos a liberdade de reservar para a senhora e seu marido um quarto de casal com banheiro, muito bonito, de 24 de dezembro a 10 de janeiro. Também já temos as passagens de avião. Um carro de aluguel vai esperar pelos senhores em Zurique, e os levará até Valbella... são só 130 quilômetros.

— Está tudo arranjado — disse o Apre.

— Os donos do hotel são um casal, Walter e Miriam Trösch. Gente bem jovem — disse Raven. — Walter tem só trinta e um anos. Eles têm um bebê que vai fazer um ano agora, nasceu logo depois do Ano-Novo, quando meus amigos estavam lá. Miriam vai poder lhe contar muita coisa sobre bebês, sra. Kent. Vão gostar dela e do marido, são gente simpática. Todos são simpáticos em Valbella. Valbella... meus amigos disseram que parece outro mundo. Mas quando atravessar a rua diante do hotel, poderá comprar os mais recentes jornais de todo o mundo. E se quiser ver televisão, há seis programas, dois alemães. A senhora está esgotada de traba­lhar, essa história da Polônia a abateu tanto... Sra. Kent, lá é o paraíso. A senhora tem de ir já por causa do bebê.

— Acho a idéia maravilhosa. Minha mulher realmente precisa descansar — disse eu. — Iremos a Valbella. E agrade­cemos por terem pensado nisso, Raven, Bernadette, Robert.

Andréia demorou um pouco, depois também concordou.

— Vou lhe dar a chave do nosso apartamento, sr. Raven — disse ela. — E fará a gentileza de ver nossa correspon­dência e cuidar das flores, sim? E vamos telefonar todos os dias para eu ficar tranqüila e saber que tudo aqui está bem.

— Tudo estará bem, sra. Kent — disse Raven. — No Posthotel há um grande cão são-bernardo, bonachão, chama­do Peru, com quem se pode brincar à vontade. E se tiver vontade de comer algo especial, o chefe da cozinha prepara para a senhora.

Andréia estava rindo de repente, e parecia feliz. Também agradeceu por terem pensado nela, dizendo como estava ale­gre. A neve continuava caindo em nossa cidade, e em nosso país... e sobre a Polônia.

 

— Comissário Rolland?

— Sim?

— Aqui é o comissário Hübner, de Hamburgo.

— Ah, bom-dia, comissário. Alegro-me por ouvir sua voz.

— Tudo bem.

— Que posso fazer pelo senhor?

— Trata-se de maître Charles Duhamel, aliás, Peter Kent.

— Está na hora?

— Ainda não. As centrais da Interpol de Wiesbaden, Paris, Viena e Berna conhecem a nossa decisão?

— Claro. Todos concordaram aquela vez.

— Tudo bem. A Interpol também avisou as polícias dos quatro países e deu as instruções necessárias?

— Mas, claro, comissário, estão todos avisados.

— Conhece seu colega da Interpol, em Berna?

— Velho amigo meu.

— Ouvi dizer. Por isso estou telefonando, comissário. Faça contato com seu amigo. Temos de ter absoluta certeza de que mesmo a menor delegacia de polícia da Suíça sabe da nossa decisão. Estou há muito tempo nessa canoa. Sei como as coi­sas são rapidamente esquecidas e negligenciadas. E não deve acontecer mais nada, ouviu, comissário? Nada, senão tudo o que fizemos até agora seria em vão, e nunca chegaríamos ao nosso objetivo.

— Falarei com meu amigo em Berna. Por que a Suíça lhe interessa?

— Porque maître Duhamel me disse que de 24 de dezem­bro a 10 de janeiro estará com sua mulher de férias na Suíça.

— Ahá!

— Em Valbella, Lenzerheide, no Posthotel.

— Posthotel, Valbella, Lenzerheide, anotei.

— Também o mais simples policial suíço tem de ser lem­brado de nossa decisão. Os policiais de Lenzerheide, o policial da aldeia de Valbella, todos os agentes da fronteira. Dei mais uma vez alarma geral aqui na Alemanha. Ou maître Duhamel acabará sendo preso ao passar a fronteira. Isso não deve acon­tecer de modo algum.

— Claro que não. Maître Duhamel ficará absolutamente sossegado, claro. Telefonarei logo a Berna, fique descansado.

— Obrigado, comissário Rolland.

— Tudo bem. Boas Festas, comissário Hübner.

— Como? Ah, sim. Boas Festas para o senhor também.

 

Na primeira noite no Posthotel Valbella sonhei meu velho sonho dos elefantes. Estava deitado numa larga trilha de areia, e os grandes elefantes saíram dos arbustos ao redor e se deitaram ao meu lado no sol. Eram tão pacatos e amáveis, realmente uns elefantes muito amigos.

Quando acordei passava das nove, e Andréia ainda dormia ao meu lado. Fiquei deitado de costas e estava escuro no gran­de quarto, porque as cortinas estavam cerradas. Não me mexi para não acordá-la, e pensei que fora uma boa idéia nos man­darem para cá. Eu estava feliz.

De noite fizera muito frio, e as janelas atrás das cortinas estavam só entreabertas. Ouviam-se muitas vozes de fora. Os esquiadores há muito estavam acordados iniciando seus pas­seios. Outros hóspedes certamente iam passear e conversavam. Meu coração me dera um pouco de trabalho no dia anterior, embora Valbella ficasse apenas a mil e quinhentos metros acima do mar, mas nessa manhã nada me doía e o ar que entrava pela fresta atrás das cortinas era maravilhosamente puro, áspero como vinho rascante, e pensei novamente no quanto me sentia feliz.

Cerca de quinze minutos depois Andréia acordou e espreguiçou-se. Respirou fundo, ronronou como uma gata, gemeu de bem-estar. Depois me beijou e disse:

— Feliz Natal, meu Gato amado!

— Feliz Natal, minha Esquilinha amada!

Telefonei para a copa e um jovem garçom espanhol trouxe o café da manhã em duas bandejas. Pegamos as ban­dejas nos joelhos e tomamos na cama o café forte, o suco de laranja, comemos pãezinhos frescos, ovos cozidos, queijo e presunto. O garçom espanhol abrira as cortinas e uma luz clara entrava no quarto de lambris de madeira. Vimos a neve nos prados e pistas, e sobre as encostas e cumes um céu azul escuro e limpo. Embaixo uma larga faixa de floresta negra fechava a paisagem. Havia muitos teleféricos e esquiadores de roupas coloridas. Numa garganta via-se um lago congelado. Todas as coisas tinham contornos nítidos, e o olhar alcançava até muito longe.

Depois tocou o telefone na cabeceira. Atendi, e uma voz de homem disse:

— Fala Walter Trösch. — Era o jovem dono do hotel, que nos dera as boas-vindas na noite anterior com a mulher e nos levara até o quarto.

— Dormiram bem?

— Maravilhosamente.

— Há um rádio na sua cabeceira, sr. Kent — disse ele com sotaque suíço. — Cada botão sintoniza uma estação. No número um há música de fita o dia todo. Aperte, por favor. E abraços de todos em Hamburgo.

Apertei o botão um, e soou o The man I love, de Gerschwin, só a música, sem canto.

— Ah, Gato — disse Andréia.

— Sim — disse eu —, gente muito atenciosa mesmo esta daqui.

E nossa canção predileta soava, e um pouco de poeira de neve caía do telhado passando pela janela. Tinham nos dado um quarto sossegado, muito bonito, no andar superior.

 

Depois de termos tomado café e banho, vestimos nossas roupas de inverno e descemos para o grande saguão onde os hóspedes falavam inglês, italiano, alemão e francês. Na re­cepção estava deitado Peru, o são-bernardo, imenso e bomachão, que trotou um pouco ao nosso lado na neve e depois voltou a trote para o hotel.

O caminho estava bem limpo, dos dois lados empilha­vam-se montanhas de neve retirada. Primeiro passeamos pela floresta de árvores antigas, escorreguei duas vezes e caí. Tí­nhamos comprado nossas roupas de esporte de inverno em Hamburgo, estavam novas, eu não era muito ágil metido nelas, pois nunca as usara na vida. E nunca tivera férias na neve.

Fiquei sentado na neve dura, praguejando, e Andréia chorava de rir.

— Você fez isso como no cinema, Gato — disse ela. — De verdade! Por que não trabalha no cinema? Podia fazer uma grande carreira com esses truques.

— Não são truques — disse eu. — Caí realmente de bunda.

Ela trouxera uma câmera Minox e filmes, e me fotografou ali sentado na neve.

— Levante-se, senão vai congelar seu precioso traseiro, querido — disse ela, e ria, e recostou-se num tronco de árvore, derreada de tanto rir. Com o abalo, um bloco de neve soltou-se de um galho e caiu direto na minha cabeça. Fiquei meio so­terrado, e Andréia ainda ria e me fotografava. Quando me livrei e levantei, desabou novo bloco, e sumi na neve. Tinha o corpo coberto de suor ao me livrar, pois não estava habituado a esforço físico. Andréia fotografava feito doida, eu praguejava de calor, devia ter estado ali feito imbecil, e nisso surgiram dois rapazes com grandes pás de madeira, perguntando se eu me machucara. Respondi que não, eles nos desejaram Feliz Na­tal e continuaram limpando o caminho. Andei devagar e caute­losamente atrás de Andréia, e quando me virei ainda vi os dois rapazes trabalhando, e um pequeno limpador de neve verme­lho que lhes abria o caminho na estrada da floresta.

— A Suíça não é um país maravilhoso? — perguntou Andréia. — Tão organizado e moderno, e todas as pessoas tão amáveis. É o Natal mais bonito da minha vida. Para você também?

— Sim, Esquilinha — disse eu, e novamente escorreguei e caí, mas desta vez nós dois rimos. — Realmente um país maravilhoso, essa Suíça — disse eu. — Veja só, os dois rapa­zes estão voltando para ver se me machuquei.

Fizeram isso realmente, e eu disse que estava tudo bem, eu tinha caído de propósito para divertir minha mulherzinha, e um dos dois disse:

— Ah, o senhor é artista cômico. De onde vem?

— Hamburgo.

— É um cômico alemão — disse um rapaz ao outro. — Muitos alemães são comediantes. Muitos ingleses também. Pe­gue uma bengala para o cavalheiro, Markus, há muitas no jipe.

O rapaz chamado Markus correu até a estrada onde havia um jipe. Trouxe uma bengala, agradeci, perguntando onde podia devolver, e Markus respondeu:

— Fique com ela o tempo que quiser. Depois pode entre­gar na portaria do Posthotel.

— Vocês são do Posthotel? — perguntou Andréia.

— Sim, madame — disse ele. — Ficamos rodando por aí para limpar os caminhos e cuidar para que não aconteça nada com os teleféricos e as pistas de patinação.

Quis dar-lhes gorjeta, mas não aceitaram.

— Nem se fala nisso — disse Markus. — Bom-dia.

— Obrigada — disse Andréia.

Com a bengala consegui andar bem e apenas tive medo de que Andréia caísse. Quando eu lhe disse isso, ela sacudiu a cabeça, afirmando que jamais cairia. Estava fresco e penumbroso na floresta, e quando chegamos ao sol da planura ao redor do grande lago, a claridade ofuscava, e tínhamos de apertar os olhos. De repente vi a paisagem em todas as cores do arco-íris: os outros hotéis e uma igrejinha, muitos trenós e carros andando para lá e para cá, as montanhas verticais ali perto, altíssimas. Sobre elas arqueava-se um céu colorido pelo arco-íris. A claridade ali era tão intensa que mal se podia suportar. Andréia tirou dois pares de óculos escuros do bolso do casaco de peles, e me deu um. Troquei-os pelos meus óculos de vidro comum e disse:

— Boa Esquilinha, pensa em tudo. — E ela disse:

— O que é que esse Gato faria sem a sua boa Esquilinha?

— Estaria perdido, totalmente perdido.

E nos beijamos, e alguns menininhos de esqui nos olha­ram curiosos. Três deles assobiaram alto entre os dedos.

O caminho levava direto ao lago. Embora à primeira vista parecesse bem próximo, agora via-se que era longe, e senti umas pontadas leves no coração. Mas logo vi que não era nada importante, e respirei, o mais fundo que pude, aquele ar ma­ravilhoso. E as dores pararam outra vez.

Por fim voltamos ao hotel. Um caminho e tanto. Vimos, como antes, a casa bem perto do lago, mas era como se re­cuasse, e quando por fim chegamos lá, estávamos com muita fome.

O Posthotel tinha três refeitórios diferentes, um elegante e dois rústicos, com lambris de madeira e toalhas de mesa ver­melhas. Logo gostamos do estilo rústico, por isso almoçamos ali. A garçonete que nos serviu em traje típico era uma moci­nha bonita chamada Gaby, e conversamos com ela. Gaby con­tou que era noiva e se casaria em breve. Tinha um rosto fino, e era amável como todos naquele hotel.

Depois da comida sentimo-nos muito cansados. Atra­vessei depressa a rua até a lojinha, onde comprei jornais suí­ços, alemães e franceses. Depois fomos para a cama. Antes de ler uma página eu já estava dormindo, Andréia mais depressa ainda.

Quando acordei passava das cinco. Andréia ainda dor­mia, e li nos jornais o que acontecia na Polônia.

Um jovem soldado fora executado “por negligência do dever”, pois se recusara a atirar sobre os grevistas na fábrica de tratores Ursus. Os soldados que ocupavam o estaleiro Lênin em Danzig, em contrapartida, tinham feito amizade com os operários e davam carvões para os grevistas se aquecerem, através dos portões de grades, e pão também. No país inteiro continuavam as greves, e já havia mais de trezentos mortos, fuzilados por militares poloneses, e da pista de patinação soa­vam músicas de valsa e vozes alegres.

Depois Andréia acordou e pedimos chá, que o garçom espanhol trouxe. Da grande janela vimos que anoitecia deva­gar lá fora, e a neve a cada minuto assumia outra coloração. Os esquiadores voltavam das montanhas, e nas janelas dos bangalôs e outros hotéis acendiam-se as primeiras luzes.

— Não é uma vida boa? — perguntou Andréia. — Ah, querido, não é maravilhoso?

— Maravilhoso — respondi, pensando no jovem soldado fuzilado porque se recusara a disparar contra seus compatrio­tas. Provavelmente também fora operário, pensei. Mas não contei nada disso a Andréia e nos vestimos. Andréia falou:

— Vire-se, por favor, Gato! — Agora sempre dizia isso quando trocava de roupa. Já estava com uma barriga maior, mas não muito, e eu sempre lhe dizia isso. Mas ela sempre respondia: — Você está apenas sendo amável. Não quero que me veja assim. Vou ficar um verdadeiro barril, e você não vai mais gostar disso, e por isso quero que se vire. Quando o bebê chegar, vou ficar magra como antes. Aí vai poder me ver de novo.

Vestimos roupas mais leves e sapatos macios, e descemos de elevador para o saguão. Lá o sr. e a sra. Trösch pergun­taram se estávamos satisfeitos e queríamos alguma coisa mais, e Peru, o velho são-bernardo, estava deitado no meio do sa­guão, deixando que as crianças brincassem com ele. O sr. Trösch tinha grandes planos, queria aumentar o hotel, porque aí também se poderia passar lindas férias no verão, e ele se esforçava muito para oferecer diversões variadas aos hóspedes à noite. Já haviam anunciado um desfile de modas de peles e um mágico famoso.

Miriam afastou-se com Andréia para mostrar-lhe o bebê e ter uma conversa de mulheres. Sentei-me no pequeno bar, com paredes igualmente forradas de madeira. Ainda não havia movimento àquela hora, só a garçonete e um músico estavam ali. Convidei os dois para um drinque, e depois comecei a tomar um pouco de uísque. O jovem tocava, a meu pedido, músicas de Cole Porter e Gerschwin num órgão Hammond, e eu segurava meu copo na mão, enquanto o gelo estalava nele ao derreter. Estava sentado no canto; tomei mais uns copos e refleti longamente.

 

Na noite de 25 de dezembro houve a grande festa de Natal. Os hóspedes usavam traje de noite, o grande salão de refeições estava enfeitado. O chefe dos garçons chamava-se Heinz Riezler, e disse que trabalhava no Posthotel há doze anos. Recomendou-me um vinho excelente, e Andréia tomou Malzbier, acompanhando o jantar festivo de muitos pratos. Havia velas acesas em todas as mesas, e o sr. e sra. Trösch andavam pela sala desejando bom proveito aos hóspedes. O órgão Hammond fora levado para lá, e o músico tocava duran­te o jantar.

Não consegui comer todo o jantar de Natal, mas Andréia comeu tudo, e até uma segunda porção de sorvete. Depois pediu pepinos azedos. Tínhamos uma mesa na janela, só para nós, e Andréia me contou que o bebê Trösch se chamava Luzia, era muito bonito, e Miriam lhe dera bons conselhos. E me mostrou uma pequena agenda, onde anotara todas as boas sugestões.

— Ah, Gato, meu Gato amado — perguntou ela —, acha que ficaria muito esquisito se eu ainda pedisse um prato de cebolinhas?

Depois do jantar subimos para o quarto. As camas esta­vam preparadas para a noite, na mesa um grande prato com diversos tipos de nozes e biscoitos de Natal. As cortinas esta­vam fechadas. Abri-as e olhamos para fora. Uma infinidade de luzes brilhavam agora no amplo vale, e subiam pelas en­costas.

O garçom espanhol trouxe uma garrafa de uísque, água mineral, gelo e três garrafas de cerveja preta e copos, dizendo:

— Com os melhores cumprimentos do casal Trösch.

— Mas que gentileza — disse Andréia. — Muito obri­gada!

— Ainda está de serviço? — perguntei. — Desde esta manhã?

— Tive folga de tarde, entre as onze e as quatro e meia — disse ele.

— Não é trabalho demais?

— Muito trabalho é bom — disse ele. — Muito trabalho, muito dinheiro. Melhor época para todos nós, os garçons e o sr. Trösch.

Dei-lhe dez francos, e ele agradeceu educadamente, di­zendo que pela manhã traria uma geléia especial de sua pá­tria. E disse:

— Boa-noite, senhora, boa-noite, senhor, boa-noite, bebê — e sumiu.

Tirei o smoking e os sapatos e deitei-me na cama com as costas sobre os travesseiros. Li a programação de tele­visão para Andréia no jornal, realmente podia-se ver seis programas ali, como Raven dissera, e nos decidimos por um filme com Yves Montand e Romy Schneider, no ZDF. Como começasse só em quarenta minutos, tivemos tempo de tirar a roupa e tomar banho. Tive de esperar que Andréia saísse do banheiro e desviar os olhos enquanto ela vestia a camisola. Depois entrei no banheiro, e a seguir aproximei da cama uma mesinha, colocando nela garrafas e copos. Enquanto assis­tíamos ao filme, Andréia bebia cerveja preta, e eu uísque, excelente. O filme era bom, alegre e triste a um tempo, como todos os bons filmes. Ficamos encantados, e Andréia comen­tou:

— Que grande atriz essa Romy Schneider. E tão jovem. Quantos belos filmes ainda vai fazer! Você também gosta tanto dela, Gato?

— Eu gosto é de você — disse eu.

Depois do filme eu estava um pouco embriagado, e nós dois estávamos muito apaixonados. Naturalmente brincamos, mas Andréia insistiu em apagar a luz primeiro. Brincamos longo tempo, por fim adormecemos abraçados, peito a peito, e acordamos assim às oito e meia da manhã, um nos braços do outro, bem juntos.

— Estávamos muito cansados do passeio e do ar das montanhas — disse Andréia.

— E de brincar — disse eu.

— Sim, mas é preciso, você sabe: o mais possível de mo­vimento até o fim. Tem de ser, Gato.

— Reconheço isso, Esquilinha — disse eu. — Quer mais alguns pepinos azedos para o café?

Ela ficou radiante: — Você é tão bom comigo, Gato.

Peguei o fone e encomendei o café e um prato cheio de pepinos, depois abri as pesadas cortinas que tinha fechado antes de começar o filme. O sol brilhava outra vez no céu azul-escuro sobre os cumes brancos das montanhas, e no vale avistei as pequenas máquinas vermelhas de tirar neve, indo de um lado para o outro. O garçom espanhol trouxe o café, os pepinos e a geléia espanhola. Sua mãe lhe mandara um vidro grande. Ele vinha de perto de Barcelona, e chamava-se Mi­guel. Não quis aceitar dinheiro pela geléia.

— Então pelos pepinos — disse eu.

— Pelos pepinos, sim — disse ele. — Pepinos não são de minha mãe. Muchas gracias, señor.

 

Naquela manhã fomos a Lenzerheide. O caminho de dois quilômetros passava pela floresta. Lenzerheide era uma cidade minúscula, com muitos hotéis e lojas e um cinema. Valbella era apenas um povoado. Tínhamos reservado, por telefone, um trenó em Lenzerheide, e ele já estava lá, o cavalo atrelado, ao lado de uma série de estábulos. O cocheiro esperava, e Andréia tirou mais fotografias. O cocheiro era uma bela jo­vem, vestida como homem. Usava um gorro brejeiro, torto sobre os cabelos louros e curtos. O ar e o sol tinham queimado sua pele, que estava morena, e o trenó era antigo, de ferro trabalhado e madeira. A jovem esperou que nos sentássemos lado a lado — havia lugar exatamente para duas pessoas —, depois colocou cobertores macios e outros mais firmes sobre nós, e nos enrolou bem. Era muito forte, e no canto da boca tinha um charuto. Sentou-se na boléia e partimos, um trecho do trajeto por Lenzerheide, e depois saímos da estrada princi­pal. O cavalo andou depressa no começo, os sininhos balan­çando e tilintando, e Andréia tirava retratos. De repente o caminho ficou íngreme, as últimas casas ficaram para trás, e subimos a montanha por um cinturão de floresta, por fim na neve cintilante. Também ali tinham aberto o caminho com máquinas. Andréia apertava-se a mim e o cavalo andava deva­gar porque o caminho subia cada vez mais. Víamos Lenzer­heide e Valbella abaixo de nós. Quando vinham trenós ao nosso encontro, entrávamos em enseadas abertas na neve. Não havia mais automóveis naquela altura. A aldeia para onde íamos chamava-se Scharmoin, disse a bela mulher, e o cami­nho agora era tão íngreme que o cavalo só ia a passo. Nossa cocheira saltou da boléia para que o trenó ficasse mais leve, e andava ao nosso lado. O cavalo começou a suar, o lombo brilhava molhado no sol forte. Andréia dera a Minox à moça, que nos fotografou algumas vezes. Usávamos outra vez nossos óculos de sol.

Lá em cima havia apenas neve. Nós e a neve, e as monta­nhas em redor, incrivelmente altas. De repente senti-me total­mente absurdo e insignificante. Talvez lhe pareça bobagem, meu bem, mas era assim que me sentia. Por algum tempo o sol esteve diretamente à nossa frente, e o mundo era apenas um arco-íris. Como o ar estivesse mais rarefeito, pensei que fora bom eu ter engolido secretamente uma cápsula de nitro em Lenzerheide; assim, me sentia bem. Quanto mais arrebata­dora era a paisagem, mais nitidamente eu percebia que é pre­ciso compreender as pessoas que acreditam em Deus. Já não falávamos mais, apenas nos olhávamos muitas vezes, e o ca­valo agora arquejava, tão íngreme era a subida. Por fim che­gamos a Scharmoin. Era a meio caminho até Rothorn, disse a moça, e até onde pude observar, a aldeia não passava de meia dúzia de casas. A jovem nos tirou dos cobertores, e quando descemos, Andréia e eu, ficamos muito tontos, mas a cocheira disse que passaria logo. A mulher enxugou o cavalo, desatrelou-o e colocou-lhe um cobertor no lombo. Num estábulo, o cavalo recebeu comida e água. A jovem nos levou a uma casa de troncos, constando de um único aposento grande, onde comemos uma magnífica sopa de ervilha com lingüiça e tou­cinho. Havia cerveja, que Andréia podia tomar, não demais, claro, para o bebê não nascer alcoólatra. A moça sentou-se à nossa mesa e também tomou sopa com lingüiça e toucinho; depois tirou novamente fotografias nossas. Havia poucas pes­soas, todas falavam dialeto, por isso não as entendíamos. Ou­via-se música num rádio e ao meio-dia o locutor leu as notí­cias. Assim, também ali, em Graubünden, na minúscula e pacífica aldeia de Scharmoin, ouvimos que as greves dos polo­neses não paravam, e que havia mais mortos. Não havia árvores de Natal nem presentes, nem o tradicional ganso de Natal, ou carpas. As pessoas famintas só podiam sonhar com essas coi­sas. Também não havia velas nem fósforos para acendê-las se houvesse algumas. Entrementes, disse o locutor, procuravam-se bodes expiatórios para a ação militar. Como durante as agitações estudantis de 1969, eram mais uma vez os judeus. Diante da entrada do teatro judeu em Varsóvia, desconhecidos tinham armado uma forca sobre o muro, com uma estrela-de-davi. Convidei a jovem para tomar comigo um copinho de aguardente clara, que quase me sufocou, trazendo-me lágri­mas aos olhos. Depois ela tirou o cavalo do estábulo, atre­lou-o, enrolou-nos outra vez nos grossos cobertores, e começou a descida para o vale. A jovem tinha de puxar os freios ao máximo, e dirigir o cavalo com cuidado, mas disse que ele já sabia como andar, ele gostava de puxar trenós. Ela possuía mais quatro cavalos, que estavam a caminho com outros tre­nós e outros cocheiros. Era dona de uma empresa de trenós, e no momento estavam todos ocupados.

A moça nos levou até o Posthotel, pois disse que depois de subirmos a tamanha altura, devíamos estar cansados demais para andarmos a pé os dois quilômetros, e era verdade. Não aceitou gorjeta de modo algum, só o preço combinado, e vol­tou a Lenzerheide. Fomos ver Gaby na salinha rústica, porque apesar da sopa de ervilha tínhamos muita fome. Depois da comida caímos na cama outra vez, e dessa vez dormimos qua­se até as cinco e meia. Depois Andréia foi ver Miriam para aprender coisas sobre bebês, e fui nadar na piscina coberta, que ficava no subsolo. Pelas janelas eu via as luzes dos auto­móveis que rodavam na noite gélida. Lá dentro, na água, estava quente. Enxuguei-me, vesti calças e pulôver e fui ao saguão, onde ardia uma imensa lareira. Pedi uísque à garço­nete, e a bela senhora do bar me trouxe pessoalmente uma garrafa. Colocou gelo e soda à minha frente e disse:

— Farei um sinal no rótulo, depois veremos quanto o senhor bebeu.

Depois de preparar um drinque grande, coloquei os pés sobre a mesa. Estava sozinho no saguão. Ouvi música e vozes de longe; era um hotel muito grande. Fiquei olhando as laba­redas enquanto bebia o uísque frio, e tive de repente a sen­sação de que não morreria nunca.

 

Assim se passaram os dias.

O tempo continuava bonito, e todas as manhãs passeá­vamos, sempre por novos caminhos. Nossa vida entrara num ritmo regular. Não assistimos ao desfile de peles nem à apre­sentação do grande mágico. Depois do jantar íamos sempre para o nosso quarto ver televisão, depois fazer amor. Telefoná­vamos diariamente a Hamburgo, e o sr. Raven ou o Apre nos contava que vinha pouca gente à loja, porque pesadas nevascas caíam sobre Hamburgo, e todas as ruas estavam cobertas de neve. Também as crianças não estavam vindo. Tudo quieto na livraria, disseram o sr. Raven e o Apre. Andréia também telefonou duas vezes para os pais.

Na última noite do ano houve nova festa de gala no Posthotel, e quatro orquestras tocavam, três distribuídas pela casa, e uma embaixo, no subsolo do jazz. E bebia-se, dançava-se, ria-se. Ficamos olhando algum tempo, depois fomos para o quarto e nos deitamos na larga cama. Andréia contou histórias de sua infância, um tempo muito feliz. Às onze e meia vimos muitos lampiões acendendo lá fora. Pessoas embuçadas carregavam-nos, indo pela neve à igreja próxima. Os sinos tinham come­çado a tocar. Apagamos a luz no quarto, abrimos bem as cortinas e contemplamos a procissão de silhuetas e lampiões balouçantes aproximando-se da igrejinha bem-iluminada. Ves­timos nossos casacos quentes, e fomos à sacada. Ouvimos tam­bém o órgão da igreja, pequena demais para tanta gente. Muitos ficavam parados na neve diante da porta. Depois um sino agudo tocou doze vezes, e o ano velho terminara. As pessoas diante da igreja se abraçaram, e também nos abraça­mos. Agora as encostas começaram a relampejar, foguetes su­bindo e estourando.

Quando os fogos de artifício terminaram, as pessoas can­taram dentro e fora da igreja, e ouvimos outra vez o órgão, depois a voz do padre. Mas não podíamos entender o que ele dizia, e Andréia disse:

— Bom Deus, protege-nos, e faz com que seja uma crian­ça sadia! Conserva-nos a paz, e protege os pobres poloneses, e todas as pobres pessoas de todo o mundo! Amém!

Ainda ficamos longo tempo na sacada, à luz inquieta dos lampiões. Não havia vento algum naquela noite de Ano-Novo, e o céu era imenso, cravejado de estrelas.

Dessa vez também adormecemos estreitamente abraça­dos, como se fôssemos um só corpo, uma só pessoa.

 

Na segunda-feira, 2 de janeiro de 1982, estávamos outra vez em Hamburgo, morenos e repousados. Nevava muito, so­prava um vento forte. Nem a metade das crianças estavam na livraria.

— Foi lindo, mas estamos contentes por voltar — disse Andréia.

— Nós também — secundou o pequeno Félix Rosen.

Ainda havia pouco que fazer, e tínhamos muito tempo para brincar com as crianças. Robert Stark pôde algumas vezes sair mais cedo com Bernadette, quando ela o apanhava à noite. Tínhamos levado a uma loja da Alsterdorfer Strasse os muitos filmes com os retratos de férias para revelar e tirar cópias. A loja ficava quase em frente de nosso apartamento. Na segunda-feira seguinte, o dono da loja telefonou para a livraria e disse que os retratos estavam prontos. Andréia aten­dera o telefone.

— Vou apanhá-los logo — disse ela, e desligou. Ria divertida. — Todos os nossos retratos, Gato! Por favor, me dê as chaves do carro! Aqui não há nada a fazer, vou depressa até lá.

Pela vidraça da porta de entrada ainda vi o Mercedes desaparecer nos redemoinhos de neve. Era por volta das dez da manhã. Às onze Andréia ainda não tinha voltado. Às onze e meia fiquei preocupado. Ainda nevava intensamente. To­mara que ela não tenha sofrido um acidente, pensei. Não, pensei depois, é uma motorista experiente e cautelosa. Mas o tempo passava, e nada de ela voltar. Doze horas, doze e um quarto, meia hora. Cinco minutos, depois tocou o telefone. Corri até o Cat’s Corner e atendi.

— Kent.

— Aqui Hübner — soou a voz do comissário ruivo.

— Boa-tarde, comissário. — Agora eu estava muito ner­voso. — O que foi? Aconteceu alguma coisa?

— Receio que sim, sr. Kent. — Sua voz soava embarga­da. — Fiquei sabendo que sua esposa...

— Mas fale de uma vez! — berrei.

— Sua esposa sofreu um acidente grave. Foi levada ao Hospital Heidberg... Ela... ela tem de ser operada.

De repente eu estava gelado.

— O que quer dizer, operada... O que aconteceu?

— Ela foi atropelada... na faixa de pedestre... Recebi a comunicação pelo rádio... só sei que a ambulância a levou ao Heidberg, e que... — Eu já tinha desligado. Disquei o número do radiotáxi e pedi um carro, o mais depressa possível.

— Vai levar uns minutos, senhor — disse a mocinha ao telefone. — Nesse tempo os carros não podem rodar depressa, e estão todos na rua.

— É uma emergência! — gritei. — Minha mulher está gravemente ferida! Vai ser operada. Preciso ir até lá!

— Vamos fazer o possível — disse a moça.

Eu desabara sobre uma cadeira. Raven estava na porta, e ouvira o telefonema.

— Mas é horrível — disse ele, sua voz chegava de muito longe. Eu estava paralisado. Tinha a impressão de não poder me mover. Também não conseguia pensar. Só uma coisa: An­dréia vai ser operada. Andréia operada. Raven me trouxe um copo de uísque, que bebi puro, de um gole.

— Hospital Heidberg — disse eu. — Fica a quinze minu­tos de carro de nosso apartamento. Ela ia ter o bebê nesse hospital. — Então ocorreu-me: Dr. Wegner! Disquei seu nú­mero, uma secretária atendeu e disse que o doutor saíra para uma emergência.

— Emergência... no Hospital Heidberg?

— Sim, no Heidberg... Quem está falando?

— Peter Kent. Ele foi atender minha mulher?

— Sim, sr. Kent.

— O que há com ela? Que acidente foi esse?

— Não sei. Telefonaram do hospital, e ele saiu imediata­mente.

— Então é grave?

— Realmente não sei, sr. Kent... Sim... receio que seja grave... Por favor, não se descontrole agora... o doutor já deve estar com sua esposa...

Deixei cair o fone.

— Mais um uísque — disse eu.

Raven encheu o copo pela metade.

— Não deve ficar embriagado agora — disse.

O Apre entrou correndo na sala: — O táxi está aí!

Corri pela livraria, saí. Raven atrás de mim, eu estava saltando no fundo do táxi, ele ainda me jogou meu casacão.

— Hospital Heidberg — disse eu ao jovem motorista. — Por favor, vá depressa... Minha mulher está lá... Teve um acidente.

Ele partiu.

— Mais depressa, por favor!

Ele foi mais depressa.

— Mais depressa não dá? — Eu começava a transpirar.

— Mais depressa não dá, senhor. Não enxergo nada. Ou também teremos um acidente; estou indo o mais depressa que posso...

— Obrigado — disse eu. — Obrigado.

E então comecei a rezar.

 

O Hospital Heidberg fora uma caserna no tempo do Ter­ceiro Reich. Via-se que os nazistas o tinham construído. Via-se isso nas fachadas lisas e no portão de entrada gigan­tesco, pomposo. Paguei ao motorista e corri para a portaria, vestindo o casacão, pois estava com frio.

O porteiro, gripado e rouco, grasnou:

— Cirurgia, terceiro andar, sala cinco.

Corri pela tempestade de neve até o edifício da cirurgia, e subi num elevador ao terceiro andar. Lá errei por um labi­rinto de corredores, até chegar à sala cinco. Diante da alta e larga porta branca havia dois agentes de radiopatrulha, e ao lado da porta brilhava uma inscrição vermelha luminosa:

CIRURGIA!

ENTRADA PROIBIDA!

Corri para os dois agentes de casaco de couro.

— Sr. Kent?

— Sim. Minha mulher...

— Está lá dentro.

— Seu médico se chama Dr. Wegner...

— Está lá também... Está operando... Veio há meia hora.

Havia um banco ali, desabei em cima dele.

— É grave?

Os dois me olharam embaraçados.

— É grave? — berrei.

— Não. Não deve gritar aqui, sr. Kent.

— É grave? — sussurrei.

— Parecia grave — disse o primeiro policial.

— Muito grave — disse o segundo. — Não adianta men­tir para o senhor, sr. Kent.

O longo corredor estava vazio. A neve redemoinhava diante das janelas, o vento uivava.

“...cuidado por favor... na rua... o movimento...”

De repente ouvi uma voz, muito baixinha. Quem era? Quem dissera isso, quando, onde? Há muito tempo um ho­mem dissera isso para Andréia, eu sabia. Mas não sabia quem fora, nem me lembrei.

— Como foi que aconteceu? — perguntei.

— Diante da loja de fotos na Alsterdorfer Strasse há uma faixa de pedestres, não é? — disse o primeiro policial.

— Não. Sim. Não sei. E daí?

— Sua mulher andava sobre a faixa, sr. Kent. Queria andar. Nesse tempo de merda naturalmente a gente não vê muita coisa da faixa, só um pouco... Temos testemunhas... Eles viram o que aconteceu. Rockers.

— Como, rockers?

— Um desses grupos, um bando todo, talvez meia dú­zia... com suas motos pesadas... Vieram descendo a rua e pararam diante da faixa... Não pararam direito... faziam aquele maldito teatro de fingir que paravam e davam a parti­da, e parar de novo, e meter o pé no acelerador de novo, e tirá-lo outra vez... Sua mulher estava no meio da pista... Fi­cou com medo... não teve coragem de seguir adiante... Deu uns passos para trás... Os rockers ainda esperaram... então ela deu uns passos para diante... e os rockers saíram em dis­parada nessa hora... Uma das motos derrubou sua mulher... outra passou por cima dela quando já estava no chão...

— Esses malditos marginais — disse o segundo policial.

Eu não disse nada.

Olhava para a luz vermelha piscando. Atrás daquela por­ta jazia Andréia. Jazia Andréia. Jazia Andréia.

— Os porcos fugiram, segundo as testemunhas. Nenhu­ma das testemunhas conseguiu lembrar de um só sinal de identificação.

— Era uma tempestade de neve doida, como agora. Nin­guém reconheceu ninguém.

O segundo policial me deu a bolsa de Andréia e um gran­de envelope amarelo. A bolsa e o envelope estavam sujos e ensangüentados. No envelope estavam os filmes e retratos.

— Precisamos de mais uns dados — disse o segundo po­licial.

Eu estava ali sentado olhando a bolsa e o envelope en­sangüentados. O segundo policial repetiu a frase.

Não respondi.

E se Andréia morresse agora?

O segundo policial me cutucou.

Tive um sobressalto.

Ele disse que precisava de dados para o relatório.

— Sim — disse eu. — Sim. Pergunte! — Minhas mãos estavam cheias de sangue da bolsa e do envelope.

E eles perguntaram. Tinham de saber um monte de coisas para o seu relatório. Onde morávamos, quando Andréia nas­cera, e muitas dessas perguntas. Respondi a todas. A luz ver­melha piscava diante da sala de operações. A tempestade de neve sacudia as grandes janelas do corredor.

Quando os policiais terminaram as perguntas, apertaram minha mão, desejaram tudo de bom para Andréia e para mim, e foram embora. Seus passos ecoaram no corredor vazio. Depois diminuíram. Então não ouvi mais passos, só o uivo do vento.

Meu bom Deus, ajude! Não deixe que ela morra. Se o bebê morreu, que ao menos ela viva. Deixe-a viver! Faça com que fique boa outra vez. Não deixe que seja nada tão grave. Se ela ficar boa, pode ter outro bebê. Talvez não. Talvez nunca mais. Como quiser, meu Deus, mas que ela fique boa outra vez. Por favor, por favor, não deixe que ela morra ou fique aleijada, eu suplico! Se ficar aleijada, deixe-a viver. Por favor, por favor! Farei tudo o que você quiser, mas deixe-a viver. Por favor, que ao menos viva. E se for possível, que não fique aleijada! Talvez ela ainda possa ter outro bebê...

Continuei rezando, e a tempestade uivava cada vez mais. Fiquei sentado duas horas e meia diante daquela porta, e ninguém passou por ali todo aquele tempo.

 

Duas horas e meia depois a inscrição luminosa se apagou.

Abriram a grande porta. Dois homens de branco empur­raram uma maca para fora. Andréia estava ali deitada. Co­berta até por cima do nariz. Só vi a testa branca como giz, e o cabelo castanho desgrenhado. Ao lado da maca os dois em­purravam um aparelho de soro, do qual um canudo de plás­tico ia até embaixo do cobertor.

— Andréia! — Eu levantara de um salto e corria ao lado da maca.

— Não — disse um dos homens.

— O que aconteceu com ela? Como está ela?

— O médico vai lhe dizer. Espere um momento! Ele já vem...

— Andréia... — tentei tirar o pano branco de seu rosto.

— Não faça isso! — disse o outro, zangado. — Ficou louco?

— Ela está morta?

— Não.

— Para onde estão levando minha mulher?

— Unidade de Tratamento Intensivo...

— O senhor não pode ir junto.

— Ela vai morrer?

— Por favor, tenha juízo. Sua mulher acaba de ser ope­rada, ainda está inconsciente. Não pode vir junto, eu já disse. Por favor, sr. Kent!

Fiquei parado olhando os dois homens que empurravam a maca e desapareciam numa curva do corredor. Voltei ao ban­co, e lá estavam a bolsa e o envelope amarelo. Três médicos e duas enfermeiras saíram da sala de operações, e seguiram depressa pelo corredor onde Andréia sumira. Dez minutos de­pois a porta se abriu outra vez, e o Dr. Wegner saiu. Usava um terno azul-escuro e estava sem gravata. A camisa branca aberta no peito. Fundas olheiras negras apareciam debaixo dos olhos, seu rosto estava cinzento. Parecia totalmente exaus­to. Quando me viu, só balançou a cabeça.

— O que há com minha mulher, doutor?

Ele disse com voz rouca:

— Um colega e eu a operamos.

— Muito grave?

Ele fez que sim novamente.

— Ruptura do fígado com forte hemorragia. Tivemos de fazer ressecção de grande parte do fígado.

— Que é ressecção?

— Retirar as partes esmagadas.

— Mas sem fígado... — Não pude continuar.

— O bebê estava morto. Tivemos de retirá-lo. Cesariana — disse ele. — Em geral se deixa o bebê no ventre materno mesmo em acidentes graves, mas quando está vivo. Esse estava morto. Foi preciso retirar.

— Minha mulher vai morrer?

— É um caso muito grave, sr. Kent. Tenho de lhe dizer a verdade. É mais do que muito grave. Tentaremos tudo na Unidade de Tratamento Intensivo.

— Não a posso ver lá, não?

— Não. Quer dizer, por enquanto não. Ela não está consciente. Realmente, lamento muitíssimo. Não faz sentido o senhor esperar aqui. Vá para casa. O senhor mora perto. Se o estado dela melhorar, ou piorar, nós telefonaremos imediata­mente. De carro estará aqui em quinze minutos.

— Não quero ir para casa. Quero ficar aqui.

— Pode levar muitas horas, a noite toda, o dia de ama­nhã todo, até ela recuperar a consciência. Por favor, vá para casa, sr. Kent. O senhor não vai agüentar aqui.

— Sim.

— Não. Eu fico aqui. E prometo que lhe telefonarei, assim que o senhor puder falar com sua mulher.

— Na UTI? Nunca vão me deixar entrar lá.

— Vão deixar. Basta que vista as roupas adequadas. Pro­meto que o deixam entrar na UTI assim que puder falar com sua mulher, assim que ela puder falar. Não tem confiança em mim, sr. Kent?

— Tenho, doutor.

— Então vá agora, por favor. — As olheiras estavam ainda mais escuras, e ele mais cinzento. Apertei-lhe a mão e encaminhei-me para o elevador.

 

A tempestade de neve continuava.

Chegando em casa deitei-me na cama, mas não agüentei muito tempo e sentei-me na sala. Mas também não agüentei, andei de um quarto a outro, na cozinha também, e por toda parte só ficava pouco tempo. Por fim sentei-me no quarto da cadeira de balanço.

Diante da janela a tempestade balançava violentamente de um lado para o outro os galhos das velhas árvores antigas que Andréia tanto amava. Estavam nuas e negras, e brilhavam.

Contemplei o quadro com a caveira, o livro velho, a vela consumida, a ampulheta esvaziada, e outros sinais de dete­rioração, cujo original Adrian van Utrecht pintara no século 17, o quadro que Andréia fitava tantas vezes para nunca se esque­cer de que tinha de morrer. Ali agüentei, ali fiquei sentado.

Meus membros estavam pesados, não podia pensar nem sentir claramente. Assim devia sentir-se um boxeador que aca­ba de ser nocauteado. Fiquei ali sentado olhando o quadro, mas na verdade nem o enxergava. Era como se eu nem existisse, mas mesmo assim vivesse e respirasse. Depois me ocorreu que não podia perder nenhum telefonema, podia ser do Dr. Wegner. Peguei o aparelho e liguei-o na tomada junto da cadeira de balanço. Uma hora depois, o telefone tocou. Alguém discara número errado e pediu desculpas.

Fiquei sentado quieto, pensando que Andréia ia morrer. Não tinha mais chances. Com uma lesão daquelas no fígado não se tem chance, ninguém tem. E pensei que naquela noite ainda dormira com ela, e de manhã tomara café com ela, e depois fora com ela à livraria. E agora ela ia morrer. Talvez agora, logo, talvez só amanhã ou depois, mas boa ela não ficaria mais, nem continuaria vivendo. Sem fígado ninguém vive.

Tentei rezar. Não queria mais rezar para que Deus dei­xasse Andréia viver, sabia que era impossível. Queria apenas pedir a Deus que não a deixasse sofrer. Mas não podia pensar com coerência, de modo que nada de oração. E a tempestade continuava, e muitas vezes eu mal divisava as velhas árvores atrás dos redemoinhos de neve.

Por volta das cinco horas o telefone tocou outra vez.

Era o comissário Hübner. Sabia que Andréia estava na UTI. Falara com o Dr. Wegner.

— Estou telefonando só para dizer o quanto sinto tudo isso, sr. Kent.

— Sim — disse eu. — Obrigado, comissário.

— Posso fazer alguma coisa pelo senhor?

— Não.

— Quer que eu vá para aí?

— Não, por favor, não. Prefiro ficar sozinho. Estou aqui sentado esperando que me chamem para o hospital. Mas pode demorar muito.

— Sim — disse ele. — Receio que demore muito.

— Vou esperar.

— Não temos o menor sinal desses rockers.

Ah.

— Estamos procurando feito loucos.

— Sim.

— Mas com esse tempo eles têm todas as chances, e nós, nenhuma.

— Não.

— É horrível. Gosto tanto de sua esposa, sabe, ela real­mente me tocou o coração.

— Ela também gosta muito do senhor, comissário.

— E não há realmente nada que eu possa fazer pelo senhor?

— Não, comissário — respondi, e desliguei.

Pelo entardecer apareceu Raven.

— Eu quis vir mais cedo — disse ele —, mas achei que era melhor deixá-lo sozinho primeiro, e não quis telefonar. O Apre achou a mesma coisa. Ele está na livraria... com esse tempo ele dará conta de tudo sozinho. As poucas crianças que foram à livraria já foram apanhadas. Posso entrar?

— Claro — disse eu. — Por que não?

Ele tirou o sobretudo, pendurou-o num cabide e disse:

— Vou fazer café.

Foi à cozinha, e fui atrás dele, e olhei enquanto ele fazia café. Tomamos café na sala. Lá eu deixara a bolsa de Andréia e o envelope amarelo com as fotos. O sangue secara. Enquanto tomávamos café mostrei a Raven os muitos retratos. Lá estava eu na floresta, quando acabara de escorregar. Es­tava sentado num grande monte de neve e tinha neve na ca­beça e nos ombros, e ria. Lá estávamos Andréia e eu no trenó a caminho de Scharmoin, lá estava a casa de Scharmoin onde tínhamos comido a boa sopa de ervilhas com lingüiça e tou­cinho. Lá estava Andréia acariciando o cavalo. Mostrei a Ra­ven fotos dela no lado e diante da pista de patinação, e com Peru, o são-bernardo, e outras fotos dela com o casal Trösch, e sozinha diante da tabacaria, e em traje de noite no jantar de Natal, e cheia de confetes na noite do Ano-Novo. Depois mos­trei a Raven fotos das altas montanhas e do grande vale e do hotel e depois novamente de Andréia, e ela estava rindo em todas as fotografias. Também havia fotos de Andréia com a pequena Luzia Trösch nos braços, e ambas estavam rindo, Andréia e o bebê.

O sangue passara o papel do envelope, de modo que mui­tas fotos tinham manchas de sangue. Era o sangue de An­dréia, e eu disse:

— Agora ela vai morrer, sr. Raven.

E ele não respondeu. Recolhi todas as fotografias e meti-as no envelope amarelo.

— Uma maldade dessas — disse eu. Depois ficamos ali sentados em silêncio, e escureceu totalmente, mas não acen­demos a luz, continuamos sentados no escuro. A tempestade varria a casa e nenhum de nós disse nada. Tentei hipnotizar o telefone para que tocasse, mas não consegui. Às oito da noite não agüentei mais e liguei para o Hospital Heidberg; pedi para falar com o Dr. Wegner e ele atendeu imediatamente.

— É Kent — disse eu.

— Cedo demais, sr. Kent — disse ele. — Ela ainda está inconsciente, e pode demorar muito. Por favor, acredite: tão logo for possível falar com ela, eu lhe telefono. Vou passar a noite aqui.

— E se ela não voltar a si, e morrer logo?

— Não vai acontecer isso.

— Sim, sim, sim — disse eu. — Mas se...

— Então lhe telefono imediatamente e o senhor poderá vir. Está sozinho?

— Não, o sr. Raven está aqui, um amigo da livraria.

— Isso é bom. Posso falar com ele?

— Um momento. — Passei o fone a Raven, que disse boa-noite, escutou um pouco e disse três vezes “sim”. Depois desligou.

— Sim o quê? — perguntei.

— Sim, vou ficar aqui esta noite — disse ele.

— Não é preciso.

— É preciso, sim. E também é preciso que coma alguma coisa. Não comeu nada desde esta manhã. Vou fazer batatas assadas. — E foi para a cozinha. Mais tarde comi um pouco, depois ficamos sentados na sala, calados. Uma vez, por volta da meia-noite, eu disse:

— Ainda nem lhe agradeci por ter cuidado das flores de Andréia, sr. Raven.

— Pare com isso! — disse ele. — Foi uma alegria para mim. Ela tem flores tão bonitas. De dois em dois dias eu vinha aqui. Gosto de flores.

Depois nos calamos outra vez. Nenhum de nós dormiu naquela noite, e a tempestade ainda rugia lá fora. Ouvimos duas vezes o arranhar das grandes pás das patrolas que lim­pavam a neve, e muitas vezes escutamos o uivo de sirenes. Raven preparou o café quando finalmente clareou, e ficamos sentados no nicho da cozinha, que lembrava tanto o con­vés de um iate. Raven conseguira pãezinhos frescos, e trou­xera para dentro o jornal do dia, que estava diante da por­ta. Comi meio pãozinho, mais não consegui engolir. A man­chete do jornal dizia: POLÔNIA: SOLIDARIEDADE CON­VOCA NOVAMENTE PARA GREVE GERAL. Quando eu enchia minha xícara pela segunda vez, o telefone tocou. Era o Dr. Wegner:

— Pode vir logo, sr. Kent?

— Sim. Ela está consciente?

— Mais ou menos. Venha imediatamente.

Eu disse a Raven que Andréia estava consciente, e ele disse que ficaria ali esperando por mim. Encontrei as chaves do carro com os documentos na bolsa de Andréia, mas quando cheguei à rua vi que o Mercedes que Andréia estacionara ali antes de ir a pé à loja de fotos estava totalmente preso na neve. Corri de volta ao apartamento e telefonei para um táxi, mas tive de esperar meia hora até chegar um. O motorista disse que a Central e todos os motoristas estavam incrivelmente assoberbados, porque quase ninguém andava com seu próprio carro num tempo louco daqueles. Não chegou a clarear direito naquele dia, e no Hospital Heidberg havia luzes acesas por toda parte.

O Dr. Wegner esperava por mim na portaria. Fomos jun­tos ao edifício da cirurgia, e subimos no elevador até o terceiro andar, onde o Dr. Wegner me levou à UTI. Não trocamos nem dez palavras. Numa ante-sala da UTI tive de enfiar sapa­tos brancos, depois tiraram meu casaco e me vestiram um avental verde. Também tive de pôr um gorro verde no cabelo e amarrar uma máscara diante da boca. Assim pude finalmente entrar no quarto onde estava Andréia. O quarto era dividido por uma parede de vidro ao lado da cama, e atrás dessa pa­rede ficava uma jovem enfermeira que observava Andréia e muitos aparelhos em painéis de aço brilhante. Alguns ficavam por cima e ao lado da cama de Andréia, outros atrás da vi­draça.

Andréia estava deitada de costas, e alguém colocara um pano sobre seus seios nus. Vi muitos canos finos e coloridos presos ao seu busto. Os canos entravam nos aparelhos com os quais se controlava o coração, a circulação, a respiração e muitas outras funções do corpo. Um cano mais grosso tinha uma agulha na ponta, e a agulha estava enfiada debaixo do braço direito de Andréia, na veia. Esse cano ia até um frasco de soro, pendurado ao lado da cama. O rosto de Andréia estava muito pequeno e branco, e seus olhos imensos. Os lá­bios estavam rachados e viam-se os dentes, mesmo quando ela não falava. Ao lado da cama havia uma banqueta na qual me sentei, e disse: — Bom-dia, meu amor.

— Bom-dia, meu amor — disse ela, e sua voz estava sur­preendentemente forte. Eu tinha pensado que ela mal conse­guiria sussurrar. O Dr. Wegner dissera que ela estava “mais ou menos” consciente, e era exatamente isso. Ela falava alto comi­go, encarou-me o tempo todo fixamente, mas não estava inte­gralmente ali comigo. Uma fixidez leitosa permanecia em seu olhar, e ela parecia profunda e firmemente emparedada na prisão de seus pensamentos. Apesar da força de sua voz, ainda estava gravemente abalada pela longa inconsciência.

— Tenho de morrer — disse ela.

— Esquilinha! Que absurdo! Como pode dizer uma coisa dessas! — exclamei.

— Tenho de morrer — disse ela mais uma vez. — Odeio tanto ter de morrer, queria tanto viver ainda muitos anos com você.

— E vai — disse eu. — Vai viver muitos, muitos anos comigo, vamos ficar velhíssimos, nós dois, e também vamos ter um bebê quando você estiver bem boa.

— Não vamos ter bebê. Não vou mais ter. É muito triste. Mas então estarei morta. Você, você não vai ter mais nenhuma Andréia. — Ela fechou os olhos, eu olhei apavorado para a enfermeira atrás da vidraça, mas esta balançou a cabeça tranqüilizando-me.

— Você sente dores?

Andréia abriu os olhos outra vez.

— Não sinto dor nenhuma, meu Gato amado — disse ela. — Só é tão triste que eu tenha de deixar você.

— Você não vai me deixar, amada.

— Sim — disse ela. — Sim, Gato, logo. Por isso fechei os olhos, porque é tão triste. Por que foi acontecer isso? Não fizemos nada de mal. — E eu pensei que tinha matado um homem. — É tão injusto — disse ela. — É mesquinho e injusto. Ah, Gato, se eu pudesse ficar com você!

— Você vai, você vai ficar. Vai ficar bem boa outra vez. Ainda está muito fraca, foi uma operação séria. Está can­sada e desanimada agora, por isso anda com essas idéias. Mas espere dois, três dias, e vai se sentir bem diferente. — Notei que o Dr. Wegner entrara no quarto e parara ao lado da enfermeira.

— Não posso mais esperar dois, três dias — disse An­dréia. — Temos pouco tempo. Por isso me deixe falar, amado. Preciso lhe dizer uma coisa. Me deixe falar, sim?

— Sim, claro.

— Você terá outra mulher depois de mim...

— Não quero outra mulher.

— Não logo. Mais tarde. Precisa ter outra mulher. Não pode viver sozinho. Prometa que terá outra mulher, Gato!

— Não existe outra mulher para mim — disse eu.

— Não, não será uma Andréia — disse ela. — Mas outra mulher que você ame, e que ame você. Então tenho um pe­dido.

— Sim, Esquilinha?

— Que você não a chame de Esquilinha, nem ela o cha­me de Gato. Promete?

— Claro que prometo. Mas...

— Me deixe falar. Não quero que você lhe dê nome de bicho. Nem ela a você. Nada de nomes de bichos, sim?

— Sim.

— De verdade? ;

— De verdade. Olhe aqui, Esquilinha...

— E ela também não lhe dará nenhum, com certeza, sim?

— Sim. Eu...

— E por favor, Gato, nunca vá com ela para Reinbeck. Você já sabe. Você não vai para lá com ela, vai?

— Nunca, Esquilinha. Mas agora me deixe...

— E por favor, Gato, nunca brinque com ela como brin­cava comigo. Você sabe do que estou falando. Os nossos brinquedos. Não quero que brinque assim com nenhuma outra mulher. Promete isso, Gato?

— Claro que prometo — disse eu. — Mas só estou es­cutando tudo isso porque você está tão fraca, senão ficaria zangado com você. É tudo uma bobagem sem tamanho. Você nem imagina o quanto ainda vamos brincar juntos, Esquilinha!

— E a livraria — disse ela. — Quero que tudo continue na livraria, por causa das crianças. Você não deve fechar a livraria, me prometa isso também.

— Vou continuar com a livraria — disse eu. — Mas realmente, Esquilinha...

— Você prometeu — disse ela. — Prometeu... Tudo — O rosto dela estava infinitamente cansado. — Por favor, você pode me beijar? Mas só se não for desagradável para você. Passaram qualquer coisa nos meus lábios, é tão amargo.

Levantei-me e beijei-a docemente nos lábios, e havia real­mente um gosto muito amargo.

— Obrigada — disse Andréia. — Você sempre foi mara­vilhoso comigo, e eu o amei tanto. Mas agora você quer ir embora, por favor?

Olhei para o Dr. Wegner através da vidraça e ele moveu a cabeça afirmativamente.

— Bom — disse eu. — Vou agora, querida, mas volto logo. Então você vai estar muito melhor, e não vai mais falar essas coisas.

— Adeus, Gato — disse ela.

— Adeus, minha Esquilinha amada — disse eu.

Na porta, voltei-me mais uma vez, mas ela olhava fixa­mente o teto, e não me percebia mais. Saí do quarto. Na ante-sala tirei o avental verde e os sapatos brancos, o gorro e a máscara, e vesti outra vez o casaco e o sobretudo. Então o Dr. Wegner saiu pela outra porta.

— Foi bom ter saído — disse ele.

— Ela me mandou embora — disse eu.

Andamos juntos por um longo corredor.

— Posso voltar?

— Sim — disse ele. — Mas só quando eu chamar.

— Hoje ainda?

— Não sei. Talvez de noite.

— Doutor — disse eu —, ela vai morrer mesmo?

— Sim — disse ele.

— Nenhuma chance?

— Não acontecem milagres, sr. Kent — disse ele, pondo a mão no meu ombro.

De repente alguém chamou o nome dele. Viramo-nos, e a jovem enfermeira que estivera sentada atrás do vidro obser­vando os aparelhos vinha correndo ao nosso encontro, e cha­mava enquanto corria:

— Dr. Wegner, venha depressa! Depressa!

— O que foi? — perguntei.

— Sua mulher perdeu a consciência — disse a enfermeira, e voltou correndo com o Dr. Wegner para a UTI.

 

Três dias mais tarde, na sexta-feira, 22 de janeiro, foi a cerimônia fúnebre no Crematório, no cemitério Ohlsdorf, co­berto de neve. Andréia queria ser cremada, o que havia algum tempo já era permitido aos católicos. A tempestade cessara, mas nevava sem parar. A terra estava mergulhada em neve. Trens e aviões não andavam, regiões inteiras estavam isoladas do mundo.

O grande saguão do Crematório estava repleto de gente, especialmente crianças. Todas as crianças que tinham conhe­cido Andréia estavam lá. Tinham trazido seus pais, como quando nos casamos. Eu nem podia acreditar que tantas crianças tivessem lido e brincado em nossa livraria. E mais uma vez, eram crianças das mais diversas religiões, nações e raças. Os amigos e conhecidos de Andréia também vieram, naturalmente o Dr. Wegner e o comissário Hübner também. Eu estava sentado na primeira fila ao lado dos pais de An­dréia. Também estavam na primeira fila Raven, Stark e Bernadette, e só faltava uma criança — Patty. Não tínhamos qualquer notícia dela e de seu avô. Estavam na Polônia, inatingíveis para nós. A livraria fechara naquele dia. Havia tantas crianças e adultos no Crematório, que muitos tiveram de ficar em pé.

O caixão repousava sobre um pedestal. Coroas com fitas e grandes ramos estavam ali depositados, entre eles ramos bem simples e pequenos, dos pais das crianças pobres. Mal se via o caixão naquele mar de flores.

Num quarto ao lado, um estudante da Faculdade de Mú­sica tocava, e a música era transmitida para a sala grande por um alto-falante. O rapaz também era amigo de Andréia, e tocava uma peça que ela amara imensamente: o trecho lento, só para instrumentos e cordas, da Suíte para Orquestra em Ré Maior, de Johann Sebastian Bach, chamado Ária. O jovem tocava esse trecho solene sozinho em seu violino. A beleza da melodia não parecia deste mundo, e todos os que a ouviam estavam paralisados.

Depois falou o jovem padre que nos casara. Falou de maneira muito afetiva e simples, e muitas pessoas choraram, especialmente a mãe de Andréia. Depois, para minha sur­presa, Robert Stark, o Apre, levantou-se e foi até a frente no seu terno escuro, e lá, virado em parte para nós em parte para o caixão, começou a falar. Como aquela vez na igreja, quando nos casamos, ouvia-se um murmúrio constante — eram as muitas vozes infantis, altas e baixas, traduzindo o que Robert Stark dizia para os pais que entendiam pouco ou nada de alemão.

— Querida Andréia — disse Robert Stark —, hoje esta­mos contigo pela última vez. Viemos para te acompanhar ao umbral e te contemplar mais um pouco, antes que saias desta vida. Estamos te acompanhando com o olhar, enquanto, com teu belo andar e teus grandes olhos sempre vigilantes, olhando à direita e à esquerda, cheios de curiosidade e interesse, te apresses em ir para teu novo trabalho, para teus velhos amigos que esperam por ti há tanto tempo: para junto de Erich Kästner e Emil com todos os seus detetives, Hans Christian Andersen e a menina dos fósforos, Mark Twain e Tom Sawyer com Huckleberry Finn, Selma Lagerlöf e o pequeno Nils Holgersson com seus gansos selvagens, Lewis Carroll e sua Alice no País das Maravilhas, e para junto de todos os outros escri­tores que escreveram livros para a juventude, e para junto de suas personagens. Há muito tempo é desejo de todos esses escritores abrir uma livraria para crianças junto contigo. Os livros já estão todos lá, e também encontraram uma livraria, só que primeiro ela precisa ser arrumada para as crianças. Para isso precisam de ti, pois só tu sabes como se faz isso, por isso teus amigos esperam por ti com grande impaciência. Não os queres fazer esperar mais tempo, compreendemos isso.

“Compreendemos tua pressa, mas por favor, pára um. pouco ainda. Por favor, pára, vira-te e ouve-nos alguns minu­tos ainda!

“Quem de nós deverá ser de agora em diante a alma da livraria que nos deixaste? Quem de nós deverá saber agora exatamente que livro serve para que criança, uma pessoa que conheça mentes e corações das muitas crianças que aqui foram tuas amigas, quem fará isso tão bem quanto tu o fizeste? Quem a partir de agora cuidará da paz e amizade entre as diversas crianças que serão os adultos de amanhã, entre po­bres e ricos, judeus, cristãos e maometanos, entre turcos, iu­goslavos, espanhóis, italianos, gregos e alemães? Nenhum de nós tem o teu senso de justiça, o teu amor que envolve todas as pessoas desta terra, tua memória fabulosa, tua força de traba­lho, tua inabalável energia, tua alegria, teu espírito claro e alegre.

“Estamos ouvindo tua voz: ‘Crianças, agora me deixem ir! Há tantas outras que precisam de mim. E a vocês eu já ajudei e aconselhei tantas vezes.’

“Vamos ter de nos arranjar com isso, na verdade há mui­to sabíamos. Tu, a bondosa amiga dos seres humanos, espe­cialmente das crianças, és importante demais para que possa­mos te reter. Não pertences só a nós. Sim, és tão sábia e im­portante e necessária, que nem ao menos podes ficar com teus parentes, que te amam acima de todas as coisas. Pois teu espírito e teu ser te tornam indispensável no mundo inteiro, e com isso quero dizer todo o mundo realmente, este e o outro, onde te esperam teus amigos e tantas crianças, para que tam­bém a eles leves alegria, justiça e sabedoria.

“Vai pois, querida Andréia, para junto de teus amigos escritores que como tu amaram as crianças, a verdade, e tudo o que é bom no ser humano, e com eles organiza uma nova livraria, maravilhosa e imensa!

“Tu bebeste do mar dos livros e ainda assim continuaste sempre sedenta de saber; conheceste a vida e não ficaste me­lancólica, mas permaneceste alegre; foste devotada aos teus amigos, amaste os teus amados, te dedicaste aos teus deveres, mas no teu interior continuaste livre. Provavelmente compreendeste tua existência, juntamente com Gotthold Ephraim Lessing, a quem veneravas, da seguinte maneira: justificar-se só diante de Deus, não ser senhor nem escravo de pessoa alguma, mas irmã solícita de todos nós.

“Pois então, adeus! Saúda de nossa parte a todas as crianças e escritores que escreveram para crianças, o velho Milne e o Urso Pu, Robert Louis Stevenson e sua Ilha do Tesouro, Jonathan Swift e seu Gulliver, Daniel Defoe e seu Robinson e Karl May com seu Winnetou, todos os que já trilharam este caminho antes de ti. Diz-lhes: mais um pouqui­nho ainda... e nós também iremos.”

 

Os pais de Andréia quiseram cuidar de mim, também seus amigos, e o Apre com Bernadette e Raven, e até o comis­sário Hübner. Mas pedi que me deixassem sozinho, e por fim fugi e consegui um táxi que me levou para casa, para o grande e belo apartamento. Agora que não havia tempestade, estava tudo muito quieto lá dentro. Deitei-me em nossa cama e ador­meci, pois tomara calmantes fortes naquela manhã, e quando acordei estava escuro, eram três horas da madrugada. Então comecei a beber, e quando estava bêbado procurei na estante de discos a Suíte para Orquestra em Ré Maior de Bach, com o lento trecho para cordas, a Ária. Quando encontrei o disco e ia pôr no prato, vi que já havia um disco ali. Era The man I love. Então peguei o velho setenta e oito rotações e o quebrei. Com isso cortei a mão, e a ferida sangrou muito. Enrolei-a numa porção de ataduras, depois coloquei o disco de Bach, sentei-me numa funda poltrona, continuei bebendo e esperei pelo trecho lento que, diferente do Crematório, não era um solo de violino, mas toda uma orquestra de cordas. Ouvi aque­le trecho solene outra vez e outra vez. E recolocava a agulha na ranhura onde esse trecho começava, e ficava cada vez mais embriagado. Na mesa à minha frente estava o envelope en­sangüentado com as muitas fotografias de Valbella, e fiquei olhando todas elas. Mas algum tempo depois não agüentei mais. Peguei os retratos, fui ao banheiro, rasguei todos eles e joguei os pedacinhos na banheira. Ali incendiei o monte todo. Como ardesse muito mal, despejei álcool puro da pequena far­mácia caseira, e então queimou tudo muito bem, mas com muita fumaça. Comecei a sufocar, e mal pude abrir a janela antes de cair no chão. Devo ter ficado algum tempo desmaiado no chão. Mas não era envenenamento pela fumaça, e sim o efeito do uísque aumentado pelos fortes calmantes, e quando voltei a mim estava com muito frio, porque nevara para dentro do banheiro. Fechei a janela, voltei à sala e continuei beben­do. Bebi até adormecer outra vez. Sonhei com Valbella. Está­vamos indo de trenó para Scharmoin. Mas então no sonho lembrei-me de que Andréia estava morta, e acordei. Clemens Raven estava sentado na minha cama. Estava escuro no quar­to, e me senti horrivelmente mal.

— Que horas são? — perguntei.

— Sete e meia. Vou fazer o café — disse ele.

— Não quero café — disse eu.

— O senhor precisa comer e beber.

— Vou beber já e já — disse eu.

— Sim, chá — disse Raven.

— Não, uísque — disse eu.

— Agora acabou essa bebedeira!

— Como foi que entrou no apartamento?

— Eu ainda tinha a chave que sua mulher me deu antes das férias.

— Vá embora — disse eu.

— O quê?

— Vá embora.

— Fico aqui.

— Vá embora, por favor!

— Eu fico — repetiu ele calmamente.

— Seu bom samaritano — disse eu. — Então vou ter que botar você na rua. — Levantei-me na cama e senti uma pon­tada forte do lado esquerdo do peito, e caí para trás.

— Ótimo — disse Raven.

Fiquei deitado quieto, respirando bem superficialmente, esperando não ter nenhum ataque.

— Dores? — perguntou ele.

Não respondi.

— Se tiver dores terei de telefonar imediatamente ao Dr. Salzer. Diga a verdade.

— Quem é o Dr. Salzer? — perguntei.

A ferroada não se repetira.

— Seu médico. Não sabe como se chama o seu médico?

— Claro que sei. Mas como é que você sabe?

— Sua mulher me disse logo que comecei a trabalhar na livraria. Também me deu o endereço e telefone dele. Graças a Deus! Ou teríamos tido umas belas horas ontem de tarde.

— Como, ontem de tarde?

— Não sabe?

— Não.

— Realmente não?

— Não, que diabo. O que houve, ontem de tarde?

— Santo Deus, como estava embriagado!

— Então, quer me dizer o que houve ontem de tarde?

E ele me contou.

Chegara pelas três horas e me encontrara na cadeira, rosto roxo, a mão apertada ao peito. O toca-discos estava li­gado, mas o disco acabara. Raven pensara primeiro que eu só podia balbuciar por ter tido um ataque, mas depois viu que eu não podia falar de tão bêbado. E não tivera ataque, apenas dores muito intensas no coração. Assustado, Raven telefonara para o Dr. Salzer, que viera imediatamente, me aplicara uma injeção, e ficara ali uma hora. Juntos me levaram para a cama, e Raven prometeu ficar comigo. Se eu continuasse sen­tindo dores, ele teria de telefonar imediatamente para o mé­dico. Eu dormira longo tempo, profundamente.

— O médico vai passar aqui às dez — disse Raven. — O senhor fica na cama. Não deve beber café hoje, vou fazer chá para nós.

E foi à cozinha.

Levantei-me, mas cambaleei de volta para a cama.

Ele voltou praguejando.

— Eu disse que devia ficar deitado!

— Preciso ir ao banheiro.

Ele me levou até lá, esperou e me trouxe de volta, e fiquei muito grato pela sua presença. Sozinho eu não teria conse­guido. Tomei chá, até comi um pãozinho com manteiga e geléia, e às dez o Dr. Salzer realmente veio e me examinou.

— Vou lhe dar mais uma injeção — disse ele. — Como prevenção. Embora hoje esteja bem melhor do que ontem. Tem de continuar deitado, sr. Raven...

— Eu fico aqui.

— Muito bem — disse o Dr. Salzer.

— Mas a livraria... — disse eu baixinho.

— O Apre está lá e um amigo meu, livreiro aposentado, que está nos ajudando. Não se preocupe com a livraria! — disse Raven.

— Andréia não queria que ficasse fechada — disse eu.

— Ela disse isso? — perguntou o médico.

— Sim.

— Quando?

— Alguns minutos antes de sua morte ela disse que a livraria não deve fechar — disse eu.

— Descubra o braço! — O médico abriu a maleta preta e preparou uma injeção. — Esta noite passo aqui outra vez — disse ele, enquanto pegava a borracha para amarrar o braço. — Agora, feche o punho! Bombeie um pouco. Abra, feche. Tem umas veias horríveis. Aqui está uma — Esfregou a pele com algodão embebido em álcool, depois aplicou-me a injeção, e logo adormeci. Sonhei com os elefantes.

 

Acordei ao anoitecer, pouco antes da chegada do médico.

Ele me examinou e fez um eletrocardiograma com um aparelho que trouxera.

— Tudo bem — disse ele. — Amanhã pode levantar. Álcool proibido. Não totalmente, apenas essa bebedeira. E tem de comer regularmente.

— Esta noite teremos assado e salada — disse Raven. Estava com a barba por fazer, e me disse:

— Fui fazer compras enquanto o senhor dormia.

— Obrigado — disse eu.

— Por quê?

— Por tudo — disse eu. — Você sabe.

— Ora, merda.

Depois que o médico se foi, levantei-me, vesti um robe e fui à cozinha ver Raven preparar o jantar. Comemos no nicho, e pensei em Andréia. Era muito doloroso, mas comi meu assado e a salada. E Raven ficou sentado à minha frente, lá onde Andréia sempre ficava.

— Agora pode ir para casa — disse eu. — Prometo que não bebo mais.

— Eu ainda fico — disse ele.

— Santo Deus, mas você tem de dormir!

— Na cama de hóspedes — disse ele. — A carne estava boa?

— Ótima.

— Não estava passada demais?

— No ponto. Você cozinha muito bem.

— Meu hobby — disse ele. — Hoje há um policial na televisão. Com Allain Delon e Lino Ventura. Não podemos perder. E vai ganhar um copo de uísque. O médico permitiu.

— Raven, você é um sujeito e tanto.

— Sim, eu sei.

— Não, é verdade.

— Eu sei que é verdade. Coma mais salada.

Limpamos a cozinha juntos, depois assistimos ao filme policial. Mais tarde emprestei um pijama para Raven e fomos um depois do outro ao banheiro, e notei que ele limpara a banheira e tirara as fotos queimadas. Quando eu já estava na cama, ele veio mais uma vez ao meu quarto dar boa-noite, e eu disse:

— Foi um bonito discurso aquele do Apre, não foi?

— Muito bonito — disse ele. — Realmente.

Naquela noite não sonhei nada, e no dia seguinte fui com Raven à livraria. Ainda nevava. À tarde vieram as crianças e me deram a mão. Estavam todas muito sérias. Tinham pedido O Urso Pu, A Ilha do Tesouro, Robinson Crusoe, e todos os livros mencionados no discurso de Robert Stark, e o pequeno Ali, Félix e outras crianças que sabiam ler bem queriam ler para as outras os trechos mais bonitos desses livros. Seria o programa dos próximos tempos, explicou-me Marili. Naquele dia tinham escolhido A Viagem Maravilhosa de Nils Holgersson com os Gansos Selvagens, de Selma Lagerlöf. Ali leu, e as crianças ouviram atentamente.

O amigo de Raven, o livreiro aposentado, dava uma im­pressão muito boa. Chamava-se Schneider, Tomas Schneider, e disse que estava muito feliz por voltar a uma livraria, e que ficaria o tempo que precisássemos. E que eu podia procurar calmamente um livreiro mais jovem.

Desci para junto das crianças e escutei Ali por algum tempo. Depois voltei à livraria e vendi livros como fazia antes, quando Andréia ainda vivia. Fiz tudo com atenção e cordiali­dade, mas naturalmente pensava só nela o tempo todo. De vez em quando ia ao Cat’s Corner beber um copo, nunca demais, e ao meio-dia o Apre foi apanhar sanduíches na confeitaria do lado, como sempre. À noite, Raven, o Apre e Bernadette, que trabalhara de dia, foram comigo a um pequeno restaurante italiano. Eu estava com muita fome e tomei alguns copos de Chianti, e estava muito calmo, embora só pensasse em An­dréia o tempo inteiro, não importava o que fizesse.

Raven queria passar a noite comigo outra vez, mas eu lhe disse que não era preciso, e ele não insistiu. Sozinho no apar­tamento, passei por todos os aposentos e vi todas as coisas que tinham sido de Andréia: pentes e escovas, batons e potes de creme em seu toucador. Agüentei firme, e até abri os armários para olhar seus vestidos, casacos e roupa íntima. Por fim con­templei o quadro memento-mori, e decidi olhá-lo sempre, como ela o fizera. Naturalmente não acreditava que nos reen­contrássemos depois da minha morte, nem em todas essas bobagens.

Assim se passaram os dias seguintes. Eu fazia meu traba­lho, e me ocupava com as crianças, à noite ia com Raven e os outros ao restaurante italiano. Depois ia para casa e logo me deitava. Dormia bem e não tinha sonhos, e quando acordava imediatamente pensava em Andréia, e em tudo o que tínha­mos vivido juntos, desde o começo. Eram só lembranças mara­vilhosas, e agora eu não queria mais me matar como no co­meço, pois se eu me matasse não haveria mais ninguém para re­cordar tudo aquilo.

Quando na quinta-feira, 28 de janeiro, voltei para casa à noite, encontrei entre a correspondência que o carteiro jogara na fenda da porta uma carta do Juizado de Menores do Dis­trito de Hamburgo-Norte. O texto impresso, preenchido a mão apenas em algumas partes, dizia que devia me apresentar o mais depressa possível à Kümmelstrasse 7, sede do Juizado, terceiro andar, sala 36, entre oito e doze horas, exceto nos sábados. Telefonei a Raven falando da carta, mas nem ele nem eu podíamos imaginar o que os agentes quereriam de mim. Por isso, já na manhã seguinte fui à Kümmelstrasse 7, terceiro andar, sala 36.

 

Reinhold Ferber, chamava-se o homem da sala 36, era o chefe do Juizado. Isso estava escrito num cartãozinho do lado de fora da porta. Na verdade, a sala 36 era de uma secretária. O escritório dele ficava ao lado, e a secretária, uma senhora idosa e grisalha, me levou imediatamente a ele. Ele apertou minha mão e me pediu para sentar. Os móveis da sala eram de madeira clara, e tudo cheirava a desinfetante. O juiz Reinhold Ferber devia ter a minha idade. Tinha um rosto muito sensível com bonitos olhos azuis, e belos dentes. Ferber usava uma belíssima dentadura postiça.

— Infelizmente tenho uma triste notícia para o senhor, sr. Kent. — Abriu uma pasta fina que tirara da escrivaninha e me fitou gravemente com seus belos olhos azuis. — O senhor era amigo de Walter Hernin, não era? Pelo menos foi o que ele disse no hospital; aos médicos e aos policiais. Muito amigo, não?

— Sim, muito — disse eu. — Como, hospital? Quando? Onde?

— Em Glatz, sr. Kent — disse Ferber, e passou a mão pelo cabelo louro e muito curto. — O sr. Hernin adoeceu em Águas Perdidas: pneumonia. E quando piorou foi levado para o Hospital Municipal de Glatz. Dezoito de dezembro.

— Dezoito de dezembro! — Levantei a cabeça. — Hoje é 29 de janeiro.

— Não esqueça o que está acontecendo na Polônia — disse Ferber. — O sr. Hernin morreu naquele hospital, no dia 21 de dezembro.

— Hernin morto... — fiquei olhando para Ferber. — E a criança?

— Já chegarei lá. A criança está bem. Lamento sincera­mente que o sr. Hernin... — começou Ferber, mas o inter­rompi.

— Sim, obrigado por suas palavras. Naturalmente estou muito abalado. No dia 11 de dezembro meu amigo saiu daqui com a neta. E no dia 13 foi imposta a lei marcial...

— Ele chegou doente em Águas Perdidas, conforme nos escreveram. Estava resfriado e um pouco febril. Mas não quis ficar de cama de modo algum. Embora um certo sr. Korczak se tivesse esforçado muito para lhe conseguir um médico, Hernin proibiu-o de fazer isso. Só quando já tinha febre muito alta, deixou que chamasse um médico. Ele morava com a neta na casa desse sr. Korczak, como diz aqui. É um camponês que mora na casa onde antigamente viviam os pais do sr. Hernin, e na qual ele nasceu.

— E o sr. Korczak e Hernin ficaram amigos através de correspondência — disse eu, olhando pela janela. Caía neve lá fora, era como se naquele ano nem fosse mais parar de nevar. Andréia e Hernin mortos: os dois. E continua nevando, pen­sei.

— Seu amigo foi levado para o hospital de Glatz, é o mais próximo. O diretor do hospital me escreveu que uma patrola limpa-neve teve de seguir na frente da ambulância, tão ruins andam as coisas por lá. Fizeram o que podiam, mas o sr. Hernin esperou demais, estava muito fraco. Morreu dormin­do. — Ferber folheou os papéis. — A carta é de 23 de dezem­bro. Ainda passou pela censura da Alemanha Oriental. Mila­gre, aliás, que eu tenha recebido essa papelada.

— Como, o senhor? — perguntei sentindo-me um pouco tonto. — Quero dizer, por que logo o Juizado de Menores?

— Porque o sr. Hernin morava em Uhlenhorst. No Hofweg. Lá ainda é distrito nosso. Barmbek-Uhlenhorst. O sr. Hernin tinha uma governanta a quem deu férias até o seu regresso. Ela foi visitar parentes em Allgäu, chamava-se Francisca Schultz, mas não conseguimos encontrá-la apenas pelo nome. Certamente a sra. Schultz já telefonou ou escreveu para o sr. Hernin, porque está preocupada. Não sabemos. Toda a correspondência foi enfiada pela fenda na porta.

— Sim — disse eu. — Que mais?

— A menininha, essa Patrícia, não sabia para onde ir, e primeiro ficou com o camponês Korczak. O sr. Hernin pedira tanto para ser enterrado em Águas Perdidas que as autorida­des atenderam o seu pedido. Afinal, ele nasceu lá. — Ferber pegou outra folha. — Assim enterraram-no em Águas Perdi­das, a 27 de dezembro, ano passado, escreve o pastor, no cemitério da igreja. O pastor escreveu que precisaram de uma broca elétrica para abrirem a cova, tão duro de gelo estava o solo. Todos os textos estão em polonês, naturalmente, mas tudo traduzido em alemão; as traduções foram feitas em Breslau. Muito correto da parte deles, não?

— Sim — disse eu. — Realmente, muito correto.

— Esse sr. Korczak queria ficar com Patrícia, mas não seria possível. Tiraram-na dele e a colocaram no Orfanato de Glatz.

— Orfanato? Quando?

— Vinte e oito de dezembro. Logo depois do enterro. As pessoas têm de obedecer a prescrições, sr. Kent, exatamente como temos de obedecer às nossas.

— E Patty ainda está lá?

— Quem?

— Patrícia. Nós a chamamos Patty.

— Ah, sim. Patrícia ainda está lá, mas não por muito tempo. Seria contra as regras. Por isso escrevemos para o senhor.

— Por quê?

— Patrícia sempre falava no senhor e em sua esposa, e sabia o seu endereço particular e da livraria. Naturalmente, ela não sabe que sua esposa faleceu. Perdão, sr. Kent. Mas nós sabemos, nos informamos em seu distrito antes de man­darmos a carta. Como vê, queremos alguém a quem Patrícia conheça bem. Não encontramos a governanta. Patrícia pediu imediatamente que avisássemos ao senhor e a sua esposa. Ela queria ir embora o mais depressa possível, sair do orfanato. É compreensível, não é? Todas as crianças só falam polonês. Terra estranha. Pessoas estranhas...

— Sim, sim — disse eu. — Mas agora estou aqui. O que vai acontecer?

— Primeiramente, as autoridades de Glatz pedem que Patrícia volte à Alemanha. Não pode ficar na Polônia.

— Claro que não pode.

— Naturalmente. Patrícia será levada na segunda-feira, 1º de fevereiro, de Glatz à fronteira da Alemanha Oriental e entregue a uma assistente social de lá. Com todos os documen­tos necessários. A assistente social da Alemanha Oriental a levará a Berlim Oriental, à passagem da Rua Heinrich Heine. Lá, a 3 de fevereiro, por volta das quinze horas, será entre­gue a uma assistente social de Berlim Ocidental, que a trará de avião a Hamburgo. E aqui irá novamente para um orfa­nato.

— Não — disse eu. — Não quero isso.

Ele balançou a cabeça afirmativamente.

— Imaginamos que o senhor não quereria, sr. Kent. Por isso lhe escrevemos. Veja, o sr. Hernin arranjou tudo, bem antes da sua morte. O apartamento, a empresa de táxis, o dinheiro, tudo será herdado pela menina. O homem que dará continuidade à empresa também já foi escolhido por ele. O sr. Hernin só não pensou no fato de que Patrícia ainda é pequena, oito, nove anos, não?, e precisa de um tutor. — De repente comecei a sentir calor. — Enquanto ele vivia, era o tutor dela. Mas agora? Teremos de indicar um tutor do Estado.

— Eu... sou muito ligado a Patty — disse eu. — Um tutor do Estado seria uma pessoa totalmente estranha, não é? — Ele confirmou e sorriu, e sua bela dentadura postiça bri­lhou.

— Então fizemos a coisa certa.

— Como, sr. Ferber?

— O senhor diz que gosta tanto da pequena, e ela sem­pre falava no senhor e em sua esposa, lá na Polônia.

— Pois é isso! Eu não poderia ser o tutor dela?

— É nisso que quero falar, sr. Kent. Duas sugestões: ela permanece com um tutor oficial, pura formalidade, e o senhor a toma como filha adotiva. Mas se Patrícia for morar com o senhor, terá de haver uma governanta de mais idade na casa, e eu pensei na governanta do sr. Hernin, essa sra. Schultz, por­que Patrícia a conhece. Nesse caso, nós do Juizado de Meno­res, também por mera formalidade, teremos o direito de veri­ficar a cada meio ano se tudo está correto.

— Segunda sugestão?

— Segunda sugestão — disse Ferber. — Seria esta: o senhor mesmo se torna tutor, mas então a criança teria de ir para um internato, e o senhor terá de se comprometer a passar fins de semana e férias com Patrícia, assim como fazem os pais de crianças em internatos. As despesas podem ser dedu­zidas da herança da menina.

E se Deus existe mesmo, e ajeitou tudo de modo que afinal Patty e eu possamos viver juntos, depois que cada um de nós perdeu a pessoa que mais amava? — pensei, e disse:

— Eu gostaria de ter Patty como filha adotiva, com a governanta. Patrícia pode vender ou alugar a casa no Hofweg.

— Ou melhor, o tutor do Estado poderá fazer isso — corrigiu brandamente o louro sr. Ferber.

— Ou ele, claro. A empresa de táxis continua funcio­nando, e Patty e eu estaremos sempre juntos. Não precisamos de internato, só um bom colégio; estes existem aos montes, e Patty não ficará sozinha, nem eu... — Interrompi-me, emba­raçado. — Desculpe.

— Ora, sr. Kent, nada a desculpar — disse Ferber. — Alegro-me com o senhor por termos encontrado uma solução tão boa. Naturalmente levará algum tempo até estar tudo acertado oficialmente. Mas quando Patrícia voltar, iremos à casa do sr. Hernin e poderemos ver onde mora a governanta, e chamá-la. Entrementes, até ter todos os papéis arranjados de nossa parte e da parte do tribunal competente, Patrícia e a governanta já poderão morar com o senhor. — Ele levantou-se, e depois que eu me levantara, apertou minha mão com firmeza. — Então, na quarta-feira de tarde uma assistente social da Alemanha Ocidental trará a criança de avião a Ham­burgo, e Patrícia lhe será entregue aqui.

— Posso apanhar Patrícia em Berlim?

— Naturalmente, se quiser ir de avião até lá para isso.

— Se quero! — respondi.

 

— Lá está ela — disse eu.

Eram 16h35min de 3 de fevereiro de 1982, quando Patty saiu da barreira de concreto no Muro, na passagem da Heinrich Heine. A assistente social ocidental, uma jovem que con­versara longamente com sua colega da Alemanha Oriental no outro lado do Checkpoint, veio atrás dela.

— Ora, enfim — disse Raven, que viera comigo de avião a Berlim, pois queria estar presente quando Patty e eu nos reencontrássemos.

Tínhamos esperado junto do Muro. Estava mais quente em Berlim. A neve derretia, ruas e praças estavam sujas.

— Tio Peter! — gritou Patty. Ela me reconhecera. Havia poucas pessoas esperando. No seu grosso casacão de inverno, com o grande urso debaixo do braço, ela veio mancando em minha direção. Corri até ela e dobrei um joelho diante dela. Patty deixou cair o urso, abraçou-me feito louca, apertou-se contra mim e cobriu meu rosto de beijos. Ria e chorava, estava fora de si, e repetia:

— Você está aqui, tio Peter... você está aqui... esperei tanto que você estivesse mas eu não sabia, ninguém sabia...

E apertava-se a mim outra vez. Depois viu Clemens Ra­ven, mancou até junto dele, deu-lhe a mão e disse:

— E o sr. Raven também. O senhor também. Ah, vocês são um amor!

A jovem assistente social de Berlim Ocidental saiu da barreira de concreto com a mala de Patty. Ergueu o urso caído na neve derretida, limpou-o e deu-o a Patty. Vi que a moça trazia muitos papéis numa pasta de plástico.

— Puxa — disse ela —, pensei que isso não ia acabar nunca mais. Mas naturalmente os de lá tinham responsabili­dade por Patty até agora, e têm de ter certeza de que se li­vraram totalmente dessa responsabilidade.

— E o que vai ser com todos esses documentos? — in­daguei.

— Vamos mandá-los ao Juizado de Menores de Hambur­go — disse ela. — O senhor apenas precisa me dar um ates­tado de que lhe entreguei Patrícia sã e salva. — Tirou um documento de sua bolsa a tiracolo e me apontou onde eu devia assinar. Depois a jovem nos deu a mão a todos, e Patty bei­jou-a no rosto. Desejou-nos tudo de bom e foi para o seu velho Volkswagen parado no meio-fio, diante do táxi em que Raven e eu tínhamos vindo. Sentou-se na direção, acenou, e se foi.

Fomos até o táxi, e entramos. Raven disse ao motorista:

— Para Tegel, por favor. Aeroporto.

— Aeroporto de Tegel. Muito bem, senhor — disse o motorista, e ligou o carro. Patty, com o grande urso no colo, estava sentada entre eu e Raven. Por longo tempo nenhum de nós falou, depois a criança disse:

— Todo mundo foi incrivelmente bom comigo na Polô­nia, também as crianças do orfanato, mas mesmo assim foi horrível. Podem imaginar, não é?

— Muito bem até — disse Raven. — Tão sozinha numa terra estranha. Pobre Patty.

— Vovô tem uma sepultura muito bonita — disse Patty. — Bem junto da parede da igreja, e o tio José e sua mulher prometeram que vão plantar lindas flores na sepultura quando passar o inverno. São gente muito boa, os Korczaks, e foi ótimo em Águas Perdidas, mas infelizmente o vovô adoeceu logo. — O táxi passava pelas ruas de Berlim com sua neve suja, e Patty calou-se longo tempo, depois disse:

— Naturalmente não vi fontes saindo da terra, estava frio demais, e nevava tanto. Mas vi o grande quadro no teto da igreja. É muito mais bonito do que na fotografia. Nem pode imaginar como é bonito. — Mais uma vez ela se calou por longo tempo, depois disse:

— A senhora da outra Alemanha disse que ouviu dizer que não vou mais para um orfanato, mas sim ficar com vocês, tio Peter. É verdade?

— Sim, é verdade — confirmei.

— Graças a Deus! — disse Patty. — Graças a Deus, nada de orfanato. Eu estava morta de medo. De um orfanato. Com vocês vai ser bonito, vocês conheceram o vovô, e vou poder falar sempre com vocês sobre ele, e quando eu tiver de chorar porque ele está morto, vocês vão compreender. Choro muitas vezes. Gostava muito dele. E vocês também, não é? Ah, estou tão contente por ir morar com vocês agora, tio Peter. Mas... não vou incomodar?

— Claro que não.

— Quero dizer, agora que vem o bebê, e tudo mais — disse Patty.

— Você não vai incomodar nada — disse eu.

— Estou tão feliz por ver a tia Andréia — disse Patty. — Há muito serviço na livraria, não é? Por isso ela não pôde vir me buscar, não é?

— Patty — disse eu, e passei o braço nos ombros dela —, a tia Andréia morreu.

Ela levantou os olhos para mim.

— Morreu?

Fiz que sim. Eu não podia falar.

— Mas... mas... — começou Patty, interrompeu-se, e tentou outra vez. — Mas... o que aconteceu?

Contei-lhe o que tinha acontecido.

— Atropelada? — perguntou Patty.

— Sim — disse eu.

— E morta? E o bebê morto também?

— Sim.

— Então os dois estão mortos — disse Patty: — Tia An­dréia e o bebê. E o vovozinho também. — Então começou a chorar. Chorava aos soluços, todo o corpinho sacudindo-se violentamente, chorava alto, desesperada.

— Meu Deus — disse o motorista de táxi. — Meu bom Deus. — E balançava a cabeça. — Mas que coisa terrível. Sinceros pêsames, senhor.

— Obrigado — disse eu.

E Patty chorava, sem se acalmar. Chorava quando che­gamos ao Tegel, chorava no restaurante do aeroporto, enquan­to esperávamos a partida do próximo avião para Hamburgo. Todas as pessoas olhavam compassivas aquela menininha, e Raven e eu tentávamos acalmar Patty, mas não conseguimos. Ela só parou de chorar quando chamaram o nosso vôo e fomos até o avião. Depois da decolagem, ela disse ao grande urso:

— Agora tia Andréia e o bebê também estão mortos — e começou a chorar outra vez. As aeromoças chegaram assusta­das perguntando o que acontecera, e lhes contei, e cuidaram de Patty, mas sem resultado, embora tentassem com chocolate, sorvete de frutas e chiclete. Longo tempo depois Patty me disse:

— Não posso mais, tio Peter. Eu queria continuar cho­rando sempre, mas não dá. Não tenho mais lágrimas.

— Sim, Patty — disse eu. — Entendo você muito bem.

Ela estava sentada entre eu e Raven, que olhava pela janela o tempo todo. Sem olhar para nós.

— Agora somos só dois das nossas famílias, não é?

— O pai e a mãe de Andréia ainda vivem — disse eu.

— Sim, mas não viveram com ela como você, ou eu com o vovô. Foi isso que eu quis dizer.

— Entendo — disse eu.

— E agora nós dois vamos morar juntos?

— Sim — disse eu. — Com a governanta de vocês.

— Com a Francisca?

— Sim. Você, eu e Francisca.

— Ela é muito querida, sabe?

— Isso é ótimo — disse eu. — Vamos nos dar muito bem.

— Mas ela não é diretamente da família — disse Patty. — Nem de sua nem da minha. — Pegou minha mão. — Quero dizer, não como eu com vovô ou você com tia Andréia. Assim, desse jeito, somos só nós que ficou.

— Que ficamos — corrigi eu.

— Sim, foi o que eu disse — respondeu ela.

— Senhores e senhoras — disse a voz de uma aeromoça no alto-falante —, em poucos minutos aterrissaremos em Hamburgo-Fuhlsbüttel. Pedimos que afivelem os cintos e pa­rem de fumar.

Quando saímos do edifício do aeroporto e entramos num táxi com Raven, Patty disse:

— Da primeira vez que você veio a Hamburgo, foi vovô que apanhou você, tio Peter.

— Sim, Patty, é verdade — disse eu.

— No verão, não é? Estava muito quente.

— Sim. Um calor horrível.

— Para onde? — perguntou o motorista.

— Alsterdorfer Strasse — disse eu, e dei o número da casa. Depois lembrei-me de uma coisa, e disse: — Um mo­mento! — E para Raven: — Desculpe. Estou totalmente con­fuso. Onde quer que o deixemos?

— Vou com prazer até sua casa e fico mais uma horinha — disse ele. — Podemos conversar mais um pouco. Patty certamente tem muito a nos contar. Naturalmente, só se eu não atrapalho.

— Mas que bobagem, você atrapalhar! — E disse ao motorista: — Então, Alsterdorfer Strasse, por favor.

Quando abri nosso apartamento, ouvi o telefone tocar. Corri na frente e atendi.

Era o comissário Hübner.

— Então, finalmente voltou para casa? Faz horas que estou telefonando.

— Lamento. Demorou bastante na passagem pelo Muro. E só conseguimos um avião bem tarde. O que foi?

— O sr. Raven está aí?

— Sim.

— Posso falar com ele?

— Claro — disse eu surpreso, e passei o fone para Raven. — Para o senhor. O comissário Hübner.

— Obrigado — disse Raven, e atendeu. Ouviu, disse “sim” de tempos em tempos, e mais nada. Fui com Patty à cozinha, pois ela tinha sede. Tirei uma garrafa de limonada da geladeira e servi-lhe um copo. Quando ela começou a be­ber, Raven entrou na cozinha e disse:

— Lamento, sr. Kent, mas Patty não pode ficar aqui. Uma assistente social a levará a um asilo. Ela já está a cami­nho. Em meia hora, o mais tardar, estará aqui.

— Asilo? Não fico em asilo nenhum! Por que tenho que ir para um asilo? — gritou Patty nervosa.

— Mas afinal, o que está acontecendo por aqui? — per­guntei.

— Venha comigo, por favor — disse Raven, empurrando-me para o corredor. E fechou a porta. — Sr. Kent — disse ele —, sou agente da polícia. Fui colocado junto do senhor como livreiro quando a polícia não conseguia avançar no caso Langenau. Pensamos num crime político, um assassinato exe­cutado por extremistas de direita. Agora, fiquei sabendo que desde esta tarde a polícia espera pelo senhor. Está sob severas suspeitas de ter assassinado Conrad Langenau.

 

— Não matei Langenau — afirmei.

Uma assistente social apanhara Patty, que se foi choran­do. A conselho de Raven, eu enchera uma mala com roupas e objetos pessoais, e fomos até Hübner. Ficamos sentados os três no escritório do comissário ruivo.

— Sr. Kent — disse ele, sentado atrás da escrivani­nha —, temos tantas provas que o juiz emitiu um mandado de prisão.

Agora assustei-me de verdade: até ali tudo me parecera um pesadelo. Era engano, talvez um truque, pensei. Um truque maldoso, tudo bem. Mas agora...

— Ordem de prisão?

— Sim, sr. Kent.

— Quando?

— Quando o quê?

— Quando o juiz emitiu a ordem de prisão?

Raven e Hübner entreolharam-se.

— Ontem de tarde, quando chegaram os resultados do laboratório.

— Que resultados?

— O juiz vai lhe dizer isso. Não ficará aqui. Teremos de entregá-lo à prisão preventiva. Ficará detido — disse Hübner.

— Quando?

— Ainda hoje.

— Mas já é noite.

— Não importa. Aqui só temos de aprontar uns do­cumentos.

— Se a ordem de prisão estava pronta ontem à tarde, por que não me prenderam logo? — perguntei. — Por que me deixaram primeiro voar para Berlim?

Os dois homens entreolharam-se novamente. Estavam em­baraçados.

— Então? — perguntei.

— Queríamos...

— Pensávamos...

Começaram a falar ao mesmo tempo, e interromperam-se também simultaneamente.

— Bem, o quê? — perguntei.

— Queríamos que o senhor ainda pegasse a criança — disse Hübner baixando a cabeça. — O juiz concordou, desde que...

— Desde que Raven fosse comigo — disse eu. — Então você foi comigo para eu não escapulir para o Leste, é?

Raven ficou calado.

— Foi assim! — gritei. — Não foi por simpatia ou para assistir ao meu encontro com a criança, mas para me vigiar. Responda, sr. Raven! Foi isso?

— Sim, sr. Kent — disse ele desviando o rosto. — Foi isso. Queríamos que o senhor visse Patty ao menos uma vez antes de o prendermos.

— Mas foi muita gentileza sua, meus senhores — disse eu. — Recebam meus mais sinceros agradecimentos.

— Tudo bem — disse Hübner. — Não fale assim, sr. Kent. Temos de cumprir nosso dever.

— Por todos os meios — disse eu. — Também metendo um homem disfarçado na minha livraria.

— Eu fui livreiro — disse Raven.

— Quando?

— Antigamente, antes de ser agente da polícia.

— Então, não na livraria no fim da linha. Ao lado da barraca de frutas do Sul.

— Não, claro que não.

— E não escreveu aquela comovente história sobre o desfi­le das crianças mortas e a meteu em todas as caixas do correio do conjunto residencial?

— Não — disse Raven.

— Sim — disse Hübner.

— Como foi então?

— Escrevi a história, mas não a pus nas caixas de cor­reio.

— Quando a escreveu?

— Depois de me candidatar ao emprego na sua livraria.

— Ótimo — disse eu. Sentia-me terrivelmente infeliz, por isso estava tão agressivo. — Realmente, o senhor tem métodos super-refinados.

— Sr. Kent, eu tinha de conseguir o emprego de qualquer maneira, a sua confiança e simpatia, e as de sua esposa — disse Raven, em tom quase suplicante.

— Bem, e conseguiu. E como conseguiu. — Então ocor­reu-me uma coisa: — Foi o senhor quem nos mandou de fé­rias! Naturalmente, também de propósito.

— Naturalmente — disse ele, sombrio.

— Minha mulher lhe deu a chave de nosso apartamento para que cuidasse da correspondência e das flores. E cuidou bem de todo o apartamento, hein? Com toda a calma! Está­vamos longe dali. Cuidou realmente bem do apartamento todo, sr. Raven?

— Muito bem, sr. Kent. — Agora ele estava agressivo. — E o que encontrei foi muito importante. Trata-se de um assassinato, sr. Kent.

— E quando se convenceu de que eu matara Langenau?

— Ah, bastante cedo — disse Hübner.

— E por que não me prendeu logo?

— Porque não tínhamos provas suficientes.

— Mas as obteve depois?

— Sim.

— E por que não me prendeu?

— Tudo bem — disse Hübner.

— O corpo, sr. Kent — disse Raven, num tom de branda censura. — O corpo do sr. Langenau.

— O que houve com ele?

— Não o tínhamos encontrado. Ainda estávamos pro­curando.

— E enquanto não tinham o corpo não podiam me pren­der?

— O senhor teria admitido o crime se não houvesse cadá­ver?

— Não.

— Está vendo?

— Também agora não o posso admitir. Não matei Lan­genau.

— Sr. Kent...

— Não matei Langenau! — berrei.

— O senhor matou. Todas as provas confirmam isso. Foi o motivo de não o podermos prender mais cedo. Tínhamos de ter o cadáver para verificarmos provas no laboratório.

— Onde encontraram o corpo?

— No lago Mühlenteich, em Reinbeck — disse o comissá­rio Hübner, e me encarou pela primeira vez. — Enrolado em cordas e preso ao fundo com ferros de construção. Tivemos de abrir o gelo com picaretas e fazer descer mergulhadores. O Mühlenteich, sr. Kent. O senhor conhece Reinbeck.

Agora fui eu quem não respondeu.

Reinbeck.

Mühlenteich.

Eu estivera lá naquela noite.

Eles certamente sabiam. Eram essas as suas “provas”, pelo menos algumas delas. Eu não matara Langenau, mas eles o tinham tirado do lago. Comecei a entender que estava numa situação gravíssima.

— Dois tiros de uma Zero-Oito no peito — disse Hübner. — Aquela com silenciador, calibre nove. O senhor a conhece. Temos os resultados da balística: tiro à queima-roupa. O se­nhor matou e jogou o corpo no Mühlenteich.

Era tudo muito pior do que eu imaginara no começo. Mas eu era inocente. Era inocente. Não matara Langenau. Quem me deixara naquela maldita situação? Quem? Pergunta idiota. Naturalmente o assassino. Ou os assassinos, o que é que eu sabia?

— Nenhuma palavra do que está dizendo é verdade — afirmei.

— Pode contar isso tudo ao juiz — disse Raven. E ainda parecia muito envergonhado. Hübner era o mais forte, não se incomodava por ter sido tantas vezes nosso visitante, comer conosco e beber meu uísque.

— Tudo teria ido muito mais depressa se o chefe da es­tação não tivesse ido de avião ver os netos — disse Hübner.

Pensei que estava enlouquecendo. Sentia-me como um bêbado que entra cambaleando no túnel do seu vício, tudo cada vez mais escuro ao meu redor. Não havia luz no fim do túnel.

— Mas que chefe da estação? — perguntei.

— De Reinbeck, é claro. — Hübner estava eloqüente. — Não sabíamos onde o senhor tinha posto o cadáver. Pistas, sim, uma porção, também indícios. Mas não levavam a nada. Procurávamos em vão. Esse chefe da estação tem netos em Houston, Texas. O diabo quis que, dois dias depois de o se­nhor matar Langenau, ele...

— Eu não o matei! — berrei.

— Tudo bem... Então, o chefe da estação voou para os Es­tados Unidos dois dias depois de o senhor matar Langenau e o jogar no Mühlenteich. Voltou enfim, há seis dias, com a mu­lher. Quando soube que um homem sumira na noite de 10 para 11 de novembro do ano passado, e provavelmente fora assassi­nado, lembrou-se de que exatamente nessa noite, depois das doze, vira um carro junto do lago. Um Mercedes. Lembra-se disso tão bem porque o Mercedes lhe pareceu suspeito num tempo daqueles. O senhor tem um Mercedes, sr. Kent. O chefe da estação nos disse o número da placa. O senhor esteve em Reinbeck naquela noite, e remou com um barco sobre o lago e jogou o corpo nele, amarrado com cordas e preso a ferros de construção.

Tive vontade de gritar mas dominei-me e disse:

— Naturalmente tudo isso é mentira. O chefe da estação disse que viu tudo isso? Eu gostaria de conhecer esse senhor.

— Vai conhecer, sr. Kent, vai conhecer — disse Hübner. — Ele não o viu jogar o corpo na água. Viu o senhor descer do carro e abrir o porta-malas.

— E por que não ficou olhando mais?

— Porque o telefone tocou no outro quarto. A central do trem, houve um acidente. A conversa levou muito tempo. Quando ele por fim desligara, o senhor desaparecera.

— Merda — disse eu. — Mas é a testemunha mais for­midável que já vi.

— Para nós basta, sr. Kent. Ele não disse que o senhor jogou o cadáver no lago. Não disse isso. Só disse que viu o Mercedes, o seu Mercedes, e que um homem desceu dele e abriu o porta-malas. E depois disso achamos o cadáver no lago. O homem nos basta como testemunha. Para nós, basta.

— E ele foi ao Texas de avião, e do dia 10 de novembro até hoje se lembrava do número da minha placa? Não seja ridículo!

— Ele anotou.

— Por quê?

— Para o caso de precisar dela, se perguntássemos. Ele não sabia que o senhor pretendia jogar um morto no lago, mas achou esquisito depois da meia-noite, naquele tempo horrível, alguém com o carro parado no Mühlenteich. Por isso anotou a placa do seu carro. Na agenda telefônica. Por sorte. Por isso logo sabia o número quando telefonamos.

Todo esse tempo fiquei pensando que naquela noite vira luz numa janela atrás da estação, enquanto eu tentava com galhos e um cobertor velho libertar meu carro atolado na lama. E na janela iluminada eu vira a silhueta de um homem. Então fora o chefe da estação. É, a minha situação era ótima.

— Por que ele não avisou logo que havia um homem com um Mercedes junto da água? — indaguei.

— Ele disse que pensou que talvez o homem estivesse atolado na lama, e quisesse tirar do porta-malas um cobertor ou coisa assim para pôr debaixo das rodas traseiras, e tentar libertar o carro. Anotou a data e a placa para alguma eventua­lidade. Quando voltou dos Estados Unidos naturalmente es­quecera o incidente. Até ouvir dizer que estavam procurando um desaparecido. Um homem desaparecido na noite de 10 para 11 de novembro. Daí ele telefonou para a delegacia, e eles o mandaram até nós. Fomos até ele, e nos contou tudo. O laboratório pôde verificar o resto das pistas.

— Que pistas eram?

— Inúmeras.

— Diga-me uma só.

Raven disse tristemente:

— A areia.

— Que areia?

— Lá fora no Mühlenteich o solo é de areia. Uma areia especial. Nas pernas das calças que usou naquela noite encon­tramos areia.

— Quando estávamos em Valbella.

— Sim — disse ele.

— Teve bastante tempo para procurar, depois de regar as flores.

— Isso mesmo. O laboratório disse que é a mesma areia — disse Hübner.

— Bem possível — disse eu. — Estive muitas vezes em Reinbeck. Com minha mulher. Também examinou as calças claras de verão?

— Não.

— Faça isso. Vai achar uma porção de areia de Reinbeck. Nas minhas calças de verão.

— Havia areia nas rodas do Mercedes, sr. Kent.

— Fomos muitas vezes de carro a Reinbeck.

— Tão perto do Mühlenteich?

— Não. Naquela noite não estivemos lá fora, nem minha mulher nem eu.

— Não falamos de sua mulher.

— Mas tudo isso é loucura! Os nazistas mataram Langenau — disse eu. — Ele estava em 1980 no atentado na Oktoberfest. Deve ter achado uma pista importante, e teve de morrer.

— Como sabe que Langenau estava na Oktoberfest?

— Pelo médico de minha mulher. Ele também me contou que Langenau apoiou a polícia. Naturalmente sabe muito bem disso.

— Naturalmente sabemos bem disso — disse Hübner. — Tão bem quanto o senhor. E viu uma ótima oportunidade de matar Langenau sem que as suspeitas caíssem sobre o senhor.

— E por que suspeitavam de mim? — perguntei. — Por que suspeitaram de mim “bem cedo”, como o senhor disse, comissário?

— Otto Reining — disse ele.

— O quê?

— O homem da segurança na casa do sr. Langenau.

Lembrei-me do homem magro com manchas vermelhas nas faces, que sofria de reumatismo, e a quem tínhamos encontrado quando visitei Langenau naquela noite de 10 de no­vembro de 1981.

— O que tem ele?

— Afirmou que o senhor gritou durante uma briga com Langenau.

— Sim, o senhor já me disse isso. Não brigamos, só falei alto porque estava nervoso.

— E por que tão nervoso?

— Porque Langenau queria nos deixar de qualquer jeito, sabe disso!

Hübner sacudiu a cabeça.

— Não foi por isso que estava tão nervoso, sr. Kent.

— Por que então?

— Porque o sr. Langenau lhe disse na cara que o senhor matara seu melhor amigo, Jean Balmoral — disse Hübner.

— Esse Reining ouviu isso?

— Esse Reining ouviu isso. — Hübner levantou-se e foi até uma porta, que abriu. Disse alguma coisa que não en­tendi, e logo depois um homem apareceu no umbral. Era espantosamente pequeno e delicado, coisa de metro e meio, na casa dos cinqüenta anos, usava um terno de confecção amas­sado, cinza. Tinha rosto oval, boca grande, testa alta e olhos de cor indefinida, pacientes e pensativos. O cabelo preto era curto, e já havia muitas mechas grisalhas.

Hübner disse:

— Este é o comissário Rolland, de Paris.

Levantei-me.

O homenzinho veio até mim e me deu a mão.

— Boa-noite, maître Duhamel — disse ele mansamente.

 

Não consegui me mexer. Mal conseguia respirar. Fim, pensei. Fim. Fim. Fim. Mas como? Seria possível? Eisenbeiss me mandara dizer que a busca desse comissário Rolland, ago­ra parado à minha frente, terminara em Viena, sem resultado. O que acontecera?

— Sente-se outra vez, maître — disse Rolland.

Continuei em pé.

— Por favor, sente-se!

Sentei-me, os outros também se sentaram.

Rolland disse calmamente:

— Aí no vaso de flores há um microfone. Ouvi sua con­versa na sala ao lado. Sim, maître, acreditamos que o senhor matou a tiros seu melhor amigo, o advogado Jean Balmoral. Há provas disso. Procurei pelo senhor longo tempo. Em Viena descobri como se chamava e se parecia agora.

— Como descobriu isso?

— Não importa. O senhor é maître Duhamel, não é?

Pensei um pouco, depois disse:

— Sim.

— Muito bem — disse o delicado comissário, que falava alemão fluentemente, só com um pequeno sotaque. — Como tí­nhamos provas de que o senhor cometera o crime, os policiais franceses dirigiram-se à Interpol em Viena, pedindo a busca. A Interpol de Viena enviou o mandado de busca a todas as sedes de todos os lugares de língua alemã, portanto também Alemanha e Suíça. No mesmo dia em que o mandado de busca entrou na Alemanha, o comissário Hübner se apresen­tou... — Rolland fez uma pequena mesura, sentado... — na Interpol de Wiesbaden, e disse que já tinham identificado, aqui em Hamburgo, o tão procurado Charles Duhamel, aliás Peter Kent. Isso aconteceu depois do desaparecimento de Langenau. O sr. Hübner o conhecia bem. Esteve muitas vezes com o senhor.

— E por que não me prendeu logo? — perguntei ao ruivo.

— Porque ainda não tínhamos o corpo de Langenau — disse ele. — O senhor o matou porque ele sabia que o senhor tinha matado Balmoral.

— Disse Otto Reining.

— Não, maître — disse o pequeno comissário Rolland. — O senhor é acusado de outras coisas também... ou a Interpol não teria mandado fazer a busca.

— Mas sem cadáver ninguém teria podido acusá-lo da morte de Langenau — disse Hübner. — Muito menos do assassinato de Balmoral. Por isso a polícia criminal alemã procurou a Interpol, pedindo que só o prendessem pelo assas­sinato de Balmoral depois que o crime contra Langenau fosse esclarecido. Tudo bem. Todos foram muito compreensivos e solícitos aqui em Hamburgo, em toda a Alemanha, na França, Áustria e Suíça. Decidiram deixar o senhor totalmente livre. Claro, sob observação constante. Jamais teria podido fugir.

— Todas as delegacias policiais receberam informações, instruções adequadas — disse o pequeno francês. — Ainda cuidei de que a polícia suíça não o fosse prender por descuido, quando foi a Valbella com sua esposa.

— Sabe disso também?

— Naturalmente que sei, maître. O sr. Raven preparou essas férias, e o comissário Hübner me telefonou. A polícia de quatro países trabalhou em conjunto no seu caso, maître. Ago­ra, está na hora. O cadáver já foi encontrado. Agora, todas as provas combinam entre si. Podemos prendê-lo. Compreende?

Balancei a cabeça, confirmando.

— Reining depôs que Langenau sabia do seu crime contra Balmoral — disse Hübner. — Como aconteceu, isso Reining não escutou. Não podia ficar parado na porta escutando eter­namente. Mas ouviu Langenau dizer que sabia com certeza que o senhor matara Balmoral, e que ia embora por não que­rer mais viver com um assassino impenitente. O sr. Langenau era muito religioso.

— E esse tal Reining escutou tudo isso?

— Sim, tudo isso. E também que Langenau suplicou ao senhor que fosse à polícia e se entregasse. E que o senhor recusou, furioso.

— Ora, que maravilha — disse eu. — Ora, que beleza. E aí esse Reining me ouviu atirar contra Langenau.

— Não, isso ele não ouviu — disse Hübner. — Tudo bem. Acho que o que ele ouviu basta para presumir que o senhor tinha um bom motivo para matar Langenau.

— E qual é esse motivo?

— O motivo é que de outro modo ele o teria denunciado — disse Raven.

Tudo era absurdo.

Se queria escapar daquela enrascada, a partir de então teria de medir muito bem cada palavra que fosse dizer.

— Agradeço pelas amáveis informações e esclarecimen­tos, senhores — disse eu. — Acho que agora encerramos nossa Conversa, e os senhores me levam à prisão preventiva. Tudo isso é um pouquinho demais. Langenau. Balmoral. Portanto, segundo me informaram, cometi dois assassinatos.

— Talvez três — disse Rolland.

— O quê?

— Talvez tenha cometido três assassinatos, maître. Paul Perrier, o amante de sua mulher, está desaparecido desde 18 de novembro, sem deixar sinais.

 

A casa de detenção fica em Hamburgo, uma rua com o estranho nome de Holstenglacis. Holstenglacis, 3.

Levaram-me para lá ainda naquela noite, e um guarda gorducho me encaminhou a uma cela. Era muito feia, e mal se distinguia das celas de uma prisão comum. Dentro havia um armário para minhas coisas; a pia estava suja, e o banheiro cheirava mal.

Eu estava exausto, mas quando me deitei na cama não consegui dormir. As horas passavam, eu me virava na cama e pensava em como os neonazistas, que certamente tinham ma­tado Langenau, também tinham conseguido, habilmente, fa­zer gente sensata como Raven e Hübner acreditar na minha culpa. Depois refleti nos dois, em como Hübner ficara meu amigo e de Andréia, e no fantástico comportamento de Raven na livraria, na morte de Andréia e depois, quando cuidara de mim. E pensei, tudo isso não pode ter sido unicamente tá­tica... ou sim?

Quando pensara o suficiente nos dois, naturalmente pen­sei em Patty, que devia estar na cama em algum orfanato, e certamente não conseguia dormir de nervosismo, como eu. Essa lembrança me causou dores físicas, e levantei-me, e olhei pela janela gradeada para um pátio escuro, no qual reconheci muitas outras janelas com grades. Sentei-me na única cadeira existente e tentei me acalmar. Pensei que agora tinha de fazer tudo para sair daquela desgraça e que pela manhã precisava estar descansado. Mas de nada adiantou. Dormi talvez duas horas naquela noite, e quando um guarda me trouxe o café, tomei apenas a bebida quente, e pedi mais. Não consegui comer nada. Pouco antes das dez chegou outro agente e disse que eu vestisse meu casaco e o acompanhasse. Passamos por longos corredores e muitas portas de grades, noutra ala do edifício. Lá o guarda me deixou na sala do Juiz de Instrução Criminal.

Era uma sala grande, e meu juiz de instrução era um homem grande. Tinha cabelos e olhos cinzentos, também a pele de suas mãos e rosto era cinzenta, e dava a impressão de enfermo. Chamava-se Dr. Hans Oelschlegel, e primeiro leu-me todo o relatório da polícia criminal que provocara aquela or­dem de prisão. Depois começamos a falar longamente sobre o caso Langenau, mas ele sempre voltava a falar em Balmoral, e perguntei muito cortesmente se não seria melhor falarmos pri­meiro sobre aquele caso. Ele concordou.

Lá fora nevava outra vez, e eu via grandes flocos caindo diante das janelas que davam para a rua, e lá de baixo vinha o rumor de automóveis e motocicletas. Lá não era tão silen­cioso como em minha cela. Quando começamos a falar so­bre Balmoral, de repente fiquei totalmente disperso. Pen­sava de novo em Patty e no que ela estaria fazendo, e se estaria muito desesperada. De repente, eu também estava muito desesperado, mas depois me controlei, e pensei que se tratava do meu futuro. Se eu quisesse rever Patty, te­ria de ser incrivelmente esperto, pois por mais absurda que fosse a outra acusação, a Balmoral eu realmente tinha assas­sinado.

— Por quê? — perguntei ao juiz. — Por que eu mataria meu melhor amigo? Pode me explicar isso?

— Ele o estava chantageando — disse Oelschlegel, e senti frio, porque estava correto. — Ele o chantageou, e para que o senhor não pudesse fazer nada, deixou uma carta com um colega em Paris, onde dizia que caso morresse rápida e inespe­radamente, o senhor seria seu assassino. E dava também seu novo nome, aparência e endereço.

— Um momento, um momento — disse eu. — Como pretende saber disso?

— Do comissário Rolland. Tenho o relatório dele na mi­nha frente. Segundo ele, está constatado que Balmoral tele­fonou no dia 22 de setembro de 1981 ao advogado Pierre Leroy, pedindo que mandasse levar imediatamente a referida carta ao restaurante La Rotonde, no Bois de Boulogne. Leroy ficou muito espantado, mas fez o que Balmoral pedira. No Bois, o mensageiro lhe deu a carta. Balmoral estava no res­taurante com outro homem, dois garçons confirmaram. Esse homem era o senhor, sr. Duhamel. Agora vou lhe dizer o que pensam o comissário Rolland e esses caras da Polícia Criminal de Paris, está bem? Bom. Então o senhor disse a Balmoral que não teria mais um minuto de sossego na vida enquanto aquela carta existisse. Podia acontecer alguma desgraça ao seu me­lhor amigo, não é, e se ele morresse a carta seria aberta, e nela Balmoral o acusava de ser seu assassino. Portanto, ofereceu uma grande soma a Balmoral pela carta. Ele estava sempre em dificuldades financeiras, e aceitou. O senhor provavelmen­te lhe deu um cheque, e ele lhe entregou a carta. Isso foi por volta de uma e meia. Depois rodaram juntos pelo Bois, e após a curva ao lado do riacho, o senhor atirou nele, pegou o che­que de volta e fez o carro cair na água.

Oelschlegel levantou-se e foi até uma grande seringueira num canto da sala. Pegou um regadorzinho de plástico ver­melho e começou a regar cuidadosamente a árvore. Via-se que a amava. Talvez não tivesse mais nada para amar. Qualquer pessoa precisa ter uma coisa para amar. O juiz de instrução criminal Dr. Hans Oelschlegel amava uma seringueira. Talvez também amasse pessoas ou coisas, mas certamente não tanto quanto àquela arvorezinha. Vendo-o regar a árvore entendia-se que ele não conseguiria amar tanto duas vezes. Havia um sorriso em seu rosto cinzento.

— O senhor viu? — perguntou ele.

— O quê?

Ele apontou para cima.

— Ali... uma folha nova.

Realmente, uma folha nova brotava na ponta da árvore, verde-clara e ainda meio enrolada.

— Maravilha, não? — disse Oelschlegel.

— Maravilha — disse eu. — O que me contou é portanto o ponto de vista do comissário Rolland e da polícia de Paris.

— Acho que agora basta. Não se deve dar água demais. — Largou o regadorzinho vermelho e voltou à escrivaninha. — Sim, é o ponto de vista deles. — Depois deu um espirro es­trondoso e disse: — Ai!

— Como?

— Espirrei.

— Sim, ouvi — disse eu.

— Quando espirro assim, sempre tenho de espirrar dez vezes seguidas. Isso já acontece há muitos anos. Balmoral esteve em Hamburgo. Tenho aqui... — procurou e achou o papel — ... a informação do Hotel Éden, um hotel muito pequeno, dizendo que um advogado Jean Balmoral chegou ao meio-dia de 16 de setembro, uma quarta-feira, e pegou um quarto. No dia 17 de setembro, pouco antes do meio-dia, foi embora outra vez. Antes de viajar, Balmoral esteve em seu apartamento.

Espirrou outra vez.

— Saúde! Isso escreve o Hotel Éden?

— Não. Isso escreve o Dr. Hellweg.

— Quem é o Dr. Hellweg?

Espirrou uma terceira vez.

— Saúde — disse eu.

— Obrigado. O Dr. Hellweg foi chamado ao Hansa-Bank na Jungferstieg na manhã de 17 de setembro, com uma am­bulância, porque o senhor sofrera um grave ataque de coração no saguão do banco.

Espirrou uma quarta vez.

— Saúde!

— Não — disse ele. — O senhor não vai dizer saúde dez vezes! Lembra desse médico?

Refleti no que devia dizer.

— Sim — disse eu. Não me restava outra escolha. — Não sabia que ele se chamava Hellweg.

— Mas teve um grave ataque cardíaco no banco?

Quinto espirro.

— Sim — disse eu. — Sofro de angina pectoris.

— O senhor proibiu o Dr. Hellweg de tocar no senhor, certo?

Sexto espirro. Ele já tinha lágrimas nos olhos; enxugou-os com um lenço.

— Certo — disse eu.

— Por que proibiu?

— Porque eu estava bem melhor, e não queria chamar mais atenção ainda.

Sétimo espirro.

— O senhor ainda se sentia tão mal que não teria podido ir sozinho para casa. Por isso aceitou o oferecimento do médi­co de pelo menos o levar para casa com a ambulância. Dois enfermeiros o levaram escadas acima. Tão mal o senhor ainda estava. Não queria deixar que o tratassem, porque tinha de estar depressa em casa com os quatrocentos mil marcos, que o seu melhor amigo Jean Balmoral — que sabia que o senhor tinha escapado do atentado do avião em Viena e morava em Hamburgo sob outro nome —, que o seu melhor amigo Jean Balmoral lhe tinha arrancado sob chantagem. — Oitavo espirro. — Agora logo vai acabar — disse o juiz. — O senhor tinha de estar em casa bem depressa, porque Balmoral lhe dera um prazo curto para entregar o dinheiro. Se não voltasse em tempo, ele iria à polícia revelar sua identidade.

Nono espirro.

— Quem diz isso?

— O comissário Rolland suspeita disso. Eu também sus­peito. Aliás, não, estou convencido. O comissário Rolland na­turalmente trabalhou com nosso pessoal. Na manhã daquele dia o senhor telefonou ao Hansa-Bank, pedindo quatrocentos mil marcos em notas de mil. Foi com uma maleta ao contador responsável pela sua conta, sr. Vormweg, que colocou o di­nheiro na maleta, numa cabine. Depois o senhor sofreu o ata­que. O Dr. Hellweg levou a maleta até o seu apartamento, onde seu melhor amigo estava esperando.

Décimo espirro.

Agora ele assoou o nariz, contemplou longamente o lenço, e balançou a cabeça, satisfeito com o que estava vendo.

— O Dr. Hellweg viu Balmoral. Foi ele quem abriu a porta.

— O Dr. Hellweg não pode afirmar que foi Balmoral — disse eu.

— Nem afirma. Quem afirma sou eu. E o comissário Rolland. O Dr. Hellweg só diz que um homem abriu a porta, e que o senhor o chamou de Jean. Jean é o nome de Balmoral, e esse Jean disse ao médico que estava de visita e cuidaria do senhor, que tinha esses ataques freqüentemente. Então o se­nhor pagou em dinheiro a despesa do transporte. — Pegou novamente um papelzinho. — Aqui. Assim que o médico e os enfermeiros sumiram, Balmoral pegou a mala com os quatro­centos mil e foi embora.

— Ele não me chantageou por dinheiro — disse eu. — Pediu-me que o ajudasse, emprestando-lhe o dinheiro.

— Quatrocentos mil marcos. Em notas de mil.

— Por que não? Era o meu melhor amigo.

Oelschlegel levantou-se outra vez e foi até a sua árvore, acariciando uma folha verde-escura.

— De resto, uns documentos excelentes os que Eisenbeiss lhe preparou.

— Quem?

— Seu velho conhecido Eisenbeiss, em Viena. Só não me diga que ele não fez documentos falsos para o senhor, sr. Duhamel!

— Defendi um homem chamado Eisenbeiss há muitos anos — respondi. — Depois nunca mais o vi. Ele não fez, de modo algum, documentos para mim.

— Claro que fez.

— Pode provar?

— Não.

— Então não o pode afirmar.

— Quem fez os documentos falsos para o senhor?

— Por favor, senhor juiz — disse eu.

Ele voltou de junto da seringueira, e parecia envergo­nhado.

— O senhor tem razão, foi uma pergunta tola. — Sen­tou-se então. — Para que seu melhor amigo Balmoral preci­sava de quatrocentos mil em dinheiro alemão? E ainda por cima dinheiro vivo, numa mala?

— Ele estava em dificuldades.

— Que dificuldades?

— Não me disse.

— E o senhor não perguntou?

— Não. Ele não queria falar a respeito. Um problema muito particular, obviamente. Claro que ele teria me devolvido em breve... se não tivesse sido assassinado.

— E a carta que ele deixou com o advogado Leroy? — perguntou ele.

— Não posso ajudar, senhor juiz. Sabe Deus que carta era essa. Não tenho idéia de quem matou Jean... talvez real­mente por causa dessa tal carta. Mas o brilhante comissário Rolland está enganado supondo que era uma carta que meu amigo deixara para se proteger de mim. O ponto de partida dessa informação é falso. Não se pode ajudar o melhor amigo em dificuldades, sem que logo tenham a impressão de que nos está chantageando, e que o matamos por isso? — Balancei a cabeça. — O senhor não dá muito valor à amizade, não é?

Ele respondeu:

— E o que pensa do fato de que, na noite em que o senhor visitou o sr. Langenau, aquele sr. Reining tenha ouvido vozes altas vindo do apartamento, e as palavras do sr. Lan­genau, dizendo que o senhor matara Balmoral e devia se apre­sentar à polícia, e que ele não podia mais continuar convi­vendo com um assassino impenitente?

Eu tinha refletido numa coisa desde que fora preso, e pareceu o momento certo de dize-lo.

— Senhor juiz — disse eu —, Langenau era a única pessoa a quem eu confiara tudo, que sabia quem eu realmente era. Eu tinha de contar a alguém. Não agüentava mais aquela pressão monstruosa. Não podia falar de modo algum com mi­nha mulher Andréia, com ninguém mais. Mas tinha de falar com alguém, confiar em alguém. Sozinho era tudo muito difí­cil. Muitas vezes eu tinha medo de estar sendo procurado, de andarem atrás de mim...

Menti convincentemente, falei com voz embargada como se cada palavra me saísse com dificuldade. — Então contei a verdade a Langenau, e disse por que saíra da minha vida an­tiga. Ele me compreendia. — Eu continuava falando sem parar. — E esta noite refleti sobre a nossa última conversa. Bem minuciosamente. O que tínhamos falado. O que esse Reining pode ter ouvido. E aí me ocorreu uma coisa.

— Sim — disse Oelschlegel.

— Quando pedi repetidamente a Langenau que ficasse co­nosco, ele disse, e foram exatamente essas as suas palavras, lembro muito bem: “Sr. Duhamel, por favor, acredite: preciso ir embora. Não agüento mais aqui. O senhor também não agüentou em Paris e desapareceu depois desse acidente de avião em Viena porque não podia mais agüentar o que estava acontecendo ao seu redor. Exatamente assim está acontecendo comigo, sr. Duhamel. O senhor tem de me entender. Não suporto mais esse ódio, toda essa maldade, acredite em mim!” Foi isso que Langenau disse. E nunca me tratou pelo meu verdadeiro nome, só nessa noite. Isso mostra como ele se esfor­çava desesperadamente para me fazer entender que tinha de nos abandonar. Portanto, é bem possível que esse Reining tenha escutado meu verdadeiro nome.

— E se o nome não lhe dizia nada?

— Então pelo menos deve ter estranhado que Langenau me chamasse Duhamel, não Kent. Isso deve tê-lo deixado curioso. Talvez tenha comentado com amigos sobre o caso. E os amigos tenham sabido quem era esse Duhamel, que desa­parecera depois do acidente de avião em Viena.

— Acha que Reining armou o seu depoimento?

— Sim.

— Com essa monstruosa acusação?

— Sim.

— Mas por que, sr. Duhamel, por quê?

— Não sei, senhor juiz. Não sei por que motivos Reining age assim. Peço que chame esse cavalheiro e nos confronte, para que eu possa lhe fazer algumas perguntas.

— Não pode ser — disse Oelschlegel.

— Senhor juiz — disse eu —, sabe que fui advogado. Conheço as leis. Também as leis alemãs. Claro que é possível me confrontar com o sr. Reining. Tenho até direito a isso, e o senhor sabe muito bem.

— Pois muito bem — disse ele, de má vontade.

— Por que está agindo preconcebidamente contra mim?

— Não estou, sr. Duhamel.

— Está, e como! O que significa esse falso depoimento de Reining? Senhor juiz, o senhor e eu estamos aqui para encon­trar a verdade. Para encontrar a verdade todos os meios per­mitidos pela lei são legais. Um confrontamento como esse que estou pedindo é absolutamente permitido pela lei. Mas o se­nhor queria me negar isso.

Vi com alegria gotas de suor aparecerem na sua testa. Ele as enxugou com o lenço que ainda tinha na mão.

— Desculpe. Um erro de minha parte. Uma falha, não foi má vontade. Peço desculpas. Vou fazer com que o sr. Reining seja chamado. O mais depressa possível.

— Obrigado — disse eu.

— Então o senhor não acha que — sem falar no depoi­mento do sr. Reining — temos provas bastantes para supor que o senhor matou Balmoral? A Interpol acha que sim.

— Eu não — disse eu. Agora me sentia melhor. A par­tir de então eu estava com as melhores cartas. — De modo algum. Como posso ter matado Jean, só do ponto de vista técnico? O tempo. No dia 21 de setembro eu ainda estava em Hamburgo, na noite de 22 também, na manhã de 22 ainda. Depois fui de avião a Frankfurt, e de táxi ao Nordwestkrankenhaus para visitar o pai de minha mulher Andréia, que es­tava internado. Então eu estava a caminho entre Hamburgo e Frankfurt, num avião da Lufthansa. Como podia matar Jean dali? Acho que tenho um álibi indestrutível.

— Não necessariamente — disse Oelschlegel. A neve vol­tara a cair intensamente..

— O que quer dizer “não necessariamente”?

— Há por exemplo um trem com vagão-leito que sai diariamente de Hamburgo às vinte e uma e quarenta e chega no dia seguinte às sete e quarenta a Paris. O senhor poderia ter pegado um vagão-leito nesse trem. E estaria antes das oito da manhã em Paris, nesse 22 de setembro. Quando esteve com o pai de sua falecida esposa no Nordwestkrankenhaus?

Agora eu precisava mais uma vez tomar cuidado. Eu co­nhecia de cor os horários dos aviões do meio-dia de Hamburgo a Frankfurt, e disse:

— Não sei lhe dizer isso assim, agora. Eu não sabia que isso teria um papel tão importante. Mas diria que cheguei lá por volta das duas e meia, três horas.

— Que avião o senhor pegou?

— O das doze e trinta — menti. — Chegou às treze e trinta em Frankfurt. De lá ainda é um bom pedaço até o Nordwestkrankenhaus.

Na verdade, meu bem, como lhe contei, eu voara às 15h30min com o avião atrasado do aeroporto Charles de Gaulle de Paris a Frankfurt, e só estivera no hospital por volta das 17h30min. Mas estava confiando na minha experiência profissional. Não há nada que testemunhas confundam tanto como horários. Pensei que a mãe de Andréia dissera depois da morte dela: “Meu pobre rapaz, como passou depressa o tempo feliz de vocês dois. Ainda me lembro tão bem do dia em que você entrou no quarto do hospital com flores. Era bem no começo da tarde, não era?”

Está vendo, meu bem, ela já não se lembrava direito. E eu naturalmente confirmei isso na hora.

— Sim — respondi —, foi pelas duas e meia, três horas que cheguei. Ainda tomamos chá juntos, lembro disso muito bem.

— Esta manhã — disse o juiz de instrução Oelschlegel —, agentes criminais perguntaram aos seus sogros em Frankfurt, e às enfermeiras, quando o senhor chegou lá, segundo lem­brança deles, sr. Duhamel.

Naturalmente, a pessoa precisa de um pouco de sorte, pensei.

— Se não disser a verdade e tiver tomado realmente o trem para Paris — prosseguiu ele — teria facilmente podido voar de Paris a Frankfurt.

— Um momento — disse eu. — Um momento sim, se­nhor juiz? Se eu tivesse apanhado o vagão-leito, o grande comissário Rolland já saberia disso.

— Como?

— Mas, senhor juiz! Não me julgue imbecil — disse eu em tom de censura. — Em cada bilhete de vagão-leito está o nome do comprador. Na partida ele entrega bilhete e passa­porte ao condutor, e eles são comparados na fronteira, para ver se estão corretos. Então o senhor teria mandado seus agen­tes à Estação Central de Hamburgo, e a todas as agências de viagem, e mandaria perguntar se na noite de 21 para 22 de setembro havia algum Peter Kent viajando no vagão-leito de Hamburgo a Paris. Certamente o senhor ou o comissário Rol­land fizeram isso.

— Não — disse ele.

— Por que não? Pensei que queriam me acusar do assas­sinato.

— Mas não assim. Assim não é possível.

— Como não?

— Porque nada do que o senhor disse é verdade.

— O que não é verdade?

— Que seu nome tenha de constar na passagem do vagão-leito. Só se assinala se é viajante masculino ou feminino. Na fronteira controla-se o passaporte, mas ninguém o com­para com a passagem. Os agentes teriam de controlar o passa­porte com a passagem de todas as pessoas do trem, e na passagem teria de constar ainda o nome do viajante. E com isso todo o trânsito ferroviário entraria em colapso.

— Então não controlam nada? — disse eu, perplexo. Não demais, mas perplexo. Banquei o idiota.

— Não.

— Então, para que se tem de entregar passagem e passa­porte?

— A passagem para o condutor, o passaporte para a polícia da fronteira e a alfândega.

— É mesmo? — balancei a cabeça.

— O senhor entrega seu passaporte só para não ser acor­dado na fronteira, sr. Duhamel. É isso. Outra coisa: se o senhor pára imediatamente na agência de viagens, e sempre se tem de pagar no guichê do trem, ninguém perguntará seu nome.

— Então nem faria sentido perguntar na estação ou em todas as agências de viagem — disse eu, fitando-o com olhos arregalados.

— E por isso ninguém o fez — disse ele, zangado, e pensei que de qualquer modo ninguém se lembraria de mim na agência de viagens da Alsterdorfer Strasse. A jovem que me vendera a passagem estava casada há muito, e não trabalhava mais. — Aliás, o senhor teria podido comprar uma passagem normal para Paris e viajar sentado a noite toda. O que tam­bém não se poderia provar.

— Por que está me contando tudo isso, senhor juiz?

— Espere! Espere! Não podemos provar, mas vamos su­por que o senhor tenha tomado o trem noturno. E teria podido voar de Paris a Frankfurt — disse ele.

— Por que eu faria isso, senhor juiz? Ao meio-dia Balmoral ainda estava vivo. À uma e meia ele saiu do restaurante com aquele outro homem, o senhor mesmo me disse isso há pouco. Sabe qual a distância entre o Bois de Boulogne e o aeroporto Charles de Gaulle? Que avião eu teria tomado?

— Às catorze e trinta sai diariamente um avião da Air-France.

— Eu jamais o teria alcançado, tem de admitir isso.

— Admito. Mas nesse dia, 22 de setembro de 1981, o avião saiu atrasado. Só partiu às quinze e trinta.

— Mas então eu estaria somente às cinco e meia ou seis com o pai de minha esposa Andréia.

— Vamos ouvir o que os pais de sua mulher e as enfer­meiras dirão.

Bati com a mão na testa.

— Mas tomar um avião teria sido algo absolutamente idiota de minha parte, senhor juiz! — exclamei. — O senhor sabe muito bem que em aviões para o exterior é preciso passar pela barreira policial antes de ser examinado e liberado. E é preciso mostrar ao policial ali sentado a passagem e o passa­porte. Mas numa passagem de avião sempre consta o nome do passageiro, sei disso com certeza! O policial verifica se no passaporte consta o mesmo nome.

— Correto. Mas quando há muita pressa, ou muito tra­balho, isso é feito muito superficialmente. O avião que esta­mos pensando estava bastante atrasado por causa de um de­feito. Portanto, estavam todos apressados, e a conferência deve ter sido feita muito superficialmente; portanto...

— E quando! — instiguei. — E quando nem ao menos fazem o controle! As companhias de aviação mandam a cópia de cada passagem para a sua central de contabilidade, onde tudo é microfilmado e guardado. Por muito tempo, não sei quanto. Para o caso de reclamações ou pedido de devoluções. Ou caso a polícia queira saber se naquele dia aquela pessoa voou a determinada hora em determinado avião. Está correto ou não?

— Tudo correto, sr. Duhamel.

— Então — continuei instigando, mais depressa e mais alto. — Então o comissário Rolland só teria de perguntar lá onde ficam guardados os microfilmes da Air-France. E se eu tivesse voado naquele aparelho, teria sabido em poucos minu­tos. Exatamente. E decerto ele andou se informando por lá, não?

— Sim — disse Oelschlegel.

— E então?

— Não há passagem em nome de Peter Kent nesse avião da Air-France.

— Nem pode haver! — exclamei nervoso. — Não voei nesse avião; fui com a Lufthansa, às doze e trinta, de Ham­burgo a Frankfurt. Tem de haver uma cópia de minha passa­gem na central de contabilidade da Lufthansa. Onde fica essa central?

— Aqui em Hamburgo — disse ele.

— Naturalmente o senhor se informou lá.

— Naturalmente — disse ele.

— E o que lhe disseram?

— Disseram que lá está registrada uma passagem para Peter Kent no vôo da Lufthansa sete-zero-cinco às doze e trin­ta de Hamburgo a Frankfurt, no dia 22 de setembro de 1981.

Você deve estar perplexa, meu bem. Não pode entender como isso foi possível, mas foi até muito simples.

A 20 de setembro de 1981 eu telefonara a meu dedicado amigo Eisenbeiss em Viena, pedindo um favor.

— Eisenbeiss, você podia hoje ou amanhã, ou no máximo no dia 22 de setembro, voar cedinho de Viena a Hamburgo? Muito importante.

— Claro que posso — respondeu ele. Nenhum de nós fa­lava de sua casa. — O que devo fazer?

— Comprar uma passagem em nome de Peter Kent para o vôo sete-zero-cinco da Lufthansa de Hamburgo a Frankfurt, para doze horas. Vinte e dois de setembro. Não há controle de passaporte dentro da Alemanha. Você voará de Hamburgo a Frankfurt com o nome de Peter Kent, e depois, com o seu próprio nome, viajará de novo para casa em Viena. Faria isso por mim?

— Sabe que eu faria tudo por você — respondeu ele. Foi tudo assim tão simples, meu bem.

Exclamei:

— Afinal, senhor juiz, o que deseja de mim? Não fui de trem de Hamburgo a Paris nem de Paris de avião a Frank­furt! O comissário Rolland pode confirmar isso. Fui de avião de Hamburgo a Frankfurt. A polícia criminal alemã confir­mou isso. Então eu lhe pergunto: o que mais quer de mim?

O telefone tocou.

Oelschlegel atendeu, escutou algum tempo, e falou muito pouco; por fim desligou.

— Era de Frankfurt. Os agentes que interrogaram seus sogros e as enfermeiras.

— Sim, e daí? O que disseram?

— As enfermeiras nem se lembram mais do senhor.

— Claro — respondi. — Isso eu teria podido lhe dizer logo. Num hospital imenso daqueles. Com aquele movimento. Mas e meus sogros?

— Dizem que o senhor chegou por volta das duas e meia, três horas.

— Quer dizer que eles dizem o mesmo que eu.

— Sr. Duhamel — disse ele, apertando as mãos nas têm­poras.

— Isso quer dizer que tenho um álibi indestrutível.

Ele ficou calado.

— Mas agora, basta — disse eu com veemência. — Toda a sua teoria... a do comissário Rolland, desmoronou. Admita isso! Pergunto mais uma vez: não tenho um álibi indestru­tível?

— Sim — disse ele, torturado. — Vamos interromper a entrevista agora, sr. Duhamel. Não... não me sinto muito bem. Mandarei chamá-lo outra vez, e poderemos finalmente falar sobre o assassinato do sr. Langenau.

— Não matei o sr. Langenau. Mesmo que pareça. Tam­bém pareceu que eu tinha assassinado Jean Balmoral, não?

Ele fez que sim e apertou uma campainha.

— Tenho ainda um grande pedido, senhor juiz — disse eu.

— Qual?

— Conhece o nome Patrícia Hernin? É a menininha que ontem apanhei em Berlim e com a qual devo morar.

Ele confirmou mais uma vez.

— Pode descobrir onde a colocaram e o que vai acontecer com ela?

— Vou me esforçar para conseguir isso.

Bateram à porta e entrou um guarda.

— Senhor juiz?

— Por favor, leve o sr. Duhamel de volta à cela.

 

O homem com a prótese no braço direito disse:

— Bom-dia, sr. Duhamel. — Estava parado ao lado do juiz Oelschlegel, e os dois me encararam quando fui introdu­zido na sala pelo guarda. Era na manhã seguinte, 5 de feve­reiro, uma sexta-feira.

— Bom-dia, senhores — respondi.

Oelschlegel disse:

— Este é o delegado criminal Niemann, da Delegacia Criminal Federal de Wiesbaden. Está trabalhando em Ham­burgo. Pedi que viesse até aqui... por sua causa.

— Por minha causa?

— Sim — disse Niemann. Tinha uma comprida cicatriz na testa. Quando falava, o sangue pulsava nela. Pensei que a cicatriz e a prótese vinham da última Guerra Mundial. Idade bastante para ter combatido, Niemann parecia ter. — Sr. Du­hamel, como quero ter certeza de que o exame de seu caso não entrará em trilhos errados, nem possa ser encaminhado para trilhos errados, quero lhe dizer que o sr. Langenau realmente colaborava conosco no esclarecimento do crime na Oktoberfest. Mas quero enfatizar: ele não encontrou qualquer pista em suas buscas. Todos os seus esforços permaneceram inúteis até sua violenta morte. Estou convencido de que entende o que quero dizer com isso. Até logo, sr. Duhamel. — Fez uma mesu­ra, batendo os calcanhares. Fiquei então certo de que seus feri­mentos vinham da última guerra. Parecia um oficial alemão em filmes franceses, ou filmes antibélicos. Um bom oficial alemão.

A porta fechou-se atrás dele.

— Sente-se! — disse o juiz de instrução.

Sentamo-nos os dois.

— O senhor ouviu — disse o homem de cara cinzenta. — Todo esse tempo Langenau não encontrou um só indício que fosse perigoso para esses grupos radicais da direita.

— Já ouvi.

— E ainda insiste em que foram os neonazistas que o mataram?

— Insisto em que não fui eu quem o matou — disse eu. Estava com frio, depois com calor. Mas não era o início de uma gripe. Eu simplesmente me sentia mal naquela manhã. Uma sensação péssima. Temia que não fosse ser um dia bom para mim.

Oelschlegel remexeu em alguns papéis.

— Ah, de resto, um senhor Robert Stark telefonou para o senhor.

— Sim?

— Sim. Manda abraços e pergunta se pode botar um anúncio nos classificados pedindo um livreiro para a livraria. Vai telefonar novamente à tarde. Estarei aqui, embora seja sexta-feira. Tenho documentos para examinar. O que devo dizer a ele?

— Também abraços, e que ele ponha esse anúncio o mais depressa possível. Terei de ficar aqui o fim de semana, e só serei libertado segunda ou terça-feira.

Ele me olhou com ar sombrio.

— Sr. Duhamel — disse —, sr. Duhamel.

— Tenho de ser libertado segunda ou terça — disse eu. — Não matei Langenau. Pude provar ontem que não matei meu amigo Jean Balmoral. Então?

— Não será tão fácil provar inocência na morte de Lan­genau — disse ele. Eu tinha a mesma impressão, por isso me sentia tão mal do estômago.

— E aquele homem da segurança? — perguntei. — Esse Reining? O senhor me prometeu...

— Na segunda-feira — disse ele. — Terá de esperar até segunda-feira. Teremos o fim de semana. Na segunda o sr. Reining virá, ele já confirmou.

— Obrigado.

— Por nada. — Ele me encarou. — Quanto às provas e suspeitas no caso Langenau, o senhor já conversou com os senhores Hübner e Raven, segundo soube. E com o comissário Rolland, sim. Em parte. Nada muito detalhado. Sabe que só agora encontramos o corpo, e sabe por quê.

Concordei com a cabeça:

— O chefe da estação de Reinbeck e sua viagem aos Esta­dos Unidos.

— O cadáver estava enrolado num plástico grande, e amarrado, também sabe disso.

— Não, isso eu não sabia.

— Também nada sobre a atadura grossa e o grave feri­mento na cabeça?

— Mas que grave ferimento na cabeça?

— Naturalmente também não sabe — disse ele. — Claro, não pode saber, o senhor não sabe de nada.

— Sei o que me contaram na delegacia. Não me falaram nada de ferimento na cabeça nem envoltório plástico. Falaram de cordas e ferros para dar peso ao corpo, de dois tiros no peito com uma pistola Zero-Oito, calibre nove...

— A pistola de Langenau, sr. Duhamel. Com silencia­dor. Nós a encontramos. As balas vinham dela. Na arma há impressões digitais. As suas.

— Claro. Peguei a arma na mão quando visitei Lange­nau. Admiti isso desde o começo. Seja quem for que o matou, usava luvas. Se eu o tivesse assassinado com essa pistola, acha que seria idiota a ponto de deixar impressões digitais?

Ele suspirou:

— O senhor cometeu o ato em estado de grande nervo­sismo.

— Eu não cometi o ato em absoluto!

— Vamos, calma, não grite assim, sr. Duhamel. Va­mos começar do começo, sim? — Ele levantou-se, foi até a seringueira, acariciou uma folha. — O senhor visitou Lange­nau na noite de 10 de novembro. Chegou por volta das nove horas, conforme disse. Certo?

— Certo.

— Queria convencê-lo a ficar.

— Certo.

— Mas não conseguiu?

— Não, senhor juiz, não consegui.

— Embora tenha tentado horas a fio. Quantas horas, sr. Duhamel?

Eu pensara bastante nisso naquele meio tempo. Não fazia sentido mentir. Eles sabiam que eu estivera em Reinbeck. Sa­biam a hora. Eu não podia negar a ida a Reinbeck. Portanto, tinha de dizer a verdade. Era loucura. Eu realmente matara Balmoral, ontem mentira, e Oelschlegel tivera de acreditar em mim. Eu não matara Langenau. Hoje diria a verdade, quando muito mentiria para que não me atribuíssem o crime Balmo­ral. Mas hoje Oelschlegel não acreditaria em mim, de modo algum.

Respondi:

— Quase três horas. Quase até meia-noite, senhor juiz.

— E tudo em vão?

— Sim. Langenau estava farto da Alemanha, dos extre­mistas de direita, e de toda essa atmosfera aqui. Queria ir para casa, no Tirol, De qualquer jeito.

— O homem da segurança, sr. Reining, disse no proto­colo que foi uma conversa muito diferente.

— O que esse Reining disse no protocolo é mentira.

— É a palavra dele contra a sua, sr. Duhamel.

— Acho que ontem ficou claro que eu não podia ter assassinado Balmoral, senhor juiz.

— Ontem ficou claro que não podemos lhe atribuir o assassinato de Balmoral. Não que o senhor não o tenha co­metido.

Portanto, minha sensação ruim inicial não me enganara.

— Não se pode provar esse crime por uma razão muito simples: não o cometi!

— Não deve gritar, sr. Duhamel.

— Perdão. Mas fico muito nervoso. Esse delegado crimi­nal de Wiesbaden me deu a entender claramente ontem que não devo usar das relações de Langenau contra os radicais de direita para transferir esse crime do terreno pessoal para o político, com o qual nada tem a ver. O sr. Reining, esse belo cavalheiro, não deve usar o caso Balmoral, com o qual eu — e o senhor sabe muito bem disso, senhor juiz, embora faça de tudo para me desmentir —, com o qual não tenho nada a ver, para transferir o assassinato de Langenau do campo pessoal para o político e me onerar gravemente. Nele vocês acreditam. Em mim não. A palavra dele contra a minha, disse o senhor. Na verdade, os senhores constroem sua acusação sobre a pa­lavra dele, e me consideram mentiroso e assassino. O que tem o sr. Reining de vantagem sobre mim para o tornar tão incri­velmente mais digno de confiança do que eu, senhor juiz?

— O sr. Reining não trocou de nome nem viveu como outra pessoa.

— É tudo o que o coloca acima de mim? Muito pouco, não acha? Eu tinha motivos pessoais gravíssimos para mudar mi­nha identidade. Por isso eu jamais teria sido procurado pela Interpol. Fui procurado pela Interpol porque a polícia de Paris, em boa parte incitada por minha mulher Yvonne, que é louca, acreditou por fim que eu poderia realmente ter ma­tado Balmoral. — Seria uma péssima sexta-feira para mim. Pensar que eu não tinha assassinado Langenau. Nem se devia pensar nisso. Balmoral sim, Langenau não. Balmoral absolvi­ção. Langenau condenação.

— Por que está tão nervoso, sr. Duhamel?

— Porque está me acusando de um crime com o qual não tenho nada a ver.

— Ontem também o acusei de um assassinato com o qual diz nada ter a ver. E nem ficou nervoso.

Eu não devia subestimar aquele Oelschlegel. E disse:

— Na segunda. Na segunda-feira vou pegar esse Reining, e então veremos quem vai ficar mais nervoso.

— Que motivo teria Reining de o acusar tão gravemente?

— Não sei.

— Como explica que ele afirme ter ouvido coisas que estão realmente em debate: seu nome verdadeiro, o nome de Balmoral, e que o senhor assassinou Balmoral? De onde Rei­ning teria sabido tudo isso, se não o tivesse ouvido realmente?

— Senhor juiz — disse eu —, lembre-se de que o pobre Langenau era meu confidente. Era o único a saber quem eu realmente era e qual meu verdadeiro nome. Por isso ele me chamou uma vez de “Duhamel” por engano. Sr. Duhamel... Reining ouviu isso.

— Só o seu verdadeiro nome?

— Só.

— Mas ele afirma que falaram outras coisas.

— Segunda-feira — disse eu. — Segunda. Vamos aguar­dar, senhor juiz. Na segunda saberemos. — Eu acreditava fir­memente já agora saber por que Reining me acusava tão gra­vemente, dizendo a pura verdade. Ele não apenas cumpria o seu dever de cidadão testemunhando o que ouvira, mas ainda tinha um maldito outro motivo, eu estava convencido disso. Na segunda eu tentaria descobrir esse motivo. Na segunda. Hoje era sexta-feira. Uma sexta-feira negra para mim.

— Então vamos continuar — disse Oelschlegel, que aca­riciara a folha da seringueira o tempo todo. — O senhor ficou quase até meia-noite, sem conseguir dissuadir Langenau. E depois?

— Depois descemos de elevador, ele abriu a porta.

— E o senhor levara a pistola com silenciador, secreta­mente, e lhe bateu com a coronha da arma na cabeça e ele desmaiou.

— Nunca — disse eu.

— Ele sofreu um grave ferimento na cabeça, eu já lhe disse. Os médicos do Instituto Médico-Legal constataram que a pistola dele foi a arma assassina. E a coronha cabia exata­mente no ferimento. Também havia sangue e cabelos nela, quando a encontramos. Cabelos de Langenau, sangue de Lan­genau. Grupo AB. Tudo constatado no exame médico-legal.

— Não toquei em Langenau — disse eu.

— Vou lhe contar mais uma vez como é que a polícia imagina os fatos daquele dia.

— Pois não.

— Supondo, pois, que o senhor bateu na cabeça de Langenau com a coronha da pistola dele por volta de meia-noite de 10 de novembro lá embaixo, na porta do edifício dele. O senhor trazia no bolso um grande rolo de atadura, com que amarrou a ferida que sangrava, e metade da cabeça dele. Várias camadas, para o sangue não passar. Eu lhe disse que o cadáver tinha uma atadura muito firme?

— Sim.

— Naturalmente, apesar disso correu sangue sobre o chão de pedra da porta do edifício, antes de o senhor colocar a atadura. O senhor limpou todos os sinais com um pano, com muito cuidado, mas não o bastante. Depois arrastou Lange­nau desmaiado para o carro e o meteu no porta-malas. Não havia ninguém na rua àquela hora, e com aquele tempo. O senhor disse alguma coisa?

— Não, senhor juiz.

— O senhor estava extremamente nervoso. Tinha bebido. Tudo pode acontecer. Pode ter um acidente, assim descontrolado como está. Por quê? Porque tem no carro um homem ferido e desmaiado. Depois de tudo o que ele lhe disse aquela noite, terá de morrer. Só então o senhor estará seguro. Mas matar como? Onde? Onde colocá-lo? Seu cérebro trabalha febrilmente. O tempo dispara. Onde matar Langenau? Naque­le tempo louco, com aquela tempestade e chuvarada. Reinbeck! Lá estão construindo edifícios novos, na beira da Horner Landstrasse, logo antes de Reinbeck, o senhor se lembra disso. Uma série de edifícios vai surgir ali. O senhor viu as máqui­nas, os sacos de cimento, os guindastes, as telhas, as primeiras paredes, os ferros e cordas.

— Quando supõem que eu tenha visto isso, senhor juiz?

— Sempre que foi com sua esposa a Reinbeck nos últimos tempos. Era o seu lugar preferido para passeios.

— Sim, no verão — disse eu.

— A construção começou no fim do verão. O senhor deve ter visto isso! Foi um outono muito bonito. Certamente tam­bém estiveram em Reinbeck no outono!

— Uma vez — disse eu.

— Pois então. Então, o senhor vai até a construção! Não há ninguém lá fora. Tudo quieto. O trabalho só continuará na primavera. Tempo ruim, inverno, não se pode construir. O senhor estaciona seu carro bem perto de uma das fa­chadas, tira Langenau, ainda desmaiado, do porta-malas, arrasta-o para um quarto no térreo. Lá há telhas, ferros, cor­das, sacos de cimento protegidos contra a chuva por grandes plásticos. O senhor arranca uma dessas folhas, estende-a no chão, coloca Langenau em cima, pega a pistola e lhe desfere dois tiros no peito. O senhor...

— Por que o coloco sobre o plástico? Ah, sim, o san­gue...

— Nada de fingimentos, por favor. Claro, por causa do sangue. Agora sai muito sangue, do ferimento no peito. Mas tudo fica no plástico, quase tudo. Um pouco o pessoal da investigação ainda encontrou. Deve ter coagulado quando o senhor enrolou o morto no plástico, quando o amarrou num pacote com as cordas, quando lhe colocou os ferros para dar peso. Tinha encontrado o lugar ideal. Não teria podido assas­sinar Langenau antes, por exemplo no apartamento. Teria sido impossível. Tanto sangue. Além disso... como levar o morto pelo elevador, um homem tão grande e pesado? Mesmo que o tivesse conseguido, o senhor teria sujado todo o vestíbulo e o porta-malas.

— Tem razão, senhor juiz. Não havia sangue no meu porta-malas.

— Não.

— Nem uma gotinha?

— Senhor Duhamel!

— Mas é muito estranho, não?

Oelschlegel não respondeu.

— Então ele foi realmente morto a tiros em uma das construções?

— Nossos homens encontraram sangue e outros sinais, bem como dois cartuchos de bala. E a arma, num monte de areia. O senhor a enterrou lá.

— Então fui bastante idiota... perdão, senhor juiz.

— Na verdade, depois do ato o senhor está mais nervoso ainda, o álcool com efeito mais forte. Tem uma só idéia: Lan­genau tem de sumir! O senhor age em pânico. Arrasta de volta ao carro o pacote que foi um ser humano, enfia-o no porta-malas, senta-se na direção. Suas mãos tremem, o senhor arqueja. Está quase acabado. E então, acontece!

— O quê?

— Choca seu carro contra um dos andaimes de ferro diante da fachada. O pára-lama esquerdo fica amassado, o pára-choque dianteiro da esquerda fica dobrado. O senhor trata de sumir. Parte do andaime desmorona, mas ninguém ouve. Mais tarde o senhor dirá à polícia que um carro bateu no seu enquanto estava estacionado diante do apartamento de Langenau, enquanto o visitava lá em cima. A polícia exami­nará seu carro constatando imediatamente que não é verdade. Nenhum outro carro entrou no seu. O comissário Hübner lhe dirá que alguém deve ter feito isso com um martelo, de propó­sito, porque encontraram pedacinhos de ferro no lugar amassado. E há mesmo, mas vieram do andaime de ferro em que o senhor bateu. Nossos laboratoristas descobriram isso, depois de encontrarmos o corpo. Então procuraram em toda a redon­deza: procurou-se pelo lugar do crime, pela arma. Teria sido em vão. Nunca teríamos encontrado local e arma se o senhor não tivesse assassinado Langenau naquele lugar protegido... porque o senhor não sabia de outro local... naquela noite... com aquele tempo...

— Tudo isso foi muito tolo de minha parte; perdão mais uma vez, senhor juiz. Eu simplesmente entreguei meu peito à faca.

— Eu não diria isso. Se o chefe da estação não o tivesse visto... nunca teríamos chegado a Reinbeck e ao Mühlenteich, nunca teríamos examinado os andaimes de ferro. Tudo ainda está exatamente como quando desmoronou naquela noite. Pensaram que o andaime caíra com a tempestade. Não, o senhor imaginou tudo muito bem. Meus respeitos! Mas o chefe da estação foi o seu azar. Não existe crime perfeito, sr. Duhamel. Portanto, a polícia descobriu tudo. O senhor foi depressa para casa. Não deve ter contado o crime à sua es­posa, pois ela nada sabia de Balmoral e com certeza não sabia que o senhor não se chama Peter Kent mas é um francês, um “desembarcado”, um bígamo, cujo filho ela traz debaixo do coração...

— Pare com isso! — gritei. — Minha mulher está morta! Quanta falta de tato o senhor ainda é capaz de ter?

Ele realmente se desculpou.

— Sim, sim, sim — disse eu. — Tudo bem. O senhor não se lembrou disso no momento.

— Mas alguma coisa o senhor deve ter contado à sua esposa... quero dizer, porque era tão tarde... e seu carro... O que foi que contou à sua mulher?

— Que um bêbado entrara no meu carro e que eu pró­prio bebera bastante com Langenau. E que por isso a polícia ia investigar detidamente. E eu estava tão bêbado e confuso que disse à minha mulher que nem ao menos saberia dizer onde o sujeito batera em mim. Quero dizer, em que rua. Eu lhe contei que tinha me perdido na cidade...

— Na cidade! Naturalmente a caminho de Reinbeck?

— Não, claro que não.

— O que quer dizer: claro que não? Por que, claro que não?

— Porque... Ah, senhor juiz, não faz sentido. Não posso explicar. Não posso nem explicar por que fui a Reinbeck.

— Para jogar Langenau no Mühlenteich — disse ele.

— Vamos deixar disso por um momento, sim? — disse eu, controlando-me com esforço. Aquele dia. Aquele dia. Eu sabia que seria um dia terrível para mim. — Vamos esquecer por um momento as teorias da polícia. Eu estava bêbado. Não inconsciente, mas muito bêbado. E terrivelmente deprimido porque Langenau ia nos deixar por causa desses malditos neo­nazistas. O senhor não o conheceu. Era o melhor livreiro que havia, e era nosso amigo. Um bom homem. Meu confidente, senhor juiz! Não pude ir para casa logo depois de tê-lo deixa­do, estava confuso demais. O senhor me olha com ar cético. Não pode imaginar como rodei doidamente pela cidade, e de repente notei que estava no caminho de Reinbeck, e depois ainda fui até o Mühlenteich. Realmente fiquei atolado ali na lama, como viu o chefe da estação. E desci para desatolar o carro. O chefe da estação viu isso. Quero dizer, ele olhou exatamente quando abri o porta-malas e tirei um velho cober­tor para pôr diante das rodas. E no caminho de volta, senhor juiz, no caminho de volta é que bati nesse andaime, porque um maluco veio na contramão sobre o meu carro, com faróis altos me ofuscando. Tive de entrar no andaime para escapar desse louco. O senhor não acredita em mim.

— Não — disse ele. — Talvez eu acreditasse que simples­mente foi até Reinbeck no Mühlenteich assim, distraído, mais nada... se não tivéssemos encontrado o cadáver de Langenau no lago.

— Sim — disse eu —, isso é grave.

— E a mentira de que outro entrou no seu carro o se­nhor teve de inventar porque num exame mais detido não deveriam descobrir que o senhor bateu num andaime em Reinbeck. Pois o andaime fica muito perto do lago em que o senhor jogou Langenau. Mas os rapazes do laboratório logo disseram ao comissário Hübner que o senhor estava mentindo, que ou­tro carro não poderia ter batido no seu.

— Então ele estava fazendo uma encenação quando me contou aquela história do martelo que alguém teria batido no Mercedes!

— Sim, sr. Duhamel. Naquele tempo ele já desistira das suas primeiras suposições, de que Langenau fora morto por radicais direitistas. Naquele tempo ele começava a suspeitar do senhor,

— Minha mulher e eu considerávamos Hübner e Raven verdadeiros amigos.

— Os dois também gostavam muito dos senhores — disse ele, baixinho. — Veneravam sua pobre esposa.

— Pare com isso, por favor!

— É verdade.

— Mesmo assim, pare! — Lembrei-me de uma coisa. — E as pegadas de sapatos?

— Quais?

— Logo no começo da investigação o pessoal de Hübner achou quatro pares de pegadas sujas no apartamento de Lan­genau. Um bem grande era dele, o outro meu. E as dos outros dois pares? Langenau era um homem muito cuidadoso. O apar­tamento tinha de estar sempre imaculado. Não tinha arruma­deira, ele mesmo limpava tudo. Jamais teria deixado as pega­das sujas no tapete. O comissário Hübner experimentou aque­la vez os sapatos de todos os amigos de Langenau, mas não serviram naquelas pegadas. Portanto, depois de mim devem ter aparecido dois homens na casa de Langenau. Dois homens, depois da meia-noite.

— Ou antes das nove, antes de sua chegada.

— Ou isso, sim.

— Vieram dois. A televisão de Langenau estava estraga­da. E dois homens da oficina devolveram o aparelho naquela noite às sete. Os dois se apresentaram a Hübner aquela vez. Tinham enrolado o aparelho num cobertor porque chovia mui­to aquela noite.

— Ah, é — disse eu.

— Eles deixaram a televisão no apartamento e tiraram o cobertor. Não tocaram em nada, por isso não achamos suas impressões digitais.

— Ah, é — disse eu pela segunda vez.

Eu sabia que aquela sexta-feira seria um dia funesto para mim.

 

Bad Oldesloe, 5 de fevereiro de 1982

“Querido tio Peter!

Um professor que vai a Hamburgo amanhã me prometeu que ia levar esta carta pra você. Assim você vai receber ela no sábado. Querido tio Peter, por que o sr. Raven levou você embora? Você não fez nada de ruim. A boa assistente social que me pegou me levou para a casa dela naquela noite, e no dia seguinte fomos para um Juizado muito grande e lá estava a Francisca, nossa governanta. Tiraram ela das férias. Ela cho­rou e disse que é horrível mas não pode ser responsável por mim, porque é velha e doente e tem os nervos ruins. Ela quer voltar para casa em Algoi. Então a boa assistente so­cial disse que agora ia cuidar de mim e que tinha que ir para um internato onde iam cuidar de mim, e em toda a Hamburgo não tem internato para meninas como eu. Então entramos num carro e fomos muito longe para uma cidade muito bonita que se chama Bad Oldesloe. E em Bad Oldesloe tem um internato que se chama Kerns Internatschule, e é muito bonita, só que choro o tempo todo porque você não está comigo e o vovô está morto e tia Andréia também. A boa assistente social falou com o diretor do Internato Kerns e ajei­tou tudo, e agora eu sou uma aluna aqui e moro aqui. Às vezes penso se eu também estivesse morta como o vovô ou tia Andréia seria melhor. O diretor disse que normalmente só aceitam crianças com dez anos, mas ele abriu uma exceção para mim. Tenho que viver sempre num internato porque não tenho ninguém para cuidar de mim. Eu disse que tenho você mas o diretor não respondeu. Por que não respondeu, querido tio Peter? Ele disse que o apartamento em Hofweg é meu e a empresa de táxi do vovô vai continuar dirigida pelo sr. Steiner, que é um motorista dos nossos, e eu herdei bastante dinheiro para morar nos melhores internatos. Mas não quero morar nos melhores internatos, quero ficar com você. Por favor, por favor, querido tio Peter, faz com que a gente possa ficar junto bem depressa.

Sua Patty

Estou muito infeliz.”

 

Segunda-feira, 8 de fevereiro de 1982.

— Como vai? E o reumatismo? — perguntei apertando a mão de Otto Reining. Ele esperava na sala do juiz Oelschlegel quando me levaram para lá logo depois das dez. Oelschlegel me cumprimentara com a cabeça, de trás de sua escrivaninha.

Reining, aquele homem idoso de corpo magro e manchas vermelhas nas faces, praguejou:

— Sempre na mesma — disse amargurado. — Sempre na mesma. O diabo, sr. Kent, ahn... sr. Duhamel. Sinto cada osso com esse tempo, um nojo. Perdão, senhor juiz.

— Por favor, sentem-se os dois — disse Oelschlegel. E a Reining:

— O sr. Duhamel queria lhe fazer algumas perguntas.

— Está com raiva de mim, sr. Duhamel — disse Reining em tom lamentoso.

— Por que estaria com raiva?

— Por causa do que disse. Não foi para o senhor. Mas eu tinha que dizer a verdade, sr. Duhamel.

— Claro que tinha de dizer a verdade, sr. Reining, há várias agências de serviços de segurança e vigilância em Ham­burgo, não é?

— Sim, claro. Estou na Securitas. Sempre trabalhei na Securitas. Nunca em outra firma.

— Há quanto tempo?

— Vinte e dois anos, sr. Duhamel.

— E que idade tem?

— Cinqüenta e oito. Antes de trabalhar na Securitas eu era chefe de garçons. Com vinte e nove já era chefe de gar­çons.

— Onde?

— Paris. — Ele disse o nome de um hotel de primeira, com um restaurante famoso.

— O senhor trabalhou em Paris?

— Sim. Dezessete anos ao todo, sr. Duhamel. O melhor tempo de minha vida. Eu adorava Paris. Adoro a França. Sempre quis ficar lá.

— Por que não ficou?

— Por quê? — Ergueu os ombros, debilmente, e abai­xou-os de novo. — Por quê? Esse maldito reumatismo. Co­meçou quando eu tinha trinta e quatro anos. Dois anos depois tive de largar minha profissão. Um chefe de garçons com reu­matismo? Impossível. Simplesmente não dava. Muito tempo trinquei os dentes para agüentar a dor. Do corpo e os nervos. Dores, dores horríveis. Tentei de tudo, estive com médicos. Tratamentos, injeções, irradiação. Nada. Um garçom tem que correr, sempre em movimento, o dia todo, metade da noite. Isso tinha acabado, sr. Duhamel, definitivamente. — Calou-se e olhou para o chão. Depois disse: — Voltei para a Alemanha. Aqui, para Hamburgo. Sou daqui. Aqui encontrei um médico que me tratou por dois anos. Dois anos inteiros. Depois realmente melhorei. Não fiquei bom, longe disso, mas melhorei muito. Pelo menos pude me mover direito outra vez. Natural­mente, garçom ficou impossível. Precisei de uma profissão onde pudesse me sentar de tempos em tempos, me deitar um momento, onde não importasse se eu andava depressa, ou torto. De preferência uma profissão noturna. No tempo em que eu tinha dores horríveis nunca podia dormir de noite. De noite tudo é sempre pior quando se está doente, não é? Não importa que doença. Então de dia eu cochilava quando estava exausto. Apesar das dores. Profissão noturna. Bom, assim cheguei à Securitas. Tinha que trabalhar, ganhar dinheiro, comer, viver. Guarda-noturno em Hamburgo. E chefe dos gar­çons em Paris, num dos melhores hotéis. Guarda aos cin­qüenta e oito. Também é uma carreira.

Calou-se e ficou olhando a neve que caía lá fora.

Fez-se uma pausa.

Depois o juiz de Instrução Oelschlegel espirrou violenta­mente. Diabos, pensei, logo agora!

— Saúde — disse Reining.

— Obrigado. Sinto muito, o sr. Duhamel já conhece isso. Agora terei de espirrar mais nove vezes.

— Nove vezes? — perguntou Reining.

— Sim, quando espirro é sempre dez vezes. Realmente lamento muito. — Oelschlegel espirrou uma segunda vez. — Não se incomode com isso!

Eu disse:

— Então o senhor fala francês perfeitamente, sr. Rei­ning.

— Claro, sr. Duhamel! A língua mais bonita do mundo. Música! Assino um jornal francês e uma revista, e estou no Club du Livre. E sempre ouço a rádio francesa quando estou em casa. Meu único luxo: meus livros e jornais franceses. — Oelschlegel espirrou pela terceira vez. — Tempo para ler eu tenho bastante — disse Reining. — E às vezes é como se eu ainda estivesse em Paris, nos meus tempos felizes...

Eu disse: — E durante a guerra?

— “Durante a guerra” o quê, sr. Duhamel?

— Onde esteve durante a guerra, sr. Reining?

Oelschlegel espirrou.

— Também em Paris. — Reining riu como se as lem­branças fossem divertidas. — Já estava na minha profissão. Foi aí que por assim dizer recebi meu primeiro polimento.

— Quer dizer, como garçom?

— Sim, sr. Duhamel.

— Por que não se tornou soldado?

— Eu era soldado e garçom. — Ele riu novamente.

Oelschlegel espirrou pela quinta vez.

— Onde foi isso? — perguntei, e pareceu-me que estava sentindo um levíssimo sopro, como um epiléptico antes de seu ataque.

— No Casino Aurore — disse Reining.

Mais um sopro.

— O senhor esteve no Casino Aurore?

— Já disse.

— Mas era o restaurante preferido do Serviço Secreto alemão.

— Certo, sr. Duhamel. Como sabe disso?

— Nenhum parisiense esqueceu isso, sr. Reining. Assim como nenhum francês esqueceu o Serviço Secreto alemão.

— Que idade tem, sr. Duhamel?

— Cinqüenta.

— Então, oito menos que eu. Não tem nem idéia do que aconteceu na França aquela vez! — Reining me encarou in­dignado. — O senhor nunca foi soldado!

— Não, nunca.

— Cinqüenta anos... nascido em trinta e dois... No tem­po da guerra o senhor ainda ia à escola!

— Certo. Mesmo assim, sei de muita coisa, sr. Reining. — De repente eu via uma centelha de esperança, só como um pouco de luz no fim do túnel. Uma centelha só, mas uma centelha. Minha voz ficou agressiva, agora eu falava depressa.

— Ouvi e li o suficiente sobre os crimes do Serviço Secre­to na França. O senhor deve ter sido um homem de grande confiança deles, sr. Reining, se lhe permitiram trabalhar no Casino Aurore para os assassinos bêbados do Serviço Secreto e suas putas.

Oelschlegel espirrou pela sexta vez, e disse:

— Não use esse tom, sr. Duhamel, esse tom não!

Reining falou quase ao mesmo tempo, o rosto vermelho:

— O senhor disse, assassinos?

— Todos eram assassinos, todos eles — instiguei. A cen­telha de esperança...

— Se ouviu e leu tanto sobre o Serviço Secreto, então sabe com certeza da Resistance, o movimento de resistência francesa.

— O Maquis, sim. Essa gente combateu a ocupação alemã na França. Havia mulheres entre eles também. Cada um arriscando a cabeça e a vida, torturas e morte na luta contra a ocupação alemã. — Eu falava cada vez mais depressa e mais agressivamente.

Oelschlegel espirrou pela sétima vez.

— Contra a ocupação alemã! — Reining estava muito excitado, e deu uma risada má.

— Ora, contra quem então? — disse eu.

— Vou lhe dizer, sr. Duhamel, vou lhe dizer: contra feri­dos desamparados. Contra pobres porcos camponeses. Contra mocinhas! Contra crianças!

— Ora, ora, ora!

— Ora, ora, nada! O que fez o Maquis? Explodia grupos que estavam de licença! Explodia transportes de feridos! Pu­nha bombas em teatros e cinemas! Havia mulheres e mocinhas lá dentro! Mulheres e mocinhas francesas muitas vezes! Bom­bas em hotéis e alojamentos! Lá estavam as telefonistas, as ajudantes da Luftwaffe, as mensageiras! Lá moravam os filhinhos e filhinhas dos oficiais que recebiam visitas de parentes!

— Eram porcos da SS! Os importantes! Só eles recebiam visitas de parentes!

— E as crianças também eram porcos da SS, é? E as mensageiras, e as enfermeiras, também?

— Quem foi que atacou a França, sr. Reining?

— Mas isso é a mesma merda? O Maquis matava gente inocente! Os mesmos métodos dos OAS mais tarde na Argélia! Mulheres e crianças! Terror, puro terror! Era isso o seu Maquis! Bando de criminosos! E a nós o senhor chamou de assas­sinos...

— Não o senhor. O senhor era apenas garçom na SS...

Ele parecia não ter me escutado, sua voz estava aguda:

— Agora o senhor sabe, de um que esteve ali, quem foram os assassinos sujos! Esses porcos da resistência! Os ca­chorros do Maquis! A SS teve de ser empregada, senão o país todo teria acabado num caos. Belos sujeitos, caras decentes, aqueles da SS: eu os conheci, vivi com eles! Acha que gosta­vam de perseguir aquela imundície, e de agarrá-los?

— E os torturar e violentar e matar lentamente, lenta­mente, em meio às torturas! — Eu também falava alto agora.

— Ora, merda! Pare com essa conversa fiada! Acaso de­viam dar chocolate àqueles porcos, é? Os cachorros imundos! Acha que nossa gente cumpria seu duro dever com entusias­mo, com prazer?

— Sim, acho, sim! — Agora eu estava gritando. — Eram sádicos. Todos eles, sádicos sedentos de sangue!

— Cale a boca! — Reining também berrava. — Como se atreve, logo o senhor? Sádicos... Eram bons alemães, que acreditavam na nossa causa e arriscavam a vida por ela, dia após dia, noite após noite! Mais, muito mais que o seu dever fez esse nosso pessoal da SS! Quantos morreram miseravel­mente!

Oelschlegel espirrou duas vezes seguidas.

Eu simplesmente tinha de arriscar; agora a respiração de Reining vinha aos arrancos.

— Como Wilfried Köhler — disse eu.

— Isso mesmo! — gritou Reining. — Exatamente como Wilfried Köhler! Ele só cumpriu o seu dever e lutou pela nossa causa, e perdeu a vida com isso!

Depois fez-se um silêncio mortal na sala.

De repente o rosto de Reining ficou branco como a neve que caía lá fora. Sua boca estava aberta, e pingava saliva. Ele ficou paralisado, e me olhava fixamente.

Oelschlegel espirrou pela décima vez.

Também ele me encarava. Atônito.

Senti que de repente me corria suor pelo corpo todo. Eu conseguira. Uma imensa sensação de felicidade me dominou. E eu disse ao juiz de Instrução:

— Gundolf Wilfried Köhler, caso não saiba, foi o neona­zista que em 26 de setembro de 1980 jogou uma bomba num cesto de lixo na Theresienwiese em Munique, onde no momen­to estavam duzentas mil pessoas. Köhler provocou um horrível banho de sangue e por descuido também morreu...

— Eu sei — disse Oelschlegel numa voz sem expressão, olhando para Reining. — Eu sei, sr. Duhamel.

Reining ainda estava ali sentado, sem se mexer.

Levantei-me:

— Senhor juiz, uma vez lhe perguntei o que o sr. Rei­ning tem de vantagem sobre mim, o que o faz tão incrivel­mente mais digno de crédito do que eu...

— Eu sei — disse Oelschlegel atormentado.

— E o senhor respondeu que ele não trocou de nome nem se tornou outra pessoa. É realmente pouco, não acha — de­pois do que esse sr. Reining disse sobre Köhler e o dever de Köhler e toda essa coisa, não?

Vi Oelschlegel apertar a campainha. Logo bateram à por­ta, e o guarda que me trouxera da cela entrou.

— Senhor juiz?

— Por favor, leve o sr. Duhamel de volta à sua cela. — E disse a Reining: — Por enquanto o senhor está preso por grave suspeita de colaboração ou execução do assassinato do sr. Langenau. Começarei seu interrogatório imediatamente.

— Seu porco! — berrou Reining num guincho. — Seu filho de uma puta, maldito! — E atirou-se em cima de mim. Ergui o joelho e acertei no seu baixo-ventre; ele gritou outra vez. O guarda grandalhão o agarrou pelo colarinho e sentou-o na cadeira onde eu estivera há poucos segundos. O corpo in­teiro de Reining tremia.

— Nunca! — gritou ao juiz. — Está ouvindo? Nunca vai arrancar uma palavra de mim!

Três horas depois ele já fizera uma confissão completa, e três outros homens tinham sido presos por indicações suas.

 

Fiquei dois dias sentado na minha cela esperando que Oelschlegel me mandasse chamar. Ninguém veio me buscar. Dois dias, longos como vinte anos. Eu não podia comer, nem dormir. Continuava nevando.

Na quarta-feira, 10 de fevereiro, cerca de nove horas, um guarda me levou ao escritório do juiz de Instrução. Oelschlegel mal me cumprimentou, e sua pele parecia ainda mais cinzen­ta. A nova folha da seringueira se abrira totalmente.

— Os três homens que a polícia interrogou chamam-se Franz Biebernach, Hans Klar e Thomas Kette — disse ele. — Naturalmente os nomes não lhe dirão nada. São do Movimen­to Socialista Popular da Alemanha. Uma organização neona­zista, uma das muitas que existem agora. Naturalmente tam­bém isto não lhe diz nada.

— Ah, sim — disse eu. — Certa vez li um panfleto desse partido... com um poeminha instigador contra trabalhadores estrangeiros. Numa taverna. Havia uns caras desses, e um lia o poeminha em voz alta. Langenau e eu brigamos com eles.

Oelschlegel procurou em seus papéis.

— Ah, sim — disse ele. — Tenho o relatório policial daquela vez. Naturalmente todos esses grupos estão ligados. E se espalham internacionalmente. Não sabemos quem os dirige, onde fica a Central. Langenau estava na iminência de desco­brir isso. Teria descoberto, em uma, duas semanas. Por isso, dizem os quatro, tiveram de matá-lo.

— Como, quatro?

— Reining também confessou. Também é membro desse partido. O plano de assassinato fora imaginado há muito tem­po. Então Reining teve aquela idéia sobre o senhor, e eles mudaram os planos e mataram Langenau ainda naquela noite. Temos três confissões separadas e coincidentes entre si.

— Por que esse delegado Niemann da Delegacia Criminal Federal de Wiesbaden disse que Langenau jamais tinha encon­trado uma pista? Uma armadilha para mim, é? — perguntei.

— Não, realmente não. Langenau não falara ainda à po­lícia sobre sua suspeita. Naturalmente só esses neonazistas sabiam que ele estava prestes a descobrir quem dirige seu grupo, quem dera a ordem para o ataque terrorista na Oktoberfest, e quem fabricara a bomba e onde. Esses fascistas sabiam que Langenau estava na pista certa... a polícia não sabia. — Ele ergueu o olhar cansado: — Como é que o senhor sabia?

— No começo não sabia. Apenas sabia que não matara Langenau, portanto, provavelmente os radicais da direita ha­viam feito isso. E quando ouvi que ele perseguia uma ótima pista, tive certeza. Está vendo, minha suposição estava cor­reta.

Eu tinha a testa úmida, mas não a enxuguei. Estava fraco demais. Mas passaria, pensei, passaria.

— Como mataram Langenau? — perguntei.

— Reining disse que escutara sua conversa com Lange­nau, não é?

— Sim, e daí?

— Ele ouviu tudo o que disse.

— Sim, e daí?

— Daí, disse ele, teve essa idéia, que era um presente do céu: o senhor e Langenau! Se ele tinha de morrer, podia ser morto logo. Ele, Reining, só precisava dar o seu depoimento, e o senhor estaria perdido. — Oelschlegel tossiu. — Portanto — prosseguiu —, correu o mais depressa possível ao seu escritó­rio e chamou aquele seu cúmplice, Franz Biebernach, contou-lhe que o senhor estava sozinho com Langenau, e o resto que ouvira, e que Biebernach, Klar e Kette viessem logo.

— E o que fizeram então?

— Arranjaram o plano pelo telefone mesmo. Os assassi­nos vieram em dois carros e estacionaram um pouco longe do edifício. Viram Langenau levar o senhor até a porta da casa e despedir-se. O senhor entrou em seu carro e depois de algum tempo partiu. O sujeito chamado Klar foi atrás.

— Por quê?

— Para ver o que faria e aonde iria.

— Não notei nada.

— Ele foi muito esperto. Em geral ia de luz apagada.

— Até Reinbeck? — perguntei.

— Até Reinbeck. Viu o senhor no Mühlenteich, quando seu carro atolou na lama. Viu os edifícios novos que estavam sendo construídos. Correu de volta à cidade para uma gara­gem no Mittelweg.

— Por que para lá?

— Lá os outros dois estavam esperando — menos Reining. Este naturalmente ficara em casa. Cerca de dez minutos depois que o senhor saíra do Kaiser-Friedrich-Ufer, Reining tocou a campainha do apartamento de Langenau. Segundo seu depoimento, Langenau atendeu de pijama, já ia dormir. Reining lhe disse que o senhor tivera um acidente, a algumas centenas de metros do edifício. Tinham atirado no senhor, ele ouvira tudo e avisara a polícia. Portanto, um ataque como acontecera com Langenau. Este correu ao quarto, vestiu-se e desceu com Reining, que pegara a pistola com o silenciador e a escondera debaixo do casaco. A polícia não achou pegadas deles, seus sapatos estavam limpos, pois estava dentro de casa há tempo. Portanto desceram de elevador, e enquanto Lange­nau abria a porta, Reining lhe bateu com a coronha na ca­beça.

— Foi Reining?

— Sim, Reining. Ele mesmo confessou. Os outros dois homens — Hans Klar estava atrás do senhor — esperavam diante da porta. Entraram e ataram a ferida de Langenau, que sangrava, com uma banda larga e comprida, como a polícia pensou que o senhor fizera. Depois arrastaram-no in­consciente até o segundo carro, meteram-no no porta-malas e foram até a garagem, onde esperaram por Klar. Queriam vol­tar todas as suspeitas sobre o senhor, não é?

— Sim — disse eu.

— Enquanto isso, Reining limpava os sinais de sangue na entrada do edifício, mas não o bastante, ainda encontramos alguns, como eu lhe disse. Quando Klar voltou de Reinbeck, os três saíram para lá com Langenau no porta-malas. Mataram-no na construção e jogaram o corpo na água do lago, como a polícia suspeitou que o senhor fizera. O chefe da estação obviamente já estava dormindo a essa hora. — Ele me olhou, mais uma vez, exausto. — O senhor se livrou da desgraça como um advogado de primeira classe.

— Um dia fui um dos bons — disse eu.

Ouvimos vozes no corredor. Então a porta se abriu, e o guarda que me trouxera tentou em vão impedir um homem de entrar no escritório.

— Não pode entrar aqui assim!

— Mas eu preciso! — berrava o homem em francês. — Preciso!

Levantei-me.

Eu conhecia aquela voz.

Então vi o homem que entrava na sala tropeçando. Usa­va um sobretudo de pêlo de camelo, havia flocos de neve sobre seus cabelos negros, e nos olhos negros com cílios longos e sedosos havia uma expressão de felicidade.

— Dieu merci! — exclamou ele. — O senhor está aí, maître!

— Quem é esse? — perguntou Oelschlegel.

— Esse aí — disse eu em francês — é o desaparecido Paul Perrier, que o senhor e a polícia pensam que assassinei.

Paul apertou a mão de Oelschlegel.

— Sabe francês? Maravilhoso! Moro em Munique. Li o nome Duhamel nos jornais. Ilse, uma conhecida minha com quem moro, traduziu o artigo para mim, maître. Também soube que o senhor passa por meu assassino. Tudo. E vim imediatamente. — Entregou seu passaporte a Oelschlegel.

— Como é que está em Munique? — perguntei.

— Eu... eu não me entendia mais muito bem com ma­dame Duhamel — disse Perrier, favorito das damas. — Então fui morar com amigos em Munique.

— Uma amiga, certamente — disse eu.

— Ah, não — disse Perrier. — O marido dela também é meu amigo, nós três nos entendemos às mil maravilhas.

Depois passou-se meia hora, enquanto Oelschlegel dava telefonemas para confirmar os dados de Perrier. Agradeci a Paul.

— Mas era natural — disse ele. — Sempre foi tão bom comigo, maître. E também somos... amigos. Posso dizer assim?

— Claro que sim. Como foi que veio até aqui? De avião?

— No meu automóvel.

— Com essa neve?

— Vim num escorregão — disse ele, orgulhoso. — Com meu Lamborghini, é um pulo de gato, mesmo com mau tempo.

— Trouxe seu Lamborghini de Paris?

— Não, não foi possível, saí muito depressa. Ilse me deu um novo. Essa Ilse é louca por mim.

— Todas as mulheres são loucas por você — disse eu.

— Sim — disse ele gravemente. — É verdade. Ah, tenho tanta coisa a lhe contar!

Oelschlegel levantou os olhos:

— Então, obrigado pela sua visita, monsieur...

— Perrier, Paul Perrier.

— Monsieur Perrier. — Oelschlegel me fitou outra vez, dando a impressão de que ia morrer a qualquer momento. — Então, é isso — disse ele.

— Isso o quê?

— O seu caso. O senhor não matou Langenau, não pode ter matado Balmoral, não posso provar. Monsieur Perrier está diante de nós. Retiro a ordem de prisão contra o senhor. Está livre. — Estendeu-me a mão úmida e mole. — Boa sorte!

— Obrigado, senhor juiz.

— Pode ir. Mandarei suas coisas da cela. — Apertou a campainha e o guarda apareceu.

— Se me permite uma observação — disse Perrier. — Lá fora está assim de jornalistas. — E para mim: — O senhor não deve ter recebido jornais aqui, mas seu nome está por toda parte, em manchetes. Talvez não esteja em condições de dar entrevistas.

— Santo Deus, não!

— Posso ajudar um pouco a maître Duhamel? — per­guntou Paul ao juiz.

E me ajudaram.

Quinze minutos depois, enquanto eu esperava com minha mala num corredor frio e ventoso, três radiopatrulhas pararam no pátio da prisão. Os portões foram fechados atrás deles. Um pouco mais tarde abriram-se outra vez, e saíram do pátio, com luzes ligadas, em disparada. Enquanto isso, o porteiro dissera aos jornalistas que eu seria libertado. Os repórteres correram para seus carros, saltaram dentro deles e perse­guiram as radiopatrulhas.

— Não pode ir para casa agora, nem para a livraria — disse Oelschlegel, parado junto de mim com Perrier. — Esses caras irão para lá também.

— O que faço então?

— Primeiro, vá para um hotel — disse Oelschlegel.

— Atlantic — disse eu.

— Bom — disse ele. — Telefono e mandarei avisar que ninguém deve saber de sua chegada.

— De repente o senhor está tão amável — disse eu. — Por quê?

— Por que não? — perguntou ele tristemente.

Perrier foi comigo ao Atlantic. Um Lamborghini é real­mente uma loucura de carro.

 

— Patty!

— Tio Peter! — Ouvi-a começar a chorar. Logo depois de chegar ao Atlantic, telefonei para o Internato Kerns, em Oldesloe.

— Não chore, Patty, não chore!

— Ah, tio Peter, tudo é tão horrível. Terem prendido você e...

— Eles me soltaram, Patty, estou livre.

Silêncio.

— Você me entendeu?

— Sim — ouvi-a engolir. — É verdade mesmo?

— Palavra de honra, Patty.

Começou a chorar outra vez.

— Patty!

— Mas agora é de felicidade, tio Peter, só de felicidade.

— Está tudo bem, Patty, tudo bem!

— Você vem me buscar?

— Sim, claro. Talvez hoje não, mas amanhã com cer­teza.

— E podemos morar juntos?

— Sim, Patty, sim.

— Ah, que maravilha! Como estou contente, tio Peter!

— E eu então! Queria telefonar logo para que você ti­vesse a boa notícia. Agora preciso dar um jeito nos jornalis­tas, depois vou logo.

— Eu sabia que era tudo um engano. Você não matou ninguém, tio Peter!

— Claro que não — disse eu. — Foi tudo um engano, você tinha razão.

— Estou tão contente, tão contente!

— Até logo, Patty, até logo!

— Até logo, tio Peter!

Larguei o fone. De repente, depois de muito tempo, pen­sei novamente no Ricardo III de Shakespeare, esse rei que mais me impressionara dentre todas as personagens do poeta. O final da peça veio à minha lembrança, as duas últimas fra­ses: “Zwist está eliminado, lançada a semente da paz: que ela floresça por longo tempo, amém!”

 

Nesse dia, meu bem, em que encontrei Paul Perrier de­pois de tanto tempo, ele me contou no Atlantic tudo o que passara com Yvonne. Descreveu-me os incidentes que eu não testemunhara. Agora você entende por que pude descrever aquelas cenas também. Não todas, claro, pois havia mais al­guém que me deu informações sobre o que Perrier não vivera. Esse alguém me telefonou por volta do meio-dia do dia 10 de fevereiro. Era o pequeno comissário Robert Rolland, da polí­cia criminal.

— Queria lhe apresentar minhas felicitações, maître — disse ele.

— Obrigado.

— Agora há apenas dois pontos a tratar: o fato de o senhor ter cometido bigamia com nome e documentos falsos, e a questão de onde veio o dinheiro com que comprou a livraria e viveu. Se for dinheiro seu, não será grave. Na Alemanha não há determinações quanto a divisas. Talvez o imposto francês caia sobre o senhor. — Ele riu, eu também ri. — Monsieur Perrier está com o senhor?

— Sim. Tem muito a me contar.

— Eu também teria — disse Rolland. — Mas não quero atrapalhar.

— O senhor não atrapalha! — exclamei. — Monsieur Perrier pretende voltar a Munique à tarde. Naturalmente eu gostaria de ouvir do senhor tudo o que ainda não sei, e de como chegou à minha pista.

— Muito bem — disse ele —, quem sabe posso aparecer para um chá?

— Seria ótimo. Digamos, cinco horas?

— Cinco horas, maître. E mais uma vez, parabéns — disse o comissário Robert Rolland.

Almocei com Perrier em meu quarto.

— Não posso deixar Ilse sozinha muito tempo — disse ele. — Não imagina como essa mulher me ama. — Mostrou-me uma foto dela, nua: — Corpo fabuloso, hein?

— Os seios — disse eu.

— Não é? Sua esposa também tem um corpo muito exci­tante, maître, o senhor sabe. Mas comparada com Ilse... nem tem comparação, hein?

— Não, nem se pode comparar — disse eu. — Tudo de bom para você, Paul, e, embora não a conheça, minhas reco­mendações a madame Ilse.

— Obrigado. E tudo de bom para o senhor, maître — disse ele. — Permite que eu o abrace?

Abraçamo-nos, ele me deu dois beijos nas faces, e depois foi embora.

Dormi uma hora, um sono profundo sem sonhos, e quan­do acordei estava escuro. Rolland chegou pontualmente às cin­co. Seu sobretudo velho e puído e seu chapéu amassado ficaram pendurados no vestiário. Pedi chá e ele se sentou diante de mim num sofá grande e florido. O comissário Rolland, em seu terno barato, com a gravata-borboleta de mau gosto, e sapatos velhos. Relatou tudo, longa e minuciosamente, de modo que pude anotar aqui, sem falhas, sua colaboração para esta histó­ria. Você a leu, meu bem. Ele era um homem de muito tato, esse pequeno comissário singular. Por exemplo, mencionou Eisenbeiss e falou de sua conversa inútil com ele, mas evitou me perguntar se Eisenbeiss realmente fizera aqueles documen­tos falsos. Achava que sim, mas não pediu confirmação. Não quis que meu bom e velho amigo fosse julgado. Mais e mais me agradava aquele homem, sempre quieto, amável e educa­do. Perguntei se queria tomar um drinque comigo, e ele acei­tou; portanto, telefonei e pedi à copa dois Armagnacs duplos, depois de lhe perguntar o que ele preferia.

Um garçom trouxe os copos numa bandeja e se foi. Brin­damos e bebemos.

— Muito bem — disse Rolland —, assim foi tudo, maître. E naturalmente o senhor assassinou Jean Balmoral.

Dei uma risada:

— Sempre fazendo piadas, monsieur le comissaire! Claro que não matei Balmoral, o senhor sabe muito bem. O juiz de instrução Oelschlegel também sabe, ou não teria retirado minha ordem de prisão, e eu não estaria aqui sentado com o senhor, tomando Armagnac. Não posso ter assassinado Bal­moral, mesmo se quisesse. Está vendo que histérica terrível é minha mulher Yvonne?

— É, sua esposa Yvonne — disse ele baixinho, virando o copo nas mãos. — Ela vai bastante mal. Quando a vi pela última vez, desmaiou de tão embriagada; tive de levá-la para a cama.

— Antigamente ela nunca bebia.

— Bem, agora bebe demais. Sua esposa, maître, tornou-se uma alcoólatra, e ainda por cima viciada em calmantes de toda sorte. — Sua voz ficou ainda mais suave. — Veja, andei pensando.

— Em quê?

— Em seu futuro, maître.

— Meu futuro...

— Não é muito promissor o seu futuro, maître Duhamel — interrompeu ele, e sua voz soava sinceramente triste. — Nem a vida que vai levar. Pode levar.

— O que quer dizer com isso?

— O senhor está livre — disse ele cautelosamente. — Tudo bem. Apenas: quem é o senhor em liberdade, maî­tre?

— Quem sou eu?

— Vou lhe dizer: um homem sem oportunidade, é o que o senhor é. — Olhava-me tristemente: — A mulher a quem o senhor amou sobre todas as coisas está morta. Também o filho que tanto desejou está morto. O senhor vive sob nome falso. Agora naturalmente terá de reassumir o verdadeiro...

— Tenho de...

— Bem, sim, maître. O senhor é novamente Charles Du­hamel. Será que lhe deixarão exercer sua antiga profissão? Não, de forma alguma. Eu disse, o senhor é um homem sem nenhuma oportunidade. Por causa desse nome falso, e porque viveu com ele como outra pessoa, e se casou com uma segunda mulher, naturalmente será julgado e condenado. Certamente uma pena pequena. Mas será condenado, maître Duhamel.

De repente a tristeza dele passou a me contagiar. Rolland continuava:

— Condenado, sim... Isso naturalmente significa que ja­mais lhe darão a tutela de sua pequena amiga Patty... — Senti que o desespero me dominava, substituindo a melancolia. Não, eu nunca pensara nisso.

— Nem uma tutela pessoal — disse Rolland sempre na­quele tom baixo e triste — nem permissão de viver com a criança sob tutela oficial formal do Juizado. Isso muito menos. Sinto muito, maître, que tenha de ser eu a lhe dizer isso pela primeira vez. Patty está perdida para o senhor, inteiramente. Jamais lhe confiarão a criança. Um homem sem oportunidade, eu disse. Corrijo-me: sim, uma chance o senhor tem. Pode voltar para a sua perversa esposa, a alcoólatra e drogada em Paris. Gostaria disso? O senhor é cardíaco. Acha que levará uma vida calma, ao lado dessa mulher, especialmente? Sua vida antiga... O senhor não agüentava mais aquela vida an­tiga, e queria começar uma nova, bem diferente. E isso agora acabou, pobre monsieur Duhamel. — Debruçou-se para a frente e colocou a mão sobre a minha. Seu olhar era pleno de compaixão, sua voz cheia de simpatia.

— O senhor matou Balmoral, não foi?

Fitei-o longamente. Tomei um gole, levantei-me e come­cei a andar de um lado para o outro. Depois parei diante dele. E disse num leve suspiro:

— Uma tristeza. Simpatizo com o senhor, muito mesmo. O senhor é inteligente, gosto de pessoas inteligentes. O senhor trabalhou duro. E agora todo o seu duro trabalho será inútil.

— Como inútil? — perguntou ele.

— O senhor quer que eu responda sim — disse eu. — Quer que, ainda por cima a sós com o senhor, eu diga: sim, matei Balmoral. Não é? — Dei de ombros. — E se eu o disser? De que lhe adiantará? Nada. Nada mesmo. E por que não adiantará, caro monsieur le comissaire?

— Porque jamais poderei provar — disse ele baixinho.

— Isso mesmo — disse eu, e peguei o copo na mão, recomeçando a andar pelo salão do hotel. — Está vendo, tudo o que disse há pouco é muito impressionante, mas incorreto. Simplesmente incorreto, e o senhor sabe. Nunca mais po­derei exercer a minha profissão? Absurdo! Claro que não poderei logo; não, logo não. Vou ser levado a um tribunal de honra, monsieur le comissaire, os maiores e melhores juizes e advogados da França me conhecem, e respeitam, trabalharam comigo. Terei minha licença suspensa, mas por quanto tem­po? Um ano? Dois, três? Mais do que três de modo nenhum. O que fiz? Vivi sob nome falso, voilà. E depois dos três anos? Depois — prossegui sempre andando —, abrirei outra vez meu escritório, poderei trabalhar outra vez como advogado. Que sensação será isso! Clientes acotovelando-se a minha volta, o superadvogado! Que honorários me vão oferecer! Meu Deus, toda essa história ainda vai me fazer milionário...

Tomei um gole e parei diante dele.

Ele respondeu ao meu olhar com o seu olhar inexpressivo.

— Além do mais — continuei —, quem me obriga a viver com minha mulher bêbada e viciada em drogas? Quem pode me obrigar? Ninguém. Viverei sozinho, vou me divorciar. Sim, sim, pode ter certeza... E anos depois, talvez só muitos anos depois, conseguirei a tutela de Patty. Quando eu for advogado outra vez. Há leis. Exceções, anistias, prazos de prescrição... E então, monsieur le comissaire? E então tudo será como de­sejei.

Ele ainda estava ali sentado imóvel, sem dizer palavra.

— Mas — disse eu — nunca será assim.

Ele ergueu os olhos cansado.

— E por que nunca será assim? — prossegui. — Veja, sou o que se chama um “desembarcado”. Desembarquei da minha vida antiga porque não a suportava mais. Comecei uma vida nova. Essa vida nova foi tão maravilhosa, tão infinita­mente bela, que jamais, jamais quererei voltar para a antiga. Charles Duhamel, que caiu com o avião, está realmente mor­to, monsieur le comissaire. Ele, em sua vida e com seus méto­dos, teria conseguido tudo aquilo que mencionei há pouco. Eu, o homem da segunda vida, que agora se chama Peter Kent, é um homem totalmente diferente, monsieur le comis­saire. Eu não posso empregar na minha vida os métodos de Charles Duhamel. Não, é totalmente impossível. Sou um de­sembarcado, e quero continuar sendo. Na minha vida antiga me seria indiferente, e na minha vida nova é inconcebível até pensar que uma menininha inocente tenha de crescer com uma mentira, que uma menininha inocente tenha de conviver com um assassino. — Esvaziei meu copo, e larguei-o. — E por isso — disse eu —, o seu duro trabalho não foi em vão, mon­sieur le comissaire. Eu teria ganho essa partida de xadrez, mas desisto. Matei Jean Balmoral. Quem mata uma pessoa destrói um mundo inteiro. Telefone para o juiz Oelschlegel. Vou vol­tar. Darei todas as provas de meu ato. Contarei toda a ver­dade.

 

Isso foi na noite de 10 de fevereiro de 1982, há dez meses. Hoje, quando escrevo estas linhas, estamos a 12 de novembro. Ainda estou na prisão preventiva, aguardando meu processo. Mas já não estou em Hamburgo, e sim, há muito tempo, em Paris. Como francês, matei um francês na França. Ás autori­dades judiciais da República Federal da Alemanha concede­ram a extradição. Demorou algum tempo, mas não tanto quanto o que estou aqui na prisão preventiva francesa. Este é um país em que muitas vezes se tem de esperar longo, longo tempo por um processo. Meu juge d’instruction, meu juiz de Instrução francês, chama-se Alexandre Lafontaine.

Em Hamburgo, em fevereiro... quanto tempo faz! Já fiz uma confissão completa. Lafontaine teve muito pouco trabalho. E eu estava sentado na minha cela, esperando e esperan­do, e pensando em você, meu bem, sempre em você, minha pobre amada Patty!

A 10 de fevereiro eu lhe prometera pelo telefone que iria ao Internato Kerns em Oldesloe, e prometera que agora vivería­mos juntos. Na noite daquele dia eu estava de novo em prisão cautelar. Nunca fui a Oldesloe.

Disseram a você o que acontecera, o que eu tinha feito. Escrevemos muitas cartas um ao outro nesses meses todos. Infelizmente isso vai mudar quando meu processo tiver aca­bado e eu estiver numa casa de correção. Então não poderei escrever tanto quanto na prisão preventiva.

Suas cartas foram ficando cada vez mais tristes, e logo depois de minha transferência para Paris pedi para você me fazer uma visita. Pedi muitas vezes, mas sempre em vão.

Então lembrei de anotar aqui, como num relatório para você, tudo o que aconteceu, para que o compreenda. Você precisa saber a verdade, toda a verdade, maravilhosa e terrí­vel. Pedi permissão ao juiz de Instrução, e ele a concedeu. Você ainda é muito jovem para entender tudo. Por isso dei instruções para que este manuscrito só lhe seja entregue quan­do você completar dezoito anos. Então será adulta e experiente o bastante para compreender tudo. Por isso me permiti escre­ver com toda a franqueza.

Talvez na leitura você se tenha espantado por eu a ter tratado como uma personagem, na terceira pessoa. Isso tem um motivo: só assim pude descrever, sem exagero ou tormen­to, com a objetividade de um cronista, como nasceu minha ligação íntima com você, meu bem, onde ela nasceu e como cresceu mais e mais.

Mas como se tornou terrível, apesar de todas as cartas, apesar de me ocupar constantemente com você no papel, esse desejo de a rever! Se eu pudesse ter visto você, meu bem, en­quanto escrevia, um minuto só! Mas sempre que falava nisso, cortavam o assunto. Nem se fala, monsieur Duhamel. Mais tarde, sim, mais tarde certamente. O senhor tem de esperar. Tem de ser paciente. Escreva, trabalhe muito nisso, tem de escrever o que aconteceu!

Está vendo, meu bem, também eles disseram que eu tinha de escrever.

E assim fui escrevendo, devagar mas sempre, frase a frase. Sabia que demoraria muito, mas não eternamente. Na­da dura eternamente. Nada dura muito tempo, aprendi isso.

Você sabe, por minhas cartas, o que aconteceu nos últi­mos meses. Os pais de Andréia venderam a livraria em abril. Ela não era mais o que fora quando tia Andréia vivia. O bom espírito dela faltava. Todos sentiram isso, primeiro as crian­ças, seus amiguinhos e amiguinhas. Cada vez mais crianças faltavam, não visitavam mais a livraria. Agora ela se tornou uma grande casa de ferragens. Também o belo apartamento de tia Andréia foi vendido. Pessoas estranhas moram lá. To­dos os móveis ficaram. Só o pequeno quadro, com a ampulheta gasta, a vela consumida, o livro deteriorado e outras coisas decompostas, ficou comigo. Está aqui na parede da minha cela, e contemplo o quadro muitas vezes.

Ah, sim, claro, e a bela Bernadette e o Apre se casaram no mês passado! Nós dois lhes escrevemos cartas de congratu­lações, e eles me responderam — certamente a você também — agradecendo e dizendo que sua carta de felicitações foi a mais bela que jamais receberam.

 

Estou escrevendo com grande emoção.

Acabo de voltar de um encontro com meu juiz instrutor, maître Lafontaine. Ele mandou me chamar, e me deu uma grande alegria. Depois de todos os pedidos vãos, hoje foi acei­ta minha mais recente tentativa. Por bom comportamento, e porque passou bastante tempo, permitiram que você me visi­tasse. Na terça-feira próxima à tarde, às quinze horas, final­mente, finalmente, vou rever você, minha querida!

Você virá de avião. Seu tutor — você há muito recebeu um do Juizado — a acompanhará.

Terça-feira, 15 horas.

Hoje é quinta.

Terei de esperar cinco dias.

Será que você já sabe?

Você sabe o que eu fiz, meu bem. Posso explicar a você, que enquanto isso completou nove anos, como cometi esse ato? Não, é impossível. Acho que apenas direi que não tive outra escolha. Não vai entender isso tampouco, mas talvez, apesar de tudo, acredite em mim. Espero que sim.

Cinco dias ainda.

Pela morte de Balmoral devo receber uma sentença de prisão perpétua, mas habitualmente nesses casos, quando o prisioneiro se comporta bem, já o soltam depois de quinze anos. Vou me portar tão bem quanto até agora. Com muita sorte, me soltarão depois de quinze anos. Então você terá vinte e quatro anos, e eu, sessenta e cinco. Talvez eu ainda possa participar algum tempinho da sua vida. Jamais ficarei no seu caminho. Se não puder ser diferente, acompanharei sua vida de longe. Mas estou certo de que ficaremos muito ligados um ao outro, até o fim.

Cinco dias ainda. Cinco noites.

Então chegará a hora.

Às quinze horas vão me tirar da minha cela e levar ao parlatório, e lá estará você e vamos nos abraçar e beijar. Será que você vai trazer aquele urso grande?

Certamente o seu tutor vai sair e esperar lá fora, e talvez o guarda também. Você é tudo o que resta a mim, todos aqui sabem disso. E sou tudo o que resta a você, também sabem disso. Nós somos “os que ficaram”, como você disse um dia. Talvez eles entendam isso, e o guarda nos deixe sozinhos.

Você falará a seu respeito, e eu falarei sobre mim, mas a maior parte do tempo certamente falaremos das duas pessoas que amamos e amaremos até nossa morte, do seu vovô e de Andréia, e do tempo em que todos estávamos juntos e fomos tão felizes.

De quanta coisa vamos nos lembrar, meu bem, de quanta coisa! Pois o que é o amor, senão lembrança?

 

NOTA:

Imediatamente depois de escrever essas palavras, o prisio­neiro Charles Duhamel sofreu um severo ataque cardíaco. Apesar de tratamento médico intensivo imediato, maître Char­les Duhamel morreu a 12 de novembro de 1982, às 11h45min.

O presente manuscrito será entregue ao tutor de Patrícia Hernin, com as devidas instruções.

As pastas serão seladas.

Paris, 16 de novembro de 1982

Alexandre Lafontaine

Juiz de Instrução.

 

                                                                                            J. M. Simmel

 

 

                      

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