Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
Na manhã seguinte, Joan Eunice descobriu que Jake fora embora antes dela acordar. Havia um bilhete na bandeja:
Querida Joan Eunice:
Dormi como uma criança e sinto-me em condições de enfrentar feras... graças a você e Winnie. Agradeça-lhe por mim e diga-lhe (o que inclui você) que ficarei muito grato de participar das reuniões de orações, sempre que me convidarem... principalmente se tiver um dia muito trabalhoso.
Demorarei a voltar: caça ao tesouro, localização de elementos de prova. Alec foi a Washington à procura de um. Se precisar de mim, ligue para o meu servifone ou para o gabinete do juiz McCampbell.
Deixei instruções com Jefferson Billings para você movimentar sua conta de pequenas despesas — cujo saldo acredito seja uns quatrocentos mil — usando sua antiga assinatura e a nova impressão digital. Ele pagará e confirmará despesas, que eu rubricarei até que você tenha preenchido um novo cartão de assinatura & impressão digital: ele disse que conhece Eunice Branca de vista e que portanto não há problema. Se você desejar, ele a procurará com um novo cartão de assinatura: imaginamos que a sua deve ter mudado bastante.
(Patrão, acho que Jake não sabe que faço sua assinatura melhor que o senhor) (Acho que ninguém sabe, querida. Não sei como isso será encarado no tribunal: pró ou contra nós?)
Se necessitar mais dinheiro para despesas, permita-me que lhe faça um empréstimo pessoal, para evitar que isso conste do meu relatório de curador. Seu «Irmão Mac» é da maior ajuda, mas a finalidade financeira dessa loucura pode parecer ultra conservadora até quando ele possa, com plena justificação, eximir-me da sua curadoria. A mulher de César, você sabe.
Por falar na mulher de César, contei-lhe uma piada sobre dois de nossos amigos. Telefonei esta manhã para um deles e o outro atendeu. Depois da habitual investigação sobre a segurança da comunicação audiovisual, ambos pareceram pouco preocupados sobre o que eu vi, ouvi, ou pude inferir. Fiquei envaidecido. Diabinha, se você tem de portar-se mal, confie neles: seu bem-estar lhes é muito caro. Sinto ter estado chato ontem.
(Fico contente por saber disso, patrão) (Eunice, acho que não é da sua conta o que Alec e Mac fazem nas horas de folga. Jake não devia ter fofocado a esse respeito, mesmo conosco) (Não, não, patrão! Jake está dizendo que ontem foi muito careta — o que ele sente — e agora está lhe dando a absolvição antecipadamente. O melhor que faremos é casar com Jake... não obstante eu tema que ele se torne ciumento. Possessivo. Por causa da idade e dos antecedentes. Pode ser um desastre, gêmeo... considerando que, no fundo, você é uma puta e ambos sabemos disso)
(Ho, que bobagem, Eunice! Eu nunca acusaria Jake disso... e depois você está errada. Um homem inteligente — e Jake o é — não se afoba com falatórios. O que o preocupa é o medo de perder uma esposa que ele presa. Se Jake casar conosco, nunca o deixarei preocupar-se com a idéia de nos perder) (Espero que o senhor mantenha-se firme, patrãozinho) (Com sua ajuda, garanto que posso. Vamos acabar de ler a carta...)
Não me esperem para jantar, pois o que tenho a fazer hoje é urgente ... mais urgente que algo que parecia terrivelmente urgente ontem. E era. E será, espero.
Isto tinha a intenção de ser uma carta de amor, mas tive de me referir a outros assuntos... e a outras pessoas. Por isso, preciso insistir em que rasgue-a e atire os pedaços na latrina. Não é por acaso que estou colocando minha impressão digital no fecho e entregando-a a Cunningham com a promessa de arrancar-lhe a cabeça se a carta sair das mãos dele antes de chegar a você. Aprendi a gostar de Cunningham: é um «ladrão honesto».
Todo o meu amor, querida, e o maior beijo possível... tão grande que você pode tirar um pedaço dele e dá-lo a Winnie quando agradecer-lhe por mim. Ela é uma moça encantadora e fico contente pelo fato dela cuidar tão bem de você.
J.
(Ora, o cornudo de uma figa. Joan, Jake está de olho no lindo traseiro de Winnie, enquanto apalpa o nosso) (Ela devia entrar na fila!) (Ciumento, gêmeo?) (Não. Mas repito: vou escalpá-lo antes. Raios, Eunice, tive-o ontem nas mãos... e foi uma batalha cansativa. Não os salamaleques que você usa com ele. E tudo o que arranjei foi uma surra. Espero que ele volte para casa esta noite) (Mesmo que venha, há três barreiras, gêmeo) (Três?) (Hubert... Winnie... e aquele «implante». Patrãozinho? Não vai me impedir de ter seu filho deixando Jake ter relações com o senhor primeiro... vai?) (Claro que não, burrinha. Enfrentei intrigas sem ser atingido muito antes de sua avó ter nascido. Hummm... vou precisar de dinheiro)
(Jake lhe ensinou como apanhar o dinheiro que precisar) (Oh, claro... com minha assinatura e a rubrica dele. Como um gato se protegendo com um linóleo. Eunice, meu amor, aposto que você nunca subornou ninguém na vida) (Bem... com dinheiro, não) (Não conte, deixe que eu adivinhe. Querida, isto aqui pode valer um milhão... mas hoje preciso usar notas de fonte desconhecida entre a classe média. Venha comigo, bisbilhoteira, e lhe mostrarei algo que mesmo minha secretária — uma linda velhaca chamada Eunice, lembra? — não sabia existir)
(Está falando do cofre escondido no banheiro, patrão?) (Hem? Como diabo você sabia disso?) (Sou bisbilhoteira) (Sabe o segredo?) (Invoco a Quinta Emenda) (Para quê? Vai saber dentro de dois minutos. Ou pode descobrir na minha mente?) (Querido patrão, o senhor está farto de saber que eu não posso ler nada em sua mente até que o senhor pense nisso... o mesmo se dando com o senhor em relação à minha. Mas... Bem, se tenho de abrir esse cofre, acho que devo começar com os números que compõem a data do aniversário da sua mãe)
Joan suspirou. (Atualmente uma moça não tem vida particular. Está bem, vamos ver se fomos roubados)
Entrou no banheiro, trancou a porta, correu um ferrolho, afastou uma pilha de toalhas de um armário baixo e passou a mão na parte superior interna dele. A folha do fundo correu para o lado, revelando um cofre. (Acha que a data do aniversário de minha mãe o abrirá?) (Primeiro vou ligar as lâmpadas solares da mesa de massagem e depois abrir a torneira de água fria da pia) (Nenhuma vida privada mesmo! Amor, você realmente subornou alguém com seu lindo traseiro?) (Não exatamente. Apenas me aproveitei da situação. Vamos ver se fomos roubadas)
Joan abriu o cofre. Havia nele dinheiro bastante para interessar o perito contador de um banco. Mas os maços não tinham sido feitos num banco. Faltava-lhes a arrumação cuidadosa e o total de cada um fora escrito a mão. (Gaita paca, minha querida... e ou ninguém descobriu este cofre ou nunca perceberam os parafusos adicionais. Em todo caso, isso resolve uma coisa: não atiraremos no lixo o lindo bilhete de Jake) (Vamos deixar que ele pense, tá?) (Se ele perguntar) (Então faremos uma choradeira, dizendo que não pudemos nos separar dele) (Eunice, sua cuca é um novelo) (É por isso que ela se encaixa tão bem na sua, gêmeo) (Talvez)
Joan colocou a carta dentro do cofre, tirou dois maços de notas, meteu-os numa bolsa no quarto de vestir, cerrou o cofre, desligou as lâmpadas solares, fechou a torneira, girou o mostrador, correu o painel de volta ao lugar, recolocou as toalhas e trancou o armário. Então foi até o intercom do banheiro e apertou um interruptor.
— Chefe O'Neil.
— Pronto, Miss Smith?
— Apronte meu carro, um motorista e dois guarda-costas para daqui a meia hora.
Houve um curto silêncio.
— Hum, Miss Smith. Mr. Salomon evidentemente esqueceu de me dizer que a senhora poderia querer sair.
— Havia uma excelente razão para isso: ele não sabia. Mr. Salomon comunicou-lhe que não sou mais tutelada do tribunal? Se não, o senhor terá sabido disso por outra fonte?
— Miss, não soube por uma fonte oficial.
— Compreendo. Então está ouvindo de mim. Oficialmente.
— Sim, miss.
— Você não parece satisfeito, O'Neil. Pode obter confirmação telefonando para o juiz McCampbell.
— Ora, é mesmo, posso.
— Vai pedir confirmação, O'Neil?
— Talvez eu não tenha compreendido, miss. A senhora não vai me dizer?
— Você está gravando?
— Certamente, miss. Tenho ordens para gravar sempre.
— Sugiro que volte a gravação e responda sua própria pergunta. Esperarei. Mas primeiro... há quanto tempo trabalha para mim, O'Neil?
— Dezessete anos, miss. Os últimos nove como chefe.
— Dezessete anos, dois meses e alguns dias. Não o suficiente para uma aposentadoria integral, mas um período longo, fiel e incondicional. Se você quiser, O'Neil, pode se aposentar esta manhã com todos os vencimentos. A fidelidade deve ser recompensada. Agora toque, por favor, enquanto espero.
Joan esperou.
— Macacos me mordam, miss... estou precisando de um tratamento de ouvido. A senhora não me disse que telefonasse ao juiz. Falou que eu podia telefonar.
— Exatamente. Frisei que você podia confirmar o que eu lhe havia dito — oficialmente — dando o telefonema. E ainda pode.
— Hum, miss, não sei o que a senhora está querendo.
— Tenho a certeza de que você pode imaginar. Quer se aposentar hoje? Se quiser, chame Mentone. Desejo falar com ele.
— Miss, não tenho vontade de me aposentar.
— De verdade? Tive a impressão de que você estava querendo outro emprego. Talvez com Mr. Salomon. Se for assim, não pretendo criar nenhuma dificuldade. A aposentadoria com todos os vencimentos está a sua disposição, O'Neil.
— Miss, gosto daqui.
— É um prazer ouvir isso. Espero que queira ficar durante muitos anos. O'Neil, você alguma vez discutiu minhas idas e vindas com alguém?
— Só quando me autorizou, miss. Casos em que sempre gravei sua ordem.
— Ótimo. Limpe essa fita, que eu esperarei. Logo depois ele disse:
— Está limpa, miss Smith.
— Bem. Vamos começar. Chefe O'Neil, esta é miss Johann Sebastian Bach Smith falando. Quero meu carro, um motorista e ambos os guarda-costas dentro de trinta minutos.
— Estarão prontos, miss Smith.
— Obrigada. Vou fazer compras. Mrs. O'Neil deseja alguma coisa?
— É muito gentil da sua parte, miss. Acho que não. Quer que pergunte a ela?
— Se perguntar, diga-lhe apenas que meu carro está saindo. Se ela tiver uma lista, farei com que Fred ou Shorty se ocupem dela. Fim.
(Patrão, ele está se mijando de medo. Acha isso bonito?) (Dirigir um conjunto feudal, no seio de uma democracia nominal, não é fácil, Eunice. Quando Johann dizia «sapo», todo mundo pulava... principalmente o chefe da minha segurança. O'Neil tem de se convencer — todos eles têm — de que Johann ainda está aqui... e ninguém, nem mesmo o querido Jake, modifica ou veta o que eu digo. A menos que ele case conosco, situação em que me tornarei mulher e deixarei que ele decida tudo) (Quero ver chegar o dia!) (Preciso, querida. Diga-me, você obedecia ao Joe?) (Bem... nunca o contrariei. Acho que pode dizer que o obedeci. Só que eu mentia ou às vezes ficava de boca fechada) (Farei a mesma coisa. Acho que se pode dar um jeito perfeito de fazer exatamente q que um homem disser... mas ajeitar as coisas de maneira que ele diga para fazer o que eu já decidi fazer)
Joan sentiu, mais que ouviu, sua gargalhada. (Patrão, isso tem a pinta de uma perfeita receita de casamento)
(Descobri que estou gostando de ser mulher. Mas é diferente. Agora, que vamos vestir?)
Joan colocou uma fita no cabelo, uma saia curta, uma capa opaca com capuz e yashmak, sandálias de salto baixo, tudo de cores suaves. Ficou pronta em menos de trinta minutos.
(Que tal o nosso rosto, Eunice?) (Bem, para fazer «compras». Não precisamos chamar Winnie. A safadinha provavelmente não dormiu muito) (Nem eu queria chamá-la. Talvez ela desejasse ir conosco. Vamos, doçura... vamos sair para quebrar um recorde de dois mil anos sem ajuda do Espírito Santo) (Patrão, essa não é uma maneira decente de falar!) (Bem, que eu me dane! Eunice, pensei que você não fosse cristã! E sim zen ou hinduísta. Ou coisa assim)
(Não sou nenhuma dessas coisas, patrão. Apenas conheço algumas disciplinas espirituais. Mas é grosseiro zombar de tudo o que os outros consideram sagrado) (Mesmo na minha mente'? Você quer estabelecer o que eu devo pensar? Se eu pudesse pegá-la, lhe daria uma surra) (Oh, o senhor pode dizer a mim o que quiser, patrão... apenas não diga essas coisas alto) (Não disse, não digo, nem direi. Pare de ralhar comigo) (Desculpe, patrão. Amo-o) (Amo-a, ranhetinha. Vamos logo ser nocauteadas) (Vamos!)
Joan pegou o elevador da frente para o porão. Foi recebida e cumprimentada por O'Neil.
— O carro está pronto, miss... com os dois motoristas e os dois guarda-costas.
— Para que dois motoristas?
— Bem, Finchley deve estar pronto. Mas Dabrowski está contestando minha autoridade. Diz que é mais antigo que Finchley. Quer chamá-lo à ordem?
— Claro que não. Isso cabe a você. Mas talvez eu possa facilitar as coisas.
— Sim, miss.
Levou-a até o carro. As duas equipes estavam perfiladas ao lado dele e fizeram continência como um só homem. Joan sorriu para eles.
— Bom dia, amigos. É um prazer vê-los com tão bom aspecto. Já faz muito tempo.
Dabrowski respondeu pelos outros:
— Muito tempo mesmo, miss Smith... e é um prazer para nós vê-la tão saudável.
— Obrigada. — Olhou um a um. — Há uma coisa sobre a qual ninguém me falou... a tragédia que iniciou esta estranha seqüência de acontecimentos. Qual a equipe que estava no carro na noite em que Mrs. Branca foi assassinada?
Passou-se bastante tempo sem que alguém respondesse. O'Neil tomou a iniciativa:
— Finchley e Shorty estavam de serviço naquela noite, miss Smith.
— Então tenho de agradecer-lhes... por Mrs, Branca e por mim. Embora eu saiba que Dabrowski e Fred teriam agido com a mesma bravura e rapidez. — Olhou para Finchley e depois para Shorty, com o rosto sério, mas sereno. — Qual dos dois vingou Eunice? Ou foram ambos?
Finchley respondeu:
— Shorty pegou-o, Mrs... Miss Smith. De mãos nuas, uma cutilada. Quebrou o pescoço dele.
Joan virou-se para Shorty — dois metros de alma mortífera, cento e quarenta quilos de morte súbita — e pregador nas horas de folga. Joan ergueu os olhos para ele e disse gentilmente:
— Shorty, do fundo do meu coração — em nome de Eunice Branca — muito obrigada. (Eu também agradeço, patrão! Isso é novidade para mim. Morri antes do elevador abrir) Se ela estivesse aqui, iria agradecer-lhe... não apenas por ela, mas pelas outras moças que aquele assassino nunca mais matará. Estou contente porque o liquidou na hora. Se fosse julgado, poderia estar solto agora. Matando outra vez.
Shorty havia ficado calado até então.
— Miss... Finch também o pegou. Matou-o. Não se sabe ao certo quem o pegou primeiro.
— Isso não importa. Qualquer de vocês quatro teria protegido Mrs. Branca com a própria vida. Ela sabia disso... e sabe, onde quer que esteja. Eu também sei, bem como o chefe 0'Neil — Joan sentiu as lágrimas caírem e deixou-as jorrar. — Eu — todos nós! — só pedimos aos^ Céus que ela estivesse dentro de casa esperando a chegada de vocês. Sei que cada um de vocês preferia ver-me morto no lugar dela. Peço-lhes que me dêem a honra de acreditar que eu também preferia. Shorty, quer fazer uma prece por ela esta noite? Por mim? Não entendo muito de preces. (Raios, patrão, o senhor me fez chorar) (Então recite o Money Hum. Por Shorty. Ele ainda está se culpando pelo inevitável)
— Rezarei, miss. Rezo todas as noites. Embora... Mrs. Branca... não precise. Ela foi direto para o céu. (Fui mesmo, patrão. Mas não pelo caminho que Shorty imagina) (E não vamos contar a ele. Já falei o suficiente?) (Acho que sim)
Joan disse:
— Obrigada, Shorty. Por mim, não por Eunice. Como você disse, Eunice realmente não precisa de preces. — Virou-se para o chefe O'Neil. — Chefe, quero ir ao Conjunto Gimbel.
— Perfeitamente, miss. Hum, Finchley dirige o carro. Ambos os guarda-costas.
O'Neil ajudou-a a entrar no veículo e fechou-o por fora. Ela também trancou-se por dentro. A porta blindada ergueu-se e o grande carro deslizou para fora. (Joan, que raio de troço você vai comprar no Gimbel?) (Era uma piada com você. Já vou modificar a ordem. Eunice, onde você comprava roupas? Você era a mais elegante das moças da cidade... mesmo quando estava a mais despida)
(Puxa, nunca andei nua. Os desenhos de Joe estabeleciam a diferença. Joan, onde eu comprava você nunca poderá comprar) (Vamos ver senão) (Johann poderia, mas você não. Não seria possível. Hummm... Embora não possa me dar o luxo de um cabeleireiro, sei onde ficam. Falando nisso, dois deles têm salões dentro do Gimbel) (Então é lá que vamos... em segundo lugar. Comunicarei a mudança a Finchley... e pedirei a ele que mande Fred me acompanhar. Acho que Fred gostaria de sair) (Neca! Fred sabe ler) (E daí? Oh! Bem, Fred pode me acompanhar mais tarde) Apertou o botão do comunicador.
— Finchley.
— Pronto, miss.
— Fiquei tão preocupada que esqueci uma outra parada. Por favor, deixe Shorty e a mim na zona limpa onde State cruza com Main.
— State e Main, miss.
— Por favor, mande Shorty pendurar o circuito de rádio na cintura. Não há estacionamento por aqui. Ou não havia, a última vez em que estive no centro. Foi há quanto tempo? Mais ou menos dois anos.
— Dois anos e sete meses, miss. Tem certeza de que não quer os dois guarda-costas?
— Não, eles podem trabalhar por turnos, ficando no carro. Se você precisar sair, quero que seja protegido.
— Oh, estarei bem, miss.
— Não discuta comigo. Você nunca se atreveu quando eu era o velho Johann Smith. Garanto-lhe que Miss Johann Smith continua a ter a língua afiada. Transmita a ordem.
Ela o ouviu rir.
— Pois não, Miss Smith.
Quando o carro parou, Joan colocou seu yashmak, escondendo a identidade tanto deles como dos curiosos, Shorty destrancou a porta e ajudou-a a sair do carro. Joan sentiu-se subitamente vulnerável na api-nhada calçada de pedestres de Main Street... mas a seu lado estava aquela torre de força.
— Shorty, o edifício que estou procurando fica no bloco mil e trezentos... treze-zero-sete. Pode achá-lo?
A pergunta tinha por finalidade fazê-lo sentir-se útil. Ela sabia onde ficava o Edifício Roberts, pois era sua proprietária.
— Oh, claro, miss... sei ler números muito bem. E letras também... só as palavras me confundem.
— Então vamos. Shorty, como faz você para exercer sua verdadeira profissão? Quero dizer, já que não tem meios de ler a Bíblia?
— Nenhuma dificuldade. Uso livros falados... e quanto à Bíblia, decorei cada palavra preciosa dela.
— Uma memória notável. Gostaria de poder dizer o mesmo.
— É uma questão de paciência. Conservo a Bíblia ao alcance da
mão desde que estive na prisão. — Acrescentou, pensativo: — Às vezes penso que devo aprender a ler... mas nunca encontro tempo (O pobrezinho provavelmente nunca encontrou alguém que lhe ensinasse, patrão) (Nunca se meta com uma organização bem sucedida, Eunice. Ele encontrou seu nicho)
— Deve ser este, miss. Um, três, zero, sete.
— Obrigada, Shorty.
Na entrada não lhe pediram sua carteira de identidade, nem ela a exibiu, pois não a tinha, seja como Johann Smith ou como Eunice Branca. O guarda reparou no «Licenciado & Designado» pregado no uniforme de Shorty (que combinava com o seu), soltou a borboleta da entrada e fez-lhes sinal para entrar. Joan Eunice sorriu-lhe com os olhos... e anotou que a segurança do Edifício Roberts devia ser apertada. O guarda devia ter fotografado o cartão de identidade de Shorty e anotado o número da sua couraça (Patrão, ele não pode tratar tanta gente dessa maneira. Tem de confiar no próprio julgamento) (Olha quem fala! Se aquele edifício de apartamento onde você morava tivesse uma segurança eficiente, você nunca teria sido assassinada. Se não podemos conter a violência externa, devemos tentar evitá-la internamente) (Não quero discutir, querido patrão... estou excitada!) (Eu também. Este véu é uma salvação)
No décimo segundo andar, dirigiram-se para o conjunto ocupado pela Fundação Eugênica em Memória de Johanna Mueller Schmidt, H. S. Olsen, Doutor em Medicina, Doutor em Ciências, Diretor, Bata por Favor e Espere. O guarda deixou-os ali e voltou para sua revista ilustrada. Joan reparou, aprovativamente, que havia um bom número de mulheres e casais na sala de espera. Ela (Johann) havia chamado a atenção de Olsen para a finalidade (pública) da Fundação — oferecer doações altas e anônimas a mulheres licenciadas e habilitadas — na sua última carta acompanhando o cheque trimestral. Evidentemente, tivera bom resultado.
— Espere aqui, Shorty. Há um vídeo ali.
Caminhou para a mesa que separava a sala de espera do escritório burocrático externo, desviou-se da tabuleta «Requerimentos» e chamou a atenção do único homem por trás da mesa divisória, fazendo com que se aproximasse.
— Que deseja, madame? Se é um requerimento, vá até a ponta, mostre sua Carteira de Identidade e preencha um questionário. Depois espere. A senhora será chamada.
— Quero ver o diretor, o Dr. Olsen.
— O Dr. Olsen nunca recebe ninguém sem hora marcada. Dê-me seu nome, sua profissão e possivelmente a secretária dele a atenderá.
Joan inclinou-se e disse baixinho:
— Preciso vê-lo. Diga-lhe que meu marido descobriu. O chefe do escritório ficou espantado.
— Seu nome?
— Não seja bobo. Diga-lhe apenas isso.
— Hum... Espere aqui. Desapareceu pela porta dos fundos.
Ela esperou. Num espaço de tempo notavelmente curto, o homem reapareceu numa porta lateral da sala de espera, empurrou-a para um corredor na direção de outra porta onde se lia «Diretor — Não Entro e na da porta ao lado, com a placa «Secretária do Diretor — Bata & Espere». Deixou-a ali com uma mulher que lembrou a Joan a professora de Johann do terceiro ano, tanto na aparência quanto na maneira autoritária. A mulher falou, gelada:
— Que maluquice é esta? É melhor que me mostre logo sua carteira de identidade. (Meta-lhe três dedos esticados no plexo solar, patrão, e me diga se ela não desmaiará!) (Talvez. Primeiro usaremos minha técnica)
Joan respondeu, de forma ainda mais gelada:
— Provavelmente não, Miss Perkins. Por que acha que estou velada? Vai me anunciar? Ou devo chamar a polícia e os jornais de escândalo?
Miss Perkins, com ar espantado, saiu da estenomesa e entrou no escritório particular que havia atrás. Voltou imediatamente e disse com raiva:
— A senhora pode entrar.
Olsen não se levantou quando Joan entrou, mas disse:
— Madame, a senhora escolheu uma forma invulgar de chamar minha atenção. De que se trata? Não percamos tempo.
— Doutor, o senhor não oferece cadeiras às senhoras?
— Certamente. Quando são senhoras. Um ponto que a senhora se encarregou de tornar duvidoso. Fale, mulher, ou terei de mandá-la embora. (Patrão, viu-o dar uma olhada no microfone? Aquele morcego velho na sala ao lado está tomando nota de tudo) (Já percebi, Eunice. Por isso não falaremos ainda)
Joan aproximou-se da mesa do médico, desprendeu o yashmak e deixou-o cair pelo ombro esquerdo.
A fisionomia do médico mudou de aborrecimento para um espantado reconhecimento. Joan Eunice debruçou-se sobre a mesa e desligou o microfone de ditar. Então falou baixinho:
— Não há nada mais gravando? Esta sala é à prova de som? E aquela porta?
— Miss...
— «Miss» é bastante. Pode agora me convidar a sentar? Ou devo me retirar... e voltar com meu advogado?
— Sente-se, por favor... miss.
— Obrigada — Joan esperou até que ele levantou-se e arrastou uma cadeira para perto da dele, numa correta posição de «convidado de honra». Só então sentou-se. — Agora responda o resto. Estamos mesmo em particular? Se não estamos — embora me diga que sim — certamente chegarei a saber... e tomarei as medidas que julgar adequadas.
— Hum... estamos. Mas espere um momento. — O médico levantou-se, foi até a porta da sala da secretária e passou-lhe o trinco manual. — Agora, miss, diga-me por favor o que está havendo.
— Direi. Primeiro, tenho estado complementando minha contribuição original, com cheques trimestrais. O senhor os tem recebido durante minha doença?
— Bem... faltou um cheque. Esperei seis semanas e então escrevi a Mr. Salomon e expliquei-lhe como o senhor costumava fazer. Parece que ele confirmou isso, pois logo depois recebemos dois pagamentos trimestrais ao mesmo tempo, acompanhados de uma carta dizendo que iria continuar a autorizar as remessas, de acordo com o que o senhor fazia antes. Há algum problema?
— Não, doutor. A Fundação continuará a receber minha ajuda. Permita-me que acrescente que os curadores estão — na totalidade — satisfeitos com sua direção.
— Folgo muito em saber. Foi para isso que veio? Para me dizer tal coisa?
— Não, doutor. Vamos aos fatos. Tem certeza absoluta de que esta conversa em particular não pode ser ouvida? É preciso que saiba que a resposta é muitíssimo mais importante para o senhor que para mim.
— Miss, hum... Miss, tenho a certeza.
— Perfeito. Quero que vá ao frigorífico e apanhe a doação 551-20-0052 — irei com o senhor para conferir o número — e depois quero que a injete em mim. Imediatamente.
O rosto do médico revelou espanto. Então recuperou a pose profissional e disse:
— Miss... isso é impossível.
— Por quê? A finalidade da nossa instituição, estabelecida no seu regulamento — redigido por mim — é fornecer a mulheres habilitadas esperma de doadores... a pedido, sem pagamento nem publicidade. É isso exatamente o que eu quero. Se o senhor desejar fazer-me um exame físico, estou pronta. Se quiser saber se este corpo está licenciado para procriar, garanto-lhe que está... embora o senhor saiba que, neste caso, uma penalidade por gravidez não licenciada significa menos que nada. Qual é o problema? A preparação do esperma é tão demorada que não permite a operação completa num só dia?
— Oh, não, podemos tê-lo aquecido e em condições dentro de trinta minutos.
— Então, injete-o em mim daqui a trinta minutos.
— Mas, miss... sabe a encrenca em que posso me meter?
— Que encrenca?
— Bem... estou a par das notícias. Do contrário não a teria reconhecido. Soube que há um problema de identidade...
— Oh, isso — Joan fez um gesto de rejeição. — Doutor, o senhor aposta em corridas?
— Hem? Já apostei. Por quê?
— Se estamos mesmo em particular, o senhor não poderá ficar encrencado. Mas chega um momento na vida de um homem em que ele precisa apostar. O senhor está numa dessas crises. Pode apostar num cavalo seguro... na ponta, sem racionar a aposta. E ganhar. Ou perder. Como sabe, os outros curadores desta fundação são meus testas-de-ferro. Eu sou a Fundação. Vou predizer o que vai acontecer. Em breve essa bobagem da identidade estará liquidada e o verdadeiro Johann Sebastian Bach Smith sobreviverá. A partir daí, a subvenção desta instituição será dobrada. Ao mesmo tempo, o salário do diretor será duplicado. Se o senhor apostar no cavalo certo, será o diretor. Se não... será despedido.
— A senhora está me ameaçando!
— Não. Profetizando. O velho Johann Sebastian Bach Smith foi o sétimo filho de um sétimo filho e nasceu empelicado. Tem o dom da profecia. Qualquer que seja a sua aposta, a subvenção será duplicada. Mas apenas o senhor e eu saberemos o que aconteceu hoje.
— Hummm... há maneiras de conciliar. Tenho nodces para permitir que qualquer mulher adulta receba uma doação de esperma, se ficar satisfeito com as credenciais dela... e digamos que eu esteja satisfeito. Não obstante, temos de seguir certos trâmites e fazer algumas gravações.
(Ele está em ponto de bala, patrão. Agora cante-lhe um Money Hum com música diferente) (Eunice, o suborno em dinheiro é para forçá-lo a agir, se não quiser cair fora. Vejamos se o doutor consegue impingir a coisa a si mesmo)
Joan balançou a cabeça.
— Nada de gravações. Tente e cobrirei meu rosto com o véu e irei embora.
— Porém, miss... eu não faço essas coisas pessoalmente. Um médico da equipe ocupa-se da aplicação da doação, tendo uma enfermeira como ajudante. Poderá achar estranho que não haja gravações. Muito estranho.
— Nada de enfermeiras. Nada de assistentes. O senhor sozinho, doutor. O senhor é médico, especialista em genéticca e eugenia. Ou o senhor pode realizar a operação... ou não tem competência para dirigir a instituição... o que os curadores lamentarão ao saber. Além disso, vou com o senhor, confiro o número da doação... e me colo ao seu cotovelo até o senhor a injetar em mim. Estamos de acordo?
O médico suspirou.
— E eu pensei uma vez que a clínica geral era um trabalho duro! Não podemos ter certeza de que o esperma inoculado resulte em prenhez.
— Se não resultar, voltarei aqui dentro de vinte e oito dias e meio. Doutor, chega de evasivas. Ou aposte em outro cavalo e eu me retirarei. Nada de palavras ásperas, agora ou depois. Só aquela profecia.
Levantou-se. (Então, Eunice? O sapo vai saltar?) (Não posso adivinhar, queiida. Lie ja viu tantos rauos-de-saia que esta cneiO deles. Não posso imaginar)
Olsen levantou-se subitamente.
— A senhora precisa de uma roupa para frio.
— Está bem.
— Com a vantagem de que a roupa para frio cobre tão inteiramente que um homem não reconhece a própria mulher dentro de uma. Tenho aqui uma de reserva, para visitantes importantes.
— Acho que o senhor pode me considerar como visita importante — disse Joan secamente.
Quarenta minutos depois, o Dr. Olsen disse:
— Fique imóvel mais um momento. Estou colocando um tampão, um pessário de látex, sobre a doação.
— Por quê? Pensei que essas coisas servissem de preservativo.
— Em geral. E também servem para esta finalidade... quero dizer, algumas clientes desejam ficar a coberto imediatamente de toda possibilidade de serem engravidadas por qualquer outra fonte. Mas no seu caso, minha intenção ao instalar esta barreira temporária é ter a certeza de que a doação irá engravidá-la. Dar a essas larvas uma oportunidade de atingir o alvo, evitando que nadem corrente abaixo... entendeu? Conserve-o no lugar até amanhã... ou mais tarde, não importa. Sabe como retirá-lo?
— Se eu não conseguir, mandarei chamá-lo.
— Como quiser. Se a senhora ficar menstruada na próxima vez, tornaremos a repetir a operação daqui a quatro semanas.
O Dr. Olsen baixou os suportes dos joelhos e estendeu-lhe a mão. Ela desceu da cama e a saia voltou ao lugar. Estava excitada e feliz. (Eunice, está feito!) (Sei, patrão! Amado patrão)
O Dr. Olsen apanhou a capa de Joan e preparou-se para colocá-la sobre os ombros da moça. Esta disse:
— Doutor... não se preocupe com aquela corrida de cavalos. Ele mal sorriu.
— Nunca me preocupei com isso. Posso dizer por quê?
— Por favor.
— Hum. Se a senhora se lembra, encontrei Johann Smith — Mister Johann Smith — em outras ocasiões.
— Onze, se não me engano, senhor, inclusive uma entrevista particular quando o Dr. Andrews indicou o senhor para substituí-lo.
— Exatamente, Miss Smith. Jamais esquecerei aquela entrevista. Miss, talvez haja algum detalhe legal a esclarecer, concernente à sua identidade. Mas não para mim! Acho que nenhuma moça com sua idade fisiológica atual pode simular as maneiras de sargento-mor de Mr. Johann Smith... e ainda piorá-las.
— Oh, meu Deus!
— Desculpe?
— Dr. Olsen, esta mudança de sexo pela qual estou passando não é fácil de enfrentar. É uma sorte — para nós ambos — que o senhor seja capaz de distinguir Johann Smith por trás do rosto que uso agora. Mas — que diabo, senhor! — tenho de adquirir maneiras que combinem com o que sou agora. Quer me telefonar — oh, digamos daqui a três semanas, quando espero ter notícias alvissareiras — e permitir que eu lhe mostre ser capaz de imitar uma senhora quando me esforço? Venha tomar chá. Poderemos discutir a maneira de expandir o trabalho da Fundação com a subvenção dobrada.
— Miss Smith, será uma honra telefonar-lhe, sempre que a senhora o desejar. Com motivo ou sem ele. (Epa! Ei, Eunice, pensei que você tivesse dito que ele está cheio de rabos-de-saia!) (Pensei. Mas estamos diante de um, invulgarmente bonito, Joan, mesmo visto daqui. Vai dar um beijo nele?) (Eunice, você não pode tratar um homem impessoalmente?) (Não sei. Nunca tentei. Ora, não seja chata. Ele tem sido um carneirinho perfeito) (Agora seja um também... vamos embora)
Joan permitiu que o médico pousasse a capa nos seus ombros. Isso fez com que suas cabeças se aproximassem. Ela virou o rosto para ele, molhou os lábios e sorriu.
Pôde vê-lo decidir correr o risco. Não se esquivou quando os lábios dele encontraram os seus... mas não o abraçou, deixando-se parecer ligeiramente sem jeito. Empertigou-se um pouco antes de retribuir. (Gêmeo! Não o deixe deitar-nos nessa mesa... faça-o usar o sofá do escritório) (Nem um nem outro, Eunice. Bico calado!)
Joan interrompeu o beijo, trêmula.
— Obrigada, doutor. E o senhor vê que posso ser mulher quando me esforço. Como posso voltar para a sala de espera sem passar por sua Miss Perkins?
E prendeu o yashmak.
Alguns minutos mais tarde, Shorty conduziu-a ao carro, encerrou-a nele e entrou no compartimento dianteiro.
— Conjunto Gimbel, Miss Smith?
— Por favor, Finchley.
Chegados ao conjunto, Shorty e Fred acompanharam-na ao Madame Pompadour. O fato dela ter guarda-costas particulares chamou logo a atenção do gerente, que não era Madame Pompadour, embora usasse o cabelo no estilo tornado famoso pela notória marquesa, e gestos e modos que combinavam. (Eunice, tem certeza de que estamos no lugar certo?) (Tenho, patrão... espere até ver os preços)
— Em que posso servi-la, madame?
— O senhor tem uma sala particular com olho mágico?
— Mas claro, madame. Hum, há uma sala de espera onde...
— Meus guardas ficam comigo. O gerente pareceu ofendido.
— Como madame desejar. Se quiser me acompanhar... (Eunice, devemos acompanhá-lo?) (Não tente, gêmeo... apenas o siga. Ou a siga, o que talvez seja o caso)
Logo depois, Joan, sentada, via passar um modelo barato. Fred ficara em posição de descanso por trás dela. A sala estava quente. Ela abriu a capa, retirou o capuz, mas deixou o yashmak cobrindo o rosto. Então meteu a mão na bolsa e tirou uma folha de papel.
— O senhor tem um modelo com mais ou menos estas medidas?
O gerente examinou a folha: altura, peso, ombros, busto, cintura, pernas.
— São de madame?
— São. Mas tenho aqui outras medidas, embora não sirvam para mim. São as de uma amiga, para quem desejo comprar algo belo e exótico. É ruiva, clara e de olhos verdes.
Joan havia tirado as medidas de Winifred das gravações dos exercícios que ambas faziam.
— Não há problema, madame, mas no seu caso permita-me que sugira que nosso grande artista, Charlot, fique feliz confirmando essas medidas ou mesmo desenhando diretamente...
— De jeito nenhum. Quero comprar roupas feitas. Se eu comprar.
— Como madame queira. Posso fazer uma pergunta? Madame está usando seu próprio cabelo?
— Se eu usasse uma peruca, seria da mesma cor do meu cabelo. Portanto, aceite o fato. (Eunice, devo comprar uma peruca?) (Tenha paciência e deixe a coisa andar, querida. As perucas são difíceis de se manterem limpas. E nunca cheiram a limpo) (Então nunca usaremos uma) (Patrãozinho esperto. Água e sabão são os maiores afrodisíacos do mundo) (Sempre achei isso. Aliás, uma moça deve cheirar como uma moça) (Você cheira, queridinha, você cheira... queira ou não)
— O cabelo de madame tem um belo tom. E agora, já que madame disse que tem pouco tempo, talvez lhe seja conveniente permitir que nosso departamento de contabilidade examine seu cartão de crédito enquanto eu chamo os dois modelos?
(Atenção, patrão!) (Não sou trouxa, queridinha)
— Uso cartões de crédito com nomes diversos, como McKinley, Franklin e Grant. Ou Cleveland — Joan procurou na bolsa e tirou um maço de notas. — O cartão de crédito dos pobres.
O gerente reprimiu um estremecimento.
— Oh, meu Deus, não esperamos que nossos clientes paguem a vista.
— Sou antiquada.
O gerente parecia penalizado.
— Oh, mas não é necessário. Se madame prefere não usar sua conta de crédito geral — o que é seu privilégio! — pode abrir em segundos uma conta particular com Pompadour. Se me permitir ver sua carteira de identidade...
— Um momento. Sabe ler letra de imprensa? — Joan mostrou um texto ao lado do retrato do Presidente McKinley. — «Esta nota é moeda corrente para saldar obrigações públicas ou particulares». Não quero ser metida num computador. Pago a vista.
— Mas, madame... não temos condições de receber a vista! Não tenho certeza se podemos dar troco.
— Bem, não quero lhe causar nenhum transtorno. Fred.
— Pronto, miss?
— Leve-me ao La Boutique. O gerente ficou horrorizado.
— Por favor, madame! Tenho a certeza de que tudo se arranjará. Um momento, enquanto falo com nosso contador.
Saiu correndo, sem esperar pela resposta.
(Por que a onda, patrãozinho? Comprei inúmeras coisas para o senhor, debitando-as na sua conta de despesas pessoais. Jake disse que podíamos usá-la) (Eunice, detesto essas máquinas cretinas desde que fui embrulhado a primeira vez por um clube do livro. Mas não se trata apenas de teimosia. O dia hoje não é próprio para confessarmos quem somos. Mais tarde, quando estivermos livres do tribunal, abriremos uma conta em nome de «Susan Jones», para compras pessoais. Se tornarmos a faze-las. Acabo de verificar que são uma chatice) (Oh, não, são divertidas! Você verá, gêmeo. Mas lembre: manterei o direito de veto até que você aprenda algo sobre roupas) (Passa fora, resmungona) (A quem está chamando de resmungona, sua megera fracativa?) (Está feliz, minha querida?) (Maravilhosamente feliz, patrão. E o senhor?) (Estupendamente. Mesmo que não fosse romântico) (Oh, mas foi! Vamos ter o seu filho!) (Pare de fungar) (Não estou fungando. O senhor é que está) (Talvez estejamos os dois. Agora cale a boca: ele está chegando) O gerente fulgurava.
— Madame! Nosso contador diz que é perfeitamente legal aceitar dinheiro!
— O Supremo Tribunal ficará feliz ao saber disto.
— Como? Oh, Madame está brincando. Claro que há uma sobretaxa de serviço de dez por cento para...
— Fred. La Boutique.
— Por favor, madame! Mostrei a ele como isso era injusto... e encontrei a solução mais maravilhosa!
— Foi?
— Juro, madame. Tudo o que a senhora quiser comprar eu simplesmente debitarei na minha conta pessoal... e a senhora pode me pagar em dinheiro. Não há problema e eu ficarei feliz. Meu banco não cria nenhuma dificuldade com os depósitos em dinheiro. Juro. (Cuidado, patrão, ele vai querer levar vantagem) (Se conseguir nos oferecer algo que nos interesse, talvez leve. O preço não importa, Eunice. Não podemos nos livrar disso) (É uma questão de princípios, patrão) (Esqueça os princípios e me ajude a gastar dinheiro) (Está bem. Mas só compraremos o que gostarmos)
Durante as duas horas seguintes Joan gastou dinheiro... e ficou assombrada ao descobrir como podem ser caras as roupas femininas. Mas esqueceu sua formação para dar ouvidos unicamente a uma voz interior: (Esta não, gêmeo... é elegante, mas um homem não gostaria) (E esta, Eunice?) (Talvez. Vamos fazê-la passar outra vez e depois sentar. Para que mostre as pernas)
(Lá vem «Winnie» outra vez. Essa garota é ruiva mesmo, Eunice?) (Provavelmente uma peruca, mas não importa. Ela tem quase as medidas de Winnie. Vai ficar bem na nossa Atraente. Gêmeo, veja o que eles têm em matéria de calcinhas: talvez verdes para ruivas. Winnie precisa ter pelo menos um enxoval para ser visto só pelo seu novo namorado) (Tá legal, vamos alegrar «Bob». Amada, você acha que ele é quem?) (Não tenho a menor idéia... e não vamos querer adivinhar, vamos? Espero apenas que ele seja tão bom para ela quanto Paul foi)
— Mr. du Valle? Que é que tem de exótico em matéria de calcinhas para uma ruiva? Verde, imagino. E taças magnéticas combinando, também podem ser interessantes. Algo bonito... um presente íntimo para uma noiva. (Noiva?) (Bem, pode ajudar Winnie a ficar noiva, Eunice... e tira da cabeça dele idéia de que estou comprando isso para minha namorada) (Que importa o que ele pensa?)
— Uma jóia, talvez? Esmeraldas?
— Não estou querendo dar a ela um presente de casamento. Nem desejo oferecer-lhe algo mais caro do que o noivo possa dar. É de mau gosto, acho eu.
— Ah, mas estas são esmeraldas sintéticas. Encantadoras, mas bastante acessíveis. Yola, querida... venha cá.
Alguns milhares de dólares mais tarde, Joan retirou-se. Começava a sentir fome e sabia, por uma longa experiência, que a fome tornava-a incapaz de gastar dinheiro. Seu subconsciente equiparava «fome» a «pobre», em conseqüência da vida que levara em 1930.
Enquanto pagava a fabulosa conta, mandou Fred chamar Shorty para ajudar a carregar as compras que estavam sendo empacotadas. (Eunice, onde vamos comer?) (Há restaurantes dentro deste conjunto, patrão) (Hum, bolas — não, raios! — não posso comer sem retirar o yashmak. Você sabe o que acontecerá. Alguém que viu o vídeo ontem pode nos reconhecer. Então os caçadores de notícias estarão em cima de nós antes que você possa dizer «silogismo») (Bem... que tal um piquenique?) (Maravilhoso! Eunice, você ganhou mais um prêmio. Mas — onde podemos ir? — um piquenique com grama, árvores, formigas na salada de batatas... e bastante escondido para que eu possa retirar este véu... além de suficientemente perto para que não morramos de fome no caminho?)
(Não sei, patrão, mas aposto que Finchley sabe)
Finchley sabia. Shorty foi designado para comprar o lanche no «Homem Esfomeado», dentro do conjunto...
— Traga o suficiente para seis, Shorty, e não olhe os preços. Seja pródigo. Mas tem de haver salada de batatas. E duas garrafas de vinho.
— Uma é bastante, miss. Eu não bebo, pois o vinho é traiçoeiro, e Finchley nunca bebe quando tem de dirigir.
— Oh, não seja mesquinho, Shorty. Posso beber sozinha uma garrafa inteira... amanhã você salva a minha alma. Hoje é um dia especial... meu primeiro dia de liberdade! (Muito especial, bem-amada) (Muito, muito especial, patrão!)
Desceram até a rampa de cruzamento da cidade, subindo na direção da Estrada Expressa Sul, fora da zona ilimitada, fazendo o percurso de oitenta quilômetros na velocidade de quase cem metros por segundo, velocidade que Finchley só utilizou depois de Joan estar protegida por uma couraça completa e rede contra colisão. Os oitenta quilômetros fundiram-se em quinze minutos e Finchley diminuiu e moveu-se para a frente, pronto para sair. Não tinham sido alvejados, nem mesmo onde a Estrada Sul margeava a Cratera.
— Finchley? Agora posso sair deste casulo incômodo?
— Pode, miss. Mas eu me sentiria melhor se a senhora pusesse o cinto de segurança. Alguns destes motoristas são criminosos.
— Está bem. Mas me avise quando puder tirá-lo. (Eunice, o especialista, se-assim-se-pode-chamar, que desenhou estes raios de tirantes, se-assim-se-pode-chamar, não pensou nas mulheres!) (Ele foi concebido para ser usado por um homem, patrão... claro que está beliscando um seio. Aproxime um pouco a parte inferior e desloque a parte superior do tirante depois que pararmos. Foi assim que prepararam o equipamento para mim. Um homem deve tê-lo usado, desde a última vez que o utilizei) (Provavelmente Jake, ao mandar o carro dele para o conserto. Querida, quantas coisas tenho de aprender para ser mulher, antes de poder evitar tropeçar em meus próprios pés?) (Milhares. Mas o senhor está indo bem, patrão... e estarei sempre aqui para ajudá-lo) (Minha amada. Olhe, isto aqui não está parecendo um lugar para piquenique. Acho que Finchley se perdeu)
Estavam passando por sólidas massas de áreas «dormitório»: conjuntos murados, edifícios de apartamentos e poucas casas particulares. As árvores pareciam exaustas e a grama escassa. O sistema de ar condicionado do carro continuava lutando contra o smog.
Mas não durante muito tempo... Finchley enveredou por uma estrada secundária de transporte comercial e breve viram-se cercados de fazendas. Joan notou que uma pertencia-lhe... pertencia a uma subsidiária das Empresas Smith, retificou, e lembrou-se de que não mais detinha o controle delas.
Não obstante, reparou que o guarda na torre de vigia a um canto estava vigilante e a cerca de aço era resistente e alta, encimada por arame farpado e por fios de alarma, tudo em boas condições. Mas passaram sem que ela pudesse ver o que estava sendo cultivado... Não tinha importância. Johann nunca havia tentado dirigir aquele setor do conglom. Conhecia suas limitações. (Eunice, que estamos produzindo por trás daquilo?) (Joan, não posso ver se você não olhar... e você não olhou) (Desculpe, amada. Reclame se não gostar do serviço) (Reclamarei. Acho que era uma rotação de cultura. Este solo tem sido plantado tanto e há tanto tempo, que deve ser tratado cuidadosamente)
(Que acontece quando o solo não reage mais ao tratamento?) (Morremos de fome, é claro. Você esperava o quê? Mas antes disso, constroem nele)
(Eunice, é preciso pôr um fim a isso. Quando eu era garoto, vivia na cidade mas podia andar pelo menos durante uma hora por campos verdes e matas virgens... tão cerrados que eu podia brincar de Tarzan nu em pêlo. Eu não era alguém «de sorte»: mesmo em Nova Iorque, um garoto com cinco centavos podia ir até fazendas e bosques em menos tempo que estou levando)
(Parece incrível, patrão) (Eu sei. Usa-se um carro rápido e um motorista profissional para fazer o que eu costumava fazer descalço... porém, isto aqui não é uma verdadeira região agrária. São usinas de alimentos a céu aberto, com capatazes, relógios de ponto, encarregados de vendas, descontos em folha, publicações internas e tudo o mais. Um poço cavado e uma caneca de lata causariam uma greve... que seria justificada: esses poços ao ar livre, com seus baldes, provocam doenças. Apesar disso, a época das canecas de lata foi boa neste país... e a atual não é. Para onde estamos indo?)
A voz interior não deu resposta. Joan esperou. (Eunice?) (Patrão, eu não sei!)
(Desculpe, estava só pensando em voz alta. Eunice, passei minha vida inteira usando da melhor maneira possível o que eu sabia. Nunca esbanjei... bolas, mesmo o elefante branco que é aquela casa mantém um bando de gente longe do Seguro Social. Mas a cada ano as coisas pioram. O que me consola um pouco é saber que não estarei mais aqui quando tudo cair aos pedaços. Agora isto está chegando no que eu pensava. Daí minha pergunta: Para onde estamos indo? Também não conheço a resposta)
(Patrão?)
(Sim, querida?)
(Também posso ver. Sair de uma fazenda de Iowa para uma grande cidade me fez ver. E também fiz uma espécie de plano. Soube que o senhor ia morrer, nada pude fazer, apesar de saber, e imaginei que Joe um dia ficasse cansado de mim. Não tínhamos filhos, nem perspectiva de tê-los, e eu acabaria perdendo o emprego excelente que proporcionava a Joe tudo o que ele necessitava. Subestimei Joe. Apesar disso, nunca esqueci de que ele poderia de repente me dar o fora. Por isso fiz planos e economizei dinheiro. A Lua)
(A Lua! Ei, é uma idéia genial! Pegamos uma das excursões da Pan Am, de primeira classe, com direito a correio e todas as frescuras. Vamos lá antes de ficarmos tão barrigudas que não possamos entrar numa escotilha. Que tal, hem, garota?)
(Se o senhor também quiser)
(Você não parece muito entusiasmada) (Não sou contra, patrão. Mas não economizei para fazer uma excursão turística. Quero dizer, pôr meu nome na lista, fazer os exames de seleção... e ter condições de pagar a diferença, visto que não tive uma das profissões subvencionadas. Que me permitisse emigrar. Permanentemente)
(Puxa vida! Você vive pensando nisso... e nunca disse nada?) (Para que falar de hipóteses? Nunca fiz planos enquanto o senhor e Joe precisaram de mim. Mas eu tinha um motivo para ser séria. Já lhe disse que fui licenciada para ter três filhos)
(Sem dúvida. Eu soube disso desde seu primeiro recolhimento para a previdência social) (Bem, três é uma quota alta, patrão... um filho acima da média de reposição. Uma mulher pode ficar orgulhosa com uma licença de três filhos. Mas eu queria mais)
(E daí? Agora você pode ter. As multas não são problema, apesar deles as terem aumentado outra vez e as tornado progressivas. Eunice, se você quer filhos, este é apenas o começo)
(Patrão querido. Vamos ver como este primeiro sai. Sei que não posso arcar com multas... mas Luna não faz restrições a filhos. Querem crianças. Acho que vamos tê-los lá)
Finchley enveredou por um portão. Agroproducts Inc., notou Joan: um competidor. Estacionou de maneira a não obstruir a entrada, saiu e foi até o posto de guarda. A posição do carro era tal, que Joan não podia ver o que estava acontecendo, pois a couraça entre ela e o posto de controle tirava-lhe a visão.
Finchley voltou e o veículo atravessou o portão.
— Miss Smith, disseram-me para conservar o carro a trinta quilômetros por hora, pois agora nenhum cinto de segurança é legal.
— Obrigada, Finchley. O suborno foi de quanto?
— Oh, nada importante, miss.
— É? Vou esperar para ver no relatório semanal de O'Neil. Se não constar dele, vou tornar a perguntar-lhe.
— Constará, miss — respondeu imediatamente o motorista. — Mas não sei ainda a quanto montará. Temos de parar no Edifício da Administração e sair por um portão dos fundos. Para onde a senhora possa fazer um piquenique.
— Para onde nós possamos.
Joan ficou pensativa. Preocupava-a ter de pagar um suborno quando sua posição de maior competidor (aposentado, é verdade) dava-lhe o direito, por acordo, a um tratamento especial. Mas não havia enviado uma palavra prévia — que era o mínimo de cortesia quando se visitava o estabelecimento de um competidor — a fim de dar-lhe tempo de varrer o lixo para baixo do tapete ou evitar que o visitante veja certas coisas. A espionagem industrial pode não ser apropriadamente conduzida nas instâncias superiores.
— Finchley, você disse ao guarda do portão quem estava no carro?
— Oh, não, miss. — O motorista parecia escandalizado. — Ele, porém, verificou a licença, apesar de eu lhe ter dito que era seu carro... era melhor dizer. Ele tem a lista de todos os carros blindados particulares do Estado, exatamente como eu tenho. O que eu disse a ele foi que estava conduzindo convidados de Mr. Salomon... e deixei que ele imaginasse tratar-se de um casal de pessoas importantes vindas da Costa, loucos para fazer um piquenique em lugar seguro. Nada lhe disse realmente, a não ser o nome de Mr. Salomon. Está bem assim?
— Magnífico, Finchley. (Eunice, sinto-me como um intruso, entrando sem dar meu nome. Mal-educado) (Encare a coisa assim, patrão: o senhor sabe quem o senhor é. Mas o público não deve saber... não depois daquele carnaval idiota de ontem. Acho melhor passar por convidado de Jake... o que, de certa maneira, é verdade) (Continuo achando que devia ter dito a Finchley para revelar meu nome ao Agrônomo-Chefe. Mas chegaria ele a tomar conhecimento? Ou, melhor, com que rapidez?) (Trinta minutos. O tempo suficiente para que um funcionário telefonasse e um cóptero de jornalistas levantasse vôo. Então um bisbilhoteiro tentaria entrevistá-lo por intermédio de um alto-falante, porque os guardas não deixariam que ele pousasse)
(Que piquenique!)
(Se ele pousar, Shorty e Fred estarão lado a lado para recebê-lo. Ansiosos. Ansiosos demais, patrão, talvez o senhor n^o tenha reparado mas, ao mesmo tempo em que o chamam de Miss Smith, o tratam da mesma maneira que a mim. Dentro da cabeça deles, sabem que o senhor é o senhor... mas nas vísceras sabem que o senhor sou eu) (Não estão muito errados, Eunice. Na minha cabeça, eu sou eu... mas nas minhas vísceras — na sua linda barriguinha — eu sou você)
(Gostei, patrão. Somos os únicos irmãos siameses com uma só cabeça na história. Mas nem tudo na nossa barriga sou eu. Há uma larva, nadando mais depressa que o resto — que é «Johann» e não Joan nem Eunice — que se atingir a linha de chegada será mais importante que nós dois juntos)
(Meu amor, você é uma sentimental) (Sou uma idiota, patrão. E o senhor também) (Nolo contendere. Quando penso sobre Johann e Eunice — ambos mortos, na verdade — unindo-se em Joan para ter um filho, fico angustiado e tenho vontade de chorar) (Acho melhor não chorar, Joan, o carro está parando. Patrão? Quanto tempo leva uma larva para chegar lá? Sei que um espermatozóide tem de andar vários centímetros para alcançar o óvulo... mas com que velocidade ele nada?) (Um raio se eu sei, querida. Vamos deixar aquela rolha no lugar pelo menos um par de dias. Vamos dar ao bastardinho todas as chances possíveis) (Ótimo!) (Você sabe como retirá-la? Ou teremos de procurar o Dr. Ò'Neil? Não queremos que Winnie entre nesta história) (Patrão, coloquei-a e tirei-a tantas vezes que posso fazer dormindo. Não se inquiete, Annette. Já usei mais preservativos que a maioria das moças sapatos)
(Faroleira) (Só um pouquinho, amado patrão. Já lhe disse que sempre fui uma dadeira. Durante anos, cada dia que perdi não foi por minha culpa. Conhecia meu objetivo na vida nitidamente quando ainda era bandeirante, sem seios e virgem)
Finchley voltou para o carro e falou, depois de se ter fechado.
— Miss?
— Sim, Finchley?
— O chefe da fazenda envia cumprimentos e diz que os hóspedes do Doutor Salomon são convidados de honra da Agroproducts. Nenhum suborno. Mas perguntou se o guarda do portão central havia posto qualquer dificuldade. Disse-lhe que não. Fiz bem?
— Claro, Finchley. Nós não dedamos os empregados dos outros.
— Acho que ele não me acreditou, mas não deu a perceber. Convidou a ambos — supôs que eram duas pessoas e eu não o corrigi — para tomar um drinque ou café na volta. Deixei-o na dúvida.
— Obrigada, Finchley.
Prosseguiram pela fazenda adentro até chegar a outro portão alto. Fred desceu e apertou um botão, falando com o escritório de segurança. O portão correu para o lado e tornou a fechar após a passagem deles. Logo depois o carro parou. Finchley abriu o compartimento dos passageiros e estendeu a mão a Joan Eunice.
Ela olhou em volta.
— Oh, isto é encantador! Eu não sabia que ainda havia lugares como este.
O local tinha uma beleza singela. Um pequeno regato, cristalino e aparentemente não poluído, deslizava entre margens baixas. Nestas e ao redor havia inúmeras espécies de árvores e arbustos, mas não eram densos e havia um tapete de capim cobrindo os espaços abertos. Pelo aspecto de gramado, aparentemente havia sido roçado. O céu era azul, com nuvens de bom tempo, e a luz do sol era dourada e quente, sem exagero. (Eunice, não é sensacional?) (Hum, hum. Me faz lembrar Iowa antes do verão ficar quente demais)
Joan Eunice descalçou as sandálias e jogou-as para dentro do carro, sobre a capa. Mexeu os dedos dos pés.
— Oh, que delícia! Há mais de vinte anos que não piso descalça na grama. Finchley, Shorty, Fred... todos vocês! Se têm idéia do que Deus queria dizer quando fez a promessa, tirem os sapatos e as meias e dêem uma festa aos seus pés.
Os guarda-costas continuaram impassíveis e Finchley ficou pensa-tivo. Então riu.
— Miss Smith, não precisa repetir!
Abaixou-se e desabotoou as botas. Joan Eunice sorriu, virou-se e caminhou devagar para o regato, imaginando que Shorty ficaria menos encabulado se ela não olhasse.
(Eunice, Iowa é tão bonito assim? Ainda?) (Em certos lugares, querido. Mas está se deteriorando depressa. Veja por exemplo onde moramos, entre Des Moines e Grinnell. Quando eu era pequenina, só havia fazendas. Mas quando saí de casa, havia mais vizinhos de fim de semana que fazendeiros. Começaram também a construir condomínios) (Horrível. Eunice, este país está gerando a própria morte) (Para uma vagabunda recém-fecundada, você tem uma estranha atitude com relação à reprodução, gêmeo. Está vendo aquele local relvoso na curva do regato?) (Estou. Por quê?) (Ele me faz lembrar... parece com a margem de um riacho em Iowa, onde entreguei minha pretensa inocência) (Bem! É um lugar lindo para isso. Você resistiu?) (Gêmeo, qual é? Eu colaborei) (Doeu?) (Não o bastante para me fazer desmaiar. Também não havia motivo. Patrãozinho, sei como as coisas eram no seu tempo. Mas hoje não há mais sangue no lençol. As moças com mães espertas tiraram a virgindade cirurgicamente quando se tornaram púberes. E algumas a perderam gradualmente e nunca souberam quando aconteceu. Mas a moça que berra: «estão me matando» e sangra como um porco é hoje uma avis rara) (Garota, tenho outra vez de pôr as coisas no lugar. Não houve uma grande mudança. Apenas as pessoas são mais compreensivas a esse respeito. Acha que a água está bastante quente para a gente nadar?)
(Está, patrão. Mas como saberemos se é limpa? Não sabemos o que há rio acima)
(Eunice, deixe de ser covarde. Quem não aposta não ganha)
(Isso era verdade ontem... mas hoje somos mãe em perspectiva. Uma corrente murmurante pode estar cheia de um monte de coisas horríveis)
(Hum... oh, que inferno! Se estivesse poluída, haveria um aviso) (Aqui, onde não se pode chegar sem passar por dois portões eletrificados? Pergunte a Finchley. Ele talvez saiba)
(E se ele disser que está poluída?) (Então iremos nadar da mesma maneira. Patrão, como o senhor disse, quem não aposta não ganha) (Hummm... se ele souber que está poluída, desisto. Como você disse, amada, agora temos responsabilidades. Vamos comer, estou com fome) (O senhor está com fome? Eu começava a pensar que havia perdido o hábito) (Pois vamos comer enquanto podemos. Quando principia o enjôo matinal?) (O o quê, patrão? Da outra vez, o único efeito foi me dar fome de manhã, de tarde e de noite. Vamos comer!)
Joan Eunice correu de volta ao carro e parou espantada quando viu que Shorty estava estendendo a mesa portátil, com um único lugar para sentar.
— Que é isso?
— Seu almoço, miss.
— Um piquenique? Numa mesa? Quer matar as formigas de fome? Tem de ser no chão.
Shorty ficou com ar infeliz.
— Como quiser, miss. (Joan! Você não está usando calças. Se você se refestelar no chão, vai deixar Shorty encabulado... e interessar os outros) (Desmancha-prazeres. Está bem)
— Já que está pronta, pode deixar, Shorty. Mas coloque mais três cadeiras.
— Oh, comeremos no carro, miss... fazemos com freqüência. Joan bateu o pé.
— Shorty, se me fizer comer sozinha, mandarei você de volta para casa. De quem foi a idéia? De Finchley? Finchley! Venha cá!
Pouco depois, estavam os quatro sentados na mesa, que ficara atulhada, pois Joan insistira para que tudo fosse servido de uma vez.
— É só pegar — explicou. — Ou morrer de fome. Há algum sujeito forçudo para abrir esta garrafa de vinho?
A habilidade com que Shorty a abriu fê-la suspeitar de que ele não fora sempre abstêmio. Joan encheu seu copo e o de Fred. Depois pegou o de Finchley, que disse:
— Obrigado, Miss Smith... mas estou dirigindo — e colocou a mão sobre ele.
— Me dê seu copo — respondeu a moça. — Quatro gotas para um brinde. E quatro gotas para você, Shorty, pela mesma razão. — Derramou um pouco de vinho em cada copo. — Mas primeiro... Shorty, quer dar graças?
O grandalhão pareceu ficar espantado, mas imediatamente se recompôs.
— Com o maior prazer, Miss Smith.
Inclinou a cabeça. (Patrão! Qual é o problema?) (Cale a boca! Om Mani Padme Hum) (Oh! Om Mani Padme Hum) (Om Mani Padme Hum) (Om Mani Padme Hum...)
— Amém.
— Amém!
(Om Mani Padme Hum. Amém)
— Amém. Obrigada, Shorty. Agora o brinde... que também é uma espécie de prece. Vamos todos beber e isso precisa ser por alguém que não está aqui... mas que devia estar. (Patrão! O senhor precisa parar com isso... é mórbido) (Meta-se com sua vida!) Um de vocês quer fazer?
Finchley e Shorty se entreolharam... e desviaram os olhos. Joan encarou Fred.
— Fred?
— Hem?... Miss, não sei fazer. Parecia preocupado.
— Levante-se — Joan ficou em pé e os outros a imitaram — e diga o que achar melhor sobre alguém que não está aqui mas seria bem recebido. Alguém de quem todos gostávamos. Cite a pessoa a ser homenageada.
Ergueu o copo, percebendo que suas lágrimas começavam a aflorar. (Eunice! Você está chorando? Ou sou eu? Nunca fui de chorar!) (Então não me faça começar, patrão... já lhe disse que sou uma boboca sentimental)
Fred falou, indeciso:
— Um brinde para... alguém de quem todos gostamos... e que devia estar aqui. E ainda está!
Subitamente ficou apavorado.
— Amém — disse Shorty, num sonoro barítono. — E ainda está. Porque o Céu está tão perto quanto a gente permite. É o que eu digo aos meus fiéis, Fred... e no seu coração, você sabe que eu tenho razão.
Derramou, solene e cuidadosamente, uma pequena quantidade de vinho no próprio copo. Todos beberam. Joan disse calmamente:
— Obrigada, Fred. Ela o ouviu. Ouviu a todos, Shorty. Está me ouvindo agora. (Patrão! O senhor os deixou perturbados... e também está perturbado. Diga-lhes que sentem. E comam. Diga-lhes que eu também disse! O senhor estragou um piquenique perfeito) (Não, não estraguei) Finchley. Você a conheceu bem. Provavelmente melhor que eu... pois eu era um velho ranheta e ela cuidou da minha doença. Ela quereria que nós fizéssemos o que, agora?
— Quem gostaria... Mrs. Branca?... Quereria que fizéssemos?
— Sim. Você a chama de Mrs. Branca? Ou de Eunice? (Ele me chamava de Eunice, patrão... e depois da primeira semana eu o beijava quando o encontrava, quando me despedia e quando lhe agradecia por cuidar de mim. Mesmo se Jake visse. Mas ele fingia não ver) (Assanhada. Você é uma gostosura, querida. Só fez beijá-lo?) (Céus, patrão! Mesmo fazendo-os aceitar um beijo no lugar de uma gorjeta, eles não passavam disso) (Pois sim!... com você, quero dizer... irmã puta) (Vagabunda cansada)
— Hum, a princípio chamei-a de Mrs. Branca. Então ela me chamou de Tom e eu a ela de Eunice.
— Está bem, Tom. Eunice gostaria que nós fizéssemos o quê? Ficar aqui chorando? Seus olhos estão lacrimosos. Não sou a única a chorar. Eunice gostaria que estragássemos um piquenique?
— Hum... Ela diria: sente-se e coma.
— Isso mesmo — concordou Shorty. — Eunice diria: Não deixe a comida quente esfriar nem a fria esquentar... coma!
— Sim — confirmou Joan Eunice sentando-se — pois Eunice nunca foi desmancha-prazeres na sua curta e bela vida, nem deixou ninguém ser. Principalmente eu, quando era ranheta. Alcance-me uma perna de galinha, Fred... não, deixe para lá.
Joan aceitou um pedaço de frango. (Gêmeo, o que Shorty disse parecia uma citação) (E era, patrão) (Então você comeu com ele antes) (Com todos eles. Quando uma equipe me levava tarde da noite para casa, eu sempre os convidava para comer. Joe nunca se incomodou. Gostava de todos eles. Tinha especialmente prazer em ver Shorty. Queria que Shorty posasse para ele. A princípio, Shorty pensou que Joe estava se divertindo à custa dele. Não sabia que Joe raramente brincava e jamais quando se tratava de pintura. Nunca chegaram a nada uma vez que Shorty, sendo tímido, não estaria de acordo com posar nu e teria medo que eu chegasse quando estivesse posando. Não que eu me importasse) (Nem uma vez, garotinha? Shorty é uma bela torre de ébano) (Patrão, continuo a lhe dizer...) (... que a nudez nada significa para a sua geração. Depende da pele, não? Eu teria prazer vendo nosso gigante negro... e isso é válido tanto para Joan como para Johann) (Bem...) (Arranje uma mentira com calma. Tenho de estabelecer conversa)
— Tom, essa mostarda está sob suspeita ou posso pegar um pouco? Shorty, você fala como se tivesse provado a comida da Eunice. Ela sabia cozinhar?
Finchley respondeu:
— E como!
— Comida, mesmo? Qualquer um pode preparar coisas enlatadas... e é isso o que os jovens de hoje parecem considerar cozinhar. (Patrão, eu cuspo na sua sopa!) Mas que poderia ela fazer com farinha, toucinho, fermento e o resto?
— Eunice teria feito maravilhas — disse Shorty suavemente. — É verdade, ela quase nunca tinha tempo para cozinhar de fato. Mas quando cozinhava... ou o que fizesse displicentemente, era impecável
(Meu fã! Patrão... dê-lhe um aumento) (Não) (Pão-duro) (Não, Eunice. Shorty matou o verme que matou você. Quero fazer alguma coisa por ele. Mas não com dinheiro. Ele não aceitaria)
— Ela era uma artista — concordou Fred.
— Você diz «artista» num sentido geral. O marido dela era, eu lembro, um artista no sentido estrito da palavra. Pintor. Era bom? Nunca vi nada dele. Algum de vocês viu?
Finchley respondeu:
— Acho que é uma questão de opinião, Miss Smith. Gosto dos quadros de Joe Branca... mas não entendo nada de arte. Apenas sei do que gosto. Mas... — Riu. — Posso falar a seu respeito, Shorty?
— Puxa, Tom!
— Você ficou envaidecido, não pode negar. Miss Smith, Joe Branca queria pintar este gorila nu.
(Bingo!) (Perturbada, Eunice?)
— E ele pintou, Shorty?
— Bem, não. Mas me pediu. De fato. (Não está vendo, patrão? É aquele argumento decisivo. Um fato que o senhor primeiro soube por mim e mais ninguém... e confirmado de cabo a rabo. Agora o senhor sabe que eu sou eu) (Oh, bobagem, querida) (Mas, patrão...) (Sempre soube que você era você, amada. Mas isto não é uma prova. Assim que eu soube que Joe e Shorty haviam se encontrado, era uma necessidade lógica que Joe quisesse pintá-lo... qualquer artista quereria a mesma coisa)
(Patrão, o senhor dá náuseas! Está comprovado. Eu sou eu) (Amor da minha vida, sem o qual não vale a pena existir, mesmo neste corpo lindo, sei que você é você. Mas vermes não importam, coincidências também não, nem provas mundanas. Não há prova que um convencido psicanalista não possa explicar como coincidência, déjà vu ou auto-ilusão. Se os deixamos estabelecer as regras, estamos perdidos. Mas não deixaremos. O que importa é que você me tem e eu a você. Agora, cale a boca. Quero deixá-los tão à vontade comigo, que me chamem de Eunice. Você disse que eles costumavam beijá-la?)
(Oh, claro. Beijos amistosos. Bem, Dabrowski costumava ser fogoso, mas sabe como são os poloneses) (Temo não saber) (A coisa é assim, patrão. Com um polonês, não anuncie a menos que pretenda fazer a entrega... porque suas intenções são tão honestas quanto um revólver carregado. Com Dabrowski eu tinha o cuidado de não deixá-lo chegar ao ponto crítico)
(Tomarei nota. Apesar dele não estar aqui. Porque a situação é a mesma com Jake, apenas menos intensa. Assanhada, você fez todos meus guardas ficarem apaixonados por você. Por isso, agora tenho de levá-los a aceitar que você está morta apesar de sentirem que você ainda está viva. Se eles me chamarem de Eunice, tenho meio caminho andado. Se me beijarem...) (O quê? Patrão! Não tente!)
(Agora olhe aqui, Eunice! Se você não tivesse representado a «Minha Última Duquesa» para metade do condado, eu não teria de reparar os danos) («Danos», hem? Está se lamentando?)
(Não, não, minha querida! Nunca. Fui o primeiro beneficiado por sua benevolência. Mas perder algo de valor é um dano e é esse dano que quero reparar) (Bem... não vou discutir, querida. Mas, nesse caso, pode deixar o barco correr. Nunca deixo a coisa esquentar muito) (E eu digo que você não sabe de que está falando. Agir friamente pode ser a maneira correta. Assexuadamente, ou tão assexuadamente quanto puder manobrar, o que não é verdade. Mas todos quatro guarda-costas meus estão dispostos a morrer por você... correto?) (Hum...) (Não vamos conversar bobagens. Você pensa que o fato de eu pagar-lhes tem algo a ver com a disposição deles? Veja como responde)
(Hum... não preciso responder! Patrão, qual a vantagem de atiçá-los com a minha morte?) (Porque, minha querida, de agora em diante eles irão me proteger — como sou agora, dentro do seu corpo encantador — exatamente como protegiam você. Eles têm de querer me proteger, ou nunca ficarão felizes nesta estranha situação. E, nesse caso, ou os despeço ou aposento...) (Oh, não!) (Claro que não. Parafraseando Sherlock Holmes: quando você eliminou o que não podia fazer, o que sobrou é o que você precisa fazer. Além disso, única no mundo, isto é um severo exercício para enfrentar o caso duríssimo que temos pela frente) (Jake? Mas Jake é...) (Burrinha! Jake já aceitou o impossível. Refiro-me a joe)
(Mas, patrão! O senhor nunca deve ver Joe)
(Deus sabe que eu gostaria de poder evitar isso. Não importa, amada. Não o veremos até você sentir — como eu sinto — que precisamos vê-lo. Agora, ou cale a boca ou me ensine a lidar com estes bravos rapazes)
(Bem... farei o possível. Mas o senhor nunca os verá tão à vontade como ficavam comigo. Quero dizer, à vontade para «beijos amigáveis». Eu era empregada. O senhor é patrão)
(Se esse argumento fosse válido, as rainhas nunca ficariam grávidas. Claro que esse fato piora as coisas. Mas você me deu muito material para trabalhar. Quer apostar?)
(Oh, claro, aposto um bilhão de dólares como o senhor não conseguirá beijar um deles. Não seja bobo, patrão. Nunca poderemos apostar de verdade, pois não temos como pagar) (Você não tem muita prática em ser anjo, hem, garotinha? Ainda pensa em termos terrestres. Certamente que podemos fazer uma aposta e pagar ao vencedor. Esta criança dentro de nós...) (Hem! Espere um momento...) (Você espere um momento, Eunice. Se eu ganhar a aposta, escolherei o nome da criança. Se eu perder, o privilégio é seu. É uma condição justa?)
(Oh. Está bem, apostemos. Mas o senhor vai perder)
(Veremos)
(Oh, sim, o senhor verá, patrão. Perderá mesmo que vença. Quer saber por quê?) (Planejando roubar?) (Não vai ser necessário, querido patrão. O senhor vai descobrir que chamará a criança pelo nome que eu quiser, qualquer que seja ele. Porque o senhor sempre foi um trouxa nas mãos de uma moça bonita, patrão, foi e sempre será) (Agora espere aí. Eu costumava ser, mas atualmente sou a tal «moça bonita» e...) (O senhor verá. Quer auxílio? Eu o ajudaria a vencer se fosse possível. Mas não é) (Sim, mas enfie seu conselho sabe onde. Estou curtindo este osso há muito tempo)
— Fred, troco um destes sanduíches dinamarqueses por mais vinho. Então conserve nossos copos cheios. Shorty não bebe e Tom não quer beber. Eu quero companhia para ficar tocada, pois estou comemorando minha liberdade.
(Fred pode ficar mais à vontade se o senhor conseguir que ele não veja fantasmas quando o olha)
— Posso beber outro copo, miss, mas não posso ficar tocado pois estou trabalhando.
— Ora essa! Tom e Shorty nos levarão para casa, mesmo que tenham de nos arrastar. Não é, Shorty? (Shorty é seu caso impossível. Só consigo manobrá-lo bancando a «garotinha»... o que o senhor não pode ser, patrão)
— Certamente tentaremos, Miss Smith.
— Tenho de ser «Miss Smith» num piquenique? Você chamava Mrs. Branca de «Eunice», não? Ela o chamava de «Shorty»?
— Miss, ela me chamava por meu nome. Hugo.
— Prefere ele ao apelido?
— Foi o nome que minha mãe me deu, miss.
— Para mim basta, Hugo. Não esquecerei. Mas isso me faz lembrar de um problema. Alguém quer disputar comigo a última azeitona preta? Vamos, fechem os punhos. Mas o problema não é esse. Eu disse que não quero ser chamada de «Miss Smith» nas atuais circunstâncias. Mas também não quero ser chamada de «Johann», que é um nome masculino. Hugo, já batizou crianças?
— Muitas vezes, miss... hum, miss... Joan atalhou rapidamente.
— É isso mesmo, você não sabe como me chamar. Hugo, já que batizou tantas crianças, deve ter opinião formada a respeito de nomes. Acha que «Joan», pronunciado como duas sílabas, pode ser um bom nome para uma moça que era um homem chamado «Johann»?
— Sim, acho.
— Tom, que pensa você? (Tom o beijaria à mais leve sugestão se o senhor não fosse o empregador dele. Acho que ele nunca desistiu da esperança de me pegar sozinha... mas eu tive o cuidado de não lhe dar essa chance como aconteceu com Dabrowski. O máximo que aconteceu com Tom foi: «Tom, se vai ficar ofendido por eu querer pagar serviço extraordinário — foi durante uma viagem depois da meia-noite, patrão, um chamado para doação de sangue raro — pelo menos pode me dar um beijo de despedida». Ele o fez e muito bem. Depois do que, Hugo foi bastante delicado para se inclinar e me dar um beijo paternal. Mas o que funcionou com Eunice não funcionará com «Miss Smith») (Pois veja como vou assanhá-los, coisinha)
— Para mim parece um bom nome — concordou o motorista-guarda-costas.
— Fred? Eu pareço «Joan» para você?
Empertigou-se na cadeira e ergueu o busto. (O senhor está a ponto de estourar essa fita, se não tomar cuidado) (Moita, sapeca, ela não pode estourar. Quero que ele perceba que sou mulher) (Ele percebe. Winnie devia estar aqui para tomar o pulso dele)
— Não vejo por que todos podem opinar menos a senhora. Mas, claro, gosto.
— Ótimo! Ainda tenho de assinar documentos com meu antigo nome... mas, no fundo, sou «Joan». Amigos, deve haver neste país milhares de «Joan Smith». Por isso, preciso de um segundo nome. Mas preciso, por um motivo muito maior. — Olhou para o gigante negro com ar seriíssimo. — Hugo, você é um homem de Deus. Seria muita presunção da minha parte eu me chamar... «Joan Eunice»? (Patrão, se fizer meu amigo Hugo chorar, eu... eu... eu não falarei com o senhor pelo resto do dia!) (Oh, deixe de resmungar! Hugo não chorará. Ele é o único dos três que acredita que você está aqui. Tem fé)
— Acho que seria lindo — respondeu o Reverendo Hugo White solenemente e reprimiu as lágrimas.
— Hugo, Eunice não quereria que você ficasse triste por causa disso. — Afastou os olhos dele, com os próprios brilhando com as lágrimas retidas. — Isso acerta tudo. Meu novo nome será — é — Joan Eunice. Não quero que alguém esqueça Eunice. Especialmente vocês, seus amigos, quero que saibam. Agora que sou mulher, Eunice é meu modelo, o ideal para o qual viverei, a cada hora, a cada minuto da minha nova vida. Querem me ajudar? Querem me tratar como se eu fosse Eunice? Sim, sim, sou o patrão de vocês. Seja como for, preciso ser ambos e isso não é fácil. Mas a parte mais difícil para mim é aprender a me portar, a pensar e a sentir como Eunice... quando passei tantos anos sendo um velho ranheta e egocêntrico. Vocês são amigos dela... querem me ajudar? (Patrão, o senhor alguma vez vendeu propriedades na Flórida?) (Raios, se você não pode ajudar, pelo menos fique calada!) (Desculpe, patrão. Era um elogio. Como Hugo diz: «o senhor é demais»)
Tom Finchley disse, calmamente:
— Nós ajudaremos. Falo também por Dabrowski. A propósito, ela o chamava de «Anton». A princípio, chamava de «Ski» como todos nós. Então aprendeu o nome dele e só o chamava assim.
— Pois também o chamarei de «Anton». Querem me chamar de «Eunice»? Ou, pelo menos, de «Joan Eunice»? Para me ajudar? Oh, me chamem de «Miss Smith» quando houver alguém por perto. Sei que não se sentirão bem de outra maneira. Vocês provavelmente a chamavam de «Mrs. Branca» quando havia outros...
— É verdade.
— Pois me chamem de «Miss Smith» nas situações em que costumavam chamá-la de «Mrs. Branca». Mas quando a chamavam de «Eunice», me chamem de «Joan Eunice» e — queridos e fiéis amigos!
— sempre que sentirem que eu mereço, me chamem por favor de «Eunice». Será o maior elogio que podem me fazer e por isso não o gastem à toa. Abandonem «Joan» e digam «Eunice», sim?
Finchley olhou-a sem sorrir.
— Sim... Eunice.
— Tom, eu ainda não tinha merecido isso. Finchley não respondeu. Fred disse:
— Vamos deixar a coisa clara. «Joan Eunice» é para o diário... mas «Eunice» significa que nós pensamos que você quer exatamente o que Mrs. Branca queria.
— Está bem, foi o que eu disse.
— Então sei o que Tom quis expressar. Hum, hoje foi um dia complicado: pior para você, eu diria, mas não fácil para nenhum de nós. Shorty — isto é, Hugo — disse que ela era um anjo. Ou quis significar isso, seja como for. Não quero discutir. Shorty é pregador e sabe mais sobre anjos e coisas assim do que eu. Porém se ela foi
— é, quero dizer — ainda tem uma porção de malícia também. Lembra uma hora atrás, quando zangou com Shorty e chamou Tom?
Joan suspirou.
— Sim, lembro. Perdi a paciência. Tenho ainda muito que andar, sei disso.
— Mas era exatamente o que estava dizendo... Eunice. Ela possuía muita vivacidade. Se tivéssemos tentado fazê-la comer sozinha, ela teria tocado o gongo. Não é, Shorty... Quero dizer, «Hugo».
— Amém! Eunice. Finchley disse:
— Fred lê minha mente bastante bem... Eunice. Mas eu também estava pensando em outras coisas. Nunca pensei nela como um anjo, especialmente. Ela nos considerava apenas gente.
— Tom...
— Hem, Shorty? Hugo.
— Para você sou Shorty... e para você também, Fred. Nada de brincadeiras. Hugo foi o nome que mamãe me deu. E ela. É seu, Eunice. Mas quase esqueci o que ia dizer. Tom, é isso o que todos querem. Ser tratados «como gente». Ela procedia assim... Eunice. E agora você também. «Como gente». Mr. Smith não procedia muito assim. Mas estava velho e doente e não levamos a mal.
— Oh, Deus! Sinto que vou chorar outra vez. Hugo... quando eu era Mr. Smith só quis ser gente. Na verdade, não consegui.
— Gente doente não pode evitar ser ranheta. Papai era tão mesquinho antes de morrer que fugi de casa. Foi meu pior erro. Mas não o culpo por isso. Fazemos uma coisa e depois temos de assumi-la. Eunice — a primeira Eunice — é agora um anjo: é o que meu coração diz e minha mente sabe. Mas tinha suas fraquezas humanas, como todos. Deus nosso Senhor não nos pune por isso.
— Hugo? Se tivesse sido eu e não ela, eu teria ido para lá? Para o Céu? (Om Mani Padme Hum! Cuidado, patrão! Ele o arrastará para aquele regato e afogará seus pecados nele) (Se ele quiser, eu deixarei. Cale-se!)
— Não tenho certeza — respondeu o pregador suavemente. — Nunca conheci Mr. Smith tão bem assim. Mas o Senhor usa caminhos misteriosos. Veja como Ele lhe deu uma segunda oportunidade. Ele sempre sabe o que faz. (Oh, está bem, gêmeo. Procure evitar que a água suba acima do nosso nariz)
—Obrigada, Hugo. Também acho que Ele usa... e estou procurando dar-Lhe razão. — Ela suspirou. — Mas não é fácil. Procuro agir como Eunice faria. Pelo menos justificar a segunda oportunidade que ela me deu. Acho que sei o que ela faria agora. Mas não tenho certeza. (Eu acabaria com toda essa conversa, era o que eu faria) (Bico calado e me dê uma chance) — Olhou em volta. — Não sei até que ponto você a conheceu e continuo aprendendo coisas a respeito dela. Acho que vocês três — os quatro, pois incluo Anton — devem ter sido os amigos mais íntimos dela, pelo menos entre meu pessoal. Certamente a conheceram melhor que eu pensava. Tom?
— Sim, Eunice?
— Alguma vez a beijou?
O motorista parecia espantado.
— Beijei... Joan Eunice.
— Esse Joan Eunice significa que Eunice nunca faria tal pergunta. Apenas faria o que seu coração mandasse. Eu também queria, Tom... mas estava assustada. Ainda não me habituei a ser mulher.
Pôs-se em pé num pulo, chegou junto da cadeira dele, pegou-lhe as mãos e puxou-o. Ele ergueu-se lentamente. Joan colocou os braços sobre os ombros dele, ergueu o rosto... esperou.
Tom suspirou, quase fez uma careta e então tomou-a nos braços e beijou-a. (Gêmeo, ele pode beijar muito melhor) (Beijará. O coitadinho está apavorado) Joan deixou-o beijá-la, sem forçá-lo além da sua disposição, e sussurrou:
— Obrigada, Tom — e rapidamente saiu dos braços dele.
... foi até Fred e pegou-lhe as mãos. Fred novamente ficou apavorado, mas reagiu prontamente. (E Fred, Eunice? Sexy ou irmão?) (Muito tarde, gêmeo!) Fred agarrou-a com força inesperada, encontrou sua boca tão depressa que Joan foi apanhada com os lábios abertos e ele imediatamente correspondeu brutalmente.
Mas por pouquíssimo tempo. Parou e ambos ficaram trêmulos. (Eunice! O que é isto? Você não me preveniu) (Bobeei. Agora é tarde, querida. Vá de marcha lenta e reze três Money Hum. E trate de ser uma criança inocente com o Padre Hugo)
Joan rodeou lentamente a mesa pelo caminho mais longo e parou junto de Hugo. Esperou. Hugo levantou-se da cadeira e baixou o olhar para ela. Joan aproximou-se, pôs as mãos no peito dele, ergueu o rosto com ar solene, de lábios cerrados e olhos abertos.
Ele passou suavemente os braços em torno dela. (Meu Deus, Eunice, se ele nos der um apertão de verdade, nos quebra em duas!) (Ele não quererá, gêmeo. É o homem mais delicado do mundo)
Os lábios de Hugo encontraram os dela numa suave bênção, sem pressa, mas rapidamente. Ela permaneceu um instante nos braços dele.
— Hugo? Quando rezar por ela hoje à noite, quer fazer uma prece por mim? Talvez eu não mereça, mas preciso.
— Farei, Eunice.
Num gesto de graciosa galanteria, Hugo levou-a até sua cadeira e depois tornou a sentar. (Ganhou de ponta a ponta, gêmeo... como vai chamar a criança?) («Eunice», é claro!) (Mesmo se for garoto?)
(Se for garoto, se chamará Jacob E. — de «Eunice» — Smith) («Johann E. Smith» é melhor) (Ganhei a aposta, por isso cale a boca. Não gosto de «Johann» para um rapaz. Agora, que é que há com Fred?) (Você não acreditará) (Atualmente acredito em tudo. Muito bem, mais tarde)
— Fred, ainda há vinho naquela garrafa? Hugo, quer abrir a segunda? Preciso, estou arrasada.
— Certamente, Eunice. Passe-me a garrafa, Fred.
— Também vou comer mais um pouco e espero que todos queiram. Tom; ainda sou «Eunice»? Ou sou uma sapeca que não compreende como uma senhora deve se comportar?
— É, Eunice. Quero dizer, «Não, Eunice». Eu... Oh, que inferno! Ela afagou-lhe a mão.
— Foi o mais lindo cumprimento que recebi, Tom. Você nunca teria dito «Oh, que inferno» para Miss Smith... mas sabe que Eunice — e Joan Eunice — é humana. — Olhou um por um. — Sabem como é gostoso ser tocada? Já viram gatinhos se esfregarem? Durante quase um quarto de século ninguém me beijou. Com exceção de um aperto de mão ocasional, acho que ninguém jamais me tocou. Até que enfermeiras e médicos começaram a me manipular. Amigos — queridos amigos — vocês me reintegraram na raça humana com seus lábios. Estou tão verdadeiramente grato a Eunice — a Eunice Branca — que beijou-os antes de mim e conquistou a amizade de vocês... seu amor? Acho que sim. Pois significa que me receberam... tratando-se de «gente»! Hum, diga-me aquilo, preciso saber... mesmo que isso faça você me chamar outra vez de «Joan Eunice». Eunice também beijou Anton? (Patrão, não vou lhe dizer tudo até que estejamos sós!) (Não lhe perguntei nada, querida)
— Ninguém vai me dizer? Bem, suponho que seja uma pergunta indiscreta.
Finchley disse, subitamente:
— As equipes trabalham por turnos. Dirigi com Fred, Shorty com Ski, e assim por diante. Houve vezes em que fiz de guarda-costa para Ski. Eunice, ela nos tratava igualmente. Mas nunca pense mal a esse respeito...
— Não pensarei!
— ... porque não houve maldade. Ela era tão afetiva e amistosa — e boa — que podia beijar um amigo apenas por, hum...
— Por afeição — completou Shorty.
— «Por afeição». Beijava-nos para agradecer e para se despedir, tanto na presença do marido como não. Sempre fez, quando comíamos tarde da noite na casa deles. (Está bem, gêmeo. Fred e Anton. Não Tom e Hugo. Aconteceu só uma vez. Oh, poderia ter sido com Tom, mas não houve oportunidade e por isso mantive em suspenso. Hugo... ninguém conseguiu vencer as defesas de Hugo e eu nunca tentei. Tem força moral... algo de que eu e o senhor não temos o menor conhecimento)
— Obrigada por me contar, Tom. Nunca deixarei Anton perceber, Mas Anton achará fácil me beijar se quiser... agora que sei que ela partilhou sua afeição com ele. Mudando de assunto: Tom, este lindo regato está poluído? Parece tão limpo.
— Está limpo. Tanto quanto uma corrente pode estar, quero dizer. Sei porque tive conhecimento deste lugar quando a companhia emprestou-o à nossa liga para um piquenique. Alguns de nós nadaram nele depois que o superintendente da fazenda disse que não havia perigo.
— Maravilhoso! Porque eu quero nadar. A última vez em que nadei em água natural — quero dizer, num velho poço de natação — deixem-me ver... puxa vida! Mais de três quartos de século.
— Eunice, acho que você não deve.
— Por quê?
— Porque pode estar poluída de outra forma. Marginais. Nem todos os marginais estão nas A.A. Qualquer região selvagem os atrai. Como esta. Não quero assustá-la, mas quando você caminhou até a margem, Fred ficou de um lado e eu do outro.
— Bem, se você pode me conservar a salvo na margem, também pode na água.
— Não é a mesma coisa, garanto-lhe. Uma vez cheguei atrasado poucos segundos e não quero que isso se repita. Alguns marginais são verdadeiramente perigosos e não apenas malucos inofensivos.
— Tom, para que discutir? Quero entrar na água, senti-la inteiramente no corpo. E vou entrar.
— Gostaria que não... Joan Eunice.
A estas duas palavras, ela atirou a cabeça para trás. Então riu e espichou o lábio inferior.
— Tá legal, Tom. Raios, forneci aos três uma rédea que pode me controlar cada vez que vocês quiserem. E ainda dizem que sou o patrão. É cômico.
— É como o Serviço Secreto — respondeu Finchley seriamente.
— O Presidente é o patrão de todos... mas cede quando seus guarda-costas dizem-lhe para não fazer algo.
— Oh, não estou me queixando. Estou me divertindo muito. Mas não puxe demais a rédea, Tom. Acho que Eunice não agüentaria e o mesmo me acontece.
— Espero que você não estique tanto a rédea como Eunice fazia. Porque do contrário... bem, as coisas podem ser diferentes.
Fred falou:
— Tom, não chore sobre o leite derramado. Joan disse depressa:
— Desculpem. Rapazes, acho que o piquenique acabou. Talvez algum dia possamos todos dar um mergulho num lugar seguro e tão bonito. (Eunice, você sabe nadar?) (Sou salva-vidas da Cruz Vermelha... o senhor sabe, pois consta da minha folha. Porém nunca saí a serviço. Chefe da torcida era mais divertido) (Posso imaginar) (Olha quem fala! Smith Sem Calças) (Quem me ensinou?) (O senhor não precisa de lições. Não lhe falta vocação para isso)
Pouco depois, voltaram para o carro. Finchley disse:
— Para casa, Miss Smith?
— Tom, não o estou ouvindo.
— Perguntei se quer ir para casa, miss.
— Compreendi essa parte, mas o intercom deve estar desarranjado. Ouvi algo que soou como «Miss Smith».
Houve um silêncio.
— Eunice, quer ir para casa?
— Não até a hora do jantar, Tom. Quero gozar ao máximo este dia maravilhoso que tive.
— Está bem, Eunice. Faço um cruzeiro? Ou vou a algum lugar?
— Hum... Tenho mais um ponto na minha lista e há tempo de
sobra para tudo o que vocês três possam querer fazer também. Portanto, olhemos em volta.
— Olharemos. Onde quer que a levemos para o que precisa fazer, Eunice?
— Não sei. Perdi o contato com essas coisas há muito ^ tempo.
Tom, quero comprar um presente para Mr. Salomon, algo bonito mas inútil: presentes devem ser inúteis, um luxo que uma pessoa não compra para si mesma. Portanto, provavelmente deve ser numa loja masculina que tenha futilidades caras. Abercrombie & Fitch tinham essa característica... mas não sei ao certo se ainda estão em atividade.
— Estão. Mas deixe-me perguntar a Fred e Shorty. Logo depois, Finchley informou:
— Há uma dúzia de lugares nessas condições. Mas achamos que a The Twenty-First Century Stud tem o maior estoque.
— Tá. Vamos nos arrancar para lá.
— Isto é, se você não se importar com os preços. Uma roubalheira.
— Não me importo. Já encontrei ladrões antes. Tom... vocês todos: ressurgi daquela operação com mais dinheiro que o que possuía no ano passado... e ele é um transtorno. Já participei do jogo do dinheiro e estou cheio dele. Sempre que um de vocês puder pensar numa boa maneira de me ajudar a me livrar de um monte — uma boa maneira, insisto. Não me interessa ser tomada por trouxa — estarão me fazendo um favor. Hugo, há gente pobre na sua igreja?
A resposta dele foi demorada.
—Montes deles, Eunice. Mas não aflitivamente pobres. Apenas saudavelmente pobres. Eu gostaria de refletir a respeito... porque não faço nenhum bem a um homem dando-lhe algo pelo qual deva lutar. Como diz a Bíblia em outras palavras.
— Esse é o problema, Hugo. Muitas vezes distribuí dinheiro e sempre causei mal quando queria fazer o bem. Mas a Bíblia também diz alguma coisa a respeito do orifício da agulha. Está bem, pense a respeito. Agora vamos ver aqueles ladrões. Preciso de um homem para me ajudar. Quem de vocês veste-se mais na moda quando não está de uniforme?
Joan ouviu Fred rir.
— Eunice, não há paralelo. Você precisa ver os panos que Tom usa. Uma árvore de Natal. Um show de brilho.
Finchley resmungou e depois disse: — Não acredite nele, Eunice.
— Fred está provavelmente com inveja, Tom. Muito bem, se houver estacionamento dentro ou perto da loja, você irá me ajudar.
Ao passarem pelo segundo portão, Finchley perguntou:
— Cintos de segurança, Eunice?
— Estou usando o sueco... que está confortável, agora que Hugo o ajeitou. Podemos continuar com apenas ele e a rede de colisão, se não andarmos muito depressa? Ou isso me fará ser novamente «Joan Eunice»?
— Hum... Você porá a correia frontal?
— Está bem. É apenas porque não gosto de ser amarrada de alto a baixo. Isso me faz lembrar... bem, me faz lembrar como os médicos me imobilizaram depois da operação. Era necessário, mas eu detestei. Não disse que a correia frontal era a que mais detestava.
— Ouvimos falar nisso... deve ter sido horrível. Mas você precisa da correia frontal. Digamos que eu vá apenas a cento e sessenta: uma parada brusca pode quebrar seu pescoço, se não colocar a correia.
— Então usarei.
— Não estou vendo a luz no painel.
— Porque ainda não a coloquei. Pronto. A luz apareceu?
— Apareceu. Obrigado... Eunice.
— Obrigada a você, Tom. Por cuidar de mim. Vamos em frente. Eu não estava retesando a rédea, juro que não estava. (É o que o senhor diz. Patrão, o senhor é falso, insincero e mentiroso) (Queridinha, onde aprendi a ser? Eles são uns ótimos rapazes, Eunice... mas temos de dar um jeito de viver de maneira a não precisarmos partilhar tudo com mais quarenta pessoas. Bons empregados são inestimáveis... mas você trabalha tanto para eles quanto eles para você. A vida deve ser mais simples. Querida, você gostaria de ir para a índia e ser um guru, sentado no alto de uma montanha e nunca fazer planos? Apenas ficar sentado e esperar que seu cheia dedicado esmole pelos arredores?)
(Pode ser uma longa espera. Por que não sentar na base da montanha e esperar que os rapazes se amontoem em volta?) (Mente mão única!) (Sim, a sua, seu velho sujo) (Concordo. Mas tento me portar como uma dama) (Não com muito empenho, é verdade) (Com tanto quanto você sempre teve, vagabundinha. Uma vez me chamaram de «Joan Eunice»... e a continuação nada teve a ver com sexo) (Você nem imagina quanto o sexo teve a ver com isso, Joan) (Bem... desse ponto de vista, sim. Porém, quando resolveram me chamar de «Eunice», passei a acreditar que eu tinha sido o máximo. Falando honestamente, os bons empregados têm de ser contidos. Olhe Winnie. É um amor... mas está sempre no caminho. Eunice, como diabo podemos levar essa vida «ativamente feminina» que você quer — desculpe, que queremos — com tanta gente nos cercando?)
(Sonde Winnie)
(Como, querida?)
(Deixe-a saber dos seus planos. Então guardará seus segredos e nunca fará perguntas, como o senhor fez com ela. Experimente)
(Talvez faça. Tenho a certeza de que ela não falará... e ouvirá com prazer tudo o que eu necessitar dizer. Mas, Eunice, se eu saio de casa, vai ser difícil evitar que Tom, Hugo, Anton ou Fred fiquem imaginando. Você viu a manobra complicada que tive de fazer hoje)
(Não vai precisar, patrão. Eles não falarão)
(Talvez não, porém não quero nem que eles pensem. Estão começando a pensar que sou um anjo — chamado Eunice — e prefiro deixar que continue assim)
(Patrão, eles sabem demais que Eunice não é um anjo. Até Hugo sabe... porque ele é o mais inteligente dos quatro, mesmo sendo analfabeto. Conhece as pessoas. Compreende-as por ser igual a elas. Perdoa-lhes as fraquezas e ama-as assim mesmo. Querido patrão, eles me amam como eu sou, pés de barro e tudo... e amam o senhor da mesma maneira)
(Talvez, espero. Sei que a amo mais, sabendo mais a seu respeito e coisas que eu nunca desconfiara, do que a amei antes de nos termos tornado um só. Sua meretriz imoral. Que história é essa a respeito de você com Fred e Anton? Aconteceu mesmo?)
(Fiquei calculando quando o senhor tocaria nesse assunto. Aqueles beijos de despedida começaram apenas amigavelmente. Fraternalmente. Paternalmente no caso de Hugo. Nunca passou disso com Tom, pois estávamos sempre na presença de Hugo, na de Jake ou na de ambos... apenas senti danadamente bem que estava sendo beijada por um homem. Mas Fred e Anton não eram muito companhia um para o outro e ambos estavam encarregados de me cuidar. Por isso, quando houve uma oportunidade, pensei: «Por que não?») (Pura caridade, hem?)
(Para que a ironia, patrão? Seja como for, um dia me levaram para casa tarde da noite. Não foi um chamado de doação de sangue, mas apenas trabalho extraordinário com Jake, quando estávamos muito atarefados arranjando as coisas para o senhor. O projeto «corpo quente». Convidei-os a entrar, para uma Coca e um lanche, como de costume. Apenas aconteceu que Joe não estava em casa) (E aí a natureza humana venceu... novamente) (Querido patrão, o senhor parece ter uma pobre opinião sobre a natureza humana)
(Tenho uma alta opinião. Acho que ela subsistirá, a despeito de todos os esforços dos caretas para suprimi-la. Mas foi tudo o que aconteceu? Dois homens? A sangue-frio? E com a possibilidade do seu marido chegar? Adorável anjo caído, sua história não tem apenas lacunas: é inconsistente. Conheço algo a respeito dos homens, já que fui um deles. Sei pelo que se arriscam e o que não querem. E sei muito quando se trata de mulher. Mas dois homens tendem a ser cautelosos um com o outro e muito mais quando um marido pode aparecer. Querida, você omitiu alguma coisa... tudo leva a crer que não foi a primeira vez)
(Patrão, juro por nós que foi a primeira vez... e a única, pois logo depois me mataram. Está bem, preencherei as lacunas. Não havia probabilidade de Joe entrar e eles sabiam. Não poderia, pois nossa porta era trancada manualmente por dentro quando um ou outro de nós estava em casa. Joe era ainda mais cuidadoso que eu a esse respeito, pois fora sempre morador da cidade. Além disso, eles também sabiam que Joe não era esperado em casa antes da meia-noite... e me levaram mais ou menos às vinte e uma e trinta. Sem pressa, sem preocupação e sem afobação. Embora Joe não soubesse ler, podia ver as horas: eu usava um daqueles despertadores mudos que se compra nos vendedores ambulantes, sabe? Escolhe-se uma determinada hora e coloca-se os ponteiros na posição?
(Tínhamos um desses, para informar um ao outro a que horas voltávamos. Naquela noite, a porta abriu-se ao som da minha voz e por isso olhei para o despertador e vi que estava marcado para meia-noite... e disse a Anton e Fred que lamentava mas Joe não chegaria em casa a tempo de vê-los)
(Veja lá, mulher à-toa. Parece coisa combinada)
(Bem, eu sabia o que esperar, visto que tínhamos o lugar à nossa disposição. Oh, bolas, patrão, continuo tentando ser sua «garota bacana». Eu estava torcendo por uma chegada tarde com aqueles dois havia mais de um mês. Quando Jake me pediu para trabalhar depois do jantar, telefonei para Joe, como de costume. E organizei tudo no nariz de Jake. Falamos numa língua cifrada... que pode ser uma língua completamente diferente quando usada entre marido e mulher. O que Jake ouviu foi eu dizer a Joe que não estaria em casa antes das vinte e uma e trinta. O que Jake não ouviu, ou não entendeu, foi eu perguntar a Joe se ele não se incomodava de ficar fora, no código familiar que usávamos para pedir um favor igual àquele. Tudo se arranjou, querido patrão. Mantive-me afastada a pedido de Joe tantas vezes quantas ele quis. O único problema era: Joe estaria pintando? Aconteceu que não estava, o que deixava a casa livre.
(Joe perguntou se eu queria que ele ficasse fora a noite toda. Mas o que ele disse foi: «Tá. Cotovelo ou telefone?» Não que Joe alguma vez tenha me cutucado para me acordar, mas respondi: «Judy», o que queria dizer que ficava a critério dele, mas que eu esperava que ele me cutucasse e acrescentei: «Melros». Dei-lhe um beijo telefônico e desliguei. Tudo em ordem sem dramas... eu sabia o que encontraria em casa)
(«Melros»?)
(«Vinte e quatro melros preparados num pastelão»... ponha meia-noite no relógio mesmo que vá ficar fora a noite toda, querido Joe. Oh, poderia ter sido «abóbora» ou «Noite de Natal» ou «ouro em barra». Mas usei «Melros»)
(Vocês, jovens, alguma vez falam inglês?)
(Claro que falamos, patrão. Joe fala um ótimo inglês quando precisa. Mas a linguagem sintética reduz tudo a doze palavras. Sem dar a Jake nenhuma impressão de que eu o estava enganando. Se eu tivesse Betsy à mão, teria usado silêncio e falado inglês comum. Mas não estávamos na sua casa, patrão. Estávamos no apartamento de Jake, em Safe Harbor. Sabe, não estávamos realmente trabalhando até tarde, não tão tarde assim. Usei o telefone que o senhor pegou ontem, com Jake a pequena distância de mim. Tinha de ser em código)
(Recapitulemos. Joe pôs o despertador mudo dizendo que só chegaria em casa depois da meia-noite. Ele chegou nessa hora?)
(Cerca de dez minutos depois da meia-noite. Joe não gostava de incomodar uma visita chegando muito cedo. Joe é naturalmente um cavalheiro, sem nunca ter aprendido. Apenas é. Foi a primeira coisa que me atraiu nele e a qualidade que me fez pedir-lhe para casar comigo. Um analfabeto, sem dúvida... mas prefiro um cavalheiro analfabeto a um Ivy-League * de fala fina)
* Aluno das universidades de Cornell, Harvard. Iale, Princeton, Columbia, Brown, Colgate, Dartmouth e Pennsylvania, afetados na fala e no vestir (N. do T.).
(Concordo, adorada. Quanto mais ouço a respeito de Mr. José Branca, mais gosto dele. E o respeito. E lamento sua trágica perda. Refiro-me a você, amada prostituta. Eu estava apenas estabelecendo a ordem dos acontecimentos do que deve ter sido uma noite trabalhosa. Tá legal, Joe chegou em casa logo depois da meia-noite. Mas logo no começo da noite você telefonou-lhe e preparou as coisas para aquele encontro com Anton e Fred. Então voltou para a cama com Jake...)
(Oh, meu Deus! Choquei-o outra vez, patrão)
(Não, minha querida. Estou espantado e não chocado. Acho suas memórias fascinantes)
(Chocado. Essa ordem dos acontecimentos parece até o dia de pagamento de uma puta. Mas não foi inteiramente assim, patrão. Era amor... amor e respeito por Jake, amor e carinho por Anton e Fred. Amor, devoção, compreensão, confiança mútua e respeito por Joe. Se meu marido não foi contra, que direito tem o senhor ou quem quer que seja de torcer o nariz para mim?)
(Querida, querida! Não estou chocado. Você nunca me chocou. Bolas, a culpa é da minha Geração Perdida. Você talvez não acredite que eu tive um comportamento muito mais estranho nos meus longos anos de luxúria, que você possa ter acumulado nos quatorze anos que você apregoa. Não há dúvida de que você é muito ativa... mas tive cinco vezes mais anos que você e com o mesmo entusiasmo. Provavelmente, sem oportunidades tão seguidas, mas as moças bonitas são mais freqüentemente solicitadas que os rapazes feios. Porém nunca foi por falta de tentativas da minha parte, nem eu me lamentei, pois recebi mais colaboração do que podia esperar)
(Pensei que o senhor tivesse ficado chocado)
(Não, inocentinha. Admiração entusiástica... acrescida de surpresa pela sua capacidade. Você deve ter-se sentido meio morta no dia seguinte)
(Pelo contrário, me senti ótima. Em brasa. Feliz. Você notou. Talvez se lembre... foi no dia em que Joe me pintou de tigre rajado e me maquilou como um felino)
(Ora se me lembro! Você estava saltitante como uma gata... e eu disse que você parecia com o gato que comeu o canário. Querida menina, eu estava sofrendo naquele dia. Você me reanimou)
(Que bom!)
(Você dormiu muito?)
(Oh, o bastante. Seis horas. Pelo menos cinco. E mais uma soneca tirada enquanto Joe fazia a maioria das listras. Joan, uma mulher bem amada não precisa dormir tanto quanto uma solitária... você vai ver. E isso de ser em excesso para mim... patrão, quem me disse, não faz uma semana, que nada encoraja tanto o sexo como a maneira como ele surge? o senhor, fique sabendo)
(Sim, mas eu estava falando do ponto de vista masculino...)
(Dá-se o mesmo com a mulher, gêmeo. O senhor verá)
(Espero que sim. Sei que a maioria das pessoas — no meu tempo — garantia o contrário. Mas não é verdade. Sexo, por mais diferente que seja — muito diferente! — é uma prática atlética. Quanto mais se pratica, mais se é capaz, quanto mais se quer, mais prazer se tem, por mais que nos canse. Tenho a maior satisfação em saber — muita satisfação pessoal — que com a mulher também se dá o mesmo. Mas você não é a primeira mulher a me dizer isso. Hum... a primeira vez em que ouvi uma moça falar isso, ou quase isso, foi quando Harding tornou-se presidente.* Não exatamente uma moça, mas uma simpaticíssima jovem casada que tinha mais coisas em comum com você, do que provavelmente imagina. É muito possível que esteja morta atualmente, Deus a tenha em seu seio. Estaria com mais de cem anos)
* Warren G. Harding foi o 29º Presidente dos Estados Unidos, de 1921 a 1923, quando morreu (N. do T.).
(Como se chamava?)
(Que importa? Bisbilhoteira, você estava me contando sobre Fred e Anton. Ainda não compreendo como você manobrou. O arranjo, sim... mas como você os fez concordar? Dividiu o tempo e recebeu-os um de cada vez?)
(Oh, meu Deus, não! Seria grosseiro. E embaraçoso para todos. Isso teria estragado tudo. Foi uma tróia)
(E então?)
(Patrão, pode imaginar como dois homens podem ficar excitados quando estão beijando — apaixonadamente — a mesma mulher? Se ela concorda? Se eles confiam um no outro? O que acontecia, pois eram motorista e guarda-costas juntos)
(Sim, é verdade, mas não posso imaginar... uau! Acabo de lembrar uma coisa que aconteceu há tantos anos que quase esqueci)
(Conte)
(Não, não, continue. Apenas a história se repete... como sempre acontece. Continue)
(Bem, eles ficaram, patrão. Excitaram um ao outro embora não se tocassem em absoluto. Só a ela. «Heterodinismo» foi o termo que aprendi em secretrônica e que se aplica a isso. Não sei como os realizadores de censos sexuais o denominam. Mas andei beijando-os todas as noites quase diariamente, durante semanas, e beijando-os quando me apanhavam de manhã. E os beijos se tornaram mais ardentes e nunca foi do meu feitio desanimar um homem se gosto dele... e eu gostava. Tinha afeição por ambos, eram pessoas excelentes,
(Num instante estávamos parando para uma rodada de carícias — não era mais possível chamar aquilo de beijo de despedida — no estacionamento do porão, antes que eles pegassem o elevador comigo. Eu tinha de refrear, dizendo: «Cuidado, rapazes. Vocês não estão apenas pegando marcas de tinta do meu corpo no uniforme. Estão me desarrumando tanto que terei dificuldade para me endireitar, de maneira a que Joe não repare». Isso fazia com que se acalmassem, mais por minha causa que por seus uniformes. Gostavam de Joe — todos gostam de Joe — e não queriam me dar aborrecimentos em casa. Nunca lhes disse que Joe não era enganado. Seu olho de artista vê muito mais que o da maioria das pessoas.
(Mas resolvemos o caso naquela noite, patrão. Disse-lhes que eu não era chata e que estava tão ansiosa quanto eles... porém que não ia me entregar num porão. Mas que eu havia encontrado um meio. Ambos eram bons rapazes... oh, homens, claro. Anton tem quarenta e Fred tem a minha idade. Tinha. Então eles esperaram e não passaram de beijos e de agarramentos amigáveis. Depois, nós quase chegamos ao ato por duas vezes, mas Joe estava pintando atarefadamente. E eu não o interromperia nem para levar o Presidente para a cama.
(Aí tiramos a sorte grande, quase perdida no último minuto. Jake ia me mandar para casa no carro dele. Disse-me que cancelasse a chamada que eu fizera do meu próprio carro. O seu, quero dizer. Surpreendi Jake com minha teimosia... disse-lhe que não me sentia segura com Charlie, a menos que ele, Jake, viesse junto. Era verdade. Charlie é um mau-caráter, diferente dos nossos quatro.
(Então o velho Jake começou a se vestir para ir comigo... aí eu disse a ele que era bobagem, que Finchley e Shorty... nunca me referi aos dois como Tom e Hugo e o aconselho que não faça...)
(Não sou burro, queridinha. Sempre que me chamarem de «Miss Smith», são «Finchley» e «Shorty»)
(Desculpe, patrãozinho, sei que não é burro. Mas tenho mais experiência feminina que o senhor)
(Sei que tem e me mantém sempre na linha. Mas que história e esta sobre Tom e Hugo?)
(Confusão proposital. Eu sabia quem estava de serviço naquela noite. Então Fred e Anton me apanharam e fiquei tentada a dizer-lhes... Pois estava cada vez mais excitada. Mas não podia. Teria estragado a festa deles, pois os homens gostam de possuir uma mulher casada sem que o marido saiba... embora o velho Jake tivesse mais prazer por essa razão maliciosa. Eu sempre usava esse truque porque me dava mais controle de uma situação difícil de controlar, desde que o homem já a tenha possuído. É um ponto de apoio. Precisa lembrar disso, Joan)
(Lembrarei. Mas vou precisar de um marido para poder usá-lo)
(Não tema, querida, você arranjará um... continuo pensando que devemos casar com Jake. Ele a convencerá. Mas não lhe dê duro, Joan. Jake não é homem a quem se possa pressionar dessa maneira)
(Eunice, não pressionarei Jake um décimo de segundo. Nunca tive respeito por essa espécie de tática feminina e não vou usá-la agora, que sou mulher)
(Nunca a usei, patrão. Usei quase todas as outras tapeações... menos esta. Esta é um recurso de puta, mas não de puta honesta. Por falar nisso: qual sua opinião a respeito de putas?)
(Eu? Ora, a mesma que tenho sobre alguém que exerce uma profissão liberal. Como um dentista, um advogado ou uma enfermeira. Se é honesto, respeito-o. Sé é também competente, meu respeito é limitado pelo seu grau de competência. Por quê?)
(Já utilizou putas? Quero dizer, alugou seus serviços e não «utilizou» no sentido esnobe?)
(Se eu responder com uma simples afirmativa, você continuará contando sua história? Já estamos no centro da cidade, que diabo)
(Sim, senhor. Quero dizer: «Sim, irmã gêmea, virgem cansada». Cheguei em casa, entrei no elevador com eles, fiquei «surpresa» porque Joe não estava em casa, encontrei o relógio apoiado na pia, com os ponteiros na meia-noite, e disse-lhes o que isso significava. Foi tudo. Finis)
(Ei!)
(Que há mais para dizer? O senhor já sabe o que fizemos)
Joan suspirou. (Este foi o mais parcimonioso relato sobre uma suruba, que ouvi na minha longa e pecaminosa vida)
(O quê? Porém não foi uma suruba, patrão! Pare de ser careta e venha para este século. Uma tróia não é uma suruba. Nem ruma sessão de sacanagem, coisa que não precisa ser e não é. Uma tróia é um encontro amigável e amoroso. Ambos são casados e me trataram tão carinhosamente quanto tratam suas mulheres... Gostei da maneira como me trataram e amei a ambos, intensa e repetidamente, muito antes do tempo acabar... quando até ali só tinha havido afeição entre amigos, carregada de sexo. Patrão, uma das coisas que lamento por ter sido assassinada é nunca mais ter podido oferecer-lhes a segunda chance que eles mereciam... e que eu prometi. Hummm... acha que pode cumprir a promessa?)
(Hem? Como você frisou, sou o patrão deles e não vai ser fácil. Além disso... bem, que diabo, estou com medo. Dois homens?)
(Você não pareceu ter medo de Mac e Alec)
(Não é exatamente a mesma coisa)
(Nunca é, patrão... especialmente em se tratando de sexo. Mas quero lhe dizer uma coisa. Uma tróia — se funciona como deve e pode deixar de funcionar, a menos que haja confiança e respeito o tempo todo — se funciona, é a coisa melhor que pode acontecer a uma mulher. Não apenas duas vezes melhor porque ela recebe em dobro o que deseja tão ardentemente. Não é isso. Ela pode obter menos do que lhe pode dar sexualmente um jovem garanhão sozinho. É o aspecto de amizade, carinho e confiança que torna a coisa tão boa. Pelo menos quatro vezes melhor. Talvez oito. Oh, a aritmética não consegue dar a medida. Mas, querida Joan — ouça-me — até que você tenha estado na cama entre dois homens amáveis e amorosos, homens que se amam quase tanto ou talvez mais que a você... com sua cabeça pousada nos braços de ambos e cercada pelo amor deles — até que isto aconteça, você continua tendo uma virgindade a entregar, uma muito importante. Querida, chorei o tempo todo em que estive com eles... continuei chorando quando me despedi deles... fiquei chorando de felicidade depois que eles partiram... então levantei-me e corri a destrancar a porta quando Joe chegou alguns minutos mais tarde... debulhei-me em lágrimas no peito dele e arrastei-o diretamente para a cama, contando-lhe tudo enquanto ele era especialmente doce comigo)
(Ele queria saber de tudo?)
(O senhor não quereria?)
(Sim, mas não há dois homens iguais e alguns maridos têm dor de cabeça por causa dos cornos)
(Alguns. Talvez a maioria, Joan. Sempre tive muito cuidado com os sentimentos de Joe. Às vezes saí dos trilhos e escondi cuidadosamente dele... nunca lhe contei a respeito de Jake)
(Por que não? Era de esperar que Joe aprovasse Jake, visto que aceitava qualquer um. Jake considera Joe muito... Você sabe disso, pois o ouviu dizer)
(Ouvi. Mas Jake é rico e Joe miserável. Talvez Joe tivesse aceitado Jake. Agora acho que aceitaria. Mas eu não tinha certeza e por isso não quis magoá-lo. Porém Anton e Fred... bem, não passavam de guarda-costas. Joe os tratava como amigos e iguais e, secretamente — acho eu — sentia-se um pouco superior a eles, considerando que era um artista e os dois uns meros ignorantes. Eu sabia que eles não perturbariam a cabeça de Joe... e tinha razão. Joe se deliciou. Feliz porque eu me sentia feliz. Não sei explicar, Joan. É uma questão de instinto. Mas o orgulho de um homem é uma coisa frágil e sua única couraça. Os homens são muitíssimo mais vulneráveis que nós. Você tem de manejá-los com muito cuidado, pois do contrário eles caem)
(Eu sei, Eunice. Em alguns casos, caem literalmente. Já lhe contei que minha segunda mulher me pôs psiquicamente impotente por quase um ano?)
(Oh, meu queridinho!)
(Consegui me recuperar. Não com a ajuda de um encolhedor de cabeças. Com o auxílio de uma carinhosa e generosa dama, que não quis acreditar que tivesse sido culpa minha. É nunca mais tive qualquer problema, a não ser quando fiquei fraco demais para qualquer espécie de função física)
(Que bom que o senhor a encontrou. Eu gostaria de agradecer a ela. Joan... não nasci conhecendo isso a respeito dos homens: aprendi à minha custa. Gêmeo, cometi alguns erros graves no colégio. Olhe.., os homens são muito maiores e muito mais fortes que nós. Nunca pensei que pudessem ser tão frágeis. Até o dia em que atingi tão seriamente o orgulho de um rapaz, que ele saiu da escola... e desde então tento não magoar nenhum rapaz ou homem. Fui burra patrão Mas aprendi)
(Eunice, quanto tempo passou desde que lhe disse nela última vez Que a amo?)
(Oh, pelo menos vinte minutos)
(Muito tempo. Eu a amo)
A voz de Finchley interrompeu a meditação.
— Estamos estacionando, Miss Eunice.
— Que bobagem é essa de «Miss Eunice»? Não estamos em público.
— Me pareceu uma fórmula conciliatória.
— Ah, é? Por que molhar só os pés? Por que não entrar todo e me chamar de «Miss Smith»?... E não lhe darei um beijo de despedida.
— Muito bem, Miss.
— Oh, Tom, não me enfeze. Foi um dia perfeito. Não me faça lembrar de que tenho de ser «Miss Smith» outra vez. Você sabe que lhe darei um beijo de despedida se você deixar... pois do contrário a verdadeira Eunice não falaria comigo. Hugo, mande-o ter modos.
— Eu dou um jeito nele, Eunice. Tom, você vai ser bonzinho e chamá-la de «Eunice».
— Desculpe, Eunice.
— Agora me sinto melhor, Tom. Você vai conseguir estacionar esta geringonça perto bastante, de maneira a poderem vir comigo?
— Sem dúvida, Eunice... mas fique calada agora, por favor. Tenho de manobrar de acordo com o computador do trânsito para poder entrar.
— Boa noite, chefe.
Joan pousou a mão no antebraço de O'Neil e saltou rapidamente.
— Boa noite, miss. Há um recado de Mr. Salomon. Envia-lhe cumprimentos e lamenta não voltar a tempo para jantar. Espera chegar pelas nove horas.
— É uma pena. Então não jantarei embaixo. Diga por favor a Cunningham ou Delia que traga bandejas para mim e Winnie na sala de estar. Não preciso de garçom.
— Duas bandejas, sem garçom, miss... perfeito.
— E diga a Dabrowski que preciso dele amanhã como motorista.
— Ele já foi para casa, miss. Mas sabe que está de serviço. Estará preparado.
— Talvez você não tenha entendido o que eu falei, chefe. Quero que lhe diga agora, que preciso que ele dirija amanhã. Mais ou menos às dez... não antes. Assim, logo depois de telefonar para a copa, ligue para Dabrowski e dê-lhe o recado, da minha parte. Insista até encontrá-lo. E me chame, qualquer que seja a hora, quando o carro de Mr. Salomon voltar. Não o consulte, me chame. Antes de Rockford destrancá-lo.
— Pois não, miss. Telefonar para a copa. E logo depois para Dabrowski. Chamá-la imediatamente, assim que o carro de Mr. Salomon chegar, antes mesmo dele sair do carro. Se me permite, miss, é bom tê-la firme e forte de volta ao comando da casa.
— Permito que me diga isso, mas não a Mr. Salomon. Pois a férrea mão dele tem sido inestimável. Como eu e você sabemos.
— Como ambos sabemos. Miss, ele é um cavalheiro educado e eu o respeito. Devo mandar Cunningham descer e apanhar seus embrulhos?
— Não, Finchley e os guarda-costas cuidarão disso... embora eu tenha feito uma farra de compras — Joan enviou ao seu chefe de segurança o melhor sorriso de garotinha-feliz de Eunice. — Eu estava bêbada de excitação, malcriada como uma criança no Natal e querendo comprar a cidade inteira. Finchley, divida esses embrulhos por três e leve-os para cima com seus colegas. Sim, eu sei que não é sua obrigação. Por isso, não me denuncie ao seu sindicato.
Os embrulhos, os três homens e ela quase lotaram o elevador social. Joan esperou que Finchley apertasse o botão do seu andar e o elevador se movimentasse, para então apertar rapidamente a tecla de «Parada», imobilizando-o entre dois andares.
— Ponham os embrulhos no chão.
Virou-se primeiro para Shorty e pegou o rosto dele entre as mãos.
— Obrigada, Hugo. Obrigada a você mais que a todos, pois sua nobre discrição nos manteve encobertos. — Puxou o rosto dele para baixo e beijou-o suavemente e sem pressa, de lábios fechados. — Boa noite.
Virou-se para Fred.
— Obrigada, Fred. Agradeço-lhe... e Eunice também. — Quando os braços dele a envolveram, Joan abriu os lábios. (Está vendo o que eu queria dizer, gêmeo? É uma amostra) (Estou vendo... serei muito cuidadoso para não ficar a sós com ele, a menos que queira mais que uma amostra) — Boa noite, Fred.
— Tom, foi o maior dia da minha vida. Espero que você o tenha gozado pelo menos a metade do que eu gozei. Obrigada.
Joan foi direta ao beijo, sem esperar a resposta de Finchley, de rosto erguido e olhos fechados... e de costas para Shorty, caso este quisesse tirar vantagem disso.
... o que ele fez. (Meu Deus! Eunice, tem certeza de nunca se ter deitado com ele?) (Absoluta, que diabo! Você está querendo?) (Não sei, não sei!)
Sem fôlego, Joan se afastou e virou as costas para todos eles e apertou novamente o botão do seu andar, procurando recompor-se.
O elevador parou e ela disse:
— Ponham tudo no meu quarto, rapazes. Winnie! Espere até ver! A ruivinha estava aguardando na porta do elevador.
— Miss Joan, passou o dia inteiro fora!
— E por que não? Ponham onde quiserem, no chão, na cama. Winnie, você já jantou? É só isso, obrigada. Boa noite e obrigada a todos.
— Boa noite, Miss Smith.
Assim que a porta se fechou, Joan abraçou a empregada, erguendo-a do chão.
— Você não respondeu. Comeu com o resto do pessoal? Ou esperou?
— Não pude comer. Oh, Joan, fiquei tão preocupada! Você saiu e não disse a ninguém aonde ia. Ruinzinha... me assustar assim.
— Bolas. Eu estava cercada de guardas. Você sabia que eu estava garantida.
— Mas guardas não são enfermeiros. Fui designada pelo Dr. Garcia para vigiá-la.
— E bolas para o querido doutorzinho também. Simpática, não sou mais paciente nem tutelada. Sou uma mulher livre e saudável como uma égua e você não pode correr atrás de mim a cada instante como uma galinha choca. Está bem, a ceia está vindo e será posta na sala de estar, onde poderemos comer quando tivermos vontade.
— Eu sei. Estava nos fundos quando chegou a ordem... então subi depressa pelo elevador de serviço e pensei ter chegado tarde quando o ponteiro do outro parou. Depois voltou a se mover.
— Aquele elevador está meio escangalhado. Enguiçou. Mas continuamos apertando os botões até que o bicho andou. Há muitas geringonças nesta casa. (Eunice, pensei que um elevador enguiçado fosse tão seguro quanto um túmulo. Não há privacidade em lugar nenhum?) (Temo que não, patrãozinho. Mas nunca me preocupei muito com essas coisas. Só me preocupei com não magoar as pessoas) (De outra maneira: nunca foi apanhada de pernas para cima, sapeca?) (Só uma vez, quando foi desagradável... e não passou disso. Não é motivo de preocupação)
— Devo avisar o mecânico a respeito do elevador?
— Não. Finchley cuidará disso. Simpática, a manutenção não faz parte das suas obrigações. Você está aqui para se divertir comigo e me dar um ombro para chorar e para chorar no meu... mantendo o querido doutor afastado de aborrecimentos. — Joan começou a se despir. — Tire as roupas. Vamos começar a experimentar coisas. Andei fazendo compras. Puxa vida, como comprei! Dei um tiro na asa da economia, se dei. Tire esses farrapos... já tomou banho, sua porquinha? Ou vai tomar banho comigo? Venha cá e me deixe cheirá-la.
— Tomei banho quando me levantei.
— Você está cheirando bem, mas temo que eu esteja fedendo a azedo. Foi um dia cheio. Está bem, vamos beber alguma coisa e deixar para mais tarde cheirar bem. Antes de dar ao querido Jake outra lição de relaxamento. Mas agora vamos experimentar as roupas. Primeiro nos dê um beijo. (Eunice, quando a gente entrar na banheira, aquele troço vai ficar no lugar?) (Fica no lugar seja onde for... do contrário eu teria deixado uma dúzia de órfãos. Você pode usar o chuveirinho... e gostará mais)
— Joan, já que você ia fazer compras, por que não me levou? Egoísta.
— Queixas, queixas, queixas. Achei que você precisava dormir, querida. Ou Bob não apareceu?
Winifred corou até os seios, mas respondeu alegre:
— Oh, apareceu, sim! Mas eu teria me levantado assim que você chamasse. Adoro fazer compras.
— A que horas acordou? O rubor voltou.
— Quase às treze. Muito depois do meio-dia.
— A defesa se dá por satisfeita. Garotinha simpática, não levei você porque também lhe comprei coisas... e se a tivesse levado, você teria reclamado cada vez que eu gastasse um dólar com você. E também abriria um precedente. Não sou mais prisioneira. Sou tão livre de me locomover quanto você. Se não a levar comigo, você não pode perguntar por que e eu não preciso dizer-lhe onde ou quando.
A moça parecia esmagada.
— Sim, Miss Joan, lembrarei disso. Então Joan Eunice abraçou-a novamente.
— Ora, ora, queridinha, não faça beicinho. Levarei você a maioria das vezes. E se não a levar, quase sempre lhe direi por quê. Mas posso lhe pregar uma mentira em vez disso. Posso ter um encontro com um tarado sexual e não querer chocar minha Simpática.
— Você está me gozando.
— Não é gozo. É uma coisa meio séria. Winnie, se você quer ver seu Bob, só eu nesta casa se importa e assim mesmo meu interesse é amigável. Mas e eu? Há quarenta e tantas pessoas de olhos pregados em mim. Se levo um homem para a cama, a criadagem inteira saberá e há pelo menos cinqüenta por cento de probabilidade de que um membro do meu fidelíssimo pessoal venda a notícia a um repórter e a coisa estará na manhã seguinte no programa de fofocas... de tal maneira que não poderei iniciar um processo, sem tornar a coisa pior. Ou não?
— Hum... é uma idéia terrível. Mas acho que pode acontecer.
— Você sabe que pode. Cada coluna ou programa de fofocas é uma prova disso. Amor, se uma pessoa é tão rica ou tão importante, o público só lhe permite usar as Roupas Novas do Imperador... e o que ele mais gosta são as más notícias, pois as boas não interessam. Antigamente, quando eu estava na direção, as Empresas Smith gastavam milhares de dólares por trimestre para me dar uma «imagem pública» totalmente falsa — que frase venenosa! — por motivos comerciais. Mas está acabado e agora sou um animal de caça. E um animal de caça muito mais interessante, porque agora sou milagrosamente jovem, mulher e bonita. Não, «bela», sejamos justos com Eunice Branca. Você viu o que fizeram ontem. Olhou a caixa de dizer besteiras. Que fariam se pudessem provar algo contra mim?
— Hum, alguma coisa maldosa, acho.
— Sei, não acho. Passei anos e anos tentando evitar a notoriedade. Os antigos romanos sabiam o que estavam fazendo quando atiravam vítimas vivas para os leões. A maioria das pessoas é gente decente, mas coletivamente ama o sangue. Estou fazendo algo para ficar afastado da notoriedade mas, no ínterim, estou vulnerável. Winnie, que faria você se eu a acordasse uma noite e lhe pedisse para me deixar meter um homem na sua cama... de maneira a que você pudesse ser apanhada e não eu? Ter certeza de ser apanhada, quero dizer, com uma porção de gente olhando. Tão em flagrante que Bob iria saber também.
A mocinha respirou fundo.
— Eu concordaria! Bob iria compreender.
— Ah, mas se eu lhe pedisse para não explicar ao Bob? Apenas assumir a culpa por mim?
— Ainda assim eu concordaria. Joan beijou-a.
— Sei que você faria. Mas não vai ser preciso, querida Simpática. Se — não, quando — eu escorregar, não atirarei o peso sobre minha cumpincha. Mas posso pedir-lhe um dia para mentir em meu benefício — falsear a verdade — para me cobrir. Você faria?
— Claro que faria.
— Eu sabia e nem precisava perguntar. Talvez aconteça breve, sinto-me cada vez mais feminina. Agora vamos brincar de Natal: acho que essa caixa redonda enfeitada é para Winnie.
Logo depois. Winifred estava desfilando diante de um espelho, com um ar espantado no rosto.
— Oh, Joan, você não devia!
— Está aí por que deixei você em casa. É um uniforme de empregada, querida... uma dedução permitida na rubrica Cozinheiros, Domésticos e Trabalhadores em Hotelaria contratados.
— Uniforme de empregada, hem! É um Stagnaro original, vindo diretamente de Roma. Li a etiqueta.
— Embora possa ser, direi ao meu contador que o inclua nas deduções só para chatear o Imposto de Renda. Tire-o, querida, e vamos ver o que achei mais. Ei, este é para mim. — Joan vestiu-se rapidamente. — Que é que você acha? Claro, com isto tenho de pintar o corpo.
— Se eu fosse você, não pintaria. Você está uma graça e esse tom esbranquiçado vai bem com sua pele. É um padrão encantador, muito embora um tanto malicioso. Joan, como sabe comprar tão bem roupas femininas? Quero dizer, hum...
— Você quer dizer: «Como um velho que não escolheu roupas para mulheres durante pelo menos meio século, pode se sair tão bem?» Gênio, querida, puro gênio. Você precisa ouvir minhas imitações de pássaros. (Ei! Eu não levo nada?) (Não, a não ser que você queira ficar a descoberto, Mata Hari. Os homens de avental branco estão logo atrás da porta) (Bolas, gêmeo. Talvez um dia possamos contar a Winnie) (Espero que sim, querida... não só amo você como tenho orgulho) (Beijo!)
Abriram as duas caixas que Joan deixara para o fim. Quando Winifred viu o conjunto de esmeralda sintética — tapa-sexo e duas taças em forma de meia-lua para seios — engasgou-se.
— Oh, meu Deeus! Vista-o, Joan, enquanto vou buscar seus sapatos de saltos bem altos!
— Traga seus sapatos de saltos bem altos, querida... aquelas sandálias de pedras verdes de imitação que tem usado ultimamente. Eles não tinham sandálias do seu número, que combinassem com este conjunto. Encomendei-as.
— Isto é para mim? Oh, não!
— Então jogue no incinerador. Tapa-sexos não podem ser trocados. Simpática, esse material foi desenhado para um ruiva e as taças são muito pequenas para mim. Vista-as. Este envelope contém uma saia longa transparente, de seda, com um pingo de verde combinando. Com a saia, fica tudo apropriado para ir a jantares formais. Você pode usar uma esmeralda na fronte. Nenhuma outra jóia, nem pintura.
— Mas, Joan, nunca vou a essa espécie de jantares... nunca fui convidada.
— Talvez seja a ocasião de eu organizar um. O salão de banquetes não é usado há dez anos. Você ficará linda, me ajudando a receber, na outra ponta da grande mesa. Mas, querida, além de uma recepção ultraformal, ele se destina — sem a saia — a ocasiões mais informais. Gostaria de vesti-lo para Bob... e ele gostaria de despi-lo?
Winifred ficou sem fôlego.
— Mal posso esperar.
— Vão se encontrar hoje, amor?
— Não, foi por isso que eu disse «mal posso esperar». Porque não posso resistir: quero que Bob me veja vestida com ele... quero que ele me dispa. Joan, não devo aceitar, é muito caro. Mas quero e vou aceitar. Meu Deus, você me faz sentir-me como uma mulher mantida.
— Você é, querida. Eu a mantenho. E estou gostando muito.
A enfermeirinha parou de sorrir. Então encarou a patroa, olhan-do-a firmemente nos olhos.
— Joan, talvez eu não deva dizer isto, talvez estrague tudo. Mas acho que devo. Hum... — Fez uma pausa e inspirou profundamente.
— por duas ou três vezes tive a impressão de que você esteve a ponto
de me dar uma cantada.
(Olhe a brecha, gêmeo! É muito tarde para ajudá-lo)
— Foram mais de três vezes, Winifred.
— Bem... é verdade. Mas por que parou? Joan deu um suspiro.
— Porque eu estava com medo.
— De mim?
— Não, de mim. Querida Simpática: fiz coisas tremendas na vida. Tais como esperar numa balsa de desembarque, sacudindo para cá e para lá, enjoado e fedendo de medo... depois ser despejado em um metro d'água, com metralhadoras comendo-nos e matando os colegas em torno de mim. Mas esta é a coisa mais difícil que estou tentando. Ser mulher. Tenho de pensar nisso a cada instante... fazer conscientemente coisas que vocês fazem automaticamente. Meu Deus, hoje por pouco não entrei num lavatório masculino, em vez de num toalete feminino. E agora você. Querida, você pode imaginar que tentação é para mim? Pode compreender que o velho Johann está olhando sua elegante figura através dos olhos de Joan? Winnie, não houve um instante em que eu não quisesse tocar em você. Sentá-la no meu colo. Beijá-la. Fazer amor com você. Se eu fosse homem... teria feito o impossível para chutar Bob. Ou, pelo menos, tomar parte.
— Joan.
— Sim, querida?
— Você pode tomar parte.
— Joan viu que estava tremendo.
— Querida! Por favor! Podemos esperar? Você tem Bob... e eu ainda tenho de aprender a ser mulher.
Começou a chorar.
E sentiu os braços de Winifred em torno dela.
— Pare, querida, por favor, pare. Eu não queria agoniá-la. Vou lhe ajudar, claro que vou. Podemos esperar. Anos, se você precisar de tanto. Até se acalmar e estar segura de si mesma... e me quiser. Mas Winnie não está tentando seduzir sua Joanie. Oh, pode ser gostoso, claro que pode. Mas você tem razão, eu tenho Bob e meus nervos não estão tensos como devem estar os seus. Um dia você se apaixonará por um homem e esquecerá de mim completamente. Quero dizer, esquecerá de precisar me tocar... o que é perfeito, enquanto eu puder amá-la e ser sua amiga.
Joan limpou uma lágrima e fungou.
— Obrigada, Winnie. Banquei a boba outra vez.
— Nada disso. Fui eu quem criou um caso, lembrando. Quer um tranqüilizante?
— Não. Agora estou bem.
— Acha melhor eu não tocá-la?
— Não. Quero que me beije, Winnie. Com força. O melhor que você puder. Depois vista o tapa-sexo verde e vamos ver como fica. Então iremos comer. Depois apanharemos um xampu para me fazer ficar cheirando melhor para nossas orações com Jake... preciso delas hoje. São o tranqüilizante adequado. Vista a coisa, querida. Mas antes me dê um beijo.
Winnie a beijou... começou a se afastar, depois cresceu como um incêndio na pradaria e deu-lhe «o melhor que pôde».
(Pare, gêmeo, antes que a casa pegue fogo. Este é o mais caprichoso sapateado desde que Bojangles morreu) (O que é que você sabe de Bojangles? Não pode saber nada dele) (Já ouviu falar em retrospectiva de filmes clássicos, patrão? Agora faça com que Bob case com ela. Você lhe deve isso, pelos obstáculos que ela teve de pular) (Como posso, se não sei quem é ele?) (Você descobrirá. Merda. O'Neil sabe. Depois de o senhor conhecer a identidade dele, procure saber o que ele quer. Pode ser um degenerado. Homens! Patrão, gosto do senhor mas, às vezes, não sei explicar por quê)
Depois de Winnie ter posto o conjunto de esmeralda, ela apanhou as bandejas na sala de estar superior de Joan, enquanto esta abria o último embrulho. Continha seu presente para Jake.
— Winnie, diga-me o que acha disto.
Era um colar caro e simples: uma corrente de ouro maciço, com elos triplos, prendendo uma grande cruz egípcia de ouro, uma crux ansata. Winifred segurou-a.
— É lindo — disse ela tranqüilamente. — Mas não é um colar feminino, sabe? Ou não sabe?
— É um colar masculino. Um presente para Jake. Winifred franziu levemente as sobrancelhas.
— Joan, você quer que eu lhe ajude a aprender a se portar como mulher?
— Você sabe que sim.
— Sei. Quando vejo que você vai cometer um engano, preciso avisá-la.
— Você acha que Jake não vai gostar?
— Não sei. Ele talvez não saiba o que isto quer dizer. E você também não. Esta cruz com uma laçada é chamada de «ankh»... e trata-se do que meu avô teria chamado de «símbolo pagão». Significa... bem, significa a maioria das coisas que nossas preces de meditação querem dizer: vida, bondade, amor, etc. Mas significa especialmente sexo. É um velho símbolo egípcio das forças geradoras, macho c fêmea. Não é por acaso que a laçada se pareça um tanto com uma vulva e o resto dela pode ser interpretado como um símbolo masculino. A maneira pela qual ela é agora usada — entre gente da minha idade, gente da idade que você começa a ter — é... bem, uma mulher pode dá-la ao marido, ou este uma menor à esposa. Também podem não ser casados — mas sempre significa amor sexual — francamente e sem bobagens. Se não é isso o que você pretende, Joan, se apenas quer lhe dar um lindo colar, leve-o de volta e troque-o por outro que não seja tão específico no seu simbolismo. Todo colar significa amor... mas talvez você queira um que uma filha possa dar ao pai.
Joan sacudiu a cabeça.
— Não, Winnie. Eu sabia o que a ankh significava desde um curso de religião comparada, oh, há três quartos de século. Acho que Jake também sabe. Tem uma sólida educação clássica. Eu não tinha certeza de que vocês, jovens, soubessem do antigo significado... vejo que cometi um engano. Winnie, este presente não é por acaso. Pedi várias vezes a Jake para casar comigo. Ele não quis. Pela diferença de idade.
— Bem... é fácil ver porque ele se sente assim.
— É ridículo. Na verdade, sou um quarto de século mais velho que ele... o que atualmente não se nota e estou em boas condições de saúde para casar. Muito embora o querido doutor pense que eu possa cair morta.
— Mas o doutor Garcia na verdade não pensa isso. E eu não acho que você seja velha demais, quero dizer, ele... oh, meu Deus!
— Sim, sim, eu sei. Ele está sendo «nobre», que inferno! Mas Jake não precisa casar comigo, Winnie. Aceito qualquer migalha. Este presente é para deixar isso claro.
Winifred ficou séria e subitamente beijou a ankh, devolvendo-a.
— Nós ambas, Joan... aceitamos qualquer migalha. Bem, desejo-lhe sorte. De todo o coração.
— Minha boa Winnie. Vamos engolir algumas calorias. Está ficando tarde e Jake deve chegar — espero — pelas vinte e uma horas. Quero estar limpa como uma gatinha e o mais bonita e cheirosa possível quando aquele querido teimoso chegar. Você me ajuda?
— Com prazer. E olhe, Joan, vamos submergir você em «Brisa do Harém», tanto a colônia como o perfume... e o talco. E eu não vou usar nenhum perfume. Vou tirar o que botei.
— Não, vamos renovar sua sedução também. Talvez façamos um heteródino.
— «Heteródino»?
— É um termo que costumava ser muito usado em rádio. No nosso caso, significa que, se uma moça não é bastante, duas podem resolver a coisa. Na noite passada, Jake foi educado não olhando... exceto, que ele estava reparando minha Simpática com ambos os olhos o tempo todo em que fingia não estar. Não estou procurando metê-la numa tróia... mas não tenho nenhum escrúpulo em usá-la como isca.
Saíram da banheira e estavam dando os retoques finais quando o telefone interno tocou.
— Miss Smith. O carro de Mr. Salomon acaba de entrar.
— Obrigada, O'Neil.
Minutos mais tarde, Joan telefonou para a Suíte Verde.
— Jake, meu querido? Está falando seu guru de serviço. Se desejar participar de uma reunião de orações, o guru e seu cheia estão à sua disposição.
— Boas novas. Estou cansado... e a noite passada foi a em que melhor dormi na minha vida, guru.
— Que bom! já jantou?
— No Gib, há algumas horas. Estou pronto para a cama. Se me derem, oh, vinte minutos para um banho.
— Devemos estar aí em exatamente vinte minutos? Não quero dar de cara com Hubert.
— Mandei-o dormir. Não haverá ninguém, a não ser vocês, franguinhas.
— Vinte minutos, querido. Fim.
Novamente, duas moças deslizaram de pés descalços pelo corredor. Joan estava usando, sob o roupão, o colar com a ankh. A porta se abriu e Jake caminhou ao encontro delas. Estava usando um roupão de banho e tinha um livro na mão, com um dedo marcando a página.
— Alô, minhas queridas. Vocês estão encantadoras. Joan, tomei a liberdade de entrar na sua biblioteca do térreo e apanhar este livro.
— Não é uma liberdade e você sabe disso. Que livro é, Jake? Ele o mostrou a Joan.
— A Yoga Vishnudevananda. Pensei encontrar nele as posições mais simples que eu pudesse experimentar. Mas temo que eu precise fazer meditação.
Joan parecia confusa.
— Isto estava lá embaixo? — Deu uma olhada na primeira página e viu que estava escrito: «Ex Libris — J S B Smith». — Não me lembrava de que o possuía.
— Você é um rato de biblioteca, querida. Esta casa deve ter dez mil livros.
— Mais, acho eu. Tinha mais ou menos isso ia última vez em que os cataloguei. Bem, já que você o trouxe, Winnie e eu vamos dar-lhe uma olhada. Talvez achemos exercícios que ainda não fizemos. — Devolveu-lhe o livro, que ele pôs de lado. — Pronto para a auto-
hipnose?
— Pronto para as orações e desculpe se pareci desinteressado na
noite passada.
— Não posso ver que diferença faz um nome, Jake. Mas primeiro... — Joan abriu o roupão e tirou o colar do pescoço. — Um presente para você, Jake. Incline a cabeça.
Ele inclinou. Ela colocou a corrente no pescoço dele com o beijo ritual. Jake pegou a ankh e olhou.
— Obrigado, Eunice. É um lindo presente. Devo usá-la já?
— Como você quiser. Ou use-a na imaginação... sei que você não é muito de usar jóias. Pronta, Winnie?
Joan Eunice deixou cair o roupão e ficou em Lótus. Winnie acompanhou-a. Jake livrou-se do roupão de banho, conservou o colar e juntou-se a elas.
— Jake, quer nos dirigir hoje? Não é preciso dizer «prender» ou «respirar». Nós o acompanharemos. Como ontem à noite, apenas uma oração para cada das quatro partes. Conserve o tempo lento.
— Vou tentar. Om Mani Padme Hum! (Om Mani Padme Hum)
Jake Salomon pareceu cair imediatamente no sono assim que elas o puseram na cama. As moças saíram silenciosamente do quarto na penumbra. Joan parou pouco depois, no vestíbulo.
— Winnie, quer fazer uma coisa para mim?
— O que quiser, querida.
— A que horas o pessoal começa a acordar de manhã?
— Não sei a que horas o cozinheiro se levanta. Talvez às seis. A maioria às sete ou em volta disso. O café do pessoal é às sete e meia.
— Delia não tem importância. Ela nunca sobe. Quero saber do
pessoal deste andar.
— Bem, a limpeza começa às nove. Mas ninguém limpa perto do seu quarto antes de você pedir o café. Tem sido incomodada?
— Não. E não me incomodo de ser. Acho que Hubert é o único que me preocupa. Vou voltar e dormir com Jake.
— Oh!
— Não imediatamente, pois quero ter a certeza de que ele já adormeceu. Se dormir a noite toda, não vou acordá-lo. O pobrezinho precisa descansar. Mas quero dormir com ele! Porém não quero Hubert me caindo em cima. Pode dar um jeito de afastá-lo?
— Oh, percebo. Tenho bastante certeza de que Hubert nunca vai ao quarto de Mr. Salomon antes deste pedir o café e Hubert levar. Certas manhãs fui tomar café embaixo e vi Hubert ficar sentado tomando o dele e vendo as notícias durante bastante tempo, esperando o telefonema de Mr. Salomon.
— Que alívio! Portanto não é crível que só você saiba disso. Não que eu me incomode, mas detestaria ver Jake arrastado para uma onda de fofocas. Está bem, quer fazer três coisas para mim? Ler ou dormir um pouco na minha cama, para amarfanhá-la. Fique a noite toda, se quiser, mas amarrote também a sua. Quer pôr seu despertador para as oito e se a essa hora eu não estiver na minha cama, pode ligar para a Suíte Verde? Tenho a certeza de que Jake preferirá saber que você está a par, que nos deixar pegar por alguém. E mais uma coisa. Quer me preparar pijamas e chinelos? Então, se alguma coisa falhar, farei cara de pau... Estarei vestida e os bisbilhoteiros que se danem. Enquanto você vai buscá-los, vou tirar o roupão aqui e dizer mais alguns Money Hums. Estou decidida mas um tanto nervosa. Acho que com medo de Jake me espinafrar. (Acho que com medo de Jake não espinafrar) (Você não nos quer, Eunice?) (Quero! Pare de lero-lero e vá em frente)
— Imediatamente, Joan. Oh, também estou tão excitada! Hum, acho que vou dormir na sua cama. Se você não se importar.
— Sabe que não me importo. Mas posso voltar e acordá-la, o que é muito provável.
— À vontade. Se precisar de um ombro para se consolar, quero estar lá. Ou apenas para se aconchegar.
— Ou posso ter algo para lhe contar. Você não me tapeia nem um pouquinho, Simpática. Não importa, eu gostarei de a encontrar lá quando voltar, qualquer que seja o motivo.
Instantes depois, Joan deslizou silenciosamente para dentro do quarto da Suíte Verde, despiu as roupas sem acender a luz e achou seu caminho para a cama graças ao ressonar de Jake. Entrou cautelosamente na cama, sentiu o calor irradiante do corpo dele junto ao seu, suspirou feliz e caiu no sono.
Algum tempo depois, Joan sentiu na escuridão que pegavam sua mão e imediatamente acordou. (Que foi?) (Toque de alvorada, gêmeo! É agora) (Estou com medo!) (Tomarei conta, querido... o corpo recorda. Diga um Money Hum)
Sem uma palavra, Jake a possuiu com firmeza.
(Meu Deus, Eunice! Por que não me disse?) (Dizer o quê) (Que para uma mulher é muito melhor!) (É?) (Dez, cem vezes... não posso calcular, estou desmaiando) (Como eu podia supor que era tão bom assim? Beije-o antes de desmaiar)
A ocupação do Palácio do Governo de Oklahoma pelo Governo Agrário de Emergência continuava. O Laboratório Tripulado Marciano de Campo comunicou o encontro de objetos (idade l,4xlO6 ± 14% anos) indicando uma inteligência extinta equivalente à humana. Um segundo comunicado, firmado pelos membros chineses da expedição, negou que as provas fossem objetos, tratando-se apenas de subprodutos automáticos e instintivos (análogos ao coral ou favos de mel) de uma vida subinteligente, intimamente relacionada com a vida anaeróbica atualmente presente em Marte. A Sociedade Internacional da Terra Plana, na sua convenção anual em Surrey, Inglaterra, aprovou sua habitual resolução,
solicitando às Nações Unidas que apliquem sanções a todo governo nacional que esbanje o dinheiro dos contribuintes em supostas «viagens espaciais».
A média de suicídios aumentou pelo décimo nono ano consecutivo, o mesmo se dando com a média de mortes por acidentes e por violência. A estimativa da população mundial ultrapassou 300.000 pessoas por dia e continuou a subir, com seis crianças nascendo a cada segundo contra 2,5 pessoas mortas no mesmo espaço de tempo, com um lucro líquido de sete pessoas a cada dois segundos.
Em Izard County, Arkansas, uma galinha pôs um ovo com o sinal-da-cruz impresso. Um porta-voz do Departamento do Tesouro, falando oficiosamente, anunciou que o Governo não iria apressar a lei governamental de abolição total da moeda corrente em favor dos cartões de crédito universais e contabilidade computadorizada. «Devemos enfrentar o fato», disse ele, no clube dos jornalistas de Washington, «de que as transações do mercado-negro, os subornos e outras negociações quase legais são tão partes da nossa economia quanto os juros na Dívida Pública e que criar condições de forma a tornar essas transações voluntárias impraticáveis levaria a uma depressão que o país não poderia agüentar. Para falar poeticamente, cavalheiros, a pequena quantidade de moeda corrente ainda em circulação — apenas uns poucos bilhões — é o nosso lubrificante para a máquina do progresso. Posso lhes garantir que o Presidente reconhece essa verdade.»
A Primeira Igreja Satanista, S.A. (quarenta e quatro ramificações na Califórnia e cinco em outros Estados) apresentou um recurso ao Tribunal Federal para se livrar de «impostos discriminatórios». O Primeiro Discípulo declarou: «Se as outras igrejas não são marcadas, taxadas e investigadas no que concerne aos seus sagrados objetivos, um Grande Discípulo deve gozar da mesma proteção: é essa a ordem perfeita!» Reno tornou a revogar sua lei de permissão da prostituição. O Gerente da cidade declarou que os emolumentos não eram suficientes para pagar aos inspetores... e além disso, não havia afinal de contas tanta prostituição comercial assim, desde que fecharam o Centro Federal de Ensino da Juventude.
O Agrupamento de Defesa dos Seres Humanos aumentou seu esforço de dobrar, amarrotar e rasgar os cartões dos computadores e jogá-los na caixa de correio mais próxima... Apesar das prisões efetuadas por inspetores postais, não houve quase colaboração da polícia local e nenhum júri pronunciou um veredicto de culpa, por mais evidente que fosse o caso. O inspetor-chefe dos Correios declarou que os cartões estragados eram quase sempre notas e que, até agora, não havia denúncia de cheques ou ordens de pagamento rasgados... e que o governo não se interessava muito pelo caso, mas que estava ficando bastante enjoado e cansado pelo fato das caixas de correio do país estarem sendo usadas como latas de lixo.
O presidente do Agrupamento de Defesa dos Seres Humanos respondeu que as caixas de correio do país vinham sendo há anos latas de lixo e tanto o diretor-geral dos Correios como o Congresso sabiam por quê. O computador de trânsito para o centro de Houston entrou em colapso espasmódico durante o rush do entardecer, deixando milhares de pessoas encalhadas noite adentro nas ruas. Calculou-se em mais de sete mil as mortes, incluindo paradas cardíacas, envenenamento pelo smog e assassinatos para roubar, mas os suicídios não foram levados em conta. A Associação das Companhias Comerciais de Seguros de Automóveis dos Estados do Sul impugnou todas as cobranças baseadas nesse incidente, considerando que as mortes ou ferimentos ocorridos em veículos parados não estavam incluídos (em grifo).
As Colônias Lunares ofereceram mais duas enormes Grutas Alimentares tipo «aquário-equilibrado», as George Washington Carver e Gregor Mendel, e a Comissão tornou a anunciar um aumento da quota de emigração financiada, mas novamente com a não relaxação dos padrões (a proibição contra a Comissão, expedida por Mr. Justice Handy, do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, foi silenciosamente ignorada nos terrenos não jurisdicionados). As ações ao portador da Las-Vegas-no-Céu continuaram a subir, contrariando a tendência baixista do mercado. A maioria dos especialistas em investimentos continuou altista, baseando suas expectativas nas passadas correlações entre o tempo, o mercado e o penteado das mulheres. A Subcomissão Interestelar Consultiva da Comissão Lunar foi sediada, como primeira tentativa, em Tau Ceti em vez de Alfa do Centauro. Jodrell Bank perdeu o contato com a Sonda Tripulada enviada a Plutão. As mortes (oficiais) na Ucrânia caíram abaixo das mortes (oficiais) em Mato Grosso... e em ambos os lugares os mortos não reclamaram.
— ... ao passo que «id» não é um conceito científico. É apenas a primeira sílaba de «idiota»!... como meu estimado colega deve saber melhor.
— ... ordem no tribunal.
— ... permitam que cite as incontestáveis conclusões daquele grande cientista...
— entra lixo, sai lixo! Qualquer assistente recém-formado pode fazer lindos gráficos e tirar conclusões quase brilhantes de dados irrelevantes.
— Posso pedir ao meu estimado colega que repita o insulto fora da sala de audiência?
— ... o meirinho é obrigado a manter a ordem durante...
(— Jake, com alguma sorte, você poderá fazer isto ficar tão enrolado que ninguém quererá brincar de ir embora)
— ... com estas luzes brilhantes. Não me ofusque com elas. Do contrário o pau vai comer.
— ... pergunto ao Tribunal se o Conselho tem uma finalidade séria ao infligir ao Tribunal e aos presentes a visão ofensiva desta carcaça horrível?
(— Não posso me conter, Jake. Pareço realmente tão mal assim? Continuo pensando que devemos forçar a situação.
— Silêncio, querida, Mac sabe o que está fazendo e eu também.)
— ... sugiro respeitosamente que a própria testemunha deve ser decisivamente identificada antes que seu depoimento sirva para identificar outra pessoa.
— ... Estado e Condado. Este conjunto de impressões que estou projetando na tela, os senhores acabaram de me ver tirá-las do cadáver marcado como prova MM. Agora quero compará-las com as fornecidas pelos Arquivos do Departamento de Veteranos, previamente rotuladas como prova JJ. Para isso vou usar superposição estérea...
— ... tirou pessoalmente essas fotos que o senhor está agora segurando e que foram experimentalmente rotuladas como prova SS, numeradas de um a cento e vinte e sete?
— ... não ficou esclarecida. Esta deveria ser uma audiência pública. Mas o Tribunal vai precisar lavrar uma sentença por desrespeito, como é necessário e, Evelyn, você pode começar por colocar essa espectadora, essa, a mulher de óculos e de peruca ridícula, no gelo por dez dias. Peça-lhe o nome, entregue-o ao escrivão e leve-a embora. Mais algum mentecapto que não pode ficar calado? O senhor aí atrás, comendo uma barra de açúcar-cândi. Meta-a no bolso. Isto aqui não é lanchonete.
— O advogado da parte contestante está sugerindo que este não é José Branca?
— Meu Deus, não. Ajudarei a identificá-lo, se o senhor quiser., Insisto apenas no sentido do senhor apresentar fundamentos adequados.
(— jake, Joe está parecendo um espectro. Preciso vê-lo assim que esta loucura acabar.
— Acha que é sensato?
— Não sei, Jake. Só sei que preciso.)
— Olhe em volta, Mr. Branca. Diga ao Tribunal... diga ao juiz, aliás, se sua mulher está ou não nesta sala.
— Aqui não.
— Mr. Branca, olhe para onde estou apontando.
— Aqui não, já lhe disse!
— Meritíssimo, estamos lidando com uma testemunha hesitante. Torna-se necessário orientá-la.
— Muito bem. Mas lembro ao advogado de que ele não pode pôr em dúvida sua testemunha.
— Obrigado, Meritíssimo. Mr. Branca, estou apontando para esta moça. Olhe-a atentamente. Estou com a mão no ombro dela...
— Tire as mãos de cima de mim! Juiz, se ele tornar a pôr a mão em mim, eu a mordo!
— Ordem. Doutor, não é necessário tocar na parte contestada e o senhor não fará isso novamente. Sua testemunha sabe a que moça o senhor se refere.
— Muito bem, Meritíssimo... e se eu ofendi esta jovem, peço desculpas. Mr. Branca, digo-lhe que esta é sua esposa, Eunice Branca, Evans de solteira.
— Eunice, não. Morreu. Juiz, tenho de agüentar essa conversa? Este rábula mentiroso conhece a peça de cor, pois conversou comigo durante duas ou três horas. Claro, é o corpo de Eunice. Mas Eunice está morta. Todos sabem o que aconteceu.
— Desculpe, Meritíssimo. Mr. Branca, por favor, limite-se a responder minhas perguntas. O senhor disse que sua esposa está morta... mas alguma vez viu sua esposa Eunice Branca morta?
— Hem? Não. Aquela operação...
— Apenas responda à pergunta. O senhor em tempo algum a viu morta. Digo-lhe que o senhor recebeu um milhão de dólares para testemunhar que esta mulher não é sua esposa Eunice Branca.
(— Jake, eles podem fazer isso com Joe? Olhe para ele.
— Lamento, querida. Não o invoquei como testemunha.)
— Juiz, este bastardo nojento está mentindo! Foram lá no clube, sabe? Sangue Raro. Tenho esse sangue gozado, sabe? Eunice também. Salva-vidas. Claro, ofereceram dinheiro, mil, milhão, não sei, não me interessa. Acha que eu sou interesseiro talvez? Por Eunice? Disse a eles que não queria. Eu...
— Meritíssimo, peço sua ajuda para trazer a testemunha à ordem.
— Acho que ele está dando uma resposta adequada à sua pergunta. Continue, Mr. Branca. Ofereceram-lhe dinheiro. Para quê?
— Oh. Eunice tinha um patrão, sabe? Mr. Smith. Johann Smith. Tão rico que nadava em ouro. Mas o velho ranhento estava morrendo, sabe? Só os charlatas não deixavam ele morrer. Lamentável. Mas ele' tinha aquele mesmo sangue gozado, sabe? Como eu, como Eunice. Eu disse a eles, claro, que podiam ficar com o corpo de Eunice. Ela não precisava mais dele... mas não por dinheiro. Então fizemos uma barganha... eu e aquele rábula ali, Mr. Jake Salomon. Ele sabia como eu me sentia e ajudou. «Fundação Eunice Evans Branca para Sangue Raro Grátis»... tudo pago ao Clube do Sangue Raro. Pergunte a Mr. Salomon, ele sabe. Eu... não... fiquei... com... um... raio... de tostão de merda!
(— Jake... ele nem quis me olhar.
— Coloque o véu, querida, e comece a chorar.)
— O advogado das contestantes tem mais alguma pergunta a fazer a esta testemunha?
— Não, Meritíssimo. O colega pode inquirir.
— Nenhuma pergunta a fazer, Meritíssimo.
— Os senhores desejam inquirir a testemunha mais tarde? Este não é um julgamento e o Tribunal pretende permitir a mais ampla inquirição, mesmo que a gravação fique eivada de coisas irrelevantes. Doutor?
— As contestantes não precisarão futuramente da testemunha.
— Nenhuma pergunta, agora ou depois, Meritíssimo.
— Muito bem. O Tribunal fica adiado para as dez de amanhã de manhã. O meirinho fica encarregado de fornecer à testemunha transporte para casa ou para onde ele desejar e evitar-lhe aborrecimentos. Cá para nós, Evelyn, ele já foi bastante incomodado.
— Juiz, posso dizer um troço?
— Se quiser, Mr. Branca.
— Aquele rábula de merda... não é Mr. Salomon, é o outro. Todas as noites são escuras. Qualquer dia ele abotoa o paletó no pátio do Bird's Nest.
— Ordem. Mr. Branca, o senhor não pode fazer ameaças no tribunal.
— Não é ameaça, juiz. É profecia. Eu nunca machucaria ninguém. Mas Eunice tinha montes, montes e montes de amigos.
— Está bem. Está dispensado, Mr. Branca. Não precisa voltar aqui. O escrivão cuidará das provas. O meirinho providenciará os guardas. Adiado.
— Todos de pé!
— ... o maior respeito possível pela sapiência do meu distinto colega, apesar de ter expressado opiniões da mais absoluta falta de senso, como provou aquele grande cientista num documento de 1976, Que passo a citar: «O verdadeiro conceito de «personalidade» não é mais que a sombra de uma invenção de uma fantasia de uma especulação pré-científica. Todos os fenômenos da vida estão plenamente explicados pelas leis da bioquímica, como se segue...»
— ... mesmo uma fenomenologia existencial exige um fundamento teológico, concedo, mas um estudo mais acurado do materialismo dialético prova um preconceito sem esperanças que...
— Quem é o responsável aqui?
— Um nascituro não é uma pessoa. É apenas uma incipiente estrutura ectoplásmica com uma potencialidade que decorre do seu meio-ambiente...
— ... leis matemáticas de herança genética para cada possível acontecimento erroneamente denominado...
— ... em palavras familiares ao tribunal e a todos: «Pai, perdoai-os, pois eles não sabem o que fazem».
— ... chocado, ao descobrir que o douto juiz que preside este julgamento é, de fato, companheiro de fraternidade de Johann S. B. Smith. Essa relação clandestina pode ser confirmada nos registros abertos ao público e peço que o Tribunal de hoje e qualquer outro no futuro que vejam esses registros tomem conhecimento oficial e peço que o advogado oponente especifique o fato.
— Especificado.
(— Jake, como conseguiram descobrir?
— Deixamos transpirar. Na noite passada, por intermédio de Alec. A tempo de ser registrado em vez de constar de um apelo.)
— Aha! Estipulado este fato incrível, os demandantes são agora forçados a pedir que o juiz-presidente se dê por impedido e considere o julgamento incorreto.
(— Jake, me parece que eles nos pegaram. Por mais que eu goste de Mac e Alec, tenho de admitir que este fato tem o sabor do encontro de uma marca de morango numa herdeira desaparecida.
— Não, minha querida. No decorrer de uma longa vida, uma pessoa importante relaciona-se diretamente com outra pessoa importante. Se não tivesse sido revelado que você e Mac pertenceram à mesma fraternidade, teria aparecido alguma outra ligação tão íntima ou mais. Quantos membros do Supremo Tribunal você" conhece?
— Hum... acho que cinco.
— Está aí a resposta. No topo da pirâmide, todos se conhecem.) (E dormem entre si) (Bico calado, Eunice!)
— Doutor, acho isto interessante. Primeiro, permita-me levá-lo diretamente a um artigo da lei. Em segundo lugar, o senhor usou a palavra «julgamento» e agora fala de «julgamento incorreto». Como sabe, este não é um julgamento, nem mesmo uma audiência de contestação: não passa de um inquérito com a finalidade de estabelecer a identidade de uma jovem que chama a si mesma de «Miss Smith». Não é acusada de crime algum e não há processo contra ela neste tribunal. Simplesmente, a identidade que requereu foi posta em dúvida por suplicantes que reivindicam direitos. Assim, este tribunal está ajudando uma investigação amigável... auxiliando, como um bom vizinho, a evitar uma confusão. Não um julgamento.
— Retifico, Meritíssimo.
— Por favor, seja cuidadoso no uso de linguagem técnica. Se não há julgamento, não pode haver julgamento incorreto. Concorda?
— Talvez eu deva usar outra linguagem, Meritíssimo. Os demandantes acham que, sob estas manifestas circunstâncias, o senhor não é o juiz que deva presidir esta, hum, investigação amigável.
— Isso é possível. Mas o caso chegou a mim em conseqüência de uma distribuição normal e continuará assim, a menos que motivos relevantes sejam apresentados que justifiquem a minha saída. Voltando ao assunto de linguagem, o senhor usou a palavra «clandestina». O Tribunal não quer, neste momento, saber se a escolha desta palavra pelo advogado significa ou não desacato...
— Meritíssimo, asseguro-lhe...
— Ordem. Estou falando. Nem vai querer discutir isso agora. Neste momento, consideraremos apenas o significado da palavra. «Clandestina» significa «escondida, secreta, oculta» com um sabor ou conotação de sub-reptícia, desleal ou ilícita. Diga-me: esse relacionamento alegado pode ser verificado no «Who's Who»?
— Oh, com certeza, Meritíssimo! Foi onde o encontrei.
— Sei que minha própria fraternidade consta dele. Suponho que, se estiver correto, o nome de Johann Sebastian Bach Smith constará. Uma vez que o senhor me diz que verificou, o Tribunal aceita oficialmente a asserção e não existe prova posterior... apenas comento que dificilmente poderíamos ser membros da mesma loja ao mesmo tempo, visto haver entre nós uma diferença de idade de quase meio século. Sua investigação mostrou que Johann Smith e eu fomos, juntos, membros de outras organizações? Por exemplo: Johann Smith foi membro fundador do Gibraltar Club... e eu e o advogado de Miss Smith, Mr. Salomon, também somos... bem como o senhor. Em que outra organização fiz parte com Johann Smith? Agora ou no passado?
— Hum... as postulantes não investigaram.
— Ora, vamos, tenho a certeza de que o senhor pode descobrir outras. A Cruz Vermelha, por exemplo. Provavelmente a Associação Comercial numa certa época. Lembro que, quando fui chefe escoteiro, Johann Smith também foi. Possivelmente ambos pertencemos a outros organismos de fraternidade. Muito provavelmente, fomos curadores ou procuradores dos mesmos grupos de caridade ou assistência social, tanto simultaneamente como um depois do outro. Noto que o senhor é membro do Santuário, como eu. É preciso comentar o fato?
— Não é necessário, Meritíssimo.
— Mas o senhor e eu quase certamente participamos de inúmeros grupos fraternais. O Tribunal está ciente do fato discutível de que, uma vez que os advogados não podem anunciar, tendem, como classe, a pertencer a mais organizações: fraternais, sociais, assistenciais e religiosas... onde se transformam numa classe de leigos. Visto que o senhor preferiu não comentar as que nos são comuns, o Tribunal deseja espontaneamente investigar e incorporar o resultado ao registro. Agora, no que toca à minha alegada obrigação de me considerar impedido, deseja expor suas razões? Pense a respeito enquanto fazemos uma interrupção, pois sua resposta irá constar da gravação. Dez minutos.
— Ordem. Advogado das postulantes? Teve tempo para pensar.
— As postulantes retiram todos os comentários referentes a associações fraternais e gostariam que os mesmos fossem eliminados das gravações.
— Pedido negado. Nada pode ser eliminado desta gravação. Ora vamos, advogado, o senhor deve ter alguma teoria. Exponha.
— Meritíssimo, na hora em que levantei a questão, ela parecia importante. Agora já não penso assim.
— Mas o senhor deve ter tido uma teoria ou não teria levantado a questão. Por favor, fale com franqueza, pois quero saber.
— Bem... se o Meritíssimo me permitir, o fato revelado levava a admitir a possibilidade de uma prevenção por parte do Tribunal. Sem desrespeito da minha parte.
— E o Tribunal quer assegurar que nada existe. Mas sua resposta é incompleta. Prevenção a favor de quem? Das postulantes? Em virtude das minhas relações fraternais com o avô delas?
— Como? Oh, não, Meritíssimo... prevenção a favor de, hum, de miss... da parte contestada.
— O senhor está afirmando que ela é, mesmo, Johann Sebastian Bach Smith?
(— Meu Deus, Jake, Mac obrigou-o a morder o próprio rabo.
— Sim. Quem agarrou quem?)
— Não, não, Meritíssimo, não estamos afirmando isso. Essa é a matéria que estamos realmente contestando.
— Mas, doutor, não pode haver duas soluções. Se essa jovem não é Johann Sebastian Bach Smith — como as postulantes alegam — então não pode ser meu colega de fraternidade. Caso contrário, pela sua teoria, ela é Johann Sebastian Bach Smith. Que solução prefere?
— Temo ter pecado por erro de raciocínio. Peço a indulgência do Tribunal.
— Todos nós às vezes raciocinamos errado. Já terminou? Podemos continuar com a inquirição das testemunhas?
— Terminei, Meritíssimo.
— Mas, Dr. Boyle, o senhor sabe que retirou o cérebro deste corpo — deste cadáver — e o transplantou para o corpo desta mulher?
— Não seja burro, amigão. Você ouviu minha resposta.
— Meritíssimo, as postulantes acham que isto é uma inquirição séria e pedem o apoio do Tribunal.
— O Tribunal ordena à testemunha que responda a pergunta corretamente.
— Juiz, o senhor sabe que não me assusta. Estou aqui como testemunha voluntária... e não sou nem nunca fui cidadão do seu estranho país. Agora sou cidadão da China. O seu Departamento de Estado prometeu ao nosso Ministério do Exterior que eu teria imunidade completa durante toda minha permanência aqui, apenas para comparecer. Por isso, não perca tempo em botar banca. Não pega. Quer ver meu passaporte? Imunidade diplomática.
— Dr. Boyle, este Tribunal tem ciência da sua imunidade. Todavia, o senhor foi induzido a vir aqui — a um gasto considerável, quero declarar e sem dúvida com inconveniência para o senhor — para fornecer uma prova que só o senhor pode fornecer. O Tribunal pede-lhe que responda a todas as perguntas que lhe forem feitas, tão completa, explícita e claramente quanto possível, em termos que um leigo possa entender, mesmo que isso o leve a repetir-se. Quero estabelecer exatamente o que o senhor fez e o que sabe por conhecimento próprio, que possa direta ou indiretamente ajudar este tribunal a estabelecer a identidade desta mulher.
— Oh, certamente, caro amigo... assim é diferente. Bem, vamos voltar atrás e começar tudo outra vez, de A a Z. Mais ou menos há um ano fui procurado por aquele coroa ali — desculpe, quero dizer «advogado» — Mr. Jacob Salomon, para fazer o que os suplementos dominicais chamam de «transplante cerebral». Aceitei a incumbência. Depois disto e daquilo — pode obter os detalhes com ele — efetuei a coisa. Transferi um cérebro e algumas partes adjacentes de um crânio para outro. Aquele cérebro continuava vivo no seu novo nicho quando fui embora.
«Agora, para quem. O doador do cérebro era um homem muito idoso e o doador do corpo foi uma mulher adulta, mas jovem. Era mais ou menos assim: estavam cobertos, sabe, com lençóis esterilizados, etc, antes do cirurgião responsável chegar. Um calouro. Só posso acrescentar estas informações: o homem estava em mau estado, mantido vivo por meios heróicos. A mulher estava pior ainda, morta. Ferimento extenso no crânio e córtex aqui: a cabeça quebrada, quero dizer, e a gema esparramada. Morta como a Rainha Anne, com exceção de que o corpo fora conservado vivo graças a medidas seriíssimas de manutenção.
«Agora, aquele disforme pedaço de carne conservada que está ali teve seu cérebro retirado de maneira eficiente por intermédio de minha própria — única — técnica cirúrgica e duvido que haja outro cirurgião vivo que possa fazê-lo como eu. Examinei aquele cadáver cuidadosamente. Concluí que aquele trabalho eu o fiz e, por eliminação, fiquei convencido de que devia ser o corpo para o qual Salomon contratou meus serviços. Não há nenhuma evidência conflitante e o cadáver não é de nenhum outro caso meu.
«Identificar a jovem é outro assunto. Se sua cabeça estivesse raspada, eu poderia procurar tecido cicatrizado. Se sua cabeça tivesse sido radiografada, eu poderia procurar próteses: teflon vitae não produz a mesma sombra numa chapa que o osso natural. Mas tais testes seriam apenas indicativos: o tecido cicatrizado é facilmente confundido e outras trepanações podem produzir sombras radiográficas sem perturbar o sistema nervoso central.»
— Dr. Boyle, vamos supor provisoriamente que o senhor retirou um cérebro vivo da prova JJ, o cadáver...
— Supor? Eu retirei, o senhor me ouviu dizer.
— Não o estou contradizendo, estou apenas usando uma linguagem apropriada. Muito bem, o senhor portanto testemunhou e também afirmou que transplantou aquele cérebro para um corpo feminino jovem. Olhe em volta e veja se pode identificar aquele corpo feminino.
— Oh, você está sendo burro outra vez. Não sou curandeiro nem juiz de concurso de beleza. Sou cirurgião. Não, obrigado. Se essa moça — aquele humano composto, corpo de mulher, cérebro de homem — sobreviveu e hoje está viva... não tenho opinião formada e garanto-lhe que tive urna forte razão para me familiarizar com literatura importante de medicina forense e jurisprudência médica. O senhor não vai me fazer mergulhar na burrice em que está... não tenho a menor possibilidade hoje de apontá-la com segurança entre dez mil outras moças de aproximadamente a mesma estatura, peso, físico, tom de pele, etc. Doutor, alguma vez viu um corpo humano totalmente eriçado de material de conservação extrema da vida e preparado para uma operação daquela espécie? Tenho a certeza de que não viu, pois do contrário não faria perguntas tão bobas. Mas posso lhe garantir que o senhor não reconheceria sua própria mulher naquela situação. Se quer que eu cometa perjúrio, entrou no lugar errado.
— Meritíssimo, as postulantes parecem não ter condições de obter uma resposta conclusiva para esta pergunta crítica.
— O Tribunal acha que foi conclusiva. A testemunha declara que pode e identifica o corpo masculino, mas que é incapaz de identificar o feminino. Doutor, confesso que estou confuso sobre um ponto, talvez pelo fato de eu não ser médico. Não obstante, estou confuso. Devemos entender que o senhor realizou aquela operação sem ter certeza da identidade dos corpos?
— Juiz, nunca fui de me incomodar com trivialidades. Mr. Salomon me garantiu, em linguagem jurídica, que «os galhos estavam quebrados», se compreendo corretamente a sua língua. Essas garantias significavam para mim que a papelada estava em ordem, o requerimento legal feito, etc, e que eu estava livre para operar. Acreditei nele e operei. Me enganei? Devo esperar uma tentativa de extradição depois que voltar para casa? Acho que vai ser difícil. Finalmente encontrei um país onde meu trabalho é respeitado.
— Não me consta que alguém tenha a intenção de tentar extraditá-lo. Foi pura curiosidade minha. O advogado queria chegar a isto: está presente nesta sala uma mulher que alega ser aquele composto resultante da sua operação. Pode apontá-la?
— Oh, certamente posso. Mas não como testemunha juramentada. É aquela jovem sentada ao lado de Jake Salomon. Como vai, minha querida? Sentindo-se jóia?
— Muitíssimo, doutor.
— Desculpe se a desapontei. Oh, eu podia identificá-la positivamente... serrando a parte superior do seu crânio, tirando seu cérebro e procurando certos indícios. Mas — heh heh! — depois seu cérebro não lhe ia ser muito útil. Prefiro vê-la viva, um monumento à minha habilidade.
— Também prefiro, doutor... e na verdade não estou desapontada. Sou-lhe eternamente grata.
— Meritíssimo, esse comportamento é inacreditável!
— Doutor, cabe a mim julgar. Sob circunstâncias tão fora do comum, permitirei um pouco de calor humano no tribunal.
— Miss Smith, eu gostaria de examiná-la antes de partir. Para meus apontamentos, sabe.
— Pois não, doutor! Tudo... menos serrar meu crânio.
— Oh, só bater no peito e coisas assim. Os rituais costumeiros. Está bem amanhã de manhã às dez?
— Meu carro estará a sua espera às nove e meia, doutor. Ou mais cedo, se me der a honra de tomar café comigo.
— O Tribunal julga necessário interromper. Lamento dizer que ambos deverão estar aqui amanhã às dez. Estamos quase na hora de encerrar e...
— Não, juiz.
— Como, Dr. Boyle?
— Eu disse «não». Não estarei aqui amanhã de manhã. Falarei esta noite, às vinte horas, num jantar de uma das suas associações de açougueiros: o Colégio Americano de Cirurgiões. Até pouco antes dessa hora estarei à sua disposição. Suponho que possa exigir a presença de Miss Smith amanhã de manhã, mas não a minha. Estarei viajando para a velha e alegre China o mais depressa possível. Lá não há falta de ocasião para pesquisas: o senhor ficaria espantado em ver como os prisioneiros condenados concordam. Por isso não vou perder outro dia com perguntas idiotas. Mas estou disposto a tolerá-las agora.
— Hummm... temo que o tribunal precise concordar em que este é um caso de Maomé e a Montanha. Muito bem, não encerraremos a sessão na hora habitual.
— A testemunha pode ficar sentada. As postulantes têm outras testemunhas?
— Não, Meritíssimo.
— Doutor?
— Miss Johann Smith não apresenta provas subseqüentes.
— Mr. Salomon, o senhor tem a intenção de apresentar arrazoado ou resumo?
— Não, Meritíssimo. Os fatos falam por si mesmos.
— Postulantes?
— Meritíssimo, o senhor pretende encerrar o inquérito hoje?
— E o que pretendo descobrir. Já nos arrastamos há vários e cansativos dias e simpatizo muito com a atitude do Dr. Boyle: vamos limpar a sujeira e cair fora. Ambas as partes confirmam não ter mais testemunhas, perguntas, nem provas. O advogado de Miss Smith declara que não irá fazer arrazoado, Se o advogado das postulantes quiser discutir, pode fazê-lo... caso em que Miss Smith, pessoalmente ou através do seu defensor ou ainda ambos, tem o privilégio de replicar. Minha intenção, doutor, era um descanso... depois, se o senhor estiver com as idéias em ordem, poderá dizer o que deseja. Se não puder, prosseguiremos amanhã de manhã. Então o senhor poderá lutar por um adiamento... mas aviso-lhe que um adiamento longo não será tolerado. O Tribunal está ficando impaciente com táticas de protelação e diversionismo, para não mencionar palavras e atitudes próximas do desacato. O que deseja?
— Com a permissão do Tribunal, se continuarmos esta noite, que período de descanso pretende o Tribunal estabelecer?
— ... concluída a réplica, estamos preparados para sentenciar. Mas, primeiro, uma declaração do Tribunal. Visto que um item novo do Código Constitucional foi envolvido no assunto, se for feita apelação o Tribunal pode, de acordo com a Lei Declaratória de Assistência, de 1984, de moto próprio, enviar a. matéria ao Tribunal Federal de Apelação, com a recomendação de subir imediatamente ao Supremo Tribunal. Não podemos dizer se isso acontecerá, mas há aspectos que nos levam a crer que poderá acontecer. O assunto não é trivial.
— Ouvimos a petição, ouvimos as testemunhas e vimos as provas. É possível sentenciar em uma das quatro formas:
«Que tanto Johann Sebastian Bach Smith como Eunice Evans Branca estão vivos;
«Que Eunice está viva e Johann morto;
«Que Eunice está morta e Johann vivo;
«Que Eunice e Johann estão mortos.
«O Tribunal decide — por favor, levante-se, Miss Smith — que esta pessoa aqui presente é fisiologicamente composta do corpo de Eunice Evans Branca e do cérebro de Johann Sebastian Bach Smith e que, de acordo com o princípio imparcial estabelecido em «Espólio de Henry M. Parsons contra Rhode Island», esta pessoa feminina é Johann Sebastian Bach Smith».
— ... acho que está me oferecendo seu corpo encantador. Desculpe, minha querida. As mulheres não me interessam. Nem os homens. Tanto em roupas de borracha, saltos altos ou outros acessórios. Sou um sadista, Miss Smith. Um gênio sadista que compreendeu muito jovem precisar tornar-se cirurgião para ficar longe das garras da miséria. Sublimação, sabe. Em todo caso, obrigado. É uma pena, pois a senhora tem um corpo magnífico. (Bem, patrão, o senhor foi recusado. É uma lição que toda mulher precisa aprender. Portanto, ajeite o cabelo e comece tudo de novo)
(Eunice, estou aliviado. Mas, se ele quiser, tem direito a um brinde)
— Dr. Boyle, sou a sua Galatéia. Devo-lhe tudo o que o senhor achar... menos serrar meu crânio. A dívida fica contabilizada. O que eu estava lhe oferecendo era apenas um adiantamento simbólico. Mas o senhor não reage como um australiano típico... e também não fala como um.
— Oh, isso. Sou uma falsificação, querida. Das favelas de Sidney até terminar a escola de sadistas: um elegante colégio interno britânico, uma escola «pública» selecionada. Depois, a Universidade de Londres e os melhores cirurgiões do mundo. Vista seu lindo roupão, que eu vou indo. Diga, não se importa de filmar em estereocinema, essa extraordinária cambalhota em câmara lenta para os meus arquivos?
— Para onde devo enviá-lo, doutor?
— Jake Salomon sabe. Conserve a coragem, minha querida, e trate de viver muito tempo. A senhora é a minha obra-prima.
— Claro que tratarei.
— Isso. Ta ta!
Foi noticiado que um objeto voador não identificado, mais ou menos em forma de disco, pousou em Pernambuco e que sua tripulação humanóide entrou em contato com os matutos locais. A notícia foi desmentida oficialmente, quase no mesmo tempo de chegar às agências. O número de detetives particulares licenciados nos Estados Unidos passou a ser três vezes maior que o de guardas governamentais, Miss Joan, nascida Johann Smith, recebeu mais de duas mil propostas de casamento, quantidade superior de propostas menos formais, cento e oitenta e sete ameaças de morte e um número não revelado de bilhetes de extorsão, além de quatro bombas. Nada disso foi recebido pessoalmente, pois foram encaminhadas ao Serviço de Correio Particular Mercury, conforme contrato feito anos antes. A cobertura de uma das casamatas de abrir embrulhos teve de ser substituída. As outras bombas foram desarmadas.
O Diretor-Geral dos Correios morreu de uma dose excessiva de barbitúricos. O Diretor-Geral-Assistente recusou uma nomeação interina e pediu aposentadoria. Uma mulher, em Albany, deu à luz um «fauno» que foi batizado, morto e cremado em oitenta e sete minutos. Sem flores. Sem fotografias. Sem entrevistas... mas o padre escreveu uma carta ao seu colega de quarto do seminário. O F.B.I. informou que as reincidências atingiram a mais de 71%, enquanto que essa mesma porcentagem, anteriormente atribuída a delitos mais graves — roubo a mão armada, estupro, assalto com arma mortífera, assassinato e tentativa de assassinato — subiu para 84%. A paralisação da Universidade de Harvard prosseguiu.
— Jake, a última vez em que recusou casar comigo, você me prometeu uma noite na cidade se vencêssemos. Mr. Salomon pousou a xícara.
— Um lanche delicioso, minha querida. Se bem me lembro, você me disse naquela época que a ida a uma boate não era substituto para uma licença de casamento.
— E não é. Mas não o aborreci mais com pedidos de casar comigo desde que me deu a honra de me deixar ser sua primeira concubina. Hum... apague o «primeira». Não tenho a menor idéia do que faz com seu tempo quando não está aqui. Bem, não preciso ser a «primeira». (Gêmeo, nunca aperte um homem por causa de sexo. Ele lhe mentirá) (Gatinha, não estou apertando Jake por causa de sexo. Estou fazendo uma provocação. Ele vai nos levar para a farra e nós vamos vestir aquele sensual instrumento azul e dourado... que foi feito para ser visto e não apenas experimentado por Winnie e posto de lado)
— Eunice, certamente você não pensa que eu tenho outra.
— Seria presunçoso eu dar uma opinião, senhor. Jake, permaneci fechada em casa durante toda a audiência... apenas umas comprinhas, acompanhada de Winnie. Mas agora vencemos e não vejo motivo para continuar prisioneira. Olhe, querido, podemos dar uma saída a quatro: uma moça para você e um rapaz para mim. Assim, você poderá voltar cedo para casa e não perderá uma noite de sono.
— Você evidentemente não está pensando que eu voltarei para casa deixando-a numa boate.
— Eu evidentemente estou pensando que posso ficar acordada a noite inteira e comemorar, se eu quiser. Sou livre, maior — meu Deus, tenho mais de vinte e um! — e posso me dar ao luxo de um acompanhante licenciado. Mas não há razão para manter você acordado a noite toda. Podemos chamar a Acompanhantes Licenciados Selo de Ouro e completar nosso grupo. Winnie andou me ensinando o que os jovens de hoje chamam de dança e eu a estive ensinando a dançar de verdade. Olhe, talvez você prefira acompanhar Winnie no lugar de um boneco qualquer, escolhido num catálogo. Winnie acha você formidável.
— Eunice, você está seriamente propondo alugar um gigolô?
— Jake, não vou casar com ele, nem mesmo dormir com ele. Espero que dance comigo, sorria e converse educadamente, até o limite do razoável. Isso é o fim do mundo?
— Eu não quero ir.
— Se não quer — e Deus sabe que eu teria preferido estar nos seus braços em vez de nos de um acompanhante alugado — por que não tira uma soneca? Eu também farei o mesmo. Precisa de ajuda para dormir? Money Hums, quero dizer, e não ginásticas deitadas. Embora também as tenhamos em estoque.
— Não me lembro de ter dito que íamos sair. Nem há nada para celebrar, Eunice. Não teremos ganho até que o Supremo Tribunal decida.
— Temos muito o que comemorar. Sou legalmente eu — graças a você, querido — e agora não precisa mais fazer relatórios como rneu curador. Minhas netas perderam em toda a linha. Se vamos esperar para comemorar até que o Supremo Tribunal decida, poderemos estar ambos mortos.
— Oh, bobagem! Você sabe que estou de partida para Washington. Espero poder dar um jeito de arranjar uma data próxima na agenda. beJa paciente.
— «Paciente» é o que não sou, querido. Certamente você dará um jeito. Você sempre dá... e o governo me deve isso e esperará mais ue mim. Mas, Jake, seu jato pode cair...
— Isso não muda minha decisão: é a morte da minha predileção. Uma vez que q meu passado genético não me permite esperar um ataque cardíacoí fiquei contando com o câncer. Mas um desastre aéreo é ainda melhor. Tudo, menos uma longa, lenta e irremediável morte.
— Você está esfregando meu nariz no erro que cometi, meu senhor. Permite que conclua? Uma vez você comentou que tinha apenas dez ou doze anos de vida, baseado nos cálculos atuariais... enquanto eu tinha pelo menos meio século. Não é verdade, Jake. Minha expectativa de vida é nenhuma.
— Eunice, que diabo está dizendo?
— A verdade. Uma verdade que você convenientemente esqueceu... mas da qual eu tenho consciência a cada precioso segundo. Jake, sou um transplante. Um transplante único. Nenhuma estatística se aplica a mim. Ninguém sabe, ninguém pode imaginar. Portanto, vivo cada dia como se fosse toda a eternidade. Jake, meu amado senhor, não estou sendo mórbida... estou me sentindo feliz. Quando era garotinho, mamãe me ensinou uma oração. Ei-la:
«Agora vou deitar para dormir.
«Peço a Deus que receba minha alma.
«Se eu morrer antes de acordar,
«Peço a Deus que leve minha alma.»
«É assim, Jake. Passei quase noventa anos sem fazer essa oração. Mas agora acabei de fazê-la e vou dormir feliz, despreocupado do amanhã. (Gêmeo! Sua putinha mentirosa! Tudo o que você disse foi um Money Hum) (É a mesma coisa, gatinha. Uma oração é o que a gente deseja que ela seja)
— Joan Eunice, você uma vez me disse que não tinha religião. Então por que fez essa prece infantil?
— Até onde posso me lembrar, foi lhe ter dito ser uma «agnóstica moderada», até que morri durante um certo tempo. Continuo agnóstica — significando isso que não tenho respostas — mas agora sou uma agnóstica feliz, alguém que se sente profundamente segura de que o mundo tem um significado, é de certa maneira bom e que minha estada aqui tem uma finalidade, mesmo que eu não saiba qual. Quanto à oração, uma oração significa tudo o que você desejar: é um ritual interior. O que esta significa para mim é uma boa intenção: viver cada momento como Eunice teria vivido, vive, serenamente, feliz e sem se preocupar com coisas futuras, inclusive a morte. Jake, você disse que continuava preocupado com Parkinson.
— Mais ou menos. Como advogado, não vejo de que maneira ele pode se meter outra vez. Mas como um rábula de coração — não me repita! — que tomou parte em muitos acordos por trás do pano, sei que até o Supremo Tribunal tem como juizes homens e não anjos. Eunice, há cinco homens honestos naquele tribunal... e quatro dos quais eu não compraria nem um carro usado. Mas dos honestos, um está senil. Veremos o que podemos fazer.
— Pois veremos, Jake. Mas não perca tempo com Parkinson. O pior que ele pode me fazer é me despojar de dinheiro. Coisa que não me importa. Descobri que mais dinheiro do que se necessita para as despesas correntes é um ônus. Jake, consegui guardar tanto dinheiro, do qual você nunca ouviu falar, que nunca passarei fome. Parky não porá as mãos nele. Quanto ao próprio Parky, varri-o do meu universo e sugiro que você faça o mesmo. Está condenado pelo seu próprio Q.I. Que a natureza se ocupe dele.
Salomon riu.
— Está bem, tentarei.
— E agora você vai fazer o que acha que precisa e esquecer que eu o quis seduzir para que me levasse a uma boate apinhada. (Gêmeo, está desistindo muito depressa) (Quem está desistindo?)
— Eunice, se você realmente quer ir...
— Não, não, Jake! Você não tem vontade. Enquanto você estiver em WashingtOh, provarei as delícias desta aldeia decadente, mas prometo-lhe que estarei bem protegida. Provavelmente Shorty. Ele apavora as pessoas só com o tamanho. Nem irei sozinha. Alec me disse que ele e Mac não têm muita dificuldade em fugir das rédeas e Winnie pode ser a quarta.
— Eunice.
— Diga, querido?
— Me sinto no inferno sendo posto de lado por esses dois lobos.
— Ora, Jake, você está com ciúmes!
— Não. Deus me proteja de cair vítima desse vício masoquista. Mas
se quiser ver o lado interno deste formigueiro, descobrirei onde as coisas acontecem e levarei você lá. Vista-se para isso, garota... vou espanar as traças da minha roupa de beber. Traje a rigor, quero dizer.
— Seios nus? (Você teria feito melhor, gatinha?) (Pegue o ca-chorro-quente, gêmeo. Ganhou)
— Bom demais para o zé-povinho, a menos que você pretenda usar uma pintura espessa, além <v um monte daqueles troços brilhantes.
— Farei com que se orgulb de mim, querido. Mas quer tirar uma soneca? Por favor.
— Uma grande soneca imediatamente e jantar no meu quarto. A hora H será às vinte e duas. Esteja pronta ou iremos sem você.
— Morro de medo. Quer ajuda para dormir? Eu? Winnie? Ou ambas?
— Não, aprendi como fazer sozinho. Perfeitamente. Embora admita que é muito mais divertido com duas lindas garotas salmodiando comigo. Vá você dormir. Posso conservá-la acordada a noite toda.
— Sim, senhor.
— E agora, se me dá licença... — Mr. Salomon levantou-se, inclinou sobre a mão dela, beijando-a. — Adios.
— Volte aqui e me beije direito!
Ele deu-lhe uma olhada por cima do ombro.
— Logo mais, minha querida. Não é do meu feitio deixar as mulheres ficarem voluntariosas.
Saiu.
(Quem venceu este assalto, patrão?) (Jake pensa que foi ele, Eunice... e você me diga de que maneira) (Está aprendendo, gêmeo, está aprendendo)
Lancharam na sala de estar de Joan. Ela se encaminhou para seu boudoir, sentou-se na estenomesa para telefonar... preferindo este ao visiofone, porque seu aparelho não tinha visor. Usou-o com silenciador e auriculares.
Obteve logo a ligação:
— Consultório do Dr. Garcia.
— Aqui é a secretária de Mrs. Mclnryre. O doutor está e, em caso afirmativo, pode dispor de um momento para falar com Mrs. Mclntyre?
— Um instante, por favor. Vou perguntar.
Joan, que passara o tempo recitando sua oração de meditação, estava calma quando ele atendeu:
— Doutor Garcia no aparelho.
— Sou a secretária de Mrs. Mclntyre, doutor... posso falar sem perigo?
— Claro, Eunice.
— Querido Roberto, tem novidades para mim?
— «Os gregos capturaram Atenas».
— Oh! Tem certeza?
— Nenhuma dúvida, Eunice. Mas não fique em pânico. Pode ver imediatamente um fazedor de anjos, sem que seu anonimato seja violado. Vou lhe arranjar o Dr. Kystra, o melhor homem possível e inteiramente de confiança. Serei assistente dele. Não haverá sequer uma enfermeira presente.
— Oh, Roberto, não, não e não! Você não compreende, querido: vou ter essa criança, nem que seja meu último ato. Você me fez ficar felicíssima. (Agora temos realmente algo para comemorar, patrão-zinho. Mas não conte a Jake, hem?) (A ninguém, imagina! Quando nossa barriga vai inchar?) (Não antes de semanas, se você não comer como um porco) (Quero conservas e sorvete de creme agora mesmo) (Essa não)
O médico respondeu pausadamente:
— Entendi às avessas. Mas você parecia tão nervosa quando colhi o material.
— Claro que eu estava, querido. Estava com um medo louco de não ter sido fecundada.
— Hum... Eunice, não posso evitar de me sentir pessoalmente responsável. Sei que você é rica... mas um contrato de casamento pode excluir toda a possibilidade de um «caça-dotes» e... bem, estou disponível.
— Roberto, acho que foi o mais gostoso — e rude — pedido que uma puta grávida já recebeu. Obrigada, querido, fiquei comovida. Mas, como você falou, tenho dinheiro e não me importo com o que os vizinhos pensam.
— Eunice, não estou apenas assumindo minha responsabilidade.... quero que saiba que não olho casar com você como uma obrigação.
— Querido Roberto, a responsabilidade não é sua. Como você sabe, tenho sido a namorada do regimento. (Bem que tentamos, hem, gêmeo!) (Não me cutuque, querida. Ele quer ser nobre) A criança é minha. Quem colaborou é problema meu.
— Desculpe.
— Quero dizer que você não precisa sentir nenhuma responsabilidade. Se quiser me ajudar, ficarei grata. Serei grata, mesmo que não me ajude. Roberto? Em vez de querer fazer de mim uma mulher casada — o que é difícil — porque não retira aquele implante da linda coxa de Winnie e lhe coloca uma outra espécie de implante que lhe fará mais bem... e depois transforme-a numa mulher casada. É muito mais fácil, pois ela está inclinada.
— É uma idéia. Na verdade, é uma idéia que venho considerando bastante, ultimamente. Porém, ela não quer deixar sua casa.
— E nem precisa. Oh, ela pode parar de fingir ser minha aia. Este velho celeiro é enorme e tem inúmeras suítes vazias. Se você a engravidar, ela e eu poderemos curtir juntas e ter nossos filhos quase ao mesmo tempo. Eu devia me calar e deixar de querer organizar sua vida. Duas perguntas: planejei sair hoje à noite para comemorar as boas-novas que eu esperava ouvir da sua boca. Agora só devo tomar bebidas fracas?
— Nada disso. Breve lhe faremos uma dieta e limitaremos as bebidas. Mas esta noite você pode ficar de porre e o único efeito será uma ressaca. Você não perderá a criança com essa facilidade... como milhões de mulheres aprenderam.
— Talvez eu não fique de porre, mas vou emborcar vários copos de champanha. Última pergunta: se pode encerrar o atendimento e não lhe atrapalhar perder uma noite de sono, quer me ajudar a comemorar? Oficialmente, é para comemorar a vitória no tribunal. Esse «Os gregos capturaram Atenas» deve continuar em segredo ainda algum tempo.
— Hum...
— Você parece preocupado, querido.
— Bem, para ser sincero, tenho um encontro com Winnie.
— Oh, me exprimi mal. Tenho um encontro com Jake. Espero que você e Winnie completem o quarteto. Não estou lhe pedindo para passar a noite comigo naquele sentido... embora eu certamente não recusasse se a coisa pudesse ser feita sem magoar a nossa Simpática. Os momentos que você e eu pudemos roubar, foram muito breves, querido. Acho que você é um homem que pode ser agradável de se ter com calma.
— Tenho a certeza de que você é uma mulher assim, Eunice.
— Dê o fora! Você diz isso a todas as suas clientes. Doutor, o senhor é um conquistador delicioso. Quer esperar dez minutos antes de telefonar para Winnie? Tenho de pedir um favor a ela.
— Dez minutos.
— Obrigada, Roberto. Fim. Joan ligou o intercom.
— Winnie? Você está ocupada, querida?
— Apenas lendo. Já estou indo.
Joan foi encontrá-la na porta que ligava seus quartos.
— É uma coisinha à toa, amor. Quero que chame O'Neil e lhe diga que preciso falar com Finchley. Na minha sala de estar. Lógico, posso ligar para O'Neil, querida, mas quero que a coisa pareça mais formal.
— Claro, Joanie. Devo ficar e servir de companhia?
— Simpática, você sabe danadamente bem que o que eu sempre quis foi falsa companhia... e às vezes um apoio. Desta vez não preciso de apoio... mas quero perguntar a Finchley uma coisa em particular e ele falará mais livremente se não houver ninguém por perto. Portanto, leve-o à minha sala de espera, venha me dizer que ele chegou e não volte. Vá para seu próprio quarto e feche a porta. Fique por lá... você vai receber um telefonema daqui a oito minutos.
— Vou?
— Vai e um muito agradável. Você, eu, Jake e o Dr. Garcia vamos farrear esta noite nas boates.
— Oh!
— E quando viermos para casa, conserve-o aqui o resto da noite e darei um jeito de Jake não perceber. Ou ele sabe quem é «Bob»?
— Hum... ele sabe. Eu lhe disse.
— Jake ainda pode servir de cobertura para o querido doutor. Os homens são tímidos. Agora corra, querida, e telefone para O'Neil.
Quatro minutos depois, Winnie anunciou Finchley e saiu da sala de estar. O homem disse:
— Mandou me chamar, miss?
— Tom, o Gato, estas portas são à prova de som. Pode deixar de ser formal.
Ele ficou um pouquinho mais à vontade.
— Tá legal, gatinha.
— Então nos de um beijo e sente. Aquela porta do corredor fecha automaticamente. Winnie é a única que pode entrar e não o fará.
— Gatinha, às vezes você me deixa nervoso.
— Oh, bobagem. — Atirou-se nos braços dele. — Quero lhe perguntar uma coisa... ou melhor, preciso de um conselho. Pode conversar com O'Neil e pedir a opinião dele e também dos guardas. Mas o conselho que eu quero é o seu. O resto é para disfarçar.
— Mulher, pare de falar e me dê sua boca.
Joan obedeceu, através de um longo beijo. Imediatamente ele disse, ofegante:
— Você não tem quase nada debaixo disto.
— Não tenho nada. Mas não me distraia, Thomas Cattus. Me deixe fazer a pergunta. Vou a uma boate esta noite. Jake e eu, Winnie e o Dr. Garcia. Vão querer nos levar a lugares caretas. Quero ver os da pesada. Imagino que você sabe onde ficam.
— Hummm... Eunice, os jóia ficam todos na zona perigosa.
— Bem, não são seguros depois que a gente entra? E pode-se entrar sem perigo?
— Hum... há um com estacionamento interno e portas blindadas tão boas quanto as suas. Olhe, trarei uma lista com endereços, etc., e as sugestões de todos. Mas porei uma estrela na minha.
— Ótimo. Obrigada, Tom, o Gato.
— Meu Deus, você está ótima. Temos tempo? Posso trancar aquela outra porta?
— Se não estou preocupada com Winnie, por que você há de estar? Apanhe um travesseiro e me deite no chão.
O grupo marcou encontro na sala de estar de Joan. Jake Salomon resolveu se vestir da maneira mais ultraconvencional: smoking marrom e gravata borboleta branca. A malha de seda fazia realçar esplendidamente o colar com a ankh de ouro. O Dr. Garcia estava igualmente formal, à maneira moderna: calças vermelhas, audaciosamente acolchoadas, paletó cintado branco prateado, com peitinho de pérolas e gravata preta. A pequena Winifred vestia sua nova roupa de esmeralda com saia comprida... sem pintura no corpo, como Joan aconselhara, mas com o rubor provocando constantes mudanças na cor da sua pele, que iam de extremamente clara ao rosado-vivo. Na testa, no lugar do sinal de indicação de casta, havia uma esmeralda solitária.
Jake olhou-a.
— Coisinha, o que é que mantém a pedra no lugar? Seguro? Ruborizou-se novamente, mas respondeu com malícia:
— Tem um parafuso, senhor. Devo desatarraxá-lo e mostrar-lhe?
— Não. Temo que esteja falando a verdade.
— Nunca em sociedade, senhor. Na verdade, é o adesivo que usamos em curativos. Não sai nem com água e sabão. Só o álcool o tira.
— Então tenha cuidado para não cuspir sua bebida para o alto.
— Oh, eu não bebo, doutor. Aprendi minha lição há muito tempo. Andei bebendo cuba-libre sem «libre» e crushoff * sem crush.
* Vodka, Crush e gelo (N. do T.).
— Doutor, vamos deixá-la em casa. Ela é apenas uma dama-de-companhia.
— Quer que eu fique em casa, conselheiro? Apenas por não beber?
— Apenas por me chamar de «conselheiro», se o fizer novamente. E por me dizer «senhor». Winifred, homens da minha idade não gostam de ser lembrados disso por mocinhas bonitas. Depois do crepúsculo, meu nome é Jake.
— Está bem, conselheiro — respondeu Winifred, com meiguice. Jake suspirou.
— Doutor, um dia espero ganhar uma discussão com uma mulher.
— Se conseguir, conte ao Dr. Rosenthal. Rosy está escrevendo um livro sobre a diferença dos processos mentais entre o homem e a mulher.
— Um sonhador. Eunice, essa coisa cobrirá você melhor quando se levantar? E que é isso?
— Uma saia hula, Jake. E cobre.
Eunice estava usando uma saia comprida, com o busto coberto por uma miríade de estrelas cintilantes, cujo brilho diminuía gradualmente até chegar aos ombros e pescoço. A saia era composta de milhares de fios dourados de nylon colocados sobre outros tantos azul-marinho.
Quando se sentava, a massa de fios afastava-se das suas pernas graciosas. Agora estava de pé. Os fios voltaram ao lugar, formando uma cortina compacta.
— Viu, Jake? Uma saia dourada lisa. Mas quando me mexo — deu um passo — o azul interior aparece intermitentemente.
— Sim, e você também aparece. Calcinhas?
— Que pergunta grosseira! As polinésias nunca tinham ouvido falar em calcinhas até os missionários corrompê-las.
— Essa não é uma resposta satisfatória...
— Não tinha a intenção de ser.
— ... mas enquanto você ficar de pé, está bem.
— Sim, querido.
Joan Eunice colocou um yashmak opaco que combinava e deixou que Jake pusesse nos seus ombros um casaco para noite. Jake vestiu uma capa marrom com mangas e capuz, encobrindo seu nariz aquilino facilmente identificável. Ultimamente havia aparecido com muita freqüência no vídeo e achou que não tinha sentido esconder o rosto de Miss J.S.B. Smith deixando o seu a descoberto, o que revelaria a identidade dela. O médico usou uma capa idêntica, porém branca — pois lhe pediram que comparecesse fantasiado — e Winifred vestia um véu de harém verde transparente, que não passava de um símbolo, pois era do mesmo material da saia.
Assim que entraram no elevador, Joan disse:
— Aonde vamos, Jake?
— Mulher, você não devia perguntar. Ao Gaslight Club, para começar.
— O nome promete — concordou Joan. — Um pianista com ligas nas mangas e tudo o mais?
— E chapéu-melão e um charuto de imitação... pode cantar e tocar todas as composições de cem anos atrás. Ou fingir.
— Quero ouvi-lo. Mas, Jake, já que estamos comemorando minha identidade, quer ser bonzinho comigo?
— Quem sabe? Abra o jogo.
— Ouvi falar num clube... e enquanto você tirava uma soneca, telefonei para lá e reservei uma mesa para quatro a partir das vinte e duas e trinta. Gostaria de experimentá-lo.
— Winnie, você não a está educando direito. Eunice, não era de esperar que você tomasse essa decisão... cortando a grama sob meus pés desse jeito. Está bem, onde fica o troço? Como se chama? Iremos ao Gaslight mais tarde... há uma garçonete lá que dizem ter o traseiro mais bolinável da paróquia.
— Provavelmente de espuma de borracha. Winnie sabe diferençar. É o Pompeii-Hoje, Jake... Tenho o endereço na bolsa.
A sobrancelha de Mr. Salomon apareceu entre as dobras do capuz.
— Não precisamos dele, Eunice. A biboca fica na Área Abandonada.
— Que importância tem? Há estacionamento interno e me garantiram que estão blindados contra qualquer espécie de bomba nuclear.
— Assim mesmo, temos de entrar e sair.
— Oh, confio em Finchley e Shorty. Você não? (Gêmeo, que golpe baixo. É muito feio) (Irmãzona, quer ir ao Gaslight ouvir um mau piano e ver Jake beliscar traseiros? Se quer, diga) (Eu apenas disse que era feio) (Pois responda a ele da próxima vez. Jake é uma dureza)
— Joan Eunice, quando saio à noite com uma dama, levo-a no meu carro e não no dela.
— Está bem, Jake. Eu só queria colaborar. Perguntei a Finchley e ele me disse que há uma estrada aqui que — como se chama? — a Organização... mantém livre. Não tenho dúvidas de que Finchley pode explicar a Rockford.
— Eu a chamo de Máfia. Se houver um caminho sem perigo, Rockford deve conhecê-lo. É o melhor motorista da cidade. Tem mais experiência que os seus porque dirige mais.
— Jake, você não quer ir lá. Portanto, vamos ao Gaslight. Quem sabe consigo espetar um alfinete naquele traseiro de borracha?
Foram ao Pompeii-Hoje.
Não houve dificuldade para entrar e o clube tinha uma sala de jogo para os guarda-costas dos patrões. O maître d'hôtel levou-os a uma mesa de pista em frente da orquestra e retirou o aviso de «Reservada» que havia nela.
— Esta lhe agrada, Mr. «Jones»?
— Sim, obrigado — respondeu Salomon.
Logo que eles sentaram, trouxeram dois baldes de prata com garrafas de champanha. O maître d'hôtel tirou das mãos do sommelier um magnum e mostrou-o a Salomon, que disse:
— Esse aí foi um ano fraco para o Pol Roger. Tem Dom Pérignon 95?
— Imediatamente, senhor.
O sommelier saiu apressado. O maître d'hôtel perguntou:
— Há algo mais que não esteja a seu gosto, senhor? Joan Eunice inclinou-se para Jake.
— Por favor, diga-lhe que não gosto desta cadeira. Foi desenhada por Torquemada. *
* Tomás de Torquemada (14207-1498), grande inquisidor espanhol, um dos mais sofisticados torturadores que a história conhece (N. do T.).
O encarregado do salão ficou aborrecido.
— Lamento que madame pense assim de nossas cadeiras. Elas nos foram vendidas pela fornecedora de móveis número um para hotéis e restaurantes.
— Pode ser que sim — respondeu Joan —, mas se o senhor pensa que vou passar a noite inteira empoleirada numa lança e fingir que é divertido, está muito enganado. Jake, devíamos ter ido ao Gaslight.
— Talvez. Mas agora estamos aqui. Um momento, querida. Maître d'hotel...
— Sim, senhor?
— Sem dúvida há aqui um escritório.
— Há, sim senhor.
— Com uma escrivaninha e uma cadeira. Provavelmente uma acolchoada, giratória, de braços, e espaldar ajustável. Um homem que fica de pé o tempo que o senhor fica, necessita de uma cadeira confortável quando descansa.
— Tenho essa cadeira, senhor e — embora não seja adequada para uma sala de jantar — madame poderá usá-la se quiser. Vou mandá-la.
— Um momento. Num clube com tantas atividades — o senhor tem salão de jogos e outras coisas, não? — tenho a certeza de que é possível reunir um certo número dessas cadeiras.
— Hum, vou tentar, senhor. Embora os outros freqüentadores possam achar estranho que forneçamos cadeiras especiais a esta mesa.
Mr. Salomon olhou em volta. O local tinha menos de meia casa cheia.
— Oh, penso que se o senhor explicar a quem reclamar como é caro esse serviço especial, ele certamente não vai querê-lo. Ou poderá dar um jeito de acomodá-lo, também, se estiver disposto a pagar. Acho que aqueles guardas disfarçados de garçons que estão de pé junto às paredes da sala poderão cuidar dos recalcitrantes.
— Todo o nosso pessoal é de guardas, senhor... disposto a tudo. Muito bem, senhor, se puder esperar alguns instantes, seu grupo terá cadeiras de escritório.
Distribuiu rapidamente a carta dos vinhos e a das drogas e saiu. Roberto e Winifred já estavam dançando. Joan tornou a se inclinar para Jake e disse:
— Jake, quer comprar este local para mim?
— Gosta tanto dele assim?
— Não. Quero fazer uma fogueira com essas cadeiras. Eu havia esquecido as indignidades que as boates esperam que os fregueses aceitem.
— Você é louca.
— Pretendo ser. Jake, a maior parte das coisas erradas deste mundo poderiam ser endireitadas se os clientes gritassem cada vez que se sentissem roubados. Mas não saí para reformar o mundo hoje. Quero apenas uma cadeira confortável. O couvert — verifiquei quando fiz as reservas para «Mr. Jones» — é bastante alto para comprar uma cadeira decente. Quais são essas «tantas atividades»? Um prostíbulo lá em cima, talvez?
— Eunice, está vendo aquelas três mesas de elegantes naquele canto? Homens e mulheres atraentes, todos jovens, todos sorridentes, sem testas franzidas, cada um com uma taça de champanha que poderá conter Ginger-Ale? Há grandes probabilidades de que, ia que os gregos têm um nome para aquilo, eles tenham um preço também para aquilo.
— Ora, uma das moças não parece ter mais de doze anos.
— Talvez nem isso. Quem vai verificar idades numa Área Abandonada? Pensei que você não ia reformar o mundo esta noite, minha querida...
— E não vou. Se o governo não pode policiar estas áreas, muito menos eu. Mas detesto ver crianças exploradas. (Gêmeo, aquela criança linda pode ter um Q.I. de oitenta e nenhuma outra profissão possível... pode até pensar que tem sorte. Orgulho do seu trabalho. E considerando onde está, pode ser que tenha um implante ou uma ligação de trompas... não como aquela chefe de torcida de que lhe falei) (Eunice, isso não a aborrece?) (Um tanto cumpincha, mas só um tanto. As pessoas em geral são o que são porque lhes interessa... aprendi isso com Joe. A mãe da menina pode ser uma das outras belezas na mesa... as duas juntas farão de você um cadáver. Quer salvar ambas?) (Oh, cale-se, querida. Vamos nos divertir) (É o que desejo)
Uma garçonete veio e tornou a encher os copos. Era bonita e estava vestida de sandálias, cosméticos e uma cuidadosa depilação. Sorriu e retirou-se.
— Jake, esta é uma delas?
— Não posso dizer, não conheço as normas da casa. Chocada, Eunice? Disse-lhe para não vir aqui.
— Chocada com pele? Querido Jake, esqueceu que minha geração nada tem contra a nudez.
— Hrrrmf! Mais um comentário igual a este e chamarei você de «Johann» o resto da noite.
— Serei boazinha. Em geral. Querido, nossa garçonete me fez lembrar de repente do Chesterfield Club. Kansas City, nos dias de domínio da máquina Pendergast. Novecentos e trinta e quatro.
— Em novecentos e trinta e quatro, eu mal tinha saído dos cueiros, Eunice. Era parecido com hoje?
— Sem tanta pompa falsa e com preços mais baixos, mesmo considerando a inflação. Mas por outro lado, quase igual. Era especializado em nudez completa, mesmo ao meio-dia, no «Almoço dos Comerciantes». Na mesma rua do Banco Federal de Reserva. Jake, ela está voltando. Descubra para mim.
— Como? Nem tenho um pretexto para gratificá-la.
— Simplesmente perguntando, querido, perguntando a ela se está disponível. E ao mesmo tempo dê-lhe dez dólares. Ela não ficará zangada. A garçonete chegou sorrindo e disse:
— Já escolheram na lista das drogas? Temos todas as drogas ilegais, ao preço internacional de tabelado, mais vinte e cinco por cento. Garantidamente puras, nós as conseguimos de fontes governamentais.
— Eu não quero, obrigado, querida. E você, Eunice? Uma viagem?
— Eu? Não tomo nem aspirina. Mas quero novo suprimento de champanha. E gostaria de comer um sanduíche ou coisa assim, Chiquita. Vocês têm cozinha?
— Há sempre um chef gourmet de serviço, madame. Está escrito no rodapé da carta de vinhos. Tudo, desde tira-gosto até lagostas do Maine. Quer ver um cardápio?
— Não, obrigada. Prefiro uma enorme bandeja de pequenos sanduíches para todos nós, Jake. E não esqueça o outro assunto.
Joan Eunice viu Jake sacar uma nota de dez dólares, que desapareceu, fazendo Joan supor que a moça devia tê-la dobrado com uma das mãos e empalmado. Jake falou com ela num tom mais baixo que o da música.
Ela sorriu e respondeu alto:
— Não, senhor, não me permitem nem mesmo dançar com os fregueses... e não estou nesse ramo do negócio. Sou casada. Mas posso dar um jeito. — A garçonete deu uma olhada nos «elegantes» e tornou a encará-lo. — Para o senhor? Ou para ambos?
— Para nenhum — respondeu Jake. — Foi só curiosidade.
— Curiosidade minha — acrescentou Joan. — Desculpe, querida. Eu não devia ter pedido a ele que lhe perguntasse.
— Madame, um caixa-alta pode fazer quantas perguntas quiser. As crianças precisam de sapatos. — Sorriu. — Gêmeos. Meninos. Dois anos de idade. Fui licenciada para ter dois e agora estou discutindo com a Junta se gêmeos preenchem minha licença. Antigamente gêmeos eram considerados como licença para um filho. Também quero ter uma menina.
— Jake, seja um caixa-alta outra vez. Quero fazer... — Joan inclinou-se para a frente e leu o nome da moça, tatuado acima do seio esquerdo — outra pergunta a Marie.
— Ele, na verdade, pagou por mais de uma pergunta, madame. Mas uma segunda nota desapareceu tão rapidamente quanto a primeira.
— Marie, você mora dentro da zona controlada pelos delinqüentes juvenis? Com filhos?
— Oh, meu Deus, não! Meu marido nunca permitiria. Um ônibus blindado e armado me apanha depois da ceia e me leva para casa a tempo de tomar café. A maioria de nós o utiliza. Exceto... — Indicou a exceção fazendo um meneio de cabeça em direção ao canto. — Meu marido trabalha de noite em Timken... nós combinamos muito bem.
— Quem cuida dos seus gêmeos de noite? Um berçário?
— Oh, não. Mamãe mora conosco. Não há problemas. Realmente,
madame, este é um bom emprego. Fui garçonete em lugares onde tinha de usar uniforme... o trabalho era pesado e as gorjetas pequenas. Aqui o trabalho é mole e as gorjetas são habitualmente altas. Oh, às vezes um freguês fica bêbado e bolinador, mas não me ofendo facilmente... além disso, os bêbados são freqüentemente os que dão melhores gorjetas. Nunca tive problemas. Os guardas estão sempre de olho.
— Sorriu para Joan. — A senhora poderia ter um emprego aqui num
piscar de olhos, madame. Basta ter maneiras simpáticas e bom aspecto... e a senhora tem os dois.
— Obrigada, Marie.
— Preciso ir. O maître está levando um grupo para outra das minhas mesas. Licença, por favor... os sanduíches já virão.
A moça foi embora. Joan disse:
— Jake, você diria que ela achou seu lugar?
— Está parecendo. Enquanto mantiver a aparência e economizar dinheiro. Ela não contará tempo aqui para a Previdência Social. Este trabalho não é cadastrado, está fora dos esquemas.
— Ela não paga imposto de renda?
— Oh, claro! O fato da sua renda não existir legalmente nada significa para os fiscais. Embora ela possa escamotear uma boa parte... espero. Minha querida, vamos experimentar esta música?
— Jake, pensei que você não dançasse.
— Não danço este troço moderno, mas posso tentar se você quiser. Será que esse conjunto toca rock? Este troço moderno tem tão pouco ritmo que não sei como podem chamá-lo de música para dançar.
Joan deu uma gargalhada.
— Sou tão mais velha que desprezo o rock em vez de gostar dele. No meu tempo era o swing, Jake, e mais remotamente era o bunny hug... embora eu não tenha aprendido a dançar até que o fox-trot suplantasse todos.
— Posso dançar o fox-trot, pois não sou tão moço assim. Mas duvido que esse bando de harpistas desafinados possam tocar um. Eunice, você dança tango?
— Me tire, me tire! Aprendi quando Irene Castle ainda estava viva... e com este corpo sou oito vezes melhor do que era. Andei ensinando a Winnie. Você guia com firmeza?
— Com a suficiente para você, meretriz. Vou chamar o maître... talvez eles possam tocar um. É o único tempo musical que permaneceu imune à moda.
— Claro, Jake. Porque o tango, quando dançado corretamente, é tão sexy que você tem de se casar depois. Veja se eles podem tocar um.
Mas foram interrompidos por quatro ajudantes de garçom, que traziam quatro cadeiras giratórias e Joan achou que seria cortês sentar um pouco nelas, já que havia feito toda a onda. Os sanduíches chegaram com mais champanha e ela descobriu que queria ambos: a bebida para ficar tocada e os sanduíches para forrar o estômago, de maneira a não ficar tocada depressa demais. Roberto e Winifred voltaram para a mesa. Winnie disse:
— Oh, comida! Adeus esbelteza! Bob, você me amará quando eu estiver gorda?
— Quem sabe? Vamos esperar para ver — respondeu, estendendo a mão direita para pegar um sanduíche e a outra para o champanha.
— Simpática, jogue a Coca no balde do vinho e tome champanha.
— Joanie, sabe que eu não devo. É a minha diferença.
— Mas desta vez há comida para garantir... e não são as mesmas circunstâncias.
Winifred corou.
— Vou ficar bêbada. E boba.
— Roberto, quer prometer a esta pobre criança que, se ela desmaiar, você a levará para casa sã e salva? (Que é que tem a casa de segura, gêmeo? Você tem de agüentar a mão) (Bobagem, Eunice! Nosso homem não quer casar conosco... por isso, que quer que eu faça? Não me entrego a homens a quem não respeito e levei anos para me decidir. Tenho quase noventa e cinco anos... tarimbados... saudáveis... não posso magoar ninguém fisicamente e não quero ofender ninguém socialmente... tanto o orgulho como outra coisa de um homem. Por que não posso ser «Smith Sem Calças»?) («Penso que a dama está protestando demais». Patrão, sua formação religiosa está fazendo com que se irrite outra vez. Certamente que o sexo não é pecado... mas o senhor no fundo não acredita nisso) (Acredito! Sempre acreditei. Tenho me portado com bastante assanhamento para fazer você feliz. Por que fica me atazanando?) (Amado patrão. O senhor tem demonstrado um incrível talento para fazer malabarismos com ovos, tenho me divertido à grande e espero que o senhor também) (Você sabe que tenho. Tanto que temo estar perdendo meu senso crítico. Minha cautela, aliás. Eunice, nunca sonhei o quanto mais pode significar ser mulher. É o nosso corpo inteiro)
A sala agora estava apinhada. As luzes mudaram e o show no palco começou: dois cômicos. Joan ouvia, fingia estar gostando e procurava se divertir tentando lembrar havia quanto tempo ouvira cada
«nova» piada daquelas. Só pôde perceber uma melhora no ato: a história «suja» da juventude dela (dele) havia sumido. Sendo baseada no choque produzido pela quebra de tabus, a história suja sangrara até morrer quando os tabus deixaram de existir. Era sexo humorístico: os cômicos o usavam à vontade. O sexo permanecia eternamente a coisa mais cômica num globo cansado. Mas era difícil extrair uma boa piada do que antigamente fora apenas para chocar.
Joan porém aplaudiu os cômicos quando eles saíram. As luzes se apagaram e o chão da pista de danças transformou-se imediatamente num pátio de fazenda. Ela ficou mais interessada tentando adivinhar a técnica daquela «mágica» do que ficara com os cômicos.
O pátio de fazenda estava sendo usado para uma das mais antigas (possivelmente a mais antiga, pensou) de todas as histórias a respeito de sexo e estava sendo representada de maneira estilizada, com símbolos muito antigos, tanto nas roupas como nos acessórios: o fazendeiro, a filha do fazendeiro e o malandro da cidade, com suas notas de cem dólares. Era uma pantomima, com acompanhamento orquestral.
Joan murmurou para Jake:
— Se ela é filha de fazendeiro, sou Adolf Hitler.
— Que sabe você de fazendas, minha querida?
— Muito, para um garoto da cidade. Quando era criança, passei em uma quase todos os verões. Quando fui para a escola e para a universidade, participei de colheitas: ganhei um bom dinheiro e, de vez em quando, uma garota da fazenda. No fundo do coração, sempre fui camponês... queria ter o maior monte de bosta do vale... e consegui, só que virou dinheiro. Jake? Não podemos comprar uma fazenda abandonada? Um lugarzinho pacato, com ponte levadiça e fosso, com usina de força e água próprias? Sair desta cidade moribunda?
— Se quiser, querida. Está se aborrecendo aqui? Quer ir embora?
— Não no meio do ato, querido. (Estou curioso de ver como se desenrola a tapeação) (Eu também!)
Para surpresa dela, os artistas não tapearam. O dinheiro levou a «menina da fazenda» de ofendida a pudica, de pudica a concordante, de concordante a uma colaboração ativa, tendo um monte de feno como local do sacrifício. E o ator e a atriz trataram de fazer com que os espectadores pudessem ver que não havia tapeação. Winifred ficou ruborizada até os seios mas não tirou os olhos de lá.
O final teve uma variação que Joan-Johann concordou que era nova para ela-ele. À medida em que os movimentos aumentavam vigorosamente e a orquestra fazia pausas para que se ouvissem guinchos e grunhidos, o «Fazendeiro» apareceu (como era esperado) com um forcado. Mas o feno pegou fogo, aparentemente por causa da ação, fazendo com que o «Fazendeiro» largasse seu forcado e pegasse uma garrafa de soda, convenientemente à mão sobre uma mesa vazia, e inundasse sua «Filha» e o «Malandro da Cidade» com o jorro, apagando o fogo... Mirou primeiro na aparente fonte do incêndio.
Joan achou que valia a pena aplaudir. Winifred, hesitante, imitou-a, mas passou a bater palmas entusiasmada quando Roberto o fez. Jake acompanhou-os, mas foi interrompido.
— O que é, Rockford?
Joan virou a cabeça, surpresa. O motorista-guarda-costas de Jake parecia muito perturbado.
— Mr. Salomon, preciso falar com o senhor.
— Já está, continue.
— Hum... — Rockford procurou falar só para o patrão, mas Joan leu seus lábios. — Aquele maluco do Charlie deu um jeito de ser morto.
— Oh, pelo amor de Deus! Onde? Como?
— Agora mesmo. Na sala de estar dos guardas. Não estava bêbado. Este boteco é duro, não deixam os guardas beber. Estávamos jogando pôquer e Charlie ficou atazanando um tal Polack. Sem razão e eu lhe disse que parasse. Mas Charlie não ligou. Polack ficou furioso, porém tentou evitar a luta. Charlie continuou enchendo o cara e... oh, que inferno: Polack quebrou o pescoço dele. Antes que eu pudesse passar para o outro lado da mesa. — Rockford acrescentou: — Patrão? Considerando onde estávamos, eu poderia ter dado sumiço nele. Teria sido melhor?
— Claro que não. Tenho de comunicar o fato e o corpo deve ser mandado para o necrotério. Que inferno, Rocky, eu era o responsável pelo livramento condicional dele.
— Sim, mas talvez o senhor não tivesse sabido? Ele fugiu. Caiu fora.
— Cale-se. — Salomon virou-se para Joan. — Minha querida, lamento muito.
— Jake, eu nunca deveria ter pedido para você me trazer numa A.A.
-—Não tem nada uma coisa com a outra. Charlie era um assassino congênito. Rockford, chame o maître. Não, me leve ao gerente. Amigos — Bob, Winnie — esperem aqui, por favor. Tenho de cuidar de algo.
Garcia disse:
— Percebi a maior parte da conversa. Leve-me com você, Jake. Posso atestar o óbito... é inteligente fazer isso logo.
— Hum... quem ficará com as moças? Joan segurou o braço de Jake.
— Jake, Winnie e eu estamos a salvo... há montes de guardas. Acho que vamos ao toalete. Eu preciso e Winnie provavelmente também. Vamos, Winnie?
A festa acabou mas passaram-se duas horas antes de poderem voltar para casa. Havia detalhes demais, aborrecidos mais que legalmente complicados, pois o Dr. Garcia atestara o óbito e o gerente, Mr. Salomon e Rockford testemunharam que a morte ocorrera numa Área Abandonada nas mãos de pessoa ou pessoas desconhecidas. Desconhecidas mesmo, pois a sala de jogo estava vazia, a não ser pelo corpo. Não havia dúvidas na sindicância: acontecera numa Área Abandonada e não fora um crime de fato nem em qualquer sentido prático de júri. Ninguém lamentou. Mesmo Rockford não gostava do seu companheiro de trabalho. Simplesmente respeitava-o, como um gatilho ligeiro num aperto. Para Garcia, Jake resmungou que deveria saber muito bem que era impossível tentar reabilitar um congênito... e não ter pena, pois, como Garcia acreditava, tais criaturas deveriam ser exterminadas tão logo fossem identificadas.
Ambos procuraram ocultar os aspectos desagradáveis às moças.
Winifred e Joan ficaram uma hora sozinhas na mesa, bebericando champanha e fingindo estarem se divertindo, enquanto os homens resolviam o problema. Mas Joan foi ajudada num ponto: o corpo devia ser enviado ao necrotério e Jake não estava disposto a entregar o trabalho ao gerente, pois tinha a certeza de que o atirariam fora. Nem estava disposto a mandar Rockford sem alguém para servir de guarda-costas. Assim, levaram um telefone para Joan, que chamou O'Neil. Este atendeu imediatamente e ela ficou imaginando se seu chefe de guardas costumava dormir.
Finchley e Shorty estavam de serviço. O'Neil informou que eles partiriam imediatamente. Mas Joan ordenou-lhes que primeiro apanhassem Fred, para servir de guarda-costas a Rockford. Pensou um pouco e disse a O'Neil para mandar o dispenseiro noturno colocar uma ceia fria e uma caixa de champanha gelada na sua sala de estar: a «noite de farra» transformara-se num fracasso. Queria se danar se deixasse as coisas ficarem assim. Charlie morto era muito melhor e seu assassinato não provocou nem uma lágrima de crocodilo. Dez mil seres humanos morreram em todo o globo na mesma hora que ele. Por que chorar por causa de um inútil? (Eunice, o que acontece com uma titica como Charlie depois da morte?) (Não sou autoridade no assunto, patrão. Talvez os maus morram definitivamente... como um oleiro destruindo um trabalho defeituoso. Pergunte na Administração)
(Não conheço o comprimento de onda de lá, querida. Talvez você possa me responder: como posso fazer esta festa ficar animada outra vez? Olhe Winnie: bebendo champanha, mas sem sorrir) (Patrãozinho, recomendo mais champanha e Money Hums, meio a meio) (Eunice, pensei que você fosse contra bebidas) (Eu nunca disse isso, patrão. Não bebo porque não preciso. Mas nada é bom ou mau em si mesmo, só os efeitos o são. Experimente. Mal não faz e pode ajudar)
Assim, quando os quatro finalmente chegaram à enorme e horrenda fortaleza, Eunice insistiu para que fossem até sua sala de estar para o drinque de despedida e uma boquinha.
— Quem sabe? Poderemos ter ainda vontade de dançar. Roberto, Winnie já lhe mostrou nossa prática de relax? O Money Hum?
— Tentei ensinar-lhe, Joanie. Mas Bob é um cínico incorrigível.
— Jake, vamos descinicar Roberto. Pensei numa forma nova de salmodiar. Sentamo-nos em círculo e passamos em volta uma taça. Três salmodiam enquanto um bebe e passa a taça ao seguinte.
— Voto Sim — respondeu Jake. — Doutor, se quiser ser cínico, seja sozinho: na minha suíte há uma cama para hóspedes. Nós faremos um triângulo.
— Acho melhor eu ficar para manter a festa em ordem.
— Muito bem, senhor. Mas, uma palavra imprópria enquanto estivermos fazendo nossas devoções e o senhor será punido severamente.
— De que maneira? Joan Eunice respondeu:
— Sendo obrigado a beber a taça toda sem ajuda, é claro, e então começar outra vez.
Joan Eunice acordou sentindo-se repousada mas sedenta. Olhou para o teto, viu que passara das dez e pensou em ligar as luzes do chão, como uma suave medida preliminar para acender as lâmpadas mais fortes.
Então percebeu que não estava só. Deveria acordar Jake suavemente... para lhe dar um alegre bom dia? Ou sair devagarinho da cama e voltar para seu quarto, esperando não ser vista? Ou isso teria importância? Já seria ela motivo de fofoca dentro da própria casa?
Fosse como fosse, o melhor seria não acordar Jake. O coitadinho estava pensando em viajar para Washington naquela noite. Começou a escorregar para fora da cama.
O homem ao lado dela estendeu um braço e puxou-a para ele. Ela cedeu imediatamente, tornando-se macia e desossada.
— Não sabia que você estava acordado, querido. Eu pensava em.., Roberto!
— Pensou que fosse o Papai Noel?
— Como veio parar aqui?
— Você me convidou.
— Eu? Bem, é verdade, convidei. Isto é, disse-lhe que era bem-vindo na minha cama, faz tempo. Mas onde está Jake? Foi dormir onde? E Winnie?
Acendeu as luzes do chão e viu que estava, como desconfiava, na sua própria cama.
— Winnie está no quarto ao lado, com Jake.
— Meu Deus, Roberto... finalmente passei uma noite com você. E não me lembro. (Eu lembro! Uau!) (Pois eu não, Eunice. Não em detalhes. Fiquei confuso) (O senhor é uma vagabundinha bêbada, patrão. Mas nos divertimos) (Tenho a certeza. Gostaria de poder lembrar)
O Dr. Garcia deu um suspiro.
— Ah. Bem, não devo me lamentar.
— Começo a me lembrar — mentiu ela. — Quando acordo fico
meio zonza. Você foi especialmente bondoso comigo.
— Você não pensou assim, quando não quis deixá-la vir para a cama pintada.
Joan aumentou a iluminação o suficiente para poder se ver. Notou que as estrelinhas tinham desaparecido, bem como a pintura corporal onde haviam sido coladas. Não as tirara pessoalmente. Logo, alguém o havia feito. Não fora Winnie... esta ficara bêbada como uma cabra.
— Foi a isso que quis me referir quando falei em «especialmente bondoso», Roberto. Não são muitos os homens que tomam tanto cuidado com uma prostituta bêbada. Dei muito trabalho?
— Na verdade não. Mas você estava bastante tocada.
— Muito?
— Muito não. Apenas agradavelmente.
— Não tenho certeza de estar entendendo e acho que não quero entender. Querido Roberto, mesmo que eu tenha ouriçado, obrigada por ter me limpado. Só uma vagabunda vai pintada para a cama. Sou uma puta, mas não quero ser vagabunda. (Oi, vagabunda!) E obrigada acima de tudo por uma noite maravilhosamente agradável. Espero não ter estado bêbada demais e também dado o mesmo a você.
— Eunice, você pode ser mais mulher fora de si que a maioria consciente.
— Que bom você ter dito «pode ser» em vez de «é». Mas, Roberto, estou inquieta. Não por nossa causa, querido, mas por Winnie. O que houve irá afetar aquela coisa que você estava imaginando? A respeito de Winnie, quero dizer.
— Pelo contrário, Eunice, a idéia foi de Winnie. A noção dela de como comemorar nosso noivado...
— Espere aí! Estou noiva de você?
— Hem? Não, não... estou noivo de Winnie.
— Oh. Roberto, eu casaria alegremente com você, você seria um bom esposo numero uno. Mas não preciso de um e Winnie precisa. Eu sabia disso na noite passada? A respeito de vocês dois?
— Acho que sim. Você disse que não podia esperar para tirar as estrelinhas... estava apressadíssima.
— Falou. Lembro ter ficado ansiosíssima, mas acho que estava muito bêbada para saber por quê. Roberto? Dei o serviço a respeito dos «gregos capturarem Atenas»?
— Acho que não, Eunice. Pelo menos, não quando eu estava presente. Tenho bastante certeza de que Winnie não sabe nada.
— Contarei a Winnie. Não quero é que Jake saiba.
— Eunice? Foi Jake? Capturou Atenas e o Partenon ao mesmo tempo.
— Lembre do Juramento Hipocrático, querido. A resposta pode ser partenogênese. Permita-me que deixe a coisa no ar um pouco mais. Você disse que foi idéia de Winnie? Depois de você lhe ter dito que queria casar com ela?
— Foi.
— Onde ela arranjou coragem para propor isso? Tenho insistido com ela... mas é tão incrivelmente tímida. Coragem alcoólica?
— Sim. Porém minha. Claro, ela é tímida... mas sob seus rubores, Winnie é tão calejada quanto uma enfermeira tem de ser. Ela disse: está bem... se eu a deixasse mostrar claramente que ela não é um anjo. Respondi que não tenho lugar para anjos, na cama ou fora dela. Winnie falou que esperava que eu estivesse sendo sincero, porque estava querendo propor a Jake dormir com ela.
— Roberto, perdi um monte de coisas. Quanto champanha bebi?
— Ninguém contou. Jake ficou abrindo garrafas e eu passando a taça em volta. Enquanto era recitada aquela melopéia. Você bebeu bastante. Todos nós, aliás.
— Hum... fiquei noiva de Jake?
— Não que eu saiba.
— Ótimo. Porque quando Jake souber que estou grávida, vai querer ser nobre. Exatamente como você, querido, mas Jake vai ser muito mais difícil. E descobri que não preciso de marido. E sim de amantes. Você. Jake. Winnie. Alguns outros. Gente que me ame como sou, com pés de barro e tudo... e não por causa de um contrato. Jake criou algum caso com relação às transas de dormir?
— Oh, para falar a verdade, acho que ninguém ficou aborrecido com a sugestão de Winnie. Jake botou Winnie debaixo do braço e disse que estava representando o Rapto das Sabinas.
— O queridinho infiel.
— Então eu peguei você, carreguei-a, lavei-a... Você berrou, protestou e me disse que aquela era a pior forma de cometer um estupro.
— Hummm, acho que eu tinha razão. «In vino veritas».
— Por isso vou pôr agora um travesseiro cobrindo seu rosto para que você não grite nem proteste.
— Você não precisa de travesseiro. Basta botar a mão na minha boca se eu fizer barulho. Mas todas essas portas são à prova de som.
— Você pensa que eu não sei? Depois de ter morado aqui por mais de um ano? Miss Johann Smith, conheço melhor sua casa que a senhora.
— Oh, seu bastardo! Me chame de Eunice. Ou ponha um travesseiro no meu rosto para que eu não possa ouvi-lo. Eu o amo, Roberto... fico tão feliz porque você vai casar com a nossa Simpática!
— Eu também, Eunice. Agora, cale a boca.
— Sim, meu senhor (Unh! Eunice, ninguém nunca me diz nada) (Cale a boca, gêmeo, e preste atenção ao que está fazendo!)
Joan Eunice alcançou o intercom ao lado da cama, bateu na tecla referente a Cunningham e depois pegou a mão de Roberto.
— Pronto, miss?
— Cunningham, quero café para quatro na minha sala de estar.
— Pois não, miss.
— Ou melhor, posto em minha sala de estar, com aquecedores e refrigeradores, sem garçom. Não tenho idéia da hora em que Mr. Salomon e o Dr. Garcia vão acordar, mas quero ser boa hospedeira e servi-los pessoalmente quando estiverem prontos. Porém Winnie e eu queremos comer.
Piscou para o médico e apertou a mão dele.
— Certamente, miss.
— Eles precisam dormir. Diga-me, Cunningham: você me conhece há muito tempo. Já se viu em alguma?
— Desculpe, miss?
— Uma farra, ficar tão alto que não consegue sentir o chão com os pés. Porre e bagunça.
— Algumas vezes — antigamente — me senti assim.
— Então faz uma idéia das delicadas condições em que estamos... pelo menos Winnie e eu. E tenho motivos para acreditar que os cavalheiros não estão em muito melhor situação. Mas foi uma excelente desculpa.
— Ouvi falar no incidente, miss. Lamento.
— Cunningham, não me referi a Charlie. Pode ser uma insensibilidade minha... mas foi um valentão que entrou numa briga e perdeu.
— Oh. Se me permite, miss, ele não era querido aqui embaixo. Hum, na verdade não gostávamos de tê-lo na casa.
— Eu sei. Eu teria dado um jeito nisso há muito tempo se ele não trabalhasse para Mr. Salomon... e devo muito a Mr. Salomon. Não, a «excelente desculpa» foi outra coisa. Estamos comemorando um noivado.
Cunningham perguntou, com precaução:
— Posso dar os parabéns, miss?
Pode, mas não a mim. O Dr. Garcia vai casar com Winifred.
— Oh! Magnífico, miss. Mas vamos perdê-la.
— Espero que isso não aconteça. Esta casa é enorme, Cunningham,
grande demais para uma só pessoa. Ou para duas, se Mr. Salomon puder ser persuadido a nos honrar com sua presença. Embora não imediatamente, devo dizer, ele tem medo de que eu seja atingida por fofocas.
— Hum, posso falar francamente, miss?
— Sempre que não o fizer, Cunningham, ficarei ofendida.
— Mr. Salomon é um cavalheiro educado. Mas se tem medo disso... bem, é uma bobagem. É tudo o que posso dizer. O pessoal da casa não fofoca pela presença dele. Os empregados o respeitam.
— Talvez você possa lhe dizer, pois não quer me ouvir. Mas hoje minha única preocupação é que ele durma o mais possível. Tem de ir a Washington esta noite, como você sabe. Quando trouxer o café, não passe pela porta dele. Venha pelo outro corredor. Não vai incomodar nem a mim nem a Winnie: já estamos acordadas. E faça com que Hubert não comece a amolar por lá até que Mr. Salomon o chame.
— Não irá, miss. Nunca vai.
— Costumava ir às vezes, na época em que cuidava de mim: fazia um barulhinho, quando pensava que eu estava de pé. Portanto, mantenha-o afastado deste andar. Conserve todos afastados até que eu o chame.. isso abrange as arrumadeiras e o resto. Com exceção, é claro, que eu quero que você traga o desjejum — com alguém para ajudar, se você precisar — imediatamente.
— Pois não, miss. Talvez café e suco já?
— Não, não queremos ser incomodadas duas vezes. Meus ouvidos estão doendo. Você encontrará as provas do desastre na minha sala de estar: uma caixa de magnus vazia. Leve-as... silenciosamente. Pelo amor de Deus, não bata umas nas outras. Nesta manhã posso ouvir uma formiga andar. Apanhou o lápis? Queremos um pequeno almoço simples e nutritivo. Pelo menos quatro xícaras de café para cada um, suco de laranja duplo, meias toranjas, as rosas ou as grandes Arizonas, ovos mexidos e escaldados, algumas salsichas e uns bifinhos. É melhor incluir queijos em pedaços e em fatias. Oh, torradas, sonhos, geléia, etc. Pão de forma. E um grande jarro de leite gelado para os cereais, pois acho que esta manhã pede cereais. Um cereal decente, silencioso, um cereal maduro que não estale, quebre ou exploda. Só isso. A menos que você conheça um remédio para ressaca.
— Bem, miss, quando eu trabalhava para Mr. Armbrust, antes de vir para cá, fazia uma mistura que ele apreciava muito.
— Qual?
— Silver fizz, miss, usando vodca em vez de gim.
— Cunningham, você é um gênio. Um para cada, com abundância, em copos térmicos. Em quanto tempo o desjejum estará pronto?
— Não antes de vinte minutos, miss, apesar de Delia já ter começado com as salsichas. Mas posso arranjar logo café e suco.
— Uma única viagem. Depois, cair fora de mansinho com pés de lã. Esta é uma zona hospitalar, Cunningham. Winnie e eu precisamos de pelo menos vinte minutos para meter para dentro nossos globos oculares, que estão fora das órbitas. Não o quero aqui antes de vinte minutos e depois de vinte e cinco. Fim.
Joan desligou o intercom de cabeceira e disse:
— Doutor, fui bem?
— Eunice, às vezes penso que você não é honesta.
— E um dia me transformarei em eremita e não terei de enganar empregados. Roberto, onde estão suas roupas? Na sala de estar?
— É, acho melhor ir buscá-las.
— Pense melhor. Temos ainda vinte minutos de sossego e vamos usá-los.
— Oh, Eunice!
— Coragem, camarada. Não sou uma aranha caranguejeira. Vamos usá-los para juntar todas as roupas na sala de estar, botar as roupas femininas lá, depressa... então levar suas roupas e as de Jake para baixo, para a suíte dele... onde apanharei um roupão, pijama e chinelos para Jake e também para você. Se for um maricas, ficará lá e vestirá suas roupas. Se não for, ficará nu e virá para cá comigo e só se vestirá quando tiver vontade. Então ligarei a lâmpada que avisa a Winnie que estou acordada... o que é melhor que telefonar para os amantes, que podem ainda estar se amando e os amantes não gostam de ser incomodados nessas horas. Venha, homem saudável, peludo, maravilhoso. Dezesseis minutos: podemos fazer tudo em doze, aposto.
— Gatinha, às vezes você me deixa nervoso.
— Oh, bolas, sou dona desta casa. Contudo, posso vendê-la e comprar um campo de nudismo na Califórnia e então prepará-lo só para mim e meus amigos. Roberto, gosto da pele... quando é a maravilhosa que tenho agora. É feita para ser vista e tocada... e não escondida por roupas. Gostou da nossa garçonete ontem à noite?
— Uma moça aparentemente muito saudável.
— Oh, bolas outra vez. Aposto que estava pensando nela quando me levou para a cama ontem à noite. Conheço os homens, querido... fui um durante muito mais tempo que sua vida inteira. Quinze minutos. Vamos embora.
Dabrowski tirou-a do carro e Fred trancou a porta. Ambos a acompanharam e entraram com ela no elevador. Joan Eunice olhou em volta.
— Deve ter sido aqui que aconteceu. O motorista disse:
— Eunice, que bom se você tivesse mudado de idéia.
— Anton, Tom e Hugo deveriam me acompanhar hoje, mas tive medo que os coitadinhos ficassem perturbados quando vissem o interior deste elevador. Pensei que você e Fred pudessem agüentar. Fred, você está nervoso?
— Você sabe muito bem que estou, Eunice.
— A troco de quê? Ela entrou neste elevador sozinha. Eu tenho vocês dois comigo.
— Bem... você é um inferno de teimosa. Não sei o que Ski pretende fazer, mas eu vou ficar esperando do lado de fora da porta até você sair. (Eunice, o que se faz com homens teimosos?) (É difícil, gêmeo, principalmente quando eles nos amam. É preciso usar jiu-jitsu feminino: deixá-los fazer o que quiserem até que isso passe a ser o que você quer) (Tentarei)
— Fred, Eunice morou aqui muitos anos. Sem nenhum perigo, a não ser quando foi cometido um erro. Estou com o rádio ligado e prometo a ambos, solenemente, que só atravessarei a porta de Joe quando souber que vocês estão à minha espera.
— Estaremos esperando, sem dúvida... o tempo todo. Hem, Ski?
— Claro! Eunice, você nem mesmo sabe se Joe Branca ainda mora aqui.
— Acontece que eu sei. Apenas seu telefone foi cortado porque ele não pagou a conta. Joe continua aqui ou, pelo menos, continuava até ontem às dezesseis horas. Olhem, que lhes parece? Primeiro, ambos sabem que Joe não me faria nenhum mal, não é? Anton?
— Oh, claro. Joe pode não querer lhe ver... mas Joe Branca preferiria espantar uma mosca a ter de matá-la.
— Então estou segura enquanto estiver lá dentro com Joe. Mas você tem razão: ele pode não querer me ver. Pode não me deixar entrar. Ou eu ficar lá dentro só uns minutos. Por isso, esperem durante uma hora e depois vão para casa. Telefonarei quando quiser que vocês me levem de volta.
— Duas horas? — sugeriu Fred.
— Está bem, duas horas. Mas se eu não voltar para casa esta noite, vocês não irão voltar e tocar a campainha de Joe. Podem vir aqui amanhã ao meio-dia e esperar uma hora, ou mesmo duas, se isso os fizer sentir-se melhores. E a mesma coisa no dia seguinte. Mas ficarei no estúdio de Joe Branca uma semana inteira, se isso contribuir para aliviar sua cabeça. Ou um mês, que diabo! Ou qualquer coisa. Rapazes, tenho de fazer isto. Não tornem as coisas mais difíceis. Anton disse, sombrio:
— Está bem. Vamos fazer como quer.
— Neste instante sou «Eunice»? Ou «Joan Eunice»? Ele esboçou um sorriso.
— Eunice. Ela faria isso.
— É por isso que eu preciso. Olhem, queridos — passou um braço em torno de cada um — a noite de ontem foi maravilhosa... e darei um jeito de repeti-la. Talvez Mr. Salomon esteja fora da próxima vez. Vocês sabem que ele anda em volta de mim como uma galinha de pintos. Mas vocês também... e não devem. A não ser quando estão funcionando como guardas. Neste instante, preciso achar uma forma de acalmar o espírito de Joe. Mas serei companheira de folguedos de vocês num outro dia. Sejam bonzinhos e me dêem um beijo. O elevador está chegando.
Eles a beijaram. Joan recolocou o véu. Saíram do elevador e se dirigiram ao estúdio de Branca: Joan viu que sabia o caminho de tanto pensar nele.
Ela parou na porta.
— Eunice sempre os beijava se despedindo? Aqui, com Joe olhando?
— Sempre.
— Se ele me deixar entrar, me beijem da mesma maneira. Apenas não se demorem. Ele pode fechar a porta. Oh, estou tremendo! (Calma, patrão. Om Mani Padme Hum. Não aperte a campainha. Experimente a voz na fechadura. «Abra!» Assim mesmo)
— Abra! — disse Joan.
Retirou o véu e ficou de frente para a porta.
A fechadura começou a tinir mas a porta permaneceu fechada. Uma transparência iluminou-se na parede: ESPERE POR FAVOR. Joan ficou em frente ao olho mágico da porta, imaginando se Joe a estava examinando. (Eunice, ele irá nos deixar entrar?) (Não sei, patrão. O senhor não deveria ter vindo. Mas não quis ouvir Jake... nem a mim) (Porém estou aqui. Não me ralhe... me ajude) (Farei o possível, patrão. Mas não sei)
Através da porta, que não era à prova de som como as suas, joan ouviu uma voz aguda:
— Joe! Joe! (Quem será?) (Pode ser qualquer um. Joe tem muitos amigos)
A porta abriu e ela viu Joe parado à sua frente. O rapaz estava com um short muito velho, usado freqüentemente para limpar os pincéis. Seu rosto nada revelava. Uma moça, com uma manta atirada sumariamente sobre o corpo, estava olhando por trás dele.
— Viu? É ela!
— Gigi... volte para dentro. Alô, Ski. Oi, Fred.
— Oi, Joe.
Joan fez um esforço para manter a voz firme.
— Joe, posso entrar? Finalmente ele a olhou.
— Claro, se você quer. Entre, Ski. Fred.
Joe pôs-se de lado. Dabrowski respondeu por ambos.
— Hum, hoje não, Joe. Obrigado.
— Tá. Outro dia qualquer. Bem-vindo. Fred também.
— Obrigado, Joe. Até.
Os guardas viraram-se para ir embora enquanto Joan começava a entrar... recapitulou, lembrando que precisava fazer alguma coisa.
— Rapazes!
Fred beijou-a rapidamente, nervosamente. Dabrowski não a beijou.
Em vez disso, aproximou bem a boca da dela e disse, quase inaudível:
— Eunice, seja legal com ele, se não, vai levar uma surra.
— Serei, Anton. Largue-me.
Virou-se rapidamente, passou por Joe, entrou e esperou. Sem pressa, o rapaz fechou os trincos manuais, levando mais tempo que o necessário.
Virou-se, olhou para ela e afastou o olhar.
— Senta?
— Obrigada, Joe.
Examinou o estúdio em desordem e viu duas cadeiras de espaldar reto junto de uma pequena mesa. Não havia outras à vista. Dirigiu-se a uma delas, esperou que ele tirasse a capa dela... percebeu que ele não ia tirar, então desamarrou-a e deixou-a cair, sentando-se.
Joe olhou-a, carrancudo, parecendo indeciso, e então perguntou:
— Café? Gigi! Preto pra Miss Smith.
A moça estava olhando do fundo da sala. Compôs a manta, se dirigiu para um fogão existente atrás da mesa, derramou café numa xícara e começou a aquecer a água. Joe Branca foi até um cavalete no meio da sala e começou a dar ligeiras pinceladas na tela. _ Joan viu que era um retrato quase pronto da moça chamada de «Gigi» (Ê um quadro barato, patrão) (Como?) (Projeta-se uma foto numa tela sensibilizada e pinta-se por cima. Joe os faz se alguém quer um retrato barato ou a reprodução de um cachorro... mas sempre diz que não são arte)
(Não vejo por que, Eunice. Continua sendo um óleo original) (Eu também não... mas são coisas de artista. Patrão, este lugar é sujo e estou envergonhada. Essa cachorra da Gigi) (Você acha que ela mora aqui?) (Não sei, patrão. Pode ser o desleixo de Joe. Ele gosta da casa limpa... mas não é capaz de limpar. Joe só se interessa por duas coisas: pintura... e rabo-de-saia) (Bem, parece que^ tem ambos. Vi que ele conservou seu calhambeque) (Aposto como não está andando. Joe não dirige)
Gigi preparou o café e o colocou na mesa.
— Açúcar? Não temos leite. — Inclinou-se e acrescentou, num feroz sussurro: — Seu lugar não é aqui!
Joan respondeu calmamente:
— Assim está bom. Obrigada, Gigi.
— Gigi!
— Sim, Joe?
— Trono.
A moça virou-se e o encarou.
— Na frente dela?
— Agora. Preciso de você.
Gigi obedeceu com relutância, desamarrando a manta enquanto andava e deixou-a cair ao começar a subir os degraus do trono. Postou-se na posição. Joan não a olhou, compreendendo sua relutância. Não era vergonha mas falta de vontade de ficar nua diante de uma inimiga (Mas eu não sou inimigo dela, Eunice) (Disse-lhe que poderia ser deprimente, patrão)
Joan provou o café, achou-o quente demais... e muito amargo, comparado com a altamente perfumada — e cara — mistura que Delia preparava. Mas decidiu tomá-lo, assim que esfriasse.
Ficou imaginando se Joe reconheceu o que ela estava vestindo. A La Boutique havia reconstituído, a um grande custo, um costume' que Eunice usara antigamente, um vermelho e preto, no estilo «Meio a meio» do ano anterior, com uma saia de rendas transparente ligando a perna esquerda firmemente ao meio-suéter do lado direito. Joan contratara o artista pintor de corpos mais caro da cidade e o controlara rigidamente para que ele reproduzisse o desenho que Eunice Branca usara com ele, tão aproximadamente quanto sua memória e a voz interior foram capazes de dizer.
(Eunice, Joe estava tão perturbado que não notou como estamos vestidas?) (Patrão, Joe vê tudo) (Então foi pintar para não ter de reparar em nós) (Talvez. Mas nem uma bomba-H faria Joe parar de pintar. Que ele nos deixe entrar, sem dúvida é de espantar... no meio de uma sessão de pose)
(Vai ficar pintando quanto tempo? A noite toda?) (Possivelmente não. Só pinta quando está realmente inspirado. Este trabalho é fácil) Não pareceria fácil para Joan. Pôde ver que o artista estava trabalhando a partir de um esboço preciso, parecendo uma fotografia embaçada de Gigi, como se ela tivesse posado... mas também estava trabalhando usando o modelo, sem seguir, porém, o modelo ou a fotografia. Estava realçando, exagerando, simplificando, dando à carne tons mais quentes, transformando a tela lisa quase em estéreo, em vida real, ardente como a vida, sensual e convidativa.
Talvez aquilo não fosse «arte»... porém era mais que uma fotografia. Joan lembrou de um artista morto havia muito, de quem Johann gostara. Como era o nome dele? Costumava pintar mulheres taitianas em veludo preto. Leeteg? (Eunice, que vamos fazer agora? Ir embora? Joe pouco está se incomodando) (Patrão, Joe está se incomodando terrivelmente. Está vendo aquele tique no pescoço dele?) (Então que devo fazer?)
(Patrão, o máximo que posso lhe dizer é o que eu faria) (Não foi o que eu disse?) (Não exatamente. Toda vez que eu chegava em casa e encontrava Joe pintando com outro modelo, ficava calada e deixava-o trabalhar. Primeiro me livrava das roupas de rua, tomava um banho de chuveiro e removia qualquer resquício de pintura ou maquilagem. Depois arrumava a casa... arrumava apenas, pois a limpeza geral tinha de esperar pelo fim de semana. Então preparava as coisas para os alimentar, visto que Joe e o modelo deveriam estar famintos no fim da sessão. Eles sempre paravam, pois Joe não gostava de sobrecarregar um modelo. Oh, às vezes ele me pintava a noite inteira, porém sabia que eu pediria para descansar se me sentisse esgotada)
(Você está me dizendo para tirar a roupa? Isso não vai deixá-lo ainda mais perturbado?) (Patrão, não estou lhe dizendo para fazer Gigo. A idéia desta visita não foi minha. Mas Joe viu nosso corpo milhares de vezes... e o senhor agora sabe que a nudez não é perturbadora e sim relaxante. Eu achava que era grosseiro ficar vestida quando um modelo estava nu... a menos que eu tivesse a certeza de que ela se sentia à vontade comigo. Mas não estou lhe dizendo para agir assim. O senhor pode ir dar uma espiada no olho mágico para ver se Anton e Fred ainda estão aqui — devem estar — destrancar a porta e ir embora. Confesse que não conseguirá reunir novamente as duas metades)
(Pensei que devesse) Joan deu um suspiro, levantou-se... descalçou as sandálias, arrancou o meio-suéter, empurrou a saia de babados para o chão e livrou-se do resto. Joe não podia vê-la, mas Gigi sim: Joan viu a surpresa nos olhos dela que, no entanto, não abandonou a pose.
Joan olhou-a e pôs um dedo nos lábios. Então pegou as roupas, a capa e as sandálias, encaminhou-se para o banheiro evitando (pensava ela) o ângulo de visão de Joe... pendurou as roupas num cabide externo e entrou.
Demorou apenas uns minutos para ensaboar-se e lavar-se, tirando do corpo o preto e o vermelho. (Tiro também a maquilagem do rosto?) (Deixe, você não usa tanto quanto eu costumava usar. Há toalhas no armarinho sob a pia. Ou deve haver)
Joan encontrou uma toalha de banho limpa, três de rosto, achou que não era justo usar a última toalha de banho e tratou de se enxugar com uma de rosto. Olhou-se num espelho, achou que estava passável... e sentiu-se refrescada e relaxada com o banho. (Por onde devo começar?) (Por aqui, é claro. Depois faça a cama, mas veja se precisa de lençóis limpos. Estes estão no móvel com a lâmpada de cabeceira em cima)
O pequeno banheiro foi fácil de limpar porque o detergente e a esponja plástica estavam onde costumavam estar. Desistiu do vaso sanitário: estava limpo mas as manchas deixadas pela água da descarga não reagiam à esfrega. Joan ficou pensando por que uma civilização que podia construir poderosas espaçonaves não conseguia dar um jeito nos encanamentos?
Mas seria uma civilização?
Lavou as mãos e saiu do banheiro. A cama não parecia ter sido usada mais de duas noites e achou que seria um luxo da parte dela mudar os lençóis. Quando começou a esticar os lençóis, reparou que havia batom num travesseiro... e virou a mancha para baixo. (Gigi?) (Pode ser, patrão, é o tom que ela usa. Mas não prova nada)
(E agora?) (Limpe os cantos... nunca mexa nas coisas de Joe. Pode erguer um tubo de tinta e espanar debaixo dele... mas só se tornar a colocá-lo no lugar exato em que o encontrou)
Os cantos a mantiveram ocupada um certo tempo. Muito provavelmente Joe notou-a... mas não deu sinal. O quadro parecia estar pronto, mas Branca continuava a trabalhar nele.
A pia estava atulhada. Joan achou sabão em pó e começou a lavar.
Assim que a louça foi lavada, secada, guardada e a pia ter ficado brilhando como a louça, Joan voltou-se para a despensa. (Eunice, você mantém uma casa com tão poucas reservas?) (Patrão, eu não guardava muitos alimentos estragáveis... mas isso aí era o mínimo que eu sempre tinha. Joe não pensa nessas coisas. Nunca o deixei fazer compras: ele podia voltar com algum novo amigo esfomeado, tendo esquecido o pão, o toucinho e o leite que eu lhe pedira. Olhe no congelador)
Joan achou no congelador alguns pacotes: jantares prontos, uma caixa de sorvete de baunilha quase cheia, espaguete e pizzas de vários tipos. Estas predominavam e Joan achou que não erraria se oferecesse pizza a eles. O que mais? Não havia legumes frescos... Frutas? Sim, uma latinha de salada de frutas, que mal chegava, mas Joan poderia fazê-la render, misturando-a com o sorvete e adicionando biscoitos, se conseguisse achar alguns. Sim, havia de limão. Não era uma refeição substancial, mas Joan não tinha muitos recursos. Começou a preparar as coisas.
Poria a mesa para três? Bem, tanto podia ser aceita como mandada embora. Pôs para três. (Eunice, só há duas cadeiras) (O banquinho da cozinha tem altura ajustável, patrão) (Sou um burro) (Eu nunca teria apostado que o senhor seria capaz de se virar na cozinha) (Talvez eu não fosse, se mamãe tivesse tido uma filha. Apostaria que já preparei mais refeições que você, querida... não que isto seja cozinhar)
Assim que Joan aprontou tudo, ouviu Joe dizer:
— Descanso, Gigi. Joan virou-se.
— Joe, vocês querem comer agora? Está pronto para aquecer. Ao ouvir a voz dela, Joe Branca virou-se e a olhou. Começou a falar e com dolorosa rapidez entregou-se.
Seu rosto ficou descomposto, começou a soluçar e seu corpo desabou lentamente. Joan correu para ele... e parou abruptamente. (Patrão! Não toque nele!) (Oh, meu Deus, Eunice!) (Não piore as coisas. Gigi está com ele. Para o chão, rápido! Om Mani Padme Hum)
Joan caiu na posição de Lótus.
— Om Mani Padme Hum.
Gigi dera um apoio a Joe, suavizando sua queda. Ele sentou-se no chão, com a cabeça apoiada nos joelhos, soluçando, enquanto Gigi, ajoelhada ao seu lado, mostrava no rosto a ancestral preocupação de uma mãe com o filho sofredor.
— Om Mani Padme Hum. (Não, patrão, peça a Gigi para ajudar ao senhor) (Como?) Om Mani Padme Hum. (Peça um círculo. Om Mani Padme Hum)
— Gigi! Me ajude a formar um círculo. Por favor!
A moça ergueu os olhos, pareceu muito espantada, como se estivesse vendo Joan pela primeira vez.
— Om Mani Padme Hum. Me ajude, Gigi... ajude a ambas.
Gigi deixou-se deslizar para a posição de Lótus ao lado dela, joelho com joelho, pegou a mão esquerda de Joan e a direita de Joe.
— Joe! Joe, você precisa ouvir! Complete o círculo conosco. Já!
Começou a entoar junto com Joan.
Joe Branca parou de soluçar, ergueu os olhos e pareceu não acreditar no que estava vendo. Então esticou lentamente as pernas, moveu-se até ocupar o terceiro lado do triângulo e procurou assumir o Padmasana. Seus shorts sujos de tinta eram muito apertados e estavam atrapalhando. Joe olhou para baixo, pareceu confuso e começou a desabotoá-los. Gigi, largando a mão dele e a de Joan, ajudou-o a tirá-lo. Então ele sentou-se facilmente na posição de Lótus e pegou as mãos delas.
— Om Mani Padme Hum!
Assim que o círculo fechou, Joan sentiu um choque percorrer seu corpo, algo como eletricidade. Já sentira aquilo antes, com três, quatro, mas não com tanta força. Depois abrandou para uma suave sensação de calor.
— Om Mani Padme Hum.
A prece passou em torno do círculo, retornou e foi entoada em uníssono. Ainda estavam sussurrando suavemente quando Joan deixou de sentir ou ouvir qualquer coisa... além de uma paz total.
— Acorde. Acorde. Volte.
Joan bateu as pálpebras e sentiu os olhos girar.
— Sim, Winnie? Estou acordada.
— Você disse que o jantar estava pronto para ser aquecido. Vai aquecer? Ou quer que eu faça?
— Oh! — Percebeu que o círculo continuava fechado. — Eu vou.. Se puder.
Joe encarou-a, curioso, mas com o rosto sereno.
— Está bem? Boas vibrações?
— Ela está bem — respondeu Gigi. — Vá fazer pipi e depois comeremos. Lave as mãos. Há terebintina no armário de remédios.
— Tá legal.
Joe levantou-se, estendeu a mão a cada uma, ergueu-as e foi fazer o que lhe mandaram.
Joan foi com Gigi para a cozinha e reparou no relógio do forno de aquecer.
— Gigi, aquele relógio está certo?
— Quase. Você tem de ir embora? Espero que não.
— Oh, não. Posso ficar. Mas estivemos quanto tempo no círculo?
— Uma hora, uma hora e meia, talvez mais. Bastante tempo. Tem importância?
— Não — Joan rodeou a outra com os braços. — Obrigada, Gigi. Gigi colocou seus braços por cima dos de Joan, abraçando-a.
— Obrigada a você. Esta é a primeira vez que eu vejo Joe realmente se comunicando, aceitando seu karma, em paz com ele, desde, hum, desde...
— Desde que Eunice foi assassinada?
— Sim. Ele não conseguia se livrar da idéia maluca de que, se não tivesse ido a Philly* ver a mãe, aquilo não teria acontecido. Sabe que não é verdade... mas também sabe que está nas suas entranhas. Eu que o diga. (Patrão? Diga alô a Gigi por mim) (Revelar o segredo?) (Oh, que inferno, é melhor não. Não creio que ela contasse a Joe... mas não podemos nos arriscar. E as coisas vão indo muito bem assim)
* A cidade de Filadélfia (N. do T.).
— Gigi, acho que Eunice gostaria de agradecer a você. Se ela pudesse. As coisas vão indo muito bem assim, agora.
— Parece. Diga, como devo chamá-la? Não posso falar «Ei, você aí!» Mas Johann Sebastian Bach Smith me parece uma droga de nome para uma moça.
— Agora meu nome é Joan. Hum, meu nome todo é «Joan Eunice Smith». Mas meu segundo nome é uma espécie de homenagem. Sacou?
— Saquei. É lindo, acho que é perfeito... Joan Eunice. (Acho que o senhor é perfeito, patrão. O senhor conseguiu! Sabe por que eu não queria vir aqui? Estava com medo por Joe... mas duplamente por mim) (Eu sabia, querida. Ambos estávamos. E Joe também)
— Gigi, melhor não usar meu segundo nome. Joe pode ficar perturbado. Más vibrações.
Gigi balançou a cabeça.
— Acho que não. Se eu estiver errada, se ele precisar mergulhar no círculo mais tempo, esta noite organizaremos um direito. Ou não, se ele decidir mais tarde.
— Está bem, Gigi, contarei a ele.
— Sim, mas espere até depois de comermos. Um círculo é ótimo e poderei participar de um o dia inteiro, se for necessário. Mas estou
esfomeada. Sanduíche durante cinco horas e quase não tomei café —
Gigi puxou-a e beijou-a. — Portanto, vamos comer.
— Alguém disse «comer»?
— Num minuto, Joe. Estávamos conversando. E também precisamos ligar o gás. Você põe o primeiro níquel, amor, e eu aqueço os alimentos.
— Comece, Gigi.
— Oh, venha comigo. Joe, você aquece os alimentos.
— ... como a sua «Fundação Eunice Evans Branca», Joe. Porque não quero que alguém jamais esqueça Eunice. Especialmente eu.
Joe Branca balançou solenemente a cabeça.
— É bom. Eunice gostaria. — Subitamente sorriu. — Você é legal, Joan Eunice. — Largou a xícara, começou a fazer montinhos de comida e acrescentou: — Sua maquilagem é igual à de Eunice.
— Vi Eunice a usando, Joe, e por isso fiz igual.
— Bom trabalho. Roupa, não pele pintada. Talvez assinatura do pintor?
— Joe, não encontrei ninguém com sua habilidade para isso. Tive de usar o que encontrei. Hum, será possível você me pintar — meu corpo, quero dizer — um dia? Trabalho profissional, com remuneração profissional e sem obrigações.
Joe sorriu e balançou a cabeça.
— Não sou homem de cosméticos, Joan Eunice. Claro, pintei corpo para Eunice, ela gostava. Gigi também, quando quer. Pinto você, claro. Mas nada de remuneração.
— Joe, não quero tomar o tempo profissional de um artista sem pagar. Mas sei o que quer dizer. Pintura com cosméticos para sua mulher é uma coisa, porém não é seu trabalho real.
— Mas divertido — respondeu. — Talvez eu faça trabalho preto-vermelho antes de você ir embora, hem?
— Seria muito bacana da sua parte, Joe, mas não se incomode. Não vou me exibir por aí, vou direta para casa. Porém quero lhe perguntar uma coisa sobre pintura corporal. Lembra que uma vez pintou Eunice como uma sereia e ela foi trabalhar assim?
— Claro.
— Bem... Gigi, isso foi no tempo em que eu era Johann Smith, muito velho e muito doente. Sofria o tempo todo, mas não podia tomar doses grandes de analgésicos. Tinha de agüentar. Porém chegou Eunice, encantadora como uma flor e bonita como uma gatinha, pintada para parecer uma sereia e... Joe, esta é a parte mais engraçada. Não lembro de ter sentido nenhuma dor o dia inteiro, pois estava muito ocupado tentando pensar em outra coisa. E nunca pude. Eunice estava usando um verdadeiro soutien? Ou era pintado?
Joe ficou vaidoso.
— Pintado. Ilusão de óptica. (Patrão, eu lhe disse isso) (Disse, garotinha... e você às vezes também mente)
— Você certamente iludiu meus olhos. Pude ver aquelas enormes conchas, quase pude sentir a aspereza delas. Então Eunice ficou de perfil... e deixei de ter certeza. Passei aquele dia inteiro olhando e fingindo o contrário. Joe, você é um grande artista. É uma pena que prefira telas à pele.
— Não é isso exatamente. Gosto de pintar pele nas telas. Ilusão de óptica eterna. Não apenas um dia.
— Me conformo. Gosto desta — Joan indicou o cavalete com a cabeça. — Gigi, permita que eu lave a louça, por favor. Eu quero.
— Empilhe na pia — mandou Joe. — Inspiração. Composição com duas figuras.
— Tá bem, Joe — respondeu Gigi. — Joan Eunice, está disposta a posar até tarde? Joe disse «duas figuras» e isso quer dizer que você está incluída. Mas lhe aviso que, quando Joe diz «inspiração», a gente não dorme muito.
— Não — negou Joe. — Posso abreviar. Tapear um pouco. Obter posse correta e fazer oito, nove, dez fotos. Então... — Subitamente pareceu infeliz e virou-se para Joan. — Talvez não aqui amanhã? Ou pode ser não quer posar? Raios, esqueci! Pensei que você dormia aqui. Loucura. Raios!
Joan respondeu:
— Não tenho de estar em lugar nenhum em tempo algum, Joe, e ficaria muito honrada em posar para você. Mas... — Virou-se para Gigi: — Posso ficar esta noite? Está de acordo?
— Oh, claro!
— Me admira. Desde que você me mostrou sua aliança, fiquei pensando até onde estava sendo intrometida.
Gigi riu.
— Querida, se você pensa que este anel prende Joe pelo nariz... bem, para mim é melhor não pensar nisso. Joan, larguei Sam mais de um mês antes de deixar Joe me dar este anel e casar comigo. Fiquei tão abobalhada que não pude acreditar. Não sei de outro casal nosso conhecido que seja casado. É bacana... mas ainda tenho acessos de riso. Claro, fique se quiser. Temos uma cama de armar... não é grande coisa, mas poremos Joe nela.
(Atenção, patrão! Isso é dinamite. Aposto dez a um como Joe não vai querer ficar naquela cama) (Claro que não. Eu ficarei. Pensa que sou louco?) (Sinto, patrão, mas penso. Você é amável... porém, tem apenas o juízo suficiente para se livrar de elevadores. Mas não de camas) (Joe quer que eu pose, posarei! Se ele quiser mais alguma coisa, terá também! Tudo)
(Era o que eu temia) (Eunice, Joe não me quer. Gigi é a mulher dele agora) (Tá bem, gêmeo. Mas quando ouvi o senhor dizer pela última vez que o casamento não é uma forma de morte?)
Joe Branca apareceu para ver como iam as coisas. As minúcias dos cuidados da casa pareciam não lhe interessar. Perguntou:
— Você esfregou óleo depois do banho? — e estendeu o braço, passando os dedos pelas costelas esquerdas de Joan. — Não. Gigi.
— Agora mesmo, Joe.
Gigi entrou no banheiro e voltou depressa com um vidro de azeite de oliveira. Disse para Joan:
— Lanolina também é bom, mas prefiro cheirar a salada do que a ovelha. Joe, passe nas costelas que eu passarei nas pernas. Depois passaremos pelo corpo todo, querida, e limparemos. Vamos tirar tudo o que sua pele não absorve. Hummm, há um pouco de pintura aqui atrás, onde você não pode ver, mas o azeite tirará. Joan, minha cor melhorou cem por cento desde que Joe me obrigou a cuidar da pele.
— Você tem uma pele perfeita, Gigi.
— Joe é um tirano a esse respeito. Agora uma esfregadela.
— Não esfregue demais — avisou Joe. — Preciso de pontos brilhantes em fotos sexy.
— Esfrego de leve. Azeite em mim, Joe?
— Da.
— Tá bem, maestro. Joan, vamos polir uma à outra até ficarmos completamente secas, antes de irmos para a cama. Se não estivermos muito cansadas para querer... no importa, lençóis limpos. Joe, você vai dizer às suas escravas que tipo de foto será?
— Claro, preciso de ação. Sincera. Foto lésbica.
— Hunh? Joe, você não pode meter Joan numa foto dessas. Não pode.
— Espere, chapa. Não desenho histórias em quadrinhos. Você sabe. Uma foto tão quadrada que pode ser pendurada numa igreja. Mas com simbolismo tão pesado que uma velha machona pague gaita alta. Mas... Joan Eunice, que tal mudar o rosto?
Parecia ansioso.
— Joe, pinte da maneira que quiser. Se alguém me reconhecer num dos seus quadros, ficarei orgulhosa.
— Legal.
Joe Branca arrumou rapidamente uma plataforma baixa com pranchas de caixas, amontoou sobre ela as almofadas do chão e cobriu tudo com uma colcha espessa.
— Trono. Gigi primeiro. Gigi machona, Joan Eunice namorada.
Colocou-as deitadas, empurrando-as para a posição como um açougueiro manejando a carne, de maneira a que Gigi fosse amparada pelas almofadas enquanto mantinha Joan nos braços, olhando-a dentro dos olhos. A posição de Joan funcionava como folha de parreira para Gigi. Joe ergueu o joelho esquerdo de Joan, de forma a que ele lhe servisse de cobertura. Então colocou a mão direita de Gigi sob o seio esquerdo de Joan, sem cobri-lo, apenas tocando-o, recuou e fez uma careta.
... deu um passo à frente, alterou ligeiramente a composição, movendo-as tão pouco que Joan não pôde perceber que diferença fazia. Aparentemente satisfeito, empurrou almofadas para firmar, de maneira a que cada uma pudesse manter a pose sem esforço.
Pôs uma travessa logo abaixo delas, inclinada com estudada negligência.
— É lira grega — disse. — Título: «Bilitis Canta». Canção começando, ação ainda não. Intervalo precioso. — Olhou-as atentamente, ainda fazendo caretas. — Joan Eunice, você está de barriga?
Joan ficou estarrecida.
— Nota-se? Não engordei uma grama. (Apague e emende: 590 gramas e 90) (Sim, mas não o bastante para se ver. Fora aquela pizza ainda agora, tenho mantido a dieta de Roberto. Você sabe disso)
Joe sacudiu a cabeça.
— O corpo não mostra. Feliz, Joan Eunice?
— Joe, estou terrivelmente feliz. Mas ainda não contei a ninguém.
— Calma, Talma: Gigi não é de falar. — Sorriu aprovando e Joan viu, pela primeira vez, como ele podia ser bonito. — O importante é você feliz. Mãe feliz, filho feliz. Putas grávidas são diferentes. Melhores. A pele brilha, os músculos são firmes e as bolsas sob os olhos desaparecem. O corpo inteiro fica mais afinado. Os olhos podem ver, mas a maioria não pode ver o que eles vêem. Contente por ter você como modelo hoje. Que resolve problema que vem me comendo.
— O que, Joe? Como?
(Eunice, isto está certo?) (Claro, gêmeo. Joe é pró-crianças, desde que elas não o incomodem. Está satisfeito porque você está feliz... e não pensa sobre como isso aconteceu ou o que você vai fazer a respeito. Mas não é insensível. Se estiver sem dinheiro, trará você para cá, procurará sustentar seu filho e continuará não perguntando onde o arranjou. Ele não acha o mundo complicado, querido... portanto para ele... não é)
— Quebra-cabeças. Você parece Eunice mais que ninguém. Mas parece melhor. Impossível. Agora sei por quê. Toda puta parece melhor fazendo a coisa dela.
— joe, você pensa que mulheres grávidas ficam bonitas mais tarde? Digamos, depois de oito ou quase nove meses?
— Claro! — Joe mostrou-se surpreso com a pergunta. — Aí ais bonita. Saudáveis, felizes, prontas para descarregar... como não? Símbolo máximo do Todo. Agora calada. Trabalhar.
— Por favor, Joe, mais uma pergunta: quer me pintar quando eu estiver enorme como uma casa? Entre o oitavo e o nono mês? Pode ser um trabalho rápido. Tem de ser. Talvez eu não tenha condições de posar longamente quando estiver pesada.
Ele sorriu deliciado.
— Com certeza, Tereza. Não é sempre que artistas têm essa chance. A maioria das putas são bobas a esse respeito. Mas agora, calada. Precisa parecer sexy, portanto pense. Não represente... seja. Suada, ávida. Joan Eunice, Gigi despertou você, tornou-a ávida. Mas com medo. Virgem. Gigi, você só ávida. Talvez maligna, mas pense, não faça. Nem mesmo fale. Pense.
Parou para retificar as luzes, fez uma careta para os modelos, passou um pano com azeite no ombro direito e no seio de Gigi.
— Assim! Mamilos empinados? Joan Eunice, não pode mantê-los duros? Procure pensar em homens e não em Gigi.
— Eu dou um jeito — garantiu Gigi. — Ouça, querida. Começou a sussurrar, contando a Joan com detalhes grosseiros o que as gregas lésbicas de antigamente faziam com as virgens desamparadas em seu poder.
Joan sentiu seus seios endurecerem tanto que chegaram a doer. Molhou os lábios e fixou o olhar em Gigi, mal notando que estavam sendo fotografadas.
— Pausa — anunciou joe. — Fora do trono. Hoje chega. Tirei boas fotos.
Joan espreguiçou-se e deu uma olhada no relógio, do outro lado da sala.
— Meu Deus! Melros, já?
— Portanto, cama — disse ele. — Amanhã, pose. Gigi disse:
— Ainda tenho de lavar aquela louça.
— Eu lavo, Gigi.
— Eu lavo, você enxuga.
Quando terminaram, Joe estava na cama de armar, aparentemente adormecido. Gigi disse:
— De que lado você gosta, querida?
— Qualquer um.
— Mergulhe.
JOAN acordou com a cabeça no ombro de Gigi, que a olhava, o que facilitou a Joan lembrar onde estava. Bocejou e disse:
— Bom dia, querida. É dia, não? Onde está Joe?
— Está preparando o café. Dormiu bastante, querida?
— Acho que sim. Que horas são?
— Não sei. O problema é: você repousou? Se não, volte a dormir.
— Estou descansada. Me sinto ótima. Vamos levantar.
— Está bem. Mas cobro um beijo para passar por mim.
— Ultrajante — respondeu Joan alegremente e pagou a taxa. Mas Joe não estava na pequena cozinha. Estava projetando as
fotos que tirara na noite anterior. Gigi disse:
— Olhe só, Joan. Esqueceu completamente que se ofereceu para preparar o café.
— Não tem importância — respondeu Joan, baixinho.
— Não se preocupe em falar baixo. Joe não consegue ouvir quando está trabalhando. A menos que você grite. Bem, vamos dar uma batida e depois tentaremos traze-lo para comer. Hummm... não há muita coisa a oferecer a uma visita.
— Não preciso de um café reforçado. Suco e torradas. Café.
— Não há suco — Gigi fuçou em torno inutilmente. — Posso lhe oferecer um enlatado. Espaguete ou coisa assim. Tenho de ir à mercearia. Se Joe sair para fazer compras, volta com um novo álbum fotográfico ou um quadro, contente como uma criança. Não adianta zangar com ele.
Sentindo uma coisa diferente na voz de Gigi, Joan Eunice perguntou baixinho:
— Gigi, você está a nenhum?
Gigi não respondeu. Continuou com o rosto virado, pegou a metade de um pão e começou a prepará-lo para fazer torradas. Joan insistiu, continuando a falar baixo:
— Gigi, acho que sabe que sou rica. Porém Joe não quer um níquel de mim. Mas você não precisa ser tão teimosa.
Gigi mediu pó para seis xícaras de café. Então respondeu, quase tão baixo:
— Joan, fui prostituta enquanto vivi com Big Sam. Alguém tinha de pagar o aluguel e a metade dos alunos dele não comparecia com a gaita. O resto pagava tão pouco que mal dava para o café e os bolinhos que eles comiam. Que inferno, alguns iam à aula exatamente para comer. Portanto, alguém tinha de trabalhar. Nunca forcei muito os homens — Sam não gostaria se eu fizesse isso com outro homem — a menos que fosse uma coisa incomum desejada por ele. Mas uma velha machona é freqüentemente generosa. Quando precisávamos de dinheiro, eu ia me sentar num dos cafés de lésbicas e levava algum dinheiro para casa... Sam não se importava.
«Tive finalmente consciência de que estava sendo usada por ele e não o sustentando apenas. Aquelas cenas fora do comum... um guru precisa de um cheia jovem para começar ou não dá para a saída. Joan, uma mulher é capaz de tudo por um homem... mas detesta pensar que é uma rua de mão única. Agora veja o Joe. Não vende muitos quadros e habitualmente temos de dividir meio a meio para poder expô-los. Mas Joe não usa uma mulher, por pior que as coisas estejam. — Virou-se para Joan. — Quando posei pela primeira vez para Joe, ele me pagou as tarifas estabelecidas pela liga, nada dessa porcaria de uma prestação agora e outra quando vender o quadro. Recebera algum dinheiro de Eunice. Seguro, suponho. Mas Joe é um molenga e todo mundo lhe pede dinheiro emprestado, gasta e não devolve. Aquele dinheiro sumiu antes de eu ir para a cama com ele e passar a controlar o dinheiro. Alguém está pagando o aluguel e as taxas deste apartamento. Você, talvez?»
— Não.
— Sabe algo a respeito?
— Sei. Um homem que admirava muito Eunice encarregou-se disso. Joe pode morar aqui o resto da vida, se quiser. E eu posso dar uma palavra e o telefone tornar a ser ligado. O corte foi um descuido, quando o aluguel, a luz, a água e tudo o mais estavam pagos.
— Não precisamos de telefone. Acho que metade dos moradores deste andar usam o de Joe como se ele fosse público e grátis... alguns continuam tentando e ficam zangados quando lhes digo que não temos telefone, por favor vão embora, Joe está trabalhando. Hum, o tal homem que admirava Eunice... chama-se «Johann» por acaso?
— Não, não, nem «Johann» nem «Joan». Gigi, não posso lhe revelar sem licença dele e não a tenho, Joe algum dia disse algo sobre o aluguel?
— Para falar a verdade, acho que ele nem pensa sobre isso. Joan, em certos momentos ele é uma criança. Arte e sexo... não repara em outras coisas a não ser quando dá com a cara nelas.
— Então talvez ele não repare nisto. Tenho na bolsa meu contato com o rádio do carro e posso chamá-lo. Se você disser a ele que vai à mercearia, Joe a deixará ir, não?
— Oh, claro. Não fará caso... embora sua mente esteja fixada em pintar-nos o dia inteiro hoje.
— Pois lhe diga que precisa ir e eu ofereci levá-la em meu carro. Podemos fazer um montão de compras, com um carro e dois guardas para carregá-las para nós. Talvez Joe não desconfie que quem pagou fui eu. Ou talvez você possa lhe dizer que vendeu um quadro.
Gigi ficou pensativa. Depois suspirou.
— Você está me tentando, sua putinha gostosa. Mas eu prefiro não fazer isso e comer pizza até que vendamos outro quadro. Ê venderemos. É melhor não se intrometer com um troço que funciona, eu acho.
(Ela tem razão, patrão. Pare com isso) (Mas, Eunice, não há nada para o café, a não ser café e torrada seca. Não importa, mas só há quatro latas aqui e três pizzas: comemos três ontem de noite. E umas coisinhas mais, não muitas. Não posso parar com isto) (O senhor tem de parar. Está querendo cortar os bagos dele? Ou fazê-lo romper com Gigi? Gigi é boa para ele e achará um jeito. Estou ou não estou mais por dentro sobre Joe que o senhor?) (Está, Eunice... mas as pessoas precisam comer) (Precisam, patrão, mas ninguém morre por deixar de comer uma ou duas vezes) (Que diabo, menina, o que é que você sabe sobre ter fome? Eu passei fome nos anos trinta) (Tá bem, patrão, estrague-os. Ficarei calada) (Eunice... por favor! Você disse que eu fui ótimo ontem à noite) (Claro que eu disse e o senhor com certeza foi. Agora mantenha a boa ação deixando-os sozinhos ou achando algum meio de Gigi comprar mantimentos honestamente... mas não lhes dê nada) (Está bem, amada, vou tentar)
— Gigi, isso aqui na geladeira, nesta lata... é gordura do toucinho?
— É. Guardei porque pode ser útil.
— Pode mesmo! E estou vendo dois ovos.
— Bem, é verdade. Mas dois ovos divididos por três é um tanto micha. Porém fritarei um para você e outro para Joe.
— Vá tomar banho, delinqüente infantil. Vou lhe ensinar a cozinha da Depressão, que eu aprendi em 1930.
Gigi ficou subitamente preocupada.
— Joan, você me deixou sem jeito. Não posso imaginar que idade você tem... mas você não é velha, é?
— Depende da maneira de encarar, querida. Lembro da grande Depressão da década de trinta. Eu tinha mais ou menos sua idade. Por essa escala, tenho noventa e cinco. Olhando de outro ângulo, tenho apenas algumas semanas de idade, incapaz de nadar sem ajuda. Sempre cometendo erros. Mas ainda segundo uma terceira maneira de ver, tenho a idade deste corpo — o de Eunice — e quero ser tratada assim. Não me transforme em fantasma, querida... abrace-me e diga que não sou. (Que é que o senhor tem contra fantasmas, patrão?) (Absolutamente nada. Alguns dos meus melhores amigos são fantasmas... mas não gostaria que minha irmã casasse com um) (Muito engraçado, patrão... quem escreve suas piadas? Nós casamos com um fantasma... na sala de exames do Dr. Olsen) (Ufa! Está lamentando, Eunice?) (Não, querido patrão, o senhor é exatamente o velho bode que quero para o nosso bastardinho) (Também a amo, intrometida)
Gigi abraçou-a.
— Primeiro derretemos a banha do toucinho e vemos se não está rançosa... ou muito rançosa. Depois atiramos o pão nela e o fritamos. Mexemos os ovos e já que não temos creme de leite para torná-los homogêneos, usaremos o que acharmos. Decido-me pôr leite em pó, farinha ou fubá. Até gelatina em pó. Não salgaremos ps ovos: a banha pode estar suficientemente salgada. Salgaremos depois, ao provar. Mas se tem molho inglês ou coisa semelhante, poremos um pouco antes de mexer. Então com uma colher botamos esta maluquice sobre seis fatias de pão frito, duas para cada cliente, e salpicamos de páprica ou salsa em pó ou picamos q mais que houver para tornar a coisa enfeitada. Chama-se a isto cozinha criativa à maneira da WPA.* Poremos a mesa da melhor maneira possível: toalha alegre e guardanapos de verdade, se vocês os têm. Uma flor, mesmo que artificial. Ou uma vela. Tudo para ficar atraente. Agora... frito o pão enquanto você bate os ovos? Ou vice-versa?
*Works Progress Administration (N. do T.).
Joe foi relutantemente para a mesa, comeu um pouco sem prestar atenção... e ficou surpreso.
— Quem cozinhou?
— As duas — respondeu Joan.
— Foi? Gostoso.
— Joan me ensinou, Joe, e farei novamente para nós — acrescentou Gigi.
— Breve.
— Está bem. Joan, você sabe ler, não?
— Ora, sei.
— Foi o que pensei. Há uma carta da mãe de Joe, chegada há três dias. Ando querendo encontrar alguém que a leia, mas Joe tem me mantido ocupada posando e é muito complicado a respeito de quem lê as cartas da mãe dele.
— Gigi, Joan é visita. Falta de educação.
— Joe, sou visita? Se sou, não terminarei o café e não posarei... chamarei Anton e Fred e vou para casa! («Foi o que eu disse a ele, gorducha!») (É uma piada vulgar, Eunice) (Eu sou vulgar, patrão. Pensando nisso, o senhor é tão vulgar quanto as piadas que lhe ocorrem, embora eu só tivesse certeza disso depois de ter acordado dentro da sua cabeça) (Desisto. Mas Joe não pode nos chamar de «visita») (Claro que não. Faça beicinho e o obrigue a beijá-lo... ele nunca o fez de luzes acesas)
Joe disse gravemente:
— Desculpe, Joan Eunice. Joan fez beicinho.
— Você precisa merecer. Precisa me beijar e dizer que sou da família. Não «visita».
— Ela tem razão — afirmou Gigi. — Você tem de beijá-la para consertar.
— Oh, inferno. — Joe levantou, deu a volta até a cadeira de Joan Eunice, pegou o rosto dela, ergueu-o e beijou-a. — Família. Não visita. Agora coma!
— Sim, Joe. Obrigada. (Ele pode beijar melhor) (Ambos sabemos) Mas, Joe, não lerei sua carta a menos que me peça. Gigi, você me espantou quando disse que não sabia ler. Pensei que podia adivinhar pela maneira de alguém falar. É por causa dos olhos?
— Os olhos estão bem. Oh, sou uma verdadeira Mulher Falante, Tive educação, fiz um pouco de teatro. Provavelmente deveria ter aprendido a ler... embora não possa dizer que sinto não ter. O computador estragou a gravação dos meus exames pré-escolares e eu estava no sexto ano antes de alguém ter percebido. Então era um pouco tarde para mudar de pista e fique no «prático». Falaram de me mandar para um curso terapêutico, mas o diretor abafou. Disse que não havia verba suficiente para tratar os que podiam se beneficiar com aquilo. — Encolheu os ombros. — Talvez o fato de ele ser um terceira classe tenha algo a ver com aquilo. Seja como for, não sinto falta. Joe, posso apanhar a carta?
— Claro. Joan Eunice é da família.
Joan achou a letra da mãe de Branca difícil e por isso leu primeiro a carta em silêncio para ver se podia ler alto... e ficou perturbada. (Eunice! Como devo tratar isto?) (Gêmeo, nunca diga a um homem o que ele não precisa saber. Eu censurava, quando era necessário. Até sua correspondência, quando o senhor estava grave) (Eu soube disso, assanhada, quando reli umas que você lera alto) (Patrão, algumas foram diretas para a máquina de triturar. E esta devia seguir o mesmo caminho... tanto tem de ser censurada) (Você foi casada com ele, garota, mas eu não. Não tenho o direito de censurar a correspondência de Joe) (Gêmeo, entre ser «direito» e generoso, sei como voto) (Oh, cale-se, não vou censurar a correspondência de Joe!)
— Leva tempo a gente se habituar com letra estranha — disse Joan Eunice, à guisa de desculpa. — Está bem, lá vai:
Querido garotinho:
Mamãe não se sente tão...
— Não leia tudo — interrompeu Joe. — Conte apenas.
— Isso mesmo — reforçou Gigi. — A mãe de Joe escreve uma porção de besteiras sobre vizinhos barulhentos, seus bichinhos de estimação e sobre gente de quem Joe nunca ouviu falar. Ele só quer as novidades. Se houver.
(Está vendo, gêmeo?) (Eunice, ainda assim não vou censurar. Oh, posso deixar de lado as fofocas triviais. Hum, talvez eu copidesque a linguagem) (O senhor fará o melhor possível, patrão, e sabe disso)
— Está bem. Sua mãe diz que o estômago a está incomodando...
(Mamãe não se sente tão bem e parece não haver nenhum alívio. O médico diz que não é câncer do estômago, mas que sabe ele? A tabuleta diz que ele é interno e todos sabem que internos são estudantes e não médicos de verdade. Por que devemos pagar impostos, quando um simples estudante pode quase me matar como se eu fosse um cão ou um gato ou alguma coisa que eles estão sempre cortando por trás de portas fechadas, como dizem na tevê?)
— Joe, ela diz que o estômago anda lhe incomodando, mas que está fazendo exames com um acadêmico de medicina... quer dizer, um médico especializado nessas doenças, muito capaz — e ele garantiu que não é câncer ou coisa semelhante.
(O novo padre não ajuda muito. É um jovem ranhento que pensa que sabe tudo. Não quer ouvir. Garante que tenho um tratamento tão bom quanto o de qualquer outra pessoa, quando sabe que não é verdade. É preciso a gente ser negro para conseguir alguma coisa aqui. Nós, brancos, que construímos este país e sofremos, não passamos de lixo. Quando vou à clínica, eles fazem sua mamãe esperar enquanto as mexicanas entram primeiro. Que acha disso?)
— Ela diz que há um novo padre na paróquia, mais novo que o anterior, que procurou se informar e garantiu a ela que está sendo convenientemente tratada. Mas diz que às vezes tem de esperar muito tempo na clínica.
— Por que não? — disse Joe. — Não faz nada a não ser matar o tempo. Não trabalha.
(Annamaria vai ter filho. Aquele padre ranhento diz que ela deve ir para uma Casa. Você sabe que lugares terríveis são essas Casas, com seus Não-Americanos humilhando as famílias. Eles não fazem isso tio Velho País e foi o que eu disse ao Visitante. Pense na maneira com Que eles jogam dinheiro fora com gente que não merece quando podiam gastar um pouquinho com uma família decente que só deseja ficar no seu canto e não ser chateada. O outro gêmeo Johnson — não o que morreu, o que eu lhe contei que foi libertado condicionalmente — estrepou-se novamente e já era tempo! Há uma família que o Visitante bem podia dar uma olhada... mas oh Não, ele apenas me disse para cuidar da minha vida)
— Alguém chamada Annamaria está grávida. Gigi perguntou:
— Essa qual é, Joe?
— Minha irmã caçula. Talvez treze anos. Joe encolheu os ombros.
— Bem, o pároco acha que ela deve ir para uma casa de futuras mães, mas sua mãe acha que ela ficará melhor em casa. Fala algo também de uma família da vizinhança chamada Johnson.
— Não interessa.
(Garotinho, mamãe nunca mais teve carta sua desde que _ Eunice morreu. Não há mais papel de carta no seu bloco? Você não imagina como uma mãe se preocupa quando não recebe notícias do seu filhinho. Espio diariamente na caixa do correio para ter certeza de que ninguém a limpa antes. Mas nenhuma carta do meu pequeno Josie... só propaganda c o Cheque uma vez por mês)
— Ela diz que não tem notícias suas há muito tempo, Joe. Terei prazer em escrever uma para você, antes de ir embora, tudo o que você ditar... e mandar pela Mercury para ter certeza de que ela receberá.
— Talvez. Obrigado — Joe não se mostrou entusiasmado. — Veremos. Primeiro pintar. Mais? Basta dizer.
(Eunice, agora vem a parte pior) (Pois passe por cima!) (Não posso!)
(Vi você na tevê e quase cai dura quando você disse que desistia de um milhão de dólares a que você tinha direito. Sua mãe não significa coisa nenhuma para você? Não eduquei, amei e cuidei de você quando quebrou a clavícula para ser tratada assim. Vá falar com essa Miss Yohan Bassing Bock Smith e diga a ela que pode parar com aquele olhar de zombaria porque eu quero a parte que me toca e vou buscar. Acabei de falar com um advogado e ele disse que fica do meu lado por meio-a-meio assim que eu lhe der mil dólares para as despesas. Respondi que ele era um gatuno. Mas vá dizer a essa presunçosa Miss Smith que pague ou meu advogado bota ela na cadeia!!!!
Às vezes penso que a melhor coisa é pegar todo mundo e ir visitar você até que ela pague. Talvez apenas ficar. Seria difícil deixar aqui em Philly todos os velhos amigos, mas você precisa de alguém para cuidar da casa, agora que não tem mulher para fazer. Não será a primeira vez que faço sacrifícios pelo meu adorado filhinho.
Sua Mãe Amantíssima)
— Joe, ao que parece sua mãe viu na tevê a audiência da minha identidade e ouviu seu testemunho. Parece desapontada por você ter dado o dinheiro para a criação de uma fundação em homenagem a Eunice, quando poderia ter ficado com ele.
Joe não fez comentários. Joan prosseguiu:
— Ela diz que talvez reúna a família e venha lhe fazer uma visita, mas da maneira como escreveu não me parece que queira. É tudo, exceto que lhe manda lembranças. Joe, posso compreender que sua mãe tenha ficado desapontada com o que você fez a respeito...
— Problema meu. Não dela.
— Posso terminar, Joe? Por esta carta, acho que ela deve ser pobre e como também já fui, sei como sua mãe se sente. Joe, acho que sua fundação de homenagem a Eunice foi uma coisa maravilhosa, o mais galante tributo que já vi de um marido à memória de sua mulher.
Aprovo calorosamente e acho que Eunice deve sentir-se honrada (Estou patrão. Mas talvez ele tenha se excedido, hem? Jake podia ter estabelecido uma pequena anuidade para Joe — pensão alimentícia — com
parte daquilo. Mas Joe nunca soube fazer as coisas pela metade: ou tudo ou nada. Joe é assim) (Talvez possamos dar um jeito, querida)
— Joe, se eu der uma pensão a sua mãe — você sabe que posso arcar com isso! — não significa que você aceite dinheiro pela morte de Eunice.
— Não.
— Mas eu gostaria! Ela é sua mãe e seria uma espécie de homenagem adicional a Eunice. Digamos o bastante para...
— Não — repetiu positivamente. Joan Eunice deu um suspiro.
— Eu devia ter ficado calada e arranjado as coisas com Jake Salomon. — Decorou o endereço da remetente, com a intenção de fazer aquilo, fosse como fosse. — Joe, você é um homem simpático e posso ver por que Eunice era dedicada a você. Também me apaixonei por você e acho que ambos sabem... sem nenhuma intenção de tomar o seu lugar, Gigi: amo você igualmente. Mas, Joe, doce e galante como você é... também é um tanto obstinado. (Claro que é, patrão, mas não adianta querer mudar as pessoas. Por isso desista. O senhor não precisava espiar aquele endereço. Eu podia lhe dar)
— Joan.
— O que é, Gigi?
— Detesto dizer isto, amor... mas Joe tem razão e você está errada.
— Mas...
— Depois lhe conto. Falaremos quando estivermos posando. Vá ao banheiro, se precisar, enquanto ponho a louça de molho. Joe quer começar.
Joan ficou surpreendida ao verificar que podia conversar com Gigi enquanto posavam. Mas Joe lhe garantiu que ela estava com a expressão requerida nas fotografias. Simplesmente desejava que ela ficasse imóvel. Joe esforçou-se mais ainda para dar-lhes uma posição, do que o_ fizera quando fotografara. A conversa não o incomodava, desde que não fosse com ele. Não obstante, Joan tendia a falar sussurrando, enquanto Gigi usava os tons normais de uma conversa entre duas pessoas.
— Agora vou lhe dizer por que você não deve mandar dinheiro para a mãe de Joe. Mas espere um mo... Lá vai ele recomeçar. Joe! Joe! Vista o short e pare de passar pigmento em sua pele. — Joe não respondeu, mas fez o que ela mandou. — Joan, se você tem dinheiro para jogar fora, meta-o na latrina mas não o mande para a mãe de Joe. É uma bêbada.
— Oh.
— Pois é. Joe sabe e o Visitante da Previdência também. Não a deixam receber a pensão familiar em dinheiro: recebe um dos cheques rosados, não um verde. Dá no mesmo porque ela compra mantimentos na esquina e os troca por moscatel. Os distúrbios de estômago... esqueça disso. A menos que queira ajudá-la a beber até morrer. Se fizer, nada se perde. Os filhos poderão ficar melhor.
Joan suspirou.
— Eu nunca aprenderei. Gigi, passei a vida inteira distribuindo dinheiro. Não posso dizer que tenha feito algum bem com isso e sei que fiz muitos males. Eu e minha grande boca.
— Seu grande coração, querida. Esta é a ocasião de não o dar. Eu sei, já me leram um monte de cartas dela. Você censurou esta, não?
— Notou-se?
— Eu notei... porque sei como são aquelas cartas. Aprendi desde a primeira a nunca mais deixar alguém lê-las alto para Joe: ele fica perturbado. Por isso ouço — devoro rapidamente, costumava aprender minhas partes e deixas com apenas duas leituras em voz alta, quando descobri que não dava para atriz — e então adapto para só dar a Joe o que ele precisa saber. Imaginei que você era bastante esperta para fazer o mesmo sem ser avisada e vi que tinha razão. Apenas você podia ter reduzido ainda mais e Joe teria ficado contente.
— Gigi, como pode uma pessoa bacana como Joe — e tão talentosa — sair de uma família como essa?
— Como nos acontece ser o que somos? Apenas acontece. Mas... não é direito difamar os próprios parentes, é?
— Eu não devia ter perguntado.
— Quero dizer que não é direito para mim também. Mas estou. Freqüentemente imaginei se Joe tinha algum parentesco com a mãe. Não se parece com ela. Joe tem uma foto dela quando tinha a idade que ele tem agora. Nenhuma semelhança.
— Talvez tenha saído ao pai.
— Bem, talvez. Mas não garanto pelo velho Branca. Abandonou-a há muito tempo. Se o velho Branca for pai dele. Se é que ela tem alguma idéia de quem é o pai dele.
— Acho que freqüentemente é esse o caso. Veja eu: grávida e solteira. Não posso criticar.
— Não sabe quem foi, querida?
— Bem... sim, sei. Mas nunca, nunca, nunca contarei. Me interessa guardar o segredo e posso me dar ao luxo disso.
— Bem... não é da minha conta e você parece feliz. Mas quanto a Joe: acho que ele é órfão. Filho bastardo de alguém que se meteu com aquela vagabunda, embora não possa imaginar como. Joe não fala a respeito. E geralmente é calado... a não ser que tenha de explicar coisas ao modelo. Mas a mãe exerceu pelo menos uma boa influência sobre ele. Acho.
— Não vejo.
— Joe não gosta de beber. Oh, temos cerveja para os amigos, quando podemos, mas Joe nunca a bebe. Não toca em fumo. Não^ se junta a um Círculo se isso exige entrar no barato. Sabe como é isso das drogas: todas ilegais, mas fáceis de comprar como chicletes. Posso lhe mostrar três conexões, só neste conjunto, onde você pode comprar o que quiser. Mas Joe não toca em nada — Gigi estava meio sem jeito. — Penso que ele foi uma espécie de anormal. Oh, nunca fui viciada, mas não vejo mal algum em fazer uma viagem ocasional com amigos.
«Então fui para a cama com ele e ambos estávamos quebrados. Doces eram o nosso único luxo e... bem, nunca mais toquei emanada desde que ele casou comigo. E não tenho vontade. Me sinto ótima. Uma nova mulher.
— Não há dúvida que você está com saúde e feliz. Hum, esse «Big Sam» era viciado?
— Viciado não. Mas Sam comia, bebia ou fumava tudo o que alguém pagasse para ele. Oh, não ia de pico — a imagem de um guru não combina com marcas de agulha — e tinha orgulho do próprio corpo.
— Que fazia você antes de ser o cheia dele?
— O seu vale de comida, você quer dizer. A mesma coisa: modelo e prostituta. Que mais há para fazer? Cuidar de crianças. Servi bebidas em pêlo durante um certo tempo, mas me mandaram embora quando encontraram uma moça que sabia escrever. Uma discriminação e eu poderia ter lutado, pois nunca confundi os pedidos. Minha memória é melhor que a de gente que precisa escrever as coisas. Mas, que inferno, não adianta tentar se agarrar quando não querem a gente. Joan, você disse que passou a vida distribuindo dinheiro.
— Exagerei, Gigi. Nunca tive muito até que a Segunda Guerra Mundial acabou. Quero dizer que nunca fui mesquinho quando criança, mesmo se cada níquel fosse difícil de obter.
— Níquel?
— Uma moeda de cinco centavos. Costumavam ser cunhadas numa liga de níquel e eram chamadas assim. As de dez centavos e mesmo as de dólar eram cunhadas em prata. Nós tínhamos realmente moedas de ouro quando eu era criança. Então, durante a Grande Depressão, fiquei totalmente liso cerca de seis meses e outras pessoas me ajudaram. Depois, mais tarde, ajudei algumas, às vezes as mesmas que me ajudaram. Mas distribuir dinheiro a granel só comecei quando tinha mais dinheiro do que podia gastar ou queria investir. E as leis de impostos daquele tempo estabeleciam a coisa de tal maneira que se podia ganhar mais dando do que guardando.
— É uma maneira gozada de fazer as coisas. Mas, é claro, eu nunca paguei impostos.
— Você pensa que não pagou. Começou no dia em que nasceu. Poderemos, talvez, suprimir a morte, mas duvido que jamais eliminemos os impostos.
— Bem... não quero discutir, Joan. Você deve saber melhor que eu. Quanto dinheiro você deu?
— Oh, não ultrapassei uns milhares até a Segunda Guerra e a maior parte foram empréstimos que eu sabia que nunca receberia de volta. Conservei registros durante anos... então um dia queimei o livro de lançamentos e me senti melhor. A partir daí... precisaria perguntar ao meu contador. Vários milhões.
— Vários milhões? Dólares?
— Olhe, coisinha, não fique impressionada. Depois de uma certa quantia, o dinheiro deixa de ser dinheiro para ser apenas algarismos num livro de contabilidade ou pontos magnetizados num computador.
— Eu não estava exatamente impressionada e sim confusa. Joan, não tenho sensação de qualquer espécie com tanto dinheiro. Cem dólares eu entendo. Mesmo mil. Mas tudo aquilo é como a Dívida Pública. Nada significa para mim.
— Nem para mim, Gigi. É como uma partida de xadrez: um jogo individual do qual estou cansado. Olhe, você não vai me deixar comprar mantimentos, mesmo se eu ajudar a comer. Quer aceitar de mim um milhão de dólares?
— Hum... não! Isso me assusta.
— Esta é uma decisão ainda mais sábia que a que tomou antes do café. Mas veja o episódio de Diógenes!
— Quem é ele?
— Um filósofo grego que andava à procura de um homem honesto. Nunca achou.
Gigi ficou pensativa.
— Não sou muito honesta, Joan, mas acho que encontrei um homem honesto: Joe.
— Também penso isso. Mas, Gigi, posso dizer por que penso que você foi sábia ao responder Não? Oh, é uma espécie de piada, mas se você tivesse dito Sim, eu não lhe daria. Mas detestaria ter de fazer aquilo com você. Sabe por quê?... Que há de mal em ser rico?
— Pensei que ser rico fosse uma coisa divertida.
— É, de muitas maneiras. Quando se é verdadeiramente rico — e eu sou — dinheiro é poder. Não estou dizendo que não vale a pena ter poder. Veja, se eu não tivesse esse poder brutal, não estaria aqui conversando com você. Estaria morta. E gosto de estar aqui, com você me abraçando e joe nos pintando porque nos acha bonitas... e somos. Mas o poder é uma arma de dois gumes. O homem — ou mulher — que o detenha, não pode se livrar dele. Gigi, quando se é rico não se tem amigos, mas apenas milhares de conhecidos.
— Dez minutos — disse Joe.
— Descanso — explicou Gigi.
— Hem? Mas estávamos descansando.
— Pois levante e se espreguice. Vai ser um dia longo. Se Joe diz que posamos cinqüenta minutos, é porque posamos. Ele tem um cronômetro. E tome uma xícara de café. Eu vou tomar. Café, Joe?
— Quero.
— Podemos olhar?
— Não. Hora do almoço talvez.
— Deve estar indo bem, Joan. Do contrário, Joe não arriscaria um palpite. Joe, Joan me disse que uma pessoa rica não pode ter amigos.
— Ei, espere, não terminei. Gigi, gente rica pode ter amigos. Mas tem de ser alguém que não esteja interessado no dinheiro dela. Corno você. Como Joe. E assim mesmo não significa que seja amigo. Primeiro, precisa encontrá-lo. Depois tem de saber que ele é amigo, o que pode ser — é! — difícil de descobrir. Não há muitas pessoas assim. Mesmo os outros ricos provavelmente não têm as condições. Então é preciso conquistar a amizade... coisa tão difícil para um rico como para qualquer pessoa. Um rico torna-se desconfiado e finge com um estranho, o que não é a maneira de ter amigos. Portanto, em geral é verdade: quem é rico não tem amigos. Apenas conhecidos, mantidos à distância por causa de desilusões anteriores.
Gigi, na cozinha, virou-se subitamente.
— Joan. Nós somos seus amigos.
— Espero que sim. — Joan olhou solenemente de Gigi para o marido. — Senti seu amor no nosso Círculo. Mas não vai ser fácil, Gigi. Joe me olha e não pode deixar de lembrar de Eunice... e você me olha e não pode evitar de imaginar que efeito isso tem em joe.
— Nós não! Diga a ela, Joe.
— Gigi tem razão — falou Joe suavemente. — Eunice morreu. Ela queria que você tivesse o que teve. Eu... o bolo no estômago acabou no Círculo. (Patrão, o senhor se importa se eu sair por um instante e der uma voltinha no meu esqueleto? Uma moça gosta que sintam falta dela um pouquinho) (Eunice, devemos evitar magoá-lo. É tudo o que podemos fazer para curá-lo) (Eu sei. Mas da próxima vez em que ele nos beijar, vou ficar tentada a abrir o verbo e dizer-lhe que estou aqui) (Om Mani Padme Hum) (Om Mani Padme Hum... e merda para o senhor e Diógenes juntos. Vamos para casa e ligar para Roberto) (Ficaremos aqui, querida, até termos quebrado o osso e comido o tutano) (Tá bem, tá bem. Gigi é tão bolinável quanto a Simpática, não é?)
— Joe, quero que nós três sejamos amigos e nunca quebremos nosso círculo dentro do coração. Mas não vou fazer muita força. Não é justo com você, com Gigi/ nem mesmo comigo. Gigi, eu não estava dizendo, que não tenho nenhum amigo. Tenho: vocês dois, um médico que cuidou de mim e que honestamente não liga a dinheiro, a enfermeira com quem ele vai se casar, que é a coisa mais parecida com uma irmã que já tive. Meus quatro motoristas-guardas. Me esforcei em ser amiga desses quatro, Joe, porque sabia que eles haviam sido seus amigos e de Eunice. Mas é uma situação estranha. Sou mais filha deles do que patroa ou amiga. E só me resta um, apenas um amigo dos tempos em que eu era Johann Smith: rico, poderoso e odiado por todos.
Joe disse suavemente:
— Eunice o amava.
— Eu sei, Joe. Só Deus sabe por quê. Exceto que Eunice era tão cheia de amor, que este se espalhava e atingia a todos ao seu redor. Se eu fosse um gato vagabundo, Eunice teria me apanhado e me amado. (Mais que isso, patrão) (Querida) E, Joe, você conhece ou, pelo menos, foi apresentado, ao único amigo a quem me referi acima:' Jake Salomon.
Joe balançou a cabeça.
— Jake é legal.
— Chegou a conhecer Jake?
— De perto. Boa aura. Gigi falou:
— Joe, é aquele sobre quem você me falou? O intermediário?
— Ele — Joe olhou para Joan Eunice. — Pergunte a Jake. Agora, trono.
— Venha, Joan. Ele morde se a gente não posar assim que o período de descanso acaba.
Joe começou a pô-las meticulosamente em posição, moveu ambas as pernas de Joan e uma de Gigi num ângulo ligeiramente diferente da pose original. Recuou e fez uma careta ao ver a mudança... virou-se para o cavalete e começou a raspar a tela com a espátula. Gigi disse, baixinho:
— Agora não iremos ver na parada para o almoço.
— Por quê?
— Só Deus sabe. Não garanto que Joe saiba porque faz uma modificação. Mas algo saiu errado e agora ele abandonou o esboço e está trabalhando diretamente sobre nós. Por isso vai se passar muito tempo antes que tenha vontade de nos deixar ver. Por isso acalme-se, querida. Não espirre, não se coce e nem mesmo respire com força.
— Não falar?
— Podemos falar tudo o que quisermos, desde que não nos mexamos.
— Não quero me mexer. Gigi, fiquei tão satisfeito por saber que Joe e Jake se conhecem bem. Você também conhece Jake?
— Fui apresentada. De passagem. Eu saindo e Mr. Salomon chegando, quando eu era modelo alugado, antes de abandonar Big Sam (Gêmeo, ela está sendo vaga a respeito disso... e Jake nunca mencionou ter posto os olhos em Joe depois de ter acertado tudo com ele, há muito tempo) (Eunice, onde quer chegar? Foi provavelmente quando Jake estava acertando sua conta bancária, o aluguel e coisas assim) («... e coisas», o senhor tem razão. Olhe, patrão, não seja ingênuo. Choraram juntos por causa da mesma mulher — eu — e Joe é ambi como uma ostra quando lhe apetece) (Eunice, você tem uma mente suja!) (E quem me diz isso é «Smith Sem Calças». Sei do que estou falando, gêmeo. Vivi anos com Joe. Não seja tão caretamente século vinte) (Eunice, claro que você conhece Joe melhor que eu, o que me impede de fazer qualquer crítica a ele. Refiro-me a Jake) (O que lhe faz pensar que conhece Jake melhor que eu? E olhe Joe: bacana, hem? Jake tem olhos. Patrão, o senhor está nervoso por quê? Descubra o que Gigi sabe)
— Acho — disse Joan, cautelosamente — que Jake veio cá a negócios. Eunice morreu sem deixar testamento e sei que Jake arranjou as coisas de maneira a que Joe pudesse movimentar a conta bancária dela. E também deve ter havido o seguro para resolver. Não tenho certeza.
— Joan, não sei. Por que não pergunta a Jake, como Joe sugeriu? (Porque Jake vai querer mentir a esse respeito, patrão. Esqueça. Os homens mentem a respeito dessas coisas mais que as mulheres. Alguém se importa onde um homem almoça, desde que chegue em casa ^ na hora do jantar? Eu não. O senhor deu à minha «mente suja» matéria bastante para pensar. Mas, patrão, o senhor é uma tortuosa vagabundinha: não pode ser honesto nem com o senhor mesmo) (Prostituta, se eu pudesse pegar você, lhe daria uma surra!) (E se o senhor pudesse, eu deixaria. É divertido levar uma surra, hem, querido? Faz o ato movimentado como um foguete) (Oh, veja se mete!...) (Onde, gêmeo? O quê? De que tamanho?)
— Não preciso perguntar a Jake, Gigi. Sei que se conheceram por causa de negócios e também sei que Jake admira a integridade de Joe. Simplesmente não percebi que Jake o considerava amigo íntimo. Se é que considera.
Gigi Branca ficou pensativa.
— Não sei dizer. Naquele tempo eu trabalhava no horário estabelecido pela Liga e Joe me pagava. Mr. Salomon — Jake, como você o chama — apareceu uma tarde, quando estávamos acabando e Joe o apresentou a mim como o rábula da ex-mulher dele — advogado, disse ele — Joe não fala gíria quando não quer. Eu o vi mais umas duas vezes, acho, da mesma maneira. Mas não tem vindo aqui desde que nos casamos. (Tapeação, patrão. Traduzindo, significa que ela não quer revelar segredos alheios. Bem, é agradável saber... pensando nisso)
— No importa. Gigi, onde Joe fez sua educação artística? Ou se trata de gênio espontâneo, sem instrução?
— Ambas as coisas, Joan. Vou lhe contar exatamente, pois você levaria a vida inteira para arrancar isso de Joe. Joe diz que todo artista pode aprender sua técnica, mas que a criatividade não pode ser aprendida e que cada artista tem a sua. Se tiver... Joe acha que a maioria das pessoas que se consideram «artistas» não a possuem. Chama-os de «pintores de tabuletas» e acrescenta que é melhor ser um bom pintor de tabuletas a uma fraude que se chama de artista.
«Você viu o que Joe pinta. Aquele meu, ele o fez ontem e outros estão por aí. Pode ver montes mais se perambular pelos bares, livrarias e galerias de arte neste lado da cidade. Nus que parecem mais reais que a vida... não é preciso adivinhar o sexo. A maioria bem caretas, exceto os que são comprados. Oh, Joe pode fazer quadros sexy, já o vi provar isso. Depois ele raspou a pintura... porque perguntei a ele por que não fazia pintura sexy se ele vendia tão bem. Encolheu os ombros e disse que não era o seu gênero.
«Joe sabe que não é Goya, Picasso ou Rembrandt, nem qualquer dos mestres... e não quer ser. Quer apenas pintar seus símbolos, sua maneira e vender o suficiente para comermos. Oh, às vezes fico tão furiosa sabendo que, se ele quisesse pintar apenas uma cena de sacanagem tão intensa quanto ele sabe fazer com facilidade, poderia comer durante meses! Mas desisti de sugerir isso porque Joe apenas encolhe os ombros e diz: «Não pinto histórias em quadrinhos, Gigi, você sabe». Joe é Joe e não liga a menor importância ao que os outros artistas fazem e se sua própria obra vai torná-lo famoso, rico ou ambos. Incomoda-se tão pouco... bem, muitos dos seus amigos são artistas ou se dizem artistas, mas Joe não está interessado no que eles pintam nem no que vendem. Se são boa gente, afetuosa, com boas vibrações, Joe gosta de ir vê-los ou chamá-los para cá... mas Joe não ofereceria uma almofada para Rembrandt sentar se não gostasse do comportamento dele. Joe quer apenas pintar... à sua maneira. E não ter de dormir sozinho.
Joan comentou, pensativa:
— Não acredito que Joe tenha dormido muitas vezes sozinho.
— Provavelmente não. Mas Joe não dormiria com Helena de Tróia se não gostasse da atitude dela. Você falou nos seus guardas... os dois que a trouxeram cá e ainda há mais dois, não é? Um deles grandalhão? Hugo?
— Conhece Hugo? — perguntou Joan, satisfeita.
— Nunca o encontrei. É uma espécie de mito africano. Só sei duas coisas a respeito dele: Joe quer pintá-lo... e Joe o ama.
«Amor espiritual, quero dizer... embora tenha a certeza de que Joe transaria com Hugo se este quisesse. (Ele tem de entrar na fila! Vi Hugo primeiro) (Cale a boca, rabo quente) Pode nunca acontecer, imagino... e Joe nunca tomar a iniciativa. Nunca tomou comigo, nem eu com ele. Apenas transamos no nosso primeiro encontro, sem uma palavra, e combinamos tão bem quando presunto com ovos. (Hummm! Certas moças têm uma sorte danada. Tenho de agarrá-lo) (Você é do tipo impulsivo, querida, e Gigi não) (Essa piada vai lhe custar caro, patrão)
— Tenho a certeza de que Joe nunca insistiu com Hugo para posar. Teria preferido a amizade de Hugo a tê-lo como modelo... embora Joe tivesse me dito que estava com duas obras na cabeça. Uma mostraria Hugo num leilão de quarteirão. Fundo histórico, com senhoras grasnando na multidão: em primeiro plano, de corpo inteiro, Hugo olhando paciente e enfadado e apenas as cabeças e ombros dos grasnantes... com as mulheres quase se babando.
«Mas Joe diz que não pode fazer esse quadro porque iria causar aborrecimentos. O segundo ele está realmente ansioso para fazer: Hugo sozinho, enorme como uma montanha e sem nenhum símbolo sexual — exceto que, para mim, um garanhão enorme não pode deixar de ser sexy — apenas Hugo, forte e sábio, com uma dignidade solene... e carinhoso. São palavras de Joe que estou repetindo. Quer pintar esse quadro e intitulá-lo «Jeová».
— Gigi, talvez eu possa ajudar.
— Hem? Você não pode dizer simplesmente a Hugo que pose para Joe. Joe não gostaria. Não deve influenciar, mesmo para isso.
— Querida, não sou maluca. Mas talvez possa fazer Hugo compreender que não há mal em posar para Joe. Tentar não custa. (Patrão, faça Hugo saber que esteve posando nua para Joe. Então deixe-o pensar) (Claro, Eunice, mas é esse o gambito) (Gêmeo! Você não está pensando em tentar seduzir Hugo, está? Raios, não me responsabilizo por isso! Deixe o Padre Hugo em paz) (Eunice, não sou tão louco assim. Hugo pode ter tudo o que eu tenho. Ele matou o calhorda que assassinou você. Mas nunca lhe imporia nada. Se eu o fizesse, acho que ele iria embora... e depois rezava por mim. Estou com Joe: aceito Hugo como ele é e nunca tentaria torcer-lhe o braço) (Você não conseguiria. O braço dele é mais grosso que suas coxas) (Quero dizer psicologicamente, gêmeo, é você sabe disso)
— Apenas uma coisa, Gigi: Joe teria de mudar o título do quadro.
— Joan, você não conhece Joe. Ele não mudará o título.
— Então deve guardar o título só para ele. Hugo tem princípios tão firmes quanto os de Joe. Não permitirá um quadro onde ele seja denominado «Jeová». Ao seus olhos, isso seria sacrilégio. Mas se Joe concordar em manter o título secreto, acho que posso dar um jeito. Fale com Joe. Mas você ainda não me disse onde Joe aprendeu pintura.
— Oh. Joe sempre pintou. Tenho a certeza de que ele poderia ter aprendido a ler, pois lembra tudo o que vê. Quando tinha mais ou menos quatorze anos, foi levado com outros garotos para passar a noite no xadrez da delegacia e o sargento de plantão deu uma olhada nuns esboços que Joe havia feito enquanto esperava a hora de comparecer perante o juiz para ser advertido. Um dos esboços era um retrato do sargento... e Joe só o vira durante uns minutos escassos.
«Foi a chance dele. O sargento o encaminhou ao padre, livrando-o do registro da queixa e ambos o encaminharam a um artista do bairro, a quem mostraram os esboços do garoto.
«Esse artista era uma mistura de pintor artístico e comercial: quero dizer, ganhava dinheiro. Era também uma outra espécie de mistura. Uma ostra. Pode não ter ficado impressionado com os esboços de Joe, mas fez um acordo com ele. Joe iria posar para ele. Joe poderia se utilizar do estúdio dele, do seu material e desenhar seus modelos... se concordasse em posar quando o pintor necessitasse. Ambos ganharam no acordo. Você sabe como Joe parece agora. Quando tinha quatorze, aposto que era mais bonito que qualquer garota... e não duvido que aquela ostra tenha pensado o mesmo.
«Assim, Joe topou e breve estava comendo e dormindo lá, deixando completamente de morar com a mãe, o que foi a melhor coisa que lhe aconteceu. Joan, aquele estúdio tinha uma cama só, como este.
— Quer dizer que Joe foi a namoradinha dele? Gigi, recuso-me a ficar escandalizada. Apesar dos meus noventa e cinco anos, tento ser moderna.
— Joan, não posso acreditar que você tenha essa idade. É tão irreal quanto aquele milhão de dólares. Eu disse «ostra», não «homo». O artista era casado, ou transava, com seu modelo principal. É possível que esta tenha tirado a virgindade de Joe. Seja como for, ela o ensinou enormemente, foi maternal e boa para ele. Enfim, uma tróia feliz.
«Mas o artista — Mr. Tony, como Joe o chama — apesar de lhe permitir o uso do estúdio, da mesa, da cama e da mulher... era um professor rigoroso. Não permitia a Joe pintar com a espátula ou com o pincel largo, nem deformar, fazer abstrações ou pintura psicodélica: fez Joe aprender a desenhar. Anatomia. Composição. Técnicas do pincel. O > valor das cores. Todos os inacabáveis exercícios da pintura acadêmica, a limpeza dos pincéis e a arrumação do estúdio. Joe diz que se não fosse por Mr. Tony, ainda estaria pintando a pele de imbecis. Joe descobriu sua capacidade, o que queria fazer e aprendeu como fazer. Mas, como me disse, não o que o professor fazia. Porém, em ambos os casos, adquiriu uma velha educação acadêmica. Da maneira mais difícil. Oh, Joe aprendeu a cortar caminhos. Mas pode pintar diretamente na tela — está trabalhando assim desde nossa última parada — e o faz tão parecido com uma foto quanto pode. Ou tão diferente.
— ... nunca diga que um pobre é melhor que um rico, Gigi: não é. Tanto o «rico» quanto o «pobre» têm defeitos. A distância que há entre um e outro é provavelmente melhor se a gente consegue aplainar as dificuldades no ponto exato. Mas... Olhe, Joe não a protege, quando você vai às compras?
— Hem? Claro que não. Oh, às vezes vai junto e ajuda a carregar os embrulhos... porém não como guarda. Bem, ele costuma descer no elevador comigo se é uma hora do dia em que pode estar vazio... quero dizer, nem ele nem eu somos loucos e não ando à procura de ser assaltada e morta. Também vai me apanhar embaixo e, se estou atrasada, fica sempre à minha espera. Mas ando de um lado para outro sozinha, como sempre. Apenas não sou maluca de andar à toa.
— Gigi, tenho a certeza disso. Duvido que você alguma vez tenha entrado num parque...
— Nem mesmo ao meio-dia! Fui violentada uma vez e não gostei. Não estou interessada numa suruba onde eles usam a gente, um a um, enquanto ficamos imobilizadas. Deviam policiar cada parque da cidade.
— A cidade inteira seria melhor. Mas, Gigi, você anda por aí bastante livremente. Eu não posso. Não ouso aparecer, mesmo rodeada de guardas, sem estar velada. Não posso me arriscar a ser reconhecida. Tenho de ser cautelosa o tempo todo. Claro, você tranca sua porta. Minha casa, porém, tem de ser bastante forte para resistir ao impacto de uma bomba atirada contra ela. Isso aconteceu várias vezes, desde que a construí. Tenho de esperar tudo: de seqüestradores e assassinos a meros aborrecimentos provocados por gente que quer me tocar.
«Estou me referindo tanto a respeito do que sou hoje como do indivíduo «Johann» que eu fui: dinheiro demais atrai caçadores e criminosos. A única coisa que posso fazer é me rodear de guardas dia e noite, viver numa casa que é um forte, procurar evitar ser reconhecida seja como for e nunca, nunca querer viver o que se chama «uma vida normal». Além disso... Gigi, já imaginou a festa que é para mim quando me deixam lavar a louça?
Gigi ficou espantada.
— Hem? Joan, você me desnorteou. Oh, sei como é complicado ser rico. Vi na televisão. Mas lavar louça não é uma festa. É uma chateação horrível. Muitas vezes deixo-a na pia e depois tenho de enfrentá-la antes do café da manhã. Quando o café fica pronto, perco a vontade.
— Vou lhe dar um conselho, Gigi. Eu soube de algo a respeito da mãe de Joe. Eunice foi minha secretária durante anos. (Nunca falei a respeito dela, patrão!) (Quer me deixar pregar esta mentira a meu modo?) Ela foi — e é — uma porca e vive como tal. Esta casa não é grande. Se você a mantiver impecável, Joe não se incomodará quando você tiver rugas... e todas teremos um dia. Mas uma latrina suja ou louça na pia faz com que ele se lembre da mãe.
Gigi respondeu:
— Joan, vou tentar. Mas não posso cuidar da casa e posar ao mesmo tempo.
— Se esforce ao máximo, amor. Se necessário, deixe de dormir. Joe é alguém que vale a pena se fazer um esforço extra para conservar. Mas estávamos falando de lavar louça: é um aborrecimento para você e um prazer para mim. Lavar a louça significa, para mim, «liberdade». Olhe, cá estamos, nós três, sem empregados. Eu irei embora, você ficará sozinha com seu marido e o mundo não participa. Não quero deixar de participar. Hum... vejamos: quatro guarda-costas, um chefe de segurança, doze vigias internos sob as ordens dele, três sempre de serviço e os outros preparados, ou seja, os casados — a maioria deles — com as famílias morando em minha casa... uma camareira particular, um camareiro que me atendia antigamente e agora cuida dos hóspedes... por isso não posso despedi-lo. Nunca despeço ninguém sem motivo... um mordomo, um cozinheiro-chefe, três... Oh, não lembro. Havia cerca de sessenta adultos lá em casa na última vez em que perguntei.
— Meu Deus, Joan!
— Sim, «Meu Deus!» Para atender a uma só pessoa. Porém, não posso deixar um ir embora sem substituí-lo. Planejei aquela casa e fiscalizei a construção, com a intenção de ter o mínimo possível de pessoal. Por isso está cheia de dispositivos. Coisas como lacaios-robôs e uma cama mecanizada que foi desenhada para me permitir ficar sem enfermeira alguns anos mais, quando estivesse muito velho. Sabe o que aconteceu? Perdi. Tive de contratar um superintendente para a casa, mecânicos de manutenção... ou os dispositivos não funcionariam. Toda aquela complicação — sem nenhuma privacidade real — apenas para cuidar de uma pessoa que não queria que fosse assim.
— Joan, por que não se livra daquilo? Mude-se... e comece outra vez.
— Mudar para onde, querida? Oh, tenho pensado muito nisso, acredite. Mas não era realmente para tornar conta de uma pessoa... e sim para cuidar de dinheiro demais, dinheiro que está me tolhendo... tanto que não posso ficar à mercê de seqüestradores ou qualquer outra coisa. Não posso sequer transformá-lo em moeda corrente e atira-lo na latrina. Não é assim que se faz com gaita alta. E mesmo que eu pudesse e fizesse, ninguém acreditaria. Basta que eu me livre da proteção e provavelmente não ficarei viva dois dias. Além disso... Você gosta de gatos?
— Adoro! Me prometeram uma gatinha para breve.
— Ótimo. Agora me diga: como a gente se livra de um gato que criou?
— Hem? Ora, não se livra. Não, se a gente é decente.
— Concordo, Gigi. Tive muitos gatos. A gente os conserva. Se somos forçados, mandamos destruí-los humanamente... ou se temos coragem os matamos pessoalmente, para evitar um trabalho malfeito. Mas não se dá um gato crescido. É quase impossível. Porém, Gigi, não se pode matar gente.
— Não compreendo, Joan.
— Que farei com Hugo? Está comigo há vários anos e vem fazendo a única coisa que sabe fazer... exceto pregar, o que realmente não é remunerativo. Empregados leais, Gigi, são obrigações, como os gatos. Claro, eles podem arranjar outros empregos. Mas que faria você se Joe lhe dissesse «Caia fora. Parei com você»?
— Eu choraria.
— Não creio que meus empregados chorassem, mas eu sim.
— Mas eu iria embora! Joan suspirou.
— E o regimento que tenho à minha volta também iria, acho eu. São capazes ou não estariam trabalhando comigo... e tenho dinheiro bastante para garantir que uns como Hugo ficassem^ amparados. Essa é uma das boas coisas de ser rico: se o dinheiro é só o que se precisa para remediar alguma coisa, é fácil. Gigi, há uma solução para este embaraço em que me encontro e vou achá-la... estava apenas tentando mostrar-lhe que não é tão simples como parece no vídeo. A solução pode ser algo tão fácil quanto mudar novamente meu nome, meu rosto com cirurgia plástica e ir para outro lugar.
— Oh, não, você não pode mudar seu rosto.
— Não, você tem razão. Não devo mudar este rosto. É o de Eunice. Sou apenas a depositária dele. Se o mudar, Joe não gostará. _ bem como inúmeras outras pessoas. (A começar por mim, patrão) (Não modificarei seu rosto encantador, querida. Gosto dele) Vai ficar como está... mas tenho de mantê-lo coberto. Apareceu demais no vídeo e foi fotografado e impresso muitos milhões de vezes. Mas há um meio de resolver o caso.
Joan Eunice olhou para o quadro recém-terminado quase com terror. Sabia o belo corpo que havia herdado. Sabia que Gigi era uma beleza de outro tipo. Podia ver que aquelas «donzelas gregas» eram ela e Gigi e não podia ver nenhum detalhe no qual o quadro não fosse uma perfeita reprodução de cada.
Porém o «realismo» de Joe Branca era fantasia. Aquelas duas ninfas numa clareira eram voluptuosas, sensuais, tentadoras, de uma maneira que ela sabia que ambas não haviam sido: estendidas numa plataforma de caixotes e fofocando sobre tudo, desde uma alcoólatra até louça suja.
— Que é que você acha? — perguntou Gigi. — Diga o que quiser. Joe não liga a mínima a qualquer opinião que não seja a dele.
Joan respirou fundo e suspirou.
— Como ele consegue? Estou com os mamilos duros só de olhar. Contudo somos nós duas, que ficamos deitadas ali durante horas e não fizemos nada para obter esse resultado. Falamos de tudo, menos do assunto «principal»... nem mesmo nos afagamos porque tínhamos de ficar imóveis. Todavia, esta obra agarra a gente pelas gônadas e espreme. Tenho a certeza de que fará o mesmo efeito num homem.
Joe disse, por trás delas:
— Ilusão de óptica. Joan respondeu:
— Ilusão de óptica uma ova, Joe. Meus olhos não foram iludidos, estou encantada. Quero comprá-lo!
— Não.
— Hem? Oh, merda. Você está planejando vendê-lo a uma velha machona qualquer. Deus sabe que noventa e cinco anos é velhice... e me sinto bastante qualificada para machona quando olho para o quadro.
— Seu.
— Hem? Joe, não é justo. Você pretendia vendê-lo, como disse. Gigi, me ajude.
Gigi preferiu ficar calada. Joe disse, teimoso:
— Seu, Joan. Você quer, você leva.
— Joe, você é o maior teimoso que já encontrei e não sei como Gigi o agüenta. Se me der esse quadro, vou destruí-lo imediatamente...
Gigi gemeu.
— Oh, não!
Joe encolheu os ombros.
— Seu problema. Não meu.
— ... mas se me vender ao preço que estabelecer, vou levá-lo comigo e dá-lo a Jake Salomon, para que este o pendure aos pés da cama e fique feliz todas as manhãs ao acordar. (Você o bombardeou, gêmeo! Agora volte e metralhe os sobreviventes) É só escolher, Joe. Se me der, estraçalho. Mas se me vender, farei presente a Jake Salomon. Oh, você pode recusar ambas e expô-lo para vender. Então serei obrigada a contratar detetives para saber onde está exposto e o comprarei por intermédio de um agente. O que farei com ele, não direi. Ou também pode guardá-lo para seu próprio prazer. Será uma punhalada.
Gigi disse:
— Deixe de ser cabeçudo, Joe. Bem que você gostaria que Jake o possuísse.
— Gigi, quanto Joe cobra por um trabalho como este?
— Oh, eu estabeleço o preço. Na maioria das vezes, vendo-o a metro. Pelo tamanho.
— É? Quanto custa este tamanho?
— Bem, costumo pedir duzentos e cinqüenta por este tamanho.
— Ridículo!
— Realmente, Joan, considerando que ocupou meu tempo e o de Joe toda a noite de ontem e o dia de hoje — para não falar no seu, mas como você vai comprar não incluí a segunda figura nele — considerando tudo isso e a comissão que pagamos, não é demais...
— Querida, eu quis dizer «ridiculamente» baixo. Não turno comprado muitos quadros nos últimos vinte anos, mas estou certa de que não é uma obra de menos de mil dólares... que vai subir como um papagaio até onde o mercado permitir. Posso lhe dizer isto: quando Jake morrer e este quadro for leiloado, ninguém o conseguirá por menos de mil e irá i mais porque certamente estarei no leilão e sem disposição para deixá-lo sair da família. Mas não estou aumentando o preço agora. Nunca faço tal coisa. Você fixou em duzentos e cinqüenta. Aceito. Está comprado.
— Joan, você nunca me deixar terminar.
— Oh, desculpe, querida.
— Tento conseguir duzentos e cinqüenta quando exponho numa galeria. Mas a metade vai para o proprietário. É a única maneira que tenho de conseguir expor. Portanto, o preço para você é cento e vinte e cinco.
— Não.
— Por quê?
— Só «não», como me disse Joe. Como boa comerciante, você nunca deveria dividir com o dono da loja. Acho que ele está lhe roubando. A comissão devia ser vinte e cinco por cento, no máximo. Mas não rebaixe o preço que quer que ele peça... não é assim que se faz negócio. Não entendo muito de arte... mas entendo paca de negócios. Em dinheiro ou cheque?
— Dinheiro é perfeito. Se tiver tudo isso com você. Ou pague quando quiser.
— Quero pagar agora e ter um recibo, de maneira a que o quadro se torne legalmente meu... antes que o cabeçudo do seu marido resolva me contrariar outra vez. Menina Gigi, quer que faça o recibo em seu lugar?
— Oh, tenho fórmulas impressas para isso. Sei escrever algarismos e fazer minha marca. Não tem problema.
— Ótimo. Porém quero mais uma coisa.
— O quê, Joan?
— Quero ser beijada. Fui muito boazinha, posei o dia inteiro e nem ganhei um beijo. Por isso quero que Joe me dê um beijo por ter sido tão encrenqueiro... e quero beijar você por ter me ajudado tanto. Joe, me dá um beijo?
— Dou.
— Assim é melhor. Joe, quer acompanhar duas moças bacanas — eu e Gigi, quero dizer, e não duas maluquinhas sabidas — ao supermercado? Já que Gigi vai comprar um filé para comemorar, quero mostrar que sou capaz de o grelhar. Vai comprar filé, Gigi?
— Claro! Vaca ou cavalo?
— Hum... querida, sou forçada a confessar que há anos não vou às compras. Você que acha?
— Bem... acho melhor cavalo.
— Como quiser. Contanto que não nos vendam a sela.
Nas Nações Unidas, a delegação birmanesa acusa as chamadas Colônias Lunares de servirem de cobertura para uma conspiração entre a China e as Nações Unidas com o objetivo de construírem bases militares na Lua. A Secretaria de Conservação e Antipoluição desmente o relatório informando que os veados, no Parque Nacional de Yosemite, estão «morrendo em manadas, em conseqüência de águas poluídas e enfisema». Afirma que um saudável reequilíbrio ecológico está tendo lugar — não havendo necessidade de alarma — e que os novos rebanhos são mais fortes que os antigos.
O Reverendo Dr. Montgomery Chang, Doutor em Teologia, Humilíssimo Chefe Supremo do Caminho, S.A., depôs perante a Subcomissão da Lei Fundada nos Costumes, da Comissão Jurídica do Senado, em defesa da lei pendente que exige licença federal para os professores de Zen Budismo e terapias correlatas como «terapistas de facto et de jure»: «Esses gurus de contrabando estão dando ao misticismo racional uma péssima fama. Não se pode mais permitir o ensino da meditação, asanas, ou filosofia transcendental, sem um controle severo por uma junta de licenciamento, enquanto se permite esquiar, fazer surf ou emoldurar um quadro sem prestação de um exame. A idéia de que esta lei irá restringir as sagradas garantias da Primeira Emenda é uma esfuziante asneira. Ela protege e liberta-os». Ao ser interrogado, declarou que estaria humildemente disposto a servir de presidente da junta, se lhe fosse pedido esse sacrifício. Sobreviventes do Furacão Hilda ainda estão sendo resgatados e as perdas por morte, conhecidas até agora, chegam a 1.908.
O Departamento de Defesa Interna determinou uma proibição temporária de transmissão interestadual de informações concernentes a desordens públicas envolvendo mais de três pessoas, e depois estabeleceu uma segunda, com penas rigorosas, para a publicação da primeira ordem de censura. O Secretário informou ao Presidente que as agências de notícias e as redes de vídeo estavam colaborando voluntariamente, visando ao bem-estar geral. No que se refere ao caso de identidade do tubarão dos Conglom Johann S. B. Smith, o Supremo Tribunal tomou uma decisão categórica, só tornada notável por ter Mr. Justice Handy, acordando no meio da leitura, esmurrado a mesa e dito: «Divórcio concedido!», voltando a dormir. Decidiu por sete a dois confirmar a instância inferior, ampliando e esclarecendo o princípio originalmente estabelecido em Espólio de Henry M. Parsons contra Rhode Island. Quatro da maioria e um discordante entre os juizes decidiram também que havia uma mudança legal de sexo envolvida no assunto. Dois juizes pensavam de maneira diferente. Um (Mr. Handy) gastou vinte páginas provando que essa composição de sexos era contrária ao interesse público e às leis de Deus, que ambos, Johann Smith e Eunice Branca, estavam legalmente mortos e que o monstro deles resultante não tinha existência legal de espécie nenhuma. O nono juiz, num voto em separado, opinou que o sexo era irrelevante no assunto. Um da maioria, em outro voto em separado, declarou que o corpo cio doador deveria ter sido esterilizado cirurgicamente no interesse público e que o Congresso faria bem em tornar essa esterilização obrigatória, tendo em vista situação similar no futuro. Nenhum juiz se referiu aos depoimentos de treze amici cariae e uma lista em poder do Tribunal. Numa decisão proferida no mesmo dia (Illinois contra Sam J. Roberts) a condenação foi estabelecida, levando em conta que o dono da casa (falecido) não informara Roberts dos seus direitos antes de tentá-lo colocar sob as penas da lei.
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Tendo como base a prova apresentada pela delegação chinesa na Comissão de Energia Atômica das Nações Unidas, foram ampliados os níveis de tolerância do estrôncio-90 no leite integral. O Reverendo Thomas Barker, de Long Beach, Califórnia, declarou, num vídeo-sermão no programa Tempo-Igual-para-Deus, que o Mundo havia acabado à meia-noite do dia 31 de dezembro de 1999 e que tudo desde aquele dia era «ilusão do Diabo, sem forma, substância ou realidade».
Miss Smith cumprimentou O'Neil e pediu-lhe que mandasse Dabrowski e Fred buscar com ela no andar de cima dois enormes embrulhos achatados, um tão grande que teria de ser inclinado para passar na porta do elevador. Quando os embrulhos, os guardas e ela própria acomodaram-se dentro, Joan trancou a porta e apertou o botão «Parar» sem dizer em que andar e deixou cair a capa.
— Quero dar-lhes um beijo de obrigado-adeus, rapazes, mas pelo amor de Deus não se sujem de tinta ou vai dar galho. É melhor que apenas segurem meu rosto... mas não há pressa.
Logo depois ela se olhou no espelho do elevador e achou que a pintura e o penteado haviam sofrido quase nada. Deixou Dabrowski pôr-lhe a capa nos ombros, apertou o botão do seu andar e abotoou-se de alto a baixo, ficando de novo inteiramente coberta. Quando o elevador parou, recolocou o véu.
— Levamos para seu boudoir, miss, ou para a sala de estar?
— Primeiro vamos ver se Mr. Salomon está recebendo. Acompanharam-na pelo enorme corredor, até a Suíte Verde. Joan
reparou que a placa luminosa em vermelho-vivo «Por favor, não incomode» não estava acesa por cima da porta da sala de estar de Jake Salomon. Assim, tocou a campainha.
O alto-falante sobre a porta berrou: «Entre!». A porta se abriu. Ela entrou.
— Ponham aqui dentro e podem ir.
— Muito bem, miss.
Assim que eles saíram e a porta se fechou, Jake surgiu do quarto, desgrenhado. Parou abruptamente.
— Bem! Onde diabo você andou?
— Fora.
— Arrumpf! Cinco dias. Cinco dias inteiros!
— E daí? As galinhas não foram alimentadas? Os porcos não receberam lavagem? As vacas não foram ordenhadas?
— Não se trata disso. Eu...
— Se trata disso, Jake. Nada foi descuidado na minha ausência. Você não quis casar comigo e por isso não tenho de lhe dar satisfações dos meus atos. Embora, por cortesia, tenha deixado um bilhete com Cunningham dizendo a você onde eu fora. Recebeu?
— Sim, mas...
— Então sabia que eu estava a salvo... e, numa emergência, tinha para onde me mandar um recado. Ou ir me encontrar. Seria bem recebido. Você sabe que Joe lhe faria boa recepção... e Gigi é afetuosa como um cachorrinho.
— Gigi?
— Você a conhece. Quero dizer: já a viu. Mrs. Joe Branca.
— Quem?
— Por que a surpresa, Jake? As pessoas tornam a casar... principalmente se um casamento anterior foi feliz. Joe foi feliz, agora está e eu também porque ele está... e certamente Eunice também (Claro que estou, patrão. Alas não sejamos muito «nobres». A «nobreza» é uma prerrogativa masculina. Assim pensam os homens)
— Não posso acreditar.
— Que tem de estranho um viúvo tornar a casar?
— Não posso imaginar que alguém que tenha sido casado com Eunice possa jamais casar com outra mulher. (Meu fã! Gêmeo, temos de ser especialmente carinhosos com Jake esta noite) (Se ele não começar a ser bacana comigo, vai dormir sozinho esta noite! Mas não devo. Imagino se Anton e Fred já foram embora) (Calma, patrão. E deixe Jake se acalmar) (Ainda não, não quero! Ele está errado e eu tenho razão) (Geminho, quanto tempo você vai levar para aprender que ter «razão» nada tem a ver com concordar com um homem? Os homens não são lógicos, suas mentes não funcionam dessa maneira. Mas é assim e por isso, quando um homem está errado e você certo, chegou a hora de pedir desculpas. Diga-lhe que sente... e finja com convicção. Om Mani Padme Hum)
(Om Mani Padme Hum... às vezes acho que ser mulher é encrencado demais. Se não fosse tão danadamente divertido! Tá bem, garota, veja como eu o domino)
— Querido Jake, sinto que o novo casamento de Joe tenha preocupado você... mas por que não esperar antes de achar que ele cometeu um erro? Joe precisa de uma esposa... mesmo que ela não seja uma Eunice. Sinto muito ter preocupado você não estando em casa quando voltou... e sinto também por mim. Esperava recebê-lo de braços abertos e um sorriso alegre. Mas não pensava que ficasse fora menos de uma semana e tive a impressão de que você supunha que iria levar mais tempo... talvez muito mais.
— Bem, sim, pensei que poderia ter de ficar fora mais tempo. Mas consegui ver o Presidente do Tribunal no segundo dia e ele me garantiu que nos poria no início da pauta... e que havia visto — oficiosamente — uma transcrição preliminar da gravação. E foi isso.
— Hummm! Fundos para a campanha às vezes são rentáveis.
— Joan Eunice, nunca diga isso. Especialmente com relação ao Presidente do Tribunal dos Estados Unidos. Sim, esta casa é sua, mas pode-se colocar nela aparelhos de escuta.
— Desculpe, Jake. Foi um comentário impensado. Meu reconhecimento é dirigido a quem merece. A você.
— Mais a Mac que a mim, minha querida. Ele esteve no fogo. Como conseguiu uma cópia adiantada para o, hum, homem exato tão rapidamente é algo que nem quero saber.
— Aprecio os esforços de Mac e também os de Alec... mas sobretudo os do meu querido, sempre de confiança, completamente maravilhoso Jake. (Você acha excessivo, Eunice?) (Patrão, continuo lhe dizendo: é impossível para uma mulher ser excessiva com um homem. Se o senhor disser a um homem que ele tem dois metros e cinqüenta de altura e insistir nisso freqüentemente com ar de admiração e um tremor na voz, esse homem começará a inclinar a cabeça ao passar por portas de dois metros e dez)
jake ficou satisfeito e por isso Joan continuou:
— Suponho que tudo será resolvido breve, não?
— Coisinha, você nunca ouve o noticiário?
— Só quando não posso evitar.
— Bem, pois devia. Está resolvido. Você ganhou de fora a fora.
— É mesmo? Nunca duvidei de que íamos ganhar, Jake, pela maneira maravilhosa com que você cuidou de tudo. Minha única surpresa é ter acontecido tão depressa. Sim, acho que devia ter ouvido o noticiário. Mas nos últimos dias não estava dando pé. Tinha aquele trabalho difícil para fazer — Joe, sabe — e me pareceu a melhor ocasião quando você estivesse fora... assim, rangi os dentes e enfrentei o problema.
— Joan Eunice, disse-lhe para nunca se aproximar de Joe. Eu disse. Se esse novo casamento dele é sempre uma oportunidade — sim, intelectualmente sei que um homem deve tornar a casar — se for realmente uma oportunidade, você deve ter causado uma tremenda tensão. Provavelmente uma tensão excessiva. Hum... como Joe encarou a coisa? Muito mal?
— Jake, fiquei lá cinco dias. Se corresse mal, eu teria ficado um dia sequer? Cumpri minha missão. Está tudo certo.
Jake ficou surpreso e depois pensativo.
— Hummm! É um estúdio de um só quarto... e se compreendi o que disse, você permaneceu lá dentro todos os cinco dias. Minha querida, exatamente de que maneira «cumpriu sua missão»? Ou não tenho o direito de perguntar?
Ela o encarou e respondeu gravemente:
— Jake, devo-lhe tanto que você terá sempre o direito de perguntar tudo. Inclusive minhas idas e vindas, sem que eu lhe dê uma resposta ríspida. (Na realidade não lhe disse que ele tinha direito a uma resposta sincera, hem, patrãozinho? Vagabundinha tortuosa) (Eunice, não minto ao Jake...) (Oh, que mentira!) (... mais que o necessário para a felicidade dele)
— Jake, cumpri minha missão — tranqüilizei a mente de Joe a respeito de Eunice — através de uma «sessão de preces». Com a ajuda imprescindível de Gigi, o que é apenas parte do porque tenho certeza de que ela é boa para ele. Mas se pensa que lhe ofereci um zumbi ^— a esposa morta num corpo reanimado — eu sabia que não era esse o caminho. Joe não me tocou. Oh, ele agora pode me tocar, facilmente e sem tensão, da mesma forma com que tocará a própria irmã. (Algum incesto na família de Joe, gêmeo? Nunca tive certeza) (Oh, cale a boca!) Me beijou da mesma maneira. Mas, Jake...
— Hem? O quê, querida?
— Se Joe quisesse este corpo que estou usando, claro que o teria. Devo-lhe tudo o que puder dar-lhe. Compreende, não? Concorda? Ou estou errada?
— Hum... sim, concordo. Mas acho que foi bom Joe não querer. Poderia ser um desastre para ele... e uma terrível tensão para você.
— Sei disso. Mas faria o impossível para sorrir e nunca deixá-lo perceber. Como está, fico honrada — e aliviada — e profundamente agradecida a Joe por me ter dado, em vez daquilo, sua terna amizade. (Tá bem, Eunice?) (Tá. Agora mude de assunto)
— Estou contente, Eunice.
— Jake, temos de ficar aqui, eu ainda com a roupa de rua? Trouxe presentes para você: presentes de boas-vindas. — Exibiu seu melhor sorriso tipo garotinha-feliz. — Quer vê-los?
— Claro que sim! E onde está minha educação, deixando-a aí de pé? Olhe, sente aqui e me dê sua capa. Sherry?
— Mais tarde. Melhor champanha para comemorar sua volta ao lar. Nossa volta ao lar.
Virou-se e deixou-o tirar-lhe a capa dos ombros. Jake também virou-se para depositar a capa e voltou-se ao mesmo tempo que ela.
— Vaca Sagrada!
— Eu não sabia que você era hindu, Jake.
Fez uma pose, numa graciosa e calculada exibição.
— Você usou isso na cidade o tempo todo? Apenas pintura?
— Por que não, querido? É o seu primeiro presente: de Joe para você, com amor. Vesti a capa antes de sair do estúdio de Joe e Gigi, conservando-a até chegar em casa... até você desembrulhar seu «presente». Eu não queria, é claro, que meus guardas vissem (Oh, claro, gêmeo... exceto que Joe os deixou ver cada pincelada, quando Gigi teve a certeza de que você não se importava. Sabe, Joan, Gigi gostaria de ter feito uma Estrela do Texas com Anton e Fred, tenho certeza. E Joe aceitaria, pois gosta deles. Que acha você? Uma maneira fácil de cumprir a promessa que lhes fez, hem?)
(Eunice, agora temos este homem nas mãos) (Oh, coitadinho de você. A melhor maneira do mundo de fazer um homem ficar zangado é começar a pensar em outros homens. Garota, há muito de puritano em você) (Que puritano? Onde? E por que não percebi? Você não se
refere a Jake. Ele é judeu. Falando de Jake, ele terá percebido essa ligeira omissão nesta maquilagem? E por que não fomos violadas?) (Duvido, seus olhos estão inquietos. Quanto à segunda pergunta, tenho esperanças)
— Joan Eunice, você percebeu que esta é a reprodução exata — me parece — de uma pintura corporal usada por Eunice?
— Claro que percebi. Usou-a aqui... e eu não estava tão moribundo para não olhar. Nunca pude decidir se estas eram conchas ou pintura. Agora sei. Joe queria ter certeza de que você o vira daquela vez, quando Eunice o usou. Disse-lhe que eu estava quase certo de que você estivera aqui naquele dia.
— Bem, estive sim. Rapidamente. Foi por isso que reconheci.
— E daí? Parece-me que lembro ter sido um dos dias em que você levou Eunice para casa. Hummm?
— Joan, está querendo bisbilhotar?
— Estou.
— Mulher, não satisfarei sua curiosidade lasciva.
— Que acha sobre satisfazer a própria lascívia? A minha, quero dizer.
— Isso é outro assunto.
— Eu estava pensando. Até agora você não me beijou. Devo tomar um banho primeiro? Ou será melhor perguntar: Eunice deixava tirar a pintura primeiro?
— Prefiro encarar assim; cale a boca, não fale, bico calado e não diga mais nada até que eu permita.
— Sim, senhor.
Obedeceu com afinco durante um certo tempo.
— Agora posso falar?
— Sim, desde que limite sua fala a palavras educadas de apreço. Alguns dos seus comentários espontâneos são indignos de uma dama.
— É por isso que sou uma dama bastante indigna. Jake, meu único querido. Sou um fracasso como dama. Mas continuarei a fazer força para me parecer com uma em público... em honra de Eunice.
— Joan Eunice...
— Senhor?
— A própria Eunice procederia assim. Uma dama perfeita em público... totalmente desinibida em particular. Grande parte do seu charme era isso. Algumas de suas expressões espontâneas eram, às vezes, muito mais «indignas de uma dama» que qualquer dita por você.
— É mesmo, Jake? Ela sabia alguma que eu não sei? E você gosta delas?
— Hummm, não acho que ela soubesse alguma desconhecida de você. Apenas começou a se expandir quando confiou em mim. Sim, gosto delas, quando ditas espontaneamente.
— Jake, confio ilimitadamente em você... e ^ procurarei não reprimir nenhuma espontaneidade futura. Não quis dizer aquilo. Continuo aprendendo.
— Querida menina, você é perfeita quando encontra apoio. Quero dizer, «meu apoio». Agora que a tenho a minha mercê — e vendo que você «confia ilimitadamente» em mim — que aconteceu em casa de Joe?
— Senhor, o fato de confiar no senhor — e confio! — não significa que vá satisfazer sua curiosidade lasciva.
— Hummm... Eunice também nunca.
— Em vez disso, você vai me dizer o que aconteceu com você. -em casa de Joe.
— Acho que chegamos a um impasse. Vamos tirar essa pintura Gostaria de ter feito uma foto da nossa sereia, antes de estragá-la
— Nada de choro, amado Jake. Joe tirou várias e estão na minha bolsa. Para você. E tenho duas de Eunice com a mesma maquilagem, uma para você e outra para mim. Além disso, Joe me deu um kodachrome nove por doze do mais incrível quadro trompe-l’oeil que ele fez de Eunice, como uma sereia mergulhando... e mais uma pequena transparência mostrando como ele fez a coisa. A mesma pintura corporal sem conchas.
— Você ficará surpresa ao saber que vi ambas? Apenas não tive coragem de promover Joe à custa delas.
— Não, acho que não me surpreende. Mas não o pressionei, Jake. Joe disse que tinha um presente para mim... e acontece que o presente eram essas fotos. Devia recusar? Deus me livre. Mas vou pôr detetives trabalhando para saber quem comprou aquele quadro. Quero adquiri-lo. Não importa o preço.
— Seu dinheiro não chegará, Miss Smith. Ficaria surpresa se soubesse que possuo aquele Branca original? Está no Gib.
— Raios me partam! Jake, você é um salafrário. Quero de volta dez por cento dos elogios que lhe fiz.
— Tá bem. Eu não acreditei em mais de noventa por cento. Mas se você for boazinha, lhe darei aquele quadro.
— Aceito! Mas... bem, agora quase não vale a pena abrir estes embrulhos. Podem desapontar.
— Quer levar uma surra?
— Quero.
— Estou muito cansado. Vamos abrir os embrulhos.
— Bem... podemos abrir o menor. Para você ver como Gigi é, se não se lembra. Vale a pena olhar para ela.
— Abriremos ambos.
— Uma esfregadela primeiro?
— Acho que devemos.
— Bem... vou lhe dar uma chance, mas prometa não transformar isso num acontecimento social.
Joan Eunice insistiu em abrir «Bilitis Canta» primeiro.
— Então, Jake?
Jake emitiu um respeitável uivo de lobo.
— O cara é um gênio.
— É. Nunca suspeitei. Mas você viu logo.
— Bem, vi. A idéia de usar um refletor forte sobre as duas, acentuando o contraste da cor das peles, foi excelente.
— Principalmente porque não havia refletor... mas apenas luz do norte, filtrada pelo smog, transparente como um lençol velho. Essa luminosidade é proveniente dos focos usados para as fotografias na noite anterior. Então, no dia seguinte, pintou nos tendo como modelos. Porém numa pose diferente... e não sei como corrigiu a luminosidade. Mas não sou gênio.
— Que é que há no embrulho maior?
— Abra.
Eram «As Três Graças»... e todas Joan Eunice.
— Joe chama a isto quadro barato, Jake. Fotografou-me três vezes — apague e corrija — mais corretamente trinta e tantas vezes, contra # um fundo neutro, e depois combinou três fotos para o quadro. Fez Gigi posar comigo, para obter braços-em-torno-da-cintura todas as vezes e depois ela deslizava como uma serpente, deixando-me só. Se ele não usasse «tapeação», o quadro levaria muito mais tempo. As co-vinhas no meu traseiro não são lindas?
— Mulher, você é bastante vaidosa.
— Não sou vaidosa, Jake. Eu não era elegante quando jovem. Sei de quem é este lindo traseiro. Então, querido? Eu pretendia ficar com «Bilitis» e lhe dar as «Graças»... mas você tem direito à escolha.
— É uma escolha difícil!
— A que deixar comigo estará à distância máxima do vestíbulo. Se você tivesse casado comigo, como tão evidentemente deveria ter feito, seu estuprador lúbrico, não precisaria escolher. Ambas seriam suas! Jake, quanto custará comprar um monte de opiniões de críticos de arte?
— Bem, a colheita atual não deve estar custando mais de dez centavos a dúzia, mas tudo custa caro atualmente. Vejo que está pensando em joe Branca.
— Claro. Anda vendendo seus quadros por preços ridiculamente baixos e pagando comissões monstruosas... e vende tão pouco que aquelas crianças mal têm o que comer. Enquanto os picaretas, tapeadores e pintores de tabuleta estão na moda. Pensei...
— Pode parar de pensar. Já vi tudo. Arranjamos-lhe um bom agente, compramos o que ele tem no mercado, usando testas-de-ferro... e ficamos com eles. São um ótimo investimento... Compramos críticos de arte aqui e mais tarde em outros lugares, quando ele se tornar mais conhecido. A pergunta é: até que ponto deve chegar o sucesso dele? Preciso fazê-lo entrar para o Museu Metropolitano?
— Jake, não creio que Joe queira ser famoso. E não quero que a coisa fique notória a ponto dele desconfiar. Ou Gigi. Ela é um pouco mais esperta. Isto é, não muito. Quero apenas que seus quadros vendam regularmente o suficiente para que Gigi possa comprar mantimentos sem dificuldades e possa ter lençóis suficientes para mudar diariamente, se quiser. Aquelas crianças estão tentando se manter com as raspas da geladeira e sopa de pano de pratos. Tentei isso na Depressão e não foi divertido. Não vejo razão para Gigi ter de viver assim, quando é casada com um artista de Deus que pode pintar... e exerce a profissão. Alguém que não perde tempo enchendo a cara ou puxando fumo e falando sobre os quadros que vai pintar. Joe pinta. É tão bom artesão quanto artista. Bem, talvez eu não saiba o que é um artista, mas sei o que é um artesão e respeito os artesãos. Há pouquíssimos neste mundo decadente.
— Está resolvido. Faremos isso. Mesmo que tenhamos de subir o preço a quinze centavos a dúzia.
— Até vinte e cinco centavos. Vamos acabar de tirar a pintura — tenho de mandar buscar azeite de oliveira — e você pode ser bonzinho pedindo a Winnie que me traga um roupão grosso ou vai você mesmo buscar se ela não estiver em casa... deixe, posso voltar para meu quarto de capa, sem dificuldade, e...
— Arrumpf.
— Eu disse outra bobagem?
— Minha querida, tenho uma comunicação a fazer. O Dr. e Mrs. Roberto Carlos Garcia y Ibanez partiram em lua-de-mel.
— Como? Ora, a ratazana suja! Nem esperou pela irmã mais velha para segurar-lhe a mão. Divirtam-se! Jake, é maravilhoso... acho que vou chorar.
— À vontade, chore enquanto tomo banho.
— Não, que inferno. Chorarei quando Winnie voltar. Vou tomar banho com você, que poderá me esfregar. As costas, onde não posso alcançar a pintura, e não a frente, pois também estou cansada. Quando aconteceu e quando voltarão? E, meu Deus, tenho de preparar uma suíte para eles. Roberto não vai querer ficar ao lado da minha, com uma porta de comunicação. E tenho de pensar num presente de casamento... talvez lhes dê o quadro que você não escolher. Roberto não vai permitir que eu dê algo caro, é um homem cabeçudo. (Patrão, há outro tipo?)
— Não sei por que Bob não quererá uma porta de comunicação com seu quarto.
— Acho que isso pretendeu ser uma ofensa. Talvez ele goste, querido... eu gostaria. Mas os empregados poderão estranhar. (Fodam-se os empregados!) (Todos, Eunice? Assim vou ficar muito ocupado)
— Eunice, tomei a liberdade de dizer a Cunningham que preparasse a Surte Dourada para os Garcia...
— Perfeito! Mandarei abrir uma porta entre minha sala de estar e a deles... e há uma fechadura que podemos destrancar entre o vestíbulo e a biblioteca de cima, que comunicará com sua suíte... então teremos deixado aquele inconveniente ir e vir pelo corredor.
— Os recém-casados podem preferir ficar sós.
— Não tinha pensado nisso. Òh, muito bem, «também tenho alguns amigos», como disse a solteirona.
— Seja como for, já vão voltar, o que não dá tempo para obras. Soube por fontes usualmente fidedignas que um dos desonestos membros de confiança do seu pessoal ficou de telefonar para Mrs. Garcia assim que você voltasse. Presumo que o telefonema tenha sido dado. Presumo que estarão de volta pelo... crepúsculo.
— Estou imaginando quem irei despedir. É uma maneira esquisita de passar uma lua-de-mel.
— Pelo que sei, foi idéia do caro doutor: manter você a salvo de complicações, pois ambos constituem sua equipe médica.
— Que bobagem. Sou do tipo Mãe-Pioneira. Robusta. Se eu tivesse viajado com os carroções, teria sido posta na canga com os bois. Mas fico contente porque vão voltar. Quero beijá-los e chorar no ombro deles.
— Johann, às vezes não posso decidir se você é uma garota boba... ou senil.
— Da última vez em que me chamou de «Johann», você arranjou uma cicatriz. Querido, já lhe ocorreu que posso ser as duas coisas? Uma garota senil?
— Interessante. Uma hipótese a considerar.
— Se tal, uma muito harmoniosa... Jake, estou feliz como um gato a sós com o peru de Natal. Com Joe acalmado e o Supremo Tribunal do nosso lado, meu último temor desapareceu. A vida é um enorme prazer estonteante. Não estou nem com o enjôo matutino.
— Não sei por que há de estar... hem? (Patrão, pensei que não ia contar a ele) (Eunice, ele irá descobrir breve... e não posso deixá-lo, não posso fazer isso com jake. É a hora exata: «o primeiro a saber», oficialmente)
— Disse que não tinha sido incomodada pelo enjôo matutino, Jake. Estou saudável como um cavalo e a única mudança que notei foi estar com uma fome de cavalo, também.
— Você quer me fazer crer que está grávida?
— Não me atire esse olhar de pai austero. Estou de barriga, feliz como um gato de telhado. Eu deveria reter a notícia um pouco mais, porém queria contar a você antes que alguém notasse. Mas seja bonzinho e guarde segredo. Porque quando Winnie descobrir, vai começar a dar uma de mãe e a se preocupar. Coisa que uma recém-casada não deve fazer. Com sorte, esconderei de Winnie até ela também ficar grávida. (Patrão, por que você acha que Winnie pretende engravidar?) (Use a cabeça, Eunice. Aposto cinco a um como Winnie está com um band-aid no local em que aquele implante costumava ser feito) (Não tenho cabeça, patrão... apenas a sua, que não funciona muito bem) (Está se queixando, hem? Fique falando assim e não casarei com você)
(Estamos casados, patrão) (Sei disso, amada. Agora, calada. Vou fazer uns malabarismos com ovos)
— Eunice... tem certeza?
— Toda. O teste foi positivo.
— Foi Bob quem fez o teste? Ou algum charlatão?
— As relações de uma paciente com seu médico são confidenciais. Mas não foi um charlatão. Não continue nesse tipo de interrogatório, advogado.
— Vamos nos casar imediatamente.
— Uma ova que vamos!
— Eunice, pare de dizer bobagens!
— Senhor, pedi-lhe que casasse comigo há bastante tempo. O senhor recusou enfaticamente. Pedi-lhe tempos depois. Fui mandada embora. Decidi não renovar meu pedido e não vou concordar agora. Não casarei com o senhor. Mas ficarei honrada e feliz em continuar como sua amante, até ser mandada para a mesa pela biologia... e mais que feliz, se me permitir novamente ser sua concubina quando tiver voltado à atividade. Amo-o, senhor. Mas não casarei consigo.
— Devia lhe dar uma surra.
— Não creio que isso me faça mal, querido. Mas não acredito que possa forçar-se a atacar uma mulher grávida. (Agora dê-lhe um pontapé no outro queixo, patrão. Bruxinha) (Eunice, fique fora disto. Não sou apenas uma mulher desprezada. Também sou o velho Johann Smith, que nunca foi tão desafiado. Jake pode nos possuir sempre, claro. Mas quero me danar se o deixar bancar o «nobre» com a minha gravidez) (Patrão, nunca iremos casar com ele? Isto é um engano, querido. Ele precisa de nós) (E nós dele, Eunice. Claro, casaremos com ele... depois de termos parido. Depois) (Patrão, está fazendo uma grande besteira) (Talvez. Nunca faço pequenas besteiras... só grandes)
— Não disse que ia lhe dar uma surra, Eunice... disse que «devia». Que aconteceu? Lembro perfeitamente que você me disse que ia usar anticoncepcionais.
— Sua memória é boa, senhor. A frase exata, pois falei deliberadamente. «Usei» em todas as ocasiões que quis. Sempre. Com o senhor. Com outros. De cada vez tomei cuidado...
— Hummm! É a resposta mais vaga que já ouvi. Vou perguntar mais francamente: Eunice, engravidei você?
— Recuso-me a responder. Você sabe que pelo menos outro homem dormiu comigo... e eu posso ter sido a noiva do regimento. Jake, você não quis casar comigo quando eu era virgem. Continuou não querendo quando me fez sua amante. Portanto, onde arranjei esta criança não é da sua conta, você não tem o direito de perguntar e — por mais que eu o ame! — não tolerarei nenhuma outra pergunta desse gênero. Agora ou mais tarde! Quem escolhi para pai do meu filho é da minha conta. Mas pode ter certeza de que o escolhi com cuidado, de olhos abertos e de comum acordo. Você está se portando como se fosse um pai lidando com uma filha desobediente ou como o Visitante da Previdência Social tentando descobrir o responsável por uma gravidez não licenciada. Você sabe que não é assim. Tenho noventa e cinco anos — muito mais que você — em condições de me permitir o luxo de uma dúzia de bastardos, se quiser — e quero — e bastante saudável para dizer ao mundo para ir mijar equilibrado numa corda. Jake, eu estava partilhando com você notícias alegres. Você preferiu considerá-las ruins e me repreender por isso. Não aceito, senhor. Cometi um erro contando-lhe. Quer ter a bondade de tratar o assunto como segredo.. e nunca mais se referir a ele?
— Eunice.
— Sim, Jake?
— Amo-a.
— Amo-o, Jake.
— Se eu fosse vinte anos mais moço — ou mesmo dez! — teria casado com você há muito tempo. Uma vez que você não quer me dizer — e visto que eu não tenho o direito de perguntar — você tem razão... Pode perdoar o orgulho de um velho que preferiu acreditar ter sido o homem que você escolheu? Prometo que não discutirei essa crença com ninguém.
— Jacob, se preferiu acreditar nisso, estou honrada. Mas nada de promessas. Se preferir proclamar essa crença, nunca envergonharei meu amigo mais antigo, mais íntimo e mais querido, negando. Sorrirei orgulhosamente e deixarei que minhas maneiras confirmem. Mas, Jacob, meu amado, a você não afirmarei nem negarei... nunca. Fiz sozinha. Sou o único pai desta criança. (Cuidado com as palavras, patrão! O senhor quase revelou) (Ele encarará como figura de retórica. Ou, se desconfiar, uma investigação provará que está errado. Hank Olsen sabe que manteiga passaram no pão dele: a minha) (E as datas irão ser examinadas, de maneira a Jake ter certeza de que é dele. Hmmm...) (Você continua pensando que sou bobo, Eunice?) (Não, patrão... só despreocupado. Às vezes o senhor me deixa em pânico)
— Bem, Eunice, pelas reservas que você mostrou, parece que isso é tudo o que posso saber a respeito.
— Foi a minha intenção, Jake.
— Percebi. Você gostaria de fazer o que, no resto do dia... pelo menos até a chegada dos recém-casados? Jogar?
— Sim, se você quiser, Jake.
— Tenho uma idéia melhor. Se quiser topar. Pode ser divertido, acho eu.
— Será divertido. Jake. Tudo é sempre divertido com você. Mesmo um jogo de cartas.
— É o melhor jogo a dois, se jogado direito. Vamos telefonar a Mac, pedir-lhe que mande seu escrivão se mexer... e casar. Com sorte estaremos legalizados às vinte e uma ou vinte e duas... e ainda jogar cartas antes de dormir.
— Oh, Jake! Cartas!
— Responda, mulher. Um simples «Sim» ou «Não». Não discutirei e não pedirei outra vez. Assoe seu nariz e enxugue os olhos... você está um horror.
— Que inferno, Jake! Sim! Me largue e assoarei o nariz. Acho que fraturou minhas costelas, seu bruto. É uma maneira infernal de tratar uma gestante.
— Faria pior que fraturar suas costelas se você dissesse mais bobagens. Agora, ligar para Mac... tenho de pensar numa mentira plausível, para que ele possa justificar uma autorização para o Juiz de Paz emitir uma licença especial.
— Por que tem de ser inventado, Jacob? Pensei que ia dizer a Mac que me engravidou.
— Eunice, é isso o que quer que eu diga?
— Jacob, vou casar o mais depressa possível e não me importo como. Espero que Winnie e Roberto cheguem a tempo, mas não vou esperar. Você pode recuperar o juízo. Pensei que preferisse declarar ser o pai e sei que concordo em confirmar. Por isso diga a Mac. Diga a todos.
— Não se incomoda?
— Querido Jake, talvez seja a melhor maneira de agir... porque, em breve, Deus e todos ficarão sabendo a respeito da Testemunha Silenciosa. Jake? Lembra do meu primeiro dia de liberdade? O dia seguinte a Mac ter confirmado condicionalmente minha identidade e me liberado da tutela do tribunal?
— Minha querida, provavelmente não esquecerei aquele dia.
— Nem eu. Conte duzentos e sessenta e sete dias. É quando a Testemunha Silenciosa aparecerá.
— Está me dizendo que sou o pai do seu filho?
— Absolutamente, senhor. Eu estava em ânsias e me livrara da rédea. O senhor pode imaginar, se quiser, que passei o dia pulando de uma cama para outra, indo de um homem a outro. — Sorriu com beatitude. (Patrão, andou terrivelmente perto da verdade... mas parece uma bruta mentira) (É a verdade, Eunice. Fui muito cuidadoso. Esta é a segunda melhor maneira de dizer uma mentira: falar a verdade de maneira a parecer uma grande mentira) (E eu pensava que sabia mentir) (Tive muito mais anos de prática, amada... e quando criança tive muito mais motivos para mentir que você. Mentir é uma arte. Só se aprende com longos estudos)
— Acabe com as bobagens, Eunice, ou começarei a vida de casado lhe dando um lábio inchado. Tá bem, diremos isso a Mac. A verdade é freqüentemente a melhor solução. Mas temos de conseguir atestados de saúde. Mac pode obtê-los fora do prazo de espera, mas não sem que sejam requeridos. Meu médico telefonará o meu, sem se deter para tirar amostra de sangue e fazer testes mas, e esse charlatão que você citou? Irá colaborar?
— Jake, não me lembro de ter falado num charlatão. Se Roberto chegar a tempo, penso que aceitará correr o risco. Ou Rosy, acho. Acho que não estou abrigando nem mesmo um percevejo, a não ser que tenha apanhado com Joe e Gigi. Muito improvável. E quanto a você, querido? Washington, D.C., tem a mais alta porcentagem de moléstias venéreas do país. Trouxe alguma coisa para casa?
— Oh, nada, a não ser carambolas.
— Uma moça fina como eu não entende essas expressões.
— Sua vagabundinha impudente, dormi sozinho em Washington. Você pode dizer o mesmo? Com relação aos últimos cinco dias?
— Claro que não, querido. Nunca estive interessada em dormir sozinha e Gigi é muito confortável. Recomendo que experimente... olhe este quadro.
— Estou certo de que ela é. Só Gigi, hem? Joe não?
— Jake, Joe é confortável? Me conte mais!
— Mulher, está se arriscando a ter o lábio inchado antes de casar. —. Como presente de casamento do noivo? Senhor, se quiser me inchar o lábio, ficarei quieta, sorrirei alegre e o receberei. Oh, querido Jake, vai ser tão divertido estar casada com você!
— Também acho, sua vagabunda louca. Hummm... meu médico poderá fonar um atestado para você também, se eu explicar as circunstâncias. Mas preciso de seu tipo de sangue.
— Jake, o país inteiro sabe que meu sangue é AB-negativo. Você esqueceu?
— Momentaneamente, sim. Isso basta. Exceto... O casamento aqui? Ou no gabinete de Mac?
— Aqui, se possível. Quero ter os empregados como «família» se Winnie e Roberto não chegarem. Jake, devo me atrever a mandar um carro com um recado, pedindo a Joe e Gigi que me dêem a honra de vir para o ato? Quero a presença deles. Gigi não é problema. Virá se Joe quiser... mas acho que você conhece Joe melhor que eu. Nem mesmo sei se ele tem roupas para isso... não o vi vestir outra coisa a não ser um short em farrapos, tão sujo de tinta que podia ficar em pé sozinho.
— Hummm, concordo em que o ex-marido de Eunice tenha o direito de ser convidado para o casamento de Joan Eunice, embora, é certo, não haja um protocolo a esse respeito. Querida, as roupas que Joe usou no tribunal são convenientes para um casamento em casa. E quanto a você, Eunice? Vai casar de branco?
— Acho que fui novamente insultada. Usar branco, agora que alguém pode roubar um quadro e vendê-lo? «Noiva que Mudou de Sexo, de Noventa e Cinco Anos, Casa de Branco». Querido, se eu usar branco, vamos pedir à Life para mandar um fotógrafo e economizar o intermediário. Usarei branco se você quiser. Se não, arranjarei algo, mas não será branco. Algo.
— «Algo antigo, algo novo, algo emprestado, algo azul».
— Apague e corrija, Jake. A versão século vinte e um é:
«A noiva é velha,
A licença é nova
O corpo emprestado,
O noivo é azul».
— Estou infernalmente azul, preciso apenas fazer a barba. Saia agora e me deixe trabalhar. Caia fora. Vá tomar banho. Procure cheirar como uma noiva.
— Em vez de um fuquefuque? Vou fazer uma sugestão. Mas você também vai tomar um banho.
— Quem instruirá o noivo?
Cunningham teve um trabalhão. Mas disso ninguém escapou na horrenda mansão. Ao som dos acordes tradicionais da «Marcha» de Mendelssohn, a noiva caminhou lentamente pela rotunda, com passos cadenciados. (Gêmeo, «Aí Vem a Noiva» sempre me pareceu como um gato atacando um canário. Pum... pum... pum-pum! Muito apropriado, hem?) (Eunice, comporte-se!) (Oh, vou me comportar. Mas prefiro «John Jacob Jingleheimer Smith: o nome dele também é o meu»!)
(Você não pode conhecer esse. Tem oitenta anos e foi esquecido há muito tempo) (Por que não posso se você o estava cantando dentro da cabeça o tempo todo em que nos vestiam?)
Joan caminhou calmamente para o centro de um longo tapete de veludo branco, atravessou a arcada, entrou no salão de banquetes, agora transformado em capela, com flores, candelabros e órgão. (Patrão, lá está Curt! Estou contente porque ele fez os arranjos! Aquela com ele deve ser Mrs. Hedrick. Não os olhe, gêmeo. Começarei a rir) (Não estou olhando e você pare de olhar... tenho de olhar para a frente) (Faça isso, querido patrão, enquanto vejo quem veio. Lá está Mrs. Mac — Norma — e a Ruth do Alec, com Roberto. Onde está Rosy?...
Oh, ali, por trás de Mrs. Mac. Nossa, não é Delia, vestida a caráter?... Faz a 'gente se sentir mendiga)
A noiva usava um vestido extremamente simples, azul-pólvora, opaco, de gola alta, véu da mesma cor, mangas compridas, luvas combinando, a barra da saia arrastando no tapete de veludo e uma extensa cauda. Levava um ramo de orquídeas brancas, tingidas de azul para combinar. (Gêmeo? Por que a decisão de usar calcinhas no último minuto? Deixam uma marca que se nota) (Não através deste vestido. Não é transparente. O «nó da noiva», amada... como defloramento simbólico) (Bah! Não me faça rir, patrão) (Eunice,, se você estragar este casamento, eu... eu... não falarei com você durante três dias!) (Gêmea Joan, não estragarei... Jake quer símbolos, pois terá) (E eu também quero!) (E eu, gêmeo, e eu. Acontece que nunca fui capaz de ver a vida de outra maneira, a não ser como uma vasta e complicada piada e é melhor rir que chorar)
(Sim, querida... mas agora não vamos fazer nem um nem outro. Estou tendo dificuldade com as lágrimas) (Pensei que eram as minhas. Thomas Cattus não está elegante? Ouvi você mandar tocar «Lohengrin». Isso é ainda mais engraçado que Mendelssohn... para uma moça de uma fazenda de Iowa soa exatamente como o triunfante cacarejar de uma galinha depois de pôr um ovo. Aí eu vou rir... sei que vou)
(Está bem, então choraremos e riremos ao mesmo tempo, Eunice... e nos agarraremos com firmeza no braço de Jacob. Olhe, queridinha, este é um casamento à antiga com todos os clichês, porque Jake e eu somos velhos fósseis e tem de ser assim)
(Oh, estou de acordo. Cunningham parece preocupado... não sei por quê. Fez um trabalho magnífico. Patrão, essas calcinhas me causam uma graça enorme porque você mandou colocar «Bilitis» e as «Graças» em cavaletes na sala de recepção, onde todos os convidados podem vê-las. Para mim é um enigma) (Eunice, uma coisa não tem nada com a outra. Espera-se que uma noiva esteja vestida. Aqueles quadros foram feitos para serem vistos. Com Joe e Gigi aqui, quero muito que eles sejam olhados!) (Serão. Veja. Algumas esposas podem olhá-los com intenso interesse. Talvez) (Talvez. Eunice, você sabe que nunca pedi a um marido para esconder algo da esposa. Não é direito pedir a um membro de um casal ter segredos com o outro. Além disso, terá ou não, o que quer que você peça... e ele pode ter. Conhece-a melhor que nós. Mas esses quadros são tão inofensivos como o ponche de frutas que fizemos para os que não querem champanha. Não tem importância que eu tivesse posado para eles, quero apenas que o gênio de Joe seja reconhecido. Apreciado)
Joe Branca usara uma parte não pequena do seu talento para maquilar a noiva. Começando como numa tela virgem — recém-saída do banho — trabalhara intensamente maquilando Joan Eunice da cabeça aos pés, com tanta sobriedade que mesmo um exame acurado não mostraria nenhum traço dos seus esforços. Como em «As Três Graças» havia apenas a própria beleza de Eunice, invisivelmente acentuada fortemente acentuada, mais bela que a vida, mais natural que a natureza Recusou-se a colocar-lhe cabelos compridos e apenas afofou o próprio cabelo dela (ainda muito mais curto que o de Eunice) e borrifou-o ligeiramente para o conservar penteado sob o véu.
A madrinha da noiva foi maquilada com muito menos sobriedade. Tendo visto o milagre realizado em Joan Eunice, Winnie perguntou timidamente àquela se achava que não havia inconveniente em pedir a Mr. Branca para melhorá-la um pouco. Já que participava da festa de casamento?... E Joan e Gigi aprovaram entusiasticamente a idéia. Joe examinou Mrs. Garcia e então disse:
— Quarenta minutos, Joan Eunice... dá tempo? Tá bem, Winnie, lave o rosto.
Joe tirou partido do cabelo ruivo de Winifred, tornou visíveis suas sobrancelhas finas e cílios, deu vida à pele muito branca... porém ficou muito mais natural que o rosto estilizado que Winnie habitualmente usava.
A madrinha usava capa e malha verde-claro e levava um pequeno buquê de orquídeas, verde e marrom. Manteve o passo cadenciado de marcha bastante à frente da noiva, precedendo-a no salão de banquete, em direção ao altar improvisado.
O Chefe da Segurança O'Neil foi o último a entrar, postando-se sob a arcada, em posição de descanso, procurando observar os acontecimentos no fundo da sala enquanto prestava atenção às suas costas. Suas feições mantinham-se serenas, porém estava preocupado, alerta. O casarão estava vazio, com exceção das setenta e cinco ou oitenta pessoas naquela sala. Todas as blindagens foram colocadas, toda janela verdadeira foi fechada, aferrolhada e passado cadeado. A rede noturna de alarma foi ligada e O'Neil verificou tudo isso pessoalmente antes de permitir que os guardas assistissem ao casamento. Mas o chefe não confiava em dispositivos e confiava em pouca gente. Não relaxou a vigilância.
A noiva se aproximou do fundo do salão. Jake Salomon a esperava lá, com Alec Train ao seu lado. De frente para eles na parte lateral estavam o Reverendo Hugo White e o Juiz McCampbell, equivalendo-se em dignidade. Shorty estava usando um manto preto, camisa branca, gravata comprida, e levava sua Bíblia. O juiz estava de toga.
(Patrão, Jake não está lindo? Mas que farda é aquela?) (É um fraque, amada) (É uma peça de museu) (Acho que sim. Jake provavelmente não o veste há uns trinta, quarenta anos... ou talvez o tenha alugado a um costureiro de teatro. Tenho a certeza de que Alec alugou o dele. Veja como o Padre Hugo está sensacional!) (Deve ser sua indumentária de pregar, patrão. Joe tem de pintá-lo com ela, mesmo que nunca consiga o quadro que quer) (Boa idéia, Eunice. Vamos insinuar a Gigi... e uma coisa leva à outra. Tenho esperança de que, vendo «As Três Graças», ele fique mais cordato. Pois Hugo quer posar... se conseguir se convencer de que não é pecado. Eunice, meus joelhos estão tremendo. Não sei se vou agüentar!) (Om Mani Padme Hum, caçulinha. Levamos um tempo enorme para fazê-lo se decidir. Não vá fraquejar agora) (Om Mani Padme Hum, Eunice... segure minha mão, querida. Não me deixe desmaiar)
Joan Eunice parou defronte do juiz e do pregador. Winifred tirou o buquê das mãos dela e recuou para um lado. Alec Train fez Jake se colocar ao lado de Joan Eunice e se postou de maneira a ficar em oposição a Winifred. A música parou. Hugo ergueu os olhos e disse:
— Oremos.
(Om Mani Padme Hum. Você tá bem, gêmeo?) (Agora estou. Om
Mani Padme Hum)
Quando Hugo disse «Amém», Joe Branca saiu de um lado e fez sua primeira foto. Depois, começou a andar em torno, como um contra-regra chinês, sem perturbar ninguém e nunca se mexendo num momento crítico... mas tirando fotos.
Hugo abriu sua Bíblia, mas não a olhou.
— Vamos ler hoje o Livro dos Salmos. Ele diz:
«O Senhor é meu pastor; nada me faltará.
«Ele me fez repousar nos prados verdes; Ele me guiou até as
águas tranqüilas.
«Ele restaurou as forças da minha alma; Ele me guiou pelo caminho da retidão, por amor do Seu nome,
«Sim, embora eu caminhe pelo vale de sombras da morte, não temerei o mal...»
Fechou a Bíblia.
— Irmãos e irmãs, o Senhor viu que Adão estava só no Jardim do Éden e disse que não era bom para um homem viver só. Por isso Ele criou Eva para viver com Adão. E Ele disse a Adão: Meu filho, cuide desta mulher, está Me ouvindo? Trate-a com justiça o tempo todo, exatamente como se Eu estivesse vigiando você o tempo todo. Porque estou vigiando você, cada minuto e cada segundo. Trate-a com carinho e a proteja como lhe disse e ficará tão ocupado que não terá tempo de fazer nada errado e ela lhe será um conforto em todos os dias da sua vida.
Virou-se para Salomon.
— Jacob Moshe, vai fazer isso?
— Farei!
O Reverendo virou-se para a noiva.
— E o Senhor disse a Eva: Minha filha, você vai cozinhar para esse homem, lavar suas roupas, ter seus filhos e não ficar andando por aí quando deve estar em casa, amá-lo mesmo quando estiver cansado e de mau humor e não ficar falando disso, porque os homens são assim e você deve aceitar o mau com o bom... está Me ouvindo, Eva? Joan Eunice, vai fazer isso?
— Sim, Padre Hugo.
— Juiz...
— Jacob Moshe, existe algo em nossas leis e costumes que o impeçam de casar com esta mulher?
— Nada.
— Joan Eunice, há algum motivo na lei ou no seu íntimo para que não case com este homem?
— Não há nada, Meritíssimo. McCampbell ergueu a voz.
— Se alguma testemunha sabe de um motivo que possa me impedir de unir estes dois em casamento, intimo-a a falar. (Eunice, se alguém pigarrear, eu... eu...) (O senhor ficará calado, patrãozinho É isso o que vai fazer. Aqui só há amigos íntimos. Om Mani Padme Hum) (Om Mani Padme Hum)
— Jacob Moshe, amará, honrará e protegerá esta mulher?
— Sim.
— Joan Eunice, amará, honrará e protegerá este homem?
— Amarei, honrarei e obedecerei. (Hem? Patrão infernal, o senhor não tem a menor intenção de obedecer!)
Salomon disse:
— Um momento! Juiz, ela modificou as palavras! Não espero isso e não quero que ela prometa...
— Ordem. Você fique calado, Jake. Não estou falando com você Joan Eunice, é isso o que você deseja prometer?
— É, Meritíssimo. (Eunice, fique de fora. Sei o que estou fazendo)
— Devo avisá-la de que tal promessa não é legalmente obrigatória nos contratos de casamento civil deste Estado, mas preciso adverti-la, também, que não é uma promessa que deva ser feita levianamente nestas circunstâncias.
— Estou ciente, Meritíssimo. (Patrão, o senhor está maluco!) (Muito possivelmente. Mas está bem, querida. Jake irá nos dar exatamente as ordens que teremos humildemente o prazer de obedecer. Até agora não tenho tido razão?) (Tem, mas continua me assustando. Suponha que nos mande conservar as pernas fechadas? Nunca tive nenhum prazer nisso) (Ele nunca mandará. Em vez disso, terá um prazer magnânimo em se adaptar aos nossos pequenos caprichos... desde que prometamos obedecer-lhe. Calma, querida... era exatamente dessa maneira que minha querida Agnes me levava... e eu não tinha nem um pingo do juízo e da tolerância de Jake)
— Queira repetir sua declaração.
— Eu, Joan Eunice, prometo solenemente amar, honrar e obedecer Jacob Moshe... e o farei, Meritíssimo, mesmo que ele desista e não case comigo. Ele não precisa casar comigo. Serei perfeitamente feliz
apenas...
— Silêncio, Joan Eunice. Chega. Reverendo, isto está passando dos limites. Vou encerrar com algumas formas legais e o senhor pode acrescentar o que achar que eles precisam, na sua prece de encerramento.
Está bem?
— Está, juiz. Eles não precisam de muitas preces. Estão preparados.
— Espero que tenha razão. Jake, você ouviu esta jovem, hum, senhora cabeçuda. Está disposto a casar com ela assim mesmo?
— Estou.
— Jacob Moshe, recebe Joan Eunice como sua legítima esposa diante da lei?
— Sim.
— Joan Eunice, recebe Jacob Moshe como seu legítimo esposo diante da lei?
— Sim.
— Hum, onde está o anel? Alec. Jake, pegue a mão esquerda de Joan Eunice com sua esquerda. Agora.
— Com este anel te recebo.
— Com a autoridade de que estou investido, declaro-os marido e mulher. Beije-a, Jake. Assuma, Reverendo. (E você me disse para não avacalhar!) (Estamos aqui, hem? Ele é nosso. Isto é, somos dele. Dá no mesmo) — Oremos!
Em Luna, o Túnel Kennedy B, paralelo ao Túnel Kennedy A, entre Luna City e o Complexo Industrial Apoio, foi terminado e ambos passaram então a ter mão única, quadruplicando desse modo o trânsito potencial. As projeções para os próximos cinco e dez anos forçaram a Comissão a decidir prosseguir imediatamente com os túneis C e D. Nas Bolsas de Valores de Hong-Kong e Nova Iorque, as Vacuum Industries Ltd., Selenterprises, Pan Am e Diana Transport acusaram uma súbita alta, contrariando uma baixa geral do mercado. Mercury Newsletter (subsidiária do ServMerc) enviou mensagens autodestrutíveis por enviados especiais aos seus clientes de 7-estrelas. Nove por cento dos enviados não voltaram, o que forçou o diretor-gerente da ServMerc a achar que umas férias em Las-Vegas-no-Céu iriam fazer muito bem à sua saúde, apesar de não haver prova de que os agentes da Defesa Interna tivessem detido os enviados ou decifrado a mensagem «destrutível». Uma fonte chegada ao Presidente negou que estivesse havendo algo mais que a inquietação da temporada em qualquer cidade do país e denunciou os «boateiros irresponsáveis». O programa da CBS «Today's Day with Dave Daly» foi substituído por um filme, sob a alegação de dificuldades técnicas. «Today's Day» reapareceu no dia seguinte sem Daly, que pediu — como anunciaram — uma licença para tratamento de um grande esgotamento. Miss Molly Maguire, a quentíssima sensação da indústria privada do filme, reivindicou o título de primeira mulher na história a ter tido um filho durante um mergulho no espaço. A criança pousou em segurança, exatamente como fora planejado pela equipe de parteiras que mergulhou com ela, o fato foi filmado em estéreo-som e estereocor, de diversos ângulos, e o único acidente foi um tornozelo luxado de Miss Maguire... que ficou em condições de dar uma conferência de imprensa trinta minutos depois de pousar.
Uma vez que o vôo teve início no México e o mergulho foi dado sobre o solo daquele país, e considerando que todo o grupo, com exceção do avião, pousou no Arizona, não ficou claro que leis foram violadas, ou qual a nacionalidade da criança... visto Miss Maguire ser cidadã do Paquistão, com residência permanente legal nos States. O grupo apresentou-se voluntariamente ao oficial americano de imigração mais próximo e Miss Maguire desculpou-se simpaticamente no vídeo por ter voltado ao seu país de adoção tão informalmente, em conseqüência de um engano involuntário do seu piloto, acrescido de uma súbita rajada de vento. Foram soltos com uma advertência, mas os filmes foram confiscados... inutilmente, pois pareciam mostrar que a criança nascera, meio a meio, em ambos os países. Mas fatores de angulação e paralaxe, bem como a identificação de marcas do solo — nas seqüências em que o solo era mostrado inteiramente — tornavam impossível ter certeza. A Grove Press comprou o direito de opção dos filmes e então instaurou um processo pedindo sua liberação, no interesse da justiça.
Um famoso caso de mudança de sexo casou com seu advogado, mas o digno casal deu um jeito de fugir para a lua-de-mel antes que a notícia se espalhasse. Um famoso repórter de escândalos perseguiu-os até o Canadá, para verificar que o casal que seguira era um certo Dr. & Mrs. Garcia, recém-casados, porém sem nenhum interesse. Mrs. Garcia sorriu e deixou-se fotografar (ela é muito fotogênica), sendo ainda entrevistada a respeito do casamento. Então os Garcias voltaram para casa.
O Senador James «Jumping Joe» Jones, de Arkansas, acusou o projeto de anulação da XXXI Emenda, visando a permitir orações nas escolas públicas, de um complô do agente do Diabo, o Papa de Roma, e seus vis seguidores. A reconstrução do Palácio do Governo de Oklahoma foi paralisada por disputas trabalhistas provocadas (segundo se alegou) pelo movimento subterrâneo «Comissão de Ação por Direitos Iguais para os Brancos». O capataz da construtora contratada disse: «Qualquer pilantra que se julgue discriminado pode levar o assunto ao conhecimento da comissão de empregos e obter um julgamento justo. O problema é que esses caras não querem trabalhar».
!!!!!!!OHOMEM INSTANTÂNEO!!!!
-Garantido-Higiênico-Sensível-
Por que passar noites solitárias insones quando um alívio totalmente sensitivo pode ser seu no aconchego do seu lar? Programado para sua felicidade pela mesma grande equipe de supercientistas que criou o propulsor orbital recuperável.
Encontrado nos principais fornecedores de material hospitalar. Não precisa receita médica.
SELOS TRIVERDES
Saúde-Já, S.A. — fabrs. da MULHER INSTANTÂNEA
Infeliz? Você não precisa ser... nem usar esses brinquedos mecânicos idiotas, indignos e degradantes. Sem drogas. Basta telefonar para Old Doc Joy, hipnoterapista licenciado pelo Estado de Nova Iorque, (anúncio)
«Mr. e Mrs. MacKenzie» (passaportes liberianos) tinham a cobertura para eles: três banheiros, quatro quartos, cozinha, sala de jantar, sala-bar, sala de visitas, lanai*, jardim, piscina, cascata, fonte, jardim-bar-copa, vestíbulo, elevador particular, vista magnífica do ancora-douro de iates, praias, estuário, cidade e montanhas além.
Porém eram excêntricos. O aluguel incluía o serviço completo do hotel, mas ninguém do pessoal havia estado naquele andar desde que eles chegaram. Não eram vistos nos cassinos, nas praias, nem nos outros lugares onde sabiam encontrar os divertimentos locais. Às vezes pediam refeições, mas o cardápio não passava do elevador. Seus empregados o apanhavam.
Corria o boato entre os empregados do hotel que Mrs. MacKenzie gostava de fazer sua própria comida, mas ninguém tinha certeza... ninguém a vira (salvo talvez de um cóptero) e poucos a conheciam de vista. Seus empregados tinham três suítes no andar térreo... e estavam dispostos a discutir qualquer assunto, menos seus patrões. Ela veio do jardim e entrou na sala de estar. Ele ergueu os olhos do livro.
*Varanda em havaiano (N. do T.).
— Que foi, querida? Sol demais? Ou aquele cóptero voltou?
— Nada disso. Os cópteros não me incomodam. Viro de barriga para baixo e eles não podem fotografar meu rosto. Querido Jake, quero que veja uma coisa linda.
— Traga aqui. Estou com preguiça.
— Não posso, está lá embaixo, na água. Um barco de aspecto estranho, com as velas mais alegres e coloridas que se possa imaginar. Você esteve na Marinha e conhece essas coisas.
— Estive na Marinha durante um período de alistamento, há cinqüenta anos, e por isso virei conhecedor.
— Jacob, você sempre sabe tudo. E este é lindo e muito estranho. Peço-lhe, senhor!
— Seu menor desejo, madame. Levantou-se e ofereceu-lhe o braço. Chegaram ao parapeito que dava para o mar.
— Onde está? Todas essas embarcações têm velas coloridas. Ainda não vi um par de velas brancas desde que chegamos... parece até haver uma lei contra elas.
— Aquela ali. Oh, querido, eles desceram as velas. E estavam tão lindas não faz um minuto!
— «Arriaram as velas», Eunice. Já que vou ser seu especialista residente, deixe-me mostrar conhecimento. Quando a gente baixa as velas subitamente, as «arria». É o que aquele homem está fazendo, porque pretende ancorar... sim! Está lançando ferros. E um navio é sempre «ela», nunca «ele». Barcos e navios são femininos porque são belos, dignos de serem amados, caros... e imprevisíveis.
— Jake, você sempre foi capaz de prever o que vou fazer, mesmo antes de eu própria saber. (Gêmeo, por que dizer uma mentira dessas? Ele sabe muito bem) (Ele não vai querer discutir, amor) Mas o que é aquilo?
— Uma trimarã, um iate com três cascos. Não posso dizer que a acho bonita. Uma chalupa com uma vela central é a minha noção de beleza.
— Agora parece um tanto convencional. Mas com todas as velas erguidas ele — desculpe! — «ela» era linda. (Gêmeo, pergunte a Jake se ele acha que há algum jeito de irmos a bordo dele) («Dela», Eunice... não dele. Você é maruja, querida?) (Nunca entrei num barco em minha vida, patrão. Mas talvez esteja tendo uma idéia) (Talvez seja a mesma que eu tenho. Está pensando naquela conversa com Jake, quando ele frisou que uma fazenda pode significar mais pessoal e menos segurança que nossa casa?) (Não me interessa quem pensou primeiro, patrão... trate de fazer com que Jake pense nisso primeiro) (Farei, querida... você acha que eu precisei que ele me dissesse que uma nave é «ela»? Ou que não posso reconhecer uma trimarã? O problema importante é o seguinte: você sofre de enjôo? Eu sofria... e é humilhante. Mas o fato de não termos tido o menor sintoma de enjôo matutino me faz pensar que talvez você seja imune ao enjôo de balanço) (Portanto, «vamos operar para descobrir», como diz Roberto)
— Oh, trimarãs têm suas vantagens, Eunice. Valem o dinheiro empregado. Espaçosas. E quase impossível de virar... a não ser as menorezinhas. Apenas não lhes daria nenhum prêmio de beleza.
— Jake, você acha que pode dar um jeito de sermos convidados a bordo daquela? Ela parece interessante.
— Oh, há um jeito de arranjar isso. Posso começar falando com o gerente. Mas, Eunice, você não pode ir a bordo de uma embarcação particular com o véu colocado no rosto. Seria grosseiro. Suas netas não lhe fizeram nenhum favor quando a tornaram tão reconhecível quanto uma estrela do vídeo.
— Jacob, um véu nada tem a ver com isso porque nunca quis conhecer ninguém no papel de «Mrs. MacKenzie». Sou Mrs. Jacob Moshe Salomon e tenho orgulho disso... e é assim que quero ser sempre apresentada. Jake, duvido que nosso casamento continue sendo assunto jornalístico. Não teria muita importância se eu fosse vista.
— Suponho que não. Os cópteros podem enxamear um pouquinho mais perto durante um certo tempo e alguns terem fotógrafos a bordo com lentes telescópicas. Mas duvido que mesmo suas netas estejam ansiosas para fotografar você. Se os caçadores de escândalos a assustam, ponha calcinhas para o banho de sol e na piscina.
— Uma ova que eu ponho, é nossa piscina, Jacob. Seja como for, calcinhas não esconderão minha gravidez e quanto mais cedo for publicado, menos interessará mais tarde. Que eles tirem a foto. Então teremos o Doutor Bob a confirmando... e deixa de ser novidade. Sem chateações, querido. Aprendi há anos que «não se pode fugir de tudo»... é preciso enfrentar. É possível ter uma piscina numa embarcação daquele tipo?
— Não daquele tamanho. Mas já vi trimarãs muito maiores. Acho que é possível, uma vez que a trimarã tenha maior espaço de tombadilho para sua tonelagem... tenho de perguntar a um engenheiro naval. Por que o interesse, pernas sensuais? Quer que eu lhe compre um iate?
— Não sei. Mas barcos parecem ser divertidos. Jake, nunca tive muito divertimento na vida... na outra vida. Não tenho certeza de como a gente se comporta diante do divertimento... exceto que para mim, hoje, cada dia é uma alegria. Só tenho a certeza de que tudo o que quero é fazer algo totalmente diferente desta vez. Não ser uma quadrada nem uma alegre e doidivanas locomotiva da «sociedade»... merda! Prefiro virar puta. Você gosta de iate, Jake? Me leva a dar uma volta ao mundo, mostrando todos os lugares onde você esteve e onde eu nunca tive tempo de ir?
— Você quer dizer que nunca arranjou tempo.
— Talvez seja a mesma coisa. Sei que, se um homem consegue dinheiro demais, imediatamente o dinheiro o possui, em vez dele dominar o dinheiro. Jake, estive na Europa pelo menos cinqüenta vezes... porém nunca entrei no Louvre e nunca vi a mudança de guarda do Palácio de Buckingham. Só vi hotéis e quartos de pensão... que são iguais em qualquer parte do globo. Importa-se de completar minha educação, querido? Mostra-me o Rio?... você diz que é a cidade mais bonita do mundo. O Partenon ao luar? O Taj ao alvorecer?
Jake disse, pensativo:
— A trimarã é a embarcação favorita do aposentado.
— Perdão? Acho que não ouvi bem. «Aposentado»?
— Não estou me referindo aos vagabundos de pés descalços das Áreas Abandonadas, Eunice, nem aos que se escondem nas colinas. É_ preciso dinheiro para cair fora por mar. Mas há quem faça. Milhões fizeram. Ninguém sabe quantos porque o assunto foi objeto de «restrição» durante anos... o governo não quer que ele desperte atenção. Mas veja esses iates lá embaixo: aposto que pelo menos um em dez está registrado sob uma «bandeira de conveniência» e o passaporte do dono é tão falso quanto os de «Mr. e Mrs. MacKenzie». Ele deve ser registrado em algum lugar e usar um certo tipo de passaporte, pois do contrário a Guarda Costeira, onde quer que ele vá, lhe dará aborrecimentos, inclusive apreendendo sua embarcação. Mas se cuidar desse mínimo, pode evitar quase tudo: não pagará imposto, taxas locais, a não ser quando comprar algo, ninguém tentará botar seus filhos em escolas públicas, não pagará imposto territorial, estará livre da política... e da violência nas ruas. Esta última parte é a melhor, com o ciclo de conflitos crescendo outra vez.
— Então é possível «largar tudo isto».
— Não exatamente. Qualquer que seja a quantidade de peixe que ele coma, tem de tocar a terra vez por outra. Não pode bancar o Vanderdecken. Só um navio fantasma pode navegar eternamente. Os verdadeiros têm de arribar de tempos em tempos — Jake Salomon ficou pensativo. — Mas está mais próximo dessa combinação antitética de «paz» e «liberdade» do que é possível em terra. Se desejar essa combinação. Mas, Eunice, eu sei o que faria... se fosse jovem.
— O quê, Jake?
— Olhe para cima.
— Onde, querido? Não estou vendo nada».
— Lá.
— A Lua?
— Isso! Eunice, é o único lugar ainda com muito espaço e pouca gente. Nossa última fronteira... mas infinita. Qualquer um na idade de viajar pode, pelo menos, tentar emigrar.
— Está falando sério, Jacob? A viagem espacial é certamente interessante cientificamente, mas nunca vi muita utilidade nela. Oh, certas «surpresas». Vídeo-satélites, etc. Novos materiais. Mas a própria Lua?... Ora, não vale o preço da viagem.
— Eunice, quanto vale essa criança na sua barriga?
— Acredito que esteja brincando, senhor. Espero que esteja.
— Calma, Barriguda. Querida, uma criança recém-nascida é a coisa mais inútil que alguém possa imaginar. Nem mesmo é bonita, a não ser para os pais corujas. Não vale o preço da viagem e é absurdamente cara. Leva de vinte a trinta anos para o investimento começar a dar lucro e em muitos casos — não, na maioria — nunca dá. Porque é muito mais fácil sustentar um filho do que levar um a ser alguma coisa.
— Nosso filho será alguma coisa!
— Tenho certeza que sim. Mas olhe para os lados. Minha generalização confirma-se. Porém, Eunice, apesar desses defeitos, uma criança tem uma virtude única. É sempre a esperança da nossa raça. Sua única esperança.
Ela sorriu.
— Jacob, você é um homem irritante.
— Procuro ser, querida. É bom para o seu metabolismo. Mas agora torne a olhar para o céu. Aquilo também é uma criança recém-nascida. A melhor esperança da nossa raça. Se aquela criança viver, a raça humana viverá. Se a deixarmos morrer — e é vulnerável por alguns anos mais — a raça também morre. Oh, não me refiro a bombas-H. Estamos enfrentando um perigo muito maior que bombas-H. Chegamos a um impasse. Não podemos prosseguir no rumo que traçamos — e não podemos voltar — e estamos morrendo do nosso próprio veneno. É por isso que aquela pequena colônia lunar tem de sobreviver. Porque nós não podemos. Não é a ameaça de guerra ou o crime nas ruas, a corrupção nos altos escalões ou os pesticidas, o smog ou a «educação» que não é dada. Essas coisas são apenas sintomas do câncer subjacente. Há gente demais. Não muitas almas, ou importunos, ou bichas: apenas... gente demais. Sete bilhões de pessoas, sentadas umas no colo das outras, tentando roubar a água umas das outras, ou os bolsos umas das outras. Demais. Na maioria dos casos não há nada de errado com essas pessoas... mas coletivamente somos os Gatos de Kilkenny: incapazes de fazer qualquer coisa a não ser morrer de fome, lutar e comer uns aos outros. Demais. Por isso, todos devem poder ir para a Lua o mais depressa possível.
— Jacob, conheço você há muitos anos e nunca o ouvi falar assim.
— Por que falar de um sonho não realizado? Eunice... Eunice-Johann, quero dizer, nasci vinte e cinco anos depois de você. Cresci acreditando na viagem espacial. Você talvez não?
— Não, Jake, eu não. Quando a coisa surgiu, pareceu-me interessante... mas um tanto absurda.
— Enquanto que eu nasci tarde bastante para que me fosse tão natural quanto automóveis. Os grandes foguetes não foram surpresa para a minha geração. Nossos dentes nasceram com Buck Rogers. Não obstante, nasci cedo demais. Quando Armstrong e Aldrin pousaram na Lua, eu estava passando dos quarenta. Quando a emigração começou, com a idade-limite de quarenta anos, eu era muito velho. Quando a aumentaram para quarenta e cinco, continuei sendo muito velho... e quando subiram para cinqüenta, já era velho demais. Não estou reclamando, querida. Numa fronteira, cada cara deve poder levantar seu próprio peso e não há muito trabalho para um velho advogado.
Sorriu para ela e continuou:
— Mas, querida, se você quiser emigrar, não procurarei dissuadi-la. A encorajarei.
— Jake! (Ele não pode se livrar de nós com essa facilidade!) (Claro que não pode! Vou dar um jeito nele) Jake, meu querido e único, você não pode se livrar de mim com tanta facilidade.
— Eunice, estou falando sério. Morreria feliz se soubesse que nosso filho iria nascer na Lua.
Ela suspirou.
— Jacob, prometi obedecer e obedeço alegremente. Mas não posso ir para a Lua... como emigrante. Porque ultrapassei a idade-limite há muito mais tempo que você... como disse o Supremo Tribunal.
— Isso pode ser solucionado.
— E abrir um processo novamente, a propósito da minha identidade? Querido Jacob, não quero abandoná-lo. Mas... — acariciou a barriga e sorriu — se ele quiser ir à Lua, ajudá-lo-emos, tão logo esteja em idade de ser aceito. Está bem?
Jake sorriu e, suavemente, acariciou a leve protuberância de Joan.
— Mais do que bem. Porque não desejo que a bela mãe dele vá embora sob nenhum pretexto. Porém um pai nunca deve ser um empecilho para o filho.
— Nunca jamais em tempo algum. Você não quererá. Nunca. Jacob Júnior irá à Lua quando chegar a hora, mas não nesta semana. Falemos sobre trimarãs e esta semana. Jake, você sabe que eu quero deixar de falar na casa... eu a cederia, mas as pessoas só se interessam pelo terreno. Tornou-se um elefante branco. Porém duas coisas me aborreceram. Primeiro, ter sido obrigada a deixá-la defendida, para que o Povo Livre não a arrombe e ocupe, apesar de toda a blindagem... e então, um dia qualquer, um juiz garantir-lhes o título, por abandono de propriedade. Jake disse:
— Sem dúvida. Historicamente, todos os títulos de posse de terras nasceram assim. Alguém se apossa, defende e grita: «É minha!» E ultimamente os tribunais vêm encurtando o período de posse por ocupação. Especialmente nos núcleos próximos às Áreas Abandonadas. E sua casa tem as duas condições.
— Eu sei, querido... mas não quero me render aos ocupantes. Raios, aquela casa me custou mais de nove milhões, sem contar impostos e manutenção. A outra preocupação é o que fazer com a criadagem. Estou cansada de ser senhor feudal. Apague e emende: agora uma senhora. (Apague o emende: agora uma «prostituta») (Sem dúvida, Eunice, mas deixei de me prostituir desde que casamos) (Não teve muitas oportunidades, gêmeo... mas você está ficando indócil. Hem?) (Quem está ficando indócil? Não importa, gêmea, o dia chegará. Mas não vamos esfregar o nariz de Jake nisso) Não posso simplesmente despedi-los. Alguns estão comigo há vinte e tantos anos. Mas se comprar um iate... acho que encontrei a solução para os dois problemas.
— Você acha?
— Acho. Foi uma idéia que me veio durante nossa lua-de-mel, quando pensava sobre aquela fazenda.
— Essa não! Vagabunda, era de esperar que você estivesse pensando em mim.
— E estava, querido. Mas parece que eu sou capaz de pensar em várias coisas ao mesmo tempo, desde que rejuvenesci. Talvez por causa do sangue melhor. (Com a minha ajuda, é o que o senhor quer dizer, hem, patrão?) (É, querida. Dá no mesmo) Nosso salão de banquetes, ornamentado como capela, me pareceu muito mais uma igreja que um lugar onde se come. Então tive a idéia. Dar nossa casa a Shorty. Dá-la à igreja dele em usufruto, talvez com Alec como curador e também o Juiz Mac, se este aceitar. Arranjar a coisa como de duração perpétua, com fundos suficientes e um bom salário para Hugo, como pastor. É possível?
— Sem nenhuma dificuldade, Eunice, se quer mesmo esvaziar a casa...
— Quero. Se você consentir.
— A casa é sua, querida, e acho há muito tempo que ser dono-de-casa numa cidade grande dá mais dor de cabeça que prazer. Podemos continuar mantendo minha casinha em Safe Harbor — sem medo de ocupantes — se você quiser um cantinho. Não vamos agir exatamente como você disse, mas pode dar sua casa a Shorty, se quiser. Pedirei a Alec que estude uma forma. Porém fico pensando se Shorty concordará com isso. Os invasores podem tentar ocupá-la apesar da doação... ou os arruaceiros entrar e arrasar o local.
— Oh, isso combina com a outra parte da minha idéia: que fazer com nossos fieis guarda-costas? Oferecer, aos que têm vinte anos ou quase de serviço, aposentadoria com vencimentos integrais. Propor aos guardas-internos e aos técnicos de manutenção ficarem a serviço da fundação, com os mesmos vencimentos... porque você tem razão: se entregarmos um lugar desses a um analfabeto, sem ninguém para mantê-lo em ordem, breve teremos só paredes e não uma igreja. O Padre Hugo é o melhor guarda-costas que conheço... mas é um filho do Senhor e um ignorante das técnicas de dirigir. Precisa de um homem cínico, prático, como mordomo. Cunningham. Ou O'Neil. Ou Mentone. Alec pode escolher. Jake, quero dar a Shorty um estabelecimento completo, financiado e mantido, de maneira a que ele possa se entregar inteiramente à pregação e salvação de almas. Penso que você sabe por quê. (Acho que sei, patrão... mas qualquer dos quatro podia ter matado aquele assaltante) (Daremos um jeito de recompensar os outros três, amada... e o faremos. O Padre Hugo é um caso à parte)
— Eunice, você acha mesmo que Hugo salva almas?
— Não tenho a menor idéia, Jacob. Não sei quem é o responsável por este mundo. Mesmo que Hugo o faça, não tem mais sentido real que nossas «sessões de oração», mas ainda assim vale a pena. Querido, este é um mundo esculachado. Antigamente, no tempo do Ford de bigode, os Estados Unidos eram um país maravilhoso, cheio de esperança. Mas hoje, a melhor coisa que os jovens podem fazer é ficar em casa, sentados quietos, sem se envolver, entoando Om Mani Padme Hum..~ e isso é a melhor coisa que a maioria é capaz de fazer, num mundo como este. É muito melhor que ser preso ou vítima de drogas. Quando a meditação e orações inexpressivas são melhores que as atividades oferecidas a eles, então o que Hugo tem a oferecer é bom da mesma maneira. Mesmo que sua teologia seja cem por cento errada. Mas não acredito que o Padre Hugo esteja mais enganado que os mais cultos teólogos e pode muito bem estar mais perto da verdade. Jacob, acho que ninguém sabe quem é o responsável.
— Estava só pensando, minha querida. Às vezes as mulheres grávidas ficam fantasiando coisas.
— Estou grávida aqui embaixo. Aqui em cima, continuo sendo o velho Johann. O que me protege um tanto, acho. (Oh, acha mesmo, hem? Patrão, se o senhor não me tivesse para mantê-lo na linha, ficaria tão cheio de dificuldades quanto uma gata tentando ter filhos numa lata de lixo! Lembre, já passei por isso antes) (Sei que passou, querida, e é por isso que não estou com medo... do contrário, ficaria com um medo louco) (Não é pior que uma broca no dente, patrão. Fomos feitas para isso. Largas) Jake, já lhe contei sobre a vez em que me meti na política?
— Nunca soube disso e não posso imaginar, Eunice.
— Imagine para «Johann» e não «Eunice». Há quarenta anos, deixei que me convencessem de que era meu «dever». Eu era fácil de ser persuadido... mas hoje percebo que minha atração ao partido fora porque eu podia financiar minha campanha num distrito onde eles perdiam sempre. Mas me foi útil, Jake. Aprendi que um homem de negócios nada tem em comum com um político e muito menos com a função de homem público. Eles me arrasaram, Jake!... E desde então nunca mais fiquei tentado a salvar o mundo. Talvez alguém consiga salvar este planeta podre, mas não sei como e agora sei que não sei. Já é alguma coisa, embora não muita. Jake, eu podia me preocupar com as Empresas Smith quando as dirigia. Posso atualmente me preocupar com sessenta e tantas pessoas e ter a certeza de que ficarão bem, na medida em que o dinheiro possa garantir. Porém ninguém pode resolver coisas para sete bilhões de pessoas. Elas não deixarão. A frustração da impotência nos deixará malucos. Nem se pode fazer muito por trezentos milhões, nem mesmo quando o problema verdadeiro — como você frisou — é o fato verdadeiro de haver trezentos milhões delas. Não vejo nenhuma solução fora da esterilização compulsória... e essa solução me repugna por ser pior que a doença. Licenciamento sem esterilização não resolveu o problema.
O marido balançou a cabeça.
— E não resolverá, Eunice. O licenciamento é uma piada. Há mais escapatórias que nas leis de impostos. Métodos compulsórios inevitavelmente levam a testes políticos... não, obrigado, prefiro os Quatro Cavaleiros. E o único efeito que as medidas anticoncepcionais voluntárias trouxeram foi mudar a proporção, desfavoravelmente, entre os produtores e os parasitas. A população continua a crescer, seja como for. Se fôssemos tão rígidos com o casamento da gentalha como a China é, a coisa poderia ser diferente. Mas não somos, nunca vamos ser... e desconfio de que não gostaria se fôssemos.
— Então não há solução.
— Oh, há e eu a citei. Os Quatro Cavaleiros. Nunca dormem, nunca estão de folga. E aquilo — mostrou a Lua. — Eunice, desconfio que a tragédia da nossa raça tenha sido representada vezes sem conta. Pode ser que uma raça inteligente tenha de se expandir até o ponto crítico para compreender o que é necessário para romper com este planeta e atingir as estrelas. Pode sempre — ou quase sempre — ser uma foto terminada, de resultado incerto até o último instante. Exatamente como se dá conosco. Pode necessitar guerras infindas e pressões populacionais insuportáveis para levar uma tecnologia ao ponto em que possa enfrentar o espaço. No universo, a viagem espacial pode ser a dor normal do parto de uma raça moribunda diferente. Um teste. Algumas raças continuam. Outras fracassam.
Ela estremeceu.
— Horrível.
— Sem dúvida. E não adianta falar para uma garota em, como se dizia antigamente, «condições delicadas». Desculpe, querida.
— É uma coisa horrível em qualquer época, Jake. Não estou em «condições delicadas». Estou executando a missão para a qual este corpo foi feito. Construindo uma criança. Sinto-me ótima. Estou curtindo.
— É o que parece e fico contente. Porém, Eunice, antes que se desfaça da casa e se meta num iate, quero apenas dizer uma coisa. Acho que deve adiar tudo até ter esta criança.
— Por que, Jake? Não tenho enjôo. Duvido que ficar mareada vá ser um problema.
— Porque você está numa condição delicada, apesar de estar se sentindo ótima. Eu me sentiria muito feliz se você não ficasse a mais de cinco minutos de distância de socorros médicos. Em casa você estaria bem: Bob e Winnie estão lá. Aqui, você está bem — há um bom médico residente no hotel: acredite, investiguei-o — e um hospital moderno logo ali, à vista. Mas no mar? Suponha que tenha um parto prematuro? Perderemos a criança e provavelmente você. Não, Eunice.
— Oh. (Eunice, adianta dizer a ele que o seu primeiro nasceu no prazo, sem problemas?) (Não, gêmeo. Como você provaria? Se você me menciona agora, não passará de uma mulher com ilusões de gravidez. Patrão, essa discussão o senhor perderá. Portanto, concorde logo. Volte atrás e escolha outro caminho) Jacob, não quero discutir. Perdi minha primeira mulher com o primeiro filho. Sei que pode acontecer. Mas que acha disto? Pode convencer Roberto e Winnie a vir conosco? E então não irmos muito para longe? Se ficarmos ancorados onde está aquela trimarã, o hospital continuaria perto... e Roberto estaria a bordo. O médico do hotel pode ser bom, como você verificou, mas prefiro ter Roberto. Me conhece por dentro e por fora. E nunca faz piadas. Quero dizer, como meu médico. Ou acontece que o fato de Roberto ter dormido comigo o torna inaceitável para você como meu obstetra? (Uau! Gêmeo, essa foi de lascar) (Ora bolas Eunice, estou apenas perturbando)
Jake Salomon ergueu uma sobrancelha e riu para ela.
— Coisinha, você não me perturba tão facilmente. Se Bob é o arranca-filho que você quer, farei o possível para convencê-lo... desde que você não se importe da mulher dele vir junto.
— Bolas para o senhor, sir. Se o senhor e Winnie querem percorrer as campinas da recordação, eu o ponho no armário, com um beijo de despedida. Ela certamente o consolará enquanto eu estiver parida... e o senhor precisará disso.
— Dando-lhe, desse modo, carta-branca mais tarde. As mulheres quase sempre se apaixonam pelo médico que parteja seu primeiro filho.
— Bolas outra vez. Amei Roberto durante muito tempo e você sabe. Está com ciúmes, Jacob?
— Não. Apenas curioso. Suponho que a recomendação que você me fez no dia do nosso casamento continua de pé? Ocorre-me que, com referência ao dia que você citou, Bob teve oportunidade antes' durante e depois.
— Foi tudo o que houve, querido? Apenas oportunidade? (Mais ou menos, gêmeo!) — Ela riu e enrugou o nariz. — Amor, a única coisa que admito é que há uma possibilidade do nome de Roberto estar dentro do chapéu. Mas pode ter sido Finchley. Ou Hubert. Ou o querido Juiz Mac. Você e Alec estavam atarefadíssimos naquele dia... mas acho que você poderá descobrir que Mac ficou no tribunal até a hora de costume... e só chegou em casa muito tarde.
— Você está confessando?
— Bem, pode haver uma confissão em alguma parte.
— Pare de me chatear, querida. Só há duas espécies de esposas: as que enganam e as que têm a amigável colaboração do marido, caso em que...
— Não há uma terceira?
— Hem? Oh, está falando nas esposas fiéis. Oh, certamente. Segundo ouvi dizer. Mas nos meus vinte anos de atividade jurídica, com muitos casos de divórcio, encontrei tão poucas dessa espécie — sem ter certeza de nenhuma — que não posso aventurar uma opinião. Esposas tecnicamente fiéis são uma parte tão pequena da amostra, que não posso levar em conta. As pessoas sendo o que são, um homem racional pode se dar por satisfeito se suas refeições têm hora certa e se sua dignidade não foi ofendida. O que estou tentando dizer é que, se alguma vez quiser minha colaboração, não force minha credibilidade com um fogo de artifício como Hubert. Posso acreditar no Juiz Mac. Tom Finchley também é muito masculino e toma banho regularmente... embora muitas vezes abuse da língua inglesa de maneira que me causa arrepios. Bob Garcia mostra o seu bom-gosto. Mas, por favor, querida, não espere que eu acredite que o nome desse Hubert esteja no bolo. (Gêmeo, Jake nos conhece muito bem. É melhor não brincar muito com ele) (Nunca ouviu falar em «desconversar», amor?)
— Muito bem, senhor. Tiro o nome de Hubert do chapéu. Isso ainda deixa possibilidades infinitas, não? E procurarei sempre respeitar sua dignidade. Mas, falando de refeições nas horas certas, tenho de me mexer, senão seu jantar vai sair tarde.
— Por que não sobras frias, etc., quando estivermos dispostos e depois aquecemos uma lata de sopa? Eu estava pensando numa sesta.
— Posso ir também, senhor?
— Eu disse «sesta», querida. Dormir. Uma sesta com você não é repousante. O velho Senor Jacob necessita de uma siesta.
— Sim, senhor. Posso terminar rapidamente o que estava dizendo? Podemos cuidar de quem quiser se aposentar, ter outro emprego ou ficar com Hugo. Mas espero que alguns deles possam vir conosco como tripulação da trimarã ou qualquer outra coisa. Especialmente se já estiveram antes no mar e sabem como trabalhar a bordo.
— Finchley sabe. Foi condenado por contrabando ou coisa semelhante.
— Eu tinha a esperança de que todos os meus guardas, com exceção de Hugo — e Rockford, se você quiser — preferissem navegar conosco. São todos fortes e capazes, sem muitos problemas de família. A mulher de Fred caiu fora há alguns meses. Dabrowski não tem filhos em casa e Olga pode concordar em ser camareira — quero dizer, camaroteira — se gostar de navegar. Ela insistiu em se ocupar de quase toda a limpeza aqui, embora não precisasse. No que concerne aos Finchleys, Tom é exatamente o que precisamos: não estava contrabandeando drogas e sim levando armas para a América Central, se não me engano, na função de primeiro imediato... e Hester Finchley é uma boa cozinheira. Eve não é problema: já sabe ler, escrever e contar. Se falarmos com ela a esse respeito, vai azucriná-los r até que aceitem. Toda criança gosta de viajar. Querido? Se você for lá dentro, veja quem está de serviço e peça-lhe que desencave Finchley, sim? Talvez ele saiba alguma coisa a respeito de trimarãs.
— Acho que ele está agora de vigia. Apanho um roupão para você?
— Estou apanhando sol demais? Não sinto. Tenho passado loção. Oh! Por causa de Thomas, Tom, o Gato? Mas, querido, temos nadado com ele e a família diariamente. E também com Fred e os Dabrowskis.
— Não dou a menor importância, querida, mas pensei que estava ansiosa para manter as aparências.
— Parece uma bobagem, quando eu nado e tomo banho de sol com todos eles. Falando em aparências, pensa que não vi você apalpando a bundinha de Hester ontem na piscina? Ou foi quarta-feira?
— Foi terça, não foi Hester e sim Eve, a filha dela. Estava treinando para tarado sexual, beleza... nada sério. Por isso não fique ciumenta.
— Amado, no dia em que eu tiver ciúmes de uma garotinha, lhe
pedirei que me bata. Não que me espanque. Que me bata de uma forma familiar. Mas foi Hester e não a filha dela. O meu galante e maravilhoso Jacob jamais atacaria uma garotinha.
— Talvez não, mas aquela garotinha me inferniza. Além disso, ela
faz de propósito.
— Pobre Jake. Até as de treze anos não o deixam em paz. Não me surpreende. Eu também não o deixo em paz.
— No caso presente, tem treze-a-caminho-dos-vinte-e-um. Quero fazer um acordo com você, querida. Procurarei cuidadosamente evitar vigiar você com o pai dela, se você tiver muito cuidado sempre me vigiando com a filha dele.
— Sim, senhor. Ouvir é obedecer, meu amo... embora eu fique triste do senhor pensar que eu precise ser vigiada — ou não, dependendo — com um dos nossos empregados. E Hester? Tenho sempre de aparecer quando ela estiver por perto?
— Meta-se com a sua vida, prostituta. Hum, não precisa ser fanática. Quero que eles todos se sintam à vontade quando subirem para nadar, pois não quero nenhum dos empregados metidos nessa cloaca aí embaixo. Você sabe como existem colibacilos naquelas lindas ondas. Foi o acordo que propuz: ficarmos completamente afastados das praias e eles poderem nadar em nossa piscina sempre. Sacrificaríamos um pouco da nossa privacidade, mas evitaríamos que um deles pegasse amebas ou outra coisa, passando-as para a família inteira. Isso foi feito... e são todos boa gente... apesar da nossa precoce" Eve, que está se esforçando ao máximo para ver se consegue me chatear.
— Eu não tinha imaginado, Jacob. Não é bom ficar muito isolado. Mas estávamos falando do traseiro da Hester. Bem torneado, hem?
— Querida, você é tão maliciosa quanto Eve. Vou embora, rezarei dez Money Hums e dormirei aquela siesta. Vou lhe mandar Tom. Me acorde daqui a uma hora. Um beijo.
Joan ergueu o rosto. Assim que ele saiu, Joan mergulhou, deu umas braçadas e voltou para a borda da piscina, onde ficou, olhando para o ancoradouro dos iates até a chegada de Finchley.
— Mandou me chamar, madame? Joan sorriu.
— Thomas Cattus, quando estamos sozinhos meu nome não é esse. Tom olhou para trás, dizendo quase inaudivelmente:
— Gatinha, o patrão está acordado.
— Sei que está, mas foi para o quarto e fechou a porta. Siesta. Já deve estar dormindo. Mas não tenho a intenção de assustá-lo, Thomas Cattus, meu querido. Venha até o parapeito, pois quero mostrar-lhe uma coisa. Já navegou alguma vez? Ou não?
— Navegar? Oh, claro, cresci em Chesapeake Bay. Barcos de pesca e todos os outros.
— Até uma trimarã?
— Nunca esqueço uma. Andei nela quando tinha dezesseis anos.
— Que pensa delas?
— Depende da finalidade. Ótima se deseja um barco para moradia, em vez de um de corridas. Mas eu não teria um sem motor auxiliar. Com mar picado podem ser tão incômodos como duas pessoas numa banheira.
— Sempre tenta fazer numa banheira, Thomas Cattus?
— Claro, quem nunca tentou? É ótimo para uma brincadeira, com dois drinques no bucho. Mas uma cama é melhor. Ou o chão.
— Que tal uma esteira de praia?
— Gatinha, você gosta de me assustar. Ainda vai fazer com que nos peguem.
— Era uma pergunta retórica, querido. Não estava querendo forçá-lo. Diga, você acha que Hester e Jake alguma vez fizeram?
— Estou praticamente certo de que nunca. — Atirou-lhe um sorriso. — Mas posso lhe dizer uma coisa.
— Então diga. Querido, por favor. Querido e musculoso Tom, o Gato.
— Mas não foi por culpa de Hester. Eu sei. Ela me disse francamente uma noite, quando estávamos fazendo. Disse que o patrão podia conseguir quando quisesse. Hester acha que o patrão é a mão direita de Deus.
— E eu penso o mesmo. Mas isso não me impede de apreciar o meu Thomas, o Gato. Como você se sentiu a respeito? De Jake e Hester?
— Eu? — Fez um ar de espanto. — Olhe, Gatinha, você sabe que, ao contrário dos outros, não vejo sentido em colocar uma cerca em torno de uma mulher da vida. Só serve para fazê-la pular por cima. Preferia manter o portão aberto, se ela quisesse.
— Eu disse: «Como você se sentiu a respeito», querido?
— Oh. — O guarda-motorista ficou pensativo. — Está aí uma coisa que não me abalaria. O patrão é numero uno, da kine. Sacou?
— Saquei.
— Se engravidar uma vagabunda, pagará. Sem choro. Em todo caso, não haveria problema. Fomos licenciados apenas para um filho e Hester foi esterilizada logo depois de ter Eve. Casei com uma ótima mulher: não rompeu quando liquidei um e me recebeu de volta quando fui libertado condicionalmente. Oh, ela dava, é claro... mas só para o patrão com quem trabalhava. Nunca negou ou escondeu de mim. Hester e o patrão? Perfeitamente, se eles quiserem. Disse a ela francamente. Divirta-se, foi o que lhe disse.
— Hummm... Thomas Cattus, vamos dar uma oportunidade a eles. Ou seis oportunidades. Pode ser uma garantia para nós mais tarde.
Ele balançou a cabeça, pensativo.
— É uma idéia inteligente, gatinha. Mas como? E o patrão quererá?
— Estou certa que sim, se ele souber que não há perigo. Se for escondido, quero dizer. Jake tem coragem na hora do perigo, exatamente como você, querido. O problema principal é tirar Eve do caminho. Hummm... você pode sair comigo para fazer compras ou outra coisa qualquer e então peço a Hester para levar o almoço a Mr. Salomon... aí, como que por acaso, convido Eve a ir comigo. Hem?
— Com Fred e Ski em volta? Não dá, Gatinha.
— Basta que seja quando você estiver de plantão. Jake não mandará substituir você. No máximo, trancará a porta do elevador. Jake pouco se importa com a própria segurança. Preocupa-se com a minha.
— Hummm... saquei. Pode dar certo se ele quiser. Você está ficando arredondada, Gatinha. Os peitos estão mais lindos que nunca.
— Joe diz que uma mulher grávida fica mais bonita. Mas acho que nem todos os homens pensam assim.
— Hester ficou maravilhosamente atraente, sensual até o último minuto. E você parece estar indo pelo mesmo caminho. Hum... tem certeza de que o patrão está dormindo?
— Certeza bastante para desejar correr o risco. Mas não tenho a intenção de assustar você, querido. Quer esperar e ver como nossos planos para Jake e Hester se desenrolam?
— Hem... oh, que diabo, até lá podemos estar todos mortos.
— Aqui mesmo?
— Hem? Um cóptero pode passar.
— Então vamos para o lanai.
A Universidade de Harvard, S.A. decidiu congelar todos os fundos até o Governo Estudantil escolher um novo presidente para a universidade. Ambos os governos estudantis rivais e o senado da faculdade vão tentar uma ação judicial contra este «ato precipitado e irresponsável». CONGR MELHORES TIRAS DISSE CHEFAO TIRAS — o Secretário-Geral dos Policiais Particulares, Guardas e Motoristas de Segurança (AFL), no banquete anual da organização, congratulou-se com Milwaukee por ter-se juntado à crescente lista de municipalidades que aboliram a norma de «ficha limpa», ao contratar guardas. «O notável sucesso de condicionais e sob palavra como guardas de segurança particulares licenciados, está finalmente ensinando os políticos a «caçar patos onde existem patos». A Bíblia diz «Para pegar um ladrão usa-se outro, não é? Quem sabe mais a respeito de marginais que um marginal? Dê a um homem motivos para se manter na linha, ponha-o num trabalho que compreenda e poderá contar com ele num aperto. Era o que mamãe vivia me dizendo quando eu não passava de um fedelho assaltando confeitarias. Além disso, como nos disse há pouco o Secretário do Tesouro, «Olhem o que significou para a economia!» Nesta grande república...»
O programa «Today's Day» entrevistou uma parteira que afirmou ter partejado o filho de Miss Molly Maguire dez dias antes do seu sensacional mergulho no espaço de duas nações. A estrela imediatamente processou o apresentador, a estação e a vídeo-rede.
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Não seja importunada ou humilhada. Veja o olhar de surpresa dele quando você entrar num mictório e usá-lo com um sorriso. Compre um Adaptador Igualdade-Imediata da Dr.a Mary Evers (ped. reg. em andamento), tamanho de bolso, absolutamente seguro, higiênico — apresentado em nove modelos femininos, encantadores, psicodélicos — isento de receita e sem problemas para encaixar.
Em todas as drogarias e supermercados.
A Comissão Lunar tornou permanente sua política experimental de triagem da emigração apenas no exame físico e mental, sem levar em conta, pró ou contra, o passado de cada um. O Diretor disse: «num mundo novo, um homem precisa começar com um passado limpo. É a única política prática». Apertado por perguntas objetivas, confessou que os financiamentos de vocações não definidas continuavam no mesmo pé, mas insistiu que era um assunto fiscal, controlado pelos governos condôminos e de maneira nenhuma afetava o princípio básico. Palavras Candentes num Debate de Trocadilhos: «'... não intimida'. É o que ele nos diz. O senador pelo grande Estado de Porto Rico está ciente de que o nosso maior problema é a reincidência? O senador pode citar um caso no qual o assassino tenha cometido ainda um outro crime depois de ter sido executado?»
— Uau! Joe, veja como o vento a carrega!
— Formidável.
— Faz minha moela ficar limpa — disse Joan Eunice alegremente. — Vamos para a popa. Winnie está na roda do leme e certa de impressionar. Ficou muito orgulhosa porque Tom a colocou na lista de vigia. É uma maruja por vocação, com água salgada nas veias. Que é que há, querida Gigi? Não está alegre. Sentindo-se mal?
— Hem? Talvez um pouquinho.
— Devo confessar que a Gatinha tem um movimento de cavalo de balanço, quando navega livre. Eu gosto, mas muitos não. Não faz mal, querida. O Doutor Roberto tem uma pílula infalível para enjôo.
Arranjo-lhe uma e dentro de cinco minutos o movimento não a incomodará e ficará faminta como um cavalo.
— Não tomo pílulas, Joan. Estou bem.
— Não está não e quando descer não vai querer almoçar. E Hester me disse que preparou algo especial em sua honra. Olhe, querida, Roberto dá essas pílulas a Winnie, diariamente, uma antes do café, e as trouxe com ele para bordo para prevenir o enjôo matinal. É um médico cuidadoso, querida. Não as daria à própria esposa se fizessem mal. Aqui na Gatinha ninguém toma remédios a não ser os receitados pelo médico de bordo. Querida, sim? Hem?
— Gigi.
— Que é, Joe?
— Tome pílula.
— Sim, Joe. Obrigada, Joan. Estou meio tonta. Acho que você pensa que sou boba, mas já vi tantas crianças deformadas por pílulas, que fico assustada.
— Não gosto de pílulas mas tomo-as quando o Doutor Roberto manda. Ele tem uma reserva aqui para o monstrinho dentro de mim. Fique apanhando ar, querida, enquanto vou procurar Roberto.
— «Navegando, navegando, para o meio do oceano!» — berrava Mr. Jake Salomon, içando-se para o painel de comando. — Bom dia, Ski.
— Bom dia, comandante. Em direção ao porto, rumo básico um cinco...
— Estou vendo. Largue esse troço e desça para tomar café. — Salomon sentou-se e olhou para a bússola assim que pegou a roda. — Não lhe deixamos nada, mas pode desencavar bolachas no salva-vidas.
— Hester não me deixará morrer de fome, senhor.
— Nem Olga. Agora, caia fora.
Jake deu uma olhada nas velas, achou que podia erguê-las um pouco mais, estendeu a mão direita para o comando do cordame, ficou mexendo num interruptor para diminuir a escota grande, de olho na vela mestra, enquanto manejava a roda pelo tato, até ter estabelecido uma rota estável. Então ajustou a bujarrona e sossegou.
— Bom dia, capitão.
— Tom, guarde o título para quando houver estranhos. É muito agradável para Mrs. Salomon querer me impingir um título honorário, mas todos sabemos quem é o mestre navegador que consta da documentação do barco. Você é o comandante e tem a responsabilidade. Sou apenas o proprietário e o primeiro imediato, não licenciado. Eunice não devia fazer isso... mas devemos ser gentis com as coisinhas queridas. Falando de coisinhas queridas, como vão suas duas nesta linda manhã? Não vi Eve no café.
— Ela comeu depois que o senhor subiu, senhor. Vi-a e disse-lhe que de agora em diante tem de usar calcinhas, menos na piscina ou na beira.
— Não sei porque ela deve, as outras não usam, a menos que estejam de acordo. Apenas não quero que ela fique nadando nos meus joelhos, nua como uma enguia e duas vezes mais veloz. Me dá ilusões de juventude.
— Darei um aperto nela, senhor.
— Tom, não quero que a menina «seja apertada». Quero que todos gozem este cruzeiro... como uma grande família feliz. Peça a Hester que diga a ela suavemente que o velho Tio Jake a ama, mas não gosta de ser afagado. Esta última parte é mentira, mas uma mentira oficial. Por falar na piscina, como está o filtro?
— Está legal. Era apenas uma obstrução na junta do cano de alimentação. Uma alga. Sem importância.
— O médico examinou a água?
— Pura.
— Isso é ótimo. Tom, quando eu era criança, lutando para ser terceiro quartelmestre, costumávamos pular do botaló e não tínhamos a menor idéia do que fazíamos. Mas hoje, mesmo o Oceano Pacífico não consegue absorver toda a imundície que jogam nele. Pode dar o toque de nadar e tirar da piscina o aviso de perigo.
— Sim, senhor.
— Um instantinho, enquanto dou as oito badaladas.
Jake estendeu a mão esquerda, e apertou o último botão de uma fileira de oito. O quádruplo Bong-Bong! marcando o início do quarto da manhã ressoou pela nave inteira. Então apertou outro botão e a chamada para nadar foi ouvida.
— Tom, se um homem não tivesse que comer ou dormir, poderia levar sozinho esta banheira pelo mundo todo. Três homens podem fazê-lo tranqüilamente. Mesmo dois.
— Talvez.
— Você parece duvidar, Tom.
— Até um pode, senhor... se não acontecer nada. Mas sempre acontece.
— Admito o erro. E com duas mulheres grávidas a bordo... três, se não ficar de olho em Eve...
— Oh, o Dr. Garcia está dando pílula juvenil para ela. Não corro riscos, senhor.
— É? Tom, meu respeito por você — que era grande — aumentou. Ela está livre do Tio Jacob, mas não me responsabilizo pelos outros homens deste balaio. Existe algo no ar salgado que ativa o metabolismo. E há muita verdade no velho ditado que diz: «Quando estão bem crescidos, são velhos bastante e não se pode fazer nada». É melhor deixar o barco correr.
— Ela está crescida, tem idade e sabemos disso... conversei a esse respeito com o doutor. Hester e eu não esperamos de Eve um comportamento diferente do que tivemos. Todos sabem que quando uma mulher começa a ser vagabunda bate de bunda no chão.
— É verdade... mas muitos pais não acreditam quando a coisa acontece com sua própria filha. Eu sei, fui advogado de vara de família durante muitos anos. Tom, você é uma pessoa tão sensível que não sei como nunca se meteu em encrenca.
O capitão encolheu os ombros.
— Pode acreditar no que lhe disse, senhor. Eu era o primeiro oficial daquele balaio enferrujado e o capitão disse para eu manter a boca fechada e nada ver e levamos dez vezes mais tempo numa viagem. Tudo arranjado. Só que ele foi sabido e guardou o dinheiro do suborno. Pensando que podia navegar no escuro. A gente até pensa que ele nunca tinha ouvido falar em radar. Pois sim! Guarda-Costeira — Finchley encolheu os ombros outra vez. — Não me queixo, senhor. Eu era um bobo. Peguei dois anos e quatro meses e arranjei aquele emprego muito melhor como motorista de Mr. Smith. Cheirando como uma rosa. Agora não tão confiante. Não confie demais e não terá o traseiro queimado.
— Porém você não parece cínico. Tom, acho que o maior problema do crescimento é tornar-se sofisticado sem ficar cínico.
— Nunca me aconteceu, doutor. Acho apenas que gente é legal, na maioria — mesmo aquele comandante pateta — se não for mais solicitada do que deve. Como aquele cordame esticado ali. Agüenta três toneladas. Provavelmente vai até cinco sem problemas. Mas não apóie seis toneladas nele.
— Acho que estávamos dizendo a mesma coisa, mas seus exemplos são vividos. Caia fora. Tom. Se não houver nada para fazer, vá dormir. Ou vá para a piscina.
— Sim, senhor. Quero examinar o casco a estibordo. Está fazendo muita água. A bomba pode resolver, mas quero saber por quê.
Tocou no quepe e desceu da plataforma. Jake colocou seu próprio quepe para se proteger do sol, acomodou-se e começou a cantar:
«A mulher do marujo deve ser a sua estrela!
Ho ho, lá vamos nós, através do mar!
A mulher do marujo deve ser a sua estrela,
A mulher do marujo sua estrela... deve ser!»
Sua mulher subiu por trás dele e beijou-o na nuca.
— A canção é para mim, querido? Ou para «Nancy Lee»?
— É sempre para você, minha amada. Além disso, não lembro da parte em que entra «Nancy Lee».
— Fico imaginando se você lembra de algum nome de mulher.
Chama a nós todas de «queridas».
— Simplesmente porque é verdade. Mas você é a única que eu chamo de «minha querida». E lembro do seu nome: é «Salomon».
— Jacob, você deve ter sido uma séria ameaça quando era marinheiro. Com essa capacidade hebraica de bajular, você consegue o que quiser. E depois cai fora sem problemas.
— Não, madame, eu era um rapaz amável e inocente. Simplesmente cumpria o velho código do mar: «Quando a âncora é içada, todas as contas são pagas».
— Deixando um bastardinho judeu em cada porto... aumentando assim a população. E Gigi? Vai aumentar a população aqui? — Meteu o polegar num sinal acima do quadril dele quando sua pequena barriga saltou ao sentar-se. — Um petisco, hem, garoto?
— Madame — respondeu ele, arrogante —, não sei de que está falando.
— «Diga isso aos Fuzileiros, os velhos marinheiros não acreditam'». Jacob, meu amor, tenho a certeza de que você conhece a segunda Mrs. Branca tão bem quanto conheceu a primeira. Mas não quero provar isso. Dou-lhe apenas meus parabéns. Gigi é um amor, gosto muito dela. Não estou com ciúmes. (Gêmeo, diga-lhe que ela o denunciou, gêmeo) (Não digo!)
— Mulher, você se exercita tirando conclusões precipitadas. (Então diga-lhe que isso aconteceu onde a avenida Tróia cruza com a rua das Bichas, perto do largo dos Caretas... uma vizinhança que você conhece muito bem, gêmeo) (Eunice, quero que Jacob sinta-se à vontade com relação a isso... não estou tentando arpoá-lo) (Você não está equipada para isso, Joan. Jake é o autêntico Capitão Ahab) (Eunice, você tem uma mente suja) (Mente de quem? Não tenho nenhuma. Não preciso)
Mrs. Salomon deixou o assunto morrer, abriu o armarinho do sextante e tirou-o.
— Querido, quer me dar a hora certa?
— Vai matar o Sol indefeso?
— Vou fazer melhor que dar uma olhada no Sol, amado. O Sol a borda superior da Lua e — se eu tiver sorte e conseguir localizá-lo novamente — Vênus constituirão um ponto de referência. Quer apostar em como posso conseguir um triângulo mínimo?
— Tudo em como o lado menor terá cem quilômetros.
— Animal. Bruto. Malcriado. Não respeita uma futura mãe. Ontem de tarde consegui dez vezes menos que isso. Sei como se faz. Se eu quisesse, trapaceava... podia perguntar a Point Loma e depois falsificar na carta.
— Eunice, por que essa mania de imitar Bowditch?* Até parece que o rádio, os satélites e tudo o mais nunca foram inventados.
* Nathaniel Bowditch (1773-1838), matemático e astrônomo americano (N. do T.).
— É divertido, meu amor. Vou passar no exame de navegação com plenamente e obter minha licença limitada. Depois de eu ter desovado esta cria e não precisar mais navegar em águas costeiras, navegarei sem parar todos os dias em direção ao Havaí. Aposto como avistarei terra a menos de três quilômetros de Hilo. Oh, não é necessário, querido... mas e se for? Imagine que a guerra arrebente e tudo fique em silêncio? Pode ser útil ter a bordo um navegador que se guie pelos astros. Tom confessa que mal deu uma olhada desde que recebeu seu diploma de marítimo.
— Se algum dia recebeu. Sim, pode ser útil, minha querida... porque se a guerra estourar de fato e estivermos no mar, não iremos para Hilo. Daremos uma guinada para a esquerda, aproaremos para o sul e sumiremos. Para as Marquesas. Ou mais para o sul ainda. Quanto mais longe, melhor. Dessa maneira nosso filho poderá sobreviver. Ilha da Páscoa, se você acha que pode atingi-la.
— Jacob, até lá serei capaz de acertar bem no alvo. Ou qualquer outra ilha que você escolher. Querido, eu não estava brincando quando pedi todas aquelas obras antigas: os mapas, os guias, as três bússolas, este lindo sextante e um outro igual para o caso de eu deixar este cair... e repare, por favor, que passo sempre a correia pelo pescoço. E o Almanaque. Atualmente não sou útil para os serviços de bordo... por isso resolvi me tornar um verdadeiro navegador. Como precaução.
— Hummm. Minha querida, espero que nunca precisemos passar por isso... mas reparou que mantive esta embarcação permanentemente abastecida, apesar de ancorarmos quase todas as noites e podermos comprar todos os mantimentos que quisermos?
— Reparei, senhor.
— Não foi por acaso que dei ao Dr. Bob verbas ilimitadas e ele preparou a embarcação para enfrentar qualquer problema obstétrico.
— Isso no entanto não reparei.
— Foi de propósito, para você e Winnie... Não era conveniente que vocês se preocupassem com aquilo. Mas já que você levou adiante planos semelhantes, resolvi contar-lhe. Bob aproveitou o tempo em que a Gatinha estava sendo revisada para uma atualização em obstetrícia. E gastou vinte vezes mais dinheiro com a enfermaria de bordo do que era de esperar para um cruzeiro.
— Que bom saber disso, senhor. Encarado assim, o dinheiro pode fazer quase tudo. Menos fazer o relógio andar para trás.
— Até isso foi feito no seu caso, amada.
— Não, Jacob. Ganhei mais alguns anos... este corpo maravilhoso ... e você. Mas não fez o relógio andar para trás. Continuo tendo quase cem anos. Nunca poderei me sentir jovem como fui uma vez... porque não sou. Como Winnie é jovem, por exemplo. Ou Gigi. Jacob, descobri que não quero ser jovem.
— Hem? Você está infeliz, querida?
— De jeito nenhum! Tenho a nata de dois mundos. Um corpo vivo e jovem, que faz de cada respiração um prazer sensual... e um século de rica experiência, com a sabedoria — se é a palavra adequada — que a idade traz. A tranqüilidade. A longa perspectiva. Winnie e Gigi ainda sofrem as tempestades da juventude... que eu não tenho nem quero. Esqueci a última vez em que tomei um tranqüilizante, mas acho que foi quando me desenfaixaram. Jacob, sou para você melhor esposa que aquelas duas encantadoras moças podem ser. Sou mais velha que você, estive onde você está agora e compreendo. Não estou me gabando, querido. É a verdade pura e simples. Nem ficaria feliz se me casasse com um rapaz... teria de passar a vida tentando desesperadamente não perturbar seu delicado, jovem e instável equilíbrio. Somos bons um para o outro, Jacob.
— Sei que você é boa para mim, minha querida.
— Eu sei que sou. Mas às vezes você fica perturbado lembrando que eu não sou realmente Eunice e sim Johann. (Ei! Que é isso, patrão? Somos ambos) (Somos, amada, sempre... mas Jake precisa lembrar de Johann... porque ele só vê Eunice) Por exemplo, Jacob, ainda há pouco você pensou que eu o estava criticando por causa de Gigi.
— «Pensou» uma ova... você estava.
— Não, querido. Feche os olhos e esqueça que uso a voz de Eunice. Volte ao passado, pelo menos uns dez anos atrás, quando eu ainda tinha uma saúde razoável. Se seu velho amigo Johann tivesse notado que você estava dando em cima de uma moça bonita, teria lhe criticado?
— Hem? Raios, teria. Johann teria me criticado e acabado com a coisa.
— Eu teria, Jacob? Fiz alguma vez?
— Você nunca me pegou.
— Ah, é? Devia dar parabéns a você, como fiz hoje, Jacob... se achasse que podia fazê-lo sem o ofender. Mas nunca teria criticado você. Lembra de uma jovem cujo primeiro nome era — ou é — Marian? O sobrenome começava por «H»... e você a apelidou de «Donzela Marian».
— Como diabo?
— Calma, querido... você deixou cair o leme. Isso foi há sessenta e cinco anos, pouco antes de eu lhe pedir para dedicar seu tempo todo aos meus negócios. Assim, mandei fazer um levantamento completo da sua vida, antes de entregar-lhe minhas coisas. Permite que lhe diga que o fato de você preservar tão cuidadosamente a reputação dela foi o fator decisivo que me levou a achar que podia confiar em você em tudo o mais?... Inclusive dando-lhe poderes de procurador, que você mantém desde então e nunca abusou? Permite também que acrescente que quis dar-lhe os parabéns tanto pelo seu bom-gosto como pelo sucesso como Lothario?... Pois é claro que naquela época eu deveria investigá-la também e ao marido, antes de poder confiar meus terríveis segredos a você. Mas — também é claro — não pude dizer nada
— Nunca pensei que algo daquilo viesse um dia à tona
— Por favor, Jacob. Lembra que uma vez você disse a Eunice que poderia contratar um homem para fotografá-la dentro da própria banheira... e ela nunca iria ficar sabendo? Como vimos, o dinheiro pode fazer quase tudo que seja materialmente possível. Parte daquele levantamento foi uma fotografia sua com Marian no que vocês, advogados, chamam de «posição comprometedora».
— Meu Deus! Que é que você fez com ela?
— Queimei-a. Odiei-a também. Era uma ótima foto e Marian estava danadamente linda... você também estava bacana, seu adorável bode velho. Então mandei chamar o dono da agência de investigações e disse-lhe que queria imediatamente o negativo e todas as cópias. Disse-lhe também que tomasse cuidado, pois se eu soubesse que uma só cópia não me tivesse sido entregue, acabaria com ele. Tirava-lhe a licença, o arruinava, punha-o na cadeia. Você ou Marian foram alguma vez incomodados por causa dessa foto? Chantageados ou coisa assim?
— Não. Eu não... e estou absolutamente certo de que ela também não.
— Acho que o homem acreditou em mim. Jacob, você continua pensando que o critiquei por causa de Gigi? Ou dei-lhe os parabéns?
— Hum... talvez nem uma nem outra coisa. Talvez estivesse tentando me arrancar uma confissão. Não pega, vagabunda.
— Por favor, Jacob. Partindo do princípio de que eu estava errado, mas sincero... qual das duas? Agora que você sabe como me portei a respeito de Marian.
— Eunice-Johann! Você devia ter sido advogado. Dentro desse princípio, confesso que podia ter sido parabéns sinceros. Coisa que não posso aceitar, por não ter merecido. Agora, que diabo, me diga como se enganou dessa maneira.
— Direi, querido, mas não neste instante. Gigi está vindo para cá. — Joan tornou a colocar o sextante no lugar. — Seja como for, temos de esperar para ver. A aproximação foi tanta que perdi meu horizonte para o Sol. Oi, Gigi, coisa linda! Nos dê um beijo. Só a mim, Jake está de quarto.
— Não estou tão ocupado assim. Eunice, segure a roda do leme. Recebeu o beijo ainda sentado e então pegou de volta a roda.
Joan perguntou:
— Esteve nadando, querida?
— Estive sim. Joan Eunice, posso falar com você uma coisa? O senhor nos desculpa, Mr. Salomon?
— Não, me chamando por esse nome. Você deve dizer «Jake».
— Pare com isso, querido — disse Joan, divertida. — Ela está querendo um papo entre mulheres. Venha, querida. Comandante, trate de nos manter flutuando.
Acharam um cantinho a sotavento do salva-vidas.
— Problemas, querida? (Eunice, iremos passar por cima de^ Jake? Certamente não!) (Não pode ser, gêmeo. Esse caso começou há duas semanas... e tanto Gigi como Joe não estão se incomodando. O que significa exatamente o que pensamos: na realidade é um reatamento... e Jake mentiu para proteger a reputação de uma dama. Previsível)
— Mais ou menos — confessou Mrs. Branca. — Hum, é melhor falar francamente. Da próxima vez em que ancorar e mandar um bote à terra... Joe e eu queremos ir embora.
— Oh, querida! Que foi que aconteceu, Gigi? Eu tinha tanta esperança de que você ficasse pelo menos durante o mês de que falamos... e depois mais tempo se quisesse.
— Bem... Nós também esperamos. Mas estou com enjôo e Joe... bem, tem pintado alguma coisa mas... as luzes não são boas. São claras demais e... — Parou no ar. (Gêmeo, tudo desculpas) (Por causa de Jake?) (Não pode ser, já lhe disse. Você tem de forçá-la a falar claro)
— Gigi.
— Hem, Joan?
— Olhe para mim. Você não deixou de comer uma vez sequer desde que Roberto lhe receitou a pílula para enjôo. Se Joe prefere lâmpadas em vez de sol, esvaziaremos o salão de jantar, que poderá ser o estúdio dele. Me abrace e diga o que é que há de verdade.
— Hum... Joan, o oceano é tão danadamente grande! — Gigi piscou, as lágrimas correram e ela acrescentou: — Acho que você pensa que sou uma boba.
— Não, ele é grande. O maior oceano do mundo. Algumas pessoas não gostam dos oceanos. Eu gosto. Isso não significa que você também tenha de gostar.
— Bem, pensei que pudesse. Sabe, ouve-se falar. Que coisa maravilhosa é uma viagem por mar. Mas me assusta. E a Joe também. Só que ele não confessa. Joan Eunice, você tem sido maravilhosa conosco ... mas nosso ambiente não é este. Joe e eu não somos peixes... somos gatos de telhado. Sempre moramos em cidades. Aqui é calmo demais. Principalmente de noite. De noite o silêncio é tão agudo que nos acorda.
Joan beijou-a.
— Está bem, querida. Sei que não estão se sentindo felizes como eu gostaria. É uma pena. Terei de visitá-la em sua casa... onde todos nos sentimos à vontade. Não gosto da cidade, ela me assusta. Mas gosto dela dentro do seu estúdio... desde que eu não precise sair. Mas não há mais nada? Ninguém a aborreceu? Ou a Joe?
— Oh, não! Todos têm sido ótimos.
— Você chamou Jake de «Mr. Salomon».
— É porque eu estava perturbada... sabendo que tinha de falar com você.
— Então ambos se dão bem com Jake? Sei que ele é comovente. Comove inclusive a mim. Não se trata disso?
— Oh, nem um pouco! Hum... saber que estamos abandonando Jake nos aborrece tanto quanto saber que estamos abandonando você.
— Então ambos podemos visitar você? Ficar uns dias? (Ela engolirá isso, Eunice?) (Por que me pergunta, patrão? Basta perguntar a ela)
Mrs. Branca baixou os olhos, então ergueu-os e respondeu abruptamente:
— Fazer um quarteto? Sempre?
— Sempre.
— Bem, nós gostaríamos, acho que você sabe. Mas e Jake?
— Pois é. E Jake, Gigi? Me diga.
— Hum, Jake sente-se bem conosco. Porém, parece ficar meio tenso quando você está perto. Joan Eunice, você pegou, não foi? Ou não teria me proposto um quarteto.
— Peguei, querida. Está tudo bem. Não tem galho.
— Bem que eu disse a Jake. Ele respondeu: Que nada, não é possível, você dormia como uma pedra.
— É verdade, exceto que atingi aquele ponto da gravidez em que às vezes acordo para mijar. Mas não foi isso... Jake pode estar numa porção de lugares quando não está na cama e eu nunca investigo. O que eu percebi não servia de prova. Apenas, os homens têm uma* forma diferente de olhar uma mulher que é deles. E vice-versa. Nada que alguém possa acusar. Apenas «não tenso» descreve bem o sentimento. Não estou nem mesmo vagamente com ciúmes de Jake, apenas contente. Sei como você pode ser boa para um homem... lembre que já fui um...
— Sei, mas nunca acreditei realmente.
— Eu tenho de acreditar e jamais posso esquecer. Conhecendo você, fiquei vaidosamente satisfeita por meu marido. Conte, vocês fizeram um círculo a três com Jake? Money Hum?
— Oh, sim, sempre!
— Da próxima vez — no estúdio de vocês — irá haver um a quatro. Então nosso quarteto ficará perfeitamente harmônico e ninguém se sentirá mais tenso.
— Sim. Sim!
— Até lá, você não precisará mais continuar neste grande e assustador oceano. Não vamos ancorar. Mandarei Tom chamar um cóptero... digamos logo depois do almoço. Ele os deixará no Internacional de La Jolla e de lá vocês vão de jato para casa. O piloto do cóptero cuidará das suas coisas e Tom fará as reservas de passagens. Vocês estarão em casa aquecendo um pacote no próprio estúdio antes de ter tempo de dizer «Hora Local». Está se sentindo melhor?
— Hum, estou me sentindo uma peste mas... sim, estou melhor. Oh, meu Deus, Joan, estou com tanta saudade de casa!
— Estará em casa hoje. Vou procurar Tom e botá-lo a trabalhar. Então contarei a Jake — direi a ele por que, ele vai compreender — e o substituirei na roda do leme, dizendo-lhe que a encontrará no seu salão. Se você tiver a coragem de um rato, gatinha de telhado da cidade grande, aferrolhe a porta e dê-lhe adeus corretamente. Hum... tróia? Ou dupla?
— Oh. Tróia. É claro.
— Então vá procurar Joe e contar-lhe. Você tem dez minutos, talvez quinze. Mas, Gigi... aquele retrato da Eve, preciso comprá-lo.
— Não. Nós o daremos a você.
— Já acertamos isso há muito tempo. Joe pode me dar qualquer coisa menos quadros. Preciso pagá-lo porque quero dá-lo de presente ao meu marido. Agora me beije e pire, querida.
A Gatinha, com as velas arriadas, balançava suavemente num mar calmo. Quinze metros acima do seu mastro mais alto, um cóptero pairava enquanto descia uma cesta para transportar passageiros. Tom Finchley manteve-se afastado, orientando o piloto do cóptero com gestos de mão. Mr. e Mrs. Branca já haviam desaparecido no interior do cóptero, tendo subido na primeira viagem, mas sua bagagem estava no tombadilho a barlavento, esperando ser embarcada.
Era um monte respeitável. Joan insistira com eles para levar «tudo o que pudessem precisar para um mês ou mais — principalmente para pintar, pois deveria haver montes de gente em volta e um deles poderia querer posar... ou eu os mandarei chicotear até sangrar e então fazê-los andar pela prancha. Joe querido, você pode fazer, querendo, quadros muito românticos: cenas de piratas com vítimas sexy e patifes lúbricos. Divertido?»
Ela havia mandado o convite pelo ServMerc, com passagens frete aéreo e instruções para o ServMerc fornecer um leitor para o bilhete. Jpe a tomara ao pé da letra. Parecia ter esvaziado o estúdio: refletores, lâmpadas, cavaletes, um enorme rolo de telas, rebatedores, câmaras, equipamento fotográfico e material, coisas diversas... e um saco para cada um com roupas e artigos de toalete. Vendo o que Joe reunira, Joan ficou contente por ter ordenado que a Brink os levasse ao jato-porto e se encarregasse deles até o fim.
A cesta levou um monte de coisas e voltou para apanhar o resto. Fred e Hank, o menino de Delia, de dezesseis anos, um taifeiro prestimoso mas inexperiente, estavam carregando, ficando um segurando a cesta para evitar que rodopiasse, enquanto o outro punha as coisas dentro.
Em breve estava tudo carregado, menos uma enorme caixa, quando uma rajada de vento destruiu o equilíbrio instável existente entre o cóptero e a nave. A cesta balançou brutalmente. Fred largou-a e pulou para o lado, enquanto Hank se atirava de barriga no tombadilho, para evitar ser atingido.
Fred voltou e novamente segurou a cesta, agora três metros mais longe. Joan Eunice agarrou a alça da última caixa e depois usou ambas as mãos.
— Uau! Acho que Joe meteu a âncora dentro desta. Jake berrou:
— Eunice! Não suspenda! Quer abortar?
Tirou-a das mãos dela e se encaminhou para a cesta. Hank estava novamente em pé.
— Deixe, comandante, que eu pego!
— Saia da frente, meu filho.
Jake arrastou-se para a cesta, viu que estava alta demais, tomou a caixa nos braços, colocou-a depois no ombro e depositou-a cuidadosamente dentro da cesta... e desmaiou. Joan correu para ele.
Tom Finchley, na popa, viu quando o último fardo foi colocado dentro, ergueu os olhos para o piloto do cóptero, gritando «Levantar vôo!», ao mesmo tempo em que fazia um sinal com a mão, que significava «Tudo carregado... pode ir!»
Então baixou os olhos e começou a correr.
Joan, sentada no tombadilho, havia colocado a cabeça e os ombros de Jake sobre suas pernas.
— Jake, querido Jake! (Eunice! Socorro!) Fred disse:
— Vou chamar o doutor!
Saiu correndo pelo passadiço. O rapaz ficou parado, sem saber o que fazer. Salomon deu um longo e borbulhante suspiro e seus músculos distenderam-se. (Eunice! Onde está ele?) (Patrão, não consigo achá-lo!) (Você tem de achá-lo! Ele não pode estar longe) (Onde, que diabo?) (Aqui está ele, aqui está ele! Jake!) (Eunice, que aconteceu? Alguém me deu uma tijolada na cabeça) (Doeu, querido?) (Claro que não, patrão, agora não. Não pode doer. Bem-vindo a bordo, Jacques o Melancólico, velho bastardo encantador! Puxa, como estou contente de ver você!) (Sim, seja bem-vindo, querido. Meu querido. Nosso querido) (Eunice?) (Não, Eunice sou eu, Jock. Velho e arrogante Jock. Essa é Joan. Ou Johann. Ou patrão. Não, Joan é «patrão» só para mim. É melhor que você o chame de Joan. Olhem, companheiros de bordo, vamos deixar esta tróia clara antes de sermos postos sobre os pés. Joan, você chamará nosso marido de «Jake» como sempre... ao passo que o chamarei de «Jock», como costumava. Jock, você chamará o patrão tanto de «Joan» como de «Johann», como quiser e ela a mim de «Joan» ou «patrão». E serei sempre «Eunice» para ambos. De acordo?) (Estou confuso) (Nada de onda, querido Jock, não haverá mais galhos agora. Joan tem de dirigir enquanto ficamos sentados atrás, acariciando-a e dando conselhos. Diga-lhe, Joan) (É verdade, Jake. Agora você nos tem a ambos. Para sempre) (Om Mani Padme Hum) (Om Mani Padme Hum. Venha, Jake, é uma louvação) (Om Mani Padme Hum!)
— Om Mani Padme Hum.
— Joan, deixe eu tomar conta dele, querida.
O Dr. Garcia estava inclinado sobre ela. Joan sacudiu a cabeça.
— Eu o seguro, Roberto.
(Patrão! Pare com a frescura feminina e deixe o querido doutor trabalhar) (Sim, Eunice. Agarre-se firme em Jake) (Não tenha medo, querido. Jock, você agora pode ver? Com os olhos de Joan? Vamos nos mover) (Claro que posso ver. Quem é aquela ruína horrorosa? Eu?) (Claro que não. É apenas algo de que não precisamos mais. Olhe para o outro lado, Joan, você está perturbando Jock)
— Fred, leve-a para baixo. Hank, ajude-o. Tom, preciso de Winnie. Vá buscá-la.
O Dr. Garcia encontrou Joan no salão. Estava deitada, com um pano molhado na testa e Olga Dabrowski sentada ao seu lado. Tom Finchley, com ar solene, entrou junto com o médico. Sem dizer nada, o médico tomou o pulso de Joan, olhando o relógio.
Então disse:
— Más notícias, Joan.
— Eu sei, Roberto. Ele se foi antes de eu descer {Não se foi, patrão. Não fale assim. Jock está morto, exatamente como eu. Mas^ não se foi. Não é, Jock?) (Acho que você está se perdendo em minúcias, Pernas Sensuais...) («Pernas Sensuais»! Há muito que você não me chama assim) (E na noite passada?) (Chamou Joan e não a mim. Não na noite passada) (Vocês dois querem ficar calados? Ou pelo menos sussurrar? Tenho de lutar)
(Desculpe, patrão. Querido Jock, murmure para mim bem baixinho. Joan é melhor do que eu naquilo?) (Eunice, continuo ouvindo... Você está com os sentidos confusos) (Querido patrão, não há sentidos no Eterno Presente. Fiz uma pergunta a Jock... e ele é covarde demais para responder) (Claro que sou!) (Oh, está bem. Com meu revestimento e meus ensinamentos, Joan provavelmente está agora em condições. Além de um bom começo... você pode não acreditar, Jock; mas o patrão tem a mente mais imunda. Aquele ato mulher-com-mulher é apenas um ato) (Gêmeo, pare de querer pegar meu bode. Estou ocupada e Roberto preocupado conosco) (Desculpe, gêmeo. Farei o possível)
— Eunice, quero deixar uma coisa clara. Não teria feito a menor diferença se isto tivesse acontecido em terra, com todo o aparelhamento possível à mão. Mesmo com o Dr. Hedrick presente. Oh, teríamos podido mantê-lo vivo... vegetando. E nada mais.
— Jake não teria querido isso, Roberto. Sempre o ouvi dizer com grande ênfase. Nunca aprovou a maneira pela qual fui mantida viva.
— Os dois casos têm cento e oitenta graus de separação, Joan. Seu corpo estava ruim, mas seu cérebro em boas condições. No caso de Jake... bem, fiz-lhe um exame físico antes de embarcarmos. Seu corpo estava em perfeitas condições, para a idade. Mas sei o que a autópsia mostrará: uma enorme ruptura de um vaso sangüíneo no cérebro. Morreu instantaneamente. É o que chamamos de «acidente» cerebral, porque é imprevisível. Se isso serve de consolo, morreu sem sofrer.
(«Sem sofrer», hem, Bob? Experimente... é como um coice de mula na cabeça. Mas você tem razão. É só um. Sem dor de cabeça depois) (Senti o mesmo, querido Jock, quando me mataram. O patrão sofreu muito mais durante anos) (E daí? Agora está acabado. Queridos, por favor, fiquem calados... conversaremos quando ficarmos sós)
— Doutor, não haverá autópsia.
— Joan, deve haver uma autópsia para sua tranqüilidade de espírito.
— Isso não trará Jake de volta e ele não gostaria. Para minha «tranqüilidade de espírito», quero fazer uma pergunta: foi por causa... de uma lua-de-mel muito intensa?
— Oh. Não, apenas idade demais. Joan, não foi nem mesmo por ter erguido aquele peso. Deixe-me explicar-lhe essa espécie de «acidente». É como um pontinho num pneumático antigo, usado em excesso e a pique de estourar: qualquer coisa pode provocar o acidente. Jake podia simplesmente ter ficado de pé e tombado para a frente: hoje, amanhã, na semana passada. Oh, pode acontecer durante uma relação sexual. Ouve-se freqüentemente homens dizerem que querem morrer «enquanto estão dando a última». Mas é uma terrível experiência para a mulher que está participando do ato... e provavelmente não é o último orgasmo. Mais provavelmente ele é interrompido logo antes.
«Por melhor que fosse o comportamento de Jake, ainda viril — admito — (Você sabe muito bem que Jock era «ainda viril». Pergunte à mulher dele. A Gigi. Raios, a todo mundo) (Eunice, meu comportamento foi tão espalhafatoso assim?) (Não foi nada espalhafatoso, bodinho encantador, mas as notícias correm) ou melhor, «sei», porque fui seu médico. Jake era feliz, forte e viril... e agora está acabado, como um filme partido. Não fique preocupada com «lua-de-mel muito intensa». O casamento pode ter salvo Jake de anos de inutilidade senil. Ou pode ter abreviado sua vida em duas semanas, o que é um preço ínfimo para tanta felicidade. Porém mais provavelmente prolongou a vida dele. Um homem feliz funciona melhor. Esqueça isso, querida. Quando minha hora chegar, espero que seja igual à de Jake: rápida e feliz até o fim.»
— Então não tem sentido fazer a autópsia, Roberto. Quer assinar um atestado de óbito?
— Bem... quando a morte ocorre fora de um hospital e sem assistência médica, é costume comunicar às autoridades e...
— Roberto!
— Que é, Joan?
— Você não vai fazer isso com Jake. Comunicar a quem? A alguém em Washington? Estamos em águas federais e o médico-legista do Condado de San Diego não tem interesse especial por esta morte. Mas, provavelmente, tentará tirar partido da publicidade do caso assim que souber quem foi Jake, quem sou eu e não admito que se faça isso com a morte de Jake. Jake estava sob cuidados médicos: os seus! Você é o médico de bordo. Nada demais que você o tenha visto morrer.
Pense nisso. (Joan, não peça a Bob para mentir. Não tem a menor importância que um juiz qualquer mande o legista me retalhar) (Não permitirei! Além disso, Jake, estou grávida. Você quer que eu passe por isso? Multidões, inquirições, ser arrastada, empurrada, passar noites acordada?) (Hmmm... Querida, diga-lhe que invente uma mentira inatacável) (O patrão é uma vagabunda teimosa, Jock... mas sempre tem razão)
— Hummm... — O Dr. Garcia tirou o estetoscópio do pescoço e colocou-o de lado. — Agora que você mencionou isso: houve ^ ainda alguma atividade cardíaca depois que eu cheguei. Me faltam meios de determinar o instante em que o cérebro falhou e sou obrigado a tomar a paralisação cardíaca como o momento da morte. (Meninas, esse rapaz daria uma excelente testemunha... pensando nisso, foi uma boa testemunha nas audiências de identidade)
— Nesse caso, doutor, parece-me que as circunstâncias não são de molde a abrir processo... e pode ficar certo de que usarei meu último tostão para evitar que, quem quer que seja, transforme a morte de Jake num circo, seja quando for. Gostaria que você passasse o atestado de óbito e declarasse em que circunstâncias a morte ocorreu, enviando uma cópia para qualquer autoridade federal a ser notificada... assim que tocarmos em terra. E para mais ninguém, pois não temos residência permanente, a não ser esta embarcação. Oh, mande uma cópia para Alec Train. O testamento de Jake está com ele e vai precisar para os trâmites legais. E trate de fornecer uma fotocópia ao Comandante Finchley, para o livro de bordo.
— Está bem, Joan, já que quer assim. E concordo: houve uma morte natural e não tem sentido deixar que burocratas metam o bedelho. Mas... agora quero lhe dar algo para fazê-la dormir. Nada demais, apenas uma dose forte de tranqüilizante.
— Roberto, como está meu pulso?
— Não é da conta de um paciente, Joan.
— Foi setenta e dois, absolutamente normal... contei as batidas do meu coração nos trinta segundos entre seu primeiro olhar ao relógio e largar meu pulso. Não preciso de tranqüilizantes.
— Joan, seu coração pode estar abaixo do normal... dadas as circunstâncias.
— Então precisarei talvez de um estimulante e não de um tranqüilizante. Roberto, você às vezes esquece — embora tenha acompanhado todo o meu caso — que não sou um paciente normal. Não sou uma jovem casada sujeita a histeria. Por dentro sou um homem muito velho, com quase três vezes a sua idade, querido... e já vi de tudo. Nenhum choque pode realmente me abalar. A morte é uma velha amiga. Conheço-a bem. Convivi com ela, comi com ela, dormi com ela. Encontrá-la agora não me assustará... a morte é tão necessária quanto o nascimento, e de certa maneira uma felicidade.
Joan sorriu.
— Meu pulso está normal porque estou feliz... feliz porque meu amado Jake encontrou a morte tão facilmente e tão alegremente. Oh, vou me deitar no camarote. Costumo tirar uma soneca durante o calor da tarde. Mas e Eve?
— Hem?
— Fez alguma coisa com relação a ela? É jovem e provavelmente nunca viu a morte antes. Tenho quase a certeza de que ela precisa de um tranqüilizante... e não eu.
— Hum... Joan... tenho o que fazer. Mas... Olga. Quer procurar Winnie e dizer-lhe que eu mandei Eve tomar uma dose mínima de «Tranquille»?
— Pois não, doutor. Mrs. Dabrowski retirou-se.
— Agora, mocinha, vou levá-la até seu camarote.
— Um momentinho, doutor. Comandante, quer se pôr a caminho içando ambas as velas e as auxiliares e rumar para o ponto mais próximo do limite de cento e vinte quilômetros? Quero que estejamos em águas internacionais antes do pôr do sol.
— Muito bem, madame. Deve ser mais ou menos entre oeste e sul, talvez no rumo básico dois-seis-zero. Vou traçar na carta.
— Ótimo. Depois avise, sem afobação, que o enterro será ao pôr do sol.
— Joan!
— Roberto, você pensa que vou entregar Jake a um papa-defunto? A taxidermistas! Ele queria morrer como seus antepassados. Vou enterrá-lo como seus antepassados: com seu querido corpo intacto e de volta ao lar antes do sol se pôr.
— «Para cada coisa há uma estação e um tempo para cada objetivo sob o céu: Um tempo para nascer e um tempo para morrer»...
Joan fez uma pausa na leitura. O Sol era um círculo vermelho-laranja quase atingindo o horizonte. Numa prancha junto ao parapeito, sustentado por Fred e o médico, o corpo de Jake aguardava, cosido em telas, com lastro nos pés. (Um ritual primitivo, Johann) (Jake, se você não gosta eu paro) (Jock, você deve respeitar: isto é um funeral) (É o meu funeral, não é? Tenho de fazer cara triste pelo meu próprio enterro? Johann, eu gosto. Respeito os símbolos, principalmente os primitivos. Obrigado por isto... e acima de tudo por não deixar minha carcaça cair nas mãos de chupadores de sangue licenciados) (Só queria ter certeza, Jake. É melhor que eu continue. Escolhi muitos outros trechos)
(Continue, Johann. Apenas não interceda por mim no Céu) (Não intercederei, amado Jake. Nós três enfrentaremos juntos o que vier) (Isso, patrão. Jock sabe)
— «Todos vão para um só lugar. Todos são pó e ao pó retornarão. Quem conhece o espírito do homem?...»
«Dois são melhores que um... Pois se caírem, um ajudará o outro: mas ai daquele que estiver só quando cair, pois não terá ninguém para levantá-lo. Ainda, se dois jazem juntos, então se aquecerão. Mas como pode um só se aquecer sozinho?» (Patrão, isso me faz lembrar: devemos dormir sozinhas esta noite?) (Que diabo, Eunice, você nunca pensa em outra coisa?) (Corta essa, patrão. Há alguma coisa melhor para pensar? Ações, obrigações e coisas assim? Contei a Jock a sua descoberta: o sexo é mais intenso para uma mulher que para um homem. Ele não acredita. Mas está ansioso por verificar)
(Jake, você está tão ansioso assim? Eu pretendia mostrar respeito por sua memória) (A intenção me comove, Johann. Mas não precisa ser tão rigoroso. Não sei por que você deve me prantear quando ainda estou aqui. Hum, me diga: é mesmo melhor?) (Deixe que ele julgue por experiência própria, patrão... se é melhor pegar Eunice... ou ser Eunice. É uma comparação mais científica do que você é capaz de fazer) (Pare de falar feito um recenseador sexual, Eunice. Está
bem, companheiros. Pensarei nas modificações. Mas quero me danar se eu der um espetáculo deplorável esta noite. Não nesta noite. É preciso ser discreto... ou não se brinca)
— «E se um levar a melhor sobre ele, dois devem opor-se e uma corda tripla não é facilmente quebrável».
(Patrão, gostei. Isso completa o funeral que nunca tive. Nem mesmo um serviço fúnebre) (Mas você teve um, Pernas Sensuais) (Tive? Quem fez?) (Eu, querida. Aluguei uma capelinha e um organista. Li um par de poemas dos quais você gostava. Levei algumas flores. Não muitas) (Jock, estou comovidissima. Patrão! Ele me ama, mesmo. Não é?) (Ama, querida... ambos amamos) (Gostaria de ter estado lá, Jock) (Eu não sabia onde você estava, querida. Talvez tenha sido melhor, pois você não se porta muito bem em enterros) (Oh, bolas para você, seu velho fantasma sujo... ninguém pode me ouvir) (Veja a quem chama de «fantasma», Pernas Sensuais. Pode ricochetear em você. Deixemos Joan acabar a cerimônia e tacar o corpo no mar)
— «O que quer que seja que tua mão decidir fazer, faz com toda tua força...» «... pois teus dias são poucos e contados...» «... o homem partir para seu lar distante». «A corda de prata se desatou, o vaso de ouro quebrou». Da profundidade de onde viemos, deixemos o corpo do nosso irmão Jacob agora ser devolvido a ela.
Joan fechou a Bíblia. Fred e o Dr. Garcia ergueram a ponta da prancha. O corpo caiu na água e desapareceu.
Joan virou-se para Olga, a quem deu a Bíblia.
— Tome, Olga, obrigada.
— Joan, foi lindo. Não sei como conseguiu.
— Enxugue os olhos, Olga. Adeuses nunca devem ser tristes... e Jake estava preparado para morrer. Eu conhecia bem meu marido, Olga. Sabia o que ele queria e não foi difícil.
Apertou a mão de Olga e fez meia-volta.
— Winnie! Pare com isso. Pare imediatamente. Jake não quereria que você chorasse. (Que é que faz você pensar assim, Johann? Fico envaidecido ao ver uma criaturinha tão encantadora como Winifred chorando por mim) (Oh, corta essa, Jake. Você foi a estrela do show, agora chega de curvaturas. Fale com Eunice)
Joan tomou a mulherzinha nos braços.
— Não chore, Winnie. Não chore mesmo. Pense no seu filho. Winnie começou a soluçar no ombro dela.
— Joan, não tem nenhuma saudade dele?
— Mas, querida, como posso ter saudades, se ele nunca me deixou? A Jóia ainda está no Lótus e sempre estará. O Eterno Presente.
— Acho que sim... mas não posso me conformar!
(O querido doutor, talvez? Ele deve ter dado, com toda a certeza, um sonífero a Winnie) (Roberto nunca, Eunice. Apesar do seu agressivo ateísmo, continua tendo resquícios da educação familiar. Ficaria chocado. Numa outra noite)
— Roberto, é melhor cuidar de Winnie.
— Cuidarei... mas você está bem?
— Você sabe que sim. Todavia, tenho uma receita para você.
— Está bem. Não vou obrigá-la a tomar esta noite um verdadeiro pau-no-quengo. Digamos fenobarbital.
— Não digamos «fenobarbital». Minha receita é para Winnie. Faça-a comer alguma coisa. Então sente com ela e entoe o Money Hum pelo menos durante meia hora. Depois leve-a para a cama e a abrace até que durma. E vá dormir, senhor. Também teve um dia duro.
— Está bem. Quer juntar-se a nós na prece? Podemos ir para o seu camarote... e depois você pode ir direta para a cama. Aprendi que isso é melhor que barbitúricos.
— Doutor, se o senhor quiser, pode vir ao meu camarote amanhã de manhã às nove... e me tirar da cama se eu ainda não estiver levantada. Mas estarei. Não vá mais cedo. Hoje à noite irei entoar aquela prece hipnótica com Jake. Ele tem como me ouvir... acredite você ou não.
— Joan, não desejo atacar a crença de ninguém.
— Você não atacou, querido. Apreciei sua solicitude. Quando eu
precisar... tomarei remédios espontaneamente. Mas agora cuide de Winnie. (Patrão, e Fred? Não tem motivo para se esquivar. Jock, você ficará bem no meio. Feliz Adolf. Mas Fred não precisa saber) (Eunice, você está totalmente doidinha. Uma vez quase matamos Fred de medo, apenas sendo nós. Antes de o domesticar. Olhe para ele: está muito pior que Winnie. Sem ninguém para o consolar. Mas nós não podemos. Esta noite não)
— Comandante.
— Sim, senhora?
— Vamos acabar com o velório. Não quero ninguém por aí choramingando. O horário das refeições ficou desorganizado. Hester poderá arranjar depressa uma ceia fria? Talvez com a ajuda de voluntários? Eu me ofereceria, mas tenho algo a fazer. (Oho! Tom, o Gato. Jock, isto vai ser divertido) (Pernas Sensuais, há algum homem neste barco para quem vocês não se arreganharam?) (Oh, sem dúvida, amorzinho. Hank. Está de olho em Eve e nos considera uma velha bruxa. E agora que seu Tio Jock a abandonou, Eve pode dar para ele) (Agora que estou morto, lamento ter resistido àquela deliciosa chave de cadeia. Não teria me custado mais de um milhão me livrar da encrenca... e eu tinha uma mulher rica) (Se os dois libidinosos podem ficar calados um momento, vou mostrar-lhes uma coisa. Não será Thomas Cattus. Não antes do primeiro quarto e pode ser mais tarde, com este vento contrário. O Comandante Tom Finchley vai estar muito ocupado pilotando)
— Comandante, quero que se ponha a caminho e estabeleça uma rota para o ancoradouro de Ilha San Clemente.
— Sim, senhora. — Aproximou-se dela e acrescentou suavemente: — Agora é melhor que eu comece a lhe chamar de «Comandante». Para dar o exemplo.
Joan parou. Estavam bastante sós para que ela pudesse falar em particular, baixando a voz.
— Tom, o Gato.
— Sim?
— Não me chame de «Comandante»... o comandante é você até que eu passe nos exames. Aí veremos. E não me chame de «Madame». Sou «Mrs. Salomon» ou «Joan», dependendo dos presentes, como antigamente. Mas, em particular, continuo sendo sua «Gatinha». Pelo menos espero.
— Bem... tá bem.
— Quero ouvir você dizer.
— Gatinha. Gatinhazinha corajosa. Bichana, quanto mais a conheço, mais você me surpreende.
— Que bom. Tom, o Gato, Jake soube o tempo todo que você gateava comigo. (Oh, que mentira! Eunice, ela nunca me disse... desconfiei só uma vez e achei que tinha me enganado) (Eu sei, Jock. O
Patrão é um velhaco que não merece confiança e além disso mentia até para mim)
— Sabia?
— Sabia, Thomas Cattus. Mas Jake Salomon era um verdadeiro cavalheiro e via só o que se esperava que ele visse. Nunca me azucrinou por^ causa das minhas loucurinhas. Simplesmente me desculpava. Mas também não falava a respeito dele. Sabe se Jake alguma vez foi com Hester? (Olhe aqui, Johann...) (Cale a boca, Jock. Também andei pensando nisso)
— Hum... que diabo, bichana, todos os homens são iguais, todos querendo a mesma coisa.
— E todas as mulheres são iguais, todas temos a coisa. Então?
— Hester abriu as pernas para ele na primeira oportunidade que lhe demos. Mas não me contou. Envergonhada. Tive de pegá-los em flagrante e torcer o braço dela.
— Você na certa não a machucou.
— Não, não, bichana, nunca maltrato uma mulher. Não os peguei nem a machuquei. Dei meia-volta depressa... e mais tarde perguntei Disse-lhe que eu tinha certeza, por isso era melhor abrir o jogo e foi tudo. Ela abriu. Não havia me contado... por causa de você.
— Oh. Confio em que tenha contado a ela a meu respeito. O mestre-navegador ficou horrorizado.
— Gatinha, você pensa que sou doido? Olhe, gosto como você faz, perfeito. Mas não sou maluco. Não dedo vagabundas. Quando fizer, você será a última da lista. Acredite.
— Pode contar a Hester, se quiser, querido. Agora não tem importância. Então, daqui a algum tempo, ela não ficará surpresa por me ver fazer o que as viúvas tão freqüentemente fazem. («Elas não contam, elas não gritam, e raramente engravidam... e são gratas como o diabo») (Jock, você é um fantasma velho e sujo) Bem, vamos estabelecer nossa rota. Qual o tempo estimado de chegada, Tom, o Gato? Se passar da meia-noite, virei substituir você na vigia.
— Virá uma ova, madame... Gatinha. Vai dormir a noite inteira, pois está precisando. Mando Fred para a roda agora e deixo Hank de' vigia... arrasto uma boa esteira aqui para trás, perto do leme, e tiro uma soneca até estarmos próximos. Gatinha, você vai me prometer que ficará no camarote. Não vai ficar zanzando por aí, pois pensarei que quer saltar pela borda.
— É uma ordem, comandante?
— Hum... sim, raios, é uma ordem!
— Sim, senhor. Não precisará me vigiar. Estarei no camarote, de porta trancada e dormindo. Prometo não pular pela borda antes de amanhã de noite.
— Gatinha, você não vai pular, vai?
— Com o filho de Jake dentro de mim? Comandante, também tenho senso do dever. Até ter esta criança, minha vida não me pertence. Não só não devo me suicidar — não quererei, seja como for — mas ainda devo me manter calma, feliz, de boa saúde e não passando além de um copinho de bebida. Por isso, não se preocupe comigo. Boa noite, Tom.
Andou em direção ao seu camarote.
(Companheiros, nada a fazer nesta casa hoje de noite.., estamos face a face com a nobreza. Acho que Anton é nossa melhor solução) (O Polonês Apaixonado! Querido Jock, não tenho certeza se seu coração agüentará) (Felizmente, meus queridos, minha velha bomba não precisa mais agüentar tudo... e a que cedeu a Joan, Eunice, é um relógio suíço entre cebolas. Não dispara nem quando ela está acesa. Mas você sabe disso) (Vocês aí, vamos parar o papo. Alguém tem uma idéia de como botar Olga fora da jogada?)
(Atirá-la pela borda?) (Eunice!) (Não se pode brincar, patrão? Gosto de Olga, é uma boa moça) (Boa demais, aí é que está a coisa. Não é uma prostituta como você ou como eu... ou como Hester) (Arrumpf!) (Jake, querido, você não está no tribunal. O assunto é rabo. O meu. O nosso, quero dizer) (Johann, só quero dizer que, se você levar nosso problema diretamente a Mrs. Dabrowski, poderá ser recebido com simpatia. Sempre me aconteceu isso)
(Jake! Está sugerindo que pegou Olga? Não acredito) (Nem eu, Jock. Se você tivesse dito «Eve», eu teria vacilado... mas acreditado. Porém Olga? Que diabo, ela usa calcinha até na piscina) (Que é tirada com facilidade... em particular)
(Eunice, acho que é verdade. Bem, raios me partam! Você e eu somos babacas. «Tiro o chapéu para o duque». Está bem, Jake... diga como devemos agir a esse respeito) (A respeito de quê? Tirá-la da jogada? Basta pedir, ela é muito compreensiva... e sentiu minha morte muito mais que vocês, putas) (Jock, não é justo. Nós sentimos... mas ficamos superalegres por você ter decidido permanecer)
(Obrigado, minhas queridas. Se, pelo contrário, quiserem convidá-la a entrar...) (Uma tróia?) (Acho que é a gíria atual, Eunice. Na minha juventude tinha outro nome. Mas não seria mais apropriado um pentágono? Cinco?)
(Hoje se diz «estrela», Jock. Mas deixe que eu lhe ensine a primeira regra da felicidade fantasmal. Você nunca, nunca, nunca deve admitir que está aqui, nem infernizar Joan para admitir. Porque ela pode ficar zangada e aceitar. Conseqüentemente, Joan pode ser metida numa fábrica de mumificar — nos levando junto — e lá se vai nosso tempo feliz. Olhe, você esteve casado com Joan algum tempo e transou com ela ainda mais tempo: algum dia suspeitou que eu também estivesse presente?) (Nunca) (Viu? Não admita o fato e nos deixarão em paz)
(Eunice, Jake nunca espalhará isso. Mas com relação a Olga: Jake, você alguma vez ensinou-lhe o Om Mani?) (Não) (Patrão, estou começando a perceber. Nós ensinamos a Anton, Jock. Olga é flexível bastante para sentar em Lótus?) (Pernas Sensuais, Mrs, Dabrowski é flexível bastante para qualquer coisa) (Está resolvido, Joan. Olga se juntará a nós, mesmo que pense ser pagão... esta noite ela quererá. Por sua causa. E não há melhor maneira de ter uma reunião pelada e movimentada que formando um Círculo. Já fizemos isso várias vezes) (Segundo me lembro, queridos, Joan chegou mesmo a usar comigo. Quando era desesperadamente necessário. Tá bem, vamos procurar os Dabrowski)
Entrevistas Abertas — Estado Maior Federal 19 Assistente de Previdência para Trabalho de Campo (Aprendiz-Visitante) Aptidão cultural padrão C. Dá-se preferência a pardos ou mais escuros. Dá-se preferência a veteranos, a soltos condicionalmente, a altamente experientes em semi igualdade. Procure a Repartição Civil local ou o escritório da Previdência para exame prévio e fórmulas de salário. Estes são baseados na tabela em vigor, mais custo de vida no interior e taxa de área perigosa, cumulativamente.
A Sociedade para a Astrologia Racional compareceu hoje à Câmara de Nebrasca, se comprometendo a aceitar uma «cláusula de avô» na lei de licenciamento. A Comissão de Agricultura & Artes Mecânicas votou depois a reforma da lei «De Transmissão» por 7 a 2, equivalente à da legislatura unicameral do Estado. A Associação Protetora dos Astrólogos Intuitivos chamou-a de «o maior revés para a ciência desde Galileu». A Comissão Lunar anunciou que as Colônias estão agora 102% auto-suficientes em alimentos, mas acrescentou que o plano decenal vai continuar a incrementar a emigração potencial. O ROMANCE MAIO-DEZEMBRO TERMINOU... no mar, no iate de lua-de-mel. A jovem viúva permanece internada...
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Sem operação, sem drogas perigosas ou hormônios, sem injeções maléficas. Aprenda os segredos aperfeiçoados há 25.000 anos pelos Mestres Hindus sábios e sagrados.
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(Arranje um Cara, Mara! Sacou?)
— ... porta para exame. Bom divertimento, Mrs. Garcia. Felicidades, doutor. O próximo! Ande depressa e sente aqui... seu marido não veio? Ou é «miss»?
— Sou viúva, Mr. Barnes.
— É? Não recebemos muitas viúvas, nem a Comissão as encoraja. A emigração não é uma fuga para os problemas emocionais. Tais como perda de alguém. Nem aceitamos requerentes em tão adiantado estado de gravidez, a menos que haja vantagens para a Comissão e não para o ^ candidato. Olhe o casal que se apresentou antes da senhora. Ela está grávida... mas o marido é médico, uma das principais categorias de emigração subvencionada. Por isso, a admiti. Podia ter admitido só a ela: é enfermeira. Porém, a menos que a senhora tenha alguma qualificação especial...
— Sei, senhor. O Dr. Garcia é meu médico particular.
— Hem? Mesmo que eu a aceite, não significa que ele continuará a ser seu médico na Lua. É pouco provável, na realidade. A menos, por coincidência...
— Mr. Barnes, meu requerimento de emigração está diante dos seus olhos. Foi cuidadosamente redigido pelo meu advogado. O senhor ganhará tempo dando-lhe uma olhada.
— Tudo a seu tempo. A senhora ficaria surpreendida se soubesse a quantidade de gente que chega aqui sem a menor idéia do que terá de enfrentar. Parecem achar que a Comissão está ansiosa para recrutá-los. Não há nada mais longe da verdade. Dezenove em vinte dos que sentam nessa cadeira são impedidos por mim de entrar pela porta do exame. Adquiri muita prática em me ver livre rapidamente dos mais evidentes desperdiçadores de tempo. Hum, Salomon, Eunice. Mrs. Salomon, primeiro quero saber... Mrs. Salomon?
— Mrs. Jacob Moshe Salomon, Joan Eunice Smith de solteira.
— Seu rosto tem realmente algo familiar, mas suas feições, hum...
— ... agora estão inchadas. É verdade. Engordei treze quilos... o que o Dr. Garcia considera satisfatório para minha estatura, constituição e estado da gravidez.
— Isso traz à tona outros problemas. As mulheres freqüentemente se enganam com relação à data... e o primeiro filho notoriamente tem pressa de chegar. Nossos transportes lunares foram concebidos para crianças pequenas e não para partos. Peço-lhe que compreenda os perigos.
— Conheço-os. Precisamos discuti-los?
— Cabe a mim julgar.
— Mr. Barnes, meu médico está satisfeito porque eu sei a data exata em que engravidei e... Tudo isto é confidencial?
— Hummm. Trata-se do seguinte. Nada disto é secreto. Sou advogado, mas não o seu. Ouço mais detalhes íntimos dos requerentes que a senhora possa imaginar, mas não tenho tempo a perder com fofocas.
— É bom saber disso, Mr. Barnes... pois eu ficarei muito aborrecida se o que vou lhe contar se tornar assunto de fofoca.
— Hummmpf. Acho que senti um calafrio. A senhora está tentando me impressionar com a sua importância? Não perca tempo. Os requerentes, quando chegam aqui, são todos iguais. Seu dinheiro nada significa.
— Fui agressiva? Desculpe.
— Bem... Voltemos ao assunto. Um advogado do Serviço Civil da Comissão Lunar — um trabalho que resiste a pressões, acredite-me — nem sempre lida com gente rica. Mas não faz a menor diferença. Se não quiser ser franca com a Comissão, o problema é seu. Mas não me disponho a aprovar um requerimento antes deste me satisfazer. Satisfazer totalmente. A senhora acaba de sugerir que tem algo a dizer a esse respeito, que considera «confidencial». Não aceito a restrição. Assim... quer falar? Ou vamos encerrar a entrevista?
— O senhor não me dá alternativa, senhor. Este não é o meu primeiro filho. Portanto, não existe o perigo do «primogênito». Se a «Goddard» partir na data marcada, tenho todos os motivos para esperar ter meu filho na Lua. Nem o Dr. Garcia nem eu estamos preocupados com o problema do tempo.
— É? Mas isso provoca outras considerações. Esse antigo filho... ele ou ela afetam sua herança?
— Não. É por isso que o assunto precisa ser tratado confidencialmente. Eu não tenho essa criança.
— Hem? A senhora me confunde. É melhor esclarecer.
— Por favor, Mr. Barnes. Mudei de sexo e fiz um transplante de cérebro. Certamente o senhor sabe disso... céus, todo mundo sabe. O primeiro filho que este corpo teve foi antes disso. É a reputação da minha doadora que eu quero proteger e não a minha. A criança era ilegítima. Coisa muito comum nos dias atuais — não é mais um conceito legal na maioria dos Estados e o próprio vocábulo está quase obsoleto — minha gratidão é tanta para com a doce e graciosa dama que viveu antigamente neste corpo, que me consideraria totalmente infeliz se contribuísse para manchar sua memória.
(Patrão, o senhor sabe que não ligo a mínima) (Deixe-a cuidar disso, Eunice. Esse burocrata pode estragar tudo se Joan não o distrair dessa maneira. Estamos aqui para dar conselhos a Joan?... Ou estamos indo para a Lua?) (Raios, estamos indo para a Lua! Com o meu «sim», o seu e a metade do de Joan — ela está sempre em cima do muro, com as pernas sempre abertas — o que constitui uma maioria de cinco a um pró-emigração. Uma maioria esmagadora!) (Pois deixe-a só, enquanto resolve o caso) (Se Joan não estivesse tão barriguda, poderia manejar esse cara muito melhor e mais depressa)
(Arrumpf. Eunice, você diz que esteve lá... assim, por que não conta francamente a respeito ao velho e melancólico Jacques? Era meu, não era? Fui eu?) (Jock, velho fantasma, eu o amo muito... mas se pensa que vou abandonar meu gêmeo, você não me conhece) (Oh, está bem. Uma criança, é uma criança, é uma criança. Espero apenas que não tenha duas cabeças) (Duas cabeças seria levar muito longe uma coisa boa. Jock, dei um jeito para ela ter duas bolas) (Pensando em incesto, Pernas Sensuais?) (E por que não? Já experimentamos tudo o mais)
(Jake, Eunice... querem fazer o favor de ir dormir? O Cavalheiro Hipócrita aqui está procurando cocô de mosca na obra-prima de Alec. Tentando arranjar mais objeções... às quais terei de responder)
— Mrs. Salomon, estou muito preocupado com um aspecto concernente a esse suposto primeiro filho: a grande probabilidade de que uma ação futura possa ser proposta contra seu direito de dispor de sua herança, quando essa criança, ou alguém dizendo-se seu filho, aparecer. A metade dos bens exigidos — como um mínimo — de cada emigrante não pertencente a uma categoria financiada, é a fonte do capital das colônias. A Comissão não concorda em devolver um níquel, assim que tiver recebido sua parte do acordo. Porém esse tal «herdeiro perdido» pode reclamar sua herança inteira.
— É muito improvável, Mr. Barnes, mas se der uma olhada no «Apêndice G», verá como meu advogado cuidou do assunto. Um pequeno depósito para solucionar qualquer reclamação, entregando-se o que sobrar a uma associação de caridade.
— Hum, deixe-me terminar, Mrs. Salomon. Hummm... a senhora chama dez milhões de «pequeno»?
— Chamo.
— Hummm. Talvez eu deva dar mais atenção às outras disposições financeiras. A senhora foi advertida de que, mesmo tendo a Comissão ficado com apenas metade da sua fortuna, a outra metade não pode ser usada pela senhora para comprar seja o que for na Lua? Em outras palavras: pobres ou ricos, todos os emigrantes são iguais na Lua.
— Sei disso, Mr. Barnes. Acredite, meu advogado, Mr. Train, é muito cuidadoso. Examinou a lei e certificou-se de que eu conhecia a conseqüência dos meus atos... porque ele não os aprova. Em resumo, Alec Train diz que quem quiser ir viver na Lua deve estar maluco. Portanto, tentou me livrar do que ele chama de minha loucura. O senhor encontrará quatro outros herdeiros possíveis no «Apêndice F»: minhas netas. É negócio para elas aceitarem o que lhes é oferecido... pois foram avisadas francamente de que seria muito pior se esperassem pela minha morte. Uma espera má, seja como for. Sou hoje fisicamente mais moça que elas e provavelmente durarei mais tempo.
— Talvez seja verdade. Principalmente na Lua, onde há um prolongamento de idade. Eu próprio gostaria de poder emigrar. Mas não posso me dar ao luxo de pagar para isso como a senhora. E os advogados não são necessários lá. Bem, seu Mr. Train parece ter pensado em tudo. Vejamos seu balancete.
— Um momento, senhor. Pedi um pequeno favor de tratamento especial.
— Como? Todos os emigrantes são tratados iguais. É preciso.
— Uma coisinha à toa, Mr. Barnes. Meu filho nascerá logo depois da minha chegada na Lua. Pedi para que o Dr. Garcia me assistisse até lá.
— Não lhe posso prometer, madame. Desculpe. Política. Joan começou a se levantar lentamente.
— Então não quero prosseguir.
— Hem?... Meu Deus! Seus bens líquidos são realmente estes? Ela encolheu os ombros.
— Qual a fortuna de uma mulher grávida, senhor? Acho que depende do seu senso de valor.
— Não foi isso o que eu quis dizer. Este balancete... Se estiver correto, a senhora não é apenas rica — coisa que eu já sabia — mas bilionária!
— Provavelmente. Nunca somei. Esse resumo foi preparado pelo Chase Manhattan com a assistência das auditorias aqui relacionadas. Acho que está correto... a menos que algum computador estivesse com soluços. Mas devolva-me isso... pois a Comissão não pode prometer que o Dr. Garcia fará o meu parto.
— Por favor, madame. Tenho uma certa largueza nesses casos. Apenas não a uso... ordinariamente. Política.
— Política de quem, Mr. Barnes? Da Comissão? Ou sua?
— Hem? Ora, minha. Já disse.
— Então pare de me fazer perder tempo, seu cretino!
(«Foi o que eu disse a ele, Gorducha!») (Eunice, esta é uma gorducha que não vai mais fazer bobagens. Estou com as costas doendo)
A explosão quase fez Mr. Barnes cair da cadeira giratória. Recuperou o equilíbrio e disse:
— Por favor, Madame Salomon!
— Rapaz, vamos deixar de bobagens! Estou em adiantado estado de gravidez, como pode ver. O senhor me deu aulas sobre os perigos do parto... e não é médico. Meteu-se em assuntos particulares com a imprudência de um recenseador sexual. Tentou me dizer que eu não poderia ter meu médico quando ele estará viajando na mesma nave... e agora descubro que não se trata de um regulamento da Comissão, mas simplesmente uma mesquinha arbitrariedade da sua parte. Machice. Durante toda esta maluquice — embora eu tenha vindo com uma proposta cuidadosa e completamente preparada — o senhor me deixou sentada numa cadeira dura e inconfortável. Minhas costas estão doendo. Em quantos requerentes pobres e desamparados o senhor alimentou seu ego? Mas não sou «pobre» nem «desamparada». O senhor falou de «sentir calafrios». Posso muito bem mandar despedi-lo! Seu calafrio vai ser maior.
— Por favor, madame. Eu disse que a senhora poderia ter seu médico. E tenho poderes para examinar a proposta de cada requerente.
— Então tire a bunda preguiçosa dessa cadeira confortável para que eu me sente em seu lugar e venha sentar neste banquinho duro.
— Pois não, madame. — Trocaram de cadeiras. Imediatamente ele disse: — Vejo que está aplicando quase a totalidade dos outros cinqüenta por cento de sua fortuna em pesquisa e desenvolvimento de naves estelares.
— O que eu faço com meu dinheiro não é da sua conta
—Eu não disse que era. Fiquei espantado por ser... invulgar
— Invulgar por quê? Meu filho pode querer viajar numa nave estelar. Quero que essa pesquisa seja apressada. Mr. Barnes, o senhor já olhou demais para essa proposta. Se não tivesse falado tanto agora já a saberia de cor. Faça o que tem de fazer. Ponha o seu X ou carimbe sua marca. Ou devolva o papel, para eu ir embora. Já! Não daqui a cinco minutos... mas já. Minhas costas continuam doendo. O senhor é um pé no saco, Mr. Barnes. O senhor, sua mesquinha «política» e sua conversa fiada.
O homem assinou.
— Por aquela porta, Madame Salomon.
— Obrigada.
Começou a andar para a porta.
— Você não é bem-vinda... puta velha!
Joan Eunice parou, voltou-se e atirou-lhe seu mais radiante sorriso.
— Ora, obrigada, querido! Foi a coisa mais agradável que me disse. Porque foi totalmente honesta. Evidentemente que não sou bem-vinda, da maneira como gritei com você... e respondendo suas grossuras com outras piores. E de fato sou ambas as coisas: velha e puta.
— Eu não devia ter dito isso.
— Oh, claro que devia. Mereci demais. Mas nunca teria procurado tirar seu emprego... juro, não sou tão mesquinha assim. Foi o mau humor da dor nas costas quem falou. Admiro sua coragem de dizer aquilo. Como é seu nome?
— Hum, Matthew.
— Um belo nome, Matthew. Forte — Joan Eunice voltou e parou junto dele. — Matthew, vou para a Lua. Nunca farei o caminho de volta. Quer perdoar esta puta velha e ficarmos amigos? Quer me dar um beijo de despedida? Não tenho ninguém que vá ao meu embarque, Matthew... quer me dar o beijo de despedida pela minha partida para a Lua?
— Hum...
— Por favor, Matthew. Hum, não ligue para a barriga. Ficarei meio de lado... assim é melhor.
Molhou os lábios, ergueu o rosto e fechou os olhos. Logo depois suspirou e se aninhou mais.
— Matthew? Permite que o ame? Oh, não quero dizer seduzi-lo, pois é muito tarde para isso. Estou quase na mesa de parto. Diga-me apenas que posso pensar em você com amor, quando estiver na Lua. Fica muito longe e estou com um pouco de medo... passei muito tempo sem amor e quero amar a todos que permitirem... a quem me der um pouco de amor de volta. Quer, meu querido? Ou esta puta é muito velha?
— Hum, Madame Salomon...
— Eunice, Matthew.
— Eunice. Eunice, você é uma putinha fogosa, se é. Mas eu a fiz ficar sentada ali — mesmo antes de compreender quem você era — porque gostei de a olhar. Que diabo, querida, minha mulher diz que posso amar qualquer mulher que eu quiser... na proporção de dez por cento do amor que tenho por ela.
— Dez por cento é um bom lucro para* qualquer investimento, Matthew. Está bem, me ame esses dez por cento... e amarei você dez por cento do que amei — e ainda amo! — meu querido marido. Há bastante amor nesses dez por cento para mais um beijo? A viagem para a Lua é longa... preciso que ele me aqueça o tempo todo.
Joan fechou os olhos e esperou.
(Ei, gêmeo, o rapazinho desta vez foi melhor) (Não me aborreça agora, estou ocupada!)
Mr. Barnes murmurou imediatamente:
— Encantador!
— Agora estão gordos e inchados. Por isso estou usando roupas
para cobri-los. Mas você precisava ter visto Eunice — a primeira Eunice, minha benfeitora — na sua melhor forma, com roupas deixando ver os seios.
— Continuo dizendo que são encantadores. Acho melhor pararmos aqui, pois há um montão de gente na outra sala esperando. E você tem quase quatro horas de exames antes de ir para a quarentena. Se quer ir junto com seu médico para o Porto Andes, está na hora.
— Sim, Matthew. Amo-o — dez por cento — e continuarei amando-o
na Lua. Com juros compostos. Por aquela porta?
— Por ela e siga as setas. Adeus, Eunice. Cuide-se.
(Patrão, teve altos e baixos. Ele estava nos beijando? Ou beijando um bilhão de dólares?) (Me pareceu — embora eu seja um aprendiz perto de vocês, prostitutas — que o rapaz começou beijando um bilhão de dólares e terminou beijando Joan. Nós. E muito bem. Queridas, descobri que minha natureza animal ficou bastante abalada... já estou gozando a nossa volta à circulação) (Raios, querido Jock, estamos todas. Acaba de me ocorrer, Joan, que deve haver montes de emigrantes saudosos de casa, que apreciarão uma moça do interior, que aprendeu na escola secundária a beijar com os olhos fechados e os lábios abertos) (Eunice, é com isso que estou contando. Sete bilhões de pessoas fazem da Terra um lugar terrivelmente solitário... mas há apenas poucos milhares em Luna e, se nos esforçarmos, poderemos conhecer todos e amar a maioria. Que é que você acha, Jake?) (Johann, podemos tentar. Devemos. Uau, chegamos na primeira parada. «Exame físico». Vacinas e outras indignidades. Mas que diabo?... Alguém deu-nos um beijo de despedida)
Segundo transcrição no Christian Science Monitor, o Izvestia condenou o anúncio (Selenita Diário, ano 35, dia 69) da Comissão Lunar, pedindo propostas de estudo para dar condições terrestres a Ganimede, como «mais um exemplo provocador das insaciáveis agressões da aliança maluca entre as duas maiores potências imperialistas, contra-revolucionárias e genocidas, os Estados Unidos da América e a pretensa República Popular Democrática da China» e pediu que o Conselho de Segurança das Nações Unidas agisse antes que fosse tarde. No Parque Nacional de Sequóia foram descobertas três famílias (ou possivelmente uma família ampliada) vivendo a sessenta metros de altura numa árvore. O grupo (sete adultos e cinco filhos, dois com menos de um ano) declarou estar vivendo ali há mais de três anos. Os amplos arranjos para um sistema de vida único deu peso à declaração. Foram indiciados numa quantidade de acusações, mas o promotor federal recusou-se a processá-los: «Não vou gastar meu tempo e o dinheiro dos contribuintes com um bando de macacos. Que eles voltem para as árvores!»
O Piquenique Anual do Estado de Iowa em Long Beach, Califórnia teve 243 casos de envenenamento grave por alimentação (botulismo) 117 assaltos com morte, 3 estupros e choveu. «... do grande Estado de Nova Iorque sabe que a destruição dos cortiços não é resposta. Precisamos ouvir a morte bater o tambor antes de admitirmos que todo organismo, seja homem, cidade ou civilização, envelhece com o tempo e morre?» Numa carta publicada em Nature (Ing.) anunciou-se que cientistas em Novosibirsk resolveram tanto o problema da reprodução de gêmeos como do desenvolvimento extra-uterino do feto in vitro e é preciso agora contar, na corrida das grandes potências, com um fornecimento potencialmente ilimitado de operários, soldados e camponeses. Um editorial no mesmo número insiste com o missivista, prêmio Nobel, para que escreva ficção científica ou, pelo menos, que mude a marca do haxixe. Os debates da legislação proposta para controlar os neopsicodélicos continuou: «O cavaleiro no outro lado da bancada já se deteve no efeito potencialmente desastroso para nossa economia restringir as leis sobre narcóticos já existentes? Ou está falando para o auditório da TV?» Observadores experientes acham que nesta sessão não haverá votação.
Em Luna City, Mrs. Salomon, juntamente com todas as outras mulheres, chegou ao fim dos seus nove meses lunares. Seu encantador umbigo estava há muito saliente e sua barriga era uma cúpula de vida empurrando o lençol para cima. Estava esperando, no Hospital Comunal, no oitavo subsolo. A enfermeira sentada ao seu lado também estava grávida, mas não muito perto do momento.
— Winnie?
— Que é, querida?
— Se for homem, tem de se chamar Jacob Eunice... e se for mulher, Eunice Jacob. Prometa.
— Já prometi, querida. Fiz por escrito, como você me pediu. E prometo cuidar do seu filho — já está tudo resolvido, gravado — cuido do seu e você do meu. Só que não vai ser preciso, querida. Ambas vamos estar bem... e os criaremos juntas.
— Me prometa, é importante. (Johann, não chame essa criança de Jake. Chame de Johann: Johann Eunice) (Jake, eu não quero esmagar uma criança chamando-a de Johann: por causa desse nome fui obrigado a aprender a brigar muito cedo) (Jock, não discuta com o patrão. Ela tem sempre razão, você sabe) (Então chame-o de John!) (O nome é Jacob, Jake... não quero saber de outro) (Joan, você é o velho bastardo mais teimoso de todo o Sistema Solar... e virar mulher não lhe melhorou em nada. Pronto, está bem!) (Amo-o, meu marido) (Ambos o amamos, patrão... e Jake está tão orgulhoso do nome quanto eu)
— Prometo-lhe, Joan. Juro.
— Minha doce Simpática. Percorremos um longo caminho juntos: você, eu e Roberto.
— Foi, sim, querida.
— Estou doente, não estou?
— Não, Joan, não está. Nenhuma mulher se sente bem pouco antes de ter um filho... eu sei, vi centenas delas. Já lhe disse que este tubo é de glicose.
— Que tubo? Winnie, chegue aqui e ouça. É importante. Meu filho precisa se chamar...
— ... síndrome de rejeição, doutor. Atípico, mas inconfundível.
— Doutor Garcia, por que disse atípico?
— Hmmm. Às vezes, quando está inconsciente, ela fala com três vozes diferentes e... bem, duas delas estão mortas. Personalidade dividida.
— Então? Não sou psicanalista, Doutor Garcia. «Personalidade dividida» me diz muito pouco. Mas não vejo como isso afeta necessariamente a gravidez. Já pus no mundo crianças lindas e saudáveis, cujas mães estavam fora de si.
— Também não sou psicanalista, senhor. Considere que ela está inconsciente a maior parte do tempo... e que eu acho ser isso parte do quadro clínico total, o que — na minha opinião — oferece um diagnóstico de rejeição do transplante.
— Doutor Garcia, o senhor sabe mais sobre transplantes que eu. Nunca na vida tratei de um caso de transplante. Mas esta paciente me parece em muito bom estado. Aqui mesmo neste hospital, tenho visto mulheres que parecem estar em condições muito piores... têm filhos, levantam-se e vão trabalhar três dias depois. Com nossa baixa gravidade, recuperam-se rapidamente. O senhor acha que esta paciente teve algum trauma na viagem da Terra para cá?
— Oh, não! As celas flutuantes de aceleração eram maravilhosas. Mrs. Salomon viajou numa e minha mulher também. Controlei-as. Joan se portou melhor que Winnie. Fiquei com inveja delas, pois gozei a viagem numa cadeira comum bastante incômoda. Não, não vejo relação. Os sintomas de rejeição não apareceram até esta semana — Garcia franziu o cenho. — Ela não deve saber que sua mente não está normal: fica lúcida de vez em quando. Porém o controle dos movimentos está piorando. Aquele corpo jovem e forte sustenta o metabolismo dela... mas sinceramente, doutor, não sei por quanto tempo. — Tornou a franzir as sobrancelhas. — Pode acontecer a qualquer momento... raios, gostaria de ter equipamento apropriado!
O médico mais velho balançou a cabeça.
— Filho, estamos na fronteira. Não estou fazendo pouco de sua especialidade... mas aqui não é o lugar para ela. Aqui encanamos ossos e tiramos apêndices. Procuramos evitar que moléstias contagiosas espalhem-se pela colônia. Mas quando chega a hora de morrer, morremos — eu, o senhor, todos — e saímos do caminho dos vivos. Agora suponha que tivesse aqui todos os Johns Hopkins com o Centro Médico Jefferson de quebra: conseguiria evitar? Fazer regredir? Haveria possibilidade de remissão espontânea se o senhor tivesse seu fabuloso equipamento?
— Não. O máximo que eu poderia fazer é prolongar sua vida.
— É o que está nos livros, mas eu queria ouvi-lo dizer. Bem, doutor? O paciente é seu.
— Vamos tirar a criança.
— Mãos à obra.
Joan Eunice acordou quando estava sendo levada pelo corredor.
— Roberto?
— Estou aqui, minha querida.
— Para onde estão me levando? Vou ser operada outra vez?
— Vai, querida.
— Por quê?
— Porque não entrou em trabalho de parto quando devia. Por isso vamos fazer a coisa pelo meio mais fácil: cesariana. — Acrescentou: — Não precisa se preocupar. É tão sem importância quanto tirar um apêndice.
— Roberto, sabe que nunca me preocupo. Você vai operar?
— Não, o cirurgião-chefe. Tem muito mais prática do que eu. É o Dr. Frankel. Você sabe quem é: examinou-a hoje de manhã.
— Foi? Não estou me lembrando. Roberto, preciso dizer uma coisa muito importante a Winnie. É sobre o nome do meu filho.
— Ela sabe, querida, tomou nota por escrito. «Jacob Eunice» ou «Eunice Jacob».
— Oh, que bom! Então está tudo bem. Mas diga-lhes que andem depressa, Roberto. Nunca tive prazer em ficar plantado numa cabeça de ponte.
— Vai ser rápido, você nem perceberá. Anestesia espinal e um montão de barbitúricos, Joan.
— É gozado o senhor me chamar de Joan. Meu nome é Johann, doutor. Agnes vai ficar boa... vai, não é?
— Sim, Johann. Agnes... vai ficar boa.
— Eu mandei ela ficar boa. Doutor, estou sonolento. Se eu cair no sono, quer me acordar quando Agnes for ter o nosso filho?
— Sim, Johann.
— Muito... obrigado... Mrs... Wicklund. Eu não... sabia... que pudesse ser... tão... maravilhoso...
— Roberto? Onde está você? Não posso vê-lo.
— Estou aqui, minha querida.
— Pegue em mim. Toque meu rosto. Não posso sentir nada abaixo dele. Roberto, o que eu obtive foi um ano maravilhoso... e não me lamento. Já começaram?
— Ainda não. Quer voltar a dormir, querida?
— Preciso? Preferia não. Estou com sono, meio sonhadora e bem... mas prefiro não dormir logo. Agora está nas mãos dos deuses, hem? Está na hora de enfrentar o fogo de cabeça erguida. Mas não preciso de pílulas, estou feliz. Aproxime-se, querido, preciso lhe contar por quê. Mais perto... não posso falar... muito alto.
— Suma! Raios, enfermeira, saia do meu caminho!
— Tudo sempre fere, Roberto... tudo. Sempre. Mas algumas coisas valem o sofrimento. «Prenda o meu canguru, gente, prenda o meu canguru!» Não... era... o que eu... queria dizer. É Jake, está cantando outra vez. Sempre canta quando está feliz. Chegue bem perto... para eu poder lhe dizer... antes... que eu durma. Obrigada, Roberto, por deixar-me recebê-lo dentro do meu corpo. É bom tocar... fuder... ser fudida. Não é bom... ficar... só demais. Você me abençoou... com seu corpo, querido. Agora vou dormir um pouco, se puder... mas primeiro tinha de lhe dizer isso. Om Mani Padme Hum. Agora vou deitar e dormir...
— Doutor, ela está desmaiando.
Uma criança chorou, um mundo começou.
— O coração está falhando!
(Jake? Eunice?) (Aqui, patrão! Agarre-se! Isso! Conseguimos lhe pegar) (Foi menino ou menina?) (Que interessa, Johann... foi uma criança! «Um por todos e todos por um»
Um velho mundo desapareceu e então não ficou ninguém.
Robert Anson Heinlein
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